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Copyright © 2023 Lucy Vargas

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Revisão: Elimar Souza


Designer de capa: Gabriella Regina
Diagramação: Lilla
Poção Mortal

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possível entrar para ACCA aqui. Tem que tomar a Poção Mortal primeiro.
Leia agora
Para a matriarca, por ter sido a melhor mãe. Por ter me ensinado a ler e
escrever e por ter me apoiado desde a primeira história que escrevi. Todos
os meus livros serão eternamente para você, mãe. Descanse em paz, você
merece.
Para cada uma de vocês que já perdeu a pessoa mais importante da sua
vida. E que seguem resistindo e buscando sempre as memórias felizes.
Se a dor for demais para carregar, peça ajuda. É o primeiro passo. Eu
pedi. E por isso que esse livro saiu.
Essa história não é sobre pessoas boas. Se você se iludiu
até aqui: Pare.

Eles não vão se redimir.

Mas a viagem está paga.


Silêncio

Quando o silêncio for tão opressivo e ensurdecedor que você não puder
escutar sua respiração ou o som dos seus batimentos.
Quando nada existir além da pressão do silêncio nos seus ouvidos...
Um membro de ACCA acabou de morrer.
Um membro de ACCA nasceu.
A morte está presente. E Tácita também.
A Deusa Silenciosa do Submundo está te convocando.
Corpo é encontrado na entrada de Los Angeles, próximo a I-15 na
pista sentido Nevada.

~ FOX6 Las Vegas

“O corpo encontrado próximo a interestadual ainda não foi


identificado, fontes da polícia apontam sinais de execução. A cabeça
foi pendurada sobre o corpo, com as mãos cortadas e furadas. Um
sinal do crime organizado que aumenta a pressão sobre as autoridades
de LA.”

~ Leia a reportagem completa no LA Times

FBI executa quatro mandados de prisão no condado de Los Angeles


em desdobramento das investigações das mortes e incêndios dos
últimos meses. Fontes internas apontam que novas provas foram
encontradas em casos que estavam parados há décadas.

~ NBC LA
Capítulo 1: Raiva caótica
Antonio = pólvora

Parti para Nevada e deixei a Califórnia queimando.


Era a primeira vez que eu quebrava a lei da discrição de ACCA. Antes da
explosão da mansão, eu lidava com capitães por se exporem e
consequentemente, exporem a todos nós. Dessa vez, eles ferraram comigo. E
eu retalhei.
Também era a primeira vez que eu causava cobertura midiática em cima
dos assuntos de ACCA e não sobre as comidas que minhas empresas faziam.
Helicópteros de redes de TV rodeavam pela região, sem conseguir cobrir
todos os acontecimentos. A polícia ainda não fazia ideia do que estava
acontecendo. Os bombeiros não tinham como apagar tantos incêndios.
Uma onda de terrorismo?
Um incendiador serial fora de controle?
Impossível ser a mesma causa, com incidentes espalhados pelo condado e
relatos de explosões pela Califórnia. ACCA não se limitava a uma região. E
eu só precisava de um endereço. Podia até não saber de alguns locais bem
escondidos, mas o que homens como nós vão fazer com uma casa num lugar
longínquo? Um carro? Uma meia dúzia de soldados? Ou pior, morto.
Mandei cortar as cabeças de quem fosse encontrado, para Tácita não
ressuscitar desgraçado nenhum.
Foda-se que ia contra a vontade dela. Ela deixou essa guerra começar.
Quando tudo se apagasse e só sobrasse o cheiro de fumaça, os escombros
e os corpos; as autoridades notariam. A polícia local seria calada pela força
tarefa e pelo FBI, diriam que estavam investigando. Os locais iam saber mais
do que passaria na TV, pois a mídia ia alegar que parte dos incêndios eram
um resultado da “rixa dentro do crime organizado” que vinha tomando Los
Angeles.
Todos os incêndios foram resultado da “rixa”. As explosões também.
Eu queria cortar as pernas deles. Implodir seus esconderijos. Destruir seus
depósitos; de soldados e armas. Eu precisava me vingar.
Então mandei queimar tudo. Suas mansões, seus negócios, seu dinheiro,
seus escritórios, seus barcos, seus carros, as casas de seus associados. Tudo.
Não poupei nem as casas de seus amantes, porque constantemente se
escondiam lá, pensando que eu não sabia onde eles iam para foder. Havia
gás nas casas, motores cheios em barcos e carros, armas e munição em
depósitos… essas coisas eventualmente explodiam. Eu só risquei o fósforo.
Estava pouco me fodendo para o fato de que eu ficaria com toda essa
destruição se saísse vitorioso dessa guerra. Tenho o suficiente, construo e
tomo o que precisar. Nenhum bem material poderia alimentar essa raiva que
vinha queimando nas minhas entranhas e finalmente me consumiu.
Nem eu percebi esse limite nascer. Achei que era fixação, que ia passar e
jurado para Tácita ou não, eu era um humano. Possuía fraquezas e paixões.
Mas não era isso.
Vito explodiu uma mansão lotada e revirou a minha vida e de todos na
organização. Destruiu a hierarquia de ACCA, colocou nossa existência em
perigo e expôs um bando de ratos.
Mas eu queimei tudo que ele e seus aliados possuíam porque esse filho da
puta resolveu botar a mão na minha mulher.

◆◆◆

Assim que o barco encostou no iate que esperava perto da costa, eu subi
tão rápido que não vi os degraus e quase fui direto ao quarto, mas estaquei e
voltei. Entrei no banheiro da outra suíte e arranquei as roupas. Estava
coberto de sangue, nos braços, roupas e nas mãos machucadas. Meus sapatos
e calça estavam cheios de poeira do deserto. Mas quando Bellini me ligou e
disse que ela tinha sido liberada da clínica, esqueci o trajeto até ali. Só
lembrava de embarcar e esperar os minutos até chegar à marina.
Saí da ducha, coloquei roupas limpas e entrei no quarto. Rachel estava
deitada de lado na cama, encolhida embaixo das cobertas. Ajoelhei na lateral
e observei seu rosto, devo ter feito algum barulho, pois pouco depois ela
abriu os olhos e focou no meu rosto. O baque no meu peito foi um soco e
uma onda de alívio estremeceu meu corpo só por ver aquele olhar de
gasolina sobre mim novamente.
Achei que a havia perdido. Senti a perda me consumir até depois de tirá-la
daquele buraco. A sensação deixou de ser paralisante e se tornou uma ira
incontrolável enquanto ela era tratada na clínica, mas só passou neste exato
momento em que ela olhou para mim.
Como eu pagaria uma dívida que era maior do que a vida que eu já havia
oferecido? Encarei seus olhos e só pensei no quanto tinha acabado com a
vida dela também. Tácita a devolveu para mim. Agora, nós dois
pertencíamos a ela.
— Rachel — deslizei a mão sobre o pedaço de colchão que a separava da
beira.
Ela nem se moveu, só me observou.
— Fala comigo, qualquer coisa.
A resposta dela foi virar mais o rosto para o travesseiro. Quando fez isso
eu vi de perto o ferimento acima da sua sobrancelha, tinha sido cuidado, mas
a veia vermelha do corte estava lá, o esfolado do lado da sua boca também.
Havia um curativo na parte da frente da sua cabeça. Suas mãos estavam
machucadas, todas as suas unhas quebradas e as pontas dos dedos arrasadas
de tanto que ela bateu e arranhou a tampa de madeira.
Eu queria me rasgar inteiro.
Queria matar todos eles mais dez vezes.
— Nunca mais vai acontecer isso — prometi.
Nervosismo acelerou meus batimentos quando ela fechou os olhos e não
quis mais me ver, nunca a tinha visto triste e miserável. Não sei se além de
tudo ainda sentia dor física. Meu autocontrole era tão prejudicado no que
dizia respeito a ela que se eu não a tocasse ia me desfazer ali mesmo.
— Sente alguma dor? — olhei a mesa de cabeceira, não vi uma receita ou
qualquer indicação. Teria de ligar para o médico se ela não falasse comigo.
Rachel negou com a cabeça e também não reagiu quando toquei seu
braço, evitando o hematoma que havia ali. Ela me rejeitou e pareceu ainda
mais desolada. Aquela agonia que eu sentia só podia ser angústia, não era
uma sensação que conhecia bem, mas por causa dela eu vinha
experimentando sentimentos que não me eram comuns ou eram
absolutamente novos. Não passei uma vida reprimindo e escondendo nada
disso. Se ela voltasse a me olhar, infelizmente veria a confusão exposta no
meu rosto.
— Eu não sei fazer isso, Rachel.
Ela se moveu e eu não sabia se iria se sentar ou me dar as costas. Tive
uma ideia estúpida, fiquei de pé, ajoelhei na cama e a peguei.
— Não, me deixa — reagiu ela.
Uma reação já diminuía em um por cento a estupidez da minha ideia.
Tirei-a da cama e ela lutou comigo, sem convicção. Quando a ergui nos
braços, ela reagiu mais, porém não a soltei.
— Não, não! — Brigou ela, movendo os braços.
Caminhei até a frente das janelas e me sentei, colocando-a no colo. Ao
segurá-la, ela já estava com lágrimas nos olhos.
— Para, para — pedi. — Olha, está chuviscando contra as janelas, do jeito
que você gosta.
Rachel parou de se mover e cobriu o rosto com as mãos, secando os olhos
úmidos. Só depois ela levantou a cabeça e olhou pelas janelas, observou os
pingos de chuva batendo tão levemente que quase não faziam barulho. Ficou
bem quieta, só olhando, eu a mantive segura e no nosso silêncio imóvel, o
balançar do iate se tornou mais perceptível. Ela deitou a cabeça no meu
ombro e ficou olhando para os chuviscos na janela por um tempo. Eu
continuava me sentindo estúpido e desnorteado.
Ela dormiu outra vez, acho que ainda estava sob o efeito dos remédios.
Coloquei-a de volta na cama e me sentei na beira, olhei os nós dos meus
dedos. Tinha voltado de Las Vegas onde resolvi essa questão e criei outra
pior.
Não consegui me levantar dali. Meu corpo não respondia. E tinha de parar
com isso, teria de sair do seu lado. Eu não parei por nada, não senti remorso.
Só uma raiva caótica que ainda queimava no fundo da minha garganta.
As consequências viriam.
Mesmo assim eu faria tudo de novo. Começaria mais dez guerras por ela.
Capítulo 2: Legítimo
pólvora

Horas antes…

Meus homens tinham começado a procurar e a caçar os responsáveis no


minuto que fiz a ligação após tirar Rachel daquele buraco. Eu disse uma
palavra e eles queimaram o condado em busca das informações que eu
queria. Mandei não poupar ninguém, porque em dias como esse, eu cansava
de ser aquele que pensava primeiro, seria cuidadoso depois que tivesse o que
queria.
Parei o carro na esquina antes da casa e abaixei o vidro, Denver apareceu
na minha janela e se inclinou:
— É aqui mesmo. Eles estão entocados para não chamar atenção.
Tommaso tinha ido a reunião no meu lugar, mas no caminho, sofreu um
atentado. Eles esperavam que fosse eu no carro, sorte que ele estava no
veículo que ia atrás. Perdi mais dois homens quando atacaram o meu carro.
Ele chegou lá e para surpresa deles, não fez nada. Só participou. Manteve o
olhar em Vito, observou Morales e quem mais estava presente; memorizou o
que eles estavam dizendo e apoiando.
Logo depois ele deixou a cidade num helicóptero, pois sobreviver a dois
atentados em um dia era abusar da sorte. Quando eu voltasse ao meu normal,
adoraria ouvi-lo contar sobre o assombro que causou ao entrar na reunião,
vivo.
O fato de ter havido uma reunião de comando fora da Capital, já seria
traição se a estrutura de ACCA não estivesse uma bagunça. Morales acha
que ele é um líder, mas não pode entrar em LA para tomar o lugar que ele
pensa ser dele. E Vito… eu queria saber se ele realmente pensa que o
padrinho vai deixá-lo assumir a Diretoria. Não, não quero. Foda-se. Só me
importa que eles querem me matar e a próxima cabeça que eu vou arrancar é
do meu primo.
— Diz pro Bellini se preparar — mandei, sabendo que ele estava em
posição com um rifle de longa distância.
Desci do carro e esperei escutar o primeiro som de aviso. Entrei na casa
ao lado e fui pelo jardim. Eram mansões com quintais cheios de plantas,
piscina e luxos. Quando pulei o muro e passei pela vegetação, estava tudo
apagado. Escutei os sons de tiro, entrei pela porta traseira, passei por cima de
um cara que estava tentando alcançar a arma, atirei na cabeça para poupar o
esforço e ter certeza que não ia me acertar pelas costas. Encontrei outro no
corredor, ele nem me viu antes do tiro. Da última vez que entrei numa
mansão para tirar alguém, tomei soco e estilhaço na cara, dessa vez não
estava nos planos.
Fui para o segundo andar e escutei vozes.
— Vem pra cá agora! Eu estou mandando! Esquece esse cara! Ele foi uma
distração! — Gritou Vito.
Ouvi tiros logo depois, as balas arrebentaram as portas duplas e teriam
destruído quem estivesse esperando para entrar e pegá-lo. Ficou um silêncio
estranho, mas meus passos não fizeram barulho no carpete claro do corredor.
Quando meu primo tirou a munição da gaveta para recarregar, paralisou ao
me ver no meio do quarto.
— Solta a arma — eu apontei para ele.
Vito nem se mexeu, fosse para soltar ou tentar me acertar, mas ele tinha
que recarregar primeiro.
— Onde eu te acertar, vai ser um rombo. Não vai dar tempo de ela te
consertar — apontava a 12 para ele.
Vito soltou a arma e mandei que chutasse para longe.
— Eu devia ter posto a mesa para te esperar — disse ele.
Eu deixei as armas na tal mesa que estava vazia e fui na direção dele.
— Acabou, Antonio. Morales me apoiou, se você botar a mão em mim
está morto.
Dei um soco na boca dele, ele tombou contra o colchão e cuspiu sangue,
mas teve a dignidade de me olhar como se eu precisasse adquirir bom senso.
E com aquela sua revolta de garoto mimado que achava que tinha direito a
receber o mundo, eu sabia que ele não tinha superado esse lado
autointitulado após a adolescência, mas não havia nada que pudesse fazer
sobre isso.
— Vai ter que se explicar a ele! E todos os aliados dele agora são meus
também! É isso que Tácita quer! Você está do lado errado! — Completou
ele, acreditando que fazia diferença para mim.
Porque faria. Antes de ele bater em Rachel, enfiá-la numa cova e deixá-la
lá para morrer ou ser explodida como prometeu. Agora todos teriam que se
explicar, negociar e me justificar por matá-lo. Porque Morales, o padrinho
dele, resolveu se livrar do problema e assistir até onde ele iria. Ele sabia que
Vito teria de passar por cima do meu cadáver para tomar meus negócios e
territórios. Teria que passar pelo cadáver dos meus aliados para entrar em
LA; Alessandro, por exemplo. E ele não ia facilitar.
Se nós somos o lado errado, foi Tácita que nos deixou virar o maior erro
da história dessa Capital.
E quando Vito atacasse e fosse morto, Morales teria feito a parte dele,
honrando sua amizade com Nascari. E estaria livre da dor de cabeça e com o
campo aberto para ficar com o que Vito deixou e buscar o que ele queria:
Tudo que era de Nascari. Isso incluía o que já era meu antes, o que eu
“herdei” do meu tio, o que dominei desde que ele morreu e o que eu ia tomar
de volta assim que Vito sumisse.
Além da Diretoria de ACCA. Óbvio.
— Eu posso tomar LA agora! Eu não sou só um soldado que você pode
enterrar, Antonio. Sou filho de Nascari! O legítimo!
Eu o agarrei pelo cabelo e bati sua testa na mesa de canto duas vezes. Ele
podia enfiar o “legítimo” no rabo. Foi assim desde que ele cresceu o
suficiente para entender e começar a dizer que o pai dele me dava atenção
demais. Coloquei-o de pé e ele sacou a faca.
— Você vai me matar com honra ou morrer por ela! — Demandou.
Lá estava ele, ávido para cortar minha garganta e descontar suas
frustrações. Ele deu um grande talho na minha camisa, cortou minha pele,
não senti nada. Meu corpo vibrava de adrenalina. Saquei a faca e enfiei no
seu antebraço, tirando sua arma. Pensei que minha fúria havia sido
controlada, que estava com a cabeça no lugar quando armei esse plano para
me infiltrar na casa onde ele estava preparando seu retorno triunfal a LA.
Estava errado.
Olhava para sua cara e só lembrava do que ele fez. De como tirei Rachel
daquela cova, morta. Ele tentou me matar e mesmo assim o coloquei em
segundo plano. Ele não conseguiu se conter e teve que encontrá-la e matá-la.
Depois de botar fogo na Lorenza.
Ainda o deixei viver. Por causa da dívida que tinha com o seu pai.
Não o cacei com o afinco que deveria.
Acharam que eu peguei leve, porque ele era meu sangue.
Vito me lembrou que eu não podia ter nada que gostasse.
Sempre queriam tirar de mim.
Eu menti. Gostei do pai dele sim. Ele foi um mentor.
Tinha 10 anos e tinha perdido tudo. Só sobrou ser bom no que eu faria no
futuro. Isso agradava Nascari e ele sentia orgulho do seu projeto ambulante.
E isso também alimentava os objetivos que tracei bem cedo na vida.
Mas eu não podia admitir gostar de nada.
Muito menos de alguém.
— Antonio! Antonio! — Chamou Pietro, gritando atrás de mim.
Eu havia derrubado Vito no chão, enquanto ainda estava com a visão de
Rachel dentro daquela caixa de madeira marcada a frente dos meus olhos.
Bati cegamente, enterrei meus punhos nele, até estar ofegante e minhas mãos
estarem feridas e sujas de sangue.
O desgraçado. E ainda não era suficiente.
Fiquei de pé e me virei. Ogul e Pietro olhavam para o que eu tinha feito.
Meu primo ainda não estava morto. Para azar dele, também era jurado,
não morria com essa facilidade. Ótimo, eu sabia como queria matá-lo.
— Levem-no para o carro — limpei as mãos na minha camisa rasgada e
recuperei as armas.
Saímos pelo meio das árvores, deixando a casa toda apagada. O vizinho
não estava e havíamos desligado as câmeras. Entramos no carro, quando
estávamos no fim do quarteirão, escutamos a explosão que desencadeou o
fogo que tomou a casa rapidamente, com todos os corpos dos seguranças lá
dentro.
Quando Vito acordou, estávamos em meio ao deserto de Mojave,
exatamente onde ele havia enterrado Rachel. Ele olhou para cima e me viu
em pé acima da caixa, com o pé sobre a borda. Só um olho dele funcionava,
mas tenho certeza que podia me reconhecer.
— Seu bastardo de merda. Eu sabia que não devia ter confiado em você
— disse ele, entre os dentes que sobraram.
— Essa é minha última chance de jogar na sua cara que você sempre
tentou me foder e chegou ao ápice de me explodir. Literalmente.
— Você não dava a mínima para aqueles putos que eu queimei —
devolveu ele.
— Não, mas me causou uma imensa dor de cabeça. Agora você vai
morrer aqui. Não vou te cortar, não vou te queimar, nada. — Olhei o relógio.
— Vou esperar enquanto você sente exatamente o mesmo que a fez passar.
Também não vou te dar um respirador e uns minutos como deu a ela, não
tenho tempo para isso.
— A sua puta morreu?
— Não — abri um sorriso, sem felicidade alguma. — Você vai ter que
morrer com mais essa frustração. E com o fato de que vou ficar com tudo
que você conseguiu e tudo que o seu pai já sabia que ia ficar comigo.
— Ela não é nada! Não é do nosso sangue! Você está fazendo isso por
ego! Porque eu consegui pegá-la! Seu idiota! Arriscar tudo por uma puta de
merda! Você vai ter que pagar por isso! Morales vai te foder! ACCA agora é
nossa!
— Pode até ser ego, mas é um aviso. Para todo mundo saber que não pode
botar a mão em nada meu. E isso inclui tudo.
— Você acha que estava brigando comigo? Se me matar é que você vai
começar uma guerra. Pensa nisso, você vai morrer. Você não tem peito pra
bater de frente com Morales!
Já que seria nossa última conversa, abaixei e falei baixo, ele não poderia
contar a mais ninguém o que eu ia lhe confessar:
— Eu não tenho medo disso, mas o seu desrespeito chegou ao limite.
Você acha mesmo que eu não podia ter te matado antes? Que não podia te
achar e meter um tiro na sua cara? Eu te deixei viver como último
pagamento ao que o seu pai fez por mim, para ver se você aprendia alguma
coisa e resolvia salvar o próprio rabo. Mas você é uma porra de um covarde
e em vez de me pegar, teve que colocar essas mãos sujas nela.
— Você acha que meu padrinho vai deixar sua ousadia e falta de respeito
sem pagamento? Você vai perder tudo! Seus territórios, seus negócios, seus
homens! E vai assistir sua vadia morrer como teve que ver a sua mãe! Toda
fodida e sangrando!
— Mas você não estará aqui para saber, não é? Ainda dá tempo de dizer
que suas casas, seus negócios, seus homens e tudo que seus aliados tinham,
eu mandei queimar. — Quase parei aqui e levantei, mas quer saber, ele que
se foda. — Pra agradar Tácita eu só preciso te dar um tiro e te esperar
morrer. Mas agora vou te assistir morrer pelo que fez a Rachel. Eu
começaria dez guerras por causa dela. Arrancaria a sua cabeça mais mil
vezes por causa dela. Eu vou te ver sufocar em medo e desespero pelo que
fez a ela — fiquei de pé e o olhei pela última vez.
— Antonio! Você é o traidor! Você!
— Pode fechar — tirei o pé e me afastei. A camada de areia seria fina,
teríamos que tirar a caixa dali pouco depois.
— Antonio!
Cruzei os braços, imaginando se Rachel também tinha me chamado com o
mesmo desespero e certeza de morte quando a cobriram de terra aqui no
meio do nada. Vi os homens pregarem a tampa, a terra caía sobre o buraco e
eu ainda sentia aquela raiva me corroendo. O fogo queimando meu depósito
foi como a tampa naquela caixa. Pegarem Rachel foi a areia que jogaram por
cima, o último limite que me sobrou. Eu precisava encontrar algum lugar e
quebrá-lo inteiro até me machucar, ter meus braços e minhas mãos
sangrando e ficar sem fôlego. Antes que isso me consumisse.
Cobriram a caixa de madeira. Acendi um cigarro. Olhei o relógio. Pietro
não conseguia tirar os olhos do lugar revolvido. Ogul estava com a pá
apoiada no chão. Os outros faziam um semicírculo, testemunhando o ato
final da guerra que eu não procurei, mas assumi de qualquer forma. E era
também o primeiro ato de outra guerra maior que podia até parecer que eu
escolhi começar. Uma hora ou outra, ela ia estourar, eu só soltei o estopim
mais cedo.
O tempo passou, fumei até o talo para ver se suavizava a onda de raiva
que queimava no meu estômago e o latejar incessante na minha cabeça. Mas
nem a receita mágica de Alessandro para produzir aquele fumo fez efeito.
Parei de escutar o vento, os sons do deserto a noite e o ocasional movimento
dos homens. Só havia a fumaça enrolando acima da minha cabeça.
A vida era acelerada e estávamos tão acostumados que não percebíamos
mais. Era nosso dia a dia, ainda mais depois da explosão. Só que naquela
noite, em meio ao nada, nós sentimos.
O silêncio.
Nada mais conseguia te fazer viver o silêncio como o poder da Deusa
Silenciosa. E quando um de nós morria, dava para sentir. Era como tudo que
vinha de Tácita, não era igual. Podia ser rápido, quase imperceptível. Podia
ser tão forte que zumbia nos ouvidos, como se o som da morte sempre fosse
um silêncio ensurdecedor. Podia ser até doloroso, como uma sensação de
vazio se apossando do corpo a ponto de tentá-lo para a morte.
Os sons voltaram. Pietro se aproximou e me entregou um celular. Era
Bellini.
— O médico a liberou. Estou indo pro heliporto, vou levá-la para onde
mandou — avisou ele, ao meu ouvido.
— Estou indo — devolvi o aparelho, guardei a bituca apagada no bolso e
tornei a olhar o relógio. — Desenterrem. Temos um funeral na agenda.
Eles tiraram Vito da cova, morto como deveria estar há meses. Esperei
mais uns minutos, antes de mandar cortar, para ver se Tácita o queria de
volta. Seria azar o dela se quisesse, pois eu ia cortar a cabeça dele de um
jeito ou de outro e isso nem a Deusa Silenciosa conseguia consertar.
Ele não voltou.
Talvez o meu lado não fosse o traidor dessa história. Quem sabe?
Todos que morreram na explosão da mansão da avó dele estariam
vingados assim que a notícia da morte circulasse.
Eu não fiz isso por nenhum deles.
Capítulo 3: Nos braços do Diabo
Raye = gasolina

Acordei de novo e já era dia, apesar das cortinas fechadas, eu podia ver
que estava ensolarado do lado de fora. Os sons do mar, dos pássaros e o leve
balançar me diziam que era um dia bom, com ondas baixas e o clima que os
turistas esperavam encontrar na orla do sul da Califórnia.
Não sentia vontade de sair da cama. Queria voltar a dormir e acordar
daqui a uns dois dias. Talvez já estivesse melhor. Quem sabe minha coragem
teria retornado. Fechei os olhos, tentando calar aquele dia lindo, não
adiantou muito estar num iate perto da costa.
O iate dele.
E como se conjurado, o desgraçado entrou no quarto e parou ao me ver
acordada. Meu desânimo era tamanho que não consegui me importar por
nem ter ido lavar o rosto depois de ter dormido por horas sob o efeito de
algum remédio abençoado.
Antonio abriu aquele sorriso lindo e se aproximou, eu queria jogar o
abajur nele. Sei lá de onde esse homem veio, talvez houvesse até nadado no
mar ali perto do iate. Pois estava com o cabelo com aspecto de recém-
lavado, camisa leve, pés descalços e todo aquele magnetismo característico.
— Gasolina… — chamou ele, da forma mais dolorosamente carinhosa.
Eu me sentei contra a cabeceira, repuxando o lençol em volta do meu
corpo. Antonio se aproximou e sentou na beira da cama, entrelaçou os dedos
e seu olhar dançou pelo meu rosto, sua expressão era uma mistura de
expectativa e contentamento. Continuei o avaliando, os nós dos seus dedos
estavam arrasados, seus antebraços também estavam machucados, como se
ele tivesse enfiado os braços em destroços e se arranhado. Não estava grave
o suficiente para precisar de pontos, mas dava para ver que pelo menos um
antisséptico teve de ser borrifado ali e gastou o vidro.
— Sente alguma dor?
— Minha cabeça dói um pouco — respondi.
Ele se aproximou mais, para pegar algo na mesinha de cabeceira.
— O médico enviou isso para dor, mas você precisa comer algo.
Não estava nem um pouco animada para ingerir comida.
— Qualquer coisa — incluiu ele, ao ver minha falta de entusiasmo.
Meu apetite não estava funcionando, mas a bexiga estava plena. Deixei a
cama e entrei no banheiro, sentei no vaso e cobri o rosto. Minha mente,
sempre tão cheia de planos e tarefas, estava vazia. Lavei o rosto e encostei a
cabeça no vidro. Eu nem sabia que dia era. Quanto tempo eu dormi desde
que acordei naquela clínica? Eu cheguei lá à noite, passei o dia e na noite
seguinte, o outro careca me trouxe ainda bem grogue e me instalou aqui.
Depois só lembro de Antonio me carregando para ver a chuva. E então,
nada. Só essa manhã.
Eu estava apagando tudo de propósito?
Entrei no chuveiro, fiquei embaixo da água quente, me lavei com o que
encontrei lá, não reconhecia o cheiro do sabonete, não era meu, mas não me
importei. Quando saí, usando o roupão largo, Antonio ainda esperava.
— Eu não sinto fome, posso só tomar o remédio e pronto?
Ele me olhou por um momento e saiu, mas como era um desgraçado
esperto, não deixou os remédios comigo. Era só o que faltava ele achar que
eu ia tomar vários de uma vez. Porque ele estava certo. Encostei contra a
cabeceira e puxei as cobertas, mas ele retornou e eu não esperava pelo seu
golpe baixo. Ele tirou algo de um papel barulhento e balançou a frente dos
meus olhos: um picolé gordo, grande, coberto da mais deliciosa e cheirosa
capa de chocolate.
— Você gosta desse, a baunilha é tão boa que dá para ver as favas,
escondidas junto com os pedaços dos melhores morangos. Você queria levar
uma caixa deles lá do resort. Lembra?
Pelo jeito quem achou a caixa foi ele. Antonio balançou o pedaço de
pecado doce à frente dos meus olhos, como se quisesse me hipnotizar. Eu
acompanhei, como um burrinho enganado por uma cenoura. Então caí na
armadilha e peguei. Ele parecia tremendamente satisfeito enquanto eu
mordia.
Ele voltou com uma toalha e envolveu minha cabeça, eu nem reagi, só
comi outro pedaço enquanto ele secava a umidade do meu cabelo. Quando
ele reapareceu a minha frente, limpei os resquícios com a língua e o encarei:
— Onde você se machucou? — Dei uma olhada na direção das mãos dele.
— No trabalho.
— Qual deles? Não foi cozinhando um belo café da manhã lá na Lorenza.
Ele voltou a sentar, no mesmo lugar de antes.
— O que ele te disse? — Antonio foi direto ao assunto.
— Um bando de merda.
— Sobre mim?
— Exclusivamente sobre você. Eu não sou psicóloga nem nada próximo,
mas ele tem um problema sério com você. Parece um tipo de obsessão.
— É por isso que está me observando como se esperasse que eu
explodisse a qualquer momento?
Não havia nem mais um resquício do contentamento que ele demonstrou
ao me encontrar acordada, foi substituído por suspeita e preocupação.
Só balancei a cabeça e comi mais. Antonio aguardou, com a paciência
enervante de alguém acostumado a observar bem sua presa.
— Você o matou? — também fui direta, mas preferi me concentrar no
meu picolé.
— Sim.
Levantei a cabeça e o encarei. Não havia alterado nada em sua expressão
ao anunciar isso. Ele continuava me observando. Eu sabia que não precisava
fazer nenhuma pergunta inútil como “tem certeza?”, “de verdade?”. Nada
disso. Não com ele.
O que me assustou foi o alívio que senti. Eu não tinha medo de bicho
papão, nunca tive. Mas eu nunca mais queria ver aquele homem ou seus
dois…
— E os outros? E os dois que me botaram no caixão?
— Todos eles.
Eu tive certeza que nunca mais seria a mesma. Pensei que ser vingativa já
era um traço tóxico que eu possuía, mas eu não tinha ideia. Senti aquela
sensação estranha no peito ao se dizer um “bem feito” com o gosto doce de
vingança. Eu queria que eles morressem. O próprio Vito me contou o que o
seu primo faria. Por tudo que ele disse que Antonio fez — alegando o tempo
todo não ser nem metade dos seus pecados — confirmou que esse seria seu
destino se fosse pego.
Mesmo que não fosse por mim. Mesmo que eu não sobrevivesse. Ele não
poderia deixar Vito sair ileso disso. E eu gostava de saber que eles sofreram.
Terminei de comer. No momento era o melhor sabor que senti na vida. Era
a primeira coisa que comia desde aquele burrito antes de me levarem. Eu
devia estar faminta, mas não era assim que me sentia.
— E o meu irmão? — Perguntei, subitamente aflita ao lembrar de tudo.
— Ele está internado.
— Ele sobreviveu! — desencostei num pulo. Tinha sentido medo de
sequer pensar nisso, não achava que aguentaria receber essa notícia. Foi
como acordar meus sentimentos represados, meus olhos encheram de
lágrimas, não tinha perdido o meu irmão.
Deon, seu desgraçado sortudo!
— Sim, está no hospital.
Antonio se levantou e pegou algo na mesa embaixo da TV suspensa.
Voltou e deixou sobre a cama, à minha frente. Era o meu celular. O original,
não o outro que ele me deu só para se comunicar comigo. Os dois ficaram no
carro quando me sequestraram. Era bobo, mas eu senti uma pequena
felicidade de ver o celular que me pertencia e me acompanhava para todo
lado, onde havia parte da minha vida.
— Ligue para a sua mãe. A mentira sobre a gravação fora da cidade já
expirou.
Desbloqueei o celular, não queria falar com ninguém. Mas liguei mesmo
assim.
— Rachel, você já voltou? Até que enfim! — Exclamou ela. — Seu irmão
foi operado!
— Eu sei, mãe.
— Ele foi para o quarto ontem à noite!
— Que ótimo, mãe.
— Eu preciso ir em casa, Nadia não serve para nada. Você tem como vir
aqui?
Hesitei um segundo. Não porque não desejava ver meu irmão, eu só não
queria sair e ver qualquer coisa que estivesse acontecendo lá fora.
— Rachel! — Chamou ela, num som estridente.
— Sim, mãe.
— Hoje?
— Sim.
— Ótimo. Tenho outras coisas para resolver e agora que ele está na
recuperação…
— Sim — respondi, ignorando o resto do que ela disse.
Desliguei e soltei o celular, tentando reunir coragem. Antonio parecia ter
adivinhado o que ia acontecer, pois trouxe uma mala pequena e a colocou
sobre a cama.
— Iana pegou essas coisas no seu armário, não sei se é o que gostaria,
mas segundo ela, tem o básico.
Só olhei a mala e franzi o cenho, levei um minuto para perguntar:
— Quem é essa Iana que entrou no meu apartamento?
— Esposa do Bellini, o outro careca.
— Ele é casado?
— Sim. Vista-se, eu vou com você.
— Por quê?
— Você não vai sozinha.
— Manda um dos seus carecas amedrontadores.
— Não, eu estou aqui. Não vou deixá-la ir sozinha.
No momento minha disposição estava baixa e eu tinha outras batalhas
para vencer. Se ele queria gastar um tempo do seu dia no hospital, era
problema dele. Saí da cama e me vesti com a primeira calça e blusa que
encontrei na mala. Quando me olhei no espelho, vi que tinha hematomas
espalhados, devia estar quente lá fora, mas eu não queria ninguém se
perguntando onde consegui as marcas.
Liguei o secador e sequei um pouco o cabelo, arrumei do melhor jeito em
um coque volumoso, encontrei maquiagem na mala, a mulher simplesmente
pegou minha bolsa com tudo dentro e colocou ali. Escondi as marcas no meu
rosto, fiz a maquiagem rotineira que minha mãe estava acostumava a ver e
estava pronta quando Antonio saiu do pequeno closet com outra camisa e os
sapatos. Ele deu uma batida na porta do quarto e parou atrás de mim, fiquei
surpresa quando vi os carecas, mais o garoto moreno e o outro grandão de
cabelo castanho e cicatriz no maxilar. Dei um passo para trás, apesar de não
ter medo deles, ainda não me sentia no meu normal.
Minhas costas encostaram contra o peito de Antonio e ele me envolveu
com um braço, usando o outro para indicar os homens.
— O careca enorme, é o Ogul — informou ele.
Para minha surpresa, ele pegou minha mão e a beijou. Ogul era o carecão
com quem eu dei de cara no dia que deixei o quarto depois de dormir com
Antonio no InterContinental.
— O “outro careca” que na verdade não é careca, é o Bellini — continuou
Antonio.
Eles trocaram de lugar e eu não recolhi a mão quando ele imitou o gesto e
meneou a cabeça, com um olhar de quem já tinha me visto tantas vezes que
até conhecia meus truques.
— O “garoto moreno” é Pietro, filho de Tommaso, meu sócio. Você ainda
vai conhecê-lo.
O garoto moreno também fez o mesmo e eu pensava que ele era o caçula
da turma que seguia e dirigia para Antonio como um novato aprendiz. Mas
olhando-o agora, calculei que devia ter uns vinte e cinco anos. Para falar a
verdade, fisicamente não era fácil chutar a idade desses caras, todos
pareciam maduros, fortes e saudáveis. Podia chutar desde trinta e algo até
quarenta e um bocado. Era o olhar deles que me dava certeza de uma
maturidade que não vinha só do tempo de vida.
— O grandão com esse cabelo de modelo, é o Denver — Antonio apontou
o cara alto que eu vi menos vezes.
Ele foi o último a repetir o gesto. Então apareceu a mulher, devia ter uns
quarenta e poucos anos, cabelo castanho, estiloso e curto, estatura mediana,
rosto pequeno e expressivo, com olhar de quem entendia das coisas.
— Iana Bellini — disse ele.
Ao menos ela não veio beijar minha mão, mas me cumprimentou como se
já me conhecesse, dois beijos.
— Bom, escolhi bem — ela deu uma olhada no que eu vestia, depois seu
olhar de águia foi direto nos pontos que eu tinha maquiado. Ela pareceu
aprovar, então saiu. Depois de vê-la, eu poderia jurar que não era a primeira
vez, acho que ela estava no iate quando fomos para o resort.
Assim como não era a primeira vez que eu interagia com aqueles homens.
— Tem mais pessoas, mas é com essas que você conta primeiro — disse
Antonio.
— Rachel Lund — Informei, mais por costume. Todos me olhavam como
se já soubessem muito mais do que o meu nome.
— Bem-vinda a ACCA, Raye — o tom dele foi de aviso, não de
cumprimento. — Sinto muito. Não tinha outro jeito.
Os outros assentiram, tive a impressão de que eu era a única que não
compreendia a seriedade da situação.
— Não é a primeira vez que escuto essa palavra por aqui — falei.
— Nem a última. Agora você está com a gente — se o sorriso de Iana era
para me tranquilizar, não funcionou.
Deixamos a marina com Ogul e Pietro. Eu ainda os chamaria de Carecão e
Garoto Moreno. Fomos ao Cedars-Sinai e encontrei Deon em um baita
quarto. Estava ligado a uns aparelhos, mas descobri que os tiros que ele
levou não comprometeram seu sistema respiratório, o mais perigoso foi no
estômago.
— Até que enfim! — Minha mãe me abraçou e machucou nos hematomas
escondidos, eu me encolhi e me livrei do aperto.
Fui até o meu irmão, acariciei seu braço levemente, ainda abalada por
saber que ele ficaria bem. Deon piscou várias vezes antes de me focalizar.
— Oi, Gana — murmurei, só o chamava assim quando queria resumir
carinho e sentimentos em um apelido.
Assim que me viu, Deon perdeu o controle e começou a chorar. Ele tentou
levantar o braço, mas eu o impedi e me inclinei, dando-lhe um ensaio de
abraço, com receio de machucá-lo.
— Aquele gringo desgraçado te trouxe de volta — murmurou em uma voz
rouca e baixa que eu só escutei porque ainda estava inclinada sobre ele. —
Meu Deus, Ibiza…
— Eu estou bem — menti, para tranquilizá-lo.
Acho que nossa mãe não escutou, mas ela ficou confusa ao ver a reação
de Deon. Sequei os olhos dele com um dos lenços da mesinha ao lado, uma
enfermeira entrou e perguntou o que havia acontecido.
— Ele ficou feliz em me ver — resumi.
Mesmo assim, ela não gostou da agitação dele, disse que precisava
descansar, pois estava em recuperação, tinha sido operado. Basicamente nos
expulsou, disse para voltar em meia hora, depois da avaliação do médico e
da medicação. O que só deixou minha mãe com tempo livre para bisbilhotar
a minha vida. Na pior hora possível. Eu estava uma bagunça, ver meu irmão
me deixou perturbada. Ninguém tinha conseguido lhe dizer que eu estava
bem, ele esteve desacordado e depois dopado ou na mesa de cirurgia.
E minha mãe estava em busca de informações. Deve ser por isso que me
esperou, pois jurava tê-la ouvido dizer ao telefone que precisava ir em casa.
— O que você sabe sobre o empregador dele? A enfermeira disse que a
conta do hospital será coberta por eles, deu o nome de uma empresa que
nunca ouvi falar. Aquele clube não tem como bancar isso. O bico que você
arranjou no estúdio, jamais pagaria isso aqui. O que eu preciso saber?
— Ele mudou de emprego, ia te contar, mas sofreu o acidente — eu tinha
de dizer algo, mas só queria sair dali. Não estava me sentindo bem.
Para minha sorte, Nadia deu o ar da graça e ficou irritada por ter que
esperar para ver o pai. Agora havia duas enfermeiras lá dentro. Eu escapuli e
Antonio estava numa das cadeiras do espaço de espera mais próximo, ele
enfiou o celular no bolso assim que me viu e veio ao meu encontro.
— Minha mãe está aqui, eu não sei o que vai acontecer — eu olhava para
os botões na camisa dele.
— Ele vai se recuperar — assegurou ele.
— Não, não é isso.
Ele continuou me olhando, apertei a ponte do meu nariz, estava dolorida.
Um daqueles idiotas tinha me dado uma mãozada na cara e como eu estava
lutando para não entrar na caixa, acertou no meio do meu rosto. Mas ele
nunca mais ia acertar o rosto de ninguém.
— Eu não sei… eu vou ficar — continuei.
— Você quer ficar?
Eu queria voltar para a cama.
— Eu realmente vou ficar, Antonio.
— Esperando no corredor?
— Não, eu vou ficar. E você vai desaparecer. Vai embora.
— Não.
— De vez.
— Isso não vai acontecer.
— Vai sim. Você vai voltar para o inferno onde eu nunca devia ter
entrado.
— Eu não vou deixá-la, Rachel. Não agora, nem em breve. Não até você
estar segura.
Abaixei a cabeça e cobri os olhos. Nem sei como me comportaria se ele
simplesmente assentisse, virasse as costas e fosse embora. Uma parte minha
ainda queria teimar que podia ser a solução.
— Nem quando te mando sumir? — Perguntei.
— Essa sua vontade súbita, eu não vou atender. Não importa o que diga
agora, quando chegar o dia em que eu tiver que sair da sua vida, não vai ser
para te colocarem em outro buraco. Isso eu não vou permitir.
Eu suspirei, toda aquela luz branca do hospital estava me incomodando, o
que era estranho. Porque eu estava fugindo do escuro. Oscilei no lugar e
deixei meu corpo ir para frente, sabia que podia contar com ele para aguentar
meu peso. Encostei a testa contra seu peito e inalei seu cheiro bom e
familiar.
— Então me tira daqui. Eu não quero ficar agora, amanhã eu fico.
Percebi as mãos dele nas minhas costas e me senti mais segura, ao mesmo
tempo escutei minha mãe me chamando. Ela se aproximou e parou a alguns
passos, provavelmente imaginava quem era o novo e desconhecido homem
na minha vida. Eu não estaria me apoiando em um estranho, nem o levaria
ao hospital. Minha mãe me conhecia.
— Rachel.
— Eu vou voltar, mãe — girei para encará-la e cruzei os braços. — Deon
vai ficar bem por hoje. Você devia descansar também.
Ela olhou de mim para Antonio e dele para mim. Ele disse seu nome,
como dissera para mim, mas sem metade do charme, só aquele jeito de quem
achava seu nome suficiente para cobrir todas as lacunas. Eu fechei os olhos
enquanto eles trocavam um aperto de mão. Minha mãe ia jogar no Google, ia
encontrar a Lorenza/ALGN, era o que aparecia nas primeiras páginas. Mas
se clicasse em notícias e fosse persistente o bastante para ler os artigos,
talvez aparecesse lá “Antonio Denaro, sobrinho de Nascari…”. E isso abria
um mar de possibilidades em outra pesquisa no Google.
— Vem aqui comigo um minutinho — ela me pegou pelo pulso e me
levou, como sempre fez.
Quando estávamos longe o suficiente para ninguém nos escutar, ela me
botou na frente dela.
— O que você está escondendo de mim? Não posso pressionar Deon
agora, mas vocês dois sempre se juntaram para esconder as coisas e
resolverem sozinhos. E quem é aquele sujeito ali atrás? O novo homem da
sua vida que você disse que não existiria por um longo tempo? Ele é o quê?
Produtor executivo? Figurão de algum estúdio?
— Não foi exatamente um acidente. Perseguiram a gente.
— Você estava junto? — Ela me pegou pelos braços e me olhou de cima
abaixo. — Não tem nenhum tiro em você!
— Não tem. Deon levou a pior — eu nem sabia se estava mentindo, acho
que preferia ter sobrevivido a um tiro. Estaria na cama, puta da minha vida,
com dor, mas menos desgraçada da cabeça.
Também não saberia de tudo que Vito falou, não estaria com medo de
escuro e pavor de caixões.
— A ambulância veio, eu fiquei com medo de complicar para ele, pois
Deon tinha uma arma. Escondi o carro e a arma. Eu também me machuquei,
sabe. Quando o carro bateu — soltei meus braços do aperto dela e coloquei a
blusa no lugar. — Foi isso.
— Aqueles desgraçados voltaram atrás dele? — Perguntou ela, assumindo
que tinha a ver com o passado de Deon e os caras da sua antiga gangue.
Dessa vez era eu. Ele que se meteu onde não devia.
— Não sei. Fica esperta — eu me virei e ela me segurou. — Mãe,
descansa e deixa a Nadia aqui. Eu quero ficar sozinha, já sei fazer isso há
anos.
Eu me afastei, fugindo de mais perguntas, estava acostumada a resolver as
coisas por minha conta, porque minha mãe sempre teve empregos que a
mantinham longe de casa. E quando eu fiquei mais velha, ela ficava fora por
uma temporada de verão. Isso não diminuía meu amor por ela e nem o dela
por mim; não era um trauma, era um estilo de vida. Por causa disso, aprendi
a ser independente bem cedo. Sempre pude contar com meu irmão e meu
pai, mas era diferente.
Papai estava morto, meu irmão estava internado. Ele precisava mais dela.
Eu estava desesperada para sair daquele hospital.
O que me fez voltar direto para os braços do diabo que me protegia agora.
Capítulo 4: Enterro em Vegas
ANTONIO

Corpo de Vito Nascari é encontrado poucos meses após a morte do


pai
O principal suspeito de ser responsável pela explosão que iniciou
uma série de conflitos do crime organizado em Los Angeles, foi
encontrado morto na entrada da cidade. A polícia agiu em cima de
uma denúncia sobre um corpo e o identificou como Vito Nascari, 26
anos. Ele era procurado pela polícia.
As informações dadas pelo Sargento Hatcher ainda são preliminares,
mas acredita-se que se trata de uma execução. “Devido ao conflito que
tem acontecido na cidade nos últimos meses, não é uma surpresa.
Porém, esperávamos encontrá-lo para esclarecimentos” — declarou
Hatcher.
O corpo seguirá para autópsia, mas é uma terrível perda para a
família que ainda sofre o luto por Francesco Nascari. Investigações
estão em andamento para descobrir os responsáveis pelo crime.

— Como você pôde não me dizer? Eu tive de assistir pela TV a cobertura


do helicóptero sobre o local onde o corpo foi encontrado — reclamava
Mack, com as bochechas vermelhas e os olhos arregalados.
Ele estava no meu escritório naquela manhã, tratando de outros
assuntos para mim.
— Eu ainda sou o advogado da família, tem noção de todo o trabalho que
isso vai me dar? — continuou.
— Eu não sei porque você acha que eu sabia que Vito estava morto —
respondi, olhando-o de trás da mesa.
Mack chegou a pular no lugar e arregalou ainda mais os olhos, depois se
inclinou e sussurrou.
— Quer dizer que você não teve nada com isso? — Agora sim ele parecia
apavorado.
Continuei olhando para ele, todos os locais que eu ia eram varridos por
escutas e câmeras todos os dias, a cada vez que eu entrava e saía. Não
significava que eu ia admitir sequer uma contravenção quando estava
sentado num lugar onde atendia como minha persona pública.
Estávamos nos escritórios da Lorenza/ALGN no Centro da Cidade, por
trás daquelas portas havia vários funcionários. Muitos especialistas em
importação com anos de carreira, estagiários, jovens com MBA’s duelando
pela próxima promoção. Profissionais de marketing, contadores,
especialistas na área de alimentação, desde as nutricionistas chefes até os
diretores de compras que andavam por todo lado negociando preços de itens
alimentícios. Não era nada de fachada, era o coração da operação.
Mas eu sempre preferi a privacidade do escritório no depósito principal, lá
ficavam os chefs de cozinha, assistentes, entregadores, estoquistas,
motoristas, moedores, cortadores… o pessoal que botava a mão na massa
para entregar o que esse escritório organizava e conquistava. Quem estava
aqui dependia do bom trabalho do pessoal lá para continuar com seus
empregos. E vice-versa.
Eles não se importavam com o que eu fazia fora dali, desde que a
Lorenza/ALGN continuasse funcionando. A destruição do meu maior Centro
de Distribuição causou um estresse generalizado, todo mundo tinha algo
para resolver. Duvido que não sabiam dos rumores, que não tinham lido ou
escutado alguma história sobre o meu tio, afinal eu não pagava aquele
pessoal do setor de recursos humanos para contratar gente obtusa. Mas era
isso, eles não sabiam de nada.
— Quer dizer que você vai ter a chance de ver Jeane — informei.
Isso mudou completamente o foco dele. Ver a esposa grávida era tudo que
Mack mais queria, ele ficou até emocionado. Eu levantei e ele me seguiu,
tinha que visitar a obra de recuperação do meu CDD. Os restos mortais de
Vito virariam cinzas e continuaria me causando dor de cabeça. Isso se
materializou mais rápido do que nunca quando meu celular tocou.
— Você é pior do que eu pensava, Nascari sempre disse, mas eu pensei
que era uma visão paternal sobre os seus feitos.
Era Morales, até que demorou.
— Sinto muito pela sua perda — respondi.
— E eu sinto muito pelo que você teve de fazer.
— Eu não fiz nada.
— A linha é segura — informou ele.
— Bom para você.
Então ele provou que era segura ao dizer:
— Eu vou te matar. Não vou te torturar ou expor, nada disso. Vai ser
limpo. Apesar do que teve de acertar com Vito, não é pessoal. Ele era adulto,
fez suas próprias escolhas.
— Do mesmo jeito que você escolheu apoiá-lo a continuar com essa
loucura.
— Estava, ainda estou, ocupado com meus próprios assuntos. Ele podia
ficar brincando de gangster por um tempo. Nós dois sabemos que uma hora
ou outra, ele ia ser posto num caixão. Perversidade não é talento. O pai dele
enxergou isso.
— Você o apoiou de propósito e com um objetivo. Sabemos bem qual é.
— Assim como Nascari, eu nunca gostei de ver o circo pegar fogo,
resolvo meus problemas discretamente. Por isso, é assim que você vai
morrer. Sem explosões, fogos e notícias sensacionalistas. Isso era coisa de
Vito. Você também é discreto, vai preferir um enterro só para os amigos.
— Eu agradeço, mas já tenho gente pronta para organizar minha cremação
quando chegar a hora.
— Em breve, Diabolik. Mas Nascari teria ficado orgulhoso. Entrar no meu
território, em uma das minhas casas, arrancar seu primo de lá e queimar
tudo. Sem deixar rastros. Bem executado. Imagino que não nos veremos no
enterro.
— Não.
— Foi porque ele mandou queimar seu centro de distribuição?
— Também.
— Arrume seus assuntos, vai facilitar para mim. Você sempre soube que
eu ia assumir o lugar de Nascari, assim como ele viria pelo que é meu, se eu
tivesse morrido primeiro.
Meu tio era um desalmado maquiavélico e devido ao que eu sabia que ele
esteve tramando, diria que ele não estava planejando que seu melhor amigo
ficasse com o que era dele. Mas não era assunto meu, eles que resolvessem
isso quando se encontrassem no Hades.
— Você ia matar o seu afilhado, assim que ficasse com tempo livre —
acusei.
— Não ia precisar, alguém ia pegá-lo primeiro. Acredito que essa é nossa
última conversa. Uma pena, sempre o achei inteligente e maleável para lidar
— comentou ele.
Eu o conheci pouco depois de chegar a LA, ele já era o melhor amigo do
meu tio naquela época. Sinceramente, achei que ele já estaria morto quando
eu fosse adulto.
— Sempre te achei uma cobra traiçoeira, mas não posso negar que
manteve a amizade com Nascari.
— Ele era meu melhor amigo. Amizades no nosso meio não são como as
pessoas esperam. Mas funcionam. É por isso que vou entregar seu corpo
intacto, ele o via como o filho que Acca deu a ele. Todo mundo no nosso
meio sabe que foi você que acertou a dívida de Vito, com isso me desafiou e
entrou no meu território para fazer o que precisava. É o segundo motivo para
acertarmos a conta.
— Se é assim, vou garantir para que seu corpo seja velado em Vegas,
intacto, numa grande cerimônia. Como você e Nascari gostariam.
Ele riu, mais condescendente do que nunca. Mesmo que não fosse me
subestimar.

◆◆◆

Fui até Culver City ver como estava a obra de reconstrução do meu CDD,
ver minha operação funcionando de forma improvisada me dava nos nervos.
As rotas não eram mais otimizadas, o tempo de entrega estava maior, ver os
caminhões se dividindo e voltando a fazer viagens desnecessárias parecia um
trabalho porco. E eu não suportava isso em lado algum da minha vida.
Não sei até quando ia continuar resolvendo as merdas que meu primo
deixou para trás. Meu maior problema era a forma como Morales trabalhava,
sempre do jeito mais traiçoeiro. Ele não poupava recursos. Dizia ser discreto
e todo aquele papo para boi dormir, mas causava um estrago enorme antes
de chegar ao seu alvo.
Pelo jeito eu era seu novo objetivo. Ia ficar chato para ele ser
desrespeitado assim. O que eu achava um bando de palhaçada, ele me fodeu
primeiro quando embarcou nessa história com o afilhado dele. Era só ele
ficar na dele, mas queria ver tudo desmoronar, sem ter que se envolver
diretamente.
— Vocês o encontraram? — Virei para Denver e Ogul quando os dois
vieram me irritar, parecendo duas torres largas.
Acho que levaria anos para o meu humor voltar ao normal.
— Sim, mas ele se enfiou no território de uma gangue latina, para ter
certeza que ninguém vai matá-lo. Você que vai ter que garantir que só o quer
para o trabalho.
— E quando eu ameacei aquele filho da puta? — Perguntei, com a
paciência embaixo dos meus sapatos.
— Nunca — respondeu Denver, como se precisasse me lembrar quem eu
estive ameaçando, o que nem era uma ideia idiota, dado o tamanho da lista.
Mas eu não ameaçava ninguém que não tinha planos para cumprir a
promessa. — Mas agora que viu as notícias, ele está ainda mais cabreiro.
Eu me virei e xinguei enquanto me afastava. Tudo me irritava e tinha dias
que minha dor de cabeça não passava mais com dois comprimidos.
— Vocês já sumiram com todo mundo que conhecem? — Virei de
repente.
— Sim, chefe. Só tinha uns dois para mandar um aviso — assegurou
Denver.
— Eu já tinha feito isso, também só me sobrou umas duas parentes lá pelo
Havaí — Ogul deu de ombros.
Por “todo mundo que conhecem” eu queria dizer todo mundo com quem
eles se importassem. Diferente de Vito, que agiu para me atingir da forma
mais pessoal que conseguiu pensar. Morales não se importava com quem era
ou se você amava a pessoa. Ou se era alguém do seu passado e já não
importava. Ele ia pegando as pessoas relacionadas aos inimigos e se livrando
delas, era parte da sua assinatura. Em geral, ele nem se envolvia
pessoalmente, delegava tudo aos seus homens e não se importava com as
barbaridades que eles cometessem enquanto cumpriam suas ordens.
Foi exatamente o que fizeram com o meu pai. Começaram pegando todos
com quem ele se importava, até chegarem na esposa e nos filhos. E nele.
Eu entrei no carro para ir resolver outro problema antes de poder voltar
para a marina, meu humor tinha estabilizado, mas tomei quatro comprimidos
para dor de cabeça. Tommaso entrou pela outra porta, tínhamos assuntos
pendentes. Eu finalmente estava disposto a escutar cada pormenor da missão
dele em Las Vegas e o que ele descobriu depois.
Enquanto ele falava, eu pensava. Por que diabos eu precisava ser
escrupuloso com Morales? No minuto em que os médicos declararam a
morte do meu tio, o melhor amigo dele virou minha ameaça de morte.
Mesmo que Vito não tivesse explodido tudo, não ia demorar para ele vir
atrás de mim. A paz durava por causa de Nascari. Eu seria um tolo
inexperiente se ficasse surpreso. Era melhor assim, eu sabia o que estava
atrás de mim.
— Ele é um dos poucos sobreviventes de outro tempo nessa região. O
medo em relação a ele é real. Se ficaram receosos com Vito, vai ser pior com
ele — comentou Tommaso, sempre naquele tom cirúrgico, como um
conselheiro econômico.
— Ele precisa morrer — fechei os olhos e encostei a cabeça, aproveitando
a liberdade que tinha para fazer isso ao lado dele. Se ele quisesse cortar o
meu pescoço, teve 25 anos de oportunidades.
— Antonio…
— Você vai me dizer para mantê-lo vivo?
— Não, eu vou lhe dizer para eliminar as arestas antes. Se ele fosse fácil
de matar, não teríamos essa conversa. O negócio com Vito, aquela reunião e
agora a morte dele. Deixou muita história pendente e gente precisando ser
lembrada disso.
— E você tem nomes e endereços para mim.
— Nomes com certeza. Endereços não, eles seriam tolos de estarem no
mesmo lugar depois do noticiário dessa manhã.
Bebi mais um gole de água com gás, como se pudesse forçar o remédio a
agir mais rápido.
— Não quero soar paternalista, mas se você foi embaixo do tapete de
Morales buscar o afilhado dele, tenho certeza que eles sabem que não tem
onde se esconder.
Abri só um dos olhos.
— Você está tentando me dizer que está orgulhoso? — Perguntei num tom
de provocação.
Ele se remexeu no assento e cruzou os braços.
— Bem, eu não sabia que ia dar nisso quando o trouxe para cá. Espero
que saiba o tamanho do buraco onde se enfiou.
— Eu sei disso desde os catorze anos.
— É muito sério.
— Eu sei.
— E la ragazza? — Indagou ele, que às vezes ainda falava com aquele
sotaque de filho de imigrantes acostumado a falar vários idiomas em vez de
um americano falhando em pronunciar outra língua.
— O nome dela é…
— Rachel, eu sei. Também soube que fiquei de fora da apresentação.
— Você é bem-vindo quando quiser.
Ele tomou um momento para continuar, não sei o que pensava, também
não me importava. Fazia sentido que de todos a minha volta Tommaso fosse
o mais receoso em levar a sério o meu interesse por uma mulher.
— O que você vai fazer? Prendê-la enquanto resolve isso?
— Ela é esperta, muito esperta. Mas ainda não superou o que aconteceu.
Não preciso trancar portas.
— Por enquanto.
— Não pretendo me demorar nisso.
Ele bufou, como se as coisas só ficassem piores. Elas iam piorar sim,
Morales tinha soltado seus cães atrás de mim. Mas eles não sabiam o que eu
estava preparando para eles.
Capítulo 5: Não Duvido
gasolina

Continuei abraçada aos meus joelhos e recostada contra a cabeceira da


cama, essa havia virado minha posição padrão, especialmente quando estava
sozinha. E eu estava passando bastante tempo só com a minha companhia.
Ninguém me infernizava ou me chamava. Antonio tinha suas coisas para
resolver e quando estava no barco, ele me dava espaço. Poucos dias haviam
se passado desde que fui levada, mas do jeito que o tempo passava, parecia
fazer semanas.
Antonio entrou com uma bandeja, dessa vez ele tinha uma expressão mais
séria, porém ainda afável, não ia dar notícias ruins.
— Eu estou preocupado, Raye — ele se sentou na cama e descansou a
pequena bandeja a minha frente. — Você precisa voltar a se alimentar. Eu sei
que seus horários eram doidos, mas você fazia as refeições do dia.
Olhei o que era, mais uma daquelas massas deliciosas que ele produzia na
Lorenza. Um bule e uma caneca com café, só pelo cheiro parecia ser daquele
grão cem por cento arábica e de torra mediana que ele moía, fazia do jeito
tradicional e temperava com especiarias. Abaixei as pernas e as cruzei,
peguei a caneca e bebi um gole. Parecia que meu corpo estava dormente, a
menos que eu o estimulasse, ele não agia como deveria. Assim que senti o
sabor delicioso daquele café, eu quis continuar bebendo.
Antonio cortou um pedaço, havia geleia dentro, ele levantou na ponta dos
dedos e ofereceu, olhei aquela massa tentadora e cheirosa. Eu acho que o
iate tinha atracado naquela manhã, para ter algo tão fresco ele trouxe ainda
cru e assou ou estava recebendo entregas da própria distribuidora.
— Juro que se experimentar, não vai se arrepender. Eu convenci a nonna a
me vender outra receita de geleia. Ela voltou a dizer que nunca mais quer me
ver, ela diz isso todas as vezes — ele sorriu levemente.
Eu continuei segurando a caneca, mas abri a boca e aceitei o pedaço.
— É bom, não é? Ela manda me contar que criou algo diferente, mas que
não vai me vender. Só para eu ir lá experimentar e convencê-la.
Fiquei distraída pelo sabor sensacional que despertou meus sentidos e
minha fome, também pelo sorriso dele e pelo pedaço de história sobre uma
senhora que eu sequer conhecia, mas já simpatizava. Descansei a caneca,
peguei o croissant, mordi, voltando a sentir a geleia. Ele ficou satisfeito e
levantou o pequeno bule, colocando mais um pouco do café na caneca.
Eu terminei de comer e ele levantou o biscoito, que ele só chamava de um
nome parecido em italiano. Era crocante por fora e com um recheio macio
por dentro, senti gosto de chocolate de verdade misturado na massa. Antonio
manteve o olhar em mim, por mais que ele tentasse não fazer isso, seu cenho
franzia e dava para ver que tentava descobrir coisas sem ter de perguntar. Ele
me disse que todos eles estavam mortos. Vito, os dois caras que me enfiaram
no caixão e me enterraram, os outros que tinham participado do sequestro, os
seguranças do primo dele. Todos.
Então não sobrou ninguém para lhe dizer nada. E eu continuava incapaz
de sentir qualquer culpa pela morte deles. Era assim que a mente de Antonio
funcionava, ele se assegurou de matar cada um deles e ver isso como sua
parte em me ajudar a me sentir segura. Eu só não sabia que era assim que
minha mente aceitaria isso. Quando eu deitava a cabeça no travesseiro, saber
que nenhum deles entraria ali, me dava paz interior.
— Nós atracamos? — Perguntei.
— Sim, há uma hora.
— Você vai sair?
— Mais tarde. Você quer sair?
Eu olhei para baixo e bebi um gole de café, não estava doce e casou com o
sabor do que eu havia comido.
— Tenho umas coisas para fazer — respondi. — Vou ficar um tempo com
o meu irmão, minha mãe disse que ele já está mais ativo.
Voltei a olhar para Antonio e disse:
— Eu preciso ir ao meu apartamento.
Antonio só assentiu, com aquela sua mente lhe dizendo quem iria lá
comigo. Bebi mais café, mas não me movi e ele pendeu a cabeça.
— O que você não quer me dizer? O que te fizeram ou disseram que você
prefere não dizer? — Perguntou ele. — Seja o que for, diga. É melhor do que
continuar me olhando assim. Eu me comporto melhor quando tenho
informações.
— Você também fica me olhando de um jeito estranho.
— Eu não sei o que fazer, fico o tempo todo imaginando o que aconteceu,
não paro de pensar nisso — ele passou as duas mãos pelo rosto e remexeu na
bandeja vazia. — Eu tive certeza que precisava descobrir quando você me
mandou embora do hospital. Fico esperando que faça isso de novo e eu não
vou parar de me perguntar os motivos além do óbvio. Então eu vou virar um
filho da puta ainda mais cretino, porque eu vou te contrariar. E você vai me
odiar.
— Eu não vou te odiar, Antonio. Aquele seu primo devia ter sido posto
num caixão antes de ele explodir aquela casa. É isso que eu acho. Eu não sei
detalhes, a verdade é que não sei quase nada dessa história. Mas concluí que
ele continuou vivo até hoje por causa do pai. Todo mundo devia ter medo
desse tal de Nascari.
— Matar o filho dele não seria uma boa ideia. Para ninguém —
esclareceu, incisivo.
— O filho legítimo — completei.
— Que merda ele disse? — Perguntou ele, percebendo que só Vito
poderia ter me dito isso.
— Tudo que achou relevante — voltei a dobrar as pernas e juntar meus
joelhos à frente do meu peito. — Sobre vocês. Porque ele tinha certeza que
eu ia morrer. Ele também citou Acca e agora você me disse que todos vocês
trabalham nisso e ele fez tudo pela liderança. E ele achava que você estaria
morto em breve, então por que não desabafar com a mulher que ele ia
enterrar?
Antonio manteve o olhar em mim, então empurrou a bandeja, chegou
mais perto e colocou as mãos nas minhas pernas, ele segurou meus
tornozelos e se manteve assim. O sentimento foi parecido com o café que eu
não sabia que queria tanto beber ou o croissant que eu precisava para cobrir
meu estômago vazio, mas calado. Senti a conexão automática e o conforto
do toque dele. Eu não fugi da comida, mas evitei. Acho que fiz o mesmo
com ele, mas era assim que me sentia.
— Foi ele, Antonio. Ele mandou matar o pai — contei.
Eu vi a mudança na expressão dele, achei curioso não haver surpresa, mas
dúvida, como alguém tentando fazer as contas para fechar uma conclusão.
Dali em diante, eu contei tudo a ele.

Uma hora após a ligação de vídeo com Antonio…


Flutuei de volta para a consciência e não tive tempo de me acostumar,
mãos fortes me agarraram e arrancaram de dentro da caixa. Fui colocada de
pé e arrastada para a frente da caixa, tinham colocado a cadeira ali. Pisquei
várias vezes, demorei a entender as vozes. Minha garganta estava seca e eu
sentia dor. Quando me levaram para dentro, eu estava lutando e gritando e
eles me bateram primeiro e só depois pareceram lembrar de me dopar de
novo.
— Bota ela aí para eu ver direito — mandou Vito.
Eles me puxaram para frente, seguravam meus braços. Ele se aproximou e
me olhou de perto, odiei quando pegou meu rosto e observou os detalhes.
— Veja só, que inesperado. Ele nunca teve um tipo favorito, mas você é
uma bela novidade. Vamos ver o que mais tem aqui para o meu querido
primo ter resolvido continuar a vê-la.
Ele desceu as mãos e começou a abrir minha blusa, sem evitar que seus
dedos roçassem minha pele. Engoli a saliva, tentando me preparar para o que
fosse acontecer. Nem sentia o resto do meu corpo, apesar de meus pés
estarem tocando o chão. Meus braços continuavam presos, cada um entre as
mãos dos dois outros homens. Se me perguntassem, eu nem saberia
descrever seus rostos, mas de Vito eu lembraria perfeitamente.
— Uma pena que você não vai viver para se decepcionar quando ele te
foder e te largar subitamente. Numa noite qualquer, ele simplesmente
sumiria para sempre. Só sobrou Acca na vida dele e ela é exigente — ele
desceu pelos botões e me expôs, empurrou os lados da minha blusa e desceu
o olhar pelos meus seios mal cobertos pelo sutiã e depois pelo meu torso.
Suas mãos subiram, acariciaram as laterais dos meus seios como se me
medisse — Deixe-a na cadeira.
Eles me sentaram e eu não me mexi mais, nem mesmo para fechar a blusa.
Era tudo inútil, eram três caras armados e maiores do que eu, sendo dois
capangas violentos e cheios de músculos. Eu não era nenhuma Salt, o
máximo que sabia era defesa pessoal básica e inútil para o momento. Com
certeza tinha mais deles do lado de fora daquela porta.
— Bela amiga que você tem, só faltou soltar até a hora que você vai ao
banheiro. Mas facilitou tudo, só precisava saber onde e quando — comentou
ele, debochando.
Vito puxou outra cadeira e sentou à minha frente. Voltou a me olhar de
forma intrigada, mas claramente entretido. Deu uma checada no relógio caro
em seu pulso, como se tivesse tempo contado para me infernizar.
Provavelmente tinha, eu ouvi a ligação com Antonio. Sinceramente, não
achava que ele escolheria me salvar. Do jeito que as coisas estavam, eu não
vivia um momento otimista.
— Já que você vai morrer em algumas horas, porque meu primo não vai
deixar de ir a Vegas para buscar mulher alguma, por mais atrativa que seja
— ele deu uma olhada nos meus seios. — Acho melhor saber a bala da qual
você desviou.
Continuei olhando para o chão. Vito me falou de como Antonio chegou à
cidade quando era criança, ele contou o que soube, pois na época era
pequeno demais para lembrar.
— Não achei que o orfãozinho de merda ia me criar o problema de agora,
mas falando sério, a culpa é mais do meu pai. Sei lá se você sabe do que tô
falando, mas para ele estar te encontrando, você deve ao menos saber ler ou
assistir jornal. Nascari, aquele desgraçado. Negando o sangue e minha
posição. Passei a vida atrás deles, pra quê?
Então ele disse o que finalmente me fez encará-lo.
— Tive que mandar dar uns tiros nele antes que me desmoralizasse de
vez. Seria pior. Mas ele não aceitou morrer, ficou em coma. Acca nunca
deixa ninguém em coma, até nisso ele tinha que ser diferente. Matei o cara
que falhou e até que foi bom ele ter vegetado por uns meses. Ganhei tempo
para planejar. Quando mandei matá-lo ainda não tinha tido a ideia de matar
todos que mantinham a operação para ele.
A explosão que fez com que eu conhecesse Antonio. Mas essa parte Vito
não tinha conseguido descobrir, tenho certeza que ele falaria. Ele reclamou
sobre uns caras que ele chamou de diretoria, capitães, dublês e todos os
homens da organização que não o respeitavam e agora estavam mortos.
Citou aqueles que ele ainda ia matar porque preferiam ser fiéis a Antonio. O
que o levou a demonstrar que a mágoa que carregava em relação ao primo
era grande.
— Já que meu pai gostava tanto assim do sobrinho, vou mandá-lo para o
Hades com ele. É lá que seu amante vai encontrar a mãe. Ele não falou dela,
é claro. Ele nunca fala. Nem é por não se importar o suficiente com você,
não morra com essa mágoa. Lorenza — anunciou ele. — Se matou. Amarrou
uma corda em volta do pescoço, subiu numa cadeira, dilacerou os pulsos,
deixou sangrar e só depois se jogou. Pelo menos foi efetiva, ia de um jeito
ou de outro.
Eu permaneci quieta, entendendo significado do nome da companhia de
comida que Antonio possuía e na qual Vito tinha botado fogo. Ele citou isso
também, na parte em que estava xingando os caras e se gabando de merdas
que fez com eles. Aliás, o fogo foi ideia minha! De onde eu estava dava para
ver as chamas e a fumaça cobrindo o céu! A preciosa Lorenza em chamas!
— Gabou-se ele, em meio um bando de coisa sobre sua organização que eu
nem estava entendendo.
Na hora eu estava tão além de tudo, que não tinha prestado atenção nos
detalhes do que ele disse a Antonio na ligação. E eu tinha certeza que ia
morrer, que diferença os detalhes fariam?
— Foi na mesma semana em que meteram uma dúzia de tiros no pai dele.
Pegaram a mãe e o irmão. Deram um fim no garoto, mas devolveram a bela
e delicada Lorenza — continuou ele, com um toque de ironia para apimentar
seu relato. — Meu primo a viu pular da cadeira. Nem sei por onde anda a
minha mãe, aquela traidora, mas espero que ela não faça uma merda dessas
agora que meu pai morreu.
Eu nem sei como ele conseguia dizer minha mãe e meu pai com tanta
naturalidade. Comecei a me abotoar e ele não impediu, estava ocupado
desabafando com um cadáver ambulante.
— Pensando bem, até gente no meu mundo tem uns momentos de coração
mole. Acho que ficaram com pena do garoto, como se fosse novidade ser
órfão no nosso meio. E impressionados por terem conseguido tirá-lo de lá
antes que o pegassem também — ele se inclinou para mim, perto demais. —
Você sabe que depois ele matou os caras, não é?
Claro que eu não sabia, mas nada mais me surpreenderia.
— Nessa época eu já estava maior, meu pai teve que ir atrás de meu pobre
primo rebelde quando ele foi pego depois de matar uns caras. Ele tinha sei
lá, uns 16 anos quando torturou o primeiro cara que estuprou a mãe dele. Eu
faria o mesmo, foi assim que começou essa fama dele, o apelido e tal. A
gente tem coisa em comum, tem história, mas a vida é assim no nosso
mundo. Matar ou morrer — ele deu de ombros, recostando contra a cadeira.
Ele usou exemplos para provar isso, contando umas coisas que Antonio
fez para continuar seu caminho nesse mundo deles. Também se gabou de
coisas que fez, como se fosse uma competição e seus feitos fossem maiores.
— Não fica triste, depois que eu te enterrar, não vai demorar muito e nem
vai dar tempo de ele sentir sua falta. LA vai ser minha.
Vito ficou de pé e ajeitou a camisa.
— Nem é pessoal, não me importa se você é prostituta ou se é do coral da
igreja. Que se foda, eu vi a cara dele. Esse tipo de coisa fica na mente, é
claro que ele lembrou da mamãe, então ele vai preferir que você morra sem
sofrer. Para diminuir a culpa. Vou só te tacar no buraco, nem tô a fim de
transar agora. Vou comemorar em Vegas, com cinco putas para fazer o que
eu mandar, não com uma vadia que vai berrar na minha cabeça — ele
revirou os olhos para a ideia.
Vito tornou a olhar o relógio e sentou outra vez.
— Não posso conversar com ninguém que vá ficar vivo. É um momento
delicado — ele levantou a mão e tocou meu cabelo. — Se pudesse jogar
mais, eu te roubaria dele, do jeito que vou pegar todo o resto. Incluindo a
empresa que ele botou o nome da mama. Mas não tenho tempo. Amanhã eu
garantirei que ele fique sem apoio. Ninguém mexe com Morales. É o
equivalente ao meu pai. Quando ele estava vivo. Nada mais natural que eu
assuma essa equivalência. Você não acha?
Eu só fiquei olhando para ele.
— Responde, quando chegou você estava bem falante.
— Não.
Ele riu.
— Não? Por quê? Seu namoradinho merece mais?
— Eu não entendo disso, mas achei que não era uma monarquia. Se você
quer poder, você tem que conquistar.
Vito tornou a rir e me puxou pelo cabelo, causando uma dor aguda na
pancada que eu tinha levado na cabeça.
— Não é, mas sangue sempre fala alto, seja nas veias ou no chão. E eu
tenho ambos para dar e vender — ele me soltou bruscamente e doeu tanto
que eu vi tudo embaçado. — Não vou ter tempo para mais conversas. E
como você é uma ótima ouvinte, vou fazer o seguinte.
Ele me agarrou pelo braço e me botou de pé, depois me empurrou para a
mesa onde o caixão de madeira estava. Ele me imprensou ali e botou as
mãos no meu corpo, senti o toque nos meus quadris, passando para a frente
do meu ventre. Apoiei as mãos na mesa, numa mistura de dor e asco. Vito
disse que não estava a fim de me estuprar, mas dava para ver como ele
achava interessante brincar com algo que em sua cabeça pertencia ao primo
dele. Não importava para ele que eu era uma pessoa.
— Você pode ficar aí. Vamos sair logo — avisou ele, desencostando de
mim.
Eu apoiei uma mão na mesa e o olhei.
— Anda, entra — mandou ele, apontando a caixa e esperando que eu
subisse na mesa e ainda tivesse o trabalho de entrar naquela merda de
madeira.
— Você vai me matar e ainda quer que eu colabore e entre numa porra de
uma caixa? Vai se foder! Você e essa sua mente fodida! Eu espero que ele te
mate!
Ele se virou e foi até a porta, com certeza achando que era importante
demais para ter que me aturar.
— Joga a vadia na caixa — disse aos outros dois.
Eles entraram, me agarraram e jogaram na caixa antes de me apagar de
novo. Acordei mais uma vez naquela sala, depois disso só acordei de novo
quando já estava dentro do buraco e ouvia a terra sendo jogada sobre a
tampa.

◆◆◆

Quando terminei de contar, Antonio estava com os braços em volta das


minhas pernas, segurando nas partes de trás e sua cabeça descansava sobre o
meu joelho. Ele a levantou rapidamente quando parei de falar e avaliou
minha expressão, nem sei dizer o que havia no olhar dele. Depois de
conhecê-lo e adicionar a isso as coisas que Vito disse, era difícil ver
vulnerabilidade em quem ele era agora. Mas pelo jeito que me olhava, posso
afirmar que ele esteve esperando o pior.
E eu não sei o que ele achava ser pior.
Logo notei que ele também estava absolutamente irado. E por isso tirou as
mãos de cima de mim e soltou o ar. Eu me senti ridícula, estava me
comportando como fogo e gelo. Sentia a necessidade do contato com ele,
mas ainda queria me fechar numa concha.
— Eu sinto muito — murmurei.
Antonio voltou a me olhar, tinha feito um trabalho rápido em engolir sua
ira. Até porque, ele já havia matado Vito. Não tinha nada que pudesse fazer
além de engolir e seguir em frente.
— Por tudo — completei. Estava falando da história da mãe dele e sei que
ele entendeu.
— Eu prefiro ser o mensageiro sobre a minha própria vida. Porém, os
fatos não mudam. O que ele disse, mesmo visto através de sua mente turva e
cheia de delírios, é verdade. Eu fiz isso, essas coisas me aconteceram.
— Eu não duvidei de nada do que ele disse.
Antonio franziu o cenho, sentado na cama de lado para mim. Eu me
inclinei e beijei seu rosto. A única reação dele foi olhar para as mãos que
descansavam em suas coxas, elas já estavam curadas, seus machucados iam
e vinham rápido demais para eu acompanhar no meu estado distraído.
— Você fez exatamente isso quando era para eu nunca mais ter voltado —
ele ficou de pé e pegou a bandeja. — Sinto muito que tudo isso tenha te
levado a viver esses momentos horríveis nas mãos do meu primo. Bellini e
Pietro vão levá-la até o hospital e ao apartamento. Preciso resolver algo.

Annika 13:44
CADÊ VOCÊ? Mandou aquela resposta genérica e
sumiu de novo.
Tô indo pra LA! Tô preocupada.
Capítulo 6: Um a menos
pólvora

Quando entrei no carro queria dizer que tinha controle sobre minhas
emoções. Mas eu queria encontrar Vito e matá-lo mais umas dez vezes. Ser
efetivo, às vezes era uma merda. Não sobrou ninguém daquele episódio, não
tinha mais nenhum filho da puta que botou a mão nela ou que sequer
disparou um tiro naquele episódio. Só me restava continuar cortando as
pontas soltas para me distrair e diminuir as perdas.
Tommaso fez uma lista de nomes de traidores que estiveram em Vegas e
debandaram para o lado de Vito, fosse por achar que seria o lado vencedor
ou por pensarem que precisavam seguir o que Morales dizia. Desde a morte
de Nascari e do que aconteceu, era tudo incerto e deveria ser compreensível
as dúvidas e inseguranças. E agora todos já sabiam que Morales viria atrás
de mim, a surpresa seria se anunciássemos uma trégua.
Nada disso lhes compraria mais dias nesse plano.
Cheguei ao heliporto do outro lado da reserva de Ballona. Soube que
Felipe Nicoli achava que estava sendo esperto ao deixar a cidade de
helicóptero, numa imitação malplanejada do plano de Tommaso em Vegas. E
sem saber que ele foi para mais perto de onde eu estava.
Tommaso disse que Nicoli estava em Vegas e sabia sobre o atentado que
eu deveria sofrer caso tentasse ir. E eu sabia que ele era um puxa saco do
Morales e lambe rola do Nascari. Agora tinha só um saco para ele ficar
agarrado e não seria o meu. Ele controlava negócios e homens no norte do
Estado e tinha conexão com Vegas.
Não queria ter problemas com os meus negócios se ele entrasse no meu
caminho, porque ele teria de entrar. Não dava para ficar em cima do muro.
Eu ia me livrar dele, os acordos de negócios feitos entre Nascari e os aliados
do amigo dele estavam encerrados. Seria meu para botar nas mãos de quem
eu quisesse.
— Você sabe que não me dou bem com altura — disse Ogul, ao frear o
carro.
— Vocês vão ficar, saiam da vista — deixei o carro antes de ele parar
completamente.
— Eu me divirto quando ele fica meio doido — disse Denver, enquanto a
porta batia e o carro seguia.
Eu os deixei para trás e me aproximei do helicóptero que aguardava. O
piloto estava a postos, eles não chamaram um cara qualquer, que nunca nos
prestou serviço. Ele era associado, estava acostumado a pilotar dentro do
meu mundo e me conhecia.
— Quando ele aparecer, você vai continuar imóvel — apontei a arma para
o rosto dele.
— Aquele filho da puta… — foi a reação dele.
— De onde ele vem?
— Não sei. Já devia ter chegado, mas ele nunca é pontual.
— Pior para você.
— Eu não sei de nada, nunca sei.
— Continue assim.
Entrei na traseira, era uma aeronave típica, dessas que cortam os céus de
Los Angeles diariamente, fosse em viagens com turistas ou levando os ricos
e famosos.
Demorou uns dez minutos e nesse meio tempo, o piloto conversou como
se eu não houvesse enfiado uma 40 na cara dele. Prova de que ele servia para
o trabalho nesse mundo. Não dava para viver aqui e pular a cada vez que via
um cano na mão de alguém. Ele disse que não era traidor, mas sabia o que
estava rolando e abriu o bico sobre quem esteve levando na última semana e
para onde.
O carro parou ao lado do helicóptero, na distância segura para a nave
decolar. Dava quatro pessoas atrás e eu concluí certo. Nicoli, a amante e um
segurança. O outro iria embora dirigindo o carro. Quando eles se
aproximaram, o piloto não se mexeu e eu abri para recepcioná-los. Atirei na
testa do segurança antes que pudesse reagir. A garota gritou, Nicoli ficou
paralisado.
— Já ia voltar para Vegas, seu rato de merda? — Perguntei.
Quando o cara que ficou no carro viu o que aconteceu e saiu, Ogul e
Denver já estavam encostando o carro ao lado dele.
— Diabolik, sinceramente… — ele conseguiu dizer, se o sorriso no seu
rosto não fosse de nervoso, devia ser sadismo.
— Você — movi a arma, indicando a garota. — Deixa o celular no chão,
pega a grana dele e vai embora. Já sabe como é: não viu nada, não lembra de
nada. Fica sumida uns dias. Não quero ter que descobrir o seu nome.
A garota morena e jovem arregalou os olhos, mas não se fez de sonsa, se
estava para embarcar em um helicóptero para deixar a cidade com Nicoli,
não era sua primeira vez desse lado da fronteira. Ela largou o celular, pegou
a maleta que ele carregava e fugiu na direção do hangar. Escutamos o tiro de
fundo, o outro segurança dele caiu para dentro do carro.
— Vamos negociar — propôs Nicoli, recuperando o movimento da boca.
— Eu espero que o seu filho te odeie o bastante para trair sua memória.
Soube que você é um pai de merda, vive humilhando a mãe dele. Vou ter
certeza de lembrá-lo disso antes que ele faça besteira querendo assumir o seu
lugar.
— Ele não quer, ele é um… É um frouxo… ele não serve pra nada disso.
— Bom pra ele. Entra logo.
Nicoli entrou e mandei o piloto ir para o deserto, a vista no mar era
melhor, mas era Los Angeles. As chances de ter um bando de rico entediado
permeando o mar de barcos e com celulares nas mãos era muito alta nessa
hora da manhã.
— Não adianta ficar puto comigo, Diabolik. Você sabe que era minha
única escolha.
— Você é um chupa saco de velho do caralho. Cansei do seu tipo, nem
competente você é. Está nessa posição por ter passado uma década
engolindo as merdas de Morales e lambendo o chão para Nascari. Se viesse
para o meu lado, eu ia te apagar do mesmo jeito.
— E que merda você esperava agora? Nascari já era. Você não é tão
jovem para não saber que é óbvio que Morales, aquele olho grande, ia querer
tudo.
— E Vito? Você também o achava uma bomba relógio.
— E ele provou ser. Mas você… — ele balançou a cabeça. — Eu nem sei
te descrever. Só agora eu entendi o que Nascari queria dizer sobre nem ele
poder te manipular e porque ele o queria para substituto. Para foder com
tudo! Aquele desgraçado queria ver isso do túmulo!
— É tarde demais. Você devia tê-lo escutado.
— Se você falar com Morales, se aparecer lá com uma bandeira de paz
e…
— Eu não tenho medo dele, seu covarde de merda. Nunca tive. Respeito e
medo são coisas diferentes.
— Eu não vou mudar de lado.
— Você acha que vim aqui para te convencer?
— Você não pode fazer isso, Antonio. Não pode. É você que está errado.
O cenário mudou, você já pensou que é o traidor agora? Acca vai te foder!
— Acca faz o que quiser, aqui fora as regras são minhas agora. Nascari foi
morto, Rosales virou comida de peixe, Nieves virou miúdo, Mariano virou
carvão, eu mandei pendurar a cabeça do meu primo numa estaca. Queimei
todos os seus amigos e traíras. Até para morrer Morales só fodeu com vocês,
ele é o único que vai ter festa e caixão aberto.
— Ele vai te matar, sabe disso. Não tem pra onde correr.
— Ele vai mandar me matar.
— Faz diferença?
— Não tem mais ninguém aqui, tem?
O helicóptero chegou ao que parecia o meio do nada e desceu, pairando a
alguns metros do chão. Nicoli adquiriu alguma coragem e tentou me
enganar, eu dei com a coronha na sua cabeça e o empurrei para a beira. Ele
se segurou.
— Vão achar seu corpo, para os ritos a Acca — avisei.
Atirei na testa dele, tão limpo que ficou só o buraco e ele caiu no meio da
areia. Por um instante, nem o som do helicóptero atravessou a barreira de
silêncio que só eu percebi. Mandei esperar mais uns dois minutos, fiz um
buraco grande e a queda não era pequena, mas eu não duvidava do poder de
Acca e aquele desgraçado também era jurado. Só que o corpo ficou lá, como
um boneco de testes, todo quebrado.
— Uma porra de um traidor a menos para me ferrar. — Retornei ao lugar.
— Pode voltar.
Ogul e Denver esperavam na pista quando o helicóptero pousou. Eles não
gostavam quando eu fazia voos solos — perdão pelo trocadilho — mas
acompanhado ou não, eu ainda limpava minhas merdas pessoalmente.
— Eu piloto para você. Quando quiser, onde for, a hora que for. Pode
contar — disse o piloto.
Parei para olhá-lo antes de descer:
— Eu sei onde e como encontrá-lo — avisei.
Afastei-me da nave, nada disso melhorou meu humor. Eu não movia as
minhas raivas e decepções entre alvos. Nicoli não tinha ido atrás de Rachel,
ele era outro assunto. Cada passo que dava para limpar minha barra, eu me
enrolava de alguma outra forma.

◆◆◆

— Eu entrei lá, ela estava diferente. Está cheio de planta de novo,


Diabolik. Nem ferrando que isso não é culpa sua também — reclamou
Bellini, parado nas escadas pro subsolo do Teatro.
Entre nós, ele era o mais crédulo. Não sei se é a palavra certa, ao menos
ele tinha dignidade de demonstrar o medo que sentia por causa das reações
da Deusa Silenciosa. Bellini nem gostava que eu falasse sobre a relação com
ela, dizia que era esquisito.
Não sei dizer o que “esquisito” significava para ele. Cada um reagia a
Tácita de um jeito e tinha sua forma de se relacionar. Não era algo que
falávamos em detalhes um para o outro. Bellini era o único que tinha
coragem de me acusar de ter algo a ver com as novas mudanças de Tácita.
Entrei para agradecer. Sabe o que ela fez por mim.
Desde então, vários membros de ACCA disseram que eu estava do lado
errado. Chamaram-me de traidor e anunciaram que se Morales não me
matasse, a deusa ia me trucidar. Não sei se ela estava esperando só o
agradecimento para cumprir a ameaça que outros fizeram em seu nome. Mas
eu matei os mensageiros.
E estava em dívida com ela.
Entrei nos domínios dela, Bellini estava certo. Cada parte estava coberta
de plantas de novo, como aconteceu quando a deixei sozinha por meses. A
energia estava baixa, como um zumbido, esperei um ataque sensorial, um
mal-estar, dor e tudo mais que ela podia causar quando queria. Nada.
Acendi a vela.
— Obrigado, Lara. Não tenho mais o que lhe prometer, você tem tudo.
Mas eu pedi algo pessoal e você me deu. Vou ser grato enquanto quiser.
Era foda saber que não tinha mais nada. Se sua vida não te pertence, o que
te move? Sede de poder não funciona do mesmo jeito para todos. Ninguém
jurava na ingenuidade. Ela oferecia muito e exigia sem limites. Mas sua
existência só te pertencia enquanto fosse útil. Jurar e viver pelo simples
prazer da existência? Não dava. Mas a sensação de pertencimento e
identidade que ela causava era inexplicável.
— Amarramos hostis línguas e inimigas bocas — eu recitei ao me cortar.
Não sabia se ela ia me matar, ou quanto tempo tinha. Mas ela atendeu ao
meu único pedido. Eu queria a vida de Rachel de volta. Então sangrei
naquela porra de água corrente como nunca fiz antes. O tanto de sangue que
já dei a essa desgraçada ao longo da vida encheria piscinas. Não sei quanto
sangrei essa tarde, mas foi a primeira vez que fiquei zonzo pela perda de
sangue.
E ela deixou. Porque aqui dentro, sentimos apenas o que ela deseja.
Quando tirei o braço da água, só havia a marca. Eu costumava cortar as
veias de cima e descer abrindo a carne, o sangue fluía pelo meu antebraço.
Porque toda vez que vinha aqui e sangrava para ela, a memória dos braços
dilacerados da minha mãe queimava na minha mente.
E eu repetia e repetia esse gesto. Especialmente quando estava em dívida.
Mas por agrado também. Não sei o quanto ainda ia sangrar para ela ficar
satisfeita pelo que me devolveu.
— Eu sou mais útil sangrando lá fora do que aqui dentro — ajeitei a
manga da camisa e olhei em volta, reparando nas plantas, elas nunca
estavam iguais e dessa vez não havia uma flor sequer. — Nem você sabe o
que deseja, não é?
Senti a dor no braço retornar, o sangue pingou no chão, fluindo do corte
que abriu e empapou a manga que eu tinha acabado de desdobrar. Doeu do
jeito que eu não sentia há anos. Dor não era mais a mesma para mim, morrer
essa quantidade de vezes tinha seus prós e contras.
Eu sentia Rachel me tocar, sentia tudo por causa dela.
Mas a dor e as consequências físicas não vinham direito. E quando Lara
me castigou com a agonia do corte fundo que rasgou minhas veias, eu gostei.
— Se soubesse, não estaríamos no meio dessa bagunça. Que merda de
jeito de revirar a sua própria casa, Lara. O que você quer?
Caí de joelhos, meu braço não funcionava, porque quando cortava para
sangrar por ela, eu ia até o osso. E eu quis sangrar rápido. Minha cabeça
latejava como se estivesse com um estilhaço enfiado no crânio outra vez.
Meus olhos tremiam, a visão ficou embaçada. Cada ferimento que sofri nos
últimos tempos doía do jeito verdadeiro, não só como se tivessem acabado
de ser infligidos. Também com a dor residual e os traumas que ficariam se
ela não me curasse como fazia.
Tácita ia me matar ali, porque se ela não ficasse me trazendo de volta e
curando os absurdos que aconteciam ao meu corpo, eu estaria morto há anos.
— Não vou pedir desculpas. Eu sangro pra pedir, sangro pra agradecer e
morro pra honrar. Se não me quer mais…
Abaixei a cabeça, perdi a capacidade de falar e a sensação da energia dela
me atingiu, parecia o Teatro desabando sobre o meu corpo. A única parte
boa foi que essa tortura consumiu a raiva caótica que vinha me consumindo
e desestabilizando.
Eu ia morrer. E não seria o primeiro a desaparecer no Santuário dela.
Talvez eu fosse o seu maior traidor. Ela me deu o que pedi e agora
tomaria, porque sem mim, não adiantava o meu pedido. Todos ligados a mim
acabariam mortos enquanto Morales e os seus aliados tomavam a Capital.
Como eu saberia que Rachel ficou segura?
Tombei no chão de pedra. Senti tudo molhado e achei que era meu
sangue. Era água, o rio dela transbordou. Os pés da estátua, a base de velas,
as plantas, meu corpo, tudo ficou sob uns vinte centímetros da água que
subiu.
Era assim que ela sumia com os corpos dos raros azarados que morriam
aos seus pés?
Quando apoiei as mãos e os joelhos no chão de pedra, já estava tudo seco.
Não me pergunte se passaram dez segundos ou dez horas.
Meu corte e meu sangue tinham sumido. A única coisa que pingava água
era eu. Escorria do meu cabelo, pelo meu rosto e grudava minha roupa ao
corpo.
Fiquei de pé.
— Está bem. Se é isso que quer, é isso que terá.
Cheguei a escada e Bellini ficou pálido ao me ver todo molhado.
— Você pulou na água dela?
— Não — continuei, deixando pegadas pelo caminho.
— Mas que… não, eu não quero saber. É assunto seu com ela.
Assenti e fui na frente. Não sentia nada fora do habitual, meu corte estava
fechado. E acredito que eu não era o traidor, ao menos não o único.
Minha vela ficou acesa o tempo todo.
Capítulo 7: Cadê a grana?
RAye

Raye 15:34
Eu tô bem, de verdade. Só tô meio enrolada e
só posso falar pessoalmente.
Quando você chega? Tá vindo pra alguma
audição?

Depois que saí do hospital, fui direto para o meu apartamento. Fiquei um
tempo com Deon, menti e o tranquilizei. Ele não comprava tudo que eu
dizia, mas estava satisfeito por eu estar protegida. Minha mãe ainda me
encontrou, mas não perguntou onde estava meu “novo cara”.
Pietro e Bellini entraram no prédio comigo, o segundo abriu o
apartamento e vasculhou o local enquanto o outro esperava na porta sem me
deixar entrar. De repente, Bellini apareceu na sala segurando George pelo
cangote e pelo braço torcido, ele estava só de cueca e com cara de sono.
Estava tão chocado que tentava falar, mas mal conseguia se mover no aperto
de Bellini.
Para minha surpresa, ele passou por nós e jogou George pela escada. Eu o
ouvi xingar, então estava vivo, depois ele voltou e jogou as roupas do cara
também.
— Tudo limpo — informou Bellini.
Eu entrei e só então Karen apareceu, com olhos enormes e uma camisa
larga cobrindo-a. Eu não estava com raiva dela, estava mais para
decepcionada. Realmente achei que fôssemos amigas e cúmplices, que se
importam uma com a outra. Ela não se importou comigo. Nem tentou.
— Rachel! É você! — O olhar dela mudava entre mim e o garoto moreno.
Pietro franzia o cenho, deu uma olhada em volta, como se procurasse
alguma arma para Karen pegar e se tornar uma ameaça. Na visão deles, ela
era uma traidora que deu todas as informações de como me encontrar e ainda
aceitou pagamento por isso. No mundo deles, isso era um adeus e um tiro na
cabeça. Apesar de tudo, não ia deixar que a matassem.
— Tudo bem, eu resolvo — eu disse a ele.
— Certeza? — Ele me encarou.
— Claro.
O garoto moreno saiu do apartamento e pelo som dos passos, parou bem
ao lado da porta. Ainda era muito estranho que esses caras automaticamente
entraram no papel de me proteger, da forma mais natural, do jeito que eles
faziam com Antonio. Karen avançou, provavelmente pensando o mesmo,
pois ela disse:
— Quem era aquele homem, Rachel? Ele arrancou George da cama! Por
quê? O que fez com ele? Pegou as roupas dele!
— Cala a boca, estou sem tempo para suas perguntas — olhei em volta e
achei o taco autografado que ganhei numa filmagem com vários jogadores
de beisebol. — Você não sabia onde eu estava, Karen.
— Não, eu achei…
— Eu estava com o meu celular, você não me ligou, não mandou uma
mensagem.
Ela franziu o cenho, procurando uma explicação.
— E enquanto eu estava desaparecida, você estava aqui no apartamento
fodendo com esse seu namoradinho ridículo!
— Não é assim, Raye. Eu fiquei com medo, pedi pro George vir.
— Medo de quê?
— Aconteceu uma coisa estranha.
— Sim, você deu todo o meu itinerário e horários para uns caras.
— Não, eu fiquei com medo deles!
— E deu detalhes! Para eles não se perderem, coitados.
— Para, Rachel, não foi assim — pediu ela, juntando as mãos.
— O que você achou que eles iam fazer?
— Sei lá, não pensei, eles me pararam bem aqui na entrada, sabia? Acho
que me seguiram!
— Mas te deixaram ir. E você não me ligou para avisar. Dava muito
tempo de ter me ligado, sua idiota! Eu poderia ter fugido antes deles
chegarem! Já se passou uma semana! Você não pode ser tão burra assim!
— Para de me insultar, Rachel. Não foi assim! — pediu ela, os olhos
enchendo de lágrimas e a voz afinando.
— Uma semana vivendo com seu namoradinho ridículo aqui. E eu que me
fodesse! — Fui até ela, agarrei seu cabelo e a arrastei comigo, ela soltou um
gritinho. — Se fosse ao contrário, eu teria ligado para todo mundo, teria
chamado sua família, postado pela internet, avisado a polícia. Pelo menos no
dia seguinte quando você não voltasse para casa e eu não conseguisse falar
com você! Era o mínimo!
— Eu não sabia se podia! Fiquei com medo de contar!
Joguei Karen no chão do espaço que era nossa sala de estar, sobre o tapete
em frente a dupla de sofás de dois lugares que formavam um L.
— Rachel! — gritou ela, assustada e esfregando a cabeça.
— Cadê a grana?
— O quê?
— Eu sei que eles te deram um cala boca financeiro, sua recompensa por
dizer o que queriam. E ainda sair viva.
— Raye, você está me assustando. Quem eram aqueles caras?
— Fica no chão — abaixei a frente dela e levantei seu rosto com o taco.
— Cadê a grana?
— Eu…
— Você aceitou, não foi?
— E eu tinha escolha? — ela fugiu do toque do taco. — Enfiaram na
minha mão e me mandaram entrar e ficar quieta! Você queria o quê?
— Então cadê?
— Eu guardei.
— Onde?
Ela engoliu a saliva e ficou com aquela expressão de dor.
— Coloquei no banco, você sabe que tenho medo de assalto!
— Claro, você esteve tremendo de medo e para se consolar, foi botar o
dinheiro no banco e foder com o George aqui no apartamento. Você ia usar a
grana para pagar isso aqui sozinha se eu não voltasse? Dá para quanto? Uns
seis meses de aluguel?
— Não, eu não.
— Porque eu não ia voltar, sua filha da puta burra! Nem para minha mãe
você não ligou! A gente mora junto há meses e se conhece faz tempo!
— Você está me assustando, Rachel! Eu fiquei com medo! Olha, eu te dou
a grana, não gastei, só peguei um pouco para as contas.
— Enfia o dinheiro no seu rabo burro! Você vai precisar dele pra pagar o
seu tratamento!
Ergui o taco e fiquei de pé a frente dela.
— Se quiser permanecer viva, você nunca mais vai abrir a boca para nada.
Aqueles caras não estiveram aqui. Você não me viu hoje. Se o George quiser
continuar vivo e dançando, ele vai fingir que não viu nada.
— Rachel… Para com isso — implorou, apavorada.
— E não importa quem apareça, você vai dizer que eu finalmente saí de
férias depois de anos sem parar de trabalhar. Repete!
— Você saiu de férias!
Eu levantei o taco e a acertei, ela tombou. Ia ficar com uma dor de cabeça
do caramba. Acertei de novo, na perna, ia doer por uns dias. A idiota tentou
fugir e a derrubei com uma porrada nas costas. Quando ela caiu, o último
golpe foi na coxa, para ela ter hematomas também, já que eu ainda tinha
vários. Ela era uma dançarina, eu não queria acabar com sua carreira, então
não tinha coragem de quebrar o seu joelho.
Mas eu a conhecia, terror psicológico fazia o maior efeito em Karen. E ela
passaria dias gemendo de dor, tomando analgésicos e morrendo de medo de
ser uma burra ingrata de novo.
— Eu nem vou te botar para fora — tornei a abaixar, apoiando no taco. —
Agora, sua fama é de linguaruda traidora. Agradeça por ter sido eu a cuidar
de você.
Óbvio que ela estava chorando, não esperava menos de Karen, ela chorava
com facilidade. Levantei e fui para o meu quarto, armei duas malas grandes,
uma bolsa de ombro e outra mala de mão só com acessórios. Quando voltei
para a sala, ela estava no canto de sempre do sofá, olhando-me com
desconfiança.
— É melhor você arranjar outro lugar para morar, mas aqueles caras não
vão mais voltar. Usa a grana pra sumir daqui — avisei.
— Para onde você vai?
— Eu disse: tirar férias.
Abri a porta, Bellini e Pietro foram pegar minhas malas pesadas no quarto.
Antes de sair, parei e olhei para ela.
— Boca fechada, Karen. Você não é difícil de achar. Boa sorte com o seu
espetáculo e eu não quero mais te ver.
Deixei o apartamento, levando meu taco autografado. Sabia que não podia
ficar por ali no momento. Sinceramente, ia precisar me mudar, não
conseguiria dormir naquele lugar. O que só me deixava mais irritada, eu
adorava meu canto, morava naquele apartamento desde a época que dividia
com a Annika. Conhecia a dona, ela cobrava um aluguel justo e era ótima.
Estava vivendo o luto adiantado, o que ia fazer? Para onde iria?
Sabia que não ficaria no iate por muito tempo. Nem sei dizer até onde iria
a situação com Antonio. Eu simplesmente não podia pular de conhecer o
cara há uns três meses para morar com ele, forçada pelas circunstâncias. Não
era assim que as coisas funcionavam na minha vida. Eu me relacionei com o
Neil por um bom tempo e nunca quis morar com ele. Como que agora eu
meio que morava num iate de luxo com meu… do que eu devia chamar
aquele homem? Ele era tão atípico que eu sequer conseguia taxá-lo.
Cobri o rosto, sentada no banco de trás enquanto Pietro dirigia e Bellini ia
no banco do carona.
— Você acertou sua colega com um taco? — Perguntou Pietro.
— Sim.
— Ela não estava desacordada — apontou Bellini.
— Eu não bati com esse objetivo.
— Pelo menos doeu? — Pietro parecia curioso.
— Claro que doeu. É para ela nunca mais abrir a boca.
— Bom — aprovou Bellini.
— Dá próxima, bate para a pessoa levar, pelo menos, uns minutos para
acordar — sugeriu Pietro.
— Sim, de preferência. É mais seguro, para a pessoa não levantar e
revidar — concordou Bellini.
— Eu espero não precisar bater em mais ninguém.
— Sim, a gente resolve — Bellini completou.
Com eles resolvendo, a pessoa ia levar muito mais do que uns minutos
para levantar. Esses caras não resolviam traições de supostas amigas, eles
matavam traidores. Ainda havia essa nova herança. Eu tinha o que parecia
ser uma espécie de ficante com quem a relação estava esquisita e junto com
ele, vinham as pessoas que estavam a seu serviço.
Quando um cara matava todo mundo que te machucou e insistia em
continuar envolvido na sua vida, já podia chamá-lo de algo além de affair,
não é?

Neil 16:48
Por onde você anda? Sumiu para todo mundo.
Liguei para Karen ontem e ela disse que você não
estava. Tô preocupado, Raye. Dá sinal.
Capítulo 8: Meu primo, porra!
ANTONIO

Morales tinha atacado. Do jeito típico dele, começava pelas beiras e ia


enfraquecendo seus inimigos para não sobrar nada quando ele desse o golpe
de misericórdia. Entrei no pequeno escritório na frente de um galpão no sul
da cidade, um dos locais que Rosales esteve tentando tomar antes de ser
comido pelas piranhas.
Olhei o estrago feito, gostava de ver pessoalmente o que acontecia no meu
quintal. Não achei uma decisão inteligente começar atacando logo esse
aliado. Apesar de ele ter sido amigo de Nascari, muitos aqui não nutriam
simpatia por Morales.
Podia haver aqueles que preferiam uma liderança mais conservadora, mas
Alessandro representava modernidade tanto quanto eu, novos tempos e
ideias e se não tivesse disposição para isso ia rodar. Era LA. Quando
entenderiam isso?
Escutei as portas abrirem e o som dos sapatos atrás de mim.
— Meu primo, Antonio, porra! — reclamou Alessandro, ao parar do meu
lado e olhar o corpo. — Minha tia vai ficar puta, era o filho do meio. Você
não pendurou a cabeça do Vito para todo mundo ver?
— Morales — esclareci, explicando tudo em um nome.
— Aquele velho carniceiro. Eu não queria me meter sem ser chamado, é a
sua briga, mas como que fico? Você sabe como é minha família, vão querer
vingança.
— Pode pagar a ele do jeito que preferir. Mas isso só vai confirmar que
você não mudaria para o lado dele, caso ele consiga me matar e assumir
tudo.
— Nem por um caralho, o tio que eu gostava morreu naquela explosão e
eu confiei que você ia resolver. Você cumpriu seu lado, como sempre. Agora
esse babaca acha que vai sair de Vegas e se meter aqui? Porra! Vou ter que
pegar alguém importante lá da hierarquia dele. Quero um graúdo, para ele
abaixar essa bola.
Nós tínhamos combinado de ficar abaixo do radar após a morte de Vito,
para dissipar o assunto e deixar o FBI e a força tarefa ociosos, ocupados em
resolver o que tinha ficado para trás. E Morales estava atrapalhando.
— Fique à vontade, ele precisa viver as próprias consequências.
— Falando nisso — ele fez um movimento com a cabeça e os outros que
entraram com ele se afastaram ou saíram. — Fiquei sabendo que você
mandou sumir com todo mundo que trabalhava para Vito.
— Não se pode deixar pontas soltas.
Ogul apareceu na porta com o celular na mão e avisou:
— Já chamaram o legista, a polícia vai vir junto.
— Quem chamou a porra do cata cadáver? Foi tiro, dois na cabeça —
reclamou Alessandro. — Minha tia vai encher o meu saco por causa do
enterro.
Nós saímos pela porta de trás e caminhamos até onde estava o meu carro.
— Me disseram que foi mais do que isso. Foi acerto de contas porque ele
pegou algo seu — Alessandro me observou, com as sobrancelhas elevadas
em inquisição. Se alguém conseguia ter mais informantes do que eu, era esse
meu amigo fofoqueiro. Não passava nada.
— Sim, ele pegou algo que não devia. Algo que qualquer um que tentar
botar a mão vai morrer por isso. Junto com todos que tiverem relação com o
próximo idiota que tiver essa péssima ideia — contei.
— Entendo — disse ele, assentindo.
— Eu sei que sim.
— De mim, ninguém vai saber — ele fez um sinal com a mão que deveria
ser de boca fechada, mas era de garganta cortada.
Confirmei com a cabeça, ele nunca me decepcionou, mas lembrei de algo
e tornei a olhá-lo. Não era só ele que tinha fofoqueiros para lhe dizer
rumores. Nesse caso, sequer era rumor, eu sabia da história.
— Você não tinha perdido o seu objeto de afeto lá no Sul? Como é que ela
veio parar aqui? — Perguntei.
— Fica quieto que eu tenho o ego frágil.
Eu ri de sua expressão e entrei no carro, vai ver o ego dele era frágil só
nesse assunto em particular. Também não queria ninguém falando da minha
situação atual. Para quem eu ia dizer que estava em um romance?

◆◆◆
Voltei para o iate e nós zarpamos pela noite, eu sabia que aquilo era
temporário, enquanto minha cisma se acalmava. Havia ido ao depósito do
que sobrou da minha casa em Calabasas para pegar umas coisas. Apesar de
gostar do lugar, não poderia voltar. Não era num local privilegiado para
alguém no meio de uma guerra, servia só a minha vida diária onde alguém
sempre queria me dar um tiro.
Eu tinha um apartamento de frente para a praia, próximo a marina. Porém,
não proporcionava o espaço necessário. Tinha outros locais onde eu não
morava, só passava e ficava umas noites. Dependia do que estivesse
acontecendo na minha vida e de onde precisaria estar.
Eu já tinha uma casa nova, vinha pronta e decorada. Estavam terminando
os sistemas de segurança. Pretendia falar sobre ela no sábado. Pois no
momento, eu achava que Vito podia ter contado a Morales sobre Rachel.
— Foi praticamente uma comitiva para o meu apartamento — Rachel
cruzou os braços e se afastou para olhar pelas janelas. Óbvio que tinha outro
carro atrás deles além de Pietro e Bellini. Quando a sequestraram, usaram
dois carros, eu esperava pelo pior.
Mas ela estava fora da cama e do quarto, isso já me fez ganhar a noite.
Pietro disse que ela deu um jeito na amiga linguaruda e desleal, o que me
fazia pensar que estava recuperando sua personalidade. Eu não tinha
experiência com isso, não sabia de quanto tempo ela precisava ou o que mais
poderia fazer para ajudar. O fato de ela estar viva era suficiente para mim.
Um pensamento simplista, contudo, era o que eu tinha.
Talvez ela precisasse de ajuda profissional. Outro assunto que eu não
dominava, o máximo que tive disso foi na infância, com a conselheira do
colégio para o qual me mandaram quando cheguei. Eu causei problemas
demais, então me fizeram conversar com ela uma vez por semana. Não
ajudou em nada ser mais um desses colégios para ensinar filhos de gente
rica. Onde mais Nascari ia me matricular?
— E o seu irmão? — Perguntei.
— Estável, não deve demorar a receber alta.
— Sua mãe?
— Ainda comprando a história de eu estar de férias no barco do namorado
novo e misterioso — ela se virou e me olhou. — Se ficar aqui por mais
tempo, acho que vou enlouquecer. Por mais maravilhosa que seja a estadia.
— Aproveite as férias para fazer algo que queria há muito tempo, mas não
tinha tempo.
Ela bufou para mim, então se afastou. Eu quis rir, mas a realidade era que
estávamos ali por causa da ideia insistente de que iam vir atrás dela. Não era
algo que diria a nenhum dos meus homens, mas não sei se sairia vivo se algo
assim se repetisse. E ela também não. Rachel já havia sofrido quando Vito a
pegou só para me provocar. Com Morales, ela seria torturada e morta já na
primeira hora, não iam nem me ligar para provocar como fez o meu primo.
Só me mandariam a foto do corpo mutilado.
Ele terceirizava essas barbaridades e estava até hoje se safando. Havia
mais uma regra silenciosa em ACCA. Tinha a ver com a história de Tácita,
ela tinha filhos, mas eram fruto de estupro, do Deus que tinha de levá-la pro
castigo eterno no Hades. Quando ela não era o que se tornou no submundo.
Aconteceram umas mortes horríveis com membros jurados que cometeram
esse tipo de abuso. Então virou uma regra.
Mas com Morales botando seus capangas para cometer abusos e estupros
com mulheres relacionadas a inimigos dele e saindo vivo, tinha gente
achando que podia imitar. Eu estava farto dessas inconsistências. Mentira o
que Vito disse a Rachel, aquele desgraçado não tocou nela por medo de ser
castigado por Tácita.
E já que falávamos sobre ajuda profissional, nenhum médico no mundo
traria minha mente de volta se Morales fizesse com Rachel que eu sabia que
já foi feito com outras. Era melhor arrancar logo a minha cabeça.
Quando Rachel saiu, eu fui tomar banho. Ao menos essa noite consegui
vê-la acordada. Eu chegava tarde, ela esteve fora de órbita. E, sinceramente,
ela estava me rejeitando. Eu já dormia pouco, porque gente jurada para
Tácita perdia a necessidade e até a capacidade de passar longas horas
apagado. Agora estava dormindo ainda menos, porque levantava para checar
se Rachel estava dormindo onde deveria.
Mesmo que o iate não passasse a noite atracado. Isso não importava. Essa
noite eu levei um susto quando escutei o grito e o som de algo caindo.
Peguei a arma e corri para o quarto, acendi a luz e ela estava pendurada para
a lateral da cama, com a mão esticada na direção do abajur e desespero
estampado em sua face. Não tinha ninguém lá, então deixei a arma no móvel
e fui segurá-la antes que tombasse da cama. Raye estava suada e nervosa e
se segurou em mim quando a abracei.
— Eu sonhei com a vala onde me colocaram, queria acender mais luzes
para ter certeza de que estava aqui — explicou ela, numa voz vacilante.
A luz do banheiro estava acesa, a porta estava aberta, mas não foi
suficiente. Ela escondeu o rosto no meu pescoço e suas mãos repuxaram
minha camiseta. Era uma droga saber que ela ainda ia sonhar com aquela
merda de caixa. Era tempo suficiente naquela situação temporária, eu ia tirá-
la dali, talvez isso a ajudasse. Alguma hora eles encontrariam um jeito de
afundar minha ideia e ela poderia estar lá dentro.
— Você nunca mais vai voltar para um buraco como aquele — prometi,
esfregando suas costas.
— Não consigo ficar no escuro, eu adorava dormir sem luz nenhuma.
Agora não consigo mais, fico nervosa e acho que tem uma caixa a minha
volta.
E eu era inútil para isso, não era algo que podia consertar. Ficava
revoltado com coisas que não havia nada que pudesse fazer.
— Não precisamos apagar a luz — falei.
Rachel virou o rosto e descansou a cabeça no meu ombro, continuei a
segurando, enquanto ela não dizia nada e a tensão se esvaia lentamente.
Demorou, mas ela voltou a ficar sonolenta e eu não a soltei. Meu sono não
veio, recostei ao lado dela com a luz acesa até amanhecer. Seu cheiro
acalmou meu caos interno e quando deixei o quarto, sabia o que faria.
Capítulo 9: Medo de escuro
gasolina

Quando acordei, no dia após meu último pesadelo, eu já estava num lugar
novo. Não, eu não me materializei lá. Nós descemos do barco quando ainda
estava escuro, eu tinha tomado um chá que prometia acalmar os nervos,
porque não queria ter pesadelos por duas noites seguidas e nem me entregar
a calmantes diários. Entrei no carro com Antonio e dormi no ombro dele
pelo que pareceu ser um curto trajeto. Lembro perfeitamente dele dizendo:
— Nós vamos ficar aqui por um tempo.
E me tirou do carro enquanto Ogul pegava as minhas malas.
— Que casa é essa, Antonio?
— Daqui dá para ver o mar do mesmo jeito, você vai se sentir melhor fora
de um lugar que balança nas ondas.
— É um lugar bem legal — comentei, falando tanto do iate que parecia
uma casa por dentro quanto do local novo que era uma mansão no alto de
Malibu.
Mesmo que nunca houvesse dito, eu sabia porque Antonio preferiu o iate
naqueles primeiros dias. Ele nunca ficava ancorado à noite, sempre tinha
vigilância e ninguém poderia chegar perto dele sem ser visto de longe. A
menos que viesse por baixo da água. Se estávamos em terra firme, devia ser
seu novo local seguro.
— Tem espaço, um jardim, uma visão ampla. Vai funcionar — comentou,
enquanto subíamos a escadaria principal.
A casa não era massiva, mas era grande, uma mistura de vidros, cômodos
espaçosos, pé direito alto e dava para ver muito verde lá fora. Foi o que eu vi
antes de dormir mais um pouco. Quando acordei, era minha nova realidade.
Tinha quartos suficientes para o garoto moreno, o carecão, o cabelo de
modelo e não sei se Bellini e Iana ficariam por aqui.
O cômodo com o enorme pé direito era tão grande quanto sua altura e
misturava sala de estar com sala de música. A decoração da casa era bonita,
limpa e clara. Muito branco, tons terrosos, mármores e detalhes em madeira.
Com alguns toques de riqueza chamativa, obviamente já vinha pronta para as
necessidades súbitas de algum ricaço. Era LA. Sempre havia alguém cheio
de grana precisando de uma mansão impessoal e pronta para uso.
Isso quando elas não eram locações para filmagem ou para algum ator que
estava na cidade só para aquele trabalho, mas seu passe era tão alto que era
num lugar como aquele que ele passava seus dias entre takes. No momento,
o belo local era o refúgio bem vigiado e que devia caber nas necessidades do
dono da Lorenza/ALGN. Se o vissem pelo bairro, era isso que pensariam.
Eu gostei de ter uma paisagem interminável, dava uma sensação de
liberdade e normalidade. Por mais que o barco fosse legal e tivesse servido
para me sentir segura, ele era uma ilha no mar. Depois de uns dias, o efeito
passou e me senti confinada, como se jamais fosse voltar a segurança.
Também não era prático para Antonio e tenho certeza que preferia ficar em
terra, afinal, se ele gostasse de viver num barco teria feito isso antes. E ele
comentou que só o usava por curtos períodos. Ultimamente, nem isso.
— Que lugar é esse, Antonio? E não diz que daqui dá para ver o mar —
parei ao lado da bancada da cozinha onde ele estava sentado em um banco.
— A vista é linda — ele colocou um pedaço de pão fresco na boca e
mastigou por uns segundos. Para minha sorte, eu tinha parado de me distrair
com a bela paisagem que ele representava. Bem… às vezes ainda acontecia.
— E nós vamos ficar aqui por um tempo — imitei o jeito dele de falar.
Antonio sorriu e cortou uma grossa fatia do pão artesanal, passou o que
ele estava comendo e empurrou para mim, dentro de um pequeno prato. Ele
era sutil, mas vinha tentando me fazer comer desde que voltei da clínica.
— Sim — confirmou ele.
Olhei o pão, bastante tentada pelo aroma fresco e convidativo que
emanava. Aos poucos, ele estava conseguindo trazer meu apetite de volta
com essas opções deliciosas as quais tinha acesso ilimitado.
— Eu não posso ficar aqui assim.
— Não? — sua expressão mostrou confusão.
— Eu preciso ser livre, Antonio. Olhei da janela lá de cima, vi pelo menos
três capangas perto do portão, duvido que vão me deixar entrar e sair.
Ele se divertiu enquanto mastigava, porque ele achava engraçado os jeitos
que eu escolhia chamar seus homens, seguranças, soldados, associados…
seja lá que fossem.
— Você é livre, Raye.
— Não.
— Só precisa de companhia para suas aventuras.
Eu tinha caído na isca dele e mordido um pedaço do pão, a casquinha era
crocante e o miolo estava delicioso e macio, com um sabor leve de ervas e
azeite. Porém, eu o recoloquei no prato e cruzei os braços.
— O que você acha que vou fazer? — Ele pendeu a cabeça. — Amarrá-la
e obrigá-la a participar de jogos sexuais em uma mansão desconhecida?
Coloquei as mãos na cintura, esperando-o levar isso a sério. Não achava
que Antonio ia me amarrar para me manter cativa e jogos sexuais podiam
significar muita coisa, a gente se divertia no sexo de qualquer jeito.
— Eu espero não descobrir que você esteve escondendo algum lado
sádico e abusivo.
Ele descansou a xícara e me olhou, não era aquele seu olhar sério, ainda
era o outro, divertido e interessado.
— Não sei onde você conheceu esses caras do seu passado para essa ser
sua primeira desconfiança, mas se encontrar um puto desses, eu mato.
— Então eu vou embora.
— Não, fica. A comida é boa, a vista também — ele indicou a outra
xícara. — Café?
— Antonio, eu tenho um trabalho.
— Vou resolver tudo isso, para você poder fazer seus filmes. Prometo —
ele virou o bule e derramou o café enquanto me ouvia.
— E eu fico no meio?
— Você não trabalha por produção? Um contrato para cada uma. A última
acabou, certo?
— Desde que saí da casa dos meus pais que não sei o que é não pular de
um contrato para o outro imediatamente. Eu mal termino um e estou
agendada para o próximo. É como um emprego fixo e sem férias, não sei
nem como me comportar em uma pausa.
Ele ficou olhando para mim, como se pensasse no que eu disse.
— Lá no resort, você disse que precisava de mais tempo para se dedicar a
outros tipos de projetos, mas nunca conseguia por causa dessa sua agenda
que nunca para.
— Eu estava sonhando com um futuro distante.
Antonio temperou o café na minha xícara com um pouco de leite e cacau,
empurrou a bandeja com açúcar e adoçantes para eu dosar.
— Droga, Antonio. Sou o tipo que se planeja — sentei no banco alto e
coloquei adoçante demais no café, mas bebi assim mesmo.
— Desculpe, Benzina. Mas nem mesmo um anjo pode sair ileso de salvar
o diabo.
— A opção era te deixar lá para morrer.
Ele moveu os ombros levemente e disse:
— Não estaríamos aqui.
— Você é ridículo — eu virei o rosto.
Ele deixou o banco e me tocou, sua palma grande e quente cobriu a lateral
do meu rosto e pressionou minha mandíbula, queria continuar irritada com
ele, comigo, com a situação. Lutei contra a sensação do seu toque e da
proximidade dele que eu jurava ser como algum tipo de veneno. Eu já o
estava querendo de volta, estava provado que não pensava direito.
Antonio passou os braços em volta da minha cintura e descansou aquele
seu queixo bem cortado no meu ombro, seus lábios encostaram no meu
pescoço e meu corpo acendeu como uma árvore de natal. Fiquei irritada só
de pensar naquela noite no Centro da Cidade. Se precisasse fazer tudo de
novo, eu faria. Não o deixaria lá, arrastando-se no asfalto, com a morte
sentada em suas costas. Só que agora olhava a cena com as cores dos
sentimentos que não existiam naquela noite.
— Eu vou pensar no que preciso fazer — consegui me afastar dele, peguei
a fatia de pão, a xícara com o café e fui embora para olhar o resto da casa e
planejar o que fazer longe da minha rotina. Antonio não disse, mas estava
óbvio que ele pensava que a outra opção era ser sequestrada e voltar para
uma caixa no chão. Ou pior.

◆◆◆

Quando tornei a ver Antonio, era tarde e eu tinha feito uma lista. Não
sabia como ficar de folga, uma coisa era uns dias contados num resort. Outra
era ter tempo para resolver o que eu preferia fazer primeiro. Como velhos
hábitos morrem devagar, liguei para o estúdio e para o meu chefe que já não
era mais. E descobri que perdi a festa de encerramento das filmagens, foi
quando eu estava escondida no meu quarto no iate, sem querer ver ninguém.
Só em um papo consegui uma nova oferta de trabalho se estivesse
interessada em dar uma olhada. Não sabia se poderia ignorar tudo e
embarcar em mais um projeto que ia sugar meus dias e noites num estúdio e
em locações por aí. Essa era uma oportunidade para filmar fora de LA
também. Só que era outra série. Estive tentando voltar a fazer cinema, mas
foi como disse, eu não sabia recusar trabalho. Séries eram projetos longos, a
menos que fosse cancelada já na primeira temporada. Essa poderia me
prender por no mínimo dois anos ou mais se eu não me demitisse para correr
atrás de outras ambições.
Será que se não tivesse me acontecido tudo isso, eu pararia para pensar no
meu futuro profissional ou ia simplesmente engatar outro trabalho
automaticamente como vinha fazendo?
Não sei exatamente o que Antonio andava fazendo por aí, mas estava
tomando seu tempo. Ele voltava e ia tomar banho como se estivesse
contaminado com algum vírus em sua pele e suas roupas. Os nós dos seus
dedos tinham se curado e agora estavam esfolados de novo.
— Isso arde — ele puxou a mão.
— Você andou por aí todo ferrado, fugiu do hospital ainda com a cabeça
remendada e reclama de ardência?
— Eu não fugi, só me dei alta adiantada.
Espirrei o antisséptico na outra mão que deveria ser eternamente marcada
pela queimadura da explosão, mas apresentava um aspecto de ter passado
anos do ferimento em vez de meses. Dessa vez ele só entortou a boca. A
queimadura tinha estragado a beira das tatuagens que cobriam o antebraço
dele, pensei que jamais poderia refazer, mas a pele parecia pronta. Nada
fazia sentido neste homem.
Larguei o vidro sobre a mesa e me afastei para perto das janelas.
— Tem vários dias que não dividimos uma refeição — comentou ele, sem
se dar ao trabalho de perguntar se eu tinha jantado.
Fiquei pensativa, quando foi que sentei e comi? A última vez que comi
algo substancial foi no dia que me levaram e mesmo assim foi um lanche
com o meu irmão. De lá para cá eu beliscava; uma metade de panini aqui,
um biscoito ali, um picolé, alguma fruta, uma fatia de pão…
— Não sinto vontade, sei lá… Parece que não quero mastigar.
— Vou te fazer sopa de tomate. Entregaram pão fresco.
Ele não perguntava, para não me dar a chance de negar. Eu queria falar
sobre algo, uma vulnerabilidade que teria de expôr para ele. Contudo, depois
do que aconteceu nos últimos dias, seria só mais uma, não é? Estava um
tanto vendida para ele.
Voltei até o balcão da cozinha e sentei em um dos bancos, Antonio estava
de costas lavando algo na pia, depois apareceu no balcão com uma cesta
cheia de tomates de dois tipos, um redondo e outro comprido. Não me peça
para conhecer as diferenças. Só sei que ele agarrou um cutelo enorme e
cortou os tomates rapidamente.
— Você vai gostar, vai ver só.
— Você foi comprar esses tomates?
— Estou sem tempo, mas sei que acabaram de chegar das plantações
locais. Agricultura familiar — ele até cheirou um dos tomates antes de soltá-
lo na tábua e descer o cutelo afiado sobre ele.
E eu ri baixinho, não adiantava porque sempre achava graça do absurdo
que era aquele homem falando de empostar, plantar, comprar e tudo mais
que ele sabia em detalhes esquisitos sobre diversos itens alimentícios.
Agricultura familiar? Sério?
— Cebolas orgânicas? — indaguei quando quatro delas apareceram na
tábua.
— Perfeitas, o aroma fala por si — respondeu ele e rodou o cutelo no ar
antes de partir uma delas em quatro numa velocidade que eu via em
programas de TV.
Mas com o conhecimento que tinha adquirido sobre a vida dele, duvido
que Antonio aprendeu a mexer com qualquer ferramenta cortante em uma
cozinha. Uma coisa acabou casando com a outra.
Em pouco tempo, ele tinha colocado tudo numa travessa grande, usou um
abridor de vinhos para abrir um azeite e cheirou assim que conseguiu.
— A ALGN importa esse da Espanha, edição limitada — ele sorriu e eu
me senti um pouco menos incomodada por estar cada dia mais exposta.
— Eu acho que você gosta muito de azeites, nos locais que comemos,
tinha várias garrafas e você tempera a comida com tipos diversos. Não
entendo disso, mas as garrafas eram diferentes.
— Cada azeite é um toque especial — ele pausou e uma grande cabeça de
alho tomou um golpe certeiro do cutelo e foi parar na travessa junto com
umas folhas de um verde vivo. — Um bom azeite.
Enquanto regava tudo com azeite, açúcar, sal e colocava no forno;
Antonio me contou curiosidades sobre azeites de países diversos e eu sabia
que ele estava se esforçando para me fazer rir e provocá-lo por causa das
histórias de importação da ALGN e de sua obsessão por bons azeites.
— Me dá um minuto, Raye — a expressão divertida despencou do rosto
dele quando o celular tocou e ele olhou a tela.
Se ele foi atender, era importante. Ultimamente essa expressão estava
tomando o rosto dele como nunca, me lembrava da corda bamba em que
estávamos. E do que ele andava fazendo por aí enquanto me dizia que ia
“consertar”. Antonio usava essa palavra, não era resolver, terminar,
encerrar… era consertar. Esses detalhes eu ainda não tinha, mas sabia que
desde o dia que o conheci na explosão, algo havia sido danificado
gravemente. E estava piorando.
O forno apitou. O que diabos eu ia fazer com aquele bando de coisa na
travessa? Ele apareceu na cozinha num instante, seu cenho ainda estava
franzido e ele abriu o forno em silêncio. Levou um minuto despindo o que o
tinha chamado ao celular e recolocando o lado que usava comigo.
— Prato de sopa? — Indaguei e levantei.
— E o pão — completou e pegou o mixer, para transformar tudo num
caldo denso.
O som ecoou pela cozinha enquanto eu arrumava os pratos no balcão, ele
derramou tudo numa panela, mexeu no fogo e testou o sal, moeu um pouco
de pimenta e voltou pro balcão. A fumaça da panela subia em ondas suaves.
Quando pegou a concha e derramou sopa nos pratos, nem parecia que tinha
atendido a um telefonema.
Eu ainda não queria saber. Estava com uma pilha de dramas e tinha
certeza que mais breve do que esperava, saberia de tudo. Ele derramou um
pouco de creme de leite fresco, fazendo um círculo fino sobre a sopa em
cada prato. Cortou o pão e derramou um fio de azeite nas fatias. O pão tinha
uma casca tão crocante que se bastava.
Admirei a comida, mas não me movi. Antonio parou ao meu lado, tocou
meu queixo e observou meu rosto.
— Sopa de conforto, faço em minutos. Todo dia se você voltar a jantar.
— Você não tem tempo para isso.
— Experimenta.
Mesmo que ele não soubesse pedir nada, eu ficava presa na combinação
da sua voz e de seus olhos escuros. Ele me disse para tomar a sopa
fumegante, mas em vez de me soltar, aproximou-se e beijou meus lábios. Foi
contido, porque eu sabia como ele beijava, mas ainda foi úmido e cheio de
vontade de me provar, como se estivesse pensando em fazer isso muito antes
de começar a cortar os tomates.
Sentei e provei a sopa. Estava deliciosa e eu só precisava tomar aquela
mistura quentinha e cheia de conforto. Ele fez tão rápido e manejando aquele
cutelo com barulhos secos e repetidos, sabia que ele se virava na cozinha,
mas não esperei por essa paixão instantânea a primeira colherada.
— Prova no pão — ele usou o mesmo abridor do azeite para puxar a
tampa do vinho.
Eu provei. O que ele dissesse nos minutos que eu levaria comendo, eu
faria. A sensação foi mais forte do que lá no barco, não percebi o quanto
precisava sentir meu estômago sendo abraçado pela quentura dessa refeição
até sentir.
— Adorei, obrigada. Vou jantar amanhã, juro.
A expressão dele era de satisfação, mas comeu em silêncio enquanto eu
me reconciliava com o meu apetite. Não pedi mais, foi suficiente, mas tinha
sopa o bastante na panela para eu jantar amanhã. E sabe-se lá se na próxima
noite ele chegaria para o jantar.
Bebi um gole do vinho dele, eu não estava mais tomando remédios que
me impedissem de beber. E olhei para ele como se lhe dissesse isso, mas é
obvio que Antonio não ficou nada afetado. Ele fazia altas merdas com o
próprio bem-estar, mas ai de mim se ficasse mais um dia sem comer. Pois
bem, eu tinha outro problema e não tinha nada a ver com dor física.
— Sobremesa? — indagou ele quando eu não disse mais nada.
— Não consigo — levantei e carreguei a taça dele, havia sobrado só um
pequeno gole e deixei do outro lado do balcão.
Peguei os pratos e botei na lavadora, quando fiquei de pé, tomei coragem
e o encarei.
— Eu preciso fazer algo, antes de todo o resto — ele continuou olhando
para mim, pela sua expressão não dava para saber se esperava escutar algo
absurdo ou a coisa mais trivial do seu dia. — Vou conversar com uma
psicóloga, sobre como me sinto e esse medo ridículo que adquiri.
— Não é ridículo, é uma consequência. Vamos encontrar uma psicóloga.
— Eu pensei que já tivesse uma no seu caderninho de afiliados para
escutar sobre meu problema com uma caixa e uma cova.
— Psicólogos não são os mais necessitados na minha organização,
infelizmente. Pouparia bastante trabalho e enterro. Vamos providenciar uma.
— Onde?
— Eles têm um código, não? De jamais revelar nada.
— Você acreditaria nisso?
— Eu vou te encontrar alguém ótimo.
— Não tem alguém que já te consultou? Em algum momento?
Antonio pendeu a cabeça e apoiou o queixo na mão, ele sabia quando eu
estava escavando por informações.
— Até aprender a fingir, fui uma criança problemática no colégio. Tinha
que ver uma orientadora toda semana, ela era uma psicóloga. Já tem muito
tempo. Com 15 anos, eu fingia bem demais e ela só me arrastava para sua
sala uma vez ao mês. Terminei o colégio e nunca mais.
— Você fingia que estava bem?
— Eu ainda era problemático, mas eram outros tipos de problemas. Com
15 anos, meu tio já me levava com ele para o que tivesse de fazer. Fosse para
cobrar, matar ou ter uma reunião. A criança revoltada ficou nas sessões da
orientadora, comecei a vê-la com 10 anos. O trabalho dela funcionou. Vamos
lhe encontrar alguém para conversar. Eu não sou a sua melhor conversa,
mesmo que quisesse me contar.
— Eu contei… — libertei-me do olhar dele por um tempo e dei a volta no
balcão. Na verdade, não contei nada. Só relatei o que me aconteceu e que
tinha passado a ter medo de escuro.
Não ia dizer a ele como me sentia de outras formas, porque seria abrir um
buraco fundo e lhe dar informação demais. Eu tinha receio porque
desenvolvi sentimentos por ele e se Antonio usasse isso contra mim, iria me
arrasar.
— É só isso que precisa?
— No fundo, eu quero voltar aos meus velhos hábitos. E funcionar no
automático, arranjar algum trabalho ridículo, até voltar a ser assistente de
produção, para ganhar uma mixaria que nem preciso e trabalhar sem parar
em um estúdio que eu já conheço. Empurrando com a barriga tudo que quero
fazer além do trabalho no set. Não pensar em nada. E só perceber quanto
tempo passou quando a produção terminar.
Ele não estava com aquela expressão que agora eu já conhecia, de quando
sua mente buscava uma solução. No fundo, eu queria fazer isso para fugir de
tudo, mas não queria voltar a ser assistente, queria continuar na linha em que
estava. Eu era uma boa profissional, não merecia regredir.
Eu ia falar com uma psicóloga, no momento, pensava nos dias em que
ficava filmando na rua de madrugada, não sei se conseguiria fazer isso e eu
precisava desbravar esse impedimento mental. Esse era o meu trabalho, eu
queria fazer filmes, minisséries, séries de grande orçamento e tudo mais que
pudesse botar minhas mãos. Talvez por coincidência, nunca trabalhei em
uma produção que não precisasse filmar à noite. Nem sempre era
madrugada, mas o problema não era o horário.
— Sinto muito, Rachel. Não posso resolver isso, não com o seu tipo de
trabalho. Posso lhe conseguir quase tudo, só não posso deixá-la morrer.
— Que inferno, Antonio. Esse problema é só meu para resolver — afastei-
me mais, estava frustrada e irritadiça.
Deixei a casa pela porta do jardim e fui me afastando, sentia meus olhos
arderem pelo tamanho da minha frustração. Eu era uma garota de LA, não só
andava como trabalhava pela noite a dentro. Acontecia de tudo à minha volta
naquela cidade e nos sets de filmagens. Tiros simulados, explosões
controladas, corpos de mentira, brigas ensaiadas, sexo coreografado para
câmeras, agressões repetidas dez vezes para o telespectador senti-las como
se fossem reais. E aí, subitamente, eu era capada pela vida real.
— Rachel! — Escutei Antonio chamando.
Continuei pelo caminho do jardim, ele não só chamou, como seus passos
soaram atrás de mim. Travei e encarei o espaço à minha frente, estava
completamente escuro, eu nem conseguia ver por entre a vegetação. Eu tinha
me afastado da área iluminada do jardim. Sabia que se voltasse, poderia ver
tudo, o gramado, a vista para o mar, a piscina… de repente, eu só enxergava
a escuridão. Meus olhos se arregalaram e eu dei um passo para trás, em vez
de frustração, senti opressão. Eu estava livre, em um jardim lindo, mas fiquei
paralisada.
Senti mãos apertando meus braços e me puxando. Antonio me girou no
lugar e me pressionou contra ele. Fechei os olhos e ele deu passos para trás,
enquanto falava comigo.
— Vou colocar luzes automáticas… vamos deixar tudo aceso… tudo bem,
vem… — ele dizia e eu só registrava alguns pedaços.
Abri os olhos, apertava o tecido da camisa dele com tamanha força que só
um ferro consertaria. Percebi que já estava em frente as janelas de dois
andares da sala principal e dali emanava tanta luz que pessoas em um barco
no mar poderiam ver o formato das janelas.
— Vem comigo, Raye — Antonio parou no meio da sala e percorreu meu
rosto com o olhar, eu continuei me segurando nele e saí daquela vertigem
súbita. — Melhor?
— Eu já te disse que essa sala é muito bonita?
— Que bom que gostou dela, tem ainda mais luzes para acender.
— Está bom assim, é claro suficiente para ver até o salpicado dos seus
olhos.
— Eles são só escuros.
— Mas desse escuro eu gosto — murmurei, deixando meu corpo afundar
entre os braços dele.
Ele me segurou sob o brilho forte e amarelado da sala e eu estava pronta
para esquecer o jardim apagado. Antonio me levou para cima, só apagou as
luzes quando eu já estava no corredor iluminado. No quarto, eu ficava com
os dois abajures acesos e Antonio havia dito que dormia em qualquer
iluminação. Subi na cama e fui conscientemente para os braços dele, parecia
fazer uma eternidade que não fazia isso, mas foram só algumas semanas,
desde que ele dormiu no meu apartamento.
— Sinto muito, Raye — Antonio murmurou, com seus lábios próximos a
minha têmpora. — Eu vou resolver isso para você ser livre outra vez.
Eu sabia o que ele estava me prometendo. Antonio me deixaria ir, em
algum momento, eu seria livre. Dele.
— Não se anima, só estou presa com você por uma temporada dessa nossa
série — levantei a cabeça, apoiando as mãos nele.
— Presa comigo — ele sorriu. — Que sina terrível.
— Mas você sabe fazer a minha nova sopa favorita, dá para suportar a
sina um pouco mais.
Antonio sorriu, segurou meu rosto e juntou seus lábios aos meus, suave
como ele podia ser quando queria, viciante como era o tempo inteiro.
Olhei seu rosto demoradamente, ele continuava cheio de planos retos e
bem cortados, com olhos escuros sob sobrancelhas marcantes e pretas que
poderiam pesar o conjunto, mas não podia imaginá-lo de nenhum outro jeito.
Sempre o acharia impactante e atraente. Elegante, afiado e rude num pacote
que eu não esperava achar lindo, mas lá estava ele. Nem seus lábios macios
o suavizavam e eu não sabia quando foi a última vez que o beijei do jeito
que merecíamos.
Saí viva, um pouco mais danificada do que antes, estava morando com
meu affair e não imaginava porque não estava beijando esse homem para me
distrair disso tudo. Ele era uma enorme distração, em todos os sentidos que
eu precisava. Corrigi isso ao tocar seu rosto e beijá-lo, dediquei uns minutos
para me perder na sensação do seu corpo sob o meu, na onda de calor e
excitação que ele provocava em mim.
Antonio me envolveu e eu me abandonei de vez; o corpo sobre seu peito e
entre suas pernas esticadas. Ele não soltou mais, suas mãos me seguravam
como se não fosse suportar perder o contato. Recebi sua entrega em
retribuição à minha, deixei que me beijasse até me deixar com a mente
flutuando e acender minha volúpia a um ponto que comecei a confessar
pecados contra seus lábios.
— A última vez que eu perdi o fôlego não foi tão legal assim — disse
baixo.
Ele tirou os olhos da minha boca e umedeceu os próprios lábios, abriu um
sorriso preguiçoso e satisfeito, dava para ver o efeito do desejo em seus
olhos e sua face.
— Não vou viver esse desespero de novo. Achar que nunca mais sentirei
sua boca na minha — suas mãos passaram pelo meu rosto, seguraram meus
cachos longe do rosto e seus beijos me consumiram.
Subi as mãos pelo seu peito, até descansá-las em seus ombros.
— Pensei em você quando meu ar estava acabando. Mas eu achei que
você não apareceria.
Ele acariciou meu pescoço, sua mão entrou por baixo do meu cabelo, seus
dedos massagearam a raiz, encostei a testa nele e respirei seu cheiro.
— Eu estava lá, transtornado como for, eu sempre estarei lá, Raye.
— Eu acredito — pressionei os lábios nos dele.
Antonio me abraçou e virou de lado, segurando-me contra ele, eu tinha
certeza que ele não me soltaria em momento algum naquela noite. Sabia que
era uma criatura estranha, pois gostava de como ele não nos iludia dizendo
que eu jamais precisaria que ele estivesse em qualquer lugar. Eu o abracei de
volta, deslizei as mãos por baixo da sua camiseta, arranhando suas costas
levemente.
Ele devolveu a carícia, suas mãos subiram a blusa fina do meu pijama
quando se insinuaram por baixo, meus mamilos se eriçaram mais sob a
fricção das palmas dele e ele se livrou da peça, jogando-a para fora da cama.
Antonio deu um beijo nos meus lábios e outro sobre meu mamilo rijo. Ele
sorriu para mim e eu me diverti com a provocação.
Envolvi seu pescoço, sentindo parte do seu peso sobre o meu torso, fechei
os olhos quando sua boca tomou o mesmo mamilo que ele provocou. Meu
corpo correspondeu instantaneamente, Antonio apoiou-se no antebraço e se
inclinou para mim, puxei a camiseta dos seus ombros e ele a tirou. Desci as
mãos pelo seu peitoral e segui pelas entradas macias do seu abdômen,
ultrapassei o cós do calção de pijama que era inútil para esconder o estado
do membro grosso e ereto.
Antonio me empurrou contra o colchão e se inclinou sobre mim, sua mão
deixou meu pescoço e desceu pelo meu seio quando seus lábios cobriram os
meus. Ele me beijou, esfregando a língua na minha e devorou minha boca
com tanto ardor que quando ele parou, não consegui abrir os olhos ou fechar
meus lábios. Sua mão sumiu por dentro do short do meu pijama e ele me
encontrou quente e toda molhada. Meu corpo parecia que entraria em curto
tamanha era a minha excitação.
Puxei-o pelo rosto, incapaz de resistir ao vício nos seus beijos. Seus dedos
giravam gentilmente sobre o meu clitóris inchado e não pude fazer nada
além de deixar ir, um alívio lento e delicioso se espalhou por mim,
satisfazendo e me acendendo ao mesmo tempo. Eu o queria ainda mais.
Antonio empurrou o meu short e eu o dele, até não alcançar mais. Nossas
bocas se encontravam e atrasavam o trabalho.
— Saudade é uma droga — murmurou ele, com suas mãos e seu olhar em
mim agora que não tinha mais nada para impedir.
Sim, saudade era um porre e dava um barato a mais no nosso vício.
— Tudo parece uma eternidade — concordei.
Antonio dominou minha excitação com suas mãos, deu-me conforto e
proteção entre seus braços e venerou meu corpo com sua boca. Ele deu uma
mordida perto do osso do meu quadril, eu sorri e o observei. Senti sua
respiração correndo pelo interior da minha coxa quando ele a elevou e
depois sobre o meu sexo. Ele esfregou a língua vagarosamente no meu
clitóris, Antonio estava com fome e saudade, mas me chupou devagar. Se
antes eu estava molhada, agora parecia que havia derretido em lubrificação.
Ele beijou meu ventre com seu olhar em mim, abri o preservativo e o
segurei entre os dedos como uma isca, mas eu que queria ser fisgada. Ele se
inclinou sobre mim, acariciei seu membro duro enquanto ele enfiava a língua
na minha boca outra vez. Antonio se ajeitou e deslizou para o meu interior,
apoiou as mãos na cama, moveu-se levemente e manteve o olhar fixo em
mim.
— Tudo bem? — Perguntou.
— Sim — minha voz saiu num misto de animação e prazer.
Ele passou o nariz pelo meu, roçou meus lábios e seus movimentos
ficaram mais firmes. Fechei os olhos e abri um sorriso, imersa em sensações.
— Sim, perfeito… — voltei a olhá-lo.
Antonio abriu um sorriso lindo e excitante, observando-me enquanto me
fodia. Prendi as pernas nas dele, meus gemidos repetidos denunciavam tudo.
Ele sussurrou para mim e eu sorri quando ele lambeu minha boca,
divertindo-se, sem parar de me preencher repetidamente. Segurei em seus
braços e mantive o olhar nele, tudo me excitava: seu prazer, seu sorriso
satisfeito, seus sussurros de tesão, o jeito que me olhava e me fodia. Eu só
cerrava os olhos quando ele me beijava. E ele o fez, repetidas vezes até
gozarmos. Cedi primeiro e me abracei a ele, envolvendo-o com as pernas
mesmo depois que ele descansou o rosto na dobra do meu pescoço e relaxou
sobre mim.
Beijei seu rosto e se ele não queria me soltar, eu também não o faria.
Acreditar nele até me faria dormir só com um abajur aceso.
Capítulo 10: Mão na grana
pólvora

Poucos dias depois…

Eu havia ido almoçar e aparecer publicamente, fingindo que não tinha


mais nada de bom para fazer além de provar os pratos que os melhores chefs
da cidade produziam com os ingredientes que compravam de mim. Pietro e
Ogul almoçaram por quatro pessoas, eu não estava no melhor dia para
apetite.
O irmão de Rachel tinha acabado de deixar o hospital e já estava em
atividade, perguntou onde me encontrar e, como da outra vez, apareceu perto
do meu carro. Dessa vez ninguém ficou tentado a lhe dar um tiro quando o
checaram.
— O que você está fazendo por aqui? — Perguntei a ele, estávamos em
Hollywood, bem longe da sua casa.
— Eu não posso ficar parado, cara. Já perdi muita atividade.
— Você quer me foder com a sua irmã, ela espera que você esteja em
casa, tomando sopa e curando esses buracos de tiro — entrei no carro e não
me dei ao trabalho de convidá-lo.
Deon entrou também e o carro saiu, com Pietro ao volante.
— Falando nisso, seu gringo problemático dos infernos, você matou o
desgraçado que pegou a minha irmã?
— O que você acha? — Aquela era a expressão mais óbvia que eu tinha a
oferecer.
— Eu fiquei meio desinformado, mas vi o jornal. O filho do Nascari não
era seu primo?
— Era.
— Ele que mandou pegar a minha irmã?
— Sim.
— Eu vi que arrancaram a cabeça e as mãos dele e penduraram perto do
corpo.
— Pois é. Ainda bem que o pai dele não está mais aqui para ver isso, ouvi
dizer que foi porque ele botou as mãos no que não devia — respondi.
Deon ainda olhou bem para minha cara, talvez esperando mais alguma
reação, mas eu não tinha nada para mostrar.
— Então, vim dizer que eu posso te trazer aquele cara que você falou
antes de dar essa merda toda.
Eu só mantive o olhar nele.
— É sério, eu posso. Conheço a área e quem mora lá dentro. Posso entrar,
levá-lo e trazê-lo como um amigo.
— Eu não te quero vazando nem no meu carro, vou te mandar para buscar
meu contador?
— Não posso ficar parado, já disse. Não foi minha primeira vez tomando
tiro, fiquei sabendo que você pagou minha conta no hospital. Essa dívida só
aumenta e vocês, desgraçados gringos, são especialistas em cobrar.
— Para com esse ato, não vou cobrar nada. Você levou bala para defender
a sua irmã — pausei. — Vou te dar uma chance, tenta não sangrar por aí.
— Relaxa, vou chegar lá e te ligar para falar com ele. Vai ser suave, eles
me conhecem, já estive lá depois que saí da cadeia. Esse seu cara está
achando que vai sobrar para ele, certeza.
— Tudo bem, agora toma seu rumo. Eu tenho outro compromisso —
Pietro parou perto de uns táxis.
Deon se foi e eu segui para meu próximo compromisso do dia, um dos
aliados de Morales, que estava financiando os planos de Vito. Disse a ele
que podíamos conversar, porque o filho da puta continuava em cima do
muro. Estava com receio de assumir que a ideia de Morales de apoiar o
afilhado deu merda e ao mesmo tempo tinha medo de saberem publicamente
que ele poderia me apoiar. A única coisa que vou fazer com o dinheiro dele é
sumir com as contas e deixar seu corpo para ser encontrado com uma faca
nas costas. Traíra do caralho.

◆◆◆

Levou uns dias para o plano de Deon dar frutos, numa terça-feira ele me
ligou no final da manhã e passou o telefone para Farba, o contador que
Nascari tinha arranjado por baixo dos panos e eu sabia porque havia feito o
contato.
— Diabolik, achei que não nos falaríamos mais, eu estava pronto para
fugir do país — ele falou rápido, com seu sotaque carregado.
— De volta para o seu país? Você disse que não pode nem voltar lá.
— Não posso e não quero. Minha indecisão me manteve aqui.
— Você me causou um bocado de atraso, seu neurótico.
— Eu vi o que começou a acontecer, achei melhor correr.
— Não tenho tempo para ficar ao telefone com você, Deon é de
confiança. Vou mandar um carro para pegá-los.
— Você vai me garantir?
— Não quero te matar, quero seu trabalho. Entra na porra do carro, se me
atrasar mais, vou esquecer como você é competente.
Pouco tempo depois, Deon apareceu no meu escritório alternativo junto
com Denver e Ogul que foram buscá-los. Farba entrou entre eles, era um
homem bem magro e alto, tinha uns quarenta e tantos anos, mas sua pele
retinta era lisa como se não soubesse o que era a passagem do tempo. Ele me
disse que era senegalês e, apesar de estar nos Estados Unidos há mais de
uma década, desde que o conheci, seu sotaque continuava tão carregado
quanto.
Ele era um professor substituto na faculdade e também prestava serviços a
indivíduos e empresas. Mas a grana começou a entrar quando ele colocou
sua mente genial a trabalho de contraventores. Foi azar o dele Nascari tê-lo
descoberto. Farba sabia esconder e lavar dinheiro com uma competência
assustadora, mas não era exatamente para isso que eu o queria. Aqueles que
sabiam de sua existência, achavam que esconder e mover o dinheiro era sua
única função. Não era.
Além de mim, só havia mais duas pessoas vivas que sabiam disso. Nós
ficamos sozinhos e eu disse a ele o que queria.
— Se isso vai me manter seguro, eu faço. Não queria fugir do país, fiz
vida aqui.
Mack entrou correndo, com o rosto vermelho e os olhos arregalados.
— Você a trouxe? Meu Deus! — Ele exclamou.
A outra pessoa que sabia era Jeanne, minha prima. Ela estava sentada
numa poltrona ao lado da minha mesa, com os pés para cima e sua gravidez
aparente. Supostamente, ela veio para o enterro do irmão. Mas com Vito
morto, ela queria ficar em LA, mesmo que sob proteção, porque ela não ia
confiar no “titio Morales”, que a embalou desde quando ela era só um bebê.
Mack não tinha ideia das informações que guardava, a esposa achou
melhor não contar, ele já sabia demais. Nascari falou só por cima e deu a
Jeanne a tarefa de esconder as senhas e números de contas. Foi disso que ela
falou no enterro dele, sobre as outras contas, não foi sobre as que pertenciam
ao seu pai e que Vito queria o acesso completo e estava disposto a ferrar com
a irmã para conseguir.
Era um quebra-cabeças. Cada um sabia um pouco e só Nascari sabia o que
planejava fazer se precisasse. Eu não só precisava como ia fazer. Montei o
quebra-cabeça, estava pronto para descobrir o que faltava e tinha todos que
precisava.
Inclusive uma porra de um hacker que tirei da prisão, para aumentar sua
dívida comigo. Ele achava que estava seguro agora, mas se me sacaneasse,
não estaria seguro em lugar nenhum. Ele foi preso por acusações de invadir
bancos, mas não tinham provas suficientes, então a fiança — na casa dos
milhares — estava lá para ser paga. Ele recebia os dados para executar e só,
se soubesse mais teria que ser morto.
— Acalme-se, querido. Eu quis vir, foram meses entediantes. Finalmente
descobri para que todos esses números servem — disse Jeanne, indicando
uma cadeira para ver se Mack parava de ofegar.
Ele não conseguia se decidir se estava desesperado de felicidade ou de
preocupação pôr a esposa ter decidido retornar a LA.
— Então, senhores — eu me sentei e olhei para os três. — É agora que
vamos sumir com o dinheiro deles. Não se faz guerra alguma sem recursos.

◆◆◆

Voltei para a casa e vi que a psicóloga estava lá, ela atendia em horários
alternativos e cada dia fazia uma atividade: na sala, à beira da piscina,
durante uma sessão de ioga, no balcão da cozinha enquanto tomavam café…
Rachel estava contente e parecia até se divertir no tempo da consulta. Por
mais estranho que parecesse, eu estava passando por mais um momento
inédito e inesperado nessa história.
Apesar de estarmos dividindo um quarto, eu estava procurando maneiras
de reconquistá-la, porque essa era a impressão. Um filho da puta a pegou,
deixou-a traumatizada o suficiente para me dizer que precisava ver uma
psicóloga por causa desse evento em especial. Eu tinha instalado luzes
automáticas para todo lado só para ter certeza que ela não teria de entrar em
nenhum local escuro.
Meu tempo se dividia entre a avidez para tocá-la e a necessidade de
encontrar um jeito de não a perder ainda. Minha mente profundamente
egoísta estava afundada em sentimento de culpa e paixão. Eu queria
devolvê-la ao seu mundo brilhante de filmes e holofotes, mas tomava
providências para mantê-la segura no meu submundo cruel e obscuro.
Queria libertá-la e possuí-la ao mesmo tempo.
Ela não devia ter parado de me rejeitar.
— Você voltou mais cedo — disse ela, quando me aproximei.
Olhei em volta, o tempo que levei para subir e tomar banho, a psicóloga
desapareceu, já estava anoitecendo.
— Cansei de te ver só para o jantar — passei a perna sobre o banco junto
a janela onde ela estava sentada.
Rachel destampou um vidro de esmalte num vermelho vivo e terminou de
cobrir as curtas unhas do seu pé direito, ela estava levemente inclinada, com
os joelhos dobrados à frente do corpo e muito concentrada na sua pintura.
— Fiquei sem vontade de encarar o trânsito horrível, a manicure que eu
gosto é tão longe daqui — ela continuou pintando. — Não sei se vai demorar
tempo suficiente para eu precisar de serviços desse lado de LA —
comentava ela, concentrada.
Eu não sabia quanto demoraria, mas não ia perguntar se ela estava
medindo o tempo baseado em quanto ela ficaria ou quanto nós
precisaríamos.
— O que você fez, Antonio? Suas mãos parecem melhores.
Eu não tinha socado a cara de ninguém nos últimos dias, meus punhos não
precisavam mais daquele antisséptico que ela espirrava com um sorriso por
saber que a ardência me desagradava. Era mais fácil esconder a cura rápida
das minhas mãos. Não sei como seria quando Rachel tivesse a oportunidade
de acompanhar o tempo de ferimentos sérios.
— Eu estava ocupado planejando desviar o dinheiro de todos os putos de
merda que estão me atrapalhando — contei, com uma honestidade crua.
Rachel tampou o vidro de esmalte e me olhou por uns segundos, não era
isso que ela esperava ouvir, mas eu podia dizer. Seria estranho ter de contar a
ela que tinha jogado outro traidor de um helicóptero. Ou ter enterrado um
cara de cabeça para baixo, para ele aprender a não me vender. Seria uma
conversa estranha para antes do jantar e para mantê-la próxima.
Ela descansou o vidro do seu lado e juntou as mãos, ao contrário dos seus
pés, suas unhas da mão estavam douradas. Desde que ela tinha machucado
todas elas ao arranhar e bater no interior do caixão, continuavam mais curtas
do que sempre vi desde que a conheci. Era escolha dela, mas me perturbava
imaginar se era mais um desdobramento do seu trauma, suas mãos voltaram
arrasadas. Prova do quanto ela lutou naquela caixa.
— E eles sabem que você está fazendo isso?
— Não.
— Eles vão descobrir?
— Não.
— Tem certeza?
— Não saberão o que os atingiu.
— Isso vai ajudá-lo?
— Com certeza não vai atrapalhar.
— Isso vai terminar o seu problema atual mais rápido?
— Vai.
Ela assentiu e apoiou as mãos nas coxas, eu cheguei mais perto e ela
avisou:
— Minhas unhas.
— Gostei da cor.
— Se você pintasse as unhas eu te emprestaria meu vermelho cor de
sangue, combinaria.
Encostei o queixo no seu joelho, Rachel passou o olhar pelo meu rosto e
ajeitou a frente do meu cabelo com os dedos.
— Gostei desse corte, combina com o seu rosto — elogiou e terminou de
ajeitar.
Passei no barbeiro e mudei para um corte mais rente nas laterais e deixei o
comprimento que estava. Crescia rápido, nem parecia que precisei cortar por
causa do ferimento na cabeça.
— Eu já sei o que vou fazer em minhas férias forçadas — anunciou ela.
Levantei a cabeça e segurei em suas pernas, como se precisasse me
ancorar.
— Quero voltar a estudar atuação, me sinto enferrujada, mesmo nas
pontas ridículas que fiz. Vai me manter afiada. Eu voltei a postar, as pessoas
acham que estou de férias e até fora da cidade. Atuar deveria ser meu
segundo emprego, mas tornou-se o terceiro, depois das minhas redes sociais.
— E do que você precisa para isso?
— Sair todos os dias e ficar horas na rua, participando de oficinas de
atuação até altas horas da noite em teatros minúsculos escondidos pela
cidade. Inclusive em peças em inferninhos de bairros esquisitos onde pouca
gente vai assistir.
Eu mantive o olhar nela, nem senti meus dedos apertarem suas pernas,
pois Rachel começou a rir e eu tinha certeza que estava rindo de mim.
— Eu preciso de um professor. Se fosse para fazer tudo isso agora, era
mais fácil eu pegar logo um roteiro novo no estúdio e voltar pro meu
apartamento.
Expirei lentamente e fingi que naqueles segundos não passou pela minha
mente um episódio em alguma rua escura, onde os homens de Morales
invadiam um desses teatros pequenos que haviam escondidos pela cidade e a
arrancavam de lá a força.
— Você gosta de dizer que eu atuo em muitos ramos, porém, o campo da
atuação para mim é um buraco negro. Você vai ter que me dizer nomes —
falei.
— Ok, eu tenho alguns. Adoraria que Oliver Vilar me treinasse, eu vi que
ele inaugurou seu próprio curso, mas eu não tinha tempo — ela abriu as
mãos ao dizer a palavra-chave: tempo. E seguiu citando outras opções que
achava mais viáveis.
Eu franzi o cenho, tinha muita coisa rodando na minha mente, ainda mais
agora que estava com os assuntos de Nascari no meu prato. Até a produtora
dele tinha virado assunto meu e de Jeanne. Mas aquele nome não era
estranho. Eu era de LA e circulava em meio a estúdios e sets de filmagens,
sabia nomes que importavam pro meu negócio. Mas por que eu reconheceria
o nome de algum professor de teatro que pelo jeito devia ser conhecido no
meio?
— Ok, eu vou providenciar.
— Eu não aguento com você dizendo que vai providenciar coisas,
Antonio. Eu posso me virar nisso, você faz seu papel de prestar atenção no
que eu falo.
Ela tornou a rir e me empurrou com o pé, depois se levantou:
— Vem, hoje eu estou com fome.
Eu enviei uma mensagem para o meu secretário olhar algo para mim e
responder amanhã cedo. Martino estava obcecado com as informações que
sempre quis saber sobre Nascari e seus negócios e agora possuía acesso,
então respondeu em poucos minutos.
◆◆◆

Na tarde seguinte, fiz uma parada em Hollywood e esperei cinco minutos,


o que já era tempo demais na minha agenda. Olhei em volta, não tinha
ninguém na recepção e o pequeno estúdio também estava vazio. Mas Oliver
Vilar apareceu em seu terno esportivo e testa suada.
— É um prazer, conhecê-lo, Senhor Denaro. Eu fiquei imaginando, desde
a… o trágico falecimento de Nascari, se alguém de suas empresas viria…
Não imaginei que um sobrinho se interessaria por algo do tio.
Martino tinha ganhado o dia dele quando o deixei sair do escritório para
vir conhecer Oliver Vilar. Um dos motivos de ele continuar vivo e feliz, era
os outros não saberem que ele era meu secretário pessoal para esses
assuntos. Ele nunca saía, nem ia comigo a lugar algum. Eu tinha duas
secretárias na Lorenza/ALGN para fazerem esse papel público.
Além disso, Martino tinha prometido a esposa e ao amante que não ia
mais se envolver diretamente com tiros e mortes. Ele trabalhava nessa vida
há mais tempo do que eu, mas só colocava ações em andamento, jamais ia
executá-las. Nada disso significava que ele não era bom. Martino fazia
minhas demandas acontecerem sem precisar sair da sua mesa.
— O lugar é bonito — eu abri a mão e Martino depositou um tablet, já
aberto no local necessário. — Ficou bem feito.
— Obrigado, eu contratei uma designer…
— Mas você precisava de meio milhão para isso?
Ele umedeceu os lábios e seu pomo de adão dançou na sua garganta.
— Eu tinha um plano. Também precisava de uma casa nova na cidade.
— Um aluguel nesse endereço? É caro — levantei o olhar dos números da
dívida dele e o observei.
— Sua renda atual não cobre o aluguel e as dívidas — informou Martino.
Oliver perdeu a pose e adquiriu uma sinceridade nervosa.
— Eu tinha um plano, queria atingir grandes talentos. Esses filhos de
milionários que são metidos a grandes atores, mas são medíocres e precisam
de alguém como eu! Essa gente nova que desponta em alguma série da
Disney com atuações sofríveis e para se elevar na carreira precisa ser
treinado por alguém como eu! Mas os talentos não vieram tão rápido quanto
precisava! Só agora estou me reerguendo!
— Você queimou trezentos mil em dois meses, você tem um vício, Senhor
Vilar — informei. — E uma dívida que duplicou de tamanho.
— Pelo amor de Deus, juro que aumentei minha cartela de clientes, tem
até peças no andar de cima. O seu tio… ele… ele era bondoso com artistas
nessa cidade. Ele patrocinava tantas coisas, tantos espetáculos, emprestava
para pequenos empreendimentos artísticos como esse…
Martino o olhava com pena, devolvi o tablet para ele.
— Eu também sou interessado em entretenimento e patrocino muita coisa
nessa cidade — aleguei.
— Então vai continuar a bondade do seu tio? — Perguntou ele, eu não
sabia se ele era tão ingênuo assim ou preferia só enxergar o lado “bom” de
Nascari.
— Eu tenho um trabalho para você, um que executará com talento,
dedicação e boca fechada. Vou mandar te buscar e você vai ter esse horário
livre nos dias que eu disser.
— O senhor quer aprender a… — Começou ele.
— Ele não quer ser ator, homem. Nem eu, recomponha-se — cortou
Martino.
— Uma atriz, você vai fazer seu trabalho com ela. E se abrir a boca, a sua
última preocupação vai ser sobre perder o seu empreendimento. Sua língua
vai ser a primeira coisa que eu vou arrancar, atualmente cinema mudo não
tem feito sucesso nas bilheterias.
— Claro, eu vou. Sim, onde for. Uma jovem atriz? — Ele assentia.
— Eu tenho seu número — avisei.
— Sim — ele tornou a confirmar com a cabeça.
— Envio o horário em que o carro vai passar.
— Claro — lá estava ele assentindo mais vezes.
Eu peguei o celular, pronto para o meu próximo compromisso e Martino
olhou para Oliver.
— Além de deixá-lo manter o negócio e seu bem-estar, vamos cortar seus
juros. Sua dívida fica congelada, mas ativa para você deixar de ser
megalomaníaco. Se fizer bem o seu trabalho, novas condições podem
agraciá-lo — avisou ele e sacou um documento. — Assine.
Martino guardou tudo e voltou a lembrar:
— Se você disser uma palavra sobre isso a quem for, já era Hollywood
para você.
Entrei no carro e Martino me seguiu, ele ajeitou a pasta em seu colo e
disse com animação:
— Há anos que não ameaço ninguém sem ser pelo telefone. Senti falta da
adrenalina do cara a cara.
— Você vai continuar no escritório — avisei.
— Eu sei — ele soava desanimado.
— Pelo seu bem-estar, se o descobrirem, Hollywood vai acabar é para
você.
— E eu não sei? Nunca gostei daquele homem — disse ele, referindo-se a
Morales. Apesar da discrição, Martino tinha seus próprios seguranças.
Capítulo 11: Annika
RAye

Annika 09:43
Tô aqui na frente!

Levantei num pulo, Antonio já havia saído e eu estava tomando café da


manhã. Um dos seguranças apareceu na sala, eu não tinha memorizado o
nome desse cara ainda, mas ele gostava de usar um paletó esportivo de um
botão e com alguma cor no detalhe do bolso.
— Seu irmão e uma mulher que diz ser sua melhor amiga estão…
Eu juro que conseguia escutar as vozes deles.
— Rachel! Sou eu! Quem é esse bando de capanga?
Um minuto depois Deon entrou puxando Annika pelo braço, já que ela
parecia ter encrencado com um dos seguranças. Assim que me viu, ela se
soltou e veio na minha direção, os olhos enormes denunciavam seu
verdadeiro estado de espírito. Assustada e surpresa.
— Você mentiu para mim — constatou ela e me surpreendeu ao me
abraçar apertado. — Pensei que tinha te acontecido algo grave.
Aconteceu.
Abracei de volta, apertando-a com força e fechei os olhos. Sim, estava há
meses mentindo e omitindo um bando de detalhes. Contudo, Annika se
mudou para outra cidade. Era perto, umas horas na estrada com o pé no
acelerador e estava ali. Trocávamos mensagens todo dia, falávamos ao
celular com frequência. Mas Annika não estava em Los Angeles.
Minha amiga tinha a própria vida e problemas. Quando as coisas ficaram
sérias, eu não quis adicionar mais nada ao prato dela. Parei de contar. Até
onde Annika sabia, eu mal estava vendo Antonio e o maior empreendimento
dele tinha pegado fogo. Pouco depois eu sumi.
— Você desligou o localizador — Annika continuava tão perturbada que
não estava brigando ou acusando, suas frases saíam numa mistura de
conclusão e assombro.
Ela ainda não havia superado o fato de ter visto um perímetro de homens
armados tomando conta daquela casa. O segurança que os acompanhou
continuava perto da porta e ela só achou esse lugar e entrou porque Deon a
trouxe.
— Ela me obrigou, fez o maior escândalo, achei melhor colaborar antes
que desse merda — Deon deu de ombros e foi pro lado da cozinha, deixando
a gente em paz.
— É tão bom te ver. Senti saudades — observei seu rosto, feliz por revê-la
e emocionada por ser um rosto familiar.
— Também senti, mas você estava mentindo para um cacete nas últimas
mensagens. Sinceramente, quase achei que foi sequestrada e estavam te
obrigando a me responder.
Engoli a saliva, preocupada em como a teoria dela chegava perto do
problema principal. Eu havia sido sequestrada.
— Eu só estava cansada — não conseguia mentir na cara dela do mesmo
jeito que fazia pelo telefone.
— Corta a palhaçada — Annika sussurrou e deu uma olhada em volta. —
O que tá rolando aqui? Essa casa é do dono da comida?
— Sim e não. É só por um tempo.
— Você está morando com um cara pela primeira vez na vida e não me
disse? — agora sim ela soava magoada.
— Não… quer dizer, só estou ficando um tempo.
— Porra, que enrolação — Annika abriu os braços. — Quer saber, não
vou embora enquanto você não soltar a real. O homem vai me hospedar
também? Por que eu vou ficar, você me conhece.
Quando Annika queria ela era um acontecimento. Falava alto e chamava
atenção. Ouvi a porta fechar, mas Denver apareceu de forma tão súbita e
silenciosa que eu tive certeza que deixar a porta fazer barulho foi uma tática
de distração. Pelo menos ele não estava com arma alguma em punho. Mas
era ele… uma presença enorme. Annika se sobressaltou e arregalou os olhos,
ela estava nas pontas dos pés desde que chegou aqui. Era desconfiada.
— Tudo bem por aqui? — Denver alternou o olhar entre nós. — Sua
amiga?
Para um deles aparecer aqui, apesar da presença de Deon, os seguranças
relataram a chegada repentina e barulhenta de Annika como uma quebra de
segurança. Antonio me falou que qualquer merda que desse, quem estivesse
mais perto ia aparecer primeiro.
— Caramba — soltou Annika, sem filtro nenhum.
Agora não sabia se ela estava assustada com ele ou outra coisa.
— Minha melhor amiga — apresentei. — Annika Rodriguez.
Ele franziu o cenho, porque ela nunca tinha aparecido e eu já sabia que
todos eles tinham descoberto coisas sobre a minha vida e sabiam até minha
agenda e os rostos das pessoas que apareciam pelo meu dia a dia.
— Seu segurança?
— Denver — ele ofereceu a mão e pelo jeito que olhou para ela, não
estava a ponto de procurar armas.
Quem não conhecia Annika, só tinha o externo para julgar e assim que
colocava os olhos sobre ela via uma mulher negra, alta, esbelta e tão bonita
que destoava em qualquer ambiente. Ela fazia uns bicos de modelo para
pagar as contas, mas era formada em Artes Cênicas e uma ótima atriz. Era
esperta, desconfiada e desde que eu a conhecia estava ralando para conseguir
bons papéis. Ela nunca ficava sem trabalho, mas sua carreira não progredia
como almejava, as oportunidades eram limitadas.
Foi por isso que ela se mudou. Conseguiu papéis melhores filmando fora
do circuito principal e acabou se envolvendo com uns caras de uma
produtora nova.
— Então, é o segurança? — Ela insistiu ao mesmo tempo que apertava a
mão dele.
— Não e sim — era minha nova resposta padrão.
Até onde eu sabia, Denver era capanga, parceiro, pistoleiro… sei lá o que
mais ele fazia. Mas era do círculo de confiança de Antonio. E desde que me
envolvi com o chefe dele, virei sua protegida por tabela.
— Eu vou te dar um socão se continuar com isso — ameaçou Annika.
Ela também tinha o pavio curto. E eu me sentia culpada porque ela dizia
que não importava a distância, não confiava em ninguém como em mim. Por
isso que assim que resolvemos morar juntas, contou que era uma mulher
trans e quando a conheci, ela estava com um curativo no rosto porque tinha
acabado de fazer uma nova cirurgia que era parte do que ela chamou de “seu
pacote de transição”.
Ela não anunciava sua vida pessoal por aí, mas também não se escondia.
Costumava me dizer que só adicionava outra camada de atraso em sua
carreira, foda-se que era Hollywood, também era o paraíso do preconceito
enrustido. Viviam querendo que ela coubesse em determinados tipos de
papéis e ela era uma atriz experiente. Podia fazer tudo.
— Você pode tentar — provoquei, porque ela não tinha chance de me
bater. Eu era mais agressiva e numas aulas de luta e defesa que pagamos
juntas, eu a derrubava todas as vezes. Pena que largamos, faltava tempo.
— Vamos ali — ela me agarrou pela frente da blusa, o que lhe faltava de
força bruta, sobrava de abuso.
Annika me puxou para longe, ela não conhecia a casa e só procurava um
lugar mais reservado. Ela deu uma olhada por cima do ombro para Denver e
ele continuava nos observando e nem sei se era preocupação por mim. Eu
acabei mostrando a sala de TV e fechei a porta.
— Você é uma puta de uma mentirosa! Quem é esse cara?
— O Denver? Ele é…
— Não se faz de doida! — Agora que ela tinha superado o choque, estava
mais do jeito que eu conhecia. — Você disse que nem ia mais ver o dono da
comida. Eu tenho Google, sua vaquinha mentirosa.
— Shii, fala baixo — eu a puxei para longe da porta.
— Fala baixo nada! Quem é esse macho? Você tá morando com ele.
Quebrou nosso pacto do localizador e eu bati lá no nosso antigo
apartamento. Aquela dançarina idiota estava saindo e quase correu quando
me viu. Ficou repetindo que você estava de férias. Parecia uma maníaca.
— Eu mandei. Ameacei a vida dela com o meu taco de beisebol
autografado.
— Eu sabia que ela era vacilona, o que ela fez?
— É vacilona.
— Fala logo. Eu disse que vou ficar aqui na sua casa nova com o macho
dono da comida que é sobrinho daquele bandidão que morreu. Pensa que não
sei? Eu tenho internet, conheço tudo que é fofoqueiro de bastidores. O que
tem no Google sobre ele, eu li.
— Então, eu estaria em ótimas mãos se ele fosse só o dono da comida de
LA.
— E que come bem pra caramba. Você que disse — ela me encarava,
séria.
— Come muito, come bem, guloso — concordei, assentindo.
A gente desatou a rir e não conseguiu parar por uns minutos. Duas
ridículas fazendo piada interna e de duplo sentido no nível da quinta série.
Mas Antonio comia muito bem. Não era mentira em nenhum sentido. Aí
mesmo que rimos.
— Chega, chega! Você não vai me enrolar! Não foi comendo bem que
você se ferrou!
— Também!
A gente riu mais. Sem nenhuma maturidade. Meus olhos encheram de
lágrimas e ela pensou que era só pelo riso, mas era por estar com ela de
novo. E aí eu sentei no grande sofá a frente da TV que quase não estava
sendo usada. Annika sentou perto de mim.
— Eu me enfiei em um problema, Anni — murmurei.
Não quero dizer que menti, mas omiti tanto. Os detalhes não passariam
pela minha boca. Annika cumpriria a ameaça de ficar. E por mais que a
amasse, tinha que tirá-la daqui o mais rápido possível. Ela era protetora, não
podia saber de nada. Eu não precisava de cartilha ou aviso para saber que
nesse mundo onde havia entrado, boca fechada era uma necessidade
indispensável. Minha vida atual estava enrolada nos negócios de Antonio.
Só para me trazer de volta e alimentar sua vingança, ele cometeu diversos
crimes; assassinato era só um deles. Não, eu trabalhava com ficção há anos.
Sabia completar buracos de tramas com detalhes críveis. Annika não podia
voltar aqui, eu precisava que ela ficasse longe, para a segurança dela.

◆◆◆

Antonio ficou curioso sobre a minha amiga, porque a sorte estava do meu
lado e me ajudou a causar o desencontro entre eles. Para provar que estava
bem e que estava só passando um tempo “com o cara da comida”, eu fui
embora com Annika. Denver fez questão de nos levar e eu continuava sem
saber se era cuidado extra ou se era para prestar atenção na minha amiga.
A minha sorte era que ela tinha uma audição marcada. Fui até seu hotel
para ela se arrumar e ainda chegar ao teste daquela tarde. Esperei até ela
terminar e me senti de volta ao passado: segurei sua mão para ajudá-la a se
acalmar, afirmei que ela conseguiria e depois a levei para um café.
Fui com ela encontrar sua agente, a mulher contou que conseguiu mais
audições para Annika naquela semana. Ela precisaria se concentrar nisso
para conseguir, pelo menos, um dos papéis. Isso me fez ganhar tempo para
arrumar as omissões e vê-la nos intervalos enquanto ela estivesse por Los
Angeles.
— Não precisa fazer malabarismo, Raye. Eu vivo uma vida de fingimento
todo dia, se você quiser, faço o papel de dono da comida para sempre. O
assunto é interminável — ofereceu ele, enquanto eu tomava minha sopa de
tomate e falava de como me sentia culpada.
— É meu jeito de protegê-la. Eu a conheço, ela não conseguiria saber nem
uma parte da verdade e simplesmente ir embora. E faria tantas perguntas…
— coloquei a mão na testa, só de pensar.
Eu amava a minha única amiga verdadeira, ela jamais me trairia como
Karen fez, se fosse ela no lugar, teria sido horrível. Mas não quis contar a
Antonio que disse a Annika que “só estava passando as férias com ele”. Eu
contei que ele era diversão garantida, além dessa casa, ele tinha um barco,
um lugar cativo num resort e comia como ninguém. Ela comprou essa
mentira. Comentou que nunca pensou que eu ia me envolver com um ricaço
de LA só por diversão e esquecer do mundo. Dei um sorriso amarelo.
Quando o conheci, ele só tinha um carro explodido e um corpo coberto de
sangue. Como eu ia saber? Tanto que contei a ela sobre “o cara que salvei”.
A mentira ia vencer em pouco tempo. Eu estava ferrada.
Dava para progredir essa história, mas eu só me sentiria pior. Se mudasse
para a versão sobre meus sentimentos confusos e explosivos em relação ao
meu relacionamento com Antonio, estaria falando a verdade por cima de
uma base fictícia.
Capítulo 12: Você é pólvora para
mim
GASOLINA

Na quinta-feira, Antonio mandou Oliver Vilar para me encontrar. Disse


que era uma surpresa, para ver se eu ia gostar do meu novo instrutor. Eu o
adorei, já o havia encontrado antes, mas ele não lembrava, porque só gostava
de jovens atores famosinhos. Meu histórico de atuação infanto juvenil não
era popular o suficiente para ele.
— Então você já atuou? Mas que maravilha! Pensei que partiríamos do
zero e eu teria de fazer um milagre. — exclamou ele, aliviado quando contei
do meu currículo.
Então ele tomou sua água com gás e limão, parou de suar e ficou mais
relaxado para trabalharmos. Quando terminamos, disse a ele que ligaria para
marcar um próximo encontro. Ele me fez prometer que ligaria, o que só
confirmou que o Sr. Vilar estava muito enrolado.
Só no sábado que tive tempo de fazer Antonio me contar que Oliver
estava com dívidas até a raiz dos cabelos e agora ele era o dono das tais
dívidas. Achei curioso, fez sentindo e senti certo prazer por saber o
segredinho do meu instrutor metido a rico e importante.
— E você vai cozinhar? — Perguntei a Antonio enquanto ele largava a
toalha e subia a bermuda pelas pernas.
Antonio tinha dito que naquele sábado, seríamos só nós dois. Ele faria
algo para comermos no jardim, no espaço que havia no lado mais afastado
do terreno e tinha uma vista aberta para Malibu, com o mar ao fundo.
Desconfiava que ele estava se esforçando por mim.
— É como um lanche noturno. Não dá trabalho.
— E você já trouxe algumas coisas — chutei.
— Eu emprego chefs sensacionais — ele abriu aquele seu sorriso
charmoso e genuíno que não o via distribuir por aí.
Quando ele se aproximou, dei uma olhada em suas mãos, ele esteve
naquele lugar onde fazia exercícios que também envolviam socar algo. Era
lá que estava descarregando suas frustrações, porque não parecia ter socado
nada com ossos nos últimos dias.
— Machucou a mão de novo? — Perguntei, pegando-as para olhar. Tinha
um arranhão na lateral, os punhos estavam só com as sombras do que foram
os pequenos ferimentos de atrito. Seus machucados nunca duravam, tanto
que eu esquecia, até ele renová-los.
Eu tinha visto maquiadores profissionais criando esse tipo de machucado
nas mãos de atores e olha só onde fui parar. Antonio não estava só
mandando gente fazer o trabalho sujo, eu estava descobrindo os detalhes aos
poucos, mas com o primo dele fora do jogo, ouvi ali na casa que tinham um
problema com alguém pior. Escutei o garoto moreno o chamando de “velho
sádico”.
— Eu bati numa quina — ele deu uma olhada na mão como se só agora
reparasse nesse pequeno problema, depois me olhou e suas mãos
bagunçaram o tecido leve do meu robe.
— É bom te ver de novo com o sol ainda brilhando — aproveitei que ele
não tinha colocado a camisa e experimentei sua pele sobre os músculos
harmônicos que me atraiam tanto, passei os dedos sobre a tatuagem cobrindo
seu peito e segui a tinta para seus braços, descendo por um dos ramos de
folhas. Eu gostava de como os desenhos eram conectados, como se
contassem uma história secreta sobre sua pele, pois só apareciam inteiras
quando ele tirava aquelas roupas de boa qualidade que sempre usava.
— Eu queria um tempo com você — disse ele.
— Eu não tenho mais nada na agenda do dia, se você também estiver
livre…
Ele segurou minha cintura e me colocou sentada na bancada, eu não
estava com pressa, meu encontro estava a minha frente e ele também não
tinha terminado de se vestir. Ele chegou mais perto e envolveu meu torso
com os braços, passei os dedos pelas laterais de sua cabeça e ele levantou o
rosto, capturando meus lábios. Beijei-o de volta, sentindo desejo se misturar
a conforto e contentamento.
— Se tudo acontecesse do jeito que eu gostaria, eu ficaria esses dois
meses aqui, infernizando a sua mente até você não aguentar mais me ver e
me mandar para rua em uma semana — declarou ele, sendo o meu mentiroso
favorito, pois se tinha um homem ativo que enlouqueceria preso em casa, era
Antonio.
— Talvez, eu disse, talvez, eu não o mandasse para a rua tão rápido assim
— sugeri, enquanto mantinha as mãos nas laterais do seu pescoço.
— Não quero que pareça que tudo mudou tanto assim.
Franzi o cenho, conseguindo esquecer a proximidade dele e dos seus
braços a minha volta.
— É por isso que fica pra lá, nos seus compromissos? Para ser mais ou
menos como era antes.
— Nunca fiquei muito tempo em casa, mas… — Ele balançou a cabeça.
— Essa merda toda que aconteceu. Eu sei como é algo simplesmente virar
sua vida de ponta cabeça e mudar tudo da noite para o dia. Não vou deixar
isso ferrar com você ainda mais.
Ele me olhava com a testa franzida e daquele jeito intenso, como alguém
decidido depois de pensar exaustivamente sobre um problema.
— Para de remoer isso, não vai te ajudar a resolver mais rápido — passei
os dedos pelo seu rosto e subi até atravessar a frente de sua testa
horizontalmente. — Eu acho que até criou uma ruga de preocupação bem
aqui.
Antonio abriu um sorriso junto a um leve som de risada.
— Não é com rugas que me importo — garantiu ele, deixando suas mãos
segurarem meus quadris enquanto tornava a me beijar.
Deixei que ele me abraçasse, com suas mãos se insinuando pelo meu robe
curto, as laterais tinham se afastado quando ele me botou na bancada e a
faixa ainda amarrada passava a frente da minha barriga. O jeito como ele me
beijava causava uma revolução no meu corpo e uma viagem na minha
mente. Nada tinha mudado nessa parte.
— Independentemente do que aconteceu, ainda é uma mistura da surpresa
e antecipação de quando você me beijou naquela mesa de frente para Los
Angeles e da avidez e paixão de quando me beijou no resort onde aceitei
passar uns dias com você. Aquela droga de buraco não mudou isso. Você é
Pólvora para mim.
Ele manteve o olhar em mim por tempo demais, intenso como se fosse me
tragar bem ali, mas pegou meu rosto e me beijou com ânsia suficiente para
esfolar.
— Faz tempo que não me chama assim.
— Então precisamos de mais tempo — trouxe seu rosto de volta para
mim, oferecendo meus lábios.
Antonio soltou o laço do meu robe e me abraçou, enfiando seus braços por
dentro, passei as pernas em volta dele, para mantê-lo o mais perto possível.
Beijei seus lábios, seu queixo e fui até o pescoço, exatamente onde ficava
aquela única tatuagem com quatro letras medianas: ALGN, na vertical. Era
como um caminho de pequenos beijos que apontava para a base do seu
pescoço. E ele acendia fácil.
Ele me encostou no espelho e puxou minha calcinha sem nenhuma
cerimônia, jogando-a no chão. Voltei a envolvê-lo com as pernas e a gente
arranjou tempo ali mesmo, ao lado da janela que dava para a praia, desde o
resort que não transávamos a luz do dia. Era para me lembrar que Antonio
estava marcado na minha vida em todos os horários.
— Não sei o que vai acontecer amanhã ou daqui a um mês, mas você
sempre será pólvora para mim. Na minha frente ou na minha memória — eu
o segurei pelo pescoço, nem um pouco arrependida de ter afundado as unhas
ali.
— Não importa como vai ser, Raye. Eu vou pensar em você assim, como
a minha gasolina — ele tinha um olhar divertido ao me dizer isso.
— Sempre vai lembrar de mim assim… Espero que sim.
Porque eu, com certeza, me lembraria dele. Antonio assentiu e me olhou
seriamente, fazendo-me lembrar do jeito que ele me olhou naquela manhã
em que me despedi dele, após acordar no quarto de hotel depois da nossa
primeira vez. Mas dessa vez ele me beijou e eu não fui a lugar algum.

◆◆◆

Quando terminei de me vestir, encontrei Antonio na cozinha, arrumando a


comida do nosso encontro domiciliar. Nunca o vi comendo alimentos
processados nas refeições, era sempre comida feita com ingredientes e
temperos naturais e os melhores sabores. Quem teria mais acesso do que o
cara que fornecia o material para fazer comida de verdade e usava isso como
marketing da comida pronta que entregava todo dia?
Sentei na lateral do balcão e não só olhei como senti o cheiro do que tinha
sido entregue pouco depois que ele chegou. Havia bastante variedade, parece
que eu tinha um encontro real. Fiquei animada e sorrindo como uma idiota.
Nos dias que se seguiram ao meu trauma achei que tinha acabado, que o
romance estivesse morto em mim. E que eu iria embora, sem conseguir me
conectar com ninguém por um longo tempo. Não esqueci o que aconteceu e
a psicóloga era prova disso, mas eu continuava me apaixonando mais por
Antonio a cada dia.
Ele cortou os pedaços da focaccia coberta de tomates-cereja e colocou
num prato, sorriu para si mesmo quando beliscou um pedaço com a ponta da
faca e sentiu o sabor. Não tinha nada que eu conseguisse fazer para me
convencer a não sentir nada por ele. O forno apitou e ele tirou de lá algo que
perfumou a cozinha, usou uma espátula para colocar em outro recipiente,
mas cortou um pedaço.
— Experimenta isso, para abrir o apetite.
— Você é engraçado, não preciso abrir o apetite, ele já chegou aqui muito
aberto — eu peguei o pedaço do que era e coloquei na boca, sem saber o que
me esperava, fiquei paralisada só sentindo o sabor.
Ele sorriu, com sua missão completa e voltou ao que fazia. Meu apetite
tinha retornado, pois a cada hora ele aparecia com alguma coisa que era uma
explosão de sabor que me deixava salivando e nadando naquela piscina,
usando a academia da casa e o que mais houvesse disponível, só para
continuar comendo enquanto usava um biquíni. Porque sim, ainda era verão
na Califórnia. E minha psicóloga lembrou que exercícios faziam bem a
mente.
— Traz as bebidas — ele seguiu na frente, levando a cesta de comida.
Eu peguei o balde de gelo com as bebidas, as taças e o segui. O caminho
até os sofás era todo iluminado. Antonio arrumou nossa comida na mesa de
centro baixa e quadrada que ficava entre os sofás. Tirei pequenas garrafas de
vidro do balde de gelo, drinks gaseificados de frutas que eram cortesia da
Lorenza e levavam seu nome no rótulo.
— Saúde — toquei a taça larga na dele e bebemos longos goles.
Belisquei os palitos de queijo e prosciutto, comi pedaços de mozzarella e
tomatinhos marinados, Antonio segurou uma bruschetta maravilhosa para eu
morder e roubou o pedaço restante. Ele havia comentado que ia arranjar um
jantar com influência da terra da mãe dele. Eu percebi que Antonio
associava a cultura do país de origem da família só a sua mãe, não ao pai.
Podia ser porque ela imigrou adulta, o pai nasceu aqui.
Guardei essa curiosidade para depois, pois na minha casa meus pais eram
de países distintos, tiveram-me num terceiro país e morávamos aqui há anos.
E agora eu estava com um cara de um país que nunca visitei. Era uma
mistura rica.
— Vem cá, come mais disso — ele pegou o prato.
Ele me puxou para mais perto, eu me deixei cair junto ao seu lado e comi
os nós de frango, parmesão e alho que tinham me causado aquele impacto lá
dentro.
Abri mais duas garrafas, enchi as taças e voltei a me recostar nele. A brisa
vinha fresca e agradável da direção do mar e enquanto estávamos ali, dava
para esquecer o motivo que nos levou a estar juntos naquela casa. Ao menos
a impressão durou até o celular dele vibrar em cima da mesa.
— Eles podem se danar por hoje — resmungou ele.
— Você lembrou de dizer que sua agenda da noite era só minha?
— Eu disse que não queria ser perturbado, a menos que explodissem LA
— ele sorriu para mim.
— E não estamos tão sozinhos assim… — Lembrei, já que na verdade,
Pietro e Ogul moravam aqui quase em tempo integral, mas como Antonio,
passavam horas pela rua.
— Ogul precisa sair mais, Pietro sempre tem algum encontro na manga.
— E agora que eu meio que moro com você e é muito recente…
— Meio? — Ele se divertiu. — Foi isso que você disse a sua amiga?
— Sim, meio que aconteceu.
— Você está indo morar em outra casa quando eu não estou por aqui?
Sinceramente, Gasolina, eu pensei que havia acertado no lugar — provocou
ele.
— Sim, quando você está fora eu moro num loft perto de Hollywood que
eu divido com mais cinco atores falidos.
— O quê? Quem é essa gente? — Perguntou ele, entrando na brincadeira.
Eu ri do tom dele, depois da minha decepção com Karen com quem achei
que teria uma linda amizade duradoura, eu nunca dividiria um loft com cinco
pessoas. Felizmente, ganhava o suficiente para não precisar, estava
acostumada a dividir só com alguma amiga.
— E olha só, meu novo colega de quarto tem uma comitiva… — franzi o
cenho.
Antonio segurou meu rosto e me beijou.
— Eu não sou seu colega de quarto, Rachel — pelo seu tom divertido, ele
ainda pensava nos cinco atores falidos do meu loft imaginário.
— O termo é muito sem graça para você? — Perguntei contra seus lábios.
— Falta significado e exclusividade.
— Olha só que exigente, depois de me levar para jantar só quatro vezes!
Ele inclinou a cabeça, rindo da minha reação.
— Quatro vezes?
— Essa é só a quarta vez que me chama para o jantar. Eu faço as coisas
gradualmente.
Ele voltou a rir, não me levando nem um pouco a sério. Mesmo que não
fosse o planejado e fosse temporário, estávamos morando no mesmo lugar.
— Esse deve ser o décimo encontro — apontou ele.
— Quando eu aceitei sair com você dez vezes?
— Eu gosto daquela parte em que passamos dias longe daqui e você saiu
comigo diariamente, várias vezes.
— Isso é roubo, aquela folga deveria contar como três encontros
marcantes.
— Você é muito desonesta no campo dos encontros — ele balançou a
cabeça.
Enquanto brincávamos e nos beijávamos, ainda dava para ouvir o
zumbido do celular dele que foi colocado no silencioso e eu reparei que
tocava sem parar. Quem diabos iria contra a recomendação de deixá-lo em
paz? E de forma tão insistente.
— Você está aqui, eu já estou envolvido nessa merda todo dia. Se
tivessem botado fogo em algo meu outra vez, um deles teria corrido até aqui.
Ele apoiou os pés na parte de baixo da grande mesa quadrada e baixa, eu
fiquei de joelhos e beijei sua bochecha, achando engraçado e adorável,
porque nunca o vi emburrado antes. Era absolutamente inédito e eu ri um
pouco enquanto segurava seu rosto e o beijava.
— Não fica assim, amei ver o pôr do sol pelas janelas enormes daquele
banheiro enquanto você me fazia gozar de novo, adorei a comida que
escolheu e as bebidas que você comprou a receita de alguma nonna que
mente que não gosta de você…
— Você é terrível tentando elevar um ego.
— Sim, vou do sexo ao menu. Não esqueço nada!
Ele me colocou em seu colo e me abraçou, beijando-me daquele jeito que
eu esquecia completamente onde estava. Cerrei os olhos, enfiei meus dedos
pelo seu cabelo escuro e me entreguei, não sei quanto tempo levou, mas as
vozes me tiraram daquele lugar perfeito que era o espaço entre seus braços e
seu corpo, com sua boca colada na minha.
— Antonio! — A voz chamava num tom urgente.
Pulei do colo dele que ficou de pé a tempo de encarar Tommaso que
chegou apressado e com um celular na mão. Eu só o vi pessoalmente uma
vez, mas já havia entendido que era o vice no comando da Lorenza/ALGN e
eu não era sonsa o suficiente para não saber que ele também era o segundo
na outra cadeia de comando que envolvia a vida de Antonio.
E pela expressão e urgência dele, o assunto não era sobre as empresas de
comida. Quando olhei para o caminho de pedras, vi que os outros quatro
também tinham chegado e estavam vindo na nossa direção; pelas expressões,
não sabiam que merda ia rolar agora.
— Você precisa atender, é urgente — como o conhecia, Tommaso não fez
suspense e soltou: — É sobre o seu irmão. É sério, Antonio.
Capítulo 13: Vittorio Denaro?
PÓLVORA

Tommaso ofereceu o celular e eu peguei, mantive o olhar nele como um


aviso, se aquilo não fosse importante, alguém ia pagar pelo meu mau humor.
E a última coisa que eu esperava escutar do outro lado, era a voz da minha
avó. Tudo que aquela maldita estivesse envolvida seria alguma merda para
mim ou para quem fosse, menos para ela.
— Antonio, você sabe que eu não te ligaria se não fosse o último recurso
— ela disse rápido, em tom de urgência.
— Que mentira você está inventando agora?
— É o seu irmão.
— Cuidado com a próxima merda que vai dizer, Linda.
— Pode me culpar o quanto quiser, eu fiz o que precisei na época.
— Meu irmão está morto.
— Ele também pensa que você está enterrado em algum lugar próximo a
Nova York.
— Eu não tenho tempo para jogos.
— É vida ou morte, Antonio. Na época que tudo aconteceu, eu peguei o
seu irmão antes que o matassem e o despachei para uns familiares na Itália.
Enquanto isso, Lorenza morreu e eu te enviei para LA. Foi assim que
mantive os dois vivos. Eu devia ter dito anos atrás, mas o tempo passou e foi
virando algo antigo e grande demais, nunca era a hora certa. Sempre achei
que eles voltariam para matá-los se eu tentasse reuni-los ainda crianças.
Depois… pra quê? Era pra ele ter uma vida normal e você ficar com Nascari.
— Eu vou desligar, sua desgraçada mentirosa — avisei, só de imaginar
tudo isso, meu peito parecia um nó. Apenas três assuntos me afetavam da
forma mais pessoal, dois envolviam pessoas que estavam mortas. O terceiro
era novo, chamava-se Rachel e já havia morrido por me conhecer.
— Não! Você sabe que eu não te ligaria no meio da noite para mentir
sobre isso depois de vinte e cinco anos! Eles vão matá-lo! Ele é um adulto,
faz o que quer. Separá-los não adiantou nada. Eu falhei e ele não é a droga
de um adulto normal. Você o contrataria para matar um inimigo sem que
soubessem que foi você! Ele chegou aqui e descobriu que os caras
envolvidos na morte dos pais já estavam mortos, mas ele foi atrás de
informações sobre quem matou e quem ficou com o que era deles.
Ela pausou, ofegante e eu nunca vi ou ouvi essa desgraçada ofegar e
perder o controle que modulava sua voz.
— Mas ele é um só! — gritou. — Não é você com todos os seus recursos.
Conseguiram pegá-lo como te pegaram quando era mais novo. Vão matá-lo,
Antonio! Não tirei os dois daqui pra vocês voltarem e morrerem no mesmo
lugar. Primeiro você e agora ele. Esquece a minha culpa, só tire-o de lá. Isso
está além dos meus poderes — pedia ela, surpreendendo com a emoção que
eu percebia através do telefone.
Engoli a saliva, minha cabeça pulsava no mesmo ritmo que meu coração
martelava.
— Se for mais um dos seus truques, eu juro que esqueço de vez que você
é minha avó e te dou um tiro na cara. Esse é o meu limite — avisei.
— Vittorio está vivo. Essa é a verdade. Você tem pouco tempo para não o
perder outra vez. Agora você tem o poder para impedir isso — disse a
desgraçada, jogando com as minhas emoções e traumas infantis.
— Onde ele está?
— A última informação que tenho é do galpão para onde o levaram.
— Envie para mim. Agora. Eu vou descobrir essa história. Se não der em
nada, você vai pagar por isso — desliguei.
Em segundos, o mapa apareceu na mensagem do telefone, com a
localização clicável para o GPS. Uma porra de um lugar no porto de Nova
York. Do outro lado do país. No território de gente com quem eu não queria
arranjar mais briga depois de ter ido lá anos atrás e matado um bando deles.
Eu odiava a minha avó.
Resumi o que ela disse e fiz a pergunta que importava:
— Você sabia disso? — indaguei a Tommaso.
— Ela não me contou tudo, só disse que era sobre o seu irmão estar vivo e
em perigo e que só você podia fazer algo — ele parecia tão surpreso e
apavorado como eu esperava.
— Eu vou repetir, você sabia sobre a possibilidade de Vittorio estar vivo?
— Não! Não, merda! Esse segredo eu não teria guardado para ela. Por
isso nunca me disse, eu teria lhe contado.
Respirei fundo, vi que Rachel estava nos olhando, sua expressão era de
assombro e confusão. Se parecia ilógico para mim, imagina para ela. Eu não
falava desse passado e Vito só contou para ela sobre a minha mãe. A morte
de um garoto de 5 anos não era importante para eles.
— Chamem os outros — manipulei o mapa na tela do celular, olhando o
que havia lá, precisava ir ver o local e me planejar. — E me arrumem um
avião extra.
Eu ia ver com os meus próprios olhos, fosse o que fosse, apesar de tudo
que eu achava da mentirosa oportunista da minha avó, duvidava que ela
estivesse montando uma armadilha para mim. Era pior. Eu preferia que ela
estivesse tentando me trair, algo simples. Porque não teria traição pior do
que descobrir que essa história era verdade.
— Ninguém pode saber que vamos deixar a cidade, quero medidas para
parecer que estamos aqui. Rápido! — Movi a mão para que se mexessem.
Tommaso foi o único que não fez nada, ele continuava paralisado.
— Anda, o jatinho não dá todo mundo que preciso levar. Precisa me
arrumar outro. Um maior vai chamar muita atenção.
Rachel também acordou do transe que a surpresa causou, largou tudo lá e
voltou para a casa. Eu a segui, ao mesmo tempo seguia os outros.
— Você vai voltar para o iate — avisei a ela.
— Não vou!
— Rachel.
Eu a alcancei no quarto, também precisava trocar de roupa antes de sair,
mas ela foi mais rápida, abaixou o short e enfiou uma calça escura pelas
pernas. Arranquei a camisa e joguei numa poltrona.
— Eu vou mandar o barco te pegar na praia.
— Eu não vou voltar para a droga do iate! — Ela passou uma blusa mais
grossa pela cabeça.
— Eu vou deixar a cidade, por, pelo menos, dois dias — avisei.
Ela jogou uma calça em mim e depois um casaco, estava mais bem
localizada naquele closet do que eu.
— Não vou ficar aqui — avisou ela, ao jogar um par de meias pretas no
meu peito.
— Você enlouqueceu?
— Não vou ficar presa no iate!
— Rachel — só disse seu nome como um aviso, concentrado em me
vestir.
— Você nem está pensando direito depois do absurdo que acabou de
escutar — ela enfiou o casaco pelos braços e prendeu o cabelo. — Não vou
ficar aqui.
— Você não pode ir comigo, não para o que eu vou fazer.
Ela se virou, com uma mala de mão no braço e não parou de colocar
coisas lá dentro enquanto falava comigo. Misturando coisas minhas com as
dela.
— Eu acredito nela. Sua avó, de quem você só falou uma vez e só para
citar que ela era uma desgraçada e estava viva bem longe daqui. Ela não
pode estar mentindo.
— Ela pode. Acredite em mim, ela é capaz.
— Vai acontecer algo aqui, Antonio. Não sei quando você volta, nunca sei
se sequer volta. Mas não vou ficar para trás.
Fui até ela, peguei a mala de seu braço e a coloquei sobre a ilha no meio
do closet, ela havia conseguido enfiar bastante coisa ali dentro em um
minuto.
— Eu não vou colocá-la em perigo deliberadamente. Não.
Ela só cruzou os braços e me olhou antes de avisar:
— Você está perdendo tempo, escutei os carros ligarem, eles estão prontos
para sair. Se me largar aqui, eu vou embora e não vai ser para iate, nem outra
casa.
— Estou indo para uma cidade que odeio, em território inimigo. Se minha
cabeça está a prêmio desse lado do país, naquela cidade de merda eles me
querem morto há 25 anos. E você quer ir comigo para isso.
Peguei o celular. Podia estar com um turbilhão na mente, mas assim que
começasse a pensar direito ia perder a cabeça se soubesse que a havia
deixado sozinha em LA logo num momento como esse. As coisas que
estavam acontecendo onde morávamos não iam parar simplesmente porque
eu precisava ir até Nova York.
— Você não vai me amarrar ou prender e largar aqui porque eu nunca te
perdoaria — apelou ela.
Eu me virei e cheguei perto dela, seu olhar era apreensivo e atento.
— Eu vou deixar isso claro, ir comigo vai mudar sua vida de vez —
avisei. — Não vai mais ser temporário, Rachel. Todos os homens que eu
levar vão saber que não é uma fase. Você pode mentir pros seus amigos e
dizer que eu sou férias e diversão. Mas no meu mundo, onde você vai ficar
presa, vão saber que você é minha.
As sobrancelhas dela se elevaram e por um momento eu pensei que ela
recuaria, que pensar em ficar comigo de vez seria suficiente para
desestimular sua decisão. Era um sentimento perverso e agridoce. Eu queria
que ela ficasse protegida, mesmo que perturbado por pensar nela longe de
mim enquanto eu voava para uma possível armadilha. E eu desejava que ela
continuasse a me enfrentar para ir junto comigo. Para ela assumir que não
tinha volta pra gente.
— Eu sei que não tenho sido eu mesma desde que voltei daquela cova,
mas eu sei onde estou e por mais que me falte um mundo de informações, eu
sei quem você é. E não vou ficar aqui, não sou deixada para trás —
respondeu ela, decidida e sem perder tempo.
— E eu não sei o que vai foder mais com a minha vida, minha cegueira
por você ou todas essas reviravoltas. Você não quer ficar no iate aqui, mas
quando chegar lá, vai ser minha vigia. Em um barco.
Agarrei a mala, mas ela a tomou de mim, não sei o que mais enfiou ali
enquanto eu pegava as armas extras, mas precisaríamos de mais do que umas
armas pequenas e isso teria de ser arrumado fora de LA, do mesmo jeito que
precisaria ser descartado. E eu não queria nem que os membros de ACCA
em Nova York soubessem que estive lá.
Saímos em silêncio, os carros seguiram enquanto eu falava ao telefone,
para arrumar essa partida súbita. Nem sabia se teria como planejar, a menos
que as circunstâncias me obrigassem, eu sempre agia sobre um plano. E teria
de bolar um pelas horas que levariam para atravessar o país.
E se fosse verdade? E se eu não pudesse fazer nada pelo meu irmão? De
novo. Já podia ser tarde demais quando eu chegasse. E não sabia como me
sentiria, talvez eu desabasse. Talvez fosse mais um motivo egoísta pelo qual
eu trouxe Rachel. Se fosse tudo mentira, se eu falhasse, se chegasse lá e só
tivesse o corpo dele e eu ainda estivesse longe dela, sem poder vê-la ou
protegê-la, talvez eu finalmente surtasse.

◆◆◆

Desde que recebi aquele telefonema, minha lista de loucuras só


aumentava. Entrei no jato com Tommaso — que também se recusou a ficar
para trás —, Pietro, Ogul, Denver, Bellini e os dois homens que sempre
estavam no segundo carro. Rachel estava sentada junto a janela, abraçada a
sua bolsa. Eu realmente a levei.
Avisei a ela que isso ia mudar sua vida, ainda mais do que já havia
mudado, mas valia para mim também. Eu a estava afundando cada vez mais
nos meus problemas. A menos que executasse um milagre, não conseguiria
arrancá-la dessa areia movediça. Ela ia afundar comigo.
Fretei outro jato, sem relação alguma com gente do meu mundo. Enfiei os
meus homens mais efetivos e discretos dentro dele e mandei para Nova
Jersey, pois o lugar onde tínhamos de ir era no Brooklyn, bem perto do
terminal de Red Hook. Não disse a ninguém que estaria na cidade. Não só
não queria como não podia ser notado e se alguém dissesse algo, era bom ser
mais um dos rumores que envolviam meu nome.
Eu não era bem-vindo em Nova York. Não era só por causa do meu pai,
da desgraçada da minha avó ou de história antiga de quando eu era criança.
Era culpa minha e da minha sede por vingança. Eu faria de novo, faria pior.
Odeio esse lugar. Sempre que sou obrigado a pisar aqui é pelos piores
motivos.
— Você disse que sabe usar — carreguei a arma e chequei a bala no pente,
o som ecoou entre a gente.
— Eu sei — Rachel aceitou a arma ao mesmo tempo que eu beijava seus
lábios para me despedir. Ela não ficaria sozinha, mas tinha que ter seus
meios.
— Atira onde causar mais estrago e esteja no ponto de encontro na hora
— olhei o cara do barco e os meus homens que tinham a missão de garantir
que aquela embarcação estaria onde precisávamos e que nada acontecesse a
Rachel.
— Volta inteiro — o aviso dela soou como uma demanda.
Estudamos o prédio e vimos movimento. Achei que acabaria encontrando
um corpo num contêiner esquecido na extensa área do porto, mas o local era
atrás de uma oficina que certamente servia de fachada. Chegamos de tarde e
assim que anoiteceu, já estávamos entrando. Se estavam a ponto de matar
meu irmão, isso era o melhor que eu podia fazer por ele, atravessar o país
sem perder tempo e derrubar quem eu precisasse. Se fosse uma farsa, esse
também era o meu melhor, não ia sair ninguém vivo do lugar. Eu não
gostava de armadilhas.
Minha avó e suas fontes. Por mais que eu a desprezasse, ela não deixou de
me ensinar o valor de ter as melhores e mais inesperadas fontes de
informação. Eles não nos esperavam, portanto não deixaram segurança extra,
nenhum plano de contenção, nenhuma cilada. Só uns babacas armados.
Nossas máscaras eram pretas e a iluminação era ruim, mesmo assim,
mandei procurarem pelas câmeras, desativarem tudo, apagarem qualquer
registro. O que eu realmente queria estava por trás de uma porta de garagem,
mas entrei pelas escadas do andar de cima e tive de olhar primeiro para o
buraco escuro onde ia descer.
— Está ouvindo isso? — Pietro perguntou atrás de mim, perto demais.
Não, não estava. Esse era o problema. Para nós, silêncio não significava o
mesmo que para as outras pessoas. E soava diferente aos nossos ouvidos.
Havia poucas situações em que isso acontecia e nenhum de nós tinha
morrido. Andei no escuro, sem escutar meus passos. Acendi uma luz ridícula
que balançava do teto baixo e vi o corpo, Pietro usou uma lanterna forte para
iluminar.
O homem estava com as mãos amarradas e caído de lado, havia muito
sangue em volta. A parte seca nem dava para dizer se era dele, eu duvidava.
Os idiotas sequer estavam fazendo a limpeza de um corpo para o outro.
Ele não reagiu ao som dos meus passos, abaixei ao lado dele e chequei sua
pulsação. Não estava pronto para implorar pela vida de outra pessoa, porque
não sei se tinha algo mais a oferecer que valesse a pena para ser atendido.
Depois de tudo que vivi, poucas coisas me afetavam, mas perder o meu
irmão duas vezes ia me foder num nível. Se fosse ele…
— Está vivo? — indagou Pietro, uns passos atrás, ainda nos iluminando.
O que eu tenho para oferecer em troca que ainda não ofereci?
— Não, não muito… — virei seu corpo, para começar mais uma
ressuscitação.
Logo após eu pressionar seu peito, ele abriu os olhos e a respiração saiu
numa tosse, como um engasgo. Ele tentou sentar, a tentativa foi brusca e ele
bateu contra a parede. Segurei seu braço e o encostei na parede manchada de
sangue seco, iluminei seu rosto, ele grunhiu e virou a cabeça. Tinham metido
tanta porrada na cara dele que nem fazia diferença.
— Vittorio? — Perguntei.
Ele nem se deu ao trabalho de reagir.
— Vittorio Denaro?
Dessa vez ele me olhou, só com o olho direito, pois esse que funcionava
diante do inchaço.
— E você é o quê? Os outros mostraram a cara — respondeu baixo, numa
voz grossa de quem já tinha apanhado tanto que a garganta não
correspondia, a língua estava toda cortada e dicção era a última preocupação.
Já apanhei assim, quando era mais descuidado.
— O cara que vai te tirar daqui.
— Eu não vou dizer nada. Já descobriu meu nome real, parabéns —
continuou ele, estava ferrado demais para pensar em inglês, falava em sua
língua materna e eu respondia de acordo.
Fiquei de pé e tirei a luz da sua cara amassada e ensanguentada.
— Vovó Cali me mandou. É sua noite de sorte.
Ele a xingou e foi quando eu achei que ele era mesmo o meu irmão.
Capítulo 14: O Corpo
rAye

Eu não fiquei no iate em Los Angeles, mas fiquei no barco que serviria de
fuga. Assim que chegamos, entramos em dois carros e na primeira parada,
Antonio me transferiu para um barco e contou que era assim que iam sair
rápido e sem serem notados. Minha responsabilidade era ficar viva com os
seguranças, garantir que não seríamos descobertos e ter certeza que o barco
estaria no local combinado na hora. Não importava o que tivesse que fazer
para isso.
Então eu tinha uma arma, munições, uns homens e um olhar apreensivo
para tudo a minha volta.
Eu quis vir, não foi?
Já era noite e o barco se aproximou de uma parte daquela área
interminável de ancoradouros. Eu não conhecia Nova York além das ruas
principais de lojas e teatros, não fazia ideia de onde estava, mas sabia o que
era um porto. O barco virou e se aproximou, vi só um dos carros chegando.
Um cara que parecia empregado do porto apareceu com um colete e fez
sinal. O carro parou só um momento, entregaram um envelope a ele. O barco
nem atracou direito, jogaram a corda só para mantê-lo no lugar.
Vi Antonio e Ogul carregarem um corpo, fiquei mal na hora. Estava
rasgado, a roupa suja de sangue, o rosto também. Achei que havíamos feito
tudo isso para Antonio poder buscar o corpo do irmão para enterrar. Não
podia ser.
O barco saiu, o carro foi embora, o funcionário do porto sumiu. Desci as
escadas correndo, a tempo de vê-los soltar o corpo no sofá. Mas ele era
grande demais para o estofado fino e ficou meio tombado. O barco não era
como o iate de Antonio, era pequeno e mil vezes mais discreto, tudo ficava
na parte de baixo. Imagina minha surpresa quando o corpo grunhiu.
Antonio o deixou lá e se afastou, Ogul ficou de pé e o olhou, como se
calculasse quanto tempo tinha de vida. Como já devo ter dito, eu tenho um
raciocínio bom e não sou boba. Eu sabia o quanto aquela viagem precisava
ser secreta, então não trouxemos ninguém extra, só o pessoal essencial e os
homens mais próximos e fiéis.
E lá estava eu.
— Puta merda, ele está vivo — observei, chocada com seu estado.
Geralmente quando alguém estava com esse tipo de maquiagem no set,
estava fazendo o papel de morto. E eu estava tomando outro tapa da vida
real. Peguei uma toalha e empapei na pia, corri até lá e ajoelhei junto ao
cara. Descobri que Antonio tinha ido pegar a caixa de primeiros socorros.
Enquanto isso, o barco se afastava cada vez mais, deixando o Rio Hudson.
Não fazia a menor ideia de para onde estávamos indo, mas eles estavam
seguindo um plano de fuga. Encostei a toalha molhada no rosto do cara e ele
reagiu, levantou a mão e segurou meu pulso, mas levou uns segundos para
abrir os olhos. Senti dor por ele, o olho esquerdo estava tão inchado que
duvido que estivesse me vendo. Ao me focalizar, ele franziu o cenho e
procurou alguma referência em volta.
— Quem é essa? — O “quase morto” perguntou a Antonio, num sotaque
carregado.
— Ela é minha — ele respondeu rápido, enquanto mexia com uma
seringa.
Ninguém confirmou se aquele era realmente o irmão, mas eu sabia que se
fosse, ele se chamava Vittorio.
— Você a comprou? Te pagaram com ela? É confiável?
— Minha namorada. Em LA essas merdas não colam mais — esclareceu
Antonio, o que não me deixou nada aliviada.
O irmão dele soltou meu pulso e me deixou limpar seu rosto, eu sabia que
estava doendo, mas o cara estava tão fodido que o desconforto dos meus
toques leves devia ser o de menos.
Antonio só abaixou a máscara neste momento e o “quase morto” a minha
frente fixou o olho que funcionava no rosto dele. Não sei a visão dele, eu
tinha me habituado a esses caras ao ponto de gostar deles, mas eles eram
intimidantes, até a aura era carregada. E com aquela porra de máscara com
umas fissuras na frente para respirarem, ficavam coisa de pesadelo. O
homem não parecia amedrontado, ele estava mal demais para isso.
— Você tem poder para decidir isso?
— Pagamento bom aqui é dinheiro, poder ou sua vida. Mulheres você
paga o que elas cobrarem e elas tomam o rumo delas.
— Antonio, que porra! — Virei o rosto para ele e abri uma das mãos.
— É a verdade, se ela não for contratada, você pode agir como gente
normal, em que buraco te criaram para cárcere e tráfego humano ser sua
primeira ideia, porra? — Ele levantou a seringa.
— Umas merdas que eu vi. Foi por isso que ela te mandou? Por você ter
recursos? — Perguntou Vittorio e conseguiu abrir melhor o olho direito
depois que eu o limpei.
— Ela me mandou porque ela é uma tremenda de uma filha da puta,
sociopata do caralho e meu nome é Antonio Denaro, prazer em te ver de
novo — ele afundou a seringa nele.
O corpo de Vittorio deu um solavanco e ele conseguiu até arregalar o
olho, nem sei se ele sentiu a dor, porque o que Antonio injetou nele fez
efeito rápido e ele foi apagando. Eu o segurei para impedi-lo de tombar.
— Você não tinha dito a ele ainda? — encarei Antonio, que continuava no
mesmo lugar, olhando para o irmão com a testa franzida e um olhar
indecifrável, uma mistura de raiva e pesar.
— Não tive chance — ele ficou de pé. — Ele é pesado e deve ter algo
quebrado. Ogul, me ajuda a deitá-lo.
Eles o pegaram de novo e o colocaram na cama, esse barco só tinha um
quarto pequeno, com certeza não planejavam passar mais do que uma hora
nele. Eu peguei a mala de primeiros socorros, ela não era um kit simples, era
maior e mais pesada. Com o tipo de coisa que esses homens precisavam para
se manter vivos até chegar num médico que pudesse remendá-los direito.
Fiquei de joelhos na cama e avaliei o cara. Pelo jeito, Antonio estava
lidando com a história como se aquele fosse mesmo o seu irmão. Pedi outra
toalha para limpar mais do sangue.
— Se vamos passar por um terminal, mesmo privado, a gente precisa
lavar melhor esse cara — falei.
Ogul, para minha surpresa, deu uma boa olhada em Vittorio, avaliando
ossos quebrados e outros problemas. Colocamos uma tala em seu braço e
envolvemos sua perna da forma mais firme que conseguimos. O barco
contornou Staten Island enquanto limpávamos Vittorio. Ele parecia ser mais
ou menos do tamanho de Antonio, peguei as mudas de roupa que joguei na
mala de mão sem critério algum e encontrei uma camisa limpa e uma calça
de tecido. Junto com eles, cobri os ferimentos com gazes e esparadrapos.
Vittorio começou a acordar quando eu estava esfregando o sangue seco de
seu cabelo curto e escuro.
— Você tem mãos leves — resmungou ele. — Mas não era só você.
— Lamento se apertei demais — disse Ogul que o segurava com a cabeça
na beira da cama, mas ele parecia tudo menos arrependido.
Sequei seu cabelo com uma toalha limpa, ele fechou os olhos. Não estava
cem por cento, mas era o que dava para fazer.
— Você consegue sentar?
— Não sei — respondeu ele, mas isso não o impediu de tentar.
Antonio tornou a descer a avisou:
— Nossa parada é a próxima.
O barco diminuiu a velocidade, coloquei de volta na bolsa tudo que
peguei, Pietro desceu junto com o cara baixo e começou a recolher tudo, até
o lixo. Não duvidava que alguém ia aparecer ali e desinfetar cada parte,
como se nunca houvéssemos entrado naquele barco.
— Você estava me zoando seu filho da puta? — Vittorio perguntou a
Antonio quando ele o pegou por baixo do braço e o colocou de pé.
— Fica difícil me xingar se tivermos a mesma mãe azarada — ele o
forçou a ir para frente, deu para ver o irmão mais novo trincar os dentes, mas
aguentou a dor. Ele estava se mexendo melhor porque também lhe aplicaram
morfina.
Do lado de fora, Ogul voltou a ajudar. Tommaso estava nos esperando e
pela sua expressão, ele ficou muito perturbado ao ver o corpo que
arrastávamos.
— Estou com os documentos — avisou ele, antes de entrar no banco do
carona.
Nos dividimos em dois novos carros, eu ia entrar no segundo veículo
por causa do espaço, mas Antonio me enfiou no banco de trás do primeiro,
junto com seu irmão quase desacordado. Eu queria saber que horas eles
arrumaram todos esses veículos, tudo bem que havia vários deles e cada um
podia alugar um carro. Ou arranjá-los em algum buraco ilegal que eu nem
fazia ideia que existia. Fato é que não eram carros frios, passamos pela
polícia, depois pela entrada de um terminal privado e ninguém nos parou.
Minha aventura em Nova York terminou na madrugada do dia seguinte à
nossa chegada. Eles entraram, pegaram o pacote, saíram e iam lidar com
possíveis consequências depois.
— É para você — disse Antonio, colocando um telefone no ouvido de
Vittorio que nem se dignou a abrir os olhos. Ele estava recostado, tentava
fazer o atento, mas dava para ver que estava mal.
Ele escutou alguém falar e ao escutar a resposta, eu soube logo que era a
querida e amorosa vovó Cali.
— Você é uma desgraçada, devia ter me deixado morrer. Que merda você
tinha na cabeça? Se eu não fosse pego, algum dia ia me contar? — Ele disse
tudo em italiano e eu achei ter entendido o suficiente. Fez pausa para ouvir e
completou com: — Vai pro inferno.
Antonio colocou o celular no ouvido quando Vittorio deixou a cabeça cair
outra vez.
— Sim, esse foi o seu agradecimento. Eu te ligo se ele não sobreviver —
desligou.
E não houve mais conversa nenhuma, ao menos não entre os irmãos.
Tommaso alternava o olhar entre os dois constantemente e só falou com
Antonio sobre coisas práticas, como a descida em LA e para onde iriam
primeiro.
— Há quanto tempo não te dão água? — Perguntei ao quase morto e novo
membro temporário da gangue.
Ele me olhou pelos cantos dos olhos vermelhos, a essa altura já sabia
quem eu era, só havia uma mulher nesse meio.
— Deixa pra lá, eu… — ele mais grunhiu do que falou e sinceramente, eu
achava que ele estava mais inchado. Agora que o sangue havia saído, dava
para ver melhor.
— Eu tenho um canudo — eu o enfiei na garrafa que tirei do frigobar e o
poupei de continuar a frase.
Ele bebeu pelo canto da boca em sugadas rasas, mas constantes e foi a
garrafa toda. Então me olhou de novo, sem mover a cabeça, com o rosto
ferrado não era fácil distinguir suas expressões. Mas eu achava que ele ainda
estava imaginando se Antonio havia me comprado em algum site.
Horas depois, era LA de novo, baby. Minha casa, capital do cinema
mundial, casa das personalidades mais famosas do entretenimento. E
território de uma organização obscura que meu suposto namorado queria
comandar e estava numa guerra para ter certeza de que nada ia impedi-lo.
Capítulo 15: Vazio
Antonio

Quando tiramos Vittorio do avião, ele não estava mais morto do que
quando o encontrei no chão de cimento daquele buraco sujo de sangue. Mas
estava mais letárgico. Aguentei parte do seu peso outra vez e o coloquei no
carro, fomos direto para a clínica do Dr. Narek, o mesmo médico que salvou
Rachel e também o mesmo local onde ela se recuperou antes de ir para o
iate.
Era legalizada, tinha ótima reputação, mas nós sempre entrávamos pelas
portas de trás que levavam a extensão da clínica, onde tinha os quartos mais
recentes e o centro cirúrgico. Vittorio foi internado. Narek disse que ele
podia ter morrido no avião, mas todos nós podíamos ter nos ferrado ficando
em Nova York por mais tempo do que o necessário. E permanecendo fora de
LA sem deixar ninguém no nosso lugar.
Parei ao lado de Rachel, apesar do clima lá fora, dentro da clínica o ar
condicionado estava forte demais. Ela ficou olhando as portas por onde
levaram o meu irmão, enquanto continuava abraçada a sua bolsa e usava o
seu casaco e o meu por cima dos ombros.
— Obrigado por ser boa para ele — eu a sobressaltei ao falar de repente e
ela derrubou meu casaco.
— Pensei que ele ia ter um colapso a qualquer momento — comentou ela
enquanto eu recuperava o casaco.
— Não sei nada sobre ele, mas parece ser um cara forte e decidido. Se não
fosse, nós teríamos ficado lá mesmo, para despachar seu corpo de volta para
a Itália.
— De volta para a Itália?
— Para ser enterrado perto da nossa mãe. Linda disse que ele cresceu por
lá. Onde mais eu o enterraria?
Ela se virou para mim e observou meu rosto. Meu amargor transbordava,
estive procurando o corpo dele por anos e agora falava sobre enterrá-lo.
— É mesmo ele?
— Eu vou fazer um exame, mas apesar de esperar tudo da minha avó,
acho difícil ela fazer todo aquele teatro e se rebaixar a ter de me pedir algo
tão arriscado, se ele não fosse quem ela diz ser.
Coloquei o casaco em volta dela de novo, encostei ao seu lado e esperei,
não sentia vontade de conversar, mas gravitar a sua volta me confortava.
Não sei resumir em palavras o jeito que me sentia desde que cheguei aquele
lugar e encontrei alguém. Eu segui o plano, sem tempo para pensar demais
além de nos tirar de NY antes que fôssemos descobertos.
Se fosse para resumir, eu diria que estava devastado. Foi como me ferrar
todo de novo. Emocionalmente, esses dois últimos meses estavam uma
droga. Levaram a Rachel e eu me senti como o garoto impotente que teria de
ver outra mulher por quem tinha sentimentos ser levada e morta. Minha
versão adulta pôde trazê-la de volta, mas eu não diria que superei.
Passei os últimos vinte e cinco anos conformado em ter perdido meu
irmão, mas nunca esqueci que não sobrou mais ninguém. Meu pai era
problemático, não foi o marido que minha mãe merecia, mas estava conosco.
Eu enxergava a vida como uma criança e estávamos bem sendo os quatro,
enquanto vivíamos nossas vidas em casa, sem saber exatamente o que meu
pai fazia na rua.
Minha avó se casou com um rival da nossa família e só depois
descobrimos que ele sabia de tudo sobre o plano. Eu voltei aquela cidade
maldita e ao longo de anos, fui descobrindo e matando quem estava
envolvido na morte dos meus pais. Quando falei que apanhei até o ponto em
que encontrei meu irmão, foi numa incursão dessas, quando eu era menos
precavido e errei ao pensar mais na vingança imediata do que a longo prazo.
Sobrevivi e voltei para planejar a morte daqueles que mandaram pegar a
minha mãe. Nesse mundo que a gente vivia, alguns deles morreram sem eu
precisar me envolver. Mas ainda havia gente que se beneficiou da morte dos
meus pais e seus aliados. O marido da minha avó era um deles e só estava
vivo por causa dela.
Quando era mais novo, às vezes pensava sobre como eles teriam matado
um garoto de cinco anos. Teriam quebrado seu pescoço? Teriam dado um
tiro naquela testa minúscula e infantil? Talvez o jogado num galão e o
afogado? Matar um menino como ele seria tão fácil para aqueles homens.
Quando minha mãe não suportou o que lhe fizeram, eu imaginei se eles
tinham a obrigado a assistir a morte do seu caçula. Na época, eu tinha o
dobro do tamanho do meu irmão e ela ainda vinha me tratar como o seu
bebê, porque ela sabia o que ia acontecer. Eu tinha pouco tempo para
continuar sendo criança. Ela não me viu completar 10 anos, só Tommaso
viu. Esse ano não contou.
Agora meu irmão era adulto, eu lembrava quando era o aniversário dele,
Vittorio completou 30 anos há pouco tempo. Como eu devia me sentir sobre
isso? Foram anos de idas e vindas por revolta, dor, ódio, mágoa… Mas no
fim o tempo passou do mesmo jeito, agora eu me considerava pobre no ramo
dos sentimentos e no momento, estava anulado. Era como se só houvesse um
buraco escuro. Até aquela raiva caótica que vinha me alimentando tinha
passado. Eu me sentia vazio.
Capítulo 16: Volte intacta
GASOLINA

Vittorio ficou em observação num quarto da clínica. Enquanto isso,


Antonio me levou para uma moradia nova. Pelo que entendi, ele não morava
num lugar só, especialmente depois que voltou. Ele tinha uma casa preferida
em Calabasas, mas foi atacada quando acharam que ele estava morto e teve
algo sobre seu cachorro morrer e o gato fugir quando entraram lá para
vasculhar.
Sem querer, descobri um assunto que ele não gostava de tratar: o cachorro
velho que morreu e ele nem viu. E foi Tommaso que cremou o bicho,
quando ainda pensava que Antonio estava morto. Por causa disso, eu não
sabia como era o cachorro, quando ele o conseguiu, como viveu, só sei que
ele o teve por anos e no fim estava cego.
Eu não sabia o que ia acontecer quando o irmão dele acordasse, já com a
mente no lugar, sem dor e tão ferrado com as notícias e a surra. Se é que
dava para pensar direito depois dessa novidade.
A casa atual era completamente diferente da outra, era mais compacta,
uma mansão que na parte de trás já saíamos na praia, com quatro andares e
sem pé direito, mas terraços de frente para o mar e quartos só nos andares de
cima. Ela era maior pra cima do que pros lados; tinha um elevador, porque
subir quatro andares nem sempre era legal. Eu estava na sala do segundo
andar quando o elevador abriu e Pietro saiu de lá com Vittorio, que veio
mancando atrás dele.
— Ele está aqui — avisou o garoto moreno.
Ele ficou por lá, mas não sabia bem o que fazer com o novato. Antonio
tinha saído, era difícil ele não ter algo para fazer de dia, mas com certeza
sabia que haviam trazido o seu irmão para casa. E Vittorio estava todo
remendado, tinham cuidado de seus ferimentos, torções, escoriações e
fraturas, tinham lhe dado soro e remédios na veia por dois dias. Ele estava
com a perna direita imobilizada, o braço esquerdo estava com curativos, o
direito estava com uma proteção rígida que ia até perto do seu cotovelo e só
o deixava mover os dedos.
— Melhor? — Perguntei.
— Ele disse que seu nome é Rachel — ele indicou Pietro com a cabeça.
Pietro não ficava por perto, ele entrava e saía, quando falava comigo era
breve, eu tinha mais afinidade com Bellini que por acaso não estava na casa
naquela tarde. Quando ele não saiu, imaginei que não iam me deixar sozinha
com o cara novo, mesmo que fosse o irmão desaparecido e renascido.
— Sim, é esse mesmo.
— Se eu te disse alguma merda quando estava todo ferrado, não foi
proposital e nem pessoal. Eu lamento.
— Bem, você ficou em dúvida sobre o seu irmão ter me comprado ou
quem sabe me ganhado numa mesa de apostas, mas acho que já foi
esclarecido.
Ele franziu o cenho quando eu disse “seu irmão”, pois é, eu estava
cutucando a ferida para os dois lados. Antonio vinha apresentando a mesma
expressão quando eu usava essa combinação de palavras. Nenhum dos dois
estava acostumado a escutar isso. Não sobre uma pessoa viva.
— Eu andei lidando com gente bem escrota nessa área, perdoe-me.
— Senta, não quero ter que tentar te levantar.
— Hoje eu estou bem, sem tontura — ele mancou até mais perto das
janelas e das portas abertas e admirou a vista.
— Sua primeira vez em LA? — Perguntei.
— Sim, só ouvi falar e vi em filmes.
Agora que eu não achava mais que ele estava com a boca e a língua toda
cortada a ponto de comprometer sua fala, percebi o quanto seu sotaque era
carregado. Pelo que entendi, ele foi enviado para a Itália com cinco anos e
ficou por lá, mas falava o idioma local com boa fluência.
— Não é sua primeira vez no país, é?
— Eu já vim antes — ele olhou para baixo e o vi de perfil, sua face não
estava mais toda inchada e sangrando, mas não voltou ao normal só em dois
dias. — Eu fui a Nova York, andei por lá. Vi onde costumava ser nossa casa.
Minha avó me encontrava e mentia.
Ele balançou a cabeça, um sorriso amargo em seu rosto. Mesmo com a
face ainda ferrada, eu já o achava um bocado parecido com o irmão. O
cabelo era da mesma cor, apesar de ele usar o corte rente. O tom da pele
também, altura e peso similares, pois a roupa de Antonio coube nele, apesar
de não terem exatamente as mesmas proporções. Eu diria que ele tinha
ombros mais massivos e um torso mais largo, enquanto Antonio era mais
longilíneo e harmonioso em sua musculatura. Detalhes interessantes, mesmo
assim, ele estava usando uma camiseta do irmão.
— Isso aqui é dele? — Perguntou ele, dando uma olhada em volta.
— No momento é.
— É onde vocês moram?
Pelo tom dele, pensava que eu morava com Antonio normalmente e eu
não ia parar para explicar a situação, não iria a lugar algum mesmo.
— Agora é, mas estávamos em outro lugar.
Antonio apareceu nas escadas e se aproximou, eu dei uma olhada nele,
depois desviei para o irmão. Pietro fez a mesma coisa, com menos discrição,
mas agora que eu não estava mais sozinha, ele pegou a primeira saída. Eu
também estava pronta para deixá-los por sua conta.
— Eu tenho horário para retocar meu cabelo — olhei o relógio no meu
pulso.
— Denver pode ir, Bellini não está hoje — disse Antonio.
— Eu tenho outras coisas para fazer, vou ver minha família.
Antonio se afastou comigo e deixou Vittorio perto das janelas. Antes que
ele falasse algo, eu cruzei os braços e disse:
— Eu vou. Quero ver meu irmão.
— Você podia tê-lo chamado aqui, ele não está relaxando no sofá como te
disse. Está por aí.
— Aquele puto mentiroso. Você o viu, não foi?
— Ele me encontrou.
— Ele está com dois tiros no corpo.
— Só os buracos costurados, eles tiraram as balas.
— Antonio… — Abri a mão e gesticulei, fazia diferença?
— Liga antes, ele te encontra, dá tempo de jantar com a sua mãe — ele
sacou o cartão de um restaurante e me deu, eu só podia imaginar que ele
havia comido lá para estar com isso no bolso. Podia contar com ele para
comer cada dia num lugar e todos compravam material da ALGN — Aí é
seguro.
— O que você entrega lá?
— De tudo um pouco, diz para ela pedir o bacalhau.
Peguei minha bolsa da poltrona e me afastei para as escadas.
— Gasolina… — Ele chamou.
Eu parei antes de descer.
— Volte intacta, por favor.
Capítulo 17: Só um Namoro

PÓLVORA

Observei Rachel sumir no vão da escada e respirei fundo. Desde que a


levaram, era a primeira vez que ela ia ficar fora até a noite e sem mim. Até
nos dias que saiu para se encontrar com Annika, deu um jeito de voltar antes
de ficar escuro. Ela parecia decidida, eu que estava preocupado. Não ia
suportar mais nada acontecendo dentro do cercado da minha vida pessoal. O
resto, era o resto.
— Você pode beber algo?
— Álcool? Por favor — respondeu Vittorio.
— Suco — entrei atrás da bancada.
— Vai me dizer que você bebe suco puro às três da tarde, depois de voltar
de sei lá qual merda que está resolvendo.
— Eu não disse que não ia batizar, quem está tomando um bando de
remédio é você — dei uma olhada na bolsa transparente que ele deixou na
mesa ao lado da poltrona.
Empurrei o copo sobre a bancada, Vittorio se aproximou e pegou. Eu tinha
certeza que ia arder, ele não era jurado para Tácita, então nem fodendo que
em dois dias sua boca estaria curada depois de tanto soco na cara. Ele
engoliu com gosto.
— Sua garota não pode sair? — Perguntou ele.
— Ela pode fazer o que quiser.
— Duvido. Você ficou tenso quando ela falou que ia ver a família, se o
irmão tomou dois tiros… ele é seu soldado? Porque eu estava todo fodido,
mas não estava doido. Aqueles caras, isso aqui, os homens lá embaixo… É
tudo seu.
— Você é curioso ou só quer informação?
— Os dois. Eu não sei onde estou. Você me tirou daquele buraco. Eu
conheci sua namorada, vi um bando de homem te obedecendo. Tenho
certeza que são todos iniciados. Tem alguma coisa rolando por aqui, mas eu
não sei da história da cidade, não sei nada. Para mim eles tinham te cortado
todo e enterrado. Segundo aquela mentirosa, nem encontraram seu corpo. E
ela era meu único contato nesse país. Mentiu sobre tudo, mas para que ia
mentir para mim sobre quem você é? E eu olho para sua cara e me
reconheço. Enxergo as fotos que vi dos meus pais num suposto defunto.
Eu bebi um gole, temperei mais, ficou mais vodca do que suco.
— Eles a sequestraram — resumi. — Rachel, eles a levaram, do mesmo
jeito que levaram nossa mãe. E eu não reagi bem — completei, botando bem
por baixo, ainda não tínhamos intimidade para eu dizer que tive um surto de
raiva tão intenso que ainda podia sentir queimar no fundo do meu estômago.
— Eles não… Eu não tenho as mesmas lembranças que você, Antonio. Eu
fui alimentado pelo que Linda contou e o pouco que consegui descobrir
sozinho.
— Não, foi nosso primo. Ele a enterrou viva e desde então, se pudesse, eu
a colocaria em um cofre de alta proteção, mas isso seria o mesmo que matá-
la. — Bebi mais, porque porra… — Todos os homens que você viu
trabalham para mim. Mandei colher material lá na clínica, paguei pela
urgência, o DNA vai sair e sanar suas dúvidas, pois como pode ver, eu não
estou numa vala sem nome. Ainda.
— Primo? — Ele riu um pouco, daquele jeito que eu conhecia tão bem.
Era um sorriso, mas o sentimento era ruim e até doloroso. — Um primo que
eu não conheci pegou a sua garota? Cadê ele?
— Morto e cremado.
— Giusto… — ele assentiu, entendendo.
— Ninguém coloca a mão nela.
— E sai vivo. Entendo.
Eu assenti e bebi.
— Eu preciso de umas coisas, acesso à internet e tal. Pegaram o que
estava comigo, mas não teriam como acessar as minhas contas — contou ele.
— Vou te arranjar um celular, conecte à internet daqui, é protegida — eu
saí de trás do balcão para ir pegar o aparelho, celulares não faltavam, fossem
descartáveis ou modernos. — Não sei quais são seus planos imediatos, não
sei o quão comprometido você está.
— Depende, ninguém vai vir da Itália atrás de mim. Aqui… Veremos.
— Certo. Você continua todo quebrado, se quiser consertar seus ossos e
essa cara inchada por aqui, eu tenho espaço.
— Los Angeles parece bom.
Eu o levei para um quarto, disse que enquanto estivéssemos ali, o cômodo
era dele, mas não ficaríamos para sempre naquela casa. Vittorio parecia
entender bem o funcionamento das coisas, como se tudo fizesse sentido.
Óbvio que era desconfortável entre a gente, eu não achava que o teste de
DNA chegaria e íamos chorar e nos abraçar.
Falando do movimento mecânico, nós já havíamos nos abraçado, eu o
carreguei algumas vezes no percurso. Contudo, o ato humano do abraço era
diferente. Eu ainda sentia uma gama tão confusa e intensa de sentimentos,
que descrevia como vazio. A base era a tristeza, uma espécie de luto crônico.

◆◆◆

Rachel voltou tarde, ela seguiu meu conselho e jantou com a mãe e o
irmão no restaurante do cartão que lhe dei. A cor do seu cabelo estava mais
acesa e o tinham escovado, ou seja, estava mais comprido e sem as ondas, os
cachos espalhados e o volume; fiquei confuso sobre ter sido cortado ou não.
Para piorar, ela parecia chateada, fiquei em território seguro:
— Ficou lindo, Raye — afastei uma mecha grossa de cima do seu ombro
quando ela parou perto de mim.
— Minha mãe anda insuportável, não fazia tanta pergunta nem quando eu
era mais nova e ela ficava fora uma temporada — ela bufou. — Meu irmão
está bem, queria socar aquela cara cínica. E minha sobrinha sumiu junto com
o namorado babaca. De novo — ela revirou os olhos e olhou em volta. — E
o seu irmão?
Ela quase não se referia a ele pelo nome, só dizia “seu irmão”, o que me
fez ter de encarar essa verdade precocemente.
— Deve ter dormido, pelo menos se estiver tomando os remédios direito.
— Eu vi, uma bolsa de remédios, mas para quem parecia um corpo batido,
a opção do coquetel de remédios é melhor.
Rachel ficou me olhando, mas acabou beijando meu rosto e esfregando a
parte de trás do meu pescoço enquanto dizia:
— Vou tomar banho, volto se você for ficar aqui embaixo com essa
expressão de festa infantil que ninguém foi.
Ela se afastou e eu sorri, ainda sentindo o jeito que apertou minha
bochecha. Agora que o alívio por vê-la retornar já havia passado, eu podia
voltar a me sentar naquele vazio. Nem a excitação por meu plano dar frutos
conseguiu me alcançar, eu ia desaparecer com o dinheiro daqueles
desgraçados.
Do jeito que minha vida precisava ser compartimentada, eu podia
descobrir minha mãe vivendo no Caribe que enquanto pegava um avião para
ir ver com meus próprios olhos, ainda estaria ao celular, mandando que
limpassem as contas e continuassem achando e sumindo com uns traidores.
Era assim desde sempre. O jeito como eu estivesse me sentindo não
mudava a realidade e a roda não parava de girar.
A diferença desse ano, era que agora eu provavelmente estaria no avião
com Rachel e meu irmão. O resultado não havia saído, mas eu sabia que já
podia parar de testar o DNA dos ossos de crianças não identificadas e mortas
naquela época, encontradas em volta de Nova York. Só ele tinha ficado sem
um enterro digno. Agora eu sabia o motivo.
Rachel me encontrou na areia sendo um idiota normal por umas horas.
Tinha uma praia na parte de trás da casa, era Malibu, afinal. Ninguém
aparecia daquele lado, menos ainda nesse horário. A casa não era isolada
como a anterior, mas sua rota de fuga era incomparável.
Os imóveis dos dois lados ficavam a uns metros de distância; a família da
direita preferiu ver o fim do verão fora do país. Os donos das duas casas da
esquerda usavam para veraneio, só apareciam às vezes. Então tínhamos
privacidade suficiente naquele pedaço de praia. Eu não me mudava para
lugar algum sem saber tudo sobre os vizinhos.
Os meus soldados que ficaram, disseram que desconfiaram de a outra casa
ter sido visada. Eu não gostava daqui, com ou sem praia na porta de trás.
Mas era normal para alguém que se passava por só mais um rico de LA. Saiu
um artigo sobre mim no jornal e na internet, na parte de gastronomia. E não
foi a minha RP que plantou. Vez ou outra lembravam que existia uma pessoa
real por trás da Lorenza/ALGN. Mas tinha que ser agora? Eu pagava os
diretores da empresa para mostrarem a cara e levarem todo o crédito no meu
lugar.
Rachel viu a matéria, passou o café da manhã lendo em voz alta e
caçoando de cada pequena frase e descrição. Era impossível não rir de sua
voz pomposa e irônica, enquanto comentava cada mentira. E ainda disseram
que eu estava passando por um difícil período de luto com minha tia e prima,
após a morte tão próxima de dois entes queridos. Imagina o que diriam se
soubessem que eu tinha acabado de ressuscitar um irmão caçula.
— Você está parecendo até uma pessoa normal, sentado na areia para
viver sua miséria e beber cerveja barata, imagina se aquela moça do artigo
souber disso — ela se ajeitou ao meu lado, como se lesse meus pensamentos.
— Não é barata, superei essa fase — foi minha única defesa, com tanta
praia nesse lugar e a única oportunidade que eu tinha de frequentar era à
noite, na encolha, pra ser mal-humorado em paz.
Ela tirou uma garrafa do meu pequeno balde da tristeza e olhou o rótulo.
Os bares de bebedores metidos a alternativos e cervejeiros recebiam entregas
dela toda semana, assim como das outras da minha carta. Meu setor de
importações conseguia trazê-las pelo melhor custo-benefício da região e
umas gorjetas nos bolsos certos.
— Claro que não é, seria um absurdo — provocou, procurando outro tipo,
porque ela gostava daquela cerveja cremosa e escura que tinha um fim
melado. Importada, produzida na ilha da rainha. Podia ser bebida na
temperatura ambiente, mas Rachel só consumia seu álcool bem gelado.
Ela abriu a garrafa, bebeu um gole, aconchegou-se ao meu corpo e
descansou a cabeça no meu ombro. Ficou em silêncio e me deixou ficar
também. Larguei minha garrafa vazia de volta no balde e o gelo tintilou.
— Ele deve estar se sentindo pior — ela disse baixo. — Ao menos você
está em casa. Eu sei lá onde é a casa dele, você descobriu?
— Ele preferiu não revelar muito.
— Igual a você.
— Sim.
— Deve ser difícil esse mundo de não confiar em ninguém.
— É assim que você continua vivo.
— Continua ruim.
— Ele não disse as palavras, mas pelo que entendi, não vai voltar para a
Itália por enquanto.
— Para quê? Você está aqui.
— Não funciona assim, Raye.
Ela desencostou do meu ombro e largou a garrafa dela no balde, afastou-
se um pouco, assim podia me ver.
— Você vai contar a ele?
— Contar o quê?
— Tudo que aconteceu e ele não sabe.
— Eu não sei nem por onde começar.
— Sabe sim — ela colocou as mãos em mim e apertou. — Você só está
triste.
— Triste pelo quê? Eu não gosto de não saber dar motivos e soluções para
sentimentos e sensações. Eles te ferram. Acabam com a sua vida.
Ela balançou a cabeça e ficou de joelhos, passou os braços em volta dos
meus ombros e espalhou um conforto quente por mim ao me segurar contra
o seu corpo.
— Que loucura, Pólvora. Você ainda tem um bando de sentimentos aí no
seu cofre. Nem acredito.
— Sério, Rachel? — Eu não sabia se ela estava brincando, mas não movi
a cabeça porque estava contra o centro do seu peito e era bom. Ela seria uma
das poucas pessoas no mundo a defender meus supostos sentimentos. As
outras eram minhas primas, duas crianças que eu tratava como sobrinhas.
— Fale com ele sobre a Lorenza, é sua base em comum, além de tudo
mais.
Dessa vez eu levantei o rosto e a olhei, ela me encarava seriamente. Então
lembrei que agora ela tinha um bando de informações novas e não tinham
saído da minha boca.
— Vito, aquele puto. Eu até esqueci que ele se deu a liberdade de te contar
isso também.
— Tenho certeza que você pode falar com mais verdade e sentimento.
— Não, não posso.
— Pode. Tente comigo.
Eu tentei juntar as palavras num resumo, odiava aquela tarefa. No fim
sempre parecia um relato sem profundidade.
— Do jeito sujo que seu primo contou, não soou verdadeiro — incentivou
ela, mostrando sua sagacidade sobre mim. Eu vivia por trás do que falavam e
inventavam, até incentivava. Mas com Rachel, eu só aceitava que as
narrativas da minha vida partissem de mim.
— Não tenho detalhes. Eu entrei em choque. Fiquei semanas sem
conseguir falar. Quando devolveram a minha mãe, ela só chorava e me
abraçava. Ela contou que tinham levado meu irmão e o matado. Era o que
ela acreditava. Nunca encontraram o corpo. Ela resistiu por dois dias depois
do enterro do meu pai. Mas numa quarta-feira, acabou. Ela estava pendurada
no meio da sala na traseira da casa, no lustre. O chão abaixo dela virou um
mar de sangue que escorria dos seus braços, ao menos é isso que eu lembro.
O pescoço dela quebrou, ela mal se debateu. Eles me encontraram lá, com os
tênis imundos de sangue. Ninguém sabe se eu gritei, eu só não falava.
Rachel continuou me segurando.
— Tommaso me levou embora no mesmo dia. Só deu tempo de eu encher
minha mochila. Ele me escondeu num motel nos arredores da cidade, fiquei
lá por dois dias, ele deixou umas comidas de microondas, nunca tinha
comido aquilo, era horrível. Ele voltou no terceiro dia, com uma mala para
mim, umas roupas extras que comprou em algum lugar. Ele me colocou no
carro e fomos embora.
Ela havia largado a cerveja dela pra lá e eu sabia que assim ficaria, então
bebi um gole, minha garganta costumava secar quando tinha que voltar nesse
episódio. Eu não gostava dessa que ela bebia, mas nem senti o gosto.
— Eu fiz dez anos em uma das paradas do caminho, comemos panqueca
com chocolate. Chegamos em LA uns dias depois, Nascari estava nos
esperando na entrada da cidade. Ele e seus homens. Foi assim que sobrevivi
ao atentado, ele me levou a tempo e me ressuscitaram. Depois fui para sua
casa, conheci minha tia. Minha prima tinha oito anos e meu primo era um
bebê. Meu irmão estava tão morto quanto agora. Mas minha querida avó o
havia despachado para a Itália, mentido para minha mãe. Talvez, ela não
tivesse se matado se não achasse que tinham dilacerado seu filho de cinco
anos.
— E você não precisaria ter fugido de lá.
— Nós íamos fugir de qualquer jeito, eles não iam deixar dois filhos para
voltar e vingar o pai, a ordem era acabar com a família. Nossa mãe deixaria
a cidade nos levando. E se não fugisse do país e desaparecesse, ela viria para
LA. Nascari era meu tio pelo lado materno, era sua única opção se quisesse
ficar no país. Duvido que ela quisesse.
Nascari era tão maquiavélico, que fez o mínimo para vingar a irmã. Disse
que depois do tiroteio na entrada da cidade, fez algum tipo de acordo para
que não viessem atrás de mim. De verdade, ele deixou como estava porque
sabia no que eu precisava me transformar e parte disso incluía voltar e matar
por vingança.
— Eles estavam certos, Antonio — ela apoiou as mãos nos meus ombros.
— Vocês voltaram para se vingar. E se reencontraram porque ele foi
expandir a vingança e foi pego. Do contrário, talvez, sua avó jamais se visse
obrigada a contar a verdade e quem sabe se um dia descobririam. Ela é uma
desgraçada. E você é o irmão mais velho. Comece.
Encostei a cabeça contra ela e disse:
— Se ele resolver ficar por aqui depois de ver o exame, vou contar a
história toda.
— E aí, quando ele te contar a história dele, você me conta para eu saber
se estou escrevendo meu roteiro mental da forma correta. Sua avó ferrou
com a história que eu tinha em mente.
Eu achei graça e a olhei.
— Você está escrevendo um roteiro?
— Mental, claro. Tenho amor pela minha vida.
— Eu leria.
— Eu sei que sim e faria anotações nas bordas.
— Eu pareço com alguém que faz anotações em bordas de trabalhos
alheios?
— Antonio! Você não se enxerga, não é? Você faria anotações e
recomendações cortantes em caneta vermelha — alegou ela, arrancando-me
uma risada.
— Eu sou insuportável e não sabia.
— Não sabia? — Provocou ela.
— Você me suporta.
— Falando nisso… Tem um problema no roteiro. Quando diabos eu disse
que ia te namorar? Você falou disso quando eu estava desacordada?
Inclinei a cabeça e ri. Por algum motivo, sabia que ela ia me dar esse
choque de realidade.
— Jamais.
— E saiu dizendo pro seu irmão que eu mantenho um namoro com você.
Ele acreditou, pensa até que moramos juntos como pessoas normais —
explicou, numa mistura de insulto fingido e sarcasmo.
— Nós moramos juntos.
— Como pessoas normais que namoram e tem essa ideia depois de
profunda consideração?
— A gente não perde tempo e se você mora comigo e está comigo todo
dia, é obviamente minha namorada.
— Desde quando? — Agora ela realmente não estava concordando.
— Você vai me dispensar?
— Claro que vou, é por isso que estou te abraçando na praia atrás da casa.
Desci aqui especialmente para te dar um pé. Bebi a cerveja para tomar
coragem.
Ela segurou o meu rosto e me beijou levemente, o que nunca era
suficiente quando estávamos sozinhos. Esperava que isso passasse depois de
ter me convencido de que ela estava bem e estava comigo, mas eu só queria
me esconder nela.
— Essa cerveja doce não dá coragem para nada — impliquei.
— Conversa! — Ela afastou meu rosto. — Ela é muito melhor.
— Claro que é — eu a mantive segura e a beijei de novo.
— Sai, você só concordou porque quer me beijar — acusou, mas depois
de me retribuir.
— Muito — eu a puxei sobre as minhas pernas e abracei para beijá-la,
esqueci o que estava dizendo assim que ela me abraçou de volta e se
entregou ao beijo.
Apertei-a contra mim, os seus hematomas tinham desaparecido e eu não
estava mais com receio de apertar onde não devia. O que servia ao meu
propósito de me perder nela. Procurei a pele do seu pescoço com meus
lábios e afastei sua blusa, estava atrás de conexão física e emocional, ela
sabia disso e ia me permitir encontrar. Eu a beijei até meu corpo lutar contra
a necessidade de parar, ela havia eriçado tanto o meu cabelo com seus dedos
que estava todo para cima.
Rachel levantou sobre mim, subi as mãos pelas suas pernas e fiquei de pé,
ela me levou pela areia e tornei a puxá-la para perto.
— Entra aqui comigo — ela passou pelo espaço da porta de vidro escuro.
Nós entramos por baixo da casa, o térreo na parte de trás era um espaço
grande, com poucos móveis. Deslizei a porta com uma mão enquanto a
segurava com o outro braço. Rachel me envolveu pelo pescoço e me beijou,
eu podia virar a noite grudado na boca dela. Mesmo sabendo que ela me
beijava e me ferrava.
Eu a encostei no vidro e a observei, Rachel me encarou de volta. Desci o
olhar pela usa blusa e o short claro que usava. Tudo que queria era deixá-la
nua contra aquelas portas de vidro.
— Isso te lembra alguma coisa?
— Você louco de tesão enquanto me levantava contra uma janela a 69
andares de altura — ela me olhava como se me desafiasse a negar.
Apoiei as mãos no vidro e a beijei.
— Eu te fodi louco de tesão até o fim. Aquela loucura só ficou sob
controle quando já estava te chupando na cama. Aí deu para a gente usar
bem o tempo — eu sorri, lembrando que nem vi quando a gente deslizou
para a janela.
— Foi bom — ela deu uma leve risada divertida, de alguém lembrando de
algo sacana.
Escorreguei as mãos por baixo do tecido de sua blusa, resvalando a pele
quente e expondo-a para mim. Rachel levantou os braços e eu arranquei a
peça. Desci as mãos pelo seu torso, beijei seus lábios e depois sobre cada um
de seus mamilos, ela me recompensou com aquele sorriso suave e travesso
que eu gostava. Abri seu short e o empurrei, depois que passou pelos
quadris, ele desceu sozinho. Rachel o empurrou para o lado com o pé.
Ainda queria muito vê-la nua e emoldurada pelo vidro, mas Rachel
colocou as mãos por dentro da minha camiseta, arranhando de leve com as
unhas pontudas que estava usando de novo. Ela levantou a cabeça beijando
meu queixo e mordiscando só para me manter mais aceso do que já estava.
Meu corpo deu uma estremecida, pulsando de excitação.
Rachel jogou minha camiseta para algum lugar atrás de mim. Seus dedos
desceram pela tinta marcada no meu peito, ela gostava de fazer isso, como se
imaginasse um caminho por onde me estimular. Ela fazia o mesmo com a
boca. Funcionava para caralho. Ela me beijou e levantou a cabeça, um olhar
divertido fazendo seus olhos coloridos brilharem.
Desci as mãos pela sua cintura, enfiando os dedos pelas laterais finas da
calcinha azul, empurrei o tecido pelas suas coxas, esse não ajudou em nada,
mas desci até seus tornozelos e quando fiquei de pé, ela encostou contra o
vidro. Admirei seu corpo emoldurado no vidro, com a escuridão noturna e o
pouco de iluminação que ligamos ao entrar.
Levantei seu rosto, o olhar dela sobre mim era de prazer e provocação só
por saber o quanto eu gostava daquilo.
— Bela, Gasolina. Tão bela — desci a mão pelo seu pescoço e deixei ir
entre seus seios e seu abdômen macio.
Eu a cobri com meu corpo, apertando-a contra o vidro, incapaz de resistir
a vontade de foder aquela boca linda. Rachel me abraçou, passando suas
mãos nas minhas costas, até chegar a minha bermuda e abri-la para me
apalpar com as duas mãos. Eu gostava que ela não tinha vergonha de ser
uma gulosa descarada e queria tudo que eu tivesse para lhe dar. Cobri seu
sexo com a mão e deslizei os dedos entre os lábios externos, acariciei seu
clitóris e derramei minha fome em sua boca, ela se segurou nos meus quadris
e se entregou; ao beijo e ao toque.
Ela só parou de me beijar quando estava com a respiração alterada e as
pálpebras baixas de desejo.
— Assim eu vou gozar, Pólvora — murmurou, sua cabeça descansou
contra o vidro, beijei seu pescoço, sentindo o gosto da sua pele e inspirei o
perfume diferente que estava em seu cabelo essa noite.
— Para de tentar não gozar — segurei-a pelo rosto e a beijei, ela reagia
movendo levemente os quadris, acompanhando meus dedos no seu clitóris
inchado e deixando-os molhados da sua excitação.
Rachel já não me afagava levemente, mas apertava e movia a mão pela
minha ereção, ela parou quando virou o rosto e seu gemido baixo foi
acompanhado do estremecer do seu corpo, seus olhos se fecharam enquanto
ela gozava. Essa maldita por quem eu estava obcecado era linda e gozando
era inesquecível.
Eu a beijei e ela liberou meu pau, movendo as mãos por ele e me fazendo
pulsar em seu aperto.
— Duro pra caramba, Pólvora. Isso tudo é para tentar me convencer? —
Ela conseguia me provocar de jeitos diferentes usando meu nome ou o
apelido, era o jeito que falava e me olhava, ela sabia o que estava fazendo. E
funcionava.
Virei-a e a encostei no vidro, Rachel apoiou as mãos e empinou o traseiro,
porque ela não resistia a me provocar. Meu corpo cobriu o seu outra vez,
prendendo-a naquele vidro escuro, deslizei sobre a sua boceta molhada, ela
tornou a se mover, incitando o meu descontrole. Eu queria a conexão, ela ia
me permitir se eu aguentasse.
— Medo de se conectar demais? — Perguntou ela.
— Nós já ultrapassamos esse limite.
Deslizei para dentro dela, o encaixe tão natural e fluído quanto respirar,
afundei o rosto em seu cabelo. Rachel gemeu e pressionou a testa no vidro
da porta. Tirei seu cabelo do caminho e mordi seu pescoço, pressionando seu
corpo na porta. Eu a fodia como se não quisesse terminar nunca, o que era
pura ilusão, ela me apertava e eu pulsava. A gente só tinha decidido guiar o
prazer até ele nos obrigar.
Puxei-a pelos quadris e a inclinei para ter mais dela. Rachel riu com a
bochecha no vidro.
— Você não se contém, não é?
— Admite que você gosta.
Ela sorriu, não admitiu nada. Apoiei uma mão no vidro e deslizei a outra
entre suas pernas, ela remexeu o quadril, acompanhando meu toque e o ritmo
que a fodia.
— Admite que você não resiste.
— Eu quero tudo, não vou resistir a nada.
A maldita virou o rosto, apoiou a testa na porta. Eu me inclinei, o vidro
fez um barulho com a pressão da minha mão, enquanto a empurrava a cada
vez que meu ventre ia contra sua bunda macia. Encostei o rosto no seu
ombro, seu cabelo cobriu meus olhos, deixei seu corpo e nem tentei não
gozar. Pressionei seu clitóris, se não tivesse chegado lá antes, teria feito só
pelo jeito que ela gemeu e esfregou os quadris contra mim, pulsando nos
meus dedos.
Ela murmurou, porque não parei de tocá-la até ela relaxar tanto que nem
se moveu mais. Girei-a no lugar, ela ainda estava com os olhos fechados.
Pressionei seu corpo no vidro outra vez ao beijá-la. Não existia a ideia de
não estar o mais próximo possível quando a beijava. Era doido por essa
maldita provocadora, fissurado na sua boca. Ela segurou minha cabeça e me
retribuiu até quase estarmos a ponto de retomar o que fazíamos. Quando a
olhei, ela me encarou e disse:
— Mas eu não vou te namorar, Pólvora — anunciou, com seus braços em
meus ombros. Eu sorri e a beijei de novo, ela podia negar a verdade o quanto
quisesse.

Annika 09:23
Ah! Então agora você resolveu admitir que
namora o cara!

Raye 09:26
Eu não namorava com ele.

Annika 09:27
Você está morando com ele!

Raye 09:28
Já disse que é complicado. Era pra ser só um
lance, aí eu caí nesse golpe.

Annika 09:30
Não dá pra acreditar nisso!
Capítulo 18: Positivo para Dor
RAye

Quando Antonio chegou no final da tarde, eu percebi que algo o


incomodava. Vittorio tinha ido ao médico e tiraram a maioria dos curativos,
porque os cortes eram superficiais, as lesões reais eram internas. Seu rosto
estava melhorando, com exceção do nariz quebrado. Só de observá-lo, eu
tinha certeza de que ele não tinha nascido com aquele nariz, foi algo que lhe
fizeram.
— Sei lá, não era tão ruim, terminaram de ferrar lá onde vocês me
encontraram — contou ele, passando os dedos sobre a ponte irregular do
nariz e que no momento ainda estava inchada e dolorida.
E ele tinha problemas mais importantes, não é? Antonio era a mesma
coisa, sempre tinha algo mais urgente acontecendo a volta dele. Eu não
precisei de anos para descobrir isso. Meu local preferido daquela casa era a
sala do segundo andar. Vittorio me viu fazer meu trabalho e parecia achar
tudo muito esquisito.
Ah, claro. Uma pessoa criando conteúdo para suas redes sociais com uns
milhões de seguidores era estranho. Mas assistir aos papos pesados de
Antonio e os outros era de boa? Ele era ativo demais para ficar em seu
quarto vendo o mar virar. E tínhamos um elevador, uma perna ferrada não ia
impedi-lo. Ele estava se inteirando, ninguém o expulsou, na noite passada,
ele ficou num canto vendo Antonio lidar com Ogul, Denver, Pietro, Bellini e
o telefone.
— Este é seu — Antonio parou junto às minhas costas e beijou meu rosto,
ao mesmo tempo que estendia um envelope para Vittorio.
Ele envolveu minha cintura com os braços, enquanto nós dois olhávamos
Vittorio abrir o envelope e constatar o que ninguém mais duvidava. Porém,
provas eram provas. Não trabalhávamos com palpites. Ele leu, levantou o
rosto e vi seus olhos castanhos se fixarem no irmão. Vittorio expirou devagar
e continuou olhando para ele, sua expressão era uma mistura de “puta
merda” com “e agora?”
Antonio me soltou e apoiou as mãos no balcão, pelo que ele disse a seguir,
concluí que eles tiveram algum tipo de conversa ontem à noite, depois que
os outros foram dormir ou saíram. Vai ver Vittorio era outro ET como esses
caras.
Agora que convivia com eles, eu tinha certeza: eles mal dormiam.
Antonio podia pular da cama no meio da noite ou virar dias e não parecia um
zumbi. Nenhum deles parecia. Eles tinham que estar dormindo escondido
por aí, porque não era possível humanos dormirem tão pouco e conseguirem
ser tão funcionais. E sem olheiras. Eu precisava desse segredo. Meu sérum
contra olheiras era caríssimo.
— Eu ainda quero saber toda a merda em que você se meteu na Itália e
como te pegaram em Nova York. Mas se você quiser ficar, eu tenho espaço.
A hora é a pior, estou envolvido numa guerra e numa limpeza de território.
Mas comigo, você não vai receber traição.
Vittorio o encarou com seriedade, eu observava um acordo sendo feito e
não conseguia desviar o olhar. Antonio estava dizendo ao irmão caçula para
ficar com ele, mas as coisas nesse mundo deles funcionavam do jeito mais
torto.
— Sem esses troços no braço e na perna, eu sou bom no que faço. Vou ser
útil — garantiu Vittorio.
— Foi o que eu soube.
— Eu também não vou te servir traição. Não deu tempo de saber um
terço, mas você parece já ter recebido o suficiente desse prato.
— Sim, demais.
Eles iam ficar juntos, de um jeito ou de outro, para o bem e especialmente
para o mal. Mas meu coração estava quebrado por eles. Abaixei e abri a
geladeira do bar, tirei de lá duas long-necks daquela cerveja importada que
eu não gostava e botei na frente de cada um.
— Sinceramente, vocês merecem um trago alcoólico e gelado — anunciei.
Eles abriram as tampas e beberam, eu não conseguia nem beber junto,
nenhum dos dois estava feliz.

◆◆◆

Fui para o quarto quando passava da meia-noite, subi no elevador com


Vittorio, por pura preguiça. Ele também estava dormindo no terceiro andar.
Antonio disse que subiria logo, mas ele estava em algum tipo de discussão
que envolvia Ogul e o celular tocando sem parar. Foi assim que ele desceu
para o térreo, o que era estranho, pois não tinha quase nada lá.
— Tem algo acontecendo — disse Vittorio, quando saímos do elevador.
Eu me virei para olhá-lo.
— Ele não quis dizer nada, porque somos os dois membros da casa que
não tem como interferir — continuou ele.
— Do que você está falando?
— Eu sou o novato. É mais fácil você me dar alguma luz. Todos eles
desceram. Lá embaixo tem armas, não tem?
— Eu nunca fui lá procurar, mas estão escondidas em algum lugar.
— Você sabe usar uma?
— Sei o básico, meu irmão me ensinou.
Eu me virei e olhei a escada.
— Fica aqui — falei para ele.
— Sério? — Perguntou ele, abrindo o braço bom.
— Shi! Sem discussão.
— Vem comigo no elevador, não vou te deixar ir sozinha — teimou ele.
— Você está mancando, amado. Se alguém vai proteger o outro aqui, sou
eu.
Pela expressão dele, achava que a situação era ao contrário e ferrado ou
não, ele ia dar seu jeito. Eu não duvidava, pelo que entendi, o irmão mais
novo do meu namorado tinha o peculiar emprego de assassino contratado.
Mas não deu tempo de decidir quem ia fazer o quê, pois escutamos sons de
batidas na rua. Pareciam carros e logo depois, começou algo que o público e
os ricaços moradores de Malibu certamente não esperavam. Um tiroteio.
— Vem! — Disse ele, me puxando para o elevador.
Nós fomos para o segundo andar e ficamos longe de janelas. Eu fui até o
bar, abri a última gaveta e tirei de lá a pistola com um pente extra. Antonio
me disse onde encontrar armas escondidas. Bellini surgiu da escada e fez
sinal assim que me viu.
— Vamos embora! — Ele apontou para Vittorio. — Você também.
Nós o seguimos, mesmo com a bota e mancando, Vittorio estava nos meus
calcanhares enquanto descíamos as escadas. Saímos no térreo, os sons lá
estavam piores. Eu queria saber de Antonio, que se danasse o fato de ele
estar sobrevivendo a isso desde a infância. Eu queria saber dele.
Bellini estava com uma automática, se não estivesse escuro ali, eu ia te
dizer até o modelo. Acabei de conviver diariamente com um bando de arma
de mentira na série policial em que trabalhei, mas eram réplicas tão perfeitas
para aparecer na TV que só um especialista notaria quando segurasse uma
delas.
Nós atravessamos para as portas traseiras do térreo, que saíam direto na
areia, foi onde fiquei com Antonio em outra noite. O espaço da casa ali era
só isso, uma sala grande, com sofás, bar, banheiro e uns cômodos de
assistência e serviços para atender aos moradores em um dia de praia.
Provavelmente esconderam as armas na salinha da mesa de massagem, pois
pelo som que chegava, eles estavam revidando com intento.
Eu vi um barco se aproximando da costa até sua traseira estar próxima o
suficiente da praia para ser embarcado, dentro dele já tinha um cara com
uma arma.
— É a nossa carona, vamos! — Disse Bellini.
Nós saímos e foi o inferno. Apareceram dois caras do lado direito, Bellini
se virou e ficou responsável pelos dois lados. A areia era ruim para alguém
machucado e com uma perna imobilizada conseguir andar. Precisávamos ir
rápido, eu coloquei o ombro por baixo do braço de Vittorio, por mais que ele
tentasse ser o independente, ele ainda estava todo ferrado e fazendo mais do
que eu esperava.
E foi quando eu fiz o que não esperava fazer na vida. Mas sempre soube
que seria capaz se tivesse que proteger minha vida ou alguém com quem eu
me importava. Eu levantei a pistola e atirei na direção dos dois babacas que
surgiram no lado direito da casa.
Se acertei alguém? Acredito que sim. Passamos pela faixa de areia sem
buracos.
Todos os outros invasores pareciam vir pela esquerda e pela frente da
casa, então não conseguíamos ver, só escutar. Eu sabia carregar, mirar e
puxar o gatilho, mas não tinha prática, muito menos à noite, à distância e
com alvos em movimento.
— Me dá uma arma! Eu sei usar a mão esquerda! — Demandou Vittorio,
pois a direita estava só com os dedos de fora da proteção.
— Entra no barco! Rápido! — Mandei, mas ele ia ter que entrar na água
até o meio da perna. Não duvidava que conseguisse fazer isso com uma
perna, mas fácil não seria.
Os tiros tornaram a vir na nossa direção, mas os seguranças da casa já
tinham notado que os invasores haviam conseguido se infiltrar pelo lado
direito. Eu vi os outros chegando, Bellini agia praticamente como um escudo
que também atirava.
— Entra no barco! Anda! Sai daqui!
Era a voz de Antonio, ele correu na nossa direção, tão rápido que em meio
aquele caos eu não o vi chegando. Bellini aproveitou que tinha apoio,
empurrou a arma para o ombro e veio na minha direção. Entrei mais na água,
as ondas não estavam fracas e o barco se movia com elas.
— Vai! Isso é para te tirar daqui! — Disse Vittorio.
Então ele pegou minha arma com a mão esquerda que tinha só os
curativos e também atirou de volta, certeiro na direção dos invasores. Bellini
me puxou quando uma onda quebrou com mais força e eu só ouvia os gritos,
o volume dos tiros era menor do que no início, mas continuava lá.
Embarcar num barco balançando, com ondas quebrando e com todos se
abaixando, revidando e desviando de tiro ao mesmo tempo, era uma das
coisas mais difíceis que já fiz.
— Tira esse barco daqui! Agora!
Antonio entrou na linha de tiro, ele devolvia o fogo como se só os
estivesse mantendo longe para conseguirmos partir. Era melhor ele entrar
naquele barco com a gente, enquanto os outros faziam seu trabalho. Quando
deu um espaço dos tiros, ele gritou:
— Rachel! Agora! — ouvi sua voz bem atrás de mim e ele me levantou,
enquanto o mar batia em suas pernas.
Quando eu pulei para dentro, deixei de sentir suas mãos em mim, Bellini
tinha empurrado Vittorio para ele vir comigo, de repente ambos gritaram.
Tudo aconteceu o mesmo tempo.
— Não! — Bellini virou e num movimento contínuo voltou a atirar.
Vittorio abaixou, eu me debrucei e vi Antonio colidir contra o barco. Eu
sei que gritei, mas não lembro se foi só um som ou uma palavra. Pulei do
barco e abaixei, fiquei encharcada, vi o sangue fluir na água. Ele não estava
desacordado, só trincava os dentes, mas uma porra de uma bala tinha entrado
nele e eu nem conseguia ver aonde. A verdade era que ele entrou na frente,
aquela bala ia me acertar, talvez na perna, no quadril, não sei. Se errasse o
meu corpo, ia pegar Vittorio em algum lugar que ainda não estivesse ruim.
Ogul se materializou ao nosso lado, não o vi chegar, mas lá estava ele.
Agarrou Antonio e o empurrou para dentro do barco. Ignorando que ele
estava furado e vazando sangue e não se jogava gente ferida em barcos.
— Agora você vai junto com eles, deixa que a gente resolve — disse o
careca enorme.
Ele nunca pretendeu ir com a gente, aquele desgraçado.
Dei a mão a Vittorio e pulei de volta para o barco. Bellini entrou e Ogul
deu uma batida na lateral. Ele acelerou, afastando-se da costa. Os outros que
estiveram na praia e eu nem vi, correram para a casa, provavelmente para
perseguir os invasores, procurar abrigo e se enfiar em carros para sumir dali.
O interior do barco era todo branco, mas agora estava manchado de
vermelho. Antonio estava irado e sua mão direita cobria o topo do seu peito,
próximo da clavícula e isso era o mesmo que me dizer nada. Com tantas
balas voando sobre nossas cabeças e tudo acontecendo num estalar de dedos,
eu nem sabia se ele tinha sido atingido uma única vez. Era ele que queriam
matar.
Mas o homem só apertava o local e dava ordens que Bellini repetia pelo
rádio. Ajoelhei a frente dele, alguém me ofereceu uma toalha que apareceu
sobre a minha cabeça, agarrei e apertei contra o peito e ombro dele. Seu
olhar se fixou no meu rosto na hora e ele me segurou pelo pescoço, com a
mão coberta do seu sangue, manchando minha pele. Antonio segurava com
pressão suficiente para doer e manter minha atenção, encarei seus olhos
escuros e intensos. Ele sibilou para mim, puxando até meu rosto estar a
centímetros do seu.
— Quando eu te disser para me deixar, você deixa.
— Não — consegui balançar a cabeça minimamente, sentindo ainda mais
os seus dedos nas laterais do meu pescoço. O aperto deveria estar
escorregando por causa do sangue, mas Antonio não era o tipo que soltava se
não quisesse.
— Quando eu mandar, você me deixa para trás como um pano sujo —
demandou, em voz baixa, encarando-me de perto e com tamanho intento que
entendi melhor do que nunca o seu efeito sobre todos que pulavam quando
ele mandava.
Enquanto eu apertava seu peito e o sangue não parava de descer. Fiquei
com raiva dele e o encarei de volta com determinação. Eu podia tê-lo
deixado na primeira vez que o vi, agora era tarde demais para largá-lo como
um nada.
— E se salva — completou ele, no mesmo tom ameaçador.
Continuei olhando para ele, com todo aquele sangue entre nós, a toalha
que eu pressionava estava ficando empapada.
— Obrigue-me — murmurei.
Seu olhar escuro desceu pelo meu rosto e ele me beijou, pressionou os
lábios nos meus com mais força do nunca. Pela primeira vez seu beijo foi
uma punição. Sequer nos movemos, eram só nossas bocas esmagadas uma
contra a outra e nossos olhos cerrados, ninguém dizia nada e o barco só
pulava mais sob a água, acelerando continuamente. Quando ele me soltou, a
sensação do seu aperto demorou a passar.
O iate não estava atracado na marina e veio ao nosso encontro. O barco só
o esperou parar, antes dos homens nos passarem para a embarcação maior.
Bellini e o outro cara ajudaram Antonio, ele continuava consciente, andava,
falava e dava ordens. Mas vazava sangue como um balde furado.
Ele caminhou até o sofá da sala principal do iate e tombou lá, eu corri com
toalhas na mão e agora já sabíamos que só um tiro o acertou e a bala tinha
entrado no alto do seu peito.
— Eu quero o médico! — Exigi quando eles o obrigaram a deitar.
Vittorio tombou ao lado de onde Antonio estava recostado, ele não
conseguia dobrar bem a perna com a bota, então era seu jeito mais gracioso
de se sentar rapidamente. Ele colocou a mão sobre a minha e assentiu,
dizendo que ia pressionar. Fiquei livre e pulei de pé.
— O tal médico que costura vocês, Dr. Narek, não é? Chame-o —
mandei.
— Não podemos atracar para pegá-lo agora. Fomos expostos — disse
Bellini.
— Pelo que soube, ele já os atendeu em lugares piores. Me dá o rádio. Se
um de vocês não mandar alguém ir buscar esse médico, eu mesma vou!
— Eu estou bem, traz logo a porra da agulha — resmungo Antonio.
Iana apareceu com a maleta de primeiros socorros, agora eu já tinha
certeza que ela ficava muito no iate, provavelmente era quem mandava ali
enquanto Antonio estava fora.
— A bala saiu por trás, não sei o que atingiu aqui dentro e nem se tem
estilhaços. Quer ficar bom rápido, não é? Chama o médico — ela tornou a
abaixar a toalha ensanguentada que Vittorio usava para pressionar, mas
Antonio sangrava pelo ponto de entrada e de saída.
Eu recuperei minha pistola que Vittorio tinha pegado e quando a levantei
em direção aos homens, os olhos deles se arregalaram. Bellini foi o único
que estreitou o olhar para mim, como se eu fosse uma encrenqueira com
quem ele já estava acostumado a lidar. Mas eu falava sério, meu dedo estava
no gatilho e meu pescoço continuava todo sujo do sangue de Antonio.
— Agora! Ele já perdeu tanto sangue que nem está tentando me impedir!
Se ninguém ligar, vocês vão ter que atirar em mim! E se ele sobreviver,
vocês já podem encomendar o enterro!
— Ninguém vai atirar em você, Rachel! Porra! — Antonio teve a audácia
de tentar levantar, mas Vittorio e Iana conseguiram segurá-lo.
Acho que ele finalmente estava tonto pela perda de sangue. Só em filme
de ação eu vi alguém levar um tiro, perder todo esse sangue e agir como se
fosse um furinho. Ele não demonstrava dor e eu estava engasgando ao
engolir meu pavor. Ninguém ali agia como se um cara estar com um rombo
no corpo fosse grave. Qual o problema dessa gente?
Já tinham se ferido tantas vezes que ficaram adormecidos?
Bellini sacou o telefone e fez a ligação, mandando que fossem pegar o Dr.
Narek. Mandou que não fizessem perguntas, só trouxessem o médico e suas
coisas. Depois ele abriu a mão, esperando a arma, mas parecia esperar um
doce. Soltei a pistola na palma dele.
— Carregada e engatilhada, Srta. Lund — disse ele, balançando
levemente a arma e depois a descarregando. Estranho como fosse, soou
como um cumprimento.
— Eu sei usar. Meu irmão me ensinou.
— Eu vi — ele assentiu.
Iana ajeitou Antonio da melhor forma, para tentar que o sangue não
continuasse a fluir. Com certeza não era a primeira vez dela recebendo um
deles com um tiro no corpo. Vittorio só estava sentado no chão, com o cenho
franzido e o olhar no irmão. Antonio piscou algumas vezes e me focalizou.
Ele não tinha perdido a consciência, só o equivalente a metade do seu
sangue. Sim, eu estava exagerando, mas o sangue não parava e era doida por
ele, exagerar era meu escape emocional.
— Você ameaçou meus homens com uma arma engatilhada, Gasolina? —
Não sei porque o tom dele soava entretido.
Eu abaixei o rosto, encostando-o no seu abdômen e comecei a chorar por
estar sobrecarregada. Havia um mar de emoções correndo pelo meu corpo e
precisava ser extravasado de alguma forma. Desceu tudo em lágrimas. Ele
colocou a mão sobre a minha cabeça e não consegui sair dali até o médico
chegar.
Capítulo 19: Dois Cigarros
ANTONIO

Mansão em Malibu é atacada por grupo armado


Na noite de terça-feira, uma mansão de frente para a praia, foi
invadida por um grupo fortemente armado. Os seguranças da casa
revidaram, causando um tiroteio inédito em Malibu, assustando
moradores e transeuntes.
De acordo com informações preliminares a casa havia sido alugada
em nome de uma empresa e estava ocupada pelo magnata do setor
alimentício, Antonio Denaro. Sua assessoria informou que ele foi
baleado na invasão e precisou ser tratado em uma clínica particular.
A população está escandalizada com a nova escalada de violência
na cidade e essa manhã o Secretário Municipal de Segurança declarou
numa coletiva que a unidade de crime organizado assumiu a
investigação, pois o ataque pode ter sido motivado por desavenças com
inimigos da família. Denaro é sobrinho do bilionário Francesco
Nascari que morreu há poucos meses e primo de Vito Nascari,
encontrado morto em situação que remete a execução do crime
organizado.
Acredita-se que Antonio pode ser o próximo alvo, já que teria
herdado uma considerável fatia dos negócios do tio. Segundo sua
assessoria de imprensa, o empresário está muito abalado e não dará
declarações públicas. Ele se encontra em localização não divulgada
para sua segurança.

Não era o primeiro show do Dr. Narek e ele apareceu com material para
lidar com o meu problema. Trouxe o assistente de sempre e tudo que ia
precisar. Só teve uma novidade.
— Qual de vocês vai ser o felizardo da transfusão? Se tiver um tipo B
aqui, é preferível, se não tiver ninguém compatível, vamos ter de arranjar.
Ele perdeu muito sangue, não deu tempo de buscar bolsas com o nada de
informações que vocês me deram ao me arrastar para cá como se fosse um
sequestro — disse ele, misturando pergunta com crítica. Ninguém se
importou, ele estava certo, mas não fazia diferença.
Eu não precisava de transfusão, sem ela meu corpo só ia demorar mais a
se curar, mas daria seu jeito. Dr. Narek não gostava disso, preferia fazer
transfusão ao vivo e nos ver de pé e fora do caminho dele.
— Aqui — Vittorio deu um tapa na dobra do seu braço bom, usando os
dedos da mão imobilizada. — Você acabou de me testar para um bando de
coisa. Eu sou B+ também.
Eu não disse nada, meu irmão seria outro problema. Se ficasse conosco,
ele conviveria com os homens num nível diferente de Rachel. Quando a
gente começasse a não morrer quando o lógico seria ser enterrado e nos
recuperássemos de ferimentos numa velocidade anormal, contrariando
prognósticos médicos, ele perceberia.
— Você é o menos indicado nesse momento — Narek pegou seu kit. —
Tomou seus remédios hoje?
— Esqueci e ficou tudo lá — ele indicou o braço.
— Ótimo! Mais essa — reclamou o médico.
Além de me consertar, ele colocou o meu ombro de molho e
consequentemente o meu braço e eu fiquei com uma mão para resolver todo
aquele problema. Não obedecia a cem por cento porque minha mão
esquerda, mesmo com o braço no suporte, funcionava perfeitamente. Mas
isso era tudo, eu não podia ficar comprometido, diferente dos filmes, essa
vida me ensinou que o corpo cobrava suas dívidas, eu precisava dos meus
ombros, braços e todo o resto em perfeito estado se quisesse continuar vivo.
— Eu trouxe o almoço para o qual você não apareceu — Rachel colocou
uma bandeja na mesa e sentou.
Ela achava que eu devia me recuperar plenamente, como uma pessoa
normal que sente uma dor de cabeça e se deita um pouco. No meu caso, seria
para tomar um tiro e ficar em repouso. Mas eu não saía do celular e o iate
subitamente tinha ficado pequeno de tanto que eu andava de um lado para o
outro enquanto me sentia enjaulado num lugar que costumava ser o meu
paraíso para relaxar.
A mídia estava me pintando como vítima de um ataque absurdo. Ninguém
me via há cinco dias. Teve gente que ficou esperançosa, achando que minha
assessoria estava mentindo e o tiro foi no coração. Mas, para azar deles,
como diria Mark Twain, os relatos sobre a minha morte eram bastante
exagerados. De novo.
Eu estava vivo e continuava no comando do meu lado “errado” desse jogo
e dos meus territórios, que eram o impedimento entre Morales e o domínio
da Capital de ACCA.
Sentei à mesa e Rachel estava comendo a sobremesa, ela tinha ficado no
iate comigo, mesmo quando atracamos por umas horas. Minha relações
públicas estava trabalhando para que a mídia contasse a narrativa que me
favorecesse e o plano ia como desejado. É claro que, após as notícias das
mortes do meu tio e primo, tinha gente dizendo que o problema era eu saber
mais do que dizia ou estar envolvido no que não devia. Mas era o que
sempre diriam.
Quem acreditaria que o filho de um gangster de NY, sobrinho do cara que
supostamente mandava na costa oeste e primo do babaca que começou um
inferno na cidade, não sabia de nada? Ninguém comprava minha
ingenuidade, eles só não conseguiam provar que eu fazia mais do que
esconder os segredos dos meus familiares. Essa era a vida nesse lado
obscuro do mundo, você não conta os podres da família. Já tinham me
oferecido acordos, tinham dito até que podiam me proteger se eu
testemunhasse. Veja só a ironia.
Se eu era só um cara escondendo segredos familiares e ao mesmo tempo
tinha um negócio legítimo aos olhos da lei e da receita federal, eles sabiam
que eu não ia abrir mão de tudo isso para delatar gente no tribunal. Eles
adorariam botar a mão em mim para perder nosso tempo e parecer que
estavam trabalhando, nada que eles ameaçassem me faria falar. Meu plano
era outro.
Talvez por isso, eu recebi um telefonema enquanto tentava almoçar no
meio da tarde. Rachel havia oficialmente desistido de mim, ela pegou o resto
de sua sobremesa e foi embora e eu atendi ao celular.
— Fiquei sabendo que você morreu de novo — disse o meu contato.
— Dessa vez com menos pirotecnia envolvida.
— Pois é, o ataque à sua casa adiantou outras coisas aqui.
— Estou escutando.
— Vão começar a operação mais cedo, estão com medo que comece tudo
de novo em LA. Vão sair com mandatos e convocações, a polícia e os
federais. Vão conduzir gente para depoimento e desencavar casos antigos.
— Que aventura — respondi.
— Espero que agora estejamos quites.
Eu soltei o ar como se risse da possibilidade.
— Eu te envio um número novo — desliguei.
Depois eu falei com a minha advogada, ela tinha liberado nossos
pertences pessoais da casa que continuava interditada por causa do tiroteio.
E eu queria as malas nos esperando na marina. Para meu azar, atracamos
antes de eu conseguir encontrar Rachel e fazer alguma promessa furada
sobre desligar o celular por umas horas e agir como alguém com um buraco
recém-costurado no peito. Na primeira noite, ela se encolheu junto a mim,
antes de eu adormecer como se tivesse perdido a consciência, mas isso não
durou.
Pietro subiu a bordo junto com Bellini, eu precisava falar com todos eles.
Um carro clássico encostou, um DeTomaso Pantera modificado que eu só
conhecia um. Era o jeito de Alessandro mandar Morales se foder, andando
por aí num dos seus carros mais fáceis de identificar. Ele desceu do lado do
motorista, o segurança ficou, assim como o segundo carro que o seguia e
encostou a uns metros de distância. Ele se aproximou naquele seu passo
calmo, sorri quando fui ao seu encontro. Ao menos um filho da puta do meu
lado do mundo que eu não queria matar e não pretendia me matar.
Atualmente, acho que só tinha ele.
A gente se considerava amigo, mas não precisava ficar emocionado. A
relação funcionava e isso que importava.
— Fiquei sabendo que você está entocado — Alessandro deu uma olhada
no meu ombro, mesmo com a camisa dava para ver que estava com o
curativo.
— Sim, entocado no meio do mar. Nunca havia usado tanto essa casa
flutuante — indiquei o iate.
Eu sentei junto com ele, de frente para o mar e a entrada dos barcos na
marina, o iate só atracava na parte externa, era onde ele cabia.
— Eu imaginei, mandei meu primo dar uma olhada e ele viu essa sua casa
ambulante perto da costa, logo vi que era furada esse negócio de terem te
enchido de tiro — ele sacou o isqueiro de prata e acendeu dois cigarros
manufaturados da sua produção pessoal, ficou com um e me ofereceu o
outro.
— Essa gente acha que um tiro longe da cabeça vai resolver o problema
— eu falei entre a fumaça.
— Porra, não é? Meu tio traíra, acertou um na minha coxa e achou que ia
ter a sorte de eu sangrar até morrer. E ficar morto.
— Rino, aquele seu tio que casou cinco vezes?
— Esse desgraçado mesmo.
— Enterrou?
— Vovó pediu para poupar. Deixei sem a mão que atira, mas tive que
deixá-lo ir gastar a grana escondida no Mediterrâneo.
— Que merda — franzi o cenho enquanto ele dava uma longa tragada
antes de continuar.
— Falando em grana. Tá sabendo do dinheiro desaparecido? As contas
que estão sendo zeradas, sequestradas, denunciadas… uma merda dessas.
Era uma droga, mas eu ia ter que mentir. Precisava saber se a história já
havia chegado nele. Nem Alessandro podia saber do meu grau de
envolvimento nisso, especialmente quando estávamos só começando. Ele
tinha que poder negar com sinceridade. Ninguém sabia. Só Jeanne e o
contador. Mack e Liu, o hacker, só sabiam o necessário. No futuro, se desse
certo e continuássemos vivos, eu ia contar, ele riria do plano, mas me daria
um soco por não contar para ele se divertir assistindo desde o início.
— Sim, eu soube. Inédito. Acha que são os federais?
— Duvido. É coisa de dentro. Brock acha que pegaram um dos contadores
dos caras e fizeram cantar. Eu não levo fé suficiente naquele rato velho para
ele ter conseguido todo esse acesso, tô errado?
— Eu também não. Mas as minhas contas estão intactas.
— As minhas também. Então eles que se fodam.
Rimos juntos como dois garotos aprontando a última traquinagem. Eu não
ia mexer nas contas de Alessandro, nem dos seus homens ou seus parentes.
Sequer procurei ali. Não era eles que eu precisava quebrar, era o outro lado.
Acredite em mim, dinheiro balançava essa gente, se eu estivesse desfalcando
só as suas contas legalizadas que usavam para as despesas domésticas, eles
já iam pular. Imagina o buraco onde eu estava botando a mão.
Rachel passou pelo deque do último andar, levando seu aparato de câmera
e tripé. Usava uma saída de praia comprida por cima de mais alguma roupa
de banho que expunha sua beleza. Já que não estava em sets de filmagem,
ela focou sua atenção em seu outro trabalho. Eu entendia o que ela fazia para
criar conteúdo, receber por propaganda e manter seus seguidores entretidos,
mas não podia dizer que sabia os pormenores. O que era meu jeito de confiar
nela. Pela liberdade que lhe dava, ela podia até gravar vídeos sobre o que
acontecia a sua volta, mas ela era mais esperta do que isso.
— Fiquei sabendo de uma operação — comentei, enquanto tragava e via
de longe para onde ela estava indo, afastando-se para a parte do iate que
estava de frente para o mar.
— Eu ouvi um zunido sobre isso também.
— Talvez você prefira fazer uma visita ao seu tio no Mediterrâneo em vez
de ficar para assistir.
— É… talvez eu também tenha alguém para levar para viajar — ele
indicou com a mão, na direção do iate. — É ela? O motivo para eu ter
recebido uma foto da cabeça do seu primo na entrada da cidade?
— Aquele cara da polícia ainda te manda essas coisas?
Alessandro deu de ombros, o informante dele mandava tudo que via e
parecesse relevante, para ele saber caso estivesse envolvido. E com a
unidade de crime organizado assumindo o caso, é claro que o cara ia mandar
informações.
— Ele morreu num caixão. O que veio depois, foi só um recado e uma
promessa cumprida.
— Até quando? — Ele terminou seu cigarro e soltou a fumaça
longamente.
Eu não terminei meu fumo, olhei para baixo e dessa vez eu que dei de
ombros. Geralmente não me enganava quando estava conversando com
Alessandro e os últimos meses de caos na cidade tinham nos mantido
relegados a conversas por telefone e rápidos encontros como esse. Antes era
comum nos ver intercalando locais da cidade para jantar e falar de negócios
e vida real.
Nós chamávamos nossa vida pessoal de “vida real” e isso incluía tudo,
como nenhum dos dois tinha espaço para romances, no jeito que as pessoas
normais entendiam a palavra, essa parte ocupava umas poucas frases. Se
tínhamos visto alguém, se a foda valeu a pena, se a pessoa era do nosso
mundo, se conseguiu ser mais furada do que nós já éramos… Por causa do
seu último problema amoroso, Alessandro já esperava que aconteceria o
mesmo comigo. Com razão. Ele não era pessimista, era realista.
Se dissesse a ele como estava me sentindo de verdade, talvez conseguisse
assustá-lo pela primeira vez em anos. Eu sempre tinha um plano, era meu
papel nessa amizade. Eu não tinha nada planejado para Rachel. Ainda.
Porque eu não queria, quando tivesse de planejar, teria de encarar a
realidade. Se começasse a contar nosso tempo, eu ia fazer besteira e papel de
idiota.
— Até minhas opções terminarem e aquele rato velho cair — respondi,
sabendo que juntando as duas coisas, ficava sem perspectiva nenhuma de
data. E era o que eu precisava, não ter prazo para perder Rachel.
— Ela sabe que uma vez dentro, nunca estará completamente fora?
— Você sabe que eu só me atraio por garotas espertas — eu dei uma leve
batida com o indicador, do lado da cabeça.
Ele riu de mim, Vito sempre disse que isso era um defeito, já Alessandro
ficava torcendo para eu tomar na cara e ele poder assistir. Em vez de se
despedir, ele desencostou e deu um leve sorriso, foi até a mala do carro.
Então mostrou a caixa comprida e jogou para mim.
— Trouxe um presente, espero que não seja de despedida.
— Você foi lá de novo? — indaguei, franzindo o cenho para caixa.
— Não preciso, ela segue intacta no meu “aquário” — ele sorriu.
Coloquei a caixa sob o braço, pelo tamanho e peso, tinha quatro pacotes.
A gente não fumava junto por acaso. Quando éramos mais novos e mais
doidos, Alessandro pegou uma muda de uma planta de Tácita. O que todos
sabíamos é que as plantas do santuário morriam no segundo que passavam
da porta dela. Como se tudo ali dentro já estivesse morto, mas permanecesse
vivo sob a influência de Tácita.
A muda permaneceu na mão dele. Eu sempre o zoei por ter um dedo
verde, ele gostava de plantas, desde o colégio que estudava botânica.
Alessandro plantou o negócio e a porra da planta ficou lá como se nunca
tivesse sido “roubada”. Juro que ele pediu, mas pedir algo ao silêncio é uma
roleta russa.
Não satisfeito em ter a vida poupada, ele fez a planta virar fumo. E eu,
sem amor algum a vida, topei usar. Agora era o que preferíamos fumar, até
porque, nada mais fazia efeito na gente. Mas ela era limitada e nem fodendo
que alguém ia pegar mais. Todo mundo achava que era só tabaco e erva.
Poderia ser… Mas tabaco e erva não aliviava minha dor de cabeça.
— Vou ficar fora do radar, com um olho em LA, outro nas minhas contas
enquanto minhas companhias femininas tomam sol ao fundo. Ainda é
verão… — ele fechou a mala e entrou no carro. Parecia ter me dito que ia
tirar férias, quando sabíamos que não era nada disso, por mais que
envolvesse umas horas de diversão.
Ultimamente LA não tinha nada de divertido para nenhum dos dois, era
uma sentença de morte esperando para acontecer.

◆◆◆

Consegui cumprir um pouco da minha promessa furada, voltei para o iate


e deixei o celular de lado, mas Rachel estava ocupada com sua câmera e eu
acabei enviando umas mensagens enquanto ela gravava algo, usando um
biquíni azul e a saída de praia aberta.
— Isso é uma propaganda de biquíni? — Enfiei o celular no bolso e sentei
perto dela quando parecia ter terminado.
— Ainda é verão, viram que estou postando fotos como se estivesse
aproveitando a estação em cenários luxuosos, pagaram uma grana boa para
passar minhas supostas férias usando os biquínis da coleção nova. Eles
tinham ficado na casa, achei que ia perder meu contrato, mas trouxeram tudo
junto com as malas — ela se recostou e eu a puxei para mais perto.
— O vermelho é mais bonito — opinei, conseguindo fazê-la rir. O
vermelho também era menor, eu não entendia de biquínis, mas sabia o que
via sobre o corpo dela. Queria um tempo para ficarmos sozinhos, isso tinha
se tornado inexistente desde o ataque a casa. Ela também não estava
contente comigo por agir como o irmão dela e ser um babaca com um buraco
de tiro. Palavras dela.
— Quem era o bonitão com cara de bad boy perigoso com quem você
estava fumando? — É claro que ela nos viu, eu não tinha dúvidas.
— Um amigo.
— Você tem isso? — Ela virou o rosto para mim.
— Sim.
— Achei que fora dos seus homens, eram só aliados.
— Ele é único.
— Faz sentido.
— Bad boy perigoso — eu não consegui evitar a risada. — Ele ficaria
profundamente insultado.
— Ele serviria para o papel em uma série de crimes e suspense, sabe?
Começa como o filho que chega ao fim derrubando o próprio pai que
mandou matá-lo primeiro. Se eu não tivesse sido doida o suficiente para sair
com o bonitão mais barra pesada da festa, ele até seria uma péssima escolha
viável.
— Ele é pior, acredite.
— Você nunca vai admitir o contrário.
— Claro que não — eu a peguei pelo rosto e beijei. — Sou sua única
péssima escolha, nem sonhe em fazer isso de novo.
— Não tem de novo, chega, eu vou me tornar uma celibatária — declarou
ela, em sua melhor expressão séria.
Eu a beijei porque não queria imaginar um após, por mais fantasioso que
fosse a escolha de só viver o que tinha agora. Era compartimentar demais,
estava planejando meus próximos movimentos nessa complicação em que
estava envolvido, mas com ela só me importava em tê-la segura junto
comigo.
— Estão todos aqui — avisou Iana, pelo rádio.
Deixei Rachel escolhendo o que ela ia postar e desci para a sala de
reunião, encontrei os homens em estágios diferentes de ocupação, Bellini
estava comendo, Denver digitava no notebook, Ogul conversava com Iana e
Pietro estava num canto de papo com o meu irmão. Desde que voltou da
clínica, Vittorio ainda não tinha tido a oportunidade de sair e suas novas
relações estavam relegadas a quem vivia ao meu redor.
— Nós vamos precisar de umas duas semanas fora da cidade — avisei,
começando com a “pior” notícia. — Tanto pra minha persona pública que
tomou um tiro e está arrasada, de cama e com medo. Quanto pro lado real,
vão sair pra investigar e não quero ninguém relevante sendo pego pra nada.
Eles mantiveram a atenção em mim, nem se mexiam enquanto eu falava
da operação e que todos eles acabariam sendo conduzidos, além dos
depoimentos mentirosos que tinham prestado sobre serem atacados na casa
quando estavam só visitando ou fazendo seu trabalho de segurança.
Nenhum deles era só um segurança, nem mesmo Pietro, que era o mais
jovem e estava conquistando seu terreno longe das calças de Tommaso. Eles
eram meu círculo de confiança. Cada um tinha seus próprios assuntos e
negócios, era assim que funcionava na organização, todo mundo tinha uma
boca em algum lugar para ter suas porcentagens e ganhos.
Aumentava conforme o seu tempo, experiencia e aliados. Eles se
revezavam porque tinham seus próprios assuntos para cuidar, os outros
foram explodidos naquela casa, seus negócios tinham de ser assumidos e
esses caras se comprometeram. Meus inimigos eram seus inimigos, seus
negócios dependiam de eu continuar vivo e com poder. Contudo, eles tinham
seus próprios desafetos para lhes dar um tiro na cara se dessem mole.
Eu podia não confiar em ninguém cem por cento, mas até hoje nenhum
deles falhou em nada, mesmo com suas vidas na linha, eles nunca hesitavam.
E ficar comigo era a maior boca que teriam. Não importava o que faziam,
em que posição estavam, todo mundo me pagava de alguma forma. Quem
não pagava antes, ia pagar agora, não tinha mais Nascari. Antes era ele ou o
rato velho de Vegas.
O FBI, a força tarefa, o gabinete do Promotor… eles não tinham ideia do
inferno que seria se o próximo tiro fosse entre os meus olhos. Vito não foi
nada. E todo mundo ali ia dançar.
— Ele acha que te atingiu feio, vai mandar mais bala enquanto pensa que
está por cima — disse Bellini.
— E eu não vou aparecer no noticiário para desmentir isso. Ele não está
em Vegas, nem desse lado do país, já tinha saído quando mandou os homens
lá na casa.
Derramei mais água em cima das rodelas de laranja do meu copo, tinha
tomado uns três remédios antes de descer ali, desde aquela porra de explosão
eu nunca mais me livrei de drogas para dor de cabeça. Por causa do terceiro
tiro que tomei no espaço de um ano, Narek deixou um negócio colorido que
pra mim era o mesmo que bala, mas, segundo ele, eu ficaria bom mais
rápido pra tomar outro tiro. Talvez o próximo desse conta de terminar o
trabalho, eu só não ia facilitar.
— Tenho um assunto para resolver, vocês só têm essa semana — avisei.
— Para onde vamos? — Perguntou Pietro.
— Ele precisa terminar umas coisas na Itália — indiquei Vittorio.
Meu irmão continuou sentado no sofá, com os braços cruzados e aquela
expressão corporal de quem ainda se sentia o estranho no ninho e precisava
juntar informação para saber como proceder. Ele estava sempre observando,
estudando quem era quem, o que faziam, o que possuíam e procurando
entender aquela bagunça na qual ele caiu no meio ainda todo fodido, o que o
fazia se sentir em desvantagem. Era assim que eu me sentiria.
Era atípico, mas estávamos confiando nele, falávamos tudo sobre a
situação atual. O único assunto que não tratávamos na sua frente era Tácita.
Para ele, ACCA era uma “organização esquisita” e independente na qual ele
pretendia entrar para poder ficar conosco. Ele nem imaginava o que era
preciso. Nem o fato de que Tácita já o havia enxergado.
— Vocês não precisam desviar tanto assim do caminho por mim, eu vou e
posso encontrá-los depois — alegou ele.
Os outros o olharam com aquelas típicas expressões de descrença, quando
um do grupo estava sendo um iludido ou tendo algum comportamento bobo.
Não era apenas preocupação com o novato. Justamente pelo grau de
confiança que depositamos nele, não o largaríamos por aí. E que espécie de
irmão mais velho eu seria se o deixasse por conta própria na primeira
oportunidade?
— Depois que sairmos de lá, minha assessora de imprensa vai deixar
escapar que fui visitar o túmulo da minha mãe. Corrobora minha narrativa de
baleado e abalado — declarei.
Eles assentiram, prontos para pegar suas malas. Eu podia ser o alvo
principal, mas se queriam me matar, iam derrubá-los primeiro.
— Rachel não vai conosco — informei e suas expressões variaram nas
reações. — A partida não será secreta, só nossos destinos, ela não pode ser
vista saindo do país comigo.
— Então vou ficar? — Indagou Bellini, concluindo.
Eu sorri sem humor, levando o copo a boca.
— Espero que vocês nos encontrem.
Capítulo 20: Maiô Preto
PÓLVORA

Eu cometia muitos erros, com Rachel aprendi que ela podia ser
imprevisível e faria o que quisesse e achasse ser melhor para si. E eu me
identificava. Não cometi o engano de planejar seus próximos passos, mas
eles estavam lá se ela resolvesse não adicionar um infarto ao meu último
tiro.
— Era isso que você estava arrumando com esse celular tocando o dia
todo? — Indagou ela.
— Também.
Ela mudou coisas de lugar, uma prova de que Rachel sabia que não
ficaríamos aqui, era não ter desfeito as malas, só tirou umas peças e
pendurou. Eu também não desfiz e como não mexia tanto nisso, não criei um
terço do caos dela. Agora ela estava com um maiô preto, cheio de pedraria e
que diferente dos outros cobria bastante. Ela moveu o seu mar de roupa de
banho de volta para a mala.
— Eu não sei… — disse ela, com as mãos ocupadas.
Na real, eu nem sabia se podia infartar, nunca vi um desgraçado jurado
para Tácita sofrer disso. Mas se pudesse, ali estava o meu primeiro infarto
oficial, porque depois do que aconteceu quando meu primo a levou, eu
precisava ir ao cardiologista checar o estado do órgão. Agora, ela queria me
deixar.
— Se eu pegasse nossas coisas e a levasse agora para o carro e direto para
o aeroporto você simplesmente iria?
— No automático, talvez. Mas não vai ser assim.
— Ótimo, então vou passar a arrastá-la comigo. Sem aviso. Você vai
adorar.
— Não sei se posso sair do país por uns dias — ela me lançou um olhar
cortante, ignorando meu desvio de humor.
— E o que você vai fazer? Vai ficar escondida em alguma casa?
Ela fechou a mala com a roupa de banho do seu contrato e provavelmente
todas que ela possuía e em vez de dizer algo, foi mexer na mala grande que
estava aberta na cama.
— Eu não vou te largar em Los Angeles, Rachel.
— Eu sei que não — ela cruzou os braços e seu olhar percorreu as malas.
— Eu também não estou te largando para você ir tomar sol no Mediterrâneo
sem mim.
Fui até perto dela e a virei, para ela largar as drogas das malas. Eu só
tomaria algum sol se ela fosse, fora isso, seria como home office fora do
país. Tudo pelo bem do segredo de ACCA. A gente vivia de narrativas.
— Eu não vou te deixar aqui — reiterei.
— Você me disse que eu tinha escolha — ela me encarava.
— Se você está tentando me pegar de calças curtas por coisas que disse,
eu não possuo moral suficiente para isso. Eu disse que ia te contrariar. Não
vou te deixar aqui.
Ela estreitou o olhar para mim e eu não recuei do meu provável novo erro.
— Você está com aquela expressão, de que vai dizer algo só para provar
que pode me enfrentar — apontei.
— Eu posso fazer o que quiser — desafiou ela.
— Nós literalmente fodemos com essa opção há meses. O que eu te disse
no dia que fomos a Nova York?
Rachel tornou a se virar para as malas e eu sentei ao lado da maior que
estava na cama.
— Eu devia ter dormido com você só duas vezes. Uma para matar a
vontade, outra para despedida — ela apoiou as mãos na beira da mala.
— Essas duas fodidas foram na primeira noite. Eu era egoísta demais para
não te ver de novo e continuo o mesmo para abrir mão agora.
— Eu estou acostumada a escolher a música, não a dançar o que estiver
tocando — reclamou ela, desistindo da mala.
— Eu posso não te enfiar em um avião, Rachel. Mas farei alguma outra
coisa terrível para você não me perdoar mais.
Ela se aproximou e descansou as mãos nos meus ombros.
— Você vai me prender numa casa e colocar um bando de capanga em
volta, seu desgraçado doente?
— Vou fazer alguma droga tão ruim quanto.
— Tipo o quê? — Provocou ela, subindo sobre as minhas coxas.
— Eu não sou criativo quando preciso pensar em coisas pra te irritar ao
ponto de nos destruir.
— Claro que é — ela apertou meu rosto e me beijou enquanto puxava o
ar.
Eu a abracei, envolvendo seu torso e apertando-a contra mim, meu ombro
deu uma fisgada, ignorei. Não a deixei ir a lugar nenhum, beijei-a como se
fossem arrancá-la de mim outra vez, até senti-la se abandonar do jeito que eu
adorava, com seus braços jogados nos meus ombros e seus lábios
pressionados nos meus.
— Que porra você quer fazer, Rachel?
— Ferrar com você — murmurou ela, enfiando os dedos pelo meu cabelo
e descendo pelas minhas costas.
— Mais?
— Não é agora que eu desapareço, Pólvora — até soou como uma
promessa, enquanto ela beijava meus lábios e se movia no meu colo,
pressionando minha ereção e escolhendo a pior combinação de palavras.
— Você vai continuar me provocando ou vai responder o que eu quero?
— Apertei sua cintura, mantendo-a no lugar, do jeito que ia, ela me
masturbaria por fricção e me daria uma volta.
— Não, não, não… — ela me pegou pelo rosto de novo e beijou com
carinho, eu apertava seus quadris para ela não sonhar em parar.
O maiô tinha um fecho nas costas, senti os pontos no meu ombro
repuxarem quando fui com sede demais para abri-lo. Usei a outra mão e
expus seus ombros.
— Minhas pedras, vou fotografar com esse — resmungou ela,
empurrando a peça pelos ombros.
O tecido não cedia, as pedras eram bonitas, mas não se comparavam aos
seus mamilos duros de excitação. Rachel empurrou o maiô para sua cintura e
tornou a me beijar enquanto seus dedos soltavam meus botões. Afundei o
rosto no seu colo, ela se inclinou, apoiando a mão no meu joelho e
finalmente capturei seu mamilo entre os lábios. Rachel gemeu e senti suas
unhas marcando minha pele.
Ela abriu minha bermuda e liberou minha ereção, pulsei em suas mãos
enquanto Rachel mordiscava meu queixo. Afastei seu maiô, era sofisticado
na parte de cima, mas embaixo era uma faixa fina sobre o seu sexo.
Encontrei-a molhada e ela gemeu com a pressão dos meus dedos em seu
clitóris sensível.
Procurei sua boca e suguei seus lábios, ela me empurrou pelo peito e se
inclinou sobre mim, beijando-me com o ardor que eu queria. Empurrei uma
mala com o braço, arranjando espaço para minhas costas, caiu alguma coisa
que fez barulho mesmo sobre o tapete.
— Você tem camisinha aí? — Perguntou ela, apoiando-se no meu peito.
— Merda — eu não andava com isso no bolso das duas peças de roupa
que estava usando, nenhum preservativo para transar do nada.
Ela riu e se moveu sobre mim, eu trinquei os dentes com meu membro
pulsando sob o calor do sexo dela.
— Eu jurava que tinha um escondido no meu maiô — brincou ela e enfiou
as mãos nos meus bolsos quando empurrou minha bermuda.
— É claro que eu sou um tarado que anda com camisinha o tempo todo —
respondi.
— Arranja, aí na mala. Encontre — ela desceu mais.
Eu virei a cabeça e me apoiei no cotovelo, outra pontada no ombro, eu
adorava que quando estava com ela não existia um pedaço dormente no meu
corpo. Rachel não ia me ajudar a procurar, ficou óbvio quando escorregou
do meu colo e chupou a cabeça do meu pau com uma lentidão cruel.
— Ah, porra, Rachel… Eu não vou achar nada! — Deitei a cabeça,
rendido como um desgraçado.
— Do seu lado, tem aí, tenho certeza — sugeriu ela, enquanto sua mão
descia numa lentidão torturante pela minha ereção.
Enfiei a mão na mala, joguei tudo para os lados e encontrei uma bolsa
pequena, tive que deixar as costas baterem na cama de novo para poder abri-
la. Rachel montou sobre mim, pegou da minha mão, levantou a embalagem
escura e metálica entre as pontas dos seus dedos e suas unhas longas.
— Um ótimo incentivo, seu garoto mau! — Brincou ela, rasgando o
pacote.
— Sobe mais — segurei a base do pau, meu ombro que se danasse.
A camisinha extra fina desceu e agarrei seu maiô, afastando-o mais para o
lado, acompanhei cheio de tesão enquanto ela se empalava no meu pau.
Rachel apoiou as mãos no meu torso e girou o quadril sobre mim. Era bom
pra caralho, iam precisar me dar muito mais tiros para eu resistir a isso.
Segurei em suas pernas, enquanto ela me cavalgava, meu ombro doeu, mas o
prazer irradiava pelo meu corpo. Prazer e dor me faziam sentir vivo. Puxei-a
para baixo e a beijei, ela retribuiu, mas me empurrou contra a cama.
— Não ouse gozar, vou ficar aqui até você estar acabado — ela prometeu
e ameaçou ao mesmo tempo.
Rachel subiu e desceu, inclinando-se para ter força, mas assim ela me
fodia mais forte. Trinquei os dentes e aguentei o impacto, as malas que
desistiram e foram ao chão. Não estávamos na parte mais firme da cama e
tudo mais balançava sobre o colchão macio. Eu queria segurá-la, ela não
deixava. Queria tocá-la, mas ela não estava atrás disso nessa tarde.
— E você queria que eu descansasse… — virei o rosto e mordi o lábio,
não era a melhor situação e muito menos a posição certa para me fazer durar.
— Caralho, Rachel, você não para de pulsar.
— Sim — ela me apertava repetidamente, parou de subir e descer com
violência e me ferrou quando só rodou o quadril no lugar. Seus gemidos
ficaram mais lentos e suaves.
Estava enterrado nela, não queria nem a olhar, mas não resistia. Eu ficava
doido com seus seios se movendo, sua expressão de prazer, seu corpo
exultando sobre mim, os sons do prazer dela, o jeito como fazia meu pau
entrar e sair de seu sexo molhado. Era o que eu gostava de ver pra gozar. Era
justamente o que eu memorizava.
— Rachel, porra…
Ela apoiou a mão esquerda no alto do meu peito, suas unhas afundaram na
base do meu pescoço. Doía, mas era gostoso, era o mesmo que me segurar
na realidade.
— Eu vou gozar — eu devo ter grunhido esse aviso. Meu ombro fisgou
quando soltei sua coxa para tocá-la e ela me impediu de novo.
— Não — ela me olhou, colocou a outra mão entre as pernas e esfregou o
clitóris, seus lábios se abriram, seus quadris giraram lentamente, fazendo o
oposto do jeito que me fodeu desde que montou sobre mim.
Ela estremeceu, eu nem piscava enquanto a admirava gozar, bebendo cada
centímetro dela, dos seus lábios entreabertos, aos mamilos rijos, a pele
úmida e os dedos cobrindo seu clitóris inchado, enquanto me mantinha preso
dentro dela. E eu já era, só seguraria aquele orgasmo se desconectassem o
membro do meu corpo. Tremi embaixo dela, entre suas coxas e sob sua mão,
com suas unhas ainda fincadas no meu pescoço. Sentia os impulsos
descendo pelo meu corpo enquanto explodia em seu interior. O prazer varria
todas as sensações que eu podia entregar e tudo terminava na conexão entre
nossos corpos.
Rachel se inclinou sobre mim, apoiando sua testa no meu ombro bom,
agora o outro estava dormente. Eu a abracei, ela não ia mais me impedir. Ela
saiu de cima de mim, odiei a desconexão dos nossos corpos. Não tinha mais
nada na cama, as malas tinham escorregado com tudo dentro. Ela empurrou
o maiô pelas pernas e o jogou no chão. De verdade, eu nem tentei me mover.
Ela conseguiu o que queria.
— Vem aqui, não pula da cama agora — levantei a mão.
Ela apoiou a cabeça no meu ombro de novo e sua mão descansou sobre o
meu abdômen.
— Eu tenho certeza que você perdeu algum ponto nesse ombro… Odiei te
ver sangrando daquele jeito.
A resposta certa seria: odiei te ver morta em uma caixa. Pode me chamar
de supersticioso o quanto quiser, mas eu não ia proferir isso em voz alta. Ela
nunca mais ia entrar numa caixa, mas eu ia sangrar outras vezes.
— Você pode tentar não fazer isso de novo?
— Darei o meu melhor — era a promessa mais sincera que podia lhe
fazer.
Resolvemos nosso desejo acumulado dos últimos dias e só isso. Deixei o
resto para resolver outro dia e pedi a Iana para refazer os pontos que
arrebentei nas costas, enquanto Rachel olhava como se jamais pretendesse
pegar uma agulha e enfiar em alguém. Ela odiava agulhas, mas podia atirar
para se defender. Eu adorava suas inconsistências.
Assim que isso terminasse, eu ainda veria aquele cardiologista.
Capítulo 21: Mamãe e uns
Sanduíches
GASOLINA

Annika 09:23
Que história é essa do seu namorado novo ter
levado uns tiros? Eu vi no jornal! Você está
bem? Me atende agora!
*celular tocando*

Eu fiz algo que não devia. Na manhã seguinte, com pontos e tudo,
Antonio voltou para a rua. É claro que eu sabia que depois que aquele
homem se deu alta do hospital ainda todo remendado, não seria um tiro que
o impediria. Mas assim que ele saiu, eu juntei umas coisas e fui para a casa
da minha mãe. Sabia que ela estava fora por causa do seu trabalho de
temporada. E com Deon solto por aí, não tinha ninguém por lá.
Disse a Bellini para ir resolver seus assuntos e voltar no outro dia, ele me
lançou aquele olhar de quem sabia que eu estava aprontando.
— Preciso ir ao meu apartamento amanhã — completei. — Pegar mais
coisas.
— Sua amiga traíra ainda não achou um lugar novo — avisou ele, sobre
Karen.
Era outra coisa que teria de ver, o aluguel estava no meu nome.
— A dona já recebeu o aluguel da temporada. É o prazo que sua amiga
tem para sair e você para colocar seus pertences num depósito ou num local
novo — informou ele.
Eu ia dar um murro no meio do nariz de Antonio e deixá-lo quebrado e
ferrado como o nariz do irmão dele. Mas não disse nada disso a Bellini, só
assenti. Eu resolvia minhas questões com o chefe deles, eles fariam o que ele
mandasse, nesse caso Bellini era só o mensageiro.
— O que você está fazendo aqui? — Perguntou meu irmão ao entrar e me
ver.
Ele andou até a frente da casa, empurrou as cortinas e deu uma olhada na
rua.
— Você está sozinha? — ele se virou para mim.
— Calma — continuei na mesa, comendo meu lanche. — Não vai entrar
ninguém atrás de mim. Você quer um sanduíche?
Deon sentou à mesa, eu tinha pedido lanche a mais e ele abriu a
embalagem transparente que continha os sanduíches.
— Que negócio pálido e cheio de alface é esse aqui? E os tacos?
— Fica quieto, é gostoso. Eu peguei uns contratos de verão, preciso
manter a forma atual — empurrei o copo de suco pra ajudá-lo a descer o
lanche. — Tem pepino, picles, salmão defumado, peito de peru… é só
escolher. Da última vez que comemos taco não deu muito certo.
Ele pegou um dos sanduíches, o pão era claro, mas era de leite com
farinha integral, o molho era light, mas delicioso. Deon deu mordidas
grandes e a gente conversou sobre o que vinha acontecendo; da última vez
que nos vimos, nossa mãe estava junto e não pudemos conversar, dessa vez
falamos com mais liberdade.
— Eu acho que vou, não sei o que me faz não querer deixar a cidade.
Acho que é como um ímã de viciada em trabalho. Não deixo LA por lazer há
anos, desde que fomos visitar nossas tias, porque vivo emendando um
contrato no outro.
Deon tinha criticado meus sanduíches menos calóricos, mas já estava no
segundo, ele bebeu um longo gole da limonada natureba, feita com adoçante
natural, chá-verde e muito gelo.
— Eu acho melhor você não dar a volta numa porra de um gângster, Raye.
— Por quê? Você gosta dele?
— Ele gosta de você.
— Você descobriu isso nesses trabalhos que está fazendo para ele?
— Não estou com ele, estou com um cara que trabalha para ele. Um
contador.
— Você está logo com o contador? Sério, Deon? Não sei o que é mais
perigoso.
— E você está dormindo com o chefe dele. E se gosta tanto assim do cara,
acho melhor continuar lá, quando enjoar dele, aí sim, você some. Até lá ele
já matou todo mundo que ele pensa que vai te sequestrar de novo.
— Que tipo de incentivo é esse, Deon?
— Realidade — ele enfiou o último pedaço do segundo sanduíche na boca
e mastigou, empurrou a massa com mais limonada. — Você tá
apaixonadinha pelo cara, não pode admitir nem pro seu irmão? Senão, já
teria dado um pé nele e até fugido do país sozinha se precisasse.
Eu só balancei meu copo cheio de gelo e suguei a limonada. Agora que
estava melhor, apesar de não ter a pretensão de dizer que minha cabeça
estava no lugar, a ideia parecia absurda. Entretanto, quando acordei depois
de ser tirada daquela caixa, se Antonio e sua bolha não estivessem lá, eu
teria sido capaz de enfiar tudo numa bolsa, pegar minhas economias e sumir
por um tempo.
Em vez disso, eu estava mais exposta do que nunca. No sentido midiático,
por causa das minhas redes sociais. E super protegida, num sentido geral. Eu
não estava sozinha, tinha um carro parado do outro lado da rua, tinha um
rastreador em mim. Talvez tivesse mais coisa. Eu não queria ser levada,
dessa vez não iam me colocar numa caixa. Seria muito pior.
E, sim. Eu gostava do cara. Gostava demais. Estava lutando com meus
sentimentos e a sensação de estar tão emocionalmente atrelada a alguém.
Deon estava certo. Eu ia dar uma volta em Antonio, se ele deixasse. Porque
era assim que eu era. Por mais que tenha namorado Neil e o largado com
razão, eu fiz isso. Ele era “normal” demais para um ego tão grande. Ele que
se danasse pra lá. Com ele eu tentei e me ferrei. Mas eu os deixava e
esquecia rápido, fiz isso desde o primeiro garoto com quem saí na
adolescência.
Porém, minha chance de esquecer Antonio era nula.
Nunca me senti mais envolvida por alguém. O negócio com Antonio era
como uma teia, quanto mais eu me mexia, mais presa ficava. E se me
dessem uma faca, eu não ia cortar direito. Ia desfazer alguns pedaços, como
acabei de fazer, afastando-me dele e passando um tempo aqui, para pensar
longe de sua influência.
Afinal, olha só para o cara. A teia dele não tinha limites, ele controlava
uma organização inteira a sua volta. O poder de influência dele era arrasador.
Mas o que me ferrava eram os malditos sentimentos, essa era a verdadeira
influência que ele tinha sobre mim, eu o queria de qualquer jeito.
Nós escutamos o carro da minha mãe parar na entrada da garagem,
prendendo o carro de Deon de novo, sempre acontecia quando ele aparecia
mais cedo.
— E tem outra coisa — ele empilhou as embalagens e enfiou no saco de
papel vazio. — Quando você está com ele e aqueles caras que te vigiam, eu
fico tranquilo. Se você ficar solta pela cidade, eu não vou nem dormir. Essas
porras desses gringos e essas guerras que eles arrumam — ele resmungou o
final e foi para a cozinha levando o lixo.
Não esperava minha mãe em casa naquela hora e nem naquele dia. Ela
também não esperava me ver por lá, mesmo assim, disse logo:
— Que surpresa, você aparecia mais quando trabalhava dia e noite do que
agora que tirou férias.
— Só tirei férias do estúdio, mãe. Continuo trabalhando em outras coisas.
— Desde que te dê dinheiro, está ótimo. Viu Nadia por aí?
— Não. Ela não devia estar no trabalho?
— Exatamente, devia. Ela disse que ia trabalhar num projeto que você
arranjou para ela.
Deon saiu da cozinha e avisou:
— Deixa que eu vou encontrá-la — o celular dele tocou e ele saiu para
atender.
Quando ficamos sozinhas, minha mãe me levou para a cozinha e disse:
— Acho melhor você ver isso. Seu irmão é muito radical, não o quero
brigando com a filha ou causando problemas.
Eu fiquei quieta, mamãe não tinha ideia que Deon estava ganhando bem
para trabalhar com o tal contador. Eu lembrei algo sobre Antonio dizer que
ia pegar a grana de uns caras e atingi-los onde mais doía. Liguei isso a esse
negócio do contador e concluí que estava relacionado. Ou seja, meu irmão
estava metido até o pescoço em algo mais sério do que ele imaginava.
Informação ali era compartimentada em todos os níveis. Eu duvido que ele
sabia o que o contador estava fazendo.
— Como assim você vai viajar? Rachel, sinceramente. Cheio de coisa
acontecendo e você quer viajar — reclamou minha mãe, enquanto passava
patê importado numa torrada temperada.
— Sempre está cheio de coisa acontecendo quando eu quero fazer algo
além de trabalhar — reclamei.
— Você está sendo egoísta, eu estou ocupada, você sabe que verão é a
época mais atribulada do ano para mim. Seu irmão está na rua faz pouco
tempo, sem estabilidade nenhuma. Nadia está incontrolável, a mãe dela
agora nem quer mais saber. E você quer ir sei lá para onde.
— Todas as pessoas citadas são adultas! — Respondi, irritada. — Vocês
podiam cuidar dos seus problemas, eu já tenho os meus e dou meu jeito de
resolver.
— Você tem estado tão ocupada que eu tinha esquecido de onde saiu a
rebeldia da sua sobrinha. Deon toma as piores decisões, mas nunca foi
rebelde. Seu pai era teimoso, mas calmo. Você tinha que puxar de mim logo
a rebeldia? Eu tinha coisas melhores para oferecer — ela enfiou a torrada na
boca e se afastou.
Eu lidava com esse tipo de papo desde a adolescência, piorou após a
morte do meu pai. Apesar da acusação, eu fugia do conflito com a minha
mãe quando ela estava com humor para isso. A gente tinha temperamento
parecido, sempre dava problema. Peguei minha bolsa e dei no pé. Atravessei
a rua e entrei no banco de trás do carro escuro.
— Vocês estão livres de ficar de tocaia aqui, me leva no estúdio do cara
que me dava aula lá na casa. Garanto que sabem onde é.
Os dois caras, já conhecidos por mim — ainda não gravei seus nomes
porque eles eram só o apoio, mas os chamava de baixinho e bigode — só me
olharam por cima dos ombros, ligaram o carro e nos botaram para rodar.

Annika 18:43
Consegui o papel que mais queria! Não
acredito! Vamos comemorar! Tô chegando em LA!
Raye 18:56
MENTIRAAA!! Vamooos!
Capítulo 22: Boa Sorte, Clarissa
ANTONIO

De acordo com as ações tomadas pela polícia em relação a onda de


violência que tem sido abafada pela administração municipal, somos
levados a acreditar que nada tem sido feito por tratarem-se de conflitos
internos do crime organizado. Em entrevista coletiva, o Prefeito voltou
a negar que haja falha nas investigações.
É verdade, Sr. Prefeito, que a polícia não está coibindo tais ações
por acreditar que não afetam diretamente o público? Que são questões
da máfia que age livremente e em breve, depois de seus próprios
conflitos quem garante que não se virarão contra nós? Quem garante
que não será uma onda pública de violência? — Amanda Pearce para
o LA Times.
Não existe levante de máfia alguma. Tais alegações apenas criam
polêmica e medo em meio a população que tem problemas reais e
urgentes para lidar. Há crime nas ruas, há atuação de gangues, tráfico
e homicídios que precisam ser evitados e investigados pela polícia.
Assumi com o compromisso de, junto ao governador, lidar com a
segurança pública. É disso que precisamos tratar, não de fábulas. A
máfia em Los Angeles está morta há décadas. Temos uma força tarefa e
unidades do FBI investigando a atuação geral do crime organizado no
Estado. Tudo além disso é tentativa de criar pânico em cima de teorias.
— Declarou o Prefeito Villaraigosa.

Para surpresa da polícia, em vez de mandar algo escrito e jogar tudo nas
costas dos meus advogados, no primeiro horário da manhã, atendi ao
chamado para esclarecimentos por livre e espontânea vontade. Mas cheguei
de surpresa. Não tinha ninguém importante me esperando, nem com algum
plano armado para tentar me fazer falar mais do que sobre o ataque que
sofri. Eram os detetives deles que botavam a mão na massa para investigar,
então, com certeza, eram bons o suficiente para colher o depoimento do cara
baleado no ataque. Certo?
— Eles eram seguranças, fizeram o trabalho deles — declarei, sentado ao
lado de Kasumi, minha advogada principal. Havia um time de advogados,
mas ela que resolvia e aparecia para esse tipo de situação.
No tiroteio, quatro dos meus seguranças foram baleados, dois deles de
forma superficial e o cara que estava na UTI não tinha bom prognóstico.
Tinha um morto. Mas eles derrubaram quatro caras e feriram outros que
fugiram. A polícia esperava que eu pudesse dar algum motivo para terem
atacado a minha casa. É claro que eu menti, depois que Kasumi fez o papel
dela de dizer que eu não era adivinho.
— Acredito que tenha relação com o que tem acontecido nos últimos
meses. Os senhores já me fizeram as mesmas perguntas. Dois dos meus
familiares estão mortos.
A ideia era não demorar, para não dar tempo de eles chamarem o
promotor, o chefe da força tarefa, o FBI e isso virar um circo que ia me fazer
perder tempo. Quando as perguntas estritamente relacionadas ao episódio na
casa foram cobertas com interferências dela para se manterem fiéis ao
assunto, Kasumi olhou o relógio:
— Meu cliente ainda está em recuperação, um tiro é algo que precisa ser
cuidado com diligência. Acredito que suas respostas cobrem tudo que
precisam para continuar o caso — ela abriu um leve sorriso, só embelezava
seus traços orientais, mas eu nunca vi ninguém sorrir de volta. Ela fazia isso
quando ia ser desagradável com o outro lado. — E começar a ir nos lugares
certos em vez de perturbar as partes atingidas. Caso precisem de algo mais,
eu sei que infelizmente sabem o meu telefone.
Fiquei de pé junto com ela. Meu papel público era de “parte atingida” e
disposta a cooperar, era assim que sairia nos jornais e noticiários. Kasumi
gostava de fazer a advogada tirânica que comandava o jogo. Não era ironia,
eu a pagava bem para isso e ela era boa. Rachel que era a atriz, eu não
entendia nada de atuação, mas quando você mentia a vida toda, a experiência
vinha.
Quando saímos, a notícia de que eu estava lá já havia se espalhado. Tinha
o dobro de gente no andar só para me ver passar. Não achei que já estava
com status de celebridade da sede da polícia. O promotor não ia gostar
quando soubesse que nem sua assistente principal chegou a tempo, mas o
chefe da operação tinha aparecido. Assim como os superiores dos dois
detetives que tomaram meu depoimento. Kasumi cumprimentava com
meneios de sua cabeça, eu os olhei como se não tivesse interesse particular
no que faziam.
No corredor que levava a saída, pois eu entrei e ia sair pela porta da
frente, tive um encontro mais inesperado do que Deon aparecendo do lado
do meu carro na primeira vez.
— O que você fez com ela? — Perguntou o rapaz, vindo na minha direção
com uma pasta que a alça marrom atravessava seu peito coberto por um
terno.
Kasumi continuou andando, com a atenção nas portas e no seu celular.
Parou alguns passos à frente quando notou minha falta. Eu tinha parado para
olhar o cara assim que o reconheci.
— Rachel! Você fez alguma coisa com ela! Ninguém sabe dela, ela não
está gravando e ela sempre está. Os colegas de trabalho não a veem há uns
dois meses. Karen não faz sentido no que diz. Ela nunca ficaria esse tempo
todo de férias! Você fez algo!
Ele não estava gritando, seu tom era baixo já que não estávamos sozinhos,
mas certamente exclamava perto de mim. Eu podia ter dito que não fazia
ideia do que ele estava falando, mas o idiota era o ex-namorado de Rachel, o
mesmo que vi a abordando no bar no nosso encontro. Bellini disse que ele
ainda frequentava alguns dos locais onde ela ia, como a cafeteria e aquele
bar.
E veja só a ironia, o idiota era assistente da promotoria. Sério, Raye? Ao
menos quando ela teve a péssima ideia de começar a sair com esse cara, ele
ainda não tinha esse emprego.
— Você a segue nas redes sociais? — Pela sua expressão, minha pergunta
o confundiu. Se ele esperava que eu fosse estúpido o suficiente para cair no
seu papo e ameaçá-lo no prédio da polícia, cheio de câmeras e oficiais em
volta, ele era ingênuo demais para o cargo.
— Claro. E daí? Ela desapareceu de todos os lugares onde sempre foi.
Tem dedo seu nisso e eu quero saber se aconteceu algo a ela.
Não pensei mais nesse cara, ele era passado, mas pelo que ele estava
falando, Rachel o bloqueou e não quis me dizer que seu ex-namorado
insistia no contato. E o filho da puta me encontrou dentro da central da
polícia. Por que onde mais ele sairia vivo por usar sua cota de pontos de
exclamações do mês para me incomodar?
— Então você e mais milhões de pessoas com certeza a veem diariamente
em fotos e vídeos. Não precisa ter vergonha de admitir que assiste tudo —
eu até procurei o celular no bolso, como se fosse mostrar.
— Pode ser tudo fabricado! Cadê ela?
Kasumi parou ao nosso lado e olhou o palhaço da promotoria de cima
abaixo.
— Por que você está respondendo um dos robôs do promotor? —
Perguntou ela, sua expressão era de asco.
— É pessoal — ele disse rápido.
Ela cruzou os braços e levantou a sobrancelha.
— Duvido. O Sr. Denaro não vai responder a mais nada. Se quiser o
depoimento, peça a transcrição.
— Eu tenho certeza que a Srta. Lund deve ter um e-mail no perfil para
entrar em contato com a agência que cuida dos negócios dela — avisei.
Kasumi franziu o cenho para mim. Ela só sabia sobre a mulher que estava
comigo na casa e que foi omitida de qualquer depoimento sobre o caso. Eu
não queria a identidade dela exposta. Esse cara me viu com Rachel uma
única vez e há meses. Por que ele achava que continuávamos nos vendo? Só
porque fui o último homem com quem ele a viu?
Esse puto não tinha como me intimidar, mas se Rachel estivesse vendo um
cara regular, ele teria esse comportamento hostil ou o fato de ela sumir era só
desculpa?
— É mentira, como tudo relacionado a você — acusou ele. — Ela não
responde, a mãe só diz que ela saiu de férias. Por qual outro motivo ela
inventaria isso?
Ele nem percebeu o quanto eu achava divertido que ela tivesse lhe dado
um perdido a ponto de deixá-lo desesperado. Para ele ter coragem de falar
comigo, estava obcecado. Rachel tinha esse efeito. Virei para Kasumi, antes
que esquecesse onde estava. Quem esse filho da puta pensava que era para
perturbar até a mãe de Rachel?
— Eu sei que não é a sua área, mas poderia lembrar a esse senhor sobre
leis de assédio e perseguição quando uma pessoa não deixa um antigo
parceiro em paz. Eu acho que ele faltou essa aula.
Kasumi era decidida demais para só “lembrar” e o enxergava como uma
ameaça legal, por causa do promotor. Ela entrou entre nós e apontou para
ele, usando o seu tom de ameaça que eu juro que era um dos melhores que
eu conhecia e olha o meio em que eu andava. Ninguém fazia ameaças leves
aqui.
— Se você assediar o meu cliente outra vez, eu o denuncio e processo. E
pare de perseguir essa moça, se ela não te responde é porque não quer falar
com você. Nós não temos informações sobre ela. Mas se ela quiser, eu dou
um jeito de te ferrar por persegui-la.
Eu o observava sobre a cabeça de Kasumi que só faltava bater com o dedo
no peito dele. Considerei a reação de Rachel se o ex sumisse e ela
desconfiasse que fui eu. Uma merda. Ela odiaria e eu não queria mais
motivos para afastá-la de mim. Só quando o olhar dele encontrou o meu que
o cara deu um passo para trás e eu acredito que ele entendeu ali que a menos
que ele me pegasse primeiro, se ele pensasse em Rachel outra vez, estaria
morto.
Ele deu outro passo para trás, eu suavizei a expressão e o olhar, estava
acostumado a fingir e tranquilizar estranhos.
— Não sei o que você quer, mas eu tenho internet e um celular — eu movi
o aparelho, como se provasse sua existência. — Eu, você e milhões de
pessoas podemos ver que ela fica mais linda a cada dia.
A tensão no corpo dele mostrava que ele não havia comprado meu tom
ameno, pelo menos mostrou que não estava no emprego errado. Kasumi não
tinha cerimônia, devia ser os quase dez anos trabalhando para mim. Ela que
lançou um olhar de ameaça para o assistente do promotor e me levou para as
portas. Rachel podia não gostar o quanto quisesse, se ele não sumisse do
meu radar, eu lhe daria motivos para a hostilidade com que nos olhava.

◆◆◆

Falei que não ia anunciar no jornal das dez que estava vivo e ativo. Em
vez disso, saí para minha ronda diária entre os meus dois mundos. E
aproveitei para admirar meu novo CDD, mais moderno, com espaço bem
aproveitado. Estava quase pronto, faltava o último andar e os prédios
auxiliares que também queimaram. Eu tinha mandado retomarem as rotas
padrão desde o momento que os fiscais saíram de lá, com aprovação para ele
funcionar. Não pagava a aprovação, essa eu preferia conquistar, eu pagava
para eles aparecerem na data que eu queria.
Já que eu ia sair da cidade, adiantamos o evento e o inauguramos quase
como um novo barco, cortei a fita, posei para fotos, estourei o champanhe e
dei declarações para minha assessoria espalhar nos jornais. Aqui na
superfície, esse era o meu papel, mesmo que estivesse oficialmente me
recuperando de um terrível ataque. Pobre Sr. Denaro — diziam nos
escritórios da Lorenza/ALGN. — Não tem um minuto de paz.
Não tinha mesmo.

Antonio 17:12
O que você está aprontando pela cidade?

Gasolina 17:14
Fui ver o Oliver no estúdio dele e vou ver a
Annika. E vc?

Antonio 17:15
Tenho mais uns lugares para ir hoje. Vou te
ver mais tarde?

Gasolina 17:17
Claro, pq não veria?

Ela era uma dissimulada. Bellini me ligou para dizer que ela o mandou
voltar só no dia seguinte, aparentemente tinha mudado de ideia. Entrei no
carro e fui para o próximo compromisso, com a certeza de que ela estava
aprontando algo. Eu não ia jantar com ela essa noite, então ela fingiria que
nada aconteceu. Estava apaixonado até pelas suas mentiras.

Antonio 17:19
Até mais tarde

Em vez do jornal, escolhi o clube onde ia com Alessandro às vezes.


Apesar do nome, era no sentido mais antiquado da descrição, nesse clube
não tinha gente dançando sob luzes ofuscantes ao som de batidas insistentes.
Mas tinha gente para me ver e contar aos outros. Eu gostava de entrar no
restaurante principal e ver os ocupantes das mesas e cabines ficarem
estáticos, se tivesse alguma mão tremendo era melhor para o efeito
dramático.
Sentei numa mesa com Pietro e Ogul. Seção de não fumantes. Pedimos
carne e acompanhamentos, o rosbife era ótimo. A mesa era para quatro,
ficou um assento livre a minha frente. Ao lado de Pietro que era menos
ameaçador do que Ogul. Eu ainda estava no aperitivo quando Nino apareceu,
tentando controlar seu jeito nervoso e esperou eu indicar que ele podia se
sentar. Trocou duas frases de cumprimentos e parou de gastar meu tempo.
— Eu sabia que era mentira, claro — disse ele, depois de um olhar rápido
para Ogul, certamente lembrando que ele quase o colocou no moedor. —
Mas com Morales, nunca se sabe. Ele já fez coisa pior.
Continuei o observando. Reparei que sua mão estava ótima depois que
cortei os dedos que devolveram sua coragem. Soube que ele ficou dois
meses sem comer carne depois de ver o desgraçado traidor que ele tinha
como parceiro virar carne moída. Pelo jeito o choque tinha passado, as
opções vegetarianas do clube eram uma vergonha.
— Você também soube das contas? — Ele tinha trazido o próprio copo,
bebeu rápido. — Se chegarem em mim, como vou manter minha operação
para me proteger dele?
— E já chegaram?
— Não, o contador olhou tudo, cada centavo entrando e saindo.
— Ótimo.
— Eu vi sua mensagem, mandando ficar fora do radar.
— Por que você não vai visitar sua esposa? Ela vai odiar te ver, mas as
crianças não sabem de nada — sugeri, ele tinha dois filhos que, pelas minhas
contas, logo estariam mais altos do que aquele miúdo cheio de tremeliques.
— Ela gosta de mim. Eu sou bom pra eles — esclareceu ele e eu nem
reagi a sua defesa. — Eu a enviei para levar as crianças na Disney. De Paris.
Sob nomes falsos.
— Tem voo saindo para Paris todo dia.
— É tão sério assim?
— Eu não estou liberando mais ninguém, Nino. Se te dou uns dias para
infernizar as férias da sua família, você aceita. Só uns dias. Então você volta
e se deixa ser conduzido, deixe o advogado esperando no aeroporto.
Desde o negócio com o Nieves, Nino estava mais nervoso do que antes e
desde que começou a história com Morales, eu pensava em mandá-lo tomar
calmantes. Ele não conseguia decidir se tinha mais pavor de Morales ou de
mim. Um tiro era mais fácil, mas eu não tinha motivos no momento e
começar a matar pôr o sujeito me incomodar ia secar uma estrutura já
prejudicada.
Obrigado, Vito. Ainda aproveitando seus presentes.
— Claro, Diabolik. Eu nunca fui a Disney de Paris, acredita?
A comida chegou, Nino ficou de pé.
— Eu sei como te achar e falar com você — movi a cabeça, ele sumiu de
volta para sua mesa.
Ultimamente as reuniões não davam certo. Em uma delas explodiram tudo
e todos. Na primeira que fiz quando voltei, tive que matar e ameaçar quem
sobrou. E a outra foi o estopim para a situação atual. Mas era o que eu estava
fazendo ali, não? Parecíamos ratos sem casa por não poder nos encontrar no
Teatro.
Cinco dos meus aliados sentaram a minha frente do aperitivo à sobremesa
e mais um para o café. Todos falando da mesma coisa: o boato sobre as
contas, apesar de nenhum deles ter sido afetado. E também dos movimentos
do FBI e da força tarefa e sempre deixando Morales por último, como um
assunto desagradável que não queriam falar, mas eram obrigados.
— E o Teatro? — eles sussurravam.
Ela está sozinha. Não acendo uma vela há dias. Não sangro há semanas.
Ela não me chama. Eu não ‘escuto o silêncio’. — Contaram eles, esperando
que eu desse conta da relação geral com Tácita porque não havia ninguém
fazendo isso.
Mack me ligou quando eu estava indo embora, ele devia estar chapado ou
bêbado, pois ligou no número que sabíamos estar grampeado e eu usava para
ter as conversas mais tediosas para divertir o FBI e só falava da parte
legítima das minhas empresas de alimentos.
Na última semana Jeanne e eu usamos essa linha para nos lamentar, como
se estivéssemos profundamente perturbados e abalados pelas mortes de dois
entes queridos. Ela ainda sentia a perda do pai, lamentava o que teve de
acontecer ao irmão, mas não era com aquelas palavras da ligação que
expressávamos nossos sentimentos.
— O que aconteceu? — Perguntei assim que atendi.
— A criança está vindo! E Jeanne entrou numa banheira cheia e não quer
sair! — gritou Mack.
— Chamou a ambulância?
— Sim, eu… Vai chamar atenção!
— Estou indo, me liga para confirmar o hospital — desliguei.
Entrei no carro e liguei no número emergencial, onde nenhum dos dois
estava grampeado.
— Antonio! E se alguém estiver vigiando? E se nos atrapalharem! —
Gritou ele.
— Ninguém vai atrapalhar nada, para de choramingar.
Ao fundo, ouvi a voz de Jeanne mandando Mack lhe dar o telefone. Ele
tentou poupá-la e ela gritou para ele entregar. Logo depois escutei sua voz
ofegante e entrecortada por dor, mas nítida em suas palavras.
— Eu vou parir essa criança antes do tempo, Antonio — ela pausou, ouvi
o som de alguém segurando a dor. — Eu não quero saber se ele era o melhor
amigo de papai, ele é horrível.
Aguardei enquanto ela tirava outro momento para ofegar e sentir sua dor.
Ao fundo, Mack gritou que a ambulância estava lá.
— Você vai lá esperar enquanto me abrem pra tirar essa criança. Vai atrás
da droga da ambulância! Não quero saber! Onde você estiver, vai ser o local
mais protegido para eu terminar logo com isso! — Nesse ponto ela já gritava
e ofegava.
— Estarei lá, meus homens também.
Ouvi os sons de mais pessoas chegando, eles tinham seguranças com eles,
mas eu podia compreender a reação: Ninguém se sentia seguro atualmente.
Eram décadas ouvindo sobre os feitos de Morales e seu jeito de lidar com
seus inimigos. Agora, todos do meu lado estavam automaticamente contra
ele. E ninguém aqui duvidaria que os homens dele seriam capazes de entrar
no caminho de uma ambulância ou atrapalhar de qualquer forma que
colocaria Jeanne e o bebê em risco.
Agora eu era o chefe da família, se ia nascer uma criança nova no meio da
maior disputa de poder que ACCA via em décadas, eu estaria lá.

Antonio 22:04
O bebê da minha prima vai nascer, estarei no
hospital

Gasolina 22:10
Ok, bom parto para ela. Dá notícias

Jeanne não teve um bom parto, o bebê estava adiantado. Ela chegou a LA
falando do seu parto natural, mas foi obrigada a passar por uma cesariana.
Ela passou o tempo todo amaldiçoando uma deusa que ninguém sabia quem
era e a acusando de odiar mulheres. Mas ambos sobreviveram, eu não
poderia dizer o mesmo de Mack que foi parar em um leito para se acalmar
até poder vê-los.
Sentei e esperei, já que eu não ia dormir, trabalhei do celular, as pessoas
que eu precisava também não dormiam cedo. Ainda bem que só os federais
vigiariam nossa ida ao hospital e eles eram péssimos fofoqueiros, se
dependesse da mídia, todos já saberiam que a filha de Nascari estava dando à
luz em um hospital cheio de seguranças.
Nascer na minha família ainda não era ilegal, mas seguro jamais seria.
— Eu queria tanto que fosse uma menina — Jeanne finalmente pode
passar um tempo com a criança, depois das primeiras horas na incubadora.
— Estou tão feliz. Eu também fui a primogênita do meu pai, se fosse homem
ele teria feito comigo o que fez com você. Como odeio matar gente, tomei
conta dos negócios. É isso que ela vai ser. É assim que vai sobreviver no
nosso mundo. Pode me chamar de doida, mas eu quero que Tácita a aceite.
Se eu não fosse jurada, já estaria morta.
Ela olhava firmemente para o bebê minúsculo, planejando como ia
garantir segurança e poder para a pequena. Eu estava encostado na porta,
planejando tirá-la da cidade de novo. Jeanne insistiu em voltar, porque ela
era exatamente assim, mas se tivesse as mesmas ambições do irmão, Vito e
ela já teriam se matado. O pai nunca lhes daria a opção de não se envolver,
para Nascari, ACCA era um legado.
Em vez disso, era a filha em quem Nascari confiou segredos e boa parte
de seus negócios legítimos. Ficar fora de LA a impediu de ficar no comando
do que ela queria e ainda não seria agora que isso ia mudar. Para o meu azar.
Sem ela, continuava tudo no meu prato.
— Meu amor, o que a médica disse, você mal pode se mexer — Mack
voltou com as coisas que a esposa pediu.
Jeanne o ignorou, ela já não sentia dor, estava fingindo para os médicos. A
bebê precisava de cuidados, ela nem tanto. E minha prima só tinha morrido
para ser vista e para jurar, pelo jeito Tácita não a odiava tanto assim.
— Fecha a porta, não posso levantar daqui — mandou ela.
Eu estava justamente na porta, então fechei, entendi que ela me queria do
lado de dentro.
— Eu estou perdendo tempo e dinheiro. Papai odiaria, não foi para isso
que ele me deixou responsável pelo que importava em vez de deixar Vito
tomar tudo. E foi para você poder fazer o seu trabalho — ela apontou para
mim.
— Eu sei, é o que estou fazendo.
— É o que você está tentando fazer e estão tentando te impedir. Primeiro
foi o meu irmão, agora o meu tio. Aquele rato traiçoeiro.
— Você sabia que isso ia acontecer — apontei.
— Sim. Mas eu achei que estaria mais ativa quando acontecesse.
— Por acaso ia dividir tudo com seu irmão ou seu tio?
— Nem ferrando! — Reagiu ela, irritada.
— Jeanne, pelo amor de Deus. Você não pode se alterar — Reclamou
Mack, tentando soar firme. Ele sabia a verdade, mas merecia um desconto,
eu juro que estaria preocupado se fosse a minha esposa. Mesmo que ela
fosse jurada.
Ela respirou, procurando se acalmar. Ainda estava irritada por nada ter
saído como planejou e por ter precisado parir em meio a essa situação toda.
Só relaxava quando olhava para a filha.
— Eu sei que ele não é inexperiente como Vito e está dando muito mais
trabalho. Mas, eu quero ficar em LA e voltar a trabalhar assim que Clarissa e
eu estivermos bem — ela olhou a menina, enrolada de um jeito que mal
aparecia.
— Você não vai ficar em LA agora — informei.
— Isso é ridículo, eu sou parte do seu plano.
— Você fez sua parte. Agora precisa ficar viva.
Jeanne revirou os olhos, mas cedeu porque sabia que era verdade e agora
ela tinha um bebê absolutamente indefeso para priorizar.
— Quando eu voltar do meu período de licença, eu espero que você já
tenha feito o que era impensável até pouco tempo. Arranque a cabeça dele,
Antonio. Senão, estamos ferrados.
— Prometi um enterro limpo.
— Então dê um tiro na testa e espere ele ficar morto. Tem maquiagem
para buraco de bala — respondeu ela.
Eu os deixei com sua adorável e minúscula filha, que agora eu precisava
ter certeza de que cresceria com os pais para criá-la e que não ia sofrer
nenhum susto antes de, pelo menos, completar um ano de vida.
— Preciso de um lugar novo, espaçoso, reservado, luz natural, jardim, tão
normal que seja tedioso. Na costa oposta, território aliado e tão ao norte que
o verão já chega lá com preguiça — disse ao celular e escutei meu secretário
dizer que ia encontrar.

Gasolina 07:34
E a priminha?

Antonio 07:39
Saudável

Gasolina 07:41
Isso é tudo que você pode produzir?

Antonio 07:43
Ela é minúscula e adorável

Gasolina 07:44
Tem foto?

Antonio 07:45
Eu não vou tirar foto da criança alheia

Gasolina 07:46
Sua prima deve ter tirado umas cem só nessa
primeira hora.
Eu quero ver. Pede uma!

Jeanne ia pensar que eu estava doido, pedindo foto de sua recém-nascida.

Antonio 07:55
[foto]

Gasolina 07:58
AHH!! Que coisa mais miúda e fofucha!

Gasolina 08:03
Você não vai vir para casa dormir?

Antonio 08:05
Eu vou tomar banho no escritório, é um dia
novo
Não posso dormir por metade dele
Capítulo 23: Irada e Apaixonada
RACHEL

O meu celular tocou e quando vi o nome da minha mãe, por algum motivo
já imaginei que era problema. Ultimamente ela só me ligava quando
acontecia algo, fora isso, falava comigo por mensagens.
— Fala, mãe. Como está?
— Você vai ter que voltar aqui, Rachel — avisou ela, naquele tom de
problema.
— Por quê?
— Vem agora e vem rápido. Nadia me ligou.
— O que ela arrumou agora?
— Dessa vez é sério. Ela ligou chorando, disse que pegou o celular
escondido. O namorado bateu nela e não quer deixá-la sair de lá — ela
pausou. — Tenho certeza que ela começou a cheirar também. Você precisa
trazê-la para casa, enquanto a gente pode reverter isso.
— Cadê o Deon?
— Por que acha que te liguei? Seu irmão não pode saber disso! Não fala
nada! Se ele for lá, vai matar esse garoto e vai acabar preso de novo.
— Por que agora você só me liga para resolver problema?
— Você não percebeu? Desde que o seu pai morreu, você resolve as
coisas. Você assumiu esse papel, ainda mais com o seu irmão na cadeia. Vou
enviar o endereço. Vai buscar minha neta, ela ainda te escuta.
Ela desligou e bufei. Eu podia até desconfiar que minha mãe sabia da
suposta outra vida de Antonio, mas como isso podia ser relevante para ela
me enviar a casa de um bandidinho de merda para pegar minha sobrinha sem
juízo? Não importava na mão de quem estava a arma, o tiro que ele desse
podia me matar do mesmo jeito.
Troquei de roupa e fui procurar Bellini, provavelmente estava na sala de
café ou no escritório. Encontrei-o junto com Denver.
— Eu vou sair — informei e continuei porque aprendi que com eles era
melhor dar logo o panorama completo. — Preciso ir à casa de um soldadinho
raso de gangue para buscar a idiota da minha sobrinha. Com certeza tem
armas lá. É capaz de ele não estar sozinho com ela. Nem sei se é onde a
família dele mora. Só sei que ela está lá e eu vou buscá-la. Com ou sem
vocês.
Denver ficou me olhando como se calculasse o tamanho da encrenca.
Bellini parecia ter chegado há pouco tempo, então só tirou a arma do coldre,
checou e guardou, depois tocou os pentes do outro lado para ver se tinha
balas suficientes.
— Vamos — ele ficou de pé e Denver fez o mesmo.
Estávamos atracados na marina desde ontem, Bellini fez uma ligação e
entramos no carro, passei o endereço para ele. Denver parou por uns dez
minutos antes de pegarmos a expressa para os arredores de Watts. Aproveitei
para continuar comparando as opções que eu tinha para a minha sobrinha.
Eu estava decidida a parar de desculpá-la por todas as besteiras que fazia.
Ela não era mais criança e eu ia até o fim para ajudá-la a tomar algum rumo.
Eu não tinha a experiência e muito menos a paciência para lidar com um
filho dessa idade. E com meu pai morto, Deon preso por quase três anos,
minha mãe deixando a cidade para temporadas de trabalho, a mãe de Nadia
super atarefada com dois filhos pequenos e um emprego. Minha mãe tinha
razão quando dizia que eu comecei a “resolver” as questões familiares dos
Lund. Não ia deixar Nadia na mão.
Eles receberam um toque no celular e seguiram viagem. Óbvio que
alguém já havia dito a Antonio no que eu estava me metendo, porque o meu
celular tocou.
— Você ia à casa de um idiota de gangue buscar sua sobrinha só com dois
homens? Você não sabe o que tem lá — disse ele.
— Ele é um babaquinha, não tem uma mesa cheia de capangas na
cozinha. Ele se acha muita merda. — Eu estava irritada com a situação toda,
com minha mãe, com as besteiras de Nadia e principalmente com aquele
garoto. — Garanto que Bellini sozinho já dava conta.
— Eles sempre têm algum outro babaca por perto. E você já estará
ocupada com a sua sobrinha.
— Eu vou dar um jeito nisso, antes que lhe aconteça algo ainda pior.
— Cuidado. Entre como se fosse fazer uma visita.
— Claro, uma maravilhosa visita social.
Chegamos à casa do babaca, eu estava tão irada que não conseguia
lembrar o nome dele de jeito nenhum. Era algo com R… Raf… Rag… Acho
que era apelido. E não fazia a menor diferença para mim, eu o chamaria de
babaca. Desci do carro com Bellini e Denver, o outro veículo parou do lado
oposto da rua, como se não tivesse nos seguido.
Bellini deu uma olhada em volta e só tinha umas pessoas passando, a casa
tinha dois andares e era absolutamente normal, parecia pertencer a qualquer
família de posses medianas. Duvido que era aqui que esse babaca morava e
cometia seus delitos. Lembrei que uma vez eu duvidei desse cara e Nadia
informou, como se fosse um grande feito, que ele tinha seu próprio espaço
desde que fez dezoito. Ou seja, 3 anos antes de ela o conhecer.
Denver indicou um portão, vi um corredor independente, cheio de plantas
no topo das paredes. Não estava trancado, o entra e sai devia ser intenso.
Segui pela lateral e fui bater à porta dos fundos de uma casa separada e
menor. Bellini e Denver estavam um de cada lado, fora da visão da janela.
— Quem é? — A voz era de homem. Eu não poderia afirmar que era o
cara.
— Ei, Papi, você não ligou! Vim te ver! — respondi, usando uma adorável
voz feminina, aguda e sugestiva.
A porta abriu e pela expressão dele, ia dizer a qualquer uma das suas
garotas que era para voltar depois. Mas só deu tempo de piscar e uma arma
foi enfiada na boca dele. Bellini o agarrou pelo pescoço e o puxou para fora.
Denver entrou antes e checou o local, eu fui atrás e o cara foi empurrado
para dentro. A porta bateu.
— Mas que porra! — Reagiu ele.
Denver apareceu, segurando um outro garoto pelo cangote. Sobre a mesa
no canto, havia duas armas, umas garrafas de cerveja, embalagens vazias de
comida e uns pacotinhos que pareciam ser cocaína.
— Nadia, sai daí agora! — Chamei.
A casa era pequena, tinha a sala ligada a cozinha e três portas, mas pelo
espaço, só uma podia ser outro cômodo grande e foi dali que Nadia saiu. Já
com aquela cara de choro, seu rosto estava marcado, os olhos estavam roxos,
ela estava maltratada. Minha sobrinha tinha o tom de pele mais escuro que o
meu e mesmo assim eu podia ver as marcas, ou seja, não foram batidas
leves.
— Eu sabia que vovó ia te mandar! Só para aumentar minha humilhação!
— Choramingou ela.
Eu me virei e olhei em volta, tinha uma barra de madeira perto da janela.
Fui até lá e peguei, apontei para o babaca.
— Por que você bateu nela?
Ele ficou quieto, olhando para mim com raiva estampada no rosto.
— Por que caralho você bateu nela? — Perguntei mais alto.
— Ela foi uma vadia mentirosa e malcriada! Não pode me desrespeitar na
frente dos meus...
Eu o acertei com a madeira na lateral da cabeça. Já deu nos meus nervos
na primeira frase.
— Solta ele — disse a Bellini.
Ele soltou e se afastou. Eu segurei a madeira como um taco e bati de
novo. E de novo.
— Rachel! — Gritou Nadia, apavorada.
— Cala a boca! — Apontei para ela.
Ele estava no chão então o empurrei com a sola do tênis.
— Você se acha o foda, né, seu babaca de merda! Quem você pensa que é
para bater na minha sobrinha? É muito homem pra partir pra cima de uma
garota com metade do seu tamanho! Filho da puta de merda! — Bati de novo
e de novo e mais umas cinco vezes até a madeira quebrar e ter algo quebrado
nele também.
Nadia chorava e balbuciava. Bellini observava como se eu estivesse
pintando um quadro e ele fosse obrigado a esperar. Denver só segurava o
outro cara, que respirava como se ele que estivesse apanhando.
— Fica no chão — mandei, como se o cara tivesse condições de levantar.
— Rachel, por favor… — pediu Nadia.
— Ele te bateu, não bateu?
— Sim… — ela passava os dedos embaixo dos olhos machucados.
— E disse que você não podia sair, não foi?
— Eu só queria ir embora — choramingou ela, cobrindo o rosto, até suas
mãos tinham arranhões.
Eu me virei para o outro idiota.
— Por que esse babaca está aqui? Ele te obrigou a foder com ele?
Ela ficou quieta.
— Obrigou ou não? — Insisti, perdendo a paciência que já não tinha.
— Não! Eu não peguei ela! — Reagiu o cara. — Eu só estava aqui!
— E não tocou nela?
— Eu não!
Tornei a me virar para Nadia e perguntei baixo, com todo o tato que eu
tinha escondido em algum lugar do meu ser, mas que desaparecia quando eu
estava irada.
— Não mente para mim. Ele botou a mão em você?
Ela negou com a cabeça.
— Botou ou não? — Repeti.
Minha sobrinha finalmente pareceu entender que nenhum dos dois
babacas podia fazer nada e me olhou.
— Ele só ficou bebendo e cheirando enquanto o amiguinho dele me
machucava.
— Isso é covardia, porra! — Gritou o idiota.
— Ah! Agora é covardia! Quando eram vocês dois com uma garota,
estava tudo certo! — Eu olhei em volta e mirei Bellini. — Quebra aquela
cadeira pra mim.
— Não! — Gritou o amiguinho.
Bellini quebrou a cadeira de péssima qualidade e me deu a perna. Eu a
agarrei, o cara se preparou para levar uma na cabeça, mas eu acertei o saco
dele com a ponta. Ele se dobrou, Denver o soltou, eu o chutei e bati nele
com a perna da cadeira até ele estar dobrado no chão. Bati menos, só porque
não foi ele que deu uma surra na minha sobrinha, mas ficou olhando.
— Pega o que tiver de seu aqui — disse para Nadia. — Anda!
Ela entrou correndo no quarto e voltou com uma mochila, olhou para os
dois caras no chão e chegou perto de mim. Segurei seu queixo e a olhei,
avaliando o estrago.
— Mas que droga, Nadia. Nunca mais, entendeu? Nunca mais vai voltar
aqui, nem se meter com um desses merdas. Ele te trata mal faz tempo. Vai lá
pra fora.
Nadia abraçou a mochila, mais miserável do que nunca. Ela deu uma
olhada nos caras, estava mais impactada pelo que aconteceu do que magoada
como no momento em que saiu do quarto.
— Raye… O que você vai fazer com eles?
— Já fiz. Sai logo.
Ela saiu e eu me virei para os dois.
— Se eu só imaginar que um de vocês ou um desgraçado amigo de vocês
chegou perto dela ou de qualquer um relacionado a gente, eu vou encontrá-
los e enfiar um taco nesses rabos secos até sair na goela. Depois vou botar
fogo nos dois e em quem mais estiver junto — prometi, no tom mais
ameaçador que eu conseguia produzir. Podia até ser um blefe, mas apesar da
carreira em produção, eu ainda era uma atriz.
Deixei a casa e soltei o ar, minhas mãos tremiam e estavam machucadas
por causa da primeira madeira que quebrou no meio. Pergunta se eu me
arrependia. Nem um pouco. Bellini parou ao meu lado. Denver saiu logo
depois, trazendo os dois pedaços da madeira e o resto da cadeira. Ele botou
na mala do carro.
— Eles são uma ponta solta — avisou Bellini. — Nunca deixe pontas,
principalmente quando não tem ligação emocional com elas.
— Eu dou surra em gente quando estou muito irada. Mas eu não mato
ninguém. — disse baixo, olhando os pequenos ferimentos nas minhas mãos.
— Eles não precisam sumir hoje, mas depois eles vão voltar. Acredite.
Eu assenti e dei a volta no carro.
— Você vai para a reabilitação — informei a Nadia, abri a porta e a
coloquei para dentro.
— Rachel, por favor, foi só uma vez. Eu só queria…
Eu respirei fundo enquanto o carro saía e passei o braço em volta dela,
abraçando-a sem apertar muito, não sabia onde mais aquele desgraçado
havia batido. Ela havia levado uma surra, não foi só um soco e eu estava sem
coragem para perguntar se ele tinha abusado dela de mais alguma forma.
Então ia arranjar cuidado para ela.
— Não me importa. Você vai para a reabilitação. Tem psicólogas lá, você
vai conversar com elas. Esquecer esse cara de vez. Lembrar desse episódio
só como aprendizado.
— E o meu pai?
— Ele vai saber depois e é você que vai contar — eu a afastei e a olhei. —
Se o seu pai soubesse disso, ele ia chegar aqui e dar um tiro na cara daqueles
dois. Ia ser muito pior para todos nós.
— O que eu vou fazer? Minha mãe também não pode saber disso, ela já
não acredita em mim. Que droga! — Ela desabou de novo e escondeu o
rosto no meu ombro.
— Ninguém mais vai saber. Eu vou pagar sua reabilitação. Quando voltar,
nós vamos conversar sobre opções, à toa você não pode ficar.
Quando saímos do carro na mesma clínica de sempre, com a entrada
escondida na parte de trás, Antonio estava lá. Ele olhou o rosto da minha
prima e franziu o cenho.
— Quebrou alguma coisa? — Perguntou.
Eu olhei para Nadia, ela ficou confusa ao vê-lo, mas também não tinha
perguntado nada sobre Bellini e Denver.
— Acho que quebrei um dente — murmurou ela, com o olhar voltado
para o chão.
— Eles dão um jeito — ele moveu a cabeça, indicando a passagem
discreta.
Não era minha primeira e nem segunda vez ali, o que me lembrava o
quanto eu estava profundamente envolvida num submundo novo. A
enfermeira vestida de rosa levou Nadia e eu aguardei enquanto ela ia tirar
aquela roupa e ser examinada.
— Eu soube que você matou dois caras — disse Antonio.
— Eles morreram?
Ele cruzou os braços enquanto me olhava.
— Um deles barbarizou com a sua sobrinha e ainda a prendeu. O outro foi
cúmplice. Então você deu uma surra neles. Os dois são envolvidos com
drogas, tem armas e amiguinhos do mesmo mundo. Acha que depois de tudo
que aconteceu, vou deixar dois babacas de merda soltos para foder com a sua
vida?
Eu cobri os olhos com a mão direita e levei uns segundos só respirando.
— Eu estou com muita sede, pode ir à máquina pra mim?
Ele foi, voltou com uma garrafa de água com gás, abriu e me entregou.
Bebi um longo gole e respirei fundo.
— Não dou a mínima para eles, mas é uma merda — declarei.
— Sim, com certeza.
— Não vou resolver mais nada. Esse foi meu ponto final.
— E a sua sobrinha?
— Vai para a reabilitação. Para ver se ela nunca mais cheira nada e nem
dorme com idiotas que descem a mão na cara dela e a tratam como lixo —
balancei a cabeça, lamentando.
Senti uma estranha vontade de chorar, meus olhos arderam. Eu estava
irada e queria arrasar com a vida daqueles dois babacas, mais ainda quando
vi o estado de Nadia. Ver a minha sobrinha toda arrebentada tinha mexido
comigo.
— Droga — eu passei os dedos pelos olhos, tentando não chorar. As
lágrimas eram uma mistura de raiva, decepção e lamento.
— Tudo bem — ele me abraçou e esfregou as mãos nas minhas costas. —
Você já escolheu o lugar?
— Tem dois que são muito legais, eu queria ligar antes.
— Então liga de manhã — ele deu uma olhada no relógio, estava
escurecendo.
Eu ia levar Nadia para a minha mãe e assim que arrumasse o lugar dela na
reabilitação, ia entregá-la. Não faltavam clínicas assim nos arredores da
cidade dos ricos, famosos e viciados em todo tipo de droga. Eu conhecia
duas que ofereciam o que eu precisava para uma garota que não parava de
tomar péssimas decisões, tinha falta de amor-próprio e resolveu cheirar umas
carreiras com o namorado que batia nela.
Afinal, essa era a história de várias artistas mirins, com a mente ferrada
pela fama e vida pública desde muito cedo. Nadia foi poupada da fama,
mesmo assim ela tinha uns 80 mil seguidores no Instagram, que
acompanhavam sua vida de jovem garota bonita e desocupada que ia para a
farra em LA. Era muita gente seguindo uma menina que não postava nada
além de foto de dela e festas com o mesmo grupinho. Os posts sobre a vida
no colégio tinham terminado e ela nunca postava do trabalho que estava em
teste.
Ela até havia ganhado uns trocados com publicidades para seu nicho de
adolescentes impressionáveis, mas eu não queria incentivá-la nisso. Eu
precisava que ela adquirisse bom senso e motivações pessoais.
— Eu devia ter dito isso antes, mas nada é muito normal aqui, não é? —
Eu me afastei dele e bebi mais um gole de água. — Esse negócio entre a
gente…
Eu movi a mão, usando os dedos para nos indicar. Antonio mantinha o
olhar fixo na minha face.
— É algo indescritível e disfuncional. Nada acontece como deveria,
nenhuma expectativa é real e nem sei o pior que poderia acontecer. Você já
disse que me magoaria para me proteger.
— Eu quis dizer que teria de contrariá-la. E eu faria, Rachel.
— Entendi o que você quis dizer. O que só torna tudo mais doido. Mas se
algum dia você me machucar, se sonhar em meter a mão em mim do jeito
que aquele merdinha fez com ela, eu vou embora. Talvez, eu seja o seu
maior arrependimento, Antonio. Porque se vier para cima de mim, eu vou
pegar o que for para me defender e vai ser um desastre. Eu acabei de quebrar
alguns ossos de dois caras, se me bater, eu vou esquecer o que sinto e vou
tentar quebrar em você também. Só que você não é um babaquinha e
estaremos sozinhos, você vai revidar.
— A gente não vai enveredar por esse caminho.
— E nunca deixa de ter uma arma por perto — murmurei.
— É o mundo ao meu redor que é um perigo, Rachel. Eu não vou te
machucar. Não vou bater em você. Não é assim que vai funcionar esse
negócio entre a gente.
Eu cruzei os braços e virei o rosto. Continuava perturbada pelo que
aconteceu a minha sobrinha. Não importava as más decisões dela, nada
justificava isso.
— Rachel… — chamou ele, o tom firme como pedra.
Voltei a olhá-lo, minhas emoções borbulhavam e a tampa tinha caído, não
havia nada para deter minha derrocada.
— Eu sou doida por você, não sei que droga deu em mim que não consigo
mais pensar em não te ver de novo, eu vivo para respirar o mesmo ar que
você, meu corpo até trava com a ideia de te deixar. Mas se você fizesse isso,
eu iria embora na hora. Se tentar me dominar com porrada e me prender, eu
só vou parar de lutar quando você me matar. Enquanto houver vida em mim,
eu não quebro. Não vou querer saber quem vai me encontrar e me pegar, eu
não volto para você nunca mais.
Ele balançou a cabeça e me surpreendeu ao me apertar, ele me abraçou e
me manteve lá, não tentei me mover. Antonio fixou aqueles olhos escuros
em mim, com a testa franzida e preocupação ocupando sua face.
— Essa ideia é tão absurda que meu raciocínio falha, ferra tudo na minha
mente. Eu não estou mais doido por você, já estou fora de mim. Minhas
decisões são por nossa causa.
Eu me movi entre seus braços e ele apertou mais, não sei porquê foi mais
fácil confessar do que suportar a sensação de ouvir a voz dele ao dizer o que
eu preferia não reconhecer. Antonio possuía sentimentos e ele estava
entregando-os para mim.
— Eu possuo coisas, sobrevivo por poder, tenho apego e orgulho de
negócios e conquistas, mas não amo porra nenhuma na minha vida. Só você.
É foda, é errado, é o que você disse: disfuncional. E fico alucinado só de
pensar nisso. Nunca vou superar o que te fizeram. E a merda é que eu vou te
magoar, não tem como eu não ferrar com algo nessa história. Mas não vou te
machucar, não vou deixar mais ninguém te ferir — ele balançou a cabeça. —
Eu acredito em você.
Coloquei as mãos sobre o rosto e balancei a cabeça, a garrafa gelava a
dobra do meu braço. Antonio queria ferrar comigo. Eu não estava com o
emocional controlado o suficiente para lidar com meus sentimentos por ele e
os dele por mim. Era um nocaute. Já podia entrar o comercial com Justin
Timberlake cantando TKO. Eu estava na lona.
— Já pode ficar com ela — disse a enfermeira de rosa, olhando da porta
do consultório.
— Ela já vai — Antonio disse sobre o ombro.
Ele abaixou minhas mãos e disse:
— Vai ficar tudo bem.
— Não, não vai — neguei.
— Nós vamos resolver isso.
— Não! Estamos presos no inferno! Eu também te amo, seu diabo
maldito! — Eu segurei o rosto dele e o beijei repetidas vezes, mas o deixei lá
e entrei no quarto para colocar algum espaço entre nós.

◆◆◆

Pólvora 16:23
Você não fez a mala?

Raye 16:25
Não
Raye 16:25
Mas eu nunca desfiz, não vou ficar no iate

Pólvora 16:26
Deixa tudo aí, vem me encontrar

Raye 16:27
Deixa tudo aqui… você é engraçado. Mas dos
biquínis você gosta

Pólvora 16:28
Eu te compro um mar de biquínis aqui. Vem me
encontrar

Raye 16:29
Que horas são aí?

Pólvora 16:30
Uma e pouca da manhã. As lojas abrem às 9:30,
você tem tempo suficiente para repor tudo

Raye 16:31
Eu consigo viver uns dias só com uma mala

Pólvora 16:32
Duvido. Estarei te esperando em Nápoles
Capítulo 24: A presto, Lorenza
PÓLVORA

— Tem cinco anos que você não vem aqui? — Perguntou Vittorio, quando
já estávamos a caminho do cemitério.
— Sim, conforme as coisas só pioravam, eu fiquei sem tempo de vir
lamentar no colo da minha mãe.
— E nosso pai? Por que ele ficou lá?
— Lorenza nunca quis ser sepultada com ele — eu virei o rosto para ele,
entre todos os assuntos que estávamos tentando colocar em dia, nossos pais
não eram um tópico favorito. — Não era esse tipo de amor.
Eu não tinha ilusão alguma sobre o meu irmão mais novo, ele já tinha sido
corrompido e endurecido. Vittorio não estava imaginando um amor utópico
entre nossos pais, ele simplesmente não tinha informações para imaginar
nada. Eu tive cinco anos a mais para conviver com eles e entender minhas
lembranças com um olhar adulto. Assim como eu, ele nem acreditava nesse
tipo de sentimento que sepulta apaixonados juntos sob o véu do amor eterno.
Se ele precisasse de um exemplo, eu teria de falar sobre meu problema
com Rachel. Era tudo que eu tinha, nada mais. Era poderoso, violento e para
ser vivido intensamente a curto prazo, antes que eu parasse de respirar ou
provocasse sua morte. E ninguém me convenceria que isso não era a
desgraça do amor, obsessão nenhuma me subjugaria assim.
Difícil era saber a hora de parar. Nesse momento eu não conseguiria. Nem
visitar o túmulo da minha mãe me tranquilizou. Estava inquieto e
insatisfeito, minha roupa era sob medida, mas parecia pequena. Eu só
sossegaria quando visse Rachel no mesmo metro quadrado onde eu estava.
Ela ia devolver meu equilíbrio habitual porque eu ia botar as mãos nela e
tragá-la até forçar a serenidade de volta.
— Eles funcionavam do jeito deles. Ela fingia que não sabia se ele traía.
Ele a protegia, dava tudo a ela e as crianças. Eles planejavam mais filhos
enquanto ele incomodava muita gente ao crescer em dinheiro e poder, então
ele não quis dançar conforme a música… o resto você sabe.
— Na verdade, não sei — lembrou ele.
— O que te contaram?
— Quase nada. Nossa avó só falava do nosso pai em termos de perda e no
quanto ele conquistou em vida. E pintou nossa mãe como uma flor bela e
frágil. Porque na cartilha de Linda Cali, se alguém te machuca, você não se
destrói, você se vinga.
— É difícil de engolir, mas ela não está errada, está?
— Não — ele olhou pela janela enquanto balançava a cabeça.
O carro chegou e aquela conversa desconfortável teria que continuar no
cemitério ou em outro dia mórbido. Entramos, com flores novas para
Lorenza e seguimos até seu túmulo. Agora os dois irmãos estavam mortos,
ela e Nascari. Existia mais uma irmã que se mudou para o norte do país. E
outros familiares perdidos.
De um jeito ou de outro, o túmulo estava sempre limpo e bem cuidado.
Um de nós mandava os fundos para a manutenção e pelo pouco contato que
eu tive com meus parentes maternos, os mais velhos ainda visitavam. Era
uma grande construção em mármore, com uma placa em bronze, com
dizeres em sua homenagem e uma representação dela, feita direto no metal.
A família mentiu sobre a morte dela, queriam um enterro católico e sem
perguntas. Seu corpo chegou a Itália com a informação de que ela foi
assassinada. Sinceramente, foi o que fizeram. Deixaram um corpo morto
voltar para casa para se despedir de mim e sofrer por dois dias, antes de não
suportar mais o peso de ter ficado viva. Eu tinha 10 anos e sabia que minha
mãe estava morta, ela não voltaria a ser aquela que eu conhecia.
— Creio que também vou demorar a voltar — Vittorio deixou suas flores,
ele não estava falando comigo.
Era a primeira vez que a visitávamos juntos. Vinte e cinco anos depois de
ela ser enterrada. Não contei ao meu irmão sobre a promessa que fiz de
encontrar seus restos mortais e trazer para enterrar com Lorenza.
Não foi só para isso que voltamos. Estávamos no país há quatro dias,
Vittorio terminou umas questões. Ele não tinha fugido de vez para Nova
York, tinha ido ficar uns dois meses para descobrir mais sobre o passado e
ficar longe do seu trabalho. Em seu último contrato, ele tinha de matar um
traidor, mas percebeu que era uma cilada e ele ia ser exposto como culpado.
A essa hora, estaria na cadeia ou seria um fugitivo procurado. Então ele
matou o cara que o contratou, sumiu com ele e partiu.
Ele ficou de pé, parou ao meu lado e esperou que eu colocasse minhas
flores e fizesse minha oração por ela. Nós sequer orávamos pro mesmo
Deus, mas Lorenza era católica e eu sabia de cor seus ritos preferidos. Não
falei em voz alta, só sentei lá um pouco e passei a mão pelo rosto, enquanto
escutava os pássaros emitindo sons diversos nas árvores em volta. Tinha
uma base mais baixa bem à frente da estrutura, parecia ser feito para isso:
sentar e confessar. O que Lorenza me diria nesse estágio da minha vida? E o
que eu poderia lhe dizer que fosse só sobre mim?
Mãe, milagrosamente, continuo vivo.
Conheci alguém. E eu quero mantê-la comigo.
Acabei cumprindo a promessa que te fiz.
E sinto muito que levou todo esse tempo para virmos aqui.
Se a vida permitir, volto outra vez.
Fiquei de pé e olhei o relógio, não íamos demorar. Minha ligação com
esse país era a minha origem, não estava devendo nada. Mas meu irmão
ainda estava comprometido.
— Eu sabia, antes do DNA. Estava bem ferrado no barco e no avião, não
pensava direito, ainda mais com a injeção que você me deu. Mas naquela
clínica, quando você voltou, vi a tatuagem no seu pescoço. Quem mais ia
tatuar um ALGN?
Ele moveu o braço, indicando o que eu já sabia. Ele teve a mesma ideia
boba e sentimental. Minha sigla estava na vertical, do lado direito do meu
pescoço, mais para a parte de trás, poucos centímetros abaixo da orelha. A
sigla dele estava na parte da frente do braço, na horizontal, dois dedos acima
da dobra do cotovelo.
Todo mundo só a conhecia como Lorenza Denaro, antes disso ela foi
Lorenza Nascari. Mas ela também se chamava Lorenza Alagna por parte de
mãe. Alagna: ALGN. Fiz quando era bem mais novo, imagino que ele
também. Mas não tinha nada a ver com maturidade, eu faria de novo. Mães
são eternas. Especialmente quando as poucas lembranças boas que tem dela
na infância só incluem carinho, cuidado, amor… e uma tragédia.
— Eu só vi a sua tatuagem quando você recebeu alta, pois antes você
estava todo coberto de gaze e esparadrapo — provoquei.
Vittorio sorriu e deu uma olhada no visor do celular para ver a hora. Ele
disse que os desgraçados de NY levaram o relógio que ele gostava, seus
pertences ficaram lá e ele só teve tempo de deixar o barco e comprar o
básico para o seu guarda-roupa. De qualquer forma, segundo ele, não
morava muito tempo em lugar nenhum, suas roupas cabiam numa mala. Mas
trajava um terno para visitar a mãe.
— Vou esperá-lo ali, ela gosta de paz e nós dois somos caos e problemas
— disse ele, dando uma última olhada para o túmulo da nossa mãe.
Éramos dois adultos com problemas de superação sobre o fim brutal da
mãe. Quando eu tinha onze anos, a psicóloga do colégio disse que era
normal eu sentir que a morte da minha mãe era o fim da minha principal e,
talvez, única conexão emocional, mas que eu teria muitas outras. Era
verdade, mas ela também estava errada. Ela não sabia quem eu era. Muito
menos quem eu me tornaria.
Pessoas como nós não forjam conexões com facilidade e nem devem fazê-
lo. Nosso tipo de vida não permite. Vira fraqueza e sentença de morte. Como
disse Vittorio, somos caos na vida de qualquer pessoa, especialmente
daquelas que nos importam.
Chegou uma mensagem no meu celular, olhei e me afastei, para a conexão
que mais me importava.
Capítulo 25: I Fell in love with the
devil
GASOLINA

Deixei o país só com Bellini e Iana, dessa vez nem ela ficaria no iate, mas
não significava que estaria ancorado na marina de Los Angeles o tempo
todo. Seria visto por aí, como uma distração, para não saberem se Antonio
tinha ou não retornado. Ele partiu e a assessoria deixou escapar que ele foi se
recuperar e visitar parentes fora do país. Tudo para manipular a opinião
pública e confundir o tal do Morales que também não era visto há semanas.
Eu não falei mais com ele, só trocamos mensagens quando ele descobriu
que eu não estava pronta nem para ir ao aeroporto. Não falamos muito desde
o dia na clínica, na manhã seguinte eu fui deixar minha sobrinha na
reabilitação e ele deixou a cidade.
Aproveitei que Annika estava na cidade e fui com ela para resolver uns
contratos dos seus novos trabalhos, também a tranquilizei. Já não me sentia
tão culpada por mentir; ela estava feliz com o papel que conseguiu. E eu
estava contente por ela não ter notado meus seguranças ou meu jeito
esquivo. E por saber que ela ia sair da cidade de novo. Não podia perder a
única amiga real que me sobrou, mesmo que precisasse permanecer afastada
por um tempo.
Nós só partimos três dias depois e chegamos lá no quarto dia, eu também
tinha minha vida para resolver e desculpas para inventar antes de deixar LA.
Arrumei para fazer as consultas por vídeo com a psicóloga e os treinamentos
com o professor de teatro que ficou aliviado por não correr o risco de
encontrar Antonio.
Pelas informações que recebemos, quando desci no aeroporto de Nápoles,
estava trajada de acordo com o local onde iam me levar: vestido e chapéu
pretos, com óculos escuros, bolsa e sapatos de acordo. Bellini e Iana também
se vestiram como se a ocasião pedisse. Fazia tempo que eu não ia a um
cemitério, meu pai escolheu a cremação.
Quando passei em meio aos túmulos altos e o vi se aproximando, foi
como se nem um dia tivesse passado e uma eternidade houvesse se
estendido. Parei entre as sepulturas altas, com cruzes em seus topos e
mármore escurecido cobrindo-as. Ele se aproximou em seus trajes escuros e
planejados, escolhidos para a ocasião, uma visita formal depois de tanto
tempo.
Juntei as mãos e apertei o polegar, o que eu disse não foi um impulso
coisa nenhuma. Poderia me arrepender de tudo, mas não de dizer a verdade.
Eu estava apaixonada por aquele maldito diabo e estava para lá de
encrencada. Pode trocar a música, coloca a Avril Lavigne e seu obscuro I
Fell In Love With the Devil. Era meu novo tema e nada poderia me salvar
dele ou de mim mesma.
Levantei o olhar para sua expressão quando ele parou a minha frente e
pousou as mãos nas laterais do meu rosto e pescoço. Antonio me observou
como se pudesse ler as informações que queria estampadas na minha face e
no jeito que eu o encarava. Eu acho que podia.
— Gasolina — murmurou ele.
— Pólvora — respondi.
— Fogo — completou e seu olhar se iluminou. — Você veio.
Suas mãos deslizaram para minhas costas e eu me encaixei naturalmente
entre seus braços. A aba flexível do meu chapéu se dobrou sobre o ombro
dele, encostei o rosto contra ele e fixei o olhar nas flores que deixaram junto
a uma daquelas estruturas.
— Achou que eu ia te dar uma volta?
Ele balançou a cabeça.
— Não, mas com você prefiro ver e sentir em vez de pressupor — suas
mãos desceram pelas minhas costas e senti o aperto na cintura. — Vem
comigo.
Em vez de deixarmos o cemitério, ele me guiou até um espaço mais
afastado e paramos à frente de um túmulo com flores recém-colocadas de tão
frescas, também estava limpo e bem cuidado. O tempo havia agido na pedra,
mas não a degradou. Li o nome e era exatamente quem eu não esperava
“conhecer”, mas sabia estar na sua casa.
Bom dia, Lorenza. É um prazer conhecê-la, mesmo que preferisse que
fosse em outras circunstâncias.
Avistei Vittorio de longe, recostado perto do caminho principal. Não me
importava quem eles eram, meu coração apertou ao ler o nome na sepultura.
Todos esses anos de uma relação inexistente entre eles e era assim que
vinham aqui para visitar a mãe.
Foi uma parada breve, eu não tinha flores para ela, vim direto do
aeroporto. Antonio me levou pelo caminho principal e Vittorio seguiu na
frente. Bellini e Iana deixaram o cemitério uns cinco minutos depois, acho
que também tinham alguém para visitar ali. Eu já tinha parado de me
surpreender em como a vida dessas pessoas era entrelaçada.
— Te encontro no hotel — Antonio avisou ao irmão, enquanto me levava
para o veículo em que eu vim.
Ele abriu a porta e entrou comigo, tirei o chapéu e deixei sobre o colo, ele
sentou junto a mim e passou o braço pelos meus ombros.
— Que hotel é esse? — Perguntei.
— Perto da costa, é discreto.
— Para partir mais rápido?
Antonio só assentiu e me beijou, segurei-me a ele que mantinha meu rosto
em sua mão, apagando meu raciocínio e criando um redemoinho de prazer e
paixão onde eu ficava presa quando ele me fazia mergulhar nele. Senti o
carro entrar em movimento para nos levar ao hotel com o qual não me
importava mais. Ele me puxou para mais perto, meu chapéu caiu no chão do
carro quando me deixei inclinar até seu peitoral ser meu principal suporte.
Não sei o que estava pensando, porém, ao vir encontrá-lo, não sabia o que
esperar e não pensei que ele ia me beijar agora. Não passei um batom seco,
era um gloss hidratante que deixou seus lábios brilhando e avermelhados.
Tateei em busca da abertura da bolsa, lá dentro tinha lenços embalados, não
cabia muito mais além disso e o celular.
Ele me beijou de novo e desisti de nos limpar do brilho do meu gloss. Nós
estávamos em um utilitário escuro com Bellini e Iana nos bancos da frente,
não tinha divisão, não falamos mais nada. Só o usei como minha grande e
quente almofada, que conseguia me abraçar de volta.
O hotel era um perfeito exemplo da arquitetura histórica de Nápoles e
mais parecia uma grande mansão, tinha três andares e uma decoração
organizada, vívida e personalizada que em nada parecia com o estilo
perfeitamente padronizado dos grandes hotéis de redes mundiais. Das janelas
dava para ver o Golfo de Nápoles tomando a paisagem e o Vesúvio ao longe.
Só ao chegarmos que percebi que Vittorio não nos seguiu no outro carro,
pelo que entendi ele costumava morar naquela região, devia ter seus assuntos
para terminar. Pois ele ia voltar para LA conosco e pretendia chamar nossa
cidade de lar.
Se todos nós sobrevivêssemos.
Não vi outras pessoas quando entramos e pelo tamanho do hotel e o
número de quartos necessários, eu nem queria saber como eles reservaram o
que devia ser o local todo no fim de verão numa das cidades turísticas mais
visitadas do sul do país. Uma das coisas que descobri antes de Antonio e eu
nos separarmos, foi que a família materna dele costumava viver em Nápoles,
por isso Lorenza foi enterrada nos arredores da cidade. Quando soube que
Vittorio viveu não muito longe dali, comecei a criar teorias, mas teria de
descobrir mais.
Antonio puxou minha mala tamanho GG: grande, larga e rígida. A suíte
era no terceiro andar, vinha com uma sala contínua, era tão espaçosa que só
tinha duas no hotel. Meu olhar se prendeu num armário de cor vermelho
vívido, na cama branca, no sofá cor de areia e nas vigas de mármore que
pareciam ter séculos. As paredes tinham um padrão branco e azul, mas
apesar do espaço e amenidades, dava impressão de sermos convidados numa
casa tradicional e não hóspedes sem rosto.
— Você continua me levando para os lugares sem me informar o traje
necessário — acusei e ele riu.
— Seu vestido é lindo e eu imagino que caiba muitos trajes numa mala
desse tamanho.
— Eu disse, precisava só de uma mala. Deixei o resto lá — “resto” não
descrevia tudo que ficou, eu estava vivendo com minhas malas, incluindo
itens antigos, novos e recebidos. Era como um closet ambulante. Consegui
resumir tudo em uma mala grande e uma mala de mão que eu trapaceava e
não contava porque parecia uma bolsa de couro. Fiz a seleção imaginando
que permaneceríamos no litoral.
Atravessei o quarto assim que a porta bateu e minha mala enorme estava
segura do lado de dentro, larguei a mala de mão perto da janela, descansei a
clutch de ombro numa mesa e dei uma olhada na costa. O hotel não era
grudado ao mar, mas a vista era desimpedida, o dia só não estava aberto,
estava nublado e prometendo chuva para o fim da tarde.
Antonio se livrou do paletó, estávamos todos com a mesma paleta de
roupas pretas para a ocasião. Ele apareceu atrás de mim, senti seu corpo se
encaixando ao meu, seus braços em volta do meu torso.
— Você demorou — disse ele.
— Demorei?
Ele me girou e eu descansei os antebraços sobre seus ombros enquanto
observava seus olhos de pólvora se fixarem no meu rosto.
— Isso não vai funcionar, eu me arrependi no avião. Posso te dar o que
pedir, mas um tempo, com você em LA e eu do outro lado do oceano; não
vai acontecer mais.
— Foi estranho — prensei os lábios, não estava acostumada com esse tipo
de relação em que a falta da outra pessoa era um incomodo ativo e
verdadeiro. Muito menos em deixar isso transparecer.
— Não consigo relaxar o suficiente para dormir, vou te proteger de mim
de outro jeito. E você vai resolver suas coisas em menos tempo. Quatro dias,
Rachel? Para quê?
— Nós dois sabemos porque eu enrolei e porque você foi sem dizer muito,
a gente se retrai depois de se expor demais.
— Eu ia te buscar se você não aparecesse aqui na hora. Você é um
aprendizado constante para mim, mas não vou assimilar a parte em que nos
separamos.
— Me atrasei só um pouco. Você sai para conquistar sei lá qual mundo,
mas volta para dormir comigo. É assim ultimamente, vir te encontrar em
outro país é admitir de novo que me apeguei a essa realidade.
— Essa se tornou nossa única realidade, Raye. Eu vou voltar para onde
você estiver. Você pode me mandar para o inferno ou me dar um tiro.
— Não… Pode voltar, eu deixo.
Eu o puxei pelo rosto e o beijei, desejava-o exatamente onde estava. Suas
mãos desceram pelo meu corpo com uma familiaridade excitante até
segurarem meu traseiro. Talvez fôssemos matar a saudade de dormir juntos,
mas seria mais tarde. Ele abriu meu vestido e o empurrou dos meus ombros,
esfregou seu rosto no meu colo, senti seus lábios no meu pescoço, beijando
minha pele enquanto ele respirava meu cheiro e me mantinha perto.
Antonio subia pelo meu pescoço e me arrepiava e beijava, eu gostava, ele
dizia gostar do resultado do perfume na minha pele. Usei pouco quando saí
do banho no avião e ele procurou o cheiro, fazendo-me sorrir e me
desmanchar. Sua barba arranhou entre meus seios, eu usava um meia taça
que não cobria muito sem a proteção do vestido.
Ele levantou o rosto e eu o beijei, Antonio me tirou de perto da janela,
meu vestido tomou um fim pelo chão. Até o jeito que ele me abraçava contra
seu corpo era excitante, achei que já teria superado essa fase, mas ele me
tocava e pronto. Abri o cinto dele, desci seu zíper e puxei a camisa para fora,
Antonio não perdeu tempo com os botões. Vislumbrei seu peito exposto e
quis me esfregar nele inteiro.
Envolvi seu pescoço enquanto ele empurrava a camisa pelos braços e
tentava não parar de me beijar. Antonio pegou por baixo do meu traseiro e
me levantou só para me botar mais perto da cama, como se eu não soubesse
que era para lá que ele queria me levar, pelo jeito não seria na janela dessa
vez.
— O ombro, seu doido dormente! — Reagi, me segurando nele.
A gente tombou por cima do pufe comprido que ficava junto aos pés da
cama, eu ri quando caí sobre ele, lá se foi a preocupação com o ombro.
— Passa um tempo por cima em prol do meu ombro — sugeriu o
descarado dormente com ombro de aço e um sorriso enorme.
— Você não tem um pingo de vergonha e autopreservação — eu beijei
seus lábios, sobre o seu resquício de sorriso.
Sentei sobre as coxas dele e Antonio se apoiou nas mãos e me olhou.
— Que sutiã bonito, Raye. Tira pra eu ver.
— Você gosta de me ver tirar a roupa. Confessa — é claro que meu sutiã
era lindo, Savage Fenty nunca decepcionava, nem pra mim que gostava de
me ver na lingerie e nem para o boy sacana com quem eu transava e adorava
ver a beleza da peça saindo do meu corpo.
O olhar dele acompanhou o sutiã descendo pelos meus braços e expondo
meus mamilos eretos. As mãos dele rodearam minha cintura, Antonio beijou
meus lábios, depois beijou sobre o meu mamilo.
— É disso que eu mais gosto, Gasolina — ele me experimentou, lambeu
meu mamilo e o tomou na boca.
Eu apoiei as mãos nele e me ofereci para a exploração. Antonio me
segurou e ficou de pé, colocando-me no pufe e se inclinando sobre mim para
me beijar. Empurrei sua calça que desceu o suficiente para me mostrar mais
daquele corpo que me excitava facilmente. Ele deu uma olhada da minha
calcinha, tão bonita quanto o meu sutiã, mas sorriu quando a puxou pelas
minhas pernas. Eu achei graça da sua satisfação.
Ele me puxou para a beira do pufe e ajoelhou, beijou minha barriga e
desceu até beijar meu ventre, quando deitou a cabeça para trás e me encarou
com aqueles magníficos olhos escuros, salpicados e desejosos, pelos quais
eu tinha uma queda terrível, não pude fazer nada além de me inclinar e beijá-
lo.
Antonio roçou os lábios ainda úmidos do meu beijo pelo interior da minha
coxa e puxou meus quadris para a beira, obrigando-me a inclinar para trás.
Eu senti seus lábios nos meus lábios externos, ele beijou bem na dobra da
minha virilha e elevou as minhas coxas, expondo-me para ele. Sua
respiração quente me causou excitação, sua língua deslizou pelo meu
clitóris, ele repetiu o movimento lento e eu estremeci, um gemido baixo
deixou meus lábios, meus olhos se fecharam enquanto as primeiras
sensações me envolviam como um casulo.
Olhei para baixo, observá-lo ali sempre me deixava super estimulada. Ele
estava de joelhos entre as minhas pernas, seu rosto pressionado no meu sexo,
seus braços contra o meu corpo, suas mãos segurando meus seios. Meus
dedos afundaram nos seus bíceps, ele controlava o meu corpo, mas estava
relaxado. Antonio gostava de me ver ter prazer, mas ele havia fechado os
olhos, com sua testa levemente franzida e seus lábios selados em mim. O
desgraçado era bonito até enquanto chupava uma boceta.
Ele levantou o olhar e apertou meus mamilos, irradiando um choque de
dor prazerosa que desceu pelo meu corpo diretamente para onde a boca dele
estava. Eu reagi, movendo as pernas e ele me conteve.
— Abre as pernas e só se mexe para gozar — ele apertou meu tornozelo,
eu tornei a me expor para ele.
Seus dedos entraram em mim, deslizando facilmente de tão molhada que
estava, Antonio beijou minha coxa e me estimulou com dois dedos.
— Porra, Rachel. Encharcada pra caralho — ele sussurrou com aquele
tom de que tinha exatamente o que queria. — Me dá mais.
Eu não tinha muito mais para dar, ele sabia que eu ia gozar, só não ia me
ceder isso facilmente. O jeito que seus dedos esfregavam e bombeavam,
instigando as partes mais sensíveis na entrada do meu sexo, causando
espasmos de prazer. Ele esfregou sua língua no meu clitóris inchado, o
contato insistente me deixou na beira.
— Por favor, por favor — eu não era de pedir muito, não dava tempo, mas
as vezes a necessidade era maior.
Tombei no pufe, os gemidos saíam sem parar, ele apertava meu tornozelo
para me manter do jeito que queria, com sua boca e seus dedos em mim.
Antonio me chupou até eu explodir em sua boca. Foi uma bagunça, eu gritei
e tentei me segurar, minha boceta pulsava continuamente. Cerrei os olhos e
cobri o rosto, perdi o controle dos músculos das pernas, só sabia estar
tremendo. Ele tirou os dedos e eu estava tão sensível que foi outro tiro no
meu corpo.
Olhei para baixo, ofegante e sem palavras. Estava molhada, causei um
estrago na droga do pufe e não tinha consciência suficiente naquele instante
para sentir culpa. Antonio estava satisfeito e faminto. Ele ficou de pé e
terminou de empurrar a calça, expondo a ereção grossa e dura pra caralho. E
eu não tinha a menor condição. Ele não queria minha boca, não queria um
ótimo oral. Só queria trepar.
Antonio empurrou minhas coxas, nem se preocupou em passar para a
cama. Apoiou os braços por baixo dos meus joelhos e me preencheu. Um
grito curto deixou meus lábios, meus olhos se encheram de lágrimas e eu
latejei em volta do seu pau, apertando-o no meu interior. Aquele desgraçado
maravilhoso se moveu, eu vi estrelas e meus dedos afundaram no pufe.
Ainda achava que ia cair dali, mas que se danasse, porque ele me fodeu.
Minha cabeça dançou no ar e ele me pressionou. Mas quer saber, o pufe
não tinha estrutura para aguentar aquele homem se apoiando por cima de
mim. A gente caiu no tapete felpudo que cobria o chão a frente da cama. Ele
absorveu o impacto e me rolou sobre seu corpo. Apoiei os joelhos no chão,
as mãos sobre a pele tatuada do seu peito, Antonio me pegou pela lateral do
cabelo e pelo quadril. Sentei no seu pau e ele me elevou, ajeitando no lugar.
— Fode rápido, Rachel, porra — mandou ele, puxando meu cabelo entre
os dedos, causando um choque entre a dor, o prazer e a excitação que ele me
causava.
Antonio bombeou e eu revidei. Continuava tão molhada que ele entrava e
saía repetidamente indo até o fundo do meu sexo. Ouvia nossos corpos se
chocando, mas meu corpo nunca desceu daquela nuvem de êxtase, ele só
prensava mais e mais camadas na minha perdição. Ele me puxou para baixo,
doía, droga. Mas eu queria. Vi seus olhos queimando de tesão, nem perto de
estarem anuviados, porque ele precisava de mais. E eu só conseguia gemer
para ele.
— Sentiu tanta falta que não consegue nem falar, sua desgraçada gostosa
— ele me puxou, minha boca cobriu a sua e eu ri um pouco, não conseguia
falar mesmo.
— E você é doido por mim. Só por mim! — consegui dizer, ofegante, só
para desafiá-lo.
— Viciado, caralho! Mais forte! — ele me deu um tapa, bem na parte
mais macia, como se meus quadris precisassem pegar no tranco.
Sua mão desceu do meu cabelo para o meu pescoço e ele apertou,
mantendo-me levemente inclinada do jeito que ele queria assistir. Eu
estremecia sobre ele, incapaz de qualquer controle. Gemi, choraminguei e
gritei, com minhas unhas afundando nele e o gozo me roubando da realidade
outra vez.
Antonio me tombou, apoiou as mãos no tapete e me arrasou quando meteu
de novo. Apertei-o com as pernas e ele tirou de mim até o último resquício
de reações e sensações. Meu corpo tinha virado uma mistura de carne,
nervos e tesão, porque meus ossos e músculos eram gelatina. Ele me marcou
com sua boca em meu pescoço, seus dentes mordiscaram e eu o arranhei tão
forte que ele grunhiu e se arqueou sobre os braços. Ele parou um momento
sobre mim, com todo seu peso, os músculos fortes de suas coxas e braços
mantendo-me no lugar.
Seu corpo inteiro se arrepiou e ele estremeceu tão intensamente que achei
que tombaria sobre mim. Mas ele se moveu, gozando dentro do meu sexo,
inchando, retesando e relaxando por segundos deliciosos que ele cavalgou
até a última gota que seu corpo ia ceder.
Só então ele me cobriu completamente, beijou meu pescoço onde antes
tinha machucado, sua boca grudou na minha e o beijo foi molhado, quente e
caótico. Antonio deixou meu corpo e parecia que eu tinha molhado tudo de
novo. Ficamos no tapete. Aquilo ia doer mais tarde, mas no momento só
respirávamos sob aquela nuvem quente e mágica do pós-orgasmo.
Eu sei que havia saudade e tal. A falta de segurança sobre o nosso
reencontro e ele despejou seus sentimentos sobre mim e também sobre voltar
aqui depois de tantos anos. Mas a realidade é que a gente também não sabia
se comportar depois de se declarar e ia compensando do nosso jeito torto.
— Saudade — foi tudo que ele disse.
— É assim que você sente saudade? — Murmurei.
Não sei se ele me ouviu, mas descansou a mão na minha coxa e virou o
rosto para mim:
— Mente pra mim — juro que não foi um pedido.
Também virei a cabeça para ele e disse:
— Não.
Então voltei a olhar para o teto e falei a verdade:
— Saudade.
Não sei se ele sorriu, mas imaginei que sim.

◆◆◆
Annika 07:35
Como assim saiu da cidade?
Annika 07:38
Você sabe que vou gravar fora de LA, né?

Raye 08:43
Enlouqueci! Fui atrás do cara da comida. Te
encontro na volta. Fica segura!

Nós só ficamos na Itália por mais um dia. Vittorio voltou com uma mala
pequena e disse que era tudo de relevante que tinha para levar dali, porém,
Antonio e ele saíram naquela manhã. Eles continuavam conversando em
italiano em certos momentos, principalmente quando Vittorio estava alterado
e eu só entendia umas partes que me davam pistas do rumo da conversa.
— Usei o Cali enquanto crescia, durante a infância eles nem me disseram
o nome do nosso pai até eu mesmo o aprender no colégio. Então me
instruíram a não contar de onde vinha, para minha segurança. Eu soube mais
quando fui visitar nossa avó em NY, já com uns dezesseis anos e não entendi
porque nunca conheci ninguém mais além dela. Ela que vinha aqui visitar
por uns dias, gostava de passar uma parte do verão.
— Eu não tinha muito contato com ela, vivemos em lados opostos do país
e eu não podia ir a NY. E quanto mais crescia, menos queria me relacionar
com ela. Eu sabia a história, tirando a parte de você não estar perdido numa
vala — disse Antonio.
Eu estava na mesa com eles, entretida no assunto enquanto não parava de
mastigar meu café da manhã.
— Não foi só Linda que mentiu, eles tinham de saber algo ou teriam sido
tão enganados quanto eu. O que seria impossível — Vittorio virou um gole
do seu café. — Eles sabem que você existe, Diabolik.
Eles estavam nesse assunto justamente porque iam até lá juntos, no último
lugar que Vittorio iria antes de partirmos. Antonio ia com ele visitar seus
parentes italianos da parte da sua avó, com quem ele nunca teve contato. E
foi por isso que ela mandou o neto para lá e ela mesma retomou o contato.
Eram relações familiares bem estranhas, Vittorio não foi criado na cidade
grande, mas numa típica cidade do sul italiano, cheia de prédios históricos,
com alguns castelos, palazzos medievais, como ele me disse. E também
igrejas e basílicas.
— Torno presto, Benzina — Antonio beijou meu rosto e se despediu
enquanto falava com o irmão.
Nós nos separamos de novo, dessa vez eu o encontraria no aeroporto. Não
creio que eles achavam que estavam indo para algo perigoso, Vittorio estava
tenso porque voltar ali e encarar a mentira na qual viveu mexia com seus
sentimentos.
— Eu quero sair, vou olhar o que tem por aqui, tem uns prédios históricos
aqui perto — avisei.
— Dá tempo de ver umas butiques — disse Iana, olhando o relógio
delicado e caro em seu pulso. — Butiques italianas e superfaturadas — ela
abriu um sorriso.
Eu ainda não sabia exatamente qual era o trabalho de Iana, atualmente ela
era minha nova babá junto com Bellini, seu marido e minha sombra. Tá, eu
disse “babá” por ironia, ela era um alívio como companhia feminina. Sempre
que estava com Antonio eu ficava rodeada de homens, entrei nessa situação
inesperada de morar com ele e até o chef que vinha umas vezes na semana
preparar a comida e deixar coisas prontas era um homem.
— Ótimo! — Peguei a bolsa e a segui. — Eu marquei algumas coisas no
mapa do celular, queria ver.
— Então vamos lá em cima deixar as malas prontas. Podemos ir de lá.
Flavio não vai nos atrapalhar — ela virou na direção dos elevadores.
Ah, sim, ela só chamava Bellini pelo primeiro nome. O que ainda me
custava segundos para identificar, pois na minha cabeça além do seu
sobrenome, só o chamava de “outro careca”. E a verdade era que Ogul era
realmente careca, já Bellini tinha a sombra do cabelo tão rente em seu couro
cabeludo que eu me recusava a mudar o apelido.
Então, eu vi as butiques sim, várias delas, marcas famosas na via principal
e outras menores e ótimas, espalhadas em ruas finas. Nós duas entramos,
compramos roupas, acessórios, chapéus… depois comemos e vimos alguns
dos locais que marquei no mapa. “Flavio” e o baixinho de bigode não
atrapalharam em nada. Eu estava ficando melhor em fingir que eles não
estavam ali, não sei dizer se isso era bom ou ruim.
Capítulo 26: Arrivederci, Zia
ANTONIO

Eles me olharam como se eu fosse um ser de outro mundo. E um ET


bastante esquisito, talvez com uma tromba no lugar do nariz e uns chifres
envergados para completar a aparência demoníaca.
Os mais velhos já haviam morrido, vinte e cinco anos não eram vinte e
cinco dias e minha avó era a caçula. Não era uma família numerosa daquele
lado da árvore genealógica e estávamos em outros tempos, vários dos mais
novos foram para cidades maiores. Eles moravam em Campagna, não
chegava perto de ser a menor da região, mas dependendo de suas ambições,
com certeza precisaria se mudar. Levamos pouco mais de uma hora e meia
para chegar aqui de carro.
— Mio fratello, Antonio — Vittorio me apresentou.
Entendi que pensavam que nunca mais o veriam. Ele tinha se envolvido
na vida e lá era assim que enxergavam as coisas. Apesar disso, a família pelo
lado materno de Linda não envolvida no crime, não significava que não
sabiam ou que não tivessem membros envolvidos no passado. Linda Cali já
estava no segundo casamento dentro da máfia italo-americana e era uma
desgraçada com poder próprio. Eles não sabiam nem de um terço de tudo
que ela já fez, eles eram a família da nossa bisavó. A corda desse parentesco
estava bem esticada.
— Ou Diabolik, como agora eu sei que sabem — continuou ele, sua
expressão era nula, mas o olhar era de ressentimento.
— Nós não sabíamos, ela disse que o mais velho morreu. Tem poucos
anos que ouvimos sobre Nascari e o que ele estava fazendo — eles não
tinham relação nenhuma com a família da minha mãe, mas sabiam quem
eram.
A mulher que nos recebeu, Constanza, era filha do irmão mais velho da
nossa avó, segundo minhas contas, isso nos tornava primos. Ela aparentava
ser mais velha do que Linda, que — ao contrário dela — diminuiu a ação do
tempo com cirurgias e tratamentos e parecia ter uns vinte anos a menos.
— Só então descobri que meu pai sabia — ela me olhou. — Sobre você, o
filho mais velho do meu primo que eu mal conhecia também. Linda pintou
de um jeito que foi preciso ser assim, era a forma de mantê-lo vivo. Ela não
vem mais aqui, Vittorio cresceu e também tem morado por aí. Para que ela
voltaria?
— Ela é assim, não é pessoal. Se você serviu ao seu propósito, pode ficar
onde está. E é melhor ela não vir, as coisas mudaram, pode não ser mais
seguro — contei.
— Vou acreditar em você — decidiu ela.
Não espere festa e abraços de nossa parte. Eu não conhecia aquelas
pessoas e nem elas a mim. Mas tomamos café, moído na hora, apimentado
com canela, subindo fumaça à frente de nossos rostos. Para eles era uma
despedida, Vittorio não voltaria aqui por uns anos.
— Despeça-se de titia, ela está na casa dela, sabe como ela é — pediu
Constanza.
A residência de zia era perto o suficiente para andarmos até lá. Entrei em
outra casa, essa menor, porém arejada e decorada como uma janela no
tempo.
— Ela que passou mais tempo comigo quando cheguei, seu filho foi
embora, levou seus dois netos, eles tinham mais ou menos a minha idade.
Mas eu cresci, fiquei rebelde e ela já era idosa antes, agora chegou aos
noventa.
A tia estava enxergando bem, sua primeira pergunta foi que diabos tinha
acontecido com o nariz de Vittorio. E antes das apresentações, ela disse que
éramos estranhamente similares, apesar do nariz dele. Nós não avisamos que
eu iria lá, mas ela não ficou chocada ao escutar o resumo.
— É melhor que fique por lá. Em vez de trabalhar para esses desgraçados
de merda — disse a tia, com um semblante de rancor. — Imagino que seu
irmão não vai te esfaquear pelas costas.
— Nem pela frente — completei.
— Volte para o meu enterro — determinou ela, olhando-o seriamente. —
Quero que a notícia chegue a tempo.
— Eu voltarei — prometeu ele, sem poder afirmar que viria antes de isso
acontecer.
Deixei a casa e eles ficaram conversando um pouco mais, dei uma olhada
em volta, observando os lugares onde Vittorio cresceu, uma realidade
completamente diferente da minha. Eu já fui criado nessa vida de crime e
mortes e em meio ao estilo de vida de Hollywood, por mais que não
tivéssemos nada a ver com a fama dos vizinhos. Cresci com o meu tio
vivendo o que eu vivia agora.
Por outro lado, meu irmão cresceu nessa cidade pequena e histórica, que
apesar dos ocasionais turistas, era escondida no sul italiano, eles tinham uma
vida confortável, mas não se comparava a ostentação crônica de Los
Angeles. Ele terminou o colégio e acabou mergulhando no mesmo
submundo onde eu já estava. E apesar de vidas opostas, aqui estávamos,
envolvidos no mesmo caminho.
— Andiamo — disse ele, deixando a casa. — Era ela que mais me
importava, não podia me mudar de vez sem vê-la.

◆◆◆

Encontrei com Rachel no aeroporto, ela estava exausta porque tinha


batido perna o dia todo com Iana e estavam cheias de compras novas. Era
bom Bellini tê-la trazido, ele estava certo em não a deixar em LA, não teria
nenhuma paz. Nunca conversamos sobre esse lado sentimental deles, bastava
saber que ela era a pessoa que importava para ele e funcionavam assim há
anos. Além disso, ela também trabalhava para mim.
Embarcamos e eu tive algum tempo longe do celular, coloquei Pietro para
se virar, ele precisava aprender essa parte. Era madrugada aqui, mas LA
estava em pleno horário comercial. Sentei no fundo do avião, segurando
Rachel contra mim, mandei que me deixassem em paz até pousarmos, eu só
atenderia Tommaso. Ela ia dormir, tinha borrado o olho de tanto esfregá-lo,
não importava, ao menos eu não estaria ao celular.
— Eu tô aqui com a cara enfiada no seu pescoço, mas não sei exatamente
para onde você está me levando — comentou ela.
— Vamos parar na Espanha, parece bom?
— Gostei da ideia — ela sorriu. — Por mais de um dia?
— Sim, não vamos ficar dando voltas.
— E a gente vai ter algum tempo lá? Sua agenda internacional anda bem
lotada — resmungou ela.
Não pensei que ficar fora do radar por uns dias me garantiria tempo extra
com Rachel. Como aquela folga em que a levei até o resort. Logo depois o
mundo desabou, mas eu não vivia uma repetição. Por um lado, era como se
estivesse até hoje pagando a conta por uns dias no paraíso. Quanto custaria
uma semana com ela em um éden ainda mais perfeito e afastado?
Capítulo 27: Ibiza
GASOLINA

Acordei quando Antonio me ajeitou na poltrona para o pouso. Deixamos o


avião e o céu estava roxo, nada de sol ainda. Mesmo assim, o ar já estava
morno e dava para sentir uma brisa vindo da direção do mar. As malas foram
colocadas no carro só por um curto período, depois foram transferidas para
um barco. Parecia uma operação secreta, os homens trocavam poucas
palavras, faziam gestos, os movimentos eram precisos. Entrávamos e
saíamos dos veículos com eficiência e pontualidade.
Eu estava mergulhada até o topo da cabeça na operação que Antonio
rodava. Ao mesmo tempo, não sabia nada. O FBI podia me pegar agora e eu
não poderia ajudá-los com provas para incriminá-lo. Eram só histórias. É
claro que vi e escutei muita coisa, se juntasse cada pedaço como um quebra-
cabeças, perceberia que sabia mais do que queria reconhecer. A questão é
que eu nunca juntaria nada. Sairia do jeito que entrei, com muita
imaginação, diversas teorias e nenhum fato para oferecer.
Era mentira desde a primeira noite.
O barco era um iate compacto e aconchegante para uma travessia breve,
não era como aquele onde moramos por umas semanas em LA. Eu tomei
banho e me troquei, enquanto os homens estavam fazendo planos no deque
principal. Tomei café com eles na mesa de jantar na parte de trás, o sol
nascia sobre a água, eles tinham relaxado. Aparentemente, ter alcançado alto
mar sem incidentes era tudo que desejavam e que poderia ter saído errado.
O capitão informou que o trajeto levaria pouco mais de três horas, Vittorio
cochilou, Antonio foi para o banho, não sei o que os outros foram fazer.
Sentei com Iana e esticamos as pernas, vendo a costa sumir. Ela era como os
outros, muita eficiência, pouca abertura. Mas estava conversando mais
comigo nos últimos dois dias.
Descobri que quase a levaram, um inimigo de Bellini queria usá-la para
obrigá-lo a lhe dar benefícios numa negociação. Isso foi há vários anos e
Antonio com seus homens ajudaram a impedir o pior, interceptaram o carro
antes que fugissem. Desde então ela e o marido tinham se mudado algumas
vezes e Bellini trabalhou para Antonio em outras cidades, até voltar para LA
numa posição de confiança.
— Acho que é por isso que ele o colocou para tomar conta de você — ela
olhava para baixo, estragando o esmalte do dedão, empurrando o canto
insistentemente. — Entre todos eles, só ele entenderia a verdadeira sensação.
Desde aquela época, eu mudei também, virei um ativo habilidoso e útil.
— E agora você também trabalha para ele.
— Há oito anos, mas há cinco tenho ficado mais tempo em Los Angeles.
Flavio e eu nos separamos constantemente por causa de trabalho e de sua
teimosia, mas ele voltou de vez para LA após a explosão. Agora estamos
juntos, sem viagens. Mesmo em meio a tudo isso, ele ainda acha que estou
melhor aqui. Não vou a lugar nenhum, chega disso.
Eu só podia concordar, o que ia dizer? Era a vida dela. Ela estava
trabalhando nisso há uma década. Eu calculava que Bellini e ela tinham uns
40 e poucos anos, ela citou que estavam juntos há vinte anos. E que ele
também começou cedo. Ou seja, quando ela entrou nisso, eu era uma
criança.
— Raye — Antonio apareceu e me ofereceu a mão.
Levantei e peguei, ele me levou para a proa do iate e já dava para ver onde
estávamos chegando, eu desconfiava, afinal, nasci ali. Mas não esperava que
ele dissesse:
— Feliz aniversário, Gasolina!
Eu girei para encará-lo.
— Em Ibiza! — Eu ri.
— Achei que seria uma ironia bem-vinda.
— Sim! — Tornei a olhar para a ilha da qual nos aproximávamos. — Eu
só não pensei que você saberia.
— Você gosta de aniversários?
— Não tenho nada contra.
— E por que não disse?
— Tem tanta coisa acontecendo, já estou feliz por ter chegado viva a esse
aniversário. E a essa idade!
— Então, feliz 28 anos!
— Siim!
Voltei para perto dele em um passo rápido e me joguei em seus braços.
Paramos na beira da proa para ver Ibiza ficando cada vez maior. Beijei seus
lábios, enquanto ele me abraçava. Eu sorria mais a cada vez que meu
presente ficava mais próximo. Desde que meus pais se mudaram quando eu
tinha dois anos, nunca mais passei um aniversário no lugar onde nasci. Mas,
entre um contrato e outro, fiz algumas visitas breves ao longo desses anos,
tanto sozinha, quanto em família. Os dois gostavam de rever o lugar que se
conheceram e iniciaram sua história.
— Eu adorei você ter escolhido se esconder aqui comigo — beijei seu
rosto enquanto ele mantinha o braço em volta dos meus ombros.
— Ainda bem que você veio, essa hora eu estaria aterrissando em LA para
te encontrar onde você estivesse.
— E me levar para algum endereço desconhecido? — Provoquei.
— O endereço aqui vai ser desconhecido o suficiente — prometeu ele,
com aquele brilho sedutor no olhar.
Quando desembarcamos, fomos direto para carros que esperavam na
marina. Nosso itinerário era todo para despistar e ninguém saber que aquele
era nosso destino final. Eu só podia imaginar que isso envolveu muita
propina antecipada e documentos falsos, notei envelopes passando por
janelas de carros e falta de checagem em partes que eu jurava que
precisariam.
Se procurassem, havia pistas de que Antonio continuava na Itália. Ou que
viajou para esbanjar sua riqueza pelo Mediterrâneo, mas aonde? Ainda havia
a possibilidade de encontrarem seu rastro até Valencia, mas esse mesmo
rastro dava conta de ele estar escondido em algum lugar da costa espanhola,
não em uma de suas ilhas.
E eu, bem… aparentemente, jamais deixei LA. Por que alguém me
procuraria a ponto de seguir meu rastro pela Europa? Segundo meu
Instagram, eu era uma produtora que estava de férias, tinha muitos
seguidores nas redes sociais, virava e mexia fazia umas publicidades pagas e
em breve, pareceria que eu tinha saído em uma eurotrip sem itinerário certo.
E certamente não viajei com um namorado, pois publicamente eu estava
solteira e nem conhecia alguém como o Signor Denaro.
O verão estava caminhando para o seu fim e parecia que o pior da onda de
turistas que invadia a ilha anualmente já havia chegado, feito a festa e
partido, não que parecesse vazio, nem perto disso. Os carros subiram para
colinas entremeadas por casas em Cap Martinet, até pararem em portões
automáticos que Bellini liberou com uma senha. Mas a casa não estava
vazia, dois homens nos esperavam, eu tinha certeza de já tê-los visto
rondando pelas duas casas que ficamos em LA.
Quando deixei o carro, observei a vegetação abundante em volta, com
uma floresta de pinheiros tomando as laterais. Vittorio avançou com sua
nova mala de roupas e a outra de couro surrado.
— Vocês sabem se esconder, viu — ele falou em italiano, só pesquei
metade.
Ele nunca havia estado na Espanha, muito menos numa ilha aqui.
Segundo ele: meu trabalho nunca me trouxe até aqui e eu não costumo tirar
folga fora do país.
Isso havia acabado de mudar, em pouco tempo ele havia ido de Palermo
para Nova York, depois para Los Angeles. De volta para a Itália, agora Ibiza
e em breve, LA outra vez. Parecia até que Antonio não saía do avião, ele
disse que isso era irreal, alguém com o trabalho e obrigações dele viajava
com objetivos, ele não se ausentava para tirar férias pelo mundo. Muito
menos agora, não era o que esperavam dele se por acaso estivesse envolvido
naquela trama sangrenta que vinha rolando no submundo da costa oeste.
Mas Antonio era só o cara da empresa de comida, com o azar de ter uma
família de gangsteres. Se disser o contrário, precisa provar.
— Espalhem-se. Tem quartos suficientes — disse Antonio, depois de
puxar minha mala pelos degraus da frente.
Vi Pietro e Denver implicando um com o outro para chegar ao quarto mais
próximo no primeiro andar. Olhei em volta e entrei em uma mansão massiva
e longa, cheia de planos abertos, pois era enorme, mas quase toda em um
andar, só um lado da construção branca e moderna ia a dois andares com um
terraço acima. Ela era feita de ângulos retos, quadrados, muito vidro e
vegetação. E era linda, o sol batia nela como se fosse um espelho. A
decoração ia até os mínimos detalhes, em paletas de cores repetidas nas
áreas comuns, mas únicas em cada suíte.
Iana estava trabalhando, como havia me dito. Ela tinha uma lista e entrou
pela casa, passando-a com um dos homens que esteve nos esperando: a chef
já terminou? A dispensa e a as geladeiras foram abastecidas? Era parte do
que ela fazia, o iate estava sempre pronto, as casas já estavam escolhidas,
abastecidas e preparadas para uso quando Antonio chegava com os outros. E
Iana sempre estava armada, assim como os guardas.
Passei por uma sala grande, com estofados largos, macios e suntuosos.
Cobertos por almofadas de tamanhos variados. Havia uma mesa espelhada e
robusta no centro, tudo harmonizava em tons de cinza, chumbo, branco,
preto e uma paleta terrosa. Eu passava bem longe de ser uma designer de
interiores, mas sabia apreciar um trabalho profissional e bem-feito.
Segui Antonio para o segundo andar, onde encontramos a suíte principal.
Vittorio ficou no primeiro andar, num cômodo verde que dava para a floresta
e o mar ao fundo, assim ele evitava as escadas para não atrapalhar sua
recuperação. Ele já estava melhor, mas não era o Wolverine para ter ossos de
adamantium e cura acelerada.
— Vem comigo, tem algo para você ver — disse Antonio.
Nós descemos, era tanta janela do chão ao teto que eu não precisei sair
para ver a piscina, o jardim e a vista interminável do Mar Mediterrâneo.
Como a casa era feita em planos abertos, tudo era contínuo, um cômodo já te
jogava no outro, atravessamos a tal sala, passamos pelo hall com uma mesa
redonda e alta de vidro, com pufes e um castiçal moderno que caía sobre ele.
Vi os outros ao fundo e alcançamos a sala de jantar com uma mesa preta e
espelhada que seguia o mesmo padrão das anteriores.
Os outros estavam em volta do balcão branco da cozinha, que ficava de
frente para as janelas. Pietro e Iana se aproximaram com os dois itens que
completavam o que estava servido sobre a mesa de jantar: Um bolo
suavemente decorado e sobre um suporte alto, com quatro velas douradas
sobre o topo e um balde de gelo com cinco garrafas de champanhe.
— Adorei a recepção — eu sorri.
— Feliz aniversário, Raye — Antonio parou na lateral da mesa.
Os outros me rodearam, ganhei rápidos beijos duplos de cada um deles e
um abraço de Iana. Eu que abracei Vittorio que botou sua mão ainda
imobilizada no meu ombro e abriu um sorriso largo e lindo como o do
irmão, enquanto me desejava felicidades, sucesso e uma longa vida
saudável, em uma mistura de inglês e italiano que já achava típica e
adorável.
Assoprei as velas enquanto eles entoavam os parabéns que não terminava
só em data querida e felicidades. Era vida longa, sangue nas veias, um
coração de ouro e uma casa sob o sol. Brindei com a taça de champanhe que
Antonio colocou em minha mão. Beijei sua bochecha e ele depositou outro
beijo leve nos meus lábios enquanto eu tocava seu rosto com dedos gelados.
Ele não se importava com os outros, ao menos não com aquelas pessoas, eu
sentia seu braço em volta da minha cintura, em um toque gentil e possessivo
que eu relacionava a ele.
Sobre a mesa havia travessas rasas e compridas de louça branca, com
petiscos variados que todos beliscavam enquanto o bolo era cortado. Era um
aniversário bem diferente, com pessoas que eu nem sonhava em conhecer.
Nessa mesma data do ano passado, quando fiz 27, eu estava no set de
filmagem, em um dia crítico e complicado. Nem passou pela minha cabeça
tirar o dia livre só por causa de um aniversário. Briguei parte do dia ao
telefone por causa das gravações e da divulgação, a maior parte das pessoas
no set nem sabia que era meu aniversário.
Durante a tarde, os assistentes apareceram com uma caixa de cupcakes,
colocaram uma vela em um deles e nós comemos no intervalo, com copos de
café gelado. Eu lembrava disso com um sorriso. Meu irmão me ligou da
prisão para me felicitar e ficou emocionado de novo, minha mãe estava num
trabalho fora da cidade e só pôde ligar ao fim do dia; minha sobrinha me
mandou mensagens.
Neil, por quem eu já tinha perdido o interesse e não sei porque ainda não
tinha dado um ponto final definitivo, pediu desculpas por estar preso em
mais um caso. Karen trocou a data, por causa do nervosismo de uma audição
e me entregou um presente no dia seguinte. Annika foi a primeira a me ligar,
mas não pôde vir, então combinamos um dia de spa na minha folga, dois
dias depois.
Teve bastante gente mandando mensagens de felicitações. Depois do dia
no set, fui para casa, pedi entrega no meu restaurante favorito da época, bebi
uma garrafa de champanhe e apaguei até o despertador tocar na manhã
seguinte.
Um ano depois, eu estava loucamente apaixonada por um cara único —
para dizer o mínimo —, profundamente envolvida em sua vida e indo de um
lado para o outro junto com ele, em uma trama inesperada em que todos nós
estávamos em perigo constante.
Como diabos eu podia me sentir tão feliz? Eu simplesmente estava mais
feliz do que já estive nos últimos anos, mais do que estive em todos os
aniversários e datas importantes desde que meu pai foi assassinado e eu me
envolvi naquela noite terrível. Eu havia saído do automático e estava
vivendo um redemoinho de sensações e sentimentos, bons e ruins,
desesperadores, inesperados e prazerosos.
— Não quero nenhum de vocês na minha linha de visão pelas próximas
horas — disse Antonio, sempre um amor de pessoa. Era seu jeito de dizer
que queria ser deixado em paz pelos outros.
Nenhum deles se abalou, estavam ocupados comendo bolo, cada um com
um prato na mão e Bellini apontava para o que parecia um mapa, sobre o
balcão da cozinha. Finalmente deixei a casa para ver tudo que havia no
grande jardim. Era como estar suspenso acima da vista do mar em torno de
Ibiza, com as colinas cobertas por florestas de pinhais em volta. Não vi
outras casas na linha de visão para o mar, estavam tão entremeadas na
vegetação quanto essa, cada uma no seu próprio mundo.
A piscina era um espelho grande e retangular com borda infinita, mas a
sensação era de que toda a propriedade era uma borda sem fim. Só o que
dava uma leve sensação de não estar pairando, eram as árvores que tinham
crescido abaixo e o topo da vegetação subtropical aparecia do lado direito da
vista.
Antonio ficou olhando a vista por tanto tempo quanto eu, depois se ajeitou
na espreguiçadeira larga que beirava a piscina e deixou sua taça de
champanhe na mesa acoplada.
— Vem, parece que você vai ter a minha companhia no aniversário desse
ano — disse ele, abaixando os óculos escuros.
— Parece bom, faz tempo que meu aniversário não é uma folga — ajeitei-
me na espreguiçadeira com ele. — Adorei o visual dessa casa, é bem
moderno.
— É a mais iluminada que tem aqui.
Levantei a cabeça e olhei a casa, depois olhei o reflexo dos seus óculos
escuros.
— Eu estou melhorando, não penso mais em locais escuros — era
verdade, mas depois que ele disse isso, eu vi a beleza espelhada da casa com
outros olhos. Entrava luz por todos os lados.
— Fico contente em saber disso — sua boca se esticou em contentamento.
Senti um baque no coração e me ajeitei junto a ele de novo. Tirei o celular
do bolso enquanto usava o peito dele como encosto de cabeça, eu não tinha
postado nada sobre o meu aniversário, ia escolher alguma foto do passeio na
Itália e que não expusesse exatamente onde eu estava, podia até ser outro
país com ruelas como aquelas. Mas estava com preguiça de olhar a galeria,
editar e tudo mais. Ainda nem tinha recebido felicitações, com a diferença
no fuso horário, lá em LA as pessoas ainda estavam dormindo.
E eu nasci aqui, pela manhã, ou seja. Era o local exato pro meu
aniversário.
— Jura que você não entrega nada aqui — apoiei as mãos e fiquei o
olhando.
— Ibiza para mim é só diversão.
Voltei a fazer o peito dele de apoio e empurrei seus óculos sobre a testa.
— Confessa que com todo o Mediterrâneo para escolher, você veio para
Ibiza por minha causa.
— Só para te agradar. Eu jamais viria pra uma ilha se não fosse você.
Abri um sorriso.
— Mas eu importo umas coisas da Espanha, só não saem dessa ilha.
— Eu sabia! — Eu ri e ajeitei os óculos dele.
Antonio empurrou os óculos para o topo da cabeça e senti suas mãos
descansarem nas minhas costas.
— Eu sou péssimo com presentes, Raye. A menos que possa te dar algo
muito bom para comer, minhas ideias não são das melhores.
— Olha, mas as suas opções de “algo para comer” são intermináveis.
— Pede qualquer coisa.
— Eu pensei que me trazer para cá, arranjar essa casa iluminada e ficar
aqui por uns dias fosse o meu presente. Nada que me dessem seria mais
legal.
Ele ficou olhando para mim, não sei se estava convencido e eu não queria
confessar o que mais me atraía no presente, mas dei uma pista tão óbvia
quanto estar escrito em neon na minha testa.
— E você vai passar o tempo comigo, certo?
— Você vai enjoar de todo o tempo que vai ter de passar comigo — ele
passou uma das mãos pelo meu rosto, afastando os cachos que o vento
empurrou.
— Não vou… — abaixei o rosto, encostando o queixo nele. — É como se
nosso tempo fosse todo contado.
— Você não precisa dizer isso baixo — ele levantou meu rosto e o
encarei. — Ele é, mas não aceito contá-lo agora.
Ele me pegou pelo rosto, seus dedos entraram pelas laterais do meu cabelo
desfeito pelo vento, fechei os olhos e me concentrei em sentir seus lábios
encontrando os meus. Até seu toque carinhoso e suave me deixava flutuando
como bolas de sabão. Não importava o jeito, Antonio sempre me causava
uma reação.
Deixamos o jardim um tempo depois e os homens ainda estavam
envolvidos em sua tarefa, vi os aparelhos que carregavam e reconheci alguns
por ter visto réplicas no set da minha última série. Logo descobri que eles
estavam varrendo a casa inteira para escutas, transmissões, câmeras, etc.
— Tudo limpo lá em cima — disse Pietro, seguindo para o lado de fora.
Antonio e eu íamos deixar a casa para ver um pouco da região e para
comer. Eu nem tinha reparado no quarto quando entrei lá só para deixar a
bolsa e a mala de mão, o cômodo era como a sala, janelas do chão ao teto em
todas as paredes de frente para a vista estupenda. Até o banheiro era em
plano aberto, só um cômodo com o vaso e outra pia eram “escondidos”,
todas as amenidades estavam à vista.
Havia uma banheira de louça branca junto as janelas e dominando o lado
oposto havia uma cama grande, com um pufe à frente, almofadas e
cobertores aconchegantes. Onde eu não ia nem fingir que não ia gastar um
tempo diário fodendo aquele homem lindo de morrer — quase literalmente
— que estava arrancando a camisa para trocar de roupa e sair comigo.
— Quer tomar banho antes de sair? — Ele se aproximou e me carregou
pela cintura, na direção das duchas.
— A gente tomou banho no barco!
— Eu sei — ele abriu o vidro e deu uma olhada. — Mas esse chuveiro
parece divertido e é tão exposto que nem precisamos transar na janela para
parecer um show.
Tirei o vestido por cima da cabeça e o joguei sobre a bancada.
— Você gosta de vidros. Acho que essa casa tem mais de um propósito —
provoquei.
— Janelas, vidros de box… tanto faz — ele deu de ombros, lá estava
aquele sorriso sacana e genuíno que era tão difícil que eu já achava ser meu.
Voltei até a frente das janelas, o sol do início da tarde batia no meu corpo
e deixava a minha pele dourada. A calcinha não servia de nada para cobrir os
meus quadris, muito menos o meu traseiro. O sorriso no rosto dele foi se
alterando enquanto me observava, impossível de parecer ainda mais
estimulado.
Ele se aproximou e me envolveu com os braços, criando sombras sobre a
minha pele, enfiou o rosto no meu cabelo e beijou meu pescoço. Senti seus
braços me soltando e suas mãos desceram pelo meu corpo, os dedos
empurraram as laterais finas da minha calcinha, deixando-a bem baixo nos
meus quadris.
— Confessa logo o seu fetiche por janela — olhei por cima do ombro.
— Não, Raye. Eu tenho fetiche por vê-la nua contra janelas, é diferente —
corrigiu ele, dando um passo para trás e olhando para mim. — Tira a
calcinha, quero ver a paisagem completa.
Coloquei os dedos por dentro das laterais da calcinha e desci pelas minhas
pernas, inclinei um pouco para frente, a paisagem era maravilhosa, mas ele
não me pediu para tirar a peça à toa, estava olhando para mim. Esperei só
dois segundos, tempo que levou para ele colocar as mãos em mim. Girei no
lugar e o encostei no vidro.
— Você dá um ótimo adorno de paisagem para mim — gracejei.
Sorrindo ele ficava ainda mais irresistível, abri sua bermuda e desci o
zíper, senti sua ereção com as mãos, o olhar dele se fixou em mim, eu
gostava de ver como sua expressão mudava conforme eu manuseava seu
desejo. Fiz o mesmo que ele, desci a roupa até estar perigosamente baixo em
seus quadris.
— Abaixa tudo até o chão para eu ver exatamente o que quero — falei.
Ele empurrou a bermuda e ficou nu, sua ereção balançou quando o tecido
a liberou e eu sabia o que ia fazer com ele na frente daquele bando de janelas
e com o Mediterrâneo o emoldurando. Passei os dedos sobre as tatuagens
cobrindo todo o seu peitoral e ele me pegou pela cintura, deixei-me capturar
porque senti-lo me apertar enquanto me beijava e seu membro endurecia
mais contra o meu ventre me deixava estimulada.
— Para, volta aqui — suas mãos desceram para o meu traseiro e me
ajeitaram no lugar.
Antonio tinha um “defeito” nesses momentos, se desse o que ele gostava e
desejava, ele queria manter. Ao menos em seus dias de calmaria. E essa tarde
ele estava um doce.
— Não, encosta — desci as mãos por ele, parei de acariciá-lo com o meu
corpo e peguei sua ereção nas mãos. Manuseei inteiro, das bolas retesadas a
glande e achei que podia ficar pior para ele. Antonio só franziu o cenho e
trincou os dentes, já o vi mais desesperado do que isso.
— Rachel… — meu nome saía baixo dos seus lábios, terminava num
sussurro quando ele estava excitado e queria me alertar ao mesmo tempo.
Como se isso fosse me impedir, sempre causava o efeito contrário. Ele não
encurtava meu nome quando estava nesse nível de tesão.
Peguei a calcinha que tinha tirado e pendurei naquela ereção massiva a
minha frente.
— Fica olhando para mim — levantei o olhar e o coloquei na boca,
chupando suavemente.
Ele riu quando falei com ele, aquela risada sarcástica que sai junto com a
respiração e disse:
— Para onde mais eu olharia?
Antonio pendeu a cabeça e manteve o olhar em mim, eu o tirei da boca e
empurrei a calcinha para a base dele, torci e dei voltas nela. Era pequena, foi
fácil. Para mim. Para ele… deve ter ficado pior que um anel peniano. Ele
gemeu quando o coloquei na boca de novo, ele já estava duro, pulsando e
ferrado comigo. Seu corpo retesou inteiro quando recebi até onde minha
garganta conseguia.
— Rachel, caralho, eu vou rasgar essa porra — ele encostou a cabeça no
vidro e disse mais algumas coisas que não entendi. Porque na verdade ele
gemeu junto e trincou os dentes.
Eu apertei mais a calcinha em volta dele. Com certeza ficaria perdida para
mim, mas valia a pena estregar qualquer coisa para deixá-lo fora de si.
Fiquei de pé e o masturbei, rodei a mão sobre o seu membro. Ele me agarrou
pela mandíbula e me beijou, doeu, seus dedos afundaram no meu queixo e
no meu pescoço e eu não dei a mínima. Ele estava me segurando, mas estava
completamente a minha mercê. Nem pôde me beijar por muito tempo,
porque gemeu e xingou contra os meus lábios, estremecendo inteiro contra a
janela.
— Dá para mim, dá tudo para mim — sussurrei para ele, vendo seus olhos
de pólvora faiscarem enquanto ele gozava para mim.
As mãos dele deslizaram para o meu pescoço e ele segurou ali, seus dedos
esfregavam onde haviam machucado, mas seu olhar ainda estava com um
véu de prazer.
— Você fica maravilhoso contra uma janela — eu me estiquei e beijei
seus lábios. — E gozando é melhor ainda.
Ele arrancou minha calcinha arruinada do seu pau e me pegou pela
cintura, afastou-se do vidro da janela e me levantou, chegando perto de outro
vidro. O box do chuveiro que só servia como separação, porque escondia
pouca coisa.
— Vou te devolver o favor. Até você precisar de mim para levantar.
Ele abriu a porta e me colocou para dentro, eu ri de excitação e nervoso.
Porque acreditava nele.
Capítulo 28: De Irmão para Irmão
PÓLVORA

— Você ainda está se entupindo de remédios? — Perguntei ao ver Vittorio


sentado lá fora.
— Quando eu lembro…
— Eu tenho veneno do bom e dois copos — fui na frente.
Sentei perto da piscina e botei os copos no chão, eram largos, feitos para
uísque e eu tinha uma garrafa cheia de um doze anos, o que não cobria os
vinte e cinco anos que eu precisava começar a resumir para Vittorio. Ele
ainda estava com a bota, então para levar todo o seu peso ao chão sem uma
das pernas dobrando direito, ele tombou perto de mim.
Dava para ver que ele estava odiando ter algo que o limitava, mas
mantinha só para ter certeza que não seria uma limitação eterna. Rebeldias à
parte, seu corpo é tudo que terá para levá-lo em frente. E isso vinha de
alguém que era um péssimo paciente, mas ele não tinha jurado a uma deusa
do submundo que curava as merdas que fazia no corpo em nome dela.
— Você nunca fez o momento nostalgia, copo na mão e contos do
passado. Fala daquelas pessoas que conheci e daquela cidade bucólica —
enchi o seu copo. A gente tinha tempo.
— Você contrabandeou isso, não foi? — Ele cheirou o líquido âmbar e
bebeu um gole.
— Mandei entregar antes, junto com o champanhe, mereço álcool de
qualidade e ninguém sabe se vou outra oportunidade de sair vivo de Los
Angeles.
— Sorte não é uma das minhas qualidades, mas se você puder continuar
vivo, eu agradeço.
— Falou o defunto que eu encontrei num buraco em Nova York — eu
estava só provocando, mas ele esteve morto.
Vittorio deu aquela risada curta que terminava num sorriso típico de quem
estava acostumado a rir das próprias desgraças. Depois que sobrevivia a elas
mais uma vez. Já que eu o entendia, ele não gastou sua massa cefálica
aprimorando seu inglês comigo, falou em italiano e assim soou mais natural.
— A infância lá foi boa. Muito lugar para se perder, uma sensação de
segurança incompatível com os tempos atuais. Qualquer pessoa na rua que te
encontrasse e fosse um local, sabia para onde te devolver. Eu só notei a
sensação de viver numa bolha quando já estava com uns treze anos. Comecei
a ir sozinho até Nápoles com uns quinze e minha primeira viagem foi aos
dezesseis. Linda ligou e mandou me colocarem num avião, porque naquele
verão ela não ia poder ir a Itália — ele pausou, bebeu.
— Eu tinha 21 anos, estava em LA. Metade do tempo fingindo na
faculdade local até ter que largar, porque o tempo enfiado nos negócios de
Nascari era demais, então fui planejar a Lorenza. Era só ela me ligar e dizer
a verdade. Dava tempo de pegar um avião — bebi mais, sentindo o gosto
amargo.
— Você estava na faculdade fingindo ser como eles, planejando um
negócio, matando pra Nascari e eu passando umas semanas em NY nas
férias do colégio. Não vi ninguém ligado a ela quando fiquei lá, ela me
pegava num hotel e depois me deixava “conhecer a cidade” por conta
própria. Eu não era um idiota, mas porra… de Campagna para Nova York é
um mundo de diferença e estava fora do país pela primeira vez.
— Arranjou encrenca?
— Me perdi — ele riu e eu também. — Diabo de metrô complicado. A
polícia me pegou num bairro esquisito e ligaram pra ela. Achei que ela ia
negar que me conhecia. Apareceu na delegacia como se estivesse fugida,
porque não quiseram me liberar sem um responsável e nessa época meu
inglês era bem truncado. Os policiais acharam que eu estava tentando
comprar drogas. Era algum buraco barra pesada. Mas ninguém pode dizer
que não conheci a cidade.
Eu continuava rindo de como ele contou tudo com um fundo de
autodepreciação. Mas também tinha um fundo amargo. Nada disso precisava
acontecer, eu tinha 21 na época e dinheiro suficiente para nos manter em
segurança. Se o descobrisse naquela época, cortaria relações com Linda de
vez e tentaria convencer um adolescente desconhecido a vir morar comigo
em LA. Não sei o que seria pior. Ao menos agora, os dois tinham mais
maturidade para lidar com toda essa merda.
— Sinceramente, só depois de te descobrir que fui entender porque ela
fingia que eu não existia. Ninguém do círculo dela podia saber, nunca
conheci qualquer amigo ou familiar dela em Nova York. Acho que o
motorista que ela usava quando eu estava lá, pensou que eu era o michê dela,
para quem ela dava dinheiro para ter aventuras.
— Que imagem horrível — eu esfreguei os olhos com a mão direita.
— Voltei para a Itália. — Ele deu uma resumida nos familiares que havia
lá da parte materna de Linda. — Ela mandava dinheiro para me manter, mas
quando me encontrava, me dava uma bolada de dinheiro vivo, esperando que
eu soubesse o que fazer com isso.
— Você torrava?
Ele riu um pouco, empurrou o copo, eu despejei outra dose dupla.
— Eu não era nenhum empreendedor adolescente.
— Com dezesseis, você gastava com o quê? Videogame? Doces? Mulher?
— indaguei, na tola esperança de que um de nós tivesse vivido uma
adolescência normal.
— Você falou que eu penso logo o pior, mas acha que eu estava
comprando mulher com dezesseis anos. Não tinha nem perdido o cabaço
ainda.
— E por acaso pagou para perder?
— Você teria sido uma péssima companhia — dessa vez ele riu de
verdade.
— Pagou ou não pagou?
— Mais ou menos… — admitiu ele, fazendo-me revirar os olhos
dramaticamente.
— Se for alguma história juvenil e romântica, eu vou pegar a insulina.
— A garota aceitou sair comigo se eu pagasse tudo. Mas ela era só
interesseira mesmo, não estava trabalhando. Ela já tinha 18 e eu queria muito
transar com ela. A gente ficou sábado e domingo num lugar lá perto da
cidade.
— Você gastou tudo numa garota só? Com dezesseis? Porra, garoto —
bebi, com dezesseis eu não tinha um pingo de responsabilidade emocional,
garotas da minha idade sequer me interessavam. Eu não fingia bem ao tentar
ser um adolescente regular e elas pareciam assustadas e eram irritantes.
Meus rolos, humilhações e lições foram com adultas, geralmente envolvidas
no círculo de Nascari. — E depois?
— Não gastei tudo com a garota. Depois que visitei Linda em NY,
comecei a guardar pra ir embora de casa. Fiz dezoito, juntei minhas tralhas e
parti pra capital. Achei que ia servir, veja só, fiquei um tempo, mas não deu
certo. Liguei pro cara que nosso modelo de avó tinha me dado o contato
anos antes. Quando ela me deu o número, o filho da puta só cobrava umas
dívidas para os chefes, quando liguei, ele já era o tubarão das dívidas em
metade da Sicília. Eu não quis mais saber dela e ela não ia mais a Itália. Daí
fui só afundando mais.
Minha cabeça não doía, mas acendi um dos meus cigarros customizados
para ouvi-lo resumir sua passagem de possível soldado, para garoto de
recados de um agiota da máfia, a escalada para cobrar a grana desse cara, as
merdas que ele se envolveu que quase o mataram várias vezes, a mudança
para assassino contratado. O assassinato do idiota e como ele foi se ferrando
aqui e ganhando ali para virar o assassino de aluguel preferido da máfia do
sul da Itália.
— Nessa época eu já tinha descoberto mais sobre Gregorio — disse ele,
referindo-se ao nosso pai. — Tinha virado uma história antiga, mas esse tipo
de coisa sobrevive. Doze tiros quando se é o chefe. Vira lenda. Foi nessa
época que achei o túmulo de Lorenza. Aquela velha sórdida só me disse que
a família dela escondeu tudo e reclamou o corpo. E quem sobrou foi embora
pro Norte. O que é outra mentira, ainda tem gente deles em Nápoles.
— Nunca te falaram sobre Nascari?
— Anos depois. O irmão mais velho. Disseram que ele existia, mas não
sei se não sabiam ou não quiseram dizer quem ele realmente era, a internet
não ajudou. E porra, eu não ligava, não ia aparecer do nada na porta de um
tio desconhecido em outro país. Pra quê? Eu usava o Cali e não o Denaro,
muito menos o Nascari. Acho que nisso Linda estava certa, apesar de ser um
jeito óbvio de manter seu segredo.
Chegamos à parte em que ele foi a NY pessoalmente terminar de
descobrir que a história que poucas pessoas podiam contar. Com a riqueza de
detalhes que ele precisava, Linda só poderia dar um pedaço. Só eu sabia
tudo. Como eu estava morto, sobrava os caras responsáveis pela morte de
Gregorio e Lorenza. Vittorio não sabia que eu já tinha matado eles, mas se
não fosse pego, aposto que uma hora ele descobriria sobre o marido preso de
Linda. E que mentira ela contaria dessa vez?
— Você lembra algo?
— Uns flashes, eu sabia que tinha um irmão, um pai, uma mãe. E do nada
fui parar na casa daquelas pessoas. Com cinco anos era difícil entender que
as três pessoas da minha vida não iam voltar. Eu lembrava de você. Zia disse
que eu chorava e te chamava. Depois eu fui esquecendo. Mas quando adquiri
independência, voltou tudo. Eu queria saber porque mataram até você. E
quem eu tinha que matar para vingá-los. Linda contou aquela história pra boi
dormir de ter sido só por território. Ela começava um ensaio de choro toda
vez que falava de Gregorio.
— Eu lembro de você — traguei, estava fumando mais do que bebendo.
— Garotinho chorão, não podia escutar um trovão.
Ele riu um pouco. Havia sentado mais perto, mas só podia botar um pé na
piscina, então continuava sentado de lado, rodando o copo.
— Você chorava quando tinha tempestade, não era? — Perguntei.
Ele assentiu e bebeu. Eu fumei.
— Eles tinham uma vida social ativa, principalmente depois que você não
era mais um bebê. Gregorio a levava para jantar, para ver peças e ir em
eventos daquele mundo dele… A gente ficava em casa. Quando chovia, você
dormia comigo, ia brincar no meu quarto e dormia lá. A babá sempre
apagava e a gente fugia do quarto. Várias vezes eles chegaram e a babá
ainda estava procurando pela casa. Era grande. Você disse que Linda te
levou para ver.
— Sim, tem uma família morando lá. Reformaram pelo menos o exterior.
— Isso tem vinte e cinco anos e já era velha quando Gregorio comprou e
reformou. Lorenza adorava a casa, ela preferia sair de dia, à noite só saía
com nosso pai. Ela tinha suas próprias atividades e tinha a gente.
— Ele ferrava com ela?
Eu dei de ombros e descartei a guimba do cigarro no cinzeiro.
— Eu era criança, pelo que soube depois, ele não a agredia, nunca a vi
machucada. Anos depois, descobri que ele teve uns casos na rua. Nunca
vamos saber tudo, mas você acha mesmo que ela não sabia? Quando morreu,
Lorenza estava com ele há onze anos. Mulheres não são tolas, muito menos
aquelas que vivem essa vida. Ela sabia o que ele fazia antes de se casar com
ele. Gregorio tomou tiro, sobreviveu a emboscadas, chegou em casa todo
fodido várias vezes e ela estava lá. Até parece que ela não ia saber sobre
alguma mulher.
Eu acendi outro cigarro e continuei.
— Você deve ter feito as contas. Ela era 13 anos mais nova do que ele,
mas não ache que isso a tornava boba. Eu duvido que ele estaria vivo até
hoje, se estivesse teria 70 anos e ela nem teria feito 60 ainda. Ela estaria
viva. — Traguei e apoiei um dos pés na borda da piscina. — Era por isso
que eles precisavam nos matar. Eu tinha que vingar Gregorio, mas voltei
principalmente por ela. Para que eles precisavam fazer tudo aquilo com ela?
Era só meter os tiros nele e pronto. Se fosse pra matá-la, por que não dar
logo um tiro na testa? Eles iam te matar, não importava que você era um
garoto magricela. Foi a única coisa certa que Linda fez. Se não tivesse
mandado te pegar, você seria um corpo pequeno numa vala qualquer.
A fumaça subia sobre a minha cabeça enquanto Vittorio só assimilava.
— Você matou todo mundo — disse ele.
— Foi mal, se eu soubesse que você havia sobrevivido, tinha te
convidado. Mas sobrou algum, se não tivesse sobrado, não tinham te pegado
por apagar gente.
— Não sobrou ninguém diretamente envolvido, só uns idiotas que se
beneficiaram do atentado e esconderam segredos dos pais.
— Sobrou sim — eu o olhei.
Vittorio levantou a cabeça e seu olhar ficou fixo em mim.
— Conta o que eu não sei. Aquilo que só você pode repetir, tudo que
ninguém mais vai dizer. Não poupa nada. Depois a gente enterra e não fala
mais disso — parecia até uma sugestão, mas ele estava exigindo saber o que
merecia.
Eu assenti, empurrei o copo. Ele encheu para mim. Nem mediu doses.
Não precisei levar momento algum arrumando meus pensamentos para saber
o que diria ou para ser conciso. Desde aquele dia na praia atrás da casa
quando conversei com Rachel, eu sabia que ia ressuscitar essa história. Eu
podia me alongar, podia me repetir, não importava se eu fosse péssimo
contando história, ele ficaria ali absorvendo tudo. Vittorio era como uma
esponja, sugava informação e conhecimento, mas não expelia de volta.
Guardava tudo e seguia evoluindo e se ambientando.
Pois bem. Era uma merda de escutar até para um cara como ele.
— Eu tenho fotos — eu disse de repente e o surpreendi, ele já tinha
levantado sua armadura para escutar o pior e eu enfiei um alfinete na parte
mais vulnerável.
Suas sobrancelhas se elevaram. Os olhos dele foram uma das visões mais
dolorosas de reencontrar, não eram escuros como os meus. Eram castanhos
como os da nossa mãe, pelas fotos dava para ver que o formato dos olhos,
era tudo dela.
— Levei comigo para LA. Eu era uma porra de um garoto de dez anos e
precisava de algo pra ver, naquela época fotos ficavam em álbuns, não em
celulares. Tem você lá e tem nossa mãe. Tinha muito mais fotos, acho que
queimaram. Só tem o que foi na minha mochila, mas eu era ganancioso,
peguei dois álbuns.
Vittorio continuou me olhando e disse:
— Você é um desgraçado. Do tipo que mete a faca onde ver sangue.
— Sempre — assenti. — Comece pelo ponto fraco.
Ele tomou um gole, eu traguei e comecei. Juntando absolutamente tudo
que lembrava com cada informação que consegui, do menor detalhe até as
teorias que criei. Só ele merecia saber tudo que eu sabia, não importava
quanto machucasse. Não importava o que a gente fazia, nem o quanto
éramos uns desgraçados que mereciam o que nos atingisse. Todo mundo tem
feridas que quer enterrar.
Comecei nos dias anteriores ao sequestro de Lorenza, passei pelo dia do
assassinato de Gregorio e por tudo que fizeram a nossa mãe passar; os
estupros, a humilhação, achar que o filho estava morto… O dia que ela
voltou, o dia que se matou. A fuga de Tommaso me levando para LA. A
entrada de Nascari na história.
Citei todos os nomes que sabia, os locais, as datas, as associações. O jeito
que cada um morreu, o dia que me pegaram, o dia que voltei para continuar
o que comecei. A morte do último da lista. As participações de Linda em
tudo isso, o que eu fiz depois e como continuei matando porque eles também
tinham que vingar os seus até que virou uma espécie de empate e eu fiquei
em LA e eles em NY. Resumi os anos que se passaram depois disso. Eu
podia contar esse pedaço gradualmente, já era parte só da minha vida.
Quando terminei, já tinha fumado quatro cigarros e se não estávamos
bêbados é porque o corpo já estava curtido no álcool. Vittorio tinha
encostado novamente contra a espreguiçadeira e me olhava atentamente
demais para quem tinha virado várias doses de uísque puro.
— Quem é? — Perguntou ele, pois era só o que faltava dizer.
— Maggioto — respondi e o olhei, ele franzia o cenho.
Vittorio continuou me olhando, ele conhecia o nome, mas estava
esperando que eu lhe dissesse que era outra pessoa.
— Thomas Maggioto. Você já ouviu falar — soltei a fumaça, era o último
cigarro que eu tinha levado para a piscina. Não fumava assim fazia tempo,
por causa da receita usada, tinha virado algo mais terapêutico em vez de um
vício.
— Você não ia brincar com uma merda dessas às três e meia da manhã.
— Eu fiz um acordo com ela. Além disso, ele foi preso. E eu não mando
ninguém acertar minhas dívidas pessoais.
— Ela já era casada com ele?
— Sim.
— Ele sabia que iam matar o filho dela.
— Sim.
— Mas é óbvio que a lealdade dele a ela não vinha em primeiro lugar.
— Jamais. Nem a dela a ele. Tudo que ela fez foi pelas costas dele.
Maggioto sabe que tem dedo dela no fato de eu ter sobrevivido. Mas ele não
sabe sobre você, ou ela estaria morta.
— E como diabos ela está viva?
— O acordo. Foi entre eles e Nascari. Se ele viesse atrás de mim, nosso
tio ia atrás dele. Daí eu cresci. Os amigos dele já eram, aqueles que eu não
matei, alguém matou. Eu herdei o acordo. Se Maggioto fizesse qualquer
coisa com ela, não haveria lugar no mundo para ele se esconder de mim. Era
meu pagamento por ela ter salvado a minha vida. Nada é de graça. Além
disso, antigamente o idiota gostava dela. Acabou perdoando que ela tivesse
salvado um dos netos. Até eu aparecer lá e matar os amigos dele. Nessa
época o amor já tinha acabado, Linda não é o tipo de pessoa que mantém
amor de alguém.
— Eu não fiz acordo nenhum.
— Ele continua preso — informei.
— E nosso avô?
— Ela matou.
— Você está de sacanagem, Antonio?
Balancei a cabeça enquanto fumava.
— Infarto… de veneno. Ele fodeu com os negócios dela e ela queria
mudar de marido mesmo. Ele já havia infartado por causas naturais uma vez,
ela sabe o que faz. Cremou bem rápido.
— E nosso pai?
— Você acha que ele ia acusar a mãe? Nosso avô tinha amigos, iam
esquartejá-la e pendurar na ponte de Nova York. Se Lorenza matasse
Gregorio, eu não contaria nem em troca da minha vida. O filho da puta era
ele — bebi o que ainda havia no meu copo.
— Que família de merda é essa?
— Vovô era muito controlador, Linda gosta de liberdade e poder —
respondi, como se isso fosse justificativa.
— Ela disse que teve outro filho.
— Sim, mataram quando era mais novo, eu nem tinha nascido. Isso
também ferrou com nosso pai, porque ele teve que vingar o irmão, então já
começou sua escalada com uns inimigos bem perto dele.
Vittorio ficou parado, provavelmente catalogando informações.
— Nascari, nosso tio que você não conheceu. Foi Vito que mandou matar,
era o filho dele que você felizmente também não conheceu. Ele com certeza
ia encomendar seu cadáver.
— O puto que te explodiu — disse ele, como se precisasse ter certeza.
— Sim.
— E que você pendurou a cabeça na entrada da cidade.
— Claro, não satisfeito em me explodir, ele pegou minha mulher. Porra —
terminei o cigarro e apaguei no cinzeiro. — Laço familiar tem limite.
— E a Rachel?
— O que tem ela?
— Ela não sabe a droga da família em que está enfiada, sabe?
— Ela tem as questões dela. O irmão matou o cara que assassinou o pai
dela e ela sabe desde o início.
— O pai dela foi assassinado? Foi gente de vocês?
— Não. O irmão dela meteu uns tiros no cara, como pagamento. Só que
ela e o irmão agem como se ela só tivesse descoberto depois. O que posso
fazer? Inteligente, vingativa, altruísta, dissimulada e linda. Ela é perfeita.
— Sim, mas do lado de cá ela é inocente. Quando vai deixá-la ir?
Fiquei olhando seriamente para ele.
— Ela é minha enquanto quiser ficar.
— Não é nada. Você não é doido.
— Eu nunca tive algo normal. Tentei com ela, sabendo que era só por um
tempo. Ela deixou, eu voltei mais vezes do que devia. Ela ficou comigo
quando devia ter sumido. Agora eu quero ter algo só nosso. Esses putos me
deixam ter tudo que eu puder conquistar. Dinheiro, território, poder. Se
puder se manter vivo para possuir tudo, fique à vontade. Mas aí eu quero
manter a mulher que eu gosto e pronto. Não posso?
— Não, não pode. Você não a comprou, não a pegou para agradar
ninguém, não fez acordo, ela não está te devendo… Mexer com a mulher
dos outros é um desrespeito do caralho, mas não quando se está numa
guerra.
Fiquei olhando para o meu copo vazio.
— Eu não vou abrir mão dela. Não agora. Se depois de todos esses anos,
acham que não posso cobrir o custo de ter o que mais quero, então eu vou
tomar. É isso que eu faço.
— Você é um tremendo de um desgraçado.
— Eu sei, ela sabe. Sou um de puta de um egoísta, um infeliz perverso,
não pisco para enfiar uma bala na cara de quem tentar me ferrar. Desconfio
de todo mundo, dizer que sou violento é piada. Sou vingativo pra caralho,
para piorar sou possessivo com tudo, o que eu divido é para me beneficiar.
Degenerado, impiedoso, traiçoeiro… você me dá o adjetivo, cita o sinônimo
e já usaram comigo. Rachel sabe. Não duvide por um segundo que ela sabe.
— Assim como Lorenza sabia.
— Exatamente.
Vittorio ficou me encarando, enquanto o óbvio significado daquilo
passava entre nós, especialmente depois de tudo que lhe contei naquela
noite.
— Você gosta dela.
— Eu sou alucinado por ela. Obcecado por cada pequena coisa
relacionada a ela. E fico mais doido porque ela continua voltando. Ela podia
ter ido várias vezes. Toda vez que volto e ela está lá, eu sou consumido pela
vontade de engolir aquela mulher e esconder num lugar só meu. Mas isso a
mataria e agora eu respiro a energia da vida dela. Eu começaria dez guerras
por causa dela. E vou matar qualquer um que pensar em botar a mão nela.
Um já foi demais.
— Você está fodido, nunca mais vai ser o mesmo. Eu vou te ajudar.
Eu ri um pouco.
— Vai me ajudar a me curar? Eu não quero. Tenho pouco tempo e vou
gastar o máximo de vida com ela.
— Não, a mantê-la. Junto com os outros, todos eles te ajudam. Eles
sabem. Eu vou ficar, Antonio. Se não verbalizei ainda, estou avisando agora.
Então vou ajudá-lo a não a perder assim. Nosso pai que fique com a tragédia
dele, você não precisa repeti-la.
— Nem você.
Ele balançou a cabeça.
— No momento, eu não tenho nem vida direito, estou surfando meu
recomeço no rastro dessa sua vida desgovernada. Não estou nem olhando
para mulher.
— Em Ibiza? No verão? Você saiu da casa — Levantei a sobrancelha,
provocando-o e quebrando a tensão, tanto do que admiti quanto do que ele
informou sobre ficar.
— Tá, eu olhei, não sou cego. Você é ridículo.
Eu ri. Às vezes ele era muito contido, eu o provocava para que se soltasse.
Mas desde que chegou já havia melhorado depois de conhecer melhor os
rapazes. O papo essa noite também foi pesado demais.
— É sério, não teve ninguém além da garota interesseira do final de
semana? — Perguntei.
— Você não teve, por que eu teria?
— Você teve uma adolescência normal. Deu tempo de ser um babaca atrás
de alguma garota da sua idade.
— Teve uma, mas foi besteira minha.
— Aquela que você foi ver lá em Nápoles?
— Ela era uma amiga. Só queria que soubesse que eu não ia voltar.
Fiquei de pé, a bebida havia acabado e meu cigarro também. Só então
percebi melhor o efeito do álcool no meu sistema. Antes que ele negasse o
auxílio, coloquei as mãos por baixo dos seus braços e o ergui. Se eu fumei
mais, Vittorio bebeu mais. Porém, mancou atrás de mim sem problemas, eu
abri a geladeira e empurrei uma garrafa de água pra ele.
Eu estava acostumado demais a conviver com essa trupe de fodidos que
eram jurados como eu e seus corpos se recuperavam rápido de tudo.
Inclusive do abuso de álcool, teria que pensar em cuidar do meu irmão como
a pessoa normal que ele era. Dava para ver que era forte e tirando os efeitos
da surra, era saudável. Mas um tiro já podia matá-lo e ele ficaria doente e
sofreria efeitos que a gente já tinha esquecido.
— Escutei umas músicas boas vindo do seu quarto. Fiquei aliviado de
você ser uma pessoa normal, no começo achei que você só absorvia
informação e esperava o osso remendar, no resto do tempo meditava —
comentei enquanto abria uma água pra mim também.
Vittorio tossiu quando teve de parar de beber a água e riu um pouco.
— Eu tenho certeza que você foi um irmão mais velho extremamente
implicante.
— Se eu fosse tão insuportável você não ia fugir pro meu quarto pra
dormir comigo.
— O papo das fotos era real?
Abaixei a garrafa quase vazia e o olhei, parado do outro lado do balcão e
me observando com cautela.
— Eu não brinco com certas coisas, especialmente com certas pessoas.
Estão guardadas em LA. Deixo em um dos meus cofres num banco, por mais
informações que saibam, o passado é só nosso. Como deve ter percebido,
minha casa não tem sido o lugar mais confiável para deixar coisas materiais
que tenham valor emocional.
— Rock — disse ele. — Eu estava escutando isso, finalmente instalei
meus aplicativos antigos no celular novo, tenho uma playlist de preferidos.
Stone Temple Pilots, AC/DC, Iron Maiden…
— Metallica?
— Sim — ele assentiu.
— Apocalyptica?
— Você curte um metal europeu também?
— Eu sou eclético — respondi. — De tudo um pouco. Conhece Marvin
Gaye?
Ele riu por eu ter ido buscar algo tão mais antigo e completamente
diferente, mas confirmou que conhecia.
— Aretha Franklin, uma tia escutava todo final de semana, era a única
cantora americana que ela gostava — devolveu ele, indo no fundo do baú
também. — Comprei uma guitarra quando tinha 15 anos, usando uma das
boladas de dinheiro que Linda botou na minha mão. Aprendi a tocar, fui
embora de casa levando-a. Mas tive que deixar para trás, fazer o quê?
— Contou a ela? Garanto que ela odiou.
— Sim — ele riu, provavelmente lembrando da cara de desgosto de Linda
que passava a quilômetros de escutar qualquer coisa que tivesse guitarras
berrando.
— Quando eu estava no colégio a psicóloga achou que seria bom eu
aprender a tocar algo numa aula extracurricular. Piano — quando citei o
instrumento ele riu mais, como se previsse a desgraça. — Eu até aprendi,
mas ela me colocou na orquestra do colégio para ver se eu interagia e
arranjava uns amigos. Era onde tinha as crianças mais legais da escola, num
sentido de bondade, camaradagem e ingenuidade. Não deu certo.
— Você ferrou com as crianças? Porra, Antonio. Era só tocar as teclas e se
fazer de sonso.
— Não, eu achava aquelas crianças o epítome da infância. E eu era
problemático. Quebrei uns garotos na porrada porque estavam perseguindo
os idiotas da orquestra, me devolveram para a psicóloga tratar minha raiva.
Ela chamou meus responsáveis, tia Marzia fingiu preocupação. Nascari
estava me criando para ser violento fora do colégio.
— Você ficou amigo das crianças da orquestra — ele riu. — Que perigo.
— Eu não era amigo deles. Eles eram infantis e normais. Eu tinha 12 anos
e sabia usar uma 9 mm e quebrar um nariz num soco. Mas eu tocava a porra
do piano e até uma flauta que odiava e quebrei numa briga no vestiário. No
fim do ano, acharam melhor me tirar da orquestra.
Vittorio estava achando minha infância a coisa mais atípica e agora
conseguia rir comigo. Só nessa parte que foi melhor ele ter crescido pra lá.
Nascari ia fazer dele outro projeto para o futuro, assim ele ganhou uns anos a
mais de ingenuidade. E não teve que conhecer Tácita como presente de 16
anos.
— Mas desde que cheguei, já fui bem atualizado do que toca por aqui.
Ficar de molho causa isso — contou ele.
Eu franzi o cenho para ele, só o vi escutando algo duas vezes e eram esses
rocks antigos.
— Rachel escuta uns negócios diferentes.
— Pop — eu ri um pouco contra a boca da garrafa.
— E uns raps americano. Eu gostei.
— Sim, umas misturas dessas — continuei sorrindo. — Rihanna, Cardi B,
Avril, agora ela tá obcecada com um garoto com uma voz suave e que não
lembraria o nome pra salvar minha vida — citei, provando não só que era
atualizado, mas que prestava atenta atenção nela que sabia o que mais
escutava.
Vittorio e assentiu como se tivesse notado o mesmo:
— Sim, eu fico pra trás com essa bota, junto com ela e as músicas dela.
Não é ruim.
Eu apontei para ele.
— Falando nisso, você vai precisar de um closet maior para viver no meu
mundo. Falta de dinheiro não é, então falta só de senso de moda? — Eu bebi
um último gole de água, sabendo até o que ele ia alegar e já queria rir.
— Eu não me visto mal, ok? Compro roupa de qualidade, elas duram.
Você vai ter que me dar umas dicas sobre esse seu mundo de cinema e
closets abarrotados.
— Tudo bem, a gente dá um jeito para o seu personagem no meu mundo
de cinema — dei ênfase ao jeito como ele chamava nosso estilo de vida em
LA.
— Sua namorada até faz filmes, cara.
— E séries também. Aliás, ela disse que assim que tiver tempo, vai te
levar pra consertar esse nariz — eu toquei no meu nariz, indicando e olhando
para o problema dele.
— Ah, porra.
— Hollywood é o paraíso dos cirurgiões de celebridades.
— Eu não ligo, não vou operar algo que não vai me matar.
— Vai sim, se duvidar isso está atrapalhando sua respiração — eu fui em
direção a escada.
— Ela já te convenceu — ele ficou para trás e jogou sua garrafa vazia no
lixo.
— Claro e vai te convencer também — eu sorria.
Capítulo 29: Caminho Sem Volta
GASOLINA

— Coloca um daqueles seus vestidos novos, vamos tomar o brunch fora


daqui — disse Antonio.
A casa era perfeita, tinha todo tipo de entretenimento para oferecer. Mas
era Ibiza, um pedaço de terra no meio do mar onde tínhamos liberdade.
Podíamos sair juntos e entre mergulhos na piscina, um pouco de sol das
espreguiçadeiras, muitos drinks gelados e finais de tarde naquele quarto tão
cheio de janelas; nós saíamos. De manhã, antes de o celular dele começar a
tocar quando a Califórnia acordava, nós vivíamos Ibiza juntos.
Eu ficava livre por parte da tarde enquanto ele estava ocupado, era quando
produzia o meu conteúdo. Teria meses de vídeos e fotos para postar depois
que fôssemos embora. E Iana era uma ótima fotógrafa, eu tinha roupa de
banho para expor e honrar a grana que caiu na minha conta e eu já tinha
transformado metade em Euros. Gastei por butiques europeias, enchendo
meu guarda-roupa móvel e precisei comprar uma mala extra, mas que se
dane… Eu gostava de gastar o meu dinheiro com o que eu quisesse.
Mesmo que meu affair cobrisse tudo. Sim, eu o estava chamando assim
porque ele achava engraçado. Como se Antonio fosse meu caso. Secreto,
claro. Porque eu que tinha redes sociais ativas e postava de tudo, menos ele
ou qualquer coisa relacionada a sua existência. O que o tornava o amante
que eu pegava no sigilo.
Escolhi o vestido verde, as alças eram enfeite, a fenda na coxa fazia-o
dançar, amarrei as sandálias no tornozelo e parei no espelho para arrumar o
cabelo. Antonio estava junto as janelas do canto direito, sendo uma pessoa
normal ao não se cansar de admirar aquela paisagem fantástica que envolvia
a casa. E sendo a perdição da minha vida, como tivesse nascido para ser
visto sob a luz generosa do sol matinal de uma ilha no Mediterrâneo. Parecia
inalcançável enquanto me esperava.

◆◆◆
No começo da tarde, ele me levou de volta, pensei que nos separaríamos
pelo resto do dia, era quarta-feira e a Califórnia estava acordada e
trabalhando. Antonio não tirava folga como pessoas ditas normais. Mesmo
numa ilha na Europa, eu podia ver e sentir momentos de tensão entre os
rapazes depois que falavam ao telefone ou saíam do escritório.
Tudo bem para mim, a gente estava conseguindo passar um bom tempo
juntos, mais do que qualquer dia em Los Angeles. E eu tinha roupas para
fotografar, dinheiro para fazer com o contrato de um filtro solar que fechei
pouco antes de deixar LA e vídeos para gravar exaltando a fórmula pensada
para peles étnicas.
E eu tinha um roteiro na mala, nem tinha entrado em pré-produção ainda.
Fui atraída por ser um filme adolescente que seria gravado durante o dia em
locações externas e dentro do estúdio. Não dá para negar o que te move.
Ainda ia pagar menos do que vender meu tempo e imagem na internet, mas
de verdade, era isso que eu gostava de fazer. Era como diziam: o meu
chamado.
— Está com a tarde livre? — Indagou Antonio, aparecendo à frente das
janelas.
Lá estava meu outro chamado, esse se entrelaçou com a minha vida e
encontrou espaço em um terreno que eu achava pertencer só aos sets de
filmagem. Eu vivia e respirava os projetos que ajudava a tornar realidade,
agora meu coração pulsava por esse homem, para viver meu próprio filme
em vez de criar os dos outros.
Quantos minutos teria o filme? Quantas temporadas estavam programadas
para a série? Era informação básica de todo projeto. E eu não sabia dizer
nem se era filme ou série.
— Aqui eu estou sempre livre — eu abri as mãos.
Essa hora o sol estava forte, com tudo aberto até usávamos óculos escuros
dentro da casa. Durante o dia nunca abaixávamos as coberturas, Ibiza estava
sempre dentro da casa conosco.
— Não — ele balançou a cabeça e se aproximou.
— Mas eu posso mover meus horários para quando quero.
Ele subiu as mãos pelo meu torso e me segurou, levantei o rosto e recebi
seu beijo.
— Desde que nossa situação mudou, as coisas têm ido rápido demais —
ele se afastou e foi até o closet.
Eu já havia ouvido essa frase, geralmente ela era o anúncio de uma
conversa complicada que não acabava bem. Ao menos era assim nas séries
de TV.
— E desviou minha atenção para todos os lados — ele continuou ao
retornar para perto de mim.
— Não parece, mas estou perdidinha — comentei.
— Esses desgraçados me mantiveram tão absorto que desviei dos meus
propósitos mais importantes.
Antonio estava com uma caixa azul e eu já tinha visto esse filme, ele não
prometia sem motivo e eu estava pronta para minha nova auréola. Ganhei a
última há poucos meses e também esqueci dessa nossa particularidade, muita
coisa rolando e se aquela houvesse sido a última, para mim tudo bem. Ia
guardá-las como uma lembrança de que existimos juntos.
Tirei a tampa da caixa e encontrei a caixa menor, era coberta com aquele
veludo suave das caixas de joias. Ele tirou de lá para mim e abriu, não era
um arco, era uma tiara.
— Com essa eu acho que não vou poder ir tomar café na esquina —
brinquei.
— Você pode usá-la até para ir tomar café aqui na cozinha.
Eu peguei a tiara, era clara e refletiva. Tinha várias pedrinhas delicadas
que se elevavam sobre ela numa bela arrumação em ouro rose. Algumas
pedras brilhavam como diamantes em tamanhos variados, as outras pareciam
os mais belos cristais e as últimas tinham forma de gotas e uma coloração
leitosa, como se refletissem as cores.
— Coloca, eu quero ver — ajeitei o cabelo, passando os dedos entre as
mechas.
Ele a pousou na minha cabeça até estar firme e eu me virei para o grande
espelho de frente para as janelas e sorri. Realmente gostava das minhas
auréolas e do motivo para ele trazê-las para mim.
— Ficou bom? — Passei as pontas dos dedos sobre ela como fiz com os
arcos e repeti a pergunta que fiz das outras vezes.
— Perfeita — ele sorriu ao parar uns dois passos atrás de mim.
Girei no lugar e beijei seus lábios, voltei para a frente do espelho e sorri
para o meu reflexo e para ele. Não fazia a menor ideia de onde usaria uma
tiara como essa, até para pessoas que viviam em eventos luxuosos, não havia
muitas oportunidades para esse tipo de adorno. Mas que se danasse. Eu iria
usá-la para jantar com ele na sala.
— Vou usá-la naquela banheira, às sete, você pode vir — prometi, dando
uma rápida olhada sobre o ombro, para Antonio e para a banheira branca de
bordas altas que ficava junto as janelas em frente as bancadas.
A gente passava vários minutos nela todo dia, bem cedo porque não
perdíamos tempo. O sol nos acordava, era uma ilha, num quarto feito de
janelas, o sexo matinal parecia mágico.
— Você a usaria para unir-se a mim, ao nascer do sol? — Perguntou ele
Eu tornei a olhá-lo pelo espelho, Antonio observava meu reflexo, com
meu vestido novo e meu cabelo solto e desfeito sob minha nova tiara que
parecia uma coroa.
— Antonio… — eu franzi a testa. — Por que não iria? Aqui nunca é cedo
demais.
— Em matrimônio… Pelo tempo que ainda tivermos.
O silêncio perdurou pelo tempo que eu mantive o olhar no espelho sem
ver nada.
— Em Ibiza — respondi, mas o tom de dúvida soava como uma pergunta.
Ele assentiu, expressão serena, olhar preso em mim. Aquele homem não
tinha resolvido fazer a pior piada de sua vida.
— Ibiza tem a versão paradisíaca e espanhola do lema de Vegas. O que
acontece em Ibiza, fica em Ibiza — comentei, ganhando tempo.
— Você aconteceu aqui e felizmente foi parar em Los Angeles.
— E você me trouxe de volta.
— Sim.
A seriedade me deu um chute e empurrou para a realidade me socar. Ele
continuava atrás de mim, atraente como sempre, sério como um tiro.
— Por quê? — Perguntei, dessa vez não era para ganhar tempo.
— Um dia eu vou pagar por todos os meus pecados e vou merecer. Até lá
só tenho certeza de que continuarei pecando e estarei apaixonado por você.
Nunca deviam ter lhe enviado para me salvar. Eu a cobicei, corrompi e ainda
quero que se prometa a mim.
— Eu já cheguei corrompida à sua vida, minha máscara é boa.
— Você disse que está apaixonada por mim, acredito no que me diz e no
que faz. Eu a corrompi mais. Para sobreviver no meu mundo, você tem de
ser corrompida.
— Apaixonada pelo diabo. Nenhuma auréola vai me salvar — toquei
minha tiara com as pontas dos dedos da mão direita.
— E você usou a sua auréola para me salvar. Só posso lhe dar réplicas,
mas continuarei trazendo-as enquanto eu respirar.
— Eu duvido que um dia eu seja tão doida por alguém como sou por você
— eu o olhava pelo espelho, vendo a imagem do magnetismo que me
cativava.
Eu era…
Loucamente inconsequente.
Eu estava…
Desesperadamente apaixonada.
E profundamente ferrada.
— Mas…? — Perguntou ele, esperando que eu continuasse.
— Mas nada. É verdade.
Vi o leve sorriso em seu rosto pelo espelho quando ele disse:
— É recíproco.
Tornei a me olhar no espelho, ele enfiou as mãos nos bolsos da calça de
linho e me deu o espaço que eu precisava para decidir lhe dizer não. Devia
ser essa expressão que ele fazia quando estava numa reunião fingindo ser
apenas o dono da comida de LA, quando estava mentindo para a polícia,
quando estava de frente para o cano de uma arma. E quando pensava o que
ia fazer quando eu lhe desse um tiro ao lhe dizer não. Eu não ia ficar até ele
parar de respirar. Essa tiara seria minha última auréola.
— Antonio — virei o rosto sobre o ombro, não podia mais olhá-lo pelo
espelho.
— Raye — respondeu ele.
Ele não sentiu necessidade de voltar atrás, de se explicar, de argumentar,
de tentar impedir o que pudesse vir. Esse não seria ele. Antonio fez sua
oferta, era tudo o que ele tinha para botar na mesa.
— Pólvora?
— Gasolina.
Eu me virei e o encarei, sem completar nosso código, sem acender nada.
Seu olhar escuro estava tão cravado no meu rosto que eu não devia ser capaz
de me mover.
— Sim — eu achei ter dito alto, mas saiu uma droga de um sussurro.
Antonio nem se moveu, seu olhar foi para os meus lábios, ele parecia
decidir se havia ouvido corretamente.
— Fogo! — completei com minha voz firme. Se eu ia entrar nisso, meu
tom tinha de ser inabalável.
Ele abriu um sorriso, os dois passos que nos separavam sumiram, não sei
quem se moveu primeiro, mas ele me abraçou, eu toquei seu rosto e o beijei.
— Então está marcado. Você e eu, pelo tempo que tivermos, enquanto eu
respirar — concluiu ele.
Antonio enfiou a mão no bolso, tirou uma caixa fina de lá, puxou um anel
e o deslizou pelo meu dedo anelar. Simples assim, tinha uma pedra na minha
mão. Do mesmo jeito que ele me dizia para deixar tudo, encontrá-lo e
comprar quando chegasse.
Sim ou não. Sem complicação. A vida era muito curta para pensar demais
quando os dois podiam e queriam.
Já havia problemas suficientes nos rodeando.
— Até o último suspiro. Nós dois, ao amanhecer — completei.
— Em um dia.
Eu respirei fundo, enchi os pulmões como se estivesse a ponto de
mergulhar o mais fundo que aguentasse.

◆◆◆

Deixei a casa pouco depois. Não íamos passar o resto do dia remoendo
nossa última loucura. Ele tinha negócios para resolver em outro continente.
Eu tinha que fugir dali. O que significava que peguei o carro com Iana e um
dos seguranças que eu chamava de El Chapo, porque ele era baixo, parrudo e
usava um bigode. Parecia o ator que fez o personagem na série de TV sobre
o chefe do famoso cartel.
Dirigimos por onde as lojas da ilha ficavam, percorrer Ibiza não levava
muito tempo, a demora foi por minha causa. Eu tinha vestidos. Mas eu
queria um só para a ocasião, para olhar eternamente para ele e lembrar que
usei aquela roupa para dizer sim ao amanhecer.
Não sabia como ele ia fazer isso acontecer. Quando convivia com alguém
como Antonio, você passava a ignorar as possibilidades e impedimentos que
regiam as vidas de pessoas normais. Demorei tanto a encontrar o que queria,
que a tarde avançou sobre o anoitecer. As ruas ficaram cheias de gente de
férias, convergindo de hotéis e outros pontos turísticos para beber e se
divertir nas festas.
— Você vai se casar com ele? — Perguntou Iana, quando paramos perto
da orla para beber suco e água de coco.
Eu me virei com o copo gelado nas mãos e ela estava do seu jeito
costumeiro, séria e focada no que precisava fazer. Achei que estava
perguntando para saber o que precisaria para o acontecimento, mas já
tínhamos entrado em três lojas e só agora ela disse algo. Era melhor ela ter
alguma ideia, porque eu nunca me casei, não tinha planejado fazê-lo e era
indiferente aos planos. Tenho certeza que quando propôs isso, Antonio
esqueceu os detalhes que não diziam respeito diretamente a ele.
— Eu vou, aqui, ao amanhecer.
— Sabe que é um caminho sem volta, não é?
Percebi que ela não estava pronta para fazer uma lista de coisas que
encomendaria e prepararia.
— É complicado, mas não se faz isso pensando em terminar — aleguei,
cautelosa.
— Não estou falando sobre vocês se darem bem.
— Nem eu, estou falando da realidade disso tudo.
— Ótimo, porque uma vez dentro, você nunca mais está fora. Não de
verdade. Um dia o segredo vai acabar. Ao menos no nosso mundo, saberão
que você é dele. O feminismo desse lado tem outros princípios, não importa
o quanto seja dona de si no mundo exterior. Aqui dentro, você estará
eternamente relacionada a ele. Não importa o que aconteça, quanto poder
assuma, nem o que ele lhe prometa, mesmo se ele lhe devolver a parte da
liberdade que você perdeu, nunca mais deixará de ser lembrada como a
esposa dele. Pode até refazer sua vida com outro homem, mas no nosso
mundo, sempre saberemos seu nome e você será lembrada como a mulher
com quem Antonio Denaro se casou. No momento, nem ele deve acreditar
que teria tempo de se casar de novo. E isso muda a sua vida para sempre.
Até depois que ele estiver morto.
Nós molhamos as gargantas ao mesmo tempo, com goles curtos de nossas
bebidas geladas.
— É uma experiência própria? — Perguntei.
— Flavio e eu somos importantes um para o outro, para nossos amigos e
aliados. Mas no esquema geral, não somos nada comparado a ele. Podemos
morrer amanhã e pouco vai mudar para os outros. Se Diabolik morrer agora,
eu não sei explicar o tamanho da encrenca em que todos estaremos, o
tamanho da guerra que vai ser e como aquele velho traiçoeiro estará livre
para aterrorizar todos que não estiveram do seu lado. Nós estaremos mortos
sem a proteção dele. E mesmo assim, não é disso que estou falando.
— Você já tentou sair?
— Eu sou um produto desse mundo, e, sinceramente, não estou dizendo
para você não fazer isso. Nesse instante, antes de jurar qualquer coisa, você
já está fundo demais para sair ilesa. O primo dele te pegou por rixa pessoal,
mas daqui em diante é por dor e poder.
— Acho que minha janela de fuga se fechou há algum tempo. Nem ele
acredita mais que eu sou um segredo bem guardado.
— Ele estará sempre com você, mesmo quando estiver longe, mesmo que
vocês terminem, a presença e influência dele nunca mais poderá deixá-la.
Você pode fingir nas redes sociais, pode viver sua vida pública lá fora, pode
voltar a fazer todos os filmes que quiser. Mas nunca mais pertencerá
novamente aquele mundo. Quando as câmeras desligarem, você volta para o
nosso lado da fronteira. Com ou sem ele.
— Assim você poderia me fazer pegar uma mala e fugir agora.
— Você não é o tipo que foge, é por isso que ele vai se casar com você.
— Eu tinha a ilusão de ser por nutrir sentimentos por mim.
— Não tinha não, só amor não mantém ninguém vivo nesse mundo. E
você sabe disso.
— Eu aprendo rápido.
— Ele pode e vai te manter viva. A qualquer custo.
— Eu me apaixonei por ele.
— E ele por você. Para o seu azar.
— Eu não vou deixá-lo, não por isso.
— Eu sei. Todos nós sabemos. E todos entrariam na frente de uma arma
por você, até eu. Só não é mais temporário.
— Mas eu não sei se vamos durar, Iana.
— Você apontou uma arma carregada e engatilhada contra todos nós,
lembra-se? Só para garantir que ele fosse tratado. Não sei quais erros vocês
vão cometer, mas eu sei que vou trabalhar para você enquanto ele respirar e
depois.
Eu gostava da honestidade bruta que vinha dela, dos outros e também de
Antonio. Ninguém estava de pé numa guerra de poder, falando sobre para
sempre, eternamente… Não sei quando ele começou com isso, mas quando
queria falar sobre para sempres, Antonio falava sobre ser até sua última
respiração. Porque podia ser amanhã.
— Agora, eu preciso de flores. Vocês me arranjam cada uma. Vai ser o
que tiver disponível ou que eu conseguir encomendar em um dia por algum
valor indecente — disse ela, sacando o celular e mudando de assunto
naturalmente.
Nós voltamos para o que fui procurar, encontrei uma butique com vestidos
próprios e de grifes variadas que atenderiam a alguém precisando
comparecer a algum evento chique naquela ilha, nas ilhas vizinhas ou onde
fosse no Mediterrâneo. Porque gente procurando esse tipo de coisa
costumava ter planos. No meu caso, eu só tinha um casamento numa colina
ali perto. Coisa pouca.
— É uma daquelas festas do preto e branco, numa mansão maravilhosa.
Quero impressionar o ricaço esquivo que estou de olho. Arranje-me algo
mágico, vou virar a cabeça dele — menti para a dona da loja, fazendo-a rir e
expor tudo que tinha do branco ao perolado.
Mais tarde, quando saí da butique de sandálias, no centro da cidade,
Bellini estava esperando com aquela expressão típica por me buscar em mais
algum canto. Já havia anoitecido e ele estava recostado no carro,
conversando com o Chapo.
— Você não esperava me encontrar fugindo da ilha, confessa —
provoquei.
— Já anoiteceu, Srta. Lund. Vir buscá-la num lugar tão bonito é um
passeio, ainda bem que não precisaremos entrar na água — ele brincou de
volta.
— Espero que vá me levar para jantar, Flavio. Depois que voltarmos a sua
noite está livre — disse Iana, olhando-o de lado antes de entrar no carro.
Ele fechou a porta já que ela entrou no banco do passageiro e eu o olhei:
— Se eu fosse você eu me mexia, perfume no pescoço, chave do carro na
mão e carteira no bolso. Leva a patroa para onde ela quiser — eu assentia
para ele, com as sobrancelhas levantadas.
Consegui fazê-lo rir, ele abriu a porta e entrei no banco de trás, voltamos
direto para a casa. Deixei minhas compras no quarto e procurei Antonio,
descobri que Pietro havia convencido Vittorio a ir com ele “ver Ibiza” à
noite, pois até agora todos eles só tinham usado seu tempo livre para se
revezar em saídas durante o dia. Pelo que sabia de Pietro, apostava que ele ia
era levá-lo onde soubesse que havia mais mulheres solteiras e procurando
diversão. Eu não duvidava por um segundo que mesmo com uma mão
imobilizada, Vittorio podia ser uma boa diversão, sobrava um bocado de
ferramentas para ele usar.
— Eu ia começar a desconfiar que você tinha fugido da ilha, Raye —
gracejou Antonio ao me ver.
— Então estão todos de folga hoje? — Encontrei-o no terraço, no topo da
casa, onde a vista era ainda mais impossível de ignorar.
Ali só havia as espreguiçadeiras e umas amenidades para a pessoa passar
o tempo com bebida gelada e a paisagem.
— Quase todos. Como diz você, es Ibiza, querido. E todos merecem uma
diversão noturna.
Ele estava sentado na beira da espreguiçadeira, mais próximo da beira. Eu
me aproximei e sentei de frente para ele, no outro móvel. Antonio virou o
rosto e soltou a fumaça do que ele fumava para longe de mim.
— Eu gosto do cheiro. Onde você consegue?
— É produção daquele amigo que você disse que tem cara de bad boy
perigoso — lembrou ele, divertindo-se. — É a receita pessoal dele.
— Eu lembro dele. Qual é mesmo o nome? Ele te fornece?
— Alessandro. Ele produz e me manda umas caixas.
— É o negócio dele?
— Esse é por diversão e gosto pessoal — ele tragou.
— E o outro?
— Tem vários. Ele pode conseguir qualquer coisa, depende do que
funciona para você e de quanto puder pagar — ele me olhou enquanto a
fumaça subia, entendi o que ele quis dizer.
— O cheiro é bom, do que é?
— Depende do pacote. Pode ter tabaco importado do melhor que tiver no
mercado, ou só umas ervas e sei lá que merda ele mistura para agradar o
olfato. Ele tem uma loja em Malibu, as leis da Califórnia permitem certas
coisas. Está sempre cheio de gente que só consome plantas — um leve
sorriso mostrou o quanto ele achava isso irônico e cômico.
— Vocês são amigos, na mesma cidade, fumam juntos, você garante o
território… ele te paga.
— Uma porcentagem de tudo.
— Eu vejo um pouco de tudo rolando por aí.
— Esse pessoal do seu ramo já pagaria pelo negócio só por conta deles.
Entretenimento — ele moveu a mão como se continuasse a frase em um
movimento que eu também entendia o que queria dizer.
— Eu sou movida por energéticos em latinhas geladas e uns raros
calmantes — contei.
— Eu distribuo alguns energéticos, para sua festa ou para sua casa —
contou ele, conseguindo me fazer rir. Tinha virado uma piada interna nossa,
quando ele contava que fornecia qualquer item alimentício. — E tomo
alguns. Eu não gosto de comprimidos, estou de saco cheio de tomar
analgésicos todo dia.
— Para sua cabeça — eu encostei a ponta dos dedos na têmpora.
Antonio assentiu, nós estávamos morando junto e ele não se preocupava
em esconder os vidros de analgésico. Nunca contei, mas era lógico, pela
quantidade que vinha num vidro daquele e o número descartado, o fato de
ele tomar de dois em dois, dava uns quatro por dia. Ou seis, quando algo
dava errado, como sermos tirados de casa embaixo de tiro.
— Você precisa voltar ao neurologista. Está aqui em cima porque algo o
estressou ou é só dor?
Ele ficou me olhando, levantou a mão com o cigarro personalizado quase
no fim e disse:
— Agora não dá. Isso já alivia minha dor de cabeça, suaviza o estresse e o
cheiro é reconfortante — ele deu uma longa tragada. — Vito te falou sobre o
nome, lembrei que você citou isso no iate, quando me contou daquela noite.
— Por quê?
Ele ficou olhando para mim, largou a guimba, pegou a carteira ao lado,
apertou o isqueiro, acendeu outro, tragou, fazendo a ponta brilhar na noite.
— Você pode matar sua curiosidade — ele ofereceu o cigarro entre dois
dedos, eu peguei.
Antonio me observou enquanto eu tragava. Não sabia fazer como ele, eu
não fumava cigarros normais e nem esses manufaturados. Mas não podia
dizer que não experimentei um pouco de tudo na época da faculdade. Era
diferente, nunca fumei nada parecido com a receita do amigo dele. Era leve,
não pinicava o nariz, nem ardia na garganta, o cheiro penetrava as narinas e
eu comecei a entender porque aliviava a pulsação dolorosa em sua cabeça.
— Mortes — disse ele, respondendo minha pergunta. — Deram mole, eu
voltei em NY e matei uns caras que consegui pegar e que estavam
envolvidos no sequestro da minha mãe. Eu era novo, não desconfiaram de
mim a princípio. Diziam que a pessoa sumia, começou uns boatos porque
com tantos inimigos, o moleque de 15 anos não seria o primeiro suspeito.
Mas quando eu tinha 16, matei uns três caras. Fui descuidado no último, eles
me descobriram, me pegaram, quebraram e jogaram num buraco, mais ou
menos o que fizeram com Vittorio. Meu tio mandou me trazerem de volta.
— Nascari?
— Sim. Ele fez algo parecido ao que nós fizemos ao buscar Vittorio, mas
ele não foi discreto, eles sabiam de quem eu era sobrinho. Ele tinha que me
pegar de volta e eles tinham obrigação de me fazer pagar.
— Uns três? Você era um adolescente.
Eu escutei direito, mas percebi que aquele cigarro estava me dando uma
onda. E num segundo já pensei como que eles fumavam aquilo sem
demonstrar efeito algum. Devolvi o fumo antes que perdesse a concentração.
— Não — ele tragou e balançou a cabeça. — Três foram para o meu tio
acreditar que eu tinha estômago para derrubar um traidor. No começo você
tem que provar tudo, ou nem teria te conhecido.
Antonio fumou e manteve o olhar em mim enquanto me dizia que era
normal morrer cedo se não puder fazer o que precisa. Vingança, inocências
demolidas e mortes. Os roteiristas das rodinhas que eu frequentava em LA
dariam o braço para ter esse papo.
— Eu diria que você era jovem demais para se vingar, mas… seria
hipócrita da minha parte.
— Começaram com isso, misturaram o personagem com divagações
sobrenaturais de gente que perdeu muito sangue ou levou uma paulada na
cabeça. Não mandei ninguém me chamar de nada. Todo mundo tem algum
tipo de apelido, um codinome. Esse já está público demais, mas cansam de
me chamar de coisas piores.
— Eu vou ter um também?
— Se ainda vai se casar comigo ao amanhecer, vai ter vários.
Não foi uma pergunta, então eu também não precisava confirmar nada.
— Você vai descobrir ao amanhecer.
Ele riu. Nós dois sabíamos que eu não ia desaparecer da casa.
Simplesmente porque não queria. Então fiquei de pé e estendi a mão.
— Vem, voltei a tempo de jantar. E depois eu preciso do banho da noite.
Ele apagou o manufaturado no cinzeiro e pegou minha mão.
— Banheira e água quente também ajudam na dor de cabeça.
— Você conforta minha dor — disse ele, passando o braço pelos meus
ombros.
Capítulo 30: O amanhecer. E Ele.

RACHEL

Nosso tempo em Ibiza estava chegando ao fim, o que significava que eu ia


me casar assim que o sol subisse outra vez. Então Antonio apareceu com
mais uma novidade, porque ele devia pensar que estava pouco até aqui. Ele
deu uma olhada no celular enquanto estávamos à mesa, lanchando
tardiamente depois de voltar da praia.
— Eu mandei trazerem algo que tem muito valor para você — avisou ele.
— O que é? — Eu nem podia imaginar, pois ele não mudava o tom para
me dizer que me comprou um pacote dos meus M&M’s preferidos ou uma
tiara de milhares de dólares.
— Você vai ver quando chegar.
De fato, um carro entregou a encomenda ao anoitecer. Deon desceu e
olhou em volta, mais perdido do que no dia em que deixou o presídio. Pelo
menos ali sua expressão era de apreciação, a casa continuava linda à noite,
iluminada e espelhada.
— Deon! — Desci as escadas e me joguei contra ele.
Meu irmão me abraçou e me segurou no ar.
— Ah, Ibiza — não sei se era o meu apelido ou o local. — Quando os
capangas dele me mandaram fazer uma mala rápida e me enfiaram num
carro, pensei que era a minha hora. Mas para que as roupas? Quando entrei
no avião e me disseram para onde estava indo, logo vi que ia encontrá-la.
— Estou tão feliz de vê-lo aqui — apertei seu rosto bonito entre as mãos.
— Estou sempre feliz de vê-la, mas sentiu tanto a minha falta que mandou
praticamente me sequestrarem? — Ele riu, sabendo que ao menos por ora
sua vida não estava em perigo.
— Não fui eu, foi ele.
— Aquele gringo maldito.
— Eu não sei quando você vai perceber que o gringo é você — disse
Antonio, parado no primeiro degrau da entrada. Pela sua expressão, ele
achava a inversão cômica.
— Quem tem uma gangue cheia de gringo de tudo quanto é canto do
mundo é você — disse Deon.
— A maioria deles também já nasceu lá, vai ser complicado nos
deportarem.
— Então vamos todos nos foder, porque só tem produto importado aqui
— disse Deon, fazendo Antonio sorrir mais.
— Nada disso, estamos em Ibiza. Esqueceram? — Abri as mãos no ar. —
Vocês vão ter de se ferrar sem mim. Eu sou daqui.
— Você vai me contrabandear para fora dessa ilha — brincou Deon.
— Ibiza é muito longe, Gasolina — Antonio beijou meu rosto enquanto
apertava a mão de Deon. — Até para te salvar de mim.
— Obrigado por mandar me sequestrar, seu gringo doido — disse Deon.
Antonio sorriu para ele e nos deixou para nossos assuntos, voltou para
aquela sala onde os outros entravam e saíam o dia todo e tinha notebooks e
celulares lá dentro. Eu só podia imaginar que os caras estavam comandando
uma rede de crime organizado lá da ilha e Antonio falava constantemente ao
celular sobre “sua comida”.
— Que história é essa de Gasolina, Ibiza? — Perguntou meu irmão.
— Coisa nossa.
— Código?
— Ele é Pólvora, eu sou Gasolina.
— Como se já não tivesse coisa suficiente para explodir nessa história.
Eu o levei para o quarto no térreo que tinha duas camas Anne e uma
estava vaga. Deon deixou sua mala, deu uma olhada em volta e sentou no
colchão, olhando para mim.
— Sem querer soar ingrato, porque a maioria das pessoas adoraria um fim
de semana em Ibiza e eu estou incluído nisso. Esse seu namorado… Eu
posso chamá-lo disso, né? Se está morando com ele, você assumiu o cara.
— Eu não resolvi morar com ele.
— O quê? — O tom dele saiu agudo e descrente. — O gringo sabe disso?
— Mas aconteceu e eu assumi o cara — resumi.
— Ótimo, porque você é minha irmã e tenho problema em dizer “esse seu
macho”. Então, quando os homens desse seu namorado pegam alguém e a
enfiam em um carro, as pessoas já fazem a última oração. Eu gosto de
parecer durão, mas você é uma garota do mundo e já deve ter escutado
aquele famoso ditado: Quem tem cu tem medo. Se a pessoa está viva, ela não
quer ser levada pelos soldados do seu namorado, Raye.
Puxei a cadeira da penteadeira que ninguém naquele quarto ia usar e
sentei para poder explicar.
— Eu disse sim — informei.
Deon ficou olhando para mim, só piscava.
— Para ele — completei.
Meu irmão passou a mão pela boca, cruzou os braços e ficou me olhando.
— Eu estou confuso.
— Eu acho que vou me casar com ele.
— Você acha?
— Eu vou.
— Você acha!
— Deon…
— Pega suas coisas, vamos embora! — Ele pulou de pé.
— Não foi você mesmo que disse que eu ficava melhor com ele.
Deon empurrou as portas dos armários.
— Suas coisas não estão aqui, estão?
— Você quer parar, por favor.
Ele foi para as janelas e ficou lá, o quarto era no térreo e a vista dava
principalmente para a floresta, com o mar ao fundo, parecendo muito mais
longe do que era.
— Meu Deus do céu — murmurou ele.
Meu irmão voltou e sentou no mesmo lugar que esteve.
— E é claro que você vai dizer sim para esse cara bem aqui. Em Ibiza, no
topo desse lugar. Onde ninguém vai ver e não vão entrar atirando.
— O lugar é lindo.
— Rachel. Como é que você sai e me arranja um gângster de cunhado? Eu
não ia com a cara do promotorzinho, mas achei que o pior que poderia
acontecer era você se casar com algum ator iniciante que ia te chifrar e o
vídeo ia vazar no TMZ. Ou que ia arranjar um diretor vinte anos mais velho
que já estaria no quinto casamento sempre com garotas mais jovens e eu
teria de socar a cara dele pra te deixar em paz. Ou então algum
megaprodutor com o rei na barriga de quem você ia se divorciar em um ano.
Você sabe, coisas típicas de Hollywood.
— Nada disso me atraiu — provoquei, com um sorrisinho.
— Sim, por que não escolher uma porra de um gângster de uma família
inteira de gangsteres? Ibiza… Meu Deus! Não é nada pessoal contra ele, mas
esse cara, Rachel. Eu não sou mais um grande problema na sua vida, não sei
se isso é bom ou ruim — ele cobriu os olhos.
— Você nunca foi um problema na minha vida, Gana — sentei junto dele
e passei o braço em volta dos seus ombros. — Você segurou aquela barra
sozinho. Você é meu melhor amigo, é meu parceiro de crime. Infelizmente,
isso é literal. Quem segurou o rojão e garantiu que eu seguisse em frente?
Foi você.
— Eu sou o irmão mais velho, é isso que eu faço — ele virou só o rosto
para mim. — Papai já era, a gente fez o que tinha de fazer, mas eu que tinha
que segurar aquela barra por nós dois. E acabou, vida que segue.
— Então, eu disse sim. Por quantos dias forem, pelo tempo que der, pelo
período que eu o quiser, enquanto ele respirar. Ele é Pólvora e eu sou
Gasolina.
— Tá — ele assentiu. — Tudo bem. A vida é sua, mas vou ficar por perto.
Você foi se apaixonar pelo cara, olha aí. Agora quer casar? Não tinha dito
que só ia casar depois dos 30? Falando nisso…
Ele levantou e remexeu na mala.
— Como eram os homens dele, eu fiquei na esperança de te envolver, não
tinha feito nada errado. Então trouxe isso — ele tirou uma caixa quadrada e
pequena que tinha ficado amassada pela viagem.
— É para mim! — Pulei e peguei a caixa, abri e encontrei uma luminária
animada. Além de acender em três intensidades diferentes, tinha uma câmera
e claquete dentro.
— Era para o seu apartamento novo, mas agora que você vai morar de vez
com o gringo em algum lugar espalhafatoso…
— Vou colocar na minha mesa! Adorei! — Eu o abracei.
— Parabéns, Ibiza. Sucesso, muitos anos de vida e eu espero que você
seja feliz. Se você está bem, eu estou bem.
Dei um beijo no seu rosto e o olhei.
— Eu preciso de você por perto.
— Sorte sua que eu trouxe uma camisa boa — informou Deon, me
fazendo rir. — Os outros convidados também serão sequestrados?
— Você é o único convidado, os outros já estão aqui.

◆◆◆
Eu costumava acreditar que com Antonio tudo precisava acontecer sob o
véu da noite, com sombras para suavizar suas arestas tão afiadas. Foi assim
no dia que nos conhecemos e no nosso primeiro encontro. A noite em que
nos entranhamos na vida um do outro naquele quarto de hotel. Ele dizia que
aquele foi nosso terceiro encontro, pois não havia como não contar a noite
em que o abracei pela primeira vez. Nem o nosso primeiro café que na
verdade foi ao anoitecer.
Ele quase me enganou naqueles dias de sol no resort onde achei que seria
nossa primeira e última vez juntos dessa forma. Logo depois tornei a ver sua
verdadeira natureza, emoldurado pelas chamas do fogo no meio da noite.
A verdade era que eu estava errada, fui terrivelmente simplista. Antonio
era tudo isso. Era dia e noite. Inferno e paraíso. Era perigo e segurança.
Violência e gentileza. Era o meu maior erro e o amor da minha vida.
Devia ser por isso que eu estava indo me casar ao amanhecer com um rei
do submundo.
Eu não estava louca.
Estava mortalmente apaixonada.
Inconsequência podia até temperar minha vida, mas estava ciente das
consequências de cada passo que dava. Todos me levavam para ele.
Coloquei minha tiara cravejada de pedras claras: diamantes, opalas e
Swarovsks. Diferente dos arcos, ela se elevava sobre a minha cabeça e
brilhava intensamente sob a luz suave do amanhecer. Passei pela grande sala
e com tantas janelas, eu podia ver todos lá fora.
Eu havia comprado um vestido branco e leve como a brisa, com alças
finas e delicadas que seguravam o corpete que era a parte mais rígida e tinha
bordados suaves e algumas pequenas pérolas . Comprei o body opcional que
só aparecia sob a transparência da saia. Combinei com as sandálias novas,
feitas num dourado pálido que se mesclava a minha pele e pedras
transparentes cobriam o topo da tira. Fiz duas tranças finas nas laterais do
cabelo, escondendo com grampos para ele não voar no meu rosto. Coloquei
pequenos brincos de quartzo e um colar longo e quase imperceptível, porque
o protagonismo do dia era da tiara.
A mesa redonda do hall estava com um vaso no meio, tomado de rosas
claras e rosadas. As mesmas rosas que Iana encomendou e usou umas vinte
para me fazer um pequeno e adorável buquê. Ela cortou os cabos bem
curtos, arrumou formando o buquê e amarrou com uma fita de cetim bege. E
era o que eu carregava.
Ibiza foi uma novidade em várias questões, uma delas foi descobrir que os
homens tinham roupas em tons claros, o suficiente para conseguirem
combinar paletas alegres.
Uma tiara. Um buquê. Um vestido. O amanhecer. E ele.
Havia lhe dito que ele só descobriria se eu iria quando ficasse lá me
esperando. Deon me deu a mão para eu descer o degrau da casa e só soltou
quando chegamos onde seria tudo, ele era uma dama de honra atípica e o
único acompanhante possível. A nossa decoração era Ibiza nos envolvendo e
o mar interminável, parecia que todos poderiam ser jogados lá embaixo se o
vento resolvesse soprar. Havia flores em vasos altos para delimitar onde era
o local exato.
Os convidados eram os homens que estavam sempre conosco e tinham
virado parte da minha vida. Iana disse que todos eles tomariam um tiro por
mim, mas eles já estavam se dispondo a isso e eu nem tinha jurado nada. E
meu irmão. Eu já sabia o que ele era capaz de fazer por mim. Não devia ser
assim? Ter no seu casamento só as pessoas que estariam lá para você, que
seriam presentes, rostos que seriam vistos com frequência na sua vida.
Faltava três pessoas com quem valia a pena dividir o champanhe do dia em
que resolvia tomar uma decisão que mudaria minha vida.
Passei entre os homens de pé, Iana estava na frente, junto com Bellini. Eu
me divertia ao ver todos eles arrumados, penteados e com expressões de
seriedade. Também não sabia descrever a sensação de vê-los ali, como se
estivesse me envolvendo em algo além de uma cerimônia que por acaso era
um casamento. Era como se todos fôssemos fazer um novo juramento.
Sequer discutimos como seria realizada a cerimônia, mas tinha um
homem diferente lá, era o único com uma roupa escura. Tenho certeza que
assinaria algo, fosse agora ou outro dia, mas para ter conseguido alguém
para celebrar a união num tempo tão curto, alguém estava com o bolso mais
pesado. E Antonio estava lá, com aquela expressão de que sabia o que fez e
podia repetir.
O desgraçado fabuloso.
— Então, eu vim — disse a ele, ao parar a sua frente.
Ele mostrou aquele sorriso brilhante e segurou minha mão. Estava usando
azul, com uma de suas camisas muito brancas, a gravata prateada que eu
comprei ontem e um botão de rosa na lapela, da cor do meu buquê. Com
certeza um detalhe proporcionado por Iana. Nunca o vi com aquela
combinação, Antonio não era um cara só de preto, cinza e tons fechados. Ele
sabia mesclar, mas tinha combinações típicas de sua personalidade e eu
lembraria dessa como uma especial que provavelmente não tornaria a ver.
O homem de verde-escuro anunciou o motivo para estarmos ali e suas
breves palavras sobre união em vida, sangue e morte não se parecia com
nada que já escutei nos casamentos em que fui. Imagino que ele entendeu
tudo que Antonio disse como uma declaração figurada e puramente
romântica, ele não sabia da verdade por trás das palavras que ele me disse
em vez de recitar votos já escritos.
— Na primeira vez em que nos encontramos, você segurou minha vida em
seus braços. Podia ter sido minha última ilusão, porém, você retornou para
ver se sua missão estava cumprida. E desde então minha missão foi
encontrá-la. Eu não planejei nada disso. Não era para eu ficar tão
desgovernado que não aguentaria imaginá-la longe de mim. Na primeira vez
foi por acaso. Agora, a força do que eu sinto por você me dominou tão
absolutamente que estou lhe pedindo para cometer a loucura de aceitar
segurar a minha vida em suas mãos até o meu último suspiro.
— É uma persuasão? — Sorri, diante do seu tom e do jeito que me olhava.
— Sim — ele assentiu uma vez.
— Eu já entrei de cabeça nisso, mergulhei com meus olhos cerrados e fui
cada vez mais fundo segurando a sua mão. E eu vou ficar, por quanto tempo
tivermos, pelo número de respirações que ainda nos sobrar, eu vou ficar. Eu
abri meus olhos, mas não soltei a sua mão. Não vou empurrá-lo por aquelas
portas, vou segurá-lo aqui, comigo. Sim, Antonio, sim. Vou completar o
código quantas vezes for preciso. Fogo.
— Sim, Rachel, sim — Antonio assentiu. — Fogo.
Foi quando o homem de verde-escuro levantou a mão e mostrou um ramo
cheio de pequenas folhas. Era maleável, comprido o suficiente para cair por
dois lados e tão verde que só podia ser recém-cortado. Antonio segurou
minha mão e uma vez vi num casamento que uniram as mãos dos noivos
com uma fita. Mas eu não esperava que o ramo fosse enrolar em volta da
minha mão e pelo meu antebraço.
Meu olhar alternava entre o rosto de Antonio e o ramo verde. Ele abaixou
o olhar e viu as folhas envolvendo meu pulso, então sorriu para mim. Um
daqueles sorrisos genuínos e raros surgiu tão rápido no seu rosto que fiquei
embasbacada. Ele levantou a minha mão e quando beijou sobre o dorso, seus
lábios tocaram minha pele e as folhas. O ramo continuou em volta do meu
pulso e no meu antebraço, juro que estava úmido, como se o tivessem tirado
da água na hora que o colheram.
Eu fiquei com dois anéis no dedo, a pedra que ele colocou lá e a aliança
igual a dele. Os homens bateram palmas e escolheram me cumprimentar
com breves beijos na mão onde o ramo estava enrolado.
Deon me devolveu meu pequeno buquê. Antonio envolveu minha cintura
com o braço, o dia havia amanhecido e estava lindo. A mesma chef que fez o
bolo e os aperitivos do meu aniversário havia retornado e feito o café da
manhã de comemoração.
Ela fez um novo bolo, branco e rosado, com óbvia inspiração nas rosas
que decoravam pontos específicos. Os detalhes de flores eram feitos a mão e
muitas pérolas o decoravam, pareciam reais, mas eram comestíveis.
Bebemos champanhe às sete da manhã, em volta da mesa principal do lado
de fora, com mesas menores cheias de opções.
Nunca disse antes, mas quando estavam sendo pessoas normais, os
homens eram barulhentos, mais ainda se estivessem contentes. Eu os vi
alternar entre xícaras de café recém-moído e champanhe borbulhante. Pratos
se enchiam, cada hora de uma opção.
Pietro estava de óculos escuros, taça numa mão, um canapé metido a besta
na outra, parecia ótimo. Vittorio ria das provocações do meu irmão e eu
havia pensado que eles nem se entenderiam; Deon com seu inglês rápido e
cheio de expressões e ele alternando entre dois idiomas na mesma
velocidade, com o sotaque mais carregado do grupo.
Ogul e Denver, os maiores caras para cima e para os lados, trocavam dicas
de comida, indicando um para o outro onde ficavam as coisas.
— Vocês podem, por favor, guardar espaço para o bolo. É boa sorte para
os noivos todos comerem um pedaço — eu falava isso enquanto tinha um
doce em cada mão.
Eles riram e levantaram taças, como se a ideia de não conseguirem comer
o bolo fosse minha melhor piada do dia. Antonio também ria ao meu lado,
ele os conhecia melhor do que eu. Aproveitando que estavam todos com as
taças, teve um novo brinde a nossa saúde e felicidade.
E vida longa! — Gritaram ao final.
Levantei a mão com a taça, o ramo estava enrolado até o meu cotovelo.
Esperei que ele caísse sozinho, mas não quis tirá-lo. Queria perguntar se era
superstição deles ou algum costume do país de Antonio. Só que o ramo
simplesmente não caía e eu mal o sentia. Então o deixei ficar comigo.
O ar cheirava a brisa da manhã que vinha do mar, misturada a açúcar,
chocolates, champanhe, massas frescas e recém-saídas do forno, pães
crocantes, azeite e o aroma de cafés deliciosos.
— Eu quero mais fotos com todos vocês — eu dei o celular a Iana
novamente.
Deixei três deles responsáveis por tirarem fotos e fazerem vídeos para
mim. Iana, Pietro e acredite se quiser, o Chapo. Eles sabiam usar muito bem
as funcionalidades dos aparelhos modernos e suas câmeras. Não ia postar
nada disso em lugar nenhum, não ia sequer armazená-las na internet,
guardaria do jeito antigo, num cartão de memória. Era para mim, para
guardar, lembrar e quem sabe colocar as três preferidas em porta-retratos.
Antes de Ibiza, Antonio e eu só tínhamos as poucas fotos que
combinamos de tirar naquela visita ao resort, como um pacto de lembrar um
do outro através delas. Desde então, nós só vivíamos dentro da vida um do
outro, sem registros. Agora eu teria um álbum inteiro de lembranças naquela
ilha.
— O bolo, senhores, vamos nos comportar — disse Iana, indicando a
mesa quadrada onde o bolo estava de protagonista.
Cortar bolo nunca foi minha especialidade, ainda mais quando ele parecia
uma obra perfeitamente redonda, de duas camadas de alturas diferentes, uma
cobertura impecável e pérolas na frente da faca. Dei o primeiro corte, com
um sorriso para a foto, virei o rosto para Antonio e sussurrei:
— Agora você se vira.
Ele cortou o primeiro pedaço, depois Iana assumiu, como fez no meu
aniversário. Todos comeram o bolo de trufas brancas e frutas vermelhas. E
não só uma garfada, mas o pedaço inteiro.
— Dá para acreditar que você está num café da manhã de casamento e não
forneceu a comida — provoquei.
— É um alívio estar de folga — ele riu também. — Mas eu trouxe o
champanhe.
Dei uma boa risada enquanto segurava uma taça gelada. O café da manhã
durou até o horário do brunch. Quando o sol apertou, eles levaram tudo de
volta para dentro. Antonio e eu descemos da casa até a praia logo abaixo,
não era a melhor para banho de sol, era pequena, com mais pedras do que
areia, mas o mar a banhava como em toda a ilha e servia para o propósito.
— Você disse que ela gostava de navegar, que você adquiriu seu gosto por
barcos por causa dela, comentou das suas lembranças de infância preferidas.
E que antes de LA, ela o levava para passear em barcos todo o verão bdesde
que você era um bebê — falei enquanto alternava o olhar entre ele e o mar.
Eu segurava meu adorável buque de grandes rosas enquanto Antonio
olhava para mim numa mistura de surpresa e preocupação porque eu estava
em cima de uma grande pedra, de um lado havia mais pedras e a frente só o
mar. Não era muito alto, tirei as sandálias e subi sozinha, ele fez o mesmo,
mas parou com o pé sobre a última pedra que servia de degrau.
Havia dito a ele que queria ir lá embaixo jogar meu buquê no mar como
uma oferenda, mas nunca disse para quem seria.
— Essas rosas são para Lorenza. Eu não tinha flores para ela naquele dia
que a visitamos, mas hoje eu tenho. Pelo que me contou sobre ela enquanto
navegávamos, acho que ela gostaria de vê-lo se casar em uma ilha no
Mediterrâneo.
Joguei o buquê no mar, ele flutuou, mas conforme as ondas o levavam, foi
afundando. Provavelmente as flores se soltariam e subiriam, mas me virei e
desci, já tinha entregado meu presente. Antonio observou o buquê ir embora,
com aquele olhar distante de quem pensa em algo pessoal.
— Ela adoraria, Gasolina. Obrigada — ele levantou o olhar para mim, sob
a luz da manhã era mais fácil ver os sentimentos brigando na sua expressão.
Quando voltei para perto dele, Antonio afastou o cabelo dos meus
ombros, eu ainda usava a tiara, mas aquela beleza foi feita para enfeitar, não
para manter o cabelo no lugar. Ele havia tirado o paletó e dobrado as
mangas, meu olhar bateu no seu antebraço e a memória voltou na hora.
Claro que não lembrei antes, estava ocupada demais sendo uma tola
apaixonada no próprio casamento.
Entre as tatuagens que cobriam os braços dele, havia ramos que iam até os
seus pulsos. O ramo do braço esquerdo era contínuo, partia desde o peitoral
e foi com essa mão que ele segurou a minha. Só que eu não tinha tatuagem
nos braços, mesmo assim, o ramo estava enrolado em mim como se quisesse
se fundir a minha pele. Igual aos ramos dele.
— Esse ramo não caiu do meu braço até agora, Antonio. Ele tem cola? —
perguntei baixo, parecia até um segredo.
— É incrível como só nos livramos dos ramos quando eles querem —
apesar do que disse, ele desenrolou o ramo do meu braço e o negócio soltou
inteiro ao toque dele.
Antonio jogou o ramo no mar, ele afundou mais rápido do que o buquê.
Meu olhar ficou preso na água, mas senti suas mãos em minhas costas e ele
me beijou, envolvi seu pescoço e me perdi nele. Não estávamos sozinhos,
mas era a maior privacidade que tínhamos desde o amanhecer.
— E agora?
— Agora você passa o dia comigo — disse ele.
— E para onde você quer me levar?
— Para onde você quer ir?
— Para lá — apontei para o mar.
Ele me levou, no mesmo barco rápido que cortava o mar como uma faca.
Era como um carro esporte que só cabia nós dois e que ele estava me
ensinando a guiar. Naquela lancha a gente podia fugir para qualquer lugar e
seria difícil nos pegar, mas usávamos só para fugir do mundo real por umas
horas.
Capítulo 31: Cegamente
GASOLINA

Quando voltamos para a costa, pulamos no mar antes de subir para a casa.
Era nosso mergulho de entardecer, também era o primeiro que dávamos
depois de oficializar nossa nova loucura. Ou eu já devia começar a chamar
de nova vida?
O mar limpa tudo, não limpa? Traz novas energias. Nós vivemos numa
cidade litorânea, acreditamos nesse tipo de coisa. E vamos precisar.
Tivemos um jantar especial com os outros na mesa à beira da piscina.
Depois eles se ocuparam com seus vários assuntos e o que acontecia lá na
Califórnia. Eu não estava preocupada com isso pelo menos enquanto estava
em Ibiza. Mais tarde ganhei tempo para ficar sozinha com Antonio de novo e
custei a crer que eu havia acabado de me casar com ele.
Essa vida com ele era um parque de diversões que incluía a casa do terror
e uma terceira dimensão em 3D. E um cassino. Uma casa dos prazeres. Uma
praça de alimentação gourmet. Provavelmente muito alucinógeno borrifado
no ar. Porque passou uma eternidade em poucos meses.
Eu o encontrei num dos nossos locais preferidos, o topo da casa. Estava
escuro porque ele nem acendia as luzes quando ia lá só para fumar e ver a
vista. A casa abaixo tinha tanta luz que era suficiente se a pessoa não tivesse
medo da penumbra ao ar livre, a três andares do chão, com a sensação de
flutuar em meio a floresta de uma ilha.
— Eu sabia que você não estava lá na embaixada da Califórnia — era o
apelido que dei a sala que eles transformaram em escritório geral.
— Eu sabia que você ia aparecer aqui em cima assim que saísse do banho
— devolveu ele.
Eu sorri e apoiei as mãos na parede baixa.
— O que a gente vai fazer quando voltar, Antonio?
— Sobreviver.
Eu assenti, com meus olhos na paisagem escura ao longe. De lá conseguia
ver os barcos iluminados que estavam ancorados próximo da ilha. Ainda
havia suficiente deles para saber que o verão não havia acabado.
— Quero mais de uma semana com você, Raye.
Eu virei o rosto para ele, mesmo que visse sua expressão coberta de
sombras.
— Iana disse que estou eternamente atrelada a você. Não importa o que
aconteça, eu sempre serei a mulher com quem você se casou primeiro.
— Sim. A única.
— Não importa o caminho que sigamos, mesmo que distinto.
Ele parou com a mão no ar e manteve o olhar em mim.
— Eu ainda estou respirando, Benzina.
Eu sorri. E se ele respirava, eu era dele e ele era meu.
Até o último suspiro. Certo?
Cheguei mais perto, encostei os dedos nos dele, capturei aquele seu
cigarro com a receita secreta e traguei. Soltei a fumaça para o céu, enquanto
mantinha o olhar nele. Senti a mesma onda esquisita, dessa vez já esperava.
Devolvi, colocando entre seus lábios e abri meu robe, retirando o cinto de
cetim. Antonio desceu o olhar, deu para ver sua boca se esticando num
sorriso. Ele deixou seu fumo na parede baixa. Eu levantei a faixa de cetim a
frente dos olhos dele e os cobri. Ele deixou.
— Você se casou comigo e vai confiar em mim. Cegamente.
— Ah, Gasolina. Você vai me arrumar confusão.
— Eu vou usar minha tiara nova e você a venda.
— Um caralho que vou te foder sem te ver usando sua auréola nova.
Dei a volta e amarrei a faixa atrás da cabeça dele. Voltei a parar a sua
frente e fiquei em silêncio, fumei seu cigarro ainda pela metade, acho que
estava começando a gostar da sensação estranha e da fumaça perfumada que
não se parecia com nada que já cheirei na vida. Antonio sabia onde eu
estava, sabia o que eu fazia. Só não podia ver. Apaguei no cinzeiro e
coloquei as mãos nos ombros dele.
— Você se sente bem fumando isso? — indagou ele, um toque de
curiosidade permeou seu tom.
— Agora sim. Você vai confiar em mim para te guiar para o quarto sem
ver nada?
— Vou.
Segurei sua mão, o quarto principal tinha uma ligação direta com o
terraço, era um caminho simples, porém, cheio de degraus. Ele estava
fazendo esse caminho desde que chegamos, assim que alcançou o quarto,
deu para ver que sabia onde estava. Por isso, não emiti nenhum som.
Antonio girou e me seguiu, como se eu o estivesse puxando por um ímã, o
que estragou minha chance de deixá-lo perdido.
— Você também confiaria em mim cegamente? — Ele colocou a mão na
venda, porque era um controlador e queria ver o que eu estava fazendo.
Eu me aproximei silenciosamente, toquei sua mão e disse baixo:
— Eu te disse sim, sabendo quem você é. O que acha?
Antonio me capturou pelo rosto e me beijou ao dizer:
— Perfeita. Eu não te mereço.
Passei os braços pelo pescoço dele e me entreguei ao seu abraço apertado
e beijo faminto. Ele não precisava tirar a venda para isso e eu a deixei lá até
escapulir de seu casulo de desejo.
— Rachel… — ele puxou a venda de cetim por cima da cabeça.
Eu me virei com a tiara na mão e o olhar dele foi descaradamente do
espaço aberto do meu robe para o pequeno sorriso no meu rosto e a joia que
eu segurava.
— Quando subi, notei que tinha algo diferente aqui — dei a volta nele que
me seguia com o olhar, enquanto eu prendia bem a tiara.
— Ninguém vai vir atrás da gente hoje, certo?
— Como é que você diz mesmo? Não quero nenhum de vocês na minha
linha de visão até amanhã — eu o imitei, divertindo-o. — Foi isso que eu
disse.
Antonio fez algo nada típico da gente: acendeu umas velas. Eram
quadradas, baixas e eu até as chamaria de fofas.
— Você vai ser romântico comigo?
— Muito.
Inclinei a cabeça rindo tanto da declaração quanto do tom dele.
— Eu coloquei a tiara, você pode tirar a camiseta.
Ele se virou à frente das velas, puxou a peça pela cabeça e a jogou para
cima da poltrona. Efetivo e natural. Eu gostava assim. Sentei e olhei a
pequena chama balançando na mão dele quando se aproximou. Não sei o
que a gente tinha, que por menor que fosse, sempre tinha fogo envolvido.
Ele derramou a cera na minha coxa, esquentou, mas não queimou. E quando
ele esfregou, deslizou fácil como um óleo suave.
— Eu logo vi que você não ia acender velas só pelo bem da penumbra —
comentei.
Antonio tornou a virar a vela, eu só sentia o toque quente de quando
tocava minha pele.
— E se eu for menos insensível? — Ele descansou a vela e foi espalhando
o que derramou em mim.
— Sabe, Antonio, você é outro tipo de romântico. E também é o tipo que
não acende vela nem para a alma dos seus inimigos partir mais rápido. E eu
gosto. — Eu me inclinei para ele.
Antonio me segurou pelos quadris e me beijou, suas mãos escorregaram
para minha cintura, com os dedos entrando por baixo das tiras da minha
lingerie da Fenty. Usei branco de manhã, mas agora estava de preto com
pontos brilhantes. Como os olhos dele.
Fiquei de joelhos e empurrei o robe, jogando-o pro canto da cama. O olhar
dele deixou meus lábios e passeou pelo meu corpo e traje, voltou para minha
tiara e depois para os meus olhos. Suas mãos foram para o meu traseiro, ele
achou um laço e puxou. Inclinei a cabeça, rindo dele e seu olhar se iluminou.
— Eu já te disse o quanto você estava linda hoje cedo, praticamente
flutuando ao nascer do sol com aquele vestido claro. E continua agora,
brilhando com essa auréola na cabeça.
— E mesmo assim você quer tirar meu figurino! — Eu me soltei na cama
e apoiei as mãos no colchão, empurrei a coxa dele com o pé. — Você estava
muito fora do personagem enquanto me esperava lá no altar.
— Fora do personagem? — Ele riu.
— Sim! Como um Rei do Submundo sendo obrigado a sair das trevas para
se casar ao amanhecer. A gente imagina que não vai dar certo, mas ele
aparece lá, lindo de morrer. E surpreende todo mundo. Menos a noiva, claro.
Ela sabe para quem está prometendo o resto da sua vida.
Ele ficou com um sorriso, divertindo-se com a minha leitura da situação.
E me sobressaltou quando pingou a cera quente bem no osso interno do meu
tornozelo que ele segurava.
— E você foi se casar comigo ao amanhecer e com uma tiara porque vai
voltar para as trevas na minha companhia e usá-la como uma coroa, certo?
— O olhar dele parou no meu rosto.
Eu gostava de como ele dava corda para minhas histórias. Só que era
verdade, era exatamente o que eu faria. E era o que ele era. Não adiantava
negar.
— Certo — assenti.
Ele foi pingando aquela vela e massageando, espalhou o óleo quente que
adquiriu a temperatura da minha pele, mas conforme ele subia, comecei a
desmanchar. Até que ele colocou as duas mãos em mim, começando meu
desmanche completo. Deixou meu “figurino” em paz e massageou minhas
pernas, subiu pelos meus quadris e me virou. Acho que soltou cada músculo
das minhas costas e do meu pescoço. Quando as gotas quentes caíram pela
minha coluna, eu me arrepiei inteira e sequer o senti soltar os fechos.
Seus dedos desceram para o meu cóccix e eu me arqueei, aquele óleo
sumia na pele, igualava-se a temperatura do meu corpo e depois esquentava
de novo. Ou era eu que estava super estimulada. Provavelmente era as duas
coisas. As alças escorregaram pelos meus ombros e deixei que ele me
despisse e massageasse o resto do meu corpo. Antonio instigou meus
mamilos eriçados por muito mais do que a temperatura ambiente.
— Deixa as mãos aqui — ele colocou minhas mãos ansiosas em seu peito,
impedindo outra vez que eu me tocasse, porque era um bandido que queria
me torturar. E ele me distraiu quando lambeu a gota da vela no interior da
minha coxa.
Tinha cheiro de mel e descobri ali que era comestível, porque ele fez um
caminho com a boca antes de me segurar contra ele outra vez. Suas mãos
escorregavam do que sobrou da vela e quando me tocou, ele sabia que me
encontraria encharcada. Eu estava super excitada e quase gozei com a
facilidade que seus dedos deslizaram no meu sexo. Não adiantou nada
segurar, ele estimulou meu clitóris inchado com três dedos e eu fiquei mais
líquida que aquele óleo que ele usou.
— Adoro esse som que você faz quando goza assim — ele mordiscou
meu pescoço e eu apertei as mãos dele entre as coxas.
Escapei do aperto dele, pois Antonio adorava me fazer gozar e me
dominar. Mas ele teria o que queria do jeito mais difícil. Peguei outra vela e
me virei para ele. Fiz um caminho de cera quente sobre as tatuagens no seu
peitoral até deixar cair bem em cima dos mamilos e vê-lo puxar o ar. Era só
um instante de quentura, porém, ele era sensível a estímulos bem ali. Passei
a mão sobre a pele, espalhando o óleo para os seus ombros. Cheguei mais
perto e excitei seus mamilos com a língua, constatando que tinha sim um
leve sabor de mel.
— Solta isso, vem aqui — pediu ele, querendo me ter junto ao seu corpo.
Seu olhar de tesão era um feitiço difícil de resistir.
— Nada disso — balancei a cabeça.
Pinguei um caminho de gotas quentes, mostrando para onde ia e delineei
seu membro duro. O short do seu pijama parecia um céu estrelado. E não
tinha nada por baixo. Deixei-o nu enquanto eu ainda tinha minha tiara. Virei
a vela uma última vez e deslizei as mãos pelas suas coxas fortes que
retesavam pro meu toque, até eu segurar sua ereção e ver seu corpo reagir.
Eu o estimulei, aproveitando o quanto minhas mãos deslizavam facilmente.
Antonio me pegou pelo pescoço e puxou para cima dele, beijou meus
lábios e segurou meus quadris, ajeitando-me onde ele queria. O corpo dele
era uma fraqueza verdadeira para mim, depois que me tinha onde queria, eu
não desejava mais nada. Passei os braços em volta do seu pescoço e ele me
beijou até eu ter certeza que a sensação não sumiria dos meus lábios. Aquele
óleo caía quente, era suave na pele e também era um ótimo lubrificante.
Como se eu já não estivesse molhada o suficiente. Ele me preencheu,
encaixando perfeitamente.
Fechei os olhos por um momento, deixando meu corpo responder ao
prazer se irradiando por mim e a profunda conexão entre nós. Antes que ele
me tragasse completamente, plantei as mãos no seu peito e o empurrei para a
cama. Continuei por cima e acariciei seu rosto anguloso, afundei as unhas
abaixo do seu queixo e ele puxou o ar entre os dentes antes de trincá-los e
empurrar os quadris, segurando-me pelas coxas. Olhei para baixo e vi seus
olhos em mim, abri um sorriso.
— Esse rosto lindo, cheio de tesão, perfeito para tomar um tapa por ser
um desalmado gostoso e convencido — dei um tapa com os dedos e ele
sorriu.
— Minha vingativa preferida. Me fode, porra, não para — mandou ele.
— Você está no talo — eu pulsava em volta dele. — Goza. Bem aí — eu
girei os quadris no lugar, só para prendê-lo ainda mais.
Ele estava tão excitado quanto eu desde antes de tomar meu corpo, agora
podia assistir o orgasmo o dominando, sentia na força dos seus dedos
afundando em mim, no seu latejar no meu interior, nos sons dele e no retesar
insistente dos seus músculos. Seu olhar se manteve fixo em mim e seus
lábios se entreabriram.
— Eu quero te fazer gozar e cavalgar a sua cara — apertei as unhas nele.
Seus olhos se fecharam e ele pulsou, um gemido grosso de prazer se
misturou ao seu ofegar e o alívio dele encheu meus ouvidos enquanto ele
explodia. Eu o cavalguei até seu último espasmo.
— Vem logo. Sobe aqui — mandou ele.
Como se ele me desse opção. Antonio me movia em cima dele com
facilidade. E eu queria muito. Apoiei as mãos e os joelhos na cama e me
ajeitei para encaixar na boca dele, sobre a sua cabeça. Eu ainda estava
sensível do jeito que a gente fodeu, quando seus lábios roçaram meu clitóris
rijo, senti um choque de prazer que me avisava que não ia durar naquela
posição. Ele lambeu um caminho até aquele botão excitado, provocando
antes de me destruir.
Antonio subiu as mãos pelo meu corpo, afagou meus seios, apertou meus
mamilos entre os dedos enquanto eu estava no céu, movendo os quadris
suavemente, com meu sexo na sua boca. Ele me chupou, no ritmo mais
delicioso e contínuo, com sua língua esfregando meu clitóris sensível. Ele
sabia que eu ia gozar bem ali e me manteve no lugar. Eu não alcançava a
cabeceira da cama, só pude apoiar as mãos e afastar mais os joelhos,
estremecendo inteira enquanto tinha um orgasmo na boca dele, gemendo de
um jeito agudo que o som até falhava porque meu corpo não deu conta de
fazer tudo ao mesmo tempo.
Tombei na cama e virei de lado. Antonio se apoiou nos braços, deu um
beijo na lateral do meu quadril e deitou atrás de mim.
— A tiara não caiu — comentei, quando recuperei o fôlego.
Ouvi sua risada instantânea. Eu a adorava, ainda mais quando saía assim,
súbita.
— Passou no teste, foi feita para você — ele brincou de volta.
A gente levantou e foi dar show no vidro do box. Dessa vez sem a tiara
porque eu não ia molhar meu presente. Bebemos metade do champanhe do
bar do quarto. Fodemos na janela. Recoloquei a tiara, porque ele adorava. E
disse que se eu a usasse, ele ia me foder até a gente apagar ou a tiara cair.
Dessa vez ela caiu. Botei de volta. Bebemos o que sobrou do champanhe. A
gente apagou por um tempo. A tiara dormiu na minha cabeça. Torta, mas
ficou.
O dia estava amanhecendo de novo e nós estávamos sentados na beira da
cama, de frente para as paredes de vidro. Eu apoiei os braços nos joelhos e
observei aquela paisagem linda clarear. Antonio estava sentado tão perto de
mim que sua perna descansava contra a minha, ele mantinha as mãos juntas
e o olhar nos vidros. A gente estava com sono, mas só continuamos ali
sentados enquanto o tempo passava.
— Feliz vinte e quatro horas de matrimônio, Gasolina — cumprimentou
ele.
— Feliz um dia de casamento, Pólvora — eu sorri.
Antonio virou o rosto para mim, com aquele sorriso genuíno que franzia
seu nariz do jeito que só eu achava adorável, até porque não o via sorrir
assim para mais ninguém. Ele tomou coragem para ficar de pé primeiro,
puxando-me pela mão. Foi nosso primeiro dia em Ibiza fazendo o contrário
de acordar cedo para aproveitar. Valeu a pena.
Capítulo 32: Ela sabe?
Antonio

— Nós temos de voltar, Raye — disse baixo, enquanto ela estava na


mesma cama de onde saí puto da vida há uma hora.
As malas já estavam pela metade, daria tempo de arrumar calmamente se
não tivéssemos de sair um dia antes do novo planejado. Nunca foi uma
estadia certa, cada dia havia a ameaça da partida iminente, mas eu escolhia
esquecer o resto quando estava com Rachel. Agora o jogo estava aberto de
novo.
— O que aconteceu? LA explodiu na nossa ausência?
— Ainda não.
Rachel pulou da cama e continuou a mala que deixou pela metade. Ela era
perfeita assim, não perdia tempo. Sabia que nosso tempo era contado e
minutos eram sobrevivência. Não estávamos fugindo de Ibiza, no entanto.
Mas nunca andávamos devagar.
— Foi algo que vai te fazer explodir LA igual aquele seu primo?
— Esse não é o meu estilo — tirei minhas camisas do armário, fiz um
trabalho rápido ao dobrar e devolver os cabides. — Morales reapareceu. E já
fez a primeira merda.
Quando chegamos ao térreo, os outros já estavam com as malas feitas e os
carros prontos para partir. Pietro saiu depois da última varredura na casa e
partimos para o aeroporto. Não deixaríamos Ibiza do mesmo jeito que
chegamos, o avião iria direto para a Califórnia.
— Se eu não tivesse me casado com você, agora seria minha deixa para
me enfiar num táxi com as minhas malas e dar no pé — disse Rachel ao
chegarmos, conseguindo desviar minha mente do que teria de resolver ainda
naquela noite.
— Suas malas e Bellini? — Perguntei, enquanto colocava sua mala nova
sobre as outras na traseira do carro.
— Você vai precisar dele.
— É claro que eu ia trazê-la de fora do país e entregá-la a um táxi, Rachel
— eu ri do quanto a ideia era absurda e ela sabia que só considerar isso me
faria rir. Caí na dela e não me arrependia.
Entramos no segundo carro, enquanto os homens se dividiam nos outros.
Iana e Bellini estavam conosco.
— Para onde vamos dessa vez?
— Outra casa.
— Parei para pensar e percebi que botei meu nome num documento e
nunca fui à sua casa verdadeira. Você disse que tinha uma.
— Sim, minha preferida. Já está à venda, não vou voltar para lá, muito
visado.
— Então vamos morar no meu apartamento? — Provocou ela e antes que
eu respondesse, não aguentou e riu.
— A briga pelos sofás seria explosiva — respondi, porque não conseguia
parar de embarcar na dela.
— Eu gostava da primeira casa, era bonita apesar de ser aberta demais,
sabe aquelas mansões de revista que não parecem o lar de alguém.
— Sei, já morei em algumas. No fim, parecem todas iguais. Arranjei um
lugar novo para gente, é mais discreto, menos cara de revista e mais
humanidade.
— Parece bom.
— E não dá para chegar atirando pelos dois lados — completei, citando a
casa da praia que mostrou esse “pequeno defeito”.
— Nossa, essa era minha próxima pergunta! — Exclamou ela.
Eu a cutuquei para estourar sua bolha de sarcasmo e ela riu, se remexendo
no banco para fugir.
— E tem uma sala vazia e muito iluminada, pode montar suas coisas e
fazer seus conteúdos lá.
— Meu Deus do céu, eu me casei com o gênio da lâmpada! — Exclamou
ela, pulando de volta e me abraçando. — Ali Baba e os quarenta ladrões que
lutem!
— É pura manipulação, assim você vai passar mais tempo dentro da casa
— admiti, não ia esconder minhas intenções.
— Te odeio — ela me empurrou pelo ombro. — Tudo bem, não odeio
tanto assim. Sorte sua que eu tenho muito conteúdo para gravar em casa nos
próximos dias. Depois, eu volto para a rua.
Eu a olhei seriamente, ela já não estava circulando tanto assim pela rua
antes de atacarem a casa. Rachel me encarou de volta e cruzou os braços
antes de perguntar:
— Afinal de contas, que droga foi agora?
— Minha tia.

◆◆◆

Deixei Rachel na casa com os seguranças e Iana. Mal entrei para dar uma
olhada no lugar onde iria morar por um tempo. Voltei para o carro e parti
com os outros. Já comecei mal no meu novo papel na vida dela, quem diabos
traz a esposa de viagem, entrega numa casa nova e desaparece logo depois?
Eu sei, um cara como eu faz essas merdas. Eu ia dar um jeito nisso, assim
que resolvesse outros problemas urgentes.
Chegamos ao motel no sul da cidade para onde minha tia havia sido
levada sem que ninguém mais soubesse. Encontramos os homens de
Alessandro garantindo a segurança dela. Ele seria o único em quem ela
confiaria na minha ausência.
— Por que me deixou aqui um dia inteiro? — Perguntou Marzia, com os
olhos transbordando de lágrimas.
— Eu não estava no país, tia.
Ela se soltou contra mim e chorou no meu peito.
— Jeane também não está aqui, eu fiquei sozinha! Alessandro me trouxe
para cá e disse que ninguém me encontraria, mas o problema não sou eu.
— Ele disse que pegaram as meninas. Como isso aconteceu?
Ela secou o rosto e olhou para baixo, diferente do que eu estava
acostumado a ver dela. Tia Marzia não mostrava esse tipo de vulnerabilidade
em público, ela estava acostumada com essa vida, eram muitos anos casada
com Nascari.
— Eu fui enganada. Não tenho como dizer de outra forma — ela se
afastou e passou a mão pelo cabelo que costumava estar sempre arrumado e
com um volume característico. No momento só estava preso num coque alto.
— Tem de entender que sempre fomos muito próximos, são mais de trinta
anos, você nem era nascido e eles já se conheciam, nós casamos cedo e…
— Tia, para de se explicar. O que ele fez?
— Ele me enganou, disse que independentemente do que acontecesse
entre vocês dois, eu estava fora disso. Disse que nossa relação vinha muito
antes, então abaixei a guarda. Contei que as meninas e eu estaríamos em LA
e que eu queria muito ver Jeane e seu novo bebê.
— Você disse a ele onde ela está? — Perguntei, sem conseguir evitar o
tom de julgamento.
— Eu não sou uma velha idiota!
— Você sequer é velha, tia. Ele sabe ou não?
— Eu sou velha, uma velha com filhas menores de idade que eu perdi! —
Ela se exaltou. — Ele levou minhas meninas! Enfiou as duas num carro e me
largou! Eu não contei nada!
— E o que ele disse?
— Mandou que você resolvesse se as quisesse de volta.
— Fica aqui — eu voltei para a porta.
— Antonio, não ouse me largar aqui! Eu quero as minhas filhas!
Deixei tia Marzia e quando saí do quarto, Alessandro estava do lado de
fora, encostado na cerca com os braços e os tornozelos cruzados.
— E então? — Perguntou ele.
— Cadê o cara que vocês pegaram a vigiando? Ainda está vivo?
— Falei que não ia matar ninguém até você chegar — ele foi na frente.
Eles tinham fechado o motel que era gerenciado por um dos homens de
Alessandro, era uma rede espalhada por LA e arredores que nos servia para
muita coisa. O cara estava no pior quarto do local, na parte de trás, com vista
para os fundos que tinha um jardim ridículo que os hóspedes só usavam para
beber e fumar.
O cara não estava em bom estado, mas respirava e raciocinava o suficiente
para o que eu queria.
— Liga para ele — mandei.
— Vão pro caralho, vocês vão me matar!
— Você decide se é rápido ou lento.
— Eu não sei para onde levaram as garotas.
— Qual desses números é do Calogero? Se me fizer perder tempo, vou
começar pela sua orelha — avisei, pois é claro que o celular dele só tinha
códigos e números.
— Não foi ele que mandou pegá-las.
— Eu sei — mostrei a tela. — Qual número?
Ele me encarou com o olho que ainda funcionava.
— Você vai ter que ligar para os cinco — informou, com o gosto de
contrariar.
Nunca achei que ele me diria, mas não custava tentar, fiz um sinal para
Ogul.
— Arranca a orelha dele para pagar o tempo que vou gastar.
Depois de dois toques, na segunda tentativa, falei com quem eu queria. O
segundo no comando. Morales tinha a fama, mas as coisas não funcionavam
direito sem seu sócio desprezado. Calogero não tinha todo o poder que
Tommaso possuía, nunca soube que Morales o deixou no comando absoluto
em sua ausência.
— Por que você está me ligando? — Perguntou Calogero, pensando que
falaria com um dos homens de Morales.
— Ele não vai voltar — respondi.
— Diabolik?
— Quem você esperava?
— Não é comigo que você tem que falar, não mandei fazer nada.
— Sim, mas você vai ser meu garoto de recados.
— Ele não vai recuar, tem que mostrar para todo mundo o que vai
acontecer com o próximo garoto que sair da linha.
— Diz a ele que se tocar nelas, o acordo está desfeito. Tudo que vocês
fizerem com elas eu vou fazer em dobro com cada um de vocês. Cada
pequena merda. E eu vou começar por você.
— Não me ameaça, eu não mando fazer showzinho de entrada, não sou o
Morales.
— Nem eu. Se alguém tocar nelas, você vai me pedir para morrer,
desgraçado. Enfia a conta no rabo do seu sócio.
Eu desliguei e olhei para Pietro.
— Fala com o Martino que eu quero todas as informações do Calogero.
Esse puto não para quieto, acabou o salvo-conduto dele no meu território.
Voltei para o quarto e peguei tia Marzia, tinha várias perguntas. Se ela
pensava que ninguém estava achando buracos naquela história, então estava
mesmo transtornada. Ela me agarrou pela camisa assim que entrei e
perguntou:
— Você o matou pessoalmente? Diz que teve a decência de fazer com
suas próprias mãos e não relegar a um subalterno! — Demandou ela,
obviamente falando de Vito.
— Fui eu.
Ela se virou e cobriu o rosto.
— Eu achei que você ia devolver na mesma moeda e explodi-lo em vários
pedaços e eu não teria o que cremar.
Continuei olhando para ela.
— Eu não posso perder minhas filhas. Elas são inocentes nessa história.
— Vamos — indiquei a porta.
— Você vai me enfiar em outro buraco, Antonio? Eu sou família! Já basta
não poder ficar com a minha filha que acabou de ter um bebê!
— Você estaria com ela se isso não tivesse acontecido, tia. Vem, vou te
levar para onde estou morando.
— Você encontrou uma casa nova?
— Sim.
Eles a varreram de novo e tia Marzia ficou com aquela expressão de
traição, mas ela esteve onde não devia. E eu ia levá-la para casa, ela só tinha
seus pertences, pois já ia viajar e seu celular de emergência. Antes de levá-la
para o motel, já tinham desligado seus aparelhos, mas ela disse que ninguém
pegou ou mexeu em nada seu, só levaram as meninas.
— Começa no início, ele te ligou e você acreditou nele…
— Ele era meu amigo também, sabe? Eu o conheço desde sempre, Nascari
e ele ficaram amigos pouco depois de nos casarmos. Ele me disse que
independentemente do que acontecesse, as crianças e eu estávamos de fora.
E que nada nos aconteceria…
— Você sabe onde ele está?
— Ele não é tão bom assim, eu devia ter começado a desconfiar aí.
Marzia narrou o que aconteceu quando encontrou Morales e que tudo
correu bem. Ele não pediu informações, disse que sabia que eu as havia
tirado da cidade por causa de Vito. E estava na hora de elas poderem voltar
para casa, que Jeanne estava errada e apesar de ela não ter ficado do lado
dele, não ia machucá-la. Então, na hora de ir embora, ele simplesmente a
separou das meninas e avisou que elas iam com ele.
E mandou que me desse o recado. Seria minha responsabilidade se
qualquer coisa acontecesse a elas. Era para mim me render, podia até fugir
da cidade e largar tudo. Olha só, que desgraçado clemente.
— Ele disso que te pega depois. Se você sair de LA, ele te acha, mas
devolve as minhas filhas antes.
— E você acreditou nele?
— Não sei — ela desabou mais um pouco. — Não o estou reconhecendo.
Nascari nunca pegaria as filhas do melhor amigo, Antonio! Nunca!
Não respondi nada, mas não tinha um desgraçado nessa história por quem
eu colocaria a mão no fogo. Não juraria nem por mim. Eu ia pegar alguma
coisa de Morales, dependeria de onde minhas mãos chegariam. E todo
mundo era filho de alguém.
Quando nos aproximamos da casa, achei melhor informar logo:
— Eu me casei.
— O quê? — Ela deu um pulo no banco e virou o corpo para mim, sua
expressão de choque era o esperado.
— O nome dela é Rachel.
— Desde quando você tinha uma namorada?
— Tem meses.
— Antonio…
— Você vai ficar com ela.
— Ela sabe?
— Como não saberia?
— Tudo?
— Praticamente.
— Sabe do que estou falando.
— Tácita já a viu, se é isso que está perguntando. O resto é questão de
tempo.
Tia Marzia balançou a cabeça, tão chocada que ficou sem perguntas,
resolveu pagar para ver. Eu não lhe dei mais informações, não sabia que tipo
de mulher ela esperava que eu tivesse em minha vida. Queria vê-la descobrir
tarde demais com quem estava se metendo. Rachel era atenta, inteligente e
esperta. Mas se ela entrasse lá esperando algo diferente, melhor ainda.
Capítulo 33: Tia Marzia
Rachel

Observei a tia de Antonio que estava sentada na poltrona mais próxima da


janela como se tivesse sido resgatada de uma tragédia, mas só pela sua
expressão e óbvia preocupação, pois as roupas e o cabelo não denunciavam.
Ele nos apresentou e me tirou do cômodo, disse que tinham levado suas
primas e teria de resolver isso.
— Lamento deixá-la, eu preciso resolver umas questões — ele me olhou e
beijou meus lábios. — Uns poucos dias de liberdade nunca saem barato, não
é?
Seu olhar ao me dizer isso era uma tentativa de mostrar bom humor, que
não era verdade de forma alguma, não havia um pingo de contentamento
nele. Eu olhei na direção da sala, podia até me incomodar em ser deixada na
casa, mas a tia dele era minha nova oportunidade para informações.
— Talvez um pouco de chá ajude num momento como esse — eu deixei a
bandeja em cima da mesa de centro.
Não é que eu não fosse gentil e não me compadecesse pela situação dela,
pelo contrário. Porém, acho que aquele mundo, a situação e tudo mais,
estavam me infectando. Eu a estudei. Quando retornei com o chá, Marzia
estava de pé junto as portas que davam no jardim e mexia nervosamente em
seu celular, encarava a tela como se fosse chorar. Se estava esperando
receber notícias das filhas por ali, eu duvidava.
No entanto, ao ver que estávamos sozinhas, ela também se aproveitou da
oportunidade. Eu podia assistir as alterações de humor que passavam por ela
e os pensamentos colocando-a em ação. A novata era eu, Antonio disse que
Marzia esteve casada com seu tio por cerca trinta anos. Era mais tempo do
que eu tinha de vida.
— Não esperava que fôssemos apresentadas assim e nem colocadas nessa
situação tão abruptamente. A situação fugiu ao controle — disse ela.
— Lamento, espero que tragam suas filhas de volta o quanto antes.
— Nunca imaginei que Antonio fosse se casar da noite para o dia e nem
com alguém como você — ela me observou, com certeza estava pescando.
Nesse caso, era ela que não sabia nada sobre mim.
— Como eu… De fora do seu mundo? Envolvida com a mídia? Ou negra?
— Arrisquei, testando-a.
— Tudo isso e mais — disse ela, honestamente.
— Também não planejei me envolver com um gangster gringo, filho de
outro e sobrinho do seu marido. Mas aqui estamos. Se bem que eu sou
importada também — falei, jogando informações, só para ver até onde ia.
— Ele nasceu aqui — respondeu ela, talvez num reflexo automático.
— Eu sei a verdade.
— E você? De onde veio?
— Eu sou daqui e também da Espanha, da Suíça, de Gana… Você
escolhe. A família é bem diversificada.
— Eu não te insultei, espero.
— Ainda não.
— Mas você não é negra, seja lá de onde for. Ele não teve tempo de trazê-
la desses outros países, você mora em LA, então — ela franziu o cenho, me
analisando, como se tentasse concluir se eu estava mentindo ou de qual
desses locais eu realmente era, apesar de ter certeza que meu sotaque era
local.
— Agora você está me insultando. Ser “mais clara” me poupa de muita
coisa ruim, mas não muda a verdade sobre quem eu sou. E ter me
apaixonado pelo seu sobrinho não muda o fato de que ele é um assassino que
manda no submundo desse lugar onde pisamos em sangue. Igual ao seu
marido que o enfiou nisso quando ele era uma criança.
Eu imaginei que insultar o marido falecido ia funcionar e acertei na
aposta, seu semblante endureceu quando ela respondeu:
— Ele já nasceu nisso e é ótimo no que faz. Se não fosse o meu marido
seria o pai dele ou algum outro familiar que o pegasse.
— E se não fosse eu, seria alguma outra idiota.
Marzia balançou a cabeça e me olhou seriamente, sem a dureza da
alegação anterior, mas seu tom soou como um aviso:
— Acho bom você não ter nada de boba, não ser nem um pouco idiota e
ser rápida para acompanhar. Se quiser ficar viva. Ande mais rápido do que
ele. Se ele cair, você se salva. Pega o dinheiro, não faz cerimônia. Pega tudo
que puder e sai. É assim que ficamos vivas depois que eles se vão.
Mantive o olhar nela, levei a sério o que ela disse, mas como estávamos
ambas pescando, eu continuei:
— Eles te pegaram.
— Mas eu continuo viva. Vou corrigir isso, talvez eu pague o preço dessa
vez, mas o que importa é recuperar minhas filhas. Fui enganada por um
antigo amigo que costumava botar amizade acima de tudo. Não segui as
regras do jogo e aquele desgraçado traidor me pegou. — Ela levantou a mão
e depois o dedo, como se fosse recitar algo para eu memorizar. — Nunca
tenha pena de traidores.
— Uma encomenda e um tiro na cabeça? — Perguntei, eu estava há meses
no meio daqueles homens, ouvi muita coisa.
— E vice-versa — ela assentiu.
— O chá não era uma desculpa — apontei para a mesa.
Ela se serviu, depois eu ofereci para que descansasse. Prometi que a
chamaria se telefonassem com notícias ou se Antonio retornasse. Mentira,
ela parecia exausta, se a mulher conseguisse pregar os olhos, eu iria deixá-la,
a menos que ele entrasse por aquela porta com as filhas dela.

◆◆◆

Annika 20:48
Calma aí. Espera.
Annika 20:49
Você SE CASOU COM O HOMI DA COMIDA? Aquele
BANDIDO?!
Annika 20:49
Ele não tinha levado uns tiros? Como que já tá
casando?
Annika 20:50
Eu vou te matar assim que chegar em LA!

Quando Antonio retornou, ele só parecia mais cansado e frustrado. O cara


que esteve comigo em Ibiza foi sugado, batido e rasgado. Esse que estava no
lugar não era o mesmo que ria enquanto tomava banhos comigo numa
banheira branca, num cômodo só de janelas e com o sol nascendo. Era
aquele outro, que me fazia pensar que só existia à noite, de onde mandava
fazer tudo que as pessoas comuns não imaginavam e sequer suportariam. O
problema era que eu conheci esse cara primeiro, foi com ele que me envolvi,
o outro só aparecia pelas brechas de sorrisos, num final de semana num
resort, até sumir de novo e poder passar um pouco mais de tempo sob a luz.
Ele estava na banheira e eu podia jurar que a água ia começar a borbulhar
junto com a pouca espuma, direto das profundezas do inferno de onde ele
saiu. E mesmo assim, sentei na borda e fui direto ao assunto.
— Você confia nela? — Perguntei.
— Confiei desde que cheguei nessa cidade, mas as regras mudaram — ele
estava com o braço apoiado na beira e a mão sobre a testa. Dor de cabeça, eu
já sabia.
— E ela não disse mais nada?
— Só o que já contei. Eu que devia fazer essa pergunta.
— Ela me deu umas lições rápidas, nada que lhe sirva.
Ele cobriu os olhos com a mão.
— Você tomou algum remédio? — Perguntei.
— Estou esperando fazer efeito.
— Vou descer, vai ter comida quente lá embaixo, acho melhor você
aparecer. Estômago vazio contribui para dor de cabeça.
Antonio apareceu para comer, assim como Vittorio que finalmente
conheceu tia Marzia e sinceramente, era informação demais para ela digerir.
Eu não fui o grande choque do dia. O prêmio era do susto de descobrir que o
irmão mais novo não estava perdido em uma vala em Nova York.
— O que mais eu preciso descobrir? — ela perguntou baixo, mal tinha
mexido na comida.
Nós nem tentamos formar uma mesa posta e feliz. A cozinha tinha
exatamente quatro bancos de dois lados do balcão e foi mais prático comer
ali mesmo.
— Acabou por hoje — disse Antonio.
Vittorio levou outra garfada de comida a boca enquanto alternava o olhar
entre a nova tia e o irmão. Ela não conseguia parar de olhar para ele e seu
olhar também dançava entre o novo sobrinho e o antigo, provavelmente
categorizando as similaridades óbvias. Juro que não era exagero, a genética
era incrível.
— E você já está envolvido nisso tudo? — Ela perguntou a Vittorio.
— Eu estava lá quando a tiraram do motel. Sinto muito — ele bebeu um
gole do vinho em sua taça. — No momento, eu sou como um estudante.
Observo, aprendo e espero a natureza terminar seu trabalho — ele levantou o
braço imobilizado.
A tia parecia surpresa e cética. Eu esperava o momento que iam contar a
ela que o sobrinho desaparecido não tinha acabado de ser apresentado a sua
nova vida, ele foi pego em Nova York por ir atrás dos caras que sabiam
sobre o atentado contra sua família.

◆◆◆

No dia seguinte, eu saí com Vittorio pela manhã. Ele foi à clínica do
doutor Narek, fez novos exames e se livrou de quase tudo. Ficou só com
uma tala móvel que pegava sua mão e o início do seu antebraço direito,
aparentemente foi o pior dano. Mas já não precisava de mais nada, ou seja,
ele estava livre para se envolver ainda mais onde não devia. Ou…
exatamente onde sempre deveria ter estado.
Nós paramos num café onde Deon foi nos encontrar.
— Mamãe ligou, perguntou sobre você — contou ele.
Nossa mãe estava num iate de luxo que deixou Los Angeles e por isso mal
notou que eu fiquei fora por uns dias.
— Pensei que ela ia entrar pelo Outono a dentro.
— Ela vai — ele deu uma olhada em Vittorio, que estava nos dando
privacidade enquanto comia um sanduíche, bebia café e olhava a TV que
passava o noticiário.
E adivinha só, estavam dando novidades sobre a operação da unidade de
crime organizado que tinha apreendido pessoas envolvidas no que eles ainda
chamavam de desdobramento das explosões dos meses anteriores e da
investigação do ataque em Malibu. Parecia fazer uma eternidade, por causa
dos poucos dias que passamos escondidos no paraíso onde eu nasci. Porém,
em LA o tempo passou do jeito normal e a polícia ainda estava só no
começo do escândalo que era o crime organizado ter deixado sua guerra sair
do submundo e estourar em um tiroteio numa mansão no bairro onde os
ricos e famosos moravam.
— Cadê o careca? Agora sua companhia é só o irmão italiano? —
Perguntou ele, sabendo que tinha um carro lá fora com mais dois caras.
— O careca está muito ocupado no momento. Eu levei meu cunhado ao
médico, ele é muito pequeno para ir sozinho, afinal, é o caçula — sorri.
Vittorio se divertia com minhas provocações, até porque além de ser bem
maior do que eu, ele também era mais velho. Mas eu que conhecia LA, nisso
aí o novato era ele. E eu que aproveitei sua saída “inocente” para ir o médico
para marcar um café com meu irmão.
— Falando em família… Minha mãe também quer saber o que você fez
com Nadia.
— Por quê?
— Segundo ela, Nadia está quase outra pessoa. Até foi trabalhar e tem
estado na dela.
— De nada.
Ele franziu o cenho para mim, esperando explicações.
— Eu te falei do spa e reabilitação. Ela me jurou que vai continuar a
terapia. Dei um tempo para se resolver, enquanto isso, ela vai continuar
naqueles bicos que arranjei no estúdio.
— Daqui a pouco ela vai querer seguir a mesma carreira que você.
Dei de ombros.
— Tem muitas ramificações para ela seguir se quiser trabalhar no meu
ramo — aleguei.
O celular de Vittorio tocou e ele só o levou ao ouvido, depois levantou e
parou ao nosso lado.
— Vamos. Tenho uma tarefa, vou deixá-la em casa — avisou.
— Olha só, do gesso direto para as tarefas — levantei as sobrancelhas
para ele. Tenho certeza que apesar do tanto de informações que estavam
enchendo o cérebro dele, Vittorio era um cara de ação.
— Você vem? — Ele perguntou a Deon.
— Não, vou pegar o contador — parecia código, mas sabíamos do que se
tratava.
Voltei com Vittorio para casa, ainda era meio da manhã, pois o horário
dele no médico foi bem cedo. Não encontrei mais Antonio, mas Marzia
pareceu atarantada ao me ver.
— Você saiu! — Ela entrou rapidamente na sala. — Tomei um calmante
para conseguir dormir, quando acordei não escutei nenhum som.
— Fui ao médico.
— Você está bem?
— Ótima — não era mentira, quando me tiraram daquela caixa, fizeram
todos os exames e apesar de tudo, minha saúde física estava boa.
Ela sentou para tomar o desjejum e eu sentei junto, já tinha bebido todo o
café que precisava, mas belisquei um biscoito para puxar conversa. Puxei o
assunto sobre tempos melhores, para levantar um pouco seu humor. Evitei
falar sobre Vito, por motivos óbvios. Eu desconfiava que ninguém havia dito
a ela que ele me sequestrou, trancou numa caixa, enterrou e me deixou lá
para morrer.
— Eu não sei onde estava com a cabeça, estava com quarenta anos e
grávida — contou ela, falando de sua filha de 14 anos.
— A medicina avançou bastante, são outros tempos — dei corda.
— Eu sei, porque engravidei de novo. Tínhamos só dois filhos ainda
jovens, então não me protegi e… Francesco ficou tão animado — ela
balançou a cabeça enquanto olhava para a xícara.
Servi mais café, não era a obra de arte em forma de cafeína que Antonio
gostava de fazer para mim, mas também era ótimo, fiz uma capsula dupla e o
cheiro permeava o ar. Alimentei a conversa até ela começar a falar do
sobrinho e sua chegada aos 10 anos.
— Foi difícil e ao mesmo tempo não foi. Ele quase não falou por meses, o
rapaz que o trouxe na época, Tommaso, disse que era uma criança ativa e
brincalhona, mas o menino que chegou aqui não era. E meus dois filhos
eram mais novos, um ainda de colo. Não sabia bem o que fazer com ele, o
que só tornou mais fácil para Francesco tomá-lo para si e para seus
objetivos.
— De qualquer forma era mais uma criança… — continuei prestando
atenção e deixando-a falar. — Tinha que educar, mandar pro colégio…
— Eu o adotei, uma criança chega à sua casa aos 10 anos, traumatizada e
sozinha, com gente querendo matá-la. — Ela balançou a cabeça rapidamente
e me olhou. — Francesco o tomou, mas ao mesmo tempo ainda era um
garoto. No resto do tempo, ele era meu para educar, alimentar, vestir, por
mais assustadoramente independente que ele fosse já tão novo. — Ela
pausou e bebeu — Achei que ia perder os três.
Ela confessou essa última frase, saiu mais baixa, com seu olhar cravado
em meu rosto. Não estava tão longe assim de acontecer isso, em menos de
um ano o marido dela faleceu, seu filho morreu e seu sobrinho estava jurado
de morte. Sendo que o filho dela matou o próprio pai, tentou matar o primo e
acabou morto por ele. Agora o melhor amigo da família, tio por afinidade
dos filhos dela, padrinho de um deles, era o cara que ia matar o sobrinho que
ela criou.
Se conseguisse.
Sinceramente, eu estava esperando abrir vaga para trabalhar na produção
dessa trama, eu que ia matar alguém pelo trabalho. Problema era que, o
destino e minhas decisões me colocaram em um dos papéis principais e eu
não confiava na roteirista. A vaca ainda ia me ferrar. Certeza.
— Francesco se foi, Vito já havia começado a sair da linha, a desrespeitar
o pai e a tentar predar o primo. Mas ele não era o predador que pensava, não
é?
— Creio que não… — murmurei, era mais fácil eu lhe contar o que
predadorzinho de merda do seu filho fez comigo do que revelar que ele
matou o pai. Talvez ela desconfiasse, só não ia me dizer.
Ela bebeu o café e sua expressão era uma mistura crua de desgosto e
aceitação de quem já viu muita coisa.
— Se não fosse Antonio, seria outro. E é melhor que as coisas sejam
resolvidas dentro da família — ela voltou a me olhar. — Ele aprendeu com o
tio, mas é como o pai. Subiu cedo na vida, doa a quem doer, custe o que
custar. E por isso Gregorio foi morto. Talvez por isso tantos queiram impedi-
lo. Mas são outros tempos e aqui é Los Angeles. Temos nossas próprias
regras, nós nem existimos. Se ninguém o impedir, ele será o novo rei da
máfia morta — ela deu um sorriso amargo, com os lábios prensados.
Não consegui dizer nada, só continuei a observando. Marzia havia perdido
o marido e o filho, mas se o sobrinho vencesse, ela estaria orgulhosa e
segura. Ela podia contar as histórias que quisesse e narrar toda a vida de
Antonio. Havia algo errado ali.
Capítulo 34: Sem Devolução pro
Enterro
PÓLVORA

Ao colocar tudo sob o tapete obscuro do “crime organizado” o


prefeito, a polícia e o FBI desviam nossa atenção da verdade. A máfia
não está morta.
Ela está tão entranhada no nosso dia a dia que vende nossos carros,
aluga nossas casas e lojas, patrocina nossos eventos, filmes e peças.
Vendem os artigos de luxo para os ricaços da cidade que pensam
mandar em algo. Vendem o fumo caro e legalizado dos jovens de
Beverly Hills e também a cocaína das festas VIP de LA. Eles foram tão
fundo que agem sobre o véu da legalidade. Se olharmos com atenção,
veremos que eles entregam nossa comida, nossos remédios e roupas.
Mas o Prefeito e o Governador estão certos, no fim, é tudo crime
organizado. E temos de olhar para o todo. Assim seguimos acreditando
que a máfia morreu em LA e vive de migalhas pela Califórnia. A
verdade é que estamos sitiados e nem sabemos.
~ LA Times

Fazia tempo que eu não via o santuário alagado.


A última vez foi quando Nascari levou os tiros e ficamos sem Diretor.
Pensávamos que Tácita odiava ter sua organização sem um líder, pois ficava
a deriva, virava o caos em que estávamos vivendo e trazia a tona o que havia
de pior entre os membros.
Até onde sabíamos, nunca passou tanto tempo sem liderança.
O que eu mais escutava era o temor sussurrado dos homens sobre Tácita
ter mudado. Cada um tinha experiências próprias com seu juramento, mesmo
que a base fosse a mesma. Contudo, eu não ouvi falar sobre nenhum outro
desgraçado que estava com sequelas. Desde o coma de Nascari que eu vi o
medo que nunca tinha enxergado antes em diversos membros.
O problema é que a maioria que confessou suas preocupações morreu na
explosão. Quem ficou, vivia uma aventura diária sem saber o que Tácita
queria. Primeiro apareceu Vito com aquele papo de ser o escolhido, deu
ruim, porque aqui só éramos escolhidos para morrer. Aí me acusaram de
matar a escolha para resolver tudo. Esqueceram essa história por causa do
temor de viver sob a liderança de Morales.
Agora estávamos num impasse, o lado de lá me chamava de traidor, o lado
de cá queria o velho trapaceiro morto. E havia os lados alternativos, porque é
claro que não temos um segundo de paz e numa organização desse tamanho
não existem só dois lados.
Avancei pela câmara de Acca, dessa vez o nível estava baixo. Pisei na
água, despreocupado com meus sapatos, a energia estava suave, como se eu
tivesse chegado num dia em que ela tirou para arrumar a casa. Minha dor de
cabeça sequer passou, mas eu já estava medicado. Não conseguia esconder
nada de Acca, mas estava escondendo de Rachel que o latejar estava mais
constante.
Tirei a rosa do bolso do paletó e joguei na água, ignorei que estava
transbordado, joguei no lugar onde costumava sangrar.
— Você a devolveu para mim, eu trouxe essa lembrança para você, Lara.
A flor correu, seguindo o caminho correto da água, quando não estava
transbordando.
— Ela jogou o buquê no mar para Lorenza, mas acho que foi você que
recebeu. Mesmo que ela ainda não saiba. Assim como o seu ramo que se eu
deixasse estaria no braço dela até hoje — comentei ao me aproximar da
estátua.
Ela estava com uma mão sobre a boca, oferecia a outra e usava o vestido
de sempre. Nada de armas e proteções de batalhas essa manhã. Acho que
cheguei cedo demais, eu nunca vinha nesse horário. Mas os dias estavam
corridos.
— Uma hora ela vai saber. Não vou esconder para sempre. Você já a viu,
eu conheço suas vontades. E eu já dei tudo para ACCA e vou ter que dar
mais. Não me abandone quando chegar a hora.
Acendi a vela e observei a chama permanecer acesa.
— Eu vou ter que te devolver mais dos seus filhos jurados. Você sabe o
banho de sangue que começou meses atrás.
O silêncio permaneceu o mesmo, a água chegava ao meio dos meus pés. E
a vela se manteve acesa.
— Amarramos hostis línguas e inimigas bocas — levantei o rosto para
ela.
Até a iluminação sobre ela estava estranha, o sol estava baixo e ela não
gostava das luzes artificiais. Cedo demais. Se ela quisesse me ver à noite,
tinha que ajudar a acabar com esse circo sangrento.
Deixei o santuário, meus pés estavam secos, como se eu nunca tivesse
entrado naquela câmara alagada.

◆◆◆

Tommaso estava bancando o emocional outra vez, só porque eu resolvi


me casar em outro país. Ele gastou uns dez minutos nesse tópico. Se
dissessem por aí que me casei, teriam que provar, não era o tipo de boato
esperado.
— Não sei dizer o que teria acontecido de diferente se você não tivesse
feito tudo isso por ela. De um jeito ou de outro, você pegaria Vito, mas se ele
não tivesse feito aquela merda com a sua agora esposa, você teria dado só
um tiro na cara dele e esperado. Não havia como evitar o confronto com
Morales, mas começaria com outro tom. Não sei se isso é bom ou ruim. Sem
ela você não teria sobrevivido, mais gente teria morrido e essa cidade ainda
estaria em chamas.
— Então, um brinde a minha esposa — eu levantei minha lata de
energético.
Tommaso brindou com água saborizada, estávamos no carro, nenhum dos
dois havia almoçado e nem começado a beber. Ele me ligou e disse: Morales
lhe mandou um recado.
E lá estávamos nós indo receber a mensagem em mais uma ida a clínica
do Dr. Narek. Daqui a pouco eu teria que despejar uma semana de lucro na
mão do médico de tanto que ele vinha trabalhando. Quando entramos pela
parte de trás, os outros tinham chegado com o recado há pouco tempo.
O próprio Narek analisava a situação. Geralmente não tinha a chance de
prestar atenção nele, mas acho que o preço de tanto sangue estava o
cobrando também. Pois tenho certeza que as laterais do seu cabelo escuro só
começaram a ficar grisalhas nos últimos meses.
— Eu não contei nada, chefe. Não disse nada — disse o homem, assim
que me viu.
Para mim ele era Donato, tinha começado vigiando a retaguarda dos
outros, mas vinha subindo de posto. E Rachel só o chamava de El Chapo,
mais por causa da série do que pelo personagem famoso no mundo dos
cartéis. E ele tinha subido justamente porque desde o sequestro estava
sempre dando apoio no carro que a acompanhava.
Eles o pegaram ontem à noite. Devolveram pela manhã.
— Eu juro que não a entreguei.
— Eu acredito — respondi.
Ele grunhiu de dor, havia sangue vazando e os médicos cortaram suas
roupas cheias de sangue já seco.
— Acredito que isso seja relevante — Dr. Narek levantou a mão enluvada,
segurando um rolo de papel em um plástico.
Tinham usado grampos de construção na barriga dele para prender uma
foto das minhas primas e escrito sobre a imagem estava:
Para Diabolik.
Enfiaram a mensagem no umbigo de Donato, depois de cortá-lo para abrir,
como um porco sendo estufado.
— Vamos operar agora — anunciou o médico.
Tommaso fez as honras, abriu o plástico e tirou a mensagem, mesmo
dentro do plástico, o papel estava ensanguentado.

Sua rendição pelas suas primas.


Devolvo a cabeça e o resto para te cremarem.
Ou você pode mandar a nova Sra. Denaro.
Troco as duas por ela.
Sem devolução pro enterro.

— Me dá isso — eu me virei, Ogul estava parado no corredor, em frente


as portas da emergência. — Liga para o Martino, manda arrumar para cuidar
da família do Donato.
— Ele volta? — Tommaso perguntou ao médico, enquanto os outros
atendentes levavam a maca.
Narek balançou a cabeça, não parecia animado com a possibilidade de
Donato sobreviver, mas ele nunca estava. Tinha a mesma expressão quando
estava costurando alguém aberto ao meio e quando estava dando pontos em
mais uma facada ou colando uma porra de um band-aid num dedo.
Ele era um associado antigo, sabia sobre seus pacientes nem sempre
ficarem mortos e sobreviverem a ferimentos absurdos. Mas fazia tudo para
não chegarmos a isso. Ninguém sabia se voltaria de mais uma morte. Desde
a explosão era raro, olha a quantidade de gente que tive que matar, deixei o
corpo em condições de ser recuperado, mas Tácita não trouxe de volta.
Atualmente, considerávamos que a próxima morte seria a última. E nunca
vi homens tão desesperados para não morrer. A conta tinha chegado.
— Vou ver o que tem ali dentro — o médico foi embora.
Voltei para a parte de trás, a clínica tinha três prédios interligados e
sempre entrávamos pelo terceiro, que nem possuía uma entrada para o
público geral. Havia uma espécie de sala de espera simples, porque não nos
demorávamos. Parei ali e pedi o outro celular a Ogul, aquele que não teria
nenhum federal pendurado.
— O alvo que mandei vigiar, seus informantes conseguiram o que eu
quero? — Perguntei a Martino, meu secretário.
Lá do motel onde busquei tia Marzia, eu mandei todo mundo acionar seus
contatos e informantes, alguém ia abrir a boca. Bem antes de toda essa
história, já sabia o que Colagero fazia e os locais onde gostava de ir, esse
tipo de informação você simplesmente precisa ter guardada, são dados
relevantes para estudar decisões. Eu sabia com quem ele ia, com quantos ia e
os jeitos que chegava e saía. E ele entrava no meu território, era passagem
segura quando Nascari estava vivo. As coisas mudaram.
Voltei para o carro com Tommaso, liguei para Alessandro, depois para
Brock. Troquei de celular, liguei para mais uns dois, esperando Martino ligar
com mais informações. Todos eles tinham que me ligar de volta, quando eu
ligava pessoalmente, era para ter o que queria. Digitei para umas pessoas e
para casa, porque precisava ler alguma coisa que me garantisse que tudo que
me importava estava onde devia.

Antonio 10:02
Gasolina?

Gasolina 10:04
Pólvora

Antonio 10:05
Fogo?
Gasolina 10:05
Fogo

Antonio 10:06
Tudo bem?

Gasolina 10:07
Sua tia está escondendo alguma coisa

Antonio 10:07
Sim, está. Mas eles realmente pegaram as
garotas

Gasolina 10:08
Que droga

— Eu estou sabendo que ele vacilou e a polícia está de olho nele, mas eu
vou chegar primeiro — falei com meu fofoqueiro preferido depois que ele
ligou de volta.
Nós fomos para o escritório de Tommaso em vez do meu, se alguém
conseguisse me seguir sem ser notado, meus itinerários não fariam sentido.
Voltei a cidade, mas não podia ser encontrado onde deveria. Nesse horário,
eu estaria no Centro da Cidade, chances altas de uns detetives à paisana da
Unidade de Crime Organizado estarem passando por lá regularmente para
ver se eu estava vivendo normalmente como dizia a mídia.
Minha assessoria já tinha deixado “escapar” a notícia de que eu retornei
ao trabalho e alguém vazou os supostos exames que comprovavam que fui
baleado no ataque em Malibu. Minha assessora colocou a culpa do
vazamento na polícia, que tinha acabado de negar e colocado a culpa na
clínica que não era a do Dr. Narek.
— Eu não posso impedi-lo, mas não recomendo — Tommaso recostou em
sua mesa e cruzou os braços.
Pietro estava sentado na poltrona do pai e só olhava, sem conseguir
decidir pela cautela ou pela ousadia. Ogul estava num sofá de dois lugares,
mas ele fazia parecer que era uma poltrona larga, só bebia café e olhava a
cena. Eu andava de um lado para o outro, irritado e sem paciência, uma
péssima combinação. Na verdade, eu estava de saco cheio, isso descrevia
melhor.
— Não sei se notou, mas estão todos recuados — disse Tommaso. —
Prestei atenção em todo mundo pelos poucos dias que você esteve fora. E
eles te obedeceram, estão tão fora do radar que dá para acreditar no que o
Prefeito fala sobre ser invenção da mídia para derrubá-lo. E a gente sabe que
não é por medo da polícia. Eles não têm nada para provar, só pegaram peixe
pequeno e por coisa dos últimos meses.
Ainda bem que havia Tommaso para ser a minha contrapartida, o cara que
tinha coragem e conhecimento para me dizer o que pensava. Mas eu
continuava de saco cheio de seguir uma linha que traçaram antes que eu
pegasse o giz.
— Morreu todo mundo — eu abri os braços. — Esqueceu disso? Vito
matou todos os caras que teriam o culhão de sair na rua com Morales atrás
deles e Tácita deixando todos morrerem. Depois eu matei os idiotas que
ficaram e me traíram ou não iam servir de nada. Aqueles que me são úteis,
eu mesmo mandei sumirem. Sobrou eu, você e o Alessandro na linha de
frente.
— Todos disponibilizaram os homens que tem se você precisar. Mas é
isso, se você for lá, eu não duvido que eles entrem atirando em LA. Ele não
perde a paciência há anos, mas você vai conseguir o feito. Tem uma linha,
Antonio, pode cruzá-la, mas não tem volta.
Eu consegui parar de andar de um lado para o outro e o encarei.
— Por que eu preciso ter qualquer tipo de deferência por ele? Por que eu
que preciso respeitar regras que ele não respeitaria para ter o que quer? O
amigo dele era o meu tio e assim que ele entrou em coma, Morales já
preparou o terreno para entrar nos territórios e nos negócios dele. Ele só não
contava com Vito no meio do caminho atrapalhando todo mundo. Ele ia vir
pra cima de mim, ia mandar meu primo escolher um lado. E teria tentado me
matar muito antes, só ficou quieto para ver se Vito daria a sorte de conseguir.
Ele quase conseguiu. Não devo porra nenhuma a Morales. Se alguém
ultrapassou a linha primeiro foi ele.
Tommaso não se abalava quando eu ficava puto, seu lado sentimental
atacava por outros motivos. No momento, ele estava trabalhando.
— Ele vai vir atrás do meu pai — disse Pietro, juntando os culhões para
abrir a boca. — Ele é o equivalente a Colagero para ele.
Eu parei na beira do tapete que ficava em frente à mesa de Tommaso.
— Eu sei — olhei para Tommaso e avisei: — Você vai sumir.
— Não, eu estou ocupado. Você sabe que não posso sair agora. Precisa de
mim tomando conta de todo o resto enquanto resolve essa merda.
— É sua vez de sumir. Leva aquela sua amante para passear já que duvido
que vá para onde enviou sua esposa.
Pietro olhou para o pai, a “esposa” era a mãe dele. Mas eles tinham um
acordo e até ela sabia que o marido tinha alguém, o filho preferia não se
meter nisso. A mãe preferia continuar viva, protegida e gastando o que
quisesse longe da gente. A irmã de Pietro também não estava no país, foi
enviada para um intercâmbio compulsório, sob um nome falso. Até a amante
dele estava entocada numa casa segura, porque ele se importava com ela.
Tudo porque Morales mandava varrer a vida da pessoa e usava todo
mundo que pudesse. Para azar dele, eu andava com um bando desgarrado
que quase não tinha relações próximas. Assim como eu. O que me sobrou
além das poucas pessoas que já estavam a minha volta?
— Vai, pai, porra. A gente vai fazer o que precisar — não parecia, mas
Pietro estava pedindo.
Tommaso desencostou da mesa, pegou o telefone e discou, ele precisava
arrumar sua saída da cidade, para ninguém saber para onde foi.
— Preciso de um dia ou dois e não vou sair da cidade sem ir ao Teatro, já
ando em dívida com ela — resmungou ele, mas levantou a cabeça e me
olhou. — Tem um vazamento em algum lugar.
Como se eu não estivesse pensando nisso desde que li o bilhete
ensanguentado. Um dos telefonemas que dei no carro foi para casa, para os
seguranças.
— Eu vou resolver — dei uma olhada no relógio. — Esses filhos da puta
conseguiram me deixar sem cabeça para pensar em comida. Vou passar no
Centro de Distribuição e vou para casa. Amanhã vou resolver isso e você
precisa desaparecer antes que eu volte.
Capítulo 35: Promessas Infundadas
GASOLINA

Antonio ficou um tempo com a tia, ele a consolou e disse que ia resolver
tudo. Marzia estava irritada e exigia respostas e informações. Ela fazia isso
constantemente e todos entendiam seu estresse. Ele a olhava como se
estivesse culpado e intrigado ao mesmo tempo.
Não fiquei prestando atenção na conversa deles porque eu tinha mais o
que fazer. Continuava me considerando destemida, mas a diferença de
dosagem entre coragem e estupidez era feita a conta-gotas. Algumas vezes
na vida a sorte vai te ajudar, outras vezes o bom senso vai entrar e te salvar
de dosar demais. Eu não ia queimar a minha próxima chance com a sorte por
pouca coisa.
Então, eu estava em casa com tia Marzia. A psicóloga falou comigo pelo
Zoom. Oliver fez seu show através do Meet. Annika estava fora gravando e
eu menti sobre estar em LA. Não podia encontrá-la agora.
Meus conhecidos e colegas de trabalhos mandavam mensagens e
deixavam ligações perdidas. Todos me convidavam, eu prometia um dia na
outra semana. Estava em LA, mas tinha acabado de postar uma foto marcada
em Palermo. Nenhum deles podia afirmar meu paradeiro.
Minha mãe estava navegando fora da cidade e eu fiz Nadia ficar na
encolha, Deon disse que estava tomando conta dela. Só meu irmão sabia
tudo. E Antonio havia me dito que ficaria fora também.
— E ele estará lá? — abracei os joelhos e fiquei sentada sobre a base em
volta de onde a banheira ficava, ele estava no chuveiro, no canto do cômodo.
— Ele tem locais preferidos, não importa qual seja, vou encontrá-lo — ele
parou de falar quando enfiou a cabeça embaixo da ducha para tirar o xampu.
Seu cabelo tinha crescido de novo e prova de que ele estava sobrecarregado
era que estava fazendo uso do barbeador elétrico em vez de ver o barbeiro de
sempre.
Só retomei a conversa quando ele já estava se secando do lado de fora.
— Eu sei que tudo que você faz é complicado, mas isso parece como um
dos pontos finais que essa disputa terá antes de fechar todos os arcos.
Antonio sentou a minha frente com uma toalha na cintura e a outra ainda
em volta do pescoço, ele me observou daquele jeito que eu podia ver a
diversão em seus olhos escuros. Não resisti e passei os dedos pela frente do
seu cabelo, afastando-o da testa, eu gostava desse corte com as laterais
batidas, também gostei quando ele usou mais curto. Droga, eu gostava dele
de todo jeito, mas cada dia ele vinha com um novo problema que o faria
sumir. De vez.
— Você vai continuar escrevendo aquele roteiro para fechar os arcos da
trama? — Antonio acariciou meu rosto e sua outra mão segurou por trás da
minha perna, como ele sempre fazia quando eu me sentava assim, parecia
que se ancorava a mim. E eu gostava, restaurava minha sensação de
segurança e conexão.
— Eu não seria uma boa roteirista, mas estou nesse ramo há um tempo, eu
sei quando os arcos começam a fechar e nem sempre é bonito.
— Bonito não vai ser, Raye. Eu só preciso que a gente caiba dentro desse
arco.
Ele levantou e esfregou a toalha pelo cabelo.
— Para com isso, vem cá — eu fui para o quarto.
Antonio vestiu a calça de pijama e uma camiseta, apareci com o secador
na mão, ele passou o braço em volta do meu pescoço, capturando-me com
cabelo e tudo e me beijou. Eu o abracei de um lado e segurei o aparelho do
outro. Ele continuou me beijando até eu não saber se passou um minuto ou
uns quinze. Encostei a testa nele e levei uns segundos lembrando do que ia
fazer.
— Senta aqui perto da mesa de cabeceira — apontei.
Liguei o secador, subi na cama atrás dele e sequei seu cabelo escuro, só
passando os dedos entre as mechas curtas. Antonio nem se mexeu, ficou bem
quieto até eu terminar, no mínimo pensava em toda a merda na qual já estava
afundado e em como ia mergulhar mais fundo ainda. Segundo ele, quando
saísse dessa areia movediça ao menos esse buraco estaria fechado.
— Você está me penteando para dormir? — Ele riu porque não resisti e
peguei a escova quando terminei.
Eu ri atrás dele e larguei a escova na mesinha, Antonio subiu na cama e
recostou contra a cabeceira.
— Vem pra cá — ele estendeu o braço e me pegou, eu me deixei recostar
contra ele. — Vai ser rápido, um dia, no máximo — contou ele, retomando o
assunto de ir resolver um negócio com o tal de Calogero.
— Não quero ficar sozinha com a tia Marzia. Tem algo estranho nela.
— Está desconfiando dela?
— E você não?
— Sim. Eu a pressionei, ela chorou. Jogou a história das filhas na minha
cara. Vou resolver isso e volto para lidar com ela.
— Promete? — Fiquei apoiada nele, olhando-o de perto.
— Ficar longe de você não era o plano. Nem deixá-la com os problemas
da minha tia. Volto rápido.
Eu abri um sorriso.
— Agora você vai prometer que vai voltar e fazer o marido que fica em
casa? — Provoquei, ele riu.
— Claro que sim — ele me apertou sob seus braços cruzados nas minhas
costas e me beijou. — Apaga essas luzes, vou te fazer um bando de
promessa infundada no escuro.
Fiquei de joelhos na cama enquanto sorria, girei o botão perto da
cabeceira que apagava as luzes do quarto, ficou só o abajur no canto. Desde
que vim morar com ele, sempre havia alguma luz onde dormíamos. Mas eu
estava melhor, com o tempo fui diminuindo as luzes até chegar ao ponto que
colocava o abajur na menor claridade. Especialmente quando ele estava
comigo.
— Vai, começa. Eu vou fingir que acredito — eu me soltei contra os
travesseiros.
Antonio se recostou junto a mim, segurou minha cintura e me olhou de
cima.
— E quando foi que fiz promessa furada?
— Casou, já era. Começa as historinhas. Eu tô só vendo.
Ele sorriu, deitou junto a mim, me beijou de novo e fez sua primeira
promessa supostamente furada:
— Vou voltar e passar um dia inteiro aqui com você — ele disse baixo.
— Ibiza foi bom — murmurei e empurrei seu cabelo macio e seco,
acariciando até o pescoço. — Você era só meu.
— Eu sou só seu, Gasolina — seus lábios roçaram os meus.
— Continua prometendo, eu tô gostando.
Ele prometeu que voltaria, que ia se livrar disso, que íamos ficar sozinhos
de novo, que ia devolver minha liberdade e me levaria café no estúdio…
fechei os olhos e o deixei me despir e prometer tudo contra a minha pele. Ele
nunca tinha deixado de cumprir.
Capítulo 36: Calogero
Antonio

— O ganso está no ninho — brincou Pietro, ao desligar o telefone.


A gente estava indo cometer um movimento ousado. Uma loucura
inconsequente aos olhos de muitos. Por incrível que pareça, um ato
inesperado, tamanha era a arrogância dos envolvidos no outro lado. Não sei
onde encontraram a noção de que eu teria medo deles. Nunca precisamos
“mexer” uns com os outros porque vivíamos sob a guarda e os limites de
Nascari. Havia acabado.
— E as peruas? — Perguntou Bellini.
— Ogul e os outros foram checar, parece que o spa não vai mais ser tão
prazeroso — comentou Denver, com um sorriso enviesado.
Não saberia especificar o motivo do bom humor deles, vou chutar que eles
conversaram e resolveram que já estamos todos vendidos mesmo, não
adiantava pessimismo. Se sobrevivêssemos no fim, seria um novo momento,
se morrêssemos, bem… era o fim. Mas não nascemos para viver acuados e
perseguidos. Minha função era lhes passar segurança, se eu sabia o que
estava fazendo e tinha confiança, eles também teriam.
E eu sabia. Nada do que disse a Tommaso era mentira.
Embarquei no avião para o norte da Califórnia, íamos para São Francisco,
mas aterrissamos em Oakland, do outro lado da Baía, só para garantir. A
cidade parecia até uma ilha de tanta água em volta, eu tinha tantos pontos de
saída que poderia sortear se fosse um pouco mais doido.
Havia três lugares onde era mais fácil encontrar Calogero quando ele
estava em uma de suas folgas luxuosas por São Francisco, sempre com uma
das amantes preferidas. No spa do outro lado da ponte Golden Gate ele não
estava, ainda era muito cedo para o seu clube preferido. E ele tinha suas
manias e tradições, outra vez, a arrogância. Pelo jeito só a gente estava
preocupado em não ser facilmente encontrado nos locais de sempre.
Achei meu encontro no hotel Farmont da praça Ghirardelli, era lá que ele
gostava de se hospedar e bancar o dono do lugar. Sempre com alguma garota
mais nova do que sua filha mais velha, geralmente loiras. Vez ou outra ele
levava sua amante oficial, com quem também tinha duas filhas. Ao todo, se
eu não estivesse desatualizado, eram sete filhos: três da esposa, dois da
amante preferida e mais dois de uns descuidos.
Havia dois caras na entrada do salão, outro no lobby, mais um numa mesa
próxima a ele e um fora de vista sentado num canto estratégico do
restaurante. Era assim que ele almoçava, às 14h no restaurante do dia.
Adorava frutos do mar, o desgraçado. E comia no restaurante McCormick,
com muita luz natural para expor a cara rejuvenescida com injeções de botox
— eu também sabia onde era o seu esteticista preferido.
Foi exatamente onde entrei. No salão iluminado, de frente para a Baía de
São Francisco, com visão privilegiada para as ilhas e para Alcatraz, o que eu
achava curioso da parte dele. Era tanta luz que mantive os óculos escuros e
atravessei o salão, sozinho. Havia entrado no hotel por uma porta alternativa,
os caras do lobby não faziam ideia.
Pode me chamar de bobo, mas quando eu aparecia num lugar e ninguém
dava um pio, eu até gostava. Não tinha muita gente almoçando num hotel
caro, no restaurante de frutos do mar em um dia de semana. Os empregados
se afastaram e a garota loira estava de costas para mim. Quando Calogero
me viu, o líquido dentro da taça que ele segurava se agitou. Ele a pousou na
mesa, para ninguém ver que tinha estremecido.
— Gentileza sua me convidar para o almoço — cumprimentei ao chegar
perto dele.
Pietro sentou na mesa junto com o segurança mais próximo e Denver fez
companhia ao cara que estava lá no fundo. As mesas em volta começaram a
ser ocupadas lentamente, eu ia pagar o aperitivo de todo mundo.
Calogero nem se moveu.
— Antonio Denaro — eu me inclinei e cumprimentei a garota, essa era
nova, do tipo que trocava dois beijos. Ela disse seu nome, eu não gravei.
A mesa era redonda, de quatro lugares num espaço privilegiado do
restaurante. Tirei os óculos e sentei na cadeira que me deixou com a garota
do lado esquerdo, ele do lado direito e o salão a minha frente.
— Eu tenho que admitir, Diabolik, você tem uns culhões aí dentro dessas
calças — disse ele, quando sua face finalmente descongelou.
Não sei porque demorou tanto, o botox estava natural, ninguém diria que
tinha tanto. Eu descobri porque me informaram a frequência com que ele ia
fazer as aplicações. Achei deselegante ir pegá-lo com uma agulha na testa,
aqui eu podia beber vinho no processo. Chamei o garçom, ele também
descongelou.
— Obrigado, eu escolhi o terno pensando em você — respondi.
— Para ser enterrado nele?
Eu sorri, essa gente tinha uma prepotência que devia vir em injeções
também.
— Pode pegar a taça de novo, eu já vi, coloca a culpa na idade —
aconselhei.
— A menos que você tenha vindo aqui só para mim te pagar a melhor
lagosta da cidade, aconselho a sair enquanto não tem um buraco na sua cara.
A garota estava com a mão congelada em volta do seu drink e só movia os
olhos.
— Se quiser eu compro o carregamento todo de lagosta — eu dei uma
olhada nos pratos servidos sobre a mesa, ele não economizava. — Esses
cogumelos, a carne desse salmão, todo o material para esse ravióli dela — eu
indiquei a garota. — Eles compram de mim. Até essa porcaria aí que você
está bebendo.
Como ele não chegou aqui ontem, continuou bebendo até terminar a taça.
Meu vinho chegou, pedi Opus One, às vezes gostava de beber o melhor
vinho dos produtores locais.
— E como você pretende completar o que veio fazer aqui? São Francisco
não é tão seu assim.
— Eu entro e saio de onde eu quiser, de norte a sul da Califórnia. São
vocês que estão desatualizados naquele buraco poeirento que chamam de
Vegas.
— Suas regalias não vão durar e você sabe disso.
Bebi, olhei para a garota.
— Volta para o quarto, pega as suas coisas e a grana que ele deixou lá. Vai
se divertir em algum lugar fora da cidade — mandei.
Ela soltou o copo, tirou a bolsa da cadeira e colocou no ombro, mas antes
de levantar, lembrou como chegou ali e deu uma olhada para ele que só
assentiu. Ela pulou de pé e atravessou o salão a passos rápidos e curtos.
— Que porra você está pensando? — Indagou ele, deixando a indignação
fluir quando ficamos sozinhos. — Vir aqui, sentar na minha mesa e…
— Para de drama e segura a dignidade, você vai comigo — interrompi. —
Se os seus homens tentarem impedir, você está morto. E eles também.
— Se ele achar que eu te disse qualquer coisa, eu já estarei morto —
lembrou.
— Minhas primas.
— Eu juro, ele não fez mal a elas.
— Com quem ele as deixou?
— Numa casa. Vigiada. Não sei onde é.
— E como você sabe que ninguém tocou nelas? Você está em São
Francisco com a sua amante, não tem como saber nem o que está
acontecendo na sua casa, muito menos no lugar onde ele largou as minhas
primas.
— Eu sei, porque foi a ordem. Ninguém deve tocar nelas. Sabe que aqui
do nosso lado, esse tipo de coisa tem que ser ordenado.
Bebi mais um gole, não engolia rápido porque me recusava a desperdiçar
o vinho. E não precisava ser lembrado o quanto eles me causavam dor de
cabeça há anos por quebrar uma das nossas regras silenciosas. E que isso era
um dos meus “desentendimentos” com Tácita. Eu sentia o estômago
embrulhar ao pensar no que aqueles degenerados podiam fazer com duas
garotas. E por que Acca deixava o rojão pra gente resolver se a exigência era
dela?
— E a merda do dinheiro? Vocês acham mesmo que só eu estou puto com
isso? Os outros só não tem a cara de apontar dedos e correr atrás, mas na
primeira chance vão para cima também.
A mudança de assunto causou reação nele, falar de desfalque em dinheiro
sempre funcionava. Calogero se endireitou na cadeira e se inclinou sobre a
mesa.
— Me atingiram também! Pegaram duas contas minhas!
— Ele te passou a perna?
— Não foi ele — negou, mas sem convicção. Se Morales mexesse nas
contas dos outros não ia contar nem a ele.
Ainda bem que fui eu que mexi.
— Levanta — mandei.
Ele continuou me olhando.
— Você vai passar pela humilhação de todo mundo aqui te ver sendo
arrastado para fora? — Indaguei.
Calogero ficou de pé e ajeitou a camisa.
— Faz um sinal para os seus homens, vão sair devagar — instrui e
indiquei o caminho.
Ele saiu comigo, como se fôssemos continuar nosso encontro em outro
local. Deixamos o restaurante pela saída alternativa. Ele olhava em volta,
estranhando por estarmos sozinhos. A porta abriu e aí sim ele viu o carro e
mais dois dos meus homens. Eu o empurrei para dentro do veículo e
partimos. Os outros iriam depois, tinham tarefas para cumprir e rastros para
limpar.
— Se você me matar, a trégua acaba. Ele não vai se importar com
discrição, com mídia, com nada — avisou ele, com a naturalidade de quem
não lembrava da única regra que unia todos nós.
— Qual trégua?
— Essa guerra fria e por baixo dos panos.
Saquei a arma e apertei contra a testa dele.
— Diabolik — seu tom era de aviso.
— Não tem porra de trégua nenhuma, ele pegou minhas primas e ameaçou
minha mulher! Acabou! Eu quero que ele saia da toca e venha atrás de mim,
aquele rato velho ficou preguiçoso, mas continua um sádico de merda
mandando os outros fazerem o trabalho sujo!
— Vamos negociar.
— É claro que vim até aqui para negociar com você — teria revirado os
olhos se não estivesse com o dedo no gatilho.
— Não sou boneco dele, não estou gostando disso! Os federais voltaram,
tudo por culpa desse circo que ele ajudou a armar! Agora está todo mundo
exposto e ele enfiado nas sombras.
— Eu não sei se você cansou ou se ficou desatento com o tempo. Quando
eu disse que você não sabia o que estava acontecendo na sua casa, você
devia ter perguntado.
As sobrancelhas pularam em sua testa esticada e ele reagiu com
indignação.
— Eu sei tudo que você fez! Eu sabia que se Nascari morresse, nós
estaríamos fodidos por sua causa! Morales não devia ter deixado para aquele
garoto inconsequente dar um jeito em você junto com os outros! — Reagiu
ele.
— Nisso eu vou ter que concordar, mas se você quer saber, ele quase
conseguiu. Estou vivo por um milagre.
— Não existem milagres no nosso mundo, existe a vontade dela. E se
existissem, não se aplicariam a demônios.
— Acredite, me enviaram um milagre para uma vida inteira. Eu vou
morrer e meu milagre vai continuar aqui.
— O problema é que você não vai morrer por agora, vai?
— Não, estou ocupado. Vou te levar para um lugar.
— O quê?
— Isso que você escutou.
— Diabolik…
— Morto, você não me serve de nada. No entanto, se quiser ficar vivo, vai
ter que dar uma facada no seu sócio. Ele já deve saber que você está comigo,
vai mandar te abaterem de longe. Sabe como é com ele.
— Seu desgraçado, filho de uma… — eu enfiei a arma na boca dele antes
que se animasse.
— E agora você tem uma dívida comigo. Eu peguei sua esposa, que por
acaso é prima dele, a irmã dela e o garoto — ele balançou a cabeça e tentou
falar. — Mas eles também estão ótimos, bem cuidados, alimentados e
entretidos.
Eu tirei a arma da boca dele e limpei na frente de sua camisa.
— Você está morto! E vai me entregar para a morte!
— Qual é, Calogero. Eu não mato meus homens por terem de conversar
com o inimigo.
— Ele não vai acreditar em mim.
— Azar o seu — virei para o motorista. — Para o carro.
— Eu posso te dar algo. Mas você que vai ficar em dívida.
— Eu sou o cara com a arma e milhares de locais para sumir com o seu
corpo. Vou trocar minhas primas pelos parentes dele, você por acaso casou
com uma delas, ele pode encontrar outro que não discorde dele. Percebe o
quanto você se tornou inútil para ele?
— Você nunca vai confiar em mim.
— Não, mas se você me for útil, pode voltar a ver aquela cidade feia de
dia e brilhante à noite que você tanto gosta. Eu não tenho interesse em
Vegas, vocês que se matem lá. É só não ferrar com os meus negócios na
cidade, tenho contratos milionários e vocês estão me atrapalhando.
Ele ficou quieto, nem um pouco convencido. Eu até perderia o resto de
respeito se ele acreditasse em mim facilmente.
— Você vai devolvê-las? — Perguntou.
Dei dois tapas no ombro do homem no banco do carona, ele me passou
um celular descartável e pronto para uso.
— Você vai ligar para o seu grande amigo e sócio leal — minha ironia não
passou despercebia quando ele respondeu:
— Ele não era isso nem pro seu tio.
— Eu sei.
Encostei a arma na coxa dele e puxei o gatilho. Ele urrou.
— Que merda, Diabolik!
— É para soar mais convincente, ele devolveu um dos meus homens todo
aberto com uma droga de um bilhete dentro, o cara ainda está ferrado na
UTI. Fica quieto ou vai piorar. Tácita não está mais curando ninguém na
velocidade usual, lembra?
Ele paralisou, encarando as possibilidades sobre Acca ter abandonado
todos nós. Peguei do bolso o bilhete ensanguentando que Morales enviou
ameaçando a minha mulher, enfiei na boca de Calogero, deixando para fora
o suficiente para ele saber o que era. Tirei uma foto dele preso no carro e
agora sangrando. Assim que terminei, ele cuspiu o papel.
— Você é um desgraçado doido, a gente devia ter te matado há uns dez
anos quando começou a atrapalhar! — Ele disse entre os dentes, até parece
que era o primeiro tiro que ele tomava. Já devia estar mais furado do que eu,
era o dobro do tempo de estrada.
— Você vai dizer qual é o novo acordo para fazer a troca pelas minhas
primas. Faça soar convincente, não quero desperdiçar bala na outra perna.
Ele ligou, nós o tiramos de São Francisco. Denver e os outros chegaram
com os documentos que pegaram no quarto dele. Íamos deixá-lo em um
local seguro e entrar novamente em LA.
Capítulo 37: Cem por Hora
RACHEL

Eu estava correndo na esteira quando vi Marzia pelo espelho. Desde


ontem, depois que Antonio saiu, ela estava puxando assunto e fazendo mais
perguntas. Pelo que sabia, ele não contou a ela que ia deixar a cidade, mas
ela deve ter notado que ele não retornou. Cada vez eu tinha mais certeza de
que ela estava com algum problema sério. E eu estava sozinha com ela.
— Está um dia lindo lá fora, você não gosta de correr na praia? Aqui na
rua tem tanta vegetação.
Diminuí a esteira para um passo lento.
— Sim, mas também gosto da esteira. E já peguei sol suficiente na
viagem, quero dar um tempo para minha pele.
Ela se afastou da janela e se virou para mim com uma expressão grave.
— Ele não te deixa sair?
— O quê?
— Não precisa esconder de mim. Tem seguranças no portão, tem outros
fazendo a ronda… Ele não te deixa sair, você está presa aqui. Desde que
cheguei, só a vi sair com o irmão dele ou o seu irmão.
— Eu não estou presa.
— Então nunca sai?
— Eu saio, quando quero e preciso — pisei nas laterais da esteira, antes
que caísse por ela me distrair.
Marzia suspirou como se estivesse segurando algo, eu entendia que
alguém na situação dela devia estar nervosa e estressada. Mas não achei que
ela ia desestressar me atacando. Eu não joguei na cara dela o trauma que o
filho dela me causou.
— Meu marido mandou em tudo isso e nunca me prendeu em casa, nunca
me proibiu de sair. Você é jovem, deve ter amigos, coisas para fazer. Ele tem
poder para fazer o que quer, inclusive te manter presa.
Desci da esteira após desligá-la e enxuguei a testa com a toalha.
— Você só viu os últimos dias e sabe que já me sequestraram uma vez. Eu
saio para fazer algo, não vou correr pelo bairro como uma tonta, esperando
me enfiarem em um carro.
— Você está dizendo que eu sou tonta? — Ela levantou as mãos e deixou-
as cair ao lado do corpo. — É, eu fui tonta. Fui enganada. E se fosse você,
não acreditaria em tudo, ele pode te manipular. Nascari fez isso comigo
algumas vezes, eu devia ter aprendido. Ele pode encher sua cabeça para você
obedecer como uma boa garota.
Assenti para o que ela dizia e bebi um longo gole de água enquanto ela se
afastava.
— É, você tem razão — concordei e vi quando ela girou para me olhar. —
Eu tenho amigos, tenho família e coisas para fazer. Vou aproveitar que ele
não está e dar uma volta depois do banho.
Deixei a academia e fui para o quarto, tomei banho, escolhi uma blusa, um
jeans e um casaco leve. Calcei tênis e ajeitei o cabelo. Fiz até uma
maquiagem suave. Também abri o cofre do armário e peguei o que
precisava. Quando desci, encontrei Marzia na sala que dava para os fundos,
percebi que ela gostava de ficar ali. Ela ainda parecia nervosa e se
sobressaltou quando apareci. Vi que ela recuperou o celular do chão e o
guardou.
— Eu vou sair — avisei.
— Tudo bem, estarei aqui se Antonio chegar com notícias.
— Não, você vai comigo.
— O quê?
— Você. Vai. Comigo.
— Não, eu não posso, estou esperando…
— Levanta e vem — mandei.
— Notícias das minhas filhas! — Ela ficou de pé, aflita.
Saquei a arma que peguei no cofre e apontei para ela. Marzia se apavorou,
o que por si só já era esquisito. A novata era eu. Ela passou trinta anos
naquela vida, casada com Nascari, escutando tudo, assistindo o marido
reunir poder a base de sangue e poder. Ela viu seu sobrinho se vingar, viu o
que aconteceu com ele, viu seu filho entrar nisso. Ela viveu tudo.
Ou não viveu? Como uma mulher com esse histórico poderia estar tão
apavorada e nervosa ao ver uma arma na mão de uma pessoa inexperiente?
Dessa vez eu não ia relevar e colocar na conta da situação que estava
passando com suas filhas. Eu mal a conhecia e já achava que vivíamos partes
diferentes dessa vida.
— Abaixe essa arma! De onde tirou isso? — Gritou ela.
— Você não está sendo sincera — mantive a arma apontada para o peito
dela.
— Para com isso! Eu sabia que você não servia pra ele! — Gritou ela.
— Eu não tenho apego emocional ou dívidas de infância com você. Não te
devo respeito nenhum.
— Se ele souber que você ousou apontar uma arma para mim!
— Eu te garanto que atualmente ele vai preferir acreditar em mim.
— Ele vai te matar!
— Vai pro carro — mandei, indicando a direção da saída que daria na
garagem.
Ela não conseguiu se mover.
— Agora!
Eu não tinha tempo, então a agarrei pelo braço e empurrei porta afora.
Peguei as chaves do carro mais rápido e mais próximo, o mesmo que
Antonio dirigiu uma vez quando me buscou no set de filmagem: um Alfa
Romeu 8C. Os portões eram automáticos; do lado de dentro, só havia um
jeito de abri-los sem precisar de um dos seguranças: digitando a senha.
Eu não pensava que Marzia acreditava que eu era proibida de sair, ela
queria que eu deixasse a casa. E veio com esse papinho de garota enganada
para ver se eu caía. Ela não fazia ideia do que eu já tinha passado com
Antonio até chegar viva aqui. Os seguranças não eram instruídos a me
impedir, se Bellini e os outros estivessem fora — como estavam naquele dia
— eles se dividiam e iam comigo onde eu precisasse.
Mas eu não estava dando mole na rua à toa. Ninguém esperava minha
saída naquela tarde, só que eu precisava ficar sozinha com tia Marzia.
— Entra logo aí — eu a empurrei para dentro do carro, enfiei a arma no
cós da calça e entrei, ajeitei o banco para minha altura e respirei fundo.
Quando o portão destravou e deslizou, os homens entraram em alerta,
então ouviram o inconfundível motor V8 daquela máquina sensacional. Eu
fritei seus cérebros pelo segundo que levou para reagirem em cima do
conflito de ordens. Eles não estavam acostumados comigo, desconfio que se
Bellini estivesse em casa, ele ia aparecer em cima do carro. Era minha única
chance.
— Já volto! — gritei ao passar, não sei se escutaram.
Sabia que viriam atrás de mim. Desci o pé no acelerador e fui embora
enquanto eles corriam para os carros.
— Coloca o cinto se quiser ficar viva — avisei, enquanto meu vidro subia.
Eles não me alcançaram, eu desci a colina, manobrei pelo trânsito de LA.
Não era dos mais pesados naquele bairro e eu estava pouco me lixando para
leis e boa educação. Cortei gente sim, furei sinal também e segui acelerando
e ultrapassando para a expressa, não era o carro mais fácil de dirigir, mas eu
me adaptava rápido.
— Você enlouqueceu! Não pode fazer isso! — gritava ela, mais apavorada
a cada metro que a velocidade do carro aumentava.
Eu fazia zigue-zague pela pista. Ultrapassando em alta velocidade.
Descobri que tia Marzia tinha pavor de carros rápidos. Armas, mortes,
traições, guerras do submundo podiam até ter sido parte de sua rotina, mas
carros a mais de cem quilômetros por hora eram seu pesadelo. Ainda mais
quando tal carro levava quatro segundos para ir de zero a cem por hora e
rugia como feras afinadas enquanto parecia ser uma bala no meio do
trânsito. Se tivesse medo desse tipo de coisa, eu também estaria a ponto de
infartar.
— Fala a verdade! O que aconteceu com as suas filhas? — Demandei.
— Morales as levou! — Gritou ela.
— Por que você foi encontrá-lo? Você não é idiota!
— Eu sou!
Peguei a esquerda e levei o carro ao limite de velocidade da pista. Ela
gritou quando freei bruscamente em cima do carro da frente que, com
certeza, não estava a cem por hora e mesmo assim achava que podia dirigir
na esquerda. Não precisei bater na traseira dele para expulsá-lo para outra
pista, ele saiu tão rápido que quase colidiu. Na Califórnia, expulsar idiotas
lentos na faixa rápida não era crime. Especialmente se a polícia não te visse
fazendo isso.
— O que ele pediu em troca? — Perguntei alto.
Ela se apertou contra o assento quando tornei a acelerar depois de me
livrar da tartaruga. Marzia gritou quando tirei uma mão do volante, como se
fosse pegar minha arma.
— Eu não trairia Antonio!
— Trairia sim!
— Não! Ele é meu sobrinho!
— Elas são suas filhas! Você trairia qualquer um por elas! — Gritei.
Ela chorou e gritou quando cortei a pista, peguei a saída na última chance
e até eu achei que ia bater. Mistura de sorte, com um carro que responde
rápido e o fato de que eu dirijo desde os 16 anos e sou boa nisso. Freei
abruptamente e escutei o som do cinto a segurando quando ela foi projetada
para frente, pois tinha coberto os olhos quando embiquei o carro. Dessa vez
eu saquei a arma e não desliguei o motor, como se pudesse acelerar a
qualquer momento.
— O que você fez? — Perguntei alto.
As mãos dela tremiam, seu corpo inteiro estremecia e lágrimas molhavam
suas bochechas. Pressionei o pé no acelerador e o rugido do motor fez com
que ela pulasse.
— Ele as tomou de mim! Mas disse que não ia fazer nada com elas! —
respondeu.
— O que você tinha que fazer em troca? Responde logo! Eu vou estourar
o seu joelho! Não dou a mínima se você é tia dele! Depois do joelho vai ser
sua testa e suas filhas vão ficar sem a idiota da mãe!
— Eu tinha que colher informações, passar tudo que visse! Ninguém mais
conseguiria entrar, só eu — Ela passou os dedos pelos olhos molhados. —
Mas não vi muita coisa. Antonio me levou para casa e me deixou lá com
você. Eu não esperava que você existisse!
— Mas você disse àquele velho maldito que eu existo, não disse? —
perguntei mais baixo.
Ela manteve o olhar no chão e juro que se fosse em outra situação, eu
ficaria com dó.
— Você disse? — Insisti.
— Era uma informação nova…
— E ficou me esperando sair para poder dizer a eles, para me pegarem e
devolverem as suas filhas.
Marzia me olhou diretamente e eu vi um pouco da mulher que eu
imaginava que ela era por baixo do estresse da situação difícil em que
estava.
— Você mesma disse, são minhas filhas, se eu trairia Antonio por elas,
não hesitaria em te jogar no fogo.
Eu encostei o cano da arma na cabeça dela e disse:
— Ótimo, então você sabe que isso não é pessoal — avisei.
Acelerei, ali não podia ir a cem por hora, mas fui no limite do mesmo
jeito. Vi um ponto de táxi, girei o carro na pista, encostei do outro lado.
— Com essa merda desse celular que você não larga nunca, Morales já
sabe onde é a casa e sabe onde você está. É isso?
Ela assentiu. Deve ter religado tudo quando confiaram nela e corria para
desligar quando alguém se aproximava. Era a viúva de Nascari, com mais
tempo de casa do que a maioria daqueles homens, desconfiar dela e ainda a
acusar devia dar até morte.
— Deixa o celular no painel — mandei.
— Eles iam atacar, mas eu disse que Antonio não estava por lá.
— Tem mais algum rastreador?
Ela negou com a cabeça e largou o celular. Eu guardei a arma, antes que
ela resolvesse ficar valente.
— É óbvio que não acredito em você. Desce do carro — mandei.
— O quê? — Ela arregalou os olhos.
— Desce do carro!
— Aqui? Que lugar é esse?
— Não quero saber! Desce!
Ela soltou o cinto, eu me inclinei, abri a porta e a empurrei para fora.
Peguei trezentos dólares da carteira, fiz um bolo e joguei pela janela, aos
seus pés. Ela pegou rápido.
— Pega essa grana, se enfia num táxi e se esconde. Liga só amanhã.
Pisei no acelerador e saí a toda, segui as placas e voltei para a expressa,
entrei na esquerda e me localizei para ir em direção à praia. Meu celular
estava tocando fazia tempo, tinha ligações de cinco números diferentes, mas
só agora eu o coloquei no painel e atendi.
— Para onde você está indo? — Era Bellini.
— A tia dele me vendeu — minha voz soava menos ameaçadora do que
no papel que assumi com Marzia. — Acho que vendeu todo mundo.
— Não volta para a casa. Estão tentando entrar lá — avisou ele.
Olhei pelo retrovisor, desde que saí da casa, tentava reconhecer os carros
atrás de mim para ver se tinha algum me seguindo que fosse diferente
daqueles que os seguranças usavam. Eu sabia até as placas dos carros deles,
mesmo que vivessem trocando, você não pode ser distraída se quiser
sobreviver. E agora não sabia se estava vendo coisa ou não.
— Antonio está bem?
— Não. Você não atendia.
— Eu estou com o celular dela, mas eles podem rastreá-la, então sabem
para onde estou indo.
— Nós também sabemos para onde você está indo. Continue, não
desacelere. Estou indo até você.
— Eu te encontro na praia.
Acelerei, se estivessem atrás de mim, teriam de me pegar primeiro. Eu
tinha uma janela curta antes do trânsito se complicar, mas para onde eu ia
não era o pior de LA, muito menos nesse horário e dia da semana. Dirigi,
tentando não lembrar daquele dia em que me sequestraram. Lembrei que
tinha uma arma, mas eu dirigia melhor do que atirava. E foi o que fiz.
Passei por Santa Mônica, fiquei nas ruas principais, os locais mais cheios
que havia. Cheguei a Venice e sinceramente, eu queria chorar. Ao mesmo
tempo, não queria saber quem ia tentar me parar, eu ia atirar em quem fosse.
Um utilitário preto me fechou, parando a minha frente. Peguei a arma. Meu
celular tocou, eu só apertei o botão.
— Destrava a porta — disse Bellini.
Eu destravei, no segundo seguinte Antonio apareceu, vindo sei lá de onde,
pois o carro em frente continuava fechado. Pulei para o outro banco, ele
entrou e bateu a porta.
— Cadê o celular dela? — indagou.
Entreguei, ele abaixou um pouco a janela e o entregou a alguém, antes de
ajeitar o banco. Logo depois o carro da frente saiu e ele acelerou atrás dele.
Tinha mais um carro atrás de nós. Cobri o rosto com as duas mãos.
— Coloca o cinto, Gasolina — disse ele e senti seu aperto no meu ombro.
Prendi o cinto e nós seguimos. Meu celular tocou de novo, Antonio
apertou por mim.
— Pegamos dois num carro, mas não é tudo — eu não reconheci a voz.
— Levem pro motel, descubram o que der — mandou ele.
Voltamos e entramos por ruas menos movimentadas, não vi mais o carro
da frente e nós paramos.
— Antonio, eu meio que agredi a sua tia.
Ele assentiu, como se entendesse a necessidade.
— E a larguei em algum lugar perto do Centinela, ao menos foi a placa
que vi — falei, citando o hospital.
Não sabia porque estávamos parados, antes que eu pudesse falar mais, um
tiro acertou a janela do motorista. Eu pulei no lugar. Antonio saiu com o
carro. A marca continuava lá, os vidros eram a prova de balas, mas não
indestrutíveis, não parecia ter sido só um tiro de pistola.
— Antonio! — Chamei.
— Eles não sabem que você a largou.
O celular tocou de novo, agora era Pietro.
— Confirmado, chefe. Eles pensam que ela está dirigindo. Titia mandou
uma mensagem.
— Nós somos a isca? — Exclamei.
O celular que tocou dessa vez foi um que estava com Antonio, mas
quando ele o pegou e me deu, vi logo que não era o seu pessoal.
— Coloca no viva voz — instruiu ele, manobrando o carro.
Imediatamente saiu uma voz irada pelo alto-falante, eu nunca havia
escutado a voz de Morales e demorei a perceber que era o próprio.
— O que você fez? — Veio o grito pelo celular. — Você tem ideia do que
fez?
Antonio não disse nada, só continuou dirigindo, como se não tivesse um
tiro na janela e sabe-se lá quem atrás de nós. E ele não estava indo rápido,
seguia o trânsito, só não se deixava parar, até que virou o carro numa
entrada.
— Aliás, seu garoto desgraçado e sem respeito. Parabéns! Eu soube que
arranjou uma esposa. É muito abuso da sua parte achar que pode se casar e
não me convidar — agora o tom dele era mais sarcástico do que irado. — Eu
vou descobrir quem é e vou encontrá-la! Vou mandar rasgar cada buraco do
corpo dela, despedaçá-la inteira e depois eu vou te enviar os restos junto com
o vídeo do show! Seu desgraçado! O que você fez com ele?
— Primeiro você vai ter que me matar — respondeu Antonio.
Eu segurava o celular, o tom daquele homem foi tão visceral e cheio de
ódio que suas promessas fizeram meus dentes trincarem. Era diferente
quando outros te alertavam e explicavam os motivos e quando você mesma
ouvia. Nós entramos num estacionamento, o carro parou.
— Eu não estou muito longe de fazer os dois — avisou Morales.
Meu celular tocou, Antonio apertou.
— Eles vão pegá-los, chefe — avisou Bellini.
Antonio deu uma olhada no retrovisor, o carro continuava ligado.
— Você viu a foto, eu o peguei. A mulher dele é sua parente, não é? O
garoto também. Se você não deixar as minhas primas no lugar combinado,
sou eu que vou te mandar uma caixa cheia de cabeças.
— Acabou a trégua, vocês estão todos mortos — avisou Morales.
Ele desligou, eu só engoli em seco. Antonio sacou uma arma e destravou a
porta do carro.
— Fica aqui. Se eu cair, dirige para fora e espera o Bellini.
Antonio deixou o carro ao mesmo tempo que outro entrou atrás. Vi mais
dois carros vindo e não sabia se eram amigos ou inimigos. Escutei muitos
sons de rodas e portas. Soltei o cinto e girei no lugar, ele passou pela lateral
e simplesmente descarregou a arma no vidro de outro carro. A garagem
acendeu em flashes de tiros e lanternas e balas acertando metal.
Não poderia explicar de onde surgiu tanta gente. Ouvi o pop, pop, pop
incessante e vi os homens atacando não só o veículo baleado como os outros
que entraram. Um carro grande bateu no veículo que tinha entrado na
contramão e o tirou do nosso caminho. Era como se eu estivesse numa ilha,
com o caos a minha volta e por mais que o cenário fosse diferente, lembrei
na hora do dia em que fui sequestrada.
Acho que era isso que acontecia quando você tinha reforço. Não caí na
armadilha que Marzia quase me entregou para recuperar as filhas, mas isso
nos levou a esse momento.
Antonio voltou enquanto os homens ainda arrasavam aos vidros e portas
dos carros, quebrando-os e arrancando gente ou corpos de lá. Antes de sair,
ele esfregou os dois lados da cabeça e fechou os olhos, então piscou várias
vezes para limpar sua visão.
O celular tocou no painel, eu apertei.
— Pronto, pegamos o outro carro. Vamos sair! — disse Ogul.
Antonio esfregou os olhos e eu reagi rápido.
— Eu dirijo — decidi. — Cadê os seus analgésicos?
— Não estão comigo.
Abri a porta do carro.
— Rachel! Volta aqui! — Chamou ele.
Quase pulei por cima do capô de tão rápido que dei a volta e apareci no
lado do motorista.
— Vai, se precisarmos fugir, eu dou conta — falei.
Antonio não questionou, só pulou para o carona. Isso me provou que algo
estava errado com ele. Meu marido não perdia tempo, mas sempre atiravam
primeiro no motorista e ele se colocaria nessa posição por mim.
— Não estamos em fuga, sai discretamente, acelera depois — avisou ele.
Tirei o carro do estacionamento, segui o utilitário que estava do lado de
fora esperando. Não vi o outro nos seguindo, mas a essa altura eu já não
sabia qual era qual, nem quem estava fazendo o quê. E cada hora um deles
ligava, alternando em suas tarefas.
— Você está bem? — Perguntei depois de nos afastarmos do lugar.
Deixamos aquele emaranhado de ruas e só então eu acelerei. Segui na cola
do utilitário, porque não sabia para onde estava indo. Depois do jeito que
dirigi neste dia, segui-lo a 80 por hora era lento demais.
— Disseram que você deixou a casa, não conseguiram te alcançar, sabia
que ela estava escondendo algo, mas não isso — ele voltou a esfregar a
lateral da cabeça. — Eu achei que iam te pegar, Rachel, merda.
— Eu fui mais rápida.
— Não apronta uma dessas comigo outra vez — ele estava falando baixo,
como se o som da própria voz pudesse piorar sua dor de cabeça.
O celular no painel se iluminou de novo.
— Já enviamos a mensagem — era Pietro.
— Ótimo — respondi, só para ele não ter que falar nada.
— O lugar está pronto — Pietro avisou antes de desligar.
— Você vai ter que se livrar desse chip, desse aparelho, de tudo — avisou
Antonio.
— É meu celular principal, aquele outro se perdeu.
— Eu te dou outro — disse ele, indo pelo lado prático.
Tudo da minha galeria já estava salvo na nuvem ou num cartão, meus
contatos também, mesmo assim ainda era um contratempo trocar o aparelho.
Depois de tudo que ele participou nesse dia, eu não estava surpresa. Segui o
carro à nossa frente, nós nos afastamos do litoral e entramos em Beverly
Hills, reconheci o caminho como um dos jeitos de chegar ao campus da
UCLA, onde eu estudei. Mas paramos bem antes, num hotel que passei em
frente muitas vezes e nunca entrei.
Parei o carro e minha porta abriu, Bellini piscou para mim e por uns
segundos, foi como se estivesse de volta a quase normalidade anterior. Dei a
volta e me abracei a Antonio, senti seus braços me apertarem, a vontade de
chorar de alívio quase me dominou. Um bando de emoções e lembranças do
dia rodavam na minha mente.
— Você é louca, Raye. E é perfeita — ele murmurou para mim. — Se te
pegarem eu estou morto. Eu me troco por você a qualquer hora.
Eu me afastei o suficiente para olhá-lo, mas ele estava estranho. Conhecia
o seu olhar, o jeito que me observaria agora, mas aqueles olhos escuros
estavam desfocados. Antonio deu um passo para trás, mas eu não o soltei,
suas mãos ainda estavam nos meus braços e de repente ele tombou contra
mim.
— Não! — Eu o segurei, deixando seu peso me cobrir.
Senti mãos nos tocando imediatamente, os outros nos circularam e
ampararam seu corpo, mas seu rosto ainda estava no meu ombro.
— Ele foi atingido? — Um deles perguntou.
— Não tem sangue nele — respondeu outro.
— Antonio — amparei sua cabeça.
Ele não ficou inconsciente, pois se moveu, mas não abriu os olhos, na
verdade ele os cobriu com a mão.
— Nós vamos para o hospital. Agora — informei a Bellini.
— Fica aqui, é seguro — Antonio murmurou.
Era o segundo momento mais apavorante que eu passava, só aquela caixa
no chão ganhava disso. E Deus sabe como minha vida estava uma loucura
nesses últimos meses, mesmo assim, vê-lo tombar contra mim foi pior do
que tudo. Pior do que o tiro, pois daquela vez ao menos eu sabia o motivo.
— Não — Reagi, sabendo que estava a ponto de causar uma cena.
Bellini e Ogul nos enfiaram no utilitário de trás e ambos entraram nos
bancos da frente.
— Não preciso de médico, não estou ferido. Levem-me para vê-la.
Apoiei Antonio contra mim e ele não disse mais nada. Eu estava tão
absorta que não olhei o caminho, achei que íamos ver alguma médica.
Porque eles não nos levaram para a clínica do Dr. Narek, o carro foi mais
longe. E só parou quando desceu em um estacionamento subterrâneo.
Estacionamentos vazios já eram macabros, mas aquele fez um frio
sombrio subir pela minha espinha.
Capítulo 38: Infiltrações
PÓLVORA

— Eu não vou! Me solta! — gritou Rachel, desvencilhando-se de Bellini.


Não adiantava, a menos que eu mandasse ou fosse caso de vida ou morte,
quando ela insistia assim, eles soltariam.
— Você não pode entrar lá — apertei os olhos e me virei, o remédio que
tomei no carro não fez efeito, eu fingi.
— Dane-se, não vou sozinha para droga de hotel nenhum! — reclamou
ela.
Seus olhos se encheram de lágrimas e pronto, estava vendido para o meu
ponto fraco. Minha esposa não chorava por pouco, ela ficava
emocionalmente sobrecarregada, então as lágrimas vinham. Só para ela não
transbordar.
Voltei e ela se apertou contra mim, dessa vez nem sua proximidade
conseguiu me curar, o latejar permaneceu, mas eu me senti melhor de todo
jeito.
— Você não quer que eu te veja sofrer? Mas eu prometi — murmurou ela.
Bellini abriu a porta do carro e foi o porta-voz dos outros ao dizer:
— Ela se casou com você e levou a gente de presente. É uma associada. E
foda-se as regras, eles estão sapateando em cima delas.
Não precisei olhar para ver Ogul e Pietro assentirem ou ouvir o som de
concordância de Denver. Estava pouco me fodendo para as pequenas regras
de acesso de ACCA. Mas ir ao Teatro agora era um perigo. Eu precisava
entrar e não podia expor Rachel a mais isso.
O único local onde todos sabiam que os membros de ACCA poderiam
aparecer uma hora ou outra era no Teatro. Então estávamos todos devendo
visitas a Tácita. Ela causou isso, tinha que aguentar a solidão, a falta de velas
acesas. Não teria ninguém beijando os pés dela e a adorando por um tempo.
E eu não estava indo até lá para isso.
— Que regras? — Rachel se virou para ele.
— De não ir onde nos encontramos. Entra — indiquei o carro.
Ela estranhou que tivéssemos de voltar ao carro e entrou só porque eu fui
junto, sua mão estava enrolada na beira da minha jaqueta. E eu odiava
enganá-la, Rachel era o que havia de real na minha vida. Não sei se ela
ignorou os homens que foram a pé na frente, mas paramos naquela entrada
do estacionamento subterrâneo porque tinha pontos de fuga de uma possível
emboscada.
— Seus olhos estão vermelhos, injetados. Você não está melhorando, está
pior. Vamos naquele outro médico, o Narek. Ele que conserta vocês —
sugeriu ela.
— Ele não pode me consertar dessa vez — resmunguei.
Minha dor de cabeça piorou conforme nos aproximávamos, usamos uma
das entradas alternativas do Teatro. Sem elevador.
— Fica aqui — desci do carro e olhei Ogul. — Dessa vez, ela fica, não
importa o que ela faça. Se eu não voltar logo, já sabem.
Rachel se pendurou na porta do carro, pois era o único jeito de ver além
de Ogul.
— Você é um cachorro! — acusou. — Se você não voltar, não vou nem no
seu enterro!
— Recarrega a sua arma — avisei, sem olhar para trás.
Ela tinha esquecido a arma, desde que vi tudo preto e tive a sensação da
cabeça explodir, Rachel esqueceu a pistola que usou quando estava sozinha
com a minha tia. E eu precisava saber que ela teria como se defender.
Percorri o caminho mais longo para o Teatro, antigamente nem esses
corredores subterrâneos tinham esse aspecto de tumba. Eu passava por aqui e
acabava cumprimentando um ou outro membro que gostava da discrição.
Entrava no salão e via sinais de vida, sentia até o cheiro das velas. O Teatro
não era morto como um santuário de contos mágicos, havia movimento,
bebida e comida nas reuniões. Faziam negócios sérios nas salas de teatro,
como se não pudessem mentir aqui dentro.
Agora era um deserto frio, como caminhos de pedra embaixo de castelos
abandonados de outras eras. E estava com infiltração. Nunca teve cheiro de
úmido, mofo, nada. Como uma construção paralisada no tempo. Agora, a
água de Acca estava se infiltrando pela base da construção.
Era uma alegoria, nós íamos desmoronar. Esse local não suportava mais o
poder dela. Talvez fosse o fim.
— Fiquem aqui — virei o rosto porque até as luzes das arandelas
machucavam meus olhos.
— Nem fodendo — Bellini checou sua arma. — Esse local já foi seguro,
agora é temporada de caça.
Mais uma regra de merda. Não podíamos nos matar dentro do Teatro, era
solo neutro. Era. Também era o meu território. Ou era. Quem sabia? A única
com poderes para ver além de paredes e do futuro era aquela maldita…
Entrei sozinho quando a porta abriu. Em vez de água, o chão estava
coberto de plantas rasteiras que estalavam sob os meus pés. Eu não tinha
mais saúde para surpresas. E a energia estava tão forte que meu ouvido
começou a zunir.
Nunca andei curvado, mas meu corpo se inclinou em autoproteção. Não
fui até as velas, parei e apertei os olhos para ver Tácita. Mas que porra… Eu
nunca tinha visto aquele negócio sobre o peito dela. Era outro tipo de
armadura, vazada e pairando sobre os seios de mármore da estátua. O cabelo
entalhado estava preso.
A proteção ia até o seu pescoço e circulava sua cintura. A saia se
derramava sobre a base que a mantinha. As plantas que cobriam o chão
também cobriam seus pés e a barra do vestido. E ela não estava com a mão
na boca, estavam ambas dos seus lados, mas não em oferenda. Um
problema, ela não queria nada.
— Se vai explodir minha cabeça, não faça na frente dela — pedi.
Eu queria que saísse como um pedido, mas minha cabeça pulsava, meus
ouvidos zuniam, eu falava entre os dentes. Dor não me dobrava assim, mas
isso era ridículo.
— Você me fez vir. Se é pra me matar, fique à vontade.
Minha cabeça doía tanto que a imaginação nem funcionava, a próxima
surpresa seria suas plantas me arrastarem e transforem meu corpo em adubo.
O que mais sobrava? Eu não escutava mais os meus passos sobre folhas e
caules. Puxei a faca e não consegui nem cortar para sangrar. Se ela não
queria meu sangue e não ia me matar, o que era agora?
Porque ela me chamou.
Acredite, depois de décadas jurado, você sabe quando é chamado.
Caí de joelhos e suas plantas não apararam a dor. Se era um castigo pelo
que eu fiz, não compreendi. Se era punição pelo que outros fizeram, não era
meu lugar recebê-la. Acca precisava de um novo Diretor para cobrar, agradar
e punir pelo que acontecia com a sua organização. Ninguém mandou ela
permitir que o último fosse morto.
Afastei-me dela, tentei cortar de novo e não consegui. Apoiei as mãos na
água e não senti a temperatura, mas fui atraído mesmo assim. Afundei a
cabeça na água. Não sei por quanto tempo, não sei dizer se respirei, mas
quando me ergui, meu cabelo pingava.
Meus ouvidos ainda zuniam.
Olhei de volta para a estátua. Intacta. Nada a perturbava.
Peguei minha faca do chão e guardei.
Não tinha nenhuma vela acesa, então antes de sair, fui lá e acendi uma.
Esperei. A chama se manteve. Era a única acesa para ela este dia.
Quando saí, dei de cara com dois pares de olhos apavorados. Se havia
algo que não costumava ver nos olhos desses homens era temor. E lá
estavam eles, com o olhar assombrado grudado na porta.
— Que droga você fez? — indagou Denver.
— Nada. O de sempre — desconversei.
A porta fechou atrás de mim. Nenhum dos dois fez menção de entrar para
aproveitar a viagem e cumprir seus deveres com Tácita.
— Você não escutou? — indagou Bellini.
— Não.
— Exatamente — disse Denver. — Nada. Tem meia-hora que você está aí
dentro e o silêncio dela tomou conta de tudo aqui. Achei que você tinha
morrido e o silêncio era por sua causa.
Só pensei no quanto Rachel devia estar puta por não ter notícias por meia
hora. Ogul só esperaria mais um pouco, depois a levaria embora.
— Ainda está inundado de água? — perguntou Bellini.
— Plantas — informei.
Eles me observaram, desconfiados. Não comentaram sobre meu cabelo
molhado. E tomaram coragem de entrar. Um de cada vez. Acca só gostava
de testemunhas em apresentações e situações especiais.
Capítulo 39: Terminal 1

ANTONIO

… os mandatos de prisão foram cumpridos na manhã desta quarta-


feira. A polícia afirma que os suspeitos do ataque em Malibu estão
relacionados com os últimos eventos de incêndio criminoso no
condado…

Não olhei a TV para ver quais eram os novos coitados que seriam
expostos para cobrir a narrativa que estávamos vendendo para cobrir os
danos. A situação estava tão fora de controle que versões conflitantes
estavam saindo da própria organização. Inédito.
— Do jeito que vai, ninguém precisará lhe dar um tiro na cabeça. Você já
se encarrega disso — reclamou Rachel.
Terminei de me vestir e ela estava pelo quarto usando o roupão do hotel e
soando frustrada. Eu sempre tinha uma mala com uma muda de roupa,
dinheiro e um celular extra. Os pertences dela chegariam logo, eu não queria
que ela fosse até a casa. Minha tia havia feito o favor de comprometer o
melhor local que encontrei como casa temporária para a minha esposa.
Desde a noite passada que ela não queria saber da minha existência,
mesmo quando voltei melhor. Só ganhei seu interesse quando falei sobre o
Teatro, como o local de encontro de todos na minha organização. Não falei
de Acca, porque elas ainda não seriam apresentadas. Depois apaguei perto
dela e dormi como se tivessem me dopado.
— Preciso garantir que minhas primas sejam devolvidas.
Ela girou no lugar e me olhou. De verdade, eu queria ficar com ela.
Rachel estava chateada, frustrada e com medo. Onde eu estava com a cabeça
quando achei que poderia compartimentar o suficiente para poupá-la de se
envolver tanto? Eu não era o meu tio, que apesar de tudo que Marzia viu,
ainda manteve minha tia em uma bolha enquanto ela criava as crianças e se
importava mais com seus passatempos e interesses pessoais.
Rachel não ia criar crianças agora, ela criava filmes e séries e prometi que
lhe devolveria isso. Eu não era o meu tio, estava mais próximo de viver o
desastre do meu pai. Porém, eram outros tempos, eu era minha própria
tragédia encenada na capital mundial do cinema. E não ia quebrar minha
promessa.
— Ele cedeu? — Perguntou ela.
— A contragosto.
Fui até ela e acariciei seu rosto, Rachel me olhou com irritação e uma
expressão de desagrado. Beijei-a para me despedir, enquanto pudesse, eu não
ia sair sem beijá-la, muito menos agora. Ela voltou a me olhar, então beijei
mais duas vezes.
— Sai de perto de mim — ela me afastou e se virou.
Vesti a jaqueta e fui para a porta.
— Tia Marzia ligou, ela seguiu suas instruções. E está impressionada.
Rachel girou para mim outra vez.
— Então ela se virou e não foi pega.
— São mais de 30 anos nisso. Transtornada ou não, ela tem que dar um
jeito. E agora todos os nossos homens sabem que nunca devem te
subestimar. Estão impressionados e apreensivos. Porquê da próxima vez que
a perderem, eles não terão outra chance.
— Azar o deles — resmungou ela, pronta para arrumar mais confusão.
Deixei o hotel e fui até o CDD que estava inaugurado, mas inacabado. O
que faltava estava indo o mais rápido que o dinheiro podia pagar. Meu
escritório estava pronto e eu tinha coisas para fazer. Supostamente é onde
ficaria o dia todo, mas na hora do almoço, saí em outro carro e peguei tia
Marzia. Ela possuía seus recursos, era preciso ter jeitos de se virar quando
entrava nessa vida. Marzia não dormiu na rua, estava limpa, alimentada e
usando roupas novas.
— Cadê as minhas filhas? — Perguntou ela.
— Vou pegá-las.
— Por que ele vai devolvê-las?
— Não por você, tia. Eu também peguei algo dele.
— Você vai me julgar agora?
— Longe de mim, são suas filhas.
— Você tem alguma ideia do que a sua esposa fez comigo? Estou cheia de
hematomas — Ela apontou, como se pudesse ver Rachel dali.
— Ela conseguiu te assustar, não foi? — Levantei a sobrancelha para ela.
— Ela encostou uma arma na minha cabeça! Disse que ia estourar o meu
joelho! E eu não sei como não nos matou na estrada! — Ela não conseguia
conter sua revolta.
— Não foi diferente do que você mandaria alguém fazer se Nascari
estivesse no meu lugar. Era a vida dela em jogo também, ela fez o que achou
preciso. Agora entra no carro, temos de ir.
Entrei logo depois dela e partimos.
— E cadê ela?
— Em segurança. Não graças a você, tia. Ia entregar a minha esposa.
— São minhas filhas, você mesmo disse. Eu entregaria essa sua Deusa se
precisasse — alegou, irritada e inconsequente.
Tia Marzia era uma mistura incrível de experiência e de ignorância. Ao
mesmo tempo que invejava o tanto que meu tio conseguiu resguardá-la sem
esconder a verdade, pensava no quanto isso a prejudicou. Mas as pessoas
eram diferentes, ela não sobreviveria ao que Rachel já passou ou ao modo
como Iana vivia. E elas não saberiam viver como Marzia para chegar viva
até aqui.
— Eu sei, não significa que aprecio. Um pouco mais de confiança em
mim seria apreciado.
— Eu não sou o seu tio, Antonio. Não penso como vocês. Ele pegou
minhas filhas e me chantageou. Eu fiquei tão nervosa e culpada que a
maldita da sua mulher enxergou e usou isso para descobrir o que queria.
— Eu sabia que você estava escondendo alguma coisa, mas errei em achar
que ia confiar em mim antes de tomar medidas drásticas. Vou te mandar para
o aeroporto, o avião está esperando. De um jeito ou de outro, vou pegar
minhas primas. Vocês vão deixar o país.
— Nossa vida é aqui. Tudo que temos está aqui.
— E só retornarão quando eu mandar. Não vai lhes faltar nada.
— Antonio… Eu não vou me despedir de Jeanne?
— Não. Fale com ela por vídeo, a internet é ótima onde ela está.
O carro parou e Pietro assentiu para mim.
— Entra no carro que está atrás, tia — beijei sua mão em despedida. —
Até breve.
Marzia apertou minha mão e me encarou.
— Você é o último ainda vivo na nossa família, não perca — ela desceu.

◆◆◆

Nós não marcamos em nenhum local esquisito, remoto ou no meio do


deserto. Não vou dizer que nunca aconteceu tiroteio em porta de aeroporto,
os anos 80 e as brigas dos cartéis estavam aí para provar. Já teve assassinato
de Arcebispo na porta de aeroporto. Mas esse era o século 21, em Los
Angeles e era o LAX num país que passou pelo 11 de setembro. Isso aqui
não é um filme. De que adianta poder e território se estivesse sendo caçado
pelo país inteiro?
Morales sabia disso.
Mandei que soltassem Lorena e Natalia no terminal sete, onde Denver ia
se certificar da presença delas. Enquanto Ogul e Pietro deixariam Denise,
sua irmã e seu filho no terminal um. Eles eram opostos e mais próximos da
saída. Não precisaríamos nos encontrar. Eu havia cumprido o que negociei
com Calogero, seus familiares ficaram escondidos num hotel, meu coração
andava tão mole que nem os separei, porque isso era terror psicológico e o
garoto tinha 10 anos. Como sabem, eu já fui o garoto de 10 anos sozinho em
um quarto de motel.
Contudo, se houvesse um fio de cabelo faltando nas minhas primas, eu ia
jogar essa merda toda pro alto.
Meu celular tocou, não estava atendendo ninguém além dos homens
envolvidos na troca, mas era o número que Alessandro usava para
emergências.
— O que aconteceu?
— Aquele desgraçado mandou pegar um carregamento meu. Matou meus
homens, levou tudo. E ainda criou um incêndio em um dos meus depósitos
— informou ele. — Virou moda agora esse negócio de tacar fogo? Chama
uma atenção do caramba. Dá bombeiro, polícia, curioso, uma merda.
Era para ele estar irado, se tinha algo que deixava Alessandro puto era
quando mexiam com seus esquemas. Eu conhecia o tom de voz, por dentro
ele estava borbulhando e eu era o santo da calmaria e paciência comparado a
ele. Por isso que politicagem e território ficavam na minha mão. Depois dos
30, ele melhorou, antigamente Alessandro já teria ido atrás de Morales e
entrado atirando em Vegas, estragando toda a sua vida pública.
— E o que você fez?
— Estou rastreando para onde eles foram. Se achar, vou entrar lá e pegar
de volta. Pro caralho esse negócio de discrição.
— Vou pegar minhas primas. Depois disso, vai piorar. Eu peguei o
Calogero. Abre seu olho, pode ser uma armadilha. Eu já sumi com
Tommaso, ele só paga olho no olho.
— E você?
— Meu plano está em andamento, vou entrar lá. Tô arriscando todo
mundo, se demorar, vai morrer mais gente. Se eu me foder, todo mundo
ligado a mim está vendido.
— Eu vou com você.
— Quando ele cair, vai ser uma merda para limpar a casa.
— Conta comigo. Eu sou bom com limpeza, não sobra nada.
— Se você me fizer o favor de não ser morto antes.
— Não me pegaram até hoje, eu vou apagar um cigarro no rabo daquele
rato velho.
Ele desligou e o carro encostou no aeroporto.
— Eles levaram os três — disse Denver.
Ninguém havia endurecido minhas primas ainda, mas até a caçula
percebeu que havia algo errado. Elas sabiam que em poucos meses o pai
havia morrido, eu havia sofrido um “acidente”, o irmão havia se tornado um
foragido e depois também faleceu. Elas tiveram de deixar a cidade que
conheciam, foram afastadas da irmã mais velha e agora ficaram dias
separadas da mãe. Não sei se Morales apareceu para elas e fingiu
normalidade, elas o conheciam como o tio que nunca lhes faria mal. Era
melhor ele ter mentido.
— Cadê minha mãe, tio? — Perguntou Lorena, a menor.
— Está esperando, vamos — eu a peguei pela mão.
— Por que ela não veio com você? — Indagou Natalia, ela tinha 14 anos,
endurecida não estava, mas burra, com certeza, não era.
— Porque não era seguro — peguei Lorena no colo, ela estava andando
devagar e eu não ia arrastá-la pelo aeroporto.
Coloquei ambas no carro e entrei, nós éramos primos, mas a diferença de
idade era tão grande que elas só me chamavam de tio e eu as tratava como
tal.
— Por que sua irmã está triste? Alguém a machucou? — Perguntei.
— Não, ela nunca ficou longe da nossa mãe. Tio Morales não apareceu
mais, nós ficamos lá sozinhas com uma mulher estranha e chata. A gente não
podia fazer nada — reclamou Natalia e revirou os olhos.
— Ninguém te fez nada? — Eu a encarei.
Natalia reparou na minha expressão, não acredito que entendeu tudo que
havia por trás dela, mas ela sabia que as coisas não estavam normais. A
única que ainda tinha o benefício da completa ignorância era Lorena. Tia
Marzia disse a filha de 14 anos porque deixaram a cidade, mas não citou que
Morales não só era mais considerado da família como era um inimigo.
— Não. E eu não saí de perto dela — contou Natalia.
— Eu quero meu jogo, meus bichos já morreram todos — reclamou
Lorena, emburrada.
— Seu tablet está com a sua mãe. Vocês vão viajar.
— De novo? — Lorena franziu o cenho.
— Para onde dessa vez? — Natalia cruzou os braços.
— Para a Europa, você vai gostar. Vai andar de trem e ver uns lugares
novos.
— E o colégio? Mamãe disse que eu ia poder voltar para o antigo.
Eu a olhei seriamente e Natália bufou.
— Tá bom, eu resolvo com ela — concluiu e virou para a janela,
ignorando-me pelo resto do caminho enquanto Lorena falava de jogos,
bichos e outras coisas que eu fingia me interessar para interagir com ela.

◆◆◆

Fiquei sabendo que Rachel saiu durante o dia para realocar a sobrinha.
Minha tia me assegurou que não deu informações pessoais de Rachel e só
falou do meu casamento. Ninguém confiava.
Quando voltei pro hotel, Rachel estava no quarto com suas malas abertas
e tombadas a sua volta, enquanto ela estava sentada sobre o tapete, com as
costas contra a frente da cama. Entrei e ela só me olhou criticamente, mas
por hoje não tinha nada errado comigo.
— Tudo bem por aqui? — Ajoelhei ao lado dela.
Ela assentiu e eu a abracei, não tinha sentido nenhum em fingir que não
era isso que queria. Apertei seu corpo no meu e voltei a me sentir normal,
sensibilidade e desejo ainda funcionavam. Rachel encostou a testa no meu
ombro e perguntou:
— Você devolveu suas primas a mãe?
— Sim.
— Elas estavam bem?
— Entediadas.
— Ótimo.
Eu a afastei e a olhei. Antes de ir a São Francisco, já havia dito a ela para
esconder a sobrinha. Pelo menos sua mãe estava em alto-mar e Deon
trabalhava para mim, o único jeito de sumir com ele seria o sequestrando.
Mas ele estava entocado com o contador.
— Para onde você mandou a sua sobrinha dessa vez?
— Para terminar a reabilitação, naquele lugar caro que falei. Disse até que
ela ia encontrar uns famosos lá. Como não querem que a mídia descubra
quem dá entrada, ela estará entocada com nome falso. Igual as queridinha de
Hollywood que escondem que cheiram mais pó do que bebem água.
— Espero que ela não faça muitas amigas por lá.
Rachel riu um pouco e assentiu.
— Um problema de cada vez — ela colocou as pontas dos dedos nas
laterais da minha têmpora. — Tudo bem aí dentro?
— Por enquanto sim.
— Fica por aqui… Declara todos os incêndios apagados por hoje.
— Já me perdoou?
— Claro que não, mas dane-se. Prefiro te odiar de perto.
Eu a beijei só por isso, antes que ela mudasse de ideia. Entrelacei as mãos
pelos seus cachos e não lhe dei oportunidade de fugir. Rachel esfregou as
pontas das unhas no meu couro cabeludo, por cima da cicatriz do estilhaço,
do jeito que fez quando não me aguentei e a beijei no nosso primeiro jantar.
— Não vão me tirar daqui — sentei no tapete e a mantive perto. — A
gente também é uma urgência.
Estiquei as pernas e dei uma olhada nas nossas companheiras.
— E essas malas?
— Eu vou dar um nome para elas, de tanto que andam com a gente.
— Quais? Enorme, gigante e monstruosa? — Perguntei, dado o tamanho
GG das três malas.
— Não, elas são lindas e me salvam o tempo todo. É a Florzinha,
Lindinha e Docinho — ela apontou cada uma e nomeou.
Gargalhei, deixando a cabeça encostar contra a cama. Não me pergunte
porque eu sabia o nome das Meninas Superpoderosas, não era o que eu
assistia na TV na infância, talvez fosse por ter sobrinhas e em algum
momento nessa minha vida adulta de merda isso entrou na minha mente. Eu
simplesmente entendi a referência.
— E as suas três malas mal-encaradas que eu juro que são mais duras do
que as minhas; são o Durão, Explosão e o Fortão — ela nomeou-as também,
dessa vez não reconheci os nomes, deduzi que ainda fosse do mesmo
desenho.
— E aquela mala vermelha e menor que você teve que comprar na Itália e
acha que eu não notei? — Indaguei, apesar de a mala não estar à vista.
— Ela é linda, vai ser a Srta. Belo. Não espero que você saiba do que eu
estou falando — concluiu ela.
— Não, depois das três primeiras não faço ideia de quem sejam os outros.
— Justo.
Passei o braço em volta dela e continuamos olhando as malas e vivendo
um pouco de silêncio na companhia um do outro. Eu pensava que meu
tempo estava acabando e calculava todas as probabilidades dos meus planos
darem errado. Não era pessimismo, se quiser voltar para casa em algum
momento, tem de pensar nas perdas e mesmo assim a conta ainda será só
probabilidade.

◆◆◆

Meu telefone tocou quando eu saí do banheiro, atendi antes de terminar de


me secar. Enfiei os braços pelo roupão, fechei e esfreguei a toalha na nuca.
Minha cabeça estava estranha, não doía mais e só lembrei disso quando
Rachel arranhou entre o meu cabelo.
— Eles apareceram, chefe. Estão em LA — informou um dos meus
homens.
— Onde?
— Vieram pela estrada, direto de Vegas.
— Vieram atrás de Calogero — concluí.
— Ele está seguro, só chegam aqui se pegarem um de vocês — disse ele,
referindo-se ao meu quarteto principal: Bellini, Ogul, Denver e Pietro.
Teriam de aprender a ler mentes.
— Só me liga se eles aparecem aí — mandei.
Rachel passou pela minha frente e deu a volta na cama, puxou o cabelo e
continuou o trançando, olhou para mim por cima do ombro e me viu largar o
celular.
— Você vai cancelar o Netflix pelo Calogero? — Provocou ela, não
tínhamos nem olhado para a TV.
— Tem algum filme em que você aparece? — Mudei e ideia e desliguei o
celular, meus homens estavam nos quartos em volta, um deles podia
esmurrar a porta se fosse urgente.
Só uma pessoa me fazia esquecer a sensação esquisita na minha cabeça e
o fato de que eu estava vivendo a beira da morte. E ela queria me odiar de
perto.
— Bem ruins, sim. Mas na Amazon tem as primeiras temporadas da série
em que trabalhava quando te conheci.
— Liga a TV — falei.
Rachel sorriu e pegou o controle, colocou na série policial em que ela
trabalhava quando a conheci, não prestei atenção na tela por um minuto
quando ela voltou e terminou de amarrar a trança. Apesar da TV, ela subiu
na cama, ficou de joelhos e soltou a frase que, com certeza, era para me
ferrar.
— Quer jogar?
Abri um sorriso e cheguei perto, pronto para brincar até de pedra, papel e
tesoura. Pelo seu olhar, ela planejava me ludibriar e eu queria cair.
— Só se vive uma vez — respondi.
— Bate-rebate. E não pode me negar nada.
— Isso parece um jogo para me ferrar. O que eu ganho?
— Minha atenção. Eu começo. Sabia que meu medo de escuro está
passando?
— A melhor notícia, Raye — eu me encostei na cama e a puxei pra frente
pelo laço do robe, abrindo no processo. Seus mamilos duros pressionavam o
tecido e eu os queria na minha boca.
Ela me observou com um brilho travesso no olhar enquanto eu a
desembrulhava.
— Quer apagar as luzes? Por mim tudo bem — ofereceu.
Empurrei o robe dos ombros dela e ela usava uma calcinha que parecia
um amontoado de fios de tecido, ela pensava que cobria alguma coisa, eu
sabia que ia soltar com um puxão.
— Eu gosto de te foder com a luz acesa. Memória visual.
— Sua vez — ela disse rápido.
Se não tinha regras, eu podia fazer o que quisesse na minha vez. Então a
derrubei na cama e subi sobre o colchão, arranquei o roupão e fiquei sobre
ela. Raye sorriu como se tivesse previsto e eu a beijei com fome, encaixando
meu corpo no dela, porque era minha sensação favorita. Levei seu corpo
com o meu, sentindo-a prender as pernas em mim. Apoiei os joelhos e não a
deixei ir a lugar algum. Beijei pelo seu pescoço, enfiei o rosto na pele dela,
inspirei seu cheiro e senti sua trança se desfazendo no meu rosto.
Ela queria brincar para me distrair. Eu queria foder como se fosse morrer
amanhã.
— O que eu perco se jogar mal?
— Tudo — avisou.
Eu ri contra a pele dela, beijei entre os seus seios e os acariciei. Quando
tomei o primeiro mamilo na boca, ela se remexeu e se segurou em mim.
Levantei o olhar e segui suas reações, ela era sensível, mas não tanto quanto
estava essa noite.
— Tudo o quê, Raye? — manipulei seu mamilo na língua e ela quase
escorreu para baixo do meu corpo.
Esfreguei as fitas da calcinha contra ela até seu quadril ondular e buscar
mais contato, afastei o tecido e meus dedos deslizaram na sua boceta
molhada. Enfiei dois dedos e a estimulei, Raye empurrou contra a minha
mão e gemeu baixo. Eu gostava dos seus gemidos baixos e contínuos, ainda
mais quando ela queria prestar atenção em outra coisa e receber o prazer do
mesmo jeito.
— Se gozar você perde — murmurou ela.
— Não tem como perder gozando.
— Tem sim.
Seu quadril girou quando esfreguei seu clitóris, parei de propósito e ela
gemeu baixo, estimulada e frustrada. Meus dedos ficaram encharcados e eu
os chupei, porque porra… eu não sabia ter o suficiente dela em situação
alguma.
— Me diz o que eu quero ou meu gosto é tudo que vai ter — ameaçou.
— E o que você quer?
Rachel me puxou e beijou meus lábios, não durou o tanto que eu gostava
de me perder nela e eu que fiquei frustrado. Peguei-a pela nuca para devorar
sua boca, mas ela aproveitou o impulso e me empurrou. Bruta e sensual,
como cacete eu fiquei os últimos dias longe dessa mulher?
— O que você foi fazer lá ontem? Não tem médico naquele lugar, tem?
Adorava quando ela era essa trapaceira esperta e ainda queria brincar com
o que eu mais desejava.
— Fui fazer uma visita.
— Para quem?
— Acca. Se você gozar perde o quê, Raye?
— Nada. O jogo é meu — só a expressão dela já me deixou mais
excitado.
Ela empurrou meu peito e segurou meu pau, rolou um curto circuito no
meu corpo. Pendi a cabeça quando ela ajeitou os joelhos na cama e a
observei me chupar. Ela fechou os olhos por um momento, como se fosse se
entregar a tarefa, mas levantou aquele olhar aquecido para mim e me
masturbou para poder falar.
— Como você vai visitar uma organização, Pólvora? Todos vocês vão?
— Sim. E a culpa é toda dela, mas sem essa desgraçada eu não teria te
conhecido — eu joguei a cabeça para trás quando ela voltou a chupar, meu
pau pulsava na sua boca, ela fazia movimentos curtos e bombeava para me
torturar por mais tempo.
Eu me preparei para raciocinar enquanto meu corpo inteiro reagia a
sensação da sua boca quente e fui uma porra de um inconsequente porque
amava ver os seus lábios carnudos em volta do meu pau. Gente com a
cabeça a prêmio não pode se negar essas visões.
— Já brinquei o suficiente com você. Muito ruim distrair um cara que não
confessa seus pecados nem quando tá gozando.
Eu a segurei pelo cabelo e sua definição de brincar o suficiente era me
foder. Raye segurou meu pulso com a mão esquerda, mantendo-o em sua
cabeça e me chupou até meus dedos sumirem no seu cabelo. Ela gemeu
quando puxei demais e meu corpo inteiro estremecia a sua mercê. Eu podia
falar ao sentir dor, mas perderia seu jogo de perguntas porque só conseguia
grunhir e gozar.
— Verdade que eu posso te fazer perder quando quiser? — ela apoiou as
mãos nas minhas coxas e ficou sobre nos joelhos como se fosse pular dali.
— Só a morte me impediria de gozar para você.
— A sua amiguinha, Morte? — provocou ela.
Eu a capturei e ela tentou me ludibriar, coloquei-a no meu colo, apesar de
sua tentativa de fugir, ela estava quente e deslizava fácil sobre o meu pau,
respondendo ao contato com movimentos do seu quadril.
— Você não quer que eu foda essa boceta encharcada? — indaguei, como
se houvesse chance de não enterrar minha cara e o meu pau nela em algum
momento próximo.
Ela reagiu ao meu toque como se tivesse levado um choque, depois
moveu o quadril numa mistura de provocação e busca de prazer. As porras
das fitas da calcinha causavam atrito, roçando no meu pau e se enfiando
entre suas dobras úmidas.
— Você tá me desconcentrando dos meus intentos maléficos e necessários
— acusou.
Eu a puxei de volta pela trança, beijei sua boca e a mordi, para honrar a
acusação.
— Eu brinco e conto. Se você não gozar antes — propus.
— Não, não, hoje não dá — ela balançou a cabeça e apoiou as mãos nos
meus ombros, inclinando-se para longe.
Já que ela queria fugir, derrubei-a na cama, puxei pelas fitas do arremedo
de calcinha e a coloquei de quatro, Raye apoiou os braços no colchão e
arrebitou o traseiro. Afastei as fitas e fiquei dentro dela, senti quando ela
latejou e empurrou contra mim. Ela estava sensível e me arrancando toda a
sensibilidade que eu jurava não ter mais.
— Arqueia para eu ver — mandei.
Ela encostou o rosto no colchão e se moveu, arqueando as costas e
gemendo abafado. Era perfeita, eu não conseguia mais escolher minha visão
favorita. Fodi devagar, para senti-la pelo máximo de tempo. Ela estava tão
sensível que eu a sentia me apertar desde o início. Agarrei seu traseiro
redondo e macio, puxando as fitas para ela não se mover enquanto eu
aumentava o ritmo.
— Não goza.
A resposta dela foi um gemido mais alto, sua cabeça virou na cama e eu a
puxei, senti quando uma das fitas daquela porra de calcinha arrebentou na
minha mão. Eram várias e continuei a fodendo, segurando-a pelo quadril e
pelas fitas. Não durou nada, ela estremeceu, latejando em volta do meu pau e
soltou os gemidos mais excitantes que já ouvi.
Raye me acusava de não dizer nada, mas se ela queria os segredos que
ainda não entreguei, estava pronto para lhe dar.
— Antonio… droga, droga… não consigo — murmurou, em vários
lamentos entrecortados.
Nunca saberia que efeito era esse que ela tinha em mim, eu a queria sem
limites. Sai de dentro dela e afastei mais a calcinha, esfreguei a língua pelo
seu clitóris sensível e a ouvi chiar entre os dentes. Ela vibrava nos meus
lábios, incapaz de manter seu corpo quieto. Afundei os dedos na sua pele
macia para mantê-la de quatro e a chupei até ela gozar na minha boca e os
músculos de suas coxas tremerem sob as minhas mãos.
— Você é horrível, horrível… — murmurava ela, sem fôlego, ao tombar
na cama. — Era o meu jogo.
— Você é tão desonesta no jogo — eu a puxei pelos tornozelos e vi
quando abriu os olhos de gasolina.
— E você é um trapaceiro escorregadio. Sua sorte é que eu queria muito
te foder.
Apoiei um dos pés no chão, juntei suas pernas pro lado e a prendi sob
mim, para saciar minha necessidade de sentir seu corpo no meu, seu cheiro
no meu nariz e seu suor se mesclando ao meu.
— Repete — sussurrei.
Ela balançou a cabeça, puxei a calcinha de vez, duas fitas arrebentaram na
minha mão e me enterrei nela. Encostei a boca no rosto dela e fechei os
olhos, balançado como se não a fodesse há meses. Ela se arrepiou sob mim,
infectando-me como uma corrente elétrica. Apoiei os braços e a escondi
mais, segurei seu cabelo já desfeito, meu peso a cobria, mas nunca parecia
que estava presa o suficiente.
Raye gemeu repetidas vezes, baixo como se resmungasse ou não quisesse
me dar o gosto de ouvi-la. Só porque interferi no seu jogo. E não me
arrependia. Segurei seu rosto e a mantive cativa, meu quadril se chocou com
suas coxas fechadas e ela soltou um gritinho.
— O que eu mandei?
— Eu não consigo não gozar — murmurou.
— Não.
Minha mão escorregou pro seu pescoço, senti sua pulsação acelerada e a
vibração dos seus gemidos intercalados. Esfreguei o quadril, sentindo meu
pau quase escorregar de tão molhada que ela estava.
— Não, não, não… — reclamou ela e senti sua garganta tremer antes de
ouvi-la dizer: — A sua única sorte é que eu adoro o jeito que me fode.
— Só eu te fodo, Raye. Só eu — soltei seu cabelo e apoiei a mão na cama,
dando o que ela queria para gozar. — Você me encontrou num altar e me
aceitou.
— Então você é meu… meu… — ela deixou sons agudos e estrangulados
a atrapalharem, mas completou: — Meu e não da morte. Meu e não de Acca.
— Sim, Raye, sim. Seu acima de tudo — fechei os olhos e respirei na pele
dela, sentindo-a pulsar sob a minha mão, estremecer sob o meu corpo e
latejar a minha volta.
Sussurrei os segredos que ela já sabia, eu não gozava e mentia. A porra do
meu corpo morto e todo ferrado era dormente boa parte do tempo, mas
virava um amontoado de nervos desprotegidos quando estava com ela. Eu
me enterrava nela e ficava no meu limite o tempo inteiro. Raye me arrastou
por tanta sensibilidade que a dor da exposição foi prazerosa.
Estremeci junto ao seu corpo, acompanhando suas reações e contando o
quanto era doido por ela. Tão doido que queria não precisar lhe contar mais
nada. Não queria dividi-la com Acca, com a morte ou com qualquer outro
lado da minha vida. Eu a queria só para mim.
E nenhum dos dois tinha esse direito. Era só questão de tempo.
Capítulo 40: Não me Ferra

RACHEL

Eu estava pronta para passar o dia no hotel e ganhar uma grana com umas
publicidades que fechei. Tinha conseguido me organizar de novo e superado
a irritação por ser obrigada a sair da casa que mais gostei das três que
usamos na cidade. Eram todas lindas, mas essa era a mais aconchegante, não
estávamos seguros em lugar nenhum e ela conseguia passar a impressão de
que podíamos viver nela, apesar de tudo. E maldita tia Marzia tinha que
estragar.
Agora eu estava vendida, Antonio não mentia, então não podia mais
garantir que eu não estava exposta. Não importavam os seus esforços para
minha identidade ficar em segredo. Eu queria que minha irritação fosse só
xingar mentalmente, mas minha sobrinha me ligou:
— Eu fiz uma merda! Promete que não vai ficar puta comigo! — Para ela
começar a ligação assim, eu já estava irritada.
— Fala logo — mandei.
— Eu saí lá do spa chato. Tinha uma festa que eu queria muito ir! Minhas
amigas conseguiram convites! Tinha um bando de gente legal e famosa!
— O que você fez, Nadia?
— Eu ia voltar para a droga da reabilitação que você me colocou e nem
era pra você saber que saí!
— Nadia!
— Você disse para eu ficar ligada. Tia, tem alguém atrás de mim! Eu juro
que tem! Deve ser algum amigo do meu ex. Se me alcançarem, vão me levar.
Tenho certeza! Vem me pegar, por favor!
— Onde você está? — coloquei o celular no viva voz e já fui atrás de
roupas para me trocar.
— Perto da praia. Dormi no sofá da casa de um cara!
— Um cara? — gritei na direção do aparelho.
— O namorado da minha amiga! Vim com ela! E ela ficou lá com ele!
Acordei pra ir embora! Eu juro!
— Entra em algum lugar aí. Anda! Um lugar com muita gente!
Eu estava me arrumando para tirar umas fotos novas para uma
propaganda, arranquei tudo, enfiei jeans, camisa e tênis e larguei tudo para
trás. Peguei só o celular e a minha arma. A primeira pessoa que encontrei ao
sair foi Pietro. Ele estava no quarto ao lado do nosso e eu colidi com ele que
parecia só estar indo tomar café. Mas assim que me viu, ele franziu o cenho.
— Para onde você vai com essa pressa?
— Minha sobrinha…
— De novo?
— Se não a pegarem, eu que vou matá-la — passei por ele.
— Sozinha? Quer assinar a minha morte?
— Eu preciso ir pegá-la. Ela me ligou, disse que tem alguém atrás dela.
— Fica parada aí, dois minutos — ele abriu a porta do quarto dele. — Não
me ferra! Espera!
Eu fiquei balançando as pernas no lugar, numa mistura de raiva e
nervosismo. É claro que eu já tive 18 anos e já fiz burradas. Mas caramba,
isso cansava. Quando que ela ia escutar e parar de fazer merda? Essa fase
terminava? Pietro entrou no quarto uma pessoa e saiu outra: outra camisa,
sapatos e mais armado do que antes.
— A gente vai pegar sua sobrinha e levar para outro lugar. Não vamos
trazê-la para cá. Corre o risco de ela nos entregar igual à viúva, só que sem
querer, e denunciar nossa localização — disse ele, seguindo comigo.
— Vamos deixá-la onde ela deveria estar. Ela fugiu de lá, não devem
saber onde é.
— E a gente não sabe quem está atrás dela ou se realmente estão. Eu sei a
história do namorado dela que você matou.
— Eu não matei ninguém, só dei uma surra nele.
Ele teve tempo de me olhar seriamente enquanto ia para o carro.
— Fato é que ele não está mais nesse mundo. Algum aliado pode ter
conectado as coisas e querer perguntar se ela sabe algo. Ou pior — disse ele,
realista.
Nós entramos no carro, ele informou por mensagem que ia sair comigo.
Eu tinha garantido que não ia sair nesse dia. Os homens que costumavam
andar comigo não estavam. Pietro avisou para onde ir, para o outro carro
seguir. Não estávamos mais no litoral e o trânsito matinal de LA não era o
seu melhor amigo. Mandei várias mensagens para Nadia enquanto Pietro
dirigia, mas ela não me respondeu. Liguei e ela não atendeu.
Resolvi, ao menos dessa vez, dividir a carga com o pai dela. Agora, ele
estava na rua e se a encontrássemos, ele poderia levá-la para um lugar
seguro.
— Mas que caralho, Rachel! Eu tô indo pra lá! — Foi tudo que Deon
disse.
Soube que Antonio estava ocupado essa manhã, ele tinha ido mover
Calogero, algo sobre o plano que ia se desenrolar e precisava ser adiantado,
pois Morales tinha perdido a paciência e a discrição. Mesmo assim, ele me
mandou uma mensagem:

Pólvora 10:23
Me liga assim que encontrá-la.
Especialmente se descobrir quem quer pegá-la.

Chegamos ao local indicado por ela. Não era para eu ficar dando mole na
rua, eram dias críticos. Isso acabaria agora. De um jeito ou de outro. Para o
nosso bem ou nosso fim. No entanto, lá estava eu como uma idiota andando
pela Ocean Drive, de frente para a praia, tentando localizar a minha
sobrinha. Mais exposta, impossível. E ela não estava onde devia.
Capítulo 41: Uma Arma, uma Bala
PÓLVORA

Calogero tinha mantido a calma, por mais que ele pudesse sentir o bafo da
morte no seu cangote. Quando mais um dia amanheceu e ele continuou vivo,
ele adquiriu um pouco de confiança no negócio.
— Eu estou falando muito sério. Morto ou vivo, você vai me garantir —
disse ele.
O estresse tinha lhe dado olheiras e aquele cabelo com jeito de escovado
tinha perdido o volume. Mas com roupas limpas e a barriga cheia, ele estava
digno para continuar o plano de ser um traidor vivo. Traidor ele já era, dado
como morto ele já estava. Mas Morales era desconfiado, eu não apresentei
um corpo. Ele o queria para matá-lo por sua conta, ou para cremá-lo com
honrarias, como faria por seu amigo e segundo no comando.
Verdade era que esse título servia mais como status, Morales não dividia
comando com ninguém. E só delegava para fazerem tudo exatamente como
ele queria. Daí a surpresa da harmonia entre ele e Nascari no mesmo lado do
país ser surpreendente.
Calogero nunca foi o terceiro amigo, com equivalência de poder, ele era o
cara que ficava de vela no banco da frente. Excluído no tabuleiro dos dois
grandes, mas podia sentar na mesma mesa no jantar e casar dentro da
família. Olhando de fora, sua posição era ótima, bonita, dava respeito. Muito
poder. Olhando por dentro era que os vermes apareciam. E foi nesse ponto
fraco que enfiei minha faca.
— Se eu cair, você tem três opções. Esperar te tirarem do seu
“cativeiro”para fingir que não sabe de nada desde que mandei aquela foto e
torcer para acreditarem. Fugir e desaparecer; pega sua grana escondida, sai
do país, muda de nome e se arranja com Tácita. Ou dar um tiro na cabeça e
torcer pra ficar morto.
— E se você, seu azarão dos infernos, sair vivo disso. Qual a minha
opção?
— Eu te chuto daqui e descarrego em Vegas. Mas os seus problemas por
lá é você quem resolve. Eu já estou com o prato cheio.
— E depois?
— Depois o quê? Você está emocionado demais com essas perguntas, isso
não é discussão de relação — levantei e olhei o relógio. — Se te derem um
tiro depois, é problema seu. Com todo esse tempo de rua você tem que ter
terreno para voltar e assumir o seu lugar. Se for dar para trás agora, eu te dou
uma arma, uma bala e a gente poupa tempo.
— A finesse para negociação que dizem que você tem, foi enfiada no
rabo?
— Meu estoque acabou desde que meu primo queimou a porra do meu
centro de distribuição com ajuda do seu amigo. Não é mais negociação. É
pegar ou largar.
Coloquei uma arma sobre a mesa e deixei uma bala em pé, ao lado dela.
— E se ela me devolver? — indagou ele, iludido.
— Você sabe que ela não gosta de gastar energia com gente que escolhe
deixá-la. É o único jeito de se livrar do juramento. Acca não vai te querer de
volta.
Fui em direção a porta quando meu celular tocou.
— O terno está aí. Coloque-o para usar a arma ou fique pronto para
quando eu te chamar — avisei.
Deixei a sala e escutei a voz aflita do primo de Alessandro, o mais velho,
irmão do “primo do meio” que tinha morrido pelas mãos dos homens de
Morales.
— Pegaram ele! Aqueles ratos meteram a mão no distribuidor dele. Ele
ficou puto e foi lá! Pegaram ele!
— Onde?
— Rastreamos até Inglewood! No lado Sul.
— Perto do cemitério? Tem certeza que ele não largou o celular?
— Não muito longe de lá. Ele está off em todos os celulares.
— Continua procurando.
Desliguei e quase joguei o celular no chão. Abaixei o braço antes de fazer
merda. Eu precisava continuar ativo naquele número.
— Merda! Vem! — Saí da casa atrás de um hotel pequeno em Arlington.
Ogul me seguiu e entramos no carro, eu precisava de mais informações,
precisava ter certeza que tinham conseguido matar os homens dele e pegá-lo.
A tarefa não era fácil. Se fosse verdade, eu estava fodido. Eles não iam
devolvê-lo, essa possibilidade não existia. Sabiam que ele era meu amigo e
que eu iria atrás dele. Se queriam me atrair, haviam conseguido.
Capítulo 42: Enforcado
RACHEL

Tudo que eu queria era achar um calmante e tomar. Mas tinha medo de
apagar ou ficar lenta e não responder prontamente a situação em que havia
caído. Minha sobrinha tinha desaparecido. Pietro estava comigo, junto com
os dois caras do outro carro, mas os outros estavam ocupados em algum
problema que parecia tão ruim quanto.
— Vamos, achei o celular. Está parado — disse Pietro.
Ele ligou para alguém que rastreou o celular dela, partimos em
perseguição ao celular, esperando que estivesse com ela. Não sabíamos com
quem Nadia estava ou sequer o que havia acontecido.
— Você precisa voltar para onde está segura — Antonio disse ao telefone.
Eu podia dizer que ele estava irado e falava mais baixo ao celular, como
se precisasse manter dois humores sob controle: um para o que ele estava
resolvendo e outro para tentar me explicar porque eu não podia dar mole na
rua. Mas ele não precisava se dar ao trabalho. Eu sabia. Porém, estava sem
escolha.
— Vou voltar, vou pegá-la e vou voltar. Prometo — respondi.
Não sei se ele não tinha como continuar conversando ou se não tinha
paciência para tentar me convencer, sabendo que era inútil. Logo depois
chegaram várias mensagens para Pietro, eu tenho certeza que ele estava
mandando me apagar e levar de volta se precisasse. Mas eu precisava achar a
minha sobrinha. Estava tão focada nisso, que se ele apagasse as duas e
jogasse num carro para tirar da rua, eu não ia causar problemas quando
acordasse, desde que a encontrasse primeiro.
Nós passamos pelo cemitério e entramos em uma rua fina ao lado de um
motel amarelo que eu nunca tinha visto, porque aquela área da cidade nunca
foi meu caminho para nada. Não era um local barra pesada, era uma área de
baixa densidade, com casas e negócios pequenos. Então eu não podia
imaginar porque Nadia estaria ali.
— Eu não vou ficar para trás — avisei a Pietro.
— Se alguém não arranjar a minha morte, você vai dar conta disso —
resmungou ele.
O carro de apoio parou na beira da rua e Pietro botou o carro na entrada
do que parecia um beco. Olhando de fora, eu juraria que eram só casas, onde
morava gente e pronto. Mas até parece que nunca tinha visto a polícia
tirando as pessoas e coisas mais inacreditáveis de locais que pareciam só
“casas”. Não era o típico beco esquisito do Centro da Cidade, era um beco
residencial, com saída dos dois lados e cara de atalho local. Começamos a
escutar os latidos de ao menos dois cachorros. Normal, pessoas tinham cães.
Esses soavam grandes, mas ok…
Eu estava com um péssimo pressentimento, meu coração acelerou, tinha
medo de encontrar o corpo da minha sobrinha jogado depois das lixeiras
grandes, ou talvez dentro delas. Respirei algumas vezes, mantendo a calma e
depois da lixeira demos de cara com uma entrada, com a cerca de metal
aberta.
— Liga pra ela — Pietro sacou a arma.
Os caras do carro de apoio vieram atrás de nós. Infelizmente o Chapo
ainda estava internado e eu não tinha nomes para esses dois. Fiz a ligação, o
celular tocou, a música veio lá de dentro.
— Essa porra não está boa — disse ele. — Essa área não é comum para
aqueles bandidinhos com quem o namorado dela andava.
Nós entramos, o som do celular ficou mais forte até que eu o vi no
chão. Nem sinal dela. Pietro atendeu uma ligação, o celular dele só vibrava.
— O quê? — Exclamou ele. — Aonde?
A pessoa respondeu algo e ele disse:
— Só estou com mais dois homens. E Rachel. Não é cobertura suficiente.
Ele abaixou o celular e mexeu na tela, mandando uma mensagem. Meu
coração martelava. Ele levantou a cabeça e me encarou, eu me preparei, ele
não ia me olhar assim para me dizer que encontraram Nadia tomando
sorvete.
— Não foram os amigos do namorado dela — informou ele.
Não sei porque diabos ele parecia calmo, ele terminou a frase e eu escutei
o som dos tiros. Alguém estava atirando no nosso apoio. Ele correu na
minha direção e me puxou pelo braço. Os tiros continuaram. Escutei um som
de carro se aproximando em alta velocidade pela outra entrada do beco, ele
passou com tanta rapidez pelo portão e as grades de metal que carregou
quase tudo.
A porta do motorista abriu e o amigo de Antonio — agora eu já sabia que
era Alessandro — saiu de lá com uma arma na mão e abriu fogo na direção
da saída do lugar. Sua camisa estava coberta de sangue, seu cabelo
despenteado e sua ira era uma aura vermelha. O pior foi quando ele abriu a
porta do passageiro e arrancou Nadia de lá. Ela gritou, assustada com o som
dos tiros, mas ele não lhe deu escolha. Arrancou-a do carro de qualquer jeito
e a puxou bruscamente na nossa direção.
Pietro estava de pé, com a arma apontada para a entrada e Alessandro
empurrou a minha sobrinha na minha direção.
— Encontrei essa aqui no mesmo lugar que eles pensaram que iam me
matar, é caminho daqui, eles se entocaram nessa área desde que entraram na
cidade — contou ele. — Temos que ir agora.
Ela começou a choramingar assim que me viu, estava com o rosto sujo de
lágrimas que desceram levando seu rímel.
— Desculpa, eu só queria ficar na cidade mais um dia! Era importante!
Estapeei o lado direito do seu rosto, o estalo foi mais alto do que a força,
mas ela calou a boca imediatamente.
— Quando eu mandar fazer algo, você faz — rosnei.
Ela só continuou me olhando, agora bem alerta, tão chocada que não
conseguia se mexer, amedrontada demais para se afastar.
— É a última vez que me arrisco para limpar a sua barra. Chega — avisei.
— Não vai dar tempo de encontros familiares — avisou Alessandro.
E uma rajada de tiros veio na nossa direção e outra atingiu o carro que ele
chegou. Eu me abaixei mais e puxei Nadia que havia coberto os ouvidos.
— Você disse que estava em três. Não está mais. Vamos! — Avisou
Alessandro.
Nós tivemos de entrar mais no local e descobrimos de onde vinham os
latidos, havia uma espécie de canil ali, mas só vi dois espaços ocupados por
cachorros, as gaiolas grandes estavam vazias. Encontramos a saída para o
outro lado, uma porta dupla de garagem e uma menor. Pietro arrebentou a
porta com um tiro e um chute.
Havia outra cerca, mas essa era baixa e de madeira, do outro lado havia
jardim e uma casa. Era como se o terreno fosse dividido em duas funções,
residencial na frente e comercial atrás.
— Eles vão nos cercar — avisou Alessandro. — E o reforço?
— Estava a caminho.
— Tire-a daqui. Agora! — Falei para Pietro, empurrando Nadia em seus
braços.
— Não! — Ela choramingou.
— Esconda-a em algum lugar, faz qualquer coisa — pedi.
— Não posso deixá-la aqui! — disse ele.
— Para de perder tempo! Vai logo! Você só tem essa chance! — Gritei.
Escutamos os carros chegando, podia ser o nosso reforço, podiam ser os
outros. Alessandro me pegou pelo braço e me puxou para a passagem frontal
da garagem, talvez pudéssemos sair e ainda atraí-los para longe. Minhas
pernas se moveram, mas meus olhos estavam arregalados. O tempo havia
fechado e tinha um bando de espaços sem iluminação atrás da casa. Eu não
queria ir para lá de jeito nenhum.
Pietro levou Nadia na direção da cerca que dava em outra casa. Notei que
Alessandro estava mancando, mas ele se movia rápido assim mesmo. Só que
no final do caminho, apareceu um grupo de homens que eu não reconheci,
mas ele sim. Pois me puxou e a única rota que tínhamos era de volta para a
garagem que também fazia papel de canil.
Os cachorros eram grandes e deviam ser ameaçadores, mas os coitados
estavam desesperados com o barulho e ouvi um ganido assustado quando os
homens entraram.
— Você atira? — Indagou Alessandro, abaixado ao meu lado.
— Sim, só não tenho a melhor mira — resumi.
— É suficiente — ele trincou os dentes e tirou outra arma da parte de trás
do cós da calça, colocou-a na minha mão. Eu podia ver o sangue manchando
cada vez mais a sua camisa. — Seu rastreador está ativo, certo?
— Sim.
— Precisamos ganhar tempo.
— Para quê?
— Eles estão vindo.
— Mesmo?
— Foi uma armadilha. Para Antonio e eu. Acho que deram sorte de a
garota dar mole. Quando ela disse o seu nome, eu soube que era ruim. Mas
foi o que me deu a oportunidade… — ele nem terminou a frase, passou os
braços por cima da caixa de madeira e atirou.
Os homens que eu não conhecia apareceram dentro da garagem, alguém
do lado do beco atirou na direção deles. Talvez os seguranças do carro de
apoio não estivessem mortos ou já fosse um reforço. Mas eles atiraram de
volta. Percebi na hora o tamanho da nossa desvantagem numérica.
Estávamos encurralados.
Olhei pela lateral da caixa, levantei a arma e atirei. Acertei alguém na
perna. Lembrei da promessa que não tive tempo de cumprir, mas se saísse
dessa eu ia aprender a mirar tão bem com uma arma que seria capaz de
acertar um desgraçado daqueles em movimento e à distância.
— Ei! Chega! — Um deles gritou, depois que atirei.
Os tiros pararam. Não tínhamos bala suficiente para impedi-los. Acho que
agora eles tinham realmente matado os caras do apoio. Eles se aproximaram,
por três lados, com armas em punho. Meu coração batia na minha garganta,
eles podiam simplesmente ter nos dado um tiro na cabeça. No entanto, só
nos arrancaram de lá. Dois homens arrastaram Alessandro e um terceiro me
levantou e arrastou enquanto eu me debatia à toa.
Desde que encontramos o celular, até sermos pegos não foram nem dez
minutos e parecia uma vida de adrenalina correndo nas minhas veias.
— Precisamos de mais gente! — Gritou um deles.
O homem me obrigou a ficar ereta para ver alguém e vi a morte de pé à
minha frente. Aquele velho traiçoeiro. Morales finalmente resolveu colocar a
mão na massa. Assim como a maioria deles, não conseguia estimar sua
idade; podia jogar desde os cinquenta e tantos de uma vida de excessos até
os setenta e poucos de boa genética e procedimentos estéticos. Sua postura
era ereta, o cabelo era grisalho e abundante. E as rugas não eram suficientes
para a estimativa.
— Mantenham esse desgraçado bem preso dessa vez! É minha moeda de
troca por Calogero — ele se virou e sorriu para mim, mudando para um falso
tom agradável. — Sra. Denaro, mas que prazer encontrá-la pessoalmente. Eu
não esperava conhecê-la hoje.
— Seu mentiroso de merda — acusei.
— Ora, não seja rebelde. Eu sou um homem de idade. Já que não
pudemos encontrá-la em sua casa, estava planejando cumprimentá-la no
velório do seu marido. Mas já que resolveu vir até aqui — ele tornou a se
virar. — Aliás, onde está a garota idiota que vocês seguiram mais cedo?
— Não a encontramos mais — respondeu um dos homens.
Ele deu de ombros, pouco se importava com Nadia agora, mas senti alívio
por saber que ela e Pietro haviam conseguido fugir. Não passou um segundo
dessa breve notícia boa e escutei dois tiros na parte da frente, que daria na
casa.
— Aponta a arma para a cabeça dele! Me dá o telefone! Prende a esposa
que ela vai ter serventia — ordenou Morales.
Eles me arrastaram e jogaram dentro de uma das gaiolas grandes do canil.
Fui trancada ali dentro, não dava para ficar de pé, mas eu conseguia ficar de
joelhos. E dali assistia tudo. Eles obrigaram Alessandro a ajoelhar e
apontaram a arma para testa dele. Ele olhava para cima, encarando o homem
que segurava a arma.
Morales fez uma ligação e se afastou com o celular no ouvido. Um deles
correu para a porta que Pietro havia arrebentado e ouvi um carro cantar
pneu, pelo som, derrubou o resto da cerca que Alessandro havia carregado
quando chegou.
Ouvi mais tiros. Os homens se moveram, um deles gritou um aviso.
— Chefe! Não atira!
Eu pisquei e toda a situação a frente das grades mudou.
— Se você fizer qualquer besteira, eu mato os dois! — Avisaram.
Um homem apontou uma metralhadora na direção da gaiola onde eu
estava presa. Ele estava de pé lá no meio da garagem e as quatro gaiolas
eram construídas contra a parede esquerda, ao lado dos dois espaços que
continham os cães. Eu estava na primeira gaiola de baixo. Eram uns dois
metros de distância, mas com uma arma daquele tamanho, ele ia me
transformar numa peneira.
Foi quando vi Antonio. Ele entrou pelos fundos, com as mãos pro alto.
— Chuta a arma para cá — gritou um deles.
Ele chutou e continuou se aproximando. Morales sorriu, mas também não
se mexeu para chegar perto dele. Parou mais próximo de onde eu estava e
consequentemente das portas frontais, que dariam na casa.
— Você não veio aqui se trocar pelo seu amiguinho traficante, não é? —
O tom de Morales era puro sarcasmo misturado a muita condescendência. A
verdade era que ele sempre teve certeza que venceria.
— Deixe a minha esposa ir — disse Antonio.
— Sinceramente, Diabolik, eu achei um insulto não ser convidado para o
seu casamento. Sempre conseguimos deixar diferenças de lado para celebrar
momentos tão importantes — o sorriso em sua face fazia seu tom soar
estranhamente agradável.
Eu podia ouvir o tique-taque ressoando nos meus ouvidos.
— Sou o único que você quer, corta a palhaçada — mandou Antonio.
Aquilo não estava certo e todos ali sabiam. Morales assumiu um tom
direto e cortante quando os segundos de provocação terminaram.
— Calogero? — Perguntou.
— Uma arma, uma bala. Escolha dele. Acca não devolveu — informou
Antonio.
— Desgraçado — Morales rosnou baixo, mas também assentiu, como se
fosse algo esperado do seu homem mais valioso. — Atira nos dois. Ele vai
comigo para levarmos o corpo de volta.
O cara puxou o gatilho e foi só barulho e caos. Alessandro não aceitou
morrer de joelhos. Quando ouviu a ordem, ele pulou na direção do homem
armado a sua frente. Eles lutaram pela arma, mas ele caiu, baleado. Eu
deixei de ver tudo por uns cinco segundos, quando me encolhi e cobri a
cabeça com os braços.
Ouvi os tiros acertando a parte de cima da minha gaiola. Não ouvi mais
carros chegando, mas um tiroteio pesado irrompeu. Não eram mais pistolas e
não eram só os homens de Morales com armas grandes. Quando olhei
novamente, vi que Pietro havia voltado, ele estava brigando com um dos
homens.
Concluí que não fui atingida porque Antonio pulou contra o cara, a arma
tinha voado longe e ele socava o rosto do homem furiosamente.
— Matem-no agora! E vamos logo! — Ordenou Morales, mudando suas
ordens ao perceber que não tinha mais tempo de levar seus reféns.
Eu gritei como se pudesse avisar e tentei sair. Três homens avançaram
sobre Antonio e não deu tempo de fugir de tantas mãos. Eles o pegaram por
trás, enquanto ele socava, chutava, desviava e levava golpes. Com quatro
caras se engalfinhando, eu não via nada além de uma porradaria
generalizada.
Um deles conseguiu puxar Antonio violentamente para trás e só então os
outros dois pararam de lutar e focaram em contê-lo. Eles usaram um cabo de
aço fino, preso a uma haste rígida do mesmo material. Igual aqueles
utilizados para capturar animais selvagens e cachorros perigosos pelo
pescoço. Passavam o laço pela cabeça do animal e puxavam rápido pela
haste e estava preso, não tinha como soltar.
Mas Antonio era um humano e tinha braços e pernas. E ele lutou, mesmo
sendo puxado como um bicho que queriam matar e não apenas capturar. Eles
o prenderam por trás, apertando seu pescoço e o imobilizaram. Um segundo
depois, o penduraram no gancho que eu nem tinha visto até aquele momento.
Então o soltaram e o gancho subiu, tirando-o do chão.
— Rápido — gritou outro.
Eles correram na direção de Morales que assistiu com pura satisfação. Eu
gritei, meus olhos fixados em Antonio. Eles o enforcaram. Ele estava
pendurado no ar, só pelo pescoço, seu corpo estava rígido, cada músculo
tensionado para tentar vencer a gravidade, seus dedos agarrados a coleira de
aço em volta de sua garganta.
— Não! — Eu gritei mais alto, balancei a grade da gaiola com toda a
minha força, mas ela não soltou.
As pernas dele se moviam no ar, toda a tensão do mundo estava contida
em seu corpo. De onde estava eu não podia ouvi-lo sufocar, mas dava para
ver. E ele começou a perder a briga. Não havia como afrouxar ou ceder, era
aço e ele estava pendurado pelo pescoço, com todo o seu peso puxando-o
para a morte.
Mudei de posição e chutei as grades, fez um barulho enorme, entortou,
mas não soltou o suficiente para eu sair. Voltei a ficar de joelhos e gritar.
Minha testa grudou na grade, as lágrimas desciam tão profusamente que eu
via tudo embaçado. Mas era suficiente para enxergar o meu marido
morrendo. Ele teve um espasmo e eu continuava gritando e balançando a
grade.
Eu estava assistindo o fim da promessa que ele me fez.
Enquanto eu respirar. Até meu último suspiro.
Antonio estava literalmente parando de respirar a minha frente. Da forma
mais dolorosa. Ele lutou mais do que parecia possível para uma pessoa, mas
tive de assistir seus sentidos irem embora.
Sequer notei os tiros cessando e os homens de Morales recuando, não vi
quando ele saiu. Só escutei um som de algo arrebentando, como se tivessem
explodido uma porta, uma parede, qualquer coisa. Vi Pietro acordar e
levantar, todo fodido, para ir na direção de Antonio. Vittorio entrou correndo
e agarrou o irmão pelas pernas. Elevando-o.
Antonio não se moveu, Bellini correu e também o segurou, elevando
ainda mais, para cessar a pressão no pescoço. Mas era aço, eles tinham que
soltar o gancho. Eu acho que estava gritando isso, mas na verdade, eu só
chorava desesperadamente, agarrada as grades, com os dedos machucados
da força que fiz para sair.
Não sei quantos segundos alguém levava para morrer sufocado quando
seu pescoço não quebrava no enforcamento. Mas esses segundos passaram,
vi seu corpo tremendo no ar e perdendo as forças.
Até o último suspiro.
Eu o perdi como se ele tivesse previsto que seria assim.
E eu não pude fazer nada. Foi como morrer junto. Só que eu ainda
respirava. E doía tanto que um daqueles tiros só podia ter perfurado o meu
peito.
Vi através das lágrimas que soltaram o gancho e o peso de Antonio
desabou sobre eles. Bellini, Ogul e Vittorio o ampararam e o deitaram no
chão enquanto Denver corria para eles. Com todos em volta, não pude ver
mais nada, não sei se sequer tentaram ressuscitá-lo com massagem cardíaca.
Mais homens entraram, pegaram Alessandro e levaram embora, eu
também não sabia se ele estava morto ou desacordado. Mas havia sangue
nele e uma poça no lugar onde ele esteve. Eu sabia que Pietro estava vivo
porque ele estava de joelhos perto dos outros. Ele tentou levantar e ir, mas
parecia desorientado, acho que o acertaram na cabeça, dava para ver sangue
descendo nas laterais do seu rosto.
Não me mexi mais, continuei chorando junto a grade. Só escutei o som da
voz de Bellini quando ele abaixou a minha frente. Havia sangue nele
também, mas não sei se lhe pertencia.
— Vai pro fundo, Rachel. Vou te tirar daí.
Eu não respondi prontamente, era como se meu corpo estivesse dormente.
Reagi porque ele foi soltando meus dedos da grade como se houvesse cola
neles. Sentei com as costas contra o fundo da gaiola, ela só tinha grade na
frente, as laterais eram lisas, frias e feitas de metal. Ele quebrou o cadeado
com a arma, depois quebrou também os fechos e fez força para soltar a porta
emperrada. Eu nunca teria saído dali por conta própria.
Bellini esticou os braços e me tirou de lá. Quando fiquei livre, minhas
pernas funcionaram e eu corri para onde Antonio estava deitado com os
outros ajoelhados em volta. Não estava tão firme assim, pois fui ajoelhar de
novo e tombei mais do que qualquer coisa.
Logo depois, eles o seguraram e sentaram.
Paralisei de choque, susto, alívio, confusão.
— Respire, respire devagar — instruía Denver, com uma das mãos em
suas costas, aparentemente ele que aplicou os primeiros socorros. Ogul e
Vittorio ainda seguravam cada um num ombro dele, mantendo-o estável.
Observei seu rosto, ele estava vermelho, não de um jeito normal, mas
como se tivesse feito tanta força que os vasos de sangue estouraram,
principalmente no topo de suas bochechas. Ele abriu os olhos, lágrimas
desceram, daquelas incontroláveis que aparecem quando nos engasgamos.
Ou somos enforcados.
Fiquei assustada quando vi seus olhos escuros e achei que estivesse vendo
coisas. Estavam pretos. Só pretos. Completamente. Eu esperava vermelhidão
e vasos estourados, não aquilo.
Mas o seu pescoço.… minha nossa, o seu pescoço estava arrasado. Era
como se tivessem tentado degolá-lo só com a pressão do fio de aço. Tenho
certeza que é o que teriam feito se não fossem interrompidos, puxariam até
apertar tanto que a cabeça desconectaria do corpo.
E ele ainda parecia sem ar.
Passei as mãos pelos meus olhos, continuavam embaçados das lágrimas.
Pensei que estava alucinando. Mas foquei o olhar no seu peito, procurando
sinal de respiração. Voltei a reparar seu rosto.
Antonio olhou para mim, sinceramente, não achava que ele tinha
condições de esboçar qualquer reação. E não podia falar, nem tentou. Mas
ele piscou, o branco dos seus olhos reapareceu, coberto de vermelhidão e ele
continuou olhando fixamente para mim.
A última vez que senti esse nível de pavor, eu estava morrendo numa
caixa escura. No estado em que estava agora, eu só consegui tocar sua perna
e murmurar seu nome, tinha até medo de tocá-lo.
— Antonio… — meus olhos ardiam, mas ainda caiu mais uma lágrima
enquanto o olhava.
— A polícia está quase aqui, vão entrar pela frente da casa — Avisaram.
Eu não tinha a menor noção de tempo, estava tudo suspenso. Mas se a
polícia estava quase chegando, tudo aconteceu num redemoinho ou
demoraram para chamar.
Eles o levantaram, seus homens mais fiéis agarrados em seus ombros e
braços como se precisassem tocá-lo. Foi nessa hora que vi o chão sob os pés
dele. Aquilo era água? Havia uma poça onde ele esteve deitado. Não tinha
como ele ter suado tanto. E seu cabelo estava mais úmido do que era
possível apenas para suor.
Mas que…?
Havia diversos homens na entrada que dava no beco, eu não registrava
seus rostos, mas eles foram abrindo caminho, olhando Antonio como se ele
tivesse acabado de levantar da morte.
Denver e os outros o levaram para um dos carros, havia alguns parados
dos dois lados do beco e alguém trouxe para o mais perto possível e o
enfiaram no banco de trás.
— Não se mexe, por favor — pedi ao me sentar ao lado dele.
Pietro foi no carro conosco, nós nos separamos, não sei para onde foram
os outros carros. Eles não deixaram nem o veículo que Alessandro veio.
Também não deixaram os corpos dos nossos ou as armas. Se tivessem
arranjado uma torneira ali dentro e lavado o chão para receber a visita da
polícia, eu não ficaria surpresa.
Havia um hospital próximo dali, mas não havia a menor possibilidade de
interná-lo lá. Atravessamos a cidade, numa velocidade estável e torturante.
Descobri que Pietro não teve tempo de tirar Nadia dali, os homens de
Morales os teriam visto. Ele a escondeu na casa e mandou que ela não se
mexesse para nada se quisesse continuar viva.
— Ela ficou lá?
— Mandei um dos homens tirá-la pela casa ao lado e levá-la embora —
respondeu ele, sentado no banco da frente com um pano pressionado contra
a lateral de sua cabeça para conter o sangramento.
— E ele fez isso?
— Sim, deu tempo.
— Acho que o local para onde ia enviá-la não é mais seguro — contei,
sem confiar em mais nada. Afinal, ela ferrou tudo ao aparecer na cidade, mas
eles já estavam no seu rastro para pegar esse deslize.
Depois que Marzia contou sobre mim, foi questão de tempo para Morales
descobrir minhas conexões. Por isso eu tinha praticamente cortado
comunicação com Annika, ela não sabia onde eu estava mesmo que
ameaçasse voltar a LA o tempo todo. Mas minha sobrinha era outra história.
— Não deu tempo de conversar, não sabemos se ela disse algo.
— Ela não sabe nada. Nunca contaria, porque jamais confiaria nela para
isso. O pior que ela viu foi hoje. Entregue-a pro meu irmão, ele deve estar
desesperado. Não pude mais mandar notícias.
— Ótimo, vamos deixá-la de molho até você poder falar com ela e
lembrá-la de como a vida dela foi salva por você duas vezes. Costuma
funcionar — disse Bellini, sentado ao volante.
Quando encostamos na clínica, já estavam nos esperando. Vittorio e Ogul
tinham chegado antes. Dessa vez, colocaram Antonio numa maca e o
levaram. Minhas mãos tremiam enquanto uma enfermeira limpava os cortes
com antisséptico e cuidava das minhas unhas quebradas. De novo. Dessa vez
não chegou perto dos machucados da caixa, mas fazia diferença?
— Mas que diabos vocês fizeram dessa vez? Não era mais fácil usar um
machado afiado? — Dr. Narek cuidava dos ferimentos no pescoço de
Antonio depois de fazerem exames de imagem para avaliar os danos
internos.
Eu fiquei olhando da porta, Vittorio estava sentado perto da janela e
Bellini estava de braços cruzados, só observando a uns passos de distância.
Nenhum dos dois dizia nada enquanto o médico citava inchaço, laringe
lesionada, anti-inflamatórios que passaria e toda sorte de linguagem médica
que ele dizia para a enfermeira que o assistia.
— Você voltou, não foi? Nem ferrando que isso foi só dano, ninguém
sobrevive a isso — resmungou o Dr. Narek.
Eu havia visto Antonio tomar um tiro, ele havia sangrado sob as minhas
mãos. Eu o conheci mais ferrado do que nunca, com um estilhaço na cabeça
e vários ferimentos potencialmente mortais. Vazando o dobro de sangue
daquele último tiro. No entanto, eu não conseguia explicar o fato de não
suportar olhar o seu pescoço. Eu o vi morrer pendurado num gancho.
O médico envolveu o pescoço dele com um curativo e disse mais umas
coisas estranhas sobre os remédios. Eu me aproximei e o olhei, Antonio não
havia esboçado qualquer reação enquanto o médico falava e cuidava dele.
Ele parecia triste desde o momento que o sentaram ainda lá na garagem. Mas
quem não estaria miserável?
Além do pescoço, ele tinha um olho roxo e hematomas. Ele
provavelmente estava vivo porque se comprou tempo ao brigar e dar um
trabalho do caralho aos três homens que conseguiram pendurá-lo no gancho.
Eu queria que eles morressem do pior jeito, igual aos dois caras que me
colocaram na caixa.
Toquei a mão dele e esfreguei o polegar sobre os caminhos eternamente
marcados pela queimadura da explosão do dia que o conheci. Suas tatuagens
chegavam até o pulso e a queimadura tinha estragado a beira do desenho do
artista. Inclusive da folha final de um dos ramos. Até hoje ele ainda não
tinha pensado em retocar. Tinha tanta coisa acontecendo.
Antonio manteve o olhar em mim, acho que depois dos remédios, ele não
sentia mais dor, ele podia agir como se a dor fosse mais um estado pelo qual
precisava passar. Porém, eu não enxergava assim. Ele moveu os lábios e eu
não escutei nada, mas entendi o que ele disse.
— Rachel — ele segurou minha mão e apertou, dessa vez era diferente.
Ele estava numa cama de hospital, mas estava lúcido. — Gasolina.
Ele levantou a outra mão e fez um sinal para Bellini que deixou o quarto.
Eu me inclinei e encostei os lábios na testa dele, depois o beijei ali e
mergulhei o nariz no seu cabelo escuro. Antonio continuava apertando
minha mão.
Bellini voltou com um bloco e uma caneta. Antonio me soltou para
escrever, suas mãos estavam marcadas de novo, de socar a cara daqueles
desgraçados.
Como você está? — Ele virou o bloco para mim.
Eu dei de ombros, não sabia dizer, meu humor estava no pé, minha
energia também. Mas eu estava fisicamente intacta, enquanto ele estava
naquela cama, Alessandro estava na mesa de operação, Pietro estava levando
pontos na cabeça, outros estavam tendo balas retiradas do corpo. E ainda
havia aqueles que a família ia receber a notificação. Mas eu estava uma
merda mesmo assim.
— Arrasada e viva — respondi.
Antonio manteve o olhar em mim, como se lesse tudo que eu não falei
passando num letreiro na minha testa.
E Alessandro? — ele escreveu e mostrou.
— Ainda estão costurando os estragos — informou Bellini e seu tom era
tão estranho. Como ninguém estava levantando a possibilidade de
Alessandro não sobreviver? Pelo que escutei sobre a gravidade dos seus
ferimentos, era para ele estar num saco de cadáver.
Antonio escreveu umas ordens; sobre os homens, a proteção, quem e o
que precisavam checar, quais informantes precisavam contatar e o que
diriam e como esperariam amanhecer para ver no que ia dar. Depois
escreveu em outra folha:
Leve-a para outro lugar. Agora.
— Não. Por quê? — Reagi.
Você precisa ir descansar. Num lugar seguro.
— A clínica não é segura?
Não. Por enquanto, não.
— Você só quer que eu aceite ir — resmunguei. — Não quero ficar
sozinha agora.
A tristeza derrubou meus ombros, não queria ir a lugar algum. Não me
importava de ficar na clínica, mas preferia ficar com ele em vez de separar o
grupo para me levarem para ficar sozinha. Antonio levantou a mão e cobriu
o lado esquerdo do meu rosto, descansei o peso da cabeça na palma dele. Ele
levantou a outra mão, com o papel que continha as ordens, entregou e fez um
sinal para os outros voltarem depois.
Ele tirou a mão do meu rosto e escreveu novamente.
Sobe aqui.
— Não. E se pressionar seu pescoço.
Antonio só franziu o cenho para mim e escreveu:
Não me obrigue a tentar balançar a cabeça. Sobe na cama.
Eu sorri com sua tentativa de humor, mas não queria que ele tentasse, a
gente nem notava o quanto nosso pescoço trabalhava para mover a cabeça.
Pelo menos não até ter um torcicolo, dar mau jeito ou quase ser morto com
um estrangulador de aço.
Deixei meus tênis e só então vi as meias coloridas e de cores trocadas,
quem sabe elas ajudaram a ter um pouco de sorte. Ajeitei-me junto a ele e
encostei a cabeça no seu peito, longe suficiente do seu pescoço, pois deve ter
dado para notar o quanto eu estava impressionada e temerosa sobre isso. Um
mar de emoções me afogou quando encostei o rosto nele e senti sua quentura
e a realidade do seu corpo junto ao meu, das batidas do seu coração soando
sob o meu ouvido.
Chorei no peito dele, de alívio, de medo, de exaustão… Sentia a mão dele
acariciando o meu braço, sabia que ia amanhecer e ficaria de pé para
enfrentar o que fosse acontecer. Mas naquela noite, chorei até apagar.
Capítulo 43: Não Persiga os Mortos
Antonio

Soube que Alessandro estava no quarto e respirando por conta própria.


Acho que Tácita estava do nosso lado. Eu sei que ela me trouxe de volta,
acredito que o trouxe também, ainda não tinha confirmado. Mas já estava
óbvio porque não digo nada com certeza em relação a ela.
Eu continuei na clínica, mas estava de péssimo humor. Não era por não
conseguir levantar e sair dali, com o pescoço ferrado mesmo. Porém, as
novidades estavam cada vez mais interessantes e eu queria que continuassem
assim.
Rachel não voltou mais, consegui convencê-la. Ela também não estava
mais naquele hotel, tinha ido para outro. Depois daquele dia de armadilhas,
descartamos tudo. Nada mais era seguro. E agora, menos ainda, já que
tinham espalhado que eu estava morto. De novo.
Seria verdade. Em breve.
Pela primeira vez, eu iria em busca da morte. Não tinha garantia alguma.
Não tinha certeza se Tácita estava do meu lado. Ou se ela sequer tinha um
lado nisso tudo. Eu a acusei de não saber o que queria e fui castigado. Mas a
maldita sempre sabia. Nós é que vivíamos e morríamos no escuro.
Já que eu estava morto, sairia daquele hospital para assombrar Morales.
Era minha última cartada nesse capítulo de ACCA. Era lá que eu morreria ou
voltaria para me resolver com Tácita e o caos que ela tinha permitido que
sua organização se transformasse. Não tinha vitória nesse estágio. Ou eu
morria ou vivia e me afundava.
Sem o tubo na garganta, Alessandro estava falando melhor do que eu.
Então fui lá lhe contar a novidade:
— Olha só o meu defunto preferido — parei bem ao lado da cama para ele
poder me ouvir, minha garganta ainda estava uma merda, minhas cordas
vocais precisavam de mais tempo para desamassar.
— Seu babaca de merda, me disseram que você estava sem cabeça —
respondeu ele, parecia bem para uma rápida conversa, mas não ia levantar
daquela cama neste dia, ele já estava perdendo sangue quando chegou
naquela garagem.
— Eu pensei que ia sair daqui para comprar flores pro seu velório, não ia
sequer poder fazer um discurso de homenagem — murmurei, mais rouco do
que nunca, a voz falhando.
Ele riu e levou a mão ao peito. Eu sei, rir doía. Nós estávamos nos
curando, mas é rapidez, não milagre. Fiz um sinal para Vittorio parar de se
fingir de tímido e entrar logo. Ele estava falando tudo que eu não podia.
Depois de anos, eu tinha um irmão caçula para fazer trabalhos por mim.
— Conta — pedi.
— È bello vederti vivo, amico — Vittorio cumprimentou e foi direto: —
Mas estão esperando o seu corpo aparecer. Até sua família pensa que o
perdeu. E pior, junto com Antonio, então estão sem ter a quem recorrer.
Tommaso está fora da cidade, dizem que ele chega amanhã. Nós sabemos
que ele não chegará agora, seria só mais um alvo.
— Espalharam que você morreu de vez? — Alessandro só moveu os olhos
para mim.
— Deu tempo de eles me verem sufocar no gancho. O que você acha?
— De verdade?
Olhei para Vittorio e ele fez seu papel, tinha absorvido informação
suficiente para suas próprias conclusões e teorias.
— Os membros dessa sua organização esquisita até pensam. Mas Morales
é do tipo que precisa ver o corpo. Se vocês dois morressem, isso seria
exatamente o que faríamos. Levaríamos os corpos e esconderíamos a
verdade enquanto nos organizávamos — explicou o meu irmão. — E sua
família já está se desentendendo para saber o que fazer com “seus
pertences”. Segundo Pietro, você vai descobrir que tem um primo ou outro
bem desleal, mas ele usou outra expressão que ainda não entendo.
Assenti, com movimentos quase imperceptíveis.
— Resumindo, é uma mistura de caos organizado com silêncio total.
Morales já espalhou sua vitória. A fofoca anda rápido, tem gente dizendo
que ele derrubou ambos de uma vez. Um feito e tanto e ele já começou a
coletar os louros — seguiu o meu irmão.
— E vamos deixá-los pensar isso — completei.
Alessandro só franziu o cenho.
— Tenho mais uma cartada, vou agir enquanto nos procuram —
expliquei. — É como dizem, não persiga os mortos ou eles te encontrarão.
— Só porque eu estou preso nesse bando de tela, você vai arranjar algum
plano que só vou ouvir a história — ele deu uma olhada nos monitores.
— Eu vou dar mais corda — respondi.
— Para os covardes caírem e os traidores se enforcarem — completou
Vittorio, poupando a minha garganta e concluindo perfeitamente.
— Vocês já estão completando as frases um do outro? Que gracinha,
assim eu vou ficar com ciúmes — provocou Alessandro.
Eu tossi, levei a mão a boca e tossi mais. No momento, eu não conseguia
rir de nada sem tossir junto e sentir dor. Uma merda, eu sei.
— Continua morto aí. Vou para casa ver minha esposa enquanto ainda
tenho tempo — comentei, aproveitando um dos poucos locais onde podia
dizer isso em voz alta. Eu sei que estava errado, que devia parar antes que o
poço ficasse mais fundo, mas já deu para perceber que eu segurava até o
meu tempo acabar.
— Você não tem mais casa. Nem eu. Arrancaram essa possibilidade
quando Vito explodiu a mansão da vovó — lembrou Alessandro. Ele estava
se mudando menos, mas a casa em que ele gostava de viver também já era,
estava à venda.
— Eu tenho… — tossi uma vez, só para limpar a garganta, mas a
sensação não passava. — Só que ela anda por aí com quatro malas gigantes.
E eu precisava ir vê-la e tirá-la da minha areia movediça antes de
encontrar a morte.
— Boa sorte — disse ele.
— Você vai comigo no meu coração — voltei para a porta.
— Filho da puta escroto — ele disse de lá, fechando os olhos depois, para
descansar sozinho e ninguém ver que no momento uma conversa o exauria.
Capítulo 44: Promessa Cumprida
RACHEL

… a polícia encontrou os corpos num estacionamento subterrâneo,


depois de diversas ligações para o 911. Apesar dos sons de tiros
denunciados, os corpos tinham marcas de cortes de armas ainda não
identificadas…

— Eu não quero lanchar, Iana. Vou ficar aqui postando umas coisas —
continuei olhando a tela do celular.
Tentei me distrair no mundo de mentiras perfeitas que era o Instagram,
mas deixei a TV ligada porque vez ou outra o noticiário dava algo
interessante. Postei uma foto de Ibiza em que eu estava glamorosa, com um
chapéu enorme, óculos escuros de grife, um biquíni lindo que fui paga para
usar; daqueles que eram só beleza para foto, pois se tentasse tomar sol nele
ficaria com várias marcas nos quadris e torso.
No mundo real, eu estava em um quarto de hotel bacana, vista para a
piscina, mas com as cortinas claras fechadas e sem nenhuma vontade de
comer. Iana tinha ficado comigo depois do episódio naquela garagem.
Toda a nossa estrutura caiu assim que os homens saíram, levaram quem
precisava pro hospital e se desfizeram das provas. Todos desapareceram.
Juro, foi como mágica. Nem em filmes vi uma operação tão organizada.
O iate zarpou e deixou as águas da Califórnia. O hotel em que estávamos
foi esvaziado. A casa que tínhamos gostado e foi exposta por tia Marzia,
estava vazia e tão limpa que nem encontrariam digitais. Iana apareceu para
me buscar na clínica, junto com três carros de homens armados e minhas
malas prontas.
Deon sumiu com Nadia e o contador, soube que deixaram a cidade. Minha
mãe nem voltou aos Estados Unidos, ela recebeu uma proposta que para ela
pareceu normal e estava administrando um iate enorme que nem eu sabia por
qual mar estava.
Jeanne, Mack e Clarissa tinham sido movidos de novo e ninguém sabia a
nova localização. Até meu antigo apartamento foi esvaziado e devolvido
para a proprietária, Karen já tinha dado o fora. Cada pessoa relacionada a
gente sumiu, os locais foram limpos e no caso de carros e aparelhos, até
destruídos.
Era como se nunca houvéssemos vivido nada do que aconteceu.
— Trouxe algo diferente do café — uma pequena garrafa de suco
gaseificado e gelado apareceu a minha frente.
Levantei a cabeça, Antonio estava sorrindo para mim. Eu escutei o que ele
disse porque o único barulho era o som baixo da TV, mas sua voz era só um
sussurro rouco. Fiquei de pé e o abracei, mantendo minha cabeça longe do
curativo limpo e novo que estava em seu pescoço. Ele me envolveu e senti
aquele conforto e alívio de quando se abraça a pessoa que ama depois de um
tempo sem vê-la. Antonio aceitou continuar em recuperação no hospital por
mais dois dias, em compensação, eu não podia ir vê-lo. Não seria inteligente
para nenhum dos dois.
Afastei-me e aceitei o suco, fez um leve som de estouro quando abri.
Consegui rir um pouco ao olhar para a garrafa. Era uma daquelas que a
Lorenza fornecia. Foi como lembrar nossa piada interna. Bebi um longo gole
e deixei-a na mesa, voltei e o encarei. Antonio não estava falante por
motivos fáceis de ver, mas seu olhar estava pregado em mim e eu já
conseguia entender páginas e páginas de coisas só em seus olhos escuros e
sua expressão.
— Diz que você não vai entrar aqui, trocar de roupa e cair no mundo.
— Hoje não — ele tocou meu rosto, olhando-me de perto, sua outra mão
desceu pelas minhas costas e seu braço me envolveu.
Seus lábios tocaram os meus e ele me beijou devagar e decididamente,
como sempre fazia, sem hesitação alguma sobre poder fazê-lo ou sobre
como eu o receberia. Ele sabia. E eu perdi tudo quando o beijei de volta. O
desgraçado ainda estava com o rosto machucado, o pescoço envolvido por
uma bandagem e hematomas novos, mas exercia todo esse controle sobre
mim. Meus sentimentos, minhas reações e sensações pertenciam a ele.
— Então vamos fingir que você é uma pessoa que se recupera de
ferimentos como gente normal — dei um passo para trás e desabotoei sua
camisa.
— Você vai ficar de molho junto comigo? — Perguntou ele.
— Claro.
Antonio tossiu ao tentar rir quando tirei uma calça de pijama da mala e lhe
dei, após ele dizer que precisava tirar o cheiro de hospital antes de virar o
meu enfermo.
— E agora? — Perguntei quando me estiquei na cama ao lado dele.
— Eu vou terminar esse assunto, Rachel.
Fiquei olhando para ele, sabendo que ferido ou não, Antonio não ia passar
outro dia descansando naquela cama comigo. Provavelmente não podia. Eu
só não sabia se o seu corpo iria aguentar o próximo golpe. Desde que o
conheci, ele não parava de se machucar, fossem tiros, explosões,
enforcamentos ou só os arranhões. Eu conheci aquele homem coberto de
sangue. Era muito sangue para pavimentar aquele caminho de poder.
Cheguei mais perto e o beijei nos lábios, ele estava recostado no
travesseiro, ao menos por hoje seguia a recomendação de não ficar mexendo
demais aquele pescoço lesionado. Antonio passou os dedos pelas laterais do
meu cabelo, prendendo-o atrás da minha orelha, depois enfiou as mãos entre
as mechas e me puxou de volta, beijando meus lábios com suavidade e
demorando na tarefa.
— Você está bem? — Sussurrou ele.
Assenti.
— Mesmo? Eles te prenderam de novo. Quando te vi naquela gaiola, quis
matar todo mundo ali dentro, mas seria inútil.
— Foi diferente, eu podia ver tudo e só me importava que você não
morresse ali — encostei a testa no peito dele, aceitando novamente a
realidade de que ele estava vivo, mas voltei a olhá-lo. — Por que você
entrou daquele jeito?
— Porque você estava lá dentro — resumiu ele. — E eu me troco por
você a qualquer hora.
Balancei a cabeça, argumentar era perda de tempo. Ele faria o que
considerava necessário e eu não era inconsequente o suficiente para fingir
que me viraria muito bem sozinha nesse mundo dele.
— Você não precisa continuar forçando a garganta, vou te buscar um
bloco.
Antonio me abraçou pela cintura, mantendo-me no lugar e nos beijamos
numa lentidão carinhosa, como se pudéssemos estender o momento. Ao
menos ganhamos um desconto para fazer o que mais gostávamos, quando a
vida nos dava folga, a gente se engolia e não dava a mínima para lábios
esfolados.
— Nunca escrevi para ninguém e as coisas que digo por aí não me
ajudariam em nada com você.
— Eu não sou o tipo de pessoa que precisa escutar a mesma coisa várias
vezes — mantive um olhar travesso nele. — Até o último suspiro? —
Perguntei
Antonio sorriu levemente.
— Para você eu me repito, Raye. A gente não tem tempo para se esconder
um do outro. Sou doido por você. E sinto muito que meu amor te machuque.
Não são eles que vão conseguir me quebrar, é te amar e te ferir que me ferra.
Apoiei as mãos nele e o beijei, Antonio manteve a mão na lateral do meu
pescoço.
— E se eu te amar e te remendar?
— Remendar? — Ele sorriu.
— Achei que te amar e te salvar seria um pouco demais.
— Você já me salvou, do único jeito possível — ele apoiou a outra mão na
minha nuca. — Me beija de novo, não me obrigue a tirar a cabeça do
travesseiro.
Eu ri dele e o beijei.
— Então você está a minha mercê?
— Completamente. Agora sobe um pouco mais para eu sentir seu cheiro e
esquecer aquele odor de antisséptico da clínica.
Eu me ajeitei na cama e passei os dedos pelo rosto dele, estava melhor,
mas ainda dava para ver os hematomas.
— Como é que você deixou socarem esse rosto bonito?
Antonio mantinha uma expressão divertida quando disse:
— Eram seis punhos, chega uma hora que não dá mais para desviar.
— Se eu deixá-lo enfiar esse rosto socado no meu pescoço, você tira a
soneca da tarde ou isso não funciona?
Ele virou o rosto e tossiu um pouco, mas ainda deu para escutar uma
risada rouca e baixa.
— Vai ser um sono tão sereno que vai parecer Ibiza outra vez.
Eu suspirei. Em Ibiza nós tirávamos sonecas juntos a hora que desse, na
cama, nas espreguiçadeiras no topo da casa… A real é que começamos com
isso ainda naquele resort, quando dormimos à beira da piscina numa cama
diurna, com nossos drinks derretendo ao nosso lado. Não foi nada planejado,
acordamos e começamos a rir. Éramos pessoas com horários doidos, a noite
nem sempre era para dormir. A gente relaxava junto, esquecia o resto do
mundo por um tempo e ia embora.
Eu não estava com sono, mas me ajeitei para manter seu rosto junto a
mim, senti o ar quente de sua respiração aquecendo minha pele, enfiei os
dedos no seu cabelo escuro e adormeci.

◆◆◆

Antonio recebeu uma ligação às quatro da manhã. Ele levantou e atendeu.


Eu não precisava escutar para saber que havia acabado o seu tempo. Ele foi
para o banheiro, tomou uma ducha rápida e se vestiu: camisa, calça, botinas,
jaqueta… ele ia trabalhar e não era no escritório. Na atual situação, sabia que
ele não ia sair para mexer no seu império de comida.
Eu só o vi pronto depois, estava bêbada de sono. E ele estava sem o
curativo, a marca no seu pescoço já estava mais clara e percebi que o
hematoma no seu rosto tinha sumido. Assim que tivéssemos um tempo, eu ia
confrontá-lo. Passei do ponto em que acho que estou "imaginando coisas".
Não era louca, sabia o que vi. E não inventei tudo que notei desde que fui
morar e conviver com esse pessoal.
Ele pediu o café da manhã e me disse numa voz menos rouca:
— Precisamos ir.
Entrei no chuveiro, mas o efeito em mim não foi igual. Fechei minhas
malas e tomei café com ele. Já não importava mais onde iríamos. Fomos
para o carro e ainda estava escuro. Ogul estava ao volante, mais taciturno do
que de costume. Cochilei no ombro de Antonio, porque paramos de repente
e eu não sabia onde estávamos.
Quando olhei para o lado de fora, entendi minha confusão. Não era outro
hotel, nem outra casa ou a marina. E agora dava para ver, com a luz suave do
sol nascendo. Outro carro se aproximou rapidamente e parou perto da gente,
levantando uma nuvem de poeira.
— Onde nós estamos? — Perguntei, depois que me ajeitei e me aproximei
da janela para olhar.
— No fim, Rachel. Onde você sai para se salvar.
Eu só virei a cabeça e o observei, Antonio olhava para baixo, mas também
me encarou. Eu não precisava de uma torrente de explicações, foi como
disse, nesse mundo você só sobrevive se entender rápido. Nada disso
mudava sentimentos, minha voz saiu baixa quando disse:
— Eu confiei em você.
— Eu sempre soube que iria decepcioná-la.
Antonio desceu do carro, a minha porta abriu e eu vi Bellini. Ogul e ele
estavam tirando as minhas malas do carro em que estávamos e do outro que
parou atrás. Desci do veículo e me afastei dele, vi que estávamos no meio do
nada, perto da estrada ao nascer do dia. No lugar perfeito para que ninguém
nos visse ou nos seguisse. Antonio apareceu a minha frente e eu só o olhei.
— Eu prometi que ia conseguir sua vida de volta. É nesse ponto que posso
devolvê-la. Aqui é o novo limite. Ou eu cumpro o que te prometi ou eu
morro. E nem que seja o meu último ato, mas você estará livre outra vez.
Para fazer os filmes que tanto deseja.
Estava tudo errado. Achei que Antonio fosse a noite, mas o aceitei para
minha vida ao nascer do sol. E ia me despedir dele tão cedo quanto. Sabia o
que ele estava fazendo, era uma escolha. Continuar naquele redemoinho ou
retomar o controle. Acho que esqueceram de escrever minhas falas, eu não
conseguia, só olhava para ele, absorvendo sua imagem e acumulando forças
para decidir.
Ele voltou ao carro e pegou algo, quando se aproximou eu percebi o que
era e aguardei. Antonio levantou minha última auréola, essa era toda
dourada, das pedras a armação. Era linda como o sol nascente e brilhava sob
ele. Mantive o olhar nele quando a ajeitou suavemente na minha cabeça.
— E você nunca quebra suas promessas — consegui, por fim, concluir.
Os dedos dele ainda estavam ajeitando o arco na minha cabeça, suas mãos
desceram e seguraram meu rosto. Eu não sei se aquele homem chorava sem
que tivessem tentado enforcá-lo ou se tinham queimado essa capacidade,
mas seus olhos estavam cheios. Ele beijou meus lábios e eu o beijei de volta,
era ridículo negar.
Era a última vez.
— Não, não para você — assegurou, mesmo que eu tivesse certeza de que
ele sabia do que eu estava falando.
— Você disse que eu era sua para sempre. E me prometeu até o último
suspiro.
— Enquanto eu respirar, sou seu acima de tudo.
Enquanto eu respirar. Até o meu último suspiro.
Era a nossa promessa. Ele não pretendia se despedir e ainda mantê-la só
para si. Ele estava indo encontrar a morte e me deixar de qualquer forma.
— Adeus ou até breve, Gasolina.
Meus olhos se encheram de lágrimas, não conseguia dizer nada, mas sabia
o que precisava fazer: recuperar a minha outra vida.
Sem ele.
— Eu nunca mais quero te ver — minha voz saiu num lamento, numa
mistura de som e sussurro, sangrando antecipadamente.
Antonio só balançou a cabeça num movimento curto e me olhou como se
aceitasse a facada. Desviei o olhar, não suportava vê-lo por nem mais um
segundo. Doía tanto quanto no dia que o vi morrer naquele gancho.
Se não iam me matar amanhã, eu tinha filmes para fazer, memórias para
guardar e um coração destroçado para remendar. Antes que perdesse a
coragem, virei e corri para o carro onde Bellini esperava ao volante. Não
olhei para trás. Ele pisou no acelerador assim que bati a porta, foi como
aquela vez que o carro me levou para longe do fogo. Só que dessa vez não
havia fumaça, só lágrimas no meu rosto.
Todos sabiam que esse momento chegaria. De um jeito ou de outro.
Antonio seria como uma ilusão que nunca aconteceu, como pólvora que
nunca acendeu. Foi uma série que eu vivi em vez de observar por trás das
câmeras. Finalmente cancelaram, antes que os roteiristas se matassem na
sala de reunião.
Era o fim.
Meu marido ia encontrar a morte.
A gasolina havia evaporado.
Meu rei do submundo tinha se retirado do tabuleiro.
Adeus, Pólvora.
FOGO?
E Agora?
Você encontrará o fim da sua saga com Pólvora e Gasolina no livro:
Eternidade Agridoce.
Sim, o próximo é o fim da trilogia. E essa é a penúltima vez que te dou
este aviso: Entre em ACCA sabendo para onde vai.
É em Eternidade Agridoce que você descobrirá se Rachel e Antonio
estarão juntos até o último suspiro. É onde você e Rachel serão eternamente
ligadas a Deusa Silenciosa do Submundo. E você sabe o motivo.
Todos nós temos que jurar em algum momento desta história.
Se nós sobrevivermos.
SOBRE A AUTORA
Lucy Vargas é uma jornalista e escritora brasileira que publica romances
viciantes e se diverte criando personagens complexos e histórias eletrizantes.

Ela deixa todo o romantismo que existe nela nas páginas dos livros e adora
misturar romance com doses generosas de suspense, mistério, ação e paixão.

Revelada nas plataformas digitais, best-seller da Amazon, iTunes, Kobo e


do Google Play. Lucy foi autora revelação do iTunes e a primeira autora
brasileira convidada pelo Google a publicar seus livros independentes na
Play Store.

Atualmente, Lucy publica e-books nas plataformas online e escreve


romances para a Editora Charme e para o Grupo Editorial Record.

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www.lucyvargas.com.br
@lucyvargasautora no Instagram, Facebook e TikTok.
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Quando Eu Te Encontrar
Quando Eu Olhar Para Você
Quando Eu Te Beijar
Quando Eu Te Abraçar

Até Você Partir


Até Você Voltar

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Indestrutível
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