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Volume 19 – Capítulo Extra – O Deus da Morte e o Príncipe

Glutão

Muitos membros da realeza moravam na vila real do Reino do


Rei Dragão. Eles não eram, contudo, da realeza do Reino do Rei
Dragão; estes eram príncipes e princesas de Estados vassalos.
Oficialmente, eles estavam estudando ali ou tinham sido trazidos
como filhos adotivos, mas a verdade era que eram reféns, mantidos
para garantir que os Estados vassalos não se rebelassem. Este sistema
se assemelhava ao daimyo shonin seido, empregado no Japão feudal
para assegurar que os seguidores permanecessem leais.
De qualquer forma, esses príncipes e princesas não estavam
cientes de que eram reféns. Desde que as nações colaborassem, sua
segurança e estadia estariam garantidas, permitindo que tivessem uma
vida de lazer. Entretanto, nem todos eram tão despreocupados. Alguns
poucos e ambiciosos passavam esse tempo se aprimorando e atentos a
qualquer oportunidade de ascender socialmente.
Pax era uma dessas pessoas. Certo dia, ele teve uma mudança
repentina em seu coração e começou a se dedicar ao estudo da
esgrima, magia e academia. Ele se exercitava tanto quanto podia pela
manhã, deixando o resto do dia reservado para magia e livros. Pax
jurou que manteria essa rígida rotina, mas uma mudança de
cronograma tão drástica não poderia seguir consistente por muito
tempo. No final, ele começou a dedicar suas horas matinais a uma
atividade totalmente diferente. Isto é, começou a visitar os jardins
próximos à vila real.
— Foi quando eu disse a ele: “Solte esse escravo! Eu vou
comprá-lo” — enquanto Pax praticava com sua espada de madeira,
oferecia a uma garota que estava por perto uma história. — Depois
disso, começou uma briga. Bandidos vieram atrás de mim e cortaram
cada um dos homens que estavam ali! O chefão deles foi o último a
vir até mim. Tinha um machado de batalha que era pelo menos duas
vezes maior que eu. Ele soltou um rugido tão intimidador que faria até
o mais forte dos guerreiros tremer na base e, depois disso, veio pra
cima de mim! Eu me esquivei habilmente de seu ataque e lancei
minha magia mais poderosa nele, acertando em cheio o rosto dele! O
cara cambaleou alguns passos e, sem pestanejar, corri até ele com a
minha lâmina. Um corte! Com isso, ele caiu.
Pax fez gestos exagerados com sua lâminas, chegando até a
usar magia ao ilustrar sua luta em tempo real. Assim que sua história
chegou ao fim, ele fez uma pausa para olhar pra menina. Seus olhos
eram vagos, não dando a ele a menor indicação do que ela estava
pensando. Porém, por alguma razão, Pax conseguiu ler sua expressão.
Ele não tinha conseguido inicialmente, mas, com o passar do tempo,
ele começou a perceber as mínimas mudanças na face dela. Naquele
momento, seus olhos brilhavam mais que o normal e suas bochechas
estavam vermelhas. Ela parecia estar genuinamente se divertindo com
a história dele.
Suor escorria pela testa do Pax. Ele estava calado, paralisado na
pose que tinha feito no final de sua história, que mostrava que havia
subjugado seu inimigo. Passados alguns momentos, entretanto, ele
cedeu e se endireitou.

— Bom, marcar presença assim seria o ideal, mas nada


acontece como a gente projeta na nossa mente — ele admitiu. — Tudo
o que fiz foi dar apoio aos meus guardas com a minha varinha mágica.
A garota não parecia menos impressionada.
— Ainda assim, meu lorde, o senhor se tornou o líder das
favelas — disse ela.
— De fato. Independentemente de como aconteceu, isso é
certamente um fato. — tendo derrotado seu líder, eu agora governo as
favelas.
— Incrível.
Pax sorriu.
— Não é?! Posso até ter tido um pouco de receio durante toda a
comoção, mas isso não muda o fato de que eu unifiquei os
delinquentes de Shirone! Continue, eu permitirei que você me cubra
ainda mais de elogios!
— Incrível. Verdadeiramente incrível.
Benedikte era a décima sexta princesa do Reino do Rei Dragão.
Suas expressões eram mínimas, dando pouca indicação do que ela
estava sentindo, e seu tom de voz era constante, com poucas
alterações. Ainda assim, o modo como ela ouvia atentamente
mostrava o quanto estava animada com a história dele.
Sendo sincero, Pax tinha contado a história de forma mais
dramática do que realmente tinha acontecido. Numa tentativa
desesperada de manter alguma dignidade, ele acrescentou a parte em
que ele usou magia para ajudar seus guardas, mas a verdade era que
não tinha feito muita coisa. Era doloroso para ele mentir daquele jeito,
mas nenhuma viva alma no reino escutava suas histórias com tanta
seriedade. Era natural que se deixasse levar um pouco.
— Me conte... mais — disse Benedikte.
Honestamente, a verdade não lhe importava. Já que sua família
havia desistido de sua educação, ela não sabia ler e ninguém falava
com ela como Pax. Ela foi trancafiada nos apertados limites da vila
real; aonde quer que fosse, era tratada como um monstro. Ela acordava
de manhã, comia e saía vagando até encontrar um lugar deserto para
matar tempo até a próxima refeição. Depois disso, chegava a hora de
dormir e ela recomeçava sua rotina monótona no dia seguinte. Em
meio a toda essa exaustiva monotonia, as emocionantes histórias de
Pax eram refrescantes. Ela gostava daquilo.
— Mais. — ela repetiu. — Me conte mais...
— Muito bem, então. Acho que posso lhe agraciar com a
história de quando visitei Primavera das Fadas. Era o que eu gostaria
de fazer, pelo menos, mas vamos deixar essa história pra amanhã. Esta
tarde e tenho compromisso com meus estudos e prática de magia.
— ...Tá bom.
— Wahahaha, que ouvinte admirável. Não precisa ficar
emburrada assim! Você só tem que esperar. O amanhã chegará, quer
você queira ou não!
Qualquer um que observasse Pax nesses dias concordaria que
ele era esforçado. Quando terminava seu treinamento matinal,
dedicava sua tarde aos estudos e à prática de magia. Tudo bem que ele
maneirava com certa frequência nas manhãs, mas ainda praticava
golpes de espada rigorosamente, mesmo quando partilhava suas
histórias com Benedikte, continuava gradativamente aprimorando suas
habilidades.
Quanto à sua educação regular, ele não tinha mais o luxo de
contratar um tutor particular, já que tinha abandonado Shirone. Sendo
assim, precisava dar continuidade aos seus estudos com base no que se
lembrava de ter aprendido. Seus esforços persistentes haviam, pouco a
pouco, melhorado sua reputação na vila.
— Porém, antes de qualquer coisa, nós devemos comer! É hora
de retornar à vila! — Anunciou Pax.
— ...Acompanharei sua partida.
— Wahahaha! Não há necessidade disso. Não mesmo.
Pax partiu sem ela em direção ao seu quarto. Os jardins
estavam localizados na borda da propriedade, o que significava que o
quarto de Benedikte era perto, mas o de Pax era bem longe. Benedikte
sempre fora relutante em se separar dele, então ela o acompanhava até
metade do caminho. Apesar do modo como as pessoas a tratavam, ela
ainda era a princesa de uma grande nação e era quem efetivamente
tentava passar mais tempo com ele. Aquilo era o suficiente pra enchê-
lo de alegria, o que inevitavelmente o levava a ficar divagando.
— Ontem, durante os meus estudos de magia, eu cheguei a uma
conclusão. Não era nada mais do que um pensamento, mas quando
olhei mais a fundo, descobri que minhas suposições estavam corretas.
Isso significa que, desde tempos imemoriais, a magia tem...
Do lado de fora, Benedikte parecia estar desinteressada e
desatenta. Seus olhos, em comparação, estavam cheios de curiosidade
e interesse enquanto ela o ouvia falar. As criadas que serviam a vila
real — e os eventuais convidados da aristocracia — lançavam olhares
frios de desaprovação sobre eles.
— Quem diria? O verme inútil de Shirone grudando na
princesa vadia — zombou um dos nobres que estava de passagem.
Pax congelou. Ele sentiu o impulso de virar e dar uma boa
olhada no autor do deboche, mas se impediu. Toda vez que ouvia
comentários como aquele, ele se sentia enjoado a ponto de ter refluxo.
Ele queria se virar, xingar o culpado e decapitá-lo por sua insolência.
Porém, esses desejos horríveis permaneciam apenas em seus
pensamentos. Ele sabia melhor do que qualquer um que não tinha
poder algum ali.
— Aguarde, seu vira-lata. Você vai ver. — ele sussurrou
baixinho, fervendo por dentro.
A expressão de Benedikte se fechou. Ela tinha recebido muita
educação, mas isso não significava que não conseguia pensar por si
mesma. Ela entendia suas circunstâncias e sabia que Pax estava sendo
difamado por ficar perto dela.
— Vossa Alteza — ela começou —, eu irei...
— Chega! Não diga, você vai apenas me irritar!
Pax, por outro lado, não via aquela situação do mesmo modo.
Ele estava acostumado a ser desprezado. Ouvia o mesmo tipo de
comentário em Shirone.
— Olhe pra mim — ele insistiu. — Veja o meu corpo, esses
braços e pernas. Eu sou assim desde que nasci. Não importa o que eu
faça, as pessoas vão sempre me diminuir. Posso garantir: eles não
estão falando isso por sua causa.
Ele já tinha perdido a conta de quantas vezes tinham tido essa
conversa. Mesmo ele reafirmando aquilo, Benedikte ficava cabisbaixa.
Ela nunca havia deixado o palácio, então não entendia muito bem. Ela
não conseguia enxergar o que era tão diferente no corpo baixo e
gorducho dele, ou em seus braços e pernas atarracados. Não tinha
ideia do quanto ele havia sido ridicularizado por conta disso.
De certa forma, eles estavam no mesmo barco. Foi exatamente
isso que a atraiu a Pax. Apesar de suas constantes reclamações sobre
as chances estarem contra ele, ainda assim se esforçava para lutar
contra elas.
— Hum? — Pax parou no momento em que cruzavam o limite
entre o palácio principal e a vila vizinha. — Que cheiro é esse?
Um odor pútrido de origem desconhecida pairava no ar. Era
extremamente desagradável, como se alguém estivesse cremando um
corpo. No entanto, também tinha um toque quase aromático, como
durante o preparo de um prato. Quanto mais Pax inalava aquilo, mais
seu apetite aumentava. Porém, ele se perguntava: algo que fede tanto
poderia ser comestível? Sua curiosidade não permitiu que ignorasse o
equilíbrio bizarro daquele aroma.
— Parece estar vindo dos pavimentos de desfile — disse ele.
— Estou intrigado. Vamos dar uma olhada?
— Mas... — Benedikte começou a protestar.
— Hmph. Alguém realmente te repreenderia por se afastar só
um pouco da vila? Se eles monitoram os seus passos nesse nível,
devem ter nomeado ao menos uma pessoa pra ficar de olho em você.
Agora, vamos!
— Certo... — Benedikte respondeu, parecendo um pouco feliz,
apesar de contrariada.

Havia uma pintura no Reino de Shirone chamada Banquete do


Inferno. Ela retratava cinco membros da nobreza com obesidade
mórbida num jantar. A princípio, não era tão estranho, mas se
olhassem com mais atenção, era possível notar que eles eram servidos
por um esqueleto. Três dos aristocratas pareciam não ter noção de
nada, imersos numa conversa animada. Um deles havia percebido e
exibia um olhar apavorado enquanto se voltava de maneira frenética
para o que estava sentado ao seu lado. O último membro do grupo
estava caído sobre a mesa. Não se podia dizer se estava dormindo ou
morto.
Pax não sabia muita coisa sobre essa pintura especificamente,
mas se lembrava de seu irmão mais velho, Zanoba Shirone, parado na
frente dela murmurando para si mesmo enquanto estudava a cena.
Aquele homem queria participar do banquete? Se não queria, então
por que fora forçado a se sentar lá? Quem havia preparado a comida
que estava sendo servida, afinal? Zanoba fazia esses questionamentos
em voz alta. Talvez fosse por causa daquele encontro que Pax se
lembrava tão bem da pintura.
Talvez a pintura estivesse retratando uma cena exatamente
com a que estou vendo agora, pensou Pax.
Uma cozinha improvisada ao ar livre tinha sido montada no
limite do pavimento para ensinar os novos recrutas a cozinhar. Cinco
escudeiros estavam na mesa próxima. Cada um deles estava
mortalmente pálido, olhando constantemente para a cozinha. O odor
acre que emanava dali era o mesmo que Pax havia sentido antes. O
cheiro só piorava à medida que se aproximavam, a tal ponto que até
Pax sentiu vontade de tampar o nariz.
O mais intrigante de tudo, entretanto, era o homem que estava
trabalhando na cozinha. Lá, estava um esqueleto... ou, ao menos, sua
cara lembrava bastante a de um. Ele exibia um sorriso horripilante
enquanto mexia o conteúdo de uma enorme panela.
— Heh heh heh — ele riu para si mesmo. — Só mais um pouco
e fica pronto.
Os rostos dos cavaleiros se contorciam em desespero, como se
eles genuinamente acreditassem que suas vidas estavam perdidas; que
não tinha como fugir daquilo.
Talvez os homens naquela pintura estivessem numa situação
semelhante. Eles estavam certos sobre não ser possível fugir. Afinal, o
homem que preparava aquela refeição macabra era alguém que Pax
conhecia bem.
— Deus da Morte Randolph — concluiu ele.
Randolph Marianne era de fato conhecido como Deus da
Morte, o quinto dos Sete Grandes Poderes. Ele servia diretamente ao
Alto General Shagall como membro dos Cavaleiros do Wyrm Negro.
Não tinha subordinados próprios e sempre trabalhou sozinho. Era o
cavaleiro mais forte do reino e conseguiu chegar ao posto mais alto
praticamente sozinho. Apesar de sua posição elevada, ele
pessoalmente reuniu os escudeiros para lhes servir uma refeição. Não
era de admirar que não pudessem fugir; Randolph os tinha superado
literal e figurativamente.
No entanto, Pax não pôde deixar de se questionar o que era
tudo aquilo.
— Vocês aí, o que está acontecendo aqui?
— E você é...?
— O Sétimo Príncipe do Reino de Shirone, Pax.
Apesar de ser estrangeiro, Pax ainda era da realeza, o que o
colocava bem acima dos homens dali. Eles começaram a se levantar
de suas cadeiras para ficar de joelhos.
— Não é necessário — Pax os interrompeu. — Vocês têm
permissão de permanecerem sentados e falarem de onde estão.
Eles trocaram olhares antes de se acomodarem. Lentamente,
começaram a explicar a situação.
— Bom, veja bem, nós cometemos um... uh, erro fatal durante
os treinamentos.
Três dias antes, o Reino do Rei Dragão havia conduzido
exercícios em larga escala para suas forças. Aqueles homens eram
escudeiros do próprio Alto General Shagall Gargantis. Embora os
exercícios tivessem acontecido sem maiores problemas, aqueles
rapazes haviam falhado de maneira espetacular. Eles não prenderam
adequadamente a sela no cavalo de Shagall. Segundos antes de dar a
ordem de ataque, ele sofreu uma queda humilhante. Felizmente, os
curandeiros que estavam de prontidão cuidaram dele de imediato e,
sendo assim, o resto do treinamento seguiu sem incidentes. Essa foi a
única razão pela qual eles tinham saído apenas com uma advertência
ao invés de uma punição mais severa. Shagall, entretanto, não foi
poupado do constrangimento de ter sua queda testemunhada por todos
os membros da família real que estavam presentes para supervisionar
os exercícios.
Não era nenhuma surpresa que os escudeiros estivessem tão
cabisbaixos. O erro deles trouxe vergonha para o mesmo homem que
tanto reverenciavam. Se as circunstâncias tivessem sido diferentes,
poderiam ter sido dispensados na hora. Eles saíram relativamente
impunes. Cheios de culpa, eles imploraram ao Alto General por
alguma punição, mas ele apenas sorriu de maneira nobre e recusou. A
princípio, os escudeiros ficaram desconfortáveis com sua reação, mas
só naquele dia eles vieram a descobrir o por quê.
— Lord Randolph veio nos visitar hoje de repente dizendo que
cozinharia para nós.
— E daí? Qual o problema nisso? — Questionou Pax.
— Quer dizer que você não sabe?
Os rumores corriam de forma exaltada entre os cavaleiros. Era
algo curioso. Por que um dos Sete Grandes Poderes, o cavaleiro mais
forte de todo o reino, se tornaria um subordinado direto do Alto
General? Em circunstâncias normais, Randolph Marianne deveria ter
recebido sua própria região para governar, com centenas de homens
sob seu comando. Por que, então, ele trabalhava sozinho?
Isso era porque, desde o início, o Alto General Shagall o havia
treinado para ser um assassino. Shagall era um mestiço de elfo e
humano, e sua expectativa de vida elevada permitiu que servisse por
muitos anos no exército do Reino do Rei Dragão durante o seu ápice.
Ele tinha um lado um pouco rude, mas era totalmente leal e
amplamente conhecido por sua honestidade e integridade. Ninguém
falava mal dele.
Como, porém, isso era possível? Como um homem conseguia
permanecer imaculado estando no comando de uma enorme
organização como o exército do Reino do Rei Dragão? Bom, isso era
porque ele não estava imaculado. Por baixo dos panos, ele mandava
matar qualquer homem que acendesse sua ira, usando o assassino que
ele mesmo havia criado: Randolph. Como prova disso, poucos anos
depois de Randolph se tornar bem conhecido pelo público, todos os
rivais políticos de Shagall foram eliminados. Vários deles morreram
devido a doenças de origem desconhecida ou faleceram de maneira
trágica após sofrerem um “acidente”.
— Nós... seremos mortos... porque humilhamos Sua
Excelência! — apontou um dos homens, pálido como um fantasma.
Os outros quatro começaram a tremer violentamente em seus
assentos.
— Não... Não! Eu não quero morrer!
— Vossa Alteza, por favor nos salve. Eu... eu deixei para trás
uma mulher que amo. Sequer tive a chance de dizer a ela como me
sinto... Não posso morrer assim...
— Eu queria ao menos ter meu fim no campo de batalha. Agora
vou ser morto por causa de uma pequena confusão durante um treino?
Só pode ser brincadeira…
— Minha mãe ficou tão feliz quando viu eu me tornar um
escudeiro...
Enquanto os escudeiros lamentavam seus destinos, uma voz
assustadora e horripilante os chamou.
— Vocês estão sendo muito rudes. Ouvi dizer que estavam
tristes depois de serem repreendidos, então decidi lhes oferecer um
pouco da minha deliciosa comida. Isso é tudo.
Pax ficou tenso e se virou. O cavaleiro com o rosto esquelético
mostrava um sorriso apavorante enquanto carregava uma enorme
panela. O cheiro era tão pútrido que quase parecia ser de outro mundo.
— Certo, pessoal, podem se esbaldar. Comida gostosa é o
melhor remédio pra tristeza — comentou o Deus da Morte Randolph,
com um sorriso que parecia mostrar a intenção de ceifar suas vidas.
— Glup. — Pax engoliu em seco e deu um passo para trás
inconscientemente, assustado demais com tudo aquilo. Seu calcanhar
esbarrou em alguma coisa. Alguém o puxou pela manga. Ele olhou
por cima do ombro e vislumbrou uma Benedikte inexpressiva
apertando suas roupas. Mesmo que seu rosto não transmitisse
nenhuma emoção, sabia o que ela estava pensando: Por favor, salve
eles.
Por que eu tenho que salvar esses idiotas?
Não fosse Pax um homem mudado, ele teria dito isso. Porém,
aquele apelo tinha vindo de uma garota que ouvia suas sagas heróicas
diariamente. Ela era alguém que ele queria impressionar.
— Randolph — começou Pax.
— Siiim? O que foi? Uh... a propósito, quem é você?
— Meu nome é Pax Shirone, Sétimo Príncipe do Reino de
Shirone. Como tive a sorte de meu caminho me trazer até aqui,
gostaria de também participar desta sua refeição.
— ...Hum?
Pessoalmente, Pax não pretendia levar aquela gororoba à boca.
Ele era um príncipe, afinal. Se aquela “comida” fosse realmente
venenosa, ele tinha certeza de que Randolph recuaria.
— Claro! Claro, com certeza, Vossa Alteza!
Tinha sido o oposto, Randolph sorriu alegremente quando
ouviu seu pedido.
— Como pode ver, sou bem gourmet — disse Pax. — Você vai
se arrepender se me servir uma refeição sem graça.
— Ehehe — riu o homem. — Pode não parecer, mas eu já tive
o meu próprio restaurante, sabia? Estou bem confiante em relação ao
sabor.
— Você realmente entende o que estou dizendo, certo? —
Questionou Pax.
— Sim, eu certa e realmente entendo.
Este homem está fora de si, pensou Pax.
Se seu veneno matasse Pax, a questão não seria apenas entre o
Reino do Rei Dragão e o Reino de Shirone; havia ali membros da
realeza de uma ampla variedade de países. Um cavaleiro não poderia
sair impune após assassinar um deles sem motivo. Os outros Estados
vassalos não aceitariam isso. Se o Reino do Rei Dragão, de maneira
indiscriminada e aleatória, matasse seus reféns, então qual seria o
sentido de mantê-los? Os Estados vassalos se rebelariam.
Apesar disso, Randolph parecia perfeitamente calmo. Na
verdade, ele parecia estar desafiando Pax: Se você acha que consegue
comer, então coma. Nós dois sabemos que você está falando da boca
pra fora. Você não vai realmente fazer isso.
Ou talvez , pensou Pax, descobrindo que sou um príncipe de
Shirone e vendo como sou, ele pense que ninguém vai se importar se
eu estiver vivo ou morto. Droga! Eu não ligo se ele é um dos Sete
Grandes Poderes, ele tá me menosprezando!
Pax não podia se dar ao luxo de morrer ali, mas tão pouco
podia permitir que fosse tratado com tanto desprezo. Além disso,
Benedikte estava observando. Não podia humildemente recuar só
porque sabia que a outra parte não se importava com seu bem-estar.
Tá bom! Deem licença! — Ele gritou. — Não é todo dia que se
tem a oportunidade de apreciar a culinária de alguém tão famoso como
o Deus da Morte. Meu estômago está roncando desde que senti o
cheiro apetitoso do seu prato!
Pax agora o estava desafiando. Se Randolph achava que ele não
conseguiria realmente comer, era exatamente isso que faria. Engoliria
tudo, deixaria o veneno matá-lo e, assim, traria o caos a todo o reino.
Obstinado como era, se entregou ao seu destino e a tudo o que viria
com ele.
— Oh? Você é a primeira pessoa a me dizer algo assim. —
Randolph exibia um sorriso misterioso enquanto servia a comida. Não
demorou muito para que um prato quentinho estivesse bem na frente
de Pax.
Era um ensopado, com enormes pedaços de vegetais e carne,
mas o líquido em si era roxo. Aquilo era... preocupante. O que alguém
poderia colocar num ensopado para deixar daquela cor? Não parecia
nem um pouco saboroso, nem tinha um aroma apetitoso. O cheiro era
tão forte que era difícil acreditar que vinha de algo comestível. Pax
não conhecia nada comestível que cheirasse daquela forma. Sua mente
gritava: Isso não é comida!
— Urgh... — Ele conseguiu pegar a colher, mas sua mão não se
moveu mais.
Os escudeiros que estavam presentes olharam para ele; seus
rostos estavam mortalmente pálidos. Até Benedikte parecia
preocupada com ele.
Ah, que se dane!
Pax criou coragem, enfiou a colher na gororoba pegajosa na
frente dele, pegou um pedaço de carne não identificável e colocou na
boca.
— Mmph!
Ele mastigou, depois engoliu. Os escudeiros ficaram
boquiabertos. Nenhuma alma presente podia acreditar que ele
realmente tinha experimentado o prato. À primeira vista, qualquer um
diria que aquilo com certeza era veneno.
Depois de engolir um bocado, Pax ficou imóvel por alguns
momentos antes de finalmente dizer:
— Isso está surpreendentemente bom.
— Hum?
— É temperado bem à moda do Continente Demônio, então
provavelmente não vai chamar a atenção das pessoas por aqui, mas é
saboroso, ao meu ver— declarou Pax.
Sim, parecia tão ruim quanto cheirava. No entanto,
estranhamente, quando colocado na boca, sua rica fragrância fazia
cócegas no nariz e os sabores complexos dos vegetais permaneciam na
língua. A carne era tão macia que derretia instantaneamente, enchendo
a boca com um sabor delicioso.
Era um prato intrigante. Ele nunca tinha comido nada
remotamente parecido em Shirone. Enquanto comia, notou uma
dormência na língua. Aquilo provavelmente era o veneno. Porém,
mais importante, a expressão no rosto de Randolph quando ele comeu
e elogiou o sabor foi realmente espetacular. Pax percebeu que o Deus
da Morte realmente não acreditava que ele iria comer, muito menos
elogiar o prato.
Ha! Mesmo que eu morra em agonia em alguns instantes,
posso pelo menos dizer que derrotei um dos Sete Grandes Poderes.
Vou me gabar disso no inferno, Pax pensou consigo mesmo enquanto
sua língua continuava formigando.
Ainda havia tantas coisas que ele queria fazer. No entanto,
nunca havia feito nada em sua vida que valesse a pena se gabar, então
ao menos teria algo de que poderia se orgulhar com aquele último ato.
Isso lhe trouxe alguma satisfação. Sem isso para lhe confortar, ele
simplesmente teria jogado o prato no chão e começado a chorar.
— Eu quero mais um — anunciou, empurrando seu prato a
Randolph.
— Hum, mas, Vossa Alteza, eu fiz isso para os recrutas—
— Você realmente acredita que esses homens conseguem
apreciar a qualidade deste ensopado?! Vou querer tudo para mim!
— Vossa Alteza. — Os escudeiros disseram ofegantes,
movidos por sua misericordiosa intercessão.
Pax bateu com o punho no peito e gritou:
— Chega! O que estão olhando? Os escudeiros do Reino têm o
hábito de encarar a realeza enquanto come? Algum problema se eu
comer tudo isso eu mesmo? Bom, não quero saber! Se tiverem alguma
reclamação, levem ao seu mestre, Shagall. Digam a ele que o príncipe
de Shirone roubou sua chance de provar a comida de Randolph!
Os escudeiros se curvaram e fugiram apressadamente dali, mas
suas expressões estavam cheias de gratidão, o que era algo totalmente
estranho a Pax.
— Hmph.
Pax, é claro, não ligava se apreciavam o que ele estava fazendo.
Ele presumiu que o consideravam um príncipe glutão que, por mero
capricho, se dignou a comer aquela comida cheia de veneno no lugar
deles.
Quando Pax olhou ao redor, notou que Benedikte havia se
sentado ao lado dele. Sua expressão era serena como sempre, seus
olhos iam e voltavam do prato para Pax.
— Benedikte, você também quer comer? — Perguntou Pax.
Ela assentiu.
— Você entende, né? Digo, o que é essa comida.
Novamente, ela assentiu.
Pax parou para pensar, mas quase imediatamente se lembrou do
ambiente cruel em que Benedikte estava. Ele era o único amigo que
ela tinha. Ela estava sempre sozinha, passando seu tempo nos jardins,
olhando para as flores; a princesa solitária e condenada ao ostracismo,
com quem ninguém se importava em interagir. Certamente, todos os
dias eram miseráveis para ela. Nem mesmo Pax suportaria esse tipo de
tratamento em seu lugar.
Com isso em mente, Pax não via motivos para impedi-la.
Talvez ela tenha decidido se juntar a ele porque era seu único amigo e,
se ele fosse morrer, imaginou que ela também devesse.
Finalmente, Pax assentiu.
Tudo bem, então, Randolph. Prepare uma porção para ela
também.
— Sim, sim, claro! Ahh, que belo dia está sendo hoje. —
Randolph continuou sorrindo de forma assustadora enquanto servia
mais de seu bizarro ensopado para Benedikte.
Benedikte pegou sua colher de forma graciosa e lentamente
começou a comer. Embora nunca tivesse recebido instruções sobre
etiqueta, ela segurava seu utensílio de uma maneira bela. Ela
provavelmente estava imitando o que tinha visto os outros fazerem.
— ...Delicioso — Benedikte balbuciou enquanto continuava a
comer.
— De fato, é. — Pax voltou comer também. Sendo um
comedor voraz, ele pediu porções extras várias vezes até que a panela
estivesse completamente vazia.
— Sim, é uma grande honra ter vocês dois esvaziando toda a
panela.
Pax cerrou os olhos.
— Então? Quando vai fazer efeito?
— Quando vai fazer efeito o quê?
— Você realmente acha que eu não percebi? Com esse
formigamento na minha língua?
— Ohh! Isso. Sim, bom, você deve notar os efeitos a qualquer
momento. — Randolph respondeu com uma risadinha.
A qualquer momento, hein?
Pax recostou-se, olhando para o céu. Quanto tempo fazia desde
a última vez em que havia jantado fora? Talvez tenha sido a primeira
vez para Benedikte. Não importava o quão friamente um membro da
família real fosse tratado por seus parentes, isso não mudava o quão
sufocante sua vida era. Na verdade, o ostracismo significava que a
família estava relutante em deixá-los sair e, em vez disso, os
confinava atrás dos muros do palácio.
Pelo menos seus últimos momentos tinham sido sob um céu
azul e ensolarado, e ele havia saboreado uma refeição deliciosa antes
do fim. Não poderia haver maneira mais agradável de morrer. Era
como se sua própria alma tivesse sido purificada.
— Está se sentindo relaxado, não está? — Randolph perguntou.
— Sementes de Sanshok têm um poderoso efeito calmante.
— Sanshok? — Pax repetiu, perplexo.
— Sim. É o melhor tempero para acalmar as emoções de uma
pessoa quando está triste ou irritada. Eu realmente queria que os
escudeiros também experimentassem…
— Então não é veneno?
— Veneno? — Randolph piscou. — Oh, bom, sementes de
Sanshok realmente têm uma cor venenosa. Muitas pessoas tendem a
evitar consumir por essa razão, sem dúvida. Porém, não precisa se
preocupar. Nem uma única alma veio a perecer por comê-las. Hum?
Você mencionou uma sensação de formigamento na sua língua. Isso
quer dizer que sabia que eu tinha usado Sanshok?
— N-Não, eu tive a sensação de que você tinha usado alguma
coisa, mas não exatamente isso.
Quando Randolph inclinou a cabeça, Pax finalmente entendeu.
Aquele homem realmente pretendia apenas oferecer aos escudeiros
uma refeição, e nada mais.
— Sim, entendo, Sanshok! — Pax assentiu para si mesmo. —
Eu tinha quase certeza de que você tinha conseguido pele de Kiban e
adicionado ao ensopado
— Ohh, sim, a pele de Kiban também faz a língua formigar.
Porém, não é capaz de dar ao ensopado aquele tom arroxeado, é?
Pax concordou pensativo.
— É verdade. Sim, sua engenhosidade foi bem impressionante!
— Heh heh, agradeço as suas palavras. Valeu a pena trazer esse
ingrediente do Continente Demônio. — A maneira como Randolph
sorriu parecia quase sugerir que ele havia entendido perfeitamente a
bravata de Pax.
— Bom, chega disso! Benedikte, vamos embora! — Incapaz de
resistir ao olhar penetrante do homem, Pax levantou-se abruptamente.
— Tenho meus estudos e prática de magia esta tarde. Não posso
perder tempo aqui, jogando conversa fora.
— Certo — murmurou em resposta.
Pax endireitou os ombros e começou a cambalear, com
Benedikte logo atrás dele. Eles não foram muito longe antes de serem
chamados por Randolph.
— Hum, Príncipe Pax?
— O que foi? — Pax olhou por cima do ombro.
Randolph ostentava seu habitual sorriso horripilante.
Entretanto, ele parecia um pouco ansioso, esfregando as mãos
enquanto reunia coragem para perguntar.
— Seria possível que eu lhe servisse novamente uma refeição
no futuro?
— Tudo bem. Sua comida é deliciosa, afinal. — Pax deu sua
resposta rapidamente e se virou para sair. Embora estivesse
desnecessariamente preocupado com sua refeição estar envenenada, o
ensopado em si era delicioso. Aqueles sabores incomuns
provavelmente não agradariam ao paladar da maioria das pessoas, mas
Pax nunca havia experimentado nada parecido. Se Randolph estava
interessado em servi-lo algo assim novamente, não tinha razão para
recusar. Ele não estava mentindo quando disse que era um gourmet
com gostos delicados.
— Obrigado — disse Randolph, curvando sua cabeça.
Depois disso, Pax passou a comer periodicamente refeições
preparadas por Randolph.

— Em retrospecto, eu realmente havia aceitado minha morte


naquela época — murmurou Pax, enquanto revisitava um passado
distante em sua cabeça.
Ele estava em um patamar da escada. A janela próxima dava a
ele um vislumbre do mundo do lado de fora do castelo. Incêndios
pontilhavam a paisagem, nuvens de fumaça subiam como pilares aqui
e ali. Ele não escutava as vozes de onde estava, mas podia sentir a
multidão lá embaixo.
Pax estava dentro do Castelo de Shirone, um lugar ao qual ele
chegou depois de ir à frente e abrir caminho até o trono.
— Eu preferia não saber a verdade até o fim dos meus dias —
Randolph respondeu, parado ao lado do rei e olhando para o mundo
abaixo deles. Ele tinha removido o tapa-olho, o olho inferior emitia
uma luz ofuscante. — Fiquei muito feliz, sabe? Ouvindo você dizer
que minha comida era deliciosa.
— Não começa. Pode não ter parecido apetitoso, mas não
menti quando disse que estava bom — afirmou Pax.
— Hehe, é difícil acreditar em você sabendo que pensou que eu
pretendia envenená-lo.
Suas vozes transbordavam de emoção enquanto conversavam,
olhando através do vidro. Acontecimentos imprevisíveis os tinham
unido e, mesmo após o encontro inicial, nada particularmente
emocionante ou significativo aconteceu. A única coisa que aconteceu
foi que, cada vez que Pax e Benedikte experimentavam a comida de
Randolph, eles elogiavam o sabor. Conversavam um pouco enquanto
ele preparava seus pratos estranhos, mas seguiam caminhos separados
assim que a refeição terminava. O ciclo se repetiu bastante até
Randolph perceber quantas vezes ele estava na companhia de Pax.
Seria um exagero chamar Pax de aluno ou aprendiz, mas ele ofereceu
alguns conselhos sobre esgrima e magia.
— No fim, você e Benedikte são meus únicos aliados — disse
Pax enquanto observava as pessoas reunidas do lado de fora.
Eles sabiam que nem todas as pessoas lá fora eram inimigas;
um cavaleiro arriscou a vida ao se aventurar para trazer um relatório
de reconhecimento. Sim, nem todos estavam contra ele, mas Pax sabia
que também não o apoiavam. A grande maioria de Shirone não tinha
gostado de sua ascensão ao trono. Eles poderiam ser seus inimigos nas
circunstâncias certas, mas nunca seriam seus aliados.
— Por que as pessoas me odeiam tanto?
Tinha sido assim durante toda a sua vida. Ninguém jamais se
aliou a ele. Talvez sua aparência os tenha repelido; talvez ele
simplesmente não tivesse talento para encontrar aliados. Pax
honestamente não fazia ideia. Ele dava o melhor de si à sua maneira,
mas, apesar de todos os seus esforços, apenas Benedikte e Randolph
ficaram ao seu lado. Talvez, se tivesse se comportado melhor, Zanoba
e Rudeus — e talvez até os cavaleiros que morreram — poderiam
estar dispostos a ficar ao seu lado. Era tarde demais para refletir sobre
aquilo agora.
— Boa pergunta. As pessoas costumam ter medo de mim
também, e não tenho a menor ideia do porquê — disse Randolph,
como se tentasse confortá-lo. Porém, no caso de Randolph, sem
dúvida foi por causa de sua aparência. Se ele pudesse fazer algo a
respeito daquele rosto esquelético e daquele sorriso perturbador, as
coisas poderiam ser diferentes.
Na verdade, mesmo com esses problemas, Randolph ainda
ganhou o respeito do Alto General do Reino do Rei Dragão e de
vários espadachins. Pax não tinha nada disso. Ele se tornou rei e agora
tinha uma esposa que amava e um excelente subordinado. No entanto,
infelizmente, não era assim que se governava um país. Ele não
conseguiu o reconhecimento das massas.
Talvez tivesse agido da maneira errada, mas o fato era que
havia pouquíssimas pessoas ao seu lado. Ele não sabia mais o que
fazer para fortalecer seus apoiadores. Precisava de companheiros, mas
não tinha ideia de como consegui-los. Pax não sabia o que fazer.
— Randolph — disse ele.
— Sim?
— Quando eu morrer, fuja daqui e leve Benedikte com você.
Randolph engoliu em seco. Durante os quase doze anos em que
vivenciou inúmeras batalhas, nenhuma outra pessoa o havia deixado
ciente de sua própria respiração, mas, de repente, percebeu que sua
consciência tinha aumentado.
— Volte para o Reino do Rei Dragão. Quando meu filho
nascer, ensine a ele sua esgrima e seus talentos culinários.
Randolph não disse nada.
— Academia também — acrescentou Pax. — Dado o
parentesco do nosso filho, não há como nomearem um tutor. Estou
confiando-o aos seus cuidados.
Mais uma vez, Randolph ficou em silêncio.
— Também gostaria que você elogiasse tanto quanto possível.
Duvido que Benedikte seja capaz de fazer isso sozinha. Nenhum de
nós foi muito elogiado.
Finalmente, ele recobrou sua voz e disse:
— Hum, Vossa Majestade?
Uma rara expressão passou pelo rosto de Randolph, uma que
ele nunca havia mostrado a ninguém, nem antes nem depois de ser
chamado de Deus da Morte. Na verdade, depois de se tornar um dos
Sete Grandes Poderes, ele matou tantos homens — dezenas de
milhares deles — que parou de vê-los como pessoas. Ao longo de seus
longos anos, ele só fez aquela expressão em algumas seletas ocasiões.
Aquele era o olhar de alguém que não queria que a outra pessoa
morresse.
— O que foi? — Perguntou Pax.
— Sabe, eu gosto de você — disse Randolph.
Porém, ele não conseguiu pedir a Pax que não morresse. Ele era
o Deus da Morte, afinal. Sendo o quinto dos Sete Grandes Poderes,
viu inúmeros homens morrerem. Tinha visto diversas pessoas
escolherem uma morte nobre em vez de uma vida sem sentido. Ele
prestou homenagem a cada um deles.
O homem diante de Randolph era um rei, tinha um corpo
atrofiado, não era amado por seu povo, havia enfrentado uma guerra
civil logo após sua ascensão e provavelmente seria esquecido depois
de um bom tempo, apagado dos registros históricos. No entanto, ele
era um rei. Fez sua parte para receber o reconhecimento do povo e
ascendeu ao trono. Fazia sentido que quisesse morrer como rei. Seu
orgulho o levava a isso.
— É por isso que farei o que pediu, mesmo que custe minha
própria vida — jurou Randolph.
— Eu sei que que vai.
Randolph Marianne pode ter sido chamado de Deus da Morte
por outros, mas um deus da morte de verdade ele não era. Ele sabia do
homem que carregava o título antes dele. O antigo Deus da Morte
sempre ouvia as palavras dos moribundos antes de morrerem. Ele
honrava sua dignidade e os protegia até seu último suspiro. Foi por
isso que passou a ser chamado de Deus da Morte. Randolph seguiu
seu exemplo, pois o respeitava mais do que qualquer outro, e até
herdou seu nome.
— Bom, parece que o sol está prestes a se pôr. — Obtendo a
resposta que desejava, Pax desviou o olhar da paisagem externa e
dirigiu-se ao seu quarto. — Vou me despedir de Benedikte. Será nosso
último encontro. Você vai garantir que ninguém nos interrompa?
— Como desejar, Vossa Majestade.
Pax desapareceu dentro da sala e Randolph assumiu sua
posição do lado de fora. Depois de um tempo, ele se cansou de ficar
em pé e desceu para pegar uma cadeira. Assim que se sentou, apoiou
os cotovelos nos joelhos e entrelaçou os dedos, apoiando o queixo
neles. Ele manteve o olhar fixo nas escadas e na janela que ficava logo
atrás deles. Era como se quisesse queimar o que estava vendo — o
último vislumbre de Pax na cidade que ele governou — em sua mente.
— Para ser honesto, eu preferiria que você não morresse. —
Randolph murmurou, fechando os olhos lentamente.

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