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DOS
PÁRIAS
Príncipe Caçador
Parte 1
Copyright©/ 2016/ Tratado dos Párias- Príncipe Caçador
Livro registrado.
Todos os direitos reservados
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Quase amanhecendo…
Minha ansiedade era tanta, que passei a noite acordada, pois esperava
por esse dia há dois anos.
Quando amanhecer, finalmente poderei começar minha busca pela
verdade, e o meu primeiro alvo nessa investigação será um assassino muito
cruel, que por uma irônica necessidade… é meu futuro noivo.
Tive sorte por ele não me reconhecer ou desconfiar de quem eu era de
verdade, no entanto, eu sabia tudo sobre ele, tudo o que ele fez, pois eu nunca
esqueci nenhum detalhe daquele funesto dia…
Acordei com o sol em meu rosto. O excesso de luz feriu meus olhos e
instintivamente levantei a mão para protegê-los.
Logo as cortinas foram cerradas, o tecido claro e grosso deixou uma
penumbra agradável no quarto e com isso pude ver melhor onde estava e a
senhora que estava ali.
Ao ver que eu a observava, ela me ofereceu um sorriso amigável
enquanto arrumava as coisas. — Olá, menina, finalmente acordou. Sabe por
quanto tempo está nessa cama?
Balancei a cabeça negativamente, eu não sentia nenhuma simpatia por
aquele rosto amistoso e cheio. Sentia apenas medo de seus olhos castanhos e
gentis, tinha receio de suas mãos gordinhas e hábeis que arrumavam a
refeição na bandeja enquanto ela falava comigo.
— Você delirou por vários dias em febre, depois mais alguns dias por
trauma pelo que passou e, por fim, delirou pelo remédio que lhe foi dado. Ele
mexeu com seu corpo e isso judiou de você, mas foi o que te salvou a vida.
Somando tudo… Já está nessa cama há uns dez dias.
Eu não sabia o que pensar, nem como interpretar isso, estava com medo
vazando pelos meus poros. Não tinha sido trazida da floresta para a morte, o
que era óbvio, e não estava entre pessoas tão más, mas eu não confiava em
ninguém, não mais, não poderia me dar ao luxo de confiar.
Tinha visto o que um adulto mais forte podia fazer com os mais fracos
e isso bloqueava minha coragem, mas estava maluca para saber quem eram
eles, por que me salvaram, e o pior... o que eu teria que fazer e ao que teria
que me submeter para pagar essa dívida.
Eu tinha então quinze anos, mas não era idiota. Uma dívida com os
mais abastados seria certamente escravidão, teria que pagar com o suor do
meu trabalho ou talvez, com o corpo...
O grau de minha família era um acima dos escravos, só isso já era
suficiente para todos da minha casta saber que dever aos de grau mais
elevado, seria perder a liberdade.
Meus pais tinham me mandado ao templo da sacerdotisa para ser
preparada para o meu futuro. Ali eu saberia qual o meu destino e quase
nenhum deles era muito almejado. Pessoas da minha casta não tinham para
onde correr e menos ainda podiam escolher.
Poderia me tornar uma cortesã de renome se o leilão de minha
virgindade rendesse um dinheiro alto ao dono da casa de diversão, ou então
uma simples escrava dos senhores. Uma sacerdotisa aprendiz, se eu tivesse
muita sorte. Até mesmo um casamento arranjado poderia acontecer e com
muito, muito azar mesmo, eu seria exilada, virando então uma prostituta de
beira de estrada, mais especificamente, a Estrada dos viajantes.
O cruel é que esse era um dos destinos mais comuns. Mesmo se eu
conseguisse outro além desse, qualquer um dos meus donos ou mesmo
marido, poderia me expulsar do reino se sua casta fosse mais alta.
No templo da sacerdotisa era um destino incerto, mas nesse quarto eu já
sabia meu futuro, devia minha vida a alguém com posses e essa dívida seria
cobrada assim que eu estivesse saudável novamente.
Respirei fundo e me toquei que tinha me perdido em meus
pensamentos.
A senhora estava com a bandeja na mão e me olhava com curiosidade,
me encolhi de medo, não tinha dado atenção a ela e isso poderia ter
consequências. Ela colocou a bandeja em meu colo e me deu um sorriso
enviesado, sentando-se na cama.
— Sei que tem medo, e ouvi a conversa de meus senhores sobre o
ocorrido no templo. Você veio de lá, não foi?
Eu afirmei com a cabeça.
— Pelo seu olhar ansioso, você imagina que terá que pagar pelos
cuidados que recebeu aqui, não é mesmo?
Novamente afirmei, devagar, ela levantou a mão e eu me encolhi, então
ela acariciou uma mecha de meus cabelos.
— Não somos de sua cidade, menina, nem somos baseados pela regra
de seu monge cristão. Temos nossas regras aqui e nossa cidade é guiada pelos
meus senhores. Somos impérios diferentes, inclusive, hostis um com outro.
Ela se levantou e bateu no avental para alisar os vincos. — Mas agora
chega de conversa, coma devagar e mastigue pequenas porções, está de
estômago vazio há muito tempo. Pode ser que sinta aversão a comida, mas
precisa comer tudo.
Ela me olhou com firmeza por cima de seus óculos pequenos e
redondos, deixando seus grandes olhos castanhos ainda maiores, falou com
autoridade:
— Coma tudo. Isso é uma ordem.
Voltei os olhos para baixo, era uma ordem e eu sabia o que acontecia
aos rebeldes, ali poderia ser outra cidade, mas com certeza o tratamento aos
escravos era igual em qualquer lugar.
Ela se dirigiu a enorme porta de carvalho e se virou antes de sair. —
Não levante da cama até eu voltar, não vai saber lidar com sua mudança e vai
precisar de minha orientação.
Assim ela saiu, fechando a porta e me dando privacidade. Era uma
coisa estranha o que ela tinha dito, será que por causa de tanta febre meu
rosto mudou? Derreteu ou ficou marcado?
Não importava agora, o jeito era obedecer, a bandeja não era sortida,
mas tudo que estava ali tinha um cheiro agradável, torci o nariz para a terrina
de sopa, agradável demais para meu gosto, mas tinha que comer. A senhora
tinha mandado.
Levei a colher à boca, o gosto era bom, ainda assim, não parecia
comida para mim, era como comer areia temperada apenas para dar sabor. O
pão preto tinha cheiro agradável, mas a sensação era a mesma. Bebi o suco de
uvas e esse foi o mais gostoso de tudo que estava ali.
Uma sensação estranha passou pela minha cabeça, tinha comido mal a
vida inteira com meus irmãos e ali estava uma refeição digna de senhores e
eu não sentia nada demais ao comer, parecia apenas um animal comendo por
instinto de sobrevivência, sabendo que meu corpo precisaria daquilo.
Meu estômago estava insensível como se dormisse. Levei a mão ao
local do ferimento, a lâmina devia ter mexido com algo dentro de mim.
Talvez tivesse matado meu estômago. Meu pai sempre dizia que o coração e
o estômago eram coisinhas exigentes.
O estômago era uma máquina viva que alimentava o corpo e o coração
uma máquina viva que alimentava a alma.
Tinha terminado de comer tudo e como não podia sair da cama, passei
a dormitar sentada. O alimento trabalhava dentro de mim e a nutrição me
fazia querer hibernar, só não me entregava totalmente ao sono por medo de
derrubar algo e quebrar, e assim enfurecer a senhora.
Assim que escutei o barulho de passos fiquei desperta e com o coração
acelerado, dei uma rápida olhada na bandeja, não podia ter deixado nada sem
comer. Ordem era ordem. Ela logo entrou com agilidade, fechou a porta e
sorriu ao ver a bandeja.
— Comeu tudo. Muito bem. — Ela me avaliou atentamente. — E vejo
que isso foi demais para você, precisa descansar mais um pouco antes de sair
da cama.
Tirou a bandeja de meu colo, colocando no chão, me ajudou a me deitar
novamente e então me cobriu.
Eu queria dizer obrigada por tudo, prometer que seria a melhor das
servas, mas nenhum som saía, então apenas fechei os olhos e me deixei levar
pelo sono.
Não sei quanto tempo dormi, mas despertei com uma sensação de
alerta.
Havia duas vozes distintas no quarto. Da senhora e um homem.
Não me mexi, nem poderia, na verdade, pois estava paralisada. O medo
gelava meus ossos e fazia meu coração ganhar vida própria.
Um homem, um estranho, e eu estava em suas mãos. Fechei os olhos e
tentei respirar fundo para me acalmar, meu coração parecia que estava
arrumando as malas, não demoraria e ele sairia correndo pela minha boca, se
ao menos ele saísse logo e fizesse menos barulho… Cada batida parecia
vibrar por todo o meu corpo, tão rápido que eu me sentia chacoalhar.
Mantive os olhos fechados. Queria desesperadamente que o homem
fosse embora. Sabia que teria que encará-lo mais cedo ou mais tarde, mas sua
voz rouca e masculina me trazia as lembranças dos gemidos de Samuel
insistindo em me lembrar da crueldade e força que um homem podia ter.
— Ela dormiu assim que se alimentou.
— Trouxe algo leve a ela, como foi pedido?
— Sim, apenas sopa de legumes sem nenhum tipo de carne, pão e suco.
— Viu se ela rejeitou a comida?
— Não me pareceu tão empolgada para uma menina que praticamente
não se alimentava há dias.
— Isso não é bom. E o suco, Eva?
— Preparei como foi mandado, diluí com três quartos do sumo, apenas
para a nutri-la, suprindo as novas necessidades do corpo.
— Muito bom! E ela falou algo?
— Nada, nem uma palavra, entretanto, afirmou que veio do templo,
quando perguntei.
Ouvi seu suspiro, ele parecia cansado. Relaxei um pouco quando
aquietaram, mas não demorou muito o silêncio e agora a voz parecia mais
próxima.
— Pobre menina. O que fizeram... Três delas violadas cruelmente pela
frente e por trás, e outras quatro totalmente feridas por baixo. Já a analisou,
Eva?
— Ela não foi tocada.
— Então acho que ela foi atacada pelo agressor gentil. Havia dois
distintos, um cruel e sanguinário e outro, ao que parece, apenas cumprindo
ordens, dando uma punhalada limpa e mais nada e essa menina prova isso.
Precisamos de informações e nossa única pista é ela. Somente ela poderá nos
dizer o que realmente aconteceu naquele celeiro.
Ao ouvir isso, senti meu corpo amolecer de puro terror, ele viria direto
até obter respostas e eu não saberia como responder, não tinha conseguido
soltar um som sequer desde o templo. Também não era letrada, então nem
poderia escrever, e se me torturasse, eu apenas morreria sem poder dizer o
que ele queria.
— Ela dorme, acho que ainda está cansada.
— Não, Eva. Essa menina está traumatizada. Está acordada e lúcida.
Ouço seu coração acelerar sempre que escuta minha voz e se acalmar quando
escuta a sua.
Isso era estranho, ele sabia que sua voz me apavorava e como ele
conseguia escutar meu coração de onde estava? Que audição desmedida era
essa?
Se tivesse como, meu medo poderia ter aumentado, mas não tinha mais
espaço,
estava no meu limite. Senti a cama afundar de um lado e do outro. À minha
frente era a senhora Eva, então às minhas costas só podia ser o homem
estranho, eu ouvia sua respiração ao longe e me arrepiei. Poderia ser no meu
pescoço, como fez Samuel com as meninas, fiquei atenta, o coração
disparado com a aproximação.
— Mudou muito? — ele perguntou baixo.
— Completamente.
Se eu não estivesse tão apavorada, poderia até ficar curiosa, porém, o
medo do homem me fazia perder a razão. Não poderia ofendê-lo, mas era
mais forte que eu, quando senti sua mão em meu ombro, o instinto se atiçou.
Não havia saída, apenas Eva à minha frente, então pulei e me agarrei a
ela como uma tábua de salvação. Sabia que ela não poderia me ajudar, que se
fosse ordenado, teria que sair do quarto e me deixar a sós com ele. Ainda
assim, enfiei o rosto em seu peito e me encolhi em seu corpo, me encolhi
mais quando senti seus braços gordinhos me amparar.
— O que faremos? Ela está fora de si.
Eu sabia a resposta, ele mandaria me recompor e parar com isso ou
levaria uma surra de chicote.
— Não faremos nada por agora, ela precisa de tempo. Todos os tipos de
hormônios já passaram por ela junto com a febre. Agora precisa ser lavada e
a roupa de cama trocada.
— Sinto muito. Não foi desleixo meu. O senhor Rael disse para não
mexer com ela, até que estivesse lúcida.
— Que bom que você o escutou, senão estaríamos com problemas
maiores agora. Já pode cuidar disso. Eva?
— Sim?
— Já sabe que vai ter que nos ajudar com isso, não é? Não temos
experiência com essas coisas.
— Sim, senhor. Pode contar comigo.
— Vou me retirar e amanhã traremos outra criada para não te
sobrecarregar. Isso te tomará muito tempo.
— Obrigada.
Quando ouvi o barulho da porta abrindo e fechando em seguida,
consegui relaxar. Não sabia o que me aguardava por minha atitude, mas de
Eva eu não tinha tanto medo mais, ela foi gentil.
— Precisa controlar esse medo, menina. O senhor Dimitri não é mau.
Pode parecer severo às vezes, mas é apenas isso. Poderia gostar muito dele,
se o conhecesse melhor, toda essa seriedade hoje é por conta da preocupação
com o ocorrido e apenas isso.
Mantive a cabeça baixa, estava envergonhada e receosa, mas também
pensativa. Ele realmente pareceu gentil, não tratou Eva mal, pediu sua ajuda
sem ordenar que fizesse e ainda ia trazer ajuda para não a sobrecarregar.
Em outros tempos, isso teria dito muita coisa, só que agora não queria
dizer nada, ele era homem, tinha muita força, com certeza era muito grande
e... fechei os olhos. Que não tivesse olhos azuis.
Eram dois tipos de azuis. Um claro, sanguinário e cruel que brilhava de
prazer ao machucar as meninas e outro escuro, gentil e irado que parecia
sofrer pelo que tinha que fazer. Samuel e André, dois olhos azuis distintos,
porém… Olhos de assassinos.
Novamente reforcei o pedido mental. Por favor… Não sejam olhos
azuis o desse Dimitri.
Eva puxou meus lençóis e eu me encolhi, estava em segurança ali
embaixo. Ter o lençol tirado de mim foi como ter a lona arrancada de meu
esconderijo, como ter sido descoberta em meu refúgio. Ela apertou os olhos
quando viu minha reação.
— Pelo visto, você estava escondida quando te pegaram.
Afirmei e abracei meus joelhos, sentia um misto de cheiros saindo do
meu corpo e nenhum era agradável.
— Olhe, menina, não faremos mal a você de nenhum tipo, consegue
entender isso?
Não me mexi, apenas olhei o nada. Não consegui dizer sim nem
concordar com a cabeça. Apenas senti brotar uma ínfima esperança de que
fosse verdade.
Uma mancha escura no lençol me tirou do torpor, encolhi mais as
pernas e vi que a mancha era enorme, minha camisola também estava
manchada e minhas pernas estavam cobertas de sangue.
Senti meu corpo arrepiar, era sangue demais, queria gritar, mas não
conseguia, ainda assim, tapei a boca e fiquei em pé na cama para fugir
daquilo. Tentei rasgar a roupa, tinha que tirar ela de mim. Não tive forças e
então saí da cama desesperada procurando uma saída. Só havia a janela e eu
fugiria por ela. Era muita coisa acontecendo, eu tinha que fugir. Esquecer
sangue, esquecer tudo.
Senti os braços de Eva me segurando com força. — Calma, você
precisa se acalmar. Pare de lutar comigo, isso não é ferimento.
Continuei me debatendo, sangue... Muito sangue. Eu não ouvia nada,
só queria tirar aquela roupa e sair de perto de tanto vermelho.
Senti o tapa como um balde de água fria, pisquei várias vezes de susto,
então sentei no chão e chorei em silêncio. Eva me deixou ali sentada e passou
a andar apressada pelo quarto.
Vi de soslaio quando ela arrancou os lençóis, quando abriu a porta
voltando em seguida depois de gritar algumas ordens. Minhas lágrimas
corriam, mas eu já estava lúcida. Com o histerismo passando, consegui
analisar muitas coisas.
Uma delas era que eu poderia ser morta, todavia não seria naquele dia.
Realmente aquele sangue todo não era do corte antigo ou de um novo. Eu não
sentia dor e isso era um bom sinal. Se o homem que esteve ali quisesse me
fazer mal, teria feito quando eu o ofendi. Ele era meu senhor e poderia me
castigar pelos meus modos, mas não fez… Não ainda.
Alguma coisa aconteceria comigo. Coisa boa, ruim, normal, não
importava mais. Eu não era ninguém, fui vendida pelos meus pais à
sacerdotisa para ser preparada para a encomenda, um destino sem volta.
Para casa nunca mais voltaria, talvez meus pais nem soubessem o que
tinha acontecido comigo. E se soubessem não se importariam, já tinham
recebido o pagamento.
PROCRIADORES
Olhei para Eva, mal escondendo meu desespero, para minha sorte ela
agiu normalmente, segurou minhas mãos e me olhou como a mãe pronta a
acolher todos os medos de sua filha, tínhamos que atuar todo o tempo, pois
era uma certeza que Samuel tinha plantado uma espiã em nossa casa para
saber meus reais sentimentos por ele.
— Querida, não se preocupe, você não vai ser escolhida por mais
ninguém, irá se casar com Samuel e será muito feliz.
— Tomara que sim, mamãe, eu não sei o que faria se não pudesse ficar
ao lado de meu grande amor.
Senti nojo de mim mesma ao falar aquilo, nojo de como aquela frase
saiu da minha boca, mas era necessário encenar.
Eu não precisava estar ali, nem rever Samuel ou enfrentar meu maior
medo que era seus olhos, mas sem mim os sombrios ficariam no escuro.
Eu sabia os costumes do reino, e embora soubesse pouco sobre o que
acontecia nas castas mais altas, só eu sabia do ocorrido no passado, então eu
era a única que saberia o que procurar e quais rostos observar. Quem
planejou tudo estava tranquilo, achando que ninguém sabia que houve um
plano de boicote, porque não devia existir uma sobrevivente.
A desculpa do rei ao ser questionado sobre a encomenda foi de que
cumpriu o acordo, que as meninas foram levadas vivas ao templo, e se
aconteceu alguma coisa lá era problema da sacerdotisa, então era ela que
devia prestar conta. No entanto, ela nunca mais foi vista depois daquele dia.
Então, depois de tentar pela lei do tratado e não ter conseguido nada,
aqui estávamos nós. Ia dar tudo de mim, tinha motivos maiores para querer
que a raça sombria não sumisse. Eles mereciam mais que os humanos. Não
tratavam sua própria raça com desrespeito e nem mesmo os que eles
tomavam sob sua proteção, então eu dei a ideia e depois de muitos nãos e
mais argumentos e discussões, acabaram aceitando minha ajuda.
Ainda achava que Samuel era precavido, por isso mandou as criadas e
me sentia incomodada na presença delas. Não tinha como saber qual delas era
a espiã, então passei a ver as três como inimigas e sempre que o cheiro delas
estava perto, eu virava a moça mimada e apaixonada, que suspirava somente
de ouvir o nome do noivo.
Deitei e fingi dormitar para ter paz, enquanto cuidavam de me deixar
pronta, óleo perfumado por todo o corpo, aparar e pintar cada unha, limpar a
pele do rosto e busto com cremes, apesar de me incomodar tantas mãos em
meu corpo, segurei a irritação e fiquei mortalmente quieta, mas não via a hora
de me ver livre delas, pois era cansativo ser quem não era o tempo todo.
Sem poder fazer nada, a não ser continuar fingindo dormir, meus
pensamentos voltaram ao dia em que estava na banheira com Eva me
esfregando…
— Senhora, acorde.
Abri os olhos, não dormia de verdade, apenas fingia para que não
falassem comigo.
— Está linda, filha.
Eva estava realmente emocionada. Curiosa, me olhei no grande espelho
posto ali para esse dia. Meu vestido azul-turquesa era cheio de bordados
prateados, longo, justo e extremamente leve e sensual.
Meu cabelo estava preso por duas presilhas de prata com pedras de
ametista, os deixando totalmente soltos nas costas, uma maquiagem leve e
detalhada me deixava ainda mais radiante, não poderia ficar sem, fazia parte
da alta casta, apesar de eu não gostar de exageros. Gostava de como era ao
natural, mas ali tinha que seguir os costumes.
Os produtores da casta abaixo da minha tinham preparado muitas
encomendas de Eva para aquele grande dia, que custaram caro a Dimitri, por
sorte, ele não ligava muito para coisas materiais. Isso porque a família que
usurpamos o nome tinha muitas posses realmente, e porque eles, os sombrios,
tinham uma vasta riqueza. Em todas as bocas aquilo seria ostentação e era
isso que queríamos.
Samuel precisava ver que eu tinha tudo o que queria, e que ele teria que
me agradar para que meu amado pai não pagasse a multa de quebra de
contrato, caso eu desistisse antes de casar.
Era uma ilusão de poder, uma mulher não tinha poder algum nesse
reino, o meu caso era diferente, porque Dimitri negociou de uma maneira em
que eu teria o direito de decidir, o que, era algo tão raro que muitos estavam
comentando, e o baile seria lotado de pessoas curiosas para ver o pai do ano,
o homem que estava indo contra os costumes e era somente por isso que
Samuel estava me tratando com cortesia, o que eu sabia, seria apenas até
garantir o casamento, depois disso, eu não passaria de mais um bem
adquirido e passivo de ser negociado.
Mas tudo estava indo conforme os planos e assim, de queixo erguido,
saí do quarto para o que seria o primeiro dia de dois anos de preparo e
treinamento, meu maior medo seria enfrentado e sanado.
Apesar de eu afirmar que era para ajudar os sombrios, eu tinha meus
motivos também, queria me testar, saber se eu conseguiria olhar nos olhos de
Samuel na hora da dança e não perder a compostura. Disso dependeria todo o
resto. Dimitri e Nicolae só continuariam com o plano se eu conseguisse
passar por aquilo, e eu queria muito vencer esse trauma, não gostava de ter
medo de um homem, não depois que descobri a dignidade que uma mulher
podia ter quando era tratada com respeito.
Dimitri me esperava na sala junto com os pais de Samuel, que ao me
ver ficaram impressionados e não tiravam o sorriso da boca. Eu sabia o
motivo daquela alegria: eu daria muitos lucros a Samuel. Quando eu fosse
dele, ele poderia me exibir no harém do rei e aceitar uma oferta, caso uma
boa aparecesse e pelo olhar de meus sogros, eles já deviam estar a fazer
somas.
Um dos nossos estudos foi sobre o casamento, então era certo que
Samuel iria me cortejar, porque, quando apareci, o furor dos homens foi
geral, eu era uma das poucas mulheres que estava disponível depois dos
quinze anos, com uma aparência ainda tão imaculada. Essa tinha sido a ideia
de Rael e funcionou lindamente.
Pobres tolos. Samuel não ia perder a chance de ter uma raridade de
vinte e cinco anos e ainda virgem, muitas tinham beleza quando casavam,
mas depois, na idade que eu aparentava, já não tinham tantos atrativos.
A culpa era dos homens, eles que tinham que ser extirpados de seu
poder. As esposas eram deixadas de lado por seus maridos porque a oferta era
grande. Todos os anos, garotas novas eram entregues a casas de diversão,
virgens que tinham sua pureza leiloada, onde até mesmo o rei participava dos
lances.
E então, as mulheres não se cuidavam, algumas porque queriam
distância dos maridos, a maioria porque não ficavam sem apanhar
basicamente um dia que fosse, e outras simplesmente porque não lhes era
dado nada mais do que o alimento, a maioria largadas em seus quartos,
procuradas apenas quando eles lembravam que elas existiam para gerar seus
filhos.
As mulheres mais belas do reino eram das castas nobres, ali elas tinham
um tratamento diferente, pelo menos as que eram cuidadas para negócios, e
essas não tinham mais que um filho, por vezes nenhum. Os nobres podiam ter
muitas mulheres, mas tinha a preferida, a que era escolhida para participar
das festas reais. As outras eram cuidadas com esmero, mas não como a
principal.
Essas eram mostradas, ostentadas pelos seus maridos até serem
negociadas, então outra principal apareceria ao lado do nobre na próxima
festa.
Todos os haréns dos nobres podiam se interagir livremente em um
único lugar, a Floresta do rei. Mal sabiam elas que esse lugar era uma feira
livre e que sua beleza estava sendo observada sempre para negócios e os
maiores fregueses eram os licans.
Outro motivo que tínhamos descoberto e era necessário saber mais
sobre isso, era o crescimento desmedido do reino Humanis.
Os licans cediam parte de suas florestas como pagamento de algumas
mulheres, o que aumentou a compra de garotas que, ainda pequenas, eram
promessas de beleza rara, então manter uma bela mulher ao seu lado poderia
lhe dar muitas posses.
Já tinha me informado com as criadas sobre esse lugar famoso, e elas
foram rápidas em responder, totalmente entregues à luxúria que o lugar
representava aos seus sonhos mais secretos de fazer parte daquele seleto
grupo de mulheres supostamente sortudas.
Era um paraíso, segundo elas e seus suspiros sonhadores, todas as
esposas podiam ficar o dia todo, sendo cuidadas e servidas por criados,
esperando serem chamadas por seus maridos.
Ainda havia os cambistas, homens no meio real que intermediavam
essa troca, era na Floresta do rei que era permitida a entrada do lobo,
normalmente um alfa que passaria a visão para sua matilha e negociariam o
preço.
Depois de tudo combinado, uma parte grande de terras era abandonada
por eles e a mulher de algum nobre sumia sem deixar vestígios.
Foram muitas vezes que a muralha foi reconstruída, muitas vezes que o
reino cresceu e isso foi notado. Muitas famílias de um grau menor também
saíram das muralhas para cuidar de uma extensão de terra, sendo elevado ao
grau de conde ou duque, com certeza esse título vinha como comissão por
suas filhas.
Era um comércio muito vasto, e os únicos que podiam fornecer
mulheres eram os humanos e as duas raças dependiam disso para não
sumirem do mundo. O acordo firmado entre os párias havia beneficiado
apenas uma raça entre os três. Os humanos. E eles não faziam questão de
mudar isso. Usavam todos os meios possíveis para conseguir voltar a imperar
em um mundo onde seus domínios territoriais tinham sido extinguidos a
apenas uma pequena e apertada nação.
Dimitri se aproximou, andando devagar, sua idade um pouco avançada
não lhe permitia movimentos bruscos. — Está linda, minha querida.
Seu corpo estava envelhecido, mas seus olhos azuis, brilhantes e
límpidos, ainda eram vivos e perspicazes. Deitou a cabeça e me beijou perto
da orelha, sussurrando em seguida:
— Está distraída, se concentre.
Realmente estava distraída, com a hora se aproximando, eu estava
ficando ansiosa por mudanças, para fazer algo de útil e pagar aos sombrios o
que fizeram por mim.
Por causa deles, eu aprendi que mulher tinha que ser valorizada e devia
lutar por seu lugar e era isso que eu queria. Então, sem mais distrações,
coloquei um sorriso no rosto e beijei a mão de Dimitri, como prova de uma
boa criação e, para não deixar dúvidas de minha submissão, me curvei para
meus sogros.
Não gostava do olhar do pai de Samuel, olhos idênticos aos do filho,
azul gelado de um doente sádico, era loiro como ele, seu sorriso não alcançou
seus olhos, mas sua luxúria sim. O maldito cobiçava a nora e tinha inveja do
filho. Essa era uma família para ser dizimada do mundo, todavia, não podia
ser subestimada. Apenas um passo em falso e essa falsa união deles poderia
se tornar real para me destruir.
Eles tinham um ponto a favor deles, Samuel seria general dos exércitos
do rei, um alto posto, um cargo de extrema confiança e tudo passaria pela
mão dele, teria acesso a todos os documentos escondidos e todas as operações
secretas e os planos do rei, mas o mesmo ponto a favor deles logo seria o
meu.
Paul e Ana se aproximaram para me darem um beijo na face e mostrar
sua felicidade pelo meu ingresso em sua família. Senti asco quando o fizeram
e segurei ainda mais firme a mão de Dimitri, se ele não fosse forte, mesmo
naquele corpo frágil, eu poderia ter quebrado um de seus dedos, mas ele
apertou de volta, dizendo que estava ali comigo.
Assim saímos da sala. Dimitri segurando minha mão e Eva do outro
lado, segurando meu cotovelo. Um carro nos esperava na rua, entrei ajudada
por Dimitri que, depois de ajudar Eva a entrar, entrou em seguida. O carro
dos Zafirins ia à frente, o cocheiro incitou o cavalo e seguimos atrás.
Dimitri me olhou, preocupado. — Nervosa?
Pensei um pouco antes de responder. Sim estava muito, mas a briga que
eu tive com ele e Nicolae, para continuar com o plano quando descobrimos
que a votação do cargo foi para Samuel não me deixou ser sincera, se eu
demonstrasse muito o meu medo, ele me tiraria dali.
— Um pouco, não sei como será a reação dele quando me vir e nem
como será a minha quando ele me tocar.
— Não era com ele os planos iniciais, não quero que sofra, ainda tem
tempo de desistir.
— Não, Dimitri, não posso permitir que a quebra do acordo diminua
ainda mais a chance da raça sombria de existir. E não vou desistir, depois de
anos, só porque o escolhido foi Samuel, sabíamos desde o início que ele era
candidato, e esse cargo é o único que fará dar certo o que planejamos.
“Se o pai supremo acordar com as coisas do jeito que estão, estará tudo
perdido. Os licans estão crescendo com esse mercado ilícito, mesmo que seja
uma evolução lenta baseando na quantidade de mulheres negociadas. Os
Leviatãs estão satisfeitos com o que lhes é dado, mas não sabemos se também
tem negócios acontecendo entre eles e o rei.”
— Com todos os corpos que são entregues a eles basicamente todos os
dias, eles não têm do que reclamar — disse Eva. — Os únicos que não têm
benefícios são os sombrios que seguem à risca o tratado, esperando os vinte
anos para começarem a crescer novamente e isso foi tirado.
— Podemos esperar mais, Eva — disse Dimitri. — Até lá, o novo rei
do império Humanis pode não ter esses mesmos planos, afinal, os humanos
são mortais, esse rei não viverá para sempre.
Balancei a cabeça, veemente. — Ainda insisto que algumas sombrias
podem estar escondidas por aí, pelas terras ainda não mexidas. Pelo mundo
ou presas com os licans, já pensaram nisso? Poderiam mandar um de seus
irmãos que dorme para procurar vestígios delas.
— Não, Diana, nenhuma sobreviveu, nós saberíamos se tivessem
poupado uma delas que fosse, o cheiro não nos enganaria.
— Não podemos esquecer as crianças do reino sombrio — disse Eva.
— As crianças que estão crescendo, filhas dos criados dos senhores que
dormem.
— Sim, Eva, temos em torno de trinta meninas, mas não podemos
forçar nossos criados a entregá-las a nós e nem poderíamos tomar as
mulheres à força quando tiverem idade.
— Mas o senhor sabe que eles estão preparando suas filhas para isso,
eles querem tanto quanto nós que o reino prospere para termos força, caso
outra guerra se inicie.
— Sim, Eva, mas entre as famílias há também jovens rapazes, e o
destino pode pregar uma bela peça, fazendo com que de trinta meninas,
apenas poucas realmente possam vir a se tornar esposas de nossos homens.
Os moradores de nossas vilas são livres para casar entre os de sua própria
raça, não é uma coisa desesperadora, e podemos esperar os filhos dos filhos
desses casais.
— Vocês são homens bons. Não merecem o que estão passando.
Dimitri sorriu, triste, com o elogio. — Nós três tentamos ser justos,
pelo menos até onde é possível, aprendemos com nosso pai o que não deve
ser feito vendo os atos dele. Se ele não tivesse sido tão soberbo, se não
tivesse achado que nossa raça era imune por sua força, talvez, só talvez, hoje
teríamos crianças sombrias brincando no reino, ou se ele tivesse sido um
pouco menos cruel, nossa raça não teria ficado limitada a pouco mais de três
mil homens. Precisou ver nossa mãe morrer em batalha para aceitar o pedido
de trégua e finalmente participar do tratado.
Dimitri olhou pela janela e ficou pensativo. Sempre me dava tristeza
ver os irmãos arcar com a herança do pai. Ele falou baixo:
— Não somos bons, Eva, somos inteligentes e aprendemos com nossos
erros e esses erros, são muitos.
Ficamos em silêncio um tempo, constrangidos com seu desabafo,
segurei sua mão e apertei, nunca sabia como ajudar.
— Vamos dar jeito nisso, Dimitri, vamos descobrir qual o plano e
acusar o rei de vetar o crescimento dos sombrios.
Dimitri me olhou com carinho, podia ver isso em seus olhos azul-claros
que eu adorava ver brilhar, continuei:
— Quem sabe ainda conseguimos êxito e o rei devolva as meninas.
Assim, se o nosso pai acordar, nem dará por conta do que acontecia enquanto
dormia.
— Gosto quando você diz nosso pai e não seu pai.
Sorri, não tinha como não o fazer com um olhar tão doce de Dimitri
para mim.
— Não me considero humana, não mais, depois de conhecer os
sombrios e saber como são os humanos, escolhi meu lado. Sei que você vai
dizer que sou as duas coisas, que de vocês só ganhei a imortalidade, ainda
assim, não me considero humana, Dimitri, eu até mataria pela raça sombria.
— Não gosto quando fala assim, Diana, me parece mais um sentimento
particular de vingança do que uma interseção para ajudar os sombrios.
Ele não deixava de ter razão, podia ser algo particular, ou o meu jeito
impulsivo, de todo modo dei de ombros, dizendo mais para mim do que para
ele. — Se precisar…
Dimitri se virou para mim com aquele olhar preocupado, antes que
começasse a falar, encostei meu ombro no dele e o empurrei com carinho.
— Não me olhe assim, não vou me corromper pela vingança, se der
para saber algo, será útil, se não der… voltarei para casa antes de ficar presa
em uma teia da qual não conseguirei sair. O que sinto por Samuel é apenas
nojo, por tudo o que ele as fez passar naquele celeiro antes de matá-las. A
sorte apenas me sorriu para que eu possa enfrentá-lo hoje, e assim exorcizar
alguns fantasmas do passado.
— Não sente raiva de seu malfeitor, André?
Refleti por um momento, respondi, com sinceridade: — Não sei o que
sentir por ele, talvez gratidão, ele tentou me matar, mas salvou minha vida,
não sei qual das duas coisas pesa mais para mim.
Dimitri assentiu, mostrando que compreendia, então, depois disso,
permanecemos em silêncio o resto da curta viagem.
Fiquei descansando a cabeça no ombro de Dimitri e minha mente
novamente voltava ao passado, sorri ao relembrar…
Antes que ele fizesse qualquer coisa, balancei a cabeça, dizendo não,
mas o mal foi eu estar muito perto de André e isso atiçou o senso protetor de
Nicolae e sem dar tempo de emitir som, eu o vi se aproximar, veloz.
Muito rapidamente ele estava com André seguro pelo colarinho.
— Se afaste dela!
Não esperou André abrir a boca e o jogou, desesperada apenas o vi
parecendo um boneco batendo de encontro à parede e Dimitri já segurando
Nicolae, para que não avançasse nele ali caído.
André sentou, balançando a cabeça. Devia estar desnorteado, tentou se
levantar, se apoiando na lisa parede. Saí correndo para ajudá-lo, agradeci
mentalmente o sangue sombrio que corria em suas veias, a batida foi feia, eu
sabia que devia estar doendo muito, sangrando não estava, pois não senti
cheiro de sangue.
Nicolae se soltou de Dimitri e avançou, eu tinha acabado de me
aproximar e não tive tempo nem de ajudá-lo, então não consegui pensar em
nada além de entrar na frente de André e fechar os olhos, esperando o golpe
que viria.
Mas o golpe nunca chegou, abri os olhos e ali estava Nicolae,
assustado, olhando para mim com a mão em punho a centímetros de meu
peito, parecia tentar entender minha reação ao mesmo tempo que olhava para
seu punho, ainda fechado, basicamente encostado a mim.
Sussurrou, mortificado, o meu nome, ainda sem ação continuou
alternando entre meu rosto e seu punho, com certeza imaginando o estrago
que teria feito em meu peito, se o golpe tivesse seguido seu rumo, eu sei, pois
estava imaginando o mesmo enquanto respirava rapidamente com o olhar
vidrado em sua mão fechada.
Puxou-me de maneira desesperada para ele, falando febrilmente:
— Está maluca? Eu poderia… por que fez isso? Como acha que eu
ficaria, se tivesse te ferido?
— Desculpa, Nicolae, mas não o machuque. Depois eu explico tudo,
por favor.
Ele me olhava sem ação, ainda assustado com aquilo e seu olhar voltou
para André quando ele começou a se levantar.
Ao contrário do que imaginei, André não parecia abalado com a reação
de Nicolae, apenas olhava preocupado para a porta.
Nicolae me afastou, não tirando os olhos de André, ouvíamos o barulho
do portão, ninguém poderia me ver abraçada a um estranho.
O clima estava tão tenso que ficamos estáticos. Nicolae ainda encarava
André, se ele tivesse o dom de matar com o olhar, André já estaria morto pela
fúria que via em seus olhos, por sorte, era Eva que entrava com os pacotes,
seguida de Uzias.
André pareceu nervoso naquele momento e foi logo falando
humildemente.
— Senhor, muito agradecido por me oferecerem algo para comer, mas
não posso aceitar, temos que voltar para o príncipe, pois nosso trabalho
acabou por aqui, já que ambas, sua filha e sua esposa, estão seguras. Uma boa
tarde e com licença.
Ele saiu, apressado, olhando o chão. Era uma deixa de André, um sinal
de que Uzias não era de tanta confiança ou que André não confiava nele o
suficiente para falar abertamente perto dele.
Depois que os dois saíram, Nicolae soltou o ar preso e se virou para
mim.
— Pequena, nunca mais faça isso, o que deu em você para defender o
homem que tentou te matar e, o pior, o proteger, se colocando na frente dele?
Suspirei. Entendia Nicolae, minha reação no baile não foi das melhores
quando o revi pela primeira vez, contudo, depois de tudo que ouvi não
poderia simplesmente deixar que ele o machucasse, então eu contei o que
conversamos no carro.
Dimitri contou tudo o que André tinha contado a ele, pulando a parte
que tinha lhe salvado a vida na floresta.
Eu não o desmenti em nada, sempre guardava seus segredos quando
sabia que ele iria se meter em encrencas, assim como ele guardava os meus,
mas não pretendia deixar passar, assim que a oportunidade aparecesse, ainda
ia perguntar por que ele andava tão perto dos domínios dos humanos e qual o
motivo de carregar com ele um frasco dos preparos secretos de Rael.
Nicolae falou, pensativo:
— Acha que podemos confiar nele? E se formos nessa feira e for uma
armadilha para nos desmascarar, sem contar que é errado.
— Eu confio nele, Nicolae, e pode ser errado, mas é melhor elas no
reino sombrio do que aqui, com esses homens.
— Mas, pequena, ele tentou te matar, quem garante que não seja uma
armadilha? Se ele cumpriu ordens uma vez, pode estar fazendo isso agora.
— Não sei. O que sei é que ele não me parece querer o mal dos
sombrios. Ele poderia ter me levado direto ao rei, estávamos apenas nós dois
na carruagem, mas me trouxe em segurança e ainda não escondeu que sabia
quem eu era. Acho que ele é sim de confiança, Nicolae, eu sinto isso.
— Eu também confio nele — disse Dimitri.
Olhei torto para ele, alguns minutos atrás estava ali bancando o papai
desconfiado, agora dizia na cara de pau que confiava, ele piscou para mim,
estava me ajudando a convencer o irmão.
— O que acha, Eva? — Nicolae estava pesando todas as opiniões.
— Não sei. Ele tem olhos sinceros. Olhos de um bom homem e acho
que a ideia dele foi muito boa, se o senhor comprar umas três meninas e o
senhor Dimitri, umas duas, sairemos daqui no lucro. Seriam mais chances de
esposas para os homens sombrios que dormem, sei que o senhor Rael nunca
aceitaria isso em outras condições, mas já estamos aqui dentro, e o disfarce
está funcionando, deveríamos aproveitar a oportunidade.
— E acha que ele realmente quer ajudar Diana?
— Senhor, se Diana diz que confia, é porque de alguma forma ela sente
isso, e temos que levar em conta que ela teve o maior contato com ele.
—Vamos arriscar, então. — Nicolae olhou para mim e falou sério: —
Você não irá conosco, não acredito que seja uma cena boa para se ver.
Mesmo que seja normal para as garotas daqui.
— Nem gostaria de ir, acho que não suportaria ver isso.
Os dois se levantaram e Nicolae suavizou as feições.
— Não voltarei antes que a carruagem chegue para levar você, tudo o
que peço é que fique bem. — Já se virando, ele pediu: — Eva, arrume tudo,
por favor, assim que Diana for levada, sairemos do reino, usaremos como
desculpa os negócios que temos na fazenda muito bem lembrados pelo rei.
— Ele não poderia ter nos ajudado mais — disse Eva, enquanto já se
agitava mexendo nas coisas e catando os pertences para preparar as malas.
Nicolae parou, soltou um suspiro, voltou e me abraçou com força.
— Não me mate de preocupação, minha pequena, fique inteira,
esperarei ansioso sua volta para casa. Só… volte.
Não precisava dizer mais nada, aquilo era uma despedida e depois de
piscar para mim e me dar um beijo demorado na testa, ele andou com
passadas fluidas e saiu pela porta escondida do porão.
Aquela porta o levaria direto para a rua dos fundos e Dimitri saiu pela
porta da frente e, assim, tivemos o resto do dia para preparar tudo.
Ajudei Eva a arrumar as coisas para que saíssem o mais rápido possível
do reino, assim que Dimitri chegasse, havia muito a se fazer e só nós duas
para dar conta.
A tarde ia chegando e eu começava a me preocupar, a temer uma
encenação de Samuel. A cena dele fitando minha janela não me saía da
cabeça, ele poderia aparecer na porta para se despedir, só esperava que não
fosse tão ousado. Ouvi barulho no portão e não demorou para que Dimitri
entrasse na sala, me senti mais aliviada com sua presença ali.
— Pronto, compra efetuada. Me sinto cinco quilos de ouro mais leve.
Somando tudo, este ano serão seis meninas, elas serão entregues a nós no
portão como eu pedi, disse que estávamos de partida para cuidar dos
negócios.
— Elas ficarão lá, esperando a gente passar e as levar?
— Não, Eva. Estarão lá amarradas e reclusas em uma jaula de madeira.
O pagamento acordado será feito na entrega, já Nicolae partiu em viagem,
levando as três meninas e nos encontrará nos domínios sombrios.
Dimitri me olhou com carinho e segurou meu queixo.
— Nicolae não sabe dizer essas coisas, mas eu sei. Se cuida, hein.
Agora está com você, virei como bom papai que sou lhe ver quando
liberarem a visita, mas quero que não se arrisque sem necessidade, promete
que não fará loucuras? Nicolae me recomendou a resposta dessa promessa o
caminho todo, então promete?
— Prometo, Dimitri, não farei nada que você não faria.
— Assim eu fico preocupado, melhor prometer que não fará nada que
Nicolae não faria.
— Está bem, nada que Nicolae não faria.
— Isso, irmãzinha. Agora estou mais tranquilo.
Eu ri, ele era um bobo, mas com seu jeito torto só queria meu bem.
Eva me abraçou com carinho.
— Se vir que não tem como investigar sem correr riscos, deixe este
mês passar e poderá voltar para casa. Arrumaremos outro meio de ajeitar as
coisas, antes que o senhor dos sombrios acorde, tudo bem?
Acenei afirmativamente, eu sabia que o meio que Eva dizia era essa
compra disfarçada de meninas. André tinha dado uma ótima ideia e seria uma
solução temporária, ainda assim, eu aproveitaria esse tempo no castelo para
tentar saber o que mais pudesse, se de fato existisse algum plano para
prejudicar os sombrios, eu tinha que tentar descobrir.
Ficamos ali conversando, enquanto a carruagem não vinha. Uma hora
depois batiam à porta, era o cocheiro real, tinha chegado a hora de eu me
separar deles, de seguir um rumo diferente de tudo o que tinha planejado.
Senti um frio no estômago, pela primeira vez, depois de mais de dois anos, eu
estaria sem eles por perto e isso não era pouca coisa para mim.
Uma recusa de entrar naquele coche poderia pôr a vida de Eva e
Dimitri em perigo e tudo o que eu mais queria era que eles pudessem sair do
reino e entrar no reino sombrio sem correrem riscos. Então, depois de me
despedir de um Dimitri nervoso e uma Eva emocionada, entrei na carruagem.
Ali estava Uzias para me ajudar, ele sentou na parte de trás, pendurado
junto com a bagagem e seguimos em silêncio.
As ruas passavam por mim como flashes. Tinha os olhos marejados,
minha força e coragem me abandonavam a cada metro que eu me aproximava
do castelo e me separava da casa alugada. Pensei por um momento em pular,
voltar correndo para a segurança dos meus que ainda estavam na casa. Com
certeza, daria tempo de alcançá-los, mas não podia, não mais.
E que eu não estivesse errada ao defender André, porque se estivesse,
teria facilitado a vida de um assassino.
Tinha passado pelo farol e pela rua do mercado colorido, agora passava
pela avenida que dividia as casas simples da terceira casta. Essas eram feitas
de madeira, com um pequeno quintal.
Do outro lado da avenida era o caos completo. Prédios tortos, cheiro de
esgoto, lixo acumulado, crianças de todos os tamanhos até a idade de onze
anos andavam pelas ruas, com poucas roupas ou peladinhos e todos sujos de
tanto vasculhar os lixos. Outras se arriscavam pelo outro lado da avenida, o
lado da casta três. Eu sabia que não pertenciam àquela vila por seus trajes
imundos, seus pés descalços e seus olhares doentios pela fome. Só estavam
ali para procurar sobras de comidas nos lixos, o que eu tinha certeza de que
era uma coisa rara de encontrar.
A casta terceira era pouco mais abastada que a segunda, mas não era
uma casta onde conseguissem se dar ao luxo de jogar comida fora. Eu mesma
já tinha andado por todas aquelas ruas procurando restos nos lixos e me
lembro das raras vezes que tinha conseguido encontrar algo.
Um fato interessante era que não havia pássaros por nenhum lado por
ali. Nenhum deles conseguiria passar vivo por mãos tão famintas como as
mãos das castas segundas e, até mesmo, os terceiros não perderiam a chance
de comer carne de pássaro se conseguissem. A vida ali se resumia a crianças
famigeradas, famílias inteiras escondidas em suas casas, insetos voando de
um lado a outro e imensos roedores que também serviriam de alimento se
fossem capturados e muita, muita miséria.
Dei graças quando essa visão foi deixada para trás, logo vinha o bairro
da quarta casta. Casas de alvenaria sem luxo, mas com pinturas nas paredes e
vidros nas janelas. Era uma mansão se comparada às casas da terceira casta e
um castelo em vista das moradias empilhadas da segunda.
Ali moravam os servos que serviam diretamente a casta real,
profissionais como costureiras, botânicos e soldados de escalão menor e os
famosos emergentes que por algum milagre da criação, tinham comprado seu
grau vindo da terceira casta.
Esses com certeza tinham comércio no mercado ilícito. Eu não
conseguia nem imaginar que tipo de comércio era esse, mas, com certeza,
tinham usado bem seus contatos os fazendo estarem ali. Era uma casta
praticamente invisível, não eram chamados para nada, pois não tinham grau
para frequentar festas e não podiam ser incomodados por outras castas por
serem superiores. Por esse motivo ali, com certeza, era onde estava todo o
centro do mercado ilícito.
Tudo que era mercenário, cambistas, cortesãs, leiloeiros e
atravessadores eram dessa casta neutra, era um local seguro para fazer
qualquer tipo de negócio escuso.
Estranhamente, mesmo sendo um bairro extenso, eu não tinha visto
sequer uma criança andando por ali. Aquele bairro me deu arrepios.
Quando saímos daquela visão senti o ar voltar aos meus pulmões.
Depois de um pequeno trecho descampado, avistei as grandes casas, ali era
da casta suprema onde os abastados tinham moradia fixa. Nada comparado à
casa que tínhamos alugado. As casas de aluguel ficavam no primeiro bairro
após as muralhas, mais próximo do portão, junto com as pensões, casas
sociais e locais de eventos e basicamente perto de todo o comércio.
Apesar do preço, era mais fácil aos viajantes se alojarem naquele bairro
que era o local mais próximo da saída possível e agora tão distante de mim.
Então, apesar dos dois meses ali dentro do reino, aquela parte me era
totalmente desconhecida, pois todo esse tempo, passei no bairro de aluguel.
Totalmente longe daquele lugar.
No bairro da casta suprema, as casas realmente eram belas, várias cores
combinando, gramado verde com jardim na entrada, portas ornadas e janelas
imensas, mas mesmo com tanto luxo, eu não achava nada de mais em toda
aquela decoração. Aquilo era uma disputa de vizinhos para conseguir a casa
mais bela, por conta disso algumas eram muito ostensivas, o que apenas
demonstrava o tipo de pessoa que vivia nela.
Demorou para sairmos daquele bairro, ao contrário do cheiro do bairro
da procriação que era somente cheiro de esgoto e lixo, ali o cheiro que
predominava era dos jardins. Toda casa tinha um, então o misto de cheiro de
diferentes flores era agradável e era a única coisa boa naquele local que, na
verdade, deveria feder a corrupção lasciva.
Logo o imenso castelo se via ao longe, então seria aquele local minha
morada por certamente um mês.
Depois de muitas casas começamos a seguir por uma alameda extensa e
muito marcada por rodas, patas de cavalos e até mesmo marcas de pés, as
árvores eram imensos carvalhos que lado a lado ainda se mantinham firmes e
maravilhosos, pois o reino vivia aumentando, vários focos de mata sempre
estavam sendo limpos para uma nova construção.
Via a imensidão do castelo ao longe. Os três cumes mais altos das
torres maiores assustavam, pedras negras e antigas empilhadas
milimetricamente formando a torre mais alta era a construção antiga, a parte
original daquele castelo datado de séculos, mas tinha a parte nova além das
três torres originais, essa seguia o mesmo padrão de pedras, mas com cor
mais clara, tinha uma larga torre, mais baixa que as três primeiras, porém
muito mais larga. Tinha uma abóbada redonda de cor cinza opaco destoando
um pouco a agressividade da arquitetura do lugar, não era bonito… Era
assustador.
O muro era muito alto e cercava todo o castelo, o que me deu a
sensação de estar indo de encontro a uma armadilha. O meu clausuro por um
mês, e eu estava sozinha agora.
SAMUEL
— Tudo errado! — Bati com a mão fechada na mesa, fazendo tudo que
estava nela pular com o impacto, me senti estranhamente poderoso com isso e
gostei.
Realmente tudo pulou, inclusive, o homem sentado atrás da
escrivaninha. Vi seus olhos assustados para mim, vi o medo brilhando ali, o
medo da perda e senti meu orgulho inflar com isso. Eu era insubstituível, ele
precisava de mim.
Gaguejando e sem reação pela surpresa, o homem respirou fundo e se
recuperou rapidamente, mudou o tom, falando claramente:
— Não pude fazer nada! Lei é lei, o que pensa? Que não sigo as leis?
Senti meu sangue ferver mais uma vez, meus olhos injetarem de ódio,
saí porta afora sem dizer nada, mas isso não ficaria assim! Ali eu não
conseguiria nada, NADA!
Ouvi ainda o homem gritando para que eu voltasse, que aquela
conversa ainda não havia acabado, o mandei ao inferno mentalmente.
Tinha que sair dali para não fazer besteira, para não afetar outros planos
em andamento, isso era pessoal e fazer merda estragando tudo o que consegui
seria idiotice, e desse mal eu não morreria, pois ser idiota não era meu maior
defeito.
Com um pulo estava em meu cavalo e com raiva o chicoteei, precisava
pensar, raciocinar direito e o vento no rosto iria me ajudar. Não consegui
deixar de me remoer, de martelar tudo novamente.
Dois meses preparando o terreno, ganhando o apreço dela, e
conseguindo ser escolhido para o grande negócio. Depois de tudo! Do
cortejo, das festas e dos mimos!
Conquistei-a, suportei todos aqueles idiotas da sua família, lutei por ela,
aceitei até não a tocar, respeitando o período do molho. Então, no dia de meu
noivado, vem aquele maldito real e a toma de mim, se valendo do título que
ele nem merecia, se valendo do idiota maior que era seu pai, o velho
caquético e ridículo, rei.
Aguentei aquele velho idiota do pai dela com aquelas ideias modernas e
repugnantes, fui até simpático, poxa vida. Casar por amor! Onde já se viu
isso de dar tanto direito a uma mulher? Fazer seus gostos daquela maneira?
Como podiam ser tão estranhos? Não havia casamentos por amor! Isso era
um absurdo, no máximo se casava por comum acordo, mas por amor?
Que velho mais brocha, o senhor Salazar! E ainda aceitei fazer as
vontades daquele delicioso cofre de olhos verdes, valia a pena cada
exigência, mas no fim, fiquei sem ela.
Incitei o cavalo com o chicote, queria velocidade para espairecer um
pouco dessa ira ou então mataria um de tanta raiva. Ah! Diana, o que eu
poderia fazer com você! Se aquele príncipe maldito não tivesse estragado
meus planos, você iria gostar, sei que iria, qual mulher não gostaria?
Ser tão valiosa, dar lucros aos montes. Balancei a cabeça, apertando a
rédea com força, tinha que admitir para mim mesmo que ela instigava meu
desejo, um desejo guardado no mais fundo do meu ser, reprimido por
necessidades maiores no momento, mas era o meu fraco as ignorantes do
sexo. Sempre foi.
Sempre adorei virgens, e saber que aqueles olhos espertos e bonitos
poderiam brilhar úmidos pelo conhecimento de um pau duro socado bem
fundo e sem piedade, me fazia ficar maluco de antecipação.
O que eu mais gostava era de ver a dor nos olhos, o susto da
experiência, até um grito desesperado, mas o que mais me fazia querer Diana
era o fato de não poder tê-la dessa forma.
Não podia tocá-la, mesmo se quisesse, eram minhas ordens e morreria
se as descumprisse.
Não consegui segurar o tremor ao pensar, morreria de desespero, já
tinha sido castigado por descumprir uma ordem parecida e meu vício tinha
sido tirado cruelmente de mim, não queria passar por isso novamente.
Implorei, pedi, mas não houve piedade. Sorri ao me lembrar.
Minha cega obediência me fazia conquistar maravilhosas recompensas.
Desde dois anos atrás não mais desobedeci, mas ainda me excitava a
lembrança daquele celeiro. Daquelas garotas sendo rasgadas sem piedade, me
orgulhava lembrar a potência do meu pau naquele dia, aguentou duro várias
delas.
Só sentia pena agora de não poder usá-lo para esse fim, porém, era um
passado memorável! E esse gosto estava me matando, confessei para mim e
que ninguém soubesse, mas estava sendo torturado pelos olhares daquela
deusa de olhos verdes.
Mas Diana não era para se comer, era para negócios, mesmo que ela
conseguisse fazer meu pau enlouquecer por querer tirar sua virgindade, não
podia, seria muito mais vantajoso aproveitar essa sorte.
Uma beleza estranha, como se tivesse tomado uma poção mágica
diferente daqueles objetos usados do harém, e ainda tinha toda aquela
soberba no olhar, sem contar que ainda estava intocada por mãos masculinas.
Era um negócio a se pensar, a se vender de várias formas, vender aos
pedaços, primeiro, sua virgindade; depois aluguel, talvez; e quando não me
rendesse mais lucros, poderia deixá-la no harém um tempo, por que não?
De um jeito ou outro meu plano era fazer fortuna com minha futura
esposa, transformá-la em moedas e poder, estava tudo tão pronto, até o
atravessador já tinha começado seu trabalho, incitando os rumores na surdina,
eram planos tão perfeitos. E quando ela não fosse mais interessante, eu a
venderia pelo valor mais alto e pronto.
Deixei escapar um suspiro, estava dando tudo certo e então o maldito
me atrapalhou daquela forma, isso não podia passar assim, ser esquecido.
Chicoteei várias vezes meu cavalo, descarregando um pouco do ódio que
voltava com força, o animal relinchou reclamando e acelerou ainda mais.
A estrada nova enchia de poeira minha roupa, ainda mais com aquela
velocidade, mas eu não me importava, queria conselhos. Queria fazer
pedidos, talvez matar o príncipe não me fosse negado se apresentasse
argumentos válidos. Com certeza mataria André, ele era o meu elo com o
passado, e meu perigo.
André sabia demais, já tinha escutado parte de minhas conversas que
não deveria, mesmo que não tivesse ouvido nada de mais, aquele maldito
escravo não era burro. O pior de tudo foi o que viu, não o que ouviu e então
ele sabia, se não sabia, desconfiava que eu tinha mais influência do que se
supunha e isso poderia ser prejudicial, era um perigo e tinha que sumir.
Não consegui evitar um sorriso de satisfação, receber carta branca para
matar André seria fácil, o maldito era apenas um servo, um mero escravo
metido a pai do príncipe. Mas conseguir a ordem para matar o filhinho do rei
seria mais difícil e jamais o deixaria me fazer essa afronta, me tomando
Diana dessa forma.
E então ao pensar melhor, um sorriso novamente me escapou, eu tinha
uma saída, se não conseguisse nada do que queria nisso tudo, havia uma coisa
que eu não precisaria justificar. Matar Diana.
Se ela não seria minha, então, não seria de mais ninguém! Só não podia
ser idiota, um passo em falso e desconfiariam de mim, eu tinha que ser
esperto, talvez uns buchichos sobre o interesse do bobão real sobre ela…
Sim, isso seria fácil, as mulheres eram produtinhos bem competitivos, e
só havia um príncipe e todas as idiotas queriam levar o título de princesa,
mesmo que isso não mudasse em nada o que eram, objetos de prazer e nada
mais. Sim, isso funcionaria perfeitamente. Uns sussurros nos ouvidos
corretos…
Ah! Agora eu já sabia certinho como fazer Diana ser alvo de ódio, sem
precisar ser ligado a mim seu assassinato.
Finalmente depois de tudo, eu já conseguia sorrir de verdade, nada
como planos novos para repor os antigos, mesmo que alguns planos antigos
não pudessem ser repostos, mas esse plano em questão, eu refaria.
O príncipe idiota não passaria ileso por essa afronta, ia ficar chupando
o dedo assim como fiquei.
Sentindo o alívio pelas novas ideias, comecei a cantarolar uma canção,
me sentindo contente. Eu amava esse reino e essa corrupção adorável que
sempre facilitou tanto minha vida.
FLORESTA DO REI
Se eu estivesse correndo perigo ali dentro, não teria como fugir. Depois
de adentrar aqueles portões, eu estaria nas mãos do rei e nas mãos do
príncipe, tendo como único homem para proteger ou acabar com minha vida:
André.
Pois, de mim, ele sabia tudo, minha fina e suave linha da vida estava
em suas mãos e rezei para que ele cuidasse bem dela novamente.
Ironicamente isso me fez rir, tinha sido assim desde meus quinze anos,
minha vida ficou em suas mãos por duas vezes em um único dia no passado e
assim tinha sido na noite anterior, quando estava prestes a pertencer a Samuel
oficialmente. Nessas três vezes ele me salvou, era um saldo positivo, mesmo
sendo o homem que tentou me matar, tinha me poupado a vida uma vez e
salvado duas e agora dependeria dele eu viver ou morrer.
Eu poderia parecer maluca na visão de André me arriscar daquela
forma, mas minha família não merecia o destino que estavam tramando para
eles, e essa era minha melhor chance.
Quando estávamos chegando ao imenso portão de ferro, fechei os olhos
e sussurrei, como uma prece:
— André, estou em suas mãos agora, instinto não me decepcione,
minha melhor arma sempre foi você.
Meu coração se acelerou quando o portão abriu e a carruagem seguiu
seu curso e então quase parou quando fecharam o portão, assim que entrei.
Senti-me pequena, frágil e fraca, respirei fundo para conter o
nervosismo e esperar os acontecimentos, não ter ideia do que pode lhe
acontecer é um poderoso combustível ao medo. Para me acalmar, tentei me
ater à paisagem.
Dentro do castelo, o jardim de entrada era impressionante e gigante.
Não pude deixar de reparar que de um lado mais retirado, se via uma floresta
que se estendia longe não dando para ver onde terminava, ela estava muito
distante do castelo vendo de frente à minha direita, mas, ainda assim, era um
ponto marcante que não dava para deixar de admirar.
A Floresta do rei, o local onde tudo acontecia à surdina, onde as
mulheres fofocavam aos sussurros, escondidas da inquisição masculina. Com
certeza o melhor lugar para obter informações, mas eu não poderia apenas
entrar no harém, não era esposa, apenas uma aspirante a noiva real e uma
espiã sombria das mais fraquinhas.
Uzias pegou minha bagagem e eu o segui para a imensa porta principal,
o guarda a abriu sem me olhar diretamente.
Dentro estava o príncipe com mais um monte de garotas, mulheres dos
quinze anos até os vinte e eu era mais a velha, pelas informações de todos,
poderia ser um ponto a meu favor para não ser escolhida, eu torci a boca,
nada poderia ser descartado.
André pareceu se materializar do meu lado.
— Vejo que não desistiu, vai mesmo continuar com isso? Ainda dá
tempo de desistir, menina.
— Não conseguiria, André, essa é a minha melhor oportunidade.
Ele assentiu.
— Suas coisas já foram levadas, senhora, venha e sente-se, o príncipe
está recebendo as garotas e as mandando para seus quartos.
— Assim? Simplesmente oi e tchau?
André abaixou a cabeça para disfarçar o riso. — Vai entender o motivo
agora mesmo.
Aproximei-me, havia bancos para todos os lados, parecia uma
convenção, todos enfileirados um atrás do outro. Sentei no fundo, tentando
ficar invisível aos olhos das garotas que olhavam umas para as outras, se
analisando e comparando seu poder estético.
Na frente estava um empilhado delas, quase sentando uma no colo da
outra, André se posicionou no meu campo de visão, mas relativamente perto
do príncipe, entendi então o motivo da pressa.
Quando o nome de uma delas era chamado, elas emitiam gritinhos
estridentes e corriam para frente enganchando no braço do príncipe, depois
de um salamaleque rápido e histérico, sorrisos e charmes com o cabelo era a
atitude unânime, olhar para as outras candidatas com desdém era uma
assinatura de todas. Eram tolas e ensinadas assim.
Todas, filhas de homens de posses, sempre tiveram tudo o que
quiseram, pisavam nos mais pobres porque assim foram ensinadas, sua
melhor educação dada por suas mães, que ainda não tinham sucumbido à
depressão, era que elas eram a coisa mais cara do reino.
Eram mulheres, valiam uma fortuna e tinham que se dar ao valor. Era o
ensinamento primal de suas famílias, que eram cobiçadas e poderiam mudar
o destino de um homem. O que claro, era omitido pelas famílias, era que
depois de escolhidas, a servidão era inevitável.
Ainda assim, isso não parecia assustá-las, eram novas e tolas demais
para pensar em seus futuros, então muitas delas, ou quase todas, com certeza
achavam que estavam fazendo um favor ao príncipe se fossem escolhidas.
O grupo ia diminuindo e assim o barulho também. Logo André pediu
para as muitas que sobraram que sentassem mais próximas, nos bancos à
frente, e assim fui parar na terceira fila.
Minha vez de ser analisada pelas concorrentes. Sentia meu corpo arder
com tantos olhos antipáticos em mim, mas, apesar disso, a balburdia havia
cessado, pois agora eram as mais velhas, um grupo mais contido, mulheres
mais entendidas na arte da compostura, sabendo que gritinhos histéricos
apenas irritam e empobrecem as qualidades.
Ele voltou a chamar por nome, e agora sua voz se podia ouvir
claramente.
— Rívia, da casa Trindade.
Uma moça morena de cabelos ondulados caindo propositadamente
pelos ombros se levantou e se curvou singelamente.
O príncipe retribuiu, pegando sua mão e beijando-a suavemente.
— Bem-vinda ao castelo.
— Obrigada, alteza.
Depois de algumas cortesias trocadas, ela se virou para olhar suas rivais
uma a uma antes de sair do salão, era bonita, tinha o rosto harmonioso, mas
os olhos eram desafiadores, olhos ambiciosos, essa aí faria qualquer coisa
para ser escolhida.
André continuou sua chamada. — Neli, da casa Zafirins.
Levantou uma bela moça, feições delicadas e olhos azuis e tristes, olhos
que já viram muita coisa. Tinha um cabelo loiro, liso e comprido.
Meu coração acelerou. Samuel tinha uma irmã, essa parte eu não sabia,
nenhuma serva havia comentado isso, nem mesmo os pais de Samuel, nas
poucas vezes que socializamos e isso poderia ser um problema para mim.
Se ela me pegasse em alguma situação constrangedora, poderia ter uma
arma contra mim ou poderia até estar a me vigiar para Samuel.
Percebi que ela enrubesceu quando o príncipe pegou sua mão e pareceu
aterrorizada quando ele a levou aos lábios para lhe dar um beijo.
Eu conhecia aquele olhar de medo, já tinha visto isso no espelho
incontáveis vezes no passado, e não entendi o motivo, mas uma sensação de
que Samuel já havia feito muito mal a ela me veio à mente, se não fosse
Samuel, era alguém tão cruel quanto, o pai talvez? Lembrei o olhar de cobiça
dele, se não fossem eles, pai ou filho, quem seria?
Não consegui pensar em mais ninguém, mas aquele olhar eu conhecia
do passado, antes de ganhar confiança em mim mesma, precisava me
aproximar dela, saber o que ela sabia.
— Diana, da casa Salazar.
Levantei por impulso, tinha me perdido em pensamentos e planos. A
irmã de Samuel já tinha ido embora há muito e várias meninas já tinham sido
chamadas.
Meu vestido era de camurça verde-escuro, longo, mas sem detalhes
exuberantes, cabelos soltos e maquiagem leve, estava simples, mas elegante,
ainda assim, senti os olhares cortados em minha direção, naquele momento
me senti vestindo um saco de batatas.
Não me deixei abalar pelos olhares das outras moças, não me
interessava o que elas achavam de mim, eu estava ali por uma coisa mais
importante do que um casamento arranjado.
Fiz uma vênia quando me aproximei. — Alteza.
— Me olhe nos olhos, Diana, sempre que formos falar, aqui não sou o
príncipe cortejando uma filha dos vassalos de meu pai, sou só um homem
cortejando uma mulher.
Ele não poderia ter soltado melhores palavras, olhei em seus olhos e ali
eu estacionei todo o tempo, pegou minha mão e beijou, não tirando os olhos
dos meus.
— Vejo que seus pais já foram para a fazenda.
— Sim, alteza, eles precisavam continuar a gerir os negócios.
— Entendo perfeitamente, não lhe amedronta ficar longe deles por um
mês?
Ele tinha o rosto realmente bonito, queixo largo ostentando uma
sombra de barba e seus olhos negros combinavam com sua sobrancelha bem
feita, era alto e tinha o corpo largo, sinal de que treinava muito, não havia
reparado, mas ele tinha uma pequena cicatriz perto do queixo, devia ter
ganhado no treino.
— Pelo seu silêncio, vejo que sim.
Idiota, tinha deixado de responder à pergunta, e ele nem reparou que eu
estava distraída apreciando sua aparência, não podia perder a pose, então
emendei a resposta com a dele.
— Na verdade, não sinto medo, alteza, apenas tristeza, essa será a
primeira vez que ficarei longe deles, desde que nasci.
Senti os olhos de André em mim, ele sabia o que eu queria dizer.
— Sinto muito esse transtorno, mas farei tudo para que se sinta à
vontade nesse tempo aqui. Considere uma temporada de férias.
— Obrigada, alteza.
— Tiago.
— Como?
— Meu nome, Diana, é Tiago.
— Muito prazer, alteza. — Sorri quando me virei para sair. Era uma
afronta, claro que era, ele deixou a dica que eu podia chamá-lo pelo nome e
eu me neguei. Queria ver sua cara antes de me virar, mas não tive coragem
para ousar tanto, uma pequena revanche, ele tinha me deixado desconcertada
no baile, agora era minha vez de deixá-lo desconcertado em seu evento.
Um criado me guiou ao quarto, estranhamente eu não subi as escadas,
ao contrário disso fui levada para fora do castelo, me ajudaram a entrar em
uma carruagem e finalmente, chegamos à floresta do rei.
Agora uma pequena onda de ansiedade passou por mim, então seria ali
o lugar onde eu passaria o mês com mais um monte de garotas, ali onde eu
poderia ser posta à venda a qualquer momento, a ansiedade inicial deu lugar a
uma grande preocupação e muitas dúvidas.
O rei tinha mandado cessar essas negociações durante esse período? E
o príncipe Tiago sabia no que estava nos metendo?
Todos sabiam que no acordo dos Párias uma extensão de terra foi
deixada para cada raça na divisão. Sendo um país para cada um e o resto do
mundo para o licans e isso era preocupante, estar na feira do rei com
compradores únicos e com uma coisa única para escambo.
Eles tinham poder territorial para comprar todas as mulheres do reino, e
o rei sabia e queria isso, só rezava para que ele cumprisse sua palavra de que
eu poderia voltar quando isso acabasse, mas e se ele cedesse à cobiça, caso
algum licans fizesse ofertas irrecusáveis?
Odiava quando minha mente trabalhava assim, me enchendo de
dúvidas, estava na feira do rei. Então eu era mais um produto na vitrine agora
ou realmente candidata à esposa?
Quanto ao príncipe e sua participação nessas negociações, era um
mistério, ainda não sabia se ele era inocente ou tão corrupto quanto o pai.
Mas, por via das dúvidas, ele seria meu inimigo número três, já que os
dois primeiros números estavam ocupados por Samuel e o rei, nessa ordem.
Um portão todo adornado de ramos floridos me esperava logo à frente,
apenas com a visão do portão pude imaginar o que me aguardava lá dentro e
não me decepcionei, a floresta era um paraíso criado por mãos humanas,
cultivado e mudado por muitos jardineiros e paisagistas até chegar ao ponto
de não poder mover mais nada do lugar para não estragar a beleza.
Não era necessariamente uma floresta e sim um bosque ou coisa
parecida, havia muitas árvores cercando o local, realmente ao longe ela se
adensava, mas ali no meio era impressionante.
Um imenso quiosque estava ao lado do chafariz e no centro deste tinha
uma enorme estátua do rei feito de mármore, me deixou irritada ver que aos
pés da estátua havia muitas mulheres deitadas com as mãos levantas, tentado
pegar nas vestes reais, como que implorado atenção e da boca de algumas
delas jorrava água sem parar.
A mensagem que o monumento queria passar era clara, aquilo
basicamente era um Menir cheio de significado e, com certeza, adorado pelos
homens.
As mulheres eram objetos, nada além de diversão garantida, e os
homens estavam acima delas, era uma imagem machista e luxuriosa, mas
apesar dessa peça destoando o ambiente, não poderia ficar menos
impressionada com o lugar. Havia um pomar bem ao longe, sortido de
árvores frutíferas que coloriam naturalmente a visão e era cercado por
madeiras curtas e brancas. À esquerda do quiosque havia um salão de portas
fechadas.
Em uma parte retirada, estava um imenso casarão, com certeza seriam
os dormitórios agora, e devia ser o local para as esposas descansarem e
servirem seus maridos, caso chamassem.
Havia portas largas de correr uma do lado da outra, e isso demarcava os
quartos, era realmente impressionante o tamanho, o que só mostrava o
investimento desmedido do rei e dos maridos, os negócios ali pareciam valer
realmente à pena.
O lago parecia ser natural e decorado para que combinasse com o resto
e foi um ótimo trabalho, era maravilhoso, com pedras altas e empilhadas
naturalmente e do alto de uma de suas brechas caía uma cascata de água
cristalina. Ao redor havia grama e algumas árvores frondosas e no meio do
lago havia variados tipos e tamanhos de pedras.
Outro pequeno lago artificial jazia próximo alimentado pelo maior, mas
antes de ali chegar, a veia de água passava por uma pequena cabana fechada
que saía por um cano largo, caindo no lago menor e percebi que saía fumaça
de seu interior.
— Um lago termal, isso me parece um exagero! — falei alto.
— Sempre pensei o mesmo quando vinha ajudar a limpar este lugar.
André estava ao meu lado, mas não me olhava diretamente.
— André, folgo em vê-lo. Então, terminaram as apresentações no
salão?
— Graças aos céus, sim, suas coisas estão em seu quarto, senhora.
Gostaria de se trocar? Talvez algo mais leve combine mais com este local.
— Realmente ficaremos aqui, não é?
— Sim, o rei ordenou que o local ficasse de uso exclusivo do príncipe
enquanto estiver cortejando, então o harém foi para as casas de seus maridos
ou para casas de aluguel na vila dos forasteiros.
— Ficaremos instalados este mês na feira do rei, então.
Olhei em seus olhos quando disse isso, ele não esboçou reação. Apenas
afirmou em silêncio, seus olhos azul-escuros sustentando os meus. Não resisti
em espetá-lo e deixar claro minha desconfiança.
— Somos bonecas de vitrine, não é? O que seu pupilo tem em mente?
— Não devia dizer essas coisas em voz alta, senhora, pode chamar a
atenção de algumas belas donzelas que estão aqui somente a mando do rei,
são concubinas dele, mas não sabemos quais delas, sabemos apenas que o rei
não deixaria algo tão grandioso passar sem sua ciência do assunto.
— Então ele está aqui, mesmo não estando, isso é preocupante.
André deu um leve aceno de cabeça. —Tudo o que acontecer aqui será
repassado para ele.
— Isso, se não descobrirem quem são elas, não é mesmo?
— Não tem como sabermos, têm muitas garotas.
— Ajudarei no que puder.
Ele pensou um pouco e novamente assentiu.
— Isso é uma surpresa, não esperava contar com isso, já fui mandado
aqui para investigar, mas não imaginei que teria ajuda tão inesperada nisso.
— Gostaria de me trocar como sugeriu, se puder me acompanhar
teremos assuntos a tratar, e não precisa estranhar em relação à ajuda que
ofereço, faço por mim mesma, não quero olhos do rei em cima de mim
enquanto estiver aqui.
— Entendo, e ainda assim lhe agradeço.
— André, sabe o que acontece aqui nesta floresta, não sabe?
— Faço parte dos servos reais há anos e é impossível não notar que
sempre uma mulher do harém some sem deixar vestígios.
— Mas o rei as toma na negociação ou é um acordo?
— Um acordo, na negociação geralmente são duas coisas como
pagamento. Partes de terra e ouro.
Assenti e ele continuou:
— As terras para o reino e o ouro para o marido, é muito lucrativo,
por vezes recebem quase cinquenta vezes o que pagaram nas esposas, porque
quando as compram elas estão desnutridas e descuidadas.
Já desconfiava de tudo isso, mas queria que André me dissesse, para
poder expurgar qualquer dúvida em relação a ele, ainda faltavam mais
perguntas e não ia deixar para depois, precisava saber com o que estava
lidando nesse mês, e com quem me preocupar. — E o príncipe sabe disso?
— Sabe sim, senhora, mas não pode interferir, se mostrar qualquer
revelia contra o pai, pode passar de herdeiro, para um inimigo a ser abatido.
— Acha mesmo que ele só se mantém neutro por conta disso? Não
acha estranho que o cortejo seja realizado na Floresta do rei?
— Não teve como ser diferente. O rei só aceitou nessas condições, ele
disse que não queria mulheres andando pelo castelo, foi categórico ao dizer
que lugar de mulher para ser observada seria aqui. Sem outra saída, o
príncipe apenas exigiu que nenhum homem do rei, casado ou solteiro, tirando
nós, os servos, perambulasse por aqui.
“Mesmo a contragosto o rei Júlio aceitou e então o príncipe Tiago
como precaução, colocou guardas de sua confiança para cuidar da entrada
secreta, para que nenhum outro de fora possa vir.”
Ele me olhou rapidamente e voltou sua atenção à pequena e estreita
estradinha calçada voltando a falar baixo: — Está tudo fechado, por isso que
o rei mandou algumas de suas amantes como pretendente.
— Mas os pais delas sabem que elas são amantes do rei?
André sorriu enquanto caminhávamos devagar dando tempo para
conversar um pouco mais, tinha um bonito sorriso, senti pena por ele ter que
servir, seu porte era de um nobre não de um escravo, ele falou no mesmo tom
baixo:
— Senhora, me permita pedir que não seja ingênua, foram os pais que
mandaram suas filhas como oferta ao rei, porque até isso é lucrativo, vamos
supor que ele decida dar um presente à sua amante, esse presente será de
direito da família e não dela. Há muitas vantagens para a família nisso, e
tendo uma filha aceita como concubina, eles serão chamados para todas as
festas reais e assim podem melhorar os negócios. Na verdade, eles esperam
ansiosos o dia que o rei mande buscar suas filhas, assim terão grandes
chances de que elas sejam compradas pelos licans.
Já tinha estendido minha raiva a todas as famílias, aquilo estava
perdido.
— Me admira seu príncipe não fazer nada sabendo disso, me lembro de
você dizer que ele era diferente do pai.
André parou e olhou para o ar, pensativo. — Já parou para pensar por
que o rei tem um filho único?
Eu não tinha parado para pensar nisso. — Já que mencionou, deve ser
porque ele quer deixar apenas um herdeiro.
— Não, senhora. Tiago era o caçula de três.
RAEL
Acordei muito cedo. Não tinha conseguido dormir direito naquele final
de noite. Depois de ter ficado com André ainda mais um tempo no pomar,
tentando adivinhar que som era aquele ou do que era, acabamos voltando sem
conseguir sucesso e fui direto para a cama. Tentei dormir, mas não conseguia,
acordava toda hora com qualquer pequeno som.
Assim, depois de ouvir passos no corredor logo de manhã, eu levantei.
Tomei um banho rápido no cano de água e coloquei um vestido amarelo leve
e delicado, sempre longo, e por seu tecido fino, quase nem o sentia sobre meu
corpo.
Precisava estar fresca e pensar em outra coisa além daqueles gritos.
Prendi com um palito o monte de cabelos, várias mechas se soltaram para
todos os lados, mas não dei à mínima.
No café da manhã, a mesa estava posta e dessa vez estranhamente não
tinha nomes nas cadeiras, Tiago estava sentado no mesmo lugar da noite
anterior, e como se a cena repetisse, já tinha algumas garotas à sua volta.
Não me sentei de pronto, voltei para o caminho do dormitório e fiquei à
espera de minhas companheiras de mesa exilada. Não ia sentar naquela mesa
só para vir uma cretina e me expulsar, então fiquei fazendo hora na sala,
enquanto elas não apareciam.
Tina foi a primeira a aparecer, ficamos conversando quando Clara
também apareceu.
— Está elegante, Diana.
— Acha mesmo? Não me dei ao trabalho de tentar estar, pode
acreditar.
Tina e Clara também estavam. As duas usavam vestidos leves e frescos.
— Estamos prontas para o calor de hoje — disse Tina, radiante.
Rimos e caminhamos para o quiosque, pouco tempo havia passado e
Tiago já não sabia para qual delas dar atenção, o príncipe já estava tomado
pelas garotas, todas sentadas à mesa maior, haviam ocupado tudo.
Nós nos olhamos e levantamos a sobrancelhas.
— Lá vamos nós para a mesinha do castigo — disse Clara.
Sentamos, rindo, dessa vez me sentei de costas para Tiago e ficamos
comendo e falando sobre locais a explorar.
Animadas com o lugar, fizemos planos para o dia todo e foi bem
agradável, apesar de os gritos me acompanharem todo o tempo...
Os dias passavam rápido no harém, já fazia três dias e eu não tinha me
aproximado de Tiago. André apareceu poucas vezes para me ajudar com
algumas coisas e conversávamos o mínimo.
Ele não tinha descoberto nada sobre alguma concubina do rei no nosso
meio e eu menos ainda. Depois de pouca conversa, ele saía para fazer suas
tarefas, já eu, estava sempre andando com Tina e Clara.
Estávamos nos dando bem e nesses dias por várias vezes ao dia Tiago
veio falar conosco, eu apenas respondia quando ele falava comigo, não
puxando assunto em nenhum momento.
Nosso quarto dia. Era de manhã e seguíamos à nossa mesinha do
castigo que agora mais parecia nosso ponto de encontro, continuei passando
por Tiago o ignorando completamente como nos dias anteriores, e como
sempre, ele me seguia com o olhar.
Era um jogo e eu venceria, pois tinha coisas demais em mente para
ficar o bajulando e ele já tinha garotas demais em cima dele fazendo isso, e
ainda não tinha engolido a afronta do primeiro dia de nos deixar isoladas.
Agora ficávamos ali por nos sentirmos bem, nem mais nos
importávamos de estarmos separadas das outras.
Então, mais um dia, a conversa matinal seguia tranquila, primeiro
combinamos de investigar o jardim.
Era imenso e queríamos ver tudo o que tinha nesse harém, já tínhamos
nos aventurado pelo grande lago, depois o lago termal, amei deixar os pés na
água quentinha enquanto conversava com Tina e Clara.
No terceiro dia ficamos a dormitar embaixo das árvores e depois como
belas futriqueiras, passamos o dia tentando alcançar as altas janelas do salão
fechado, decepção foi ter conseguido e encontrado um local amplo e vazio.
Mas agora tínhamos mais coisas para olhar e muitas meninas para nos
esquivar, então, como sempre, começamos os planos.
Clara sugeriu, já animada:
— Se não der tempo, podemos ir ao pomar amanhã.
— Tem uma caverna escondida nesta floresta também — disse Tina.
— Mas será que podemos ir lá? — perguntou Clara.
— Não sei, mas faz parte do harém e é meio longe, dentro da floresta
mesmo.
Ela se abaixou na mesa e sussurrou para nós duas:
— Dizem que lá tem alguns locais muito sugestivos para os maridos.
Parei com a colher de aveia perto da boca. — Que tipo de sugestivo
você diz?
— Para homens que gostam de fazer a mulher sentir dor. —Tina
enrubesceu ao dizer isso.
Fiquei com aquilo me incomodando o resto do café da manhã, ela dizia
não ser dali, mas então como poderia saber sobre essa caverna? Nem mesmo
as criadas de Samuel tinham comentado sobre aquele lugar.
— Está bem, Diana? — Clara perguntava.
— Sim, desculpa, estava pensando na caverna.
Tina pareceu ficar meio nervosa e eu não podia perdê-la ainda.
— Estava pensando que poderíamos nos aventurar por lá amanhã, logo
cedinho, o que acham?
Ela relaxou visivelmente e então minha desconfiança em relação a ela
aumentou, por agora seria apenas observar sua reação. Então, ainda a
analisando, eu continuei: — Poderíamos dizer que íamos fazer um
piquenique por aí e então iríamos lá, o que acham?
Tina se animou, mas Clara pareceu receosa.
— Não sei, Diana, não me parece uma boa ideia, um local que
basicamente ninguém comenta pode ter, sei lá, pessoas esperando a gente. —
Ela me olhou, preocupada. — Homens escondidos, você sabe.
Eu sabia o que ela queria dizer, um local com tantos lugares secretos
poderia não estar realmente seguro e ali dentro do harém nossa casta não nos
protegeria, éramos supremos não nobres, ainda assim, queria saber a reação
de Tina e ela não me decepcionou.
— Não tem perigo, Clara — falou, totalmente empolgada. — Somente
o rei pode ir lá, em geral é proibido, somente ele ou com ordem dele.
Te peguei! — pensei, triunfante. Eu sabia que ela escondia algo, aquele
jeitinho meigo tinha me enganado de início, mas aquele rosto vermelho
quando comentou sobre a caverna me parecia estranho para alguém que
deveria ser virgem e ainda não ligar para essas coisas.
E o pior, tinha falado com tanta naturalidade quando disse que apenas o
rei ia lá, precisava falar com André, uma espiã do rei eu já tinha encontrado.
Depois que terminamos o café, saímos do quiosque conversando,
distraídas.
— Meninas, posso caminhar com vocês?
Tiago estava vindo apressado atrás de nós. Eu pretendia dar uma
desculpa para ir ter com André assim que fosse possível, mas pelo visto, não
seria tão cedo...
— Alteza, será uma honra — eu disse, depois de uma vênia singela.
— Acho que já está claro que neste mês, esses tratamentos não serão
necessários, Diana.
Não respondi, não queria criar caso quando tinha algo realmente
importante a dizer, mas não dava, não quando Tina e Clara estavam conosco.
— Desculpe, Tiago, é hábito.
Ele sorriu e eu pude ver seus dentes brancos e perfeitos, tinha um belo
sorriso. Se era verdadeiro, eu não sabia.
— Que bom que vamos nos acertar em relação a isso.
Tina e Clara andavam quietas ao nosso lado e então Tiago puxou
assunto com Tina.
— Belos olhos você tem, cor de avelã, dizem que castanhos são olhos
de pessoas verdadeiras.
Tina ficou corou fortemente e gaguejou ao agradecer.
— Obrigada, Tiago.
— É forasteira, não é? Nunca a vi nos bailes da casa real.
— Sim, venho de uma extensão de terra fora das muralhas.
— De que família é?
— Família Pascoal. Me chamo Cristina.
— Muito prazer, Cristina... E você vem de que família?
— Me chamo Clara. Venho da casa Machado.
— Sim, conheço. Eles têm como negócios a cunha, não é?
— Sim, senhor. Vosso pai, o rei, sempre solicita os trabalhos de meu
pai.
— É mesmo? Não sabia que nossos soldados precisam sempre trocar de
armas.
— Ah, não, senhor, não são apenas espadas, escudos e essas coisas. São
coisas variadas, coisas que nem são para o exército.
Aquela conversa estava ficando boa… para mim, porém, se Tiago
continuasse perguntando e se Tina realmente fosse espiã, ele colocaria Clara
em perigo e ela parecia saber muita coisa.
Coisas demais para o próprio bem, afinal, veio dela o comentário sobre
as masmorras e ela não estava errada, eu tinha que tomar uma atitude e tinha
que ser logo. Clara não era daquelas que parava de falar, ao contrário, se
empolgava, então meio sem saber o que fazer, cortei Clara.
— O que acham de irmos ao pomar? Lá poderíamos fugir um pouco
desse sol e ainda conversar mais tranquilas, nós três. —Tina se animou e
Clara também.
— Que bom que estão se divertindo aqui na floresta, eu tenho que
conversar com algumas garotas ainda, então… Tenham um bom dia,
meninas. — Antes de se afastar, Tiago me olhou, gelado.
Eu o tinha claramente dispensado de nosso programa, claramente
deixado um recado que sua presença não me interessava em nada, mas eu não
podia voltar atrás, ele estava andando em caminho perigoso e eu tinha que ter
feito algo.
Não me senti bem a manhã toda depois disso, até o horário do almoço,
ainda assim, conversava com as duas, ria e brincava. Imaginei, depois de
estranhar meu mal-estar, que o olhar de Tiago tinha me afetado.
Quando caminhamos de volta para o almoço, eu me despedi das duas e
entrei no quarto, não tinha fome, mas tinha sono, deitei-me na cama e
adormeci praticamente na mesma hora.
Acordei com a sensação de alerta, tinha alguém no quarto. Tiago estava
sentado na poltrona, olhando fixamente para mim.
— Está bem?
— Como entrou aqui? André me disse que ninguém tinha a chave além
dele e de mim.
Ele apenas sorriu, era óbvio que ele podia entrar onde quisesse.
Suspirei.
— Não se dê ao trabalho, estou muito bem, sentia apenas muito sono e
vim dormir um pouco, mas já estou melhor e de tão bem que estou, me sinto
faminta. — Queria que ele saísse logo do quarto, sua presença me deixava
incomodada e ele percebeu, pois estava ligeiramente irritado.
— Claro que está, perdeu o almoço e o jantar e é madrugada, por isso
fiquei preocupado com seu sumiço e vim ver se estava bem. E de nada por
isso.
Ignorei sua ironia. — Madrugada? Não pode ser.
O que estava havendo? Eu tinha sido drogada? Alguém ali sabia usar as
ervas e precisava descobrir quem, com Tiago sentado na poltrona me olhando
eu não conseguia raciocinar direito, estava com o lençol puxado até o
pescoço e não sabia o que pensar, nem como agir.
— Diana. — André saiu das sombras, ele estava ali o tempo todo e por
conta de estar incomodada com Tiago não o percebi.
— André. — Levantei correndo, me esquecendo da roupa fina e a visão
que ela ia oferecer, o peguei pela mão o fazendo sentar.
Olhei nos olhos dele. — Entende de botânica?
— Um pouco, entendo um pouco de tudo.
— Podemos ir para o pomar ou para um local reservado?
Não queria falar nada ali, mas precisava conversar, queria falar sobre
Tina, e tentar entender como alguém tinha me drogado, ele entendeu minha
urgência.
— Todas dormem pesadamente, Diana, preparei o chá para que assim
fosse, estranhei esse sono tão longo, por isso me adiantei, desconfia de
alguém?
Tiago parecia constrangido com a conversa cheia de confiança entre
mim e seu servo, o que para ele tinha que parecer impossível, já que eu estava
sem saber o que conversar com ele.
Suspirei, pensativa, não tinha como excluir Tiago da conversa, mas não
tinha intenção de ficar bajulando o mimado real só porque estava emburrado.
— Não, André, aqui não. Precisamos conversar realmente, mas este
lugar está infestado de cobras e se alguém não dormiu pode nos ouvir, se
realmente você estava certo… Eu tenho um nome.
André olhou para o príncipe. —Tiago, precisamos ir para o pomar, se
importa de nos acompanhar? Precisamos falar.
Achei interessante essa intimidade dos dois quando estavam a sós, não
era só confiança entre eles, era como se fossem irmãos.
Tiago se levantou rápido e falou ríspido, olhando para mim, mas
respondendo André:
— Não me importo. Aliás, faço questão de ir junto.
Depois de nos encarar de modo desconfiado, ele saiu pela porta pisando
duro e nos deixando a sós.
Olhei para André, confusa com aquela reação. — Ele está achando que
estamos tendo um caso?
André riu. — Sim está, deve estar achando estranho um servo como eu
ter essa intimidade com você, se ele soubesse o que andamos conversando,
jamais pensaria isso, ou que é um vovô e uma criança.
Dei um tapa em seu ombro. — Pare de dizer isso, e vamos logo, e não
sou criança mais, essa criança ficou no passado.
Ele novamente me estendeu um casaco sem dizer nada e seguimos
noite afora.
André ia à frente, eu no meio e Tiago ia quieto atrás, se eu o
conhecesse bem diria que estava irritado, era apenas uma desconfiança.
Poderia estar errada, ele tinha que parar de ser tão mimado, não resisti e
segurei de novo na camisa fina de André.
— Ainda com isso?
— Oras ande, não rasgarei sua roupa, se é o que teme.
— Se o fizer, terá que me comprar uma nova.
— Pai eterno! Nem conseguirei pagar por tamanha iguaria.
— Aceito o valor em moedas de ouro.
— Me avise para que eu traga uma carroça com os sacos.
— Farei isso.
Eu sabia, ele estava brincando comigo para amenizar o clima, não
estava ajudando muito. Tiago passou a pisar duro e eu conseguia ouvir seus
suspiros profundos de raiva, André também conseguia certamente e então nos
calamos.
Passamos pelo pequeno portão, o centro do pomar era uma pequena
pracinha e ali a lua cheia clareava boa parte do local. Tiago pareceu contar os
minutos porque assim que paramos ele explodiu.
— Posso saber o que está acontecendo aqui e que diabo de intimidade é
essa entre vocês dois? — Ele olhou para mim, possesso. — Para mim, você
nem olha. Hoje... apenas hoje me chamou pelo nome, isso depois de eu
corrigi-la quando me tratou com extrema frieza perto das outras meninas, mas
foi apenas isso. E depois acabou me dispensando como um cão sarnento
quando me aproximei de você e suas amigas e agora com o André, parece até
uma vadia!
Não aguentei, o tapa foi certeiro limpo e quase nem fez eco.
André entrou na frente de Tiago para protegê-lo por hábito, mas ele o
tirou da frente, se aproximando e parando bruscamente. Me encarou bem de
perto e eu sustentei seu olhar.
Jamais iria permitir que ele me tratasse dessa maneira, ele chegou ainda
mais perto, abaixando a cabeça e encostando seu nariz ao meu, seus olhos
ardiam de raiva, quando falou senti seu hálito de cravo, não achei ruim, ao
menos não era sálvia.
— Como ousa? Eu poderia matá-la com minhas próprias mãos, poderia
lhe ensinar a ter mais respeito, poderia…
Não o deixei terminar a frase. — Faça isso. Prove que eu estou certa e
André errado, mostre que é tão igual, ou mesmo pior que seu pai. André
sempre te defendeu, mas eu sempre tive minhas dúvidas!
— Como assim, sempre? Você o conhece desde quando, para ter
confidências com ele? Qual o vínculo real de vocês dois? Vamos, me diga.
Antes que eu respondesse, ele se afastou pisando duro e agora olhava
de André para mim e vice-versa cobrando uma resposta.
Cruzou os braços e manteve seu olhar de um a outro exigindo que
tomássemos atitude e o respondesse.
André me olhava, pensativo, parecendo pesar o que ia dizer, já eu não
sabia o que falar, não poderia pôr André em situação complicada e nem me
complicar, mas as coisas haviam chegado a um ponto perigoso, não imaginei
uma reação tão explosiva de Tiago.
André também sentia isso, porque olhou para ele com preocupação e
pensativo, então, por fim, falou de uma vez, me fazendo travar como um rato
acuado por um gato, e um gato muito raivoso.
— Ela é a sobrevivente da chacina, de mais de dois anos atrás.
Tiago apertou os olhos para o nada, parecia tentar absorver aquela
informação.
— Espera! O que disse? Você tentou assassiná-la e ela confia em você
ao ponto de trocar confidências, é isso? E não era para essa menina ter
dezessete anos? O que diabos está acontecendo aqui? — ele gritou, olhando
para mim.
Eu estava paralisada, em poucas palavras eu fui desnuda, desarmada e
estava nas mãos de Tiago. Entendia André, estava em uma situação
complicada para poder explicar sem comprometer a história com lacunas.
Suspirei, derrotada, hora de falar toda a verdade e esperar entrar na
masmorra, me veio o pensamento idiota de que, pelo menos, ia morrer
sabendo o que diabos o rei fazia lá dentro. Sentei-me no banco e fiquei em
silêncio, tentando imaginar como faria agora.
André se sentou ao meu lado. — Me desculpa, não tinha outra saída.
Apertei sua mão e fiquei quieta um tempo, depois falei em um sussurro:
— Eu sei.
Tiago ficou olhando para nós dois sem dizer nada, parado em pé nos
analisando, André olhou para ele e se levantou, falando:
— Vou deixar vocês dois a sós, enquanto conversam, cuidarei dos
arredores para ver se não tem nenhum curioso com insônia por aí.
Pela primeira vez, ele beijou minha mão com carinho, aquilo era mais
um pedido de desculpa, eu sabia.
— Com licença, senhor.
Tiago não disse nada, apenas olhava fixo para mim. Apontei o banco.
— Acho melhor você sentar, Tiago, se quiser realmente ouvir toda a
história.
Em silêncio, ele se sentou ao meu lado, distante no banco, e esperou.
Respirei fundo, se era para contar que fosse do início.
— Eu vi cada menina ser morta por Samuel. Vi quando ele as violou de
todas as formas possíveis e quando as estripou com extrema crueldade, fez
isso com as seis primeiras, apenas as últimas não sofreram abusos, porque ele
já estava cansado de brincar com elas.
“Rezei como nunca para não ser encontrada por ele, e tive sorte de ser
encontrada por André, até então não sabia que seu nome era esse, fiquei
sabendo os nomes quando os dois discutiram dentro do celeiro.
André estava indignado de como as coisas tinham sido feitas por
Samuel, estava abobado com sua crueldade, ouvi cada palavra e André sabia
que eu ainda vivia, quando achei uma oportunidade de fugir, foi ele quem me
descobriu e me ajudou, me guiando pela floresta até me deixar fora dos
domínios dos humanos.”
Tiago ouvia quieto e atento. Fiquei confusa, não sabia se contava essa
parte ou não, depois de um tempo em silêncio, enquanto tentava achar
palavras para continuar, ele olhou fixo para mim.
— Então você foi salva pela família Salazar, é isso?
Balancei a cabeça negando.
— Como foi pertencer a essa família, então?
Era uma dúvida que não poderia deixar de sanar, Tiago continuou com
as perguntas.
— Você tinha que ter quase dezoito anos, por que aparenta mais de
vinte?
Essa era a lacuna que eu não poderia preencher, só me restava contar a
verdade de uma vez e deixar o destino cuidar do resto.
— Fui salva pelo príncipe Nicolae. Um dos três sombrios, ele me achou
na floresta e me levou para casa deles, me salvaram a vida me dando uma
mistura de sangue deles, o meu e uma mistura preparada por Rael.
“Essa mistura foi diluída o suficiente para que eu não virasse uma
sombria, que ficasse com a imortalidade, assim eu não poderia morrer com a
punhalada e a perda de sangue.”
Tiago apoiou o queixo na mão, pensativo, me olhando com curiosidade.
— Quer dizer que você não é humana?
— Graças aos céus, não.
— Odeia tanto assim os humanos?
— Não confio em humanos.
Ele franziu o cenho. — Mas confia em André? O homem que, mesmo
que fosse contra a vontade, quase te tirou a vida? Trata-o com respeito, ele é
tão humano quanto qualquer um de nós.
Olhei fixo em seus olhos. — Sabe tanto quanto eu que ele não é
humano, Tiago.
Mesmo na pouca luz da lua, eu vi que o sangue sumiu de seu rosto.
— Foi ele que te contou isso?
— Sim, foi.
Ele passou a mãos pelos cabelos se despenteando todo. — Não dá,
estou mais confuso agora, ele nunca contou isso a ninguém antes, você é a
primeira. — Se virou para mim, em tom acusatório e perdido em dúvidas. —
Desde quando vocês mantêm contato, e por que diabos vocês têm essa
relação de amizade, mulher? Ele quase te tirou a vida, pelo amor de Deus.
Mesmo naquela situação, não pude deixar de achar graça em seu
desespero, e achei cômico o estado de seus cabelos, parecia um ninho de
pássaros de tanto ele passar a mão por eles, tentando entender aquela
bagunça, ele estava realmente confuso.
— André salvou minha vida depois de tentar tirá-la, me deu uma
família de verdade. Eva, Rael, Dimitri e Nicolae são tudo o que tenho. Esses
quatro me tiraram o trauma daquele funesto dia, me ensinaram a ler, escrever,
me vestiram como uma pessoa decente.
Ele estava parado, olhando para mim e absorvendo tudo o que eu dizia.
Olhei para meus dedos e levantei os ombros.
— Me adotaram literalmente, era para eu ser esposa de um deles ou de
um sombrio do reino, mas eles me deram o livre arbítrio, me salvaram sem
pedir nada em troca, me amaram incondicionalmente e isso conta muito para
mim.
— Mas você odeia os humanos, não é?
Bati com a mão fechada na palma da outra mão.
— Odeio, odeio a raça humana, mesmo tendo o meu humano
preservado, ainda assim os odeio, eles falam tanto que são superiores às
outras raças, mas não sabem ter a metade da honra dos antigos, não respeitam
sua própria espécie, nem respeitam as mulheres, apenas as tomam como
animais.
Ele se sentou ao meu lado novamente. — E como pode ter certeza de
que os sombrios não são assim também?
— Porque eu vivi com eles mais de dois anos depois disso, vi seus
costumes, a maneira como tratam seus criados, lá também os criados têm
filhos, sabia? E ainda assim, deixam o destino cuidar de tudo.
“As crianças lá são apenas crianças que fazem coisas de crianças,
brincam nos quintais em dias quentes, recebem agasalhos quando falta em
dias frios, não falta nada aos criados, nem mesmo dignidade. Suas roupas não
são restos de gente rica, são roupas normais, quentes, limpas e sem remendos
por todos os lados.
Não há estupros, não há castas, não há falta de respeito com as
mulheres, não tem nada das merdas que tem aqui, então se me disser que esse
costume não é de uma raça superior, precisará me abrir os olhos e me dizer
qual humano pensa como eles, que eu volto a acreditar nos humanos.”
— Eu.
Olhei para ele, estava sério e seus olhos estavam fixos em mim.
Eu ri. — Você mandou vir mais de trinta meninas para um harém, para
poder escolher uma delas que seja de seu agrado para desposar, não me venha
com essa.
— Porque preciso conhecer a mulher com quem vou me casar, ou que
vou me apaixonar, não me importa se ela casará comigo, quero saber como é
estar apaixonado, saber como é lutar por um amor.
“E com tempo poder ver essa mulher talvez se interessar por algum
encanto que eu possa vir a ter, não quero receber uma mulher empacotada
como entrega, por conta de um maldito acordo financeiro.”
Ele me olhou nos olhos, antes de continuar:
— Não tinha outra escolha, não tinha como sair andando por aí à
procura de uma garota que não me visse como troféu, ou a chance de um pai
de ganhar um título. Nem poderia me disfarçar e andar pelas extensões do
reino, meu pai saberia, usei as armas que tinha para tentar realizar isso.
Ele estava tentando fazer algo diferente e já era um começo para mim.
—Tudo bem, eu entendo sua situação, também usei as armas que tinha
para chegar aqui, tenho uma família mantida prisioneira enquanto Dimitri,
Eva e eu nos passamos por eles.
“A família Salazar não tem filhos, venderam todos os homens e
negociaram as filhas com os licans, escondido do rei.
Agora são apenas um casal miserável e corrupto que só pensava em
enriquecer debaixo das barbas do rei, em seus planos incluía criar um
pequeno reino somente deles com o apoio dos licans que teriam como
pagamento vitalício metade de todos os filhos dos escravos que aquela
imensa fazenda poderia fornecer. Agora, se eles fizeram isso, outras famílias
lá fora podem estar fazendo o mesmo.”
Tiago ouvia tudo atento agora, estava tenso com o que ouvia.
— Meu pai está criando uma encrenca daquelas para ele no futuro.
— Não o preocupa isso?
— De jeito nenhum. Não me importo com o que poderá acontecer a ele,
mas como sabe de tudo isso?
— Porque todos os criados das duas fazendas que tomamos foram
levados ao reino sombrio e contaram tudo a Rael.
“Ainda estão sendo vigiados de perto pelos criados antigos do reino,
para que não fujam ou traiam meu povo, mas alguns já têm adoração por eles
por conta da maneira como foram tratados desde que chegaram lá.”
— Os três sombrios pretendem contar isso ao meu pai? Sobre essa
trama de traição fora das muralhas.
— Era a ideia inicial, mas depois de muita conversa, decidiram por não
o fazer, pois isso só manteria ainda mais forte o poder do rei. Abrir os olhos
dele para essas conspirações é fortificar o poder dele e assim ele com mais
poder, pode atacar silenciosamente os sombrios e as chances deles de
sobreviverem à extinção seria ainda menor do que agora.
— Entendo.
Ele ficou um tempo em silêncio, refletindo visivelmente mais calmo e
então me olhou com aqueles olhos ciumentos de novo.
— André? Ainda não entendo como ficaram tão próximos.
Revirei os olhos. — Isso está me parecendo mais ciúme do que
curiosidade.
— Na verdade, não posso negar que seja, você diz odiar os humanos.
Me odeia?
Eu ri e pensei sobre isso. — Não, acho que não, André teima que você
é diferente, talvez até seja. — Olhei para ele de canto de olho, antes de
continuar: — Pelo menos até agora mostrou isso.
— Então por que me trata mal, desde que nos conhecemos?
— Acha que te trato mal?
— Na verdade, parece que não existo para você, todas as garotas
pularam em meu pescoço desde o primeiro minuto e você nem me dirigiu à
palavra e sempre que me aproximo, pareço incomodar você de algum modo.
— Me desculpe se fiz parecer isso, você não fazia parte de meus
planos. E bem...
Fiquei sem graça, mas ele foi sincero comigo.
— Na verdade, você parece fazer de propósito isso de sempre aparecer
no momento inoportuno. No baile, na frente de nossa casa na vila dos
forasteiros e então quando eu estava com Clara e Tina, tinha acabado de
descobrir uma traidora e aí você chega, conversando sobre assuntos
comprometedores.
Uma meia-lua de um sorriso se formou em sua boca. — Vendo por esse
lado, você tem razão, mas hoje no quarto, quando você acordou não gostou
de me ver ali, no entanto, ficou muito satisfeita quando viu André.
Torci a boca, ele ia mesmo insistir nisso do ciúme. — Talvez eu tivesse
agido daquela maneira porque estava de camisola.
Ele levantou as sobrancelhas e eu fechei os olhos, respirei fundo e
puxei o resto da paciência guardada para usar com ele e era tão pouca, ele não
devia abusar muito senão poderia gastar toda ela.
— André já tinha me visto vestida assim, e ele me vê mais como uma
filha, não sei explicar, Tiago, mas o que sinto por André é um profundo
respeito, devo minha vida a ele, entenda isso, ele me passa segurança.
— Mesmo tendo tentado tirar sua vida uma vez?
— Mesmo tentando me matar, eu confio nele.
Tiago voltou a abrir um meio sorriso ao olhar para mim e falou:
— Isso me parece bem, se ficou com vergonha de mim por sua roupa
transparente e não ficou de André, então nem tudo está perdido para mim,
não acha?
Senti o rosto queimar, não tinha pesado minhas palavras, mas ao dizer
que me incomodava ele me ver quase nua e não André queria dizer que ele,
eu via como um perigo. Ele percebeu que fiquei sem graça e então emendou:
— Então eu não estava em seus planos, não é, senhorita Salazar?
Eu não ia deixar a conversa tomar esse rumo, como se não tivesse
entendido seu tom eu, continuei contando:
— André me disse que lhe contou sobre Samuel e a chacina e então
você pediu para seu pai interceder no noivado para me proteger.
Lembrei-me de uma coisa e levantei o olhar para ele.
— Por que parou a música naquele dia no baile? Sei que foi você,
porque o vi cochichando algo com os músicos e então a música cessou.
— Porque parecia que você estava dançando com um fantasma muito
feio e não com o noivo que dizia amar, então como bom cavalheiro salvei a
donzela em perigo, ganhei pontos agora por isso?
Revirei os olhos, ele era insistente, mas não ia dar esperanças falsas a
ele.
— Agradeço por isso, mas de todo jeito, você não está em meus planos.
Ele não esboçou reação ao ouvir aquilo então me senti mais à vontade
para continuar:
— Só precisava tentar descobrir o motivo de o rei ter boicotado a
entrega aos Sombrios, o motivo de ele querer dizimar com a raça e por que
tende tanto para o lado dos licans, chegando a fornecer mulheres para que a
raça deles aumente, enquanto a nossa some.
— Não conhece nada mesmo dos planos de meu pai, não é?
Senti meu coração acelerar, pelo seu tom, ele iria me contar, e as
respostas para tudo viria de quem eu menos esperava.
INTENÇÕES DECLARADAS
Eu estava nervosa. Sempre tinha mais medo por eles do que por mim,
medo de alguém reconhecer Dimitri ou mesmo o rei o achar muito parecido
com os três sombrios e medo até por mim e por sua reação.
Mas ali estava ele, adentrando o portão do harém. Parecia ainda mais
velho do que quando o vi partir, se aproximava devagar com o semblante
fechado me olhando fixo.
— Papai! — Eu o abracei assim que ele chegou perto, não consegui
correr para abraçá-lo, já que nem andar direito eu estava conseguindo.
— Querida! — Ele me abraçou forte e eu dei um suspiro.
Não me soltou, manteve o rosto apertado ao meu e falou baixo perto da
minha orelha. Isso foi o suficiente para eu saber que ele estava irado.
— Está ferida, sinto cheiro do seu sangue desde a alameda da casta
nobre e de remédios e o cheiro de seus hormônios por causa de febre, se não
fossem as ervas na muralha, teria sentido de muito mais longe.
Ali não era local e como eu o conhecia muito bem, sabia que ele estava
no limite de seu autocontrole.
— Não foi nada, só um ferimento de leve.
— Por isso suspirou de dor quando a abracei e não conseguiu correr
para mim?
O tom de sua voz me deu medo. Dimitri não era um homem de se
brincar quando estava bravo e muito menos de conseguir acalmar com
facilidade, dos três irmãos era o mais explosivo, não se controlava fácil.
Eu abaixei ainda mais a voz e falei, rápido:
— Dimitri, por favor, não foi nada de mais e te conto quando sairmos
daqui.
— Nem mais uma palavra, você vai embora comigo.
— Por favor, vamos conversar, eu vou explicar tudo, tente se acalmar.
— Senhor Salazar, uma carruagem o espera para que possa conversar
com sua filha tranquilamente, eu serei seu cocheiro.
André estava pronto para nos tirar dali. Dimitri não respondeu, suas
pupilas estavam arroxeadas quase chegando ao vermelho no centro, ele
precisava mesmo se acalmar.
Quando ele me ajudou a entrar na carruagem, Tiago nos esperava ali
dentro. Dimitri fechou a portinhola com um único movimento forte e seco,
assim que a carruagem andou, ele avançou em Tiago, o pegando pela camisa
e o olhando bem de perto falando alto e irado.
— Você a trouxe para o perigo e eu vou matar você por isso,
principezinho.
Tiago não fez nenhum movimento, apenas o olhou nos olhos e ficou
branco, eu levantei e me enfiei no meio dos dois, sabia que o medo de Tiago
era dos olhos dele, pois estavam realmente assustadores.
— Dimitri não, por favor, se acalme não foi culpa dele, me escute.
Dimitri estava possesso, me olhava com fúria, mas não me tirou da
frente de Tiago, ficou ali me encarando, enquanto eu o defendia.
— Não? Ele que a fez vir aqui para ficar presa nesse lugar onde não
podemos garantir sua segurança e você diz que não foi culpa dele? Já
imaginou o que aconteceria se não fosse eu disfarçado de pai? Imaginou o
que aconteceria se fosse Nicolae? Vai para casa, sim, e está resolvido.
— Diana, seu ferimento. — Tiago parecia preocupado, apontando para
minha cintura, se era preocupado comigo ou com Dimitri ficar ainda mais
irado, eu não sabia dizer.
O ferimento tinha voltado a sangrar por causa do movimento brusco,
não me importei.
— Não é nada, Tiago, isso sara.
Dimitri pareceu entrar em um torpor estranho. Farejou o ar e logo
sentou e me puxou com ele me tirando de perto de Tiago, soltando um silvo
em sua direção.
Dimitri avaliava meu ferimento, logo começou a falar e sua voz foi
mudando antes de chegar ao fim da frase.
— Não pode ser, ou estou maluco, ou eles usaram sangue sombrio em
você.
Senti um estremecimento e fiquei rígida, como poderia ser?
— Mas como eles conseguiram isso?
Ele não respondeu, aquilo pareceu enfurecê-lo ainda mais, o que aquilo
significava? Por que ele tinha ficado daquele jeito? Eu estava ficando
transtornada com a situação.
Dimitri quase perdendo a consciência, quase entrando em estado de
caça com o príncipe humano ali dentro do carro.
Eu, ele nunca machucaria, mas Tiago com certeza ele o mataria, estava
cego de fúria e não teríamos forças para lutar com ele.
Temi que ele estivesse perdendo a consciência e se deixando manter em
caçador, se isso acontecesse…
Comecei a chorar, não sabia como acalmá-lo. Queria Nicolae ali
comigo ou Rael para resolver aquela situação, segurei seu rosto e o fiz olhar
para mim, nessa parte não tinha experiência com os príncipes e apelei para o
pedido, por implorar, era só o que eu saberia fazer para trazê-lo de volta.
— Dimitri, por favor, volta para mim, não vá, fique comigo, por favor.
Agarrei-me em seu pescoço e me encolhi, me apertando o mais que
consegui em seu corpo, ali fiquei, chorei de medo e de angústia por não saber
como pará-lo.
Chorei de receio por Tiago e André e de medo por ele mesmo que
transformado nada o pararia até ser morto e estávamos dentro do castelo,
seria fácil pegá-lo.
Tiago se mantinha em silêncio atento a tudo o que acontecia, seus olhos
fixos em mim, parecia pronto para me tirar dali.
— Diana, não acha melhor…
Ele se calou quando eu estiquei a mão em sua direção, pedindo para
que ficasse em silêncio, sua voz não ajudaria muito Dimitri a voltar a si.
Fiquei agarrada a ele por um bom tempo, tentando ouvir seu coração
voltar a bater. Aos poucos ele se acalmava e logo senti sua mão em meu
cabelo e ouvi a batida retornando, lenta.
— Não vou morder ninguém, se é o que teme, mas vou matar quem fez
isso com você. Estamos encrencados, Nicolae vai me matar por ter ajudado
você a convencê-lo a aceitar essa ideia idiota de voltar ao reino.
“Sorte sua que para você ele jamais faria algo, já eu, pagarei por nós
dois com Nicolae, se não for ele será Rael, e ele é pior, me porá a dormir por
cem anos, e com ele você também terá castigo.”
Ele suspirou, desolado, olhando para mim.
— Estamos encrencados, Diana, e não sei como nos tirar dessa
enrascada com eles.
— Não conte a Nicolae, ele vai vir me buscar, vai se arriscar e não vai
querer saber de nada, prometi a ele que qualquer coisa errada eu iria embora,
mas isso não é nada, Dimitri, é só uma maluca desesperada, confie em mim,
por favor.
Apertei sua bochecha enquanto olhava fixo em seus olhos, mas ele
balançou a cabeça.
— Nicolae sentirá o cheiro do seu sangue em mim, não importa se eu
lave o dia todo para tirar e você sabe disso.
— Ele não pode saber, me prometa, Dimitri.
— Eu prometo, pronto prometo, pare de chorar, inventarei algo sobre
algum corte sem gravidade. Só que eu quero saber tudo o que está
acontecendo nessa porcaria, Diana, e você vai embora para casa, não vai ficar
aqui mais nem um minuto ao lado desse banana que nem para te proteger
prestou.
Senti vontade de cravar minha unha na sua bochecha de raiva, tinha
acabado de pedir para ele não contar a Nicolae para que não viesse me
buscar, ele prometeu e queria me levar.
Dava-me uma raiva de Dimitri às vezes, então nem precisava mentir a
Nicolae, mas finalmente o clima tinha acalmado e poderíamos conversar e eu
queria saber tudo sobre isso de sangue sombrio como veneno.
Tiago começou a falar, visivelmente envergonhado.
— Sei que mereço esse tratamento, mas acredite em mim, foi tudo
muito rápido. Não sei o que Diana tem, que parece ter assustado as garotas,
elas a têm como um perigo. Parecem temer a presença dela.
Dimitri pareceu orgulhoso ao ouvir aquilo e ali estava o velho terceiro
príncipe de sempre.
— Ela tem personalidade forte, isso assusta até nós quando ela fica
brava.
Tiago sorriu, concordando com a cabeça. Dimitri voltou a ficar sério.
— Sabe que ela tem apenas corpo de mulher, não sabe? Ainda tem
mente de menina
Fechei a cara, odiava quando ele falava isso, ainda mais para o homem
que tinha me beijado de manhã, e ele nem ligou, sabia que eu não gostava,
mas quando se tratava de bancar o irmão mais velho, ele conseguia ser idiota
e se sentir bem com isso.
Enquanto ele falava, levava o dedo distraído à boca e passava no corte
de leve, fazia isso o tempo todo e Tiago parecia hipnotizado com a
intimidade, e eu revirei os olhos para ele olhando para minha cintura, para os
movimentos do dedo de Dimitri ali.
Só então percebi o buraco no tecido e eu não tinha percebido quando
ele o tinha rasgado.
— Dimitri você rasgou meu vestido!
Ele me olhou sério.
— Veja isso como um golpe de sorte, eu queria mesmo era rasgar o
pescoço de seu príncipe, agora vire que preciso cuidar disso.
Fiquei de bruços em seu colo, ele passou a língua pelo ferimento,
mordendo em seguida.
— Ai! — Tentei me mexer, mas ele me segurou com força, era uma
maldita dor forte aquela sucção.
Tiago tentou levantar-se para me ajudar, mas ele rosnou ameaçador e
eu fiz sinal negativo para que ele não interferisse.
Dimitri continuou sugando o ferimento e depois de mais um tempo,
cuspiu, me virando novamente. Seu olhar estava preocupado.
— Tenho que contar a Nicolae e Rael o que fizeram com você, Diana,
isso está além de minha promessa.
— Eles vão enlouquecer comigo, Dimitri, não pode fazer isso.
— Diana, eles precisam saber que há um sombrio por aí, não teria me
enganado com apenas o cheiro, mas agora senti o gosto e isso é grave, não
teria como eles ter sangue de nossa raça. Todos dormem. As tumbas são
averiguadas todos os dias, todas as criptas estão seladas.
Ele parou de falar e olhou torto para Tiago.
— Pode confiar nele, Dimitri, ele me confiou mais informações sobre
seu pai do que qualquer um daria.
— Certeza, Diana?
— Absoluta. E André também, como você já sabe.
Dimitri afirmou e continuou:
— Sangue de sombrio para ser usado como veneno só se for fresco.
Levei à mão a boca assim que assimilei a informação e olhei para
Tiago, falamos o que veio à cabeça naquela hora.
— A masmorra.
Virei-me para Dimitri que abria a boca para perguntar, mas perguntei
antes:
— Por que não sentiram o cheiro? Não teria como vocês saberem que
tem sombrios por aí?
Dimitri apontou para as muralhas.
— As ervas daninhas que cobrem a muralha estão ali de propósito, elas
confundem nosso sentido.
Eu não conseguia entender aquilo.
— Dimitri, quem usou em mim um punhal foi uma menina que está lá
conosco, eu sei por que ouvi seu gemido quando caiu ao correr.
Tiago estava agitado.
— Precisamos descobrir quem é essa menina e como ela tem acesso às
masmorras ou se tem algum criado que tem acesso àquele lugar. Deixarei
vocês à vontade enquanto passeiam, preciso ver o que posso descobrir.
A carruagem parou ainda perto dos portões de saída, logo percebi pela
movimentação que André dava seu lugar a um cocheiro qualquer e então
voltávamos ao harém.
Só poderíamos conversar no outro dia quando a saída para além do
castelo fosse permitida, eu precisava saber mais sobre quem usou o sangue
em mim, e já tinha em mente alguém, mas para isso precisava que Dimitri me
deixasse ficar pelo menos até o outro dia, o segundo dia de visita.
— Preciso ficar, Dimitri, não posso ir com vocês, não agora que temos
uma grande pista, e preciso de dispensa formal, não posso sair fugida.
— Não poderei te ajudar do lado de fora, Diana, ficarei com você.
— Não, você tem que ir, não pode ficar aqui, se te pegam sozinho você
não dá conta.
— Mas sem mim, você não fica!
Suspirei, contrariada, ele se manteve ali me olhando sério.
— Vamos falar isso amanhã, quando pudermos sair daqui, hoje teremos
o fim da tarde para matar a saudade um do outro, aqui dentro do harém é
perigoso.
Ele não teve tempo de responder, logo chegava André me trazendo uma
capa leve. Entreguei a Dimitri seu casaco e coloquei a capa para esconder o
rasgo no vestido e a mancha de sangue.
— Senhor, poderá ficar apenas uma hora aqui no harém e não podem
sair dos arredores do chafariz. Desculpe, senhor, ordens do rei.
Ele me olhou cheio de cumplicidade.
— Espero que apreciem a companhia e saibam que hoje todos os
aliados do rei estão condensados em um único lugar. Seja bem-vindo, senhor.
Era um aviso para não falarmos nada comprometedor, então nos
sentamos em um banco e ficamos atuando como pai e filha.
Eu estava ansiosa para conversarmos, mas a movimentação era intensa,
então depois de uma hora de mãos dadas e conversas banais, Dimitri se
despediu e partiu junto com muitos pais e mães.
Voltei para o dormitório e passei o resto da tarde deitada, dispensei o
jantar, estava cansada e com sono. Fiquei agradecida por conseguir dormir
finalmente. Doeu muito quando Dimitri sugou o ferimento, mas o efeito foi
milagroso...
Levantei de um pulo quando o sol nasceu, tomei banho e me preparei
para poder sair assim que Dimitri chegasse, estava ansiosa e não conseguia
parar quieta. André entrava com uma bandeja.
— Bom dia, Diana, trouxe algo para você comer.
— Obrigada, acha que Dimitri irá demorar?
— Não tarda e ele estará aqui, alguns pais já chegaram.
Depois que comi, segui para perto do portão de entrada e me sentei
para esperar, muitos pais já andavam por ali e percebi que muitos falavam
energicamente com suas filhas e elas pareciam nervosas.
Balancei a cabeça contrariada, com certeza se perguntavam por que
ainda não tinha conquistado o almejado título de princesa, confirmei isso
depois de me concentrar em algumas conversas.
Estava cansada de ouvir a mesma cobrança dos pais com as filhas e
depois de um tempo cansei de ouvir a mesma ladainha em todas as rodas de
conversas, então fiquei apenas olhando fixo o portão, apenas esperando.
Depois de dez minutos ali estava ele, todo envelhecido e ainda com
belas feições. Sorri enquanto o esperavam, imaginando que muitas esposas
do harém amariam serem emprestadas para o meu belo pai.
Abraçou-me com carinho, todavia não dissemos uma palavra enquanto
saímos. André novamente nos aguardava com uma carruagem, e quando
entramos, Tiago já estava acomodado.
Não dissemos nada até sair dos arredores do castelo, sentei-me em
silêncio olhando a janela, íamos pensativos até que depois de um bom tempo
de inércia me manifestei.
— Estamos onde?
— Aqui é a estrada nova — disse Tiago. — O caminho para o bairro
novo, poderemos ter privacidade, não passa ninguém, eles só vêm aqui no dia
de buscar a entrega.
Ele bateu duas vezes no teto da carruagem e ela parou e logo André
entrava, sentando-se ao lado de Tiago.
Tiago olhou para Dimitri e lhe entregou um bilhete.
— Andei fazendo umas pesquisas, desculpa não ter confiado isso a
você, Diana, mas eu precisava esperar a hora que não pudéssemos ser
ouvidos por ninguém. Depois de tudo que conversamos, coloquei André para
investigar.
Olhei curiosa para André e ele pareceu ler meus pensamentos.
— Não consegui entrar nas masmorras, porém, consegui entrar nos
calabouços do castelo e ali encontrei várias mulheres sombrias.
Dimitri ficou em choque e olhou o papel com renovado interesse.
Eu estava lívida com a informação.
— Quando descobriu isso?
— Essa madrugada, eu foquei tanto no que acontece lá em cima, que
não me toquei que poderia ter algo abaixo. Há uma escada que liga o
calabouço à masmorra então pensei em investigar, encontrei muitas dessas
ervas em potes de barro por todo lugar lá embaixo.
“Nunca tinha dado atenção antes, mas depois do que o senhor Dimitri
falou sobre elas os confundirem, achei que poderia ter algum significado e
investiguei cela a cela, acabei as encontrando em uma grande e fechada,
completamente escura no fundo. É difícil alguém ir até lá ou ficar preso
naquela cela, pois há muitas outras vazias antes dela. Era uma parte
considerada abandonada, por isso nunca levantou suspeita que estivesse em
uso.”
Dimitri bateu na própria perna soltando uma imprecação pesada e
depois voltou ao papel.
— E o que é isso?
— É o mapa das construções subterrâneas do castelo. — André
apontou em um ponto enquanto falava. — Esse x vermelho é a cela onde
estão as mulheres.
— Crianças?
— Sinto muito, senhor, nenhuma sobrevivente.
Estreitei os olhos, essa pergunta era estranha.
— Por que perguntou sobre crianças?
— Se as pegaram enquanto dormiam escondidas e elas carregassem
uma vida, a gravidez só seguiria seu curso quando elas acordassem, e
algumas poderiam estar grávidas quando foram capturadas.
— Mas não seriam somente os maridos para acordá-las?
— Isso é lenda, elas podem dormir toda uma vida ou uma era,
acordarão em algumas situações, se o líder as chamar, se suas criptas forem
violadas ou se sangue fresco lhes for despejado na boca.
— Então acho que meu pai fez a última opção — Tiago falou.
— Não pode ser, Tiago. Dimitri disse “cripta violada”, então elas
teriam acordado antes disso, quando eles a tiraram de suas tumbas.
Dimitri negou.
— Não se elas estivessem em caixões, Diana. Eles poderiam ter
movido o caixão por todo o mundo sem elas acordarem, contanto que eles
continuassem lacrados.
Eu não estava entendendo nada.
— Dimitri, elas não tinham todas morrido na guerra da Supremacia?
Ele suspirou pensativo ainda olhando o mapa.
— Foram as informações passadas ao meu pai.
— E quem passou essa informação?
— Tomé, seu servo mais fiel, segundo ele mesmo. Meu pai nunca
duvidaria da palavra dele, mas nós procuramos e não encontramos nenhum
vestígio de caixões, corpos ou tumbas com algumas delas, o que encontramos
foi um imenso monte de cinzas e então tivemos que aceitar sua palavra, já
meu pai apenas acreditou e isso bastou.
— Senhor, posso dizer o que me parece? — perguntou André.
Dimitri afirmou e escutou com atenção.
— O senhor disse que esse servo chamado Tomé, era o de maior
confiança de vosso rei?
— Sim, do nosso pai maior.
— Mas sabe dizer por que todas foram postas para dormir e quem deu
essa ideia?
Eu começava a entender aonde André queria chegar.
— Foi o próprio Tomé — respondeu Dimitri. — Ele que deu essa ideia
ao meu pai, dizendo que para preservar nossa raça, as mulheres não deveriam
lutar na guerra, pois estávamos ficando cada vez em número menor depois de
muitos anos de batalha, então um sítio secreto foi escolhido e todas elas,
obedecendo ao meu pai, se puseram a dormir para esperar dias melhores.
— Então só sabiam desse lugar o seu pai e ele?
— E mais dois sombrios de confiança de Tomé, que ajudaram a
preparar o local para colocarmos os caixões. — Dimitri parou de falar. —
Meu pai é orgulhoso demais para se aliar ao inimigo, mas os outros, eles são
traidores…
André assentiu.
— É o mais provável, senhor, e talvez só eles possam dizer o que
aconteceu de verdade e como as mulheres foram parar nas mãos de nosso rei.
— Passarei isso tudo aos meus irmãos, isso é uma reviravolta sem
precedentes e não sei como eles agirão.
— E poderemos pensar em guerra, não é? — perguntou Tiago,
preocupado.
Dimitri o encarou não como inimigo dessa vez, mas entendendo que
Tiago via a gravidade daquele ato dos humanos e os sombrios jamais
perdoariam isso.
— Considere a possibilidade mais provável.
Tiago não disse nada, não havia nada a ser dito e ele sabia, Dimitri me
olhou ansioso, seus olhos límpidos brilhavam de angústia.
— Agora preciso saber como andam as coisas aqui, pois preciso voltar
logo para o reino sombrio e levar essas informações.
Contamos tudo o que tinha acontecido, tudo sobre os gritos não
humanos na masmorra, sobre a caverna até então desconhecida de todas as
mulheres do harém e então Dimitri contou as novidades no reino sombrio.
Cinquenta sombrios tinham sido acordados, os mais próximos da
família principal e amigos de infância dos três príncipes, eles teriam um
tempo para conhecer as garotas que foram levadas.
Então mais cinquenta acordariam e assim sucessivamente, para não
assustar as mulheres tendo mais de três mil sombrios em cima delas.
Rimos daquilo, seria realmente muito complicado, mas uma pontinha
de nervoso me tomou ao pensar nisso, senti como se estivesse em risco de
perder algo importante para mim, não soube o que era.
Dimitri continuou contando as novidades, estava feliz com as novas
mudanças.
Os criados de todos os sombrios estavam em polvorosa, faxinando as
casas que estavam fechadas, caso seu senhor fosse o próximo a ser acordado.
Senti melancolia e gostaria de ver essa agitação, mesmo não vendo tanta
coisa já que os sombrios viviam relativamente afastados um dos outros.
Dimitri tinha suspirado aliviado ao lembrar que nenhum dos três
considerou chamar Tomé ou seu parceiro, pois para eles, aquele sombrio
sempre tinha sido um ambicioso inescrupuloso e agora essa desconfiança dos
três se confirmava.
Contou que Eva estava doente por conta de um traidor vindo dos
Salazar, que tinha envenenado a bebida que Rael tinha preparado para ela,
que estava acamada e por conta da idade o estrago foi maior do que ele
supunha.
Que Rael cuidava dela com total dedicação e já tinha comentado que se
ela não melhorasse das complicações da velhice, ele daria a ela a mistura,
mesmo que fosse à força, assegurando que ela ficaria bem de um jeito ou de
outro e que eu ficasse tranquila, porque Rael jamais deixaria Eva piorar.
Fiquei contente em saber disso, Eva era importante para mim, eu sabia
que bebida era essa, era um composto com vários itens e o sangue sombrio
diluído deixando bem fraco para que Eva não sucumbisse à idade.
Era feito na biblioteca privada no porão e eu não tinha permissão de ir
lá. Mesmo Dimitri não entrando em detalhes, eu sabia do que se tratava,
estranhava apenas essa dedicação de Rael, não que Eva não merecesse, mas o
jeito que ele a tratava parecia mais pessoal.
— Estranho, não acha?
— O que é estranho? — perguntou Dimitri, já sorrindo.
— Essa preocupação de Rael por Eva. Ele ter feito uma mistura a ela e
guardado por tantos anos em um cofre, e agora cuidar dela pessoalmente
quando adoece, mesmo dando a ela livre arbítrio vai forçá-la a beber a
mistura, se não conseguir curá-la.
Ele me olhou rindo com seus dentes brancos e perfeitos à mostra.
— Você é tão bobinha, Dianinha. — Bateu em meu nariz com o
indicador.
— Oras, por quê? — Esfreguei o nariz, isso sempre incomodava,
parecia que um carimbo ficava no lugar e só melhorava quando eu apagava
com a mão.
Dimitri me fitou com carinho.
— Realmente nunca percebeu, não é? Rael ama Eva, sempre amou.
Fiquei abismada, isso poderia ser lindo, se não fosse triste.
— Mas por que então ele permitiu que ela se casasse? Que
envelhecesse, já que seu marido tinha morrido?
Dimitri respondeu naturalmente, como se fosse a coisa mais normal do
mundo:
— Ela está viva e perto dele, não importa se está com ele ou não, o que
importa para ele é ela estar ali por perto e feliz. Mas agora com um problema
atrás do outro, ele vai usar a mistura nela, mesmo contra a vontade dela, se
for preciso.
— Ela não tem direito de escolher?
Dimitri me olhou nos olhos por alguns segundos e disse, sério:
— Não se pode mandar no coração, Diana, Rael a deixou livre para
viver com quem escolhesse, mas não é tão altruísta a ponto de deixá-la ir
embora para sempre.
“A vida dela é a única coisa que ele não abrirá mão, ele sabe que ela o
ama, e já o amava quando se casou, nessa época ela não estava pronta para
ele ainda porque seu coração estava novo e queria experiências novas.
Rael permitiu que ela se casasse, mas não podemos culpá-lo por não
querer que ela morra. Se não fosse o veneno, ele esperaria até ela estar
pronta.”
— E como ele saberia que ela estaria pronta para ficar com ele?
Ele demorou a responder, ficando pensativo, e então falou, olhando
para a janela:
— Não sei, Diana, ainda não tenho experiência nisso, quando eu
encontrar a mulher que vai preencher meu coração, eu te conto. Tudo o que
sei é que é alguma coisa em Eva que somente Rael pode ver. Ele saberá
quando ela o amar completamente, sem dúvidas.
— Ele vai ver quando ela o amar completamente?
Aquilo era estranho, uma pena Dimitri não saber me explicar, eu
gostaria de saber o que Rael via.
— Sim, ele verá e então saberá quando ela estiver pronta para se
entregar completamente a ele, aí sim será um amor completo.
Tiago tinha prestado atenção a cada palavra e agora nos olhava,
pensativo.
— Bonito isso — falou, um pouco emocionado. — Nunca imaginei que
vocês tratariam assim uma mulher, meu pai devia ter algumas aulas com
vocês. Não só ele, na verdade, mas eu e todos os homens humanos. Um amor
assim, depois de tanta espera, é para a vida toda, agora entendo muito mais
Diana, ouvindo a conversa familiar de vocês.
Dimitri aproveitaria a deixa, eu sabia pela maneira que ele olhou para
Tiago.
— E agora sabe o quão apreço nós temos por ela, então não a faça
sofrer, cuide dela com respeito, pois só existirá apenas uma Diana e ela é
nossa. Se ela escolher você, valorize isso, ela veio para nós como um
bichinho acuado e se transformou no que é hoje porque sabe que tem família.
Tiago ouvia pensativo e por vezes seus olhos fugiam para mim, estava
pesando tudo o que Dimitri dizia ou achando graça naquela superproteção?
Senti meu rosto ficar cada vez mais vermelho, se soubesse que Dimitri ia
encarnar o pai de verdade, não teria aceitado o beijo de Tiago e talvez agora
não estivesse com tanta vergonha de ser tratada com a idade que eu tinha
realmente, e antes, isso nunca tinha sido um problema.
Dimitri nem se importou, continuou firme, em tom de ameaça:
— Por toda eternidade, enquanto um de nós viver, ela será acolhida de
volta ao lar se decidir voltar, então não a faça querer partir, porque ela tem
para aonde ir.
Acheguei-me ao seu colo, tão tolo e tão querido, se Rael estivesse ali
teria dito tudo com menos palavras e com muito mais agressividade.
Já Nicolae não teria dito nada além de: “Estou de olho em você, rapaz,
um pedido dela e a levarei para casa conosco”.
Poderia sorrir, claro que poderia, mas aquele não era o momento,
Dimitri falava sério e Tiago percebeu, não falou nada depois do sermão,
apenas assentiu, pensativo, enquanto olhava fixamente para mim.
Olhei para Dimitri com carinho, sabia o quanto ele podia ser brincalhão
e o quanto ele poderia ser um mortal protetor.
— Senti sua falta, bobão.
Ele me beijou com carinho a cabeça.
— E nós a sua, Nicolae é o que mais sofre sem o pintinho dele sob suas
asas.
Eu ri com saudade de Nicolae, aqueles olhos azul-turquesa que sempre
me faziam assimilar a minha adoração por essa cor, sempre para me sentir
segura eu usava uma peça dessa cor ou parecida. Me dava paz e eu sabia que
era porque Nicolae possuía esses olhos tão diferentes e tão puros.
De repente senti um aperto em meu coração ao pensar nele, como se de
alguma forma eu tivesse feito algo errado a ele, balancei a cabeça, devia ser a
saudade que mexia comigo.
— Quer voltar para casa? Resolveremos o que fazer quando estivermos
todos juntos.
— Não posso, ainda mais agora, queria ir para ajudar Rael com Eva,
mas pelo que me contou ele não me deixaria chegar perto por muito tempo.
— Não mesmo, tentei por duas vezes ver como ela estava e ele rosnou
para mim na porta, deve ser porque ele está lutando com seus princípios ou
ela deve estar muito mal ainda.
— Eu tenho que ajudar vocês, ainda mais agora, lá eu não seria útil,
mas aqui sim.
Tiago então falou:
— Diana, eu acho que você deveria ir. Aqui não é seguro para você,
daremos um jeito de facilitar a entrada de vocês daqui, ou caso consigamos
libertar as mulheres sombrias também daremos jeito para que elas cheguem a
vocês, seguras.
Realmente ele tinha razão, e mesmo que tivesse muita coisa a
descobrir, as coisas não iam ficar bonitas, era melhor estar em casa quando
tudo acontecesse, mas havia um problema.
Uma coisa seria sair como uma dispensada pelo príncipe e outra era
sair às pressas.
— Não posso sair assim, levantaria suspeitas, pode fazer uma dispensa
formal ainda hoje? Assim Dimitri já poderá me levar para casa.
— Te colocarei na próxima lista, não posso criar uma assim do nada,
meu pai já está perguntando, então eu disse a ele que em dois dias farei isso.
— Não teria como ser hoje? Inventando alguma desculpa? —
perguntou Dimitri.
— Seria realmente muito suspeito, mas não se preocupe, nada mais
acontecerá, André ficará com ela todo o tempo até o dia que eu possa
dispensá-la.
Dimitri pareceu satisfeito e ansioso ao mesmo tempo.
— Então está combinado, preciso voltar com urgência ao reino, volto
amanhã para te buscar.
Depois de tudo acertado, voltamos para o harém, passamos antes pela
rua do comércio para que eu comprasse um vestido novo, aquele desvio tinha
dado mais tempo para conversarmos, assim que nos aproximávamos dos
portões eu abracei forte Dimitri, que me apertou nos braços, dizendo
baixinho:
— Cuide-se ou não respondo por mim.
Assim que o soltei, ele não esperou resposta, as informações que
precisava passar aos irmãos eram urgentes. Fiquei ali olhando-o se afastar,
tomou outro carro e voltou para a rua dos forasteiros, enquanto o carro em
que eu estava adentrou sozinho o portão.
Rezei para que esperassem eu chegar antes de fazerem qualquer coisa,
não que eu conseguisse fazer mais do que cuidar de Eva, caso eles partissem
para resgatar as mulheres, pois eu não sabia lutar, mas queria estar lá de todo
jeito para vê-los partir e vê-los retornar para conseguir ter paz de espírito.
NICOLAE
A horrorosa criatura estava perto. Seu fedor ficava cada vez mais forte
naquela direção. Sorriu torto correndo o mais leve possível, eles tinham boa
audição, mas nem de longe eram bons o suficiente para ouvi-lo naquela
leveza que ele pisava.
As árvores passavam por ele como borrões, o dia estava cinza por conta
do tempo. Um temporal estava próximo e seria ruim se a chuva começasse
antes de ele o alcançá-lo, a natureza era aliada, mas nessa hora uma chuva
seria um problema.
Parou novamente confuso e cheirou o ar, sangue humano, o leviatã
encontrara uma presa, estava próximo ao vilarejo do irmão Odair, precisava
se apressar, não podia permitir uma chacina em seus domínios.
Ele era o segundo príncipe, era seu dia de fazer a ronda e não podia
permitir que vidas perecessem sob sua responsabilidade.
Apesar de estar correndo, já fazia algumas horas pelas rotas
demarcadas, não estava cansado. As rotas haviam sido criadas de acordo com
a potência de seu faro e naqueles caminhos podia sentir a quilômetros à volta,
podia cuidar de tudo sem precisar correr por todo o reino sombrio para isso.
Agradeceu seu bom faro. O sangue podia ser sentido mais forte, um
grito à frente o fez liberar as presas, seus cabelos cresceram e seu coração se
fechou sobre uma grossa membrana parando de bater, não bateria até ele
voltar ao normal. Agora poderia ser cruel, ser assassino e sanguinário como
caçador, e estava à caça de um perigoso inimigo.
Com um impulso, pulou na árvore à frente alcançando o galho mais
alto, ficou abaixado olhando tudo à volta, então sua visão o alcançou naquela
posição.
O leviatã estava abaixado, deixando suas deformadas costas peludas à
mostra, se alimentava, mastigava um pedaço da perna do homem que sofria
com a dor da falta da carne em sua coxa.
Saltou do galho sutilmente e, ainda assim, a criatura o viu, e com seus
olhos vermelhos e desproporcionais o analisou.
O cheiro forte da criatura se adentrou por seu nariz sensível,
denunciando pelo seu suor e seu gosto necrófilo na dieta.
Sem dar a ele tempo para pensar pulou, se jogando sobre a criatura a
tirando de perto do humano com o impacto dos corpos, indo os dois bater em
uma árvore, sentiu a dor, mas não parou, não podia perder tempo, o ponto
fraco do leviatã era a agilidade, em compensação sua força era extrema. Suas
garras com quatro dedos eram fortes e as unhas afiadas poderiam lhe abrir o
peito.
Com um golpe rápido a criatura o atacou diretamente no pescoço.
Desviou na hora perfeita para o contra-ataque enterrando a mão em sua
barriga, sentiu as entranhas quentes e a umidade dentro da besta.
Agarrando qualquer coisa dentro dele, puxou com força trazendo
consigo uma quantia de suas vísceras.
Não conseguiria arrancar seu coração com um único golpe, os leviatãs
tinham o tórax formado por duplas carreiras de ossos que eram resistentes,
conseguiria se fosse em dois ataques quebrando uma fila de ossos por vez,
mas ainda não tinha conseguido encontrar o momento certo.
A criatura não se importou com as suas entranhas penduradas, se
aproximava com a boca Lupina se arreganhando em forma de ameaça e o
atacando novamente.
Ele desviou outra vez de suas garras, mas não conseguiu se safar da
outra garra que entrou em seu peito, sentiu o sangue escorrer quando ele
forçou para dentro dele com suas unhas afiadas se enterrando rápido em sua
carne, se continuasse assim, o leviatã lhe arrancaria o coração.
Não viu problema nisso, desde que ele estivesse protegido pela
membrana, tudo estaria bem, mas doeria como o inferno e ele não estaria
acordado quando as notícias de Diana chegassem e de jeito nenhum ficaria
sem saber dela.
Com a mão livre atacou o tórax da criatura, na primeira vez ouviu o
estalo dos ossos de seu peito se partindo com a força do impacto, sua mão
sangrou na mesma hora com o ferimento ganho, os ossos do leviatã eram
finos e cortantes apesar de resistentes.
O animal reagiu, depositando mais força, abrindo ainda mais sua
enorme boca com raiva, Nicolae conseguia ver as duas fileiras de dentes
todos pontudos e as presas maiores, sua herança para a criatura.
Sentiu que agora corria perigo, essa ousadia que a besta mostrava era a
segunda maior ameaça, tinha descoberto que não era alérgico e ficaria mais
ousado, agora se tivesse chance usaria sua presa para o beber ficando mais
forte e o deixando mais fraco.
Então Nicolae novamente atacou sua caixa torácica, usou toda a força
que conseguiu nesse golpe, entrou em seu peito, sentiu seu coração batendo
de encontro a sua pele, enquanto sentia a garra da criatura quebrar os ossos de
seu peito também.
Sem perder tempo, agarrou e apertou seu coração e a besta urrou de dor
diminuindo a força em seu peito.
Começava a sentir a perda de sangue, precisava acabar logo com isso
ou seu corpo abandonaria a luta, apertou o coração com toda a força e a
criatura caiu de joelhos, o arrastando junto, ainda grudado em sua carne.
Nicolae tirou a mão fechada, trazendo o que sobrou consigo, fez força
para isso, ouviu os pequenos estalos de veias arrebentando e ossos se
afastando e o coração do inimigo estava fora.
Com um esforço ainda maior, separou a cabeça Lupina de seu corpo e o
jogou longe, o cheiro horrível daquele sangue escuro o deixou atordoado.
Devagar, se aproximou do homem que, assustado, lhe sondava o peito
vendo a gravidade de seu ferimento, Nicolae procurou mais ferimentos no
homem, mas não havia mais nada, apenas um grande buraco em sua perna.
— Tome o que precisar, senhor Nicolae — disse o homem.
Ele agradeceu e se aproximou, precisava ter cuidado, o homem havia
perdido sangue, mas sem forças não poderia tirá-lo dali para que recebesse
cuidados.
Ajoelhou-se e gentilmente puxou o homem para ele, com a unha fez o
corte e em seguida o bebeu afundando suas presas, o homem não emitiu
reação, seu pescoço estava suado e seu odor era forte, mas não podia culpar
um homem que estava suado de tanto trabalhar, era honrado e tinha família
para cuidar, lembrando-se disso tomou estritamente o necessário para poder
usar o dom da cura e, mesmo assim, o homem ficou inconsciente.
Sentiu seu corpo responder ao sangue novo, o carregou e correu em
direção à vila, não estava longe e Nicolae deu graças por ter matado a criatura
antes que encontrasse o vilarejo, sabia o que um monstro daqueles podia
fazer a um humano, Eva havia ficado viúva por conta de um leviatã, há
quatorze anos, demorou a acharem o corpo, ele foi arrastado para longe do
domínio dos sombrios. Eva sofria, tinha esperanças de que seu marido
estivesse vivo.
Até mesmo Rael não mediu esforços para encontrá-lo, ver Eva sofrendo
consumiu seu irmão por dentro.
Dimitri havia encontrado apenas suas sobras e então nada foi dito a ela
sobre isso, apenas que um leviatã o matou, mas desde então não se permitia
que os humanos fizessem a ronda, não tinham forças para uma besta com
tamanha força e selvageria.
Depois de deixá-lo aos cuidados do arconte do clã do irmão Odair, ele
seguiu seu caminho, não corria muito, deixava suas energias para a cura.
Sentia uma dor pungente no peito, mas aceitou a dor com tranquilidade,
fazia parte dele o processo, os sombrios eram uma raça forte e graças ao seu
coração diferente e a inteligência tinham conseguido sobreviver na guerra da
Supremacia.
Milênios para conseguir se tornar um clã poderoso, muitos anos de
guerra para ver seus primos caírem e as raças sumirem, restando apenas
quatro.
A maioria das coisas dos sombrios, sua história e seus itens haviam
sido enterrados o mais fundo na terra e a sabedoria da raça, haviam sido
preservados.
Nicolae passou a andar mais devagar, se perdendo em um pensamento
que sempre o tomava e então não mais o deixava. Diana.
Sentiu o coração se apertar ao se lembrar daquele dia, quase havia a
acertado, usou todo seu autocontrole e séculos de treinamento para parar
aquele golpe.
Seu coração havia parado, por conta de André seu modo caçador se
ativou para protegê-la, mas bateu acelerado, assim que ela entrou em sua
frente, quase explodindo em seu peito pelo medo que sentiu ao ver seu punho
tão próximo a ela, tão próximo ao seu frágil corpo.
Nunca tinha sentido um medo tão poderoso, e se a tivesse acertado?
Balançou a cabeça para espantar aquela imaginação pavorosa, ele iria
ao inferno para protegê-la, mas não queria viver no inferno por feri-la,
NUNCA!
Se algo acontecesse a ela, ele morreria, não teria mais motivos para
andar pela terra, esperou por ela, sonhou com ela e a ferir, fosse física ou
emocionalmente, era um crime imperdoável.
Seiscentos anos andando pela terra para descobrir o amor nos olhos de
uma criança com corpo de mulher, uma criança desesperada olhando para ele,
como se ele fosse o único homem digno de confiança no mundo.
Sorriu com amor ao se lembrar de sua pequena, só fazia isso quando
estava sozinho, levaria mais seiscentos anos, se fosse preciso, para ter seus
olhos somente para ele.
Mas que fosse sem dúvidas, não dividia o que era dele.
Sentiu o amor guardado para si lhe apertar o coração ao lembrar-se do
que viu naquela biblioteca há pouco mais de dois anos, viu sua aura, era
branca e havia um pequeno azul no centro mais perto de seu corpo, o seu azul
a sua cor, e quando viu se apaixonou completamente.
Lembrou-se de quando levantou a mão para tentar tocar aquelas cores e
não conseguiu, acabou pousando a mão hipnotizado em sua trança e ali
deixou ainda emocionado com o que via, sem saber como agir perto da
mulher de sua vida.
Lembrou o esforço que fez para manter a calma para não a assustar, e
ela se apegou a ele de imediato, o fazendo a amar ainda mais ao ver seu
progresso, ao saber que ela precisava de sua proteção.
E era esse azul que ele viu crescer em tamanho tomando mais espaço
do branco, via seu amor por ele crescer rápido nesses pouco mais de dois
anos juntos.
Mas agora Diana poderia se interessar pelo príncipe e uma nova cor
apareceria ali, sentiu dor ao pensar nisso, conseguiria se manter neutro e
calmo se isso acontecesse? Faria como Rael, que foi disciplinado seguindo os
ensinamentos do livro das sombras, deixando sua amada livre para conhecer
o mundo e se conhecer completamente?
Fechou o semblante. Tinha que ser disciplinado. Ela precisava desse
respeito, dessa espera, precisava conhecer seus sentimentos e se conhecer.
Diana estava deixando de ser menina e se tornando uma mulher,
engoliu em seco. Lembrou-se de todas as vezes que sentiu vontade de beijá-
la, quantas vezes quis com toda sua alma lhe mostrar um beijo com
sentimento puro, com total entrega, mas não podia, não enquanto ela tivesse
dúvidas. Amaldiçoou sua impulsão como herança, era uma herança maldita
para o amor, se a beijasse antes da hora, aprisionaria Diana a ele, mas não
traria seu sentimento à tona, apenas a deixaria dependente de seu amor por
ela.
A saliva de um sombrio era poderosa, precisava ter cautela, porque a
queria e precisava dela, mas não podia adiantar nada, se fizesse isso, nunca
mais teria a chance de ver sua aura completamente azul e sempre teria
dúvidas.
Balançou a cabeça, recitando baixinho uma das regras do livro das
sombras:
— Um amor por vez. Elimine as dúvidas, veja sua cor crescer e
preencher completamente a aura da sua amada, se conectando
completamente a sua outra metade selada e somente então se entregue ao
amor, então ela estará pronta para amá-lo sem nunca duvidar que escolheu
o companheiro certo para viver ao lado na eterna sombra.
Sim, ele teria paciência, a esperaria por séculos, se fosse preciso. Porém
temia por Diana, ela havia deixado sua personalidade forte aflorar, tudo o que
havia sofrido no passado a tinha deixado mais consciente e exigente de sua
liberdade, e ela tinha esse direito, não era dele, ainda não.
Mas se ele não se mostrasse frio ao sentimento que tinha por ela, essa
mulher ainda o faria perder o juízo.
Rael se aproximava rápido, havia sentido o cheiro de seu sangue e
estava na forma de caçador, vinha em seu auxílio, acelerou o passo, precisava
acalmá-lo, um sombrio transformado era um sombrio perigoso, ainda mais
Rael agora com sua angústia, mesmo que Eva tivesse levantado da cama,
ainda estava abatida e entregue às doenças da idade, precisava de atenção.
E queria voltar logo para casa, dormir para acelerar a cura, e se Diana
fosse dispensada do cortejo do príncipe, queria recebê-la com tranquilidade.
Ela precisava ver o Nicolae dela, o calmo e tranquilo.
Ansiedade, angústia e toda a loucura que ela despertava nele tinha que
guardar somente para ele, a amava acima de qualquer coisa, e faria o que
fosse preciso por ela.
Sua pequena precisava crescer mentalmente, só assim para começar a
entender o que sentia por ele de verdade, sofreria em silêncio por quanto
tempo fosse necessário, porque era um predador.
E nesse caso queria ver sua presa mais almejada completa, pronta
somente para ele para toda a eternidade.
INTERESSE DO REI
O harém estava praticamente vazio, poucos pais andavam por ali com
suas filhas. André me acompanhou entregando o carro e cochichando no
ouvido do cocheiro que seguiu direto para o castelo. Tiago tinha ficado no
carro, não podia aparecer saindo comigo.
— Acha que Dimitri ficará bem?
— Não se preocupe, o príncipe tratará da segurança dele até que
alcance os domínios sombrios.
— Obrigada, André, pelo que fez por nós.
— Não me agradeça, Diana, tenho meus motivos para isso, não sou um
servo por opção, em troca disso, deixei mulher e filha fora da muralha que
foram exiladas há muitos anos.
Essa era uma informação nova e estranha.
— Por quê?
— Sou um covarde de guerra, segundo o rei, por conta disso descemos
de casta e depois disso ele disse que falhei em uma missão, me rebaixando
novamente. Saí soldado e retornei escravo, no portão um amigo me avisou
que minha família estava em uma carroça indo para o prostíbulo, por ordem
do rei, foram exiladas.
“Retornei do portão e os alcancei e antes que chegassem a um
prostíbulo, matei o cocheiro e o ajudante dele e as levei a floresta e, por sorte,
encontramos o caminho, conseguindo refúgio no reino Sombrio.
Por isso e por minha vida salva pelo senhor Dimitri, eu não poderia ser
mais fiel ao meu povo do que o seu. A raça dos sombrios me deu muito mais
sem saber do que a minha própria raça.”
Senti imensa pena de André, ele não merecia passar por metade
daquilo, uma das poucas pessoas daquela raça que era decente e já tinha
sofrido uma boa cota na vida.
— Elas se lembrariam de você agora?
— Minha filha tinha sete anos quando partiram, agora tem vinte um, se
ainda estiver viva, minha esposa agora teria cinquenta anos.
Eu vi ali uma chance de ajudá-lo, ele merecia ter um pouco de
felicidade.
— André, eu nunca andei muito pelo reino sombrio, mas quando eu
voltar, posso procurar para você.
Os olhos dele se iluminaram com aquilo, pela primeira vez eu vi
felicidade de verdade ali.
— Ficaria eternamente grato a você se o fizer. A minha esposa, eu não
sei se sobreviveu, ela estava doente quando os deixei no domínio sombrio,
mas minha filha se chama Amélia.
Assenti. Procuraria por elas, se estivessem no reino sombrio, eu as
encontraria.
André pareceu nervoso e abaixou a cabeça.
— Acho que ela estranharia um pai que aparenta ser apenas doze anos
mais velho que ela.
— Ou ficaria orgulhosa de ter um pai tão bonito e forte. — Sorri para
ele e ele sorriu de volta, fazendo um aceno gentil e me olhando com carinho
antes de sair.
A noite ia chegando e eu não sentia fome, não sentia nada, apenas um
torpor e queria dormir para que o outro dia chegasse logo e finalmente o
outro, quando então eu poderia voltar para casa.
Agora que eu tinha decidido ir, sentia aflição com a espera, queria
voltar para casa e sair logo daquele lugar. Tiago tinha razão, realmente ficaria
mais difícil aos príncipes ter que resgatar as mulheres e ainda ter que pensar
na minha segurança, pelo menos estando com Eva, eu seria uma preocupação
a menos.
Ao pensar mais sobre isso, senti as borboletas passearem por meu
estômago, uma pena que Tiago já tinha dito ao rei que a dispensa seria em
dois dias, era urgente que eu voltasse para poder deixá-los livres para agir.
Meu consolo era que ao menos em uma coisa eu tinha ajudado, depois
de conversar com o príncipe tanto tempo naquela noite, plantei nele a
curiosidade sobre os atos de seu pai, entretanto, agora eu não serviria para
mais nada, não mais.
Adormeci com uma sensação estranha de perigo, acordei de um pulo no
meio da noite, não estava sozinha e vi que era André pelo cheiro, ele tapou
minha boca e cochichou.
— Precisamos ir, o rei tem interesse em você.
Aquela frase gelou até minha espinha e de repente tive frio, levantei
assustada e peguei o casaco que ele me oferecia, comecei apressada a me
vestir.
— Não podemos ser vistos, Diana, um carro espera você no portão. A
ordem para vir buscá-la será dada em breve, o rei ainda tem coisas a fazer no
salão real, temos pouco tempo para fugir.
Assenti, enquanto me vestia, apressada, depois peguei a caixa que
mantinha lacrada tirando de lá algumas coisas. Acendi rapidamente uma
trouxinha, deixando em uma terrina no meio do corredor e em seguida
coloquei o que deu para pegar em preparos em uma trouxa e o acompanhei.
Não sabia se ia usar, mas eu só tinha isso para me defender e mais nada, nem
conseguia pensar direito.
Novamente me encontrava nas mãos de André e mais uma vez ele me
ajudava, um peso a mais que eu teria que adicionar na balança do lado dele.
Estava realmente ficando endividada de chances de viver com André,
ele me tirou da minha distração.
— Fará efeito em quanto tempo?
— Minutos!
— Então vamos andar depressa. — Pegou em minha mão e aceleramos
o passo, torci para que a trouxinha de ervas queimasse rapidamente e o efeito
começasse.
Era a mistura mais comum preparada por Eva e sempre foi eficaz. Com
sorte, em breve todas as garotas desmaiariam até o dia seguinte.
O coche real já nos esperava, suspirei, aliviada, não teríamos que dar
um jeito em cavalos ao menos isso, quando entrei Tiago já estava ali, estava
virando hábito imaginá-lo dentro de todos os carros que ia entrar e assim que
André entrou, o cocheiro partiu, acelerado.
— Não sei como faremos, Diana — disse Tiago, que realmente estava
nervoso. — Mas iremos te tirar daqui.
— Tiago, seu pai pode te matar, se descobrir que estragou o plano dele
e não entendo…
Ele levantou a mão, me cortando, pareceu pensar um pouco antes de
falar, foi rápido, mas eu percebi que seus olhos para mim estavam diferentes.
Ele se culpava pelo pai?
— Não sei o que ele pretende com você, Diana, mas coisa boa não é e
tenho certeza de que seus príncipes me matariam se eu deixasse algo
acontecer a você. Com meu pai eu me viro, todavia, não acredito que teria
argumentos para eles quando me pegassem, e André me falou do Nicolae,
esse aí não aceitará nenhum argumento meu.
André assentiu.
— Ele quase me mata, se Diana não entra na frente, nem esperou para
ouvir como Dimitri, ele é mais perigoso, tenha medo dele, Tiago, porque eu
não tenho vergonha de dizer que tive e muito.
Apesar do nervosismo do momento, não deixei de achar graça, eles
tinham mais medo dos três príncipes que eram bons do que do rei que era um
sádico.
Não deixou de vir um pensamento intrometido na minha cabeça.
Bons para mim. Pensando melhor, eles tinham mesmo que se
preocupar, caso qualquer um deles se enfurecesse. Tiago ainda mais que
André, pois foi por causa do pedido dele que eu estava presa no reino. Se
algo me acontecesse, eu não sabia como ficariam, pelo menos eu imaginava
ouvindo as histórias de Eva sobre eles, mas bravos de verdade eu nunca tinha
visto.
Logo fomos barrados no portão pelos soldados.
— Não podem passar sem ordem do rei.
Tiago colocou a cabeça para fora na pequena janela.
— Mas podemos passar se for ordem minha, abram logo esse portão
que quero me divertir hoje e se isso não acontecer, vocês pagarão caro.
Sem mais delongas, o portão foi aberto e rimos nervosos da situação.
— Tem lá suas vantagens ser um príncipe, afinal de contas.
André e eu concordamos e eu fiquei agradecida pela velocidade em que
seguíamos, o cocheiro seguia em ritmo acelerado.
Estávamos bem distantes do portão real, só conseguia ver as árvores da
alameda e mais nada, logo avistamos à frente as primeiras casas do bairro da
casta nobre.
— O que mais tem aí nessa trouxa? — perguntou Tiago.
— Poções simples, mistura inflamável, veneno para deixar confuso.
— E esse vidro?
— Um líquido que faz a pessoa desmaiar quando exala.
— Ótimo — André falou, rasgando um pedaço da camisa.
— Coloque isso aqui.
Eu coloquei e então ele bateu na portinhola e o cocheiro parou, ele saiu
rápido do carro e voltou em seguida com o homem desacordado no colo, o
colocou no assoalho e fechou a portinhola.
Não senti pena do cocheiro, era necessário, quanto menos ele soubesse
mais seguro estaria. Logo o carro começava a andar novamente, na
velocidade máxima que quatro cavalos conseguiriam correr.
Tudo passava rapidamente, não demorou muito estávamos nos
aproximando da vila dos forasteiros, tentei a todo custo disfarçar meu
nervosismo, torcia as mãos e depois de algumas vezes tentando olhar pela
janela para ver se estávamos sendo seguidos, me sentei. Minhas mãos suavam
e meu estômago revirava.
Sair fugida do reino e com tudo sendo improvisado na hora, dava um
pavor medonho, sentei-me depois de mais uma vez olhar pela janela.
— Dimitri? — Imaginava que ele já estivesse há muito em casa, mas
quis garantir.
— Partiu logo que o deixou no portão, chegou bem no limite sombrio,
mandei homens atrás que o escoltaram.
— Seu pai não desconfiou dessa ordem?
— Meu pai tem os homens dele, mas eu tenho alguns também, Diana,
não se preocupe com isso, precisamos nos preocupar em conseguir sair do
reino Humanis, isso sim.
Fiquei sentada, torcendo as mãos como um tique nervoso e ele viu que
eu não parecia satisfeita.
— Existe um pequeno grupo que trabalha para mim e são fiéis, porque
de alguma forma acreditam que sou melhor que me pai.
Novamente vi amargura e culpa em seu semblante ao dizer isso, mas
não quis atormentá-lo com perguntas, no momento estava com preocupações
maiores.
— Folgo em saber, e como passaremos pelos portões?
— Verá, não se preocupe. Passar não será problema, vencer o caminho
até lá sendo caçados, é que me preocupa.
Fiquei preocupada com a última frase, mas reclamar naquele momento
não ajudaria em absolutamente nada e depois de um silêncio ansioso e
nervoso logo estávamos chegando perto do portão.
O carro parou e então eu ouvi a conversa, primeiro André falou:
— O príncipe está nesta carruagem abram o portão.
Uma voz estranha falou:
— O que o príncipe iria querer lá fora, criado? Você mente! O que leva
aí consigo? — Tiago então abriu a portinhola e saiu.
— Abram os portões, já foi dito que eu estava aqui, o que eu tenho para
fazer do lado de fora não é da conta de vocês, soldados.
Um silêncio mórbido se fez e logo os portões pesados foram abertos, já
fora dos portões a carruagem alcançava velocidade impressionante, o
cocheiro que dormia começava a recobrar a consciência.
— O que faremos com ele? — perguntei, preocupada.
Tiago pareceu sem ação por um momento.
— Saberemos quando ele acordar. Tem mais dessa coisa aí?
Entreguei a ele o vidro e sem rodeios despejou um pouco no rosto do
pobre homem.
— Vai deixá-lo em coma assim, Tiago, está maluco?
— Não temos tempo para pensar em sutilezas, Diana, mesmo em coma,
um dia ele volta a acordar, pelo menos não está morto.
Não tive tempo de responder, a carruagem parou bruscamente e André
abriu a porta.
— Os cavalos estão prontos.
— Já sabe o que fazer, André — disse Tiago, me encarando e então
levantou a mão. — Mas espere, por favor.
Sem me dar tempo para pensar no que faria, ele me agarrou e me beijou
com paixão. Diferente do beijo naquele dia, esse tinha muito mais sentimento
da parte dele, mas era mais como um desespero, o que Tiago tinha feito? Por
que estava daquele jeito? Eu retribuí, mas diferente da primeira vez que senti
um frio na barriga, nesse não senti nada.
O beijo de Tiago parecia amargurado, ele parecia precisar de algo a que
se agarrar, mas o que era? Estava consciente de André estar parado na
portinha da carruagem e quando ele se afastou, falou, respirando fundo:
— Nunca conheci uma mulher como você, Diana, nunca mude, lute e
seja sempre assim, sei que não a mereço e sei que seu coração tem dono, eu
sinto isso.
Franzi o cenho, meu coração tinha dono? Como ele podia saber?
Não tive tempo de perguntar nada, porque ele estalou a língua,
parecendo desgostoso com o próprio pensamento.
— Uma mulher de fibra, que me desafiaria a conquistá-la e eu não
poderei te cortejar, mas o homem que o fizer e conseguir ser escolhido por
você, será um homem de muita sorte.
Senti um aperto no peito, não por suas palavras de elogio, porque elas
não entraram em meu coração, mas ele parecia dar adeus, e de uma maneira
estranha, aprendi a ter carinho por ele, talvez ele fosse realmente o único
humano digno de confiança naquele reino.
— Parece estar se despedindo para sempre, Tiago, você não vai morrer,
vai?
Ele sorriu com carinho e como sempre era um bonito sorriso.
— Estou tentando evitar isso, mas ficarei um bom tempo de castigo,
preso em uma cela, até meu pai esquecer minha atitude, mas saiba que eu
procurei por isso, fui idiota e mereço qualquer castigo.
Eu não dei muita atenção dessa vez ao que ele disse, estava preocupada
e me sentindo horrível, eu o coloquei naquela situação.
Se não fosse minha atitude de ter voltado ao reino dos humanos, isso
não estaria acontecendo, e entre os humanos que conheci, ele era a única
pessoa depois de André que merecia uma chance de ser feliz.
Sem poder fazer nada por ele, saí chorando da carruagem e ouvi
quando ele falou com a voz de medo.
— Vai, André, e pelo amor de Deus homem! Que seja em um só golpe,
sabe que só sou forte por treinamento, mas para dor sou um covarde. Ande
com isso!
André afirmou sério e então aplicou uma paulada certeira na cabeça de
Tiago, que desmaiou na mesma hora, sangue escorreu do local onde ele havia
sofrido o golpe, senti um frio na barriga ao ver aquilo e me desesperei por
Tiago.
— Vai matá-lo, como pôde fazer isso? — Fiz menção de ir até ele para
ajudá-lo, mas nem consegui sair do lugar direito, André me pegou pela mão e
me arrastou pela floresta.
— Não se preocupe, não foi mortal.
— Ele pode morrer largado ali.
— Nada irá se aproximar da carroça, há homens de confiança cuidando
do local, a vida dele dependia de um belo golpe.
Eu não tinha entendido nada e estava chateada com André, foi cruel o
que ele fez.
— Como pode dizer isso?
Ele continuou andando apressado e segurando minha mão, estávamos
adentrando cada vez mais na floresta.
— Eu sou o traidor aqui, menina, eu que ataquei o cocheiro, eu que
ataquei o príncipe e sequestrei você e isso é tudo o que o rei precisará saber.
Tiago apenas ficará no castigo por dar tanta confiança para um simples servo.
Agora eu entendia, tudo recairia sobre André, Tiago apenas seria
tratado como um tolo, fiquei surpresa com a inteligência de André.
— Acreditarão mesmo nisso?
— Quase todos os servos do harém estavam comentando sobre a
proximidade de nós dois e essa fofoca toda me deu a ideia, não pretendia usá-
la se as coisas tivessem sido diferentes e você conseguisse voltar para a casa
sem problemas, mas o rei tinha que pôr os olhos em você, então não vi outro
jeito para te tirar de lá sem deixar Tiago em perigo.
— Eu serei vista como uma mulher promíscua, que fugiu com um
homem no meio da noite?
— Não consegui pensar em coisa melhor, criei o plano de última hora.
Eu realmente me incomodei de imaginar os comentários, mas foi
apenas passageiro, corríamos perigo e se não fosse por André eu estaria agora
na masmorra, com sorte, viva, ou com azar, sendo dissecada nesse momento.
— Obrigada por isso, André.
— Ainda não estamos a salvos e precisamos ir, menina, vamos, me
agradeça se conseguirmos chegar lá.
Ali estavam dois cavalos negros, robustos e saudáveis, montamos e
partimos a galope.
O domínio sombrio não era muito longe naquela direção, mas ainda
tínhamos muitos metros a vencer antes de estarmos seguros, ao longe eu ouvi
o grito dos soldados que vinham em nossa captura.
— Começou! — ele falou alto e urgente e incitou seu cavalo para que
corresse mais rápido e por instinto de sobrevivência com o coração
retumbando de medo, eu fiz o mesmo.
SENTINDO NA PELE AS LEMBRANÇAS
DO PASSADO
Franzi o cenho, esperando que ele me explicasse isso, estava ainda mais
preocupada, porque isso era estranho, nunca Rael havia feito algo do tipo.
Dimitri viu que eu não iria me contentar apenas com isso, então me
olhou parecendo em conflito com o que me contar, ficou ainda sentado na
cama, pensativo, e então olhou para os dedos.
— Diana, um dos motivos de eu ter chorado também ontem foi por
imaginar o que Nicolae estava sentindo naquele momento e pela reação dele,
por aquela completa entrega ao caçador, eu imaginei que estava destruído por
dentro.
“Ele se entregou completamente ao sentimento. Quando a trouxe, voltei
correndo e lá estava Rael, lutando com Nicolae e foi a visão do inferno,
Diana, mas foi necessário.
Por sorte, ele não tem muita força contra Rael, por conta da hierarquia,
então Rael conseguiu vencê-lo, mas a visão dos meus dois irmãos lutando
nunca mais sairá da minha cabeça. Nicolae não conseguia se acalmar e o jeito
que Rael encontrou de fazê-lo parar foi o ferindo gravemente, o deixando
letárgico, depois o induziu a dormir.”
Senti escorrer grossas lágrimas, meu querido Nicolae, quem diria que
se deixaria levar dessa forma, sempre tinha sido o mais controlado, mas não
enxuguei o rosto e nem me mexi, apenas falei com a voz sumindo:
— Você não ia me contar, não é?
— Não, realmente não pretendia contar, ia deixar Rael fazer isso, não
sei como agir com isso, eu sou o que te faz rir e não o que te faz chorar, me
desculpa.
— Ele vai ficar bem? O ferimento...
Dimitri levantou a mão e eu me calei.
— Ele ficará bem, não se preocupe o ferimento. a essa hora já deve
estar curado, mas ele precisa dormir, Diana, é importante. Rael o acordará
quando estiver pronto, quando a sanidade o alcançar.
Assenti em silêncio, se Dimitri dizia que ele ia ficar bem só me restava
esperar, ele beijou minha cabeça, enxugou minhas lágrimas com os dedos e
saiu do quarto fechando a porta.
Tomei meu banho e analisei tudo com calma, pelo menos Nicolae
estava bem, não sabia de André, mas se Dimitri não disse nada, era porque
ele estava bem.
Só queria saber quanto tempo Nicolae dormiria e como seria quando
ele acordasse, como seria nosso confronto. Senti um frio em meu estômago
somente de imaginar, de ver aqueles olhos me olhando talvez pela primeira
vez com decepção.
Por mais que Dimitri dissesse que eu era vítima e não devia me
envergonhar, ainda assim não se podia mandar nos sentimentos, depois de
colocar um vestido simples e macio, saí do quarto indo em direção ao quarto
de Eva.
Rael a deixou no quarto ao lado do seu, para poder estar perto dela todo
o tempo, bati de leve e logo ele abriu a porta.
Seus olhos azul-cobalto me analisaram um tempo e então ele me
abraçou, falando baixinho:
— Nunca mais quero ver você sofrendo, nunca mais vai sair do reino
sombrio, está me ouvindo?
Assenti, Rael tinha uma maneira diferente de mostrar seu carinho, um
jeito cru e verdadeiro, nada de palavras bonitas como Dimitri ou um olhar
que dizia tudo como Nicolae.
Deu-me um beijo na testa, me pegou pela mão e nos aproximamos de
Eva, que dormia com um sono agitado, estava muito mais abatida naquela
manhã, parecia infinitamente mais magra e fiquei preocupada com o estado
dela e me culpei por isso, ela tinha se esforçado muito na noite anterior.
— Ela está assim por minha culpa, Rael, ontem ficou muito tempo fora
da cama.
Rael era o único que estava com a mesma aparência, ainda aparentava
seus trinta e cinco anos, seus cabelos compridos estavam presos nas costas e
havia uma ruga em sua testa, mas era de preocupação.
— Não é culpa sua, ela está passando pelo processo de transformação,
não tive outra saída além de lhe dar a mistura, quando cheguei da ronda
ontem, ela já tinha piorado e por isso não fui ver como você estava, peço que
me desculpe, filha, mas me desesperei e não saí do lado dela, estava muito
febril. — Ele suspirou, preocupado. — Cheguei muito mais tarde, porque
dispensei Dimitri com Nicolae e saí para fazer uma ronda à caça de alguns
remanescentes na floresta, infelizmente um escapou.
— Não, Rael, eu estou bem e Eva precisa de você, agora mais do que
nunca.
Queria perguntar sobre Nicolae, sobre o fugitivo, mas Rael estava
muito preocupado com o estado de Eva, então me calei. Ela se mexeu na
cama falando coisas desconexas e fiquei mais preocupada.
— Ela sente dor por causa da transformação?
— Não está sofrendo, está inconsciente e essas falas desconexas são
porque ela está regredindo no sonho, está correndo de costas e se assustando
com o que vê, é como se estivesse com delírios de febre. Se estivesse
consciente sentiria desconforto, euforia e desespero ao mesmo tempo, ela
sentiria a mudança, mas sem dor. O sangue sombrio e o composto a
anestesiaram assim que ela o ingeriu, talvez esteja até um pouco drogada e
agora está produzindo todo tipo de hormônio rapidamente, voltando a
produzir o que a velhice lhe privou, sentindo voltar a tenacidade e o vigor da
pele. Enfim são sensações demais para ela, o corpo reagindo e se
estruturando novamente, então não acredito que o composto a proteja de si
mesma.
Ele estava feliz ao falar sobre aquilo, seus olhos antes tão apagados
agora tinham um renovado brilho e vi o amor dele por Eva, e entendi então o
quanto ele ansiava por ela, e o quanto devia ter sido difícil não a ter como sua
mulher.
— Você sofreu muito quando ela se casou, Rael?
Ele balançou a cabeça, pensativo.
— Ela não era minha para sofrer, naquele momento eu fiquei feliz por
ela estar feliz.
— Não teve medo de ela não amar você no futuro?
Rael sorriu.
— Não, ela me amou, Diana. No segundo ano dela aqui, tinha então
quatorze anos, eu vejo o sentimento dela crescendo, desde então, o vi parado
por anos, sem regredir ou aumentar e vejo o progresso depois de dois anos da
morte de seu marido até agora.
“Com Eva foi lento, diferentemente de outros casos de relacionamento
entre nossa raça, mas ela é humana, assim como muitas que nossa raça se
envolveu no passado.
Se fosse uma sombria, ela também veria e saberia e o amor cresceria
mais rápido acelerando o processo, mas com Eva tive que ter paciência, e fico
feliz por ser ela e não uma sombria.
Primeiro, que agora eu poderia estar viúvo; segundo, que eu tive muito
tempo para conhecê-la e acompanhar a evolução lenta de seu sentimento por
mim, é diferente amar uma humana, elas são imprevisíveis.”
Queria perguntar como ele via e como sabia, mas ele em nenhum
momento fez menção de explicar, Dimitri se esquivou dizendo não saber,
aquele mentiroso, e com Nicolae eu não tinha ainda falado sobre isso.
— Vocês fizeram um pacto de sangue para não me explicarem como
funciona?
Um meio sorriso se formou em seus lábios.
— Basicamente isso, só vou te contar uma coisa que eles não falariam
se perguntasse. Quando nossa amada decide tentar ser feliz com outro
homem, a selamos com um sigilo.
Essa era nova, mas conhecendo Rael, a melhor maneira de ele me
contar algo realmente, era não o interromper. Esperei-o continuar, ansiosa por
novidades, ele me olhou torto, já me ameaçando com olhar, quando não foi
interrompido como achou que seria, continuou:
— O sigilo é ativado por uma frase, qualquer um de nós sombrios pode
falar a mesma frase para a mesma mulher, mas apenas um vai ativar o sigilo,
apenas o que vê o sentimento dela.
Pronto, não dava para me saciar só com aquilo.
— Quer dizer que ela ficará selada e nem vai saber por quem?
— Se ela tiver contato com mais de um de nós, não teria como ela
saber quem ativou.
— E por que fariam isso?
— Chame de magia, Diana, ou de preservação, não sei te explicar, ou
melhor, até saberia, mas não agora. Apenas entenda que tem um motivo para
apenas o sombrio que vê o sentimento da mulher poder ativar o sigilo, tem
um motivo.
— E, pelo visto, você não vai me contar, não é mesmo?
Apertei os olhos para ele, esperando uma repreensão.
— Não, você é muito nova para saber essas coisas.
Fiz beicinho triste e ele me ignorou completamente, não tinha jeito,
com Rael essas coisas não funcionavam, e então ficamos mais um tempo
olhando Eva em seu sono agitado.
Logo ele me enxotou do quarto, dizendo que ela precisava descansar e
que eu precisava arrumar algo para me distrair. Basicamente me mandou
arrumar o que fazer em vez de ficar ali, xeretando.
Assim que desci as escadas, André me esperava, o abracei, ele estava
bem, mas muito fraco e abatido.
— Que bom que está bem, André, fiquei tão preocupada e não pude
fazer nada quando te feriram…
— Eu que peço desculpas, não pude fazer muita coisa e só me lembro
até a parte que aquele homem te arrastou para longe e então apaguei. O que
aconteceu depois disso? Os sombrios chegaram logo, pelo visto, pois estamos
aqui e bem.
Não queria contar a ele os pormenores, pelo menos um dos que eu
gostava não tinha visto aquela cena horrorosa e fiquei aliviada por isso.
— Sim, chegaram na hora. Dimitri me carregou, me tirando de lá.
Ele continuou me olhando fixo e abaixei a cabeça.
— Você bem que tenta, menina, chega a ser louvável, mas mentir é sua
fraqueza. Eles te machucaram? Abusaram de você?
Balancei a cabeça negando.
— Não, Nicolae matou o desgraçado, antes que ele conseguisse. Só que
o que ele viu lá o transformou completamente e quase que Rael não consegue
trazê-lo de volta.
— E onde ele está agora?
— Dorme e não sei dizer por quanto tempo será, mas Dimitri disse que
ele ficará bem.
Meus olhos marejaram e André pegou minha mão e apertou.
— Tenha calma, o pior já passou, estamos os dois bem e aqui, no final
das contas. E se eles dizem que ele ficará bem, então acredite nisso, quero te
contar que pretendo procurar minha filha, assim que conseguir recuperar as
forças.
Fiquei feliz, era uma ótima notícia, depois de tudo o que passou ele
teria uma vida melhor e poderia rever sua filha, ele estava feliz, mas muito
ansioso.
— O que foi, André? Por que está nervoso?
— E se ela não me perdoar? Se não me aceitar, e se ela me culpar por
abandoná-la? Eu fiz isso para protegê-las, elas não teriam chance e eu como
servo do rei e responsável por cuidar de seu filho seria caçado se tivesse
fugido com elas, as colocando em perigo, era mais seguro nunca saberem o
que aconteceu a elas, para que vivessem em paz, e isso só aconteceria se eu
voltasse e fingisse não saber o que tinha acontecido.
Coloquei a mão em seu ombro.
— Conte tudo a ela quando a encontrar, explique isso e tenho certeza
de que ela entenderá.
André me olhou abatido.
— Farei isso.
— Agora vá descansar, André, quanto mais rápido se recuperar mais
rápido vai encontrar sua filha.
Ele me sorriu em agradecimento e seguiu para um dos quartos da parte
de baixo.
Agora eu estava sozinha, era quase hora do almoço e Dimitri acordaria
somente à tardinha, poderia ir e ficar com Rael e Eva, mas tinha certeza de
que ele me enxotaria do quarto novamente ou nem me deixaria entrar.
Poderia ir à biblioteca, mas lá também não parecia ter graça, decidi sair,
andar um pouco pelo pacato reino onde a força de três mil homens estava
debaixo da terra, era hora de respirar o ar que tanto senti falta e tentar fazer o
tempo passar, assim a espera por Nicolae seria menos dolorosa.
Só menos… Porque dolorosa já estava sendo, mais do que eu gostaria
que doesse, e eu não entendia por que doía tanto, precisava pensar em outra
coisa, precisava me distrair. Uma boa maneira seria andando a esmo por aí.
DIMITRI
Depois que chegamos, fui ver Eva, ela me segurou as duas mãos. Tinha
chorado, minha querida Eva, Nicolae aproveitou isso para sumir, não o vi
mais quando olhei para o lado que ele estava. Eva começou a falar:
— É isso mesmo que quer, querida? Acha que evitará uma guerra?
Não, querida, não evitará, apenas adiará uma, mas entendo você e só rezo
para que não encontre tantos espinhos por esse caminho que escolheu.
Senti uma grande vontade de chorar, mas me segurei, a abracei em
silêncio, grata por, pelo menos, alguém me entender, logo subi para arrumar
minhas coisas e, não demorou nada, bateram à porta. Era André e eu sorri,
lhe incentivando a entrar.
Ele estava preocupado.
— Quando eu disse que os problemas eram seus seguidores fiéis, você
não acreditou.
Não pude deixar de rir, mesmo em meio àquela merda toda que eu
estava fazendo, ainda se podia rir da própria desgraça.
André se sentou na cama e olhou as mãos.
— Não quero que vá, mas se vai, quero que leve em conta uma
conversa que ouvi, menina, lembra quando disse que Samuel era pior do que
você imaginava?
Assenti e me sentei ao seu lado e ele continuou:
— Não sei o que significa, mas ouvi Samuel dando ordens para que
colocassem guardas de sua escolha no território dos leviatãs, e só podiam
mudar os guardas por outros que estavam em uma lista escrita por ele.
Franzi o cenho, que interesse Samuel poderia ter naquele lugar? Quase
uma prisão de tamanhos dantescos, mas recheado de leviatãs quase
irracionais.
— André, mas isso poderia fazer parte do ofício dele, não? Talvez não
seja nada de mais.
— Penso nisso direto, mas ele não se intrometeria em uma troca de
guarda, uma coisa tão banal, se fez isso, tem algo aí.
Era verdade, ele não me parecia o tipo de homem que se preocuparia
com isso, destinaria alguns soldados de patentes menores para essa função,
ainda assim, me pareceu algo rotineiro.
— Tem outra coisa, Diana, o rei tem mais amor por Samuel do que por
Tiago, seu filho, prova disso são esses excessos de cargos que conseguiu
rapidamente, sei disso por outra parcela de conversa que ouvi dele com um
guarda que parece ser fiel a ele, eles estavam falando sobre o alto cargo e
então o guarda disse que Samuel era um homem de sorte pelo carinho tão
grande do rei por ele, chegando a amá-lo mais do que amava o próprio filho.
Isso era estanho e não me pareceu tão sem importância assim, afinal
Samuel com essa influência poderia fazer muitas coisas ruins sem ser punido,
mas então me lembrei do baile.
— Mas então por que ele vetou o noivado de Samuel e deu a seu filho o
direito de me cortejar?
— Esse é o problema, eu vi uma cena um tanto interessante quando
surgiu os comentários de seu noivado, dois dias antes do baile eu subi para
entregar as contas que Tiago prepara para o rei, é Tiago que faz o inventário
mensal dos cofres do rei e nesse dia eu precisava entregar nos aposentos dele,
a porta estava aberta e eu entrei como costume, para deixar o envelope na
mesa para que ele olhasse depois, entrei na saleta e percebi que havia
movimento no quarto e me virei. Samuel estava ali discutindo baixo com o
rei e só pude ouvir duas frases, antes de me notarem. O rei dizia que não o
queria com você, que não era esse o combinado e então Samuel respondeu
que era apenas negócios e que não iria decepcioná-lo, pareciam muito
próximos realmente, por isso acho que é verdade de ele ter o Samuel em mais
alta conta que o próprio filho. — Ele olhou para mim. — Tome cuidado,
Samuel tem mais poder do que pensa.
— Falou isso com Tiago?
— Não, os dois já se odeiam, porque Tiago sente a animosidade entre
eles, mas não sabe o motivo de Samuel o odiar. Eu sei, Tiago não se deixa
influenciar por Samuel, e Samuel por conta disso o trata como inimigo,
porque se sente superior a Tiago.
Isso explicava aquela troca de olhares de cima um do outro.
— Guarde para você, Tiago não tem por que saber isso, ele já tem os
problemas dele para pensar, só não subestime Samuel.
— Não direi nada, obrigada por me contar.
Ele assentiu, se levantando, e depois de me cumprimentar com um
aceno de cabeça, saiu fechando a porta e eu fiquei sozinha novamente.
Depois de me trocar, acabei por decidir que não levaria nada dali, ia
deixar tudo para que minhas lembranças do reino sombrio fossem menores
possíveis, ter o cheiro deles comigo de alguma forma seria me torturar.
Deitei-me de costas na cama, olhando o teto de mente vazia. Não
conseguia prever nada do que aconteceria comigo, nem imaginar como o rei
beberia meu sangue, torci o nariz em asco ao imaginá-lo mordendo meu
pescoço, mas ele não tinha presas então como é que ele faria?
Eram tantas perguntas, olhei pela janela e o sol já estava baixo, estava
chegando a hora.
Ainda tinha algum tempo e não me mexi, não senti vontade de sair
daquela cama, ouvi a voz agradável de Rael.
— Posso entrar?
Sorri e ele entrou retribuindo o sorriso e se sentando ao meu lado.
— Realmente gostaria de conversar muitas coisas com você, filha, mas
não acredito que vá adiantar.
Eu também não queria falar sobre minha partida breve, então para
quebrar o clima, comecei pela pergunta esquecida.
— O que fez com o traidor que envenenou a bebida de Eva?
Ele não me olhou, apertou os olhos, olhando a porta.
— Nada que seja bonito para contar, mas vivo ele não ficou —
continuou, ainda concentrado na porta e segurando minha mão. Ele esperava
comigo o momento chegar, talvez Nicolae estivesse com muita raiva de mim
para fazer isso.
— Rael, posso fazer uma pergunta?
Sem tirar os olhos pensativos da porta, ele respondeu:
— Claro que pode, sempre pode perguntar o que quiser, filha.
— Quando descobriu que amava Eva? — Ele finalmente olhou para
mim.
— É a pergunta correta?
Estranhei aquilo, havia mais maneiras de perguntar isso? Mas não
imaginei outro jeito de perguntar, então fiquei com a primeira opção.
— Quer saber como ou quando eu descobri?
— Os dois, se não se importa.
— Não me importo, se me prometer uma coisa.
— Prometo.
— Muito bem. Quando eu contar, te farei uma pergunta e quero que me
responda com sinceridade.
— Não tenho nada a esconder, prometo que responderei.
Ele se virou na cama, ficando de frente para mim.
— Quando Eva chegou, eu não tinha muito tempo para nada, vivia na
ronda com meus irmãos, na caça de alimentos, não havia ainda muitos
humanos no reino sombrio, o Tratado havia sido decretado e Eva nos foi
enviada com mais duas meninas. Mas uma não aguentou e morreu tempos
depois por conta da anemia profunda em que se encontrava e a outra tinha um
problema no pulmão e não durou mais que a outra, a mistura nunca antes foi
usada e você era a primeira que sabíamos, claro que como Dimitri é um
idiota, já havia transformado um humano e não sabíamos.
Abri muito os olhos de susto.
— Você sabia que era ele?
Ele me olhou torto.
— Sabia e também sei que você escondeu isso, finjo que não sei porque
querendo ou não isso foi importante para o futuro, graças a isso você está
aqui hoje e André é um bom homem, soube usar bem essa dádiva, ele me
contou e pediu que eu não castigasse Dimitri, disse que não o faria se ele
mantivesse a farsa, dizendo que não havia me contado nada e a senhorita
também não conte a Dimitri que eu sei, deixe-o se atormentar de medo de eu
descobrir e o castigar. Assim ele evita fazer mais idiotices, e eu tendo que
admitir que saiba, terei que castigar vocês dois, ele por ser idiota e você por
incentivá-lo a continuar sendo um.
Ele piscou sério para mim e eu ri, Dimitri com medo e Rael já saber era
até engraçado, ele continuou contando sobre Eva.
— Por dois anos, quase não fiquei no reino, demorou para que o
Tratado fosse realmente respeitado pelos licans, nesse tempo ausente Eva
cresceu normalmente, era uma criança como você quando chegou.
“Só depois que o Supremo Alfa foi substituído depois de morto por um
poderoso Alfa que não concordava com a maneira que ele estava cuidando
das matilhas, foi que as coisas se acalmaram, e pude então ficar mais tempo
no reino.
— Você então a conheceu e amou assim, do nada? Ou foi construindo
o amor aos poucos?
— Só amamos uma vez, Diana, não somos polígamos, somos
monogâmicos e amei assim que a olhei com atenção.
— Mas se acontecesse de a companheira morrer, o que acontece com o
sombrio?
— No nosso caso, se a companheira morre, o vínculo se desfaz, então
sim pode acontecer de amarmos novamente, mas isso leva muitos anos
mesmo, porque o sentimento tem que renascer junto com a alma, até isso
acontecer ficamos mortos para o sentimento, não nos interessamos por outras
mulheres, não sentimentalmente, é como uma coisa morta realmente. — Rael
me olhou profundamente, parecendo olhar dentro de mim, vendo minha alma.
— Então, quando a amei foi imediato, necessitava olhar para ela de frente e
isso aconteceu em uma trombada pelo corredor, ela me olhou nos olhos e
veio tudo fortemente até para meu próprio bem, só que ela não sabia ainda,
ela correspondeu, mas não tinha ideia que o fazia, ainda não estava pronta
para mim e então tive que esperar.
— Sofreu quando ela se casou?
— Senti dor, inveja do homem que a teria nos braços naquele
momento, mas é um amor por vez, Diana, se eu tivesse me precipitado, ela
teria vindo a mim sem estar pronta.
— E se ela não te escolhesse, Rael, por várias vezes não o escolhesse?
Ele novamente sorriu para mim, achei Rael muito risonho e, com
certeza, era por estar finalmente ao lado de Eva.
— Sabe, por isso perguntei a você, como e quando, são perguntas
diferentes, quando foi? No mesmo momento que me viu, e como, aos poucos.
— Então Eva o amou também quando o viu? Que explicação mais
estranha.
— Sim, Diana, ela correspondeu, e quando ela decidiu casar, eu ativei o
sigilo para poder ter mais calma com a espera.
— Com um beijo?
— Não, um beijo seria errado, precisa se ter muita disciplina para se
deixar ir, e mais ainda para não prender, temos a impulsão. Se fizermos isso,
prendemos, quem ama de verdade não faz isso, filha, e quem toma a
iniciativa é ela, sempre ela, lembre-se disso.
— Mas e se ela o beijasse e você não soubesse se ela estaria pronta, o
que faria?
— Depende da situação, eu teria que conhecer os motivos dela para não
estar pronta, nunca uma situação é igual à outra, mas ainda insisto, que é a
mulher que toma iniciativa em nossos costumes nunca o homem, isso é
importante.
Franzi o cenho, parecia mais um conselho do que uma resposta, mas
estava curiosa para saber como.
— Mas então, como fazem para garantir isso de calma?
Rael passou a mão pelo meu rosto com carinho.
— Uma frase simples, pode nem ser nada de mais essa frase, mas o
sombrio sabe o significado de cada palavra que proferir, e por vezes é para
garantir a segurança também, mas é uma faca de dois gumes, o sentimento
fica mais forte nesse momento.
Abri os olhos maravilhada.
— Sério? Você iria dizer essa frase para ela quando? Quando ela
acordou? Quando descobriu que a amava?
— Não, Diana, eu disse a frase no dia de seu casamento, eu não me
importaria com a espera por ela, mas os sombrios não são bonzinhos,
marcamos egoisticamente nosso território e então é nosso, mesmo que
tenhamos que esperar o que é nosso decidir se entregar por livre e espontânea
vontade, e às vezes esse nosso pode ser bem teimoso. — Ele riu.
— Bonito! — Eu ri, Rael ficava empolgado quando falava de Eva, ele
olhou para mim com uma meia-lua nos lábios.
— E sem perguntas agora, mas há um motivo para o selo também, é
mais como uma garantia de nunca perder quem ama, de poder sentir sua alma
intacta mesmo de longe, nunca se sabe, mas agora a minha pergunta. Desde
quando voltou do reino Humanis está aflita, diferente, mais ansiosa e sei que
não foi pelo ataque que você sofreu. Se descobriu mulher, não foi? Deixou a
menina de lado, não é, pequena?
— Nicolae já me disse isso, é que ando tendo um pensamento que não
tinha antes.
— Anda desconfortável perto de algum de nós?
Ele sabia. Fiquei vermelha, envergonhada, não estava pronta para abrir
meu coração, nem eu sabia se era algo importante, apenas mais intenso que
antes, mas isso não queria dizer nada, ou queria? Ele esperava resposta,
analisando minha reação.
— Você disse uma pergunta, Rael, não vale! Com essa já são duas.
Ele piscou para mim.
— Mas ainda faltam algumas coisas em você, filha, precisa se conhecer
um pouco mais, aí sim entenderá o que digo. Uma coisa ruim dessa
transformação é que se cobra demais a idade física que aparenta, mas se
esquece da idade que está aqui. — Ele botou a mão no meu peito em cima do
meu coração e me sorriu paternal ao dizer: — E não precisa me dizer se não
quiser, mas não esqueça que tenho experiência com mulheres que
desconhecem o que sentem de verdade.
Quando entendi o que ele disse, não me deixou responder, tinha
chegado a hora.
DOLOROSAS DESPEDIDAS
Segui em silêncio até a sala, Eva e André estavam me esperando,
Nicolae e Dimitri não estavam ali.
Abracei Eva e fiquei ouvindo suas palavras sussurradas de carinho e
conforto. Saí chorosa da mansão, Nicolae nos esperava lá fora com os
cavalos, não vi Dimitri em parte alguma e me deprimi ainda mais, montamos
e seguimos em silêncio sem conversa, Nicolae ia à frente, corpo rígido estava
tenso, ele sofria e eu me senti miserável, me sentia cada vez mais abatida
conforme chegávamos ao limite imaginário dos territórios, logo vi Dimitri
parado lá nos esperando, Rael e Nicolae estavam tensos, mas o rei ainda não
tinha dado as caras.
Desci do cavalo e fui até Dimitri e o abracei, mesmo ele emburrado não
me afastou, mas deixou os braços caídos, e ficou parado.
— Vou sentir muito sua falta, Dimitri.
Ele me abraçou de volta.
— Se eles te ferirem, nunca mais irei perdoá-la, porque você procurou
isso.
Afundou a cabeça nos meus cabelos e me apertou ainda mais forte.
— Vai me quebrar os ossos mesmo?
— Ainda estou bravo, não reclame.
Eu ri e o apertei com mais força, Dimitri, o meu irmão e confidente,
torci a boca, nem tão confidente assim, não tive coragem de falar sobre as
coisas que andava pensando ultimamente.
— Amo você, Dianinha, quando descobrirmos um meio de tirar você
de lá sem quebrar nossa palavra, esteja inteira.
— Prometo.
Abracei Rael que me puxou para seu peito.
— Você é minha filha, e de Eva também, não nos mate de desgosto,
adotei você e mesmo que não tivesse feito, mesmo que o sangue fosse de
meus irmãos, sempre a verei como filha.
— Também amo vocês, e os tenho como família, como pai e mãe que
eu nunca tive realmente.
Rael me soltou e eu abracei André.
— Ainda vou querer conhecer sua filha um dia.
Ele riu.
— E eu faço questão que a conheça. — Ele parou de rir e falou sério e
baixo. — Menina, me escute, não fale com os criados sobre nada, não confie
em ninguém.
Assenti e assim que nos soltamos ele sumiu pelo mato, eu sabia que era
por causa do rei, não queria ser visto por ele e era bom mesmo, reviver
lembranças ruins não era uma boa ideia, apenas eu era tão idiota para fazer o
caminho reverso.
Ele ficaria esperando com as carroças mais à frente, Dimitri já tinha
cuidado disso, André apenas não queria ficar ali e ajudaria Rael quando ele
chegasse até as carroças prontas para levar as mulheres ao reino.
Logo o rei apontava ao longe, atrás dele vinha uma carroça grande
cheia de mulheres e meninas, todas apertadas.
Nicolae me abraçou com força, com posse e ali ficou, mesmo com
aquele gesto ele não tinha me perdoado, eu sentia, ainda assim fiquei
abraçada a ele, meu coração disparado vendo o maldito rei se aproximar, não
demorou muito e ele parou, dessa vez não desceu do cavalo e reparei que ele
havia trazido mais homens dessa vez.
— Aqui estão todas — disse ele, nos olhando fixamente.
As mulheres desciam, e as meninas que já tinham pulado as ajudavam,
estavam em estado lamentável, havia mesmo vinte e nove mulheres ali,
quando todas desceram andaram apressadas em nossa direção.
Rael sem dizer nada seguiu a estrada de volta carregando uma das
sombrias que parecia realmente em estado grave de desnutrição, e as outras
seguiram em silêncio atrás dele.
Dimitri ajudava outra moça, eu não soube se era sombria ou não, e
assim a parte do rei estava feita.
— Venha, garota, sua vez.
Nicolae me virou para ele e enterrou a cabeça em meu pescoço, me
abraçando forte, me segurou firme perto dele e ficou um tempo parado, só
então ele falou muito baixo e eu não entendi suas palavras e após seu peito
subir e descer rapidamente, como se um momento importante tivesse
chegado, ele falou um pouco mais alto na direção do meu ouvido.
— Vou esperar você pela eternidade. — Ele abaixou ainda a mais voz.
— Não esqueça isso.
Solto-me e se afastou dois passos com os olhos fixos em mim, como se
pedisse de maneira silenciosa que eu reconsiderasse minha decisão, mas eu
não podia.
Sem conseguir mais ver sua angústia, eu me virei automaticamente,
perdida, agora que a hora tinha chegado eu não queria ir, que a guerra
explodisse e tudo isso acabasse. Mas mesmo pensando assim, eu dava passos
em direção ao rei, porque sentia que isso era o certo a fazer, tinha na cabeça
um turbilhão.
Outro passo e novamente o arrependimento e medo, os sombrios
podiam pegar as mulheres e saírem correndo, sem cumprir o trato e então eu
voltaria com eles, mas eram pensamentos apenas, não podia fazer isso.
A cada passo que eu dava na direção do rei, meus olhos reclamavam,
quando me aproximei, estava lavada em lágrimas.
Subi no cavalo que me foi entregue e partimos, por duas vezes olhei
para trás e Nicolae estava lá parado me vendo ir embora. Eu o feri, o
decepcionei e ele ainda no fim de tudo disse que me esperaria, novamente
senti meu nariz arder.
Virei pela terceira vez, mas já estávamos longe e ele já tinha sumido.
Tudo o que me restava agora era focar na certeza de que eu estava
fazendo a coisa certa para salvar a raça que me salvou no passado.
Continua...