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TRATADO

DOS
PÁRIAS

Príncipe Caçador

Parte 1
Copyright©/ 2016/ Tratado dos Párias- Príncipe Caçador
Livro registrado.
Todos os direitos reservados

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Capa - Laércio Messias


Revisão -
Diagramação - Isabela Allmeida
OS DIFÉRITS

“Sou Diana de Salazar, o nome ganhado dos Sombrios e o sobrenome


usurpado de uma rica família, com certeza, já morta agora pela inanição,
esquecidos em um porão muito bem lacrado pelos príncipes.”
Diana Diférit
Filha de sangue de Rael Diférit, Primeiro príncipe sombrio.

“Não éramos altruístas e, sim, completamente egoístas, ninguém quer


dividir o que ama, mas ninguém pode dividir o que não tem.”
Rael Diférit
Primeiro príncipe e líder supremo dos sombrios.

“Não importa quantos eu matei, nada foi suficiente. Nenhum sangue


inimigo aplacou minha sede, nenhum osso quebrado aplacou minha fome e
nenhuma morte aplacou meu desespero.”
Nicolae Diférit
Segundo príncipe sombrio.

“A minha amada seria a azarada, porque assim que a encontrasse, ela


teria que esquecer a palavra paz, porque a palavra Dimitri não iria sair de
seus pensamentos. Eu faria questão de lembrá-la constantemente de minha
maravilhosa existência.”
Dimitri Diférit
Terceiro príncipe sombrio.
NOIVADO COM UM
ASSASSINO

Quase amanhecendo…
Minha ansiedade era tanta, que passei a noite acordada, pois esperava
por esse dia há dois anos.
Quando amanhecer, finalmente poderei começar minha busca pela
verdade, e o meu primeiro alvo nessa investigação será um assassino muito
cruel, que por uma irônica necessidade… é meu futuro noivo.
Tive sorte por ele não me reconhecer ou desconfiar de quem eu era de
verdade, no entanto, eu sabia tudo sobre ele, tudo o que ele fez, pois eu nunca
esqueci nenhum detalhe daquele funesto dia…

Estava dentro de uma carroça, atrás do celeiro, escondida por uma


lona, através das frestas largas da parede de madeira eu assisti, impotente e
muda de medo, a todas as meninas apavoradas e sem chances de fugir.
Havia dois deles, o que estava dentro do celeiro e outro do lado de
fora, eu sabia por causa dos gritos por todos os lados.
Não conseguia imaginar como estava sendo com as meninas do lado de
fora, só rezava para não ser encontrada e não acontecer comigo o mesmo
com as que estavam lá dentro.
No começo, parecia um banquete para um homem só. Havia quatro
baias e ele escolhia aleatoriamente, todas elas gritavam, se negavam a
acompanhá-lo, mas sem piedade, ele as arrastava até o meio do celeiro e
então fazia suas atrocidades, antes de matá-las.
Tive tempo de ver todos os estupros, e depois de deixá-las sangrando
por baixo com sua brutalidade, ele as estripava.
Após a sexta menina, ele já não via mais graça na tortura, com um
olhar entediado arrancava suas roupas e depois de imobilizá-las com um
abraço de ferro, enfiava o punhal profundamente, começava pelo baixo-
ventre e subia por toda parte mole, deixando um imenso corte vertical.
A pilha ia aumentando no centro do celeiro, meninas ainda vivas
agonizavam uma em cima da outra com seus corpos nus e abertos e os olhos
vidrados pelo choque e pela morte lenta. Até a pobre da sétima menina
houve degradação, já as últimas posso dizer que tiveram mais sorte, já que
morreram sem serem violadas.
Até hoje vejo aquilo como uma festa, onde tinha um banquete para um
único convidado que se farta com o que consegue comer e, depois, já
enfastiado, permanece na festa por obrigação.
Lembro-me de quando a lona que me escondia foi arrancada, da luz do
céu invadindo meu pequeno refúgio.
Eu queria poder ter gritado, me esperneado e implorado, porém,
estava em choque, já tinha visto o bastante lá dentro para saber como seria
comigo ali fora, até sentia a dor antecipada no local onde seria dado o
primeiro golpe.
O que eu sentiria quando a faca começasse a subir, eu não sabia, mas
era a parte que mais me apavorava. No entanto, quando aconteceu foi mais
rápido do que imaginei, passou tudo como um raio na minha cabeça.
Em segundos, fui arrancada da pequena carroça em que estive
escondida, fui despida apenas do colete de noviça do templo e recebi uma
única, rápida e limpa dor perto do umbigo no lado direito.
Vi o olhar de dor do meu malfeitor, a agonia que ele sentia ao me
matar, mas também vi raiva em seus olhos e estranhamente eu sabia que não
era de mim, era de algo mais.
Estava tão entorpecida que nem gemia e talvez tenha sido isso que
salvou minha vida quando ele me carregou e me levou até o celeiro, me
colocando com delicadeza em cima da pilha de corpos.
Hoje penso na ironia que é um assassino gentil e preocupado com a
maneira de largar um corpo no seu último lugar.
Fiquei ali quieta e em estado de choque, ouvindo o último suspiro de
várias meninas, enquanto esperava o meu último suspiro chegar.
Ainda consegui ouvir a discussão dos dois, nem me mexia por medo de
Samuel, medo que ele percebesse que eu ainda estava viva e decidisse fazer
comigo as atrocidades que havia feito com as primeiras que matou.
Não sabia como funcionava, mas se era um banquete aquilo, só pude
supor que sua fome voltaria, ou talvez eu fosse a saideira, não sei, só sei que
fiquei imóvel, respirando o mínimo possível e não emitindo um único som.
Meu malfeitor estava irado. — Não precisava disso tudo, Samuel. A
ordem era deixar os corpos aqui e pendurar os coletes para que a
sacerdotisa pudesse ver, antes de entrar aqui.
— Acha mesmo que vendo tantas garotas, eu não ia aproveitar, André?
Elas iam morrer de todo jeito, seu idiota, eu apenas aliviei a tensão antes de
completar o serviço.
—Tensão? Você quase as abriu ao meio, seu infeliz! O que você fez foi
crueldade. Por sorte, não servimos juntos ao senhor…
Uma gargalhada fez minha espinha gelar, sabia que desmaiaria ou
morreria a qualquer momento. Meu corte estava pressionado pela coxa de
uma menina que tinha dado espasmos antes de morrer, o fluxo havia
diminuído, ainda assim, me sentia sonolenta, as vozes começaram a ficar
distantes, mas ainda consegui ouvir uma parte da conversa.
— Não consigo entender esse plano. Fomos enviados aqui para cuidar
dessas meninas até vir a sacerdotisa, essa era a ordem e olha o que
realmente tínhamos que fazer, isso pode gerar até uma guerra com outra
raça.
Então não ouvi mais nada, tudo ficou escuro. Acordei minutos ou horas
depois, não sei, mas já era noite.
Pelas frestas, pude ver que havia uma fogueira lá fora e dentro do
celeiro tudo estava escuro e silencioso, a janela era baixa e eu não perdi
tempo, com esforço afastei a perna endurecida e fria, levantei cambaleando e
a alcancei.
Estava quase passando por ela, quando senti uma mão pressionar
minha boca e uma voz sussurrada e urgente assoprar em meu ouvido:
— Não grite!
CONSELHO DE
TRÊS AÇÕES

Mesmo que eu quisesse nem conseguiria gritar, pois era como se a


punhalada em minha barriga tivesse afetado minha garganta e cortado minhas
cordas vocais no processo.
Ele foi gentil e eu não entendia o motivo. Cobriu-me com seu casaco
forrado de peles e me ajudou a seguir.
— Tem sorte dessa parte da muralha ser perto e estar em reforma,
vamos… — Ele retirou várias tábuas que vedavam o buraco, dias antes vários
blocos haviam cedido e os criados do rei estavam arrumando.
Por um longo tempo caminhamos, o meu ferimento tinha estancado
parcialmente com a pressão daquela coxa fria, eu não tirava a mão dali
apertando enquanto andava. Ainda estava confusa com aquele ato, um
homem que tentou me matar e agora me ajudava a fugir do celeiro.
Logo ele parou e segurou meus ombros. — Não seja pega, garotinha, se
fosse Samuel que tivesse te encontrado em fuga, você estaria com sérios
problemas agora.
Senti uma onda nervosa em meu estômago, um arrepio na espinha e
chorei sem som e com muitas lágrimas. Ele tinha razão.
— Daqui tenho que voltar, não vou dizer que sinto muito, mesmo
sendo verdade se dissesse, apenas digo que cumpri ordens e não entendo o
motivo disso. Vá, menina, aproveite o tempo extra que lhe dei e viva, fique
forte e descubra por que fizeram isso com vocês, se conseguir.
Logo depois desse conselho, ele voltou, me deixando sozinha. Naquela
hora, fiquei perdida, com medo de seguir em frente, contudo, tinha mais
medo de voltar, de Samuel me encontrar e me abrir ao meio também. Apenas
esse medo me fez continuar a seguir em frente.
O conselho do meu malfeitor novamente me voltou e assim fiz. Foram
três etapas de um conselho simples, mas segui à risca.
Primeiro viver, segui pela floresta por muito tempo, adentrando cada
vez mais em seu interior e me assustando até com os galhos secos que eu
quebrava ao pisar.
A febre começou a me queimar depois de um tempo, mas o sangue
tinha diminuído de sair depois de tanto eu apertar meu ferimento.
Chorei todo o tempo em que me arrastava trôpega pela floresta, por
várias vezes me equilibrei nas árvores para tomar fôlego e olhei para trás,
muitas vezes com receio de ser uma armadilha, de ele estar me perseguindo e
esse medo me fez criar forças para continuar a me distanciar.
O escuro, os sons estranhos, o farfalhar de galhos, o ranger natural das
árvores. Tudo parecia extremante ameaçador, eu sentia que até o vento da
floresta queria me matar.
Era quase de manhã quando o cansaço finalmente venceu meu medo,
minhas pernas nem mais me obedeciam, eu estava fraca, com febre, havia
perdido muito sangue e toda aquela lembrança não me saíra da cabeça.
Queria tentar correr, me distanciar mais daquele monstro do celeiro,
daquela carnificina que ele tinha feito e gostado tanto, mas já não podia mais
nem dar passos, e então de exaustão caí e não quis mais levantar.
Estava tão bom, tão aconchegante aqueles galhos retorcidos cutucando
e ferindo meu corpo, as folhas úmidas decompostas coladas ao meu rosto, até
as picadas das formigas que começaram e me morder era agradável.
Eu precisava dormir, meu corpo e minha mente imploravam descanso e
então, quando achei que estava finalmente em paz, uma silhueta.
Forcei para abrir os olhos e ali estava o vulto mais perto, então fui
carregada.
Aconcheguei-me nos braços do meu assassino, salvador, inimigo ou
amigo. Poderia ser muitas coisas, mas o conforto do colo era bom.
No fundo de minha sobra de consciência rezei para morrer ali, para não
saber o que ia acontecer comigo, ao menos morreria com a sensação de
conforto naquele colo.
Logo não vi mais nada, dormi ou desmaiei de exaustão.
DÍVIDAS E DÚVIDAS

Acordei com o sol em meu rosto. O excesso de luz feriu meus olhos e
instintivamente levantei a mão para protegê-los.
Logo as cortinas foram cerradas, o tecido claro e grosso deixou uma
penumbra agradável no quarto e com isso pude ver melhor onde estava e a
senhora que estava ali.
Ao ver que eu a observava, ela me ofereceu um sorriso amigável
enquanto arrumava as coisas. — Olá, menina, finalmente acordou. Sabe por
quanto tempo está nessa cama?
Balancei a cabeça negativamente, eu não sentia nenhuma simpatia por
aquele rosto amistoso e cheio. Sentia apenas medo de seus olhos castanhos e
gentis, tinha receio de suas mãos gordinhas e hábeis que arrumavam a
refeição na bandeja enquanto ela falava comigo.
— Você delirou por vários dias em febre, depois mais alguns dias por
trauma pelo que passou e, por fim, delirou pelo remédio que lhe foi dado. Ele
mexeu com seu corpo e isso judiou de você, mas foi o que te salvou a vida.
Somando tudo… Já está nessa cama há uns dez dias.
Eu não sabia o que pensar, nem como interpretar isso, estava com medo
vazando pelos meus poros. Não tinha sido trazida da floresta para a morte, o
que era óbvio, e não estava entre pessoas tão más, mas eu não confiava em
ninguém, não mais, não poderia me dar ao luxo de confiar.
Tinha visto o que um adulto mais forte podia fazer com os mais fracos
e isso bloqueava minha coragem, mas estava maluca para saber quem eram
eles, por que me salvaram, e o pior... o que eu teria que fazer e ao que teria
que me submeter para pagar essa dívida.
Eu tinha então quinze anos, mas não era idiota. Uma dívida com os
mais abastados seria certamente escravidão, teria que pagar com o suor do
meu trabalho ou talvez, com o corpo...
O grau de minha família era um acima dos escravos, só isso já era
suficiente para todos da minha casta saber que dever aos de grau mais
elevado, seria perder a liberdade.
Meus pais tinham me mandado ao templo da sacerdotisa para ser
preparada para o meu futuro. Ali eu saberia qual o meu destino e quase
nenhum deles era muito almejado. Pessoas da minha casta não tinham para
onde correr e menos ainda podiam escolher.
Poderia me tornar uma cortesã de renome se o leilão de minha
virgindade rendesse um dinheiro alto ao dono da casa de diversão, ou então
uma simples escrava dos senhores. Uma sacerdotisa aprendiz, se eu tivesse
muita sorte. Até mesmo um casamento arranjado poderia acontecer e com
muito, muito azar mesmo, eu seria exilada, virando então uma prostituta de
beira de estrada, mais especificamente, a Estrada dos viajantes.
O cruel é que esse era um dos destinos mais comuns. Mesmo se eu
conseguisse outro além desse, qualquer um dos meus donos ou mesmo
marido, poderia me expulsar do reino se sua casta fosse mais alta.
No templo da sacerdotisa era um destino incerto, mas nesse quarto eu já
sabia meu futuro, devia minha vida a alguém com posses e essa dívida seria
cobrada assim que eu estivesse saudável novamente.
Respirei fundo e me toquei que tinha me perdido em meus
pensamentos.
A senhora estava com a bandeja na mão e me olhava com curiosidade,
me encolhi de medo, não tinha dado atenção a ela e isso poderia ter
consequências. Ela colocou a bandeja em meu colo e me deu um sorriso
enviesado, sentando-se na cama.
— Sei que tem medo, e ouvi a conversa de meus senhores sobre o
ocorrido no templo. Você veio de lá, não foi?
Eu afirmei com a cabeça.
— Pelo seu olhar ansioso, você imagina que terá que pagar pelos
cuidados que recebeu aqui, não é mesmo?
Novamente afirmei, devagar, ela levantou a mão e eu me encolhi, então
ela acariciou uma mecha de meus cabelos.
— Não somos de sua cidade, menina, nem somos baseados pela regra
de seu monge cristão. Temos nossas regras aqui e nossa cidade é guiada pelos
meus senhores. Somos impérios diferentes, inclusive, hostis um com outro.
Ela se levantou e bateu no avental para alisar os vincos. — Mas agora
chega de conversa, coma devagar e mastigue pequenas porções, está de
estômago vazio há muito tempo. Pode ser que sinta aversão a comida, mas
precisa comer tudo.
Ela me olhou com firmeza por cima de seus óculos pequenos e
redondos, deixando seus grandes olhos castanhos ainda maiores, falou com
autoridade:
— Coma tudo. Isso é uma ordem.
Voltei os olhos para baixo, era uma ordem e eu sabia o que acontecia
aos rebeldes, ali poderia ser outra cidade, mas com certeza o tratamento aos
escravos era igual em qualquer lugar.
Ela se dirigiu a enorme porta de carvalho e se virou antes de sair. —
Não levante da cama até eu voltar, não vai saber lidar com sua mudança e vai
precisar de minha orientação.
Assim ela saiu, fechando a porta e me dando privacidade. Era uma
coisa estranha o que ela tinha dito, será que por causa de tanta febre meu
rosto mudou? Derreteu ou ficou marcado?
Não importava agora, o jeito era obedecer, a bandeja não era sortida,
mas tudo que estava ali tinha um cheiro agradável, torci o nariz para a terrina
de sopa, agradável demais para meu gosto, mas tinha que comer. A senhora
tinha mandado.
Levei a colher à boca, o gosto era bom, ainda assim, não parecia
comida para mim, era como comer areia temperada apenas para dar sabor. O
pão preto tinha cheiro agradável, mas a sensação era a mesma. Bebi o suco de
uvas e esse foi o mais gostoso de tudo que estava ali.
Uma sensação estranha passou pela minha cabeça, tinha comido mal a
vida inteira com meus irmãos e ali estava uma refeição digna de senhores e
eu não sentia nada demais ao comer, parecia apenas um animal comendo por
instinto de sobrevivência, sabendo que meu corpo precisaria daquilo.
Meu estômago estava insensível como se dormisse. Levei a mão ao
local do ferimento, a lâmina devia ter mexido com algo dentro de mim.
Talvez tivesse matado meu estômago. Meu pai sempre dizia que o coração e
o estômago eram coisinhas exigentes.
O estômago era uma máquina viva que alimentava o corpo e o coração
uma máquina viva que alimentava a alma.
Tinha terminado de comer tudo e como não podia sair da cama, passei
a dormitar sentada. O alimento trabalhava dentro de mim e a nutrição me
fazia querer hibernar, só não me entregava totalmente ao sono por medo de
derrubar algo e quebrar, e assim enfurecer a senhora.
Assim que escutei o barulho de passos fiquei desperta e com o coração
acelerado, dei uma rápida olhada na bandeja, não podia ter deixado nada sem
comer. Ordem era ordem. Ela logo entrou com agilidade, fechou a porta e
sorriu ao ver a bandeja.
— Comeu tudo. Muito bem. — Ela me avaliou atentamente. — E vejo
que isso foi demais para você, precisa descansar mais um pouco antes de sair
da cama.
Tirou a bandeja de meu colo, colocando no chão, me ajudou a me deitar
novamente e então me cobriu.
Eu queria dizer obrigada por tudo, prometer que seria a melhor das
servas, mas nenhum som saía, então apenas fechei os olhos e me deixei levar
pelo sono.
Não sei quanto tempo dormi, mas despertei com uma sensação de
alerta.
Havia duas vozes distintas no quarto. Da senhora e um homem.
Não me mexi, nem poderia, na verdade, pois estava paralisada. O medo
gelava meus ossos e fazia meu coração ganhar vida própria.
Um homem, um estranho, e eu estava em suas mãos. Fechei os olhos e
tentei respirar fundo para me acalmar, meu coração parecia que estava
arrumando as malas, não demoraria e ele sairia correndo pela minha boca, se
ao menos ele saísse logo e fizesse menos barulho… Cada batida parecia
vibrar por todo o meu corpo, tão rápido que eu me sentia chacoalhar.
Mantive os olhos fechados. Queria desesperadamente que o homem
fosse embora. Sabia que teria que encará-lo mais cedo ou mais tarde, mas sua
voz rouca e masculina me trazia as lembranças dos gemidos de Samuel
insistindo em me lembrar da crueldade e força que um homem podia ter.
— Ela dormiu assim que se alimentou.
— Trouxe algo leve a ela, como foi pedido?
— Sim, apenas sopa de legumes sem nenhum tipo de carne, pão e suco.
— Viu se ela rejeitou a comida?
— Não me pareceu tão empolgada para uma menina que praticamente
não se alimentava há dias.
— Isso não é bom. E o suco, Eva?
— Preparei como foi mandado, diluí com três quartos do sumo, apenas
para a nutri-la, suprindo as novas necessidades do corpo.
— Muito bom! E ela falou algo?
— Nada, nem uma palavra, entretanto, afirmou que veio do templo,
quando perguntei.
Ouvi seu suspiro, ele parecia cansado. Relaxei um pouco quando
aquietaram, mas não demorou muito o silêncio e agora a voz parecia mais
próxima.
— Pobre menina. O que fizeram... Três delas violadas cruelmente pela
frente e por trás, e outras quatro totalmente feridas por baixo. Já a analisou,
Eva?
— Ela não foi tocada.
— Então acho que ela foi atacada pelo agressor gentil. Havia dois
distintos, um cruel e sanguinário e outro, ao que parece, apenas cumprindo
ordens, dando uma punhalada limpa e mais nada e essa menina prova isso.
Precisamos de informações e nossa única pista é ela. Somente ela poderá nos
dizer o que realmente aconteceu naquele celeiro.
Ao ouvir isso, senti meu corpo amolecer de puro terror, ele viria direto
até obter respostas e eu não saberia como responder, não tinha conseguido
soltar um som sequer desde o templo. Também não era letrada, então nem
poderia escrever, e se me torturasse, eu apenas morreria sem poder dizer o
que ele queria.
— Ela dorme, acho que ainda está cansada.
— Não, Eva. Essa menina está traumatizada. Está acordada e lúcida.
Ouço seu coração acelerar sempre que escuta minha voz e se acalmar quando
escuta a sua.
Isso era estranho, ele sabia que sua voz me apavorava e como ele
conseguia escutar meu coração de onde estava? Que audição desmedida era
essa?
Se tivesse como, meu medo poderia ter aumentado, mas não tinha mais
espaço,
estava no meu limite. Senti a cama afundar de um lado e do outro. À minha
frente era a senhora Eva, então às minhas costas só podia ser o homem
estranho, eu ouvia sua respiração ao longe e me arrepiei. Poderia ser no meu
pescoço, como fez Samuel com as meninas, fiquei atenta, o coração
disparado com a aproximação.
— Mudou muito? — ele perguntou baixo.
— Completamente.
Se eu não estivesse tão apavorada, poderia até ficar curiosa, porém, o
medo do homem me fazia perder a razão. Não poderia ofendê-lo, mas era
mais forte que eu, quando senti sua mão em meu ombro, o instinto se atiçou.
Não havia saída, apenas Eva à minha frente, então pulei e me agarrei a
ela como uma tábua de salvação. Sabia que ela não poderia me ajudar, que se
fosse ordenado, teria que sair do quarto e me deixar a sós com ele. Ainda
assim, enfiei o rosto em seu peito e me encolhi em seu corpo, me encolhi
mais quando senti seus braços gordinhos me amparar.
— O que faremos? Ela está fora de si.
Eu sabia a resposta, ele mandaria me recompor e parar com isso ou
levaria uma surra de chicote.
— Não faremos nada por agora, ela precisa de tempo. Todos os tipos de
hormônios já passaram por ela junto com a febre. Agora precisa ser lavada e
a roupa de cama trocada.
— Sinto muito. Não foi desleixo meu. O senhor Rael disse para não
mexer com ela, até que estivesse lúcida.
— Que bom que você o escutou, senão estaríamos com problemas
maiores agora. Já pode cuidar disso. Eva?
— Sim?
— Já sabe que vai ter que nos ajudar com isso, não é? Não temos
experiência com essas coisas.
— Sim, senhor. Pode contar comigo.
— Vou me retirar e amanhã traremos outra criada para não te
sobrecarregar. Isso te tomará muito tempo.
— Obrigada.
Quando ouvi o barulho da porta abrindo e fechando em seguida,
consegui relaxar. Não sabia o que me aguardava por minha atitude, mas de
Eva eu não tinha tanto medo mais, ela foi gentil.
— Precisa controlar esse medo, menina. O senhor Dimitri não é mau.
Pode parecer severo às vezes, mas é apenas isso. Poderia gostar muito dele,
se o conhecesse melhor, toda essa seriedade hoje é por conta da preocupação
com o ocorrido e apenas isso.
Mantive a cabeça baixa, estava envergonhada e receosa, mas também
pensativa. Ele realmente pareceu gentil, não tratou Eva mal, pediu sua ajuda
sem ordenar que fizesse e ainda ia trazer ajuda para não a sobrecarregar.
Em outros tempos, isso teria dito muita coisa, só que agora não queria
dizer nada, ele era homem, tinha muita força, com certeza era muito grande
e... fechei os olhos. Que não tivesse olhos azuis.
Eram dois tipos de azuis. Um claro, sanguinário e cruel que brilhava de
prazer ao machucar as meninas e outro escuro, gentil e irado que parecia
sofrer pelo que tinha que fazer. Samuel e André, dois olhos azuis distintos,
porém… Olhos de assassinos.
Novamente reforcei o pedido mental. Por favor… Não sejam olhos
azuis o desse Dimitri.
Eva puxou meus lençóis e eu me encolhi, estava em segurança ali
embaixo. Ter o lençol tirado de mim foi como ter a lona arrancada de meu
esconderijo, como ter sido descoberta em meu refúgio. Ela apertou os olhos
quando viu minha reação.
— Pelo visto, você estava escondida quando te pegaram.
Afirmei e abracei meus joelhos, sentia um misto de cheiros saindo do
meu corpo e nenhum era agradável.
— Olhe, menina, não faremos mal a você de nenhum tipo, consegue
entender isso?
Não me mexi, apenas olhei o nada. Não consegui dizer sim nem
concordar com a cabeça. Apenas senti brotar uma ínfima esperança de que
fosse verdade.
Uma mancha escura no lençol me tirou do torpor, encolhi mais as
pernas e vi que a mancha era enorme, minha camisola também estava
manchada e minhas pernas estavam cobertas de sangue.
Senti meu corpo arrepiar, era sangue demais, queria gritar, mas não
conseguia, ainda assim, tapei a boca e fiquei em pé na cama para fugir
daquilo. Tentei rasgar a roupa, tinha que tirar ela de mim. Não tive forças e
então saí da cama desesperada procurando uma saída. Só havia a janela e eu
fugiria por ela. Era muita coisa acontecendo, eu tinha que fugir. Esquecer
sangue, esquecer tudo.
Senti os braços de Eva me segurando com força. — Calma, você
precisa se acalmar. Pare de lutar comigo, isso não é ferimento.
Continuei me debatendo, sangue... Muito sangue. Eu não ouvia nada,
só queria tirar aquela roupa e sair de perto de tanto vermelho.
Senti o tapa como um balde de água fria, pisquei várias vezes de susto,
então sentei no chão e chorei em silêncio. Eva me deixou ali sentada e passou
a andar apressada pelo quarto.
Vi de soslaio quando ela arrancou os lençóis, quando abriu a porta
voltando em seguida depois de gritar algumas ordens. Minhas lágrimas
corriam, mas eu já estava lúcida. Com o histerismo passando, consegui
analisar muitas coisas.
Uma delas era que eu poderia ser morta, todavia não seria naquele dia.
Realmente aquele sangue todo não era do corte antigo ou de um novo. Eu não
sentia dor e isso era um bom sinal. Se o homem que esteve ali quisesse me
fazer mal, teria feito quando eu o ofendi. Ele era meu senhor e poderia me
castigar pelos meus modos, mas não fez… Não ainda.
Alguma coisa aconteceria comigo. Coisa boa, ruim, normal, não
importava mais. Eu não era ninguém, fui vendida pelos meus pais à
sacerdotisa para ser preparada para a encomenda, um destino sem volta.
Para casa nunca mais voltaria, talvez meus pais nem soubessem o que
tinha acontecido comigo. E se soubessem não se importariam, já tinham
recebido o pagamento.
PROCRIADORES

E se, porventura, meus pais estivessem sabendo, agora estariam


preocupados, mas seria com a possibilidade de ter que devolver o que
receberam.
Eles eram os penúltimos, os procriadores. A casta que fornecia crianças
em maior quantidade para a preparação da encomenda. Meninas para a
sacerdotisa, que as encaminharia para seus destinos. Meninos para o monge,
que os encaminharia para as áreas de maior necessidade, geralmente em
funções belicosas.
A cada menina entregue, um ano de subsídios do império; a cada
menino, um ano de isenção de impostos, e a cada gravidez confirmada, um
ano de cesta de alimentos básicos.
Era um negócio lucrativo ter filhos. A penúltima casta sobrevivia
fornecendo quantas crianças pudessem ao famigerado reino.
Sem nome… Era engraçado não termos nome, nenhum filho tinha. O
meu variou, o primeiro que me lembrava foi Seis, depois esse era passado
para o mais novo e eu ganharia um novo, Sete.
Meu último nome foi Próxima. Ganhei-o depois de me chamar
Quatorze. Então eu sabia que tinha quinze anos. O nome Próxima
correspondia ao limite onde meus pais podiam me nomear. A partir daí, eu
não teria um nome final até que meu senhor o desse. Também não poderia
pedir um, ele me daria quando quisesse, ou quando eu merecesse.
Saí dos meus pensamentos quando percebi Eva se aproximando. Me
encolhi novamente. Não queria ser rebelde nem queria ofendê-la, mas era um
medo irracional. Já tinha sentido o peso de sua mão e poderia sentir de novo,
ou até pior, podia sentir o corte de seu chicote.
Meus pais me ensinaram, inclusive, mostraram o que um senhor
poderia fazer comigo, cresci ouvindo isso, mas ao contrário do que minha
mente apavorada me dizia, ela me levantou com delicadeza e me guiou até
uma pequena porta.
— Vai entrar alguns criados para me ajudar com o seu banho, ficará
assustada com a movimentação, então entre aqui no vestíbulo que logo virei
buscá-la.
Ela fechou a porta e fiquei ali no escuro. O minúsculo cômodo tinha
um cheiro agradável de roupa limpa, não tinha espaço para eu me deitar,
somente se encolhesse as pernas, não importava, eu me sentia bem ali dentro.
Me sentia... Protegida.
Novamente a porta foi aberta e Eva me tirou dali. Era involuntário, meu
coração disparou assim que a porta abriu, mas não resisti dessa vez.
Eva me levou para outro cômodo do quarto e ali tinha uma banheira no
meio, muitas coisas para higiene em cima de uma mesa polida em um canto e
um pano imenso cobrindo um espelho em cima da mesa.
Ficou em silêncio, permitindo que eu olhasse tudo e então segurou
minha mão.
— Me desculpe pelo tapa. Não era punição nem nada disso, era
somente para acalmar sua histeria, aquele sangue todo que viu é uma coisa
normal e vai ter que conviver com ele todos os meses.
Então entendi que era meu ciclo, apenas não entendia como ele tinha
chegado assim, tão estranhamente, e por que era tanto sangue.
Ela continuou: — Está entendendo o que digo?
Afirmei, silenciosa. Eram conversas tão normais entre os da minha
casta que não tinha como não participar e entender. Minha mãe esperava o
ciclo como uma dádiva quando estava grávida e como um castigo quando não
estava.
Se não estivesse grávida, teria que tentar engravidar o mais rápido
possível; e se estivesse, queria que nascesse logo para poder engravidar
novamente, e se demorasse mais de dois meses, então ela começava a receber
clientes.
Era um meio de engravidar mais rápido e ainda ter algo a mais para
ajudar na sobrevivência. Os clientes pagavam de várias formas, pequenos
animais que caçavam ou criavam, cestas de legumes de suas hortas, às vezes
sacos de aveia ou trigo. Eram tantas coisas, mas raramente moedas.
Eram clientes em abundância até a confirmação da gravidez. Meu pai
cuidava das crianças. Mantinha todos vivos pelo menos, porque éramos
investimentos caros, ele não trabalhava mais, era muito velho para o exército
e não tinha outro recurso pela idade, não recebia nada do império pelo seu
histórico de covarde, ferido enquanto fugia da morte.
Mas também, somente por consideração aos seus serviços no exército,
que não fomos direto para a última casta, só por isso não éramos escravos.
Era uma parca recompensa por ele arriscar sua vida para proteger o
rabo do rei. Ele sempre dizia isso quando estava bravo. O que acontecia com
frequência.
Quando ele e minha mãe brigavam, ela o acusava de ser o culpado pela
nossa miséria, já meu pai a acusava de gostar daquela vida, onde ela era a
matriarca e dela vinha todo o sustento.
Contudo, mesmo se matando de brigar todos os dias, eles não podiam
se separar, nenhum casal poderia. A não ser que um dos dois morresse, então
o viúvo ou viúva teria sua segunda chance. Um direito que garantia que o
homem poderia ter outra principal, sem precisar pagar por ela no dia da
entrega.
As mulheres também tinham esse direito, mas só conseguiriam um
marido se um homem reclamasse o direito sobre ela.
As viúvas poderiam ser reclamadas por qualquer homem, independente
da casta; no caso dos viúvos, se fossem de castas supremas, poderiam
reclamar a mulher de qualquer casta.
Os viúvos de castas inferiores poderiam reclamar a mulher de sua casta
e de castas menores. O problema era que, no caso das viúvas, sempre
acontecia de quase nunca serem reclamadas. Mesmo que reclamassem seu
direito de segunda chance, ainda dependiam de serem reclamadas por
alguém, o que era quase impossível, pois sempre já estavam velhas ou
praticamente acabadas de tanto parir.
Então, por mais que brigassem, separar não era opção, e nem mesmo
um matar o outro poderia acontecer. Eles sendo de castas tão inferiores,
tinham que se unir e tentar sobreviver o máximo que pudessem, não passando
fome e juntando o que conseguissem para comprar um direito de degrau.
Era uma lei escrita no código de conduta Humanis, criada no Tratado
dos Párias e seguida desde então.
Isso fazia com que muitos senhores da alta casta encomendassem a
morte de suas velhas esposas para poder reclamar seu direito de segundo no
dia da entrega aos humanos, onde muitas garotas novas estariam ali para ser
compradas e desposadas.
— Menina, está me ouvindo?
Acordei de meus pensamentos de um pulo e novamente confirmei em
silêncio.
Ela sorriu mostrando dentes manchados e completos. — Vejo que já
está mais confortável comigo, ficou aí pensativa enquanto eu arrumava as
coisas e não encolhida de medo em um canto.
Ela tinha razão, com ela eu não me sentia mais tão apavorada, apenas
receosa do que poderia acontecer comigo sem ela por perto.
— Venha, vamos lavar você, tirar toda essa sujeira.
Sem muitos rodeios, ela tirou minha camisola e me ajudou a entrar na
banheira, logo começou a me esfregar com força enquanto falava.
— Vejo que você era uma promessa de dias vindouros para seus pais.
Eu acenei que sim porque era verdade, ela continuou:
— Então você foi cuidada para ser comprada e não entregue, né,
menina? Não te deixaram cicatrizes e seus dentes são esmeradamente
cuidados.
Era verdade. Aquele comentário me fez me lembrar de todas as vezes
que meu pai tentou me espancar e minha mãe intercedeu por mim, não
porque me amava, mas porque eu era, segundo ela, a melhor chance deles,
em anos, para melhorar os recursos.
Ao ser lembrado disso, meu pai não me batia, indo atacar o primeiro
filho que aparecia em seu caminho. Então minha mãe se virava para mim.

— Me agradeça por isso, Quatorze, e não cobrarei essa gratidão


agora, mas quando você for comprada, terá que me pagar por todas as vezes
que a protegi, por todos os cuidados e gastos extras que tivemos com você.
Tem que ser comprada, está me ouvindo? E quando isso acontecer, você será
uma dama, mulher de homem de posses, e não importa quantas mulheres ele
tiver, você o agradará mais que as outras para ganhar muitos presentes.
“Tudo que conseguir dele, terá que me mandar escondido para pagar
o que me deve. Se ele for sovina, você se empenhará ainda mais para
conseguir algo e me mandará sempre que conseguir. Não pude ter errado em
apostar minhas esperanças em você, bonequinha, esses olhos cor de avelã e
esse rostinho lindo não podem me decepcionar.”

Essa conversa me acompanhou desde que me chamei Oito até o


Quatorze e então quando passei a me chamar Próxima, era uma ladainha de
quase todos os dias.
Eva esfregava com cuidado ao redor de minha cicatriz quase azulando.
— Por pouco, hein. Teve muita sorte de o senhor Nicolae a encontrar. Você
chegou aqui praticamente em seus últimos minutos, se não fosse por ele e o
senhor Dimitri, você teria morrido na primeira noite, contudo, o que te salvou
foi a decisão do senhor Rael de arriscar em você a mistura.
Eu não entendia muito bem o que ela estava dizendo, mas isso me
preocupou imensamente. Então eu devia minha vida a três homens, senhores
com posses e nas mãos de um deles, com certeza, eu teria meu destino.
Eva percebeu que eu ouvia atentamente e que estava receosa com
aquela conversa.
— Eles não irão te fazer mal, garota. Não irão judiar de você, se é o que
está pensando. Salvaram sua vida, nem precisavam interceder, na verdade,
arriscaram muita coisa fazendo isso. São três irmãos, governam o reino com
dedicação para manter o que sobrou de sua raça. Você é do império Humanis,
o maior dos três reinos párias. Mas agora você está sob a proteção dos
sombrios e eles têm uma maneira muito diferente de agir em vista dos
humanos.
Eu queria perguntar quem eles eram e o que faziam e por que eu não
sabia de nenhum reino além do meu. Sempre me disseram que fora das
muralhas do reino Humanis havia apenas a floresta e os Leviatãs, uma raça
paralela à nossa. Sempre havia focos de guerra contra eles em todo nosso
território florestal além-pilastras.
Ensinaram-nos desde sempre que eles eram os predadores e nós, as
presas. E era ali também um destino comum entre as meninas preparadas pela
sacerdotisa.
Quem não era comprada, escolhida como criada, cortesã ou mesmo
escolhida como procriadora na penúltima casta, tinha seu destino selado, ia
para fora do reino servir como prostituta nos vários prostíbulos dentro da
mata, próximo à estrada.
Estes prostíbulos serviam para os soldados que faziam sua ronda do
lado de fora. Segundo muitas lendas, os filhos dessas prostitutas eram
sequestrados pelos leviatãs, para servirem de alimento.
Era uma conversa tão comum entre as famílias que preparavam seus
filhos para seu destino, que virou costume usar isso para manter a obediência,
quando a filha tentava fugir de casa no dia que começava a se chamar
Próxima, eles ameaçavam que se tentasse uma fuga novamente, ela seria
entregue aos guardas do portão para que estes a levassem diretamente ao
prostíbulo mais próximo. Era um destino cruel ser deixada fora do reino, por
isso a submissão era o único jeito.
Olhei diretamente para Eva, queria saber se esse reino do qual ela dizia
era perto do reino Humanis ou era um tipo de prostíbulo onde as rejeitadas
eram entregues.
Eva simplesmente sorriu e continuou sua esfregação infinita.
— Se pensa que está perto do reino dos humanos, pode ficar calma,
querida, está a muitos quilômetros de distância. Seguramente não corre
perigo aqui.
Não conseguia mais me concentrar no que ela falava, queria olhar pela
janela, verificar se não veria uma muralha de pedras recoberta de ervas de
três tipos, com gigantes lanças retorcidas para fora, todas de prata. Ou então a
vila dos procriadores, prédios tortos finos e imensamente altos, onde
moravam empilhados, várias famílias.
Tinha muita coisa feia no bairro, mas a aparência dos prédios era o que
havia de pior. Os espaços nas vielas eram totalmente ocupados por esgotos
abertos, roedores e insetos por todos os lados. Ambulantes que vendiam suas
esposas por preços razoáveis, guardas que passeavam por todo lado nos dias
de folga procurando a melhor mulher naquela imensa demanda de ofertas, e
homens que ofereciam seus serviços também.
Mas esse era um mercado ilícito, homens nunca poderiam vender seu
corpo, e outros homens jamais poderiam comprar uma mercadoria dessas,
mas havia muito disso nos becos da vila da procriação.
Agora eu sabia que era para ser chamado o lugar mais promíscuo
daquele reino, e sei que não devia ser chamado de reino de humanos. A
humanidade tinha abandonado aquele lugar há muito tempo, ali havia apenas
três coisas sendo oferecidas, mulheres baratas, homens baratos e encomendas
para a sacerdotisa e o monge a mando do rei.
PLANO FALHO?

O dia estava amanhecendo. Estava chegando o momento de Samuel


receber sua primeira prova de amor, seu primeiro agrado.
Nisso agradecia à mulher que me deu à vida, por me ensinar que
precisava dar para receber.
Precisava fazer com que ele caísse aos meus pés, que mesmo querendo,
não conseguisse me negar nenhum pedido. Sabia que Nicolae não gostava de
me ver agir assim, ele ficava preocupado cada vez que me aproximava de
Samuel.
Agradeci Rael por ter me permitido voltar e, mais ainda, a Dimitri por
ter se infiltrado comigo. Tivemos sorte por existir algumas famílias retiradas
do reino, capitães que cuidavam de extensões muito necessárias fornecendo
tudo o que reino precisava.
Desde alimentos, algodão bruto, tecidos e raridades, como metais para
a cunha e pedras para os enfeites das primeiras esposas na casta nobre.
E como meu adorado pai Rael é inteligente, soube usurpar o nome de
uma família. Tenho medo por Eva, ela se passa por minha mãe, porém, é
apenas uma humana, não poderia se defender, caso sejamos descobertos.
Eu a amo como a mãe que nunca tive realmente. Temia pela segurança
dela, mas ela também não me deixou vir sozinha, e nem teria como eu me
passar por uma filha de senhores sem ter os pais. Pois seriam eles que
entregariam a minha mão a Samuel, em um noivado cheio de luxo e frescura.
Dimitri não dorme há mais de dois anos, tudo para me ajudar nessa
ousada espionagem. Envelheceu tanto por conta disso que pôde se passar por
meu pai tranquilamente. Me entristece vê-lo com o corpo tão fragilizado por
conta da idade adquirida pela falta de sono, mas ele não me deixou vir
sozinha, era um ultimato e agora eu fico feliz por ele estar comigo.
Nicolae nos aguardava, usurpou o lugar de um senhor em uma extensão
próxima da nossa, também não dorme há dois anos e não poderia ter vindo se
não fosse assim, é o segundo em comando e já compareceu em reuniões com
o rei.
Ele se passa por um viúvo muito rico, que veio para a entrega desse
ano, a qual poderá reclamar seu direito de segunda chance.
Apenas Rael não pôde aparecer. Como filho mais velho, ele precisa
ficar no reino dos sombrios para cuidar de tudo até que o pai supremo acorde,
mas esse sono já soma mais de cinco décadas.
Os três príncipes tinham receio que ele acordasse, já que foi por causa
dele que a raça dos sombrios foi quase extinta.
Por sua personalidade forte e sua sede de vingança, a guerra durou mais
tempo que o necessário, até uma emboscada onde todas as mulheres sombrias
foram mortas. Somente com esse duro golpe para os sombrios, foi que ele viu
que a guerra iria apenas acabar com sua raça já debilitada.
Então, quando apenas três mil sombrios e somente homens ainda
existiam, ele cedeu. Depois de vinte anos de tratado, ele não pôde mais ficar
entre eles, entrou em um sono de luto pelas perdas não sabendo nada do que
aconteceu com seu povo, desde então.
Rael era o que mais temia sua sublevação, pois se ele acordasse e
descobrisse que os sombrios estavam sendo enganados pelos humanos,
iniciaria uma guerra. Era por isso que eu estava ali, para descobrir tudo e
evitar isso.
Irei à cerimônia assim que ficar pronta e terei que dançar com Samuel
na hora do baile, ele me tocará e não sei o que vou sentir ou como vou reagir,
mas não fugirei. Não dessa vez...
Sei que Samuel pode fazer comigo da mesma forma que fez com as
meninas, há dois anos. Só que agora não sou mais aquela menininha
assustada com medo de homens. Dele eu tenho medo, mas fingirei
lindamente que não. Preciso descobrir se esse plano é apenas contra os
sombrios.
Tínhamos todo tipo de desconfiança sobre os planos do rei. Que era
obra dele, não havia dúvidas. Mas quais hipóteses estavam certas?
A que acreditávamos era que os humanos estavam aliados aos Leviatãs
para destruir as duas raças além deles que sobraram. Isso não seria tão
estranho tendo em conta que essas criaturas foram uma criação dos humanos
contra os licans e sombrios.
Contudo, após várias conversas chegamos à conclusão de que essa
hipótese não parecia viável, os Leviatãs são instáveis e de pouca inteligência.
Não se aliariam.
Esses híbridos foram criados a partir de três espécies diferentes.
Humanos, licans e sombrios.
Com os genes dos três, eles foram criados por feiticeiros, chamados
cientistas, séculos atrás. Esses cientistas não existiam mais, sua classe foi
banida e tudo sobre eles era proibido agora, foram os primeiros a serem
caçados na guerra, perseguidos pelos três primais até sumirem do mundo.
Muito merecido, pois eram sábios que usaram sua sabedoria para criar um
monstro praticamente indestrutível.
Os leviatãs tinham apenas uma fraqueza quando nasciam, um defeito
genético que criava um tipo de alergia a apenas uma das três raças em
aleatório e esse defeito causava morte rápida.
Foi por conta dessa descoberta, que as raças se uniram contra eles e,
assim, começou a guerra da supremacia e apenas com a união dos três
primais que se conseguiu segurar a fúria desses seres híbridos apocalípticos
que estavam dizimando quase tudo o que se vivia no mundo.
Armas poderosas criadas pelo homem foram usadas pelos Leviatãs que
não respeitavam nem sua própria espécie, destruindo imensas áreas povoadas
de uma vez só, restando pouco de cada espécie e então depois de uma longa
guerra que quase levou as raças à extinção, conseguiram derrotá-los e
aprisioná-los.
Então um tratado de paz foi decretado entre os três, como os humanos
eram os culpados, ficaram responsáveis pelo fornecimento de mulheres para a
preservação das espécies.
A cada ano uma encomenda é preparada. Dezoito são entregues para a
sacerdotisa quando completam quinze anos, lá elas aguardam um mês por
seus destinos. Das dezoito meninas, onze sempre é de direito dos humanos
que usam esse mês para negociar valores.
A sacerdotisa recebia para escolher as melhores e mais saudáveis para
permanecerem no reino, ficando sete delas, as sobras, para serem divididas
entre sombrios e licans. Quatro para uma raça, três para a outra. Sempre
alternando entre os sombrios e licans, então a raça que recebia a menor
quantia tinha direito a ganhar a maior no próximo ano.
De acordo com o tratado, após cinquenta anos de paz, teria início a
contagem para a segunda parte do acordo. Mais vinte anos, essa era a espera
para a reprodução.
Quando esse tempo de espera terminasse, os humanos teriam que ceder
dez meninas para uma das duas raças do tratado, uma vez aos licans e outra
aos sombrios sendo um ano para cada raça, e assim seria a cada vinte anos
uma entrega especial.
Podia parecer um longo período, mas esse foi o tempo pedido pelo rei
da época, para que os humanos conseguissem aumentar a própria população.
Uma coisa era certa, a espera foi longa e nesse período o valor das
mulheres se tornou inestimável. Desde o tratado as mulheres viraram objeto
de valor.
No dia que quase fui morta, era a entrega especial dos sombrios que
teriam o direito de levar quatorze meninas, quatro do ano e dez da entrega
especial dos vinte anos.
Aquela chacina no celeiro tinha sido para evitar que os sombrios
conseguissem ter sua encomenda, pois teriam quatorze mulheres para
aumentar uma espécie quase extinta.
Rael desconfiou que fosse um boicote de alguém e depois da conversa
que tivemos quando consegui falar, contei tudo o que ouvi no celeiro. Então
foi confirmado que era um plano para eliminar os sombrios e assim começou
a investigação e, em seguida, os planos e depois a ação.
Tudo já se somava pouco mais de dois anos. Precisava fazer com que
Samuel falasse, tinha que descobrir quem estava por trás dessa conspiração,
antes que o pai supremo dos sombrios acordasse e uma guerra sem
precedentes se iniciasse.
Eva bateu na porta, sabia que era ela, reconhecia a suavidade com que
fazia as coisas, inclusive, anunciar sua chegada com toques leves na madeira.
— Querida, posso entrar? Preciso te arrumar para a cerimônia.
— Entre, mamãe. — Amava chamar Eva assim. Estávamos em uma
casa grande no centro do bairro dos Forasteiros, mas havia muitos criados,
então não podia arriscar. Tinha que fazer com que todos acreditassem
piamente em meu disfarce, o bom era que Eva também gostava desse
tratamento.
Ela abriu a porta e sorriu, três criadas esperavam logo atrás.
— Viemos preparar minha filha linda para seu dia mais especial.
— Estou um pouco nervosa, não me sinto muito bem.
— Nem pense nisso. Você tem que estar radiante hoje, é um dia
importante, e Samuel já deve estar se arrumando para você também.
As criadas davam risadinhas ouvindo a conversa de mãe e filha. Eram
da casta três, tinham casado com soldados comuns, mas levavam uma vida
digna, recebiam um subsídio mensal por seus serviços.
Nunca precisariam vender seus filhos, apenas se quisessem e caso
decidissem vendê-los, eles valeriam o triplo dos filhos da penúltima casta. E
só teriam que fazer isso se os maridos fossem uns covardes que corressem ao
primeiro sinal de perigo, fazendo com o que toda sua família fosse rebaixada
para a penúltima casta, como tinha acontecido com meus pais.
Eu não poderia deixar de fazer a pergunta que mais me corroía desde
que fui resgatada e entendi melhor como as castas funcionavam. Olhei para a
criada mais sorridente, a que escovava meus cabelos.
— Pode me sanar uma curiosidade?
Ela parou de rir e me olhou, solícita. Eva me olhou preocupada com
minha atitude.
— Eu sei que as castas menores, as mais inferiores, são obrigadas a
entregar seus filhos em troca de subsídios, eu como sou de casta superior
posso ser cortejada e negociar meu pretendente, queria saber de você, que é
da terceira, como funciona em sua casta?
Eu sabia que era arriscado fazer uma pergunta daquelas, mas eu tinha
meus motivos válidos para não saber. Segundo minha própria história, eu
vinha de uma extensão retirada do reino, onde minha família era dominante e
não tinha muitos exemplos da sociedade e segundo meu próprio disfarce, eu
era uma moça mimada, cheia de vontades e muito curiosa, que fazia todo tipo
de perguntas inocentemente passando dos limites por minha sede de aprender
sobre a cidade grande.
— Bom, senhora, nós não somos obrigadas a vender nossos filhos, mas
se um senhor de casta superior reclamar nossas filhas quando elas adquirirem
idade, não podemos negar o casamento. Só podemos negar se algum homem
da nossa casta já a tiver reclamado e isso ter sido lavrado, é um papel
necessário, mas custoso, os oficiais tabeliães cobram caro.
— Mas caso aconteça que um homem de sua casta reclame sua filha,
vocês podem negar?
— Sim, senhora, mas quase nunca negamos, porque se aceitarmos,
teremos acesso aos nossos filhos e netos, pois seriam da mesma casta que
nós, se negarmos, algum homem de uma casta superior pode reclamá-la e
então não poderemos mais nos comunicar, não como família.
— Entendo, mas me diga uma coisa. E se sua filha já estiver
comprometida e outro homem de casta mais alta se interesse por ela. O que
acontece?
— Aí podemos dizer que ela já é comprometida em papel e se o
pretendente desistir, terá que pagar uma multa à família. Isso é comum, na
verdade.
Franzi o cenho, achando estranho esse comentário. — Como assim?
Não acho que sua casta ganhe tanto dinheiro ao ponto de pagar uma multa
por desistir do compromisso.
— Realmente não, senhora, mas geralmente o pretendente vende seu
direito de casamento aos de casta superior, com o alto valor dessa venda
conseguem pagar a multa e ainda ficam com um bom dinheiro para comprar
um grau ou, pelo menos, metade de um grau. Por isso, eu disse que é um
papel necessário, só com ele se pode vender o direito de casar.
Fiquei impressionada. Era um comércio como sempre, mas um direito
muito melhor do que as duas últimas castas, em que a penúltima ainda
recebia por seus filhos e as escravas simplesmente eram mantidas grávidas
quase o tempo todo de sua existência para juntar crianças para a encomenda,
e aumentar a força bélica e trabalhadora da reduzida raça humana.
— Posso fazer uma pergunta, senhora?
Senti um frio na minha barriga, mas não podia titubear, eu tinha
começado a conversa e teoricamente não tinha nada a esconder.
—Pode fazer, se eu puder, responderei.
— Sua casta é uma das mais altas, não é?
— Pelo que eu saiba, é somente abaixo do grau real.
— Então a senhora só poderia deixar de casar se o seu noivo morresse.
Isso deve deixá-la muito feliz, nada impedirá esse casamento depois do
noivado, a não ser que um de casta superior a ele a reclame, e como ele
receberá o título de general, suas castas serão iguais. Ou seja, só não haverá
casamento se o próprio príncipe a reclamar, aceitando pagar o valor que uma
multa equivalente à sua casta exigiria.
Meu coração gelou, ela tinha, em poucas palavras, me lembrado
praticamente tudo o que daria errado em meus planos. Não era um noivado
somente, depois que eu aceitasse a primeira dança e recebesse o beijo que
selaria o compromisso publicamente, seria basicamente um casamento.
Não teria como anular ou cancelar esse compromisso, a não ser que
Samuel morresse, pedisse um valor de multa, ou se o príncipe olhasse para
mim com outros olhos, o que me dava asco só de pensar. Um filho do rei
Júlio seria parecido com o pai ou poderia ser pior que ele.
Se eu continuasse com essa farsa, teria que me casar em alguns meses
ou fugir do reino antes disso.
Realmente eu tinha pouco tempo.
PRÍNCIPES SOMBRIOS

Olhei para Eva, mal escondendo meu desespero, para minha sorte ela
agiu normalmente, segurou minhas mãos e me olhou como a mãe pronta a
acolher todos os medos de sua filha, tínhamos que atuar todo o tempo, pois
era uma certeza que Samuel tinha plantado uma espiã em nossa casa para
saber meus reais sentimentos por ele.
— Querida, não se preocupe, você não vai ser escolhida por mais
ninguém, irá se casar com Samuel e será muito feliz.
— Tomara que sim, mamãe, eu não sei o que faria se não pudesse ficar
ao lado de meu grande amor.
Senti nojo de mim mesma ao falar aquilo, nojo de como aquela frase
saiu da minha boca, mas era necessário encenar.
Eu não precisava estar ali, nem rever Samuel ou enfrentar meu maior
medo que era seus olhos, mas sem mim os sombrios ficariam no escuro.
Eu sabia os costumes do reino, e embora soubesse pouco sobre o que
acontecia nas castas mais altas, só eu sabia do ocorrido no passado, então eu
era a única que saberia o que procurar e quais rostos observar. Quem
planejou tudo estava tranquilo, achando que ninguém sabia que houve um
plano de boicote, porque não devia existir uma sobrevivente.
A desculpa do rei ao ser questionado sobre a encomenda foi de que
cumpriu o acordo, que as meninas foram levadas vivas ao templo, e se
aconteceu alguma coisa lá era problema da sacerdotisa, então era ela que
devia prestar conta. No entanto, ela nunca mais foi vista depois daquele dia.
Então, depois de tentar pela lei do tratado e não ter conseguido nada,
aqui estávamos nós. Ia dar tudo de mim, tinha motivos maiores para querer
que a raça sombria não sumisse. Eles mereciam mais que os humanos. Não
tratavam sua própria raça com desrespeito e nem mesmo os que eles
tomavam sob sua proteção, então eu dei a ideia e depois de muitos nãos e
mais argumentos e discussões, acabaram aceitando minha ajuda.
Ainda achava que Samuel era precavido, por isso mandou as criadas e
me sentia incomodada na presença delas. Não tinha como saber qual delas era
a espiã, então passei a ver as três como inimigas e sempre que o cheiro delas
estava perto, eu virava a moça mimada e apaixonada, que suspirava somente
de ouvir o nome do noivo.
Deitei e fingi dormitar para ter paz, enquanto cuidavam de me deixar
pronta, óleo perfumado por todo o corpo, aparar e pintar cada unha, limpar a
pele do rosto e busto com cremes, apesar de me incomodar tantas mãos em
meu corpo, segurei a irritação e fiquei mortalmente quieta, mas não via a hora
de me ver livre delas, pois era cansativo ser quem não era o tempo todo.
Sem poder fazer nada, a não ser continuar fingindo dormir, meus
pensamentos voltaram ao dia em que estava na banheira com Eva me
esfregando…

Tinha acabado o banho. Ainda não conseguia perder o medo


constante de ser surpreendida por um dos três irmãos. Eva me enxugava e
parecia um pouco preocupada.
— Querida, quero que fique calma, mas você não é a mesma de antes,
aliás, é você mesma, apenas está com um corpo diferente.
Eu não tinha entendido nada do que ela havia dito, porém, quando
olhei o espelho a compreensão chegou. Não era uma menina que estava em
frente a ele. A aparência era de uns vinte e quatro anos.
Meu corpo estava diferente, esguio e mais maduro, cabelos escuros e
ondulados caíam livres pelos meus ombros. Meus olhos que, até então, eram
castanhos cor de mel, agora eram de um verde acastanhado tão claro que eu
fiquei com medo de mim mesma.
Meus seios eram fartos e firmes e minha pele estava clarinha, sedosa e
sensível depois de ter sido tão esfregada. A única coisa que destoava o corpo
perfeito era o ferimento perto do meu umbigo ao lado direito, passei a mão
pela mancha azulada em volta do corte quase sarado.
Eva colocou a mão em cima da minha.
— Essa cor é pela enfermidade, a mistura se concentrou, pois estava
inflamando, vai ver, logo não terá mais nada aí, a não ser uma pequena
cicatriz.
Assenti para ela pelo espelho e passei a mão pelo meu rosto, ainda
estranhando tanta mudança. Não senti medo do que via ou como aconteceu.
Estava apenas deslumbrada de que algo tão fantástico pudesse acontecer
comigo, depois de tudo o que tinha passado até ali.
Eva me deu tempo para me contemplar no espelho, acompanhava meus
olhos olhando o mesmo que eu. Meu nariz sempre tinha sido pequeno e bem-
feito, mas era um nariz infantil, agora eu via uma mulher bonita que tinha
meus traços da adolescência.
Olhei para Eva, pedindo socorro com os olhos, queria entender como
tinha mudado tanto em apenas dias.
— Querida, sei que está estranhando sua aparência, você passou por
um processo que as meninas teriam passado, se tudo tivesse sido diferente.
Se a encomenda não tivesse sido boicotada, mais meninas estariam agora ao
seu lado, contemplando o espelho igual você.
“Então poderiam ser desposadas por um sombrio, basicamente todos
eles dormem, apenas os senhores permanecem acordados. Precisam de muito
pouco sono e então cuidam do reino e seguem velando o sono dos outros. Se
a encomenda chegasse como deveria, todos seriam chamados para que
pudessem conhecer as mulheres e dar tempo ao tempo para descobrirem o
sentimento.”
Não conseguia falar, mas apontei para mim, em dúvida.
— Sim, querida, você e mais treze meninas agora passariam por
cuidados para poderem crescer mentalmente, já que fisicamente estariam
prontas para serem desposadas.
Olhei assustada para Eva, então era isso, eu realmente teria que me
sujeitar a um senhor, mesmo que fosse através do casamento.
— Não… não. Já sei o que passa pela sua cabeça, mas você não seria
escolhida como se fosse um pedaço de carne, aqui as coisas não funcionam
assim. Você saberia quando encontrasse um sombrio que a merecesse, e esse
seria seu futuro marido para toda a eternidade. Por isso que teria que ser
escolha sua. Eles são antigos, não acreditam em subjugar, vai entender com
o tempo, tudo o que precisa saber é que os sombrios são fiéis aos costumes
de sua raça.
Deixei Eva falar, ela parecia ansiosa ao tentar me fazer entender que
seus senhores eram boa gente, achei interessante essa bravura dela na
defesa daquela raça. E ela continuou falando rápido.
— A vida é longa ao lado de quem não se ama e isso não vale a pena
para eles, por isso vocês teriam o tempo que fosse necessário para confiar e
escolher, mas agora nunca saberemos se funcionaria, não é mesmo? Só
sobrou você.
Apontei para Eva, não entendia por que ela não estava ali, linda e
casada.
— Eu? Não, querida. Também fui uma entrega, assim como você, por
isso foi fácil antecipar suas dúvidas, porque foram as minhas também
quando cheguei aqui, porém, fui trazida apenas para servir e me casei com
um humano normal. Ele foi morto por um leviatã durante uma ronda na
floresta. Por vezes, alguns escapam e invadem nossos domínios e depois do
que houve com meu marido, os senhores passaram a cuidar da segurança e
os humanos não fazem mais rondas.
Ao ver que captou minha atenção, Eva apontou em direção à janela, de
modo distraído.
— Aqui há humanos que foram deixados fora da muralha para serem
encontrados pelos Leviatãs. Alguns conseguem escapar e alcançam os
domínios dos sombrios e outros vão para os domínios licans. Não sabemos
como eles são tratados pelos lobos, mas aqui são recebidos e tem alguma
chance. Claro, se forem pessoas boas, caso mostrem que não merecem
confiança, os senhores dão jeito neles. Mas eu entendo o que lhe aflige,
então não se preocupe, sua integridade será respeitada.
Apertei os olhos para Eva, queria muito saber o que aconteceria
comigo, e onde moraria. Eram tantas dúvidas, mas nada saía de meus lábios.
Ela me olhou, solidária, parecia ver a frustração em meus olhos.
— Sei que deve estar cheia de perguntas, mas temos muito trabalho a
fazer. Primeiro vamos vesti-la, ainda preciso levá-la à biblioteca para
começar sua educação. Você chegou aqui uma menina e sai daqui uma
mulher, mas sua mente ainda funciona como se tivesse quinze anos, você se
chama Próxima, não é?
Afirmei e apertei os olhos, queria meu novo nome, um nome que seria
me dado por meu senhor.
— Não gosta de seu nome eu sei, também já me chamei Próxima.
Quando cheguei aqui, o senhor Nicolae me deu o nome Eva, talvez ele possa
lhe dar um ou peça para que escolha um futuramente. Realmente não sei
como será daqui para frente, isso é tão novo para mim quanto para você.
Achei que teria quatorze meninas para preparar para a sublevação dos
homens, e aqui tenho você, traumatizada, muda e sobrevivente de uma
chacina.
Ficamos ali ainda um tempo, não estava muito ansiosa para sair do
quarto, estava segura e calma somente ao lado de Eva. Não conseguia
imaginar como seria quando saísse por aquela porta e me dava um pouco de
medo, mesmo ela dizendo que nada aconteceria comigo.
Depois de vestida e o cabelo preso em uma enorme trança,
acompanhei Eva até o quarto, usava um vestido cinza de mangas longas,
justo na cintura e solto até os pés. Era simples, com um tecido grosso, quente
e macio, o que era bom, pelo pouco que tinha visto lá fora, havia neve por
todos os lados.
As poucas casas tinham seus telhados repletos de uma camada branca
e havia muitas árvores no fim da carreira de telhados brancos, fiquei um
longo tempo olhando pela janela. Não parecia um reino, mas sim um vilarejo
com casas espaçadas e poucas demais.
Eva se aproximou e olhou para fora, pensativa. — Não se engane com
a força dos sombrios, querida, o poder deles não está em cima, mas embaixo
do solo. Há muitos lugares como este, com a casa grande dos sombrios que
descansam, e seus criados com casinhas perto, há vilas assim por toda a
nossa extensão demográfica. Os sombrios só vão despertar em duas
hipóteses, em um ataque ou se chamados pelos príncipes, o que não
acontecerá depois do que aconteceu com as garotas. Enquanto isso, as
famílias vão tocando a vida e esperando para servir ao seu Senhor quando
este acordar.
Parecia uma vida tranquila e boa, eu iria gostar de trabalhar ali se
tudo o que ela disse fosse verdade. A acompanhei quando seguiu para um
corredor com uma escada à frente. Estávamos finalmente indo à biblioteca.
Me sentia insegura, estava com um misto de apreensão e curiosidade.
Paramos em frente a uma grande porta de mogno. Eva abriu e me
pegou pela mão, me fazendo entrar na enorme sala, fechando a porta em
seguida.
Ali havia imensas janelas, os vidros eram pequenos quadrados
esfumaçados, dando uma cor escurecida ao ambiente e deixando tudo
aconchegante, e mesmo com os vidros escuros dava para ver toda a
tempestade de neve que acontecia lá fora.
Olhava tudo com interesse, prateleiras repletas de livros, poltronas
espalhadas muito bem combinadas. Quando me virei para o sofá perto da
mesa vi três homens que me olhavam com curiosidade.
Estaquei olhando para eles, meu medo tinha me deixado paralisada,
ficamos nos olhando, eles me analisando e eu a eles.
Deviam estar curiosos com as mudanças que, pelo que entendi, foram
eles que causaram, e eu curiosa para saber o que fariam comigo.
Todos os três tinham cabelos escuros em diferentes tamanhos
emoldurando seus rostos belos e sérios, mas ao ver a cor de seus olhos, eu
senti toda a frágil calma me abandonar, eram todos azuis, o que me deixou
embaraçada de pavor.
Não eram como de Samuel, mas para mim pareciam perigosos.
Pareciam caçadores espreitando sua presa com olhos curiosos e assassinos,
ao menos para mim, pareciam assim naquele momento. Meu medo me fazia
vê-los como inimigos.
O primeiro a falar foi o de cabelo mais comprido chegando até abaixo
dos ombros sem nenhum fio arrepiado, aparados com esmero.
— Sou Rael, folgo em saber que está bem e passou incólume pelo
processo.
Pronto... Voz masculina, olhos azuis e era forte. Meu medo irracional
me dominou, era um homem e maior que Samuel, imagina o que poderia
fazer comigo?
Balancei a cabeça mentalmente, dizendo não para as imagens que
voltavam, enquanto dava passos para trás até chegar à parede, e então não
tinha para onde correr. A porta estava fechada e ele não estava muito longe,
me pegaria mesmo se eu fugisse.
Não poderia fazer escândalo, ele tinha poder sobre minha vida, não
importava o que Eva dissesse. Eu sabia que era só um deslize e seria
condenada por meus atos insurgentes.
Não sabia mais o que fazer e ali, grudada à parede sem poder
continuar a me afastar, fiz o que minha mãe tinha me dito para fazer quando
encontrasse meu senhor, marido, mestre, dono ou cafetão.
Curvei-me como uma serva teria feito.
— Não, por favor.
O de cabelo mais curto se aproximou e fez menção de me levantar, mas
o outro homem falou:
— Não, Nicolae, não pode tocá-la. Ela está traumatizada, eu tentei e
ela quase teve um surto. Melhor dar tempo, assim ela verá que não teve um
destino tão ruim sendo encontrada por você, do que teria se fosse encontrada
por qualquer outra raça.
Aquela voz eu conhecia, era de Dimitri, o homem que estava no quarto,
mas aqueles braços que tentaram me levantar eu conhecia melhor ainda.
Foram os braços que me salvaram da morte. O seu cheiro me era
agradável e me fazia lembrar o conforto que senti quando ele me carregou.
Então me agarrei a ele como um pedido de socorro, ele tinha me
salvado uma vez e poderia fazer isso de novo, eu sei que podia. Não me
deixou morrer na floresta, não fez comigo o que Samuel fez com as meninas
indefesas e pelos antigos, eu estava indefesa e fraca quando ele me
encontrou. Me apertei em seu peito e ele me abraçou, olhando assustado
para os outros dois que estavam tão surpresos quanto ele.
PRÍNCIPE NICOLAE

— Senhora, acorde.
Abri os olhos, não dormia de verdade, apenas fingia para que não
falassem comigo.
— Está linda, filha.
Eva estava realmente emocionada. Curiosa, me olhei no grande espelho
posto ali para esse dia. Meu vestido azul-turquesa era cheio de bordados
prateados, longo, justo e extremamente leve e sensual.
Meu cabelo estava preso por duas presilhas de prata com pedras de
ametista, os deixando totalmente soltos nas costas, uma maquiagem leve e
detalhada me deixava ainda mais radiante, não poderia ficar sem, fazia parte
da alta casta, apesar de eu não gostar de exageros. Gostava de como era ao
natural, mas ali tinha que seguir os costumes.
Os produtores da casta abaixo da minha tinham preparado muitas
encomendas de Eva para aquele grande dia, que custaram caro a Dimitri, por
sorte, ele não ligava muito para coisas materiais. Isso porque a família que
usurpamos o nome tinha muitas posses realmente, e porque eles, os sombrios,
tinham uma vasta riqueza. Em todas as bocas aquilo seria ostentação e era
isso que queríamos.
Samuel precisava ver que eu tinha tudo o que queria, e que ele teria que
me agradar para que meu amado pai não pagasse a multa de quebra de
contrato, caso eu desistisse antes de casar.
Era uma ilusão de poder, uma mulher não tinha poder algum nesse
reino, o meu caso era diferente, porque Dimitri negociou de uma maneira em
que eu teria o direito de decidir, o que, era algo tão raro que muitos estavam
comentando, e o baile seria lotado de pessoas curiosas para ver o pai do ano,
o homem que estava indo contra os costumes e era somente por isso que
Samuel estava me tratando com cortesia, o que eu sabia, seria apenas até
garantir o casamento, depois disso, eu não passaria de mais um bem
adquirido e passivo de ser negociado.
Mas tudo estava indo conforme os planos e assim, de queixo erguido,
saí do quarto para o que seria o primeiro dia de dois anos de preparo e
treinamento, meu maior medo seria enfrentado e sanado.
Apesar de eu afirmar que era para ajudar os sombrios, eu tinha meus
motivos também, queria me testar, saber se eu conseguiria olhar nos olhos de
Samuel na hora da dança e não perder a compostura. Disso dependeria todo o
resto. Dimitri e Nicolae só continuariam com o plano se eu conseguisse
passar por aquilo, e eu queria muito vencer esse trauma, não gostava de ter
medo de um homem, não depois que descobri a dignidade que uma mulher
podia ter quando era tratada com respeito.
Dimitri me esperava na sala junto com os pais de Samuel, que ao me
ver ficaram impressionados e não tiravam o sorriso da boca. Eu sabia o
motivo daquela alegria: eu daria muitos lucros a Samuel. Quando eu fosse
dele, ele poderia me exibir no harém do rei e aceitar uma oferta, caso uma
boa aparecesse e pelo olhar de meus sogros, eles já deviam estar a fazer
somas.
Um dos nossos estudos foi sobre o casamento, então era certo que
Samuel iria me cortejar, porque, quando apareci, o furor dos homens foi
geral, eu era uma das poucas mulheres que estava disponível depois dos
quinze anos, com uma aparência ainda tão imaculada. Essa tinha sido a ideia
de Rael e funcionou lindamente.
Pobres tolos. Samuel não ia perder a chance de ter uma raridade de
vinte e cinco anos e ainda virgem, muitas tinham beleza quando casavam,
mas depois, na idade que eu aparentava, já não tinham tantos atrativos.
A culpa era dos homens, eles que tinham que ser extirpados de seu
poder. As esposas eram deixadas de lado por seus maridos porque a oferta era
grande. Todos os anos, garotas novas eram entregues a casas de diversão,
virgens que tinham sua pureza leiloada, onde até mesmo o rei participava dos
lances.
E então, as mulheres não se cuidavam, algumas porque queriam
distância dos maridos, a maioria porque não ficavam sem apanhar
basicamente um dia que fosse, e outras simplesmente porque não lhes era
dado nada mais do que o alimento, a maioria largadas em seus quartos,
procuradas apenas quando eles lembravam que elas existiam para gerar seus
filhos.
As mulheres mais belas do reino eram das castas nobres, ali elas tinham
um tratamento diferente, pelo menos as que eram cuidadas para negócios, e
essas não tinham mais que um filho, por vezes nenhum. Os nobres podiam ter
muitas mulheres, mas tinha a preferida, a que era escolhida para participar
das festas reais. As outras eram cuidadas com esmero, mas não como a
principal.
Essas eram mostradas, ostentadas pelos seus maridos até serem
negociadas, então outra principal apareceria ao lado do nobre na próxima
festa.
Todos os haréns dos nobres podiam se interagir livremente em um
único lugar, a Floresta do rei. Mal sabiam elas que esse lugar era uma feira
livre e que sua beleza estava sendo observada sempre para negócios e os
maiores fregueses eram os licans.
Outro motivo que tínhamos descoberto e era necessário saber mais
sobre isso, era o crescimento desmedido do reino Humanis.
Os licans cediam parte de suas florestas como pagamento de algumas
mulheres, o que aumentou a compra de garotas que, ainda pequenas, eram
promessas de beleza rara, então manter uma bela mulher ao seu lado poderia
lhe dar muitas posses.
Já tinha me informado com as criadas sobre esse lugar famoso, e elas
foram rápidas em responder, totalmente entregues à luxúria que o lugar
representava aos seus sonhos mais secretos de fazer parte daquele seleto
grupo de mulheres supostamente sortudas.
Era um paraíso, segundo elas e seus suspiros sonhadores, todas as
esposas podiam ficar o dia todo, sendo cuidadas e servidas por criados,
esperando serem chamadas por seus maridos.
Ainda havia os cambistas, homens no meio real que intermediavam
essa troca, era na Floresta do rei que era permitida a entrada do lobo,
normalmente um alfa que passaria a visão para sua matilha e negociariam o
preço.
Depois de tudo combinado, uma parte grande de terras era abandonada
por eles e a mulher de algum nobre sumia sem deixar vestígios.
Foram muitas vezes que a muralha foi reconstruída, muitas vezes que o
reino cresceu e isso foi notado. Muitas famílias de um grau menor também
saíram das muralhas para cuidar de uma extensão de terra, sendo elevado ao
grau de conde ou duque, com certeza esse título vinha como comissão por
suas filhas.
Era um comércio muito vasto, e os únicos que podiam fornecer
mulheres eram os humanos e as duas raças dependiam disso para não
sumirem do mundo. O acordo firmado entre os párias havia beneficiado
apenas uma raça entre os três. Os humanos. E eles não faziam questão de
mudar isso. Usavam todos os meios possíveis para conseguir voltar a imperar
em um mundo onde seus domínios territoriais tinham sido extinguidos a
apenas uma pequena e apertada nação.
Dimitri se aproximou, andando devagar, sua idade um pouco avançada
não lhe permitia movimentos bruscos. — Está linda, minha querida.
Seu corpo estava envelhecido, mas seus olhos azuis, brilhantes e
límpidos, ainda eram vivos e perspicazes. Deitou a cabeça e me beijou perto
da orelha, sussurrando em seguida:
— Está distraída, se concentre.
Realmente estava distraída, com a hora se aproximando, eu estava
ficando ansiosa por mudanças, para fazer algo de útil e pagar aos sombrios o
que fizeram por mim.
Por causa deles, eu aprendi que mulher tinha que ser valorizada e devia
lutar por seu lugar e era isso que eu queria. Então, sem mais distrações,
coloquei um sorriso no rosto e beijei a mão de Dimitri, como prova de uma
boa criação e, para não deixar dúvidas de minha submissão, me curvei para
meus sogros.
Não gostava do olhar do pai de Samuel, olhos idênticos aos do filho,
azul gelado de um doente sádico, era loiro como ele, seu sorriso não alcançou
seus olhos, mas sua luxúria sim. O maldito cobiçava a nora e tinha inveja do
filho. Essa era uma família para ser dizimada do mundo, todavia, não podia
ser subestimada. Apenas um passo em falso e essa falsa união deles poderia
se tornar real para me destruir.
Eles tinham um ponto a favor deles, Samuel seria general dos exércitos
do rei, um alto posto, um cargo de extrema confiança e tudo passaria pela
mão dele, teria acesso a todos os documentos escondidos e todas as operações
secretas e os planos do rei, mas o mesmo ponto a favor deles logo seria o
meu.
Paul e Ana se aproximaram para me darem um beijo na face e mostrar
sua felicidade pelo meu ingresso em sua família. Senti asco quando o fizeram
e segurei ainda mais firme a mão de Dimitri, se ele não fosse forte, mesmo
naquele corpo frágil, eu poderia ter quebrado um de seus dedos, mas ele
apertou de volta, dizendo que estava ali comigo.
Assim saímos da sala. Dimitri segurando minha mão e Eva do outro
lado, segurando meu cotovelo. Um carro nos esperava na rua, entrei ajudada
por Dimitri que, depois de ajudar Eva a entrar, entrou em seguida. O carro
dos Zafirins ia à frente, o cocheiro incitou o cavalo e seguimos atrás.
Dimitri me olhou, preocupado. — Nervosa?
Pensei um pouco antes de responder. Sim estava muito, mas a briga que
eu tive com ele e Nicolae, para continuar com o plano quando descobrimos
que a votação do cargo foi para Samuel não me deixou ser sincera, se eu
demonstrasse muito o meu medo, ele me tiraria dali.
— Um pouco, não sei como será a reação dele quando me vir e nem
como será a minha quando ele me tocar.
— Não era com ele os planos iniciais, não quero que sofra, ainda tem
tempo de desistir.
— Não, Dimitri, não posso permitir que a quebra do acordo diminua
ainda mais a chance da raça sombria de existir. E não vou desistir, depois de
anos, só porque o escolhido foi Samuel, sabíamos desde o início que ele era
candidato, e esse cargo é o único que fará dar certo o que planejamos.
“Se o pai supremo acordar com as coisas do jeito que estão, estará tudo
perdido. Os licans estão crescendo com esse mercado ilícito, mesmo que seja
uma evolução lenta baseando na quantidade de mulheres negociadas. Os
Leviatãs estão satisfeitos com o que lhes é dado, mas não sabemos se também
tem negócios acontecendo entre eles e o rei.”
— Com todos os corpos que são entregues a eles basicamente todos os
dias, eles não têm do que reclamar — disse Eva. — Os únicos que não têm
benefícios são os sombrios que seguem à risca o tratado, esperando os vinte
anos para começarem a crescer novamente e isso foi tirado.
— Podemos esperar mais, Eva — disse Dimitri. — Até lá, o novo rei
do império Humanis pode não ter esses mesmos planos, afinal, os humanos
são mortais, esse rei não viverá para sempre.
Balancei a cabeça, veemente. — Ainda insisto que algumas sombrias
podem estar escondidas por aí, pelas terras ainda não mexidas. Pelo mundo
ou presas com os licans, já pensaram nisso? Poderiam mandar um de seus
irmãos que dorme para procurar vestígios delas.
— Não, Diana, nenhuma sobreviveu, nós saberíamos se tivessem
poupado uma delas que fosse, o cheiro não nos enganaria.
— Não podemos esquecer as crianças do reino sombrio — disse Eva.
— As crianças que estão crescendo, filhas dos criados dos senhores que
dormem.
— Sim, Eva, temos em torno de trinta meninas, mas não podemos
forçar nossos criados a entregá-las a nós e nem poderíamos tomar as
mulheres à força quando tiverem idade.
— Mas o senhor sabe que eles estão preparando suas filhas para isso,
eles querem tanto quanto nós que o reino prospere para termos força, caso
outra guerra se inicie.
— Sim, Eva, mas entre as famílias há também jovens rapazes, e o
destino pode pregar uma bela peça, fazendo com que de trinta meninas,
apenas poucas realmente possam vir a se tornar esposas de nossos homens.
Os moradores de nossas vilas são livres para casar entre os de sua própria
raça, não é uma coisa desesperadora, e podemos esperar os filhos dos filhos
desses casais.
— Vocês são homens bons. Não merecem o que estão passando.
Dimitri sorriu, triste, com o elogio. — Nós três tentamos ser justos,
pelo menos até onde é possível, aprendemos com nosso pai o que não deve
ser feito vendo os atos dele. Se ele não tivesse sido tão soberbo, se não
tivesse achado que nossa raça era imune por sua força, talvez, só talvez, hoje
teríamos crianças sombrias brincando no reino, ou se ele tivesse sido um
pouco menos cruel, nossa raça não teria ficado limitada a pouco mais de três
mil homens. Precisou ver nossa mãe morrer em batalha para aceitar o pedido
de trégua e finalmente participar do tratado.
Dimitri olhou pela janela e ficou pensativo. Sempre me dava tristeza
ver os irmãos arcar com a herança do pai. Ele falou baixo:
— Não somos bons, Eva, somos inteligentes e aprendemos com nossos
erros e esses erros, são muitos.
Ficamos em silêncio um tempo, constrangidos com seu desabafo,
segurei sua mão e apertei, nunca sabia como ajudar.
— Vamos dar jeito nisso, Dimitri, vamos descobrir qual o plano e
acusar o rei de vetar o crescimento dos sombrios.
Dimitri me olhou com carinho, podia ver isso em seus olhos azul-claros
que eu adorava ver brilhar, continuei:
— Quem sabe ainda conseguimos êxito e o rei devolva as meninas.
Assim, se o nosso pai acordar, nem dará por conta do que acontecia enquanto
dormia.
— Gosto quando você diz nosso pai e não seu pai.
Sorri, não tinha como não o fazer com um olhar tão doce de Dimitri
para mim.
— Não me considero humana, não mais, depois de conhecer os
sombrios e saber como são os humanos, escolhi meu lado. Sei que você vai
dizer que sou as duas coisas, que de vocês só ganhei a imortalidade, ainda
assim, não me considero humana, Dimitri, eu até mataria pela raça sombria.
— Não gosto quando fala assim, Diana, me parece mais um sentimento
particular de vingança do que uma interseção para ajudar os sombrios.
Ele não deixava de ter razão, podia ser algo particular, ou o meu jeito
impulsivo, de todo modo dei de ombros, dizendo mais para mim do que para
ele. — Se precisar…
Dimitri se virou para mim com aquele olhar preocupado, antes que
começasse a falar, encostei meu ombro no dele e o empurrei com carinho.
— Não me olhe assim, não vou me corromper pela vingança, se der
para saber algo, será útil, se não der… voltarei para casa antes de ficar presa
em uma teia da qual não conseguirei sair. O que sinto por Samuel é apenas
nojo, por tudo o que ele as fez passar naquele celeiro antes de matá-las. A
sorte apenas me sorriu para que eu possa enfrentá-lo hoje, e assim exorcizar
alguns fantasmas do passado.
— Não sente raiva de seu malfeitor, André?
Refleti por um momento, respondi, com sinceridade: — Não sei o que
sentir por ele, talvez gratidão, ele tentou me matar, mas salvou minha vida,
não sei qual das duas coisas pesa mais para mim.
Dimitri assentiu, mostrando que compreendia, então, depois disso,
permanecemos em silêncio o resto da curta viagem.
Fiquei descansando a cabeça no ombro de Dimitri e minha mente
novamente voltava ao passado, sorri ao relembrar…

Nicolae tinha se assustado quando o agarrei, me escondendo dos


outros dois irmãos, depositando nele todo meu medo e toda minha confiança.
Ele tinha salvado minha vida, me carregado com cuidado quando
estava morrendo na floresta, em seus braços tinha encontrado conforto e
neles adormecido e agora eu procurava tudo isso de novo, toda essa
segurança.
— Calma, não lhe faremos nenhum mal, acho que isso já está claro.
Precisa se acalmar.
— Ela tem medo dos outros, não do senhor — disse Eva.
— Então acho melhor nos retirarmos — disse Rael, olhando para
Dimitri.
Rael estava calmo, já Dimitri parecia levemente magoado, fecharam a
porta de leve ao sair.
Nicolae me carregou e me acalmei quando ficamos apenas nós três.
— Acho que ela confia mesmo no senhor.
— Pelo visto, Eva. Não sei muito bem o que fazer com ela, vou ver o
que consigo, pode me trazer cobertores? Ela está gelada.
Fiquei receosa quando Eva nos deixou a sós, mas me contive, ficando
muito quieta, ele me sentou no sofá e sentou ao meu lado, não disse uma
palavra por vários minutos.
Esperei, alternando o olhar para baixo e para ele, eu esperava algum
tipo de repreensão, ele poderia chamar minha atenção por ter agido mal com
os outros senhores, mas dele eu não tinha medo, o obedeceria e tentaria
melhorar.
Ele olhou para mim, meio sem jeito, sondei seus olhos, não tinham
nenhuma semelhança com a frieza que eu tinha visto, não se pareciam em
nada, na verdade, apenas a tonalidade.
Seus olhos eram azul-turquesa e não eram nada parecidos com os de
Samuel, eram olhos confusos e estava assustado. Me sentia bem perto dele.
Ele não me queria mal, tinha um pouco de medo de agir bruscamente e me
assustar. Levantou de leve a mão na minha direção.
Os olhos medrosos me deram coragem para não fugir de seu toque,
segui hipnotizada sua mão, que chegou até minha trança e ali ficou. Ele
parecia procurar algo a dizer, achei graça, não ri, mas achei engraçado, ele
estar com medo era até meio irônico. Eu não tinha nem força para pôr medo
em um homem e isso me deu mais confiança de que ele era diferente.
— Ficou muito bonita essa trança que Eva fez em você.
Eu afirmei, séria.
— Uma pena que não consiga falar, queria saber seu nome.
Balancei a cabeça negativamente.
— Não quer me dizer seu nome?
Apertei os lábios, torcendo a boca em frustração, tentei falar, mas
nada saiu e me senti confusa em como ele reagiria a isso.
— Não tem problema, não precisa falar nada, ainda está traumatizada
e quando falar, vai sair sem nem mesmo perceber.
Acreditei nele, era engraçado, mas até de sua voz eu gostava, o som
rouco e tranquilo me passava confiança.
— Ela não tem nome, ainda se chama Próxima. — Eva tinha voltado
com os cobertores e me cobria as pernas.
— Ah! — Ele bateu na perna. — Que indelicadeza a minha, claro que
não tem.
Ele ficou pensativo, passando a mão no queixo e logo se virou para
mim. — Podemos chamá-la de Diana, uma guerreira das lendas. Você lutou
muito contra a morte por vários dias, acho que esse nome lhe cairá muito
bem, assim como chamei Eva, a primeira do mundo. Ela foi nossa primeira
menina pelo acordo.
Olhei para Eva e ela afirmou. — Sim, digamos que tenho oitenta e
cinco anos, pareço mais jovem por uma intervenção do senhor Rael, que
insiste em me deixar aqui, mas não sou imortal. Não tive interesse nisso.
— Está vendo, é um bom nome para ela, não é? Assim como Diana é
um bom nome para você.
Ele tinha um sorriso agradável e verdadeiro, sorri sem perceber
balançando a cabeça, estava começando a sentir brotar uma luz de
esperança dentro de mim, porém, meu sorriso morreu, assim que os dois
irmãos entraram na biblioteca.
Apertei-me no peito de Nicolae e ele me abraçou de volta, escondi o
rosto e fiquei ali ouvindo, atenta. Nicolae passava a mão meio sem jeito no
meu braço para me acalmar.
— Acho que já sabemos quem é o preferido dela — disse Dimitri.
— Não diga bobagens, Dimitri! — ralhava Rael. — Ela vê nele
proteção. Ele que a encontrou na floresta, então é natural que ela aja dessa
forma com ele. Ela ainda tem a cabeça de uma menina e agora que já
fizemos o que não deveríamos ter feito, cabe a nós educá-la e instruí-la.
Rael falava bravo e fiquei um pouco ansiosa, virei um pouquinho para
olhar com o canto dos olhos os dois conversando, Dimitri concordava com a
cabeça, enquanto Rael passava seu sermão, mas estava olhando para Eva,
como se pedisse socorro para as palavras duras do irmão mais velho.
Eva piscou para ele e se virou para Rael. — Acho que Dimitri está
meio ansioso, ele está preocupado com o bem-estar dela tanto quanto o
senhor e Nicolae.
Ele suavizou as feições ao olhar para ela, estranhei isso, ela era uma
criada, mas não era tratada como uma, pelo menos, não como as criadas
eram tratadas no reino Humanis.
— Sim, Eva, tem razão, mas não importa se ela ficar grudada em
Nicolae por toda a eternidade, contanto que confie em algum de nós três e
nos conte o que aconteceu, para termos uma ideia do motivo daquele
atentado ao tratado.
— Ela vai falar, meu irmão — dizia Nicolae, ainda me amparando com
um abraço. — Precisamos apenas de um pouco de tempo e paciência.
Eu queria dizer, queria poder contar tudo a eles e fazer com que se
vingassem por mim.
—Tempo eu tenho de sobra, irmão — disse Rael. — Paciência eu deixo
para você.
O BAILE E
O INTROMETIDO

Quando a carruagem parou em frente ao grande salão, comecei a ficar


nervosa, chegava a minha hora de enfrentar meu fantasma, para tentar
exorcizar de uma vez por todas esse medo de Samuel.
Uma torre circular imensa, feita de pequeninos tijolos brancos com
janelas retangulares compridas e com vitrais florais estava à minha frente.
Pessoas vestidas luxuosamente entravam na grande porta dupla agora aberta.
O salão do farol. O mais nobre perdendo somente para o salão do castelo.
Ali todas as famílias abastadas esperavam para ver a ascensão de
Samuel que saía do posto de guarda do rei para o posto de general supremo
do exército. Era ali que depois dessa cerimônia, ele me entregaria uma flor de
lótus e eu beijaria a flor, entregando a ele um lenço mostrando a todos que eu
aceitava seu pedido.
Minha primeira prova de amor logo no início da cerimônia dele, para
mostrar que o negócio estava feito e esse gesto era apenas para todos saberem
que o noivado seria feito logo após o evento. Esse dia tinha sido escolhido
por sua família, aproveitando que todas as famílias das castas superiores
estariam ali, pois ostentação era o que regia aqueles humanos sedentos por
poder.
Com o coração aos pulos, enganchei no braço oferecido por Dimitri e
Eva fez o mesmo do outro lado e, juntos, entramos no salão.
Dimitri, apesar da idade que aparentava, andava ereto e firme,
mostrando orgulho e poder. Essa soberba era necessária para se igualar com
os outros homens presentes, assim como Eva e eu não olhamos para os lados
e não cumprimentamos ninguém.
Não precisávamos abaixar a cabeça para nenhuma família, o nome
Salazar tinha tanto ou mais poder que muitas famílias naquele círculo.
Para todos os presentes, eu era Diana Salazar, uma menina criada fora
das muralhas. Escondida por meus pais até aquela data, para que fosse
apresentada à sociedade na idade madura. Nascida em uma família com
muitas posses que fornecia o que o reino mais prezava, os tecidos e as
pedrarias, e era por isso a escolha tão nobre de minha roupa, afinal, uma
família que oferecia esses materiais ao reino não podia ter uma filha vestida
com tecidos menos valiosos do que os vendidos para as esposas dos nobres.
Tinha sido um trabalho duro para Eva, Dimitri e Nicolae aprender e
decorar tantos nomes de tecidos, mais ainda foi trocar os criados, levando os
antigos para o reino sombrio e deixando ali os fiéis.
Foram dois meses de aprendizado, um criado passando a outro a arte da
manufatura do tecido, desde a colheita do algodão até as máquinas de tear,
não demorou muito e já saíam belas peças dos criados dos sombrios,
enquanto os antigos criados desses sítios agora tinham moradia no reino
sombrio.
Alguns apareciam diariamente para agradecer sua boa sorte,
prometendo cuidar dos afazeres que os antigos criados faziam, tinham medo
de ter que voltar aos verdadeiros Salazar e isso dava pena.
Todo mundo quer ter uma vida melhor e se conseguem isso, não
querem mais uma vida miserável e sem nenhuma dignidade e respeito.
Mas como dizia Rael sempre: “Ainda terão muito para provar sua
lealdade, a confiança tem que ser conquistada e somente o tempo mostrará
que eles dizem a verdade.”
Andávamos devagar, havia pessoas dos dois lados, com o coração
apertado me sentia como se estivesse sendo levada ao altar, todavia, era
apenas uma cerimônia, se fosse mesmo um casamento um monge cristão
estaria ali à frente.
O monge era uma criaturinha miserável, em suas regras religiosas havia
uma bíblia onde somente dava direito ao homem. Uma religião recriada
depois do tratado e a única aceita pelo rei. Segundo essa bíblia, a mulher
nasceu para servir, tudo provava isso porque a primeira mulher serviu a
Adão, lhe entregando submissa uma fruta.
Regiam ainda em seu pequeno templo que a mulher tinha sido feita a
partir do homem, então, sendo assim, elas lhes deviam à vida e deveriam
servir sem reclamar. E mais um monte de coisas que Nicolae me jurava que
não tinha nenhum fundamento e que eu não devia dar ouvidos a isso.
Se realmente fosse um casamento, eu teria que me sujeitar ao
juramento injusto sem reclamar, apenas a esposa juraria fidelidade e
obediência, já o marido juraria apenas que seguiria as regras da conduta
Humanis e isso significava que tudo valia para o homem, já a mulher não
teria nenhum direito, nada.
Continuamos andando, nosso lugar estava à frente. Para resistir ao
impulso de olhar para os lados, fixei meus olhos nas cortinas que enfeitavam
o palco, estava bizarramente calma naquele momento, Dimitri estava mais
tenso que eu, sentia seu corpo rígido ao meu lado.
Muitos olhos se viravam quando eu passava, estava ciente de que
chamaria a atenção em qualquer lugar dentro do reino. Então já estava
preparada para isso, um dos motivos era minha idade e outro era que eu não
estava sendo vendida. Samuel não estava pagando nada por mim e isso era o
mais bizarro a todos.
Estava noivando sem ser obrigada. O que demonstrava poder, não
precisar usar os filhos como parte nos negócios. E demonstrava ser uma
tolice em um reino onde a mulher era praticamente um produto de valor
incalculável, ou melhor, calculável de acordo com a beleza.
A desculpa de Dimitri quando aparecemos no reino, era que eu era sua
única filha e estávamos ali para que eu conhecesse a cidade e não para me
entregar como parte do pagamento em acordos comerciais, mesmo que fosse
vantajoso.
Um pai podia amar de verdade sua filha e querer o melhor para ela,
mesmo que isso fosse visto como um ato conservador e velho e até mesmo
errado. Mulheres eram moedas de troca, e ali estava um homem perdendo
grandes negócios, apenas por amar a filha e não o dinheiro e poder que ela
poderia lhe fornecer, ele estava me dando o direito de escolha.
Isso foi deixado claro quando os preparativos começaram, assim que o
resultado do cargo foi anunciado, Dimitri começou tudo, abrindo as portas
para vários bailes na casa que tínhamos alugado, alguns meses antes, e então,
em uma de nossas festas, Samuel apareceu.
Compareceu por mais outras várias festas, sempre me encarando e eu
sempre retribuindo seus singelos avanços. Tudo parte da minha encenação,
quanto mais eu me mostrasse interessada quando ele estava longe, mais tinha
que fingir desinteresse quando ele se aproximava.
Um jogo de caça e caçador e nesse ele era a presa. Esses pequenos
encontros aliviaram um pouco o misticismo do medo que eu carregava sobre
o passado.
Depois de quatro visitas, eu me mostrei apaixonada, então Dimitri
encerrou as festas, sinal de que sua filha estava comprometida e não era de
bom tom receber homens solteiros em festas em sua casa e então começava
mais uma etapa do conselho simples de meu malfeitor.
Viver. Eu vivi.
Ficar forte, ele não sabia o quanto eu treinei e o quanto estudei para
fortificar minha inteligência, pelo menos, já que eu não servia para luta física.
Descobrir o motivo era a última etapa. E estava começando...
Sentei na primeira fila, lugares reservados à família Salazar e então
meu nervosismo aumentou. Samuel se aproximou e me entregou uma linda
flor de lótus, em seguida olhando em seus olhos, dei um suave beijo nas
pétalas macias. Queria cuspir nelas, mas estragaria tudo, sem contar que era
uma flor muito rara e talvez ainda tivesse utilidade para Eva depois.
Deixei meu coração gritar e martelar minha caixa torácica, mas eu
estava mais forte, mais segura e acreditava na igualdade dos sexos e essa
crença me deu coragem para seguir em frente, mesmo com medo. Sem luta
não há mudanças, graças aos sombrios aprendi isso.
Quando entreguei o lenço a ele, tremi um pouquinho, estava nervosa,
mas ninguém podia estranhar esse tremor, supostamente era um dia especial
para mim, o lenço era de um delicado azul de seda, bordado com arabescos,
as iniciais da família Salazar.
Ele o cheirou, colocou em sua lapela e pronto! Compromisso
anunciado, agora todos os homens olhavam para Dimitri, como se ele fosse
idiota.
Meu noivo foi condecorado pelo príncipe, um homem belo de feições
suaves, que não foi simpático com Samuel em nenhum momento e eu achei
estranho, estava vestido a rigor para a ocasião, uma farda branca e uma faixa
vermelha, tinha cabelos escuros bem aparados, não deu para ver a cor de seus
olhos, mas ele tinha um belo porte, isso não queria dizer nada, porque eu não
confiava na beleza exterior.
Samuel era bonito, forte e até sabia ser galante, mas dentro dele
guardava um monstro que estuprava garotas e as estripava por puro prazer,
que sorria enquanto via suas entranhas saindo. Samuel era um sádico vestido
de soldado justo, vestido de herói.
O príncipe olhou em minha direção uma única vez e então vi a cor, seus
olhos eram negros e penetraram os meus. Fiz uma suave vênia com a cabeça
e voltei meu olhar ao meu amado noivo, os pais dele observavam todos os
meus movimentos, eu sentia seus olhos sobre mim.
No fim da cerimônia, Eva me acompanhou até o lavatório, retoquei
minha maquiagem com as mãos trêmulas, meus olhos verdes tão claros agora
combinavam com meu rosto que estava branco como papel. Samuel ia me
tocar, respirei fundo e saí para ficar ao lado de Dimitri, Eva me seguiu sem
dizer uma palavra, estava mais nervosa que eu, segurei sua mão e ficamos
esperando tudo ficar pronto.
Enquanto muitos servos esvaziavam o salão, os músicos se preparavam
no palco, tudo muito rápido, bancos e mais bancos foram retirados e mesas
foram postas nos cantos, deixando o centro vazio.
Logo depois começou o baile. Meus nervos começavam a me dizer
para sair dali, mas não podia e não queria, tinha começado e iria até o fim.
Dimitri dançou a primeira música comigo.
— Acha que eu consegui causar boa impressão?
— Com certeza causou, Diana, os rostos ficaram em você o tempo todo
desde que adentrou o salão.
Ignorei o comentário, não estava preocupada com isso. Homens
olhavam até as galinhas no quintal, se perguntando quanto elas valeriam se de
seus ovos nascessem meninas.
Queria saber de Nicolae, tinha medo de que alguém o descobrisse e ele
não tinha dado as caras ainda.
— Não vi Nicolae, você o viu? Não quis parecer procurar alguém, mas
já olhei por todo lado em nossas piruetas e não o vi.
— Ele está cuidando de você de longe, não se preocupe, eu o vi
algumas vezes, está cumprindo o papel dele.
— Eu poderia ter a segunda dança com sua filha, senhor?
Dimitri fez uma reverência e então eu sabia, para agir tão respeitoso só
podia ser o príncipe, ele tinha direito a dançar com qualquer moça do salão
que escolhesse. Minhas bochechas queimaram de receio, também raiva
daquele intrometido e sua empáfia. Tanta mulher no salão, por que eu?
Pela ordem na cerimônia, eu teria que dançar com Samuel para mostrar
a sociedade que estava comprometida, isso poderia estragar meus planos,
Dimitri nada podia fazer, era um percalço fora da rota que teríamos que
contornar.
Não estava tudo perdido, de canto de olho vi que Dimitri falava ao pé
do ouvido de Samuel e ele sorriu, simpático, em resposta, com certeza se
desculpando e pedindo para que ele me tirasse na terceira dança, já que o
príncipe não podia ser contestado.
Mantive a calma, fiz uma mesura suave e logo ele pegou minha mão.
— Então você em breve será oficialmente a noiva de Samuel.
Não era uma pergunta e sim uma afirmação, então apenas assenti com
um sorriso singelo, não queria conversa, contudo, não podia ignorar o filho
do rei. Isso poderia me trazer complicações, mas o miserável continuou
puxando assunto, eu não poderia fazer cara de gárgula para sempre, teria que
ser educada e respondê-lo, e como se apostando nisso, ele continuou a falar.
— Ele é um homem de muita sorte, a maioria das moças em sua idade
já não tem mais essa aura radiante, estão cansadas e sem brilho.
Deve ser porque sou bem-cuidada e não engordada para o abate —
pensei, mas não falei nada e novamente sorri, o intrometido continuou
falando, enquanto me guiava pelo salão.
— Você é uma peça rara e ainda uma forasteira. Está sendo muito
comentada entre os homens do reino, senhorita Diana.
Já estava com câimbras na bochecha, não podia só sorrir a vida toda,
tinha que dizer algo, para não pecar por excesso e incentivá-lo a falar ainda
mais, apenas ia agradecer, quem sabe ele calasse a boca até a música acabar.
— Obrigada, vossa alteza. — Não… muito pouco, precisava dizer algo
mais que isso, falar o que sentia de verdade, aquela era uma oportunidade de
espetar um ser real e desmanchar sua pose.
— Não sei se me sinto lisonjeada com o comentário desse povo ou
levemente irritada por ser o foco de tanta atenção.
Ele franziu o cenho enquanto me girava pelo salão. — Geralmente as
moças ficariam lisonjeadas, já tivemos forasteiras aqui que ficaram muito
felizes em ser o centro das atenções, mas realmente nenhuma delas com essa
beleza e corpo igual ao seu.
Cretino... Tinha que terminar as frases com elogios, poderia ter ficado
na história das forasteiras. Ficando irritada mais ainda, forcei um sorriso.
Estava sendo tratada como um produto, o que não era incomum.
Ainda assim, precisava mostrar a ele o que pensava, ele era o príncipe,
então com sorte poderia se envergonhar por seu pai, muitas leis foram criadas
por ele e por isso, tudo estava daquele jeito.
— Sim, mas sinceramente não gosto muito, alteza. Não sou daqui, não
estou habituada a ser vista como um objeto de consumo e, muito menos,
como um produto que os compradores olham analisando suas qualidades e
possíveis defeitos futuros.
Ele gargalhou alegremente e fiquei totalmente sem ação. Todos os
rostos do salão se viraram para nós, me deixando mais preocupada. Maldito
seja! Podia estragar tudo e ele nem se incomodou com o que eu havia dito,
senti meu sangue começando a esquentar, queria sair de perto daquele
despojado que nem se tocava o quanto era irritante, ele falou, ainda sorrindo:
— Me perdoe se a deixei indignada, não passou pela minha cabeça
realmente tratá-la como um produto, abomino esse tipo de transação e deve
ser por isso que nunca adquiri esposa, não as quero passeando pelo jardim de
meu pai de dia e sendo recolhidas à noite como animais de estimação. Por
isso, acho que me interpretou mal, se a ofendi peço que me perdoe.
Aquilo tinha passado dos limites. Achei que meus nervos seriam
ativados com Samuel e ali estava um homem me tirando do sério e chamando
a atenção daqueles malditos fofoqueiros que não tiravam os olhos de cima de
nós.
Príncipe idiota. Se fosse outro homem, eu o teria largado ali no meio
do salão com sua cabeça abaixada, talvez até tivesse lhe mandado um tapa
certeiro na cara, se sua casta fosse inferior à minha ou mesmo um croque em
sua cabeça abaixada na minha frente pedindo isso.
Pela raiva que estava começando a brotar de mim, eu via a hora que ia
fazer isso, respirei devagar para não fazer besteira, só precisava me acalmar,
não era hora de pôr tudo a perder por causa de um filhinho de papai real.
Com calma e disfarçando minha raiva, eu falei, baixo:
— Senhor, eu peço que não me deixe constrangida ainda mais do que
estou, o salão inteiro está comentando, não param de olhar para nós.
Vi sua cabeça virando de leve de um lado a outro e então ele levantou e
me tomou novamente pela cintura, continuou me guiando pelo salão, não
disse mais nada, ficamos ali girando e atraindo os olhares.
Sentia que minha mão começava a suar de nervosa e os malditos
músicos tocavam uma canção por atos, então era uma música longa com
vários poemas sendo ministrados com pequenas pausas, aquele inferno não
acabava e eu queria sair dali.
Estava com receio de que ele abrisse a boca novamente e começasse
com suas graças, não saberia como agiria, minha paciência estava no limite, a
ponto de perder a compostura, sendo malcriada e me colocando em maus
lençóis.
Engraçado que ele estava olhando para mim pensativo, parecia até
envergonhado.
— Realmente estou lhe constrangendo?
Não respondi, não conseguiria formar uma frase sem acrescentar uns
dois palavrões no meio.
— Realmente interpretou mal minha conversa, então para me redimir,
peço que venha ao salão real no domingo, onde meu pai irá procurar moças
para me casar, sei que não gosta de ser tratada como produto, mas verá nesse
dia que eu realmente não gosto desse tratamento, pois sou tratado assim todos
os dias.
Antes que a música acabasse, ele me entregou a Dimitri, beijando de
leve minha mão, Samuel o olhava com sede de sangue, ele queria matar o
príncipe ali pela humilhação, já tinha conhecido esse olhar há dois anos, mas
o príncipe não sabia ou não se importava. Cumprimentou Samuel com um
aceno de cabeça e recebeu em troca uma vênia forçada, em que os olhos se
mantiveram focados nos seus.
Samuel era corajoso, não se podia olhar diretamente nos olhos da
família real, caso houvesse reclamação, uma das penas seria a morte,
dependendo do humor do rei.
Ele me pegou pela mão, ainda estava possesso, mas tentava a todo
custo ser gentil ao olhar para mim. E então a dança iniciou e por outra
provação, eu tinha certeza de que passaria.
Nicolae havia pesquisado e fuçado enquanto planejávamos tudo. Leu e
releu minuciosamente o código de conduta e encontrou uma brecha que agora
salvaria minha sanidade ao dançar com Samuel.
Transferência dominial, ou popularmente chamada entre eles de molho.
Era um período de dois meses para a efetivação completa do pagamento do
dote, e então Dimitri havia usado essa regra de forma diferente quando
combinou meu noivado com Samuel.
Meu pai receberia nada por mim. Não em espécie, porém, eu teria dois
meses de noivado sem que Samuel tivesse direito de me tocar.
Segundo Dimitri, ele queria ver se meu noivo saberia me tratar como
uma principal merecia, e se era realmente isso que eu queria, caso não fosse,
então depois dos dois meses Samuel receberia a quantia da multa equivalente
à quebra do acordo. Pelo fato de nenhuma moeda sair de seu bolso, Samuel
aceitou prontamente.
Então quando pegou minha mão, eu repeti para mim mesma muitas
vezes enquanto o acompanhava que era apenas uma dança, que ele não
poderia me tocar e quando chegamos ao centro todos os olhos do salão
estavam em nós, os noivos.
Quando a música iniciou, ele sorriu e retribuí com um sorriso casto. Por
sorte, mantínhamos uma distância suportável e nossos corpos não se
tocavam, ainda assim, sentia arder minha cintura onde estava sua mão, meu
coração batia rápido e senti o suor começar a se formar em minha nuca.
Havia chegado o momento do meu confronto com o medo.
REVIRAVOLTA

Na primeira pirueta, Samuel falou:


— Tem um cheiro maravilhoso, ficarei muito feliz quando puder tê-la
completamente em meus braços.
O cheiro de sálvia chegou forte ao meu nariz, sua voz e seus olhos
formavam uma mistura perigosa ao meu medo mal controlado, por conta
disso, evitei olhar em seus olhos.
Eva havia me dito que se eu não o olhasse com inferioridade, tudo daria
certo, mas na teoria parecia mais fácil do que agora que a dança começava,
ainda assim, mostrei o melhor dos rostos, o sereno e feliz.
A ansiedade fazia meu estômago revirar, queria saber o que sentiria se
o encarasse e enfrentasse seus olhos de perto, então olhei rapidamente para
seu rosto, seu cabelo loiro de corte escovinha deixava sua feição ainda mais
cruel, o que eu sentia por ele ainda era forte.
Sentia vontade de arrancar sua mão de minha cintura e gritar para todos
saberem o monstro que ele era e pedir justiça, que se existisse alguma pessoa
com alguma sobra de humanidade naquele maldito lugar que o fizesse pagar
pelo que fez àquelas garotas.
Mas essa raiva era interior, um grito mudo que ninguém ouviria, senão
estragaria tudo. Respirei fundo, tirando o comentário desnecessário, não
estava tão ruim quanto imaginei. A distância e a pouca conversa me
ajudariam a vencer a música.
Logo todos do salão perderam interesse nos noivos e pegaram seus
pares para dançarem, sem sermos tão vigiados em uma de nossas voltas pelo
salão, ele arriscou ser mais ousado, me puxando mais para ele.
O cheiro de perfume não encobriu o seu cheiro natural ao meu sensível
nariz, sua respiração em minha testa me deu calafrios, seu hálito aromatizado
com sálvia estava a me embrulhar o estômago.
Nicolae havia me dito que ele poderia agir dessa forma, e se eu ainda
quisesse continuar, tinha que ter uma fuga para isso, e que uma ótima saída
seria pensar em coisas felizes, e assim fiz, não reclamei e nem rechacei sua
aproximação.
Faltava mais da metade da dança e eu aguentaria, era pouco tempo, mas
então sua mão ficou mais exigente me apertando a cintura, subindo e
descendo, devagar passeando preguiçosamente pelas curvas, e então ele se
aproximou um pouco mais, sussurrando em meu ouvido, como se eu
estivesse ansiosa por aquele toque.
— No fim deste baile, depois da última música, selaremos nossa união
com o beijo e então você não aguentará esperar dois meses, meu amor, para
me ter dentro de você, e uma noite será pouco para eu me cansar.
O suficiente para eu entender e, o pior, imaginá-lo me penetrando.
Imaginar o que ele poderia fazer comigo e como faria, fez as lembranças
chegarem como enxurradas, gemidos, sangue, gritos de dor e desespero, tudo
começou a girar à minha volta. Tentei encontrar Nicolae ou Dimitri, até
mesmo Eva no salão para me acalmar, alguém que me transmitisse confiança,
mas não conseguia ver nada, mesmo olhando tudo.
Senti o suor correndo pela minha coluna, o amargor de minha bílis na
garganta, engoli em seco e puxei e soltei o ar várias vezes, tentando segurar o
resto de coragem que evaporava em forma de suor.
Aquela aproximação foi demais para mim, suas palavras me fizeram
reviver um medo primitivo.
Olhei desesperada para todo lado e encontrei os olhos preocupados de
Nicolae, ele sabia que eu não ia dar conta, com um sinal de olho ele me
mostrou o palco, segui seu olhar e ali estava o príncipe me encarando e
falando enérgico com os músicos que assentiam, obedientes.
Ele não tirou os olhos de mim, parecia que sabia que Samuel me fazia
mal, ou talvez fosse apenas receio que ele percebesse, então baixei o olhar e
milagrosamente a música acabou. Samuel olhou para mim, sem entender
nada, seus olhos brilharam de ódio e ele olhou na direção do palco, receosa
segui seu olhar, o príncipe não estava mais ali.
A música parou no meio e ele não podia fazer nada em relação a isso,
apenas acenou quando Dimitri se aproximou. Teoricamente ele já tinha
dançado comigo e não podia reclamar. Dimitri me pegou pela mão,
visivelmente preocupado com o meu estado.
— Você não dará conta disso, Diana, está transtornada, ficou visível
sua aflição, precisa se acalmar. Samuel suga toda sua compostura e será pior,
não esqueça que ainda temos o pedido e o beijo.
Eu não disse nada, apenas o acompanhei até a mesa e sentamos.
Samuel tinha sumido do salão e o príncipe também. Era estranho, mas eu
poderia jurar que ele sabia o que acontecia comigo e que foi ordem dele para
que a música acabasse assim, no meio.
Estava tentando se redimir por ter sido idiota quando dançou comigo?
Respirei fundo e agradeci a ele mentalmente, mas isso não adiantou nada, do
beijo eu não escaparia, então usaria esse tempo sem Samuel me apertando
para tentar me acalmar e pensar em um modo.
Depois que contei a Dimitri o que Samuel havia dito, ele ficou possesso
e foi em seguida conversar com os pais dele e lembrá-los do acordo e da
regra do molho aplicada no início das negociações.
Depois de muitos acenos e sorrisos sem graça dos Zafirins, ele voltou
com um sorriso travesso e me garantiu que o beijo seria casto, pois se depois
de dois meses eu não quisesse Samuel, ele já tinha um pré-acordo de
casamento com um duque e não queria falatório antes disso sobre minha
conduta, porque isso iria me desvalorizar e ele perderia o negócio.
— Você é maravilhoso, nem sei como te agradecer, um beijo casto será
como uma picada de inseto venenoso. Vai doer, mas não morrerei.
Dimitri riu e falou, conspiratório: — Não entenderam muito isso de
minha parte de te entregar de graça para Samuel e não aceitar o mesmo
negócio com outro, caso não desse certo.
“Acontece que sou um mentiroso convincente, porque pisquei para eles
e disse que te amava, mas amava a cor do ouro também, e se não desse certo
com sua primeira escolha, você nunca poderia me dizer que não te dei o
direito de escolher e não poderia me culpar de lucrar com isso.”
Rimos e eu me senti leve, estava acabando finalmente, e o beijo não
seria tão doloroso, era apenas fechar os olhos e esperá-lo encostar sua boca
na minha e mais nada. Ainda assim, isso me pareceu repugnante.
O baile decorreu normalmente depois disso, pela regra de etiqueta nem
Samuel nem o príncipe poderiam me tirar para uma segunda dança e eu
estava muito agradecida por não precisar suportar nenhum dos dois até o fim
do baile.
Essa parte do baile era o direito de meu pai de me apresentar a outros
homens da mesma casta e era direito dos homens me pedirem uma dança pela
lei do reino.
Samuel agora estava entretido, fazendo suas alianças e tirando outras
moças para dançarem, mas visivelmente não estava contente com o ocorrido.
Fiquei feliz de ele não ter visto o príncipe no palco, momentos antes de
a música ser interrompida.
Agora eu tinha a cabeça mais fresca para dançar com muitos tarados,
sem me abalar em nenhum momento. Suportei cada apertão em minha
cintura, cada piadinha daqueles homens velhos e babões, cada oferta
estapafúrdia pela minha virgindade. Eles consideravam realmente a mulher
como um produto e assim eu fui tratada todas as vezes, sem exceção, até
achei engraçado aquilo.
O toque dos outros não me afetava, me irritava apenas o desrespeito,
mas não senti nada, apenas incômodo.
Dimitri também recebeu muitas ofertas de viúvos, para que repensasse
até o final do baile e não entregasse minha mão a um homem que tinha
acabado de ascender na profissão e que ainda não tinha tantas posses quanto
muitos ali das famílias nobres. Ele me contava tudo o que podia a cada vez
que nos sentávamos um pouco para descansar.
Finalmente chegou a última música, e eu comecei a ficar nervosa,
depois disso seria o beijo e agora não parecia tão fácil de conseguir passar
por essa. Logo ouvi uma voz rouca e tão querida para mim.
— Me permite uma dança com sua maravilhosa filha, meu senhor?
Dimitri respondeu, respeitoso: — Claro, meu senhor, cuide bem de
minha preciosa.
Nicolae tinha me tirado para dançar e com aqueles olhos turquesa em
mim, me esqueci de todo o transtorno até agora. Ele sempre teve esse dom de
me trazer paz. Sorri para seu rosto envelhecido pela falta de dormir.
— Deixou a última música para me guiar, senhor?
— Não poderia ser diferente, minha bela dama, imaginei que tinha
muitas ofertas e lances para pensar.
— Sim, senhor, eu tive. Nenhuma delas foi superior a chance de ficar
com o homem que escolhi para mudar a minha vida.
— Está bem?
— Não, Nicolae, eu nunca vi tanta hipocrisia no mesmo ambiente, tanta
corrupção e luxúria. Esses homens parecem animais no cio, só sabem
vislumbrar o que tem além do vestido.
Ele continuou sério enquanto girávamos, mas seus olhos o traíram,
descendo e subindo rapidamente até parar de novo em meus olhos.
— Não me admira estarem como corvos em cima de você, está muito
bonita hoje e muito sensual nesse vestido justo, só quero que tenha calma e
aguente mais um pouco, recuar agora será se colocar em perigo
desnecessário, e apesar dos transtornos, tudo está indo conforme planejado,
falta pouco, pequena.
— Nem tanto, o príncipe quase estragou tudo, mas finalmente está
acabando. O que me preocupa é saber que depois desta música, Samuel irá
me beijar e só de pensar nisso, me embrulha o estômago, ele deve ter usado
todo o estoque de sálvia do mercado colorido, sorte que será rápido.
Nicolae riu e continuou me levando pelo salão sem dizer nada, apenas
me olhando como se pudesse ver minha alma, um costume que ele tinha de
sempre olhar para mim e em volta de mim, nunca entendi essa mania dele,
mas já estava acostumada com seu jeito. O que ele via eu não sei, mas via
algo, e agora ele estava com aquele semblante preocupado de quem vai dar
uma notícia ruim e não quer que desmaiemos de susto.
— Diana, lembra que nas regras que estudamos, o rei pode negar sua
mão a Samuel?
— Sim, mas ele não está aqui, apenas o príncipe e ele não tem poder
para isso.
— Acho que está enganada, minha linda, o rei acaba de chegar.
Senti meu corpo estremecer, não podia ser, não estava acontecendo e
mais uma vez naquela noite fiquei preocupada, basicamente nada estava indo
como planejado e novamente meu coração acelerava.
Realmente ia dar tudo tão errado? Não era possível que depois de
tantos pormenores, tantos planos, sermos derrotados antes mesmo de
conseguirmos qualquer fragmento de informação, mas era verdade, o rei
estava ali em uma cerimônia que não era de seu nível, momentos antes de
acabar a última música.
Então era sinal de que seu filho havia pedido que ele intercedesse no
pedido, ou era isso, ou Samuel tinha muita influência com o rei, ao ponto de
ele vir ver seu general recém-condecorado noivar, era uma esperança…
Quando começou a falação no salão por conta da real aparição, Nicolae
se aproximou um pouco mais e falou, enérgico:
— Não pode se negar, se acontecer não negue nada, está me ouvindo?
O que o rei pedir, terá que aceitar, faz parte das castas e das leis deste reino.
Afirmei, silenciosa. Tudo perdido, todos os planos, tínhamos tudo e
agora basicamente nada. Só me restava fingir que era tão inocente ao ponto
de não saber o que estava acontecendo e um cansaço de tudo aquilo
começava a me dominar. A euforia dava lugar ao desânimo e agora só queria
ir para casa.
O príncipe estava ao lado do rei, não olhou para mim em nenhum
momento que apareceu no salão com seu pai. Seus olhos estavam fixos em
Samuel, que pelo olhar gelado com que retribuía, me dava todas as respostas
que eu precisava.
Não noivaria naquela noite. O príncipe tinha reclamado o direito de me
cortejar.
Ainda sem acreditar, fiquei dançando com as pernas moles e Nicolae
me segurou com firmeza, sabia que eu estava abalada.
— Está descomposta, dance como se sua vida fosse um mar de flores.
Dei um sorriso amarelo e forçado e continuei, mas ao virar no ritmo da
música, meus olhos nublaram.
No palco não estava mais o príncipe e o rei apenas. Apesar de estar
parado como um conselheiro real do príncipe, e de não apresentar nenhum
tipo de perigo por estar tão focado no que dizia a ele, eu o reconheceria em
qualquer lugar em toda a minha existência.
Meu malfeitor falava com o príncipe e este o escutava com atenção. Por
sorte, ele não olhava para mim enquanto sussurrava, mantinha os olhos fixos
em Samuel, que retribuía seu olhar com uma fúria mal disfarçada.
— Nicolae — falei, com minha voz falhando.
— O que foi, pequena? Parece que viu um fantasma.
— Talvez seja. Aquele soldado que fala ao pé do ouvido do príncipe é
André, meu malfeitor.
Nicolae me virou ao ritmo da música e fiquei de costas para eles. Era
uma perfeita pirueta da dança, mas ele queria poder ver o que eu via.
— Acha que fomos descobertos?
— Não sei, não teria como ele me reconhecer, eu teria que aparentar
agora dezessete anos e não poderia ser de uma família nobre quando fui
deixada para morrer na floresta.
— Não se preocupe, saberemos o que fazer, se isso acontecer. Temos
Rael por nós e, na pior das hipóteses, tiro você daqui, mesmo que para isso eu
precise matar quantos entrarem em meu caminho.
Jamais permitiria isso, contudo, sabia que ele faria, ele tinha sido contra
aquilo tudo desde o início, e foi só com a ajuda de Eva e Dimitri que
conseguimos convencê-lo.
— Não, Nicolae, teremos tempo, se o pior acontecer, seremos
prisioneiros e pensaremos em algo.
Ele assentiu, calmo, e falou baixo, nem precisava, pois o furor no salão
era geral.
— Mesmo como prisioneiros, eles não podem nos matar, isso seria o
início de uma guerra longa.
— Não quero nem pensar nisso, viemos aqui para descobrir esse plano
de acabar com os sombrios, não para dar a chance ao rei de destruir dois dos
filhos de nosso pai supremo. Seria uma guerra longa, sim, mas também
decretaria o fim da raça sombria. Mesmo que matem muitos humanos, ainda
assim, os licans poderiam ficar do lado deles.
— Calma, saberemos em breve nosso destino.
Ao dizer isso, ele segurou mais firme minha cintura, me puxando
levemente para ele. Era um abraço que ele não podia dar naquele momento,
um sinal que estava tudo bem, mas não estava, ir ali tinha sido um erro.
Arrependia-me amargamente de ter colocado Dimitri, Nicolae e Eva
naquela situação.
Era graças a eles que eu estava viva, e se tudo desse errado, seria graças
a mim que eles estariam mortos.
Quando a música findou, o rei se levantou, Dimitri já estava ao meu
lado e assim como eu, ele se curvou ao rei e Nicolae permaneceu perto,
também curvado. O rei olhava para todos e ninguém ao mesmo tempo, com a
voz alta, ele começou a falar:
— Meu povo… Sei que aconteceu uma cerimônia no início deste baile
e sei que outra aconteceria no término do mesmo, mas não posso permitir que
uma dama da casta suprema, perdesse o baile de domingo por estar
comprometida, não dando direito igual ao meu filho, seu príncipe, que
reclamou o direito de tê-la solteira no baile, para que suas chances não
fossem diminuídas. Então, como mandam as regras, eu intercedo nesse
noivado.
“Senhora Diana de Salazar, filha de Rafael e Suzana de Salazar, proíbo
até segunda ordem que aceite compromisso com qualquer homem de sua
casta superior ou da minha, real. Agradeço que compareça ao baile no
domingo e que aceite como todas as outras, o cortejo de meu filho.
Terá um mês de cerimônia a ser realizada no castelo, não poderá sair se
for escolhida e permanecerá mais tempo, caso ele assim o decida. Também
não poderá ficar na casa de seus pais. Mas não é uma prisioneira, poderá
recebê-los para visita, isso claro, se eles não voltarem para suas terras nas
extensões do reino para tratar de seus negócios.
Prometo que será bem-cuidada e se não for escolhida, será entregue
incólume aos seus pais, podendo assim aceitar a mão do homem que seu pai
lhe achar digno. Entendendo que como forasteira não teve tempo para se
preparar para o evento, peço para que se organize, uma carruagem irá lhe
buscar nesse dia.”
Depois de mais uma saudação respeitosa de seu povo, o rei saiu do
recinto caminhando firme, porém, parecendo cansado e contrariado.
O silêncio tomava conta do salão. Muitas famílias que tinham por certo
o ingresso de suas filhas na família real, me olhavam como uma intrusa.
Todos aqueles sorrisos e simpatia tinham sumido, eu era mais uma a
disputar, uma forasteira que vinha de longe para perigar o direito de suas
filhas de subirem um grau na casta, o grau mais alto daquele reino.
Dimitri segurou meu cotovelo.
— Melhor irmos embora, filha. Os olhos que a cobiçavam agora
maldizem sua vinda, vamos sair logo daqui.
Não pude ser mais teatral, saí chorando do salão e olhei triste para
Samuel, que não podia me dirigir à palavra, mas tocou no lenço, mostrando
que ainda tinha esperanças de me desposar.
Escondi o rosto no peito de Dimitri e não pude deixar de sorrir,
maldosa, ele realmente acreditava que eu poderia amar um homem como ele.
Se ao menos ele soubesse…
Mas se era um capricho de um mimado real, eu passaria por esse
percalço e logo voltaria ao plano.
A carruagem chegou rapidamente e entramos sem dizer uma palavra, os
servos dormitavam em esteiras na cozinha e Eva preparou uma mistura de
ervas e deixou queimando em uma terrina em cima da mesa, logo os criados
estariam desmaiados e não dormindo.
E então, como todas as noites naquela casa, a conversa poderia seguir
seu curso tranquilamente.
— Eva, descanse. — Dimitri a segurou pelos ombros. — Não pode
ficar acordada tanto tempo.
— Se me permitir, quero participar um pouco e ajudar no que eu
conseguir.
— É bem-vinda, Eva, sabe disso — Dimitri falou, sem ânimo.
Eu os tinha colocado naquela situação e não conseguia mais me
segurar, Nicolae adentrava pela porta do porão, assim que o vi, o abracei.
— Me perdoem por colocar vocês nessa encrenca, nunca imaginei que
aquele maldito filhinho de papai real estragaria tudo, parecia um plano tão
perfeito.
Nicolae sorriu e me apertou forte, como era seu costume quando eu
estava preocupada.
— Acha mesmo que tudo está perdido, minha linda? Já pensou que
tudo pode estar acontecendo melhor que imaginávamos?
Eva e Dimitri franziram o cenho e eu não consegui acompanhar seu
raciocínio, e então Dimitri espetou:
— Querido irmão, sei que é um sábio de milênios no corpo de um
homem de trinta, que agora aparenta o corpo de sessenta, mas não pode estar
falando sério. Nada do que planejamos aconteceu, o noivado foi cancelado e
Samuel não abriu as portas de sua casa.
— Realmente não, meu irmão, mas o rei abriu, o príncipe se interessou
e se nosso plano era investigar os planos reais, por que não fazer isso tendo
uma dama real lá dentro?
Fiquei a olhar para ele, tentando entender, e ele, com a calma de
sempre, começou a explicar:
— Enquanto estiver na proteção do rei, Diana, nenhum homem poderá
lhe falar, a não ser os de sua família, o próprio rei, o príncipe e os servos que
estarão aos seus serviços. Então mesmo que queiram, sua vida não poderá ser
investigada. O rei prometeu publicamente que ninguém mexerá com você
enquanto estiver em sua proteção, isso quer dizer que não corre perigo
enquanto estiver lá dentro, e nem mesmo o príncipe poderá lhe tocar, porque
isso quebraria a palavra pública do pai.
Agora eu entendia aonde ele queria chegar, estupros vindos das castas
superiores eram sempre perdoados e ali nos domínios reais eu era um grau
inferior de todo os moradores de dentro do castelo.
Então eu poderia ser violada por um homem de casta real, sem obter
justiça, o máximo que aconteceria seria Dimitri como pai, receber uma
indenização por meu hímen rompido e negócios arruinados, mas com a
palavra do rei publicamente, isso anularia qualquer tentativa.
Uma chama acendeu dentro de mim e, pela primeira vez na noite, senti
esperança de verdade de que as coisas iam dar certo.
E Nicolae, sorrindo, continuou:
— Entende agora, pequena? Está mais protegida lá dentro do que aqui
fora.
Um sorriso se formou em meu interior, logo sendo colocado para fora,
não resisti e estiquei o sorriso que quase rasgou minhas bochechas.
— Ainda posso ter Samuel, se o príncipe me dispensar muito rápido,
fiz questão de mostrar meu sofrimento por não noivar com ele esta noite.
— Fez bem. — disse Nicolae, tranquilo, me beijando o topo da cabeça.
Dimitri se aproximou, risonho, segurou minha orelha e puxou.
— Você foi adotada por nós, Diana, não vá nos deixar preocupados.
Poderia ser uma esposa, estar sendo cortejada por um de nós três, mas o
destino é uma coisa estranha e o amor fraternal cresceu mais que o físico.
Nicolae também começou a falar sério, e quando estava preocupado
nada o fazia brincar como Dimitri.
— Não me perdoarei se algo acontecer a você. Tem que encontrar seu
caminho, terá centenas de anos para viver e tem o direito de viver uma era
por vez. Use o que lhe ensinamos, não abaixe a cabeça, você não é inferior a
nenhum deles, mas saiba quando poderá fazer isso sem por risco à sua vida.
Assenti, eu aprendi o meu valor no reino sombrio, mas ali no reino
Humanis eu não era nada senão um produto e produtos ruins eram
descartáveis.
Dimitri encostou a cabeça em meu ombro.
— Tome cuidado, Dianinha, não esqueça que para nós você acabou de
nascer. Espero que depois de ter engatinhado por mais de dois anos nos
braços desses três patetas e uma única mulher sábia ao nosso lado, você não
caia em seus primeiros passos.
Não tinha como, lágrimas escorriam pela minha face borrando toda a
minha maquiagem. Aquilo era o começo de uma despedida e me emocionei.
Nada se comparava ao carinho que eu sentia por eles, por minha verdadeira
família. Eu os amava até mais que minha própria vida, e por eles eu a
entregaria sem pensar uma única vez que fosse.
Abracei os dois pela cintura e deixei minhas lágrimas manchar a camisa
de Nicolae. Chorar de dor, tristeza e mágoa é ruim, mas chorar de emoção e
felicidade é a melhor coisa para deixar a alma limpa e o vigor renovado.
— Amo vocês e agradeço todos os dias por ter sido encontrada e
cuidada por vocês, e mais ainda por ter uma oportunidade, mesmo que
pequena, de ajudá-los a sair do perigo de extinção.
Dimitri riu. — Obrigado, querida, por nos comparar a animais, ficamos
realmente lisonjeados.
E ali ficamos rindo, Nicolae abraçou Eva, que para eles era muito
importante, uma das servas mais fiéis, bastaria apenas uma palavra dela um
dia e eles entregariam a ela a mistura de seus vinte e cinco anos que estava
guardada em um cofre no quarto de Rael.
Ela tinha o direito de escolher envelhecer e morrer, mas como garantia,
Rael tinha preparado uma poção com seu sangue, depois de doze anos
convivendo entre eles. Essa era sua garantia de vida eterna e prova do quanto
eles a amavam.
Uma diferença iria existir entre a minha mudança e a dela. Eu mudei
fisicamente, amadureci na idade mais aproximada da mistura de meu sangue
com o sangue deles e como ainda era muito nova, apenas quinze anos e eles
aparentavam em torno de trinta anos, fiquei com aparência de vinte e cinco
anos, enquanto Eva iria ter a aparência de vinte oito ou trinta anos,
seguramente.
Nicolae havia me dito isso quando tinha me contado da mistura
guardada para ela. Seria interessante se um dia Eva se decidisse por tomar a
mistura, eu a veria rejuvenescer quando que comigo, eu envelheci.
Depois de muitos e longos conselhos dos três, eu me retirei para meu
quarto, ao contrário deles eu precisava de quatro horas de sono por dia, já
Eva precisava de oito. Dimitri e Nicolae não podiam dormir, senão
rejuvenesceriam, apenas uma noite de sono equivaleria a cinco anos mais
jovens e alguém poderia perceber a diferença, sem contar que o horário de
eles dormirem, era de dia, não à noite, então como sempre acontecia, ficaram
conversando até tarde sobre vários assuntos.
Depois de lavar o rosto e vestir uma camisola, me deitei, mas o sono
não chegava, tanta coisa para acontecer e tudo ainda tão incerto.
Queria que tudo o que tínhamos planejado tivesse dado certo. Agora
seria tudo sem planos e só podia contar com a sorte, e rezava para que tivesse
muita sorte, porque até agora, só tinha tido azar naquele agitado baile.
CONQUISTANDO
CONFIANÇA

Depois de vários minutos, o sono não chegava e, sorrindo melancólica,


voltei minha lembrança aos dias passados com os três irmãos e Eva…

Uma semana tinha se passado e eu ainda não conseguia ficar tranquila


quando estava perto de Rael ou Dimitri, mas seus olhos já não me
assustavam tanto.
Passava todo o meu tempo ao lado de Nicolae, em todos os meus
pesadelos quando acordava assustada eu o via sentado na poltrona e ele me
acalmava, dizendo que estava ali e que ninguém mais me machucaria.
Aos poucos, eu estava me sentindo mais à vontade, mas ainda estava
longe de me socializar com o resto da família.
Depois de duas semanas, eu ainda não falava com os outros dois
irmãos. Fazia tudo o que Nicolae pedia e, então, por pedido dele, eu tinha
decidido, ia participar de um jantar em família. Apesar de quase toda a
comida feita na casa ser para mim e Eva, todos se sentaram à mesa.
Rael encabeçou a imensa mesa de mármore negro, ao seu lado estava
Eva e do outro lado, Dimitri. Nicolae se sentou ao lado de Eva e de frente
para mim, assim eu ficava mais tranquila tendo no meu campo de visão as
duas pessoas que não me deixavam nervosa.
Nicolae me preparou um prato farto de alimentos, preparando um para
si em seguida, de viés eu vi que Rael e Dimitri também comiam.
Eva me olhava com carinho e eu sorri para ela quando me incentivou
com os olhos a comer.
A conversa era tranquila entre eles, eu ouvia atenta quando era
Nicolae que falava e parava a colher de sopa no meio do caminho quando
era Dimitri ou Rael. Não me importunaram em nenhum momento, nenhum
deles tentou puxar conversa comigo, apenas me deixavam ali, comendo,
tranquila.
No outro dia, logo de manhã, todos estavam sentados com a mesma
formação da noite anterior, fiquei um pouco nervosa, tinha passado muitos
dias comendo apenas com Eva na mesa, novamente agiram normalmente me
dando bom dia, mesmo sabendo que eu não responderia, e não se
importaram de eu não olhar em suas direções, apenas novamente
continuaram agindo da mesma forma, conversando animadamente enquanto
beliscavam um pedaço de bolo ou tomavam um gole minúsculo de suco.
Sumiam depois disso e eu ficava apenas com Eva até quase escurecer,
e assim foi por vários dias.
No decorrer do fim de tarde, até tarde da noite, Nicolae me lia
histórias na biblioteca, sempre com Dimitri ou Rael ouvindo também.
Quando a leitura acabava, eles comentavam sobre o tema, dizendo qual
personagem mais lhes agradava. Não me faziam perguntas diretamente, mas
se viam que eu estava interessada, estendiam os pormenores da história.
Eu queria dizer qual era o meu preferido, discordar quando não
concordava que a parte comentada era a melhor, pela primeira vez eu queria
dar opinião, mas não saía som e eu me mantinha calada.
Agora, os conhecendo como conheço, sei que sabiam que eu estava
cada vez mais interessada nas conversas, cada vez mais à vontade com suas
presenças, aquilo tudo foi para me dar confiança, me mostrar que não
queriam me machucar, para eu me acostumar com suas vozes e seus olhos.
E então passaram a me acompanhar com Nicolae o tempo todo, mesmo
em silêncio estavam conosco. Nicolae os incentivava a falar sobre qualquer
assunto, mesmo coisas banais, suas vozes já me eram familiares, eu já lhes
sorria sem jeito e ficava tranquila com eles por perto.
Uma semana depois de uma rotina intensa de convivência, estávamos
jantando quando Dimitri iniciou uma discussão com Rael, sobre direitos de
irmão mais novo. Ouvia atentamente e Nicolae, embora em silêncio, deixava
um sorriso surgir.
Eu não teria ficado tranquila se não tivesse visto que ele estava se
divertindo com a acalorada discussão.
Fiquei atenta à cada palavra, Rael estava perdendo a paciência e
Dimitri insistia que como irmão mais novo tinha as feições mais belas e,
assim, tinha que ser colocado em suas tumbas: Dimitri o belo, Rael o sábio e
Nicolae o tranquilo. Rael não queria saber dessa conversa de títulos, Dimitri
ainda insistiu quando Rael, perdendo completamente a paciência, lhe deu um
croque na cabeça.
Não resisti, havia sido muito engraçado e caí na gargalhada,
assustando a todos, porque saiu som, não era uma risada muda.
Parei de rir na hora que percebi que me olhavam, assustados e então
todos vieram me abraçar, muito contentes, porque eu tinha soltado som, até
mesmo Rael se mostrou carinhoso comigo, e ele era o mais enérgico e
sisudo.
Tinha ficado apavorada com aquela aproximação exagerada, mas o
carinho deles, mesmo me assustando, tinha alcançado meu coração, nunca
alguém me abraçou daquele jeito.
O primeiro abraço familiar que recebi foi deles e eles não sabiam o
quanto me fez bem aquele gesto e o quanto dormi feliz naquela noite. Eva
dizia a verdade: eles eram bons.
No dia seguinte, eu falaria pela primeira vez.
Nicolae tinha acabado de ler uma história curta, a qual havia uma
bruxa e duas crianças que tinham se perdido na floresta, eu queria pedir
para que lesse de novo, mas ele estava fechando o livro e Rael e Dimitri se
levantavam para sair, então coloquei a mão no livro fino ainda aberto.
— De novo, por favor.
Nicolae agiu normalmente, voltando à primeira página.
— Claro, Diana, se quer ouvir de novo, lá vamos nós.
Dimitri e Rael tinham se virado atentos à voz diferente e não se
mexeram, quando viram que Nicolae agiu com tanta naturalidade, voltaram
a se sentar para ouvir tudo de novo, e então começaram a debater o tema e
Nicolae, pela primeira vez, me deu voz ativa no debate, me perguntando o
que eu tinha mais gostado.
Feliz, consegui dizer o meu personagem favorito e dar minha opinião.
Achei o máximo eles escutarem e me incentivarem a continuar dizendo o que
achava.
Foi a primeira vez que me senti uma pessoa de verdade, a primeira vez
que senti que tinha algum valor e com o peito inflando de orgulho, assenti
quando disseram que Eva me esperava para o banho e que no outro dia iam
querer saber novamente minha opinião, porque eu era muito inteligente.
Naquela noite Eva puxou assunto enquanto me ajudava no banho.
— Está gostando daqui, Diana?
— Sim. — Sorri, estava feliz realmente.
— Qual deles você gosta mais?
— Nicolae, não… todos eles.
Ela sorriu e sorri de volta. Era difícil escolher qual gostar mais, mas
era difícil não pensar primeiro em Nicolae.
— Acredita agora que nenhum deles lhe fará algum mal?
— Sim, acredito.
— Então vamos botar a roupa e dormir, amanhã teremos um longo dia.
No dia seguinte, respondi ao bom dia e me sentei à mesa, sempre um
deles me fazia alguma pergunta, eu respondia meio envergonhada, mas não
com medo e então depois de dois dias Rael sentou ao meu lado no sofá da
biblioteca, meu lugar favorito da casa, não me encolhi, não senti medo
algum, apenas um pouco de vergonha. Sempre sentia um pouquinho de
receio, era ainda muito cedo para me sentir totalmente à vontade.
— Diana, precisamos conversar sobre um assunto delicado, está bem?
— Sim, precisa saber o que aconteceu aquele dia, no celeiro.
— Consegue falar sobre isso sem que lhe afete muito? Precisamos
saber o que aconteceu, para encontrar os culpados e os fazer pagar por isso.
Não diria a ele que me afetava, só de saber que alguém faria Samuel e
André pagar por todos aqueles assassinatos, eu aguentaria qualquer
lembrança, falaria qualquer detalhe que me lembrasse e assim fiz. Não
resisti até o final da narração e chorei. Rael me abraçou com carinho e ali
eu fiquei, chorando por um longo tempo.
Era como se eu precisasse chorar com som, puxando o ar
ruidosamente, com soluços e até mesmo gritos que nunca pude dar desde o
celeiro.
Expurguei boa parte de meus pesadelos naquele choro, curei boa parte
da minha desconfiança com todos naquelas lágrimas e então, quando me
acalmei, ele falou com energia, porque sofreu comigo enquanto eu chorava.
— Nada mais de ruim vai acontecer com você aqui nesta casa, nunca
passará por perigos novamente e lhe prometo que se depender de nós, nunca
mais irá chorar com tanta dor como hoje. Terá sempre três homens para te
proteger e uma mulher para cuidar de você, essa é uma promessa, confia em
nós?
— Confio, senhor Rael.
— Não me chamará de senhor, apenas de Rael, agora você faz parte
desta família e então, Diana, confia em nós?
— Sim, Rael, eu confio, não confio em mais ninguém além de vocês e
nunca mais confiarei.

Sorri, já sonolenta, ao me lembrar dessas palavras, porque, desde então,


eles foram as únicas pessoas que confiei, nem mesmo nos servos mais fiéis,
além de Eva, eu conseguia ter plena confiança, os coitados não mereciam
isso, mas era mais forte que eu, um laço familiar que só foi crescendo durante
esses poucos mais de dois anos.
Adormeci enquanto estava perdida em meus pensamentos.
ENCONTRANDO
O PASSADO

Acordei com o sol atravessando o tecido. O facho de luz batia


diretamente em meu rosto, levantei para abrir a janela e parei ao olhar para
fora, Samuel estava do outro lado da rua e olhava para minha janela com o
rosto pensativo, se fosse outro, eu diria que admirava minhas cortinas, mas
não ele.
Ele não tinha engolido essa afronta, eu conhecia aqueles olhos, tinha
um olhar cobiçoso e sonhador. Meus braços ficaram arrepiados de imaginar o
que ele faria comigo se me desposasse, agradeci mentalmente por ter tido um
caminho diferente nos planos.
Precisava pensar em um meio de fugir, depois que o tempo passasse ou,
caso não conseguisse nada depois de um mês, ainda podia voltar ao plano
primário, mas no baile quase não consegui suportá-lo por meia música, não
me imaginava tendo estômago para me aproximar dele novamente.
—Tenho que conseguir.
— Falando sozinha, Diana? — Eva entrava em meu quarto com um
copo de leite com mel. — Beba isso, querida, logo virá algo melhor, mas vai
demorar, hoje está um dia agitado, as três servas foram chamadas de volta
pela família de Samuel, então seremos apenas nós duas.
— O cavalheirismo acabou cedo, hein.
— Sim, sem noivado, sem mimos para minha pobre Diana.
Rimos daquilo e começamos a arrumar as coisas. Foi um alívio, na
verdade, aquelas três estavam ali apenas para saber tudo o que acontecia no
interior da casa. Ficamos todo o dia arrumando as coisas e ainda
precisávamos fazer compras, teríamos que ir ao mercado colorido, um mês
seria muito tempo.
— Precisam de companhia? — Dimitri nos alcançou quando abríamos
a porta.
— Acho melhor deixar apenas mãe e filha fazerem as compras, não é
bom virem um homem segurar sacolas. Mulher é uma raça inferior para os
humanos, e uma atitude que no seu costume seria cavalheirismo, aqui seria
tido como submissão ou fraqueza.
Dimitri torceu a boca, contrariado. — Tem razão, Eva, não posso ser
visto como tolo, enquanto Diana estiver nas mãos do rei, pelo menos levem
dinheiro a mais para pagar um carregador, não quero nenhuma das duas
carregando peso em excesso.
— Sim, papai.
Dimitri apertou os olhos em minha direção. — Não abuse, filhinha, ou
papai pode ficar nervoso.
— Não, papai. — Pisquei os olhos várias vezes, fazendo graça, então
quando percebi o perigo, corri, fechei a porta e fiquei escutando o som do
sapato que batia do outro lado. Ri como nunca ao lado de Eva.
— Vocês estão felizes hoje.
Fui pega de surpresa, não tinha reparado no príncipe ali, parecendo
fascinado com a cena que tinha visto, o sorriso morreu em meus lábios e senti
raiva do intrometido, ele conseguia se meter até mesmo ali.
— Alteza — disse Eva, com exemplar educação. Lembrando-me das
boas maneiras, fiz uma mesura, fechando a cara em seguida, e ele percebeu.
— Sei que não avisei minha chegada e peço desculpas por pegar as
duas em situação tão familiar e íntima, e ressalto… muito interessante, mas
não pude deixar de lembrar que, sendo forasteiras, vocês não têm criados
para lhes ajudar e, como será uma correria para vocês hoje, eu vim oferecer
dois dos meus criados mais fiéis. Eles irão acompanhá-las e protegê-las,
assegurando que não terão dificuldades com os pacotes.
— Como sabia que iríamos ao mercado hoje? — perguntei,
desconfiada.
E ali estava a cara de sabido, senti vontade de copiar Dimitri e
arremessar o sapato nele.
— Foram pegos de surpresa ontem, então hoje teriam que correr com as
coisas e as compras.
— Agradecemos vossa gentileza, alteza. — Eva novamente fez uma
vênia gentil. Ela que estava me salvando de não ser malcriada, eu parecia um
bonequinho de cordas, se Eva era cortês, eu seguia o exemplo.
— Eu que agradeço, ficarei tranquilo ao saber que uma parte do
transtorno que eu causei seja diminuído. Então, senhoras, esses são seus
criados hoje.
Os dois saíram de trás da carruagem e eu poderia jurar que o chão tinha
sumido de meus pés quando olhei para eles.
Um medo irracional me voltou, não da morte, mas do reconhecimento,
o príncipe, sem perceber o que se passava, fez as apresentações.
— André é o meu criado mais próximo, de minha extrema confiança, e
lhes levará onde pedirem para comprar o que precisam.
Ele fez uma profunda reverência sem me olhar nos olhos e me senti
perdida naquele momento. Me mantive ereta, sem saber como agir. Mas ele
tinha o olhar tranquilo e relaxei um pouco, talvez não tivesse me
reconhecido, no fim das contas, ainda assim, aquela sensação de alerta me
deixava inquieta.
O príncipe olhou para André e falou, já seguindo para seu carro:
— Cuide bem delas.
— Sim, vossa alteza, pode seguir tranquilo.
Assim o príncipe entrou na carruagem e partiu depois de cumprimentar
nós duas e sorrir para mim. E pelo seu sorriso, com certeza, estava lembrando
a cena que viu quando chegou. Segurei na mão de Eva e segui andando com
passos firmes, mas meu coração parecia que ia saltar do meu peito.
Entramos no carro e não trocamos uma palavra, ela não sabia sobre
André e eu não a queria nervosa ao saber.
No meu silêncio enquanto seguíamos, eu tentava analisar aquela
situação. Então se André obedecia ao príncipe, tinha sido ele que era o autor
daquela atrocidade? Ele que tinha mandado chacinar todas aquelas meninas?
Mas por que então que entre ele e Samuel parecia haver uma intriga?
Ou era encenação? Tudo aquilo não passava de disputas por poder?
Assim que chegamos perto da rua do comércio, ouvi a batida avisando
que podia parar, e logo que o carro parou, descemos, e os dois criados já
estavam à porta, esperando.
André, sem olhar para mim, falou, enquanto seguíamos:
— Senhora, Diana, se quiserem comprar alguns vestidos extras, posso
lhes indicar um bom lugar ou mesmo tecidos, se desejarem. Há muitas
costureiras dentro do castelo que ficariam felizes em criar belas peças para a
senhora.
Sim, eu tinha que me concentrar, sabia como funcionava na teoria o
interior do castelo, mas, ainda assim, precisava ter minhas coisas à mão e
nada como uma boa fazenda para confecção e algumas ervas que
teoricamente seriam para meus banhos particulares. Só rezava para que
André não entendesse de botânica. Tudo seria preparado por Eva, antes que
eu fosse ao castelo, ainda assim, poderia ser arriscado agora que tínhamos
dois homens estranhos nos acompanhando e o pior, um deles era uma
incógnita para mim.
Tinha a ordem de matar todas, mas me salvou a vida, tinha ordens de
alguém que chamava meu senhor, então era o príncipe, tinha que ser, tudo se
encaixava até mesmo a cena do baile batia com tudo. Enquanto o rei intervia,
ele estava falando ao ouvido do príncipe e agora estava ali, a mando dele, me
ajudando nas compras, de todo modo havia a pergunta mais urgente: por que
o príncipe tinha exigido minha presença no castelo, não me permitindo noivar
com Samuel? O que isso significava?
— Senhora?
André me tirou de meus pensamentos, eu não tinha percebido que não
tinha respondido da primeira vez.
— Sim, me desculpe, estava perdida em planos para um vestido, então,
como sugeriu, vamos ver esses tecidos.
Ele assentiu, humilde, e seguiu para a rua do comércio, segurei a mão
de Eva e o acompanhamos.
A rua para o mercado colorido era uma aberração de coisas, comércio
aberto em tendas na frente das lojas atrapalhando a visão, pessoas vendendo
seus itens esparramados pelo chão, sem se preocuparem de estarem
atrapalhando a passagem. Vendedores ambulantes que faziam questão de
anunciar seus produtos em plenos pulmões, barracas com um único item
vendendo como se fosse à coisa mais importante para aquele povo.
— O que é isso naquela barraca?
— Preparos, senhora.
— Preparos? Para o que seria esses pacotinhos?
Ele olhou enojado para a barraca. — Para deixar fértil.
Era óbvio que era isso, o comércio de crianças era o mais rentável e
mesmo que na terceira casta até a quinta não admitissem, todos eles usavam
isso nas escravas, para que engravidassem logo e as crianças viessem
depressa para vender mais barato às castas inferiores. E esses, depois de
cuidarem das crianças, dividiam o lucro extra com os donos delas depois da
entrega.
E ainda tinham aqueles que pagavam mensalmente uma miséria para
algumas famílias que não conseguiam ter filhos, fornecendo o básico durante
todo o tempo necessário, até que as crianças completassem quinze anos.
E então o vínculo empregatício com essas famílias acabavam. Pois o
subsídio de todo o ano seria entregue a eles de uma única vez. E o valor era
muito maior, um direito ganho apenas das duas castas superiores e ainda
tinham aqueles que cuidavam dos filhos dos escravos, leiloando as meninas
nas casas de diversão.
Respirei fundo, isso tinha que acabar, eu não conseguia mais segurar
minha raiva, como se não bastasse, ao lado da barraca um anúncio em uma
placa enorme propagava descaradamente que haveria um lote de garotas na
casa de diversão, com um pequeno aviso abaixo de que os lances iniciais
seriam de dez moedas de ouro, começando o leilão com a mais velha até a
mais nova, que era a atração principal do evento, ainda um recado sugestivo
abaixo: “Não perca!”.
Uma raiva daquele reino, dos humanos, do príncipe e do rei me tomou.
— Vamos sair daqui, mãe, isso me dá nojo.
— Cuidado com o que diz, filha.
— Não me importo, não quero mais ver isso, simples assim.
E assim seguimos em silêncio pela rua, chegando finalmente ao imenso
portão em forma de arco, fiquei impressionada com o local, era uma rua
coberta, parecia uma casa com muitos cômodos pequenos que ofereciam os
mais variados serviços e produtos.
— Senhora, este lugar é imenso, pode se perder.
Sim, eu tinha percebido isso, mas não disse nada, apenas acenei e
continuei olhando abismada para aquele monte de coisas em oferta. Lenços,
fitas e fazendas de tecidos eram postos do lado de fora deixando um colorido
bonito ao lugar, produtos dos mais variados trabalhos, tecidos grossos para
fazer roupas aos criados e finos para as famílias abastadas ou mesmo tecidos
mais rústicos para roupas de frio.
Barracas com ervas e especiarias para tintura e remédios, havia ainda
mercados ao longe cheios de pedrarias e couros esticados em tiras coloridas
como mostruário, e em outras pequenas lojas, as que mais me chamaram a
atenção, estavam os mais variados itens de tortura, chicotes, argolas e outras
infinidades de coisas que eu sequer tive ideia para que serviam.
Passamos por outra barraca com produtos afrodisíacos, com o anúncio:
“Faça valer seu dinheiro gasto e use seu produto a noite inteira”.
Balancei a cabeça e andei mais depressa para não cuspir no letreiro.
O cheiro do lugar deixaria qualquer pessoa com o nariz sensível zonzo,
mas para mim, que tinha os sentidos um pouco mais apurados, aquilo estava
se tornando tortura. Depois de uma hora, precisava desesperadamente de ar
puro. Ar das terras dos sombrios, gelado à noite e fresco de dia, sem tanta
mistura, ar de casa, de lar. Talvez o único lugar que uma mulher pudesse
chamar de lar, sem precisar mendigar dignidade.
— Está bem, filha?
Balancei a cabeça, apertando a fronte. — Não me sinto muito bem,
muita coisa, esses cheiros misturados, suor, comida, perfume, ervas, está me
deixando doente, preciso sair daqui, quero ir para casa.
— A acompanharei, senhora — disse André. — Tenho certeza de que
sua mãe não se importará de terminar as compras, deixarei Uzias cuidando
dela.
Ele se virou para Eva: — Pode confiar nele, ele cuidará muito bem da
senhora.
Eu estava em um dilema, não poderia dizer não, isso mostraria que eu
desconfiava de André, que tinha sido tão recomendado pelo príncipe, o que
levantaria suspeitas sobre mim, por não ser tão ingênua e mimada quanto
aparentei esse tempo todo. E mais uma vez, estava ali uma mulher sábia, me
dizendo o que fazer nas entrelinhas.
— Vá descansar, filha, ficarei bem e prometo escolher os mais belos
ornamentos para combinar com as peças que compramos.
Dei um beijo em Eva e me deixei ser guiada por André para a saída
daquele inferno de aromas e machismo. Não consegui respirar direito até sair
das ruas que ainda tinham comércio.
— Quer pegar um carro, senhora?
— Sim, por favor.
Poderia e gostaria de ir andando, mas queria chegar logo para avisar
Dimitri que Eva estava sozinha no mercado. André fez sinal para um
cocheiro que tinha uma carruagem fechada, dei graças quando ele me ajudou
a entrar, mas fiquei alarmada quando ele entrou, fechando a porta depois de
ditar o endereço, logo que a carruagem iniciou movimento, ele me olhou nos
olhos.
— Você está em perigo, menina, que bom que sobreviveu e decidiu
descobrir o que aconteceu com você, mas não escolheu o melhor momento
para vir.
Meus olhos se abriram como pratos, ele sabia o tempo todo que era eu!
Então... Se ele sabia, o príncipe também sabia, e tudo o que tinha dado errado
era obra dos dois e pior... Eva corria perigo e eu não sabia o que dizer, muito
menos o que fazer. Me apavorei por Eva que estava nas mãos do comparsa
dele.
Com o coração aos pulos, tentei abrir a porta da carruagem em
movimento, mas ele me segurou, antes que eu destravasse a portinhola.
— Me escute, não sou seu inimigo. Não estou aqui para lhe fazer mal,
sua mãe, ou seja lá quem ela for, está segura. Precisa me ouvir.
Parei de tentar me soltar e ele me soltou, devagar, me sentei confusa
com tudo aquilo.
— Como sabe que sou eu? Como descobriu?
— Nunca esqueceria a única menina que se salvou naquele maldito dia.
— Mas eu não sou igual antes, eu mudei.
— Eu sei o que fizeram com você, conheço esse processo, era o que
seria usado com as garotas quando elas chegassem lá, para transformá-las em
mulheres, eu sei, menina, eu trabalho para o rei.
Ele me olhou sem nenhuma arrogância, não disse aquilo para se exibir,
falou apenas para constatar um fato.
— Por que não me denunciou ao príncipe? Ou me denunciou e todo
aquele negócio do evento real é uma armadilha para me pegar?
— Não contei ao príncipe sobre você, seu segredo está guardado
comigo desde aquele dia. Ninguém sabe que alguém sobreviveu.
Ainda assim, aquilo não me cheirava bem, por que então ele estava ali e
por que cochichava ao ouvido do príncipe no baile? Por mais que eu
pensasse, não conseguia encontrar uma resposta.
Ele continuou me olhando nos olhos.
— Mas Samuel desconfia, na contagem dos corpos uma faltava.
— É por isso eu corro perigo? Ele sabe quem sou eu? E por que o
príncipe mandaria cometerem uma barbaridade daquelas?
— Calma, o príncipe não sabe de nada. Ele é inocente nisso tudo, e
Samuel não desconfia de você, mas se ele souber que era aquela menina, ele
vai terminar o serviço.
— Mas você disse que não era o melhor momento para eu voltar, o que
você quis dizer com isso?
— Não posso entrar em detalhes sobre isso, só digo que tem coisas
demais acontecendo. Ser foco dos poderosos agora não é o melhor momento.
Ainda mais porque houve muito comentário sobre você, mas o problema não
é esse, se todas as minhas desconfianças estiverem certas, você está correndo
um perigo por estar neste reino, e mais ainda tendo o interesse de Samuel. Ele
é perigoso, menina, só posso te dizer isso.
Ele me deu tempo para fazer perguntas e eu aproveitei. — Então você
sabia quem eu era, desde o começo?
Ele assentiu. — Desde sua primeira festa à fantasia, todos foram
mascarados, eu acompanhei o príncipe que não se identificou e como era uma
festa para apresentá-la…
— Fui a única que não usei máscara.
— Exato, e então eu reconheci suas feições. Não sabia quem eram seus
pais, mas desconfiava, só entendi tudo quando o vi. Nunca poderia esquecer o
rosto do senhor Dimitri.
Fiquei com receio, se ele reconheceu Dimitri, outros também poderiam
reconhecer. O mais estranho era que para reconhecê-lo assim, ele teria que ter
tido contato próximo a ele, o que estava acontecendo?
André abaixou a cabeça e começou a falar e senti pena da tristeza em
sua voz.
— Sei que me odeia pelo que fiz, mas eu não sou livre, cumpro ordens.
Não poderia mentir, seria errado, ele estava ali me dizendo tudo e eu
não poderia deixar que ele pensasse que eu o odiava. Nunca o odiei, nunca
soube o que sentir quando pensava nele.
— Não o odeio, não consigo sentir isso, quando você salvou minha
vida depois de tentar me matar, você sempre foi uma incógnita nas minhas
lembranças. Lembro-me de como foi respeitoso ao me colocar junto com os
outros corpos. E você sabia que eu ainda vivia, não me delatou e me ajudou
quando eu tentei fugir.
Olhei para ele, que escutava com atenção. — Na verdade, só tenho a
agradecer, por ter me guiado por parte da floresta, me fazendo seguir o
caminho para os domínios sombrios, lhe agradeço por isso.
Ele estava emocionado e tocou meu coração saber que ele se culpava.
Depois de assentir quando o agradeci, ele falou, baixo:
— Não poderia fazer mais nada por você, mas conheço o nariz aguçado
daquela raça. Deixei você o mais perto que pude dos limites do reino deles,
sempre me arrependi de não ter te levado até lá, mas não podia, imaginei que
não tivesse aguentado e morrido na floresta. — André suspirou em uma
pausa cansada e olhou envergonhado para os dedos. — Por mais que diga que
não me odeia pelo que eu fiz, eu me odeio por isso todos os dias, desde então.
Novamente senti pena dele, era um escravo cumprindo ordens, não
conseguia odiá-lo. Nunca tinha conseguido antes, e agora sabia que nunca
conseguiria realmente.
— Por que o mandaram fazer isso?
— Não sei, menina, recebi a tarefa minutos antes de partir, a única
ordem foi que fizesse o que Samuel mandasse, pois ele nesse dia representava
alguém maior. Me chantagearam que se não cumprisse as ordens me tirariam
de perto do príncipe e ele é tudo o que me resta agora, o tenho como um
filho, pois o criei desde pequeno.
Então era essa a dor que vi em seus olhos aquele dia, ele fazia contra a
vontade, mas não podia se negar ou perderia contato com seu pupilo.
Cruel era o rei de usar o carinho dele para que fizesse isso, mas
precisava saber mais, ainda tinha muita coisa fora do lugar, e era hora de
juntar o máximo de peças.
— Não entendo... Por que diz que corro perigo, se ninguém sabe quem
sou?
— Isso é óbvio, você ia noivar com Samuel, e até agora não sei por que
diabos você tomou esse caminho para perseguir o que pretende. Samuel não é
nem de longe o monstro que você pensa, ele é pior.
Ele olhou para mim e perguntou:
— Porque fez isso, afinal? Se colocar em risco dessa forma?
— Eu não tinha outra saída, era apenas uma hipótese de Samuel ser
escolhido ao cargo, depois que ele foi escolhido, não tinha outro jeito, não até
o príncipe olhar para mim.
— Ele já a tinha observado desde o baile de máscaras, menina, ficou
impressionado, mas ontem, depois da dança, ele viu que você não é igual as
outras mulheres, já não está tão impressionado com sua aparência, mas com
sua personalidade forte. Você tenta ser igual, mas não conseguiu disfarçar
muito bem, pelo menos, não com ele.
Torci a boca em desgosto. — Ele conseguiu me tirar do sério no baile.
André riu, e era um sorriso agradável e chegava aos seus olhos azuis, o
tipo de sorriso que eu gostava, o verdadeiro.
— Não se lamente por isso, essa sua perda de foco com alguém como o
príncipe só fez uma coisa, chamou a atenção dele, salvando seguramente sua
vida. Eu percebi o interesse dele e o aconselhei a interceder, contei que
Samuel e eu fomos os autores da chacina e contei como ele agiu nesse dia e,
então, o príncipe foi ao baile de seu noivado disposto a conhecer melhor a
mulher que teria seu destino traçado por um animal como Samuel e você fez
muito bem em não conseguir disfarçar como é de verdade. Quando o
conhecer melhor, verá que ele é uma boa pessoa.
Olhei para ele, ainda desconfiada. — O que você cochichava no ouvido
dele, aquela noite?
— Pedi a ele que não enfrentasse Samuel tão abertamente, o encarando
daquela maneira, ele é um homem vingativo.
— E o príncipe sabe dessas suas desconfianças com relação a Samuel?
— Não posso dividir com ele e com ninguém, ainda é cedo para isso,
mas acho que Samuel percebeu que desconfio de algo, ele não perde
nenhuma oportunidade de tentar me desacreditar perante o príncipe, por sorte,
ele me tem em alta conta e não confia em Samuel.
Ele não me revelaria essas desconfianças, isso já estava claro, se nem
ao príncipe que o protegia ele contou, a mim é que não contaria, restava então
continuar a cavar onde a terra estava mole, porque aquele assunto seria pedra
para escavar e não ia dar em nada.
— Não sei o que dizer, esse golpe de sorte teve dedo seu, e mais uma
vez você me guiou por um caminho diferente em meu destino.
— Apenas tentando me redimir pelo que te causei, e tentando fazer
Samuel de uma forma ou outra pagar pelo que fez, a ordem era matar as
meninas, não… aquilo…
Senti empatia por suas palavras, éramos dois movidos pelo passado, o
mesmo passado e tentando fazer a mesma pessoa pagar por sua crueldade, era
diferente e acolhedor conversar com alguém que sabia, entendia e
compartilhava de meus sentimentos de ódio sobre uma pessoa.
Pela janela, eu via que estávamos chegando e precisava descobrir mais.
— Me diz uma coisa, sei que você se revoltou com tudo o que
aconteceu aquele dia, mas parece que seu problema com Samuel é mais
particular.
Ele nem pensou para responder, falou, com mágoa:
—Não era eu que tinha que ir aquele dia. Eu sou um servo do príncipe,
sirvo diretamente a ele, eu fui escolhido porque o príncipe tinha seguido em
uma curta viagem de caça. Então eu teria que obedecer a casta real e nada
abaixo disso e nesse dia, Samuel estava com um selo pintado em sua mão e
isso lhe dava direitos a essa casta, mesmo que provisório.
“Só que... Entre tantos soldados comuns, ele me escolheu para
acompanhá-lo. E foi simplesmente para ostentar seu poder temporário, ele
nunca aceitou que o príncipe confiasse mais em mim, um simples servo, do
que nele, um soldado que ganhava patentes atrás de patentes e seu rancor era
por ele ter a confiança do rei, mas não do filho dele, seu futuro rei.
Então me usou para cumprir suas ordens. Se tudo desse errado, eu seria
o bode expiatório, respondendo por tudo. Ou seja, enquanto ele sairia
incólume, eu viraria comida de leviatã, o que para ele seria muito bom, pois
seria um perigo a menos para seus planos para o reino, só peço que não me
pergunte sobre isso.
Minha curiosidade estava no auge, mas nem tive tempo de continuar a
perguntar mais nada, o carro parou e André desceu, me ajudando a descer em
seguida.
— Há alguns pacotes, senhora, se quiser posso ajudar a recolher.
Era uma deixa e eu aproveitei. — Sim, por favor, faça isso.
Paguei ao cocheiro uma moeda de prata e três bronzes pela viagem e
subimos a escada sem trocar uma palavra, abri a porta e entrei seguida de
André, que depois de deixar os pacotes na mesa, me seguiu.
Dimitri lia esparramado no sofá vermelho de veludo, estava distraído.
— Dimitri, precisamos conversar.
Ao levantar a cabeça, ele viu que eu não estava sozinha.
— Acho que pai seria de mais educação, não é, minha adorada, porém,
malcriada, filha?
Revirei os olhos, sem paciência. Dimitri ainda não sabia que ele era
meu malfeitor.
— Oras! Deixemos de encenação, ele sabe de tudo.
Não pude deixar de achar graça ao ver Dimitri desconcertado.
— Você diz tudo, Diana, mas que tudo é esse? Poderia ser mais
específica na extensão desse... tudo?
Cruzei os braços, olhando séria para ele.
— Esse é André. O homem que quase me matou e antes que você o
ataque, já lhe digo que confio nele.
Ele coçou o queixo enquanto pensava. — Então o que faremos? O
matamos?
André riu baixo, e novamente eu gostei daquele som.
— Isso seria engraçado, senhor, vindo do homem que me salvou a vida
no passado.
— Salvei? — Dimitri pareceu realmente não se lembrar disso e eu
achei estranho.
— Sim, senhor, quando o meu príncipe tinha pouco mais de nove anos,
foi mandado para fazer a ronda junto comigo e um soldado. Eu, como servo
dele e o soldado, como proteção.
— E por que diabos o rei colocaria a vida do filho em perigo dessa
forma, o fazendo sair para a floresta?
— Segundo o rei, era para que seu filho se tornasse corajoso e não
temesse sair do reino, se um dia precisasse. Mas nesse dia um leviatã rebelde
rondava nossos domínios e atacou o soldado, enquanto isso, eu fiz o príncipe
correr e fui ao encontro do leviatã para que me atacasse, assim ganharia
tempo para que ele se aproximasse do portão e fosse defendido pelos
soldados de campana.
“O leviatã me perseguiu pela floresta, eu corri o mais rápido que pude
na direção oposta e, então, quando ele me alcançou, quase me arrancou o
ombro.”
André soltou as amarras da camisa e deixou o ombro à mostra, uma fila
enorme de dentes era visível ali como uma feia cicatriz.
Ele então, continuou:
— Mas depois de um tempo, ele ficou fraco, logo caiu morto após
convulsionar, ele era alérgico ao sangue humano e só o soldado foi suficiente
para a alergia atingir seu auge, essa foi minha sorte.
“Corri o mais longe dele que consegui, mas me sentia morrer, e então o
vi, senhor. Lembro-me do vidro que retirou do bolso e do corte que fez em
sua mão, e depois recolheu o meu sangue também. Me deu a mistura para
beber em seguida, o senhor me ajudou a chegar o mais perto do portão
possível, sem que pudessem vê-lo, e lá meu príncipe me esperava.
Ele mesmo ficou comigo naquela noite, senhor, eu então tinha quarenta
anos e ele presenciou a mudança em minhas feições, viu quando eu ganhei
massa muscular, quando rejuvenesci um pouco e, desde então, nunca mais
mudei e isso já conta quatorze anos.
É um segredo meu e dele, se alguém descobre, eu serei condenado à
morte, porque não sou um humano puro, e isso me ajudou muito na
segurança de meu príncipe. Nunca deixarei de ser grato por isso, pela minha
segunda chance para poder ver meu príncipe ser coroado um dia. Só não
verei isso, se eu for assassinado, porque de velhice, foi assegurado pelo
senhor de que eu não morrerei.”
Dimitri pareceu meio envergonhado e meio preocupado e eu
desconfiava que André se sentisse perseguido. O que ele sabia que colocava
sua vida em risco? Por isso Samuel escolheu justamente ele para aquela
missão? Caso o rei fosse muito pressionado, poderia achar um autor dos
crimes e esse, com certeza, seria André.
Isso juntava outra questão. Samuel e o rei. Era um plano do rei, então
por que foi Samuel que preparou tudo e ainda pôde escolher seu parceiro? Só
uma coisa me veio à cabeça naquele momento... Jogo de interesses.
— Sabe que eu tenho um irmão muito bravo, não sabe? — disse
Dimitri.
— Sim, senhor, seu irmão mais velho, não sei seu nome, mas sei que
dentre os três príncipes sombrios é o mais rigoroso.
— E sabe que, se ele descobre uma coisa dessas, serão apenas dois
príncipes sombrios, não é? Porque eu estarei fora da jogada.
André riu, comedido.
— Senhor, até hoje isso ficou comigo e tirando a senhora Diana,
ninguém mais sabe, além do príncipe. Agradeço a senhora por ter me deixado
entrar, nunca tive a chance de agradecer e mesmo não sendo o real motivo de
eu estar aqui hoje, pude aproveitar a oportunidade. Devo mais coisas aos
senhores, mas creio que não terei tempo para agradecer tudo.
Franzi o cenho, André tinha muitos segredos, mas eu via honestidade
em seus olhos, ele continuou falando, rápido, seu tempo era curto.
— Na verdade, venho dar minha palavra de que cuidarei pessoalmente
da senhora Diana, enquanto ela permanecer no castelo. Pedi ao príncipe que
me indicasse a ela, dizendo a ele que tinha muito apreço por sua família.
Disse que um de meus irmãos foi servo da família Salazar, sendo tratado com
bondade e era um meio de agradecer o tratamento dado, então ele concordou.
Os olhos azul-celeste de Dimitri ficaram levemente nublados.
— Você ficará perto de minha Diana, todo esse mês no castelo? Você
que a apunhalou mortalmente no celeiro?
Eu não pude permitir que André fosse tratado como assassino. Não
depois de tudo o que conversamos no carro antes de chegar ali. Toquei no
braço de Dimitri e o fiz olhar para mim.
— Eu confio nele, Dimitri, deixe que ele fique responsável por mim,
sendo assim poderá voltar com Nicolae e Eva para o reino sombrio.
André não se deixou abalar por aquele rompante de desconfiança de
Dimitri.
— Senhora, se me permite uma sugestão, hoje à tarde vai ter uma feira
de treze meninas no salão do farol, não quero ser cruel, mas sei o que a morte
das meninas da entrega naquele ano fez com vocês.
— Sim — Dimitri respondeu. —Tivemos três meninas apenas como
entrega em um ano e quatro no seguinte, e este ano serão três novamente.
— Então, senhor, mas mesmo aos poucos poderão se reerguer, deviam
aproveitar e comprar algumas meninas, levando consigo em sua viagem de
volta. Não é uma oportunidade que aparecerá tão facilmente novamente e
veio muito a calhar acontecer essa feira com vocês aqui. Por mais que achem
ser errado, isso não é nada visto a sabotagem que fizeram, estarão apenas
pegando o que é de vocês por direito.
— É uma ótima ideia, Dimitri — eu disse, esperançosa, não senti
vergonha de pensar no comércio delas, ao contrário dos humanos, os
sombrios as comprariam sim, mas elas seriam sortudas por isso.
— O que é uma ótima ideia?
Nicolae apareceu ali na sala, como que por mágica, havia entrado pela
porta do porão, sem fazer nenhum barulho, e seus olhos cravaram em André,
não mudou o semblante calmo, o que me deixou gelada.
Eu conhecia muito bem aqueles olhos para saber que ele estava pronto
para não deixar André sair vivo dali.
PRÍNCIPE HUMANO

A carruagem sacolejava. Nem sequer prestava atenção à paisagem,


ainda que não tirasse os olhos da janela, olhava tudo e nada.
Fechado dentro dos seus próprios pensamentos, não conseguia tirar o
sorriso bobo da cara. Revivendo a cena pela décima vez com total perfeição,
sem se cansar de voltar a ela novamente, e não sem rir no fim da lembrança
todas as dez vezes que a reviveu.
Uma bela moça com seu vestido creme esvoaçando pela pressa de sair
e fechar a porta rapidamente e com força. Olhando em seguida para sua mãe,
com o sorriso mais sapeca que já tinha visto em uma mulher. E que linda ela
estava, tão descontraída rindo assim, o desejo que esse sorriso fosse para ele
novamente o tomou, mas o que mais havia chamado sua atenção foi sua
gostosa gargalhada.
Como ela conseguia ser assim? Geralmente as risadas das mulheres
eram forçadas, viviam ostentando um maldito sorrisinho falso onde a careta
bizarra era uma tentativa de sedução, já ela...
Apertou os olhos e pensou pela milésima vez, desde o primeiro baile de
máscara ela era uma lembrança constante. Quem era ela, afinal?
Por que a família Salazar havia escondido um tesouro daqueles?
Balançou a cabeça. O jeito espontâneo dela talvez os deixasse constrangidos,
balançou a cabeça novamente, mas eles pareciam a incentivar a ser assim.
Ou então era a família Salazar que era excêntrica, de todo modo ainda
poderia ser uma estratégia para causar impacto nos homens do reino quando a
apresentassem à sociedade? Porque se fosse isso, ao menos com ele, tinha
funcionado muito bem e mais uma vez a lembrança de seu rosto o pegou.
Seus cabelos castanho-escuros e longos faziam uma moldura perfeita
em seu rosto bonito, mas o que o fazia ficar sem ação eram os olhos. Nunca
tinha visto aquele tipo de verde, tão claros, profundos e brilhantes.
Fechou os olhos e sorriu, se perderia naqueles olhos, e em seus lábios
também, se perderia em seu corpo.
Fechou a cara novamente, se lembrando do baile, claro que se perderia,
se não tivesse sido idiota aquele dia tentando chamar sua atenção.
Ela o odiava por aquilo, ele sabia que sim. A constrangi — pensou mais
uma vez, mas também o que ela queria?
O olhava como se estivesse dançando com um servo e não um príncipe,
ela odiou cada minuto ao seu lado naquele baile, sequer pareceu se interessar
pelo pomposo título de príncipe, se fosse outra teria pulado em seu pescoço,
forçando o falatório geral.
Qualquer uma delas teria grudado nele, tentando lhe seduzir, mas ela
sequer mostrou interesse, apenas irritação com sua companhia, poderia até
ficar ofendido, mas isso atiçou sua curiosidade.
Balançou a cabeça, contrariado, tinha que tirar a experiência de
conhecer aquela mulher longe de sua cabeça, já tinha até chegado ao castelo
sem nem ver o tempo passar, o portão se fechou com um estalo.
— Diana… — sussurrou e gostou de como o som de seu nome dançava
em seus lábios, de como sua língua encostou no céu da boca duas vezes ao
pronunciá-lo. Acabou se lembrando da porta à sua frente e subiu a escada.
Ela riria daquela forma tão natural para ele? Seria a mesma em meio a
tantos mimos? Ficaria tentada em conhecer uma vida de luxo ao seu lado?
Torceu a boca, se sentindo idiota, isso não a interessaria, ela já tinha tudo isso
com os pais, era um fato. Então o que ele tinha a oferecer a ela? Ela já era
feliz, tinha comprovado isso hoje, tinha luxo, era segura de si e diferente de
todas as mulheres que havia conhecido.
Estalou a língua. O que oferecer a uma mulher que parece não almejar
nada do que você possa oferecer, visto que ela já tinha tudo isso? Sorriu de
lado, talvez… Somente talvez, se ele a beijasse, se conseguisse encontrar uma
oportunidade para isso, ela poderia se encantar, sorriu, confiante.
Uma de suas melhores qualidades era o bom beijo, mas não aguentou
segurar a risada fazendo até o guarda o olhar torto. Revirou os olhos,
observando em silêncio o guarda abobado.
Sim, amigo, eu sei, estou agindo feito um bobo, mas você faria o
mesmo que eu, se a tivesse conhecido também.
Entrou rápido para se livrar do olhar inquisidor do guarda, ainda assim,
não conseguiu segurar a risada, aquela peste seria bem capaz de lhe dar um
belo tapa na cara pela sua ousadia.
Receber um tapa de uma mulher pedindo respeito seria morte certa,
balançou a cabeça novamente, se fosse o seu pai interessado, ela já estaria no
harém, o servindo. Levou a mão à bochecha, talvez até gostasse, uma mulher
diferente de todas que tinha visto no reino, ficaria ainda mais perfeita se fosse
corajosa e arisca, uma conquista que valeria a pena, se quisesse coisa fácil,
iria ao harém e não teria preparado tudo para conhecer as mulheres, para
cortejá-las.
— O que está fazendo aí, feito paspalho, rindo igual a um idiota?
Seu pai estava parado no salão olhando para ele, uma coisa rara de se
ver.
— Pai? O que faz aqui embaixo? Não devia estar com seus brinquedos
lá em cima?
Seu pai lhe sorriu torto e ele fez uma careta, agradecendo mais uma vez
por puxar as feições da sua mãe.
O sorriso se desmanchou no rosto do rei e ele o olhou com o semblante
autoritário.
— Quero falar com você sobre alguns detalhes e não admitirei que se
oponha.
Revirou os olhos, já imaginando o tema do assunto.
— Temos um acordo, nada de seus negócios este mês, pai, e não vou
aceitar mudanças.
Seu pai fechou a cara. — Quero essas cadelas fora da minha floresta
em um mês, está me ouvindo? Nem um dia a mais, senão eu as venderei por
lotes para que sumam logo de meu local de negócios.
—Tá, tá, pai! Agora, se me der licença. — Saiu apressado do salão e
subiu as escadas de dois em dois degraus, sentindo uma raiva imensa de seu
pai. Ele era um cretino, primeiro aceitou tudo o que foi combinado e agora
ficava se lamentando por seus negócios perdidos, chutou a porta e a bateu em
seguida com toda força para fechá-la.
O quarto lhe parecia agora pequeno, se sentiu claustrofóbico e não era
uma sensação desconhecida para ele, devia gritar ao mundo os podres de seu
pai, fazer com que ele fosse destronado.
Se soubessem o que ele sabia, o rei estaria morto. Por culpa das leis que
ele mesmo criou não teria perdão para aquilo.
Sentou-se na cama e sorriu com amargura e não era a primeira vez,
queria fazer isso, mas não podia, ele tinha mais a perder do que seu pai, a
proteção de sua casta nobre era importante para ele.
Faltava tão pouco para completar, duas ele já tinha comprado e lhe
custaram quase suas bolas na negociação com seu pai, mas faltava uma e o
maldito não ia cobrar barato. Ele não tinha mais nada a oferecer ao rei.
Apenas seu silêncio e ouro. E esse último, o rei tinha de sobra, mas quem
sabe se encontrasse algo que ele quisesse muito...
O primeiro pagamento foi abrir mão do direito ao trono e seu silêncio,
ele nunca seria rei, isso ele sabia, esse foi o pagamento pedido por elas, mas o
que mais ele poderia oferecer a seu pai, que ele já não tivesse como parte do
pagamento?
Suspirou e falou num sussurro: — Celeste, ainda comprarei você, de
um jeito ou de outro, eu a comprarei e aí ficará completo e, então, quem
sabe…
Deitou de costas, olhando o teto, começou novamente a remoer essa
espera.
Talvez então ele deixasse de ser um covarde e gritasse para todo o reino
quem é o verdadeiro Júlio, mas para isso precisava negociar com ele uma
última vez.
Só faltava Celeste, então completaria finalmente o que faltava... Ficou
imaginando o que o rei poderia querer por ela, mas nada lhe veio à mente e
acabou dormindo.
POR POUCO...

Antes que ele fizesse qualquer coisa, balancei a cabeça, dizendo não,
mas o mal foi eu estar muito perto de André e isso atiçou o senso protetor de
Nicolae e sem dar tempo de emitir som, eu o vi se aproximar, veloz.
Muito rapidamente ele estava com André seguro pelo colarinho.
— Se afaste dela!
Não esperou André abrir a boca e o jogou, desesperada apenas o vi
parecendo um boneco batendo de encontro à parede e Dimitri já segurando
Nicolae, para que não avançasse nele ali caído.
André sentou, balançando a cabeça. Devia estar desnorteado, tentou se
levantar, se apoiando na lisa parede. Saí correndo para ajudá-lo, agradeci
mentalmente o sangue sombrio que corria em suas veias, a batida foi feia, eu
sabia que devia estar doendo muito, sangrando não estava, pois não senti
cheiro de sangue.
Nicolae se soltou de Dimitri e avançou, eu tinha acabado de me
aproximar e não tive tempo nem de ajudá-lo, então não consegui pensar em
nada além de entrar na frente de André e fechar os olhos, esperando o golpe
que viria.
Mas o golpe nunca chegou, abri os olhos e ali estava Nicolae,
assustado, olhando para mim com a mão em punho a centímetros de meu
peito, parecia tentar entender minha reação ao mesmo tempo que olhava para
seu punho, ainda fechado, basicamente encostado a mim.
Sussurrou, mortificado, o meu nome, ainda sem ação continuou
alternando entre meu rosto e seu punho, com certeza imaginando o estrago
que teria feito em meu peito, se o golpe tivesse seguido seu rumo, eu sei, pois
estava imaginando o mesmo enquanto respirava rapidamente com o olhar
vidrado em sua mão fechada.
Puxou-me de maneira desesperada para ele, falando febrilmente:
— Está maluca? Eu poderia… por que fez isso? Como acha que eu
ficaria, se tivesse te ferido?
— Desculpa, Nicolae, mas não o machuque. Depois eu explico tudo,
por favor.
Ele me olhava sem ação, ainda assustado com aquilo e seu olhar voltou
para André quando ele começou a se levantar.
Ao contrário do que imaginei, André não parecia abalado com a reação
de Nicolae, apenas olhava preocupado para a porta.
Nicolae me afastou, não tirando os olhos de André, ouvíamos o barulho
do portão, ninguém poderia me ver abraçada a um estranho.
O clima estava tão tenso que ficamos estáticos. Nicolae ainda encarava
André, se ele tivesse o dom de matar com o olhar, André já estaria morto pela
fúria que via em seus olhos, por sorte, era Eva que entrava com os pacotes,
seguida de Uzias.
André pareceu nervoso naquele momento e foi logo falando
humildemente.
— Senhor, muito agradecido por me oferecerem algo para comer, mas
não posso aceitar, temos que voltar para o príncipe, pois nosso trabalho
acabou por aqui, já que ambas, sua filha e sua esposa, estão seguras. Uma boa
tarde e com licença.
Ele saiu, apressado, olhando o chão. Era uma deixa de André, um sinal
de que Uzias não era de tanta confiança ou que André não confiava nele o
suficiente para falar abertamente perto dele.
Depois que os dois saíram, Nicolae soltou o ar preso e se virou para
mim.
— Pequena, nunca mais faça isso, o que deu em você para defender o
homem que tentou te matar e, o pior, o proteger, se colocando na frente dele?
Suspirei. Entendia Nicolae, minha reação no baile não foi das melhores
quando o revi pela primeira vez, contudo, depois de tudo que ouvi não
poderia simplesmente deixar que ele o machucasse, então eu contei o que
conversamos no carro.
Dimitri contou tudo o que André tinha contado a ele, pulando a parte
que tinha lhe salvado a vida na floresta.
Eu não o desmenti em nada, sempre guardava seus segredos quando
sabia que ele iria se meter em encrencas, assim como ele guardava os meus,
mas não pretendia deixar passar, assim que a oportunidade aparecesse, ainda
ia perguntar por que ele andava tão perto dos domínios dos humanos e qual o
motivo de carregar com ele um frasco dos preparos secretos de Rael.
Nicolae falou, pensativo:
— Acha que podemos confiar nele? E se formos nessa feira e for uma
armadilha para nos desmascarar, sem contar que é errado.
— Eu confio nele, Nicolae, e pode ser errado, mas é melhor elas no
reino sombrio do que aqui, com esses homens.
— Mas, pequena, ele tentou te matar, quem garante que não seja uma
armadilha? Se ele cumpriu ordens uma vez, pode estar fazendo isso agora.
— Não sei. O que sei é que ele não me parece querer o mal dos
sombrios. Ele poderia ter me levado direto ao rei, estávamos apenas nós dois
na carruagem, mas me trouxe em segurança e ainda não escondeu que sabia
quem eu era. Acho que ele é sim de confiança, Nicolae, eu sinto isso.
— Eu também confio nele — disse Dimitri.
Olhei torto para ele, alguns minutos atrás estava ali bancando o papai
desconfiado, agora dizia na cara de pau que confiava, ele piscou para mim,
estava me ajudando a convencer o irmão.
— O que acha, Eva? — Nicolae estava pesando todas as opiniões.
— Não sei. Ele tem olhos sinceros. Olhos de um bom homem e acho
que a ideia dele foi muito boa, se o senhor comprar umas três meninas e o
senhor Dimitri, umas duas, sairemos daqui no lucro. Seriam mais chances de
esposas para os homens sombrios que dormem, sei que o senhor Rael nunca
aceitaria isso em outras condições, mas já estamos aqui dentro, e o disfarce
está funcionando, deveríamos aproveitar a oportunidade.
— E acha que ele realmente quer ajudar Diana?
— Senhor, se Diana diz que confia, é porque de alguma forma ela sente
isso, e temos que levar em conta que ela teve o maior contato com ele.
—Vamos arriscar, então. — Nicolae olhou para mim e falou sério: —
Você não irá conosco, não acredito que seja uma cena boa para se ver.
Mesmo que seja normal para as garotas daqui.
— Nem gostaria de ir, acho que não suportaria ver isso.
Os dois se levantaram e Nicolae suavizou as feições.
— Não voltarei antes que a carruagem chegue para levar você, tudo o
que peço é que fique bem. — Já se virando, ele pediu: — Eva, arrume tudo,
por favor, assim que Diana for levada, sairemos do reino, usaremos como
desculpa os negócios que temos na fazenda muito bem lembrados pelo rei.
— Ele não poderia ter nos ajudado mais — disse Eva, enquanto já se
agitava mexendo nas coisas e catando os pertences para preparar as malas.
Nicolae parou, soltou um suspiro, voltou e me abraçou com força.
— Não me mate de preocupação, minha pequena, fique inteira,
esperarei ansioso sua volta para casa. Só… volte.
Não precisava dizer mais nada, aquilo era uma despedida e depois de
piscar para mim e me dar um beijo demorado na testa, ele andou com
passadas fluidas e saiu pela porta escondida do porão.
Aquela porta o levaria direto para a rua dos fundos e Dimitri saiu pela
porta da frente e, assim, tivemos o resto do dia para preparar tudo.
Ajudei Eva a arrumar as coisas para que saíssem o mais rápido possível
do reino, assim que Dimitri chegasse, havia muito a se fazer e só nós duas
para dar conta.
A tarde ia chegando e eu começava a me preocupar, a temer uma
encenação de Samuel. A cena dele fitando minha janela não me saía da
cabeça, ele poderia aparecer na porta para se despedir, só esperava que não
fosse tão ousado. Ouvi barulho no portão e não demorou para que Dimitri
entrasse na sala, me senti mais aliviada com sua presença ali.
— Pronto, compra efetuada. Me sinto cinco quilos de ouro mais leve.
Somando tudo, este ano serão seis meninas, elas serão entregues a nós no
portão como eu pedi, disse que estávamos de partida para cuidar dos
negócios.
— Elas ficarão lá, esperando a gente passar e as levar?
— Não, Eva. Estarão lá amarradas e reclusas em uma jaula de madeira.
O pagamento acordado será feito na entrega, já Nicolae partiu em viagem,
levando as três meninas e nos encontrará nos domínios sombrios.
Dimitri me olhou com carinho e segurou meu queixo.
— Nicolae não sabe dizer essas coisas, mas eu sei. Se cuida, hein.
Agora está com você, virei como bom papai que sou lhe ver quando
liberarem a visita, mas quero que não se arrisque sem necessidade, promete
que não fará loucuras? Nicolae me recomendou a resposta dessa promessa o
caminho todo, então promete?
— Prometo, Dimitri, não farei nada que você não faria.
— Assim eu fico preocupado, melhor prometer que não fará nada que
Nicolae não faria.
— Está bem, nada que Nicolae não faria.
— Isso, irmãzinha. Agora estou mais tranquilo.
Eu ri, ele era um bobo, mas com seu jeito torto só queria meu bem.
Eva me abraçou com carinho.
— Se vir que não tem como investigar sem correr riscos, deixe este
mês passar e poderá voltar para casa. Arrumaremos outro meio de ajeitar as
coisas, antes que o senhor dos sombrios acorde, tudo bem?
Acenei afirmativamente, eu sabia que o meio que Eva dizia era essa
compra disfarçada de meninas. André tinha dado uma ótima ideia e seria uma
solução temporária, ainda assim, eu aproveitaria esse tempo no castelo para
tentar saber o que mais pudesse, se de fato existisse algum plano para
prejudicar os sombrios, eu tinha que tentar descobrir.
Ficamos ali conversando, enquanto a carruagem não vinha. Uma hora
depois batiam à porta, era o cocheiro real, tinha chegado a hora de eu me
separar deles, de seguir um rumo diferente de tudo o que tinha planejado.
Senti um frio no estômago, pela primeira vez, depois de mais de dois anos, eu
estaria sem eles por perto e isso não era pouca coisa para mim.
Uma recusa de entrar naquele coche poderia pôr a vida de Eva e
Dimitri em perigo e tudo o que eu mais queria era que eles pudessem sair do
reino e entrar no reino sombrio sem correrem riscos. Então, depois de me
despedir de um Dimitri nervoso e uma Eva emocionada, entrei na carruagem.
Ali estava Uzias para me ajudar, ele sentou na parte de trás, pendurado
junto com a bagagem e seguimos em silêncio.
As ruas passavam por mim como flashes. Tinha os olhos marejados,
minha força e coragem me abandonavam a cada metro que eu me aproximava
do castelo e me separava da casa alugada. Pensei por um momento em pular,
voltar correndo para a segurança dos meus que ainda estavam na casa. Com
certeza, daria tempo de alcançá-los, mas não podia, não mais.
E que eu não estivesse errada ao defender André, porque se estivesse,
teria facilitado a vida de um assassino.
Tinha passado pelo farol e pela rua do mercado colorido, agora passava
pela avenida que dividia as casas simples da terceira casta. Essas eram feitas
de madeira, com um pequeno quintal.
Do outro lado da avenida era o caos completo. Prédios tortos, cheiro de
esgoto, lixo acumulado, crianças de todos os tamanhos até a idade de onze
anos andavam pelas ruas, com poucas roupas ou peladinhos e todos sujos de
tanto vasculhar os lixos. Outras se arriscavam pelo outro lado da avenida, o
lado da casta três. Eu sabia que não pertenciam àquela vila por seus trajes
imundos, seus pés descalços e seus olhares doentios pela fome. Só estavam
ali para procurar sobras de comidas nos lixos, o que eu tinha certeza de que
era uma coisa rara de encontrar.
A casta terceira era pouco mais abastada que a segunda, mas não era
uma casta onde conseguissem se dar ao luxo de jogar comida fora. Eu mesma
já tinha andado por todas aquelas ruas procurando restos nos lixos e me
lembro das raras vezes que tinha conseguido encontrar algo.
Um fato interessante era que não havia pássaros por nenhum lado por
ali. Nenhum deles conseguiria passar vivo por mãos tão famintas como as
mãos das castas segundas e, até mesmo, os terceiros não perderiam a chance
de comer carne de pássaro se conseguissem. A vida ali se resumia a crianças
famigeradas, famílias inteiras escondidas em suas casas, insetos voando de
um lado a outro e imensos roedores que também serviriam de alimento se
fossem capturados e muita, muita miséria.
Dei graças quando essa visão foi deixada para trás, logo vinha o bairro
da quarta casta. Casas de alvenaria sem luxo, mas com pinturas nas paredes e
vidros nas janelas. Era uma mansão se comparada às casas da terceira casta e
um castelo em vista das moradias empilhadas da segunda.
Ali moravam os servos que serviam diretamente a casta real,
profissionais como costureiras, botânicos e soldados de escalão menor e os
famosos emergentes que por algum milagre da criação, tinham comprado seu
grau vindo da terceira casta.
Esses com certeza tinham comércio no mercado ilícito. Eu não
conseguia nem imaginar que tipo de comércio era esse, mas, com certeza,
tinham usado bem seus contatos os fazendo estarem ali. Era uma casta
praticamente invisível, não eram chamados para nada, pois não tinham grau
para frequentar festas e não podiam ser incomodados por outras castas por
serem superiores. Por esse motivo ali, com certeza, era onde estava todo o
centro do mercado ilícito.
Tudo que era mercenário, cambistas, cortesãs, leiloeiros e
atravessadores eram dessa casta neutra, era um local seguro para fazer
qualquer tipo de negócio escuso.
Estranhamente, mesmo sendo um bairro extenso, eu não tinha visto
sequer uma criança andando por ali. Aquele bairro me deu arrepios.
Quando saímos daquela visão senti o ar voltar aos meus pulmões.
Depois de um pequeno trecho descampado, avistei as grandes casas, ali era
da casta suprema onde os abastados tinham moradia fixa. Nada comparado à
casa que tínhamos alugado. As casas de aluguel ficavam no primeiro bairro
após as muralhas, mais próximo do portão, junto com as pensões, casas
sociais e locais de eventos e basicamente perto de todo o comércio.
Apesar do preço, era mais fácil aos viajantes se alojarem naquele bairro
que era o local mais próximo da saída possível e agora tão distante de mim.
Então, apesar dos dois meses ali dentro do reino, aquela parte me era
totalmente desconhecida, pois todo esse tempo, passei no bairro de aluguel.
Totalmente longe daquele lugar.
No bairro da casta suprema, as casas realmente eram belas, várias cores
combinando, gramado verde com jardim na entrada, portas ornadas e janelas
imensas, mas mesmo com tanto luxo, eu não achava nada de mais em toda
aquela decoração. Aquilo era uma disputa de vizinhos para conseguir a casa
mais bela, por conta disso algumas eram muito ostensivas, o que apenas
demonstrava o tipo de pessoa que vivia nela.
Demorou para sairmos daquele bairro, ao contrário do cheiro do bairro
da procriação que era somente cheiro de esgoto e lixo, ali o cheiro que
predominava era dos jardins. Toda casa tinha um, então o misto de cheiro de
diferentes flores era agradável e era a única coisa boa naquele local que, na
verdade, deveria feder a corrupção lasciva.
Logo o imenso castelo se via ao longe, então seria aquele local minha
morada por certamente um mês.
Depois de muitas casas começamos a seguir por uma alameda extensa e
muito marcada por rodas, patas de cavalos e até mesmo marcas de pés, as
árvores eram imensos carvalhos que lado a lado ainda se mantinham firmes e
maravilhosos, pois o reino vivia aumentando, vários focos de mata sempre
estavam sendo limpos para uma nova construção.
Via a imensidão do castelo ao longe. Os três cumes mais altos das
torres maiores assustavam, pedras negras e antigas empilhadas
milimetricamente formando a torre mais alta era a construção antiga, a parte
original daquele castelo datado de séculos, mas tinha a parte nova além das
três torres originais, essa seguia o mesmo padrão de pedras, mas com cor
mais clara, tinha uma larga torre, mais baixa que as três primeiras, porém
muito mais larga. Tinha uma abóbada redonda de cor cinza opaco destoando
um pouco a agressividade da arquitetura do lugar, não era bonito… Era
assustador.
O muro era muito alto e cercava todo o castelo, o que me deu a
sensação de estar indo de encontro a uma armadilha. O meu clausuro por um
mês, e eu estava sozinha agora.
SAMUEL

— Tudo errado! — Bati com a mão fechada na mesa, fazendo tudo que
estava nela pular com o impacto, me senti estranhamente poderoso com isso e
gostei.
Realmente tudo pulou, inclusive, o homem sentado atrás da
escrivaninha. Vi seus olhos assustados para mim, vi o medo brilhando ali, o
medo da perda e senti meu orgulho inflar com isso. Eu era insubstituível, ele
precisava de mim.
Gaguejando e sem reação pela surpresa, o homem respirou fundo e se
recuperou rapidamente, mudou o tom, falando claramente:
— Não pude fazer nada! Lei é lei, o que pensa? Que não sigo as leis?
Senti meu sangue ferver mais uma vez, meus olhos injetarem de ódio,
saí porta afora sem dizer nada, mas isso não ficaria assim! Ali eu não
conseguiria nada, NADA!
Ouvi ainda o homem gritando para que eu voltasse, que aquela
conversa ainda não havia acabado, o mandei ao inferno mentalmente.
Tinha que sair dali para não fazer besteira, para não afetar outros planos
em andamento, isso era pessoal e fazer merda estragando tudo o que consegui
seria idiotice, e desse mal eu não morreria, pois ser idiota não era meu maior
defeito.
Com um pulo estava em meu cavalo e com raiva o chicoteei, precisava
pensar, raciocinar direito e o vento no rosto iria me ajudar. Não consegui
deixar de me remoer, de martelar tudo novamente.
Dois meses preparando o terreno, ganhando o apreço dela, e
conseguindo ser escolhido para o grande negócio. Depois de tudo! Do
cortejo, das festas e dos mimos!
Conquistei-a, suportei todos aqueles idiotas da sua família, lutei por ela,
aceitei até não a tocar, respeitando o período do molho. Então, no dia de meu
noivado, vem aquele maldito real e a toma de mim, se valendo do título que
ele nem merecia, se valendo do idiota maior que era seu pai, o velho
caquético e ridículo, rei.
Aguentei aquele velho idiota do pai dela com aquelas ideias modernas e
repugnantes, fui até simpático, poxa vida. Casar por amor! Onde já se viu
isso de dar tanto direito a uma mulher? Fazer seus gostos daquela maneira?
Como podiam ser tão estranhos? Não havia casamentos por amor! Isso era
um absurdo, no máximo se casava por comum acordo, mas por amor?
Que velho mais brocha, o senhor Salazar! E ainda aceitei fazer as
vontades daquele delicioso cofre de olhos verdes, valia a pena cada
exigência, mas no fim, fiquei sem ela.
Incitei o cavalo com o chicote, queria velocidade para espairecer um
pouco dessa ira ou então mataria um de tanta raiva. Ah! Diana, o que eu
poderia fazer com você! Se aquele príncipe maldito não tivesse estragado
meus planos, você iria gostar, sei que iria, qual mulher não gostaria?
Ser tão valiosa, dar lucros aos montes. Balancei a cabeça, apertando a
rédea com força, tinha que admitir para mim mesmo que ela instigava meu
desejo, um desejo guardado no mais fundo do meu ser, reprimido por
necessidades maiores no momento, mas era o meu fraco as ignorantes do
sexo. Sempre foi.
Sempre adorei virgens, e saber que aqueles olhos espertos e bonitos
poderiam brilhar úmidos pelo conhecimento de um pau duro socado bem
fundo e sem piedade, me fazia ficar maluco de antecipação.
O que eu mais gostava era de ver a dor nos olhos, o susto da
experiência, até um grito desesperado, mas o que mais me fazia querer Diana
era o fato de não poder tê-la dessa forma.
Não podia tocá-la, mesmo se quisesse, eram minhas ordens e morreria
se as descumprisse.
Não consegui segurar o tremor ao pensar, morreria de desespero, já
tinha sido castigado por descumprir uma ordem parecida e meu vício tinha
sido tirado cruelmente de mim, não queria passar por isso novamente.
Implorei, pedi, mas não houve piedade. Sorri ao me lembrar.
Minha cega obediência me fazia conquistar maravilhosas recompensas.
Desde dois anos atrás não mais desobedeci, mas ainda me excitava a
lembrança daquele celeiro. Daquelas garotas sendo rasgadas sem piedade, me
orgulhava lembrar a potência do meu pau naquele dia, aguentou duro várias
delas.
Só sentia pena agora de não poder usá-lo para esse fim, porém, era um
passado memorável! E esse gosto estava me matando, confessei para mim e
que ninguém soubesse, mas estava sendo torturado pelos olhares daquela
deusa de olhos verdes.
Mas Diana não era para se comer, era para negócios, mesmo que ela
conseguisse fazer meu pau enlouquecer por querer tirar sua virgindade, não
podia, seria muito mais vantajoso aproveitar essa sorte.
Uma beleza estranha, como se tivesse tomado uma poção mágica
diferente daqueles objetos usados do harém, e ainda tinha toda aquela
soberba no olhar, sem contar que ainda estava intocada por mãos masculinas.
Era um negócio a se pensar, a se vender de várias formas, vender aos
pedaços, primeiro, sua virgindade; depois aluguel, talvez; e quando não me
rendesse mais lucros, poderia deixá-la no harém um tempo, por que não?
De um jeito ou outro meu plano era fazer fortuna com minha futura
esposa, transformá-la em moedas e poder, estava tudo tão pronto, até o
atravessador já tinha começado seu trabalho, incitando os rumores na surdina,
eram planos tão perfeitos. E quando ela não fosse mais interessante, eu a
venderia pelo valor mais alto e pronto.
Deixei escapar um suspiro, estava dando tudo certo e então o maldito
me atrapalhou daquela forma, isso não podia passar assim, ser esquecido.
Chicoteei várias vezes meu cavalo, descarregando um pouco do ódio que
voltava com força, o animal relinchou reclamando e acelerou ainda mais.
A estrada nova enchia de poeira minha roupa, ainda mais com aquela
velocidade, mas eu não me importava, queria conselhos. Queria fazer
pedidos, talvez matar o príncipe não me fosse negado se apresentasse
argumentos válidos. Com certeza mataria André, ele era o meu elo com o
passado, e meu perigo.
André sabia demais, já tinha escutado parte de minhas conversas que
não deveria, mesmo que não tivesse ouvido nada de mais, aquele maldito
escravo não era burro. O pior de tudo foi o que viu, não o que ouviu e então
ele sabia, se não sabia, desconfiava que eu tinha mais influência do que se
supunha e isso poderia ser prejudicial, era um perigo e tinha que sumir.
Não consegui evitar um sorriso de satisfação, receber carta branca para
matar André seria fácil, o maldito era apenas um servo, um mero escravo
metido a pai do príncipe. Mas conseguir a ordem para matar o filhinho do rei
seria mais difícil e jamais o deixaria me fazer essa afronta, me tomando
Diana dessa forma.
E então ao pensar melhor, um sorriso novamente me escapou, eu tinha
uma saída, se não conseguisse nada do que queria nisso tudo, havia uma coisa
que eu não precisaria justificar. Matar Diana.
Se ela não seria minha, então, não seria de mais ninguém! Só não podia
ser idiota, um passo em falso e desconfiariam de mim, eu tinha que ser
esperto, talvez uns buchichos sobre o interesse do bobão real sobre ela…
Sim, isso seria fácil, as mulheres eram produtinhos bem competitivos, e
só havia um príncipe e todas as idiotas queriam levar o título de princesa,
mesmo que isso não mudasse em nada o que eram, objetos de prazer e nada
mais. Sim, isso funcionaria perfeitamente. Uns sussurros nos ouvidos
corretos…
Ah! Agora eu já sabia certinho como fazer Diana ser alvo de ódio, sem
precisar ser ligado a mim seu assassinato.
Finalmente depois de tudo, eu já conseguia sorrir de verdade, nada
como planos novos para repor os antigos, mesmo que alguns planos antigos
não pudessem ser repostos, mas esse plano em questão, eu refaria.
O príncipe idiota não passaria ileso por essa afronta, ia ficar chupando
o dedo assim como fiquei.
Sentindo o alívio pelas novas ideias, comecei a cantarolar uma canção,
me sentindo contente. Eu amava esse reino e essa corrupção adorável que
sempre facilitou tanto minha vida.
FLORESTA DO REI

Se eu estivesse correndo perigo ali dentro, não teria como fugir. Depois
de adentrar aqueles portões, eu estaria nas mãos do rei e nas mãos do
príncipe, tendo como único homem para proteger ou acabar com minha vida:
André.
Pois, de mim, ele sabia tudo, minha fina e suave linha da vida estava
em suas mãos e rezei para que ele cuidasse bem dela novamente.
Ironicamente isso me fez rir, tinha sido assim desde meus quinze anos,
minha vida ficou em suas mãos por duas vezes em um único dia no passado e
assim tinha sido na noite anterior, quando estava prestes a pertencer a Samuel
oficialmente. Nessas três vezes ele me salvou, era um saldo positivo, mesmo
sendo o homem que tentou me matar, tinha me poupado a vida uma vez e
salvado duas e agora dependeria dele eu viver ou morrer.
Eu poderia parecer maluca na visão de André me arriscar daquela
forma, mas minha família não merecia o destino que estavam tramando para
eles, e essa era minha melhor chance.
Quando estávamos chegando ao imenso portão de ferro, fechei os olhos
e sussurrei, como uma prece:
— André, estou em suas mãos agora, instinto não me decepcione,
minha melhor arma sempre foi você.
Meu coração se acelerou quando o portão abriu e a carruagem seguiu
seu curso e então quase parou quando fecharam o portão, assim que entrei.
Senti-me pequena, frágil e fraca, respirei fundo para conter o
nervosismo e esperar os acontecimentos, não ter ideia do que pode lhe
acontecer é um poderoso combustível ao medo. Para me acalmar, tentei me
ater à paisagem.
Dentro do castelo, o jardim de entrada era impressionante e gigante.
Não pude deixar de reparar que de um lado mais retirado, se via uma floresta
que se estendia longe não dando para ver onde terminava, ela estava muito
distante do castelo vendo de frente à minha direita, mas, ainda assim, era um
ponto marcante que não dava para deixar de admirar.
A Floresta do rei, o local onde tudo acontecia à surdina, onde as
mulheres fofocavam aos sussurros, escondidas da inquisição masculina. Com
certeza o melhor lugar para obter informações, mas eu não poderia apenas
entrar no harém, não era esposa, apenas uma aspirante a noiva real e uma
espiã sombria das mais fraquinhas.
Uzias pegou minha bagagem e eu o segui para a imensa porta principal,
o guarda a abriu sem me olhar diretamente.
Dentro estava o príncipe com mais um monte de garotas, mulheres dos
quinze anos até os vinte e eu era mais a velha, pelas informações de todos,
poderia ser um ponto a meu favor para não ser escolhida, eu torci a boca,
nada poderia ser descartado.
André pareceu se materializar do meu lado.
— Vejo que não desistiu, vai mesmo continuar com isso? Ainda dá
tempo de desistir, menina.
— Não conseguiria, André, essa é a minha melhor oportunidade.
Ele assentiu.
— Suas coisas já foram levadas, senhora, venha e sente-se, o príncipe
está recebendo as garotas e as mandando para seus quartos.
— Assim? Simplesmente oi e tchau?
André abaixou a cabeça para disfarçar o riso. — Vai entender o motivo
agora mesmo.
Aproximei-me, havia bancos para todos os lados, parecia uma
convenção, todos enfileirados um atrás do outro. Sentei no fundo, tentando
ficar invisível aos olhos das garotas que olhavam umas para as outras, se
analisando e comparando seu poder estético.
Na frente estava um empilhado delas, quase sentando uma no colo da
outra, André se posicionou no meu campo de visão, mas relativamente perto
do príncipe, entendi então o motivo da pressa.
Quando o nome de uma delas era chamado, elas emitiam gritinhos
estridentes e corriam para frente enganchando no braço do príncipe, depois
de um salamaleque rápido e histérico, sorrisos e charmes com o cabelo era a
atitude unânime, olhar para as outras candidatas com desdém era uma
assinatura de todas. Eram tolas e ensinadas assim.
Todas, filhas de homens de posses, sempre tiveram tudo o que
quiseram, pisavam nos mais pobres porque assim foram ensinadas, sua
melhor educação dada por suas mães, que ainda não tinham sucumbido à
depressão, era que elas eram a coisa mais cara do reino.
Eram mulheres, valiam uma fortuna e tinham que se dar ao valor. Era o
ensinamento primal de suas famílias, que eram cobiçadas e poderiam mudar
o destino de um homem. O que claro, era omitido pelas famílias, era que
depois de escolhidas, a servidão era inevitável.
Ainda assim, isso não parecia assustá-las, eram novas e tolas demais
para pensar em seus futuros, então muitas delas, ou quase todas, com certeza
achavam que estavam fazendo um favor ao príncipe se fossem escolhidas.
O grupo ia diminuindo e assim o barulho também. Logo André pediu
para as muitas que sobraram que sentassem mais próximas, nos bancos à
frente, e assim fui parar na terceira fila.
Minha vez de ser analisada pelas concorrentes. Sentia meu corpo arder
com tantos olhos antipáticos em mim, mas, apesar disso, a balburdia havia
cessado, pois agora eram as mais velhas, um grupo mais contido, mulheres
mais entendidas na arte da compostura, sabendo que gritinhos histéricos
apenas irritam e empobrecem as qualidades.
Ele voltou a chamar por nome, e agora sua voz se podia ouvir
claramente.
— Rívia, da casa Trindade.
Uma moça morena de cabelos ondulados caindo propositadamente
pelos ombros se levantou e se curvou singelamente.
O príncipe retribuiu, pegando sua mão e beijando-a suavemente.
— Bem-vinda ao castelo.
— Obrigada, alteza.
Depois de algumas cortesias trocadas, ela se virou para olhar suas rivais
uma a uma antes de sair do salão, era bonita, tinha o rosto harmonioso, mas
os olhos eram desafiadores, olhos ambiciosos, essa aí faria qualquer coisa
para ser escolhida.
André continuou sua chamada. — Neli, da casa Zafirins.
Levantou uma bela moça, feições delicadas e olhos azuis e tristes, olhos
que já viram muita coisa. Tinha um cabelo loiro, liso e comprido.
Meu coração acelerou. Samuel tinha uma irmã, essa parte eu não sabia,
nenhuma serva havia comentado isso, nem mesmo os pais de Samuel, nas
poucas vezes que socializamos e isso poderia ser um problema para mim.
Se ela me pegasse em alguma situação constrangedora, poderia ter uma
arma contra mim ou poderia até estar a me vigiar para Samuel.
Percebi que ela enrubesceu quando o príncipe pegou sua mão e pareceu
aterrorizada quando ele a levou aos lábios para lhe dar um beijo.
Eu conhecia aquele olhar de medo, já tinha visto isso no espelho
incontáveis vezes no passado, e não entendi o motivo, mas uma sensação de
que Samuel já havia feito muito mal a ela me veio à mente, se não fosse
Samuel, era alguém tão cruel quanto, o pai talvez? Lembrei o olhar de cobiça
dele, se não fossem eles, pai ou filho, quem seria?
Não consegui pensar em mais ninguém, mas aquele olhar eu conhecia
do passado, antes de ganhar confiança em mim mesma, precisava me
aproximar dela, saber o que ela sabia.
— Diana, da casa Salazar.
Levantei por impulso, tinha me perdido em pensamentos e planos. A
irmã de Samuel já tinha ido embora há muito e várias meninas já tinham sido
chamadas.
Meu vestido era de camurça verde-escuro, longo, mas sem detalhes
exuberantes, cabelos soltos e maquiagem leve, estava simples, mas elegante,
ainda assim, senti os olhares cortados em minha direção, naquele momento
me senti vestindo um saco de batatas.
Não me deixei abalar pelos olhares das outras moças, não me
interessava o que elas achavam de mim, eu estava ali por uma coisa mais
importante do que um casamento arranjado.
Fiz uma vênia quando me aproximei. — Alteza.
— Me olhe nos olhos, Diana, sempre que formos falar, aqui não sou o
príncipe cortejando uma filha dos vassalos de meu pai, sou só um homem
cortejando uma mulher.
Ele não poderia ter soltado melhores palavras, olhei em seus olhos e ali
eu estacionei todo o tempo, pegou minha mão e beijou, não tirando os olhos
dos meus.
— Vejo que seus pais já foram para a fazenda.
— Sim, alteza, eles precisavam continuar a gerir os negócios.
— Entendo perfeitamente, não lhe amedronta ficar longe deles por um
mês?
Ele tinha o rosto realmente bonito, queixo largo ostentando uma
sombra de barba e seus olhos negros combinavam com sua sobrancelha bem
feita, era alto e tinha o corpo largo, sinal de que treinava muito, não havia
reparado, mas ele tinha uma pequena cicatriz perto do queixo, devia ter
ganhado no treino.
— Pelo seu silêncio, vejo que sim.
Idiota, tinha deixado de responder à pergunta, e ele nem reparou que eu
estava distraída apreciando sua aparência, não podia perder a pose, então
emendei a resposta com a dele.
— Na verdade, não sinto medo, alteza, apenas tristeza, essa será a
primeira vez que ficarei longe deles, desde que nasci.
Senti os olhos de André em mim, ele sabia o que eu queria dizer.
— Sinto muito esse transtorno, mas farei tudo para que se sinta à
vontade nesse tempo aqui. Considere uma temporada de férias.
— Obrigada, alteza.
— Tiago.
— Como?
— Meu nome, Diana, é Tiago.
— Muito prazer, alteza. — Sorri quando me virei para sair. Era uma
afronta, claro que era, ele deixou a dica que eu podia chamá-lo pelo nome e
eu me neguei. Queria ver sua cara antes de me virar, mas não tive coragem
para ousar tanto, uma pequena revanche, ele tinha me deixado desconcertada
no baile, agora era minha vez de deixá-lo desconcertado em seu evento.
Um criado me guiou ao quarto, estranhamente eu não subi as escadas,
ao contrário disso fui levada para fora do castelo, me ajudaram a entrar em
uma carruagem e finalmente, chegamos à floresta do rei.
Agora uma pequena onda de ansiedade passou por mim, então seria ali
o lugar onde eu passaria o mês com mais um monte de garotas, ali onde eu
poderia ser posta à venda a qualquer momento, a ansiedade inicial deu lugar a
uma grande preocupação e muitas dúvidas.
O rei tinha mandado cessar essas negociações durante esse período? E
o príncipe Tiago sabia no que estava nos metendo?
Todos sabiam que no acordo dos Párias uma extensão de terra foi
deixada para cada raça na divisão. Sendo um país para cada um e o resto do
mundo para o licans e isso era preocupante, estar na feira do rei com
compradores únicos e com uma coisa única para escambo.
Eles tinham poder territorial para comprar todas as mulheres do reino, e
o rei sabia e queria isso, só rezava para que ele cumprisse sua palavra de que
eu poderia voltar quando isso acabasse, mas e se ele cedesse à cobiça, caso
algum licans fizesse ofertas irrecusáveis?
Odiava quando minha mente trabalhava assim, me enchendo de
dúvidas, estava na feira do rei. Então eu era mais um produto na vitrine agora
ou realmente candidata à esposa?
Quanto ao príncipe e sua participação nessas negociações, era um
mistério, ainda não sabia se ele era inocente ou tão corrupto quanto o pai.
Mas, por via das dúvidas, ele seria meu inimigo número três, já que os
dois primeiros números estavam ocupados por Samuel e o rei, nessa ordem.
Um portão todo adornado de ramos floridos me esperava logo à frente,
apenas com a visão do portão pude imaginar o que me aguardava lá dentro e
não me decepcionei, a floresta era um paraíso criado por mãos humanas,
cultivado e mudado por muitos jardineiros e paisagistas até chegar ao ponto
de não poder mover mais nada do lugar para não estragar a beleza.
Não era necessariamente uma floresta e sim um bosque ou coisa
parecida, havia muitas árvores cercando o local, realmente ao longe ela se
adensava, mas ali no meio era impressionante.
Um imenso quiosque estava ao lado do chafariz e no centro deste tinha
uma enorme estátua do rei feito de mármore, me deixou irritada ver que aos
pés da estátua havia muitas mulheres deitadas com as mãos levantas, tentado
pegar nas vestes reais, como que implorado atenção e da boca de algumas
delas jorrava água sem parar.
A mensagem que o monumento queria passar era clara, aquilo
basicamente era um Menir cheio de significado e, com certeza, adorado pelos
homens.
As mulheres eram objetos, nada além de diversão garantida, e os
homens estavam acima delas, era uma imagem machista e luxuriosa, mas
apesar dessa peça destoando o ambiente, não poderia ficar menos
impressionada com o lugar. Havia um pomar bem ao longe, sortido de
árvores frutíferas que coloriam naturalmente a visão e era cercado por
madeiras curtas e brancas. À esquerda do quiosque havia um salão de portas
fechadas.
Em uma parte retirada, estava um imenso casarão, com certeza seriam
os dormitórios agora, e devia ser o local para as esposas descansarem e
servirem seus maridos, caso chamassem.
Havia portas largas de correr uma do lado da outra, e isso demarcava os
quartos, era realmente impressionante o tamanho, o que só mostrava o
investimento desmedido do rei e dos maridos, os negócios ali pareciam valer
realmente à pena.
O lago parecia ser natural e decorado para que combinasse com o resto
e foi um ótimo trabalho, era maravilhoso, com pedras altas e empilhadas
naturalmente e do alto de uma de suas brechas caía uma cascata de água
cristalina. Ao redor havia grama e algumas árvores frondosas e no meio do
lago havia variados tipos e tamanhos de pedras.
Outro pequeno lago artificial jazia próximo alimentado pelo maior, mas
antes de ali chegar, a veia de água passava por uma pequena cabana fechada
que saía por um cano largo, caindo no lago menor e percebi que saía fumaça
de seu interior.
— Um lago termal, isso me parece um exagero! — falei alto.
— Sempre pensei o mesmo quando vinha ajudar a limpar este lugar.
André estava ao meu lado, mas não me olhava diretamente.
— André, folgo em vê-lo. Então, terminaram as apresentações no
salão?
— Graças aos céus, sim, suas coisas estão em seu quarto, senhora.
Gostaria de se trocar? Talvez algo mais leve combine mais com este local.
— Realmente ficaremos aqui, não é?
— Sim, o rei ordenou que o local ficasse de uso exclusivo do príncipe
enquanto estiver cortejando, então o harém foi para as casas de seus maridos
ou para casas de aluguel na vila dos forasteiros.
— Ficaremos instalados este mês na feira do rei, então.
Olhei em seus olhos quando disse isso, ele não esboçou reação. Apenas
afirmou em silêncio, seus olhos azul-escuros sustentando os meus. Não resisti
em espetá-lo e deixar claro minha desconfiança.
— Somos bonecas de vitrine, não é? O que seu pupilo tem em mente?
— Não devia dizer essas coisas em voz alta, senhora, pode chamar a
atenção de algumas belas donzelas que estão aqui somente a mando do rei,
são concubinas dele, mas não sabemos quais delas, sabemos apenas que o rei
não deixaria algo tão grandioso passar sem sua ciência do assunto.
— Então ele está aqui, mesmo não estando, isso é preocupante.
André deu um leve aceno de cabeça. —Tudo o que acontecer aqui será
repassado para ele.
— Isso, se não descobrirem quem são elas, não é mesmo?
— Não tem como sabermos, têm muitas garotas.
— Ajudarei no que puder.
Ele pensou um pouco e novamente assentiu.
— Isso é uma surpresa, não esperava contar com isso, já fui mandado
aqui para investigar, mas não imaginei que teria ajuda tão inesperada nisso.
— Gostaria de me trocar como sugeriu, se puder me acompanhar
teremos assuntos a tratar, e não precisa estranhar em relação à ajuda que
ofereço, faço por mim mesma, não quero olhos do rei em cima de mim
enquanto estiver aqui.
— Entendo, e ainda assim lhe agradeço.
— André, sabe o que acontece aqui nesta floresta, não sabe?
— Faço parte dos servos reais há anos e é impossível não notar que
sempre uma mulher do harém some sem deixar vestígios.
— Mas o rei as toma na negociação ou é um acordo?
— Um acordo, na negociação geralmente são duas coisas como
pagamento. Partes de terra e ouro.
Assenti e ele continuou:
— As terras para o reino e o ouro para o marido, é muito lucrativo,
por vezes recebem quase cinquenta vezes o que pagaram nas esposas, porque
quando as compram elas estão desnutridas e descuidadas.
Já desconfiava de tudo isso, mas queria que André me dissesse, para
poder expurgar qualquer dúvida em relação a ele, ainda faltavam mais
perguntas e não ia deixar para depois, precisava saber com o que estava
lidando nesse mês, e com quem me preocupar. — E o príncipe sabe disso?
— Sabe sim, senhora, mas não pode interferir, se mostrar qualquer
revelia contra o pai, pode passar de herdeiro, para um inimigo a ser abatido.
— Acha mesmo que ele só se mantém neutro por conta disso? Não
acha estranho que o cortejo seja realizado na Floresta do rei?
— Não teve como ser diferente. O rei só aceitou nessas condições, ele
disse que não queria mulheres andando pelo castelo, foi categórico ao dizer
que lugar de mulher para ser observada seria aqui. Sem outra saída, o
príncipe apenas exigiu que nenhum homem do rei, casado ou solteiro, tirando
nós, os servos, perambulasse por aqui.
“Mesmo a contragosto o rei Júlio aceitou e então o príncipe Tiago
como precaução, colocou guardas de sua confiança para cuidar da entrada
secreta, para que nenhum outro de fora possa vir.”
Ele me olhou rapidamente e voltou sua atenção à pequena e estreita
estradinha calçada voltando a falar baixo: — Está tudo fechado, por isso que
o rei mandou algumas de suas amantes como pretendente.
— Mas os pais delas sabem que elas são amantes do rei?
André sorriu enquanto caminhávamos devagar dando tempo para
conversar um pouco mais, tinha um bonito sorriso, senti pena por ele ter que
servir, seu porte era de um nobre não de um escravo, ele falou no mesmo tom
baixo:
— Senhora, me permita pedir que não seja ingênua, foram os pais que
mandaram suas filhas como oferta ao rei, porque até isso é lucrativo, vamos
supor que ele decida dar um presente à sua amante, esse presente será de
direito da família e não dela. Há muitas vantagens para a família nisso, e
tendo uma filha aceita como concubina, eles serão chamados para todas as
festas reais e assim podem melhorar os negócios. Na verdade, eles esperam
ansiosos o dia que o rei mande buscar suas filhas, assim terão grandes
chances de que elas sejam compradas pelos licans.
Já tinha estendido minha raiva a todas as famílias, aquilo estava
perdido.
— Me admira seu príncipe não fazer nada sabendo disso, me lembro de
você dizer que ele era diferente do pai.
André parou e olhou para o ar, pensativo. — Já parou para pensar por
que o rei tem um filho único?
Eu não tinha parado para pensar nisso. — Já que mencionou, deve ser
porque ele quer deixar apenas um herdeiro.
— Não, senhora. Tiago era o caçula de três.
RAEL

A biblioteca tinha se transformado provisoriamente. Resignado, me


dirigi para ela, soltei um longo suspiro, precisava acabar logo com isso, ela
precisava de mim, mas eu não podia ceder aos meus impulsos, os sombrios
também precisavam que eu me dedicasse a isso.
Nicolae havia se oferecido para ajudar, mas instruir as novas meninas
era minha obrigação e ele como era o caçador mais forte, precisava fazer a
ronda, e organizar tudo para escoltar Dimitri até os limites sombrios.
Meu tolo e caçula irmão ainda não estava preparado para tantas
responsabilidades, mas por amor à Diana ele se metia em sarilhos como
sempre. Sentia tanta falta dela, ainda mais agora que tudo estava nessa
correria, sem contar aqueles dois com seus planos de mudar o mundo.
— Eva, o que faço com esses dois tolos? Diana, minha filha corajosa e
tola com suas ideias de revolução, Dimitri mais tolo ainda é seu fiel
escudeiro. Pobre Nicolae, o único ajuizado, é o que mais sofre nisso tudo, não
consegue dizer não à sua pequena, e se vê maluco de preocupação e receio
por ela. Volte para mim, Eva, preciso de calma para tantas preocupações, e
sem você não sou nada, meu amor.
Senti meu coração se apertar ao olhar para a porta onde ela estava
acamada.
Ela estava doente. Estava morrendo e eu puni o desgraçado que quase
conseguiu a levar de mim, o matei devagar e o fiz sofrer, ele pediu perdão, se
urinou com a dor, mas por causa dele Eva estava fraca e a idade agora
aparecia em sua face.
Ri amargamente, fora envenenada com as bagas do teixo e
ironicamente iria tomá-lo agora para poder viver, pois era um dos
ingredientes da minha mistura. Apesar de sua toxidade, se preparada para fins
mágicos simboliza o renascimento.
Choraria agora se parte de minha ira não tivesse sido sanada no maldito
traidor que, por cobiça, a envenenou apenas para nos manter ocupados
enquanto fugia para a fazenda dos Salazar, ciente de que ela estaria
abandonada, ele estava desesperado para se apossar de toda aquela riqueza.
Agora está onde queria — pensei, ainda com raiva, querendo que ele
ainda estivesse vivo para matá-lo lentamente novamente.
Ele estava na fazenda Salazar, sem uma gota de sangue no corpo e
espetado em uma estaca. Soltei um suspiro ainda olhando a porta, que Eva
não saiba o que fiz, e menos ainda que saiba o quanto me senti melhor com a
vingança. Ela é minha, a espero há anos e ninguém a tirará de mim.
Deixei aquela porta, precisava terminar logo o que tinha que fazer e
voltar para minha Eva, ela tomaria a mistura se eu não conseguisse a curar.
Se sentisse ódio de mim por isso, eu suportaria, só não suportaria sua morte,
isso não.
Abri a porta da biblioteca e muitos olhos me fitaram com curiosidade,
me senti fraco, e ofendido, nenhum olhar de pavor? Isso era imperdoável,
mas interessante, Diana quase morreu de medo ao me ver a primeira vez, mas
a minha filha era diferente, veio em condições tristes e conseguiu alegrar
nossas vidas com seu progresso em querer viver. Amava Diana, mais ainda
por ela trazer alegria à minha amada Eva.
Uma mão se levantou ainda tímida, me fazendo voltar a atenção a essas
pequenas estranhas. A pequena ruiva, ainda estranhando sua nova aparência,
olhava assustada para as dez moças ao seu lado, todas prontas fisicamente,
mas despreparadas emocionalmente para a intensidade de um sentimento
sombrio.
— Diga, Lara, não tenha receio de perguntar. — A primeira coisa a se
lembrar, eram seus nomes, tratá-las com respeito ajudaria na confiança, me
olhando assustada, ela perguntou em um fio de voz:
— Qual a diferença de um sombrio para um humano? Vocês são
imortais? E como vamos saber que não seremos escravas como se
estivéssemos em uma casa de diversão, só que diferente?
Virei-me para disfarçar meu sorriso, como queria que Eva presenciasse
isso. Ela me lembrava Diana, não fisicamente, mas as suas perguntas e
desconfianças sim, essa menina daria trabalho ao sombrio que a visse pela
conexão. Voltei meu olhar sério para ela e comecei, iria me esquivar da
pergunta sobre imortalidade, não podia confiar nelas completamente e era
uma informação perigosa para tantas estranhas juntas.
— Ótima pergunta, então preciso lhes contar uma história e quero que
prestem atenção, pois assim saberão todas as diferenças de um sombrio para
um humano e quem sabe, isso ajude vocês a confiar que não lhes faremos
mal.
Elas assentiram e eu comecei: — Se nos ferirmos sem gravidade, nos
curamos rápido e sem esforço. Se o ferimento for muito grave com perda de
sangue em demasia ficamos fracos e precisamos de sangue fresco para ativar
o dom da cura, e ela acontece de maneira diferente, o ferimento aquece e
lateja como se estivesse inflamado, mas não é inflamação, é o processo de
cura e é assim que ele agirá. Então só nos resta sentir com tranquilidade,
porque faz parte de nós.
“Desde que começamos a nascer fomos descobrindo nossas diferenças.
No passado fomos chamados de clã Diférit, que perjura até hoje como
sobrenome. Um nome em uma antiga e morta língua Romena que significa
diferente, e realmente éramos diferentes, tínhamos algumas particularidades
que nos diferia de nossos parentes e daí originou o nome.
O sol em seu cume nos deixa letárgicos, mas não nos queima, temos
um coração, digamos, um tanto peculiar, mas, ainda assim, um coração que
bate. Deixando de bater e se fechando em uma membrana resistente apenas
quando entramos no estado de caçador, então com o coração fechado ele para
completamente de bater e isso nos permite sermos mais cruéis no estado de
caça e menos tiranos fora desse estado. O que ajuda muito nas batalhas e nos
ajudou na guerra da Supremacia.”
— Vocês têm alma? — perguntou uma morena cor azeitona de olhos
verdes, uma beleza exótica, mas intrometida. Não gostava quando era
interrompido, como ela não sabia disso, com paciência, respondi:
— Temos alma, mas só fica conosco até os duzentos anos, depois disso
somos um receptáculo quase vazio. Duzentos anos é nossa idade adulta, então
nosso espírito tem que ser aprisionado em um espelho que ficará selado com
uma runa na moldura e um sigilo em nosso coração.
“O meu sigilo já está comigo há pouco mais de quinhentos anos, todos
os jovens sombrios têm que passar pelo ritual que é extremante doloroso, mas
necessário, pois sendo tão jovens e tão carentes de sabedoria, deixariam que o
espírito comandasse suas ações.
Muitos sombrios antigos, os primeiros de nossa raça, ainda não sabiam
lidar com o sentimento e não aceitavam a recusa, não aceitavam a espera e
não sabiam lidar com a luxúria, seguiam ainda os costumes de nossos
parentes, então quando se apaixonavam, deixavam o espírito livre para
atormentar a mulher que amavam, para possuí-la em sonho e poder mesmo
que fosse com seu espectro, vê-la ofegar em seus braços.
Tudo isso para acordar com a lembrança ilusória do gosto de sua amada
e isso foi a derrocada para a queda da raça.”
Outra mão levantada e senti meu caçador se agitar, mais uma
interrupção e tinha certeza de que mostraria as presas para elas, precisava ver
minha Eva. Se continuassem a interromper, eu não terminaria nunca, mas os
olhinhos verdes e assustados me lembraram vagamente minha Diana. —
Diga, querida.
— Por que vocês são diferentes?
— O mimetismo sempre existiu em todas as espécies, mas é preciso
aprender a lidar com isso. Então, depois de séculos, os sombrios começaram
a se organizar, se unir para poder ter força, éramos caçados pelos vampiros.
“Com a organização veio a constatação, o pai supremo da época, o
primeiro líder, Diférit, que juntou os sombrios e os organizou como clã,
percebeu a falha dessa diferente espécie.
Ele com pai sangue puro vampiro e mãe completamente humana foi o
primeiro que nasceu com coração e alma.
Ele viu seu clã começando a sofrer pelo espírito indomável. Ainda
assim, fora um tolo quando viu a mulher que mexeu com seu sentimento e
assim como os outros que ele liderava, agiu de forma predatória.
Atormentou-a, assustou, seduziu e a enlouqueceu, e então depois de
mais uma visita de seu espírito e de ela, por conta de os costumes da época,
ter se sentido mundana pelo que havia feito em sonho tendo um marido
humano ao lado, se suicidou e ele quase enlouqueceu.
Então depois de ele mesmo sofrer a perda, como muitos já tinham
perdido, passou a buscar uma maneira.
Depois de muitas pesquisas e procuras, ele soube que ela voltaria, sua
alma renasceria e ele jurou não a perder novamente. Usou seus muitos anos
de espera para percorrer o mundo, pesquisar sobre si mesmo, sobre a raça
ainda com poucos nascidos.
Um clã pequeno e um mistério, ele precisava descobrir um meio de
manter o controle, e então descobriu, todos os noturnos tinham uma
proximidade com a magia e essa herança paterna passou aos sombrios.”
Elas me olhavam, ansiosas, querendo mais informação, suspirei.
Dimitri sairia em breve para o reino Humanis e eu queria conversar com ele
antes que partisse. Precisava terminar a aula introdutória e deixar o resto aos
sombrios que já deviam estar a caminho da mansão de irmão Lucas, onde os
mandei esperar por elas, então continuei:
— Temos uma sintonia com a barreira mágica, para nós o véu é fino e
de fácil absorção. Precisamos de um espelho, um grande espelho com
moldura trabalhada em madeira sagrada e alguns itens mágicos nesse ritual.
Com isso a pessoa que amamos ou iremos amar estará segura.
“Hoje não mais atacamos os sonhos da mulher que amamos, não
precisamos seduzir para conquistar, o sigilo que carrego em meu coração me
faz ver a aura que fará conexão com meu espírito preso, depois de prender o
espírito e lacrá-lo com a runa, deixamos um limite de passagem, ele a sentirá,
mas não poderá sair para lhe fazer mal.
Quando vimos a aura, nos apaixonamos e o sigilo ativa fazendo o
espírito acordar e ele se agita, então acontece a pequena conexão com a aura
da amada.”
— Vocês parecem bons. — Disse a pequena ruiva de olhos assustados.
Lembrar-me de Diana achando o mesmo e dizendo isso nos achando
santos por tamanho altruísmo me doeu por dentro. Não éramos altruístas e
sim completamente egoístas. Ninguém quer dividir o que ama, mas ninguém
pode dividir o que não tem.
Almejar ter algo é dar valor, aprendemos isso no livro das sombras que
está na pequena biblioteca acima da cripta de nosso pai. Lá está tudo o que os
sombrios precisam aprender para não cometer o mesmo erro de outrora. E é
tudo que preciso saber para não a magoar, não a assustar e esperar que fique
pronta para mim, e mesmo que eu a faça beber a mistura sem seu
consentimento, ela ainda estará viva e esperarei por ela o tempo que for
necessário. Espero há mais de setenta anos, esperarei ela me perdoar e a
amarei como sempre amei.
— Serão levadas para uma mansão, será o lar de vocês, receberão
visitas de sombrios, eles não irão tocá-las, apenas irão se aproximar, tentem
confiar. Se uma de vocês despertar o amor de um sombrio, terá um protetor
pela eternidade, e terão seu tempo para retribuir esse amor.
“Apenas peço que respeitem esses homens como guerreiros que são,
pois eles saberão respeitá-las como merecem.”
Deixei-as antes que viessem mais perguntas, meu trabalho com elas
estava pronto. Precisava agora me dedicar a mulher que estava pronta para
mim, ela sabia que estava, mas era teimosa, achava que não era suficiente
para preencher meu coração solitário, se ela ao menos soubesse como um
sombrio pode amar, me daria uma chance.
— Pequena Eva, ainda me aceitará e saberá o que é ser amada, e eu, um
homem incompleto, então saberei como é amar uma mulher estando
completo de corpo e alma.
UMA PISTA

Fiquei chocada, não consegui dizer uma única palavra o resto da


estreita estrada calçada de pedras que nos levaria diretamente ao dormitório.
André também não disse nada, não precisava, na verdade. Agora eu
sabia que o príncipe tinha uma linha fina de vida sendo segura pela mão real.
Caso ele se mostrasse contra os ideais do pai, seria morto e isso só me
mostrava até aonde iria a crueldade de um homem pela cobiça e poder. Senti
um pouco de pena do príncipe Tiago, apenas um pouco, ele ainda era meu
inimigo número três, ainda não sabia suas intenções nisso tudo.
Entramos em uma sala ampla e aconchegante, uma grande lareira jazia
apagada e fria bem no meio da sala, poltronas macias e brancas estavam por
toda a parte, tudo ali dentro era em um tom sóbrio, neutro, nem parecia um
local para as orgias que eram tão famosas pelo reino.
— Aqui é o local de descanso das mulheres, senhora.
Assenti e as imaginei deitadas naqueles luxuosos sofás, descansando e
esperando o chamado para servir aos machos tarados. Nem pensar que eu
agiria como elas, pensei comigo. Eu não era esposa de ninguém, não estava
interessada em marido e não ficaria deitada naquelas poltronas fazendo pose
para ser vista.
Seguimos para uma saleta onde havia muitos livros. — Gostei deste
lugar.
André riu baixo. — Acho que será a primeira, talvez única.
Ri também, claro que elas não iam pensar em ler quando podiam estar
se exibindo para os homens que ficavam por todos os bancos conversando,
enquanto elas passeavam tentando chamar a atenção.
Era normal entre os maridos emprestar ou alugar suas esposas e, como
sempre, quando não era sua própria esposa, os homens tendiam a ser
carinhosos e apaixonados, isso me dava pena, elas eram tão escravas quanto
os próprios criados que as serviam, e mendigavam algum carinho ou um
cortejo de um dia com alguém estranho e carinhoso, isso poderia aumentar
demais a autoestima daquelas prisioneiras.
O corredor era imenso, quartos ao lado de quartos com infinitas portas
numeradas e nada mais, imaginei quantas vezes foram usados.
— Os lençóis foram trocados, não é?
André riu baixo novamente, costume de seu longo tempo de servidão.
— Sim, senhora, os lençóis estão limpos, na verdade, encontrará tudo
imaculadamente limpo.
Fiquei aliviada, pelo menos isso, nenhuma lembrança do que realmente
era aquele lugar, paramos a frente do quarto quinze e olhei para André.
—Meio irônico esse número.
Ele não disse nada apenas assentiu, sério, entendendo o que eu queria
dizer.
— Vou buscar uma criada para lhe ajudar com seu banho.
— Obrigada, André. — Assim, entrei para minha prisão.
O quarto era simples com uma cama de casal, lençóis brancos e vários
travesseiros e almofadas, uma poltrona macia com encosto em um canto.
Uma mesinha de cabeceira com uma jarra de água e dois copos, uma
lamparina e uma caixinha com velas, e havia um armário grande de madeira
clara que estava aberto e organizado.
Minhas roupas já estavam todas arrumadas nele e minha caixa de
madeira trancada à chave estava li também, eu levava a chave comigo em
minha bolsinha de mão, olhei com atenção e ela não tinha sido forçada.
Menos mal — pensei comigo. Ali continham muitas coisas que
poderiam me ajudar se eu me metesse em encrenca, nunca se podia prever as
coisas, então era bom prevenir, e como andar armada estava fora de
cogitação, eu tinha que ter meus meios de me proteger ou ao menos retardar
uma captura. Logo uma senhora entrou no quarto.
— Senhora, desculpe a demora eu estava ajudando outra senhora a se
vestir, mas ela decidiu tomar outro banho em seguida de ter tomado um,
então eu me demorei, peço perdão.
— Não tem problema, não estou desesperada.
Ela era rápida para ajudar. Ao me despir me senti insegura. Ela nem
pareceu notar minha fina e pequena cicatriz ao lado do umbigo. Essa era a
única coisa que poderia me ligar ao meu passado. Somente André saberia do
que se trataria. Samuel só desconfiaria se eu tivesse uma cicatriz vertical do
ventre ao peito, a marca registrada dele naquela chacina.
Balancei a cabeça para deixar as lembranças longe. Passei os dedos
pelo cabelo para facilitar a lavagem.
— Se quiser, posso fazer isso, senhora.
— Não, pode deixar que eu faço.
Logo eu entrava na banheira, não parecia, mas eu estava bem cansada e
a água me ajudou a relaxar. No canto do cômodo havia um cano com água
caindo constantemente.
— Aquele cano ali?
— Ah! Sim, bem… É para as esposas servirem seus maridos, alguns
gostam de ficar com elas ali, deixando a água escorrer pelo corpo.
— Essa água que cai é limpa?
— Sim, senhora, é a água do desvio do curso, ela passa pela calefação e
cai aí morna o tempo todo.
Era uma ótima notícia, não precisaria ter que pedir ajuda todos os dias
para o banho.
Depois de seca coloquei um vestido levemente pesado, estava
anoitecendo e começando a esfriar. Já pronta, saí em direção ao quiosque.
Não tinha ninguém ali na sala e em lugar algum, com certeza todas já
estavam lá para o jantar.
Não podia estar mais certa. Uma imensa mesa havia sido preparada e
na cabeceira estava Tiago com roupas menos formais. Ele parecia até mais
acessível com a camisa simples cor cinza-claro e uma calça escura.
Seus cabelos castanho-escuros e levemente compridos, estavam
despenteados pela brisa e a sombra de sua barba estava mais escura. Estava
mais bonito do que qualquer dia que eu já o tivesse visto, ainda assim
aparências enganavam então fingi não ter percebido sua presença e me sentei
no primeiro lugar vago.
— Está em meu lugar, bonequinha.
Uma ruiva de olhos azuis intensos me encarava segurando um prato.
— São nomeadas as cadeiras?
— São sim, procure seu lugar que esse é meu, flor.
Não era agradável ser chamada assim, ou era isso, ou era o tom dela,
combinando ainda com a voz irritante. Contrariando a vontade de responder à
altura, tive que me fazer de sonsa, fiz uma cara simpática e me levantei,
procurando meu lugar.
Ali estava, Diana, escrito na cadeira em uma mesa separada da mesa
deles. Pelo visto, uma mesa colocada às pressas por não ter espaço para todas
na mesa principal, sorri quando sentei, então era isso, eu o afrontei na frente
de algumas meninas e agora recebia meu castigo.
Não é um castigo tão ruim assim — pensei, feliz por não ter que aturar
aquelas garotas. Logo algumas meninas ocuparam as cadeiras vagas, estavam
visivelmente frustradas por serem deixadas de lado, uma moça de cabelos
castanho-dourados e olhos cor de avelã me olhou, triste.
— Pelo visto, ele não gostou muito de nós.
— Pelo visto, não.
Continuei comendo focada em cada pedacinho da minha comida, não
queria olhar na direção dele, queria que ele visse que não dei a mínima para
seu desaforo, que essa atitude de homem mimado não me afetava e eu
ignorava esse gelo, assim puxei assunto com as meninas na mesa.
Era um grupo de dez, voltei a falar com a menina que estava à minha
frente.
— Vem de onde? Qual seu nome?
— Sou da casa Pascoal. Me chamo Cristina, mas me chame Tina. Meus
pais são cuidadores de uma extensão de terra aqui perto, então tive que vir.
Ela parecia contrariada, ou era uma ótima dissimulada.
— Você não me parece muito feliz de estar aqui, Tina.
Ela ficou nervosa falando rapidamente, vermelha como um pimentão.
— Ah, sim. Estou sim, não queria causar impressão contrária.
Mexi na comida de leve enquanto fazia meu teatro.
— Pois eu não estou nada feliz, estava praticamente noivando quando o
rei vetou e me mandou vir aqui no dia do baile. — Olhei para elas e torci a
boca de tristeza. — Até achei que encontraria um baile de verdade.
Todas riram na mesa, inclusive Tina. Eu ri também, só não entendia o
motivo de elas rirem, mas achei mais graça de ver pelo canto dos olhos que
Tiago olhou na direção de nossa mesa, curioso com a conversa. Então ele
estava atento ao que acontecia na mesa excluída?
Isso me animou um pouco, não sei por que, mas achei interessante
saber que ele estava curioso com o que acontecia ali e falei um pouco mais
alto.
— Qual a graça? O que eu falei demais?
— Você achou que era um baile, é?
— Bom, o rei disse dia do baile, então, supostamente, teria que ter um
baile lá nesse dia.
— Não. Está errada, bom nem tão errada, realmente teve um baile lá
depois que viemos para cá, claro, porque é o dia do baile.
Ela me olhou com seus olhos avelãs brilhando e falou em tom
conspiratório:
— O rei não sabe distinguir nem um dia da semana, só sabe se basear
pelo dia do baile.
— Mas por que isso?
Tina revirou os olhos. — Óbvio, não é, todos os dias para o rei são
iguais, apenas o dia do baile é diferente.
Fiz bico e olhei para o prato remexendo sem interesse. —Triste isso.
Elas riram e novo, e então uma morena de cabelos compridos e
cacheados e olhos castanhos se empolgou com a conversa também.
— Meu nome é Clara, e venho da casa Machado.
— Me chamo Diana, sou da casa Salazar.
— Muito prazer.
Antes que eu pudesse responder, ela começou, empolgada:
— Não é o que dizem algumas casas por aí.
Ficamos em silêncio ouvindo. E ela continuou:
— Dizem que o rei não vê o tempo passar, porque fica fazendo coisas
nas masmorras do castelo.
Naquele momento o clima mudou na mesa, foi como se duas orelhas
imaginárias aparecessem ali deixando todas com receio de alguém errado ter
ouvido aquilo, eu precisava quebrar o gelo, deixá-las à vontade.
— Já sei, brincando com suas esposas lá no alto e vendo as nuvens
passarem.
Novamente todas riram.
— Não, não — Clara dizia, rindo. — Mas se fosse, seria perigoso.
— Para a pobre esposa, né? — eu rebati. — Imagina se ela desagrada o
rei estando lá em cima?
— Teria que criar asas — Tina disse, já rindo.
Rimos em coro e continuamos a conversar. Eu queria perguntar o que o
rei fazia lá, mas não era uma boa hora, era meu primeiro dia ali e precisava
parecer despreocupada e fútil.
Assim o jantar se passou como um raio. Logo Tina, Clara e eu saímos
da mesa, conversando alegremente sobre assuntos tolos, passando pelo
príncipe que estava cercado de garotas.
Não olhei em sua direção, mas senti seus olhos nos seguindo enquanto
conversávamos animadamente, sem nos importar com a grande mesa
seguimos tranquilas para a direção do dormitório.
A conversa estava agradável e ficamos na sala conversando sobre
vários assuntos e fofoquinhas das garotas que nos pareciam as mais nojentas,
estávamos realmente fazendo a cerimônia dos mexericos, que incluía olhar lá
fora e comentar sobre as meninas que rodeavam o príncipe que já parecia
enfadado.
— Ele deve estar sendo torturado, pobre homem — disse Clara.
Rimos baixinho enquanto sondávamos através da cortina, tentando nos
manter escondidas.
Tina falou, triste: — Tomara que escolha logo uma para podermos
voltar para casa.
—Você realmente não quer estar aqui, né, Tina — eu perguntei, já
sabendo a resposta, confusa ela olhou à sua volta e quando viu que estávamos
apenas nós três, negou com a cabeça.
Torci a boca sem saber o que dizer de início, mas tinha que manter
aquele primeiro clima.
— Mas não se preocupe, não somos o tipo dele, olha as figuras que ele
escolheu para ficar perto hoje.
— Olhe aquela ali. — Clara apontava para uma morena de cabelos lisos
e olhos claros que não saía de cima dele.
Eu suspirei. — Nossa, se continuar desse jeito, ela vai tirar a roupa e
subir em cima dele.
— Pelo menos, aí já saberemos quem ele escolheu — disse Clara,
levantando as sobrancelhas várias vezes para nós duas.
Rimos baixinho colocando a mão na boca.
— Bom… meninas, vou dormir. — Tina se esticava para espantar um
pouco o sono.
— Então é minha deixa, vou também — eu respondi.
— Nem por um uma moeda de ouro fico aqui, sozinha, esperando
aquelas vadias chegarem — disse Clara, de olhos bem abertos. — Elas irão
me massacrar com piadinhas por eu não ter sentado à mesa com ele.
Tina olhou para nós duas, aflita. — Então melhor corrermos, porque
elas estão vindo.
Corremos desembestadas para nossos quartos. Fechei a porta rindo e
fiquei ali um bom tempo, até que tinha sido divertida aquela conversa com as
duas, era uma experiência nova e eu gostei.
Nunca tinha tido amigas da minha idade e era interessante fazer coisas
idiotas como uma garota idiota de vez em quando.
Tirei o vestido e me enfie na camisola, a cama já estava arrumada para
mim e imaginei que era obra de André, adormeci rapidamente e feliz.
Levei um susto quando me tocaram o ombro.
— Não se assuste, Diana, sou eu.
Apesar de sono, gostei do tratamento mais íntimo.
— André, o que faz aqui? Não é hora de acordar, saia daqui. — Joguei
um travesseiro nele para que fosse embora.
Ouvi novamente sua risada comedida. — Vamos, menina, levante,
preciso que venha comigo.
Isso acionou um alarme dentro de mim, o alarme da curiosidade, abri
os olhos desperta e sentei na cama.
— Preciso me vestir, não posso sair de camisola. Está frio lá fora.
Ele me entregou um casaco comprido de manga longa.
— Você decorou certinho onde estão minhas coisas.
— Foi eu que arrumei, então sei onde está tudo. Venha.
Saímos sorrateiros andando pé ante pé pelo corredor. Quando
alcançamos a porta, eu perguntei, nervosa:
— Podemos estar aqui fora nesse horário? Não é contra as regras?
— Você não é uma prisioneira, Diana, não saindo do harém pode andar
por onde desejar e na hora que lhe aprouver.
— Mas com um homem?
— Não sou visto como homem, apenas como um servo, então eu não
ofereço perigo.
— Tecnicamente, não é?
— Sim, tecnicamente. Agora, podemos ir?
Pelo seu tom, ele pareceu bravo e divertido ao mesmo tempo, e eu ri
baixinho. André se irritava fácil, mas, com certeza, teria sido um pai muito
atencioso e carinhoso, se pudesse ter uma esposa.
Ele me lembrava muito Rael e por isso não importando o passado, eu
tinha carinho por ele.
Estava insegura na estradinha com chinelos de pano, então segurei em
sua camisa fina, roupa de criado.
— Por que está grudada em mim?
— Ué, para eu não cair, não conheço este lugar e essas pedras estão por
toda a parte.
— Você deveria ter uma ótima visão noturna.
Eu ri novamente, de novo parecia Rael andando à frente e não ele.
— E tenho, mas, ainda assim, posso cair.
— Certeza que lhe instruíram para que crescesse mentalmente? Por
vezes, você age como a idade que realmente tem.
— Claro que sim, mas se está muito difícil para você eu segurar sua
camisa, então ordeno que me deixe segurar sua camisa.
— Se aproveitando do poder que tem?
— Claro, qual seria a graça ter tanto poder e não o usar para segurar
uma camisa para não cair nas pedras?
Ficamos em silêncio, entretanto eu conseguia ouvir sua risada baixa,
uma coisa eu tinha descoberto, gostava de fazer André rir, era um dos poucos
risos verdadeiros que eu ouvia desde que cheguei nesse maldito lugar.
Tirando Eva e os três príncipes sombrios, ele era o mais verdadeiro que
eu conhecia, e estava sendo mais forte que eu, não conseguia evitar, queria
mostrar a ele que me sentia confortável perto dele, que o tinha perdoado por
ter tentado me assassinar.
Porque ele não se perdoava, isso era um fato, seus olhos eram sempre
tristes. Sua idade normal seria de mais de cinquenta anos, mas sua aparência
era de trinta e poucos.
Eu bem sabia que a idade estava na mente e não no corpo, porque por
mais que me esforçasse ainda não tinha alcançado sequer os dezessete anos
em minha mente, mesmo com aparência de vinte e poucos e devia ser por
isso que eu sentia carinho por ele.
Éramos irmão de sangue, mesmo que tudo ditasse o contrário, ele me
fez isso, me levou para minha família, na verdade, ele me deu uma família e
eu lhe seria eternamente grata, mesmo que ele se odiasse todos os dias pelo
que fez.
Não demorou muito e chegamos ao pomar.
— Queria que eu comesse frutas?
Ele cruzou os braços me olhando sério, seus olhos azul-escuros
pareciam levemente mais claros por conta da iluminação de tochas por todo o
lado e ainda a lua. Seus cabelos curtos estilo militar castanhos tão clarinhos
agora pareciam também mais claros.
Realmente André não parecia um escravo, somente pelos trajes pobres
é que se percebia. Ele descruzou os braços e apontou.
— Na verdade, quero que olhe naquela direção e me diga, o que vê?
Olhei para onde ele apontou e tive uma visão completa do castelo.
— Vejo as três torres, luz acesa e algo na janela, parece um canteiro
com flores. — Olhei para ele e apertei os olhos. — As meninas me disseram
que o rei passa todo o seu tempo livre lá nas masmorras, disseram que era um
boato dos mais faladores. Então, não é um boato?
André balançou a cabeça negando.
— Sabe o que ele faz lá dentro, André?
— A maioria não conseguiria, mas assim como eu, você conseguirá
ouvir alguma coisa, se concentrar sua atenção.
Ele levou a mão aos lábios para que eu escutasse, fiquei em silêncio e
fechei os olhos, tentando captar o som vindo de longe.
De início, os barulhos mais próximos dominavam minha atenção,
galhos gemendo e rangendo ao esbarrar um no outro, crepitar do fogo das
tochas e sua luta contra o vento, conversas animadas e baixas, algumas
meninas nos dormitórios ainda estavam empolgadas com o dia e
conversavam.
Isolei-me desses sons e me concentrei um pouco mais e ali estava algo,
me concentrei somente nesse som, quando consegui discernir o que era, me
virei assustada para André.
— Pai eterno, André! São gritos de agonia, como se fossem de dor.
— Sim, e o de hoje não é um grito humano.
SEM SAÍDA

Acordei muito cedo. Não tinha conseguido dormir direito naquele final
de noite. Depois de ter ficado com André ainda mais um tempo no pomar,
tentando adivinhar que som era aquele ou do que era, acabamos voltando sem
conseguir sucesso e fui direto para a cama. Tentei dormir, mas não conseguia,
acordava toda hora com qualquer pequeno som.
Assim, depois de ouvir passos no corredor logo de manhã, eu levantei.
Tomei um banho rápido no cano de água e coloquei um vestido amarelo leve
e delicado, sempre longo, e por seu tecido fino, quase nem o sentia sobre meu
corpo.
Precisava estar fresca e pensar em outra coisa além daqueles gritos.
Prendi com um palito o monte de cabelos, várias mechas se soltaram para
todos os lados, mas não dei à mínima.
No café da manhã, a mesa estava posta e dessa vez estranhamente não
tinha nomes nas cadeiras, Tiago estava sentado no mesmo lugar da noite
anterior, e como se a cena repetisse, já tinha algumas garotas à sua volta.
Não me sentei de pronto, voltei para o caminho do dormitório e fiquei à
espera de minhas companheiras de mesa exilada. Não ia sentar naquela mesa
só para vir uma cretina e me expulsar, então fiquei fazendo hora na sala,
enquanto elas não apareciam.
Tina foi a primeira a aparecer, ficamos conversando quando Clara
também apareceu.
— Está elegante, Diana.
— Acha mesmo? Não me dei ao trabalho de tentar estar, pode
acreditar.
Tina e Clara também estavam. As duas usavam vestidos leves e frescos.
— Estamos prontas para o calor de hoje — disse Tina, radiante.
Rimos e caminhamos para o quiosque, pouco tempo havia passado e
Tiago já não sabia para qual delas dar atenção, o príncipe já estava tomado
pelas garotas, todas sentadas à mesa maior, haviam ocupado tudo.
Nós nos olhamos e levantamos a sobrancelhas.
— Lá vamos nós para a mesinha do castigo — disse Clara.
Sentamos, rindo, dessa vez me sentei de costas para Tiago e ficamos
comendo e falando sobre locais a explorar.
Animadas com o lugar, fizemos planos para o dia todo e foi bem
agradável, apesar de os gritos me acompanharem todo o tempo...
Os dias passavam rápido no harém, já fazia três dias e eu não tinha me
aproximado de Tiago. André apareceu poucas vezes para me ajudar com
algumas coisas e conversávamos o mínimo.
Ele não tinha descoberto nada sobre alguma concubina do rei no nosso
meio e eu menos ainda. Depois de pouca conversa, ele saía para fazer suas
tarefas, já eu, estava sempre andando com Tina e Clara.
Estávamos nos dando bem e nesses dias por várias vezes ao dia Tiago
veio falar conosco, eu apenas respondia quando ele falava comigo, não
puxando assunto em nenhum momento.
Nosso quarto dia. Era de manhã e seguíamos à nossa mesinha do
castigo que agora mais parecia nosso ponto de encontro, continuei passando
por Tiago o ignorando completamente como nos dias anteriores, e como
sempre, ele me seguia com o olhar.
Era um jogo e eu venceria, pois tinha coisas demais em mente para
ficar o bajulando e ele já tinha garotas demais em cima dele fazendo isso, e
ainda não tinha engolido a afronta do primeiro dia de nos deixar isoladas.
Agora ficávamos ali por nos sentirmos bem, nem mais nos
importávamos de estarmos separadas das outras.
Então, mais um dia, a conversa matinal seguia tranquila, primeiro
combinamos de investigar o jardim.
Era imenso e queríamos ver tudo o que tinha nesse harém, já tínhamos
nos aventurado pelo grande lago, depois o lago termal, amei deixar os pés na
água quentinha enquanto conversava com Tina e Clara.
No terceiro dia ficamos a dormitar embaixo das árvores e depois como
belas futriqueiras, passamos o dia tentando alcançar as altas janelas do salão
fechado, decepção foi ter conseguido e encontrado um local amplo e vazio.
Mas agora tínhamos mais coisas para olhar e muitas meninas para nos
esquivar, então, como sempre, começamos os planos.
Clara sugeriu, já animada:
— Se não der tempo, podemos ir ao pomar amanhã.
— Tem uma caverna escondida nesta floresta também — disse Tina.
— Mas será que podemos ir lá? — perguntou Clara.
— Não sei, mas faz parte do harém e é meio longe, dentro da floresta
mesmo.
Ela se abaixou na mesa e sussurrou para nós duas:
— Dizem que lá tem alguns locais muito sugestivos para os maridos.
Parei com a colher de aveia perto da boca. — Que tipo de sugestivo
você diz?
— Para homens que gostam de fazer a mulher sentir dor. —Tina
enrubesceu ao dizer isso.
Fiquei com aquilo me incomodando o resto do café da manhã, ela dizia
não ser dali, mas então como poderia saber sobre essa caverna? Nem mesmo
as criadas de Samuel tinham comentado sobre aquele lugar.
— Está bem, Diana? — Clara perguntava.
— Sim, desculpa, estava pensando na caverna.
Tina pareceu ficar meio nervosa e eu não podia perdê-la ainda.
— Estava pensando que poderíamos nos aventurar por lá amanhã, logo
cedinho, o que acham?
Ela relaxou visivelmente e então minha desconfiança em relação a ela
aumentou, por agora seria apenas observar sua reação. Então, ainda a
analisando, eu continuei: — Poderíamos dizer que íamos fazer um
piquenique por aí e então iríamos lá, o que acham?
Tina se animou, mas Clara pareceu receosa.
— Não sei, Diana, não me parece uma boa ideia, um local que
basicamente ninguém comenta pode ter, sei lá, pessoas esperando a gente. —
Ela me olhou, preocupada. — Homens escondidos, você sabe.
Eu sabia o que ela queria dizer, um local com tantos lugares secretos
poderia não estar realmente seguro e ali dentro do harém nossa casta não nos
protegeria, éramos supremos não nobres, ainda assim, queria saber a reação
de Tina e ela não me decepcionou.
— Não tem perigo, Clara — falou, totalmente empolgada. — Somente
o rei pode ir lá, em geral é proibido, somente ele ou com ordem dele.
Te peguei! — pensei, triunfante. Eu sabia que ela escondia algo, aquele
jeitinho meigo tinha me enganado de início, mas aquele rosto vermelho
quando comentou sobre a caverna me parecia estranho para alguém que
deveria ser virgem e ainda não ligar para essas coisas.
E o pior, tinha falado com tanta naturalidade quando disse que apenas o
rei ia lá, precisava falar com André, uma espiã do rei eu já tinha encontrado.
Depois que terminamos o café, saímos do quiosque conversando,
distraídas.
— Meninas, posso caminhar com vocês?
Tiago estava vindo apressado atrás de nós. Eu pretendia dar uma
desculpa para ir ter com André assim que fosse possível, mas pelo visto, não
seria tão cedo...
— Alteza, será uma honra — eu disse, depois de uma vênia singela.
— Acho que já está claro que neste mês, esses tratamentos não serão
necessários, Diana.
Não respondi, não queria criar caso quando tinha algo realmente
importante a dizer, mas não dava, não quando Tina e Clara estavam conosco.
— Desculpe, Tiago, é hábito.
Ele sorriu e eu pude ver seus dentes brancos e perfeitos, tinha um belo
sorriso. Se era verdadeiro, eu não sabia.
— Que bom que vamos nos acertar em relação a isso.
Tina e Clara andavam quietas ao nosso lado e então Tiago puxou
assunto com Tina.
— Belos olhos você tem, cor de avelã, dizem que castanhos são olhos
de pessoas verdadeiras.
Tina ficou corou fortemente e gaguejou ao agradecer.
— Obrigada, Tiago.
— É forasteira, não é? Nunca a vi nos bailes da casa real.
— Sim, venho de uma extensão de terra fora das muralhas.
— De que família é?
— Família Pascoal. Me chamo Cristina.
— Muito prazer, Cristina... E você vem de que família?
— Me chamo Clara. Venho da casa Machado.
— Sim, conheço. Eles têm como negócios a cunha, não é?
— Sim, senhor. Vosso pai, o rei, sempre solicita os trabalhos de meu
pai.
— É mesmo? Não sabia que nossos soldados precisam sempre trocar de
armas.
— Ah, não, senhor, não são apenas espadas, escudos e essas coisas. São
coisas variadas, coisas que nem são para o exército.
Aquela conversa estava ficando boa… para mim, porém, se Tiago
continuasse perguntando e se Tina realmente fosse espiã, ele colocaria Clara
em perigo e ela parecia saber muita coisa.
Coisas demais para o próprio bem, afinal, veio dela o comentário sobre
as masmorras e ela não estava errada, eu tinha que tomar uma atitude e tinha
que ser logo. Clara não era daquelas que parava de falar, ao contrário, se
empolgava, então meio sem saber o que fazer, cortei Clara.
— O que acham de irmos ao pomar? Lá poderíamos fugir um pouco
desse sol e ainda conversar mais tranquilas, nós três. —Tina se animou e
Clara também.
— Que bom que estão se divertindo aqui na floresta, eu tenho que
conversar com algumas garotas ainda, então… Tenham um bom dia,
meninas. — Antes de se afastar, Tiago me olhou, gelado.
Eu o tinha claramente dispensado de nosso programa, claramente
deixado um recado que sua presença não me interessava em nada, mas eu não
podia voltar atrás, ele estava andando em caminho perigoso e eu tinha que ter
feito algo.
Não me senti bem a manhã toda depois disso, até o horário do almoço,
ainda assim, conversava com as duas, ria e brincava. Imaginei, depois de
estranhar meu mal-estar, que o olhar de Tiago tinha me afetado.
Quando caminhamos de volta para o almoço, eu me despedi das duas e
entrei no quarto, não tinha fome, mas tinha sono, deitei-me na cama e
adormeci praticamente na mesma hora.
Acordei com a sensação de alerta, tinha alguém no quarto. Tiago estava
sentado na poltrona, olhando fixamente para mim.
— Está bem?
— Como entrou aqui? André me disse que ninguém tinha a chave além
dele e de mim.
Ele apenas sorriu, era óbvio que ele podia entrar onde quisesse.
Suspirei.
— Não se dê ao trabalho, estou muito bem, sentia apenas muito sono e
vim dormir um pouco, mas já estou melhor e de tão bem que estou, me sinto
faminta. — Queria que ele saísse logo do quarto, sua presença me deixava
incomodada e ele percebeu, pois estava ligeiramente irritado.
— Claro que está, perdeu o almoço e o jantar e é madrugada, por isso
fiquei preocupado com seu sumiço e vim ver se estava bem. E de nada por
isso.
Ignorei sua ironia. — Madrugada? Não pode ser.
O que estava havendo? Eu tinha sido drogada? Alguém ali sabia usar as
ervas e precisava descobrir quem, com Tiago sentado na poltrona me olhando
eu não conseguia raciocinar direito, estava com o lençol puxado até o
pescoço e não sabia o que pensar, nem como agir.
— Diana. — André saiu das sombras, ele estava ali o tempo todo e por
conta de estar incomodada com Tiago não o percebi.
— André. — Levantei correndo, me esquecendo da roupa fina e a visão
que ela ia oferecer, o peguei pela mão o fazendo sentar.
Olhei nos olhos dele. — Entende de botânica?
— Um pouco, entendo um pouco de tudo.
— Podemos ir para o pomar ou para um local reservado?
Não queria falar nada ali, mas precisava conversar, queria falar sobre
Tina, e tentar entender como alguém tinha me drogado, ele entendeu minha
urgência.
— Todas dormem pesadamente, Diana, preparei o chá para que assim
fosse, estranhei esse sono tão longo, por isso me adiantei, desconfia de
alguém?
Tiago parecia constrangido com a conversa cheia de confiança entre
mim e seu servo, o que para ele tinha que parecer impossível, já que eu estava
sem saber o que conversar com ele.
Suspirei, pensativa, não tinha como excluir Tiago da conversa, mas não
tinha intenção de ficar bajulando o mimado real só porque estava emburrado.
— Não, André, aqui não. Precisamos conversar realmente, mas este
lugar está infestado de cobras e se alguém não dormiu pode nos ouvir, se
realmente você estava certo… Eu tenho um nome.
André olhou para o príncipe. —Tiago, precisamos ir para o pomar, se
importa de nos acompanhar? Precisamos falar.
Achei interessante essa intimidade dos dois quando estavam a sós, não
era só confiança entre eles, era como se fossem irmãos.
Tiago se levantou rápido e falou ríspido, olhando para mim, mas
respondendo André:
— Não me importo. Aliás, faço questão de ir junto.
Depois de nos encarar de modo desconfiado, ele saiu pela porta pisando
duro e nos deixando a sós.
Olhei para André, confusa com aquela reação. — Ele está achando que
estamos tendo um caso?
André riu. — Sim está, deve estar achando estranho um servo como eu
ter essa intimidade com você, se ele soubesse o que andamos conversando,
jamais pensaria isso, ou que é um vovô e uma criança.
Dei um tapa em seu ombro. — Pare de dizer isso, e vamos logo, e não
sou criança mais, essa criança ficou no passado.
Ele novamente me estendeu um casaco sem dizer nada e seguimos
noite afora.
André ia à frente, eu no meio e Tiago ia quieto atrás, se eu o
conhecesse bem diria que estava irritado, era apenas uma desconfiança.
Poderia estar errada, ele tinha que parar de ser tão mimado, não resisti e
segurei de novo na camisa fina de André.
— Ainda com isso?
— Oras ande, não rasgarei sua roupa, se é o que teme.
— Se o fizer, terá que me comprar uma nova.
— Pai eterno! Nem conseguirei pagar por tamanha iguaria.
— Aceito o valor em moedas de ouro.
— Me avise para que eu traga uma carroça com os sacos.
— Farei isso.
Eu sabia, ele estava brincando comigo para amenizar o clima, não
estava ajudando muito. Tiago passou a pisar duro e eu conseguia ouvir seus
suspiros profundos de raiva, André também conseguia certamente e então nos
calamos.
Passamos pelo pequeno portão, o centro do pomar era uma pequena
pracinha e ali a lua cheia clareava boa parte do local. Tiago pareceu contar os
minutos porque assim que paramos ele explodiu.
— Posso saber o que está acontecendo aqui e que diabo de intimidade é
essa entre vocês dois? — Ele olhou para mim, possesso. — Para mim, você
nem olha. Hoje... apenas hoje me chamou pelo nome, isso depois de eu
corrigi-la quando me tratou com extrema frieza perto das outras meninas, mas
foi apenas isso. E depois acabou me dispensando como um cão sarnento
quando me aproximei de você e suas amigas e agora com o André, parece até
uma vadia!
Não aguentei, o tapa foi certeiro limpo e quase nem fez eco.
André entrou na frente de Tiago para protegê-lo por hábito, mas ele o
tirou da frente, se aproximando e parando bruscamente. Me encarou bem de
perto e eu sustentei seu olhar.
Jamais iria permitir que ele me tratasse dessa maneira, ele chegou ainda
mais perto, abaixando a cabeça e encostando seu nariz ao meu, seus olhos
ardiam de raiva, quando falou senti seu hálito de cravo, não achei ruim, ao
menos não era sálvia.
— Como ousa? Eu poderia matá-la com minhas próprias mãos, poderia
lhe ensinar a ter mais respeito, poderia…
Não o deixei terminar a frase. — Faça isso. Prove que eu estou certa e
André errado, mostre que é tão igual, ou mesmo pior que seu pai. André
sempre te defendeu, mas eu sempre tive minhas dúvidas!
— Como assim, sempre? Você o conhece desde quando, para ter
confidências com ele? Qual o vínculo real de vocês dois? Vamos, me diga.
Antes que eu respondesse, ele se afastou pisando duro e agora olhava
de André para mim e vice-versa cobrando uma resposta.
Cruzou os braços e manteve seu olhar de um a outro exigindo que
tomássemos atitude e o respondesse.
André me olhava, pensativo, parecendo pesar o que ia dizer, já eu não
sabia o que falar, não poderia pôr André em situação complicada e nem me
complicar, mas as coisas haviam chegado a um ponto perigoso, não imaginei
uma reação tão explosiva de Tiago.
André também sentia isso, porque olhou para ele com preocupação e
pensativo, então, por fim, falou de uma vez, me fazendo travar como um rato
acuado por um gato, e um gato muito raivoso.
— Ela é a sobrevivente da chacina, de mais de dois anos atrás.
Tiago apertou os olhos para o nada, parecia tentar absorver aquela
informação.
— Espera! O que disse? Você tentou assassiná-la e ela confia em você
ao ponto de trocar confidências, é isso? E não era para essa menina ter
dezessete anos? O que diabos está acontecendo aqui? — ele gritou, olhando
para mim.
Eu estava paralisada, em poucas palavras eu fui desnuda, desarmada e
estava nas mãos de Tiago. Entendia André, estava em uma situação
complicada para poder explicar sem comprometer a história com lacunas.
Suspirei, derrotada, hora de falar toda a verdade e esperar entrar na
masmorra, me veio o pensamento idiota de que, pelo menos, ia morrer
sabendo o que diabos o rei fazia lá dentro. Sentei-me no banco e fiquei em
silêncio, tentando imaginar como faria agora.
André se sentou ao meu lado. — Me desculpa, não tinha outra saída.
Apertei sua mão e fiquei quieta um tempo, depois falei em um sussurro:
— Eu sei.
Tiago ficou olhando para nós dois sem dizer nada, parado em pé nos
analisando, André olhou para ele e se levantou, falando:
— Vou deixar vocês dois a sós, enquanto conversam, cuidarei dos
arredores para ver se não tem nenhum curioso com insônia por aí.
Pela primeira vez, ele beijou minha mão com carinho, aquilo era mais
um pedido de desculpa, eu sabia.
— Com licença, senhor.
Tiago não disse nada, apenas olhava fixo para mim. Apontei o banco.
— Acho melhor você sentar, Tiago, se quiser realmente ouvir toda a
história.
Em silêncio, ele se sentou ao meu lado, distante no banco, e esperou.
Respirei fundo, se era para contar que fosse do início.
— Eu vi cada menina ser morta por Samuel. Vi quando ele as violou de
todas as formas possíveis e quando as estripou com extrema crueldade, fez
isso com as seis primeiras, apenas as últimas não sofreram abusos, porque ele
já estava cansado de brincar com elas.
“Rezei como nunca para não ser encontrada por ele, e tive sorte de ser
encontrada por André, até então não sabia que seu nome era esse, fiquei
sabendo os nomes quando os dois discutiram dentro do celeiro.
André estava indignado de como as coisas tinham sido feitas por
Samuel, estava abobado com sua crueldade, ouvi cada palavra e André sabia
que eu ainda vivia, quando achei uma oportunidade de fugir, foi ele quem me
descobriu e me ajudou, me guiando pela floresta até me deixar fora dos
domínios dos humanos.”
Tiago ouvia quieto e atento. Fiquei confusa, não sabia se contava essa
parte ou não, depois de um tempo em silêncio, enquanto tentava achar
palavras para continuar, ele olhou fixo para mim.
— Então você foi salva pela família Salazar, é isso?
Balancei a cabeça negando.
— Como foi pertencer a essa família, então?
Era uma dúvida que não poderia deixar de sanar, Tiago continuou com
as perguntas.
— Você tinha que ter quase dezoito anos, por que aparenta mais de
vinte?
Essa era a lacuna que eu não poderia preencher, só me restava contar a
verdade de uma vez e deixar o destino cuidar do resto.
— Fui salva pelo príncipe Nicolae. Um dos três sombrios, ele me achou
na floresta e me levou para casa deles, me salvaram a vida me dando uma
mistura de sangue deles, o meu e uma mistura preparada por Rael.
“Essa mistura foi diluída o suficiente para que eu não virasse uma
sombria, que ficasse com a imortalidade, assim eu não poderia morrer com a
punhalada e a perda de sangue.”
Tiago apoiou o queixo na mão, pensativo, me olhando com curiosidade.
— Quer dizer que você não é humana?
— Graças aos céus, não.
— Odeia tanto assim os humanos?
— Não confio em humanos.
Ele franziu o cenho. — Mas confia em André? O homem que, mesmo
que fosse contra a vontade, quase te tirou a vida? Trata-o com respeito, ele é
tão humano quanto qualquer um de nós.
Olhei fixo em seus olhos. — Sabe tanto quanto eu que ele não é
humano, Tiago.
Mesmo na pouca luz da lua, eu vi que o sangue sumiu de seu rosto.
— Foi ele que te contou isso?
— Sim, foi.
Ele passou a mãos pelos cabelos se despenteando todo. — Não dá,
estou mais confuso agora, ele nunca contou isso a ninguém antes, você é a
primeira. — Se virou para mim, em tom acusatório e perdido em dúvidas. —
Desde quando vocês mantêm contato, e por que diabos vocês têm essa
relação de amizade, mulher? Ele quase te tirou a vida, pelo amor de Deus.
Mesmo naquela situação, não pude deixar de achar graça em seu
desespero, e achei cômico o estado de seus cabelos, parecia um ninho de
pássaros de tanto ele passar a mão por eles, tentando entender aquela
bagunça, ele estava realmente confuso.
— André salvou minha vida depois de tentar tirá-la, me deu uma
família de verdade. Eva, Rael, Dimitri e Nicolae são tudo o que tenho. Esses
quatro me tiraram o trauma daquele funesto dia, me ensinaram a ler, escrever,
me vestiram como uma pessoa decente.
Ele estava parado, olhando para mim e absorvendo tudo o que eu dizia.
Olhei para meus dedos e levantei os ombros.
— Me adotaram literalmente, era para eu ser esposa de um deles ou de
um sombrio do reino, mas eles me deram o livre arbítrio, me salvaram sem
pedir nada em troca, me amaram incondicionalmente e isso conta muito para
mim.
— Mas você odeia os humanos, não é?
Bati com a mão fechada na palma da outra mão.
— Odeio, odeio a raça humana, mesmo tendo o meu humano
preservado, ainda assim os odeio, eles falam tanto que são superiores às
outras raças, mas não sabem ter a metade da honra dos antigos, não respeitam
sua própria espécie, nem respeitam as mulheres, apenas as tomam como
animais.
Ele se sentou ao meu lado novamente. — E como pode ter certeza de
que os sombrios não são assim também?
— Porque eu vivi com eles mais de dois anos depois disso, vi seus
costumes, a maneira como tratam seus criados, lá também os criados têm
filhos, sabia? E ainda assim, deixam o destino cuidar de tudo.
“As crianças lá são apenas crianças que fazem coisas de crianças,
brincam nos quintais em dias quentes, recebem agasalhos quando falta em
dias frios, não falta nada aos criados, nem mesmo dignidade. Suas roupas não
são restos de gente rica, são roupas normais, quentes, limpas e sem remendos
por todos os lados.
Não há estupros, não há castas, não há falta de respeito com as
mulheres, não tem nada das merdas que tem aqui, então se me disser que esse
costume não é de uma raça superior, precisará me abrir os olhos e me dizer
qual humano pensa como eles, que eu volto a acreditar nos humanos.”
— Eu.
Olhei para ele, estava sério e seus olhos estavam fixos em mim.
Eu ri. — Você mandou vir mais de trinta meninas para um harém, para
poder escolher uma delas que seja de seu agrado para desposar, não me venha
com essa.
— Porque preciso conhecer a mulher com quem vou me casar, ou que
vou me apaixonar, não me importa se ela casará comigo, quero saber como é
estar apaixonado, saber como é lutar por um amor.
“E com tempo poder ver essa mulher talvez se interessar por algum
encanto que eu possa vir a ter, não quero receber uma mulher empacotada
como entrega, por conta de um maldito acordo financeiro.”
Ele me olhou nos olhos, antes de continuar:
— Não tinha outra escolha, não tinha como sair andando por aí à
procura de uma garota que não me visse como troféu, ou a chance de um pai
de ganhar um título. Nem poderia me disfarçar e andar pelas extensões do
reino, meu pai saberia, usei as armas que tinha para tentar realizar isso.
Ele estava tentando fazer algo diferente e já era um começo para mim.
—Tudo bem, eu entendo sua situação, também usei as armas que tinha
para chegar aqui, tenho uma família mantida prisioneira enquanto Dimitri,
Eva e eu nos passamos por eles.
“A família Salazar não tem filhos, venderam todos os homens e
negociaram as filhas com os licans, escondido do rei.
Agora são apenas um casal miserável e corrupto que só pensava em
enriquecer debaixo das barbas do rei, em seus planos incluía criar um
pequeno reino somente deles com o apoio dos licans que teriam como
pagamento vitalício metade de todos os filhos dos escravos que aquela
imensa fazenda poderia fornecer. Agora, se eles fizeram isso, outras famílias
lá fora podem estar fazendo o mesmo.”
Tiago ouvia tudo atento agora, estava tenso com o que ouvia.
— Meu pai está criando uma encrenca daquelas para ele no futuro.
— Não o preocupa isso?
— De jeito nenhum. Não me importo com o que poderá acontecer a ele,
mas como sabe de tudo isso?
— Porque todos os criados das duas fazendas que tomamos foram
levados ao reino sombrio e contaram tudo a Rael.
“Ainda estão sendo vigiados de perto pelos criados antigos do reino,
para que não fujam ou traiam meu povo, mas alguns já têm adoração por eles
por conta da maneira como foram tratados desde que chegaram lá.”
— Os três sombrios pretendem contar isso ao meu pai? Sobre essa
trama de traição fora das muralhas.
— Era a ideia inicial, mas depois de muita conversa, decidiram por não
o fazer, pois isso só manteria ainda mais forte o poder do rei. Abrir os olhos
dele para essas conspirações é fortificar o poder dele e assim ele com mais
poder, pode atacar silenciosamente os sombrios e as chances deles de
sobreviverem à extinção seria ainda menor do que agora.
— Entendo.
Ele ficou um tempo em silêncio, refletindo visivelmente mais calmo e
então me olhou com aqueles olhos ciumentos de novo.
— André? Ainda não entendo como ficaram tão próximos.
Revirei os olhos. — Isso está me parecendo mais ciúme do que
curiosidade.
— Na verdade, não posso negar que seja, você diz odiar os humanos.
Me odeia?
Eu ri e pensei sobre isso. — Não, acho que não, André teima que você
é diferente, talvez até seja. — Olhei para ele de canto de olho, antes de
continuar: — Pelo menos até agora mostrou isso.
— Então por que me trata mal, desde que nos conhecemos?
— Acha que te trato mal?
— Na verdade, parece que não existo para você, todas as garotas
pularam em meu pescoço desde o primeiro minuto e você nem me dirigiu à
palavra e sempre que me aproximo, pareço incomodar você de algum modo.
— Me desculpe se fiz parecer isso, você não fazia parte de meus
planos. E bem...
Fiquei sem graça, mas ele foi sincero comigo.
— Na verdade, você parece fazer de propósito isso de sempre aparecer
no momento inoportuno. No baile, na frente de nossa casa na vila dos
forasteiros e então quando eu estava com Clara e Tina, tinha acabado de
descobrir uma traidora e aí você chega, conversando sobre assuntos
comprometedores.
Uma meia-lua de um sorriso se formou em sua boca. — Vendo por esse
lado, você tem razão, mas hoje no quarto, quando você acordou não gostou
de me ver ali, no entanto, ficou muito satisfeita quando viu André.
Torci a boca, ele ia mesmo insistir nisso do ciúme. — Talvez eu tivesse
agido daquela maneira porque estava de camisola.
Ele levantou as sobrancelhas e eu fechei os olhos, respirei fundo e
puxei o resto da paciência guardada para usar com ele e era tão pouca, ele não
devia abusar muito senão poderia gastar toda ela.
— André já tinha me visto vestida assim, e ele me vê mais como uma
filha, não sei explicar, Tiago, mas o que sinto por André é um profundo
respeito, devo minha vida a ele, entenda isso, ele me passa segurança.
— Mesmo tendo tentado tirar sua vida uma vez?
— Mesmo tentando me matar, eu confio nele.
Tiago voltou a abrir um meio sorriso ao olhar para mim e falou:
— Isso me parece bem, se ficou com vergonha de mim por sua roupa
transparente e não ficou de André, então nem tudo está perdido para mim,
não acha?
Senti o rosto queimar, não tinha pesado minhas palavras, mas ao dizer
que me incomodava ele me ver quase nua e não André queria dizer que ele,
eu via como um perigo. Ele percebeu que fiquei sem graça e então emendou:
— Então eu não estava em seus planos, não é, senhorita Salazar?
Eu não ia deixar a conversa tomar esse rumo, como se não tivesse
entendido seu tom eu, continuei contando:
— André me disse que lhe contou sobre Samuel e a chacina e então
você pediu para seu pai interceder no noivado para me proteger.
Lembrei-me de uma coisa e levantei o olhar para ele.
— Por que parou a música naquele dia no baile? Sei que foi você,
porque o vi cochichando algo com os músicos e então a música cessou.
— Porque parecia que você estava dançando com um fantasma muito
feio e não com o noivo que dizia amar, então como bom cavalheiro salvei a
donzela em perigo, ganhei pontos agora por isso?
Revirei os olhos, ele era insistente, mas não ia dar esperanças falsas a
ele.
— Agradeço por isso, mas de todo jeito, você não está em meus planos.
Ele não esboçou reação ao ouvir aquilo então me senti mais à vontade
para continuar:
— Só precisava tentar descobrir o motivo de o rei ter boicotado a
entrega aos Sombrios, o motivo de ele querer dizimar com a raça e por que
tende tanto para o lado dos licans, chegando a fornecer mulheres para que a
raça deles aumente, enquanto a nossa some.
— Não conhece nada mesmo dos planos de meu pai, não é?
Senti meu coração acelerar, pelo seu tom, ele iria me contar, e as
respostas para tudo viria de quem eu menos esperava.
INTENÇÕES DECLARADAS

Fiquei em silêncio, ansiosa para que ele começasse a falar.


— Sabe que aqui é uma feira, não sabe?
Afirmei, claro que sabia.
— Acontece que meu pai está sabotando-os também, mas de uma
forma diferente. De dez mulheres mandadas aos licans, apenas uma vai
inteira. Enquanto isso, meu pai expande seus domínios. Por mais que
tenhamos pelo acordo dos Párias de fornecer crianças a outras raças, ainda
assim, os humanos crescem em ritmo acelerado e sempre se precisa de mais
espaço.
“E com toda essa negociação, mais homens estão enriquecendo, mais
mulheres são vendidas e com os pedaços de terra que os licans estão
liberando como parte do pagamento, meu pai já andou investindo pesado.”
Contive a respiração e mantive uma postura tranquila enquanto ouvia,
mas por dentro sentia ondas nervosas em meu estômago, eram informações
valiosas, eu precisava saber mais. Ele continuou falando, olhando distraído
para um ponto qualquer:
— O que restava de território na divisa com os leviatãs ele já absorveu
tudo, agora pretende expandir para outro lado, visto que com os sombrios o
limite não é longe… Resumindo… O rei conseguiu alcançar o limite de
fronteira das três raças, estrategicamente é muito bom, diz ele. E para você ter
uma ideia, uma vila foi criada próxima à prisão, para facilitar a entrega dos
corpos. É basicamente outro bairro de procriação e lá pelo menos dois
prédios são construídos a cada mês, logo ele alcançará o antigo bairro, se
tornando quase uma nação.”
Eu fiquei impressionada, o bairro da procriação já era imenso se
aumentasse mais ainda seria um local perdido, nada mais que se fizesse ali
dentro poderia ser controlado, mas me mantive em silêncio, precisava saber
tudo o que conseguisse daquele lugar e dos planos do rei. Ele continuou:
— Não dá para ver daqui, precisa viajar por praticamente meio-dia para
chegar lá. Agora, pensa o tamanho que ficará quando o bairro novo se
aproximar do velho, pensa na quantia medonha de crianças que serão
fornecidas.
“Meu pai está aumentando tudo, tanto o poder territorial quanto o poder
dos exércitos dos humanos. A longo prazo, o reino Humanis será o mais
poderoso das quatro raças e aí é que está, Diana, ele enfraquece na surdina
não só os sombrios, mas os licans também.
Meu pai não é bobo, ele tem um cirurgião ao seu lado, não me pergunte
como, não era mais para eles existirem. Aquelas masmorras são lugares de
todo tipo de experiências.”
Ajeitei-me no banco para esconder minha ansiedade, a masmorra,
minha cobiça de informação estava ali. Tiago continuou falando, sem saber
que chegou ao ponto e eu prestei mais atenção.
— Acredite, a mulher chega lá drogada e não percebe quando seu útero
é praticamente destruído com vários tipos de poções, ou sei lá o que fazem,
pela conversa de meu pai e as perguntas respondidas a ele com disfarce sobre
o assunto, eu juntei as peças.
“Ou elas têm o útero destruído com poções ou eles são retirados em
cirurgia, mas não sei qual dos dois está certo. O que sei certamente, é que
elas não podem mais engravidar. Passam por um processo de cura de muitos
dias, um cuidado com a devida atenção por perigo de inflamação.
Mas quase todas sobrevivem e voltam ao normal, achando que
passaram por uma enfermidade qualquer, então todas elas são proibidas por
seus maridos de falar disso, pois segundo eles, elas podem parecer menos
atrativas aos olhos do rei ou de outras mulheres do harém.”
Fiquei impressionada com a inteligência do rei, com a covardia e
crueldade também.
— Então, basicamente, todas guardam o mesmo segredo uma das
outras?
— Sim, aqui só ficam as perfeitas e então, por medo de o rei influenciar
os maridos a mandá-las para um prostíbulo se souberem, elas não comentam
nada, por isso que nem mesmo as servas sabem disso. Elas mal fazem ideia
de que passam por isso, porque foram escolhidas para fazer parte de um lote a
ser analisado pelos licans.
— Um lote? Como assim, Tiago?
— Não sei direito, Diana, só sei que quando é dia de o Alfa vir, apenas
as mulheres já mutiladas é que ficam.
As outras recebem a ordem de não saírem nesse dia, ficam recolhidas
nos dormitórios, e para não dar muito na cara, a cada lote de nove mulheres
compradas, uma vai saudável.
— Elas nem desconfiam dessa trama? Não podem reclamar com
alguém ou mesmo com o Alfa sobre a enfermidade?
— Elas não fazem ideia, porque para elas foi apenas uma pequena
doença. Nem elas mesmas sabem o que aconteceu, e como eu disse, não
podem comentar com ninguém.
— Pai eterno! Seu pai faz isso com elas, e as aterroriza com o perigo de
serem abandonadas, se ele souber que elas passaram por uma enfermidade
que ele mesmo causou? E ainda as coloca em perigo, pois se os licans
descobrem que elas não podem engravidar, podem descontar nelas o negócio
mal feito.
— Por isso eu digo, não faço parte disso tudo. Acho que somente os
leviatãs não estão na mira dele, e se estiverem eu não percebi.
Quanto mais eu ouvia sobre o rei Júlio, mais sentia asco.
— Mas os leviatãs não estão controlados? Tirando um ou outro que se
rebela, eles respeitam o pacto, não?
— Na verdade, eles se mantêm quietos, mas são perigosos e tivemos
sorte de as rainhas terem sido destruídas na guerra da supremacia. Agora só
restam as fêmeas normais, e graças a Deus elas não podem procriar, senão
estaríamos em sérios riscos de mais uma guerra.
— Mas eles não são desprovidos de inteligência? Como eles respeitam
então o tratado? O acordo?
— Não sei, Diana, quase irracionais eu sei que eles são, mas devem ter
o instinto de sobrevivência muito forte, são selvagens, devem se sentir
acuados por estarem em menor quantia.
“Talvez se uma rainha tivesse sobrevivido e a espécie deles estivesse
aumentando, eles poderiam ficar mais corajosos, leviatãs atacam em bandos,
então explicaria o fato de estarem calmos, são poucos, não precisam atacar
por comida e não tem uma rainha para lhes direcionar.”
— E por que seriam perigosos se houvesse uma rainha? E por que só
ela pode procriar?
Tiago coçou o queixo. — Vejamos... Não sei direito, mas as poucas
informações que li sobre o passado, é que os cientistas os criaram para que
agissem como formigas ou coisa do tipo.
“Foram criados como armas de defesa, era para serem comandados no
exército por militares, e então para poder conseguir isso criaram um sistema
estilo formiga.
Em algumas poucas imagens nos restos dos livros que se salvou,
mostra uma rainha dormindo presa a um enorme casulo, em outra imagem ela
está andando normalmente entre os leviatãs, então pelo que deu para
entender, ela se mantém realmente presa ao casulo à noite, parece preso a ela
pelas costas de alguma forma, mas a imagem não estava completa.”
— Por que esses militares usariam guerreiros sem inteligência?
— Por isso mesmo, se mantivessem a rainha sob controle, controlariam
o resto.
— Não deu muito certo, pelo visto, destruíram quase tudo.
— Tem razão, Diana. Não deu certo porque as rainhas tinham
inteligência fora do comum, o erro pior dos humanos, foi a crueldade.
“O resultado foi catastrófico quando elas acabaram se voltando contra
seus criadores, dando a ordem para que os humanos fossem destruídos.
Não demorou nada para o caos acontecer, pois passaram a destruir
qualquer coisa que se movia, até a união dos três contra eles.
Nessa guerra, as primeiras a serem caçadas foram elas, e como à noite
não dormiam sem estarem presas ao seu casulo, ficavam vulneráveis, e como
o casulo parece que é gigantesco, pois acopla vários fetos de leviatã de uma
vez, era fácil achar sua caverna.”
— Pelo menos isso, mas se for para pensar com calma e realmente seu
pai tiver algum plano contra os leviatãs também, então seu pai está atacando
as três raças que restam fora os humanos. Isso é um abuso de poder
desmedido e só mostra as intenções dele de destruir tudo, só deixando os
humanos.
Tiago concordou, pensativo.
— Ele vai acabar é destruindo o reino Humanis desse jeito, nada fica
impune para sempre.
Concordei, pensativa, o dia começava a chegar. O cheiro de orvalho
dominava tudo, e o cinza mórbido do fim da madrugada se espalhava, era
hora de acabar aquela conversa, uma pena, muita coisa ainda podia ser
descoberta.
— Preciso ir, não podem nos ver juntos, se uma delas me vê saindo do
pomar com o príncipe, eu serei massacrada.
Estava já me levantando, mas me virei, tinha me esquecido com tanto
assunto a tratar.
— Olha, antes que me esqueça, Tina é uma possível espiã. Esse foi um
dos motivos de eu ter tentado me livrar de você quando conversava com
Clara.
Ele levantou as mãos, olhando para o céu como uma prece.
— Folgo em saber que não é meu mau cheiro ou minha perna manca
que a faz ter asco de mim.
Sorri. Era a primeira vez que sua piada não me fez vê-lo como idiota.
— Realmente devia cuidar dessa perna.
Eu ri, dando alguns passos e me lembrei de outra coisa antes de
novamente seguir.
— Aquele sono não foi normal, não é?
— André acha que não, ele acha que algumas meninas te consideram
um perigo a elas e por conta disso colocaram alguma coisa em sua mesa para
que saísse do caminho durante o almoço e jantar, ou podia ser mortal, se você
fosse totalmente humana.
— Por que fariam isso? Eu nem olho em sua direção desde que cheguei
aqui.
Sem nem piscar ou tirar os olhos dos meus ele falou:
— Só que eu não paro de olhar para você desde que chegou, e elas já
perceberam isso.
Nunca em toda minha vida tinha conseguido ficar tão vermelha, ele
nem gaguejou para falar, apenas disse com toda simplicidade aquilo, como se
fosse uma coisa natural.
Sem conseguir dizer nada, me virei e andei, depressa. Era uma coisa
nova ser pega de surpresa assim, não sabia se sorria com a lisonja ou se
voltava lá e lhe dava mais um tapa na cara, para que nunca mais me deixasse
envergonhada daquela forma.
Não que eu estivesse morrendo de amores por ele, mas era uma
experiência diferente ser olhada daquela maneira, não ser vista como criança
e sim como mulher, ainda mais quando não parecia que me via como um
objeto.
Sorri novamente e dessa vez pensando em algo além de um tapa.
Ou poderia lhe dar um beijo por ter sido tão galante, mas um bom tapa
eu sabia como dava, então essa ideia me pareceu mais fácil na prática.
Entrei no quarto e já fui tirando a roupa, precisava tomar um banho,
mostrar a elas que o sono apenas me fez bem, que não tinha abalado meu
emocional ter perdido duas refeições com o príncipe.
Bom… Eu mostraria se ele realmente fosse de confiança como dizia
André, se ele não estivesse me enganando para saber tudo de mim, para
depois levar a história toda ao pai dele, então eu nada podia fazer.
Senti um frio no estômago ao pensar nisso. Calma, Diana, como diz
Nicolae: saberei meu destino em breve.
Troquei-me rapidamente, escolhi o vestido que mais me caía bem,
todos ali foram feitos sob medida, mas sempre tem aquela peça que nos dá
segurança, então escolhi o vestido turquesa, um modelo mais simples do
usado no dia do noivado. Esse não tinha nenhum bordado e era de tecido leve
e um pouco transparente, longo e solto da cintura para baixo, com alças
simples e comportado no busto, me olhei no espelho que estava fixado na
porta do roupeiro e aprovei o que vi.
— Queria tanto saber onde Rael arruma esses modelos de roupa. Sei
que ele é antigo, mas é impressionante como ele tem bom gosto.
Prendi o cabelo e dessa vez não fui displicente, deixei apenas as
mechas que escolhi caírem livremente, peguei a mistura para colorir os
lábios, me olhando no espelho, continuei falando sozinha:
— Antigamente isso aqui, segundo Nicolae, seria mais firme e eu
poderia fazê-lo sair e entrar em um tubo. Maldito tratado dos Párias.
Revirei os olhos, tanta coisa para os Sombrios escolherem como parte
do acordo e optaram justamente pelo modo de vida antigo, destruindo com
isso qualquer tipo de vestígios de um passado moderno e essa escolha não os
ajudou muito a fugir da extinção.
Já a escolha dos licans de ficar com o resto do mundo destruído era o
que os ajudava agora, depois de tantas eras passadas.
Meu subconsciente me sussurrou isso. Eles têm algo que os humanos
cobiçam… Terras.
Calcei sandálias com a sola muito fina e me levantei me sentindo
pronta, porém, um tanto relutante, ainda sentia receio de que Tiago não
estivesse sendo completamente verdadeiro.
Toda a conversa da noite me remoía, o que os sombrios poderiam fazer
com aquelas informações? E se porventura os licans pudessem ser avisados
disso, o que poderia acontecer ao rei Júlio? Era uma coisa interessante de se
imaginar e ao mesmo tempo incerta, não fazia ideia de como eram os licans.
Ao sair do dormitório, levei um susto, aquela multidão de garotas
reunidas só poderia indicar uma coisa, Tiago me traiu e elas esperavam
ansiosas ali para me ver ser arrastada pelos guardas para a masmorra.
Empinei o nariz e andei como se minha vida não corresse nenhum
risco, mas corria, mesmo que não fosse assassinada poderia morrer de uma
síncope ali mesmo, de tão nervosa que estava.
Eu o via, logo à frente perto do quiosque estava Tiago, com um papel
na mão, assim que me viu começou.
— Agora que todas estão aqui, quero avisar que decidi diminuir o
número de meninas, gostei de conhecer todas vocês, mas fiz minha escolha.
Houve murmúrios entre as garotas, estranhei isso, elas pareciam tão
surpresas quanto eu. Tiago continuou:
— As que eu não chamar, são as que eu ainda deposito minhas
esperanças de ser a mulher a qual pretendo conhecer melhor e, quem sabe,
ainda venha a se tornar minha esposa.
Respirei, aliviada, pelo menos não era uma multidão para me ver sendo
levada presa.
— Ele é galante — Clara falava ao meu ouvido.
Sorri e concordei, mas não era um sorriso verdadeiro, Tiago era mesmo
muito galante, isso eu não podia discordar, todavia, depois do ocorrido, eu
não podia confiar em ninguém.
Ela estava na mesa comigo junto com mais outras nove garotas e uma
delas batizou minha comida.
Se eu fosse completamente humana, esse veneno poderia ter me feito
dormir por dias ou mesmo cair em coma ou poderia até ter morrido e, por
sorte, eu não era. Até mesmo as outras garotas poderiam ter posto algum
veneno comprando a algum servo do harém, todos tem seu preço.
Então ou era para me matar ou me pôr a dormir realmente, quando
Dimitri viesse me visitar, ele saberia me dizer o porquê de eu dormir um dia
inteiro como imortal e qual efeito teria sobre mim, se eu fosse completamente
humana.
Tiago eliminou quinze meninas das quais, Tina estava no meio.
— Agora somos dezoito meninas — Clara falou novamente em meu
ouvido, mas eu não queria saber quantas eram, queria saber qual era a real
intenção de Clara, se ela era verdadeira quando falava comigo ou se queria
me matar para me eliminar, então falei o que me veio à cabeça como instinto:
— Depois desse ótimo sono que tive, acho que acordei mais lúcida
sobre o que estava perdendo em não investir no príncipe, acho que vou
começar a dar mais atenção a ele, não perderei a chance de tentar conquistá-
lo, se ele vier falar comigo.
Clara sorriu, alegre. Seus olhos não mudaram e suas feições também
não, mas algo me deixou com um pé atrás, agora todos me inspiravam
desconfiança, era meu sentido de proteção em ação.
Ela falou, ainda sorrindo:
— Acho que farei o mesmo, já que não fui eliminada de primeira,
quero ver até aonde consigo chegar.
Assim, declaramos nossa intenção abertamente e continuamos a falar
futilidades, ela parecia a mesma dos primeiros dias, entretanto, a semente da
desconfiança já tinha sido plantada dentro de mim. Plantada em forma de
veneno e eu ia descobrir quem era!
Depois do comunicado de Tiago, o dia passou enfadonho, sem
nenhuma novidade ou pista que me ligasse ao atentado.
Outro dia e ainda não tinha conseguido descobrir nada de útil, cheguei
à mesa para o café da manhã e Tiago não compareceu.
Sentamo-nos todas juntas, dessa vez, mas agora, ao contrário dos outros
dias, já sobrava muito espaço.
Fingi comer de tudo, mas, na verdade, não comi nada do que me foi
oferecido, nada do que havia na mesa. Apenas disfarçava, enquanto
mastigava ar e bebia saliva.
Eu não precisava de tanto alimento para me sentir bem, então eu sabia
onde teria comida com fartura para mim o tempo todo.
Já estava me servindo desse banquete natural desde o dia anterior,
ainda não tinha sequer uma pista de quem me envenenou. Desde a conversa
no pomar, não tinha trocado mais que algumas frases com Tiago que estava
dedicando total atenção a uma morena de olhos castanhos.
Parecia muito simpática e ele estava dedicado a conhecê-la melhor,
quase nem nos olhamos desde o pomar.
Apenas conversava futilidades com Clara, porém, agora também
estávamos mais distantes, não juntas o tempo todo.
Aquele veneno me fez lembrar que nenhum humano era de confiança,
então entrei no jogo das risadinhas e conversas bobas, mas nenhum vínculo
era criado. Para mim, todas elas eram inimigas, sem exceção.
Neli, irmã de Samuel, vivia pelos cantos e não aceitou aproximação
nenhuma vez, mal respondia um oi e apenas ficava no quarto quando a
refeição acabava, era invisível completamente. Tinha desistido dela.
Quando o café da manhã acabou, cada grupinho de meninas já tinha
elaborado planos para o dia e eu, para me manter distante fui para a biblioteca
pegar algo para ler.
Voltava ao meu velho costume de me entreter com as letras, livros não
traem, não envenenam e não te magoam, era mais seguro tê-los como amigos.
Escolhi um e tentei avaliá-lo. Quase todos estavam destruídos ou
parcialmente queimados.
Miguel de Cervantes, o nome do autor, uma pena que parte do título
estava queimado, então eu lia Dom e o resto faltava.
Parecia-me interessante, um livro que sobreviveu a uma era de guerra e
destruição. A qual os leviatãs destruíam tudo por onde passavam.
Dei graças ao me lembrar que essa sabedoria dos cientistas estava
perdida e o único perigo agora era uma guerra entre os Párias, pensando nisso
já começava a entender o motivo de os sombrios escolherem a forma de vida
antiga.
Analisei todo o livro, as bordas também estavam queimadas, mas tinha
todas as páginas, um sobrevivente de incêndios.
— Olá, meu amigo, vamos saber o que você tem para me contar.
— Falou comigo, flor?
Olhei para a porta e ali estava uma garota que estava passando bem na
hora que eu falei, era a cretina que tinha me expulsado de seu lugar, em nosso
primeiro dia.
— Não, flor, estava lendo em voz alta.
— Então é letrada?
— Então você não é?
Eu estava sendo sarcástica, mas ela não pareceu ter percebido e
respondeu normalmente, me olhando de cima.
— Não perdi meu tempo aprendendo essas futilidades, precisei desde
cedo aprender a me vestir, me portar, saber o que um homem deseja para
sempre agradá-lo e costurar e bordar.
— Uau! Realmente aprendeu muita coisa, e realmente nada fútil, não
faço ideia de como me portar perto de um homem, menos ainda agradá-lo e
pior, não sei nem passar a linha em uma agulha.
Ela abriu aqueles imensos olhos azuis para mim.
— Está falando sério? Isso é terrível.
Novamente ela não tinha entendido meu sarcasmo, comecei a imaginar
o que Tiago tinha visto nela para deixá-la ali ainda.
— Se quiser, flor, posso te ensinar o básico, quando não estiver muito
ocupada.
— Obrigada, flor, gostaria muito, se não for tomar seu tempo tão
corrido.
Ela piscou para mim, com superioridade.
— Claro que não, bobinha, farei com muito prazer.
Ao dizer isso, ela continuou seu caminho pelo corredor, andando reta,
era uma moça muito bonita, mas realmente não teria nada para me ensinar.
Um dos motivos para o reino Humanis estar daquela forma, era porque
as mulheres aceitavam esse tratamento, pareciam nem almejar o devido
respeito. Nenhuma delas pensava em liberdade ou em lutar para ter direito
igual aos homens. Eu não pretendia em nenhum momento de minha vida
servir um homem como uma criada, não mais.
Aprendi com os sombrios que mulher deve ser amada, protegida e
incentivada a ter a própria opinião, pois com estudo e dedicação poderia ser
tão ou mais inteligente que um homem, aprendi também que um
relacionamento verdadeiro tinha que ter respeito de ambas as partes, senão
não seria um relacionamento que valesse a pena.
E aquela pobre garota foi ensinada que para ser feliz tinha que aprender
a servir, que ser vendida era um status que todas queriam, para poder disputar
entre elas quem recebeu a maior oferta, qual era a mais cara.
Balancei a cabeça e segui com meu livro para o meu café da manhã,
carregava um cesto pequeno comigo e assim que entrei no pomar comecei a
andar pelas árvores para escolher as frutas, minha sorte foi minha audição
apurada.
A conversa seguia baixa e tranquila, pela altura eu calculei que estavam
longe, na parte mais isolada do pomar.
— Funcionou mais ou menos, ela dormiu o dia todo.
— Estranho, quando eu fiz era para tirá-la da jogada, não era para ter
melhorado e voltado aqui. E você viu como ele olha para ela? Bem que
disseram que ele ficou caidinho por ela desde o baile.
Não tinha como não saber de quem falavam, ali estavam as autoras e
pela voz eu não soube dizer quem eram.
— Vou cuidar daquela moreninha agora.
— Acha mesmo que não irão desconfiar, depois da primeira?
— Vão nada! Para aquela lá prepararei algo muito pior, vou acabar com
aquele rostinho formoso dela, enquanto penso em algo melhor para
aquelazinha sem atrativos e de nariz empinado, viu como ela não olha para
ninguém? Deixa-a comigo, e dessa vez, ela não acordará mais.
— Não pode fazer isso, Célia, isso pode pôr tudo a perder.
— Perder para quem? Você já tem a vida ganha, o rei te adora. Te
enche de mimos, já eu… E você viu o que papai disse, se eu não for
escolhida, irei para a casa de diversão. Por isso vou eliminar as que me
oferecem risco.
— Papai não faria isso, ele sabe que você pode dar a ele muitas posses,
e o rei não adora ninguém, ele só dá presentes. Não faz nada além de me
vendar os olhos e enfiar um pau no meio de minhas pernas, se isso é adorar
não quero nem saber o que ele faz com as que ele odeia. E papai sabe sim os
lucros que você poderia dar a ele, não fale tolices.
— Sim, mas não quero arriscar para saber se isso é verdade, você
poderia falar com o rei, né, para que ele me colocasse em sua lista de
possíveis esposas, você é amante dele há tempos, ele vai acatar seu pedido.
— Está maluca? Se eu peço isso, ele vai me castigar, já aprendi minha
lição, não posso pedir nada, tenho que aceitar o que ele me der.
Pronto, uma espiã do rei com uma irmã desesperada. Andei depressa
para ver seus rostos. Elas não perceberam minha aproximação, ali estavam
elas abaixadas com uma terrina amassando várias ervas, os cabelos negros e
muito bem cuidados cobriam seus rostos.
— Olá, estão fazendo um piquenique? Posso me juntar a vocês?
Elas se assustaram, mas logo se recompuseram.
— Oi — disse a mais alta.
Reconheci sua voz, era a espiã do rei, então o nome da outra era Célia,
a irmã desesperada.
— Não poderemos lhe convidar porque já estávamos de saída, mas
fique à vontade por aí, vamos indo, Célia.
As duas seguiram em silêncio com a terrina na mão, sem nem se darem
ao trabalho de arrumar uma desculpa para estarem amassando diferentes tipos
de ervas, com certeza alguma delas, venenosa.
A mais velha era a morena bonita que se apresentou no salão assim que
eu me sentei, infelizmente não me lembrava de seu nome, mas seu rosto eu
iria sempre lembrar.
Precisava descobrir ao menos o número de seu quarto para avisar
André, antes que elas conseguissem mesmo fazer mal à Clara, agora não
podia ir atrás delas, poderiam desconfiar que eu soubesse de algo.
Tinha que esperar André aparecer ou a tarde chegar. Qualquer das duas
opções me daria tempo, sem nada poder fazer no momento, decidi pelo que
tinha pensando antes, me alimentar.
Passeei pelo pomar, procurando árvores cheias e depois que as
encontrei ali fiquei, maçãs, romãs, amoras, cerejas, figos, peguei um pouco
de cada e me sentei na pracinha pequena no centro do pomar.
Enquanto lia, esfregava com um lenço uma fruta e levava à boca.
O livro estava ficando interessante e eu acabei me esquecendo das
frutas no cesto, fiquei totalmente absorta na história do cavaleiro que naquele
momento confundia um rebanho de ovelhas com tropas inimigas, e depois de
atacá-las, passava a correr atrás de um homem acreditando estar invisível por
usar uma bacia na cabeça.
Estava rindo das peripécias do cavaleiro e não percebi a aproximação,
não vi quando aconteceu, estava distraída com a história.
Senti apenas uma punhalada acima da cintura do lado direito e caí de
bruços, a dor era maior do que a que levei na barriga, meus sentidos foram se
apagando rapidamente.
Ouvi o barulho dos passos rápidos, do tombo, do suspiro quando caiu e
se levantou e então com uma dor excruciante na cintura… Apaguei.
CONHECENDO A SI MESMA

Acordei com André me botando compressas frias. Sentia uma ardência


fora do normal no ferimento.
Tiago estava sentado na cama ao meu lado, falou, quando me viu
acordada:
— Diana, finalmente acordou.
Ele estava preocupado, seu semblante era de cansaço extremo.
— Estou bem, só preciso descansar.
Sentia o corpo fraco, como se realmente o veneno estivesse sugando
minhas energias.
— Não tão bem, havia alguma coisa na faca, algum tipo de veneno que
está fazendo a ferida demorar a sarar. Pelo seu histórico, você deveria ter
sarado em um dia. Hoje contam dois dias, porque está quase anoitecendo,
nesse tempo, ao contrário do que imaginamos você piorou e ainda tem febre,
isso é sinal que ainda expele o veneno que está em seu corpo.
Ele me olhou preocupado e pensativo, André ainda cuidava do
ferimento sem falar nada e Tiago perguntou:
— Sabe quem foi?
Balancei a cabeça, não sabia.
— Sei que foi mulher, ela caiu quando corria e ouvi seu suspiro, mas
não sei dizer quem é.
— Isso está indo longe demais, André. Vou cancelar essa porcaria, não
foi uma boa ideia, as coisas estão fugindo de controle.
— Não — eu falei, preocupada.
Tinha descoberto coisas importantes, mas não tinha tido nenhuma
informação que precisava, voltaria ainda sem saber o motivo, sem saber de
nada que realmente fosse ajudar os sombrios.
Segurei a mão de Tiago.
— Por favor, preciso de mais tempo, senão tudo terá sido em vão,
Tiago, por favor.
Fiquei desconcertada com seus olhos para mim, estava muito pensativo
e muito estranho, olhou para meu ferimento e ficou distraído por um tempo.
Voltando a falar, se recuperando rapidamente:
— Não posso, Diana, alguém quer mesmo matá-la, dois atentados em
dois dias, é muita coisa. Não posso permitir que se machuque por um
capricho meu, e sempre foi um capricho, nada mais do que isso.
André tinha terminado e me cobriu.
— Posso ficar com ela como acompanhante, se permitir, pode dizer que
é para a segurança e que se descobrir a autora disso, vai punir com o exílio,
assim quem sabe pode arrefecer os ânimos.
— Sim, Tiago — eu disse, pegando o gancho de André. — Por favor,
não acabe com o cortejo, preciso ficar aqui.
Ele se abaixou perto da cama e beijou minha mão, ainda estava
distraído como se tivesse mais problemas do que um atentado a uma
aspirante a esposa naquele momento.
— Se acalme e vamos ver o que faremos, durma e tente ficar boa, por
favor.
Eu estava sonolenta, era verdade, mas precisava contar a eles o que
tinha ouvido no pomar.
— Eu descobri quem me envenenou, mas não acredito que seja a
mesma pessoa que me apunhalou.
— Nomes — ele disse, sério, estava concentrado com seu rosto
transfigurado por querer caçar as autoras disso.
— Uma se chama Célia e tem sua irmã, mas o nome dela eu não sei,
mas faziam planos agora de atacar Clara.
— Sei quem são, não se preocupe, as mandarei para casa.
— Como me encontraram?
André ainda me pondo panos frios na testa, falou:
— Eu vim ao quarto à tarde lhe trazer algo para comer, pois imaginei
que não comeria nada que tivesse à mesa e você não estava. Te procurei por
aqui, na biblioteca e nada. Então imaginei que estaria no pomar, é o local que
mais gosta de ficar. Quando cheguei vi você caída ao lado de um livro e um
cesto com frutas. Não havia sinal de luta, corri quando vi o sangue. Te trouxe
aqui e agradeci imensamente por ninguém ter visto, pelo menos não veio
ninguém fazer perguntas.
Pedi a uma criada para chamar Tiago e estamos, desde então, tentando
entender o que aconteceu, mas vamos dar jeito nisso.
— Obrigada, André, não sei o que seria se não tivesse aparecido, quem
começou poderia muito bem voltar para terminar o serviço.
— Mas não aconteceu, menina, fique tranquila.
Assenti e flagrei Tiago me olhando com um olhar diferente, se não
fosse Tiago eu poderia jurar que eram olhos de comerciante, mas junto com
isso estava realmente preocupado e isso era estranho. Algo se passava em sua
cabeça, entretanto não perguntei nada e ele saiu do quarto em silêncio, e
André também saiu em seguida ao me ver dormitar.
Virei-me de lado e respirei fundo, estava cansada. Dormir, apenas isso
me ajudaria a sarar, nenhum remédio me curaria. Apenas minha parte
sombria faria o trabalho de tirar o veneno.
Estava escuro e eu sentia o corpo pesado, adormeci. Nem consegui me
preocupar quando meu sono foi perturbado por mãos que mexiam em meu
ferimento, o sono pesado por conta do veneno me fez apenas resmungar um
pouco e voltei a dormir em seguida, quando fui deixada em paz.
Poderia ser André trocando o curativo, pensei no meio de meus
devaneios de sono.
Sentia o calor do dia que chegava, senti a pressão dos cobertores em
cima de mim, acordei me sentindo sufocada.
Meu corpo ficou rígido e meu coração disparou ao sentir alguém na
cama, com receio abri os olhos devagar e vi um peito largo e forte à minha
frente, pisquei várias vezes para acordar e em todas as vezes que abri os
olhos, ali estava o torso nu.
Tiago estava do meu lado na cama dormindo tranquilo, abraçado à
minha cintura com o queixo apoiado em minha cabeça.
Não me admirava estar me sentindo sufocada e com calor, estranhei o
peso do seu braço, eram braços fortes e musculosos e me incomodou o
aperto, mas já estava acostumada de sempre acordar com Nicolae ou Dimitri
do meu lado por causa dos pesadelos.
Nicolae também era forte e tinha os braços pesados, mas nunca me
sufocou ele estar abraçado a mim, era... diferente.
Porém com Tiago também era diferente, não o conhecia direito e de
uma forma estranha ele me incomodava, um estranho, um contato novo e
íntimo demais já que sem camisa os sombrios nunca ficaram deitados ao meu
lado.
Essa nova experiência parecia interessante, porque eu não me
desesperei como imaginei que aconteceria se um dia um estranho se
aproximasse assim. Só que no fundo de minha alma sentia como se fosse
errado. Sentia uma ausência como se algo importante estivesse se
distanciando, algo estava fora do lugar e eu não sabia o que era.
Ele estava agarrado a mim como se tivesse medo de que eu fugisse,
queria me levantar, mas não queria acordá-lo.
Sorri estranhando tanta novidade, pela primeira vez não tive medo de
um homem que não fosse um sombrio, e aquele gesto simples dele eu gostei.
Sem precisar disso, ele tinha passado o tempo todo ao meu lado, ou
isso, ou estava aproveitando a situação, mas fosse qualquer das duas
situações já não teria raiva dele. Já tinha um carinho por Tiago, sentia carinho
por ele tentar ser diferente do pai.
Com leveza olhei para cima e ali estava um belo homem dormindo
pesado de cansaço e o mais estranho, ele não parecia dormir sereno, mesmo
parecendo tranquilo ao olhar com atenção dava para perceber que não estava.
Tinha o rosto marcado por alguma preocupação, estava com o
semblante fechado ao dormir, ninguém que dorme assim tem a consciência
tranquila. Tiago tinha seus fantasmas e dava para ver em seu rosto isso,
mesmo com aquela preocupação em sua face ainda estava bonito.
A barba rala por fazer, o cabelo liso e castanho-escuro espalhado por
todo seu rosto, nunca tinha reparado antes, mas sua cicatriz no queixo vendo
de perto parecia formar a letra y e era branca, uma cicatriz antiga.
Ele abriu os olhos e me pegou de surpresa o encarando, seus olhos
escuros fitaram os meus e ali ficaram.
— Gosta do que vê? Ou está procurando chifres nesse monstro à sua
frente.
Suas palavras eram amargas, como se estivesse se punindo por algo,
mesmo assim senti um rubor no rosto pelo flagrante, mas mantive a pose.
— Sim, até que seria agradável se eu conseguisse prestar atenção, é que
meu pulmão está gritando por ar aqui dentro desse casulo de pernas e braços.
Imaginei uma resposta engraçada dele, mas o que recebi foi um beijo.
Não tive tempo de me esquivar, ele tinha sido rápido, de início levei um
susto. Não tentei empurrá-lo, apenas não sabia o que fazer, foi tudo confuso e
antes que eu pudesse refletir sobre aquilo, eu estava retribuindo, o problema é
que nunca tinha beijado, mas era uma boa aprendiz.
A sensação foi boa, terna e me senti esquisita, era uma sensação
estranha, nova para mim, que me deixou surpreendida com as ondas em
minha barriga, nunca ser beijada lhe faz ter ansiedade pelo aprendizado,
estava confusa quando ele deixou meus lábios.
— Fico feliz que esteja melhor. — Sua voz estava rouca.
— É… eu também.
Rimos, eu poderia ter dito muita coisa depois daquele comentário dele
com a voz rouca, mas “eu também” foi completamente idiota.
Ele me ajudou a levantar e fiquei constrangida. Não era agradável ele
me ver daquela maneira, fraca, com os cabelos desgrenhados e suja de suor.
Outra sensação nova, me preocupar com o que um homem poderia
pensar e ali estava eu, deixando partes de meu muro tão bem construído cair
aos poucos.
Preocupou-me, sim, do tanto que poderia me achar menos atrativa
estando naquele estado, não porque eu sentia algo a mais por ele, nem sabia o
que sentir, na verdade, ainda mais naquele momento com um ato tão íntimo
como um beijo.
Queria estar mais feminina, olhei para baixo, envergonhada, primeiro
beijo em meio a desastres de suor, cheiro de remédios e cabelos
emaranhados. Que lindo!
— Não, Diana.
— Não o quê?
— Não faça como as outras. Não se preocupe com sua aparência, com a
maneira em que está agora. Você não é assim e é isso que mais me chamou a
atenção em você, desde o primeiro dia que te vi no baile de máscaras. Você é
diferente de todas que conheci, não olha com inferioridade, ao contrário, nos
vê como inimigos a serem esmagados.
“Você não se importa com o que as outras garotas vestem, na verdade,
é tão segura de si que chama atenção até das mulheres, não só a minha. E
agora está fazendo isso.”
— Eu entendo o que quer dizer, mas realmente não dá para uma mulher
se sentir à vontade quando acabou de ter seu primeiro beijo estando suja e
suada. É completamente impossível não se deixar levar pelo instinto
feminino, não nessas horas, entenda que é constrangedora a situação.
Sem contar que com o que ele havia dito, me senti um troféu a ser
conquistado, a corça que precisava perder o título de inalcançável ou mesmo
a lebre que nunca foi capturada. Era isso, eu era apenas algo a se dobrar?
Tiago me tirou dos meus pensamentos.
— Primeiro beijo?
Levantei uma sobrancelha com o tom de sua pergunta.
— Achou mesmo que os três sombrios me ensinaram tudo? Que se
voluntariaram para uma coisa dessas?
— É que você parecia tão segura de si, tanto que assustou até as outras
meninas ao ponto de elas quererem te ver morta. E esse beijo foi…
Ali estava eu de novo preocupada.
— Foi?
— Não sei dizer, foi diferente, nunca senti nada parecido ao beijar
alguém então pensei que já tinha experiência, e aqui está você me dizendo
que é seu primeiro beijo.
Queria saber que diferença era essa, mas era uma curiosidade idiota e
jamais perguntaria, então me restava reconstruir novamente o muro, mesmo
que fosse de tijolos de mentira. Ou de poucas verdades.
Era sim curiosa em saber como era um beijo, pelo menos eu queria
saber antes de beijar Samuel e adoecer de nojo, mas minha curiosidade
feminina se limitava a apenas isso, saber se ia sobreviver a Samuel.
Até então, nunca tinha pensado sobre mais que isso, contudo, faltava
alguma coisa dentro de mim, mas ia deixar para pensar depois sobre isso.
Tiago me olhava confuso com meu silêncio, se ele ao menos
imaginasse a confusão maior que eu sentia, era tudo tão novo que eu não
sabia encaixar nada no lugar, não sabia lidar com nada daquilo, não era para
me envolver com alguém que eu tinha ido ao reino e agora lá ia eu a me
esquivar disso.
— Existem outras coisas na vida para se pensar além de homens,
Tiago, não vim aqui por sua causa eu já disse e realmente não o quero
magoado e nem quero me magoar nisso tudo, já tenho minha cota de
sofrimentos e não pretendo aumentá-la agora que estou bem.
Ele ficou pensativo ao olhar para mim e depois sorriu com os olhos
fixos nos meus.
— Aí está você de volta, vou me retirar e pedirei a André para vir
cuidar de você.
Senti-me mais segura mudando de assunto.
— Espera um momento. André? Não era você que estava com ciúme de
meu vovô assassino?
Ele parou e me olhou torto.
— Eu estava confuso com a situação, natural ficar daquele jeito, ver um
criado ser tratado melhor do que um príncipe. Agora sei o vínculo que une
vocês dois e não serei eu a quebrar isso, ele vê em você sua redenção, o
remédio para sua consciência e você vê nele o homem que lhe deu uma vida
melhor e André é importante para mim.
Andei em sua direção e o abracei, ele retribuiu, surpreso.
— André tinha razão, você é o oposto de seu pai, e sim, você é um
humano superior aos outros de sua raça e merece ser feliz. André deve se
orgulhar muito de você não ter se corrompido, mesmo cercado de tanta
corrupção.
Plantei um beijo casto em sua boca, mas minhas palavras de alguma
forma, o afetaram. Vi uma coisa que não tinha visto até agora em seus olhos.
Culpa.
Tentei entender aquilo. Ele me olhava em conflito? Parecia que algo
lhe nublou o semblante.
— Preciso ir, Diana, tenho que resolver tudo, hoje tem finalmente a
visita dos pais. — Ele riu, parecendo recuperado. — Quase me estrangulam
por adiar as visitas.
Sem esperar resposta, ele saiu do quarto depois de me dar um rápido
beijo na cabeça, pensativo. Não tive tempo de pensar sobre isso, logo André
entrava no quarto e me olhou de forma estranha.
— Vovô assassino?
Ri da cara dele com uma sobrancelha levantada, esperando resposta.
— Não pensei em coisa melhor.
Ele não disse nada, apenas sorriu enquanto me ajudava a tirar a roupa
suja.
— Certeza que não fica constrangida comigo?
— Fico, mas não consigo ir muito longe hoje sem ajuda e antes você
aqui do que uma criada desconhecida.
— E Tiago?
— Oras, cale-se! Ele, pior ainda, acha mesmo que eu ficaria nua perto
dele?
— Se acontecesse um casamento, isso teria que acontecer.
Nem respondi a isso, um beijo era uma coisa, núpcias eu sabia como
funcionava e não era nada bonito e, sinceramente, não queria me casar com
Tiago. Nem consegui me imaginar aceitando-o me tocando dessa forma, não
estava pronta e nem sei se estaria um dia.
André era rápido, me enrolou em um pano branco e fomos devagar para
o lavatório.
— Preciso buscar água para a banheira.
— Não, André, me deixe no cano que me banho sozinha. Só preciso
chegar lá, a água irá me ajudar a me recuperar mais rápido, só preciso me
sentir limpa.
Ele me carregou e me levou até perto do cano, depois de me deixar ali,
ele me ajudou a me desenrolar, pegou o pano sem me olhar e seguiu em
direção à porta.
— Arrumarei o quarto e logo volto para lhe buscar. — Saiu sem
esperar resposta.
Entrei na água e deixei que ela escorresse morna por meu corpo
enquanto era tomada pelo pensamento de como era irônico minha situação.
Nem eu mesma me entendia, como podia confiar tanto em André, aliás, desde
quando eu confiava? Desde a floresta talvez, aquelas palavras aquele olhar
honesto, não… Antes disso.
Foi quando ele me apunhalou e olhou com ódio para Samuel, nesse dia
eu vi que ele era um homem bom, eu senti isso no mais fundo de minha alma,
mesmo sentindo no fundo de minha barriga seu punhal.
E então me veio Tiago à cabeça, passei de leve a mão na boca. Como
não senti medo?
Até então achava que estava estragada para o toque, sempre achei que
nunca ia conseguir deixar um homem se aproximar além dos príncipes e já
tinha um saldo de dois homens: Um príncipe e um escravo.
Então meu problema era apenas Samuel? Ou eu não conseguiria passar
de um beijo? E por que me sentia vazia?
Balancei a cabeça, não conseguia me imaginar na cama com alguém,
mas me sentia feliz comigo mesma, não morri com um beijo, pelo menos não
de susto.
Só não queria magoar Tiago, não entendia suas mudanças, ainda mais
quando disse que ele não se parecia com o pai, isso o machucou de alguma
forma, mas por quê?
Eu precisava aprender a confiar mais, mesmo que não pensasse nele
como futuro marido, não me saía da cabeça um amigo bom e que merecia o
voto de minerva, sim tinha que passar a parar de desconfiar de tudo.
Eva foi a coisa mais importante para mim nesse ponto, me disse tantas
vezes que nem todos os homens eram iguais, que se eu tivesse força e
coragem para aprender a lidar com meu trauma, eu veria que poderia me
entregar devagar ao amor e ser feliz porque eu merecia.
Todas as mulheres mereciam ser amadas de verdade, era o que eu
queria, mas não era o que eu sentia, não agora.
E não conseguia entender o que sentia por Tiago, amor não era, se fosse
eu estava decepcionada. Nos livros era um sentimento arrebatador que me
faria suspirar de saudade, era mentira isso não aconteceu, nos livros também
dizia que o coração ficaria descompassado, sim, ele acelerou porque era algo
novo beijar pela primeira vez. Só que… parecia que faltava algo, só não sabia
o que era. Suspirei, por fim eu poderia realmente estar estragada para o toque.
Estalei a boca, não podia ficar pensando nessas coisas, logo agora
quando eu teria que enfrentar um papai de mentira, mas que estaria muito
bravo de verdade quando sentisse meu cheiro.
Ao lembrar que era dia de visita fiquei ansiosa, apesar de preocupada
com a reação de Dimitri, eu sentia imensa saudade.
Queria saber novidades de casa e então me esfreguei com esmero, lavei
meus cabelos e cuidei dos meus dentes, queria terminar logo e poder esperar
meu querido papai bravo.
André chegou e me enrolou em uma toalha. Ele era rápido, eu sabia que
era para me deixar menos constrangida possível, fiquei comovida com seu
cuidado e sua atenção, meu malfeitor passou a ser meu fiel amigo e muito
importante para mim.
Senti um aperto no coração. Ele não merecia ser escravo, merecia mais
do que a vida o tinha dado. Quem sabe um dia eu pudesse ajudá-lo, talvez se
ele fugisse do reino Humanis, pudesse recomeçar com dignidade no reino
sombrio e eu ficaria muito feliz de tê-lo lá, de ver seu recomeço.
— Vamos, está tudo limpo agora e você vai precisar ficar no quarto,
não pode andar por aí assim.
— O que é agora? Almoço ou café da manhã?
— Almoço.
— Irei me sentar à mesa e conversarei com todo mundo alegremente,
hoje é dia de visita e não ficarei nesta cama. Preciso estar tranquila porque
Dimitri vai surtar quando sentir meu cheiro, e estou mais com medo da
reação dele do que de algumas aspirantes a assassinas.
Ele me olhou, assustado, depois pareceu entender e assentiu.
— Tem uma fibra, menina, uma coisa inexistente nas mulheres desses
tempos, nunca perca isso. Enfrentar tudo isso de cabeça erguida é para
poucos. Sei que você tem muito a aprender na vida, mas não perca isso que
tem agora, é interessante ver que as mulheres conseguem ter coragem se
forem incentivadas a isso.
Logo depois disso ele me deixou sozinha. Sorri, pensando no que
André havia dito sobre não perder essa fibra e ter coragem. Quando você vai
ao inferno e consegue sair dele, você nunca mais quer ser queimado, mas a
cicatriz da queimadura permanece e você aprende a lidar com o fogo, porque
sabe o que ele pode fazer com você.
Meu inferno foi o meu medo. Sei lidar com ele agora, ainda sinto quase
todo o tempo, mas que mulher livre eu seria se não agarrasse as
oportunidades que aparecem para lidar com isso? Sempre será assim, a
Próxima ficou no passado, sou Diana de Salazar, um nome ganhado dos
sombrios e um sobrenome usurpado de uma rica família, com certeza já
morta agora pela inanição, esquecidos em um porão muito bem lacrado pelos
príncipes.
Vesti-me devagar e não quis ajuda quando ele voltou com uma massa
de ervas, saiu depois de me encontrar um belo vestido.
Andei singelamente até a mesa do quiosque, poderia parecer um leve
andar despreocupado, mas eu estava tentando ao máximo não fazer careta
com a dor.
Antes de sair, André tinha preparado uma mistura cicatrizante para o
ferimento, e colocou como um emplastro protegendo o local, não sabia se a
mistura estava ajudando ou em mim não fazia efeito, restava esperar, então
disfarcei o mais que pude.
Olhei cada uma das garotas que ainda restavam, dezesseis comigo,
Tiago tinha mandado as duas irmãs para casa.
Olhei cada uma nos olhos, Clara conversava animada com uma morena
baixinha, fez sinal simpático para mim quando me viu e correspondi com um
aceno simpático também. Recebi o sorriso da morena que tinha conversado
comigo na biblioteca e correspondi também, não ia de maneira nenhuma
mostrar a dor que estava sentindo.
Dei dois passos com a intenção de sentar-me meio isolada, mas
estagnei foi em Neli, o olhar assustado da pequena Zafirins atiçou minha
curiosidade.
— Você está bem? — perguntei, enquanto me sentava de frente para
ela.
Ela pareceu se assustar quando me dirigi a ela, e mais ainda quando me
sentei.
— S-Sim, estou bem. Desculpa é que me disseram que você ficou
doente esses dias.
— Disseram? — Levantei uma sobrancelha, minha desconfiança
aumentando e ela ficou vermelha, seus cabelos loiros deixaram a vermelhidão
de seu rosto ainda mais destacado.
— Sim, quero dizer… Não as meninas, elas acharam que você tinha ido
embora, uma das criadas disse que a viu na cama com muita febre.
Ela parecia confusa ao dizer isso.
— Realmente adoeci, um mosquito me picou no pomar e acho que daí
veio a febre.
Ela estralou os olhos azuis.
— Um mosquito?
— Sim, me pareceu um mosquito que me picou bem aqui.
Mostrei o local por cima do vestido onde o punhal tinha entrado e ela
ficou vermelha, passou a comer com pressa, o rosto quase enfiado no prato.
Parecia-me muito nervosa para alguém que ouviu apenas comentários
de criadas, e se fosse ela, talvez Samuel tivesse algo com isso.
Logo Tiago chegava e pareceu assustado de me ver entre as garotas.
Tratou-me frio, como uma estranha, como se aquela manhã não tivesse
acontecido e me arrependi de ter correspondido ao beijo, me arrependi de ter
me dobrado, eu era apenas um troféu? Por que dentre todas eu era a única que
não estava babando em sua camisa o dia todo? Ele falou comigo assim que
sentou e eu não ia demonstrar minha decepção.
— Diana, muito gosto de tê-la conosco, depois de dois dias acamada.
— Obrigada, Tiago, estou muito melhor agora, preciso apenas saber
que tipo de mosca anda picando as pessoas por aí, antes que mais algumas de
minhas colegas fiquem acamadas por conta disso — disse, olhando fixo para
irmã de Samuel e ela não levantou os olhos do prato.
O resto do almoço se passou tranquilo, naquela tarde Dimitri e Eva
poderiam aparecer para uma visita, e terminando tudo fui para perto do
portão, estava ansiosa por ver um rosto em que eu pudesse confiar de
verdade.
SANGUE SOMBRIO

Eu estava nervosa. Sempre tinha mais medo por eles do que por mim,
medo de alguém reconhecer Dimitri ou mesmo o rei o achar muito parecido
com os três sombrios e medo até por mim e por sua reação.
Mas ali estava ele, adentrando o portão do harém. Parecia ainda mais
velho do que quando o vi partir, se aproximava devagar com o semblante
fechado me olhando fixo.
— Papai! — Eu o abracei assim que ele chegou perto, não consegui
correr para abraçá-lo, já que nem andar direito eu estava conseguindo.
— Querida! — Ele me abraçou forte e eu dei um suspiro.
Não me soltou, manteve o rosto apertado ao meu e falou baixo perto da
minha orelha. Isso foi o suficiente para eu saber que ele estava irado.
— Está ferida, sinto cheiro do seu sangue desde a alameda da casta
nobre e de remédios e o cheiro de seus hormônios por causa de febre, se não
fossem as ervas na muralha, teria sentido de muito mais longe.
Ali não era local e como eu o conhecia muito bem, sabia que ele estava
no limite de seu autocontrole.
— Não foi nada, só um ferimento de leve.
— Por isso suspirou de dor quando a abracei e não conseguiu correr
para mim?
O tom de sua voz me deu medo. Dimitri não era um homem de se
brincar quando estava bravo e muito menos de conseguir acalmar com
facilidade, dos três irmãos era o mais explosivo, não se controlava fácil.
Eu abaixei ainda mais a voz e falei, rápido:
— Dimitri, por favor, não foi nada de mais e te conto quando sairmos
daqui.
— Nem mais uma palavra, você vai embora comigo.
— Por favor, vamos conversar, eu vou explicar tudo, tente se acalmar.
— Senhor Salazar, uma carruagem o espera para que possa conversar
com sua filha tranquilamente, eu serei seu cocheiro.
André estava pronto para nos tirar dali. Dimitri não respondeu, suas
pupilas estavam arroxeadas quase chegando ao vermelho no centro, ele
precisava mesmo se acalmar.
Quando ele me ajudou a entrar na carruagem, Tiago nos esperava ali
dentro. Dimitri fechou a portinhola com um único movimento forte e seco,
assim que a carruagem andou, ele avançou em Tiago, o pegando pela camisa
e o olhando bem de perto falando alto e irado.
— Você a trouxe para o perigo e eu vou matar você por isso,
principezinho.
Tiago não fez nenhum movimento, apenas o olhou nos olhos e ficou
branco, eu levantei e me enfiei no meio dos dois, sabia que o medo de Tiago
era dos olhos dele, pois estavam realmente assustadores.
— Dimitri não, por favor, se acalme não foi culpa dele, me escute.
Dimitri estava possesso, me olhava com fúria, mas não me tirou da
frente de Tiago, ficou ali me encarando, enquanto eu o defendia.
— Não? Ele que a fez vir aqui para ficar presa nesse lugar onde não
podemos garantir sua segurança e você diz que não foi culpa dele? Já
imaginou o que aconteceria se não fosse eu disfarçado de pai? Imaginou o
que aconteceria se fosse Nicolae? Vai para casa, sim, e está resolvido.
— Diana, seu ferimento. — Tiago parecia preocupado, apontando para
minha cintura, se era preocupado comigo ou com Dimitri ficar ainda mais
irado, eu não sabia dizer.
O ferimento tinha voltado a sangrar por causa do movimento brusco,
não me importei.
— Não é nada, Tiago, isso sara.
Dimitri pareceu entrar em um torpor estranho. Farejou o ar e logo
sentou e me puxou com ele me tirando de perto de Tiago, soltando um silvo
em sua direção.
Dimitri avaliava meu ferimento, logo começou a falar e sua voz foi
mudando antes de chegar ao fim da frase.
— Não pode ser, ou estou maluco, ou eles usaram sangue sombrio em
você.
Senti um estremecimento e fiquei rígida, como poderia ser?
— Mas como eles conseguiram isso?
Ele não respondeu, aquilo pareceu enfurecê-lo ainda mais, o que aquilo
significava? Por que ele tinha ficado daquele jeito? Eu estava ficando
transtornada com a situação.
Dimitri quase perdendo a consciência, quase entrando em estado de
caça com o príncipe humano ali dentro do carro.
Eu, ele nunca machucaria, mas Tiago com certeza ele o mataria, estava
cego de fúria e não teríamos forças para lutar com ele.
Temi que ele estivesse perdendo a consciência e se deixando manter em
caçador, se isso acontecesse…
Comecei a chorar, não sabia como acalmá-lo. Queria Nicolae ali
comigo ou Rael para resolver aquela situação, segurei seu rosto e o fiz olhar
para mim, nessa parte não tinha experiência com os príncipes e apelei para o
pedido, por implorar, era só o que eu saberia fazer para trazê-lo de volta.
— Dimitri, por favor, volta para mim, não vá, fique comigo, por favor.
Agarrei-me em seu pescoço e me encolhi, me apertando o mais que
consegui em seu corpo, ali fiquei, chorei de medo e de angústia por não saber
como pará-lo.
Chorei de receio por Tiago e André e de medo por ele mesmo que
transformado nada o pararia até ser morto e estávamos dentro do castelo,
seria fácil pegá-lo.
Tiago se mantinha em silêncio atento a tudo o que acontecia, seus olhos
fixos em mim, parecia pronto para me tirar dali.
— Diana, não acha melhor…
Ele se calou quando eu estiquei a mão em sua direção, pedindo para
que ficasse em silêncio, sua voz não ajudaria muito Dimitri a voltar a si.
Fiquei agarrada a ele por um bom tempo, tentando ouvir seu coração
voltar a bater. Aos poucos ele se acalmava e logo senti sua mão em meu
cabelo e ouvi a batida retornando, lenta.
— Não vou morder ninguém, se é o que teme, mas vou matar quem fez
isso com você. Estamos encrencados, Nicolae vai me matar por ter ajudado
você a convencê-lo a aceitar essa ideia idiota de voltar ao reino.
“Sorte sua que para você ele jamais faria algo, já eu, pagarei por nós
dois com Nicolae, se não for ele será Rael, e ele é pior, me porá a dormir por
cem anos, e com ele você também terá castigo.”
Ele suspirou, desolado, olhando para mim.
— Estamos encrencados, Diana, e não sei como nos tirar dessa
enrascada com eles.
— Não conte a Nicolae, ele vai vir me buscar, vai se arriscar e não vai
querer saber de nada, prometi a ele que qualquer coisa errada eu iria embora,
mas isso não é nada, Dimitri, é só uma maluca desesperada, confie em mim,
por favor.
Apertei sua bochecha enquanto olhava fixo em seus olhos, mas ele
balançou a cabeça.
— Nicolae sentirá o cheiro do seu sangue em mim, não importa se eu
lave o dia todo para tirar e você sabe disso.
— Ele não pode saber, me prometa, Dimitri.
— Eu prometo, pronto prometo, pare de chorar, inventarei algo sobre
algum corte sem gravidade. Só que eu quero saber tudo o que está
acontecendo nessa porcaria, Diana, e você vai embora para casa, não vai ficar
aqui mais nem um minuto ao lado desse banana que nem para te proteger
prestou.
Senti vontade de cravar minha unha na sua bochecha de raiva, tinha
acabado de pedir para ele não contar a Nicolae para que não viesse me
buscar, ele prometeu e queria me levar.
Dava-me uma raiva de Dimitri às vezes, então nem precisava mentir a
Nicolae, mas finalmente o clima tinha acalmado e poderíamos conversar e eu
queria saber tudo sobre isso de sangue sombrio como veneno.
Tiago começou a falar, visivelmente envergonhado.
— Sei que mereço esse tratamento, mas acredite em mim, foi tudo
muito rápido. Não sei o que Diana tem, que parece ter assustado as garotas,
elas a têm como um perigo. Parecem temer a presença dela.
Dimitri pareceu orgulhoso ao ouvir aquilo e ali estava o velho terceiro
príncipe de sempre.
— Ela tem personalidade forte, isso assusta até nós quando ela fica
brava.
Tiago sorriu, concordando com a cabeça. Dimitri voltou a ficar sério.
— Sabe que ela tem apenas corpo de mulher, não sabe? Ainda tem
mente de menina
Fechei a cara, odiava quando ele falava isso, ainda mais para o homem
que tinha me beijado de manhã, e ele nem ligou, sabia que eu não gostava,
mas quando se tratava de bancar o irmão mais velho, ele conseguia ser idiota
e se sentir bem com isso.
Enquanto ele falava, levava o dedo distraído à boca e passava no corte
de leve, fazia isso o tempo todo e Tiago parecia hipnotizado com a
intimidade, e eu revirei os olhos para ele olhando para minha cintura, para os
movimentos do dedo de Dimitri ali.
Só então percebi o buraco no tecido e eu não tinha percebido quando
ele o tinha rasgado.
— Dimitri você rasgou meu vestido!
Ele me olhou sério.
— Veja isso como um golpe de sorte, eu queria mesmo era rasgar o
pescoço de seu príncipe, agora vire que preciso cuidar disso.
Fiquei de bruços em seu colo, ele passou a língua pelo ferimento,
mordendo em seguida.
— Ai! — Tentei me mexer, mas ele me segurou com força, era uma
maldita dor forte aquela sucção.
Tiago tentou levantar-se para me ajudar, mas ele rosnou ameaçador e
eu fiz sinal negativo para que ele não interferisse.
Dimitri continuou sugando o ferimento e depois de mais um tempo,
cuspiu, me virando novamente. Seu olhar estava preocupado.
— Tenho que contar a Nicolae e Rael o que fizeram com você, Diana,
isso está além de minha promessa.
— Eles vão enlouquecer comigo, Dimitri, não pode fazer isso.
— Diana, eles precisam saber que há um sombrio por aí, não teria me
enganado com apenas o cheiro, mas agora senti o gosto e isso é grave, não
teria como eles ter sangue de nossa raça. Todos dormem. As tumbas são
averiguadas todos os dias, todas as criptas estão seladas.
Ele parou de falar e olhou torto para Tiago.
— Pode confiar nele, Dimitri, ele me confiou mais informações sobre
seu pai do que qualquer um daria.
— Certeza, Diana?
— Absoluta. E André também, como você já sabe.
Dimitri afirmou e continuou:
— Sangue de sombrio para ser usado como veneno só se for fresco.
Levei à mão a boca assim que assimilei a informação e olhei para
Tiago, falamos o que veio à cabeça naquela hora.
— A masmorra.
Virei-me para Dimitri que abria a boca para perguntar, mas perguntei
antes:
— Por que não sentiram o cheiro? Não teria como vocês saberem que
tem sombrios por aí?
Dimitri apontou para as muralhas.
— As ervas daninhas que cobrem a muralha estão ali de propósito, elas
confundem nosso sentido.
Eu não conseguia entender aquilo.
— Dimitri, quem usou em mim um punhal foi uma menina que está lá
conosco, eu sei por que ouvi seu gemido quando caiu ao correr.
Tiago estava agitado.
— Precisamos descobrir quem é essa menina e como ela tem acesso às
masmorras ou se tem algum criado que tem acesso àquele lugar. Deixarei
vocês à vontade enquanto passeiam, preciso ver o que posso descobrir.
A carruagem parou ainda perto dos portões de saída, logo percebi pela
movimentação que André dava seu lugar a um cocheiro qualquer e então
voltávamos ao harém.
Só poderíamos conversar no outro dia quando a saída para além do
castelo fosse permitida, eu precisava saber mais sobre quem usou o sangue
em mim, e já tinha em mente alguém, mas para isso precisava que Dimitri me
deixasse ficar pelo menos até o outro dia, o segundo dia de visita.
— Preciso ficar, Dimitri, não posso ir com vocês, não agora que temos
uma grande pista, e preciso de dispensa formal, não posso sair fugida.
— Não poderei te ajudar do lado de fora, Diana, ficarei com você.
— Não, você tem que ir, não pode ficar aqui, se te pegam sozinho você
não dá conta.
— Mas sem mim, você não fica!
Suspirei, contrariada, ele se manteve ali me olhando sério.
— Vamos falar isso amanhã, quando pudermos sair daqui, hoje teremos
o fim da tarde para matar a saudade um do outro, aqui dentro do harém é
perigoso.
Ele não teve tempo de responder, logo chegava André me trazendo uma
capa leve. Entreguei a Dimitri seu casaco e coloquei a capa para esconder o
rasgo no vestido e a mancha de sangue.
— Senhor, poderá ficar apenas uma hora aqui no harém e não podem
sair dos arredores do chafariz. Desculpe, senhor, ordens do rei.
Ele me olhou cheio de cumplicidade.
— Espero que apreciem a companhia e saibam que hoje todos os
aliados do rei estão condensados em um único lugar. Seja bem-vindo, senhor.
Era um aviso para não falarmos nada comprometedor, então nos
sentamos em um banco e ficamos atuando como pai e filha.
Eu estava ansiosa para conversarmos, mas a movimentação era intensa,
então depois de uma hora de mãos dadas e conversas banais, Dimitri se
despediu e partiu junto com muitos pais e mães.
Voltei para o dormitório e passei o resto da tarde deitada, dispensei o
jantar, estava cansada e com sono. Fiquei agradecida por conseguir dormir
finalmente. Doeu muito quando Dimitri sugou o ferimento, mas o efeito foi
milagroso...
Levantei de um pulo quando o sol nasceu, tomei banho e me preparei
para poder sair assim que Dimitri chegasse, estava ansiosa e não conseguia
parar quieta. André entrava com uma bandeja.
— Bom dia, Diana, trouxe algo para você comer.
— Obrigada, acha que Dimitri irá demorar?
— Não tarda e ele estará aqui, alguns pais já chegaram.
Depois que comi, segui para perto do portão de entrada e me sentei
para esperar, muitos pais já andavam por ali e percebi que muitos falavam
energicamente com suas filhas e elas pareciam nervosas.
Balancei a cabeça contrariada, com certeza se perguntavam por que
ainda não tinha conquistado o almejado título de princesa, confirmei isso
depois de me concentrar em algumas conversas.
Estava cansada de ouvir a mesma cobrança dos pais com as filhas e
depois de um tempo cansei de ouvir a mesma ladainha em todas as rodas de
conversas, então fiquei apenas olhando fixo o portão, apenas esperando.
Depois de dez minutos ali estava ele, todo envelhecido e ainda com
belas feições. Sorri enquanto o esperavam, imaginando que muitas esposas
do harém amariam serem emprestadas para o meu belo pai.
Abraçou-me com carinho, todavia não dissemos uma palavra enquanto
saímos. André novamente nos aguardava com uma carruagem, e quando
entramos, Tiago já estava acomodado.
Não dissemos nada até sair dos arredores do castelo, sentei-me em
silêncio olhando a janela, íamos pensativos até que depois de um bom tempo
de inércia me manifestei.
— Estamos onde?
— Aqui é a estrada nova — disse Tiago. — O caminho para o bairro
novo, poderemos ter privacidade, não passa ninguém, eles só vêm aqui no dia
de buscar a entrega.
Ele bateu duas vezes no teto da carruagem e ela parou e logo André
entrava, sentando-se ao lado de Tiago.
Tiago olhou para Dimitri e lhe entregou um bilhete.
— Andei fazendo umas pesquisas, desculpa não ter confiado isso a
você, Diana, mas eu precisava esperar a hora que não pudéssemos ser
ouvidos por ninguém. Depois de tudo que conversamos, coloquei André para
investigar.
Olhei curiosa para André e ele pareceu ler meus pensamentos.
— Não consegui entrar nas masmorras, porém, consegui entrar nos
calabouços do castelo e ali encontrei várias mulheres sombrias.
Dimitri ficou em choque e olhou o papel com renovado interesse.
Eu estava lívida com a informação.
— Quando descobriu isso?
— Essa madrugada, eu foquei tanto no que acontece lá em cima, que
não me toquei que poderia ter algo abaixo. Há uma escada que liga o
calabouço à masmorra então pensei em investigar, encontrei muitas dessas
ervas em potes de barro por todo lugar lá embaixo.
“Nunca tinha dado atenção antes, mas depois do que o senhor Dimitri
falou sobre elas os confundirem, achei que poderia ter algum significado e
investiguei cela a cela, acabei as encontrando em uma grande e fechada,
completamente escura no fundo. É difícil alguém ir até lá ou ficar preso
naquela cela, pois há muitas outras vazias antes dela. Era uma parte
considerada abandonada, por isso nunca levantou suspeita que estivesse em
uso.”
Dimitri bateu na própria perna soltando uma imprecação pesada e
depois voltou ao papel.
— E o que é isso?
— É o mapa das construções subterrâneas do castelo. — André
apontou em um ponto enquanto falava. — Esse x vermelho é a cela onde
estão as mulheres.
— Crianças?
— Sinto muito, senhor, nenhuma sobrevivente.
Estreitei os olhos, essa pergunta era estranha.
— Por que perguntou sobre crianças?
— Se as pegaram enquanto dormiam escondidas e elas carregassem
uma vida, a gravidez só seguiria seu curso quando elas acordassem, e
algumas poderiam estar grávidas quando foram capturadas.
— Mas não seriam somente os maridos para acordá-las?
— Isso é lenda, elas podem dormir toda uma vida ou uma era,
acordarão em algumas situações, se o líder as chamar, se suas criptas forem
violadas ou se sangue fresco lhes for despejado na boca.
— Então acho que meu pai fez a última opção — Tiago falou.
— Não pode ser, Tiago. Dimitri disse “cripta violada”, então elas
teriam acordado antes disso, quando eles a tiraram de suas tumbas.
Dimitri negou.
— Não se elas estivessem em caixões, Diana. Eles poderiam ter
movido o caixão por todo o mundo sem elas acordarem, contanto que eles
continuassem lacrados.
Eu não estava entendendo nada.
— Dimitri, elas não tinham todas morrido na guerra da Supremacia?
Ele suspirou pensativo ainda olhando o mapa.
— Foram as informações passadas ao meu pai.
— E quem passou essa informação?
— Tomé, seu servo mais fiel, segundo ele mesmo. Meu pai nunca
duvidaria da palavra dele, mas nós procuramos e não encontramos nenhum
vestígio de caixões, corpos ou tumbas com algumas delas, o que encontramos
foi um imenso monte de cinzas e então tivemos que aceitar sua palavra, já
meu pai apenas acreditou e isso bastou.
— Senhor, posso dizer o que me parece? — perguntou André.
Dimitri afirmou e escutou com atenção.
— O senhor disse que esse servo chamado Tomé, era o de maior
confiança de vosso rei?
— Sim, do nosso pai maior.
— Mas sabe dizer por que todas foram postas para dormir e quem deu
essa ideia?
Eu começava a entender aonde André queria chegar.
— Foi o próprio Tomé — respondeu Dimitri. — Ele que deu essa ideia
ao meu pai, dizendo que para preservar nossa raça, as mulheres não deveriam
lutar na guerra, pois estávamos ficando cada vez em número menor depois de
muitos anos de batalha, então um sítio secreto foi escolhido e todas elas,
obedecendo ao meu pai, se puseram a dormir para esperar dias melhores.
— Então só sabiam desse lugar o seu pai e ele?
— E mais dois sombrios de confiança de Tomé, que ajudaram a
preparar o local para colocarmos os caixões. — Dimitri parou de falar. —
Meu pai é orgulhoso demais para se aliar ao inimigo, mas os outros, eles são
traidores…
André assentiu.
— É o mais provável, senhor, e talvez só eles possam dizer o que
aconteceu de verdade e como as mulheres foram parar nas mãos de nosso rei.
— Passarei isso tudo aos meus irmãos, isso é uma reviravolta sem
precedentes e não sei como eles agirão.
— E poderemos pensar em guerra, não é? — perguntou Tiago,
preocupado.
Dimitri o encarou não como inimigo dessa vez, mas entendendo que
Tiago via a gravidade daquele ato dos humanos e os sombrios jamais
perdoariam isso.
— Considere a possibilidade mais provável.
Tiago não disse nada, não havia nada a ser dito e ele sabia, Dimitri me
olhou ansioso, seus olhos límpidos brilhavam de angústia.
— Agora preciso saber como andam as coisas aqui, pois preciso voltar
logo para o reino sombrio e levar essas informações.
Contamos tudo o que tinha acontecido, tudo sobre os gritos não
humanos na masmorra, sobre a caverna até então desconhecida de todas as
mulheres do harém e então Dimitri contou as novidades no reino sombrio.
Cinquenta sombrios tinham sido acordados, os mais próximos da
família principal e amigos de infância dos três príncipes, eles teriam um
tempo para conhecer as garotas que foram levadas.
Então mais cinquenta acordariam e assim sucessivamente, para não
assustar as mulheres tendo mais de três mil sombrios em cima delas.
Rimos daquilo, seria realmente muito complicado, mas uma pontinha
de nervoso me tomou ao pensar nisso, senti como se estivesse em risco de
perder algo importante para mim, não soube o que era.
Dimitri continuou contando as novidades, estava feliz com as novas
mudanças.
Os criados de todos os sombrios estavam em polvorosa, faxinando as
casas que estavam fechadas, caso seu senhor fosse o próximo a ser acordado.
Senti melancolia e gostaria de ver essa agitação, mesmo não vendo tanta
coisa já que os sombrios viviam relativamente afastados um dos outros.
Dimitri tinha suspirado aliviado ao lembrar que nenhum dos três
considerou chamar Tomé ou seu parceiro, pois para eles, aquele sombrio
sempre tinha sido um ambicioso inescrupuloso e agora essa desconfiança dos
três se confirmava.
Contou que Eva estava doente por conta de um traidor vindo dos
Salazar, que tinha envenenado a bebida que Rael tinha preparado para ela,
que estava acamada e por conta da idade o estrago foi maior do que ele
supunha.
Que Rael cuidava dela com total dedicação e já tinha comentado que se
ela não melhorasse das complicações da velhice, ele daria a ela a mistura,
mesmo que fosse à força, assegurando que ela ficaria bem de um jeito ou de
outro e que eu ficasse tranquila, porque Rael jamais deixaria Eva piorar.
Fiquei contente em saber disso, Eva era importante para mim, eu sabia
que bebida era essa, era um composto com vários itens e o sangue sombrio
diluído deixando bem fraco para que Eva não sucumbisse à idade.
Era feito na biblioteca privada no porão e eu não tinha permissão de ir
lá. Mesmo Dimitri não entrando em detalhes, eu sabia do que se tratava,
estranhava apenas essa dedicação de Rael, não que Eva não merecesse, mas o
jeito que ele a tratava parecia mais pessoal.
— Estranho, não acha?
— O que é estranho? — perguntou Dimitri, já sorrindo.
— Essa preocupação de Rael por Eva. Ele ter feito uma mistura a ela e
guardado por tantos anos em um cofre, e agora cuidar dela pessoalmente
quando adoece, mesmo dando a ela livre arbítrio vai forçá-la a beber a
mistura, se não conseguir curá-la.
Ele me olhou rindo com seus dentes brancos e perfeitos à mostra.
— Você é tão bobinha, Dianinha. — Bateu em meu nariz com o
indicador.
— Oras, por quê? — Esfreguei o nariz, isso sempre incomodava,
parecia que um carimbo ficava no lugar e só melhorava quando eu apagava
com a mão.
Dimitri me fitou com carinho.
— Realmente nunca percebeu, não é? Rael ama Eva, sempre amou.
Fiquei abismada, isso poderia ser lindo, se não fosse triste.
— Mas por que então ele permitiu que ela se casasse? Que
envelhecesse, já que seu marido tinha morrido?
Dimitri respondeu naturalmente, como se fosse a coisa mais normal do
mundo:
— Ela está viva e perto dele, não importa se está com ele ou não, o que
importa para ele é ela estar ali por perto e feliz. Mas agora com um problema
atrás do outro, ele vai usar a mistura nela, mesmo contra a vontade dela, se
for preciso.
— Ela não tem direito de escolher?
Dimitri me olhou nos olhos por alguns segundos e disse, sério:
— Não se pode mandar no coração, Diana, Rael a deixou livre para
viver com quem escolhesse, mas não é tão altruísta a ponto de deixá-la ir
embora para sempre.
“A vida dela é a única coisa que ele não abrirá mão, ele sabe que ela o
ama, e já o amava quando se casou, nessa época ela não estava pronta para
ele ainda porque seu coração estava novo e queria experiências novas.
Rael permitiu que ela se casasse, mas não podemos culpá-lo por não
querer que ela morra. Se não fosse o veneno, ele esperaria até ela estar
pronta.”
— E como ele saberia que ela estaria pronta para ficar com ele?
Ele demorou a responder, ficando pensativo, e então falou, olhando
para a janela:
— Não sei, Diana, ainda não tenho experiência nisso, quando eu
encontrar a mulher que vai preencher meu coração, eu te conto. Tudo o que
sei é que é alguma coisa em Eva que somente Rael pode ver. Ele saberá
quando ela o amar completamente, sem dúvidas.
— Ele vai ver quando ela o amar completamente?
Aquilo era estranho, uma pena Dimitri não saber me explicar, eu
gostaria de saber o que Rael via.
— Sim, ele verá e então saberá quando ela estiver pronta para se
entregar completamente a ele, aí sim será um amor completo.
Tiago tinha prestado atenção a cada palavra e agora nos olhava,
pensativo.
— Bonito isso — falou, um pouco emocionado. — Nunca imaginei que
vocês tratariam assim uma mulher, meu pai devia ter algumas aulas com
vocês. Não só ele, na verdade, mas eu e todos os homens humanos. Um amor
assim, depois de tanta espera, é para a vida toda, agora entendo muito mais
Diana, ouvindo a conversa familiar de vocês.
Dimitri aproveitaria a deixa, eu sabia pela maneira que ele olhou para
Tiago.
— E agora sabe o quão apreço nós temos por ela, então não a faça
sofrer, cuide dela com respeito, pois só existirá apenas uma Diana e ela é
nossa. Se ela escolher você, valorize isso, ela veio para nós como um
bichinho acuado e se transformou no que é hoje porque sabe que tem família.
Tiago ouvia pensativo e por vezes seus olhos fugiam para mim, estava
pesando tudo o que Dimitri dizia ou achando graça naquela superproteção?
Senti meu rosto ficar cada vez mais vermelho, se soubesse que Dimitri ia
encarnar o pai de verdade, não teria aceitado o beijo de Tiago e talvez agora
não estivesse com tanta vergonha de ser tratada com a idade que eu tinha
realmente, e antes, isso nunca tinha sido um problema.
Dimitri nem se importou, continuou firme, em tom de ameaça:
— Por toda eternidade, enquanto um de nós viver, ela será acolhida de
volta ao lar se decidir voltar, então não a faça querer partir, porque ela tem
para aonde ir.
Acheguei-me ao seu colo, tão tolo e tão querido, se Rael estivesse ali
teria dito tudo com menos palavras e com muito mais agressividade.
Já Nicolae não teria dito nada além de: “Estou de olho em você, rapaz,
um pedido dela e a levarei para casa conosco”.
Poderia sorrir, claro que poderia, mas aquele não era o momento,
Dimitri falava sério e Tiago percebeu, não falou nada depois do sermão,
apenas assentiu, pensativo, enquanto olhava fixamente para mim.
Olhei para Dimitri com carinho, sabia o quanto ele podia ser brincalhão
e o quanto ele poderia ser um mortal protetor.
— Senti sua falta, bobão.
Ele me beijou com carinho a cabeça.
— E nós a sua, Nicolae é o que mais sofre sem o pintinho dele sob suas
asas.
Eu ri com saudade de Nicolae, aqueles olhos azul-turquesa que sempre
me faziam assimilar a minha adoração por essa cor, sempre para me sentir
segura eu usava uma peça dessa cor ou parecida. Me dava paz e eu sabia que
era porque Nicolae possuía esses olhos tão diferentes e tão puros.
De repente senti um aperto em meu coração ao pensar nele, como se de
alguma forma eu tivesse feito algo errado a ele, balancei a cabeça, devia ser a
saudade que mexia comigo.
— Quer voltar para casa? Resolveremos o que fazer quando estivermos
todos juntos.
— Não posso, ainda mais agora, queria ir para ajudar Rael com Eva,
mas pelo que me contou ele não me deixaria chegar perto por muito tempo.
— Não mesmo, tentei por duas vezes ver como ela estava e ele rosnou
para mim na porta, deve ser porque ele está lutando com seus princípios ou
ela deve estar muito mal ainda.
— Eu tenho que ajudar vocês, ainda mais agora, lá eu não seria útil,
mas aqui sim.
Tiago então falou:
— Diana, eu acho que você deveria ir. Aqui não é seguro para você,
daremos um jeito de facilitar a entrada de vocês daqui, ou caso consigamos
libertar as mulheres sombrias também daremos jeito para que elas cheguem a
vocês, seguras.
Realmente ele tinha razão, e mesmo que tivesse muita coisa a
descobrir, as coisas não iam ficar bonitas, era melhor estar em casa quando
tudo acontecesse, mas havia um problema.
Uma coisa seria sair como uma dispensada pelo príncipe e outra era
sair às pressas.
— Não posso sair assim, levantaria suspeitas, pode fazer uma dispensa
formal ainda hoje? Assim Dimitri já poderá me levar para casa.
— Te colocarei na próxima lista, não posso criar uma assim do nada,
meu pai já está perguntando, então eu disse a ele que em dois dias farei isso.
— Não teria como ser hoje? Inventando alguma desculpa? —
perguntou Dimitri.
— Seria realmente muito suspeito, mas não se preocupe, nada mais
acontecerá, André ficará com ela todo o tempo até o dia que eu possa
dispensá-la.
Dimitri pareceu satisfeito e ansioso ao mesmo tempo.
— Então está combinado, preciso voltar com urgência ao reino, volto
amanhã para te buscar.
Depois de tudo acertado, voltamos para o harém, passamos antes pela
rua do comércio para que eu comprasse um vestido novo, aquele desvio tinha
dado mais tempo para conversarmos, assim que nos aproximávamos dos
portões eu abracei forte Dimitri, que me apertou nos braços, dizendo
baixinho:
— Cuide-se ou não respondo por mim.
Assim que o soltei, ele não esperou resposta, as informações que
precisava passar aos irmãos eram urgentes. Fiquei ali olhando-o se afastar,
tomou outro carro e voltou para a rua dos forasteiros, enquanto o carro em
que eu estava adentrou sozinho o portão.
Rezei para que esperassem eu chegar antes de fazerem qualquer coisa,
não que eu conseguisse fazer mais do que cuidar de Eva, caso eles partissem
para resgatar as mulheres, pois eu não sabia lutar, mas queria estar lá de todo
jeito para vê-los partir e vê-los retornar para conseguir ter paz de espírito.
NICOLAE

A horrorosa criatura estava perto. Seu fedor ficava cada vez mais forte
naquela direção. Sorriu torto correndo o mais leve possível, eles tinham boa
audição, mas nem de longe eram bons o suficiente para ouvi-lo naquela
leveza que ele pisava.
As árvores passavam por ele como borrões, o dia estava cinza por conta
do tempo. Um temporal estava próximo e seria ruim se a chuva começasse
antes de ele o alcançá-lo, a natureza era aliada, mas nessa hora uma chuva
seria um problema.
Parou novamente confuso e cheirou o ar, sangue humano, o leviatã
encontrara uma presa, estava próximo ao vilarejo do irmão Odair, precisava
se apressar, não podia permitir uma chacina em seus domínios.
Ele era o segundo príncipe, era seu dia de fazer a ronda e não podia
permitir que vidas perecessem sob sua responsabilidade.
Apesar de estar correndo, já fazia algumas horas pelas rotas
demarcadas, não estava cansado. As rotas haviam sido criadas de acordo com
a potência de seu faro e naqueles caminhos podia sentir a quilômetros à volta,
podia cuidar de tudo sem precisar correr por todo o reino sombrio para isso.
Agradeceu seu bom faro. O sangue podia ser sentido mais forte, um
grito à frente o fez liberar as presas, seus cabelos cresceram e seu coração se
fechou sobre uma grossa membrana parando de bater, não bateria até ele
voltar ao normal. Agora poderia ser cruel, ser assassino e sanguinário como
caçador, e estava à caça de um perigoso inimigo.
Com um impulso, pulou na árvore à frente alcançando o galho mais
alto, ficou abaixado olhando tudo à volta, então sua visão o alcançou naquela
posição.
O leviatã estava abaixado, deixando suas deformadas costas peludas à
mostra, se alimentava, mastigava um pedaço da perna do homem que sofria
com a dor da falta da carne em sua coxa.
Saltou do galho sutilmente e, ainda assim, a criatura o viu, e com seus
olhos vermelhos e desproporcionais o analisou.
O cheiro forte da criatura se adentrou por seu nariz sensível,
denunciando pelo seu suor e seu gosto necrófilo na dieta.
Sem dar a ele tempo para pensar pulou, se jogando sobre a criatura a
tirando de perto do humano com o impacto dos corpos, indo os dois bater em
uma árvore, sentiu a dor, mas não parou, não podia perder tempo, o ponto
fraco do leviatã era a agilidade, em compensação sua força era extrema. Suas
garras com quatro dedos eram fortes e as unhas afiadas poderiam lhe abrir o
peito.
Com um golpe rápido a criatura o atacou diretamente no pescoço.
Desviou na hora perfeita para o contra-ataque enterrando a mão em sua
barriga, sentiu as entranhas quentes e a umidade dentro da besta.
Agarrando qualquer coisa dentro dele, puxou com força trazendo
consigo uma quantia de suas vísceras.
Não conseguiria arrancar seu coração com um único golpe, os leviatãs
tinham o tórax formado por duplas carreiras de ossos que eram resistentes,
conseguiria se fosse em dois ataques quebrando uma fila de ossos por vez,
mas ainda não tinha conseguido encontrar o momento certo.
A criatura não se importou com as suas entranhas penduradas, se
aproximava com a boca Lupina se arreganhando em forma de ameaça e o
atacando novamente.
Ele desviou outra vez de suas garras, mas não conseguiu se safar da
outra garra que entrou em seu peito, sentiu o sangue escorrer quando ele
forçou para dentro dele com suas unhas afiadas se enterrando rápido em sua
carne, se continuasse assim, o leviatã lhe arrancaria o coração.
Não viu problema nisso, desde que ele estivesse protegido pela
membrana, tudo estaria bem, mas doeria como o inferno e ele não estaria
acordado quando as notícias de Diana chegassem e de jeito nenhum ficaria
sem saber dela.
Com a mão livre atacou o tórax da criatura, na primeira vez ouviu o
estalo dos ossos de seu peito se partindo com a força do impacto, sua mão
sangrou na mesma hora com o ferimento ganho, os ossos do leviatã eram
finos e cortantes apesar de resistentes.
O animal reagiu, depositando mais força, abrindo ainda mais sua
enorme boca com raiva, Nicolae conseguia ver as duas fileiras de dentes
todos pontudos e as presas maiores, sua herança para a criatura.
Sentiu que agora corria perigo, essa ousadia que a besta mostrava era a
segunda maior ameaça, tinha descoberto que não era alérgico e ficaria mais
ousado, agora se tivesse chance usaria sua presa para o beber ficando mais
forte e o deixando mais fraco.
Então Nicolae novamente atacou sua caixa torácica, usou toda a força
que conseguiu nesse golpe, entrou em seu peito, sentiu seu coração batendo
de encontro a sua pele, enquanto sentia a garra da criatura quebrar os ossos de
seu peito também.
Sem perder tempo, agarrou e apertou seu coração e a besta urrou de dor
diminuindo a força em seu peito.
Começava a sentir a perda de sangue, precisava acabar logo com isso
ou seu corpo abandonaria a luta, apertou o coração com toda a força e a
criatura caiu de joelhos, o arrastando junto, ainda grudado em sua carne.
Nicolae tirou a mão fechada, trazendo o que sobrou consigo, fez força
para isso, ouviu os pequenos estalos de veias arrebentando e ossos se
afastando e o coração do inimigo estava fora.
Com um esforço ainda maior, separou a cabeça Lupina de seu corpo e o
jogou longe, o cheiro horrível daquele sangue escuro o deixou atordoado.
Devagar, se aproximou do homem que, assustado, lhe sondava o peito
vendo a gravidade de seu ferimento, Nicolae procurou mais ferimentos no
homem, mas não havia mais nada, apenas um grande buraco em sua perna.
— Tome o que precisar, senhor Nicolae — disse o homem.
Ele agradeceu e se aproximou, precisava ter cuidado, o homem havia
perdido sangue, mas sem forças não poderia tirá-lo dali para que recebesse
cuidados.
Ajoelhou-se e gentilmente puxou o homem para ele, com a unha fez o
corte e em seguida o bebeu afundando suas presas, o homem não emitiu
reação, seu pescoço estava suado e seu odor era forte, mas não podia culpar
um homem que estava suado de tanto trabalhar, era honrado e tinha família
para cuidar, lembrando-se disso tomou estritamente o necessário para poder
usar o dom da cura e, mesmo assim, o homem ficou inconsciente.
Sentiu seu corpo responder ao sangue novo, o carregou e correu em
direção à vila, não estava longe e Nicolae deu graças por ter matado a criatura
antes que encontrasse o vilarejo, sabia o que um monstro daqueles podia
fazer a um humano, Eva havia ficado viúva por conta de um leviatã, há
quatorze anos, demorou a acharem o corpo, ele foi arrastado para longe do
domínio dos sombrios. Eva sofria, tinha esperanças de que seu marido
estivesse vivo.
Até mesmo Rael não mediu esforços para encontrá-lo, ver Eva sofrendo
consumiu seu irmão por dentro.
Dimitri havia encontrado apenas suas sobras e então nada foi dito a ela
sobre isso, apenas que um leviatã o matou, mas desde então não se permitia
que os humanos fizessem a ronda, não tinham forças para uma besta com
tamanha força e selvageria.
Depois de deixá-lo aos cuidados do arconte do clã do irmão Odair, ele
seguiu seu caminho, não corria muito, deixava suas energias para a cura.
Sentia uma dor pungente no peito, mas aceitou a dor com tranquilidade,
fazia parte dele o processo, os sombrios eram uma raça forte e graças ao seu
coração diferente e a inteligência tinham conseguido sobreviver na guerra da
Supremacia.
Milênios para conseguir se tornar um clã poderoso, muitos anos de
guerra para ver seus primos caírem e as raças sumirem, restando apenas
quatro.
A maioria das coisas dos sombrios, sua história e seus itens haviam
sido enterrados o mais fundo na terra e a sabedoria da raça, haviam sido
preservados.
Nicolae passou a andar mais devagar, se perdendo em um pensamento
que sempre o tomava e então não mais o deixava. Diana.
Sentiu o coração se apertar ao se lembrar daquele dia, quase havia a
acertado, usou todo seu autocontrole e séculos de treinamento para parar
aquele golpe.
Seu coração havia parado, por conta de André seu modo caçador se
ativou para protegê-la, mas bateu acelerado, assim que ela entrou em sua
frente, quase explodindo em seu peito pelo medo que sentiu ao ver seu punho
tão próximo a ela, tão próximo ao seu frágil corpo.
Nunca tinha sentido um medo tão poderoso, e se a tivesse acertado?
Balançou a cabeça para espantar aquela imaginação pavorosa, ele iria
ao inferno para protegê-la, mas não queria viver no inferno por feri-la,
NUNCA!
Se algo acontecesse a ela, ele morreria, não teria mais motivos para
andar pela terra, esperou por ela, sonhou com ela e a ferir, fosse física ou
emocionalmente, era um crime imperdoável.
Seiscentos anos andando pela terra para descobrir o amor nos olhos de
uma criança com corpo de mulher, uma criança desesperada olhando para ele,
como se ele fosse o único homem digno de confiança no mundo.
Sorriu com amor ao se lembrar de sua pequena, só fazia isso quando
estava sozinho, levaria mais seiscentos anos, se fosse preciso, para ter seus
olhos somente para ele.
Mas que fosse sem dúvidas, não dividia o que era dele.
Sentiu o amor guardado para si lhe apertar o coração ao lembrar-se do
que viu naquela biblioteca há pouco mais de dois anos, viu sua aura, era
branca e havia um pequeno azul no centro mais perto de seu corpo, o seu azul
a sua cor, e quando viu se apaixonou completamente.
Lembrou-se de quando levantou a mão para tentar tocar aquelas cores e
não conseguiu, acabou pousando a mão hipnotizado em sua trança e ali
deixou ainda emocionado com o que via, sem saber como agir perto da
mulher de sua vida.
Lembrou o esforço que fez para manter a calma para não a assustar, e
ela se apegou a ele de imediato, o fazendo a amar ainda mais ao ver seu
progresso, ao saber que ela precisava de sua proteção.
E era esse azul que ele viu crescer em tamanho tomando mais espaço
do branco, via seu amor por ele crescer rápido nesses pouco mais de dois
anos juntos.
Mas agora Diana poderia se interessar pelo príncipe e uma nova cor
apareceria ali, sentiu dor ao pensar nisso, conseguiria se manter neutro e
calmo se isso acontecesse? Faria como Rael, que foi disciplinado seguindo os
ensinamentos do livro das sombras, deixando sua amada livre para conhecer
o mundo e se conhecer completamente?
Fechou o semblante. Tinha que ser disciplinado. Ela precisava desse
respeito, dessa espera, precisava conhecer seus sentimentos e se conhecer.
Diana estava deixando de ser menina e se tornando uma mulher,
engoliu em seco. Lembrou-se de todas as vezes que sentiu vontade de beijá-
la, quantas vezes quis com toda sua alma lhe mostrar um beijo com
sentimento puro, com total entrega, mas não podia, não enquanto ela tivesse
dúvidas. Amaldiçoou sua impulsão como herança, era uma herança maldita
para o amor, se a beijasse antes da hora, aprisionaria Diana a ele, mas não
traria seu sentimento à tona, apenas a deixaria dependente de seu amor por
ela.
A saliva de um sombrio era poderosa, precisava ter cautela, porque a
queria e precisava dela, mas não podia adiantar nada, se fizesse isso, nunca
mais teria a chance de ver sua aura completamente azul e sempre teria
dúvidas.
Balançou a cabeça, recitando baixinho uma das regras do livro das
sombras:
— Um amor por vez. Elimine as dúvidas, veja sua cor crescer e
preencher completamente a aura da sua amada, se conectando
completamente a sua outra metade selada e somente então se entregue ao
amor, então ela estará pronta para amá-lo sem nunca duvidar que escolheu
o companheiro certo para viver ao lado na eterna sombra.
Sim, ele teria paciência, a esperaria por séculos, se fosse preciso. Porém
temia por Diana, ela havia deixado sua personalidade forte aflorar, tudo o que
havia sofrido no passado a tinha deixado mais consciente e exigente de sua
liberdade, e ela tinha esse direito, não era dele, ainda não.
Mas se ele não se mostrasse frio ao sentimento que tinha por ela, essa
mulher ainda o faria perder o juízo.
Rael se aproximava rápido, havia sentido o cheiro de seu sangue e
estava na forma de caçador, vinha em seu auxílio, acelerou o passo, precisava
acalmá-lo, um sombrio transformado era um sombrio perigoso, ainda mais
Rael agora com sua angústia, mesmo que Eva tivesse levantado da cama,
ainda estava abatida e entregue às doenças da idade, precisava de atenção.
E queria voltar logo para casa, dormir para acelerar a cura, e se Diana
fosse dispensada do cortejo do príncipe, queria recebê-la com tranquilidade.
Ela precisava ver o Nicolae dela, o calmo e tranquilo.
Ansiedade, angústia e toda a loucura que ela despertava nele tinha que
guardar somente para ele, a amava acima de qualquer coisa, e faria o que
fosse preciso por ela.
Sua pequena precisava crescer mentalmente, só assim para começar a
entender o que sentia por ele de verdade, sofreria em silêncio por quanto
tempo fosse necessário, porque era um predador.
E nesse caso queria ver sua presa mais almejada completa, pronta
somente para ele para toda a eternidade.
INTERESSE DO REI

O harém estava praticamente vazio, poucos pais andavam por ali com
suas filhas. André me acompanhou entregando o carro e cochichando no
ouvido do cocheiro que seguiu direto para o castelo. Tiago tinha ficado no
carro, não podia aparecer saindo comigo.
— Acha que Dimitri ficará bem?
— Não se preocupe, o príncipe tratará da segurança dele até que
alcance os domínios sombrios.
— Obrigada, André, pelo que fez por nós.
— Não me agradeça, Diana, tenho meus motivos para isso, não sou um
servo por opção, em troca disso, deixei mulher e filha fora da muralha que
foram exiladas há muitos anos.
Essa era uma informação nova e estranha.
— Por quê?
— Sou um covarde de guerra, segundo o rei, por conta disso descemos
de casta e depois disso ele disse que falhei em uma missão, me rebaixando
novamente. Saí soldado e retornei escravo, no portão um amigo me avisou
que minha família estava em uma carroça indo para o prostíbulo, por ordem
do rei, foram exiladas.
“Retornei do portão e os alcancei e antes que chegassem a um
prostíbulo, matei o cocheiro e o ajudante dele e as levei a floresta e, por sorte,
encontramos o caminho, conseguindo refúgio no reino Sombrio.
Por isso e por minha vida salva pelo senhor Dimitri, eu não poderia ser
mais fiel ao meu povo do que o seu. A raça dos sombrios me deu muito mais
sem saber do que a minha própria raça.”
Senti imensa pena de André, ele não merecia passar por metade
daquilo, uma das poucas pessoas daquela raça que era decente e já tinha
sofrido uma boa cota na vida.
— Elas se lembrariam de você agora?
— Minha filha tinha sete anos quando partiram, agora tem vinte um, se
ainda estiver viva, minha esposa agora teria cinquenta anos.
Eu vi ali uma chance de ajudá-lo, ele merecia ter um pouco de
felicidade.
— André, eu nunca andei muito pelo reino sombrio, mas quando eu
voltar, posso procurar para você.
Os olhos dele se iluminaram com aquilo, pela primeira vez eu vi
felicidade de verdade ali.
— Ficaria eternamente grato a você se o fizer. A minha esposa, eu não
sei se sobreviveu, ela estava doente quando os deixei no domínio sombrio,
mas minha filha se chama Amélia.
Assenti. Procuraria por elas, se estivessem no reino sombrio, eu as
encontraria.
André pareceu nervoso e abaixou a cabeça.
— Acho que ela estranharia um pai que aparenta ser apenas doze anos
mais velho que ela.
— Ou ficaria orgulhosa de ter um pai tão bonito e forte. — Sorri para
ele e ele sorriu de volta, fazendo um aceno gentil e me olhando com carinho
antes de sair.
A noite ia chegando e eu não sentia fome, não sentia nada, apenas um
torpor e queria dormir para que o outro dia chegasse logo e finalmente o
outro, quando então eu poderia voltar para casa.
Agora que eu tinha decidido ir, sentia aflição com a espera, queria
voltar para casa e sair logo daquele lugar. Tiago tinha razão, realmente ficaria
mais difícil aos príncipes ter que resgatar as mulheres e ainda ter que pensar
na minha segurança, pelo menos estando com Eva, eu seria uma preocupação
a menos.
Ao pensar mais sobre isso, senti as borboletas passearem por meu
estômago, uma pena que Tiago já tinha dito ao rei que a dispensa seria em
dois dias, era urgente que eu voltasse para poder deixá-los livres para agir.
Meu consolo era que ao menos em uma coisa eu tinha ajudado, depois
de conversar com o príncipe tanto tempo naquela noite, plantei nele a
curiosidade sobre os atos de seu pai, entretanto, agora eu não serviria para
mais nada, não mais.
Adormeci com uma sensação estranha de perigo, acordei de um pulo no
meio da noite, não estava sozinha e vi que era André pelo cheiro, ele tapou
minha boca e cochichou.
— Precisamos ir, o rei tem interesse em você.
Aquela frase gelou até minha espinha e de repente tive frio, levantei
assustada e peguei o casaco que ele me oferecia, comecei apressada a me
vestir.
— Não podemos ser vistos, Diana, um carro espera você no portão. A
ordem para vir buscá-la será dada em breve, o rei ainda tem coisas a fazer no
salão real, temos pouco tempo para fugir.
Assenti, enquanto me vestia, apressada, depois peguei a caixa que
mantinha lacrada tirando de lá algumas coisas. Acendi rapidamente uma
trouxinha, deixando em uma terrina no meio do corredor e em seguida
coloquei o que deu para pegar em preparos em uma trouxa e o acompanhei.
Não sabia se ia usar, mas eu só tinha isso para me defender e mais nada, nem
conseguia pensar direito.
Novamente me encontrava nas mãos de André e mais uma vez ele me
ajudava, um peso a mais que eu teria que adicionar na balança do lado dele.
Estava realmente ficando endividada de chances de viver com André,
ele me tirou da minha distração.
— Fará efeito em quanto tempo?
— Minutos!
— Então vamos andar depressa. — Pegou em minha mão e aceleramos
o passo, torci para que a trouxinha de ervas queimasse rapidamente e o efeito
começasse.
Era a mistura mais comum preparada por Eva e sempre foi eficaz. Com
sorte, em breve todas as garotas desmaiariam até o dia seguinte.
O coche real já nos esperava, suspirei, aliviada, não teríamos que dar
um jeito em cavalos ao menos isso, quando entrei Tiago já estava ali, estava
virando hábito imaginá-lo dentro de todos os carros que ia entrar e assim que
André entrou, o cocheiro partiu, acelerado.
— Não sei como faremos, Diana — disse Tiago, que realmente estava
nervoso. — Mas iremos te tirar daqui.
— Tiago, seu pai pode te matar, se descobrir que estragou o plano dele
e não entendo…
Ele levantou a mão, me cortando, pareceu pensar um pouco antes de
falar, foi rápido, mas eu percebi que seus olhos para mim estavam diferentes.
Ele se culpava pelo pai?
— Não sei o que ele pretende com você, Diana, mas coisa boa não é e
tenho certeza de que seus príncipes me matariam se eu deixasse algo
acontecer a você. Com meu pai eu me viro, todavia, não acredito que teria
argumentos para eles quando me pegassem, e André me falou do Nicolae,
esse aí não aceitará nenhum argumento meu.
André assentiu.
— Ele quase me mata, se Diana não entra na frente, nem esperou para
ouvir como Dimitri, ele é mais perigoso, tenha medo dele, Tiago, porque eu
não tenho vergonha de dizer que tive e muito.
Apesar do nervosismo do momento, não deixei de achar graça, eles
tinham mais medo dos três príncipes que eram bons do que do rei que era um
sádico.
Não deixou de vir um pensamento intrometido na minha cabeça.
Bons para mim. Pensando melhor, eles tinham mesmo que se
preocupar, caso qualquer um deles se enfurecesse. Tiago ainda mais que
André, pois foi por causa do pedido dele que eu estava presa no reino. Se
algo me acontecesse, eu não sabia como ficariam, pelo menos eu imaginava
ouvindo as histórias de Eva sobre eles, mas bravos de verdade eu nunca tinha
visto.
Logo fomos barrados no portão pelos soldados.
— Não podem passar sem ordem do rei.
Tiago colocou a cabeça para fora na pequena janela.
— Mas podemos passar se for ordem minha, abram logo esse portão
que quero me divertir hoje e se isso não acontecer, vocês pagarão caro.
Sem mais delongas, o portão foi aberto e rimos nervosos da situação.
— Tem lá suas vantagens ser um príncipe, afinal de contas.
André e eu concordamos e eu fiquei agradecida pela velocidade em que
seguíamos, o cocheiro seguia em ritmo acelerado.
Estávamos bem distantes do portão real, só conseguia ver as árvores da
alameda e mais nada, logo avistamos à frente as primeiras casas do bairro da
casta nobre.
— O que mais tem aí nessa trouxa? — perguntou Tiago.
— Poções simples, mistura inflamável, veneno para deixar confuso.
— E esse vidro?
— Um líquido que faz a pessoa desmaiar quando exala.
— Ótimo — André falou, rasgando um pedaço da camisa.
— Coloque isso aqui.
Eu coloquei e então ele bateu na portinhola e o cocheiro parou, ele saiu
rápido do carro e voltou em seguida com o homem desacordado no colo, o
colocou no assoalho e fechou a portinhola.
Não senti pena do cocheiro, era necessário, quanto menos ele soubesse
mais seguro estaria. Logo o carro começava a andar novamente, na
velocidade máxima que quatro cavalos conseguiriam correr.
Tudo passava rapidamente, não demorou muito estávamos nos
aproximando da vila dos forasteiros, tentei a todo custo disfarçar meu
nervosismo, torcia as mãos e depois de algumas vezes tentando olhar pela
janela para ver se estávamos sendo seguidos, me sentei. Minhas mãos suavam
e meu estômago revirava.
Sair fugida do reino e com tudo sendo improvisado na hora, dava um
pavor medonho, sentei-me depois de mais uma vez olhar pela janela.
— Dimitri? — Imaginava que ele já estivesse há muito em casa, mas
quis garantir.
— Partiu logo que o deixou no portão, chegou bem no limite sombrio,
mandei homens atrás que o escoltaram.
— Seu pai não desconfiou dessa ordem?
— Meu pai tem os homens dele, mas eu tenho alguns também, Diana,
não se preocupe com isso, precisamos nos preocupar em conseguir sair do
reino Humanis, isso sim.
Fiquei sentada, torcendo as mãos como um tique nervoso e ele viu que
eu não parecia satisfeita.
— Existe um pequeno grupo que trabalha para mim e são fiéis, porque
de alguma forma acreditam que sou melhor que me pai.
Novamente vi amargura e culpa em seu semblante ao dizer isso, mas
não quis atormentá-lo com perguntas, no momento estava com preocupações
maiores.
— Folgo em saber, e como passaremos pelos portões?
— Verá, não se preocupe. Passar não será problema, vencer o caminho
até lá sendo caçados, é que me preocupa.
Fiquei preocupada com a última frase, mas reclamar naquele momento
não ajudaria em absolutamente nada e depois de um silêncio ansioso e
nervoso logo estávamos chegando perto do portão.
O carro parou e então eu ouvi a conversa, primeiro André falou:
— O príncipe está nesta carruagem abram o portão.
Uma voz estranha falou:
— O que o príncipe iria querer lá fora, criado? Você mente! O que leva
aí consigo? — Tiago então abriu a portinhola e saiu.
— Abram os portões, já foi dito que eu estava aqui, o que eu tenho para
fazer do lado de fora não é da conta de vocês, soldados.
Um silêncio mórbido se fez e logo os portões pesados foram abertos, já
fora dos portões a carruagem alcançava velocidade impressionante, o
cocheiro que dormia começava a recobrar a consciência.
— O que faremos com ele? — perguntei, preocupada.
Tiago pareceu sem ação por um momento.
— Saberemos quando ele acordar. Tem mais dessa coisa aí?
Entreguei a ele o vidro e sem rodeios despejou um pouco no rosto do
pobre homem.
— Vai deixá-lo em coma assim, Tiago, está maluco?
— Não temos tempo para pensar em sutilezas, Diana, mesmo em coma,
um dia ele volta a acordar, pelo menos não está morto.
Não tive tempo de responder, a carruagem parou bruscamente e André
abriu a porta.
— Os cavalos estão prontos.
— Já sabe o que fazer, André — disse Tiago, me encarando e então
levantou a mão. — Mas espere, por favor.
Sem me dar tempo para pensar no que faria, ele me agarrou e me beijou
com paixão. Diferente do beijo naquele dia, esse tinha muito mais sentimento
da parte dele, mas era mais como um desespero, o que Tiago tinha feito? Por
que estava daquele jeito? Eu retribuí, mas diferente da primeira vez que senti
um frio na barriga, nesse não senti nada.
O beijo de Tiago parecia amargurado, ele parecia precisar de algo a que
se agarrar, mas o que era? Estava consciente de André estar parado na
portinha da carruagem e quando ele se afastou, falou, respirando fundo:
— Nunca conheci uma mulher como você, Diana, nunca mude, lute e
seja sempre assim, sei que não a mereço e sei que seu coração tem dono, eu
sinto isso.
Franzi o cenho, meu coração tinha dono? Como ele podia saber?
Não tive tempo de perguntar nada, porque ele estalou a língua,
parecendo desgostoso com o próprio pensamento.
— Uma mulher de fibra, que me desafiaria a conquistá-la e eu não
poderei te cortejar, mas o homem que o fizer e conseguir ser escolhido por
você, será um homem de muita sorte.
Senti um aperto no peito, não por suas palavras de elogio, porque elas
não entraram em meu coração, mas ele parecia dar adeus, e de uma maneira
estranha, aprendi a ter carinho por ele, talvez ele fosse realmente o único
humano digno de confiança naquele reino.
— Parece estar se despedindo para sempre, Tiago, você não vai morrer,
vai?
Ele sorriu com carinho e como sempre era um bonito sorriso.
— Estou tentando evitar isso, mas ficarei um bom tempo de castigo,
preso em uma cela, até meu pai esquecer minha atitude, mas saiba que eu
procurei por isso, fui idiota e mereço qualquer castigo.
Eu não dei muita atenção dessa vez ao que ele disse, estava preocupada
e me sentindo horrível, eu o coloquei naquela situação.
Se não fosse minha atitude de ter voltado ao reino dos humanos, isso
não estaria acontecendo, e entre os humanos que conheci, ele era a única
pessoa depois de André que merecia uma chance de ser feliz.
Sem poder fazer nada por ele, saí chorando da carruagem e ouvi
quando ele falou com a voz de medo.
— Vai, André, e pelo amor de Deus homem! Que seja em um só golpe,
sabe que só sou forte por treinamento, mas para dor sou um covarde. Ande
com isso!
André afirmou sério e então aplicou uma paulada certeira na cabeça de
Tiago, que desmaiou na mesma hora, sangue escorreu do local onde ele havia
sofrido o golpe, senti um frio na barriga ao ver aquilo e me desesperei por
Tiago.
— Vai matá-lo, como pôde fazer isso? — Fiz menção de ir até ele para
ajudá-lo, mas nem consegui sair do lugar direito, André me pegou pela mão e
me arrastou pela floresta.
— Não se preocupe, não foi mortal.
— Ele pode morrer largado ali.
— Nada irá se aproximar da carroça, há homens de confiança cuidando
do local, a vida dele dependia de um belo golpe.
Eu não tinha entendido nada e estava chateada com André, foi cruel o
que ele fez.
— Como pode dizer isso?
Ele continuou andando apressado e segurando minha mão, estávamos
adentrando cada vez mais na floresta.
— Eu sou o traidor aqui, menina, eu que ataquei o cocheiro, eu que
ataquei o príncipe e sequestrei você e isso é tudo o que o rei precisará saber.
Tiago apenas ficará no castigo por dar tanta confiança para um simples servo.
Agora eu entendia, tudo recairia sobre André, Tiago apenas seria
tratado como um tolo, fiquei surpresa com a inteligência de André.
— Acreditarão mesmo nisso?
— Quase todos os servos do harém estavam comentando sobre a
proximidade de nós dois e essa fofoca toda me deu a ideia, não pretendia usá-
la se as coisas tivessem sido diferentes e você conseguisse voltar para a casa
sem problemas, mas o rei tinha que pôr os olhos em você, então não vi outro
jeito para te tirar de lá sem deixar Tiago em perigo.
— Eu serei vista como uma mulher promíscua, que fugiu com um
homem no meio da noite?
— Não consegui pensar em coisa melhor, criei o plano de última hora.
Eu realmente me incomodei de imaginar os comentários, mas foi
apenas passageiro, corríamos perigo e se não fosse por André eu estaria agora
na masmorra, com sorte, viva, ou com azar, sendo dissecada nesse momento.
— Obrigada por isso, André.
— Ainda não estamos a salvos e precisamos ir, menina, vamos, me
agradeça se conseguirmos chegar lá.
Ali estavam dois cavalos negros, robustos e saudáveis, montamos e
partimos a galope.
O domínio sombrio não era muito longe naquela direção, mas ainda
tínhamos muitos metros a vencer antes de estarmos seguros, ao longe eu ouvi
o grito dos soldados que vinham em nossa captura.
— Começou! — ele falou alto e urgente e incitou seu cavalo para que
corresse mais rápido e por instinto de sobrevivência com o coração
retumbando de medo, eu fiz o mesmo.
SENTINDO NA PELE AS LEMBRANÇAS
DO PASSADO

O tempo parecia parado, enquanto a paisagem parecia passar como um


vento por meus olhos.
Meia hora de perseguição e os cavalos começaram a sentir o peso do
esforço da corrida. Mais um pouco, eu pensava desesperada, então mesmo
com dó, eu chicoteei meu cavalo e André fez o mesmo.
As vozes eram ouvidas cada vez mais perto, e eu pressentia em minha
espinha gelada que não conseguiríamos escapar, eu precisava avisá-los que
eu estava chegando, que eu estava ali e precisava de ajuda. Tentei morder
meu dedo, mas quase me desequilibrei do cavalo.
— Preciso de um ferimento André! — eu gritei para ele.
— Como?
— Preciso de um corte em mim.
André era esperto e não discutiu comigo. Puxou a faca e me cortou o
braço com agilidade e eu senti a quentura do sangue escorrendo.
Agora era questão de tempo e de vencer cada metro sem ser capturada,
para dar tempo de meu cheiro chegar a eles, continuávamos forçando os
cavalos ao limite. Já avistávamos os cavalos dos soldados que se
aproximavam rapidamente.
Quando adentramos o limite sombrio, eu pensei que estaríamos salvos,
mas o capitão gritou para os soldados com energia.
— Não importa onde estamos, o rei quer aquela garota e temos que
levar o traidor de volta, ou eles com o rei ou nós com sua ira. VAMOS!
Soltei uma imprecação. Corríamos ainda perigo e incitei o cavalo ainda
mais, o pobre animal sofria. Tinha meu coração aos pulos que disputava com
o ritmo do cavalo, precisávamos nos manter vivos até que os príncipes
chegassem, mas os cavalos já espumavam nos cantos da boca. Meu coração
se encolheu de pena da pobre criatura e de medo de ele não aguentar, mas
não podia dar descanso ao animal, assim continuamos no mesmo ritmo que
corríamos desde o início.
Ouvi o zumbido que cortava o ar liberando um som musical e em
seguida uma flecha acertou a traseira do cavalo de André, fazendo o meu cair
junto.
Não deu tempo de nada, quando conseguimos levantar, vimos que tudo
havia sido em vão. Estávamos cercados. Entrando na minha frente, André foi
andando para trás, me empurrando com suas costas. Fiquei encostada em uma
árvore com ele me protegendo com seu corpo. Não tinha nada além de uma
faca pequena, mas se manteve em posição de combate e eu rezei baixinho
para que os príncipes chegassem logo.
Os homens deram passos até nós e então ele se preparou para a luta,
desviou de uma espada, e acertou um murro no soldado que se aproximou de
mim, com um chute ele acertou outro, e cortou o braço de um que tentou me
pegar, mas eram muitos homens e com uma lança longa um soldado o
atravessou.
Ouvi apenas um arfar de dor e André com um baque seco caiu e ficou
imóvel, desesperada, eu soltei um grito, abaixei para tentar ajudá-lo não
conseguindo fazer nada, um soldado me pegou pelos cabelos, me levantando
sem se preocupar com André caído.
Levando-me para longe, ele cantarolava todo jocoso enquanto me
arrastava com uma mão, como se eu fosse um animal já morto. Me esperneei,
gritei e arranhei seu braço, mas ele não soltou meus cabelos até achar um
local com menos árvores.
Depois que me soltou, me jogando com tudo no chão, ficou de cócoras
me olhando de perto, senti o seu hálito de vinho barato, nicotina e também o
suor e sujeira, seus olhos castanhos brilhavam de diversão e ele sorria ao me
analisar dos pés à cabeça, subindo e descendo os olhos várias vezes,
estacionando no meio dos meus seios e no vão de minhas pernas.
Tinha o rosto vermelho e uma cicatriz no lábio superior que deixava
seu sorriso desprovido de vários dentes ainda mais bizarro.
— Então você é a menina que chamou a atenção do rei, não é? Aquela
que conseguiu sobreviver a um veneno secreto e poderoso.
Encarei-o com raiva, não podia fazer nada agora, mas não ia
demonstrar medo, então era isso, o boato sobre eu ter sobrevivido tinha
chegado aos ouvidos do rei Júlio, suas espiãs eram mais eficientes do que se
supunha.
Ele chegou perto do meu rosto e me segurou firme entre minha
mandíbula e orelha, senti seus dedos machucarem a carne, com uma virada
brusca no meu rosto ele me deixou de lado, chegando ainda mais perto, quase
encostando em meu pescoço e puxou o ar demoradamente, soltando um
gemido de satisfação.
— Que delícia de cheiro, será que ficaria bom misturado com o cheiro
da minha porra? Adoraria te empalar completamente, estou muito tentado a
isso.
Cuspi nele para mostrar o quanto o repudiava, ele me deu um tapa com
as costas da mão sem me soltar do aperto e eu pisquei várias vezes para
recuperar o foco, queria chorar, pensei na hipótese de implorar, mas fiquei
firme, mesmo apavorada não ia me rebaixar, não mais, e com uma coragem
que nunca pensei que teria, mordi seu braço e ele gritou.
Foi a única coisa que consegui encontrar para fazer, fiquei com medo
do que ele faria agora, mas, no fundo de meu ser me senti livre, eu sofreria,
mas não calada, não ficaria apavorada ao ver um maldito sádico como fiquei
a primeira vez.
— Então a cadelinha quer morder, hein! Vamos ver se ficará com essa
pose toda depois do que eu fizer com você.
Ao dizer isso, ele me jogou no chão, levantou meu vestido com
brutalidade e abaixou, cheirando com força minha roupa íntima, tentei lutar,
tentei tirá-lo dali, puxando seu cabelo com toda força, mas ele parecia nem
sentir ou nem se importar.
— Humm, tem cheiro bom, hein. Acho mesmo que o rei não vai se
importar se você chegar um pouco usada, afinal… Ele não a pediu intocada, a
pediu viva, mas fique tranquila, doçura, não estragaremos você demais,
temos aqui cinquenta homens, pelo menos uns vinte você aguentará ainda
consciente.
Senti o desespero me tomar e comecei a chorar, ainda puxando seu
cabelo e a visão de Samuel veio como um raio na minha cabeça, ele
segurando uma menina pelo quadril e forçando dentro dela, sangue pingando,
a menina gritando com seu rosto encoberto pelo desespero, pelas lágrimas e
por caretas de dor e via a mim mesma nessa situação, fazendo aquelas
caretas, e um frio doído perpassou por meu estômago de pavor.
Eu ia passar por aquilo? Tinha me livrado naquela época, mas era meu
destino passar por isso?
A plateia estava lotada, muitos homens gritavam, incentivavam o
maldito, levantavam suas espadas ao alto, enquanto assistiam, animados,
àquilo, se deixando levar pelo grito de incentivo dos homens que esperavam a
sua vez, ele rasgou meu vestido, me deixando nua.
Eu gritei desesperada e me esperneei quando ele se debruçou por cima
de mim, o peitoral de sua armadura machucou meu corpo, machucou ainda
mais porque eu lutava desesperadamente, sem me importar com o ferro
mordendo minha carne.
Mas ele era muito grande e sem se importar com a minha luta, começou
a morder meu ombro e depois meus seios, enquanto me forçava a abrir as
pernas, a dor das dentadas era terrível, mas não me desencorajou a desistir,
tentava de todo modo o tirar de cima de mim.
Os homens gritavam palavras obscenas e diziam para ele andar logo,
porque queriam a vez deles, meu desespero aumentava cada vez que os
ouvia.
Eu lutava e esmurrava o homem, tentando o tirar de cima de mim,
usando toda a força que eu consegui, mas ele era muito mais forte.
Estava desesperada e perdendo as forças, ele logo conseguiu forçar
minhas pernas a abrir, quando senti seu membro rijo encostar em mim, eu
soltei um grito desesperado, já sem forças, já sem esperanças, não adiantava
nada mais lutar, só me fechar dentro de mim…
Um urro medonho dominou a floresta.
CAÇADOR SOMBRIO

Com aquele urro, o silêncio dominou tudo. Os homens pararam com


sua algazarra. Foi tudo tão rápido, que não deu para processar nada, no
mesmo instante o homem que estava em cima de mim teve seu peito
trespassado, mesmo com armadura ainda vi o punho aparecer à minha frente,
passando pelo peito, segurando seu coração e eu vi a mão fechada apertando
com força aquele órgão e o sangue pingou em meu pescoço e seios.
Com seu corpo inerte ainda esmagando o meu.
Ainda em cima de mim, o homem estava com seus olhos esbugalhados
fixos nos meus, a boca aberta e babando pelo susto do golpe.
Tudo aconteceu em segundos e então ele foi arrancado de cima de mim,
já morto e jogado longe, e ali estavam meus três príncipes e a emoção me
tomou. Eu estava salva.
Nicolae estava fora de si. Seus olhos estavam vermelho carmim, seus
cabelos tinham crescido até a cintura, se tornando cinza, e suas unhas
estavam enormes e enegrecidas e pingavam ainda o sangue daquele porco.
Seu rosto estava transfigurado pelo ódio.
Um sombrio de caça, e agora estava caçando, seus olhos se viraram
para mim apenas uma vez e novamente ele urrou de raiva, pegando um
soldado com suprema agilidade e rasgando seu pescoço.
Encolhi-me, tentando me cobrir com minhas mãos, a vergonha me
tomando, o barulho de gritos era desesperador, entretanto, os gritos de
Nicolae encobria os gritos dos homens que morriam.
— Vá, Dimitri — disse Rael, enquanto quebrava o pescoço de um
soldado, como se quebrasse um galho, eu ouvi o estalo. — Eu e Nicolae
cuidaremos deles, leve-a daqui, agora! Ou ele não irá se controlar, não
conseguirá voltar a si.
Dimitri rapidamente tirava seu casaco sem dizer nada, estava
consciente assim como Rael, apenas Nicolae estava transformado.
Cada homem que pegava, ele rasgava seus pescoços os deixando para
morrer, outro ele socou com força sua armadura no peito, fazendo a mão
passar para o outro lado.
Mesmo sem ainda tirar a mão do peito do homem, pegou outro com a
mão livre e cravou os dentes em sua jugular, o fazendo se espernear em
espasmos, até parar completamente mole. Jogou os dois corpos com fúria
contra uma árvore, já estavam mortos, pois não houve nem mesmo o mínimo
gemido com os ossos se partindo com o impacto.
Poucos homens tentaram lutar, mas as poucas investidas com suas
armas só deixavam Nicolae ainda mais cruel.
Logo todos estavam desencorajados e não havia mais luta, agora era
apenas o caçador e as presas desesperadas por salvação, pedindo perdão e
misericórdia, mas ele não ouvia apenas os eliminava.
A cada morte ele gritava de ira, era extremamente ágil, nenhum
humano era perdoado, não haveria sobreviventes e nem conseguiam correr
rápido o suficiente para fugir da ira de Nicolae.
Ele não parecia se contentar com as mortes, ainda com sede de sangue,
pegou outro homem que gritava apavorado tentando correr, não pareceu fazer
nenhum esforço enquanto separava sua cabeça do corpo.
Fechei os olhos para aquela carnificina, por ver Nicolae daquele jeito e
por seus gritos, havia mais que ódio naqueles gritos... Havia sofrimento.
Dimitri e Rael tinham os olhos vermelhos e as presas à mostra, mas
estavam conscientes, Rael era rápido, matava rápido e limpo, sem emitir nada
além de chiados ameaçadores.
Dimitri tirou o casaco e me cobriu, tinha os olhos cheios de lágrimas,
não disse uma palavra ao me pegar no colo. Quando ele me carregou, Nicolae
voltou a gritar.
Dimitri olhou para ele, preocupado com sua reação.
— Preciso tocá-la, meu irmão, cuidarei dela, prometo.
Rael falou, preocupado:
— Vá, Dimitri, deixe Nicolae comigo e vá, ele busca vingança, ande
saia daqui!
— Não, Dimitri, por favor, Nicolae está fora de si, precisa ajudá-lo
primeiro.
— Nem mais uma palavra, Diana, o que eu preciso é tirar você daqui,
enquanto estiver aqui ele não vai parar.
Ele me olhou e eu vi dor em seus olhos vermelhos parcialmente
cobertos por seus cabelos acinzentados e então antes de sair, ele falou para
Rael:
— Voltarei o mais rápido que eu puder.
E sem esperar resposta, ele os deixou caçando os homens que corriam
desesperados pelo meio do mato para fugir do alcance deles.
Dimitri correu em alta velocidade quando Rael ainda gritou para que
andasse depressa, e eu me encolhi em seu peito, chorando baixinho.
Eu me sentia envergonhada pela cena que eles presenciaram, me sentia
violada, invadida mesmo que o ato não tivesse sido consumado, ainda assim,
me sentia suja, indigna de ser cuidada por eles, de vê-los ter que matar por
mim, de terem que passar por aquilo... E terem visto aquilo.
Quando chegamos, ele chutou a porta que se abriu com um estrondo e
ali estava uma Eva sentada, cansada, doente e muito mais velha.
— Por favor, Eva, ela precisa de cuidados, preciso voltar e ajudar meus
irmãos, preciso ajudar Rael a trazer Nicolae de volta, ele não conseguiu se
manter consciente quando viu o que faziam. — Ele olhou significativamente
para Eva. — Nicolae, ele…
Eva não o deixou terminar e falou com urgência, apesar de fraca.
— Vá, Dimitri, eu cuido dela. Rael precisará de ajuda, se Nicolae ficou
assim, só vai parar até ver o último deles caído. Diga a ele que Diana está
bem, que está comigo e que precisa dele, talvez isso o ajude a voltar a si.
Eu não disse uma palavra a ele quando olhou para mim, nem retribui
seu olhar, não consegui.
Ele me beijou de leve no topo da cabeça e eu senti a umidade ali, ele
estava chorando e fiquei pior ainda. Quando ele saiu porta afora, me agarrei à
Eva.
— Me desculpe.
— Pelo quê? Por pedir socorro quando precisava?
Balancei a cabeça, não conseguia parar de chorar.
— Por colocar Nicolae daquele jeito, você não viu como ele ficou, Eva.
Agarrei seu colarinho, a puxando para mim com desespero.
— Ele não matou, ele despedaçou aqueles homens, dava gritos de ódio
e bebeu o sangue deles até caírem com o pescoço destruído, decapitou alguns
e não parecia satisfeito, parecia sofrer. Ele sofria!
— Os sombrios são bons, mas sabem ser cruéis. Nicolae é caçador,
querida, esse nome tem muito significado e é mais que normal ele proteger
quem ama.
Ela não me deixou responder, fazendo sinal para que ficasse quieta,
avaliou meu ombro, havia marcas fundas de mordida, preocupada ela abriu
meu casaco e eu estava nua, olhou cada parte de meu corpo e seus olhos
ficaram molhados.
— Eles?…
— Não, não conseguiram, Nicolae arrancou o homem de cima de mim
a tempo.
— Deixe-me ver essas marcas.
Ela avaliou as mordidas, tinha marcas em meus seios e nos braços e
pescoço.
— Oh, querida! O que fizeram com a minha filha…
Abraçou-me e ali eu fiquei chorando, agradecida por estar em seus
braços, preocupada pelo estado de André e desesperada de preocupação por
Nicolae.
Morrer, André não tinha morrido, ele era mestiço e isso já o teria
salvado a vida, mas seria ajudado a tempo? Me roendo de preocupação, me
mantive ainda quieta, ainda revendo a cena e sofrendo ao me lembrar dos
gritos de Nicolae.
— Não consigo te ajudar a ir ao quarto, minha querida, nem andar
direito estou conseguindo.
— Não quero quarto, Eva, não quero nada, só ficar aqui, não se esforce.
— Mas precisa de um banho e de uma cama, menina, precisa estar bem
quando eles chegarem ou então não sei como Nicolae vai reagir.
Ela tinha razão e eu assenti e então ela chamou uma criada e subimos
as três ao quarto.
Quando chegamos, o cheiro familiar me acalmou um pouco, e então
assim que o banho ficou pronto entrei na banheira e a água quente foi muito
bem-vinda, me esfreguei com força, tentando arrancar de mim até mesmo as
lembranças do toque daquele homem sujo, esfregando até arder as marcas de
dentadas e tendo a sensação que ainda estava impregnada ao ver aquelas
marcas já cicatrizando.
Agradeci novamente por ter sangue sombrio, pois ver aquilo me dava
asco, me fazia sentir raiva de mim por ser fraca.
Eva sentada na poltrona, me observava do quarto, enquanto eu me
lavava, com seu semblante triste parecendo sofrer ao ver minha amargura na
banheira.
Sem dizer nada, me troquei e me deitei na cama, ela se levantou da
poltrona ajudada pela criada, se sentou ao meu lado e me deu uma bebida
amarga.
Bebi sem reclamar, qualquer coisa que me dessem seria para meu bem
e eu só queria ficar bem novamente, nada mais.
Agarrei-me a ela, que me balançou e ficamos assim por um longo
tempo, abraçadas sem dizer nada, apenas uns gemidos dela, como se me
cantasse uma canção.
Senti falta de Eva, de seu cheiro de flores e sua mão gordinha, que
agora estava magra e ossuda, me acariciando o ombro, enquanto gemia
baixinho, e assim com seu cheiro tão maternal para mim, peguei no sono.
Acordei com o dia despontando e ali estava não Nicolae, mas Dimitri,
sentado na poltrona ao lado da cama, lendo um livro.
Não me viu acordar e eu não queria que percebesse, fiquei em silêncio,
me lembrando de ele ter saído chorando na noite anterior e não sabia como
interpretar isso, tristeza por me ver quase ser violada? Por não conseguir
chegar antes disso?
— Sei que está acordada, Diana. — Ele nem levantou os olhos do livro.
Levei um susto quando ele falou, meu coração se apertou, não queria
conversar, quando viu que eu não abria a boca, ele levantou os olhos e ficou
olhando para mim.
Tinha olheiras e aparentava cansaço, ainda não estava completamente
rejuvenescido e toda hora de sono era importante, contudo, mesmo já estando
na hora de seu sono, ele estava ali com o sol despontando, e ainda me
encarava como se esperasse algo. Agir naturalmente era a melhor maneira
com ele.
— André?
— Dorme. Rael cuidou dele, não demorará muito estará novo em folha.
Assenti, me sentindo mais aliviada ao saber disso, mas queria evitar a
conversa, queria que ele não se preocupasse, talvez se fingíssemos que nada
aconteceu, seria mais fácil.
— Não foi dormir por que, Dimitri? Eu estou bem, graças a vocês, não
precisa ficar me pajeando agora, vá descansar, por favor.
Abaixei a cabeça para não olhar em seus olhos, a vergonha por saber
em que estado me encontraram ainda me roía, me humilhava. Ele estava
consciente, me viu nua e ainda sua reação…
— Por que está desviando o olhar, Diana? Por que seu coração acelerou
quando me viu aqui?
Ele se levantou e se aproximou da cama, sentando perto e me
encarando.
Falei baixo, olhando para o travesseiro, evitando seu olhar:
— Sinto muito pelo que você viu ontem, aquilo foi humilhante.
Ele passou a mão pelos cabelos negros, mostrando seu estado de
nervos, os fazendo cair em seu rosto formando uma moldura de fios
brilhantes, sem dizer uma palavra segurou meu queixo e levantou meu rosto
para encará-lo.
Aqueles lindos olhos azuis límpidos agora estavam nublados, ele não
sabia disfarçar quando sentia raiva. Nunca soube.
— Não me preocupei com isso, me desesperei com o que você passou,
com a meia transformação eu ouvia as batidas de seu coração ao longe, me
deu desespero, Diana, Rael me pediu para não ficar no modo caçador, alguém
tinha que estar consciente, mas como ele não confiou que eu fosse me
segurar, ele também ficou e quando eu te vi, fiquei estático a princípio, mas
com ele me dizendo o que fazer, agradeci por ele estar lá consciente também,
você precisava de mim, e eu me segurei ao máximo, Diana, para não fazer
uma carnificina com o ódio que senti daqueles covardes.
O bom de ser Dimitri era que com ele eu me esquecia fácil da
vergonha, a cumplicidade fraternal que tínhamos era muito grande, mesmo
sendo uma conversa que me deixava constrangida pela situação que me
encontraram, ainda assim, não era complicado.
Só que não me saía da cabeça essa parte, Nicolae que era tão mais
calmo, ficou irado daquela forma, já Dimitri mais novo e menos controlado
foi o que se segurou, se controlou, se mantendo consciente em seu caçador.
— Mas não é estranho, Dimitri, ser você a se segurar e Nicolae, que é
sempre tão calmo e tão experiente ter se deixado levar pela fúria?
— Entenda que a reação foi equivalente ao que sentimos. Ele é que foi
sortudo de ter extravasado sua ira, Diana. E ele foi o primeiro a chegar, e
Rael mandou eu me controlar, porque sabia que Nicolae não conseguiria.
“Apenas de sentir o cheiro de seu sangue e de identificar a adrenalina
nele, ele soube que você estava com medo, e seu primeiro grito de ódio foi
aqui e quando correu na direção de seu cheiro, já estava transformado, porque
sabia que você corria perigo e não deu nem tempo de nada.
Corremos atrás dele e quando cheguei, ele já tinha matado o homem
que estava em cima de você, então querendo ou não, o que ele viu foi, com
certeza, pior do que o que eu vi.”
Novamente a lembrança daquele homem nojento me veio à mente, senti
o rosto queimar ao me lembrar das mordidas em meus seios e de eles
chegarem me pegando com as pernas forçosamente abertas.
— Não consigo esquecer aquilo, não consigo pensar naquilo e não
sentir vergonha do que viram, você até chorou, Dimitri, deve ter sido uma
visão horrorosa, mesmo que diga que não, eu sei que foi.
Ele apertou os olhos, me encarando.
— Se está se sentindo constrangida, eu entendo, nenhuma mulher devia
passar por isso na vida, nenhuma mulher merece ser tratada dessa forma, com
essa violência e desrespeito, mas se sentir culpada é o cúmulo do ridículo.
Ele se levantou e ficou andando de um lado para o outro, respirou
fundo e então sentou novamente, olhando as mãos, depois de um tempo
olhou para mim.
— Chorei, Diana, por raiva de mim mesmo. Pelos Antigos! Eu estava
com você algumas horas antes! Poderia ter te poupado de passar por isso, se
não fosse um idiota, se eu tivesse te trazido comigo, nada disso teria
acontecido, mas por que eu tenho que ceder a tudo o que você me pede? Uma
vez, apenas uma vez. — Ele levantou o dedo indicador olhando para mim e
eu quase ri com aquela carinha fofa, mas ele estava nervoso e continuou
falando, com energia: — Se eu tivesse sido firme com você, nada disso teria
acontecido, você teria emburrado vários dias, iríamos brigar, não importa,
mas você estaria segura e eu não teria quase morrido de tanta dor ontem. Não
percebe o quanto me doeu saber que por minha causa você quase foi…
Como ele podia se culpar daquela forma?
— Pode parar agora mesmo, Dimitri! Você não teve culpa, eu que fui
teimosa e as consequências foi o que aconteceu ontem. — Puxei seu rosto e o
fiz olhar para mim, ele fechou os olhos e falou baixo, sua testa encostada a
minha:
— Me desculpe por não estar lá quando mais precisou, falei tanto que
você sempre seria protegida por seu irmão mais velho e quando mais
precisou, eu não estava ao seu lado, não te protegi como prometi.
Beijei sua testa com carinho, ele me abraçou forte e enterrou a cabeça
no meu pescoço.
— Meu príncipe tolo, bem diz Rael que você é um tolo, você sempre
esteve do meu lado, sempre levou as broncas para me proteger e foram
muitas.
“Rael e Nicolae sempre foram exigentes, mas você sempre me
encobrindo, sempre apoiando minhas ideias, mesmo sendo contra. Então
quando uma vez você não chega na hora que acha que deveria chegar, já
chora.”
Ele ficou ali quieto, mas eu sabia como lidar com Dimitri, se fosse
Nicolae era de outra forma, já com ele era simples, éramos irmãos, ele me
entendia e eu o entendia e até nessa hora eu sabia como fazê-lo parar de se
culpar.
— Sabe — sorri, antes de continuar, já sabendo que aquilo ia funcionar
— deviam pôr em sua cripta assim: Dimitri o tolo chorão, hein? Acho que
combina mais com você, poderíamos falar juntos com Rael sobre isso,
quando tudo estiver calmo.
Ele saiu do meu abraço e me olhou torto, disfarçando que novamente
tinha chorado, mas não quis comentar isso e o deixei à vontade.
— Não, já disse o que quero na minha cripta, nada de mudanças
repentinas.
— Então vai dormir e me deixe tomar banho, foi uma noite monstruosa
para todos. Eu já descansei, mas você está péssimo.
Ele levantou uma sobrancelha e ali estava o brilho limpo em seus olhos
como sempre.
— Nunca fico péssimo, sou lindo e será Dimitri o belo, não esqueça.
Quando ele estava saindo, eu o chamei, tinha uma coisa me
incomodando, ele se virou e ficou esperando com a porta aberta.
— Dimitri, obrigada por vir me ver, me senti muito melhor, só
estranhei ser você aqui e não Nicolae. Era suposto que ele estaria aqui
preocupado, como sempre, e não o vi desde ontem, não apareceu à noite nem
hoje de manhã, e como fazia dias que não nos víamos, achei que ele tinha
sentido saudade de mim. Acho que o afetou o ocorrido ontem, não foi?
Dimitri estalou a língua vendo minha tristeza e voltou, sentando-se na
cama.
— Não verá Nicolae por uns dias, Rael teve que o ferir gravemente e o
induziu a dormir.
REI JÚLIO
Tão necessária e tão maldita! Conseguiu fugir graças àquele criado
desgraçado, devia ter acabado com ele há anos, quando teve a chance, mas
precisava dele para deixar Tiago longe daquelas…
Agora era tarde, não o matou quando teve chance e ele tinha fugido
junto com ela.
Se o pegasse um dia, ele ia sofrer, ia morrer devagar com muita dor,
com muitos testes de suas pesquisas, ia ser divertido, mas agora só podia
sonhar com isso.
Tiago, aquele inútil tolo, acreditou demais em seu servo, agora estava
trancado em seu quarto e teria que acabar com aquela palhaçada no harém,
liberar o espaço para negócios e mandar as cadelas embora, e como castigo
pelo que fez…
Riu ao lembrar o castigo que aplicou. Tiago, seu filho tolo e
imprestável, ficou horrorizado e pediu por favor que parasse, mas era
divertido ver a carne cortando, macerando a cada chicotada, e os gritos de
dor, hum…
Era delicioso sentir esse poder, saber que aqueles gritos aconteciam
porque era sua mão a pesar no chicote, ver o desespero era a melhor parte,
mas ver a cara de Tiago se contorcendo de angústia foi impagável.
Não entendia por que aquele tolo não gostava disso, de ver esse
sofrimento tão interessante tão potente para manter a vontade de continuar
com o poder nas mãos.
Era uma delícia se sentir poderoso ao ver o peso de sua mão infligir
dor, e o melhor, quem sofria nem podia reclamar, não podia fazer nada, a não
ser rezar para que o castigo acabasse. Ah, sim… Era muito bom.
Subiu alguns degraus, ia para a masmorra deixar mais uma possível
noiva inútil para os licans.
Gostava de vê-las delirando com o resultado da operação, mas o
cansaço o estava abatendo, apenas quatro degraus e já o corroía de fadiga.
Hoje estava pior que outros dias, realmente a mestiça seria de suma
importância para sua recuperação, ia dar um jeito de recuperar aquela peça
única.
— Majestade.
Levou um susto, esse maldito soldado não podia vê-lo nessa fraqueza
em que se encontrava, estava ali em posição respeitosa, humilde... Menos
mal.
— Soldado, já estou sabendo que foi um fracasso a perseguição, achei
que nenhum tivesse sobrevivido e olha o que temos aqui, como ousa se
dirigir a mim, me fazendo lembrar a sua existência medíocre?
— Perdão, majestade, eu tenho uma informação, uma conversa que
ouvi, só sobrevivi por causa disso. Do nada eles pararam de nos perseguir e
começaram a lutar entre eles, e eu aproveitei e fugi, mas ouvi parte da
conversa enquanto corria. Só escapei porque havia mais homens pela floresta,
desesperados para escapar daquela caçada sangrenta. Consegui chegar aos
portões e achei que talvez o senhor gostaria de saber, não sei o que queria
dizer a frase, mas vim deixá-lo a par.
Isso o deixou pensativo. Uma informação mesmo de pouca valia era
melhor do que nenhuma, então restava fazer o famoso teatro de valorizar o
bravo soldado e arrancar dele o que precisasse, depois ele viraria comida das
criaturas, elas sempre precisavam ser alimentadas, não que as quisesse
saudáveis, mas tinha que as manter vivas senão a diversão acabaria.
— Vamos, diga, soldado, fale de uma vez!
— Um deles tentava fazer o outro parar, e enquanto lutava com ele,
dizia para ele voltar a si, porque precisavam dele para resgatar as sombrias no
reino Humanis, é isso, majestade, a parte da conversa que ouvi.
Interessante, eles queriam suas mulheres de volta, então pretendiam
atacar o reino… Eis que surgia a oportunidade de ouro que ele esperava…
Sorriu, tentando parecer bondoso, mas essas atitudes lhe davam
câimbras.
— Muito bem, soldado, merece um prêmio, venha comigo, vou te dar
uma recompensa por essa informação, falou com alguém sobre isso?
Com o rosto repleto de felicidade, o idiota negou com a cabeça. Pelo
menos ninguém saberia da informação, e para garantir isso teria que acabar
com esse merda, ele estava em seu encalço.
Sorriu, satisfeito. Sua recompensa será dolorosamente boa… Para mim
— pensou, alegre.
Abriu a porta e fez sinal para os seus escravos particulares, eles não
tinham língua, não sabiam escrever, eram o tipo perfeito para ver tudo e não
contar nada.
Os dois robustos e musculosos escravos pegaram o soldado com
firmeza, o mantendo preso, cada um segurando um braço e esperando a
ordem.
O homem o olhou assustado e ele ficou em júbilo com sua cara de
medo, era a vantagem de ter todos aos seus pés.
— Majestade? O que vai fazer comigo? Eu não fiz nada, senhor, fui
fiel, lhe trouxe a informação… Por favor!
Não conseguiu manter o riso escondido.
— Não fez mais que sua obrigação, e fique contente com seu destino,
me ajudará muito nas minhas pesquisas, agora levem-no e o entregue ao
raivozinho, na cela três.
Os escravos o arrastaram masmorra adentro, ele pediu clemência, e
quando viu o que tinha na cela três, passou a gritar feito um porco levado
para o abate. O rei riu, feliz, pois era exatamente isso.
Entrou na saleta e ali estava seu escravo e monge cristão, ele nem tinha
se importado com a gritaria do homem, estava ainda entretido em seu
trabalho, era curioso com o corpo feminino.
Estava preparando tudo para mais uma cirurgia, esse monge já estava
idoso, tinha a vantagem de ele ser fanático pela supremacia masculina.
Ele também compartilhava de sua crença de que a mulher não era nada
além de um ser inferior, que apenas servia para perpetuar a espécie.
Uma pena, porque logo precisaria de outro para substituí-lo e esse novo
teria que ter a mesma paixão que esse velho pela anatomia humana, tinha que
ser um curioso sobre os raros e escondidos livros de medicina, como esse
monge era.
Não conseguiu deixar de sorrir vitorioso ao se lembrar da pequena
biblioteca escondida no porão daquele perfeito disfarce, a Igreja dos homens
para homens. Era uma biblioteca minúscula, com páginas avulsas, livros
inacabados e destruídos na guerra da Supremacia, mas imensuravelmente
úteis para seu parquinho de diversões.
Fechou a cara, se aproximando da maca ao olhar para ela, ali estava
deitada uma mulher morena, totalmente inconsciente, quase pronta, entender
sobre isso era interessante.
Se ao menos pudesse ter mais, sentia raiva toda vez que pensava sobre
isso, toda a maravilha do mundo moderno se perdeu, muito disso graças
àquelas duas raças malditas, não se podia recriar nada do passado pela lei do
tratado, isso graças aos sombrios, que escolheram isso, aqueles malditos
estraga-prazeres!
Mas mesmo que pudesse aprender, se fosse permitido, teria que
explorar o conhecimento perdido pelo mundo e não poderia graças aos
malditos licans, que dominavam o resto do mundo. Queria e acabaria com
essas duas raças que só atrapalhavam o progresso; os sombrios, porque
vetaram a modernidade alegando que os humanos eram destrutivos com esse
tipo de sabedoria em mãos; os licans precisavam sumir do mundo para que
ele fosse liberado, assim as explorações começariam.
Sempre o indignava isso, os segredos estavam espalhados pelo mundo,
era impossível não haver ruínas de uma modernidade esquecida.
Odiava essas condições, os humanos tinham o direito de dominar, qual
o problema se no passado acabaram com tudo? Se não souberam usar tanto
poder em suas mãos? Qual o problema de terem sido soberbos, tentando
superar o tal de Deus criador? O mundo era dos humanos por direito, e
podiam fazer com ele o que bem entendessem.
O monge começou a cirurgia, o pequeno corte na região do útero e
pronto, seria apenas introduzir o tubo e gotejar as misturas de ervas. Tinha
que ser na medida exata para conseguir os resultados esperados. Muitas
escravas inúteis se perderam nos primeiros testes até que o resultado se
concretizasse pelo efeito desejado e ali estava. Elas queimariam o útero
completamente por suas propriedades.
De todos os ingredientes da grande lista daquela mistura, dois deles
eram os mais interessantes, porque eram simples.
Claro que a mistura continha variados ingredientes, variadas misturas
até chegar à perfeição, mas essas duas eram parte do jardim, tão querida das
cadelas de lá que olhavam encantadas paras as flores sem ao menos
imaginarem que essas mesmas flores, eram usadas para lhes prejudicar.
Tão idiotas eram as mulheres, tão desnecessárias se não fosse por seu
valor nos planos.
Ah! Antúrio, tão belo enfeitando seu jardim e tão interessante ver suas
propriedades afetando as mucosas do útero, fortificado pelo crisântemo que
causaria a irritação cutânea e então depois disso, depois da poderosa mistura
fazer efeito viria as plantas que amenizariam essa queimadura para que se
concentrassem apenas na parte desejada.
Essa mistura foi muito estudada pelo monge cristão, ele tinha o segredo
também e teria que passar essa maravilha a um aprendiz, realmente seria
necessário encontrar um tão inteligente quanto esse velho, uma mistura muito
complexa da autoria desse monge, rústica, mas muito eficaz, por isso ele era
caro e era uma tristeza ter que substituí-lo.
Pensando em todas essas pesquisas na masmorra, soltou um bufo de
escárnio. Eram superiores e ele mostraria isso. Começaria deixando aquelas
duas raças definhar, ainda ia descobrir um meio de fazê-los se matarem por
conta, sem precisar levantar um dedo, mas para isso, precisava de mais
tempo.
Eles já se odiavam, mas o problema era que, mesmo com essa
hostilidade herdada, eles não estavam desesperados... Ainda não...
O desespero é um doce condutor para a corrupção, a esperança também
era, mas isso funcionava com os humanos que eram de índole mais fraca, já
com aqueles malditos, ele tinha que saber jogar. Qual das duas raças seria a
primeira a oferecer aliança?
Não dava para saber, eram insondáveis, tinha até tentando enviar
batedores em seus domínios, mas nunca nenhum deles retornou.
Os malditos tinham poderes sobrenaturais e isso atrapalhava, mas não
atrapalharia por muito tempo, logo esses poderes não seriam a pior fraqueza
dos humanos, riu novamente, pelo menos não seria a sua pior fraqueza, as
experiências tinham dado ótimos frutos, faltava pouco para que essa
deficiência fosse suprida, mas ainda precisava da peça que faltava.
Aquela mestiça era a chave para sua saúde e longevidade, balançou a
cabeça, distraído com a ironia. Ele, cobiçando uma única mulher, enquanto as
duas raças cobiçavam todas as mulheres humanas que lhe pertencia, era um
poder tão grande em suas mãos que até o excitava.
Eles queriam suas cadelinhas parideiras.
Passou a mão pelos cabelos negros da mulher completamente
inconsciente, não por carinho, estava se lixando para quem era ela.
Apenas para se concentrar em seus planos, um gesto automático em
alguém que não podia sentir por estar profundamente anestesiada com as
poções daquele velho. Continuou seu gesto automático, seus pensamentos
indo sempre para sua cobiça, para seus planos ou, pelo menos, um deles.
Eles teriam as mulheres que almejavam, mas apenas para poderem
imaginar o crescimento de suas raças deploráveis, poderem almejar isso...
Mas só imaginar. Não facilitaria as coisas assim, sem ter nada em troca,
quando o desespero lhes abatesse, aí sim o grande negócio seria feito.
Qualquer uma das duas raças teriam benefícios, se decidissem se aliar a
ele. Os licans teriam mulheres de verdade, porém, teriam que abrir as
fronteiras, dar livre passagem para qualquer lugar do mundo e ainda teriam
que obedecê-lo e lutar contra os sombrios, destruí-los sem deixar sobrar
nenhum!
Já, se fossem os sombrios os primeiros a se aliarem, ia pedir em troca
das mulheres a liberação da condição de viver sem reviver a modernidade do
passado, não poderiam interferir em nenhum progresso do reino Humanis e
teriam que ser fiéis. Até que seria melhor se fossem os sombrios a se
dobrarem primeiro, eram honrados e civilizados demais até para o bem deles,
mas o bom disso era que manteriam seu juramento de obedecer ao rei
humano... Rei Júlio... Ele e somente ele.
Eram perfeitos esses planos, sentia orgulho e júbilo apenas de imaginar
as raças se dobrando ao seu comando, mas nada seria tão perfeito quanto ver
os sombrios destruindo os licans e depois de ter as pesquisas prontas com os
detalhes pincelados, poderia se igualar a eles, ainda poderia destruir os
sombrios, era só ter paciência.
Com uma raça caída, ficaria mais fácil uma guerra contra apenas um
reino, então a humanidade voltaria a ser suprema, a ter o poder de outrora e
ele ainda viveria para ver isso, para reinar nesse progresso porque tinha um
trunfo nas mãos.
Restava apenas buscar essa peça, com a mestiça e seu interessante
sangue, somente ele reinaria e mais ninguém. E tinha certeza o que os
sombrios queriam para fazer essa troca.
EM CASA NOVAMENTE

Franzi o cenho, esperando que ele me explicasse isso, estava ainda mais
preocupada, porque isso era estranho, nunca Rael havia feito algo do tipo.
Dimitri viu que eu não iria me contentar apenas com isso, então me
olhou parecendo em conflito com o que me contar, ficou ainda sentado na
cama, pensativo, e então olhou para os dedos.
— Diana, um dos motivos de eu ter chorado também ontem foi por
imaginar o que Nicolae estava sentindo naquele momento e pela reação dele,
por aquela completa entrega ao caçador, eu imaginei que estava destruído por
dentro.
“Ele se entregou completamente ao sentimento. Quando a trouxe, voltei
correndo e lá estava Rael, lutando com Nicolae e foi a visão do inferno,
Diana, mas foi necessário.
Por sorte, ele não tem muita força contra Rael, por conta da hierarquia,
então Rael conseguiu vencê-lo, mas a visão dos meus dois irmãos lutando
nunca mais sairá da minha cabeça. Nicolae não conseguia se acalmar e o jeito
que Rael encontrou de fazê-lo parar foi o ferindo gravemente, o deixando
letárgico, depois o induziu a dormir.”
Senti escorrer grossas lágrimas, meu querido Nicolae, quem diria que
se deixaria levar dessa forma, sempre tinha sido o mais controlado, mas não
enxuguei o rosto e nem me mexi, apenas falei com a voz sumindo:
— Você não ia me contar, não é?
— Não, realmente não pretendia contar, ia deixar Rael fazer isso, não
sei como agir com isso, eu sou o que te faz rir e não o que te faz chorar, me
desculpa.
— Ele vai ficar bem? O ferimento...
Dimitri levantou a mão e eu me calei.
— Ele ficará bem, não se preocupe o ferimento. a essa hora já deve
estar curado, mas ele precisa dormir, Diana, é importante. Rael o acordará
quando estiver pronto, quando a sanidade o alcançar.
Assenti em silêncio, se Dimitri dizia que ele ia ficar bem só me restava
esperar, ele beijou minha cabeça, enxugou minhas lágrimas com os dedos e
saiu do quarto fechando a porta.
Tomei meu banho e analisei tudo com calma, pelo menos Nicolae
estava bem, não sabia de André, mas se Dimitri não disse nada, era porque
ele estava bem.
Só queria saber quanto tempo Nicolae dormiria e como seria quando
ele acordasse, como seria nosso confronto. Senti um frio em meu estômago
somente de imaginar, de ver aqueles olhos me olhando talvez pela primeira
vez com decepção.
Por mais que Dimitri dissesse que eu era vítima e não devia me
envergonhar, ainda assim não se podia mandar nos sentimentos, depois de
colocar um vestido simples e macio, saí do quarto indo em direção ao quarto
de Eva.
Rael a deixou no quarto ao lado do seu, para poder estar perto dela todo
o tempo, bati de leve e logo ele abriu a porta.
Seus olhos azul-cobalto me analisaram um tempo e então ele me
abraçou, falando baixinho:
— Nunca mais quero ver você sofrendo, nunca mais vai sair do reino
sombrio, está me ouvindo?
Assenti, Rael tinha uma maneira diferente de mostrar seu carinho, um
jeito cru e verdadeiro, nada de palavras bonitas como Dimitri ou um olhar
que dizia tudo como Nicolae.
Deu-me um beijo na testa, me pegou pela mão e nos aproximamos de
Eva, que dormia com um sono agitado, estava muito mais abatida naquela
manhã, parecia infinitamente mais magra e fiquei preocupada com o estado
dela e me culpei por isso, ela tinha se esforçado muito na noite anterior.
— Ela está assim por minha culpa, Rael, ontem ficou muito tempo fora
da cama.
Rael era o único que estava com a mesma aparência, ainda aparentava
seus trinta e cinco anos, seus cabelos compridos estavam presos nas costas e
havia uma ruga em sua testa, mas era de preocupação.
— Não é culpa sua, ela está passando pelo processo de transformação,
não tive outra saída além de lhe dar a mistura, quando cheguei da ronda
ontem, ela já tinha piorado e por isso não fui ver como você estava, peço que
me desculpe, filha, mas me desesperei e não saí do lado dela, estava muito
febril. — Ele suspirou, preocupado. — Cheguei muito mais tarde, porque
dispensei Dimitri com Nicolae e saí para fazer uma ronda à caça de alguns
remanescentes na floresta, infelizmente um escapou.
— Não, Rael, eu estou bem e Eva precisa de você, agora mais do que
nunca.
Queria perguntar sobre Nicolae, sobre o fugitivo, mas Rael estava
muito preocupado com o estado de Eva, então me calei. Ela se mexeu na
cama falando coisas desconexas e fiquei mais preocupada.
— Ela sente dor por causa da transformação?
— Não está sofrendo, está inconsciente e essas falas desconexas são
porque ela está regredindo no sonho, está correndo de costas e se assustando
com o que vê, é como se estivesse com delírios de febre. Se estivesse
consciente sentiria desconforto, euforia e desespero ao mesmo tempo, ela
sentiria a mudança, mas sem dor. O sangue sombrio e o composto a
anestesiaram assim que ela o ingeriu, talvez esteja até um pouco drogada e
agora está produzindo todo tipo de hormônio rapidamente, voltando a
produzir o que a velhice lhe privou, sentindo voltar a tenacidade e o vigor da
pele. Enfim são sensações demais para ela, o corpo reagindo e se
estruturando novamente, então não acredito que o composto a proteja de si
mesma.
Ele estava feliz ao falar sobre aquilo, seus olhos antes tão apagados
agora tinham um renovado brilho e vi o amor dele por Eva, e entendi então o
quanto ele ansiava por ela, e o quanto devia ter sido difícil não a ter como sua
mulher.
— Você sofreu muito quando ela se casou, Rael?
Ele balançou a cabeça, pensativo.
— Ela não era minha para sofrer, naquele momento eu fiquei feliz por
ela estar feliz.
— Não teve medo de ela não amar você no futuro?
Rael sorriu.
— Não, ela me amou, Diana. No segundo ano dela aqui, tinha então
quatorze anos, eu vejo o sentimento dela crescendo, desde então, o vi parado
por anos, sem regredir ou aumentar e vejo o progresso depois de dois anos da
morte de seu marido até agora.
“Com Eva foi lento, diferentemente de outros casos de relacionamento
entre nossa raça, mas ela é humana, assim como muitas que nossa raça se
envolveu no passado.
Se fosse uma sombria, ela também veria e saberia e o amor cresceria
mais rápido acelerando o processo, mas com Eva tive que ter paciência, e fico
feliz por ser ela e não uma sombria.
Primeiro, que agora eu poderia estar viúvo; segundo, que eu tive muito
tempo para conhecê-la e acompanhar a evolução lenta de seu sentimento por
mim, é diferente amar uma humana, elas são imprevisíveis.”
Queria perguntar como ele via e como sabia, mas ele em nenhum
momento fez menção de explicar, Dimitri se esquivou dizendo não saber,
aquele mentiroso, e com Nicolae eu não tinha ainda falado sobre isso.
— Vocês fizeram um pacto de sangue para não me explicarem como
funciona?
Um meio sorriso se formou em seus lábios.
— Basicamente isso, só vou te contar uma coisa que eles não falariam
se perguntasse. Quando nossa amada decide tentar ser feliz com outro
homem, a selamos com um sigilo.
Essa era nova, mas conhecendo Rael, a melhor maneira de ele me
contar algo realmente, era não o interromper. Esperei-o continuar, ansiosa por
novidades, ele me olhou torto, já me ameaçando com olhar, quando não foi
interrompido como achou que seria, continuou:
— O sigilo é ativado por uma frase, qualquer um de nós sombrios pode
falar a mesma frase para a mesma mulher, mas apenas um vai ativar o sigilo,
apenas o que vê o sentimento dela.
Pronto, não dava para me saciar só com aquilo.
— Quer dizer que ela ficará selada e nem vai saber por quem?
— Se ela tiver contato com mais de um de nós, não teria como ela
saber quem ativou.
— E por que fariam isso?
— Chame de magia, Diana, ou de preservação, não sei te explicar, ou
melhor, até saberia, mas não agora. Apenas entenda que tem um motivo para
apenas o sombrio que vê o sentimento da mulher poder ativar o sigilo, tem
um motivo.
— E, pelo visto, você não vai me contar, não é mesmo?
Apertei os olhos para ele, esperando uma repreensão.
— Não, você é muito nova para saber essas coisas.
Fiz beicinho triste e ele me ignorou completamente, não tinha jeito,
com Rael essas coisas não funcionavam, e então ficamos mais um tempo
olhando Eva em seu sono agitado.
Logo ele me enxotou do quarto, dizendo que ela precisava descansar e
que eu precisava arrumar algo para me distrair. Basicamente me mandou
arrumar o que fazer em vez de ficar ali, xeretando.
Assim que desci as escadas, André me esperava, o abracei, ele estava
bem, mas muito fraco e abatido.
— Que bom que está bem, André, fiquei tão preocupada e não pude
fazer nada quando te feriram…
— Eu que peço desculpas, não pude fazer muita coisa e só me lembro
até a parte que aquele homem te arrastou para longe e então apaguei. O que
aconteceu depois disso? Os sombrios chegaram logo, pelo visto, pois estamos
aqui e bem.
Não queria contar a ele os pormenores, pelo menos um dos que eu
gostava não tinha visto aquela cena horrorosa e fiquei aliviada por isso.
— Sim, chegaram na hora. Dimitri me carregou, me tirando de lá.
Ele continuou me olhando fixo e abaixei a cabeça.
— Você bem que tenta, menina, chega a ser louvável, mas mentir é sua
fraqueza. Eles te machucaram? Abusaram de você?
Balancei a cabeça negando.
— Não, Nicolae matou o desgraçado, antes que ele conseguisse. Só que
o que ele viu lá o transformou completamente e quase que Rael não consegue
trazê-lo de volta.
— E onde ele está agora?
— Dorme e não sei dizer por quanto tempo será, mas Dimitri disse que
ele ficará bem.
Meus olhos marejaram e André pegou minha mão e apertou.
— Tenha calma, o pior já passou, estamos os dois bem e aqui, no final
das contas. E se eles dizem que ele ficará bem, então acredite nisso, quero te
contar que pretendo procurar minha filha, assim que conseguir recuperar as
forças.
Fiquei feliz, era uma ótima notícia, depois de tudo o que passou ele
teria uma vida melhor e poderia rever sua filha, ele estava feliz, mas muito
ansioso.
— O que foi, André? Por que está nervoso?
— E se ela não me perdoar? Se não me aceitar, e se ela me culpar por
abandoná-la? Eu fiz isso para protegê-las, elas não teriam chance e eu como
servo do rei e responsável por cuidar de seu filho seria caçado se tivesse
fugido com elas, as colocando em perigo, era mais seguro nunca saberem o
que aconteceu a elas, para que vivessem em paz, e isso só aconteceria se eu
voltasse e fingisse não saber o que tinha acontecido.
Coloquei a mão em seu ombro.
— Conte tudo a ela quando a encontrar, explique isso e tenho certeza
de que ela entenderá.
André me olhou abatido.
— Farei isso.
— Agora vá descansar, André, quanto mais rápido se recuperar mais
rápido vai encontrar sua filha.
Ele me sorriu em agradecimento e seguiu para um dos quartos da parte
de baixo.
Agora eu estava sozinha, era quase hora do almoço e Dimitri acordaria
somente à tardinha, poderia ir e ficar com Rael e Eva, mas tinha certeza de
que ele me enxotaria do quarto novamente ou nem me deixaria entrar.
Poderia ir à biblioteca, mas lá também não parecia ter graça, decidi sair,
andar um pouco pelo pacato reino onde a força de três mil homens estava
debaixo da terra, era hora de respirar o ar que tanto senti falta e tentar fazer o
tempo passar, assim a espera por Nicolae seria menos dolorosa.
Só menos… Porque dolorosa já estava sendo, mais do que eu gostaria
que doesse, e eu não entendia por que doía tanto, precisava pensar em outra
coisa, precisava me distrair. Uma boa maneira seria andando a esmo por aí.
DIMITRI

Nem tinha conseguido ir dormir, havia uma coisa me atormentando.


Diana tinha acabado de sair, e ia aproveitar para resolver essa dúvida.
Encostei na porta e ali fiquei pensativo e sem coragem para bater,
minha Dianinha sofria, e ele não sabia como fazer as coisas.
Lembrei-me de quando estava no reino Humanis, o que senti ao passar
por aquela vila horrorosa da procriação.
Imaginei-a ali, ainda pequena, catando lixo, vendo de perto a
promiscuidade de sua família, a imaginei sofrendo e me entristeci com isso,
mas vê-la naquela situação, sendo quase estuprada, fazia a dor entrar como
agulhas no peito, ela não merecia passar por aquilo, já tinha um trauma do
passado, havia sido difícil superar o que viu.
Me veio-me à mente, como sempre, o dia que ela falou pela primeira
vez depois de tanto medo.
“Mais, por favor” ela tinha dito, aquela voz feminina, um pouco rouca e
ao mesmo tempo tão melodiosa me assustou, embora eu tivesse esperado
ansioso escutar sua voz, porque Nicolae esperava, meu irmão ansiava por isso
e então eu também fiquei curioso.
Sorri, aprendi a amar aquela menina de sorriso fácil, tinha ainda inveja
de ser Rael seu pai e não eu, a amava tanto que realmente queria que tivesse
sido eu a pingar o sangue na mistura, ela nasceu para colorir meus dias
cinzas, para fazer a espera por minha amada ser menos cansativa, menos…
chata.
Deixei um suspiro escapar e me toquei que ainda estava parado na
porta. Quando veria uma aura? Olharia para a mulher e ficaria de quatro por
ela porque ela irradiava uma poderosa luz? Era isso? Ou seria uma luz fraca?
Como diabos seria essa visão?
Rael havia dito que era uma cor suave e opaca, parecendo uma neblina
fina, e só poderia ver usando a força do sigilo em meu coração, mas seria
ativado assim que a olhasse pela primeira vez.
O que sentiria? Essa conexão seria platônica? Será que minha amada
me daria tanto trabalho como Diana dava a Nicolae ou Eva a Rael?
Balancei a cabeça, não podia tentar adivinhar o que ainda não tinha
acontecido, só sabia que não podia escolher, torci a boca, pensativo, do jeito
que era azarado, só veria isso dali a uns duzentos anos ou mais.
Mas conseguiria esperar se a luz dos meus olhos estivesse ao meu lado,
minha bebê…
Diana não fazia ideia, mas sua chegada tão quebrada foi a mudança que
precisávamos, reconstruímos as peças dela devagar e com paciência e seu
progresso encheu o coração de nós três com amor, quatro, pois Eva nunca
conseguiu engravidar do marido humano e ela tinha Diana como filha.
Era como ver uma criança nascer, foi preciso ensinar tudo, lapidar as
arestas e depois olhar com orgulho para minha joia mais preciosa, era assim
que eu a via, me sentia cruel ao pensar isso, mas agradecia à sagrada
providência de tê-la mandado do jeito que veio, com todos seus medos e
experiências ruins.
Sua personalidade foi moldada por superação, apenas me ressentia por
Nicolae, ele sofria em silêncio e eu não conseguia entender esses meus
irmãos, tão apaixonados e tão altruístas.
Não entendia essa paciência toda deles, se fosse comigo já teria atacado
há muito tempo, agarrado minha amada e reclamado posse e danem-se as
regras, era minha e pronto.
— Claro! — um Rael imaginário falou em minha cabeça. — Do jeito
que você é idiota, faria exatamente assim.
Levantei os ombros marotamente para o Rael imaginário, mas ri,
conhecia tão bem o irmão que até sabia a resposta que ele daria.
Bati na porta de uma vez, já imaginando meu adorado irmão me olhar
com vontade de me matar, eu estava atrapalhando, sabia disso, mas tinha que
entender tudo.
Rael abriu logo e pela sua cara, eu vi que estava certo, ele realmente
queria me matar.
— Irmão, sabe que estou ocupado, não sabe?
— Preciso de conselhos, meu irmão, têm coisas que não sei lidar com
Dianinha e estou com medo de falar demais. Fizemos um trato de não falar da
maneira de nossa raça se envolver, eu entendi, ela precisava se recuperar do
trauma com os homens, eu sei de tudo isso, mas ela agora cresceu.
Mentalmente está mais velha e não sei se vou conseguir lidar com isso sem
fazer porcaria.
Rael me olhou por um tempo, pensativo, em se tratando de nossa bebê
ele sempre tinha tempo, se fosse para mim, ele teria chiado e mostrado os
dentes. Pelo menos nessa hora via meu irmão mais enfezado derrubar as
muralhas, ele tinha um sentimento mais paterno por ela, eu mais fraterno e
Nicolae…
Bom era essa parte que eu queria entender, aí tinha coisa, as reações de
Nicolae não me saíam da cabeça, sempre controlado e quase que o perdemos.
Já sabia de seu sentimento por ela, sempre soube, e o quanto ele sofreu para
deixá-la no reino Humanis, ele sabia que seria bom para ela essa experiência
e só por isso cedeu.
Fiquei orgulhoso de ver aquele banana do príncipe humano a
cortejando, isso era o que faltava para ela se enxergar como mulher e a
ajudaria a se descobrir, a ver Nicolae como homem, mas nunca imaginei que
as coisas com Nicolae ficassem tão dolorosas e isso não tinha nenhuma
explicação para mim, por mais que tentasse entender.
Eu já imaginava como seria comigo quando encontrasse minha amada,
tinha certeza de que faria porcaria, o meu dom principesco era ser o sedutor
mais forte, mas isso era uma faca de dois gumes, seria minha ruína ou minha
ajuda.
Na verdade, nem sabia para que servia essa porcaria de dom, não dava
para saber ainda, uma coisa já tinha certeza nisso tudo, nem morto que ia
sofrer pela minha amada quando a visse, e nem ferrando que ia deixar ela se
envolver com outro homem.
Se casar com outro? Fora de cogitação! Se precisasse ter paciência,
poderia até ser; se tivesse que esperar, talvez eu até esperasse, mas nada de
ficar de gracinhas por aí. Que merda de um amor por vez o quê!
Esse livro das sombras era para sombrios feito Nicolae e Rael, que
tinham paciência, mas comigo não, se eu encontrasse minha amada, ela seria
só minha de mais ninguém, nada de dividir, sem chance de ter mãos
intrometidas tocando minha garota. Pronto, seria assim.
Rael falou, me tirando de meus pensamentos:
— Vamos à biblioteca particular, Dimitri, mas terá que ser rápido. —
Ele me olhou de cara feia e tentei me lembrar se tinha feito alguma merda
antes de ir ali, não… Eu estava a salvo, então ele falou em tom severo: —
Preciso também lhe mostrar uma coisa importante, irmão.
Curioso era meu nome do meio, assenti, querendo parecer tranquilo,
mas a cobiçada biblioteca não era um lugar que eu, o desajuizado, poderia
entrar sem ser chamado.
Seria a primeira vez que eu ia entrar lá, era acima da cripta de nosso
pai, fosse o que fosse lá dentro, era algo importante.
Descemos em silêncio e chegamos à grande porta feita de álamo com
muitas pequenas runas incrustadas nela.
As runas da porta eram feitas de sabugueiro, eu sabia o motivo daquela
madeira em especial, porque Nicolae tinha me dito umas décadas atrás,
quando as runas foram colocadas na porta, ela protegia os mortos e meu pai
jazia atrás daquela porta, Rael me olhou.
— É um voto de confiança, irmão, você a ama e ela precisará de ajuda
e entendimento agora, eu tenho que cuidar de Eva e então você que terá que
fazer isso esses dias.
Fiquei preocupado, mas se era para o bem dela, que fosse, o duro seria
entender Rael e o pior, perguntar o que eu tinha que fazer e ainda ouvir um
sermão por não entender sua língua.
Quando ele abriu a porta, o cheiro de ossos velhos me adentrou o nariz,
fiquei meio decepcionado com aquilo.
— Imaginei um imensurável tesouro e só vejo velharias, irmão, por que
é tão protegido, se aqui só tem coisas velhas?
Rael me mostrou os dentes silvando e levantei as sobrancelhas,
perguntando o que eu fiz.
— Isso que você chama de velharia são Grimórios antigos e esse — ele
apontou para um grande espelho com moldura de carvalho — é o espelho de
Nicolae, e aqui — ele apontou no meio da moldura no alto do espelho — é a
runa que segura o espírito, mas veja, irmão, está trincando, nem mesmo o
carvalho está conseguindo manter o espectro preso, pois Nicolae, herdando o
caçador, tem o espírito muito forte.
— Irmão, não estou entendendo nada, o que isso significa?
— Significa que a cada dia está sendo mais difícil para ele ficar perto
de Diana sem demonstrar o que sente, que cada vez que a aura dela aumentar
a conexão do espírito dela com o dele, será mais forte o sentimento.
Fiquei preocupado, me lembrei da cena dos meus irmãos brigando,
Nicolae não queria parar de lutar, por ele teria seguido ao reino Humanis e só
parado de matar quando ele mesmo fosse morto.
Rael teve trabalho para desviar de seus golpes e encontrar uma brecha
na luta para o ferir, quando o fez, Nicolae ainda assim não deixou o caçador
ir, ficou na forma de caçador e então foi induzido a dormir assim mesmo.
— Me diga o que tenho que fazer, irmão.
— Precisa tratar Diana como adulta, mostrar a ela que percebemos suas
mudanças, se Eva estivesse bem, isso poderia ser de ajuda, mas Diana não
confia seus sentimentos a ninguém, nem os entende ainda, isso quer dizer que
não saberia como se abrir, então quero que tenha mais juízo, irmão. Deixa de
acompanhar Diana nas travessuras e de induzi-la a isso, a trate como a mulher
que ela se tornou, é necessário deixá-la crescer.
Assenti, me sentindo triste, perder minha bebê e deixar a mulher tomar
conta, eu conseguiria? Ela sempre me fez rir e eu sempre a fiz rir, isso era
manter sua criança ou seria errado? Usar indução nos humanos, os fazendo
fazer coisas engraçadas era errado? Bom… Certo não era, senão não seria
uma brincadeira escondida.
Nossa maior diversão era fazer os idosos se comportarem feito
crianças, era muito engraçado vê-los brigando por causa do balanço que tinha
na pequena vila, fazer os pirralhos brincarem de roda dormindo era hilário,
me transformar em caçador e assustar os cavalos também teria que ser
esquecido, ou então fazer Eva dançar na cozinha...
Essa brincadeira era perigosa, se Rael soubesse disso, eu dormiria pela
eternidade, mas dava para rir bastante ao ver Eva dançando uma valsa com
um par imaginário, mas o que eu faria? Teria que parar de rir com Diana?
— Irmão, quer que eu seja frio com ela?
— Não, Dimitri, quero que parem de aprontar sem necessidade, quero
que a induza a crescer, ainda poderão rir, até falar suas costumeiras idiotices,
mas preciso que mostre a ela a diferença de ser feliz e ser idiota.
Ofendido… Não eram coisas tão idiotas que fazíamos, eram coisas
engraçadas, mas pensando bem, eram um pouquinho idiotas.
Tentaria, não sabia como faria, mas se precisava, ia tratar meu bebê
como adulta, já me sentia triste por isso.
Estava perdendo minha irmãzinha, deixar ir o que mais ama não é fácil,
mas se isso ajudaria Nicolae… Quem sabe até desse para rir de outras coisas,
as possibilidades eram imensas só faltava encontrá-las e com Diana era
sempre fácil, elas apareceriam automaticamente.
Mas deixar de aprontar? Não seria fácil, Diana era melhor amiga da
palavra problema, Nicolae era um azarado, isso sim, ter Diana como amada
era pedir para enlouquecer.
Mas eu sentia inveja de meus irmãos, queria poder me ver maluco
desse jeito, com certeza a vida seria muito mais interessante. Poderia gastar
meus dias maquinando o que faria para conquistar minha amada.
Afastando todos os urubus de cima dela, os assustaria, ameaçaria,
morderia se fosse preciso, isso seria divertido. Pensando bem, seria minha
amada que seria a azarada, porque assim que a encontrasse, ela teria que
esquecer a palavra paz, porque a palavra Dimitri não ia sair de seus
pensamentos.
Eu faria questão de lembrá-la constantemente da minha maravilhosa
existência.
NICOLAE

Queria receber a ordem, acordar. Meu corpo estava inerte e minha


consciência ainda estava sangrando com as lembranças, não conseguia me
mexer, e isso não me ajudava. O silêncio me contava o óbvio, estava na cripta
dos lamentos, a cripta dos viúvos criada para os desesperados que perdiam
sua amada na guerra da Supremacia, e era agora meu castigo e minha prisão.
Isso doía, não estava em meu quarto, não estava perto dela, e como
sempre por conta do sono forçado, me perdi em meus devaneios em forma de
pesadelo, voltei naquela noite.
Dimitri havia contado sobre as sombrias cativas, Eva mostrava
pequenos progressos com sua saúde, mas sua respiração havia piorado, ainda
assim, não quis ficar na cama, ouvia conosco as notícias e esperou a decisão
de Rael.
A notícia abalou a calma sombria, a comoção foi geral, o sentimento de
revolta dos príncipes com a notícia havia afetado até mesmo os inertes que se
angustiaram em seu sono.
A empatia com os sentimentos dos príncipes era algo forte entre os
sombrios, mas com o líder era extremamente poderosa e sabendo disso, com
muito custo, Rael recuperou a calma, mas eu havia sentido, havia percebido
sua primeira intenção quando soube delas.
Ainda não. Eu havia dito a ele, temendo um descontrole e um ataque
sem planejamento, minha pequena estava lá no reino Humanis ainda, e
ninguém a poria em risco, nem mesmo meu líder Rael.
Temi a mim mesmo, pois o desafiei a fazê-lo, o desafiei a dar a ordem
do levante e deixei clara as minhas intenções, haveria luta. Seria errado fazer
isso, mas Rael me conhecia bem para saber o que aconteceria se o fizesse,
lutaria com ele, pelo supremo pai e que Rael me perdoasse, mas eu o faria.
Por sorte, meu sábio irmão não tinha nenhuma intenção de pôr a vida
de sua filha de sangue em risco e suspirei, aliviado, quando o vi silenciar os
sombrios, reforçando a ordem para que voltassem a dormir.
Ele não me julgou, ele sabia que seria essa minha reação, tinha que
manter minha pequena segura, mas a trégua de minha sanidade para comigo
durou pouco, pois logo senti o cheiro tão característico, tão conhecido a mim
e ao meu coração. Diana!
Minha alegria por senti-la perto durou segundos ao identificar outro
cheiro conhecido em seu sangue, um cheiro que perdurou forte nas primeiras
semanas dela aqui, medo!
Tão poderoso, tão visceral e desesperado aquele sentimento de medo
que eu sentia vindo dela que foi me contagiando completamente e então senti
minhas entranhas revirarem, e pela potência daquele sentimento vindo dela
eu soube, ela corria perigo e, de puro pavor pelo que podia acontecer a ela, eu
deixei meu caçador vir.
Pedi a todo o sagrado do mundo para conseguir chegar a tempo, corri
além de minhas forças, cada vez o cheiro adensando impregnando tudo,
tomando conta do ar e tomando conta da minha consciência fazendo
aumentar minha ira.
Ela estava apavorada, o pouco de mim ainda lúcido sentia isso, e então
ouvi seu grito de desespero e dor e respondi ao seu chamado, deixando sair
de minhas entranhas o urro de ódio que senti.
Eram infindáveis cheiros humanos e um deles era nítido, excitação,
estavam abusando de minha pequena e o grito dela foi seu último pedido, seu
aviso que não conseguia mais lutar, que não conseguiria mais me esperar, e
com isso minha visão ficou turva pelo ódio, fiquei entregue ao desejo de
vingança e vi, através de minha própria ira, o homem em cima dela.
Sem perder um segundo sequer, eu cheguei perto e arranquei seu
coração, não dei tempo a ele de continuar a machucá-la, mas eu queria mais,
queria ver dor, vingar a dor que causaram a ela, vingar a humilhação que a
fizeram passar.
Bebi o sangue dos meus inimigos, mas nada aplacava aquele desespero
em meu peito, quando me virei para ela, vi o alívio em seus olhos por me ver,
não segurei o grito de dor que saiu de minhas entranhas, eu não cheguei a
tempo.
Ouvi o segundo grito da minha metade presa, soube quando a runa
trincou, senti a batalha de meu espírito que lutou para sair, duas partes de
mim lutando, meu espírito angustiado pela prisão querendo aplacar a alma
amada e eu angustiado por ver seu olhar sem cobranças, apenas aliviado. Eu
falhei!
A dor! Nada diminuiria aquela dor, eu tinha que protegê-la e não pude,
a pequena estava nua, ferida e envergonhada.
Não era para ser assim, pai eterno, por que ela? Depois de tudo o que
ela passou, só queria saber por que agiam dessa forma. Por que esses
malditos humanos não sentiam compaixão? Por que ainda existiam? Como
conseguiam agir com tanta covardia?
Não importando quantos, eu matei, nada foi suficiente. Nenhum sangue
inimigo aplacou minha sede, nenhum osso quebrado aplacou minha fome e
nenhuma morte aplacou meu desespero.
Cacei um a um com gula por vingança, logo senti seu distanciamento,
ela havia sido levada por Dimitri.
Falhei novamente, não pensei em seus cuidados, fui egoísta e não a tirei
dali, e a deixei ver o pior de mim, o caçador cruel, o que não se preocupou se
ia assustá-la, apenas queria vingá-la.
E isso aumentou minha ira, nada foi pior do que deixá-la ter me visto
assim, mas isso teria consequências, foram os humanos que me mostraram a
ela nu e cru e eles pagariam por isso, pagariam principalmente por trazer à
tona o pior medo de minha pequena.
Rael me caçou, me perseguiu me ordenando veemente que não seguisse
em frente, que voltasse, a ordem me fez diminuir a velocidade, mas não parei,
segui para o reino deles, para acabar com aquela escória do mundo.
Pensei por um momento em retornar, voltar e abraçar minha pequena,
protegê-la até mesmo do vento, tentar fazê-la esquecer esse sofrimento, mais
essa experiência ruim, mas era tarde, ela já tinha sido ferida, ela já tinha
sofrido o pior que poderia ter acontecido a ela.
Reviveu na própria pele o que tinha visto no passado, se apenas a visão
daquilo a quebrou, imaginei o que aconteceria agora com ela, nunca mais
recuperaria minha Diana.
Então ele e eu, duas partes de um mesmo ser, o receptáculo e metade de
um espírito queriam o mesmo: vingança! Só me restava à destruição daquela
raça maldita, que apenas infligia a dor.
Rael entrou na minha frente, me bloqueando o caminho, o lancei longe,
mas antes de dar um passo, ele estava novamente na minha frente, me
mandando voltar, meu corpo tentando lutar e meu sangue respondendo à sua
ordem, a sua superioridade como líder e por isso não tinha forças para feri-lo
realmente, então Rael cravou o punho no meio do meu peito, o abriu e eu caí.
Mesmo nessa hora, eu gritei, frustrado, a dor em meu peito não era
física, era espiritual e ele sabia que eu não dominava minhas faculdades, me
entreguei a tudo, deixando apenas a mágoa e logo o seu sopro de indução e o
sono chegou sem vontade, o sono consciente.
Não sabia há quantos dias estava assim, podiam ser apenas horas não
dava para saber, o tempo nesse invólucro de proteção era inexistente, uma
incógnita, mas o sentimento era real, mesmo aqui eu a sentia perto, e um
pouco de paz me alcançou por conta disso.
No entanto, as perguntas ferviam em minha mente: ela estava viva, mas
a que preço? Traumatizada e muda novamente? Quanto do progresso de
minha pequena se perdeu?
Se eu pudesse ao menos chorar, lavar minha alma, recuperaria minha
calma mais rapidamente, mas nesse sono forçado, meu corpo não me
respondia. Fiquei somente com minha consciência que me atormentava por
coisas que não fiz, por regras que não quebrei, se tivesse ativado o sigilo, eu
conseguiria ter empatia com seus sentimentos, e com a proximidade de
nossos espíritos, eu poderia até a ver se me esforçasse muito para isso.
Mas o sigilo se mantinha ainda inativado, só até quando eu me
levantasse... Dessa vez, ao menor sinal de perigo, o ativaria para nunca mais
perder o controle, nunca mais ser posto a dormir quando o que mais queria
era estar ao lado dela, cuidar dela.
Tinha medo do que veria quando levantasse. Medo por ela, se o pior
aconteceu recomeçaria do zero novamente, me doía imaginá-la encolhida em
um canto, com medo, apavorada com o toque como antes. Ela nunca se
recuperou completamente, sempre teve receio de toques íntimos e isso
afetaria ainda mais esse problema.
Magoava-me Rael me privar de estar com ela, de ter notícias reais dela,
essa angústia e incerteza era a pior parte, e pela milésima vez voltaria a pedir.
— Rael? Deixa-me elevar, irmão, lhe rogo.
— Dorme, irmão, sua angústia faz doer meu coração, mas ela está
bem, confia...
— Não omita nada, irmão, ela precisa de mim, tenho que cuidar dela,
ela passou por aquilo tudo, seus pesadelos devem ter retornado e eu não estou
lá para acalmá-la, não estou ao lado dela.
— Dorme, irmão. Me obedeça, eu lhe peço. Ainda não está em
condições, deixa a dor ir embora e logo poderá se elevar, eu prometo.
Domine seu caçador e poderá vê-la, será assim que deixar apenas o
príncipe, sem a interferência do guerreiro. Lembre-se de que neste momento
ela não precisa mais dele, precisa de você.
— Eu lhe peço desculpas por ter deixado meu caçador tomar conta, de
tê-lo ferido e me entregado daquela maneira, não voltará a acontecer.
— Nicolae, não o culpo. Se fosse com Eva, eu teria feito igual, entendo
sua dor porque é minha também, e peço que se esforce, sempre foi o mais
controlado e calmo, entendo sua fúria, mas está na hora do príncipe voltar
completamente. O Nicolae que ela precisa ainda não está pronto para elevar,
quando estiver, se levantará. Eu prometo.
Mantive-me em silêncio, não precisava responder, Rael sabia que eu
faria o que me pediu. Ele estava certo, meu caçador era forte, era meu dom
principesco de uma herança noturna, mas meu amor por Diana era muito
maior.
Voltaria a ter a calma necessária para poder ajudar minha pequena a se
recuperar de mais essa experiência ruim.
Um dia, talvez um dia teríamos tempo para nos descobrir, mas não
agora, ela não precisava de um homem apaixonado, mas sim o homem de
confiança que sempre fui para ela.
Talvez ainda de confiança… Não daria para saber ainda sua reação com
o que me viu fazer aquela noite, mas isso não importava, mostraria a ela que
nunca a machucaria, mesmo transformado em caçador.
Agora, mais do que nunca, eu queria ver com meus olhos se ela estava
bem realmente e como seria sua reação ao me ver, pois depois do que me viu
fazer, depois que conheceu o meu lado cruel, talvez nunca mais eu pudesse
ter esperanças de ela me amar completamente um dia.
CHANTAGEM DE IRMÃOS

Desci as escadas respirando aquele gostoso ar fresco. A frente da antiga


mansão era aconchegante, a visão do jardim cuidado à minha frente era obra
de Eva, ao lado direito ficava uma grande estufa com as ervas dela que Rael
também vivia usando.
Havia ao longe o pequenino bosque com as árvores que os
antepassados dos sombrios haviam plantado, o pequeno bosque era cuidado
com esmero por Rael e ele sempre dizia que as árvores dali eram sagradas e
muito importantes aos sombrios e suas peculiaridades.
À frente, não muito longe, dava para ver os telhados das casinhas do
pequeno vilarejo e segui nessa direção, havia uma única rua de terra batida
que dividia ao meio o pequeno povoado.
Começava ali no portão e seguia até a última casa, eram casinhas
simples com alguns canteiros formando pequenas hortas nos quintais.
Algumas tinham flores plantadas aleatoriamente sem nenhuma organização, a
visão era agradável. Pequenos bancos ficavam na direção da rua.
Certeza de que os velhos se sentavam neles à tarde e ficavam jogando
conversa fora, havia três árvores altas em um pequeno campinho sem casa, e
nela tinham balanços, duas crianças que brincavam acenaram para mim e
acenei de volta.
As pessoas pareciam viver relativamente bem entre si, pequenas
contendas eram resolvidas pelo arconte, uma espécie de juiz e líder da
pequena vila, e esse criado era de confiança dos príncipes e sua casa era a
mais próxima da mansão.
Continuei caminhando, ouvi risadas dentro das casas e gritos de
crianças, também de mãe bravas chamando a atenção de algum pirralho que
fazia suas artes, uma mulher cantarolando dentro de uma das casas.
Havia fumaça nas chaminés, e uma completa ausência de voz
masculina, os homens estavam nas lavouras nesse horário, havia muitas
plantações pelas terras sombrias, todos trabalhavam a terra juntos e depois a
colheita era dividida por todos, sem que nenhum tivesse mais direito que o
outro.
As regras eram rigorosas, uma quantia por família, dependendo de seu
tamanho, e o que sobrava ia para os depósitos dos príncipes, se a família
crescesse a quantidade de comida na divisão aumentaria.
Era isso até que os sombrios que dormiam fossem acordados, aí então
as oficinas seriam reabertas e as produções recomeçariam e até mesmo o
comércio seria ativado.
Agora com poucos sombrios para cuidar de tudo era apenas isso, vida
simples e esperar, por agora não havia necessidade de mais nada, além disso,
o reino sombrio se limitava há poucos humanos e senhores dormindo, então
quanto mais tarefas existentes, mais difícil seria cuidar da segurança de todos.
E o que os humanos produziam dava para se manterem, a única oficina
aberta era a de manufatura do algodão e dali saíam os tecidos para as roupas,
pouca produção e coisas simples, perto do frio a oficina era mais trabalhada e
cada família recebia o que faltava em suas casas.
Era uma vida tranquila e agradável, alimentos fartos, roupas, teto e
sossego, mas não podiam comercializar nada do que sobrasse das colheitas
ou das oficinas.
Uma prevenção sábia para que a cobiça não os alcançasse, nunca
nenhum deles ficaria rico ou coisa desse tipo e só ficavam no reino os que
aceitassem essas regras.
Sem perceber tinha chegado ao fim da rua e iniciei minha volta, eram
realmente poucas casas, em torno de vinte ou trinta famílias.
Enquanto pensava na vida pacata do vilarejo, senti tristeza pela vida
dos moradores da vila dos procriadores, no reino Humanis.
Se eles sonhassem que os humanos do reino sombrio tinham uma vida
com tranquilidade, casas confortáveis e fartura de comida sem precisar se
vender ou vender seus filhos para isso, começariam a tentar fugir de lá para
chegar aqui e então um êxodo do reino dos humanos aconteceria.
Seria muito fácil para os sombrios crescerem novamente se isso
acontecesse, e muito da força dos humanos diminuiria, mas era tão bom
quanto perigoso o excesso de humanos em um único lugar.
Sempre com os bons viriam os ruins e aquela paz acabaria e começaria
as dores de cabeça, as traições e a corrupção.
Como dizia Rael, pouco com qualidade era mais importante e os que
estavam ali mereciam a confiança dos sombrios, dariam suas vidas para
defendê-los, eram escolhidos a dedo, então por mais que pudesse ser a
solução do problema para a extinção também poderia ser o início da ruína dos
sombrios a vinda de muitos deles.
Prova disso eram esses que foram trazidos quando tomamos a fazenda
dos Salazar, só alguns humanos extras e já havia um caso de traição, o
envenenamento de Eva. Realmente muitos deles no mesmo lugar não daria
certo, os humanos tinham uma facilidade muito grande em se deixar seduzir
pela cobiça e se entregavam a isso apenas por tentarem ser superiores ao
outro da própria espécie.
Apenas por uma disputa idiota de quem podia ser melhor que quem,
mal sabendo eles que só de pensar que eram melhores fosse por qualquer
motivo, já se tornavam piores que os outros que menosprezam.
Um ensinamento interessante de Rael que sempre levei comigo.
“Quando ficamos tentando ser superiores a outra pessoa, é porque já
descobrimos que não valemos nada e tentamos a todo custo pisar no outro,
mesmo que seja com desprezo, porque isso dá uma ligeira paz em nossa
cegueira de superioridade.”
Novamente sem perceber já tinha passado o portão e subia as escadas e
quando entrei, encontrei apenas um mórbido silêncio. Senti falta de Eva,
geralmente ficávamos fazendo as coisas juntas até entardecer e os príncipes
acordarem, mas naquele silêncio me senti só.
Uma coisa ali era ruim, não tinha a agitação do reino Humanis, ou
podia ser eu que estava solitária demais e sentia falta de ver o dia passar mais
rápido, subi a escada até a biblioteca e peguei um livro aleatório.
Deitei-me no sofá e comecei a ler, não chegando a ler nem duas
páginas e peguei no sono.
Acordei com um Dimitri grudado ao meu rosto, assoprando meu nariz,
tentando me afogar no sono.
Empurrei-o para longe, ele riu e eu falei, irritada:
— Não teve graça, seu morcego, centenas de anos e ainda age feito
uma criança.
Ele fez biquinho.
— Eu sou homem novo pela minha raça, então tenho direito de atentar
minha irmãzinha, enquanto ela baba no sofá.
Levantei os ombros em deboche.
— Babei porque estava em uma posição ruim.
— Claro, claro e o que fez até agora? — Ele olhou sugestivo para o
livro. — Ler eu sei que não foi.
— Não fiz nada, andei por aí, cheguei na hora do almoço, nem comi
porque estava desanimada, subi aqui para ler e acabei dormindo. Você bem
que podia dormir bem cedo para acordar na hora do almoço e me fazer
companhia, me senti só aqui.
Ele fez uma cara de pena.
— Coitadinha da minha Dianinha, farei isso, prometo. Vamos andar
por aí? Rael não está podendo fazer nada, acho que podemos adiantar
algumas coisas, o que acha?
— Não tinham que organizar tudo para o resgate das mulheres?
Dimitri negou.
— Só depois que Eva passar por tudo e ele ter certeza de que ela estará
bem, por isso nem mais acordamos os outros homens. Ordens de Rael. Para
ele, agora Eva é a prioridade número um e ele não vai sair do lado dela, e
com Nicolae dormindo, só nos resta esperar. Pelo menos, os sombrios que
estão acordados irão averiguar as criptas dos que dormem diariamente, eu só
farei a ronda em metade dos nossos domínios e eles se revezarão cuidando do
resto. Mas do nosso quintal precisamos cuidar. Vamos, Dianinha, andar por
aí arrumando o que fazer para que o tempo passe rápido.
Ele tinha razão, se tínhamos que esperar que, pelo menos, não fosse
sentados ali. Me animei na mesma hora e me levantei de um pulo, descemos
as escadas sem fazer muito barulho e seguimos em direção à estufa,
combinando de tirar as ervas daninhas dos canteiros.
Puxei forte o ar quando entramos, sempre adorei o ar da estufa e
gostava muito de ficar ali com Eva. Os canteiros imensos precisavam mesmo
de cuidados, com Eva doente ele perdeu sua beleza impecável.
Começamos pelo canteiro de flores mais necessárias, tirando com
cuidado as ervas daninhas. Estávamos só nós dois e eu tinha encontrado o
momento de pegar Dimitri de jeito, então aproveitei a oportunidade.
— Dimitri?
— Hum? — ele respondeu, distraído, limpando em volta de um pé de
Artemísia.
— Por que você deu a André a mistura? Eu não perguntei antes porque
não deu, mas quero saber também o que fazia perto do reino dos humanos e
por que carregava uma das misturas de Rael consigo.
Ele ficou nervoso.
— Deixa isso, Diana, não quero contar, esquece isso.
Arranquei um matinho e falei com o rosto de comerciante.
— Então vou contar a Rael, aí você terá que se explicar com ele e
saberei do mesmo jeito.
Dimitri ficou lívido, me olhando indignado e cuspindo as palavras.
— Traidora! Rael não pode saber disso, ele acha que foi um dos que
dormem que fez porque ele tem uma filha aqui.
Dimitri ainda me olhava bravo, mas nem liguei.
— Então me conta tudo, senão Rael ficará sabendo que foi você!
Ele jogou um punhado de terra na minha cara, dizendo, com raiva:
— Não acredito, Diana, me chantageando? Com quem aprendeu isso?
Eu ri limpando o rosto com o vestido.
— Com você.
Ele riu e eu mais ainda e logo ele falou, fingindo indignação:
— Nunca mais te ensino nada útil, isso era para ser usado com outros e
não com seu mestre, mas tudo bem, só que se contar a Rael, ele me põe a
dormir por dez anos como castigo e você perde essa deliciosa companhia que
é seu irmãozinho lindo aqui.
— Prometo que não conto!
Ele me olhou de canto e voltou a mexer no canteiro.
— Quando completamos duzentos anos, temos a obrigação de passar
por um ritual doloroso e necessário.
— Que ritual?
Ele me olhou feio.
— Quer saber sobre André ou não?
— Está bom, desculpa! Credo, está parecendo Rael! Continue.
— Se me interromper de novo, não conto mais!
Apertei os olhos para ele, o lembrando que não tinha muita escolha, ele
soltou um suspiro e continuou:
— Esse ritual é obrigatório, por conta de um erro do primeiro sombrio
na terra que quase o matou de desgosto.
Minha curiosidade era mais forte.
— Não dá, Dimitri, pelo menos me fala que erro foi esse.
Ele estalou a língua e revirou os olhos.
— Nossa raça surgiu com um Diférit, vindo a surgir daí o nosso
sobrenome, uma das peculiaridades dos sombrios é não ter controle sobre seu
espírito, isso permite a crueldade ao caçador que falta ao sombrio,
basicamente é isso, não somos lobo mau, mas também não somos fofinhos.
Ele parou de narrar e me olhou novamente.
— Veja, Diana, não somos santos, somos cruéis quando queremos, mas
temos regras a cumprir e leis a seguir, e essas leis foram escritas no livro da
sombra pelo primeiro sombrio e, desde então, esse Grimório é usado por
todos os primeiros, ou seja, os nossos líderes sempre anotam alguma
descoberta importante, um feitiço novo ou mesmo acrescentam alguns
experimentos pertinentes de alquimia. É importante para o próximo líder que
o pegará atualizado, assim sempre podermos melhorar e sobrevivermos a
épocas ruins.
Olhei de soslaio para ele, falava e falava e nada de contar sobre André e
a mistura, ele entendeu pela minha cara que eu estava perdendo a paciência.
Revirou os olhos e falou, exasperado:
— Tá! Agora você sabe, e esse espírito fica ansioso quando chegamos
aos duzentos anos, é como se chegássemos à idade adulta para os humanos e
então ganhamos um dom, e esse dom nos faz ver quem amaremos e então,
temos que prender o espírito para que não faça mal a ela, ainda vemos nossa
amada, mas só funciona com uma runa gravada no coração por conta do
espírito estar preso, por isso passamos por um ritual para prendê-lo e nesse
dia que eu segui pela floresta, era meu aniversário bicentenário.
Ele baixou os olhos um pouco envergonhado.
— Tive medo do ritual, Diana, não queria me transformar em caçador e
deixar que me abrissem o peito para gravar a runa. Ia doer como o inferno a
gravação, porque é com ferro incandescente. Mesmo eles me assegurando
que eu nem ia sentir por conta do caçador, eu não queria me submeter a isso,
mesmo que fosse cicatrizar rápido depois de uma semana de sono, e mesmo
que não ficasse cicatriz, eu não queria fazer. Era rebelde e queria fazer as
coisas do meu jeito. Então saí e esperei na floresta, você sabe, né, direto saem
mulheres exiladas do reino Humanis que são levadas para os prostíbulos de
estrada.
Assenti e ele continuou:
— Meu plano era muito simples, estava disposto a roubar uma, lhe dar
a poção, trazê-la comigo e apresentá-la como minha companheira para que
me deixassem em paz.
“Hoje eu sei que teria sido a coisa mais idiota que teria feito se tivesse
acontecido, se tivesse conseguido realmente, eu teria me superado em fazer
merda.
Por sorte, vi um homem desesperado, tentando proteger um garoto, ele
estava basicamente dando sua vida, por isso e sem pensar o ajudei. Ele não
merecia morrer ali sem nem saber se a criança estava bem. Não sei direito por
que fiz aquilo, na verdade, mas me pareceu certo.
Então voltei, fiz contra a vontade o ritual e achei que o homem não
tinha sobrevivido, porque eu nem sabia se tinha feito tudo certo, pronto é
isso.”
Fiquei estática olhando para ele, me segurando no último de meu ser.
— O que foi, Diana? Diga algo!
Ele apertou os olhos, tentando entender minha reação, não deu para me
segurar, soltei uma risada tão gostosa e não consegui parar por algum tempo,
Dimitri ficou olhando para mim sem saber onde estava a graça, mas tinha e
muita, pelo menos para mim. Depois de um tempo, falei aos tropeços, ainda
rindo e enxugando meus olhos.
— Dimitri, você é tão idiota que nem para pegar uma garota como
companheira você prestou, e no lugar disso pegou um homem.
Ele se emplumou, respondendo, indignado:
— Não peguei nada, salvei a vida dele e qual a graça?
— Isso! Você saiu para aprontar, Dimitri, para como sempre, quebrar
as regras transformando uma mulher para se livrar de Rael. Acabou
transformando um homem e ficando em risco de se encrencar feio com Rael.
Ah! Pai eterno, Dimitri, até nisso você se atrapalha!
NELI ZAFIRINS

Já estava acostumada a jantar atendendo ao barulho do portão e eu


soube quando ele abriu e se fechou, ele tinha chegado!
Ouvi mais de uma voz e comecei a tremer, minha mãe sentada na ponta
da mesa continuou comendo, com sua pose, sem se importar com meu estado,
ela sabia o que acontecia comigo, mas não se importava, nunca se importou,
eu não era nada nessa casa, assim como ela!
Samuel tendia a ser mais cruel quando trazia os amigos e mesmo ela
sabendo disso, não ousaria desagradá-lo, e eu estava só. Até entenderia se ela
fizesse isso por medo dele, mas não era, ela o mimava, fazia todos os seus
gostos, fazia vista grossa com o que ele fazia comigo, mas eu tinha que tentar
uma última vez, talvez dessa vez ela me ouvisse, talvez hoje seu coração
estivesse mais bondoso, ou talvez fosse só costume de implorar sempre que
sabia o que aconteceria comigo.
— Mãe, ele trouxe amigos, somente hoje me ajude, eu lhe rogo, diga a
ele que precisa de mim, que estou indisposta, me ajude!
Com as costas da mão, ela me deu um tapa, nem me surpreendeu,
normalmente era assim.
— Cale a boca! Seu irmão tem o direito de se divertir, e trazer amigos
para brincar, e ele anda muito nervoso por causa das coisas estarem dando
errado para ele, então se ele quiser brincar com você, deixe! Ele é homem!
Ignorei sua ordem, ia implorar, ela tinha que me ouvir.
— Me venda, por favor! Me exile! Me coloque na casa de prostituição,
mas me tira daqui, por favor, mãe!
Senti o pavor me tomar, Samuel havia entrado e eu perdida em meu
desespero não fiquei atenta como sempre, ele me olhava com fúria e balancei
a cabeça em negativa, conhecia aquele semblante, alguém ia pagar por isso,
era só ele se enfurecer mais, e claro que seria eu.
Olhando fixo para minha mãe, ele falou alto:
— Mãe? Ouvi isso mesmo? Neli quer ser vendida? Sabe que jamais
permitirei, não é? Eu que acharei um marido para ela, eu que arranjarei o
negócio, mas somente quando a hora chegar, quando eu decidir, está me
ouvindo?
Sem nem levantar os olhos do prato, minha mãe respondeu baixo, como
sempre fazia quando ele se exaltava:
— Não se preocupe, filho, quem irá escolher o marido dela será você,
eu prometi, não prometi?
Acalmando-se, ele abriu um largo sorriso e olhou para mim, me
encolhi.
— Maninha, meu humor voltou. Vá tomar banho, tenho um amigo que
quer brincar e eu vou assistir. Vamos, ande!
Levantei-me sem dizer nada, se eu fosse boazinha, ele não me
torturaria, ficaria feliz e me deixaria em paz, as criadas eram rápidas, tão
vítimas quanto eu, vítimas daqueles três. Meu pai nem mesmo se importava
com o que acontecia em casa, minha mãe só queria saber do sossego, se ela
cedesse tudo a Samuel, teria paz para poder torturar seus escravos, descontar
neles sua raiva quando meu pai judiava dela.
Mais uma vez eu fazia a pergunta que não tinha resposta, nunca teve.
— Que família eu fui ter? Até mesmo as cortesãs tinham alguma
felicidade, mesmo que fosse com o dia de folga, elas tinham um dia para elas
a cada duas semanas, esse dia era para cuidarem de suas unhas, cabelo e pele,
para ficarem mais desejáveis e terem mais clientes para a dona da casa de
diversão.
Mesmo que fosse assim, aquilo era o paraíso em vista de minha vida,
eu tinha somente o medo diário, com servas para me enfeitar quando eu
quisesse, ainda assim, era um verdadeiro inferno, sem nunca poder saber
quando Samuel estaria em casa, ou quando ele se lembraria de mim, e como
agora, nunca podia adivinhar quando ele traria um cliente para casa.
Por que minha mãe e meu pai deixavam? Eu já devia ter sido vendida,
trocada por terras e ouro, mas só ficava cumprindo ordens, primeiro espionar
aquela mulher, ela era diferente, e me arrependia ainda de ter falado a Samuel
que ela não tinha morrido com o veneno que deram, ele se informou e soube
que era um veneno potente, então me mandou apunhalá-la, me deu um
punhal embebido em sangue fresco, ele tinha incitado a cobiça do rei, tinha
feito-o prestar atenção nela, e então ele queria comprovar uma desconfiança,
algo sobre ela ter um valor maior do que ele pensou.
Eu fiz! De medo do que ele me faria, eu obedeci, não perguntei nada,
apenas o fiz, pensei então que ele me daria uma folga, mas então veio a
ordem para eu voltar para casa, quando cheguei, ele me esperava, em fúria,
me estuprou e me puniu. Fiz tudo o que ele mandou! O que tinha saído
errado? Nunca entendi aquilo e a mulher sumiu sem deixar vestígios, fugiu
com um criado, que culpa eu tinha se ela trocou o futuro noivo por um
escravo?
Ainda assim, paguei por isso, eu sabia que as mulheres não eram
sagradas como os homens, sabia que o paraíso pertencia somente a eles, e
para nós só havia o inferno, porque já nascíamos amaldiçoadas, sabia de tudo
isso, fui ensinada que devíamos ser gratas de eles nos permitirem viver entre
eles, mas, ainda assim, eu queria viver em outra casa, quem sabe se eu fosse
finalmente negociada, meu futuro marido fosse um pouco menos bruto, só
um pouco e eu seria feliz.
Já pronta, segui para o quarto de hóspedes, o quarto que eu servia seus
amigos, servia-o e, por vezes, até meu pai, mas por sorte meu pai não parava
em casa e com ele eu tinha mais sossego, e ele não era muito bruto comigo,
só era cruel mesmo com minha mãe.
Senti a ardência em meus olhos quando entrei, ali estava Samuel, como
sempre sentado em sua poltrona, seu amigo já nu e já duro ficou me olhando
com um sorriso que me dizia que hoje ia doer.
Soltei o cordão e deixei minha camisola cair, fui posta de quatro e logo
me senti preenchida, senti as estocadas com força, sem piedade.
Que terminassem logo... era só o que me vinha à cabeça, estava
cansada disso, cansada de tudo, ver pela primeira vez como as outras garotas
no harém agiam mexeu com algo dentro de mim.
Elas riam, até se divertiam disputando seu próprio preço, eu nem isso
tinha, me sentia abandonada. Logo saí dos meus pensamentos, senti a
queimação e meu ânus foi rasgado, doeu, mas tudo doía, sempre doía.
Por quase uma hora se divertiram comigo, fizeram o que quiseram e eu
fiz tudo o que mandaram, só querendo que acabasse logo, que cansassem. Me
deixaram em paz tarde da noite, Samuel convidou seu amigo para beber na
taverna dizendo que estava livre, porque o rei andava ocupado fazendo uns
planos sobre uma troca, logo eles saíram conversando, os dois
completamente satisfeitos, mas eu não estava satisfeita com essa pouca paz,
não mais, e dessa vez eu iria averiguar uma coisa, se meu pai estivesse em
casa…
Levantei e saí do quarto, tudo estava silencioso, sondei no quarto dos
meus pais e os dois estavam dormindo, meu coração disparou. Finalmente!
Meu pai em casa e Samuel não. Era uma oportunidade de ouro, sempre
pensei em fazer isso e sempre deixei para lá, mas não agora. Fui pé ante pé e
peguei a espada curta de meu pai, era pesada, mas meu fardo era maior.
Liberdade... essa palavra começou a retumbar em meus ouvidos, estava tão
próxima, era só ter coragem, não vacilar.
Segurando firme a espada, fui sorrateira para a cama, no lado que meu
pai dormia, tinha que ser rápida, seu peito subia e descia, ele dormia de
barriga para cima facilitando para mim, mirei certinho em seu peito.
Sussurrei mais para mim do que para ele:
— Obrigada por me ensinar a religião, pai, você me ensinou a chegar
ao único lugar onde vocês homens não podem me alcançar e nem me tocar.
Hoje vamos juntos, você para seu paraíso onde as mulheres não podem entrar
e eu serei livre no inferno, porque lá vocês, os santos homens, também não
podem entrar!
Quando a ponta encostou em seu peito, sem remorso eu soltei o peso do
meu corpo e ela entrou rápido em sua carne, ele abriu os olhos e eu sorri,
fazendo mais força, ele abriu a boca, mas antes que conseguisse falar algo,
seus olhos se apagaram.
Minha mãe nem acordou, dormia o sono dos justos, sem nenhum peso
em sua consciência. Ela, eu faria sofrer um pouquinho, porque quando
Samuel era ainda novo, ela poderia ter feito diferente, poderia ter me ajudado
se quisesse, mas nunca ligou, seu escárnio, seu pouco caso com o que Samuel
fazia comigo desde os meus dez anos me doía, me dava ódio.
— Mãe?
Ela abriu os olhos e me encarou sonolenta, seus olhos tão azuis, tão
frios quanto o dele me davam calafrios, antes que ela despertasse
completamente, com a ponta da espada eu furei um deles, ela gritou com
muita agonia levando a mão ao local, seu sangue saindo aos montes,
escorrendo entre os dedos que cobriam o ferimento, e vendo aquilo uma
risada histérica saiu de minhas entranhas.
Ouvi-la gritar foi minha vingança, ela ouviu muito os meus gritos, era
hora de ela também gritar, senti o começo da minha liberdade chegar, ela
tentou levantar, mas com todo meu ódio eu bati nela, lhe surrei com a
prancha da espada, bati até me cansar, então a graça acabou, ouvi o barulho
do portão, Samuel voltava, e sentindo a urgência e o medo de minha
liberdade se perder com um único golpe eu quase separei sua cabeça de seu
corpo, pena que não consegui.
A porta se abriu e depois de um tempo de silêncio, ele gritou:
— O QUE PENSA QUE ESTÁ FAZENDO, SUA LOUCA?
Virei-me para ele e o peguei assustado... Era bom ver isso, e louca
parecia ser um elogio interessante, melhor do que ser chamada de putinha.
Ele se recuperou do choque e veio em minha direção, e nesse momento
apenas uma coisa gritou na minha cabeça, liberdade…
Com a ponta da espada em meu peito, corri e trombei com ele, deixei
que a força dessa trombada me libertasse, senti a dor quando a ponta saiu
pelas minhas costas, última dor… Última.
— Sua vagabunda! Mato-os e agora faz isso, por quê?
Ainda sorrindo, sentindo minha plena felicidade pela primeira vez, eu
falei, em um sussurro:
— Liberdade...
A vida escorria de mim, ainda senti a dor quando ele me jogou no chão
possesso, vi sua bota vindo em minha direção, na direção de meu rosto, mas
não vi o final do percurso. A sua bota nunca chegou, porque a escuridão
chegou primeiro.
REAÇÃO ESTRANHA

Dimitri não respondeu, ficou limpando o canteiro com um enorme bico,


fiquei andando atrás esperando-o desemburrar e limpando o mesmo pé de flor
que ele, só para ele saber que eu não ia sair dali, mesmo com ele emburrado e
tudo.
Eu ainda ria, óbvio, mas agora era só pela cara dele de bravo, depois de
um tempo, falou, chateado:
— Se eu soubesse que ia rir, não teria contado.
Achei graça, sempre brigávamos e ele nunca ficava bravo muito tempo,
o que era um dos motivos pelos quais ele e eu sempre nos demos muito bem.
Ele ficou quieto quando me aproximei, ainda bicudo, empurrei seu ombro
com o meu e falei atenta ao trabalho do canteiro.
— Não fique bravo, você salvou minha vida com isso. Se André não
tivesse sangue sombrio, não teria me ouvido no celeiro e eu poderia ter
tomado outro rumo na floresta, nunca chegando tão perto ao ponto de
sentirem o cheiro de meu sangue.
Dimitri, ainda emburrado, não olhou para mim, mas respondeu:
— Uhum, salvei sua vida para você fazer piada de mim depois, rir de
mim até quase morrer. — Me olhou de canto e soltou uma gargalhada
ensaiada para me imitar e então me olhou torto. — Hilário, Diana. Sim,
hilário.
Fiquei exasperada com aquele bobo, agora entendia Rael e sua falta de
paciência, mas se tinha uma coisa que funcionava era mostrar que fiquei
brava, aí era ele que tinha que me agradar e lá ia eu fazer meu teatro,
funcionaria, eu sabia que sim.
— Ah! Tá bom, vai ficar aí com esse bico? Então não vou contar meu
segredo. Pronto! Decidido, vai ficar sem saber.
Ele não disse nada, vi quando me olhou de canto e torceu o nariz,
levantando o ombro como se não ligasse. Ficamos em silêncio um bom
tempo.
Passei para outro canteiro, agora fingindo estar emburrada também e
ele logo veio atrás, eu dei uma risadinha sem ele ver enquanto esperava, sabia
que não demoraria, depois de um tempo, ele não aguentou.
— Você está rindo, Diana!
— Não estou!
— Desembucha.
— Só se você me der um sorrisão e dizer que não está bravo, aí eu
conto.
Ele soltou um muxoxo e arreganhou os dentes, falando entre eles sem
desmanchar a careta.
— Não estou bravo.
Eu ri de novo com sua careta e falei:
— Eu e o príncipe nos beijamos.
Ele desmanchou a careta na hora e pareceu ficar preocupado ao ouvir
isso.
— Você está apaixonada por ele?
Fiquei vermelha.
— Claro que não! Na verdade, ele me falou umas coisas quando
estávamos fugindo e não entendo por que nem tocou meu coração e, os beijos
foram bons, mas não foi o que imaginei que seria quando beijasse alguém
pela primeira vez.
— Os…? Quer dizer que foi mais de um beijo?
Dimitri parecia levar aquilo mais a sério que eu, de toda forma,
respondi com paciência, mesmo sem entender o motivo daquela reação.
— Sim, foram dois e meio, se contar um casto junto.
Dimitri pareceu ainda mais preocupado e estranhei isso.
— Diana, certeza que não está apaixonada por ele? Que esse beijo não
mexeu com você?
— Por que essa pressão, Dimitri? Não estou apaixonada por ele, pelo
menos não acho que esteja. Senti o beijo, claro, mas como eu disse, não
passou disso, entende? Não fiquei e não estou suspirando por ele pelos
cantos. Não senti, desde que cheguei, saudade de seu beijo ou sequer vontade
de beijá-lo novamente.
“André me garantiu que ele ficaria bem e estou feliz por isso, mas não
sei explicar, não sinto nada espetacular dentro de mim, apenas um carinho e
respeito por ele ser diferente dos outros humanos, ser melhor que seu pai e
querer mudanças.”
Dimitri relaxou visivelmente e então fiquei irritada.
— Vai me explicar essa reação?
Desconcertado, ele começou a falar um pouco inseguro.
— Oras! Não é nada, só fiquei preocupado, agora você está aqui e não
poderia vê-lo de novo, então sofreria, mas vamos deixar isso para lá. — Ele
olhou para mim, rindo. — Humm, minha Dianinha já sabe beijar, que
lindinha, meu bebê.
Eu ri de seu jeito bobo, mas fechei a cara em seguida.
— Não me trate como criança, Dimitri, já sou uma mulher.
Essa minha cobrança pareceu fazer efeito nele, como se tivesse acabado
de se lembrar de algo, ele assentiu, pensativo, e logo voltou ao normal.
— Por incrível que pareça, Diana, você parece mesmo mais adulta
agora e olha que isso vindo de mim é alguma coisa, não que eu queira que
meu bebê cresça, mas estou orgulhoso de ver o quanto está mais adulta.
“Agora você terá que pôr juízo na cabeça de seu irmãozinho aqui, não
poderá me deixar ficar para trás, e cuide de mim para que eu não faça
asneiras.
Sou sua responsabilidade agora, com você mais ajuizada, Rael só terá
olhos para mim, não o deixe me pegar, Dianinha, não me deixe fazer merda.”
Fiquei contente em ouvir aquilo, pois em algum momento passou a ser
muito importante para mim isso, não mais ser tratada como criança, e claro
que eu não ia cuidar de Dimitri.
Ele estava fazendo suas piadas ao exagerar daquele jeito, mas isso era
muito ele e então depois disso nossa conversa fluiu para vários assuntos.
Contei tudo o que aconteceu nos dias que estive no harém, sobre as
meninas e o jeito delas, sobre como me senti diferente quando agi feito
adolescente na primeira noite, fazendo fofoquinhas sobre o príncipe e
sondando pela janela. Rimos de tudo.
Quando entramos, comecei a ficar depressiva com a falta de Nicolae,
Dimitri havia se despedido e saído em seguida para fazer a ronda, então
depois do banho, dispensei o jantar e dormi cedo.
Os dias pareciam se arrastar, Dimitri havia cumprido a promessa de
dormir mais cedo para me fazer companhia à tarde e assim as tardes eram
sempre mais agradáveis, fazendo a espera ficar mais fácil.
Eva já estava quase pronta, segundo as parcas informações de Rael,
pois foram raras as vezes que ele saiu do quarto para falar conosco e
nenhuma que nos permitiu entrar para falar com ele e ver como ela estava.
Sem ter o que fazer, Dimitri e eu deixamos a estufa limpinha de pragas,
podamos as flores e cuidamos do jardim de Eva, para que assim, quando ela
acordasse, pudesse ver tudo bonito.
Já fazia seis dias e nada de Nicolae acordar.
E eu me roía de ansiedade, não tinha ideia de como reagiria com ele,
depois de tudo que ele viu, mas sentia tanta saudade que chegava a doer.
Não sabia dizer quando e como, mas Nicolae de repente passou a ser
mais importante para mim, mais do que eu conseguia entender.
Estávamos andando a cavalo, olhando as plantações, quando vimos
André chegando, ele tinha sumido há cinco dias, assim que conseguiu ter
forças ele partiu a cavalo para procurar sua filha pelos rebanhos dos sombrios
que dormiam.
Assim que nos viu, abriu um maravilhoso sorriso, era a primeira vez
que o via sorrir desse jeito, ele continuou nos olhando alegre quando o seu
cavalo parou perto do nosso.
— Senhor Dimitri, menina Diana, como estão?
Respondi seu cumprimento com um aceno, feliz por vê-lo daquele jeito
e Dimitri respondeu, simpático:
— Pela sua alegria, vejo que encontrou sua filha.
— Sim, senhor, ela está muito bem e mora sozinha, infelizmente minha
mulher já faleceu há três anos, mas estou feliz por ter conseguido achá-la.
Eu estava curiosa para saber como tinha sido o encontro.
— Como foi?
André sorriu, feliz.
— Eu expliquei a ela o motivo de trazê-la aqui e o porquê não as
acompanhei na fuga, ela me agradeceu e chorou dizendo que se não fosse eu
tê-las tirado daquela carroça, elas estariam em um prostíbulo, fiquei feliz por
ela se lembrar de mim e entender que tudo o que fiz foi para salvá-las.
Ele olhou sem graça para Dimitri.
— Senhor, sei que Amélia mora em um vilarejo de outro sombrio, mas
gostaria de pedir para morar aqui com ela, prometo ser fiel, senhor, mas
realmente gostaria de morar aqui e servir vocês e gostaria que ela pudesse vir
comigo.
— Não duvido de sua fidelidade, André, você mais que ninguém
merece nossa confiança, você salvou Diana, mas me diga, e ela viria?
— Sim, senhor. Conversei com ela, e está disposta a vir, contanto que
eu não a tire do reino sombrio, ela disse que me acompanha, ela é muito
independente, segura de suas vontades e tem suas coisas aqui e seus amigos.
— Falarei com Rael então, só peço paciência, que tudo anda muito
estranho e isso poderá demorar um pouco, mas não será problema, venha
conosco, André, quem decide essas mudanças é ele, como Primeiro, mas eu
ficarei feliz de ter meu adotado por perto. — Ele olhou de canto para André.
— Contanto que você não fale sobre o passado.
Eu não resisti e dei risada, ele me olhou feio, fui salva por André, que
falou:
— Não se preocupe, senhor, disse que não me lembrava de quem me
deu a mistura.
Dimitri assentiu, aliviado, e assim seguimos para a mansão. Sempre era
assim nesses dias, já ficava depressiva quando voltávamos para casa. A
saudade de Nicolae me dava vontade de chorar, mesmo não sabendo o
motivo. Tinha medo de que ele dormisse por anos e me sentia culpada por
isso.
Queria Eva agora, ela poderia me ajudar a entender por que eu sentia
isso com tanta intensidade e por que isso havia crescido tanto, balancei a
cabeça devia ser preocupação, ou deveria ser a ansiedade de saber como ele
agiria comigo a partir do que viu.
Dimitri subiu as escadas e depois de um tempo voltou com um
semblante assustado e feliz ao mesmo tempo, tentando a todo custo disfarçar.
— André, se importa de voltar amanhã? Acho que hoje Rael estará
totalmente indisponível, vá andar um pouco por aí, há casas vazias em nossa
vila, vá ao arconte e lhe peça para mostrá-las a você.
Aquilo era uma simpática dispensa e eu então desconfiei que Dimitri
escondia algo, cumprimentei de volta um André feliz e agradecido e assim
que ele saiu, me virei para Dimitri, na expectativa.
Ele não disse nada, apenas olhava atento para o alto das escadas e eu
curiosa acompanhei seu olhar, vi as sombras se movimentando na parte do
corredor visível dali de baixo, eram duas sombras e meu coração acelerou de
ansiedade.
QUEM ESPERA
SEMPRE ALCANÇA

As sombras foram ficando maiores, conforme avançavam pelo corredor


e logo Rael aparecia acompanhado de uma mulher linda e muito assustada.
Seus óculos redondos haviam sumido, suas feições antes gordinhas e
depois marcadas pela enfermidade agora davam lugar a maçãs perfeitas em
um rosto harmonioso.
Seu olhar castanho agora estava da cor de mel bem clarinho, quase
âmbar, e seus cabelos antes tão grisalhos e ralos agora tinham vida e caiam
ondulados por seu colo em uma linda cor mogno, era alta e esguia.
Não resisti e falei, quase num sussurro:
— Eva, você está linda!
Sorrindo, serena, ela abriu os braços, então Dimitri e eu corremos
desembestados subindo pela escada e a abraçamos. Senti seu cheiro familiar
de flores, estava linda mesmo em seu vestido simples e escuro, Rael não
cabia em si de felicidade. Dimitri se afastou e deixou Eva só para mim, indo
conversar com Rael um pouco longe de nós duas.
— Fico feliz em te ver bem, querida.
— E eu por te ver bem também, Eva, aliás, muito bem, por sinal.
Nós duas rimos e ela falou:
— Rael me falou sobre Nicolae, ele deve ter achado o mesmo que eu,
que seus pesadelos voltariam e de alguma forma o trauma também, mas vejo
que não. Rael me falou que você dormiu tranquila e é a mesma de sempre,
não sabe como me deixou feliz saber disso.
Assenti, era verdade, não me afetou mais que a vergonha, saber que
Dimitri e Rael me trataram normalmente e em nenhum momento me
julgaram me ajudou muito, mas não queria dizer isso, aproveitei perguntar
uma outra coisa, antes que ela me deixasse e eu sentia que meu tempo com
Eva seria curto.
— Eva, ultimamente eu sinto tanta falta de Nicolae, que dói meu
coração e me dá vontade de chorar, já sentia antes, mas nada como o que
estou sentindo agora.
Ela ficou em silêncio por um tempo, e logo falou, calma:
— A ansiedade é assim, está ansiosa pelo confronto e empática com a
saudade, essa confusão é normal, você precisa se entender sozinha e saber
lidar com isso que é somente seu e lhe ajudará muito conversar com ele e
resolver essa angústia daquele dia, mas não se preocupe, querida, logo o verá.
— Por que Rael não me deixou ir vê-lo na cripta dos desesperados?
— O nome sugere muito, Diana, e ele precisa se recompor, confia em
teu pai, ele sabe o que faz.
Assenti novamente, não tive mais tempo de perguntar e sanar todas
minhas dúvidas, Rael voltava e Eva não me largou de seu braço, ainda
abraçada a ela, não deixei de reparar que as mãos dos dois se entrelaçaram.
Olhei para Rael e ele me sorriu largamente transbordando felicidade,
meu bravo e sisudo Rael havia me dado o sorriso mais lindo que vi de todo
esse tempo com eles.
Fiquei emocionada ao ver sua felicidade, com os olhos úmidos nem
acreditava que poderia ver Eva bem e que Rael pudesse sorrir tão lindamente.
Não podia enchê-la com meus problemas, eles mereciam o tempo
deles, e eu não estragaria isso com minhas dúvidas e ansiedades e seja lá mais
o nome que Eva deu, me afastei dela para deixar os dois à vontade e Dimitri
falou, contente:
— Que bonitona, hein, Eva, bem-vinda oficialmente à família.
Eva sorriu e disse, olhando para Dimitri e depois para Rael:
— Obrigada, não gostei muito no começo, e pelo que estou sabendo,
vou ter que me acostumar com várias coisas e uma delas é deixar o senhor de
lado.
Dimitri levantou as sobrancelhas.
— Eva, Eva, você quase nunca nos chamava de senhor, sempre se
esquecia, então não se preocupe, se acostumará rápido a isso... Evinha.
Rimos, Eva e eu e trocamos um olhar querendo dizer a mesma coisa,
que lá ia Dimitri pôr seus apelidos carinhosos no diminutivo que deixava os
nomes horríveis.
Eva ainda parecia meio abobada, meio desacreditada ainda, mas ela se
habituaria rápido. Eu me habituei, mesmo não conhecendo-os no começo,
então para ela seria muito mais fácil.
Rael interrompeu meus devaneios, falando conosco.
— Diana, Dimitri, levarei Eva para a biblioteca particular, quero
mostrar a ela meu espelho e teremos muito que conversar antes de eu tirá-lo
de lá e antes de ela…
Eva o interrompeu.
— Já disse, Rael, o que tinha a dizer, não tenho nenhuma dúvida.
Ele a olhou com os olhos mornos de carinho.
— Eu sei, meu amor, mas eu esperei décadas por você, então quero que
saiba tudo de mim, quero resgatar a parte que me falta, mas quero fazer isso
com tempo.
Ela sorriu sem graça para ele e assentiu.
— Eu sei, Rael, basicamente sei tudo o que quer me dizer, e lhe digo
que já aceito tudo, mas se é importante para você, eu ouvirei passo a passo, a
aceitarei passo a passo para que fique seguro de que não tenho dúvidas. Na
verdade, só faltou essa transformação para me dar segurança de tentar esse
caminho. — Ela se aproximou dele e lhe beijou a bochecha, e ele a abraçou,
lhe beijando a testa, ela falou com voz de culpa. — Desculpe fazer você
esperar tanto Rael.
— Não se desculpe, meu amor, valeu cada minuto, dia e ano. Você está
comigo finalmente e é isso que importa.
Ele olhou para ela e soltou um meio sorriso charmoso, e esse com
certeza, seria exclusivo dela, e então se virou e piscou para mim.
Eu olhava embasbacada a cena, óbvio que estranhei, primeiro que Rael
estava radiante, e segundo que Eva estava linda e ainda tão segura daquele
jeito.
Achei linda a resposta que Rael tinha dado, nessa hora meu coração se
apertou quando ele falou, porque era verdade, ele não tinha mágoa nos olhos
pelo que passou por ela.
Eu o amava, ele preencheu o buraco de um amor paterno junto com
tudo o que um pai tem que fazer, desde dar carinho a cobrar disciplina, e eu
queria muito sua felicidade.
Amei Eva ainda mais por fazê-lo sorrir daquela forma, por fazer
finalmente os olhos cobalto de meu pai brilharem.
Rael era outro homem, pelo menos ao se referir à Eva, comecei a me
perguntar se ele seria assim sempre e com todos nós a partir de agora.
Balancei a cabeça pensativa, não acreditava muito que ele fosse ser
assim tão meloso comigo e com Dimitri, ainda ouviríamos sermões e
receberíamos castigos, mas para Eva ele dedicaria toda sua paciência.
Estava claro pela cena dos dois, e pela cara de Dimitri ele se
perguntava a mesma coisa, então nos olhamos com cumplicidade e
balançamos a cabeça, respondendo a nossa própria pergunta muda.
Não, essa foi a resposta de um para o outro em gestos, para nós ele
seria o velho Rael de sempre, então nada de abusar do bom humor dele.
Peguei na mão de Dimitri e juntos, meio sem sabermos o que fazer
agora, esperamos os dois pararem de se olhar um pouco, estávamos ali e
ficamos esperando-os se lembrarem disso, demorou, mas finalmente
aconteceu de nos notarem.
Depois de um carinhoso beijo de Eva e uma bagunçada em meu cabelo
por Rael, os dois desceram e entraram na porta que os levaria ao sótão.
Eu queria conversar com Eva sobre minhas dúvidas, mas com um Rael
tão feliz e tanta coisa para eles resolverem, isso poderia esperar.
— Que foi, Diana? Não está feliz pelos dois?
— Claro que estou! Muito feliz por eles, só com saudade de conversar
com Eva um pouco.
— Tenha paciência, Rael está tirando todas as dúvidas de Eva e,
acredite em mim, não os verá por algum tempo, Diana.
Dimitri passou os braços por meu ombro.
— Estão naquele momento que o clima entre eles os envolve
completamente, a qualquer momento eles podem aparecer para nós como um
lindo e oficial casal, mas agora precisam desse momento somente deles, pelo
menos foi isso que Rael me disse quando nos afastamos para conversar a sós,
isso e mais algumas coisas, e por falar nisso... — Ele me beijou a bochecha.
— Vou para a ronda, senão ficava com você mais um pouco.
Saiu apressado depois de me olhar preocupado e ansioso.
Subi as escadas indo para meu quarto tomar um banho, demorei o
máximo que pude para fazer a hora passar logo, depois comi parcamente e
sozinha, por sorte, já estava ficando tarde da noite, o trabalho daquele dia de
vistoriar as plantações havia sido cansativo e me deitei para tentar dormir.
Não demorou muito e ouvi passos leves no corredor e logo a porta se
abriu.
— Pequena? — Sua voz era baixa e contida, parecia até receosa. —
Está acordada?
REENCONTRO

Assustei-me com a surpresa, meu coração disparou e me senti


encolher e por mais saudade que eu sentisse dele, agora temia o confronto, a
maneira como ele ficou e reagiu não me saiu da cabeça, desde aquele dia.
Ele se aproximou, devagar, parecia ter o mesmo receio do confronto
que eu, tinha se banhado já, e eu sabia que tinha usado aquela essência para
que eu lembrasse quem ele era. O seu cheiro que eu mais gostava e era esse
que ele usava quando me resgatou da floresta, também era o mesmo que
usava quando me agarrei a ele na biblioteca, pedindo socorro.
Senti meu coração pequenino, seu perfume de sândalo tão importante
para mim e para minha paz de espírito, mas naquele momento sua presença
fez acelerar meu coração, não sabia como seria a conversa e como ele estaria,
mas mexeu comigo sua presença e era tão estranho, porque esperei tão
ansiosa que ele acordasse.
— Diana? — Ele abaixou devagar ao lado da cama, deixando o rosto
na direção do meu, eu escondi o rosto no travesseiro e falei baixo:
— Vá embora, Nicolae, por favor.
Não era isso que eu queria dizer, mas saiu automático, pela primeira
vez eu não sabia como agir perto dele.
Mas não consegui ficar sem olhar, queria ver se ele estava bem e
quando levantei a cabeça, encontrei seus olhos e vi ali a expectativa, receio,
mas também havia alívio neles.
Baixei o olhar novamente e me apertou o coração quando ele falou, em
um sussurro, demonstrando expectativa e mágoa:
— Está com medo de mim? Nunca lhe faria mal, pequena, olha para
mim.
Levantou meu queixo, me fazendo encará-lo e falou, com tristeza e
ansiedade:
— Não me odeie pelo que viu na floresta, não fique assim comigo, eu
me entreguei à caça quando senti o seu desespero e não suportei ver aquilo.
Quando ouvi seu grito, eu perdi completamente o resto do controle que tinha
e deixei a ira me dominar, mas nunca machucaria você, acredite em mim,
nunca te faria mal.
Sua voz tão ansiosa por explicar me dava mais tristeza, eu balancei a
cabeça negando, como ele podia pensar que eu estava com medo dele,
quando, na verdade, eu estava com vergonha por tudo o que ele tinha visto?
Eu me sentia suja e indigna, meu orgulho ferido, pois estava nua
lutando para não ser invadida por um porco. Tudo de mais escondido eu tinha
mostrado ali enquanto lutava, e o mais doído era ser ele em particular ter me
visto daquele jeito, pensar nisso me afetava de uma maneira que eu não
conseguia entender.
— Tem nojo de mim, não é, Nicolae? Aquela deve ter sido uma cena
horrível, o jeito que você reagiu…
Ele estalou a língua em desagrado e se deitou devagar, ficando de lado
na cama e de frente para mim, ficou com o rosto perto do meu quase sem se
mexer, me analisando com calma.
Eu poderia jurar que ele procurava alguma diferença em mim, estava
preocupado. Levantou a mão e tirou as mechas de cabelo do meu rosto
falando baixo, naquela distância me senti inebriar pelo cheiro de menta e
sândalo, uma onda perpassou pelo meu estômago e era a primeira vez que
isso acontecia ao sentir sua proximidade, não era incômodo era…
Nervosismo?
— Nunca vai deixar de ser tola, não é? Sempre vai achar que nos
baseamos por costumes humanos, meu único medo foi você se perder, se
fechar ao mundo e se fechar para mim, não sabia como você estava e
imaginei o pior. — Ele suspirou ainda me olhando fixamente. — Ele te feriu
muito?
Neguei com a cabeça sem tirar meus olhos dele, estava lindo naquela
posição tão pertinho de mim. — Não, graças a vocês. — Ele travou a
mandíbula, enquanto olhava para mim, eu sabia que ele estava desesperado
para perguntar, não ia adiantar, ele precisava saber.
— Não chegou ao fim, você evitou isso. — Olhei para ele. — Obrigada
por isso.
Aliviado. Ele fechou os olhos.
— Graças ao eterno, cheguei a tempo.
— Iria me odiar se ele tivesse conseguido?
Ele franziu o cenho, indignado.
— Como pode perguntar isso? A mulher nunca é culpada quando um
abuso acontece, o homem que é, Diana, nunca esqueça isso. Iria é odiar a
mim mesmo, se isso tivesse acontecido, sei o trauma que você sofreu quando
presenciou todos aqueles estupros e nunca me perdoaria se ele conseguisse
ter violado você, apesar de não deixar de ser algo muito parecido o que sofreu
aquele dia também, mas se tivesse acontecido… — ele falou o resto em um
fio de voz como se estivesse lembrando —... eu morreria, pequena.
— Por que ficou tão abalado?
— Porque de tudo que podia te acontecer isso seria imperdoável, justo
você sofrer isso na pele… Eu não suportei ver o que te faziam, porque sua
dor é minha também, sempre me afetará suas dores e seus medos, entenda
isso, e sempre me vingarei daqueles que te machucarem, porque é mais forte
que eu.
Fiquei pensativa, me sentia um pouco mais tranquila e um peso grande
saiu de meu peito, seu olhar para mim mudou, ele me olhou com ternura,
deixando um meio sorriso bobo nos lábios e eu amoleci com aqueles olhos
orgulhosos, apesar de não saber o motivo de estar me olhando dessa forma.
— Estou muito feliz em ver como você está forte, fiquei com receio de
encontrar uma Diana transtornada pelo medo e olha você aqui, nunca me
perdoaria se você voltasse e ter medo como antes.
Abracei-o, esse era o meu Nicolae de volta, ele se ajeitou na cama,
beijou minha testa e rodeou os braços, me puxando para ele, mas eu queria
tirar aquele olhar preocupado que teimava em ficar e só agindo como se não
tivesse me afetado que conseguiria isso.
— Só foi dor de cabeça para vocês essa minha ideia de se infiltrar no
reino Humanis, me culpo por tanto transtorno.
— Não sofra com isso, muita coisa boa aconteceu também, se não fosse
isso, jamais teríamos descoberto sobre as sombrias que são mantidas
prisioneiras e não teríamos as meninas na mansão, apesar de tudo, coisa boas
aconteceram com isso. Sossega, pequena.
Eu sorri, ali estava ele vendo o lado bom de tudo, mas nesse ponto era
verdade, havia muitas mulheres sendo cortejadas, então animada contei a ele
as novidades sobre elas, o que vi enquanto ele dormia.
— Fui com Dimitri duas vezes na mansão do irmão Lucas e ficamos de
longe vendo a movimentação. Achei tão bonitinho, Nicolae, vê-los lá
ajudando as moças com as tarefas diárias, jardim, estufas, pomar, alguns
estavam até nos parreirais ajudando os humanos e havia grupos delas com
muitos deles contando histórias, sentados na varanda, tranquilos. Na segunda
vez, ouvimos músicas e até risos lá dentro, elas estão se adaptando bem, não
quisemos aparecer por lá, porque Dimitri achou que Rael não ia gostar de
saber que os interrompemos, mas mesmo de longe gostei muito do que vi.
Nicolae sorriu, pegou minha mão que descansava em seu peito e levou
à boca, ficando a brincar com meus dedos, os passando em seus lábios de
maneira distraída, então começou a falar:
— Posso dizer que em um ano ou pouco mais teremos nossos primeiros
sombrios da nova geração andando por aí, agora elas estão basicamente
confinadas na mansão com os irmãos sombrios lhes fazendo toda a corte.
Enfim há esperança, minha pequena, há esperança.
Ele ficou distraído, ainda brincando com meus dedos, costumava fazer
isso sempre antes, mas agora me senti ansiosa com o gesto, ele continuou a
falar ainda os passando por sua boca um a um devagar e sinceramente não
prestei muita atenção ao que ele dizia, fiquei meio hipnotizada com seu gesto
tão antigo, mas com sensações tão diferentes de antes.
Nicolae nem percebia o que aquele carinho antigo estava me causando,
continuou a falar completamente inocente do quanto estava mexendo comigo.
— Será um processo demorado organizar tudo, por agora foi o que se
arranjou, mas faremos melhor depois que tudo ficar pronto. Elas devem estar
se vendo malucas, as pobres moças.
Apesar de não fazer ideia do que ele tinha dito antes, concordei com a
última frase, pois foi a única que prestei atenção, então depois de um tempo
ele olhou para mim, falando:
— Dimitri me disse que te contou sobre Rael e Eva.
Meneei a cabeça e esperei, ele continuou:
— E sei que por causa disso agora sabe como são as coisas conosco,
preciso falar porque quero entender o que se passa com você, tudo bem?
Assenti novamente, ele levou minha mão ao seu peito e a manteve ali
quieta junto com a sua, pela sua expressão, ali estava o professor Nicolae em
ação.
Podia dar graças de ele não estar mais brincando com meus dedos, mas
minha mão em seu peito começou a esquentar, parecia querer ganhar vida
própria.
Fiquei pensando em como seria passar a mão ali, e sentir as formas dos
músculos de seu peito, me dando conta de que só havia visto as formas
através de sua camisa e pareciam bem definidos. Com raiva de mim, decidi
perguntar qualquer coisa para me distrair desses pensamentos, acabei por
fazer uma pergunta que me interessava realmente a resposta.
— Nicolae.
— Hum?
Como ia perguntar isso? Não entendia por que parecia tão importante
para mim saber, mas em algum momento passou a ser.
— Pequena? Dormiu? — Ele se afastou e olhou para mim para ver se
eu tinha dormindo e se demorou ali, olhando para mim e olhando ao meu
redor.
— Que foi, Nicolae?
— Você está... Diferente. — Ele me olhou mais uma vez, então voltou
seus olhos nos meus, mas parecia um tanto surpreso, passou os dedos por
meus lábios pensativo e logo pareceu sair de um transe, voltando ao seu jeito
de sempre. — Ia me perguntar uma coisa, Diana, o que é? — Sua voz estava
rouca e ansiosa.
— É que Dimitri me disse que Eva não sabe que ama Rael, mas ele
sabe que ela o ama, como pode isso?
Senti que ele ficou um pouco tenso, pelo menos me pareceu que ele
ficou pensativo antes de responder, com essa pausa para pensar senti meu
coração pequenino, ele ia dizer que não sabia? Que ainda não tinha
encontrado uma mulher para preencher seu coração? E por que isso ficou tão
importante para mim?
Ele respirou fundo, antes de responder e eu prendi a respiração.
— Eva não sabia que amava Rael, apenas ele tinha essa certeza, ela o
amava, mas não estava pronta para ele, entendeu?
— Não, como pode ela sentir algo por ele, mas ainda não ter chegado o
tempo de o amar? E como Rael saberia que esse momento chegou?
— Ele sabe, Diana, ele pode ver.
— Mas como ele viu, ela que disse a ele?
— Não, pequena, ela não disse, não precisa ela dizer, só se quiser, mas
na maioria das vezes não há necessidade de dizer, os sombrios sabem.
Nicolae não parecia querer falar muito disso, parecia ser algo íntimo do
irmão, ou dele, era tudo tão vago ele viu minha decepção.
— Não fique sentida por eu ser esquivo na resposta, está bem? Vou te
dar uma explicação simples. — Ele pensou um pouco e começou: — O
sentimento humano é volúvel, ele precisa ser sentido um de cada vez, no caso
de Eva, ela amou seu marido, mas era um sentimento mais fraco do que ela
sente por Rael, o amor de verdade assusta, porque é intenso, tão intenso que
se tende a fugir dele, usando um sentimento menor como desculpa para tentar
ser feliz.
“Os humanos têm uma mania estranha de se protegerem, mesmo
inconscientemente, se o amor é forte e intenso a perda seria arrebatadora.
Já com os sombrios é apenas um amor e por isso é preciso paciência,
ver o sentimento florescer e crescer na amada, se ela não for sombria. É
basicamente como superar os obstáculos com paciência quando se apaixona
por uma humana.”
Achei estranho. Nicolae parecia saber muito bem como acontecia
aquilo, parecia até que sabia como funcionava, só não parecia querer me dizer
exatamente isso, ele continuou falando:
— Só quando uma mulher esquece completamente qualquer outro
homem, é que ela vai abrir seu coração para novas tentativas, e nisso seu
sentimento crescerá, mas ele teria que esperar para ver se nenhuma dúvida
restará, aí sim eles deveriam ficar juntos, se ela ficar com ele com dúvidas, o
relacionamento dos dois tende a ser doloroso e com muitas brigas. O ciúme
não é algo que um sombrio controla quando tem compromisso, mas controla
quando não tem, na maioria das vezes é assim que funciona.
— Vocês já ficaram em dúvida se era realmente aquela mulher que
queriam? Já tiveram isso de o sentimento dormir por uma para amar outra?
Ele me olhou com aqueles olhos amorosos, como se eu estivesse sendo
inocente e isso fosse fofo.
— Somos sombrios, não é assim que funciona conosco.
Estava ficando cansada daquela conversa e já que ele não parecia muito
receptivo sobre falar de sentimentos, precisava contar sobre Tiago, era
estranho, mas precisava contar a ele.
— Sabe sobre mim e o príncipe?
Ele me olhou, franzindo o cenho.
— Não sabia, imaginei que aconteceu algo enquanto esteve lá, mas não
me importo que me conte.
Como ele pôde ter imaginado? E eu achando que seria uma senhora
novidade, contei meio sem ânimo, já que ele tinha estragado a surpresa.
— Ele me beijou, duas vezes.
Ele se manteve pensativo, olhando para mim, depois falou, tranquilo:
— O que sentiu com esse aprendizado?
Apertei os olhos para entender direito.
— Aprendizado? Foi um beijo, não uma aula.
— Certeza disso? — Ele riu.
— Bem… Claro. Eu não sabia beijar e agora sei.
Ele riu gostosamente e me abraçou mais forte ainda, olhando para mim,
suas feições se suavizavam nas raras vezes que ele ria assim e eu gostava
muito de ver isso, ele ficava ainda mais bonito.
— Acha que sabe agora, só porque beijou uma vez?
— Duas, não uma, oras — falei, mostrando dois dedos para enfatizar o
maior número.
— Muito bem, senhora sabida, o que sentiu quando ele a beijou?
Era uma pergunta difícil de responder.
— Bem não sei dizer, senti um frio na barriga, uma sensação agradável,
uma ternura talvez.

— Ternura? — Ele franziu o cenho e eu achei graça.


— Me pareceu isso.
— E na segunda vez?
— Senti que havia sentimento, muito mais que a primeira, mas...
Ele ficou me olhando fixo, seu rosto bonito e sério. — Não tenha receio de
me dizer nada,
pequena, quero que confie em mim como sempre confiou.
— É que... o sentimento veio dele, mas só dele, entende?
— Conseguiu analisar isso enquanto ele a beijava?
— Conseguiu analisar isso enquanto ele a beijava? Isso é sinal que não
lhe afetou tanto quanto gostaria, não é mesmo?
Balancei a cabeça concordando e fiquei em silêncio, mas por pouco
tempo, tinha tanta coisa que eu queria entender, tantas mudanças.
— Nicolae.
— Hum?
Eu demorei a responder e ele se afastou para olhar para mim.
— Certeza de que está bem, pequena?
Senti-me uma idiota e emendei rapidamente:
— Como será se Eva aceitar mesmo Rael?
Ele riu.
— Vai ainda insistir com isso mesmo?
Assenti, dando graças por ele ter tanta paciência comigo, se fosse
Dimitri já estaríamos brigando agora.
— Não há casamentos formais entre os sombrios, o que vai acontecer
será um ritual bem íntimo e importante.
— Um ritual?
— É mais como uma prova de amor. Mas nesse dia ele ficará completo.
A parte de Rael que está presa, responderá apenas a Eva porque ela já está
conectada a ele espiritualmente.
— Diferente isso, e parece realmente importante.
Ele assentiu. — É importante, porque nos completa, nos torna inteiros,
e é mais importante ainda porque ficamos inteiros para ela, somente para ela.
“Nós e os licans nunca fomos nada parecidos com os humanos quando
se trata da mulher que amamos de verdade, é algo que beira o sagrado porque
esperamos por isso, porque sabemos que é eterno, então, simplesmente
amamos. Somente haverá uma ligação espiritual, só mudando o receptáculo
que carrega.”
— Mas não haverá declaração? Nadinha de romance como nos livros?
Que triste, parece lindo essas coisas românticas.
Ele fez a meia-lua de um sorriso.
— É mais romântico do que pensa, não há entrega maior do que duas
almas se conectando e dois corpos se entregando completamente ao
sentimento.
— Mas, Nicolae, e se Eva não conseguir se decidir? Saber que gosta
dele e ainda assim não se sentir segura para dar um passo desses?
Não entendia por que aquilo parecia tão importante agora, mas eu tinha
que saber, queria entender e tirar minhas dúvidas, e o mais engraçado era que
eu falava Eva, quando era uma curiosidade pessoal, como se o receio fosse
por mim e não por ela, e isso estava me deixando confusa comigo mesmo.
— Diana, se Eva aceitar Rael, ela se entregará para ele na noite que
decidir que o quer como companheiro, está nas mãos dela e nunca na dele.
— Mas e se isso demorar, eles podem trocar carinhos entre eles sem
realmente ela se entregar? Sem haver necessidade dessa relação íntima?
— Você diz namoro?
— Não sei o que significa isso.
Ele ficou sério um tempo.
— Realmente, você precisa se entender, pequena, está com a cabeça
cheia de dúvidas, vou tentar te explicar. Namoro era um costume muito
antigo, quando havia muitas raças no mundo…
Ele fixou o olhar em um ponto enquanto mexia nos meus cabelos,
ficando totalmente absorto em sua narração. Gostava disso, quando contava
suas histórias, ele ficava concentrado e nessas horas eu podia ficar olhando
para ele.
Gostava do formato de seu rosto, das suas sobrancelhas desenhadas e
masculinas, das linhas fortes de seu maxilar e de seu queixo bem feito com
sua boca bem desenhada dando o toque final, e ainda vista de baixo deixava-a
mais marcada e mais atraente.
Senti um frio no estômago ao olhar para ela se mexendo enquanto ele
falava.
Merda. Baixei o olhar, beijar pela primeira vez tinha me feito ver
coisas que não via, eu sempre gostei de ficar olhando para ele quando estava
falando, mas nunca tinha ficado hipnotizada olhando para sua boca como
agora, nunca tinha reparado que ela era atraente e muito menos fiquei tão
atraída por ela.
Uma boca chamativa e ele tinha uma assim agora, eu via isso, ao menos
ela parecia me chamar, sentia os dedos coçarem de vontade de tocá-la, apertei
os olhos, o que havia comigo?
Pisquei duas vezes e continuei prestando atenção, só me restava pôr
defeitos nele para tirar esses pensamentos intrometidos, por exemplo, ele era
mais sério, mais fechado, tinha os cabelos tão negros e eram brilhantes com a
aquela franja mais comprida caindo em seu rosto teimosamente, encobrindo
parte de seus olhos turquesa, dando a ele um ar jovial e misterioso, era tão
lindo.
Mordi a boca para me concentrar e me senti horrível por ter esses
pensamentos, precisava urgente conversar com a Eva, se Nicolae ao menos
imaginasse o que se passava em minha cabeça agora, mas ele continuou
falando, mal percebendo o senhor conflito dentro de mim.
— Um costume em que havia um casal que descobriam que se
amavam, e então o homem ou a mulher perguntava: quer namorar comigo?
Então se a outra parte aceitasse eles firmavam um compromisso de namoro e
trocavam carícias durante esse tempo, mas não necessariamente mais que
isso, até que ela decidia que estava pronta para se entregar a ele
completamente e então eles se casavam, assim era entre os humanos, antes de
tudo virar negócios e a mulher não poder ter esse tempo e uma escolha.
Tinha que mostrar que fiquei atenta à sua narrativa sem devanear com
sua aparência.
— Eva pode se separar de Rael um dia?
— Ela não fará isso se o aceitar, há uma magia muito complexa em
uma relação entre os sombrios.
Queria perguntar, mas fiquei sem graça, o encarei por um bom tempo
sem dizer nada.
Ele sorriu, sereno.
— Pergunte, minha pequena, sei que para você é um assunto delicado,
mas não para mim.
— Que tipo de magia complexa?
Eu imaginava o que era, mas queria ter certeza de que para mim estava
fora de cogitação uma união assim.
— O sêmen, temos um tipo de endorfina que liberamos quando
fazemos amor, que é como se marcássemos território, é uma coisa irracional,
não fazemos isso porque precisamos, ou porque queremos, é uma coisa
natural de nossa raça.
— Através do beijo também?
— Sim, mas em menor proporção, por isso que para selar um
compromisso, somente com a primeira noite juntos.
— Isso é uma coisa estranha — falei, tentando parecer natural, mas
senti uma perda sem saber o motivo, uma união com um sombrio só
aconteceria se houvesse total entrega.
Ele concordou com a cabeça e ficou pensativo e logo sério.
— Diana, preciso que saiba, em alguns dias invadiremos o castelo para
salvar as mulheres, vamos esperar apenas Rael resolver seu assunto com Eva
e pediremos a André para nos dar mais detalhes sobre tudo o que há no
castelo e sobre as falhas de seguranças nas muralhas para podermos diminuir
o maior número de baixas possíveis. Rael então vai fazer o chamado e eles
acordarão organizadamente por clã, deixaremos de fora no chamado nosso
pai eterno e já queimamos os dois traidores.
Meu coração se acelerou.
— Eva já está transformada e está com Rael nesse momento, Nicolae.
Ele sorriu.
— Eu sei, minha linda, eu conversei com eles, me desculpa não ter
vindo aqui primeiro, mas Rael me chamou para passar as ordens e quando
acordei fui direto a ele, por isso creio que no mais tardar, em dois dias,
estaremos prontos.
Isso não podia acontecer, uma guerra? Tinha que haver outro meio,
agora que alguns sombrios estavam podendo finalmente encontrar a amada,
agora que tinha algumas mulheres e havia esperança isso não podia
acontecer.
— Não gostaria que fosse, queria você, Dimitri e Rael aqui.
— Não posso não ir, minha pequena, é minha obrigação.
— Tem esposa lá dentro?
— Nunca tive esposa, por que pergunta isso?
— Fiquei curiosa, nunca tinha perguntado isso antes.
Nicolae me observou por um longo tempo, pensativo e parecendo me
analisar completamente, como um professor analisa um aluno em sua prova
oral.
— Você cresceu nesse tempo que passou entre os humanos, está tendo
atitudes mais maduras, atitudes de uma mulher adulta, está mudada.
— Por que diz isso?
— Sua conversa, suas atitudes, está ansiosa, em conflito.
— Não estou ansiosa! Nem em conflito!
Ele riu novamente.
— Seu coração acelerou tantas vezes hoje, que quase cedi à vontade de
massageá-lo para que voltasse ao normal.
Não disse nada, o que estava havendo comigo? Então era assim, tudo
intenso? Decidi responder na minha zona segura.
— Mas isso não mostra que mudei.
Não ia aceitar tão fácil, pensar em coisas novas e ficar ansiosa e curiosa
sobre esses assuntos não queria dizer nada.
— Disfarçando sua real vontade com perguntas inseguras e respostas
evasivas?
— Acha que me tornei mentirosa nesse tempo que fiquei lá?
— Não, claro que não, por isso mesmo dá para notar sua mudança, está
completamente insegura ao meu lado.
Fiquei em silêncio, nem sabia o que dizer naquele momento. Ele estava
certo, eu estava confusa. Sempre vi Nicolae como meu suporte, meu protetor
e agora parecia mais que isso, era estranho sentir isso.
Não respondi, não sabia o que dizer, nem saberia como dizer se fosse
explicar, eu estava comparando os toques? O que eu sentia? E eu nem
entendia por que me sentia assim.
Precisava me entender e tentar saber sozinha ou esperar Eva ter tempo
e ter uma conversa com ela, conversar com homens sobre homens era
estranho e confundia meus sentimentos.
Essas coisas que eu sentia, era somente com Nicolae e não era medo
pela crueldade dele transformado, não era isso, eu sabia, só não entendia por
que agora ficar perto dele me deixava ansiosa, o que ele pensaria de mim se
soubesse o que se passava na minha cabeça sobre ele? Quanto me
estranharia? Me acharia tola?
— Desculpe, não quero mudar, mas não percebi que tinha mudado.
— Isso é bom, pequena, você está se descobrindo, está descobrindo
seus anseios, se conhecendo e se assustando com seus desejos e dúvidas,
apesar de tudo o que aconteceu, esse tempo deixando você cuidar de si
mesma, tomar suas próprias decisões descobrindo e passando por
experiências novas só acelerou o que faltava você ter, experiência de vida, e
isso não podemos ensinar é o tempo e situações da vida que ensinam.
Sentia tanta falta dele, de estar assim com ele, que me senti
emocionada.
— Senti muito sua falta, dessa calma que você sempre teve, dos seus
olhos, de você.
Falando isso, fiquei quieta, achegada a ele, poderia dizer muito mais
coisa do que senti falta nele, mas não soube o que dizer, nem como.
— Não sabe o quanto eu também senti de minha pequena, mais do que
eu consiga expressar em palavras ou gestos, mais do que possa imaginar ser
possível.
Ficamos em silêncio, com ele ali, com seu cheiro e seus braços, as
coisas pareciam estar como deviam ser, fiquei deitada em seu peito recebendo
seu carinho em meus cabelos, a preocupação com a guerra não me saía da
cabeça, mas não podia simplesmente pedir que não fossem, as sombrias
prisioneiras tinham que ser libertadas, mas como fazer isso e evitar a guerra?
Não consegui pensar em uma resposta, finalmente o cansaço me tomava e
antes de me entregar ao sono completamente, ainda vi quando Nicolae me
beijou a fronte, sussurrando que faltava muito pouco, não entendi, mas não
estava mais raciocinando direito e dormi, nem vi quando ele saiu dali.
Acordei sobressaltada, sentia um cheiro… Desci só de camisola,
correndo as escadas, ninguém em nenhuma parte, onde eles estavam? Tinham
ido resgatar as mulheres sem se despedir de mim?
PROPOSTA DO REI

Não poderiam ter ido sem se despedir, sem planejamento, Nicolae


havia dito dois dias, ainda faltava os homens se recuperarem do eterno sono,
mas então aquele cheiro vinha de onde? Era cheiro de sangue, e era… Cheiro
de sangue dos sombrios. O que estava acontecendo?
Com o coração apertado de medo, corri para a porta e escutei uma voz.
— Aonde pensa que vai, menina?
Era André, estava com a aparência preocupada e por isso, fiquei ainda
mais ansiosa.
— Onde está todo mundo?
— A senhora Eva dorme e o senhor Rael pediu para que não fosse
acordada e os príncipes não estão.
Ele me olhou daquele jeito que eu sabia que significava problemas,
senti medo nessa hora, medo de eles terem ido resgatar as mulheres sem ao
menos estarem prontos para isso.
— Sentiu o cheiro? — ele perguntou, olhando a porta e puxando o ar,
ele sentiu também, então eu não estava maluca.
— Eles?
— Não, sentiram o cheiro dela assim que saiu da muralha, temo ser um
engodo, mas me mandaram ficar aqui e não deixar você ir atrás deles.
Não respondi, óbvio que eu iria atrás deles, subi as escadas como um
raio, abri o armário e fui arrancando tudo às pressas, calça de montaria,
camisa e botas, ótimo, rabo-de-cavalo, melhor não, humano demais, desci
desembestada alcançando a porta, André me parou, entrando em minha
frente.
— Não ouse ficar em meu caminho, André!
— Eles não poderão cuidar de você se for uma armadilha, menina.
— E nem poderão cuidar do reino sombrio se forem pegos, me deixa ir,
André, irei com ou sem sua ajuda.
Ele balançou a cabeça, resmungando:
— Vou com você então, se é para estar com você farei aqui ou lá.
Saí rápido, não podia perder tempo, não estavam longe, o cheiro era
forte, segui apressada para os fundos e no pequeno estábulo montei um
cavalo em pelo e André montou outro.
— Não está em condições, André, fique aqui e cuide da sua filha, não
me meterei em encrencas.
Ele incitou o cavalo e me disse, já começando a correr:
— Você tenta, mas os problemas são seus seguidores fanáticos.
Segui-o, torci a boca ao que ele disse, não valia a pena responder, pois
era verdade.
Seguimos pela floresta sombria por pouco tempo e logo saímos na
estrada dos viajantes, ali seríamos mais velozes. Agradeci mentalmente que o
território sombrio se estendia grandioso atrás dela e não à frente, os dois
territórios eram grandes em extensão, mas o limite entre eles naquela direção
não era longe.
O cheiro de sangue que chegava às minhas narinas ficava cada vez
mais forte, André parou o cavalo e descemos, deixando-os pastando por ali.
Precisávamos chegar sem sermos notados, ao menos pelos humanos, agradeci
minha boa audição e respirei aliviada ao conseguir ouvir as vozes.
Era uma conversa não muito amistosa, mas com quem? Nos
aproximamos mais e lá estavam eles ao longe, no limite do reino sombrio na
linha imaginária que dividia os dois reinos e então fiquei assustada com a
audácia daquele maldito velho real.
O rei estava lá com alguns soldados e atrás dele mais longe eu vi uma
mulher desnutrida e ferida, vestido todo sujo e rasgado quase a deixando nua,
estava amparada por dois soldados.
Dali eu não consegui ver como era ela, apenas vi que tinha enormes
cabelos escuros que caíam por seu rosto, ela parecia desmaiada ou fraca
demais para levantar a cabeça.
Ouvi a voz de Dimitri e prestei atenção, curiosa, ele parecia furioso
pelo tom de sua voz.
— Acha mesmo que a entregaremos a vocês? — Dimitri ameaçou
avançar no rei, mas Nicolae o segurou.
— Não, Dimitri, demos nossa palavra que ouviríamos e que a
integridade dele estaria garantida.
— Vocês prometeram! Eu nem falei com o mensageiro, então não
prometi nada.
O rei falou, debochado:
— Estou tentando evitar uma guerra aqui.
— Evitar guerra? — gritou Dimitri. — Você sequestrou nossas
mulheres e sabe-se lá o que fez com elas nessas décadas, agora vem aqui e
quer propor uma maldita troca, achando que aceitaremos essas ofensas e
ainda agradeceremos por isso?
O maldito homem nem sequer se abalou com as palavras de Dimitri e o
olhou cinicamente.
— Estávamos em guerra e elas eram prisioneiras, não podem reclamar
se não cuidaram direito do lugar onde esconderam suas mulheres.
Rael, Nicolae e Dimitri avançaram para o homem, mas ele continuou a
falar um pouco mais alto, com as mãos levantadas, mostrando as palmas
como ato de redenção.
— Não se esqueçam de que me deram suas palavras, meus honrosos
sombrios, que escutariam o que eu tenho a dizer e minha vida estaria segura e
com isso a vida de suas mulheres sombrias também estará.
Eles pararam com o que ele disse, mas Rael emendou:
— Termine o que tem a dizer de uma vez, não está em condições de
ofender, mais uma gracinha sua e não voltará para o lixo que chama de reino.
— Então sejamos diretos e não me interrompam, todas as mulheres por
ela e pronto acabou! Não haverá guerra, esqueceremos o assunto e fim de
papo.
Ouvi a voz baixa de Nicolae, típico quando ele está se segurando.
— Você não irá levá-la, somente comigo morto ela sai daqui.
— Ela é nossa! Da nossa família, minha filha — disse Rael. — Era
parte da encomenda que vocês sabotaram e não é moeda de troca.
Recuperaremos nossas mulheres da forma correta, com guerra, seu reizinho
de merda.
Meu coração acelerou, era de mim que falavam, já desconfiava, mas,
no fundo, tinha esperanças de que fosse outra coisa, qualquer coisa.
Por que aquele homem me queria? Para quê? E os príncipes declarando
guerra assim, sem estarem preparados?
Fiz sinal a André e fiquei aliviada que ele entendeu, devagar ele foi se
afastando, agora ele não tinha mais nada a fazer ali, eu tinha.
Sentia meus ouvidos retumbarem com as batidas do meu coração, mas
que os Deuses antigos me ajudassem, eu tinha que tomar uma atitude.
Ninguém podia decidir por mim, e os príncipes não percebiam? Era uma
chance de recuperar as mulheres sem lutar! Era a minha chance, porque era
de mim que estavam falando!
Mas queria ouvir mais dessa vez, tinha perguntas a fazer. Saí do meu
esconderijo, falando alto o suficiente para ele escutar de onde estava.
— O que quer de mim? — Fui andando rápido, me aproximando,
enquanto ele me olhava com um semblante de quem encontra um tesouro.
Enquanto os olhos do rei se iluminaram ao me ver, os de Nicolae
ficaram lívidos. Os príncipes sabiam que eu estava ali, tinha certeza de que
sabiam, só não imaginaram que eu iria interferir. Mas era de mim que
estavam falando e eu tinha direito de tomar uma decisão por minha conta,
eles prometeram nunca tirar meu livre arbítrio e agora eu podia fazer algo
para protegê-los, se fosse a última coisa idiota que eu faria na vida, pelo
menos que essa coisa fosse para ajudar minha família.
— Diana, não! — Dimitri segurou meu braço quando cheguei perto e
não me deixou me aproximar mais do rei, não afastei seu braço, mas não
olhei para ele, fiquei foi olhando fixo para o porco de coroa à minha frente,
esperando resposta.
Ele sorriu para mim.
— Aí está você!
— Responda minha pergunta, por que me quer, afinal? Que valia eu
teria para você? Já não tem mulheres aos montes para te servir?
— Você não precisa saber, garota.
Nicolae chegou perto de mim e segurou minha cintura, dizendo baixo:
— Mas nos diz respeito. Você não está em condições de ser idiota.
Haverá guerra. Reaveremos nossas mulheres à força, se as matar então seu
reino não durará muito, somos apenas homens e se engana se pensa que não
temos meio de aumentar nosso povo. Só não o fizemos por respeito ao
tratado, mas se não cuidar de suas muralhas, elas podem cair e de repente
suas mulheres podem ser tiradas de vocês.
Dimitri então terminou a frase por Nicolae:
— E teremos mulheres, vocês queiram ou não.
O cretino manteve a pose, mas as palavras de Nicolae o pegou em
cheio.
— Muito bem! Eu a quero porque preciso do seu sangue.
Segurei o peito de Nicolae quando ele deu um passo, mas Rael
enfurecido falou, se aproximando mais do homem:
— Como ousa, seu...
Antes que Rael o pegasse pelo colarinho, ele emendou:
— Ela não será ferida, ao contrário, nada acontecerá a ela, será muito
preciosa para mim, preciso do sangue dela, pois o experimentei e ele é
compatível.
Falei antes que um dos irmãos o fizesse:
— Compatível? E quando experimentou meu sangue?
Ele deu uma risadinha.
— Acha mesmo que a faca com seu sangue fresco não foi trazida a
mim diretamente? Acha que eu não tive quem arranjasse seu sangue para
mim?
— Mas e o sangue sombrio que tinha nela?
— Não me faria mal, eu bebo dele, há anos.
Fiquei abismada com o que ele dizia, os irmãos apenas ouviam atentos
agora, não iam tirar meu direito e agradeci mentalmente, e ele continuou:
— Mas com o seu, eu percebi uma diferença, o sangue sombrio me dá
uma sobrevida eterna, mas também com isso vem doenças e esquecimento,
são vários efeitos maléficos.
Isso me fez voltar à conversa com as meninas na mesa quando estava
no reino, e isso explicava também ele nem saber que dia era, tendo que se
basear por um dia do baile para se situar e por que ele só aparecia nesse dia
ao público, ficando isolado o resto do tempo, mas, ainda assim, uma pequena
quantia na faca parecia pouco para ele descobrir a diferença, essa história
estava mal contada, mas não era hora para pensar nisso.
Olhei para ele em deboche.
— Vale a pena reinar quase morrendo?
Ele me deu um sorriso torto.
— E por que acha que estou aqui, propondo essa troca? Sabe, garota,
você ter fugido do reino me trouxe muita dor de cabeça, mas em certo ponto
foi bom, um dos meus soldados que estava na sua captura e daquele maldito
criado aquele dia conseguiu escapar, mas ouviu uma conversa interessante
antes de fugir, ele ouviu a frase enquanto fugia, “se acalme, irmão, volte a si,
temos que resgatar nossas mulheres no reino Humanis”. Isso me deu uma
ideia bem interessante, entrego as mulheres sombrias às suas casas. — Ele
olhou para Rael, antes de continuar: — Todas elas. — Ele voltou a olhar para
mim. — E então você vem comigo, nada acontecerá com você, porque
preciso que esteja sempre gozando de ótima saúde.
Senti Nicolae apertar minha cintura, puxando mais para ele, estava
difícil aos irmãos cumprirem a promessa de deixá-lo falar e sair imune, mas o
mal de se ter a honra em alta conta era isso.
Eu teria mentido descaradamente e enfiado um punhal no peito do
desgraçado, acabando com um reinado imundo, mas a vida das mulheres
sombrias em seu poder estava em risco e tinha que respeitar a palavra dos
príncipes, e eu tinha muito a perder, não os queria feridos em uma guerra, o
rei precisava de mim então, planos começaram a se formar em minha cabeça
naquele momento, coisas rápidas demais, precisava pisar em ovos, mas se
espremesse esse homem, ele cederia mais do que estava oferecendo.
— Muito bem, irei com você.
Seus olhos se iluminaram, apesar de ele não ter gostado do tratamento
desrespeitoso.
Nicolae se aproximou mais de mim e sussurrou, nervoso:
— Por favor, não faça isso, eu não suportaria, não me mate aos poucos,
Diana, é sua vida e eu respeito isso, mas se algo acontecer a você eu definho,
por favor.
Senti meus olhos arderem, não sabia o que responder, mas Dimitri com
sua língua abençoada, falou antes que eu pudesse formular uma resposta a
Nicolae:
— Ela não será sua escrava sexual, se é o que quer.
O rei balançou a mão, sem importância.
— Não tenho interesse nela para isso, tenho mulheres o suficiente para
esse fim, ela se casará com alguém de minha escolha e será minha protegida,
fim.
A respiração acelerada de Nicolae tocou fundo meu coração, ele ia me
odiar agora, mas guerra estava fora de questão, e eu não ia deixar o rei fazer
como quisesse.
— Não serei sua moeda de troca. Eu escolho com que irei me casar ou
não tem negócio, se não aceitar, volte para seu castelo e espere as
consequências.
Ele olhou de um irmão para o outro e em seguida para mim e quase
cuspiu as palavras.
— E o que a garota sugere, então? Samuel? Ao que eu me lembro, era
com ele que queria noivar e eu vetei, posso oficializar o noivado
publicamente.
Meu coração se encolheu e lamentei Nicolae ter acordado uma noite
antes, não entendia o porquê, mas seu sofrimento me torturava, e no fundo eu
sentia que sua dor era grande, se ainda estivesse dormindo agora ele não
precisaria ouvir o que eu tinha a dizer, mas que o supremo me ajudasse,
Nicolae vivo e com ódio de mim seria melhor que um Nicolae morto em uma
maldita guerra, e mesmo com dor no coração, eu ia dizer, ia garantir porque
algo na ansiedade do rei me dizia que seu plano sempre foi me casar com
Samuel e nem poderia cogitar essa hipótese.
— Nenhum homem me tocará além de Tiago, não serei alugada, nem
emprestada, nem mesmo serei usada como moeda de troca para nenhum fim.
O rei apertou os olhos para mim, eu esperei com a respiração presa.
Poderia ter sido um pouco menos abusada, mas ele realmente pareceu pesar
aquilo, se tudo desse certo… Era uma chance. Ele olhou para Rael, respirou
fundo e falou pausadamente:
— Ela se casará com meu filho, será minha nora e eu não a tocarei. —
Ele então me encarou, antes de terminar: — Negócio feito? Seu sangue será
meu e seu corpo do meu filho, combinado?
Odiei-o por terminar a frase assim, Nicolae sofria do meu lado eu sentia
isso, sentia sua mão trêmula na minha cintura, seu coração acelerado e sua
respiração rápida, toquei de leve em seu braço e ele não disse nada, apenas se
manteve ali firme, eu precisava terminar aquela negociação, não tinha dito
tudo ainda que precisava e a hora era agora.
— E devolverá a encomenda dos vinte anos e as quatro do ano, eram
quatorze meninas que precisava entregar, há dois anos, e elas não foram
entregues, fará isso agora junto com as mulheres sombrias.
Ele estava vermelho, seus olhos negros e com bolsas de inchaço
estavam injetados, segurava um ódio de mim que era palpável no ar.
Fiquei com medo, estando ali ao lado dos sombrios tudo parecia mais
fácil, mas depois sozinha com ele, eu poderia ser castigada por minha
ousadia, senti o frio na barriga pelo medo que me acometia, mas me mantive
firme, agora os irmãos não mais falavam, minha vida, minha negociação,
respeitaram o direito que eles mesmo me ensinaram a exigir, agora eu exigia
e rezava mentalmente para não apanhar muito do rei quando fosse com ele e
também que os príncipes me perdoassem um dia, o rei abriu a boca para falar
e prestei atenção ao que ia sair.
— Treze meninas, uma sobreviveu esqueceu?
Ri sarcástica de sua cara de pau, apesar de já sentir minha pele arder
antecipadamente, eu ia sofrer, mas depois, agora ele não tinha as garras em
cima de mim, falei, ainda sorrindo:
— Sobreviveu e você está pegando de volta, tem que por outra no
lugar, justo, não? E entenda que as mulheres que você quer barganhar já são
deles, são da raça deles e não pertencem a você e as meninas que estou
pedindo junto na negociação, já são deles há mais de dois anos e isso é
assegurado pelo decreto do Tratado dos Párias.
Olhei para ele, esperando resposta.
— E então correto, não acha? Para não haver intriga e vingança, tem
que dar a eles o que é de direito!
Quase me escondi atrás de Nicolae de medo do olhar do rei, mais um
pouco e ele me bateria ali mesmo, mas agora depender da proteção do meu
amado príncipe teria que ser um passado, não poderia mais depender dele
para me proteger, eu escolhi isso.
— Muito bem! — o rei falou, com ódio contido. — Serão quatorze
meninas e suas quinze mulheres, voltarei aqui ao pôr do sol com elas e você
virá comigo.
Nicolae, que tinha sofrido calado com a negociação até agora, falou e
eu senti e ouvi, a ira em sua voz, era clara.:
— A cada quinze dias terá que nos deixar vê-la, uma vez apenas no
portão para sabermos que ela está bem, e uma vez ela terá direito a um dia
conosco, somando assim as duas vezes que a veremos no mês.
— Não está pedindo demais, sombrio?
Foi muito rápido, Nicolae o tinha pegado pelo colarinho e o levantado
do chão, vi os braços de Dimitri e Rael esticados, tinham em vão tentado
segurá-lo, Nicolae o manteve no ar o deixando na direção de seu rosto, as
testas quase encostando e olhando fixo nos olhos do rei ele falou entredentes
e baixo:
— Não vou falar de novo, engulo a afronta do rapto, do boicote ao
tratado e dessa negociação maldita de agora, porque é o que ela quer. — Ele
puxou o rei ainda mais perto dele e ele manteve os olhos muito abertos,
enquanto Nicolae continuou: — Mas não aceito perdê-la de vista, ou aceita o
único real benefício que teremos nessa maldita troca pela paz, ou nem se dê
ao trabalho de ser sarcástico com suas respostas, porque não terá tempo de rir
depois disso.
Rei Júlio deve ter visto algo nos olhos de Nicolae que o assustou,
porque parecia bastante impressionado.
— Tudo bem, tudo bem.
Nicolae o soltou, mas ainda ficou muito perto o encarando.
— Se não cumprir isso, pagará caro, se no dia que a vir a encontrar
ferida também pagará caro, a partir de hoje a única coisa que impedirá seu
reino imundo de cair será ela, nenhuma lei do Tratado será mais respeitada
pelos sombrios, a garantia de seu reino inteiro será apenas ela.
O rei o olhava assustado, mas recuperou a pose rapidamente.
— Recado dado? Ao pôr do sol voltarei.
Montou em seu cavalo ajudado por um soldado, e depois de colocar a
pobre mulher à frente, ele também montou e partiram a galope apressado.
Fiquei em silêncio até que se perdessem de vista, não ousei olhar para
os príncipes, mas não durou muito o silêncio.
REAÇÃO DE NICOLAE
Dimitri e Rael me olharam sérios e eu baixei a cabeça, esperando,
temendo o resultado daquilo, aquele silêncio gerava uma tensão ainda maior,
me deixava ainda mais ansiosa para saber o que diriam, não seria coisa boa,
eu sei que não.
Dimitri passou a mão nervoso pelos cabelos, olhando para mim,
confuso com o que dizer, então me olhou magoado.
— O que você fez, Dianinha?
Abri a boca para responder, mas ele balançou a cabeça e não esperou
resposta, partiu veloz para dentro da floresta, logo sumindo de vista, Nicolae
não emitiu um movimento, ainda de costas para mim manteve seu olhar na
direção que o rei tinha tomado.
Rael me olhou, indignado e preocupado.
— Tem sorte, pequena, de ser eu o líder até meu pai acordar, também
de Eva a amar como filha, assim como eu a amo, senão hoje eu te daria uma
bela lição por nos privar de te proteger.
Encolhi-me e deixei as lágrimas correrem por meu rosto, não tinha o
que dizer.
Ele me abraçou com força.
— Se não fosse culpa nossa mesmo de você ser assim, e o receio de
Eva ficar magoada comigo, Diana…
Encostei minha cabeça em seu peito, agradecida pelo abraço.
— Ficarei bem, Rael.
Nicolae havia se virado para nós, fez um aceno quase imperceptível
para Rael, quase… Logo ele também sumiu na floresta, então quando
ficamos apenas Nicolae e eu, fiquei deprimida, não sabia o que dizer e temia
o que ele tinha a me dizer também, seus olhos estavam tão tristes, tão
conflituosos.
— Nicolae, eu…
— Aqui não, temos muito para falar e pouco tempo para isso. — Me
pegou no colo, sem olhar para mim um momento. — Vamos.
Correu, veloz, sentia sua tensão, era palpável no ar, seu rosto sério e
pensativo… estava bravo comigo? Magoado? Decepcionado? Preocupado?
Tudo junto?
Com certeza era tudo junto, ainda assim, ele estava insondável, eu não
conseguia nunca interpretar Nicolae. Dimitri era explosivo, não tinha papas
na língua e tinha deixado claro que estava puto comigo, existiam dois tipos
dele, Dimitri com raiva e Dimitri tranquilo e pronto, mais nada; Rael era um
só, Rael bravo, sisudo e pronto, mas Nicolae era diferente. Calmo,
exageradamente tranquilo, quase nunca ria apenas sorria, seus olhos turquesa
eram indecifráveis.
Ainda corríamos e eu refiz um Nicolae ao pensar melhor, tinha visto
mais dele nessa última semana do que todo esses mais de dois anos ao lado
dele, e nessa sua calma, escondia um guerreiro, um homem que quando
estava possesso deixava o príncipe de lado e se tornava um caçador, mesmo
sem precisar se transformar para isso.
Paramos na beira de um lago, a mansão não estava tão perto, mas era
visível e era linda vista de longe. Nos sentamos à beira e ficamos em silêncio
por um tempo, o clima estava agradável, mas senti um pouco de frio, estava
ficando tensa com o silêncio dele, esperava vir seu sermão, dei um pulo
quando ele falou.
— Por que, Diana?
Essa eu não esperava, precisava de um sermão, precisava de seu ódio
para não querer voltar para ele, qualquer coisa, exceto aquela simples
pergunta pronunciada com tanta amargura.
— Me perdoe, Nicolae, mas não posso permitir que se machuquem,
não posso permitir que os homens levantem para uma guerra quando
deveriam estar se preparando para conquistar as mulheres que estão no reino.
De que adiantaria tanta coisa feita nesses meses, e agora a vida deles ser
posta em risco por conta da proteção de uma única pessoa? Como acha que
eu me sentiria se uma guerra acontecesse por minha culpa?
— Não contou com a possibilidade de nos consultar?
— Como eu faria isso, Nicolae? O homem estava ali, não tinha tempo
para pensar, eu só agi.
Ele levantou, exaltado, passando as duas mãos pelos cabelos, quando
ele tirou as mãos, eles voltaram a cair em seu rosto, ele soltou um longo
suspiro, eu tinha pouco tempo, não podia deixá-lo assim, tão desesperado,
levantei e me aproximei, olhando para cima para o olhar nos olhos, ele era
alto e eu nem chegava ao seu queixo direito.
Olhando para ele, eu falei, tentando passar tranquilidade:
— Vou ficar bem, Nicolae, você garantiu isso.
Ele não disse nada, se afastou de mim, me dando as costas e olhando o
lago, soltou um longo suspiro e continuou calado, eu estava ficando magoada
pela primeira vez com ele, estava agindo daquela forma comigo, como se eu
tivesse o traído e não tentando salvar sua raça.
Como ele não entendia? Preferia arriscar os poucos que sobraram dos
sombrios em outra guerra? Depois de dormirem um dia após ter acabado a da
Supremacia? Acordarem apenas para guerrear e mais nada? Não era justo
viver assim, viver apenas para lutar, ele preferia lutar a me perdoar?
Fechei os olhos com força para não deixar as lágrimas caírem, dos três
eu pensei que seria ele a me entender melhor, entender minha decisão,
entender que fiz aquilo porque eles eram tudo o que eu tinha na vida, ia
quebrar aquele maldito silêncio.
— Nicolae, não sei o que se passa em sua cabeça agora, sei que está
bravo…
Ele virou em fúria, me cortando aos gritos.
— Estou bravo? Estou possesso, Diana! Possesso!
Doeu-me ver sua reação aos gritos, não segurei mais as lágrimas que
escorreram livres, Nicolae estava magoado e eu o entendia, mas não
compreendia sua reação naquele momento, era uma pessoa apenas para pôr
em risco um reino, ele não entendia a maldita injustiça?
Ele estalou a língua em desagrado e eu senti seu braço ao meu redor e
então desabei, chorei com o rosto escondido em seu peito, ele levantou meu
queixo e respirou fundo, puxando meu rosto para o dele, chegando tão perto
que achei por um momento que ele me beijaria e meu coração disparou, mas
ele parou bem próximo e fechou os olhos.
— Me desculpe — disse ele, falando com dificuldade, estava a todo
custo tentando recuperar a calma, tentando me dizer o que se passava em sua
cabeça. — Não sei o que fazer, tenho medo, estou em conflito comigo
mesmo, te ensinei sobre ter o direito a decidir sobre sua vida, mas agora estou
apavorado, não poderei te proteger. — Ele suspirou, nervoso. — Por que
entra nessas confusões, pequena? Por que não me deixa proteger você? Por
que me priva de te ver bem? Quer me deixar maluco?
— Ele não irá me machucar, Nicolae.
— Como pode ter certeza? — Ele novamente parou e falou baixo: —
Não é medo disso.
Ele soltou o ar, senti seu hálito de menta, senti um frio no estômago
com aquela proximidade, ele continuou falando de olhos fechados, e eu
agradeci por isso, olhar em seus olhos agora não me ajudaria muito a acalmar
minha ansiedade.
— Isso ele não fará, ele sabe que falei sério, não deixo um vivo naquele
reino se a machucarem.
— Medo do que, então?
— Pequena, se você se casar com Tiago, ele poderá não ter paciência
com seus traumas, e um dia ele poderá perder a calma com sua aversão a esse
tipo de relação, e tentar te forçar a aceitá-lo. Poderá se sentir no direito de a
tomar, e como irá se proteger disso estando lá, sozinha?
Fechei meus olhos e sorri, triste. Era isso, seu medo era isso, eu estando
lá, ele não poderia me proteger, e então entendi que a visão que ele teve
naquela noite na fuga do reino mexeu mais com ele do que dizia, o marcou
mais do que admitia.
Segurei seu rosto e o fiz olhar para mim.
— Não se preocupe, arrumarei um jeito de lidar com Tiago, não sei
como, mas arrumarei um meio.
Ficou um tempo olhando para mim, pensativo, com seus olhos em
conflito parecendo pensar no que fazer, fiquei firme, esperando o que ele
faria, mas sentia uma vontade poderosa de acabar com aquela mínima
distância dos nossos lábios, saber como seria seu beijo e vê-lo se negar
porque me tinha como sua garotinha e não me via como mulher. Não tive
coragem, não suportaria sua rejeição. Continuei quieta esperando-o falar algo,
mas ele não disse nada, sentou e me puxou junto com ele, fiquei sentada no
vão de suas pernas, me encostei ao seu peito e fiquei olhando o lago por um
bom tempo, mas não podíamos ficar ali para sempre, ele poderia tentar me
fazer esquecer de ir, mas eu não ia desistir de tentar evitar essa guerra.
— Vamos para a casa, Nicolae, quero ficar um pouquinho com eles
antes de partir.
Ouvi seu suspiro, mas não disse nada dessa vez, me pegou pela mão e
seguimos em silêncio pela pouca distância até a mansão.
Ele seguiu quieto ao meu lado, ainda segurando minha mão, eu não
queria manter o silêncio e nem podia.
— Agora chegarão vinte e nove mulheres, Nicolae.
— Sim, pequena, é um número expressivo — ele respondeu,
automático, tentando voltar ao seu jeito de sempre, voltava a falar tranquilo,
esquecendo sua entrega há pouco, levantando seu muro de calma, que agora
eu sabia que não era tão forte assim.
Nicolae tinha suas batalhas internas para travar, assim como eu
começava a ter minhas, e temia perder a batalha. Agora que tudo isso
aflorava em mim com tanta intensidade, inclusive, aquela maldita curiosidade
que eu sabia que era ciúme, não sabia o porquê, mas senti receio de sua
atenção ir para outra mulher, talvez eu ainda fosse infantil o suficiente para
não querer perder meu lugar de protegida dele, para ser egoísta e não querer
dividi-lo.
— Elas são casadas já?
Ele olhou para mim.
— As sombrias? Não, nem todas, acho que umas três ainda não se
uniram.
Não respondi, mas a matemática me parecia amarga, Nicolae teria
dezessete mulheres para cortejar.
— Nicolae?
— Está ansiosa de novo, já te disse, pequena, não tenha receio de me
perguntar nada.
Torci a boca sem ele ver, fácil ele falar, difícil era eu conseguir fazer,
ainda mais porque eu sentia que ainda estava bravo, apenas tentava a todo
custo me esconder isso.
— Você pretende cortejar algumas delas?
— Não.
— Não?
— Não.
Revirei os olhos, ele podia dizer mais que isso, era importante para
mim. Como se soubesse que eu precisava de mais que aquilo ele falou,
olhando fixo no horizonte, enquanto caminhávamos quase chegando à
estradinha de terra da vila.
— Não posso cortejar nenhuma mulher, Diana.
— Mas você disse que não tinha companheira. É viúvo? Ela morreu na
guerra da Supremacia?
— Não, nunca tive companheira e não tenho interesse em nenhuma.
Fiquei em silêncio, um pouco sentida com o que ele disse, o que eu
queria, afinal? Ele merecia ser feliz, era direito dele encontrar sua amada,
assim como Rael encontrou, afinal, ele não poderia ficar para sempre me
protegendo, mas, ainda assim, pensar nisso estava ficando cada vez mais
doloroso.
CONSELHOS

Depois que chegamos, fui ver Eva, ela me segurou as duas mãos. Tinha
chorado, minha querida Eva, Nicolae aproveitou isso para sumir, não o vi
mais quando olhei para o lado que ele estava. Eva começou a falar:
— É isso mesmo que quer, querida? Acha que evitará uma guerra?
Não, querida, não evitará, apenas adiará uma, mas entendo você e só rezo
para que não encontre tantos espinhos por esse caminho que escolheu.
Senti uma grande vontade de chorar, mas me segurei, a abracei em
silêncio, grata por, pelo menos, alguém me entender, logo subi para arrumar
minhas coisas e, não demorou nada, bateram à porta. Era André e eu sorri,
lhe incentivando a entrar.
Ele estava preocupado.
— Quando eu disse que os problemas eram seus seguidores fiéis, você
não acreditou.
Não pude deixar de rir, mesmo em meio àquela merda toda que eu
estava fazendo, ainda se podia rir da própria desgraça.
André se sentou na cama e olhou as mãos.
— Não quero que vá, mas se vai, quero que leve em conta uma
conversa que ouvi, menina, lembra quando disse que Samuel era pior do que
você imaginava?
Assenti e me sentei ao seu lado e ele continuou:
— Não sei o que significa, mas ouvi Samuel dando ordens para que
colocassem guardas de sua escolha no território dos leviatãs, e só podiam
mudar os guardas por outros que estavam em uma lista escrita por ele.
Franzi o cenho, que interesse Samuel poderia ter naquele lugar? Quase
uma prisão de tamanhos dantescos, mas recheado de leviatãs quase
irracionais.
— André, mas isso poderia fazer parte do ofício dele, não? Talvez não
seja nada de mais.
— Penso nisso direto, mas ele não se intrometeria em uma troca de
guarda, uma coisa tão banal, se fez isso, tem algo aí.
Era verdade, ele não me parecia o tipo de homem que se preocuparia
com isso, destinaria alguns soldados de patentes menores para essa função,
ainda assim, me pareceu algo rotineiro.
— Tem outra coisa, Diana, o rei tem mais amor por Samuel do que por
Tiago, seu filho, prova disso são esses excessos de cargos que conseguiu
rapidamente, sei disso por outra parcela de conversa que ouvi dele com um
guarda que parece ser fiel a ele, eles estavam falando sobre o alto cargo e
então o guarda disse que Samuel era um homem de sorte pelo carinho tão
grande do rei por ele, chegando a amá-lo mais do que amava o próprio filho.
Isso era estanho e não me pareceu tão sem importância assim, afinal
Samuel com essa influência poderia fazer muitas coisas ruins sem ser punido,
mas então me lembrei do baile.
— Mas então por que ele vetou o noivado de Samuel e deu a seu filho o
direito de me cortejar?
— Esse é o problema, eu vi uma cena um tanto interessante quando
surgiu os comentários de seu noivado, dois dias antes do baile eu subi para
entregar as contas que Tiago prepara para o rei, é Tiago que faz o inventário
mensal dos cofres do rei e nesse dia eu precisava entregar nos aposentos dele,
a porta estava aberta e eu entrei como costume, para deixar o envelope na
mesa para que ele olhasse depois, entrei na saleta e percebi que havia
movimento no quarto e me virei. Samuel estava ali discutindo baixo com o
rei e só pude ouvir duas frases, antes de me notarem. O rei dizia que não o
queria com você, que não era esse o combinado e então Samuel respondeu
que era apenas negócios e que não iria decepcioná-lo, pareciam muito
próximos realmente, por isso acho que é verdade de ele ter o Samuel em mais
alta conta que o próprio filho. — Ele olhou para mim. — Tome cuidado,
Samuel tem mais poder do que pensa.
— Falou isso com Tiago?
— Não, os dois já se odeiam, porque Tiago sente a animosidade entre
eles, mas não sabe o motivo de Samuel o odiar. Eu sei, Tiago não se deixa
influenciar por Samuel, e Samuel por conta disso o trata como inimigo,
porque se sente superior a Tiago.
Isso explicava aquela troca de olhares de cima um do outro.
— Guarde para você, Tiago não tem por que saber isso, ele já tem os
problemas dele para pensar, só não subestime Samuel.
— Não direi nada, obrigada por me contar.
Ele assentiu, se levantando, e depois de me cumprimentar com um
aceno de cabeça, saiu fechando a porta e eu fiquei sozinha novamente.
Depois de me trocar, acabei por decidir que não levaria nada dali, ia
deixar tudo para que minhas lembranças do reino sombrio fossem menores
possíveis, ter o cheiro deles comigo de alguma forma seria me torturar.
Deitei-me de costas na cama, olhando o teto de mente vazia. Não
conseguia prever nada do que aconteceria comigo, nem imaginar como o rei
beberia meu sangue, torci o nariz em asco ao imaginá-lo mordendo meu
pescoço, mas ele não tinha presas então como é que ele faria?
Eram tantas perguntas, olhei pela janela e o sol já estava baixo, estava
chegando a hora.
Ainda tinha algum tempo e não me mexi, não senti vontade de sair
daquela cama, ouvi a voz agradável de Rael.
— Posso entrar?
Sorri e ele entrou retribuindo o sorriso e se sentando ao meu lado.
— Realmente gostaria de conversar muitas coisas com você, filha, mas
não acredito que vá adiantar.
Eu também não queria falar sobre minha partida breve, então para
quebrar o clima, comecei pela pergunta esquecida.
— O que fez com o traidor que envenenou a bebida de Eva?
Ele não me olhou, apertou os olhos, olhando a porta.
— Nada que seja bonito para contar, mas vivo ele não ficou —
continuou, ainda concentrado na porta e segurando minha mão. Ele esperava
comigo o momento chegar, talvez Nicolae estivesse com muita raiva de mim
para fazer isso.
— Rael, posso fazer uma pergunta?
Sem tirar os olhos pensativos da porta, ele respondeu:
— Claro que pode, sempre pode perguntar o que quiser, filha.
— Quando descobriu que amava Eva? — Ele finalmente olhou para
mim.
— É a pergunta correta?
Estranhei aquilo, havia mais maneiras de perguntar isso? Mas não
imaginei outro jeito de perguntar, então fiquei com a primeira opção.
— Quer saber como ou quando eu descobri?
— Os dois, se não se importa.
— Não me importo, se me prometer uma coisa.
— Prometo.
— Muito bem. Quando eu contar, te farei uma pergunta e quero que me
responda com sinceridade.
— Não tenho nada a esconder, prometo que responderei.
Ele se virou na cama, ficando de frente para mim.
— Quando Eva chegou, eu não tinha muito tempo para nada, vivia na
ronda com meus irmãos, na caça de alimentos, não havia ainda muitos
humanos no reino sombrio, o Tratado havia sido decretado e Eva nos foi
enviada com mais duas meninas. Mas uma não aguentou e morreu tempos
depois por conta da anemia profunda em que se encontrava e a outra tinha um
problema no pulmão e não durou mais que a outra, a mistura nunca antes foi
usada e você era a primeira que sabíamos, claro que como Dimitri é um
idiota, já havia transformado um humano e não sabíamos.
Abri muito os olhos de susto.
— Você sabia que era ele?
Ele me olhou torto.
— Sabia e também sei que você escondeu isso, finjo que não sei porque
querendo ou não isso foi importante para o futuro, graças a isso você está
aqui hoje e André é um bom homem, soube usar bem essa dádiva, ele me
contou e pediu que eu não castigasse Dimitri, disse que não o faria se ele
mantivesse a farsa, dizendo que não havia me contado nada e a senhorita
também não conte a Dimitri que eu sei, deixe-o se atormentar de medo de eu
descobrir e o castigar. Assim ele evita fazer mais idiotices, e eu tendo que
admitir que saiba, terei que castigar vocês dois, ele por ser idiota e você por
incentivá-lo a continuar sendo um.
Ele piscou sério para mim e eu ri, Dimitri com medo e Rael já saber era
até engraçado, ele continuou contando sobre Eva.
— Por dois anos, quase não fiquei no reino, demorou para que o
Tratado fosse realmente respeitado pelos licans, nesse tempo ausente Eva
cresceu normalmente, era uma criança como você quando chegou.
“Só depois que o Supremo Alfa foi substituído depois de morto por um
poderoso Alfa que não concordava com a maneira que ele estava cuidando
das matilhas, foi que as coisas se acalmaram, e pude então ficar mais tempo
no reino.
— Você então a conheceu e amou assim, do nada? Ou foi construindo
o amor aos poucos?
— Só amamos uma vez, Diana, não somos polígamos, somos
monogâmicos e amei assim que a olhei com atenção.
— Mas se acontecesse de a companheira morrer, o que acontece com o
sombrio?
— No nosso caso, se a companheira morre, o vínculo se desfaz, então
sim pode acontecer de amarmos novamente, mas isso leva muitos anos
mesmo, porque o sentimento tem que renascer junto com a alma, até isso
acontecer ficamos mortos para o sentimento, não nos interessamos por outras
mulheres, não sentimentalmente, é como uma coisa morta realmente. — Rael
me olhou profundamente, parecendo olhar dentro de mim, vendo minha alma.
— Então, quando a amei foi imediato, necessitava olhar para ela de frente e
isso aconteceu em uma trombada pelo corredor, ela me olhou nos olhos e
veio tudo fortemente até para meu próprio bem, só que ela não sabia ainda,
ela correspondeu, mas não tinha ideia que o fazia, ainda não estava pronta
para mim e então tive que esperar.
— Sofreu quando ela se casou?
— Senti dor, inveja do homem que a teria nos braços naquele
momento, mas é um amor por vez, Diana, se eu tivesse me precipitado, ela
teria vindo a mim sem estar pronta.
— E se ela não te escolhesse, Rael, por várias vezes não o escolhesse?
Ele novamente sorriu para mim, achei Rael muito risonho e, com
certeza, era por estar finalmente ao lado de Eva.
— Sabe, por isso perguntei a você, como e quando, são perguntas
diferentes, quando foi? No mesmo momento que me viu, e como, aos poucos.
— Então Eva o amou também quando o viu? Que explicação mais
estranha.
— Sim, Diana, ela correspondeu, e quando ela decidiu casar, eu ativei o
sigilo para poder ter mais calma com a espera.
— Com um beijo?
— Não, um beijo seria errado, precisa se ter muita disciplina para se
deixar ir, e mais ainda para não prender, temos a impulsão. Se fizermos isso,
prendemos, quem ama de verdade não faz isso, filha, e quem toma a
iniciativa é ela, sempre ela, lembre-se disso.
— Mas e se ela o beijasse e você não soubesse se ela estaria pronta, o
que faria?
— Depende da situação, eu teria que conhecer os motivos dela para não
estar pronta, nunca uma situação é igual à outra, mas ainda insisto, que é a
mulher que toma iniciativa em nossos costumes nunca o homem, isso é
importante.
Franzi o cenho, parecia mais um conselho do que uma resposta, mas
estava curiosa para saber como.
— Mas então, como fazem para garantir isso de calma?
Rael passou a mão pelo meu rosto com carinho.
— Uma frase simples, pode nem ser nada de mais essa frase, mas o
sombrio sabe o significado de cada palavra que proferir, e por vezes é para
garantir a segurança também, mas é uma faca de dois gumes, o sentimento
fica mais forte nesse momento.
Abri os olhos maravilhada.
— Sério? Você iria dizer essa frase para ela quando? Quando ela
acordou? Quando descobriu que a amava?
— Não, Diana, eu disse a frase no dia de seu casamento, eu não me
importaria com a espera por ela, mas os sombrios não são bonzinhos,
marcamos egoisticamente nosso território e então é nosso, mesmo que
tenhamos que esperar o que é nosso decidir se entregar por livre e espontânea
vontade, e às vezes esse nosso pode ser bem teimoso. — Ele riu.
— Bonito! — Eu ri, Rael ficava empolgado quando falava de Eva, ele
olhou para mim com uma meia-lua nos lábios.
— E sem perguntas agora, mas há um motivo para o selo também, é
mais como uma garantia de nunca perder quem ama, de poder sentir sua alma
intacta mesmo de longe, nunca se sabe, mas agora a minha pergunta. Desde
quando voltou do reino Humanis está aflita, diferente, mais ansiosa e sei que
não foi pelo ataque que você sofreu. Se descobriu mulher, não foi? Deixou a
menina de lado, não é, pequena?
— Nicolae já me disse isso, é que ando tendo um pensamento que não
tinha antes.
— Anda desconfortável perto de algum de nós?
Ele sabia. Fiquei vermelha, envergonhada, não estava pronta para abrir
meu coração, nem eu sabia se era algo importante, apenas mais intenso que
antes, mas isso não queria dizer nada, ou queria? Ele esperava resposta,
analisando minha reação.
— Você disse uma pergunta, Rael, não vale! Com essa já são duas.
Ele piscou para mim.
— Mas ainda faltam algumas coisas em você, filha, precisa se conhecer
um pouco mais, aí sim entenderá o que digo. Uma coisa ruim dessa
transformação é que se cobra demais a idade física que aparenta, mas se
esquece da idade que está aqui. — Ele botou a mão no meu peito em cima do
meu coração e me sorriu paternal ao dizer: — E não precisa me dizer se não
quiser, mas não esqueça que tenho experiência com mulheres que
desconhecem o que sentem de verdade.
Quando entendi o que ele disse, não me deixou responder, tinha
chegado a hora.
DOLOROSAS DESPEDIDAS
Segui em silêncio até a sala, Eva e André estavam me esperando,
Nicolae e Dimitri não estavam ali.
Abracei Eva e fiquei ouvindo suas palavras sussurradas de carinho e
conforto. Saí chorosa da mansão, Nicolae nos esperava lá fora com os
cavalos, não vi Dimitri em parte alguma e me deprimi ainda mais, montamos
e seguimos em silêncio sem conversa, Nicolae ia à frente, corpo rígido estava
tenso, ele sofria e eu me senti miserável, me sentia cada vez mais abatida
conforme chegávamos ao limite imaginário dos territórios, logo vi Dimitri
parado lá nos esperando, Rael e Nicolae estavam tensos, mas o rei ainda não
tinha dado as caras.
Desci do cavalo e fui até Dimitri e o abracei, mesmo ele emburrado não
me afastou, mas deixou os braços caídos, e ficou parado.
— Vou sentir muito sua falta, Dimitri.
Ele me abraçou de volta.
— Se eles te ferirem, nunca mais irei perdoá-la, porque você procurou
isso.
Afundou a cabeça nos meus cabelos e me apertou ainda mais forte.
— Vai me quebrar os ossos mesmo?
— Ainda estou bravo, não reclame.
Eu ri e o apertei com mais força, Dimitri, o meu irmão e confidente,
torci a boca, nem tão confidente assim, não tive coragem de falar sobre as
coisas que andava pensando ultimamente.
— Amo você, Dianinha, quando descobrirmos um meio de tirar você
de lá sem quebrar nossa palavra, esteja inteira.
— Prometo.
Abracei Rael que me puxou para seu peito.
— Você é minha filha, e de Eva também, não nos mate de desgosto,
adotei você e mesmo que não tivesse feito, mesmo que o sangue fosse de
meus irmãos, sempre a verei como filha.
— Também amo vocês, e os tenho como família, como pai e mãe que
eu nunca tive realmente.
Rael me soltou e eu abracei André.
— Ainda vou querer conhecer sua filha um dia.
Ele riu.
— E eu faço questão que a conheça. — Ele parou de rir e falou sério e
baixo. — Menina, me escute, não fale com os criados sobre nada, não confie
em ninguém.
Assenti e assim que nos soltamos ele sumiu pelo mato, eu sabia que era
por causa do rei, não queria ser visto por ele e era bom mesmo, reviver
lembranças ruins não era uma boa ideia, apenas eu era tão idiota para fazer o
caminho reverso.
Ele ficaria esperando com as carroças mais à frente, Dimitri já tinha
cuidado disso, André apenas não queria ficar ali e ajudaria Rael quando ele
chegasse até as carroças prontas para levar as mulheres ao reino.
Logo o rei apontava ao longe, atrás dele vinha uma carroça grande
cheia de mulheres e meninas, todas apertadas.
Nicolae me abraçou com força, com posse e ali ficou, mesmo com
aquele gesto ele não tinha me perdoado, eu sentia, ainda assim fiquei
abraçada a ele, meu coração disparado vendo o maldito rei se aproximar, não
demorou muito e ele parou, dessa vez não desceu do cavalo e reparei que ele
havia trazido mais homens dessa vez.
— Aqui estão todas — disse ele, nos olhando fixamente.
As mulheres desciam, e as meninas que já tinham pulado as ajudavam,
estavam em estado lamentável, havia mesmo vinte e nove mulheres ali,
quando todas desceram andaram apressadas em nossa direção.
Rael sem dizer nada seguiu a estrada de volta carregando uma das
sombrias que parecia realmente em estado grave de desnutrição, e as outras
seguiram em silêncio atrás dele.
Dimitri ajudava outra moça, eu não soube se era sombria ou não, e
assim a parte do rei estava feita.
— Venha, garota, sua vez.
Nicolae me virou para ele e enterrou a cabeça em meu pescoço, me
abraçando forte, me segurou firme perto dele e ficou um tempo parado, só
então ele falou muito baixo e eu não entendi suas palavras e após seu peito
subir e descer rapidamente, como se um momento importante tivesse
chegado, ele falou um pouco mais alto na direção do meu ouvido.
— Vou esperar você pela eternidade. — Ele abaixou ainda a mais voz.
— Não esqueça isso.
Solto-me e se afastou dois passos com os olhos fixos em mim, como se
pedisse de maneira silenciosa que eu reconsiderasse minha decisão, mas eu
não podia.
Sem conseguir mais ver sua angústia, eu me virei automaticamente,
perdida, agora que a hora tinha chegado eu não queria ir, que a guerra
explodisse e tudo isso acabasse. Mas mesmo pensando assim, eu dava passos
em direção ao rei, porque sentia que isso era o certo a fazer, tinha na cabeça
um turbilhão.
Outro passo e novamente o arrependimento e medo, os sombrios
podiam pegar as mulheres e saírem correndo, sem cumprir o trato e então eu
voltaria com eles, mas eram pensamentos apenas, não podia fazer isso.
A cada passo que eu dava na direção do rei, meus olhos reclamavam,
quando me aproximei, estava lavada em lágrimas.
Subi no cavalo que me foi entregue e partimos, por duas vezes olhei
para trás e Nicolae estava lá parado me vendo ir embora. Eu o feri, o
decepcionei e ele ainda no fim de tudo disse que me esperaria, novamente
senti meu nariz arder.
Virei pela terceira vez, mas já estávamos longe e ele já tinha sumido.
Tudo o que me restava agora era focar na certeza de que eu estava
fazendo a coisa certa para salvar a raça que me salvou no passado.
Continua...

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