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À primeira vista

A carruagem seguia velozmente pela estrada dos Viajantes. Uma


viagem improvável até pouco tempo atrás, ainda mais para nós, moradores do
reino Sombrio.
Mas depois da batalha sombria e de tantas mudanças a estrada não
oferecia mais perigos, ou não devia oferecer já que a paz tinha sido
instaurada, ainda assim uma escolta sombria acompanhava a carruagem,
cuidando para que eu chegasse em segurança ao destino.
Uma cortesia do senhor Rael ao meu pai, filho de sangue do terceiro
príncipe, o senhor Dimitri.
Pensar em meu pai me deixou ansiosa e mais uma vez sondei a frente
e soltei um suspiro cheio de receio tentando imaginar quanto ainda faltava
para chegar.
Estava curiosa para rever o lugar que nasci e que graças aos deuses
não cresci.
Sempre fui grata por ter sido criada no reino Sombrio, pois assim
conheci a dignidade de viver livre, mas desde que o reino humano se livrou
das antigas leis e do código de conduta que reduzia as mulheres a estado de
total servidão, cresceu em mim a vontade de participar ativamente dessas
mudanças, de ver de perto o lugar que nasci finalmente encontrando o
caminho da tolerância e da paz.
Mesmo que em meu íntimo eu ainda sentisse mágoa de como minha
família foi tratada. Fomos expulsas do reino, colocadas em uma carroça e
deixadas a própria sorte, minha mãe sabia na época qual o destino reservado
a ela e a mim, por isso implorou para que me poupassem, que ela iria sozinha
e sem reclamar se permitissem que eu ficasse dentro do reino.
Mesmo pequena eu me lembro do som do tapa estalando no rosto dela,
do chute que ela levou para subir logo na carroça.
Seu choro ecoou pela floresta e se somou ao de outras mulheres que
também estavam naquela carroça. Eu também chorei, mas na época foi por
ver minha mãe chorando, não por saber que estávamos sendo levadas para o
prostíbulo mais próximo.
Não chegamos lá, meu pai não permitiu que isso acontecesse. Mas
custou caro a ele, pois para manter o segredo sobre o nosso resgate na
estrada, ele aceitou sua nova condição e nunca mais nos procurou e nem deu
notícias, e tudo isso foi para nos manter em segurança, então sim, eu tinha
ainda algum rancor, mas era do antigo rei.
Mas então esse monstro morreu e as coisas começaram a acontecer
rapidamente, vilas pacatas no reino Sombrio se transformaram em
acampamentos de aliados, era uma guerra tendo seu início e cada detalhe de
como começou ainda estava fresco na memória...
Os preparativos começaram quando a terra tremeu com a sublevação
de todos os sombrios que dormiam. A surpresa estampada no rosto de cada
um dos moradores denunciava que nunca antes isso tinha acontecido. E do
nada, o Arconte de nossa vila ordenou que arrumássemos só o necessário
porque iríamos migrar para as casas mais escondidas do reino, pois uma
batalha entre homens, lobos, sombrios e Leviatãs logo teria início. Quando
viu o desespero dos rostos inexperientes com esse tipo de situação, ele nos
pediu calma e silêncio, pois nossa segurança dependia disso.
Essa foi a primeira vez que senti medo desde que cheguei ao reino
sombrio. Na nossa vila, o senhor Odair fez questão de nos escoltar, de cuidar
daqueles que cuidaram dele enquanto dormia. Em fila, seguimos silenciosos
por quase um dia, fomos escoltados por outros sombrios até então estranhos a
nós.
Na grande casa do senhor Alan foi para onde todos os humanos foram
mandados. Lembro-me ainda da decisão dos homens de manter a família
segura enquanto seguiam para a área de combate para alimentar os sombrios.
Algumas mulheres solteiras e outras viúvas também seguiram, e nós, que
conhecíamos um pouco sobre remédios ficamos para cuidar dos feridos que
logo começariam a chegar.
Foi um dia estranho, cheio de angústia com a espera e depois de terror
quando ouvimos os sons distantes quando a luta começou. Depois disso não
demorou para começar a chegar os primeiros feridos. Em sua maioria eram
humanos e alguns sombrios que precisavam de sangue.
Há uma regra entre os sombrios com a maneira de se alimentar.
Quando são mulheres eles bebem do pulso e quando são homens do pescoço.
Pelos costumes dessa raça uma mulher que não seja companheira não pode
ser mordida no pescoço, pois isso é falta de respeito e imoral. Porém eram
tantos a precisar de sangue para ativar a cura que no fim da tarde naquele dia
de batalha, trabalhamos com os pulsos enfaixados já que pelos costumes, um
sombrio também não pode nos curar com a saliva se não tivermos relação
afetiva.
Eu mal via o tempo passar, fazia tudo de forma mecânica, rezando
para que tudo acabasse e estava acabando, essas eram as notícias que
chegavam até nós.
Foi então que o senhor Odair chegou carregando um homem mais
morto que vivo. Sua aparência parecia cera de tão branco, claramente estava à
beira da morte e o senhor de nossa vila pediu para que cuidássemos desse
homem com atenção, pois a vida dele era preciosa para a paz, e que ele era
uma promessa de vida melhor para o povo do reino Humanis. Somente isso
nos fez respeitar o moribundo extremamente forte que foi depositado na
cama.
Senhor Odair não voltou a batalha depois disso, e usando sua
sabedoria de centenas de anos ele preparou misturas e emplastros e eu fiquei
a ajudá-lo todo o tempo.
Fiquei surpresa ao ver o ferimento grave no príncipe, ele tinha sido
trespassado por uma espada. O corte vertia tanto sangue que pensei por um
momento que ele sucumbiria, mas algumas horas depois ele dormia
profundamente e o senhor Odair nos garantiu que o perigo maior tinha
passado. Então ele partiu anunciando que precisava ajudar em alguma coisa
relacionada a caçar uma rainha e eu fiquei velando pela saúde do enfermo.
Não vi o tempo passar, nem soube quando era dia ou noite, pois não
saí do lado do príncipe naquela cama. Admirei sua bravura quando sequer
protestava com a dor ao ter as ataduras trocadas, mais ainda por ele estar se
agarrando a vida e ainda se preocupar com seus, pois em meio aos devaneios
de dor ele ficava pedindo para voltar para a batalha para cuidar dos homens
que dependiam dele.
Com poucos dias e muitos cuidados e líquidos, a cor começou a voltar
no rosto do príncipe, os lábios antes brancos e quebradiços começaram
também a voltar ao normal e então ele começou a mostrar a beleza de um
homem saudável.
Livre de minha preocupação com sua vida, eu comecei a prestar
atenção naquele rosto, era muito bonito. O queixo com traços fortes e uma
cicatriz branca em formato de y eram perfeitos somados a barba por fazer,
sem contar seus lábios que eram macios ao toque, sim eu toquei enquanto ele
dormia, desenhei de leve os contornos do rosto completamente admirada de
como tudo parecia harmonizar naquele rosto. Os traços masculinos eram
marcantes e fortes.
Não sou tola, sei que a beleza é algo perspectivo, mas eu fiquei o
tempo todo o admirando enquanto dormia tentando imaginar se era apenas
opinião minha ou se ele era admirado por várias mulheres em seu reino, não
consegui sequer ter uma noção de como era sua vida antes daquela semana.
Achei que minha curiosidade por ele era pela esperança de muitos
sobre ele, mas foi no dia que ele abriu os olhos que me vi presa em um
sentimento maior do que admiração. Seus olhos negros e febris foram direto
nos meus, e apesar de agonizado pela dor mostrou também curiosidade, eram
os olhos mais intensos e maravilhosos que eu já tinha visto. No pouco tempo
que nos encaramos foi como mergulhar em um mar negro pintalgado de
pontos de luz.
Ele gemeu qualquer coisa antes de voltar a desmaiar e sua voz mesmo
que proferisse palavras inteligíveis fez gelar meu estômago, pois era uma voz
masculina que remetia respeito, sem contar que era naturalmente sensual.
Esperei pelo resto da noite para ver se ele abria os olhos novamente, fiquei na
dúvida se torcia ou não para ele acordar lúcido e falar algo compreensível,
mas no dia seguinte todos nós fomos levados as vilas para ajudar a reparar os
estragos da batalha.
Também parti deixando o príncipe Tiago aos cuidados do irmão Odair
e então não mais o vi no reino sombrio, mas lembrança daqueles olhos
negros, daquele rosto... nunca esqueci.
Então em meio aos esforços para reorganizar nossas vidas e dos
moradores das vilas conheci Diana, já a conhecia antes como a protegida dos
príncipes, mas foi ali em meio a reorganização de tudo que nos aproximamos
de verdade. Ela e meu pai tinham uma amizade sólida, e por conta dessa
aproximação dos dois, eu e ela acabamos também nos tornando grandes
amigas. A alfa Jena também estava sempre conosco e logo ela também se
tornou importante para mim.
Quanto tudo novamente estava calmo e a batalha era apenas uma
lembrança ruim de nossas vidas, nós três passamos a dormir juntas pelo
menos uma vez por semana. De início era para organizar os preparativos para
a união dela com o segundo príncipe dos sombrios. Depois disso os nossos
encontros passaram a intervalos de quinze dias e então era mais pela amizade
e pelas risadas e conversas bobas. O senhor Nicolae nunca se incomodou com
isso, ele dizia que Diana parecia mais feliz depois que nos conheceu e ele
estava contente por ela ter amigos.
Achei que meu interesse em Tiago era algo passageiro, que foi
somente motivado pelo excesso de proximidade quando cuidei dele, no
entanto isso se provou errado quando nos encontramos novamente.
Foi logo após sua coroação, eu tinha seguido com meu pai para a casa
alugada pelos sombrios na vila dos Forasteiros.
Por uma semana ficamos lá e foi difícil para mim me esquivar todas as
vezes que Tiago aparecia. Algumas vezes sem ter como escapar acabamos
trocando algumas frases de conversa, mas em sua maioria eram
cumprimentos e perguntas relacionadas ao paradeiro dos outros para
eventuais reuniões.
Logo Diana e Eva também apareceram e então elas não mais me
deixaram trabalhar, ficamos a resolver assuntos referentes ao casamento de
Diana, nisso Jena e Celeste também estavam conosco. Ainda assim, mesmo
depois de findar as reuniões Tiago apareceu algumas vezes para tratar vários
assuntos e sempre dava um jeito de falar comigo. Ele estava curioso sobre
minha vida no reino sombrio, na verdade parecia curioso sobre muita coisa
sobre mim. Mas em meu nervosismo com seu interesse eu quase sempre me
esquivava.
Nunca antes senti essa mescla de medo e curiosidade, os poucos
flertes no reino sombrio eram sempre brincadeiras em fogueiras festivas e
sempre era com um amigo de infância. Por isso nunca levei muito a sério,
mas com Tiago era diferente, ele tinha uma presença tão marcante que me
deixava ansiosa, seu olhar, seu rosto bonito e seu porte altivo, somado ao
corpo forte me deixava tão intimidada que eu o evitava sempre que podia.
O mais engraçado é que na vila do senhor Odair, interagir com os
rapazes nunca me foi um problema, nem mesmo quando o príncipe Dimitri
apareceu na casa do senhor Alan momentos antes da batalha eu me senti
assim, retraída e sem saber como agir, era somente na presença de Tiago que
meu corpo e mente insistia em me pregar peças.
No dia que Diana leu sobre as mudanças no tratado, eu assisti sentada
na parte reservada aos sombrios. Eram leis novas que libertavam as mulheres
e os escravos.
Até eu me senti livre e nesse momento fiquei emocionada, queria que
minha mãe estivesse viva para ver esse dia.
Que ela estivesse junto as mulheres que emocionadas iam tentando
assimilar que estavam alcançando direitos nunca antes conquistados, pelo
menos não existia um humano que lembrasse o tempo em que as mulheres
foram tratadas igual aos homens, tudo o que se sabia sobre isso era oriundo
dos poucos livros que se perderam na guerra da Supremacia que aconteceu
séculos atrás.
Meu pai havia me dito que depois das novas leis, Tiago seria odiado
por seu próprio povo e que ele sabia disso. Mas eu vi sua postura no salão do
farol, vi que ele não se deixou levar nem mesmo pelas ameaças abertas que
recebeu. Ele não voltou atrás e fosse pela sua generosidade em abolir o
sofrimento dos mais fracos ou pela sua coragem em enfrentar uma massa de
futuros inimigos eu fiquei encantada. Nesse dia eu soube que estava
apaixonada.
Dívida de rua

No casamento de Diana passei toda a manhã ansiosa para ver Tiago, e


quando ele apareceu na porta para nos levar a floresta do rei eu o ignorei,
passei por ele como se me incomodasse sua presença e ainda arrastei meu
pobre pai comigo arrumando uma desculpa para sair logo de perto dele.
Mas todo esse asco era só fachada, porque assim que saí pela porta
não consegui esconder o que parecia tão obvio. Minhas pernas tremiam, meu
fôlego estava adensado e eu entrei na carruagem tão distraída que não percebi
o olhar paterno e sábio sobre mim. Somente quando ele perguntou sobre isso
que eu me toquei que entreguei tudo com minha reação. Disfarcei,
desconversei, mas não houve meio de dissuadir meu pai dessa desconfiança.
Por fim não conversamos mais sobre isso, ele ficou no reino humano
já que seu cargo de general dos exércitos o obrigava a se dedicar totalmente.
E eu voltei ao reino sombrio e por vários meses esperei ansiosa para que o
clima tenso entre os homens finalmente amenizasse. Só me distraía quando
recebia visitas e me acostumei com a noite das meninas, até abri meu coração
para Diana e Jena sobre meus sentimentos, claro que não me abri totalmente,
mas elas já sabiam antes de eu contar.
Achei que esperaria muito mais para finalmente encontrar coragem
para seguir ao reino humano, mas o recado que recebi adiantou as coisas.
Meu pai foi ferido gravemente. Priana já estava com ele há dois dias e só me
mandou o bilhete essa manhã contando o acontecido e pedindo desculpas por
não contar antes, mas foi um pedido de meu pai para não me deixar
preocupada, e claro que não funcionou.
Não recebi mais nenhum detalhe e senti medo de perdê-lo e mesmo
ele estando melhor eu decidi seguir para o reino. Não consegui imaginar algo
acontecendo a ele e eu não estar perto, sem contar que fui privada de estar ao
lado dele desde os nove anos, e se ele corria perigo eu tinha que estar ao seu
lado, ele é tudo o que tenho de verdadeiramente meu.
Os portões finalmente apareciam ao longe, as lanças de prata retorcida
para o lado de fora deixava a visão horrível. Sozinha vendo aquela coisa
perigosa se aproximar fez meu coração acelerar de receio e me senti pequena
e frágil. Respirei várias vezes forçando meu cérebro a recordar que não havia
mais guerra entre as raças, que aquelas lanças retorcidas era para repelir
Licans estranhos e desgarrados que não pertenciam ao grupo de matilhas do
Supremo Alfa Laican.
Paz... As raças estavam em paz, o único perigo para o reino humano
eram os próprios humanos que viviam nele. Eu sempre devia lembrar isso.
— Quem vem lá? — Ouvi a voz estranha, porém amistosa do guarda.
— Amélia, da Casa Góes.
Casa Góes... Achei estranha essa pompa. Talvez se devesse ao fato de
meu pai ser o general. Mas eles podiam enchê-lo de títulos, eu nunca ia
esquecer que até poucos meses atrás, se referiam a ele como o escravo André,
por isso, títulos, dinheiro e posição nunca compraria minha simpatia por esses
nobres que o humilharam no passado, até porque eu nunca deixaria de ser
simplesmente Amélia da vila do senhor Odair do reino sombrio.
O portão fechou com um estrondo e dei um pulo receoso, eu era bem
medrosa constatei esse fato com desanimo. Mas esse excesso de
estremecimentos com qualquer barulho desde que chegamos era por conta do
ar pesado nas ruas, tão hostil que me fez lembrar o dia que me arrastaram por
esse mesmo portão, estava vestida somente com as roupas do corpo e
segurando a barra do vestido de minha mãe.
Ela tossia tanto que pensei na época que a perderia ainda na carroça
que nos levava para um prostíbulo dentro da mata. Nunca antes senti tanto
temor dos soldados, e eu tinha me esquecido dessa sensação.
Já tinha vindo antes algumas vezes, mas dessa vez era diferente, a
hostilidade parecia palpável, era como se a qualquer momento o alarido de
espadas se chocando fosse começar nas ruas. Sem contar que dessa vez eu
estava entrando como nova moradora e não como visita, então eu estava
passando a fazer parte disso e uma curiosidade renovada com meu novo lar
me fez olhar ansiosa para a janelinha.
Imaginei que veria diferença nas casas da Vila dos Forasteiros, mas
não nas ruas. E foi nelas que tudo parecia diferente. Antes essas ruas eram
quase vazias, agora eu via tudo lotado de crianças maltrapilhas, pedintes,
mulheres magérrimas usando vestidos rasgados e sujos ainda ostentando o
modelo elegante me mostrando claramente que um dia elas foram cuidadas
como rainhas ou... Como um objeto precioso para os negócios dos homens.
Várias casas agora serviam como moradas de mendigos. Entendi o
motivo dessa sensação ruim de que uma briga poderia acontecer a qualquer
momento, era porque estava acontecendo uma discussão inflamada à frente.
Alguns soldados enxotavam com brutalidade vários invasores de uma casa
bonita, não mediam as palavras de baixo calão ao humilhá-los e junto com
esses soldados um senhor elegante levantava o punho em ameaça falando
impropérios para os miseráveis que invadiram sua propriedade.
Quase não vi mulheres passeando pelas ruas, pelo menos não
mulheres que estivessem limpas e cuidadas. E antes, quando vim de visita era
o que mais se via nas ruas. Não imaginei que as coisas estivessem tão ruins
assim, mesmo ouvindo as notícias que chegavam ao reino sombrio.
A carruagem de repente parou com um solavanco e tive que me
segurar no banco para não ser jogada à frente. Ouvi lamúrias, pedidos
misturados com variadas ameaças. A balbúrdia estava muito perto e coloquei
a cabeça para fora para entender o que se passava, vi um grupo grande de
famigerados ameaçando o cocheiro. Era claramente um assalto ao pobre
homem e meu medo ficou ainda mais forte. Mas eu entendi. Fome... Era isso
que os movia a cometer um ato tão desesperado.
Presa dentro da carruagem e sem poder arriscar sair eu tinha duas
opções: A primeira seria ordenar que o cocheiro incitasse o cavalo e forçasse
caminho. A segunda seria pegar minhas economias e negociar uma passagem
com eles. O problema é que a primeira opção era inviável, pois eu poderia
ferir mulheres, idosos e crianças desesperadas por comida, então...
— Ei! — Chamei com a mão uma senhora que dentre todos, era a
menos inflamada daquele grupo. Ela se aproximou receosa e manteve uma
distancia segura de mim, ficou esperando o que eu dizer.
— Se me deixar passar em segurança senhora, darei a vocês três
moedas de ouro, não posso dar mais, pois é tudo o que tenho.
Eu não fui verdadeira, claro que eu tinha mais um pouco comigo, mas
temi encontrar a frente uma situação parecida com essa e até chegar ao bairro
nobre, eu tinha um percurso considerável a seguir.
Ela sopesou minha oferta com os olhos estreitos em minha direção e
logo como se tivesse feito uma soma mental ela assentiu. Puxou um rapazote
que não devia ter nem quinze anos e cochichou em seu ouvido, ele ouviu
atento e pareceu maravilhado, fiquei esperançosa de que desse certo para que
a opção número um que me restava para conseguir avançar, fosse
definitivamente descartada.
Logo ele gritou para que se calassem e esperassem, para minha
surpresa todos obedeceram e ele veio em direção à janela, me avaliou com
curiosidade por um longo tempo. Não parecia querer me fazer algum mal e eu
realmente estava curiosa para saber quem era o rapaz. Acabei deixando o
receio de lado e perguntei.
— Você é o líder deles?
Ele torceu a boca. — Desespero não é liderança moça. A fome faz
milagres, tanto que eles depositam em mim a esperança de conseguir algo
para comer. Somos todos esquecidos, por isso também esquecemos as
diferenças.
Assenti e apertei os lábios para conter mais uma pergunta que estava
desesperada para sair. O rapazote sorriu de lado.
— Mais uma pergunta somente, depois disso cada um segue seu
caminho.
— De onde vocês são?
— Da vila dos Procriadores. Todos nós. — Ele apontou para a
pequena massa que nos observava. — Ali você encontra as crianças que
estavam sendo preparadas para a encomenda, esposas que vieram do harém e
escravos largados na rua depois que ganharam a liberdade. Então não fique
assustada, só queremos comer.
Ele me avaliou um pouco mais e acabou sorrindo. — Você é a
primeira que não manda seu cocheiro nos atropelar, por isso. — Ele fez uma
mesura desengonçada. — Tem minha gratidão e acredite nesse miserável que
vos fala, no código das ruas coisas assim não são esquecidas.
Limpei a garganta um tanto sem graça pelo olhar de simpatia do
rapazote, e pelas palavras dele, afinal tinha passado sim pela minha cabeça
forçar passagem e me senti horrível por ter pensado isso. Acrescentei uma
moeda de ouro como pedido silencioso de desculpas e estiquei a mão para
fora da janelinha, ele fez o mesmo para receber as moedas. Quando as
depositei em sua palma seus olhos brilharam ao ver as quatro moedas e então
ele voltou seus olhos para mim e assim ficou por tanto tempo que senti
minhas bochechas corarem com o escrutínio.
— O que foi? — Perguntei um pouco ríspida demais por estar
incomodada e ele deitou a cabeça de lado sorrindo com simpatia.
— Só estou gravando seu rosto, moça. Um dia pagarei essa dívida.
— Não se incomode só me deixe passar, meu pai está doente e preciso
vê-lo.
— Como se chama?
Demorei responder, não sabia se era seguro dizer a ele meu nome de
verdade, pensei em mentir, mas quando abri à boca a verdade saiu
automaticamente.
— Amélia.
— Daniel, a seu dispor.
Com um sinal dele a rua foi completamente liberada e finalmente
conseguimos passar e ainda o ouvi gritando que não ia esquecer esse gesto.
Recostei-me no banco aturdida com o que aconteceu e estranhando a calma
que senti, afinal para quem estava com tanto medo quando passamos pelo
portão não imaginei que reagiria assim, mas de uma forma estranha, não vi
neles perigo, vi desespero e esperança de receber ajuda, somente isso.
Enquanto ainda passávamos por eles, ouvi várias vezes palavras de
agradecimento da pequena massa que foi ficando para trás. Não sabia o que
pensar, não imaginei que teria como recepção uma dose cavalar da realidade
do reino, com isso me senti esquisita, emocionada por tê-los ajudado a
conseguir comida por pelo menos alguns dias e triste por ver a fome naqueles
olhos.
Não era justo isso, passar fome era cruel. Menos justo ainda era ver
alguns com tanto e outros sem nada. E a imagem do homem elegante
retirando a força os indigentes que invadiram sua propriedade me voltou,
talvez isso fosse algo que eu teria que ver sempre agora que estava vindo para
ficar definitivamente e eu não imaginei que ficaria tão indignada com essa
primeira dose da realidade do reino Humanis.
Ainda que estivesse chateada, acabei deixando um sorriso escapar ao
ver a união deles, isso podia ser uma lição para quem olhasse com mais
atenção. União é força bruta e eles estavam mostrando isso, poderia tanto ser
perigosa quanto benéfica uma organização dessas entre eles.
— Senhora, chegamos.
Tinha me distraído e agora voltando a realidade abri a portinhola,
gemi baixinho quando desci da carruagem e vi as imensas casas na vila
nobre. Não parecia ser um lugar que meu pai fosse escolher de livre vontade
para morar.
Priana apareceu na porta e sorriu ao me ver, alguns criados
começaram a cuidar das bagagens e me sorriram amigáveis quando agradeci.
Ela me abraçou assim que entrei pelo portão.
— André ficará muito feliz em vê-la. Peço desculpas por não avisar
antes, mas ele não permitiu.
Rolei os olhos. — É a cara dele fazer uma coisa dessas. Ele está bem?
Ela assentiu e seus olhos ficaram vermelhos, típico de um sombrio
quando está irado.
— A flecha passou perto de seu coração, se tivesse acontecido eu teria
que levá-lo ao reino Sombrio para receber ajuda devida. Foi um ataque
encomendado, seu pai não é bem quisto nesse reino, é sabido por todos que
ele teve participação ativa nas mudanças. Mas ele vai levantar logo daquela
cama e não deixará barato isso, seu pai é o homem mais inteligente que
conheci tirando o meu pai Supremo, e como ele é meio humano tem mais
chances do que eu para descobrir o que aconteceu.
Assenti preocupada. — Acho que também o fato de ele ter sido
escravo um terço da vida colaborou para aumentar esse ódio.
Priana concordou. — Ainda mais por seu pai ser general. Esse cargo
sempre foi cobiçado pelos de casta mais alta, e ele um escravo subindo direto
ao posto mais alto do reino não está ajudando muito para arrefecer esse
rancor.
Não respondi, na verdade fiquei muda, precisava aprender a lidar com
essas coisas, não estava acostumada a nada disso e me pareceu mais difícil
agora que era na prática do que antes quando apenas imaginava o tipo de
coisas ruins que encontraria ao vir para cá. Ao subir as escadas vacilei um
pouco por conta das minhas pernas que tremiam, ela viu meu estado e me
segurou falando brando.
— Ninguém fará mal a ele, confie nele em mim, e no seu rei.
Pisque várias vezes e continuei sem responder, é difícil controlar o
medo de perder alguém quando ele se encontra em perigo, mesmo que nos
garantam que isso não irá acontecer.
Quando ela abriu a porta eu parei no alpendre. — Sabe quem fez isso?
— Estava investigando, mas André me garantiu que não adianta
encontrar o mercenário que aceitou fazer o serviço, ele diz que precisa
encontrar quem encomendou a morte dele e para isso somente não
procurando já que o mandante precisa se sentir seguro para dar outro passo.
Balancei a cabeça contrariada com esse pensamento. Meu pai queria
se colocar em perigo logo, logo. Não soube o que dizer a Priana e ela assentiu
com o olhar compreensivo como se pensasse o mesmo que eu.
Entrei na casa nada modesta. Não sabia quanto meu pai ganhava, mas
fiquei surpresa com o luxo e o tamanho do lugar. Priana acompanhou meu
olhar.
— Foi o rei humano que cedeu a casa, seu pai também achou
exagerado e comprou uma mais modesta na vila dos Forasteiros, mas não deu
tempo de mudar, foi ferido antes disso.
Fiquei aliviada em saber que não ficaríamos muito tempo ali. Olhei
para a escada ansiosa por vê-lo. — Ele está lá em cima?
— Na segunda porta.
Sorri para ela e subi as escadas, fazia um mês que não o via, a saudade
era grande. Quando cheguei à porta bati de leve com receio de acordá-lo.
— Entre, filha.
Sorri contente com essa recepção, talvez fosse meu cheiro ou minha
voz, meu pai era mestiço sombrio, claro que tinha os sentidos mais apurados.
E mesmo que não fosse isso, poderia ter sido Priana que o avisou
mentalmente de minha chegada, fosse como fosse, ainda me era estranho ver
meu progenitor com superpoderes.
Meu pai e Priana tinha uma história interessante, lutaram juntos na
batalha sombria e quando ele apareceu na casa do senhor Alan preocupado
com o príncipe, lembro que ela não o largou um minuto, ficou perto o tempo
todo e depois de tudo, eles fizeram muitas rondas lado a lado, e viviam juntos
para lá e para cá, até que um dia meu pai chegou me olhando ansioso e me
contou sobre os dois serem companheiros, pois tinham feito o ritual de alma e
o de corpo, e como eu já conhecia a maneira sombria de reconhecer os
companheiros, eu soube que essa união era algo inquebrável e eterno.
Limpei tantos espelhos nas mansões dos clãs sombrios que na hora
passou pela minha cabeça perguntar como seria um espelho de uma sombria,
já que elas eram tão poucas, mas não me atrevi a tanto. Ele esperou minha
reação, parecia nervoso com o que eu ia dizer, no entanto eu fiquei feliz por
ele. Conhecendo os sombrios e seus costumes eu já estava desconfiada disso
desde que vi a maneira como ela o olhava.
Nem sei por que passou pela cabeça dele que eu fosse reagir mal,
afinal havia anos que minha mãe tinha morrido, e depois de tudo o que ele
passou era mais que justo que coisas boas acontecessem com ele. Foi essa
resposta que dei e claro que sorri feito uma boba por um bom tempo e quis
saber de tudo, o que miseravelmente ele omitiu, falou que essa parte não era
da minha conta e que bastava que eu ficasse feliz por ele e claro que fiz um
enorme bico pela negativa.
— Você é romântica filha. — Foi essa frase que ele usou para me
calar quando insisti para que me contasse como tinha sido o ritual, e
funcionou lindamente porque desconversei e o deixei com suas coisas
arrumando uma desculpa qualquer sobre ir ver se o senhor Odair precisava de
alguma coisa.
Nunca soube por que ele tinha dito isso, e o pior é que Diana e Jena
também disseram isso várias vezes sobre eu ser uma romântica incurável o
que era esquisito já que nunca me viram com um homem. Só ouviram sobre
meus sentimentos por Tiago, e mesmo assim não dei detalhes. Afinal sentir
algo por ele é uma coisa, contar detalhes sobre isso a alguém é outra bem
diferente. Na verdade não era nada fácil elas conseguirem arrancar algo
sobre. Talvez fosse o jeito que eu ficava quando elas me pressionavam, não
sei, mas não sou romântica, ou não sei se sou, na verdade só vou saber
quando acontecer. E agora também não era hora para pensar nisso.
Abri a porta, estava tudo escuro. Dei um passo vacilante com receio de
tropicar em algo, por sorte uma chama tremulou iluminando o caminho
quando ele acendeu uma vela na cabeceira. Olhei para seu rosto bonito e
sorridente, o peito musculoso estava nu e enfaixado, vi a mancha rosada em
seu peito e meus olhos encheram de água.
— Pai?
Ele estava abatido, ainda assim não deixou o sorriso sair de seu rosto e
estendeu os braços para mim. Sentindo-me novamente a menina de nove anos
eu corri e o abracei com delicadeza, receosa de machucá-lo.
Enxuguei o rosto e passei os dedos por sua bochecha. — Você é tão
forte pai, como conseguiram pegá-lo? Como isso aconteceu?
Senti sua mão me acariciar os cabelos. — Não sou tão forte assim
filha, é sua expectativa sobre mim que é alta demais. Mas tudo aconteceu
rápido, eu estava voltando para casa após uma reunião do conselho, senti uma
sensação estranha de perigo, mas não tive tempo de entender o aviso de meu
instinto. A flecha me atravessou o corpo. Só isso, então eu desmaiei no
cavalo e ele encontrou o caminho sozinho. Por sorte eu não estava longe de
casa. Fui ajudado pelos criados e Priana apareceu meia hora depois.
Continuei abraçada a ele, minhas entranhas roíam ao imaginar várias
hipóteses catastróficas se o assassino tivesse o seguido para garantir sua
morte ou então se não tivesse nenhum criado para ajudá-lo. Tanta coisa
poderia ter acontecido.
Ele viu minha preocupação. — Não se preocupe filha, aumentaram a
segurança ao meu redor, e já tenho uma desconfiança de onde encontrar o
assassino, acredito que ele seja da casta neutra, é lá que reside esse tipo de
gente. Priana deixou de investigar a meu pedido, mas como faz dois dias
estou bem melhor e ela voltará ao reino sombrio essa madrugada.
— Porque não ficam juntos de uma vez?
Ele sorriu. — Foi nossa escolha que fosse assim, ela é soldado e eu
também, ela tem obrigações no reino sombrio e eu no reino humano. Nossa
união apesar de não ser convencional, ainda é algo maravilhoso, mesmo com
a distância e os encontros esporádicos, nossa fidelidade é sólida e o amor que
nos une também.
Não toquei mais nesse assunto dos dois, o que mandava para mim era
ele estar feliz e quando se tratava de sua vida emocional ele parecia muito
bem. Ficamos conversando enquanto eu limpava o ferimento, troquei as
ataduras e preparei um emplastro para ajudar na cicatrização. Quando ele
dormiu, desci e encontrei Priana que me deu adeus adiantado, dizendo que
voltaria madrugada para ficar com ele, mas eu não a veria do dia seguinte.
Eu também me recolhi cedo. Apesar de ainda não ter sequer
completado um dia nesse reino eu já tinha visto coisas demais e precisava de
um descanso da mente e do corpo.
Reencontro

Quando fiquei sozinha, me senti oprimida com o tamanho da casa, lá


fora o dia já estava se despedindo deixando uma cor alaranjada que fazia os
vitrais da sala brilharem com extrema beleza.
Novamente girei o corpo olhando os detalhes das almofadas, o tapete
enorme no chão, os quadros opulentos na parede e o dourado em excesso nos
enfeites das molduras. Não era uma casa que combinava conosco e me senti
incomodada ao lembrar o pequeno grupo de famigerados que nos bloqueou
na rua, uma discrepância tão grande de distribuição de recursos. Tão injusto
ver uns com tanto e outros com nada.
A batida urgente me arrancou de meus pensamentos. Andei silenciosa
até a porta, estava receosa de quem poderia estar batendo. Comecei até
cogitar o que eu faria. Se fosse outro assassino eu conseguiria pelo menos
ganhar tempo para alertar meu pai? E se fosse um dos soldados dele
preocupado com seu estado?
Não querendo arriscar ser pega de surpresa, puxei um pouquinho a
cortina da janela e espiei na direção da porta. Meu coração disparou ao ver os
cabelos negros e lisos caídos naquele rosto. Não pude deixar de reparar que
ele estava ainda mais forte do que eu me lembrava, pois seu corpo largo e os
braços fortes se exibiam soberanos mesmo por cima do tecido da fina camisa.
Novamente ele bateu soltando um suspiro pesado, sua postura
demonstrava impaciência e soltei uma imprecação baixinha. Não tinha como
fugir, tinha que abrir a porta. Andei quase sem fazer barulho até a maçaneta,
não sabia como agir diante da visita inesperada. Por fim respirei fundo para
juntar coragem, virei a chave e abri de uma vez.
Tiago ficou surpreso, seus olhos negros muito abertos se estreitaram
confusos para mim, suas narinas dilataram e ele soltou o ar devagar pela boca
semiaberta. Era compreensível visto que eu não tinha avisado ninguém que
viria, mas ainda assim não esperava que ele ficasse tão afetado em me ver e
não consegui interpretar se ele estava feliz ou não, de todo modo eu fiz uma
vênia respeitosa.
— Majestade.
— Não faça isso. — Pelo tom de sua voz ele parecia chateado e
levantei os olhos cheios de confusão para ele. Ele já devia estar acostumado a
esse tratamento que o título lhe conferia.
— Como?
Evitei olhá-los nos olhos, ele podia até dominar meus sonhos, mas ele
era o rei e eu não podia esquecer isso. Constrangida ao extremo prendi o ar
quando senti seu dedo em minha pele e levantei o rosto quando ele segurou
meu queixo. Não foi fácil manter a respiração regular quando o encarei. Ele
realmente parecia chateado.
— Peço que não se curve, não quando não tenho os malditos corvos
me observando. Vim como homem e não como rei.
Fiquei sem reação. Me lembrei que deveria tê-lo convidado a entrar há
vários minutos, na verdade acho que minha surpresa e minha confusão com a
aproximação excessiva de nossos rostos ficou muito clara porque um lado de
seus lábios subiu em um sorriso torto e malicioso.
— Mas se não for pedir muito, gostaria de ser convidado a entrar, está
esfriando sabe.
— Ah! Claro... Perdoe-me. Entre por favor.
Puxei o rosto para me livrar de seus dedos que não tinham desgrudado
do meu queixo e saí do caminho, ele entrou me olhando de canto e murmurou
um obrigado nada amistoso, porque ele tinha se irritado agora eu não fazia
ideia. Ele não parecia entender que para mim era difícil saber como agir, ou
como trata-lo, na verdade esse jeito dele estava a me tirar a paciência. Ele
olhou para a escada.
— Como está André?
— Ele dorme, eu ia agora mesmo preparar algo leve para ele. Então...
— Olhei para o sofá e depois para a escada tentando decidir o que fazer.
Podia convidá-lo a sentar ou então convidá-lo a subir para ver meu pai.
Estava quase desesperada para me livrar daquele olhar que parecia condenar
cada ação minha, quando ele me segurou pela mão e me arrastou para a
cozinha.
— Não vou acordá-lo, venha, vou te ajudar.
— O que?
Eu não estava sequer acreditando que ele já tinha me tocado em duas
partes do corpo em menos de quinze minutos de conversa enquanto eu nem
mesmo conseguia deixar a confusão em como agir perto dele de lado, estava
ficando injusto. No momento o que eu queria era me livrar dele e não tê-lo
comigo na cozinha! Isso era... Estranho e perto demais, ele não via que eu
tinha acabado de chegar? Que eu sequer sabia como proceder perto dele?
Puxei minha mão em um lapso de sanidade recuperada e mau humor
despertado e ele parou confuso. Soltei o ar para evitar falar ríspida.
— Perdoe-me majestade, mas não preciso de ajuda. – quase falei que
ele devia perguntar se eu queria companhia antes de me arrastar, mas me
contive. — Quero dizer, pode subir para ficar com meu pai se quiser, eu
cuidarei do jantar dele.
Ele negou com a cabeça e falou decidido. — Não. Eu vou com você. E
por favor, pare de me chamar assim, de me tratar como um maldito estranho
Amélia, você faz isso desde que nos conhecemos. Já pedi naquele dia no
casamento de Diana que quando estivéssemos somente nós, os amigos, que
não me tratassem assim. Isso vale para você. André é como um pai para mim
então...
Senti uma pontinha de irritação. — Eu sou como uma irmã.
Concluí não muito segura se não demonstrei a mágoa na voz. Ele
pareceu surpreso como se não fosse isso que esperava ouvir, por fim assentiu
e falou seco.
— Exatamente.
Sem falar mais nada, ele virou e seguiu para a cozinha, eu ainda fiquei
um tempo ali, refletindo sobre isso e ainda amargando a estranha conversa.
Certo... Então isso seria mais difícil do que pensei. Irmão... Palavra
completamente oposta para a maneira que eu o via. Já que de fraternal meus
sentimentos não tinham nada, era muito carnal para compará-lo a um irmão.
— Você não vem? Não sei nem picar uma batata. — Tiago gritou da
cozinha.
Torci a boca e pisei duro. Então porque se ofereceu para ajudar se não
sabia o que fazer? Inútil! O xinguei em pensamento e abri a porta da cozinha
com força descontando nela minha exasperação, não imaginei que meu
primeiro encontro com ele depois de tanto tempo fosse assim. Tão
espalhafatoso.
Com a oferta e insistência, pensei que Tiago seria ativo na cozinha já
que parecia tão disposto a ajudar com o jantar, mas toda a ajuda que obtive
foi uma vasilha de água que ele colocou no fogo quando pedi. Isso depois de
derrubar várias panelas e ainda quase apagar o fogo ao derrubar metade da
água da vasilha.
Acabei esquecendo o nervosismo e perdi completamente a paciência
com sua ajuda dispensável quando ele se ofereceu para colocar os legumes na
água, minha raiva foi porque ele nem esperou eu explicar que não era o
momento de fazer isso e acabou enchendo a panela com legumes que eu nem
tinha limpado ainda.
Acabei fazendo imenso esforço para não liberar os tantos palavrões
que me vieram à mente e pedi educadamente que ele fosse ver se meu pai
estava bem, dei graças quando ele saiu da cozinha e nesse momento de
agradável solidão corri refazer tudo já que tinha perdido o primeiro preparo
para terminar a sopa.
Quando finalmente terminei pedi a uma criada que levasse ao meu pai
quando ficasse pronto e subi as escadas sem fazer barulho, quase como se
fosse uma fugitiva só de receio que o barulho o fizesse abrir a porta e me
pegasse no flagrante a meio caminho do quarto que os criados levaram a
bagagem, mas por sorte consegui chegar e fechei a porta sem ser notada.
Tomei um banho tão demorado que a água da banheira chegou a
esfriar, me troquei e deitei determinada a dormir rapidamente, porém por
várias vezes levantei a cabeça tentando a todo custo ouvir as vozes, claro que
a voz que eu queria ouvir era de Tiago.
Fechei a cara todas as vezes que ouvi, queria ver se meu pai precisava
de alguma coisa, mas o rei não parecia ter pressa de ir embora. E
sinceramente eu não sabia como agir perto dele. Ainda mais depois de
conhecer um lado tão abusado, claro que eu entendia que ele tinha intimidade
com meu pai e já devia estar até acostumado a frequentar a casa, mas e eu?
Ele não via que para mim era ainda tudo novo? Sem contar que...
Irmã... Cobri a cabeça completamente chateada. Eu suspirando meses
por ele, ficando sem graça perto dele e ele me vendo como uma irmã? Em
que momento eu sonhei com isso? Nenhum claro, em meus devaneios não era
assim que nos relacionávamos.
Mordi a carne da bochecha para voltar a pensar claramente. Eu não
devia ser o tipo de mulher que ele gostava, talvez ele tivesse acostumado com
as beldades do harém, não com alguém como eu. Nem sei por que eu estava
chateada, afinal ele era um rei e eu a filha de um escravo odiado, sem contar
que os rumores sobre ele precisar escolher uma noiva dentre as duas castas
mais altas já era de conhecimento de todos no reino sombrio.
Isso era coisa minha desde o inicio, nunca alimentei esperanças de
nada, mas claro que era custoso deixar de devanear com ele. Mas agora já
sabendo como ele me via eu já imaginava o tipo de moça que ele escolheria
quando o momento chegasse, uma nobre cheia de predicados que não faziam
parte de meus costumes. Então realmente eu precisava vê-lo como um irmão
e nada mais do que isso, mas olhar para ele de modo fraternal e não carnal, ia
ser difícil.
Antes de adormecer ouvi novamente a voz dele ao longe e mesmo
sonolenta senti um friozinho no estômago. Em meu devaneio entre sono e
pensamentos concretos eu tive certeza que não ia conseguir olhá-lo como
nada além do lindo homem que arrebatou meu coração somente com um
olhar estrelado. Essa foi minha certeza antes de me entregar ao sono.
Preconceito

O sol já estava despontando quando terminei de me arrumar. Estranhei


a cama e por isso tinha dormido mal, sem contar os ecos da casa muito
grande que me causaram medo na madrugada. Definitivamente ali não era
lugar para mim e quando entrei no quarto de meu pai, ele sorriu quando me
viu.
— Pela sua aparência duvido que teve uma boa noite de sono.
Neguei com desânimo. — Esse lugar...
— Também não me acertei aqui. Encontrei uma casinha perfeita no
bairro dos Forasteiros. Vou me mudar assim que arrumar os carregadores.
Vai comigo filha? É uma casa modesta em vista dessa, mas...
— Pelos antigos, já estou ansiosa. A opulência dessa casa me afoga e
me intimida.
Ele assentiu satisfeito. — A mim também, sem contar que no bairro
dos Forasteiros é mais perto do portão. Vai ser melhor para Priana.
Franzi o cenho e coloquei a bandeja em seu colo. Me sentei com
cuidado na cama.
— Por quê?
— Nossa conexão fica maior quando estamos mais próximos.
Sorri, achei bonito. — Diferente.
Ele sorriu de volta com os olhos azuis escuros cheios de amor, fiquei
contagiada com isso e soltei um suspiro, talvez minha reação tenha sido um
pouco sonhadora demais para a percepção afiada de meu pai, porque seus
olhos estacionaram nos meus cheios de entendimento. Logo ele fingiu se
entreter com a bandeja e perguntou.
— Como foi seu encontro com Tiago?
— Normal. — Tentei falar sem mostrar qualquer emoção. Ele sorriu
ainda entretido com a bandeja.
— Engraçado, ele parecia um tanto eufórico quando contei que você
veio dessa vez para ficar. Estranhei essa alegria já que não é muita coisa que
o alegra ultimamente. — Ele olhou para mim. — Há algo que queira me
contar?
Levantei e segui em direção à porta. — Bom... Pelo que entendi,
somos algo como irmãos já que ele tem você como um pai. — Abri a porta
sem olhá-lo. — E descobri ontem que ele é inútil na cozinha. Talvez até
morresse de fome se precisasse se virar sozinho.
Saí e fechei a porta, ainda ouvi a risada baixa dele quando desci as
escadas.
Imaginei que ficaria dias a cuidar de meu pai, mas naquela mesma
tarde ele já estava de pé e o ferimento estava cicatrizando lindamente. O
atentado tinha acontecido há três dias e ao que parece, esse tempo foi o
suficiente para que a parte sombria agisse no ferimento.
Nos mudamos na tarde seguinte, e mesmo com a boa aparência pedi a
ele que não fizesse esforço e ele não discutiu sobre isso, parecia realmente
determinado a se curar completamente. Por sorte não tinha muito a ser
carregado e quando chegamos à casa da vila dos Forasteiros fiquei contente
com a mobília mais simples e mais útil.
Me senti mais eu mesma sem a imponência da casa da vila Nobre,
claro que estava maluca para amanhecer o dia para ir fazer algumas compras
no mercado colorido. Primeiro porque queria conhecer melhor o lugar, depois
porque a casa precisava de algumas coisas. Meu pai não levantou objeção
quando eu disse a ele que sairia para às compras, me deu uma soma em
moedas e me pediu para não sair das vistas dos soldados que ele mandaria
para cuidarem de mim.
Não discuti sobre isso, claro que era estranho andar com escolta, mas
se tentaram feri-lo e tinham conseguido, a mim não seria difícil matar, afinal
eu sendo completamente humana bastaria uma flechada nem tão grave quanto
a de meu pai e eu não conseguiria resistir.
Dormi melhor na cama macia, mas nem tanto do meu quarto, não que
eu fosse minimalista ou tivesse aversão ao luxo. O problema é ostentar um
luxo expressivo quando nas ruas vários estão se encolhendo um nos outros
para se aquecer a noite. Também não era hipocrisia já que não se abre mão de
uma riqueza que nunca foi sua de verdade e aquela casa na vila Nobre, era
meramente emprestada por conta dos cargos de general e conselheiro que
meu pai tinha, então ficar lá e tentar combater a pobreza, aí sim seria
hipocrisia e por sorte meu pai pensava como eu.
Estava renovada e pronta para conhecer tudo. Quando estava de saída
vi a carruagem elegante que parou na porta de casa e dei graças pelo cocheiro
já ter incitado os cavalos, alguns segundos de atraso e eu teria que novamente
receber o rei e agora, depois do fiasco do encontro anterior, isso não me
pareceu pitoresco. Vi o rosto de Tiago fixo na minha carruagem, ele não
parecia contente em me ver sair, o que me pareceu estranho.
O mercado era imenso, e sem ter para quem perguntar sobre as coisas,
perguntei a um dos guardas que andava perto já que a rua era estreita. Ele
respondia a tudo de forma nada amistosa, parecia um tanto incomodado em
ter que me responder respeitosamente, me senti inquieta com isso e quase
perguntei porque ele estava me tratando assim. Depois me lembrei que aqui
eram as mulheres que deviam respeitar os homens e não ao contrário.
Acabei me retraindo e me sentindo farta do olhar do soldado para
mim. A compra acabou antes mesmo de começar direito, comprei as
primeiras coisas que encontrei e decidi voltar para casa, não me sentia tão
segura perto de um soldado que parecia me odiar somente por ser mulher,
tentei imaginar como tratavam meu pai e apostei uma moeda de ouro comigo
mesma que para ele, esses soldados mostravam total respeito, afinal, agora
era dele que dependia o sustento deles.
Quando cheguei encontrei meu pai se arrumando para sair. Sorri para
ele e tentei agir naturalmente, mas não funcionou muito bem. Ele parou de
abotoar a camisa e cerrou os olhos em minha direção.
— O que aconteceu? Seus olhos brilham tão intensamente que poderia
iluminar a sala.
Titubeei, não sabia se falava sobre o soldado ou inventava uma
desculpa qualquer, porém eu nunca fui calma, e estava fazendo de tudo para
deixar o gênio forte não ditar meus atos. Ele se aproximou e segurou meu
rosto.
— Não me esconda nada, é muito importante que não haja segredos
entre nós.
Assenti, ele tinha razão e eu tinha muito a aprender ainda sobre como
viver nesse reino sendo uma mulher, o que nunca antes me foi difícil já que
no reino sombrio isso nunca foi uma pauta para conflitos.
— Um soldado que fez minha escolta não parecia muito satisfeito em
ter que cuidar de minha segurança, na verdade acho que ele preferia estar do
lado que me oferece perigo do que estar do lado que me protegeria caso
algum perigo me rondasse.
— Qual o nome dele?
Acabei esmorecendo ao ver o semblante sério. — Pai, eu não quero
prejudicar ninguém, acho que é o costume, não acho que...
— Não Amélia, eu preciso saber, não esqueça que é importante poder
confiar nos guardas que fazem a segurança pessoal.
Soltei um suspiro mostrando a derrota. — O nome dele é Josias. Não
sei mais nada sobre ele.
— Vou mudá-lo de regimento, mas fico preocupado em não ter
ninguém em que eu confie para proteger você.
— Talvez com o tempo eu possa conhecer melhor as pessoas e
encontrar alguém de confiança. Até lá vou suportar o olhar arrogante dos
soldados.
Meu pai me encarou cheio de ceticismo. — Se conseguir sequer fazer
amigos aqui já será um grande milagre, mas caso consiga um feito desses,
pensarei a respeito.
Pensei no rapazote do primeiro dia. Talvez ele aceitasse um emprego.
— Conheci um rapaz ainda novo que me pareceu descente.
Meu pai me lançou um olhar sério. — Um dia não basta menina,
precisa saber mais sobre esse rapaz, e não ficará sem escolta, por agora
trocarei o soldado que não se acertou com você, até lá tente saber mais sobre
esse rapaz, isso se ele for mesmo descente como diz, se não for e lhe oferecer
perigo, os soldados cuidarão dele.
Limpei a garganta um tanto surpresa. — Pensei que ia me proibir de
andar por aí, afinal está tudo um caos.
Ele negou. — Cercear sua liberdade não vai mudar o reino, ao
contrário, se todos virarem reféns do medo isso aqui nunca vai melhorar
filha, claro que peço que tome cuidado e que não acredite em qualquer um,
mas você é esperta, viu pessoas boas o suficiente na vila do reino Sombrio
para saber reconhecer os de má índole no reino humano. É com isso que
estou contanto, com sua vivência com boas pessoas para saber evitar as más
pessoas.
Estreitei os olhos, aquela fala me lembrou muito o senhor Rael e seu
dom do sábio, ele acabou rindo.
— Isso mesmo. Sinto muito, mas eu pedi conselho ao Pai supremo, eu
precisava saber lidar com sua estadia aqui sem tratá-la como prisioneira, e foi
isso o que ele me disse, que eu não devia me preocupar com você em relação
a isso porque você saberia até melhor do que eu a descobrir em quem confiar.
— Agradeço por me tratar como a adulta que me tornei e por confiar
em mim, só espero conseguir ser sensata sobre isso para poder fazer jus a sua
confiança.
Ele me beijou a testa e seguiu para a porta. — Só espero que não afete
essa bondade em seus olhos viver aqui, é disso que tenho receio filha. No
mais, da segurança eu já tomei providências.
Ele saiu em seguida me deixando com essa conversa a me martelar um
bom tempo, o problema é que ouvindo isso fiquei curiosa com o que eu não
estava vendo nesse reino. A preocupação sobre me afetar por viver aqui não
podia ser simplesmente por conta de alguns miseráveis nas ruas.
Mal tive tempo para refletir melhor sobre o que ele tinha dito e o vi na
porta me olhando de modo misterioso como se de repente tivesse lembrado
algo importante.
— Acho que você devia ver como as coisas acontecem nas entranhas
da corrupção.
Apertei os olhos e balancei a cabeça para mostrar que não entendi e
ele riu. — Vou te levar para assistir uma reunião do conselho.
Sem precisar de minha resposta ou vendo o meu silêncio como um
sim, ele segurou minha mão e seguimos para a carruagem, não tive nem
tempo de me arrumar e não sei por que queria fazê-lo já que tinha me
arrumado para ir ao mercado colorido. Entrei na carruagem e não consegui
dizer uma palavra que fosse quando ele falou o destino.
Eu tinha ido ao castelo somente no casamento de Diana, mas foi no
jardim e não participei do baile que Tiago deu naquela noite, na verdade fui
embora assim que o casal deixou o lugar. Me lembro ainda do toque dele em
meu braço me perguntando porque eu estava com tanta pressa.
Meu pai segurou minha mão e franziu o cenho. — Está com as mãos
suadas, tudo bem?
Apertei os lábios. — Essa será a primeira vez que entrarei no castelo,
estou receosa, Celina, Celeste e Dona Clara, todas foram vítimas de muitas
crueldades naquele lugar, o rei foi morto lá também, será que é mal
assombrado?
Ele riu. — Você mente descaradamente. Confesse menina, seu único
medo é de uma pessoa muito viva que está lá dentro.
Assenti e dessa vez falei com sinceridade. — Estou um pouco nervosa.
O que sinto quando ele está perto me dá medo porque fico muito atrapalhada.
— É normal. Vocês ainda não conversaram o suficiente para que
possam agir sem constrangimento perto um do outro. Mas hoje não precisa se
preocupar com isso, ele nem saberá que você estará lá, então você poderá ver
o rei em ação sem ressalvas e talvez esqueça o homem que é péssimo na
cozinha.
O olhei de viés, ele estava brincando claro, mas não achei engraçado,
poderia achar se não fosse o nervoso que eu sentia por ver que o cocheiro
parecia muito apressado para chegar.
Não sei se foi o nervosismo, mas vi tudo como um vulto. Só fiquei
alerta quando entramos na Rua da Alameda. Ali eu já sabia que não ia
demorar a chegar e não demorou. O castelo escuro aparecia à frente, o
movimento de carruagens estava intenso, mas eram pessoas que estavam se
dirigindo para a Floresta do rei, um local agora aberto aos visitantes, um
portão tinha sido posto somente para o povo poder entrar na floresta sem ter
acesso a ao castelo.
Senti o coração bater mais rápido quando o carro deu a volta no
suntuoso jardim. Meu pai me ajudou a descer e um soldado na porta o
cumprimentou, logo outro que estava no salão também o saudou com
respeito. Assim que entramos em outro ambiente ele me segurou pelos
ombros e sussurrou.
— Não fale, está bem? Deixa para perguntar as coisas em casa, por
agora somente observe sem se deixar levar pelo gênio.
— Eu não...
Ele me olhou de lado. — Eu te conheço filha, conheço seu jeito
impulsivo, mas hoje precisa ser sábia e aproveitar essa oportunidade.
Assenti com receio de ele voltar atrás e não me deixar assistir o rei em
ação, eu ainda não tinha conseguido tirar aquela estranha conversa com Tiago
no meu primeiro dia. De certa forma eu o achei autoritário, e o fato dele pedir
para não tratá-lo como rei quando não tivesse ninguém olhando não tirou essa
impressão ruim de seu olhar condenando minhas ações como se eu tivesse
que adivinhar exatamente a resposta que ele queria ouvir, sem contar o jeito
esquisito dele ao me puxar pela mão como se já fossemos íntimos, só que o
mais estranho e que não me saíra da cabeça, foi o olhar dele nada contente em
me ver sair. Pequenas coisas que me deixou pensativa sobre ele. De todo
modo, eu ainda teria tempo para conhecê-lo melhor.
O salão enorme não tinha mobília, somente um tapete bonito e enorme
enfeitava o centro. Ao lado esquerdo uma enorme escada de mármore negro
se exibia soberana, algumas portas estavam fechadas, contei duas normais e
outra enorme dupla que foi para onde meu pai seguiu.
Dois guardas abriram para passarmos. Imaginei que veria uma mesa
cheia de pessoas, mas não, dei em uma saleta pequena e cheia de poltronas e
cadeiras. Havia mais uma porta dupla e outra pequena ao lado, foi essa que
meu pai abriu.
— Aqui tem uma poltrona e alguns petiscos, é o onde o rei fica
quando diz que não pode participar da reunião, e é aqui que ele observa o
conselho trabalhando. — Essa aqui. — Ele mostrou uma porta pequena do
outro lado. — É uma entrada secreta e quem entra aqui, vê apenas uma
salinha de descanso e aqui. — Ele tirou um quadro do lugar e com uma chave
abriu o pequeno quadrado protegido por uma tela, imaginei que do outro lado
estivesse um quadro. — É por onde o rei observa o conselho.
A posição em que eu estava dava para ver nitidamente Tiago de frente
e os outros ao lado. Fiquei encantada com a visão, era como estar sentada na
outra ponta da mesa de frente para o rei.
Não ouvi o que meu pai falou, só compreendi a ordem para eu não sair
a não ser quando ele viesse me buscar.
Nem cogitei essa hipótese, afinal, essa era a primeira vez que eu podia
analisar o homem que me tirava o sono sem me sentir receosa de ser pega no
flagrante, agora eu podia ver seus olhos, seu rosto, vê-lo completamente, e
isso deixou meu coração acelerado ao constatar que eu queria muito isso.
Conselho que não dá conselho…

Tiago estava sentado de lado apoiado com o cotovelo no braço da


cadeira e olhando distraído um ponto enquanto passava o indicador pelos
lábios. Estava tão bonito...
Apesar da pose relaxada, ele parecia cansado, até perdido em meio
àquela falação, por vezes olhava para um e outro e em seu semblante irritado
e seu olhar de desprezo mostrava claramente o quanto achava seus
conselheiros inúteis.
Para corroborar esse meu pensamento ele soltou um suspiro
exasperado e todos se calaram. Sua voz saiu fria e irritada.
— Quando decidi mudar as leis, os príncipes sombrios Nicolae e Rael,
o supremo alfa Laican e meu general André me alertaram sobre os problemas
que essas mudanças acarretariam em meu reinado.
Na época não os ouvi, porque tudo o que eu queria naquele dia e
minha única urgência era expurgar o legado de crueldade que meu pai me
deixou.
Alguns murmurinhos de defesa ao rei Júlio começou na mesa e Tiago
levantou a mão olhando de modo ameaçador para todos.
— Calem-se! Vocês falaram demais, agora irão me ouvir.
O silêncio de todos parecia até um pressagio, confesso que até eu
respirei pelo nariz só para ficar em silêncio para não atrapalhar o que Tiago ia
dizer. Ele continuou a falar ainda de semblante fechado.
— Como rei desse reino eu tenho que aprender a resolver os
problemas internos sem pedir ajuda aos aliados todas as vezes que acontecer
uma merda.
Tiago soltou um suspiro cansado e até senti tristeza por ele, realmente
ele parecia desanimado, quase derrotado.
— Mas não está sendo fácil. Há merdas demais e soluções de menos.
Quero ideias e não reclamações o tempo todo, quem vai me dar isso? Quem
será o primeiro a finalmente me trazer alguma solução?
Os olhos escuros de Tiago varreram o conselho, encarou por um
momento cada um à mesa, seus olhos passaram pela grade que me escondia e
eu quase levantei a mão pedindo voz para expor não uma, mas várias ideias.
Uma voz fanha ao lado do rei chamou a atenção dele e a minha
também.
— Majestade?
Senti a presença de meu pai ao meu lado, apertei os olhos em sua
direção e ele sussurrou.
— Não vou participar hoje, Tiago está cansado dessa corja e quer por
o lixo para fora.
Meu coração disparou, não sei por que, mas senti medo, uma atitude
dessas do rei era o mesmo que sortear nomes para adicionar a lista de
inimigos poderosos.
Abri a boca para perguntar mais sobre isso, porém o homem do
conselho limpou a garganta parecendo nervoso e voltei minha atenção para a
reunião.
— Esse é Pedro da casa Machado, conselheiro responsável pelas
armas e estrutura. — Meu pai falou baixo e assenti esperando curiosa, o que
ele dizer, mas ele parecia titubear, não era algo que Tiago ia gostar de ouvir,
o tipo que o homem o olhava dizia isso.
Não consegui confiar naquele jeito dele, era servil demais, mas os
olhos, não sei, eram esquisitos.
Ele remexeu alguns papéis um pouco apressado, logo ele começou
olhando atento à folha.
— Majestade, houve um aumento de furtos na casta três, a casta
neutra.
Tiago assentiu sem nada dizer, não parecia ser uma novidade para ele
aquela noticia, o homem continuou.
—Também há rumores de uma confabulação na casta mais alta. — Ele
olhou receoso para Tiago. — Estão planejando algo grande.
Isso também não pareceu surpreender o rei que olhou novamente para
os homens sentados a mesa e perguntou. — E o que vocês me sugerem?
Um homem de meia idade, exageradamente loiro tossiu sem graça. —
Não sei majestade, nenhuma ideia me vem agora.
Meu pai novamente sussurrou. — Esse é Dante da casa Andraste, um
verdadeiro inútil.
Assenti concordando, achei isso logo de cara.
Os outros dois conselheiros também negaram, Tiago se virou para o
conselheiro Pedro falando ríspido não conseguindo mais esconder a falta de
paciência.
— E você, alguma ideia para resolvermos isso?
— Bem… — Ele passou a língua pelos lábios parecendo nervoso e
logo olhou para o rei ainda mais ansioso.
—… Acho que poderíamos deixá-los mais satisfeitos, bem... —
Novamente ele molhou os lábios com a língua antes de continuar e me senti
incomodada com esse gesto repetitivo.
—Talvez majestade se vossa graça puder liberar algum benefício à
casta suprema e a alta socied…
Tiago levantou brusco e espalmou as mãos na mesa e o homem se
calou, já eu, dei um pulo de susto.
— Então é isso! Então tudo se resume a benefícios, a única intenção
de todos aqui é poder voltar com o harém, acho que isso já foi discutido, não
uma ou duas vezes nesse conselho. — Tiago alterou a voz ao continuar. —
Mas muitas! As mulheres não mais serão usadas como moeda corrente, elas
ganharam a liberdade nas novas leis do tratado que foi assinado pelos três
líderes das raças e isso, é uma decisão definitiva!
Pedro levantou nervoso, seus olhos denunciavam seu medo de ter ido
longe demais, ainda assim o olhar ofídio mostrou que sua cobiça era maior
que seu medo.
— Majestade, não precisa ser para todos, pensamos em um clube onde
poucos possam…er… Se divertir um pouco, fazer seus negócios, melhorar as
finanças e ...
Tiago se aproximou do homem que parou de falar o olhando
assustado, talvez pela primeira vez naquela reunião o vendo como o rei e não
como um moleque manipulável.
— Quando vocês... — Ele Apontou o dedo para cada um deles que
estavam surpresos com sua reação, voltou o dedo e cutucou com raiva o peito
de Pedro.
—... Me procuraram, disseram que queriam ajudar a fazer prosperar
esse reino. Que entendiam as mudanças e estavam dispostos a ajudar.
Desde então nesses dois meses de conselho, só o que consegui de
vocês foram informações sobre anarquia, sobre o quanto os homens estão
desgostosos e muitos revoltados, só ideias relacionadas ao bem das castas
mais abastadas e, no entanto...
O maxilar de Tiago enrijeceu, mesmo dali eu pude ver que ele estava
trincando os dentes, quando ele voltou a falar dava até para sentir sua ira.
— Nada de ideias que façam a melhoria do reino como um todo, nada
de soluções vinda de vocês. Acham que o reino Humanis é feito apenas das
castas nobres?
Ele olhou para o tal Dante. — Você! Sua função qual era mesmo?
Diga-me!
O homem piscou algumas vezes. — Bem… Tenho que pesquisar
meios de sanar a miséria da casta última, montar projetos que ajudem a
diminuir a violência e mortalidade já que muitos estão se matando por um
pão.
Até imaginei isso e fiquei ainda mais ansiosa para andar pelo reino e
ver o que eu poderia fazer, meu foco eram as crianças, pobres pequeninos que
nem culpa tinham. Mas aí me vinha à mente os idosos que com certeza
estavam passando fome e depois...
As mulheres largadas, se as noticias que chegaram ao reino sombrio
fossem verdadeiras, qualquer um que se dispusesse a ajudar, não estaria
ajudando o rei, mas salvando uma vida inocente da miséria absoluta.
Tiago assentiu para as palavras do homem e se aproximou dele um
pouco mais. — E, no entanto, pedi a você um projeto simples de uma horta,
ideia dada por uma pessoa que nem é do conselho, diga-se de passagem, e
nesses dois meses você ainda não me trouxe isso, nem mesmo tocou no
assunto em nenhuma dessas malditas reuniões que tivemos.
Senti um friozinho na barriga. Ele leu minha carta! Aceitou minha
sugestão! Será que ele sabia que era minha? Isso não importava, ele deu
atenção a minha ideia!
Sorri involuntariamente. Me sentia orgulhosa do rei, ou talvez
orgulhosa de seu gesto, ou de mim... Não sei o que estava sentindo na
verdade, mas era um sentimento bom.
Tiago continuou a pressionar Dante. — Porém... Você sabe manipular
membros do conselho para o próprio benefício.
Acabei entendendo aquela acusação, foi Pedro quem sugeriu voltar o
harém, mas pelos vistos, foi a mando de Dante, realmente o homem era uma
cobra.
Ele gaguejou ao responder. — Eu não manipulei nenhum conselheiro
majestade e quanto a horta, a ideia é que seja fora do reino, isso tornou tudo
mais difícil, as fazendas podem ser perigosas…
— Cale a boca! Não me venha com isso, você não se deu ao trabalho
nem mesmo de pesquisar a área e adivinhe grande conselheiro inútil que eu
tenho.
Dante ficou estático esperando Tiago continuar.
— A fazenda já foi escolhida, já está sendo preparada toda a estrutura
e as famílias da última casta que manifestaram interesse já estão sendo
cadastradas, logo estarão produzindo.
Nervoso, o homem vasculhou em seus papéis e eu senti uma vontade
imensa de irromper pela porta e abraçar Tiago, ele não só aceitou minha
sugestão como colocou em prática.
— Mas… Não estou sabendo de nada disso. — Disse Dante,
gaguejando e ainda revirando os papeis.
— Claro que não. — Tiago Falou mordaz. — André reuniu alguns
homens dessa casta e junto com eles e graças a essa ideia muito inteligente
por sinal, desenvolveram a ideia.
Sorri de modo involuntário, mais ainda por ele não saber que eu estava
ali, senão eu ia achar que era apenas um charme, mas foi genuíno e senti meu
coração amornar de amor naquele momento.
Meu pai se virou para mim e piscou, ele sabia que eu estava
emocionada por ver uma ideia minha sendo debatida ali e também pelo
elogio do inocente rei que nem sabia que estava sendo observado.
Tiago passou a mão pelos cabelos e se virou olhando para todos com
um sorriso largo, logo ele fixou os olhos brilhando no homem e senti que ele
estava feliz com o que ia dizer.
— Por isso Dante. Está dispensado do conselho, não preciso dos seus
serviços, pode ir.
Primeiro o homem ficou olhando surpreso para Tiago e logo, como se
tivesse acabado de lembrar com quem estava falando, ele fez uma reverência
forçada e vi em seus olhos o ódio crescendo.
— Pronto... — Meu pai falou preocupado. — Mais um inimigo para a
já vasta coleção do rei, mas ele está certo, não pode mais permitir que tentem
manipulá-lo.
Assenti. — Inimigo bom é o que logo mostra a face, é sempre mais
fácil lutar contra um perigo conhecido.
— Sábias palavras filha.
Na verdade não eram minhas essas palavras, ouvi de Rael um dia antes
da batalha sombria, no dia que ele nos mandou para a vila mais distante do
reino para nos proteger. Ele havia dito isso em resposta ao príncipe Nicolae
quando ele manifestou sua preocupação com a obsessão de Samuel sobre sua
companheira Diana. Nunca mais esqueci essa frase e agora eu entendia essas
palavras bem mais que antes.
Reação inesperada

Quando a reunião estava acabando saímos dali e seguimos para o salão


maior, quase não deu tempo de entrarmos em outro cômodo sem sermos
vistos, pois já ouvíamos a conversa dos conselheiros que saíam da sala de
reuniões.
O lugar era claramente um escritório, estranhei isso, pois havia mais
salas de trabalho do que trabalho de verdade.
Me pai vendo a minha cara riu. — Eu pensava o mesmo quando era
escravo, até no quarto do rei Júlio tinha um escritório e nunca entendi o
motivo de existir os outros, hoje entendo mais a dinâmica de tudo. Aqui é
meu lugar de trabalho, por isso mude a cara de espanto, pois eu trabalho.
Eu ri e ele também, com um olhar que eu não soube interpretar ele
continuou falando. — Tiago passa mais tempo trabalhando comigo do que no
salão real, logo ele estará aqui, combinamos de conversar no fim da reunião
do conselho.
Essa notícia me pegou de surpresa e sorri amarela e um pouco
nervosa. Achei que teria mais tempo para me preparar para isso, mas logo a
porta abriu em um rompante e Tiago entrou como um furacão, eu estava
sentada na poltrona e ele não me viu.
— André, assistiu a reunião? Viu a pressão sobre as mulheres? Não
acredito que eles...
Do nada ele parou e prendi a respiração, e como se tivesse sentindo a
minha presença ou mesmo sentido meu cheiro, ele virou e nossos olhos se
encontraram.
Fiquei o encarando com os olhos muito abertos, tentava a todo custo
não mostrar que estava afetada, mas meu coração esmurrava meu peito, não
consegui sequer piscar, fiquei presa no seu olhar intenso e ele também não
parecia querer desviar os olhos e acabei nervosa, ansiosa e até mesmo com
uma vontade enorme de coçar o nariz, porque parecia que naquele momento
tudo me incomodava, todo o meu corpo parecia querer me desconcentrar de
minha determinação em não mostrar nervosismo pela maneira como ele me
encarava.
Meu pai percebendo a tensão tocou o ombro de Tiago. — Achei a
reunião completamente improdutiva hoje.
Ele assentiu sem dizer nada, deu dois passos em minha direção e
acabei levantando por impulso. Me arrependi de seguida, minhas pernas
estavam vacilantes e para não pecar caindo na frente dele, fiquei parada o
vendo se aproximar.
Do nada seu sorriso rasgou a face e a minha face em contra partida,
aqueceu como se um fole assoprasse uma brasa em direção das minhas
bochechas, ficou ainda pior quando ele pegou minha mão e levou aos lábios
sem tirar os olhos dos meus.
— Como vai, Amélia?
Ele estava fazendo aquilo porque sabia que eu estava nervosa, mas eu
pretendia ficar com cara de boba somente deixando que ele brincasse comigo.
— Bem muito obrigada por perguntar, mas gostaria de resolver umas coisas.
— Olhei para meu pai pedindo permissão para sair. — Vou mandar o volante
como sugeriu pai, gostaria de ir para casa se não se importa.
— Pode ir filha, tenho assuntos a tratar com Tiago.
Fiz outra vênia ao rei e ele me olhou gelado. Eu sei que ele não
gostava disso, mas ele não podia esperar que eu simplesmente esquecesse sua
posição apenas por algumas frases trocadas? Isso seria pedir demais? Porém
ele não estava achando que era cedo para intimidades já que quando cheguei
a porta parte da discussão, ele perguntava a André com a voz exaltada se ele
me deixaria ir sozinha para casa e ouvi a resposta de que eu estava segura e
que ele não se preocupasse com isso.
Saí apressada e ainda ouvi a pergunta de Tiago sobre quais assuntos eu
tinha para tratar. Sinceramente não gostei dessa intromissão, não me pareceu
que ele tivesse direito de fazer perguntas sobre meus assuntos.
Assim que cheguei em casa não perdi tempo e escrevi um bilhete curto
para Diana, narrei minha primeira impressão sobre o reino e sobre Tiago,
procurei um criado e pedi para que me chamasse um volante. Ele
prontamente foi para a porta, os criados de meu pai, três ao todos pareciam de
confiança e não me olhavam de torto, ainda assim perguntei ao menino que
cuidava dos estábulos sobre eles e ele me contou que esses eram criados
remunerados e que gostavam bastante do general, pelo menos isso, então
nessa parte eu não precisava me preocupar.
Quando o menino de recados chegou pedi que ele entregasse o bilhete
ao sombrio mais próximo do portão, depois da paz entre as raças os sombrios
revezavam para esperar os recados trocados entre os parentes do reino
sombrio e do reino humano, claro que também aproveitavam para se inteirar
sobre os assuntos referentes ao reino humano a pedido do senhor Rael, eu
sabia disso através de Diana.
Não tive receio que o volante lesse o bilhete antes de entregar até
porque não citei nomes, Diana saberia de quem eu estava falando e nada no
bilhete era informação útil para ser vendida.
Assim que o menino seguiu seu caminho eu voltei para dentro um
pouco estranha, me sentia presa mesmo tendo acabado de chegar, eu queria
sair, conhecer tudo, mas não queria soldados estranhos me seguindo.
Talvez fosse por conta da experiência ruim com um deles, mas não me
senti a vontade, e para não precisar olhar para eles, pedi ao cocheiro que me
levasse para conhecer melhor o que fora um dia a igreja dos homens que
segundo Diana, o monge lunático falava sobre a soberania dos homens e
sobre a mulher ser inferior, tanto que não merecia entrar no céu, pois já
estava condenada ao inferno no momento que nascia.
Por sorte Tiago também acabou com isso e a igreja se tornou um
museu cheio de livros antigos e até mesmo mapas de quando o mundo não
tinha sido afetado pela guerra da supremacia.
Era um local pequenino, cheguei a imaginar que desde minha visita
junto com Jena e Diana pouco antes do casamento dela há quase meio ano,
nunca mais ninguém do reino entrou ali, pois os livros pareciam nunca terem
sido retirados de seus lugares.
Busquei os mapas e olhei curiosa para eles, nomes que nunca sequer
ouvi na vida passeavam por meus olhos. Locais estranhos como Canadá,
Brasil e Inglaterra estavam escritos em grandes letras no mapa, estranhei ao
ver tantos nomes e não tive ideia de como os humanos conseguiam decorar
tantos lugares. Tentei imaginar onde os sobrenaturais viviam nessa época,
procurei por um bom tempo, mas me pareceu realmente impossível encontrar
os reinos Licans e Sombrios no mapa visto tantos lugares com nomes
grandes, médios e mais uma infinidade de nomes escritos em letras
minúsculas no centro dessas demarcações territoriais.
Achei graça, tão estranhos eram os homens de antigamente, tão ávidos
por ditar seus territórios que acabaram deixando tudo complicado, nada como
ter três reinos distintos e algumas vilas no reino Humanis para decorar, de
resto era tudo bobagem.
Deixei para ver o resto outra hora, pois já estava ficando tarde e
quando saí do museu fui saudada por muitos olhares hostis de homens que
andavam por ali, não me deixei abalar por isso e subi na carruagem um tanto
surpresa com essa reação, acabei entendendo o motivo da falta de visitantes,
era por receio daqueles homens, talvez eles ainda olhassem para o local como
se fosse sagrado.
De todo modo eles nas não podiam fazer nada em relação a isso, o
local era público e eles não podiam me proibir de visita-lo quando me
aprouvesse. Ainda assim me senti bem melhor quando ganhamos distância.
Semana nada amistosa

Não imaginei que Tiago encontraria tempo em meio as suas


obrigações reais para jantar conosco duas vezes nessa semana, e foi
justamente isso que aconteceu, ele bem que tentou ser agradável comigo, isso
foi até eu comentar sobre minha excursão ao museu, depois disso o humor
dele azedou e isso me deixou irritada, por fim acabamos tendo uma discussão
calorosa durante o jantar. Parecia que se dependesse dele eu não podia
colocar os pés fora de casa.
Acabei sendo ríspida na segunda noite quando ele perguntou se eu
tinha saído novamente para outra excursão perigosa. Seu tom autoritário me
enfezou tanto que o larguei no meio do jantar e subi para o quarto. Não
entendia essa obsessão dele com cada passo meu. Por isso evitei contar que
tinha mandando um bilhete ao rapazote do primeiro dia pedindo para ele
aparecer em casa, não me senti a vontade de contar. Se com um passeio sem
correr nenhum perigo algum o rei surtou, como ele reagiria ao saber que eu
esperava receber em minha casa um dos arruaceiros e assaltantes das ruas?
Com certeza mandaria enforcar o pobre garoto.
Já fazia dois dias que eu tinha mandado o bilhete a Daniel e ele ainda
não tinha enviado uma resposta. Hoje o dia parecia mais chato que o normal,
eu queria fazer algo mais do que observar os transeuntes pela janela, mais do
que simplesmente observar os pobres pedindo ajuda na rua e recebendo como
resposta chutes e ofensas. Já estava ficando incomodada com esse descaso
com a fome dessas pessoas.
Logo ouvi palmas e corri atender, imaginei que fosse Tiago já que ele
não apareceu desde o jantar nada agradável, e apesar de todos os nossos
encontros não terem sido maravilhosos, eu queria vê-lo. Mas minha alegria
chegou igualmente ao ver os olhos verdes e joviais me encarando.
Daniel me olhava com curiosidade e com um sorriso maroto nos
lábios. — Muito cedo para cobrar uma dívida, Amélia.
— Perdoe-me, não o chamei para cobrar nada, na verdade eu gostaria
de pedir um favor.
Os olhos verdes brilharam maliciosos. — Ou seja, uma cobrança.
Apertei os lábios pesando cada palavra, não queria que ele negasse o
que eu ia pedir, mas também não queria que ele pensasse que eu estava
cobrando alguma coisa, isso não seria certo. Ele era um comerciante, então o
mais certo com ele seria agir da mesma forma.
— Não sabia que oferecer emprego era uma cobrança de dívida.
Isso o pegou de surpresa porque ele pareceu ligeiramente nervoso,
talvez não tivesse a expectativa de algo assim acontecer, e isso me mostrou
um pouco mais sobre ele, e eu gostei daquela reação.
— Que tipo de trabalho eu poderia lhe oferecer? Não sou homem
formado para ser um carregador de valia, ou pelo menos um que alguém
estaria disposto a pagar pelos serviços, nem mesmo posso me alistar agora
que a idade não mais permite rapazes da minha idade, e também não sou
criança o suficiente para que confiem em me mandar entregar bilhetes.
Senti pena na angústia da voz dele, o pobre não tinha nenhuma
expectativa realmente.
— Venha tomar chá comigo Daniel. Acabei de tirar um bolo do forno
e então lhe direi para qual função eu gostaria de contratá-lo.
Ele me olhou desconfiado e esperançoso ao mesmo tempo, suspirei
um pouco chateada com essa desconfiança.
— Não está acostumado com alguém o tratando com respeito, pois
não?
Ele levantou os ombros e passou por mim indo em direção a porta. —
Você é a primeira a me oferecer isso, na verdade ando achando que você é a
primeira a ser gentil com esse povo, você não pode ser desse reino Amélia,
pois não age como os outros.
Segui atrás dele com um sorriso de lado, ele não poderia estar mais
certo, mas também fiquei preocupada, não podia agir diferente das pessoas
desse reino, ou eu faria olhos curiosos se virarem para mim. No entanto
pensei no que meu pai falou sobre não ser refém do medo, então abri a porta
e sorri para Daniel.
— Nasci aqui, mas não cresci nesse reino, deve ser por isso que não
ajo como todos. Espero que isso comece a ser um adjetivo bom e não ruim, e
que eu não pareça inocente por conta disso.
Daniel entrou e entrei em seguida fechando a porta e apontando a
direção da cozinha. Ele falou enquanto seguia para a direção que apontei.
— De minha parte não acho que pareça inocente, na verdade, seu jeito
me faz querer respeitá-la automaticamente, é como não querer quebrar algo
naturalmente bonito, assim que vejo você, aliás, que vi desde aquele dia.
Sorri com o coração amornado por aquelas palavras simples,
sensibilidade, era isso o que ele queria me dizer. Fui sensível com a dor dele
e ele se mostrou empático com meu jeito.
Cortei uma fatia generosa, movida por seu olhar de completa gula para
o bolo de fubá simples que eu fiz. Servi o chá para nós dois e cortei um
pedaço pequeno para mim. Sentei de frente para ele e comecei a bebericar o
chá enquanto o observava devorar o pedaço e assim que ele terminou cortei
outro e coloquei em seu prato me sentindo bem ao poder saciar a fome
daquele garoto.
— E o trabalho? — Ele perguntou com a boca cheia de bolo e eu não
me importei com a indelicadeza, na verdade estava ansiosa para que ele
aceitasse, tinha acabado de descobrir que gostava da companhia dele, poderia
ser um bom amigo. Já tinha perguntado ao meu pai quando os soldados
recebiam. A resposta foi em média oito moedas de ouro por mês, claro que eu
não poderia pagar tudo isso.
— Preciso de um guia para me levar por todo lugar desse reino. —
Olhei para ele e estreitei os olhos ao terminar. — Quero ver tudo.
Ele riu e recostou na cadeira parecendo saciado. — E estamos falando
de quanto?
Corei um pouco envergonhada, afinal o valor que eu ia oferecer era
bem abaixo do que um soldado normal receberia, mas não podia desistir
agora.
— Três moedas de ouro por um mês. Eu não tenho mais que isso, mas
posso... Bem, acrescentar comida e não sei... Talvez um bônus no fim do mês
caso eu consiga alguma moeda de meu pai.
Ele me olhava sério, seus olhos verdes estavam brilhando e receei que
fosse por estar ultrajado com minha oferta, talvez ele levantasse e saísse
depois de gritar alguns impropérios, mas ele realmente me encarava
parecendo considerar a oferta. Logo sorriu e assentiu.
— Então sou sua escolta particular, hein? Por três moedas de ouro por
mês eu até dormiria aos pés de sua cama para escoltar os seus sonhos.
Essa recepção com minha humilde oferta foi inesperada e muito bem-
vinda. Acabei sorrindo verdadeiramente contente por finalmente ter a
companhia de alguém com humor maior do que um caroço de ervilha.
— Pode começar agora mesmo?
Ele levantou cheio de energia. — Agorinha. Para onde quer ir?
— Quero conhecer os locais que não fazem parte do turismo do reino
humano.
Ele riu divertido. — Então é tudo. Nada aqui é agradável para uma
visita, mas sei o que quer ver moça, conheço esse olhar.
Devo ter mostrado meu receio porque ele piscou de modo maroto. —
Nada irá te acontecer, essa é a vantagem de andar com alguém do lado de lá.
Conhecer todos os miseráveis os inibe de fazer graça, eles sabem que não
ficarão impunes, pois serão reconhecidos.
Assenti amistosa, não mencionei o fato de que soldados de meu pai
nos cuidariam de longe, o deixei com sua pompa de rapaz jovem e com o ego
inflado ao pensar que iria realmente me proteger sozinho. Na verdade achei
encantador ele se prontificar a tal ato, imaginei que ele dentre muitos no reino
poderia ser um homem diferente.
— Você é gentil, Daniel. Me parece incomum em um reino onde o
lado macho é cruel.
Ele levantou os ombros. — Não tenho porque destratar a única pessoa
que me parece gentil dentre as mulheres de castas mais elevadas. Não se
engane Amélia, os homens são cruéis com as mulheres aqui, porém quase
todas as mulheres desse reino dedicaram sua crueldade aos escravos. Mas...
— Ele apontou a porta. — Acho que temos um passeio, não é mesmo?
Já animada fiz um aceno pronta para começar e quando saímos ele
pediu que usássemos uma carruagem não muito luxuosa, então pedi ao
cocheiro que usasse a antiga que ficava reservada para carga. Daniel sentou
ao meu lado e foi falando sobre cada lugar que passamos.
Primeiro ele falou que eu devia conhecer os lugares mais amenos, que
eu devia me acostumar com as coisas pouco a pouco, isso me deixou curiosa,
não podia ser tão ruim. Foi o que pensei todo o tempo antes de finalmente
chegarmos ao bairro que ele morava. A Vila da Procriação.
Os prédios tortos, segundo ele contou, ficaram assim pela falta de
estrutura, pois os andares simplesmente foram construídos um em cima do
outro e o peso e a falta de capricho os deixou com essa aparência nada
agradável aos olhos. Na verdade achei pitoresca a visão, apesar da sensação
constante que a qualquer momento um daqueles prédios de blocos cinza
poderia cair um por cima do outro ou em cima dos transeuntes.
Quando finalmente adentramos a rua de terra estreita quase engasguei
e o que parecia pitoresco se tornou assustador. Era tanta pobreza, um mal
cheiro tão forte que não consegui aceitar que pessoas vivessem naquelas
condições. Quando comentei com Daniel ele me garantiu que dava para
sobreviver ali, porém eu percebi que ele não falou viver e sim sobreviver.
Com o coração oprimido de pena, comecei a pensar em uma forma de
ajudar aqueles menos favorecidos, deveria haver um meio de fazer isso com
poucos recursos. Quando perguntei sobre a educação das crianças, Daniel me
disse que o antigo rei nunca se preocupou com isso já que as crianças não
precisavam aprender a ler e escrever para servir visto que os nascidos dessa
casta já tinham os destinos de servidão carimbados em seus nomes que nada
mais eram do que números.
Acabei curiosa e perguntei a ele sobre seu nome ele contou que assim
que foi liberto, deu a ele mesmo um nome, e era assim que muitos estavam
fazendo, escolhendo um nome no lugar de número eles mesmos.
Cada vez eu me sentia mais estarrecida com a pobreza daquele bairro,
com a degradação das pessoas que gritavam a plenos pulmões os preços
baixos por seus corpos. Mesmo eu surpresa ao ver isso, Daniel não parecia
afetado, isso fazia parte de sua vida, mas não da minha e chegou um
momento que realmente o cheiro, as crianças magérrimas na rua e as
prostitutas desesperadas por um cliente me fez passar mal e ele pediu ao
cocheiro que retornasse.
Entrei ali curiosa e saí revoltada com tamanho descaso. Daniel viu em
meu olhar o quanto eu estava com raiva e me confortou garantindo que
apesar de tudo, a vida estava melhor que antes. E que muitos se vendiam ou
se degradavam por opção, pois estavam acostumados a isso. Mas eu não
consegui acreditar nisso, não consegui atinar que uma pessoa se venderia sem
que houvesse extrema necessidade em jogo.
No caminho de volta, segurei a mão de Daniel e apertei entre as
minhas. — Sinto muito, pelo que passou e pelo que está passando.
Ele ficou sem graça com minha reação. — As coisas estão melhores
agora, te garanto, não precisa ficar assim.
Balancei a cabeça, confusa. — Como pode dizer isso? O que mudou
em suas vidas para que agora seja melhor do que antes?
Ele me encarou surpreso com a pergunta. — O que mudou? A
liberdade. Não apanhamos mais, pelo menos não sem dar o troco. Já antes
devolver violência com violência em se tratando de nós, os servos dos ricos,
era um decreto de fim de vida, hoje nós somos livres para morder se formos
mordidos, e a cada dia os nobres nos deixam em paz por mais tempo.
No começo quando as leis novas foram lidas, havia muitas mulheres
apanhando nas ruas, então os homens viram que mantê-las com eles somente
para castigá-las diariamente não era vantajoso e as mandaram embora. O
mesmo aconteceu às crianças que antes eram usadas para se conseguir
subsídios do rei e com as ruas cheias de famintos a caça a comida se torna
mais difícil, e por vezes acabamos brigando entre nós. Alguns são mais
violentos que outros e por isso algumas mortes são inevitáveis. Mas deixa
isso e olhe. — Ele apontou para o lado. — Era aqui que as meninas que
passavam a se chamar Próximas eram mandadas. Daqui elas saíam como
esposas, prostitutas, escravas domésticas ou seguiam para os reinos
sobrenaturais como encomenda. Depois que aconteceu uma chacina macabra,
várias meninas por medo de acontecer o mesmo com elas, chegaram a se
matar antes de serem mandadas a esse templo.
Eu fiquei abismada com a propriedade, era tão grande que ficava em
uma parte isolada fazendo divisão entre a vila dos Procriadores e o Bairro dos
Forasteiros. A construção de madeira era sólida e com bom acabamento, o
grande celeiro ao lado da casa eu já tinha ouvido falar dele, era o mesmo que
Diana presenciou todos os estupros na chacina mencionada por Daniel, só
não contei a ele sobre a menina que sobreviveu por que não achei justo com
Diana que tinha trauma desse passado tão macabro e com meu pai que tinha
rancor por ser obrigado a fazer parte desse dia ajudando na execução de
várias garotas só poupando a vida de Diana.
Mas tirando esse passado assombroso o lugar me pareceu perfeito para
ser usado.
— Quem vive aí, Daniel?
Ele levantou os ombros. — Ninguém desde as novas leis. A
sacerdotisa, dizem muitos, foi assassinada pelos moradores, o local está sem
uso. Uma pena. — ele suspirou pesaroso. — Seria perfeito para muitos que
estão na rua. Pelo menos eles teriam um teto para dormir.
Um teto... Não consegui acreditar que um lugar tão grande estivesse
abandonado enquanto vários dormiam na rua. Realmente ele tinha razão,
aquele lugar podia ser a salvação de muitos.
Quase não respondi ao falatório de Daniel, ele não pareceu se importar
com isso, falava e falava até que chegamos e eu finalmente descer, então ele
me saudou e avisou que se eu precisasse dele era só mandar chamar, e que
qualquer menino de recados o chamaria sem cobrar nada. Agradeci e entrei
distraída, não conseguia tirar o templo da cabeça.
Meu pai me esperava para jantar e perguntou sobre meus passeios,
contei a ele o que vi e como me senti com tudo, também falei sobre o templo
e sobre o comentário de Daniel.
— Não dá para simplesmente invadir o local, filha, precisa de um
projeto que valha a pena o investimento, e também é necessário que o rei
ceda o local oficialmente.
— Acha que eu conseguiria isso? Se eu apresentasse a ele alguma
ideia válida?
Ele pareceu refletir um momento. — Talvez, nunca se sabe. — Ele
segurou minha mão e me encarou sério. — Tem certeza que quer isso? Não é
um passo para a boa querência do povo abastado, mas para o ódio deles.
— Não me importo com o que eles pensam. Eles já têm uma vida
descente, não é justo que outros sequer tenham onde dormir. Se o rei me
permitir vou dar um jeito de ajudar esse povo.
— Então vamos juntos pensar em algo interessante para ajudá-los.
Fiquei surpresa com seu apoio, não imaginei que ele arriscaria minha
segurança depois do seu atentado. — Não tem receio que eu fique em perigo?
Ele negou. — Ao contrário. Segurança não é o que me preocupa, não
quando até Tiago andou reforçando a quantia de soldados que fazem sua
escolta. Acredito que está mais segura do que o próprio rei, mas o que me
preocupa é a reação das castas altas.
Tiago mandou me proteger? Não entendi porque ele tinha perdido seu
tempo em fazer isso.
— Pai. — Ele levantou as sobrancelhas em uma pergunta muda e eu
falei procurando não parecer afetada. — Tiago me parece meio paranoico,
acho que ele está levando isso de irmã a sério demais, não acha? Até age
autoritário com relação aos meus assuntos, estou um pouco incomodada.
Meu pai suspirou. — Percebi as rusgas entre vocês, e não acho que
seja como irmã que ele a vê, talvez como amiga. Ele tem poucas pessoas em
seu círculo íntimo, Amélia, não é estranho que ele queira proteger os que
estão próximos a ele. Ser odiado por metade de um povo mexe com a cabeça
de um homem.
Assenti compreendendo, mais ou menos, o que ele tinha dito, ainda
assim achei injustificável Tiago dispor de seu precioso tempo e recursos para
gastar comigo, ele tinha coisas mais importantes para fazer, aliás, tinha muito
que fazer para melhorar esse reino e a vida das pessoas para se dar ao luxo de
cuidar só de uma.
Mas eu não queria criar animosidade entre ele e meu pai, eles tinham
uma relação estreita e não seria eu a estragar isso. Acabei levantando.
— Deve ser isso, vou subir para meu quarto, pensar em algo para
apresentar ao rei que faça com que ele não se negue a ajudar.
— Boa noite filha, depois me conta se tiver alguma ideia.
Assenti distraída, já estava perdida em meu mundo pensando em
inúmeras possibilidades para aquele enorme lugar. Sem contar que o rei
também me tomava os pensamentos. Ele não te vê como irmã... Não soube o
que pensar, na verdade eu não queria pensar muito sobre isso, Tiago não era
um assunto que meu subconsciente devia reviver todo o tempo, eu precisava
focar em outras coisas, e ter a mente distraída com as ideias sobre o templo
me pareceu uma boa saída.
Abordagem

Achei por um momento que teria tempo, que poderia fazer um bom
projeto para apresentar, mas assim que o dia chegou, mesmo antes de sair da
cama ouvi a voz grave de Tiago.
— O quê? Quando isso?
Fiquei quietinha na cama, com medo até de respirar e ele ouvir, o que
claro, era um medo idiota, mas meu pai podia ouvir, eu acho...
De todo modo eu não queria um confronto quando ele soubesse do
meu passeio com Daniel pela vila dos Procriadores. E tudo isso pela sua
reação ao meu passeio ao museu, então de alguma forma agora eu temia sua
explosão.
— Você permitiu isso, André?
Me encolhi ainda mais ao prever o futuro tão lindamente quando ouvi
as palavras, Procriadores, templo da sacerdotisa e algumas outras que me
indicava que meu pai, aquele fofoqueiro, estava contando tudo a Tiago.
Tentei demorar o máximo possível a sair debaixo das cobertas, mas
isso já estava se tornando ridículo, eu não podia me enfurnar no quarto o dia
todo, e o rei não parecia disposto a sair daquela sala até ter o gosto de me
repreender por meu passeio, ou até por minha ideia...
Levantei e me arrastei carregada de desânimo para me lavar, depois de
pronta abri a porta e tremi ligeiramente quando a fechei, me senti exposta
sem a proteção do quarto, contudo, apesar do meu receio, desci as escadas
com passos firmes e o olhar altivo de quem é inocente sobre qualquer
discussão ocorrida antes de eu descer.
Tiago me sondava a cada passo, em seus olhos estava um misto de ira
e algum tipo de fascinação gulosa que me deixou desconcertada. Já meu pai
olhava para Tiago como um predador que espera uma distração da presa para
atacar. Isso também me pareceu esquisito, era como se eles tivessem entrado
em um tipo estranho de acordo em relação a mim, mas claro que eu não ia
abusar da sorte, minha ideia era simplesmente arrumar um jeito de sair dali o
quanto antes. Por isso fiz um cumprimento educado enquanto rumava
apressada para a cozinha.
— Bom dia, Tiago. Espero que esteja em um bom dia.
A ira que até então estava em seus olhos pareceu sumir e eu quase
sorri triunfante, chamá-lo pelo nome tinha funcionado para uma trégua. Pelo
menos isso.
— Bom dia, Amélia.
Com um suspiro aliviado eu alcancei a cozinha sem maiores
transtornos, pelos vistos não haveria uma discussão como pensei. Senti com
alegria o aroma gostoso de chá e peguei uma xícara, mas parei com ela no ar
quando senti a cozinha ficar menor. Meu corpo respondeu a um chamado
invisível e me virei, ali estava Tiago encostado à porta, me olhando
insondável.
Rapidamente voltei às costas e praguejei mentalmente, ele era
teimoso, claro que não ia ceder tão fácil. Sem encontrar saída peguei outra
xícara e o bule de chá e coloquei na mesa, sentei e não o convidei a fazer o
mesmo já que ele parecia se ofender com qualquer tratamento formal
dedicado a ele quando estava em casa.
Levantei os olhos quando levei a xícara à boca e quase a derrubei com
o choque da maravilhosa visão. Ele sorria tão lindamente que não pude
resistir e acabei retribuindo com um sorriso tímido. Agora entendia porque
ele parecia chateado no primeiro dia, o teimoso rei queria ser tratado
normalmente desde o início e eu não sabia claro, mas se isso servia para tirar
dele um sorriso daqueles, então tinha valido a pena a ousadia.
Sem dizer nada ele sentou e se serviu. Ficamos com o olhar focado no
líquido fumegante. Sorvi um gole pequenino um tanto estranha por essa paz
silenciosa e ele fez o mesmo. Logo foi ele quem quebrou o silêncio.
— André me disse que ontem você visitou a vila dos Procriadores e
que tem planos para o templo.
Assenti um tanto surpresa por ele estar calmo ao abordar o assunto. —
Achei que aquele templo poderia ser usado de alguma forma para ajudar
essas pessoas.
Ele bebeu mais um pouco sem tirar os olhos dos meus. — E o que tem
em mente?
— Uma escola ou quem sabe algo mais.
— E como seria isso?
— Não sei ainda, preciso pensar, mas gostaria de seu apoio, de ajuda.
Tiago suspirou resignado, depositou a xícara na mesa e me encarou
sério. — Se me prometer que não irá mais a vila dos Procriadores eu vou
ajudar. Mas não a quero mais lá, Amélia.
Isso era melhor do que uma discussão e pior do que simplesmente um
sim.
— Eles não são perigosos, só estão famintos e corrompidos, o que eles
precisam é serem vistos como pessoas, assim vão descobrir que são valiosos
para o crescimento do reino, senão aquele lugar sempre será uma vila
perigosa para qualquer pessoa.
Tiago estalou a boca não dando atenção aos meus argumentos. — Me
prometa sem discutir que não irá mais lá, e eu ajudarei em sua ideia para o
templo.
— Mas por quê?
Ele sequer fingiu que era um pedido, estava tentando me fazer
obedecê-lo. Eu poderia, para evitar uma discussão simplesmente aquiescer
em concordância, mas eu queria saber o motivo disso, saber por que ele não
estava disposto a um diálogo e só queria me impor obediência baseado em
uma troca.
Tiago percebendo que eu não estava disposta a me submeter a sua
vontade sem uma devida explicação, levantou e levou a mão aos cabelos os
despenteando, parecia estar tentando buscar calma, mas pelo seu jeito eu
duvidei que estivesse conseguindo.
— Não vou permitir isso.
Imaginei argumentos mais contundentes como resposta a minha
pergunta, ou mesmo um motivo que me fizesse entender sua imposição, mas
dizer que não ia permitir? Então eu não era livre como qualquer outro?
Fiquei sem ação pela surpresa, e ele ficou ali me olhando sério, como
se fosse um pai cobrando com o olhar a malcriação da filha e esperando ela
se explicar. Agora com o sangue aquecendo minhas veias pela raiva que me
subia, me vi apontando um dedo para ele e o mandando calar a boca porque
ele não mandava em mim, no entanto, a resposta foi mais educada.
— Não estou pedindo permissão e sim pedindo ajuda, se não pode
ajudar, peço que não atrapalhe, muito menos tente negociar uma troca
comigo.
Tiago não pareceu abalado com minhas palavras e me olhou firme. —
Não posso e não vou permitir isso.
Não vou permitir... Novamente isso! Agora quem levantou foi eu.
— Não vou admitir que me diga o que devo ou não fazer, majestade.
Não quando tenho um pai que já faz essa função, e ao que eu me lembre, as
mulheres do reino são livres. Ou era uma mentira a proclamação das novas
leis?
Isso pareceu o ofender e ele desviou da mesa e parou próximo a mim.
— É tolice se meter em perigos desnecessários. Uma mulher bonita
como você chamaria atenção em um lugar como aquele. Você é frágil, não
saberia se defender dos tipos que tem naquela vila. Entende agora porque não
a quero lá? A vila da procriação é um lugar perigoso SIM, e não quero que se
meta em problemas.
Terminando aquele sermão ele manteve os olhos fixos nos meus,
não... Eu não entendia, quer dizer que por ser bonita eu estava proibida de
andar por ai? Bonita... Então ele apreciava minha aparência? O quão ruim
isso me parecia agora? Não sei, mas ele continuou me encarando, esperando
sei lá, um sim senhor vossa majestade eu entendo, mas não ia dar esse gosto,
ele precisava ouvir umas poucas e boas.
Pensei em um monte de coisas a dizer, mas estávamos tão próximos
que por um momento me deixei namorar cada parte de seu rosto tão perto do
meu... Lindos olhos estrelados... Machista de olhos estrelados... Um cretino
autoritário com os olhos cheios de estrelas que quase me distraiu, quase...
Sem dizer nada desviei da muralha de músculos a minha frente e segui
para a porta, mas ele segurou meu braço de maneira brusca, e logo, como se
lembrasse que estava passando dos limites ele suavizou o aperto.
— Quem é esse Daniel?
— É da sua conta? — Rebati com tanta raiva que esqueci que estava
falando com o rei.
— Vou descobrir de um jeito ou de outro, então é melhor me dizer.
Puxei meu braço e o empurrei com raiva, claro que nem fiz mossa, já
que ele sequer moveu um passo para trás.
— É apenas um garoto, deixe o em paz!
Saí para a sala pisando duro e ele veio atrás.
— Muito bem! Se ele é o problema, darei um jeito nele.
Parei assustada ao ouvir isso, meu coração espremeu tanto que levei a
mão ao peito e me virei para ele já com os olhos transbordando com as
lágrimas que eu estava lutando para segurar.
— Se tocar um dedo nele, nunca mais me dirija a palavra. Nunca mais
sequer olhe em minha direção, pois eu o odiarei com todas as forças do meu
coração. Eu lhe juro.
Isso pareceu surtir efeito, porque de irado ele pareceu assustado, nesse
momento o que eu queria era sumir de perto dele, e foi o que tentei fazer, mas
não tive tempo de subir as escadas, com passadas rápidas ele estava perto
novamente, tão perto que não tive tempo de fugir. Para minha surpresa ele me
abraçou.
— Não foi isso o que eu quis dizer pelo amor de Deus! Não chore
Amélia, me desculpe por fazê-la pensar isso, eu me excedi, jamais seria capaz
de machucar alguém só por raiva, quem pensa que sou?
Certo... Isso também não era algo que eu pudesse prever, na verdade
eu estava completamente abalada. Tiago parecia possuir muitas facetas e
muito do que ele dizia e fazia era movido por seu temperamento, isso eu já
estava começando a perceber, mas até onde ele poderia ir num momento de
raiva movido por seu temperamento impulsivo? Era algo a se pensar.
Estranhamente me acalmei com aquele abraço que ao contrário de seu
rosto irado, era tão terno e cheio de afeto. Mais uma vez fiquei frustrada por
não acompanhar toda essa intensidade do rei.
— O que então, em nome dos antigos, quis dizer com essa ameaça?
Ele não me largou, e me senti um tanto incomodada porque mesmo
sendo apenas um abraço eu senti meu corpo responder a ele, tudo nele atiçava
meus sentidos. O cheiro, os músculos do peito me achatando um lado da
bochecha, sua mão enorme segurando minha cabeça e outra espalmando
minha cintura, não dava para não sentir cada parte tocada por ele com
inocência, esse homem foi feito para afetar as mulheres, foi criado para isso.
Não podia ser possível que essa afetação só acontecesse comigo.
Precisava urgentemente de distância, pois era o rei que era o perigo,
nenhuma vila miserável, assassinos contratados ou membros da casta nobre
me parecia tão perigoso quanto ele naquele momento e com um pesar no
coração forcei de leve seu peito e ele se afastou me olhando de olhos baixos,
parecia envergonhado.
— Na verdade eu não ia fazer merda nenhuma, só falei para que não
subisse correndo para o quarto me deixando falando sozinho. Não sou um
monstro, Amélia, mas eu sei que por vezes passo dos limites. Desculpe-me.
Trégua... Até quando ficaríamos assim, nessas oscilações entre a
trégua e a discussão? Soltei o ar pesadamente assoprando o peito de Tiago
que continuava perto demais.
Ele ofegou quando sentiu o assopro e deu um passo para trás me
olhando de modo intenso. Com o mesmo olhar de quando desci as escadas.
Ele não te olha como irmã...
E por aquele olhar e através de meu coração disparado eu soube que
não era só eu que ficava afetada, ele também, e algum sentido desconhecido
dentro de mim me dizia que ele sentia algo mais do que um sentimento
fraternal.
Por fim para quebrar qualquer clima constrangedor que manteve
nossos olhos fixos um no outro e a boca completamente fechada sem saber o
que dizer, eu perguntei a primeira coisa que me veio à mente.
— Onde está meu pai?
A pergunta agiu como um balde de água fria para o transe de Tiago,
seus olhos desviaram do foco que era eu e ele vincou a testa como se tentasse
colocar a cabeça em ordem. Por fim me olhou confuso.
— Me fez prometer que não brigaria com você porque ele tinha que
sair para ver um amigo.
Cruzei os braços e cerrei os olhos. — Que bom que você cumpre o
que promete. — Destilei a frase venenosa com gosto. Ele pareceu
ligeiramente envergonhado.
— Olha, vou ver o que posso fazer sobre sua ideia, está bem?
Fiquei desarmada com essa oferta sem pedir nada em troca dessa vez.
— Tudo bem e eu não irei mais a vila da Procriação, não porque você
pediu tão delicadamente, mas é porque me senti mal, se fossem apenas
pessoas miseráveis e necessitadas de ajuda, eu não iria obedecê-lo, mas pelo
que vi lá, alguns estão enterrados na mais pura promiscuidade e pelo que
Daniel me disse, fazem isso mais por gosto e costume do que por precisão, e
não é para esse tipo de pessoas que eu gostaria de dedicar minha
preocupação.
Tiago pareceu verdadeiramente aliviado. — Que bom que me ouviu
Amélia, pois você está vendo uma parte pequena, se tivesse andado por
aquelas vielas tomaria nojo da maioria das pessoas de lá.
Ele seguiu para a porta e antes de sair me olhou com os olhos negros e
lindos cheio de estrelas de tão brilhantes e esse olhar me afogueou as
bochechas.
— Boa noite, Amélia. Hoje foi o primeiro dia que brigamos e nos
acertamos em seguida, gostaria que fosse assim mais vezes, na verdade eu
preferia não brigar, se fosse possível.
Quando ele fechou a porta eu sentei pesadamente no sofá.
— Eu também. — Respondi para o nada, respondi para mim, porque
eu queria isso, não brigar, no entanto não queria ser subjugada para que isso
acontecesse, seria ofensivo para minha inteligência e os anos de estudo na
vila sombria.
Tiago tinha que entender que eu não fazia parte das submissas desse
reino ou então infelizmente nossos encontros seria sempre assim, regados de
gritos e grosseria.
Uma despedida

Pouco mais de uma semana já tinham se passado e depois daquela


discussão com Tiago eu cumpri o que prometi, não mais fui à vila dos
Procriadores, porém eu passava perto dela todos os dias, pois estava junto
com alguns homens contratados por ele, limpando e arrumando o templo que
estava abandonado e cheio de mato.
E mesmo em meio a essa agitação eu deixei uma tarde livre para
passear com Daniel mais uma vez por alguns lugares na vila dos Forasteiros.
Ele me mostrou a casa de leilões e me contou que antes era comum ver
anúncios sobre ofertas de meninas de variadas idades e fiquei mais que
satisfeita ao saber que agora esse local tinha sido fechado. Na verdade até
mesmo as inúmeras casas de diversão também tinham seguido esse destino.
Eu tinha levado comigo algumas moedas de bronze e a cada mão
estendida eu depositava uma, infelizmente não consegui chegar nem ao meio
da rua até o mercado e elas já tinham findado.
Me senti mal por ver tanta gente pedindo, parecia um número
expressivo demais para não serem notados pelo rei ou pelo conselho que
deveria cuidar desse problema, mas infelizmente eles eram invisíveis,
ninguém parecia se importar com a fome deles, ninguém além de mim e
Daniel naquela rua, e isso era algo triste demais, minha raça não era dada a
piedade, e isso dizia muito sobre como devia ter sido ser antes das mudanças
no tratado.
Passeamos pelo mercado colorido e dessa vez eu pude fazer todas as
perguntas que queria e ele prontamente me respondia deixando o passeio
agradável e muito elucidativo para mim que ainda não conhecia nada do
reino, no entanto, quando chegamos ao final, quase na periferia da rua do
mercado colorido, ele não me deixou seguir, disse que era melhor voltarmos
porque ali não era lugar para a filha do general.
Não discuti com ele, mas fiquei curiosa por ele enfatizar a filha do
general e não mulheres no geral. Senti que aquela parte do mercado tinha
alguma coisa particular relacionada ao meu pai, ou ao ódio que sentiam dele,
ou talvez fosse algum dono de alguma barraca naquela parte que tivesse ódio
do general o suficiente para fazer mal a filha dele.
Achei melhor não fazer perguntas já que Daniel caminhou ao meu
lado parecendo uma concha, ele não parecia disposto a me dar mais
informações e também não me interessei em insistir já que saber que alguém
tinha raiva do meu pai era apenas algo rotineiro.
Ainda assim me senti desconfortável com a situação, mas quando ele
me levou para os portões do reino e subornou um dos guardas prometendo
que lhe traria uma prenda se ele permitisse que eu subisse na guarita no alto
da muralha, eu esqueci o ocorrido no mercado e me deixei contagiar com a
visão fora dos gigantes muros de proteção.
A larga e sinuosa estrada dos Viajantes podia serpenteava em meio à
densa floresta. A cor quase vermelha e o fim dela ao virar uma curva me fez
apertar o coração de saudade do reino sombrio. Logo chegaria o decênio do
meu senhor, o terceiro príncipe, e eu voltaria a rever o povo da minha vila,
mas naquele momento, com aquela esplendorosa visão eu senti uma vontade
enorme de abrir aqueles portões e caminhar tranquilamente por aquela estrada
até adentrar o reino sombrio.
Daniel ficou receoso quando comentei isso e eu ri da cara de medo
dele. Contei a ele que sentia menos medo de andar sozinha por aquela estrada
na floresta do que andar sozinha de minha casa até o padeiro perto de casa,
por isso eu tinha até contratado o garoto chamado Tobias que eventualmente
cuidava do estábulo para fazer esse tipo serviço permanentemente.
Quando ele perguntou por que eu não tinha medo dos perigos do lado
de fora, contei a ele minha história, contei tudo o que aconteceu comigo, de
meu exílio e de minha mãe e do destino amargo de meu pai até nos
reencontrarmos. Daniel ficou encantado quando eu contei sobre os humanos
das vilas, mais ainda quando contei a forma simples e eficaz da organização
de lá e vi naqueles olhos verdes brilhando que ele era tão sonhador quanto eu,
que ele se tivesse condições dedicaria todo seu tempo a fazer algo que tirasse
seu pequeno e famigerado grupo da miséria.
Contagiada com aquele olhar contei então a ele sobre uma ideia que
pedi ao meu pai para apresentar ao rei, prometi que mostraria uma cópia
quando chegássemos em casa. Ele riu dizendo que nem adiantava eu lhe
mostrar já que ele não sabia ler e tive que explicar cada passo do projeto, ali
mesmo na guarita.
Os olhos desse menino brilharam sonhadores e senti apertar meu
coração, sabia que ele ia aceitar o convite quando este aparecesse, ele iria
com os seus miseráveis para a fazenda se tivesse essa chance. Esse líder
jovem de um grupo de arruaceiros não tinha intenção de assaltar carruagens
de ricos para sempre, ele tinha ambição e prometi a ele que pediria a André
para entrar em contato com ele para que ele e os seus fizessem parte desse
primeiro assentamento teste.
Os olhos deles encheram de água e os meus também seguiram o
mesmo caminho. Abracei meu novo amigo naquela guarita, sabendo que esse
seria nosso último passeio. Pois meu pai já tinha me avisado que começaria a
buscar interessados em alguns dias e eu iria conversar com ele sobre Daniel
naquela noite.
Quando nós voltamos para casa eu o paguei e ele se negou a receber
alegando que foi agradável minha companhia e já me tinha como amiga e
mesmo eu sentindo o mesmo, fiz questão que ele pegasse as três moedas,
mesmo ainda faltando duas semanas para o mês tratado findar, eu rebati
dizendo que o dinheiro o ajudaria quando fosse para a fazenda e ele acabou
aceitando e agradeceu.
Dormi entristecida naquela noite, pois Daniel foi o primeiro amigo que
fiz e pelos olhares de ódio de quase todos que eu encontrava, eu tinha quase
certeza que seria o único.
O conserto destrutivo

Um mês... Quem diria que eu ia conseguir. Nunca antes tinha passado


pela minha cabeça que veria isso, não na situação que o reino estava, mas ali
estava a primeira escola futura do reino Humanis.
Daniel meu amigo rebelde tinha me dado esperanças sobre a mudança
de comportamento, principalmente nos mais jovens, esses ainda não estavam
moldados com a corrupção, ainda eram passivos de bondade se fossem
ensinados, por isso eu acreditava que conseguiria mudar pelo menos o
preconceito infantil pré-concebidos pela vivência com os adultos corruptos e
arraigados em suas crendices e costumes.
E realmente o local era ótimo para uma escola, e muito maior do que
uma casa simples, sem contar que o espaço poderia ser usado para outros
futuros projetos que poderiam beneficiar algumas famílias. André me olhava
com tanto orgulho que meus olhos arderam de emoção mais uma vez por ele
estar comigo depois de tanto tempo separados. Ele se aproximou e colocou a
mão em meu ombro.
— Parabéns Amélia, quem diria que daria certo em tão pouco tempo.
— Obrigada pai, devo a você boa parte disso, também agradeço pelo
que fez a Daniel, sei que por conta dele quase todas as vagas foram
preenchidas e nem todos possuíam o perfil que você tinha em mente, mas
tenho certeza que ele saberá fazer os seus prosperarem, eles o respeitam e
isso já será mais efetivo do que somente a força do braço.
Ele assentiu e me sorriu ternamente. — O pai supremo tinha razão
filha, você tem bons olhos para encontrar bondade nos corações mais escuros.
Neguei com a cabeça. — Daniel é novo, por isso esqueceu qualquer
diferença que veio a aprender em seus curtos anos, a crueldade do reino não o
moldou, e é por causa dele que eu acho que as crianças são realmente o que
devemos focar, não acontecerá rapidamente claro, temos que pensar no
futuro.
André suspirou e olhou para uma estrada poeirenta que segundo fiquei
sabendo, levava a outro bairro parecido com o da Procriação.
— Nem todos os adultos estão corrompidos, filha. O filho de Uzias é
um desses. Seu nome é Marcos e estou tentando há dias tirá-lo da vida
miserável em que vive, ele merece mais do que isso, o pai dele morreu na
batalha sombria, morreu com um alto posto de soldado, por isso ele tem
direitos.
Ele parou de falar e o olhei de canto. — Mas...?
— Mas ele não é muito receptivo, me deu um soco como resposta na
última vez que tentei conversar com ele.
Isso me fez rir e falei em tom brincalhão para tirar daquele olhar a
preocupação pelo rapaz.
— Que bom que você tem superpoderes, não é mesmo? Pode relevar
quantos socos quiser e continuar tentando.
Ele me deu um peteleco na testa. — Engraçadinha hein menina, mas
eu sinto dor, sabia?
Eu ri ainda mais e fiquei contente pelo peteleco, não que eu quisesse
apanhar, longe de mim sentir dor atoa, mas o ato descontraído me fez ver que
nossa relação estava se estreitando por conta da convivência e ele estava
muito mais solto, e parando de recear que eu o condenasse pelo passado.
André era um homem que sabia se martirizar por seus erros, não
precisava de sua filha o ajudando com isso.
Enganchei no seu braço e continuei rindo enquanto o acompanhava até
o cavalo que pela simplicidade das traias imaginei que ele tentaria mais uma
vez conversar com o violento rapaz Marcos.
Assim que me despedi com um aceno de mão, me virei para voltar ao
templo e olhei em volta me dando conta do aumento de observadores.
Crianças de todo tipo e idades olhavam de longe, curiosas, com medo
e muitos deles até com ódio. Nesse momento agradeci por ter soldados
encarregados de minha segurança.
Havia muito rancor entre os humanos. Desde que o tratado fora
mudado houve muitas discussões, assassinatos, brigas violentas, conspirações
e até mesmo suicídios.
Os homens de casta mais alta se viram obrigados pagar devidamente o
trabalho das famílias que antes lhes pertenciam como escravos. Isso gerou
uma cadeia de eventos no reino e todos eles violentos. Havia constantemente
brigas na rua de membros de várias castas. Uns exigindo o direito de receber
já que agora as leis eram outras, e outros exigindo que trabalhassem de graça
alegando que se esses estavam vivos, era por conta do tempo que viveram
sendo alimentados pelos de casta mais alta.
Isso tudo ouvi de Daniel, de meu pai e até de Tiago, sem contar que
muitas dessas situações eu observei de minha própria janela.
Não era raro aparecer uma notícia de alguns escravos libertos ou
mesmo de algumas pessoas da casta dois, aparecem mortos. E isso gerava a
revolta desses mais pobres que se juntavam para se vingar dos mais ricos.
Enfim... O clima no reino estava sempre tenso, era um barril de
pólvora pronto para explodir. Por conta dessa eminência de conflito, muitos
soldados agora policiavam as ruas e os ânimos arrefeceram um pouco. Ainda
assim, sempre um corpo ou outro era encontrado nas vielas e nos lixões.
O mais irônico, é que mesmo com a miséria se alastrando nas castas
mais baixas e com a violência que sofriam nas ruas, quem se sentia mais
prejudicado eram os homens de castas mais altas que viram suas mulheres
serem tiradas de seu poder, até mesmo as principais que manifestaram o
desejo de partir. Reclamavam que por conta disso ficaram somente com suas
fortunas e sem saber como aumentá-las e que estavam gastando mais do que
lucravam. Afinal toda a base da economia era a venda, troca e aluguel de
mulheres.
Mas toda a vez que eu ouvia sobre isso me vinha a lembrança de uma
frase que ouvi há algum tempo.
“Na miséria se conhece o desespero, mas na dignidade se ganha a
força”. O senhor Rael havia dito isso uma vez quando notícias do reino
humano chegaram ao reino sombrio.
Agora, depois desse tempo aqui eu já entendia o que o senhor Rael
queria dizer. A força para Tiago estava nos bairros inferiores, nas massas e
não no pequeno aglomerado abastado, por isso era nesses mais pobres que eu
queria focar.
Nessa massa desesperada das castas mais baixas que tinha, apesar de
todo sofrimento, uma esperança sólida de que tudo ia melhorar e se isso
realmente acontecesse, eles seriam a força que ajudaria o rei Tiago a fazer o
reino prosperar. Porque de todo o povo do reino, seriam eles que teriam o
maior interesse de mantê-lo no trono, pois eles entenderiam que sem esse rei
no poder, suas vidas voltariam a ser como antes, na época do rei Júlio.
Mas ainda era cedo para almejar qualquer fruto, minha única semente
era essa escola, ainda não tinha conseguido pensar em nada mais que pudesse
ajudar esse povo, quem sabe conhecendo melhor algumas famílias, alguma
ideia melhor que essa me viesse. Sempre vinha, eu tinha mais ideias do que
dedos para contá-las.
Cruzei os braços e sorri novamente admirando aquela maravilha de
casarão, ela possuía a sacada simples e até sóbria em vista de alguns prédios
do bairro dos Forasteiros. Mas igualmente bonita, era cheia de quartos com
uma enorme cozinha e uma imensa sala comum. Ao lado dela estava o
grande celeiro que era visto até agora como o marco das mudanças.
Diana em sua própria luta, mudou muitas cabeças e uma delas foi a
minha, por causa dela eu voltei a sonhar, sempre me vinha à mente que se
apenas a gana dela por justiça contando com o apoio somente dos seus fez
uma reviravolta na história das três raças, eu também poderia conseguir
algum progresso, mesmo que minha ambição não fosse tão grande e nem
meus atos tão tendenciosos.
Meus sonhos são diferentes, mas são humanos, e como uma humana é
meu direito poder escolher um lado e o lado dos ricos já está cheio, por isso
os pobres precisam de aliados e sei que posso fazer algo, mesmo que seja
somente um pouquinho.
— Você é a nova proprietária desse casarão?
Virei assustada com a voz estranha. Parada me encarando com
curiosidade estava uma moça baixinha, rosto afilado e olhos castanhos
amendoados emoldurados por um cabelo cacheado e descuidado.
Balancei a cabeça um tanto curiosa pela pergunta. — Não. Na verdade
sou a curadora real, essa propriedade pertence ao reino e está sob minha
responsabilidade em nome do rei.
Ela assentiu sem dizer nada, passou a mão pela barriga e percebi o
volume.
— Está grávida?
Ela assentiu. — Não sei quem é o pai, era uma esposa do harém, agora
não sou nada e nem tenho como vender o bebê.
Senti a ira beliscar meu âmago vendo a entrega fácil daquela mulher,
ela nem ia lutar? Apesar de todas as mudanças e do tempo ocorrido ela ainda
ia tratar o próprio filho como um item de feira?
— Não pensa em ficar com ele ou… cuidar dele?
Ela riu sem humor. — Não estou dando conta de cuidar nem de mim,
quem dirá... — Levou a mão ao ventre e balançou a cabeça. — Não consigo
trabalho, não consigo nada. — Levantou os ombros com o semblante
derrotado. — Sou uma mulher em um reino de soberania masculina. O novo
rei nos deu liberdade, mas tirou nossa proteção também. Nunca antes me
preocupei com a maneira que iria conseguir comer no dia seguinte, pelo
menos antes desse novo tratado. Agora não tenho nada, nem mesmo um teto
para me proteger a noite.
Passei a mão pelo rosto pensativa enquanto olhava para aquela mulher
que era o símbolo da falta de vontade e dos erros nessas mudanças. Seria
sempre assim? Consertava uma coisa e quebrava outra no processo?
— Posso te arrumar um emprego temporário. Como se chama?
Ela não pareceu muito animada com minha oferta, respondeu sem
mostrar qualquer emoção, e comecei a refletir que talvez não fosse tanto o
problema das mudanças, talvez uma parcela de culpa pudesse ser dela, já que
mostrava tão pouco ânimo com a oferta de trabalho. Mas... Poderia ser
apenas ela, talvez generalizar poderia ser precipitado.
— Jaci.
— Tem quantos anos, Jaci?
— Dezenove.
Analisei aquela moça com calma, não parecia ter essa idade, sua
aparência desnutrida e sofrida lhe dava vários anos a mais. Não falei mais
nada, mas essa menina sem saber havia me aberto os olhos.
Mudaram as leis, libertaram as mulheres e não deixaram a elas
nenhum lugar de amparo, estavam largadas por ai sem casa e sem ajuda e o
pior… sem o respeito de ninguém. Ainda eram vistas como objeto, porém
agora um objeto sem nenhum valor e também como culpadas da eminente
derrocada de muitos ricos.
Talvez uma escola não fosse a coisa mais urgente nesse momento,
talvez eu também estivesse agindo por impulso sem analisar melhor as
coisas. Realmente eu teria que pensar bem em como ajudar as pessoas,
reavaliar tudo. Pelos vistos a urgência era fome de comida agora e não de
aprendizado, talvez… Pudesse fazer alguma coisa, talvez…
Apertei os lábios me sentindo chateada com a situação. Tinha que
falar com Tiago. Sem planejamento algum deixaram centenas de mulheres à
deriva, largadas na rua e a mercê da fúria dos homens vingativos, mas
também não podia abordar o assunto de modo precipitado, tinha que pensar
bem sobre isso, afinal eu ainda não sabia nada de concreto desse reino, então
precisava me adaptar melhor. Talvez realmente eu tivesse que pesquisar
melhor e ver qual a prioridade.
— Jaci, há soldados aqui e sinceramente não a quero sozinha com
eles. Façamos o seguinte, em breve aqui será minha casa e você será muito
bem vinda. O celeiro provavelmente será uma sala de aula e a casa eu tinha
deixado para ser usada no futuro quando um projeto fosse preparado, mas
agora... pode voltar amanhã?
A garota pareceu cética por um momento, por fim assentiu e dessa vez
estava esperançosa.
Fiquei observando o corpo fino daquela menina se afastar. Sem olhar
de frente ninguém diria que uma barriga de grávida estava lá, era mesmo
muito magra e comecei então a pensar na quantia de famintos e abandonados
que estavam naquele reino e o que mais eu encontraria se procurasse direito
porque até agora eu havia focado somente em um lugar, em nenhum
momento me veio à mente investigar mais a fundo esse reino.
De fato eu também não estava sabendo fazer as coisas.
André

Andar por ali sem sentir tristeza pelo que via, seria como não ter um
coração batendo no peito. A vila da procriação era um bairro de luxo perto
desse bairro.
Desde as mudanças, muitos escravos libertos estavam rumando para a
prisão dos leviatãs, um lugar que até pouco tempo atrás estava abandonado
por conta da localização tão distante de tudo e agora era o refúgio dos
abandonados, o único lugar que eles sabiam que os acolheria.
E agora, depois de tantos acolhidos, tinha virado basicamente um
bairro repleto de moradores. A pobreza estava se concentrando no mesmo
lugar. Barracos precários de peles, palha e todo o tipo de material recolhido
do lixo e da floresta interna da prisão estavam espalhados por todo lado.
A passagem era livre então esse era o destino para um verdadeiro
êxodo de miséria, todos que chegavam estavam encontrando seu canto, se
ajeitando como podiam e engordando a massa de moradores do lugar fechado
de altos muros.
Chegar a eles era um pouco demorado. Cavalgar algumas léguas de
terra e depois passar pelo segundo bairro da Procriação que era extremamente
novo e pouco menos pobre que a prisão.
O antigo rei Júlio estava criando esse bairro para acoplar as famílias
miseráveis para que continuassem a ter seus filhos e filhas para aumentar
ainda mais a riqueza dos mais abastados. Agora essa estrada para a nova vila
dos Procriadores também era o caminho para chegar ao refúgio dos
renegados. Por sorte, essa vila não mais fora mexida e esse comércio de
pessoas tinha acabado graças a quem menos eu esperava.
O rei era um maldito tirano que buscava a vida eterna chegando a usar
a menina Diana como escrava de sangue somente para conseguir esse intuito.
Por fim, o homem que eu mais abominava na vida e que sempre me fez
acreditar que iria deixar o rei ainda mais poderoso do que já era, o matou a
sangue frio, o usou como um amante somente para seus propósitos. Como era
irônico tudo o que eu havia visto até essas mudanças acontecerem realmente.
Tudo começou com aquele atrapalhado do terceiro príncipe sombrio
que havia salvado minha vida na floresta quando a vida já me deixava por
conta do ataque de um leviatã. Se não fosse aquele príncipe sombrio e sua
mistura, eu não estaria aqui para ser escolhido para aquela missão
desumanada de chacinar aquelas garotas do pacote de vinte anos. Também
não teria poupado a vida daquela menina e nem tinha a ajudado a chegar ao
reino sombrio.
Talvez, se aquele príncipe não tivesse se condoído de mim há tantos
anos atrás, hoje eu poderia ainda ser um escravo e ainda veria mulheres sendo
vendidas no harém, não teria participado de uma guerra e nem teria
reencontrado minha filha depois de tantos anos. E não também, não teria
reencontrado o amor.
Todos diziam que o marco das mudanças era aquele celeiro onde a
chacina tinha acontecido. Mas não era essa assim que eu via. Para mim tudo
começou com Dimitri, esse era o marco das mudanças na minha visão, foi
por causa dele e sua peraltice com os irmãos mais velhos que tudo começou a
andar para esse momento de agora, para esse momento onde mais uma vez eu
tentaria negociar com aquele cabeça dura que nunca aceitava minha ajuda.
Quem sabe hoje eu tivesse mais sorte.
Para chegar até ele tinha que passar pelo bairro novo e chegar às
muralhas gigantes onde os portões não mais existiam, os guardas que antes
andavam pela muralha também haviam sumido.
O local criava vida como mais um bairro miserável que estava
nascendo por conta própria no reino humano e por conta disso, era de
responsabilidade do rei, mesmo que ele não tivesse noção da existência
daquele lugar.
Eu não tinha contado a ele para protegê-lo, os outros também não se
incomodaram em contar porque esse bairro novo e o que acontecia ao redor
dele não interessavam aos mais abastados. Mas o rei ainda iria saber, quando
a hora certa chegasse.
Decidi não arriscar a vida do meu cavalo atoa e parei pouco antes, se
entrasse com ele poderia perdê-lo, ele viraria alimento de uma forma ou de
outra. Esse era o boato pelo menos, mas... Vai saber, poderiam mesmo comê-
lo ou trocá-lo por comida e eu gostava do animal o suficiente para não
desejar a ele esse fim. E como me conheço bem, também não lutaria com eles
para salvá-lo, pois não teria coragem de tirar deles uma chance de conseguir
comida, então para poupá-lo o deixei na estalagem e segui o resto do
caminho andando.
Marcos, filho de Uzias, me aguardava encostado perto da entrada, os
braços cruzados deixando à mostra uma grande quantidade de músculos que
ele tinha adquirido com os anos de servidão e serviços pesados.
— Salve, André.
Segurei sua mão suja, pobre rapaz estava imundo e muito magro,
ainda não estava só pele e osso, mas não havia uma grama de gordura em seu
corpo, somente músculos e ossos. Ele me olhou com esperança e desafio, o
que só mostrava seu desespero.
— Alguma novidade boa para esse povo miserável?
Havia uma notícia boa referente a horta, algumas famílias da casta dos
procriadores já tinham manifestado vontade de tentar, sem contar o menino
Daniel e todos os seus saltimbancos nem tão engraçados assim. Mas se
Marcos tivesse paciência essa mesma notícia poderia ficar melhor ainda visto
que se desse certo, muitas fazendas abandonadas poderiam ser utilizadas para
esse fim e ele poderia mandar seu povo para lá, no entanto, nada era de graça
e nem todos poderiam ir e era para isso que eu estava ali. Mas depois de
alguns encontros nada amistosos, eu já imaginava sua reação.
— Precisamos conversar Marcos.
Ele apertou o maxilar se contendo. Seus olhos castanhos brilharam de
raiva.
— Então você não tem nada para mim!
— Ao contrário, mas se quer ajudar os seus terá que me ouvir sem
perder a calma dessa vez.
Ele apertou os lábios e me fitou pensativo, eu conhecia esse olhar, já o
havia visto muitas vezes quando era escravo. Um olhar de quem não tem
muito a perder. Por fim ele assentiu.
— Estou ouvindo.
— Acho que poderíamos sentar e comer alguma coisa enquanto
conversamos, que tal a estalagem?
Seus olhos faiscaram de orgulho. — Não preciso de sua pena, André.
Levantei os ombros e me virei em direção ao bairro novo.
— Não precisa comer nada se não quiser, eu vou comer algo porque
estou faminto e você bebe água, se lhe aprouver.
Em silêncio ele me seguiu, sorri disfarçando o quanto gostava do jeito
daquele rapaz. Era orgulhoso, ainda assim não era idiota. Uma refeição
mesmo que vindo de um lugar duvidoso como a porca estalagem daquele
bairro novo, ainda era uma refeição.
Confraria Anarquista

Dante

Todos falavam ao mesmo tempo. Aquilo já estava me cansando, era


sempre a mesma coisa. Sempre as mesmas reclamações e as mesmas malditas
ideias para tirar aquele moleque do trono.
Levantei já com o coração acelerado, era a primeira vez que eu ia me
intrometer naquele conchavo de recentes aliados. Até então para mim estava
tudo bem, os rendimentos mensais de um conselheiro não era muito, porém
estava me ajudando a manter os luxos, só que agora…
Não ia mais esperar os planos surgirem dessas mentes pequenas, não
ia mais colaborar com eles. Porque agora eu estava no mesmo barco, Tiago
aquele maldito havia me dispensado do conselho.
Os homens na reunião queriam seguir com suas pequenas ações, com
seus assassinatos e suas diversões, ótimo… Eu ia agir, e era agora. Falei o
mais alto que consegui, trazendo a atenção deles para mim.
— Vocês ficam todos aí com as mesmices de sempre, apenas
confabulando planos e mais planos e até agora, nada foi resolvido. Há um
meio de testarem a força daquele que se intitula rei. Tanto tempo com nossas
mulheres e não aprenderam nada?
Todos agora me olhavam com interesse, se eu tivesse uma filha
disponível é claro que não ia dar essa ideia, ia colocá-la em prática à surdina,
mas como todas as minhas já haviam sido vendidas há muito, o máximo que
eu poderia fazer agora seria assistir de camarote a balbúrdia dessa ideia
simples e tão pouco abordada pelo conselho, eles precisavam pressionar o
filho de Júlio, até que ele cedesse.
— Um rei precisa de uma rainha, e nosso rei está solteiro. Com um
pouco de pressão sempre podemos encaixar uma família aliada lá dentro.
Basta que os comentários e cobranças comecem a ganhar força, apenas uns
sussurros nos ouvidos influentes. E também alguns conselhos desinteressados
de alguns dos nossos lá dentro de que ele conseguirá mais força e aliados
selando uma união com uma família das castas superiores e a semente estará
plantada. Isso foi abordado, mas sutilmente até agora, é preciso mais pressão.
O rei sabe que é visto por nós como fraco e tolo, e ele também sabe
que estamos chegando ao limite, por isso acredito que não será difícil fazer a
cabeça dele, afinal ele precisa de uma esposa para consolidar seu poder com
um herdeiro, é sabido que enquanto não houver linhagem de seu nome ele
não terá o trono assegurado. E quanto mais pressão nas ruas, mais retaliação
aos miseráveis e mais tensa ficar a situação, o rei irá ceder para arrefecer os
ânimos.
Sorri ao ver que todos assentiam pensativos, muitos com certeza já
planejando apresentar a própria filha ao rei, já maquinando qual discurso
seria mais eficaz para concretizar uma aliança por casamento.
Já eu, tudo o que me restava agora era ver o império Bale cair, ele não
devia ter me humilhado publicamente, me tratado como um parvo na frente
dos outros conselheiros, por isso, movido de mais entusiasmo quando vi que
todos esperavam atentamente eu continuar, eu alterei mais a voz.
— Se as coisas forem feitas de maneira eficaz ele não verá saída,
afinal um rei só é rei se tiver alianças entre os seus. Acho que podemos
começar a espalhar isso entre os criados, nem todos nossos aliados saíram da
mesa do conselho. Podemos dobrar esse rei, fazê-lo se enroscar na
necessidade de aliança e para enfraquecê-lo ainda mais, precisamos vetar
qualquer progresso que ele venha a ter, precisamos tirar dele qualquer paz
enquanto não se decidir.
— O que acha que devemos fazer, Dante?
Era Mario da casa Amorin que tinha perguntado, ele tinha terras fora
do reino e agora estava se vendo maluco para continuar os negócios já que
tinha que pagar os empregados. Respondi mais seguro que as coisas iam dar
certo dessa vez, mais seguro que finalmente veríamos a era de ouro para os
negócios do tempo do rei Júlio.
— Podemos começar a boicotar qualquer plano de progresso,
principalmente aqueles que estão sendo eficaz. Sufocar o rei até que ele ceda,
ele é um homem inteligente e entenderá que para apaziguar os ânimos e
poder fazer prosperar seu reino, precisará fazer alguns sacrifícios e nada
como mostrar que está disposto a fazer algumas concessões para ter as duas
castas mais altas ao seu lado.
O barrigudo Esaú se levantou, era da casa Matias, uma boa casa, mas
de longe uma casa importante.
— Você fala bonito Dante, mas me diga. Como que iríamos conseguir
aliados próximos o suficiente desses malditos esfaimados das castas mais
baixas para sabermos se está acontecendo algum progresso que beneficie o
nome do rei entre eles?
Sorri com a pergunta obvia. — Esaú meu caro. Uma moeda de ouro
para quem tem fome seria três dias de bom alimento. Acha mesmo que não
conseguiremos comprar alguns famintos para nos manter informados sobre
tudo o que acontece nos bairros? Informação é poder, essa é a regra básica de
uma estratégia. Inclusive a fomentação, precisamos mesmo fazer o rei
mostrar que respeita a força das duas castas e para isso, temos que fazer com
que ele escolha uma das tantas filhas que estão agora basicamente sem
chance de trazer lucros, só estão dando despesas, mais nada. Se o rei aceitar
casar com uma delas, estará mostrando que nos quer como amigos dando essa
honra a um de nossa casta de ter um membro da família incluído na única
casta que não podemos alcançar. A casta real.
Jogar essa ideia entre eles foi como lançar carniça aos corvos
famintos. Se aglomeraram em um bolinho enquanto debatiam e até mesmo
davam indiretas sobre ter a filha perfeita para ser rainha.
Sentei e acendi meu cachimbo com menta e fumo. Encostei-me à
cadeira observando a bela cena. A cobiça adensando, ficando quase palpável
entre eles… Soltei uma baforada no ar me sentindo quase vingado, o rei tinha
o poder, porém não o suficiente para conter a ambição das castas mais altas.
Ele ia se arrepender pela humilhação que me fez passar, era um rapaz tolo
que não fez questão de esconder sua paixão pela filha do escravo metido a
general, porém essa informação ainda ficaria comigo, meu trunfo já que eu
não tinha uma filha para incluir nessa disputa de candidatas ao os olhos do
rei.
Soltei o ar sentindo o júbilo me tomar com o som da discussão dos
homens da confraria ficando cada vez mais inflamado. Isso… Um homem
apaixonado e uma presa fácil. Logo ele ia entender que ele não mandava em
nada, que seu título e sua coroa não significavam nada. Não quando quem iria
pagar por sua tolice seria ela, a filha do general, a mulher que o rei tinha um
profundo interesse, ele achava que estava escondendo bem esse sentimento,
mas não estava, eu sabia tudo.
Essa sugestão aos meus companheiros me deu uma ideia boa, mas era
algo só meu por enquanto, uma vingança pessoal que carecia de muita
reflexão, de escolher aliados ou manipular o sentimento que mais estava
sobrando, o ódio. Mas agora, graças ao maldito rei eu tinha muito tempo
livre. E ia usar para destruí-lo.
O espião…

A rua do mercado colorido estava vazia. Meu cavalo trotava fazendo


um estardalhaço maior por não ter a balbúrdia do dia abafando o som dos
cascos.
Esse reino! Como conseguiram viver dessa forma? Se não fosse pelo
passado eu não teria aceitado a oferta, mas cá estou eu. Um herdeiro de um
antigo sobrenome esquecido pelo tempo, mas lembrado entre os meus.
Um herdeiro de sangue passando uma temporada no inferno! Um
bastardo filho da terra e da noite, um segundo que tinha que proteger o
primeiro do terceiro, eu sei... Complicado, mas essa é a hierarquia dos meus.
E seguindo a boa fama desse nome eu também sou um assassino e um
líder declarado morto por minha própria vontade porque os rumores pediram
essa decisão.
Puxei as rédeas e apeei com destreza. Revirei em meus bolsos e tirei o
pequeno quadrado cristalizado. Um torrão de açúcar é sempre um bom
suborno para o silêncio. Esperei com paciência o torrão doce ser devorado
pelo meu amigo de quatro patas. Talvez o único em que verdadeiramente
posso confiar nesse lugar.
— Muito bem amigo. — Bati em seu pescoço com carinho. — Agora
suma daqui. Não fique longe, não quero voltar para casa andando, pois nós
dois sabemos que seria somente isso que eu poderia fazer aqui sem estragar
tudo, então, se isso acontecer, você fica sem sobremesa.
O cavalo soltou um barulho, quase um relincho.
—Vá rapaz, e tenho dito! Me deixe para caminhar e fica sem seus
torrões.
Dei um tapa em seu traseiro e ele saiu trotando. Coloquei a capa negra
conseguida com atuações de crueldade pública. Algumas mulheres da casa de
diversão tiveram que sentir o peso da minha mão para que os homens daquela
confraria acreditassem que eu era um verdadeiro burguês. Um verdadeiro e
maldito traidor com posses e riquezas tão grandes que vazavam pelas minhas
orelhas.
O pior que isso não era mentira, eu tinha sim muita riqueza, mais do
que qualquer um daqueles homens ignorantes pudessem imaginar. A
diferença entre eles e eu, é que eu não precisava delas para nada além de usar
agora para provar que eu tinha meios para ajudá-los em suas fomentações.
Até agora não entendo o fascínio que o dourado exerce sobre os
homens, a necessidade absurda que eles têm de acumular sem ao menos ter
tempo de vida o suficiente para usar sua riqueza.
Mas me está sendo útil agora essa ganância desmedida. Apesar de ter
sido simples aproveitar uma ideia já usada para esse fim, não foi nada fácil
consegui obter a atenção deles, até mesmo algumas brigas com simpatizantes
no bairro dos forasteiros tinha ajudado nessa admissão.
Mas a capa negra chegou de verdade quando briguei com Laican em
praça pública não tinha nem quinze dias. Ele tinha aparecido para obter
informações sobre a sua protegida no castelo e a discussão ocorreu logo na
entrada do reino. O maldito não me poupou, pois era o esperado, mas ia ter
troco eu ainda ia cobrar por ele ter me deixado três dias de molho com a surra
que me deu. Agora eu tinha motivos para odiar tanto o rei quanto as raças
sobrenaturais e era essa a ideia.
Por isso fui convidado para entrar naquela organização secreta e
recente. Meu plano era apenas sumir no mundo quando senti o mesmo aroma,
quando me assustei com o sentimento de traição ao perceber que não podia
estar sentindo isso, por isso pedi a ele que me declarasse morto, por isso
fechei a mente, mas agora...
Minha fidelidade ao meu povo e ao meu sangue me fez retornar... Essa
é a vida de um guerreiro, sacrificar os interesses pelo bem dos seus.
Andei pela rua deserta, as portas fechadas apenas com as placas
deixavam o nome do lugar sem sentido. Um mercado colorido sem cor,
porém cheio de tramas.
No meio da rua, entre barracas de tecidos e de pães caseiros estava
uma porta neutra, vista de dia iria parecer apenas a porta de um depósito ou
mesmo uma entrada inútil aos comerciantes. Mas era naquela porta com a
tinta azul descascando que eu esperei por dois meses para bater. A que
constantemente mais homens batiam.
O rei estava colecionando inimigos e agora eu fazia parte de sua
coleção, só que não estou aqui por ele já que ele não significa nada para mim,
porém não há ninguém melhor para esse papel, ninguém em que ele poderia
confiar mais essa incumbência e que pudesse ser tão invisível quanto eu, dada
as circunstâncias...
Prometi fazer isso para averiguar se nessa confraria tem infiltrados que
periga a vida dela, afinal, ela pertence a nós, e é ela que, mesmo inocente
disso, segura a mão do meu líder e irmão, por ela que ele não faz a caçada
sem poupar vidas até encontrar o perigo que sabemos existir, mas não
sabemos onde está. Por isso e para garantir a integridade dela, estou aqui
confabulando com o inimigo.
Duas vezes… Uma vez... Duas vezes... Será que acertei?
A porta se abriu e respirei fundo. Tinha acertado a sequência de
batidas. Dei um passo e assim que passei pela marquise eu estava ciente de
que agora, sou oficialmente inimigo do rei.
Cascas vazias

Tiago

O silêncio daquela noite foi interrompido pelos gritos que já estavam


se tornando constantes. Levantei de um pulo e corri para a porta, assim que a
abri encontrei os guardas em alerta.
Levantei a mão. — Deixem! Assunto de família.
Corri pelo corredor, o chão gelado me fez lembrar que não me vesti
para sair. Estava apenas de calção.
Lindo! — Revirei os olhos, exasperado. — Um rei correndo pelado
pelo seu glorioso castelo. Não me admirava os inimigos estarem
atormentados, talvez eu fosse um rei louco na visão deles.
Cheguei à porta e escutei a voz da minha mãe, coitada… Nem todo o
luxo de uma nova vida conseguiu tirar dela o sofrimento. Abri a porta e ali
estava Celina se debatendo na cama. Sons confusos saíam de seus lábios
enquanto ela lutava com minha mãe que me olhou em desespero.
— Não sei o que está acontecendo com ela, meu filho. Piora a cada
dia. Estava melhorando, e olha agora.
Sentei na cama, puxei Celina para mim e segurei com força seus
braços junto do corpo. Ela tentou se debater por um bom tempo, não afrouxei
o aperto, não queria machucá-la, mas se ela continuasse desse jeito poderia se
ferir sozinha.
Logo ela se acalmou e continuei segurando firme por mais um tempo,
a ninando em meus braços, por fim ela se aquietou. Afrouxei o aperto e a
abracei, ela ficou gemendo e chorando enquanto soltava sons monocórdicos
como uma criança que ainda não sabe falar.
Olhei preocupado para minha mãe. — Não sei o que há, porque não
arrisca deixar ela com os lobos?
Os olhos de minha mãe logo brilharam de angústia, mas continuei
minha vã tentativa de lhe abrir os olhos.
— Já pensou que isso poderia fazer bem a ela?
Dona Clara levantou nervosa. — Não! Os lobos são brutos e tem um
costume que não consigo aceitar. Não posso! — Ela se virou para mim, os
enormes olhos negros já brilhando pelas lágrimas. —Eu amo Celina, não
suportaria vê-la como companheira de um lobo selvagem. Eles lutam entre
eles para que a marca do companheiro possa nascer. Minha Celi é frágil e já
apanhou demais nessa vida, não é justo continuar apanhando, mesmo que não
seja pelo mesmo motivo.
Continuei a embalar Celina que havia se acalmado completamente
agora.
— Mãe, você está com medo atoa, conheceu Laican e viu o amor nos
olhos dele. Ele jamais fará mal a ela.
Ela torceu a mão nervosa lutando com os próprios sentimentos. — Eu
sei filho, ele me deu um ano e estou disposta a usar esse tempo para trazer
minha filha de volta. Se ela voltar para mim e falar que quer ir com ele, eu
permitirei que vá e não irei colocar nenhum obstáculo. Mas ela não está em
condições de decidir nada agora.
— Mãe você nem...
— Nem mais uma palavra sobre isso. Se ela mesma não me disser que
quer ir, não permitirei que ele a leve.
Amargurado por fazer minha mãe sofrer com isso, não pude concordar
com sua decisão e novamente a lembrei do acordo. — Por um ano, não
esqueça que também deu sua palavra a ele.
Ela sentou na cama e passou a mão com carinho pelos cabelos de
Celina que agora já ressonava baixinho em meus braços. Seus olhos
marejaram de angústia e ela olhou para mim.
— Meu maior arrependimento Tiago, foi ter prometido isso ao
Supremo dos Licans. Desde que fizemos esse acordo ele nunca mais
procurou Celina, está cumprindo o que prometeu. Mas não sei se terei forças
para cumprir a minha parte.
Baixei os olhos dando um beijo no topo da cabeça de minha
problemática irmã mais velha para disfarçar a culpa que estava em meus
olhos. Não podia comentar que pelo menos uma vez a cada duas semanas ele
vinha visitá-la e eu facilitava para que ele pudesse vê-la de longe.
Eu já sabia o que era sofrer por um sentimento que inunda o coração
de dor somente por não poder tocar ou ver quem ama, e agora depois que
Amélia veio para ficar definitivamente isso parecia ainda mais doloroso, estar
perto e não poder alimentar o que sente por obrigações idiotas. Por isso eu
estava ajudando Laican, pois mesmo que Celi não estivesse bem, eu não
queria arriscar que ela também não ficasse com quem poderia fazê-la feliz
somente pelos medos de minha mãe. Ela continuou a falar, inocente de minha
culpa.
— Meses já passaram e nada do que fiz trouxe Celina de volta.
Contratei criados de confiança que a tratam com amor todo o tempo.
Contratei um idoso somente para que lhe faça companhia e lhe conte histórias
e sei que ele é paciencioso e muito preocupado com ela.
Ela balançou a cabeça desconsolada. — Nada trás luz aos olhos dela,
meu tempo está acabando e não vejo melhoras, só piora a cada dia.
Dei mais um beijo na cabeça de Celina e a ajeitei na cama, tinha que
tocar no assunto, mesmo sabendo que minha mãe não ia aceitar.
— Talvez, o que falte a Celina seja um motivo para sair desse mundo
só dela. Já pensou nisso? Já imaginou que ela pode ter encontrado Laican
quando estava lúcida? O amor dele por ela não é de hoje, você ouviu quando
ele disse que havia perdido Celina há muito tempo, lembra disso?
Ela assentiu sem dizer nada e sem me olhar nos olhos, aproveitando
que ela estava ouvindo sem ficar histérica, continuei.
— Talvez mãe, ela correspondeu ao amor dele antes de se fechar,
talvez eles tenham uma história que não sabemos existir. E essa reclusão dela
seja uma espera…
Ela cruzou os braços em total mostra de teimosia e defesa. Continuei
com cuidado, tentando escolher as palavras certas. Esse assunto a deixava
apavorada pelo medo do futuro de Celi, mas minha mãe tinha que tirar a
cegueira do medo.
— Mãe, se ele a perdeu como disse é porque já a tinha encontrado
antes e pelas próprias palavras dele, ela correspondia ao sentimento. Você
está privando a Celi de ser amada porque a protege demais, está a privando
de ser feliz porque tem medo.
— Pare! — Ela levantou a mão. — Pare agora. Eu tenho que protegê-
la, ela não é mais normal como antes não consegue entender isso? Celeste eu
permiti que vivesse entre os sombrios porque ela me pediu e porque pode
voltar para casa quando quiser. Já Celina nunca poderá me contar se estiver
sofrendo, nunca poderá dizer se quer voltar e nem mesmo pode me dizer se
quer ir com ele. Ela está quebrada em mil pedaços e não vai ser apanhando de
um lobo enquanto é domada por ele que ela irá se curar. Se não entende meu
coração de mãe, saia. Por favor, me deixe com ela.
Eu sempre fui muito explosivo, inconsequente e errático, mas quando
se tratava de minha mãe e Celi eu sempre pensava muito antes de agir. Ver
tudo o que passaram, presenciar as surras de Celina, ver minha irmã mais
velha tão cheia de vida e tão sorridente na infância se perder aos poucos, me
deixou cauteloso com a maneira de tratar minha mãe.
Ela já teve sofrimentos demais na vida, tanto por Celina que foi a que
mais sofreu nas mãos de meu pai, quanto por Celeste que quase teve o
mesmo destino. Por isso, engolindo toda a vontade de discutir, de abrir os
olhos dela, eu sai sem dizer nada.
Maldito! Meu pai tinha feito estragos em nossas vidas, mas em minha
mãe ele fez pior. Deixou uma casca vazia e a encheu novamente de medos e
desconfianças, a fez ver Celina se perder pouco a pouco.
Soquei a parede do corredor e apertei a testa na pedra fria me sentindo
como sempre, impotente diante de tantas sequelas do passado.
Ele fez minha mãe cuidar de Celi, cuidar de cada corte a vendo sumir
de si a cada dia de sofrimento e agora tudo o que restou a minha mãe era o
instinto de proteção.
Sorri amargo. As sobras de Celi. Isso é o que minha mãe via ao olhar
para minha irmã e era assim que ela a estava tratando. Como um sobra, como
um resto do que um dia foi sua filha. Ela queria tanto preservar isso, que
ficou cega pela proteção e o medo, esqueceu de ser mãe se tornando também
uma sobra do que foi.
Minha mãe também se tornou uma casca vazia que estava fechada em
seu próprio mundo. E seu mundo agora se resumia exclusivamente a minha
querida Celi.
Um encontro nada amistoso

Por mais receio que seu sentisse de andar sozinha, agora que não tinha
Daniel para me guiar, eu tomei o carro e pedi para que me levasse a vila
Nova. Nem sabia que era chamado assim, mas um dos soldados que tinha
visto nós duas conversando me contou que tinha visto Jaci seguir rumo a essa
vila.
Demorou um pouco e quanto mais eu me distanciava do bairro dos
Forasteiros, mais curiosa sobre essa nova vila eu ficava, afinal, ela tinha o
mesmo nome do bairro dos Procriadores, só era chamado de bairro novo para
diferenciar do antigo.
Pensei que encontraria a mesma sujeira, a mesma promiscuidade, mas
ao contrário do que pensei, as casas novas e o pouco movimento nas vielas
deixavam a sensação que o lugar era abandonado. No entanto, para fazer
contraste com essa falta de movimentação entre as casas, a estrada na qual eu
seguia começava a ficar movimentada.
Uma infinidade de crianças circulava por todo lugar, umas carregando
pacotes outras bilhetes, senhores magros e sujos conversavam sentados no
chão sem se importar com o sol quente lhes cozinhando o cérebro.
Apesar das casas mais novas, o povo era mais simples e mais
tranquilo, pelo menos não vi gritaria e nem discussão nas ruas. Ainda assim
vi um esgoto em céu aberto e ainda um monte de lixo em uma parte distante
das casas já prontas e dos prédios ainda em construção mais ao longe.
Peguei a cesta e desci com a ajuda do cocheiro. Tinha colocado um
chapéu para me proteger do sol e segui para a estalagem, pois o soldado havia
me dito que para conseguir informação, ali era o melhor lugar para perguntar.
Não demorei encontrar, era o único estabelecimento que tinha espaço
na frente com algumas mesas dispostas. Entrei e fiquei aliviada quando vi
que tinha acertado. Encontrei os conhecidos olhos azuis escuros me
observando de cenho franzido e fui pega de surpresa.
— O que faz aqui, pai?
Os olhos dele foram diretos para a cesta que eu carregava.
— Eu é que pergunto, o que faz aqui menina? E porque está
carregando esse chamariz para ataques?
Sentei na cadeira na mesma mesa onde ele estava, retirei calmamente
o chapéu que me protegia do sol, estava tentando ganhar tempo, afinal essa
era a primeira vez que eu saía para tão longe de casa, mesmo tendo os
soldados lá fora me escoltando como sempre, ainda assim eu sabia que não
devia ter arriscado tanto. Analisei o lugar varrendo tudo com olhos atentos,
mesmo tão simples, não era um local que aquela moça pudesse pagar.
— Fiquei sabendo que aqui estava a garota que estou procurando, me
disseram os guardas que viram uma moça da maneira que descrevi seguindo
em direção a esse bairro e como essa é a única estalagem, imaginei que a
encontraria por aqui. — Apontei com o queixo para a cesta que meu pai não
parava de olhar. — Trouxe para ela, pois está grávida. Havia lhe dito que
viesse me procurar, mas ela não apareceu e isso já faz quatro dias.
Ele assentiu e cruzou os braços esperando eu continuar, mas não falei
mais nada, pois era justamente essa a minha história, mas ele, no entanto,
parecia estar a todo custo evitando me dizer por que estava ali. Por fim ele
olhou ansioso para a porta e falou preocupado.
— Não deveria ter vindo aqui.
— Prometi ajudar a moça.
— Mas se ela não voltou como você pediu, é porque não queria ser
ajudada.
Ele até podia ter razão, mas devia estar no sangue a teimosia, afinal,
ele também vivia tentando ajudar o filho de Uzias. Acabei sorrindo e pisquei
de modo inocente.
— Faz dias que vejo você vindo nessa direção, sempre sem a farda,
você mesmo me contou de sua luta para tirar desse bairro o filho de Uzias e
pelos dias corridos e estando você aqui, imagino que não está sendo muito
fácil para convencê-lo a sair daqui. Então porque insiste? Creio que é o
mesmo dilema que o meu, não é?
Ele apertou os lábios tentando disfarçar a irritação. Continuei a esperar
uma resposta sobre isso. Logo ele recostou parecendo cansado.
— Ponto para você menina. Realmente está sendo difícil convencer o
rapaz, mas eu vou conseguir.
Estranhei os modos dele, tentava agir normal, falar calmo como
sempre, ainda assim percebi que seus olhos não paravam quietos, ele parecia
apreensivo vigiando a entrada a todo o momento. Logo ele levantou dando
mais olhada de soslaio a porta e me estendeu a mão.
— Venha Amélia, vou escoltar você até seu carro, acredito que não
veio andando, pois não?
Neguei. — Paguei um carro, mas não posso voltar pai, a moça…
Ele segurou meu braço me incentivando delicadamente a levantar.
Falou um pouco mais apressado do que o normal.
— Como é o nome dela?
— Ela me disse se chamar Jaci.
— Certo… Então vá Amélia, encontrarei essa garota e a levarei até
você.
Sem querer discutir com ele, levantei a cesta abrindo a boca para
explicar que era para dar a ela quando a encontrasse, mas não tive tempo.
Uma voz estranha e nada amistosa se fez ouvir.
— André, quem é essa?
— Esse aí é o Marcos? — Perguntei olhando curiosa para o rapaz sujo
na porta.
— Vem Amélia, depois te conto tudo.
Meu pai me puxou pela mão, mas o tal Marcos entrou na frente dele, e
seus olhos foram direto para a cesta que eu ainda estava segurando. Ele
trincou os dentes mostrando uma raiva absurda sem motivo aparente.
— Agora anda trazendo burguesas das castas altas com esmolas? Acha
que comprará nossa lealdade com… — Ele abriu a cesta e soltou a tampa em
seguida com raiva. — pães, geleias e embutidos?
Os modos dele de tratar meu pai me deixou irritada. Eu tinha
curiosidade de saber quem era o filho de Uzias, mas a decepção me veio
rápida. E como ele falou de mim, então automaticamente me incluiu na
conversa. Coloquei a cesta na mesa e me virei para ele com os olhos
apertados.
— O que disse?
Ele me encarou os olhos faiscando de ódio. — Isso mesmo que ouviu!
Veio aqui toda engomadinha trazendo essas... Essas porcarias! — Ele se
aproximou e me olhou em desafio. — Me responda em quê isso irá nos
ajudar? Quantas bocas acha que vai conseguir alimentar com essas merdas?
Como ele ousava falar assim comigo? Quem ele pensava que era para
tratar as pessoas desse jeito? Era tão soberbo em achar que as coisas na cesta
eram para ele? Ia ensinar a ele que o mundo não girava somente em torno
dele. Meu pai ele respondia com socos no olho, e comigo com julgamentos?
Completamente tomada pela raiva empurrei aquele peito sujo.
— É assim que agradece? É assim que trata as pessoas que querem te
ajudar?
Ele segurou meus pulsos com força. — Não ouse tentar me agredir,
não sou um escravo, não mais!
Sem ligar para a ameaça o empurrei de novo, ele deu dois passos para
trás, novamente o empurrei e ele trincou os dentes.
— É assim que tratavam os escravos antes? — Empurrei novamente
seu peito. — Ou os idiotas? Agora que eu saiba não empurro um escravo,
mas sim um idiota mal agradecido que destratou meu pai todas as vezes que
ele veio tentar te ajudar. Você está liberto é verdade, mas age feito um
escravo.
Ele nem parecia ligar mais aos empurrões, parecia agora distraído, até
um pouco perplexo.
— O que disse?
— Isso mesmo, um idiota que continua agindo feito um escravo com
esse orgulho sem sentido.
Ele balançou a mão sem paciência como se espantasse uma mosca. —
Essa parte eu ouvi, seu pai? Você disse que André é seu pai?
Estaquei o movimento. Oh céus! Na hora da raiva me esqueci das
recomendações de meu pai para tratá-lo como estranho quando o lugar
oferecesse perigo, e esse bairro me parecia perigoso o suficiente para que eu
não desse uma gafe dessas. Mas agora o mal já estava feito, cruzei os braços
na defensiva.
— E dai?
Ele balançou a cabeça. — Não pode ser, meu pai disse que você e sua
mãe…
— Mortas?
Ele assentiu sem dizer nada, ponderei o que dizer, todavia não tinha
porque essa preocupação toda. Esse cuidado era necessário antes quando meu
pai era escravo e o Tratado ainda estava arraigado na corrupção. Agora…
— Não. Eu e minha mãe vivemos no reino sombrio todo esse tempo,
saí do reino humano ainda criança e não tenho por hábito aceitar os costumes
daqui. Então não me chame de burguesa, muito menos engomadinha, me
ofendeu e me senti fútil. E não me trate como inimiga ou ao meu pai porque a
mim você não conhece e ele só quer te ajudar.
Ele cruzou os braços e me encarou fixamente, me lembrando com o
olhar os tantos empurrões que dei nele. Acabei olhando para os lados e me
dando conta de que não estávamos mais dentro da estalagem. Sem perceber
acabei o empurrando para fora do estabelecimento. Virei-me para ele, sorri e
falei com a minha famosa cara inocente.
— Acho melhor entrarmos.
Ele quase cuspiu as palavras ao passar por mim. — Você acha?
Meu pai me encontrou na porta e segurou meu braço, estava tenso,
mas não disse palavra até chegarmos à mesa. Sentou e esperou que eu fizesse
o mesmo, antes de sentar olhei feio para Marcos que já acomodado e ele
retribuiu a altura me encarando de cara amarrada. André suspirou parecendo
cansado, típico dele quando estava tentando manter a calma e buscando
paciência. Por fim ele olhou para o rapaz um tempo e então falou.
— Marcos essa é minha filha, Amélia. — Olhou para mim e
continuou. — Esse é Marcos, filho de Uzias.
Desnecessário ele fazer as apresentações formais tentando apaziguar o
clima, eu e Marcos não nos demos ao trabalho de trocar cordialidades. André
acabou se resignando a torcer a boca em desagrado e logo olhou sério para
Marcos.
— Muito bem, primeiro que sim, estou tentando te tirar daqui por um
pedido de seu pai. Quando voltei ao reino com o rei, havia uma carta dele que
estava com um dos guardas domésticos, endereçada a mim e nela ele me
pedia para cuidar de você caso ele não pudesse fazê-lo, ele sabia que era
perigoso, talvez até já imaginasse que não voltaria vivo da batalha, por isso
me sinto em dívida com ele.
Marcos soltou o ar ruidosamente. — Por isso você insiste em me tirar
de lá? E porque não me falou antes?
Meu pai assentiu em resposta. — Porque eu queria que viesse por
você mesmo.
Marcos assentiu sem mais nada a dizer, mas eu não entendi muito bem
e perguntei.
— De lá onde?
Marcos me olhou de viés, abriu a boca para responder, mas antes disso
meu pai jogou uma moeda para uma mulher robusta que se aproximava e
empurrou a cesta para ele.
— Pode não ser o que precisam, mas Amélia trouxe para uma moça
grávida chamada Jaci e acredito que você poderá ser humilde aceitando a
cesta e também honrado entregando ao destinatário.
Marcos ficou um pouco corado com aquelas palavras, por fim assentiu
sério e pegou a cesta. Nesse momento vi que ele era um poço de revolta, mas
não de maldade, de alguma forma, ele não me pareceu tão horrível quanto
pensei no inicio.
Sem dizer palavra André me escoltou até o coche e fechou a porta,
logo vi seu rosto pela janelinha do carro, ele estava montado.
— Vamos.
Deu a ordem ao cocheiro e eu afundei no banco, fiquei chateada por
não poder receber uma resposta.
Ele estava possesso comigo. Ou não era para eu ter perguntado nada,
ou não era para eu estar ali nesse dia. O que eu me considerava
completamente inocente já que não sou adivinha e não podia imaginar que
ele estivesse ali.
Nem adiantava ele ficar bravo comigo, afinal eu não fui xeretar os
assuntos deles e sim procurar uma moça grávida, então como eu podia
imaginar que ia acabar o encontrando?
Uma coisa era certa, quando ele estava muito bravo somente o silêncio
vinha dele e nem adiantava eu tentar perguntar nada. Mas que eu queria saber
onde era esse lá eu queria. E não ia ficar sem resposta, não mesmo.
Meu pai não permitiu que Marcos respondesse, então se eu não ia
conseguir respostas dele, ia buscá-las eu mesma.
Nada como esperado

Tiago

A carruagem parou e pulei ansioso para bater naquela porta. Apesar de


viver as turras com Amélia, eu me sentia solitário quando não a via, por isso
estava torcendo para que André estivesse em casa para poder ficar o maior
tempo possível conversando com ele e apreciando a presença dela, mesmo
que de longe. Se ele não estivesse então eu teria que inventar qualquer coisa
na hora, talvez perguntar sobre a escola como estava indo tudo. Sim isso seria
um bom começo de conversa.
Dane-se o depois, o que mandava é o começo de uma conversa, na
hora arrumaria outro assunto e quem sabe dessa vez as coisas pudessem fluir,
quem sabe eu conseguisse acertar nas palavras e não atiçasse uma discussão
sem sentido com Amélia, porque ultimamente era sempre isso o que
acontecia.
Mesmo eu tentando me controlar, eu acabava fazendo algo que a
irritava e a briga começava até ela subir para o quarto e bater a porta me
deixando com cara de idiota olhando para André que sempre me lançava um
olhar como se realmente eu fosse um completo idiota, e isso me deixava mais
confuso.
Nunca entendo o que fiz de errado, mas sempre faço algo errado,
incrível como não acerto uma quando se trata dela...
O portão da casa estava aberto, não conseguia entender ainda porque
André insistia em morar na vila dos Forasteiros, tanta casa à venda ou
disponível para locação na vila da casta nobre e ele não havia aceitado
nenhuma.
O conhecendo tão bem eu poderia supor que ele estava sempre pronto
para tirar Amélia dali caso fosse necessário, ele não se sentia seguro no reino
humano e eu não podia culpá-lo por isso. A hostilidade no olhar dos mais
abastados em cima de André me deixava irritado, porém ele não demonstrava
nenhum receio ao enfrentar cada olhar de ódio quando aconteciam as
reuniões do conselho.
Sua preocupação era com Amélia e eu partilhava desse mesmo receio,
meus inimigos não podiam saber de meus sentimentos por ela, senão ela seria
um alvo para me atingir. Ela estava se tornando a minha fraqueza, e isso
estava crescendo exponencialmente cada dia mais.
Antes que eu chegasse à porta um rapazote chamado Tobias correu ao
meu encontro com os olhos assustados. Senti meu coração acelerar com o
pressentimento de que algo estava errado. O garoto começou a falar aos
tropeções.
— Senhor... A senhorita Amélia.
Só de ouvir o tom afobado na voz e o nome dela saindo de maneira tão
aflita o medo me tomou.
— Fale rapaz! O que tem ela?
Ele respirou rápido para recuperar o fôlego. — Ela esperou o senhor
André sair dizendo que iria ao reino sombrio porque essa semana é a
preparação do príncipe para o sono. Então ela disse que iria amanhã porque
hoje tinha umas coisas sobre a escola para resolver. Só que quando ele saiu,
ela prometeu se comportar...
Paciência nunca foi meu forte. — Pule o excesso de detalhes e vá
direto ao ponto. Diga-me o que ela fez.
Ele assentiu, respirou fundo e falou rápido. — Ela vestiu calças
rasgadas e uma camisa pior ainda, saiu daqui tão suja que nem consegui a
reconhecer, só soube que era ela quando ela me pediu para chamar um carro.
— Mas que diabos! Onde acha que ela pode ter ido? E como ela
encontrou roupas assim?
— Ela tinha comprado ontem de um andarilho. Quando ele passou por
aqui ela o parou e deu uma moeda de ouro pelas roupas dele, ainda lhe deu
algumas roupas do senhor André porque segundo ela, ele tinha que lhe
entregar as peças naquela mesma hora.
O menino parou um pouco de falar e ficou tentando lembrar, o
apressei já pronto para explodir com alguém.
— Continue!
Ele deu um pulo com o rompante e assentiu voltando a falar
rapidamente. — Aí hoje ela passou toda a manhã ansiosa e assim que o
senhor André sumiu pela avenida ela se trocou rapidamente tomou um carro
e saiu de seguida.
Passei as mãos pelos cabelos olhando para a estrada na vã tentativa de
ver Amélia andando por ali, retornando de seu passeio misterioso, como se
isso fosse possível… O que essa maluca estava aprontando?
Só havia um lugar onde ela poderia ir vestida assim, balancei a cabeça
desacreditando em minha própria ideia. Ela não faria isso, não ousaria…
Ousaria? Olhei para o menino esperançoso de que ele pudesse saber algo
mais.
— Acha que ela foi a vila dos Procriadores?
O menino ficou ligeiramente sem graça e olhou para os próprios pés.
Não era hora para ser gentil, peguei sua camisa e o puxei para mim.
— Se sabe de mais alguma coisa rapazinho melhor me contar agora.
Não vai gostar do que farei com você se eu descobrir sozinho e acabar a
encontrando em perigo. Tenho meios para encontrá-la, mas preciso ser
rápido. Fale.
— Ela estava curiosa com uma coisa que eu não entendi e também
estava procurando uma moça chamada Jaci que está grávida e tinha pedido
ajuda a ela há alguns dias atrás, então ela ia aproveitar essa procura do que
ela estava curiosa e ia ver também se encontrava a moça, só que essa moça
foi...
O menino parou de falar, seus olhos estavam confusos como se lutasse
com ele mesmo, com certeza estava encobrindo alguém. Fiquei ainda mais
preocupado.
— Foi o que? Fale! Morta?
— Não senhor, ela foi para o novo vilarejo dos libertos.
Soltei o garoto. — Que merda de lugar é esse?
Agora o menino engoliu em seco. — Onde era a prisão dos leviatãs,
senhor. O comentário é que nem um cavalo pode entrar lá senão vira
alimento.
— Como assim? Me fale tudo o que sabe.
Só de imaginar aquela loira tão miúda e completamente inconsciente
dos inimigos prontos para me atingir, entrar sozinha em lugar desses, me
deixou em desespero. Ela chamaria atenção e correria perigo, mas que
inferno! Eu já tinha avisado sobre isso, será que falei com as paredes? Sem
imaginar o que se passava dentro de mim cada informação nova, o menino
continuou falando agora parecendo uma matraca.
— Porque eles roubariam o cavalo para comer senhor, mesmo que o
dono do cavalo seja forte, a fome lá é tudo o que se vê e por isso eles não
temem ninguém e roubam tudo.
Que droga! Amélia ia se enfiar em um lugar desses por causa de uma
moça desconhecida e de uma curiosidade qualquer?
Nem mais prestei atenção ao menino, voltei rapidamente ao coche e
dei a ordem ao cocheiro. — Me leve à vila nova, rápido!
Sem perguntar nada o cocheiro incitou os cavalos e o carro iniciou
movimento.
Agradeci a minha pressa de chegar logo a casa de André, por conta
disso eu tinha pedido um carro com quatro cavalos e agora eu poderia chegar
mais rápido a esse lugar que eu sequer tinha ciência que existia. E Amélia
estava lá! Como posso com essa mulher voluntariosa?
— Mais rápido!
O cocheiro incitou os cavalos com um sonoro grito e afundei no banco
me sentindo impotente.
Vila dos órfãos

Amélia

O menino de recados estava demorando, olhei mais uma vez para a rua
de terra batida procurando avistá-lo entre os tantos que circulavam por ali.
Comecei a ficar preocupada se ele tinha mesmo ido levar o recado ou fugiu
com o pagamento.
Ele havia pedido o dinheiro adiantado, talvez por ver o estado das
minhas roupas e desacreditar que receberia depois do trabalho feito. Bom, se
eu olhasse pra mim mesma no espelho também desacreditaria que eu tivesse
condições de pagar qualquer coisa. Pelo menos o disfarce era bom, se
funcionaria eu só descobriria se o menino fizesse a parte dele.
Estava sentada no chão perto da estalagem com o chapéu puxado no
rosto. A mulher toda suja de gordura não tinha me deixado esperar lá dentro
porque segundo, ela eu estava fedendo e ia espantar os clientes.
Que insolente! Ela também não estava com o cheiro melhor que o
meu, e a estalagem dela nem tinha clientes!
— Está a minha procura, senhor?
Levei um susto, ele tinha chegado sem fazer nenhum barulho, mas
estava ali. Marcos finalmente estava ali, restava agora ele aceitar me ajudar
depois da animosidade do nosso primeiro encontro.
Levantei a cabeça preocupada com sua reação, mas ele não me
reconheceu! Por fim ao olhar mais de perto seus olhos se estreitaram
desconfiados, praguejei mentalmente, ele tinha me reconhecido sim, então o
disfarce não era tão bom assim.
— O quê! Menina o que faz aqui? E porque está usando essas roupas?
Levantei devagar, ele menção de me ajudar, mas depois de pensar um
pouco desistiu e abaixou a mão. Pisquei algumas vezes tentando encontrar as
palavras certas, por fim não havia.
— Preciso de sua ajuda.
Ele cruzou os braços em desafio e falou debochado. — Precisa é? Vai
me empurrar agora até que eu aceite te ajudar?
Ah que ótimo! Orgulhoso até a raiz dos cabelos. Cruzei também os
braços na defensiva e rebati no mesmo tom.
— Você mereceu, destratou o homem que está tentando te ajudar e
ainda veio com grosseria para cima de mim sem nem me conhecer.
Para minha surpresa ele assentiu e com o rosto amenizando um pouco
a carranca ele falou mais suave.
— Tem razão, exagerei um pouco, mas o que quer de mim?
Marcos era conhecido por todas as crianças, ainda assim nenhuma
delas havia aceitado me levar até ele, somente aceitaram trazê-lo a mim se ele
assim decidisse. Ele podia ser rabugento, mas claramente tinha o respeito
daquele povo mais humilde, se todos o conheciam então ele poderia
realmente me ajudar.
— Preciso saber onde é esse lá que meu pai não quis me contar.
Ele apertou os olhos tentando entender. — Lá? Que lá é esse?
Revirei os olhos sem paciência. — Se eu soubesse não estava
desesperada para descobrir, não acha?
Ele continuou confuso. — Olha não estou entendendo nada moça.
Respirei fundo e decidi esmiuçar a questão. — Quando ele te falou
sobre seu pai aqui na estalagem ontem, lembra?
Ele assentiu e eu continuei.
— Você perguntou a ele se era por isso que ele insistia tanto em te
tirar de lá, só que não deu detalhes. Contratei um informante e ele vasculhou
a vila dos procriadores procurando por Marcos filho de Uzias. Depois ele
procurou na casta neutra, ninguém sabia de sua existência.
Levantei os braços em exasperação, odiava minha curiosidade
exagerada, era como um ciclo que nunca se fechava se eu não a saciasse ela
me atormentaria com hipóteses e isso me deixava maluca. Ele continuou me
olhando cauteloso e terminei minha explanação quase chorosa.
— Como estamos na vila nova e você se referiu ao lugar como se ele
fosse distante daqui, quero saber onde é esse maldito lá que não consegui
encontrar.
Marcos continuou com o semblante fechado ao me encarar, logo seus
olhos castanhos e duros foram amaciando e seu rosto foi se contorcendo
então para minha surpresa ele começou uma risada baixa que logo virou
gargalhada. Cruzei os braços com força me sentindo chateada por ele rir de
mim e me segurando ao máximo para não enchê-lo de insultos.
Ele continuou rindo sem parar e não consegui ficar em silêncio.
— Porque está escarnecendo do que eu disse?
Ele segurou a barriga. — Por isso mesmo, céus não acredito nisso,
você correndo esse perigo todo, usando essas roupas sujas, sentada ai até
agora só para poder descobrir onde seria esse lá.
Ele olhou para mim ainda rindo. — Curiosa é o seu nome do meio,
certo?
Empinei o nariz para mostrar alguma dignidade, mas na verdade
estava me sentindo até um pouco ridícula, mas ele não ia entender, não
conseguiria saber os meus motivos.
— Não aceito ver meu pai me escondendo algo e era exatamente isso,
ele não queria que eu soubesse onde é esse lugar e isso me deixa com
sentimentos contraditórios, ele não é de esconder nada e acabo receosa de que
ele...
Marcos fechou a cara na mesma hora, a risada morreu em seus lábios.
— Seu pai é o homem mais honrado que eu conheci Amélia. Você
como filha dele não deveria estar desconfiando da integridade que ele tem.
Abaixei a cabeça constrangida com esse puxão de orelha.
— Tudo isso que disse, você tem razão, mas não é de meu pai que
desconfio, ele tem o rei como filho. Mesmo que ele não participe de nenhuma
corrupção, pode fazer coisas horríveis por amor a ele, eu sei disso, meu pai é
tão honrado ao ponto disso, entende?
Ele assentiu. — Entendi, talvez ele até esconda mais coisas do que
você imagina ou precise fazer coisas da qual não aprove ou goste, mas não o
deixa errado de qualquer forma, ele deve fidelidade ao rei, é um mal referente
ao cargo que ele detém. Só que especialmente nessa questão, eu acredito que
não é por isso que ele não te contou.
Balancei a cabeça e fiquei confusa. — Então porque ele esconderia?
Ele pensou por um momento. — É melhor você ver com seus próprios
olhos, acho que vai entender os motivos dele.
Uma onda nervosa passou por mim, o que poderia ser pior do que eu
tinha visto naquela vila chamada vila dos Procriadores onde a escola que eu
daria aula era vizinha?
Marcos manteve a mão estendida me olhando firme, acabei por
segurar sua mão e em silêncio ele seguiu para o fim da vila nova. Estranhei
esse caminho, a frente não dava para ver nada, somente o imenso muro que
segundo me contaram era a antiga prisão dos leviatãs, criaturas que eu nunca
tinha visto, só ouvido falar de sua existência, nem mesmo aquela prisão eu
tinha visto, somente sabia que era ali que eles viviam reclusos por questão de
segurança.
A imensa muralha à frente era onde o reino humano terminava, ainda
assim o segui curiosa. Logo à frente quando as casas não mais atrapalhavam
a visão eu pude ver a abertura na muralha, havia somente o lugar aberto onde
deveria ter imensos portões, mas eles haviam sido arrancados.
Quanto mais nos aproximávamos daquela abertura, mais eu tinha a
sensação que íamos sair do reino humano.
— Que lugar é esse, Marcos?
— Aqui agora é a nova vila do reino humano. Mulheres que eram do
harém, recém-libertos, antigas prostitutas que foram colocadas nas ruas
quando as casas de diversão foram fechadas, velhos, e muitos, muitos órfãos
e desocupados. Enfim… todos os miseráveis estão aqui.
Ele olhou para mim. — Muitas mulheres grávidas estão aqui também.
Arfei, havia mais deles então? Mesmo com tantos pedintes nas ruas e
com aquela vila tão pobre da casta dois apilhada de gente, ainda havia mais
deles ali. Isso parecia não ter fim, até onde a miséria estava alastrada no reino
Humanis?
— Encontrou alguma moça chamada Jaci entre as grávidas.
Ele negou. — Sinto muito, nenhuma delas tinha esse nome, e a cesta
bem... As crianças tiveram prioridade quanto a isso, a única fartura aqui é de
miséria então, não pude guardar o que mandou para essa moça.
Fiz um gesto que não me importava com isso e acabei não
conseguindo dizer palavra, o segui em silêncio, talvez isso fosse uma boa
notícia, por fim Jaci deveria ter encontrado algum lugar para ficar que não
fosse ali.
Nova vila... Agora eu estava ainda mais curiosa. Quando entramos, os
olhos das pessoas que estavam próximas ao portão se viraram para mim. Me
aproximei do braço de Marcos e continuei andando um pouco encolhida.
— Eles não irão te machucar Amélia. — Ele parou e me encarou
preocupado. — Se quiser voltar, eu te levo para casa. Esse aqui é o começo,
vai ver coisas piores à frente.
Neguei rapidamente, eu estava impressionada era verdade, mas
Marcos não poderia entender o que passava pela minha cabeça se eu não
tentasse explicar a ele. Limpei a garganta e me afastei um pouquinho.
— Quando eu vivia na Vila do senhor Odair, eu cuidava das crianças e
dos doentes. Cheguei a viajar de uma vila a outra para ajudar os que
precisavam e eu sempre gostei muito do que fazia. Então quando eu disse ao
meu pai que viria para o reino humano deixei claro que também viria
unicamente para ajudar os menos favorecidos, porém achei que essas pessoas
estavam na vila da Procriação, por isso foi lá o primeiro lugar que pensei em
ajudar, mas se tem pessoas em estado pior, eu quero saber.
— E o que fará por eles? Você é uma…
O olhei mordaz já prevendo o que ele ia dizer, já tinha ouvido isso na
rua de homens estranhos, até mesmo no Mercado colorido quando fui passear
e tentei regatear preços. — Mulher? Por favor, não seja como os outros.
Ele balançou a cabeça me olhando como se eu fosse tola, o que já
estava se tornando costumeiro, olhares assim para mim era quase um
cumprimento diário.
— Pessoa... Eu ia dizer que você é uma só, não pode ajudá-los
sozinha. E não me julgue baseado nos costumes dos homens do reino
humano, assim como disse que ajo como um escravo, você achou que eu ia
dizer que você é uma mulher, então está agindo com inferioridade ficando na
defensiva, e mesmo que eu fosse dizer que você é só uma mulher e por isso
não poderia ajudar esse povo, eu não estaria de todo errado, certo?
Apertei os lábios para esconder que estava chateada porque ele estava
repleto de razão. Com um meio sorriso ao ver minha cara de aluna mal criada
ele continuou.
— Se agir assim não conseguirá ajudar ninguém, não esqueça que
você veio do mundo sombrio, mas todos aqui cresceram pelas leis do reino
Humanis, então não ajudará nada você impor os seus costumes. Tudo leva
tempo, até mesmo o tratamento e o respeito que espera.
Assenti derrotada, ele tinha razão. — Me desculpe. A pior coisa para
mim aqui é a maneira como tratam as mulheres. Mas você tem razão, por fim
acho que devo desculpas a meu pai também.
Ele assentiu. — Acho que deve.
Seguimos em silêncio depois disso, pude então olhar com atenção
aquele lugar.
A floresta tão densa era perto, o lugar na verdade mais parecia uma
clareira de chão muito batido e cercado por imensas muralhas. Algumas
árvores próximas tinham sido cortadas e vários troncos estavam empilhados,
me pareceu um plano futuro de alguma construção. Algumas partes perto das
árvores que dominavam quase toda a visão a frente, também haviam sido
limpas recentemente, e algumas ferramentas velhas jaziam largadas naquele
lugar cheio de terra revirada.
— Pensam em construir algo? — Apontei com o queixo e Marcos
seguiu meu olhar, por fim balançou a cabeça.
— É um plano, mas está sendo um trabalho demorado, o pouco
dinheiro que conseguimos é necessário reverter em comida, então não sobra
para comprarmos ferramentas.
Estamos revezando entre um machado e uma enxada que conseguimos
em troca de alguns trabalhos. Também fizemos algumas ferramentas com
coisas encontradas no lixo, mas não é tão eficaz e o progresso é lento. E não
podemos contar com doações já que todos que vem pra cá, trazem sempre a
mesma coisa, apenas as roupas do corpo e a barriga vazia.
Balancei a cabeça ficando sentida pela precariedade, apesar do metal
não ser tão abundante, depois da batalha sombria e com a paz entre as raças
restaurada, muitas armas foram destruídas e transformadas em ferramentas.
Sem contar as fazendas externas que proviam essas necessidades
constantemente. Então era um produto simples e vendido a preço
relativamente em conta no mercado colorido ou mesmo nas pequenas
ferrarias e o povo desse novo bairro não conseguia comprar.
Não era justo que eles não tivessem nem mesmo as ferramentas para
tentar se erguer, assim não iam conseguir concretizar nada.
Fiz uma nota mental de usar a mesada que meu pai havia me
prometido para minhas coisas particulares e comprar algumas ferramentas
para Marcos no lugar de subterfúgios. Talvez alguns pregos e martelos, quem
sabe também alguns tecidos e sementes, algumas enxadas descentes e alguns
machados...
Parei de devanear por um momento quando vi um grupinho de
crianças à frente acocoradas em volta de algo. Sorri com ternura, pelo menos
estavam brincando e esquecendo um pouco a gastura da pobreza. Quando nos
aproximamos um pouco mais o sorriso morreu em meus lábios e tomei um
susto.
Eles mastigavam carne crua e era de um gato morto. A bílis subiu por
meu estômago. Tanto pelo animal quanto pela cena em si.
— Não pode ser.
Marcos olhou para eles e levantou os ombros. — Pelo menos estão
comendo alguma coisa. As crianças tem a personalidade bela e livre,
diferentemente da avareza dos adultos. E as que vivem aqui são unidas, elas
dividem entre elas o que conseguem sem ficarem receosas sobre o dia
seguinte e sem pensar se vão sentir fome depois.
Sorri vacilante, entendendo a união das crianças, porém não muito
certa sobre a beleza na divisão de um gato morto. Marcos soltou um suspiro
parecendo cansado.
— O problema na verdade são as mulheres que vieram do harém. Com
elas é o inferno na terra.
Estranhei esse comentário. — O que elas fazem de tão ruim?
Enquanto caminhávamos não conseguia parar de olhar para trás e
mesmo sem querer aumentei a lista mental que estava fazendo.
Algumas sementes para plantio, algumas sacas de trigo e aveia, quem
sabe tendo pelo menos um pão garantido por dia eles deixassem os gatos
vivos, por fim... Me esqueci dos primeiros itens.
Definitivamente teria que anotar tudo em um papel, nota mental não ia
dar certo. Estava realmente ficando grande a lista e meu dinheiro que eu nem
sabia quanto ia ser agora parecia curto, não ia dar para tanta coisa.
Marcos, inocente da pequena luz de esperança que brotava dentro de
mim e dos pequenos planos que minha mente inquieta começava a criar,
continuou falando distraído.
— Elas brigam demais, tomam dos outros, se engalfinham, batem nas
crianças, judiam dos velhos. — Ele suspirou. — São insuportáveis.
Assenti pensativa. — Entendo. Muitas delas vieram da pobreza, porém
conheceram o luxo, acho que isso as mudou um pouco.
— Verdade. — Ele revirou os olhos. — Ainda assim são uns
demônios. Não as suporto.
Não consegui evitar a risada. — E as grávidas?
— Não são muitas, tentamos as deixar confortáveis, mas também não
ajudam muito. Reclamam demais e acham que por estarem grávidas merecem
mais privilégios que os outros, mesmo vendo o sofrimento das crianças e dos
idosos ainda pensam somente nelas mesmas. Entendo que elas precisam de
algumas atenções extras, mas um idoso e uma criança precisam da mesma
atenção porque são frágeis também. Enfim… Elas são egoístas e
sinceramente não dá para ficar mimando mulheres fúteis em um lugar como
esse.
Fiquei revoltada com o abandono deles, largados ali como animais
com uma doença contagiosa. — Porque não fazem nada por vocês Marcos?
Ele me olhou de viés. — Não culpe seu rei, antes que o faça, já digo
que deve culpar é o conselho. André me disse que em várias reuniões ele
falou sobre o abandono dos mais pobres. E a resposta que teve do conselho
foi o pedido de um prazo para pensar em projetos que beneficiem os órfãos
do tratado, é assim que eles nos chamam.
O rei está cansado do conselho porque eles só querem falar sobre a
revolta dos ricos. A única ideia sobre nós veio de um completo desconhecido,
se fosse colocado mesmo em prática poderia mesmo ajudar muitos, mas...
Acreditei que não era sobre a horta que ele estava falando, parecia
uma ação mais importante, algo mais substancial.
— Sabe o que seria?
— Algo sobre usar as fazendas abandonadas pela baixa na batalha
sombria.
— Ah! Era sobre a horta comunitária. A minha ideia reformulada e
maravilhosamente aprimorada por meu pai e Tiago.
— Desconhecido?
Marcos levantou os ombros. — Foi o que disseram, que a ideia veio
de uma pessoa que sequer viveu aqui, mas que deu um pontapé para eles
pensarem nas fazendas externas como uma boa maneira de fazer prosperar
mais gente.
Disfarcei meu sorriso. Não importava que não soubessem que eu era a
autora do projeto inicial. Para mim o mais importante era ver o reino que meu
pai estava lutando tanto ao lado de Tiago para salvar, finalmente conseguindo
diminuir a desigualdade gritante das massas. Porém era estranho que Marcos
ali tão distante de tudo, estivesse tão bem informado.
— Como você sabe de tudo isso?
Ele olhou para mim e sorriu. — Seu pai não veio aqui todos esses
meses somente para tomar chá, claro que se fosse para isso ele ia sair daqui
triste porque não temos chá.
Rimos, eu estava completamente descontraída, Marcos não era tão
brusco quanto pensei. Na verdade ele tinha um sorriso agradável e até mesmo
uma conversa fácil.
Então porque será que ele se irritava com meu pai sempre socando o
olho dele em resposta as ofertas que ele trazia? Essa parte eu não conseguia
entender. Mas como boa menina eu não ia atiçar o rapaz, não quando a
conversa estava agradável e quando ele parecia disposto a falar.
— Você fala bem Marcos, parece letrado.
Ele assentiu. — Quando eu era escravo seu pai sempre me entregava
livros, trazia alguns para meu pai também. Como os dois eram criados do
príncipe e eu servia cortando lenha para o funcionamento da cozinha e do
aquecimento interno, nós tínhamos contato, então André me ensinou o
básico, o resto aprendi sozinho. Você sabe que ele não foi escravo a vida
toda, né?
Balancei a cabeça assentindo. — A última lembrança que tive por
anos foi de meu pai ainda fardado nos tirando daquela carroça. Ele lutou com
os soldados, os matou e nos colocou na garupa do cavalo. Usou a espada para
libertar o cavalo da carroça e o montou em pelo. Me lembro dele gritando
para as mulheres encontrarem ajuda e saírem da estrada. Não olhou para trás,
não as ajudou. Na época eu chorei muito ao vê-las sendo deixadas para trás.
A última coisa que ele me disse antes de partir foi para eu ser uma boa
pessoa, disse que o mundo poderia estar porco, mas eu tinha que absorver o
que era bom e que eu esquecesse as mulheres, pois não havia outro jeito de
nos salvar naquela estrada senão as deixando por conta própria.
Quando cresci, me lembrava da cena e comecei a refletir o que eu teria
feito no lugar dele, então passei a entender que ele não podia ajudar todas
elas, o foco dele era minha mãe e eu. Até hoje imagino o que aconteceu com
elas. E nunca esqueci a fúria que vi em seus olhos quando nos encontrou na
estrada. Nunca o vi tão imenso e tão forte, jamais esqueci aquela imagem
dele.
Marcos assentiu olhando a frente, o semblante sério.
— Por isso Amélia, André não merece que desconfie dele.
— Mas vendo tanta miséria, minha preocupação é por causa da
política, entende? Ele é conselheiro do rei, é natural que eu tenha receio.
Marcos assentiu como se me entendesse melhor do que demonstrava.
— Nem mesmo o rei tem culpa do que está acontecendo Amélia, pois
querendo ou não ele fez o que achava certo. Você chegou agora e por isso
não sabe como tudo funciona, mas vou lhe adiantar que todo o mal desse
reino vem das duas castas mais altas. Toda a riqueza está concentrada nela e
toda a ambição também, e isso nos torna fracos e eles fortes. Simplificando
para você, é difícil seguir a vida quando não temos nada e eles, os ricos,
continuam a tentar nos deixar com menos ainda.
Era verdade, não pude deixar de concordar com ele. — Meu pai havia
dito que as mudanças também beneficiaram a coroa já que todas as castas
deviam pagar impostos.
Marcos me corrigiu. — Não todas. Essa regra isenta os escravos por
dois anos.
Não respondi. Ainda assim não era justo ver as crianças comendo
animais mortos e crus.
— Chegamos à sede dos órfãos do tratado.
Marcos sorriu apontando a entrada de uma caverna natural e eu levei a
mão à boca dramaticamente fingindo deslumbre para a paupérrima abertura.
— Oh!
Ele riu. — Sim, pode ficar estupefata. Também temos uma mansão,
está pensando o quê! Somos ricos!
Eu ri com gosto, algo dentro de mim começava a gritar desesperado
para ter minha atenção. Um sentimento morno por aquelas pessoas, para
aquela alegria despretensiosa de Marcos que mostrava um prelúdio do que
seria para esse povo obter um pouco mais para viver. A pequena luz virando
um facho tão luminoso que estava difícil de ser ignorado. Meu lado
aventureiro, sonhador e humano estava me dominando completamente.
Quase todo o tempo eu fui como uma curandeira das vilas sombrias,
cumpri minha tarefa por amor, por agradecimento aos ensinamentos do
senhor Odair, porém foi depois de muito tempo que eu soube que ele dedicou
a mim uma educação especial porque eu era filha de André, o filho adotivo
do senhor Dimitri. Mas me valeu muito seus ensinamentos a educação e
valores que ele me ensinou.
Porque eu aprendi a empatia pelo sofrimento dos meus pacientes. E
agora vendo tantos rostos sofridos era como ver pessoas doentes precisando
de cuidados e com isso as possibilidades se projetavam a minha frente. Cada
vez que via a alegria nos olhos de Marcos, o sorriso fácil mesmo com tantas
intempéries, uma gana por ajudar a mudar aquele lugar crescia dentro de
mim, uma necessidade de usar meus braços finos para lutar por eles.
Não poderia ser tão difícil, só precisava de organização e colaboração
de todos. Só precisava de uma pessoa com contatos e coragem para pedir
coisas a quem tinha de sobra para dividir, e esse alguém era eu.
E nem precisava de muito para começar algo. Talvez algumas
sementes e algumas ferramentas para cultivar o básico. E o principal, angariar
patrocinadores. Pessoas dispostas a dispor de um pouquinho de sua riqueza
para ajudar aquele povo sem nada, qualquer pouquinho seria muito. Quem
sabe… Quando se tem somente nada, qualquer coisa é possível porque se
torna uma evolução sentida por todos.
Olhei para Marcos com a ideia grudada em minha alma, agitando uma
felicidade plena de um sonho que iniciou com uma pequena lista mental e
agora estava se tornando apoteótico em minha mente. Segurei sua mão e o
levei para a saída da caverna, olhei mais uma vez para aquele lugar
consolidando minha euforia.
— Você é quem lida com eles? Você é o líder?
Ele negou. — Eles me escutam. Apenas isso.
— Sim, mas então você é o mais perto de um líder que eles têm.
Certo?
Ele ficou um pouco sem graça. — Digamos que sim.
Meu coração se encheu de expectativa. — Me aceita como nova
inquilina? Quero morar aqui.
Ele me olhou assustado e gaguejou. — O… O que está dizendo? Não
pode ficar aqui Amélia. Você tem condições de ter uma boa vida. André
agora é general e o rendimento mensal desse cargo é alto. Você pode ter a
melhor casa que quiser, também tem o apoio do rei.
Eu não mudei meu olhar de certeza, e agora ele suspirou quase
desesperado com meu pedido e eu segurei meu sorriso, pelo menos ele não
negou logo de cara, ele esperou eu falar algo, mantive meu olhar de certeza e
ele revirou os olhos.
— André me disse que você ia montar uma escola e o rei lhe deu carta
branca e até mandou preparar alguns móveis, você vai largar tudo isso?
Balancei a cabeça. — Me escute...
Ele parou de falar e eu escolhi as palavras com cuidado para fazê-lo
me entender, talvez existisse uma pessoa nesse mundo que conseguisse me
entender e quem sabe seria ele.
— Porque você não quer sair daqui? Você também não precisa viver
aqui, seu pai morreu como herói na guerra sombria. Meu pai me disse que
você tem direito a uma casta bem mais alta e assim poderia conseguir até
mesmo uma fazenda somente para você. Até mesmo pode ter um cargo
militar se quiser. Ainda assim, negou todas às vezes. Por quê?
Ele olhou pensativo para os lados, depois seus olhos foram para mais
longe e fixaram no amontoado de crianças que se aqueciam em volta de uma
fogueira fraca e fumarenta.
— Não posso levar todos comigo, eles não caberiam em uma fazenda
por maior que ela fosse. Aqui é maior, muito maior na verdade. Se você
pudesse andar por toda essa prisão como eu andei, veria que ela é imensa,
apesar de parecer pequena já que podemos ver apenas o pedaço limpo, mas
eu vasculhei tudo e posso afirmar sem titubear que o território dos Leviatãs
seguramente dá quase um terço do reino Humanis. Aqui pode ser o recomeço
para todos sem a necessidade de escolher um punhado para privilegiar, por
isso que não saio daqui, porque essa prisão que um dia foi o território de
criaturas medonhas, agora pode ser considerado uma terra de esperanças para
todos os miseráveis. Tem lugar para todos aqui.
A surpresa com a informação me deixou muda. Ele continuou falando
compreendendo que eu não esperava por aquilo.
— Mais pessoas irão vir Amélia, eu sei que sim, pois o reino Humanis
está recomeçando. O número de miseráveis é esmagador em relação aos mais
abastados, entende? Diariamente os ricos reduzem os gastos diminuindo a
mão de obra doméstica. Não há emprego para todos da casta dois e não vai
demorar para que muitos deles precisem sair de suas casas alugadas. Ou
mesmo alguns pais irão abandonar mais de seus filhos e com certeza aqui
será o refúgio deles.
A corrupção e egoísmo ainda são dominantes nesse reino, não é por
conta de umas leis recentes que as pessoas deixarão de ser cruéis. Pense que
até alguns meses atrás eles vendiam seus filhos sem pensar duas vezes. Acha
mesmo que irão pensar melhor antes de abandoná-los a toda sorte na rua já
que agora não darão mais lucros?
Marcos soltou um suspiro e eu reconheci aquele olhar sonhador.
— Quero ajuda-los, Amélia. Sofri com eles como escravo. Vou estar
aqui com eles como um homem livre, e se para isso eu precisar enfrentar a
miséria o farei ao lado deles. Nenhum cargo ou mesmo benefícios que eu
viesse a receber em honra ao meu pai, seria suficiente para fazer algo por
eles, então ficarei e pensarei em meios para levantar esse lugar e melhorar a
vida deles e a minha também.
Falei com a voz embargada, ele tinha o mesmo sentimento que eu...
As mesmas crenças, ele poderia me entender sem me julgar.
— Tem quantos anos, Marcos?
—Vinte e cinco, por quê?
Sorri amistosa com mais aquela coincidência. — Temos quase a
mesma idade. E para combinar, temos as mesmas ideias e pensamentos.
Nunca fui escrava, nunca fui submetida a torturas porque tive sorte de ter um
pai protetor que sacrificou a própria liberdade para assegurar a minha e da
minha mãe. Mas ouvi muitas histórias das famílias no reino sombrio, lá eu
pude conhecer o significado da bondade. Recebi ajuda para cuidar de minha
mãe dos vizinhos na vila do senhor Odair. Vivi sem luxos, porém não passei
fome, nem frio e tive humanos bons como vizinhos então sei que a bondade
vem com atitude e exemplos e um pouco de regras, simples, mas eficazes.
Ele me ouvia com atenção e isso me deu esperanças, acabei pedindo
cheia de expectativas. — Me deixe ajudar. Eu preciso encontrar meu lugar
aqui nesse reino e não é entre os mais abastados, senão tudo o que minha
família passou terá sido em vão, meu pai foi escravo e minha mãe morreu
sem conhecer o respeito dos de sua própria raça e eu preciso disso para saber
que valeu a pena tanto sacrifício, preciso honrar isso de alguma forma. Se eu
tenho tanta influência com o rei como você diz, serei útil à causa.
Ele apertou os olhos para mim. — Vai extorquir o rei?
Cerrei os olhos e levantei os ombros sem me importar com o
julgamento.
— Não preciso extorquir, posso pedir com a maior cara de pau. Se ele
me deu carta branca para a escola pode me apoiar patrocinando mesmo que
seja com pouco recurso aqui, não é mesmo? E ele me deu aquele lugar, de
todo modo se não me ajudar, eu encontro um jeito, como eu disse... Sou bem
cara de pau quando quero.
Marcos negou veemente. — Você não entende? Ele pode achar que é
uma afronta, que aqui somos um bando de rebeldes, que de alguma forma
iremos nos levantar contra a segurança do reino se ganharmos força.
Fiquei chateada com o que ele disse. — Marcos, eu posso julgar
Tiago, você não pode, entendeu? Tiago vai entender que a força aliada está
entre os mais humildes, pois são maioria e consequentemente mais fortes,
mas eles precisam sentir a gratidão de receber apoio primeiro.
Marcos me olhou de viés, mas não objetou sobre minha defesa ao rei,
continuou seu argumento sobre minha ideia. — Isso não quer dizer que ele vá
colaborar com algo Amélia, quem garante que ele não vá punir vários de nós
antes de ver isso que você está vendo?
Neguei com a cabeça, ele não o conhecia como eu. — Ele é bom, não
irá castigar esses coitados. Ele tem um gênio impossível, faz as coisas sem
analisar primeiro, age feito idiota, mas não é cruel.
Marcos riu e me olhou cheio de compreensão. — Como pode ter tanta
certeza?
Fiquei com raiva de ele ainda desconfiar de Tiago. — Porque eu o
amo. E eu não amaria um maldito tirano!
Menina esperta

Tiago

O carro parou e o cocheiro abriu a portinhola. — Majestade.


Olhei ansioso para os lados ainda tentando assimilar qual coisa
urgente eu teria que fazer primeiro. — Não posso sair, preciso que me faça
uma coisa antes.
Ele me fitou sem entender nada, e sinceramente eu não estava com
paciência ou humor para explicar qualquer coisa, peguei algumas moedas. —
Tome, me compre roupas velhas. — Olhei para ele e falei de modo severo. —
Velhas! Não me venha com boas roupas e não volte aqui sem elas.
Ele ficou visivelmente nervoso olhando para as moedas e para a rua
sem saber como reagir, ou mesmo agir. — Mas majestade, como eu irei
comprar isso?
Me senti miserável por não ter pensando em trazer o garoto Tobias
comigo, com certeza ele me seria mais útil que esse medroso. Eu tinha que
admitir que meu mau humor estava aflorado por conta da preocupação e eu
sabia disso, por isso respirei fundo e tentei buscar paciência.
— Ande por aí e me traga a primeira criança que encontrar na rua. —
Estendi a mão. — E me devolva essas malditas moedas.
Ele me entregou com um sorriso amarelo o punhado de moedas e
fechou a portinhola. Soquei minha perna como um meio de punição pela
raiva de mim mesmo e esse meu jeito explosivo que afastava as pessoas. O
coitado não tinha culpa do meu aborrecimento, mas quem pode culpar um
homem preocupado e irado de preocupação?
Aquela loira… O que ela tinha na cabeça? Tantos lugares perigosos e
escolhe justamente aquele mais distante? Ela estava fazendo de propósito só
para me irritar, pois eu tinha avisado que era perigoso no bairro da Procriação
e agora ela escolhe um idêntico e muito mais longe?
A portinhola abriu e o cocheiro me mostrou uma garotinha que olhava
para mim curiosa pela porta. Pelo porte mirrado não parecia ter nem nove
anos.
Olhos espertos e castanhos me fitaram. — O que precisa, senhor?
— Preciso de roupas muito velhas e informações depois disso.
— Quanto vai pagar?
— Uma moeda de ouro pelas roupas se elas forem mesmo bem velhas,
e outra moeda de ouro pelas informações se elas me forem úteis.
Ela coçou o queixo me olhando com sagacidade. — Então ainda irá
faltar uma moeda de prata.
Por mais aborrecido que eu estivesse naquele momento, senti vontade
de rir com a pequena negociante tentando me arrancar o couro, ela via em
mim lucro certo e não tinha receio em seus olhos, gostei da menina.
— Muito bem dona espertinha, e essa moeda de prata seria pagamento
pelo que mesmo?
Ela levantou os ombros como se fosse obvio. — Pelo meu silêncio.
Apertei os lábios para evitar uma risada que se formava.
— Muito justo, então façamos melhor que isso. Será uma moeda de
ouro pela sua lealdade. O que me diz?
Ela esticou a mãozinha para mim. — Feito!
Apertei aquela minúscula mão sentindo até a tensão passar um pouco,
ela falou sem pestanejar.
— Me entregue uma moeda agora que lhe trarei as piores roupas que
eu encontrar e com algum bônus para um bom cliente.
Dessa vez eu ri, não resisti aos encantos da pequena malandra, lhe
entreguei a moeda e pisquei. — Me surpreenda.
Ela assentiu com energia e saiu correndo. O cocheiro fechou a porta e
continuei rindo com a situação. Criança esperta para fazer negócio.
Enquanto esperava minha encomenda bati o dedo indicador
nervosamente no joelho, sem conseguir parar quieto, puxei a cortina só um
pouco e sondei a rua.
As casas não diferiam em nada das casas do bairro antigo. A visão
também não era diferente, as ruas cheias de lixo e entulhos, os cantos das
ruas ostentavam as veias esverdeadas do esgoto aberto que serpenteava
tranquilos pela vala e sumiam em um grande buraco perto do lixão tão
comum nas vilas mais pobres, porém tão perigoso para as crianças pequenas,
uma queda ali e...
Tinha que me lembrar de pesquisar sobre o subsolo, meu pai não
podia ter sido tão porco em não fazer pelo menos a estrutura dos esgotos.
Novamente a dúvida me vinha à mente. O que Amélia tinha vindo
fazer aqui? Não podia ser somente por causa da moça grávida, se fosse isso
ela não teria se disfarçado, qual o propósito disso afinal?
Novamente a portinhola abriu e dessa vez a menina entrou com tudo,
segurava uma trouxa. Sentou sem pedir permissão e olhou atenta pela janela
como se garantisse que ninguém nos observava.
— Precisa pedir ao seu criado que o tire daqui, que vá um pouco
distante na estrada, não pode sair daqui de dentro vestido feito um pedinte.
Franzi o cenho não acompanhando seu raciocínio. — Porque não?
Ela me cortou com o olhar. — Um mendigo saindo de uma carruagem
de luxo? Quem você acha que enganaria?
Me sentindo estúpido e completamente envergonhado pela perspicácia
da menina ser maior do que a minha, bati no vidro da frente avisando o
cocheiro e logo a carruagem começou a movimentar.
Divertido pela surpresa, analisei aquela criança inteligente. Os cabelos
cacheados e secos, eram escuros e amarelos nas pontas o que só demonstrava
a exposição excessiva ao sol. Seriam bonitos cachos se fossem bem cuidados.
O rosto afilado pela nutrição falha ainda mantinham teimosamente a beleza
infantil. A pele escura facilitava a percepção da clara cicatriz que começava
perto do lóbulo da orelha e descia até abaixo do pescoço.
Fora um corte mesmo feio, com certeza demorou muito para curar e
causou sofrimento, ainda assim, apesar de ser uma cicatriz grande não a
deixava feia, ao contrário, só me mostrou o quanto era uma criança forte. As
roupas estavam tão sujas que era difícil dizer de que cor era o tecido e… Por
entre os dedos passeava uma moeda de ouro.
Apertei os olhos para a moeda e ela seguiu meu olhar com
curiosidade, logo sorriu inocente. — Peguei no lixão as suas roupas, os
sapatos também. Paguei uma moeda de bronze pelo chapéu.
— Não te dei uma moeda de bronze.
— Realmente não deu, ganhei de outro cliente que precisava de outra
coisa. — Ela mordeu a moeda e sorriu. — Essa moeda é o meu lucro. —Logo
seu sorriso esmoreceu ao olhar para mim e entendi seu receio.
— Não irei pegar de volta. Se as roupas que encomendei forem do
jeito que preciso, não me importa como conseguiu. — Olhei receoso para o
tecido sujo da trouxa. — Talvez eu volte buscar a moeda se eu precisar tratar
a pele com as doenças que irei pegar.
Ela riu. — Não irá pegar doenças, usamos as roupas de lá e não nos
acontece nada, olhe. — Ela esticou os braços finos para provar seu ponto.
Fiz uma cara séria. — Vou acreditar em sua palavra.
A menina me entregou a trouxa e abriu porta.
— Vou esperar lá fora, vai precisar de ajuda para ficar bonito.
Apesar das minhas preocupações e a ansiedade para encontrar Amélia,
não podia cometer um ato insano de destratar mais um inocente, o cocheiro já
tinha sofrido comigo, eu não podia fazer isso com a criança, então respondi
com a gentileza que sua inocência de meus assuntos merecia.
— Uma lisonja vinda de uma garotinha tão linda e esperta.
Ela riu e fechou a porta, aproveitei e me despi rapidamente, desfiz a
trouxa e o cheiro ruim chegou a mim. Franzi o nariz e vesti a calça de uma
vez para não perder a coragem, vesti a camisa em seguida e quando fui calçar
os sapatos acabei rindo novamente balançando a cabeça.
Aquela pequena traiçoeira havia trazido modelos diferentes, uma bota
velha e um coturno todo estragado de soldado.
Sai do carro me sentindo ridículo, ela me analisou coçando o queixo e
abri os braços, pronto para o escrutínio infantil.
— Pareço com pedinte?
Ela balançou a cabeça. — Não mesmo.
Olhei para minhas roupas. — Como não?
Ela se acocorou, pegou um punhado de terra e falou autoritária. —
Abaixe.
Obedeci e ela esfregou a terra em meus cabelos, em seguida cuspiu
nas mãos e passou a palma em meu rosto com vontade.
Apertei os olhos para ela ainda sentindo a massagem na bochecha. —
Eu tinha opções nessa parte, se tivesse me dito antes talvez eu tivesse passado
meu próprio cuspe em mim, não acha?
Ela continuou esfregando a mão por todo meu rosto sem ligar a minha
reclamação. — Um cuspe é um cuspe, não importa de qual boca saia.
Não consegui achar resposta para a filosofia infantil. Na verdade
estava realmente encantado pela criança morena e pequenina.
— Como se chama?
Ela levantou os ombros como se não se importasse. — Dez.
Fiquei em silencio por um momento, tentando encontrar alguma
palavra no meio de tantas sensações que me tomava, ela podia ser minha
filha, tinha idade para isso, podia ser... Filha de André. Era meu povo e
minha responsabilidade, entretanto, somente de ouvir o número no lugar de
um nome eu entendi o quanto as coisas ainda estavam engatinhando no reino.
Esse número... Ainda lembrava os costumes da preparação para a
encomenda. Um nome, todos precisam de pelo menos um nome e nem isso
essa criança tinha. Tanto a se fazer...
— Muito prazer, Dez.
Ela nem mesmo respondeu, apenas sorriu e assentiu.
O cocheiro olhava para ela de modo desaprovador. Com certeza estava
ultrajado pelas respostas rápidas ou a falta delas. Era mesmo um idiota, se ele
soubesse que essa menina com meia hora me fez a respeitar mais que a ele
em anos, ele não a olharia assim.
Era autêntica, inteligente, pensava rápido e não tinha medo de mim.
Daria uma perfeita conselheira, na verdade comparada com aqueles idiotas
que me rodeavam ela seria perfeita para qualquer cargo se tivesse uma década
e meia a mais de vida. Claro, tirando meu precioso André da lista negra.
Ela afastou olhando sua obra e sorriu de modo aprovador. — Agora
sim. Só falta o chapéu.
Coloquei o chapéu velho que cheirava a cabelo sujo, já nem mais me
importei, o cheiro de tudo estava uma desgraça mesmo então já não
conseguia mais distinguir qual parte cheirava pior.
Entramos na carruagem e olhei para ela, falei tentando mostrar calma.
— Agora preciso das informações.
Ela se empertigou e fez cara de sabida, lembrou a mim mesmo, pois eu
tinha essa mesma mania que até chegou a irritar Diana uma vez. Ela dizia que
sabia o que eu ia dizer antes de eu falar somente pela minha cara de sabichão,
agora essa menina fazendo o mesmo comigo me trouxe boas lembranças, ela
falou com pose de comerciante.
— O que quer saber?
— Hoje mais cedo, apareceu um andarilho pedindo informação de
alguém por esses lados? Ou você percebeu alguém diferente por aqui hoje? O
que eu procuro é uma mulher disfarçada de pedinte.
A menina assentiu. — Sei o que procura, ela apareceu aqui e pediu por
Marcos.
Me ajeitei desconfortável no banco, não esperava por isso, Amélia se
arriscando assim por um homem? O ciúme obviamente me tomando a mente
e meu humor azedou ainda mais. — Marcos?
Não sei o que ela viu em meus olhos, mas ficou preocupada com
minha reação. — Não é um pedido muito grave. Marcos não deve nada e não
é fugitivo. A mulher pediu por ele, somente isso.
Eu sabia quem era ele, só não gostei do que senti ao saber que Amélia
estava ali atrás dele, aliás, não entendi o que ele também fazia ali. — Não se
preocupe, é a mulher que me interessa.
A menina relaxou visivelmente. — Então terá que ir ao território dos
monstros, porque é para lá que Marcos a levou.
Meu coração disparou com mais essa informação. Mas o que estava
acontecendo? Território dos monstros... Seria a prisão dos leviatãs, o que
diabos Amélia queria lá? Pior que isso era imaginar o motivo do filho de
Uzias a levar naquele lugar abandonado? Tentei pensar claramente para não
fazer minhas costumeiras besteiras.
O rapaz não podia ser má pessoa ou então André não estaria ainda
tentando ajudá-lo, ainda assim não gostei de imaginar os dois juntos em um
lugar tão retirado. Não… Não podiam ser juntos, tipo... Juntos. No entanto...
O que estavam fazendo? Era isso o que eu queria saber.
Passei a mão pelo rosto em um gesto nervoso, olhei pela janela a
pressa me corroendo. Bati no teto e o carro parou.
Assim que saímos ela esticou a mãozinha cobrando o pagamento na
cara dura.
— Há! Me desculpe. — Voltei ao coche e tirei duas moedas de ouro
do saquinho e entreguei a ela.
Ela sorriu, os olhos brilhando para a pequena fortuna em suas mãos.
Sorri contagiado por ver sua alegria. — Vai fazer o que com essas
moedas?
Ela respondeu tranquila. — Entregar a Marcos.
A ira me subiu e o meu sorriso morreu. — Esse mesmo que levou a
mulher na terra dos monstros?
Ela assentiu.
Acabei alterando a voz. — Um explorador? O que Amélia quer com
ele?
A menina fechou a cara. — Marcos não é isso que você falou!
Puxei o ar com força para me acalmar, se a irritasse ela não me levaria
até esse folgado que tirava dinheiro de crianças.
— Tudo bem, se você diz, eu confio em você.
A expressão dela suavizou. — Vou te levar até ele.
Antes de sair voltei ao coche, peguei o saquinho e o guardei comigo,
nunca se sabe, era bem esperta então era melhor andar com o pagamento no
bolso.
O sol estava se pondo, em algumas horas iria escurecer e eu tinha que
tirar Amélia dali antes disso.
Olhei para o cocheiro. — Vá e mande uma pequena escolta, quero que
espere aqui com eles.
Ele assentiu e subiu no coche com determinação. Segui pela estrada
segurando a pequena mão e acabei me arrependendo de ter tido aqueles
pensamentos sobre meu cocheiro. Ele não era um mau empregado, um pouco
parvo talvez, mas sempre foi de minha confiança.
E dos que me cercavam isso estavam se tornando raro ultimamente.
Sentimento maduro

André

A pequena vila sombria já podia ser vista ao longe, mantive o ritmo do


meu cavalo. Estava sendo vigiado, eu sentia isso, porém era a assim que os
humanos eram recebidos no reino dos sombrios e nenhum acordo de paz os
faria mudar seus costumes.
Mesmo que por ordem de Tiago para que as portas do reino humano
fossem abertas amigavelmente às outras raças, Rael não mudou as regras
antigas e funcionais. Toda e qualquer visita teria que passar por um rigoroso
questionário e o visitante teria que aceitar ser escoltado por um sombrio até a
família que pretendia visitar.
E como sempre, não eram permitidos novos moradores, somente se
esses fossem parentes dos que já moravam ali. Por fim, nada tinha mudado,
ainda eram seletivos os sombrios no que dizia respeito aos humanos e eles
tinham razão para isso visto o caos que estava no reino Humanis.
Não me pararam porque já me conheciam. Senti a saudade me encher
o peito com as boas lembranças do tempo que passei entre eles.
Aqui entrei anos atrás como um escravo enfurecido deixando a família
exilada no limite sombrio, aqui eu voltei há poucos meses como um escravo
fugido e justamente daqui... Saí como um general de guerra.
Uma ascensão e tanto para mim que sempre imaginei que morreria
como um servo nas mãos do tirano rei Júlio.
A floresta antes tão devastada pela sangrenta batalha de meses atrás,
agora começava a se renovar devagar. A clareira continuava aparente como
se fosse uma ferida no meio da floresta, ainda se via de longe a grande
quantidade de árvores quebradas pela fúria dos leviatãs e força dos lobos e
sombrios. Porém, agora os brotos se projetavam dos tocos ainda enraizados
no solo. O mato dominava o vão largo. Ainda não parecia em nada com a
antiga floresta sombria, mas também não se podia dizer que ali há poucos
meses, quatro raças haviam travado luta.
As casinhas da pequena vila estavam reformadas. Telhas de barro mais
claras destoavam das antigas mais escuras, mostrando, como se fosse uma
cicatriz recente, o local exato onde houve os estragos. As paredes caiadas
recentemente também mostravam isso.
Assim como em todos nós que lutamos nessa batalha, a floresta e a
vila tinham suas cicatrizes à mostra, porém nada mais que isso, a calmaria
ainda dominava e o mistério continuava encantando esse reino o deixando
como se fosse quase etéreo, quase perfeito.
Nicolae já havia sentido meu cheiro e corria em minha direção na
estradinha. Era veloz e logo chegaria. Desci do cavalo e fui ao seu encontro,
seus olhos de um azul marcante fixos em mim não me contava nada sobre seu
humor, na verdade esse príncipe nunca demonstrava o que estava sentindo,
menos ainda o que estava pensando, sempre o achei muito misterioso.
O cumprimentou foi braço com braço. Ele só fazia isso quando
respeitava alguém e sempre me sentia orgulhoso por isso, pois apesar de tudo
o que eu fiz a sua companheira no passado, ele me tratava com respeito e
como amigo, era por isso e por tantos outros motivos que respeitava e
admirava não só ele, mas os três príncipes sombrios.
Ele não sorriu, mas assentiu educado. — Folgo em saber que chegou
bem, André.
— Folgo em saber que está bem, Nicolae.
— André?
Sorri ao ouvir a voz querida e familiar, que ainda fazia doer o remorso
em meu coração. Diana vinha correndo em minha direção, nem tive tempo de
falar nada e ela pulou em meu pescoço, a segurei por reflexo.
— Opa! Cuidado menina.
Ela riu. — Vovô assassino, eu sinto sua falta. — Logo ela olhou atrás
de mim e procurou por todo lado. — Amélia não veio?
— Ela virá amanhã, precisou resolver umas coisas antes. — Olhei para
Nicolae. — Se puder…
— Não se preocupe com sua filha, ela chegará aqui em segurança.
Assenti, já bastava para meu coração de pai. Se o segundo dizia então
minha filha não poderia estar em melhores mãos.
Diana se enroscou em meu braço e olhei sem graça para Nicolae, mas
ele não pareceu se importar. Ao contrário, segurava a mão de Diana e andava
tranquilo ao seu lado.
Os olhos verdes e brilhantes dela ainda pareciam os mesmos gentis e
inteligentes de antes, ainda assim seu semblante me pareceu diferente. Ela
parecia cansada. Talvez estivesse sem dormir ou doente.
— Está bem menina?
Ela me sorriu alegre, quase inocente de seu próprio estado. — Estou
sim André.
Olhei de canto para Nicolae que não olhou para mim, mas assentiu
sutilmente, ele estava a par da aparência dela.
Não falei mais nada sobre isso. Poderia ser por nervosismo pelo sono
do terceiro, Diana era muito apegada ao caçula dos príncipes. De todo modo
ela estava abatida e até um pouco fragilizada, tinha emagrecido um pouco.
Fiquei preocupado, tinha grande apreço por ela. Mas sei que Nicolae
jamais permitiria que sua companheira sofresse, ele atravessou um continente
para trazê-la de volta quando foi vendida, se vingou de quem fez isso com
ela, sem contar que Diana era a menina dos olhos dos três príncipes, jamais
permitiriam vê-la sofrer de braços cruzados.
Ela me sorriu. — Me conte como anda as coisas no reino, André.
Mesmo que fosse por educação a pergunta, porque de certeza eles já
sabiam de tudo, eu contei sobre os acontecimentos recentes, não eram
noticias tão boas ou agradáveis, mas eram as novidades que se tinha para
agora.
Resumindo… Contei tudo sobre os problemas de Tiago e seu conselho
inútil. Sobre Amélia e suas ideias malucas, nessa hora os olhos de Diana
brilharam de contentamento. Ela gostava muito de Amélia, também pudera,
as duas eram muito parecidas. Só que minha filha me dava muito mais
trabalho.
Ao passo que Diana quando estava no reino humano travando sua
própria luta, ela tinha uma vasta bagagem de rancor e desconfiança e um
único propósito de salvar os sombrios fazendo de tudo ao seu alcance para
isso, já Amélia queria ajudar os mais pobres, e o problema disso era que
agora no pé que estavam as coisas, essa era a ideia mais perigosa para se
tentar. E diferente da menina Diana, minha filha parecia alheia aos perigos,
seu jeito sonhador e a pouca experiência a faz mergulhar em planos a
tornando até ingênua.
Rael apareceu na porta. — André, muito gosto em vê-lo.
— Muito gosto em vê-lo também meu pai.
Ele não gostava de ser chamado assim por nós que tínhamos o sangue
dos príncipes correndo nas veias.
Desde que o antigo supremo havia se sacrificado na batalha e a
hierarquia mudou passando para Rael a supremacia da raça, a necessidade de
chamá-lo assim era mais forte. Eu como mestiço não conseguia tratá-lo de
outra forma, o sangue me obrigava a fazê-lo. Apenas Nicolae, Dimitri e Eva
que não o chamava assim. Os dois por serem irmãos e Eva por ser sua
companheira.
Por falar em Eva, logo ela aparecia sorrindo, sua barriga já avançada
de quase sete meses de gestação. Estava muito bonita e o olhar de amor de
Rael para ela ainda era o mesmo, ela segurou a mão dele e sorriu para mim.
— Entre André, é sempre bem vindo nesse reino e em nossa casa.
Entrei um pouco sem saber como agir com tantos rostos amigáveis em
minha direção. Priana estava ali e senti o frio costumeiro no estômago
quando seus lindos olhos negros encontraram os meus, como se sentisse o
mesmo que eu ela assentiu com um sorriso terno. Minha companheira...
Assenti retribuindo o sorriso um tanto receoso por ter plateia, essa
mulher me deixava desconcertado. Seus olhos penetrantes pareciam me
despir por completo, ela sabia tudo de mim, mesmo que eu mesmo não
conseguisse me conhecer completamente.
Diana olhou para mim e depois para Priana com os olhos já sapecas,
senti como poucas vezes antes, o sangue se concentrar em meu rosto.
Envergonhado... Era estranho ter esse sentimento tão adolescente, mas
quando se tratava dessa sombria eu não tinha muito controle sobre mim
mesmo. A saudade dela devia estar estampada na minha cara.
— Acho que você deveria passear um pouco André, fazer hora por ai
até que os príncipes terminem suas obrigações. Vou ajudar Eva com o jantar.
Diana se virou para Priana e não pude deixar de observar os olhos de
Nicolae atentos a cada movimento de sua companheira, cada gesto dela, ele
estava alheio a todos na sala, tinha a atenção toda nela.
Era estranho, mas posso jurar que eles estavam se comunicando
mentalmente. E ele estava distraído. Esse era o único momento que os olhos
desse príncipe demonstravam emoção, quando olhava para ela, olhos de um
homem apaixonado e protetor. Imaginei que devia ser assim que eu olhava
para Priana.
Diana falou sugestiva. — Priana, pode mostrar a André a casa da vila?
Aquela que preparamos para ele e Amélia para quando viessem nos visitar.
Priana assentiu séria. — Sim irmã, pode deixar comigo.
Antes de sair ouvi a voz de Celeste na cozinha, ela cantarolava
alegremente, sorri com esse som. Essa menina gostava mesmo do reino
sombrio, estava feliz ali, somente de ouvi-la dava para sentir sua alegria e por
um momento eu quis que Tiago estivesse comigo.
Queria que ele soubesse que nem tudo foi em vão, ele que sonhou
tanto em salvar sua mãe e suas irmãs na época de seu pai, mesmo agora não
tinha conseguido ver progresso em Celina e nem ver alegria nos olhos da
mãe, talvez o alegrasse e lhe desse alguma esperança saber que pelo menos
uma de suas irmãs finalmente estava bem depois de tudo.
Mas Celeste... Estava aprendendo a lutar com Nicolae, Priana também
a estava ensinando e diariamente nos comunicávamos e ela me contava sobre
os progressos dessa menina, que de uma escrava apática e medrosa, passara a
uma menina forte e guerreira, porém desconfiada e seletiva. Depois que se
viu liberta das torturas do pai, ela nunca mais confiou de verdade, e pelo que
eu sabia sua maior preocupação era Celina, por isso ela se empenhava tanto
nos treinos. Eu a entendia, ela passou por muita coisa, e tinha o direito de não
aceitar qualquer um por perto, e também não querer ninguém perto de sua
irmã.
Senti o toque leve de Priana em meu braço, somente um roçar de
dedos e senti algo mexer dentro de mim, sentia falta demais dela, mas agora
não podíamos, era importante que ficássemos em reinos separados, pelo
menos até a tensão passar e um pouco de paz viesse ao reino humano.
— Me acompanhe, por favor, André.
Ela caminhou devagar, seguimos em silêncio até atravessar o jardim
de Eva. Priana sem muito esforço conseguia me deixar nervoso.
— Não foi mais ao reino humano, sinto sua falta. — Falei tentando
mostrar o quanto senti com essa ausência dela.
Ela me beijou a ponta dos dedos e falou ainda caminhando ao meu
lado. — Não pretendia ficar tanto tempo longe, mas esse mês o pai supremo
Rael precisou de nós. Com a movimentação para o decênio do terceiro eles
não puderam sair à ronda e nem averiguar as vilas. Estão dando toda a
atenção ao caçula então nós ficamos a cuidar de tudo para que eles possam
acalmar a menina Diana e dar apoio ao terceiro príncipe.
Fazia sentido, então era esse o motivo do sumiço repentino dela e a
falta de comunicação, e mesmo que não fosse isso poderia ser outra coisa,
não tinha como termos um relacionamento convencional. Priana era soldado
sombrio, e eu um general humano, ambos com obrigações e preocupações,
juramos não interferir nas obrigações um do outro e nesses meses, apesar de
nos vermos pouco, tudo estava indo maravilhosamente bem entre nós dois.
— Entendo. Logo poderá sair então.
Ela assentiu séria. — Assim que essa cerimônia terminar os príncipes
retornarão a rotina e então voltaremos a revezar na ronda. Com Eva grávida e
Diana tão fragilizada eles aumentaram a segurança. Mas logo tudo volta ao
normal e voltarei a vê-lo com mais frequência. Como sabe, gosto do contato,
é bom podermos conversar mentalmente, mas gosto de contar novidades e
ouvi-las pessoalmente.
Sorri como resposta, ela sabia que eu tinha o mesmo sentimento.
Priana sorriu de volta entendendo que não precisava verbalizar uma resposta,
também não fiz perguntas sobre Diana, não poderia fazer a Priana porque era
assunto da família do pai supremo. Se fosse para alguém comentar sobre isso,
teria que ser um deles.
Continuei andando ao seu lado em silêncio, apreciando sua
companhia. Desde que lutamos juntos criamos uma ligação. Ela era uma
concha. Seus quase cinquenta anos de clausura na mão do pai de Tiago,
sofrendo todas aquelas torturas a tinha endurecido, ainda assim,
conseguíamos construir uma conversa até tarde da noite. Ou por vezes como
agora, apenas ficávamos em silêncio apreciando a presença e o calor do corpo
um do outro. Nossos humores parecidos também colaboravam para um bom
entendimento, mesmo sem trocas de palavras.
Ela parou e apontou. — Essa é sua casa, se estiver fatigado da viagem
pode descansar, se não estiver podemos sanar um pouco a saudade, sinto sua
falta André. Logo Eva o chamará para o jantar e então irei cumprir minhas
obrigações.
— Não estou cansado, talvez cansado de esperar uma folga para ter
você só para mim um pouco. Sentar e conversar, depois entrarmos e fazermos
de conta que temos uma união normal, como um casal que não têm tantas
preocupações.
Seus olhos negros brilharam, e seus lábios curvaram em um sorriso
singelo. — Gostaria muito disso.
Sentamos no banco rústico, os sons de crianças, panelas e talheres
vindos de dentro das casinhas brancas mostravam que a vida pacata havia
voltado ao normal.
— Muitas uniões por aqui?
Seu rosto iluminou e ela assentiu concordando. Ainda me admirava de
ver como seu rosto ficava ainda mais bonito quando ela sorria.
— Alguns casais já se formaram, outros estão claramente seguindo
para isso. — Ela olhou para mim com um sorriso de cumplicidade. — E seu
rei humano, conseguiu conquistar sua filha?
— Já faz algum tempo que Amélia finalmente se rendeu ao charme de
Tiago. O problema é que ela não contou a ele, e o pobre rapaz está
amargurado pelo amor que acha não ser correspondido. Mas eu a entendo, ela
sabe que logo a pressão para que ele se case será muito grande, então mesmo
sem saber, ela está preservando seu coração da dor de vê-lo casar com outra.
E mesmo que Tiago enfrente um conselho e duas castas para ficar com
minha filha, ele ainda não está pronto para amar uma mulher como Amélia,
ainda falta nele a confiança, o companheirismo, sem contar que ele não sabe
lidar com os próprios costumes no que se refere a liberdade da mulher.
Priana assentiu. — Mas o amor transforma. Só é uma tristeza Amélia
se apaixonar justamente pelo rei, e sendo sua filha infelizmente as chances de
aceitarem esses dois juntos não parece favorável.
Assenti. Era exatamente isso. — Uma filha de escravo com o coração
do rei na mão geraria ódio em excesso e muitos riscos a ela.
— Continuam brigando muito?
Estalei a boca, eu ficava triste ao saber que os dois viviam as turras,
meu carinho pelos dois era basicamente igual, não gostava de ver nenhum
dos dois sofrendo.
— O tempo todo. Tiago ainda não sabe interpretar minha filha. Cada
vez que os dois se encontram começa uma discussão. Tiago tem um
temperamento explosivo e despeja qualquer porcaria que lhe vem à mente
sem pensar antes. Já Amélia não aceita freios ou cobranças. Ou seja, eles
cada vez mais se deixam levar pelo sentimento jovem e acabam quase se
matando e claro, estão cada vez mais apaixonados.
Como hábito eu segurei sua mão e ela apertou meus dedos com os
dela. Sempre me sentia um adolescente idiota ao lado de Priana, mas
diferente de minha filha, não fiz a menor questão de esconder meus
sentimentos quando os descobri, não perdi tempo com dúvidas, sou um
homem maduro e conheço meu coração, e ele palpitou mais rápido por essa
sombria desde que ela sorriu para mim a primeira vez quando nós dois
decidimos desobedecer as ordens dos príncipes indo para a batalha ao invés
de ficarmos protegidos com os outros.
E depois de tantos anos solitário ela foi a única que acendeu a chama
dentro de mim, lutamos junto na guerra, ela não me deixou sequer um
minuto, sempre ao meu lado na batalha e depois disso também.
Quando tudo acabou, nos encontramos muitas vezes nas rondas no
reino humano, nossa relação se estreitou eu já sabia, por isso quando
estávamos um dia na ronda não me fiz de rogado, a tomei em meus braços e a
beijei, dei o primeiro passo porque eu sabia que era isso que ela esperava de
mim. Não houve perguntas se eu estava pronto para ela, não houve dúvidas,
ela ativou o sigilo nessa mesma noite e depois de uma semana nos
encontramos na mansão dos seus, ela como única restante da família já que
perdeu a irmã e a sobrinha no clausuro do rei.
Usamos o local somente para os rituais e então ela voltou para o lar de
outros sombrios que estavam sozinhos, não mais queria ver a mansão, e agora
outra casa está sendo construída para ela, um pouco mais retirado, quase no
fim do reino sombrio, mas Priana não irá usar essa casa, ela virá comigo
quando a paz finalmente for sólida, por agora nos sacrificamos pelos povos
que amamos, mas tenho esperanças de podermos ficar juntos no futuro.
Priana me tirou de meus pensamentos. — Ainda assim, apesar das
brigas que contou, é um amor bonito o deles. Jovens são destrutivos, mas
acabam encontrando o caminho e a sintonia necessária para se acertarem.
Beijei de leve seus lábios. — Como encontramos.
Ela sussurrou de olhos fechados. — Como encontramos.
Novas possibilidades

Amélia

E então Marcos, o que me diz?


Ele riu e me encarou com o olhar morno. — Então você ama o rei?
Fiz um bico envergonhado. — Bom… Não é para você sair gritando
por aí, ninguém sabe. — Levantei a mão e fiz um gesto sem importância. —
E é só um amor sem esperanças... Ele é o rei, precisa casar com alguém de
uma casta equivalente. Por isso nada de comentar isso com alguém, sou filha
de um escravo e de uma mulher que para todos os efeitos foi parar em
prostíbulo, então é um sentimento só meu.
Ele franziu o cenho. — Então porque me contou?
Estalei a boca já desconfortável com a pergunta. — Para que você
acredite em mim quando digo que ele não irá retaliar vocês oras!
Marcos apertou os olhos. — Sei… Foi só por isso então?
Levantei os ombros decretando que não diria mais nada sobre isso e
ele entendendo meu silêncio, sorriu e cruzou os braços ficando sério.
— Tudo bem, se não quer falar mais nada, vou respeitar isso. Agora
me diga uma coisa, se realmente viesse morar aqui, onde acha que dormiria?
Não temos nenhum abrigo preparado sem ser essa caverna.
— Bem, não vou me mudar hoje. E claro que também não vou dormir
ao relento, vou construir uma casa aqui. — Ele sorriu amplamente e isso me
deixou mais empolgada, abri os braços girando o corpo. — Na verdade uma
grande casa.
Marcos riu ainda mais e balançou a cabeça. — Já te falaram o quanto é
tola?
Ri alegre e concordei com entusiasmo. — Só ouço isso o tempo todo e
já te falaram o quanto é cético?
Ele levantou as sobrancelhas. — Muitas vezes, só que eu vou pela
lógica. Primeiro: acha que seu pai vai permitir uma coisa dessas? Segundo:
onde arrumará dinheiro para isso? E... Terceiro: acha que vai dar conta de
morar em um lugar desses?
— Não me preocupo com meu pai, aliás, me preocupo... Um pouco,
mas tenho um obstáculo maior a enfrentar que é Tiago. Quanto ao dinheiro...
Vou conseguir, de um jeito ou de outro e quanto a aguentar, estou é
empolgada com as possibilidades.
— Vai roubar?
Torci a boca e levantei as sobrancelhas. — Não sabe o quanto consigo
ser persuasiva, nem preciso roubar, só preciso falar. Sou uma mendiga nata,
você não tem ideia.
Ele assentiu e sorriu. — Muito bem, se conseguir dinheiro eu ajudo na
construção de seu palácio, dona rainha mendiga.
Ele fez uma vênia dramática, era uma piada pelo que eu tinha contado
e balancei a cabeça, assustada.
— Não diga isso nem por brincadeira, não é porque disse que amo
Tiago que você começará com isso.
— Me ama?
Abri os olhos como pratos para Marcos e ele retribuiu da mesma
forma, claro que ele reconheceu, ele trabalhou no castelo e com certeza havia
ouvido muitas vezes aquela voz.
— Amélia?
Fechei os olhos. Como ele sabia onde eu estava? Aliás, porque ele
veio atrás de mim? Me virei devagar já pensando em uma desculpa deslavada
para o que ele ouviu, nem tive tempo de falar nada, quase tive um surto. Suas
roupas velhas estavam cheias de buracos, usava botas diferentes e seu rosto…
— Pelos antigos, Tiago, como você ficou assim? — Ri sem conseguir
me segurar. — Está horrível!
Ele cruzou os braços sem paciência e me encarou com uma enorme
carranca.
— Graças a você! O que tem na cabeça? Me fez vir aqui atrás de
você...
Levantei uma mão e coloquei a outra na cintura. — Opa! Pode baixar
o tom, e não fiz nada, veio porque quis, aliás... O que faz aqui?
Marcos sem graça com a situação olhou para as mulheres e ordenou.
— Deixem os dois conversar, esperem lá fora.
Com alguns resmungos as mulheres começaram a sair. Esperei que
elas saíssem com o coração acelerado de receio que ele insistisse sobre o que
ouviu. Marcos foi o último a sair, quando foi passar por Tiago ele segurou
seu braço, não o olhou, manteve os olhos fixos em mim.
— Depois que eu conversar com Amélia, teremos algumas coisas que
conversar também.
Marcos assentiu. — Sim, majestade.
Assim que ficamos a sós eu respirei fundo, os olhos escuros de Tiago
faiscavam de raiva, pronto eu já sabia que ele não ia me ouvir. Cruzei os
braços em desafio, odiava quando ele bancava o mandão, mas antes que ele
insistisse sobre o que ouviu, era melhor distraí-lo.
— Não ouse vir me cobrar nada, não te devo satisfações e não estou
fazendo nada que atente a vossa coroa, majestade.
Ele andou depressa pisando duro e me segurou pelos ombros.
— Não ouse… Me irritar Amélia, não agora. Estou me controlando ao
máximo para não ir lá fora e socar a cara daquele Marcos e depois socar a
cara do maldito pedinte que te vendeu esses trapos…
Revirei os olhos, incomodada com seu humor impossível.
— Só falta você dizer agora socar a minha cara. Nem adianta ficar
ofendido, pois só falta isso para você consolidar sua posse já que age como se
fosse meu dono o tempo todo.
Ele aproximou o rosto do meu ainda mais e soltou o ar pesadamente.
— Amélia, por favor, só por um momento… Me dê uma trégua.
Essa parte de Tiago não tinha como vencer. O mau gênio dele era forte
e eu também não ajudando a amenizar sua raiva. Só de ver que ele estava
tentando se controlar já era um progresso, era justo que eu também tentasse.
— Muito bem Tiago, então me diga o que faz aqui.
Ele respirou fundo para se conter, porém não funcionou porque
quando começou a falar foi alterando a voz gradativamente.
— Essa pergunta era eu que deveria fazer. O que eu faço aqui? O que
diabos você faz aqui mulher!
— Pare de gritar comigo! — Gritei de volta. — Tudo com você têm
que acabar no grito?
Ele me soltou irritado. — Então fale Amélia, não me faça de bobo,
não me enrole, se quer me fazer perder a paciência nem tente, já estou sem
ela.
Tiago estava mesmo bravo, geralmente ele não explodia logo não nas
primeiras frases, somente depois de algum tempo de conversa é que
começávamos a nos gladiar e o problema é que minha mente também não
colaborava quando eu estava perto dele, e mais uma vez acabei me distraindo
a analisar seu rosto, mesmo com aqueles olhos faiscando e com aquele barro
ressequido lhe enfeitando a face ele ainda conseguia ser malditamente lindo.
Como ele conseguia ser tão bonito com aquelas bolinhas marrom nas
bochechas? E porque raios alguém usaria barro no rosto para se disfarçar de
mendigo? Eu já tinha andado por tudo e não tinha visto nenhum por aqui com
barro no rosto.
— Responda Amélia!
Dei um pulo com a voz alterada. Completamente distraída olhando
para ele me esqueci de ficar brava com aquele grito e acabei respondendo no
automático sem deixar de admirá-lo.
— Estava procurando uma moça.
O idiota completamente cego em sua raiva nem percebeu que eu não
conseguia desviar meus olhos, ele estava tão perto que estava roubando meu
ar e consequentemente minha inteligência. Eu já nem me lembrava o que ele
tinha perguntado, mas o irritou seja lá qual a foi a resposta que dei. E quando
já sem paciência ele soltou o ar com força eu quase perdi a força das pernas
com o assopro tão pertinho de mim.
— Pula essa parte que já sei de tudo isso.
Novamente a voz alterada... Isso me fez acordar de meu devaneio
definitivamente e o cortei com os olhos.
— Então, porque pergunta?
Ele colocou a mão na fronte e massageou, acabei continuando antes
que ele gritasse novamente.
— Então... Marcos me trouxe para conhecer a vila dos escravos. Vim
até aqui porque meu pai não queria que eu soubesse desse lugar e por conta
disso fiquei curiosa.
Tiago me olhou mais bravo ainda do que antes. Mas que coisa...
— Seu pai não queria que soubesse por que ele sabia que seria
justamente isso que você faria, vir aqui e se colocar em perigo... — Ele olhou
para os lados franzindo o cenho e esquecendo que devia manter a pose de
bravo. — E afinal de contas, como eu também não sabia da existência de
pessoas morando aqui?
Isso era estranho. — Mas, porque meu pai esconderia isso de você?
Tiago vincou a testa. — André nunca fez nada sem pensar, então
porque ele esconderia uma coisa dessas?
— Se eu fosse meu pai esconderia das duas pessoas que mais confio
no reino…
Olhei para Tiago e ele olhou para mim.
— Porque ele nos conhece. — Falamos juntos e senti minhas
bochechas amornarem pela nossa sintonia, poderia ser assim mais vezes,
pensar juntos... Falar juntos... Ficar juntos...
— Ele sabia que você viria aqui.
Concordei quase me chutando, tinha que parar com esses devaneios,
nada disso levaria a lugar algum.
— E ele não queria que você se sentisse culpado pelas consequências
da mudança.
Tiago fechou os olhos e soltou o ar, o semblante mostrando uma
agonia que eu não tinha visto até agora. — E é tudo o que me resta agora
Amélia. Culpa. Tudo o que fiz quando decidi mudar o tratado foi tirar o
poder dos homens. Não planejei com calma e nem pensei nas consequências,
sou um fracasso e nem tanto tempo de reinado eu tive, por mais estranho que
pareça o que vou dizer, tudo parecia mais organizado quando meu pai era
vivo.
Eu já imaginava que ele se sentia assim, agora o conhecendo melhor
que antes eu sabia que aquele olhar dele na reunião, era de extremo cansaço e
desesperança. No dia eu não soube interpretar, mas agora... Sem me dar
conta, tinha diminuído a distância entre nós novamente. Toquei em seu
ombro um pouco nervosa. Essa seria a primeira vez que eu tocaria em Tiago
para confortá-lo, apesar de querer fazer isso todas as vezes que o via chegar
em casa com as desculpas mais idiotas para nos visitar, nunca me aproximei
assim. Até porque nunca conseguíamos conversar como adultos, sem acabar
nos engalfinhando no fim da conversa.
Meu deu vontade de trazê-lo para um abraço quando ele deitou a
cabeça e encostou o rosto em minha mão quando sôfrego por receber um
toque de conforto. Realmente ele estava carente e tudo o que eu podia fazer
agora era tentar confortá-lo de algum modo.
— Não diga isso nem de brincadeira, seu pai era um monstro e você
não é. Normal que fique tudo bagunçado no começo, mas as coisas vão se
ajeitar, eu prometo. — Me aproximei um pouco mais sentindo tristeza por vê-
lo daquele jeito. — Me deixe ajudar você Tiago.
Ele riu sem nenhum humor e uma pontinha de irritação passou por
mim.
— O que você poderia fazer Amélia que eu já não tentei?
— Me dê esse lugar.
Ele me olhou assustado e antes que abrisse a boca emendei rápido.
— Não digo dar de verdade, mas como você fez quando precisei de
um prédio para a escola. Deixe-me como responsável desse lugar e prometo
que conseguirei te ajudar.
Agora ele me olhava cético. — Está me pedindo o território dos
leviatãs?
Realmente ele tinha razão de estar me olhando assustado. Não era um
pedido pequeno, mas…
— Qual é o problema? Você me deu aquela imensa propriedade que
era da sacerdotisa então porque não essa prisão que você sequer sabia que
estava habitada? Para ver mudanças aqui é o melhor lugar e...
Tiago balançou a cabeça. — Então Amélia! Eu te dei aquilo, agora
você quer esse.
Balancei a cabeça e insisti. — Não, eu não quero mais aquele lugar, eu
quero…
— Você sabe o que me pede? E a escola?
Acabei deixando um sorriso escapar. — A escola pode ser aqui, afinal
aqui é imenso e o melhor é que já terei os bancos e as mesas para as crianças,
só buscar na propriedade da sacerdotisa e trazê-los para cá. E a refeição
poderia ser feita aqui, então para você seria ainda mais fácil, pois tem pessoas
ociosas perambulando sem rumo pela prisão que poderiam cuidar disso, e
quem sabe racionando um pouquinho essa refeição poderia alcançar mais
pessoas.
Ele cruzou os braços me olhando com a testa franzida, mas isso não
me desmotivou a tentar fazê-lo enxergar a simplicidade de tudo.
— Ainda posso ajudar as mulheres e os idosos, também os pedintes e
todos que procuraram refúgio, e com a escola aqui eu ainda poderia dividir
meu tempo entre as crianças e os outros que também precisam. Não é uma
ideia maravilhosa?
Tiago não se empolgou junto comigo. — O que você tem na cabeça
Amélia?
Levantei os ombros. — Sonhos.
— Não posso fazer isso baseado em sonhos. — Ele esticou os braços e
os girou para os lados. — Você não vê? Esse lugar é perigoso! É longe de
tudo. Mas que diabos, você é uma mulher, já viu o que fazem com as
mulheres aqui? Não posso arrisc…
Novamente isso? Esse mesmo argumento de eu não poder isso ou
aquilo por ser mulher? Tudo se resumia ao fato de eu ficar em perigo e mais
nada, o que ele queria? Que eu ficasse em uma maldita gaiola somente para
ele ter paz de espírito?
— Marcos! — Gritei cortando Tiago, meu coração batendo forte.
Estava fazendo um esforço grande para não chorar.
Marcos apareceu na porta da caverna. — Sim?
— Quando você disse que me levaria embora, seria de que forma?
— Apesar de dizerem que comemos os cavalos, seria com um deles
que eu te levaria.
Aquiesci tentando esconder o queixo tremendo. — Pode trazê-lo, por
favor?
Tiago piscou várias vezes em completa confusão, como sempre, sem
entender onde errou.
— Amélia?
Sua voz saiu preocupada, típico! Balancei a cabeça e só consegui olhá-
lo com mágoa. Ele lutou contra o machismo em seu reino, entretanto o
machismo ainda estava cravado fundo dentro dele.
Ele poderia ter dito que ia pensar, poderia ter arrumado variadas
desculpas, mas impor como único e recorrente argumento o fato de eu ser
mulher e ficar em perigo, era demais para mim, pois aí eu não tinha como
discutir, porque para os homens desse reino ser mulher parecia ser quase uma
doença que deixava inválido.
E o problema é que só me incomodava ser mulher por causa de Tiago,
porque de todos, somente ele vivia jogando isso na minha cara como se isso
respondesse a todas as proibições impostas por ele, e doía mais porque era
ele...
Por vezes eu pensava que se eu fosse um homem, ele aceitaria minhas
ideias, mas não o fazia só porque eu sou só a merda do lado frágil da criação
humana. O lado que não pensa, não tem força e não pode sequer tomar uma
decisão porque pelos olhos dele sempre irá parecer algo descabido e bobo.
Marcos assobiou e logo um cavalo veio trotando com um garoto de
uns doze anos montado nele. Andei apressada para a saída. Tiago segurou
meu braço e me puxou para ele com uma força desesperada.
— Espere Amélia.
O enfrentei de queixo erguido. — Me ordena como meu rei, ou me
pede como amigo de meu pai?
Ele me soltou dessa vez com os olhos assustados, parecia não saber
como responder a minha pergunta. Vi a tristeza nublar seus lindos olhos, mas
não me importei. Andei firme até o cavalo, subi com destreza agradecendo os
anos de liberdade onde aprendi a montar.
Olhei para Marcos e falei com toda a sobra da dignidade que me
restava naquele momento. — Preciso ir ao reino sombrio, um dos meus
senhores, o príncipe terceiro irá passar por uma cerimônia importante para
meu pai. — Evitei olhar para Tiago que não parava de me encarar da entrada
da caverna. — Em uma semana estarei de volta Marcos e então, trarei as
minhas coisas.
Ele abriu muito os olhos castanhos. — Você disse que…
Não o deixei terminar. — Eu sei o que eu disse e farei como eu disse.
Só que agora decidi não esperar minha casa aqui ficar pronta, mesmo que eu
fique nessa caverna junto com as mulheres, eu virei.
Tiago abriu a boca para protestar, estava surpreso com a notícia. Não
esperei, incitei o cavalo para a esquerda e parti a galope tendo o cuidado de
me manter na estradinha para não correr o risco de atropelar ninguém.
Rezei aos céus para sair logo dali e quando finalmente alcancei o
portão deixei as lágrimas transbordarem e escorrerem por meu rosto
livremente.
Se Tiago pensava que tinha algum poder sobre mim estava muito
enganado. Ia provar a ele que sou dona do meu próprio destino e só porque
ele havia decidido que ali não era lugar para mim, eu ia mostrar o quanto ele
estava enganado.
Porque eu sou uma mulher, e ao contrário do que ele pensava, não era
esse o meu defeito. Ser orgulhosa sim.
Atitude ousada

Tiago

Me ama... Eu poderia jurar que ela tinha dito isso, ou poderia ser a
necessidade desesperada de meu coração por ser correspondido, mas mesmo
ser ter certeza isso me afetou de tal modo que eu não consegui controlar
minha ansiedade e sentimento de posse.
O ciúme me dominou quando vi sua desenvoltura ao conversar com
esse tal de Marcos, a facilidade com que eles se entendiam me irritou e acabei
maquiando esses sentimentos possessivos com a minha preocupação que
apesar de verdadeira não era o motivo para meus excessos idiotas.
E aquele toque tão singelo dela em meu ombro... Ela estava tão perto
que eu poderia tomá-la nos braços e esquecer até mesmo o motivo que me
levou ali, precisei fazer imenso esforço para não fazer loucura, porém para
ajudar meu raciocínio a falhar completamente, ela não parava de me encarar
com aqueles olhos enormes e azuis que me deixavam ébrio de sentimentos
conflitantes. Amor, raiva e ciúmes brigando dentro de mim me fazendo como
sempre, falar merdas sem pensar.
Mas como eu podia me controlar a vendo conversando tão desenvolta
com o filho de Uzias?
E agora, enquanto observava impotente ela tomar distancia, sentia
ribombar em meu estômago o receio de que tinha acabado completamente
com qualquer chance. Maldição! Como pude ser tão rude a afastando ainda
mais de mim quando na verdade eu queria era me aproximar mais e mais?
Mas eu não estava de todo errado, realmente era perigoso, aliás, mais
perigoso do que ela podia imaginar, ainda assim isso agora não tinha
importância, pois novamente falhei na parte de apoiá-la. Mas como eu iria
explicar a ela o profundo ódio que os de casta mais alta sentiam por mim e
por André? E que aqui tão distante ela seria uma presa fácil? E como eu
poderia explicar que sentia uma fúria insana só de imaginar ela ao lado de
outro homem que não fosse eu?
Mas que merda de sentimento de posse que me fazia ter medo de
perdê-la, será que ela não entendia a proporção da crueldade dos meus
inimigos? Quando ela ia entender que para eles não haveria limites já que
consideravam as mulheres meros objetos? Eu poderia estar agindo errado e
não sabendo como expor o que sentia em palavras, pelo menos palavras
adequadas e menos duras, mas eu jamais iria permitir que a usassem para me
ferir, que a ferissem para me machucar porque é isso que vai acontecer, se
alguma coisa acontecer a ela eu nunca conseguiria me perdoar.
Mas... Será que eu estava certo ao privá-la de liberdade por conta do
sentimento de ódio que tinham por ela e que ela nem sabia existir?
Soltei um longo suspiro me sentindo derrotado por minhas dúvidas.
Sempre que eu tentava explicar a ela que eu queria protegê-la de meus
inimigos, eu usava de palavras erradas e acabava a ferindo. E isso já estava a
tomar proporções dantescas, eu tinha que fazer alguma coisa. Não podia
prendê-la isso já estava se tornando ridículo! E se eu não podia controlá-la
então teria que pelo menos dar a ela um local descente. Olhei para a caverna e
franzi o nariz.
Não... Nesse buraco cheio de umidade e panos sujos ela não ia ficar.
Eu não sabia lidar com ela ainda, menos ainda com os sentimentos que tinha
por ela, mas cuidar dela eu ia, mesmo que fosse de longe.
Em minha comiseração acabei me esquecendo de Marcos que me
olhava esperando com dignidade a maldita conversa que eu havia dito que
iriamos ter, mas agora isso não parecia ter importância, na verdade nem me
lembrava do assunto, a única coisa que tomava meus pensamentos naquele
momento eram aqueles olhos magoados de Amélia.
Limpei a garganta, ainda assim minha voz saiu embargada. — Há
outro cavalo por aqui?
Marcos anuiu. — Sim há.
— Pode me arrumar?
Novamente levando dois dedos à boca ele soltou um assobio e o
mesmo garoto veio agora trotando em um cavalo castanho. Enquanto
esperava perguntei só para confirmar.
— A menina que me trouxe aqui, disse que as moedas vão para você.
Ele assentiu sem se abalar. — Todo o recurso que entra é revertido em
comida.
— Os adultos também ajudam?
Ele assentiu novamente. — Para as crianças é mais fácil por conta dos
trabalhos nas ruas, geralmente recados entregues, mas aqui todos caçam pela
floresta e tentam arrumar o que fazer para conseguir alguma coisa. Mas são
bocas demais então...
— E é verdade que vocês comem os cavalos?
Ele riu. — Sim. Mas não os matamos, as crianças gostam deles, já
comemos um que encontramos já muito velho e morreu pouco depois que
trouxemos para cá.
Não soube o que responder sobre isso. Nem deu tempo de formular
algo, o garoto apareceu.
— Seus cavalariços são melhores que os meus.
Marcos olhou orgulhoso para o menino. — As crianças gostam de
brincar com eles, vivem em cima deles, mas respeitam quando precisamos
usá-los.
Olhei o menino sorrindo e batendo no pescoço do animal com carinho.
— Mandarei trazê-lo de volta para vocês.
Marcos me olhou sério. — Majestade, irei com o senhor se me
permitir.
Não respondi apenas concordei com a cabeça, porém logo me decidi e
me virei para ele. — Preciso alcançar Amélia, mas estarei esperando no
castelo mais tarde.
Ele me olhou um pouco desconfiado, puxei o ar e soltei com força.
— Não irei torturá-lo ou arrancar a sua pele pelo amor de Deus! É só
uma maldita conversa franca. Quero saber sobre isso da Amélia vir morar
aqui e o que podemos fazer para que ela não viva nesse buraco aí. — Apontei
a caverna malcheirosa — Não a quero vivendo sem o mínimo de conforto,
disso não abro mão.
Ele meneou a cabeça. — Chegarei logo então.
Montei e antes de sair remexi no bolso, não podia sair sem fazer isso.
Peguei o saquinho com as moedas que me sobraram, já que aquela espertinha
levou uma boa quantia e joguei na direção de Marcos.
— Compre comida para essas crianças e deixem os cavalos delas em
paz.
Ele assentiu sério. — Obrigado majestade.
Incitei o cavalo, era velho, todavia era um animal melhor do que
aquele que Amélia havia montado, a alcançaria logo… Ele começou a trotar
com dificuldade, mancando um pouco. Suspirei desanimado… Ou não a
alcançaria tão fácil assim, ele estava quase morto. Forcei o trote, não ia
desistir de alcançá-la, mas também não queria matar o pobre cavalo daquelas
crianças, isso seria cruel. E ainda por minha culpa ele seria devorado.
Logo à frente, a escolta que eu havia pedido me esperava. Desci do
cavalo e perguntei para todos e nenhum ao mesmo tempo.
— Passou uma mulher montada por aqui?
Eles negaram e um soldado falou. — Apenas um senhor franzino e
sujo que passou por aqui há pouco, estava montado em uma pangaré quase
morto.
Era Amélia, que idiotas! Apontei para o soldado.
— Me dê esse cavalo.
Sem discutir ele desceu me entregando as rédeas, entreguei a ele a
corda do outro e não deixei de recomendar enquanto montava.
— Você use a carruagem, nada de judiar desse animal. Entregue ele
aos estábulos e mande alimentá-lo e mande cuidarem da pata ferida. Se ele
morrer, um de vocês irá pagar caro por isso.
O homem avaliou o animal desnutrido de cenho franzido tentando
encontrar nele algum valor. Realmente não tinha, não para mim ou os
soldados, somente para aquelas crianças e isso já me bastava.
Forcei o trote e o vento logo bateu em meu rosto, esse garanhão sim
corria. Não ia demorar muito e a alcançaria.
Eu tinha que resolver isso. Uma vez Diana havia me dito que eu
merecia uma mulher que me fizesse feliz, que eu merecia encontrar o amor e
agora, depois que finamente encontrei o amor, a felicidade não veio junto. Na
verdade só existiram rusgas desde que nos conhecemos e sou ciente que
muito dessas brigas era por minha culpa, eu não media minhas palavras e
acabava sempre deixando meu lado possessivo tomar conta, meu ciúme idiota
e também minha mania de achar que mulher não tem capacidade de realizar
alguns feitos, principalmente as que eu tenho sentimentos.
O problema é que só depois que eu cometia o erro que eu refletia
sobre isso, e então Diana me vinha à mente. Ela também lutou, nunca deixou
de ser feminina mesmo quando maquinava várias maneiras de enganar tanto
meu pai quanto Samuel. E ela conseguiu muitos feitos sem levantar uma
arma, sem usar luta física e agora, mesmo depois dessa lição, mesmo depois
de ter aprendido um pouco a ser menos idiota com Diana, eu ainda tinha
muito a aprender.
Mas com Amélia era diferente, todas as sensações pareciam
multiplicadas e perto dela isso potencializava de tal forma que eu sempre
tinha reações mais intensas, mais explosivas, ela me preocupava em excesso,
me enraivecia mais rápido, me fazia querer beijá-la a todo o momento,
enfim... Me punha louco e isso estava ficando complicado, eu precisava
encontrar um meio de entendê-la.
Não demorou muito e eu já conseguia ver o cavalo cinza se
aproximando. Forcei um pouco mais e diminui a distância. Logo estava
emparelhado com o dela. Ela nem me olhou, apenas gritou.
— Me deixe em paz Tiago.
Se fosse fácil eu já teria feito isso há meses, mas não era. Meu coração
teimoso insistia em ficar perto. Insistia em mendigar migalhas de atenção.
Estiquei o braço e a enlacei pela cintura, ela soltou um grito de susto e
protesto e com um movimento rápido eu a trouxe para meu cavalo que
resfolegou por um momento assustado com o movimento, mas logo retornou
ao ritmo.
Amélia se ajeitou a minha frente e para aumentar minha angústia ela
nada disse. Droga, ela estava mesmo magoada. Não resisti, tinha que saber...
— O que eu fiz agora? Fui exagerado em qual parte? Diga-me para eu
pedir perdão e não fazer novamente.
Para o meu martírio ser ainda maior, ela tirou o chapéu velho de seu
disfarce e o vento me trouxe o cheiro gostoso de seus cabelos. Revirei os
olhos, que ótimo, estava mais fácil quando o cheiro ruim do chapéu vinha a
mim.
Completamente tomado de paixão apertei ainda mais sua cintura e
sussurrei me sentindo torturado. — Esse é o meu castigo?
Seu corpo enrijeceu com o contato, o meu já estava rígido, mais ainda
abaixo do ventre. Se ela soubesse que apenas essa proximidade estava sendo
a minha morte teria piedade de mim. Esperei alguma atitude, um gesto brusco
para me afastar, mas nada aconteceu. Ela claramente estava me punindo com
o silêncio.
— Por favor... — Só consegui sussurrar, quase com medo de ouvir
mais um pouco de nada como resposta. — Me diga.
Ela continuou calada e me senti morrer por dentro. Levei a mão à nuca
e massageei para tentar arrancar a tensão, estava cansado. Só brigas e
discussões, talvez se ela me desse uma pista de como conseguir entrar em seu
coração eu conseguisse acertar uma vez que fosse, porque mesmo fazendo de
tudo para conseguir mostrar a ela que eu me importava, que a queria segura,
eu acabava sempre cometendo os mesmos erros.
Depois de um longo tempo e de um suspiro mais longo ainda, Amélia
virou o rosto para me encarar e sorriu triste, me olhava como se eu não
estivesse enxergando o óbvio. Quando ela falou, sua voz saiu tremida,
parecia estar fazendo esforço para não chorar.
— Quero um homem com atitude Tiago, um homem que me
conquiste, mas não me sufoque. Que não me trate como se eu fosse vidro,
mas que não quebre meu coração. Quero um homem que respeite minha
inteligência e minhas ideias e me incentive com meus sonhos e se possível,
que sonhe comigo mesmo que seja cético. Que não me trate como se fosse
meu dono, mas que confie que me terá sempre ao lado para ajudá-lo em todos
os momentos e que cuide de mim sem achar que por conta disso, eu deva
sempre ceder e não discordar dele quando ele estiver errado. Quero andar ao
lado e não atrás, é o mínimo que mereço, pois não sou pior que ninguém. E se
esse homem me presentear com pelo menos a dignidade de poder pensar por
mim mesma, eu o respeitarei e serei fiel por toda a minha vida sem precisar
que ele me cobre isso.
Ela olhou para mim agora com os olhos inflamados de raiva e
concluiu com a voz afiada. — É pedir muito?
Diabos! O que eu responderia a ela agora? Se dissesse não, essa loira
cheia de vontades iria ficar furiosa comigo e se dissesse sim, ela me olharia
com a certeza que eu era um lixo como homem.
A merda a resposta! Atitude? Ousadia? Ela ia ver o que era ousadia, o
resto das exigências eu iria deixar para lembrar depois. Por via das dúvidas,
soltei as rédeas deixando o cavalo seguir o caminho sozinho e ela sentindo a
tensão no ar se virou no cavalo, era minha deixa para não permitir que a
coragem passasse, e quando ela se deu conta, eu já estava perto demais para
que recuasse.
Segurei seu rosto assustado com minha aproximação e trouxe para
mais perto, ela nem teve tempo de reagir, tomei seus lábios descarregando
toda a potência do meu sentimento, todas as respostas que eu sequer sabia
como elaborar. A única coisa que eu estava consciente era das batidas
descompassadas do meu frenético coração por finalmente tê-la em meus
braços.
Imaginei que sua reação seria me empurrar ou me dar um belo tapa, o
que fosse, mas ao contrário disso, mais uma vez ela me surpreendeu quando
correspondeu.
Sua boca era macia e receptiva e seu beijo era doce e ingenuamente
sedutor, não consegui segurar o gemido baixo quando encontrei sua língua e
nesse momento me senti menos só. O meu estômago rimbombou
nervosamente quando ela se entregou completamente ao momento levando a
mão ao meu rosto e deitando o corpo em minha direção. Segurei sua cintura e
a trouxe para mais perto, ainda assim ela estava longe, eu queria…
Tinha que reprimir meu desejo, não podia ir longe demais, não com
ela, apesar das minhas falhas eu tinha plena consciência que com ela era
diferente e por isso eu devia tratá-la com respeito. Com um esforço grande eu
acalmei meus movimentos, o beijo ficou terno e senti seu corpo estremecer
com o sentimento que eu depositei a cada investida sobre carne tenra de seus
lábios. Eu queria que ela soubesse o quanto era verdadeiro o que eu sentia.
Eu já sabia que a queria desde a primeira vez que a vi naquela maldita
noite onde estava mais morto que vivo na batalha do reino sombrio. Mas
agora...
Eu tinha certeza que ninguém me faria sentir isso somente com um
beijo e como se fosse possível, senti que meu coração expandiu ainda mais
para conseguir acoplar o excesso de sentimentos que me tomava naquele
momento.
Um motivo

Amélia

Eu não devia estar correspondendo, eu tinha prometido a mim mesma


que… Não me lembrei o que era, sequer me lembrava onde estávamos,
minha mente estava concentrada em cada sensação nova que irrompia pelos
meus poros fazendo arrepiar minha pele.
Tiago era perigosamente sedutor, o que ele estava me fazendo sentir
era ainda mais perigoso, eu tinha que… Uma onda potente de arrepios subiu
pela minha coluna quando ele gemeu baixinho me puxando mais para ele.
Seu braço apertou minha cintura ainda mais e eu soube que morreria nesse
momento e nem perceberia os sintomas da minha morte eminente. Agora só
sabia que não devia largá-lo nunca mais e me entreguei, cedi por completo ao
sentimento que era muito mais forte que eu, porque eu o amava, nunca
escondi de mim mesma isso, somente escondi dele, mas…
Tinha um motivo para eu me esquivar, uma razão para não me deixar
levar. Tentava me lembrar, mas estava completamente tomada pela boca
impetuosa de Tiago, estava completamente realizada no aperto de seus
braços. Mas… era importante.
Esse pensamento pareceu até um aviso que eu devia me recompor,
pois o cavalo parou por um momento, confuso com o caminho e acordei de
meu mundo de fantasia. Meu mundo perfeito onde existíamos somente o rei
eu e mais ninguém, sem pressão, sem perigos, sem o risco de perdê-lo para a
política do reino e a necessidade de alianças. Era isso... Por isso não devia ter
cedido, porque o perderia em breve e antes não saber como era estar próxima
dele dessa forma do que sofrer depois por alimentar esperanças vãs.
Me ajeitei no cavalo e me afastei o mais que consegui, a proximidade
deixava qualquer decisão que eu precisava tomar ainda mais difícil. Tiago
também pareceu acordar de seus devaneios e sussurrou com a voz afônica
como se falar fosse uma tarefa difícil.
— Amélia, me desculpe eu não consegui resistir, eu…
Com o coração quase explodindo em meu peito eu me encolhi e não
mais respondi, ele suspirou e pegou as rédeas fazendo o cavalo virar na
direção ao bairro dos Viajantes.
Senti todos os movimentos do peito dele em minhas costas, toda a
respiração desregular e pesada até chegarmos. Ele parecia estar assim como
eu, ainda afetado por aquele beijo.
Segurei meu nervosismo até o cavalo parar, mas quando ele me ajudou
a descer me afastei com um impulso antes que perdesse a coragem de deixá-
lo, mas era necessário, mais por ele do que por mim, porque eu me lembrava
do motivo de eu recuar quando ele se aproximava. Era isso... Perigo. Meu pai
me falou...
Acabei me tocando que ele não tinha respondido minha pergunta.
Tinha maquiado com um beijo sua confusão com o que responder. Tive até
vontade de rir ao pensar nisso, pois eu teria feito o mesmo, o teria beijado se
ele me botasse contra a parede, mas me fazer de magoada nesse momento era
o melhor a se fazer.
Corri para o portão, mesmo querendo voltar e pular em seu pescoço,
continuar aquele beijo que me fez viajar por reinos perfeitos onde poderíamos
ficar juntos sem que precisássemos ter medo dos cantos escuros. Onde não
havia obrigações mais urgentes do que os anseios do coração.
Ouvi sua voz me chamando e galguei as escadas de dois em dois.
Alcancei a porta e entrei fechando em seguida antes que ele me alcançasse.
Encostei-me à grossa madeira ouvindo as batidas.
— Amélia, não faça isso comigo. — Ele chutou a porta. — O que eu
preciso fazer para pararmos de brigar?
Soprei o ar para conter a vontade de gritar que ele devia começar não
chutando a porta. Ouvi seu suspiro pesado e logo ele falou baixinho
parecendo derrotado.
— Eu… amo você.
Arfei sentindo aquela declaração como um soco no estômago. Fechei
os olhos com o coração acelerado ao ouvir isso pela primeira vez. E como se
meus olhos rompessem em líquidos, senti as lágrimas transbordarem. Chorei
ainda mais quando ouvi seu apelo.
— Por favor…
Não podia permitir que ele continuasse com isso, meu coração não ia
suportar, EU não ia suportar... Ele tinha que entender que nós dois não
tínhamos sequer a chance de um futuro, não quando teríamos todo o reino em
nosso encalço.
— Por favor, Tiago. Vá embora. — Abaixei a voz em um sussurro
porque não queria que ele ouvisse, todavia eu precisava responder nem que
fosse somente para mim mesma naquele momento.
— Porque eu também te amo, mas não posso ser egoísta.
Eu já devia ter enfiando isso na cabeça, devia ter feito um maior
esforço para esquecê-lo. Não era nenhum segredo que o desejo do conselho
fosse que ele escolhesse uma mulher dentre as muitas filhas dos nobres.
Meu pai tinha me avisado de antemão que era só questão de tempo
para que a pressão fosse tanta que Tiago não teria para onde fugir e se
obrigaria a se unir a uma filha de um nobre, e não era preciso ninguém me
dizer que se ele negasse, não seria só a sua coroa que estaria em risco, mas
sua vida e de sua família.
E o problema nisso tudo é que eu estava tentando me manter longe.
Desde que cheguei a esse reino eu tentei não alimentar o que sentia por ele.
Era uma coisa guardada comigo. Cheguei aqui completamente ciente de meu
lugar e já sabia que sendo filha de um escravo liberto, não podia alimentar
esperanças. Mas porque ele não facilitava as coisas? Porque não me deixava
quieta amargando a tristeza sem ficar me torturando com olhares e beijos e
suspiros que assopravam meu rosto me tirando a razão?
Solucei e subi para meu quarto sentindo quase raiva de Tiago. Ele
além de estar cerceando minha liberdade também estava me fazendo ficar
cada vez mais enroscada nessa trama de sentimentos e jogos de interesses.
Um cabo de guerra do qual eu não tinha forças para puxar e vencer.
Se ele queria tanto me proteger, porque não ficava longe? Porque não
parava de mexer com meus sentimentos dessa forma? Isso não era justo nem
com ele e nem comigo.
Seria mais fácil para ambos se eu voltasse ao reino sombrio. Mas isso
seria uma covardia imensa de minha parte. Por isso não ia desistir dos meus
planos, mesmo que ele escolhesse uma moça das castas mais altas, eu o
ajudaria da maneira que conseguisse, porque ele precisava de aliados e se eu
não podia estar ao lado dele como queria, estaria ao seu lado como alguém
que ele pudesse contar caso precisasse. Há várias maneiras de amar e uma
delas pode ser um amor solitário, onde mesmo sem estar junto se quer o bem
de quem ama a todo custo e esse seria o meu.
Se eu obtivesse sucesso, ele se beneficiaria mais até que o próprio
povo daquela antiga prisão dos leviatãs. Ou isso ou ele uma hora ia perder a
paciência e colocar a corja das castas supremas no lugar deles, mas para isso
Tiago teria que se libertar da escravidão do rei justo que almejava ser e teria
que virar o monstro que ele tanto temia se tornar.
Decênio do Terceiro

Nicolae

A cripta estava sendo limpa, purificada de qualquer tipo de resquício.


Rael a preparava diligentemente.
Dimitri lançava olhares nervosos para Diana que não havia largado
sua mão um minuto sequer desde que a cerimônia teve início. Minha pequena
sofria por saber que logo teria que se despedir, eu temia por esse nervoso que
ela estava sentindo.
Embora ligeiras e arrítmicas como devessem ser nessa fase, estava ali
pulsando em seu ventre, uma vida extremamente frágil, por isso era cedo para
comemorar, mas essa pulsação somada ao nervosismo de Diana estava me
deixando ainda mais aflito por não ter nenhum poder para protegê-los. E a
situação ficava ainda mais crítica, pois justo agora que a recente e frágil vida
nadava em líquidos em seu ventre, minha pequena passaria por esse choque
tão grande. Mantive as aparências, uma máscara de serenidade para poder
confortá-la, porém a preocupação me roía pelos dois, pelos meus.
Para nós Dimitri passaria por um decênio, apenas um ano de sono para
poder atingir a maturidade e ter sua aparência definitiva de trinta anos, a fase
adulta de um sombrio.
Já para minha pequena o sentimento maior que lhe ia à mente era a dor
da perda. A crueldade dos príncipes por fazer isso com o irmão caçula, e a
raiva pela injustiça de colocá-lo a dormir, ela via isso como punição para ele,
sua mente vasculhava freneticamente procurando alguma lembrança do que
ele havia feito de errado.
Ela estava desconfiada de que havíamos dito decênio somente para
disfarçar uma punição a Dimitri, e nessa hora eu me sentia transbordar de
amor por minha pequena que ainda tinha a inocência arraigada dentro dela.
Meu coração ainda se amornava ao pensar que mesmo depois do que ela
passou, tanto sofrimento e até mesmo humilhação ela foi forte, se quebrou
uma única vez no passado, depois disso, não permitiu que nada mais a
quebrasse.
Minha pequena ainda não conseguia ter êxito ao se comunicar
telepaticamente comigo e nesse momento de nervosismo, também não
conseguia controlar a enxurrada de sentimentos que despejava em minha
mente.
Por conta disso eu sentia tudo, seu desamparo, desespero e medo. Por
um momento ela cogitou até fugir com Dimitri para livrá-lo desse destino
porque doía a ela ver a angústia dele.
Pobre Diana, sua mente funcionava como uma tempestade quando
estava nervosa e nada que eu fizesse agora acalmaria seu coração.
Sem ter noção do quanto me entristecia ver sua angústia ela me olhou
em súplica quando Rael chamou Dimitri. Ele havia assentido e soltado a mão
dela, ela ameaçou ir atrás, mas a puxei para mim e a abracei.
— Não o tire de mim Nicolae, por favor.
Sem se dar conta ela tinha gritado isso em minha mente, seu coração
batia acelerado e seus olhos estavam cheios de água e isso espremeu meu
coração por nada poder fazer para tirar sua dor.
Chamei mentalmente, precisava fazer alguma coisa por minha
pequena. — Rael irmão.
— Estou ouvindo irmão, acompanhei todos os pensamentos confusos
que ela não conseguiu esconder e também sinto a dor dela. Dimitri, acalme o
coração de Diana. Mostre a ela que é necessário o que estamos fazendo, ela
está com os nervos aflorados por conta da vida que carrega. Esse desespero
pode ser perigoso.
Dimitri parou e se virou para nós, olhando para Diana com os olhos
nublados de lágrimas ele ainda conseguiu sorrir largamente e abriu os braços
para ela. Segurei a pequena antes de soltá-la.
— Vá devagar meu amor.
Com passos vacilantes ela se aproximou de Dimitri e o abraçou
chorando, ele rodeou os braços a apertando com delicadeza, meu pobre irmão
já estava magoado por não poder participar do nascimento da criança de Rael
e agora também seria privado de estar com Diana nesse momento tão
delicado, ele sempre teve ciúmes de ser Rael o pai adotivo dela e não ele e
agora, já acostumado a tê-la como sua irmãzinha ele não poderia acompanhar
o nascimento de nenhum dos seus sobrinhos, mas o tempo era esse, ele
precisava disso e fazia parte de nossa raça.
Ouvi a voz de Rael em minha mente.
— Contou a ela?
— Não ainda irmão, eu conheço minha pequena. Tem que ser uma
preocupação por vez. Se ela souber agora, a angústia pela proteção da vida
que carrega fará confronto com a dor de ver Dimitri partir, é assim que ela vê
esse decênio. O risco é grande. Não posso arriscar nem a vida dela nem a do
meu filho.
— Nem eu vou arriscar a vida dela, ou do meu sobrinho neto. Ela é
minha filha e temo por ela. Dimitri a acalme irmão e mostre a ela que você
precisa desse sono.
Ao ouvir o pedido de Rael, Dimitri a afastou, segurou seus ombros e a
olhou nos olhos deixando um sorriso no rosto. — Ei irmãzinha, assim vai me
deixar nervoso. Um ano não será nada. — Ele abaixou a voz como se isso
impedisse de ouvíssemos. — Preciso disso para poder ganhar aquela loba,
lembra? Preciso sair desse decênio como um homem maduro, muito lindo e
muito mais charmoso do que sou agora. Não se preocupe, quando se der
conta já estarei de volta para atormentar sua vida.
— E se algo der errado?
— Assim você ofende nosso pai supremo. Acha mesmo que ele
deixaria seu irmãozinho mais velho dormindo eternamente?
Diana olhou desesperada para Rael e ele balançou a cabeça com
desinteresse. — Até tinha pensado nisso filha, mas por você dou minha
palavra que em exatamente um ano Dimitri estará de volta. Nem um dia a
mais.
Dimitri olhou de torto para Rael. Ouvi a reclamação debochada. —
Sério?
Rael não manifestou reação e ele voltou os olhos para minha pequena
e sorriu largamente.
— Viu? Acabou de salvar seu irmão lindo aqui de um sono eterno.
Para meu alívio Diana riu. Dimitri sempre foi bom em lidar com a
pequena. Faria muita falta para nós nesse temerário momento.
Diana se afastou a pedido de Rael, veio até mim e enterrou a cabeça
em meu peito.
— Shshiii. Um ano vai passar rápido meu amor eu prometo.
Ela assentiu nervosa.
A indução ao sono foi ouvida por todos nós. Dimitri fechou os olhos
sereno e Rael assentiu para nós em seguida.
Peguei um dos barris de bronze que estavam lacrados e carreguei até a
cripta. Rael e irmão Odair também o fizeram. Rompemos a tampa de pele de
ovelha lacrada com resina e despejamos o conteúdo na cripta. O corpo de
Dimitri começou a ficar encoberto pela água escura.
Um tempo depois daquela imersão, Rael desobstruiu o buraco e a água
começou a sumir, logo, apenas Dimitri estava ali, molhado e dormindo
tranquilamente.
Rael pegou as runas e fez um fundo corte no peito de Dimitri. Fiquei
preocupado com a reação de Diana. Parecia um ato cruel, mas era necessário.
Por um ano a runa da sabedoria iria trabalhar em seu coração e sua mente.
Rael enterrou a runa no peito aberto e com a ponta do punhal começou
a riscar a testa de Dimitri. Diana observava atenta, não importava o quanto
estivesse nervosa, ela confiava na sabedoria do pai.
Conforme as mãos hábeis de Rael trabalhavam, um enredado desenho
foi se formando, era a runa da ascensão que faria conexão direta com a da
sabedoria. Um pouco mais de trabalho e a runa estava desenhada. O sangue
sombrio agora faria o resto.
A partir de agora e durante um ano Rael iria recitar a Dimitri trechos
importantes do livro das sombras para ajudá-lo em seu crescimento interno já
que o externo seria incentivado pelas runas e chá das cascas e raízes de
árvores específicas do bosque e outros ingredientes somente conhecido por
Rael.
Irmão Odair empurrou a tampa feita de pedra que deslizou com um
ruído fofo, logo se encaixou com um clique. Diana soltou um soluço e a
apertei em meus braços beijando o topo de sua cabeça.
Não havia mais o que fazer, o decênio de Dimitri havia começado.
Agora somente Rael teria acesso a sua mente, e somente a voz do pai
supremo seria ouvida por meu irmão mais novo durante um ano inteiro e ele
sairia dali mais maduro, mais tranquilo e menos impulsivo, a calma
característica de nossa raça seria importante a ele para conseguir chegar até a
loba Jena.
Em relacionamentos assim, um dos dois tem que ser mais calmo senão
há sofrimentos desnecessários e brigas sem motivos e isso apenas fere o
outro, e um sombrio tem que proteger quem ama e aceitar a personalidade da
companheira, por isso, era realmente de suma importância para Dimitri esse
sono, porém para minha pequena, seria um ano complicado.
Sem se despedir

Jena

Chutei a cadeira que por azar estava na minha frente me atrapalhando


para entrar na minha morada, realmente eu tinha que dar um jeito nessas
porcarias para que parassem de me estorvar a todo o momento. A casa já
estava ficando pequena para tantos objetos inúteis. Mas eu tinha uma opção
para me livrar dessa tralha inútil. O bilhete descarado que Amélia tinha
enviado era uma boa solução.
Ela tinha pedido pouca coisa, o que eu não fosse usar, então talvez até
gostasse de receber umas... Olhei para os lados, para todas as quinquilharias
que minhas lobas traziam constantemente, gemi desconsolada imaginando
como estariam os outros cômodos... Sim, talvez umas nove carroças de
cacarecos sem utilidades para ela dar aos seus pobres, sim isso me daria mais
espaço.
— Está nervosa Jena.
Minha loba rosnou. — Não me amole supremo, não vê que estou
ocupada com tarefas domésticas? Saia já da minha mente, quem te chamou
seu sarnento intrometido!
Ouvi sua maldita risada debochada. — Hum... Vai botar fogo nas
tranqueiras?
— Não enche Laican. Estou tentando me distrair aqui.
— Quer morder é? Vamos lá! Confesse, está nervosa.
— E porque eu estaria?
— Não banque a durona, Jena. Hoje é o dia do decênio do morcego
caçula dos príncipes e você está com os nervos em frangalhos por conta
disso.
Levantei os ombros. — E dai? Mesmo que eu estivesse, é uma
cerimônia sombria e eu sou uma Lican.
Laican ficou em silêncio por um tempo, logo novamente a voz se fez
ouvir. — Jena, vá correr com sua loba. Vai fazer bem para você e para ela,
estão precisando.
Soltei um suspiro e abri meu coração já que Laican sabia o que se
passava nele mesmo.
— Ele não veio se despedir supremo, não apareceu nem mesmo na
fronteira, não... Ele apenas dormiu, aquele maldito morcego que fede a
ferrugem simplesmente... Dormiu!
— Hum... Aumentando os adjetivos Jena? Sabe que te conheço.
Quanto mais você xinga mais você gosta.
Desaforadamente não respondi. Laican era um intrometido isso sim.
Ouvi novamente a voz.
— Talvez ele esteja respeitando seu pedido, você pediu tempo, não
foi?
Mordi a carne da bochecha. O ruim de conversar com Laican é que
não se podia esconder nada dele.
— Mas falei aquilo na hora da raiva. Eu realmente… Gostaria de ter
me despedido daquele morcego pateta.
— Cuidado com o que pede a um sombrio Jena. Se derem a palavra,
eles cumprem. Dimitri prometeu te dar tempo?
Suspirei. — Prometeu.
— Então não estranhe essa ausência. Você pediu…
Sentei na cadeira e escondi o rosto com as mãos, acabei por fazer uma
nota mental de não mandar para Amélia junto com as outras quinquilharias a
cadeira. Não era tão inútil assim.
— Cadeira?
— Saia da minha mente Laican, vá para o diabo!
— Para ir para o diabo tenho que chegar até você sua loba de gênio
ruim.
Ainda o ouvi antes de ele fechar a mente para mim, acabei rindo por
pura empatia ao som da risada.
Laican era mesmo forte, eu apenas com a falta de despedida já estava
a me roer por dentro, não consegui imaginar ele com sua dor.
Até poderia, mas sempre respeitei essa parte obscura de sua mente, a
dor dele era sentida por todos, mesmo que não ousássemos navegar por seus
pensamentos mais profundos, somente conhecíamos os pensamentos que ele
não fazia questão de esconder, porque Laican tinha uma porta trancada, uma
que ele não permitia a nenhum de nós abrirmos e sondar. Ele tinha segredos e
respeitávamos isso, no mais, todo o resto era aberto e sabíamos tudo o que ele
sentia.
Para quem o via rindo o tempo todo pensaria até que ele tinha uma
vida amorosa melhor que a minha.
Contudo o conhecendo como conheço, sei que essa calma esconde
uma decisão.
Buscar Celina na data que a mãe dela prometeu. E pela mãe terra que
ela entregue a companheira dele nesse dia por bem, porque se for por mal vai
dar merda, as matilhas insistirão em acompanhar seu supremo Alfa e vingar a
afronta.
Então as coisas não irão ficar boas para os humanos. Eu não queria
confronto, até gostava desse rei Tiago. Também de Amélia e seu pai André.
Laican é honrado e justo, porém cruel e sanguinário na mesma
proporção.
Se a mãe do rei humano não cumprir com a palavra não sei o que vai
acontecer, a única coisa certa para mim é que vou até os confins do mundo a
mando dele porque ele é meu Alfa, meu supremo Alfa e para mim a palavra
dele é a única lei que respeito.
Deixei a loba livre e sai pela porta aberta. Sim gostava de alguns
humanos. Se realmente precisássemos atacar para conquistar, André e sua
filha teriam a vida garantida, mesmo que todo resto daquele reino não.
Desabafo

Amélia

Depois de pensar muito sobre o que aconteceu, cheguei a única


conclusão de que aquele beijo foi uma fuga e uma maneira de me distrair já
que ele não sabia o que me responder. Eu podia ter negado até mesmo virado
o rosto, mas não consegui, e sei que jamais conseguiria fazer isso, Tiago tem
um poder sobre mim que eu não consigo entender.
Sua boca parecia uma chama me seduzindo e segui hipnotizada para
essa luz mesmo sabendo que ia me queimar.
Meus lábios pareciam diferentes agora, o gosto de Tiago parecia fazer
parte de mim, ele era tão intenso que não me beijou simplesmente, mas
marcou minha boca como se declarasse posse sobre ela.
O resultado disso foi que passei a noite toda tentando em vão dormir,
nem sei quando ele saiu da minha porta. Na manhã seguinte parti cedinho
para o reino sombrio.
Já faz uma semana desde que cheguei. O senhor Dimitri já dorme e eu
não pude participar da cerimônia, pois era algo familiar então somente meu
pai teve esse direito por ser filho de sangue do terceiro.
Aproveitei esse tempo para visitar a vila onde morei quase toda minha
vida, queria rever os amigos e saber das novidades.
O senhor Odair com seu exótico cabelo dourado emoldurando seu
rosto bonito que combinava com seu olhar cor de avelã, assentiu para mim
com um sorriso singelo quando me viu, sumiu em seguida para fazer a ronda.
Para mim foi uma honra rever o sombrio que ajudei a velar o sono por
tanto tempo, mas ele dentre tantos era um dos poucos que o senhor Rael vivia
a acordar quando era necessário, então conosco, os moradores de sua vila, ele
teve mais contato que os sombrios de outras vilas, por isso ele teve tempo de
me tomar sobre sua tutela.
Ele tinha sintonia com o senhor Rael, acreditávamos que ele devia ser
versado em alguma arte botica ou mesmo alquímica, por isso era sempre
chamado, e também não se podia negar sua semelhança com o pai supremo
dos príncipes, talvez fosse parente, nunca soubemos qual o real vínculo dele
com os príncipes e vivíamos curiosos para descobrir, pelo menos os
moradores de sua vila em noites de fogueira viviam a tocar nesse assunto.
Passar essa semana no reino sombrio foi bom para acalmar a minha
alma inquieta, ver que os campos estavam quase prontos para a colheita me
deu novo ânimo, pois logo as famílias começariam a manufatura de algodão,
o armazenamento de grãos e descaroçamento das frutas, sem contar que
finalmente ouvi a notícia que as oficinas seriam abertas, fiquei feliz pelos
moradores, pois vivi toda uma vida aqui e nunca vi isso acontecer, sempre
esperei por esse momento tão ansiosa quanto todos.
Claro que não haveria vendas dos produtos, não entre os moradores,
talvez entre os senhores sombrios das vilas e outras raças, mas entre os
moradores não havia necessidade de comércio, nunca nos faltou nada, sem
contar que era uma regra que todos aceitamos quando viemos morar no reino
sombrio, mas os planos eram de mudanças, lençóis novos, cobertores
quentinhos, e compotas de doces para o inverno quando o açúcar é mais
pedido por nosso corpo.
Mas isso agora era um passado do qual eu sentia saudades, no mais, eu
queria poder fazer isso com aquelas pessoas da prisão, poder ver no olhar
deles essa mesma alegria pela fartura da colheita, os sorrisos pelas conquistas
de uma vida melhor onde nunca se ficaria rico, porém nunca faltaria
alimento, segurança e alguém para cuidar de sua saúde.
Era isso o que eu queria, poder adotar os órfãos do tratado assim como
os sombrios adotaram os humanos quando estes foram exilados para fora das
muralhas na época do tirano rei Júlio e assim como nas vilas sombrias, o
povo da prisão poderão aprender que quando somarem suas forças,
conseguirão viver de verdade e não somente, sobreviver.
Foi boa essa semana com eles, mas apesar da saudade que sentia
daqui, agora só preciso conversar com Diana um pouco e depois irei para
casa, está na hora de cumprir o que havia dito a Marcos.
— Amélia?
Me virei e abracei a dona daquela querida voz que esperei a semana
toda para ouvir.
— Está mais calma Diana? Não pude falar com você desde a
cerimônia, me falaram que estava indisposta.
Ela correspondeu o abraço e me olhou de maneira afetuosa.
— Hoje me sinto melhor, estava difícil aceitar sobre o decênio, mas
um ano passa rápido, agora só resta esperar ele acordar.
Assenti sem saber muito bem o que dizer, não conseguia imaginar o
que ela estava sentindo, apesar de ela sorrir eu via que ela não estava bem,
mas eu a conhecia bem para saber que ela não queria falar do assunto e ia
respeitar isso. Já Diana, como sempre, parecia saber das coisas, apertou os
olhos claros para mim.
— Pode me contar o que está acontecendo, você não é assim triste. O
que há?
Senti imenso alívio por ela perguntar, tudo o que eu precisava agora
era uma amiga para desabafar. Segurei sua mão e a puxei comigo para o
quarto. Eram dois e o meu era pequeno e aconchegante. Sentei na cama e ela
sentou ao meu lado me olhando atenta e preocupada.
Olhei para meus dedos tentando organizar as ideias para saber por
onde começar. — Primeiro quero agradecer pela casa, obrigada pela
dedicação.
— Sempre vai ter essa casa para acolher você e André. — Ela cerrou
os olhos, sabendo que eu estava enrolando. — Mas vamos lá, me conte, já
conheço esses rodeios, pode ir ao ponto.
Suspirei, não dava para ficar guardando isso para mim, com meu pai
não precisava palavras, mas eu sentia essa necessidade de falar, de sentir
minha língua trabalhando as palavras, quem sabe expondo abertamente esse
sentimento, não doesse tanto como agora, eu só saberia depois de conversar
francamente.
— Diana, tenho que me abrir com você. — Fiz um biquinho sentindo
a bochecha amornar. — Tem paciência para ouvir as lamúrias de uma amiga?
Ele sorriu e deitou na cama. — Não irei a lugar nenhum até que me
conte tudo.
— Posso incluir planos malucos e ideias mirabolantes sem
julgamentos?
Ela riu alegre. — Eu julgar ideias mirabolantes? Até parece... Tem
meu total apoio.
Mais aliviada pela resposta receptível eu comecei da parte mais
importante. — Tiago me beijou.
Os olhos dela se arregalaram. — Está brincando?
Neguei e ela ficou eufórica, mas sua alegria morreu ao ver minha cara.
— E porque parece triste com isso?
— Diana, meu pai é do conselho, acha que eu não sei o que acontece
lá? A pressão que Tiago recebe?
Diana assentiu. — Também já ouvimos alguns rumores sobre isso. —
Ela me encarou compreensiva. — Me coloco em seu lugar e nem consigo
imaginar a confusão que está na sua cabeça agora Amélia. Queria poder te
dizer para enfrentar tudo e que Tiago devia fazer o mesmo. Mas apesar de
querer muito ver vocês dois juntos, eu sei que isso traria perigo para você, e
para ele pode acontecer até... O pior.
Assenti com o nariz ardendo, apesar de já saber, era duro ouvir, ainda
mais de Diana, pois ela nunca me diria isso se realmente não fosse uma
verdade.
Por fim com um suspiro decidi deixar isso de lado, ficar remoendo
algo impossível era bobagem, então contei sobre minha última briga com
Tiago, detalhes sobre o bairro dos escravos, contei sobre minha ideia para o
lugar e como ela foi entranhando na minha mente a cada passo que eu dava
naquela antiga prisão dos leviatãs. Por fim falei sobre o pedido que fiz a
Tiago e sobre o resto.
— Ele não quis te ceder o lugar?
Neguei. — Eu disse a ele para fazer como fez com o prédio da
sacerdotisa, mas ele me tratou como uma tola e nem me deu tanta atenção. O
que custava me dar a chance de ajudá-lo? Aquele lugar estava abandonado,
tanto fazia para ele se eu ficasse responsável ou não.
Diana assentiu. — Porque não explicou isso para ele?
— Queria que ele me desse um voto de confiança Diana, sei lá… Que
ele me desse um prazo para teste, que me dissesse…
Deixei o corpo ereto e fiz pose com as mãos imitando a voz grossa
dele ao continuar. — Amélia, vou dar três meses de prazo para que me
mostre algo de concreto e pelo amor de Deus mulher! Depois disso, não
insista mais nessa bobagem!
Diana riu com vontade e acabei rindo junto. — Você imitou Tiago
certinho Amélia e seria assim mesmo que ele diria.
Eu ri e depois apertei os lábios em dúvida. — Acha que eu pedi
muito?
Ela pensou por um momento e logo balançou a cabeça.
— Claro que não, ele nem ia usar aquele lugar e se você tem ideias
para ajudar aquelas pessoas não custaria nada ele te incentivar e até te ajudar,
afinal, pelo que você contou as pessoas lá precisam de ajuda então, porque
não?
Levantei os braços dando graças por ela me apoiar. — Vê? É isso que
pensei!
Diana mudou o semblante, estava confusa. — Mas... Porque você
queria ficar responsável pelo lugar Amélia se já tem gente morando lá?
— Porque só assim eu conseguiria algo, tendo a responsabilidade do
lugar os moradores de lá iriam me ouvir, principalmente os mais arraigados
nos códigos antigos do tratado, e a parte mais importante, os moradores da
vila Nova não iriam poder interferir porque eu sempre poderia lembrar a eles
que tenho o apoio do rei.
Soltei o ar desanimada, me sentindo com mais sonhos do que
possibilidades. — Sou mulher Diana, infelizmente hoje digo isso com
tristeza, pois me sinto pequena e fraca diante de qualquer obstáculo.
Aqui isso nunca foi problema, mas no reino Humanis os obstáculos se
tornam imensos para uma mulher. Sem o apoio de Tiago me passando
oficialmente um papel onde me deixa responsável, nada do que eu disser ou
tentar será aceito.
Diana assentiu pensativa. — Tem razão, precisa de algo concreto para
ganhar alguma autoridade e poder por em prática suas ideias, qualquer um de
qualquer casta além dos escravos libertos podem aparecer lá e estragar tudo.
Ela tinha razão, gostava tanto de conversar com Diana, ela sabia
interpretar minhas dúvidas e pensava como eu, e nessas horas até queria que
ela morasse no reino humano, seríamos ótimas parceiras de luta.
Ela voltou a parecer com dúvidas. — Se por ventura Tiago cedesse
aquele lugar, como pretendia ajudar aquele povo?
— Pretendo ainda, não vou largar o osso com tanta facilidade, vou
ajudá-los e se não tenho o apoio dele por livre e espontânea vontade, ele vai
me ajudar nem que seja a força.
Ela riu e eu também, claro que era apenas uma força de expressão já
que Tiago era bem fortão e eu bem... Braços finos e pouca altura, nunca ia
conseguir usar de força.
— Acredite em mim minha amiga, eu terei o apoio do rei e vou
angariar recursos para ajudar aquele povo.
Diana sorriu de modo conspiratório. — Então, e como pretende isso?
Agora um enorme sorriso me rasgou a face. — Diplomacia.
Ela ficou ainda mais confusa. — Com quem?
Pisquei inocente já me preparando para o modo pidonho. — Primeiro
pedir ajuda a Jena e a você também, claro.
Ela apertou os olhos para mim. — Sua diplomacia é pedir dinheiro?
Dei meu melhor sorriso. — Não falei dinheiro... Mas... Claro que sim!
Você tem um companheiro com muita riqueza e com certeza ele não ia te
negar algo se pedisse. Jena tem uma enorme riqueza também e tudo o que faz
é caçar, andar pelada e tomar banho de rio. Aliás, mandei um uma mensagem
a ela assim que peguei a estrada. Um sombrio que estava na ronda
gentilmente entregou aos lobos, a resposta chegou ontem. — Sorri
empolgada antes de terminar. — Nove carroças, ela respondeu no bilhete.
Olhei para ela esperançosa. — E você Diana o que vai me dar?
Ela me olhava perplexa. — Nove carroças de ouro? Acho que Nicolae
não vai me dar isso tudo, talvez…
Ri com gosto, como era bobinha essa minha amiga. — É claro que não
né! Nove carroças de coisas que ela acha inútil, você sabe, coisas daquela
casa que ela tem e não usa.
Diana bateu a mão na testa. — Ah! Entendi. Você falou riqueza então
pensei que queria ouro. Até tentei imaginar uma quantia para pedir a Nicolae,
mas nove carroças... me assustou, já me enfiei em uma bem boa com isso de
dinheiro no passado, lembra?
Eu ri e assenti, meu pai tinha me contado as artes de Diana quando
ainda estava em sua própria luta e uma delas foi sequestrar a rainha e a
princesa subornando o cocheiro com uma quantia tão alta que até agora
somente a menção da palavra suborno nos fazia rir.
— Não precisa ser dinheiro Diana, qualquer coisa que puder me dar eu
quero, eles precisam de tudo, os coitados não tem nada. Pode ser qualquer
coisa, mantimentos, roupas, sementes. — Olhei de viés para ela. —
Dinheiro...
Diana riu. — Você é muito cara de pau, Amélia.
Revirei os olhos. — Eu sei, por isso que tenho certeza que posso
ajudar aquele povo, só preciso que Tiago acredite em mim e para isso preciso
mostrar alguma coisa de concreto. Preciso que as coisas aconteçam!
— E como faria para ir lá todos os dias? O território dos leviatãs é
longe, depois da vila nova, me lembro de Tiago dizer que essa vila era longe.
Levantei os ombros e não olhei em seus olhos. — Não faria, vou
morar lá.
Diana arregalou os olhos. — Vai dormir onde?
— Tem uma cabana lá até jeitosinha.
Ela apertou os olhos mostrando sua desconfiança e soltei um suspiro.
— Tá! É mentira. A cabana é horrível. As paredes são de galhos e só
um lado que é feito de barro, o teto é todo esburacado e não há nada dentro
além de cobertas e algumas vasilhas com água. Acredito que é deixado para
os idosos já que a caverna é para uso das mulheres. De todo modo, eu posso
ficar na caverna com elas, porque não?
Diana tinha sentado na cama me olhando preocupada, e essa tensão
destacou mais as olheiras em seu rosto.
Segurei sua mão não conseguindo me conter. — Você está tão abatida
minha amiga. Certeza que está bem?
Ela assentiu. — Não é nada, só ando com os nervos descontrolados
esses dias. Sinto tudo com mais intensidade. Acho que me afetou mais do que
admito o decênio de Dimitri. Mas deixa isso, logo fico melhor, é só me
acostumar com ausência dele. Agora quero saber de você. André sabe sobre
essa sua ideia?
Apertei os lábios, receosa de ouvir um sermão. — Vou contar para ele
hoje.
Diana balançou a cabeça. — Ele vai ficar muito preocupado Amélia. E
acho que Tiago não vai aceitar isso tão facilmente, reparou que agora que ele
não tem mais a influência do pai, ele deixou o mau gênio aparecer?
Diana sorriu lembrando. — Na verdade ele já era assim quando nos
conhecemos. Tanto que cheguei até a lhe dar um tapa uma vez. Quando ele
está bravo ele fala as coisas sem pensar e acho que quando souber o que
pretende não vai segurar aquela língua.
Abaixei a cabeça chateada. — Reparei nisso, fiquei realmente
magoada com ele.
Diana apertou minha mão. — Olhe, não o culpe. Tente entendê-lo. Ele
se preocupa e não sabe lidar com você. Se ele falou algo, foi na hora da raiva.
Não respondi, não fiquei tão convencida assim, Tiago por vezes
passava dos limites.
Diana levantou e colocou a mão na cintura em modo decidido. — Está
bem, mude essa cara. Vou te ajudar como o que conseguir Amélia. Acredito
que pode dar certo e meu lado humano quer ver acontecer. E essa sua ideia de
se mudar também não é ruim. Você estando lá no território dos Leviatãs, irá
aproximar Tiago do povo, pois você e eu sabemos que ele não irá deixar de te
visitar. Quero ficar a par de tudo hein.
Contente por ela me entender tão bem a puxei para um abraço gentil já
que ela parecia que ia quebrar com um assopro.
— Não deixarei passar uma vírgula prometo. Vou fazer de tudo para
aquele rei idiota ser amado pelo menos entre os mais humildes.
Diana assentiu sorrindo. — É lá que está a força, resta Tiago descobrir
isso também.
Compreensão paterna

André

Quando elas saíram da casa, aproveitei para me despedir, e vendo a


aparência ainda mais abatida da menina Diana eu entendi porque Nicolae me
parecia preocupado e até um pouco distraído, algo estava acontecendo, e eu já
não tinha mais dúvidas sobre isso.
Talvez o decênio de Dimitri também o tivesse afetado ou o sofrimento
de Diana o estivesse deixando preocupado. De todo modo, eu vi preocupação
no olhar dele, e só pude lhe fazer votos silenciosos de que tudo ficaria bem,
pois era isso o que eu queria para os reservados sombrios, paz finalmente.
Amélia também andava abatida desde que chegou. Um mal de ter
personalidade forte é que as pessoas a sua volta não compreendem e por mais
que ela não admitisse, estava sofrendo por não ser compreendida.
Mas não era só isso que deixava meu coração paterno inquieto, apesar
de incomodá-la por vezes os olhares de torto dos outros, ela quase nunca se
entregava a apatia, nunca se importava com o que pensavam dela, nem
mesmo com os julgamentos, mas alguma coisa havia acontecido e foi algo
que abalou o humor de minha filha.
Infelizmente eu andava mais distante, pois sem saber Amélia tinha me
direcionado para um acontecimento que até então não havíamos percebido. O
sumiço de mulheres grávidas, eu tinha cumprido minha promessa a ela de
procurar a tal moça grávida chamada Jaci e as respostas que obtive me deixou
abalado.
Todos os garotos de recados sempre vendiam também informações, e
eu paguei a todos que encontrei, e a resposta sobre a moça grávida foi sempre
parecida.
Ela foi levada, e muitas outras também tinham sumido, e isso aflorou
meu instinto de que algo estava acontecendo na penumbra do reino, no
entanto agora Amélia precisava de mim, seu olhar triste e apagado me dizia
isso.
Antes de entrar na carruagem meus olhos encontraram os de Priana, os
olhos cor de azeviche estavam fixos em mim.
Ela não desviou o olhar, o sustentou e eu soube o que aqueles olhos
queriam me dizer, era um pedido para que eu esperasse por ela e claro que eu
ia esperar, aliás, iria contar os minutos para poder vê-la novamente, tocá-la e
não permitir que saísse de meus braços por um bom tempo, pois eu estava
com saudades de minha companheira.
Mas agora... Precisava cuidar de Amélia, que mesmo não admitindo,
precisava de um colo paterno. E eu nunca negaria isso a ela, pois já a tinha
privado disso desde os nove anos e para mim ela seria minha eterna
menininha.
Conversa franca

Amélia

Acenei para uma Diana com olheiras, pálida e ainda assim,


sustentando um adorável sorriso.
Mau pai sentou ao meu lado, seus olhos azuis me perscrutando
curiosamente, ele sabia que algo havia acontecido, por isso tentei evitá-lo,
mas ele manteve esse olhar preocupado todo o tempo que ficamos no reino
sombrio.
Não o encarei, mantive meu olhar na janelinha e fiquei observando os
sombrios que corriam pela floresta, nos escoltando até a fronteira.
Priana estava na parte visível, corria veloz e concentrada a frente,
deixar escapar um sorriso com ternura ao olhar para a mulher que deixava
meu pai parecendo um adolescente envergonhado. Os dois não escondiam
muito bem o sentimento deles, ou não queriam esconder, pois os peguei
várias vezes com os dedos entrelaçados enquanto ficavam ora em total
silêncio, ora trocando uma conversa baixa e tranquila.
Senti a mão pesada em meu ombro. — Se tiver algo para me dizer
Amélia, por favor, filha, comece logo.
Não tinha jeito, eu precisava ter essa conversa com ele, deixei meus
ombros caírem, não tinha ideia de como ele reagiria e para somar a tudo
ainda teria um rei para enfrentar em seguida. Assoprei o ar tentando ganhar
tempo.
— Sou tão transparente assim?
Olhei para ele esperando resposta e ele assentiu completamente sério.
— Você não consegue disfarçar, está triste e ansiosa também. Brigou com
Tiago?
Desviei os olhos para meus dedos dando um tempo para que eles
secassem, odiava parecer chorona ou mesmo mostrar sofrimento ao meu pai,
ele sofria comigo sempre e isso não era justo, ele já tinha problemas demais a
lidar e eu não queria engrossar essa lista.
Mas conversar com Diana era diferente, com meu pai era mais
emocional, o olhar protetor dele me deixava sem forças para ser adulta, ou
mostrar fibra diante dos problemas. Olhar paternal para uma criança que
precisa de ajuda, era assim que eu me sentia, na verdade meu coração carecia
desse olhar de amor incondicional.
— É mais complicado que isso, eu fui investigar sobre o lugar que
Marcos ficava.
Ele segurou meu queixo e me fez encará-lo. Seus olhos azuis escuros
estavam brilhantes, ele estava furioso, mas quando falou sua voz saiu baixa e
calma. Controle era o nome do meio do general André.
— Não devia ter feito isso, se queria conhecer o lugar eu teria te
mostrado.
— Aquele dia na taverna você disfarçou quando perguntei. Aliás,
escondeu a existência desse novo bairro que está se formando, poderia ter me
falado daquele lugar sem que eu precisasse descobrir por conta.
André manteve o olhar firme. — Não falei porque a conheço, esse seu
lado altruísta e essa sua gana de mudar o mundo me preocupa Amélia. Eu
até… — Suspirou e olhou para mim. — Me diga o que achou do lugar.
Balancei a cabeça com pena das lembranças que vinha a mente. —
Não sei dizer, é horrível, um ser humano não pode viver naquelas condições.
Vi crianças comendo animais crus, mulheres grávidas sem um local para parir
seus filhos ou se abrigarem do sereno. Desnutridos, pelos antigos como tem
desnutridos naquele lugar.
Virei no banco e fiquei de frente para ele, a euforia da esperança de
que minhas ideias ajudasse aquele povo novamente tomando conta de mim e
me animando, ainda assim não podia deixar de perguntar.
— Porque não pensaram nas consequências? Não podiam ter
planejado melhor as coisas? Poderiam ter criado estratégias para diminuir as
sequelas das mudanças no tratado, pai. Aquilo lá é um deposito para pessoas
desesperançadas.
Ele estalou a boca deixando uma sombra entristecer seus olhos e logo
assentiu concordando. — Tiago foi alertado, mas naquele momento ele
queria aproveitar o pós-guerra, de certa forma ele estava correto em começar
logo essas mudanças.
— Mas pai, está um caos, furtos acontecem a todo o momento, miséria
extrema, até mesmo a casta três que antes conseguia prover pelo menos o
básico estão sofrendo.
Estão sendo atacados quase todos na rua que carreguem sacolas de
comida, os alimentos subiram tanto o preço que está deixando muitos da
casta dois sem chance de se manter, tudo porque os agricultores das fazendas
externas alegam que precisaram subir os preços para cobrir os novos gastos
com a mão de obra. A carne se tornou ainda mais cara e já era um luxo para
poucos. A casta dois e três virou um bando de mercenários que andam
aceitando qualquer miséria para fazer os trabalhos desvalorizando assim toda
a mão de obra ociosa e ainda tirando a chance dos libertos de conseguirem
sustento.
André fechou os olhos e recostou no banco. — Eu sei filha.
Investiguei a situação, é pior do que parece, e acredito que não vai melhorar
tão cedo.
Senti o frio costumeiro no estômago, um receio que sempre me
acompanhava quando via a preocupação de meu pai. — Acha que Tiago
corre perigo?
Ele assentiu e eu prendi a respiração, aquele olhar me dizia que ele
sabia mais do que estava disposto a contar.
— Vou saber do que se trata?
Ele negou. — Preciso te manter longe disso Amélia, longe dessa corja,
desses anarquistas que andam confabulando. Não é segredo para ninguém
que o rei nutre sentimentos por você, e isso pode ser perigoso para sua
segurança.
Senti as borboletas passearem, minha chance… — Eu vou ficar com
os renegados da nova vila. Vou morar com eles.
Apertei os lábios e baixei o olhar quando meu pai me fitou insondável.
Aguardei o momento de sua explosão, os gritos de que sou tola, mas ao
contrário disso nenhum som saiu e levantei os olhos buscando seu rosto, para
minha surpresa ele pareceu realmente refletir por um momento.
— Como fará isso? Lá não tem uma casa sequer, não há poço
escavado e nem sabemos se há alguma nascente naquela floresta que seja
perto o suficiente para que possam fazer a vala.
A emoção me tomou, ele não disse que ia aceitar minha decisão,
entretanto não rechaçou a ideia e meu pai sequer imaginava que dialogar
comigo e expor os contras da minha ideia sem me forçar seus argumentos
goela abaixo, me fazia querer abraçá-lo.
Respirei fundo para conter a emoção, ele estava me tratando com
respeito, não explodiu comigo, não me olhou como se eu fosse uma tola
sonhadora.
Basicamente meu pai estava ministrando uma cura para meu coração
partido, eu só precisava disso, de apoio mesmo que fosse verbal e ele estava
me dando isso. Orgulho desse homem a minha frente me inflou o peito. Antes
de falar segurei sua mão e ele apertou com um sorriso terno.
— Pensei na possibilidade de água, a floresta dos leviatãs segundo
Marcos tem quase a metade do tamanho do reino Humanis. O muro de pedras
que cerca todo o território nos manterá protegidos.
Ele me ouvia com atenção e continuei ainda mais empolgada.
— A floresta é enorme pai, encontraremos água e ainda se
conseguirmos algumas ferramentas, as árvores podem ser usadas para
construir casas, barracões e oficinas.
Ele assentiu pensativo. — Poderia arrumar isso.
O abracei completamente tomada de alegria e esperanças.
— Obrigada por me ouvir, por me dar pelo menos algum crédito. —
Abaixei a voz para esconder minha mágoa. — E por não dizer que por ser
mulher não posso sonhar.
Ele se afastou e me encarou. — Então é isso, esses olhos sem brilho e
cheios de tristeza... Tiago foi ignorante de novo.
Soltei um soluço. — Não o entendo pai. O que adiantou dar direitos
iguais às mulheres no papel sendo que na prática age como se somente os
homens tivessem inteligência?
Como se as mulheres não tivessem raciocínio ou não tivessem a
capacidade de ter boas ideias, ou mesmo... — Revirei os olhos e sibilei —...
Qualquer ideia.
Limpei as lágrimas com raiva, agora que tinha começado a falar ia
desabafar tudo, quem sabe assim essa mágoa passasse.
— Tiago tirou o poder dos homens de decidir sobre a vida das
mulheres é verdade, mas a mim ele trata como se eu fosse uma senil. Sinto
como se eu fosse a única mulher ainda obrigada a seguir as antigas leis, não
sei como as mulheres se sentiam ao serem tratadas assim, mas me sinto
horrível, é como se minha vida não fosse minha. Estou afogada em
sentimentos aflitivos de que estou fazendo a coisa errada quando sei que não
é, tudo porque Tiago me trata como se eu fosse uma inconsequente.
Não consegui mais disfarçar minha angustia quando olhei para ele. —
Como posso estar apaixonada por um homem que vive condenando minhas
ações? Será que ele não percebe o quanto isso me magoa?
Ele segurou minha mão. — Ele está apaixonado filha, é o senso de
preocupação dele, não o culpe por isso.
Franzi o cenho tentando ganhar tempo, por alguma razão não me senti
confortável para falar do beijo, não com ele. — Então arrumarei um marido,
vou me casar só para que ele me deixe em paz!
Meu pai apertou os olhos e logo sorriu de lado. — Não vai fazer isso e
nós dois sabemos. Se você acha Tiago dominador então não sabe mesmo
como são os homens no reino humano.
Balancei a cabeça em teimosia. — Me casarei com o primeiro homem
que eu conheça que me aceite como sou.
Meu pai recostou tranquilo no banco, o sorriso suavizando seu
semblante bonito e cansado. — Então vejo que terei uma filha solteira para o
resto da vida.
Não respondi, afinal ele tinha razão, mesmo se eu quisesse não
encontraria tal homem maravilhoso e se encontrasse... Bom, não ia encontrar,
era um fato.
Nem tinha percebido, mas estávamos chegando. Fiquei olhando para o
nada, para as casas conhecidas da vila dos forasteiros.
Quando estávamos chegando, franzi o nariz contrariada e
completamente consciente do meu coração acelerado e das borboletas
fazendo uma festinha em meu estômago.
Tiago estava parado a frente de nossa casa, encostado na carruagem de
braços cruzados olhando para nosso carro que corria veloz em sua direção.
Quando descemos ele olhou diretamente para mim e por breves segundos eu
o avaliei.
Estava lindo, o vento brincava com seus cabelos escuros os fazendo
dançar em frente ao seu rosto. Usava roupas simples e isso lhe deu um
charme ainda maior, pois os contornos dos músculos do peito eram visíveis.
Não consegui me manter firme, seu olhar parecia me queimar a pele e
me chamar para ele. Apesar do meu coração acelerado gritando para o olhar
mais uma vez eu o ignorei apertando o passo ao passar por ele. Entrei pelo
portão sem olhá-lo, não poderia ceder a tentação de fazê-lo, se eu olhasse
para traz eu não ia conseguir segurar o choro.
— Amélia…
Estaquei com a mão na maçaneta, meu coração parecia retumbar
agora, o frio em minha barriga subiu por minhas costas.
Entrei e fechei a porta me encostando a ela para não cair. Mesmo
tendo uma boa espessura de madeira entre nós eu sentia sua presença, era
como se ele pudesse ver pela madeira e eu pudesse sentir seus olhos sobre
mim.
Subi correndo as escadas, não podia mais ficar ali, perto demais para
judiar do meu coração que sentia uma saudade doida dele, e a dor agora era
maior, pois eu já conhecia a sensação de estar em seus braços e sei que não
resistiria nenhuma vez se ele me beijasse, não conseguiria resistir, pois só de
saber que ele estava ali eu sentia as pernas falharem a cada degrau.
Esse homem ainda me deixaria maluca. Porque desde que cheguei ao
reino era ele… somente ele dominando meus pensamentos e afetando meu
lado racional, e isso tinha que acabar, de um jeito ou de outro eu tinha que
esquecer o rei.
Reconhecer os defeitos.

Tiago

Amélia passou por mim sem ao menos ter me dado uma chance de
explicar..., mas... explicar o quê? Ela estava com a razão, pois eu sempre
acabava estragando tudo.
E aquele beijo que achei que nos aproximaria, na verdade acabou
sendo mais um agravante. Completamente confuso sobre tudo me virei para
André que estava parado em silêncio ao meu lado.
— Sinto que estou a perdendo André, cada dia que passa eu a vejo
escapar por meus dedos. E sei que sou eu que a empurro para longe.
André assentiu sem levantar os olhos para mim, parecia contrariado.
— Acredito que sim Tiago, hoje ela tocou no assunto de se casar.
Não podia ser... Como eu ia conviver com isso? Amélia era a única
coisa que fazia refrescar minha constante frustração, por mais que
brigássemos ela estava se tornando cada dia mais importante para mim. Ouvir
isso definitivamente azedou meu humor.
— Ela vai se prender a um machista desse reino só para se livrar de
mim?
Quando finalmente André me encarou, quase me encolhi com a
intensidade daquele olhar, pela primeira vez vi reprovação paterna em seus
olhos e isso era pessoal. Ele falou baixo e o conhecendo tão bem eu tive
ainda mais certeza que ele estava muito além de bravo.
— Se ela casar com um estranho ou escolher você Tiago, não vai fazer
diferença, não é mesmo? Ela vai perder a liberdade e o respeito, virará apenas
um animal enjaulado, um animal rebelde que será domesticado e perderá sua
essência.
Arfei com aquelas duras palavras. André...
Ele continuou. — A única diferença entre você e todos os outros
homens desse reino, é que há bondade e integridade em você, tirando isso,
nada o difere dos outros, pelo menos quando se trata dela, você é igual a
todos.
Abaixei a cabeça sem saber o que responder, André estava certo, pelo
menos em todas as situações eu fiz Amélia sofrer.
— Eu tento ser diferente, mas...
— Tentar não está sendo suficiente. Minha filha precisa de um homem
que a trate com respeito e a incentive a continuar sonhando, não um que não
consegue controlar o maldito gênio forte. Não um que amputa pernas e
braços e não permite que ela desabroche, porque é isso o que você está
fazendo filho, está mantendo a mulher que ama em uma prisão sem grades.
Quando ela divide com você os sonhos, você a julga e não a incentiva,
você a subestima e isso a ofende. Se coloque no lugar dela, mesmo você
sendo o rei, todas suas ideias são subestimadas pelos conselheiros e pelos
homens das castas mais altas. Como se sente quando não acreditam que você
é capaz de realizar algo, mesmo você tendo a certeza que pode fazer isso?
Como se sente quando é desmerecido e visto como um tolo, mesmo que
esteja tentando fazer algo em prol de todos?
Meus olhos arderam, maldição... Eu nem tinha pensado sobre isso, na
verdade meu medo de Amélia ser alvo dos meus inimigos estava me cegando
e por isso eu estava a tratando como uma inconsequente sem ao menos
mostrar a ela o quanto era admirável suas ideias, porque mesmo eu achando
isso, nunca expressei com palavras, nem... Com gestos.
Era isso, a maldição do meu pai estava dentro de mim, eu tinha que
aceitar que esse sangue sujo correndo em minhas veias me fazia ser parecido
com ele mesmo que inconscientemente, pelo menos eu não seria um porco
imundo se começasse a aceitar esse fato.
— Eu... Tento, mas não sei encontrar o caminho da tolerância. Lembra
de quando ofendi Diana? As coisas horríveis que eu disse a ela somente por
causa de um ciúme bobo e quando ela reagiu me dando aquele tapa, lembra-
se das ameaças horríveis que fiz a ela?
André assentiu. — Você foi um idiota naquele dia, mas as duas são
diferentes. Apesar de tudo o que Diana passou, ela era mais gentil e tinha
gana de acreditar. Amélia tem o gênio forte, mas é mais frágil que Diana.
Ela não sabe lidar direito com o jeito dos homens desse reino, não
esqueça que ela foi criada desde pequenina no reino sombrio, em uma vila de
humanos gentis e amigos. Ela viu poucas coisas ruins, já Diana foi forjada em
meio a crueldade desse reino e lapidada com bondade no reino sombrio. Até
os quinze anos ela só viu crueldade, por isso qualquer ato diferente do cruel,
diferente do que ela lembrava do reino humano, ela via com bons olhos, via
como uma possibilidade.
André parou um pouco e me encarou, seus olhos agora pareciam
mornos e tristes. — E tem outra diferença entre Diana e Amélia, o sentimento
por você. Você falou palavras duras para Diana, mas o sentimento dela por
você não era forte o suficiente para que ela se magoasse, trocando em
miúdos, ela não estava nem aí para o que você pensava. Já Amélia é ao
contrário, por isso devia ser mais brando com as palavras, para ela irá doer
muito mais.
Tive que concordar com André e para piorar meu humor, sempre falar
disso me deixava angustiado. Ele estava certo, ela merecia mais do que um
rei estúpido e um homem ignorante como eu.
Eu queria ter tido exemplos melhores, ter nascido em outra época, por
mais que eu tentasse ser diferente dos homens que tinham atitudes que tanto
me incomodava, eu não agia diferente quando se tratava dela, eu era tão
territorial e machista quanto qualquer outro do reino, e acabei me fazendo a
pergunta pela primeira vez desde que Amélia veio morar no reino humano.
Eu ia conseguir mudar costumes de toda uma vida? Era uma pergunta
difícil, pois somente Amélia conseguiria mudar meu jeito de ser porque
somente ela me interessava não magoar, e era somente ela que eu empurrava
para longe com minhas atitudes.
Eu até entendia que não merecia Amélia, mas ninguém ia conseguir
me fazer esquecê-la, de todo modo, não queria mais ver seus olhos cheios de
lágrimas por minha causa, por isso eu ia me afastar, mas não podia deixar de
proteger e cuidar dela de longe, pelo menos isso, para que eu pudesse pelo
menos ficar tranquilo.
— Vou deixar Amélia em paz André, mas não posso prometer que
será para sempre, quando o reino for um local melhor e os perigos forem
menores, eu vou atrás dela e nem você que eu respeito como um pai, vai
conseguir me fazer ficar longe.
André sorriu. — Não espero menos que isso.
Um passo e um exemplo

Amélia

Vi o tempo passar de uma madrugada cinza para um nascer do sol


alaranjado. Dormir foi impossível, estava agitada e ansiosa.
Quando ouvi a batida na porta lá embaixo, suspirei imaginando que
era Tiago logo cedo, afinal ele sabia que hoje eu partiria para a vila dos
Renegados, e talvez tivesse vindo para me lembrar sobre os perigos para uma
mulher se enfiar em lugares assim, essa era sua ladainha de sempre.
Ouvi a batida na porta e voz do meu pai em seguida. — Você tem
visita filha. — Sem esperar minha resposta ele abriu a porta e sondou para
dentro. — E não é quem está pensando.
Franzi o cenho, se não era Tiago então quem poderia ser? Tirando
Daniel que estava longe, eu nem tinha amigos aqui, menos ainda conhecia
alguém. Mas...
Levantei de um pulo e vesti o robe, poderia finalmente ser Jaci que
decidiu aparecer, eu estava preocupada com esse sumiço dela. Abri a porta
com um sorriso de boas vindas, mas fiquei séria e na defensiva quando vi o
rosto estranho.
Era uma moça bonita, pele cor de oliva e olhos castanhos, cabelos com
cachos miúdos e cuidados. Não me parecia alguém que precisava de ajuda.
— Olá, sou Clara, da casa Machado. — Ela cumprimentou com um
bonito sorriso.
— Oi... Bem... Entre. Sou Amélia.
Nem falei esse negócio de casa não sei de onde, até porque eu teria
que dizer. Amélia, da vila do senhor Odair e realmente isso não parecia um
título.
Abri mais a porta e Clara entrou com o olhar vivo por todo canto do
quarto. Soltei o ar pelo nariz para disfarçar minha curiosidade e sentei na
cama fazendo o gesto para ela fazer o mesmo. Ela o fez e sorriu para mim.
— Fiquei sabendo que hoje você vai fazer uma loucura.
Levantei uma sobrancelha e estreitei os olhos, então Tiago mandou
uma amiga para fazer seu papel de ditador.
— Olha, não vou desistir de me mudar, irei ainda hoje e nada me fará
ficar.
Ela riu e levantou as mãos. — Não vim para isso. Temos o mesmo
menino como empregado volante. E hoje ele parecia mais apressado que o
comum depois da compra matinal. Perguntei o motivo da pressa e ele
respondeu que precisava ajudar a filha do general André a preparar a
mudança. Como eu já ouvi falar muito da rebeldia da filha dele eu perguntei
para onde você ia mudar. Tal qual minha surpresa quando ele disse que você
ia mudar para a vila dos Renegados. — Ela parou por um momento para
tomar fôlego e me olhou com os olhos brilhantes. — Eu nem sei que vila é
essa ainda, mas ele me disse que é para onde os libertos e rejeitados estão
indo, suponho que seja na vila Nova.
Assenti meio sem saber o que responder, até porque ela não me fez
nenhuma pergunta, falava rápido e fluidamente. Realmente eu estava curiosa
para saber o que realmente ela queria comigo.
— Sim, mas... Acho que é errado Tobias levar assuntos de uma
família para a outra.
Ela negou. — Fique tranquila, ele é discreto, mas confia em mim, pois
sempre o tratei bem e o ajudo então ele me tem como uma amiga.
Minha simpatia acordou ao ouvir isso, mas não podia acreditar logo de
cara, depois que ela fosse embora eu ia me informar para saber se realmente
ela ajudava o garoto.
Ela riu. — Está desconfiada, já vi que você é transparente, mas fique
tranquila, é verdade.
Essa moça estava me fazendo perder tempo. — Perguntarei a ele
assim que terminarmos essa conversa. Mas eu gostaria realmente de saber o
que quer comigo.
— Bom, vou tentar resumir, está bem?
Uma pergunta finalmente e eu não soube o que responder, então
apenas concordei com a cabeça.
Ela começou a falar agora com calma. — Eu conheci Diana quando
ela foi para o harém no cortejo do príncipe e agora rei, Tiago. Mas então
depois de sofrer alguns ataques de umas malucas ela sumiu, por fim alguns
dias depois ela reapareceu como noiva de Tiago e rolou alguns boatos que
não era por vontade própria. Só que... — A moça abaixou a cabeça. — Eu
assisti o leilão dela, vi quando o martelo foi batido ao leiloarem sua
virgindade. Vi Diana ser humilhada e vendida e não pude fazer nada na
época, pois era tão escrava quanto qualquer mulher daqui. Mas então tudo
mudou... O rei Júlio morreu, houve aquela batalha e por fim Tiago retornou
como rei.
Essa Clara estava perdida nas próprias lembranças e parecia até
aliviada de poder falar, em seus olhos havia um quê de ira contida que me
deixou empática a sua narração. Ela continuou falando.
— Meu pai foi para essa batalha, juro que rezei todo o tempo para que
ele nunca voltasse. Mas ele voltou e houve o concílio, os boatos de que as leis
seriam mudadas e os homens perderiam o poder sobre as mulheres.
Uma lágrima solitária escorreu pelo rosto dela e sem perceber peguei
sua mão e ela apertou soltando um suspiro.
— E o que aconteceu? — Perguntei agora curiosa para saber o resto.
— Meu pai ficou louco de ira, quase matou minha mãe de tanto bater.
Me espancou também, mas ela sofreu mais. Perdeu vários dentes com os
chutes, fora outras partes do corpo que se quebraram. Enfim... Ela sofreu
durante toda a reunião do rei com os líderes das outras raças.
— Minha nossa, sinto muito.
Ela sorriu. — Não sinta, porque mesmo toda ferida meu pai a forçou a
ir ao salão para ouvir o decreto. Ela seria uma das tantas esposas que foram
usadas como exemplo do que aconteceria caso mudassem as leis do Tratado.
Muitos homens fizeram isso, exibiram mulheres feridas para pressionar o rei,
para anunciar o que aconteceria a elas e a todos que os prejudicasse de
alguma forma. Imaginei que funcionaria, que o rei cederia a pressão e
desistiria, mas ele foi firme em suas convicções, entretanto não foi um rei que
leu as novas leis, tampouco um líder das outras raças. Foi Diana que o fez.
Vi a emoção vibrando naqueles olhos castanhos quando ela levantou o
olhar para mim. Apertou ainda mais a minha mão e falou com a voz
impostada pelo choro.
— Sabe o que isso significou para minha mãe? O olhar emocionado
dela ao ver que era uma moça ainda jovem que estava suprimindo as antigas
leis que a fazia sofrer constantemente o peso da mão de meu pai?
Minha mãe tinha 57 anos, viu mais coisas e sofreu mais com os
homens do que eu, ela sempre foi a oficial do meu pai, a mulher que daria a
eles os filhos. Ainda assim esse status não deu a ela paz, pois enquanto ele
desfilava com várias primeiras para negócios por ai, ela sempre ficou reclusa
em casa cuidando de tarefas e dos filhos, ainda assim, mesmo com tantas
mulheres sob o poder dele, ele nunca a deixou em paz. Sempre a procurou e a
usou. Tenho uma convicção absurda de que ele a amava de um jeito bizarro,
mas a amava, mesmo não admitindo por vergonha do que os outros iriam
dizer e ainda descontando nela com violência pelo sentimento que ele tinha.
Ela sorriu com amargura quando terminou, já eu pisquei tanto que
achei que meus cílios cairiam. Eu estava sem chão com aquela história. Não
sabia o que dizer para a moça morena com o rosto banhando em lágrimas a
minha frente. Perguntei com a voz esganiçada.
— Você tem irmãos.
Os olhos dela brilharam insondáveis. — Tive quatro, foram mortos na
batalha sombria.
Ela não me pareceu triste ao contar isso, ainda assim achei que ela
tinha sofrido bastante, mas o que ela esperava de mim ainda era um mistério.
— O que eu posso fazer por você, Clara?
Ela sorriu e enxugou o rosto. — Não quero que faça nada por mim, na
verdade vim aqui para te oferecer ajuda. Quero fazer algo, quero fazer valer
os direitos que Diana leu para todos. Minha mãe faleceu pouco depois das
mudanças das leis, mas ela morreu feliz e esperançosa, pois antes de
realmente soltar o último suspiro ela fez muitos planos, me disse que assim
que melhorasse ia embora e ia deixar meu pai na merda por conta de tudo o
que fez com ela por mais de quarenta anos. Porém ela mal teve tempo para
acostumar seu pulmão com o ar de uma vida liberta, menos ainda para se
vingar do homem que a fez sofrer toda uma vida. E agora eu quero fazer isso
por ela, Amélia.
— Não faça loucuras, é perigoso.
Ela levantou os ombros e me encarou decidida. — Não se preocupe
comigo, minha mãe era o motivo de eu aceitar a submissão, mas ela se foi e
eu não tenho mais a nada a perder. Minha vingança será ver a ira de meu pai
ao ver as mulheres que ele tanto despreza se unir os pobres que ele tanto
odeia. Quero ajudar os iguais a minha mãe, os que sofriam por conta das
antigas leis.
Voltei a apertar sua mão em um gesto mudo de agradecimento.
Com essa visita de Clara eu acabei consolidando minha paixão pelo
reino humano. Pois acabava de descobrir que sim, tinha bicho papão por todo
lado, porém existiam pessoas boas, mulheres fortes e homens com
pensamentos diferentes. O ser humano esteja ele em qual reino for, é uma
caixinha de surpresas.
Absorta e apegada a energia vigorosa dessa descoberta, eu só me dei
conta que ela ainda estava ali quando ela levantou e foi em direção a porta.
Virou-se para mim antes de sair.
— Não desista de sua luta por ninguém, minha mãe sofreu até o fim da
vida, mas nunca perdeu as esperanças de que um dia as coisas seriam
diferentes, de que finalmente as mulheres não seriam mais vistas como
animais fracos que só existem para saciar os desejos masculinos.
— Obrigada Clara.
Ela saiu e fechou a porta, e eu fiquei ali por vários minutos refletindo
sobre tudo o que ela contou, quase desacreditando que um homem seria capaz
de tanta crueldade e por tantos anos. Não consegui me colocar no lugar da
mãe de Clara. Quarenta anos... eu teria sucumbido eu sei que sim. Não sou
forte a esse ponto.
Assim que carregamos a carroça eu segui para a vila dos Renegados,
meu pai tinha saído pouco depois de Clara, mas levei tudo o que ele havia
dito que podia, ou seja, quase tudo que tinha na casa.
E mesmo eu depenando meu pobre pai, ele ainda havia me prometido
ferramentas e sementes em breve.
Também peguei o cavalo baio no pequeno estábulo atrás de casa, esse
foi cedido por Tiago para ser usado pelos soldados e claro que esse eu
também não ia devolver. Sem contar que de todos os cavalos do bairro dos
Renegados esse seria o melhor deles, então era um roubo necessário.
Eu não podia me dar ao luxo de descartar qualquer coisa, para que
algo realmente acontecesse eu iria precisar de tudo o que meu pai abrisse
mão, tudo o que Jena me enviasse e Diana conseguisse, até encontrar junto
com Marcos um meio de fazer produzir aquelas terras para garantir o sustento
daquele povo.
Senti um pouco de receio, morar naquele lugar ia ser difícil, me
habituar não seria tanto, no entanto ver aquela miséria diariamente sim, mas
também seria bom, não me deixaria esquecer o motivo de eu me mudar e o
que eu precisava fazer.
A euforia ao vislumbrar tantas possibilidades acalmava qualquer
receio. Ali estava o povo que precisava, ali estava a força para Tiago
aprendesse a enxergar aqueles miseráveis com outros olhos.
Eu estava com a cabeça pululando de planos, primeiro precisaria
encontrar água, depois...
— Vou ficar com você nesses primeiros dias.
Tive um sobressalto com a voz conhecida e inesperada, meu pai havia
emparelhado o cavalo com o meu e me encarou medindo as minhas reações
depois de me dar a notícia de supetão.
Fiquei foi preocupada em saber disso, ao contrário de mim que não
tinha nenhum compromisso, ele tinha obrigações com Tiago tanto como
conselheiro e como general do regimento.
— Pai você precisa trabalhar, não pode acompanhar minha loucura, eu
estou seguindo meu...
— Lado altruísta e sonhador, eu sei filha, mas eu estou seguindo meu
lado paterno e protetor. — Ele me olhou com uma sobrancelha levantada. —
Posso?
Eu ri e subi e desci a cabeça completamente feliz por tê-lo ao meu
lado, claro que ele podia me acompanhar, aliás, se ele dissesse que ia morar
lá comigo me faria a filha mais feliz do mundo, e então... Bem... então
seríamos mais uma família famigerada porque com certeza meu pai perderia
o posto do conselho e o cargo de general se fizesse isso. Ele continuou um
pouco menos na defensiva quando viu minha reação amistosa.
— Quero ajudar a construir uma casa pra você e ter certeza que pelo
menos o básico você terá. Tiago me dispensou por uma semana, não se
preocupe com minhas obrigações.
André pareceu ler em meu rosto o que eu pensava.
— Dê uma trégua a Tiago, não pode culpar um homem por querer
proteger o que lhe é caro, entenda o lado dele filha.
— Eu sei pai, mas na verdade nem é sobre isso que estou pensando
agora.
— É sobre a visita da filha de Pedro?
Balancei a cabeça concordando. — Ela me contou coisas horríveis,
fiquei mexida de alguma forma com isso, nunca parei para pensar como
realmente era isso aqui antes das mudanças, mas agora não paro de pensar
sobre isso, sobre as mulheres.
Contei a ele tudo o que Clara tinha me contado, ele ouviu em silencio,
mas seus olhos ficaram febris, ele sentia raiva.
— Pedro... Você sabia que quando ele está em reunião no conselho,
ele parece um cordeirinho? Achei que ele era um pouco diferente dos outros,
por fim é igual a eles, ou até pior.
— Ela me disse que vai me ajudar, mas não sei o que ela pretende,
talvez eu receba visitas dela no bairro dos Renegados.
Meu pai me olhou compreensivo. — Já vi que está preocupada com
isso, eu sei que pode ser perigoso, mas não a desmotive, ela precisa de apoio
e incentivo, as mulheres nesse reino vivem ainda sob o regime de
subserviência, se ela decidir lutar pelos direitos, você tem que encorajá-la.
Meus olhos aqueceram ao olhar para ele, como eu tinha orgulho de sua
mente aberta, e agora conhecendo a história de Clara, esse orgulho por André
ficou ainda maior. Ele nunca faria isso a minha mãe se ela ainda fosse viva,
na verdade meu pai era um sombrio completo, mesmo sendo mestiço.
— Farei o que puder para incentivá-la. — Olhei para a estrada para
evitar olhá-lo. — Pensei que era Tiago que veio logo cedo para me fazer
esquecer a ideia de me mudar. Ultimamente qualquer ação dele que tem a ver
comigo, já me deixa desconfiada. E olha que eu prometi a Diana que ia
tentar, mas você viu? Nem bem chegamos do reino sombrio e ele estava lá.
Meu pai assentiu. — Ele foi afobado e te sufocou no início, mas só o
fato de ele não estar aqui conosco hoje, já é alguma coisa não acha?
Soltei um muxoxo. — Ele só não está aqui porque ele sabe que eu não
responderia qualquer tentativa de conversa.
Meu pai me olhou de modo triste, mas não disse nada, ele sabia
alguma coisa que eu não sabia.
Acabei ficando em silêncio quando ele não respondeu, na verdade no
fundo do meu coração eu sentia falta daquele sorriso bonito do rei, de seus
olhos negros e apaixonados. Por mais que me irritasse sua constante
intromissão eu o queria por perto. A presença dele era sempre marcante fosse
pela voz grave e alta ou o jeito mal humorado com sua pouca paciência.
Na verdade eu o queria ali montado em um cavalo e seguindo ao ritmo
do nosso... Mas era pedir demais, senti um friozinho no estômago de
ansiedade e mesmo sem querer dei uma espiada para trás, esperançosa de o
ver cavalgando apressado para nos alcançar. Claro que só vi a estrada de terra
vermelha e a pequena nuvem de poeira que nossos próprios cavalos estavam
levantando ao passar.
Senti um peso enorme sobre o peito, uma estranha falta do rei.
Realmente ele não ia aparecer.
Mas em uma parte era bom, a presença de Tiago poderia me fazer
perder o foco, sempre acontecia, eu ficava distraída e também retraída perto
dele e agora que eu nem sabia o que ia fazer ou como ia ser esse início, eu
precisava de foco.
— Você o ama Amélia, mais do que admite, mais do que seu próprio
orgulho, eu vejo filha.
Sorri sem nenhum pudor de admitir isso ao meu pai. — Amo e não
nego isso, pelo menos para você.
Ele riu. — Ele vai acabar te apoiando, vai ver.
André o conhecia melhor do que eu, isso me deu esperança que fosse
verdade. — Um dia quem sabe ele entenda que enquanto tiver poucos aliados
da própria raça, os de casta mais alta sempre atentarão contra sua coroa, e se
Tiago cair, as regras antigas do tratado serão resgatadas e então a liberdade
dos escravos e mulheres serão tiradas novamente.
André assentiu. — Está certa, foi eu que te ensinei como as coisas
funcionam por aqui e admiro sua garra, mas não se preocupe, Tiago não será
mais um problema para você.
Murchei no cavalo, não precisava explicar nada, a voz firme e olhar
bravo de meu pai mostrava que ele tinha tido uma conversa severa com Tiago
e isso só dizia uma coisa, ele não mais correria atrás de mim. Senti as
correntes saírem de meus pulsos e enrolarem em meu coração apertando tanto
que me senti quase sufocar.
Então Tiago decidiu desistir de mim ao invés de tentar me aceitar
como sou, desistiu de trabalhar junto comigo ao invés de ficar sempre contra
mim mesmo quando meus atos não estavam atentando sua coroa.
Comecei a refletir sobre o que eu falei sobre casar, quase ri ao pensar
nisso, pois se Tiago que era o melhor homem depois de meu pai nesse reino
não conseguiu mudar nem um pouquinho por mim, então nenhum outro o
faria.
Meu pai tocou meu braço. — As coisas serão diferentes a partir de
agora, eu prometo.
Assenti não muito feliz, eu não queria Tiago longe, na verdade eu o
queria mais perto possível de mim, mas não assim, não com essa mania dele
de nunca, nunca me ouvir.
Eu só queria... Que ele me apoiasse em alguma ideia sem antes me dar
um sermão, que ele me dissesse somente uma vez que fosse. “Estou com
você Amélia, vou te apoiar no que for preciso, vamos conseguir juntos”. Mas
era apenas um sonho de uma romântica apaixonada. Romântica? Então
realmente Jena, Diana e meu pai estavam certos?
Por fim eu estava apenas amargando algo que era necessário para que
finalmente o rei tivesse paz para governar. Nós dois precisávamos nos
distanciar e de nada adiantava eu querer alguma coisa quando todos queriam
outra.
— Obrigada pai.
Assim que passamos pelo portão vimos uma casa de madeira
enfeitando uma parte limpa da floresta, mas sombreada por várias árvores.
Estava distante do portão o suficiente para ficar segura.
Meu pai riu parecendo realmente aliviado e até orgulhoso ao ver a
casinha quase terminada. — Ele não podia ficar sem se intrometer, não é
mesmo? Ser intrometido faz parte do rei Tiago.
Acabei sorrindo largamente, a casa era simples e linda, minha... Ele...
Fez para mim... Mesmo depois de dizer todas as aquelas coisas, ele mandou
fazer para mim. De um jeito esquisito era um apoio dele, uma maneira torta
de me dizer que se não podia comigo ia apoiar minha luta.
Aceleramos o trote, e quando chegamos entrei afobada mal
acreditando que uma casa poderia ser levantada em uma semana. Não tinha
móveis, apenas uma mesa e em cima dela, um papel com o selo real.
Meus olhos marejaram, era o papel me deixando como curadora da
prisão, como responsável por aquele lugar, ao ver a letra de Tiago, a
assinatura elegante no fim da folha eu me senti abraçada por ele, senti todo o
amor dele naquele gesto e tapei a boca para não chorar.
Tiago de Bale...
Como não amar esse homem que conseguia ser idiota e encantador ao
mesmo tempo? Como esquecer alguém que por mais erros que cometesse,
sempre tocava fundo meu coração me fazendo cair de amores dia após dia?
Um homem que consegue levar uma mulher ao limite de seus
sentimentos, que faz o coração pulsar do ódio ao amor com apenas um gesto
não podia ser esquecido tão facilmente, e agora eu sabia... Quando ele não
abria a boca, definitivamente ele era o homem mais adorável desse reino.
Por fim... Eu soube que mesmo não podendo ficar com Tiago, mesmo
não podendo sonhar com isso já que ele estava destinado a formar alianças
com o casamento, ainda assim eu o amaria por toda a minha vida.
Conselho... Do conselho.

Tiago

Três dias... Esse era o tempo que eu tinha conseguido me manter


distante sem surtar completamente de preocupação. Eu tinha prometido que
manteria distância e estava cumprindo... Ou pelo menos tentando cumprir...
Eu sabia, me conhecia muito bem para saber que já estava tomado de
sentimentos por Amélia e mesmo que eu tentasse entender como isso ficou
tão forte eu não conseguia encontrar uma explicação. Sempre me perguntava
que merda de encantamento maldito era esse que dominou meu coração
completamente. E a lembrança daquele beijo que praticamente roubei parecia
um veneno que fazia corroer minhas entranhas de pura ansiedade.
E eu que achei que me apaixonar seria algo impossível visto a prisão
em que eu era mantido por meu pai e o regime que ele mantinha sobre as
mulheres, finalmente via isso acontecendo, e não estava muito feliz, afinal
nunca imaginei que seria uma coisa tão complicada e que mexeria tanto com
minha cabeça e ainda me faria ficar tão distraído. Sem contar que por eu ser o
rei, isso parecia ainda mais proibido. Maldição!
E eu não devia ter prometido a André que ficaria longe dela, pois essa
promessa eu não ia conseguir cumprir sem enlouquecer.
Para resistir a tentação de pegar um cavalo e correr até lá inventei
vários assuntos, mas o local que Amélia estava era um antro de perigos por
isso foi difícil controlar a preocupação que algo ruim pudesse estar
acontecendo sem meu conhecimento, ainda assim tentei não pensar nisso e
decidi ocupar a mente levando Celina para passear no pequeno jardim
particular que foi abandonado por meu pai e eu mandei restaurar para ela.
Era um pequeno jardim, somente com canteiros de rosas de variadas
cores, Celi sempre amou. Só que ele foi da minha avó infelizmente da parte
meu pai, mas enfim... Era um belo jardim.
Foi uma experiência com frutos, pois Celina resmungou coisas
diferentes das normais. Algumas vezes, seus olhos ganharam vida, parecia de
verdade olhar as rosas, mas durou tão pouco que eu não pude contar a minha
mãe, isso a faria sofrer, mas ainda ia tentar novamente, se ela reagisse da
mesma forma aí sim eu contaria.
No segundo dia para resistir à vontade de ir ver Amélia eu viajei para
a fazenda teste. Várias famílias já estavam acomodadas e a horta já estava
preparada. Conheci o tal Daniel e me arrependi de ter ameaçado um garoto
tão esforçado e orgulhoso. E claro que fiz isso por ciúme bobo.
Não pedi desculpas é claro, mas o tratei com respeito e o acompanhei
quando ele me convidou para ver o progresso. Fiquei exultante quando vi os
brotos nos canteiros, mas foi a alegria daquelas famílias e o olhar deles que
me deixou contente, finalmente eu estava em um lugar onde eu não recebia
olhares de ódio. Ainda havia várias fazendas abandonadas ou quase sem uso
e eu já havia me decidido, todas elas seriam utilizadas.
Com as novas leis, a casta dois ficou quase sem opção de sustento,
visto que os filhos não podiam mais ser vendidos, e isso estava gerando
muito abandono infantil, eu não podia culpa-los já que eles não podiam
sustentar o monte de crianças que tinham gerado quando ainda podiam
vendê-los, ainda não, pois essas crianças vieram para dar lucros por conta das
leis de meu pai, mas agora...
Se eu não podia prover o sustento de tantas famílias então pelo menos
ia dar a eles um lugar com estrutura, assim já teriam casa e espaço para
produzir. E como aceitaram os termos, começariam a pagar o empréstimo
para os subsídios somente quando a primeira colheita fosse negociada e a
segunda já estivesse no ponto para colher, depois disso, seriam tratados como
todos e pagariam impostos à coroa.
Mesmo ainda precisando mudar algumas coisas, esse projeto da horta
comunitária prometia sucesso. Logo essas famílias teriam renda e
estabilidade.
E isso era um mérito de Amélia, e dessa vez mesmo eu querendo
contar ao conselho e ainda fazer algum tipo de cerimônia onde ela fosse
reconhecida por isso, estranhamente foi André que me aconselhou a manter
isso em segredo por enquanto.
Quando eu perguntei sobre isso, ele não respondeu diretamente,
apenas falou que ela sendo filha dele, os mais abastados poderiam ver isso
como uma afronta. Infelizmente André carregava esse estigma do escravo
que estava tomando o lugar de quem merecia, talvez ele não quisesse que
Amélia também passasse por isso e eu o compreendia completamente e por
puro senso de proteção a ela eu concordei prontamente em esconder isso,
mesmo achando injusto.
Enfim, por dois dias eu consegui ficar distante como prometi, mas
agora, terceiro dia eu não estava me distraindo, só pensava nela e tentava
imaginar como ela estava se saindo por lá.
Já estava cansado daquela falação sem sentindo, de todos aqueles
conselheiros inúteis. Dentre todos eles somente André me era importante.
Precisei chamá-lo porque os conselheiros pediram uma reunião de
emergência, mas ele logo voltaria para o bairro dos Renegados, dei a ele uma
semana.
Amélia tinha vindo também, segundo André ela aproveitou o carro
para comprar umas coisas no mercado. Havia me procurado logo de manhã w
como um idiota apaixonado eu tinha ficado esperançoso quando anunciaram
a visita, achei que talvez ela estivesse disposta a me perdoar, mas não era isso
e vê-la não ajudou muito a me manter distante como eu pretendia.
Assim que me viu chegar ela me agradeceu polidamente pela casa que
mandei construir e pelo resto. Me entregou um papel, basicamente um pedido
formal para eu manter a casa da sacerdotisa em seus cuidados, porque tinha
planos para o lugar. Não pude dizer nada porque querendo ou não, mesmo em
poucos dias ela já tinha conseguido organizar pelo menos a mão de obra entre
os moradores da prisão, sem contar que não havia nenhum projeto para o
templo, na verdade não havia projeto para coisa nenhuma tirando os dela e o
da fazendo que ela começou e eu e André melhoramos.
Por isso eu me calei, pois já havia dentro de mim o reconhecimento de
que estava errado com meu pré-julgamento sobre sua capacidade, ela podia
fazer muita coisa se tivesse ajuda, porém admitir isso ainda me era custoso.
Antes de partir ela fez uma vênia respeitosa e se retirou em seguida,
me doeu ver sua atitude e também me desarmou, tudo o que fiz foi assentir e
a observar sair pela porta.
E isso só aumentou minha ansiedade, minha necessidade de estar
perto. Que merda eu realmente não devia ter prometido...
— Majestade?
De modo automático me virei para a voz, tinha me distraído. —
Hum...?
Pedro da casa Machado, meu conselheiro e responsável pelas armas e
estrutura me olhava ansioso.
André me contou sobre ele. Ele era apenas um dentre tantos que
somente fingiam servir e pelas costas maldiziam as novas políticas e os
prejuízos. Não podia confiar nele também, infelizmente.
— Se distraiu majestade.
— Continue Pedro.
Ele assentiu e como sempre fazia antes de começar a falar remexeu
alguns papéis sofregamente como se tivesse muito que fazer. Mas toda essa
encenação, essa eficiência mentirosa de quem anotou tudo o que precisava
me enojava. Pior ainda por eu não estar atento ao que ele havia dito e ainda
não ser cobrado por isso.
Essa era uma das vantagens de ser rei, não ser contestado. Em
contrapartida, a merda de ser rei era que eu queria ser contestado, desafiado,
pressionado, queria ser levado ao meu limite para poder dar resultados aos
que dependiam de mim, eu queria... conselheiros de valia.
Até aquela menininha esperta me traria resultados melhores, até...
Amélia. Mas era apenas vontade, pois colocá-la no conselho era o mesmo
que declarar guerra às castas.
André também não era bem quisto pelos outros do conselho, eles não
gostavam de ver um ex- escravo sentado ali e com um cargo alto de general,
por isso meu querido amigo se mantinha, na maioria das vezes em silêncio e
só depois, no fim da reunião nós dois debatíamos o teor das pautas.
Mas esse preconceito me dava ódio, esses malditos hipócritas, não
lembravam que André fora no passado um soldado de alto calão e foi meu pai
que o rebaixou para escravo sem explicação, lembravam menos ainda que
esse escravo liberto como gostavam de lembrá-lo constantemente, lutou
bravamente na batalha sombria enquanto muitos desses mijões em volta da
mesa sequer saíram de suas casas. Covardes inúteis!
Sempre me pergunto ao ver esses homens empertigados em sua
pompa, de qual feito meu ou de André eles lembram, talvez de tudo, porém a
mácula da mudança das leis os cega completamente, os faz esquecer que se
ainda continuam vivos é porque arriscamos o nosso rabo na guerra para
salvar o deles.
Pedro continuou tentando ganhar tempo e imaginei o que ele
pretendia, era sempre assim, sempre as mesmas coisas. Torci a boca já
perdendo a paciência com o homem que não parava de revirar os papéis
procurando seja lá o que fosse.
Mais uma vez eu me perguntava. Como trabalhar com conselheiros
que não me dão conselhos? Como eu conseguiria resolver qualquer problema
assim?
Agora em mais uma reunião eu revejo todos os erros, tudo o que
deixei passar quando refiz as leis.
Nicolae, Rael, André e Laican haviam me alertado sobre isso quando
manifestei a ideia de mudanças assim que subi ao trono. Mas eu não quis
ouvir na época, sentia a urgência de mostrar que era diferente de meu pai. De
arrancar do reino seu legado de crueldade.
Agora, tenho que aprender a resolver os problemas políticos sem pedir
ajuda dos aliados toda vez que acontecer uma merda, mas não está fácil. E
ainda minha mente fica somente vagando, somente pensando em Amélia e os
meus erros sobre ela também.
Pensar em tudo fez rugir a vontade de socar a mesa e mandar toda
aquela corja ao inferno, mas não podia, André já estava a me encher para que
eu aprendesse a me controlar, e ele tinha razão em cobrar isso.
Já comentavam que eu era um rei fraco e sem pulso porque eu não
tomava atitude em arrefecer os ânimos dos de casta mais alta, então eu já
tinha uma cota de xingamentos em meu nome, angariar mais adjetivos agora
para minha reputação não era uma boa ideia.
Esperei com um sorriso nos lábios tentando mostrar paciência, pelo
olhar de trunfo, ele havia encontrado o que procurava. Logo ele começou
olhando atento à folha.
— Majestade, eu sou obrigado a dizer que não está mais dando para
segurar o ânimo das castas mais altas, sugiro que o senhor deveria anunciar
um baile de reconhecimento.
Me senti enojado com tamanha trama, ele estava apenas lendo, nada
que estava saindo de sua boca eram suas palavras. Ainda assim não tive como
argumentar, pois era algo que eu temia e que hora ou outra era certo que
aconteceria.
Franzi o cenho já sentindo meu coração bater mais rápido, olhei para
André e ele levantou uma sobrancelha singelamente. Também parecia
preocupado.
O homem continuou falando rápido, talvez por medo de eu não
permitir que terminasse.
— Um baile seria bom, majestade. — Ele limpou a garganta e me
olhou ansioso. — Um rei precisa de uma esposa, pois sem um herdeiro não
consolidará sua força. Não pode mais continuar solteiro meu rei, isso está
ofendendo as castas. O senhor mesmo mudou as leis e agora deve dar o
exemplo escolhendo uma das filhas dos nobres.
Prendi o ar tentando assimilar minha vida em alguns minutos, tentando
compreender quando foi que comecei a me enrolar nessa teia de aranha. Uma
teia que eu mesmo teci. E Amélia? E meus sentimentos? Nada disso tinha
peso? Só o que valia era dar mais e mais de mim a esses malditos?
Limpei a garganta e olhei para os outros. — O que acham?
Torci muito para que colocassem motivos para isso não acontecer, mas
foram unânimes, todos concordaram efusivamente com a sugestão e me senti
tolo por ter sentido alguma esperança de que isso fosse vetado por qualquer
um deles, claro que concordariam...
Olhei para André como um último refúgio e ele assentiu.
— Acho que eles estão certos, majestade.
Completamente abalado, apertei os olhos para ele tentando entender o
que ele pretendia. Sem mudar o semblante ele continuou. — Isso irá acalmar
os ânimos.
Certo... Eu não entendi porque André concordava, mas fiquei
chateado, ou ele me queria mesmo longe de Amélia, ou sabia mais do que
estava me contando e estava fazendo isso para me proteger. Mas se ele que
era sempre pelo povo e nunca por si mesmo concordou, então só me restava
dar uma resposta favorável.
— Muito bem, irei refletir sobre o assunto e marcarei uma reunião
para falarmos sobre isso.
Antes que me enchessem com pressão, eu levantei e deixei o recinto
quase fugindo daqueles homens para evitar que eles me pressionassem a dar
uma resposta agora.
Eu não estava pronto para abrir mão de Amélia ainda, não estava
pronto para ceder ao peso da coroa e ignorar o peso do meu coração.
Necessário

André.

Pronto! Até que estava demorando, mas aconteceu como temíamos


desde o início, eles finalmente prepararam uma teia para Tiago, uma teia tão
perfeita que tirou dele qualquer chance de escapar. Eu soube assim que ele
olhou para mim, que ele esperava que intervisse a seu favor, que votasse
contra, mas eu não pude arriscar contrariar esses homens enquanto ocorria a
investigação, eles precisavam ficar entretidos com alguma coisa e querendo
ou não, se entreter com a possibilidade de colocar uma coroa na cabeça de
um membro de suas casas me daria algum tempo.
Pelo menos não por hora eu precisava ir contra os desejos do rei para
proteger tanto ele quanto minha filha.
Quando parti com Amélia para o bairro dos Renegados eu menti as
minhas verdadeiras intenções, claro que aproveitei a estadia lá para organizar
a segurança dela, mas a minha intenção era estar mais perto da parte obscura,
de onde as coisas acontecem, e o novo bairro da procriação era o lugar mais
retirado do reino, por isso o mais provável e seguro para uma conspiração.
Havia rumores de uma anarquia pelo bairro novo, não pela boca dos
moradores, mas pela boca das crianças e rapazotes que faziam trabalhos de
gatunos, informantes e entregadores de recados. Os valiosos volantes que
tudo faziam pelas ruas e consequentemente tudo descobriam já que sempre
tinham em mãos pedaços valiosos de papel que tudo podia dizer e nada podia
ser dito.
Com a ajuda deles, uma ajuda muito bem paga por sinal, eu tinha
descoberto o esquema para se comunicarem, porém eu não tinha descoberto
nada sobre eles. Era até inteligente o esquema que prepararam. Primeiro
pagavam crianças no bairro do viajante para levarem o recado até a estalagem
do bairro novo. Lá entregavam a dona com uma moeda, o papel dela seria
apenas entregar esse mesmo bilhete a outra criança que aí sim entregaria ao
verdadeiro interessado e esse pagaria a criança um bom valor para que ela
ficasse em silêncio.
No entanto esse último que recebia ainda não era o destinatário
verdadeiro, era apenas um atravessador que faria a entrega verdadeira tirando
os olhos dos volantes de rua da jogada.
E foi aí que eu estaquei, era uma trama enorme e tudo para maquiar
as verdadeiras cabeças nesse levante contra o rei.
Consegui algum progresso ainda assim, pois interceptei alguns
recados, paguei o dobro somente para expiar o conteúdo e pelo silêncio do
meu ato. Muitos bilhetes eram irrelevantes, alguns marcavam encontros, ou
negociavam preços de mercadorias roubadas das casas dos mais abastados.
Nada demais, o que sempre acontecia, mas alguns recados com poucas
linhas me deu uma luz sobre a proporção dessa fomentação pelas costas do
rei.
Encontrei de tudo um pouco, pedidos para procurarem por algum
parente sumido e isso reforçava outras investigações em curso. Outros
bilhetes continham ofertas obscuras sobre filhos. Ainda insistiam nisso,
infelizmente. Mas o que me chamou atenção foi um bilhete endereçado a um
morador do bairro nobre. Nesse dizia apenas que o encontro seria naquela
noite e no local de sempre e que se o rei não aceitasse a proposta que
começasse o recrutamento.
Um golpe... Estavam armando um golpe contra Tiago, e depois dessa
sugestão de Pedro sobre o casamento eu compreendi.
Eles queriam testar o rei, ver se ele estava disposto a cooperar com
eles, por isso essa proposta tão inesperada, aliás esperada, mas abordada de
forma apressada.
Pensei no sofrimento de Amélia, mas não posso por a mão no fogo
pela segurança dela. Não quando a última frase do bilhete...
Eu não tinha certeza do que interpretei, mas não pretendo arriscar. Se
não for dada uma trégua, não ganharemos tempo sem contar que alguns dos
meus melhores homens estão trabalhando em outro assunto grave.
Sumiços de algumas mulheres grávidas, alguma coisa está
acontecendo e sequer tenho ideia do que seja, tenho medo, pois me recordo
muito bem daquela masmorra, das coisas bizarras que encontramos lá.
Samuel mudou completamente usando um tipo de cultura de
sanguessugas. O problema é que quando com a ajuda dos sombrios
encontramos a experiência, percebemos que os papeis com as anotações
sobre as experiências sumiram, o monge e parte da cultura das sanguessugas
também desapareceram, até há pouco eu não tinha ligado os fatos, mas o que
as mulheres grávidas têm a ver com isso eu ainda não sei, não consegui juntar
as peças. No entanto eu sei que uma rixa do rei com as castas agora não será
uma boa ideia.
Ainda não sabemos as proporções dos sumiços, visto tanto indigente e
abandonado, mas tenho medo, e se não forem somente as grávidas? E se tudo
fizer parte de algo ainda maior?
Não posso me deixar levar pelo amor de pai, Tiago tem que aceitar
uma filha desses nobres antes de tudo vire uma bagunça tão grande que se
torne irreversível.
E eu preciso de tempo para investigar mais, algo me diz que Amélia
pode estar em perigo, visto a doação da casa da sacerdotisa e ainda a casa que
Tiago mandou construir no bairro dos renegados, justamente uma semana
antes dela mudar para lá, por isso e por mais estranho que possa parecer, um
casamento agora seria conveniente para protegê-la da fúria da casta mais alta.
Porque se descobrem que Tiago tem sentimentos pela filha de um ex-
escravo, uma moça que não tem sequer uma casta alta, então, tudo vai estar
perdido.
Decisão sensata

Tiago

Casamento... Ainda não conseguia acreditar até agora que deixei essa
hipótese em aberto somente para calar as duas castas mais altas. E pior que
isso... Por conselho de André.
O que ele tinha em mente? Ele ter votado a favor foi completamente
inesperado e não condizia com o que ele pensava sobre casamento forçado,
sem contar que um enlace seria basicamente como dividir o reino entre o rei e
uma casa da casta alta. Porém tinha um motivo para ele não ter ido contra
essa loucura, tinha que ter e eu tinha que confiar no julgamento dele. Ainda
assim...
Deixei meu corpo cai pesadamente na cama e fechei os olhos. Baile...
Será que Amélia viria? Ou André ia aconselhá-la a não comparecer,
aliás, será que ela viria depois de saber o motivo desse evento?
Senti meu coração diminuir, quase parar de bater somente de imaginar
ela recebendo essa notícia, ou lendo os editais, ou mesmo ouvindo de bocas
por aí.
Me senti um traidor do meu próprio coração, também senti que estava
traindo Amélia e fiquei mal por isso. Eu podia ser um maldito idiota quando
o assunto era ela, mas jamais, em nenhuma hipótese eu a trairia. Meu pai fez
isso com minha mãe e mesmo que ela não fale sobre isso eu sei que doeu,
então não posso fazer o mesmo com a mulher que amo, sem contar que
depois dela, nenhuma mulher mais me chamou atenção, nenhuma delas me
fez virar o pescoço para observar.
Antes eu gostava de apreciar a beleza feminina, até mesmo me
aventurava de investir em algumas garotas menos irritantes e fúteis,
principalmente as poucas moças que ainda não eram apresentadas como
produtos de venda.
Nunca me interessei em usar as do harém já que eram escravas do
prazer e seguramente iriam fazer de tudo para me agradar, isso nunca me
interessou porque era muito fácil e assim a graça se perdia.
Mas agora, só Amélia tinha meu interesse e começo e pensar se valeu
a pena. Queria saber se antigamente os reis também tiveram que se sacrificar
pelo seu povo. Tendo desesperadamente entender qual o significado de
sacrificar a felicidade em prol de uma aliança. Nunca encontro nada que valia
a pena. As questões são muitas, qual o reconhecimento eu teria disso? Em
quê isso beneficiaria os de casta mais baixa? Não estavam pedindo demais? E
porque diabos eu tinha aceitado essa pressão? Se eu sou o rei porque não
posso ter alguns benefícios sendo o primeiro deles não ter que casar com uma
estranha?
Agradecido por estar fechado em meu quarto deixei a vontade de
liberar minhas lágrimas vencer meu orgulho. Eu sei o que não governo esse
reino de verdade. Sei que sou um escravo com coroa que é governado pelo
povo, mesmo que tudo indique o contrário, eu sou o único aqui preso por
correntes.
Correntes invisíveis que machucam, com grilhões que ferem. Meu
chicote é a língua afiada das castas maiores, é o açoite diário que está me
moldando e me levando cada dia mais longe da felicidade.
No entanto, estou preso por obrigações. Se eu negar isso, colocarei em
perigo minha coroa e consequentemente deixarei em perigo os povos das
outras castas e os escravos, pois não serei eu a sofrer a consequência, serão
eles.
Suspirei me sentindo claustrofóbico, um sentimento que antes vivia a
me atormentar e agora, por mais que tudo indicasse que eu deveria me sentir
livre, esse sentimento parecia até mais acentuado do que antes.
No entanto, apesar de toda a minha frustração eu tinha que admitir
que André foi sábio em me aconselhar a prometer pensar sobre esse
casamento, ele sim está agindo pelo povo ao todo, e é o que eu devo fazer,
não posso ser egoísta, tenho que fazer o que for preciso para manter meu
povo seguro.
Meu pai agiu de acordo com os próprios interesses, não se incomodou
em ferir, matar, mutilar e humilhar em troca de poder, de alcançar suas
ambições.
Já eu... Minha única ambição, a única coisa que eu queria era poder
ficar com a pessoa que faz meu coração bater mais forte, que faz com que eu
almeje ser um homem melhor, mas até essa única ambição eu não poderei
alcançar, não sem ter que agir como meu pai, como um tirano egoísta.
O pior é essa tentação ao pensar isso, pois sei que posso fazer valer
cada vontade minha, mesmo que seja na base da violência, posso força-los a
aceitar tudo o que eu decidir como meu pai fez por muitos anos. E assim eu
teria Amélia sem precisar me preocupar com retaliações porque seria eu a
retaliar quem ficasse em meu caminho. Seria tão fácil...
Mas não posso... Tem que existir outro caminho que não seja a tirania
e imposição. Prometi que faria diferente se um dia eu conseguisse libertar
minha família, claro que como idiota que fui, não pensei que seria tão difícil
cumprir essa promessa, mas agora... Não era somente eu, muitos dependiam
de mim, meus atos estavam sendo pesados por muitos olhos e todos eles com
força o suficiente para retaliar em cima dos mais fracos caso eu tomasse a
decisão errada.
Talvez fosse até um teste, talvez já estivessem desconfiados de meus
sentimentos por Amélia e essa ideia do casamento fosse para decidir como
ela pagaria por isso de acordo com minha resposta.
No fim, realmente quem poderia pagar por meus erros seria ela e
jamais eu permitiria isso.
Levantei respirei várias vezes para ganhar coragem enquanto
enxugava os olhos e gritei ao valete.
— Chame o conselho, tenho um comunicado a fazer.
Pronto, decisão tomada, Amélia ou a paz do povo.
Os malditos das castas nobres iam conseguir o que queriam de mim e
assim meu povo teria sua paz finalmente e Amélia ficaria segura.
Então, problema resolvido, agora o único a ficar atormentando com
essa decisão seria eu.
Presente inesperado

Amélia

Essa foi uma semana corrida. Primeira coisa que fizemos foi separar
aqueles que podiam trabalhar.
Em seguida plantamos o que deu para comprar em sementes.
Infelizmente esses canteiros que já estavam prontos há um bom tempo, eram
distante do núcleo de moradores, porém não quisemos abrir novos canteiros,
tínhamos pressa com a parte agrícola. Até porque estávamos empolgados e
não deixamos a certeza de que logo teríamos muitos canteiros disponíveis.
Até para as mulheres grávidas foi dada função, mas essa parte ainda
não dava para concretizar. Elas ficaram com a parte de cozinhar, e claro que
como não havia tanto alimento, elas continuavam no ócio.
No entanto, mesmo sem termos ainda conseguido água perto, já que
tínhamos um poço mais longe que veio como cortesia do rei junto com a
casa, mais uma quantia do solo já estava sendo preparado, mesmo não tendo
mais sementes para plantar.
De início todos pareciam céticos quando propus de irmos adiantando
as coisas. Mas depois de Marcos me apoiar e dizer a eles que não podiam se
entregar a apatia e que a comida não iria cair do céu, muitos começaram a se
mexer, e findando dois dias quase todos já estavam empolgados com o
trabalho.
O mais interessante foram os idosos, Marcos e eu tínhamos
combinado de deixá-los em paz, pois havia muita mão de obra ociosa, no
entanto depois de ver o movimento e todos se virando, eles começaram a
fazer excursões pela floresta, e ali vimos a força do conhecimento vencer a
fraqueza da idade. Quando voltaram do mato parecia que a vida os tinha
alcançado novamente, estavam empolgados e com um brilho renovado no
olhar. Trouxeram aos borbotões folhas, raízes. Alguns baldes de castanhas e
até mesmo alguns cogumelos.
Um senhor idoso chamado Tomas deu a ideia de fazer boticário
caseiro e como pareciam tão revigorados por estarem incluídos, arrumamos
para eles algumas vasilhas e prometemos arrumar o resto da lista assim que
algum dinheiro entrasse.
A pequena casa no bairro dos renegados não tinha luxos, mas era
confortável, pequena e maravilhosa. Tinha tocado fundo meu coração esse
gesto do rei, mas obedecendo ao pedido de André para não demonstrar isso
eu apenas o agradeci cordialmente quando o procurei no castelo.
Depois disso, nada de notícias, quer dizer, chegou uma notícia que me
abalou imensamente apesar de eu já esperar por isso. Todavia não
conversamos desde que cheguei, ele realmente estava cumprindo a promessa
de se manter longe e apesar de sofrer com isso, o trabalho na vila nova estava
sendo o remédio para me distrair.
Três casas estavam sendo levantadas e alguns móveis vieram juntos
nas carroças que Jena mandou, porém em sua maioria eram roupas e até
mesmo panelas e um monte de coisas de decoração.
Claro que eu separei tudo e o que seria útil para usar nas futuras casas
e as outras coisas pedi a Marcos para intermediar as trocas no bairro da casta
três.
Segundo ele, lá seria o melhor lugar para trocar essas coisas de
decoração por coisas necessárias, deixei a ele para decidir o que era melhor
para nós. Mas ainda não me sentia a vontade em ter uma casa com conforto
enquanto outros ainda dormiam em barracos.
Mas era um começo... A minha cozinha ainda mais simples era
pequenina, o fogão ocupava quase tudo e o quartinho da despensa... Sentei no
banco pasma com a visão. Estava lotado de alimentos.
Não estavam aí de manhã, aliás, não estavam aí desde quando me
mudei. Fiquei contemplando aquele tesouro tentando adivinhar como ele
chegou ali. Meu pai ou Tiago? Qual dos dois havia deixado alimento para
três invernos?
A batida na porta me fez pular. Marcos estava parado no alpendre me
olhando de cenho franzido.
O chamei com a mão e sem conseguir dizer nada, apontei para a porta
da despensa. Em silêncio ele entrou e sentou ao meu lado, agora assim como
eu, ele olhava deslumbrado a quantidade de comida.
— Quem quer te engordar assim?
Eu apenas ri, porque era trágico e lindo ao mesmo tempo. Quando o
riso acabou soltei um suspiro.
— Não vou guardar isso. Vamos distribuir.
Marcos negou. — Não. Deixe para você Amélia, já trouxe muitas
coisas e graças a você e depois das trocas temos móveis para suprir as três
casas, e mais ferramentas para agilizar a construção.
Era uma ótima notícia, mas balancei a cabeça assentindo devagar. —
Uhum... Espero que os móveis fiquem gostosos depois de cosidos,
conseguimos algumas mobílias e roupas, mas nada de comida, e o povo não
come mobília, por isso essas coisas não servem para nada por agora. Mas
isso. — Apontei a porta. — É o que precisamos para segurar as pontas por
um tempo.
Marcos mordeu os lábios e me olhou de modo pensativo, então mexeu
no interior do casaco puído, retirou um saquinho de pano todo sujo e me
entregou.
— Se não vamos precisar comprar comida por um tempo, então sugiro
que guardemos as moedas que entram.
Sorri compreendendo e aceitei o saquinho. Eu não tinha contado nem
mesmo a ele, mas tinha guardado uma humilde fortuna vinda de Jena, de
minha mesada e de meu pai.
Diana ainda não tinha me mandado nada, e eu não esperava que
acontecesse, ela estava tão abatida que é bem capaz de ter esquecido meu
pedido.
Agora mais esse pouquinho de Marcos. Eu ainda não sabia o que faria,
mas esse dinheiro seria usado na hora certa. Talvez quando finalmente
conseguíssemos trazer a água mais perto eu poderia investir em sementes
para uma horta de verdade e não apenas alguns canteiros distantes. Ainda
assim fiquei um pouco mal de pegar as moedas, aceitar dos que tinham
bastante era uma coisa, mas dos que moravam ali não me pareceu certo.
— Tem certeza Marcos?
Ele assentiu. — Se quisermos crescer, todos nós teremos que abrir
mão das coisas, não só você e seus amigos.
— Que palavras bonitas Marcos, aposto que retirou de um livro. —
Espetei para quebrar o clima tão solene daquele momento.
Os olhos dele brilharam e ele levantou os ombros de modo
despreocupado. — Pode ter sido, mas mudando de assunto... — Ele me deu
uma rápida olhada com o canto do olho e limpou a garganta.
— Pensei que talvez você pudesse ir ao mercado colorido e nos trazer
umas ferramentas, o que acha? Talvez... Alguns metros de corda grossa e um
balde de madeira, e tem que ser aquele com uma cinta de ferro de qualidade
em volta.
Abri muito os olhos, poderia ser ou não, caso fosse o que eu pensava,
as coisas realmente tomariam um ritmo mais acelerado para acontecer. —
Você conseguiu?
Ele abriu um largo sorriso e assentiu. — Hoje mais cedo, água perto,
finalmente.
O abracei contente e ele retribuiu rindo, era uma notícia feliz. Isso era
o marco da mudança, a diferença entre o sucesso e o fracasso.
Apesar de mais essa boa notícia, não consegui mais controlar, sentindo
aquele abraço terno deixei esfarelar a máscara. Comecei a chorar agradecida
por ter um ombro para isso.
Marcos estalou a boca e me apertou a ele. — Chore Amélia, você
precisa disso.
— Ele vai casar Marcos... Não posso ficar triste porque esse
casamento vai fortificá-lo. Mas dói tanto que por vezes penso que não vou
suportar essa angústia. E ainda não consegui encontrar coragem para pensar
em um vestido para o baile. Ter o vestido em mãos será como jogar meu
coração em um poço muito fundo o encerrando na escuridão para nunca mais
bater. Sou egoísta, pois sei que é a melhor notícia desde a coroação já que
trará finalmente a paz, ainda assim não consigo evitar sofrer como se
estivesse em luto.
— Eu fiquei sabendo...
— Porque não me contou? Nem meu pai me contou, fiquei sabendo da
boca das crianças.
— Não contamos porque você estava muito feliz e isso iria estragar
sua alegria. Tiago está fazendo isso por amor a você, aceitou fazer isso para
protegê-la.
Me afastei do seu abraço, limpei o rosto e levantei, ele levantou
também.
— Não quero proteção, mas que inferno! Quero que ele pare de ter
medo de me perder, me perdendo... Queria... — Deitei a cabeça no seu braço
e suspirei desabafando mais para mim do que para ele. — Que ele pudesse
escolher e que fosse eu, mas entendo que ele precisa ser uma filha de nobres.
Senti a mão áspera de Marcos passar por meus cabelos.
— Uma atitude de merda essa decisão dele de aceitar a pressão e
muito confusa realmente. Sinto muito.
Ele passou os braços por meu ombro para me confortar. Marcos tinha
se tornado um grande amigo, e me entendia de uma maneira crua.
Me deixei embalar por seus braços por um tempo, por fim depois de se
despedir de mim ele saiu me dando uma última olhada triste.
Decidida a não me deixar consumir já que eu teria que viver com isso,
segui para o quarto para trocar meu vestido e tomar um carro para o mercado
colorido. Nada de lamúrias, água perto era uma ótima notícia e os moradores
precisavam disso.
Eu sempre soube que seria assim, que esse momento chegaria por isso
não podia ficar me martirizando. Seria até bom sair um pouco, poderia
esquecer sobre o baile focando nas coisas que precisava fazer, assim essa
tristeza ia passar mais rápido.
Já pronta para sair ouvi batidas na porta. Senti um friozinho
costumeiro da ansiedade. O rei veio nos visitar...
Ele podia estar querendo saber se eu gostei da despensa aparecer
magicamente cheia ... Ou podia estar ali para me dizer que não ia casar
com ninguém porque me amava.
Abri a porta saturada de expectativas e o rosto risonho, jovial e
sorridente de Clara me deixou surpresa e bem preocupada.
— Veio sozinha aqui?
Ela sorriu já entrando, e atrás dela um monte de garotos surgiu
trazendo trouxas, ferramentas e alimentos.
Ela sorriu feliz. — Vim para ficar, eu disse que viria não disse? Já
contratei homens para construir uma casa simples, se alguém daqui puder
ajudar eu saio da sua casa o quanto antes. — Ela me olhou de lado, os olhos
negros brilhando, deixando aquele rosto moreno ainda mais bonito. — Você
vai me convidar para me hospedar aqui até ficar tudo pronto, não vai? Quero
ficar aqui, mas não quero morar ao relento.
Arregalei os olhos. — Claro que sim, é muito bem vinda. Mas e seu
pai, sua louca?
Ela levantou os ombros. — Roubei as ferramentas todas da oficina
dele, e peguei todas as moedas que ele escondia, sem contar que vendi
minhas joias e da mulher que era a primeira dele. — Clara deu uma risada
nervosa e exultante. — Devo tê-lo deixado meia fortuna mais pobre, mas não
me importo, ele matou minha mãe.
Pisquei várias vezes para conter o receio. Clara podia ficar em perigo.
— E se ele vier atrás de você?
Ela me olhou triunfante. — Eu li e reli as leis Amélia, eu te disse em
sua casa que eu queria ajudar, e que também eu estava farta de ser um
fantoche, e eu tenho uma garantia que ele não virá. Ele é conselheiro real, e o
rei não aceitaria um homem que judia das suas protegidas na mesa de seu
conselho, não é mesmo?
Deixei escapar um enorme sorriso, ela tinha toda razão. O pai dela não
podia se dar ao luxo de perder o cargo do conselho. E se Clara teve coragem
de enfrentá-lo abertamente, ele não ia arriscar que ela fizesse novamente
pedindo uma audiência com o rei para reclamar dos maus tratos do pai. Ela
viu que eu entendi e continuou ainda mais sorridente com seu trunfo.
— Agora que as leis estão também do meu lado, eu não vou ficar
temendo represália, claro que não vou poder sair sozinha, pelo menos por um
tempo, pois aposto que ele está arrancando os cabelos de ódio por não poder
fazer nada contra mim agora. Mas estou disposta a abrir o cadeado de meus
grilhões, alguém precisa dar o primeiro passo.
Senti algo explodir dentro de mim, uma sensação boa, mesmo sendo
uma pessoa somente, eu tinha uma aliada, uma moça oriunda da casta mais
alta, filha de um conselheiro, e muito maluca...
— Não sei nem o que dizer Clara, a casa Machado é uma das mais
importantes do reino, e ter você aqui, uma moça conhecida da sociedade é
como se eu ganhasse músculos para lutar, como se o povo renegado ganhasse
não uma aliada, mas uma moça que se rebelou contra os costumes antigos
desse reino.
Clara sorriu. — E eu vou te dizer uma coisa, somente quando criei
coragem para enfrentar meu pai e sair de casa foi que eu me senti uma pessoa
de verdade, não um bem material. Não tem ideia Amélia, do tanto de
mulheres e moças que sentem essa vontade, mas não tem coragem para isso,
mas eu tinha que fazer e fiz. O que acontecer daqui para frente, eu deixo para
o destino.
Lamento de um pai

Rael

Esse era o som da dor, o som do lamento de um sombrio em luto, não


se podia distrair o espírito que voltaria para o outro lado do véu para aguardar
o momento de poder voltar. Ainda mais um espírito que não teve sua chance
nesse mundo. Por isso e por tantos outros motivos, palavras eram proibidas
no luto sombrio.
Diana dormia forçosamente nos braços de Nicolae que ainda não tinha
encontrado forças para levá-la a banheira. O único motivo de meu irmão
ainda não ter sucumbido era justamente por ela, para cuidar da companheira.
Ela precisava ser lavada, o sangue tingia sua camisola de vermelho,
uma cena já vista por nós quando ela foi resgatada quase morta na nossa
floresta, mas agora não era de um ciclo que veio com a maturação do corpo
depois da mistura. Era o sangue de um aborto, de uma vida sombria que não
conseguiu progredir.
Ele continuava ali, com os olhos fechados e abraçado a ela, o silêncio
dominava o ambiente, o único som eram os soluços também de minha Eva e
o por vezes, o meu.
Um pai precisa expurgar a dor para poder abrir caminho para o
discernimento. Por isso eu chorava, minha filha, meu luto também.
Diana foi pega de surpresa quando a primeira contração a atingiu,
depois disso ela soube e segurou o ventre olhando para Nicolae assustada,
estávamos na sala e não tivemos muito tempo, foi tudo muito rápido.
Nicolae correu velozmente com ela no colo em direção ao quarto e eu
corri para a biblioteca proibida, já tinha preparado para minha filha uma
mistura forte, para tentar ajudá-la caso isso acontecesse. Era quase certo que
aconteceria.
Mas o cheiro... O bebê não estava conseguindo se manter íntegro em
seu ventre, faltava algo na placenta que o estava adoecendo. Minha menina
tão sofrida que apesar de ser forte, ainda foi atingida por mais esse golpe.
Seus sentimentos tão aflorados afetaram ainda mais essa falta de
nutrientes ao feto. Mas era algo quase comum em nossa raça, nem sempre as
gestações conseguiam seguir seu curso.
Ainda tínhamos conosco uma parte amarga de nossa herança noturna.
Os vampiros não procriavam entre si e nós, uma raça herdeira deles
conseguimos essa dádiva, mas não sem perdas e complicações, não sem o
medo constante de que não fosse para frente à vida gerada.
Por isso apertei um pouco mais Eva a mim, quase cedendo ao meu
terror de vê-la nesse estado, quase clamando alto um pedido aos antigos que
não permitissem que isso acontecesse com ela também, conosco...
Para Eva apenas dois meses faltavam, isso seria desmedidamente cruel
e ela talvez não resistisse a dor da perda. Talvez se entregasse a apatia, ou até
mesmo eu...
Eva pareceu sentir meus terrores, meus medos que não fiz questão de
compartilhar com ela, ainda assim ela me conhecia mais que bem, pois ela
desenhou em minha mão com o dedo a palavra “calma”.
Minha amada companheira estava me pedindo calma quando era eu
que deveria estar a confortando. Beijei sua cabeça quase orando uma prece
em agradecimento por tê-la ao meu lado nesse momento tão obscuro de
nossas vidas.
Mas assim era o destino, e eu como um pai preocupado só torcia para
que minha filha saísse mais forte dessa amarga experiência e como um irmão
mais velho eu queria ter o dom de arrancar com minhas próprias mãos o
sofrimento de Nicolae.
E meu lado egoísta e temerário torcia para que dois meses passassem
rápido para que Eva fosse poupada de passar por isso também.
Encontrando Jaci

André

Tiago passou toda a manhã andando ansioso de um lado ao outro no


escritório, hoje era o dia de sua escolha, o dia do baile.
Não tinha como fugir disso, até mesmo Amélia tinha comprado um
vestido para a ocasião, embora ela estivesse torcendo para não ser obrigada a
ir. Com certeza para ela não estava sendo nada fácil também.
Tiago novamente fazia sua peregrinação andando de um lado ao outro,
talvez quisesse ter uma última conversa com ela antes do baile, a agitação que
emanava dele deixava claro para mim que não duraria muito sua
concentração.
Soltando um longo suspiro ele voltou a sentar. Pegou um chumaço de
papel e começou a passar os olhos rapidamente. Logo trocou de folha como
se aquele documento não lhe interessasse, fez isso várias vezes, por fim
largou tudo na mesa e levantou bruscamente.
— Não dá! Vou falar com Amélia André, preciso resolver isso,
preciso explicar meus motivos...
Não me surpreendeu, eu já esperava por isso, ainda assim me senti
obrigado a mostrar que era contra mesmo sabendo que de nada adiantaria já
que um homem apaixonado só escuta a própria ansiedade.
— Ela sabe Tiago, sabe que é o melhor para o reino, não precisa fazer
isso a si mesmo e a ela.
Ele me olhou de torto me mostrando que não importa o que eu
dissesse, ele iria até ela. Meu amigo tolo. Amélia não ia permitir que ele se
aproximasse, não hoje quando ele precisava estar concentrado e quando ela
entendia que isso era o melhor para ele, mesmo que ela remoesse o
sofrimento, ela o afastaria.
Ela e Marcos já estavam a par do que estava acontecendo, dos muitos
sumiços sem explicação, estávamos todos preocupados, antes não tínhamos
reparado no meio de tantos indigentes, mas agora depois do trabalho dos
dois, um levantamento fora feito e ficou mais evidente que tinha coisa errada.
E conforme a organização ficasse melhor, ficaria mais fácil para mim,
saber onde procurar.
Amélia estava com alguma ideia sobre a casa da sacerdotisa, e ali
todas as mulheres com gestação avançada seriam mandadas em breve. E foi
por conta de mais essa organização que se percebeu o sumiço de algumas
delas.
Mas agora isso não era o mais importante, pois o meu querido rei ia
novamente mexer com a minha amada filha. E eu não podia fazer nada, na
verdade não queria fazer, Tiago tinha que encontrar o próprio caminho e
Amélia também.
O jeito era deixar as crianças e seus brinquedos e fazer o meu trabalho
enquanto ainda tinha tempo, chamei o guarda do meu regimento que estava
aguardando.
— Novidades sobre a investigação daquele corpo encontrado ontem?
— Não senhor, nada foi descoberto.
— Continuem investigando, escolha dois homens e façam uma ronda
na vila da procriação para ver se conseguem mais informações.
Ele assentiu e saiu, eu estava com um interesse maior nesse na grávida
que Amélia teve contato. Na verdade foi por causa dessa moça que as
investigações começaram e agora seria por causa dela que talvez
conseguíssemos alguma resposta.
Amélia tinha se conformado com o sumiço dela, a minha inocente
filha acreditava que ela tinha conseguido um lugar para ficar e eu tive que
omitir o fato de que essa Jaci nunca mais foi vista depois daquele dia, até
agora...
Ela estava no fosso, um buraco enorme que o rei Júlio mandou
construir como início de um projeto de esgoto que nunca se concretizou já
que a prioridade nunca foi dar uma vida melhor as famílias daquele bairro. Já
existia há algum tempo na parte baldia onde os moradores da vila dos
Procriadores usavam para jogar seu lixo.
Foi encontrada morta com os olhos muito abertos e com sinais de ter
passado por um grande terror, eu precisava descobrir quem estava fazendo
isso com as mulheres.
— Onde ela está?
Perguntei ao soldado que me esperava na porta e ele me levou ao lugar
menos querido do castelo, a masmorra onde o falecido rei usava para fazer
suas experiências. Mas, apesar da história macabra que cercava aquelas
paredes, ali tinha estrutura para analisar um corpo.
Subi as escadas de modo apressado, precisava dar uma olhada na
moça e a tirar dali o quanto antes, pois a notícia podia se espalhar e seria mais
um motivo para culparem Tiago ou até mesmo usar isso contra ele de alguma
forma.
O corpo estava inchado e não compreendi o motivo, pois o fosso não
era usado, provavelmente devia ser seco lá embaixo, entretanto aquele corpo
escurecido denunciava que ela ficou na água um bom tempo.
O cheiro pútrido me deixou atordoado, ainda assim me aproximei,
quase encostando o nariz naquele corpo e puxei o ar enquanto descia pelos
seios, pela barriga e todo o resto.
Por várias vezes apertei a boca para conter a ânsia de vomito, mas
tinha algo ali que eu não soube identificar, era como se ela tivesse tomado
banho com algum produto forte, pois mesmo que fraco esse cheiro era
perceptível e se misturava ao outros aromas nada agradáveis.
Essa mulher era uma incógnita, mas algo nela não era normal, e o bebê
não estava no útero, sua barriga estava murcha demais para uma gestação
teoricamente avançada.
A pergunta agora era, o que aconteceu com ela? Se ela sumiu na
estrada para a vila Nova porque apareceu na vila antiga dos Procriadores
naquele fosso? Ou ela voltou sem que ninguém a tivesse visto? Isso poderia
ser uma resposta viável, todavia eu queria saber o que fizeram com a
criança...
Desci as escadas e encontrei o guarda me esperando. — Preciso que
me arrume uma lona grande e uma carroça com quatro cavalos velozes.
O rapaz assentiu sem nada dizer, uma sorte porque esse corpo não
ficaria ali para os curiosos enxeridos, eu precisava de um nariz mais apurado,
um olfato bem treinado e isso eu encontraria somente no reino sombrio.
Não ia comparecer ao baile para a escolha de Tiago, esse assunto era
um assunto urgente.
Por fim... Amélia não precisaria ir ao baile de reconhecimento.
Por todos e por um

Amélia

Procurávamos um local para construir a casa de Clara, ela tinha saído


logo de manhã dizendo que ia vender as últimas joias para comprar umas
coisas que faltavam para seu novo e humilde lar.
Mas as coisas para ela aconteceram rapidamente, com seu sorriso fácil
e sua fala rápida, os moradores simpatizaram com ela com apenas algumas
palavras trocadas. Por conta disso tinha uma pequena multidão ali esperando
para limpar onde Marcos apontasse.
Logo ele sorriu e circulou com os braços abertos. — Duas árvores
robustas que farão sombra e é perto do poço, acho que encontramos o local
da nova morada de Clara.
Sorri em resposta, não estava tão contente quanto Marcos, ainda
amargava saber que hoje era o dia do baile e quanto mais o tempo passava,
mais triste eu ficava.
Quando os homens começaram a trabalhar ele se aproximou e me
entregou mais uma pequena soma.
— Os garotos andam trabalhando bastante ultimamente, é tanto recado
passando por eles, que acredito que verá mais dessas em breve.
Nenhum de nós dois ousou dizer em voz alta sobre o teor daqueles
bilhetes, meu pai tinha dado ordens expressas para que agíssemos
naturalmente, e alertar as crianças seria colocá-las em um perigo
desnecessário, por isso deixei sair um sorriso forçado.
Marcos enlaçou a mão suja de terra por meus ombros e me fez
caminhar ao seu lado. Ele demorou um pouco a falar, esperou que nos
distanciássemos dos homens que estavam trabalhando.
— Amélia, eu sei que anda guardando toda a mesada que André te dá.
Mas estou preocupado, precisa pensar em você um pouco.
Neguei. — Logo poderei fazer isso, mas agora não, estamos tão perto.
Em pouco tempo teremos a colheita das abobrinhas dos canteiros distantes,
então poderemos vender baratinho somente para terminar o valor de uma
carga de grãos e então começaremos a produzir no templo da sacerdotisa.
Ele insistiu. — Ainda acho que devia comprar um vestido de passeio,
ou um tecido, sei lá, algo para levantar seu ânimo.
Lá vinha ele novamente tocar na ferida, no assunto de meu desânimo.
— Que tal o senhor parar com isso? Já não comprei um vestido? Para quê
vou comprar outro? Acha que vou gastar com bobagens agora que falta
pouco? E só consigo guardar porque você sabe muito bem administrar as
moedas que as crianças trazem e os outros conseguem com pequenos
trabalhos.
Marcos negou. — Mas está aparecendo algum dinheiro porque você
arrumou alimentos, ninguém mais aqui está passando fome, temos o básico.
Logo teremos mais que isso.
O olhei cheia de cumplicidade. — Não seja exagerado Marcos, metade
do alimento veio do rei, esqueceu que ele mandou uma carroça com grãos?
Ainda assim mesmo com as moedas que você usa para comprar comida e
algumas doações só conseguimos dar a esse povo uma refeição por dia.
Ele alteou uma sobrancelha, encontrando ali um ponto para usar. —
Melhor do que nenhuma.
O olhei de viés e ele sorriu arteiro sabendo que eu não iria cair nessa.
Comer uma vez por dia não era dignidade, e comer somente abobrinhas,
rabanetes e repolhos em futuro próximo também não ajudaria muito.
Precisávamos pensar além da comida que estava na despensa e nos canteiros
que tínhamos preparado.
— Precisamos de pão Marcos. Pelo menos um por dia para
complementar a única refeição diária. Pelo menos para as crianças e as
mulheres grávidas. Também temos os doentes que precisam de força para se
curar. Foi uma boa ideia dos idosos de usar a sabedoria para o extrativismo, e
fabricar remédios com o que encontram na floresta. Logo essas boticas irão
ajudar também, mas ainda assim é pouco o rendimento, todos os dias chega
pelo menos um faminto procurando abrigo, precisamos de mais.
Marcos assentiu. — A notícia desse lugar está correndo, mais irão
aparecer, mas vamos conseguir, só que primeiro. O que acha de um passeio
de cavalo?
Ele não parava de tentar me animar, mas não adiantava, era meu
direito sofrer. Me virei para pedir para ele parar com isso e estaquei. Tiago
estava se aproximando, seu olhar estava distraindo passeando entre os
trabalhadores. Ele estava nos procurando. Puxei o ar e olhei aflita para
Marcos pelo que eu ia fazer, mas tinha que ser feito.
— Se eu fizer uma coisa, me promete que não irá surtar comigo?
Marcos apertou os olhos. — Fazer o que?
— Isso. — O puxei pela camisa e me estiquei na ponta dos pés,
encostei minha boca a dele e enlacei o braço em seu pescoço, rezando para
que ele não me empurrasse. Meu coração esmurrava meu peito
violentamente, mas não voltei atrás,
Tiago precisava ver isso, ficaria magoado eu sei, mas isso o faria
escolher uma esposa nesse maldito baile, porque agora, depois de tudo o que
foi descoberto e contra toda a vontade do meu coração que fosse eu a
escolhida, decidi abrir mão dele, abrir mão do meu sentimento, eu sei que não
seria o correto ficar com ele, Tiago poderia até perder a vida e mesmo que me
doesse ter que magoá-lo, eu não o quero morto ou ferido, meu egoísmo não
pode ser maior que meu amor por ele.
Marcos segurou minha cintura por reflexo, abri um pouquinho os
olhos e vi Tiago andando rápido, indo embora então soltei a camisa de
Marcos e levantei os olhos para ele completamente vermelha pela minha
atitude. Ele me olhava com aqueles olhos castanhos imensos de surpresa, mas
havia ali entendimento e ele balançou a cabeça.
— Sei o que fez, eu vi quando ele apontou ao longe, não te avisei
porque achei que seria bom vocês dois conversarem. Não devia ter feito isso,
com calma poderíamos pensar em outra maneira.
Limpei meus olhos, nem sabia que estava chorando. — Era necessário,
fiz por ele Marcos. Fiz por todos nós.
Marcos balançou a cabeça e me encarou com os olhos brilhando de
raiva. — Mas não é justo isso. Vocês dois mereciam mais do que essa merda.
Não respondi, não podia mais ficar amargando isso. Marcos pelo
menos entendeu meu ato. Por sorte nossa amizade era mais do que lábios
juntos, não senti nada, com certeza ele também não.
Em completo silêncio viramos para voltar, não demos nem dois passos
e um menino chegou correndo e me entregou um bilhete, estava sorridente e
entregou a Marcos duas moedas de ouro.
Ele franziu o cenho olhando as moedas. — Um pagamento muito alto
para entregar um recado, isso custaria uma ou duas moedas de bronze.
Fiquei preocupada, pelo valor do pagamento parecia algo urgente,
desdobrei o papel e não reconheci a caligrafia firme e cursiva.
Salve Amélia, filha de André.
Gostaria de pedir que viesse ao reino sombrio, Diana perdeu o bebê
ontem de manhã, está bem fisicamente, porém está muito abalada. Talvez a
visita de uma amiga ajude a banir sua tristeza.
Atenciosamente. Nicolae.

Soltei o ar devagar, não consegui imaginar a dor da minha amiga.


Olhei para Marcos e falei apressada.
— Vou ao reino sombrio.
— E o baile de hoje?
Neguei, estava preocupada demais com Diana para pensar nisso agora.
— Preciso ir. Minha amiga precisa de mim.
Ele não fez mais perguntas. — Cuidarei de tudo até sua volta.
Fiz um aceno em agradecimento, levantei a barra do vestido e corri
desvairada para casa. Precisava tomar um banho rápido e pegar o cavalo, me
virei para Marcos.
— Pode avisar meu pai sobre minha ida ao reino sombrio?
— E o que eu digo a ele?
— Só... Diga para ele entrar em contato com Priana sobre o motivo.
Ele assentiu e voltei a correr para casa. Ainda não estava acreditando
no conteúdo do bilhete, como Diana estava grávida e eu não sabia? Então era
por isso que ela andava tão abatida? Estava com problemas na gestação.
Minha querida amiga... Devia estar devastada.
Uma moeda para Aline

Tiago

Como pude ter sido tão idiota? Claro que ela ia ficar interessada
naquele Marcos. Ele estava sempre ao lado dela apoiando suas ideias
enquanto que eu nem mesmo apareci aqui para uma visita desde que ela
mudou. Na verdade nem estávamos nos falando desde que ela voltou do reino
sombrio.
Mas... verdade seja dita eu estava respeitando o espaço dela porque eu
sabia que ela precisava, mas hoje...
Eu queria conversar sobre o baile, abrir meu coração sobre tudo e ver
no que daria. Se por ventura ela me dissesse que sentia o mesmo, eu estava
disposto a enfrentar todo um reino por causa dela, mas... Marcos ganhou seu
afeto porque foi mais capaz do que eu, porque ao contrário de mim, ele não a
encheu de julgamentos, deu a ela apoio. E eu não podia sequer cobrar dele,
afinal, fui eu que a afastei com minha idiotice.
Estava andando a esmo, perdido em pensamentos nem percebi que não
tinha tomado o caminho da saída, na verdade acabei perto de uns canteiros já
com plantas despontando alto. Não estava nem perto de portão. Suspirei e
olhei em volta para encontrar o maldito caminho.
— Moço bonito.
Estava tão distraído que não vi a pequena espertinha que tinha me
ajudado. Sorri para ela, podia estar com o coração partido, mas ela não tinha
porque pagar por isso.
— Menina esperta... Como está?
Ela sorriu e apareceu duas covinhas em sua bochecha, ela estava mais
gordinha, pouca coisa, mas sua aparência estava melhor.
— Estou bem, mas já que está aqui, gostaria de lembrá-lo que não me
pagou a moeda de ouro por minha fidelidade.
Engasguei de surpresa e apertei os lábios para não rir, ela ficou me
olhando séria com aqueles olhos bonitos então cocei o queixo e falei como se
refletisse. — É verdade, mas veja, sou inocente. Não pude pagar porque
tenho um motivo para essa inadimplência. Existem muitas meninas que tem o
nome Dez por aí, então eu poderia entregar a Dez errada, por isso quero pedir
uma coisa.
Ela me olhou desconfiada. — O que seria?
— Quero que todas as vezes que perguntem seu nome, diga que se
chama Aline. Está bem?
Ela negou. — Nome diferente é um serviço extra, não conta como
fidelidade a você, então preciso de outra moeda de ouro para aceitar me
chamar Aline.
Meu estômago chegou a doer de vontade de rir, mas a menina era
comerciante e rir poderia encarecer o serviço já exageradamente caro de
aceitar um nome.
Respirei fundo para manter o rosto sério. — Muito bem. — Tirei duas
moedas do bolso do colete. — Como se chamará a partir de agora?
Ela esticou a mão. — Serei Aline por uma moeda de ouro por
enquanto, e sempre Aline por uma moeda de ouro por mês até eu morrer.
Entreguei a ela as moedas e seus olhos brilharam, olhou para a mão e
sorriu largamente.
— Então muito bem Aline. Quando vencer o mês eu mandarei
entregar sua moeda.
— Obrigada moço bonito. — Ela me olhou de viés — Mas está sendo
espertinho comigo, aceitei o nome então são duas moedas de ouro todo mês.
Não me contive mais e abri um largo sorriso verdadeiramente
encantando com essa adorável criatura. — Muito bem sua... mercenária em
tamanho de bolso! Mandarei o pagamento acordado e ressalto, encarecido, ao
final do mês.
— Ela pegou minha mão e ficou balançando enquanto ostentava um
enorme sorriso. — Vou te escoltar até a saída. Tenho que proteger o homem
que me deu um nome e fazer valer o pagamento do mês.
A olhei de torto. — Foi? Achei que precisei pagar para você mudar de
nome.
— Isso é coisa de negócios. Mas me chamo Aline e você, como se
chama?
Fiquei receoso de dizer meu nome, ela podia assim como muitos, ter
ódio do rei e eu não queria que essa criança me olhasse de torto, não sei por
que, mas um olhar assim vindo dela, eu sei que doeria. No entanto, não podia
mentir um nome.
— Me chamo Tiago.
Ela abriu os olhos surpresa e logo seu olhar mudou para um modo
sábio. — Sabia que o nosso rei também se chama assim?
— É mesmo? E como sabe o nome dele?
— Falam muito dele por aqui.
Fiquei incomodado, não queria Aline ouvindo coisas ruins sobre mim,
mesmo que ela não soubesse que era eu, tinha apreço por essa criança esperta
e fominha por moeda de ouro.
— E você acredita sobre o que falam do rei?
Ela assentiu. — Claro que acredito, e concordo com eles.
— A é? — Meu coração apertou um pouquinho, nem mesmo com
minha pequena protegida eu era bem quisto. Ela continuou falando distraída
enquanto chutava tufos de mato ao andar.
— Eles dizem que ele é bom, e eu acredito neles.
Fiquei surpreso e limpei a garganta, talvez não tivesse entendido
direito, na verdade eu precisava ouvir isso novamente, confirmar que não
estava maluco. — Dizem que sou... Quero dizer, que ele é bom? Mas por
quê?
Aline me olhou de torto. — Não fale mal do rei, vou ficar brava com
você.
Assenti, ansioso para que ela continuasse, me senti um tolo, mas essa
era a primeira vez que eu ouvia alguma coisa descente sobre mim, pelo
menos vindo de alguém que me importava.
— Qual o motivo de defender um homem que não conhece?
Ela continuou em sua tarefa de chutar tufos de grama, e respondeu
com a inocência infantil. — Ele mandou muita comida para nós. Também
deixou a gente morar aqui e ainda mandou construir uma casa para a tia
Amélia. Também mandou cavar um poço para que água chegasse a nós. Por
isso eu acredito que ele é um homem bom.
Fiquei olhando para ela sem saber o que dizer, ela inocente do que eu
estava sentindo continuou com os olhos brilhando.
— Sabia que tia Amélia prometeu que vamos ter pão todos os dias e
que será em breve? Foi o rei que ajudou ela para que o pão chegue e Marcos
também ajudou, ele sempre ajuda.
Prendi a respiração para não arfar de surpresa. Amélia tinha contado a
todos sobre a comida, e realmente isso eu não esperava, porém... Franzi o
cenho, eles pensavam realmente que toda essa coisa boa que estava
acontecendo com eles, era por minha causa? Mas eu só mandei a carroça de
grãos e cereais por conta da história dos cavalos sendo devorados, de resto
tudo era obra de Amélia...
Sorri involuntariamente sentindo pela primeira vez a paternidade da
coroa me envolver. Meu povo... então era esse o sentimento de ver gratidão
nos olhos das pessoas? Um calor tão profundo que aquece até a alma e nos dá
vontade de fazer mais e mais?
Aline me sorriu de volta sem imaginar o motivo do meu sorriso. Mas
sinceramente eu estava desacreditando que aqui onde havia tanto sofrimento
eu não era odiado. Porém eu não merecia o carinho desse povo, não quando a
casa que eu mandei fazer para Amélia foi por um ato egoísta e o poço
também... Mordi a carne da bochecha sentindo que ela corava do outro lado.
A comida também.
Aline não mais falou, continuou andando e me guiando pela mão
como se eu fosse um cego em busca da saída. Já eu continuei amargando a
alegria de ver gratidão quando eu nada fiz por merecer.
E esse pão que eu sequer tinha conhecimento? Suspirei pesaroso, se
Amélia ainda falasse comigo eu estaria a par de seus planos, mas agora ela
não dividia mais comigo suas ideias, era com Marcos que ela falava e era ele
que a incentivava e duvido que ele a chamasse de tola quando ela aparecia
com novas ideias...
Tive que confessar a mim mesmo que fui precipitado ao dar tão pouco
crédito a Amélia no início, e por causa dela e Marcos aquele ladrão de
mulheres, esse povo acreditava em mim, mesmo eu fazendo tão pouco por
eles.
Amélia estava mesmo conseguindo progresso e o pior, estava me
dando créditos que eu não tinha.
Eu tinha que ajudar mais esse povo para fazer valer o carinho deles
por mim e eu tinha que recompensar minha amada loira de alguma forma.
— Onde irão fazer esse pão, Aline?
— Na casa da mulher que preparava as meninas.
O templo... Acabei sorrindo ela ideia que me surgiu. Então eu tinha
como recompensar o que tia Amélia estava fazendo pelo tio Tiago, pois
por incrível que possa parecer comprar uma carga grãos ainda me custaria
cinco vezes menos do que os gastos com o baile e agora fico imaginando
quantas pessoas eu poderia alimentar se o dinheiro fosse revertido em
comida. Um gasto tão dispendioso somente para botar grilhões no rei. Mas eu
tinha aceitado minha prisão, por isso não podia mais lamentar.
Quando vi meu coche ao longe. Me abaixei e beijei a bochecha suja de
terra. — Obrigado menininha esperta, virei te visitar viu, gosto muito de
conversar com você.
Ela acenou sorridente quando entrei no carro. — Não se esqueça de
trazer moedas.
Quando fechei a portinhola acabei sorrindo de verdade, pela primeira
vez sentindo uma alegria que me preencheu completamente. Quem diria que
em um bairro desses, eu não era visto com maus olhos.
E essa menina... Foi meu bálsamo. Gostava mesmo dela, e não queria
ela passando fome. Queria poder cuidar dela de verdade. E se ela gostava de
mim porque eu era um bom homem em sua visão infantil, então eu tinha que
merecer de verdade esse sentimento.
Traga moedas... Ela ainda iria falir meu reino de tanto pedir moedas,
mas ela me fazia bem com sua sinceridade infantil e inocente, e eu precisava
disso para ainda ter forças para lutar por meu povo e ter ainda mais forças
para deixar Amélia ir.
Meu sorriso durou até a metade do caminho, a frustração me bateu ao
ver o sol se pondo. Quando a noite chegasse, aqueles malditos ficariam como
corvos em cima de mim, esperando minha decisão e se eu queria realmente
ser um bom rei, precisava protegê-los da ira da casta alta, e para isso somente
cedendo à pressão.
Na imaginação parecia fácil...
Pedido de ajuda

André

Tive que ficar escondido enquanto esperava, pois assim que cheguei
Nicolae me falou sobre a possibilidade de Amélia aparecer, pois Diana
precisava dela.
Pobre menina, perder o filho, não consegui nem imaginar seu
sofrimento, e infelizmente agora eu não podia prestar minhas condolências e
mostrar minha empatia por sua tristeza.
Ninguém podia saber que eu estava ali, ainda mais com um problema
desses. Principalmente Amélia, pois ela precisava estar com a cabeça fresca
para ajudar Diana, e saber o que me levou até o reino sombrio a deixaria
aflita.
Minha atenção foi para o corpo enrolado na lona. O cheiro estava
insuportável, antes os mortos eram entregues aos leviatãs, por isso quase
nunca sentíamos cheiro de carne pútrida. E agora com esse cheiro tão forte
quase dopando minhas narinas eu refleti sobre os humanos, sobre mim
mesmo e até sobre a vida.
Tantas brigas, tantas discussões para que no fim da vida, todos
rumarem para o destino, esse estado da carne, essa podridão toda depois da
morte. Valia mesmo a pena tanta guerra em vida e por nada? Sendo que o
destino de todos seria se fundir a terra e ser esquecido depois de um tempo?
— André.
Dei um pulo, geralmente eu ouvia ao longe quando alguém se
aproximava, claro quando um humano se aproximava, mas um sombrio era
sempre silencioso e eu ainda estava distraído.
— Pai.
Ele me encarou, seus os olhos cor de cobalto não saíram dos meus,
mas o rosto sério me dizia que ele sentia o cheiro. Ele já devia saber do que
se tratava, ainda assim esperava eu falar.
Balancei a cabeça. — Peço desculpas por trazer esse corpo, mas não
tenho o nariz treinado e nem sou tão versado em botânica, também não sei
absolutamente nada sobre alquimia, mas conheço cheiros e nesse corpo tem
um aroma que me é conhecido, porém não sei dizer o que é.
Abaixei e retirei a lona. Rael fixou os olhos contemplativos no corpo,
seu semblante continuou impassível. Porém suas narinas dilataram e seus
olhos ficaram atentos a cada detalhe.
— Essa moça teve um parto recentemente, não houve uma
interrupção, não com misturas. No entanto. — Ele apertou os olhos
desconfiados em minha direção. — Ela não cheira a gestação madura, ainda
faltavam três meses para o feto ficar pronto, e ainda assim, ele não está aí.
Assenti. — Essa é uma das mulheres grávidas que sumiu no reino
humano, não sabíamos desses sumiços até ela entrar em contato com Amélia
e ter prometido que ia aparecer no dia seguinte para receber uma ajuda. Só
que ela não apareceu e eu prometi que a encontraria e foi procurando essa
moça que acidentalmente descobri que outras tantas haviam sumido.
Meu pai sombrio continuou olhando para o corpo e assentia enquanto
eu falava, continuei falando sabendo por experiência própria que ele estava
formando uma opinião baseado no que ouvia, sentia e via.
— Como as mulheres estão abandonadas nas ruas, ninguém deu por
falta. Somente algumas moças do harém que tinham alguns contatos com a
família quando a floresta do rei ainda estava ativa. No mais a maioria delas
sumiu e ninguém se importou. Está complicado meu pai, é difícil conseguir
controlar tantos abandonados e acho que isso deu coragem a quem quer que
seja para pegar essas mulheres.
Rael assentiu e abaixou perto do corpo. Com a unha cortou o carne
acinzentada da barriga inchada da moça e levou à boca o dedo cheio de
sangue escurecido.
Olhou para mim sério. — A melhor maneira de saber o que corre pelas
veias dela é sentindo o gosto.
Não falei nada, também não achei nojento, ele tinha mais experiência
do que eu e se era preciso isso, por mim não fiz caso. De todo modo aquele
sangue escuro faltando não afetaria a saúde da mulher já morta.
Ele levantou e estalou a boca. — Foi usado milefólio, uma planta que
normalmente ajuda a estancar uma hemorragia. Essa mulher morreu, mas
tentaram salvá-la, acredito que seja o que for que pretendiam, não era para ela
ter morrido, pelo menos não se dá um remédio desses para quem você quer
matar.
— Então, não a queriam morta.
Rael negou. — Um bebê precisa ser alimentado, talvez ainda
esperassem dela mais alguma coisa. E tem outra questão a se levantar.
Esperei ele falar. Mas fiquei preocupado pelo tom que ele usou.
— Essa moça... é uma situação anormal, os humanos têm cheiros
particulares, cada um tem o seu natural, mas aqui o cheiro da gestação está
presente, no entanto não há cheiro de outra vida além da dela. É como se ela
não fosse gestante, porém o cheiro da gestação existe, mas não de outra vida.
Apertei os olhos tentando acompanhar o raciocínio dele. — Então ela
deu a luz a um natimorto?
Ele balançou a cabeça. — Acredito que sim.
Assenti mostrando que entendi, e voltei a enrolar o corpo de Jaci.
— Vou voltar ao reino, preciso investigar mais, muito obrigado meu
pai.
— Sempre que precisar.
Visita a Diana

Eu nem sabia o que dizer quando vi Diana daquele jeito, as olheiras


deixavam o verde de seus olhos mais acentuados. A preocupação nos olhos
do senhor Nicolae tinha era justificável, ela não parecia nada bem.
Depois de pouco tempo conversando entendi que ela não queria falar
do assunto, ela queria somente esquecer e eu respeitei seu espaço.
A deixei dormindo. Ao descer as escadas, fui direto a Nicolae que
estava olhando de modo contemplativo pela janela o por do sol lá fora. Minha
voz saiu baixa, parecia até um pecado tirá-lo de sua concentração.
— Imaginei que a encontraria aos prantos e isso não aconteceu, ela
está mais calma do que pensei, porém ela não me parece muito bem mesmo,
senhor Nicolae.
Ele assentiu. — Tudo o que eu podia fazer por ela já fiz, a encho de
atenção e carinho, e por mais que ela seja forte, pois isso faz parte da
personalidade da minha pequena, a abalou bastante o decênio do terceiro e
agora...
Ele não terminou de falar, devia ser difícil a ele continuar, eu ia propor
uma coisa que não fazia com Diana há algum tempo.
— Senhor Nicolae, o que ela precisa agora é de conversas bobas e
amigas bobas, ela precisa descontrair, dar risada um pouco.
Ele continuou a olhar para fora. — E o que sugere? Você é amiga
dela, poderia ficar hoje?
Assenti, podia e queria, não era só Diana que precisava de distração,
eu também, e consolar minha amiga agora seria como ter alguma
normalidade na minha vida bagunçada.
Ele soltou um suspiro. — Eva não conseguiu animá-la, nem mesmo eu
ou Rael, você tem razão, ela precisa de um tempo só dela. Nossa filha Celeste
apesar de ter tentado, ainda é fechada e prefere a solidão, ela não está em
condições de ajudar agora.
Eu entendia a preocupação dele com Celeste, a menina tinha sido
liberta há pouco tempo, e também precisava de compreensão.
— O que Diana precisa é de amigas sem vínculo familiar. Jena e eu
constituímos essa parte da vida dela.
— Acha que surtirá algum efeito?
Assenti, Nicolae amava sua companheira mais que tudo e dava tudo a
ela, mas há momentos em nossa vida que precisamos conversar sem esse tipo
de laço afetivo. Duvido que Diana consiga se soltar vendo o olhar de
preocupação nos olhos dele, por isso que só daria certo se fosse comigo e
com Jena.
O supremo Rael se aproximou olhando para Nicolae que assentiu
sutilmente sem tirar os olhos da paisagem lá fora, como eu conhecia esse
costume, imaginei que combinavam alguma coisa mentalmente. Por fim o
Primeiro príncipe olhou para mim.
— Amélia muito gosto em vê-la aqui por minha filha. Seja bem vinda.
Nicolae vai buscar Jena, há algumas casas na vila que estão vazias por conta
da morte do sombrio na batalha com os leviatãs. Acredito que uma noite de
meninas como vocês costumavam fazer, seria bom para todas vocês.
Assenti sem saber o que dizer ou como agir diante do Pai supremo dos
sombrios, mas fiquei contente com a sugestão, ele não podia ter dado ideia
melhor, assim eu e Jena ficaríamos mais a vontade, já que na casa dos
príncipes tudo parecia austero demais e me deixava inibida, então com
certeza Jena também ficaria assim.
Pensei melhor sobre aquela loba, na verdade nem sei se ela aceitaria
entrar na casa dos príncipes, o que também explicaria a sugestão do senhor
Rael sobre uma mansão desocupada.
A vantagem das vilas dos sombrios, é que todas as mansões ficavam
sempre cuidadas visto que era a única tarefa dos moradores da vila. Eu
mesma, quando morava na vila do senhor Odair, sempre gostei de ajudar a
manter a mansão impecável, pois sempre sonhei em ver os sombrios
levantando e andando por suas terras, e agora, depois de tudo, eu nem mais
sabia se realmente tinha feito a escolha certa quando parti desse reino.
Por fim soltei meu suspiro lamentoso, que até me incomodava porque
eu sabia que era por Tiago que eu suspirava, não podia pensar nele, tinha que
tirá-lo da minha cabeça, mas não adianta, virava e mexia ele ficava, como
sempre, dominando meus pensamentos.
Nem percebi quando, mas Nicolae havia sumido, devia ter ido buscar
Jena. Apesar do breu lá fora ainda era cedo e fui à cozinha para fazer a sopa
que prometi.
Eva estava sentada e Celeste cortava algumas fatias de pão, sorriram
para mim quando entrei acanhada na cozinha.
— Com licença. Eu queria fazer uma sopinha para Diana.
Eva sorriu amistosa. Seu rosto parecia ainda mais belo, a gravidez
estava lhe fazendo bem.
— Não precisa se encolher dessa forma Amélia, menos ainda essas
formalidades. A sopa de Diana já foi feita, mas fico grata se levar a ela. Rael
precisa colocar algumas vitaminas, ela não está muito bem...
Concordei com a cabeça, já imaginava o que seriam essas vitaminas,
sangue sombrio diluído com humano e ainda outros ingredientes que eram o
segredo do senhor Rael. Somente o pai supremo detinha esse segredo e ele só
seria passado quando a hierarquia também passasse. A não ser é claro, que o
senhor Rael fizesse como o senhor Leônidas, o pai dos príncipes que decidiu
dormir por décadas para honrar em luto silencioso Alina sua companheira, aí
então esse segredo passaria ao responsável mais velho, no caso o senhor
Nicolae e assim sucessivamente por ordem de grau de parentesco.
Todos nós que éramos moradores antigos sabíamos disso, Eva não
precisava ficar cheios de dedos comigo, pois eu cresci nesse reino, porém não
falei nada sobre isso.
Celeste me sorriu e levantou um copo vazio. — Quer um pouco de
refresco?
Agradeci e sorri de volta, seu jeito delicado e seu olhar gentil me fazia
sempre sentir pena do sofrimento que passou por um bom tempo de sua vida.
— Sente-se conosco um pouco Amélia, não demora e já poderá levar a
sopa a Diana.
Como me era estranho estar ali, mesmo tanto tempo morando nesse
reino nunca tive grande contato com os príncipes, e com Eva ainda menos,
pois apesar de ela ter servido aos príncipes por mais de setenta anos, ela
nunca precisou morar na vila, menos ainda precisava trabalhar no campo. O
senhor Rael nunca permitiu que ela saísse de perto de suas vistas, e agora eu
entendia o motivo de tanta proteção e do cuidado dele com ela, já que os
sombrios são extremamente protetores com suas companheiras, mesmo elas
não sabendo ainda disso.
Sentei e aceitei o copo oferecido por Celeste. Logo ela me olhou
curiosa.
— Tem noticias de Celina e mamãe?
— Elas estão bem, Celina voltou a ter pesadelos constantemente, e
Tiago não entende porque está acontecendo isso. Mas logo ela melhora, sua
mãe é muito atenciosa.
Ela abaixou a cabeça. — Mamãe não está muito bem ultimamente.
Eu entendia o que ela queria dizer, meu pai tinha comentado sobre o
receio de Tiago por sua mãe não estar querendo cumprir a parte do acordo
com o supremo dos lobos.
Dona Clara estava certa de que a piora de Celina era medo, de alguma
forma ela achava que a filha tinha medo de tudo.
Eu tinha uma ideia contraria a isso, não me saía da cabeça que essa
agonia de Celina era por ela estar no castelo que foi o palco de seu sofrimento
no passado, talvez as paredes, o cheiro... Não sei, mas o que fazia mal a ela
era estar ali. Mas eu não poderia me intrometer em algo tão íntimo.
— Se quiser, ficarei muito contente em ter companhia quando eu
voltar Celeste, vai ser bom para Celina ter você lá.
Celeste balançou a cabeça. — Não pretendo ir agora, por causa de
Diana, mas semana que vem vou para ficar um tempo, a última visita que fiz
a Celi, me deixou com o coração apertado, uma sensação estranha naquele
quarto, é como se eu sentisse alguém sempre ali.
Celeste abriu muito os olhos escuros, tão parecidos com os de Tiago...
— Não sei explicar de verdade, mas as pessoas que estão a cuidar dela me
incomodam.
Eva colocou a mão em cima da de Celeste. — É por conta do sangue
sombrio que corre por suas veias, talvez agora por conta do seu olfato
aguçado, alguns cheiros que não percebia antes a incomode mais. Mas como
combinamos, você deve apenas visitá-la de dia, sabe que a noite por vezes o
supremo a visita, de todo modo acho que será bom para Celina te ter por
perto, talvez ela sinta as coisas que acontecem ao redor dela, só não consiga
se expressar sobre isso.
Não falei nada sobre o conselho de Eva para Celeste, imaginei que
essas visitas do supremo não eram de ciência de todos, me senti incluída ao
ver que eles falaram disso normalmente na minha presença.
Celeste levantou. — Vou me recolher, se não se importam?
Neguei e Eva também, Celeste não era de muita conversa. Desde sua
transformação, as poucas pessoas que ela trocava mais do que algumas frases
era com Diana e Nicolae, nem mesmo com a rainha, sua mãe biológica, ela
parecia se abrir tanto.
Eva olhou para mim como que lendo tudo o que passava por minha
cabeça.
— Vejo que sente uma profunda tristeza menina, e ainda assim veio
aqui para consolar minha filha.
Sorri sem graça, nem imaginei que estava tão na cara assim, menos
ainda que ela me analisava enquanto eu estava perdida em pensamentos. O
mais estranho é que por poucos minutos eu não estava pensando nele, ainda
assim era sobre a família dele... Mas talvez minha tristeza aparente devesse
ser por conta do falso beijo que dei em Marcos, pois ali eu perdi Tiago para
sempre, agora ele ia escolher uma noiva realmente, pelo menos ficaria mais
seguro e livre da ira daqueles corvos das castas altas.
— Nada demais senhora Eva, apenas cansaço. — Tentei mudar de
assunto e olhei para sua barriga volumosa. — Mexe muito ai dentro?
Ela olhou com amor para o ventre. — O tempo todo, acho que será um
caçador agitado, e se for menina, será bem sapeca.
Fiquei contagiada pelo olhar feliz dela. Por fim depois de várias
conversas aleatórias e de sentir o bebe chutar, e rir gostosamente com os
pulos de Eva e os sorrisos orgulhosos quando olhava para a barriga eu subi
com a sopa de Diana.
Ela pegou a terrina e deitei ao seu lado, ficamos conversando até tarde,
Diana apesar da tristeza tentou me reconfortar por conta do baile que
acontecia no reino humano.
Evitei falar disso, apesar de doer muito, eu não estava aqui para ser
confortada e sim para confortar minha amiga .
Uma das lobas de Jena mandou recado que ela estava longe e estava
voltando o mais rápido possível, mas só conseguiria chegar no dia seguinte, e
assim Diana e eu dormimos juntas nessa noite. Fiquei um pouco receosa por
tomar o lugar do senhor Nicolae, mas ele insistiu para que eu ficasse, disse
que ficaria no outro quarto ouvindo a risada de sua pequena.
Isso me deu pena, pobre senhor Nicolae, parecia cansado e angustiado,
mas aqui, dentro da casa deles a conversa não fluiria e claro, somente com o
trio para que o dia das meninas ficasse completo.
Ainda com a falta de Jena conseguimos manter uma conversa até
pegarmos no sono.
Mas eu sei que Diana não estava à vontade, ela sabia que a casa toda
estava ouvindo, e estava só tentando mostrar que estava bem, para não
preocupá-los.
Interversão sombria

Rael

— Irmão...
Nicolae estava triste e abatido pelo sofrimento de sua pequena, mas
não era um caso que pudesse esperar.
— Diga irmão, elas já dormiram, logo sairei à ronda. Amélia não
percebeu a presença de André.
— Folgo em saber, Amélia não precisa de agitação agora. E quanto a
Diana vai ser bom ter esse momento para acalmar o espírito dela. Mas
acredito que você terá uma noite mais agitada um pouco, meu irmão.
— Do que precisa?
— Preciso que vá e contate o irmão do supremo dos Licans e o avise
sobre o perigo que a companheira dele está correndo. Leve Priana com você,
ela não pode mais ficar longe do companheiro dela .
— O que o preocupa?
— Acho que o tempo escurece para os humanos meu irmão, Samuel
deixou um legado. Preciso que deixe seu caçador gravar cheiros, dos
soldados próximos a André e de quantos conseguir. Não quero que interfira
demais, mas temos sangue nosso lá, e Diana não pode perder mais ninguém
agora.
— Vou cuidar disso.
— Não seja pego, e deixe a prisão dos leviatãs por enquanto, lá é mais
fácil para investigarmos. Hoje é uma boa noite para isso. Preciso do seu
olfato e lá todos estarão reunidos, pelos menos todos aqueles que nos
interessa que não te vejam.
Nicolae não respondeu, meu pobre irmão, sempre com as piores
incumbências, no entanto, nossa família cresceu. Dimitri era o pai de André,
Celeste a filha de Nicolae e de minha filha que tinha como amiga, uma
humana rodeada de miseráveis.
— Sinto sua preocupação, meu amor.
Minha Eva estava linda, me senti completo com aquele olhar âmbar
aquecido de amor para mim, sua barriga volumosa me fazia ficar contente por
nós dois, porém me lembrava da perda recente e conflituosamente também
me deixava triste por Nicolae e Diana que não tiveram a mesma sorte.
Segurei sua mão e levei aos lábios. — Não se preocupe meu amor, já
estamos resolvendo, alguns problemas dos humanos do qual não podemos
deixar de intervir, mas está tudo bem.
Ela me sorriu sabiamente e eu a amei mais por isso, ela sabia que não
era verdade, mas confiava em mim o suficiente para não ficar preocupada.
— Venha aqui.
Preocupado com meus movimentos e sua condição, a tomei nos braços
e ajeitei em meu colo com delicadeza e ela riu.
— Não vou quebrar Rael, já te falei tanto isso. Falo toda hora e você
não escuta.
— Ouvirei por mais três meses meu amor, pois meu preocupo. É
natural que eu seja bobalhão. Tenho em meus braços duas coisas que me faria
querer parar de andar pela terra se me faltassem. Você e a vida que aguardo
ansiosamente ver chegar ao mundo.
Ela deitou a cabeça em meu peito e fechou os olhos. — Eu amo o seu
lado bobalhão.
O sorriso brotou naturalmente em meus lábios, minha linda Eva...
Nada ia abalar essa calmaria no reino sombrio, mesmo que para isso eu
tivesse que interferir nas causas humanas .
Consequências

Tiago

Isso não vai ficar assim...


Acordei com esse recado anônimo sendo entregue pelo meu valete
durante a madrugada. Primeira coisa que fiz foi correr e averiguar o quarto de
Celi.
Por fim vendo que tudo estava calmo, acabei voltando ao meu quarto e
deixando de lado o maldito bilhete, aquilo era para mexer com minha cabeça
para me fazer escolher logo, mas apesar de ter decidido que ia ceder a
pressão, fui egoísta e não pude, não consegui dar a resposta que eles queriam.
Fiz tudo certo, me arrumei para o baile, dancei com cada moça até que
minhas pernas pediram descanso.
Se eu lembro o nome de alguma delas? Não, nenhuma me vem à
mente, agora quando penso nisso, sinto como se tivesse dançado apenas com
massas sem rosto, apesar de não esquecer algumas risadinhas irritantes. E
esse foi a história, sumi no meio do baile, larguei todos ali e subi para meus
aposentos.
A única coisa que me lembro de ter sentido, foi alívio por não ver
Amélia no baile, por ela não me ver flertar com outras moças, mesmo que
fosse somente de fachada, ainda assim eu temi magoá-la, no entanto mesmo
aliviado eu senti tristeza por ela não aparecer, meu lado egoísta queria vê-la,
queria confrontá-la sobre aquele maldito beijo em Marcos.
Por falar naquele ladrão que me roubou Amélia... Se ele não fosse um
covarde ia responder ao meu chamado e logo, assim que o dia amanhecesse
por completo ele apontaria na porta do salão e algum valete viria me avisar de
sua chegada.
Quando finalmente o dia amanheceu, tomei um banho, um rico café da
manhã e desci. Abri a porta do escritório e estranhei a ausência de André,
ultimamente ele andava muito estranho, a movimentação de seus soldados de
confiança era constante, porém ele andava sumindo bastante. Imaginei que
ele não quisesse me encontrar, talvez estivesse fugindo de mim por não
querer conversar comigo sobre o baile, sobre minha decisão, ou sendo bem
realista, talvez ele não queria se encontrar comigo para não ter que responder
as minhas perguntas sobre sua filha.
Averiguei para ver se ele deixou papéis para eu assinar como todos os
dias. Estavam ali, no entanto...
Um papel em particular me chamou a atenção. Anotações rabiscadas
com pressa. Um desenho no canto como se fosse um mapa e a palavra fosso
circulado com um ponto de interrogação.
O que estava acontecendo? O que André andava procurando?
Fosso... O que viria a ser isso? Me recostei na cadeira com essa
palavra nadando em minha mente, ela me lembrava algo. Fosso... Sim, a
lembrança do esgoto a céu aberto na vila nova. Era isso, lá também tinha um
desses, inclusive...
André entrou no escritório e me encarou profundamente, então sentou
na cadeira sem nada dizer.
— Não consegui escolher ninguém, André.
Ele assentiu. — Esse é o assunto do momento, por todo lugar que fui
só se falava nisso.
Me levantei um pouco receoso e lhe entreguei o bilhete. Ele franziu o
cenho quando leu a única frase de ameaça.
— Acha que é um blefe? — Perguntei esperançoso que ele assentisse,
porém ele negou.
— Não acredito que seja, acredito que eles estejam irados o suficiente
para trazer problemas a você.
— Amélia está no reino sombrio, né?
Ele sorriu de lado. — Ela não está em perigo, enquanto estiver lá, está
segura. Mas o que me preocupa é esse ódio, você devia ter apaziguado esse
povo Tiago, ganhado tempo, pois... — Ele suspirou e me encarou
preocupado. — Encontramos um corpo, estava em estado avançado de
decomposição, era de uma grávida e o mais estranho é que não encontramos
o bebê, precisávamos de mais tempo, de mais tranquilidade para investigar, e
agora com essa ameaça e com o ódio nas ruas acho que vai prejudicar as
coisas.
Minha parte para manter o reino próspero era totalmente executiva, me
sentia horrível por não poder estar em campo como André, poder ter essa
liberdade para circular pelo reino e um dos problemas disso, era a falta de
comunicação.
— Porque não me falou nada?
— Não falei porque não tínhamos nada realmente, tudo o que
tínhamos eram suposições, desconfianças e pouca informação concreta, na
verdade tudo aconteceu ontem pouco antes do baile, por isso não apareci, e
nem pude te avisar, achei que você precisava de cabeça fresca para poder
pensar e resolver o negócio da escolha.
— Que merda... E o que faremos?
André levantou. — Preciso dar uma olhada nesse fosso, saber mais
sobre ele, e preciso de algo novo, alguma coisa para poder progredir com as
investigações.
— Acha que outro baile seria apropriado?
— Se for para não escolher, acho que não devia tentar, vai deixar as
castas altas ainda mais irritadiças.
— Não se preocupe, dessa vez irei escolher, nem que isso seja a minha
morte, vou deixar o povo mais calmo para ver o que podemos fazer. Eu...
André levantou a mão. — Sei por que não o fez, aliás, por quem, e
nem sei que tipo de conselho devo te dar filho, vejo em seu rosto o quanto
está sofrendo, essa decisão será a mais cruel que precisará tomar desde que
recebeu a coroa. Pois ela irá além de mudar sua vida, também te fazer sofrer,
só o que posso te dizer agora, é para seguir sua intuição, é o certo a se fazer.
E assim André, meu único amigo me deixou com uma batata muito
quente na palma das mãos. Claro que eu ia optar pelo que era certo para meu
povo, mesmo que meu egoísmo achasse um erro enorme.
Noite das meninas

Amélia

Passei o dia fazendo hora com Eva e Celeste enquanto ajudava com o
jardim, Diana ficou conosco por um bom tempo, mas depois se recolheu a
tardinha alegando que estava com sono, eu percebi que era mentira, ela queria
era escapar, pois toda hora lhe lançavam olhares preocupados e isso a estava
incomodando.
Quando a noite chegou, ela ainda não tinha decido. Por fim depois de
novamente esperar a sopa ficar pronta, subi com a terrina e a encontrei bem
desperta, estava assanhada trocando de roupa, e quando me viu chamou com
a mão.
— Vamos Amélia, estou pronta.
Ela nem ligou para a sopa em minhas mãos e me arrastou porta afora e
descemos as escadas. Nicolae estava no hall e sorriu quando a viu.
— Certeza que vai ficar bem, minha pequena?
Ela o beijou. — Estou ansiosa, obrigada por isso.
Ele segurou sua mão e levou aos lábios beijando a ponta dos seus
dedos um a um enquanto falava. — Fico feliz em ver um sorriso só com a
menção de ficar com suas amigas, mas quero pedir algo em troca de passar
mais essa noite longe de você.
Diana sorriu. — Você nunca me pede nada, por isso farei qualquer
coisa que pedir, o que é?
— Quero que coma, Amélia ainda segura a sopa que você não tocou.
Diana soltou um gemido olhando desanimada para a terrina em
minhas mãos. Sorri de modo inocente e estendi a sopa.
— Ainda temos tempo, Jena não chegou.
Diana me olhou de torto e pegou a terrina, comeu rapidamente e
Nicolae riu com os olhos cheios de amor para ela.
Senti uma pontinha de inveja, queria eu poder ter um sorriso assim
para mim, um sorriso de amor, de preferência de um humano que usava uma
maldita coroa. Me repreendi mentalmente por minha fraqueza, seguramente
se minha linha de pensamento fosse para esse lado eu ficaria depressiva e não
seria uma boa companhia para minha amiga, mas fosse sorte ou azar, um
sombrio moreno apareceu na porta me salvando de continuar pensando no
rei.
Imaginei que ele tinha vindo avisar o senhor Nicolae que Jena já
estava chegando, no entanto ele olhou diretamente para mim e falou com a
voz respeitosa.
— Dê-me licença.
Quando entendi que ele falava comigo, já nem pude dar a tal licença
porque ele me pegou nos braços e saiu porta afora.
Ser levada no colo por um sombrio que cheirava muito bem e era
veloz e silencioso foi muito esquisito e fiquei completamente constrangida
com a situação, quase me arrependi de ter sugerido aquela noite das meninas,
mas no fim nem demorou tanto.
Logo ele me colocou no chão e em silêncio e com um aceno de cabeça
se retirou sumindo no breu da noite.
Não tive tempo nem de agradecer ou... Reagir ao acontecido. Jena saiu
das sombras, estava completamente nua e me olhava com malícia.
— Hum, vejo que arrumou um substituto para o bobalhão do rei
humano.
Revirei os olhos com a bochecha queimando de vergonha.
— Lá vem você com suas implicâncias, e porque não veio vestida?
Nem é mais na minha casa esse encontro então devia ao menos trazer algo
para se cobrir. Porque sempre tem que andar nua?
Jena levantou os ombros. — Queria que eu trouxesse uma trocha de
tecidos no pescoço da minha loba só para te agradar, humana? Ou achou que
eu vestiria minha loba com um vestido só para não ofender você e suas
manias puritanas.
Eu quase cedi a vontade de rir, já tinha implicado com ela para ver sua
resposta, eu amava debater com ela, Jena era engraçada mesmo sem intenção
de sê-lo.
— Não sou puritana, só acho estranho você nem ligar de ficar pelada o
tempo todo.
Jena riu. — Tenho é vergonha de andar assim. — Ela apontou para
mim. — Me deixe com minha pele à mostra e te deixo com esses tecidos
cobrindo tudo.
Eu ri e a abracei. — Obrigada por vir Jena. Diana precisa de nós.
Jena não retribuiu o abraço, porém não me afastou.
— Eu sei, senti o cheiro de um natimorto logo na fronteira, é sempre
característico, o corpo dela já está bem por conta do sangue sombrio, mas a
morceguinha exala tristeza.
A porta da casa estava aberta e entramos, o senhor Nicolae ainda não
tinha chegado com Diana, imaginei que ele estava fazendo hora para nos dar
tempo de falar sobre o assunto sem que Diana ouvisse. Por respeito a dor
deles decidi inventar assuntos com Jena, quem sabe ele estivesse ouvindo e
entendesse que era seguro trazê-la.
— Como anda as coisas com sua matilha Jena?
— Estão complicadas, muitos conflitos com outras matilhas. Laican
anda investigando uns rastros e alguns lobos mortos que apareceram, mas
ainda não temos nada.
Ouvimos a voz do senhor Nicolae se despedindo de Diana, logo ele
apareceu na cozinha, nem tínhamos visto quando ele entrou na casa, menos
ainda quando subiu as escadas. Eu pelo menos não tinha, Jena por outro lado
não pareceu surpresa.
— Ela está deitada. Obrigado por estarem aqui por ela.
Sorri em resposta e Jena bateu com o punho fechado no peito e ele
respondeu do mesmo jeito.
Era o cumprimento deles, até meu pai fazia isso, embora eu estivesse
longe de ser uma guerreira, fiquei tentada a fazer só para ver se o senhor
Nicolae responderia o cumprimento característico, claro que eu não consegui
ousar tanto, afinal de guerreira eu não tinha nada.
Jena me olhou com aqueles olhos verdes esmeralda. — Vamos ver a
morceguinha, ela está ansiosa.
Subimos as escadas e encontramos Diana ajoelhada na cama nos
esperando. Sentei de um lado e Jena do outro e como se fosse algo
combinado nós três deixamos o corpo cair na cama.
— Como anda o sono do seu irmão caçula, morceguinha?
— Ele vai estar diferente quando acordar Jena. — O olhar de Diana
ainda era triste, mas ela parecia bem melhor somente de estar ali. —
Meu pai disse que ele vai parecer mais maduro, e terá um maior domínio de
seu dom principesco.
Jena levantou os ombros. — Então ele vai estar uma delicia de
morcego, porém um bobo que não vai aceitar domar essa beldade de loba
aqui.
Diana riu. — Não alimente esperanças, ele nunca levantará a mão para
te machucar Jena.
— Uma pena, porque o machucarei muito, até que ele perca a
paciência e revide, aí então, minha querida morceguinha, eu vou mostrar a ele
como é o sexo selvagem dos lobos.
Diana e eu nos encaramos com os olhos arregalados, Jena juntou as
sobrancelhas.
— O que foi?
Nada. — Sussurrei em resposta.
Jena virou a cabeça de lado e apertou os olhos. — Não acredito que
estão com pudores para falar sobre isso. — Ela apontou para Diana. — Você
nem é mais virgem e você Amélia, com esse cheiro que sinto em você, só
pensa nisso o tempo todo.
Diana me avaliou de cima abaixo com a mão na boca escondendo o
riso. Levantei as palmas e me defendi daquela acusação injusta.
— Juro que eu não estava pensando em nada disso. A Jena que é
louca.
Diana começou a gargalhar de verdade e Jena piscou para mim,
entendi na hora sua intenção, essa maldita estava me usando para fazer Diana
rir, e aquilo estava funcionando, então contra a vergonha que se concentrava
em meu rosto eu dei corda.
— É sério, não pensei nisso, quer dizer, não estava, mas agora que ela
falou, até imaginei Tiago nu, mas isso foi por culpa da Jena, mas juro de
dedinho que não pensei antes.
Gemi escondendo o rosto quando Diana continuava a rir de mim e
Jena batia os cílios com malicia como se não acreditasse em uma palavra do
que eu dizia.
Jena apoiou a cabeça na mão ao virar de lado. — Diana, você é toda
certinha, não falaria isso a Amélia, mas confesse, ela não está cheirando
como se estivesse no cio?
Uou... — Fechei a cara. — Está me comparando a um animal?
Jena abriu um lindo sorriso. Ela era mesmo uma mulher deslumbrante.
— Mas não somos animais todos nós? Eu sou uma loba, Diana é uma
morcega, e você é uma humana, quer um encontro mais animal que isso?
Diana assentiu olhando para mim ainda rindo. — Desculpa Amélia,
mas seu cheiro é de alguém que está com os hormônios em rebuliço, Jena só
falou uma verdade.
Franzi o nariz e apertei os olhos com um sorriso amarelo nos lábios.
— Está bem, só um pouquinho, não consigo olhar para Tiago sem bajular
muito aquela boca, e também não consigo deixar de imaginá-lo sem aquela
camisa, porque os ombros deles são tão largos que me deixa muito curiosa
para ver sem o tecido, satisfeitas?
Jena assentiu. — Muito satisfeita, o que será que ele vai usar no baile,
talvez vocês se acertem lá.
Franzi o cenho. — Está atrasada Jena, o baile aconteceu ontem.
Ela sorriu misteriosa. — Você que não sabe de nada, ele não escolheu
ninguém no baile de ontem, acredite em mim, logo outro baile será
anunciado, pois duvido que os homens chorões como são, não vão ficar
pressionando, então se prepare Amélia, pois vai ter que pensar nisso em
breve.
Apertei os lábios sem saber se ficava feliz por ele não escolher
ninguém, ou triste porque ele ainda poderia fazer isso. Essa tortura parecia
não ter fim, já estava até tentando me conformar com a ideia e ter que passar
por isso de novo...
Diana me olhou preocupada. — Se outro anúncio sair, você irá ao
baile?
Neguei. — Não vou ver Tiago escolher uma noiva, isso seria pedir
muito ao meu coração.
Diana e Jena cruzaram os braços e me encararam com firmeza, me
senti acuada pelas duas.
— Não... Nem pensem, não vou a baile nenhum, você vai Diana?
Achei que...
Me calei antes de terminar a frase, quase mordi a língua com raiva de
mim mesma. Ela segurou minha mão e apertou.
— Rael me disse que isso é normal, que não é minha culpa e que meu
corpo ainda não estava pronto. Eu confio nele. Nicolae também me falou a
mesma coisa e Eva me disse que só segurou o bebê porque o corpo dela é
mais maduro que o meu, e que todas as mulheres lidam com estresse de
maneiras diferentes. Então, quando tudo estiver em santa paz, vou conseguir
ter um filho, não tenha receio de falar disso.
Apertei os lábios. — Sinto muito Diana. Desde ontem eu queria falar
isso, mas percebi que você estava se esquivando do assunto.
Ela assentiu com o olhar triste, porém esperançoso. — Eu também
sinto. Mas não vou ficar me martirizando mais, eu não sabia que tinha um
bebê dentro de mim, mas quando acontecer novamente eu saberei e irei
protegê-lo. Mas agora me torturar não o trará de volta.
E me esquivei porque sei que machuca os meus tocar no assunto e
ainda ficam me olhando com tristeza, não gosto de vê-los assim, ainda mais
Nicolae, mas logo essa fase ruim passa e terei outro filho, Amélia, em uma
situação mais tranquila tudo correrá bem.
Não falei nada, ela estava certa, ficar se torturando era bobagem.
Mudei de assunto, não queria deixá-la triste.
— Mas irá ao baile, aliás, se outro baile acontecer?
Ela levantou os ombros. — Não sei o que irão decidir, o de ontem não
fiz questão, com certeza o rei sofrerá pressão, então outro baile é quase uma
certeza. Tiago é meu amigo e Nicolae meu companheiro, se ele precisar ir eu
irei acompanhá-lo.
Diana soltou o ar e me encarou séria. — Queria que você fosse
Amélia, sei que será doloroso, mas você devia acompanhar André, graças a
você mesma, agora todos sabem que ele tem uma filha e não ficaria bem a ele
aparecer sem você. Faça pelo meu vovô assassino.
Como sempre ela tinha razão, meu pai sempre me apoiava, era mais
que justo eu apoiá-lo. Ainda assim suspirei já sentindo pena de gastar uma
parte de minhas economias para comprar um vestido. Os meus eram velhos,
meu melhor vestido era para um passeio simples, e os outros serviam para
trabalhar, não para ir a um baile.
Diana sorriu. — Se eu bem te conheço você está fazendo contas.
Arregalei os olhos e falei com a voz macia. — Eu? Imagina que eu
teria dó de gastar minhas economias com um vestido inútil de baile que só
me servirá uma vez. Tantas sacas de trigo que deixarei de comprar só para
ver o homem que amo escolher uma noiva? Ah Diana para! Acha mesmo que
eu ia ter dó de gastar com isso?
Diana riu e Jena estalou a língua. — Nossa que humana corrompida
pela febre do dourado. Mas não vai escapar de ir, a morceguinha está certa,
você precisa ajudar o morcegão do seu pai.
Uma das minhas lobas me trará uma bolsa cheia dessas famigeradas
moedas de ouro, acabei de mandar um recado para Pria roubar de uma
fazenda rica, amanhã você terá o dinheiro e vai comprar um vestido para ir a
esse provável outro baile ou eu juro que apareço lá completamente nua e tiro
seu pai para dançar.
Eu e Diana trocamos um olhar assustado, estávamos com certeza nos
perguntando a mesma coisa, se Jena teria mesmo coragem de aparecer nua
em meio a uma multidão.
Ela riu quando viu nossa cara e continuou.
— Acreditem, minha loba já está a uivar de alegre só de imaginar a
parte humana dela aparecendo sem roupas em um baile cheio de humanos
corruptos, mas que insistem em ficar horrorizados ao ver um corpo desnudo.
Incrível como são hipócritas. Você e seu pai são os únicos que se salvam,
mesmo você sendo tão interesseira.
Eu ri da cara brava de Jena. Se fosse antes eu sentiria receio desse
rosnado ameaçador, mas agora achei engraçado. Bati os cílios com cara de
inocente.
— Um vestido para baile é muito caro Jena.
Ela e Diana trocaram um longo olhar e Diana balançou a cabeça me
olhando feio.
— Extorquindo dinheiro da Jena, Amélia? Não tem vergonha?
Fiz um biquinho. — Mas o dinheiro nem é dela de verdade. Ela vai
roubar de uma família rica, não ouviu essa parte?
Jena riu assentindo com malicia e aprovação aos meus argumentos e
Diana ficou ainda mais brava.
— Não importa, ainda assim é errado, você é uma aproveitadora da
boa vontade das amigas.
Jena bufou. — Amélia está certa, ela está extorquindo dinheiro deles e
não o meu. E mesmo que eu tivesse alguma moeda, está jogada em alguma
casa inútil de algum lobo no reino Lican, não vou ficar procurando, é mais
fácil roubar dos humanos.
Diana olhou feio para Jena. — Não acredito que disse isso Jena!
Jena balançou a cabeça confusa. — Porque está tão brava
morceguinha? Não vou matar os humanos, eu prometo está satisfeita? Vou só
roubá-los. Estou sendo boazinha em consideração a você.
Diana ficou vermelha e acabei soltando uma gargalhada, não podia
amar mais essas duas. Vim para ajudar a levantar o ânimo de Diana, e ela
sem saber estava me animando, me fazendo esquecer as tristezas. Ela nunca
ia mudar, mesmo com todos os problemas, e Jena sempre seria ela mesma, e
era isso o que mais eu gostava, pois elas sempre acabavam assim, discutindo
eu adorava ver isso.
Depois de algum tempo nós três rimos e a conversa mudou para outros
assuntos, minha alegria nisso tudo é que Diana estava se divertindo, minha
amiga estava mesmo precisando de um dia só dela, um dia que ninguém
ficaria a olhando com preocupação, e perguntando se ela estava bem a cada
minuto.
E eu sei que era assim, eu conhecia aqueles sombrios e sua dedicação
aos membros da família.
O fosso
André

O fundo não aparecia, era apenas um buraco escuro circulado por


tijolos de barro.
Restava descobrir agora como que essa moça foi encontrada dentro
dele. Uns disseram que foi pelo cheiro, outros que alguém a estava içando por
uma corda e quando este viu que estava sendo observado deixou o corpo
pendurado e correu e nisso os moradores acabaram por terminar de tirar o
corpo.
Eu acreditei na segunda versão, não se podia sequer imaginar que
tinha uma pessoa morta ali se não fosse por alguém estar tirando o corpo do
fundo. O que me restava saber é... Por quê?
Pelo cheiro? Não queriam que o odor atraísse os curiosos? Para
esconder em outro lugar?
Não tinha como saber, a não ser que eu mesmo descesse e
investigasse, mas para isso, precisava arrumar um meio, uma maneira de
descobrir o que tinha lá embaixo. Só que ainda não tinha os meios para fazê-
lo. Precisava de cordas e vários soldados para puxar e ainda roldanas para
facilitar. Bom... ainda ia pensar em um modo, todavia, já tinha pedido um
tipo de estrutura de madeira, e roldanas especiais que aguentasse uma corda
com segurança, o único problema é que ia demorar uns dias para ficar pronto.
Por isso não fiquei muito tempo perto do lugar, não podia chamar
atenção nem para o fosso nem sobre a curiosidade sobre ele, isso poderia
atrapalhar qualquer progresso futuro e a única maneira de não alertar quem
jogou o corpo nesse buraco seria fazer desse acontecimento algo rotineiro,
sem importância. Já que quem o estava usando devia pensar exatamente
assim, que por ser no bairro dos Procriadores, ninguém iria se importar com
aqueles que morriam, menos ainda com o cheiro se ali fosse um depósito de
corpos, poderia ser, eu só saberia quando pudesse descer.
Por fim acabei indo a vila dos Renegados, precisava saber se Marcos
tinha alguma novidade nos bilhetes, pedi a ele para interceptar o maior
número de recados que conseguisse.
Não tive sorte com isso também. Depois de vinte minutos para chegar,
fui informado que ele não estava no momento, segundo disseram, ele tinha
ido ao castelo, pois foi chamado por Tiago.
Com um suspiro desanimado e sem nada para fazer, entrei na
estalagem para molhar a garganta e descansar um pouco do pó da viagem.
Depois disso só me restaria voltar para o escritório e amargar a espera visto
que não conseguiria nada até que a estrutura de madeira ficasse pronta.
Não tive tempo nem mesmo de pedir um refresco, pela janela vi Dante
caminhando apressado, o semblante não era dos melhores, ele olhava para
todo lado, devia estar se certificando que não estava sendo seguido.
Sentindo aquela estranha sensação de que ele não pretendia coisa boa,
eu me afastei da janela e fiquei com o corpo inclinado para que a parede me
ocultasse, segui o antigo conselheiro com o olhar, precisava saber onde ele
iria virar ou para onde iria seguir para que eu pudesse segui-lo.
Poderia não ser nada, mas eu nunca confiei nesse homem, sem contar
que o olhar preocupado para os lados mostrava que ele não queria ser visto.
Logo outra figura seguiu o mesmo caminho, esse também estava
olhando para todos os lados. Andava atento e parecia despreocupado, mas
não me enganou, era claramente um encontro e agora eu só precisava saber
onde era esse local.
Por sorte ele, assim como Dante, não olhou dentro da estalagem. Com
a calma de um predador, esperei ele passar, joguei uma moeda de bronze na
mesa mesmo não tendo pedido nada e o segui.
Demorei alcançar a esquina onde os dois viraram, precisava dar o
tempo necessário para deixá-los seguros. Dante continuava à frente e o
homem se mantinha no mesmo ritmo, não olhou para trás nenhum momento.
Andei me esquivando, me escondendo atrás dos montes de lixo e até
mesmo de algumas árvores que foram deixadas durante a limpeza para o
bairro novo.
Dante a frente virou uma esquina e o homem que o seguia apertou o
passo. Fiz o mesmo e parei, me encostei a uma parede de uma casa quando os
vi parados.
Era o fim da rua, à frente deles se via a muralha da prisão. Não
precisei chegar tão perto para ouvir a conversa, e eles não estavam
preocupados em sussurrar a então ficou mais fácil para mim.
— É esse o lugar. — Disse Dante apontando para a muralha.
O homem assentiu. — Só ela?
Dante fungou. — Somente ela que precisamos eliminar, é por causa
dela que o rei não escolheu uma noiva. É essa aí que está estragando tudo
somente com sua presença indesejada. Aquela maldita filha de um escravo
que pensa que é alguém.
O homem não formulou mais comentários. Apenas falou seu preço e
Dante o encarou de semblante fechado.
— Não acha que está sendo abusado, meu rapaz? Você é um maldito
mercenário, assassino de esposas velhas, está pensando que é quem?
O homem levantou os ombros sem se ofender. — Meu preço é esse,
serei eu que virarei um fugido, preciso garantir minha estadia em todas as
pocilgas existentes e isso carece de moedas. Posso ser assassino de velhas,
mas foi a mim que você procurou porque sabe que sou ganancioso o
suficiente até mesmo para enfrentar a ira do general. Ele pode ser escravo
como você diz, mas aquele homem não é para se brincar. Acha que não sei o
que pode acontecer comigo se ele descobre que matei a filha dele?
Dante suspirou ainda bravo. Pegou uma bolsa de couro bojuda e
entregou ao homem.
— Aí está metade do pagamento, quando terminar a encomenda,
pagarei o resto.
Eu tinha prendido a respiração e tentado controlar minha ira enquanto
ouvia aquela negociação para matar minha filha. Mas quando Dante sumiu
por uma viela, eu segui o homem, ele que era o assassino então seria ele que
teria minha atenção agora, com Dante eu me acertaria depois.
Quando ele virou uma esquina eu acelerei o passo e corri ainda na
mesma rua que eu estava até o quarteirão abaixo, precisava interceptá-lo
antes que sumisse.
Cortei por uma viela e esperei ele passar, quando o fez o peguei por
trás e o arrastei comigo. Ele se esperneou, mas eu não queria saber de nada.
Não podia deixar o homem que aceitou matar minha filha vivo, nunca ia
permitir que ele a ferisse.
Quebrei seu pescoço com uma torcida brusca e o joguei ali mesmo na
viela. Apanhei o saco de moedas que ele tinha recebido adiantado e medi o
peso. Realmente um alto valor.
Ninguém viu, mas não me importei se tivesse algum espectador. Nada
tinha importância agora, pois eu sabia de uma coisa. Se Dante encomendou a
morte dela outros fariam e eu não podia permitir que tentassem novamente,
precisava mostrar que eu sabia para desencorajá-los a arriscar a cabeça
tentando novamente.
Chamei um garoto de recados e pedi a ele para me arrumar um saco,
duas folhas de papel e um carvão.
Não demorou nada e o garoto apareceu com o meu pedido, por último
eu pedi a ele para dizer a Marcos que assim que chegasse que fosse a
estalagem de sempre.
Quando o garoto correu para fazer o serviço eu segui para a viela. O
homem ainda jazia intacto. Nenhum morador tinha encontrado o corpo senão
ele já estaria nu.
Decepei sua cabeça e enfiei no saco. Usei seu peito endurecido como
apoio para o papel e escrevi um bilhete curto.

Um presente para um amigo. Se gostou posso fazer igual com você.


Atenciosamente. Um pai atento.

Pedi a um garoto pouco maior que o primeiro para entregar minha


encomenda. Fui generoso com o pagamento aos dois garotos, afinal o
dinheiro nem era meu. Então eu podia esbanjar a vontade.
Passei na estalagem e deixei lá com a mulher um trapo manchado de
sangue e um bilhete lacrado, ela sorriu ao receber a moeda dourada e garantiu
com acenos efusivos que não abriria aquele bilhete, pois garanti isso com
uma sútil ameaça de mandar fechar seu pobre estabelecimento como castigo
se o fizesse.
Marcos entenderia a mensagem, afinal um escravo mesmo liberto
sempre sabe como se comunicar sem precisar palavras. No bilhete continha
apenas o nome da rua em que o corpo decapitado jazia e o trapo com o
sangue era um pedaço de minha camisa de soldado e claro que ele saberia
que o autor da morte era eu e daria um jeito de sumir com aquele mercenário
infeliz que ousou aceitar a oferta para fazer mal a minha filha.
Montei meu cavalo e o incitei a correr, tinha pressa de chegar ao
castelo e avisar Tiago sobre as consequências de sua rebeldia no dia da
escolha.
Pressão

Tiago

— Majestade, o filho de Uzias diz que é aguardado pelo senhor.


Fiquei surpreso com o anúncio, Marcos... Esse ladrão de mulheres
tinha me deixado esperando no dia anterior e agora que eu já nem mais o
esperava...
— Traga o aqui no escritório.
Eu tinha que admitir que ele estava sendo corajoso ao aceitar meu
convite. Não demorou nada e ele apontou na porta.
— Com licença...
— Entre Marcos e sente.
Ele o fez me olhando de modo desconfiado com certeza já imaginando
o que eu ia perguntar. Mas não me fiz de rogado, era quase uma necessidade
física saber mais sobre aquele beijo e por isso fui direto ao ponto.
— O que você tem com Amélia?
Imaginei que ele ia titubear, começar a gaguejar ou mesmo ficar
nervoso, mas minha pergunta não pareceu afetá-lo.
— Nós somos amigos e apenas isso.
Apertei os olhos tentando buscar a mentira por trás daquela afirmação,
meu ciúme me incitando que insistisse nesse assunto. Como podiam ser
amigos se...
— Amigos? E aquele beijo era o que? Fraternal eu sei que não foi.
Marcos revirou os olhos. — Há... Aquilo?
Franzi o cenho, senti um tipo estranho de alívio pela maneira que ele
falou, contudo ele ainda não tinha me respondido e eu precisava saber, meu
coração precisava saber mesmo que eu não tivesse nenhum direito sobre
Amélia, ainda assim, se tratando dela eu não conseguia evitar ser territorial.
— Sim... Aquilo foi um beijo.
Marcos soltou um suspiro e me encarou de modo desafiador, como se
sentisse até mesmo raiva de mim.
— Aquilo nunca foi um beijo. Foi encostar pele com pele como se
tocássemos braço com braço. Não houve nada ali, ela fez isso por você, na
verdade fez por nós. Ela sabe da importância da escolha de uma noiva. E ela
sabe que vossa majestade está sofrendo muita pressão então fez essa
encenação para impedir que o rei titubeasse na hora de escolher, para que
pensasse que ela e eu estávamos juntos e assim incentivá-lo a ir em frente.
Mas acho que não funcionou, já que é sabido que vossa majestade não fez sua
escolha.
Ignorei a última parte do que ele disse, meu interesse era na parte que
o beijo era uma encenação, tive medo de ter entendido errado, então
precisava confirmar. — Fez... Por isso? Não houve sentimentos então?
Ele negou e senti um alívio tão grande que foi como se o sol
começasse a brilhar mais, como se as cores ficassem mais nítidas, até o dia
me pareceu mais bonito.
Marcos ficou a medir minhas reações. Por fim balançou a cabeça. —
Se a ama tanto assim, porque não a escolhe de uma vez?
Pisquei várias vezes para tentar encontrar palavras para explicar os
milhões de motivos para não escolher Amélia, sendo que o mais importante
era a vida dela estar segura, mas antes que eu formulasse uma frase ele
levantou e ergueu as mãos.
— Olha quer saber? Não é de minha conta, vocês dois são adultos e
sabem o que estão fazendo, eu só acho que é burrice sofrer se o amor é
correspondido. Se fosse apenas um lado que amasse e o outro não, eu até
entenderia, mas vocês se amam, é claro para qualquer um que veja como se
olham, por isso não deviam ficar arrumando obstáculos para não encontrar a
felicidade juntos.
Ele fez uma reverência respeitosa. — Majestade, se era apenas isso
que o senhor queria perguntar, eu gostaria de resolver meus assuntos.
— Obrigado pela sinceridade.
Ele fez um aceno e me lembrando de outra pessoinha que já vivia em
meus pensamentos acabei perguntando antes que ele saísse. — E Aline como
está?
Ele sorriu e abriu a porta, antes de sair olhou para mim.
— Ela tem quatro nomes na lista de admiração dela. Tia Amélia,
Marcos, Rei Tiago e Tiago.
Ele sorriu para mim e acabei deixando um sorriso escapar quando
assenti.
Quando ele deu um passo eu novamente perguntei. — Porque não veio
ontem como pedi?
Ele me encarou por uns momentos como se refletisse sobre a pergunta
e então suspirou. — Ontem uma coisa urgente carecia de minha atenção,
peço perdão por não poder vir imediatamente.
Ele saiu e fechou a porta. Sorrindo feito parvo olhei para o vitral
colorido do escritório. O sol brilhava bonito lá fora, e eu fiquei empolgado
depois da conversa com Marcos.
Saí cantarolando, ia levar Celina para tomar um pouco desse
maravilhoso sol no jardim da rainha, ficar um tempo com ela e ver se ela
dava algum sinal de mudança naquele estado.
Amélia não tinha nada com Marcos, pelo menos isso tinha tirado uma
dor contínua em meu coração. Então, para comemorar eu ia me distrair um
pouco cuidando de Celi.
Um soldado apareceu com um bilhete dizendo ter sido entregue por
um garoto de recados... Isso não me pareceu boa coisa.

Anuncie outro baile de conhecimento. Tente ganhar tempo.


Um assassino foi contratado para matar Amélia como retaliação a
sua recusa. Não se preocupe, já cuidei disso.
Ela chega hoje, peço que mande alguns dos meus esperar por ela no
portão, não chegarei a tempo.
André.

Minhas mãos tremeram quando terminei de ler. Não podia ser, eles
não podiam fazer isso comigo, justamente ela... Como esses malditos... Por
fim meu passeio com Celi ia ser adiado. Eu precisava mandar chamar alguém
do conselho e reverter isso.
O conselheiro Pedro como se farejasse as merdas que estavam
acontecendo me parou antes que eu alcançasse as escadas.
— Majestade...
Apertei os lábios para não soltar uma imprecação bem alta. Me virei
tentando mostrar tranquilidade, porém os olhos inflamados dele me causou
preocupação. Falei antes que ele começasse.
—Avise a todos os de castas altas que outro baile de reconhecimento
será feito. — O encarei com o semblante severo para não dar margem para
que me contestasse. — Daqui há duas semanas. Agora pode ir.
Por um momento ele pareceu pensar em regatear o tempo, mas vendo
meu olhar nada amistoso ele recuou e o rosto dele se iluminou, em contra
partida o meu murchou. Realmente não ia dar para escapar de encontrar uma
maldita noiva, não quando apenas por ter adiado essa escolha já tinha
causado essa situação a única mulher que meu coração queria escolher, no
entanto era um fato que ela estava definitivamente proibida para mim.
E se André não tivesse descoberto antes sobre esse plano de assassinar
Amélia?
Rilhei os dentes para conter a ira somente de pensar nisso, se algo
acontecesse a ela... O que esses malditos não entendiam é que no começo eu
queria ser alguém melhor que meu pai porque não suportava a crueldade dele.
Mas agora, depois de engolir tanta afronta, tudo o que estava me
segurando de não aderir a violência e a brutalidade contra meus inimigos, era
justamente a mulher que eles estavam tentando tirar de mim.
Era somente por causa de Amélia que eu ainda não tinha cedido a
tentação de usar o poder de minha coroa para fazer valer minhas vontades
sem pensar nas dores que eu causaria.
E agora, ela estava voltando do reino Sombrio completamente
inocente que sua vida corria perigo. E independente de minhas obrigações, de
uma noive que eu viesse a escolher e até casar, nada nesse mundo me faria
deixar de cuidar de Amélia, eu teria uma esposa que não queria, mas ela teria
que suportar me ver correr para a filha de André todas as vezes que ela
precisasse de ajuda.
Mas agora, eu ainda não estava preso a um matrimônio, e isso estava
irritando os de casta alta, eu tinha que manter Amélia segura, pelo menos até
que a escolha fosse feita.
E não importa o lugar que ela ficasse, se fosse nesse reino não a
deixariam em paz. Eu poderia matar esses malditos, mas não... Uma atitude
impensada causaria mais problemas, o que eu tinha que fazer era encontrar
outro meio de livrá-la deles.
Subi as escadas correndo, eu mesmo ia esperar por ela, esperar
somente para mandá-la de volta, nem que fosse a força. Aqui a vida dela não
estava mais segura e eu não podia viver esses dias em angústia e com receio
que algo acontecesse a ela. Poderia ter dito a Pedro que seria alguns dias
somente para o outro baile, mas ainda havia a questão do fosso e do tempo
que André pediu.
Peguei o vidro que Diana tinha deixado caído no assoalho da
carruagem antes de fugir com André naquela noite há alguns meses atrás e
voltei pelo mesmo caminho.
Eu tinha guardado comigo como uma lembrança boa do único dia que
fiz algo de bom por alguém e agora esse mesmo vidro me ajudaria a fazer
algo cruel com a pessoa mais importante da minha vida.
Recepção inesperada

Amélia.

Estava quase chegando e dei graças por isso, não via a hora de
descansar um pouco. A noite das meninas durou mais que o costume, Diana
estava tão falante e eu soube que era para conter a dor da perda, ela queria
esquecer o que aconteceu e fizemos tudo para ajudar nisso. Prometi a ela que
voltaria em breve, senhor Rael apareceu logo cedo nos dizendo que Diana
precisava de cuidados.
Esse momento só nosso foi bom para nós três, Jena também parecia
revitalizada e eu estava bem melhor. Só que agora o cansaço me chegava,
quem diria que poderia ser tão cansativa essas idas e vindas de um reino a
outro. Mas não podia cortar meus laços, o reino sombrio foi minha casa e
agora o reino humano também ganhou a metade do meu coração.
O volume de soldados circulando ao redor do portão parecia maior do
que o costume. Fiquei preocupada de ter acontecido algo, porém o carro
passou sem nenhum problema pelo portão e tudo parecia normal.
Tentei captar algo incomum e nada parecia estar fora do lugar, mas o
carro parou sem aviso e a portinhola se abriu.
Minha surpresa não podia ser maior quando vi Tiago entrar e sentar ao
meu lado, tão perto que pude ouvir o som da sua respiração.
— O que está acontecendo? — Perguntei com a voz falha,
completamente afetada pela aproximação e receosa de seu olhar. Alguma
coisa aconteceu que o deixou completamente transtornado, o que poderia ser?
Já tinha visto muitos olhares nele, mas não um que mostrasse tanto medo.
Ele balançou a cabeça e seus olhos marejaram. — Me perdoe Amélia,
você não está segura aqui, e eu não posso perder você, não desse jeito.
Não tive tempo sequer de perguntar por que ele parecia tão abalado,
porque estava me pedindo perdão assim do nada.
Ele me segurou e roçou os lábios nos meus sussurrando. — Me
perdoe.
Com a outra mão ele colocou um pano em meu nariz, senti um medo
medonho daquilo, me senti completamente traída, não ele, qualquer um
menos ele.
Não sei o que ele ia fazer comigo, mas pelo seu olhar triste eu soube
que não era algo que ele fosse se orgulhar depois.
Meus sentidos foram se apagando, o rosto de Tiago foi ficando
embaçado e meu corpo amoleceu completamente.
Atitude impensada

Tiago

A segurei com cuidado e mantive próxima protegida por meus braços.


Coloquei a cabeça na janelinha e gritei ao cocheiro para que desse meia volta.
Ele não fez perguntas, apenas obedeceu. Quando a carruagem saiu pelo
portão eu recostei no banco e fechei os olhos.
Quando meu pai era vivo, ele me chantageou usando minha mãe e
minhas irmãs para conseguir minha completa submissão e silêncio. Hoje, os
de casta mais alta estão fazendo o mesmo que ele, usando Amélia para me
por cabrestos, para me fazer dobrar às suas vontades.
Naquela época eu não pedi ajuda aos sombrios, não acreditei que um
filho do rei Júlio pudesse ter deles compaixão. Não acreditei que eles me
ajudariam. Diana me provou o contrário, as tirando do reino humano e as
escondendo no reino sombrio. Ainda me ajudou com Celeste que agora além
de liberta ainda tinha o sangue sombrio correndo nas veias.
Fui orgulhoso e medroso naquela vez, mas não serei agora. Não podia
permitir que Amélia se ferisse somente para que eles consigam de mim mais
respostas positivas, mais desse famigerado sim que tanto estavam
acostumados a ouvir.
Duas vezes ameaças... Marcos e André não permitiram que
acontecesse, mas e se uma hora eles conseguissem feri-la?
Esse sentimento de medo por alguém que amo parecia até uma maldita
lembrança dos tempos do meu pai, o amargor do desamparo. Porque não a
deixavam em paz? Eu já não estava fazendo o que queriam? Não estava
mostrando que estava disposto a me casar com uma de suas filhas? Eu não
disse que não escolheria, só não consegui escolher naquele baile.
O carro parou de supetão e segurei Amélia com mais força para que
não fosse jogada a frente. A portinhola se abriu e Nicolae entrou no carro sem
dizer nada. Por algum tempo senti apenas vergonha do que estava fazendo.
Mas não ia voltar atrás, já tinha ido longe demais para desistir, logo essa
vergonha se transformaria em alívio.
Quando o carro iniciou movimento ele me sondou enquanto batia com
o indicador nos lábios de modo pensativo. Então como se conseguisse sua
avaliação sobre meu estado ele voltou os olhos para a paisagem lá fora e
soltou o ar parecendo cansado.
— Está se torturando. Nem tudo está ao seu alcance. Priana nos
passou sobre o ocorrido.
Olhei para ele quase desesperado para pedir conselhos, nunca fui
treinado para ser rei, nem para ser um bom amante. Nunca fui treinado para
nada senão obedecer às vontades de meu pai. Agora toda essa inexperiência
cobrava seu preço e eu estava sendo manipulado por aqueles malditos.
Nicolae olhou para Amélia que dormia profundamente em meus
braços. — A integridade dela já foi comprometida, por mais que faça a
escolha que lhe obrigam, ainda assim, não a manterá longe do perigo. O que
está pretendendo é impensado.
Recostei no banco sentindo a derrota me roer os ossos.
— Estou preso em minha própria herança, príncipe Nicolae. Ser rei é
uma merda, meu pai fez tudo o que quis, porém fez isso na base da tirania. Já
eu tentei ser melhor do que ele e a única coisa que consegui com isso foi
sofrer e perder a chance de ser feliz.
Ele assentiu. — Ser rei tem seus espinhos.
Sorri sem humor. — Agulhas, não espinhos, mas agulhas que me
ferem a alma. Achei que abrindo mão de Amélia a manteria segura. E agora
tenho que escondê-la dos humanos para não vê-la morta.
Passei a mão pelos cabelos dourados da mulher que tinha meu coração
nas mãos, um ato tão pobre visto que era um carinho que ela não estava
sentindo. Nicolae agora estava calado, mantinha o semblante fechado, parecia
contrariado.
Mesmo envergonhado do que estava fazendo, decidi perguntar.
— O que faria em meu lugar?
Ele demorou um pouco a responder e quando o fez não se deu ao
trabalho de desviar os olhos da paisagem lá fora.
— Não deixaria ninguém tirá-la de mim. Não importa com quantos eu
lutasse, eu venceria quantos entrassem em meu caminho.
Soltei o ar sentindo o julgamento em cada palavra. — Para você é fácil
falar você é um sombrio. Teria como protegê-la, já eu sou só um homem.
Nicolae balançou a cabeça. — O amor verdadeiro nos torna mais
fortes irmão. Se desistir de lutar pelo que lhe é caro então não merece nem
demonstrar esse sofrimento pela mulher que diz amar. Está abrindo mão dela
sem lutar, realmente sou um sombrio, um príncipe sombrio e você é um
humano, porém, é um rei humano.
Fiquei consternado com suas duras palavras carregadas de
julgamentos. Até ele que tanto pelejou não ia entender que meu poder não se
abrangia a proteger a integridade da coisa mais importante para mim? Era tão
difícil entender que eu não tinha escolha? E se tivesse eu nem sabia qual era
agora.
A carruagem seguia seu curso, estávamos chegando, logo Amélia
estaria no reino sombrio e nunca mais me perdoaria por isso, mas era para o
bem dela.
Nicolae havia sido duro com suas palavras e eu nem podia argumentar
com um homem que lutou contra tudo e contra todos por sua companheira.
Que apesar de todos os percalços a esperou e a protegeu. E quando ela foi
leiloada por Samuel, mesmo não tendo noção de onde ela estava, ele a
procurou e a trouxe de volta.
Mas eram situações diferentes, épocas diferentes com inimigos
diferentes. E claro, com raças diferentes.
O analisei metodicamente. Hoje depois de meio ano ele estava ao lado
de Diana. Se estava feliz não dava para saber, não nesse momento o vendo
concentrado e sério daquele jeito. Seus olhos frios só brilhavam quando
estava a olhar para Diana. Não havia dúvidas de que esses dois se amavam.
Virei o rosto para a outra janela parcialmente aberta, não conseguindo
conter a inveja dentro de mim. Queria eu saber amar assim, conseguir vencer
meus inimigos e poder ter Amélia ao meu lado derrubando todos os
obstáculos que aparecessem.
Se pelo menos eu tivesse forças para isso...
— Está se martirizando atoa irmão. — Ele respirou devagar como se
refletisse. — Não sou muito de falar, mas sinto que você precisa de uma
direção.
Assenti esperançoso, nesse momento qualquer ajuda me tiraria o
desespero do peito. Ele estalou a boca e suspirou ainda atento a
movimentação lá fora. Esse sombrio parecia viver em constante alerta.
— Você está perdido e nem consegue ver que tem mais força do que
imagina, só não sabe como usá-la. Seu pai foi um homem cruel. Porém
depositou toda sua crueldade subjugando as mulheres e fazendo experimentos
com as raças.
Ele virou para mim e dessa vez senti medo da frieza em seus olhos.
Não tinha como não sentir receio, ele era o guerreiro dos sombrios. O
príncipe que organizou as três raças em uma batalha apenas por ter o dom do
caçador. O homem que André olhava com admiração, que Diana olhava com
adoração e os lobos… Com grande respeito.
Ele continuou com a voz calma. — Use essa crueldade contra seus
oponentes. Tudo que está acontecendo é porque você não mostrou a ninguém
do que é capaz. Quando começar a tratar os que perigam aqueles que lhe são
caros, como inimigos de verdade e não como crianças mimadas, as coisas
ficarão melhores em seu reino e você ganhará o respeito dos seus, mesmo que
seja pela dor.
Com aquelas gemas azuis faiscando com um sentimento que eu não
conseguir interpretar ele bateu no teto e a carruagem parou. Porém antes de
sair ele se voltou para mim e seus olhos estavam completamente vermelhos,
apesar do semblante calmo eu soube que ele estava possesso e, além disso, vi
algo em seus olhos que me deu vergonha. Ele também estava decepcionado.
— Vou te fazer um favor maior do que esse que procura.
Pisquei várias vezes, sentindo de alguma forma que não ia gostar do
que ia ouvir. Ele fixou os olhos vermelhos nos meus e falou com a voz
cadenciada e firme.
— Volte. Amélia não poderá ficar no reino sombrio, não como uma
fugitiva ou exilada. Se ela tomar essa decisão por vontade própria será bem
vinda, porém não será recebida dessa maneira, arrastada contra a vontade.
Você a ama, não há dúvidas disso. Mas saiba amá-la respeitando a vontade
dela e não a tratando como um animal.
Ele abriu a portinhola e desceu com agilidade, antes de fechar a porta
me olhou com ameaça.
— Se pedir exílio para ela no reino Lican esteja avisado que será
tratado como inimigo. Somente se ela manifestar o desejo de partir a envie
para lá, caso contrário vai ter que mostrar sua autoridade contra aqueles que
sabem se defender.
Respirei pesado com a preocupação me tomando, sentido as
esperanças de deixar Amélia segura ruir por meus dedos.
— Não irá me ajudar príncipe Nicolae? Não estou usando nenhuma
autoridade aqui, sou um homem pedindo auxilio, a vida dela corre perigo...
Porque está fazendo isso? Ela cresceu com vocês, os respeita e...
— Eu que pergunto irmão. Porque está sendo o algoz da mulher que
ama em prol de um punhado de humanos que o estão pressionando? Não era
para ser o contrário? Não deveria ser o carrasco desses malditos em prol da
mulher que ama?
Abri a boca para dizer que eu nem sabia quem eram os inimigos, que
eu estava a enfrentar vultos e bilhetes, mas ele foi mais rápido e continuou.
— Não pense que não o entendo, na verdade o compreendo melhor do
que imagina. Por isso eu disse que ia te fazer um favor maior do que esse que
procura. Você pensa que está protegendo quando na verdade está humilhando
não dando a ela o direito de decidir por ela mesma.
— Estou fazendo isso pelo bem dela você, não entende? — Perdi
completamente o medo e gritei indignado por aquele sermão.
— Eu disse que entendo sua atitude, porém tudo o que você está
fazendo agora é esse tratamento. — Ele apontou para ela que continuava
desmaiada em meus braços e senti o sangue se concentrar em meu rosto de
vergonha.
— Não se esqueça, rei humano, que Amélia foi criada entre os
sombrios, a cabeça dela é diferente das mulheres subjugadas de seu reino.
Aprenda que ela tem que vir primeiro em sua vida. Tem que colocá-la acima
de todos ou então você não será diferente de seu pai porque não está tratando
uma mulher diferente do que ele trataria.
— É essa a ajuda que vai me dar? Nenhuma?
Ele assentiu. — Essa é a única ajuda que você precisa, se eu aceitá-la
agora, não estarei te ajudando, estarei ajudando aqueles que tentam governar
em seu lugar. Vai entender o que digo mais cedo do que imagina.
Antes que eu pudesse falar qualquer coisa. Ele fechou a porta.
Assim que vi o carro novamente dando meia volta, me senti murchar
no banco e segurei um grito de frustração. Que tipo de ajuda era essa? Nada
puder fazer para conter as lágrimas que me queimaram os olhos forçando
passagem.
Como que ele estava me ajudando sem me dar ajuda nenhuma?
Um sonho ruim

Acordei sobressaltada, não podia ser. Tiago não tinha feito isso, ele
não trairia minha confiança...
De maneira involuntária e completamente aterrorizada com a
lembrança do olhar dele e do pedido de desculpas eu procurei pelas paredes
escuras, pelo ambiente sombrio daqueles quartos do castelo, meu medo não
era estar ali e sim confirmar que ele realmente tinha feito isso, mas
estranhamente o que encontrei foi a madeira rústica do meu quarto na vila
dos renegados.
Balancei a cabeça em completa confusão. Mas... Ele tinha dito quando
me segurou a força que precisava me tirar daqui, que eu corria perigo. O que
estava acontecendo?
Ouvi as batidas na porta e logo meu pai apontou a cabeça me olhando
preocupado.
— Está bem filha?
— Pai? Mas... Tiago ele...
Ele entrou e sentou na cama ao meu lado, olhou os dedos por um
tempo então suspirou, parecia realmente triste dessa vez.
— Tiago cometeu um grande erro, filha. Ele te fez dormir para te tirar
daqui, mas se arrependeu. Na verdade precisou ouvir umas verdades de um
amigo para que o arrependimento lhe chegasse.
Eu continuava sem nada entender. Meu olhar vazio e meu olhar cheio
de interrogação fez André fechar os lábios em uma linha dura, realmente ele
estava bravo. Ele continuou falando.
— Tiago ficou desesperado porque recebeu um bilhete que dizia que
você corria perigo, enfim o conteúdo não tem importância, mas o abalou
imensamente. Ele fez aquilo para te proteger eu até entendo isso, mas... Dessa
vez ele passou dos limites.
Apertei os lábios, ele me sondou esperando eu perguntar alguma coisa,
mas eu não falei nada, não consegui nem balbuciar uma pergunta. Sentia uma
dor imensa dentro de mim, ele continuou falar me olhando com tristeza e
decepção, estava mesmo magoado com Tiago.
— Quem o fez mudar de ideia, foi o príncipe Nicolae que ficou
furioso ao vê-la desmaiada e sendo levada contra sua vontade ao reino
sombrio. Peço desculpas por não protegê-la do rompante de Tiago. Se me
disser agora que não quer mais ficar aqui, vou largar meu cargo e o conselho
e vou com você para o reino sombrio filha.
Segurei as lágrimas e escondi a confusão dentro de mim, um lado meu
ficou comovido com o medo de Tiago de algo me acontecer, outro lado ficou
ofendido por ele me tratar dessa forma, apenas agindo sem sequer me dar
uma explicação, e ainda que fosse para decidir ficar ou partir era meu direito
decidir isso, não dele.
— Mas e sua obrigação com o rei? Não pode simplesmente deixar
tudo e...
Ele negou e me encarou sério. — Posso e farei, se me disser que não
quer mais ficar aqui, vamos embora. Minha obrigação de pai vem primeiro,
eu amo Tiago como um filho, mas não posso mais ver isso, já chega.
Agora era minha vez de ser adulta, eu entendia o dilema de meu pai.
Se ele ficasse do lado de Tiago estaria apoiando o que ele fez, mas se ele me
escolhesse justo agora, ele estaria cometendo um erro baseado no instinto
protetor de pai. Toquei seu braço com carinho.
— Não me importa o que Tiago fez, o que manda é que ele se
arrependeu antes de concluir, estou magoada não vou negar, mas não vou por
tudo a perder por conta de orgulho. Tiago é fruto dos costumes desse reino, e
é louvável ver o tanto que ele tenta ser diferente, não vou julgar um
tratamento que recebi mesmo que errado, quando foi com boa intenção.
Meu pai me olhava com clara surpresa. Eu sei, porque também estava
surpresa com minha própria reação. Mas eu não podia esquecer nenhum
gesto do rei comigo. E mesmo que começássemos de maneira torta com
gritos e discussões, no fim, depois de tanto esbravejar, Tiago acabava me
apoiando.
Enxuguei uma lágrima e sorri para o nada. Tiago me apoiou em tudo o
que eu quis tentar desde que cheguei. Ao modo dele claro, mas ele era
maravilhoso, e eu não queria que uma atitude dele moldasse o que meu pai
pensava dele.
— Pai. Se ele me deixou aqui é porque não pretende mais me fazer ir
embora à força e agora é tudo o que importa. Prometi ao povo daqui que logo
iremos comercializar nossos produtos. Vou ficar pai, e vou cumprir minhas
obrigações com eles e peço que faça o mesmo, não desista do rei por estar
decepcionado com o homem que sustenta a coroa. Eu e ele precisamos de
você e os moradores daqui precisam de mim.
André assentiu e seus olhos estavam marejados. — Tem um coração
enorme filha, não sei onde arruma tanta força para seguir em frente. Prometo
que serei mais presente, que...
Neguei e sorri. — Mais? Pai eu posso dizer com convicção que você é
o melhor pai desse reino.
Ele riu. — Engraçadinha.
Dei uma risadinha enquanto secava as lágrimas teimosas.
— Mas é verdade, qual dessas moças podem dizer que tem um pai que
as apoia em tudo? Que viu seus móveis sendo roubados por sua filha e não
fez nada para impedi-la? Que dá a sua filha uma mesada mesmo sabendo que
ela vai gastar tudo com estranhos?
O abracei e deixei minhas lágrimas escorrerem me sentindo até grata
por poder arrumar uma desculpa para chorar à vontade.
— Obrigada pai. Eu o amo e tenho muito orgulho de você.
— E eu orgulho de minha menina aventureira, eu quero pedir que
nunca mude, sempre terá meu apoio, mesmo que torça meu coração de receio
com suas ideias. Já agora, quero te dar um presente.
Antes que eu perguntasse o que era ele me entregou uma bolsa e me
assustei com o peso. — Onde arrumou tanto?
Ele levantou os ombros. — Recebi uma boa recompensa por descobrir
um esquema de assassinato. Use para seus protegidos.
O abracei. — Você não existe. Muito obrigada.
Reclusão

Desde que voltei ao castelo não consegui me perdoar por minha


atitude, acabei me fechando completamente, não aceitei ver ninguém, apenas
e para amenizar minha preocupação, pedi para aumentarem a segurança na
vila nova e ainda contratei mercenários para circularem por lá. Pelo menos
até o dia da escolha chegar. Mas essas foram as únicas providências que
tomei, depois disso me enterrei no quarto. Não compareci nas reuniões, nem
mesmo me interessei por qualquer assunto referente ao reino.
Já nem mais me importava se as castas se engolissem, se os nobres se
matassem e se o povo morresse. Eu sentia minha própria crueldade aflorada
ao pensar assim, mas também não me saída da cabeça que era por causa deles
que eu estava aqui a definhar em meus arrependimentos.
Fiz tudo errado desde o inicio. De nada valeu assumir um reino, abolir
as mulheres e os escravos e o manter cheio de malditos tiranos, pensei que
era meu pai que regia a tirania, mas não era.
Um tirano se foi, mas deixou um legado sólido e resistente. Uma
máfia tão grande que para expurgar somente deixando a humanidade de lado
e sair limpando tudo, matando um a um e essa agora era a minha vontade.
Acabar com cada nobre, os banir para o mais longe que pudesse
conseguir, mas infelizmente não tinha mais como ameaçar qualquer humano
de exílio já que os leviatãs não eram mais uma ameaça, o medo dessas
criaturas se dissipou completamente porque todos já sabiam que se existia
algum vivo, estava sendo caçado pelos sobrenaturais.
No fim das contas, só perdi tempo e amigos. Porque sei que André não
me perdoar, eu traí sua confiança, ele me pediu para cuidar dela até ele
chegar, e no fim acabei usando nela a merda de um líquido a fazendo
desmaiar e praticamente ia expulsá-la do reino somente por medo, fiz errado
e agora pensando melhor sinto vergonha por ver o olhar decepcionado do
príncipe Nicolae. Ele queria que eu refletisse e foi o que eu fiz, e agora
revendo cada passo sinto nojo de minha covardia. E uma tristeza absurda
porque sei que Amélia nunca mais sequer olhará em minha direção, até
mesmo Marcos com certeza já sabe o que fiz e já sente ódio por mim.
Suspirei ainda deitado na cama, sem saber as horas e sem nenhuma
vontade de abrir as grossas cortinas para saber se era dia ou noite lá fora.
Talvez nesse rol de amigos que perdi, estivesse incluído Nicolae e até
Diana, ou seja, eu estava sozinho, eu me coloquei nessa situação e agora só
me restava escolher qualquer coisa para casar, porque foi eu... Um completo
idiota que escrevi a lei do casamento, sim, uma cerimônia, porque não
imaginei que isso seria usado contra mim.
Virei de lado e cobri a cabeça.
— Que se dane tudo, se eu não podia ter Amélia, então ia escolher a
primeira coisa que falasse e andasse quando o dia chegasse. Contanto que
eles parassem de tramar contra a vida de Amélia, o resto não mais tinha
importância.
Visita de Rael

Meu pai tinha ficado comigo um dia inteiro e quando partiu não
parecia ainda conformado com o que tinha acontecido, porém ele já estava
mais calmo. Mas era justificável essa reação visto que ele tinha respeito e
acreditava no discernimento de Tiago e por fim ele o decepcionou agindo de
maneira tão impensada.
Eu não sabia como intervir e só pude torcer para que os dois
conversassem sobre isso e se resolvessem da melhor maneira. Antes de partir
ele me recomendou várias vezes cautela. Pediu a Marcos para ficar atento e
ele garantiu que nada me aconteceria aqui.
A noite tinha chegado e nem mesmo isso amenizou o mormaço, o
calor estava intenso que decidir caminhar pela prisão para tomar ar fresco. Eu
gostava de participar ativamente do que acontecia e a noite era um momento
agradável para contemplar o pequeno progresso. O cheiro agora no bairro dos
Renegados não era tão ruim como no começo. Havíamos tirado todo o lixo e
enterrado no meio da floresta. O imenso quintal estava limpo e a visão para o
portão agora era bem melhor.
Ainda tinha pessoas dormindo ao relento, mas em uma noite tão
quente isso não me pareceu um problema, mas como era um fato de que após
uma temporada de calor vinha a chuva, isso me preocupava imensamente.
— Boa noite filha de André e amiga especial de minha filha.
Apesar de conhecer aquela voz eu levei um susto. Virei-me e
encontrei o olhar firme do Supremo dos sombrios fixos em mim.
— Senhor Rael, que surpresa receber sua visita.
Apesar do semblante simpático ele não sorriu, não manifestou
nenhuma reação, somente seus olhos sérios e sábios me diziam que ele
precisava falar e eu precisava ouvir.
E foi o que eu fiz, entretanto mesmo calada não consegui manter meu
olhar quieto e por várias vezes olhei atrás do senhor Rael procurando Diana
ou mesmo o senhor Nicolae. Aliás, não conseguia entender como ele tinha
conseguido chegar sem ser visto pelas crianças ou pelos vigias no portão.
Os lábios do senhor Rael subiram em uma curva singela.
— Não vim pelo portão.
Olhei incrédula para a alta muralha e ele compreendeu minha dúvida.
— Nós sombrios conseguimos dar um salto considerável, essas
muralhas não foram feitas para um sombrio não entrar e sim para os humanos
e os leviatãs não saírem, ou... acredito que o mais correto seria dizer que foi
feita por um idiota que não pesquisou direito sobre normas de segurança.
Apertei os lábios, estava confusa se era para eu rir porque era uma
piada ou se era para eu assentir sobre a estupidez do engenheiro que havia
desenhado a planta daquele muro na antiga época moderna.
Por fim ele sorriu. — Não vim para falar sobre muros. Diana me
contou sobre sua causa, então estou aqui para contribuir com um conselho
que acredito que lhe ajudará a levantar seu rei.
Assenti em silêncio já conhecendo a fama do senhor Rael de não
gostar de ser interrompido e ele continuou.
— Não comece do fim para o começo Amélia, nem do meio para o
fim. Comece do começo, respeite o meio e alcance o fim desejado.
Pensei em pedir um desenho sobre a explicação porque eu não tinha
entendido quando ele puxou do bolso interno do casaco escuro um chumaço
de folhas.
— Estude isso, veja o que pode realizar se seguir seu projeto com
simplicidade e disciplina, só precisa do comprometimento desse povo enorme
que habita aqui e logo verá progresso.
Agradeci quando ele me entregou aquelas folhas, mas eu tinha que
perguntar. —Porque está fazendo isso senhor Rael? Não que eu não esteja
agradecida, mas gostaria de saber por que se importa com os humanos.
— Os humanos não significam nada para mim, não esses que vivem
nesse reino, alguns tem meu respeito, como o rei, por exemplo. Mas aqui tem
pessoas que estão sobre minha proteção, você e seu pai.
André é parte da família e isso torna você parte da família também, e
se para ficarem em segurança seja necessário que o reino Humanis progrida
de alguma forma, fico feliz em poder ajudar.
Não consegui formar nenhuma resposta, não tive tempo nem mesmo
de pensar, senhor Rael me entregou um saco pesado e só de pegar eu soube
que ali tinha uma boa quantia de moedas.
Ele me sorriu. — Você pediu ajuda a Diana e ela me pediu algumas
moedas, como minha querida filha nunca pede nada, imaginei o quanto isso é
importante para ela também, por isso vim por ela e por vocês. Estude o que
está nesses papéis, se tiver alguma dúvida fale com Priana, então eu saberei o
que fazer para te auxiliar, só peço que não conte a ninguém sobre minha
interferência nas coisas dos humanos, não que seja errado eu ajudar, mas será
errado eles saberem que ajudei, me entende?
Assenti, eu entendia e muito bem. Se eles soubessem que os sombrios
haviam ajudado de alguma forma, sempre esperariam ajuda quando
encontrassem problemas e isso seria um erro, nos tornaria dependentes e
preguiçosos.
Eu poderia abraçar aquele homem, mas claro que não o fiz, só de olhar
para ele eu sentia receio, não por medo, mas por excesso de respeito e
admiração.
— Agradeço senhor Rael, só não entendo porque não mandou que
outro viesse, é perigoso o senhor sair do reino sombrio, não precisava se dar
ao trabalho.
O senhor Rael deu dois passos e ainda de costas para mim ele falou.
— Eu fiz questão, quando a dor de Diana se mostrou maior que sua tristeza
você esqueceu sua própria dor a ajudando a esquecer a dela, por isso, esqueci
meus deveres por hoje para te ajudar com seus deveres.
Essa resposta colocou um ultimato em todas as perguntas que eu ainda
tinha, ele fez por agradecimento sendo que eu nem tinha pensado em
recompensa naquele dia, meu único intuito de verdade foi socorrer uma
amiga querida, ainda assim senti meus olhos arderem, pela consideração dele
comigo. Mas... Eu precisava abusar dessa ajuda e me abrir, o senhor Rael
tinha fama de ser o sábio, talvez ele pudesse me ajudar.
— Eles não me entendem senhor Rael, me acham tola e sonhadora.
— A ignorância trás esses julgamentos tolos, Amélia, ninguém
compreende os sonhos, porque são apenas sonhos... Mas caso eles se tornem
realidade então deixarão de ser abstratos e se tornarão sólidos e assim os
ignorantes acreditarão.
Não desanime por julgamentos antecipados, você e Diana têm muitas
coisas em comum, e ela nunca permitiu que nada e nem ninguém
esmorecesse sua determinação. Faça o mesmo, absorva somente o que lhe for
útil, coisas inúteis sobram, uteis são raros.
— Mas Diana é destemida e corajosa e eu sou sonhadora e
aventureira.
— Sinônimos para mim, o sonho de Diana era poder ver os sombrios
em paz, a coragem dela a fez ter muitas aventuras. E o seu sonho é o
crescimento desse povo, ao qual está determinada a melhorar a vida, e sua
coragem é continuar mesmo quando muitos não acreditam que conseguirá.
Não desanime, você é uma humana que veio do reino sombrio, assim como
Diana. Por isso tenho orgulho dos valores que aprenderam com os nossos.
Assenti com os olhos cheios de lágrimas, o senhor Rael não precisou
dizer que me entendia não era isso que eu buscava, ele apenas me incentivou
a continuar lutando pelo que eu acreditava e isso era mais importante para
mim.
Não tive tempo de dizer mais nada, quando levantei os olhos ele já
havia sumido. Esses sombrios... Não tinha como não respeitar uma raça tão
nobre quantos eles.
Balancei o saco para ter uma ideia da quantia e minha nossa...
Também não tinha como não festejar uma riqueza tão grande em minhas
mãos.
***
Dormir foi uma tarefa impossível. Quase virei a madrugada lendo
aqueles papéis, peguei no sono com eles caindo por meu rosto. Ainda assim
acordei cedo e só me dei ao trabalho de tomar um rápido banho, preparar um
chá bem forte e me sentei novamente para estuda-los.
Parecia tão simples, tão redondo. Primeiro eu tinha que ganhar em um
debate. Ok essa parte era a mais complicada nas instruções, mas o resto
facilitaria tudo e agora entendo o motivo da alta soma que veio junto. Era
para por em prática o que estava ali.
— Bom dia Amélia. Está tudo bem? Você não apareceu na parte da
manhã e é sempre a primeira a acordar.
Vagamente me toquei que já era de tarde por Marcos dizer que a
manhã tinha ido.
Quando viu que eu estava distraída demais para responder ele entrou e
sentou ao meu lado dando olhadas curiosas nos papeis espalhados pela mesa.
— Isso é um planejamento de guerra?
Eu ri. — Quase isso.
Olhei para ele cheia de excitação. — Precisamos marcar uma reunião
como conselho.
Ele franziu o cenho. — Não entendi.
Levantei e comecei a andar de um lado ao outro para amenizar um
pouco a ansiedade. — É exatamente isso Marcos, precisamos deliberar com o
conselho diretamente se quisermos dar um grande passo para o povo daqui.
— Mas o que vamos dizer a eles? Pedir ajuda?
Sorri e neguei. — Vamos propor negócios. Uma compra grande de
ferramentas simples e outra maior ainda de grãos. Precisaremos também de
melaço e claro que vamos comprar em separado para beneficiar a maioria dos
membros do conselho possível.
Marcos continuou cético. — A casa Albergin não tem representantes
na mesa do conselho e grãos em grande quantia teria que ser comprado com
eles.
Assenti agradecendo a cartilha e o passo a passo.
— Exatamente, por isso vamos ter que deliberar uma compra
diversificada. Ferramentas com a casa Machado. Melaço com a casa Amorin
e ainda grãos com a casa Albergin. Podemos incluir promessa de compras
futuras em grande quantia com as outras casas representantes, claro mediante
promessa de um bom desconto e ainda se for de nosso interesse imediato.
Marcos cruzou os braços deixando escapar um sorriso amigável. —
Entendi. Ótima ideia, mas quais dessas casas vamos prometer a isenção do
roubo? Porque vamos precisar roubar pelo menos duas delas para conseguir
pagar as compras que fizermos com as outras. Não temos dinheiro, Amélia.
Deixei sair o meu sorriso mais maroto. Entrei no quarto e peguei as
duas sacas magicamente cheias. Uma delas claro, dado pelo senhor Rael a
outra com as doações de Jena, meu pai, Clara eu e todas as moedas que
Marcos juntou com os trabalhos de todos.
Coloquei na mesa e os olhos de Marcos pareceram inflar dois quilos
com aquela visão.
— Minha nossa... Se um dia eu falei que somos miseráveis eu devia
estar delirando por uma pestilência muito poderosa. Somos ricos!
Assenti com a face rasgada de tanto sorrir. — Acha que dá para
comprar um lote de ferramentas, uma carga de grãos e uma dezena de barris
de melaço?
— Mas é claro! Dá até para subornar o rei com o que tem aí!
— Do que falam?
Clara adentrava a cozinha sem cerimônias.
— Planos como sempre. — Respondeu Marcos. — No caso o melhor
dos planos. — Ele riu.
Clara sentou ao lado dele fazendo o banco ficar pequeno para os dois.
Ela não se importou de espremê-lo para conseguir caber e ele menos ainda
com o jeito expansivo dela.
Olhei para Marcos e pisquei. — Estava trabalhando Clara?
Ela suspirou dramaticamente. — Lógico! No momento só vocês que
estão comemorando o dia do vagabundo.
Marcos riu e a encarou com o olhar afiado. — O que você fez hoje
como trabalho?
Ela deu de ombros e ajeitou o cabelo em um coque. Se abanou e falou
alegre.
— Ajudei a pegar água. Dei de beber aos velhinhos doentes e fui
buscar com Tomas coisas no mato.
Nós rimos e Marcos não perdoou. — Sei... Aposto que metade do
balde de castanhas sumiu. Isso acontece quando você vai com eles a floresta,
as castanhas somem magicamente.
Clara não se fez de rogada, mas se traiu ao levar a mão a boca e limpar
com batidinhas. — Comi o suficiente.
Nós rimos e ela esticou o pescoço para os papéis. — E o que vocês
planejam?
Contamos a ela então o que tínhamos pensado e o rosto alegre e jovial
que ela ostentava desde que tinha mudado para a prisão foi esmaecendo
continuamente. Logo ela parecia aflita. Porém assentiu em concordância.
— É uma boa ideia. Os nobres têm por costume aceitar qualquer
assunto que os beneficie. Porém é preciso um cartão com a insígnia da casa
para apresentar como pedido de audiência.
Murchei no banco e Marcos estalou a boca. Logo como se lembrasse
de algo, ele me encarou como eu fosse a salvação. — André deve ter um
cartão desses, ele é general.
Neguei com desânimo. — Mas eu sou a filha dele, então se ele o fizer
já começaremos mal, podem acusá-lo de me beneficiar com uma audiência da
qual não tenho direito e com isso nem irão querer me ouvir.
Clara riu, a coragem voltando ao seu rosto novamente. — Mas eu
ainda sou uma nobre. A casa Machado tem um representante na mesa.
Marcos pareceu refletir sobre isso, mas eu neguei. — Seu pai...
Clara levantou. — Espere um minuto.
Antes que perguntássemos ela saiu apressada e Marcos balançou a
cabeça.
— Reparou que a cada dia ela fica mais alegre? Uma moça da nobreza
completamente à vontade em meio a pobreza, como pode isso?
— Aqui ela não sofre nenhum tipo de violência. — Suspirei com as
lembranças. — O pai dela não é um dos melhores, então...
Marcos assentiu em compreensão. Realmente Clara tinha renascido
aqui, seus olhos agora tinham perdido aquela mancha de ódio profundo de
quando me visitou a primeira vez. Ela estava em paz e feliz e isso me deixou
contente por ela conseguir esquecer tudo e tocar em frente.
Logo ela voltou balançando triunfante um cartão de papel grosso, no
centro tinha um desenho de dois pilares e dois machados cruzados para baixo
formavam a letra M em dourado.
— Vão precisar disso para conseguir uma audiência. Não se
preocupem, meu pai não saberá que é meu, pelo menos não até vocês
entrarem quando forem chamados. Antes disso quando ver o brasão ele vai
automaticamente colocar o chamado na pauta, afinal é ele que anuncia as
pautas e claro que ele não vai perder a chance de privilegiar um membro da
nossa casa.
— Obrigada Clara. — Agradeci encantada pela solução que ela tinha
dado.
Ela fez uma careta. — Não agradeça, isso aí é lixo.
Ela começou a sair e Marcos franziu o cenho. — Aonde a senhorita
vai?
Ela fez um bico. — Vou buscar meio balde de castanhas. Você me
deixou com a consciência pesada.
Filha ousada
Amélia estava se arriscando com essa ousadia. Quando ela apareceu
em casa na vila dos Forasteiros logo cedo, estava ansiosa, falando rápido e
sorrindo o tempo todo e por qualquer motivo, fiquei desconfiado de que ela
estivesse novamente envolta em seus planos malucos. E quando ela me
contou todos os detalhes de sua nova ideia vi que não tinha me enganado.
E agora, quando a qualquer momento tudo ia acontecer estava sendo
custoso mostrar serenidade. Não avisei Tiago sobre a visita que teríamos na
reunião, se o fizesse ele ia ficar ansioso e poderia colocar tudo a perder. Os
dois não tinham trocado palavra desde o lapso do rei, já fazia dois que tinha
acontecido, mas as olheiras ao redor dos olhos dele mostrava o quanto ele
estava se martirizando pelo que tinha feito, talvez se soubesse que ela
adentraria por aquela porta no meio de uma reunião, ele arrumaria uma
desculpa para se retirar somente para não enfrentar a vergonha de encará-la.
E eu para castigá-lo não comentei que ela o tinha perdoado. Ele
precisava sofrer por isso para nunca mais fazer uma sandice dessas, para
poder parar de agir sem pensar ao invés de pensar para agir. E estava
funcionando, ele estava a todo custo evitando perguntar sobre ela, estava
focado no trabalho e mais atento a reunião, o que de nada servia já que como
sempre, tudo virava em discussão com nenhum resultado de valia.
Pedro levantou e fiquei atento. Tinha visto quando ele entrou, o cartão
enfiado em meio aos papeis. Talvez fosse agora.
— Agora o tema é o imposto... Os prostíbulos precisam pagar a coroa.
Não foi ainda determinada uma data para começarem nem um valor, mas
apesar da maioria ficar fora do reino, ainda assim devem impostos a coroa.
Tiago trincou o maxilar. — Estamos há quase uma hora aqui e só
falamos de impostos, esse tema será debatido em outra reunião. Algum outro
tema? Se não tiver vamos encerrar.
Pedro se apressou em vasculhar. Então era assim que ele fazia, ele
sabia o que iria escolher como tema, no entanto se fazia de atrapalhado para
parecer sobrecarregado de serviço. Hipócrita...
— Temos um pedido de audiência majestade.
Tiago franziu o cenho estranhando, afinal essas coisas eram raras, pois
quase ninguém conseguia uma audiência com o conselho se não pagasse
suborno a eles. E embora Tiago e eu soubéssemos desse esquema corrupto,
fingíamos cegueira sobre isso, os cartões eram entregues somente as duas
castas mais altas e sendo assim, eles que se matassem.
— Quem seria?
Tiago perguntou verdadeiramente inocente, já eu me remexi
desconfortável e preocupado. Amélia aprontava cada uma...
— Da casa Machado, majestade.
Tiago lançou a Pedro um olhar irônico mostrando que não tinha
gostado do privilégio que ele estava dando a própria casa, porém assentiu.
— Mande entrar e que seja rápido, realmente estou muito cansado
hoje.
Eu tinha colocado guardas de minha confiança para cuidar da porta
para pelo menos garantir que os planos de Amélia não terminassem antes de
começar, e parecia ter funcionado, até o momento ninguém tinha entrado
avisando que ela aguardava.
Os membros do conselho, agora completamente defasado depois da
limpeza do rei, ficaram olhando para Pedro como se sentissem nojo de sua
atitude, o que era pura hipocrisia já que teriam feito o mesmo para beneficiar
a própria casa.
Pedro percebendo a animosidade com sua conduta, evitou olhar para
os presentes e não perdeu tempo, fez sinal com a cabeça para o guarda abrir a
porta.
Quando ela se abriu o sorriso dele esmoreceu, meus sentidos ficaram
atentos para protegê-la a qualquer ataque de ódio.
Fiz uma prece aos antigos para por juízo a minha filha que mais uma
vez aprontava das suas.
Os olhos de Tiago cresceram surpresos. Amélia ia entrar em grande
estilo. Quase matando o rei de susto.
Negócios com o conselho
Eu não tinha ossos nas pernas! Pelo menos era a sensação que eu tinha
quando passei pela porta. Os olhos de Tiago cresceram tanto que pensei por
um momento que ele levantaria ali mesmo e me chamaria a atenção na frente
de todos dizendo que eu não podia enfrentar o conselho pedindo uma
audiência no lugar de outra pessoa.
Mas o mal já estava feito e para minha sorte ou azar ele estava mudo
de surpresa e isso me deu tempo de pelo menos respirar várias vezes até
recuperar parcialmente minha coragem.
Tentando a todo custo não olhar para os membros do conselho, eu fiz
uma vênia ao rei mostrando meu respeito, e só então corri meus olhos para
cada um deles. Alguns eu não conhecia, eram novos, conselheiros
temporários que substituíam os que Tiago mandou embora, outros eu sequer
conseguia lembrar o nome ou de qual casa, meu nervosismo fazia minha
mente flutuar em apenas uma coisa, conseguir a aprovação deles, apenas
Pedro, o pai de Clara que eu me lembrava, isso claro, porque eu estava
usando o nome de sua casa para me fazer valer um direito a uma audiência.
Pensei que veria o olhar dele de ódio por ser enganado, mas ele
parecia surpreso, todavia não bravo e isso me deixou mais aliviada.
Meu pai me olhava sério, sem manifestar reação, mas aquele brilho em
seu olhar eu conhecia, era orgulho de minha coragem, o que tenho que
admitir, eu não tinha, pois estava com muito medo do que poderia acontecer a
partir de agora, na verdade eu não sabia o que fazer depois daqui.
— Uma mulher? E nem pertence a casa Machado? O que faz aqui?
Perguntou um conselheiro com a voz carregada de nojo como se eu
um fosse uma doente terminal e contagiosa.
— Venho, em nome de muitos propor negócios que podem beneficiar
vários produtores. — Olhei para Matias, esse eu tinha decorado seu nome e
sua casa, afinal ele fazia parte dos que eu tinha que conquistar antes de
conseguir alguma coisa. — Desde a compra de melaço e grãos quanto —
Olhei para Pedro. — Um lote de ferramentas variadas.
Os olhos de Pedro brilharam ambiciosos, Matias não pareceu
convencido e os outros membros do conselho cochichavam enquanto me
lançavam olhadelas nada amistosas.
Logo quando eu já estava incomodada de ter que ficar em pé ali, um
dos estranhos levantou e apontou a porta. — A pauta era uma audiência com
a casa Machado e pelo que eu saiba, você não pertence a essa casa, por isso
saia daqui! Não há lugares para mentirosos nessa reunião, menos ainda para
alguém que não conhece o seu lugar.
Respirei fundo para engolir minha indignação e não me alterar, eu já
esperava por isso, então não fui pega de surpresa. Mas Tiago bateu com o
punho fechado na mesa e todos se viraram para ele.
— E que lugar seria esse Damião? Você pode me dizer qual o lugar
dela?
Apertei os lábios completamente sem graça, imaginei que Tiago seria
o primeiro a me condenar por estar ali e agora ele estava tomando meu
partido.
— Mas... Majestade ela... Mentiu, ela...
— Não foi isso o que eu perguntei, quero saber qual o lugar dela e
quero uma resposta objetiva.
O tal Damião fechou o semblante. — Em qualquer lugar, menos aqui
dentro.
Os olhos de Tiago estampavam uma frieza assassina. — Isso quem
decide sou eu. — Ele se virou para mim. — Tome um assento e se apresente
como deve ser. Tem meia hora para apresentar sua petição ao conselho.
Segurar o queixo tremendo de emoção foi difícil. Tiago estava
cumprindo seu papel, no entanto se não fosse pela intervenção dele eu não
conseguiria ser ouvida e meu pai já tinha me avisado que não poderia intervir
por mim.
Sentei na cadeira vaga e mexi nos papeis para ganhar tempo e angariar
um pouquinho mais de coragem. O silêncio sepulcral na sala me deixava
ainda mais nervosa e completamente consciente dos rostos virados em minha
direção.
— Gostaria de pedir ao conselho que viabilizassem a compra mediante
liberdade de taxas visto que seria uma compra em nome dos escravos libertos
e pela lei, eles não devem impostos a coroa por dois anos. E como compras
de grande porte sofrem uma taxa, gostaria de pedir isenção para assim
aumentar o poder de compra e auxiliar ainda mais os pobres da Vila da
Procriação, da Vila Nova da Procriação e da Vila dos Renegados. As três
vilas mais carentes.
O conselheiro Matias que não tinha dito nada até agora deu uma
risadinha e logo rebateu.
— Se eles são carentes como fariam uma compra de tamanho porte
onde necessitam pedir isenção?
Minha voz saiu mais áspera do que eu queria. — Já ouviu falar de
trabalho, meu senhor? E união... Conhece essa palavra?
Ele abriu a boca, mas eu o cortei, não podia admitir que me
esmagassem logo em minha primeira fala. — Pois bem, acho que isso
responde a sua pergunta, já agora gostaria de apresentar os produtos que
precisamos de imediato. Melaço, trigo e ferramentas.
O pai de Clara agora parecia tão interessado, que quase salivava, o
próprio Matias que tinha me questionado agora começou a assentir
vertiginosamente. Porém o tal Damião fez uma cara desconfiada.
— Melaço? Para que o melaço? Não seria melhor o açúcar?
Por dentro eu ri, por fora claro me mantive séria. O senhor Rael
conhecia cada membro do conselho, como é claro que devia ser já que as
novas regras de comércio teve a participação dele para ser criada e como tal
ele sabia o que cada casa produzia.
Nas folhas estava escrito para encomendar o melaço que substituiria o
açúcar na hora de fazer o pão, mas não era por isso a mudança e sim porque
Damião o fornecedor de açúcar, não tinha força no conselho enquanto que
Matias que produzia o melaço tinha influência e era do voto dele que eu
precisava para ter sucesso.
Pensei que seria difícil, que precisaria explicar milhares de motivos,
mas não. Uma falação alta e uma discussão inflamada teve início e logo
alguns me defendiam enquanto outros de voto menos importante se negavam
terminantemente a conceder a permissão provisória de comerciante para que
eu pudesse seguir em frente.
Eu me mantive em completo silêncio, não olhei na direção de Tiago e
nem de André. Ali eu representava uma casa somente e não era a Góes, nem
mesmo a Bale, era a casa dos órfãos do tratado, por isso mantive os olhos nos
papeis a minha frente todo o tempo.
Logo começaram as votações, recebi nãos logo de início incluindo
claro o voto de Damião, porém Pedro e Matias votaram a favor e sendo a
mesa composta por dez membros eu tinha a meu favor cinco votos certos,
agora só me restava contar com os bajuladores da casa mais poderosa depois
das novas leis do tratado. Precisava do sim dos membros que defendiam os
interesses da casa Albergin, e com certeza não poderia ser apenas um entre os
cinco restantes já que essa família tinha se tornado a mais influente por conta
dos moinhos, os açudes e experiência na agricultura, tinha que ter uma boa
quantia que não arriscaria perder privilégios com a família Albergin caso os
fizesse perder uma grande venda como essa.
Logo de modo muito tímido e para minha completa surpresa, três
homens levantaram as mãos e apertei os lábios para não estragar tudo
sorrindo antes da hora.
Eu tinha conseguido. Estávamos isentos das enormes taxas que os
vendedores andavam cobrando, não que não quiséssemos pagar, na verdade
precisávamos de permissão para uma compra tão grande e agora, essa
permissão estava dada. Minha parte estava feita, agora a compra e negociação
seriam feitas por Marcos mediante uma carta de comerciante que eu ia
receber ao final da reunião e claro, saindo daquele salão e com a carta segura
em minhas mãos eu sorriria, na verdade acho que daria um gritinho de
alegria, mas por hora mantive uma pose perfeita de uma mulher de negócios.
Cristian

Quem dentre todos aqueles guardas conseguiriam imaginar que eu um


homem encarquilhado pelo peso da idade poderia lhes tirar a vida sem suar.
Todavia aqui estava eu andando encurvado pelo corredor, ajudado
pela magia do meu lobo a ter essa aparência o deixando sugar boa parte do
vigor de minha parte humana.
Mais uma vez eu estava seguindo para o quarto da menina que era
minha protegida. Ela nem percebia minha presença, fechada em seu próprio
mundo a pobre apenas se mantinha a gemer ou esporadicamente parecia
entrar em transe, perdida em lembranças.
Muitas vezes ela dormia sentada mesmo e quando não havia ninguém
no quarto eu a carregava sem nenhum esforço e a colocava na cama.
Quando havia alguém eu pedia ajuda mesmo a contra gosto, pois tinha
que mostrar o sofrimento de um velho com o esforço de ajudar a levantar
uma mulher desacordada do chão.
Mas eu esperava, precisava expurgar qualquer desconfiança que um
dos dois criados fora eu fosse um infiltrado para tomá-la de Laican.
Ele a havia a sentido antes da batalha, mas ao por os olhos no rei
Tiago ele soube que ela tinha alguma coisa a ver com ele.
Porém não podia simplesmente confiar na vitória e então Laican bolou
o plano e assim eu fiquei incumbido de primeiro momento a levá-la do reino
assim que a oportunidade aparecesse, pois com minha condição de morto
ninguém iria sequer cogitar minha participação nisso.
Então vencemos e Tiago se mostrou diferente do pai, os planos
mudaram e fiquei encarregado de mantê-la protegida até que o prazo pedido
pela mãe dela findasse.
Eu poderia ter me negado, não era por isso que eu enganei a todos,
mas algo me dizia para continuar com isso, era como se fosse um pedido do
meu lobo para me aproximar dela.
No início aceitei por respeito ao meu supremo, depois da vitória e dos
planos diferentes não compreendi a mim mesmo.
Apesar do momento crítico, do rapto da menina Diana era claro que
não íamos todos cair, ainda assim somente aceitei desgarrar, pedi ao meu
lobo para não curar a carne e recolher o poder espiritual de sua forma, e me
deixei cair em batalha.
Os lobos da matilha me tiveram como morto assim que me desgarrei,
assim que não conseguiram mais pegar a linha da conexão psíquica.
Mas eu sempre respeitei as ordens de Laican, sempre confiei nele e
nunca esqueci que ele me aceitou em sua matilha mesmo sabendo de qual
linhagem eu pertencia, a dele o que me tornava seu beta imediato por conta
do sangue, e isso poderia tanto beneficiá-lo quanto prejudicá-lo, pois
aceitando o sangue na hierarquia se eu vier a morrer, automaticamente um da
mesma linhagem toma o lugar e era aí que estava o perigo, porém Laican
confia o suficiente em sua força para garantir que o símbolo Tau não viagem
de sua testa para outro em uma derrota.
Agora depois de todas essas noites cuidando de sua companheira eu
não entendo por que me preocupo tanto com ela.
Eu não devia sentir nada por ela, afinal eu estava ali somente por
fidelidade ao meu líder.
Ainda assim eu sentia... Ela tinha um cheiro... Um aroma que era
agradável ao meu olfato apurado.
Que agitava meu lobo constantemente. Não era um cheiro de essências
colocados na água do banho, nem mesmo era um cheiro artificial preparado
por mãos boticas.
Era de pele, cheiro de fêmea... E isso me deixava mais confuso.
Essa sensação me fazia ter repugnância de mim mesmo. Me sentia um
traidor, ela tinha dono e eu não podia sentir isso.
Contudo… Era mais forte que eu.
Abri a porta devagar e contemplei por um momento a mulher que
dormia com os cabelos esparramados pela cama.
O corpo coberto mostrava que outro criado já havia cuidado dela.
Puxei o ar com força apenas para infringir minha tortura diária e hoje
era um daqueles dias que a tortura era maior para mim, o cheiro estava muito
mais forte.
Esse aroma tão pungente dominando o quarto com tanta potência
estava agitando completamente minhas entranhas humanas e enlouquecendo
meu lobo. Agradeci em silêncio por não ser assim todos os dias.
Já eram quase cinco meses de vida dupla, e até uma semana atrás eu
quase não podia parar no castelo então vinha somente tarde da noite velar o
sono da menina de Laican.
Tinha ainda que manter a confiança daqueles idiotas e sua confraria
anarquista. Contudo agora eu estava dentro, então somente tinha que ir às
reuniões que aconteciam apenas uma vez por semana.
Não sei se isso seria bom ou ruim para minha sanidade, pois era
estranho Celina mexer comigo com mais intensidade algumas vezes e noutras
apenas me deixar melancólico e ansioso. Não dava para entender, era como
se em alguns dias seu cheiro ficasse mais forte e em outros fosse apenas um
aroma fraco que me chamava.
E mesmo sem entender agora eu poderia dedicar todo o meu tempo
para ajudar essa mulher quebrada que confundia meus sentimentos e botava a
prova meu senso de honra e fidelidade.
A deixei em seu sono profundo e segui para a varanda, como todas as
noites, usei a pequena sacada e tirei minha roupa puída agradecido por me
livrar daqueles panos.
Fiz uma trouxa e escondi atrás do imenso vaso de plantas. Deixei meu
lobo vir e fiquei satisfeito por me sentir eu novamente e me sentindo liberto
por estar na forma selvagem.
Entrei no quarto e senti o aroma agora mais forte, nessa forma o cheiro
dela era mais nítido, mais inebriante então consequentemente a tortura teria
seu início e para meu desespero duraria toda a noite, toda a vigília.
Meu lobo rosnou me lembrando da minha obrigação e agradeci por ser
um lobo solitário agora. Por ter fechado a mente para meu líder quando fui
dado como morto na batalha. Fazia parte dos planos e agora esse era meu
único consolo. Se Laican tivesse acesso ao que me vinha à mente perderia
completamente a confiança em mim, sem contar que eu teria que lutar até a
morte com o único lobo que eu tenho total respeito.
Os lobos são territoriais e mostrar interesse na companheira de outro
lobo é inconcebível e uma vergonha. Ainda mais para mim que sempre tive o
respeito dos meus.
Me deitei sobre as patas e me arrastei para baixo da cama.
Ninguém me encontraria ali, não durante a noite e assim mais uma vez
eu velaria o sono da mulher e companheira do supremo Alfa.
Meu lobo acabou por soltar um suspiro sentindo minha tristeza e logo
ele ganiu baixinho entendendo minha angústia.
Nós dois passaríamos novamente por mais uma noite atormentados
por aquele aroma feminino que me deixava maluco de tanto desejo. E
também maluco de vergonha por não conseguir refrear esse sentimento.
Como podia estar interessado nela? O que isso significava afinal?
Lobos são monogâmicos então porque mesmo ela já sendo destinada a outro
lobo ainda conseguia agitar um lobo estranho com essa intensidade? Afinal o
que essa mulher quebrada por torturas tinha de diferente de outras mulheres?
Fechei os olhos tentando parar de pensar nisso, bem que eu queria
descobrir, mas em muitos anos de vida nunca senti nada igual e pela mãe
terra que isso não aumentasse de proporção porque então o meu lado
selvagem e possessivo seria maior que minha fidelidade e meu lobo seguiria
seu instinto e marcaria território.
E a mãe tinha que me proteger de perder o controle, pois Laican
apesar de toda a força e de nunca ter perdido para nenhum lobo em uma
batalha não seria páreo para minha linhagem antiga e maldita, para a minha
sina de ser seu beta imediato, o que me dava direito de feri-lo sem que ele
conseguisse o mesmo.
A mesma linhagem dele, eu como irmão mais novo era seu beta e
como beta só eu poderia derrotá-lo e nunca faria isso, me tornei beta de
Laican porque era meu destino de nascimento protegê-lo.
Novamente suspirei e fechei os olhos. — E era isso que eu ia fazer,
mesmo que custasse minha sanidade.
Baile

A carruagem parou na porta e logo Nicolae desceu e ajudou Diana em


seguida.
Eu ainda ficava admirado de ver esses dois juntos, o amor nos olhos
deles nunca mudava. Andei apressado tentando imaginar como Priana estaria,
abri a porta e a mulher ali dentro me arrancou o ar em lufadas arrítmicas.
Usava um vestido verde escuro, simples, mas elegante, combinava
com seu corpo curvilíneo. Tinha os cabelos soltos emoldurando seu rosto
aristocrático, os sombrios eram belos, mas aquela sombria era a mais linda, a
que acalentava meu coração não mais solitário.
Ela me olhou e apertou os lábios. — Está me deixando um pouco
ansiosa com esse olhar, espero que não esteja estranhando minhas roupas.
Não pude deixar de sorrir quando lhe estendi a mão. — Estou é
estranhando o fato de você conseguir ficar mais bonita ainda.
Seus olhos correram de cima abaixo me analisando, logo ela sorriu. —
Usarei suas palavras para elogiá-lo, e além de lindo, está muito elegante nessa
roupa.
Diana sem ligar ao flerte entre eu e Priana me deu um beijo no rosto e
me sondou curiosa. — Como está Amélia?
— Está muito nervosa, não está sabendo lidar com a angústia que a
inflige esse dia.
Nicolae deu um beijo em Diana. — Vá ter com ela meu amor, tenho
que conversar com André.
Diana olhou para a janela do quarto de Amélia que estava acesa. —
Não vamos demorar Nicolae, logo desço com Amélia.
— Demore o tempo que precisar.
Ela o beijou com carinho e seguiu para a porta. Logo ela parou no
alpendre e fez sinal com a mão para Priana.
Ela se aproximou e sussurrou. — Vou deixa-lo com o segundo para
que possam conversar e vou com Diana ajudar Amélia.
Assim que as duas entraram percebi o olhar penetrante de Nicolae em
mim.
— Sei que tem perguntas André, reconheço seus cheiros, tenho você
gravado com meu caçador.
Assenti me sentindo desnudo, ainda era estranho que ele conseguisse
me interpretar somente porque gravou meus aromas no modo caçador na
única vez que me atacou no passado porque pensou que eu poderia ferir
Diana. Nicolae era um príncipe honrado e justo, um homem a se temer e
admirar na mesma proporção.
— Está acontecendo alguma coisa no reino sombrio? Algo de
diferente?
Ele negou. — Lá continua calmo, mas aqui a calma tremula e perde
força. Alguma novidade sobre os sumiços?
Neguei. — Nada aconteceu desde aquele corpo, creio que o
aparecimento dela os deixou mais atentos às pistas que estavam deixando.
Nicolae assentiu. — Acredito que tem a ver com a biblioteca, senti
cheiros em todos os lugares, porém os livros não são manuseados.
Apertei os olhos. — Está me dizendo que apesar de não frequentarem
o lugar, lá tem cheiros em excesso?
Ele assentiu. — É como se uma multidão estivesse andado por lá, no
entanto o lugar é basicamente intocado. Sugiro que investigue André, é um
lugar estranho, e meu caçador se agitou mesmo sem perigo aparente.
Cocei o queixo tentando me lembrar da antiga igreja dos homens que
foi transformada em biblioteca, foi uma maneira de Tiago incentivar as
uniões normais deixando a disposição com a ajuda de Laican e Rael, alguns
documentos antigos, mas não tinha nada demais, era apenas um salão
pequeno cheio de prateleiras com livros e manuscritos antigos e uma mesa
comprida para os leitores no meio.
Não dei atenção ao lugar nas investigações porque não parecia o
melhor lugar para esconder... Olhei para Nicolae.
— É estranho, mas... Não sei quem é o curador da biblioteca, nunca
pensei em investigar isso, vou tomar providencias, mas se tem alguém usando
o local seja para o que for. O curador tem parte nisso.
Nicolae assentiu. — Ótima dedução, irei amanhã ter com Laican,
deixei ele a par do que estava acontecendo e ele me pediu para nos
encontrarmos, ele só faz isso quando está preocupado.
Senti a preocupação me tomar, e ainda assim alívio, eu não estava
sozinho nisso, não mais, agora tinha Nicolae e pelos vistos não era somente o
reino humano que tinha problemas.
Escolhas

O espelho à minha frente mostrava um homem com os olhos ansiosos


e vários tiques nervosos.
Pela quinta vez arrumei a gola da camisa, pela décima vez ajeitei a
farda e não pela primeira vez me senti desconfortável de estar usando essas
roupas formais, queria poder usar roupas normais nesse dia, algo simples. O
motivo de tanto desconforto era a distância que eu tomava dos outros nesse
baile, a distância que eu tomava dela...
Amélia me olharia como se eu fosse um burguês tolo. Nas poucas
vezes que a vi mais a vontade perto de mim foi quando visitei André com
roupas simples, e montado, nada de carruagens e ostentação e nessas vezes eu
a sentia mais próxima, nas ocasiões formais a sentia distante e isso me
deixava chateado.
Minha mãe apontou a cabeça na porta. — Filho está pronto?
Sorri desanimado para ela, estava pronto há mais de uma hora, ainda
assim não me sentia de forma alguma pronto, ao contrário.
— Sim estou, descerei em breve.
Apertei o maxilar completamente contrariado com essa situação, esses
bailes que eu sempre abominei, que sempre me esquivei de frequentar
quando meu pai os fazia. Agora por obrigação eu tinha que comparecer
porque eu era o maldito rei e precisava da diplomacia para que o reino se
reerguesse com as novas leis.
Mordi a carne da bochecha como um meio de esquecer o quanto
estava me sentindo miserável e saí pela porta. Desci as escadas fazendo
esforço para enrolar o mais possível.
Conviver com os olhares famintos dos novos mendigos, miseráveis e
órfãos, com o ódio dos novos inimigos que eu mesmo criei ao mudar as leis
me parecia mais pitoresco do que circular por um salão com o olhar de
reprovação de quase todos os convidados.
O rei rebelde... Era assim que me chamavam pelas costas. O filho
pródigo que fez ruir o império sólido de seu pai.
Nem mesmo as mulheres que agora não podiam mais ser usadas para o
comércio, nem mesmo elas me olhavam com bons olhos.
Muitas mães de bonitas garotas que ansiavam por uma ascensão
usando a beleza das filhas me olhavam claramente com mágoa.
Malditas ignorantes! Poderiam ao menos ver que tentei, que tudo o
que fiz foi dar a elas liberdade e o direito de não ser vendida como um
animal. Dignidade... Elas mereciam mesmo isso?
Sim, elas mereciam, afinal eram pessoas pelo amor de Deus! Mas não
era assim que pensavam, estava aí algo que me irritava. Quase nenhum
reconhecimento de dentro do reino humano, somente dos reinos Licans e
sombrio.
O que eu não tinha de respeito dos meus, da minha própria raça eu
tinha das outras raças e agora também do bairro dos Renegados, lá por
incrível que pareça quando eles me chamavam de rei rebelde, eu até gostava,
pena que eu não era tão rebelde assim já que estava me submetendo aos
caprichos das castas altas.
Com pesar pisei no último degrau. O salão estava lotado, toda a casta
alta, a nobre e suprema estava presente. Animosidade. Somente isso que eu
sentia vindo dos meus súditos, do povo que devia apoiar seu rei.
Mas não era apoio que eu via, mesmo vendo o sorriso saindo de suas
bocas, via o ódio saindo de seus olhos.
Celina como é obvio não estava presente, ela vivia em constante vigia,
sempre tive receio que usassem minha mãe e minhas irmãs contra mim.
Qualquer um que tivesse meu afeto estava em perigo, disso eu já estava
ciente, por isso precisava me distanciar, não deixar que soubessem. Mas não
podia disfarçar, não podia fingir que nada acontecia, ainda mais quando a vi
chegar.
O salão ficou em completo silêncio, não por conta dela, mas por conta
dos sombrios Nicolae e Priana. E os olhares todos foram para Diana, a estrela
mor do rancor dos humanos.
Nicolae não se importava com os olhares de ódio para ele, seus olhos e
sua atenção como sempre eram todas para Diana, se tentassem qualquer coisa
contra ela, eu nem precisaria me preocupar de dar adeus aos remanescentes
de fim de baile, não restaria nenhum.
Isso me deu até uma esperança sombria, de que realmente irritassem o
segundo príncipe dos sombrios, pelo menos eu não precisaria casar com um
defunto, mas isso não ia acontecer.
Nem mesmo Diana pareceu se importar com o sentimento que causava
ao passar por eles vindo em minha direção. Minha amiga e confidente estava
como sempre, linda em um vestido vermelho que marcava a cintura e deixava
os homens curiosos ao se abrir singelamente na saia. Ela sempre foi elegante
e ainda me fazia rir a lembrança dos vestidos baseados nos costumes da moda
do harém que comprei a ela. Por sorte aquela história de noivado entre nós
não foi para frente, e claro que se tivesse ido eu seria um homem morto.
Nicolae me arrancaria as vísceras na primeira oportunidade por tudo o que
aconteceu a ela ser nesse reino.
Ela me cumprimentou com uma vênia assim como todos os outros até
mesmo Nicolae fez esse cumprimento. Não gostava de vê-los curvados para
mim, Nicolae era muito mais nobre e Diana muito mais digna que eu. André
merecia mais respeito de minha parte para ele do que ele a mim. Ainda assim,
o protocolo exigia essa merda porque os outros falariam depois.
Os cumprimentei polidamente, mesmo querendo abraçar Diana,
mesmo querendo ser eu a fazer reverência para aquele sombrio que cuidou de
me salvar a vida há pouco tempo atrás e claro, me salvou de fazer a maior
merda da minha vida há poucos dias.
Segurei a mão dele. — Muito gosto em vê-lo, alteza.
Ele retribuiu o aperto. — Muito gosto em vê-lo, majestade. — Nicolae
olhou para os lados. — Não tomaremos seu tempo, não ficaremos muito.
Diana parecia triste, de alguma forma seus olhos não brilhavam tanto
quanto antes.
— Está bem, Diana?
Ela sorriu. — Não se preocupe comigo, estou bem.
Típico dela essa resposta, mas eu já a conhecia para saber que era
mentira. — Logo você se acostuma e verá seu irmão em breve, um ano não é
muito.
Ela negou e me encarou com seus olhos verdes tristes.
— Nunca vou conseguir me acostumar majestade. Dimitri irá me fazer
muita falta nesse ano.
Assenti, eu sabia o real motivo de sua tristeza, o aborto espontâneo,
mas isso não podia ser assunto tocado perto de tantos ouvidos ávidos para
encontrar fraqueza nas raças, eu queria confortá-la com palavras amigas, mas
não podia dizer tudo o que queria, era um encontro formal, infelizmente.
Meus olhos apesar de eu lutar para não acontecer, estavam indo
constantemente para Amélia que estava enroscada ao braço de André. Ela
estava visivelmente nervosa e eu soube que era por causa da multidão que
ouvia atentamente a conversa e uma pontinha de egoísmo desejou que
também fosse por ciúmes de eu ter que escolher outra mulher.
Beijei a mão de Priana que com muita elegância fez sua reverência.
Logo segurou a mão de André novamente.
Quando os olhos de Amélia encontraram os meus não prestei mais
atenção a nada. Aqueles olhos azuis nervosos nos meus, mostravam o quanto
a irritava ter que cumprir as obrigações sociais por conta do título do pai.
Segurei sua mão e lhe dei um suave beijo, senti a quentura de sua pele
por cima do tecido da luva. Meu estômago deu uma reviravolta de vontade de
continuar assim, com os dedos mornos dela enroscados na minha palma. Mas
não podia a manter presa segurando sua mão para sempre, só que... maldição!
Era tudo o que eu queria agora. Nada me importava tanto, para o inferno os
olhos curiosos em cima de nós.
Mas como um cão obediente das castas eu acabei soltando sua mão e
desviei o olhar, demonstrar qualquer sentimento por Amélia em público seria
o mesmo que colocar uma corda em seu pescoço.
Os olhos compreensivos, porém magoados de Amélia me doeram o
peito e amargou minha bílis.
Logo os deixei circular pelo salão e fui para a minha cadeira, encontrei
os olhos sábios de dona Clara em mim.
Ela esperou eu sentar e falou baixo. — Não se torture assim Tiago,
vejo o quanto o transtorna tratar aquela moça com indiferença.
Balancei a cabeça tentando a todo custo não olhar na direção que
estava André e sua família.
— Não posso a por em perigo, mãe. Nunca imaginei que encontraria a
mulher que arrebataria meu coração e quando a encontro não posso almejar
tê-la em meus braços porque a colocaria no meio dessa merda toda. Não
posso fazer isso com ela.
A rainha não falou mais nada, segurou minha mão e deu um suave
aperto, ela me compreendia.
O reino ainda tão instável, tão putrefato como estava não me dava
oportunidade para a felicidade, para colocar mais alguém aos meus cuidados.
Ainda mais alguém que poderia ser usada como um trunfo contra mim. Se
algo acontecesse a Amélia, meu coração se fragmentaria e eu não podia
permitir isso, mesmo que para isso…
Levantei altivo, mostrando a segurança devida a um rei e caminhei
pelo salão.
Eu teria que escolher meu par para a dança, senti os olhos de todos em
mim, olhares ansiosos, que me desafiavam e até mesmo ameaça, não dei
atenção a isso, um rei não deve ceder à pressão. E era justamente o que eu
estava fazendo, que irônico...
Circulei pelo salão tentando pensar diplomaticamente. Qual família
seria mais interessante agradar? Qual deles teria uma filha menos chata para
que eu pudesse tirar para dançar sem ter vontade de mandá-la a forca no fim
da música?
Por fim não tive escolha, dentre todas, era a família Albergin a mais
correta no momento, por conta dos negócios serem independentes ao
comércio de mulheres, agora eles eram umas das poucas famílias que
progrediam.
O mais engraçado é que antes das mudanças do tratado eles eram uma
daquelas famílias que não conseguia enriquecer por conta de sua produção
agrícola e agora por ironia foram os que mais lucraram.
Sua extensão de terra produzia o que o reino mais precisava nesse
momento. Alimentos. Por conta disso, se adaptaram rapidamente as novas
leis e ao contrário de todos que vendiam tudo no desespero de medo do
empobrecimento, eles gastaram investindo. E para a surpresa da maioria,
ainda aceitaram de bom grado pagar seus trabalhadores.
Eles viram na mudança uma oportunidade, e dentre todas as famílias
que choravam miséria, eles eram uma das poucas que tinham verdadeira
produção. O moinho e as instalações em suas terras haviam ajudado progredir
imensamente e isso lhes conferiu um status que seria difícil aos outros de
casta alta alcançar.
A moça, filha deles me olhou ansiosa, a impaciência tomou conta de
mim antes mesmo de tomar sua mão. Mas de todas que eu vi ela parecia um
pouco diferente, me olhava com curiosidade, apenas isso, pelo menos não era
cobiça.
Seus cabelos cacheados estavam presos em um bonito coque, seu
vestido vinho deixava à mostra um corpo curvilíneo e farto. Os olhos negros
e vivos eram simpáticos, era uma bela mulher, mas não perigava nem de
longe o lugar de Amélia em meu coração, o mais importante para mim agora
é que era de uma família influente dentre os de sua casta. E também agora
uma das poucas casas poderosas que apoiavam meu reinado.
Beijei sua mão e a puxei com delicadeza para o meio do salão. Meu
rosto sorrindo automático e meu coração vazio de qualquer emoção
verdadeira.
A música começou e iniciamos a dança, evitei olhar para Amélia, se o
fizesse largaria aquela moça e tomaria aquela loira em meus braços e pediria
para que ela dançasse somente comigo toda a noite. Mas não podia fazer isso,
então para essa moça que me acompanhava no ritmo da música e me olhava
com eu sorriso simpático, eu mostraria interesse, porque mesmo que alguns
decidissem usá-la para me atingir, não teriam sucesso. Porque ela nada
significava para mim.
— Como se chama?
Ela baixou os olhos como uma boa puritana antes de responder. Me
mantive firme esperando a resposta, porém me irritando com esses
movimentos ensaiados de falsa modéstia.
— Marina, majestade.
Assenti sem saber muito bem o que dizer. — Prazer, Marina.
Não pedi a ela para me chamar de Tiago, na verdade não senti a menor
vontade de incentivar qualquer assunto.
Só queria que a música findasse e que minha obrigação social
terminasse, fiz uma nota mental de fazer a menor quantia de bailes possíveis.
Talvez até nenhum, realmente nada de festas, coisa irritante quando não
podemos realmente estar com quem ansiamos.
Ciúmes
Tentei de todo jeito não olhar para ele. Conversei com Priana vários
assuntos, olhei para todos os lados. Mas mesmo quando não queria meus
olhos paravam um pouquinho no casal no meio do salão.
Tiago falou algo e a moça abaixou os olhos depois respondeu, ele
sorria o tempo todo.
Queria ir embora, nem sei por que aceitei acompanhar meu pai nesse
maldito baile. Por vezes me ressentia de seu posto importante. Apesar de ter
orgulho e saber que ele merecia isso depois de tanto que passou, ainda assim
ter que ver Tiago dançando com aquela moça me feria, e nem sei se consegui
disfarçar, e eu tinha que conseguir, pois havia algo palpável entre nós que até
mesmo o povo da vila dos Renegados já tinha percebido.
André segurou minha mão. — Só mais um pouco filha e sairemos
daqui, me desculpe fazer você passar por isso.
Beijei sua mão. — Não se preocupe com isso pai, está tudo bem, é
melhor assim, logo ele terá alguém para lhe tomar a atenção.
Ele assentiu porque ele mesmo havia me dito isso, Tiago estava
protelando, adiando isso, mas de hoje ele não conseguiria escapar de escolher
uma dentre as muitas pretendentes.
Senti raiva da música que nunca acabava. Virei-me novamente para
ele que ainda dançava e apertei os lábios quando o vi sorrir novamente para
ela, senti vontade de arrancar cada dente que ele mostrava para aquela moça,
talvez furar os dois olhos que ele deixava fixo nos dela, cogitei até a hipótese
de quebrar suas pernas para ele nunca mais dançar com ninguém na vida.
Eu tinha ciúmes, claramente me roía com esse sentimento, olhar para
aquela mão enorme dele segurando aquela cintura e não poder fazer nada, me
fazia sentir uma raiva cega.
Minha mãe sempre havia dito que eu era impetuosa, que precisava
pensar antes de agir, mas ela estava errada sobre mim. Meu mau sempre foi
querer poder fazer as coisas de acordo com meu coração, sonhar sempre me
foi proibido. Mesmo no reino sombrio onde as mulheres tinham liberdade eu
nunca me senti verdadeiramente livre. E nem agora eu parecia tão livre. Vir a
esse baile foi uma obrigação necessária.
Havia coisas demais em jogo e eu tive que acompanhar meu pai para
debutar diante da corte para que todos soubessem de quem sou filha e que eu
e o rei não temos nenhum vínculo. Ainda assim não estava sendo fácil ver
Tiago cumprindo suas obrigações reais.
Cada vez que eu o via como rei me distanciava do homem que mexia
comigo. O homem Tiago não podia se libertar do rei Tiago, os dois eram um
só, e eu não tinha espaço nesse jogo de poderes, também não queria me ver
arraigada nisso, liberdade é algo importante para qualquer ser humano e
dentre todos do salão aquele homem que usava coroa era o mais preso.
Infelizmente o homem que libertou o reino das regras de escravidão decretou
nesse mesmo dia o próprio estado de servidão.
Olhei com rancor para a multidão que observava o casal dançando, era
culpa deles, tudo por culpa deles.
Quando a música acabou senti alívio com o peso saindo do meu
coração ao vê-lo entregar a moça para os pais, mas prendi a respiração
quando o vi se aproximar com seus olhos negros brilhantes e lindos fixos em
André, quase nem me olhou. Quando se aproximou sorriu amigável.
— Posso tirar sua filha para uma dança, general?
Meu pai assentiu em silêncio, os olhos preocupados, não sei se era por
mim ou por seu pupilo. Nunca dava para saber qual gesto seria perigoso ou
arrecadaria a Tiago mais inimigos.
Ele me pediu a mão e eu depositei os dedos em sua palma sem olhá-lo,
sempre acho que quando o olho meu rosto fica afogueado, não sei se fica,
mas é como se tudo o que sinto ficasse escrito na minha cara. E tenho medo
que todos possam ler.
Não posso demonstrar nada, não quando Tiago precisa escolher seu
caminho, sua esposa dentre os poucos aliados de seu reinado.
Ainda assim não deixei de ficar com o coração aos pulos quando ele
me tomou pela cintura. Sentir sua mão na minha era como pedir para ter os
sentimentos à prova. Não sei se consigo ficar mais tempo perto do homem
que toma todo o espaço do salão, que ofusca a todos a minha volta com sua
presença forte, preciso dar tempo ao meu coração, pensar em um meio de me
distrair e deixar esse sentimento acalmar.
E preciso de uma distração com urgência.
Tiago e o baile

Se Amélia pudesse ouvir meu coração agora ela ia achar que ele
poderia arrebentar no meu peito.
Seu vestido creme deixava a cor dos cabelos dourados ainda mais
magníficos, os olhos tão azuis como um lago fugiam de mim, ela não me
olhava nos olhos.
Parecia estar chateada com algo, poderia ser por eu a ter tirado para
dançar, ou mesmo por estar sendo o centro das atenções.
Logo ela me olhou, desviou os olhos em seguida e meu coração
murchou, ela estava triste, não sentia nem mesmo um terço da minha euforia
com essa aproximação.
A última vez que tínhamos falado foi na reunião e tudo girou em torno
de seu plano de compra e que tenho que admitir, foi magnífico ver sua vitória
diante dos homens, me senti quase a explodir de vontade de tomá-la nos
braços ali mesmo na frente deles e lhe dar meus parabéns, mas isso poderia
diminuir o efeito e tive que me agarrar aos braços da cadeira para me conter.
Naquele dia ela não demonstrou insegurança mesmo quando
começaram com ataques verbais, mas agora ela parecia uma moça frágil e
envergonhada, e eu não sabia se era por minha causa ou por causa de todas
aquelas famílias nos olhando como se quisessem ter o poder de causar morte
com o olhar.
Quando a música acabou ela fez menção de se afastar, mas segurei sua
mão, com o coração galopando no peito e falei sem me importar com os
sussurros a nossa volta, eu cumpriria minhas obrigações, mas não ia escolher
ninguém sem antes falar com ela.
— Precisamos conversar.
Os olhos dela para mim foram de susto. — Não posso...
Fechei a cara e encarei todos no salão, falei alto para que ninguém
pensasse algo.
— É urgente senhorita Amélia. Temos negócios pendentes e um baile
também é um lugar de negócios.
Soltei sua mão e esperei ainda mantendo o olhar duro, quase com
vontade de ver alguém se aproximando e me chamando a atenção pela minha
falta de decoro, mas nesse momento eu até usaria de arrogância e lembraria
minha posição, porque nenhum maldito ia me fazer casar sem me despedir da
pessoa que eu realmente amava.
Ela assentiu e então me virei em direção ao corredor, torcendo agora
para não ser barrado. Minha mente funcionando como se minha vida
estivesse em risco. Precisava encontrar um lugar só nosso. Ouvi a voz de
alguns convidados pedindo para a música continuar e suspirei aliviado, pelo
menos não iam ficar ali com cara de enterro esperando o retorno do rei.
Quando alcançamos um corredor escuro, segurei sua mão e mesmo ela
soltando um gemido de nervoso, acompanhou meus passos, na verdade
estávamos basicamente correndo pelo corredor escuro, passamos pela porta e
segui para o único lugar que sei que ninguém podia ter acesso se não usasse
uma coroa, o jardim particular da rainha.
Quando finalmente adentramos o jardim me virei para ela.
Amélia não disse nada, mas eu sentia sua tensão, seu nervosismo, ela
esperava eu falar, eu queria dizer muitas coisas a ela, mas tudo que me vinha
à mente, qualquer assunto me parecia sempre idiota.
Limpei a garganta e tentei. — Amélia, eu sei que sou…
Ela levantou a cabeça me olhando em fúria atropelando minhas
palavras. — Um maluco é isso o que você é! Onde já se viu fazer aquilo na
frente de todos? Está ficando louco? Não percebe o perigo em que está se
colocando?
Me aproximei a encarei de perto a calando com meu olhar de raiva. —
Eu tinha que falar com você, antes de... Antes...
Não consegui falar aquilo para ela.
Amélia assentiu. — Não precisa se explicar, eu sei o que quer fazer e
peço que não faça, só... Cumpra suas obrigações reais, é isso que esperam de
você.
Por mais que a voz dela tenha saído firme eu sabia que ela estava
sofrendo, eu vi o sofrimento em seus olhos e me aproximei quase como um
sedento quando vê um lago.
Mas ela se afastou de mim e prendi o ar. — Porque se afasta?
— Me disse que precisava resolver um assunto, estou esperando o que
seria.
— Eu só queria ter certeza que não tenho nenhuma chance de...
Os olhos dela se encheram de água. — Não termine, eu lhe peço, vai
se machucar atoa e machucará a mim também, já não é tortura suficiente vê-
lo lá procurando alguém para casar? Porque está fazendo isso comigo?
Como se fosse demais ter verbalizado, Amélia começou a chorar e me
senti horrível, praticamente a forcei a me acompanhar. Nesse momento eu
soube o quanto eu era egoísta porque a puxei para um abraço e quando ela
apoiou a cabeça em meu peito meus olhos arderam.
— Preciso fazer isso, ou vou morrer Amélia.
Segurei seu rosto e trouxe para mais perto, beijei de leve seus lábios,
segui com calma saboreando cada sensação, guardando cada lembrança dela.
Eu precisava disso como precisava de ar para viver.
Ela se afastou aturdida passando a língua pelos lábios como se
procurasse meu gosto e eu não soube como reagir a esse gesto tão sedutor, ela
nem sabia que estava prestes a cometer um regicídio somente ao fazer aquilo?
— Precisamos voltar. — Ela disse apenas isso e eu fiquei quase a
ponto de gritar de frustração.
Ameacei dar um passo, mas senti sua mão no meu braço, um toque
sútil, ainda assim parei na mesma hora. — Eu o amo. Quero que saiba isso
antes de se casar, não posso viver sem ter dito pelo menos uma vez.
Arfei. Eu tinha ansiado ouvir isso todo esse tempo, e agora que ela
falou foi como se um garrote apertasse minha garganta.
Sem esperar que eu me recuperasse do abalo que isso me causou, ela
correu como se fugisse de um animal faminto. Por um bom tempo fiquei ali
parado sem lembrar como respirar.
Definitivamente escolher uma moça naquele salão seria a coisa mais
difícil que eu teria que fazer em toda a minha vida.
Apoio materno...

Amélia
Só parei quando alcancei o corredor escuro, não me importei em
disfarçar já que as vozes e as risadas no salão abafaram meu choro.
Não sei por que eu chorava agora, se de tristeza por saber que sentiria
falta daquele calor nos olhos de Tiago e pelo que tinha acabado de acontecer,
ou se chorava de emoção... Pelo que tinha acabado de acontecer.
Levei a mão aos lábios não acreditando que tínhamos nos beijado, de
novo. Não aceitando que era o último, ele tinha um beijo tão gostoso e era... o
último.
Soltei o ar e me recostei na parede gelada ciente de que eu teria que
ser forte agora. Eu precisava me acalmar para voltar ao salão, mas era mais
fácil quando brigávamos, quando ele parecia mais idiota, mas aquela
despedida foi... Me senti tremer.
Respirei fundo para conter a vontade de voltar correndo para o jardim
e pedir para ele não casar com ninguém, mas mesmo eu sabendo que nunca
suportaria ver essa escolha acontecer, eu não podia pedir isso, ele tinha que
fazer e eu tinha que tocar em frente, que sobreviver com esse golpe em meu
coração.
Senti a mão morna em meu braço. Me virei assustada e Priana me
abraçou.
— Vai passar essa dor, seja forte.
Me agarrei a ela como se minha vida dependesse disso. — Eu disse...
— Eu ouvi querida. O que você tinha que fazer você fez com coragem,
foi admirável e mostrou o quanto o ama. Não se torture mais.
Ela segurou meus ombros e me encarou e mesmo no escuro do
corredor eu vi que seus olhos estavam vermelhos na íris.
— Agora respire fundo. Se recomponha e volte ao salão sem dar o
gosto a eles. Não alimente a crueldade deles mostrando que sofre.
Assenti e enxuguei o rosto, funguei algumas vezes e me abanei
tentando mandar ar ao meu rosto. Demorou mais do que eu queria, mas
acabei conseguindo pelo menos tirar um pouco o esmaecimento do choro.
De mãos dadas com Priana voltei ao salão, e confesso que vi confusão
nos olhos dos convidados. Talvez eles esperassem que eu voltasse com Tiago
e entendi porque foi Priana que foi ao meu encontro.
Para evitar falatório e deu certo porque logo se esqueceram de nossa
existência e voltaram a conversar sobre a escolha do rei.
Meu pai me sorriu e Diana estava enroscada no braço dele também me
sorriu compreensiva, sorri de volta com esforço. Nicolae tinha sumido e
segurei a mão de André, mas não larguei a de Priana, ela me sorriu e assentiu
quando me viu grudada ao seu companheiro, parecia feliz com aquilo e nesse
momento senti vontade abraçá-la e agradecer a ela por estar com meu pai.
Ela o fazia feliz e hoje basicamente fez o que uma mãe teria feito, me
apoiou e me ajudou com minha dor.

Tiago
Definitivamente eu era um covarde, pois não tinha sequer encontrado
coragem para sair daquele jardim, não conseguia encontrar a coragem para
levantar dali e seguir para o salão, pois se o fizesse eu teria que dizer qual
daquelas estranhas seria minha noiva. Qual daquelas malditas estranhas
arruinaria minha vida.
— Querido, podemos conversar?
Levantei os olhos reconhecendo a voz. Minha mãe me observava do
arco da entrada do jardim, os olhos negros estavam preocupados, fiquei
receoso, quanto ela tinha ouvido? Ou era algo familiar?
— Está tudo bem com Celina?
Ela sorriu e assentiu. — Hoje ela está mais calma, mas preciso falar
com meu filho um pouco.
Sentei no banco e ela sentou ao meu lado e segurou minha mão, fiquei
um pouco surpreso, fazia tanto tempo que não ficávamos assim.
Ela me olhou e soltou um suspiro. — Então meu filho pretende
mesmo se casar.
Neguei e olhei para o teto de ramos tentando buscar palavras, não
tinha até agora desabafado sobre isso.
— Não sei o que fazer mãe, pareço um boneco de pano, um fantoche
que assente quando me ordenam, ninguém me pergunta o que eu quero, só
me dizem o que preciso fazer.
Levantei talvez pela primeira vez hoje com os olhos marejados, já
tinha aguentado tanto sem me deixar abalar, mas agora me sentia quase sendo
mandado à morte.
— Não imaginei que teria que dar tanto de mim em benefício de um
povo que pelo menos um terço me odeia, outro terço me culpa pela própria
miséria e o resto que me vê como alguém tolo que apenas tenta ser melhor
que o pai.
Minha mãe sorriu. — Você é infinitamente melhor que o seu pai. Mas
filho, ele deixou um legado. Uma herança cruel. O pai dele já tinha mudado
tantas coisas, mas foi ele, o seu pai que mudou as cabeças, que fez o povo
esquecer que um dia no passado, foram melhores que agora.
Você não é um tolo, é justo e leal aos seus, mesmo tendo tantos
defeitos que faz com te definam, você é ainda melhor que todos eles. Não
permita filho que ditem o que tem que fazer, o rei é você. Não é o conselho,
não é a casta nobre. Precisa por vezes ser cruel para ser bom, entende?
Minha mãe dizendo isso? Me virei para ela. — Está sugerindo que eu
faça um reinado de terror? Como serei melhor que meu pai assim?
Ela levantou e ficou de frente para mim e segurou meu rosto, me
fazendo encará-la.
— Seu pai trouxe o terror para quase todos, no entanto era amado
pelas castas mais altas, simplesmente porque ele beneficiou esses, porém era
odiado pelo resto.
Agora o que você precisa fazer é o contrário, ser mais firme e até cruel
se precisar com esses das castas mais altas, e beneficiar os mais pobres, que
só realmente terão paz quando você literalmente amansar os mais abastados
que ainda estão acostumados com a vida cheia de benefícios e não irão abrir
mão tão cedo, por isso, você precisa mostrar a eles quem manda.
Apertei os lábios até sentir dor, fiquei com um frio no estômago só de
me imaginar sendo cruel. Celeste, Celina e André me vieram à mente. Eles
sofreram tanto, eu vi o tanto de crueldade que passaram por ordem do meu
pai. Não podia ser igual ele, tinha que existir um meio. Um jeito de ser
diferente e ainda impor respeito.
— Vou pensar sobre isso, e obrigado por estar aqui nesse momento
tão confuso para mim.
— Eu devia estar mais vezes ao seu lado filho, me culpo pelo
abandono, sei que fico cercando Celina, mas...
Abracei seu corpo frágil e magro. — Não precisa se desculpar, eu
tenho minhas obrigações como rei e você têm as suas como mãe e eu entendo
que Celina tem que ter prioridade, pelo menos ela tem você, pois nem sempre
consigo dar atenção a ela.
Ela me deu um beijo carinho no rosto. — Mesmo que demore um
pouco filho, você encontrará o caminho, saberá governar sem se tornar
escravo da coroa. — Ela me olhou firme e continuou. — Basta um gesto,
uma imposição de sua própria vontade, seja através da dor ou do castigo e
encontrará o caminho para se impor, filho.
Os olhos dela pareciam querer dizer mais, porém ela continuou me
encarando, devia estar esperando eu responder, mas apenas assenti sem saber
o que dizer.
— Você vai conseguir, eu confio em você e sei que quando o
momento chegar, você será rei e não fantoche, por isso, hoje seja rei, se for
fantoche uma vez, será por toda a vida.
O jeito sereno dela ao dizer isso me encheu de esperança, talvez
realmente eu não estivesse fazendo a coisa certa, eu aceitei logo de primeira a
sugestão do conselho, talvez estivesse na hora de mostrar a todos o que meu
coração queria, e não era casar com uma desconhecida.
O que eu queria mesmo era aprender a ser alguém melhor para
Amélia. Pois ela foi a única que nunca desistiu de mim, que fez de tudo para
me ajudar e não deixou de me amar mesmo quando o que eu merecia era seu
ódio.
Surpresa

Quase meia hora já tinha passado e nada de Tiago aparecer, o povo no


salão não parava de sussurrar e olhar na direção do corredor por onde ele
tinha saído. Até mesmo um membro do conselho se dirigiu até lá, porém foi
barrado por um soldado que claramente disse ser ordem da rainha que
ninguém passasse.
Não ficaram nada contentes em ter que obedecer a uma mulher e
quase dei risada. Dona Clara não podia ser contestada e eles teriam que viver
com isso.
Diana agora estava com a cabeça encostada ao peito de Nicolae que
tinha voltado tão silenciosamente quanto tinha sumido.
Ele a amparava olhando sereno para as pessoas, mas sua troca de olhar
com Priana não me passou despercebido nem ao meu pai que segurou mais
forte a minha mão.
Não entendi o motivo, mas ele parecia ansioso e até preocupado.
Devia estar recebendo alguma informação mentalmente de Priana que
consequentemente recebeu do senhor Nicolae.
Isso me distraiu, porque comecei a olhar para o salão procurando algo
fora do comum. Senti receio pelas trocas de olhares, eles pareciam prever
uma tempestade, isso seria perigoso claro, mas se estivéssemos ao ar livre,
todavia não parei mais quieta e meu pai percebeu minha agitação.
Beijou meus dedos e sussurrou em meu ouvido. — Fique calma e não
fale nada, as coisas vão sair do controle.
Meu coração acelerou, olhei novamente a minha volta, tudo parecia
normal, tinha algumas pessoas que já estavam sem paciência com o sumiço
do rei, mas nada nos semblantes que indicasse uma revolta violenta.
Não demorou e houve um silêncio de morte. Tiago não apareceu pelo
corredor que tinha saído como todos esperavam.
Ele apareceu no alto da escada e olhou sério para todos nós que
aguardávamos no salão. Quando ele desceu dois degraus os murmúrios
começaram, primeiro baixo e logo começou a se intensificar.
— Escolha, escolha...
Um coro de vozes de homens e mulheres olhando para o rei como se
fossem superiores a ele, exigindo que ele finalmente decidisse.
Me encolhi e meu pai rodeou os braços em minha volta.
— Logo isso vai acabar, e voltaremos para casa, eu prometo.
A multidão continuava a falar cada vez mais alto conforme Tiago
descia mais degraus. Quando o volume aumentou exponencialmente ele
parou no meio da escada e encarou a multidão com os olhos tão severos que
me deu medo.
— Calem a boca ou terei que mandar todos à masmorra, se não couber
então servirá o calabouço para os que restarem.
Tiago falou sério e de modo tão ameaçador que o silêncio se fez no
mesmo instante. Por fim ele olhou para todos por um momento e voltou a
falar com a voz poderosa de quem está decidido a algo.
— Melhor assim. Muito bem, vocês querem uma decisão? Pois bem,
eu fiz minha escolha.
Meu coração apertou tanto que quase fui eu que comecei a falar
escolha, escolha, para ver se ele acabava logo com essa tortura, eu já sentia
que ele escolheria a moça que ele dançou primeiro. Até eu escolheria ela
dentre todas aquelas filhas de nobres, pois ela me parecia a menos
insuportável.
Meu pai me soltou e para meu terror ele ficou na minha frente, senti
até medo de ser eu alvo de algum ataque da massa rica do salão.
Ninguém pressionou Tiago que os encarou de maneira nada amistosa.
— Amélia Goés, filha de André Góes, essa é a minha escolha.
Minhas pernas ficaram moles, meu pai se manteve protetoramente a
minha frente e senti o braço do senhor Nicolae me amparando. Como ele
tinha chegado ali tão rápido?
— Não deixe que isso aconteça, menina, fique firme.
Ele falou baixo e respirei fundo para me recompor. Havia tantos
olhares de ódio para mim que até estranhei o sorriso enorme de Diana em
minha direção. Parecia até uma miragem boa, pois ela era a única que tinha
recebido a notícia com verdadeira alegria.
Claro... Eu também estaria alegre se não fosse à luta desesperada com
meu coração para que ele voltasse a bater.
Tiago se aproximou de mim e quase corri dele, aquilo tudo era insano!
Não era assim que era para acontecer, pelo menos não em meus sonhos. Cadê
o cavalo branco? As flores sendo jogadas? Os vivas e desejos de felicidades?
Ou... Pelo menos o aviso antecipado para eu não morrer de susto?
Não, tudo o que tinha para saudar a notícia eram resmungos de
convidados raivosos, Diana ainda sorrindo, meu pai que estava branco feito
papel, o senhor Nicolae ainda me segurando e esperando Tiago chegar e
Priana olhando atenta e quase silvando ameaçadora para a multidão.
Tiago me estendeu a mão e como uma sombra ágil o senhor Nicolae
estava novamente ao lado de Diana, certo... Pelo menos não morreríamos
massacrados pelos convidados enraivecidos, não agora já que tínhamos meu
pai, o senhor Nicolae e Priana para nos defender. Diana fez sinal com os
olhos me incentivando a ir em frente.
Eu tremia tanto que tive medo que meus dentes começassem a bater.
Tiago esperou com paciência e pela primeira vez vi em seus olhos, felicidade.
Ele estava feliz por quase incitar um combate no salão. Por fim depois de
respirar fundo, eu segurei sua mão.
O que eu tinha que fazer em seguida eu não tinha ideia, tudo o que
consegui foi fixar os olhos em suas costas largas e o segui como uma criança
medrosa.
A voz imperiosa dele ressoou pelo salão que estava em total silêncio.
— O baile ainda vai continuar, quero todos se divertindo e isso é uma
ordem.
Ordem? Para se divertir? Olhei para trás com receio de receber uma
espadada nas costas, mas atrás de nós vinha Nicolae e Diana, meu pai e
Priana como escolta e quase chorei de alívio.
Não paramos no jardim como pensei, aliás, só paramos quando
chegamos ao pequeno portão perto dos estábulos.
Não tivemos tempo sequer de falar, a carruagem parou e Diana entrou.
O senhor Nicolae esperou eu entrar e o fiz quase chorosa, ninguém me dizia
nada, mas eu nunca diria a ele que não queria ir. Ele era meu senhor e o
segundo príncipe.
Diana segurou minha mão e logo o senhor Nicolae entrou seguido de
Priana.
A carruagem começou a andar e fiquei nervosa a olhar pela janelinha.
Com medo de deixar Tiago e meu pai lá, sozinhos para enfrentar aquele
povo.
— Não se preocupe, eles ficarão bem. Hoje o rei mostrou um lado que
ninguém esperava. — O senhor Nicolae me olhava firme enquanto falava.
Ele parecia orgulhoso do que viu. — Se forem atentar contra ele agora, não
será mais abertamente. Será à surdina.
Minha mente era somente preocupação, eles tinham ficado lá sozinhos
para enfrentar a ira dos convidados.
— Ele foi inconsequente, se colocou em perigo...
O senhor Nicolae assentiu e vi uma meia lua de um sorriso. — Ele fez
o que um homem tem que fazer quando encontra sua metade, ninguém pode
tirar a metade de um coração sem pagar caro por isso.
Diana sorriu com amor para ele e para meu constrangimento crescer o
dobro ela saiu do meu lado e sentou no colo dele.
Priana assentiu para mim com um sorriso me indicando que tudo
estava bem e acabei sentindo conforto com sua tranquilidade, acabei me
acalmando de todo aquele susto. Só então que senti a realidade me bater no
rosto e compreendi a proporção do que ele fez. Ele escolheu a mim, enfrentou
todos no salão por minha causa!
Comecei a chorar, e dessa vez foi de emoção e alegria.
O espião. Reunião

Um baile e tanto! Agora no meio da noite, nenhum convidado seguiu


o caminho de casa, todos entraram pela porta azul para um encontro as
pressas para debater sobre a inesperada decisão do rei.
O ódio estava estalando e aquecendo o ar. Rebuliço, conversas
cortadas, um falando por cima do outro.
Bebi um gole de absinto, e olhei por cima da borda do copo. Uma
rebeldia do rei quanto ao que eles queriam e tudo ficou assim. Os cheiros
rançosos de ódio e revolta estavam por toda parte.
Eu, no entanto me senti deleitar com a coragem do garoto, ele foi
corajoso e fez valer a vontade de seu coração, e nada como um rei rebelde
para incitar a rebeldia dessa confraria, assim pelo menos eles finalmente iam
agir e eu poderia acabar com essa farsa e voltar as minhas tarefas.
Já não tinha ilusões que daqui eu tiraria alguma informação, na
verdade o perigo a companheira de Laican não vinha desse bando de
humanos corruptos.
Pelo menos nenhum deles mostrou interesse no que acontecia fora das
muralhas e pelo que todos sabiam eu era o dono dos prostíbulos. A minha
história perfeita pra atrair curiosos, possíveis atravessadores ou informantes
dela.
Mas aqui não, nenhuma pergunta me foi feita, meu tempo com esses
porcos tinha findado, todavia continuei ali agora me deleitando da bagunça
generalizada, eles planejavam a merda de uma coisa grande e talvez Laican
não permitisse que o irmão de sua companheira se ferisse afinal, ou nem se
importaria, nunca dava para saber o que o supremo dos Licans colocaria
como prioridade.
De todo modo, ele tinha assuntos importantes para resolver, o perigo
para os humanos parecia pequeno diante do que os lobos estavam
pressentindo que viria.
Se o rapaz humano tivesse sorte e nenhum perigo rondasse a matilha
como era esperado, ele ia interferir, caso contrário ele deixaria os humanos a
toda sorte, desde que isso não afetasse a segurança de sua companheira.
Mas por isso eu continuei sentado ouvindo os variados grupos
conversando.
Meus ouvidos captavam as partes interessantes dos assuntos, todos
falavam a mesma coisa, mas com ideias tão idiotas que até me deixava
constrangido por ficar no mesmo ambiente que eles. Ainda assim quando
amanhecesse seria um dia e tanto.
Mas para mim chegava ao fim a participação nessa confraria, agora eu
podia finalmente fugir, ir embora como era meu desejo, precisava partir para
não trair meu irmão, porque se eu ficasse seria justamente isso que
aconteceria e tudo porque eu não conseguia entender os sentimentos dentro
de mim.
Tiago

Depois da partida de Amélia eu e André enfrentamos uma massa de


rostos encolerizados pela minha decisão. No entanto me despedi de cada um
deles com o sorriso cortando minha face, eu não conseguia segurar, não
conseguia esconder minha felicidade. Finalmente eu e Amélia poderíamos
ficar juntos.
Quando todos foram embora André sentou comigo e conversamos
muito sobre o que tinha acontecido, me desculpei com ele, afinal não o
preveni, mas ele me perdoou quando eu disse que nem eu mesmo sabia que ia
tomar essa decisão.
Tudo o que fiz foi seguir meu coração, seguir o amor que já estava a
transbordar em meu peito por falta de uso. André continuou com o olhar
preocupado quando partiu, porém parecia tão aliviado quanto eu, afinal a
filha dele também estava sofrendo, pelo menos ele tinha me dito isso.
Depois que me recolhi não consegui pregar os olhos. Me revirei para
todo lado preocupado com a retaliação que poderiam fazer, preocupado com
Amélia e também com minha família. Tomei medidas para mantê-los
seguros, ainda assim, eu sentia um frio ansioso no estômago, um sentimento
ruim de antecipação.
Alguém vai sofrer por minha decisão, e tomara que eu possa me
adiantar aos acontecimentos que tenho certeza que não serão nada agradáveis.
Não sei que horas consegui finalmente dormir, mas quando levantei
antes mesmo do sol despontar ainda sentia a ansiedade me roer as entranhas.
E para justificar esse receio, recebi logo cedo um bilhete de um
soldado. Minha intenção era visitar Amélia para finalmente conversamos
como um casal comprometido, mas o recado no bilhete me fez mudar os
planos e a roupa que eu já tinha vestido. Mandei uma missiva a André
explicando tudo e pedindo que guardasse para ele o que estava acontecendo.
E agora minha primeira ação como noivo não seria abraçar a mulher
da minha vida e sim ficar alguns dias fora para proteger uma pessoa querida
para Amélia, e mesmo que me entristeça não poder tomá-la nos braços ainda,
me recuso a continuar sendo egoísta, está na hora de colocar o bem estar dela
acima do meu próprio.
Normalidade anormal.

Desde o dia do baile tudo virou um completo pandemônio. Não pude


mais voltar à vila dos Renegados e tive que me contentar em trabalhar em
prisão domiciliar.
Marcos ficou muito feliz quando contei o acontecido e quando
reclamei que estavam me mantendo presa em casa até que tudo se resolvesse,
ele miseravelmente não me apoiou, falou que era melhor assim e que logo as
coisas se acertariam, que esse era o primeiro passo.
Minha alegria é que ele tinha trazido Aline para ficar comigo, ele
contou que ela não parava de pedir para me ver e acabei pedindo a ela para
ficar definitivamente, o que ela fez sem pensar duas vezes.
Agora ela e Tobias pareciam uma dupla, o garoto nem mais trabalhava
direito, só ficava ao lado dela brincando na cerca dos estábulos ao invés de
limpá-lo e correndo pelo quintal no fundo ao invés de mantê-lo organizado.
Se eu reclamei com eles? De jeito nenhum, minha alegria era ver os dois
brincando sem nenhuma imposição menino e menina, eles se acertavam de
uma maneira crua, primordial, nenhuma imposição social os diferia nesse
momento de diversão plena.
Constatei com extrema alegria que nas brincadeiras o garoto de quase
quatorze anos era mais fraco que a magricela Aline. Era engraçado ver uma
sandice dessas.
Ouvi o barulho na porta e corri desvairada na esperança que fosse meu
pai para me dizer que eu podia sair ou que finalmente fosse Tiago para
conversar comigo já que não o tinha feito desde o baile, eu acabei me
tornando a noiva do rei e nem por isso falei com meu noivo até o momento.
Me preocupava esse sumiço, ele podia estar sendo mantido recluso também
já que com certeza ao primeiro vacilo alguém poderia atentar contra a sua
vida.
O que recebi foi um bilhete e quando li sorri alegremente com a
notícia. Era Clara me avisando que o carregamento de trigos que
encomendamos com a família Albergin já estava devidamente arrumado no
templo.
Meu pai vinha trotando manso ao longe. E eu corri ao seu encontro
chacoalhando o bilhete no ar.
— Chegou pai!
Ele desceu e levantou a mão. — Cuidado com essa correria, deixa me
ver.
Pegou o bilhete e também sorriu balançando a cabeça. — Você
conseguiu mesmo de longe. Quando mandou fazer a compra?
— Ontem quando Marcos apareceu para mais uma visita disse que só
faltava concluir o acordo, foi rápido não foi? Eu queria ir lá, mas já que não
posso sair...
Ele me encarou por um momento. — Olha filha, você não é
prisioneira, jamais quero que pense isso, só não te deixei ficar na prisão
porque é muito longe, mas se me prometer que não sairá do templo...
Dei um gritinho de alegria, eu queria muito ver, tocar nos primeiros
grãos que foram conseguidos com união de muitas palmas como doação, e
muitos braços trabalhando.
— Vai ser rápido, só fazer a contagem, anotar e ver se precisa de mais
alguma coisa, aí deixarei para Marcos e os outros cuidarem do resto até tudo
se acalmar.
— Você tem visita. — Ele apontou com o queixo para Clara que
descia de um carro com o sorriso lhe rasgando a face. Cumprimentou meu pai
com um aceno e desandou a falar.
— Amélia, chegou!
Assenti completamente feliz por ver a alegria dela. Ela apontou a
carruagem ainda parada. — Vamos lá ver?
Olhei para André e ele assentiu com o olhar insondável, estava
preocupado com alguma coisa eu tenho certeza que sim.
— Filha, não me demoro. Só saia de lá quando eu chegar para te
buscar. Promete?
Assenti obedientemente. — Não farei nada insano, eu prometo.
— Vou também! — Aline apareceu correndo e sem esperar resposta
abriu a portinhola e se enfurnou dentro da carruagem.
Nós três rimos da maneira dela de se impor. Para ela não ir agora só se
a arrancássemos lá de dentro.
Me despedi de André e segui com Clara e mais cinco soldados
montados atrás. Meu pai estava mesmo determinado a me deixar livre de
ataques. Os soldados estavam a cavalo e não perderam o ritmo da carruagem
enquanto nos escoltavam.
— Primeira vitória, hein? — Os olhos de Clara brilharam e por mais
que eu devesse estar feliz de verdade, eu me senti meio esquisita. Essa
entrega era para ter demorado um pouco mais. Era para ser uma negociação
demorada visto que eu pedi a Marcos para regatear até que conseguisse maior
demanda por menor oferta.
Mas era a sorte. As coisas estavam acontecendo finalmente.
Distração

O rapazote me olhava tenso, depois passeava os olhos pelas


ferramentas na mesa como se quisesse encontrar as palavras para me
responder. Por fim ele me olhou de forma ansiosa como se tivesse sendo
custoso a ele até mesmo me dar uma resposta.
— Não foi possível concluir ainda, senhor. As roldanas ficarão prontas
só amanhã, mas um dos ferreiros já começou a trabalhar nelas.
Era a terceira vez que me faziam vir aqui atoa, eu tinha um faro bom
para mentiras e aquele rapaz um talento horrível para mentir, então eu já
sabia que eles estavam deliberadamente me fazendo perder tempo, a única
coisa que eu não tinha descoberto ainda era o porquê. E esse negócio sendo
de Pedro da casa Machado, fazia aumentar ainda mais minha desconfiança de
que não era atoa que estavam me enrolando.
— Se amanhã eu voltar aqui e elas não estiverem prontas. Você e
todos do estabelecimento vão receber o castigo devido.
Os olhos verdes do menino se arregalaram e ele começou a gaguejar
outro pedido de desculpas, lhe dei às costas e saí, não queria mais ouvir
balelas de desculpas, estranhamente ele pediu para que eu esperasse, não lhe
dei atenção afinal não tinha mais nada para fazer ali.
— André?
Marcos apeou e prendeu a corda frouxamente na madeira permitindo
ao seu cavalo que parecia cansado, beber um pouco de água no cocho do lado
de fora da ferraria.
— O que faz aqui? Não devia estar...
Antes que ele pudesse falar demais eu soltei a corda do cavalo e o
deixei bebendo água ao lado do dele e puxei Marcos para uma distância
segura.
— Não consegui ainda investigar sobre isso. As coisas andam tensas.
Nesses dois dias aconteceu um monte de coisas. Amélia acha que Tiago não a
visitou para evitar conflito com as castas, mas na verdade ele precisou partir
às pressas. Uma das fazendas ainda sem assentados foi incendiada e era
justamente a do lado que já estava em produção, por isso ele decidiu trazer de
volta para cá os moradores que já estavam assentados, ele ficou preocupado
que esse incêndio fosse proposital e que a fazenda já em produção também
sofresse algum atentado e lá estando Daniel, Tiago não quis arriscar, pois isso
deixaria Amélia devastada.
E também não tive ajuda nas investigações porque a fazenda
incendiada é na fronteira com o reino sombrio e isso mobilizou todos os
sombrios na ronda. Tivemos duas mortes de prostitutas nos prostíbulos
também próximos ao reino sombrio. Parece até que estão tentando tirar a
atenção dos sobrenaturais desse reino.
Marcos assentiu e olhou de maneira afiada para os lados como se
buscasse algum espião ouvindo a conversa. Ele não parecia estar com a
felicidade que deveria devido a compra.
— Então, eu sobre os grãos.
— Ele assentiu. — Acabei de vir de lá.
— Parabéns pela compra.
Ele negou. — Era isso o que eu queria dizer, não deu certo...
Um zumbido cresceu em minha mente. Uma preocupação que fez
acelerar meu coração e roer meu estômago.
— Espera... Você não fez a compra?
Marcos ficou desconfiado do meu tom e apertou os olhos.
— Na verdade acabei de chegar da fazenda Albergin e estava indo a
sua casa para contar a Amélia o que aconteceu. Essa noite, os celeiros
tiveram as portas misteriosamente abertas e os animais acabaram se
espalhando pelo pasto. Como eles são mais valiosos que os grãos, foi uma
comoção geral entre os Albergin para recuperá-los e quando, de madrugada
todos voltaram, a carga que tinham deixado pronto havia sumido. Eles foram
roubados André.
Maldição! Era tudo um engodo! Quantos braços e pernas inimigas
existiam no reino para agirem assim tão rapidamente? Eu me sentia afogar
em meio a tantos inimigos invisíveis. Os sobrenaturais tinham ciência do que
estava acontecendo, mas seguiam as próprias regras de não interferir, o que
era o certo já que não podíamos nos tornar dependentes, mas resolver as
coisas estava se tornando cada vez mais complicado e agora eu me sentia
compelido a pedir que esquecessem suas regras e resolvessem nossos
problemas que pareciam infinitamente maiores a cada dia. Mas isso seria
errado, humanos são capazes, era uma questão de honra, porém Amélia...
— Mil vezes malditos!
Corri para o cavalo e Marcos para o dele sem ao menos entender o que
estava acontecendo. E eu não tinha tempo para explicar que Amélia tinha
sido enganada. Era uma emboscada para ela.
Meu cavalo deitou quando o incitei a andar. O de Marcos fez o mesmo
e franzi o cenho olhando para o cocho onde momentos antes eles estavam
bebendo água.
Os guardas que ficavam de prontidão ao longe estavam distraídos e
sequer perceberam que alguém botou veneno na água dos animais. E somente
um daqueles garotos de Pedro estava perto o bastante para ter feito uma coisa
dessas.
— Prendam esses rapazes e fechem a ferraria. — Gritei o comando e
os soldados vieram correndo.
— Encerrem todos no calabouço do castelo até a chegada de Tiago.
Levem os cavalos para os estábulos para ver se dá para salvá-los.
Não esperei, larguei os pobres animais e corri. Marcos correu ao meu
lado já sabendo que alguma coisa ruim tinha acontecido.
Sem os cavalos não chegaria a tempo e tudo que me restava agora era
roubar o primeiro coche que passasse ou o primeiro cavalo que aparecesse
em meu caminho.
Planejaram direitinho e eu distraído com as investigações não prestei
atenção a nenhum desses acontecimentos estranhos. E agora minha filha ia
pagar o preço por isso.
Forcei minhas pernas a correr ainda mais, não podia permitir que isso
acontecesse.
Assassina

— Está contente Aline?


— Muito. Mas vai demorar sair o pão?
Eu ri divertida e apertei sua mãozinha, ela me olhou ansiosa pedindo
uma resposta.
— Só um pouco, mas prometo levar uma saca de trigo para a vila e aí
faço alguns pães para suprimir essa sua vontade por enquanto.
Ela sorriu e soltou minha mão, correu para dentro quando abri o portão
do templo, com certeza indo caçar um lugar para brincar. Essa menina
ganhou um nome de Tiago, e ele não tinha ideia de como esse gesto tocou
meu coração, e ela o via como um bom cliente e um moço que era bonito e
bonzinho. Não tinha nem ideia que falava do rei. Eu gostava mais assim por
isso não contei a ela, deixaria para Tiago contar quando estivesse pronto.
Recomendei antes que a perdesse de vista. — Tome cuidado Aline,
não vá para longe, logo vamos para casa.
— Tá bom. — Ouvi a voz já longe.
— Você não larga essa menina. — Clara sorriu para mim.
— Ela é muito esperta e sabe conversar, gosto da companhia dela e
temos um vínculo. Ela é especial para alguém que é especial para mim por
isso cuido dela com carinho e esse cuidado me despertou algo forte que me
faz amá-la.
Clara sorriu compreensiva, abaixei a cabeça enquanto entrávamos no
templo, não queria dar nas caras meus sentimentos a ela. E nem queria falar
sobre isso e dar chance para perguntas já que agora não segredo para
ninguém mais. Assim que entramos ela suspirou um pouco ansiosa.
— Acha mesmo que será uma boa ideia Amélia?
Sorri otimista para Clara, ela não conseguia ver? Não conseguia
imaginar todo o futuro que podíamos ter? A lista de inscritos era tão grande
que mesmo o templo sendo imenso não seria suficiente para todos.
— Como não? Temos de tudo Clarinha. O pessoal que ficará na
cozinha, mulheres para cuidar das crianças e muita mão de obra ociosa,
esperando para arrumar algo para fazer. Sem contar que a limpeza do bairro
dos renegados está indo de vento em popa.
Já imaginou o quanto de coisas poderemos produzir e quantas
construções já estarão concluídas quando começarmos a ver o progresso?
Ela acabou contagiada pela minha alegria e abriu um largo sorriso. —
Não dá para não ficar otimista com esse seu astral Amélia.
Decidi dar a melhor notícia agora que ela já estava contagiada. — Já
tenho possíveis compradores para o que conseguirmos produzir na prisão. —
Eu ri totalmente empolgada. Jena tinha conseguido convencer o líder da
grande colônia de humanos do reino Lican a marcar uma conversa comigo e
havia alguns déficits de produtos.
Desde que os lobos pararam de pilhar as fazendas dos humanos por
conta da paz entre as raças, esses humanos de lá começaram a sentir a
necessidade de itens básicos, já que para segurança deles, não podiam sair da
proteção por conta dos lobos hostis.
Jena me contou que eles plantavam e criavam animais lá também, mas
não era o suficiente para prover tudo o que precisavam e aproveitei a
oportunidade e propus a ela a ideia de comércio. Pois já estava sendo
construído um muro de proteção em uma parte ao lado com o triplo do
tamanho e logo eles não iriam mais precisar dessas coisas então era hora de
aproveitar essa chance enquanto ela ainda existia.
Mas outros passos ainda eram planos, com a venda de legumes e dos
itens de oficina, reverteríamos o dinheiro para a matéria prima.
Por agora seria trigo na parte já cuidada, mas depois quando
tivéssemos mais partes limpas, poderia ser cevada e cana para o melaço.
E com isso viria a segunda etapa, pães, cervejas e outros produtos.
Tudo produzido por nós e vendido aos humanos do reino Lican e a quem
mostrasse interesse aqui no reino humano.
Olhei para as sacas, eu tinha finalmente conseguido comprar o que
precisava para a primeira produção e rezava para não precisar mais comprar a
matéria prima, rezava para que conseguíssemos lucros o suficiente para
plantar tudo o que precisaríamos. Agora era só até nascer, depois sim, mas
tudo é questão de tempo e claro, de eu seguir aquela cartilha do senhor Rael,
era graças a ela que tudo estava dando certo.
Clara torceu a boca ao olhar para a porta. Seu medo era visível e segui
seu olhar. Ainda assim ela sussurrou surpresa.
— Meu pai está aqui.
Estranhei. Nesse tempo todo ele não deu as caras, o que será...
— Vadia! Então além de estar se deitando com os miseráveis daquela
vila maldita. Agora anda acompanhando essa... — Ele me olhou possesso. —
Essa outra vagabunda.
Deixando Clara de lado ele se aproximou olhando para mim com um
ódio tão profundo que meu corpo começou a tremer.
Começou a gritar. — Você vai além de alimentar esses famigerados e
vagabundos, ainda começar um comércio aqui?
Como ele sabia? Era de conhecimento de poucos.
— Como você sabe? — Ignorei a ofensa, não valia a pena discutir,
meu medo dele era grande, mas se ele sabia outros também podiam saber.
Ele andou pelo salão como se não estivéssemos ali, analisou as sacas
de grãos e seguiu para os barris de melaço.
As ferramentas que eu tinha comprado dele não estavam aqui, já
estavam sendo usados, engraçado que ele aceitou minha proposta na reunião,
claro porque eu compraria dele uma grande quantia de ferramentas, mas
agora ele parecia mesmo possesso.
Novamente ele nos olhou com raiva e eu e Clara ficamos o mais
próximas possível em uma tentativa vã de nos manter em segurança,
estávamos com medo do homem, ele parecia tão diferente na reunião... Lá ele
estava tão submisso às ordens do rei e agora...
Minha mente trabalhava freneticamente, onde estavam os guardas?
Sem nos dar atenção o homem continuou analisando os produtos. Seus
olhos subiam para o teto alto e ele virou o corpo devagar analisando cada
parte do lugar.
— Grande e sólido. — resmungou para si mesmo friamente. — Um
rei idiota que faz todos os gostos da filha do escravo.
Ele virou para mim e me encolhi involuntariamente. Seus olhos eram
tão parecidos com os da filha que quase dava para acreditar que ele poderia se
tornar um homem bom, mas ao contrário de Clara que tinha um calor gostoso
no olhar, os dele eram duros e ressentidos e esse sentimento era para mim.
Ele me odiava profundamente e não entendi o motivo, ele também lucrou,
também foi beneficiado.
— Você! — Apontou o dedo para mim. — Porque não ficou no reino
dos sombrios? Porque veio aqui meter o nariz no que não é de sua conta?
Ele veio rápido em minha direção e Clara entrou na minha frente. —
Não pai, por favor.
Não adiantou ela pedir, ele tirou um vidro do bolso e jogou, o vidro
bateu no barril e estilhaçou, quando ela se aproximou ele não teve pena e com
um único soco ele a derrubou, então ele riscou um fósforo e jogou no líquido.
O fogo começou tímido, com uma coloração azul e eu soube que era álcool,
porém não podia fazer nada pelas coisas incendiando, eram barris enormes e
eu não teria forças para arrastar sozinha, ainda assim em um ato desesperado
peguei uma das estopas que cobria as sacas de trigo, corri na direção do fogo
e comecei a bater na chama tentando com isso abafar o fogo para que se
extinguisse. Não podia permitir que ele avançasse na estopa do saco de grãos,
isso seria catastrófico.
Ele olhou para mim com os olhos pétreos de fúria e deu dois passos,
mas Clara segurou sua perna e ele guinchou e a chutou com a perna livre
acertando o rosto dela, larguei o saco de estopa e levei a mão a boca surpresa
com a violência e brutalidade. Ela tinha gritado de dor e continuou a gritar
quando ele se abaixou e começou a socá-la como se ela fosse um homem e
aquilo fosse uma briga de taverna.
— Você vai mata-la! Pare! Ela é sua filha! — Implorei com a voz
esganiçada e os olhos cheios de lágrimas.
Ele riu e deixou o punho pressionando a bochecha de Clara apenas o
suficiente para me responder. — É, ela é minha filha, por isso não se
intrometa nisso, ela é minha propriedade, faço com ela o que eu quiser.
— Seu covarde maldito! — Gritei de ódio e isso o fez esquecer-se da
filha e partir para cima de mim. Senti o medo dominar meus sentidos e
quanto mais ele avançava em minha direção, mais passos eu dava para trás.
Minha mente corria frenética tentando buscar uma saída para essa situação,
mas as sacas as minhas costas mostraram que não havia saída. Eu estava
perdida. O olhar e o sorriso sádico dele me contava justamente isso.
E um pavor desse homem me assolou completamente o juízo, ele
bateu na filha sem nenhuma piedade, imagina o que faria comigo?
Pelos antigos que alguém aparecesse, pois algo tinha acontecido com
os guardas e agora eu não tinha para onde correr, a quentura ao meu lado me
avisava do perigo, das chamas tomando força e lambendo as estopas das
sacas e com isso alastrando ainda mais, o cheiro de fumaça e trigo sendo
torrado me dava uma sensação ainda maior de pânico.
Já encostada aos sacos e tendo a saída bloqueada pelas chamas nada
pude fazer senão assistir ele vindo sem nenhuma preocupação pela eminência
de morrer queimado. Quando estava bem pertinho ele falou com a voz
manhosa.
— Sabe garota, aqui nesse lugar meninas foram estripadas. Dizem que
uma delas sobreviveu então como pode ver o lote de meninas mortas não
ficou completo. Acho que está na hora de completarmos o que faltou.
Fiquei muda. Ele estava mesmo disposto a tudo e tive a certeza
quando ele levou a mão às costas e trouxe com ele um punhal estreito e
afiado.
Arfei de medo, ele já devia ter planejado tudo, por isso os guardas
haviam sumido, por isso o fogo, ele não tinha intenção de sair vivo daqui,
menos ainda de poupar Clara e eu. Era o fim!
Ele gargalhou quando viu meu estado. — Está submissa agora
vagabunda! Cadê a empáfia que demonstrou na reunião? A segurança que
mostrou lá, agora não está mais sendo protegida pelo rei e o escravo não é
mesmo? Vamos, fale alguma coisa, fiquei sabendo que você é tão aguerrida,
tão cheia de fibra.
Eu fibra? Onde? Minhas pernas não paravam de tremer e tudo o que
me vinha à mente era gritar por socorro. Mas ainda não tinha encontrado
minha voz para isso. Ele pareceu perceber minha intenção porque em uma
passada venceu a distância e me tapou a boca.
— Nem sonhe.
O movimento de sua mão me mostrou o meu fim.
— Não!
Clara toda ensanguentada e arrumando forças não sei de onde pulou
nas costas dele e para meu desespero ele subiu o punhal, ia furar a filha na
minha frente, ela tinha me protegido e eu não podia permitir que ele a
matasse, então por instinto segurei seu braço, desesperada e morta de medo
de não ter forças.
Foi tudo confuso, Clara o mordeu no ombro e ele gritou, a pegou pelos
cabelos e a jogou no chão novamente.
— Você vai encontrar a puta da sua mãe agora, sua traidora!
Ele começou a chutá-la freneticamente, gritei em desespero e segurei
sua camisa, fiquei puxando enquanto implorava para que ele parasse com
aquilo, por duas vezes ouvi o arfar de Clara e fiz ainda mais força para tirá-lo
de cima dela, mas ele me empurrou e voltou a chutá-la com brutalidade, com
selvageria, ela não mais se mexia e o sangue empoçava em volta de sua
cabeça.
Ele tinha largado o punhal para investir seus socos e eu não pensei em
mais nada quando vi o objeto, meu instinto tanto de sobrevivência quanto de
proteção a Clara me nublou a mente e peguei o punhal no chão ciente que não
havia outra saída, corri e enterrei com toda a força entre suas costelas.
Gritei de desespero enquanto mantinha a lâmina enterrada
completamente, ele soltou um som seco e foi amortecendo, ainda assim não
larguei o cabo por medo de voltar a si e tirar dali voltando a nos atacar
novamente, mas logo ele suspirou com força e caiu por cima de mim. Era seu
último suspiro...
O ofego de consciência pelo que eu tinha feito ficou preso quando
perdi o fôlego com o peso, minha cabeça só entendia uma palavra que eu
proferia rapidamente uma atrás da outra.
— Desculpe... Desculpe.
Eu só conseguia dizer isso para o peso morto em cima de mim, talvez
no fundo de minha consciência eu estivesse rezando para que ele ainda
pudesse ouvir, para que ele entendesse que não foi minha intenção mata-lo e
sim fazer com que parasse de bater nela.
Clara arfou e tentou se arrastar, seus olhos ficaram enormes quando
olhou para mim, minhas desculpas começaram a ser ditas para ela.
Ainda em choque e chorando muito ela se arrastou no chão e começou
a tentar puxar o corpo para tentar tirá-lo de cima de mim, porém não teve
forças e ele ficou em cima das minhas pernas.
Olhei para ela mortificada pelo que eu havia feito, balancei a cabeça
sem conseguir dizer palavra. Clara estava chorando e acabei me entregando
ao desespero.
Minhas mãos estavam cheias de sangue e ainda assim tapei o rosto. —
Perdoe-me, por favor, eu... Pelos antigos, eu tirei uma vida.
Senti os braços dela ao meu redor e me encolhi quase grata por isso,
ela balbuciou um obrigado e tive certeza pela sua fala fanha que ela perdeu
alguns dentes, tentei pensar nela e em seu estado, no entanto a sensação
horrorosa de sentir a pele sendo rompida pela lâmina e o som do último
suspiro daquele homem ainda me tomava todos os sentidos.
Ficamos ali abraçadas sem conseguir conter os soluços, não sei se
Clara chorava pelo choque porque eu era a única ali que ela tinha para
abraçar ou se era de alívio de não ter acontecido o pior conosco.
Tudo começou a girar, o sangue em minhas mãos que escorreu de
Pedro e agora o sangue de Clara em todo o meu rosto e cabelo somado ao
calor do fogo e fumaça ocre que nos cercava estava me deixando tonta e
ainda ele ali tão perto de mim, me lembrando com seus olhos vidrados e
opacos o que eu tinha feito.
Ouvi vozes e barulho de passos, não tive forças nem para ter medo.
Um frio insistente percorria meu corpo. A lâmina entrando, o último suspiro,
eu fiz isso. Pai eterno... Virei assassina.
Senti frio, faltava o abraço de Clara, quando a tiraram de mim?
Abracei meu corpo ainda olhando vidrada para o outro corpo agora
endurecido sobre minhas pernas. Nem sentia o peso, somente o tremor.
— Amélia, filha.
As mãos grandes de meu pai vasculhava meu corpo, procurava
freneticamente alguma coisa em mim. Tato... Um dos sentidos menos
aguçado quando se quer ver através da nuvem de desespero, porque tivemos
que chegar a esse ponto? Porque ele...
— Te machucaram? Fale comigo filha! Por favor!
Acordando de um torpor, levantei os olhos. — Matei uma pessoa, me
desculpe. — Só isso que saiu, apesar de eu querer falar outras coisas.
— Oh minha criança, venha aqui.
Meu pai me carregou, ouvi sua voz autoritária, não prestei atenção
direito, era algo sobre os soldados encarregados de nossa segurança terem
recebido um recado que não era verdadeiro.
Algo também sobre chamar Marcos e cuidar de Aline, sim ela estava
ali, onde? Eu ouvi seu choro, mas não sabia onde ela estava.
Meu corpo ainda tremia, parecia quase um colapso, nada o fazia parar,
nem vi quando entramos na carruagem, nem percebi o tempo passar, mas
logo entramos em casa.
Também nem percebi quando Priana chegou, aliás, nem me lembro se
ela estava ali antes de tudo acontecer, mas murmurei um agradecimento
quando ela me colocou na banheira e me lavou.
Quando deitei fechei os olhos tendo agora uma única certeza, minha
alma estava comprometida. E mesmo que não estivesse, eu nunca mais ia me
perdoar por matar o pai de Clara na frente dela.
O espião

A lua tão intensa deixava meus instintos em polvorosa. Precisava


correr o lobo. Alguns minutos apenas para matar a saudade do olfato aguçado
que sente o aroma degustando a natureza como um néctar, e do paladar
apurado que não só sente o sabor como grava na memória como se
catalogasse a fauna.
Ele corria feliz. Liberto de sua frustrada prisão. Apenas alguns
minutos e já me sentia mais leve, mais controlado.
Paramos perto da sequoia. Uma árvore tão grande quando o tamanho
da minha mentira.
Mas era necessário. Aceitei me desligar, aceitei ficar como morto por
um tempo, e nessa árvore era para estar meu corpo, era nesse gigantesco
tronco que eu deveria me agarrar com meu espirito para observar meus
irmãos da matilha seguirem com suas vidas, suas lutas e suas buscas.
— Imaginei que o encontraria aqui, Cristian.
Nem me virei, deveria ter imaginado que Laican tinha me seguido.
Ainda não tinha dado a hora de nosso encontro.
— Como sabia que eu viria aqui antes de nos encontrarmos?
Ouvi o som do seu muxoxo. Ele não conseguia esconder seus
sentimentos, não de mim.
— Porque sou um cão sarnento que pediu ao meu irmão de sangue e
meu melhor Alfa para fingir sua morte. Somente para...
O cortei, eu aceitei e não me arrependia disso.
— Não foi um sacrifício antes e não o é agora. Se Organda descobrir
sobre sua companheira ela terá um trunfo contra você. E como sempre sua
ideia para proteger sua companheira foi muito boa. Eu sou o único além de
você que pode sentir a presença dela.
Ele se aproximou e parou ao meu lado, por um momento contemplou
comigo a imensa Sequoia.
— Se você tivesse mesmo morrido, essa árvore mesmo sendo a maior
dessa área não teria feito jus ao tamanho de sua grandeza Cristian.
Quase sorri com o elogio, eu um lobo assassino. O lobo que ficava
confuso quando sentia o aroma da companheira de Laican. Eu que devia
protegê-la e não cobiçá-la estava agora ouvindo um elogio de meu supremo.
Mas aquele cheiro...
— Alguém sabe de você no reino humano?
Neguei. — Somente Tiago, mas ele acha que sou humano contratado
por você. Um idoso sábio.
Laican assentiu tranquilo. — A mãe de Celi é desconfiada, ela já te
viu?
— Ela só sabe que Tiago contratou um batalhão para cuidar de sua
filha. Ela mesma nunca me viu, ou como imagino ela ignora os criados
porque não suporta nos ver perto de sua filha, de todo modo eu evito ficar
perto de Celina de dia, apareço à noite e só fico com sua menina quando ela é
deixada só.
— Ela têm muitos pesadelos?
Assenti. — Sim, quando ela começa a resmungar, eu saio pela varanda
e a deixo só. Sempre alguém aparece para ver como ela está.
— Muito conflito no reino?
— Como esperávamos, o rei vai ter que se tornar rei. Não me
intrometi como ordenou, apesar de querer por vezes avisá-lo sobre os planos,
mas entendo que ele precisa passar por isso para que assente a coroa
definitivamente na cabeça.
Laican assentiu. — Pareço cruel ao proibir essa ajuda, mas o faço pelo
bem de Celina, ela precisa se preocupar somente com ela quando voltar, e se
o irmão não aprender a resolver as coisas, ela não ficará sossegada, eu sei,
pois me lembro de sua recusa em partir comigo quando a chamei, ela não o
fez para proteger a família.
Eu entendia as atitudes de Laican, nossos anos vendo os humanos se
autodestruírem, se fazendo valer dos mais fortes nos deixava experientes
quanto ao que fazer nesse momento. Esses humanos dessa geração não
podiam se tornar dependentes, isso seria a ruína deles. Laican suspirou
longamente. Era difícil a ele se manter distante e senti a culpa me assolar
novamente por cobiçar sua companheira.
— Está dando a ela a bebida que a bruxa mandou?
— Não se precipite Laican. Está tudo conforme foi combinado. Ela já
está tentando sair, já sente mais desconforto internamente do que
externamente. Logo ela volta a ser quem era. A bebida com a erva do lobo a
está chamando para o seu companheiro, está afetando sua libido. Ela sabe que
você está perto, mas ainda não teve forças para deixar o próprio mundo e essa
parte que não compreendo, ela está lutando para sair, porém não está
conseguindo sucesso.
— É isso que está a me tirar o sono irmão. Se Organda aparecer,
poderá torturá-la e com a dor, Celina pode se retrair novamente.
Suspirei contrariado. Nossa irmã gêmea, nosso carma. Ela comandava
uma poderosa matilha mista, porém não era suficiente, ela nunca aceitou ser o
ômega de nascimento.
— Eu sei.
Não entendi o que Laican tinha dito. — O que você sabe?
— Sua angústia pelas coisas que está sentindo ultimamente. Eu sinto
sua luta, somos gêmeos, lembra?
Abaixei a cabeça não tendo coragem para encará-lo. — Quando
soube?
— Desde que encontrei o rastro dela, eu senti sua agitação com o
mesmo aroma.
— Não está irado? Se sentindo traído?
Laican riu alegremente e eu não soube interpretar essa alegria em uma
situação como essa.
— Você é o lobo mais poderoso e o homem mais obtuso que eu
conheço, irmão. Mas vai entender logo, logo.
Sem me deixar formular qualquer pergunta, ele se transformou em
lobo e partiu em alta velocidade. O chamei através da conexão psíquica e não
ouvi nada, tinha me esquecido que era um desgarrado.
Laican era irritante quando queria, mais ainda quando ele começava a
bolar suas tramas e nesse momento comecei a achar que tinha mais coisa por
trás desse pedido para cuidar de Celina. E isso era bem a cara dele, saber das
coisas e não compartilhar só por diversão.
Tiago

Eu nem tinha conseguido deixar os assentados da fazenda em


segurança quando a meio do caminho, ainda na estrada, recebi a fatídica
notícia do que tinha acontecido com Clara e Amélia, a surpresa foi tamanha
que meu estômago se torceu como se mãos invisíveis apertassem minhas
vísceras e na mesma hora ordenei aos guardas que escoltassem a todos em
segurança até adentrarem as muralhas, parti em seguida para o reino
incitando meu cavalo a correr o mais que podia.
Ainda ao longe gritei aos guardas que abrissem os portões o que,
graças aos céus o fizeram eficientemente.
Já na vila dos Forasteiros eu sentia o vento fustigar meu rosto e ainda
assim eu forçava o animal a correr ainda mais. Meu pensamento estava
dividido entre a preocupação por Amélia e as dúvidas de como que tudo isso
tinha acontecido tão rápido.
Pedro nem parecia descontente quando Amélia mostrou o projeto, ele
lucrou com isso. Mas que maldição!
Só podia ser Dante, mesmo estando sumido eu sei que ele estava a
fomentar, não tinha outra explicação para isso já que ele sempre teve muita
influência nas castas nobres, porém de todos os conselheiros, não imaginei
que seria Pedro capaz de fazer uma coisa dessas.
Quando finalmente cheguei, sequer me preocupei com o cavalo
largado a própria sorte no meio da rua e entrei pelo portão quase a correr, bati
na porta de leve. André abriu apenas uma brecha e sondou para fora, quando
viu que era eu me deixou entrar deixando escapar um suspiro cansado.
— Ela está lá em cima e não quer conversar.
— Me deixe vê-la André, tenho que ver como ela está.
Completamente abatido ele assentiu e me deu passagem, com um
aceno de agradecimento eu não perdi tempo e galguei as escadas de dois em
dois degraus.
Não tive coragem de bater na porta e ouvir um não, abri devagar e
sondei para dentro. Ela estava deitada e coberta. Quando me viu sentou e me
encarou com os maiores e mais brilhantes olhos cheios de lágrimas que eu já
tinha visto.
Ver Amélia totalmente despida de suas muralhas e seu jeito tão
fragilizado estraçalhou meu coração e me dei conta do quanto tinha sido
egoísta. E uma dor cáustica correu pelas minhas veias, era minha culpa e era
só o começo, eu sentia que não tinha acabado, eles iriam me pressionar até
que eu desse a eles o que queriam.
Eu devia ter refletido melhor nas consequências antes de anunciar
meus sentimentos por Amélia tão abertamente, agora por conta disso eu tinha
colocado os círculos em suas costas a marcando como um alvo.
E assim como fiz quando mudei as leis, eu apenas decidi sem pensar
nas consequências quando a escolhi no baile. Tinha passado pela minha
cabeça alguns transtornos, que nós dois pagaríamos pela escolha que fiz,
porém não imaginei que seria um castigo tão pesado para ela, que ela teria
que matar alguém para se preservar e o peso na consciência fez meus olhos
arderem.
Sem conseguir dizer qualquer coisa, sentei na cama ao seu lado
devagar e a puxei para um abraço, quando ela soluçou e se aninhou em meu
peito, me odiei ainda mais por fazê-la sofrer desse jeito e tudo por conta dos
meus caprichos.
— Vai ficar tudo bem. — Prometi sem ao menos acreditar em minhas
próprias palavras, pois eu sabia que as coisas só ficariam bem quando eu
amenizasse a ira das castas altas e ficando com Amélia as coisas só piorariam
para ela.
Ela não respondeu, mas assentiu como se depositasse em mim suas
esperanças, aproximou o corpo ainda mais se encolhendo completamente e
ouvi seus soluços. Beijei sua cabeça e fechei os olhos, queria arrancar sua
dor, poder vê-la sorrir até mesmo contestar o que eu disse. Mas aquela frágil
Amélia só queria consolo. E eu só queria poder voltar no tempo.
— Ela sofreu?
Sua voz saiu pastosa como se estivesse fazendo um imenso esforço
para falar, fiquei receoso com a pergunta, e agora? Se eu dissesse a verdade
ela ficaria ainda pior, se eu mentisse justo agora, ela nunca mais confiaria em
mim.
— Sinto muito, não foi fácil para ela no fim das contas.
Amélia voltou a soluçar e falou com a voz em completa amargura. —
Não pude fazer nada para ajudá-la, até que eu conseguisse fazer com que meu
corpo reagisse ela ficou ali apanhando, ela...
Novamente beijei a cabeça da minha loira sem saber o que dizer,
sentia crescer o ódio dentro de mim de todos esses malditos que fizeram isso
com ela e Clara. E também ódio de mim mesmo, pois eu também ajudei para
que uma coisa dessa magnitude acontecesse.
— Eles irão pagar por isso meu amor. Me perdoe por não ter ido te
visitar depois do baile, eu estava salvando outras vidas que importam para
você, aconteceu outro atentado.
Ela assentiu automaticamente, duvido que tivesse assimilado qualquer
palavra que eu falei. Vendo sua apatia ajeitei Amélia na cama e a cobri, beijei
seu rosto de leve e levantei para sair, precisava a deixar descansar para que a
vida retornasse aos seus olhos opacos.
Senti sua mão gelada segurar meu pulso e meu coração parou com
aquele toque simples e significativo.
— Não vá, fica comigo.
Se ela soubesse o que estava fazendo comigo somente com aquele
pedido. Tentei falar normalmente escondendo a minha emoção.
— Não vou a lugar nenhum.
Deitei ao seu lado e ela se aconchegou deitando a cabeça em meu
braço e escondendo o rosto em meu peito.
Sinceramente não estava preparado para a sensação e reação de meu
corpo para esse sofrimento dela, para essa tristeza e dependência.
A frágil Amélia era tão ou mais poderosa que a forte Amélia para
acertar o mais fundo o meu coração.
Descobri nesse momento que amava a força dela, mas também amava
a sua fragilidade. Que amava sua integridade dizendo que não precisava de
ajuda e amava ainda mais sua coragem para mostrar seus medos. Descobri
também que odiava a mim mesmo por fazer com que a força dela se esvaísse,
e que a esperança dela se extinguisse por conta de uma decisão minha.
Eu a tornei minha noiva, minha escolhida e com isso a transformei em
um alvo e em uma assassina também.
Tomado pela emoção e pela dor do que eu teria que fazer para
consertar as coisas, fechei os olhos e fiquei passando de leve a mão por sua
cabeça, esperando ela dormir para só então eu poder chorar um pouco,
porque essa seria a primeira e última vez que eu estaria ao lado de Amélia
como um pretendente.
Uma despedida nada justa para um homem angustiado de amor.
Decisão de Amélia

André

As investigações e todo o resto tiveram que ficar em segundo plano,


uma crise maior estava acontecendo. Tiago estava trancado no quarto já há
três dias e isso estava gerando uma comoção nas castas, e para aumentar meu
ódio desses malditos, eu via a satisfação em cada rosto que me
cumprimentava como se tivessem ganhado uma batalha.
Eles sabiam que os acontecimentos recentes tinham abalado o rei em
uma proporção quase irreversível.
Amélia por outro lado vivia ansiosa e mal dormia e eu não sabia mais
o que fazer para ajeitar as coisas. Depois que soube da morte de Clara ela
endureceu o coração, porém por mais que tentasse mostrar força, ela ainda
estava abalada.
Com tudo isso eu acabei me anulando completamente, agora meu foco
estava neles, pois a vida dos dois era mais importante para mim do que uma
investigação, eles tinham que encontrar o caminho para a força que os tinha
abandonado, para só então eu voltar a ser o companheiro de Priana, o general
do reino e o conselheiro do rei, pois até agora, desde o acontecido no templo,
eu estava apenas sendo um pai que definhava de preocupação pelos dois
filhos que estavam amargando cicatrizes atrás de cicatrizes.
A chuva ameaçava cair. Os raios estavam com o humor igual os da
casta nobre lançando luzes raivosas e trovões escandalosos como se fosse um
grito de aviso que logo atacariam novamente se não fosse respeitada sua
vontade.
Quando cheguei em casa encontrei Amélia me esperando com os
olhos aflitos por novidades.
Sem dizer nada sentei no sofá a trazendo comigo. Fiquei por um
tempo segurando suas mãos calejadas de tanto trabalhar na prisão. Mãos
calejadas atoa visto que tudo tinha se perdido.
— Falou com ele pai? Já faz três dias de reclusão...
Sim, três dias que ele estava lá fechado em seu quarto e sem querer
falar com ninguém, três dias que todos os nobres comentavam que logo o rei
apareceria para dar a notícia de que eles tinham vencido mais uma vez,
embora ele tivesse aceitado minha visita mesmo que por poucos minutos,
logo me enxotou dizendo que queria ficar sozinho, ainda assim consegui
alguma informação que infelizmente não traria felicidade a minha filha.
Ela pedia uma resposta com o olhar tenso e acabei assentindo.
— Algumas frases eu consegui arrancar dele hoje. Ele vai voltar atrás,
vai deixar a rebeldia de lado e vai revogar a decisão.
Amélia fechou os olhos e não demorou para que uma lágrima
escorresse por seu rosto. Isso me apertou o peito. Tanto sofrimento desses
dois e tudo por causa de alguns ricos acostumados a ter tudo o que queriam,
acostumados com as regalias de leis que nem mais existiam.
— Imaginei que ele faria isso. — Ela murmurou e abaixou a cabeça
sorrindo com tristeza.
Eu não podia usar de meias verdades com ela, não podia fazê-la sofrer
aos poucos e por isso continuei com sinceridade.
— Ele se isolou filha, fez isso para amargar a decisão de voltar atrás.
Não há mais o que fazer, se ele não fizer isso, não será mais possível resgatar
a trégua.
Amélia ficou em silêncio por um momento, mas eu vi o seu semblante
mudar de tristeza para ira, logo como se fosse uma renascimento, ela deixou a
apatia e eu vi a determinação retornando ao seu semblante, então ela levantou
com os olhos brilhantes e decididos.
— Eu me recuso a aceitar isso, pai. Não vou perder Tiago para eles.
Aliás, não vou perder mais nada para eles, me recuso a aceitar ser fantoche.
Segurei mais forte sua mão e me apressei a argumentar. Amélia não
era fácil de convencer quando enfiava algo na cabeça e pelo seu olhar eu
sabia que ela já estava com a mente funcionando.
— Não há nada a ser feito Amélia. A reação rápida por conta da
rebeldia de Tiago o assustou. E ele tem razão em ficar assustado, todo o
progresso se perdeu em dois únicos e miseráveis dias as fazendas teste foram
destruídas, a menina Clara perdeu a vida e você matou um homem para tentar
salvá-la, sem contar que todo o esforço seu e de Marcos virou cinzas no
templo. Não há nada que possa ser feito, a casta nobre ainda é muito forte
para ser contrafeita.
Amélia levantou e se afastou. — Exatamente por isso que eu não vou
permitir que ele ceda aos desejos mesquinhos desses malditos nobres. Ele me
escolheu, ele os enfrentou por mim, agora é minha vez de escolhê-lo e
enfrentar essa corja que quer nos separar.
Levantei também e abri a boca para argumentar, mas Amélia levantou
a mão.
— Pai, por favor, não tente me impedir. Só... — Ela torceu as mãos
nervosamente e me olhou em súplica. —... Se eu o envergonhar de alguma
forma, peço que me perdoe, mas vou seguir meu coração.
Vinquei a testa, eu estava sem reação com o rompante de minha filha.
Ela viu que eu não estava entendendo e continuou.
— Só há um meio de Tiago não ceder à pressão dos nobres.
— E qual seria?
O rosto dela corou levemente, mas isso não me passou despercebido,
fosse o que fosse ela não estava à vontade para compartilhar comigo e um
senso paternal acabou sussurrando em meu ouvido o que era.
— Ele precisa me ganhar para perder o medo de me perder, só assim
para que ele não permita que nada e nem ninguém o desafie.
Antes que eu formulasse uma exigência para que ela explicasse
melhor, ela correu para a porta e saiu. Corri em seu encalço e a encontrei
correndo em meio a chuva para o estábulo, assim que a alcancei ela já estava
montada no mesmo cavalo que eu tinha momentos antes deixado ali quando
cheguei.
— Está chovendo Amélia, deixa para fazer qualquer coisa quando o
tempo amainar. Não faça loucuras filha, é por causa desses rompantes sem
pensar que tudo virou uma bagunça.
Ela negou. — Eu preciso ir pai. Com essa chuva ninguém vai me
oferecer perigo. E de todas as loucuras que fiz, essa é a única que não
planejei, porém mesmo que seja um ato egoísta, eu preciso fazer isso. Se eu
não fizer alguma coisa agora, vou me odiar pelo resto da vida por perder o
homem que amo sem lutar por ele nenhuma vez.
Meu lado cauteloso gritava para tirar Amélia do cavalo e forçá-la para
dentro de casa, mas coração paterno não conseguiu imaginar minha filha
sofrendo por ser proibida de lutar por seu amor.
— Tenha cuidado filha.
Ela assentiu e incitou o cavalo que passou pelo portão como se fosse
feito sobre medida para esse momento.
Mesmo preocupado não fiz questão de forçar minha autoridade. A
vida de escravo me mostrou o quão maléfico é ser privado de lutar por
qualquer coisa em que se acredita e meu maior orgulho é poder usufruir de
minha liberdade agindo diferente dos homens desse reino.
E agora meu orgulho dobrou ao ver que minha filha além de uma
exímia amazona, tinha dentro dela uma coragem absurda para lutar pelo que
acreditava.
Pressão do amor.

Enterrar Clara foi de tudo o que aconteceu, a pior dor para mim, ela
estava tão feliz, tinha até deixado de lado o ódio pelo pai dela só para poder
viver a própria vida. Acabamos que, sem ter um local apropriado, enterramos
seu corpo em uma parte arborizada da prisão. Por costume, os ricos, depois
das mudanças tinham começado a cremar os corpos, mas nós não queríamos
isso para Clara, ela queria estar conosco na prisão e foi lá seu último lugar.
Eu tinha me martirizado pelo que fiz, porém quando na madrugada
daquele dia eu recebi a notícia de sua morte eu me revoltei e acabei
amenizando meu martírio em relação a morte de Pedro. Eu o matei é verdade,
mas não entendo a frieza que sinto, pois tudo que penso agora é que devia ter
sido mais rápida, talvez se tivesse o matado alguns minutos antes, Clara
poderia estar viva.
Esses pensamento cruel me assusta, eu nunca antes imaginei que
mataria uma pessoa, menos ainda que não enlouqueceria de remorso em
seguida, agora sei que tem uma veia cruel em mim, talvez exista em todo ser
humano, alguns em maior escala e entendo ainda mais o medo de Tiago de se
tornar igual ao pai.
Ele já conhece o próprio lado cruel, eu tive que aprender naquele dia e
agora também tenho medo do que estou prestes a fazer. Mas se eu não fizer
jamais me perdoarei. O cavalo corria como louco pela Alameda. À frente as
torres do castelo começavam a aparecer e isso fez meu coração palpitar
ansioso tanto para chegar logo quanto para voltar para casa e esquecer essa
maluquice, mas eu não podia ceder ao medo e aos tabus pré-concebidos para
o lado feminino.
A chuva caía como se quisesse inundar o mundo e dei graças quando
finalmente passei pelo portão. Não encontrei dificuldades para isso, talvez
por ser a pretendente do rei minha passagem fosse livre agora ou por ser filha
do general. O que importa é que desci do cavalo e irrompi pela porta do
castelo sem ser barrada pelos guardas.
Marchei decidida para a escadaria, precisava dar um fim nessa
reclusão do rei. Tiago não podia ficar preso em um quarto e se entregar ao
desanimo. Por mais complicado que fosse reinar, ele não podia desistir,
pessoas dependiam dele, a liberdade do povo estava sendo assegurada por
ele, minha felicidade estava retida em suas mãos e eu ia buscar o que me
pertencia, ele.
Meu vestido estava ensopado, eu estava tiritando de frio e acelerei o
passo para aquecer meu corpo. Subi a escadaria de dois em dois degraus.
O corredor estava vazio, guardas cuidavam da entrada, vê-los ali em
alerta era aflitivo, realmente a vida do rei não estava segura, ele tinha muitos
inimigos.
Antes de bater estaquei com a coragem esmorecendo, ele iria se irritar
quando soubesse que eu cavalguei sozinha até ali.
Por fim não ia voltar atrás justo agora, se ele demonstrasse pelo menos
raiva já era alguma coisa.
Três batidas e senti meu coração acelerar, agora não sabia o que fazer.
A porta continuou fechada, não ouvi nenhum barulho vindo de dentro.
Arrisquei bater novamente agora preocupada pela inércia no quarto.
Antes que os nós dos meus dedos alcançassem a madeira ouvi a voz
irritada responder lá de dentro e parei.
— Vá embora! Não quero ver ninguém, já disse!
Girei a maçaneta e vi que a porta não estava trancada, abri devagar e
estava tudo escuro, a janela estava aberta e a luz dos raios invadia o quarto
deixando uma claridade pálida que esmaecia rapidamente tornando tudo um
breu.
— Tiago?
Por um momento só ouvi o barulho da chuva que teimava em ensopar
a varanda, ele não respondeu, mas algo dentro de mim me disse que ele
estava surpreso, eu senti a tensão no ar.
Entrei e fechei a porta, aproveitei a parca iluminação repentina de
mais um raio que iluminou os céus e acendi uma vela, corri fechar as janelas
de seguida, estava frio e ventando.
Os olhos de Tiago estavam fechados.
— Vá embora Amélia, por favor, não quero conversar e não quero
brigar, muito menos ser grosseiro com você.
Sem dizer nada, acendi um par de velas com as mãos tremendo
ligeiramente. — Porque você brigaria comigo?
Ele balançou a cabeça. — Porque é isso que eu sempre faço, e hoje
estou naqueles dias que não consigo controlar meu gênio, por isso eu sei que
vou acabar perdendo a paciência com você e te magoando.
— Está assim porque acha que precisa mudar sua decisão, não é
mesmo?
Ele continuou inerte por um tempo, então deixou o ar sair de seus
pulmões ruidosamente. — Escolhi você porque era isso que meu coração
pedia, e olha tudo o que aconteceu por conta do meu egoísmo. Todo o
sofrimento que causei em apenas dois dias. Se eu continuar com isso, o que
mais vai acontecer ao reino?
Me aproximei da cama, sentia agora um aperto no peito uma
necessidade de aproximação. Vê-lo daquele jeito tão sensível, tão triste me
deixou ansiosa. Já sentia falta de sua fala autoritária e suas cobranças, com
meu bem estar.
Ele abriu os olhos quando sentiu minha aproximação e então ali estava
sua reação.
— Está toda molhada! Como você...
Ele levantou de um pulo, pegou um pano e com o maxilar travado ele
passou a me enxugar a cabeça. Logo ele estalou a boca.
— Não acredito Amélia, você tomou toda essa chuva, como pode ser
tão sem juízo? Vai ficar doente e...
Não mais resisti, pulei em seu pescoço e o beijei, o calei com minha
boca, não importava mais se seu jeito era insuportável, eu sentia falta dele,
dessa voz brava e alterada. Sentia falta de ver seus olhos me penetrando por
querer me enfiar algum juízo ou me mostrar seus sentimentos tão intensos
que o fazia agir sem pensar.
Tiago enrijeceu, então largou o pano e me agarrou a cintura gemendo
com a surpresa. Senti seu corpo morno de encontro ao meu gelado e
molhado.
Seu torso nu... Arfei porque senti o desejo me tomando, descansei as
palmas em seu peito e senti o coração acelerado de Tiago.
A respiração dele ficou pesada, com as mãos tremendo ele desamarrou
o cordão do meu vestido, eu podia me negar, podia me sentir ofendida, mas
não o fiz, eu o queria tanto quanto ele a mim.
Ele ameaçou se afastar, devia estar achando que estava passando dos
limites, mas não havia limites, eu não os impus.
Por isso eu me acheguei ainda mais a ele, e procurei sua língua, senti
naquele momento que Tiago se perdeu.
Suas mãos passaram a deslizar por meu corpo sofregamente,
mostrando o quanto ele ansiava por esse momento e isso também era o que
eu mais queria.
Meu rei estava completamente esquecido de me tratar como vidro,
talvez no dia seguinte ele poderia se arrepender, mas agora não. Não havia
outro momento e eu não queria saber de esperar as coisas melhorarem, não
queria mais esperar um dia bom para uma cerimonia formal quando a
formalidade e respeito eu devia somente ao meu corpo que já tinha sofrido
demais pela espera de seu toque, tudo o que ele pudesse me dar tinha que ser
agora, porque era agora que minha coragem gritava para ir em frente, para me
entregar ao momento.
Ele me afastou em um lapso de consciência, me olhou assustado e eu
empinei o nariz o olhando fixo.
— Vá embora... Por favor, faça isso enquanto ainda há tempo... sou
um homem desesperado de amor, não me tente.
Para que ele não tivesse mais saída, eu mesma desamarrei o cordão do
meu vestido e o deixei cair, Tiago arfou e seus olhos percorreram cada curva
de meu corpo enquanto sua respiração ficava irregular.
— Não faça isso comigo Amélia, não posso fazer isso, não agora que
eu...
Eu sabia o que ele ia dizer, que mesmo que ele não quisesse admitir,
essa escolha tinha sido um erro, que ele ia ceder à pressão porque ele colocou
todos em perigo, sim ele já tinha dito isso e sim era verdade, realmente eu
matei um homem, perdi uma amiga, perdi junto com Marcos todos os meses
de trabalho e dinheiro poupado.
Eu sabia tudo isso, mas jamais permitiria que ele aceitasse se submeter
a vontade dos nobres, e mesmo que fosse para apelar para a honra de Tiago
eu não ia ceder, podiam pressioná-lo com política, mas agora eu ia pressioná-
lo com amor.
Dei dois passos em sua direção e ele deu um passo para trás respirando
ainda mais rápido, não permiti que ele fugisse, o alcancei e novamente
enlacei seu pescoço.
Nesse momento ele gemeu baixo, pude ouvir a palavra, não dá... não
resisto.
Com isso ele tomou nos braços possessivamente e senti o volume
poderoso em sua calça, senti receio por isso, minha primeira vez quase
forçando um homem a me possuir me valendo do sentimento dele por mim.
Ele me deitou na cama e começou a beijar cada parte do meu corpo
exposto e arrepiado pelo prelúdio de seu toque rude e delicioso. Logo ele se
afastou e enquanto se desvencilhava de suas roupas ele me lançava olhares de
adoração e não pude deixar de amar a sensação de ser olhada assim.
A excitação o fazia ter pressa e logo ele subiu em cima de mim e senti
o peso do seu corpo, ele era mesmo grande e fiquei completamente encoberta
por ele.
Não disse palavra quando me encarou, tudo o que eu vi foram seus
olhos negros completamente brilhantes de desejo e seu peito largo mexendo
sedutoramente enquanto ele respirava pesadamente.
Começou a me beijar o pescoço e descer, tomou meu seio e o sugou
com vontade e ainda assim foi gentil.
Sentindo sua língua brincar com meu seio, meu corpo pediu mais e
segurei seus cabelos e arqueei o corpo e ele gemeu mais alto, sugando com
pouco mais de força.
— Preciso disso...
Sussurrei quase sem conseguir falar. — Eu sei, eu também.
Ele desceu passeando os lábios pela minha pele ronronando palavras
que nadavam em meu subconsciente. As ondas de arrepios me faziam ficar
em um êxtase tão poderoso que dopavam meus sentidos. Logo senti sua boca
úmida entre o vão de minhas pernas, ofeguei com sua língua acariciando a
parte mais intima de meu corpo.
— Tiago... — Pedi não sei o que, mas eu pedi.
Ele não respondeu, estava concentrado em me deixar fora de órbita,
porém a tortura durou menos do que eu queria e logo senti meus músculos
retesarem. Meu corpo começou a mexer sozinho procurando alívio, Tiago
como se soubesse o que estava acontecendo comigo, segurou meus quadris
com força e senti sua língua mais ágil e gulosa, nessa hora gemi sem me
conter e senti a explosão fragmentar meu raciocínio, senti a onda que
dominou todos os meus sentidos e amoleci completamente em seguida.
Tiago engatinhou e parou na direção do meu rosto, não houve
perguntas, não houve falas, somente uma troca intensa de olhar.
Logo senti seu membro se encostar a mim e ele ofegou, respirando
rápido e sem tirar os olhos dos meus.
— Se estiver... arrependida... diga agora, depois não vou conseguir
parar.
Eu não sei se todas as mulheres têm pensamentos assim durante
momentos como esse, mas ver aquele homem completamente tomado de
desejo por mim me deixou emocionada e ao mesmo tempo ansiosa, eu queria
mais de Tiago, mais daquele olhar. Queria que ele se entregasse
completamente, que mostrasse o amante, pois eu já conhecia o homem e o
rei.
O segurei pelos cabelos e o puxei mais perto, senti o assopro de sua
respiração pesada. Ele forçou um pouco e ofeguei baixo ainda o olhando fixo,
respirei fundo e ele aguardou atento as minhas reações.
Para incentivá-lo a continuar eu o puxei para um beijo e ele gemeu
enquanto forçava o quadril e nesse momento eu soube que sempre quis isso,
soube que era esse nosso destino, por mais que tentassem nos separar, ele me
pertencia e eu a ele. Ninguém ia tomar meu rei de mim e ninguém me tiraria
dele.
A dor foi ínfima, nada que eu não pudesse esquecer em alguns
segundos e com um beijo ardente.
Tiago sabia o que fazia, ou era o meu amor tão grande que fazia meu
desejo aumentar a cada investida.
Os movimentos eram cadenciados com seus gemidos e sua respiração
era cortada por grunhidos e eu gemia no mesmo ritmo.
Cada vez que ele saia e empurrava novamente eu me sentia moldar por
dentro, me sentia transformar, não queria mais que esse momento terminasse,
que esse olhar dele completamente entregue nos meus acabasse.
Tiago surpreendentemente não perdia o controle, seus movimentos
continuaram por um longo tempo em um ritmo tão lento que me eu me sentia
torturada por uma pressa sem sentindo, eu nem mais lembrava como respirar,
nem mesmo de manter os olhos abertos, apenas sentir, somente isso.
Logo como se entendesse que tinha chegado a hora ele começou a
aumentar o ritmo e seus gemidos passaram para arquejos ritmados com o
movimento mais intenso.
Novamente senti a explosão chegando, senti que novamente ia me
perder. Tiago sem tirar os olhos dos meus forçou o corpo mais uma vez e
soltou o ar ruidosamente enquanto seu corpo arquejou em espasmos. Como
se a força o tivesse deixado ele caiu por cima de mim respirando rápido.
Não me incomodei com o peso, eu estava completamente amolecida,
me sentia completa e feliz.
Tiago saiu com cuidado e deitou ao meu lado, me abraçou e escondeu
a cabeça na curva do meu pescoço.
— O que fizemos...
Me virei para ele. — Foi maravilhoso.
Ele balançou a cabeça. — Foi lindo, esperei tanto por isso Amélia,
tanto para ter finalmente uma chance de poder ter você em meus braços. —
Mas agora. — Ouvi seu soluço. — O que fizemos foi uma sentença de morte
para você. Não irão sossegar enquanto não a verem...
Sorri sem sentir nenhum remorso. — Eu o seduzi para prendê-lo a
mim.
Ele levantou a cabeça e deixou um sorriso escapar. — Porque fez isso
comigo?
— Já perdemos muita coisa, e nunca mais vou admitir que me
coloquem medo. Você irá me proteger eu sei...
Era agora, minha jogada mais arriscada, meu pai havia me dito que
Tiago era reativo, seu maior defeito era esse, reagir e nunca agir.
Mas agora, que ele sabia que era a única maneira de ficarmos juntos
era com atitude. E agora depois de ter enfrentado os da casta alta para
escolher a mim, se ele voltasse atrás não mais reconquistaria o respeito do
povo.
Agora era o meu risco, se ele me amasse tanto quanto demonstrava e
seu meu pai o conhecesse tão bem quanto dizia.
Ele ia reagir aos acontecimentos, e assim ou ele iria mostrar a força
escondida dentro dele movido por ira, ou eu ia amargar ver o homem que
amo se deixando subjugar por um punhado de homens corruptos.
Calmaria

Dois dias se passaram sem mais transtornos, não conosco pelo menos,
porém quando eles viram que eu não abriria mão tão fácil de Amélia, a
violência aumentou exponencialmente em todo o reino, mas dessa vez,
mesmo com toda a pressão eu estava me permitindo alguns dias para degustar
a sensação maravilhosa de poder ter a mulher que amo em meus braços.
Ultimamente eu andava aos suspiros. De tão feliz chegava a ignorar o
os comentários ácidos dos nobres, as ameaças indiretas sobre minhas últimas
decisões, enfim nada do que eles falavam eu estava dando importância, pois a
cada momento me vinha a lembrança daquela noite chuvosa e meu corpo
vibrava de saudades e desejo e com isso eu acabava ganhando forças para não
me abalar.
E apesar das recomendações de André para que eu ficasse longe até a
segurança ser reestabelecida, eu consegui escapar das enfadadas obrigações
no meio da tarde e fui visitar Amélia.
Bati na porta com a ansiedade aflorada pela expectativa de vê-la,
porém quando a porta se abriu fiz um cumprimento polido ainda na porta e
isso foi engraçado, pois já não era mais segredo a ninguém visto que
estávamos para tristeza dos nobres e para minha felicidade, oficialmente
comprometidos.
Mas era o certo a se fazer, ainda mais depois dos eventos, Amélia
também estava cautelosa e apesar de seus olhos demonstrarem uma bem
vinda alegria quando me viu, ela olhou para os dois lados procurando olhos
nos observando, quando viu que estava seguro ela me convidou a entrar e
antes de fazê-lo eu lhe entreguei o que até então estava escondendo atrás das
costas, um ramo de rosas.
Pela primeira vez senti queimar minhas bochechas me sentindo um
tolo pelo gesto ainda assim fiquei expectante com sua reação e para me
explicar já que ela fazia uma cara de paisagem de quem não está entendendo
nada eu falei quase em um murmúrio já que minha voz estava suprimida por
uma estranha timidez.
— Eu li em um livro que era isso que faziam antigamente.
Amélia ficou por um tempo segurando as flores enquanto piscava
bastante em completa confusão, nitidamente ela não sabia como proceder. Na
mesma situação que ela e ansioso para que ela saísse da inércia, troquei o
peso de um pé para outro tentando com isso ganhar algum tempo. Para minha
sorte ela perguntou com a voz atrapalhada.
— E leu a parte da mulher? A reação dela e o que ela teria que fazer
quando recebesse um punhado de flores?
Essa pergunta me fez dar uma risadinha de contentamento, era a
desculpa perfeita para que eu pudesse tomá-la nos braços. Entrei e fechei a
porta atrás de mim.
— Não sei, meu pai me tirou o livro antes que eu terminasse, mas
acho... — Deixei escapar um sorriso torto mostrando minha intenção
maliciosa e tirei as flores da sua mão a enlaçando pela cintura. — Que elas
soltavam as flores no sofá e enchiam o homem de beijos.
E foi exatamente o que ela fez. Jogou as flores no sofá e sorriu
largamente demonstrando uma plena de felicidade.
— Se em algum momento achei que você era igual aos homens desse
reino eu estava enganada, meu rei.
Ela esticou os braços e me puxou pela camisa até nossos lábios se
encontrarem, seu beijo rapidamente ficou exigente e reagindo a esse delicioso
estímulo minhas mãos ficaram inquietas e me encantei com a sensação das
mãos suaves de Amélia passeando pelo meu corpo com a mesma curiosidade
que eu tinha sobre ela. Era algo novo esse despudor, essa total entrega e me
deixava ainda mais doente de amor pela mulher que meu coração escolheu,
eu estava me sentindo completo e pleno, mesmo com todos os problemas
recorrentes dessa decisão.
O desejo ficou mais forte que a compostura e como dois malucos,
demos passos em direção a escada com nossos corpos agindo por conta
própria procurando quase inconscientemente a privacidade de um quarto, mas
a porta se abriu e por puro reflexo nos afastamos imediatamente.
André segurava a maçaneta e nos encarava completamente sério.
— Não posso ficar longe um minuto? Qual parte de manter a discrição
ficou difícil para os dois de entender?
E foi assim que completamente inflamado de desejo e extremamente
envergonhado pelo flagrante de uma situação constrangedora que eu me
despedi apressadamente de um André furioso e de uma pretendente com os
olhos em brasa e assim como eu, completamente frustrada pela interrupção.
Quando entrei na carruagem olhei desolado para a porta, imaginando o
sermão que Amélia estava ouvindo lá dentro, a minha vez ainda ia chegar,
conheço André o suficiente para saber que ele não ia deixar essa passar.
No entanto ele também já devia estar ciente que eu não ia conseguir
ficar longe dela. Embora ele tivesse razão em proibir esses encontros na vila
dos Forasteiros até que a segurança estivesse reestabelecida, eu podia insistir
para que ele trouxesse Amélia ao castelo.
O perigo ainda existiria, porém mesmo que eu precisasse mobilizar
toda uma legião de soldados para fazer a escolta, ficar sem ver Amélia, era
uma tortura das mais cruéis e André não podia ser insensível a esse ponto.
Afinal, eu já estava amargando uma distância forçada desde que ela
chegou ao reino, e agora que deixei claro a todos meus sentimentos por ela,
não podia mais aceitar ficar longe dela.
O recado de Celina

Apesar de meu pai insistir para termos cautela e nos proibir de nos
encontrar. Apenas um dia se passou até Tiago convencê-lo a me levar ao
castelo.
Por sorte meu pai entendia que eu e Tiago estávamos apaixonados o
suficiente para não conseguir ficar longe um do outro tanto tempo. E
sinceramente meu coração estava transbordando de sentimentos, de
curiosidades e de desejos. Tudo ainda era novo, mas uma coisa eu descobri,
acordar ao lado de Tiago me fazia esquecer o mundo raivoso lá fora. Na
verdade ele me fazia esquecer todos os problemas, pois estava se mostrando
um amante experiente e um romântico incurável.
Conversamos até tarde e confessei a ele que apesar de estar feliz por
estarmos juntos, eu sentia falta de poder andar pelo reino, e queria recomeçar
os projetos com os renegados na prisão, pois mesmo depois de termos
perdido tudo, eu não podia simplesmente abandoná-los, mesmo com os
nobres procurando uma brecha para nos atacar novamente.
Ele me prometeu que quando as coisas se acalmassem eu poderia
voltar a cuidar dos meus órfãos. Prometeu ainda que mandaria recuperar o
templo e voltaria com o projeto da fazenda, porém agora nada podia ser feito
já que o risco de destruírem tudo novamente era algo a se pensar.
Essa resposta me deixou emocionada, pois ele não me forçou a engolir
argumentos, ao contrário foi compreensivo e me apoiou e com isso vi um
homem que estava escondido por camadas e camadas de frustrações e falta de
confiança.
Ver essa nova faceta do rei vir à tona me fez ter a certeza que mostrar
a ele todo o meu amor, foi a melhor coisa para além de construirmos uma
confiança sólida um no outro, ainda o ajudar a encontrar a coragem e
confiança nele mesmo para enfrentar os problemas do reino.
Eu ainda sentia um medo mórbido de que a pressão o fizesse titubear e
ele cedesse escolhendo uma filha de um nobre e me deixando amargar
novamente toda essa aflição que senti naquele baile, era direito dele e mesmo
que eu tivesse me entregado a ele, o fiz tendo consciência de que ele já
cogitava isso, por isso não podia sequer mostrar mágoa por ele escolher a paz
do reino ao amor. E quando manifestei esse receio, seus olhos arderam de
raiva, porém a resposta dele saiu com a voz calma.
— Eu estava acovardado pela reação das castas altas naquele dia
Amélia, mas você mostrou uma coragem que deveria ser eu a ter mostrado,
você lutou por nós dois sem pensar duas vezes, por isso agora farei valer essa
sua fé em mim, prometo que aconteça o que acontecer daqui para frente,
ninguém vai separar nós dois, eles podem tentar, mas não vou permitir.
Depois dessa promessa dormi o resto da noite em completa paz de
espírito. Fui acordada com beijos suaves logo de manhã. Tiago tinha
obrigações e depois de um gostoso café no quarto me apressei a me arrumar.
Quando descemos encontrei André de braços cruzados nos esperando no fim
da escada.
Ele sorriu quando viu minha alegria e me beijou a testa como um
cumprimento de bom dia, meu pai mal notava o quanto seus olhos estavam
tristes, com certeza ele estava pensando em Priana nesse momento já que os
dois não estavam se encontrando muito ultimamente, pelo menos não que eu
soubesse. Quando se despediu me pediu para esperá-lo porque íamos para
casa juntos.
Enquanto ele se fechou em uma sala para uma reunião com Tiago, eu
suspirei buscando com o olhar algo que pudesse ajudar a passar o tempo já
que teria que esperar meu pai, eu saí pelo castelo passeando a esmo pelos
corredores. Minha intenção era conhecer a cozinha, queria ver como era a
organização, eu sei que poderia ser uma tortura visto que tínhamos perdido
tudo, mas com a promessa de Tiago de reformar o templo e me ajudar a
comprar tudo novamente eu não queria só esperar, eu queria fazer algo, mas
agora tudo o que me restava era esperar, ao escolher a mim ele basicamente
acendeu o fogo para a explosão de violência que começou por todo o lugar.
Eu, Clara, Daniel e muitos outros, fomos vítimas dessa ira e agora
tudo o que me restava era me resignar a perambular sem destino já que eu
estava proibida de ir a vila dos Renegados ou mesmo ao que sobrou do
templo. Depois do pai de Clara era claro que eu não tinha segurança em
nenhum lugar, ainda mais depois de tirar a vida dele.
Parei em um corredor e pisquei várias vezes tentando lembrar qual
lado eu tinha tomado para chegar ali. O ruim desse castelo era o tamanho. Por
todo lado tinha cômodos e mais cômodos.
Pensei em continuar a esmo e ver onde ia parar já que tinha tempo de
sobra para uma longa excursão, mas não me senti bem em xeretar, me senti
intrusa.
— Amélia, que bom vê-la aqui, querida.
Tive um sobressalto com a voz de Dona Clara potencializada pelo eco
do corredor, por puro reflexo fiz uma vênia respeitosa.
— Majestade, perdoe-me. Estou aguardando o fim da reunião, eu...
Ela sorriu e fez um gesto com a mão sem importância.
— Não tem problema, é muito bem vinda. Tem algo em mente?
Minha ideia era encontrar a cozinha, mas o olhar dela me disse que ela
queria algo. Neguei com os olhos baixos, incomodada com o olhar intenso e
brilhante dela, ela falava normalmente, mas não me senti a vontade ainda
assim.
— Gostaria de ver Celina? Ela ficará feliz em vê-la.
Assenti sem ter ideia do que dizer. Dona Clara realmente parecia
diferente da última vez que a vi. De certo modo parecia mais magra, mais
branca e com o olhar febril como se não estivesse mentalmente bem.
— Será um prazer, majestade.
Ela novamente sorriu e virou para as escadas, a acompanhei um tanto
ansiosa, mesmo seu sorriso gentil deixou aguçado em mim uma sensação
estranha de estar ao lado de uma pessoa doente, talvez fosse a pouca
intimidade com a mãe de Tiago que estivesse me deixando assim, ou
realmente a preocupação dela com o tempo findando para entregar sua filha
na mão do supremo Alfa a estivesse afetando de uma maneira que ela não
conseguisse mais disfarçar.
— Ela anda tendo mais pesadelos que o normal sabe, estou
preocupada, mas ainda assim continuo esperançosa. Acho que ela está
tentando voltar. Infelizmente Celeste anda muito ausente, ela não suporta o
reino Humano, por isso não posso contar com ela para ajudar com Celi, ainda
mais agora depois do que aconteceu com a menina Diana.
Abri a boca para perguntar por que ela não tinha visto Celeste sendo
que de acordo com meu pai ela tinha vindo visitar Celina com frequência,
mas acabei me calando. Se Dona Clara não sabia das visitas de Celeste a
irmã, então era proposital e quase entreguei a filha de sangue de Diana
somente por estar nervosa demais para ser perspicaz. Por sorte ela não
percebeu que eu ia interrompê-la e continuou falando.
— O meu tempo está acabando, preciso que Celi volte logo e me diga
o que fazer. Não posso simplesmente enviá-la ao supremo dos Licans sem ela
me dizer que é exatamente isso o que quer.
Me mantive agora em completo silêncio enquanto a seguia.
Ela abriu a porta e falou ríspida para os criados. — Saíam.
Um criado que fazia a limpeza, uma moça que penteava os cabelos de
Celina e também um idoso que parecia preparar um chá em uma mesa no
canto, todos eles largaram o que estavam fazendo e saíram de cabeça baixa.
Assim que ficamos a sós ela se virou para mim e pediu com a voz
aflita, porém sem a sombra da rispidez que usara para falar com os criados.
— Ela precisa de uma companhia conhecida, esses corvos que ficam
vigiando ela para Tiago a estão deixando ainda mais doente. Acho que fará
bem a ela ficar um pouco com você, Amélia. Eu tenho que sair, já ia fazê-lo
antes de vê-la, porém ia deixá-la aos cuidados de estranhos, pode ficar com
ela por um momento? Deixarei vocês duas a sós.
Sem sequer esperar resposta ela saiu apressada e fechou a porta, eu
não conhecia Dona Clara tão bem ao ponto de entender sua atitude, mas achei
estranho ela não ficar conosco, na verdade era como se ela tivesse fazendo
tudo por puro desespero, como se encontrasse nessa interação de Celina com
outra pessoa além do círculo familiar, uma chance de ela finalmente ficar
curada.
Talvez dona Clara estivesse realmente desesperada, por isso estava
agindo assim, tão estranha e tão esquiva. De todo modo não me custava dar
atenção a Celina, mesmo que ela nem fosse sentir minha presença.
Com um suspiro olhei para a moça de cabelos negros sentada no chão
rabiscando um papel e andei devagar e sentei de frente a ela.
Observei seu desenho, era bonito e bem feito. Não entendi como
alguém fechado em si mesmo poderia ter a mente tão aberta para os detalhes.
Sua mão parou com o giz vermelho e logo ela pegou um verde.
Começou a trabalhar um canto da folha ainda limpo. Olhei curiosa para ver a
arte que sairia, mas o traço reto e vacilante me deixou atenta e com o coração
batendo mais rápido que o normal e estranhei a reação do meu corpo.
Celina continuou naquele canto, sua mão segurando fortemente o toco
de giz. Não parecia algo como uma flor que ela estava desenhando e sim...
Uma letra. Logo outra, depois outra e não demorou e uma palavra toda torta
estava ali. Ajuda.
Meu corpo todo se arrepiou, era como ver alguém morto voltar à vida
na sua frente. Algo improvável e totalmente assustador. Mas estava claro o
significado, pelo menos o significado da palavra, do pedido eu não tinha ideia
o que ela queria dizer. Ganhei coragem e sussurrei com a voz falhando.
— Como? Como posso te ajudar?
Ela riscou então ferozmente com o giz por cima da palavra apagando
completamente o que estava ali, pegou outra cor, esse era preto.
No meio do jardim que ela tinha desenhado, começou a fazer um
pequeno ponto apertando o fiz no mesmo lugar. Deixou ali um ponto preto e
pegou o giz amarelo fazendo com ele pequenos riscos em volta do ponto.
Respirando rápida e pesadamente eu senti que aquela era a resposta,
mas não entendi o que ela queria me dizer. Segurei o papel e olhei para ela
esperando sua reação, ela ficou quieta com a mão no ar e ainda segurando o
giz. Manteve os olhos baixos.
Puxei o papel devagar. — Preciso ver de perto, está bem?
Senti medo de ela reagir mal ao me ver pegar seu desenho, mas ela
continuou do mesmo jeito, parecia uma estátua olhando para o chão e
segurando um toco de giz na mão levantada.
Aquele jardim com três canteiros de flores metodicamente divididas
entre branca, rosa e vermelha, os bancos e a cúpula toda decorada eu já tinha
visto. Foi o jardim que Tiago me levou quando me puxou no meio do baile.
Olhei para o ponto preto todo cheio de raios amarelos como se fosse
um sol negro e apertei os olhos tentando entender.
A direção do jardim e o corredor que Tiago me levou combinavam
com aquela ala, então... Levantei e andei apressada para a janela. Não
precisei procurar muito, a cúpula branca e partes do canteiro a mostra, estava
na direção da janela de Celi.
Eu tinha que ir lá, talvez fosse isso o que ela queria me dizer.
— Vamos ao jardim?
Ele continuou inerte, porém não mais desenhava e isso me pareceu
uma resposta positiva e a ajudei a levantar. Ela me acompanhou quieta, esse
era outro comportamento estranho, segundo Tiago, Celina nunca era quieta,
não do jeito que estava ao meu lado, pois seus gemidos e gestos com a mão
eram frequentes e isso realmente me deu a certeza que ela queria ir lá.
Quando alcançamos a escada, o idoso de pele escura nos parou, seus
olhos leitosos pareciam preocupados.
— Onde está levando a princesa?
Pisquei várias vezes tentando arrumar uma resposta que fosse
convincente. — Dona Clara me pediu para levá-la ao pequeno jardim, me
pediu para ficar com ela lá um pouco hoje.
O senhor assentiu e saiu do caminho. Aliviada eu segurei o braço de
Celina e descemos a escada devagar. Eu tinha pressa, mas não podia
demonstrar, seria suspeito e poderiam pensar que eu estava sequestrando a
irmã do rei.
Olhei para trás e o homem ainda estava lá. Meu coração batia tão
rápido que tive medo de desmaiar ali mesmo, nem sabia se o jardim era
chamado assim. Tive medo de Dona Clara ter deixando instruções para não
nos deixarem sair do quarto, se ela tivesse mandado isso, eu ia ser pega na
mentira.
Quando alcançamos o salão, fiquei perdida e confusa, não sabia qual
direção seguir e nem me lembrava de qual corredor Tiago tinha usado quando
me levou ao mesmo jardim que agora eu tentava alcançar.
— Se consegue me entender Celina, me ajude, pois não sei como
chegar.
Em silêncio, ela caminhou para o corredor do meio, olhei para cima
encabulada com o idoso que continuava a nos observar. Não podia forçar Celi
a andar mais depressa, aliás, nem sabia se ela seria capaz de tal proeza.
Apesar de ter tomado uma inciativa quanto a direção a tomar, ela
ainda parecia andar alheia a tudo, dava passos automáticos, o olhar ainda
desfocado como se nada lhe chamasse a atenção.
Seguimos pelo corredor em ritmo lento, meu medo crescia conforme
alcançávamos a saída. Porque eu? Eu me perguntei isso o tempo todo. Ela
podia ter escrito o pedido de ajuda a Tiago.
Talvez essa pobre mulher estivesse desesperada ou talvez se lembrasse
dos momentos que passamos todas juntas nos preparativos para o casamento
de Diana.
Apertei os lábios para conter a emoção com o que estava acontecendo,
ela de alguma forma me reconheceu no momento que sentei ali e esse tipo de
percepção somente uma pessoa que não estava fechada em seu próprio
mundo teria. Queria poder correr e contar para Tiago, ele ficaria feliz em
saber disso, porém algo dentro de mim sussurrou um amontoado de dúvidas
sobre o comportamento de Celina.
Ela estava fingindo todo esse tempo? Ou estava fingindo somente
agora por algum motivo? Ou ela podia estar se recuperando e escondendo
isso, mas por quê?
Quando entramos pela abóbada minha curiosidade com o que
aconteceria em seguida encobriu minhas dúvidas e a ajudei a sentar no banco,
sentei ao seu lado morrendo de medo de ela virar o rosto para mim e começar
a falar normalmente, isso com certeza me assustaria até a morte. Mas ela
continuou como sempre, apática e alheia ao seu redor.
Voltei a olhar o desenho, os canteiros estavam pintados de acordo com
o jardim, primeiro rosas amarelas, todo o canteiro com rosas somente dessa
cor. A do meio eram somente rosas brancas e o último canteiro tinha somente
rosas vermelhas.
O ponto que Celina tinha desenhado estava no canteiro do meio, o de
rosas brancas, então comecei a procurar entre as flores como estava no
desenho qualquer coisa escura entre as rosas ou na terra, ou entre os caules,
na verdade eu estava fuçando tudo sem nenhuma noção do que deveria
encontrar, tive o cuidado para não estragar o canteiro, caso nada fosse
encontrado, eu não podia deixar marcas de busca.
Se não fosse pela pequena ponta do papel eu não teria visto, mas ali
estava, encaixado entre as pétalas suaves um bilhete dobrado muitas vezes até
ficar pequenino.
Peguei e saí apressada do canteiro, sentei ao lado de Celina e olhei
atenta para todos os lados.
Coloquei o desenho cuidadosamente ao lado de Celina e abri o bilhete.

Deixei tudo pronto para facilitar para ele, me mande novamente, mas
dessa vez mais forte.
Esse último que me mandou não fez o efeito que prometeu, meu tempo
está acabando, faço o que quiser.

— Quem deixou isso aqui? — Perguntei para Celina e ela não se


moveu.
— Você conhece quem fez isso Celi?
Ela desenhou no papel freneticamente como sempre fazia, mas eu não
entendi o que significava, eram riscos se cruzando como se ela tentasse fazer
um desenho, porém o que saiu foi uma imagem sem sentido, talvez Celina já
estivesse retornando novamente ao seu mundo ou não tivesse conhecimento
de muitas palavras, claro que o rei Júlio não teria se preocupado com isso
quando a usava como serva de prazer.
Pensei em um meio de arrancar de Celina a resposta a incitando a
desenhar algo mais claro, algo que me desse uma pista melhor de quem
poderia ser o autor do bilhete, mas não tive tempo, ouvi barulhos de passos e
morrendo de medo de sermos descobertas, empurrei o bilhete no decote do
vestido.
Depositei as mãos no colo e fiquei parada ao lado de Celina fingindo
observar o que ela fazia. Vi claramente ela riscando por cima do ponto preto,
seus movimentos pareciam os mesmo de sempre para quem olhasse de longe,
mas ela estava riscando um ponto específico, estava apagando o recado.
Dona Clara sorriu ao nos ver ali. — Ela estava agitada?
Sorri de volta de modo inocente. — Tiago me contou que ela gosta
daqui então a trouxe e ela pareceu contente, quer dizer... Tranquila enquanto
desenhava, então acho que ficou feliz.
Dona Clara deu uma rápida olhada para o desenho e sorriu
calorosamente. — Ficou lindo.
Levantei um tanto apressada. — Majestade, se me permite, eu
preciso...
Ela ficou ligeiramente envergonhada. — Ah! Perdoe-me por tomar seu
tempo, obrigada por ficar com ela.
— Foi um prazer.
— Se puder vir mais vezes, Celina precisa de amigos.
Assenti quase grata pelo pedido. — Prometo.
Andei normalmente até a porta, quando entrei comecei a acelerar o
passo e assim que vi a uma distância segura corri como louca pelos
corredores.
Quando finalmente saí para o salão, entrei no escritório de meu pai,
ele não estava e fiquei desanimada, não podia sair a sua procura, isso
levantaria suspeita.
Sem ter o que fazer, sentei, apoiei o cotovelo na mesa e mantive o
queixo enroscado na mão. Olhei chateada pela janela tentando imaginar
quanto tempo ainda faltava para a reunião acabar. Meus olhos foram para
algumas anotações, e admirei a letra caprichada de meu pai.
Meu foco foi para os vários círculos em um papel, a mesma palavra
escrita por todo lado, sempre circulada com um grande ponto de interrogação.
Isso me chamou atenção. Fosso.
Logo vi outra palavra, grávida, essa também circulada e com ponto de
interrogação, era a investigação dele sobre as grávidas? Mas o que fosso tinha
a ver com grávida?
O pulo que eu dei quando a porta se abriu chamou a atenção de André,
quase ri com o pensamento que me veio que se eu não morri dessa vez com
certeza eu suportaria mais alguns sustos no futuro. Por sorte ele não estava
acompanhado de Tiago, eu não queria falar de Celina perto dele.
— E Tiago?
— Está sendo rei filha. Agora que já mataram a saudade um do outro,
é hora de vocês dois manter a discrição. Mas... Aconteceu alguma coisa, não
foi?
Não me contive e corri fechar a porta que ele mantinha teimosamente
aberta. Ele franziu ainda mais o semblante e soltei um suspiro, quando falei
minha voz saiu sussurrada.
— Preciso de sua ajuda, mas aqui não.
Sem dizer nada ele assentiu e me pegou pela mão, seguiu apressado
para a saída e soltei o ar preso em completo alívio quando vi o jardim enorme
e a carruagem se aproximando.
Subi atrapalhada mesmo com a ajuda dele. Logo ele entrou bateu no
teto e só então me avaliou minuciosamente.
— Se te disserem que você não sabe mentir, considere com cautela. Se
respondesse que estava tudo bem lá no escritório eu ia rir, sua cara está em
completo pavor, o que aconteceu?
Eu não estava certa se contaria tudo, a mensagem era clara sobre
facilitar para ele, mas ele quem? Poderia ser o supremo dos Licans já que ele
estava diretamente ligado a Celina, talvez até fosse ele e foi por isso que
Celina pediu ajuda.
— Filha?
Novamente saltei no banco de susto. Sinceramente não sei como ainda
sobrevivi ao reino, sou tão medrosa.
— Ah... Sim é que... Eu vi Dona Clara e ela me levou até Celina e...
Pai... fiquei assustada.
— Com Celina?
Neguei tentando colocar minhas ideias em ordem. — Com dona Clara,
ela está estranha.
Ele concordou com um gesto enfático de cabeça. — Faz alguns dias.
Tiago me disse que ela quase nem cuida mais da filha. Vive alheia a tudo
enquanto senta na poltrona na varanda de seu quarto e passa muito tempo a
olhar o horizonte. Ela mudou e todos já percebemos.
— Celina está só o tempo todo?
Isso era importante saber, afinal ela viu quem colocou o bilhete lá.
— Sempre tem alguém com ela. Mas porque a pergunta?
Tirei o bilhete do vestido e lhe estendi, ele abriu e fez uma careta
enquanto lia.
— Isso é estranho, mas pode ser um dos homens de Laican que está
cuidando de Celina, você viu um idoso lá?
Assenti. — Ele nos seguiu com o olhar até alcançarmos o jardim e só
então nos deixou em paz.
— É um lobo, está daquele jeito por vontade. Algo relacionado ao
lobo lhe roubar o vigor o deixando com aparência envelhecida, não conheço
os costumes dos lobos, mas ele não oferece perigo a Celina. Tiago sabe que
ele é subordinado de Laican, porém não sabe que ele é um lobo, eu reconheci
o cheiro, mas não quis me intrometer no assunto dos Licans.
Ainda assim isso estranho. — Isso explica o motivo da atenção dele
com ela, porém foi ela que me indicou onde estava o bilhete, e isso não é
estranho?
Ele sorriu. — Tiago comentou que ela anda tentando se comunicar,
acho que ela está tentando dizer alguma coisa, acredito que ela sente a recusa
da mãe sobre seu companheiro.
Isso fazia sentido, porém eu ainda não estava convencida de fosse algo
normal. — Mas aí pede algo como se fosse um remédio.
— Acredito que os lobos estejam por trás disso, dando a Celina algo
para trazê-la de volta, por isso ela está tentando comunicar.
Acabei assentindo, claro que os lobos não ficariam parados. Fariam de
tudo para curar a menina.
— Filha, prometo que darei mais atenção a isso quando chegar em
casa, já adiei demais minhas obrigações e agora é urgente que eu retome de
onde parei, vou descer aqui.
Olhei pela janela, ainda estávamos na Alameda, só um lugar tinha por
ali para ele visitar.
— Vai a biblioteca?
Antes de fechar a porta ele assentiu e recomendou. — Preciso ver uma
coisa. E você menina vá direto para casa. Não a quero perambulando por aí,
pelo menos até encontrarmos os culpados dos atentados.
Sorri e concordei com a cabeça. Quando a carruagem partiu eu revivi
tudo o que aconteceu com Celina, e a insistente pulguinha da desconfiança se
instalou em minha orelha. Celina me pediu ajuda, ela confiou em mim e eu
precisava fazer alguma coisa para ajudá-la mesmo que fosse levando esse
pedido a outras pessoas mais aptas a agir, o problema é que agora eu só podia
confiar em poucas pessoas.
Quando a carruagem parou em frente de casa eu segui para os fundos e
chamei Plinio. Pedi a ele para me encontrar um volante.
Não demorou e ele me trouxe um garoto. Não mandei nenhum bilhete
só um recado verbal para a única pessoa que podia me ajudar a fazer chegar o
conteúdo do bilhete ao reforço necessário.
Por sorte não demorou quinze minutos e Daniel apareceu no portão
fazendo uma vênia malandra para mim.
Meu pobre amigo foi vítima da decisão de Tiago e eu tinha culpa
nisso, acabei sorrindo com tristeza por vê-lo novamente nas ruas e prometi a
mim mesma que quando tudo se acalmasse eu ia dar um jeito de recompensá-
lo.
Escondendo a culpa que sentia pelo que aconteceu com ele, enganchei
em seu braço e sorri amigável. — Queria ver se meu amigo está bem.
Eu tinha colocado no bolso os bilhetes que escrevi enquanto o
esperava. E eles agora seriam a prova de confiança de Daniel.
Ele olhou cauteloso para trás. — Pronto, já tomamos distancia
suficiente para você me dizer qual o verdadeiro motivo de ter me chamado.
Involuntariamente olhei para trás também. Quando olhei para seus
olhos ávidos em cima de mim fiz uma careta. Definitivamente eu não tinha o
dom para enganar os outros.
— Daniel, eu preciso entregar três bilhetes. Dois deles de alguma
forma são perigoso para mim se cair em mãos erradas. Sei que você e os seus
precisam de comida, mas não acredito que você daria minha vida em troca de
alimento.
Ele riu. — Era a minha ideia, mas agora que você falou senti remorso.
— Ele ficou sério e me olhou com sinceridade. — Sua amizade foi a coisa
mais legal que aconteceu para mim Amélia, não quero que nenhum mal lhe
aconteça, pode confiar em mim. Me diga para quem entregar que juro por
qualquer Deus que um dia existiu que faço chegar ao destinatário sem que
seja interceptado.
— E como fará isso?
Ele sorriu de lado. — Eu mesmo entregarei cada um deles.
O medo dele quando olhamos pela guarita a estrada dos Viajantes
aquela vez, não me deixou muito segura se ele realmente faria isso ao
descobrir para quem era um dos recados. Ainda assim ele era a minha
esperança.
— Um dos bilhetes é para Marcos.
— Fácil. — Ele levou dois dedos à boca e soltou um estridente
assobio.
Tapei os ouvidos e sibilei. — Poderia avisar né. — Reclamei olhando
ansiosa para os lados. Eu querendo discrição e ele fazendo esse estardalhaço!
Isso não me pareceu muito inteligente menos ainda seguro.
— Fique tranquila, assobios são quase como relinchos, tem em todo
lugar nas ruas.
Uma comparação triste essa a dela, porém não tive tempo de rebater,
um garoto apareceu correndo veloz, estava descalço e o reconheci
imediatamente. Era um dos meninos da prisão. Isso foi estranho, um menino
de Marcos respondendo ao chamado de Daniel?
Os dois eram de territórios rivais, pelo menos era mais ou menos isso
que entendi sobre os trabalhos de rua.
Daniel estendeu a mão e peguei o único bilhete que deixei separado,
os outros dois deixei em outro bolso.
— Não se preocupe. Eu e Marcos demos uma trégua depois do que
aconteceu.
Não precisei perguntar. Nossos olhos se encontraram e assentimos em
um silencio enlutado pela tristeza de tanta desgraça para todos nós em tão
pouco tempo.
Logo ele estendeu a mão novamente. — Os outros dois?
Assoprei olhando nervosa para ele. — Preciso que entregue ao
primeiro sombrio que o barrar na estrada dos Viajantes.
Seu olhar esmoreceu por poucos segundos, logo ele puxou o ar e me
encarou cheio de coragem. — Me entregue que farei chegar a eles.
— Só diga que os bilhetes são iguais e um deles precisa ir para os
lobos.
Ele assentiu corajosamente e entreguei a ele os bilhetes rezando para
que a coragem não o abandonasse quando alcançasse a estrada.
Ele me trouxe até em casa novamente e entrei cheia de expectativas.
Eu precisava que os sombrios e os Licans soubessem do acontecido com
Celina, não sei por que, mas eu não conseguia juntar as peças daquilo sem
pensar que algo muito estranho estava acontecendo e não era coisa boa.
Entrei em casa com o coração mais leve por poder passar essa
informação para pessoas mais entendidas do que eu nessas coisas.
Já o bilhete de Marcos era um pedido para ele me mandar Aline, pois
já estava sentindo falta dela e precisava de companhia, já que agora para
manter a discrição eu ficaria encerrada dentro de casa até as coisas
amainarem, era a coisa mais inteligente a se fazer.
Nicolae
A ronda ultimamente era a minha válvula de escape. Diana apesar de
não demonstrar ainda ficava aflita pela vida que se foi de seu ventre e eu nada
podia fazer senão amargar escondido a minha dor para não entristecê-la ainda
mais.
O estrago nas fazendas dos humanos despertou pena entre os
sombrios. Vários rostos tristes tinham passado pela estrada quando
retornaram ao reino. Eles estavam esperançosos com o plantio e por conta
dos atentados a esperança ruiu.
Meus olhos treinados perceberam o movimento na estrada. Pulei no
galho alto e apertei os olhos procurando os traços. O cheiro não me era
familiar, e ver alguém andando apressado liberando cheiros de ansiedade e
pressa me fez as lembranças retornarem.
Foi exatamente assim que encontrei Uzias, e foi nesse dia que descobri
que Diana tinha sido leiloada, vendida por Samuel e tive que usar todo meu
autocontrole e treinamento para não me perder em ira.
Mas agora minha pequena estava segura. Triste, porém segura em
nossa casa, ao lado de Eva que carecia de total atenção, visto os oitos meses
de gestação.
O cheiro dela estava mudando, a maturidade da vida em seu ventre se
fazia pungente em cheiros de leite e pequenas secreções de uma eminência de
um parto prematuro.
Mas ainda assim, senti o nervosismo me tomar. Poderia não ser com
minha pequena, mas a situação parecia muito similar para que eu descartasse
o garoto que andava apressado e ansioso e com medo na estrada.
Esperei que ele virasse a curva para só então aparecer, não pretendia
assustá-lo, porém ele já estava assustado o suficiente para dar um grito e
desatar a correr. Não o acalmei, deixei meu caçador sair parcialmente
somente para gravar todos os cheiros vindos dele. Os olhos daquele garoto
não me enganaram, lembrava vagamente o cheiro de minha pequena.
— Espere. — Pedi ainda de uma distância segura para que ele não se
assustasse ainda mais.
Ele travou no lugar e perguntei sem me aproximar. — O que o faz
tomar o caminho do reino sombrio?
Sem nada dizer ele esticou a mão com dois bilhetes entre os dedos.
Começou a gaguejar e senti empatia por ele, o pobre garoto era ainda uma
criança.
— Não lhe farei mal.
Ele respirou fundo e assentiu. — Recado de Amélia, senhor. Dois
iguais, um é para os lobos.
Dei passos devagar, evitando movimentos bruscos, não queria assustar
ainda mais o humano jovem. Ele tremia, mas manteve a mão corajosamente
estendida em minha direção.
Os olhos verdes me analisavam conforme eu me aproximava. Ficaram
maiores quando cheguei perto e estendi a mão com as minhas unhas
compridas e escurecidas em sua direção. Não podia esconder o que fazia
parte de mim, de meu caçador.
Peguei o bilhete e o abri não dando atenção ao escrutínio do rapazote.
Esses olhos amedrontados me eram familiar. Na batalha sombria muitos
homens precisaram de um bom tempo para se acostumar com a visão de
nossa raça transformada, esse garoto tinha coragem eu tinha que admitir. E
tinha o cheiro da pequena.
O bilhete era estranho e pelas palavras algo estava acontecendo a
companheira de Laican. No entanto André estava investigando outro assunto,
porém se tivesse alguma relação era hora de agir. Eu tinha gravado muitos
cheiros e o da mãe do rei também ficou marcado, talvez estivesse na hora de
eu observar a mãe biológica da minha filha de sangue. Por isso por respeito a
Celeste eu mostraria a ela o bilhete antes de fazer qualquer coisa.
O menino esperava alguma coisa. Eu não tenho por hábito andar com
moedas já que isso é uma coisa puramente humana.
— Não tenho pagamento comigo, mas posso lhe recompensar se me
acompanhar até o reino sombrio.
Ele negou. — Só quero saber a resposta, se tiver alguma para mandar
a Amélia.
Então era assim que funcionava essa troca de missivas constante entre
os homens. Eu tinha enviado um bilhete para Amélia quando Diana perdeu
nossa criança, mas não esperei resposta já que entreguei o recado já dentro da
prisão, pois pulei o muro e entreguei o papel a primeira criança que vi.
Todavia eu ainda estava curioso sobre o garoto.
— Sua mãe?
Ele negou sem entender. — Desculpe.
— O nome de sua mãe.
— Eulália. Ela morreu vítima de uma chacina dois dias depois da
mudança das leis.
Menos mal, a mãe biológica de Diana não merecia estar viva. Uma
mulher desprezível como ela merecia justamente uma morte assim.
— Você tem uma irmã.
Ele sorriu quase em deboche. — A sim, na verdade tive várias irmãs,
mas não as conheci direito, não dava tempo de formar algum laço já que os
garotos viviam para caçar ratazanas nos lixões enquanto as meninas viviam à
cata de restos de comida nos lixos dos nobres.
Assenti porque era exatamente o que Diana contou, porém ela tinha
curiosidade sobre o que aconteceu aos seus e talvez conhecer um irmão de
sangue pudesse ajudá-la agora.
Substituir um amor materno por um fraterno poderia curar um pouco
da dor da minha pequena.
— Minha companheira é uma de suas irmãs vendidas. Se quiser
conhecê-la...
— Como pode saber disso? — Ele juntou as sobrancelhas mostrando
um ceticismo que apenas os humanos tinham por habito fazê-lo já que a
mentira era algo constante entre eles. Era justo ele não acreditar em mim já
que não me conhecia.
— Eu gravei o cheiro de sua mãe no dia da leitura das novas leis, e
tenho gravado todos os aromas da minha companheira. Você possui o cheiro
das duas, e como um caçador eu posso lhe assegurar que você é irmão de
Diana.
Os olhos dele se encheram de pura curiosidade. Por fim ele assentiu.
— Se eu puder...
Eu assenti. — Siga pela estrada. Preciso entregar o bilhete a um lobo e
logo o alcanço.
Não precisei correr muito. Logo uma loba conhecida apareceu. Jena
transfigurou e me olhou com curiosidade.
— Algum problema com Diana?
Entreguei a ela o bilhete. — Com Celina. Ela corre perigo porque viu
o que não devia.
Jena rosnou enquanto lia. — Vou passar isso a Laican.
— Irei passar a Celeste.
Assim nos despedimos e corri veloz seguro de que o garoto não tinha
avançado muito e logo o vi virando a cabeça assustado para qualquer barulho
na floresta. Acabei deixando um sorriso escapar me lembrando dos medos da
minha pequena quando ainda não conseguia confiar, estando presa em um
trauma por conta dos estupros que teve que assistir enquanto se escondia
dentro de uma carroça.
Realmente o destino toma rumos estranhos. Minha companheira
perdeu a vida que carregava, e agora ia reencontrar um irmão caçula. Talvez
a espera por Dimitri não fosse assim tão dolorosa a ela.
Por fim o bilhete me voltou ao pensamento. Teríamos que ser rápidos.
Celeste já tinha intenção de partir para o reino humano, mas agora ela teria
que ser cautelosa e evitar como já estava fazendo há algum tempo, ser vista,
pelo menos até ter certeza que a piora de Celina não tinha a ver com causas
humanas, e saber que minha filha de sangue estava se colocando em perigo
me deixava preocupado, porém era direito dela defender a irmã.
André estava em perigo e Priana e eu teríamos que continuar nosso
trabalho que começou acidentalmente quando as fazendas foram incendiadas.
Nosso maior inimigo não era o que encontramos, e sim o que não sentimos.
Restava a André agora ser cauteloso para não se deixar surpreender, e a nós
restava limpar o caminho para garantir sua segurança.
Biblioteca

Eu tinha entrado naquele maldito fosso. E tudo foi apenas para


constatar que nada, absolutamente nada tinha além de lama. Nenhuma porta,
nenhuma saída que desse para algum lugar, era somente o buraco e acabei
envergonhado por minha ingenuidade, era claro que aquele corpo foi deixado
lá de propósito para me desviar do caminho certo e funcionou porque acabei
sem nada novamente.
Por isso agora que tudo estava tranquilo, pelo menos que nenhum
incêndio ou atentado a minha filha estava acontecendo eu retomaria do zero
novamente e começaria pelo lugar que eu tinha descartado logo de início.
Com a chave reserva que ficava no castelo já que o prédio era público,
eu esperei a noite cair e o os homens se recolherem já que vários deles viviam
rondando a pequena igreja, alegando que era por respeito religioso ao que
lhes foi tirado, mas começo a desconfiar que eles sejam sentinelas cuidando
de algo mais e novamente sinto vergonha por não ter percebido antes.
A biblioteca não tinha nada fora do comum. As estantes com os parcos
livros sobre cerimonias de casamento jaziam intocada em um canto, era
nítido pela densa camada de poeira.
Os livros do harém haviam sido trazidos para cá e estavam dispostos
em outras prateleiras somando as doações de Laican.
Os temas eram variados, alguns poucos livros estavam inteiros.
Um livro no meio da pequena coleção me chamou a atenção. Era o
mesmo que Diana lia quando foi apunhalada no jardim. Sorri olhando para o
volume parcialmente queimado. Talvez Diana fora a única dessa geração
feminina a pegar um desses livros para ler.
Dos homens que eu saiba, somente eu, Uzias, Marcos e Tiago tinha o
hábito de leitura, pelo menos entre os que eu conhecia.
No meu caso e de Marcos era pelo prazer da leitura, já Uzias era para
treinar e aprender a desvendar o que lhe foi um mistério por toda uma vida
visto que aprendeu a ler depois de velho, quando nos recolhíamos para
descansar no tempo que ainda éramos escravos e dormíamos empilhados em
esteiras pelo chão da cozinha e dispensa e foi nessas noites que usando a luz
do lampião, algumas folhas de papel surrupiadas dos escritórios pelo castelo
e uma pena e tintura ganhadas de Tiago que ensinei Uzias e seu filho a ler.
Uma pena que ele não pôde usufruir dessa sabedoria vindo a morrer na
batalha sombria.
Algumas moças foram ensinadas por suas mães que aprenderam com
suas mães e assim sucessivamente. Mas os séculos extinguiram, minguaram
essa sabedoria que agora Amélia estava tentando resgatar.
Eu sentia orgulho pelo que minha filha se tornou. Nunca me arrependi
de ter voltado ao reino humano depois de deixá-la no reino Sombrio. Eu virei
escravo, fui submetido a humilhações, privações e castigos severos, mas cada
vez que passava por isso eu pensava nela e Mariana. Na vida diferente que
estavam tendo, porque se elas tivessem chegado ao prostíbulo...
Saí de perto da prateleira e foquei minha atenção ao lugar. Odiava
reviver meus medos, os anseios daquela época de que elas sofressem por
conta da minha mentira ao rei. Se ele soubesse que Mariana, amiga da rainha
estava viva, ele teria usado alguma brecha no código de conduta e forçado os
sombrios a entregá-la. Por isso agora eu não queria mais pensar nisso, apesar
de estar tomado por essas lembranças. Mas era exatamente isso, lembranças,
um passado que eu queria apagar.
Minha atenção finalmente voltou ao presente, foi para uma parte da
mesa que estranhamente estava limpa.
Alguém tinha usado a ponta da mesa para...
Me aproximei estranhando o cheiro de chá de funcho. Alguém estava
a tomar chá em uma biblioteca praticamente abandonada?
Isso não seria tão estranho se pelo menos existisse uma biblioteca na
cozinha, menos ainda se existisse uma cozinha por perto. O que não existia já
que a igreja dos homens era retirada. Perto do muro do castelo, no entanto
distante de todo o resto. Ficava entre as últimas árvores da Alameda. O que
tornava o simples ato realmente muito estranho.
Comecei a andar por todo o cômodo procurando pistas, algo fora do
lugar, ou que explicasse o cheiro pungente da erva.
Quem frequentava o lugar era cuidadoso, mas não o suficiente.
Ninguém fica sem deixar rastros, mesmo que algo pequeno. Talvez... Não...
Na mesa não havia nada demais também, somente uma mesa, três cadeiras,
um castiçal com velas até a metade. Se alguém usava o lugar para algo ilícito
então era à noite.
Tudo era estranho, eu estava deixando passar alguma coisa.
Cheiros... Fechei os olhos e tentei buscar algo, porém tudo se resumia
ao cheiro característico dos livros, poeira e o maldito funcho.
Não havia outros aromas além desses, nenhum cheiro de suor, nada
que justificasse o chá. O que era ainda mais estranho.
Voltei do início, procurei nas prateleiras novamente agora deixando de
lado as lembranças e focando exclusivamente nos detalhes.
Ali estava, realmente eu tinha deixado passar algo ínfimo, ainda assim
melhor do que nada.
Em algumas partes a poeira não estava uniforme, na terceira prateleira
tinha partes limpas no lugar que o livro fora puxado. Três marcas, três livros
retirados. Olhei os títulos e estranhei.
Um era sobre mundo antigo, mais especificamente geografia. Outro
era sobre biologia e o último era o único que não falava sobre termos
técnicos. Pelo menos parecia já que eu não estava entendendo nada do que
nenhum deles dizia, mas esse era diferente. Estava escrito- Livro 2- Sigmund
Freud.
Folheei esse último procurando alguma coisa que justificasse a
escolha. Estaquei em algumas imagens de feto. Falava sobre o corpo humano,
reações do corpo, sobre teorias de como o corpo reagia.
Voltei o livro no lugar sentindo uma inquietação crescente. Uma
reação costumeira quando o cérebro tenta avisar que você está no caminho
certo.
Havia uma dissonância na disposição das prateleiras. Duas de cada
lado e uma mesa no centro, porém a parede à minha frente não tinha livros
dispostos, sequer uma prateleira, o que estava ali era uma mesinha de ferro
com nada mais do que um vaso velho e um castiçal que diferente do castiçal
da mesa não parecia ser usado frequentemente, parecia estar ali apenas para
não incitar interesse, mas a mim que buscava o diferente justamente foi ali
que foquei minha atenção.
Fui até ela e arrastei, a parede sustentava um tapete colorido que a
encobria completamente, era sabido por todos no reino o motivo disso. Pelo
menos para quem já tinha entrado ali quando era uma igreja.
Era para esconder o que estava escrito, as frases sobre as mulheres
serem meras peças de reprodução e serem amaldiçoadas não tendo o direito
de entrar no paraíso, tendo como local garantido depois da morte apenas o
inferno.
Mas eu me lembro de Tiago ter mandado caiar antes de transformar
em museu. Então a pergunta agora era, se ele havia mandado tirar essas
frases, qual era a necessidade do tapete?
Prendi a respiração sentindo a eletricidade percorrer meu corpo. Era
ali, eu tinha certeza. Levantei o tapete ainda com a respiração retida e
praguejei em seguida me sentindo idiota.
Estava ali o tempo todo, nas vistas de todos, por isso faziam de tudo
para evitar os curiosos, por isso quase ninguém frequentava, por medo de
retaliação. Os homens se diziam ofendidos por profanarem sua igreja quando
na verdade estavam protegendo esse segredo.
Uma porta de tamanho pequeno, um meio de saída, porém duvido que
fosse um local de entrada. Aqui não passaria uma pessoa muito grande,
menos ainda alguém arrastando um corpo, isso teria deixado marcas no chão,
cheiros dos fluidos por conta de uma luta para escapar, qualquer coisa.
Obviamente que a porta não abriu quando empurrei, mas eu não ia me
dar por vencido, não quando já estava aqui e se caso eu fosse pedir ajuda para
retornar mais preparado, quem estivesse usando o lugar poderia fugir sem
deixar pistas.
A porta era antiga e a madeira muito velha, ainda assim preferi não
fazer estardalhaço e acabei tirando o ferrolho que a sustentava, esses bem
mais fáceis visto o reboco não ser de qualidade.
Com calma tirei a porta completamente e a deixei encostada, era
mesmo uma porta pequena e tive que me virar de lado para passar pela
entrada. Não dei dois passos e saí para um corredor mais largo e escuro.
Algo dentro de mim fez um click, a lembrança do resgate a Tiago
meses atrás foi pelo esgoto e aqui, nesse corredor, apesar de não estar sendo
usado, era parecido. O que era estranho.
Andei atento e nada, fora as ratazanas que corriam por todo lado, nada
mais dava mostras que tinha vida ali. Apertei o passo, precisava descobrir o
que estava acontecendo. Era um local de ligação, mas ligava aonde?
A dor lancinante da pancada me fez cair no solo úmido e pegajoso de
mofo e musgo. Caí de bruços e quando virei a cabeça para ver quem tinha me
acertado meu coração deu um salto. Não tive tempo de me defender e senti
um enorme porrete me acertar a fronte.
Meus sentidos estavam confusos, aos poucos eu recobrava a
consciência. Ouvia um som repetitivo e irritante. Tap... Tap... Tap...
Fechei os olhos ainda embriagado por algum motivo. Tap... Tap...
Tap...
Voltei a abrir os olhos fazendo esforço para focar e desanuviar minha
mente. Pisquei algumas vezes, por sorte a visão embaçada não me confundiu
dessa vez.
Eu estava sentado e uma grossa corda volteava meus braços me
prendendo com força ao braço da cadeira, tentei mover as pernas e constatei
que também estavam muito bem presas.
— Acorde o intruso. Já estou sem paciência.
Essa voz era conhecida. Dante, então era ele o tempo todo. E isso
justificava o alvoroço dos homens pela igreja ser profanada. Ele tinha a
língua venenosa e incutia o pior.
— Ele não é intruso, veio até nós porque assim quisemos.
Essa voz também não me era estranha, porém não consegui me
lembrar de quem era. Mantive a cabeça baixa, pensei em Priana, passar a ela
alguma informação, mas a botica que usaram ainda agia e não consegui focar,
ainda me exigia muito esforço me comunicar mentalmente com ela.
— Vamos logo com isso Vitório, você conseguiu sua presa, agora me
dê o chamariz para a minha presa que ainda está solta. Sem o coelhinho não
conseguirei montar a armadilha para o tigre.
Ouvi a risada do tal Vitório.
Vitório... Nunca ouvi falar nesse nome. Quem poderia ser?
Com os olhos semicerrados consegui ter um vislumbre da faca
cortando habilmente algumas ervas em cima da mesa, e o tap... tap insistente
se manteve, era daquele gesto que vinha o som. Logo o som parou
completamente e vi a sombra se aproximando, mantive a cabeça baixa
esperançoso de angariar tempo o suficiente para conseguir contato com
Priana, talvez ela pudesse avisar Tiago sobre mim.
— Vejamos... — Senti os dedos ásperos me sondar a pele. — Precisa
ser uma parte facilmente reconhecível.
Me senti esquisito, em alerta como se antecipasse um perigo imediato.
A mão do homem me cortou a camisa e fiquei exposto.
Ouvi o gemido de contentamento e os dedos passearam por minha
antiga cicatriz de mordida de Leviatã.
— Isso é perfeito!
— Credo, que coisa horrorosa! Arranque tudo!
A risadinha debochada do tal Vitório me deu a pista de que sua
intenção era justamente essa.
— Tudo não, um terço será suficiente, por enquanto.
Não me senti aliviado com a resposta. Meu coração disparado e minha
respiração adensada me denunciaram.
— Olá André. Sentiu minha falta? Não adianta esperar por ajuda, a
porta que tirou do lugar nós colocamos de volta. Então não tente ganhar
tempo.
Já que não justificava eu ficar fingindo levantei a cabeça e fiquei
surpreso ao ver o monge sorrindo para mim como se fosse um amigo antigo,
e com um único movimento ele me mostrou que sua crueldade continuava
inabalável.
Senti a lâmina seguindo do peito em direção ao ombro e em meio a
loucura de dor, só tentei imaginar o tamanho que daria um terço da minha
imensa cicatriz.
Amélia.

Meu pai não tinha aparecido para o jantar. Bati na porta de seu quarto
e não obtive resposta. Achei estranha essa ausência já ele quase nunca ficava
sem voltar e quando precisava dormir fora ele sempre avisava.
Abri a porta devagar, imaginei que o veria dormindo um sono pesado,
mas a cama estava ainda arrumada. Ele passou a noite fora, sorri já sabendo
seu paradeiro, ele estava com Priana.
Era bom para ele ter alguns dias de paz, e agora eu teria que esperar
ele voltar para fazer o pedido, eu queria ir ao bairro dos Renegados, os
recados de Marcos me traziam ótimas notícias.
Estavam acelerando a construção de mais duas casas, por hora serviria
como alojamento. Fariam como nas outras e colocariam dentro quantos
coubessem, mas era um progresso. Com a minha que deixei para Marcos já se
contavam quatro casas prontas e com mais essas duas já se poderia separar
pelo menos uma para as mulheres, outra para as crianças. Assim eles teriam
mais conforto.
— Cadê André?
Aline coçava os olhos inchados, seu cabelo estava bagunçado de sono
e estava descalça.
— Hum... Acho que uma garotinha se esqueceu de calçar os sapatos,
não?
Ela fez careta. — Não gosto, me dói os pés.
Achei graça na desculpa boba. Era mentira, pois foram feitos de
acordo com seu tamanho, porém não falei nada, logo ela se acostumaria. Mas
claro que eu poderia dar uma ajuda para que ela continuasse tentando
acostumar. Segui para a cozinha fazendo cara de despreocupada.
— Uma pena, pois acabei de fazer um bolo de laranja e meninas
descalças não sentam a mesa.
Continuei andando, mas não consegui evitar um largo sorriso quando
ouvi fuzuê que ela fez ao correr de volta para o quarto.
Arrumei a mesa para o café sem conseguir parar de espiar a porta a
todo o momento. Sentia uma inquietação por meu pai não estar ali. Estava
ansiosa por vê-lo chegar.
Aline apareceu na cozinha com a cara deslavada. Calçava as sapatilhas
e tinha prendido o cabelo como ensinei. A cicatriz ficou mais aparente com o
cabelo preso, porém eu achava bonito até isso nela.
Sorri e assenti aprovando seu esforço para mostrar que aprendeu.
— Muito bem, está muito bonita.
Ela sentou e sorriu alegre. — Quando tio Tiago virá? Quero vê-lo.
— Eu também. Mas não se preocupe, logo ele aparece para nos dar um
beijo antes de começar mais um dia de trabalho.
Entreguei a ela um pedaço generoso de bolo. Com Aline eu era
exagerada, queria ver ela gordinha logo. Queria tirar dela a aparência doentia
e os ossos sobressalentes. E ela claro, se deliciava em sua gula infantil
aceitado comer qualquer coisa que eu lhe oferecia em minha gula adulta de
vê-la mais cheinha e com gominhos. Se é que uma menina de dez anos
pudesse vir a ter gominhos nas juntas.
Quando sentei ouvi as palmas. Sorri quando Aline me olhou
esperançosa.
— Notícia de Marcos.
Corremos para a porta. Sempre que ouvíamos palmas era sinal de
algum garoto de recados chamando. E realmente era, porém dessa vez foi um
rapaz de quinze anos mais ou menos que me entregou um pacote.
Estranhei, pois esse não era bairro dos Renegados e senti um frio do
estômago, não eram notícias de Marcos, podia ser de meu pai.
O garoto não esperou que eu lhe desse algumas moedas como sempre
os outros faziam e isso me deixou ainda mais curiosa.
Parecia que ele queria fugir, pois assim que eu peguei o pacote ele
partiu apressado e virou a primeira esquina que encontrou.
Entranhando essa pressa fechei a porta e sentei no sofá. Coloquei o
pacote no colo e senti as mãos tremerem sem motivo aparente. Talvez fosse a
maneira como aquilo foi entregue que me deixou apreensiva e não fui só eu.
Aline olhava o embrulho com olhos esbugalhados me deixando ainda mais
preocupada.
Rasguei o papel e vi que era uma caixa de madeira. Aline e eu
trocamos um olhar apreensivo. Com as mãos suando, soltei o encaixe de
metal e abri.
O ar faltou em meus pulmões, a bílis alcançou minha garganta, mas o
grito veio antes partindo do mais fundo do meu ser. A dor lacerou meu
coração. Um pedaço grosso de pele do tamanho de minha palma estava
dentro da caixa e reconheci na mesma hora cada parte da cicatriz macerada,
cada parte da pele que formava a marca de uma mordida funda de dentes
grandes, uma mordida mal cicatrizada.
Aline respirava pesada e rapidamente, não gritou como eu, mas
parecia em choque.
Em cima do pedaço de pele tinha um envelope manchado de sangue
ainda fresco. Peguei aquilo sem conseguir parar de bater os dentes de tanto
que eu tremia.
— Um carro espera na esquina. Venha sozinha e não alerte ninguém,
senão seu pai será devolvido em partes. Uma em cada caixa para você fazer
coleção.
Respirando com dificuldade eu segurei Aline pelos ombros.
— Vá pela porta dos fundos e me chame Tobias que está no estábulo.
Aline era esperta e correu como vento para fora e enquanto isso eu
escrevi um bilhete rapidamente, a letra saiu torta por conta da tremedeira,
mas não podia me dar ao luxo de temer que estivesse ilegível, coloquei junto
com o outro no envelope e coloquei de volta na caixa.
Escrevi outro bilhete rapidamente e esse eu dobrei. Aline e Tobias
vieram correndo. Entreguei a Aline a caixa e lhe dei algumas moedas. Meus
olhos quase nem enxergavam tanto eram as lágrimas que saiam.
Falei com a voz em um fio. — Aline querida, espere eu entrar no
carro, contrate uma carruagem e voe para a vila dos Renegados e entregue
essa caixa a Marcos. Pode fazer isso por mim?
Ela me abraçou. — Faço tudo por você, tia Amélia.
— Oh querida. Obrigada.
Entreguei a Tobias o outro bilhete. — Pode entregar a Daniel para que
ele faça chegar aos ouvidos necessários? Não tenho mais moedas, mas...
— Farei. — Ele estava sério, o semblante destemido e imaginei que
Aline já tinha adiantado que algo grave tinha acontecido.
Levantei com o coração saltitando e antes de sair, olhei em súplica
para eles.
— Por favor, somente quando for seguro, que não sejam vistos.
Eles assentiram e juntando a coragem que me restava, saí para a rua.
Meu corpo seguia automaticamente, minhas pernas estavam indo por conta
própria, minha mente estava nublada. Só queria ver meu pai, só queria que
ele estivesse vivo.
Abri a portinhola e antes de entrar olhei para trás e esse foi meu erro, a
fumaça começava a subir. Era um aviso para que eu não tentasse nada, vi
Aline e Tobias correndo pela rua e soltei um som choroso de alívio, pelo
menos eles estavam bem, agora só me restava obedecer para que meu pai não
pagasse, entrei sentindo um medo enorme de encontrar os sádicos ali, mas
quem eu vi foi Celeste desacordada no banco da frente.
Mal tive tempo de refletir porque era ali e não meu pai, a carruagem se
moveu com um tranco e amparei seu corpo para que não batesse no assoalho
do carro. Dessa vez eu sabia que não era algo impensado como fizeram a
primeira vez no templo, dessa vez eles já estavam de posse de três pessoas
leais ao rei e Tiago seria o próximo, usaram meu pai para me fazer ir até eles
e com Celeste ali desacordada indicava que iriam fazer o mesmo para atrai-
lo.
Senti um arrepio ao olhar para o rosto dela. Não consegui imaginar os
gritos quando eles fizessem com ela o mesmo que fizeram com meu pai. Ou
os meus gritos quando um pedaço de minha pele fosse tirado para ser enviado
a Tiago.
Eu começava a perder as esperanças de que tudo ia ficar bem, os
poucos dias de paz que nos deram foi como um mimo para nos fazer respirar
a sensação de paz, ou foi o tempo que precisaram para bolar um plano melhor
para mostrar ao rei finalmente que eram eles que verdadeiramente mandava
no reino humano.
Marcos

O ar parecia denso nessa manhã. Por causa dos ataques, eu tinha


adquirido o hábito de acordar muito cedo e andar pelas vielas da vila nova da
procriação, como um cão cuidando da propriedade eu rondava a área
buscando garantir que a ira dos ricos não chegasse a prisão. Um incêndio ali e
não conseguiríamos nos levantar novamente.
Geralmente havia movimentação, garotos levando os recados e
trazendo outros, mas hoje tudo estava quieto. Exageradamente silencioso, era
como se de repente os confabuladores tivessem sumido, ou como se a
necessidade de trocar informações tivesse acabado.
Sondei a estrada com uma preocupação esquisita. Quieto demais.
Alguma coisa estava acontecendo e não era coisa boa. Me senti estranho,
curioso com o que poderia ser que calou completamente a vila.
Segui para o portão da prisão, afinal não era da minha conta. Eu tinha
pessoas demais sobre a minha responsabilidade.
Porém como tudo estava tão quieto, o barulho de cascos ainda ao
longe me fez virar. Deixei um sorriso escapar ao ver a carruagem ser
aproximando velozmente.
Só podia ser aquela doida da Amélia que mesmo com tantos perigos
rondando o reino, arrumou um jeito de aparecer. Típico dela fazer isso.
Meu sorriso vacilou quando a carruagem parou e Aline desceu com o
semblante amedrontado. Assim que me viu correu desvairada em minha
direção e tive certeza de algo aconteceu e era grave.
Seus olhos estavam arregalados e na mão trazia uma caixa de madeira que me
entregou.
— Seja rápido Marcos, por favor.
Não fiz perguntas, a urgência na voz dela, mostrava que estava de
verdade assustada, e não era pouca coisa que assustaria essa menina.
Abri a caixa e prendi o ar. Um envelope todo marcado de sangue.
O peguei e arfei ao ver que embaixo dele estava um pedaço de pele
todo macerado pela feia cicatriz. Era grande o suficiente para me encher de
pavor. André... Eu reconheceria aquilo em qualquer lugar.
Aline me tirou do estupor me tirando a caixa das mãos e fechando com
um baque seco, logo me olhou em completo desespero.
Completamente desperto abri o bilhete e li o primeiro. Estava
destinado a Amélia.
Li sentindo a fúria me queimar por ver a crueldade da ameaça,
Tremendo e tomado pela pressa abri o outro, esse era de Amélia para
mim.

Marcos, meu pai foi capturado, tenho que ir até ele senão eles irão
mata-lo. Mandei um bilhete a Tiago, mas temo que haja traidores entre os
soldados.
Não sei o que fazer, só pensei em te avisar do ocorrido para que
garanta que a notícia chegue ao rei.
Amélia.

Trinquei os dentes, essa atitude porca dos nobres me deixou cego.


Malditos nobres! Já não bastava tudo o que fizeram para nós? Todas as vidas,
todas as tentativas de progresso sendo esmagados somente porque eles não
queriam aceitar as novas leis? Até agora ficamos na defensiva, mas eles
tinham passado de qualquer limite. Amélia não sabia o que fazer, mas eu sim.
— Aline, reúna as crianças, traga todos para a vila dos Renegados.
Mande que eles avisem a todos os que estão longe, que eles façam chegar o
recado que chegou a hora de agir.
Ela assentiu e correu com a caixa ainda na mão. Também corri para a
prisão. Assim que entrei pelo portão levei os dedos à boca e assobiei várias
vezes enquanto corria.
Não demorou para que o meu chamado fosse ouvido e logo eu tinha a
atenção de todos que começaram a aglomerar a minha volta.
Falei alto para que ninguém ficasse sem me ouvir.
— Amélia, André e o rei estão sendo vítimas da crueldade dos nobres.
Eles querem tomar o reino para fazer voltar o regime de Júlio, não podemos
permitir, me recuso a voltar a escravidão. Preciso de homens para lutar por
nossa liberdade e a liberdade daqueles que tentaram fazer algo por nós.
Mulheres e crianças menores de sete anos ficarão aqui. Os outros que
quiserem me acompanhar...
Uma das mulheres que era do harém levou a mão à cintura.
— Porque não podemos ir?
— É mesmo! Porque não? — Perguntou outra.
Essa reação foi inesperada. Elas não pareciam se importar com nada
além delas mesmas, e, no entanto...
— Não achei que se arriscariam.
— Amélia lutou por nós Marcos. Matou um dos nobres para salvar
Clara, quase perdeu a vida no templo por nós. Eu vou. — Disse Rívia. Uma
mulher que já foi muito bonita e que agora ostentava uma magreza absurda e
estava completamente suja. Ela foi concubina do rei, acostumada a luxos e no
fim foi deixada na rua pela família, sem nada mais do que a roupa do corpo
quando as leis mudaram.
— Eu também. — Falou outra.
A comoção começou com muitos que eu sequer imaginei que
deixariam a comiseração de lado para pensar em alguém além de si, e foram
estes os primeiros a se oferecer para lutar. Até mesmo alguns idosos e
doentes se prontificaram a lutar. Eles queriam se vingar dos nobres. Eu
também queria, esperava por isso há muito tempo e agora o momento tinha
chegado.
— Então que seja. Aquele que quiser lutar, seja quem for e que tenha
certeza que tem forças nos braços para isso, vão para o portão e esperem. —
Olhei para os rapazes mais jovens. — Há carroças na Vila, algumas
carruagens e cavalos também. Roubem tudo. Se alguém reclamar digam que
precisamos dos transportes para chegar a Vila dos Nobres mais rapidamente.
Um garoto esfregou as mãos mostrando a felicidade que sentia. —
Pode deixar chefe. E se perguntarem por que precisamos ir até lá?
Meu sorriso saiu gelado. — Diga a eles que iremos botar fogo no
bairro nobre e que eles podem vir conosco se quiserem.
Com gritos de euforia os rapazes correram para o portão. Outro ainda
mais afoito montou o cavalo que Amélia tinha deixado e partiu acelerado,
estava assanhado para começar a festa.
Olhei para Tomás. — Traga tudo o que seja inflamável meu bom
velho.
Olhei agora para a multidão sentindo uma calma absurda.
— Quem for, arrume algo para usar como arma. Quem ficar cuida das
crianças. Aquele que tiver saúde e força para lutar pela liberdade e não nos
acompanhar, não será mais bem vindo nessa comunidade. O momento de
lutar é agora, o momento da vingança é agora. Não somos escravos, não
mais! Somos libertos, mas não querem que os nossos conquistem progresso,
querem nos encerrar na miséria, por isso os poucos que lutaram para nos
ajudar de alguma forma, estão agora sofrendo a ira dos nobres e chegou o
momento desses nobres sofrerem a ira dos Renegados.
O brado que se ergueu foi poderoso e carregado de revolta. Todos
começaram a correr buscando as ferramentas largadas nos canteiros, outros
correram para as casas em construção, um grupo já aguardava no portão.
Corri para a casa de Amélia e peguei a espada que meu pai usou na
batalha sombria. André me entregou quando me deu a notícia de sua morte e
hoje eu iria usá-la e talvez assim como ele eu não sobrevivesse a minha
primeira batalha. Mas ninguém podia tirar o orgulho que eu sentia. Meu pai
lutou como um homem livre e agora era a minha vez de fazer o mesmo.
Quase todos já aguardavam no portão, a vila ficou quase vazia. Os
idosos e as crianças corriam de mãos dadas. Ironicamente não dava para
saber quem conduzia quem, se eram os idosos levando as crianças ou se eram
elas levando os idosos para se proteger na mata.
Não demorou nada para nos organizarmos. Essa era a vantagem de
não ter nada. Era somente levantar e lutar.
Amélia e Celeste

Eu e Celeste... Não entendi porque ela, nós duas estávamos confinadas


em um cômodo apertado, estávamos lado a lado, de joelhos com as mãos
amarradas atrás das costas.
Meu medo era imenso, a cada fala mais alta eu pulava no lugar.
Celeste por outro lado mantinha os dentes trincados e olhava o nada, na
verdade não parecia reagir a nada. Porém seu olhar estava feroz.
Quando os homens se distanciaram, perguntei baixinho quase sem me
mover.
— Porque pegaram você Celeste?
Ela não virou o rosto para mim, ficou assim como eu completamente
imóvel e sussurrou uma resposta.
— Por causa do seu recado eu vim para ter uma conversa com minha
mãe, eu estava sentada no banco do jardim esperando ela para conversar e os
vi se aproximarem, então não me mexi, esperei para ver o que fariam e me
pegaram.
— Porque não pediu ajuda?
Senti no ar o ódio de Celeste. — Porque eu sabia que pensavam que
eu era Celina. Somos parecidas. Eles queriam raptá-la para castigar Tiago.
Mas graças aos antigos foi a mim que eles pegaram.
Prendi a respiração ao ver tanta frieza na voz de Celeste. Ela sussurrou
novamente.
— Não se assuste, o que podiam fazer comigo já fizeram. Nada do que
tentem hoje será novidade para mim.
Senti os dedos dela roçarem os meus disfarçadamente. — Você que é
o trunfo deles, se forem fazer algo, começarão comigo, acredito que eles
tencionam torturar você na presença de Tiago.
Eu imaginava isso, por isso não consegui ficar mais assustada do que
já estava, porém ela não merecia sofrer mais.
— Não quero que se machuque Celeste, já sofreu tanto.
Celeste não respondeu, mas manteve os dedos encostados nos meus,
mexia suavemente de encontro a minha pele como se tentasse com isso, me
confortar. Senti por ela ternura, o sofrimento que passou endureceu seu
coração, mas não sua alma. Ela não merecia ter passado por tanto e agora
ainda tentava agir como Celina somente para protegê-la.
Eu tinha que fazer algo, pelo menos tentar fazer alguma coisa. Inclinei
o corpo na direção de Celeste e devagar comecei a mexer na corda que
prendia seus pulsos.
Celeste ficou imóvel, seu corpo tenso mostrava que ela estava pronta
para atacar se fosse necessário e lembrei sobre Diana contar que ela estava
sendo treinada por Priana e Nicolae, ainda assim fiquei receosa, nunca tinha
visto um sombrio lutando, menos ainda um mestiço então não consegui
imaginar Celeste em uma luta.
Os homens falavam alto, e pareciam comemorar, nem olhavam para a
jaula em que nos mantinham presas. Desprezavam tanto as mulheres que
sequer cogitavam a possibilidade de estarmos fazendo algo para tentar fugir.
Quando consegui desatar os dois nós voltei ao lugar frustrada ao
perceber que os homens estavam agitados olhando os relógios.
Então era assim, tinha uma hora marcada para o que pretendiam, isso
queria dizer que eles não estavam somente esperando Tiago aparecer, eles
tinham mais coisa em mente e rezei para que o rei descobrisse tudo antes de
ser pego na armadilha.
Celeste mexeu os braços de leve me tirando de minhas conjecturas e
apertei os lábios para não festejar por ter conseguido soltá-la.
Mas depois fiquei preocupada, somente isso não seria muito útil, eu
precisava ajudá-la a fugir caso uma oportunidade aparecesse, não era um tipo
idiota de altruísmo, era porque ela, mesmo com a mistura que a tornou meio
sombria, ainda ostentava algumas cicatrizes de chicote, e ver isso me deixava
como que em dívida, Clara tinha perdido a vida de tanto apanhar para me
proteger e eu não suportaria carregar mais uma morte nas costas.
Pela morte de Pedro eu não sentia tanta angustia, porém a morte de
Clara me fazia ter pesadelos e minha integridade psicológica não suportaria
ver outra pessoa conhecida morrer, por isso eu preferia comprometer a minha
integridade física em vez de permitir que mais alguém o fizesse por mim.
Logo a porta abriu e um homem extremamente bonito e estranhamente
familiar entrou na sala. Sua pele escura combinava com a camisa branca de
seda. Seu rosto forte ostentava uma barba aparada e esmeradamente
desenhada. Os olhos foram diretamente para Celeste e vi que ele pareceu
surpreso, suas narinas dilataram e seus olhos cinza ficaram ferozes.
Não me contive e olhei para ela e estranhei sua postura, ela não mais
olhava o nada, parecia respirar com dificuldade, estava afetada e parecia tão
surpresa quanto ele, sua postura agora era de um animal pronto para o salto.
Se não fosse a grade eu tenho certeza que ela teria atacado, pelo menos ela
parecia em posição defensiva o suficiente para que eu imaginasse isso. Só
não consegui saber quem ela atacaria, se o homem que acabara de chegar ou
os outros que já estavam ali.
Vendo a reação dos dois que não desviavam o olhar um do outro eu
senti medo, aquele homem sabia que ela não era Celina e isso se comprovou
quando ele se aproximou e abaixou na direção do rosto dela e falou em um
tom que mostrava um estranho alívio e júbilo.
— Pela mãe terra, era por isso que eu estava tão confuso quanto ao
cheiro que sentia naquele quarto. Não era interesse na companheira dele, era
você o tempo todo.
— O que quer aí Cristian?
Cristian? Esse era o nome do homem, mas se ele fazia parte de tudo
isso porque então parecia tão encantado ao ver Celeste? E porque parecia
reconhecê-la de algum modo?
Ele não respondeu, continuou abaixado com os olhos presos nos de
Celeste.
O homem praguejou a se ver ignorado e segurou a camisa alva dele
dando um puxão nada amistoso. — Não me ouviu? Não se intrometa com
elas, essas duas são nossa isca.
Se eu estava com medo antes, agora paralisei com o sorriso gelado que
o tal Cristian dedicou ao homem.
— Você não vai tocar nela.
Celeste ainda mantinha a postura de um animal pronto para atacar, eu
mantinha a postura da donzela histérica desesperada pela imagem do salvador
irrompendo pela porta e Cristian não levantou do lugar e não tirou os olhos
de Celeste.
Porém sua atitude irritou os homens que se aproximaram e começaram
a resmungar que ele já tinha muitas mulheres nos prostíbulos e não tinha
porque cobiçar nós duas.
Sem se importar para os resmungos cada vez mais inflamados o tal
Cristian abriu a cela e estendeu a mão para Celeste que aceitou prontamente e
isso fez explodir a ira dos homens. Porém quando um deles avançou ele
colocou Celeste atrás dele e ficou na frente da porta da sela, falou em tom de
ameaça com um monte de rosnados no meio.
— Minha...
Meu medo deu lugar a surpresa. Ele era um lobo! Cristian... A
lembrança do uivo de todos os lobos em homenagem a morte de um alfa na
batalha sombria me voltou a mente. Então era isso, a morte do alfa Cristian
foi forjada de alguma maneira. Eu não conhecia o costume dos lobos, mas
poderia jurar que tudo era para a proteção de Celina.
A situação ficou ainda mais perigosa quando os homens cercaram os
dois. Celeste se manteve atrás de Cristian sem nada dizer, porém esticou a
mão para mim e eu segurei, ela me puxou para perto e falou baixo.
— Vamos sair, você fica aqui.
Antes que eu a respondesse, ela me empurrou e fechou a cela
novamente, eu fiquei gritando do lado de dentro completamente segura pelas
grades e sem nenhuma chance de fazer alguma coisa.
Cristian se transformou em um imenso lobo acinzentado e pulou nos
homens que avançaram em Celeste.
Ela não temeu e com um grito que mais parecia um silvado de ameaça,
ela atacou usando como única arma a força de seus braços que não eram
fracos já que ela quebrou o pescoço de um homem com um golpe seco.
Um dos homens se desesperou e correu para a porta azul, mas Celeste
foi mais rápida, o ultrapassou e se encostou a madeira. Com um sorriso
diabólico nos lábios e o olhar sedento de ira ela virou a mão atrás de si e eu
soube, ela trancou a porta, ninguém entraria para nos salvar, tampouco os que
estavam dentro da casa seriam salvos.
Eu tinha acabado de descobrir que Celeste guardava uma ira insana
pelo sofrimento que passou na mão desses homens e posso apostar que
muitos deles ela conhecia o rosto.
Por fim meus gritos cessaram e tudo o que fiz foi torcer para que ela
conseguisse abater o maior número de homens possível, era direito dela se
vingar de quem causou a ela e a Celina tantas dores.
Realmente eu tinha um lado muito cruel, e cada vez mais eu estava me
acostumando a ele.
Desencontro

As batidas na porta eram insistentes, meu valete que deveria ser o


primeiro a atender, porém a insistência e cadência das batidas me sugeria
algo urgente.
Ultimamente eu tinha tantos sobre minha responsabilidade que senti
um frio na espinha. O que será que aconteceu e o pior… Com quem dessa
vez?
Levantei apressado e abri a porta. Um guarda me olhava assustado, a
insígnia em seu ombro denunciava sua função. Guarda particular de André...
Merda.
— O que aconteceu homem?
— A levaram senhor?
Meu coração titubeou na hora de bater e quando o fez foi em ritmo tão
acelerado que para não cair, segurei a madeira da porta com força. —
Amélia?
Ele assentiu e não perdi tempo, voltei ao quarto e peguei a primeira
calça que vi. Voltei a porta apressado enquanto me vestia. — Me conte tudo e
vamos encontrar André.
Ele me contou tudo no caminho, a casa na vila dos Forasteiros estava
em chamas, Amélia tinha sido vista entrando em uma carruagem momentos
antes de a casa pegar fogo, antes de conseguirem alcançar o castelo eles
enfrentaram um grupo da casta neutra, e André não estava em parte alguma.
Não tive nem tempo de me inteirar sobre as buscas, um garoto tentou
se aproximar e foi barrado pelos guardas, a mão fechada e o olhar
diretamente para mim me deixou desconfiado de que ele tinha algo
importante a dizer, com um aceno meu o guarda liberou sua aproximação.
Sem dizer nada ele me entregou um bilhete, e nele continua apenas
três frases.

A sua noiva pedinte está conosco e sua irmã senil.


Rua do Comércio, porta azul número 23 A
Venha sozinho ou nunca mais as verá.

Assenti para o guarda e pedi um cavalo, minha mente maquinava todo


tipo de ideia para sair dessa situação. Não tinha muito que fazer e depois de
conferir se Celi estava no quarto mandei homens cuidar da segurança dela e
minha mãe.
Não podia ser Celeste, ela estava segura no reino sombrio então essa
parte era um blefe, mas duvidei que o resto fosse mentira. André não estava
entre as chamas o que era uma boa notícia, Amélia estava com eles, porém
eles não fariam nada a ela, pois eles já sabiam que eu só obedeceria qualquer
exigência caso a vida dela fosse assegurada, ainda assim o medo roía as
paredes do meu estômago de uma maneira doentia, se fizessem qualquer
coisa ela ou André eu ia me vingar.
No fim da Alameda eu não pude avançar, fui barrado por Nicolae e
Priana. Falei com a voz apressada para que compreendessem que eu tinha
pressa.
— Eles levaram Amélia, tenho que ir.
— E André também foi capturado. — Priana falou com os olhos
vermelho carmim.
— Celeste também. — Nicolae acrescentou.
Que merda... Isso era inesperado, eu estava crente que Celeste estava
bem, mas então se os dois tinham sumido era suposto que estivessem juntos,
e essa nova informação complicava as coisas, desci do cavalo e passei as
mãos pelo cabelo sem saber como reagir a tanta coisa ruim acontecendo. O
desespero começava a me alcançar, não teria como salvar a todos e eu não
podia perder nenhum deles.
Nicolae segurou meu ombro. — Não se deixe abalar, se apresse para
buscar Amélia e minha filha. Eu e Priana vamos até André, sabemos onde ele
está.
— Mas como já sabem se meus homens...
Nicolae negou. — Não temos tempo, vá irmão, cuidaremos de André.
Assenti sentindo um medo terrível, mesmo os sombrios tendo mais
capacidade que eu, ainda assim eu queria estar junto para trazer André de
volta, mas agora eu tinha que confiar.
— Não deixem que ele morra, ele é meu pai.
Nicolae assentiu e Priana também. Logo montei o cavalo e incitei um
galope severo. Não conseguia evitar o medo trincando meus ossos. Não podia
perder Amélia, não podia perder Celeste, nem André. Se eles fizessem mal a
eles eu não sossegaria até enforcar um a um.
Foquei em meu caminho, os outros agora dependiam de mim,
maldição tinha que haver um meio de parar essa loucura no reino, tinha que
haver um jeito, e havia...
Violência...
Minha mente estava em branco, não havia nada em meus pensamentos
a não ser a obsessão de chegar rápido e gritei aos meus homens para
acelerarem, eles ficariam longe da rua do mercado, porém perto o suficiente
para agir se eu conseguisse encontrar um meio de tirar Amélia e Celeste de
lá.
Quando nos aproximamos da rua do mercado fui cercado e isso foi
uma verdadeira surpresa. Imaginei que eles me queriam lá dentro para me
castigar e me ostentar ao povo completamente flagelado e lanhado de chicote,
porque esse era o costume, mas os subestimei, eles claramente me queriam
morto, não importando como isso fosse feito.
Mercenários e soldados traidores nos esperavam bloqueando a
passagem, pulei do cavalo e me reparei para a esquiva. Todos traidores, todos
uns malditos vendidos. Realmente eles tinham feito um trabalho esmerado
para tentar me abater.
Um homem imenso segurando uma espada larga foi o primeiro a
investir. Amparei o golpe com minha espada e o chutei para que se afastasse,
não podia abaixar a guarda estando preso em uma luta com um brutamontes.
Os poucos soldados que estavam comigo tentavam a todo custo evitar
que me atacassem em grupo ainda assim um homem menor e mais ágil furou
o bloqueio e chegou rápido, seu punhal embora curto trabalhou ligeiro em
minha direção e foi difícil conseguir esquivar, mas uma coisa nenhum desses
malditos sabia sobre mim, sem ter o que fazer para fugir do martírio imposto
por meu pai quando criança, eu me dediquei ao treino e me tornei um exímio
espadachim.
Sempre fui um covarde que morria de medo de morrer em uma
batalha, ainda assim meus méritos com a espada não podiam ser negados, por
isso com todo rancor, toda pressa e nenhum arrependimento deslizei a espada
abrindo o tórax do homem e subi até o queixo. Por sorte a ponta da espada
fez um fundo corte vertical em sua garganta e com os olhos arregalados e as
mãos pressionando o pescoço e ele deu passos para trás, caiu de costas e
ficou agonizando.
Os outros se afastaram quando viram que eu não seria pego assim tão
fácil quanto imaginaram.
O rei louco e inconsequente oferecia um perigo que fazia jus a sua
fama e isso me rendeu alguns metros de espaço, entretanto meus homens não
estavam dando conta de tantos inimigos e com um grito de coragem
adquirida com bom pagamento o homem grande bramiu a espada novamente
e deu um passo.
Flexionei as pernas para conseguir um bom golpe que foi parado no ar
quando um imenso lobo amarelo o derrubou e o homem caiu já morto com a
garganta rasgada completamente pela criatura.
Os homens correram para longe e do nada Laican surgiu
completamente nu e me olhando com sede de sangue.
— Vim por Celina, não irei lhe ajudar em sua causa, mas lhe desejo
sorte, rei humano. Irei protegê-la para que sua mente foque no problema
eminente.
Assenti sentindo sincero alivio por saber que pelo menos Celi estaria
segura. Ele me olhou com os olhos amarelos chamuscando de ira.
— Mas os lobos não deixam um amigo na mão. Logo se verá livre de
uma boa quantia dessa corja.
Não entendi, mas não tive tempo nem de pensar, assim que Laican se
afastou correndo vertiginosamente na direção do castelo como um enorme
lobo, os homens, todos juntos agora vieram correndo em minha direção.
Segurei o cabo da espada com mais força e esperei, pronto para levar
comigo quantos minha lâmina conseguisse lamber, só que eu não estava
sozinho como pensei. Daniel e mais uma multidão chegou aos gritos
brandindo tanto machados, enxadas e pedaços de madeira quanto pedras e
facas improvisadas.
Jena também apareceu vinda de outra rua. E através de gritos trocados
em meio a luta eles me atualizaram dos acontecimentos e dos recados que
Amélia enviou antes de obedecer às exigências.
Jena e o grupo de Daniel estavam sujos de sangue e isso me mostrava
que havia mais inimigos a caminho, mas agora eu não podia pensar nesses
que viriam, precisava eliminar os que estavam reunidos. Duas castas e os
mercenários da casta neutra contra um rei, uma loba alfa e uma milícia
miserável e maravilhosamente fiel ao rei.
Orei aos céus que as vidas inocente não se perdessem, e que Celeste e
Amélia estivessem vivas e ainda que André não me abandonasse deixando a
morte o levar me deixando como lembrança dele apenas uma tira imensa de
pele para trás.
Com um brado de angústia corri na direção dos traidores, com a única
intensão de acabar com quantos eu pudesse, antes que eles atingissem os
inocentes, meu povo, meus filhos... Porque nesse momento foi assim que me
senti, como um pai com muitos filhos para proteger.
A luta não durou tanto quanto imaginei, a milícia estava sedenta de
sangue e o pequeno grupo inicial tinha evadido correndo em busca das vielas
eu tinha certeza que eles correram se juntar aos outros para voltarem como
uma massa de coragem em marcha.
Daniel correu ao meu encontro e me olhou com determinação. —
Pode seguir rei, cuidaremos desses que virão. — Ele olhou para Jena. —
Com a ajuda dela não vamos perder.
Ouvi a voz alta e familiar. — Não precisa buscar Amélia, ela está
aqui.
Celeste estava toda ensanguentada, ao lado dela um homem se postava
protetoramente minando com seu olhar gelado a coragem de qualquer
mercenário que tivesse escondido de investir sobre eles.
Não a abracei minha irmã, mesmo que quisesse eu tinha respeitar, pois
desde que se tornou uma meia sombria, ela não aceitava nenhum tipo de
contato familiar, mesmo que ainda mostrasse amor nos olhos todas as vezes
que me via, mas eu precisava desesperadamente abraçar alguém e procurei
com os olhos por todo lado, vi o cabelo loiro atrás do homem e corri. Puxei
sofregamente Amélia para perto, meu coração batia descompassado como se
só nesse momento eu me desse conta do perigo que ela tinha corrido, ela
parecia em estado de choque. Olhei preocupado para o sangue em Celeste e
ela balançou a cabeça.
— Não é meu.
Eu tinha muitas perguntas, mas nenhuma delas parecia urgente, porém
baseado na quantidade de sangue nela e no homem nu sem nenhuma
vergonha ao lado dela, eu tive certeza que se eu fosse agora mesmo para o
endereço que me foi dado, veria uma carnificina.
Amélia procurou com o olhar e quando não encontrou André seus
olhos se encheram de água. A confortei usando a minha própria esperança de
que Nicolae e Priana chegariam a tempo. — Os sombrios foram resgatá-lo,
meu amor, logo nós teremos notícia.
Com uma confiança cega nos sombrios ela assentiu. Eu queria dizer
muitas coisas, mas o barulho de muitos pés se aproximando me tirou o
momento do curto alívio e devolvi Amélia para perto de Celeste.
— Precisamos terminar aqui. — Gritei para a massa aliada que
aguardava a chegada dos traidores. — Eles me queriam morto no meio da
rua, e não vou admitir que mais pessoas venham a sofrer. Não por minha
causa. Deixem tudo com os soldados.
— Vamos lutar! — Ouvi o coro de vozes em resposta e apontei para a
multidão. — Vocês nem tem armas, isso vai ser uma massacre!
Logo mais gritos se fizeram ouvir ao longe vi Marcos e uma multidão
saindo de dentro de carruagens, carroças e alguns cavalos também corriam
em nossa direção trazendo três pessoas de uma vez. Ainda mais ao longe,
homens vinham a pé segurando no ar inúmeros objetos, estavam armados
com ferramentas, pedras, paus e utensílios domésticos para enfrentar os
mesmo inimigos que eu.
Marcos correu em nossa direção, passou por mim e puxou Amélia
para um abraço, ela se deixou abraçar ainda com olhar perdido, logo me
olhou com uma fúria mais pungente que o garoto Daniel.
— André ainda está nas mãos deles, majestade, não precisa ficar aqui,
já têm miseráveis de sobra para acabar com esses malditos, vá resgatar
André. Só temos um pedido a fazer.
Mesmo que tudo estivesse uma loucura de gritos e combates já
acontecendo ao longe, não consegui segurar meu ciúme e tirei Amélia dos
braços dele enquanto falava. — Pode pedir Marcos.
— Nos dê liberdade para fazer justiça com as próprias mãos em todos
os remanescentes das duas castas mais altas. Que sejamos nós os que
sofreram nas mãos deles que tenhamos o direito de fazer pesar a mão da
justiça.
Assenti sem questionar e pouco me importando com o que eles fariam
a esses. Eu já estava farto dessas castas nobres e se para conseguir a paz fosse
preciso isso então eu o faria, porém não podia permitir que eles tirassem
vidas deliberadamente, isso seria permitir que fossem tão cruéis quanto eles.
— Não admito chacinas. As famílias não merecem pagar por um
bando de homens corruptos. Mas se caçar cada um deles e os mantiver presos
até que eu possa fazer um julgamento justo, então os deixo na mão de vocês.
Uma parte do povo vaiou enquanto outra pedia calma. Porém com o
grito de Daniel e Marcos todos se calaram e Marcos se virou para mim.
— Não somos iguais a eles, não vamos matar ninguém, em contra
partida também não vamos poupar ninguém.
Com essa promessa esquisita, nós corremos deixando uma batalha que
tomou a rua, calçada e quintais das casas. Quando finalmente consegui ajudar
Amélia a montar e montei em seguida ela pareceu acordar de um torpor e me
olhou com os olhos vermelhos pelo choro recente.
— Sua mãe, ela... De alguma forma ela tem parte nisso.
— Como assim? — Meus olhos já ardiam mesmo antes de ouvir uma
explicação, pois não desacreditei de Amélia, era grave demais para que ela
brincasse com uma coisa dessas, porém meu lado de filho exigia que a
pergunta fosse feita.
Sem dizer nada ela tirou do decote um bilhete e me estendeu, só então
ela falou.
— Só entendi depois. Aí fala do pouco tempo, e a única pessoa que
tem um prazo vencendo é sua mãe.
Não precisava explanação quanto à descoberta. Reconheci a letra e as
palavras escritas no bilhete fizeram mais sentido do que Amélia poderia
supor.
Celina estava sendo mantida dopada para parecer que não tinha se
recuperado, por isso ela dava mostras de estar bem em alguns dias e noutros
parecia desesperada com seus resmungos e choros. Ela estava pedindo ajuda
e eu com meu amor cego pela mulher que me trouxe a vida não liguei os
pontos, não percebi o que estava sendo esfregado no meu nariz, a
recuperação de Celina e seu sofrimento.
Só que esse bilhete era para alguém, então devia estar relacionado aos
sumiços e mortes, não tinha outra explicação e como um cego que recebe a
cura eu soube. Somente um homem trocaria remédios por pessoas. O monge,
somente ele teria interesse em fetos e mulheres.
O cavalo e os lobos corriam como loucos, porém eu sequer tinha
noção de onde estávamos. Minha decepção e dúvidas destilavam um líquido
corrosivo em meu coração, me deixando em estado de completo torpor.
Minha mãe... Ela não seria capaz de fazer uma coisa dessas, de trocar
mulheres para serem usadas como experimento por remédios para mexer com
a mente, seria? Não... Talvez isso fosse somente um dia ruim, eu não podia
ser tão desgraçado assim.
Vingança tardia

Eu sentia o cheiro de seu sangue e lutei para acalmar a ira que


dominava a minha caçadora. Meu bastão que me acompanhava desde a
batalha sombria estava firme em minha mão, estava indo comigo resgatar
meu companheiro, meu segundo príncipe também estava ao meu lado.
Ele me pediu calma quando viu meu estado, ele sabia o motivo de
minha reação, com certeza tendo o dom do caçador já tinha captado o cheiro
do sangue de André muito antes que eu, porém ele mantinha um foco
absurdo, já sabíamos que o local era um esconderijo abaixo da igreja dos
homens.
Foi Nicolae que descobriu quando passou uma noite investigando no
dia do primeiro baile, porém ele não pôde avisar André, não era o momento
ainda, o local estava cheio de híbridos que andavam pelo labirinto do esgoto
fazendo um tipo de segurança para o monge.
Eles o obedeciam como se ele fosse um tipo de pai adotivo, o que
justificava já que muitos deles eu vi crescer em celas ao meu lado no tempo
que fiquei prisioneira do rei. A cada vez que me arrastavam do calabouço
para as masmorras eu via as criaturas famintas e sendo domadas aos poucos.
Na época eu estava envolta em um luto infinito depois de ver minha
irmã e o pequeno sombrio que nasceu na pútrida cela do calabouço serem
usados para os experimentos, vi o pequeno bebê que era meu sobrinho ser
drenado, sua pequena arcada dentária foi tirada e estudada. Seu crânio
catalogado e seu coração ser revirado com curiosidade, foi tratado como
tesouro sendo único bebê sombrio já visto por humanos, ele foi estudado
enquanto vivo e depois estudado morto, parte a parte como se com isso
pudessem desvendar os mistérios que envolvem nossa raça.
Minha irmã depois disso não mais gritava, mesmo quando era
submetida a torturas, mesmo quando era abusada por feras com o cio
potencializado por remédios ela não mais gritava, sua vida se foi com a vida
do seu filho.
Amarguei esse ódio do monge, porém não liguei os fatos, não até
Nicolae encontrar o primeiro híbrido. Eu sabia que André ficaria em perigo
se continuasse sua investigação, mas não podia impedi-lo por isso passei os
dias ajudando o segundo a eliminar cada híbrido.
Achamos que teríamos tempo de terminar com eles para poder avisar
André, nossa intenção era chegar à câmara e destruir tudo antes que ele
encontrasse mais pistas, porém não tivemos tempo para tal, o cheiro que o
senhor Nicolae sentiu na noite anterior o alertou que André já estava em
posse do monge e agradeço a ele pela consideração em me avisar e me
permitir acompanha-lo.
— Espere. — Ele falou baixo, mas foi o suficiente para que eu o
obedecesse.
Nicolae puxou o ar em várias direções, havia três túneis e tudo o que
nos guiava era o cheiro de meu companheiro, logo ele apontou o túnel da
direita e assenti o seguindo.
As vozes à frente nos vieram abafadas, eram duas vozes uma
conhecida e uma estranha. Quando nos aproximamos com cautela eu
reconheci a segunda voz, eu já tinha ouvido seguidas vezes quando o seguia
antes de André pedir para parar de fazê-lo para não assustar o mandante, era a
voz do odioso Dante e uma fúria assassina me nublou. Ele tinha
encomendado a morte de Amélia, tinha encomendado a morte de André e
agora estava ali ao lado do monge enquanto meu companheiro devia estar
largado em um canto sujo sem forças para se defender.
— Se acalme.
Sim, eu precisava de calma, não podia me deixar levar ou colocaria
tudo a perder, os híbridos não tinham cheiro, e sem cautela não poderíamos
prever um ataque sorrateiro. Matamos todos que encontramos, porém a
câmara só foi encontrada pelo rastro do aroma de André então o que estivesse
lá dentro não era de nosso conhecimento.
Evitando pisar no centro do túnel para não fazer atrito com o filete de
água que deslizava, nos aproximamos lentamente. Cada vez a conversa ficava
mais nítida, agucei meus sentidos, procurei a consciência de meu
companheiro para alertá-lo de nossa chegada e nada encontrei, senti o medo
de perdê-lo. André era o meu mundo, sem ele nada mais teria sentido para
mim e tudo o que me restaria seria pedir a misericórdia do supremo Rael,
pedir a ele que me pusesse a dormir para não sentir quando minha cabeça
fosse separada de meu corpo, quando minhas partes fossem queimadas até
que nada restasse senão cinzas.
Essa era uma opção covarde, contudo era melhor do que amargar a
solidão sem meu companheiro.
O dedo de Nicolae se moveu ligeiramente e eu segui onde ele apontou,
uma bifurcação de túnel me levaria exatamente para um lugar onde os dois
homens não notariam minha presença. Sem perguntar nada deslizei as costas
na parede seguindo aquela direção. Assim que alcancei o buraco, Nicolae se
mostrou chamando a atenção dos dois homens, era o tempo que eu precisava
para encontrar André.
A surpresa estampada nos rostos mostrou que eles não tinham ideia
que seus sentinelas monstruosos estavam mortos. Se dando conta do perigo
em que estava, com um grito de puro horror e muita covardia o humano
Dante se postou atrás do monge, porém a velocidade do segundo príncipe era
infinitamente maior e ele o socou com tamanha força que o corpo do homem
bateu na parede da câmara e ali ele ficou desacordado.
André apesar de ferido, despertou com o barulho e levantou o olhar e
minha direção, o alívio que vi em seus olhos aguçou todo o amor que eu não
conseguia verbalizar, eu não era boa com palavras só sabia transmitir com
gestos e foi isso o que fiz. Quando o desamarrei puxei seu rosto
ensanguentado e o beijei com ardor, com saudade e amor, meu corpo e minha
alma amava André mais que tudo.
O monge olhou para trás buscando o apoio de Dante e logo virou
abruptamente quando Nicolae puxou seu queixo de modo brusco e perguntou
com a voz baixa que mostrava que ele estava se controlando para não matar o
monge, se ele não tivesse prometido que daria a mim esse gosto de matá-lo,
com certeza meu príncipe segundo não hesitaria.
— Por quê?
A voz assoprada do monge mostrava o pavor que ele sentia. Ele
balançou a cabeça em defesa.
— Não fiz nada, foi ela que me procurou. Que fez chegar até mim um
recado através de Dante me dizendo que faria o que eu quisesse em troca de
um remédio que deixasse a pessoa debilitada mentalmente.
— Você fala de Celina. Isso justificaria o conteúdo do bilhete, porém
ela... Você se refere a rainha mãe.
A cabeça do monge mexeu rapidamente. — Sim.
André ameaçou levantar e eu ajudei. — Sente-se bem?
Ele assentiu. — Obrigado meu amor, ainda lhe agradecerei como se
deve, agora só quero saber mais sobre isso.
Nicolae se afastou minimamente deixando as perguntas para André
que não perdeu tempo.
— Você pediu em troca dessa droga, mulheres grávidas, não foi?
O monge se virou para nós e seu semblante mostrava medo, me
deleitei com isso, pois o medo dele era pouco diante do que eu faria a ele
quando não mais fosse útil.
— No início eu só queria mulheres, qualquer uma, mas quando uma
grávida foi trazida eu vi a vantagem de usar o feto para pesquisas.
Os olhos lunáticos do velho demonstraram a total paixão dele por suas
experiências, o medo deu lugar a excitação e ele apontou para vários tubos
com sangue e uma caixa de vidro com uma placenta boiando em líquidos.
— Ali está uma placenta que eu estava tentando fazer funcionar sem a
necessidade de um corpo, eu queria usá-la como filtro para o sangue das
sanguessugas que eu cultivei. Não serei tão tolo quando Samuel foi e por isso
eu precisava recriar a cultura usando as placentas como alimento das
sanguessugas, elas seriam como um filtro natural minimizando a mutação
sem perder os benefícios.
— Aquele chá de funcho...
Ele levantou os ombros. — Foi de propósito, sabíamos que você
descobriria mais cedo ou mais tarde, por isso tentamos primeiro despistar
deixando um corpo longe, quando vimos que você ia descobrir ao descer no
fosso, então eu deixei uma pista para apanhá-lo, você foi estúpido e precisou
de ajuda para chegar aqui.
Sibilei para o monge e André segurou mais firme a minha mão, me
pedia calma. Meu companheiro, como sempre, teve sangue frio para não se
deixar afetar e continuou a interrogação.
— Você estava novamente usando sombrios e Licans em suas
experiências?
O monge deu uma risadinha. — Não, os híbridos já tinham tudo o que
eu precisava.
— Não tem mais. — Nicolae falou calmamente. — Todos foram
mortos.
O grito de ódio do monge ecoou pelas paredes da câmara e viajou
pelos corredores. Nicolae aproveitou o momento e me fez um sinal sútil,
minha hora de me vingar tinha chegado.
Com toda a velocidade da minha caçadora eu me aproximei antes
mesmo que o grito morresse na garganta do monge e quando meu punho
fechado atravessou sua caixa torácica ele olhou para baixo como se só então
percebesse que algo estava errado.
Com a fúria dominando meus sentidos sorri enquanto puxava a mão
lentamente. O arfar dele me deu mais ânimo para prolongar sua tortura e
lentamente eu desloquei seu órgão, brinquei com ele ainda batendo, ainda
dentro do peito, o monge começou tremer, os olhos vidrados de dor e a boca
aberta enquanto dava puxadas de ar.
Não precisei dizer o motivo de minha ira, ele não precisava saber, os
meus que tiveram a vida ceifada por ele é que tinham esse direito, do outro
lado do véu com certeza eles sentiam a euforia do meu coração, o júbilo por
finalmente fazer o algoz que tirou suas vidas pagar por isso.
Quando minha mão saiu trazendo o frágil órgão humano que
sustentava toda a vida o monge caiu com um baque seco.
Minhas pernas falharam e caí de joelhos sem conseguir falar, só as
lágrimas corriam por minha face, cinquenta anos de clausura, vinte anos de
espera e finalmente eu me manteria no silêncio, porque só agora minha alma
estava em paz para passar pelo luto que já esperava trinta anos para
acontecer.
Amélia

De primeiro momento eu estava em choque, pelo que vi pelo que


estava acontecendo a Tiago, Celeste, meu pai e até a mim mesma.
Definitivamente os nobres tinham passado de todos os limites cabíveis.
Somente depois de liberar as lágrimas que estavam presas foi que eu
consegui me situar, ainda me sentia flutuar em cima do cavalo, ainda tentava
assimilar tudo o que estava acontecendo, minha mente vagava tentando
imaginar onde estava Aline e Tobias. Meu lado racional me garantia que
Marcos não os deixaria desprotegidos, ainda assim rezei para que eles
estivessem em um local seguro bem longe de qualquer foco de conflito, a
notícia de que nossa casa tinha sido consumida pelas chamas não me abalou,
eu já tinha visto a fumaça, porém o que me consumia e me sufocava era a
lembrança do cheiro de sangue daquele cômodo, das mortes e dos gritos.
O reino definitivamente tinha virado uma zona de guerra que estava
longe de findar. Mas finalmente eu estava vendo o povo levantar e se rebelar
contra um grupo tirano, ainda não sabia o que aconteceria a partir daqui, mas
era um prelúdio de mudanças. Eu meu íntimo eu sentia que as coisas não
seriam mais como antes. Mesmo que o grupo de Marcos e de Daniel, mesmo
que os miseráveis não conseguissem se impor perante a massa rica, o ato
deles não seria esquecido e os ricos começariam a pensar melhor antes de
tratá-los de modo tão desumano.
E minha esperança nisso era tanta que até o horror pelo que presenciei
ficava em segundo plano em minha mente e isso me deixava assustada, pois
eu torci para que Celeste tivesse sucesso, torci para que aqueles homens
morressem servindo de exemplo aos inimigos de Tiago, pois assim o reino
teria finalmente um pouco de paz, ou talvez fosse minha mente justificando
minha crueldade do momento.
Quanto mais nos aproximávamos do castelo, mais preocupada eu
ficava, tanto por Tiago e a provação que ele teria que passar ao confrontar a
mãe, e pelo meu pai que ainda não tinha dado notícias e meu coração só
sossegaria quando soubesse que ele estava bem.
— Vai ficar tudo bem Amélia. Eu prometo.
Tiago sussurrou perto da minha orelha. Eu estava sentada na frente na
cela, por isso ele não viu meus olhos marejados por ver sua preocupação com
meu bem estar, e mesmo que eu estivesse completamente perdida, eu não
podia ser insensível a sua tentativa de me confortar.
Passei a mão pelo seu braço que segurava firme a minha cintura e me
virei ligeiramente para poder ver seus olhos.
— Eu sei Tiago. Eu confio em você. Ficarei ao seu lado, não importa o
que aconteça.
Ele piscou surpreso e logo assentiu com o semblante mais
determinado, talvez fosse essa exatamente a resposta que ele estava
precisando para angariar forças, ainda assim a sombra da tristeza não deixou
seus olhos. Era realmente um dia onde meu amado rei estava amargando um
grande sofrimento e movida por todo amor que estava dentro de mim eu
prometi a mim mesma que faria o que pudesse para aliviar sua dor caso se
comprovasse o conteúdo do bilhete.
Quando finalmente chegamos, o aviso de que meu pai tinha sido
levado ao reino sombrio para ser cuidado chegou através de um sombrio que
nos esperava nos portões do castelo. Quando viu meu desespero ele me
garantiu que logo ele estaria de volta.
Isso tirou um peso do meu coração, ele estava bem e era o que
importava agora. Tiago mostrou alívio com a notícia, porém se manteve
silencioso, perdido em seus pensamentos e com o maxilar trincado como se
travasse uma luta interna.
O sombrio entregou um bilhete extenso para Tiago que ainda no
portão desceu do cavalo e me ajudou a descer, ali mesmo ele leu o conteúdo e
sem manifestar reação passou para Celeste que mostrou mais emoção do que
ele ao ler, me entregando em seguida com os olhos cheios de água.
Tiago tinha uma ferocidade no olhar, mostrando claramente o quanto
se sentia traído e o quanto de ódio ele estava sentindo, por vir da mãe dele a
traição tudo ficava ainda pior.
O lobo Cristian sem se importar com o teor do bilhete concentrou seus
esforços em confortar Celeste, que apesar de não ter permitido que ele a
tocasse por todo o caminho, se deixou abraçar por uma pequena parte do
jardim até alcançarem a porta, então novamente ela se afastou e ficou ao lado
de Tiago.
Li rapidamente o conteúdo enquanto tentava acompanhar o grupo que
estava destemido a chegar logo ao quarto de Celina.
Tudo se confirmava, o monge contou tudo, inclusive que foi ela que o
procurou e devia ser essa parte que magoou Tiago ainda mais. O problema é
que ainda tinha buracos nessa história que somente Dona Clara poderia
esclarecer, pois o monge tinha sido morto pelas mãos de Priana.
Não sei o que senti com a notícia, quando tirei a vida de Pedro me
senti um monstro, mesmo agora eu não sofrendo tanto por isso, ainda olhava
para minhas palmas às vezes e me vinha o pensamento de que essas mãos
ceifaram uma vida, de que por essas mãos escorreu o sangue de uma pessoa,
eu tinha mãos assassinas.
Quando subimos as escadas vi Tiago juntar as sobrancelhas para a
gritaria que estava no quarto de Celina, a preocupação tomou seu semblante e
ele correu e nós corremos logo atrás, ao chegar a porta ele a forçou e logo
estacou. Arfando pela corrida eu parei atrás dele e estiquei o pescoço para ter
um vislumbre do que estava acontecendo.
Levei à mão a boca para abafar o grito. Dona Clara segurava uma
enorme seringa metálica que estava perigosamente apontando para o pescoço
de Celina, a ponta fazendo um filete escorrer enquanto de sua boca sons de
conforto saiam para a filha que não parecia estar ciente do perigo que sua
mãe lhe oferecia.
— Não se aproxime! — Dona Clara gritou para um homem nu,
musculoso e de cabelos loiros encaracolados que estava com as palmas
levantadas á sua frente mostrando que não pretendia se mexer. Imaginei que
esse era o supremo dos Licans.
— Se você se aproximar, toda essa droga que eu estava dando a ela
diluído em chá, injetarei de uma vez. Ela não irá sobreviver, mas eu sei que
ela estará melhor estando morta do que viva e sofrendo em suas mãos. Você é
um selvagem, um lobo que precisa bater na companheira até que ela ceda.
Não posso permitir que minha filha passe por isso novamente!
— Mãe...
Tiago deu um passo para dentro e Dona Clara gritou em ameaça.
— Fique onde está Tiago. Você aceitou entregar sua irmã a esse lobo
por puro interesse na aliança das raças, você é pior que seu pai.
Eu sabia que ela não tinha esse sentimento por Tiago, ela falava em
um momento de raiva, mas ele se encolheu com aquelas acusações
descabidas, sem responder ele deu outro passo e falou com a voz falha. Ele
estava com medo do que estava vendo, eu também estava, jamais poderia
imaginar que Dona Clara pudesse chegar a tal extremo somente para evitar
que Celi ficasse com o supremo Alfa.
— Por favor, mãe, não faça isso.
Celina começou a se contorcer mal se importando ou nem percebendo
a ponta da agulha lhe ferindo a carne e Dona Clara com os olhos febris como
se enviasse uma ameaça muda, voltou sua atenção a Celina e logo se distraiu
em beijos na sua fronte e sussurros de que tudo ia ficar bem, de que ninguém
a faria sofrer novamente, porém Celina não parava se de debater enquanto
soltava sons ilegíveis e soluços. Ela estava chorando e mesmo que tentasse
falar alguma coisa, tudo o que saía eram gemidos sem sentido.
Tudo aconteceu rápido, a distração de Dona Clara foi o suficiente para
que Laican avançasse tão veloz que ela mal teve tempo de perceber que a
filha foi tirada de seus braços.
Tiago também correu, mas Celeste foi infinitamente mais ágil e logo a
alcançou tirando ela da beirada da mureta baixa da pequena varanda. Uma
queda ali e não haveria chances de Dona Clara sobreviver.
Com um olhar rancoroso Celeste a soltou e ela caiu no chão, seu corpo
tremia e ela repetia a palavra não o tempo todo, logo com um choro dolorido
ela pediu a Laican que lhe devolvesse sua filha. Que o tempo combinado não
tinha acabado.
Com os olhos faiscando como se fosse ouro derretido ele apertou
Celina em seus braços e afagou seus cabelos com uma suavidade que não
combinava com seu semblante feroz.
— Não tenho mais nada tratado com sua raça. Você quebrou sua
promessa, tem sorte de ser a mãe de minha companheira, senão eu comeria
seu coração agora mesmo, pois é assim que os selvagens como você se
referiu, vingam suas afrontas e eu sou um selvagem com mais honra do que
você com toda a sua civilidade humana.
Tiago ignorando as farpas do lobo, se aproximou e se ajoelhou em
frente a sua mãe.
— Porque fez isso? Porque se associou ao monge? Aliás, como o
encontrou?
Dona Clara passou do choro amargurado para uma risada debochada,
agora era claro que mentalmente ela não estava bem.
— Aquele maldito traidor me denunciou? Eu devia ter imaginado...
Tiago ficou surpreso com a reação, porém não se afastou. Era
necessário saber tudo, e agora ele precisaria colocar um reino acima da
família, pois enquanto todo o mal não fosse sanado, o povo não pararia de
sofrer.
Dona Clara respirou fundo. Ficou sentada no chão virando a seringa
nas mãos como se estivesse distraída. Tiago ameaçou tirar dela a seringa, mas
ela negou a mão e começou a falar.
— No dia que Celina começou a balbuciar palavras compreensíveis
em meio ao sono eu soube que ela estava melhorando e isso me deu um pavor
tão grande que não pensei nas consequências. Eu sabia que existia uma
passagem secreta que o monge usava para chegar ao castelo sem ser notado
pelos outros, porém não sabia exatamente onde era. No entanto os anos de
servidão do qual seu pai me submeteu me fez ver coisas que eu jamais pensei
que usaria um dia. Uma delas foi um alçapão no meio do canteiro de rosas
brancas. As flores em cima são naturais, tem uma camada de terra em cima
suportada por uma tábua em todos os lados. As flores encobrem bem o local,
porém existe uma argola que se puxar a abre.
O monge nunca foi encontrado, eu sempre desconfiei que ele devia
estar ali, porém com a preocupação com Celina ao descobrir logo no primeiro
dia dela de liberdade que ela era companheira de um lobo eu acabei omitindo
a informação, de primeiro momento cogitei usar aquela abertura para fugir
em último caso, porém um dia, eu vi um criado da cozinha saindo de lá, ele
tinha estado lá dentro e a lembrança do monge me veio.
Deixei Celina com os criados e o procurei pela cozinha, quando o vi o
chamei para um local privado e o confrontei sobre o lugar. O encurralei até
que me contasse, mas ele não abriu a boca, então eu o comprei, joguei um
blefe dizendo que sabia que ali era esconderijo do monge e que não era
minha intenção denunciá-lo e sim fazer uma troca.
Prometi que daria a ele o que precisasse se ele me preparasse algo que
mantivesse Celina no estado em que estava. A resposta que veio era que ele
precisava vê-la para saber o que fazer e só então ele saberia o que preparar e
só então me falaria o que queria em troca, não antes.
Tiago se afastou um pouco como se de repente a mãe dele tivesse
algum tipo de doença. A cara enojada dele mostrava o quanto estava
consternado.
— A senhora podia ter evitado muitas mortes se tivesse contado
antes…
Dona Clara não levantou o olhar da seringa, porém sorriu com
amargura. — Podia, mas nenhuma dessas pessoas sofreu tanto quanto minha
filha, então não me julgue, pois eu faria tudo novamente.
Sem saber o que dizer a afirmação dela, Tiago ficou em silencio e
Dona Clara continuou a contar com a voz neutra como se narrasse uma
história longa de ninar.
— Combinamos que eu o esperaria com Celi no jardim no dia seguinte
logo cedo. E ele não se atrasou, passou quase uma hora observando o
comportamento dela, então assentiu dizendo que sabia exatamente quais
ervas usaria para criar uma poderosa droga que a manteria dopada, porém
para todos os efeitos todos achariam que ela continuava fechada em seu
mundo. Tentei comprar a receita, mas ele riu dizendo que nunca revelava
seus segredos, me venderia as doses para duas semanas por vez.
Laican soltou um rosnado baixo, mas quando Celina reagiu
começando a gemer ele se calou e continuou passando a mão de leve pelos
cabelos dela para acalmá-la. Celeste estava ereta, não manifestava nenhuma
reação, suas roupas ensanguentadas e seus cabelos bagunçados não foram
suficientes para chamar a atenção de dona Clara para ela. Tudo o que ela
fazia era alisar a seringa e continuar a contar. O mundo dela estava centrado
em um filho só enquanto outros dois estavam ali sofrendo imensamente e
ainda assim ela estava endurecida demais para que a maternidade alcançasse
alguém mais do que Celina.
— Não demorou nada e ele me mandou um pote com o líquido, uma
colher de sopa em uma xícara de chá. Essa era a posologia prescrita pelo
monge. E assim eu precisava fazer dia sim e dia não, para que Celina não
desse sinal de melhoras significativas.
No entanto quando ele me disse o que queria eu cogitei desistir, mas o
remédio em minhas mãos, a falas aleatórias de Celina durante o sono me fez
ganhar coragem para seguir em frente.
Então eu pedi ao mesmo criado que era fiel ao monge que me
encontrasse uma pessoa de confiança para fazer o trabalho. A noite ele
passou um bilhete por baixo da porta do meu quarto dizendo que tinha a
pessoa perfeita.
E assim, contratei uma garota chamada Jaci. Uma moça grávida
desesperada para recuperar a boa vida dos tempos do harém. O papel dela
seria aliciar uma garota a cada duas semanas inventando qualquer coisa para
fazê-la seguir para a biblioteca, uma vez lá dentro ela fecharia a porta e
pronto, o trabalho dela estava concluído.
Por um tempo ela fez isso com esmero, seduziu as mulheres com
mentiras de dinheiro fácil por apenas alguns momentos com um cliente,
porém há um tempo ela pediu para sair, pois tinha decidido partir para o
bairro que estava surgindo na prisão, e não queria mais fazer isso, pois tinha
ficado sabendo que todas as mulheres que ela aliciou estavam desaparecidas.
O recado chegou a mim e tudo o que pedi ao criado foi que encontrasse outra
tão eficaz quanto essa moça para trazer as moças, no entanto o monge não
ficou satisfeito e logo fiquei sabendo da morte de Jaci.
Eu tinha prendido a respiração quando ela mencionou a moça grávida
que eu tinha prometido ajudar. Agora eu me sentia tola por estar preocupada
com alguém tão vil, porém Tiago se manteve firme.
— Mas ela foi encontrada no fosso na Vila dos Procriadores, no
entanto a última notícia é que ela estava realmente tomando a estrada para a
Vila Nova. Como então o corpo dela foi parar em um lugar tão longe?
Dona Clara fez um gesto de desdém. — Acha que o monge não sabia
de todos os passos da garota? Que ele não sabia da parada dela no templo, da
conversa dela com Amélia e do destino que ela tomou em seguida? Ele
mandou matá-la filho, no entanto para despistar ele mandou que a jogassem
no fosso, não sem antes fazer experiências nela até que ela não mais
suportasse e morresse.
— Mãe você sabia que ele fazia experimentos com os fetos, com a
placenta e com as mulheres? — Celeste perguntou com a voz tão alterada que
parecia um grito.
Dona Clara assentiu. — Ele é o monge afinal, o homem que mutilou
várias mulheres do harém, que por décadas fez experimentos naquela
masmorra, acha que sou tola? Eu sabia o que ele pretendia, mas toda vez que
imaginava Celina no reino Lican, apanhando até que cedesse seu corpo a um
homem eu repetia meu mantra de que ela tinha mais importância do que essas
malditas mulheres fúteis largadas por todo o reino.
Tiago enxugou uma lágrima disfarçadamente e eu senti raiva da mãe
dele, pela primeira vez senti vontade de torcer o pescoço de alguém e esse
pescoço era justamente da minha sogra. Ela não via como estava deixando os
filhos transtornados com seu relato? Como eles sofriam com sua frieza com a
vida de outras pessoas?
Tiago levantou e respirou longamente. Seu semblante passando de
desespero para determinado.
— Como rei é minha obrigação ser justo. A senhora ficará reclusa no
calabouço até que eu decida o que posso fazer, não posso como filho decretar
a sua morte, no entanto não posso como um rei perdoar as mortes que você
causou ao povo. Você foi cruel, dissimulada e manipuladora. Sabia o tempo
todo que Celina estava melhorando e para mantê-la sob o jugo de seus
medos, você cometeu uma chacina.
— O monge as matou, não eu.
— Cada morte que ele causou em nome de sua curiosidade cientifica
foi culpa sua.
Dona Clara nada mais disse. Continuou de cabeça baixa, parecia até
uma versão envelhecida de Celina.
Tiago se aproximou de mim com os olhos úmidos, ele estava perdido
e tudo o que fiz para confortar o homem que eu amava foi abraçá-lo tentando
lhe transmitir força através de meus braços.
Celeste parecia abalada demais para dizer qualquer coisa e aceitou
placidamente o amparo dos braços de Cristian que a ajudou a sair dali.
Laican tomou Celina nos braços e também seguiu atrás deles, mas o
grito de Dona Clara ecoou pelo quarto e num ato de puro desespero ela
levantou e correu na direção dele.
Tiago estava longe demais para ajudar, Cristian e Celeste já estavam
no corredor e tudo o que eu pude fazer foi ver a agulha enterrando nas costas
de Laican quando por reflexo ele virou o corpo para proteger Celina da
seringa.
Dona Clara ao ver o que tinha feito começou a rir histericamente
enquanto dava passos para trás.
Tiago ameaçou ir até Dona Clara, mas Laican ajoelhou respirando
rapidamente e ele correu ajudá-lo para que ele não caísse por cima de Celina.
Dona Clara como se tomada por consciência começou a pedir
desculpas para Celina, olhava só para ela como se mais ninguém estivesse no
quarto ou no mundo, e então ela balançou a cabeça como se a noção que
tinha ido longe demais só lhe chegasse naquele momento, então seguiu para a
sacada, compreendi a intenção dela e corri em sua direção.
Não consegui alcançá-la a tempo e quando dobrei meu corpo na
amurada, vi o dela caindo em queda livre. Fechei os olhos para evitar ver o
fim daquela viagem insana para a morte, porém ainda ouvi o som abafado de
seu corpo se quebrando.
O grito de Celeste, Tiago e Celina foi de partir o coração e fiquei
respirando pesadamente para juntar forças para ajudá-los nesse momento,
quando me virei de volta não consegui me mover, me senti uma intrusa.
Celina sentada ao lado de Laican que estava caído, com os
movimentos característicos de quem está alheia a tudo ela continuou ali,
sentada no chão e agora ao invés de giz ela segurava a mão do supremo Alfa.
Tiago em meio ao choro tentava carregá-la, mas mesmo que ela não
dissesse nada, mesmo que seus olhos estivessem sem foco, nada a fazia soltar
a mão do seu companheiro.
Cristian apareceu na porta e com um uivo animalesco carregou o
corpo de Laican e Celeste sequer perguntou o que tinha acontecido, uma
olhada para nós dois a ela soube, respirou fundo e deixou as lágrimas
silenciosas escorrerem. Carregou Celina e teve que ficar perto de Laican o
suficiente para que sua irmã continuasse segurando a mão grande daquele
lobo.
Cristian olhou para Tiago. — Ela vai conosco.
Ele levantou e beijou a cabeça de Celina. — Me perdoe por tudo o que
passou, por não ser protegida quando nos protegeu com seu corpo, Celi.
Nunca mais vou permitir que alguém sofra o que você sofreu. Eu te amo.
Depois disso ele beijou a testa de Celeste. — Eu...
Ela assentiu com o olhar triste. — Não me peça desculpas, não se
martirize por mim, eu estou bem, encontrei meu lugar, mas sempre o levarei
comigo e não quero mais falar sobre o que aconteceu aqui hoje, perdemos
uma mãe, mas ela já não estava entre nós há algum tempo. Pense nisso antes
de ficar se culpando.
Tiago assentiu e sem mais perder tempo os dois correram saindo pela
porta em alta velocidade.
Só então eu corri para Tiago que estava arquejado como se não
conseguisse puxar ar para os pulmões. Seu choro era tão desesperado que
parecia um expurgo, um desabafo, ele estava deixando sair tudo o que estava
mantendo guardado tanto tempo, ele estava completamente abalado e eu o
abracei como se abraçasse uma criança perdida.
— Vai ficar tudo bem.
Ele se agarrou a mim e não falou nada. Por um longo tempo só ouvi
seu choro e soluços enquanto ainda ouvia o grito de Celeste já fora do castelo
ordenando que a deixassem passar.
Nomes
Uma semana depois.

Eu olhava para a multidão infantil mal acreditando que finalmente eles


teriam um lugar só deles, o templo ainda precisava de reformas, na verdade
todo o reino precisava de organização, porém nossa prioridade foram as
crianças então seria na floresta do rei onde antes abrigava as mulheres do
harém e depois ficou praticamente esquecido que seria o novo lar, assim seria
mais fácil para que pudéssemos dar a elas assistência. De todo o reino
somente a floresta do rei ficou intacta, havia duas casas compridas e cheias de
quartos que estavam fechadas desde as mudanças, tinha o quiosque com as
mesas grandes e ainda um barracão enorme que já estava fechado desde a
época do rei Júlio.
Sem contar que o pomar, o lago grande e o lago termal já forneceria a
estrutura necessária para transformar o local num futuro e verdadeiro lar que
era o mínimo que eles mereciam. Quando propus a ideia, Tiago ao contrário
das outras vezes que sempre colocava empecilhos, me apoiou
instantaneamente e completamente e no dia seguinte me contou que tinha
mandando novamente fechar o portão. Somente quem tivesse permissão
poderia ter contato com as crianças. A segurança era ainda a prioridade já que
ainda sentíamos receio de que um maluco qualquer pudesse tentar destruir
alguma coisa.
Tudo ainda era provisório, sequer tínhamos organizado as crianças por
idade, mas com o tempo conseguiríamos ajeitar tudo.
Me senti plena de alegria por ele ter me apoiado, por me mostrar que
estava deixando de lado suas manias de se impor e me ouvindo, me dando o
seu lado para andar e não suas costas. Com isso, nessa semana focamos em
criar um plano de emergência, como precisávamos de toda ajuda possível,
Tiago criou um decreto as pressas garantindo que toda a ajuda recebida da
população não seria esquecida.
A reforma do templo logo teria início já que muitos se ofereceram
para ajudar, visando claro cair nas graças do rei, ainda assim era um
maravilhoso começo. Ainda não sabíamos o que fazer com a propriedade,
sequer com as outras tantas ainda fechadas desde a mudança do tratado após
a morte do rei Júlio, mas logo todas elas teriam uso apropriado, pois tudo
seria reorganizado e melhor aproveitado.
Mas agora nossa realização era no antigo harém. Marcos e Daniel
tinham conseguido em um único dia juntando suas forças e seus grupos,
trazer para a floresta do rei todos os órfãos, todas as crianças que estavam
largadas por aí desde a mudança das leis. Embora alguns pais ainda tivessem
consciência de não abandonar seus filhos e outros apesar de ainda os tratar
com um pouco de crueldade também não os jogaram na rua, ainda assim a
quantidade de crianças era mesmo grande.
Órfãos que prometiam um grande futuro para a nação se fossem
reeducados, se fossem novamente ensinados sobre os valores e ensinados
sobre a igualdade, sobre o valor não do homem, mas do ser humano. Era um
sonho para a próxima geração e que nenhum de nós veria realizado. Ainda
assim veríamos boa parte dele acontecendo.
O dia todo foi passado dando nomes a cada um. Alguns já vinham
dizendo o nome que eles mesmos escolheram, outros esperavam curiosos
para saber como seria chamado daqui para frente.
Pedimos a todos que não esquecessem e eles assentiram mais
preocupados com a merenda que estávamos entregando em seguida do que
com a recomendação de memorizar o nome novo.
Tiago tinha ajudado em todo o processo, mas hoje ele não pôde
comparecer, estava junto com os soldados cuidando de levar os condenados
para seu destino. Várias casas na vila dos Forasteiros foram usadas como
prisão provisória até que tudo ficasse pronto, mas hoje finalmente eles não
seriam mais um problema.
Havíamos perdido muito, eles tentaram de todo modo nos fazer parar
de acreditar que as coisas poderiam melhorar, queimaram o casarão com todo
nosso estoque, queimaram parte da nossa plantação e mataram alguns dos
nossos.
Ainda assim a esperança não nos abandonou, os órfãos do tratado
conseguiram um lugar ainda melhor para viver, o casarão no templo seria
reerguido, voltaríamos a plantar em maior quantia e nos reergueríamos ainda
mais fortes já que agora, aqueles que destruiriam nossos esforços perderam o
poder completamente.
Iniciativas

Duas semanas depois...

Tiago estava mais contente, a sombra da tristeza o estava deixando e


eu via renascer um novo homem.
Eu estava ao lado do meu genioso e amado rei, ver todo seu
sofrimento, toda sua angústia e ainda assim todo seu amor dedicado a mim e
a Aline depois que tudo se acalmou me fez conhecer seu lado protetor, fiel e a
extrema força para seguir em frente.
O que mais me faz admirá-lo é saber que ele não cedeu em nenhum
momento, mesmo com tudo o que fizeram, ele continuou tentando ser melhor
que o pai não desviando suas ações para a tirania. Isso teria facilitado sua
vida, porém teria destruído qualquer chance de ele ser amado e respeitado
pelos que o cercavam, e a cada dia essa admiração do povo por ele estava
crescendo, cada dia acreditavam mais que o rei Tiago conseguiria lhes dar
uma vida melhor.
Eu o amava cada dia mais, e além é claro ele tinha o amor
incondicional e muito interesseiro de Aline, que ao contrário do que Tiago
imaginou, não torceu o nariz quando soube que era o tão falado rei, na
verdade ela saiu se exibindo para todo mundo que iria morar no castelo e que
tinha virado uma princesa.
Depois que as duas castas nobres foram banidas, Tiago decidiu acabar
com o sistema de castas, todos agora compunham apenas uma nação, porém
havia uma ressalva, uma segregação necessária.
Todos os membros das castas nobres que sobreviveram e todos que
participaram dos ataques, incluindo os moleques da ferraria que estavam
presos, foram enviados para uma fazenda cercada por muros, uma fazenda
antiga que pertencia a um membro da casta alta, e que ironicamente serviria
agora como um tipo de prisão com privilégios. Pois apesar do tanto de
maldade que fizeram e da destruição que causaram, eles ainda ganharam o
direito de trabalhar a terra e vender seus produtos, um tratamento igual os
outros assentados.
Porém a igualdade acabava aí, eles não poderiam pegar o pagamento
em moedas, somente uma permissão especial em formato de passes de
valores assinados pelo rei para comprar suas coisas necessárias em locais
determinados, podendo sair uma vez por mês e ainda com escolta, eram
perigosos e baderneiros e deviam ser tratados como tal. As famílias desses
nobres que foram de alguma maneira julgadas como culpadas tiveram o
mesmo destino.
Aquelas que o próprio povo no dia do julgamento defendeu alegando
que não eram cruéis e sim vítimas também, tiveram um destino melhor,
poderiam escolher viver com a família, ou deixar tudo para trás, esquecer o
sobrenome da família e serem acolhidos pelos órfãos do tratado, passando a
fazer parte do povo livre e aguardando e colaborando assim como eles, para a
mudança de suas vidas.
As casas do bairro nobre foram vendidas, até mesmo para aquelas que
foram queimadas houve comprador, nenhuma foi doada, porém o rei deu um
prazo para pagamento de parcelas de acordo com o tamanho da família,
abatendo o montante da dívida de acordo com o rendimento de cada membro
para o crescimento do reino.
Esse reconhecimento incentivaria ideias para melhorias, traria
voluntários para a infraestrutura e iria estimular a boa vizinhança, já que
ações como essa, faziam parte da imensa lista para colaboração.
Algumas casas foram concedidas como prêmio por mérito. Marcos,
Daniel, o pequeno Tobias e todos os soldados que serviram fielmente ao
reino arriscando suas vidas de alguma maneira no dia da batalha das ruas,
tiveram o reconhecimento recebendo uma boa casa para morar. Porém para
Daniel e Marcos esses presentes não seriam de muita valia já que Daniel
agora que encontrou Diana vivia durante a semana trabalhando nas fazendas
garantindo que ninguém ficasse ocioso, e quando estava de folga ia visitar a
irmã no reino sombrio.
Já Marcos, agora que tudo estava se encaminhando, aceitou o cargo de
diplomata das fronteiras, pois depois que Laican se recuperou o suficiente,
mandou entregar a Tiago um mapa com a nova demarcação e a fronteira com
o reino Lican tinha ficado mais distante, o supremo Alfa por agradecimento a
Tiago por sua ajuda em manter Celina segura, tinha doado porções de terra
onde existiam minas de vários tipos de metais importantes para os humanos e
totalmente desnecessário para os lobos.
Por isso, Marcos teria que passar um tempo entre os Licans enquanto
esperava até que Laican se recuperasse completamente, pois era necessária a
ajuda de alguns lobos para começarem a excursão por essas terras já que
Marcos ficou incumbido de cartografar toda essa nova extensão agora
pertencente ao reino humano, trazendo detalhes de onde estava cada mina e o
que cada uma oferecia.
Só com todos esses detalhes em mãos Tiago poderia começar o
recrutamento daqueles que quisessem viver de garimpar para o reino.
Na verdade nada mudara, pois isso já acontecia antes, só que agora
estava sendo democrático, o direito de explorar não estava retido a alguns
poucos, era de quem mostrasse mais fidelidade ao reino. Tudo se tornou
Meritocrático e mesmo que demorasse, Tiago garantiu que só iriam para lá
aqueles que realmente tivessem merecimento.
Ainda faltava muita coisa para organizar, para reformar e para usar em
prol do crescimento. Mas a empolgação do rei era algo contagiante. E sem
um conselho fixo, o povo também estava esperançoso já que até mesmo esse
cargo passou a ser meritório. Ou seja, quem mais colaborasse com o
crescimento, mais chances teria de receber o cargo de conselheiro e claro,
tinha que provar ser fiel ao rei.
Meu pai depois de ajudar em toda a organização, tinha anunciado que
passaria uma temporada no reino sombrio, nem eu nem Tiago levantamos
objeção, depois de tudo o que ele passou, ele tinha o direito de curtir sua
companheira em completa paz. Já fazia uma semana que ele tinha partido ao
lado de uma Priana com o olhar irradiando alegria, ela também merecia ter
seu companheiro só para ela.
E eu tinha Tiago só para mim, bom... não era bem assim, porém
aproveitávamos todos os momentos que podíamos para saciar o desejo que
parecia crescer diariamente.
Tiago agora concedia todos os dias duas horas para ouvir o povo. Só
então depois disso é que ele dava início a correria do trabalho, antes eu não
imaginava que um rei pudesse trabalhar tanto, mas agora eu via, ou pelo
menos esse rei já que de acordo com muitos, o pai de Tiago não se dava a
esse trabalho todo.
Eu já estava acostumada a acordar sem ele ao meu lado então me
demorava um pouco mais para levantar. Quando abri a porta olhei sorrateira
para fora ainda estranhando que um valete ficasse de prontidão, por vezes eu
tinha receio que ele ouvisse quando eu e Tiago estávamos a rolar pela cama,
perdidos em nossa própria paixão.
Embora eu não pudesse perguntar isso eu o olhava de torto para banir
qualquer carinha de malicia que ele viesse a fazer, claro que ele nunca
mudava a expressão vazia e continuava a olhar um ponto na parede, apenas
assentia respeitosamente quando sentia que meus olhos estavam sobre ele.
Desci as escadas ouvindo uma voz coquete vindo do escritório, claro
que era mais uma das moças determinadas a virarem amantes do meu marido,
e, diga-se de passagem, um marido oficial já que assinamos papéis com
testemunhas oficializando essa união no escritório dele. Não houve festas,
pois em comum acordo decidimos que não havia clima para isso, sem contar
que não achamos certo desperdiçar os recursos da coroa com festejos e
alegorias, havia coisas mais importantes e urgentes.
Mas desde que os boatos sobre o rei ser dedicado a esposa sem ter
medo de mostrar seu sentimento em público começou a passar de boca em
boca, Tiago virou um objeto de desejo de muitas jovens que estavam
aproveitando o anúncio de que o rei receberia o povo na parte da manhã e
claro como já fazia dez dias que ele estava fazendo isso, algumas moças
estavam se arriscando.
Entrei na porta sem me anunciar e a moça teve um sobressalto. Os
olhos de Tiago me fitavam cheios de divertimento. — Olha amor, essa moça
quer ser minha amante, o que acha?
A analisei de cima abaixo como se realmente considerasse, ela
abaixou a cabeça e falou em tom choroso.
— Perdão majestade, eu só... Queria ser amada também.
Eu podia ficar chateada, na verdade uma pontada de irritação me
passou, mas não podia negar que esses anseios desesperados dessas meninas,
era um progresso. Elas estavam ficando ousadas, estavam começando a se
impor e tomando atitude, e mesmo que essa atitude me irritasse já que
estavam se jogando pra cima do meu marido, eu reconhecia a tênue mudança
de comportamento e isso era pela segurança que sentiam e claro, pela
demonstração de força delas na luta das ruas onde elas tiveram igual
reconhecimento do rei.
— Não se preocupe. Eu entendo, afinal meu rei é um ótimo marido e
ainda um ótimo amante.
A feição da menina suavizou, ela até ameaçou um sorriso de
cumplicidade, mas eu ainda não tinha terminado.
— Porém ele pertence a mim e dessa vez vou perdoar sua afronta, mas
se voltar aqui com insinuações desse tipo novamente eu mandarei arrancar
sua língua.
Com uma vênia desastrada e um murmúrio tenso de desculpas a moça
desandou pela porta. Tiago me encarou insondável.
— Falando brincando, né?
Eu ri e assenti, claro que não falei de verdade, porém ela não precisava
saber, então me aproximei de sua cadeira e apoiei os braços em cada lado
deixando meu rosto na altura do dele.
— Eu não teria coragem de judiar de uma pessoa deliberadamente,
jamais mandaria arrancar a língua dela, já você meu rei, se fizer qualquer
gracinha e se olhar para outra mulher com interesse vai se tornar Tiago de
Bale, o primeiro rei eunuco de seu nome.
Tiago começou a gargalhar e me puxou para seu colo.
— Não tenho medo dessa desgraça se abater sobre mim, só tenho
olhos para você. Eu a amo desde a primeira vez e sempre terei medo de
perdê-la, quase aconteceu tantas vezes que eu...
Coloquei o dedo em seus lábios e ele se calou, Tiago ainda tinha
cicatrizes de tudo o que tinha acontecido.
— Você não vai me perder Tiago. Estamos juntos e agora é para
sempre.
Ele passou o dedo por minha bochecha. — Rezo por isso todos os
dias, Amélia.
Seus olhos negros adquiriram um novo brilho e ele me beijou do jeito
que eu gostava, com posse, com paixão, com as mãos ansiosas começando a
deslizar por meu corpo mostrando que me queria como se fosse a primeira
vez. E eu o queria ali mesmo como o queria em qualquer lugar onde
estivéssemos sozinhos, mas como um balde de água fria ouvimos passos
desenfreados e logo Aline entrou correndo pela porta.
— Vai nascer essa noite! Mandaram avisar.
Levantamos rapidamente e olhei preocupada para minha pequena
princesa, porém ela estava eufórica demais para perceber qualquer coisa. Só
então entendi o que ela queria dizer e a euforia tomou conta de mim e
também de Tiago que gritou dali mesmo para mandarem uma carruagem
mais veloz.
Ainda era cedo, porém esse nascimento era importante para nós, por
isso não pegamos nada, apenas com a mesma roupa que estávamos entramos
na carruagem.
Aline também entrou e só depois que sentou e que a carruagem
começou a andar foi que ela olhou para Tiago.
— Posso ir também, pai?
Pisquei várias vezes de surpresa e olhei para Tiago. — Pai?
Ele abriu a boca, mas Aline o atropelou falando rápido com seus olhos
castanhos brilhando de contentamento.
— Por uma moeda de ouro todo mês o chamarei de pai até que ele
morra de velho. — Ela olhou para ele com verdadeiro amor estampado em
sua face. — Né, pai?
Apertei os lábios para manter a risada dentro da boca quando Tiago
completamente envergonhado começou a fingir tirar um cisco da manga do
casaco, evitando com isso olhar para mim. Não pude resistir e tive que
perguntar.
— Você a pagou para que ela o chame de pai?
Ele estalou a boca, continuou sua caçada aos ciscos imaginários da
manga então deu de ombros. — Não pude fazer nada, você já conhece a febre
dela por moedas de ouro.
Concordei sem conseguir deixar de rir. Já conhecendo meu marido e
antevendo sua reação eu abri os braços para Aline. — Venha aqui.
Ela sorriu amistosa, seus cachos presos no alto balançaram quando ela
assentiu. — Sim, mamãe.
Isso fez Tiago levantar o olhar e esticar o pescoço. — O que? Você
também a pagou?
Eu ri ainda mais. — Não dei esse costume a ela, então para mim é de
graça.
Tiago não falou nada, mas fechou a cara, estava enciumado, e
ultimamente era sempre assim, quando se tratava de mim ou Aline o
temperamento dele não se alterava, continuava sendo o possessivo de sempre.
Pisquei para Aline e ela sorriu lindamente, Tiago continuava
emburrado olhando qualquer coisa lá fora e fiz um gesto com o queixo para
ela ir até ele, e claro, esperta como era ela entendeu imediatamente que ele
estava chateado então saiu do meu colo e sem nenhuma cerimônia pulou no
colo dele o surpreendendo, ele volteou os braços em volta dela e voltou o
olhar para fora, porém minha teimosa filha segurou as bochechas do pai e o
fez virar para ela.
— Sou muito feliz por ter conseguido um pai como você e uma mãe
como Amélia. Pensei que morreria nas ruas, e agora tenho você com ciúmes
do meu carinho pela mamãe, mas eu te amo, o amo mesmo antes de saber que
você tinha um montão de moedas, papai.
Tiago como um chorão desequilibrado se debulhou em lágrimas. Aline
deu palmadinhas em suas costas com as mãos pequenas e falou como se isso
fosse um tipo estranho de conforto.
— Mas eu gosto de suas moedas também, pai. Não me deixe sem elas.
Tiago a beijou na face e na testa, por fim abriu um largo sorriso.
— Eu jamais deixaria minha princesa sem uma mesada muito gorda.
Dei uma risadinha completamente encantada por esse lado paternal de
Tiago, era tão fácil amolecer o coração do rei.
Epílogo

Menina... Alina nasceu pouco tempo depois do reino Humano se


recuperar de sua guerra interna, então podia se dizer que ela nasceu em
tempos de paz. Rael a chamou pelo nome de sua mãe. A ela foi dado um
espelho dourado de uma madeira rara que ficará em seu quarto até seus
primeiros duzentos anos quando então sua runa será gravada em seu coração,
e só então ela terá seu primeiro decênio.
O casal ficará na câmara, ao lado da biblioteca proibida até que ela
complete seu primeiro ano de vida, só então ela poderá suportar a luz do sol.
A nós, os visitantes, foi permitido apenas vê-la de longe, já que ela não tem
nenhum tipo de proteção aos agentes externos ainda.
Todos da família puderam ficar perto dela, por isso não pude interagir
com Diana já que ela tinha passado por purificação assim como o senhor
Nicolae, Celeste, meu pai, o senhor Rael e o senhor Odair que ajudou no
parto.
Eva tinha o rosto cansado do esforço, ainda assim ostentava um
sorriso de júbilo enquanto carregava a filha. Diana estava emocionada,
esperançosa e verdadeiramente feliz por ver que a gestação de Eva se
completou sem maiores problemas. Estava esperançosa e envolveu a todos
nós com esse sentimento. Pela torcida por ela e o senhor Nicolae
conseguirem também essa dádiva.
Esse era o primeiro nascimento de um sombrio que eu via, e com ele
descobri que mesmo morando quase toda minha vida no reino Sombrio, eu
não conhecia sequer um ínfimo dos mistérios que compõe essa raça.
Alina nasceu com uma penugem avermelhada, seria uma linda ruiva
quando crescesse e Rael nos assegurou que isso é um bom sinal.
Quando voltamos para casa, Tiago me olhou de modo sonhador e eu
assenti em compreensão, eu também queria um bebê, mas não agora.
Tiago precisaria de todos com quem pudesse contar para fazer um
reino melhor, e eu precisava ter certeza que se um dia eu engravidasse, meu
filho fosse menino ou menina, não cresceria com a sombra do preconceito o
rodeando. Porém eu tinha esperanças que em um futuro próximo isso pudesse
ser possível.
Ele ajeitou Aline que dormia em seu colo, com o outro braço me
puxou para seu peito.
— Eu te amo.
Beijei de leve seus lábios, e descansei a cabeça em seu peito e fiquei
brincando com os cachinhos de Aline. Fechei os olhos agradecendo aos
antigos por não ter desistido do homem impulsivo e rei rebelde que conheci
no início de minha jornada. Se tivesse feito não teria conhecido o marido
possessivo e o amante insaciável que ele escondia, não exatamente nessa
ordem.
Meu rei tinha muitas facetas, e eu amava todas elas com toda a força
da minha alma.

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