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PUBLICADO

10.02.2008
E m uma pausa nas aventuras em curso de Lawrence e Holo, o
autor, Isuna Hasekura, apresenta Side Colors, uma série de histórias
curtas focadas nos personagens favoritos da saga.
SPICE & WOLF VOL I ⊰4⊱
SIDE
COLORS
ALGUÉM ESTAVA
PARADO ALI,
ILUMINADO PELO SOL

O GAROTO PENSOU
QUE ERA A VOZ DE
DEUS.

O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS


LAWRENCE ESTREMECEU DESISTINDO
E OLHOU PARA A MAGNITUDE DO CÉU
SOBRE ELE, QUE ERA DE UM AZUL
MUITO, MUITO CLARO.

O VERMELHO DA MAÇÃ,
O AZUL DO CÉU
“ESTÁ DIZENDO
QUE ESTOU
SPICE & WOLF VOL I ⊰8⊱
MUITO ANIMADA?”

“MAÇÃS FRIAS DEIXAM


AS PESSOAS
MELANCÓLICAS.”

A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR


O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ............. 11
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ...................... 139
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ................................ 173
POSFÁCIO....................................................................... 217
EXTRAS ........................................................................... 220
lass se sentou em uma rocha plana à beira da estrada, logo
após uma pequena colina.
Sem nada para obstruir a visão, ele podia ver várias trilhas
em todas as direções, apesar da colina não ser
particularmente grande.
As coisas pareciam iguais em todas as direções e, embora ele
tivesse ouvido que a estrada continuava até o mar, ele não conseguia
ver nada além de um rio.
Klass, com pouco mais de dez anos no mundo, não conseguia
conceber o que era exatamente o “mar”.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 12 ⊱

Mas, pelo que ele tinha ouvido, não era algo que alguém pudesse
ignorar facilmente enquanto caminhava pela estrada, então ainda
deveria estar um pouco distante. Ele colocou a vara grossa que estava
usando como cajado ao lado dele e pegou um odre de couro com água.
Ele umedeceu os lábios com um pouco da água amarga pelo couro. A
brisa bagunçou seu cabelo castanho e ele olhou casualmente para trás.
A casa que os expulsou ficou fora de vista há muito tempo. Klass
se sentiu mais indignado do que solitário com o fato.
Ele não sabia exatamente por que se sentia assim, mas em todo
caso, o motivo havia entrado em seu campo de visão.
Ele se perguntou se ela tinha parado por causa das flores brancas
que ali floresciam, e de fato foi por isso mesmo.
O inverno acabou; seus ventos secos e gelados haviam cessado e,
ao sol da primavera, o cheiro de grama macia enchia o ar. Agachada,
olhando incansavelmente, quase avidamente, para as flores sem nome,
ela não era muito diferente de uma ovelha.
Sua cabeça estava completamente coberta por um capuz e a bainha
de seu manto branco quase tocava o chão.
Ele estava perto o suficiente para ver os lugares onde o manto
estava um pouco sujo, mas um pouco mais longe, ela definitivamente
se pareceria com uma ovelha.
O nome dela era Aryes.
Ela disse que não sabia quantos anos tinha, mas para a frustração
de Klass, ela era um pouco mais alta do que ele.
Assim, ele decidiu que ela era dois anos mais velha do que ele.
“Aryes!” Klass chamou seu nome e Aryes finalmente ergueu os
olhos. “Você prometeu que ultrapassaríamos quatro colinas até o
meio-dia!”
Embora ele ainda não soubesse o que Aryes estava pensando em
geral, Klass havia apreendido algumas verdades fundamentais.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 13 ⊱

Uma era que ela nunca faria algo só porque ele pediu, mas se ele
a convencesse a fazer uma promessa, ela sempre a cumpriria.
Klass se perguntou quantas vezes ele pensou em deixá-la para trás
depois que ela parou no meio do caminho antes de perceber esse fato.
Aryes se levantou vagarosamente e se arrastou morro acima,
olhando várias vezes para as flores enquanto caminhava. Klass suspirou
e falou.
“Elas são tão raras?”
Ele ainda estava sentado na rocha plana e então olhou para ela.
Com o capuz sobre a cabeça, seu rosto não era visível, a menos
que alguém estivesse muito perto ou olhando de baixo.
Foi assim que Klass viajou com ela por algum tempo antes de
perceber que, embora sua expressão pouco mudasse, o rosto sob o
capuz era muito adorável.
“Essas são... flores, certo?” perguntou Aryes, como se quisesse
confirmar algo muito importante.
“Sim, são flores. Você as viu ontem e anteontem, não foi?”
Seus frios olhos azuis estavam fixos nas flores que cresciam na base
da colina.
Outra brisa soprou, fazendo tremer uma mecha de cabelo loiro
que escapava do capuz.
“Mas... é realmente estranho,” disse Aryes.
“O que é estranho?”
Aryes olhou para Klass pela primeira vez, inclinando a cabeça
interrogativamente. “Não havia vasos embaixo daquelas flores. Por
que elas não murcharam?”
Sem nem mesmo franzir a testa, Klass olhou para Aryes da cabeça
aos pés.
“Não temos muita água, então não se suje — eu não te disse?”
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 14 ⊱

A mão de Aryes estava escondida sob sua manga. Quando Klass a


pegou, descobriu que os dedos dela estavam sujos de terra.
Tinha até mesmo por baixo das unhas — suas mãos limpas agora
estavam imundas.
Klass estava prestes a limpá-las com um pano amarrado na cintura,
mas Aryes de repente puxou a mão e olhou para ele com olhos
desconfiados.
“Me disseram que a sujeira só vem do coração,” ela falou. “Não é
legal mentir.”
Klass pensou em algo para dizer, mas finalmente desistiu. “Você
tem razão. Eu sinto muito.”
Os cantos dos olhos de Aryes se enrugaram quando ela deu um
pequeno sorriso e acenou com a cabeça, satisfeita.

No fim, ela quebrou a promessa — eles não conseguiram


atravessar quatro colinas.
No entanto, quando Aryes achou por bem falar sobre o assunto de
ter quebrado a promessa, eles almoçaram.
Como Aryes se opunha veementemente a tomar café da manhã,
Klass não suportaria não comer um almoço farto.
Dito isso, no saco de estopa sobre o ombro de Klass havia sete
fatias de pão duro, duro feito de aveia de cavalo, cada fatia grande o
suficiente para esconder seu rosto, alguns feijões fritos, um pouco de
sal e um odre de água.
Isso foi tudo que eles conseguiram tirar da casa quando foram
expulsos, e logo ficou óbvio que se não comessem a ter cuidado, isso
acabaria em um piscar de olhos.
Ele tirava uma certa quantidade de pão e feijão, mas fora isso o
saco permanecia bem fechado.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 15 ⊱

Felizmente, Aryes comeu surpreendentemente pouco. Hoje, ela


comeu apenas dez feijões fritos e um oitavo de uma fatia de pão.
Gradualmente, mordida por mordida, ela consumiu o duro pão de
aveia, fazendo orações antes e depois de comer.
Da parte de Klass, ele sentia que, uma vez que era ele quem estava
dando um pouco de sua preciosa comida, poupando-a de viajar sem
comida alguma, ela deveria agradecer não a Deus, mas a ele. No
entanto, Aryes insistiu que foi Deus quem providenciou a comida em
primeiro lugar.
Klass achou que isso era injusto, mas não conseguiu pensar em
nenhuma réplica e ficou calado.
Ele havia sido submetido a uma ampla variedade de explicações
irracionais para o estranho comportamento dela, mas se alguém tivesse
realmente sugerido que tais explicações a tornavam inteligente, Klass
teria balançado a cabeça.
A característica mais marcante de Aryes era sua inacreditável
ignorância.
“Ah...” disse Aryes, erguendo os olhos. Quando Klass se virou
para ver o que ela estava olhando, viu um pássaro marrom voando pelo
céu.
Enquanto pensava que se pudesse pegá-lo, arrancar suas penas e
cozinhá-lo seria realmente saboroso, ele se lembrou das palavras de
Aryes quando viu um pássaro pela primeira vez e por um momento
esqueceu como o pão era desagradável. Isso o impressionou o
suficiente para que ele realmente soubesse o que a palavra espantoso
significava.
O olhar indagador de Aryes o tirou de seu devaneio e o trouxe de
volta à realidade.
“Isso é um pássaro, não é?”
“Sim, é um pássaro. Não é uma aranha e não é um lagarto.”
“E está... voando, não é?”
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 16 ⊱

“Isso mesmo.”
Ele olhou para o rosto de Aryes enquanto pegava fragmentos de
aveia dos dentes com o dedo. Ela parecia impressionada, como se
tivesse contado um grande segredo — estranha, mas adorável.
Quando Aryes viu um pássaro pela primeira vez, ela disse que era
uma aranha rastejando pelo teto.
Por um momento, Klass não entendeu o que ela estava dizendo.
Mas enquanto a ouvia, percebeu que ela pensava que o céu era apenas
outro teto não muito longe e que o pássaro era uma aranha rastejando
por ele.
Apesar de sua surpresa, Klass sentiu que zombar de sua confusão
refletiria mal nele como homem, e então explicou a ela que o céu era
sustentado por uma árvore muito alta, mais alta do que ela poderia
imaginar, e que o pássaro estava realmente voando pelo ar, abaixo do
céu.
Ela estava em dúvida por um tempo, mas enquanto observava os
pássaros decolarem do chão e voarem para o alto, ela finalmente
aceitou.
Muitas coisas aconteceram assim.
Perguntar por que as flores no campo não murcharam, apesar de
não estarem em vasos, era na verdade uma de suas perguntas menos
estranhas.
Aparentemente, Aryes morava em um prédio cercado por altos
muros de pedra ao lado da mansão onde Klass foi forçado a trabalhar
como criado.
Ela nunca havia saído do prédio até onde conseguia se lembrar, e
ler livros era um dos poucos prazeres que ela tinha.
Com o passar do tempo, Klass ficou sabendo das pessoas que
entravam e saíam do prédio.
Pelo que ele podia dizer pelos rumores coletado, o dono da
mansão foi enganado por pessoas de uma nação do sul para construir o
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 17 ⊱

prédio, e aqueles que entravam e saíam do prédio também eram


sulistas.
Ocasionalmente, ele ouvia por cima das paredes os acordes de
uma música, mas não conseguia entender o canto e se perguntava se
estava na língua do sul.
No entanto, o dono da mansão parecia não ter amor por sua
própria terra e passava o ano inteiro viajando por toda parte, e o
mordomo parecia não saber os detalhes, ou tal era a opinião coletiva
dos funcionários da mansão.
Isso foi tudo, Klass só aprendeu que a música que ouvia
ocasionalmente destinava-se a louvar a Deus apenas quando a própria
Aryes o contou.
Ele tinha ouvido a música de perto cerca de três vezes.
“Bem, podemos ir?” perguntou Klass, colocando o último feijão
na boca.
Um dia, de repente, um grande grupo de pessoas desconhecidas
veio para a mansão. Eles trouxeram muitos suprimentos e gado.
Quando a equipe da mansão parou seu trabalho para olhar para os
recém-chegados, o homem mais bem vestido e barrigudo entre eles se
apresentou como o irmão mais novo do mestre da mansão.
“A partir deste momento, vocês não são mais residentes desta
mansão”, disse ele. “Reúnam suas coisas e saiam imediatamente.”
Evidentemente, o antigo mestre da mansão havia morrido durante
suas viagens, e seu irmão mais novo tinha vindo morar em seu lugar.
Fosse o que fosse que ele não tivesse gostado, ele expulsou todos,
incluindo as pessoas na construção de pedra.
Alguns choraram e gemeram ou ficaram atordoados em silêncio,
alguns interpretaram isso como uma piada e tentaram continuar
trabalhando, e alguns até se agarraram ao irmão mais novo (ou quem
quer que fosse). De todos eles, apenas Aryes se afastou vacilante.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 18 ⊱

Pouco depois, Klass correu atrás dela, uma vez que havia juntado
um pouco da água e pão que o novo mestre da mansão jogou fora como
se fosse ração de galinha.
Ele saiu correndo para alcançar a garota que cambaleava pela
estrada que levava ao mar, como se estivesse sendo guiada.
“Vamos tentar superar seis colinas antes do pôr do sol. Nesse
ritmo, não há como dizer quanto tempo vamos levar para chegar ao
mar.”
“Isso é uma promessa?”
“Claro, é uma promessa.”
Klass sabia que provavelmente Aryes os impediria de atravessar
seis colinas, que a promessa seria quebrada e a culpa seria dele.
Mas, para fazer Aryes se mexer, ele não tinha escolha a não ser
fazer a promessa.
E para ser honesto, ele não se importava terrivelmente em olhar
para o rosto exasperado enquanto ela lhe dava um sermão.

Em comparação a ser gritado e espancado enquanto carregava


baldes de água por toda a mansão, Klass achava que viajar com Aryes
era relaxante e agradável.
Mas havia uma parte disso que ele achou profundamente
perturbador. E isso era noite.
“A noite não é nada para se temer. Assim como o dia tem o sol e
a noite a lua, Deus está sempre cuidando de nós.”
“...S-sim,” ele respondeu com uma voz rouca, embora em alguma
parte estranha de sua mente ele sentia que as únicas coisas cuidando
deles eram a lua e as muitas estrelas no céu.
Eles estavam no topo da última colina que haviam alcançado
naquele dia.
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Embora soubesse que não havia nada e ninguém por perto, ele
ainda estava um pouco tímido.
“Assim disse Deus: Uma pessoa sozinha teme a solidão, a fome e
treme de frio. Mas com dois, a solidão é curada e o frio suavizado.”
“…Sim.”
“Você ainda está com frio?”
Klass quase respondeu, mas apenas balançou a cabeça.
No entanto, Aryes não parecia acreditar nele.
Os braços dela o envolveram e ela o puxou com mais força,
abraçando-o.
“É bom suportar a fome. Mas Deus nunca deseja que tenhamos
frios.”
Embora já tivesse ouvido essas palavras quatro vezes, o corpo de
Klass ainda tremia de nervosismo.
No início, ele não conseguia dormir por causa disso, e era ainda
pior agora que ele percebeu o quão adorável Aryes realmente era.
Tirando seu grande manto externo e usando-o no lugar de um
cobertor, Aryes abraçou Klass com força.
Embora fosse primavera, as noites ainda eram frias.
Embora a viagem não tenha sido um grande fardo para Klass, a
única diferença de sua experiência anterior era que agora dormia ao ar
livre, Aryes já parecia considerar o acampamento uma prova enviada
por Deus e fez o que pôde para amenizá-lo — usando o calor do seu
corpo.
Na segunda noite ele dormiu profundamente, graças ao cansaço
de não dormir na noite anterior. Na terceira, ele de alguma forma
conseguiu controlar os nervos e dormir.
Na quarta, embora já tivesse começado a se acostumar com a
rotina, percebeu como o corpo de Aryes cheirava bem e, ao respirar,
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 20 ⊱
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 21 ⊱

seu rosto ficou vermelho. Era doce, mas não doce como o cheiro de
mel no pão recém assado.
A situação inspirava sentimentos de culpa em Klass — havia algo
que ele não estava contando a Aryes.
“— atchimm!”
Ele a ouviu espirrar.
Ela estava se preocupando apenas com o outro, mas Klass tinha
certeza de que ela também estava com frio.
Ela se mexeu ligeiramente. “Deus pode estar com raiva de mim
por dizer isso,” ela começou a dizer. Klass não conseguia ver seu rosto,
mas mesmo assim percebeu que ela estava sorrindo. “Mas eu não acho
que poderia ter feito isso sozinha. Estou tão feliz que você seja uma
menina, Klass.”
Klass nunca em sua vida foi confundido com uma garota, e se cem
pessoas fossem questionadas, certamente todas as cem ririam da
impossibilidade da ideia.
Mas ele tinha certeza de que Aryes acreditava sinceramente que
ele era uma menina.
Afinal, na única vez que passaram por uma carroça puxada por
cavalos, Aryes empalideceu e disse: “É esse o animal que chamam de
homem?”
“Estou com bastante sono. Boa noite.”
Aryes era bastante hábil nessas coisas e, assim que dizia estar com
sono, logo adormeceria.
Klass deliberadamente não respondeu e ficou em silêncio.
Assim que ouviu o som parecido com o de um coelho de sua
respiração adormecida, ele muito gentilmente aninhou a cabeça em
seu seio, rezando para que ninguém estivesse olhando para eles.
Quando disse “boa noite”, como se fosse uma desculpa, era
realmente apenas uma desculpa.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 22 ⊱

Naquela noite, ele acordou de repente.


Ele olhou para o céu e viu que a lua prateada quase havia cruzado
o céu inteiro.
Era a parte mais profunda da noite.
O frio era considerável e, deixando sua vergonha de lado, ele
colocou os braços ao redor do corpo de Aryes.
Ele se mexeu por um momento, mas finalmente encontrou uma
posição confortável e respirou fundo.
Tudo estava muito quieto e o único som era a respiração de Aryes.
Na época em que dormia no celeiro da mansão, nunca havia um
único momento de silêncio.
Os ratos estavam constantemente correndo em busca de restos
esquecidos de ração para o gado, e eles vinham rastejar em suas roupas
sempre que queriam. Os olhos das cobras e corujas que se alimentavam
dos ratos brilhavam na escuridão, e aqueles não eram os únicos
visitantes noturnos. Havia raposas atrás das galinhas e lobos atrás das
ovelhas.
Quando pressentiam o perigo, os cavalos se mexiam e lutavam, e
o cacarejo e o canto das galinhas crescia enquanto corriam.
As noites que passou com Aryes foram tão silenciosas que seus
ouvidos zumbiam com o silêncio.
E quando o sol nasceu e a manhã veio, não havia ninguém para
fazê-lo trabalhar como um cachorro e nenhuma tarefa interminável.
Adormecer nunca foi um prazer anteriormente.
Embora tenha ficado surpreso ao ser expulso da mansão, ele não
entendeu por que os outros servos ficaram tão abalados com isso que
choraram. Eles não precisavam mais fazer tarefas.
Era verdade que eles não tinham muito mais comida sobrando,
mas ele tinha certeza de que alcançariam o mar antes que ficassem sem
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 23 ⊱

comida. O mar estava aparentemente cheio de peixes, então tudo que


eles tinham que fazer era pegar alguns e comê-los. E se eles podiam
fazer isso, por que não simplesmente morar lá?
Ele não tinha certeza se Aryes já tinha visto um peixe. Certamente
não. Ele teria que explicar, logo — explicar que eles eram animais que
podiam nadar debaixo d'água sem se afogar.
Ele deixou escapar uma risada suave ao pensar nisso. Estava muito
quieto.
Klass então tentou expulsar essas coisas de sua cabeça e voltar a
dormir, mas então ouviu o mais leve indício de um novo som.
Thup, thup, thup veio o som baixo.
Pode ter sido o coração de Aryes.
Klass achou misterioso que ele pudesse ouvir tão claramente,
apesar do peito estufado — mas então ele percebeu algo estranho.
Ele podia ouvir esse som de seu outro ouvido — seu ouvido
direito, que estava pressionado no chão.
Thup, thup, thup veio o som.
“O que poderia ser?” ele murmurou para si mesmo.
Imediatamente, ele estendeu a mão para pegar o galho que estava
usando como cajado.
“Lo—”
Lobos, ele estava prestes a gritar, mas engoliu a palavra, erguendo
a cabeça e olhando em volta.
Ba-bump, ba-bump rugia em seus ouvidos. Era o som de seu próprio
coração.
As batidas de seu coração pareciam forçar a respiração de forma
audível de sua boca.
Ele engoliu em seco e olhou para a direita. Então para a esquerda.
A lua estava no céu e a visibilidade era boa.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 24 ⊱

Mas ele não podia ver nenhum sinal de lobo.


“Aryes, Aryes.”
Suas palmas estavam suadas e sua garganta seca.
Ele sacudiu o ombro de Aryes e olhou em volta, mas não
conseguiu ver nada.
Mas o que quer que estivesse lá fora, parecia ter notado a mudança
em Klass. Ele sentiu a mudança.
Qualquer um que dormisse em um celeiro sabia — quer quisesse
saber ou não — que os lobos eram especiais.
Aqueles olhos dourados brilhando na escuridão da noite.
Embora Aryes finalmente tivesse acordado, seu foco ainda não
havia recaído sobre ele, e ela parecia tão indefesa que teve vontade de
enganá-la.
Klass puxou seu cajado para perto e olhou novamente para a terra.
Lobos raramente atacavam humanos, ou assim acreditava Klass.
Três vezes antes eles pularam sobre sua cabeça com uma galinha em
suas mandíbulas, mas ele não pôde deixar de se perguntar se isso era
porque havia galinhas para comer.
Lá estava ele de novo, o som — thup, thup, thup, thup —
aparentemente mais alto do que antes.
Ele tinha certeza disso — eles o observavam, afiando suas presas.
O que devo fazer? ele se perguntou silenciosamente uma vez e mais
outra. Ele não estava pensando em pegar Aryes e tentar fugir,
principalmente porque, no momento em que se movessem, tinha
certeza de que atacariam.
O que devo fazer?
Aryes finalmente pareceu acordar completamente e olhou para
Klass com incerteza.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 25 ⊱

Ele ficou gelado como se caísse água fria na cabeça, e ele tentou
levar o dedo aos lábios.
“O que está errado?” perguntou Aryes, sentando-se no momento
em que ouviram um uivo indescritivelmente belo.
“O-o qu—?” Aryes olhou em volta freneticamente, totalmente
perplexa.
Por dentro, Klass sentiu vontade de chorar, de raiva, mas de
alguma forma conseguiu suportar a sensação de punhalada e se
levantou de um salto, olhando para a frente, e então viu.
Ele viu em um momento que as muitas sombras que tremulavam
no topo das colinas iluminadas pela lua derreteram na escuridão da
noite com a reverberação do uivo.
Um instante depois, seus olhos encontraram as írises douradas do
outro.
“Depressa — depressa, temos que ir!” Tremendo, sua mão tremia
quando ele agarrou o saco de estopa e pegou a mão de um Aryes
perplexo.
E mesmo assim, ele estava congelado, incapaz de ficar de pé.
Os lobos pararam de tentar esconder seus passos, que agora
soavam como uma rajada de vento soprando pela floresta.
Ele estava com muito medo para impedir que seus dentes
batessem, mas reuniu coragem suficiente para manter seu cajado
pronto.
Empurrou Aryes para trás, apavorado, mas brandindo o cajado
como uma lança.
Os lobos mergulharam em uma poça de escuridão enquanto
desciam a colina e então dispararam para fora dela.
Paralisado por suas írises douradas, ele sentiu com estranha clareza
a sensação de sua própria boca se partindo em um sorriso.
O medo o estava forçando a mostrar os dentes.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 26 ⊱

Mas os lobos, é claro, não estavam recuando com seu ataque —


“— Huh?”
De repente, o chefe da matilha saltou para o lado.
Foi tão chocante que, por um momento, Klass se perguntou se
alguém havia atirado uma flecha nele.
Os lobos passaram por Klass e Aryes, caindo no chão e dando
voltas. Eles estavam tão perto que ele podia ver cada um dos fios de
seus pelos eriçados.
Mas o olhar deles não estava em Klass e Aryes, suas presas —
estava em algo mais distante, e eles se agacharam. Caninos à mostra,
eles rosnaram, suas patas dianteiras prontas para pular.
Eles poderiam ter se lançado a qualquer momento, mas pareciam
menos como se estivessem caçando uma presa e mais como se
estivessem se virando para enfrentar um inimigo.
Eles ficaram abalados com a coragem de Klass?
Ignorando tais pensamentos, os lobos estavam observando um
único ponto e, um instante depois, eles saltaram e se espalharam.
Klass demorou um pouco para perceber que todos haviam fugido.
Eles fugiram mais rápido e para mais longe do que de onde vieram.
A esmagadora sensação de perigo se foi por completo, sem deixar
muito além da sensação de ter sido salvo.
Klass, atordoado, observou os lobos recuarem e, por um
momento, não pensou em absolutamente nada.
A única razão pela qual olhou de volta para Aryes foi porque ela
tocou em suas costas.
“O-o que aconteceu?” Ela estava tremendo ligeiramente.
“Havia lobos... Essa foi por pouco,” ele disse, as mãos ainda
apertadas ao redor de seu cajado. Ele não tinha intenção de provocar
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 27 ⊱

Aryes por ela tremer, mas ainda não tinha percebido que estava se
sacudindo.
Aryes inclinou ligeiramente a cabeça. “Lo... lobos?”
Ela espirrou encantadoramente. Aryes não sabia o que era um
lobo. Isso significava que seu tremor tinha que ser causado por nada
mais do que o frio.
Klass olhou para o bastão que brandia como uma lança, seus lábios
se curvando. Decepcionado, ele o deixou cair.
“Lobos. Eles estavam prestes a nos atacar agora, não estavam? Eles
atacam as pessoas e atacam o gado.”
“Oh. Eles são... homens?”
Klass se perguntou se ela estava zombando dele.
Mas então ele se lembrou das palavras do mestre do estábulo da
mansão, que tinha idade suficiente para ser seu pai. “Sim. Homens são
lobos.”
Com essas palavras, finalmente o rosto de Aryes evidenciou algum
medo, e ela respirou fundo, olhando em volta.
“Está tudo bem. Todos eles se foram para algum —"
Mas ele não terminou a frase.
Já que, no espaço de um momento, seu rosto estava pressionado
contra o peito macio de Aryes, e ele mal conseguia respirar.
“Ngh... guh...”
“Não se preocupe! Eu vou... er, não, ah — Deus vai nos proteger.
Não há nada a temer!” ela disse, abraçando-o com força. Klass estava
agora com mais medo dela do que os lobos.
E se agora mesmo ele contasse a verdade a ela, que ele era um
menino? O que ela faria?
Até Klass sabia que era errado mentir e enganar as pessoas.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 28 ⊱

Mas quando ele moveu ligeiramente a cabeça e recuperou o


fôlego, o cheiro de Aryes encheu suas narinas.
O cheiro foi mais do que suficiente para apagar a memória de
terror do ataque, embora suas vidas tivessem acabado de ser salvas.
Ele decidiu ficar quieto sobre o assunto por mais um tempo.
“Ainda assim, eu me pergunto o que os assustou.”
Ele definitivamente teve a sensação de que os lobos se assustaram.
O que poderia assustar uma matilha inteira de lobos?
Ele olhou na direção que eles haviam olhado, mas tudo o que podia
ver era a paisagem gramada e as poças de escuridão, e ele não sentiu
nada particularmente ameaçador ou monstruoso nisso.
Ainda nos braços de Aryes, ele não podia, é claro, responder à
pergunta com certeza, mas seu nervosismo havia sumido.
Evidentemente, com o calor da pele que se seguiu a um suor frio, a
sonolência veio logo depois. Ele bocejou abertamente.
Aryes afrouxou o abraço quando Klass se contorceu um pouco e,
embora doesse, ele finalmente forçou as palavras a saírem.
“Acho que estamos seguros agora. Vamos dormir. Ainda falta
muito tempo para o amanhecer.”
Aryes finalmente concordou.
Foi então que a incerteza desapareceu de seu rosto. O dia seguinte
começou com Aryes, que acordava cedo, acordando-o.
Por um momento, ele lembrou da noite anterior, mas não havia
lobos à vista, apenas as pegadas deixadas na planície eram prova de que
os eventos da noite não tinham sido um sonho.
A manhã foi muito parecida com a de ontem.
A única diferença era a preocupação que vinha com seus
suprimentos cada vez menores de comida e água — isso, a aparência
de Aryes ter melhorado um pouco e ela dizendo que seus pés doíam.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 29 ⊱

O problema de Aryes poderia ser resolvido com uma pequena


pausa, mas o problema da água incomodava muito Klass. Ele tinha
ouvido sobre viajantes que passavam mansão que alguém poderia
passar uma semana com o estômago vazio, mas que três dias sem água
matariam um homem.
“Por acaso você não sabe onde fica um rio, sabe?” perguntou para
Aryes, por precaução.
As planícies pareciam continuar eternamente, a estrada estreita
também. Já era o quinto dia desde que saíram de casa, então eles
deveriam ter viajado uma distância considerável. Ele tinha ouvido falar
que era possível contornar o mundo em dois meses.
Embora uma parte dele ainda não conseguisse desculpar a
ingenuidade de Aryes, já que ela aparentemente viveu dentro de
paredes durante toda a vida, até o próprio Klass nunca percebeu que o
mundo era tão grande.
Isso o deixou irracionalmente zangado e ele andou mais rápido.
O meio-dia passou e a noite chegou e, apesar das pausas para o
bem de Aryes e da lentidão de seu ritmo, eles haviam escalado a décima
segunda colina do dia, a mais alta até agora.
E tudo o que seus olhos encontraram foram grama, árvores e
colina após colina após colina.
Quando olhou para trás, viu Aryes atrás dele, cujo interesse por
insetos e flores fora substituído pelo cansaço da longa jornada. Ela
havia parado na descida da colina e não dava sinais de que continuaria
caminhando.
De sua parte, Klass poderia facilmente continuar caminhando, e o
fato de que ainda não haviam conseguido chegar a outra cidade por
causa de seu ritmo lento o frustrava.
Aryes poderia ir mais longe, ele tinha certeza. Assim que suspirou
e estava prestes a chamá-la, ela se agachou bem onde estava.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 30 ⊱

Só um pouco de água. A próxima cidade invisível. O mar no fim da


estrada, estivesse lá ou não. E o mundo inimaginavelmente vasto.
Essas palavras flutuaram em sua mente, despertando sua irritação.
Até o dia anterior a viagem tinha sido tranquila, mas hoje tudo o que
ele podia sentir é que eles estavam se movendo muito devagar.
Isso o fez querer estalar a língua em frustração, e ele não se
incomodou em esconder isso.
Como de costume, ela não se mexeu.
“…Ugh.”
Ele estava com tanta raiva que não queria se incomodar em
levantar a voz e por um momento até considerou ir embora.
Era apenas um caminho, então nem ela deveria se perder.
No momento em que estava pensando em como isso seria bom,
ouviu um som estranho.
“…?”
Ele olhou para Aryes, que tinha uma das mãos no chão.
E então —
“A-Aryes!”
Ela se mexeu e, no momento em que Klass pensou que ela fosse
se levantar, vomitou no chão.
Foi tão inesperado que ele não conseguia se mover. Aryes nem
olhou para cima antes de desabar.
Klass jogou a bolsa de lado e correu para ela.
“Aryes! Aryes!”
Ele estava mais atordoado do que preocupado.
Correndo para o lado dela e pegando-a nos braços, ele puxou seu
capuz para trás e chamou seu nome.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 31 ⊱

Aryes desabou, imóvel, e depois com sua boca aberta, viu sua
língua frouxa e não pôde deixar de pensar em uma ovelha morrendo.
“Aryes!”
Não foi a preocupação que substituiu sua surpresa — foi o terror.
Aryes iria morrer.
Querendo chorar, ele sacudiu os ombros dela. Deu um tapa no
rosto dela. Mas não houve reação.
Uma onda de medo cresceu dentro dele — agora Klass era quem
se sentia nauseado.
Imediatamente depois disso, Aryes vomitou novamente.
Graças a Deus, pensou Klass. Ela não está morta.
Seu alívio durou apenas um momento, pois, como não havia nada
mais para expulsar, ela se enrolou em uma bola e gemeu de dor.
Klass enxugou as lágrimas dos olhos, tirou o lenço do corpo e
enxugou a boca de Aryes com ele.
Depois disso, ele não sabia mais o que fazer.
As palavras ervas medicinais lhe ocorreram, mas ele duvidava
seriamente que a grama que os cercava tivesse qualquer efeito.
A respiração dolorida de Aryes estava ficando cada vez mais
silenciosa. Isso o fez imaginar a vida dela como uma chama
bruxuleante, e o pensamento trouxe novas lágrimas.
Ele se perguntou se ela não estava cansada, mas doente.
Se ele soubesse, teria feito mais pausas na caminhada.
As desculpas e arrependimentos rodaram em seu coração, mas
nenhuma palavra, exceto o nome de Aryes, saiu de sua boca.
E ainda assim chamou seu nome, sacudindo seus ombros flácidos.
“Ugh... o que... o que devo fazer...?”
Ele não teve coragem de dizer o que pensava: Alguém me ajude.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 32 ⊱

Ninguém o ajudaria em um lugar como este.


E se alguém aparecesse, provavelmente seria o Deus inútil para
quem Aryes sempre orava.
Ainda assim, no fundo de seu coração, ele desejou profundamente
que alguém — mesmo aquela divindade falsa — viesse e os salvasse.
“Oh Deus…”
E quando ele ouviu, pensou que era a voz de Deus: “O que
aconteceu aqui?”
Ele olhou para cima, totalmente chocado ao ouvir outra voz, mas
não conseguia distinguir sua origem através dos olhos marejados.
Ele os esfregou e olhou novamente.
Não havia ninguém lá.
“O que…?”
As lágrimas começaram a brotar novamente.
“O que aconteceu aqui, garoto?”
Atrás dele.
Klass olhou para trás e, de fato, alguém estava parado ali,
iluminado pelo sol.
“Ela está doente, não é?”
A voz clara não parecia combinar com seu tom. Como a figura
estava iluminada por trás e Klass ainda estava sentado, ele não
conseguiu determinar sua altura ou rosto.
Mas, pateticamente, o simples fato de que outra pessoa que não
ele estava presente fez com que as lágrimas voltassem a transbordar.
“E-eu-eu não sei... E-ela caiu, e...”
“Hmm,” a figura sombria murmurou, girando levemente ao redor
para observar Klass à sua frente.
Era uma mulher.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 33 ⊱
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 34 ⊱

Ela olhou para o perfil de Aryes. “Hmph, isso parece —” Klass se


endireitou inconscientemente.
A mulher continuou.
“É apenas exaustão,” ela proclamou acabando com o clímax.
“…Huh?”
“Veja como as pernas dela estão duras,” disse a mulher,
estendendo a mão para colocar a mão na panturrilha caída de Aryes.
“M-m-mas—”
“Ela pediu muitas vezes um descanso, não pediu?” acrescentou a
mulher categoricamente. “E pior, ela não tem comido direito. Não é
nenhuma surpresa ela ter desmaiado.”
Agora que haviam dito, parecia a coisa mais óbvia do mundo.
Mas assim que percebeu, algo estranho lhe ocorreu.
“Como você sabe disso?”
“Droga. Língua solta.” Ela colocou a mão deliberadamente na boca
e olhou para o outro lado.
Não havia como fingir: ela devia estar os observando de algum
lugar.
Mas Klass teve um bom alcance de visão de seus arredores toda
vez que alcançavam o topo de uma colina.
Não havia nenhum lugar para alguém se esconder.
Então, de onde ela estava observando?
“Na verdade, eu planejava não dizer nada para você. Mas isso
estava simplesmente muito patético.” A mulher deu um tapinha em
Aryes e lançou um olhar acusador a Klass.
Uma sensação quente apunhalou seu peito. “N-não, eu sempre
tentei —”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 35 ⊱

“Tentou pensar sobre ela? Hmph. Você sabia perfeitamente bem


que o corpo dela e o seu são bem diferentes.”
Ele se encolheu com as palavras.
Não era apenas que ele não tinha o que dizer — ele estava
atordoado.
“Heh. Eu tenho te observado desde a noite passada. Você sabe
muito bem que ela e você não são iguais,” ela disse, sua expressão
mudando para um sorriso pegajoso.
Klass podia sentir seu rosto ficando cada vez mais quente.
Ele foi vigiado.
“Suponho que seja isso o que eles querem dizer quando dizem:
‘Que sorte ter nascido homem.’ Ainda assim” — a mulher colocou as
mãos nos quadris, os lábios se curvando em um sorriso expondo as
presas — “você teve a coragem de fazer frente aos lobos. Isso é digno
de elogio.”
“O qu... ah!”
“Hmph. Não é um rapaz muito exigente, não é?” zombou a mulher
por entre os dentes, olhando para o menino.
Não, não era só isso.
Ele tinha acabado de perceber algo.
Tinha sido tão estranho que ele simplesmente não tinha notado até
aquele momento.
A mulher que estava diante dele usava uma capa sobre os ombros
e uma faixa amarrada na cintura, com calças forradas de pele. Seu
cabelo era castanho, mas no topo de sua cabeça havia algo estranho.
“Se você foi notar isso agora, não deve ter notado isso!”
Sua capa balançou dramaticamente.
“Ah... ah...!”
“É pelo de qualidade, de fato, não?”
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 36 ⊱

O pelo balançou com barulho.


A cauda de lobo grandiosamente peludo balançou, e as orelhas de
fera no topo de sua cabeça também balançaram.
Naquele momento, a lembrança das ações dos lobos na noite
anterior passou por sua cabeça.
“N-não pode ser —”
“Não pode ser?”
O olhar da mulher o perfurou, como se o estivesse testando.
“Ontem à noite, quem nos salvou foi...”
Uma lufada de vento fez com que a bainha da capa da mulher e a
ponta de sua cauda tremessem.
A luz do sol poente iluminou seu perfil. “De fato”, disse ela,
enquanto Klass estava sem palavras.
“Foi... foi você! Você afugentou os lobos!”
“Eu meramente estava dormindo por perto. Eles perceberam que
eu estava lá e deram meia-volta por conta própria.”
A mulher parecia quase entediada. Klass engoliu em seco depois
de fechar a boca aberta.
Ele já tinha ouvido falar muitas vezes de seres que pareciam
humanos, embora não fossem, que ocasionalmente surgiam para
garantir boa fortuna ou pregar peças em meros mortais.
Klass falou em um sussurro trêmulo. “Você poderia ser um... um
espírito —?”
“Dificilmente!” disse a mulher com irritação repentina, sacudindo
a cabeça.
Mas a misteriosa pessoa meio-besta diante dele logo fez uma cara
estranha.
“Hmph... bem, é verdade que alguns de sua espécie me chamam
dessas coisas. Mas eu não gosto.”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 37 ⊱

Sua expressão de embaraço por ter gritado a fazia parecer não


muito mais velha do que Klass.
E seu rosto era inconfundivelmente belo.
“C-como... devo me referir a você?” perguntou Klass, usando as
palavras que ouvia os adultos usarem em tais situações, mas as
sobrancelhas da mulher apenas franziram em mais irritação.
“Eu também não gosto disso. E entender seu gaguejar é um
incômodo.”
O rosto de Klass ficou quente com a provocação dirigida a ele,
mas pensando que a garota era algum tipo de aparição, ele olhou para
baixo.
Em seguida, a aparição suspirou e trouxe seu rosto mais perto do
chão.
“Venha, olhe para cima. Só pensei em ajudá-lo em suas difíceis
viagens. Eu não me revelei a você para receber sua adoração.”
Ele estava com muito medo de olhar para cima.
E mesmo assim, ainda que timidamente, ele trouxe seu olhar para
cima para se encontrar com o dela.
“Heh. Você ainda está na idade em que essa expressão combina
com você.”
O sorriso que o saudou quando ergueu os olhos o fez perceber que
havia muitos tipos de sorrisos no mundo. No instante em que viu, ele
olhou para baixo novamente, seu rosto ainda mais vermelho do que
antes, mas por um motivo muito diferente.
Desta vez, a aparição não ficou com raiva.
“Meu nome é Holo,” disse a aparição brevemente enquanto se
agachava.
Klass demorou alguns minutos para perceber que ela havia se
apresentado. “M-meu nome é Klass... senhora.”
“Não há necessidade de ‘senhora’ aqui.”
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 38 ⊱

“C-certo.”
A aparição chamada Holo sorriu amargamente e se levantou. “E o
nome desta é Aryes?”
“S-sim, isso mesmo, mas —”
“Como eu sei?”
Klass acenou com a cabeça.
“Você não chamou o nome dela tão fervorosamente inúmeras
vezes? ‘Aryes, Aryes!’?” disse Holo, os braços cruzados e levantando
os próprios ombros.
Klass finalmente havia recuperado a compostura, mas enrubesceu
novamente com isso.
“No entanto, eu não sei se sacudir uma companheira enfraquecida
é uma gentileza.”
Assustado, Klass olhou para o rosto de Aryes.
“Tendo perdido a consciência, tenho certeza de que ela se acalmou
um pouco. Agora limpe sua boca e a mantenha aquecida.”
Balançando a cabeça em silêncio, como se tivesse um pedaço de
pão preso na garganta, Klass moveu Aryes de sua posição anormal e
desmaiada para um estado aparentemente mais confortável e então se
levantou.
Embora o saco que ele havia deixado cair não estivesse a uma
distância tão grande, ele estava preocupado em deixar Aryes sozinha
e, portanto, hesitou em buscá-la.
Ao que Holo disse: “Vou cuidar dela para você”, então gesticulou
para a bolsa com o queixo.
Klass finalmente começou a correr, mas quando se virou para
olhar por cima do ombro, viu Holo agachada perto de Aryes,
murmurando algo para ela.
Ele se perguntou se era algum tipo de segredo.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 39 ⊱

“Honestamente, se fosse inverno, você estaria morto na beira da


estrada em algum lugar,” disse Holo enquanto revirava as coisas deles
e Klass cuidava de Aryes. “Você não tem cobertores! O que você
pretendia fazer em caso de chuva?”
“Huh? Er...” disse Klass enquanto limpava a boca de Aryes com
um pano umedecido.
Embora estivesse tentando aquecê-la, ele não tinha material para
acender o fogo e, como Holo observou, não havia cobertores — então
ele se viu reduzido a colocar uma jaqueta simples nela.
“Refugiar em algum lugar... suponho...”
Um suspiro e um olhar fulminante foram tudo o que o saudou.
Klass baixou os olhos.
O fato era que não havia abrigo até onde a vista alcançava.
“Foi por diversão que decidi seguir a estranha dupla vagando por
estas planícies sem nem mesmo uma nascente ou um rio, mas pensar
que você estaria tão despreparado!”
Klass ficou zangado ao ouvi-la dizer isso, mas seu medo o impedia
de dizer qualquer coisa.
“E já que estamos falando de coisas estranhas, vocês são
companheiros realmente estranhos. Por que duas crianças estão
viajando sozinhas?”
Klass não pôde deixar de erguer os olhos bruscamente para a
palavra crianças.
Embora Holo parecesse alguns anos mais velha do que ele, ela não
era tão madura que a chamaria de adulta.
“Garoto tolo. Sou pelo menos dois séculos mais velha.”
“E-eu sinto muito.” Era estranho — tendo falado isso claramente,
ele agora podia ver.
Afinal, a garota era um espírito, então nada nela o surpreenderia.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 40 ⊱

Tendo se convencido disso, ele descobriu que não havia razão para
esconder o que quer que fosse, então ele respondeu a sua pergunta.
Holo estava deitada de lado, mastigando ruidosamente um pedaço
de pão de aveia que tirara das coisas de Klass e, quando Klass contou
sua história, ela acenou com movimentos de cauda.
“Ouso dizer que a mansão da qual você foi expulso era de uma
casa nobre chamada Antheo.”
“S-sim... você os conhece?”
“Eu ouvi um pouco sobre eles em uma cidade em que estive não
muito tempo atrás — que havia um nobre excêntrico na zona rural.
Mas entendo — então ele está morto, não é?”
Klass não sabia se o senhor da mansão era ou não um excêntrico,
mas a palavra zona rural o incomodava.
A mansão era um lugar magnífico, e havia pelo menos vinte
criados e edifícios de pedra como o que Aryes havia ocupado.
E nas proximidades da propriedade havia treliças de videiras e
também vilarejos.
Enquanto Klass pensava nisso, ele percebeu que Holo estava
sorrindo para ele.
“Na verdade, você partiu em uma jornada e logo se tornou um
filhote indefeso.”
“...” Ele não sabia por que riam de si, mas era frustrante, e Klass
desviou o olhar.
Isso pareceu apenas atrair mais risadas de Holo, que ria
dissimuladamente. “Não fique zangado, garoto. Você não ficou
surpreso com o tamanho do mundo?”
Atordoado, ele olhou para Holo.
“Não, o motivo pelo qual sei disso é porque me senti da mesma
maneira quando comecei minhas próprias viagens.”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 41 ⊱

Klass teve a sensação de que estava sendo manipulado de uma


forma ou de outra, mas ela não parecia estar mentindo.
“…É assim mesmo?”
“Sim. O mundo é realmente vasto. E —”
Mas suas palavras foram interrompidas ali. Klass seguiu seu olhar
e viu que em algum momento os olhos do adormecido Aryes se
abriram ligeiramente.
“Aryes...” Klass chamou seu nome, esquecendo-se de tudo sobre
Holo, e os olhos de Aryes focaram nele muito mais rapidamente do
que o normal ao despertar.
“Ah... o quê — por que —?”
Ela se sentou, parecendo não entender o motivo de sua posição
atual. Klass tentou explicar apressadamente.
“Você desmaiou há pouco tempo! Você não se lembra?”
Avisada, ela finalmente pareceu se lembrar.
Um pouco de rubor começou a se manifestar em sua tez que agora
tinha uma aparência muito melhor.
“Como serva de Deus, estou profundamente envergonhada. No
entanto, agora estou bem.”
Apesar dos meros cinco dias de viagem, Klass estava começando a
entender sua personalidade.
Embora ele pudesse dizer a ela para dormir, seu tom revelava se
ela provavelmente dormiria ou não.
Ele não tentou impedi-la de despertar e, portanto, ela obviamente
notou Holo.
“Oh, o qu...” ela murmurou e então fez uma pausa.
As orelhas de fera no topo da cabeça, a cauda de lobo magnífica
— eram sinais inconfundíveis de um espírito, e estavam bem diante de
seus olhos. Sua surpresa era compreensível.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 42 ⊱

Aryes olhou abertamente para os atributos desumanos de Holo.


Klass ficou repentinamente muito preocupado com a
possibilidade de Holo ficar zangada com o olhar um tanto rude. E na
noite anterior, Aryes pensara que os lobos eram homens.
Ele teria que dizer algo ultrajante.
Assim que ele chegou a essa conclusão e estava prestes a tentar
sussurrar em seu ouvido, a Aryes congelada pareceu chegar a um
entendimento repentino e acenou com a cabeça de forma convincente.
“Oh... você veio do outro lado do mar, não é?”
Klass estava prestes a corrigir sua noção equivocada — embora a
verdade fosse igualmente estranha — quando Holo o interrompeu.
“Sim. Me chamo Holo e viajei para cá de muito longe no norte.”
Longe de estar com raiva, ela sorriu como se estivesse se
divertindo, e sua cauda balançou alegremente, como se enfatizasse o
fato.
Aryes aceitou o casaco que Klass lhe ofereceu e fez uma reverência
elegante. “Eu sou Aryes Belange,” disse ela.
Klass tinha ouvido que até reis inclinavam a cabeça diante de um
espírito e, portanto, embora estar na frente de um fosse
profundamente intimidante, ele achava a ideia de não ter certeza
aterrorizante.
Mas, como ele tinha ouvido falar que os espíritos vinham de uma
terra onde apenas eles viviam, talvez o que Aryes dissera não estivesse
realmente errado.
“Então, como podemos ajudá-la?”
Isso pode ter sido apropriado na mansão, mas aqui Klass não
conseguia parar de falar. “N-não! Ho—Holo... ela salvou você,
Aryes.”
Ele tropeçou no nome dela quando percebeu que não sabia o quão
educado precisava ser ao se referir a ela.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 43 ⊱

Naquele instante, ele evitou chamá-la de “Senhora Holo” depois


de ver o brilho intenso em seus olhos âmbar. Por alguma razão, ela
parecia odiar tal reverência.
Aryes voltou a ficar surpresa e corrigiu apressadamente a postura
ao sentar-se.
Klass duvidou que Aryes fosse capaz de expressar adequadamente
seus agradecimentos, mas essa dúvida durou apenas um momento.
Aryes se endireitou e de repente parecia surpreendentemente
adulta.
“Minhas sinceras desculpas — e mais uma vez, obrigado”, disse
ela, juntando as mãos e curvando-se da mesma forma que fazia ao orar
antes de uma refeição.
Klass ficou pasmo com a compostura de Aryes, mas quando ele
olhou para Holo, viu que ela estava encantada. Ele se sentiu aliviado
por ter evitado despertar a raiva dela.
Ainda assim, ficou chocado por Aryes ter se revelado tão sensata.
“E se isso for verdade, então eu gostaria muito de retribuir a
bondade que você mostrou em me salvar.”
“Bondade, hein?”
“Sim. Infelizmente, somos apenas viajantes e há limites ao que
podemos oferecer.”
Era como uma pessoa diferente da Aryes que perguntava por que
as flores no campo não murchavam sem os vasos.
De repente, ele sentiu vergonha por ter explicado tantas coisas
com tanta condescendência para ela.
“Hmph. Não preciso de bens materiais. Em vez disso, deixe-me
ver...” Holo olhou para Klass.
Ao mesmo tempo, Aryes também olhou por cima do ombro para
ele e, por algum motivo, ele de repente se sentiu como um sapo
suportando o olhar de uma serpente.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 44 ⊱

Embora cada um ali fosse muito diferente, de alguma forma Klass


teve a sensação de que ele era o estranho.
Se divertindo, Holo continuou. “Você me deixaria viajar com
vocês por um tempo?”
“Huh?!” Klass disse sem pensar e novamente se sentiu sob o olhar
das outras duas.
Não parecia que quaisquer objeções seriam permitidas.
Então Aryes voltou-se para Holo, sorrindo, e falou. “Se for do seu
agrado, que assim seja.”
“Fico grata.”
As duas acenaram uma para a outro como velhas amigas, então
apenas continuaram com a conversa.
Klass não achou graça.
E, no entanto — ele não sabia por que não estava divertido.
“Bem, minhas coisas estão um pouco adiante. Você me ajudaria a
recolhê-los?”
“Ah sim.” Aryes se levantou e Klass a deteve.
“Aryes, você descansa.”
“Mas —”
“Apenas descanse,” repetiu ele com um pouco mais de vigor, e a
surpresa Aryes deu um aceno hesitante com a cabeça.
Holo observou a troca de maneira divertida e disse: “Por aqui”,
quando ela começou a andar. “Heh. Você não precisava ser tão
exigente,” ela falou, assumindo imediatamente a liderança.
“Ah bem…”
“Você poderia simplesmente ter dito que o trabalho físico é para
homens, não?”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 45 ⊱

Ela olhou para ele por cima do ombro, e Klass sentiu seu rosto
esquentar sob seu olhar.
Holo sabia de tudo.
Ela deu uma risadinha. “Ah, que dificuldade!”
Sua cauda balançou alegremente sob sua capa.
“Mesmo assim, espero que oito ou nove entre dez homens ajam
da mesma maneira. Não há nada com que você precise se preocupar,”
disse ela como se para encorajá-lo, dando tapinhas em suas costas —
nada disso deixava Klass mais feliz.
Afinal, seu rosto ainda sorria como se ela fosse cair na gargalhada
a qualquer momento.
“Ora, vamos, sou sua aliada.”
Sua mentirosa foram as palavras que ele sentiu no coração.
Até Klass sabia quando ele estava sendo provocado.
“Heh, é verdade que estou zombando de você. No entanto —”
Holo deu um passo rápido à frente de Klass, depois se virou e olhou
para ele de cima.
Seus olhos eram os olhos de uma loba olhando para sua presa.
Klass, em transe, não conseguiu desviar o olhar daqueles olhos
âmbar.
“Devemos nós três dormir juntos esta noite? Com você no meio,
é claro.”
Assim que Klass ouviu essas palavras, ele imaginou a cena e
imediatamente tropeçou nos próprios pés.
Quando Holo pediu para viajar com Aryes e as duas olharam para
ele, ele se sentiu como um sapo sob os olhos de uma serpente
exatamente por esse motivo.
Holo se agachou ao lado de onde Klass havia caído e falou. “O quê,
você não pode esperar até a noite?” Ela sorriu maliciosamente.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 46 ⊱

Mas antes que Klass pudesse sentir raiva do golpe, ele percebeu
que estava comparando o sorriso de Holo com o de Aryes em sua
mente e, agora, sem saber o que fazer, ele ficou prostrado no chão.
Ele não podia deixar de sentir que era uma criatura
verdadeiramente patética.
Quando bateu na cabeça algumas vezes e olhou para cima, Holo
falou, sua expressão agora era gentil.
“Ainda vou fazer de você um homem adequado.”
Klass desabou novamente.
E assim começou a jornada dos três viajantes cansados.

Klass acordou espirrando, o primeiro espirro que deu em algum


tempo.
Eu estive tão aquecido nos últimos dias e mesmo assim — ele pensou
consigo mesmo, enrolado em um cobertor. Mas então se lembrou de
que não era assim.
Ontem, pela primeira vez em muito tempo, ele dormiu sozinho
no topo de uma colina, o horizonte ainda ininterrupto.
Até então, ele dormia ao lado de sua companheira de viagem para
conservar o calor — com uma garota um pouco estranha chamada
Aryes.
Só pensar nisso era o suficiente para aliviar o frio, mas havia uma
boa razão para ele não ter sido capaz de fazer isso na noite anterior.
Klass e Aryes, tendo sido expulsos da mansão em que moravam,
estavam viajando lentamente por uma estrada que levava ao mar e
encontraram uma andarilha misteriosa. Seu nome era Holo, e ela
afirmava ser dois séculos mais velha que Klass e Aryes, apesar de
parecer apenas da idade de Aryes, ou talvez um pouco mais velha. Mas
como ela tinha orelhas de animal no topo da cabeça, cauda de lobo na
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 47 ⊱

cintura e presas afiadas na boca, Klass não podia duvidar de suas


afirmações sobre sua idade.
E quanto ao motivo pelo qual Klass estava suportando o frio e
dormindo sozinho — isso era obra de Holo.
“Vamos todos dormir juntos,” disse Holo no dia anterior.
Klass só conseguiu dormir com Aryes antes disso por causa da
extrema ingenuidade de Aryes — ela não sabia que Klass era um
menino.
Mas Holo era diferente.
Holo sugeriu apenas para provocá-lo.
Não importa o quão majestosa enquanto espírito ela possa ser, ele
não poderia aceitá-la.
Então, no final, Klass pegou o cobertor emprestado e dormiu
sozinho. Aryes e Holo tinham dormido juntas, usando seu manto e
capa no lugar do cobertor — e ainda assim Klass imaginou as duas
enroladas juntas dormindo profundamente e não pôde deixar de sentir
que desperdiçou uma oportunidade.
Holo era surpreendentemente mesquinha para uma aparição, e
Aryes era, bem, Aryes, e tendia a não entender as coisas muito bem,
mas não havia como negar o fato de que ambas eram bonitas.
Claro, ele não poderia pedir permissão para ficar entre elas agora,
mas não haveria nenhum mal em apenas dar uma olhada.
Foi o que Klass disse a si mesmo enquanto colocava a cabeça para
fora do cobertor — e bem na frente de seus olhos, estava Holo.
“Devo tentar adivinhar por que você está fazendo tal cara?” Holo
bocejou e parecia estar penteando sua cauda.
Klass não conseguiu esconder o rosto sob o cobertor, mas
balançou a cabeça debilmente.
“Você foi o último.”
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 48 ⊱

Quando Klass emergiu lentamente do cobertor, viu que Aryes


realmente estava acordada e, a uma curta distância, fazia suas orações
matinais.
Ele olhou para o céu, onde Deus evidentemente estava. Estava
nublado de novo e um pouco frio.
E por falar em deuses, a divindade bem na frente dele, Holo,
jogou a cauda dela para o lado depois de escová-la por um tempo,
então tirou uma casca de pão de dentro de seus próprios pertences e
partiu um pedaço generoso para Klass.
Apesar de não ser festival da colheita naquele dia, era pão de trigo
— trigo!
“É um presente. Não há necessidade de se conter.”
Mesmo que ele tivesse recebido ordens para se conter, a mão de
Klass teria pegado o pão por conta própria.
Ainda assim, ele estava preocupado com Aryes, que se recusou
terminantemente a tomar o café da manhã.
“Ah, sobre isso? Eu já a convenci. Olhe,” disse Holo.
Ela se virou para Aryes, que estava voltando de suas orações, e
jogou um pedaço de pão para ela.
Aryes estendeu apressadamente as duas mãos e segurou o pão
contra o peito, como se estivesse salvando um bebê. Até Klass, que
estava longe de ser educado, ficou surpreso com a impropriedade de
Holo. “V-você está jogando comida no chão —!”
“É da natureza do mundo que o trigo da colheita eventualmente
retorne à terra. Existe algum motivo para eu não poder jogar pão, que
é apenas trigo moído em farinha e assado?”
“Huh…?” Klass fez uma careta inadvertidamente tola enquanto
Aryes inclinava a cabeça como se alguém estivesse beliscando seu nariz.
Então, por fim, ela deu um vago aceno de cabeça.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 49 ⊱

Klass se sentia como se de alguma forma estivesse sendo


enganado, mas não conseguia definir como.
Dizia-se que nem mesmo o homem mais sábio poderia vencer um
espírito.
“É assim que se faz, rapaz,” sussurrou Holo no ouvido de Klass, e
ele não pôde deixar de ficar um pouco impressionado com ela. “Então,
seu destino é o mar, não é?”
Talvez ela estivesse acostumada a comer esse pão; enquanto Klass
mordiscava avidamente sua porção, Holo engoliu a dela com um gesto
ganancioso.
“M-mais ou menos,” disse Klass.
“Uma jornada sinuosa para dois, hein?”
Klass se encolheu com a provocação. “Isso não é realmente o que
parece, mas...”
“Se você não está realmente vagando errante, então você tem que
decidir sobre um destino adequado,” disse Holo definitivamente,
dando a última mordida.
A palavra errante ecoou na mente de Klass por um momento.
Ele tinha ouvido histórias de tais viajantes, que migravam de nação
para nação a cavalo, rostos sombrios, mantos surrados e gastos.
Mas quando ele falava dessas coisas, todos os outros adultos na
mansão pareciam rir da mesma maneira, então ele ficava em silêncio.
“Ainda assim, sua alimentação é tão lenta quanto seu despertar.”
“Huh?” Com as palavras de Holo, Klass olhou para baixo. Ele não
tinha comido nem a metade de seu pão.
Ele imediatamente pensou que Holo estava apenas comendo
muito rápido, mas então olhou para Aryes.
“Como é que os humanos dizem? Coma como se precisasse de faca
e colher, hein?”
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 50 ⊱

Klass ouvira isso muitas vezes quando suas tarefas de coleta de


água e gado estavam se acumulando.
Para a nobreza que usava facas e colheres, quanto mais devagar
comia, melhor.
Naturalmente, Klass nunca havia usado uma colher na vida.
Ele enfiou apressadamente o restante do pão na boca.
Embora o rico sabor do pão agora enchesse sua boca de uma forma
que não poderia acontecer enquanto estivesse mordiscando, algumas
mastigadas e um gole depois e era o fim.
Ele estava se sentindo como se tivesse sido um desperdício, mas
agora era tarde e o que foi feito foi feito.
Ele estava ainda mais pressionado pelo fato de que até mesmo
Aryes, que normalmente comia muito devagar, havia terminado.
“Certo, então, vamos juntar nossas coisas e partir. O mar ainda
está longe, mas a próxima cidade está bem perto.”
Com as palavras de Holo, Klass imediatamente começou a se
limpar.
Ele logo percebeu que era o único a fazer isso, mas não podia
interromper Aryes (que agora estava no meio de suas orações após o
café da manhã), e ordenar que Holo o ajudasse estava fora de questão.
Mesmo assim, a única coisa que ele não suportava era ter que
cuidar das coisas de Holo além das suas.
Em contraste com os poucos pertences de Klass e Aryes, a bolsa
de Holo continha tudo que um viajante precisava. A parte mais pesada
era um odre cheio de vinho.
“O que você quer dizer com ‘não posso carregá-lo sozinha’? Como
você veio até aqui, então?” Klass reclamou do pedido irracional, para
o qual Holo mostrou suas presas e aproximou seu rosto do dele,
sorrindo misteriosamente.
“Você realmente quer saber?”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 51 ⊱

Haviam vários motivos para Klass engolir em seco e nada que o


fizesse acenar afirmativamente.
Holo acenou com a cabeça, satisfeita, e com um aceno de cauda,
ela começou a andar.
Klass renunciou a essa pressão em troca deste pesado fardo; ele
suspirou e caminhou atrás dela. Em todo caso, se essa era a quantia que
deveria carregar, dificilmente seria impossível.
Enquanto considerava a situação, ele sentiu uma presença ao lado
dele. Quando olhou, era Aryes.
“Eu devo ajudar você?”
Foi a primeira oferta que ela fez em seis dias de viagem, mas Klass
sabia que ela havia desmaiado de exaustão ontem. Ele dificilmente
poderia aceitar isso e então objetou.
“Mas...” ela começou, parecendo mais atacada pela culpa pessoal
do que pela preocupação, e então Klass deu a ela a sacola de comida
com a qual eles estavam viajando originalmente.
“Pegue isso, então.”
Aryes acenou com a cabeça e pegou a bolsa.
Klass não sabia por que de repente ela estava tão ansiosa para
ajudar, mas em todo caso, certamente estava feliz por ela se importar.
“Bem, vamos.”
Aryes pendurou o cordão da bolsa no ombro e o seguiu
obedientemente ao lado dele.
Isso era inédito em suas viagens juntos, mas como Holo já estava
avançando, Klass teve que se apressar para acompanhá-la.
Ele estava preocupado com a possibilidade de Aryes desabar
novamente, mas parecia que estavam se aproximando de um terreno
plano à medida que as colinas cresciam e, quando pararam para a
refeição do meio-dia, já haviam conseguido escalar três pequenas
colinas.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 52 ⊱

Pouco antes da pausa, Aryes — que estivera em silêncio o tempo


todo — falou.
“Eu esqueci de agradecer por me proteger dos lobos, então, muito
obrigado!”
Klass ficou um pouco surpreso com sua expressão e afeto
estranhamente rígidos, o que fez parecer que ela estava tentando
encontrar o momento certo para dizer isso.
Ela provavelmente era muito séria sobre essas coisas.
“Hum, d-disponha.”
Com essa resposta, Aryes suspirou de óbvio alívio e sorriu
fracamente.
Foi tão estranhamente encantador que Klass estava prestes a
adicionar apressadamente: “Por favor, não se preocupe com isso,” mas
ele viu Holo sentada à frente deles um pouco afastada e não disse nada.
Seu olhar estava fixo em outro lugar, mas suas orelhas estavam
apontadas para eles.
“De qualquer maneira, vamos parar e comer.”
Naquele momento, ele percebeu o perfil de Holo parecendo
repentinamente irritada.
Klass percebeu que Holo provavelmente o fizera carregar a
bagagem dela para obter esse agradecimento de Aryes.
Ele desejou que ela cuidasse da própria vida.
Não era por isso que ele estava viajando com Aryes.
E, no entanto, ser agradecido tão diretamente por ela era uma
alegria singela.

Depois que a refeição do meio-dia acabou, Holo se esparramou


no chão.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 53 ⊱

Ela estava sem dúvida com sono pela grande quantidade de vinho
que engoliu.
Ela mandou Klass e Aryes na frente, dizendo que os alcançaria
mais tarde. Eles deixaram para trás apenas o cobertor.
Uma vez que a velocidade de caminhada do grupo era limitada ao
que Aryes conseguia, Holo poderia deixá-los ir em frente e ainda
facilmente alcançá-los. O que fez Klass suspirar foi a maneira como
Holo tão rapidamente se convidou para viajar com eles e então fez o
que bem entendeu, mesmo depois de se juntar a eles.
Claro, não importa qual seja a conduta de Holo, era mais do que
compensada pela dívida que deviam a ela por compartilhar seu pão com
eles.
Não se podia discutir com a pessoa que os alimentava.
Assim, por enquanto, Klass viajava novamente sozinho com
Aryes.
Mas parecia que o motivo pelo qual ela caminhou ao lado de Klass
sem se perder durante toda a manhã foi sua busca pela oportunidade
de dizer os agradecimentos que sentia ter perdido. Agora ela andava
um pouco, depois parava, olhando para ele interrogativamente.
A parada constante era honestamente irritante, mas os olhares
questionadores não eram nada desagradáveis.
Naturalmente, ele não pôde deixar de contar tudo o que ela queria
saber.
Depois de algum tempo, ela deixou escapar um som que poderia
muito bem ser um grito, para o qual Klass se virou surpreso.
“Aryes?!”
Em um instante, os eventos da noite anterior passaram por sua
mente, mas ele logo percebeu que se houvesse mais lobos, Holo disse
que ela lidaria com eles.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 54 ⊱

Aryes ficou a uma curta distância; ela olhou para Klass e depois
apontou.
Por um momento, ele pensou que era o terror que coloria suas
feições — mas não, era outra coisa.
Não terror, mas confusão.
“O que há de errado?” No momento em que a ouviu chorar, Klass
quase deixou cair as sacolas que carregava para correr para o lado dela,
mas quando percebeu a falta de urgência em sua voz, ele apoiou o fardo
nos ombros e simplesmente caminhou até ela.
Deixe as coisas de uma pessoa sozinhas e elas podem ser roubadas
por um falcão que você nunca viu. Klass pensou nas vezes em que
perdeu sua refeição para o gado oportunista ao cuidar deles na
propriedade.
“O-o que é isso...?”
Quando Klass se aproximou de Aryes, as nuances de sua expressão
tornaram-se visíveis.
Seu rosto não estava confuso, mas triste e preocupado.
Ele olhou para onde ela estava apontando.
Lá, longe o suficiente para que ele se sentisse confiante em sua
habilidade de escapar caso algo estranho se aproximasse, estava um
coelho marrom.
“Um coelho? O que tem isso?”
Mesmo que fosse a primeira vez que ela via um coelho, não havia
um impacto tão grande quanto um, digamos, um cavalo, e na verdade
era um tanto fofo, Klass pensou.
No momento em que ele se perguntava por que ela poderia estar
tão chateada, Aryes engoliu em seco e respondeu à pergunta.
“São... são as orelhas...”
Quando Klass percebeu o motivo de seu estado triste e
preocupado, ele não pôde deixar de rir.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 55 ⊱

Ela pensou que suas orelhas tinham ficado assim porque alguém as
esticou.
“Todos os coelhos têm orelhas assim. Essas orelhas compridas são
como eles ouvem coisas à distância.”
Klass tinha ouvido os passos dos lobos contra o chão na noite
anterior, mas quando ele dormia no celeiro da propriedade, ele
costumava ouvir os coelhos que viviam em tocas próximas batendo no
chão com os pés.
Quando eles atingiam o chão assim, seus amigos coelhos ouviriam
o som com suas orelhas compridas e entenderiam isso como um aviso
de uma raposa ou lobo se aproximando.
“Você tem certeza de que... alguém não fez algo terrível com ele?”
“Tenho,” disse Klass, o que pareceu finalmente aliviar Aryes.
“Ainda assim, parece muito saboroso.” A lebre estava mastigando
enquanto observava o par vigilantemente. Seu pelo era fino e bastante
grande. Se fosse assado no fogo, Klass poderia facilmente imaginar a
textura espessa e oleosa que o saudaria se ele mordesse uma coxa de
coelho assada quase quente o suficiente para queimá-lo enquanto a
gordura escorria por seu queixo.
Mas, depois de dizer isso, Aryes olhou para ele com total
descrença.
“Huh? Uh, er, não, eu quis dizer a grama que o coelho está
comendo. Com certeza parece gostosa! Isso é tudo que eu quis dizer!”
Klass emendou apressadamente sua declaração e, embora Aryes o
considerasse um canalha da pior espécie, ela finalmente pareceu
acreditar nele e sua expressão se acalmou.
“Ah, entendo. Eu sinto muito, eu pensei —”
“Não, está tudo bem — desculpe, eu te assustei.”
Na verdade, era Klass quem estava com medo, mas parecia que
ele havia conseguido evitar o desprezo de Aryes.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 56 ⊱

No entanto, se era assim — Aryes nunca comeu um coelho? Klass


refletiu sobre isso e, depois de algum tempo, Aryes falou, insegura.
“Sem dúvida —”
“Hmm?”
“Oh, me desculpe. Quero dizer, sem dúvida há muito que eu não
sei sobre o mundo,” disse ela, com o olhar distante.
Embora seu perfil estivesse calmo, parecia tingido de um
silencioso temor.
Aryes disse que ela viveu toda a sua vida dentro dos limites
daquele pequeno edifício.
A boca de Klass se moveu por conta própria. “Bem, vamos
descobrindo mais aos poucos!”
“Oh?”
“Nós iremos para longe. Até o oceano, e além.”
Holo disse que eles precisavam ter um destino ou uma meta.
Pareceu uma grande ideia para Klass viajar pelo mundo e ver seus
próprios pontos turísticos como objetivo.
Mas Aryes não reagiu por um tempo. Por um momento, era como
se suas palavras tivessem sido um feitiço que a transformou em pedra,
mas sua expressão finalmente se suavizou.
Klass ficou um pouco surpreso com o sorriso adulto que ela
exibia.
“Sim, vamos. Embora eu ache que vou precisar andar um pouco
mais rápido,” disse ela, seu sorriso agora era aquele que Klass conhecia
bem.
Klass, perplexo, acenou com a cabeça três vezes e, em seguida,
em vez de limpar a garganta, ele reequilibrou as sacolas por cima do
ombro. “Contanto que você não desmaie,” disse ele provocativamente.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 57 ⊱

Diante disso, Aryes ergueu o queixo e escondeu o rosto sob o


capuz.
Foi um gesto muito infantil e Klass ficou aliviado. “Vamos
embora,” disse ele.
Ele começou a andar enquanto Aryes o seguia.
O sol estava se pondo quando Holo finalmente se juntou a eles.

“…Guh…” O som sem voz saiu de sua garganta


espontaneamente. Não importa o quanto ele tentasse fingir o
contrário, não havia nada a fazer — ele tossiu com voz rouca.
“Heh heh. Suponho que você ainda seja um pouco jovem.”
Holo pegou o odre de vinho de Klass tossindo e sorriu
desagradavelmente.
Segundo ela, continha vinho de uva filtrado.
Klass sempre ouvira a palavra vinho de uva e imaginava algo doce,
mas o que ele bebia era mais como suco de uva estragado que queimava
mesmo estando frio.
“Parece que ela não é apenas mais alta do que você, ela também é
mais adulta.” Holo deu outro gole no odre, depois deu uma mordida
na carne seca.
A altura não tinha nada a ver com isso, Klass queria dizer, mas não
conseguiu encontrar uma boa réplica.
Aryes tinha sido capaz de beber com uma cara séria e, se ela
conseguia, ele pensava que também poderia — até a miserável
prestação de contas que acabara de dar de si mesmo.
“Vinho é o sangue de Deus. Se você não pode beber isso, é a prova
de que os ensinamentos de Deus não estão entrando em seu corpo,”
Aryes o repreendeu.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 58 ⊱

Já que Klass nunca tinha ouvido nenhum desses supostos


ensinamentos, isso provavelmente era verdade, mas em qualquer caso,
era humilhante que ela pudesse fazer algo que ele não podia.
“O vinho é para ser apreciado. Existem outros licores para beber
para provar sua coragem.” Com a aparição dizendo isso, ele não teve
escolha a não ser recuar. “Embora eu tenha pena de você ser incapaz
de desfrutar deste prazer.”
Essas últimas palavras, porém, não foram dirigidas a Klass, mas a
Aryes.
Aryes pareceu perplexa por um momento e olhou para Klass.
Ainda frustrado por ter sido mimado, Klass desviou o olhar.
“Mesmo assim, quando alguém invoca constantemente a Deus
depois de receber sua bênção, os pecados também aumentam,” disse
Aryes.
“Dói-me ouvir isso,” disse Holo, mexendo as orelhas de lobo
como se espantasse um inseto.
Aryes sorriu, depois desdobrou e tornou a dobrar os braços no
colo sem jeito, como se estivesse envergonhada. “O pecado mais
comum é não conseguir esperar enquanto o suco goteja do pano em
que as uvas foram amarradas...”
“Então você torce com a mão? E, por algum motivo, o gosto é
horrível.”
Aryes fechou os olhos e colocou a mão na bochecha direita. “‘Se o
vinho de uva é o sangue de Deus, e o sangue de Deus é a bênção tirada
de seu corpo, então vocês são tolos que buscam bênçãos embora isso
fira a Deus’, foi o que me disseram.”
Klass realmente não entendia do que Aryes estava falando, mas
Holo parecia se divertir profundamente, como se ela tivesse contado
uma piada muito boa.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 59 ⊱

A única coisa que ele entendeu foi que, sempre que Aryes ouvia
essas palavras, sua bochecha direita era atingida. Ela esfregou a
bochecha como se lembrasse da dor.
“Eu me senti profundamente triste. Eu sabia que nunca mais faria
uma coisa dessas.”
“E então você controlou seu desejo, hein?”
Aryes abriu um olho e observou Holo, cuja cabeça estava
ligeiramente inclinada; as duas deixaram escapar uma pequena onda de
risos.
“Eu guardo os ensinamentos de Deus e recebo apenas as bênçãos
que ganhei.”
“Pegar uma gota de cada vez e depois lamber o dedo certamente
seria...” disse Holo com divertimento exagerado, e Aryes fechou os
olhos novamente e sorriu.
Mas agora sua mão na bochecha direita não estava lá para lembrar
a dor, mas sim para saborear a memória de provar algo delicioso.
A nova expressão e maneiras de Aryes paralisaram Klass; ele
sentiu isso no fundo do peito.
Por um momento ele ficou surpreso, mas então percebeu que
havia um formigamento desde que ele engoliu o vinho e se sentiu um
pouco aliviado.
“Mesmo assim, seria uma vida pobre não conhecer esse prazer em
particular”, disse Holo.
Com essas palavras, as duas olharam para ele, e Klass de repente
se sentiu como uma criança muito jovem, e como uma criança ele se
virou com raiva.
O sol havia se posto durante a conversa, e graças ao tempo
nublado eles estavam realmente cercados pela escuridão.
Como não tinham fogo, assim que a noite chegava, não havia nada
a fazer a não ser dormir.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 60 ⊱

Era o mesmo grupo — Holo, Klass, Aryes — da noite anterior,


mas talvez tendo ficado entediada com as provocações, Holo não
sugeriu que todos dormissem juntos.
Klass ficou simultaneamente aliviado e desapontado com isso; era
uma sensação estranhamente solitária e ele estava com medo de pensar
muito nisso, então se enrolou em seu cobertor e fechou os olhos.
O latejar moderado de dor nas têmporas certamente se devia ao
vinho.
Quando pensava em Aryes, que se cansava depois de apenas
caminhar um pouco, cujos olhos questionadores se voltavam para ele
sempre que ela via algo novo e que bebia o vinho com facilidade, ele
suspirava.
Foi ele quem teve que segurar a mão dela e puxá-la pelo caminho
que andou tão instavelmente.
Esses eram os pensamentos que rondavam Klass quando ele
adormeceu.
Foi só quando acordou, com a sensação de errar um degrau de
escada, que percebeu que havia adormecido.
“…Mph…”
Ele enxugou um pouco de baba do canto da boca com o cobertor.
“Talvez eu não devesse,” ele murmurou para si mesmo,
lembrando que o cobertor pertencia a Holo. Ele terminou de limpar a
boca com a própria manga e, ainda deitado de lado, olhou para o céu.
Ele sentiu como se tivesse adormecido por um curto período de
tempo, mas em algum ponto a cobertura de nuvens havia diminuído e
um pouco da luz da lua agora estava escapando. Ele estremeceu e
puxou o cobertor com mais força em torno de si, mas logo percebeu
que a fonte de seu arrepio não era o frio.
Se estivesse escuro como breu, teria sido impossível encontrar o
caminho de volta para o cobertor depois de se aliviar, mas felizmente
seus olhos podiam ver nesta luz, então ele se sentou. Se ele tentasse
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 61 ⊱

resistir e fosse dormir, bem — o pensamento era horrível demais para


contemplar. Havia o fato de que seria ridicularizado por Holo e Aryes,
e acima de tudo os insetos seriam terríveis.
Ele se lembrou de um incidente onde urinou na cama muitos anos
atrás e estremeceu novamente.
A razão pela qual se afastou bastante do cobertor foi porque
simplesmente não gostava da ideia de se aliviar onde dormia e porque
a ideia de ser visto por Aryes era totalmente humilhante.
Uma vez que se afastou o suficiente, ele finalmente foi capaz de se
aliviar.
“Uau...” Terminado o momento de êxtase, Klass suspirou
satisfeito e se virou.
Mas entre a escuridão e sua sonolência, ele teve dificuldade para
amarrar o cordão da calça. Ele olhou para suas mãos desajeitadas
enquanto caminhava preguiçosamente de volta.
Enquanto cambaleava de volta para onde havia dormido, Klass
murmurou seus agradecimentos por ter acabado de terminar seus
afazeres.
“O quê, então você nunca notou?” Lá, na escuridão que deixava
apenas os contornos mais básicos do mundo visíveis, os olhos estreitos
e divertidos de Holo ainda estavam estranhamente brilhantes.
“Achei que você fosse um espírito de coruja!”
“Hmph, e mesmo assim sou uma loba.”
Quando ele não conseguiu rir, ela pisou em seu pé.
Klass hesitou em protestar, ao que Holo foi embora, então ele
desistiu completamente.
Uma vez que estava a uma curta distância, ela olhou por cima do
ombro para e acenou para que se aproximasse.
“O-o quê?”
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 62 ⊱

Holo parou e se sentou, gesticulando para que Klass se sentasse ao


lado dela, o que ele obedeceu. Uma vez sentados, eles tinham
aproximadamente a mesma altura, com Klass mais baixo que Holo
apenas pelo comprimento de suas orelhas.
“Tenho algo que gostaria de lhe perguntar”, disse ela.
“Alguma coisa para me perguntar...?”
Klass se perguntou o que poderia ser para que ela fizesse questão
de perguntar nesta hora sombria, quando Holo falou lentamente.
“Trata-se de Antheo, com quem você trabalhou por um tempo.”
“O Senhor?”
“Sim. Você tem certeza de que ele morreu?”
Klass se lembrou de que, quando estava relatando os eventos que
levaram à sua jornada, Holo pareceu reconhecer o senhor.
Talvez eles fossem amigos.
“‘Certeza’, certeza mesmo... eu não tenho.”
O irmão mais novo do senhor simplesmente chegou com seus
lacaios e declarou isso e aquilo e pronto.
“Hmph... mas pelo que ouvi, ele tinha o hábito de fazer viagens
longas.”
“Ah, bem, isto é — depois de um tempo, ele voltaria com objetos
ou pessoas estranhas.”
A opinião coletiva dos criados era que seu hábito mais estranho
era o prédio de pedra com Aryes.
“Então o que você está dizendo é que, na melhor das hipóteses,
você não sabe para onde ele viajou. Suspeita fraca, de fato,” disse Holo
com um suspiro, deitando-se no local.
Nem mesmo um inseto fazia barulho, e a única coisa que quebrava
o silêncio era o balançar da cauda de Holo.
“Você conhecia ele?” perguntou Klass.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 63 ⊱

“Eu? Não, nada do tipo.”


Holo estava deitada de lado, apoiando a cabeça com o cotovelo no
chão.
Pelo que ele podia dizer de sua forma iluminada pela nebulosa luz
da lua, ela estava acostumada a dormir à céu aberto. Holo ficou assim
por um tempo, sem olhar para nada em particular, e ficou em silêncio,
Klass não fez mais perguntas.
Foi Holo quem finalmente quebrou o silêncio.
“Pelo que ouvi, Antheo estava procurando um elixir da
imortalidade.”
“Im... mort...?”
“Imortalidade. Significa viver para sempre sem envelhecer.”
Klass só conseguiu murmurar um confuso: “O que —?” — qual
seria o sentido de tal coisa?
“Heh. Você acabou de nascer, então é claro que você não vê
sentido.” Klass puxou o queixo, ofendido, e Holo olhou para ele.
“Comparados a muitas outras criaturas, os humanos vivem um pouco
mais, mas ainda envelhecem e ficam decrépitos em um piscar de olhos.
Mesmo eu não posso afirmar que não entendo por que alguém iria
querer evitar tal destino.”
Embora Klass ainda não conseguisse entender isso, algo de
repente lhe ocorreu. “Oh — mas tenho certeza que você sempre será
jovem e bonita do jeito que é agora, Srta. Holo!” ele disse
apressadamente.
Holo ficou brevemente surpresa, então sorriu, mostrando suas
presas. “Algo sobre ser tranquilizado por uma criança tão jovem me
incomoda. Mas, claro, minha beleza é eterna.”
Ela cheirou e balançou a cauda e parecia genuinamente orgulhosa
disso.
Em todo caso, ela não estava com raiva, o que era um alívio.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 64 ⊱

“Mas suas palavras estão meio certas,” disse Holo.


“Huh?”
“Não seria eu quem usaria o elixir da imortalidade”, disse Holo
com um sorriso autodepreciativo, parecendo de alguma forma
envergonhada.
Klass mal conseguiu perguntar: “Então quem?” quando—
“Mais uma coisa,” disse Holo, olhando para trás. “Ouvi dizer que
Aryes viveu no mesmo prédio desde o nascimento? Isso é verdade?”
Ele não havia contado nada a Holo sobre isso, então ela deve ter
ouvido de Aryes na noite anterior, quando dormiram lado a lado, mas
Klass não tinha ideia de pôr que Holo iria recorrer a ele para confirmar
a história.
Mas deixando a investigação de lado, Klass disse a ela o que sabia.
“E-eu acho que sim. Pelo menos, todos os criados adultos
disseram isso.”
“Hmmm.” Embora não estivesse claro se ela estava realmente
interessada ou não, Holo acenou com a cabeça e olhou para longe.
“Qual é o problema?” Klass finalmente perguntou, incapaz de
resistir, ao que Holo balançou a cabeça.
“Ah, está bem. Mas se Antheo está realmente morto, isso significa
que não tenho mais um destino. Eu quis dizer isso como uma piada,
mas posso estar viajando com você por um bom tempo.”
“…”
Klass felizmente não conseguiu dizer nada, mas sua preferência
por viajar sozinho com Aryes deve ter ficado evidente em seu rosto.
Holo ergueu uma sobrancelha amargamente. “Eu posso muito
bem ser um incômodo, mas ver isso tão claramente em seu rosto dói
um pouco.”
“N-não, eu não quis dizer—”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 65 ⊱

“Ah, então eu posso ficar com você para sempre?” perguntou Holo
com um sorriso, para o qual Klass agora mal conseguia sacudir a
cabeça.
E era verdade que o charme de Aryes era suficiente para equilibrar
o sorriso malicioso de Holo.
Então Klass balançou a cabeça lentamente, arrancando uma risada
de Holo. “Nesse ritmo, você não terá motivo para reclamar se o sua
querida Aryes te der um tapa na cara.”
Seu sorriso brilhante se transformou em um sorriso mesquinho.
Evidentemente, os espíritos podiam ler mentes.
“Heh heh. Bem, é direito de todas as crianças serem honestas. Se
você for tolo o suficiente para trazer flores para ela, terei a gentileza
de permitir.”
Encontrar uma réplica era problemático demais para valer a pena,
então Klass simplesmente olhou para a lua.
“Mesmo assim, tenho inveja de você.”
“…?”
Holo falou como se resmungasse para si mesma, depois se sentou
e cruzou as pernas.
Ele podia ver apenas um pouco do perfil dela, então era difícil ter
certeza, mas ela parecia estar olhando para longe, bem longe.
Holo ficou em silêncio por um tempo, depois voltou a olhar para
Klass e falou.
“O que você faria se lobos aparecessem agora e atacassem?”
Era uma pergunta inesperada e o desequilibrou, mas Holo, a
aparição, estava aqui, então certamente não havia nada a temer.
“Er, eu tentaria não atrapalhar seu caminho...” Klass respondeu
imediatamente, e Holo sorriu com um pouco de tristeza, depois caiu
de lado.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 66 ⊱

Klass se encolheu porque não apenas ela se deitou de lado, mas


também apoiou a cabeça bem no colo dele.
“É uma resposta lógica, de fato, mas não há nada tão odiável
quanto um homem egoísta.”
“Entendo...”
“Você não entende. Você deveria ter dito algo mais como ‘Eu me
sacrificaria para protegê-la’. Vamos,” ela disse, dando um tapa na
perna dele, o que só poderia significar que ela queria que ele realmente
dissesse.
Mesmo se estivesse sozinho, dizer algo assim era embaraçoso o
suficiente, mas Holo estava lá, seu olhar sobre ele.
Mas ele teve a sensação de que, se não dissesse, ela ficaria com
raiva e não iria soltá-lo até que o fizesse.
E ainda assim ele hesitou por um tempo, mas no deliberado
pigarro de Holo, se recompôs. Ele respirou fundo como se fosse pular
na água fria, ergueu o queixo, fechou os olhos e abriu a boca.
“Eu... eu me sacrificaria...”
“Hmph.”
“...S-sacrificaria...”
“Mmm?”
“…para…”
Tendo chegado tão longe, sua mente ficou em branco.
Quando ele parou sem continuar a frase, Holo revirou os olhos e
murmurou, sentando-se: “sacrificaria para protegê-la”, ela solicitou.
“Oh, certo, ‘sacrificaria para protegê-la’.”
Tendo terminado, ele percebeu que era uma coisa curta para
dizer, mas parecia recitar um longo poema.
Mesmo depois de terminar de repetir a frase, ele deixou o queixo
erguido e os olhos permaneceram fechados.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 67 ⊱

Ele sabia muito bem que Holo estava olhando para ele, pois o olhar
dela era tão aguçado que parecia que algo estava cutucando suas
bochechas.
“Heh. Sim, suponho que sim,” disse Holo, finalmente desviando
o olhar.
Klass deixou cair o queixo e respirou fundo, como se tivesse
acabado de sair da água.
“Ainda assim, se isso for tão difícil, você terá dificuldade em dar o
próximo passo.”
“Er, próximo passo?”
“Sim.” A resposta de Holo e sua ação foram simultâneas.
Imediatamente depois disso, Klass teve certeza de que ele havia
morrido.
Ele não só não conseguia se mover, mas também não conseguia
respirar ou piscar.
“Heh.”
Klass não soube dizer se Holo realmente deixou escapar uma
risada ou se a sensação do dedo dela traçando suavemente sua orelha o
fez imaginar uma.
O que ele poderia dizer é que Holo passou os braços em volta do
pescoço dele e descansou a cabeça em seu ombro.
O silêncio continuou por um tempo.
Sua orelha esquerda começou a formigar, o que ele percebeu mais
tarde ser por causa da sensação da respiração de Holo.
Ele não tinha ideia de porque ela estava fazendo isso.
Era como um sonho e sufocante ao mesmo tempo.
“Meu Deus, se eu fosse te morder assim, é como se você fosse
morrer na hora.”
As palavras de Holo foram como uma mão enfiada na sua mente.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 68 ⊱
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 69 ⊱

Embora ela obviamente estivesse fazendo uma piada, nada sobre


isso parecia engraçado para Klass, e ele finalmente conseguiu virar a
cabeça.
O que encontrou seu olhar foi o brilho do luar sobre os lindos
olhos âmbar e as presas sobrenaturalmente brancas.
Isso e seu perfume vertiginosamente doce.
Mesmo neste estado, com seu campo de visão inclinado, a única
coisa que podia ver estranhamente claro eram aquelas coisas brancas,
seus lábios curvados para revelá-los.
Naquele momento, ele realmente acreditou que ela estava prestes
a devorá-lo.
Quando a boca de Holo com suas presas se aproximou dele,
alguma parte de sua mente entorpecida murmurou que ele nem se
importaria se ela o fizesse.
Uma sensação semelhante à sonolência o fez fechar os olhos.
Tudo o que restou foi seu cheiro.
E então —
“…”
Holo não devorou Klass.
“Ei, não posso devorar você assim”, disse ela levemente,
libertando-o repentinamente de seu abraço.
Naquele instante, Klass teve a sensação de que todas as camadas
oníricas que o envolveram estouraram como bolhas.
Não — elas de fato estouraram.
Ele ficou atordoado por um momento, então olhou para Holo
como se ele tivesse deixado cair seu doce favorito no chão.
O que aconteceu a seguir fez com que seu coração se partisse ao
ver seu rosto distante.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 70 ⊱

Holo deu uma risadinha. “Quando você me olha assim, fico com
vontade de continuar.”
Ela bateu no nariz dele com o dedo indicador, e ele soube que
estava brincando.
Klass finalmente percebeu isso.
Haviam brincado com ele.
“Não fique com raiva. Não é como se eu estivesse me oferecendo
apenas por você me proteger.”
“Huh?” Como um cão bem treinado, Klass olhou na direção em
que Holo assentiu. “Oh—” Sua boca congelou na forma de um grito.
“A-Arye—!”
Ele não conseguiu terminar a palavra.
No final de seu olhar estava Aryes, que deveria estar dormindo a
uma curta distância.
Ela estava ligeiramente apoiada, o rosto meio escondido —
propositalmente? Klass se perguntou — por baixo do manto que ela
estava usando como cobertor. Sob aquele manto, saiu seu olhar ilegível
e sem cor, para o qual Klass não teve resposta.
Logo depois de perceber que suas costas começaram a suar frio,
Aryes desviou os olhos, como fizera quando vira o coelho no campo.
Klass se sentiu como se tivesse sido pego fazendo algo muito ruim.
Não — isso foi muito ruim.
Embora ele não soubesse exatamente o que era tão ruim, seu
cérebro corria em círculos tentando inventar algum tipo de desculpa.
Ao lado dele, Holo riu em voz baixa.
Ela ainda não o havia soltado inteiramente de seus braços, então
ele podia sentir sua risada; era como o som de um coelho batendo forte
para alertar sobre o perigo que se aproximava.
“Ouvi dizer que o amor brilha mais quando sua estrada tem muitos
obstáculos”, disse Holo.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 71 ⊱

“N-não, isso não é —!”


“Bem, então não há necessidade de se preocupar, não é?” ela
disparou de volta.
Ele a olhou com ressentimento, mas ela parecia considerar seu
olhar severo como um suave raio de sol primaveril. “Isso não vai dar
certo. Quando vejo um filhote tão adorável, não consigo deixar de
provocá-lo,” falou, soltando-o levemente de seus braços. Ela se
espreguiçou com um gemido, então balançou a cauda grandiosamente.
Ele se sentia como um cachorro que foi espancado em uma briga
de mentira, e a comparação não era apenas hipotética.
Porque, afinal, ela brincou com ele novamente.
“Você não pode ficar observando algo avidamente o tempo todo,”
Holo sussurrou para que Aryes, que sem dúvida estava prestando
atenção, não pudesse ouvir. Inclinando a cabeça, ela continuou. “Mas
você aprendeu algo agora, certo?”
“Huh?” ele respondeu, sem entender.
O rosto de Holo parecia irritado. “Ah, está bem,” disse ela,
balançando a cabeça. “Mas saiba disso: não são apenas os lobos que vão
mostrar suas presas vocês dois. Longe disso, já que ela é uma jovem
donzela.”
“O qu—?”
“Você tem tanto charme enquanto é pequeno. Agora tudo que
você precisa é coragem.” Essas últimas palavras foram ditas enquanto
Holo se levantava e bagunçava o cabelo de Klass.
Ele empurrou a mão dela com raiva, mas Holo apenas riu e
caminhou despreocupada de volta para onde havia dormido.
Seus movimentos eram tão leves que era fácil pensar que a
discussão que acabara de acontecer não passava de um breve sonho.
Em todo caso, ele viu Holo se afastar; ela não explicou suas
últimas palavras.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 72 ⊱

Ele caiu e deixou escapar um suspiro mais de alívio do que de


desânimo por ter sido libertado por Holo, a loba.
Então ele estendeu a mão para arrumar o cabelo despenteado, mas
de repente parou.
Seria uma pena endireitá-lo, ele percebeu, já que era como um
marco pelo qual ele poderia continuar o sonho.
Assim que Holo chegou ao seu destino, ela pareceu ter uma
conversa abafada, imediatamente após a qual Aryes encontrou os olhos
de Klass por um breve instante.
De repente, ele sentiu que seria uma péssima ideia deixar seu
cabelo despenteado.
Klass se ajeitou e suspirou novamente.
Holo e Aryes conversaram baixinho por um tempo, mas acabaram
ficando em silêncio.
Klass aproveitou a oportunidade para voltar para onde estava
dormindo.
Ele estava muito cansado e de repente sentiu que estava ainda mais
perdido.
“Mesmo assim,” ele murmurou sob seu cobertor.
Havia uma coisa que entendia.
Embora as duas pudessem cheirar bem, Holo e Aryes não eram
nada parecidas.
E se ele tivesse que escolher de qual gostava mais...
Klass fez a pergunta a si mesmo, mas bateu com a cabeça antes de
responder.
A noite estava passando.
Ele suspirou tão fortemente que parecia que seu cobertor iria
explodir.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 73 ⊱

Um estranho sentimento de culpa o impediu de olhar para Aryes


na manhã seguinte.
Mas Holo parecia ter remendado as coisas muito bem, pois,
depois que Aryes terminou suas orações matinais, ela o cumprimentou
com a mesma alegria de sempre, sem hesitação ou constrangimento.
Ele estava honestamente aliviado com isso, mas um sentimento de
solidão persistia em seu peito.
Klass ficou surpreso ao perceber que esperava que Aryes tivesse
entendido mal e, portanto, estivesse de mau humor.
Ao dizer rapidamente a si mesmo que certamente não queria atrair
a afeição de Aryes, ele começou a se considerar cada vez mais tolo.
E mesmo assim — pensou.
Ele tentou mudar mentalmente as posições de Holo e Aryes e
imaginar a situação que se seguiu.
Em sua mente, Holo era misteriosamente encantadora.
“…Oh.”
Sentindo-se um pouco mais inteligente, ele acenou com a cabeça
para si mesmo, mas então, com um estalo, seu devaneio acabou.
Ele olhou para cima para ver o rosto de desagrado de Holo.
“Anda. Você não vai comer? Você é o último a terminar de novo.”
Klass se assustou com o golpe repentino, mas, ao mesmo tempo,
ficou repentinamente preocupado com a possibilidade de o conteúdo
de sua imaginação ter sido visto de alguma forma.
Ele enfiou o pão de trigo que Holo mais uma vez colocou em sua
boca, engolindo-o junto com seus pensamentos secretos.
“Comer com pressa é uma arte por si só”, murmurou Holo,
parecendo tão entediada que os eventos da noite anterior poderiam
nunca ter acontecido.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 74 ⊱

Klass não pôde deixar de se sentir um pouco desapontado, mas


evidentemente ela não estava lendo sua mente. Ele suspirou de alívio.
Ele mais uma vez acabou carregando a bagagem de todos e
começaram a caminhar.
Hoje, Holo e Aryes caminhavam lado a lado com o
sobrecarregado Klass caminhando à frente.
Ele inclinou a orelha para tentar ouvir a conversa animada; parecia
que ainda estavam falando sobre bebidas alcoólicas. Embora um
momento atrás o vinho de uva fosse o assunto, elas agora estavam
discutindo sobre algum tipo de vinho marrom feito com pão.
De qualquer forma, tendo sofrido uma derrota nas mãos do vinho
antes, esse não era um assunto que interessasse profundamente a Klass.
O suco de framboesa misturado com água e mel era um deleite
muito mais saboroso, em sua opinião.
No entanto, Klass não teve coragem de se virar e contar isso ao
som de risadas atrás de si.
Fazer isso apenas provocaria sorrisos tristes de piedade, ele tinha
certeza.
Ele manteve a liderança, emburrado por ter sido deixado de fora
da conversa, quando percebeu que bosques de arbustos e blocos de
pedras estavam se tornando mais frequentes.
A paisagem estava começando a mudar das planícies para bosques
e, do topo das colinas, as formas escuras das árvores eram visíveis.
A floresta se espalhava à sua direita e, ao longe, havia uma pequena
montanha visível.
Em contraste, a vista à esquerda era toda grama alta e matagais, e
se ele olhasse de perto, ele poderia ver piscinas de água pontilhando a
área. Estava se tornando um pântano.
“É uma vista linda,” disse Holo, ao lado de Klass, e ao lado dela
estava Aryes, que levou a mão à boca, surpresa.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 75 ⊱

E agora que ela mencionou, Klass percebeu que, embora tivessem


escalado muitas colinas, esta foi a primeira vez que viram um cenário
como este.
“Cenário bonito, hein?” — disse Klass com orgulho, olhando para
uma Aryes surpresa — mas Holo estava entre eles e ela deu uma
cotovelada em Klass.
Ignorando Holo e Klass, Aryes olhou para longe, apreciando a
vista, depois falou com a voz hesitante.
“Er, é ... isso é o mar?” ela perguntou, apontando na direção do
pântano.
“Não, isso é um pântano”, disse Klass.
“Pântano?”
“É uma espécie de lagoa. Mas é mais raso e turvo.”
Aryes acenou com a cabeça em compreensão. Um pântano
significava que haveria bagres, e Klass queria muito pegar um dos
peixes estranhos e mostrá-lo a Aryes, só para ver sua reação. Ignorando
isso, Aryes continuou. “Então —” ela perguntou, “o mar é algo assim?”
“O mar é muito, muito maior!”
Klass nunca tinha visto o mar pessoalmente, mas tinha ouvido falar
dele. Conforme ele explicou, ele traçou um grande círculo no ar com
os dois braços, momento em que Holo interrompeu.
“E quão grande é?”
“O qu—?” disse Klass, sem palavras. Aryes desviou o olhar do
pântano e olhou para Klass interrogativamente.
Depois de se atrapalhar por um momento em busca de uma
resposta, Klass repetiu o que lhe contaram sobre o mar. “É tão grande
que não importa para onde você olhe — esquerda, direita, sempre à
frente — tudo o que você pode ver é o mar.”
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 76 ⊱

Com essa explicação, Aryes exalou sua admiração, enquanto


Holo, sendo Holo, pareceu perceber que Klass nunca tinha realmente
visto o mar. Ela sorriu.
Felizmente, porém, Klass não prosseguiu com o assunto e Aryes
sorriu e disse: “Espero que possamos ver isso em breve”. Aturdido com
o sorriso repentino que lhe foi mostrado, Klass acenou com a cabeça
vagamente apenas para ser surpreendido por Holo pisando
maliciosamente em seu pé.
“Então, vamos passar entre a floresta e o pântano. A cidade não
fica muito longe, mas...” explicou Holo, mastigando um pedaço
charque enquanto o trio fazia a refeição do meio-dia.
A explicação dela parecia implicar em algo desagradável, então
Klass pergunto:. “A estrada é difícil?”
“Não. Quando vim da cidade por aqui, não foi tão difícil. É muito
mais rápido cortar a floresta — e mais perigoso. O que me preocupa
não é a estrada, mas o que está além dela.”
“Além?”
“Sim. Para ser franca, quero dizer o estado de sua bolsa de
moedas.”
Ouvindo isso, Klass desamarrou sua trouxa e enfiou a mão nela,
ainda mastigando um pedaço de carne seca que pegara de Holo.
Nele estava o dinheiro que recebeu de viajantes e outros visitantes
da mansão.
Depois de vasculhar, ele finalmente mostrou cinco moedas. Todas
eram menores do que a ponta de seu polegar, e três delas eram quase
todas pretas com manchas verdes; as outras duas estavam enferrujadas
e acinzentadas.
Elas eram os bens mais valiosos de Klass por um longo tempo.
“Oh ho, então esta é a sua fortuna, não é?” disse Holo,
ligeiramente surpresa. Klass acenou com a cabeça orgulhosamente.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 77 ⊱

Viver meio ano com isso pode ser difícil, mas ele tinha certeza de
que conseguiriam sobreviver por pelo menos três meses.
“Isso é dinheiro?” perguntou Aryes, olhando para a moeda na
palma da mão de Klass.
“Claro que é.”
“Fui ensinado que o dinheiro é a raiz de todos os males. Mas não
é nada como eu pensava.”
Klass se divertiu imaginando como ela achava que seria.
Por um momento, ele não compreendeu as palavras que ouviu em
seguida.
“Não tenho certeza se isso vai comprar um pedaço de pão”, disse
ela.
Houve uma pequena pausa; então Klass respondeu. “Huh?”
“Não entendo bem o que se chama dinheiro. Posso saber
rapidamente a qualidade de uma pele, portanto, geralmente não é um
fardo, mas...”
Enquanto ela falava, Holo mexia em suas próprias coisas assim
como Klass havia feito e tirou uma pequena bolsa.
Desamarrando o cordão branco e roxo, ela esvaziou o conteúdo
na palma da mão aberta.
O choque que atingiu Klass ao vê-las não foi diferente de ser
atingido na cabeça.
“Eu acho que isso comprou um pão. Com esta prata, você pode
comprar muito. O que você acha? Eu não sei os detalhes, mas você
pode dizer a diferença entre isso e o seu, não pode?”
Klass entendeu tão bem que doeu.
Na palma da mão de Holo estavam moedas grandes e grossas
esculpidas com uma complexidade surpreendente.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 78 ⊱

Os que ela disse que comprariam um pão eram de uma bela cor
marrom-avermelhada, enquanto os que comprariam muitos pães eram
de uma cor branco-prateada mais ousada e opaca.
“O simples fato de estar na cidade custa dinheiro, para não falar
do pão que você precisará comprar para continuar sua viagem. O que
você pensa em fazer?” disse Holo, colocando suas próprias moedas de
volta na bolsa.
O som que eles fizeram não foi um tilintar leve, mas sim um forte
clink.
Assim como quando compreendeu o vasto tamanho do mundo,
Klass sentiu seu peito se encher de raiva e tristeza.
Holo não estava errada, e ainda assim ela parecia uma vilã naquele
momento, e ele tentou encontrar palavras para atirar, mas elas não
vieram.
Parecia que sua única resposta seriam lágrimas, outra pessoa
interrompeu.
“O pão é fruto do trabalho. Se trabalharmos, ficaremos bem,”
disse Aryes, dirigindo um sorriso para Klass.
Ela estava tentando ser atenciosa com ele.
Seu rosto ficou vermelho e ele reconsiderou as opções, enxugando
furiosamente as lágrimas dos olhos. “I-isso mesmo. Se trabalharmos,
tudo ficará bem.”
“Mm,” disse Holo, balançando a cabeça, mas sem sorrir. Exibindo
suas presas e mordendo outro pedaço de carne seca, ela continuou. “E
se um dia de trabalho árduo não trouxer comida para um dia inteiro?
O que farão?”
“V-vamos apenas trabalhar mais duro!” Klass não estava
totalmente confiante, mas lançou um olhar furtivo para Aryes, que
concordava com ele.
Isso lhe deu um pouco de coragem e ele olhou para trás, para
Holo.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 79 ⊱

“Você vai trabalhar mais duro, não é? Sim, e então a questão é se


há trabalho para você.”
Isso foi mais uma brincadeira de Holo. Klass adivinhou e abriu a
boca para responder, mas Holo o interrompeu.
“Há muitos adultos que não conseguem encontrar trabalho na
cidade — você acha que duas crianças vão conseguir?”
Sua boca congelou na forma de um silencioso “O qu—?”
“Você não tem força nem habilidade e não conhece ninguém na
cidade. Ouvi dizer que as coisas são diferentes no mundo humano se
você pode ler e escrever, mas...”
Klass, é claro, não sabia ler, mas então se lembrou de que Aryes
sabia.
“Você pode ler, certo, Aryes?” perguntou ele, ao que ela deu um
leve sorriso.
Agora não havia problemas.
Mas assim que ele pensou isso, Holo suspirou novamente. “Então,
o que Klass fará enquanto Aryes estiver labutando?”
Klass sentiu como se uma lança tivesse perfurado seu peito.
“Oh, eu não me importaria se Klass esperasse por mim.”
“I-isso mesmo. Vou esperar.”
Holo olhou para Klass com os olhos estreitos e mordeu o lábio
inferior.
Ele nunca seria capaz de fazer algo tão patético.
“Ainda assim, não consigo imaginar que existam tantos empregos
que envolvam leitura e escrita.” Holo traçou pequenos círculos no ar
com seu pedaço de carne seca, depois cutucou sua bochecha com a
ponta pontiaguda e mordida. Klass assistiu a isso, olhando para ela
quase rebelde e se perguntando por que ela de repente estava trazendo
isso à tona.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 80 ⊱

Era como se ela estivesse tentando dizer a ele para desistir da


viagem.
“No entanto, estive pensando,” disse Holo.
Pensando o quê? Klass murmurou interiormente.
Holo desviou seu olhar de belos olhos âmbar para longe. “O que
você diria sobre voltar?” Enquanto Klass ficava surpreso e incapaz de
responder, ela desviou o olhar à distância. “Daqui poderíamos buscar
um pouco de água no pântano e, se você pegasse minha comida,
poderia voltar. Não há ganho em se forçar a seguir em frente. E
embora você diga que foi expulso da mansão, vocês ainda são crianças.
Se você apelar para as emoções deles, tenho certeza de que tudo ficará
bem.”
Klass entendeu sua proposta muito bem, mas algo nela o encheu
de tanta raiva que ele não conseguiu assentir.
De repente, ele percebeu o que era.
Era sua promessa com Aryes.
Eles iam ver o mar.
“Posso dizer o que você está pensando, garoto,” disse Holo com
uma risada cansada. “Se você continuar com algum objetivo, plano ou
destino, o que acontecerá quando sua comida acabar? Quando você
não tem dinheiro e não tem trabalho? Você vai implorar? Você vai se
sentar na beira da estrada vestido com trapos, coberto de lama e
sujeira?”
De alguma forma, ele entendeu o que Holo estava dizendo. Ele
sabia que ela estava certa.
E ainda assim ele queria desesperadamente não voltar atrás.
“Você é bastante teimoso,” disse Holo.
Imediatamente depois disso, Aryes — que estava ouvindo Holo
em silêncio — falou. “E-eu também gostaria de ir e ver o mar. E ver
mais do mundo.”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 81 ⊱

Klass olhou para Aryes, sentindo-se subitamente resgatado.


Holo a olhou com os olhos semicerrados. “E?” foi sua única
resposta.
“Mas eu sei pouco sobre o mundo. Não posso refutar uma única
coisa que você disse, Srta. Holo. E eu aprendi que o mundo está cheio
de todo tipo de sofrimento.”
“Sim,” disse Holo, balançando a cabeça, satisfeita.
Klass praticamente podia ouvir seu próprio desânimo.
E pensar que sua promessa de viajar pelo mundo tinha sido tão
cara —!
Mas Aryes não continuou. Ela abaixou o capuz, tocando algo em
volta do pescoço.
“Aryes?”
Sem se importar com a pergunta de Klass, Aryes finalmente
agarrou algum tipo de corrente e puxou-o para fora.
Por baixo de suas roupas emergiu uma pedra verde como um ovo
de codorna.
“Isso... isso é...” murmurou Klass, olhando para a pedra que
pendia da corrente enquanto brilhava, captando raios de sol de vez em
quando.
Parecia exatamente com algo que uma nobre usava ao ser
convidada para a mansão pelo senhor.
A notícia chegou até Klass, graças à conversa dos servos mais
velhos — principalmente das mulheres.
Era uma joia — tão valiosa que se dizia que poderia comprar uma
vila inteira.
“Disseram-me que isso é uma coisa muito preciosa, então talvez
pudesse nos comprar um pouco de pão.”
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 82 ⊱

Assim que Klass ouviu essas palavras, ele enfrentou Holo


desafiadoramente.
Sua jornada com Aryes era dificilmente impossível.
Ele imaginou o rosto de Holo sem palavras com a réplica — mas
a expressão que encontrou seu olhar não era o que ele esperava.
“Oh. Então você estava disposta a se separar disso?”
“Huh—?” As vozes de Klass e Aryes aumentaram em uníssono.
“Percebi imediatamente quando estávamos dormindo... O quê,
você não percebeu que estava lá, garoto?”
Abalado pela pergunta de Holo, Klass balançou a cabeça.
Ele não tinha notado nada.
“Você deve ter se distraído com a suavidade, hein?”
“N-não, não estava!” Klass gritou com raiva em resposta à
pergunta maliciosa e ao sorriso de Holo.
“Bem, em todo caso, se você estiver disposta a renunciar a isso,
você estará segura por um tempo.”
“Então —” começou Aryes, mas Holo a interrompeu.
“No entanto, você está realmente preparado para fazer isso? As
pedras preciosas têm um significado especial, não importa a época ou
nação. Se for uma lembrança de alguém, você pode querer repensar
sua decisão.”
“Não, eu não sei de quem recebi isso — apenas que o padre disse
que se algum dia eu me encontrasse em apuros, isso me ajudaria. Acho
que agora é a hora.”
Holo coçou a ponta do nariz com a resposta de Aryes, depois falou
devagar, como se estivesse pensando com cuidado. “Você diz que não
sabe de quem o comprou? Tem algo escrito aí. O que é isso?”
“É meu nome.”
As orelhas de Holo se ergueram. “Só o seu nome?”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 83 ⊱

“Não, meu nome e uma mensagem curta. Diz... ‘Eu entrego isso
para Aryes, minha filha.’”
Os olhos de Holo se arregalaram e ela olhou de repente para Klass,
seu dedo ainda tocando seu nariz.
“O que?” perguntou Klass com os olhos. Se dissesse: “Para minha
filha”, significava apenas que era um presente de um dos pais.
“Sim. Essa é uma joia valiosa, de fato. Não é algo que qualquer um
poderia dar a uma criança. Certamente você entende muito bem o que
isso significa.”
Um curto “Ah—” escapou dos lábios de Klass.
O pensamento inimaginável ficou preso na base de sua garganta.
O olhar de Holo mais uma vez caiu sobre ele, como se fosse um
tolo que ela não soubesse mais como responder.
Aryes era a única que simplesmente ouvia as palavras de Holo.
“Então, quem você acha que deu uma coisa dessas para você?”
Holo perguntou.
“Huh? Er —" disse Aryes. “Deus, suponho.”
Klass pôde perceber claramente a risada de Holo.
“Sinto muito, não entendo—” começou Aryes.
“Seu deus dificilmente sujaria as mãos esculpindo joias. Quem deu
isso a você—"
“—Era do senhor da mansão!” Klass deixou escapar, incapaz de se
conter.
Os olhos de Aryes desfocaram.
“Aryes, o senhor era o seu —”
Pai.
Mas era uma noção tão absurda que, apesar da prova, ele não
conseguia dizer as palavras.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 84 ⊱

No silêncio resultante que se seguiu, Aryes olhou para a joia verde


e falou, atordoada. “O qu…? Eu... mas... o senhor da mansão é...
Deus?”
“Não! Aryes, você é a filha do senhor, e o senhor é um humano!”
“Mas —”
Klass não tinha ideia do que dizer à perturbada Aryes, mas à
medida que seu tom ficava mais estridente, Holo falou baixinho.
“Como é que se fala? ‘Somos todos filhos de Deus’ ou algo assim.”
Aryes assentiu com firmeza.
“Sim.”
Klass achou isso ridículo.
Ele estava prestes a dizer isso em voz alta quando alguém o agarrou
pela nuca.
Era Holo — não havia mais ninguém lá.
“Até eu entendo os costumes humanos. Isso não é algo que você
deveria dizer agora.”
Repreendido pelas palavras de Holo, Klass se encolheu.
Holo não disse mais nada e o soltou, suspirando.
“Como alguém que viveu por muito tempo, não acho que essa
pedra seja algo que você deva se desfazer”, disse ela calmamente.
Se Aryes era a filha do senhor e aquela pedra havia sido dada a ela
por ele, então agora seria sua única lembrança.
Mesmo Klass não queria continuar sua jornada se tivesse que
vendê-la para fazê-lo. Ele se perguntou se eles realmente teriam que
voltar.
E se a revelação sobre o pai de Aryes fosse verdade, então mesmo
que eles retornassem à mansão, eles poderiam não ser capazes de
simplesmente retomar sua vida anterior.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 85 ⊱

Ele agora considerava a proposta de Holo de forma mais racional


do que antes, seu olhar no chão.
A jornada deles foi curta, mas ele não podia dizer que não tinha
sido divertida.
Ele se sentiu um pouco melhor, pensando dessa forma.
Klass olhou lentamente para Holo. “Senhorita Holo, eu realmente
acho que nós —”
Holo olhou para ele por cima do ombro.
Foi um movimento rápido totalmente fora do comum.
As palavras de Klass ficaram presas em sua garganta com a rapidez
do ocorrido, e ele a observou.
Mas Holo não estava olhando para Klass.
Seu olhar estava fixo bem atrás dele, na direção de onde eles
tinham vindo.
“Nunca chove, mas quando chove é uma tempestade, hein?” ela
murmurou, levantando-se.
“S-Srta. Holo...?” Aryes permaneceu sem palavras e Klass
finalmente conseguiu chamá-la pelo nome.
Holo agora olhou para trás, para Klass.
Seu rosto não tinha nenhum traço de sorriso, e suas presas apenas
enfatizavam a concentração aguda de sua expressão.
“Ouça, o irmão mais novo de Antheo, aquele que te mandou
embora, ele parecia um homem gentil?”
Outra pergunta repentina.
Mas este Klass poderia responder imediatamente.
“Não.”
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 86 ⊱

“Então, o que você acha que um homem, que veio para tomar o
lugar de seu irmão mais velho, faria se descobrisse que já existe um
sucessor direto?”
Klass não conseguiu responder a essa pergunta de imediato.
Não — ele não queria responder.
A herdeira seria morta.
“Vocês dois têm muita sorte de ter escapado antes de
perceberem,” Holo murmurou, sorrindo. “Você tem tanto charme
quanto sorte. O que mais alguém precisa?”
Klass se lembrou das palavras de Holo na noite anterior.
Seu estômago queimava como se ele tivesse engolido um pedaço
de carvão em brasa.
“Aryes, levante-se”, disse Klass, juntando suas coisas e preparando
a vara que usava no lugar de um cajado.
“Eles ainda estão longe, mas — maldição — eles não estão vindo
em paz. Já é ruim o suficiente estarmos sendo seguidos, mas será um
problema se de fato formos flanqueados.”
Klass esperou um momento para olhar para Aryes. Ele então
cerrou o punho e olhou para Holo.
“Então eles estão atravessando a floresta? Venha —"
Klass assentiu com as palavras. “Aryes —” ele disse.
Aryes, como sempre, parecia não entender a situação; ela segurou
sua esmeralda com força.
Ela era apenas uma garota, uma garota inocente e ignorante.
Klass não bebia vinho, não sabia ler ou escrever e nem era tão alto
quanto ela.
E mesmo assim —
“Vai ficar tudo bem. Estou aqui “, disse ele simplesmente,
estendendo a mão para Aryes.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 87 ⊱

Ela o olhou, os olhos se arregalando um pouco surpresa. Ele


percebeu que Holo os estava observando de perto e de repente sentiu-
se constrangido.
“...Tudo bem”, disse ela com um pequeno aceno de cabeça,
hesitantemente pegando a mão estendida de Klass.
Sua mão era suave e esguia e seu aperto incerto.
“Vamos lá.”
Protegerei esta mão suave, Klass jurou para si mesmo, e Aryes
assentiu como se pudesse ouvi-lo.
Holo começou a correr.
Segurando a mão de Aryes, Klass saiu correndo atrás dela
enquanto se dirigiam para a floresta.

Eles não correram pela grama alta, mas nadaram nela.


Tendo passado a primavera, a floresta transbordava de vida e, mais
de uma vez, pareceu a Klass que estavam correndo pela barriga de
algum grande ser.
A copa da floresta era tão densa que obstruía a maior parte do céu.
Qualquer pele exposta — bochechas, pescoço, mãos — ficava
imediatamente coberta de arranhões e, apesar do capuz, até mesmo
Aryes percebeu que os cantos dos olhos estavam avermelhados com
escoriações, como se ela tivesse chorado muito.
No entanto, era uma sorte que os arbustos e a grama servissem
para esconder seu caminho, e ainda havia trilhas de pedras e raízes. Na
liderança, Holo estava escolhendo o caminho enquanto corria, então
tudo que Klass precisava fazer era segui-la, o que não era muito difícil.
Se Holo não estivesse lá, Klass estaria encalhado, incapaz de
distinguir o caminho da floresta, ocasionalmente tropeçando nas
nascentes e riachos que corriam sob os pés. Até mesmo pensar nisso
era o suficiente para fazê-lo estremecer. Bastaria um passo em falso em
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 88 ⊱

uma raiz coberta de musgo para transformá-lo em um homem ferido,


e pronto.
À sua direita, a floresta se elevava e, à esquerda, descia para o
pântano.
A água corria da direita para a esquerda e, sempre que a
encontravam, Holo o avisava, e eles cuidadosamente cruzavam e
continuavam.
Enquanto isso, Klass segurava com força a mão de Aryes.
Ele sentiu que, se não o fizesse, ela seria engolida pela floresta.
Para Aryes, que achava as estradas suavemente inclinadas das
planícies cansativas o suficiente, viajar pelos caminhos que
serpenteavam para cima, para baixo, para a esquerda e para a direita
através da floresta tornava sua respiração acelerada e seu peso na mão
de Klass aumentava.
Para Klass, era como se seus perseguidores estivessem ativamente
puxando Aryes dele, então, por mais difícil que fosse a corrida, ele
continuava segurando a mão dela — e ela a agarrava de volta, como se
recusasse ser deixada para trás.
Klass se perguntou por quanto tempo eles correriam assim.
O ar espesso da floresta ficou preso em sua garganta, e ele estava
tão cansado que nem se importou com a viscosidade dele, quando
Aryes finalmente tropeçou em algo e caiu de joelhos.
“Aryes!” Klass parou e gritou freneticamente por cima do ombro.
Assim que ele parou, o suor floresceu. Embora quisesse acreditar
que ainda podia correr, o cansaço fez seu corpo da cintura para baixo
parecer como se estivesse preso na lama.
Aryes estava cansada demais para andar direito; ela fechou os
lábios com força e acenou com a cabeça, como se dissesse: “Estou
bem.”
Ela parecia muito longe de estar bem.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 89 ⊱

Mas a realidade de que tinham que continuar correndo obrigou a


mão de Klass a se mover, e ele puxou a exausta Aryes de pé.
Ele se sentia terrível a respeito disso. “Seu pé está torcido?” ele
perguntou para amenizar sua culpa.
Aryes conseguiu se levantar e ela balançou vertiginosamente,
instável por um momento, seus olhos não encontraram os de Klass,
mas finalmente ela moveu as pernas um pouco e balançou a cabeça.
Klass relaxou os ombros.
Ele ainda não conseguia dizer a Aryes para prosseguir.
“Qual é o problema?” Holo evidentemente notou que Klass e
Aryes não a estavam mais seguindo e voltou atrás.
Vista de costas, Holo parecia voar, mas ela também estava sem
fôlego e seu rosto arranhado aqui e ali. A cauda de que ela tanto se
orgulhava tinha espinhos e grama e estava afofada, fazendo-a parecer
quase zangada.
“Aryes — ela tropeçou.”
“Ela torceu alguma coisa?”
Com a pergunta, Aryes balançou a cabeça novamente.
“Então devemos continuar correndo, ou estaremos em apuros.
Ainda temos um pouco a correr.”
Klass não queria saber a distância exata.
Se estivessem mais da metade do caminho, ele tinha certeza de
que Holo diria isso para animá-los, então não deviam ter chegado tão
longe ainda.
Embora ele não quisesse saber a distância que os separava, ele
queria saber o que os separava de seus perseguidores.
Klass olhou esperançoso para Holo, que sorriu e puxou uma folha
que estava presa em sua testa. “Por que, se o pior acontecesse, você
usaria aquele cajado no lugar de uma lança, não é?”
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 90 ⊱

Seus olhos bondosos estavam tentando suavizar a realidade


aterrorizante, Klass imaginou. Ele simplesmente balançou a cabeça,
agarrou seu bastão com tanta força que doeu.
“Em todo caso, desde que cheguemos à cidade antes de nossos
perseguidores, ficaremos bem por um tempo. Venha, vamos,” disse
Holo e voltou a correr.
Se eles pudessem apenas chegar à cidade —
Klass se agarrou a essa única esperança e começou a correr com
Aryes.
Na mansão em que Klass servira, havia pessoas mesmo abaixo de
sua posição que dormiam no canto do celeiro entre os porcos em pilhas
de palha infestadas de piolhos. Eram escravos cuja língua ele mal
entendia, endividaram-se e foram vendidos ou feitos prisioneiros de
guerra. Eles eram forçados a fazer o trabalho mais difícil — consertar
as grades das uvas ou limpar novas terras agrícolas.
Até Klass odiava o trabalho que tinha que fazer, tanto que quatro
dias da semana ele alimentava fantasias de fuga. Os escravos
frequentemente escapavam, ao que o mordomo barbudo cavalgava no
lugar de seu frequentemente ausente senhor, vestindo armadura e
arrebanhando os fugitivos.
Eles também abraçaram aquela única esperança e fugiram.
Se eles conseguissem chegar dentro dos muros de uma cidade,
havia uma regra que dizia que seus perseguidores não poderiam
recapturá-los lá dentro.
O ar da cidade libertava as pessoas.
Klass murmurou as palavras para si mesmo, incerto, agora
sentindo uma dolorosa simpatia por aqueles pobres coitados.
Quando três escapavam, era comum dois deles serem capturados
e espancados.
Se fossem capturados, seriam chicoteados? Ou — eles seriam
enforcados?
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 91 ⊱

Os gritos dos escravos espancados e o som do chicote em suas


costas ecoaram em sua mente. Era um som como um relâmpago caindo
sobre eles, pele, carne e sangue de suas costas voando para o ar, claro
na visão de Klass.
Quanto mais Klass pensava nisso, com mais força ele
inconscientemente agarrava a mão de Aryes.
“Deus está sempre cuidando de nós”, disse Aryes gentilmente,
sorrindo apesar de suas bochechas enrijecidas pelo cansaço — parecia
que suas preocupações haviam sido transmitidas por meio de seu
aperto.
Ele tinha que perseverar.
Rangendo os dentes, Klass engoliu suas terríveis imaginações.
“Vamos lá.”
Aryes assentiu com as palavras de Klass e começou a correr como
um pássaro batendo as asas pela primeira vez.
Assim que passassem pela floresta e chegassem à cidade, Klass não
conseguia imaginar o que aconteceria a seguir.
Aryes venderia a joia dada a ela por seu pai ou Klass e Aryes juntos
tentariam trabalhar e ganhar a vida?
Ou eles voltariam a carregar suas sacolas cheias de comida e água
e seguiriam em direção ao mar?
Holo conduziu os dois pelas profundezas da escuridão da floresta.
Sua forma era leve, mas de alguma forma robusta e confiável;
quando ela olhou por cima do ombro e sorriu, Klass não tinha medo
de qualquer matilha de lobos que pudesse aparecer.
Desde que chegassem à cidade, tudo ficaria bem. Eles conheceram
Holo, e ela os ensinou muito — Klass sabia que ela poderia ensiná-los
ainda mais.
Tudo o que tinha para pensar agora era segurar a mão de Aryes e
correr.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 92 ⊱

Enquanto o peso de sua mochila pesava, ele pensava nisso e corria.


O terrível grito que pareceu dividir a floresta foi totalmente
inesperado.
“—!”
Klass parou bruscamente e Aryes, impulsionado por sua inércia,
esbarrou em seu ombro e passou um pouco por ele.
Ela não se desculpou, porque seus olhos estavam esbugalhados
enquanto olhava para a floresta.
O grito agudo soou como uma galinha sendo estrangulada.
Era algum tipo de pássaro? Klass se perguntou.
Assim que o pensamento lhe ocorreu, o grito soou novamente, e
houve o som de asas batendo.
“…Um pássaro?” ele murmurou, de alguma forma superando o
desejo de desabar no chão em exaustão.
Aryes fez uma careta de terror e tapou os ouvidos.
Klass ouviu novamente o som de asas e teve certeza de que era um
pássaro.
“Aryes, você está bem? É apenas um pássaro.”
“Um... um pássaro...?”
Seu olhar duvidoso desmentia o fato de que ela nunca tinha
imaginado um pássaro fazendo tal grito.
Klass já tinha visto pássaros grandes o suficiente para roubar uma
criança antes, então ele foi capaz de responder com segurança: “Isso
mesmo” e pegar a mão de Aryes mais uma vez. “Esqueça isso. Temos
que alcançar a Srta. Holo!” disse, olhando para frente e começando a
dar um passo antes de parar.
À frente deles, na estrada que começava a virar para a direita e
para cima, Holo havia parado, de costas para eles.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 93 ⊱

Não parecia que ela estava esperando que Klass e Aryes a


alcançassem.
Sua cabeça estava abaixada, e apenas suas orelhas se moviam,
sacudindo para frente e para trás com mais intensidade do que as de
um coelho.
“Senhorita Holo —”
Holo olhou para trás tão de repente que Klass não teve certeza se
era porque ele a chamou ou não.
Assim que o pensamento lhe ocorreu, ele percebeu que o olhar de
Holo havia se deslocado para trás deles — pelo caminho que acabaram
de correr.
Havia apenas uma coisa que ela poderia estar olhando naquela
direção com um olhar tão impassível.
Klass engoliu em seco e observou Holo, que desceu correndo a
colina na direção dele e de Aryes. Seu olhar fixo na direção de onde
eles vieram, ela falou.
“Parece que nossos perseguidores não estão vindo.”
“O qu—?” Klass ergueu os olhos de repente para o rosto de Holo,
mas sua concentração permaneceu focada na distância que eles
percorreram.
“Isso é algum tipo de armação? Mesmo…”
“T-talvez eles estejam perdidos...?”
“Possivelmente. Vou dar uma olhada,” disse Holo, finalmente
olhando para Klass com um sorriso. “Vocês dois deveriam descansar.
'Seria perigoso para você correr por mais tempo. Não há nada a temer;
Eu estarei de volta em breve,” disse ela definitivamente, voltando para
o caminho depois de dar um tapinha de leve no ombro de Klass.
Ele, é claro, não podia pará-la e simplesmente observou sua forma
desaparecer na floresta. Ele se perguntou se ela ficaria bem sozinha, e
também havia o medo de ser simplesmente esquecido e abandonado.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 94 ⊱

Grato pela chance de descansar, ele olhou para trás, para Aryes,
quando seus olhos se arregalaram e ela gritou.
“O quê— ah —Aryes!”
Aryes caíra de costas como se as cordas tensas que a seguravam
tivessem sido cortadas — só correndo para o lado dela e segurando-a
nos braços é que ele conseguiu impedir que ela caísse completamente.
Sua respiração não era irregular nem silenciosa, e seus olhos se
fecharam de exaustão.
Ele se lembrou de alguns dias antes, quando apesar de sua
exaustão, ele a empurrou além de seu limite e ela desabou no meio da
estrada. Na época, ele estava apavorado, e pensar nisso agora o deixava
gelado.
Enquanto segurava Aryes e olhava para o rosto dela, ele ouviu uma
voz mansa e delicada dizer: “Água”.
“Água? E-espere um momento —"
Apoiando Aryes com um braço, ele largou as bolsas das costas,
balançou freneticamente o odre de água do ombro e o abriu. A maior
parte da água já tinha acabado, mas ele não hesitou em abrir a boca de
Aryes.
Aryes não abriu os olhos, mas quando percebeu que a abertura do
recipiente estava próxima, ela abriu a boca e Klass a ajudou a beber
com cuidado.
No início, talvez por causa do quão seca sua boca já estava, ela
pareceu engasgar, mas logo bebeu a água com facilidade.
Sem saber quando a água iria parar, Aryes fechou a boca e a água
escorreu da pele ainda inclinada. Umedeceu suas bochechas e roupas,
mas ela não ficou nem zangada nem surpresa e simplesmente sorriu.
“Você se sente mal?” perguntou Klass, o que Aryes fez que não
com a cabeça.
Sua cor não parecia muito ruim, então Klass sentiu que podia
confiar nela.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 95 ⊱

Depois de beber um pouco de água e se acalmar, a respiração de


Aryes ficou lenta e profunda.
Quando Klass estava preocupado que ela pudesse adormecer, ela
se contorceu um pouco e sua mão esquerda agarrou a direita de Klass.
Os olhos de Aryes permaneceram fechados.
A mão dela era leve e fraca como se fosse feita de cortiça, e ele
retribuiu o aperto, com o que seus olhos finalmente abriram
ligeiramente, e ela sorriu.
Aquele sorriso — aquele sorriso fosforescente e fracamente
brilhante que trazia alívio e paz de espírito.
Ao ver isso, o coração de Klass bateu tão forte que doeu.
No momento em que tentou expressar em palavras a sensação que
crescia em seu peito, Aryes deu o que parecia ser um suspiro suave.
Quando percebeu que era na verdade um bocejo, Klass voltou a
si, seu rosto caindo de desânimo.
“Oh, você está com sono?”
Ele teve de sorrir, o que Aryes pareceu achar um tanto
constrangedor.
Seu lábio torceu ligeiramente.
“Você deveria dormir um pouco”, ele murmurou, enxugando um
fio de água que escorreu no queixo de Aryes.
Mesmo uma pequena quantidade de sono pode fazer uma
diferença surpreendente na quantidade de exaustão que alguém sente.
A sonolência provavelmente tomaria conta de Aryes, quer ela
dissesse que estava tudo bem ou não, mas, após uma breve pausa,
Aryes assentiu educadamente.
Então ela encontrou uma posição confortável e, quando se
reclinou contra Klass, já estava dormindo.
O corpo macio de Aryes afundou em seus braços.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 96 ⊱

Ela era um pouco mais alta, mas isso não a impediu de desmaiar,
o que lhe permitiu preservar um pouco de seu orgulho viril.
Ele gostaria de deixá-la dormir profundamente por um tempo,
mas isso seria difícil. Se Holo demorasse um pouco mais para retornar, ele
não poderia deixar de pensar.
Ao mesmo tempo, parte de Klass queria que Holo voltasse o mais
rápido possível.
O meio da floresta estava escuro e muito quieto.
Ele não tinha certeza do que faria se Holo não voltasse. Ele estava
perfeitamente ciente, porém, que a incerteza não levaria a nada.
Portanto, o medo era inútil.
Ele balançou a cabeça para banir tais sentimentos e respirou fundo
para se encorajar.
Mas mesmo que conseguisse se livrar de sua inquietação, não
poderia escapar das muitas realidades desagradáveis que se
aproximavam.
Depois de usá-lo para dar água a Aryes, Klass descobriu que o odre
de água estava agora totalmente vazio e mesmo agora jogado no chão.
Se ele não pudesse enchê-lo de água em algum lugar, era duvidoso
que eles fossem capazes de montar acampamento e dormir, a sede seria
muito forte.
No momento em que começou a pensar em água, a sede ficou
mais difícil de suportar.
Ele olhou para Aryes enrolada em seus braços como um coelho e
pensou.
Enquanto corriam pela floresta, eles cruzaram tanta água que
começou a se perguntar se todo o lugar estava inundado. Se ele apenas
olhasse um pouco, parecia que ele estaria capaz de encontrar um
riacho.
Depois que começou a considerar isso, não conseguiu se conter.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 97 ⊱

Foi difícil soltar as mãos de Aryes, macias como massa de pão, mas
lentamente soltou os dedos e cuidadosamente reorganizou as bolsas
para apoiar os ombros dela.
Isso não ocorreu sem um sentimento de culpa, mas ele não
poderia vencer a terrível sede dentro de si.
Assim que confirmou que Aryes ainda dormia pacificamente,
Klass pegou o odre de água e se levantou.
Parecia que sua garganta doía mais a cada instante.
Repetidamente, ele tentou engolir saliva inexistente, imaginando
que fosse água fria.
Ele olhou ao redor, procurando por plantas que pareciam crescer
perto da água.
Seria perigoso se afastar muito do lado de Aryes, então girando
em um círculo, como um urso, procurou por um local provável e logo
encontrou um.
A uma curta distância, ele notou uma enorme árvore coberta de
musgo e, atrás dela, encontrou um fio d'água.
No entanto, a pequena quantidade dificilmente poderia ser
bebida, para não falar de encher o odre de água.
Após um momento de hesitação, Klass começou a caminhar rio
acima.
Enquanto subia, com cuidado para não escorregar no musgo, ele
logo chegou a um pequeno penhasco.
Ele espiou por cima da borda e, antes mesmo que pudesse dar um
grito de alegria, imediatamente começou a procurar uma maneira de
descer.
Na base da queda, não mais alto do que ele, havia uma grande
lagoa — talvez onde muitos desses filetes corressem juntos e se
acumulassem.
A água estava muito clara e a base da lagoa parecia ser de areia.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 98 ⊱

Em qualquer caso, Klass se obrigou a ser paciente enquanto


empurrava a grama e circulava a piscina, tomando cuidado para não
tropeçar no terreno repentinamente rochoso ao se aproximar — e
então percebeu algo.
O lugar de onde ele avistou a lagoa pela primeira vez ficava
diretamente acima de uma caverna, e a piscina parecia continuar
dentro dela.
A entrada era muito apertada para que Klass pudesse passar,
mesmo agachado, então ele não sabia o quão longe a caverna ia.
Mas o que ele queria era a água, a visão da qual era o suficiente
para trazê-lo de volta aos seus sentidos.
Ele se ajoelhou e tomou um gole.
Não havia como Klass expressar a alegria que sentiu naquele
momento.
A água estava fria e úmida, e ele a engoliu em êxtase.
Depois de beber, ele não sabia o quanto, respirar ficou difícil e ele
finalmente ergueu a cabeça, arrotando alto e suspirando.
Estava tão fria quanto água no meio do inverno.
Os peixes nadaram na lagoa, sem dar atenção a Klass. Eles
traçaram caminhos serenos pela área exposta e, em seguida, nadaram
de volta para a caverna.
Na saciedade atordoada e distraída que se seguiu depois que Klass
matou sua sede, ele observou os peixes.
Quando finalmente recuperou os sentidos com um sobressalto,
percebeu que estava prestes a adormecer e rapidamente limpou a boca
e deu um tapa na própria cabeça.
Se ele dormisse aqui, Holo com certeza ficaria furiosa quando
voltasse.
Klass encheu o odre de água e prendeu-o à cintura.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 99 ⊱

Assim que abaixou a boca para a lagoa para tomar um último gole

“…?”
De repente, ele sentiu que estava sendo observado.
Pensando que talvez Holo tivesse vindo procurá-lo depois de ver
que havia deixado Aryes, ele olhou em volta, mas Holo não estava em
lugar nenhum.
A grama alta crescia ao redor da piscina, mas a visibilidade não era
particularmente ruim.
Apesar de não haver nenhum lugar bom para se esconder, ele não
conseguiu encontrar o dono do olhar.
“Deve ser minha imaginação ...,” murmurou, parcialmente para
se convencer. Ele checou atrás, então se virou para a lagoa novamente,
abaixando a boca até a superfície — e então ele o viu.
À esquerda da entrada em forma de semicírculo da caverna havia
um animal muito quieto.
Era um cervo, muito jovem até para ter perdido as manchas de
sua pelagem, e o observava com muito cuidado.
Sua camuflagem natural o escondia contra o penhasco, e mesmo
quando Klass percebeu que era por isso que ele não havia notado, ele
concluiu muito claramente que o cervo não tinha estado lá antes.
Ele tinha ouvido histórias assustadoras sobre todos os tipos de
coisas estranhas que poderiam acontecer na floresta.
Mas o cervo não era algum tipo de espírito animal; ele
simplesmente o observava. Esta pode muito bem ter sido a primeira
vez que viu um humano, percebeu, então talvez estivesse apenas
curioso.
Klass olhou furtivamente para o cervo, então roubou um gole
rápido de água e se levantou.
O cervo nem mesmo se mexeu.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 100 ⊱

Era até fofo, mas de alguma forma olhar em seus olhos negros
imóveis fez Klass sentir um calafrio na espinha.
Claro que não estava atacando ou mostrando os dentes — estava
apenas olhando para ele, então não havia nada a temer. Klass se
lembrou disso, então girou nos calcanhares e saiu correndo.
Ele olhou para trás várias vezes enquanto caminhava. A noção de
que o cervo poderia segui-lo era totalmente absurda, mas seus pés
aceleraram o passo mesmo assim.
A distância não era tão grande, mas ele ficou muito aliviado
quando voltou ao lado de Aryes.
Claro, o fato de que Holo também estava lá era uma sorte e uma
infelicidade.
“Parece que você está prestes a me dizer que viu um espírito da
floresta.”
“…”
O sorriso zombeteiro de Holo era um pouco irritante, mas olhar
para ele dissipou suas preocupações.
“Eu trouxe água.”
“Mm, entendo,” murmurou Holo, brincando preguiçosamente
com a franja adormecida de Aryes.
Klass queria dizer a ela que se continuasse fazendo isso, acordaria
a garota, mas observar os belos dedos de Holo tocando o cabelo macio
de Aryes despertou nele emoções complicadas.
“...Não vai me dar um pouco?”
“Huh?” Klass saiu de seu transe ao som da voz de Holo.
Holo estreitou os olhos ligeiramente e repetiu a pergunta.
“Posso beber um pouco de água?”
“Oh, er, sim.” Klass nem se sentou antes de entregar
apressadamente o odre de água para Holo.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 101 ⊱

Holo, é claro, não iria deixá-lo escapar tão facilmente.


“Você quer tentar também?”
Klass não pôde deixar de sentir os olhos semicerrados de Holo e
o sorriso com os dentes molhados.
Com esforço, ele conseguiu negar com a cabeça. “Isso não
importa. E as pessoas que vinham atrás de nós?” ele perguntou
vigorosamente, sentando-se a uma curta distância de Holo.
Ele estava irritado por ter que suportar suas provocações, e estava
preocupado que, se não fizesse a pergunta em um tom mais forte, ele
se reduziria a protestos fracos.
Holo contraiu as orelhas duas ou três vezes com as palavras de
Klass e, depois de examinar o odre da água, murmurou um vago
assentimento.
“Eles não estavam lá”, disse ela.
“O qu—?”
“Eles não estavam lá.”
Depois de considerar as palavras de Holo por um momento, ele
percebeu a verdade para a qual elas apontavam e deixou escapar outra
exclamação de surpresa. “Mas isso significa que estamos —”
“— Seguros? Sim, pode ser um pouco cedo para dizer isso. Mas
pelo menos parece que não seremos pegos de imediato.”
Klass exalou, embora nem mesmo ele tivesse certeza se era um
suspiro de alívio ou não; seus ombros relaxaram.
Ele se sentia como se uma haste rígida em suas costas, que fizera
o possível para apoiá-lo, finalmente tivesse se rompido.
Holo assistiu a isso e riu silenciosamente.
Mas, ao fazer isso, ela acariciou a bochecha de Aryes, e a expressão
de Holo não parecia provocadora — pelo contrário, foi gentil e seu
sorriso era um elogio.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 102 ⊱

“Claro, provavelmente também há homens caminhando fora da


floresta, então não estamos completamente seguros ainda. Nosso
primeiro trabalho é cruzar a floresta e chegar à cidade.”
Ele não conseguia imaginar Holo dizendo isso apenas para fazê-lo
se sentir melhor.
Klass acreditou em suas palavras de todo o coração. Ele acenou
com a cabeça e esticou as pernas enrijecidas pelo frio.
“Vamos descansar um pouco. Nós nos esforçamos bastante para
chegar até aqui.”
“Sim... acho que sim”, disse ele, bocejando no meio da frase.
Holo sorriu ironicamente com isso, então esfregou o nariz e se
levantou suavemente antes de se sentar ao lado de Klass. “Você não
precisa estar em guarda assim.”
Só porque Holo disse isso, rindo guturalmente enquanto o fazia,
não havia razão para não olhar para ela com alguma suspeita.
Essa suspeita não incomodou Holo, é claro, e quando a palavra
“Venha” chegou aos ouvidos de Klass, sua cabeça já estava em seu colo.
Isso tinha que ser algum feitiço, tinha certeza.
Porque, embora seu rosto queimasse vermelho de vergonha, a
coragem de puxar seu corpo para cima novamente o havia abandonado
por completo.
“Se você dormir um pouco, sua força vai voltar. Ainda temos um
longo caminho a percorrer. É melhor você dormir.”
Ele sentiu sua cabeça sendo acariciada; era uma sensação tão
agradável que sua nuca formigou.
Isso mais as palavras de Holo eram toda a desculpa de que ele
precisava.
Ele começou a acenar, ainda com a cabeça no colo dela. Ele não
terminou, porque Holo continuou falando.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 103 ⊱

“Dependendo do que vier, você pode ter que carregar Aryes nos
ombros se ela ficar exausta.”
Aryes já havia segurado a mão direita de Klass, transformando sua
expressão instantaneamente de inquietação em alívio, mas agora sua
mão estava levemente fechada, sem segurar nada.
Certamente ela estava segurando a mão de Klass em seus sonhos.
Quando o pensamento lhe ocorreu, ele de repente se sentiu
péssimo por colocar a cabeça no colo de Holo.
Ele tentou se sentar.
O que o parou foi — é claro — a mão de Holo.
“Heh-heh-heh... você é um homem tão fiel.” Holo apoiou o
cotovelo dela na têmpora, segurando o queixo dela.
Meio por surpresa, meio por raiva, e com apenas um pouco de
pesar, Klass tentou se livrar de seu cotovelo, mas quando ela aumentou
a pressão de forma que realmente doeu, ele desistiu.
“Parece que não precisei fazer nada, afinal.”
“Huh?”
“Nada. Estava apenas falando comigo mesmo. Enfim —” Holo
tirou o cotovelo da cabeça de Klass enquanto ela falava. Klass suspirou
e tentou levantar a cabeça novamente quando Holo o interrompeu.
“Eu simplesmente odeio perder, entende.”
Ele sentiu, na distância entre sua cabeça levantada e o colo de
Holo, uma coisa muito macia de fato.
Ele nem teve tempo de se perguntar o que havia feito.
Havia uma sensação delicada, quase de cócegas em sua bochecha
e orelha, junto com o doce perfume de Holo.
Abaixo de sua cabeça estava sua cauda macia e sedosa.
Holo deu uma risadinha. “Eu me pergunto se você vai conseguir
levantar a cabeça agora, hein?”
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 104 ⊱

A sensação da cauda quente em sua bochecha tornava seu


argumento muito difícil de contestar, Klass pensou.
Então ela começou a acariciar suavemente sua cabeça.
Não havia como ele se sentar.
Klass relaxou o pescoço e sua cabeça pousou suavemente no colo
dela.
“Eu suspeitava disso”, disse Holo com um pouco de animação, ao
que seu olhar foi para Aryes, ainda dormindo em silêncio. “Não se
preocupe. Vou te acordar você antes que ela se levante.”
Klass sentiu-se de alguma forma contaminado, o que era bastante
triste, mas ainda mais triste era como estava aliviado ao ouvir Holo
dizer isso.
Mas mesmo que quisesse chorar com o quão patético era, Holo se
inclinou e sussurrou em seu ouvido, seu tom tanto provocador quanto
honesto: “Não é nada — um pouco de culpa só fará você tratá-la com
mais gentileza.”
“O qu…?” Ele pensou nas palavras dela por alguns momentos.
Holo se autodenominava a sabia loba.
Klass acreditava que era verdade.
Ele trataria Aryes com bondade assim que ela acordasse.
Murmurando a desculpa para si mesmo, sentiu que dormiria
muito bem no colo de Holo.
Poucos momentos depois, Klass estava cercado pela escuridão.
“Agora, o próximo...,” Holo murmurou como se estivesse falando
consigo mesma.
Mas Klass não sabia dizer se estava sonhado ou não. Teve a
sensação de que Holo e Aryes estavam conversando sobre algo.
Incapaz de entender claramente as palavras, ele pelo menos tinha
certeza de que era um sonho.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 105 ⊱

Afinal, Holo dissera que o acordaria antes que Aryes despertasse.


Foi por isso que quando abriu os olhos, sua cabeça ainda
descansando na cauda quente de Holo, ele ficou vermelho, e a primeira
coisa que pensou foi Holo, sua traidora!
“Ah, parece que o dorminhoco finalmente acordou.”
“…”
Sem ter a oportunidade de culpá-la, e de se desculpar, Klass
colocou as bolsas nos ombros e começou a caminhar.
Parecia que pouco tempo havia passado; Klass sentiu que não havia
dormido mais do que o tempo necessário para uma pedra atirada cair
no chão.
E, no entanto, seu cansaço diminuiu significativamente, e o
mesmo parecia verdadeiro para Aryes.
Ele ignorou a confiança de Aryes, o fato de que ele dormiu no colo
de Holo ainda o atormentava.
Quando começou a andar, se sentiu totalmente sombrio e
guardou um rancor especial pela cauda de Holo, que até um momento
atrás parecia tão convidativamente confortável.
Ele não tinha ideia de como deveria falar com Aryes agora.
Por que Holo não o acordou?
Os sentimentos sombrios o pressionaram tanto que por um
momento algo passou despercebido.
Quando notou um momento depois, não pôde deixar de se
surpreender.
Aryes estava de fato segurando a mão de Klass.
“Senhorita Holo disse que eu não devo soltar”, ela falou com uma
cara séria.
Klass não conseguiu, é claro, sentir raiva de Aryes e sentiu um
suspiro interior de alívio. Ele tinha certeza de que ela ficaria furiosa.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 106 ⊱
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 107 ⊱

“Ela disse que é um teste de Deus,” disse Aryes com uma


expressão ambígua. Ela então olhou para Holo.
Klass considerou o significado dessas palavras, então olhou para a
cauda balançando de Holo.
Ela deveria cuidar da própria vida, pensou.
Enquanto considerava essas coisas, os pensamentos de exaustão
que ele sentiu quando começou a andar foram empurrados para um
canto de sua mente.
Klass caminhou silenciosamente, e a floresta também estava
quieta.
Uma curta caminhada pela floresta perto da mansão revelou todos
os tipos de criaturas, mas aqui, o único animal que teve uma visão clara
foi o cervo; ele não viu mais nada.
Assim como estava se perguntando se aquele era simplesmente o
tipo de floresta que estavam, olhou para cima.
Ele se perguntou se talvez houvesse esquilos ou algo parecido
correndo acima dele nas árvores.
Então percebeu que tinha entendido mal quando olhou para cima
e viu gotas de chuva caindo pelas fendas na copa da floresta.
“Chuva, hein? Bem, contanto que não seja pior do que isso, não
vamos ficar mais úmidos por andarmos na floresta.”
E foi exatamente como Holo disse — uma pequena gota
finalmente caiu em seu nariz, mas pouca chuva passou pelas fendas na
espessa folhagem acima.
E ainda assim a chuva o fez começar a notar a estranha quietude
da floresta.
Não havia nenhum som — mas não era o tipo de silêncio que
permitiria ouvir um estalo distante, era muito mais como chumbo
colocado sobre seus ouvidos.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 108 ⊱

Ele podia ouvir sua própria respiração, mas embora Aryes


estivesse bem ao lado dele, mal conseguia distinguir o farfalhar de suas
roupas.
Os arredores foram sufocados pelo silêncio peculiar da chuva.
Klass tinha ouvido falar que crianças nascidas em dias chuvosos
nunca sorriam.
O boato em torno da mansão era que o silencioso e estoico
apicultor que o senhor contratou havia nascido em uma tarde úmida e
chuvosa.
A floresta transbordou com o verde das folhas, samambaias e
musgo, mas estava começando a parecer nebuloso e enevoado.
O efeito foi de alguma forma assustador, e Klass segurou a mão
de Aryes com um pouco mais de força.
Aryes também parecia se sentir insegura e devolveu o aperto
reforçado.
Logo depois disso, Klass por acaso avistou algo à frente.
As árvores eram grossas. Através delas, ele pensou que poderia
ver algo.
De pé em uma pequena crista, os olhava como se fossem bonecos
de palha.
Era um cervo.
Holo parecia não ter percebido e, quando Klass olhou novamente
para se certificar de que não era sua imaginação, o cervo havia sumido.
Ele sentiu um frio desagradável e estremeceu.
Ele não queria dizer nada; nem contou a Aryes, que certamente
nunca tinha visto um veado antes.
Aryes e Holo continuaram caminhando em silêncio.
Como se apressada pelo silêncio, os passos de Holo ficaram cada
vez mais rápidos.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 109 ⊱

Ela disse que seus perseguidores não viriam, então não havia
necessidade de pressa, mas a própria ideia de passar a noite na floresta
chuvosa deixou os cabelos de Klass em pé. Pouco importava se eles
seriam pegos pelos perseguidores ou pela escuridão da floresta.
Holo olhou em sua direção várias vezes, irritada.
Percebendo isso, Klass se perguntou quantas vezes ele olhou para
Aryes de maneira semelhante nos últimos dias.
Então, em vez de tentar apressá-la, ele falou. “Aryes, há mais
alguma coisa que você gostaria de ver além do mar?” ele perguntou.
Na verdade, o próprio Klass não tinha ideia do que mais o mundo
continha.
Se possível, ele queria ver as montanhas que sustentavam o céu,
mas provavelmente era impossível.
“O que mais…?” Cansada como estava, sua voz ainda tinha um
pouco de energia sobrando.
Mais do que qualquer outra coisa, ela simplesmente conversar o
ajudou a encontrar algum alívio em sua expressão.
“Ouvi dizer que há montanhas que disparam fogo e lugares onde
rios correm do céu.”
Por baixo do capuz, Aryes inclinou a cabeça, intrigada.
Parecia que ela estava tendo problemas para imaginar essas coisas,
mas Klass não podia culpá-la por isso, pois ele realmente não conseguia
imaginá-las.
Ele decidiu parar de fazer pose e falar sobre algo que conhecia.
“Hmm ... você já viu algum campo de trigo?”
“Campos de trigo?”
“Sim. Você conhece o trigo, certo?”
Ela acenou com a cabeça.
“Eles são de onde vem o trigo, campos inteiros como um tapete
dourado.”
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 110 ⊱

Aryes parecia ser capaz de imaginar isso.


Seus olhos se arregalaram e ela olhou para longe, atordoada —
então tropeçou e quase caiu, murmurando vagamente “Campos de
trigo...” para si mesma, como se estivesse tentando confirmar sua
existência.
“Eles parecem realmente fofos quando você os vê de longe, como
se pudesse pular neles — mas se fizer isso, eles não são fofos de forma
alguma. E se você derrubar muito trigo, os adultos vão bater em você
com varas,” disse Klass, e Aryes pareceu um pouco surpresa e riu.
Seu rosto era de irmã mais velha. “Você refletiu sobre seus
crimes?”
“Pode apostar que sim,” disse Klass honestamente.
“Nesse caso, Deus irá perdoá-lo,” disse Aryes com um sorriso
brilhante.
Klass achou de certa forma difícil olhar para ela e desviou o rosto
apressadamente, procurando outro assunto. “O-ou um navio!”
“Eu sei sobre os navios.”
“Oh, er, realmente?” Klass parou de acrescentar: “Mesmo que você
não soubesse sobre o mar?”
“Quando a terra é coberta por uma grande inundação, esse é um
veículo gigante que levará todos os justos ao reino no céu.”
Embora o cansaço estivesse deixando seus pés um pouco incertos,
seu rosto estava totalmente confiante e ela falava até com um toque de
orgulho.
Era a mesma cara que ela fazia quando falava de Deus, e Klass não
gostava muito disso.
Mas desta vez, algo sobre seu orgulho idiota era cativante.
“Os navios que conheço não voam no céu, eu acho.”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 111 ⊱

“…?” O olhar de Aryes ficou tão perplexo que Klass, que não
conhecia todos os navios do mundo, ficou subitamente incerto, mas
olhando para Holo, que ainda estava andando à frente, ele respondeu.
“Eles flutuam em rios e lagos, na água. As pessoas sobem neles, e
eles carregam cavalos e coisas assim também.”
“Na água?”
“Isso mesmo.”
“E eles não afundam?”
Quando Klass viu um navio pela primeira vez, ele também achou
seu fracasso em afundar um tanto misterioso, mas como ele de fato
tinha visto um navio assim, ele esticou o peito, capaz de responder.
“Eles não. Mesmo se você colocar um monte de gente e um monte de
sacos pesados de trigo sobre eles, eles ainda não afundam.”
Aryes considerou a declaração de Klass com desconfiança,
franzindo levemente os lábios perfeitamente formados. “É pecado
mentir, você sabe.”
Ela parecia pensar que ele estava brincando.
Ele ficou tão encantado com as palavras dela que Klass não pôde
deixar de rir. “Eu não estou mentindo! Eu vi com meus próprios
olhos.”
“Pode ter sido obra de um demônio.”
“Então, o que você faria se visse um navio flutuando na água?”
Aryes de repente ficou sem palavras.
Parecia que dentro dela havia partes que rapidamente acreditavam
no que outras pessoas diziam, enquanto outras partes se recusavam
obstinadamente a ouvir.
Klass estava começando a sentir que essa era uma de suas partes
teimosas.
Portanto, apesar de propor uma aposta que ela não poderia
ganhar, ele achou sua teimosia muito charmosa.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 112 ⊱

“Se estivesse flutuando na água...?”


“Sim, flutuando na água.”
Klass sorriu ao olhar para ela, e Aryes parecia perder a confiança
a cada segundo, desviando o olhar e baixando a cabeça.
Mas Aryes não escolheu a saída covarde — esse era um de seus
pontos positivos.
“Eu pediria desculpas.”
“É uma promessa, então.” Klass se imaginou aceitando
generosamente as desculpas de Aryes e sorriu amplamente.
Enquanto fazia isso, aproveitando o brilho da conversa, Holo
parou de repente, se virou e olhou para ele.
Por apenas um instante, ele se preparou para ser provocado mais
uma vez, mas logo percebeu que ela tinha uma expressão diferente —
e estranhamente séria.
“Dói-me estragar um estado de espírito conquistado com tanto
esforço”, disse ela breve. “Eu mantive a calma sobre isso porque se eu
tivesse dito alguma coisa, teria deixado você nervoso, e os nervos são
um convite a lesões. Mas parece que devo te informar.”
Klass teve um mau pressentimento sobre isso e enxugou o suor da
testa.
“Nossos perseguidores estão chegando.”
“O qu—?” ele murmurou, apesar de si mesmo, e Aryes também
ergueu os olhos. “M-mas você disse que eles não viriam—”
“Sim,” disse Holo calmamente, parecendo não notar o tom
acusatório de Klass. Mas, conforme ela continuou, logo percebeu que
não era por alguma generosidade da parte dela, mas sim porque era
uma questão trivial em comparação com seu problema real. “Nossos
perseguidores humanos não estão vindo.”
A matilha de lobos que os atacou alguns dias antes apareceu em
sua mente.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 113 ⊱

“Achei estranho. Esta é uma grande floresta. Deve ter um mestre.


Para que tal mestre não aparecesse... Além disso, o grupo que estava
nos seguindo — não posso acreditar que de repente eles mudaram.
Então —”
Holo se virou e examinou os arredores, então suspirou ali na
floresta verde.
Ela franziu os lábios como uma criança. “Então, eles foram
enganados pelos moradores da floresta ou...”
Nesse momento, Klass teve certeza de ter ouvido um uivo, mas
então percebeu que era um trovão vindo de cima. “Moradores da
floresta...?” ele perguntou, incapaz de ficar em silêncio diante de sua
incerteza e medo, mas Holo apenas balançou a cabeça, não lhe dando
uma resposta direta.
Quando ela falou, parecia ser principalmente para si mesma.
“Afinal, sou uma sábia loba. Com minhas palavras e sabedoria, muitas
vezes consigo o que quero, mas eles parecem ter ficado bastante
astutos também. Eu gostaria de sair desta floresta imediatamente... e
nem mesmo eu posso fazer nada sobre o tempo,” Holo murmurou,
olhando para cima.
Klass assentiu e olhou para Aryes ao lado dele. Ele apertou a mão
dela ligeiramente. “Você quer dizer o... o cervo?”
Os olhos de Holo se arregalaram ligeiramente com as palavras, e
ela acenou com a cabeça. “Você viu, não é?”
“Sim. Quando eu estava pegando água e também há alguns
instantes. Ele estava olhando diretamente para mim, sem se mover.”
Holo coçou sua bochecha e franziu a testa.
Sua cauda balançou em desgosto.
“Eles são muito espertos. Eu não tenho ideia do que podem fazer.
Não adianta muito dizer para ficar em guarda, mas suponho que seja
melhor do que ser repentinamente emboscado por ignorância, hein?”
Aryes se encolheu com as palavras, olhando para Klass.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 114 ⊱

Se ele também vacilasse com a falta de confiança de Holo, quem


protegeria Aryes?
Ele se apoiou nos calcanhares e forçou um sorriso. “Vai ficar tudo
bem. Um lobo é mais forte do que um veado.”
Klass não tinha certeza se seu sorriso tinha sido convincente o
suficiente, mas Holo começou a rir, então deve ter corrido bem.
Ela bagunçou o cabelo dele, o que o fez se sentir um pouco
estranho na frente de Aryes, mas também satisfeito.
“Os filhotes humanos certamente crescem rápido.” Holo olhou
para Aryes enquanto ela falava.
Klass se perguntou por que, enquanto a própria Aryes não acenou
nem balançou a cabeça.
Ela apenas olhou para Holo com uma expressão de resistência.
“Ah, bem, vai dar certo de alguma forma. A chuva é ruim não só
para nós.” Holo respondeu ao olhar de Aryes com um sorriso
triunfante, olhando para cima.
O guarda-chuva da floresta parecia estar quase no limite.
Gotas d'água caíam agora como vazamentos em uma cabana cheia
de furos.
“Bem, vamos embora?” disse Holo, e começou a andar.
Ao contrário do tom de sua voz, Klass percebeu a incerteza em
seus passos.

Huf, huf, huf.


Depois de respirar três vezes, ele engolia para esconder o cansaço.
Em seguida, mais três respirações e engolir novamente — uma e
outra vez.
O vinho era um estorvo e há muito que fora descartado. Metade
da água que ele se esforçou tanto para buscar também foi deixada.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 115 ⊱

A chuva havia começado a cair sobre a floresta para valer, com


Aryes removendo seu manto — ele estava enrolado em suas pernas —
e o colocando sobre sua cabeça.
A persistente sensação de diversão em sua última conversa estava
longe de ser encontrada agora.
Pela expressão dela, Klass deduziu que estaria disposta até mesmo
a jogar o manto de lado apenas para aliviar um pouco seu fardo.
O número de vezes que ela tropeçou e caiu de joelhos era demais
para contar com as duas mãos.
Aryes estava trabalhando muito.
Mas uma certa tendência ao apego havia começado a afetar seus
esforços, e Klass estava perto demais de seu próprio limite para senti-
lo como outra coisa senão um fardo extra.
“Continue assim”, disse ele, enquanto ela segurava seu braço mais
do que sua mão, falando não tanto para encorajamento quanto para
oração.
Ele não achava que a tendência dela para tropeçar era devida
apenas à exaustão.
Sem dúvida, as bolhas em seus pés há muito estouraram.
A chuva torrencial estava apenas se intensificando, dando a
impressão de que eles estavam caminhando em um rio raso.
Pequenos riachos estavam por toda parte, e cada pequena
depressão era rodeada de verde e cheia de água marrom.
Ele queria desesperadamente chegar à cidade e sentar-se em frente
a uma lareira acolhedora com uma tigela de mingau.
A cada passo, a ideia de escapar de seus perseguidores ou proteger
Aryes escoava de seus ouvidos.
A floresta parecia nunca ter fim e, com a densa folhagem e o céu
coberto de nuvens, era um lugar escuro e sombrio.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 116 ⊱

Ele não conseguia imaginar nada mais assustador do que tentar


atravessar a floresta à noite com esta chuva. Holo disse a ele que
acontecesse o que acontecesse, ela estaria com eles, mas não lhe dera
nenhuma indicação de uma resolução clara.
“Senhorita Holo!” ele finalmente chorou quando chegaram a uma
pequena clareira.
“...” De seu olhar por cima do ombro sem palavras e respiração,
ele poderia dizer que ela estava cansada.
“Eu só ...” Não consigo mais andar, ele pensou — mas não precisava
terminar a frase. Ele olhou para Holo e ergueu Aryes, que parecia estar
prestes a se sentar.
Holo era um espírito que viveu por séculos e parecia cheio de
confiança quando disse que, se o pior acontecesse, ela seria capaz de
fazer algo.
Não tinha chegado a hora?
Ele a acusou com os olhos, e ela olhou de volta para ele, em
seguida, empurrando a franja encharcada pela chuva para o lado,
voltou o olhar para cima.
“Sinto muito.”
“Huh?” Por um momento, ele pensou que ela disse: “Estou
parando”, mas Holo disse de novo.
“Sinto muito.”
“Pelo quê?” perguntou Klass, parado ali, mal conseguindo
sustentar Ayres.
“Posso não ser capaz de salvá-lo.”
“O qu—?” ele começou a dizer, mas foi interrompido.
Não era porque Aryes estava quase desmaiando; nem foi por causa
da maneira como Holo mordeu o lábio com amargura.
Foi porque um calafrio intenso subiu por seu corpo, do chão aos
pés, atravessando sua espinha.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 117 ⊱

Mesmo com o som da chuva torrencial, ele ouviu um barulho


estranho.
Mais forte que a chuva torrencial — glub, foi, shlukk.
Pode ter sido o som de seu próprio terror crescente.
Percebendo o som de sua exaustão, Aryes se virou para ver, e
então a ouviu prender a respiração.
Klass estava com muito medo de se virar e olhar.
Ele não conseguia se virar, mas ficar parado sem olhar era ainda
mais horrível.
“…”
Quando ele finalmente o fez, viu o que existia ali.
Aquilo não ficou apenas de pé.
Aquilo persistia.
Como uma grande árvore. Como um penhasco rochoso. Como
uma montanha.
“...Ah...” Seus joelhos tremeram, sua respiração parou e,
enquanto Aryes se agarrava a ele, ele se agarrava a ela.
A noção de que isso era patético ou pouco masculino nem mesmo
lhe ocorreu.
Lá no fundo de seu olhar, tão grande que poderia facilmente
atropelar um boi, tão alto que ele teve que olhar para cima para vê-lo,
estava um grande cervo.
“—.”
Ele não conseguia entender o que dizia.
Só que sua voz era como um trovão ecoando pela boca de uma
caverna e mais do que o suficiente para tirar Klass da razão.
O animal era tão robusto e íngreme que era difícil pensar nele
como um cervo, e seus olhos eram duas luas negras.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 118 ⊱

Os grandes chifres que brotavam de sua cabeça pareciam poder


varrer o próprio céu.
Klass caiu de costas, mas não percebeu imediatamente.
“—. —.”
O cervo não tinha presas em sua boca, mas grandes pedras de
moinho de dentes, que rangeram enquanto falava com um som como
se eles pudessem esmagar qualquer pedra.
Se a cabeça de Klass ficasse presa entre eles, seria esmagada em
um instante.
Enquanto ele olhava para cima, atordoado, isso era tudo que
conseguia pensar.
“Uma boa jornada —”
Klass recobrou os sentidos com um sobressalto quando uma mão
foi colocada em seu ombro.
“— é aquela em que você é abençoado com bons companheiros.”
Ele olhou para cima para ver o perfil destemido de Holo com sua
cauda balançando bravamente.
O olhar do grande cervo pousou em Holo, e trouxe seu rosto para
mais perto dela, de forma ameaçadora.
“—!”
Uma grande rajada de suas narinas soprou para longe as gotas de
chuva e, em um instante, a chuva parou.
Klass percebeu que eles estavam cercados por veados, os quais
observavam.
Ele teve a sensação de que, se de alguma forma desse a resposta
errada, seria pisoteado até a morte ou despedaçado.
E ainda assim Holo não vacilou; ela sorriu invencivelmente.
“—, —.”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 119 ⊱

Um murmúrio resmungou ao redor deles — o que quer que Holo


tenha dito parecia ter sido tomado como uma provocação pelo grande
cervo.
“—… —.” O cervo rangeu os dentes ruidosamente e Klass
recuou, ainda sentado no chão.
Holo olhou para ele e falou rapidamente. “Parece que esse grupo
não gosta muito de mim.” Ela a inclinou e sorriu com tristeza.
“Minha vinda complicou as coisas.”
“Wrooooooooaaaa!”
Aconteceu no momento em que um grande uivo do cervo fez a
terra tremer; Klass mal podia acreditar que tal som viesse de uma coisa
viva.
“Dizem que a despedida sempre vem de repente. Foi uma jornada
adorável. Vocês dois devem se apressar e correr —”
O sorriso de desculpas de Holo gravou-se na memória de Klass.
De quanto tempo ele precisaria para entender o que aconteceu a
seguir?
Assim que o cervo cobriu o que deveria ser uma boa distância, o
pequeno corpo de Holo foi lançado ao ar. Ela simplesmente voou, e o
grande cervo virou seu vasto corpo com uma agilidade inacreditável e
a seguiu.
Seu corpo cortou os galhos das árvores, voando absurdamente.
À sua frente havia uma encosta íngreme, que descia talvez até um
riacho.
O grande veado saltou no ar, a encosta não importava para ele.
Em algum momento, ele saltou para o fundo da descida e sumiu
de vista; imediatamente depois disso, o chão tremeu literalmente.
Justamente quando Klass entendeu que o cervo havia atingido o fundo,
o terrível som alto de seus dentes de moagem ecoou pelo ar.
Klass não sabia se ele estava chorando ou não.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 120 ⊱

Tudo o que ele sabia era que estava apavorado e não queria pensar
sobre o que estava acontecendo.
O som áspero continuou, mas eventualmente o silêncio caiu.
O cervo que cercava Klass e Aryes não se mexeu.
Então houve outro uivo terrível.
“Aaaaauuuah!” Klass gritou e começou a fugir.
Ela alegou ser dois séculos mais velha, expulsou uma matilha de
lobos, provocou Klass e desafiou a teimosa Aryes, deu-lhes pão e lhes
ensinou sobre dinheiro — e em um instante, a forma pequena, mas
confiável de Holo havia desaparecido.
Isso foi mais do que suficiente para fazer Klass esquecer tudo e
correr — correr pelo caminho onde a água corria como um rio.
Ou pelo menos esses pensamentos encheram sua cabeça, mas
quando realmente se levantou e começou a correr, ele caiu para frente
e tropeçou, agarrando-se ao seu cajado enquanto tentava se levantar.
Ele não queria morrer. Não queria morrer esmagado entre
aqueles dentes.
Seus joelhos dobraram e sua coragem falhou, e ele mergulhou de
cara na água lamacenta.
Ele não queria morrer.
O terror o fez erguer a cabeça para fora d'água e ele olhou para
trás.
E a visão que o saudou —
Como um corcel amaldiçoado saindo de seu pior pesadelo, o
grande veado subiu lentamente a encosta em direção a uma pequena
bola branca enrolada.
Mesmo suja de lama, ela parecia nada menos do que uma ovelha
— pois era Aryes.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 121 ⊱

“Ar... sim...” Klass tentou levantar a voz rouca, mas não


conseguiu.
Ele orou para que ela corresse, se levantasse e corresse, mas os
pés de Aryes não abririam asas de repente.
Ela tinha perdido a consciência? Ou ela mais uma vez não
conseguiu compreender a situação e estava simplesmente olhando com
admiração?
Se era maravilha, que fosse — contanto que ela não estivesse
chorando de terror, que fosse.
Mas de alguma forma, um momento depois, seu rosto se distorceu
pateticamente.
Aryes olhou para trás com o rosto apavorado.
“Wrrooooaaaa!”
O grande cervo urrou pela terceira vez.
Seu corpo era tão grande que ficava apenas parcialmente
escondido depois da encosta.
Seu rugido parecia ser de raiva.
Agora — só agora — eles ainda podiam fazer isso.
Se ela se levantasse e corresse, poderia chegar a Klass em dez
passos.
Klass gritou em seu coração, mas Aryes nem mesmo se levantou;
raiva e urgência o encheram.
Mas não, ele percebeu.
Essa raiva e urgência eram dirigidas a si mesmo — àquele que não
podia ir e salvá-la.
“—…! —…!”
O grande cervo parecia estar gritando alguma coisa.
Klass cobriu as orelhas e cerrou os dentes.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 122 ⊱

O cervo que havia cercado Klass e Aryes o tempo todo começou


a se aproximar.
Como se para expulsá-los da floresta.
Ou possivelmente para prendê-los dentro dela para sempre.
“Aryes!” Ele finalmente encontrou sua voz e gritou pelo que tinha
certeza de que era a última vez.
No topo da encosta, o grande veado empinou-se como se fosse
pisotear a planície da montanha.
Aryes percebeu isso e olhou para trás por um momento — de
volta para Klass.
Ela lentamente estendeu a mão para ele.
“Klass…”
Ele a ouviu chamar seu nome como um sussurro, como um
murmúrio, e então —
Apesar da distância, que à primeira vista parecia grande demais
para isso, as patas dianteiras do grande cervo se ergueram, prestes a
cair onde Aryes estava deitada. As pernas enormes estavam
emaranhadas na grama e cobertas de lama que pingava com um som
horrível como a baba de algum deus da morte.
Aryes olhou para Klass.
“Aryes!”
Ele não pensou. Ele apenas correu.
Ele não sabia se estava correndo ou voando; Aryes era a única coisa
que podia ver. Ele saltou em direção a ela para abraçá-la, então — sem
ter ideia de como estava fazendo isso — a pegou e correu de volta,
para longe do veado.
No momento seguinte, Klass não ousou abrir os olhos com o
tremendo choque que se seguiu à queda dos cascos do grande veado,
que espalhou tudo.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 123 ⊱

“…”
O fato de Aryes estar em seus braços e não sob aqueles cascos,
Klass só poderia considerar um milagre.
Segurando-a, ele cambaleou e correu para frente, e apenas quando
ganhou um pouco mais de distância, desabou.
Klass levantou-se apressadamente quando Aryes, tremendo de
frio e a boca fechada, apertou suas mãos e começou a orar.
Enquanto ela orava, Klass percebeu que sua testa estava
pressionada contra o peito dele.
Ele reflexivamente segurou seus ombros macios e se sentiu cheio
de uma nova força.
Ele tinha que protegê-la.
Porque ela era tão —
Seus ombros eram tão macios.
“Vai ficar tudo bem”, disse ele, e respirou fundo.
A esta distância, Klass podia ter uma visão clara da pelagem
eriçada do cervo, cada fio do qual parecia espesso o suficiente para ser
feito de corda. Ainda estava a uma distância moderada de distância, e
ele só podia olhar para o grande cervo enquanto ele o fuzilava com o
olhar.
Ele rangeu os dentes e balançou a cabeça.
Um verdadeiro herói pode fender uma pedra com um punho e
com apenas uma espada pode derrubar um dragão, mas tudo o que
Klass tinha em mãos era o bastão que ele usava como cajado, que de
alguma forma conseguiu segurar. E, no entanto, devia haver algo que
pudesse fazer. Se ele estava pronto para deixar Aryes escapar sozinha,
devia haver algo.
Coragem não era algo que alguém simplesmente tinha. Como o
óleo, teve de ser expulso sob pressão — Klass finalmente entendeu
isso.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 124 ⊱

“Aryes, você pode ficar de pé?”


Tremendo em seus braços, Aryes ergueu os olhos e, exibindo seu
lado surpreendentemente teimoso, ela mordeu o lábio e assentiu.
“Certo, então fique atrás de mim.”
Ela não perguntou por que, apenas parecendo profundamente
preocupada sem dizer nada.
Levantando-se silenciosamente para não provocar o cervo, ela foi
para trás de Klass.
“Quando eu me levantar, corra.”
“O qu—? M-mas—"
“Vai ficar tudo bem. Eu conheço a história do herói que derrotou
o gigante.”
Não era mentira.
Havia a história de um herói que matou um gigante cuja cabeça
alcançava o céu, cujos braços eram longos como rios e cujos pés eram
tão gigantescos que enchiam lagos.
Comparado com isso, este era apenas um grande veado. Quase
nada, na verdade.
Quase nada.
“Vou apontar para os olhos. Esses olhos grandes. Se ele não pode
ver, ele não pode nos seguir. Vai ficar tudo bem. Os olhos daquela
coisa são tão grandes, eu não posso errar.”
Ao dizer isso, Klass tentou mexer as bochechas e os lábios.
Ele não tinha certeza se havia conseguido sorrir.
Mesmo assim, Aryes parecia que estava prestes a dizer algo, mas
pensou melhor, parou e balançou a cabeça lentamente — então ele
deve ter sorrido, concluiu.
“Certo, aqui vamos nós.”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 125 ⊱

Ele enfiou o bastão no chão e respirou fundo.


Aryes colocou as mãos nas costas dele e parecia que ela o estava
enchendo de força.
Talvez sentindo sua pontaria, o grande veado balançou a cabeça e
baixou lentamente o corpo.
Essa pressão terrível.
O herói da história não teria medo disso.
“Vamos ver o mar juntos,” disse ele, depois se levantou e saiu
correndo.
Os olhos do enorme cervo estavam tão altos que ele não conseguia
imaginar que seu bastão pudesse alcançá-los.
Mas devia haver alguma chance.
Exatamente como Holo havia feito, haveria um momento em que
sua cabeça se aproximasse.
O grande veado ergueu o casco e parecia que o próprio ar havia
recuado.
Klass, destemido, saltou para o lado.
Afinal, o cervo era apenas um cervo.
Trazendo seu casco levantado para baixo, ele jogou lama ao lado
de Klass.
“Maldito—!” Klass balançou seu cajado em um amplo arco, e o
cervo puxou a perna para trás com surpreendente rapidez.
Enquanto ele cambaleava e tropeçava para frente, Klass não
entrou em pânico.
Em vez disso, viu que o cervo tinha medo dele e isso encheu seu
coração de aço frio.
Desta vez, ele não ergueu os cascos, mas os empurrou para a
frente como se chutasse cascalho.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 126 ⊱

Mas talvez seu vasto corpo fosse um risco — Klass evitou isso
facilmente.
Não era nada para temer. Nada a temer.
Era apenas um grande veado.
Balançando seu bastão com toda a força, ele roçou sua perna várias
vezes.
Inacreditavelmente, ele estava lutando contra o enorme veado.
Da grande abertura de sua boca, o veado exalou nuvens de hálito
branco. Klass estava balançando e ziguezagueando para evitá-lo, então
o cervo poderia muito bem estar ficando cansado. Talvez seu corpo
também fosse uma fraqueza.
Klass também estava cansado. Ele há muito havia perdido a
sensibilidade nas mãos por segurar o bastão com tanta força, e os
músculos de seus braços estavam tão tensos que era difícil dizer onde
eles terminavam e onde começava o bastão.
Ele enfrentou o veado de frente, perto o suficiente para alcançá-
lo se ele fosse saltar para frente.
Foi dito que, se alguém transformasse os chifres de um veado em
pó, poderia ganhar a sabedoria da floresta. Com seus insondáveis olhos
negros, o cervo o olhou.
Ele estava considerando algo.
O que ele estava pensando?
Assim que Klass se perguntou isso, os olhos do cervo fitaram outra
coisa — Aryes, com as mãos cruzadas em oração.
Klass sentiu-se à beira do vômito. Aryes não havia fugido. Ou
talvez ela simplesmente não tivesse forças para isso.
Aryes percebeu o olhar do grande cervo sobre ela.
O cervo se moveu. Virando-se para encará-la, bateu no chão três
vezes como um cavalo, baixando a cabeça
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 127 ⊱

“—!” Klass não tinha ideia do que ele disse.


Ele se moveu como se alguém atrás dele o tivesse empurrado.
Com o bastão em uma das mãos, ele correu o mais rápido que
pôde. Havia incontáveis raízes de árvores, poças e torrões deixados
para trás pelos passos da besta, mas Klass não olhou para nenhum deles,
seu olhar fixo no cervo enquanto corria.
Então, de frente para a cabeça do cervo, cuja estocada era como a
própria montanha decidindo se mover, ele saltou com força
novamente - brandindo seu cajado na mão direita como se fosse a lança
do herói antes de perfurar o olho do gigante.
“Aaaaaauuoh!”
Houve um krack maçante.
Saiu de seu braço direito, então a princípio Klass pensou que ele
o tivesse quebrado.
Ele não tinha prestado a menor atenção à sua aterrissagem, então
ele roçou o queixo do cervo quando saltou direto para a vegetação
rasteira.
Ele estava prestes a perder a consciência, mas o som de algo
enorme caindo atrás dele o trouxe de volta ao estado de alerta total.
Gritando no que pode ter sido dor, o cervo deu um uivo de
arrepiar os cabelos quando seus cascos se espatifaram no chão.
Quando ele finalmente levantou a cabeça, ele viu — além do
cervo, escorregando enquanto lutava para se levantar — Aryes, cujo
olhar estava fixo na fera.
“Aryes!” Klass chamou seu nome e correu em sua direção. Ela
olhou para ele, surpresa, antes de seus olhos voltarem para o cervo.
“Aryes, temos que correr!”
“M-mas, o olho dele...”
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 128 ⊱

Klass havia superado a raiva e teve que sorrir para Aryes, que
estava preocupado com o olho do grande cervo que matou Holo e
tentou matá-la também.
Ele não podia estar com raiva dela.
Afinal, ela era Aryes.
“Temos que nos apressar! Se formos seguidos, não haverá nada
que possamos fazer!”
Assim que Klass terminou de dizer isso, o cervo deu outro berro.
Klass se encolheu e se virou para olhar. Ele viu que o cervo havia
tropeçado em um riacho e caído.
Um som como um deslizamento de terra ecoou pela floresta;
então houve um grande barulho que reverberou em seu peito.
“Ha-ha-ha, conseguimos! Venha, Aryes! Vamos lá!”
“Ah, er, m-mas—”
Klass foi até Aryes e segurou sua mão, mas ela não se levantou.
Seu rosto perturbado fez Klass se perguntar se seus pés estavam
presos na lama.
“Você não consegue andar? Ven—”
Klass envolveu o braço direito que temia que estivesse quebrado
nas costas de Aryes e deslizou o esquerdo sob as pernas dela.
Foi assim que o herói sempre resgatou a princesa.
Apesar de sua expressão preocupada, Aryes se apoiou nos braços
de Klass como se já tivesse praticado isso muitas vezes.
“O-oof.”
Comparado com fardos de palha amarrados apertados e duros
como pedras, o corpo de Aryes era como algodão.
Dito isso, correr assim era impossível, e Klass deu passos
cuidadosos, seus joelhos trêmulos protestando.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 129 ⊱

Ele a carregaria; ele escaparia do cervo, sairia da floresta e


alcançaria a cidade.
Klass murmurou isso internamente quando as pernas de Aryes
escorregaram de seu braço esquerdo, e ele cerrou os dentes e reuniu
mais força.
Era uma pena o que havia ocorrido com Holo.
Ele odiava suas provocações, mas em muito pouco tempo, ela se
tornara como uma irmã mais velha para ele.
Ele decidiu que, assim que chegassem à cidade e se recuperassem,
ele voltaria em busca do corpo dela e lhe daria um enterro adequado.
E se ele encontrasse o cervo novamente, bem — ele pagaria mais
do que seu olho.
As pernas de Aryes escaparam de seu braço novamente e, embora
tocassem o solo, Klass não tinha força no braço esquerdo e suas pernas
pareciam tão pesadas que pareciam estar enredadas em raízes — ele
não conseguia mais movê-las.
E ainda assim, na mente de Klass, ele podia ver um futuro
brilhante e planejava enfrentá-lo, entrar nele.
“P-por favor, apenas...” disse Aryes prestes a chorar, ainda de
alguma forma conseguindo se agarrar a ele. Klass sorriu suavemente,
finalmente parou agora.
“Desculpa. Você... vá em frente.”
E como se dizer isso lhe custasse o resto de suas forças, Klass
desabou no local.
Ele ouviu o baque de sua queda como se estivesse a uma grande
distância e, embora seu rosto estivesse meio submerso na água
lamacenta, ele não conseguia mover um músculo.
“—! —!”
Aryes gritava alguma coisa, mas não conseguia ouvir.
A chuva caindo parecia um banho quente.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 130 ⊱

“Corra”, murmurou Klass.


Corra. Nos encontraremos novamente na pousada da cidade.
Isso é o que ele queria dizer em algum lugar de sua consciência
distante.
Aryes — ela, pelo menos, precisava escapar.
Aryes, pelo menos.
Porque—
Klass fechou os olhos.
Porque — ele a amava muito.

***

Havia um cheiro doce.


Era comida?
Ele tentou se lembrar, mas não conseguiu.
Ele poderia dizer que era o cheiro de algo de que gostava muito,
mas nem pela vida dele, ele conseguiria se lembrar o que era.
E havia a questão de onde exatamente se encontrava.
Estava escuro e ele não conseguia ver nada.
Seu corpo não se moveu; parecia que ele estava submerso em água
muito pesada.
Mas aquele doce, doce aroma envolveu seus pensamentos, e então
tais preocupações pareciam sem importância.
Ele queria ficar dentro deste doce perfume para sempre.
Isso... fofo...
“O qu—?” Klass gritou ao acordar com um solavanco.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 131 ⊱

Ele girou a cabeça para um lado e para o outro, procurando


desesperadamente com olhos que se recusavam a focar.
Quando ele a viu, ela parecia prestes a chorar, certamente porque
ele de repente se sentou e abriu os olhos.
“Ar-Aryes…”
“B-bom dia,” disse Aryes, engolindo em seco, nervoso, parecendo
estranhamente em guarda. Ela lentamente estendeu a mão. “Como...
como você se sente?”
A mão dela tocou sua bochecha, e ele imediatamente gemeu de
dor.
Aryes puxou a mão dela como se a tivesse queimado,
desculpando-se em lágrimas.
Klass tentou tocar seu próprio rosto.
Estava todo inchado e sua mão coberta de cortes também.
“Ha-ha-ha-ha, estou uma bagunça”, disse ele com uma risada,
então estremeceu. O rosto preocupado de Aryes mudou para um
sorriso, e ela riu também, mas depois começou a chorar. “O qu…?
Não, er, n-não ... não chore!”
Klass agarrou rapidamente os ombros de Aryes e acariciou sua
cabeça.
Surpreso consigo mesmo por fazer essas coisas tão casualmente,
ficou muito feliz ao ver que Aryes não parecia nem um pouco chateada
com ele.
“Estou bem — vê?” disse ele, tentando tranquilizar a soluçante
Aryes, que assentiu várias vezes e depois desatou a chorar de novo.
Não sabendo mais o que fazer, ele decidiu esperar que ela
terminasse de chorar.
Klass finalmente olhou ao seu redor e se perguntou.
Onde exatamente estamos?
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 132 ⊱

A luz veio por trás dele, e na frente estava algo como uma parede
feita de madeira escura, na qual crescia um pedaço de musgo. Ele
lançou seu olhar ao redor de seus arredores, e ele parecia estar em uma
espécie de cúpula, embora o chão estivesse coberto de palha seca. Ele
sabia de uma coisa com certeza — esta não era a cidade.
O que estava acontecendo?
Assim como ele estava tentando descobrir —
“Hmph”, disse uma voz familiar.
“O qu—?” Ele tentou olhar para trás, mas Aryes ainda estava
agarrada a ele, então acabou perdendo a postura e tombando para trás.
“Oww…”
Ele tentou se sentar, mas Aryes ainda estava firmemente presa,
tornando o movimento impossível. E de qualquer maneira, tentar se
mover parecia um desperdício. Aryes parecia esguia, mas era
surpreendentemente sólida, e Klass estava com o rosto para cima sob
o peso de seu corpo, olhando vagamente para o teto. E então algo
apareceu em seu campo de visão — um rosto olhando para ele, um
rosto que ele não podia acreditar que estava lá.
“Heh. Parece que você está no meio de algo, hein?”
“Ah — o quê—?”
“O que é isso? Apenas uma garota abraçando você ao acordar não
é o suficiente?”
Ignorando completamente sua provocação habitual, Klass gritou
o nome que surgiu em seu peito. “Senhorita Holo!”
“Você não precisa gritar assim; Eu posso te ouvir bem o
suficiente.”
Sem se preocupar com sua carranca, Klass continuou. “M-mas, eu
— eu pensei que você estava —”
“Morta, você disse?” Seu sorriso era tão destemido que parecia
que, mesmo se fosse morta, ela não morreria.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 133 ⊱

E, no entanto, o som assustador daqueles grandes dentes rangendo


ainda ecoava nos ouvidos de Klass.
Ele estava tão certo de que ela havia sido mastigada, esmagada.
“Heh heh. Você ouviu o garoto “, disse Holo, olhando por cima
do ombro dela, e de repente uma grande sombra caiu sobre a luz.
Klass não tinha palavras para descrever o choque que sentiu.
Atrás de Holo, na entrada da caverna, apareceu o rosto do grande
cervo que ele pensou ter matado.
O olho que ele tinha certeza de ter apunhalado brilhava como ônix
polido e, quando ele encontrou seu olhar, piscou uma vez para ele
como se fosse uma saudação.
“Uma criança humana ... com tanta coragem. Quantos séculos... já se
passaram... desde que eu... me diverti... tanto...?” As palavras saíram com
dificuldade, e a grande boca se retorceu em uma expressão estranha.
Klass percebeu que era um sorriso e seu peito ardeu. “Isso... não
pode ser...”
Ele empurrou Aryes para longe dele. Seus olhos estavam úmidos
de lágrimas e ela parecia profundamente arrependida.
“Seu idiota. Quem você pensou que estava atacando?” Holo bateu
com a cabeça e a encarou. O cervo parecia ter recuado — em todo
caso, ele havia sumido. “Suponho que o cervo exagerou um pouco e
desempenhou seu papel mais intensamente do que eu planejei.
Honestamente, nem mesmo eu poderia afastá-los.”
Holo sorriu com tristeza e, de algum lugar distante, ouviu-se um
uivo curto.
Holo havia planejado tudo?
De repente, Klass percebeu.
Tinha sido tão lento para derrubar seus cascos, mas seu
movimento ao se esquivar de seu cajado foi realmente rápido.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 134 ⊱

Mas isso significava que o olhar de terror de Aryes quando ela


estava prestes a ser pisoteada era uma mentira?
Klass olhou para ela, sentindo-se repentinamente traído, quando
Holo bateu com a cabeça novamente. “Se você começar a duvidar
dessas coisas em questões como essas, você realmente é um idiota.”
Ela o atingiu com alguma força e seu couro cabeludo doeu.
Quando ele pensou sobre isso, percebeu que a expressão de Aryes
era verdadeira.
Mesmo se ela soubesse que o cervo estava apenas agindo, ela
poderia facilmente ainda estar com medo.
Klass teve que admitir que, mesmo se soubesse que tudo ficaria
bem, ele poderia muito bem ter ficado apavorado diante daquela
presença.
E mesmo agora, ela parecia muito apologética.
Enquanto olhava para ela, ele se perguntou quando Holo
encontrou tempo para explicar o plano.
Ele era o único lutando em uma ignorância sincera.
“Heh heh. Ainda assim, você foi bastante galante. Não foi?” Holo
se agachou, apoiou os cotovelos nos joelhos e empurrou o bastão,
sorrindo.
Aryes enxugou os cantos dos olhos e acenou com a cabeça. “Me
desculpe por não... dizer nada... mas...” Enquanto falava, ela começou
a chorar de novo.
Klass não encontrou nenhum traço de raiva dentro de si e pegou
a mão de Aryes. “Está tudo bem, sério. Estou feliz por estarmos
seguros...”
“…Tudo bem.” Quando ela assentiu, algumas lágrimas caíram no
chão e Klass percebeu algo que o estava incomodando.
“Oh—”
“Hmm?”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 135 ⊱

“E quanto aos nossos perseguidores?” Klass perguntou, erguendo


a cabeça.
“Perseguidores?” Holo respondeu à pergunta, então fez uma
careta de dor quando ela percebeu seu erro.
“E-espere, não me diga que isso também era mentira —”
“Heh-heh-heh,” Holo riu e balançou o rabo dela.
Quando ele olhou para Aryes, viu que ela estava novamente com
um olhar de desculpas no rosto.
Ele relaxou o pescoço e deixou a cabeça cair no chão, sem se
preocupar com o baque que fez.
“Agora, então, não podemos ficar neste covil para sempre —
devemos sair. Lá está um solo sagrado de floresta, como poucos
humanos verão.” Holo se levantou e dobrou o pescoço.
“Solo... sagrado da floresta?”
“Sim. É uma visão e tanto, não é?” Essas palavras foram dirigidas a
Aryes, que assentiu com firmeza.
Tinha que ser algo que valia a pena ver.
“O sol já nasceu há muito tempo. Deixe-nos ir e nos aquecer —
seu conto de guerreiro será um ótimo aperitivo ao considerar o que
fazer a seguir. Afinal,” — Holo colocou a mão em seu quadril e
balançou a cauda — “nós três temos uma jornada pela frente.”
Ela sorriu e foi embora.
Ele dificilmente poderia ficar desapontado por ela estar bem.
E ainda assim não podia deixar de se perguntar se ela pregaria uma
peça como essa novamente.
Em todo caso, ele queria ver o solo sagrado da floresta.
O que havia de tão especial nisso, ele se perguntou.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 136 ⊱

“Então, este solo sagrado — é realmente tão bom?” ele perguntou


a Aryes enquanto ela o ajudava a se sentar, o que ela ponderou por um
momento, depois assentiu.
“Suponho que...” Ela parecia estar pensando seriamente nisso, o
que amenizou a piada. “Mesmo assim...” disse ela, olhando Klass
diretamente nos olhos.
Seu coração bateu dolorosamente e não por nenhum de seus
ferimentos.
E agora ele sabia por quê.
“Prefiro visitar o mar.”
Com isso, Klass não pôde mais resistir ao sorriso que dividiu seu
rosto.
Esquecendo a dor que causou, ele sorriu e acenou com a cabeça.
Aryes então olhou além de Klass para algo atrás dele. Ele teve a
sensação de que quem estava lá estava olhando para e acenando com a
cabeça, mas ele não se importou.
Alguém bastante inteligente e intrometido provavelmente disse a
Aryes para dizer isso, mas ele tinha certeza de que as palavras dela não
eram mentiras.
Ele encontrou dentro de si a força para acreditar nisso.
“Bem, podemos ir?” Klass pegou a mão de Aryes e se levantou.
Assim que ele se virou, ele viu a cauda de Holo balançar e
desaparecer nas sombras.
Aquela cauda macia, sedosa e cheirosa. Ele pensou em fazer Holo
deixá-lo dormir sobre ela mais uma vez, como forma de se desculpar
por exagerar nos truques.
Era tão reconfortante que ele sentiu que seria uma troca justa.
Ele olhou por cima do ombro enquanto pensava sobre isso.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 137 ⊱

“Hmm?” Perguntou Aryes. Ele foi surpreendido. Ele


acidentalmente disse isso em voz alta? Sem responder, ele começou a
andar.
Saindo da abertura da sala, ele foi para a luz, segurando a mão de
Aryes.
Ele pensou sobre o ditado “Quem persegue dois coelhos não pega
nenhum.”
Mas ele tinha um lobo de um lado e uma ovelha do outro, então...
“Devo adivinhar o que você está pensando?” disse uma voz de
reprovação atrás dele.
Ele estava com muito medo de se virar.
Diante dele, em um jardim ensolarado, bonito demais para
qualquer pintura, Holo se aquecia nos raios de luz, segurando-se
enquanto ele tremia de alegria.

— Fim.
O GAROTO, A GAROTA E AS FLORES BRANCAS ⊰ 138 ⊱
ercebendo que de repente tudo ficou quieto, Lawrence
ergueu os olhos.
Mas o barulho da rua que entrava junto com a luz do sol
pela janela aberta não tinha mudado.
Então, por que de repente tudo ficou tão silencioso? Ele colocou
em ordem um pacote de peles de ovelha que seus olhos observavam,
então estalou o pescoço.
Uma garota na cama limpava a boca. Talvez seja essa a causa.
“Então você estava comendo o tempo todo...? Quantos você
comeu?”
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 140 ⊱

A garota, Holo, que tinha lindos cabelos castanhos que causariam


inveja a qualquer nobre, balançou as orelhas de lobo e contou nos
dedos. “Dez... sete. Não, nove.”
“E o que sobrou?”
Desta vez, ela balançou a cauda, uma cauda que faria qualquer
vendedor de peles babar de inveja.
O gesto a fez parecer um cachorrinho repreendido.
“... O-oit...”
“Oito?”
“Oitenta... e um.”
Lawrence suspirou, e a expressão de Holo mudou
completamente; ela o encarou. “Você vai me perguntar se vou comer
todos eles.”
“Eu não disse nada ainda.”
“Então, o que se seguiu a esse suspiro, hein?”
Após uma breve pausa, Lawrence respondeu. “Você vai comer
todos eles?”
Deixando Holo encarando, Lawrence voltou sua atenção para o
pacote de peles de ovelha diante dele, tentando amarrá-lo com um
barbante antes de lembrar que não poderia usar a mão esquerda.
Isso aconteceu porque, em alguma situação desagradável recente,
ele falhou em ser esfaqueado.
No entanto, a experiência teve como efeito criar um vínculo novo
e inestimável entre ele e Holo, que conheceu no início de suas viagens.
Quando pensava assim, realmente custou barato, ele lembrava a
si mesmo, levantando-se de uma cadeira.
Havia uma pilha de caixotes de madeira cheios de maçãs no canto
da sala. A conta era de 120 maçãs, mas — incluindo a contagem de
hoje — trinta e nove haviam sido comidas.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 141 ⊱

Mesmo se fossem sua comida favorita, comer tudo antes que


estragassem não seria uma tarefa fácil.
“Você não precisa ser tão teimosa,” disse Lawrence.
“Não estou sendo teimosa.”
“Realmente?”
Holo virou-se carrancuda, tão infantil quanto sua aparência levaria
alguém a esperar, embora ela tivesse vivido muitos anos a mais do que
Lawrence, e fosse um espírito de loba com séculos de idade que vivia
no trigo e poderia produzir qualquer colheita que quisesse.
Mas ela permaneceu assim por apenas um momento, finalmente
colocando suas orelhas de loba para trás em derrota. “... A verdade é...
que estou um pouco enjoada delas...”
Sabendo que iria despertar sua raiva se risse, Lawrence
simplesmente concordou. “Aposto. Mesmo que sejam sua comida
favorita, isso é um monte de maçãs.”
“Mesmo—”
“Hmm?”
“Mesmo assim, juro que comerei todas.”
Ao contrário de quando entregou aquele olhar zangado, ela disse
isso com o que parecia uma determinação implacável.
Lawrence ficou brevemente surpreso com essa mudança
repentina, mas logo percebeu a posição de Holo.
Holo havia usado o nome de Lawrence sem seu consentimento
para pedir 120 maçãs, uma fruta que não era de forma alguma barata.
Mas ela não fez isso apenas para seus próprios propósitos glutões.
Por mais estranho que parecesse, Holo precisava desperdiçar uma
grande quantia do dinheiro de Lawrence para que eles continuassem
suas viagens.
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 142 ⊱

Holo morava originalmente em a uma aldeia que cultivava trigo,


mas pediu a Lawrence que a levasse para sua terra natal, no norte do
país — assim, sua jornada havia começado.
Mas o mundo conspira para que os planos feitos por razões simples
não prossigam de maneira simples.
Lawrence não estava nem um pouco zangado com Holo por
comprar as maçãs.
Muito pelo contrário, e não eram apenas maçãs; ela também
comprou algumas roupas bastante caras, mas ele queria que ela fizesse
exatamente isso.
No entanto, embora eles se entendessem nesse aspecto, Holo
ainda parecia sentir algum senso de responsabilidade por ter avançado
um contrato.
Lawrence não era o filho pródigo de algum nobre; ele era um
mercador viajante trabalhador.
Ela estava totalmente ciente disso.
Afinal, Holo era uma autoproclamada sábia loba.
Ela também era uma loba que se importava tanto com ele a ponto
de fazê-lo rir.
“Você não precisa se preocupar tanto com isso,” disse Lawrence,
pegando uma maçã. “Mesmo que você se canse de comê-las cruas, há
muitas maneiras de se comer uma maçã.”
Ele deu uma mordida na fruta, que estava tão madura que parecia
perto de estourar, mas parou no olhar de Holo.
Mesmo diante de uma montanha de maçãs que ela não conseguiria
comer, ela evidentemente não permitiria que ninguém mais comesse
uma.
“Se você chegar à ruína, as maçãs serão a causa, isso é certo.” Ele
sorriu e jogou a maçã para ela, que pegou com uma cara de desgosto.
“Então, me fale dessas ‘outras maneiras’ de comê-las.”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 143 ⊱

“Hmm, bem, você poderia assá-las.”


Holo afastou o rosto da maçã que ele havia mordido e, depois de
examiná-la, olhou para Lawrence. “É melhor você se preparar para as
consequências se estiver zombando de mim.”
“Seus ouvidos não conseguem sempre distinguir mentiras da
verdade?”
Com essas palavras, suas orelhas se contraíram como se tivessem
agitado, e ela resmungou: “Cozinhar maçãs... Nunca ouvi falar de algo
assim.”
“Ha-ha, suponho que não. Não é como se alguém os assasse no
espeto sobre uma chama aberta. É mais como pão assado no forno.”
“Hmph.”
Evidentemente, ela teve dificuldade em entender isso, mesmo
depois de explicado. Ela inclinou a cabeça enquanto mastigava a maçã.
“Então, você nunca comeu torta de maçã?”
A esta pergunta, também, ela balançou a cabeça.
“Hmm. Suponho que seria mais rápido apenas mostrá-la a você.
Quando você assa maçãs, elas ficam macias — é um mau exemplo,
mas elas são quase tão macias quanto quando estão podres.”
“Mmph.”
“Mas, assim como algo à beira de estragar pode ser saboroso, as
maçãs assadas são incríveis. Você sabe como uma maçã crua é boa para
uma garganta seca? Maçãs assadas são tão doces que você fica com
sede.”
“Entendo,” ela disse, fingindo um tom calmo, mas sua cauda
estava ocupada balançando para frente e para trás.
Enquanto sua mente inteligente e língua rápida sempre zombavam
de Lawrence, quando se tratava de comida, Holo tinha uma fraqueza
distinta.
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 144 ⊱

E não importa o que sua boca dissesse, suas orelhas e cauda sempre
mostravam seus verdadeiros sentimentos.
“De qualquer forma, elas são boas maçãs para começar, então não
ficarão ruins, não importa como você as prepare. Embora você
também se canse da doçura, não é?”
A cauda de Holo parou de repente.
“Carne salgada ou peixe salgado — o que você prefere?”
Sua resposta veio instantaneamente. “Carne!”
“Então, para o jantar—” Lawrence começou, mas foi cortado
quando seus olhos encontraram os de Holo quando ela pulou da cama
e vestiu o robe alegremente. “O que, você pretende ir agora?”
“Não é agora?”
Desistindo de tentar descobrir onde dentro daquele pequeno
corpo dela todas aquelas maçãs se encaixavam, ele se lembrou que sua
verdadeira forma era um lobo grande o suficiente para comê-lo com
uma mordida.
Ele não queria pensar sobre isso, mas talvez seu estômago tenha
ficado tão grande quanto quando ela era uma loba.
“... Então, vou perguntar de novo, você acha que pode comer
todas aquelas maçãs?”
“Depois de ouvir você, decidi que sim. Você não precisa se
preocupar.” Ajustando rapidamente seu manto com uma faixa, ela
girou e ficou pronta em um instante.
Não se passou muito tempo desde o meio-dia, mas Lawrence
desistiu silenciosamente.
Persuadi-la do contrário seria impossível, ele tinha certeza.
“Suponho que tenho negócios a tratar, então por que não? Vamos
lá.”
“Certo!” Holo acenou com a cabeça, sorrindo, tão despreocupado
quanto a menina que ela aparentava ser.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 145 ⊱

Lawrence era mercador viajante há sete anos, desde seu


aniversário de dezoito, e ainda não conseguia encontrar palavras para
discutir com ela quando sorria para ele daquele jeito.
Tais pensamentos o ocupavam, ele a observou sair pela porta
impacientemente, deixando para trás o eco de seu sorriso, mais doce
do que qualquer maçã.
Ainda assim, se ela descobrisse isso, ela só usaria para provocá-lo.
Lawrence pigarreou e se preparou para sair, mas quando foi seguir
Holo, seus pés pararam repentinamente.
Holo olhou feliz para ele pela porta aberta.
“Você deveria sorrir mais. É bom.”
Eles poderiam muito bem tentar esquecer o gosto das maçãs, mas
ela realmente era maliciosa.
Enquanto ele a seguia para fora da sala, Lawrence falou com a
pequena loba atrevida. “Você é realmente desagradável, sabe.”
Holo olhou por cima do ombro. “Devo reclamar, então?” disse
ela, fingindo irritação.
Os ombros de Lawrence relaxaram, sinalizando sua derrota, ao
que Holo deu uma risadinha audível.
Situada às margens do rio Slaude, a cidade portuária de Pazzio
estava sempre lotada.
Mesmo sem nenhum festival ou preparação para a batalha, as ruas
estavam movimentadas e cheias de gente indo para lá e para cá.
Fazendeiros conduzindo o gado, mercadores viajantes
transportando suas mercadorias, crianças servas bem vestidas levando
recados e monges de aparência confusa em sua primeira visita em anos
a uma cidade movimentada — todos estavam em evidência.
Dizia-se que onde quer que três estradas convergissem, uma
cidade cresceria — e havia muitas, muitas ruas na cidade, superadas
em número apenas pelo tipo de pessoa que as pisava.
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 146 ⊱

Mas nenhum deles imaginava que um dos visitantes da cidade não


fosse uma pessoa.
“Longe disso,” disse Lawrence. “Você parece uma freira.”
“Hmm?” Holo olhou para trás, para Lawrence falando sozinho,
com a boca cheia. Apesar de ter comido tantas maçãs, um olhar para a
barraca de passas foi o suficiente para ela começar a mendigar.
“Eu estava dizendo que não quero pensar em quanto está
ultrapassando sua conta de alimentos.”
“Humph. Há algum inconveniente em eu parecer uma freira?”
Holo não conseguiu esconder seu prazer malicioso em provar a
Lawrence que tinha ouvido exatamente o que ele disse.
“Longe disso; torna a viagem ainda mais conveniente.”
“Hmm. Ser capaz de mudar tanto simplesmente escolhendo
roupas — o mundo humano certamente é estranho.”
“Tenho certeza de que os lobos achariam algo conveniente em usar
peles de ovelha, se pudessem.”
Holo pensou por um momento, então sorriu. “Sim, e se eu usasse
uma pele de coelho, você cairia feliz em qualquer armadilha.”
“Então, para você, vou preparar minha armadilha com maçãs.”
Lawrence teve que rir ao ver Holo tentando zombar com as
bochechas recheadas de passas.
Era um prazer que nenhum mercador solitário poderia desfrutar,
cuja conversa fosse a negócios ou consigo mesmo.
“De qualquer forma, não estaremos livres de inconveniências,
especialmente no seu caso.”
Parecendo perceber pelo seu tom que ele tinha ficado sério, Holo
olhou para cima novamente, desta vez sem zombar, enquanto
caminhava ao lado dele.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 147 ⊱

“Há todos os tipos de problemas com uma freira bebendo vinho


no meio do dia. A maioria das tavernas vai ignorar isso, mas você
poderia levar isso um pouco mais em conta.”
“Mmm. É como beber em uma ponte frágil que pode cair a
qualquer momento.”
Lawrence ficou impressionado por ela ter criado um exemplo tão
adequado tão rapidamente.
“Além disso, cidades diferentes têm circunstâncias diferentes.
Especialmente quando nos dirigimos para o norte, pode haver lugares
onde uma freira seria um péssimo disfarce, de fato.”
“O que devo fazer então?”
“Seria mais seguro ter uma muda de roupa que te fizesse parecer
uma garota comum da cidade.”
Holo acenou com a cabeça educadamente e colocou o resto das
passas na boca. “Nesse caso, não podemos comprá-las antes do jantar?
Qualquer coisa que diminua nossa segurança tornará o sabor da
comida pior.”
“Que bom que você entende. Não há tempo a perder para te
convencer.”
“O que, você achou que eu iria insistir em comida e vinho
primeiro? Não estou tão cega pela gula assim.”
Lawrence encolheu os ombros como se dissesse: “Não está?” Holo
lambeu os dedos dela, sem graça.
“Humph. Você está tentando cuidar de mim. Eu tenho que tirar
vantagem disso, não tenho?” disse Holo baixinho, olhando para a rua à
frente em vez de para Lawrence. Ela então sorriu levemente e
suspirou. “Essa é uma ótima desculpa para comprar roupas novas. Você
achou que eu não notaria?”
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 148 ⊱

Lawrence levou a mão à boca, mas não para impedir que uma
exclamação de surpresa escapasse — mas sim porque se sentia um
pouco envergonhado.
“Heh. Ah, bem, se você está me comprando algumas coisas novas,
terei o prazer de me impor. Afinal, o inverno frio o aguarda.”
“Você poderia impor um pouco menos.”
Holo sorriu como uma criança contando uma piada, entrelaçando
os dedos na mão direita de Lawrence.
Ela estava preocupada com sua bolsa de moedas à sua maneira.
Apesar de que ter pena de uma bolsa era humilhante à sua maneira para
um homem.
A sábia loba parecia ter entendido há muito o conflito dentro dele.
Ele não tinha sabedoria suficiente para superar Holo.
“Está frio. Minha mão vai congelar.”
É claro que Lawrence não acreditou em uma palavra disso.
“Sim, certamente está frio.”
“Sim.”
Cada um sabia que o outro estava mentindo, o que era de alguma
forma mais divertido do que simplesmente dizer a verdade.
Caminhando pela rua movimentada, eles eram os únicos que
entendiam o significado daquilo.
Era o suficiente para fazê-lo sentir-se ainda melhor do que quando
terminou seu grande negócio e tinha uma bolsa cheia de moedas com
cabeças de rainha cobertas de louro.
“Sim.”
Mas enquanto pensava sobre isso, Lawrence percebeu algo que o
trouxe de seu devaneio e de volta à realidade lotada da rua.
“Qual é o problema?”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 149 ⊱

“Eu não tenho... nenhum dinheiro.”


Holo ficou perplexa por um momento, depois lançou um olhar
que passou da irritação e transformou-se em puro desdém.
O que quer que ela dissesse, nesse aspecto ela não era diferente
de uma garota normal da cidade.
Se alguém não comprasse para uma garota o que havia prometido,
sua tenacidade seria mais profunda do que a de qualquer comerciante.
Isso era algo que Lawrence aprendeu em seus sete anos de
experiência.
“No entanto, para o bem da minha honra, devo explicar que
quando digo: ‘Não tenho dinheiro,’ não quero dizer o que você pensa
que quero dizer.”
“Huh?”
“Quer dizer, não tenho dinheiro trocado.” Enquanto falava,
Lawrence procurou sua bolsa de moedas, mas percebeu que não
poderia usar o braço esquerdo.
Era uma pena, mas ele casualmente largou a mão de Holo. “Sim,
nenhum,” disse ele ao examinar o conteúdo da bolsa.
“Eles dizem que muito grande é melhor do que muito pequeno.
Não é como se você não tivesse dinheiro.”
“Eles também dizem para não matar uma mosca com uma
marreta. Você não disse a mesma coisa para mim ao comprar pão?”
“Mph. Então, vamos precisar de troco.”
“Teremos que trocá-lo. Se dermos moedas de ouro para o alfaiate,
não há como dizer que tipo de cara terrível ele faria.”
“Mm... ainda assim...” disse Holo enquanto Lawrence fechava sua
bolsa de moedas e a colocava na cintura. “As moedas de ouro são
realmente tão valiosas?”
“Huh? Certamente são. As moedas lumione em minha bolsa agora
estão sendo trocadas por cerca de trinta e cinco moedas de prata trenni.
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 150 ⊱

Se você não fica em uma pousada e não bebe nenhum vinho, pode viver
uma semana com um único trenni. Então, pense cerca de trinta e cinco
vezes isso.”
“...Isso é realmente incrível. Então, por que um alfaiate se daria
ao trabalho de receber um em pagamento?” Holo disse. Lawrence
olhou para ela e adivinhou o que perguntaria a seguir. “Ao contrário
das maçãs, uma moeda de ouro pode comprar apenas uma ou duas
peças de roupa. Disseram-me que essas roupas custam duas peças de
ouro.”
Quando casas nobres foram atacadas por plebeus rebeldes,
Lawrence tinha ouvido que muitas vezes era uma declaração trivial que
era o gatilho. Ele fez uma careta, perguntando-se se o que Holo acabara
de dizer era um bom exemplo desse tipo de declaração.
“Se todas as roupas custassem tanto assim, a maior parte dos
habitantes da cidade estaria andando totalmente nus.”
Escrever um recibo para um manto que custasse duas moedas de
ouro, não havia dúvida de que o fabricante de roupas estaria se
perguntando se realmente receberia ou não — tanto que era estranho
que um contrato não tivesse sido assinado antecipadamente por uma
testemunha pública.
E não eram apenas duas peças de roupa — havia uma faixa de seda
também.
Mas o fabricante de roupas não achou que fosse algum tipo de
brincadeira infantil, provavelmente porque Holo parecia a freira
particular de algum nobre rico.
“Hmm... isso foi caro, não é?” Holo olhou para baixo e tocou o
manto que ela vestia.
“Isso mesmo. Então, de agora em diante, vamos manter nossas
compras mais em conta.”
Nesse momento, Holo ergueu os olhos, torcendo os lábios,
parecendo que sua diversão havia sido estragada. “Eu sou Holo, a Sábia
Loba de Yoitsu. Feriria minha reputação usar roupas pobres.”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 151 ⊱

Lawrence ergueu o queixo quando suas palavras ficaram presas na


garganta; sua mente girava enquanto procurava uma boa resposta, mas
não conseguia encontrar nenhuma.
Holo bateu em seu braço direito como uma criança tendo um
acesso de raiva.
“Mesmo assim, troco para as moedas...” Ele colocou os
pensamentos sobre Holo de lado e considerou o assunto com um
suspiro.
Haveria uma taxa envolvida na transformação de moedas de ouro
em prata, algo que ele nunca ficava muito satisfeito em abrir mão.
Ele riu disso, disse que os mercadores economizavam dinheiro
porque eram apaixonados por ouro, mas, da parte de Lawrence, ele
não pensava nisso como uma piada.
Mas agora ele tinha um problema maior para enfrentar.
Ao trocar moedas em uma cidade, era sua rotina ir a um cambista
que ele conhecia, porque vendo um cambista pela primeira vez, eles
sempre o enganariam e ele levaria um prejuízo. O que era pior, isso
era visto como uma espécie de imposto, então ele não podia nem
reclamar. “Se você não gosta, é melhor nos conhecer mais,” era a linha
padrão dos cambistas sobre o assunto.
Claro, Lawrence tinha um cambista preferido e não estava muito
preocupado com isso.
Ele tinha um problema diferente.
Que era que seu cambista era um notório mulherengo e se
apaixonou instantaneamente por Holo.
Pior, Holo parecia gostar disso.
Além disso, ela também parecia gostar de como isso fazia
Lawrence se sentir patético.
Se pudesse evitar, ele não queria levar Holo para ver o cambista.
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 152 ⊱

“Troca de dinheiro, hein? Isso significa... oh ho.” A inteligente


Holo percebeu quem eles estariam vendo e sorriu. “Bem, então, é
melhor você fazer os arranjos. Eu quero beber vinho mais cedo ou mais
tarde.”
Holo puxou sua mão, dirigindo-se para a animada avenida.
Lawrence suspirou como sempre fazia antes de qualquer negócio,
amaldiçoando a mesquinhez da dona da mão macia que segurava a sua.

“Para um lumione, a faixa de hoje é trinta e quatro trenni.”


“E a taxa?”
“Dez lute de prata ou trinta trie de cobre.”
“Vou pagar com lute.”
“Muito bom então. Bem aqui... Oh, por favor, tome cuidado.
Tudo o que você deixa cair na rua torna-se propriedade de quem o
pega,” disse o cambista, colocando educadamente as moedas de prata
na mão de Holo e cobrindo-as com a sua, como se as tivesse dado a
uma criança.
Lawrence ofereceu uma única moeda lumione, mas o cambista não
largou a mão dela.
Na verdade, ele nem mesmo estava olhando para Lawrence.
“Weiz.”
Ao som de seu nome, o homem finalmente olhou para ele.
“O que?”
“Eu sou seu cliente.”
Lawrence vinha usando Weiz como seu cambista há muito tempo,
devido aos dois conhecerem seu mestre. Weiz suspirou
dramaticamente e gesticulou para sua mesa com o queixo. “Apenas
deixe o ouro lá. Agora estou ocupado.”
“E com o que você está ocupado?”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 153 ⊱

“Não dá para perceber? Estou bem no meio de garantir que esta


adorável donzela não derrube sua prata.” Weiz sorriu para Holo, ainda
sem soltar sua mão.
Holo, por sua vez, agiu mais envergonhado do que Lawrence
imaginara que ela era capaz e agora baixou o olhar, aparentemente
satisfeita.
Weiz e Holo estavam agindo de forma ridícula e, como o único
sério, Lawrence foi deixado inteiramente de fora da peça.
“Mas, senhor —” disse Holo finalmente, o que fez o rosto de Weiz
ficar tenso, e ele endireitou sua postura como um cavaleiro. “Parece
haver prata demais para minhas mãos segurarem.”
Weiz respondeu antes que Lawrence pudesse dizer uma palavra.
“Minha querida Srta. Holo, é por isso que você também tem minhas
mãos.”
Holo pareceu surpresa, depois falou como se estivesse muito
triste. “Eu não poderia impor tanto peso sobre você.”
Weiz balançou a cabeça e continuou. “Se a prata transbordar de
sua mão, terei prazer em emprestar-lhe a minha. Não me incomodaria
nem um pouco — porque, minha querida, tenho certeza de que você,
Srta. Holo, aceitará meus sentimentos, sentimentos tão apaixonados
que não posso segurar com os dois braços.
Holo desviou os olhos como a filha corada de algum nobre
enquanto Weiz olhava fixamente para o rosto dela.
A troca era tão melancólica que fez Lawrence querer esbofeteá-
los.
A coisa toda era um clichê, é claro, mas também era feita com
tanta perfeição que fez Lawrence se perguntar se eles de alguma forma
tinham arranjado tudo com antecedência.
Ele achou a coisa toda profundamente desinteressante.
Era hora de jogar água fria.
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 154 ⊱
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 155 ⊱

“Moedas de prata para o porta-moedas, ouro para a caixa e cobre


puro na mão — ou você esqueceu esse provérbio, Weiz?” Era o
princípio mais básico de lidar com dinheiro, a primeira coisa que
qualquer aprendiz cambista aprendia com seu mestre.
A diversão de Weiz foi totalmente estragada.
Como Lawrence esperava, ele finalmente tirou as mãos de Holo
e coçou a cabeça ruidosamente. “Bah. Manter uma garota adorável
como essa só para você é um insulto a Deus. Você nunca ouviu
‘Compartilhe o teu pão com os outros’?”
“Você quer que eu compartilhe?” perguntou Lawrence, abrindo
sua bolsa de couro e enchendo-a com as moedas de prata na mão de
Holo. Ela estava sorrindo levemente, mas deu a Lawrence um olhar
inexpressivo.
“Não há empréstimos na mesa dos cambistas. Apenas com troca
ou sem troca,” disse Lawrence com um sorriso para o sério Weiz,
colocando a última moeda de prata em sua bolsa. “Ela vem junto com
a dívida que me deve. Você se importa?”
“Hmph”, disse Weiz, puxando o queixo.
Ele parecia um pouco arrependido, agora que a conversa sobre
dinheiro havia voltado.
Mesmo assim, Weiz estava acostumado a isso. Ele logo assumiu
uma expressão triste e olhou para Holo. “Não posso colocar um preço
em você.”
Uma risada escapou de Holo, mas ela ainda mudou para sua
performance antes de responder: “Temo que a balança dentro do meu
coração ainda esteja pendendo. Mas tenho certeza de que não irá
simplesmente se inclinar sob o peso do ouro...”
“Oh, mas é claro.”
Weiz tentou segurar as mãos de Holo novamente, e ela as puxou.
“Para colocar as mãos em uma balança... senhor, você realmente é um
canalha,” disse Holo a Weiz como uma garçonete repreendendo um
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 156 ⊱

cliente bêbado, o que o perturbou tanto que Lawrence não podia vê-
lo como o mesmo homem.
Jurando que nunca permitiria que isso acontecesse com ele,
Lawrence suspirou e baixou a cortina desta comédia de terceira
categoria.
“Venha, vamos embora.”
“Oh, ei, Lawrence —”
“Hmm?”
“Então, se você veio até aqui para trocar dinheiro, está fazendo
algum tipo de compra?”
“Sim, estamos indo para o norte, então vou comprar roupas.”
Weiz revirou os olhos brevemente. “E-então, você vai partir em
breve?”
“Sim, provavelmente...” disse Lawrence, olhando para Holo, que
sorriu feliz.
Ele não precisava ser tão bom em ver através das pessoas quanto
Holo era para saber o que Weiz estava pensando.
“Afinal, os preços sobem com o sol. Eu gostaria de comprar o que
preciso antes do fim do dia.”
“Ugh...” Weiz parecia que estava pronto para fechar sua barraca e
correr atrás deles, mas ele certamente tinha negócios que não poderia
abandonar.
Sentindo-se vencido por ter se sentido como uma terceira roda,
Lawrence disse: “Bem, vamos,” e se virou para sair.
Mas Holo bloqueou seu caminho. “O dinheiro pode ser trocado
após o pôr do sol?”
De repente, Weiz aproveitou a chance para entrar no jogo. “O
mercado decidiu que os cambistas que usam escalas após o pôr do sol
são todos vigaristas. E, claro, não sou um vigarista.”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 157 ⊱

“Você o ouviu,” disse Holo para Lawrence.


Ele percebeu que não seria capaz de nutrir seu rancor mesquinho
para sempre. E ele planejava convidar Weiz de qualquer maneira.
Mercadores viajantes não tinham muitos amigos da cidade
próximos o suficiente para beber à noite.
“Assim que comprarmos nossas roupas, iremos para a taverna.
Quando terminar o trabalho, você venha se estiver livre.”
“Claro, irmão! A taberna de sempre?”
“Eu ficaria com medo de ficar bêbado em um lugar que eu não
conheço.”
“Certo, entendi. Eu estarei lá — eu certamente estarei lá!”
Essas últimas palavras foram dirigidas principalmente a Holo. Os
outros cambistas na área prestaram pouca atenção a ele, apenas
olhando para brevemente como se dissessem: “O que, de novo?”
Mesmo quando Lawrence e Holo se afastaram de sua barraca, Weiz
continuou acenando.
Talvez gostando da exibição, Holo acenou de volta até que
estivessem fora de vista.
Quando ela finalmente olhou para a frente novamente, era porque
eles acabaram de cruzar a ponte onde todas as bancas dos cambistas e
ourives estavam alinhadas, coladas umas nas outras.
“Heh. Eu sabia que seria divertido,” disse Holo, como se tivesse
bebido um vinho particularmente saboroso.
Lawrence só conseguiu suspirar com isso. “Se você brincar demais
com as pessoas, vai se arrepender mais tarde.”
“Arrepender?”
Havia muitas piadas sobre lindas freiras que iam em peregrinação
apenas para voltar com mais pessoas do que haviam partido.
“Você será seguida.”
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 158 ⊱

“Já estou sendo seguida por você.” Quando Lawrence vacilou em


resposta, Holo sorriu maliciosamente, mostrando as duas presas.
“Ao contrário de você, ele sabe que estou brincando. É divertido
brincar com você, mas às vezes anseio por um homem mais inteligente
para brincar.”
Lawrence tinha um monte de coisas para falar, mas não conseguia
forçar nem uma delas a sair de sua boca.
Ele sentiu uma sensação renovada de vergonha por não ter mais
esperança em nada, exceto nos negócios.
“Nós dois sabemos que é mera brincadeira; não seja tão sério.
Você está me deixando tímida.”
Holo deliberadamente colocou a mão dela em sua bochecha, ao
que Lawrence só conseguiu parecer amargo.
“Tudo bem, no entanto. Weiz tem uma língua mais inteligente do
que você, mas eu vivi o suficiente para saber que nada é tão indigno de
confiança quanto as palavras que dizemos. Vivendo no mundo do
comércio como você vive, certamente você não está totalmente alheio
a isso.”
Um pouco surpreso com suas palavras repentinas, Lawrence viu
que, enquanto a própria Holo estava sorrindo, seus olhos âmbar claros
estavam realmente muito sérios.
Como a deusa da colheita do trigo, Holo foi mantida em sua aldeia
por muito tempo. Embora os aldeões a louvassem, eles também
penduravam uma corrente de ferro em seu pescoço e não a deixavam
sair.
No fim, quando terminassem com ela, sua vingança teria sido
implacável.
Considerando isso, as palavras de Holo eram pesadas.
E, no entanto, a mão que tão casualmente segurava a sua era
quente.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 159 ⊱

“É verdade. Eu direi qualquer mentira se isso me trouxer lucro.”


“Elas não vão funcionar comigo, no entanto.”
Lawrence percebeu que as orelhas dela se mexeram
orgulhosamente sob o capuz, e ele não pôde deixar de sorrir. “Então,
vamos comprar algumas roupas?”
“Sim.”
Lawrence se perguntou que tipo de roupa combinaria com Holo
e fez o seu melhor para garantir que suas reflexões não fossem
percebidas.

Roupas do tipo que Holo comprara anteriormente — que


custavam uma ou duas moedas de ouro para um único item — eram
basicamente produtos novos.
No entanto, poucos moradores usavam roupas novas.
Depois que uma peça era terminada, ela era usada até que os
buracos começassem a se desgastar e, mesmo assim, era vendida
novamente em segunda mão, consertada e assim por diante. Os
mercadores comprariam roupas usadas originalmente feitas para
mercadores mais ricos, e as roupas usadas desses mercadores medianos
iriam então para os criados. Os servos vendiam suas roupas para
aprendizes de artesãos ou as doavam para monges ascetas viajantes.
Esse ciclo deixava bem claro onde as pessoas se encaixavam na
hierarquia social.
Poder gastar duas moedas de ouro em roupas recém-
confeccionadas era muito impressionante. Até Lawrence tinha apenas
uma peça de roupa sob medida, que havia sido rasgada na confusão com
Holo alguns dias antes.
Ela sabia disso ou não?
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 160 ⊱

Diante de uma loja que vendia produtos usados bem abaixo no


ciclo de roupas, o rosto de Holo evidenciou evidente
descontentamento.
“Huh...” Ela deixou escapar um vago suspiro enquanto segurava
um pedaço marrom que provavelmente tinha sido tingido fervendo-o
com casca de árvore.
Claro, não havia como saber se ele tinha sido manchado tanto que
ficou da cor de todas as manchas que não foram removidas. Era assim
que estava abatido.
“Aquele é quarenta lute. É bastante resistente para o preço, devo
dizer.” O vendedor acenou com a cabeça vagamente e Holo finalmente
colocou de volta na mesa de exposição, dando três passos para trás da
barraca.
Certamente era para declarar sua falta de interesse por qualquer
uma das roupas aqui, mas era tão nobre que Lawrence teve que sorrir.
“Senhor, enquanto estamos indo para o norte, você poderia
escolher alguns itens mais quentes para nós dois? E não muito caro,
por favor.”
“E seu orçamento?”
“Dois trenni.”
“Muito bem, senhor.”
O tipo de roupa que se vendia nesta época do ano não era para o
uso diário, mas para se proteger do frio e pouco diferente de fardos de
palha. A cor e a forma eram secundárias — se a roupa mantivesse sua
forma, fosse o mais grossa possível e não estivesse cheia de insetos, era
ótimo.
Esses itens pesados eram vendidos por viajantes que vinham do
norte e, por sua vez, comprados por pessoas que planejavam voltar.
Quem sabe há quantos anos a peça surrada que Holo segurava
tinha sido carregada de um lado para outro?
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 161 ⊱

Quando se tratava de tais itens, não se comprava por peça, mas


por pilha.
“Para partes superiores e inferiores mais dois cobertores, como
isso soa?”
“Sim... bem, como você pode ver, sou um mercador viajante e
vim aqui a negócios com uma empresa comercial que conheço bem —
a Milone Company.”
À menção de uma das casas de comércio mais proeminentes da
cidade, os ouvidos do lojista se animaram.
“E parece que voltarei aqui várias vezes por ano.”
Isso deixou claro que o cliente do lojista era um mercador viajante
com dinheiro de sobra.
E era ainda melhor se ele planejasse visitá-lo com frequência.
O negócio do fabricante de roupas não era baseado em quanto
lucro ele poderia fazer com uma única peça, mas sim em quantas peças
ele poderia vender, então as palavras de Lawrence colocaram um
sorriso em seu rosto.
“Muito bem, senhor. Eu entendo perfeitamente. Devo adicionar
esta capa, então? Foi tratado com fumaça, é claro. Garanto que ficará
livre de vermes por dois anos.”
O manto surrado estava cheio de remendos, e os cobertores eram
feitos de lã terrivelmente áspera, mas para quem comprava
suprimentos para uma viagem ao norte, eles ainda podiam obter um
preço decente.
Lawrence balançou a cabeça, satisfeito, e estendeu a mão direita.
O negócio foi fechado com um aperto de mão e o lojista começou
a amarrar a trouxa de roupas com barbante.
Lawrence o observou fazer isso, mas olhou para trás quando uma
das peças foi repentinamente arrancada.
Como ele esperava, Holo estava com uma expressão descontente.
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 162 ⊱

“Achei que íamos comprar roupas para mim”, disse ela.


“Isso mesmo... e?” disse Lawrence, como se se perguntasse por
que Holo estava perguntando algo tão óbvio. Quando olhou para ela,
o vigor pareceu sumir de seu rosto.
Ele percebeu que apesar de parecer se importar apenas com a
cauda, Holo estava realmente animada para comprar roupas.
Mas logo depois que a onda de decepção recuou, ela voltou a se
transformar em raiva.
“Você está... dizendo que eu deveria usar isso?”
“Se você quiser lutar contra o frio apenas com esse manto, não me
importo, mas...”
Se ela arrebatou as roupas porque o lojista não havia perguntado a
ela ou se foi por pura raiva, Holo falou em um rosnado baixo. “Se você
está com raiva por eu usar seu dinheiro, diga. Eu sou Holo, a Sábia
Loba. Tenho cérebro e beleza, mas meu olfato também é bom. Eu
torceria meu nariz para usar tal coisa.”
“Talvez passar um pouco de dificuldade conserte seu espírito
enrugado.”
Tossindo com o súbito tapa no peito que recebeu em troca,
Lawrence decidiu não provocar mais Holo.
“Não fique com raiva. Vou explicar o segredo aqui.”
Holo ainda estava mostrando suas presas e rosnando, mas
Lawrence pegou sua mão e falou com o dono da loja, que ainda estava
ocupado amarrando as roupas.
“Senhor, uma palavra, por favor.”
“Hnnnggh... Sim?”
“Você não tem roupas femininas finas?”
“Roupas femininas, você disse?”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 163 ⊱

“Algo que poderia ser usado em uma cidade do norte e que seja
do tamanho dela”, disse ele, referindo-se, é claro, a Holo.
O dono da loja avaliou Holo e olhou para trás, para Lawrence.
Não havia dúvida de que ele estava fazendo os cálculos de custo-
benefício de cabeça.
Isso incluía não apenas o estado do porta-moedas de Lawrence,
mas também o relacionamento de Lawrence e Holo e quanto ele
estimou que Holo seria capaz de fazer Lawrence gastar.
Se ele trouxesse um artigo raro precioso, isso poderia melhorar
seu relacionamento com Lawrence, o que, por sua vez, poderia levar
a lucros incalculáveis no futuro, que era exatamente o que ele
certamente estava tentando estimar. Quanto mais clientes uma loja de
roupas usadas tinha, mais concorrentes ela criava. Ganhar um cliente
em viagem que o visitava com frequência era um grande negócio.
Havia uma razão para ele ter vindo a uma barraca como esta para
comprar as roupas de Holo.
Até uma criança poderia dizer que o manto que Holo vestia era de
muito boa qualidade. Se ele a trouxesse, usando um manto daqueles,
para uma loja de roupas barata usada como esta, era como ficar na
frente de um coelho segurando um cutelo.
A chave para a negociação era ocupar uma posição melhor do que
o seu oponente.
“Muito bem. Um momento por favor.”
Levantando as roupas grosseiramente embrulhadas — um fardo
de feno de cavalo era amarrado com mais cuidado — sobre a mesa de
exibição, ele se virou e cuidou da montanha de mercadorias na parte
de trás da banca.
Para uma barraca como essa, o desafio era transportar
mercadorias daqui para lá, e assim o lojista não hesitaria em comprar
de fontes bastante suspeitas.
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 164 ⊱

Em outras palavras, bens roubados eram comuns e, entre eles,


alguns itens bem escolhidos.
Se o objetivo fosse encontrar pechinchas, não havia lugar melhor
do que uma pequena barraca como esta.
“Que tal algo assim? Um certo comerciante vendeu para mim na
mudança da estação,” disse o lojista, exibindo uma camisa de
colarinho, que junto com uma saia longa, foram tingidas de azul.
Combinado com um avental branco limpo e boa postura,
produziria um conjunto perfeitamente adequado para uma empregada
em uma boa pousada em algum lugar. Sua cor não estava desbotada
nem suas bainhas gastas, então provavelmente foi roubado.
Mas, se o artigo era bom ou não, a questão era: Holo gostaria dele?
Lawrence olhou para Holo, que não parecia impressionada.
“Talvez a senhora não goste.”
“Não tenho tempo para essas cores idiotas.”
Se Holo realmente tivesse nascido em uma casa nobre, ela teria
inspirado rumores de que preferia armaduras a vestidos.
“Eu quero algo mais simples. Algo fácil de colocar.”
Lawrence encontrou os olhos do lojista e sorriu.
Havia algo encantador em uma garota que queria se vestir
rapidamente.
“Nesse caso...” O lojista se virou e voltou a procurar em sua pilha
de roupas.
Quando se tratava de coisas fáceis de vestir, algo que caísse sobre
os ombros como um manto era uma escolha provável.
Então, o que aconteceria nesse sentido que serviria para uma
garota da cidade como Holo?
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 165 ⊱

Lawrence se perguntou sobre isso enquanto observava as costas


do lojista, quando seus olhos pousaram em algo. “Com licença, senhor,
mas o que é isso?”
“Sim?” O lojista olhou por cima do ombro, ambas as mãos
segurando uma capa fina, em seguida, seguiu o dedo apontando de
Lawrence para o alvo.
E aí estava.
Uma capa de couro marrom macio.
“De fato. Agora que pus o olho nisso, você está certo.”
Estava quase todo enterrado embaixo da pilha, mas enquanto o
lojista extraía cuidadosamente a capa, era exatamente o que Lawrence
pensava que poderia ser.
“Esta era uma peça muito fina, uma vez usada por um certo
nobre.”
Lawrence ignorou a explicação imediata do lojista — não havia
como dizer se era verdade ou mentira — e olhou para Holo, que não
parecia desagradada.
“O couro é lindamente curtido, veja, aqui, e as bordas são
cuidadosamente costuradas sem um único rasgo. Observe também
este botão de noz. Você ajusta sobre os ombros assim. Se ela o usar
junto com um dos lenços especiais que o nobre fez para a equipe de
sua casa, ela será uma jovem encantadora.”
Lawrence aceitou a descrição exagerada junto com a capa e o
lenço e, após uma rápida olhada, ele os entregou a Holo.
Holo fungou brevemente. “Coelho, hein?” ela murmurou.
“Isso faz você querer comer coelho?” perguntou Lawrence, ao que
Holo sorriu sem voz e ergueu os olhos.
“Isso vai servir.”
“Você ouviu a senhora. Quanto, meu bom homem?”
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 166 ⊱

“Agradeço pelos seus serviços. Para os dois, hmm, talvez dez


trenni? Não — farei nove.”
Era um preço razoavelmente bom — certamente um
investimento para ter um bom relacionamento com Lawrence.
Mas certamente havia espaço para pechinchar, Lawrence pensou,
e fez uma careta, o que fez o lojista continuar.
“Entendo. Então, como uma exceção para esta adorável jovem,
oito peças.”
Tendo chegado a esse ponto, Lawrence não pôde deixar de sorrir
e estava pronto para comprar — mas pouco antes de abrir a boca, Holo
interrompeu suavemente.
“Nesse caso, por consideração pela minha adorável personalidade
ao colocá-los e modelá-los, que tal sete?”
O lojista congelou como se tivesse esquecido de respirar, mas com
o sorriso de cabeça erguida de Holo, ele voltou aos sentidos e
pigarreou ruidosamente.
Não era difícil imaginar que ele tinha uma filha que parecia ter a
idade de Holo.
“Muito bem. Vou deixá-los ir por sete.”
“Obrigado!” disse Holo, apertando a capa e o lenço contra o peito
e sorrindo, o que provocou outro pigarro alto do lojista.
Ao lado dela, Lawrence só conseguia sorrir tristemente com essa
capacidade de negociação, muito melhor do que o que ele foi capaz de
cultivar em seus sete anos de comércio.

No fim das contas, quando Holo trocou de roupa, ela se tornou


uma garota tão atraente que dez em cada dez pessoas se viravam e
olhavam para ela quando passavam.
Colocando habilmente o lenço sobre a cabeça para esconder as
orelhas — bem na frente do lojista, para desgosto de Lawrence —
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 167 ⊱

Holo desabotoou o manto que vestia e o deixou escorregar, usando-o


na cintura como uma saia. Então ela colocou a capa sobre os ombros e
terminou.
Para Lawrence, que tinha plena consciência de suas orelhas e
cauda não-humanas, parecia que ela trocava de roupa com tanta
facilidade que parecia mágica.
A reputação do lojista cresceu e Holo ficou encantada.
Um bom tempo depois de terem deixado a loja para trás, Holo
finalmente falou.
“As roupas eram muito caras?”
“Na verdade. Elas são muito boas para sete moedas de prata.”
Ele falou honestamente, mas caminhando para a esquerda, Holo
não parecia particularmente orgulhosa.
Balanceando a trouxa de roupas que carregava sobre o ombro
direito, Lawrence sorriu e acrescentou: “Você acha que poderia
barganhar ainda mais com ele?”
Mas Holo não sorriu, em vez disso balançou a cabeça lentamente
antes de responder em voz baixa. “Se fossem roupas para você usar,
você pagaria um décimo disso, não é?”
“Sim,” Lawrence concordou. “Mas eu tinha certeza de que seria
mais do que isso, então não se preocupe.”
Holo acenou com a cabeça ligeiramente, mas sua expressão não
ficou clara.
“Se você for devagar com o vinho na taverna mais tarde, você pode
facilmente ganhar o valor de sete peças de prata.”
“Eu dificilmente bebo tanto.” Ela finalmente sorriu.
“Ainda assim, você conseguiu uma barganha dura.”
“Oh?”
“Nem mesmo o mercador mais astuto pode se comparar, pode?”
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 168 ⊱

“Hmph. Os homens são todos idiotas,” disse Holo com seu sorriso
perverso de costume, continuando assim que Lawrence suspirou
profundamente. “O que você vai fazer com a sua carga? Você está
levando isso direto para a taverna?”
“Isso? Não, eu não vou levar.”
Com isso, Holo fez uma cara perplexa. “Você está voltando para
a pousada, não é?”
“Eu também não vou deixar na pousada.”
“Hrm?”
“Vou vendê-lo para uma loja de roupas diferente. Poderemos
comprar equipamentos para o frio, uma vez que estivermos um pouco
mais ao norte.”
Era uma resposta perfeitamente honesta, mas Holo ficou
perplexa, como se tivesse dito algo verdadeiramente ultrajante. “Você
vai... vender?”
“Sim. Não adianta carregá-los quando não vamos usá-los.”
“Mm... suponho que seja verdade... mas você será capaz de
vendê-los caro?”
“Talvez. Duvido que seja muito ruim, mas provavelmente
teremos uma pequena perda.”
Havia algo engraçado no rosto cada vez mais confuso de Holo.
“Você vai vendê-los... mesmo... com prejuízo?”
“Não entendeu, hein?”
“Espera. Estou pensando.”
Lawrence sorriu para a repentinamente obstinada Holo e olhou
para o céu de outono.
O céu era sempre o mesmo azul claro, mas no momento parecia
de alguma forma mais claro e amplo do que o normal.
“Mmm…”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 169 ⊱

“Devo te contar o truque?” ele disse, voltando seu olhar do céu


familiar e vendo sua companheira resmungando de frustração. “Não é
grande coisa — e no final, é você quem impressiona.”
“Huh…?” disse Holo, levantando uma sobrancelha. Lawrence
interpretou isso como uma deixa e entrou no jogo.
“Este pacote é composto por duas peças de roupa de prata. Então,
digamos que eu o leve a uma loja de roupas diferente e venda pela
metade. Isso é a perda de uma peça de prata.”
“Sim.”
“Mas vamos voltar nosso pensamento para outra coisa. Qualquer
um pode dizer que o manto que você está vestindo é um item de alta
qualidade. Podemos até dizer que alguém usando esse manto nunca
iria a esse tipo de loja. Então, quando eles virem você comigo, eles vão
querer estabelecer um bom relacionamento comigo. Então, o que essa
loja faz?”
Holo respondeu imediatamente. “Venda barato.”
“Certo. Então, o que isso significa?”
O olhar de Holo, a autoproclamada sábia loba, perdeu o foco por
um momento.
Lawrence sorriu e continuou. “Quando comprei o pacote naquela
loja, ele baixou um pouco o preço. Quando comprei as roupas finas
para você, ele baixou um bocado. Ao me mostrar generosidade, ele
espera que eu faça compras lá novamente mais tarde. Afinal, comprei
um pacote de trapos por duas moedas de prata. Mas há uma grande
diferença de preço entre os dois itens. Então, o que isso implica?”
Se Holo fosse realmente tão inteligente, ela logo chegaria à
resposta correta.
Alguns momentos depois, a previsão de Lawrence provou estar
correta.
“Então”, disse ela, “olhando para a diferença entre a perda que
você tem quando vende o pacote e o desconto que o lojista deu a você
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 170 ⊱

porque você o comprou, mesmo se você perder o pacote, ainda sai na


frente no total — é isso?”
Ele deu um tapinha na cabeça dela com a mão esquerda como se
dissesse: “Muito bem!” — ao que ela o bateu com força, e ele gemeu
de dor.
“Hmph. É uma forma indireta de fazer as coisas, direi isso.”
“Isso é chamado de senso de negócios. Mas suas técnicas são muito
mais fortes, não há dúvida.” Lawrence sorriu com autodepreciação, ao
que Holo teve que sorrir.
“Mas é claro. Suas ideias frágeis não são páreo para os meus
esquemas.”
“Caramba, obrigado pela parte que me toca.”
“Oh Ho. Você acha que pode me superar?” Holo estreitou os
olhos, sorrindo sedutoramente.
O sorriso combinava com ela — as mulheres não jogavam limpo.
Claro, a parte mais injusta de tudo era que Holo estava
perfeitamente ciente disso.
“Bem, se você tem tanta confiança, por que não tentar a sorte na
taverna mais tarde?”
Holo acenou com a mão levemente, o que fez as palavras de
Lawrence ficarem presas em sua garganta.
Ele havia se esquecido disso até agora — Weiz também estaria na
taverna.
“Certifique-se de me comprar por um preço alto, certo?” disse
Holo, sobre o qual Lawrence não pôde ficar calado.
“Oh, vou te comprar, tudo bem — mas vou pagar com maçãs.”
Pego de surpresa, os olhos de Holo se arregalaram um pouco e,
em seguida, com um sorriso frustrado, ela se aproximou de Lawrence.
“Você é bastante severo às vezes.”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 171 ⊱

“Entretanto, mais doce quando cozido.”


Holo riu silenciosamente, então muito gentilmente pegou a mão
esquerda de Lawrence, como se fosse frágil. “Muito doce para o meu
paladar.”
“Para o seu?” perguntou Lawrence, apertando a mão dela tanto
quanto podia sem agravar o ferimento.
“Dê uma mordida e veja, se tiver coragem.”
Lawrence encolheu os ombros desamparadamente e olhou para a
extensão do céu acima dele, que era de um azul claro.

— Fim.
O VERMELHO DA MAÇÃ, O AZUL DO CÉU ⊰ 172 ⊱
stranho, ela pensou — o álcool certamente estava fazendo
efeito.
Foi dito que a sábia loba poderia beber um lago inteiro,
mas pensar que ela ficaria assim depois de uma única
xícara deste líquido com cheiro de trigo — E assim que o pensamento
lhe ocorreu, ela estava na metade do segundo, seu rosto ruborizado.
E não apenas a bebida estava tendo um efeito surpreendente, mas
ela também não parecia estar nem um pouco satisfeita com isso. Seu
nariz se contraiu — a bebida não era do seu agrado? Ela não tinha
certeza.
Sua visão oscilou e ela olhou confusa para os muitos pratos na
mesa, as pálpebras pesadas. Bem à sua frente havia um lombo de porco
salpicado de óleo coberto com sal-grosso amassado, mas de alguma
forma ela não tinha apetite nenhum.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 174 ⊱

Não, espere — quanto ela já havia comido? Pensou.


Tendo chegado a este ponto, estava começando a perceber que ela
poderia realmente estar se sentindo muito mal, o que, se fosse
verdade, significava que não poderia continuar assim.
Se esta fosse apenas uma refeição qualquer, tudo bem — ela
poderia ter alegado que se sentiu mal, e seu companheiro teria cuidado
dela até ficar bem.
Mas, no momento, ela e seu companheiro não eram os únicos
sentados à pequena mesa redonda.
A tolice de seu companheiro de viagem os colocou em sérios
apuros, mas, tendo resolvido isso com segurança, eles estavam agora
tendo uma pequena celebração.
E ela certamente não seria responsável por arruinar tal
oportunidade. As comemorações, por mais escassas que fossem, eram
muito importantes.
No entanto, esta não era a única razão pela qual não podia desabar
aqui.
Não, a maior razão certamente poderia ser encontrada diante de
seus próprios olhos, sentada bem à frente.
A pastora desnutrida de cabelos louros.
Bem na frente disso, ela dificilmente poderia se dar ao luxo de
parecer rude.
“Mesmo assim, nunca soube que ovelhas conseguiam encontrar
sal-grosso”, disse seu companheiro, parecendo muito interessado ao
continuar uma conversa sobre pastores.
Enquanto a pastora estava na metade da adolescência, seu
companheiro estava na casa dos vinte. Embora uma sábia loba pudesse
não saber tudo sobre o mundo humano, ela sabia o suficiente para dizer
que enquanto eles conversavam intimamente à mesa, dificilmente
poderiam deixar de parecer um casal.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 175 ⊱

“É porque elas amam o sal por algum motivo. Se você esfregar sal
em uma pedra, elas vão lamber por muito tempo.”
“Oh, então isso é verdade? Certa vez, ouvi falar de uma cidade
distante onde usam ovelhas como aquela como forma de tortura —
muito estranho. Eu não acreditei, honestamente.”
“Eles usam... ovelhas?”
A menina pastora — Norah ou algo assim — tinha os olhos cheios
de curiosidade. Os olhos da garota eram tão gentis e obedientes que só
de olhar para eles a fazia querer devorá-la.
A pastora parecida com uma ovelha estendeu a mão para um
grande pedaço de carne no meio da mesa. Por um tempo, todos os
pratos que eles pediram tinham sido de vaca, porco ou peixe, sem
carneiro.
Talvez isso fosse por consideração à pastora que estava jantando
com eles, mas, de qualquer forma, ninguém a convidou.
E, claro, egoisticamente insistir que ela queria carneiro teria sido
uma marca em sua honra como sábia loba.
Enfim, isso não importa. Era trivial.
O que importava era que sua companheira não tinha notado seu
mau estado e estava ocupada galantemente cortando uma fina fatia de
carne do assado e colocando-a cuidadosamente em um prato para a
pastora.
Irritada, sua mão levou automaticamente a caneca aos lábios,
embora a bebida já tivesse perdido o sabor. Isso só serviu para aquecer
seu peito.
Dentro de sua cabeça, uma loba orgulhosa — seu outro eu —
revirou os olhos para ela.
Mas não havia nada a fazer. Como seu humor e condição estavam
se deteriorando, havia uma detestável pastora bem na sua frente e, para
piorar, ela era exatamente o tipo de menininha mansa e patética de
quem seu companheiro parecia gostar tanto.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 176 ⊱

Era o cúmulo da idiotice masculina preferir garotas tão fracas, mas


ela sabia muito bem que se dissesse isso em voz alta, estaria se fazendo
de idiota.
Ela estava encurralada em um canto.
Travar uma batalha para a qual não era adequada era exaustivo.
“Esqueci qual era o nome da cidade, mas o que eles faziam era
mandar ovelhas lamberem seus pés como uma espécie de tortura.”
“O qu—? Ovelhas iriam —"
Justo quando ela pensou que a dócil pastorinha provavelmente iria
educadamente colocar a fatia de carne entre alguns pães, a garota
mordeu direto.
Mas sua boca era pequena, então foi uma pequena mordida
hesitante, e ela não conseguiu passar por completo.
A menina deveria ter aberto mais a boca e realmente rasgado a
carne, ela queria dizer, mas então ela viu o rosto de seu companheiro
se contrair pateticamente.
Ela guardou isso em sua memória, junto com sua raiva — essa era
aparentemente a maneira correta de agir quando em forma humana.
“Isso mesmo. Eles fazem as ovelhas lamberem seus pés e,
aparentemente, colocam sal neles. Os criminosos riem no início, o que
é ruim o suficiente. Mas, eventualmente, a lambida começa a se tornar
uma agonia...”
Pode ter sido o licor, mas vê-lo exagerar foi delicioso.
Talvez ao longo de suas viagens, ele tenha se acostumado a contar
histórias como esta.
Mas ele nunca disse nada a ela.
Uma dor de cabeça crescente começou a invadir suas têmporas.
“Acho que tive problemas com as ovelhas tentando lamber meus
dedos depois de comer carne seca. Elas são bem comportadas, mas não
têm qualquer restrição, o que é um pouco assustador.”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 177 ⊱

“Imagino que seu fiel cavaleiro seja mais razoável nesse aspecto.”
Suas orelhas de lobo se ergueram, mas seu companheiro
certamente não percebeu.
O “cavaleiro” da pastora — ele se referia a seu irritante cão pastor.
“Você quer dizer Enek? Bem... Enek é Enek, e às vezes ele se
esforça um pouco demais ou é... pouco complacente...,” disse Norah
quando um latido de protesto surgiu de seus pés.
Ele estava recebendo pedaços de pão e restos de carne.
Ela estava bem ciente de que ele estava olhando para ela por baixo
da mesa.
Apesar de ser um mero cachorro, ele entrou em alerta total.
“O que significa que, para manter os cães e as ovelhas na linha,
você deve ser muito habilidosa.”
A pastora arregalou os olhos de surpresa, depois ficou vermelha
— sem dúvida não por causa da bebida.
Sob seu manto, a cauda da sábia loba afofou-se.
Embaixo da mesa, ela podia ouvir o cachorro ofegante como se
estivesse rindo dela.
Sua visão turvou, claramente de raiva.
“A propósito, Srta. Norah, você vai perseguir seu sonho agora?”
O sonho dela.
Ela começou e, pela primeira vez, percebeu que estava ficando
sonolenta.
Talvez toda essa conversa irritante tenha sido um sonho, ela
pensou, mas rapidamente descartou a ideia.
Ela agora se sentia realmente mal.
Não havia mais nada a fazer, exceto tentar de alguma forma chegar
à pousada sem ser detectada.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 178 ⊱

Este era um território inimigo.


Os métodos que ela usaria provavelmente sairiam pela culatra
aqui.
Se ela estragasse a comemoração duramente conquistada dizendo
que se sentia mal, isso seria mais do que o suficiente para arruinar a
noite. E a única culpada por isso era ela.
Mas ela tinha seu próprio território — seu pequeno quarto na
pousada.
Se ela admitisse que se sentia mal lá, isso seria equivalente a uma
caçada bem-sucedida.
Ela pensou nisso como se estivesse escondida em um matagal
enquanto observava um coelho aparecer, totalmente inconsciente de
sua presença.
O que significava que ela não podia se dar ao luxo de se
envergonhar. Com esforço, ela foi pegar um pedaço de carne da mesa,
mas até levantar o braço era incômodo e ela não conseguia alcançar o
prato.
“O quê, já está bêbada?”
Ela não precisava olhar para o rosto dele para conhecer seu sorriso
triste.
Seu corpo pode ter sido afetado, mas suas lindas orelhas ainda
funcionavam perfeitamente.
Ela sabia, sem usar os olhos, exatamente como seu companheiro
de viagem ficava enquanto comia.
Assim, quando o referido companheiro estendeu a mão para pegar
a fatia de carne para ela e a olhou para enquanto ela não agradecia, ela
sabia tudo sobre sua expressão e postura e o odiou por isso.
Ela sabia tão bem que podia facilmente imaginar como parecia
para ele e como ele se sentia por ela.
Mas ela não se importava mais com nada disso.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 179 ⊱

Agora ela queria apenas uma coisa.


“Ei, você não parece tão bem —”
Ela queria se deitar.
“Holo!”
As palavras de seu companheiro de viagem foram a última coisa
que ela ouviu antes que sua memória fosse interrompida.

Quando voltou a si, estava debaixo de uma pilha de cobertores tão


pesados que tornava difícil respirar.
Ela não se lembrava muito de quando ou como ela veio parar aqui.
Havia uma vaga sensação de ser carregada nas costas de alguém.
Por um lado, isso era humilhante, mas ela não podia negar que
havia uma parte dela que se sentia muito agradecida em relação a isso.
Mas provavelmente tinha sido um sonho, então ela o varreu para
um canto de sua mente.
Ela teve sonhos semelhantes antes, afinal.
Se ela confundisse sonhos com realidade e agradecesse por carregá-
la, não havia como dizer o quão feliz isso o faria.
Este era o jeito da sábia loba: a raiva servia para repreensão e risos
para elogios, mas um mostrava fraqueza apenas para enganar os outros
para que baixassem a guarda.
“…”
E, no entanto, ela pensou, virando-se de lado e enrolando-se sob
os cobertores muito pesados.
Ela era uma vergonha.
Ela interrompeu o jantar.
Como alguém que entendia bem a necessidade de comemorar, ela
se sentia envergonhada.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 180 ⊱

E tendo mostrado um comportamento tão patético na frente da


menina pastora, ela ficou ainda mais envergonhada.
Ela nunca poderia recuperar o orgulho da sábia loba.
Embora ela odiasse ser adorada, ela não queria abrir mão de sua
dignidade.
“...Mngh.”
E ainda assim, ela pensou.
Mesmo tendo cometido tal desgraça, ela pensou sobre as outras
vezes em que se envergonhou na frente de seu companheiro de viagem
tolo — isso não parecia nada comparado a isso.
Qualquer um dos ocorridos era mais do que suficiente para
envergonhar o orgulho da sábia loba.
Ela ficou com raiva de descontentamento, riu quando se divertiu
e baixou a guarda há muito tempo.
Tendo acabado de conhecê-lo, ela se sentiu como se eles
estivessem viajando por muito tempo e, ao pensar em cada pedacinho,
eles acabaram sendo um grande fracasso, e seu peito doeu com isso.
Há muito tempo ela cometeu erros aqui ou ali, é claro, mas
nenhum deles a magoou tanto.
Mas essa jornada de repente parecia isso.
“…Por que deveria ser, eu me pergunto?” ela murmurou.
Ela se perguntou se era por causa dos séculos que passou nos
campos de trigo. Dia após dia passaria sem que acontecesse nada,
nenhuma diferença entre um dia e o seguinte, entre amanhã ou depois.
As únicas coisas que a lembravam da passagem do tempo eram os
festivais anuais — o festival da colheita, o festival da semeadura, os
festivais de oração pela proteção da geada e do vento.
Quando ela realmente pensou sobre isso, talvez houvesse apenas
vinte dias no ano que fossem diferentes dos outros.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 181 ⊱

Assim aconteceu que seu senso de tempo foi denominado não em


dias, mas em meses e estações. Outros dias foram todos agrupados
como “não dias de festival”.
Mas agora cada dia era tão fresco, era como renascer diariamente.
Em comparação com sua vida anterior, onde se ela não tomasse
cuidado, uma muda cresceria e se tornaria uma árvore enorme em um
piscar de olhos, o tempo que ela passou com o jovem comerciante
parecia valer a pena muitos anos de experiência.
Mesmo em um único dia, a manhã e a noite eram totalmente
diferentes. Eles podem ter uma grande briga pela manhã, fazer as pazes
ao meio-dia e provocar uns aos outros por deixarem no rosto as
migalhas de pão do almoço, ter outra briga por causa do jantar e,
então, na hora de dormir, falar baixinho sobre o dia que se aproxima.
Ela se perguntou se já havia passado por um período tão
vertiginosamente cheio de mudanças antes.
Eu tenho, a resposta voltou para ela.
Ela já havia viajado e vivido com pessoas muitas vezes antes. Eram
memórias que ela nunca perderia.
Mas, embora ela pudesse ter tido tempo para pensar nessas coisas
nos dias em que tudo que tinha que fazer nos campos de trigo era
pentear a própria cauda, ela agora não tinha esse luxo.
Estava ocupada demais pensando em outras coisas: o que seu
companheiro fez ontem? E esta manhã? E o que ele estava planejando
agora bem diante de seus olhos?
Quando seu companheiro a conheceu, ela estava pensando em sua
terra natal e chorando pateticamente.
Como ela estava acostumada a dias com tempo livre o suficiente
para contar os pelos da cauda duas ou três vezes, ela não conseguia
chorar agora que todos os dias eram cheios de estímulos.
Se ela dissesse que não era divertido, seria uma mentira.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 182 ⊱

Não — era muito divertido e isso a preocupava.


“…”
Ela rolou para o lado, então suspirou por ter finalmente
encontrado uma posição confortável.
Tendo se dado ao trabalho de assumir a forma humana, ela tentava
dormir no estilo humano, mas não importa o que fizesse, esta era a
única posição em que poderia relaxar.
De cara para baixo — ou melhor ainda, enrolada em uma bola.
Seu companheiro se esticava como um gato tolo, dormindo de
cara para cima com as expressões mais ridículas no rosto, mas
ultimamente ela tinha que admitir que era necessária tal insensibilidade
para sobreviver no mundo humano.
Ela não tinha dúvidas de que os humanos tinham uma vida
extremamente curta — eles tinham sorte se chegassem aos setenta —
porque estavam muito ocupados todos os dias.
Basta olhar para as árvores, ela pensou.
Elas viveram tanto porque estavam longe de distinguir o hoje do
amanhã, mal sabiam a diferença entre o próximo ano e o seguinte.
E quando o pensamento lhe ocorreu, ela havia se esquecido do que
estava pensando mais cedo.
“…Hmph. Aquela pastora, eh...” Finalmente voltou ao início.
Em todo caso, ela se fez de trouxa.
Mas agora estavam na estalagem e ninguém os interromperia.
Então talvez fosse a hora de incomodar seu companheiro
insensível — talvez fosse a hora dele atender alguns de seus caprichos.
Afinal, durante o jantar da noite anterior, ele deu toda a atenção
à pastora e mal olhou para ela.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 183 ⊱

Foi graças à sua natureza de sábia loba que ela suportou tal
provação. Aquela maldita pastora! Aquele corpo esguio! Aquele
maldito cabelo loiro!
Enquanto pensava sobre tais coisas, ela sentiu suas pálpebras
ficando pesadas novamente, o que a frustrou.
Afinal, onde ele estava?
Enquanto ela estava sentindo uma enorme raiva ao pensar sobre o
macho imprestável estar ausente quando mais precisava dele — ou
talvez ela estivesse sendo irracional — seus ouvidos captaram o som
de passos.
“…!”
Ela se levantou em um salto.
Então, imediatamente notando algo parecido com o movimento
de um cachorro, ela sentiu vergonha e irritação e se jogou de volta na
cama.
Essas ações superficiais não combinavam com a dignidade de uma
sábia loba.
E, no entanto, uma humilhação era uma humilhação.
Não apenas porque estava considerando chegar em tais esquemas
com ele, mas pior — ela já estava fazendo isso inconscientemente.
Houve uma batida na porta.
Ela não respondeu e desviou o olhar.
Após um breve silêncio, a porta foi finalmente aberta.
Como ela sempre dormia com a cabeça embaixo do cobertor, se
estivesse fora, ela normalmente estava acordada.
Seu companheiro parecia saber disso; ele suspirou, entrou e
fechou a porta.
E ainda assim ele não estava olhando para ela; suas costas
permaneceram viradas.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 184 ⊱

Se ele gostava tanto de garotas fracas, dificilmente poderia deixar


de se encantar por ela ter desmaiado. Ela começou a ver uma chance
de vitória.
Seu companheiro estava ao lado da cama.
Agora, para a caça! Ela pensou consigo mesma, e cheia de
expectativa, ela rolou para encará-lo — muito, muito fracamente.
A isso ela acrescentou um alegre “... Nn...”
Mesmo ela não sabia o que falar — provavelmente algo que
pensou que ajudaria no desempenho patético.
Mas pensando nisso mais tarde, ele deve ter ficado surpreso.
Afinal, quando olhou para ele, seu companheiro não parecia
preocupado — seu rosto estava tenso de raiva.
“Por que você não me disse que não estava se sentindo bem?” foi
a primeira coisa que ele disse.
“...” Ela ficou tão surpresa que não obteve resposta.
Nunca tinha sonhado que ele ficaria zangado com ela, dentre todas
as possibilidades.
“Você não é uma criança. Suponho que não vai alegar que não
percebeu o quão mal você se sentiu até cair, não é?”
Esta foi a primeira vez que ela viu este lado de seu companheiro:
sério e com raiva.
Embora ele tivesse uma pequena fração de sua idade, sua sabedoria
e força eram escassas em comparação com as dela como uma sábia loba
— seu rosto ainda era assustador.
As palavras não vinham.
Embora seus dias tivessem sido tão numerosos quanto grãos de
areia em uma praia, ela podia contar as vezes que alguém ousara ficar
com raiva dela.
“Não me diga que a carne e o vinho eram tão importantes —”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 185 ⊱

“O qu—!”
Ela admitiu que foi parcialmente seu orgulho que a manteve
calada.
Mas isso era apenas meia verdade.
Ela nunca esconderia se sentir mal apenas para ser servida com
mais comida.
Embora ela possa ter odiado, foi chamada de deusa por muito
tempo. Ela sabia bem a importância da comemoração. Nunca tentaria
mudar ou destruir isso.
Que ele a acusasse de tal lógica impensada —
“…Eu sinto muito. Isso foi errado da minha parte,” seu
companheiro disse, voltando a si. Ele suspirou profundamente e se
afastou.
Foi então que ela percebeu que estava expondo suas presas. “Eu
nunca —”
Eu nunca teria pensado em fazer isso, ela pensou, mas não disse.
Sua garganta estava seca, mas mais do que isso, seu companheiro
voltar a olhar para ela foi mais do que suficiente para fazê-la fechar a
boca.
“Eu estava muito preocupado. O que você teria feito se
estivéssemos viajando?”
Foi aqui que ela finalmente entendeu por que ele estava tão
zangado.
Ele era um mercador viajante.
Se ele adoecesse na estrada, não teria camaradas por perto para
ajudar.
Muito pelo contrário — sofrer sozinho no deserto era o resultado
mais provável.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 186 ⊱

Ela pensou na comida escassa que comeu durante uma viagem, nas
dificuldades que enfrentavam acampando.
O colapso em tais circunstâncias era, sem exagero, uma ameaça à
vida.
Ele era diferente dela — ela que reclamava da solidão, mas
sempre morou com alguém por perto.
“... eu sinto muito,” ela disse em uma voz baixa e desolada, e não
era uma atuação.
Seu companheiro era tão infinitamente compassivo que devia estar
realmente preocupado com ela.
O fato de ter ignorado isso e pensado apenas em si mesma era
profundamente embaraçoso.
Ela puxou a cabeça, incapaz de olhar para o rosto dele.
“Não... está tudo bem, contanto que você esteja bem. Você não...
pegou um resfriado ou ficou doente... não é?”
Com essas palavras, ela se sentiu feliz e triste.
Seu pedido foi um pouco tímido. O motivo dessa timidez era
óbvio.
Ele era um humano e ela uma sábia loba.
Ela estava além de sua compreensão em alguns aspectos — este
era um deles.
“Eu só estava... um pouco cansada.”
“Foi o que pensei. Acho que saberia dizer se você estivesse
doente.”
Ela sabia que era uma meia verdade.
Mas não havia razão para apontar isso, e seria ainda mais inútil ficar
com raiva.
“Eu só queria saber se talvez...”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 187 ⊱

“?” Ele hesitou em terminar, e ela o olhou interrogativamente.


Ele continuou se desculpando. “...Se talvez você tivesse comido
uma cebola ou algo assim.”
Seus olhos se arregalaram, mas não de raiva.
Na verdade, era bastante divertido.
“Eu não... não sou um cachorro, sabe.”
“Eu sei. Você é uma sábia loba.” Seu companheiro finalmente
sorriu, e ela percebeu que também sorria pela primeira vez em muito
tempo.
“Eu sinto que foi um desperdício de vinho e comida, no entanto.”
Diante disso, a expressão de seu companheiro sugeria que ele
concordava. “Você não precisa se preocupar com isso — eu sou um
mercador, afinal. Eu trouxe as sobras de comida embaladas para nós.”
Novamente, suas presas estavam à mostra.
Mas isso foi porque seus lábios se curvaram em um sorriso.
“—Ou, pelo menos, é o que eu gostaria de poder dizer.” O sorriso
de seu companheiro desapareceu e ele estendeu a mão.
Não era exatamente difícil, mas também não era uma vida fácil.
As mãos dele eram claramente diferentes das suas, e a mão que a
envolvia era tão áspera quanto a pata de um lobo.
Os dedos dele afastaram cuidadosamente a franja dela e sentiram
sua testa.
Ela ficou muito inquieta com a sensação da mão dele em seu rosto.
Se ele acariciasse o rosto dela com o nariz teria sido algo mais
familiar.
Ela não deixou esse sentimento transparecer em seu rosto, e seu
companheiro certamente não percebeu.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 188 ⊱

Ele apenas sentiu sua testa, como se fosse a coisa mais natural do
mundo. “Ah, é exatamente como eu pensava. Você está com febre.
Deve estar realmente exausta.”
“É porque você é um idiota que... e eu tive que trabalhar tanto”,
disse ela amargamente, Seu dedo áspero cutucou seu nariz com a
resposta.
“Você tem que controlar essa revolta.” Ele estava com um sorriso
cansado, mas suas palavras eram totalmente sérias, ela conseguia notar.
Estava tão envergonhada que não conseguia continuar olhando
para ele.
Virando a cabeça para o lado como se quisesse escapar de uma
cutucada no nariz, ela olhou para fora dos cobertores com apenas um
olho.
“Honestamente, foi uma vergonha passar por isso na frente de
Norah.”
Isso porque o banquete foi desperdiçado, pensou Holo consigo mesma,
enrolando-se.
Ele certamente estava distraído o suficiente por causa dela.
Mesmo que já não se sentisse mal, ouvir esse tipo de coisa era o
suficiente para fazê-la mentir.
Ela lançou um olhar ferido, que foi retribuído por um olhar
espantado.
“De qualquer forma, vou buscar uma comida mais adequada para
você, então certifique-se de descansar e recuperar suas forças, certo?
Então, você pode comer tanta comida e vinho quanto quiser.”
Suas orelhas empinaram com a promessa de “tanto... quanto você
quiser”, mas mais do que isso, seu peito doeu com a ideia de alguma
comida adequada.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 189 ⊱

Mesmo antes das centenas de anos que ela havia permanecido na


aldeia, ela sempre ouvia que, quando as pessoas ficavam doentes, elas
recebiam uma comida mais luxuosa para compensar.
Quando os lobos adoeciam, eles simplesmente não comiam, é
claro, mas os humanos tiveram a ideia oposta.
Ela simplesmente teria que fingir estar doente.
Porque mais do que qualquer outra coisa, ela poderia finalmente
desviar o olhar dele da pastora.
Ela não o deixaria escapar.
“Quando você é tão gentil, temo o que vai acontecer a seguir.” Ela
escolheu as palavras mais irônicas e carregadas de rebeldia que podia.
Uma sábia loba poderia desmaiar de exaustão e ser incapaz de se
mover, mas sua mente ainda tinha que estar afiada.
Seu companheiro sorriu. “Essa fala é minha”, disse ele.
O dedo dele tocou sua bochecha, pela qual ela realmente se sentiu
ligeiramente febril, e ela fechou os olhos.

Na manhã seguinte, ela abriu os olhos sob os cobertores e ouviu


com atenção.
Não ouviu nenhum ronco idiota. Parecia que seu companheiro
não estava na sala.
Ela consultou seu corpo. Agora estava apenas cansada e, embora
carneiro cru ainda estivesse fora de questão, algo cozido e levemente
salgado estaria bom.
Tendo recebido ordens para descansar na noite anterior, ela teve
a tal comida adequada adiada.
Ser capaz de comer coisas deliciosas só porque não se sentia bem
era algo improvável.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 190 ⊱

Embora ela tivesse que suspirar por estar tão fraca a ponto de ter
febre depois de menos de um mês de viagem e essa pequena crise, ela
também teve que admitir que esse tratamento não era ruim.
Afinal, foi graças a essa fraqueza que ela foi capaz de ficar assim
com seu companheiro.
“Completamente idiota.”
Essas palavras foram claramente dirigidas a ela mesma, e se mexeu
debaixo dos cobertores antes de colocar a cabeça para fora.
Tendo se acostumado a acordar ao ar livre com a paisagem se
espalhando por toda parte, ela descobriu que dormir nesta pequena
caixa não era particularmente agradável.
Até a carroceria, apertada e fria, era preferível.
Era muito melhor acordar sob o grande céu, engolir grandes
lufadas de ar fresco sem fim e ficar apenas os dois, ali na paisagem. Ela
poderia aceitar um telhado, mas apenas se fosse dentro do oco de
alguma grande árvore.
Ela virou a cabeça de lado enquanto pensava nessas coisas.
Não havia sinal de ninguém na cama ao lado, e uma fungada com
seu nariz disse a ela que o cheiro de seu companheiro era muito fraco.
Certamente ele não tinha ido à igreja orar para que ela voltasse à
saúde.
A ideia era absurda, mas seria uma piada boa.
Ela sorriu para si mesma com a ideia, mas como não havia mais
ninguém lá, o sorriso rapidamente desapareceu.
Sua respiração saiu branca pelo ar frio, e ela abraçou o travesseiro
recheado com palha de trigo.
Aquele idiota de coração mole não tinha nenhum bom senso, na
verdade.
“Que idiota...”, ela murmurou, então tentou se sentar, mas
encontrou os cobertores surpreendentemente pesados.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 191 ⊱

Quantos anos se passaram desde que ela teve um último colapso


na forma humana?
Ela tinha certeza de que era impossível ficar tão fraca em apenas
uma noite, mas finalmente admitiu.
“Hmph.”
Ela queria passar algum tempo cuidando da cauda, mas desistiu de
tentar se sentar.
O que significava — precisava de comida. E ela estava com sede.
Quase não tinha comido na noite anterior.
Para onde foi seu companheiro e o que ele estava fazendo?
Em Yoitsu, cuidar da saúde de alguém significava ficar perto dele.
Era imperdoável que não estivesse ao lado dela quando acordou,
ela manteve sua raiva — mas então ouviu passos.
Em vez de tentar se sentar, ela aguçou os ouvidos.
Era muito frustrante, e ela abraçou o travesseiro novamente.
Por um momento, ficou feliz por seu companheiro não estar lá.
“Você está acordada?” ele perguntou depois de dar uma batida
hesitante na porta e abri-la.
Se ela estivesse dormindo, não seria capaz de responder, assim
como se estivesse acordada, era uma pergunta sem sentido, pensou.
“Você não pode dizer olhando?” ela perguntou de volta.
“Como você está se sentindo?”
“Eu não posso sentar.”
Isso não era uma mentira, mas ela ainda tentou dizer o mais
casualmente possível.
Para duplicar o blefe, era preciso falar a verdade.
Enquanto sua boca falava a mentira, seu rosto denunciava
preocupação.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 192 ⊱

Ela olhou para a bolsa de couro que ele carregava, depois de volta
para ele com a mesma cara patética.
Se ele ia ser tão charmoso, a posição dela não era boa.
“Na verdade... você parece uma princesa a ser protegida.”
Evidentemente, ela parecia mal o suficiente para brincar sobre
isso, mas como ela não tinha comido, isso era de se esperar.
“Mesmo assim, estou com fome.”
“Ha-ha. Isso é um alívio.” Seu companheiro sorriu. “Bem, então,”
ele continuou, “devo pedir um pouco de mingau?”
“Estou com sede. Isso é água aí?” ela perguntou, olhando para a
bolsa de couro que seu companheiro carregava. Não era muito grande
e não cheirava particularmente a uvas.
“Ah, não — você teve febre ontem, então eu trouxe um pouco de
vinho de maçã.”
Ela não conseguia ficar na cama com a menção de maçãs.
Quando ela tentou se sentar, no entanto, se lembrou do peso dos
cobertores.
“Ah, você está bem?”
“Mmph...” Uma vez que ela foi capaz de mover facilmente uma
árvore gigante derrubada por um raio para libertar um camarada preso
sob ela, e agora ela estava reduzida a ser resgatada debaixo de um
cobertor.
Embora preocupado, seu companheiro alegremente lhe
emprestou a mão.
“Sinto muito”, disse. Com ajuda, ela finalmente conseguiu se
livrar dos cobertores e se sentar.
Ele também a ajudou a se sentar em um travesseiro para que sua
cauda não ficasse no caminho.
A forma humana era tão fraca.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 193 ⊱

Mas era exatamente por isso que valia a pena.


“Se você fosse apenas um pouquinho agradável normalmente,”
disse seu companheiro perversamente. Ao lado da cama havia uma
prateleira com um suporte para velas. Em vez de uma vela, ele colocou
uma xícara ali e a encheu com vinho de maçã.
“Ah, mas quando eu durmo agradavelmente na carroceria, você
fica com raiva.”
“Bem, não é injusto que eu seja o único acordado?” Ele entregou
a pequena xícara, que ela aceitou com as duas mãos.
“Além disso, se eu fosse muito agradável, você comeria a maior
parte da comida na hora das refeições.”
“Obviamente — eu sou maior.”
Com essas palavras, ela sorriu. “Eu apenas terei que desenvolver
minha implicância para corresponder.”
O rosto de seu companheiro se contraiu de desgosto, mas ele
parecia não ter uma boa resposta. Ele coçou a cabeça, irritado.
Não era nada tão cerimonioso quanto respeito ou admiração —
ainda mais porque ele estava olhando para ela ao nível dos olhos, com
um rosto que dizia que estava determinado a vencer da próxima vez.
Era extremamente confortável.
Não apenas isso — o fato de que ele estava realmente tentando
vencê-la a deixava insuportavelmente feliz.
Depressa, me abrace! Se ela dissesse isso, ela não tinha dúvidas de
que ele ficaria vermelho e nervoso.
Ela sorriu ao pensar nisso, levando a xícara aos lábios para
esconder o sorriso.
No entanto, não foi isso que apagou seu sorriso.
“Guh, hein?”
Ela tirou o copo da boca e olhou seu conteúdo com desconfiança.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 194 ⊱

Dentro dele estava um líquido âmbar claro.


“O que está errado?” seu companheiro perguntou a ela.
“Ugh... o sabor, é...”, disse ela, esfregando o nariz e se
perguntando se ele havia parado de funcionar.
Ela cheirou novamente e detectou muito pouco cheiro de maçã e
pouco álcool.
Ela estava repentinamente insegura.
Suas orelhas e nariz eram ainda mais importantes para ela do que
seus olhos.
“Oh, eu diluí,” disse seu companheiro rapidamente. Embora isso
tenha sido um alívio, em um piscar de olhos esse alívio foi substituído
por uma irritação crescente.
“Sim, e muito. Achei que meu nariz tinha ficado inútil!”
“Você estava com febre, não é? Portanto, vinho de maçã diluído.”
Ele disse isso como se fosse a coisa mais óbvia do mundo, mas ela
não entendeu.
“Oh, certo. Você não sabe sobre isso?”
“Eu sou uma sábia loba — eu sei o suficiente sobre o mundo para
saber que existem coisas que eu não sei.”
“Existe um campo chamado 'medicina' que foi construído a partir
do conhecimento acumulado pelas pessoas ao longo dos anos. Quando
você desmaiou, fui à casa de comércio e felizmente pude olhar a
tradução de um livro sobre o assunto.”
A palavra remédio não era familiar para ela.
Quando as pessoas em sua antiga vila estavam doentes, eles
ferviam grama na água e bebiam, e quando feridos, eles aplicavam a
grama em suas feridas, mas fora isso, tudo o que podiam fazer era rezar
para que deuses inventados os ajudassem.
Mas ela estava interessada no desconhecido.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 195 ⊱

Ela cheirou a xícara novamente. “E do que se trata?” ela


perguntou.
“Bem, existem quatro líquidos no corpo e quatro
temperamentos.”
“Oh?”
“Os quatro líquidos são sangue, bile amarela, bile negra e catarro”,
explicou ele com orgulho, contando-os nos dedos, mas ela não
acreditou em uma palavra.
Ainda assim, ela ficou quieta e ouviu.
“A doença acontece quando esses líquidos perdem o equilíbrio —
quando você está cansado ou respira ar ruim ou às vezes quando os
movimentos das estrelas os influenciam.”
“Hmm. Sim, eu entendo isso.” Ela sorriu fracamente. “Quando a
lua cheia aparece e meu corpo formiga e lateja.” Ela ergueu o queixo e
olhou para seu companheiro, que poderia facilmente dizer que estava
repentinamente perturbado.
Meu Deus, mas ele era tão ingênuo para um homem.
“A-ah, sim, bem, tem isso também. Assim como as marés. Então,
quando os líquidos se tornam desequilibrados, você precisa
reequilibrá-los sangrando e coisas semelhantes.”
“...Os humanos umas ideias muito estranhas.”
“Se você tem uma bolha ou furúnculo, você fura, não é?”
“O qu—!” Ela olhou para seu companheiro, chocada.
Ele sorriu, ao que ela amaldiçoou.
“Os humanos fazem isso, e isso os cura. Parece bom, não é?”
Ela se afastou, ignorando sua discussão sobre esses métodos
selvagens.
“Essa é uma forma de restaurar o equilíbrio, mas deve ser realizada
por um médico. Mas se eles vissem suas orelhas e cauda, quem sabe
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 196 ⊱

que doença maluca eles pensariam que você tem, e que confusão isso
causaria. Portanto, não podemos ver um médico. Teremos apenas que
curá-la de outra maneira — usando os quatro temperamentos.”
Ela ergueu as orelhas e olhou para ele com um olho. “E com isso
você quer dizer alegria, raiva, tristeza, prazer — todas as emoções,
certo?”
“Perto, mas não exatamente. O corpo humano tem quatro
temperamentos: quente, frio, seco e úmido.”
Tomando um gole do vinho de maçã quase sem sabor, ela
examinou a palma da mão.
O que ele estava dizendo era tão óbvio, ela não pôde deixar de se
perguntar se estava sendo ridicularizada.
“Além disso, você pode afetar esses estados com o que come —
porque existem alimentos quentes, alimentos frios, alimentos secos e
alimentos úmidos. Já que você estava com calor, algo frio — como
uma maçã — certo.”
Ou alguém poderia simplesmente dizer que os humanos eram
muito bons em atribuir significados às coisas.
Isso era algo que ela poderia afirmar, tendo assistido a tantas vidas
humanas ao longo dos tempos.
Ela tinha que admitir que estava impressionada em como eles
podiam imaginar todos os tipos de coisas interessantes, pulando de
uma para a outra.
“Bem, se for esse o caso, eu teria preferido uma simples maçã
crua.”
“Não, isso não é bom. Maçãs são frias, mas medicinalmente
falando, também estão secas. Pessoas que estão se sentindo mal já estão
cansadas, então você tem que reverter isso. E para isso, você precisa
de uma bebida.”
Então foi por isso que ela recebeu esta água colorida desagradável.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 197 ⊱

Quer o companheiro dela tivesse acabado de saber disso ou tivesse


confiado nisso por muito tempo, ele estava explicando com tanto
orgulho que tentar dizer a ele que tudo era sem sentido seria maldade.
Embora os humanos fossem todos de uma espécie, diferentes nações
tinham maneiras totalmente diferentes de fazer as coisas — isso ela
sabia.
Então ela teve que admitir que não era surpreendente que quando
se tratava de humanos e lobos, as coisas que acreditavam seriam tão
diferentes — então ela cedeu.
“E então você planeja me fazer comer mais alguma coisa?”
“Sim, porque você desmaiou de exaustão. Como você estava com
febre e cansaço acumulado, primeiro teremos que resfriá-la. Em
seguida, seu corpo está muito seco, por isso precisamos repor sua
umidade. Quando você corre, fica com sede, certo? Mas umedecer o
corpo também o esfria, e se você ficar muito fria, ficará melancólica,
então devemos aquecê-la. Então…”
Enquanto ele continuava alegremente, ela suspirou uma vez,
superficialmente, ansiosa para fingir paciência.
Mas, ouvindo seu companheiro continuar, ela percebeu que
deveria apressá-lo.
“Então, sim. Vamos pegar um mingau feito com grãos e leite de
ovelha, adicionar algumas maçãs fatiadas e cobrir com queijo. Agora,
primeiro as maçãs —"
“Sim, isso vai servir. Eu gostaria de comer isso. Temo desmaiar
de novo se não o fizer. Você quer ver? Veja como estou pálida.
Depressa — vá e traga logo!”
Ela mal podia impedir seu estômago de roncar com a perspectiva
de um mingau tão delicioso.
Mesmo agora, uma gota de baba ameaçava escorrer do canto de
sua boca.
“...Você está perfeitamente bem, não é?”
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 198 ⊱

“Ooh, estou tão tonta...”


A tontura nunca chegaria em um momento tão conveniente, mas
seu companheiro era muito compassivo para não se estender e segurá-
la quando ela cambaleou e ameaçou deixar cair a xícara.
Ela se aninhou em seu braço, então ergueu os olhos com ar
provocante.
“Apresse-se e vá buscá-lo, tudo bem?”
Talvez seu rosto estivesse um pouco perto demais; seu
companheiro ficou instantaneamente vermelho.
Era difícil dizer quem era realmente o doente.
No entanto, ela estava começando a se perguntar se o estranho
costume humano de deixar o sangue sair do corpo não era algo bastante
sábio.
“Honestamente... bem, você terminou o vinho de maçã?”
“Mm, sim, bem, acho que já basta,” disse ela, pegando a xícara
novamente e tomando um gole.
Afinal, seu companheiro se dera ao trabalho de prepará-lo para
ela.
Ela se sentiria mal se tivesse recusado a bebida simplesmente
porque tinha um gosto ruim.
“E faça uma grande porção de mingau”, disse ela, ao que seu
companheiro parecia não ter nada a retrucar.

Ela honestamente não sabia quanto tempo estava esperando.


Em todo caso, ele não voltou imediatamente, e assim que ela se
aconchegou sob os cobertores, adormeceu. Acordou apenas porque
seu nariz estava fazendo cócegas com um cheiro tentador o suficiente
para despertá-la.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 199 ⊱
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 200 ⊱

No entanto, ela não se sentia bem — não por causa de sua


condição física, mas sim porque teve um pesadelo.
Era de sua terra natal. E dos campos de trigo.
O sonho deixou saudades de casa, sim, mas também uma repulsa
terrível.
Era sobre uma época em que, como um ser que estava acima de
muitos outros, ela tinha que assumir a responsabilidade por eles.
O mundo era a floresta e, se o solo não fosse forte, as árvores não
cresceriam. Portanto, a Sábia Loba de Yoitsu tinha que ser seu alicerce,
forte e verdadeiro. Se ela abandonasse esse dever, a floresta murcharia
rapidamente.
Não foi um favor pedido a ela; era simplesmente uma
responsabilidade que alguém tinha de assumir.
Então ela percebeu que ao redor de seu pescoço havia uma
corrente pesada, muito pesada.
Ela não tinha certeza desde quando estava lá — talvez desde seu
nascimento.
Ela era diferente dos demais.
Mesmo se ela assumisse a forma humana, eles sempre saberiam
que era diferente — grotesca.
Ela era confiada por sua força, temida por seu tamanho, apreciada
por sua utilidade.
Ela e sua espécie achavam natural servir nessa posição, e foi o que
fizeram.
Todos tinham a mesma opinião de que havia mérito para eles ao
fazê-lo.
Mas os adoradores exigiam majestade de seus deuses, além de
favor. Se os objetos de sua adoração eram escassos, afinal, como eles
poderiam esperar que aqueles deuses fossem capazes de conceder
bênçãos?
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 201 ⊱

Embora ela nunca tivesse pedido para ser adorada, foi incapaz de
abandonar esses adoradores e, portanto, ficou presa.
Sem ninguém para adorar, eles desapareceriam com as estações,
perdidos para o medo, a loucura e a crueldade.
Ela sabia que era uma tolice, mas não importava o quanto sofresse,
não poderia abandoná-los.
Ela nunca pediu por isso e nunca perguntaram se queria, e assim
— séculos se passaram.
Algo cheirava muito bem; ela estava acostumada a cheirar comidas
saborosas.
Mas enquanto seu nariz se torcia com isso, ela sabia que nunca
teria um sorriso de boas-vindas.
Nem mesmo de alguém atrevido que não conhecia seu lugar.
“Você pode se sentar?”
Seu corpo estava se recuperando gradualmente e agora ela tinha
pouca dificuldade em rastejar para fora dos cobertores.
Mesmo assim, ela balançou a cabeça, os olhos ainda pesados de
sonolência.
A prisão estava no passado.
Ela foi capaz de tornar seu sonho de longa data em realidade.
Para dançar e brincar como um filhote. Para ser egoísta, ser
impotente.
E para ser protegida por alguém.
“Honestamente — se eu ficar doente, espero que você retribua o
favor.”
Tendo acabado de acordar e ainda quase exausta, ela deve ter
parecido um gato arrastado de seu local favorito para dormir.
Era constrangedor, mas depois de fazer isso uma vez, ela não
conseguia parar.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 202 ⊱

“Sim, contanto que você não se importe com o tratamento no


estilo dos lobos de Yoitsu.” Ela sorriu para esconder sua autocensura.
Em todo caso, o rosto de seu companheiro estremeceu, mas ela
tinha certeza de que se ele perguntasse sobre o tratamento, ficaria
muito feliz com a resposta.
Envolvia muitas lambidas e abraços.
No entanto, ela não teve a gentileza de contar sem ser perguntada.
“Ah, está bem. Meu nariz é muito aguçado — saberei muito antes
de você ficar tão mal e farei algo a respeito.”
Depois de dizer isso, ela pensou em acrescentar algo sobre não
conversar alegremente com alguma outra mulher enquanto não o
notava até que ele desmaiasse, mas decidiu que era melhor não.
Feliz — sim, ele parecia muito feliz, mas seu companheiro sabia
qual era o seu trabalho.
E, naquele momento, conversar com a garota tinha sido seu
trabalho.
Então ele falou, e ela acreditou.
“Mesmo assim, sinto muito não ter percebido. Mas eu gostaria que
você tivesse dito algo. Em todo caso, sim — eu sou um pouco
estúpido”, disse seu companheiro, encolhendo os ombros.
“Você certamente é. Posso ter uma doença muito mais séria e,
sem dúvida, você ainda não notaria.”
“Huh?” Ele a olhou interrogativamente, mas ela não quis explicar.
Ele era muito estúpido para fazer as conexões.
Ela estava apaixonada.
Mas ela sabia que demoraria muito até que ele percebesse.
“Não é nada. Esquece. Agora comida!” disse ela, ao que seu
companheiro franziu o cenho infantilmente.
Os humanos julgavam as coisas com base em suas aparências.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 203 ⊱

Ser derrotado por alguém que parecia ser uma jovem humana era
frustrante.
Era uma emoção complicada, mas não desconfortável.
Mesmo no livro das escrituras que circulou pelo mundo, havia a
história satírica de Deus vestindo trapos e caminhando pelas estradas,
perdendo assim todo o sentido de formalidade e cerimônia.
“Você está uma princesa e tanto esta manhã”, ele resmungou, mas
mesmo assim removeu a tampa da panela de mingau e pegou um prato.
Nenhum cavaleiro falaria tão rudemente com uma princesa.
Ela sorriu. “Você poderia gentilmente me alimentar com uma
colher?” ela perguntou como forma de caçoar dele.
Seu companheiro congelou, chocado — um rosto muito patético
para ser adequado a um cavaleiro.
“'Teria sido melhor se tivesse mais maçãs.”
“Provavelmente. Maçãs frias aumentam a melancolia.”
“Você está... mph... você está dizendo que sou muito alegre?” ela
falou enquanto ele levava uma colher até sua boca.
Ela comeu o equivalente a duas tigelas.
As primeiras colheradas, provavelmente graças ao seu
constrangimento, foram um pouco vacilantes e desleixadas, mas ou ele
ficou sério ou se acostumou com isso, e ela foi capaz de aproveitar a
última parte da refeição com tranquilidade.
Ser capaz de comer apenas abrindo a boca a fazia se sentir como
um pintinho.
Seria bom poder ter essa outra aparência, mas sua cauda era
preciosa demais para ser deixada.
Ela arrotou baixinho, para o que seu companheiro franziu um
pouco as sobrancelhas.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 204 ⊱

“Além disso, lembre-se de quantas maçãs comi mais cedo na


cidade.”
“Ah sim! Você não conseguiu nem mesmo terminá-las, então é
por isso que ficou tão melancólica.”
“Mm.”
Ela pensou que ele poderia estar certo, mas não por causa do sabor
ou da essência da maçã ou qualquer absurdo, mas simplesmente
porque ela comprou muitas.
“Não quero comer mais maçãs por um tempo”, disse seu
companheiro.
Ela alegou que seria capaz de comê-las, mas no final ele teve que
ajudar.
No entanto, ela aprendeu que comer com companhia era muito
mais agradável do que comer sozinha — não que ela fosse dizer isso.
“Ainda assim, se pode comer tanto, você está se recuperando.
Amanhã ou no dia seguinte estará bem de novo,” disse seu
companheiro enquanto recolhia o prato e a panela. “Não que haja
necessidade de pressa. Estaremos na carroça novamente por algum
tempo depois de partirmos. É melhor descansar.”
Ele era muito compassivo para reconhecer uma mentira como
uma mentira.
Não — era mais porque ele confiava tanto que nunca suspeitaria
que ela mentisse.
Sentimentos de culpa brotaram em seu peito, mas quando ela
olhou para cima e encontrou seus olhos, sua respiração parou.
Aqueles olhos preocupados.
Isso não era nada bom.
“...Lamento ter... atrasado nossa viagem”, disse ela quando
percebeu do que se tratava.
Ela não podia deixar essa oportunidade escapar.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 205 ⊱

“Desisti de me apressar quando te peguei. E eles dizem que os


tempos difíceis tornam as bases mais fortes, não é? Recuperei meu bom
crédito nesta cidade, e provavelmente está melhor do que nunca.
Quando penso nesse lucro, o que são mais dois ou três dias?”
Ela teria que agradecer aquele deus da fortuna que os humanos
sempre estavam adorando, ela pensou para si mesma, por ter sido
apanhada por um tolo de coração tão mole.
Coração mole, coração mole — Quando ela não estava dizendo isso
com um sorriso de escárnio, mudou para um nome totalmente
diferente, o que era aterrorizante.
Ela queria que ele ficasse com ela.
Só de observá-lo enquanto reunia os pratos e começava a se dirigir
à porta para devolvê-los à estalagem, a cauda dela balançava inquieta.
“Mesmo assim —”
“Hmm?” disse ele, com olhos tão sinceramente ingênuos que ela
mal conseguia olhar para eles.
“A pousada está... muito quieta...” O constrangimento a impediu
de terminar a frase.
Mas seu companheiro sem dúvida pensava que era tudo uma
atuação.
E, ao mesmo tempo, ele certamente adivinhou que, embora fosse
uma atuação, também era a verdade.
“É verdade, dormir na carroça é muito mais barulhento. De
qualquer forma, não tenho nada para fazer hoje. E eu tenho que
consultar sobre o menu da noite para uma certa comilona que conheço,
então...”
Então ele ficaria com ela.
Ela estava sendo egoísta como uma criança.
Seu companheiro sorriu, e ela fez uma careta deliberadamente, se
virando.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 206 ⊱

Era uma disputa tranquila e sem complicações.


Se a felicidade tivesse uma forma, bem poderia ter sido esta.
“Então, você tem alguma preferência? Vou procurar os detalhes
no livro de remédios mais tarde, mas assim que o mercado fechar, não
poderei comprar os ingredientes.”
“Hmm…”
“Você parece bem. Pode não estar completamente bem, então é
melhor evitar comidas pesadas.”
“Carne também?” Ela ergueu os olhos tristemente.
Isso foi uma atuação.
“Certamente. Mingau ou sopa feita de pão cozido...”
“Hmph. Bem, então, quero mais disso aqui — o que era, leite de
ovelha?” disse ela, indicando os pratos que seu companheiro segurava.
Ele assentiu. “Gostei do seu aroma doce e sabor espesso. Vai servir.”
“Leite de ovelha, hein...?”
“Há algum problema?” ela perguntou, e ele balançou a cabeça.
“Estraga rapidamente, por isso pode ser difícil encontrar leite de
boa qualidade à tarde. Você vai querer fresco, não é?”
“Naturalmente.” Ela sorriu, expondo suas presas.
“Bem, talvez eu peça para Norah pegar para mim novamente. Por
ser uma pastora, ela tem olho para esse tipo de...”
Ele evitou terminar a frase.
“Você disse Norah?” ela atirou de volta reflexivamente — tão
reflexivamente que ela não sabia que tipo de cara ela estava fazendo.
A expressão de seu companheiro deixou claro que ele percebeu
que havia proferido uma palavra tabu, então ela deve ter feito alguma
cara estranha.
A atmosfera agradável havia sumido.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 207 ⊱

Quando ele mencionou que Norah tinha olho para ovelhas, ela
percebeu que, enquanto dormia, seu companheiro andava pela cidade
com aquela pastora.
Aquela pastora odiosa.
Apenas os dois.
Enquanto ela dormia!
“Não, foi... foi por você. Eu precisava de um bom leite, então
pensei —"
“Se você apenas gastasse o dinheiro, não precisa de um maldito
olho para ovelhas”, ela rosnou, olhando-o com ressentimento.
Traidor, traidor, traidor! Ela gritou a palavra em seu coração.
Embora ela soubesse que ele não tinha feito nada para ganhar sua
ira, ele deveria ter pensado melhor do que mencionar a pastora em tal
momento, e por isso ela não pôde evitar.
Depois de tudo, pastores e lobos eram inimigos ferrenhos.
“Claro que não há razão para não a contratar como guia. E de
qualquer maneira —” Ele claramente sabia que havia tropeçado em um
grande problema e estava tentando resolver as coisas às pressas. Mas
no auge de sua raiva irracional, tal suavização só servia para aumentar
suas suspeitas. E para finalizar, ele completou. “E de toda forma, por
que você odeia tanto Norah?”
O tempo parou.
Na tentativa de apaziguar sua raiva latente, ele disse algo tão
inesperado que ela não conseguiu responder.
Sua boca abriu. “O-o que você disse?” ela respondeu
estupidamente.
“B-bem, eu... quero dizer, não sei o que aconteceu entre você e
os pastores no passado, mas entendo que é uma loba e simplesmente
não gosta deles. Mas isso não significa que você tenha que odiá-la tanto.
Quero dizer, Norah é uma pastora, mas bem...” Ainda segurando a
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 208 ⊱

tigela e o prato com as duas mãos, ele coçou a cabeça com cuidado.
“...Ela é tão doce — certamente há uma exceção para todas as regras.”
“Idiota!” ela quase gritou.
O que a deteve não foi o cansaço, nem o fato de ser impróprio
para uma sábia loba.
Foi, na verdade, a própria tolice de seu companheiro que drenou
o seu desejo de gritar.
Era verdade que depois de ficar sozinha por tantos séculos, ter
acabado de escapar dos campos de trigo tornava suas emoções instáveis
— tinha que admitir. Ela havia se esquecido tão completamente de
como falar com as pessoas que agora tinha que prestar muita atenção
em suas conversas. Ela percebeu que havia se esquecido de como ler
as sutis alterações dos outros.
E não seria surpresa que seu companheiro, depois de passar meses
e anos sozinho em uma carroça, tivesse ficado enferrujado com essas
mesmas habilidades.
Ainda assim — ele poderia realmente ser tão estúpido? Ela
suspirou.
Ela não conseguia entender como ele podia ser tão persistente
mesmo depois de se colocar nessa situação; como, apesar de ser um
tolo, teve a ousadia de tentar usar a razão com ela; por que por alguma
razão, apesar de parecer tão atencioso, até mesmo fraco, ele tinha a
disposição de agora — dentre todos os momentos possíveis! — ter
algum orgulho; e porque, neste momento crítico, ele conseguia ser tão
incrivelmente denso.
Ela não conseguia entender nada.
Ele realmente não podia entender? ela imaginou.
Ela estava até começando a pensar que ele a estava testando.
Sua visão da situação era que a sábia loba de Yoitsu odiava pastores
— era isso que ele pensava?
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 209 ⊱

Os lobos caçavam ovelhas e os pastores protegiam essas mesmas


ovelhas lamentáveis e impotentes. Então, nesta composição, quem era
o lobo, quem era o pastor e quem era a ovelha? Se ele apenas pensasse
sobre isso, entenderia imediatamente o motivo de seu
descontentamento.
Ela não odiava pastores. Ela estava nervosa porque o pastor estava
perto das ovelhas.
Como se a ovelha não fosse protegida pelo pastor. Como se o
pastor fosse tocar seu sino e roubar as ovelhas. Como se ele pudesse se
afastar com a pastora ingênua e gentil, porque estava tão desamparado,
tão tolo, incapaz de compreender!
Enquanto tais pensamentos ocupavam sua mente, ela suspirou
uma última vez.
Seu companheiro estava ali, seu rosto evidenciando que, como
sempre, ele não tinha a menor noção do que ela estava pensando. Ele
era, em cada detalhe, uma ovelha alegre e tola.
A doce bondade que tinha mostrado ao pegar o mingau e alimentá-
la era a mesma de sempre.
Seu sonho havia se tornado essencialmente real.
Ela havia sido libertada de sua prisão e estava livre para fazer o que
quisesse, sem ninguém a olhar de soslaio, livre para dizer o que
quisesse sem incomodar ninguém.
Então, por bem ou por mal, ela desejava nem que fosse por apenas
uma vez. Como seria brincar como um cachorrinho? Qual seria a
sensação?
No fim, não se comparava ao tolo por natureza.
Após beber a noite toda, o sóbrio sempre tinha que cuidar do
bêbado.
“Escute —” ela disse cansada, porque afinal estava realmente
muito cansada.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 210 ⊱

Ela pensou em se passar por um cachorrinho.


Mas no final era impossível para uma loba fingir ser tola como uma
ovelha.
Seu companheiro poderia pensar que ela estava tentando agir
assim, mas isso não era sua responsabilidade.
Era culpa dele estar tão obcecado por tímidos encantos que ela
queria agir assim também, mas não conseguia.
Se ambos fossem ovelhas idiotas, eles simplesmente pulariam
juntos do penhasco.
Um deles tinha que ser o sóbrio e liderar o outro.
Uma dívida.
Uma dívida natural.
“Eu estava errada”, disse ela com um claro mau humor. Seu
companheiro estava claramente aliviado. “Mas gostar e não gostar não
são coisas sentidas com a razão. Eu sinto que já disse isso antes.”
“Sim, bem, isso é verdade, claro. Eu não acho que você tenha que
decidir tudo com a razão,” disse para mostrar que entendia os
sentimentos dela — mas a verdade é que não entendia o verdadeiro
significado do que ela estava dizendo.
Ela poderia muito bem permitir que ele acariciasse sua cabeça,
mas certamente não poderia deixá-lo mexer em sua cauda.
Esse dia chegaria?
Ela o olhou com olhos cansados e se perguntou.
“E você—” ela começou, seu companheiro ficou tenso, como se
estivesse se preparando para algo novo. Ele era como um cachorro
abaixando a cabeça para ser um animal de estimação. “Quando você
guardar isso aí, voltaria imediatamente?” Ela disse isso com um sorriso
manso.
Ele pareceu surpreso com sua mudança repentina, mas logo se
ajustou. Talvez ele não fosse tão tolo, afinal.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 211 ⊱

“…Sim, claro. A pousada é muito solitária.”


O idiota tinha uma expressão satisfeita, como se achasse que tinha
se dado bem.
A coisa toda era muito óbvia para ser sequer chamada de óbvia,
mas aqui estava ele, um inacreditável tolo.
Sem saber que estavam pensando isso dele, o rosto de seu
companheiro clareou; ele parecia pensar que o problema estava
resolvido.
“Bem, então eu já volto. Você gostaria de algo para beber?”
Sentindo-se sem suspiros para suspirar, ela teve que admitir que
era gentil da parte dele.
Assim, deu a ele sua recompensa.
“O vinho de maçã ralo que você me deu antes seria bom. Eu
preciso ficar boa o mais rápido possível, não é?”
Ele sorriu muito, muito feliz.
Quando fazia aquele tipo de expressão, ela não podia deixar de se
perguntar a melhor forma de ser cruel com ele.
“Então você espera aqui, pode ser?” ele disse com certo
entusiasmo e saiu do quarto.
Ele realmente era um idiota por completo, mas como ela estava
saltitando ao lado dele, o mesmo poderia ser dito a seu respeito.
Era uma época de paz e tranquilidade.
Ela sabia bem o quão precioso isso era.
Então teria que controlá-lo, apreciá-lo e aproveitá-lo com o
melhor de suas habilidades.
Havia uma coisa que a preocupava.
Ela se contorceu para debaixo dos cobertores, enterrando a cabeça
no travesseiro como tinha visto os humanos fazerem.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 212 ⊱

Seu pobre companheiro vivera uma vida tão faminta que, se ela
demonstrasse um pouco de afeto, ele poderia se tornar totalmente
inútil — e se exagerasse, ele se acostumaria com isso e perderia a
eficácia.
Tanto para os animais quanto para os humanos, algo muito
repetido sempre levaria ao tédio.
O que significava que ela teria que pensar em outra maneira.
E ao fazer isso, imediatamente percebeu.
Se ele se cansou de doçura, ela só precisaria adicionar um pouco
de sal.
Se o sorriso dela não conseguia fisgá-lo, tudo o que precisava fazer
era convocar algumas lágrimas.
Era tão simples.
E certamente funcionaria com uma ovelha.
“…Hmm?”
Algo a incomodou enquanto pensava nisso. Por um momento, se
perguntou o que poderia ser, e logo descobriu a causa. Foi no jantar
da noite anterior quando ela desmaiou.
Eles estavam falando sobre ovelhas — sobre como as ovelhas
lamberiam qualquer coisa que tivesse gosto salgado. Ela se lembrou
disso, e um pensamento estranho lhe ocorreu.
Ela imaginou lágrimas salgadas em seu rosto, seu companheiro
persistentemente lambendo-as.
Ela certamente iria primeiro rir loucamente, embora sem dúvida
isso se tornaria cansativo. Era fácil imaginar seu companheiro sem
saber quando parar — tão fácil imaginar, na verdade, que era até
deprimente.
Sim, teria que manter um controle firme sobre suas rédeas para
mantê-lo fazendo o que ela queria.
Pensando em tantas coisas para se preocupar, ela rolou na cama.
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 213 ⊱

Sua cabeça ainda estava enterrada no travesseiro, e ela estava


deitada de lado, rindo.
Já fazia muito tempo que não se divertia tanto.
Ela não sabia exatamente o que era divertido na situação.
As diversões eram tantas que era impossível escolher apenas uma.
Mas, se pressionada por uma resposta, diria que seu tolo
companheiro não podia, apesar de toda a sua tolice, ser tratado por
meios comuns.
Havia algo do deleite da caçada nisso que, de alguma forma,
deixou seu coração de loba em chamas.
Tendo levado os pratos para baixo, seu companheiro cumpriu sua
palavra e ela ouviu seus passos se aproximando.
Seu coração bateu forte.
Sua cauda torceu e suas orelhas se contraíram.
Seu nariz coçou e ela o esfregou no travesseiro.
Ah, essa delícia inefável da caça!
Os passos pararam na frente da porta.
Ela não pôde deixar de sorrir ao olhar para trás.
E então, quando a porta abriu, lá estava —
“Holo,” disse seu companheiro, sorrindo.
A pastora ao lado dele.
“A Srta. Norah veio visitar você.”
Não, definitivamente ele não poderia ser tratado por meios
normais.
A pastora sorriu um sorriso tão fresco e claro quanto um campo
no início do verão, e não foram os séculos de experiência da sábia loba
que a permitiram sorrir de volta.
Ela sorriu de verdadeiro prazer.
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 214 ⊱

Segurar as rédeas de seu enorme companheiro idiota era uma


tarefa tão difícil que ela só conseguia rir.
“Como você está se sentindo?” perguntou Norah, a pastora.
“Não é nada, só um pouco de cansaço.”
Se ela não tivesse respondido à pergunta dessa forma, de que outra
forma poderia ter respondido?
Mesmo com a mente inteligente de uma sábia loba, ela não tinha
ideia.
Seu companheiro observou a agradável troca com um sorriso
orgulhoso e satisfeito.
Não é que ela não estivesse exatamente exausta.
Longe disso — ela sentia que sua febre estava prestes a subir
novamente.
“Eu estive um pouco faminta por companhia, no entanto. Veja, há
algo que estou querendo perguntar a você,” disse ela.
“Huh? Algo para me perguntar...?” A pastora era uma garota
inteligente, mas sempre modesta; ela podia ver por que seu
companheiro cairia nisso. “Se for algo que eu possa responder, então...
por favor, pergunte.”
Ela então sorriu.
A pastora não poderia ser subestimada. Mas, como caçadora, ela
entenderia essas palavras, e por isso a sábia loba quis perguntá-las.
“Qual é a melhor maneira de liderar ovelhas?”
Os olhos da pastora se arregalaram de surpresa com a pergunta
inesperada, mas seu sorriso habitual logo voltou.
Ao lado dela, seu atrevido cão pastor permanecia vigilante, a
guarda erguida como de costume.
A pastora esguia e pálida falou com um sorriso gentil. “Você
precisa de um coração generoso.”
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 215 ⊱
A LOBA E A MELANCOLIA ÂMBAR ⊰ 216 ⊱

No momento em que ela ouviu a resposta, ela sentiu como se o


vento soprasse.
Essa garota era totalmente genuína.
Ela era uma verdadeira pastora.
Para criar ovelhas, é necessário um coração generoso.
Ela olhou para sua companheira e pensou consigo mesma que a
pastora estava exatamente certa.
Norah notou o olhar e fez uma breve expressão de compreensão.
Uma pessoa inteligente precisa apenas de um momento para
perceber essas coisas.
“É porque as ovelhas sempre se consideram muito espertas.”
Norah voltou o olhar para ela e sorriu, um pouco confusa, mas
ainda assim satisfeita.
Ela tinha a sensação de que se daria muito bem com essa garota.
Mas enquanto seu companheiro observava, sem saber que eles
estavam falando sobre ele, ela não estava confiante sobre sua
capacidade de segurar suas rédeas.
Só Deus sabia se ela seria capaz.
Ela deu a ele um olhar ressentido, que o assustou.
Suas ovelhas, suas ovelhas, suas ovelhinhas inocentes, ela pensou
consigo mesma.
E, no entanto, aquele jeito bobo dele — sim.
“Você é um tolo”, ela murmurou.
Ela amava muito suas ovelhas.

— Fim
lá de novo. Aqui é o Hasekura.
Achei que não fazia muito tempo desde a última vez, mas
enquanto escrevia este posfácio e pensava sobre isso, já se
passaram dois meses. Antes, até uma semana parecia uma
eternidade, mas o tempo passa tão rápido agora.
Provavelmente porque durmo cerca de dezesseis horas por dia.
Ultimamente, tenho dificuldade em distinguir entre sonhos e
realidade. Em questão de horas, passo mais tempo dormindo. Assim,
dois meses me parecem apenas um, imagino.

Voltando ao assunto, este volume é um pouco diferente dos livros


anteriores.
POSFÁCIO ⊰ 218 ⊱

Inclui uma novela e um conto que foram apresentados no site da


Dengeki, junto com um novo conto que escrevi.
A novela fala sobre o passado de Holo, e os contos são interlúdios
do arco principal dos livros.
Na novela, vemos o lado irmã mais velha de Holo, e as peças mais
curtas apresentam sua gula. Para onde foi o Lawrence? Não pude
deixar de me sentir mal por ele.
Mas o que eu mais gostaria de falar aqui é a nova peça.
É o primeiro escrito da perspectiva de Holo.
No começo eu estava realmente muito preocupado se seria ou não
capaz de escrever da perspectiva dela, mas quando tentei, foi
realmente muito divertido — tanto que quando voltei e reli, Posso
dizer que estava gostando muito de escrevê-lo. Então, realmente
espero que todos gostem tanto quanto eu.

Falando nisso — esta é uma mudança total de assunto —


recentemente eu dei uma volta no carro de 420 cavalos de um certo
autor.
420 cavalos de potência. É tipo, para onde no Japão você vai com
tanto poder? Parecia mais uma montanha-russa do que um carro.
Quando você acelera, todo o sangue é drenado para a parte inferior do
corpo e, quando você desacelera, pode sentir que ele volta correndo.
Parecia muito bacana, e como não conheço carros, foi uma
experiência realmente memorável.
No entanto, lamento dizer que embora o carro fosse incrível, o
destino dos quatro escritores surrados de todas as noites que se
amontoaram nele não era uma visão noturna de uma bela estrada ao
lado da baía, mas sim uma fonte termal onde poderíamos relaxar
nossos ombros contraídos.
E embora estejamos todos ficando mais velhos, estávamos muito
animados para colocar nosso yukata e, uma vez, alguém disse: “Ei,
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 219 ⊱

vamos deslizar!” e logo estávamos escorregando por todo o piso de


madeira. Isso é ainda mais surpreendente porque nenhum de nós
estava bêbado. Para o bem do meu próprio orgulho, devo dizer que
não participei de jogos tão inconvenientes. É verdade, eu juro.
Mais tarde, todos nós abusamos da péssima condição física uns dos
outros, depois lutamos uma queda de braço, fizemos competições de
flexões e tiramos fotos instantâneas naquelas máquinas automáticas.
Era como estar de volta ao colegial.
Para chegar em casa, é claro, rodamos no supercarro de 420
cavalos.
No entanto, eu me preocupo com minha pequena scooter se
vingando de mim.

E de alguma forma, depois de escrever tudo isso, enchi a página.


O próximo volume voltará à história principal.
Eu gosto de pensar que posso dar a Lawrence a chance de ser um
pouco mais legal, mas quem sabe.
Até que nos encontremos novamente.

— Isuna Hasekura
POSFÁCIO ⊰ 220 ⊱

XTRAS
POSFÁCIO ⊰ 222 ⊱
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 223 ⊱
POSFÁCIO ⊰ 224 ⊱
SPICE & WOLF VOL VII ⊰ 225 ⊱
OS AUTORES
http://hasekuraisuna.jp/

Billionaire Magdala de Shoujo wa World End


Isuna Hasekura Girl Nemure Shoka no Economica
História Umi de
Nemuru

Nascido em 27 de dezembro de 1982, Isuna Hasekura é um estudante de física e


gasta seus dias lamentando a cruel natureza do mundo desde que estudar
harmônicas de superfície esférica falhou em dar a ele o resultado correto da
restituição do imposto de renda. Entretanto, devido a situações atenuantes, ele é
incapaz de prover uma explicação satisfatória sobre harmônicas de superfície
esférica.

Gelatin Risou no Uchi no Maid Witch Hunt


Juu Ayakura Himo wa Futeikei Curtain Call
Arte Seikatsu

Nascido em 1981. Local: Kyoto. Tipo sanguíneo: AB. Atualmente vivendo uma vida
livre e espartana em Tokyo, ele tem sido até então incapaz de por seus planos de
peregrinação aos templos em ação.

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