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Achei por um momento que teria tempo, que poderia fazer um bom
projeto para apresentar, mas assim que o dia chegou, mesmo antes de sair da
cama ouvi a voz grave de Tiago.
— O quê? Quando isso?
Fiquei quietinha na cama, com medo até de respirar e ele ouvir, o que
claro, era um medo idiota, mas meu pai podia ouvir, eu acho...
De todo modo eu não queria um confronto quando ele soubesse do
meu passeio com Daniel pela vila dos Procriadores. E tudo isso pela sua
reação ao meu passeio ao museu, então de alguma forma agora eu temia sua
explosão.
— Você permitiu isso, André?
Me encolhi ainda mais ao prever o futuro tão lindamente quando ouvi
as palavras, Procriadores, templo da sacerdotisa e algumas outras que me
indicava que meu pai, aquele fofoqueiro, estava contando tudo a Tiago.
Tentei demorar o máximo possível a sair debaixo das cobertas, mas
isso já estava se tornando ridículo, eu não podia me enfurnar no quarto o dia
todo, e o rei não parecia disposto a sair daquela sala até ter o gosto de me
repreender por meu passeio, ou até por minha ideia...
Levantei e me arrastei carregada de desânimo para me lavar, depois de
pronta abri a porta e tremi ligeiramente quando a fechei, me senti exposta
sem a proteção do quarto, contudo, apesar do meu receio, desci as escadas
com passos firmes e o olhar altivo de quem é inocente sobre qualquer
discussão ocorrida antes de eu descer.
Tiago me sondava a cada passo, em seus olhos estava um misto de ira
e algum tipo de fascinação gulosa que me deixou desconcertada. Já meu pai
olhava para Tiago como um predador que espera uma distração da presa para
atacar. Isso também me pareceu esquisito, era como se eles tivessem entrado
em um tipo estranho de acordo em relação a mim, mas claro que eu não ia
abusar da sorte, minha ideia era simplesmente arrumar um jeito de sair dali o
quanto antes. Por isso fiz um cumprimento educado enquanto rumava
apressada para a cozinha.
— Bom dia, Tiago. Espero que esteja em um bom dia.
A ira que até então estava em seus olhos pareceu sumir e eu quase
sorri triunfante, chamá-lo pelo nome tinha funcionado para uma trégua. Pelo
menos isso.
— Bom dia, Amélia.
Com um suspiro aliviado eu alcancei a cozinha sem maiores
transtornos, pelos vistos não haveria uma discussão como pensei. Senti com
alegria o aroma gostoso de chá e peguei uma xícara, mas parei com ela no ar
quando senti a cozinha ficar menor. Meu corpo respondeu a um chamado
invisível e me virei, ali estava Tiago encostado à porta, me olhando
insondável.
Rapidamente voltei às costas e praguejei mentalmente, ele era
teimoso, claro que não ia ceder tão fácil. Sem encontrar saída peguei outra
xícara e o bule de chá e coloquei na mesa, sentei e não o convidei a fazer o
mesmo já que ele parecia se ofender com qualquer tratamento formal
dedicado a ele quando estava em casa.
Levantei os olhos quando levei a xícara à boca e quase a derrubei com
o choque da maravilhosa visão. Ele sorria tão lindamente que não pude
resistir e acabei retribuindo com um sorriso tímido. Agora entendia porque
ele parecia chateado no primeiro dia, o teimoso rei queria ser tratado
normalmente desde o início e eu não sabia claro, mas se isso servia para tirar
dele um sorriso daqueles, então tinha valido a pena a ousadia.
Sem dizer nada ele sentou e se serviu. Ficamos com o olhar focado no
líquido fumegante. Sorvi um gole pequenino um tanto estranha por essa paz
silenciosa e ele fez o mesmo. Logo foi ele quem quebrou o silêncio.
— André me disse que ontem você visitou a vila dos Procriadores e
que tem planos para o templo.
Assenti um tanto surpresa por ele estar calmo ao abordar o assunto. —
Achei que aquele templo poderia ser usado de alguma forma para ajudar
essas pessoas.
Ele bebeu mais um pouco sem tirar os olhos dos meus. — E o que tem
em mente?
— Uma escola ou quem sabe algo mais.
— E como seria isso?
— Não sei ainda, preciso pensar, mas gostaria de seu apoio, de ajuda.
Tiago suspirou resignado, depositou a xícara na mesa e me encarou
sério. — Se me prometer que não irá mais a vila dos Procriadores eu vou
ajudar. Mas não a quero mais lá, Amélia.
Isso era melhor do que uma discussão e pior do que simplesmente um
sim.
— Eles não são perigosos, só estão famintos e corrompidos, o que eles
precisam é serem vistos como pessoas, assim vão descobrir que são valiosos
para o crescimento do reino, senão aquele lugar sempre será uma vila
perigosa para qualquer pessoa.
Tiago estalou a boca não dando atenção aos meus argumentos. — Me
prometa sem discutir que não irá mais lá, e eu ajudarei em sua ideia para o
templo.
— Mas por quê?
Ele sequer fingiu que era um pedido, estava tentando me fazer
obedecê-lo. Eu poderia, para evitar uma discussão simplesmente aquiescer
em concordância, mas eu queria saber o motivo disso, saber por que ele não
estava disposto a um diálogo e só queria me impor obediência baseado em
uma troca.
Tiago percebendo que eu não estava disposta a me submeter a sua
vontade sem uma devida explicação, levantou e levou a mão aos cabelos os
despenteando, parecia estar tentando buscar calma, mas pelo seu jeito eu
duvidei que estivesse conseguindo.
— Não vou permitir isso.
Imaginei argumentos mais contundentes como resposta a minha
pergunta, ou mesmo um motivo que me fizesse entender sua imposição, mas
dizer que não ia permitir? Então eu não era livre como qualquer outro?
Fiquei sem ação pela surpresa, e ele ficou ali me olhando sério, como
se fosse um pai cobrando com o olhar a malcriação da filha e esperando ela
se explicar. Agora com o sangue aquecendo minhas veias pela raiva que me
subia, me vi apontando um dedo para ele e o mandando calar a boca porque
ele não mandava em mim, no entanto, a resposta foi mais educada.
— Não estou pedindo permissão e sim pedindo ajuda, se não pode
ajudar, peço que não atrapalhe, muito menos tente negociar uma troca
comigo.
Tiago não pareceu abalado com minhas palavras e me olhou firme. —
Não posso e não vou permitir isso.
Não vou permitir... Novamente isso! Agora quem levantou foi eu.
— Não vou admitir que me diga o que devo ou não fazer, majestade.
Não quando tenho um pai que já faz essa função, e ao que eu me lembre, as
mulheres do reino são livres. Ou era uma mentira a proclamação das novas
leis?
Isso pareceu o ofender e ele desviou da mesa e parou próximo a mim.
— É tolice se meter em perigos desnecessários. Uma mulher bonita
como você chamaria atenção em um lugar como aquele. Você é frágil, não
saberia se defender dos tipos que tem naquela vila. Entende agora porque não
a quero lá? A vila da procriação é um lugar perigoso SIM, e não quero que se
meta em problemas.
Terminando aquele sermão ele manteve os olhos fixos nos meus,
não... Eu não entendia, quer dizer que por ser bonita eu estava proibida de
andar por ai? Bonita... Então ele apreciava minha aparência? O quão ruim
isso me parecia agora? Não sei, mas ele continuou me encarando, esperando
sei lá, um sim senhor vossa majestade eu entendo, mas não ia dar esse gosto,
ele precisava ouvir umas poucas e boas.
Pensei em um monte de coisas a dizer, mas estávamos tão próximos
que por um momento me deixei namorar cada parte de seu rosto tão perto do
meu... Lindos olhos estrelados... Machista de olhos estrelados... Um cretino
autoritário com os olhos cheios de estrelas que quase me distraiu, quase...
Sem dizer nada desviei da muralha de músculos a minha frente e segui
para a porta, mas ele segurou meu braço de maneira brusca, e logo, como se
lembrasse que estava passando dos limites ele suavizou o aperto.
— Quem é esse Daniel?
— É da sua conta? — Rebati com tanta raiva que esqueci que estava
falando com o rei.
— Vou descobrir de um jeito ou de outro, então é melhor me dizer.
Puxei meu braço e o empurrei com raiva, claro que nem fiz mossa, já
que ele sequer moveu um passo para trás.
— É apenas um garoto, deixe o em paz!
Saí para a sala pisando duro e ele veio atrás.
— Muito bem! Se ele é o problema, darei um jeito nele.
Parei assustada ao ouvir isso, meu coração espremeu tanto que levei a
mão ao peito e me virei para ele já com os olhos transbordando com as
lágrimas que eu estava lutando para segurar.
— Se tocar um dedo nele, nunca mais me dirija a palavra. Nunca mais
sequer olhe em minha direção, pois eu o odiarei com todas as forças do meu
coração. Eu lhe juro.
Isso pareceu surtir efeito, porque de irado ele pareceu assustado, nesse
momento o que eu queria era sumir de perto dele, e foi o que tentei fazer, mas
não tive tempo de subir as escadas, com passadas rápidas ele estava perto
novamente, tão perto que não tive tempo de fugir. Para minha surpresa ele me
abraçou.
— Não foi isso o que eu quis dizer pelo amor de Deus! Não chore
Amélia, me desculpe por fazê-la pensar isso, eu me excedi, jamais seria capaz
de machucar alguém só por raiva, quem pensa que sou?
Certo... Isso também não era algo que eu pudesse prever, na verdade
eu estava completamente abalada. Tiago parecia possuir muitas facetas e
muito do que ele dizia e fazia era movido por seu temperamento, isso eu já
estava começando a perceber, mas até onde ele poderia ir num momento de
raiva movido por seu temperamento impulsivo? Era algo a se pensar.
Estranhamente me acalmei com aquele abraço que ao contrário de seu
rosto irado, era tão terno e cheio de afeto. Mais uma vez fiquei frustrada por
não acompanhar toda essa intensidade do rei.
— O que então, em nome dos antigos, quis dizer com essa ameaça?
Ele não me largou, e me senti um tanto incomodada porque mesmo
sendo apenas um abraço eu senti meu corpo responder a ele, tudo nele atiçava
meus sentidos. O cheiro, os músculos do peito me achatando um lado da
bochecha, sua mão enorme segurando minha cabeça e outra espalmando
minha cintura, não dava para não sentir cada parte tocada por ele com
inocência, esse homem foi feito para afetar as mulheres, foi criado para isso.
Não podia ser possível que essa afetação só acontecesse comigo.
Precisava urgentemente de distância, pois era o rei que era o perigo,
nenhuma vila miserável, assassinos contratados ou membros da casta nobre
me parecia tão perigoso quanto ele naquele momento e com um pesar no
coração forcei de leve seu peito e ele se afastou me olhando de olhos baixos,
parecia envergonhado.
— Na verdade eu não ia fazer merda nenhuma, só falei para que não
subisse correndo para o quarto me deixando falando sozinho. Não sou um
monstro, Amélia, mas eu sei que por vezes passo dos limites. Desculpe-me.
Trégua... Até quando ficaríamos assim, nessas oscilações entre a
trégua e a discussão? Soltei o ar pesadamente assoprando o peito de Tiago
que continuava perto demais.
Ele ofegou quando sentiu o assopro e deu um passo para trás me
olhando de modo intenso. Com o mesmo olhar de quando desci as escadas.
Ele não te olha como irmã...
E por aquele olhar e através de meu coração disparado eu soube que
não era só eu que ficava afetada, ele também, e algum sentido desconhecido
dentro de mim me dizia que ele sentia algo mais do que um sentimento
fraternal.
Por fim para quebrar qualquer clima constrangedor que manteve
nossos olhos fixos um no outro e a boca completamente fechada sem saber o
que dizer, eu perguntei a primeira coisa que me veio à mente.
— Onde está meu pai?
A pergunta agiu como um balde de água fria para o transe de Tiago,
seus olhos desviaram do foco que era eu e ele vincou a testa como se tentasse
colocar a cabeça em ordem. Por fim me olhou confuso.
— Me fez prometer que não brigaria com você porque ele tinha que
sair para ver um amigo.
Cruzei os braços e cerrei os olhos. — Que bom que você cumpre o
que promete. — Destilei a frase venenosa com gosto. Ele pareceu
ligeiramente envergonhado.
— Olha, vou ver o que posso fazer sobre sua ideia, está bem?
Fiquei desarmada com essa oferta sem pedir nada em troca dessa vez.
— Tudo bem e eu não irei mais a vila da Procriação, não porque você
pediu tão delicadamente, mas é porque me senti mal, se fossem apenas
pessoas miseráveis e necessitadas de ajuda, eu não iria obedecê-lo, mas pelo
que vi lá, alguns estão enterrados na mais pura promiscuidade e pelo que
Daniel me disse, fazem isso mais por gosto e costume do que por precisão, e
não é para esse tipo de pessoas que eu gostaria de dedicar minha
preocupação.
Tiago pareceu verdadeiramente aliviado. — Que bom que me ouviu
Amélia, pois você está vendo uma parte pequena, se tivesse andado por
aquelas vielas tomaria nojo da maioria das pessoas de lá.
Ele seguiu para a porta e antes de sair me olhou com os olhos negros e
lindos cheio de estrelas de tão brilhantes e esse olhar me afogueou as
bochechas.
— Boa noite, Amélia. Hoje foi o primeiro dia que brigamos e nos
acertamos em seguida, gostaria que fosse assim mais vezes, na verdade eu
preferia não brigar, se fosse possível.
Quando ele fechou a porta eu sentei pesadamente no sofá.
— Eu também. — Respondi para o nada, respondi para mim, porque
eu queria isso, não brigar, no entanto não queria ser subjugada para que isso
acontecesse, seria ofensivo para minha inteligência e os anos de estudo na
vila sombria.
Tiago tinha que entender que eu não fazia parte das submissas desse
reino ou então infelizmente nossos encontros seria sempre assim, regados de
gritos e grosseria.
Uma despedida
Andar por ali sem sentir tristeza pelo que via, seria como não ter um
coração batendo no peito. A vila da procriação era um bairro de luxo perto
desse bairro.
Desde as mudanças, muitos escravos libertos estavam rumando para a
prisão dos leviatãs, um lugar que até pouco tempo atrás estava abandonado
por conta da localização tão distante de tudo e agora era o refúgio dos
abandonados, o único lugar que eles sabiam que os acolheria.
E agora, depois de tantos acolhidos, tinha virado basicamente um
bairro repleto de moradores. A pobreza estava se concentrando no mesmo
lugar. Barracos precários de peles, palha e todo o tipo de material recolhido
do lixo e da floresta interna da prisão estavam espalhados por todo lado.
A passagem era livre então esse era o destino para um verdadeiro
êxodo de miséria, todos que chegavam estavam encontrando seu canto, se
ajeitando como podiam e engordando a massa de moradores do lugar fechado
de altos muros.
Chegar a eles era um pouco demorado. Cavalgar algumas léguas de
terra e depois passar pelo segundo bairro da Procriação que era extremamente
novo e pouco menos pobre que a prisão.
O antigo rei Júlio estava criando esse bairro para acoplar as famílias
miseráveis para que continuassem a ter seus filhos e filhas para aumentar
ainda mais a riqueza dos mais abastados. Agora essa estrada para a nova vila
dos Procriadores também era o caminho para chegar ao refúgio dos
renegados. Por sorte, essa vila não mais fora mexida e esse comércio de
pessoas tinha acabado graças a quem menos eu esperava.
O rei era um maldito tirano que buscava a vida eterna chegando a usar
a menina Diana como escrava de sangue somente para conseguir esse intuito.
Por fim, o homem que eu mais abominava na vida e que sempre me fez
acreditar que iria deixar o rei ainda mais poderoso do que já era, o matou a
sangue frio, o usou como um amante somente para seus propósitos. Como era
irônico tudo o que eu havia visto até essas mudanças acontecerem realmente.
Tudo começou com aquele atrapalhado do terceiro príncipe sombrio
que havia salvado minha vida na floresta quando a vida já me deixava por
conta do ataque de um leviatã. Se não fosse aquele príncipe sombrio e sua
mistura, eu não estaria aqui para ser escolhido para aquela missão
desumanada de chacinar aquelas garotas do pacote de vinte anos. Também
não teria poupado a vida daquela menina e nem tinha a ajudado a chegar ao
reino sombrio.
Talvez, se aquele príncipe não tivesse se condoído de mim há tantos
anos atrás, hoje eu poderia ainda ser um escravo e ainda veria mulheres sendo
vendidas no harém, não teria participado de uma guerra e nem teria
reencontrado minha filha depois de tantos anos. E não também, não teria
reencontrado o amor.
Todos diziam que o marco das mudanças era aquele celeiro onde a
chacina tinha acontecido. Mas não era essa assim que eu via. Para mim tudo
começou com Dimitri, esse era o marco das mudanças na minha visão, foi
por causa dele e sua peraltice com os irmãos mais velhos que tudo começou a
andar para esse momento de agora, para esse momento onde mais uma vez eu
tentaria negociar com aquele cabeça dura que nunca aceitava minha ajuda.
Quem sabe hoje eu tivesse mais sorte.
Para chegar até ele tinha que passar pelo bairro novo e chegar às
muralhas gigantes onde os portões não mais existiam, os guardas que antes
andavam pela muralha também haviam sumido.
O local criava vida como mais um bairro miserável que estava
nascendo por conta própria no reino humano e por conta disso, era de
responsabilidade do rei, mesmo que ele não tivesse noção da existência
daquele lugar.
Eu não tinha contado a ele para protegê-lo, os outros também não se
incomodaram em contar porque esse bairro novo e o que acontecia ao redor
dele não interessavam aos mais abastados. Mas o rei ainda iria saber, quando
a hora certa chegasse.
Decidi não arriscar a vida do meu cavalo atoa e parei pouco antes, se
entrasse com ele poderia perdê-lo, ele viraria alimento de uma forma ou de
outra. Esse era o boato pelo menos, mas... Vai saber, poderiam mesmo comê-
lo ou trocá-lo por comida e eu gostava do animal o suficiente para não
desejar a ele esse fim. E como me conheço bem, também não lutaria com eles
para salvá-lo, pois não teria coragem de tirar deles uma chance de conseguir
comida, então para poupá-lo o deixei na estalagem e segui o resto do
caminho andando.
Marcos, filho de Uzias, me aguardava encostado perto da entrada, os
braços cruzados deixando à mostra uma grande quantidade de músculos que
ele tinha adquirido com os anos de servidão e serviços pesados.
— Salve, André.
Segurei sua mão suja, pobre rapaz estava imundo e muito magro,
ainda não estava só pele e osso, mas não havia uma grama de gordura em seu
corpo, somente músculos e ossos. Ele me olhou com esperança e desafio, o
que só mostrava seu desespero.
— Alguma novidade boa para esse povo miserável?
Havia uma notícia boa referente a horta, algumas famílias da casta dos
procriadores já tinham manifestado vontade de tentar, sem contar o menino
Daniel e todos os seus saltimbancos nem tão engraçados assim. Mas se
Marcos tivesse paciência essa mesma notícia poderia ficar melhor ainda visto
que se desse certo, muitas fazendas abandonadas poderiam ser utilizadas para
esse fim e ele poderia mandar seu povo para lá, no entanto, nada era de graça
e nem todos poderiam ir e era para isso que eu estava ali. Mas depois de
alguns encontros nada amistosos, eu já imaginava sua reação.
— Precisamos conversar Marcos.
Ele apertou o maxilar se contendo. Seus olhos castanhos brilharam de
raiva.
— Então você não tem nada para mim!
— Ao contrário, mas se quer ajudar os seus terá que me ouvir sem
perder a calma dessa vez.
Ele apertou os lábios e me fitou pensativo, eu conhecia esse olhar, já o
havia visto muitas vezes quando era escravo. Um olhar de quem não tem
muito a perder. Por fim ele assentiu.
— Estou ouvindo.
— Acho que poderíamos sentar e comer alguma coisa enquanto
conversamos, que tal a estalagem?
Seus olhos faiscaram de orgulho. — Não preciso de sua pena, André.
Levantei os ombros e me virei em direção ao bairro novo.
— Não precisa comer nada se não quiser, eu vou comer algo porque
estou faminto e você bebe água, se lhe aprouver.
Em silêncio ele me seguiu, sorri disfarçando o quanto gostava do jeito
daquele rapaz. Era orgulhoso, ainda assim não era idiota. Uma refeição
mesmo que vindo de um lugar duvidoso como a porca estalagem daquele
bairro novo, ainda era uma refeição.
Confraria Anarquista
Dante
Tiago
Por mais receio que seu sentisse de andar sozinha, agora que não tinha
Daniel para me guiar, eu tomei o carro e pedi para que me levasse a vila
Nova. Nem sabia que era chamado assim, mas um dos soldados que tinha
visto nós duas conversando me contou que tinha visto Jaci seguir rumo a essa
vila.
Demorou um pouco e quanto mais eu me distanciava do bairro dos
Forasteiros, mais curiosa sobre essa nova vila eu ficava, afinal, ela tinha o
mesmo nome do bairro dos Procriadores, só era chamado de bairro novo para
diferenciar do antigo.
Pensei que encontraria a mesma sujeira, a mesma promiscuidade, mas
ao contrário do que pensei, as casas novas e o pouco movimento nas vielas
deixavam a sensação que o lugar era abandonado. No entanto, para fazer
contraste com essa falta de movimentação entre as casas, a estrada na qual eu
seguia começava a ficar movimentada.
Uma infinidade de crianças circulava por todo lugar, umas carregando
pacotes outras bilhetes, senhores magros e sujos conversavam sentados no
chão sem se importar com o sol quente lhes cozinhando o cérebro.
Apesar das casas mais novas, o povo era mais simples e mais
tranquilo, pelo menos não vi gritaria e nem discussão nas ruas. Ainda assim
vi um esgoto em céu aberto e ainda um monte de lixo em uma parte distante
das casas já prontas e dos prédios ainda em construção mais ao longe.
Peguei a cesta e desci com a ajuda do cocheiro. Tinha colocado um
chapéu para me proteger do sol e segui para a estalagem, pois o soldado havia
me dito que para conseguir informação, ali era o melhor lugar para perguntar.
Não demorei encontrar, era o único estabelecimento que tinha espaço
na frente com algumas mesas dispostas. Entrei e fiquei aliviada quando vi
que tinha acertado. Encontrei os conhecidos olhos azuis escuros me
observando de cenho franzido e fui pega de surpresa.
— O que faz aqui, pai?
Os olhos dele foram diretos para a cesta que eu carregava.
— Eu é que pergunto, o que faz aqui menina? E porque está
carregando esse chamariz para ataques?
Sentei na cadeira na mesma mesa onde ele estava, retirei calmamente
o chapéu que me protegia do sol, estava tentando ganhar tempo, afinal essa
era a primeira vez que eu saía para tão longe de casa, mesmo tendo os
soldados lá fora me escoltando como sempre, ainda assim eu sabia que não
devia ter arriscado tanto. Analisei o lugar varrendo tudo com olhos atentos,
mesmo tão simples, não era um local que aquela moça pudesse pagar.
— Fiquei sabendo que aqui estava a garota que estou procurando, me
disseram os guardas que viram uma moça da maneira que descrevi seguindo
em direção a esse bairro e como essa é a única estalagem, imaginei que a
encontraria por aqui. — Apontei com o queixo para a cesta que meu pai não
parava de olhar. — Trouxe para ela, pois está grávida. Havia lhe dito que
viesse me procurar, mas ela não apareceu e isso já faz quatro dias.
Ele assentiu e cruzou os braços esperando eu continuar, mas não falei
mais nada, pois era justamente essa a minha história, mas ele, no entanto,
parecia estar a todo custo evitando me dizer por que estava ali. Por fim ele
olhou ansioso para a porta e falou preocupado.
— Não deveria ter vindo aqui.
— Prometi ajudar a moça.
— Mas se ela não voltou como você pediu, é porque não queria ser
ajudada.
Ele até podia ter razão, mas devia estar no sangue a teimosia, afinal,
ele também vivia tentando ajudar o filho de Uzias. Acabei sorrindo e pisquei
de modo inocente.
— Faz dias que vejo você vindo nessa direção, sempre sem a farda,
você mesmo me contou de sua luta para tirar desse bairro o filho de Uzias e
pelos dias corridos e estando você aqui, imagino que não está sendo muito
fácil para convencê-lo a sair daqui. Então porque insiste? Creio que é o
mesmo dilema que o meu, não é?
Ele apertou os lábios tentando disfarçar a irritação. Continuei a esperar
uma resposta sobre isso. Logo ele recostou parecendo cansado.
— Ponto para você menina. Realmente está sendo difícil convencer o
rapaz, mas eu vou conseguir.
Estranhei os modos dele, tentava agir normal, falar calmo como
sempre, ainda assim percebi que seus olhos não paravam quietos, ele parecia
apreensivo vigiando a entrada a todo o momento. Logo ele levantou dando
mais olhada de soslaio a porta e me estendeu a mão.
— Venha Amélia, vou escoltar você até seu carro, acredito que não
veio andando, pois não?
Neguei. — Paguei um carro, mas não posso voltar pai, a moça…
Ele segurou meu braço me incentivando delicadamente a levantar.
Falou um pouco mais apressado do que o normal.
— Como é o nome dela?
— Ela me disse se chamar Jaci.
— Certo… Então vá Amélia, encontrarei essa garota e a levarei até
você.
Sem querer discutir com ele, levantei a cesta abrindo a boca para
explicar que era para dar a ela quando a encontrasse, mas não tive tempo.
Uma voz estranha e nada amistosa se fez ouvir.
— André, quem é essa?
— Esse aí é o Marcos? — Perguntei olhando curiosa para o rapaz sujo
na porta.
— Vem Amélia, depois te conto tudo.
Meu pai me puxou pela mão, mas o tal Marcos entrou na frente dele, e
seus olhos foram direto para a cesta que eu ainda estava segurando. Ele
trincou os dentes mostrando uma raiva absurda sem motivo aparente.
— Agora anda trazendo burguesas das castas altas com esmolas? Acha
que comprará nossa lealdade com… — Ele abriu a cesta e soltou a tampa em
seguida com raiva. — pães, geleias e embutidos?
Os modos dele de tratar meu pai me deixou irritada. Eu tinha
curiosidade de saber quem era o filho de Uzias, mas a decepção me veio
rápida. E como ele falou de mim, então automaticamente me incluiu na
conversa. Coloquei a cesta na mesa e me virei para ele com os olhos
apertados.
— O que disse?
Ele me encarou os olhos faiscando de ódio. — Isso mesmo que ouviu!
Veio aqui toda engomadinha trazendo essas... Essas porcarias! — Ele se
aproximou e me olhou em desafio. — Me responda em quê isso irá nos
ajudar? Quantas bocas acha que vai conseguir alimentar com essas merdas?
Como ele ousava falar assim comigo? Quem ele pensava que era para
tratar as pessoas desse jeito? Era tão soberbo em achar que as coisas na cesta
eram para ele? Ia ensinar a ele que o mundo não girava somente em torno
dele. Meu pai ele respondia com socos no olho, e comigo com julgamentos?
Completamente tomada pela raiva empurrei aquele peito sujo.
— É assim que agradece? É assim que trata as pessoas que querem te
ajudar?
Ele segurou meus pulsos com força. — Não ouse tentar me agredir,
não sou um escravo, não mais!
Sem ligar para a ameaça o empurrei de novo, ele deu dois passos para
trás, novamente o empurrei e ele trincou os dentes.
— É assim que tratavam os escravos antes? — Empurrei novamente
seu peito. — Ou os idiotas? Agora que eu saiba não empurro um escravo,
mas sim um idiota mal agradecido que destratou meu pai todas as vezes que
ele veio tentar te ajudar. Você está liberto é verdade, mas age feito um
escravo.
Ele nem parecia ligar mais aos empurrões, parecia agora distraído, até
um pouco perplexo.
— O que disse?
— Isso mesmo, um idiota que continua agindo feito um escravo com
esse orgulho sem sentido.
Ele balançou a mão sem paciência como se espantasse uma mosca. —
Essa parte eu ouvi, seu pai? Você disse que André é seu pai?
Estaquei o movimento. Oh céus! Na hora da raiva me esqueci das
recomendações de meu pai para tratá-lo como estranho quando o lugar
oferecesse perigo, e esse bairro me parecia perigoso o suficiente para que eu
não desse uma gafe dessas. Mas agora o mal já estava feito, cruzei os braços
na defensiva.
— E dai?
Ele balançou a cabeça. — Não pode ser, meu pai disse que você e sua
mãe…
— Mortas?
Ele assentiu sem dizer nada, ponderei o que dizer, todavia não tinha
porque essa preocupação toda. Esse cuidado era necessário antes quando meu
pai era escravo e o Tratado ainda estava arraigado na corrupção. Agora…
— Não. Eu e minha mãe vivemos no reino sombrio todo esse tempo,
saí do reino humano ainda criança e não tenho por hábito aceitar os costumes
daqui. Então não me chame de burguesa, muito menos engomadinha, me
ofendeu e me senti fútil. E não me trate como inimiga ou ao meu pai porque a
mim você não conhece e ele só quer te ajudar.
Ele cruzou os braços e me encarou fixamente, me lembrando com o
olhar os tantos empurrões que dei nele. Acabei olhando para os lados e me
dando conta de que não estávamos mais dentro da estalagem. Sem perceber
acabei o empurrando para fora do estabelecimento. Virei-me para ele, sorri e
falei com a minha famosa cara inocente.
— Acho melhor entrarmos.
Ele quase cuspiu as palavras ao passar por mim. — Você acha?
Meu pai me encontrou na porta e segurou meu braço, estava tenso,
mas não disse palavra até chegarmos à mesa. Sentou e esperou que eu fizesse
o mesmo, antes de sentar olhei feio para Marcos que já acomodado e ele
retribuiu a altura me encarando de cara amarrada. André suspirou parecendo
cansado, típico dele quando estava tentando manter a calma e buscando
paciência. Por fim ele olhou para o rapaz um tempo e então falou.
— Marcos essa é minha filha, Amélia. — Olhou para mim e
continuou. — Esse é Marcos, filho de Uzias.
Desnecessário ele fazer as apresentações formais tentando apaziguar o
clima, eu e Marcos não nos demos ao trabalho de trocar cordialidades. André
acabou se resignando a torcer a boca em desagrado e logo olhou sério para
Marcos.
— Muito bem, primeiro que sim, estou tentando te tirar daqui por um
pedido de seu pai. Quando voltei ao reino com o rei, havia uma carta dele que
estava com um dos guardas domésticos, endereçada a mim e nela ele me
pedia para cuidar de você caso ele não pudesse fazê-lo, ele sabia que era
perigoso, talvez até já imaginasse que não voltaria vivo da batalha, por isso
me sinto em dívida com ele.
Marcos soltou o ar ruidosamente. — Por isso você insiste em me tirar
de lá? E porque não me falou antes?
Meu pai assentiu em resposta. — Porque eu queria que viesse por
você mesmo.
Marcos assentiu sem mais nada a dizer, mas eu não entendi muito bem
e perguntei.
— De lá onde?
Marcos me olhou de viés, abriu a boca para responder, mas antes disso
meu pai jogou uma moeda para uma mulher robusta que se aproximava e
empurrou a cesta para ele.
— Pode não ser o que precisam, mas Amélia trouxe para uma moça
grávida chamada Jaci e acredito que você poderá ser humilde aceitando a
cesta e também honrado entregando ao destinatário.
Marcos ficou um pouco corado com aquelas palavras, por fim assentiu
sério e pegou a cesta. Nesse momento vi que ele era um poço de revolta, mas
não de maldade, de alguma forma, ele não me pareceu tão horrível quanto
pensei no inicio.
Sem dizer palavra André me escoltou até o coche e fechou a porta,
logo vi seu rosto pela janelinha do carro, ele estava montado.
— Vamos.
Deu a ordem ao cocheiro e eu afundei no banco, fiquei chateada por
não poder receber uma resposta.
Ele estava possesso comigo. Ou não era para eu ter perguntado nada,
ou não era para eu estar ali nesse dia. O que eu me considerava
completamente inocente já que não sou adivinha e não podia imaginar que
ele estivesse ali.
Nem adiantava ele ficar bravo comigo, afinal eu não fui xeretar os
assuntos deles e sim procurar uma moça grávida, então como eu podia
imaginar que ia acabar o encontrando?
Uma coisa era certa, quando ele estava muito bravo somente o silêncio
vinha dele e nem adiantava eu tentar perguntar nada. Mas que eu queria saber
onde era esse lá eu queria. E não ia ficar sem resposta, não mesmo.
Meu pai não permitiu que Marcos respondesse, então se eu não ia
conseguir respostas dele, ia buscá-las eu mesma.
Nada como esperado
Tiago
Amélia
O menino de recados estava demorando, olhei mais uma vez para a rua
de terra batida procurando avistá-lo entre os tantos que circulavam por ali.
Comecei a ficar preocupada se ele tinha mesmo ido levar o recado ou fugiu
com o pagamento.
Ele havia pedido o dinheiro adiantado, talvez por ver o estado das
minhas roupas e desacreditar que receberia depois do trabalho feito. Bom, se
eu olhasse pra mim mesma no espelho também desacreditaria que eu tivesse
condições de pagar qualquer coisa. Pelo menos o disfarce era bom, se
funcionaria eu só descobriria se o menino fizesse a parte dele.
Estava sentada no chão perto da estalagem com o chapéu puxado no
rosto. A mulher toda suja de gordura não tinha me deixado esperar lá dentro
porque segundo, ela eu estava fedendo e ia espantar os clientes.
Que insolente! Ela também não estava com o cheiro melhor que o
meu, e a estalagem dela nem tinha clientes!
— Está a minha procura, senhor?
Levei um susto, ele tinha chegado sem fazer nenhum barulho, mas
estava ali. Marcos finalmente estava ali, restava agora ele aceitar me ajudar
depois da animosidade do nosso primeiro encontro.
Levantei a cabeça preocupada com sua reação, mas ele não me
reconheceu! Por fim ao olhar mais de perto seus olhos se estreitaram
desconfiados, praguejei mentalmente, ele tinha me reconhecido sim, então o
disfarce não era tão bom assim.
— O quê! Menina o que faz aqui? E porque está usando essas roupas?
Levantei devagar, ele menção de me ajudar, mas depois de pensar um
pouco desistiu e abaixou a mão. Pisquei algumas vezes tentando encontrar as
palavras certas, por fim não havia.
— Preciso de sua ajuda.
Ele cruzou os braços em desafio e falou debochado. — Precisa é? Vai
me empurrar agora até que eu aceite te ajudar?
Ah que ótimo! Orgulhoso até a raiz dos cabelos. Cruzei também os
braços na defensiva e rebati no mesmo tom.
— Você mereceu, destratou o homem que está tentando te ajudar e
ainda veio com grosseria para cima de mim sem nem me conhecer.
Para minha surpresa ele assentiu e com o rosto amenizando um pouco
a carranca ele falou mais suave.
— Tem razão, exagerei um pouco, mas o que quer de mim?
Marcos era conhecido por todas as crianças, ainda assim nenhuma
delas havia aceitado me levar até ele, somente aceitaram trazê-lo a mim se ele
assim decidisse. Ele podia ser rabugento, mas claramente tinha o respeito
daquele povo mais humilde, se todos o conheciam então ele poderia
realmente me ajudar.
— Preciso saber onde é esse lá que meu pai não quis me contar.
Ele apertou os olhos tentando entender. — Lá? Que lá é esse?
Revirei os olhos sem paciência. — Se eu soubesse não estava
desesperada para descobrir, não acha?
Ele continuou confuso. — Olha não estou entendendo nada moça.
Respirei fundo e decidi esmiuçar a questão. — Quando ele te falou
sobre seu pai aqui na estalagem ontem, lembra?
Ele assentiu e eu continuei.
— Você perguntou a ele se era por isso que ele insistia tanto em te
tirar de lá, só que não deu detalhes. Contratei um informante e ele vasculhou
a vila dos procriadores procurando por Marcos filho de Uzias. Depois ele
procurou na casta neutra, ninguém sabia de sua existência.
Levantei os braços em exasperação, odiava minha curiosidade
exagerada, era como um ciclo que nunca se fechava se eu não a saciasse ela
me atormentaria com hipóteses e isso me deixava maluca. Ele continuou me
olhando cauteloso e terminei minha explanação quase chorosa.
— Como estamos na vila nova e você se referiu ao lugar como se ele
fosse distante daqui, quero saber onde é esse maldito lá que não consegui
encontrar.
Marcos continuou com o semblante fechado ao me encarar, logo seus
olhos castanhos e duros foram amaciando e seu rosto foi se contorcendo
então para minha surpresa ele começou uma risada baixa que logo virou
gargalhada. Cruzei os braços com força me sentindo chateada por ele rir de
mim e me segurando ao máximo para não enchê-lo de insultos.
Ele continuou rindo sem parar e não consegui ficar em silêncio.
— Porque está escarnecendo do que eu disse?
Ele segurou a barriga. — Por isso mesmo, céus não acredito nisso,
você correndo esse perigo todo, usando essas roupas sujas, sentada ai até
agora só para poder descobrir onde seria esse lá.
Ele olhou para mim ainda rindo. — Curiosa é o seu nome do meio,
certo?
Empinei o nariz para mostrar alguma dignidade, mas na verdade
estava me sentindo até um pouco ridícula, mas ele não ia entender, não
conseguiria saber os meus motivos.
— Não aceito ver meu pai me escondendo algo e era exatamente isso,
ele não queria que eu soubesse onde é esse lugar e isso me deixa com
sentimentos contraditórios, ele não é de esconder nada e acabo receosa de que
ele...
Marcos fechou a cara na mesma hora, a risada morreu em seus lábios.
— Seu pai é o homem mais honrado que eu conheci Amélia. Você
como filha dele não deveria estar desconfiando da integridade que ele tem.
Abaixei a cabeça constrangida com esse puxão de orelha.
— Tudo isso que disse, você tem razão, mas não é de meu pai que
desconfio, ele tem o rei como filho. Mesmo que ele não participe de nenhuma
corrupção, pode fazer coisas horríveis por amor a ele, eu sei disso, meu pai é
tão honrado ao ponto disso, entende?
Ele assentiu. — Entendi, talvez ele até esconda mais coisas do que
você imagina ou precise fazer coisas da qual não aprove ou goste, mas não o
deixa errado de qualquer forma, ele deve fidelidade ao rei, é um mal referente
ao cargo que ele detém. Só que especialmente nessa questão, eu acredito que
não é por isso que ele não te contou.
Balancei a cabeça e fiquei confusa. — Então porque ele esconderia?
Ele pensou por um momento. — É melhor você ver com seus próprios
olhos, acho que vai entender os motivos dele.
Uma onda nervosa passou por mim, o que poderia ser pior do que eu
tinha visto naquela vila chamada vila dos Procriadores onde a escola que eu
daria aula era vizinha?
Marcos manteve a mão estendida me olhando firme, acabei por
segurar sua mão e em silêncio ele seguiu para o fim da vila nova. Estranhei
esse caminho, a frente não dava para ver nada, somente o imenso muro que
segundo me contaram era a antiga prisão dos leviatãs, criaturas que eu nunca
tinha visto, só ouvido falar de sua existência, nem mesmo aquela prisão eu
tinha visto, somente sabia que era ali que eles viviam reclusos por questão de
segurança.
A imensa muralha à frente era onde o reino humano terminava, ainda
assim o segui curiosa. Logo à frente quando as casas não mais atrapalhavam
a visão eu pude ver a abertura na muralha, havia somente o lugar aberto onde
deveria ter imensos portões, mas eles haviam sido arrancados.
Quanto mais nos aproximávamos daquela abertura, mais eu tinha a
sensação que íamos sair do reino humano.
— Que lugar é esse, Marcos?
— Aqui agora é a nova vila do reino humano. Mulheres que eram do
harém, recém-libertos, antigas prostitutas que foram colocadas nas ruas
quando as casas de diversão foram fechadas, velhos, e muitos, muitos órfãos
e desocupados. Enfim… todos os miseráveis estão aqui.
Ele olhou para mim. — Muitas mulheres grávidas estão aqui também.
Arfei, havia mais deles então? Mesmo com tantos pedintes nas ruas e
com aquela vila tão pobre da casta dois apilhada de gente, ainda havia mais
deles ali. Isso parecia não ter fim, até onde a miséria estava alastrada no reino
Humanis?
— Encontrou alguma moça chamada Jaci entre as grávidas.
Ele negou. — Sinto muito, nenhuma delas tinha esse nome, e a cesta
bem... As crianças tiveram prioridade quanto a isso, a única fartura aqui é de
miséria então, não pude guardar o que mandou para essa moça.
Fiz um gesto que não me importava com isso e acabei não
conseguindo dizer palavra, o segui em silêncio, talvez isso fosse uma boa
notícia, por fim Jaci deveria ter encontrado algum lugar para ficar que não
fosse ali.
Nova vila... Agora eu estava ainda mais curiosa. Quando entramos, os
olhos das pessoas que estavam próximas ao portão se viraram para mim. Me
aproximei do braço de Marcos e continuei andando um pouco encolhida.
— Eles não irão te machucar Amélia. — Ele parou e me encarou
preocupado. — Se quiser voltar, eu te levo para casa. Esse aqui é o começo,
vai ver coisas piores à frente.
Neguei rapidamente, eu estava impressionada era verdade, mas
Marcos não poderia entender o que passava pela minha cabeça se eu não
tentasse explicar a ele. Limpei a garganta e me afastei um pouquinho.
— Quando eu vivia na Vila do senhor Odair, eu cuidava das crianças e
dos doentes. Cheguei a viajar de uma vila a outra para ajudar os que
precisavam e eu sempre gostei muito do que fazia. Então quando eu disse ao
meu pai que viria para o reino humano deixei claro que também viria
unicamente para ajudar os menos favorecidos, porém achei que essas pessoas
estavam na vila da Procriação, por isso foi lá o primeiro lugar que pensei em
ajudar, mas se tem pessoas em estado pior, eu quero saber.
— E o que fará por eles? Você é uma…
O olhei mordaz já prevendo o que ele ia dizer, já tinha ouvido isso na
rua de homens estranhos, até mesmo no Mercado colorido quando fui passear
e tentei regatear preços. — Mulher? Por favor, não seja como os outros.
Ele balançou a cabeça me olhando como se eu fosse tola, o que já
estava se tornando costumeiro, olhares assim para mim era quase um
cumprimento diário.
— Pessoa... Eu ia dizer que você é uma só, não pode ajudá-los
sozinha. E não me julgue baseado nos costumes dos homens do reino
humano, assim como disse que ajo como um escravo, você achou que eu ia
dizer que você é uma mulher, então está agindo com inferioridade ficando na
defensiva, e mesmo que eu fosse dizer que você é só uma mulher e por isso
não poderia ajudar esse povo, eu não estaria de todo errado, certo?
Apertei os lábios para esconder que estava chateada porque ele estava
repleto de razão. Com um meio sorriso ao ver minha cara de aluna mal criada
ele continuou.
— Se agir assim não conseguirá ajudar ninguém, não esqueça que
você veio do mundo sombrio, mas todos aqui cresceram pelas leis do reino
Humanis, então não ajudará nada você impor os seus costumes. Tudo leva
tempo, até mesmo o tratamento e o respeito que espera.
Assenti derrotada, ele tinha razão. — Me desculpe. A pior coisa para
mim aqui é a maneira como tratam as mulheres. Mas você tem razão, por fim
acho que devo desculpas a meu pai também.
Ele assentiu. — Acho que deve.
Seguimos em silêncio depois disso, pude então olhar com atenção
aquele lugar.
A floresta tão densa era perto, o lugar na verdade mais parecia uma
clareira de chão muito batido e cercado por imensas muralhas. Algumas
árvores próximas tinham sido cortadas e vários troncos estavam empilhados,
me pareceu um plano futuro de alguma construção. Algumas partes perto das
árvores que dominavam quase toda a visão a frente, também haviam sido
limpas recentemente, e algumas ferramentas velhas jaziam largadas naquele
lugar cheio de terra revirada.
— Pensam em construir algo? — Apontei com o queixo e Marcos
seguiu meu olhar, por fim balançou a cabeça.
— É um plano, mas está sendo um trabalho demorado, o pouco
dinheiro que conseguimos é necessário reverter em comida, então não sobra
para comprarmos ferramentas.
Estamos revezando entre um machado e uma enxada que conseguimos
em troca de alguns trabalhos. Também fizemos algumas ferramentas com
coisas encontradas no lixo, mas não é tão eficaz e o progresso é lento. E não
podemos contar com doações já que todos que vem pra cá, trazem sempre a
mesma coisa, apenas as roupas do corpo e a barriga vazia.
Balancei a cabeça ficando sentida pela precariedade, apesar do metal
não ser tão abundante, depois da batalha sombria e com a paz entre as raças
restaurada, muitas armas foram destruídas e transformadas em ferramentas.
Sem contar as fazendas externas que proviam essas necessidades
constantemente. Então era um produto simples e vendido a preço
relativamente em conta no mercado colorido ou mesmo nas pequenas
ferrarias e o povo desse novo bairro não conseguia comprar.
Não era justo que eles não tivessem nem mesmo as ferramentas para
tentar se erguer, assim não iam conseguir concretizar nada.
Fiz uma nota mental de usar a mesada que meu pai havia me
prometido para minhas coisas particulares e comprar algumas ferramentas
para Marcos no lugar de subterfúgios. Talvez alguns pregos e martelos, quem
sabe também alguns tecidos e sementes, algumas enxadas descentes e alguns
machados...
Parei de devanear por um momento quando vi um grupinho de
crianças à frente acocoradas em volta de algo. Sorri com ternura, pelo menos
estavam brincando e esquecendo um pouco a gastura da pobreza. Quando nos
aproximamos um pouco mais o sorriso morreu em meus lábios e tomei um
susto.
Eles mastigavam carne crua e era de um gato morto. A bílis subiu por
meu estômago. Tanto pelo animal quanto pela cena em si.
— Não pode ser.
Marcos olhou para eles e levantou os ombros. — Pelo menos estão
comendo alguma coisa. As crianças tem a personalidade bela e livre,
diferentemente da avareza dos adultos. E as que vivem aqui são unidas, elas
dividem entre elas o que conseguem sem ficarem receosas sobre o dia
seguinte e sem pensar se vão sentir fome depois.
Sorri vacilante, entendendo a união das crianças, porém não muito
certa sobre a beleza na divisão de um gato morto. Marcos soltou um suspiro
parecendo cansado.
— O problema na verdade são as mulheres que vieram do harém. Com
elas é o inferno na terra.
Estranhei esse comentário. — O que elas fazem de tão ruim?
Enquanto caminhávamos não conseguia parar de olhar para trás e
mesmo sem querer aumentei a lista mental que estava fazendo.
Algumas sementes para plantio, algumas sacas de trigo e aveia, quem
sabe tendo pelo menos um pão garantido por dia eles deixassem os gatos
vivos, por fim... Me esqueci dos primeiros itens.
Definitivamente teria que anotar tudo em um papel, nota mental não ia
dar certo. Estava realmente ficando grande a lista e meu dinheiro que eu nem
sabia quanto ia ser agora parecia curto, não ia dar para tanta coisa.
Marcos, inocente da pequena luz de esperança que brotava dentro de
mim e dos pequenos planos que minha mente inquieta começava a criar,
continuou falando distraído.
— Elas brigam demais, tomam dos outros, se engalfinham, batem nas
crianças, judiam dos velhos. — Ele suspirou. — São insuportáveis.
Assenti pensativa. — Entendo. Muitas delas vieram da pobreza, porém
conheceram o luxo, acho que isso as mudou um pouco.
— Verdade. — Ele revirou os olhos. — Ainda assim são uns
demônios. Não as suporto.
Não consegui evitar a risada. — E as grávidas?
— Não são muitas, tentamos as deixar confortáveis, mas também não
ajudam muito. Reclamam demais e acham que por estarem grávidas merecem
mais privilégios que os outros, mesmo vendo o sofrimento das crianças e dos
idosos ainda pensam somente nelas mesmas. Entendo que elas precisam de
algumas atenções extras, mas um idoso e uma criança precisam da mesma
atenção porque são frágeis também. Enfim… Elas são egoístas e
sinceramente não dá para ficar mimando mulheres fúteis em um lugar como
esse.
Fiquei revoltada com o abandono deles, largados ali como animais
com uma doença contagiosa. — Porque não fazem nada por vocês Marcos?
Ele me olhou de viés. — Não culpe seu rei, antes que o faça, já digo
que deve culpar é o conselho. André me disse que em várias reuniões ele
falou sobre o abandono dos mais pobres. E a resposta que teve do conselho
foi o pedido de um prazo para pensar em projetos que beneficiem os órfãos
do tratado, é assim que eles nos chamam.
O rei está cansado do conselho porque eles só querem falar sobre a
revolta dos ricos. A única ideia sobre nós veio de um completo desconhecido,
se fosse colocado mesmo em prática poderia mesmo ajudar muitos, mas...
Acreditei que não era sobre a horta que ele estava falando, parecia
uma ação mais importante, algo mais substancial.
— Sabe o que seria?
— Algo sobre usar as fazendas abandonadas pela baixa na batalha
sombria.
— Ah! Era sobre a horta comunitária. A minha ideia reformulada e
maravilhosamente aprimorada por meu pai e Tiago.
— Desconhecido?
Marcos levantou os ombros. — Foi o que disseram, que a ideia veio
de uma pessoa que sequer viveu aqui, mas que deu um pontapé para eles
pensarem nas fazendas externas como uma boa maneira de fazer prosperar
mais gente.
Disfarcei meu sorriso. Não importava que não soubessem que eu era a
autora do projeto inicial. Para mim o mais importante era ver o reino que meu
pai estava lutando tanto ao lado de Tiago para salvar, finalmente conseguindo
diminuir a desigualdade gritante das massas. Porém era estranho que Marcos
ali tão distante de tudo, estivesse tão bem informado.
— Como você sabe de tudo isso?
Ele olhou para mim e sorriu. — Seu pai não veio aqui todos esses
meses somente para tomar chá, claro que se fosse para isso ele ia sair daqui
triste porque não temos chá.
Rimos, eu estava completamente descontraída, Marcos não era tão
brusco quanto pensei. Na verdade ele tinha um sorriso agradável e até mesmo
uma conversa fácil.
Então porque será que ele se irritava com meu pai sempre socando o
olho dele em resposta as ofertas que ele trazia? Essa parte eu não conseguia
entender. Mas como boa menina eu não ia atiçar o rapaz, não quando a
conversa estava agradável e quando ele parecia disposto a falar.
— Você fala bem Marcos, parece letrado.
Ele assentiu. — Quando eu era escravo seu pai sempre me entregava
livros, trazia alguns para meu pai também. Como os dois eram criados do
príncipe e eu servia cortando lenha para o funcionamento da cozinha e do
aquecimento interno, nós tínhamos contato, então André me ensinou o
básico, o resto aprendi sozinho. Você sabe que ele não foi escravo a vida
toda, né?
Balancei a cabeça assentindo. — A última lembrança que tive por
anos foi de meu pai ainda fardado nos tirando daquela carroça. Ele lutou com
os soldados, os matou e nos colocou na garupa do cavalo. Usou a espada para
libertar o cavalo da carroça e o montou em pelo. Me lembro dele gritando
para as mulheres encontrarem ajuda e saírem da estrada. Não olhou para trás,
não as ajudou. Na época eu chorei muito ao vê-las sendo deixadas para trás.
A última coisa que ele me disse antes de partir foi para eu ser uma boa
pessoa, disse que o mundo poderia estar porco, mas eu tinha que absorver o
que era bom e que eu esquecesse as mulheres, pois não havia outro jeito de
nos salvar naquela estrada senão as deixando por conta própria.
Quando cresci, me lembrava da cena e comecei a refletir o que eu teria
feito no lugar dele, então passei a entender que ele não podia ajudar todas
elas, o foco dele era minha mãe e eu. Até hoje imagino o que aconteceu com
elas. E nunca esqueci a fúria que vi em seus olhos quando nos encontrou na
estrada. Nunca o vi tão imenso e tão forte, jamais esqueci aquela imagem
dele.
Marcos assentiu olhando a frente, o semblante sério.
— Por isso Amélia, André não merece que desconfie dele.
— Mas vendo tanta miséria, minha preocupação é por causa da
política, entende? Ele é conselheiro do rei, é natural que eu tenha receio.
Marcos assentiu como se me entendesse melhor do que demonstrava.
— Nem mesmo o rei tem culpa do que está acontecendo Amélia, pois
querendo ou não ele fez o que achava certo. Você chegou agora e por isso
não sabe como tudo funciona, mas vou lhe adiantar que todo o mal desse
reino vem das duas castas mais altas. Toda a riqueza está concentrada nela e
toda a ambição também, e isso nos torna fracos e eles fortes. Simplificando
para você, é difícil seguir a vida quando não temos nada e eles, os ricos,
continuam a tentar nos deixar com menos ainda.
Era verdade, não pude deixar de concordar com ele. — Meu pai havia
dito que as mudanças também beneficiaram a coroa já que todas as castas
deviam pagar impostos.
Marcos me corrigiu. — Não todas. Essa regra isenta os escravos por
dois anos.
Não respondi. Ainda assim não era justo ver as crianças comendo
animais mortos e crus.
— Chegamos à sede dos órfãos do tratado.
Marcos sorriu apontando a entrada de uma caverna natural e eu levei a
mão à boca dramaticamente fingindo deslumbre para a paupérrima abertura.
— Oh!
Ele riu. — Sim, pode ficar estupefata. Também temos uma mansão,
está pensando o quê! Somos ricos!
Eu ri com gosto, algo dentro de mim começava a gritar desesperado
para ter minha atenção. Um sentimento morno por aquelas pessoas, para
aquela alegria despretensiosa de Marcos que mostrava um prelúdio do que
seria para esse povo obter um pouco mais para viver. A pequena luz virando
um facho tão luminoso que estava difícil de ser ignorado. Meu lado
aventureiro, sonhador e humano estava me dominando completamente.
Quase todo o tempo eu fui como uma curandeira das vilas sombrias,
cumpri minha tarefa por amor, por agradecimento aos ensinamentos do
senhor Odair, porém foi depois de muito tempo que eu soube que ele dedicou
a mim uma educação especial porque eu era filha de André, o filho adotivo
do senhor Dimitri. Mas me valeu muito seus ensinamentos a educação e
valores que ele me ensinou.
Porque eu aprendi a empatia pelo sofrimento dos meus pacientes. E
agora vendo tantos rostos sofridos era como ver pessoas doentes precisando
de cuidados e com isso as possibilidades se projetavam a minha frente. Cada
vez que via a alegria nos olhos de Marcos, o sorriso fácil mesmo com tantas
intempéries, uma gana por ajudar a mudar aquele lugar crescia dentro de
mim, uma necessidade de usar meus braços finos para lutar por eles.
Não poderia ser tão difícil, só precisava de organização e colaboração
de todos. Só precisava de uma pessoa com contatos e coragem para pedir
coisas a quem tinha de sobra para dividir, e esse alguém era eu.
E nem precisava de muito para começar algo. Talvez algumas
sementes e algumas ferramentas para cultivar o básico. E o principal, angariar
patrocinadores. Pessoas dispostas a dispor de um pouquinho de sua riqueza
para ajudar aquele povo sem nada, qualquer pouquinho seria muito. Quem
sabe… Quando se tem somente nada, qualquer coisa é possível porque se
torna uma evolução sentida por todos.
Olhei para Marcos com a ideia grudada em minha alma, agitando uma
felicidade plena de um sonho que iniciou com uma pequena lista mental e
agora estava se tornando apoteótico em minha mente. Segurei sua mão e o
levei para a saída da caverna, olhei mais uma vez para aquele lugar
consolidando minha euforia.
— Você é quem lida com eles? Você é o líder?
Ele negou. — Eles me escutam. Apenas isso.
— Sim, mas então você é o mais perto de um líder que eles têm.
Certo?
Ele ficou um pouco sem graça. — Digamos que sim.
Meu coração se encheu de expectativa. — Me aceita como nova
inquilina? Quero morar aqui.
Ele me olhou assustado e gaguejou. — O… O que está dizendo? Não
pode ficar aqui Amélia. Você tem condições de ter uma boa vida. André
agora é general e o rendimento mensal desse cargo é alto. Você pode ter a
melhor casa que quiser, também tem o apoio do rei.
Eu não mudei meu olhar de certeza, e agora ele suspirou quase
desesperado com meu pedido e eu segurei meu sorriso, pelo menos ele não
negou logo de cara, ele esperou eu falar algo, mantive meu olhar de certeza e
ele revirou os olhos.
— André me disse que você ia montar uma escola e o rei lhe deu carta
branca e até mandou preparar alguns móveis, você vai largar tudo isso?
Balancei a cabeça. — Me escute...
Ele parou de falar e eu escolhi as palavras com cuidado para fazê-lo
me entender, talvez existisse uma pessoa nesse mundo que conseguisse me
entender e quem sabe seria ele.
— Porque você não quer sair daqui? Você também não precisa viver
aqui, seu pai morreu como herói na guerra sombria. Meu pai me disse que
você tem direito a uma casta bem mais alta e assim poderia conseguir até
mesmo uma fazenda somente para você. Até mesmo pode ter um cargo
militar se quiser. Ainda assim, negou todas às vezes. Por quê?
Ele olhou pensativo para os lados, depois seus olhos foram para mais
longe e fixaram no amontoado de crianças que se aqueciam em volta de uma
fogueira fraca e fumarenta.
— Não posso levar todos comigo, eles não caberiam em uma fazenda
por maior que ela fosse. Aqui é maior, muito maior na verdade. Se você
pudesse andar por toda essa prisão como eu andei, veria que ela é imensa,
apesar de parecer pequena já que podemos ver apenas o pedaço limpo, mas
eu vasculhei tudo e posso afirmar sem titubear que o território dos Leviatãs
seguramente dá quase um terço do reino Humanis. Aqui pode ser o recomeço
para todos sem a necessidade de escolher um punhado para privilegiar, por
isso que não saio daqui, porque essa prisão que um dia foi o território de
criaturas medonhas, agora pode ser considerado uma terra de esperanças para
todos os miseráveis. Tem lugar para todos aqui.
A surpresa com a informação me deixou muda. Ele continuou falando
compreendendo que eu não esperava por aquilo.
— Mais pessoas irão vir Amélia, eu sei que sim, pois o reino Humanis
está recomeçando. O número de miseráveis é esmagador em relação aos mais
abastados, entende? Diariamente os ricos reduzem os gastos diminuindo a
mão de obra doméstica. Não há emprego para todos da casta dois e não vai
demorar para que muitos deles precisem sair de suas casas alugadas. Ou
mesmo alguns pais irão abandonar mais de seus filhos e com certeza aqui
será o refúgio deles.
A corrupção e egoísmo ainda são dominantes nesse reino, não é por
conta de umas leis recentes que as pessoas deixarão de ser cruéis. Pense que
até alguns meses atrás eles vendiam seus filhos sem pensar duas vezes. Acha
mesmo que irão pensar melhor antes de abandoná-los a toda sorte na rua já
que agora não darão mais lucros?
Marcos soltou um suspiro e eu reconheci aquele olhar sonhador.
— Quero ajuda-los, Amélia. Sofri com eles como escravo. Vou estar
aqui com eles como um homem livre, e se para isso eu precisar enfrentar a
miséria o farei ao lado deles. Nenhum cargo ou mesmo benefícios que eu
viesse a receber em honra ao meu pai, seria suficiente para fazer algo por
eles, então ficarei e pensarei em meios para levantar esse lugar e melhorar a
vida deles e a minha também.
Falei com a voz embargada, ele tinha o mesmo sentimento que eu...
As mesmas crenças, ele poderia me entender sem me julgar.
— Tem quantos anos, Marcos?
—Vinte e cinco, por quê?
Sorri amistosa com mais aquela coincidência. — Temos quase a
mesma idade. E para combinar, temos as mesmas ideias e pensamentos.
Nunca fui escrava, nunca fui submetida a torturas porque tive sorte de ter um
pai protetor que sacrificou a própria liberdade para assegurar a minha e da
minha mãe. Mas ouvi muitas histórias das famílias no reino sombrio, lá eu
pude conhecer o significado da bondade. Recebi ajuda para cuidar de minha
mãe dos vizinhos na vila do senhor Odair. Vivi sem luxos, porém não passei
fome, nem frio e tive humanos bons como vizinhos então sei que a bondade
vem com atitude e exemplos e um pouco de regras, simples, mas eficazes.
Ele me ouvia com atenção e isso me deu esperanças, acabei pedindo
cheia de expectativas. — Me deixe ajudar. Eu preciso encontrar meu lugar
aqui nesse reino e não é entre os mais abastados, senão tudo o que minha
família passou terá sido em vão, meu pai foi escravo e minha mãe morreu
sem conhecer o respeito dos de sua própria raça e eu preciso disso para saber
que valeu a pena tanto sacrifício, preciso honrar isso de alguma forma. Se eu
tenho tanta influência com o rei como você diz, serei útil à causa.
Ele apertou os olhos para mim. — Vai extorquir o rei?
Cerrei os olhos e levantei os ombros sem me importar com o
julgamento.
— Não preciso extorquir, posso pedir com a maior cara de pau. Se ele
me deu carta branca para a escola pode me apoiar patrocinando mesmo que
seja com pouco recurso aqui, não é mesmo? E ele me deu aquele lugar, de
todo modo se não me ajudar, eu encontro um jeito, como eu disse... Sou bem
cara de pau quando quero.
Marcos negou veemente. — Você não entende? Ele pode achar que é
uma afronta, que aqui somos um bando de rebeldes, que de alguma forma
iremos nos levantar contra a segurança do reino se ganharmos força.
Fiquei chateada com o que ele disse. — Marcos, eu posso julgar
Tiago, você não pode, entendeu? Tiago vai entender que a força aliada está
entre os mais humildes, pois são maioria e consequentemente mais fortes,
mas eles precisam sentir a gratidão de receber apoio primeiro.
Marcos me olhou de viés, mas não objetou sobre minha defesa ao rei,
continuou seu argumento sobre minha ideia. — Isso não quer dizer que ele vá
colaborar com algo Amélia, quem garante que ele não vá punir vários de nós
antes de ver isso que você está vendo?
Neguei com a cabeça, ele não o conhecia como eu. — Ele é bom, não
irá castigar esses coitados. Ele tem um gênio impossível, faz as coisas sem
analisar primeiro, age feito idiota, mas não é cruel.
Marcos riu e me olhou cheio de compreensão. — Como pode ter tanta
certeza?
Fiquei com raiva de ele ainda desconfiar de Tiago. — Porque eu o
amo. E eu não amaria um maldito tirano!
Menina esperta
Tiago
André
Amélia
Tiago
Me ama... Eu poderia jurar que ela tinha dito isso, ou poderia ser a
necessidade desesperada de meu coração por ser correspondido, mas mesmo
ser ter certeza isso me afetou de tal modo que eu não consegui controlar
minha ansiedade e sentimento de posse.
O ciúme me dominou quando vi sua desenvoltura ao conversar com
esse tal de Marcos, a facilidade com que eles se entendiam me irritou e acabei
maquiando esses sentimentos possessivos com a minha preocupação que
apesar de verdadeira não era o motivo para meus excessos idiotas.
E aquele toque tão singelo dela em meu ombro... Ela estava tão perto
que eu poderia tomá-la nos braços e esquecer até mesmo o motivo que me
levou ali, precisei fazer imenso esforço para não fazer loucura, porém para
ajudar meu raciocínio a falhar completamente, ela não parava de me encarar
com aqueles olhos enormes e azuis que me deixavam ébrio de sentimentos
conflitantes. Amor, raiva e ciúmes brigando dentro de mim me fazendo como
sempre, falar merdas sem pensar.
Mas como eu podia me controlar a vendo conversando tão desenvolta
com o filho de Uzias?
E agora, enquanto observava impotente ela tomar distancia, sentia
ribombar em meu estômago o receio de que tinha acabado completamente
com qualquer chance. Maldição! Como pude ser tão rude a afastando ainda
mais de mim quando na verdade eu queria era me aproximar mais e mais?
Mas eu não estava de todo errado, realmente era perigoso, aliás, mais
perigoso do que ela podia imaginar, ainda assim isso agora não tinha
importância, pois novamente falhei na parte de apoiá-la. Mas como eu iria
explicar a ela o profundo ódio que os de casta mais alta sentiam por mim e
por André? E que aqui tão distante ela seria uma presa fácil? E como eu
poderia explicar que sentia uma fúria insana só de imaginar ela ao lado de
outro homem que não fosse eu?
Mas que merda de sentimento de posse que me fazia ter medo de
perdê-la, será que ela não entendia a proporção da crueldade dos meus
inimigos? Quando ela ia entender que para eles não haveria limites já que
consideravam as mulheres meros objetos? Eu poderia estar agindo errado e
não sabendo como expor o que sentia em palavras, pelo menos palavras
adequadas e menos duras, mas eu jamais iria permitir que a usassem para me
ferir, que a ferissem para me machucar porque é isso que vai acontecer, se
alguma coisa acontecer a ela eu nunca conseguiria me perdoar.
Mas... Será que eu estava certo ao privá-la de liberdade por conta do
sentimento de ódio que tinham por ela e que ela nem sabia existir?
Soltei um longo suspiro me sentindo derrotado por minhas dúvidas.
Sempre que eu tentava explicar a ela que eu queria protegê-la de meus
inimigos, eu usava de palavras erradas e acabava a ferindo. E isso já estava a
tomar proporções dantescas, eu tinha que fazer alguma coisa. Não podia
prendê-la isso já estava se tornando ridículo! E se eu não podia controlá-la
então teria que pelo menos dar a ela um local descente. Olhei para a caverna e
franzi o nariz.
Não... Nesse buraco cheio de umidade e panos sujos ela não ia ficar.
Eu não sabia lidar com ela ainda, menos ainda com os sentimentos que tinha
por ela, mas cuidar dela eu ia, mesmo que fosse de longe.
Em minha comiseração acabei me esquecendo de Marcos que me
olhava esperando com dignidade a maldita conversa que eu havia dito que
iriamos ter, mas agora isso não parecia ter importância, na verdade nem me
lembrava do assunto, a única coisa que tomava meus pensamentos naquele
momento eram aqueles olhos magoados de Amélia.
Limpei a garganta, ainda assim minha voz saiu embargada. — Há
outro cavalo por aqui?
Marcos anuiu. — Sim há.
— Pode me arrumar?
Novamente levando dois dedos à boca ele soltou um assobio e o
mesmo garoto veio agora trotando em um cavalo castanho. Enquanto
esperava perguntei só para confirmar.
— A menina que me trouxe aqui, disse que as moedas vão para você.
Ele assentiu sem se abalar. — Todo o recurso que entra é revertido em
comida.
— Os adultos também ajudam?
Ele assentiu novamente. — Para as crianças é mais fácil por conta dos
trabalhos nas ruas, geralmente recados entregues, mas aqui todos caçam pela
floresta e tentam arrumar o que fazer para conseguir alguma coisa. Mas são
bocas demais então...
— E é verdade que vocês comem os cavalos?
Ele riu. — Sim. Mas não os matamos, as crianças gostam deles, já
comemos um que encontramos já muito velho e morreu pouco depois que
trouxemos para cá.
Não soube o que responder sobre isso. Nem deu tempo de formular
algo, o garoto apareceu.
— Seus cavalariços são melhores que os meus.
Marcos olhou orgulhoso para o menino. — As crianças gostam de
brincar com eles, vivem em cima deles, mas respeitam quando precisamos
usá-los.
Olhei o menino sorrindo e batendo no pescoço do animal com carinho.
— Mandarei trazê-lo de volta para vocês.
Marcos me olhou sério. — Majestade, irei com o senhor se me
permitir.
Não respondi apenas concordei com a cabeça, porém logo me decidi e
me virei para ele. — Preciso alcançar Amélia, mas estarei esperando no
castelo mais tarde.
Ele me olhou um pouco desconfiado, puxei o ar e soltei com força.
— Não irei torturá-lo ou arrancar a sua pele pelo amor de Deus! É só
uma maldita conversa franca. Quero saber sobre isso da Amélia vir morar
aqui e o que podemos fazer para que ela não viva nesse buraco aí. — Apontei
a caverna malcheirosa — Não a quero vivendo sem o mínimo de conforto,
disso não abro mão.
Ele meneou a cabeça. — Chegarei logo então.
Montei e antes de sair remexi no bolso, não podia sair sem fazer isso.
Peguei o saquinho com as moedas que me sobraram, já que aquela espertinha
levou uma boa quantia e joguei na direção de Marcos.
— Compre comida para essas crianças e deixem os cavalos delas em
paz.
Ele assentiu sério. — Obrigado majestade.
Incitei o cavalo, era velho, todavia era um animal melhor do que
aquele que Amélia havia montado, a alcançaria logo… Ele começou a trotar
com dificuldade, mancando um pouco. Suspirei desanimado… Ou não a
alcançaria tão fácil assim, ele estava quase morto. Forcei o trote, não ia
desistir de alcançá-la, mas também não queria matar o pobre cavalo daquelas
crianças, isso seria cruel. E ainda por minha culpa ele seria devorado.
Logo à frente, a escolta que eu havia pedido me esperava. Desci do
cavalo e perguntei para todos e nenhum ao mesmo tempo.
— Passou uma mulher montada por aqui?
Eles negaram e um soldado falou. — Apenas um senhor franzino e
sujo que passou por aqui há pouco, estava montado em uma pangaré quase
morto.
Era Amélia, que idiotas! Apontei para o soldado.
— Me dê esse cavalo.
Sem discutir ele desceu me entregando as rédeas, entreguei a ele a
corda do outro e não deixei de recomendar enquanto montava.
— Você use a carruagem, nada de judiar desse animal. Entregue ele
aos estábulos e mande alimentá-lo e mande cuidarem da pata ferida. Se ele
morrer, um de vocês irá pagar caro por isso.
O homem avaliou o animal desnutrido de cenho franzido tentando
encontrar nele algum valor. Realmente não tinha, não para mim ou os
soldados, somente para aquelas crianças e isso já me bastava.
Forcei o trote e o vento logo bateu em meu rosto, esse garanhão sim
corria. Não ia demorar muito e a alcançaria.
Eu tinha que resolver isso. Uma vez Diana havia me dito que eu
merecia uma mulher que me fizesse feliz, que eu merecia encontrar o amor e
agora, depois que finamente encontrei o amor, a felicidade não veio junto. Na
verdade só existiram rusgas desde que nos conhecemos e sou ciente que
muito dessas brigas era por minha culpa, eu não media minhas palavras e
acabava sempre deixando meu lado possessivo tomar conta, meu ciúme idiota
e também minha mania de achar que mulher não tem capacidade de realizar
alguns feitos, principalmente as que eu tenho sentimentos.
O problema é que só depois que eu cometia o erro que eu refletia
sobre isso, e então Diana me vinha à mente. Ela também lutou, nunca deixou
de ser feminina mesmo quando maquinava várias maneiras de enganar tanto
meu pai quanto Samuel. E ela conseguiu muitos feitos sem levantar uma
arma, sem usar luta física e agora, mesmo depois dessa lição, mesmo depois
de ter aprendido um pouco a ser menos idiota com Diana, eu ainda tinha
muito a aprender.
Mas com Amélia era diferente, todas as sensações pareciam
multiplicadas e perto dela isso potencializava de tal forma que eu sempre
tinha reações mais intensas, mais explosivas, ela me preocupava em excesso,
me enraivecia mais rápido, me fazia querer beijá-la a todo o momento,
enfim... Me punha louco e isso estava ficando complicado, eu precisava
encontrar um meio de entendê-la.
Não demorou muito e eu já conseguia ver o cavalo cinza se
aproximando. Forcei um pouco mais e diminui a distância. Logo estava
emparelhado com o dela. Ela nem me olhou, apenas gritou.
— Me deixe em paz Tiago.
Se fosse fácil eu já teria feito isso há meses, mas não era. Meu coração
teimoso insistia em ficar perto. Insistia em mendigar migalhas de atenção.
Estiquei o braço e a enlacei pela cintura, ela soltou um grito de susto e
protesto e com um movimento rápido eu a trouxe para meu cavalo que
resfolegou por um momento assustado com o movimento, mas logo retornou
ao ritmo.
Amélia se ajeitou a minha frente e para aumentar minha angústia ela
nada disse. Droga, ela estava mesmo magoada. Não resisti, tinha que saber...
— O que eu fiz agora? Fui exagerado em qual parte? Diga-me para eu
pedir perdão e não fazer novamente.
Para o meu martírio ser ainda maior, ela tirou o chapéu velho de seu
disfarce e o vento me trouxe o cheiro gostoso de seus cabelos. Revirei os
olhos, que ótimo, estava mais fácil quando o cheiro ruim do chapéu vinha a
mim.
Completamente tomado de paixão apertei ainda mais sua cintura e
sussurrei me sentindo torturado. — Esse é o meu castigo?
Seu corpo enrijeceu com o contato, o meu já estava rígido, mais ainda
abaixo do ventre. Se ela soubesse que apenas essa proximidade estava sendo
a minha morte teria piedade de mim. Esperei alguma atitude, um gesto brusco
para me afastar, mas nada aconteceu. Ela claramente estava me punindo com
o silêncio.
— Por favor... — Só consegui sussurrar, quase com medo de ouvir
mais um pouco de nada como resposta. — Me diga.
Ela continuou calada e me senti morrer por dentro. Levei a mão à nuca
e massageei para tentar arrancar a tensão, estava cansado. Só brigas e
discussões, talvez se ela me desse uma pista de como conseguir entrar em seu
coração eu conseguisse acertar uma vez que fosse, porque mesmo fazendo de
tudo para conseguir mostrar a ela que eu me importava, que a queria segura,
eu acabava sempre cometendo os mesmos erros.
Depois de um longo tempo e de um suspiro mais longo ainda, Amélia
virou o rosto para me encarar e sorriu triste, me olhava como se eu não
estivesse enxergando o óbvio. Quando ela falou, sua voz saiu tremida,
parecia estar fazendo esforço para não chorar.
— Quero um homem com atitude Tiago, um homem que me
conquiste, mas não me sufoque. Que não me trate como se eu fosse vidro,
mas que não quebre meu coração. Quero um homem que respeite minha
inteligência e minhas ideias e me incentive com meus sonhos e se possível,
que sonhe comigo mesmo que seja cético. Que não me trate como se fosse
meu dono, mas que confie que me terá sempre ao lado para ajudá-lo em todos
os momentos e que cuide de mim sem achar que por conta disso, eu deva
sempre ceder e não discordar dele quando ele estiver errado. Quero andar ao
lado e não atrás, é o mínimo que mereço, pois não sou pior que ninguém. E se
esse homem me presentear com pelo menos a dignidade de poder pensar por
mim mesma, eu o respeitarei e serei fiel por toda a minha vida sem precisar
que ele me cobre isso.
Ela olhou para mim agora com os olhos inflamados de raiva e
concluiu com a voz afiada. — É pedir muito?
Diabos! O que eu responderia a ela agora? Se dissesse não, essa loira
cheia de vontades iria ficar furiosa comigo e se dissesse sim, ela me olharia
com a certeza que eu era um lixo como homem.
A merda a resposta! Atitude? Ousadia? Ela ia ver o que era ousadia, o
resto das exigências eu iria deixar para lembrar depois. Por via das dúvidas,
soltei as rédeas deixando o cavalo seguir o caminho sozinho e ela sentindo a
tensão no ar se virou no cavalo, era minha deixa para não permitir que a
coragem passasse, e quando ela se deu conta, eu já estava perto demais para
que recuasse.
Segurei seu rosto assustado com minha aproximação e trouxe para
mais perto, ela nem teve tempo de reagir, tomei seus lábios descarregando
toda a potência do meu sentimento, todas as respostas que eu sequer sabia
como elaborar. A única coisa que eu estava consciente era das batidas
descompassadas do meu frenético coração por finalmente tê-la em meus
braços.
Imaginei que sua reação seria me empurrar ou me dar um belo tapa, o
que fosse, mas ao contrário disso, mais uma vez ela me surpreendeu quando
correspondeu.
Sua boca era macia e receptiva e seu beijo era doce e ingenuamente
sedutor, não consegui segurar o gemido baixo quando encontrei sua língua e
nesse momento me senti menos só. O meu estômago rimbombou
nervosamente quando ela se entregou completamente ao momento levando a
mão ao meu rosto e deitando o corpo em minha direção. Segurei sua cintura e
a trouxe para mais perto, ainda assim ela estava longe, eu queria…
Tinha que reprimir meu desejo, não podia ir longe demais, não com
ela, apesar das minhas falhas eu tinha plena consciência que com ela era
diferente e por isso eu devia tratá-la com respeito. Com um esforço grande eu
acalmei meus movimentos, o beijo ficou terno e senti seu corpo estremecer
com o sentimento que eu depositei a cada investida sobre carne tenra de seus
lábios. Eu queria que ela soubesse o quanto era verdadeiro o que eu sentia.
Eu já sabia que a queria desde a primeira vez que a vi naquela maldita
noite onde estava mais morto que vivo na batalha do reino sombrio. Mas
agora...
Eu tinha certeza que ninguém me faria sentir isso somente com um
beijo e como se fosse possível, senti que meu coração expandiu ainda mais
para conseguir acoplar o excesso de sentimentos que me tomava naquele
momento.
Um motivo
Amélia
Nicolae
Jena
Amélia
André
Amélia
Tiago
Amélia passou por mim sem ao menos ter me dado uma chance de
explicar..., mas... explicar o quê? Ela estava com a razão, pois eu sempre
acabava estragando tudo.
E aquele beijo que achei que nos aproximaria, na verdade acabou
sendo mais um agravante. Completamente confuso sobre tudo me virei para
André que estava parado em silêncio ao meu lado.
— Sinto que estou a perdendo André, cada dia que passa eu a vejo
escapar por meus dedos. E sei que sou eu que a empurro para longe.
André assentiu sem levantar os olhos para mim, parecia contrariado.
— Acredito que sim Tiago, hoje ela tocou no assunto de se casar.
Não podia ser... Como eu ia conviver com isso? Amélia era a única
coisa que fazia refrescar minha constante frustração, por mais que
brigássemos ela estava se tornando cada dia mais importante para mim. Ouvir
isso definitivamente azedou meu humor.
— Ela vai se prender a um machista desse reino só para se livrar de
mim?
Quando finalmente André me encarou, quase me encolhi com a
intensidade daquele olhar, pela primeira vez vi reprovação paterna em seus
olhos e isso era pessoal. Ele falou baixo e o conhecendo tão bem eu tive
ainda mais certeza que ele estava muito além de bravo.
— Se ela casar com um estranho ou escolher você Tiago, não vai fazer
diferença, não é mesmo? Ela vai perder a liberdade e o respeito, virará apenas
um animal enjaulado, um animal rebelde que será domesticado e perderá sua
essência.
Arfei com aquelas duras palavras. André...
Ele continuou. — A única diferença entre você e todos os outros
homens desse reino, é que há bondade e integridade em você, tirando isso,
nada o difere dos outros, pelo menos quando se trata dela, você é igual a
todos.
Abaixei a cabeça sem saber o que responder, André estava certo, pelo
menos em todas as situações eu fiz Amélia sofrer.
— Eu tento ser diferente, mas...
— Tentar não está sendo suficiente. Minha filha precisa de um homem
que a trate com respeito e a incentive a continuar sonhando, não um que não
consegue controlar o maldito gênio forte. Não um que amputa pernas e
braços e não permite que ela desabroche, porque é isso o que você está
fazendo filho, está mantendo a mulher que ama em uma prisão sem grades.
Quando ela divide com você os sonhos, você a julga e não a incentiva,
você a subestima e isso a ofende. Se coloque no lugar dela, mesmo você
sendo o rei, todas suas ideias são subestimadas pelos conselheiros e pelos
homens das castas mais altas. Como se sente quando não acreditam que você
é capaz de realizar algo, mesmo você tendo a certeza que pode fazer isso?
Como se sente quando é desmerecido e visto como um tolo, mesmo que
esteja tentando fazer algo em prol de todos?
Meus olhos arderam, maldição... Eu nem tinha pensado sobre isso, na
verdade meu medo de Amélia ser alvo dos meus inimigos estava me cegando
e por isso eu estava a tratando como uma inconsequente sem ao menos
mostrar a ela o quanto era admirável suas ideias, porque mesmo eu achando
isso, nunca expressei com palavras, nem... Com gestos.
Era isso, a maldição do meu pai estava dentro de mim, eu tinha que
aceitar que esse sangue sujo correndo em minhas veias me fazia ser parecido
com ele mesmo que inconscientemente, pelo menos eu não seria um porco
imundo se começasse a aceitar esse fato.
— Eu... Tento, mas não sei encontrar o caminho da tolerância. Lembra
de quando ofendi Diana? As coisas horríveis que eu disse a ela somente por
causa de um ciúme bobo e quando ela reagiu me dando aquele tapa, lembra-
se das ameaças horríveis que fiz a ela?
André assentiu. — Você foi um idiota naquele dia, mas as duas são
diferentes. Apesar de tudo o que Diana passou, ela era mais gentil e tinha
gana de acreditar. Amélia tem o gênio forte, mas é mais frágil que Diana.
Ela não sabe lidar direito com o jeito dos homens desse reino, não
esqueça que ela foi criada desde pequenina no reino sombrio, em uma vila de
humanos gentis e amigos. Ela viu poucas coisas ruins, já Diana foi forjada em
meio a crueldade desse reino e lapidada com bondade no reino sombrio. Até
os quinze anos ela só viu crueldade, por isso qualquer ato diferente do cruel,
diferente do que ela lembrava do reino humano, ela via com bons olhos, via
como uma possibilidade.
André parou um pouco e me encarou, seus olhos agora pareciam
mornos e tristes. — E tem outra diferença entre Diana e Amélia, o sentimento
por você. Você falou palavras duras para Diana, mas o sentimento dela por
você não era forte o suficiente para que ela se magoasse, trocando em
miúdos, ela não estava nem aí para o que você pensava. Já Amélia é ao
contrário, por isso devia ser mais brando com as palavras, para ela irá doer
muito mais.
Tive que concordar com André e para piorar meu humor, sempre falar
disso me deixava angustiado. Ele estava certo, ela merecia mais do que um
rei estúpido e um homem ignorante como eu.
Eu queria ter tido exemplos melhores, ter nascido em outra época, por
mais que eu tentasse ser diferente dos homens que tinham atitudes que tanto
me incomodava, eu não agia diferente quando se tratava dela, eu era tão
territorial e machista quanto qualquer outro do reino, e acabei me fazendo a
pergunta pela primeira vez desde que Amélia veio morar no reino humano.
Eu ia conseguir mudar costumes de toda uma vida? Era uma pergunta
difícil, pois somente Amélia conseguiria mudar meu jeito de ser porque
somente ela me interessava não magoar, e era somente ela que eu empurrava
para longe com minhas atitudes.
Eu até entendia que não merecia Amélia, mas ninguém ia conseguir
me fazer esquecê-la, de todo modo, não queria mais ver seus olhos cheios de
lágrimas por minha causa, por isso eu ia me afastar, mas não podia deixar de
proteger e cuidar dela de longe, pelo menos isso, para que eu pudesse pelo
menos ficar tranquilo.
— Vou deixar Amélia em paz André, mas não posso prometer que
será para sempre, quando o reino for um local melhor e os perigos forem
menores, eu vou atrás dela e nem você que eu respeito como um pai, vai
conseguir me fazer ficar longe.
André sorriu. — Não espero menos que isso.
Um passo e um exemplo
Amélia
Tiago
André.
Tiago
Casamento... Ainda não conseguia acreditar até agora que deixei essa
hipótese em aberto somente para calar as duas castas mais altas. E pior que
isso... Por conselho de André.
O que ele tinha em mente? Ele ter votado a favor foi completamente
inesperado e não condizia com o que ele pensava sobre casamento forçado,
sem contar que um enlace seria basicamente como dividir o reino entre o rei e
uma casa da casta alta. Porém tinha um motivo para ele não ter ido contra
essa loucura, tinha que ter e eu tinha que confiar no julgamento dele. Ainda
assim...
Deixei meu corpo cai pesadamente na cama e fechei os olhos. Baile...
Será que Amélia viria? Ou André ia aconselhá-la a não comparecer,
aliás, será que ela viria depois de saber o motivo desse evento?
Senti meu coração diminuir, quase parar de bater somente de imaginar
ela recebendo essa notícia, ou lendo os editais, ou mesmo ouvindo de bocas
por aí.
Me senti um traidor do meu próprio coração, também senti que estava
traindo Amélia e fiquei mal por isso. Eu podia ser um maldito idiota quando
o assunto era ela, mas jamais, em nenhuma hipótese eu a trairia. Meu pai fez
isso com minha mãe e mesmo que ela não fale sobre isso eu sei que doeu,
então não posso fazer o mesmo com a mulher que amo, sem contar que
depois dela, nenhuma mulher mais me chamou atenção, nenhuma delas me
fez virar o pescoço para observar.
Antes eu gostava de apreciar a beleza feminina, até mesmo me
aventurava de investir em algumas garotas menos irritantes e fúteis,
principalmente as poucas moças que ainda não eram apresentadas como
produtos de venda.
Nunca me interessei em usar as do harém já que eram escravas do
prazer e seguramente iriam fazer de tudo para me agradar, isso nunca me
interessou porque era muito fácil e assim a graça se perdia.
Mas agora, só Amélia tinha meu interesse e começo e pensar se valeu
a pena. Queria saber se antigamente os reis também tiveram que se sacrificar
pelo seu povo. Tendo desesperadamente entender qual o significado de
sacrificar a felicidade em prol de uma aliança. Nunca encontro nada que valia
a pena. As questões são muitas, qual o reconhecimento eu teria disso? Em
quê isso beneficiaria os de casta mais baixa? Não estavam pedindo demais? E
porque diabos eu tinha aceitado essa pressão? Se eu sou o rei porque não
posso ter alguns benefícios sendo o primeiro deles não ter que casar com uma
estranha?
Agradecido por estar fechado em meu quarto deixei a vontade de
liberar minhas lágrimas vencer meu orgulho. Eu sei o que não governo esse
reino de verdade. Sei que sou um escravo com coroa que é governado pelo
povo, mesmo que tudo indique o contrário, eu sou o único aqui preso por
correntes.
Correntes invisíveis que machucam, com grilhões que ferem. Meu
chicote é a língua afiada das castas maiores, é o açoite diário que está me
moldando e me levando cada dia mais longe da felicidade.
No entanto, estou preso por obrigações. Se eu negar isso, colocarei em
perigo minha coroa e consequentemente deixarei em perigo os povos das
outras castas e os escravos, pois não serei eu a sofrer a consequência, serão
eles.
Suspirei me sentindo claustrofóbico, um sentimento que antes vivia a
me atormentar e agora, por mais que tudo indicasse que eu deveria me sentir
livre, esse sentimento parecia até mais acentuado do que antes.
No entanto, apesar de toda a minha frustração eu tinha que admitir
que André foi sábio em me aconselhar a prometer pensar sobre esse
casamento, ele sim está agindo pelo povo ao todo, e é o que eu devo fazer,
não posso ser egoísta, tenho que fazer o que for preciso para manter meu
povo seguro.
Meu pai agiu de acordo com os próprios interesses, não se incomodou
em ferir, matar, mutilar e humilhar em troca de poder, de alcançar suas
ambições.
Já eu... Minha única ambição, a única coisa que eu queria era poder
ficar com a pessoa que faz meu coração bater mais forte, que faz com que eu
almeje ser um homem melhor, mas até essa única ambição eu não poderei
alcançar, não sem ter que agir como meu pai, como um tirano egoísta.
O pior é essa tentação ao pensar isso, pois sei que posso fazer valer
cada vontade minha, mesmo que seja na base da violência, posso força-los a
aceitar tudo o que eu decidir como meu pai fez por muitos anos. E assim eu
teria Amélia sem precisar me preocupar com retaliações porque seria eu a
retaliar quem ficasse em meu caminho. Seria tão fácil...
Mas não posso... Tem que existir outro caminho que não seja a tirania
e imposição. Prometi que faria diferente se um dia eu conseguisse libertar
minha família, claro que como idiota que fui, não pensei que seria tão difícil
cumprir essa promessa, mas agora... Não era somente eu, muitos dependiam
de mim, meus atos estavam sendo pesados por muitos olhos e todos eles com
força o suficiente para retaliar em cima dos mais fracos caso eu tomasse a
decisão errada.
Talvez fosse até um teste, talvez já estivessem desconfiados de meus
sentimentos por Amélia e essa ideia do casamento fosse para decidir como
ela pagaria por isso de acordo com minha resposta.
No fim, realmente quem poderia pagar por meus erros seria ela e
jamais eu permitiria isso.
Levantei respirei várias vezes para ganhar coragem enquanto
enxugava os olhos e gritei ao valete.
— Chame o conselho, tenho um comunicado a fazer.
Pronto, decisão tomada, Amélia ou a paz do povo.
Os malditos das castas nobres iam conseguir o que queriam de mim e
assim meu povo teria sua paz finalmente e Amélia ficaria segura.
Então, problema resolvido, agora o único a ficar atormentando com
essa decisão seria eu.
Presente inesperado
Amélia
Essa foi uma semana corrida. Primeira coisa que fizemos foi separar
aqueles que podiam trabalhar.
Em seguida plantamos o que deu para comprar em sementes.
Infelizmente esses canteiros que já estavam prontos há um bom tempo, eram
distante do núcleo de moradores, porém não quisemos abrir novos canteiros,
tínhamos pressa com a parte agrícola. Até porque estávamos empolgados e
não deixamos a certeza de que logo teríamos muitos canteiros disponíveis.
Até para as mulheres grávidas foi dada função, mas essa parte ainda
não dava para concretizar. Elas ficaram com a parte de cozinhar, e claro que
como não havia tanto alimento, elas continuavam no ócio.
No entanto, mesmo sem termos ainda conseguido água perto, já que
tínhamos um poço mais longe que veio como cortesia do rei junto com a
casa, mais uma quantia do solo já estava sendo preparado, mesmo não tendo
mais sementes para plantar.
De início todos pareciam céticos quando propus de irmos adiantando
as coisas. Mas depois de Marcos me apoiar e dizer a eles que não podiam se
entregar a apatia e que a comida não iria cair do céu, muitos começaram a se
mexer, e findando dois dias quase todos já estavam empolgados com o
trabalho.
O mais interessante foram os idosos, Marcos e eu tínhamos
combinado de deixá-los em paz, pois havia muita mão de obra ociosa, no
entanto depois de ver o movimento e todos se virando, eles começaram a
fazer excursões pela floresta, e ali vimos a força do conhecimento vencer a
fraqueza da idade. Quando voltaram do mato parecia que a vida os tinha
alcançado novamente, estavam empolgados e com um brilho renovado no
olhar. Trouxeram aos borbotões folhas, raízes. Alguns baldes de castanhas e
até mesmo alguns cogumelos.
Um senhor idoso chamado Tomas deu a ideia de fazer boticário
caseiro e como pareciam tão revigorados por estarem incluídos, arrumamos
para eles algumas vasilhas e prometemos arrumar o resto da lista assim que
algum dinheiro entrasse.
A pequena casa no bairro dos renegados não tinha luxos, mas era
confortável, pequena e maravilhosa. Tinha tocado fundo meu coração esse
gesto do rei, mas obedecendo ao pedido de André para não demonstrar isso
eu apenas o agradeci cordialmente quando o procurei no castelo.
Depois disso, nada de notícias, quer dizer, chegou uma notícia que me
abalou imensamente apesar de eu já esperar por isso. Todavia não
conversamos desde que cheguei, ele realmente estava cumprindo a promessa
de se manter longe e apesar de sofrer com isso, o trabalho na vila nova estava
sendo o remédio para me distrair.
Três casas estavam sendo levantadas e alguns móveis vieram juntos
nas carroças que Jena mandou, porém em sua maioria eram roupas e até
mesmo panelas e um monte de coisas de decoração.
Claro que eu separei tudo e o que seria útil para usar nas futuras casas
e as outras coisas pedi a Marcos para intermediar as trocas no bairro da casta
três.
Segundo ele, lá seria o melhor lugar para trocar essas coisas de
decoração por coisas necessárias, deixei a ele para decidir o que era melhor
para nós. Mas ainda não me sentia a vontade em ter uma casa com conforto
enquanto outros ainda dormiam em barracos.
Mas era um começo... A minha cozinha ainda mais simples era
pequenina, o fogão ocupava quase tudo e o quartinho da despensa... Sentei no
banco pasma com a visão. Estava lotado de alimentos.
Não estavam aí de manhã, aliás, não estavam aí desde quando me
mudei. Fiquei contemplando aquele tesouro tentando adivinhar como ele
chegou ali. Meu pai ou Tiago? Qual dos dois havia deixado alimento para
três invernos?
A batida na porta me fez pular. Marcos estava parado no alpendre me
olhando de cenho franzido.
O chamei com a mão e sem conseguir dizer nada, apontei para a porta
da despensa. Em silêncio ele entrou e sentou ao meu lado, agora assim como
eu, ele olhava deslumbrado a quantidade de comida.
— Quem quer te engordar assim?
Eu apenas ri, porque era trágico e lindo ao mesmo tempo. Quando o
riso acabou soltei um suspiro.
— Não vou guardar isso. Vamos distribuir.
Marcos negou. — Não. Deixe para você Amélia, já trouxe muitas
coisas e graças a você e depois das trocas temos móveis para suprir as três
casas, e mais ferramentas para agilizar a construção.
Era uma ótima notícia, mas balancei a cabeça assentindo devagar. —
Uhum... Espero que os móveis fiquem gostosos depois de cosidos,
conseguimos algumas mobílias e roupas, mas nada de comida, e o povo não
come mobília, por isso essas coisas não servem para nada por agora. Mas
isso. — Apontei a porta. — É o que precisamos para segurar as pontas por
um tempo.
Marcos mordeu os lábios e me olhou de modo pensativo, então mexeu
no interior do casaco puído, retirou um saquinho de pano todo sujo e me
entregou.
— Se não vamos precisar comprar comida por um tempo, então sugiro
que guardemos as moedas que entram.
Sorri compreendendo e aceitei o saquinho. Eu não tinha contado nem
mesmo a ele, mas tinha guardado uma humilde fortuna vinda de Jena, de
minha mesada e de meu pai.
Diana ainda não tinha me mandado nada, e eu não esperava que
acontecesse, ela estava tão abatida que é bem capaz de ter esquecido meu
pedido.
Agora mais esse pouquinho de Marcos. Eu ainda não sabia o que faria,
mas esse dinheiro seria usado na hora certa. Talvez quando finalmente
conseguíssemos trazer a água mais perto eu poderia investir em sementes
para uma horta de verdade e não apenas alguns canteiros distantes. Ainda
assim fiquei um pouco mal de pegar as moedas, aceitar dos que tinham
bastante era uma coisa, mas dos que moravam ali não me pareceu certo.
— Tem certeza Marcos?
Ele assentiu. — Se quisermos crescer, todos nós teremos que abrir
mão das coisas, não só você e seus amigos.
— Que palavras bonitas Marcos, aposto que retirou de um livro. —
Espetei para quebrar o clima tão solene daquele momento.
Os olhos dele brilharam e ele levantou os ombros de modo
despreocupado. — Pode ter sido, mas mudando de assunto... — Ele me deu
uma rápida olhada com o canto do olho e limpou a garganta.
— Pensei que talvez você pudesse ir ao mercado colorido e nos trazer
umas ferramentas, o que acha? Talvez... Alguns metros de corda grossa e um
balde de madeira, e tem que ser aquele com uma cinta de ferro de qualidade
em volta.
Abri muito os olhos, poderia ser ou não, caso fosse o que eu pensava,
as coisas realmente tomariam um ritmo mais acelerado para acontecer. —
Você conseguiu?
Ele abriu um largo sorriso e assentiu. — Hoje mais cedo, água perto,
finalmente.
O abracei contente e ele retribuiu rindo, era uma notícia feliz. Isso era
o marco da mudança, a diferença entre o sucesso e o fracasso.
Apesar de mais essa boa notícia, não consegui mais controlar, sentindo
aquele abraço terno deixei esfarelar a máscara. Comecei a chorar agradecida
por ter um ombro para isso.
Marcos estalou a boca e me apertou a ele. — Chore Amélia, você
precisa disso.
— Ele vai casar Marcos... Não posso ficar triste porque esse
casamento vai fortificá-lo. Mas dói tanto que por vezes penso que não vou
suportar essa angústia. E ainda não consegui encontrar coragem para pensar
em um vestido para o baile. Ter o vestido em mãos será como jogar meu
coração em um poço muito fundo o encerrando na escuridão para nunca mais
bater. Sou egoísta, pois sei que é a melhor notícia desde a coroação já que
trará finalmente a paz, ainda assim não consigo evitar sofrer como se
estivesse em luto.
— Eu fiquei sabendo...
— Porque não me contou? Nem meu pai me contou, fiquei sabendo da
boca das crianças.
— Não contamos porque você estava muito feliz e isso iria estragar
sua alegria. Tiago está fazendo isso por amor a você, aceitou fazer isso para
protegê-la.
Me afastei do seu abraço, limpei o rosto e levantei, ele levantou
também.
— Não quero proteção, mas que inferno! Quero que ele pare de ter
medo de me perder, me perdendo... Queria... — Deitei a cabeça no seu braço
e suspirei desabafando mais para mim do que para ele. — Que ele pudesse
escolher e que fosse eu, mas entendo que ele precisa ser uma filha de nobres.
Senti a mão áspera de Marcos passar por meus cabelos.
— Uma atitude de merda essa decisão dele de aceitar a pressão e
muito confusa realmente. Sinto muito.
Ele passou os braços por meu ombro para me confortar. Marcos tinha
se tornado um grande amigo, e me entendia de uma maneira crua.
Me deixei embalar por seus braços por um tempo, por fim depois de se
despedir de mim ele saiu me dando uma última olhada triste.
Decidida a não me deixar consumir já que eu teria que viver com isso,
segui para o quarto para trocar meu vestido e tomar um carro para o mercado
colorido. Nada de lamúrias, água perto era uma ótima notícia e os moradores
precisavam disso.
Eu sempre soube que seria assim, que esse momento chegaria por isso
não podia ficar me martirizando. Seria até bom sair um pouco, poderia
esquecer sobre o baile focando nas coisas que precisava fazer, assim essa
tristeza ia passar mais rápido.
Já pronta para sair ouvi batidas na porta. Senti um friozinho
costumeiro da ansiedade. O rei veio nos visitar...
Ele podia estar querendo saber se eu gostei da despensa aparecer
magicamente cheia ... Ou podia estar ali para me dizer que não ia casar
com ninguém porque me amava.
Abri a porta saturada de expectativas e o rosto risonho, jovial e
sorridente de Clara me deixou surpresa e bem preocupada.
— Veio sozinha aqui?
Ela sorriu já entrando, e atrás dela um monte de garotos surgiu
trazendo trouxas, ferramentas e alimentos.
Ela sorriu feliz. — Vim para ficar, eu disse que viria não disse? Já
contratei homens para construir uma casa simples, se alguém daqui puder
ajudar eu saio da sua casa o quanto antes. — Ela me olhou de lado, os olhos
negros brilhando, deixando aquele rosto moreno ainda mais bonito. — Você
vai me convidar para me hospedar aqui até ficar tudo pronto, não vai? Quero
ficar aqui, mas não quero morar ao relento.
Arregalei os olhos. — Claro que sim, é muito bem vinda. Mas e seu
pai, sua louca?
Ela levantou os ombros. — Roubei as ferramentas todas da oficina
dele, e peguei todas as moedas que ele escondia, sem contar que vendi
minhas joias e da mulher que era a primeira dele. — Clara deu uma risada
nervosa e exultante. — Devo tê-lo deixado meia fortuna mais pobre, mas não
me importo, ele matou minha mãe.
Pisquei várias vezes para conter o receio. Clara podia ficar em perigo.
— E se ele vier atrás de você?
Ela me olhou triunfante. — Eu li e reli as leis Amélia, eu te disse em
sua casa que eu queria ajudar, e que também eu estava farta de ser um
fantoche, e eu tenho uma garantia que ele não virá. Ele é conselheiro real, e o
rei não aceitaria um homem que judia das suas protegidas na mesa de seu
conselho, não é mesmo?
Deixei escapar um enorme sorriso, ela tinha toda razão. O pai dela não
podia se dar ao luxo de perder o cargo do conselho. E se Clara teve coragem
de enfrentá-lo abertamente, ele não ia arriscar que ela fizesse novamente
pedindo uma audiência com o rei para reclamar dos maus tratos do pai. Ela
viu que eu entendi e continuou ainda mais sorridente com seu trunfo.
— Agora que as leis estão também do meu lado, eu não vou ficar
temendo represália, claro que não vou poder sair sozinha, pelo menos por um
tempo, pois aposto que ele está arrancando os cabelos de ódio por não poder
fazer nada contra mim agora. Mas estou disposta a abrir o cadeado de meus
grilhões, alguém precisa dar o primeiro passo.
Senti algo explodir dentro de mim, uma sensação boa, mesmo sendo
uma pessoa somente, eu tinha uma aliada, uma moça oriunda da casta mais
alta, filha de um conselheiro, e muito maluca...
— Não sei nem o que dizer Clara, a casa Machado é uma das mais
importantes do reino, e ter você aqui, uma moça conhecida da sociedade é
como se eu ganhasse músculos para lutar, como se o povo renegado ganhasse
não uma aliada, mas uma moça que se rebelou contra os costumes antigos
desse reino.
Clara sorriu. — E eu vou te dizer uma coisa, somente quando criei
coragem para enfrentar meu pai e sair de casa foi que eu me senti uma pessoa
de verdade, não um bem material. Não tem ideia Amélia, do tanto de
mulheres e moças que sentem essa vontade, mas não tem coragem para isso,
mas eu tinha que fazer e fiz. O que acontecer daqui para frente, eu deixo para
o destino.
Lamento de um pai
Rael
André
Amélia
Tiago
Como pude ter sido tão idiota? Claro que ela ia ficar interessada
naquele Marcos. Ele estava sempre ao lado dela apoiando suas ideias
enquanto que eu nem mesmo apareci aqui para uma visita desde que ela
mudou. Na verdade nem estávamos nos falando desde que ela voltou do reino
sombrio.
Mas... verdade seja dita eu estava respeitando o espaço dela porque eu
sabia que ela precisava, mas hoje...
Eu queria conversar sobre o baile, abrir meu coração sobre tudo e ver
no que daria. Se por ventura ela me dissesse que sentia o mesmo, eu estava
disposto a enfrentar todo um reino por causa dela, mas... Marcos ganhou seu
afeto porque foi mais capaz do que eu, porque ao contrário de mim, ele não a
encheu de julgamentos, deu a ela apoio. E eu não podia sequer cobrar dele,
afinal, fui eu que a afastei com minha idiotice.
Estava andando a esmo, perdido em pensamentos nem percebi que não
tinha tomado o caminho da saída, na verdade acabei perto de uns canteiros já
com plantas despontando alto. Não estava nem perto de portão. Suspirei e
olhei em volta para encontrar o maldito caminho.
— Moço bonito.
Estava tão distraído que não vi a pequena espertinha que tinha me
ajudado. Sorri para ela, podia estar com o coração partido, mas ela não tinha
porque pagar por isso.
— Menina esperta... Como está?
Ela sorriu e apareceu duas covinhas em sua bochecha, ela estava mais
gordinha, pouca coisa, mas sua aparência estava melhor.
— Estou bem, mas já que está aqui, gostaria de lembrá-lo que não me
pagou a moeda de ouro por minha fidelidade.
Engasguei de surpresa e apertei os lábios para não rir, ela ficou me
olhando séria com aqueles olhos bonitos então cocei o queixo e falei como se
refletisse. — É verdade, mas veja, sou inocente. Não pude pagar porque
tenho um motivo para essa inadimplência. Existem muitas meninas que tem o
nome Dez por aí, então eu poderia entregar a Dez errada, por isso quero pedir
uma coisa.
Ela me olhou desconfiada. — O que seria?
— Quero que todas as vezes que perguntem seu nome, diga que se
chama Aline. Está bem?
Ela negou. — Nome diferente é um serviço extra, não conta como
fidelidade a você, então preciso de outra moeda de ouro para aceitar me
chamar Aline.
Meu estômago chegou a doer de vontade de rir, mas a menina era
comerciante e rir poderia encarecer o serviço já exageradamente caro de
aceitar um nome.
Respirei fundo para manter o rosto sério. — Muito bem. — Tirei duas
moedas do bolso do colete. — Como se chamará a partir de agora?
Ela esticou a mão. — Serei Aline por uma moeda de ouro por
enquanto, e sempre Aline por uma moeda de ouro por mês até eu morrer.
Entreguei a ela as moedas e seus olhos brilharam, olhou para a mão e
sorriu largamente.
— Então muito bem Aline. Quando vencer o mês eu mandarei
entregar sua moeda.
— Obrigada moço bonito. — Ela me olhou de viés — Mas está sendo
espertinho comigo, aceitei o nome então são duas moedas de ouro todo mês.
Não me contive mais e abri um largo sorriso verdadeiramente
encantando com essa adorável criatura. — Muito bem sua... mercenária em
tamanho de bolso! Mandarei o pagamento acordado e ressalto, encarecido, ao
final do mês.
— Ela pegou minha mão e ficou balançando enquanto ostentava um
enorme sorriso. — Vou te escoltar até a saída. Tenho que proteger o homem
que me deu um nome e fazer valer o pagamento do mês.
A olhei de torto. — Foi? Achei que precisei pagar para você mudar de
nome.
— Isso é coisa de negócios. Mas me chamo Aline e você, como se
chama?
Fiquei receoso de dizer meu nome, ela podia assim como muitos, ter
ódio do rei e eu não queria que essa criança me olhasse de torto, não sei por
que, mas um olhar assim vindo dela, eu sei que doeria. No entanto, não podia
mentir um nome.
— Me chamo Tiago.
Ela abriu os olhos surpresa e logo seu olhar mudou para um modo
sábio. — Sabia que o nosso rei também se chama assim?
— É mesmo? E como sabe o nome dele?
— Falam muito dele por aqui.
Fiquei incomodado, não queria Aline ouvindo coisas ruins sobre mim,
mesmo que ela não soubesse que era eu, tinha apreço por essa criança esperta
e fominha por moeda de ouro.
— E você acredita sobre o que falam do rei?
Ela assentiu. — Claro que acredito, e concordo com eles.
— A é? — Meu coração apertou um pouquinho, nem mesmo com
minha pequena protegida eu era bem quisto. Ela continuou falando distraída
enquanto chutava tufos de mato ao andar.
— Eles dizem que ele é bom, e eu acredito neles.
Fiquei surpreso e limpei a garganta, talvez não tivesse entendido
direito, na verdade eu precisava ouvir isso novamente, confirmar que não
estava maluco. — Dizem que sou... Quero dizer, que ele é bom? Mas por
quê?
Aline me olhou de torto. — Não fale mal do rei, vou ficar brava com
você.
Assenti, ansioso para que ela continuasse, me senti um tolo, mas essa
era a primeira vez que eu ouvia alguma coisa descente sobre mim, pelo
menos vindo de alguém que me importava.
— Qual o motivo de defender um homem que não conhece?
Ela continuou em sua tarefa de chutar tufos de grama, e respondeu
com a inocência infantil. — Ele mandou muita comida para nós. Também
deixou a gente morar aqui e ainda mandou construir uma casa para a tia
Amélia. Também mandou cavar um poço para que água chegasse a nós. Por
isso eu acredito que ele é um homem bom.
Fiquei olhando para ela sem saber o que dizer, ela inocente do que eu
estava sentindo continuou com os olhos brilhando.
— Sabia que tia Amélia prometeu que vamos ter pão todos os dias e
que será em breve? Foi o rei que ajudou ela para que o pão chegue e Marcos
também ajudou, ele sempre ajuda.
Prendi a respiração para não arfar de surpresa. Amélia tinha contado a
todos sobre a comida, e realmente isso eu não esperava, porém... Franzi o
cenho, eles pensavam realmente que toda essa coisa boa que estava
acontecendo com eles, era por minha causa? Mas eu só mandei a carroça de
grãos e cereais por conta da história dos cavalos sendo devorados, de resto
tudo era obra de Amélia...
Sorri involuntariamente sentindo pela primeira vez a paternidade da
coroa me envolver. Meu povo... então era esse o sentimento de ver gratidão
nos olhos das pessoas? Um calor tão profundo que aquece até a alma e nos dá
vontade de fazer mais e mais?
Aline me sorriu de volta sem imaginar o motivo do meu sorriso. Mas
sinceramente eu estava desacreditando que aqui onde havia tanto sofrimento
eu não era odiado. Porém eu não merecia o carinho desse povo, não quando a
casa que eu mandei fazer para Amélia foi por um ato egoísta e o poço
também... Mordi a carne da bochecha sentindo que ela corava do outro lado.
A comida também.
Aline não mais falou, continuou andando e me guiando pela mão
como se eu fosse um cego em busca da saída. Já eu continuei amargando a
alegria de ver gratidão quando eu nada fiz por merecer.
E esse pão que eu sequer tinha conhecimento? Suspirei pesaroso, se
Amélia ainda falasse comigo eu estaria a par de seus planos, mas agora ela
não dividia mais comigo suas ideias, era com Marcos que ela falava e era ele
que a incentivava e duvido que ele a chamasse de tola quando ela aparecia
com novas ideias...
Tive que confessar a mim mesmo que fui precipitado ao dar tão pouco
crédito a Amélia no início, e por causa dela e Marcos aquele ladrão de
mulheres, esse povo acreditava em mim, mesmo eu fazendo tão pouco por
eles.
Amélia estava mesmo conseguindo progresso e o pior, estava me
dando créditos que eu não tinha.
Eu tinha que ajudar mais esse povo para fazer valer o carinho deles
por mim e eu tinha que recompensar minha amada loira de alguma forma.
— Onde irão fazer esse pão, Aline?
— Na casa da mulher que preparava as meninas.
O templo... Acabei sorrindo ela ideia que me surgiu. Então eu tinha
como recompensar o que tia Amélia estava fazendo pelo tio Tiago, pois
por incrível que possa parecer comprar uma carga grãos ainda me custaria
cinco vezes menos do que os gastos com o baile e agora fico imaginando
quantas pessoas eu poderia alimentar se o dinheiro fosse revertido em
comida. Um gasto tão dispendioso somente para botar grilhões no rei. Mas eu
tinha aceitado minha prisão, por isso não podia mais lamentar.
Quando vi meu coche ao longe. Me abaixei e beijei a bochecha suja de
terra. — Obrigado menininha esperta, virei te visitar viu, gosto muito de
conversar com você.
Ela acenou sorridente quando entrei no carro. — Não se esqueça de
trazer moedas.
Quando fechei a portinhola acabei sorrindo de verdade, pela primeira
vez sentindo uma alegria que me preencheu completamente. Quem diria que
em um bairro desses, eu não era visto com maus olhos.
E essa menina... Foi meu bálsamo. Gostava mesmo dela, e não queria
ela passando fome. Queria poder cuidar dela de verdade. E se ela gostava de
mim porque eu era um bom homem em sua visão infantil, então eu tinha que
merecer de verdade esse sentimento.
Traga moedas... Ela ainda iria falir meu reino de tanto pedir moedas,
mas ela me fazia bem com sua sinceridade infantil e inocente, e eu precisava
disso para ainda ter forças para lutar por meu povo e ter ainda mais forças
para deixar Amélia ir.
Meu sorriso durou até a metade do caminho, a frustração me bateu ao
ver o sol se pondo. Quando a noite chegasse, aqueles malditos ficariam como
corvos em cima de mim, esperando minha decisão e se eu queria realmente
ser um bom rei, precisava protegê-los da ira da casta alta, e para isso somente
cedendo à pressão.
Na imaginação parecia fácil...
Pedido de ajuda
André
Tive que ficar escondido enquanto esperava, pois assim que cheguei
Nicolae me falou sobre a possibilidade de Amélia aparecer, pois Diana
precisava dela.
Pobre menina, perder o filho, não consegui nem imaginar seu
sofrimento, e infelizmente agora eu não podia prestar minhas condolências e
mostrar minha empatia por sua tristeza.
Ninguém podia saber que eu estava ali, ainda mais com um problema
desses. Principalmente Amélia, pois ela precisava estar com a cabeça fresca
para ajudar Diana, e saber o que me levou até o reino sombrio a deixaria
aflita.
Minha atenção foi para o corpo enrolado na lona. O cheiro estava
insuportável, antes os mortos eram entregues aos leviatãs, por isso quase
nunca sentíamos cheiro de carne pútrida. E agora com esse cheiro tão forte
quase dopando minhas narinas eu refleti sobre os humanos, sobre mim
mesmo e até sobre a vida.
Tantas brigas, tantas discussões para que no fim da vida, todos
rumarem para o destino, esse estado da carne, essa podridão toda depois da
morte. Valia mesmo a pena tanta guerra em vida e por nada? Sendo que o
destino de todos seria se fundir a terra e ser esquecido depois de um tempo?
— André.
Dei um pulo, geralmente eu ouvia ao longe quando alguém se
aproximava, claro quando um humano se aproximava, mas um sombrio era
sempre silencioso e eu ainda estava distraído.
— Pai.
Ele me encarou, seus os olhos cor de cobalto não saíram dos meus,
mas o rosto sério me dizia que ele sentia o cheiro. Ele já devia saber do que
se tratava, ainda assim esperava eu falar.
Balancei a cabeça. — Peço desculpas por trazer esse corpo, mas não
tenho o nariz treinado e nem sou tão versado em botânica, também não sei
absolutamente nada sobre alquimia, mas conheço cheiros e nesse corpo tem
um aroma que me é conhecido, porém não sei dizer o que é.
Abaixei e retirei a lona. Rael fixou os olhos contemplativos no corpo,
seu semblante continuou impassível. Porém suas narinas dilataram e seus
olhos ficaram atentos a cada detalhe.
— Essa moça teve um parto recentemente, não houve uma
interrupção, não com misturas. No entanto. — Ele apertou os olhos
desconfiados em minha direção. — Ela não cheira a gestação madura, ainda
faltavam três meses para o feto ficar pronto, e ainda assim, ele não está aí.
Assenti. — Essa é uma das mulheres grávidas que sumiu no reino
humano, não sabíamos desses sumiços até ela entrar em contato com Amélia
e ter prometido que ia aparecer no dia seguinte para receber uma ajuda. Só
que ela não apareceu e eu prometi que a encontraria e foi procurando essa
moça que acidentalmente descobri que outras tantas haviam sumido.
Meu pai sombrio continuou olhando para o corpo e assentia enquanto
eu falava, continuei falando sabendo por experiência própria que ele estava
formando uma opinião baseado no que ouvia, sentia e via.
— Como as mulheres estão abandonadas nas ruas, ninguém deu por
falta. Somente algumas moças do harém que tinham alguns contatos com a
família quando a floresta do rei ainda estava ativa. No mais a maioria delas
sumiu e ninguém se importou. Está complicado meu pai, é difícil conseguir
controlar tantos abandonados e acho que isso deu coragem a quem quer que
seja para pegar essas mulheres.
Rael assentiu e abaixou perto do corpo. Com a unha cortou o carne
acinzentada da barriga inchada da moça e levou à boca o dedo cheio de
sangue escurecido.
Olhou para mim sério. — A melhor maneira de saber o que corre pelas
veias dela é sentindo o gosto.
Não falei nada, também não achei nojento, ele tinha mais experiência
do que eu e se era preciso isso, por mim não fiz caso. De todo modo aquele
sangue escuro faltando não afetaria a saúde da mulher já morta.
Ele levantou e estalou a boca. — Foi usado milefólio, uma planta que
normalmente ajuda a estancar uma hemorragia. Essa mulher morreu, mas
tentaram salvá-la, acredito que seja o que for que pretendiam, não era para ela
ter morrido, pelo menos não se dá um remédio desses para quem você quer
matar.
— Então, não a queriam morta.
Rael negou. — Um bebê precisa ser alimentado, talvez ainda
esperassem dela mais alguma coisa. E tem outra questão a se levantar.
Esperei ele falar. Mas fiquei preocupado pelo tom que ele usou.
— Essa moça... é uma situação anormal, os humanos têm cheiros
particulares, cada um tem o seu natural, mas aqui o cheiro da gestação está
presente, no entanto não há cheiro de outra vida além da dela. É como se ela
não fosse gestante, porém o cheiro da gestação existe, mas não de outra vida.
Apertei os olhos tentando acompanhar o raciocínio dele. — Então ela
deu a luz a um natimorto?
Ele balançou a cabeça. — Acredito que sim.
Assenti mostrando que entendi, e voltei a enrolar o corpo de Jaci.
— Vou voltar ao reino, preciso investigar mais, muito obrigado meu
pai.
— Sempre que precisar.
Visita a Diana
Rael
— Irmão...
Nicolae estava triste e abatido pelo sofrimento de sua pequena, mas
não era um caso que pudesse esperar.
— Diga irmão, elas já dormiram, logo sairei à ronda. Amélia não
percebeu a presença de André.
— Folgo em saber, Amélia não precisa de agitação agora. E quanto a
Diana vai ser bom ter esse momento para acalmar o espírito dela. Mas
acredito que você terá uma noite mais agitada um pouco, meu irmão.
— Do que precisa?
— Preciso que vá e contate o irmão do supremo dos Licans e o avise
sobre o perigo que a companheira dele está correndo. Leve Priana com você,
ela não pode mais ficar longe do companheiro dela .
— O que o preocupa?
— Acho que o tempo escurece para os humanos meu irmão, Samuel
deixou um legado. Preciso que deixe seu caçador gravar cheiros, dos
soldados próximos a André e de quantos conseguir. Não quero que interfira
demais, mas temos sangue nosso lá, e Diana não pode perder mais ninguém
agora.
— Vou cuidar disso.
— Não seja pego, e deixe a prisão dos leviatãs por enquanto, lá é mais
fácil para investigarmos. Hoje é uma boa noite para isso. Preciso do seu
olfato e lá todos estarão reunidos, pelos menos todos aqueles que nos
interessa que não te vejam.
Nicolae não respondeu, meu pobre irmão, sempre com as piores
incumbências, no entanto, nossa família cresceu. Dimitri era o pai de André,
Celeste a filha de Nicolae e de minha filha que tinha como amiga, uma
humana rodeada de miseráveis.
— Sinto sua preocupação, meu amor.
Minha Eva estava linda, me senti completo com aquele olhar âmbar
aquecido de amor para mim, sua barriga volumosa me fazia ficar contente por
nós dois, porém me lembrava da perda recente e conflituosamente também
me deixava triste por Nicolae e Diana que não tiveram a mesma sorte.
Segurei sua mão e levei aos lábios. — Não se preocupe meu amor, já
estamos resolvendo, alguns problemas dos humanos do qual não podemos
deixar de intervir, mas está tudo bem.
Ela me sorriu sabiamente e eu a amei mais por isso, ela sabia que não
era verdade, mas confiava em mim o suficiente para não ficar preocupada.
— Venha aqui.
Preocupado com meus movimentos e sua condição, a tomei nos braços
e ajeitei em meu colo com delicadeza e ela riu.
— Não vou quebrar Rael, já te falei tanto isso. Falo toda hora e você
não escuta.
— Ouvirei por mais três meses meu amor, pois meu preocupo. É
natural que eu seja bobalhão. Tenho em meus braços duas coisas que me faria
querer parar de andar pela terra se me faltassem. Você e a vida que aguardo
ansiosamente ver chegar ao mundo.
Ela deitou a cabeça em meu peito e fechou os olhos. — Eu amo o seu
lado bobalhão.
O sorriso brotou naturalmente em meus lábios, minha linda Eva...
Nada ia abalar essa calmaria no reino sombrio, mesmo que para isso eu
tivesse que interferir nas causas humanas .
Consequências
Tiago
Amélia
Passei o dia fazendo hora com Eva e Celeste enquanto ajudava com o
jardim, Diana ficou conosco por um bom tempo, mas depois se recolheu a
tardinha alegando que estava com sono, eu percebi que era mentira, ela queria
era escapar, pois toda hora lhe lançavam olhares preocupados e isso a estava
incomodando.
Quando a noite chegou, ela ainda não tinha decido. Por fim depois de
novamente esperar a sopa ficar pronta, subi com a terrina e a encontrei bem
desperta, estava assanhada trocando de roupa, e quando me viu chamou com
a mão.
— Vamos Amélia, estou pronta.
Ela nem ligou para a sopa em minhas mãos e me arrastou porta afora e
descemos as escadas. Nicolae estava no hall e sorriu quando a viu.
— Certeza que vai ficar bem, minha pequena?
Ela o beijou. — Estou ansiosa, obrigada por isso.
Ele segurou sua mão e levou aos lábios beijando a ponta dos seus
dedos um a um enquanto falava. — Fico feliz em ver um sorriso só com a
menção de ficar com suas amigas, mas quero pedir algo em troca de passar
mais essa noite longe de você.
Diana sorriu. — Você nunca me pede nada, por isso farei qualquer
coisa que pedir, o que é?
— Quero que coma, Amélia ainda segura a sopa que você não tocou.
Diana soltou um gemido olhando desanimada para a terrina em
minhas mãos. Sorri de modo inocente e estendi a sopa.
— Ainda temos tempo, Jena não chegou.
Diana me olhou de torto e pegou a terrina, comeu rapidamente e
Nicolae riu com os olhos cheios de amor para ela.
Senti uma pontinha de inveja, queria eu poder ter um sorriso assim
para mim, um sorriso de amor, de preferência de um humano que usava uma
maldita coroa. Me repreendi mentalmente por minha fraqueza, seguramente
se minha linha de pensamento fosse para esse lado eu ficaria depressiva e não
seria uma boa companhia para minha amiga, mas fosse sorte ou azar, um
sombrio moreno apareceu na porta me salvando de continuar pensando no
rei.
Imaginei que ele tinha vindo avisar o senhor Nicolae que Jena já
estava chegando, no entanto ele olhou diretamente para mim e falou com a
voz respeitosa.
— Dê-me licença.
Quando entendi que ele falava comigo, já nem pude dar a tal licença
porque ele me pegou nos braços e saiu porta afora.
Ser levada no colo por um sombrio que cheirava muito bem e era
veloz e silencioso foi muito esquisito e fiquei completamente constrangida
com a situação, quase me arrependi de ter sugerido aquela noite das meninas,
mas no fim nem demorou tanto.
Logo ele me colocou no chão e em silêncio e com um aceno de cabeça
se retirou sumindo no breu da noite.
Não tive tempo nem de agradecer ou... Reagir ao acontecido. Jena saiu
das sombras, estava completamente nua e me olhava com malícia.
— Hum, vejo que arrumou um substituto para o bobalhão do rei
humano.
Revirei os olhos com a bochecha queimando de vergonha.
— Lá vem você com suas implicâncias, e porque não veio vestida?
Nem é mais na minha casa esse encontro então devia ao menos trazer algo
para se cobrir. Porque sempre tem que andar nua?
Jena levantou os ombros. — Queria que eu trouxesse uma trocha de
tecidos no pescoço da minha loba só para te agradar, humana? Ou achou que
eu vestiria minha loba com um vestido só para não ofender você e suas
manias puritanas.
Eu quase cedi a vontade de rir, já tinha implicado com ela para ver sua
resposta, eu amava debater com ela, Jena era engraçada mesmo sem intenção
de sê-lo.
— Não sou puritana, só acho estranho você nem ligar de ficar pelada o
tempo todo.
Jena riu. — Tenho é vergonha de andar assim. — Ela apontou para
mim. — Me deixe com minha pele à mostra e te deixo com esses tecidos
cobrindo tudo.
Eu ri e a abracei. — Obrigada por vir Jena. Diana precisa de nós.
Jena não retribuiu o abraço, porém não me afastou.
— Eu sei, senti o cheiro de um natimorto logo na fronteira, é sempre
característico, o corpo dela já está bem por conta do sangue sombrio, mas a
morceguinha exala tristeza.
A porta da casa estava aberta e entramos, o senhor Nicolae ainda não
tinha chegado com Diana, imaginei que ele estava fazendo hora para nos dar
tempo de falar sobre o assunto sem que Diana ouvisse. Por respeito a dor
deles decidi inventar assuntos com Jena, quem sabe ele estivesse ouvindo e
entendesse que era seguro trazê-la.
— Como anda as coisas com sua matilha Jena?
— Estão complicadas, muitos conflitos com outras matilhas. Laican
anda investigando uns rastros e alguns lobos mortos que apareceram, mas
ainda não temos nada.
Ouvimos a voz do senhor Nicolae se despedindo de Diana, logo ele
apareceu na cozinha, nem tínhamos visto quando ele entrou na casa, menos
ainda quando subiu as escadas. Eu pelo menos não tinha, Jena por outro lado
não pareceu surpresa.
— Ela está deitada. Obrigado por estarem aqui por ela.
Sorri em resposta e Jena bateu com o punho fechado no peito e ele
respondeu do mesmo jeito.
Era o cumprimento deles, até meu pai fazia isso, embora eu estivesse
longe de ser uma guerreira, fiquei tentada a fazer só para ver se o senhor
Nicolae responderia o cumprimento característico, claro que eu não consegui
ousar tanto, afinal de guerreira eu não tinha nada.
Jena me olhou com aqueles olhos verdes esmeralda. — Vamos ver a
morceguinha, ela está ansiosa.
Subimos as escadas e encontramos Diana ajoelhada na cama nos
esperando. Sentei de um lado e Jena do outro e como se fosse algo
combinado nós três deixamos o corpo cair na cama.
— Como anda o sono do seu irmão caçula, morceguinha?
— Ele vai estar diferente quando acordar Jena. — O olhar de Diana
ainda era triste, mas ela parecia bem melhor somente de estar ali. —
Meu pai disse que ele vai parecer mais maduro, e terá um maior domínio de
seu dom principesco.
Jena levantou os ombros. — Então ele vai estar uma delicia de
morcego, porém um bobo que não vai aceitar domar essa beldade de loba
aqui.
Diana riu. — Não alimente esperanças, ele nunca levantará a mão para
te machucar Jena.
— Uma pena, porque o machucarei muito, até que ele perca a
paciência e revide, aí então, minha querida morceguinha, eu vou mostrar a ele
como é o sexo selvagem dos lobos.
Diana e eu nos encaramos com os olhos arregalados, Jena juntou as
sobrancelhas.
— O que foi?
Nada. — Sussurrei em resposta.
Jena virou a cabeça de lado e apertou os olhos. — Não acredito que
estão com pudores para falar sobre isso. — Ela apontou para Diana. — Você
nem é mais virgem e você Amélia, com esse cheiro que sinto em você, só
pensa nisso o tempo todo.
Diana me avaliou de cima abaixo com a mão na boca escondendo o
riso. Levantei as palmas e me defendi daquela acusação injusta.
— Juro que eu não estava pensando em nada disso. A Jena que é
louca.
Diana começou a gargalhar de verdade e Jena piscou para mim,
entendi na hora sua intenção, essa maldita estava me usando para fazer Diana
rir, e aquilo estava funcionando, então contra a vergonha que se concentrava
em meu rosto eu dei corda.
— É sério, não pensei nisso, quer dizer, não estava, mas agora que ela
falou, até imaginei Tiago nu, mas isso foi por culpa da Jena, mas juro de
dedinho que não pensei antes.
Gemi escondendo o rosto quando Diana continuava a rir de mim e
Jena batia os cílios com malicia como se não acreditasse em uma palavra do
que eu dizia.
Jena apoiou a cabeça na mão ao virar de lado. — Diana, você é toda
certinha, não falaria isso a Amélia, mas confesse, ela não está cheirando
como se estivesse no cio?
Uou... — Fechei a cara. — Está me comparando a um animal?
Jena abriu um lindo sorriso. Ela era mesmo uma mulher deslumbrante.
— Mas não somos animais todos nós? Eu sou uma loba, Diana é uma
morcega, e você é uma humana, quer um encontro mais animal que isso?
Diana assentiu olhando para mim ainda rindo. — Desculpa Amélia,
mas seu cheiro é de alguém que está com os hormônios em rebuliço, Jena só
falou uma verdade.
Franzi o nariz e apertei os olhos com um sorriso amarelo nos lábios.
— Está bem, só um pouquinho, não consigo olhar para Tiago sem bajular
muito aquela boca, e também não consigo deixar de imaginá-lo sem aquela
camisa, porque os ombros deles são tão largos que me deixa muito curiosa
para ver sem o tecido, satisfeitas?
Jena assentiu. — Muito satisfeita, o que será que ele vai usar no baile,
talvez vocês se acertem lá.
Franzi o cenho. — Está atrasada Jena, o baile aconteceu ontem.
Ela sorriu misteriosa. — Você que não sabe de nada, ele não escolheu
ninguém no baile de ontem, acredite em mim, logo outro baile será
anunciado, pois duvido que os homens chorões como são, não vão ficar
pressionando, então se prepare Amélia, pois vai ter que pensar nisso em
breve.
Apertei os lábios sem saber se ficava feliz por ele não escolher
ninguém, ou triste porque ele ainda poderia fazer isso. Essa tortura parecia
não ter fim, já estava até tentando me conformar com a ideia e ter que passar
por isso de novo...
Diana me olhou preocupada. — Se outro anúncio sair, você irá ao
baile?
Neguei. — Não vou ver Tiago escolher uma noiva, isso seria pedir
muito ao meu coração.
Diana e Jena cruzaram os braços e me encararam com firmeza, me
senti acuada pelas duas.
— Não... Nem pensem, não vou a baile nenhum, você vai Diana?
Achei que...
Me calei antes de terminar a frase, quase mordi a língua com raiva de
mim mesma. Ela segurou minha mão e apertou.
— Rael me disse que isso é normal, que não é minha culpa e que meu
corpo ainda não estava pronto. Eu confio nele. Nicolae também me falou a
mesma coisa e Eva me disse que só segurou o bebê porque o corpo dela é
mais maduro que o meu, e que todas as mulheres lidam com estresse de
maneiras diferentes. Então, quando tudo estiver em santa paz, vou conseguir
ter um filho, não tenha receio de falar disso.
Apertei os lábios. — Sinto muito Diana. Desde ontem eu queria falar
isso, mas percebi que você estava se esquivando do assunto.
Ela assentiu com o olhar triste, porém esperançoso. — Eu também
sinto. Mas não vou ficar me martirizando mais, eu não sabia que tinha um
bebê dentro de mim, mas quando acontecer novamente eu saberei e irei
protegê-lo. Mas agora me torturar não o trará de volta.
E me esquivei porque sei que machuca os meus tocar no assunto e
ainda ficam me olhando com tristeza, não gosto de vê-los assim, ainda mais
Nicolae, mas logo essa fase ruim passa e terei outro filho, Amélia, em uma
situação mais tranquila tudo correrá bem.
Não falei nada, ela estava certa, ficar se torturando era bobagem.
Mudei de assunto, não queria deixá-la triste.
— Mas irá ao baile, aliás, se outro baile acontecer?
Ela levantou os ombros. — Não sei o que irão decidir, o de ontem não
fiz questão, com certeza o rei sofrerá pressão, então outro baile é quase uma
certeza. Tiago é meu amigo e Nicolae meu companheiro, se ele precisar ir eu
irei acompanhá-lo.
Diana soltou o ar e me encarou séria. — Queria que você fosse
Amélia, sei que será doloroso, mas você devia acompanhar André, graças a
você mesma, agora todos sabem que ele tem uma filha e não ficaria bem a ele
aparecer sem você. Faça pelo meu vovô assassino.
Como sempre ela tinha razão, meu pai sempre me apoiava, era mais
que justo eu apoiá-lo. Ainda assim suspirei já sentindo pena de gastar uma
parte de minhas economias para comprar um vestido. Os meus eram velhos,
meu melhor vestido era para um passeio simples, e os outros serviam para
trabalhar, não para ir a um baile.
Diana sorriu. — Se eu bem te conheço você está fazendo contas.
Arregalei os olhos e falei com a voz macia. — Eu? Imagina que eu
teria dó de gastar minhas economias com um vestido inútil de baile que só
me servirá uma vez. Tantas sacas de trigo que deixarei de comprar só para
ver o homem que amo escolher uma noiva? Ah Diana para! Acha mesmo que
eu ia ter dó de gastar com isso?
Diana riu e Jena estalou a língua. — Nossa que humana corrompida
pela febre do dourado. Mas não vai escapar de ir, a morceguinha está certa,
você precisa ajudar o morcegão do seu pai.
Uma das minhas lobas me trará uma bolsa cheia dessas famigeradas
moedas de ouro, acabei de mandar um recado para Pria roubar de uma
fazenda rica, amanhã você terá o dinheiro e vai comprar um vestido para ir a
esse provável outro baile ou eu juro que apareço lá completamente nua e tiro
seu pai para dançar.
Eu e Diana trocamos um olhar assustado, estávamos com certeza nos
perguntando a mesma coisa, se Jena teria mesmo coragem de aparecer nua
em meio a uma multidão.
Ela riu quando viu nossa cara e continuou.
— Acreditem, minha loba já está a uivar de alegre só de imaginar a
parte humana dela aparecendo sem roupas em um baile cheio de humanos
corruptos, mas que insistem em ficar horrorizados ao ver um corpo desnudo.
Incrível como são hipócritas. Você e seu pai são os únicos que se salvam,
mesmo você sendo tão interesseira.
Eu ri da cara brava de Jena. Se fosse antes eu sentiria receio desse
rosnado ameaçador, mas agora achei engraçado. Bati os cílios com cara de
inocente.
— Um vestido para baile é muito caro Jena.
Ela e Diana trocaram um longo olhar e Diana balançou a cabeça me
olhando feio.
— Extorquindo dinheiro da Jena, Amélia? Não tem vergonha?
Fiz um biquinho. — Mas o dinheiro nem é dela de verdade. Ela vai
roubar de uma família rica, não ouviu essa parte?
Jena riu assentindo com malicia e aprovação aos meus argumentos e
Diana ficou ainda mais brava.
— Não importa, ainda assim é errado, você é uma aproveitadora da
boa vontade das amigas.
Jena bufou. — Amélia está certa, ela está extorquindo dinheiro deles e
não o meu. E mesmo que eu tivesse alguma moeda, está jogada em alguma
casa inútil de algum lobo no reino Lican, não vou ficar procurando, é mais
fácil roubar dos humanos.
Diana olhou feio para Jena. — Não acredito que disse isso Jena!
Jena balançou a cabeça confusa. — Porque está tão brava
morceguinha? Não vou matar os humanos, eu prometo está satisfeita? Vou só
roubá-los. Estou sendo boazinha em consideração a você.
Diana ficou vermelha e acabei soltando uma gargalhada, não podia
amar mais essas duas. Vim para ajudar a levantar o ânimo de Diana, e ela
sem saber estava me animando, me fazendo esquecer as tristezas. Ela nunca
ia mudar, mesmo com todos os problemas, e Jena sempre seria ela mesma, e
era isso o que mais eu gostava, pois elas sempre acabavam assim, discutindo
eu adorava ver isso.
Depois de algum tempo nós três rimos e a conversa mudou para outros
assuntos, minha alegria nisso tudo é que Diana estava se divertindo, minha
amiga estava mesmo precisando de um dia só dela, um dia que ninguém
ficaria a olhando com preocupação, e perguntando se ela estava bem a cada
minuto.
E eu sei que era assim, eu conhecia aqueles sombrios e sua dedicação
aos membros da família.
O fosso
André
Tiago
Minhas mãos tremeram quando terminei de ler. Não podia ser, eles
não podiam fazer isso comigo, justamente ela... Como esses malditos... Por
fim meu passeio com Celi ia ser adiado. Eu precisava mandar chamar alguém
do conselho e reverter isso.
O conselheiro Pedro como se farejasse as merdas que estavam
acontecendo me parou antes que eu alcançasse as escadas.
— Majestade...
Apertei os lábios para não soltar uma imprecação bem alta. Me virei
tentando mostrar tranquilidade, porém os olhos inflamados dele me causou
preocupação. Falei antes que ele começasse.
—Avise a todos os de castas altas que outro baile de reconhecimento
será feito. — O encarei com o semblante severo para não dar margem para
que me contestasse. — Daqui há duas semanas. Agora pode ir.
Por um momento ele pareceu pensar em regatear o tempo, mas vendo
meu olhar nada amistoso ele recuou e o rosto dele se iluminou, em contra
partida o meu murchou. Realmente não ia dar para escapar de encontrar uma
maldita noiva, não quando apenas por ter adiado essa escolha já tinha
causado essa situação a única mulher que meu coração queria escolher, no
entanto era um fato que ela estava definitivamente proibida para mim.
E se André não tivesse descoberto antes sobre esse plano de assassinar
Amélia?
Rilhei os dentes para conter a ira somente de pensar nisso, se algo
acontecesse a ela... O que esses malditos não entendiam é que no começo eu
queria ser alguém melhor que meu pai porque não suportava a crueldade dele.
Mas agora, depois de engolir tanta afronta, tudo o que estava me
segurando de não aderir a violência e a brutalidade contra meus inimigos, era
justamente a mulher que eles estavam tentando tirar de mim.
Era somente por causa de Amélia que eu ainda não tinha cedido a
tentação de usar o poder de minha coroa para fazer valer minhas vontades
sem pensar nas dores que eu causaria.
E agora, ela estava voltando do reino Sombrio completamente
inocente que sua vida corria perigo. E independente de minhas obrigações, de
uma noive que eu viesse a escolher e até casar, nada nesse mundo me faria
deixar de cuidar de Amélia, eu teria uma esposa que não queria, mas ela teria
que suportar me ver correr para a filha de André todas as vezes que ela
precisasse de ajuda.
Mas agora, eu ainda não estava preso a um matrimônio, e isso estava
irritando os de casta alta, eu tinha que manter Amélia segura, pelo menos até
que a escolha fosse feita.
E não importa o lugar que ela ficasse, se fosse nesse reino não a
deixariam em paz. Eu poderia matar esses malditos, mas não... Uma atitude
impensada causaria mais problemas, o que eu tinha que fazer era encontrar
outro meio de livrá-la deles.
Subi as escadas correndo, eu mesmo ia esperar por ela, esperar
somente para mandá-la de volta, nem que fosse a força. Aqui a vida dela não
estava mais segura e eu não podia viver esses dias em angústia e com receio
que algo acontecesse a ela. Poderia ter dito a Pedro que seria alguns dias
somente para o outro baile, mas ainda havia a questão do fosso e do tempo
que André pediu.
Peguei o vidro que Diana tinha deixado caído no assoalho da
carruagem antes de fugir com André naquela noite há alguns meses atrás e
voltei pelo mesmo caminho.
Eu tinha guardado comigo como uma lembrança boa do único dia que
fiz algo de bom por alguém e agora esse mesmo vidro me ajudaria a fazer
algo cruel com a pessoa mais importante da minha vida.
Recepção inesperada
Amélia.
Estava quase chegando e dei graças por isso, não via a hora de
descansar um pouco. A noite das meninas durou mais que o costume, Diana
estava tão falante e eu soube que era para conter a dor da perda, ela queria
esquecer o que aconteceu e fizemos tudo para ajudar nisso. Prometi a ela que
voltaria em breve, senhor Rael apareceu logo cedo nos dizendo que Diana
precisava de cuidados.
Esse momento só nosso foi bom para nós três, Jena também parecia
revitalizada e eu estava bem melhor. Só que agora o cansaço me chegava,
quem diria que poderia ser tão cansativa essas idas e vindas de um reino a
outro. Mas não podia cortar meus laços, o reino sombrio foi minha casa e
agora o reino humano também ganhou a metade do meu coração.
O volume de soldados circulando ao redor do portão parecia maior do
que o costume. Fiquei preocupada de ter acontecido algo, porém o carro
passou sem nenhum problema pelo portão e tudo parecia normal.
Tentei captar algo incomum e nada parecia estar fora do lugar, mas o
carro parou sem aviso e a portinhola se abriu.
Minha surpresa não podia ser maior quando vi Tiago entrar e sentar ao
meu lado, tão perto que pude ouvir o som da sua respiração.
— O que está acontecendo? — Perguntei com a voz falha,
completamente afetada pela aproximação e receosa de seu olhar. Alguma
coisa aconteceu que o deixou completamente transtornado, o que poderia ser?
Já tinha visto muitos olhares nele, mas não um que mostrasse tanto medo.
Ele balançou a cabeça e seus olhos marejaram. — Me perdoe Amélia,
você não está segura aqui, e eu não posso perder você, não desse jeito.
Não tive tempo sequer de perguntar por que ele parecia tão abalado,
porque estava me pedindo perdão assim do nada.
Ele me segurou e roçou os lábios nos meus sussurrando. — Me
perdoe.
Com a outra mão ele colocou um pano em meu nariz, senti um medo
medonho daquilo, me senti completamente traída, não ele, qualquer um
menos ele.
Não sei o que ele ia fazer comigo, mas pelo seu olhar triste eu soube
que não era algo que ele fosse se orgulhar depois.
Meus sentidos foram se apagando, o rosto de Tiago foi ficando
embaçado e meu corpo amoleceu completamente.
Atitude impensada
Tiago
Acordei sobressaltada, não podia ser. Tiago não tinha feito isso, ele
não trairia minha confiança...
De maneira involuntária e completamente aterrorizada com a
lembrança do olhar dele e do pedido de desculpas eu procurei pelas paredes
escuras, pelo ambiente sombrio daqueles quartos do castelo, meu medo não
era estar ali e sim confirmar que ele realmente tinha feito isso, mas
estranhamente o que encontrei foi a madeira rústica do meu quarto na vila
dos renegados.
Balancei a cabeça em completa confusão. Mas... Ele tinha dito quando
me segurou a força que precisava me tirar daqui, que eu corria perigo. O que
estava acontecendo?
Ouvi as batidas na porta e logo meu pai apontou a cabeça me olhando
preocupado.
— Está bem filha?
— Pai? Mas... Tiago ele...
Ele entrou e sentou na cama ao meu lado, olhou os dedos por um
tempo então suspirou, parecia realmente triste dessa vez.
— Tiago cometeu um grande erro, filha. Ele te fez dormir para te tirar
daqui, mas se arrependeu. Na verdade precisou ouvir umas verdades de um
amigo para que o arrependimento lhe chegasse.
Eu continuava sem nada entender. Meu olhar vazio e meu olhar cheio
de interrogação fez André fechar os lábios em uma linha dura, realmente ele
estava bravo. Ele continuou falando.
— Tiago ficou desesperado porque recebeu um bilhete que dizia que
você corria perigo, enfim o conteúdo não tem importância, mas o abalou
imensamente. Ele fez aquilo para te proteger eu até entendo isso, mas... Dessa
vez ele passou dos limites.
Apertei os lábios, ele me sondou esperando eu perguntar alguma coisa,
mas eu não falei nada, não consegui nem balbuciar uma pergunta. Sentia uma
dor imensa dentro de mim, ele continuou falar me olhando com tristeza e
decepção, estava mesmo magoado com Tiago.
— Quem o fez mudar de ideia, foi o príncipe Nicolae que ficou
furioso ao vê-la desmaiada e sendo levada contra sua vontade ao reino
sombrio. Peço desculpas por não protegê-la do rompante de Tiago. Se me
disser agora que não quer mais ficar aqui, vou largar meu cargo e o conselho
e vou com você para o reino sombrio filha.
Segurei as lágrimas e escondi a confusão dentro de mim, um lado meu
ficou comovido com o medo de Tiago de algo me acontecer, outro lado ficou
ofendido por ele me tratar dessa forma, apenas agindo sem sequer me dar
uma explicação, e ainda que fosse para decidir ficar ou partir era meu direito
decidir isso, não dele.
— Mas e sua obrigação com o rei? Não pode simplesmente deixar
tudo e...
Ele negou e me encarou sério. — Posso e farei, se me disser que não
quer mais ficar aqui, vamos embora. Minha obrigação de pai vem primeiro,
eu amo Tiago como um filho, mas não posso mais ver isso, já chega.
Agora era minha vez de ser adulta, eu entendia o dilema de meu pai.
Se ele ficasse do lado de Tiago estaria apoiando o que ele fez, mas se ele me
escolhesse justo agora, ele estaria cometendo um erro baseado no instinto
protetor de pai. Toquei seu braço com carinho.
— Não me importa o que Tiago fez, o que manda é que ele se
arrependeu antes de concluir, estou magoada não vou negar, mas não vou por
tudo a perder por conta de orgulho. Tiago é fruto dos costumes desse reino, e
é louvável ver o tanto que ele tenta ser diferente, não vou julgar um
tratamento que recebi mesmo que errado, quando foi com boa intenção.
Meu pai me olhava com clara surpresa. Eu sei, porque também estava
surpresa com minha própria reação. Mas eu não podia esquecer nenhum
gesto do rei comigo. E mesmo que começássemos de maneira torta com
gritos e discussões, no fim, depois de tanto esbravejar, Tiago acabava me
apoiando.
Enxuguei uma lágrima e sorri para o nada. Tiago me apoiou em tudo o
que eu quis tentar desde que cheguei. Ao modo dele claro, mas ele era
maravilhoso, e eu não queria que uma atitude dele moldasse o que meu pai
pensava dele.
— Pai. Se ele me deixou aqui é porque não pretende mais me fazer ir
embora à força e agora é tudo o que importa. Prometi ao povo daqui que logo
iremos comercializar nossos produtos. Vou ficar pai, e vou cumprir minhas
obrigações com eles e peço que faça o mesmo, não desista do rei por estar
decepcionado com o homem que sustenta a coroa. Eu e ele precisamos de
você e os moradores daqui precisam de mim.
André assentiu e seus olhos estavam marejados. — Tem um coração
enorme filha, não sei onde arruma tanta força para seguir em frente. Prometo
que serei mais presente, que...
Neguei e sorri. — Mais? Pai eu posso dizer com convicção que você é
o melhor pai desse reino.
Ele riu. — Engraçadinha.
Dei uma risadinha enquanto secava as lágrimas teimosas.
— Mas é verdade, qual dessas moças podem dizer que tem um pai que
as apoia em tudo? Que viu seus móveis sendo roubados por sua filha e não
fez nada para impedi-la? Que dá a sua filha uma mesada mesmo sabendo que
ela vai gastar tudo com estranhos?
O abracei e deixei minhas lágrimas escorrerem me sentindo até grata
por poder arrumar uma desculpa para chorar à vontade.
— Obrigada pai. Eu o amo e tenho muito orgulho de você.
— E eu orgulho de minha menina aventureira, eu quero pedir que
nunca mude, sempre terá meu apoio, mesmo que torça meu coração de receio
com suas ideias. Já agora, quero te dar um presente.
Antes que eu perguntasse o que era ele me entregou uma bolsa e me
assustei com o peso. — Onde arrumou tanto?
Ele levantou os ombros. — Recebi uma boa recompensa por descobrir
um esquema de assassinato. Use para seus protegidos.
O abracei. — Você não existe. Muito obrigada.
Reclusão
Meu pai tinha ficado comigo um dia inteiro e quando partiu não
parecia ainda conformado com o que tinha acontecido, porém ele já estava
mais calmo. Mas era justificável essa reação visto que ele tinha respeito e
acreditava no discernimento de Tiago e por fim ele o decepcionou agindo de
maneira tão impensada.
Eu não sabia como intervir e só pude torcer para que os dois
conversassem sobre isso e se resolvessem da melhor maneira. Antes de partir
ele me recomendou várias vezes cautela. Pediu a Marcos para ficar atento e
ele garantiu que nada me aconteceria aqui.
A noite tinha chegado e nem mesmo isso amenizou o mormaço, o
calor estava intenso que decidir caminhar pela prisão para tomar ar fresco. Eu
gostava de participar ativamente do que acontecia e a noite era um momento
agradável para contemplar o pequeno progresso. O cheiro agora no bairro dos
Renegados não era tão ruim como no começo. Havíamos tirado todo o lixo e
enterrado no meio da floresta. O imenso quintal estava limpo e a visão para o
portão agora era bem melhor.
Ainda tinha pessoas dormindo ao relento, mas em uma noite tão
quente isso não me pareceu um problema, mas como era um fato de que após
uma temporada de calor vinha a chuva, isso me preocupava imensamente.
— Boa noite filha de André e amiga especial de minha filha.
Apesar de conhecer aquela voz eu levei um susto. Virei-me e
encontrei o olhar firme do Supremo dos sombrios fixos em mim.
— Senhor Rael, que surpresa receber sua visita.
Apesar do semblante simpático ele não sorriu, não manifestou
nenhuma reação, somente seus olhos sérios e sábios me diziam que ele
precisava falar e eu precisava ouvir.
E foi o que eu fiz, entretanto mesmo calada não consegui manter meu
olhar quieto e por várias vezes olhei atrás do senhor Rael procurando Diana
ou mesmo o senhor Nicolae. Aliás, não conseguia entender como ele tinha
conseguido chegar sem ser visto pelas crianças ou pelos vigias no portão.
Os lábios do senhor Rael subiram em uma curva singela.
— Não vim pelo portão.
Olhei incrédula para a alta muralha e ele compreendeu minha dúvida.
— Nós sombrios conseguimos dar um salto considerável, essas
muralhas não foram feitas para um sombrio não entrar e sim para os humanos
e os leviatãs não saírem, ou... acredito que o mais correto seria dizer que foi
feita por um idiota que não pesquisou direito sobre normas de segurança.
Apertei os lábios, estava confusa se era para eu rir porque era uma
piada ou se era para eu assentir sobre a estupidez do engenheiro que havia
desenhado a planta daquele muro na antiga época moderna.
Por fim ele sorriu. — Não vim para falar sobre muros. Diana me
contou sobre sua causa, então estou aqui para contribuir com um conselho
que acredito que lhe ajudará a levantar seu rei.
Assenti em silêncio já conhecendo a fama do senhor Rael de não
gostar de ser interrompido e ele continuou.
— Não comece do fim para o começo Amélia, nem do meio para o
fim. Comece do começo, respeite o meio e alcance o fim desejado.
Pensei em pedir um desenho sobre a explicação porque eu não tinha
entendido quando ele puxou do bolso interno do casaco escuro um chumaço
de folhas.
— Estude isso, veja o que pode realizar se seguir seu projeto com
simplicidade e disciplina, só precisa do comprometimento desse povo enorme
que habita aqui e logo verá progresso.
Agradeci quando ele me entregou aquelas folhas, mas eu tinha que
perguntar. —Porque está fazendo isso senhor Rael? Não que eu não esteja
agradecida, mas gostaria de saber por que se importa com os humanos.
— Os humanos não significam nada para mim, não esses que vivem
nesse reino, alguns tem meu respeito, como o rei, por exemplo. Mas aqui tem
pessoas que estão sobre minha proteção, você e seu pai.
André é parte da família e isso torna você parte da família também, e
se para ficarem em segurança seja necessário que o reino Humanis progrida
de alguma forma, fico feliz em poder ajudar.
Não consegui formar nenhuma resposta, não tive tempo nem mesmo
de pensar, senhor Rael me entregou um saco pesado e só de pegar eu soube
que ali tinha uma boa quantia de moedas.
Ele me sorriu. — Você pediu ajuda a Diana e ela me pediu algumas
moedas, como minha querida filha nunca pede nada, imaginei o quanto isso é
importante para ela também, por isso vim por ela e por vocês. Estude o que
está nesses papéis, se tiver alguma dúvida fale com Priana, então eu saberei o
que fazer para te auxiliar, só peço que não conte a ninguém sobre minha
interferência nas coisas dos humanos, não que seja errado eu ajudar, mas será
errado eles saberem que ajudei, me entende?
Assenti, eu entendia e muito bem. Se eles soubessem que os sombrios
haviam ajudado de alguma forma, sempre esperariam ajuda quando
encontrassem problemas e isso seria um erro, nos tornaria dependentes e
preguiçosos.
Eu poderia abraçar aquele homem, mas claro que não o fiz, só de olhar
para ele eu sentia receio, não por medo, mas por excesso de respeito e
admiração.
— Agradeço senhor Rael, só não entendo porque não mandou que
outro viesse, é perigoso o senhor sair do reino sombrio, não precisava se dar
ao trabalho.
O senhor Rael deu dois passos e ainda de costas para mim ele falou.
— Eu fiz questão, quando a dor de Diana se mostrou maior que sua tristeza
você esqueceu sua própria dor a ajudando a esquecer a dela, por isso, esqueci
meus deveres por hoje para te ajudar com seus deveres.
Essa resposta colocou um ultimato em todas as perguntas que eu ainda
tinha, ele fez por agradecimento sendo que eu nem tinha pensado em
recompensa naquele dia, meu único intuito de verdade foi socorrer uma
amiga querida, ainda assim senti meus olhos arderem, pela consideração dele
comigo. Mas... Eu precisava abusar dessa ajuda e me abrir, o senhor Rael
tinha fama de ser o sábio, talvez ele pudesse me ajudar.
— Eles não me entendem senhor Rael, me acham tola e sonhadora.
— A ignorância trás esses julgamentos tolos, Amélia, ninguém
compreende os sonhos, porque são apenas sonhos... Mas caso eles se tornem
realidade então deixarão de ser abstratos e se tornarão sólidos e assim os
ignorantes acreditarão.
Não desanime por julgamentos antecipados, você e Diana têm muitas
coisas em comum, e ela nunca permitiu que nada e nem ninguém
esmorecesse sua determinação. Faça o mesmo, absorva somente o que lhe for
útil, coisas inúteis sobram, uteis são raros.
— Mas Diana é destemida e corajosa e eu sou sonhadora e
aventureira.
— Sinônimos para mim, o sonho de Diana era poder ver os sombrios
em paz, a coragem dela a fez ter muitas aventuras. E o seu sonho é o
crescimento desse povo, ao qual está determinada a melhorar a vida, e sua
coragem é continuar mesmo quando muitos não acreditam que conseguirá.
Não desanime, você é uma humana que veio do reino sombrio, assim como
Diana. Por isso tenho orgulho dos valores que aprenderam com os nossos.
Assenti com os olhos cheios de lágrimas, o senhor Rael não precisou
dizer que me entendia não era isso que eu buscava, ele apenas me incentivou
a continuar lutando pelo que eu acreditava e isso era mais importante para
mim.
Não tive tempo de dizer mais nada, quando levantei os olhos ele já
havia sumido. Esses sombrios... Não tinha como não respeitar uma raça tão
nobre quantos eles.
Balancei o saco para ter uma ideia da quantia e minha nossa...
Também não tinha como não festejar uma riqueza tão grande em minhas
mãos.
***
Dormir foi uma tarefa impossível. Quase virei a madrugada lendo
aqueles papéis, peguei no sono com eles caindo por meu rosto. Ainda assim
acordei cedo e só me dei ao trabalho de tomar um rápido banho, preparar um
chá bem forte e me sentei novamente para estuda-los.
Parecia tão simples, tão redondo. Primeiro eu tinha que ganhar em um
debate. Ok essa parte era a mais complicada nas instruções, mas o resto
facilitaria tudo e agora entendo o motivo da alta soma que veio junto. Era
para por em prática o que estava ali.
— Bom dia Amélia. Está tudo bem? Você não apareceu na parte da
manhã e é sempre a primeira a acordar.
Vagamente me toquei que já era de tarde por Marcos dizer que a
manhã tinha ido.
Quando viu que eu estava distraída demais para responder ele entrou e
sentou ao meu lado dando olhadas curiosas nos papeis espalhados pela mesa.
— Isso é um planejamento de guerra?
Eu ri. — Quase isso.
Olhei para ele cheia de excitação. — Precisamos marcar uma reunião
como conselho.
Ele franziu o cenho. — Não entendi.
Levantei e comecei a andar de um lado ao outro para amenizar um
pouco a ansiedade. — É exatamente isso Marcos, precisamos deliberar com o
conselho diretamente se quisermos dar um grande passo para o povo daqui.
— Mas o que vamos dizer a eles? Pedir ajuda?
Sorri e neguei. — Vamos propor negócios. Uma compra grande de
ferramentas simples e outra maior ainda de grãos. Precisaremos também de
melaço e claro que vamos comprar em separado para beneficiar a maioria dos
membros do conselho possível.
Marcos continuou cético. — A casa Albergin não tem representantes
na mesa do conselho e grãos em grande quantia teria que ser comprado com
eles.
Assenti agradecendo a cartilha e o passo a passo.
— Exatamente, por isso vamos ter que deliberar uma compra
diversificada. Ferramentas com a casa Machado. Melaço com a casa Amorin
e ainda grãos com a casa Albergin. Podemos incluir promessa de compras
futuras em grande quantia com as outras casas representantes, claro mediante
promessa de um bom desconto e ainda se for de nosso interesse imediato.
Marcos cruzou os braços deixando escapar um sorriso amigável. —
Entendi. Ótima ideia, mas quais dessas casas vamos prometer a isenção do
roubo? Porque vamos precisar roubar pelo menos duas delas para conseguir
pagar as compras que fizermos com as outras. Não temos dinheiro, Amélia.
Deixei sair o meu sorriso mais maroto. Entrei no quarto e peguei as
duas sacas magicamente cheias. Uma delas claro, dado pelo senhor Rael a
outra com as doações de Jena, meu pai, Clara eu e todas as moedas que
Marcos juntou com os trabalhos de todos.
Coloquei na mesa e os olhos de Marcos pareceram inflar dois quilos
com aquela visão.
— Minha nossa... Se um dia eu falei que somos miseráveis eu devia
estar delirando por uma pestilência muito poderosa. Somos ricos!
Assenti com a face rasgada de tanto sorrir. — Acha que dá para
comprar um lote de ferramentas, uma carga de grãos e uma dezena de barris
de melaço?
— Mas é claro! Dá até para subornar o rei com o que tem aí!
— Do que falam?
Clara adentrava a cozinha sem cerimônias.
— Planos como sempre. — Respondeu Marcos. — No caso o melhor
dos planos. — Ele riu.
Clara sentou ao lado dele fazendo o banco ficar pequeno para os dois.
Ela não se importou de espremê-lo para conseguir caber e ele menos ainda
com o jeito expansivo dela.
Olhei para Marcos e pisquei. — Estava trabalhando Clara?
Ela suspirou dramaticamente. — Lógico! No momento só vocês que
estão comemorando o dia do vagabundo.
Marcos riu e a encarou com o olhar afiado. — O que você fez hoje
como trabalho?
Ela deu de ombros e ajeitou o cabelo em um coque. Se abanou e falou
alegre.
— Ajudei a pegar água. Dei de beber aos velhinhos doentes e fui
buscar com Tomas coisas no mato.
Nós rimos e Marcos não perdoou. — Sei... Aposto que metade do
balde de castanhas sumiu. Isso acontece quando você vai com eles a floresta,
as castanhas somem magicamente.
Clara não se fez de rogada, mas se traiu ao levar a mão a boca e limpar
com batidinhas. — Comi o suficiente.
Nós rimos e ela esticou o pescoço para os papéis. — E o que vocês
planejam?
Contamos a ela então o que tínhamos pensado e o rosto alegre e jovial
que ela ostentava desde que tinha mudado para a prisão foi esmaecendo
continuamente. Logo ela parecia aflita. Porém assentiu em concordância.
— É uma boa ideia. Os nobres têm por costume aceitar qualquer
assunto que os beneficie. Porém é preciso um cartão com a insígnia da casa
para apresentar como pedido de audiência.
Murchei no banco e Marcos estalou a boca. Logo como se lembrasse
de algo, ele me encarou como eu fosse a salvação. — André deve ter um
cartão desses, ele é general.
Neguei com desânimo. — Mas eu sou a filha dele, então se ele o fizer
já começaremos mal, podem acusá-lo de me beneficiar com uma audiência da
qual não tenho direito e com isso nem irão querer me ouvir.
Clara riu, a coragem voltando ao seu rosto novamente. — Mas eu
ainda sou uma nobre. A casa Machado tem um representante na mesa.
Marcos pareceu refletir sobre isso, mas eu neguei. — Seu pai...
Clara levantou. — Espere um minuto.
Antes que perguntássemos ela saiu apressada e Marcos balançou a
cabeça.
— Reparou que a cada dia ela fica mais alegre? Uma moça da nobreza
completamente à vontade em meio a pobreza, como pode isso?
— Aqui ela não sofre nenhum tipo de violência. — Suspirei com as
lembranças. — O pai dela não é um dos melhores, então...
Marcos assentiu em compreensão. Realmente Clara tinha renascido
aqui, seus olhos agora tinham perdido aquela mancha de ódio profundo de
quando me visitou a primeira vez. Ela estava em paz e feliz e isso me deixou
contente por ela conseguir esquecer tudo e tocar em frente.
Logo ela voltou balançando triunfante um cartão de papel grosso, no
centro tinha um desenho de dois pilares e dois machados cruzados para baixo
formavam a letra M em dourado.
— Vão precisar disso para conseguir uma audiência. Não se
preocupem, meu pai não saberá que é meu, pelo menos não até vocês
entrarem quando forem chamados. Antes disso quando ver o brasão ele vai
automaticamente colocar o chamado na pauta, afinal é ele que anuncia as
pautas e claro que ele não vai perder a chance de privilegiar um membro da
nossa casa.
— Obrigada Clara. — Agradeci encantada pela solução que ela tinha
dado.
Ela fez uma careta. — Não agradeça, isso aí é lixo.
Ela começou a sair e Marcos franziu o cenho. — Aonde a senhorita
vai?
Ela fez um bico. — Vou buscar meio balde de castanhas. Você me
deixou com a consciência pesada.
Filha ousada
Amélia estava se arriscando com essa ousadia. Quando ela apareceu
em casa na vila dos Forasteiros logo cedo, estava ansiosa, falando rápido e
sorrindo o tempo todo e por qualquer motivo, fiquei desconfiado de que ela
estivesse novamente envolta em seus planos malucos. E quando ela me
contou todos os detalhes de sua nova ideia vi que não tinha me enganado.
E agora, quando a qualquer momento tudo ia acontecer estava sendo
custoso mostrar serenidade. Não avisei Tiago sobre a visita que teríamos na
reunião, se o fizesse ele ia ficar ansioso e poderia colocar tudo a perder. Os
dois não tinham trocado palavra desde o lapso do rei, já fazia dois que tinha
acontecido, mas as olheiras ao redor dos olhos dele mostrava o quanto ele
estava se martirizando pelo que tinha feito, talvez se soubesse que ela
adentraria por aquela porta no meio de uma reunião, ele arrumaria uma
desculpa para se retirar somente para não enfrentar a vergonha de encará-la.
E eu para castigá-lo não comentei que ela o tinha perdoado. Ele
precisava sofrer por isso para nunca mais fazer uma sandice dessas, para
poder parar de agir sem pensar ao invés de pensar para agir. E estava
funcionando, ele estava a todo custo evitando perguntar sobre ela, estava
focado no trabalho e mais atento a reunião, o que de nada servia já que como
sempre, tudo virava em discussão com nenhum resultado de valia.
Pedro levantou e fiquei atento. Tinha visto quando ele entrou, o cartão
enfiado em meio aos papeis. Talvez fosse agora.
— Agora o tema é o imposto... Os prostíbulos precisam pagar a coroa.
Não foi ainda determinada uma data para começarem nem um valor, mas
apesar da maioria ficar fora do reino, ainda assim devem impostos a coroa.
Tiago trincou o maxilar. — Estamos há quase uma hora aqui e só
falamos de impostos, esse tema será debatido em outra reunião. Algum outro
tema? Se não tiver vamos encerrar.
Pedro se apressou em vasculhar. Então era assim que ele fazia, ele
sabia o que iria escolher como tema, no entanto se fazia de atrapalhado para
parecer sobrecarregado de serviço. Hipócrita...
— Temos um pedido de audiência majestade.
Tiago franziu o cenho estranhando, afinal essas coisas eram raras, pois
quase ninguém conseguia uma audiência com o conselho se não pagasse
suborno a eles. E embora Tiago e eu soubéssemos desse esquema corrupto,
fingíamos cegueira sobre isso, os cartões eram entregues somente as duas
castas mais altas e sendo assim, eles que se matassem.
— Quem seria?
Tiago perguntou verdadeiramente inocente, já eu me remexi
desconfortável e preocupado. Amélia aprontava cada uma...
— Da casa Machado, majestade.
Tiago lançou a Pedro um olhar irônico mostrando que não tinha
gostado do privilégio que ele estava dando a própria casa, porém assentiu.
— Mande entrar e que seja rápido, realmente estou muito cansado
hoje.
Eu tinha colocado guardas de minha confiança para cuidar da porta
para pelo menos garantir que os planos de Amélia não terminassem antes de
começar, e parecia ter funcionado, até o momento ninguém tinha entrado
avisando que ela aguardava.
Os membros do conselho, agora completamente defasado depois da
limpeza do rei, ficaram olhando para Pedro como se sentissem nojo de sua
atitude, o que era pura hipocrisia já que teriam feito o mesmo para beneficiar
a própria casa.
Pedro percebendo a animosidade com sua conduta, evitou olhar para
os presentes e não perdeu tempo, fez sinal com a cabeça para o guarda abrir a
porta.
Quando ela se abriu o sorriso dele esmoreceu, meus sentidos ficaram
atentos para protegê-la a qualquer ataque de ódio.
Fiz uma prece aos antigos para por juízo a minha filha que mais uma
vez aprontava das suas.
Os olhos de Tiago cresceram surpresos. Amélia ia entrar em grande
estilo. Quase matando o rei de susto.
Negócios com o conselho
Eu não tinha ossos nas pernas! Pelo menos era a sensação que eu tinha
quando passei pela porta. Os olhos de Tiago cresceram tanto que pensei por
um momento que ele levantaria ali mesmo e me chamaria a atenção na frente
de todos dizendo que eu não podia enfrentar o conselho pedindo uma
audiência no lugar de outra pessoa.
Mas o mal já estava feito e para minha sorte ou azar ele estava mudo
de surpresa e isso me deu tempo de pelo menos respirar várias vezes até
recuperar parcialmente minha coragem.
Tentando a todo custo não olhar para os membros do conselho, eu fiz
uma vênia ao rei mostrando meu respeito, e só então corri meus olhos para
cada um deles. Alguns eu não conhecia, eram novos, conselheiros
temporários que substituíam os que Tiago mandou embora, outros eu sequer
conseguia lembrar o nome ou de qual casa, meu nervosismo fazia minha
mente flutuar em apenas uma coisa, conseguir a aprovação deles, apenas
Pedro, o pai de Clara que eu me lembrava, isso claro, porque eu estava
usando o nome de sua casa para me fazer valer um direito a uma audiência.
Pensei que veria o olhar dele de ódio por ser enganado, mas ele
parecia surpreso, todavia não bravo e isso me deixou mais aliviada.
Meu pai me olhava sério, sem manifestar reação, mas aquele brilho em
seu olhar eu conhecia, era orgulho de minha coragem, o que tenho que
admitir, eu não tinha, pois estava com muito medo do que poderia acontecer a
partir de agora, na verdade eu não sabia o que fazer depois daqui.
— Uma mulher? E nem pertence a casa Machado? O que faz aqui?
Perguntou um conselheiro com a voz carregada de nojo como se eu
um fosse uma doente terminal e contagiosa.
— Venho, em nome de muitos propor negócios que podem beneficiar
vários produtores. — Olhei para Matias, esse eu tinha decorado seu nome e
sua casa, afinal ele fazia parte dos que eu tinha que conquistar antes de
conseguir alguma coisa. — Desde a compra de melaço e grãos quanto —
Olhei para Pedro. — Um lote de ferramentas variadas.
Os olhos de Pedro brilharam ambiciosos, Matias não pareceu
convencido e os outros membros do conselho cochichavam enquanto me
lançavam olhadelas nada amistosas.
Logo quando eu já estava incomodada de ter que ficar em pé ali, um
dos estranhos levantou e apontou a porta. — A pauta era uma audiência com
a casa Machado e pelo que eu saiba, você não pertence a essa casa, por isso
saia daqui! Não há lugares para mentirosos nessa reunião, menos ainda para
alguém que não conhece o seu lugar.
Respirei fundo para engolir minha indignação e não me alterar, eu já
esperava por isso, então não fui pega de surpresa. Mas Tiago bateu com o
punho fechado na mesa e todos se viraram para ele.
— E que lugar seria esse Damião? Você pode me dizer qual o lugar
dela?
Apertei os lábios completamente sem graça, imaginei que Tiago seria
o primeiro a me condenar por estar ali e agora ele estava tomando meu
partido.
— Mas... Majestade ela... Mentiu, ela...
— Não foi isso o que eu perguntei, quero saber qual o lugar dela e
quero uma resposta objetiva.
O tal Damião fechou o semblante. — Em qualquer lugar, menos aqui
dentro.
Os olhos de Tiago estampavam uma frieza assassina. — Isso quem
decide sou eu. — Ele se virou para mim. — Tome um assento e se apresente
como deve ser. Tem meia hora para apresentar sua petição ao conselho.
Segurar o queixo tremendo de emoção foi difícil. Tiago estava
cumprindo seu papel, no entanto se não fosse pela intervenção dele eu não
conseguiria ser ouvida e meu pai já tinha me avisado que não poderia intervir
por mim.
Sentei na cadeira vaga e mexi nos papeis para ganhar tempo e angariar
um pouquinho mais de coragem. O silêncio sepulcral na sala me deixava
ainda mais nervosa e completamente consciente dos rostos virados em minha
direção.
— Gostaria de pedir ao conselho que viabilizassem a compra mediante
liberdade de taxas visto que seria uma compra em nome dos escravos libertos
e pela lei, eles não devem impostos a coroa por dois anos. E como compras
de grande porte sofrem uma taxa, gostaria de pedir isenção para assim
aumentar o poder de compra e auxiliar ainda mais os pobres da Vila da
Procriação, da Vila Nova da Procriação e da Vila dos Renegados. As três
vilas mais carentes.
O conselheiro Matias que não tinha dito nada até agora deu uma
risadinha e logo rebateu.
— Se eles são carentes como fariam uma compra de tamanho porte
onde necessitam pedir isenção?
Minha voz saiu mais áspera do que eu queria. — Já ouviu falar de
trabalho, meu senhor? E união... Conhece essa palavra?
Ele abriu a boca, mas eu o cortei, não podia admitir que me
esmagassem logo em minha primeira fala. — Pois bem, acho que isso
responde a sua pergunta, já agora gostaria de apresentar os produtos que
precisamos de imediato. Melaço, trigo e ferramentas.
O pai de Clara agora parecia tão interessado, que quase salivava, o
próprio Matias que tinha me questionado agora começou a assentir
vertiginosamente. Porém o tal Damião fez uma cara desconfiada.
— Melaço? Para que o melaço? Não seria melhor o açúcar?
Por dentro eu ri, por fora claro me mantive séria. O senhor Rael
conhecia cada membro do conselho, como é claro que devia ser já que as
novas regras de comércio teve a participação dele para ser criada e como tal
ele sabia o que cada casa produzia.
Nas folhas estava escrito para encomendar o melaço que substituiria o
açúcar na hora de fazer o pão, mas não era por isso a mudança e sim porque
Damião o fornecedor de açúcar, não tinha força no conselho enquanto que
Matias que produzia o melaço tinha influência e era do voto dele que eu
precisava para ter sucesso.
Pensei que seria difícil, que precisaria explicar milhares de motivos,
mas não. Uma falação alta e uma discussão inflamada teve início e logo
alguns me defendiam enquanto outros de voto menos importante se negavam
terminantemente a conceder a permissão provisória de comerciante para que
eu pudesse seguir em frente.
Eu me mantive em completo silêncio, não olhei na direção de Tiago e
nem de André. Ali eu representava uma casa somente e não era a Góes, nem
mesmo a Bale, era a casa dos órfãos do tratado, por isso mantive os olhos nos
papeis a minha frente todo o tempo.
Logo começaram as votações, recebi nãos logo de início incluindo
claro o voto de Damião, porém Pedro e Matias votaram a favor e sendo a
mesa composta por dez membros eu tinha a meu favor cinco votos certos,
agora só me restava contar com os bajuladores da casa mais poderosa depois
das novas leis do tratado. Precisava do sim dos membros que defendiam os
interesses da casa Albergin, e com certeza não poderia ser apenas um entre os
cinco restantes já que essa família tinha se tornado a mais influente por conta
dos moinhos, os açudes e experiência na agricultura, tinha que ter uma boa
quantia que não arriscaria perder privilégios com a família Albergin caso os
fizesse perder uma grande venda como essa.
Logo de modo muito tímido e para minha completa surpresa, três
homens levantaram as mãos e apertei os lábios para não estragar tudo
sorrindo antes da hora.
Eu tinha conseguido. Estávamos isentos das enormes taxas que os
vendedores andavam cobrando, não que não quiséssemos pagar, na verdade
precisávamos de permissão para uma compra tão grande e agora, essa
permissão estava dada. Minha parte estava feita, agora a compra e negociação
seriam feitas por Marcos mediante uma carta de comerciante que eu ia
receber ao final da reunião e claro, saindo daquele salão e com a carta segura
em minhas mãos eu sorriria, na verdade acho que daria um gritinho de
alegria, mas por hora mantive uma pose perfeita de uma mulher de negócios.
Cristian
Se Amélia pudesse ouvir meu coração agora ela ia achar que ele
poderia arrebentar no meu peito.
Seu vestido creme deixava a cor dos cabelos dourados ainda mais
magníficos, os olhos tão azuis como um lago fugiam de mim, ela não me
olhava nos olhos.
Parecia estar chateada com algo, poderia ser por eu a ter tirado para
dançar, ou mesmo por estar sendo o centro das atenções.
Logo ela me olhou, desviou os olhos em seguida e meu coração
murchou, ela estava triste, não sentia nem mesmo um terço da minha euforia
com essa aproximação.
A última vez que tínhamos falado foi na reunião e tudo girou em torno
de seu plano de compra e que tenho que admitir, foi magnífico ver sua vitória
diante dos homens, me senti quase a explodir de vontade de tomá-la nos
braços ali mesmo na frente deles e lhe dar meus parabéns, mas isso poderia
diminuir o efeito e tive que me agarrar aos braços da cadeira para me conter.
Naquele dia ela não demonstrou insegurança mesmo quando
começaram com ataques verbais, mas agora ela parecia uma moça frágil e
envergonhada, e eu não sabia se era por minha causa ou por causa de todas
aquelas famílias nos olhando como se quisessem ter o poder de causar morte
com o olhar.
Quando a música acabou ela fez menção de se afastar, mas segurei sua
mão, com o coração galopando no peito e falei sem me importar com os
sussurros a nossa volta, eu cumpriria minhas obrigações, mas não ia escolher
ninguém sem antes falar com ela.
— Precisamos conversar.
Os olhos dela para mim foram de susto. — Não posso...
Fechei a cara e encarei todos no salão, falei alto para que ninguém
pensasse algo.
— É urgente senhorita Amélia. Temos negócios pendentes e um baile
também é um lugar de negócios.
Soltei sua mão e esperei ainda mantendo o olhar duro, quase com
vontade de ver alguém se aproximando e me chamando a atenção pela minha
falta de decoro, mas nesse momento eu até usaria de arrogância e lembraria
minha posição, porque nenhum maldito ia me fazer casar sem me despedir da
pessoa que eu realmente amava.
Ela assentiu e então me virei em direção ao corredor, torcendo agora
para não ser barrado. Minha mente funcionando como se minha vida
estivesse em risco. Precisava encontrar um lugar só nosso. Ouvi a voz de
alguns convidados pedindo para a música continuar e suspirei aliviado, pelo
menos não iam ficar ali com cara de enterro esperando o retorno do rei.
Quando alcançamos um corredor escuro, segurei sua mão e mesmo ela
soltando um gemido de nervoso, acompanhou meus passos, na verdade
estávamos basicamente correndo pelo corredor escuro, passamos pela porta e
segui para o único lugar que sei que ninguém podia ter acesso se não usasse
uma coroa, o jardim particular da rainha.
Quando finalmente adentramos o jardim me virei para ela.
Amélia não disse nada, mas eu sentia sua tensão, seu nervosismo, ela
esperava eu falar, eu queria dizer muitas coisas a ela, mas tudo que me vinha
à mente, qualquer assunto me parecia sempre idiota.
Limpei a garganta e tentei. — Amélia, eu sei que sou…
Ela levantou a cabeça me olhando em fúria atropelando minhas
palavras. — Um maluco é isso o que você é! Onde já se viu fazer aquilo na
frente de todos? Está ficando louco? Não percebe o perigo em que está se
colocando?
Me aproximei a encarei de perto a calando com meu olhar de raiva. —
Eu tinha que falar com você, antes de... Antes...
Não consegui falar aquilo para ela.
Amélia assentiu. — Não precisa se explicar, eu sei o que quer fazer e
peço que não faça, só... Cumpra suas obrigações reais, é isso que esperam de
você.
Por mais que a voz dela tenha saído firme eu sabia que ela estava
sofrendo, eu vi o sofrimento em seus olhos e me aproximei quase como um
sedento quando vê um lago.
Mas ela se afastou de mim e prendi o ar. — Porque se afasta?
— Me disse que precisava resolver um assunto, estou esperando o que
seria.
— Eu só queria ter certeza que não tenho nenhuma chance de...
Os olhos dela se encheram de água. — Não termine, eu lhe peço, vai
se machucar atoa e machucará a mim também, já não é tortura suficiente vê-
lo lá procurando alguém para casar? Porque está fazendo isso comigo?
Como se fosse demais ter verbalizado, Amélia começou a chorar e me
senti horrível, praticamente a forcei a me acompanhar. Nesse momento eu
soube o quanto eu era egoísta porque a puxei para um abraço e quando ela
apoiou a cabeça em meu peito meus olhos arderam.
— Preciso fazer isso, ou vou morrer Amélia.
Segurei seu rosto e trouxe para mais perto, beijei de leve seus lábios,
segui com calma saboreando cada sensação, guardando cada lembrança dela.
Eu precisava disso como precisava de ar para viver.
Ela se afastou aturdida passando a língua pelos lábios como se
procurasse meu gosto e eu não soube como reagir a esse gesto tão sedutor, ela
nem sabia que estava prestes a cometer um regicídio somente ao fazer aquilo?
— Precisamos voltar. — Ela disse apenas isso e eu fiquei quase a
ponto de gritar de frustração.
Ameacei dar um passo, mas senti sua mão no meu braço, um toque
sútil, ainda assim parei na mesma hora. — Eu o amo. Quero que saiba isso
antes de se casar, não posso viver sem ter dito pelo menos uma vez.
Arfei. Eu tinha ansiado ouvir isso todo esse tempo, e agora que ela
falou foi como se um garrote apertasse minha garganta.
Sem esperar que eu me recuperasse do abalo que isso me causou, ela
correu como se fugisse de um animal faminto. Por um bom tempo fiquei ali
parado sem lembrar como respirar.
Definitivamente escolher uma moça naquele salão seria a coisa mais
difícil que eu teria que fazer em toda a minha vida.
Apoio materno...
Amélia
Só parei quando alcancei o corredor escuro, não me importei em
disfarçar já que as vozes e as risadas no salão abafaram meu choro.
Não sei por que eu chorava agora, se de tristeza por saber que sentiria
falta daquele calor nos olhos de Tiago e pelo que tinha acabado de acontecer,
ou se chorava de emoção... Pelo que tinha acabado de acontecer.
Levei a mão aos lábios não acreditando que tínhamos nos beijado, de
novo. Não aceitando que era o último, ele tinha um beijo tão gostoso e era... o
último.
Soltei o ar e me recostei na parede gelada ciente de que eu teria que
ser forte agora. Eu precisava me acalmar para voltar ao salão, mas era mais
fácil quando brigávamos, quando ele parecia mais idiota, mas aquela
despedida foi... Me senti tremer.
Respirei fundo para conter a vontade de voltar correndo para o jardim
e pedir para ele não casar com ninguém, mas mesmo eu sabendo que nunca
suportaria ver essa escolha acontecer, eu não podia pedir isso, ele tinha que
fazer e eu tinha que tocar em frente, que sobreviver com esse golpe em meu
coração.
Senti a mão morna em meu braço. Me virei assustada e Priana me
abraçou.
— Vai passar essa dor, seja forte.
Me agarrei a ela como se minha vida dependesse disso. — Eu disse...
— Eu ouvi querida. O que você tinha que fazer você fez com coragem,
foi admirável e mostrou o quanto o ama. Não se torture mais.
Ela segurou meus ombros e me encarou e mesmo no escuro do
corredor eu vi que seus olhos estavam vermelhos na íris.
— Agora respire fundo. Se recomponha e volte ao salão sem dar o
gosto a eles. Não alimente a crueldade deles mostrando que sofre.
Assenti e enxuguei o rosto, funguei algumas vezes e me abanei
tentando mandar ar ao meu rosto. Demorou mais do que eu queria, mas
acabei conseguindo pelo menos tirar um pouco o esmaecimento do choro.
De mãos dadas com Priana voltei ao salão, e confesso que vi confusão
nos olhos dos convidados. Talvez eles esperassem que eu voltasse com Tiago
e entendi porque foi Priana que foi ao meu encontro.
Para evitar falatório e deu certo porque logo se esqueceram de nossa
existência e voltaram a conversar sobre a escolha do rei.
Meu pai me sorriu e Diana estava enroscada no braço dele também me
sorriu compreensiva, sorri de volta com esforço. Nicolae tinha sumido e
segurei a mão de André, mas não larguei a de Priana, ela me sorriu e assentiu
quando me viu grudada ao seu companheiro, parecia feliz com aquilo e nesse
momento senti vontade abraçá-la e agradecer a ela por estar com meu pai.
Ela o fazia feliz e hoje basicamente fez o que uma mãe teria feito, me
apoiou e me ajudou com minha dor.
Tiago
Definitivamente eu era um covarde, pois não tinha sequer encontrado
coragem para sair daquele jardim, não conseguia encontrar a coragem para
levantar dali e seguir para o salão, pois se o fizesse eu teria que dizer qual
daquelas estranhas seria minha noiva. Qual daquelas malditas estranhas
arruinaria minha vida.
— Querido, podemos conversar?
Levantei os olhos reconhecendo a voz. Minha mãe me observava do
arco da entrada do jardim, os olhos negros estavam preocupados, fiquei
receoso, quanto ela tinha ouvido? Ou era algo familiar?
— Está tudo bem com Celina?
Ela sorriu e assentiu. — Hoje ela está mais calma, mas preciso falar
com meu filho um pouco.
Sentei no banco e ela sentou ao meu lado e segurou minha mão, fiquei
um pouco surpreso, fazia tanto tempo que não ficávamos assim.
Ela me olhou e soltou um suspiro. — Então meu filho pretende
mesmo se casar.
Neguei e olhei para o teto de ramos tentando buscar palavras, não
tinha até agora desabafado sobre isso.
— Não sei o que fazer mãe, pareço um boneco de pano, um fantoche
que assente quando me ordenam, ninguém me pergunta o que eu quero, só
me dizem o que preciso fazer.
Levantei talvez pela primeira vez hoje com os olhos marejados, já
tinha aguentado tanto sem me deixar abalar, mas agora me sentia quase sendo
mandado à morte.
— Não imaginei que teria que dar tanto de mim em benefício de um
povo que pelo menos um terço me odeia, outro terço me culpa pela própria
miséria e o resto que me vê como alguém tolo que apenas tenta ser melhor
que o pai.
Minha mãe sorriu. — Você é infinitamente melhor que o seu pai. Mas
filho, ele deixou um legado. Uma herança cruel. O pai dele já tinha mudado
tantas coisas, mas foi ele, o seu pai que mudou as cabeças, que fez o povo
esquecer que um dia no passado, foram melhores que agora.
Você não é um tolo, é justo e leal aos seus, mesmo tendo tantos
defeitos que faz com te definam, você é ainda melhor que todos eles. Não
permita filho que ditem o que tem que fazer, o rei é você. Não é o conselho,
não é a casta nobre. Precisa por vezes ser cruel para ser bom, entende?
Minha mãe dizendo isso? Me virei para ela. — Está sugerindo que eu
faça um reinado de terror? Como serei melhor que meu pai assim?
Ela levantou e ficou de frente para mim e segurou meu rosto, me
fazendo encará-la.
— Seu pai trouxe o terror para quase todos, no entanto era amado
pelas castas mais altas, simplesmente porque ele beneficiou esses, porém era
odiado pelo resto.
Agora o que você precisa fazer é o contrário, ser mais firme e até cruel
se precisar com esses das castas mais altas, e beneficiar os mais pobres, que
só realmente terão paz quando você literalmente amansar os mais abastados
que ainda estão acostumados com a vida cheia de benefícios e não irão abrir
mão tão cedo, por isso, você precisa mostrar a eles quem manda.
Apertei os lábios até sentir dor, fiquei com um frio no estômago só de
me imaginar sendo cruel. Celeste, Celina e André me vieram à mente. Eles
sofreram tanto, eu vi o tanto de crueldade que passaram por ordem do meu
pai. Não podia ser igual ele, tinha que existir um meio. Um jeito de ser
diferente e ainda impor respeito.
— Vou pensar sobre isso, e obrigado por estar aqui nesse momento
tão confuso para mim.
— Eu devia estar mais vezes ao seu lado filho, me culpo pelo
abandono, sei que fico cercando Celina, mas...
Abracei seu corpo frágil e magro. — Não precisa se desculpar, eu
tenho minhas obrigações como rei e você têm as suas como mãe e eu entendo
que Celina tem que ter prioridade, pelo menos ela tem você, pois nem sempre
consigo dar atenção a ela.
Ela me deu um beijo carinho no rosto. — Mesmo que demore um
pouco filho, você encontrará o caminho, saberá governar sem se tornar
escravo da coroa. — Ela me olhou firme e continuou. — Basta um gesto,
uma imposição de sua própria vontade, seja através da dor ou do castigo e
encontrará o caminho para se impor, filho.
Os olhos dela pareciam querer dizer mais, porém ela continuou me
encarando, devia estar esperando eu responder, mas apenas assenti sem saber
o que dizer.
— Você vai conseguir, eu confio em você e sei que quando o
momento chegar, você será rei e não fantoche, por isso, hoje seja rei, se for
fantoche uma vez, será por toda a vida.
O jeito sereno dela ao dizer isso me encheu de esperança, talvez
realmente eu não estivesse fazendo a coisa certa, eu aceitei logo de primeira a
sugestão do conselho, talvez estivesse na hora de mostrar a todos o que meu
coração queria, e não era casar com uma desconhecida.
O que eu queria mesmo era aprender a ser alguém melhor para
Amélia. Pois ela foi a única que nunca desistiu de mim, que fez de tudo para
me ajudar e não deixou de me amar mesmo quando o que eu merecia era seu
ódio.
Surpresa
André
Enterrar Clara foi de tudo o que aconteceu, a pior dor para mim, ela
estava tão feliz, tinha até deixado de lado o ódio pelo pai dela só para poder
viver a própria vida. Acabamos que, sem ter um local apropriado, enterramos
seu corpo em uma parte arborizada da prisão. Por costume, os ricos, depois
das mudanças tinham começado a cremar os corpos, mas nós não queríamos
isso para Clara, ela queria estar conosco na prisão e foi lá seu último lugar.
Eu tinha me martirizado pelo que fiz, porém quando na madrugada
daquele dia eu recebi a notícia de sua morte eu me revoltei e acabei
amenizando meu martírio em relação a morte de Pedro. Eu o matei é verdade,
mas não entendo a frieza que sinto, pois tudo que penso agora é que devia ter
sido mais rápida, talvez se tivesse o matado alguns minutos antes, Clara
poderia estar viva.
Esses pensamento cruel me assusta, eu nunca antes imaginei que
mataria uma pessoa, menos ainda que não enlouqueceria de remorso em
seguida, agora sei que tem uma veia cruel em mim, talvez exista em todo ser
humano, alguns em maior escala e entendo ainda mais o medo de Tiago de se
tornar igual ao pai.
Ele já conhece o próprio lado cruel, eu tive que aprender naquele dia e
agora também tenho medo do que estou prestes a fazer. Mas se eu não fizer
jamais me perdoarei. O cavalo corria como louco pela Alameda. À frente as
torres do castelo começavam a aparecer e isso fez meu coração palpitar
ansioso tanto para chegar logo quanto para voltar para casa e esquecer essa
maluquice, mas eu não podia ceder ao medo e aos tabus pré-concebidos para
o lado feminino.
A chuva caía como se quisesse inundar o mundo e dei graças quando
finalmente passei pelo portão. Não encontrei dificuldades para isso, talvez
por ser a pretendente do rei minha passagem fosse livre agora ou por ser filha
do general. O que importa é que desci do cavalo e irrompi pela porta do
castelo sem ser barrada pelos guardas.
Marchei decidida para a escadaria, precisava dar um fim nessa
reclusão do rei. Tiago não podia ficar preso em um quarto e se entregar ao
desanimo. Por mais complicado que fosse reinar, ele não podia desistir,
pessoas dependiam dele, a liberdade do povo estava sendo assegurada por
ele, minha felicidade estava retida em suas mãos e eu ia buscar o que me
pertencia, ele.
Meu vestido estava ensopado, eu estava tiritando de frio e acelerei o
passo para aquecer meu corpo. Subi a escadaria de dois em dois degraus.
O corredor estava vazio, guardas cuidavam da entrada, vê-los ali em
alerta era aflitivo, realmente a vida do rei não estava segura, ele tinha muitos
inimigos.
Antes de bater estaquei com a coragem esmorecendo, ele iria se irritar
quando soubesse que eu cavalguei sozinha até ali.
Por fim não ia voltar atrás justo agora, se ele demonstrasse pelo menos
raiva já era alguma coisa.
Três batidas e senti meu coração acelerar, agora não sabia o que fazer.
A porta continuou fechada, não ouvi nenhum barulho vindo de dentro.
Arrisquei bater novamente agora preocupada pela inércia no quarto.
Antes que os nós dos meus dedos alcançassem a madeira ouvi a voz
irritada responder lá de dentro e parei.
— Vá embora! Não quero ver ninguém, já disse!
Girei a maçaneta e vi que a porta não estava trancada, abri devagar e
estava tudo escuro, a janela estava aberta e a luz dos raios invadia o quarto
deixando uma claridade pálida que esmaecia rapidamente tornando tudo um
breu.
— Tiago?
Por um momento só ouvi o barulho da chuva que teimava em ensopar
a varanda, ele não respondeu, mas algo dentro de mim me disse que ele
estava surpreso, eu senti a tensão no ar.
Entrei e fechei a porta, aproveitei a parca iluminação repentina de
mais um raio que iluminou os céus e acendi uma vela, corri fechar as janelas
de seguida, estava frio e ventando.
Os olhos de Tiago estavam fechados.
— Vá embora Amélia, por favor, não quero conversar e não quero
brigar, muito menos ser grosseiro com você.
Sem dizer nada, acendi um par de velas com as mãos tremendo
ligeiramente. — Porque você brigaria comigo?
Ele balançou a cabeça. — Porque é isso que eu sempre faço, e hoje
estou naqueles dias que não consigo controlar meu gênio, por isso eu sei que
vou acabar perdendo a paciência com você e te magoando.
— Está assim porque acha que precisa mudar sua decisão, não é
mesmo?
Ele continuou inerte por um tempo, então deixou o ar sair de seus
pulmões ruidosamente. — Escolhi você porque era isso que meu coração
pedia, e olha tudo o que aconteceu por conta do meu egoísmo. Todo o
sofrimento que causei em apenas dois dias. Se eu continuar com isso, o que
mais vai acontecer ao reino?
Me aproximei da cama, sentia agora um aperto no peito uma
necessidade de aproximação. Vê-lo daquele jeito tão sensível, tão triste me
deixou ansiosa. Já sentia falta de sua fala autoritária e suas cobranças, com
meu bem estar.
Ele abriu os olhos quando sentiu minha aproximação e então ali estava
sua reação.
— Está toda molhada! Como você...
Ele levantou de um pulo, pegou um pano e com o maxilar travado ele
passou a me enxugar a cabeça. Logo ele estalou a boca.
— Não acredito Amélia, você tomou toda essa chuva, como pode ser
tão sem juízo? Vai ficar doente e...
Não mais resisti, pulei em seu pescoço e o beijei, o calei com minha
boca, não importava mais se seu jeito era insuportável, eu sentia falta dele,
dessa voz brava e alterada. Sentia falta de ver seus olhos me penetrando por
querer me enfiar algum juízo ou me mostrar seus sentimentos tão intensos
que o fazia agir sem pensar.
Tiago enrijeceu, então largou o pano e me agarrou a cintura gemendo
com a surpresa. Senti seu corpo morno de encontro ao meu gelado e
molhado.
Seu torso nu... Arfei porque senti o desejo me tomando, descansei as
palmas em seu peito e senti o coração acelerado de Tiago.
A respiração dele ficou pesada, com as mãos tremendo ele desamarrou
o cordão do meu vestido, eu podia me negar, podia me sentir ofendida, mas
não o fiz, eu o queria tanto quanto ele a mim.
Ele ameaçou se afastar, devia estar achando que estava passando dos
limites, mas não havia limites, eu não os impus.
Por isso eu me acheguei ainda mais a ele, e procurei sua língua, senti
naquele momento que Tiago se perdeu.
Suas mãos passaram a deslizar por meu corpo sofregamente,
mostrando o quanto ele ansiava por esse momento e isso também era o que
eu mais queria.
Meu rei estava completamente esquecido de me tratar como vidro,
talvez no dia seguinte ele poderia se arrepender, mas agora não. Não havia
outro momento e eu não queria saber de esperar as coisas melhorarem, não
queria mais esperar um dia bom para uma cerimonia formal quando a
formalidade e respeito eu devia somente ao meu corpo que já tinha sofrido
demais pela espera de seu toque, tudo o que ele pudesse me dar tinha que ser
agora, porque era agora que minha coragem gritava para ir em frente, para me
entregar ao momento.
Ele me afastou em um lapso de consciência, me olhou assustado e eu
empinei o nariz o olhando fixo.
— Vá embora... Por favor, faça isso enquanto ainda há tempo... sou
um homem desesperado de amor, não me tente.
Para que ele não tivesse mais saída, eu mesma desamarrei o cordão do
meu vestido e o deixei cair, Tiago arfou e seus olhos percorreram cada curva
de meu corpo enquanto sua respiração ficava irregular.
— Não faça isso comigo Amélia, não posso fazer isso, não agora que
eu...
Eu sabia o que ele ia dizer, que mesmo que ele não quisesse admitir,
essa escolha tinha sido um erro, que ele ia ceder à pressão porque ele colocou
todos em perigo, sim ele já tinha dito isso e sim era verdade, realmente eu
matei um homem, perdi uma amiga, perdi junto com Marcos todos os meses
de trabalho e dinheiro poupado.
Eu sabia tudo isso, mas jamais permitiria que ele aceitasse se submeter
a vontade dos nobres, e mesmo que fosse para apelar para a honra de Tiago
eu não ia ceder, podiam pressioná-lo com política, mas agora eu ia pressioná-
lo com amor.
Dei dois passos em sua direção e ele deu um passo para trás respirando
ainda mais rápido, não permiti que ele fugisse, o alcancei e novamente
enlacei seu pescoço.
Nesse momento ele gemeu baixo, pude ouvir a palavra, não dá... não
resisto.
Com isso ele tomou nos braços possessivamente e senti o volume
poderoso em sua calça, senti receio por isso, minha primeira vez quase
forçando um homem a me possuir me valendo do sentimento dele por mim.
Ele me deitou na cama e começou a beijar cada parte do meu corpo
exposto e arrepiado pelo prelúdio de seu toque rude e delicioso. Logo ele se
afastou e enquanto se desvencilhava de suas roupas ele me lançava olhares de
adoração e não pude deixar de amar a sensação de ser olhada assim.
A excitação o fazia ter pressa e logo ele subiu em cima de mim e senti
o peso do seu corpo, ele era mesmo grande e fiquei completamente encoberta
por ele.
Não disse palavra quando me encarou, tudo o que eu vi foram seus
olhos negros completamente brilhantes de desejo e seu peito largo mexendo
sedutoramente enquanto ele respirava pesadamente.
Começou a me beijar o pescoço e descer, tomou meu seio e o sugou
com vontade e ainda assim foi gentil.
Sentindo sua língua brincar com meu seio, meu corpo pediu mais e
segurei seus cabelos e arqueei o corpo e ele gemeu mais alto, sugando com
pouco mais de força.
— Preciso disso...
Sussurrei quase sem conseguir falar. — Eu sei, eu também.
Ele desceu passeando os lábios pela minha pele ronronando palavras
que nadavam em meu subconsciente. As ondas de arrepios me faziam ficar
em um êxtase tão poderoso que dopavam meus sentidos. Logo senti sua boca
úmida entre o vão de minhas pernas, ofeguei com sua língua acariciando a
parte mais intima de meu corpo.
— Tiago... — Pedi não sei o que, mas eu pedi.
Ele não respondeu, estava concentrado em me deixar fora de órbita,
porém a tortura durou menos do que eu queria e logo senti meus músculos
retesarem. Meu corpo começou a mexer sozinho procurando alívio, Tiago
como se soubesse o que estava acontecendo comigo, segurou meus quadris
com força e senti sua língua mais ágil e gulosa, nessa hora gemi sem me
conter e senti a explosão fragmentar meu raciocínio, senti a onda que
dominou todos os meus sentidos e amoleci completamente em seguida.
Tiago engatinhou e parou na direção do meu rosto, não houve
perguntas, não houve falas, somente uma troca intensa de olhar.
Logo senti seu membro se encostar a mim e ele ofegou, respirando
rápido e sem tirar os olhos dos meus.
— Se estiver... arrependida... diga agora, depois não vou conseguir
parar.
Eu não sei se todas as mulheres têm pensamentos assim durante
momentos como esse, mas ver aquele homem completamente tomado de
desejo por mim me deixou emocionada e ao mesmo tempo ansiosa, eu queria
mais de Tiago, mais daquele olhar. Queria que ele se entregasse
completamente, que mostrasse o amante, pois eu já conhecia o homem e o
rei.
O segurei pelos cabelos e o puxei mais perto, senti o assopro de sua
respiração pesada. Ele forçou um pouco e ofeguei baixo ainda o olhando fixo,
respirei fundo e ele aguardou atento as minhas reações.
Para incentivá-lo a continuar eu o puxei para um beijo e ele gemeu
enquanto forçava o quadril e nesse momento eu soube que sempre quis isso,
soube que era esse nosso destino, por mais que tentassem nos separar, ele me
pertencia e eu a ele. Ninguém ia tomar meu rei de mim e ninguém me tiraria
dele.
A dor foi ínfima, nada que eu não pudesse esquecer em alguns
segundos e com um beijo ardente.
Tiago sabia o que fazia, ou era o meu amor tão grande que fazia meu
desejo aumentar a cada investida.
Os movimentos eram cadenciados com seus gemidos e sua respiração
era cortada por grunhidos e eu gemia no mesmo ritmo.
Cada vez que ele saia e empurrava novamente eu me sentia moldar por
dentro, me sentia transformar, não queria mais que esse momento terminasse,
que esse olhar dele completamente entregue nos meus acabasse.
Tiago surpreendentemente não perdia o controle, seus movimentos
continuaram por um longo tempo em um ritmo tão lento que me eu me sentia
torturada por uma pressa sem sentindo, eu nem mais lembrava como respirar,
nem mesmo de manter os olhos abertos, apenas sentir, somente isso.
Logo como se entendesse que tinha chegado a hora ele começou a
aumentar o ritmo e seus gemidos passaram para arquejos ritmados com o
movimento mais intenso.
Novamente senti a explosão chegando, senti que novamente ia me
perder. Tiago sem tirar os olhos dos meus forçou o corpo mais uma vez e
soltou o ar ruidosamente enquanto seu corpo arquejou em espasmos. Como
se a força o tivesse deixado ele caiu por cima de mim respirando rápido.
Não me incomodei com o peso, eu estava completamente amolecida,
me sentia completa e feliz.
Tiago saiu com cuidado e deitou ao meu lado, me abraçou e escondeu
a cabeça na curva do meu pescoço.
— O que fizemos...
Me virei para ele. — Foi maravilhoso.
Ele balançou a cabeça. — Foi lindo, esperei tanto por isso Amélia,
tanto para ter finalmente uma chance de poder ter você em meus braços. —
Mas agora. — Ouvi seu soluço. — O que fizemos foi uma sentença de morte
para você. Não irão sossegar enquanto não a verem...
Sorri sem sentir nenhum remorso. — Eu o seduzi para prendê-lo a
mim.
Ele levantou a cabeça e deixou um sorriso escapar. — Porque fez isso
comigo?
— Já perdemos muita coisa, e nunca mais vou admitir que me
coloquem medo. Você irá me proteger eu sei...
Era agora, minha jogada mais arriscada, meu pai havia me dito que
Tiago era reativo, seu maior defeito era esse, reagir e nunca agir.
Mas agora, que ele sabia que era a única maneira de ficarmos juntos
era com atitude. E agora depois de ter enfrentado os da casta alta para
escolher a mim, se ele voltasse atrás não mais reconquistaria o respeito do
povo.
Agora era o meu risco, se ele me amasse tanto quanto demonstrava e
seu meu pai o conhecesse tão bem quanto dizia.
Ele ia reagir aos acontecimentos, e assim ou ele iria mostrar a força
escondida dentro dele movido por ira, ou eu ia amargar ver o homem que
amo se deixando subjugar por um punhado de homens corruptos.
Calmaria
Dois dias se passaram sem mais transtornos, não conosco pelo menos,
porém quando eles viram que eu não abriria mão tão fácil de Amélia, a
violência aumentou exponencialmente em todo o reino, mas dessa vez,
mesmo com toda a pressão eu estava me permitindo alguns dias para degustar
a sensação maravilhosa de poder ter a mulher que amo em meus braços.
Ultimamente eu andava aos suspiros. De tão feliz chegava a ignorar o
os comentários ácidos dos nobres, as ameaças indiretas sobre minhas últimas
decisões, enfim nada do que eles falavam eu estava dando importância, pois a
cada momento me vinha a lembrança daquela noite chuvosa e meu corpo
vibrava de saudades e desejo e com isso eu acabava ganhando forças para não
me abalar.
E apesar das recomendações de André para que eu ficasse longe até a
segurança ser reestabelecida, eu consegui escapar das enfadadas obrigações
no meio da tarde e fui visitar Amélia.
Bati na porta com a ansiedade aflorada pela expectativa de vê-la,
porém quando a porta se abriu fiz um cumprimento polido ainda na porta e
isso foi engraçado, pois já não era mais segredo a ninguém visto que
estávamos para tristeza dos nobres e para minha felicidade, oficialmente
comprometidos.
Mas era o certo a se fazer, ainda mais depois dos eventos, Amélia
também estava cautelosa e apesar de seus olhos demonstrarem uma bem
vinda alegria quando me viu, ela olhou para os dois lados procurando olhos
nos observando, quando viu que estava seguro ela me convidou a entrar e
antes de fazê-lo eu lhe entreguei o que até então estava escondendo atrás das
costas, um ramo de rosas.
Pela primeira vez senti queimar minhas bochechas me sentindo um
tolo pelo gesto ainda assim fiquei expectante com sua reação e para me
explicar já que ela fazia uma cara de paisagem de quem não está entendendo
nada eu falei quase em um murmúrio já que minha voz estava suprimida por
uma estranha timidez.
— Eu li em um livro que era isso que faziam antigamente.
Amélia ficou por um tempo segurando as flores enquanto piscava
bastante em completa confusão, nitidamente ela não sabia como proceder. Na
mesma situação que ela e ansioso para que ela saísse da inércia, troquei o
peso de um pé para outro tentando com isso ganhar algum tempo. Para minha
sorte ela perguntou com a voz atrapalhada.
— E leu a parte da mulher? A reação dela e o que ela teria que fazer
quando recebesse um punhado de flores?
Essa pergunta me fez dar uma risadinha de contentamento, era a
desculpa perfeita para que eu pudesse tomá-la nos braços. Entrei e fechei a
porta atrás de mim.
— Não sei, meu pai me tirou o livro antes que eu terminasse, mas
acho... — Deixei escapar um sorriso torto mostrando minha intenção
maliciosa e tirei as flores da sua mão a enlaçando pela cintura. — Que elas
soltavam as flores no sofá e enchiam o homem de beijos.
E foi exatamente o que ela fez. Jogou as flores no sofá e sorriu
largamente demonstrando uma plena de felicidade.
— Se em algum momento achei que você era igual aos homens desse
reino eu estava enganada, meu rei.
Ela esticou os braços e me puxou pela camisa até nossos lábios se
encontrarem, seu beijo rapidamente ficou exigente e reagindo a esse delicioso
estímulo minhas mãos ficaram inquietas e me encantei com a sensação das
mãos suaves de Amélia passeando pelo meu corpo com a mesma curiosidade
que eu tinha sobre ela. Era algo novo esse despudor, essa total entrega e me
deixava ainda mais doente de amor pela mulher que meu coração escolheu,
eu estava me sentindo completo e pleno, mesmo com todos os problemas
recorrentes dessa decisão.
O desejo ficou mais forte que a compostura e como dois malucos,
demos passos em direção a escada com nossos corpos agindo por conta
própria procurando quase inconscientemente a privacidade de um quarto, mas
a porta se abriu e por puro reflexo nos afastamos imediatamente.
André segurava a maçaneta e nos encarava completamente sério.
— Não posso ficar longe um minuto? Qual parte de manter a discrição
ficou difícil para os dois de entender?
E foi assim que completamente inflamado de desejo e extremamente
envergonhado pelo flagrante de uma situação constrangedora que eu me
despedi apressadamente de um André furioso e de uma pretendente com os
olhos em brasa e assim como eu, completamente frustrada pela interrupção.
Quando entrei na carruagem olhei desolado para a porta, imaginando o
sermão que Amélia estava ouvindo lá dentro, a minha vez ainda ia chegar,
conheço André o suficiente para saber que ele não ia deixar essa passar.
No entanto ele também já devia estar ciente que eu não ia conseguir
ficar longe dela. Embora ele tivesse razão em proibir esses encontros na vila
dos Forasteiros até que a segurança estivesse reestabelecida, eu podia insistir
para que ele trouxesse Amélia ao castelo.
O perigo ainda existiria, porém mesmo que eu precisasse mobilizar
toda uma legião de soldados para fazer a escolta, ficar sem ver Amélia, era
uma tortura das mais cruéis e André não podia ser insensível a esse ponto.
Afinal, eu já estava amargando uma distância forçada desde que ela
chegou ao reino, e agora que deixei claro a todos meus sentimentos por ela,
não podia mais aceitar ficar longe dela.
O recado de Celina
Apesar de meu pai insistir para termos cautela e nos proibir de nos
encontrar. Apenas um dia se passou até Tiago convencê-lo a me levar ao
castelo.
Por sorte meu pai entendia que eu e Tiago estávamos apaixonados o
suficiente para não conseguir ficar longe um do outro tanto tempo. E
sinceramente meu coração estava transbordando de sentimentos, de
curiosidades e de desejos. Tudo ainda era novo, mas uma coisa eu descobri,
acordar ao lado de Tiago me fazia esquecer o mundo raivoso lá fora. Na
verdade ele me fazia esquecer todos os problemas, pois estava se mostrando
um amante experiente e um romântico incurável.
Conversamos até tarde e confessei a ele que apesar de estar feliz por
estarmos juntos, eu sentia falta de poder andar pelo reino, e queria recomeçar
os projetos com os renegados na prisão, pois mesmo depois de termos
perdido tudo, eu não podia simplesmente abandoná-los, mesmo com os
nobres procurando uma brecha para nos atacar novamente.
Ele me prometeu que quando as coisas se acalmassem eu poderia
voltar a cuidar dos meus órfãos. Prometeu ainda que mandaria recuperar o
templo e voltaria com o projeto da fazenda, porém agora nada podia ser feito
já que o risco de destruírem tudo novamente era algo a se pensar.
Essa resposta me deixou emocionada, pois ele não me forçou a engolir
argumentos, ao contrário foi compreensivo e me apoiou e com isso vi um
homem que estava escondido por camadas e camadas de frustrações e falta de
confiança.
Ver essa nova faceta do rei vir à tona me fez ter a certeza que mostrar
a ele todo o meu amor, foi a melhor coisa para além de construirmos uma
confiança sólida um no outro, ainda o ajudar a encontrar a coragem e
confiança nele mesmo para enfrentar os problemas do reino.
Eu ainda sentia um medo mórbido de que a pressão o fizesse titubear e
ele cedesse escolhendo uma filha de um nobre e me deixando amargar
novamente toda essa aflição que senti naquele baile, era direito dele e mesmo
que eu tivesse me entregado a ele, o fiz tendo consciência de que ele já
cogitava isso, por isso não podia sequer mostrar mágoa por ele escolher a paz
do reino ao amor. E quando manifestei esse receio, seus olhos arderam de
raiva, porém a resposta dele saiu com a voz calma.
— Eu estava acovardado pela reação das castas altas naquele dia
Amélia, mas você mostrou uma coragem que deveria ser eu a ter mostrado,
você lutou por nós dois sem pensar duas vezes, por isso agora farei valer essa
sua fé em mim, prometo que aconteça o que acontecer daqui para frente,
ninguém vai separar nós dois, eles podem tentar, mas não vou permitir.
Depois dessa promessa dormi o resto da noite em completa paz de
espírito. Fui acordada com beijos suaves logo de manhã. Tiago tinha
obrigações e depois de um gostoso café no quarto me apressei a me arrumar.
Quando descemos encontrei André de braços cruzados nos esperando no fim
da escada.
Ele sorriu quando viu minha alegria e me beijou a testa como um
cumprimento de bom dia, meu pai mal notava o quanto seus olhos estavam
tristes, com certeza ele estava pensando em Priana nesse momento já que os
dois não estavam se encontrando muito ultimamente, pelo menos não que eu
soubesse. Quando se despediu me pediu para esperá-lo porque íamos para
casa juntos.
Enquanto ele se fechou em uma sala para uma reunião com Tiago, eu
suspirei buscando com o olhar algo que pudesse ajudar a passar o tempo já
que teria que esperar meu pai, eu saí pelo castelo passeando a esmo pelos
corredores. Minha intenção era conhecer a cozinha, queria ver como era a
organização, eu sei que poderia ser uma tortura visto que tínhamos perdido
tudo, mas com a promessa de Tiago de reformar o templo e me ajudar a
comprar tudo novamente eu não queria só esperar, eu queria fazer algo, mas
agora tudo o que me restava era esperar, ao escolher a mim ele basicamente
acendeu o fogo para a explosão de violência que começou por todo o lugar.
Eu, Clara, Daniel e muitos outros, fomos vítimas dessa ira e agora
tudo o que me restava era me resignar a perambular sem destino já que eu
estava proibida de ir a vila dos Renegados ou mesmo ao que sobrou do
templo. Depois do pai de Clara era claro que eu não tinha segurança em
nenhum lugar, ainda mais depois de tirar a vida dele.
Parei em um corredor e pisquei várias vezes tentando lembrar qual
lado eu tinha tomado para chegar ali. O ruim desse castelo era o tamanho. Por
todo lado tinha cômodos e mais cômodos.
Pensei em continuar a esmo e ver onde ia parar já que tinha tempo de
sobra para uma longa excursão, mas não me senti bem em xeretar, me senti
intrusa.
— Amélia, que bom vê-la aqui, querida.
Tive um sobressalto com a voz de Dona Clara potencializada pelo eco
do corredor, por puro reflexo fiz uma vênia respeitosa.
— Majestade, perdoe-me. Estou aguardando o fim da reunião, eu...
Ela sorriu e fez um gesto com a mão sem importância.
— Não tem problema, é muito bem vinda. Tem algo em mente?
Minha ideia era encontrar a cozinha, mas o olhar dela me disse que ela
queria algo. Neguei com os olhos baixos, incomodada com o olhar intenso e
brilhante dela, ela falava normalmente, mas não me senti a vontade ainda
assim.
— Gostaria de ver Celina? Ela ficará feliz em vê-la.
Assenti sem ter ideia do que dizer. Dona Clara realmente parecia
diferente da última vez que a vi. De certo modo parecia mais magra, mais
branca e com o olhar febril como se não estivesse mentalmente bem.
— Será um prazer, majestade.
Ela novamente sorriu e virou para as escadas, a acompanhei um tanto
ansiosa, mesmo seu sorriso gentil deixou aguçado em mim uma sensação
estranha de estar ao lado de uma pessoa doente, talvez fosse a pouca
intimidade com a mãe de Tiago que estivesse me deixando assim, ou
realmente a preocupação dela com o tempo findando para entregar sua filha
na mão do supremo Alfa a estivesse afetando de uma maneira que ela não
conseguisse mais disfarçar.
— Ela anda tendo mais pesadelos que o normal sabe, estou
preocupada, mas ainda assim continuo esperançosa. Acho que ela está
tentando voltar. Infelizmente Celeste anda muito ausente, ela não suporta o
reino Humano, por isso não posso contar com ela para ajudar com Celi, ainda
mais agora depois do que aconteceu com a menina Diana.
Abri a boca para perguntar por que ela não tinha visto Celeste sendo
que de acordo com meu pai ela tinha vindo visitar Celina com frequência,
mas acabei me calando. Se Dona Clara não sabia das visitas de Celeste a
irmã, então era proposital e quase entreguei a filha de sangue de Diana
somente por estar nervosa demais para ser perspicaz. Por sorte ela não
percebeu que eu ia interrompê-la e continuou falando.
— O meu tempo está acabando, preciso que Celi volte logo e me diga
o que fazer. Não posso simplesmente enviá-la ao supremo dos Licans sem ela
me dizer que é exatamente isso o que quer.
Me mantive agora em completo silêncio enquanto a seguia.
Ela abriu a porta e falou ríspida para os criados. — Saíam.
Um criado que fazia a limpeza, uma moça que penteava os cabelos de
Celina e também um idoso que parecia preparar um chá em uma mesa no
canto, todos eles largaram o que estavam fazendo e saíram de cabeça baixa.
Assim que ficamos a sós ela se virou para mim e pediu com a voz
aflita, porém sem a sombra da rispidez que usara para falar com os criados.
— Ela precisa de uma companhia conhecida, esses corvos que ficam
vigiando ela para Tiago a estão deixando ainda mais doente. Acho que fará
bem a ela ficar um pouco com você, Amélia. Eu tenho que sair, já ia fazê-lo
antes de vê-la, porém ia deixá-la aos cuidados de estranhos, pode ficar com
ela por um momento? Deixarei vocês duas a sós.
Sem sequer esperar resposta ela saiu apressada e fechou a porta, eu
não conhecia Dona Clara tão bem ao ponto de entender sua atitude, mas achei
estranho ela não ficar conosco, na verdade era como se ela tivesse fazendo
tudo por puro desespero, como se encontrasse nessa interação de Celina com
outra pessoa além do círculo familiar, uma chance de ela finalmente ficar
curada.
Talvez dona Clara estivesse realmente desesperada, por isso estava
agindo assim, tão estranha e tão esquiva. De todo modo não me custava dar
atenção a Celina, mesmo que ela nem fosse sentir minha presença.
Com um suspiro olhei para a moça de cabelos negros sentada no chão
rabiscando um papel e andei devagar e sentei de frente a ela.
Observei seu desenho, era bonito e bem feito. Não entendi como
alguém fechado em si mesmo poderia ter a mente tão aberta para os detalhes.
Sua mão parou com o giz vermelho e logo ela pegou um verde.
Começou a trabalhar um canto da folha ainda limpo. Olhei curiosa para ver a
arte que sairia, mas o traço reto e vacilante me deixou atenta e com o coração
batendo mais rápido que o normal e estranhei a reação do meu corpo.
Celina continuou naquele canto, sua mão segurando fortemente o toco
de giz. Não parecia algo como uma flor que ela estava desenhando e sim...
Uma letra. Logo outra, depois outra e não demorou e uma palavra toda torta
estava ali. Ajuda.
Meu corpo todo se arrepiou, era como ver alguém morto voltar à vida
na sua frente. Algo improvável e totalmente assustador. Mas estava claro o
significado, pelo menos o significado da palavra, do pedido eu não tinha ideia
o que ela queria dizer. Ganhei coragem e sussurrei com a voz falhando.
— Como? Como posso te ajudar?
Ela riscou então ferozmente com o giz por cima da palavra apagando
completamente o que estava ali, pegou outra cor, esse era preto.
No meio do jardim que ela tinha desenhado, começou a fazer um
pequeno ponto apertando o fiz no mesmo lugar. Deixou ali um ponto preto e
pegou o giz amarelo fazendo com ele pequenos riscos em volta do ponto.
Respirando rápida e pesadamente eu senti que aquela era a resposta,
mas não entendi o que ela queria me dizer. Segurei o papel e olhei para ela
esperando sua reação, ela ficou quieta com a mão no ar e ainda segurando o
giz. Manteve os olhos baixos.
Puxei o papel devagar. — Preciso ver de perto, está bem?
Senti medo de ela reagir mal ao me ver pegar seu desenho, mas ela
continuou do mesmo jeito, parecia uma estátua olhando para o chão e
segurando um toco de giz na mão levantada.
Aquele jardim com três canteiros de flores metodicamente divididas
entre branca, rosa e vermelha, os bancos e a cúpula toda decorada eu já tinha
visto. Foi o jardim que Tiago me levou quando me puxou no meio do baile.
Olhei para o ponto preto todo cheio de raios amarelos como se fosse
um sol negro e apertei os olhos tentando entender.
A direção do jardim e o corredor que Tiago me levou combinavam
com aquela ala, então... Levantei e andei apressada para a janela. Não
precisei procurar muito, a cúpula branca e partes do canteiro a mostra, estava
na direção da janela de Celi.
Eu tinha que ir lá, talvez fosse isso o que ela queria me dizer.
— Vamos ao jardim?
Ele continuou inerte, porém não mais desenhava e isso me pareceu
uma resposta positiva e a ajudei a levantar. Ela me acompanhou quieta, esse
era outro comportamento estranho, segundo Tiago, Celina nunca era quieta,
não do jeito que estava ao meu lado, pois seus gemidos e gestos com a mão
eram frequentes e isso realmente me deu a certeza que ela queria ir lá.
Quando alcançamos a escada, o idoso de pele escura nos parou, seus
olhos leitosos pareciam preocupados.
— Onde está levando a princesa?
Pisquei várias vezes tentando arrumar uma resposta que fosse
convincente. — Dona Clara me pediu para levá-la ao pequeno jardim, me
pediu para ficar com ela lá um pouco hoje.
O senhor assentiu e saiu do caminho. Aliviada eu segurei o braço de
Celina e descemos a escada devagar. Eu tinha pressa, mas não podia
demonstrar, seria suspeito e poderiam pensar que eu estava sequestrando a
irmã do rei.
Olhei para trás e o homem ainda estava lá. Meu coração batia tão
rápido que tive medo de desmaiar ali mesmo, nem sabia se o jardim era
chamado assim. Tive medo de Dona Clara ter deixando instruções para não
nos deixarem sair do quarto, se ela tivesse mandado isso, eu ia ser pega na
mentira.
Quando alcançamos o salão, fiquei perdida e confusa, não sabia qual
direção seguir e nem me lembrava de qual corredor Tiago tinha usado quando
me levou ao mesmo jardim que agora eu tentava alcançar.
— Se consegue me entender Celina, me ajude, pois não sei como
chegar.
Em silêncio, ela caminhou para o corredor do meio, olhei para cima
encabulada com o idoso que continuava a nos observar. Não podia forçar Celi
a andar mais depressa, aliás, nem sabia se ela seria capaz de tal proeza.
Apesar de ter tomado uma inciativa quanto a direção a tomar, ela
ainda parecia andar alheia a tudo, dava passos automáticos, o olhar ainda
desfocado como se nada lhe chamasse a atenção.
Seguimos pelo corredor em ritmo lento, meu medo crescia conforme
alcançávamos a saída. Porque eu? Eu me perguntei isso o tempo todo. Ela
podia ter escrito o pedido de ajuda a Tiago.
Talvez essa pobre mulher estivesse desesperada ou talvez se lembrasse
dos momentos que passamos todas juntas nos preparativos para o casamento
de Diana.
Apertei os lábios para conter a emoção com o que estava acontecendo,
ela de alguma forma me reconheceu no momento que sentei ali e esse tipo de
percepção somente uma pessoa que não estava fechada em seu próprio
mundo teria. Queria poder correr e contar para Tiago, ele ficaria feliz em
saber disso, porém algo dentro de mim sussurrou um amontoado de dúvidas
sobre o comportamento de Celina.
Ela estava fingindo todo esse tempo? Ou estava fingindo somente
agora por algum motivo? Ou ela podia estar se recuperando e escondendo
isso, mas por quê?
Quando entramos pela abóbada minha curiosidade com o que
aconteceria em seguida encobriu minhas dúvidas e a ajudei a sentar no banco,
sentei ao seu lado morrendo de medo de ela virar o rosto para mim e começar
a falar normalmente, isso com certeza me assustaria até a morte. Mas ela
continuou como sempre, apática e alheia ao seu redor.
Voltei a olhar o desenho, os canteiros estavam pintados de acordo com
o jardim, primeiro rosas amarelas, todo o canteiro com rosas somente dessa
cor. A do meio eram somente rosas brancas e o último canteiro tinha somente
rosas vermelhas.
O ponto que Celina tinha desenhado estava no canteiro do meio, o de
rosas brancas, então comecei a procurar entre as flores como estava no
desenho qualquer coisa escura entre as rosas ou na terra, ou entre os caules,
na verdade eu estava fuçando tudo sem nenhuma noção do que deveria
encontrar, tive o cuidado para não estragar o canteiro, caso nada fosse
encontrado, eu não podia deixar marcas de busca.
Se não fosse pela pequena ponta do papel eu não teria visto, mas ali
estava, encaixado entre as pétalas suaves um bilhete dobrado muitas vezes até
ficar pequenino.
Peguei e saí apressada do canteiro, sentei ao lado de Celina e olhei
atenta para todos os lados.
Coloquei o desenho cuidadosamente ao lado de Celina e abri o bilhete.
Deixei tudo pronto para facilitar para ele, me mande novamente, mas
dessa vez mais forte.
Esse último que me mandou não fez o efeito que prometeu, meu tempo
está acabando, faço o que quiser.
Meu pai não tinha aparecido para o jantar. Bati na porta de seu quarto
e não obtive resposta. Achei estranha essa ausência já ele quase nunca ficava
sem voltar e quando precisava dormir fora ele sempre avisava.
Abri a porta devagar, imaginei que o veria dormindo um sono pesado,
mas a cama estava ainda arrumada. Ele passou a noite fora, sorri já sabendo
seu paradeiro, ele estava com Priana.
Era bom para ele ter alguns dias de paz, e agora eu teria que esperar
ele voltar para fazer o pedido, eu queria ir ao bairro dos Renegados, os
recados de Marcos me traziam ótimas notícias.
Estavam acelerando a construção de mais duas casas, por hora serviria
como alojamento. Fariam como nas outras e colocariam dentro quantos
coubessem, mas era um progresso. Com a minha que deixei para Marcos já se
contavam quatro casas prontas e com mais essas duas já se poderia separar
pelo menos uma para as mulheres, outra para as crianças. Assim eles teriam
mais conforto.
— Cadê André?
Aline coçava os olhos inchados, seu cabelo estava bagunçado de sono
e estava descalça.
— Hum... Acho que uma garotinha se esqueceu de calçar os sapatos,
não?
Ela fez careta. — Não gosto, me dói os pés.
Achei graça na desculpa boba. Era mentira, pois foram feitos de
acordo com seu tamanho, porém não falei nada, logo ela se acostumaria. Mas
claro que eu poderia dar uma ajuda para que ela continuasse tentando
acostumar. Segui para a cozinha fazendo cara de despreocupada.
— Uma pena, pois acabei de fazer um bolo de laranja e meninas
descalças não sentam a mesa.
Continuei andando, mas não consegui evitar um largo sorriso quando
ouvi fuzuê que ela fez ao correr de volta para o quarto.
Arrumei a mesa para o café sem conseguir parar de espiar a porta a
todo o momento. Sentia uma inquietação por meu pai não estar ali. Estava
ansiosa por vê-lo chegar.
Aline apareceu na cozinha com a cara deslavada. Calçava as sapatilhas
e tinha prendido o cabelo como ensinei. A cicatriz ficou mais aparente com o
cabelo preso, porém eu achava bonito até isso nela.
Sorri e assenti aprovando seu esforço para mostrar que aprendeu.
— Muito bem, está muito bonita.
Ela sentou e sorriu alegre. — Quando tio Tiago virá? Quero vê-lo.
— Eu também. Mas não se preocupe, logo ele aparece para nos dar um
beijo antes de começar mais um dia de trabalho.
Entreguei a ela um pedaço generoso de bolo. Com Aline eu era
exagerada, queria ver ela gordinha logo. Queria tirar dela a aparência doentia
e os ossos sobressalentes. E ela claro, se deliciava em sua gula infantil
aceitado comer qualquer coisa que eu lhe oferecia em minha gula adulta de
vê-la mais cheinha e com gominhos. Se é que uma menina de dez anos
pudesse vir a ter gominhos nas juntas.
Quando sentei ouvi as palmas. Sorri quando Aline me olhou
esperançosa.
— Notícia de Marcos.
Corremos para a porta. Sempre que ouvíamos palmas era sinal de
algum garoto de recados chamando. E realmente era, porém dessa vez foi um
rapaz de quinze anos mais ou menos que me entregou um pacote.
Estranhei, pois esse não era bairro dos Renegados e senti um frio do
estômago, não eram notícias de Marcos, podia ser de meu pai.
O garoto não esperou que eu lhe desse algumas moedas como sempre
os outros faziam e isso me deixou ainda mais curiosa.
Parecia que ele queria fugir, pois assim que eu peguei o pacote ele
partiu apressado e virou a primeira esquina que encontrou.
Entranhando essa pressa fechei a porta e sentei no sofá. Coloquei o
pacote no colo e senti as mãos tremerem sem motivo aparente. Talvez fosse a
maneira como aquilo foi entregue que me deixou apreensiva e não fui só eu.
Aline olhava o embrulho com olhos esbugalhados me deixando ainda mais
preocupada.
Rasguei o papel e vi que era uma caixa de madeira. Aline e eu
trocamos um olhar apreensivo. Com as mãos suando, soltei o encaixe de
metal e abri.
O ar faltou em meus pulmões, a bílis alcançou minha garganta, mas o
grito veio antes partindo do mais fundo do meu ser. A dor lacerou meu
coração. Um pedaço grosso de pele do tamanho de minha palma estava
dentro da caixa e reconheci na mesma hora cada parte da cicatriz macerada,
cada parte da pele que formava a marca de uma mordida funda de dentes
grandes, uma mordida mal cicatrizada.
Aline respirava pesada e rapidamente, não gritou como eu, mas
parecia em choque.
Em cima do pedaço de pele tinha um envelope manchado de sangue
ainda fresco. Peguei aquilo sem conseguir parar de bater os dentes de tanto
que eu tremia.
— Um carro espera na esquina. Venha sozinha e não alerte ninguém,
senão seu pai será devolvido em partes. Uma em cada caixa para você fazer
coleção.
Respirando com dificuldade eu segurei Aline pelos ombros.
— Vá pela porta dos fundos e me chame Tobias que está no estábulo.
Aline era esperta e correu como vento para fora e enquanto isso eu
escrevi um bilhete rapidamente, a letra saiu torta por conta da tremedeira,
mas não podia me dar ao luxo de temer que estivesse ilegível, coloquei junto
com o outro no envelope e coloquei de volta na caixa.
Escrevi outro bilhete rapidamente e esse eu dobrei. Aline e Tobias
vieram correndo. Entreguei a Aline a caixa e lhe dei algumas moedas. Meus
olhos quase nem enxergavam tanto eram as lágrimas que saiam.
Falei com a voz em um fio. — Aline querida, espere eu entrar no
carro, contrate uma carruagem e voe para a vila dos Renegados e entregue
essa caixa a Marcos. Pode fazer isso por mim?
Ela me abraçou. — Faço tudo por você, tia Amélia.
— Oh querida. Obrigada.
Entreguei a Tobias o outro bilhete. — Pode entregar a Daniel para que
ele faça chegar aos ouvidos necessários? Não tenho mais moedas, mas...
— Farei. — Ele estava sério, o semblante destemido e imaginei que
Aline já tinha adiantado que algo grave tinha acontecido.
Levantei com o coração saltitando e antes de sair, olhei em súplica
para eles.
— Por favor, somente quando for seguro, que não sejam vistos.
Eles assentiram e juntando a coragem que me restava, saí para a rua.
Meu corpo seguia automaticamente, minhas pernas estavam indo por conta
própria, minha mente estava nublada. Só queria ver meu pai, só queria que
ele estivesse vivo.
Abri a portinhola e antes de entrar olhei para trás e esse foi meu erro, a
fumaça começava a subir. Era um aviso para que eu não tentasse nada, vi
Aline e Tobias correndo pela rua e soltei um som choroso de alívio, pelo
menos eles estavam bem, agora só me restava obedecer para que meu pai não
pagasse, entrei sentindo um medo enorme de encontrar os sádicos ali, mas
quem eu vi foi Celeste desacordada no banco da frente.
Mal tive tempo de refletir porque era ali e não meu pai, a carruagem se
moveu com um tranco e amparei seu corpo para que não batesse no assoalho
do carro. Dessa vez eu sabia que não era algo impensado como fizeram a
primeira vez no templo, dessa vez eles já estavam de posse de três pessoas
leais ao rei e Tiago seria o próximo, usaram meu pai para me fazer ir até eles
e com Celeste ali desacordada indicava que iriam fazer o mesmo para atrai-
lo.
Senti um arrepio ao olhar para o rosto dela. Não consegui imaginar os
gritos quando eles fizessem com ela o mesmo que fizeram com meu pai. Ou
os meus gritos quando um pedaço de minha pele fosse tirado para ser enviado
a Tiago.
Eu começava a perder as esperanças de que tudo ia ficar bem, os
poucos dias de paz que nos deram foi como um mimo para nos fazer respirar
a sensação de paz, ou foi o tempo que precisaram para bolar um plano melhor
para mostrar ao rei finalmente que eram eles que verdadeiramente mandava
no reino humano.
Marcos
Marcos, meu pai foi capturado, tenho que ir até ele senão eles irão
mata-lo. Mandei um bilhete a Tiago, mas temo que haja traidores entre os
soldados.
Não sei o que fazer, só pensei em te avisar do ocorrido para que
garanta que a notícia chegue ao rei.
Amélia.