Você está na página 1de 192

Copyright © 2023 Edvânia Voitzszn

Capa: HEV Design


Edição: Mari Vieira
Revisão: Laila Nascimento
Diagramação: HEV Design
Ilustrações: Will Art
Autora: Edvânia Voitzszn
Redes Sociais: @evoitzszn_autora
Esta é uma obra de ficção.
Qualquer semelhança com a realidade com pessoas vivas ou
mortas ou eventos reais é mera coincidência.
Todos os direitos reservados.
É proibido o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte
dessa obra através de quaisquer meios sem o consentimento da autora.
A violação autoral é crime, previsto na lei nº 9.610/98 com
aplicação legal pelo artigo 184 do Código Penal.
NÃO RECOMENDADO PARA MENORES DE 18 ANOS – AS CENAS
NARRADAS PODEM CONTER CONTEÚDO SEXUAL E VIOLÊNCIA.
Sumário
Sinopse
Dedicatória
Epígrafe
PlayList
PARTE 1
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
PARTE 2
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
PARTE 3
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Epílogo
Agradecimentos
Ele não se importava com mais nada e ninguém até Ela aparecer.
Ela deve se manter longe dele, mas sabe que não resistirá por muito tempo.
Romance Age Gap - Anti-herói Com Passado Sombrio
Aaron Walker perdeu a única coisa com a qual se importava. Ele não aceitou o que
fizeram com sua amada irmã, e acabou pagando muito caro por isso.
Ele estava determinado a findar seus dias sem nunca mais se importar com ninguém
além dele mesmo. Ele não servia para o papel de protetor. Ele já havia falhado. Mas o destino
tinha outros planos colocando Grace, a bela jovem de olhos verdes, em seu caminho.
Grace Green está assustada, com medo de todos a sua volta. Largada a própria sorte em
um lugar onde as pessoas não são ouvidas.
Ela não sabe em quem confiar.
E acima de tudo: ela deveria temê-lo.
Mas o homem de frios de olhos azuis está mexendo com sua cabeça mais do que ela
consegue controlar.
Como se manter distante dele quando tudo o que ela deseja é estar em seus braços?
Aviso: Os acontecimentos descritos no livro podem desencadear gatilhos. Há
conteúdo sexual, cenas de violência, abuso psicológico e físico. Está uma obra destinada a
maiores de 18 anos.
Para Willian, meu marido, por manter minha sanidade.
Mas eu te prometo isso,
Quando estiver escuro, como sempre esteve,
E você sentir que está no seu fim,
Eu estarei lá,
nos bons e maus momentos,
Quando você sentir que não pode vencer,
E as sombras estiverem te perseguindo,
Eu estarei lá,
nos bons e maus momentos.

Thick And Thin


Faouzia
Ouça a Playlist no Spotify.
Clique Aqui!
Ou escaneie o código.
PARTE 1
Capítulo 1
Hospital St. John
1911

Não conseguia respirar. Eu puxava o ar, mas ele fugia de mim.


As paredes à minha volta tentavam me engolir. Meus braços e pernas não respondiam,
não tinham forças. O que estava acontecendo? Meu coração estava acelerado. Minhas mãos,
suando frio. Sinto desespero, angústia e um medo desconcertante.
Lutava para não cair em uma espiral, em um vazio sem fim.
Meus olhos semiabertos prejudicavam a visão. Abra os olhos, disse a mim mesma, na
esperança de assim conseguir entender o que acontecia ao meu redor.
Vultos. Eles vinham e iam. Me rodeavam como urubus que circulam a carniça.
Eu queria gritar, debater-me, saber o que estão fazendo comigo, contudo meu corpo não
conseguia reagir. Minha língua parecia estar dormente. Pesada.
— Ela precisa mesmo de tudo isso? — alguém perguntou, ao meu lado. Ela tinha uma
voz suave, quase tranquilizadora.
Minhas mãos estavam sendo agarradas, sentia o aperto em volta dos meus punhos,
assim como em meus tornozelos.
— São ordens do Dr. Shawcross. A paciente é altamente perigosa — respondeu um
homem. Não gostei do tom de sua voz. Contrário à da mulher, causava-me desconforto. Um sinal
de alerta ecoou em minha mente.
— Ela nem mesmo está resistindo à contenção — protestou a dona da voz suave.
— Mas eu sou o médico aqui. — Ouvi, com dificuldade, alguém dizer. — Eu estou a
par do quadro grave de histeria da paciente e sei como deve ser tratado. Não você, enfermeira.
Silêncio.
— Há uma fratura na perna direita e alguns hematomas pelo corpo, condizentes com a
queda na escada... sem necessidade de uma cirurgia... Ela parece não oferecer risco no momento,
contudo o marido foi bem claro sobre o quadro da esposa e o que ele espera do seu tratamento.
— Senhora Green? Consegue me ouvir?
Eu consegui ouvi-lo, entretanto não consegui respondê-lo. Senti como se fosse
prisioneira do meu próprio corpo.
O pânico crescente me fez estremecer, minhas lembranças estavam embaralhadas,
recortadas, perdidas. Apenas um rosto vinha à minha mente, mas fugia como se fosse fumaça,
assim que eu tentava o alcançar.
— Levem-na para a ala norte. Precisam cuidar dessa fratura na perna. Depois, tragam-na
de volta a este mesmo quarto — ele ordenou às pessoas a sua volta. — Bem-vinda à ala sul,
Senhora Green, seu o novo lar.
As rodas enferrujadas da maca rangeram no piso e atingiram meus ouvidos, como unhas
arranhando um quadro de giz, causando-me um desconforto angustiante. Os urubus continuavam
à minha volta sem rostos, apenas sombras.
Finalmente, o rangido no piso cessou.
Meus olhos estavam cansados, gostaria de fechá-los e descansar por algumas horas,
contudo não podia. Precisava estar atenta, precisava... uma picada gelada em braço, e meu corpo
começou a formigar... minhas pálpebras se fecharam completamente.
Capítulo 2
Hospital St. John
1911

Eu vi quando a trouxeram.
Do meu quarto, ouvi quando entraram pelo corredor e pediram para que algum dos
internos saísse da passagem.
Havia colocado minha calça e terminava de vestir uma camisa preta, que era aceitável.
Com essa temporada de chuva intensa que já durava dias, estava difícil manter as roupas limpas
e eu ainda me recusava a usar os mesmos trapos beges que os outros. Isso seria o mesmo que
admitir que eu era igual a todos estes à minha volta.
Nunca quis me parecer com um deles, apesar de saber que eu era.
Passaram com uma das macas velhas em frente ao meu quarto, no momento que estava
fechando a porta atrás de mim. O corpo dela estava inerte e seus olhos verdes pareciam estar
muito distantes. Ela não lutava e, mesmo assim, seguravam-na com força. Eu deveria ter seguido
meu caminho em direção ao porão, no subsolo. Deveria ter ido fazer meu serviço, como todos os
dias, porém meus pés tomaram o rumo contrário.
Segui-os pelo corredor. Onde a estariam levando? Naquela direção, à direita, havia
apenas a sala de convivência e a entrada para a cozinha de St. John. Sempre soube dos quartos
deste mesmo lado do meu, contudo nunca os vi ocupados por interno algum. Os outros pacientes
sempre eram colocados nos quartos do andar superior, no qual eu já fiquei preso, um dia.
O terror dos primeiros dias, dentro do sanatório St. John, voltaram com força. Os banhos
com mangueiras de incêndio dançavam entre minhas memórias. Eu odiava me lembrar do meu
primeiro ano dentro deste lugar.
A porta do último quarto daquela passagem que eu conhecia tão bem, estava aberta.
Mantive certa distância. Doutor Shawcross passou por mim de cabeça baixa, lendo algo em sua
prancheta, e nem mesmo notou minha presença.
Aproximei-me um pouco mais para ver o que acontecia, parecia impossível mover-me
para longe dali.
Ela estava sofrendo. Os cabelos castanhos encaracolados estavam molhados de suor,
grudados na testa e pescoço.
Eles a amarravam com rapidez, o que não deveria ter chamado minha atenção, era
padrão dentro do St. John, porém um desses homens era Martin.
Nunca gostei dele, e não tinha a ver com o fato dele faltar muito ao trabalho, pouco me
importava. Era porque já o havia flagrado perto demais de algumas internas, sob seus cuidados,
principalmente daquelas que estavam altamente drogadas, como a jovem mulher à minha frente.
Flagrei o olhar cobiçoso de Martin em direção à moça. Ela era muito bonita, talvez a
mais bela mulher que meus olhos já tenham enxergado um dia, mas isso só piorava sua situação
dentro deste lugar. As mãos de Martin tocaram em sua pele exposta de maneira proposital.
Não percebi que meus dedos se forçaram vigorosamente contra as palmas das minhas
mãos, até que a pele começou a arder. Ao abri-las, vi os finos riscos de sangue surgindo.
Respirei fundo e me obriguei a girar meus calcanhares, voltando em direção ao porão. Já
havia visto o bastante. Antes que eu perdesse a cabeça por razões que não poderia explicar,
decidi voltar ao meu trabalho e ignorar o que se passava neste quarto.
Não tenho nada a ver com isso, cada um que cuide de si, e não é problema meu, disse
para mim mesmo.
Eu não servia para cuidar de ninguém.

Observei a chuva batendo contra as janelas da sala de convivência, ainda sem dar
trégua. Não sabia por quanto tempo mais os internos aguentariam ficar trancados aqui. Nestes
três anos que estava preso no Saint John, nunca os havia visto tão agitados, o que refletia em
mais bagunça e mais serviço para mim.
Assumir o trabalho de zelador do prédio me permitiu ter mais liberdade, se eu pudesse
traduzir desta forma. Liberdade era uma palavra que não tinha significado para mim há muito
tempo. Contudo, pelo menos assim, podia andar sem restrições por toda a propriedade e não
precisava fazer uso das drogas, que me deixavam dopado, exatamente como a pobre moça que
avistei há pouco.
Deixei a sala, agora limpa, e voltei ao corredor. Observei o quarto da jovem, que estava
vazio outra vez. Talvez tenha sido um engano e a tenham levado ao segundo andar, junto dos
outros.
Aqueles olhos verdes perdidos voltaram à minha mente preenchendo cada canto.
Joguei a água do balde no chão, tentando fazer o meu serviço sem pensar no evento que
se passou pela manhã.
— Você quase molhou meus sapatos — reclamou Shirley, a assistente do doutor
Shawcross, com a voz manhosa.
— Se não sair da frente, não ficaremos no “quase” na próxima vez — disse, sem
levantar os olhos, já passando o esfregão no piso.
— Não sei por que tento ser educada com você. — Bufou ela.
— Shirley! — gritou o Dr. Shawcross. — Ande logo! Preciso de você!
Não me dei ao trabalho de encarar o médico e nem de me despedir de Shirley. A minha
única preocupação deveria ser o trabalho que, com sorte, manteria minha mente ocupada. Fiz
uma lista mental das tarefas do dia: terminar o corredor, lavar a cozinha e... o quê, mesmo? Puta
merda. Tinha mais alguma coisa...
Acostumei-me a trabalhar em uma ala do sanatório por dia, para que todos os ambientes
se mantivessem limpos com constância. Sendo franco, era a única coisa que ainda estava em
ordem no St. John, já que o prédio velho não via uma reforma há muito tempo. As paredes
estavam, há muito, com a pintura descascada. O piso estava rachado em vários lugares. E a
umidade fortalecia o mofo, que se alastrava cada vez mais.
Não precisava nem me lembrar das condições das cadeiras de rodas, macas e camas dos
internos. O tempo consumia tudo depressa.
Esfreguei o chão com força. Eu gastava muita energia na limpeza diária de um prédio
tão grande quanto o sanatório St. John, e gostava disso.
Como esperado, terminei o dia exausto.
O banho me ajudou a recuperar um pouco as forças. Busquei a toalha para secar meu
corpo, mas me detive no instante que um rosto pálido e suado, cercado pelos cabelos castanhos
encaracolados, preencheu minha mente.
Balancei os cabelos molhados, afugentando a água e os pensamentos.
Sequei o corpo e me vesti. Era hora de colocar a cabeça no travesseiro e adormecer. A
noite escura abraçava St. John e todos já estavam em seus quartos.
Eu aprendi a apreciar o silêncio da noite.
Virei-me de lado, empurrando o cobertor para longe, e me virei para o outro. Soquei o
travesseiro para me acomodar melhor. Onde estava o maldito sono? Fazia muito tempo que não
tinha dificuldade para dormir por que esta noite parecia diferente?
Respirei fundo, já cedendo à vontade de me levantar. Deixei a cama e andei em direção
à cômoda velha à minha frente. Abri a última gaveta e vasculhei até encontrar o maço de cigarros
que Shirley havia trazido para mim.
Encarei o pacote, quase vazio. Droga. Não queria ter que pedir mais. E pensar que, antes
de chegar a esse buraco, nunca tinha colocado uma porcaria dessas na boca.
Enfiei o maço no bolso, junto a uma caixa de fósforos. Encarei o pequeno objeto nas
mãos. Antes de alcançar a maçaneta, lembrei-me de pegar as chaves das portas que sempre
carrego quando faço o turno de limpeza.
Abri a porta do meu quarto devagar. Apesar de estar sozinho nessa ala do primeiro
andar, não desejava chamar atenção de ninguém ao fazer qualquer barulho.
Ansiava por alcançar os fundos do prédio e respirar um pouco de ar fresco no pátio. A
chuva, finalmente, cedeu um pouco.
A escuridão não me assustava. Conhecia cada palmo deste prédio e poderia andar de
olhos vendados, sem me perder.
No meio do corredor, meu corpo estacou.
O silêncio da noite era rompido pelo ranger de uma cama. Ando depressa, até encontrar
a origem do som.
Meu coração parecia ter subido à garganta. Minhas mãos tremiam. Não acreditava no
que estava vendo pelo quadrado de vidro transparente, localizado na parte superior da porta do
quarto dela.
A pouca luz que vinha de dentro era o suficiente para que eu enxergasse o que o verme
do Martin estava fazendo.
Capítulo 3
Hospital St. John
1911

Estava escuro e eu ainda não conseguia abrir completamente os olhos. Havia voltado
para as paredes que queriam me engolir. Meu corpo estava amarrado, tentei puxar várias vezes e
de nada adiantou. Senti raiva. Ninguém tinha o direito de me manter dessa maneira.
Lágrimas inundaram meus olhos e eu chorei silenciosamente de tristeza, de dor, de
raiva.
A porta rangeu, me trazendo de volta, e levantei a cabeça, o tanto que meu corpo me
permitia. Um homem adentrou o ambiente. Estava vestindo roupas brancas, deveria ser
tranquilizador vê-lo, porém uma sensação invadiu meu corpo, assim que enxerguei seu rosto.
Havia maldade nele.
Ele deixou a lamparina na pequena mesa, perto da porta, e parou ao lado da cama em
que eu estava. Cada fibra do meu corpo ansiou por sair correndo, sem olhar para trás. Me debati.
Tentei gritar. Apenas grunhidos deixaram minha boca.
— Eu pensei que você estaria mais calma depois de tantos remédios — debochou ele,
afastando o cobertor que escondia meu corpo. Seus olhos me varreram devagar. Mesmo usando a
roupa bege que colocaram em mim, naquele momento, senti-me exposta e assustada. — Mas eu
trouxe uma coisa para você dormir melhor. Você é tão linda...
Ele retirou algo do seu bolso, um pedaço de pano. Aproximou o objeto do meu rosto. Eu
tentei me virar. Não adiantou. Ele forçou o tecido molhado sobre minha face. O cheiro era forte,
fez minhas narinas arderem.
Eu sufoquei e apaguei.
Senti frio. Minha pele reclamava pela falta de calor. Dor, sobre todo meu corpo, como
se estivesse sendo esmagada por um guarda-roupas. Entre minhas pernas...
O ranger... O vaivém dos pés da cama de metal no chão. Estava dormindo ou estava
acordada? Um pesadelo, só poderia ser isso. Eu estava vivendo mais um daqueles pesadelos que
me assombraram em Red Rose. A dor não era real, não podia ser.
Eu enxergava apenas a escuridão e supliquei a ela, dentro de minha mente, que aquilo
acabasse logo.
Um estrondo ecoou pelo quarto. Já não sentia mais o peso que estava sobre meu corpo,
apenas o frio assolava minha pele.
Vozes pareciam discutir, mas em um tom contido. Havia muita raiva, eu podia sentir.
O som repetido de algo se quebrando reverberou pelo quarto. Uma, duas, três... perdi as
contas, minha mente lutava para entender o que acontecia.
O cheiro ferroso impregnou o quarto, sangue.
Finalmente, consegui abrir os olhos, ao menos parcialmente, a pequena chama da
lamparina ainda tremeluzia ao lado da porta.
Havia o rosto de um homem encarando-me. Vislumbrei seus olhos azuis que pareciam
exprimir um misto de alívio e terror. Sua face estava manchada de vermelho.
Voltei a sentir calor. Minhas pálpebras pesaram. Apaguei novamente.
Capítulo 4
Hospital St. John
1911

Abri a porta depressa. O infeliz se virou em minha direção, assustado.


— O que... o que... — gaguejou ele. — Olha... não... não
— Deixa eu adivinhar?! — rosnei baixo. — Não é o que parece? — Sorri com escárnio.
— Eu... olha... sejamos razoáveis. Ela nem se lembrará disso. Não é motivo para nos
preocupar. É apenas mais uma mulher insana do Saint John.
Avancei em sua direção, sentindo meu corpo ferver, prestes a explodir.
— Podemos dividi-la — sugeriu o porco. Cuspi no chão. — Até parece que você é
muito melhor do que eu. Ou não estaria preso, aqui, pelo que fez? Não é?! — zombou ele.
— Jamais por algo assim. Nunca violentaria uma mulher — respondi com raiva.
— É só uma vadia qualquer — disse ele, tentando fazer pouco caso da situação. —
Olha, vou voltar para meu quarto e vamos esquecer isso, por enquanto. Está bem?
— Você acha mesmo que vai se safar assim?
— Eu sou um funcionário, sem nenhuma queixa formal na ficha de trabalho. Você é
apenas um interno insano que recebeu um pouco de privilégio, devido à falta de funcionários.
Em quem você acha que acreditarão?
— Não será assim tão simples — garanti a ele.
— Será — afirmou, parecendo ganhar mais segurança. — Não é a primeira vez que faço
isso e não será a última. Ainda vou me divertir muito com Grace. — Ele teve a ousadia de se
aproximar dela e tentar enfiar um de seus dedos no meio das pernas dela. NA MINHA FRENTE.
Não vi nada além de escuridão, em seguida.
Tomado pela fúria, parti para cima dele e, com facilidade, derrubei-o ao chão. Ouvi o
baque da sua cabeça ao atingir o cimento frio. O filho da puta não teve nem chance de reagir.
Com minhas mãos cerradas em punho, cobri-o com repetidos socos. Meus braços queimavam.
Senti os dentes dele cortarem minhas mãos e nem mesmo assim recuei. Eu via a chama da
lamparina movimentando-se à minha frente e foi inevitável imaginar o corpo de Martin sendo
consumido pelas chamas, como os dos outros... Eu desejava queimá-lo, com a mesma
intensidade que desejava mais ar em meus pulmões.
Eu não estava com raiva, era bem pior do que isso. Dentro de mim, o desejo de acabar
com ele me cegava. Lembrei-me de Amy e não consegui parar até ter os ossos de sua face em
pedaços. O sangue se espalhava pelo chão e, à minha frente, a massa vermelha manchava o
quarto.
A chama da lamparina ainda me convidava. Ela sussurrava em meu ouvido “queime o
verme. Queime tudo”. Mas eu precisava controlar meus impulsos. Eu não cedia a eles há muito
tempo e precisava continuar assim.
O suor escorria por meu rosto e pescoço, misturados aos respingos vermelhos do sangue
de Martin. Minha respiração pesada. Só havia me esgotado assim uma vez e foi por isso que
acabei vindo parar em Saint John. Merda. Que sujeira eu tinha feito. Esfreguei a mão na roupa do
infeliz, limpando os restos do que antes era a cara de Martin.
O líquido vermelho do miserável estava quase alcançando a porta e era melhor eu não
deixar que isso acontecesse. Tirei as roupas dele e usei para cercar o sangue. Observei a cena. O
corpo inerte. Eu deveria me sentir culpado. Mas não me sentia.
Não era a primeira vez que matava um homem e experimentava sensação de satisfação.
Melhor do que isso seria apenas se eu pudesse vê-lo queimar, até sobrar nada. Imaginei a
sensação de alívio que me traria.
Ansiava por apreciar as labaredas, já sentia o calor do fogo inflar sob minha pele,
contudo eu ainda me segurava a uma centelha de razão, que me lembrava de que eu deveria me
conter. Se eu cedesse, pagaria um preço alto. Voltaria a ser drogado e trancafiado em uma das
celas, que eles chamavam de quarto, e isso não seria o pior. Eles podiam ser o próprio inferno
quando queriam. Fechei as mãos em punho, com força, ferindo a pele para controlar meus
impulsos mais uma vez.
Eu precisava me segurar.
Cada vez que algo assim acontecia, eu admitia que Saint John era meu lugar tanto
quanto para qualquer outro interno insano.
Grace continuava nua. Seu corpo tremia sobre a cama. Vesti-a em sua roupa de interna
novamente. Queria ter sido forte o bastante e não ter admirado sua linda pele e curvas. Era
mesmo linda. Meu Deus, que tipo de doente eu era? Terminei de vesti-la o quanto antes, não
queria me tornar um pervertido como eles. Cobri seu corpo com a manta cinza novamente. Sua
respiração estava pesada. Observei seu peito arfar, seus olhos abriram-se de repente, mas ela
ainda parecia estar muito longe dali. Não acho que ela, tenha de fato, me visto. Melhor assim,
dada as circunstâncias.
A chuva havia aumentado outra vez e batia fortemente contra as janelas.
Desci até o porão. Juntei o material para a limpeza e alguns lençóis velhos, para enrolar
o corpo de Martin. Enrolar aquele verme no tecido foi fácil. A limpeza, nem tanto. Havia muito
sangue. Fiz o trabalho o mais rápido e silenciosamente quanto pude. Em um balde, torci os panos
com sangue e, no outro, com água limpa, retirei o restante de qualquer resquício da sujeira.
Grace continuava dormindo.
Voltei ao porão e joguei a sujeira dos baldes no tanque de escoamento. Levei a pá para
enterrar Martin e suas roupas sujas.
O corpo do verme não pesava nada para mim. Joguei-o sobre o ombro e o carreguei sem
esforço.
O pátio no fundo da propriedade era grande. Árvores frondosas preenchiam o espaço.
Procurei, em meio à escuridão, o canto mais distante da porta e mais perto do muro, como
referência. Escolhi o canto esquerdo, teria que servir.
A pouca luz da noite dificultava meu serviço. Arremessei o corpo no chão e comecei a
cavar de imediato. A cova não precisava ser muito funda, desde que o corpo não voltasse à
superfície seria suficiente.
A chuva batia em minhas costas com força, porém não reclamei, a terra ficava
amolecida depois de receber tanta água. Encontrei poucas raízes enquanto cavava, pensei em
agradecer a Deus por isso, mas achei que o diabo ficaria mais contente comigo. Ri de mim
mesmo e continuei a cavar.
Não era uma cova grande, mas era o bastante. Dobrei o corpo de Martin para caber no
buraco, e joguei também as roupas velhas e sujas de sangue que ele usava antes. Lancei a terra
sobre o cadáver. Os relâmpagos cruzavam o céu. Faltava pouco para terminar a tarefa.
Atirei a pá ao longe, pondo por cima da cova algumas folhas e galhos com a intenção de
disfarçar a terra remexida, mesmo sabendo que poucos frequentavam o pátio e, menos ainda,
andavam perto dos muros. Ainda assim, achei por bem espalhar alguns restos de árvores caídas
por cima do lugar onde havia acabado de enterrar o miserável.
Terminei o trabalho, ofegante. Estralei o pescoço. Meu corpo todo estava dolorido.
Voltei à porta dos fundos do prédio, minhas roupas e sapatos estavam cheios de barro e
sangue. Tirei o calçado para evitar sujar o corredor.
No porão, lavei a pá e a devolvi no lugar. Escondi meus sapatos sujos. Ainda precisava
dar uma última conferida no quarto de Grace, antes que amanhecesse. Levei mais um pano de
chão limpo, para ter certeza de que não deixaria rastro algum do acontecido.
A lamparina ainda iluminava parcialmente o quarto de Grace.
Seu belo rosto se retorcia em aparente agonia. Tive vontade de acalmá-la, mas não sabia
como. Voltei minha atenção à tarefa de me certificar de que o lugar estava impecável.
Apesar da pouca luz, aparentemente não havia nada que denunciasse o ocorrido. Peguei
a lamparina que Martin havia trazido e fechei a porta devagar. Verifiquei o corredor e vi algumas
gotas de água que meu corpo espalhara pelo chão. Sequei-as depressa. Olhando ao redor, não
identifiquei algum outro sinal de anormalidade.
A luz do dia não demoraria a romper a escuridão e eu precisaria iniciar minhas tarefas,
como em todas as outras manhãs.
Voltei ao meu quarto, deixei o pano de limpeza e minhas roupas sujas debaixo da cama;
não aguentava mais ir ao porão. Limpei-me da sujeira e sangue, e finalmente me deitei na cama,
mas não fechei os olhos.

Não demorou para o dia clarear e, enquanto eu fazia meu trabalho no sanatório, senti
meu corpo reclamar. Lembrei-me do motivo do cansaço. Primeiro, amassei a cara de Martin, até
que não sobrasse nada; depois, precisei limpar a sujeira no quarto de Grace e ainda me livrar do
corpo.
Para o inferno a canseira.
Era um pervertido a menos no mundo. Quem sentiria falta daquele maldito? Não as
mulheres que ele costumava abusar.
Passei na cozinha e me servi: coloquei batatas e carne cozida no prato. Não precisava
que algum dos cuidadores me trouxesse a refeição, há muito tempo. Estava faminto, pois havia
pulado o café da manhã para lavar minhas roupas, incluindo as que foram sujas durante a
madrugada.
Andei até a sala de convivência, onde todos, que podiam sair dos quartos, faziam suas
refeições, e na qual, em outros momentos do dia, os pacientes eram deixados para passarem
algumas horas em volta de um jogo de damas, ou outra merda similar. Mesmo que suas mentes
nem se dessem conta de onde estavam e o que, de fato, faziam.
Joguei o prato sobre a mesa. Levei a primeira garfada à boca, mas me detive ao ouvir a
voz de Joanne.
— Machucou a mão? — perguntou a velha enfermeira.
Direcionei os olhos para a minha mão direita enfaixada, precisei colocar alguma coisa
para cobrir os cortes e o inchaço, após destruir a cabeça de Martin, ou perguntas poderiam ser
feitas.
— Usei um produto de limpeza sem proteção e queimei a pele. Eu sei, erro de
principiante. — Dei um sorriso sem graça, como se estivesse chateado com a situação.
— Se quiser, posso dar uma olhada nisso — ofereceu ela. Joanne até tinha boa intenção,
mas sozinha não conseguia mudar nada naquele purgatório, que alguns ousavam chamar de
hospital.
— Agradeço — disse, recolhendo a mão para debaixo da mesa —, mas não é
necessário. Não foi grande coisa. Os outros precisam mais de seus cuidados — argumentei,
apontando com a cabeça para um dos internos à nossa volta, que ainda tinha dificuldades para
comer sozinho.
— Tem razão. É bem grandinho para se cuidar — disse ela —, mas deixarei uma
pomada com você ainda hoje. Ajudará a cicatrizar o ferimento mais rápido.
— Obrigado — declarei, apenas.
— Você por acaso não viu o Martin hoje, viu? — questionou ela.
— Não o vi — respondi.
— Ele deve ter faltado de novo... — reclamou ela. — Bem, depois deixarei o remédio
com você — disse antes de ir até algum dos pacientes.
A mesa, na qual fazia a refeição, estava posicionada onde eu podia enxergar com clareza
a porta do quarto de Grace. Vi quando dois cuidadores entraram. Levantei-me por impulso, o
olhar de Joanne recaiu imediatamente sobre mim.
Voltei a me sentar, lutando para desviar os olhos da porta, que mostrava parte do
corredor. E se aqueles filhos da puta fossem como Martin? Um pensamento de alerta irrompeu,
preocupando-me. Eles não ousariam tocá-la em plena luz do dia, ousariam? O medo percorreu
por meu corpo, causando um leve tremor.
Avistei uma mulher de branco entrar no quarto de Grace, juntando-se a eles, outra
enfermeira. Soltei do peito o ar que nem havia percebido que estava prendendo.
Vai ser difícil me manter distante e fazer minha mente entender que ela não é problema
meu.
Capítulo 5
Hospital St. John
1911

Quando a noite chegou, respirei aliviado. O dia havia demorado a passar. Ninguém mais
me perguntou sobre Martin. Acham que ele apenas faltou ao trabalho novamente. Melhor assim.
Busquei o cigarro e o enfiei no bolso da calça. Na última noite, foi impossível fumar.
Perguntei-me se estava indo até os fundos do prédio porque queria realmente fumar ou se era
apenas para poder passar pelo quarto de Grace.
Mesmo que eu repetisse, para mim mesmo, que ela não era da minha conta, era
impossível não me perguntar se ela estava realmente bem. Martin era o único que abusava das
pacientes? E se ele não fosse?
Silêncio e escuridão preenchiam o ambiente no primeiro andar do St. John. Respirei
aliviado, quando passei pelo quarto de Grace e vi com meus próprios olhos que não havia
anormalidade alguma.
Sons de um sapato ressoaram pelo corredor. Afastei-me da porta do quarto de Grace.
Uma silhueta conhecida se formou atrás de uma pequena lamparina.
— Está fugindo de mim, querido? — ronronou Shirley.
— Desde quando é da sua conta aonde eu vou? — questionei, sem paciência para suas
cobranças.
— Fiquei preocupada quando não te encontrei no quarto, apenas isso — justificou-se.
— O que está fazendo aqui, no escuro, sozinho? — interrogou ela. Bufei.
— Estava indo ao pátio. Fumar.
— Então vamos juntos. Preciso mesmo de um cigarro. O Dr. Shawcross tem me deixado
louca.
Uma garoa fina atingiu meu rosto, assim que passei pela porta que dava acesso aos
fundos da propriedade. Abaixei a boina, protegendo-me. A escuridão da noite era intensa.
Escorei-me na parede ao lado da porta.
— Não a feche — disse, segurando a mão de Shirley, que estava prestes a fechar a
porta.
— Por que não? Sempre a fechamos. Privacidade. Lembra-se?
— Não quero que a feche — respondi apenas. Ela me encarou em dúvida, mas cedeu.
Tirei o cigarro do bolso e o coloquei na boca, para só depois riscar um fósforo. A chama
se acendeu e eu a cultuei até quase perder o palito.
Traguei o cigarro sem pressa para, em sequência, expelir a fumaça, que atingiu o rosto
de Shirley, e ela gostou.
Ela deixou a lamparina no chão e caminhou, parando à minha frente. Sem pressa,
Shirley retirou o cigarro de minha boca, prendendo-o entre seus lábios vermelhos, encarando-me.
Faminta.
Ela colou seu corpo ao meu. Shirley não é uma mulher baixa, mas, ainda assim, parecia
pequena perto de mim. Levantando minha camisa, ela passou as unhas cumpridas em meu peito.
— Eu não sei como você consegue manter esse corpo gostoso nesse lugar. Deve ser
alguma benção da natureza. — Sorri.
Não querendo perder tempo, ela tragou uma única vez e jogou o cigarro fora, para atacar
vorazmente minha boca.
Seus lábios macios investiram contra os meus lábios duros.
Girei seu corpo contra a parede.
— Conhece as regras — disse a ela.
Shirley fechou os olhos e desamarrei a faixa de tecido, que usava amarrada no punho,
para cobrir seus olhos. Apertei o nó com força e ela suspirou.
— Não entendo por que ainda não posso te ver — ela resmungou.
— Você não precisa entender — respondi. Shirley não insistiu no assunto. Ela sabia que
não adiantava.
Agarrei sua cintura e a levantei em meu colo, prensando-a contra as pedras frias. Ela
sorriu, enroscando as pernas em volta de mim. Explorei seu corpo, passando a língua por seu
pescoço. Encarei-a, vendada e entregue. Não precisei pedir e ela logo abriu a própria blusa,
arrancando os botões e expondo os seios. Ela nunca usava sutiã quando me procurava. Podia
apostar que estava sem calcinha também.
Mordi o bico de um de seus seios e ela arfou. Levantei sua saia até sua cintura e tive
acesso ao meio de suas pernas. Passei a mão pelo terreno já conhecido, até sua entrada. Sem
calcinha, sabia. Voltei aos seus lábios, mergulhando em sua boca. Senti quando ela mordeu meu
lábio inferior com força. Minha cabeça recuou.
— Sem marcas — rosnei, baixo.
— Desculpe — ela disse, mas eu sabia que não lamentava. Ela vivia tentando me deixar
marcado de alguma forma. — Não farei de novo, prometo.
Meus dedos desceram até sua entrada, já encharcada. Enfiei um dedo; depois, dois,
estimulando-a ainda mais.
— Segure-se! — ordenei. Ela prendeu as pernas com mais força em minha cintura. Com
uma das mãos, abaixei minha calça e libertei meu pau.
Voltei a segurar em sua cintura, enquanto entrava com facilidade em sua boceta.
Arremeti com força e ela mordeu levemente meu ombro. Usei uma das mãos para agarrar seu
rosto.
— Eu não vou te avisar mais uma vez — garanti a ela. — Sem marcas.
Ela entendeu o recado, voltando a beijar minha boca, em seguida. A loira gemeu entre
os beijos enquanto continuava a investir fundo.
Senti seu corpo endurecer em meu colo e, depois, amolecer completamente. Estava
prestes a alcançar meu ápice também.
Retirei-me de dentro de seu corpo e a deixei escorregar pela parede. Ela se ajoelhou à
minha frente. Minha mão terminou o serviço, fazendo a porra jorrar em seus seios descobertos.
Arrumei minhas roupas no corpo, para só depois retirar a venda dos olhos da mulher à
minha frente. A frustração estampou seu rosto. Ela não aceitava que eu não gozasse dentro dela.
Mas eu jamais correria um risco ainda maior.
A insatisfação em seu rosto se desfez e ela forçou um sorriso.
— Sempre vale a pena trabalhar até mais tarde — declarou, levantando-se e amarrando
sua blusa de qualquer jeito.
— Não deveria ir para casa tão tarde. É perigoso. Deveria dormir aqui.
— Só se for na sua cama — sugeriu ela.
— Não. No quarto para os funcionários. No andar de cima — cortei logo, antes que ela
criasse expectativas, às quais não posso corresponder.
— Se você se preocupasse realmente comigo, me deixaria ficar no seu quarto.
— Você não está desabrigada. Não faça uma cena com isso.
— Você é um babaca — reclamou ela. Dei de ombros.
— Nunca disse que não era.
— Eu estaria em casa cedo, se não fosse a última maluca que entrou para a família —
debochou ela.
— O que disse?
— A maluca nova. O Dr. Shawcross estava todo estressado por causa de alguma coisa
com o marido dela... sei lá. E acabou sobrando para mim. Aquele velho me obrigou a fazer um
monte de tarefas que não eram importantes, só tomaram meu tempo.
Refleti sobre as palavras de Shirley. Então Grace tinha um marido. E onde ele estava
agora?
— Aquela vadia horrorosa. Não sei por que todos os cuidadores homens estão tão
empolgados. Tenho vontade de vomitar quando os ouço falando dela. — Shirley fez uma careta.
Senti minhas mãos fecharem em punho.
Eu sabia bem o tipo de comentários que eles estavam fazendo. Senti um desconforto no
peito ao constatar que Grace não estaria segura, enquanto estivesse entre as paredes de St. John.
Tinha que pensar em algo para mantê-la por perto, ainda que eu continuasse dizendo a
mim mesmo que ela não era problema meu.

Assim que o dia começou, entre as paredes do Saint John, procurei por Joanne,
precisava falar com ela urgentemente. Se teria alguém que poderia me ajudar, seria ela. Não a
encontrei na cozinha e nem junto aos outros pacientes, que faziam a refeição de desjejum.
Comecei a comer, mesmo sem apetite.
O dia estava nublado e frio.
Estava acostumado a dias cinzentos, até gostava da melancolia que traziam. Pela janela
da sala de convivência, eu enxergava o pátio vazio. Meus olhos correram até o limiar do muro.
Nada havia mudado, o que era bom.
— Esteve me procurando, Aaron? — perguntou Joanne, à minha frente.
— Ah, sim. Preciso te pedir um favor.
— Se eu puder ajudar... — Ela suspirou. — Estamos ainda mais sobrecarregados com as
faltas de Martin. Infelizmente, acho que ele não voltará. Não pensa o mesmo?
— Desculpe, Joanne. Eu não conhecia Martin tão bem assim — disse naturalmente.
— Claro, ele não era próximo de ninguém, na verdade. A não ser de algumas internas,
as bonitas. Especialmente as bonitas — respondeu, quase sussurrando.
Mantive-me em silêncio. Era melhor não chamar a atenção para mim. Fingir que não
sabia nada sobre os atos pervertidos de Martin era imprescindível, devido ao meu histórico.
— Bom... — voltou a falar — o que gostaria que eu fizesse?
— Desculpe, como?
— O favor, Aaron — ela disse.
— Ah, sim. — Pausei por um instante, pensando. — Eu tenho o hábito de sair à noite no
pátio, para respirar um pouco. Às vezes, só consigo dormir depois disso — Até aqui, tudo bem;
era verdade.
— Sei... — disse apenas.
— Gostaria de saber se posso ocupar o quarto mais próximo à porta dos fundos no fim
do corredor... — ela estreitou os olhos em minha direção — para ter um acesso mais fácil ao
pátio nos fundos. Na última noite, tropecei no corredor escuro e machuquei o pé. Queria evitar
que isso acontecesse outra vez. Aqui é muito escuro e nem mesmo a lamparina evitou o acidente.
Joanne me encarou por um segundo, como se buscasse algum significado oculto em
minhas palavras.
— O quarto ao lado da porta dos fundos é da nova interna, Grace. Quer que eu a retire
de lá e te instale no lugar dela, trocando seus quartos?
— Não — respondi rápido demais. — Não quero dar esse trabalho. — Tentei corrigir.
— Posso ficar com o quarto ao lado do dela, sem problemas.
— É perto o bastante? — questionou ela.
— Da porta. Sim, é claro — respondi com firmeza.
Senti que Joanne queria “pescar” algo mais. Ela refletiu por um instante.
— Tudo bem. Pode se instalar ao lado do quarto de Grace. Não tenho motivo razoável
algum para negar seu pedido. Apesar de seu histórico, você tem sido um paciente colaborativo
— concluiu. Agradeci.
Enquanto engolia a refeição, pensei em suas palavras, durante nossa recente conversa:
ela desconfiava de alguma coisa ou poderia ser apenas uma impressão equivocada?
O mais importante agora era que eu havia conseguido o que queria.
Estaria instalado no quarto ao lado de Grace. Com qualquer barulho anormal, eu estaria
ao seu lado em um piscar de olhos.
No fim do dia, joguei o material de limpeza de qualquer jeito no porão.
Apressei os passos até meu quarto para realizar a mudança, antes do anoitecer.
Juntei minhas roupas e as carreguei, satisfeito, pelo corredor. Não havia mais a
movimentação de pacientes, todos já haviam sido recolhidos aos seus quartos no andar superior.
Transferi todos meus pertences para a nova cômoda. O que não era muito. Algumas camisas e
calças. Dois casacos. Peças de baixo... basicamente o que havia sobrado da minha vida. O pouco
que exigi, depois de saber que passaria o resto de meus dias preso entre estas paredes frias.
Encarei a última gaveta aberta. Era isso... depois de todos os sacrifícios, de anos
suprimindo qualquer traço inadequado para um cavalheiro, ao menos aos olhos da sociedade,
sendo o filho exemplar, o irmão responsável, o homem de negócios que assumira seu devido
lugar, era isso que havia sobrado...
Joguei meu corpo na cama de metal com colchão fino. Cruzei as mãos debaixo da
cabeça e fitei o teto. Há muito tempo não pensava em minha vida antes de St. John. Evitava a
todo custo fazer isso, ou corria o risco de querer extravasar...
— Então é verdade — declarou Shirley, ao invadir meu quarto.
Olhei para a frente e vi sua figura, encarando-me. Seu vestido apertado revelava cada
curva e o decote generoso era de fazer qualquer marmanjo salivar. Voltei a fitar o teto branco
descascado.
Ela se aproximou e sentou-se próximo aos meus pés, na beirada do colchão.
— Por que mudou de quarto, Aaron? — questionou ela. Bufei sem paciência.
— Não tenho que te dar explicações — respondi sem intenção de continuar aquela
conversa.
— Eu posso falar com Dr. Shawcross e o velho te fará voltar ao quarto antigo bem
rápido — ameaçou ela.
Voltei o rosto para ela, cravando meus olhos nos seus.
— Por que você faria isso? — Mantive os olhos nela, que desviou o olhar e começou a
encarar a parede à sua frente.
— Talvez eu não queira você tão perto da maluca nova enquanto eu estiver fora nas
próximas semanas.
— O que você quer faz diferença? — grunhi, voltando a encarar o teto.
Ela se levantou bruscamente da cama.
— Você é sempre tão duro comigo! — reclamou.
— Achei que fosse o que o mais gostava em mim — declarei.
— Não se faça de desentendido! — choramingou, andando com seus sapatos
barulhentos em volta da minha cama.
— Melhor você ir, agora. Logo será noite — anunciei.
— Até parece que você está preocupado comigo — ela declarou, voltando a sentar-se na
minha cama. Desta vez, ao lado do meu peito. Levantou-se parcialmente minha camisa e
começou a arranhar, de leve, minha pele. Afastei sua mão com rapidez. — Você só quer ficar
sozinho e perto da vadia louca. Como todos os outros.
Meu maxilar rangeu.
— Você vai comê-la enquanto está drogada, não vai?
Perdi o foco de sua imagem à minha frente por um instante. Avancei em seu pescoço,
minha mão suada sentiu os ossos finos, debaixo de sua pele, e tive vontade de esmagá-los. Eu
estava prestes a perder o controle. Ela sufocou e bateu com os braços em minha direção, tentando
se livrar do meu agarre.
Eu a soltei em um movimento brusco. Ela tossiu, levando a mão ao pescoço.
— Você enlouqueceu, Aaron? — A voz saiu esganiçada.
— Nunca mais repita uma merda dessas para mim — disse apenas.
— Ou o quê? — provocou ela.
— Me esqueço de que você é uma mulher e esmago sua cabeça — afirmei, com raiva.
Ela riu em descrença.
— Parece que você está no lugar certo mesmo. Todos têm razão sobre você. É só mais
um maluco doente. — Saiu, batendo a porta.
Bati com o punho fechado no travesseiro, procurando deixá-lo aceitável, ou apenas para
aliviar a raiva, não fazia diferença.
Não me importava que ela ou qualquer outra pessoa me acusasse de ser um louco,
porém jamais admitiria ser comparado a homens que se forçavam em mulheres... Jamais. Eu
gostava de sexo um pouco mais forte, mais duro, porém jamais forçado.
Depois da conversa desagradável com Shirley, tive certeza de que tomei a decisão certa.
Precisava estar ao lado de Grace todas as noites. Um lampejo surgiu em minha mente: ela disse
algo sobre passar um tempo fora, não disse? Ah, tanto faz...
A noite caiu, sem chuva, apenas o vento balançando os galhos das árvores que cercavam
toda a propriedade.
Joguei os pés para fora da cama e saí do quarto. Poucos passos depois, estava em frente
ao quarto de Grace. Ela dormia, ou tentava, ainda se debatia bastante enquanto amarrada.
Quando eles deixariam a cabeça dela em paz?
Mantive-me parado, próximo ao pequeno recorte de vidro na parte superior da porta,
observando-a. Ela parecia angustiada, seu peito subia e descia rapidamente. Seu choro contido
alcançou-me. Eu me sentia afetado por seu sofrimento.
Eu deveria voltar ao meu quarto, deveria me esquecer de que ela estava sofrendo, fosse
do que fosse, e cuidar apenas para que ninguém invadisse o seu quarto. Deveria... contudo, antes
que a razão se manifestasse, meu corpo tomou a frente.
Abri a porta e entrei silenciosamente. Seus cabelos castanhos grudavam em sua testa
suada. Afastei-os, procurando à nossa volta algo para secar a pele. Não haviam deixado toalha
alguma à vista. Retirei a minha camisa e, com cuidado, sequei no ponto em que brilhava. Ela não
estava com febre, provavelmente era apenas um pesadelo. Quem não os tinha em St. John?
— Rosalie... — ela sussurrou. Senti sua dor ao pronunciar aquele nome. Era alguém
importante para ela. Lembrei-me de Amy.
Minha mão procurou a sua. Sua pele estava gelada. Toquei seus dedos suavemente e
surpreendi-me quando ela segurou firme nos meus. Seus olhos se abriram e brilharam sob a
pouca luz da lua, que adentrava pela janela acima de sua cama. Ela suspirou e voltou a fechar as
pálpebras. Seu peito tranquilizou-se. Passei algumas horas sentado no chão frio, ao lado de sua
cama. Só a deixei depois que ela soltou minha mão.
Não faltava muito para o dia clarear. Estava virando um hábito, de novo, passar as
noites em claro.

Passei pela porta de seu quarto todas as noites seguintes; em algumas, eu entrava, como
um invasor que me tornei, mas em outras, não. Observava se aquela se tratava de uma noite de
sono tranquilo ou agitado. Ousava entrar apenas nas noites difíceis, quando ela segurava minha
mão, como seu fosse sua tábua de salvação em meio a um naufrágio.
Não importava quantas horas de sono eu perdesse, estava sempre por perto.
Capítulo 6
Hospital St. John
1911

— Hoje te levarei a sala de convivência. É um privilégio passar a tarde junto aos outros
internos. Nem todos os pacientes podem, mas você tem se mostrado calma e tem colaborado,
merece sair um pouco deste quarto. Não que tenha sido fácil convencer o Dr. Shawcross, porém
até ele teve que admitir a sua melhora.
A enfermeira ajeitava meu corpo fragilizado na cadeira de rodas. A perna direita ainda
estava imobilizada.
— Desculpe pela camisa de força. Foi a condição do seu médico.
Ela abaixou-se à minha frente e me olhou nos olhos.
— Meu nome é Joanne. — Respirou fundo antes de continuar. — Não sei o quanto você
pode me entender no momento, mas vou pedir mesmo assim: por favor, não morda ninguém, não
se jogue no chão ou comece a gritar e assustar os outros pacientes...
Eu entendo o seu pedido para não gritar. Também não desejava ser acusada de ser uma
mulher histérica, descontrolada, contudo, estranho a preocupação daquela senhora quanto a
morder alguém. O que acham que sou? Um animal selvagem?
— É que isso me traria problemas com o Dr. Shawcross, ele adoraria dizer que foi um
erro diminuir a sua medicação ou expor os outros a você, mas temos que tentar, certo? Eu
acredito na sua recuperação, Grace.
Senti um leve momento de conforto ao ouvir suas últimas palavras. Ela acreditava que
eu ficaria bem, certo? Por um segundo, uma chama de esperança tentou esquentar meu peito,
porém não durou muito. Assim que olhei para baixo e vi meus braços imobilizados, sob a camisa
repleta de amarras, e o restante do meu corpo preso a uma cadeira de rodas, a realidade congelou
qualquer fagulha de calor.
Eu estava confinada em um Sanatório, como uma mulher louca.
A cadeira de rodas foi guiada com cuidado pela enfermeira. A iluminação natural era
pouca, deixando o corredor parcialmente nas sombras. Alcançamos uma sala grande. Rostos
estranhos me encaravam. A imagem das pessoas à minha volta me fez estremecer por dentro.
Alguns pacientes estavam sentados em cadeiras à frente de pequenas mesas quadradas e
outros, em bancos de madeira em volta de mesas retangulares maiores. Sobre a superfície, havia
jogos de tabuleiro abertos. Não compreendi se estavam realmente jogando, olhavam fixo para as
peças, como se estivessem presos há horas naquele mesmo momento.
No espelho preso na parede à minha frente, vi uma mulher que babava na roupa bege,
cheia de amarras. Os cabelos estavam sujos e bagunçados, cobrindo parte de seu rosto. Fixei
meus olhos na imagem e então compreendi. A verdade atingiu-me com força.
Aquela mulher era eu.
Demorei alguns instantes para me reconhecer, mas era eu. Havia emagrecido muito, já
não sabia se ainda aparentava meus vinte e dois anos. O abandono em minha aparência era
assustador.
Senti-me envergonhada pelo meu estado. Tive vontade de levantar-me e sair correndo.
Gritar que aquela imagem não era minha. Haviam trocado meu corpo jovem e saudável por uma
casca fina e suja, que pertencia a outra pessoa. Meus olhos marejaram, tentei segurar o desespero
crescente em meu peito, mas falhei e as lágrimas transbordaram.
Joanne notou pelo reflexo do espelho que eu me reconhecia. E pareceu considerar isto
um bom sinal. Ela deu a volta e abaixou-se novamente, à frente da cadeira de rodas.
— Oh! Querida! — ela lamentou. — Eu sei que parece ser ruim, mas está aqui para se
curar. Você ficará bem — declarou. Sua voz não parecia tão confiante quanto antes.
Imaginei quantas mulheres já deveriam ter morrido esquecidas entre aquelas paredes
encardidas.
Joanne levou-me na cadeira até a parede, à nossa esquerda. Havia janelas grandes e
compridas. Observei a paisagem lá fora. A grama verde parecia fresca, quase pude senti-las sob
meus pés. Que saudade de caminhar descalça sobre a terra, um hábito que havia aprendido em
casa...
— Do outro lado dessa parede, fica o pátio dos fundos do Saint John. — A mulher tirou-
me de meus pensamentos. — Tem árvores enormes... algumas flores bonitas... bancos de
madeiras. Você ainda não pode ir até lá, mas pode ver outras pessoas que já estão melhores e
podem aproveitar o ar livre. Quem sabe logo você não poderá se juntar a elas?
— Sra. Clarke — chamou um dos homens vestidos de branco. — O Dr. Shawcross está
chamando-a em seu escritório.
— Eu venho buscá-la mais tarde — disse.
Novas lágrimas impediam-me de enxergar com clareza, contudo o que via era suficiente
para me colocar à beira de um precipício. O que eu tinha feito para merecer estar presa neste
lugar?
Um homem velho, vestido de camisa e calças beges, como a maioria à minha volta,
cambaleava pelo meio do salão. Ouvi quando seus joelhos se chocaram contra o chão. Ele tentou
se levantar sozinho. Não conseguiu. Levou um dos braços à barriga. Despejou um jato de vômito
à sua frente. O cheiro azedo chegou as minhas narinas.
Um dos homens de branco, sem pressa, caminhou em direção ao velho, que agora
remexia no que antes deveria ter sido sua refeição e espalhava a gosma amarelada por todo seu
corpo com as próprias mãos.
A ânsia fez meu corpo se dobrar à frente, senti que estava prestes a vomitar também.
— Ajuda, se você não ficar encarando a cena. — Alguém girou a cadeira de rodas para
o lado contrário, livrando-me da visão asquerosa.
Levantei os olhos e enxerguei um homem desconhecido à minha frente. Ele parecia ser
diferente dos outros, diferente dos enfermeiros e dos pacientes. Mas, ainda assim, parecia exalar
perigo. O mesmo homem buscou uma cadeira próxima e a colocou em minha frente, sentando-se
nela em seguida.
— Lição número um: evite as cenas desagradáveis sempre que puder. — Observou
atentamente meu rosto, descendo os olhos até meus braços. Tentei manter-me inexpressiva. —
Eu sei, você está de mãos atadas no momento. — Ele quase riu da própria piada. Sozinho.
Parecia estar... nervoso? — Desculpe — disse, não parecendo estar, de fato, arrependido. —
Aqui a gente tem que aprender a rir da própria desgraça; e essa é lição número dois.
Eu observava seus lábios se moverem enquanto ele falava; eram bem desenhados,
arqueados na parte superior. Afastei-me da imagem de sua boca para observar seu rosto. O
maxilar era marcado. Parecia rígido, mesmo quando falava tranquilamente, como agora.
Era um homem mais velho e muito bonito. Um sinal de alerta gritava em minha mente,
mas eu não conseguia desviar os olhos dele. Distinto dos pacientes à minha volta, ele parecia ser
saudável, ao menos fisicamente, ainda que houvesse algo em seus olhos que permaneciam
distantes, quase inalcançáveis.
Suas íris eram de um azul intenso... Eu já as vi, não?
A não ser... Não... foi apenas mais um pesadelo...
Algumas memórias voltaram com força em minha mente, mesmo que eu tentasse
rejeitá-las: era noite; estava acordada? Estava dormindo? Não sabia ao certo. Recortes de uma
noite obscura, na qual havia um homem sem rosto que se forçava sobre mim. Depois houve uma
briga. Não houve? E... sangue.
Ele esteve lá. Parte de mim sentia que sim, mas quem era ele?
Meu corpo estremeceu. Eu deveria estar tão perto deste homem? Ele estava lá... naquela
noite confusa...
Ele continuava falando, mas minha mente estava presa aos pensamentos desordenados.
Ele retirou a boina e passou a mão nos cabelos escuros, raspados do lado. Por um momento a sua
imagem me fez perder o fôlego.
— Por último, mas não menos importante: não enfrente Dr. Shawcross. Vi que ele é seu
médico. Pode ser um inimigo terrível. A Joanne é legal, e só ela. Ela não manda muito aqui, mas
ainda faz o que pode. Ah! — exclamou, fazendo uma pequena pausa. — Mantenha suas emoções
sob controle ou de te darão muitos remédios, a ponto de você não se lembrar do seu maldito
nome.
— Quem é... — Esforcei-me para terminar a frase. Era difícil acompanhar o que ele
dizia.
— Ah! Desculpe — respondeu ele, quase sem jeito. — Sou Aaron... e você é a Grace.
Certo?
Encarei seu rosto mais uma vez. Não conseguia desviar. Acho que isso deve ser culpa
da medicação que estão me dando. Estranhei quando, de repente, senti a necessidade de estar
mais bem vestida, ou ao menos de cabelos limpos e arrumados.
Que coisa mais estranha eu estava experimentando ao lado dele.
— Eu sei de muita coisa que acontece aqui. Faz um tempinho que sou residente
permanente, vamos dizer assim...
Continuei encarando o belo homem. Ainda queria fazer perguntas, queria pedir ajuda.
— Engano... engano... eu... — tentei falar. Queria dizer que meu lugar não era ali. Que
eu precisava voltar para casa, precisava cuidar de Rosalie. Necessitava saber de Lucinda. As
palavras fugiam de mim, por mais que eu me concentrasse.
— É... eu sei o que você quer dizer, mas, acredite: eles não cometem esse tipo de
engano. Você, com certeza, deveria estar aqui.
Os meus olhos queimaram em fúria ao compreender o que ele dissera.
— Não, não estou dizendo que você é louca. Que fez o que estão dizendo...
Aaron olhou para frente e viu que a enfermeira, que me trouxe até a sala de convivência,
aproximava-se.
— Joanne já conseguiu com que saísse do quarto, logo conseguirá com que retirem essa
camisa de força. Ela sempre consegue. Quando fizerem isso, deixe de tomar o remédio verde, o
que é dado toda noite. Fará sua cabeça melhorar — disse baixinho, para que apenas eu escutasse.
Um arrepio percorreu meu corpo. Eu só não sabia se era um sinal bom ou ruim.
Capítulo 7
Hospital St. John
1911

Eu a vi longe daquela cama, na qual ela permaneceu amarrada por tanto tempo, pela
primeira vez. Senti certo alívio e orgulho ao ver o pequeno progresso. Ainda não sabia
exatamente o que houve para que ela acabasse em St. John. Era a primeira vez que uma moça tão
jovem era internada neste sanatório, desde que eu havia chegado. Ainda não sabia no que
acreditar, ou em quem. Deixaria que ela me contasse o que aconteceu, quando ela assim desejar.
Esperava que tivéssemos a oportunidade de nos conhecer. Ela me intrigava, como um mistério
que eu desejava muito desvendar.
De certa forma, depois de passar tantas noites ao lado de sua cama, segurando em seus
dedos finos, eu sentia que conhecia Grace, mas eu não conseguia evitar o desejo de saber mais.
Ela estava com a aparência ainda mais frágil. Os dias confinada aquela cama estavam
cobrando seu preço. Seu rosto juvenil estava cansado, mas Grace continuava bela, como
nenhuma outra mulher que eu já havia conhecido.
Detive-me para não rasgar aquela camisa de forças e deixá-la livre, pelo menos em parte
livre. Contudo, controlei-me, pois, sabia que não poderia chamar tal atenção para mim.
Em nenhum momento antes, havia pensado que conversar com ela, pela primeira vez,
me deixaria nervoso. Parte de mim, sente verdadeiramente que já a conhece, mesmo sem saber
absolutamente nada a respeito de sua vida, antes de Saint John. Mas sabia que, para ela, não é
assim. Eu vi a dúvida em seus olhos.
Aos poucos, ela poderia voltar a andar, falar e se cuidar sozinha. Logo ela não precisaria
de minhas vigílias. Eu deveria estar experimentando uma imensa sensação de alívio por isso. Há
poucos dias, eu não desejava me envolver com nada relacionado a Grace. Então por que não me
sentia liberto e parecia que estava prestes a perder algo importante?
Joanne levou Grace novamente. Lamentei em pensamento as poucas palavras trocadas.
Balancei a cabeça, tentando afastar os pensamentos, que insistiam em se concentrar na
jovem de cabelos castanhos e lindos olhos verdes.
Para minha sorte, teria um dia de trabalho intenso pela frente e isso me manteria
ocupado. Ao menos, era o que eu esperava.
A noite chegou, levando a escuridão a cada canto de St. John. O vento assobiava entre
as frestas. Minha rotina de vigilância, passando pelo quarto de Grace, provavelmente ainda se
manteria por alguns dias. Então desci da cama e andei até a porta. Lembrei-me de que ainda
deveria haver algum cigarro na gaveta da cômoda. Busquei-o com pressa.
Shirley não deu mais notícias, desde o dia daquela última discussão. Lembrei-me de
quase tê-la enforcado. Não me sentia orgulhoso disso, mas também não me arrependia. Até hoje,
ela não aprendeu a hora de calar a porra da boca.
Parei em frente ao vidro na porta do quarto de Grace. Ela parecia estar tendo uma noite
de sono tranquila, pelo menos por enquanto.
Fui envolvido pelo breu da noite, após sair do corredor e pisar nos fundos da
propriedade do sanatório. A neblina se espalhou, cobrindo a terra e parte dos troncos das árvores.
A fumaça quente que saía da minha boca e nariz se dissolvia nas sombras.
Amy amava noites assim. Exerciam um fascínio sobre ela. Um sorriso ameaçava
surpreender meus lábios quando me lembrei de que ela dizia que “nas noites mais escuras,
apenas as criaturas corajosas ousavam sair e apreciar o silêncio”. Ela era uma dessas criaturas.
Amy me obrigava a me sentar a seu lado no banco de um parque, em plena escuridão,
para ouvir as corujas e observar a dança da neblina. Ela via algo mágico onde ninguém mais via
e foi isso que a destruiu.
O sentimento de culpa esmagava meu peito.
Ela não merecia o fim que teve. Ela não merecia aquele destino. Eu nunca iria me
esquecer!
Tentei enxergar, ao longe, o lugar onde enterrei o cadáver de Martin. Não via nenhum
sinal de mudança no local e nas proximidades.
Já deveriam tê-lo esquecido.
Capítulo 8
Hospital St. John
1911

Passaram-se mais algumas noites antes que meu corpo fosse finalmente libertado e não
houvessem mais amarras na cama.
Como em todas as noites anteriores, as medicações me foram dadas. Eram vários
comprimidos, lembrava-me vagamente do que aquele homem de olhos azuis, Aaron, havia dito
sobre evitar um comprimido verde.
Assim que a porta se fechou, estiquei os braços e, com algum esforço, consegui sentar-
me na cama. Havia pouca iluminação natural entrando pela janela, acima da cabeceira da cama.
Cuspi os comprimidos na mão, escolhi três dos quatro que eram mais escuros e torci para serem
os certos, já que eu não conseguia distingui-los com certeza.
Olhei à minha volta, buscando um lugar para escondê-los. O colchão parecia ser o lugar
mais seguro. Busquei algum furo na lateral do tecido, que cobria a espuma que minhas costas
precisaram acostumar-se noite após noite, achei uma pequena parte descosturada, enfiei os
remédios no furo e torci para que ninguém os encontrasse ali.
Descansei a cabeça no travesseiro e tive dificuldade para dormir, sentia como se
estivesse sonhando acordada. Recortes de memórias pareciam brincar em minha mente. Era
difícil dizer se tudo aquilo realmente havia acontecido ou se não passavam de alucinações.
A dúvida surgiu rapidamente: será que havia sido uma boa ideia me livrar do remédio?
As sombras de algumas árvores alcançavam a parede interna de meu quarto, formando
figuras que eu não queria enxergar: eram finas e tortas, lembrando-me de uma mão repugnante,
que se aproximava mais a cada vez que o vento soprava lá fora e os galhos se mexiam.
Apertei as pálpebras, esperando que o sono, enfim, chegasse.
Respirei fundo várias vezes. Recusava-me a voltar a abrir os olhos.
Não sabia quantas horas havia conseguido dormir em minha primeira noite sem os tais
remédios. Sabia apenas que não tinha sido suficiente quando olhei para a porta, que estava sendo
aberta, dando passagem a Joanne.
— Que tal um novo passeio até a sala de convivência? — indagou a enfermeira. — Te
fará bem — afirmou.
Quase a respondi. A frase formou-se em minha mente e minha língua finalmente
mostrou algum sinal de vida. Era a primeira amostra de melhora desde que eu havia acordado
neste lugar.
Saímos do quarto e fomos ao salão. Vi outra vez meu reflexo no espelho, ainda parecia
horrível que aquela imagem fosse realmente minha, mas pelo menos, desta vez, eu não estava
babando.
Assim que fui deixada sozinha, ao lado da janela, Aaron se aproximou.
— Você está bem? — perguntou.
— Não dormi... — respondi, ainda com dificuldade.
— Vai melhorar. Também não dormi na primeira noite que cuspi aquela merda. —
Aaron olhou em volta. Ninguém prestava atenção em nós. — Quanto daquilo ainda estavam te
dando?
— Três.
Aaron me encarou, assustado.
— Shawcross realmente queria te manter fora de circulação. Continue fingindo que está
drogada, até que ele decida cortar os comprimidos por ele mesmo. Não há vantagem alguma em
descobrirem que você já voltou a pensar e falar por si mesma.
— Como farei isso? — consegui pronunciar. Minha garganta arranhava.
— Não fale com ninguém quando estiverem te observando. Babe um pouco na roupa de
vez em quando. — Não consegui evitar uma careta. Aaron deu de ombros. — É mais seguro se
pensarem que você não oferece risco algum.
— A quem? Eu nunca machuquei ninguém.
— A eles.
— Isso é um manicômio, não é?
— Isso é o inferno — respondeu Aaron.
— Por que está me ajudando?
— Você se lembra da sua primeira noite aqui?
Tentei puxar algo em minha memória. Quando havia sido a primeira noite? Estava tudo
misturado. Eu não conseguia distinguir...
— Não me lembro — respondi, sentindo um peso sobre meu peito. Uma sensação de
sufocamento. De falta de ar.
— Está tudo bem — ele disse, chamando minha atenção. — Esqueça essa pergunta.
Os jogos de tabuleiros foram recolhidos e, no seu lugar, pratos com mingau de aveia
começaram a ser distribuídos. Aaron se levantou e saiu sem dizer nada. O salão pareceu ficar
ainda maior e eu, ainda mais sozinha.
Encarei minhas mãos sobre o colo. Era bom estar sem aquela camisa assustadora.
Ouvi um baque. Um prato foi jogado na mesa, e me assustei. Ele voltou. Respirei
aliviada, sem nem ao menos saber o porquê. A sua presença ora me assustava, ora me trazia uma
pequena sensação de segurança. Não fazia sentido.
Aaron puxou a cadeira, que ocupava instantes antes, e a trouxe para mais perto da mesa.
Senti algo bom, pela primeira vez em muito tempo. Ele começou a se alimentar.
— Agora que tem suas mãos livres, pode comer sozinha, Sra. Green — disse um dos
cuidadores ao quase jogar o prato de mingau à minha frente.
— Ela ainda está drogada. Não vai nem conseguir segurar a colher — retrucou Aaron.
— Então ela ficará com fome. Olhe os que estão em volta, presos em camisas de forças,
estes são os que precisam de nós. Não é o caso dela — desdenhou o homem vestido de branco.
Aaron praguejou algo inaudível.
Era difícil coordenar os movimentos. Não sabia se a falta de força era por meu estado
fraco de saúde, pelo tempo que havia ficado amarrada àquela cama, ou se tinha a ver com os
remédios, que ainda estavam em meu corpo.
A primeira colherada caiu na roupa bege que eu trajava. Um tipo de camisola, que fazia
com que eu me sentisse desnuda em frente a estranhos, mas aqui ninguém parecia se importar.
Não importava a roupa que vestíamos ou mesmo o que falávamos. Já havia ouvido mais
palavrões, entre meus poucos períodos de lucidez neste sanatório, do que em toda minha vida
anterior.
Na verdade, não importava absolutamente nada.
— Eu te ajudo com isso — disse Aaron, surpreendendo-me ao pegar a colher de mingau
do meu prato e levar até minha boca. — Eu sei, o gosto é horrível. Tem mais água do que leite e
nenhum outro ingrediente, para nos livrar do gosto sem graça da aveia. Ainda assim, coma o
quanto puder. Vai te ajudar a se recuperar.
Encaro seus olhos. As íris azuis e frias. Lembravam-me de manhãs de inverno, quando
eu acordava e abria a cortina para assistir à neve cair fina contra o vidro das janelas.
Aaron me encarou também; em outro lugar, esse comportamento não seria aceitável. Eu
teria que ter desviado os meus olhos dos seus há tempos, fingido timidez e recato, mas não ali.
Eu não precisava me prender a esses modos. Já era considerada uma mulher insana. O que mais
poderiam condenar em mim?
— Então você está ajudando-a. — Ambos viramos na direção de Joanne, que passava a
nosso lado. — Ainda não conseguimos alguém para o lugar de Martin — ela disse, parando por
um instante. — Ele abandonou o emprego e nem mesmo a família tem notícias dele. — Joanne
nos observava atentamente.
— Ela ainda não consegue comer sozinha — justificou Aaron, com naturalidade.
— Certo... — ela respondeu, antes de retomar seu caminho e nos deixar.
— É um problema? Me ajudar? — perguntei.
— Eu não sou o interno favorito aqui dentro. Não importa o quanto eu trabalhe de graça
para eles e faça a linha “comportado”.
— Por quê? — Eu estava curiosa.
— Isso ainda dói? — perguntou, apontando para a minha perna imobilizada. Ele
pareceu ficar desconfortável, de repente.
— Um pouco — respondi, sobre a dor.
— Já faz mais de dois meses. Agora, devem retirar logo...
— O q... o que você disse? — Senti um nó se formar em minha garganta.
— Que logo você deverá voltar a andar. Não é ótimo?
A minha visão se tornou nublada.
— Dois meses? Estou aqui? — Minhas mãos começaram a tremer.
— Você não sabia? — questionou, preocupando-se.
O nó em minha garganta aumentou.
Eu estava há mais de dois meses longe de casa? Longe de Rosalie. Como eu pudera
deixar isso acontecer?
Comecei a me agitar. Coloquei a perna livre para fora da cadeira de rodas e, com força,
impulsionei os braços, tentando levantar meu corpo a ponto de sair correndo daquele lugar.
Aaron segurou meu braço.
— Controle-se — disse baixo, próximo ao meu ouvido, mas em tom de ordem.
Os meus olhos se voltaram, como chamas, em sua direção. Ninguém nunca mais
mandaria em mim.
Ele percebeu minha irritação e afrouxou sua mão em meu braço.
— Lamento, mas você não pode simplesmente se levantar e sair andando, mesmo que
seu corpo aguentasse. Não é assim... — Aaron argumentou. — Se não se acalmar e voltar a
parecer apenas mais uma paciente drogada, vão te apagar por dias, semanas, ou até pior.
Eu deixei meu corpo ceder e soltei meus braços sobre a cadeira. As minhas mãos ainda
tremiam. Aaron percebeu e as colocou delicadamente em seu colo.
— O que aconteceu com você, Grace?
As imagens da última briga com Nolan invadiram minha mente. Não havia nada depois
do acidente. Nada. Nolan havia me colocado neste lugar? Por quê? Por causa de um acidente?
Não poderia ser... Poderia?
Rosalie... minha pequenina. Estaria segura, onde quer que estivesse? Estaria ainda em
Red Rose? Oh, Deus! Não, que ela não estivesse com aquela... Isso, eu jamais aceitaria! Jamais!
O meu coração batia descontrolado em meu peito. O medo amarrava meus sentidos e o
desespero tentava se libertar. Eu queria gritar, chorar e correr para Rosalie. As lágrimas
transbordaram, não pude evitar.
— Terei que te deixar sozinha agora — disse Aaron em meu ouvido, antes de se
levantar. — Se te virem perturbada assim ao meu lado, vão me culpar e não poderei me
aproximar mais. Não quero que isso aconteça.
Quando Joanne voltou, para me levar de volta ao quarto, já havia controlado meu corpo,
mesmo que, por dentro, tudo estivesse uma bagunça.
— Amanhã, vão avaliar sua perna direita. Se estiver boa, logo poderá andar de novo.
Não respondi, mesmo que agora já conseguisse.
“Mais de dois meses”, “mais de dois meses” era tudo que ressoava em minha mente.
Precisava pensar em como sair dali o mais breve possível, não poderia viver meus dias
presa, enquanto Rosalie precisava de mim.
Sentia isso. Rosalie precisava mim.
Capítulo 9
Londres
3 anos antes

Destranquei a porta da minha casa e entrei apressadamente, buscando me livrar do frio


da madrugada. Deixei o casaco pesado no cabideiro e a mala de viagem ao lado.
A escuridão ainda tomava conta do interior da residência que, há muitos anos, pertencia
à minha família, a qual, neste momento, resumia-se apenas a mim e minha irmã; éramos a
família um do outro. Cuidava dela com a minha vida, desde que meu pai a trouxera para casa,
com apenas um ano de vida. Amy era filha de uma mulher que eu nunca havia conhecido, mas
isso não fazia dela menos minha irmã.
De fato, era para eu estar em Birmingham ainda, mas consegui fechar um acordo com o
novo parceiro de negócios antes do previsto. Um investidor chamado Michael entraria em nosso
esquema e nosso clube de lutas clandestino veria alguns rostos novos. O que seria ótimo, já que o
nosso público estava ficando cansado de ver os mesmos lutadores.
A loja de sapatos que eu administrava, desde que meu pai começara a beber, servia de
fachada, pois não era do comércio que o dinheiro realmente entrava nesta casa.
Vicent, meu único amigo desde os tempos de universidade, cuidava da parte recreativa
de nossos eventos. Eu organizava os dias de lutas e quem subiria ao ringue, além de cuidar da
administração financeira.
No último ano de meus estudos universitários, estudos pelos quais me esforcei para
conseguir e usufruir, Vicent me procurou para propor a ideia de um clube de lutas clandestino no
subúrbio de Londres, depois de presenciar uma briga, na qual amassei a cara do outro sujeito em
um pub próximo de onde estudávamos.
Eu nem sequer ponderei sobre a ideia de Vicent. Pareceu-me um negócio promissor. Eu
queria ter um diploma, por isso estava na universidade, mas a ideia de ganhar dinheiro rápido
também me atraía.
Fui um dos primeiros lutadores, não havia muitos candidatos no início. Peguei gosto
pela luta, era uma maneira de extravasar. Não dependia mais somente das chamas do fogo que
eu, até então, gostava de observar.
Respirei fundo.
Nada como estar em casa depois de uma viagem de trabalho, mal acreditei quando
consegui passagem para o último trem da noite com destino a Londres.
Antes de alcançar o corrimão das escadas, que levavam ao piso superior, dei-me conta
de que a casa não estava silenciosa como deveria. A esta hora, todos deveriam estar dormindo,
no entanto escutei um som abafado vindo do quarto de Amy e me preocupei.
Subi as escadas depressa e abri a primeira porta, à direta do corredor.
— Amy? — perguntei, preocupado. — O que houve? — Aproximei-me. Amy estava
sentada no chão do quarto escuro. Pouca iluminação entrava pela janela do quarto, apesar disso,
conseguia ver seu rosto pálido banhado por lágrimas.
Abaixei-me ficando na altura de seus olhos. Ela desviou o olhar.
Busquei uma das cobertas reviradas sobre sua cama e coloquei em volta de seu corpo.
— Quer me contar o que aconteceu? — insisti, procurando disfarçar a aflição que
crescia em meu peito.
Ela chorou ainda mais alto. Puxei-a para perto, deixando que desabasse. Depositei um
beijo leve no topo de sua cabeça.
— Está tudo bem agora — disse, tentando acalmá-la. — Está tudo bem.
Amy adormeceu depois de algum tempo, chorando, sem me dizer o que houvera.
Esperaria até que amanhecesse e ela estivesse disposta a conversar.
Coloquei-a em sua cama e a cobri com as cobertas, que antes estavam espalhadas.
Fechei a porta de seu quarto e fui em direção ao meu.
Amy sempre me mantivera em estado de alerta. Desde criança, ela era uma menina
retraída. Sua saúde era frágil e temia que nosso pai tivesse influenciado profundamente em seu
comportamento.
Eu fiz o que pude para que ela não sofresse nas mãos daquele homem, mas temia não ter
sido o bastante.
O médico da família havia receitado alguns remédios para os nervos de minha irmã,
contudo não sabia se estavam de fato ajudando.
Quando o dia amanheceu, percebi que não tinha fechado meus olhos por uma hora
inteira sequer.
Meu corpo cansado reclamou quando joguei os pés para fora da cama.
Caminhei até o quarto de Amy e a encontrei dormindo. Fiquei mais tranquilo ao ver que
ela descansava.
Desci as escadas e andei rumo à cozinha. Um café quente ajudaria a aquecer o corpo,
antes de sair para o trabalho. Há dias, eu não passava pela loja, precisava dar algum sinal de vida
ao pobre Louis, o rapaz que cuidava da loja na minha ausência, ou seja, sempre. Ele é um dos
poucos que sabe sobre o meu negócio paralelo e não perde um evento.
— Bom dia — cumprimentei Mary, nossa governanta.
— Bom dia, senhor — respondeu ela.
— Mary — iniciei —, aconteceu algo com Amy enquanto estive fora?
Vi quando as mãos da mulher tremeram levemente e ela derramou um pouco de água no
fogão.
Algo estava errado.
— Não que eu saiba, senhor — respondeu ela, de costas para mim.
— Não houve nada de anormal? — tentei outra vez. Ela se manteve-se quieta por um
momento e, enfim, respondeu firme:
— Não.
— Certo — declarei. — Se qualquer coisa perturbar minha irmã, preciso saber, Mary.
Ela não tem a saúde forte, você sabe. Ontem, ela estava muito aborrecida. Temo que os remédios
não estejam sendo suficientes. Terei que chamar o médico novamente.
O café ficou pronto e Mary serviu-me uma xícara. A cada gole, minha mente se
perguntava o que poderia ter acontecido com Amy durante minha ausência.
Talvez fosse apenas minha preocupação excessiva. Amy é uma moça que tem seus
períodos de fragilidade e tristeza, talvez fosse apenas um momento ruim, como outros que ela já
teve.
Busquei meu casaco próximo à porta de entrada. Era melhor eu ir trabalhar; mais tarde,
marcaria uma nova consulta com o médico de Amy, para ver a possibilidade de um novo ajuste
em sua medicação.

Quando cheguei à loja, fui recebido por Louis, que aguardava ansioso por novidades. O
rapaz franzino era o melhor assistente que eu já havia encontrado e estava sempre curioso sobre
o mundo clandestino das lutas.
— Eu disse que daria certo — comemorou ele.
— Sim, logo teremos lutas inéditas!
— Temos que comemorar! — declarou ele. — E chamar o Vicent.
— Não hoje, preciso levar o médico até em casa para ver Amy que não está bem.
— Entendo. Espero que ela se recupere logo. — Agradeci. — E quando será o próximo
evento?
— Em uma semana. Duas lutas. Os vencedores se enfrentarão no próximo evento.
— Não perderei por nada. Você irá lutar? — perguntou curioso.
— O que acha?
— Que vai levar umas porradas dos caras de Londres.
— Nunca perdi antes. Não começarei agora — desdenhei.
— Sempre tem uma primeira vez. — Louis riu.

Antes do cair da noite, trouxe o médico até Amy, que continua prostada em sua cama. O
médico a examinou com cuidado.
— Como sente-se ultimamente, Amy? — perguntou o senhor, que há muito tempo
conhecia todos nesta casa.
Amy não disse uma palavra. Virou-se na cama, encarando a parede a seu lado. Uma
lágrima escapou de seus olhos. O médico suspirou, derrotado. Ele a conhecia bem e sabia que ela
não diria palavra alguma.
Ele se levantou da beirada da cama e juntou suas coisas na maleta de couro. Sinalizou
para que eu o acompanhasse, passando pela porta.
Da beirada de sua cama, observei Amy fechada em seu mundo, no qual ninguém
poderia alcançá-la, nem mesmo eu.
Senti-me derrotado. Achei que minha irmã estivesse melhorando.
Fechei a porta do quarto e desci as escadas. O médico me aguardava na sala.
— Não entendo por que Amy está tento essa recaída agora... — disse o médico. — De
qualquer forma, devemos tentar algo.
O Dr. Anderson abriu novamente a maleta e retirou de seu interior um frasco de
comprimidos, entregando-os a mim, em seguida.
— Estes são apenas vitaminas. Ela deve tomar uma vez por dia. Por ora, não vou
aumentar a dosagem do calmante, vamos ver como ela reage nos próximos dias. Não queria que
ela ainda estivesse dependendo daqueles comprimidos verdes, mas sabemos que ela não dorme
sem eles. — O médico suspirou. — Além de tomar os remédios, insista para que ela passe algum
tempo se expondo ao sol da manhã, no pátio. Está muito pálida. E, se houver piora do quadro,
me avise imediatamente.
Despedi-me do médico, depois de acompanhá-lo até a porta, e então me direcionei à
cozinha. Preparei uma xícara de chá, separei algumas torradas com geleia e as coloquei na
bandeja, deixando o comprido do novo remédio ao lado.
Subi as escadas e anunciei minha chegada, mas Amy não respondeu. Usei o corpo para
abrir a porta do quarto dela. Coloquei a bandeja sobre a mesinha ao lado de sua cama.
— O doutor Anderson pediu que tomasse este remédio. Vai ajudá-la a sentir-se melhor.
Amy manteve-se virada para a parede e ainda em silêncio.
Sentei-me ao seu lado na cama, afundando o colchão com meu peso.
— Quer conversar comigo? — Aguardei por algum tempo, e ela não se mexeu. —
Amanhã cedo, Mary subirá para levá-la ao pátio. Precisa tomar um pouco de sol. — Eu estava
falando com as paredes. — Recomendação médica — finalizei.
*
Uma semana passou-se e Amy não apresentou nenhuma melhora, mas também não
apresentou algum episódio de piora. Já havíamos passado por isso antes. Amy tinha períodos de
uma tristeza que não poderia ser medida. Doía-me vê-la sofrer daquela maneira.
Certa vez, o Dr. Anderson chegou a sugerir que eu internasse Amy em um sanatório,
para um tratamento mais longo. Quase agredi o médico. Nunca mais ele ousou falar tamanho
absurdo.

Era a noite do primeiro evento que contaríamos com a participação dos lutadores de
Londres trazidos por Michael.
Despedi-me de Amy em casa e disse que não me esperasse acordada, pois não sabia a
que horas eu voltaria. Ela continuava sem falar com ninguém.
Fechei a porta devagar e a deixei. Desci as escadas e peguei o casaco preto. Vesti-me
para proteger do frio da noite. Coloquei a boina e encontrei a escuridão.
Selei o cavalo e o guiei pelas rédeas, até a frente da casa. Passamos pelo portão. Não
havia movimento algum na rua. Coloquei o pé no estribo e o montei, incitando-o a andar. Ele
começou a mover-se. Com a perna, apertei o corpo do animal, ele entendeu o recado e começou
a correr.
Cheguei rapidamente ao subúrbio. Em uma rua sem saída, ficava o galpão onde nosso
negócio se escondia. Por fora, parecia uma velha fábrica abandonada, mas, por dentro, era palco
do evento de lutas clandestinas mais procurado de toda região.
Deixei o cavalo amarrado nos fundos da propriedade, era uma das regras, para não
chamar atenção. Entrei usando a porta de trás.
Assim que atravessei o limiar da porta, o cheiro de cigarros e bebidas me atingiu. A
festa já havia começado. Vicent conversava animadamente com alguns homens que assistiam às
lutas regularmente. Ele virou-se para mim e o copo de bebida parou no meio do caminho, antes
de encontrar sua boca. Por um momento, pareceu-me ficar assustado, mas logo voltou a sorrir,
distraindo-se com a conversa que acontecia à sua volta.
Vicent sempre fora melhor com os clientes do que eu. Era fácil para ele conversar com
todos e fazer novos amigos. Eu não podia dizer o mesmo sobre mim.
Andei até o balcão e pedi uma bebida a Louis. Ele tirava um troco extra trabalhando nos
eventos, servindo aos clientes.
Desde o começo de nossa sociedade, eu e Vicent ganhávamos uma boa grana com as
apostas nas lutas, além do dinheiro com a bebida e drogas, que eram vendidas durante toda noite.
Eu achava que o dinheiro das apostas deveria bastar, mas Vicent não concordava. Eu não sabia
se ele não concordava pelo dinheiro que ganhávamos ou porque ele consumia tanto quanto
nossos clientes.
Michael se aproximou.
— A casa está cheia — disse, soltando fumaça da boca. — Aceita um? — Ofereceu-me
um cigarro.
— Não fumo — respondi. Ele encarou-me, como se eu tivesse dito que era um
assassino. Ignorei.
— Então a última luta é a sua — disse. — Duvido que ganhe do meu lutador principal.
— Aposte nisso, então — afirmei, sem dar importância para a sua provocação.
— Apostei — ele respondeu.
— Aproveite o cigarro e as bebidas. — Apontei para o armário atrás de Louis,
abarrotado de garrafas. — Precisará dessa distração quando perder seu dinheiro.
Deixei Michael sozinho. Eu não me deixaria intimidar. Ninguém sabia o quanto eu
precisava dessas lutas. Não era apenas pelo dinheiro, não era apenas pela diversão. Era pela
libertação que eu havia encontrado em cada soco. Cada pessoa lida com seus monstros à sua
maneira. A minha era socando alguém, até o outro cair, ou incendiando alguma merda. Ou
alguém. O que, às vezes, significava a mesma coisa.
Não demorou para que Vicent anunciasse a primeira luta da noite.
Capítulo 10
Londres
3 anos antes

Dentro do ringue, Vicent acabava de anunciar a primeira luta. O público estava


entusiasmado. Foi apresentado o lutador de Birmingham e o nosso. As apostas já haviam sido
encerradas e todos aguardavam ansiosos o momento de disputa entre os dois homens.
Assim que o sino soou, autorizando o início do combate, o novato de Birmingham partiu
em direção ao nosso lutador, mas o nosso garoto, James, era ligeiro, desviou do soco com
facilidade e andou até o lado contrário do ringue. Esperou a segunda tentativa de golpe; ela veio,
e falhou outra vez. O lutador de Birmingham parecia ser mais experiente, porém o nosso era
mais rápido. Na terceira tentativa, James não apenas desviou do golpe como acertou o adversário
com um contragolpe, que não era esperado.
Nós sabíamos que James não deveria ser menosprezado pelo seu tamanho ou pela sua
idade; o seu adversário, não. James já havia ganhado de quase todos nossos lutadores
recorrentes, pelo menos, uma vez. O oponente tonteou e James aproveitou, indo para cima dele e
desferindo socos certeiros, até o homem cair ao chão.
Era a regra, lutar até cair, apagado. Havia muito sangue no corpo de James, mas, para
sua sorte, não era dele.
Vicent voltou ao ringue para declarar James o vencedor da disputa. Parte do público
comemorou, com certeza aqueles que ganharam suas apostas. Haveria um intervalo de trinta
minutos entre as lutas, para os homens beberem, fumarem e fazerem novas apostas.
Ainda não tinha visto o meu adversário da noite. Sabia que era um homem da minha
idade, de físico menor e que seu irmão gêmeo, também lutador, seria o próximo a subir ao
ringue. Ambos eram de algum lugar da Ásia e estavam há pouco tempo na Inglaterra, ao menos
era isso que Michael havia falado.
Os copos tilintavam entre a multidão, o barulho de conversas e risadas era alto. Eu
observava os rostos, como se não estivesse no mesmo mundo do que eles. O relógio marcou
23:00, e era a vez de Leonard subir ao ringue.
Vi-o em uma ponta do ringue e, na outra, o irmão gêmeo do meu adversário ser
anunciado: Kiet. Era um homem de estatura mediana, não aparentava ser um risco ao lado do
inglês alto e corpulento. Eu não poderia estar mais errado.
Vicent apresentou os dois lutadores. Leonard parecia estar despreocupado, como a
maioria que espera o embate. Aparentava ser uma luta fácil. Leonard andou até metade do
ringue, Kiet fez o mesmo. Leonard provocou o homem, não entendi o que disse, mas o olhar
debochado não passou despercebido.
O sino soou, liberando os competidores. Kiet deu um salto e seu joelho direito voou,
acertando em cheio a cara de Leonard. O corpo do inglês desabou ao chão, fazendo o baque do
impacto ressoar pelo galpão. Era inacreditável. Leonard havia apagado com um único golpe.
Houve um momento de silêncio imediato. Olhos arregalados, que corriam do lutador
asiático ao inglês derrubado no chão. O que havia acontecido com a luta? Que golpe era aquele?
Porra!, sussurrei baixo. Talvez eu tivesse problemas com o irmão dele, ou talvez,
aquela luta fosse exatamente do que eu precisava.
Depois do susto, houve uma explosão de gritos! Ninguém acreditava no que haviam
acabado de assistir.
— Ainda dá tempo de desistir. — Ouvi Michael dizer com satisfação ao meu lado.
— Se você imaginasse como estou ansioso por subir naquele ringue. — Ri, baixo.
Michael me olhou, como se tivessem nascido chifres em minha testa.
A festa aumentou, todos comentavam sobre o golpe do asiático voador. Fumaça saía dos
cigarros, abafando ainda mais o lugar fechado. Trinta minutos depois, Vicent chamava ao ringue
meu nome e de Khalan, meu adversário da noite. Atravessei a multidão, sob fortes aplausos,
assobios e tapas nos ombros.
Afastei as cordas e passei meu corpo entre elas. Aguardei no meu canto, para que
Khalan se apresentasse. Respirei fundo, balancei os braços e me mantive atento.
Michael acompanhou Khalan, que era exatamente como o irmão, até as cordas do
ringue. Ele estava confiante de que eu perderia. Não deixaria este pensamento se infiltrar em
minha mente. Eu já tinha captado a mensagem de alerta, era o bastante.
O sino soou liberando o início do embate. Havia tensão no ar, diferentemente das lutas
anteriores, o silêncio imperava no galpão. Nunca havia presenciado tamanha expectativa.
Aproximamo-nos do meio do ringue. O olhar de Khalan mantinha-se firme em meu
rosto, ele iria tentar o mesmo golpe do irmão? Fiquei atento a cada mínimo movimento, ele
saltou e ergueu a perna esquerda, tentando alcançar meu rosto, como irmão havia feito com
Leonard, mas Khalan usava a perna contrária. Mantendo a guarda alta, girei o tronco para
esquerda, escapando e indo na direção contrária do golpe desferido.
Uma onda de energia fluía pelo meu corpo. Eu sentia o peso dos olhares sobre meus
movimentos.
Khalan se recuperou depressa do golpe fracassado e estava outra vez à minha frente,
erguendo aquele maldito joelho em minha direção. Ergui minha perna, tentando bloquear o
ataque. Fui bem-sucedido, mas o golpe queimou no local onde fui atingido.
Tentei acertá-lo com um gancho de direita, mas ele desviou e ainda me acertou um
contragolpe. Um soco em cheio no meio do meu nariz, a dor foi intensa. Era o que eu precisava
para me lembrar do porquê lutava. A ira, que eu costumava controlar, emergiu das profundezas
diretamente para meus punhos.
Errei o primeiro soco com a direita, mas o acertei em cheio com a esquerda na
sequência. Ele pareceu ficar surpreso. Pois é, sou bom com as duas mãos, tive vontade de falar,
mas mantive-me concentrado.
Um soco não seria o bastante, precisava acertá-lo repetidas vezes. Khalan se afastou,
tentei prever o que ele faria a seguir. O joelho novamente? Seu olhar se fixou em minhas pernas.
Ele tentaria chutar ou me derrubar. Preparei-me para ambos.
Em um rápido movimento, Khalan segurou minhas duas pernas e, com o peso do seu
corpo, desestabilizou minha base, levando-me ao chão. Agilmente, circulei seu tronco com meus
braços e usei minhas pernas em seu quadril. Mantive-me firme, travando Khalan.
Ele soltou minhas pernas e, agora, tentava acertar meu rosto outra vez, ainda
parcialmente preso pelo meu último golpe. Desviei dos primeiros, mas o terceiro soco acertou
minha sobrancelha. Senti o sangue brotar pelo corte recém-aberto, descendo quente pelo rosto.
Era hora de parar com a brincadeira. Eu estava sangrando próximo ao olho, logo não
enxergaria nada à minha frente. Sem tempo a perder, usei toda minha energia e explodi em um
rápido movimento, girando sobre seu corpo e prendendo-o sob minhas pernas. Desferi vários
socos, com ambas as mãos em punho fechado. Khalan tentou manter a guarda para proteger o
rosto, mas não conseguiu.
Meu sangue escorria pelo pescoço, mas o dele também borrava a sua face de vermelho.
Vicent surgiu ao meu lado, para verificar a situação de Khalan. Ele finalmente havia
apagado.
— Já chega! Já chega! — ele gritava ao meu ouvido, mas a besta ainda não estava
satisfeita. Senti dois braços arrastando meu corpo para longe do corpo caído e ensanguentado de
Khalan.
— Me solta, porra! — vociferei, puxando meus braços, assim que batemos nas cordas
do ringue. Ambos me olharam relutantes, mas me soltaram.
Michael e Kiet carregavam Khalan ainda apagado, para fora do ringue.
— Caralho! Você vai matar alguém uma hora dessas, Aaron — alguém gritou ao meu
lado.
Não me dei ao trabalho de ver quem era. Se você está disposto a entrar em uma luta
clandestina sem regras, é melhor não temer a morte.
A multidão estava festejando. No fim, haviam tido um ótimo espetáculo. Em cima do
ringue, Vicent comemorava o sucesso do evento. Ele ainda não viera falar comigo pessoalmente,
o que me causou certa estranheza.
Abaixei-me, atravessando as cordas e fugindo das palmas e abraços de parabéns.
A hora avançava madrugada adentro e eu sabia que os homens não deixariam o galpão
antes do amanhecer. Eu não tinha a mesma intenção. Procurei Vicent em meio à multidão, mas
não o avistei. Aproximei-me do balcão do bar e chamei Louis, por cima do barulho causado pela
agitação.
— Avise ao Vicent que fui embora quando o avistar — pedi a Louis. Ele usava um pano
para secar um copo e acenou em minha direção, entendendo o recado.
— Cadê o seu carro? — ele brincou.
— Sabe que ainda não comprei um, mas vou, em breve — garanti.
— Leve o carro do Vicent, ele não se importará. Você está arrebentado para sair assim
— preocupou-se Louis.
— Não gosto de dirigir o carro dos outros — argumentei. — E isso... — disse,
apontando para o corte no rosto que ainda sangrava — isso não é nada. Não fui eu que terminei a
luta apagado no chão. — Ri.
Deixei Louis atendendo a um dos muitos clientes em busca de uma bebida forte que
aplacasse o frio. Caminhei até meu cavalo e o montei, direcionando-o ao portão.
O silêncio da noite era rompido pelos cascos do cavalo que galopava pelas ruas
solitárias, rasgando a nevoa que predominava.
Cheguei em casa, sentindo meus músculos doloridos, mas em um estado sereno que eu
só alcançava após muito esforço físico.
Após amarrar o cavalo aos fundos da propriedade, corri em direção à porta. A passos
rápidos, atravessei o hall e subi as escadas. Parei atrás de porta do quarto de Amy, tentando
detectar algum barulho. Não havia som algum vindo daquele ambiente. Pelo menos, ela não
estava chorando.
No meu quarto, tirei as roupas sujas de sangue e limpei meu rosto. A água fria amortecia
a pele e a relaxava, em seguida. Levantei o pequeno espelho sobre a cômoda e o aproximei de
meu rosto. O nariz estava vermelho e havia um pequeno corte sobre a sobrancelha. Não havia
sido um estrago tão grande, se comparado à dificuldade da luta.
Khalan deu trabalho, mas, ainda assim, consegui vencê-lo. Orgulhava-me disso.
Ao deitar-me, fechei os olhos e, sob o cansaço da noite, deixei-me ser levado pelo sono.
Acordei com um sobressalto, algumas horas mais tarde. Alguém me chamava
desesperadamente do outro lado da porta do meu quarto. A claridade da luz do dia me cegava e o
calor havia feito meu corpo suar sob os cobertores. Levantei-me e vesti uma roupa qualquer
depressa.
Mary quase foi ao chão, assim que girei a maçaneta e abri a porta.
— O que aconteceu Mary? — perguntei, ainda sonolento.
— É a menina Amy, senhor. Ela não acorda.
Senti medo, como nunca havia sentido antes. Minhas pernas pesaram, mal conseguia
mexê-las. Andei arrastando-me, até o quarto de minha irmã e paralisei no limiar da porta.
— Chame o médico! — gritei para Mary.
Ela desceu as escadas, correndo. Chorava alto, desesperada.
Aproximei-me de Amy, sua face parecia estar tranquila, mas o corpo estava enrijecido e
gelado.
Coloquei seu rosto em meu colo. Chamei-a, chamei tantas vezes que fiquei rouco. Ela
não me respondeu. Senti como se uma corda estrangulasse meu pescoço. Não havia mais ar.
Ela trajava seu vestido favorito de seda com babados, em um tom claro de azul, como
seus olhos, que agora estavam fechados. Tentei afastar a visão de seus lábios arroxeados. Senti
um peso crescente em meu peito que tentava sufocar-me.
Envolvi-a em um cobertor e fiquei ao seu lado, esperando a notícia que viria do médico,
mesmo que eu já soubesse.
Assim que o doutor Anderson chegou, veio diretamente ao quarto de Amy. Ele conhecia
bem o caminho, depois de tantos anos. Verificou seu pulso. Seu coração. Sua pele sem cor.
Não queria ouvir o que ele tinha a dizer. Eu já sabia.
Eu havia falhado com Amy. Não consegui cuidar da única família que havia me restado.
— Ela tinha a saúde frágil, sabíamos disso, Aaron. Ela teve uma vida longa,
considerando seu estado desde a infância.
Lágrimas silenciosas banhavam meu rosto. Não podia dizer o mesmo de Mary, que
soluçava, observando-nos da porta do quarto.
O médico lamentou a perda de minha irmã. Mal ouvi as palavras de consolo, elas não
significavam nada para mim.
Para o inferno com suas condolências, tive vontade de dizer. Nada me traria consolo
naquele momento.
Seus cabelos claros ainda estavam esparramados em meu colo. Eu tinha a esperança tola
de que, a qualquer momento, ela abriria os olhos e voltaria a respirar.
Ela não voltou. Anoiteceu e nada mudara.
— Me perdoe, Amy. Eu falhei com você. — Chorei sobre sua cabeça, na escuridão.
Passei a noite em claro. Não conseguia imaginar como seria a seguir. Preparar mais um
funeral...
Por mais que fosse difícil, forcei-me a ser o homem que eu precisava ser. Não poderia
deixar o corpo de minha irmã morta sobre aquela cama para sempre.
O enterro foi realizado de forma breve, não havia por que esperar por dias, quando a
única família para se despedir de Amy se reduzia a mim.
No último adeus, naquele cemitério, a chuva caía fina. Lembrei-me de que Amy sempre
havia gostado de dias chuvosos. Era um jeito sensível de nos despedirmos.
Ao meu lado, Mary continuava inconsolável. Louis observava o caixão incrédulo, ele
conhecia Amy desde que começou a trabalhar na loja e, apesar de nunca terem se aproximado, eu
sabia que ele também desejava seu bem. Todos que a conheciam desejavam isso.
Vicent estava calado, não havia dito mais do que meia dúzia de palavras. Nunca havia
visto meu amigo tão silencioso e distante. Não que eu esperasse as piadas e brincadeiras de
sempre, contudo eu já o tinha visto perder uma mãe, que ele dizia ser a única pessoa da família
que se importava com ele, e nem naquele dia, Vicente parecia ficar tão abalado.
Despedimo-nos e voltei para casa ao lado de Mary, que ainda fungava.
— Não quero receber ninguém — avisei a Mary.
— Sim, senhor — respondeu.
Abri com calma a porta do quarto de Amy, como se fosse encontrá-la e não quisesse
assustá-la. Não sabia se algum dia me acostumaria com sua ausência.
Juntei algumas de suas coisas, espalhadas pelo chão, e as guardei no lugar. Ainda não
queria pensar no que faria com elas. Levantei os cobertores e comecei a dobrá-los, mesmo que
Mary pudesse fazer tal tarefa, queria eu ser o último a arrumar seu quarto.
Levantei seu travesseiro, para batê-lo, e parei no meio do caminho.
Havia um papel dobrado, embaixo. Com a letra de Amy. Sentei-me na beirada da cama,
sentindo meu corpo tremer. Era uma carta.

Amado irmão,
Quando você encontrar este pequeno papel, já terei partido.
Eu sinto em deixá-lo, sei que você fez tudo por mim, mais do que nosso próprio pai.
Você assumiu uma responsabilidade que não era sua. Eu sei de tudo o que suportou por mim e
nunca poderei agradecê-lo o suficiente por isso.
Você sempre esteve ao meu lado e cuidou de mim. Curou-me todas as vezes que estive
ferida, mas descobri, tarde demais, que algumas feridas não têm cura.
Eu fui uma jovem tola e iludida.
Eu acreditei que ele estava apaixonado e queria casar-se comigo.
Durante sua última viagem a Birmingham, eu fui até ele. Até a toca do lobo. Eu entrei
procurando abrigo e encontrei minha maior desgraça.
Percebi, tarde demais, suas reais intenções comigo e não aceitei. Eu estava
apaixonada, no entanto, buscava mais.
Eu queria um final feliz, como nos livros que aprendi a gostar de ler.
Ele queria apenas meu corpo.
Eu disse “não”.
Ele não aceitou.
Disse-me coisas horríveis que dilaceraram meu coração. Não posso repeti-las. Não
consigo, apesar de ainda ressoarem em minha mente.
Eu estapeei sua face.
Ele revidou.
E, depois, tomou-me à força.
Ele não era quem eu imaginava que fosse, nunca foi.
Eu voltei para casa em pedaços. De corpo e alma.
Não conseguia pensar em como seria quando você voltasse. Como eu poderia esconder
isso de você?
Eu caí em desgraça. Desonrei nossa família. Nenhum homem de bem se casará comigo.
Ele disse que garantiria que todos soubessem a prostituta que eu era.
Ele me tomou à força e ainda disse que a culpa era minha.
Em meio à minha tristeza, comecei a acreditar em suas palavras. Eles entraram como
veneno em minhas veias.
Era culpa minha e eu não poderia viver com isso.
Avisei a Mary que não estava bem e que, por isso, não deveria me incomodar, até que
eu resolvesse me levantar da cama. Ela sabe que tenho dias ruins e apenas acenou, entendendo.
Por favor, não a culpe, ela não poderia evitar o que fiz.
Sabendo que eu não poderia tomar mais do que um comprimido, do meu remédio para
os nervos, por dia, tomei todos do frasco de uma só vez.
Escrevo essas palavras sentindo o sono se aproximar. Devo me despedir logo e guardar
este papel.
Adeus, meu irmão. Onde quer que meu coração descanse, sentirei saudades.
Amy.

Minhas lágrimas mancharam o papel a minha frente. Não consegui acreditar no que
acabara de ler. Quem havia sido o maldito que... que... eu não conseguia nem pensar.
Uma fúria tomou conta de mim.
Eu tinha que descobrir quem fora o desgraçado...
Capítulo 11
Hospital St. John
1911

Os dias tornaram-se noite e as noites tornaram-se dia. Não havia novidade alguma em
minha rotina. É verdade que minha perna agora estava livre, contudo, ainda sentia um pouco de
dor ao caminhar pelo quarto.
As primeiras noites sem os tais comprimidos verdes foram as mais difíceis. Não
conseguia dormir. Sofria com as lembranças e com o medo por Rosalie. Também sentia falta de
Lucinda e me preocupava por não ter notícias dela.
Já não tinha dificuldade para organizar os meus pensamentos, ainda assim não sentia
necessidade de conversar com ninguém que vinha até meu quarto, talvez não fosse seguro de
qualquer forma, como Aaron havia alertado. Será que ele era uma pessoa confiável? Por que eu
estava dando ouvidos a um homem que estava internado no mesmo sanatório que eu?
Dizem que podemos conhecer uma pessoa pelos olhos e os dele não me entregam
absolutamente nada. Julgava que ele poderia esconder-se atrás daquele azul misterioso sem
dificuldade.
Quando a porta do quarto se abriu, vi o doutor Shawcross entrar, sendo seguido de perto
por Joanne.
Ele me examinou novamente. Fez algumas anotações em sua prancheta. Esforcei-me
para parecer tão sonolenta e distante quanto antes.
— Ela não deu nenhum sinal de agressividade ou descontrole durante todo esse tempo,
Dr. Shawcross. Isso deveria ser levado em conta — argumentou Joanne.
— Está sugerindo a redução da medicação novamente, Sra. Clarke? Até quando tentará
interferir em meu trabalho, enfermeira?
— Não pretendo interferir, porém o doutor bem sabe que acompanho cada um deles de
perto. Não posso ignorar aqueles que apresentam sinal de melhora. Assim, ela passará a limpar-
se e se alimentar sozinha, sabe que contamos com poucos funcionários em Saint John. Além do
mais, temos que dar a chance de ela nos mostrar que poderá se recuperar completamente, ou
então passará o resto de sua vida trancafiada aqui.
As palavras de Joanne apunhalaram fundo em meu coração, havia esperança nelas, mas
também havia uma chance de condenação. Eu não podia nem pensar em passar o resto de minha
vida neste lugar.
Tive vontade de gritar que aquilo tudo era um grande erro, que meu lugar não era ali, no
entanto eu sabia que de nada adiantaria e, para todos os efeitos, eu continuava incapacitada.
— Aceitarei mais uma de suas sugestões, Senhora Clarke. — As palavras pareciam ter
um gosto amargo na boca do médico. — Contudo, ao menor sinal de agressividade, descontrole,
ou sinal de alucinação, a paciente será sedada e isolada por tempo indeterminado — ele disse,
severo. — Estamos entendidos?
— Claro, doutor — concordou ela.
— Vamos ver como você se comporta, não é, Sra. Green? — disse o médico com ironia,
antes de deixar o quarto.
— Logo você estará melhor, Grace — afirmou Joanne.
Eu havia entendido cada palavra. Precisava manter-me sob controle mais do que nunca.
Não gostava de continuar fingindo estar alheia ao que acontecia à minha volta, mas entendia o
quanto isso era vital.
E eu ainda precisava de um plano, um que me tirasse dali.
Quando a noite chegou, apenas um dos remédios verdes foi me dado, era o início da
redução. Sozinha, perdida na escuridão do meu quarto, observo a pequena pílula em minha mão,
sabendo que ela me ajudaria a dormir. Depois de tantas noites sofrendo com insônia, sentia-me
realmente tentada a engolir o remédio e esquecer todas as lembranças que me atormentavam
durante as infinitas horas de escuridão.
As sombras na parede me encaravam, dispostas a me alcançarem. Eu forcei minhas
pálpebras para que meus olhos não as vissem, todavia eu sabia que estavam ali.
Atirei o comprido na garganta e o engoli. Tinha sido tão difícil livrar meu corpo dele, eu
sabia disso, porém hoje eu queria apenas apagar. Esquecer. Não sofrer. Não era pedir muito, era?
Fechei os olhos e a sonolência lenta e calma se apossou de meu corpo. Sonhei com
Rosalie. Ela me chamava. Eu estava do lado de fora de minha casa em Red Rose e ela, na janela
de seu quarto no segundo andar. Ela esticava os braços na minha direção e seus pequenos lábios
sibilavam “mãe”. Uma grande fenda se abriu no chão entre mim e Red Rose e eu fui engolida
por ela. Enquanto eu caia em um buraco escuro, via o rosto entristecido de Rosalie. Ela chorava
incessantemente.
Nunca pensei que suportaria tamanha dor. Minha pequena chamava por mim e eu não
podia alcançá-la. Meu coração estava sendo despedaçado. Minha garganta doeu e meus olhos se
derramaram em lágrimas.
Uma forte angústia se alojou em meu peito. Solucei. Eu estava presa em meu pior
pesadelo e não conseguia acordar. Meus olhos não obedeciam.
Senti uma mão grande alcançar a minha. Era áspera, mas quente. Segurou-me com
força. Ouvi de longe uma voz profunda: “você não precisa ter medo, não mais. Eu estou aqui.”
Era uma voz grave e levemente familiar. Acalmou meus anseios. Senti ser levada a
outro lugar. Abri os olhos com dificuldade. À minha frente, vislumbrei um par de íris azuis
conhecidas. Soltei o ar preso em meu peito. A dor começava a diminuir.
“Ficarei ao seu lado até que adormeça, você está segura...”, eu o ouvi dizer.
E eu voltei a fechar os olhos, adormecendo. Sem novos pesadelos.

Uma das cuidadoras que frequentemente me lavava e alimentava veio até o meu quarto
com a cadeira de rodas.
— Hoje você irá conhecer o pátio. Vai respirar um pouco de ar fresco. Ainda precisa da
cadeira, mas deverá ser por pouco tempo já que agora sua perna está livre.
Atravessamos o corredor, que já não era tão estranho assim. A luz forte do dia
ensolarado brilhava, adentrando o ambiente e o deixando claro.
Era a primeira vez que eu não via as nuvens escuras dominando o céu. Nos jardins,
havia poucos pacientes. Alguns sentados nos bancos embaixo de árvores e outros espalhados
pela grama. Pareciam estar em um lugar tão longe quanto eu costumava estar.
— Vou te deixar embaixo da árvore, mas se quiser andar um pouco pela grama, pode
tentar. Deverá ser bom para seu corpo se exercitar — disse a cuidadora, antes de sair e voltar
pela calçada de pedras, até a porta que dava acesso à parte interna do prédio.
Era uma construção realmente grande. Dois andares. As paredes de pedras se erguiam
ao meu redor e oprimiam qualquer sentimento de esperança que pudesse ousar se apresentar. O
muro, também de pedra, era alto e tão imponente quanto o edifício à minha frente. Assustei-me.
Como eu fugirei dali?
Duvidava que eu conseguisse pular aquela muralha. Virei minha cabeça, procurando
uma saída, e não avistei portão algum, ou mesmo uma porta, além daquela no fim do corredor
por onde viemos. Esta parte deve ser os fundos da propriedade de St. John, penso.
A única saída era a que dava acesso ao interior do prédio.
— Já pensando em como fugir? — Ouvi Aaron às minhas costas.
Sua voz me levou de volta à noite anterior, quando sonhei que ele me confortava e me
trazia de volta da escuridão.
Um arrepio percorreu meu corpo.
— Você nunca pensou? — consegui dizer, esperando que ele não notasse o nervosismo
que sua presença começava a aflorar em mim. Aaron não respondeu. — Ninguém nos vigia
quando estamos aqui? — questionei, tentando me concentrar na única coisa com a qual eu
deveria me importar: fugir dali.
— Tem dois cuidadores perto da porta, mas eles só se aproximam se houver uma briga
entre os pacientes, ou coisa pior.
— Coisa pior?
— É um hospício, coisas bem piores do que brigas podem acontecer.
Ambos ficamos em silêncio por um tempo.
— Sua perna está livre, finalmente — comemorou Aaron, como se apenas agora
notasse.
— Livre... — sussurrei.
— Por que você está aqui, Grace? — questionou, diretamente.
Pensei em sua pergunta. Ninguém havia conversado comigo sobre o motivo de meu
internamento. Apenas ouvira alguns cuidadores comentarem sobre minha saúde e meu
comportamento. Não sabia o que responder verdadeiramente.
Arrisquei pelo que eu ouvira sobre mim da boca de outras pessoas.
— Disseram que sou altamente agressiva — um sorriso irônico surgiu nos meus lábios
—, que sou descontrolada e sofro de alucinações.
— E é verdade? — indagou Aaron, agora à minha frente, observando cada frase que
saía de minha boca.
Ele parecia tão tranquilo conversando sobre estar em St. John, quase conformado por
estar preso neste lugar. Ele afastou-se um pouco e recostou-se no tronco da árvore, que
providenciava uma frondosa sombra sobre nossas cabeças.
— Agressiva, não — respondi. — Acho que não — brinquei.
— E o restante?
— Sinceramente, não sei... — Inspirei, profundamente. — Eu não sei de nada. Minha
mente ainda está confusa sobre o que aconteceu antes.
— Você se lembra do seu último dia antes de chegar a St. John? — perguntou Aaron.
— Talvez... não tenho certeza — confessei.
— Do que se lembra bem? — sondou ele. — Lembra-se de onde estava há um ano atrás.
Começo de 1910?
As imagens começaram a se formar em minha mente como um jogo de quebra-cabeça.
— Não sei se quero lembrar — revelei.
— Por quê? — questionou.
— E se eu descobrir que sou realmente louca? — Meus olhos marejaram.
— E o qual a pior coisa que pode acontecer? Te colocarem em um sanatório?
— Posso perder Rosalie para sempre — sussurrei. Nunca havia admitido tal coisa em
voz alta.
— Quem é Rosalie? — perguntou ele, aproximando-se.
— Minha filhinha...
Aaron pareceu absorver a informação. O vento soprou, fazendo as folhas da árvore
sobre nossas cabeças se agitarem.
— Você não é louca — declarou.
— Como pode saber? — perguntei, encarando seus olhos e buscando desesperadamente
uma resposta verdadeira.
— Já vi muita gente louca chegar aqui. Eles são diferentes, vivem em seu próprio
mundo, com suas próprias regras. Você não pertence a esse lugar.
Encarei seus olhos, buscando qualquer sinal de dúvida, não encontrei. Apeguei-me a
essa ideia. Essa pequena possibilidade.
Capítulo 12
Londres
3 anos antes

Passaram-se duas semanas desde que eu havia enterrado a última pessoa com a qual eu
me importava verdadeiramente.
O conteúdo da carta que ela havia deixado ainda me perturbava. Eu não tinha desistido
de encontrar o desgraçado, apenas não havia estado em condições de levantar da cama e fazer
qualquer coisa.
Louis tem cuidado da loja todo este tempo, tentou visitar-me algumas vezes, mas não o
recebi. Vicent mandou-me um recado, desejando dias melhores.
Desci as escadas, ainda com o cabelo bagunçado e a barba por fazer. Mary assustou-se
ao me ver, quando passei pela porta da cozinha.
— Não sou uma assombração — disse a ela.
— O senhor precisa sair, tomar um pouco de sol... está mais pálido que... — ela não
concluiu a frase, mas sabia exatamente o que iria dizer.
Mary serviu uma xícara de café e a colocou sobre a mesa, indicando que eu me sentasse.
Suspirei fundo, e mesmo sem vontade, obedeci. Eu precisava falar com ela sobre um assunto
difícil, então era melhor colaborar.
Tomei o primeiro gole do café fumegante.
— Mary, aonde Amy foi, quando estive ausente durante minha última viagem a
Londres? — perguntei, sem rodeios. Mary, que estava mexendo em algo na panela sobre o
fogão, parou de repente.
— Eu... eu... — Ela não podia negar-me isto. Eu precisava saber. Era meu direito. Senti
minha mão apertar a xícara com força. Paciência não era meu forte, mesmo quando eu sabia que
precisava.
— Vamos, mulher! Diga logo! Eu já sei que ela saiu de casa durante minha ausência.
Eu não era um tirano com Amy, mas uma regra importante era que ela não saísse
sozinha e sem minha permissão.
— Eu juro que não sei, senhor — choramingou Mary, olhando para mim.
— Mas sabia que ela havia saído? — Mary virou-se de costas para mim e voltou a
mexer na panela novamente.
— Mary, sente-se aqui! Agora! — ordenei. Eu não sabia o que ela estava escondendo,
mas precisava descobrir. Mary me ignorou.
Levantei-me com brusquidão e desliguei o fogo, puxando-a pelo braço até a cadeira,
para que ficasse à minha frente.
— Comece a falar, Mary. — Minha paciência já era inexistente nesse momento.
— Ela... ela...
— Ela o quê, mulher? — Bati com a mão na mesa, fazendo a xícara saltar.
— Ela não me falou — disse, com as mãos tremendo em seu colo.
Apertei as têmporas, como se pudesse evitar uma explosão de dor de cabeça repentina.
— Eu não quero perder a cabeça, Mary, mas preciso saber exatamente o que se passou
nesta casa durante minha última viagem, por favor — disse, encontrando o tom de voz mais
calmo que podia.
Balançando a cabeça e limpando as lágrimas, Mary abriu a boca para falar novamente:
— No primeiro dia que o senhor viajou para Birmingham, a menina levantou-se cedo,
estava animada, corada e parecia muito bem. Fiquei feliz por vê-la saudável. Ela passou o dia
lendo no banco do pátio. À tarde, ela recebeu uma visita de um cavalheiro...
— Que cavalheiro? — perguntei, imediatamente. Mary levantou os olhos para mim.
Havia temor neles.
— Eu só posso dizer o que vi, não o que pode ou não ter acontecido. Direi o nome do
homem em questão, quando terminar o relato. Não posso deixar o senhor sair correndo pelas
ruas, feito um louco, sem ouvir toda a história.
Cerrei os dentes. Estava a ponto de socar a mesa novamente, mas respirei fundo e
aceitei o argumento de Mary. Eu precisava que ela falasse. Acenei com a cabeça, concordando, e
Mary continuou seu relato:
— Assim que ele chegou, a menina Amy o recebeu entusiasmada, como poucas vezes
havia visto. Ela parecia realmente feliz por vê-lo. Eu estranhei tamanha satisfação. Servi aos dois
chá e biscoitos. Amy pediu que eu me retirasse da sala.
— E você a obedeceu? — Cuspi, furioso.
— Eu tentei argumentar, falei que o senhor não gostaria de tal coisa, mas ela e o
cavalheiro me fizeram sentir vergonha por supor algo não respeitável entre ambos.
Bufei, imaginando o que se passava enquanto eu estava em Birmingham.
— Eles falavam baixo — continuou Mary —, mas eu ouvia as risadinhas cúmplices. Dei
mais desculpas do que poderia ser possível para passar tantas vezes pela sala e vigiá-los. O
cavalheiro pareceu se incomodar com alguma coisa e ele e a menina pareceram discutir, talvez
porque a minha espreita o tenha irritado. Então ele levantou-se, pegou o chapéu e foi embora.
— E o que Amy fez após ele partir?
— Pareceu-me muito aborrecida. Não estava mais alegre e disposta como antes. Tentei
conversar com ela sobre o cavalheiro, mas ela não quis contar-me nada. Disse-me que ele era um
amigo apenas. Depois, ela subiu para o quarto e não desceu mais naquele dia.
— Então não foi nesse dia que ela saiu de casa? — pergunto, tentando entender como
tudo havia acontecido.
— Não, foi no outro dia. Quando me levantei, ela já estava de pé. Estava feliz
novamente. Conheço, quero dizer, conhecia, Amy desde que ela era apenas uma linda bebê.
Sabia das suas mudanças de humor. Não estranhei a melhora, fiquei grata por sua boa disposição.
Depois do almoço, ela pediu que eu fosse à mercearia, para comprar ingredientes para o bolo de
nozes que ela tanto adorava. Queria chá com bolo à tarde. Eu disse a ela que tinha todos os
ingredientes em casa, mas ela garantiu que não havia. Fui verificar e, para minha surpresa,
mesmo com a dispensa cheia, não havia trigo, ovos e nem o ingrediente principal: as nozes. Você
sabe que a única mercearia que tem aquelas nozes fica do outro lado da cidade. Eu não queria
deixá-la sozinha, mas ela garantiu-me que ficaria bem e ainda disse que não poderia prometer-me
continuar animada, se eu não servisse o chá da tarde com o bolo de nozes, que ela tanto desejava.
Eu cedi. Me perdoe, senhor, mas eu cedi. Eu a deixei sozinha para atravessar a cidade, atrás de
umas míseras nozes.
Mary chorava novamente, seu corpo balançava com os soluços. Eu tinha certa pena da
mulher, mas não conseguia consolá-la neste momento. Eu precisava saber exatamente o que
havia acontecido durante minha ausência.
— Mary — chamei sua atenção —, preciso que continue a contar-me o que houve,
preciso saber de tudo.
— Quando voltei, horas mais tarde, a menina Amy não estava em casa. Eu a procurei
em cada canto, eu a chamei dentro de casa e fora dela. Eu corri até o parque, vasculhei embaixo
de cada árvore. Ela não estava em lugar nenhum. Entrei em pânico. Voltei para casa correndo,
para ligar para o hotel onde o senhor estava hospedado e avisar que Amy tinha desaparecido,
mas, um pouco antes disso, escutei o portão batendo. Deixei o telefone de lado e fui correndo ver
se era ela quem chegava. Meu coração passou pela sensação de desespero-alívio-desespero em
um único instante.
— O que houve mulher? — gritei, angustiado. — Era Amy?
— Sim, senhor — ela respondeu, secando mais algumas lágrimas. — A menina estava
com o cabelo todo bagunçado o sapato sujo e o vestido amassado.
Levantei-me e comecei a andar impaciente de um lado para o outro, dentro da cozinha.
— Eu corri ao encontro dela. Perguntei o que havia acontecido, mas ela se negou a falar.
Eu a trouxe para dentro de casa, avisei que ligaria para o senhor e ela entrou em desespero.
Jogou-se a meus pés, como se fosse de novo uma criança. Chorava de soluçar, tive medo de que
ela tivesse um ataque, como outros que ela já teve. Ela me fez prometer que eu nunca diria nada
ao senhor sobre o visitante e sobre sua saída sem permissão, ou ela fugiria e nunca mais
ouviríamos falar em seu nome. Eu sei que não fiz certo, eu sei que deveria ter contado, mas tive
medo de que ela tivesse de um ataque feroz dos seus nervos e não sobrevivesse desta vez, ou
mesmo que ela fugisse de casa e acabasse perdida por este mundo, sozinha. Ela me prometeu que
ficaria bem e acreditei nela.
Eu estava quase quebrando o espaldar da cadeira entre minhas mãos.
— Quem foi, Mary? — exigi saber.
— Veja bem, senhor... — ela gaguejou. — Amy nunca me disse o que houve, não me
disse...
— Mas nós sabemos o que houve, não sabemos? — Mary não conseguia conter o choro.
— Quem a visitou sem o meu consentimento, Mary? — insisti.
Mary me olhou temerosa, nunca havia visto tanto medo em seus olhos como agora,
antes de pronunciar aquele nome:
— Vicent, senhor. Seu amigo Vicent foi o único cavalheiro que a visitou em sua
ausência.
Capítulo 13
Londres
3 anos antes

Não conseguia acreditar no que meus ouvidos haviam acabado de escutar. “Vicent”
esteve visitando minha irmã. Escondido.
— Você acha que foi ele... que foi ele... — eu não conseguia terminar aquela maldita
frase. O ar pareceu faltar-me.
— Eu não posso dizer com certeza. Como eu já disse ao senhor, Amy não me falou nada
sobre... o assunto... — Terminou de falar com dificuldade de pronunciar as palavras.
Ergui a cadeira, sentindo a raiva borbulhar dentro mim, e a bati violentamente no chão.
Mary sobressaltou-se, levando a mão ao peito. Passei a mãos pelos meus cabelos, tentando
recuperar o controle.
Deixei Mary na cozinha com a cadeira quebrada e subi direto ao meu quarto. Quando
entrei no ambiente, a batida da porta ressoou pela casa. Tentei sentar-me em frente à mesa ao
lado da janela e pensar um pouco, porém minhas pernas estavam inquietas e minha mente
buscava uma explicação racional para o que eu ouvira de Mary.
Meu melhor amigo, Vicent era meu melhor amigo. Ele não poderia ter seduzido minha
irmã e depois a forçado, poderia? Ele seria capaz? Vicent estava longe de ser um santo, mas
poderia ser o próprio demônio?
E se Mary estivesse mentindo para mim? Mas com que motivos ela faria isso? Eu
enlouqueceria, se continuasse pensando a respeito, precisava passar essa história a limpo. E eu
faria isso.
Lavei o rosto com água gelada e vesti-me rapidamente. Desci as escadas e encontrei
Mary parada na porta de entrada da casa. Os seus olhos estavam inchados de tanto chorar.
— Eu vou resolver isso, Mary — disse, retirando o casaco do cabideiro.
— Por favor, senhor, não faça nenhuma besteira. A família do Vicent...
— Eu não quero saber quem é a porra da família dele — rosnei.
— Mas senhor... — O olhar que lancei na direção de Mary deveria ter sido mortal,
porque ela calou-se imediatamente.
Selei o cavalo e o guiei para fora da propriedade, montando no animal, quando
alcançamos a rua ainda pouco movimentada.
Usei a espora contra o cavalo, incitando-o a correr. Não estava disposto a perder um
minuto a mais.
Vicent morava em uma propriedade mais ao centro da cidade. Subi as escadas da
entrada, como se apostasse contra o relógio. Bati à porta da frente violentamente. Na terceira vez,
o mordomo de Vicent atendeu-me. Seu olhar desinteressado não me passou despercebido.
— O patrão ainda dorme — informou, lacônico.
— Não me importo — disse, forçando meu corpo e trombando contra o homem ao
atravessar a porta. Ele balançou a cabeça em negativa. — Não precisa chamá-lo. Eu mesmo vou
até seu quarto.
Antes de meus passos seguirem em direção ao segundo andar, o homem tomou a frente.
O velho mordomo bateu com os nós dos dedos na porta do quarto de Vicent, que não respondeu
a primeira tentativa de contato. Usei minha altura e peso para ganhar espaço à frente da porta e a
abri com urgência.
Assustado, Vicent pulou da cama.
— Que merda é essa, Aaron? Invade casas agora? — disse, levantando-se e vestindo um
robe sobre o pijama.
— Precisamos conversar — respondi apenas.
— E não poderia esperar eu me levantar?
— Não.
— Obrigado, Arnold. Pode nos deixar agora.
— Tem certeza, senhor? — Vicent o encarou e Arnold entendeu o recado, deixando-nos
a sós ao sair e fechar a porta.
Caminhei pelo quarto, havia uma garrafa de uísque vazia sobre a mesinha ao lado de sua
cama. Segurei a garrafa, apertando o vidro como se apertasse o pescoço de Vicent. Meus dedos
tornaram-se brancos, larguei a garrafa de lado.
Sentia os olhos de meu amigo preso às minhas costas, atento a cada movimento que eu
fazia.
— Há quanto tempo somos amigos, Vicent? — perguntei, virando-me em sua direção.
— Há muito, com certeza. — Ele tentou rir, mas falhou.
— Você sempre soube que minha família era tudo para mim. — Ele permaneceu
encarando-me.
— Eu também sou sua família. Somos irmãos. — Ele ousou dizer.
— Então por que você fez isso, irmão?
Andei até a porta de seu quarto, girei a chave e a guardei em meu bolso.
— O que você está fazendo, Aaron? — Ele tentou dizer em tom de brincadeira.
— Você não me respondeu. — Encarei-o outra vez, mantendo as mãos nos bolsos.
— Essa brincadeira, não é engraçada. Devolva-me a chave — ordenou, estendendo-me
a mão.
— Apenas quando você responder à pergunta. — Tentei falar sem perder a cabeça antes
da hora.
— Eu não sei de que merda você está falando, Aaron — afirmou, irritado.
— Amy — respondi, apenas. Seus olhos se arregalam.
— Eu... eu... — ele gaguejou. — Eu não sei do que você está falando.
— Ah! Você sabe!
— Aaron, você precisa se acalmar. Pensar direito — tentou argumentar.
— Eu pareço nervoso para você? — disse, irônico.
— Você não está pensando com clareza — tentou ele. — Amy era tudo para você e
agora que ela se foi, você está tentando culpar alguém, para não ter que lidar com a perda.
Avancei em sua direção e esmaguei seu pescoço com meu braço, detendo-o contra a
parede.
— E por que eu culparia você, irmão? — Cuspi as palavras em seu rosto. — Me
responde, porra! — gritei.
— Senhor, está tudo bem aí dentro? — perguntou o mordomo, mexendo na maçaneta da
porta.
— Diga a ele que está tudo bem — ordenei. Vicent pareceu pensar por um instante.
Apliquei mais força em seu pescoço.
— Estamos bem. Pode retirar-se Arnold — disse, com dificuldade.
Ouvimos passos se afastando do corredor. Soltei o pescoço de Vicent e seu corpo
desceu ao chão.
— Você pode ter quantas mulheres quiser. Porque teve que... — Não tinha forças para
terminar aquela merda de frase.
— Ela queria tanto quanto eu — disse, levantando-se e arrumando sua roupa. Meus
punhos cerraram e atingiram seu nariz. Vicent cambaleou voltando a bater na parede. O sangue
verteu de seu nariz e ele tentou em vão contê-lo.
— Você a forçou e sabe disso! — gritei.
— Ela não era a santa que você imagina. Sua irmã recatada era uma diabinha fogosa.
Ela veio até mim, oferecendo-se. Eu apenas aceitei.
Não consegui acreditar na audácia de suas palavras. Eu conhecia Amy, ela nunca teria
escrito aquelas palavras se não fossem verdades. Respirei fundo, tentando conter meus impulsos
de destruição por mais alguns instantes.
— E depois você ainda teve coragem de ameaçá-la — declarei.
— Ela disse que contaria a você que eu a tinha forçado. Eu apenas avisei do que
aconteceria, se ela tentasse me prejudicar.
— Você a matou, porra! — gritei.
— Ela se matou porque era uma doente — acusou ele.
Andei até a garrafa de uísque vazia e, segurando-a pelo gargalo, bati-a contra a parede.
Um pedaço grande de vidro restou em minha mão. Seria mais do que suficiente.
Senti uma cadeira ser batida violentamente contra minhas costas, mas meu corpo
manteve-se firme no mesmo lugar.
— Achou mesmo que me derrubaria com isso? — Sorri, virando-me em sua direção.
Vicent recuou alguns passos. — Você destruiu a vida de Amy e vai pagar por isso. — Vicent
levantou os braços em posição de rendimento.
— Pensa bem no que você está ameaçando fazer, Aaron. Você sabe o que meu pai fará
quando colocar as mãos em você. Minha família manda nessa cidade.
— E você acha que eu me importo? — desdenhei. — Quando você retira tudo o que
importa da vida de um homem, não resta nada que ele possa temer.
— Eu posso te deixar rico, muito rico — gaguejou, tentando barganhar.
— Isso vai trazer Amy de volta, Vicent?
— Arnold, Arnold! — Ele começou a gritar no meio do quarto.
— Ele não pode entrar. — Sorri. — Roubei suas chaves quando trombei com ele
propositalmente na porta.
Vi em seu semblante a imagem do desespero, contudo Vicent reagiu logo e, em um
rompante, avançou sobre mim. Ele tentou me acertar, mas desviei de seus golpes fracos com
facilidade.
— Para que tudo isso, Aaron? Ela era só uma putinha qualquer — ele disse, com raiva.
— Não valia...
Joguei o pedaço de vidro longe. Eu o esmagaria com minhas próprias mãos.
Avancei em sua direção e joguei-o contra a parede. O patife tentou socar-me
novamente, mas seus movimentos amadores estavam longe de acertar-me. Bati seu corpo
repetidas vezes contra a parede até meus braços queimarem, deixando que ele escorregasse até o
chão em seguida. Ajoelhei-me à sua frente.
— Por favor... — Ele conseguiu dizer.
— Ela também implorou? — perguntei, segurando sua cabeça pelos cabelos para que
ele me encarasse. — Ela pediu que parasse? Ela também disse “Por favor...”?
Ele não respondeu.
Soquei sua cara, arrancando mais sangue. O líquido vermelho descia de sua face e
manchava o tapete claro de seu quarto. Ele estava prestes a perder a consciência, mas eu não
permitiria. Ainda não. Havia um impulso que latejava sob minha pele e eu o libertaria.
Busquei outras garrafas de bebidas, em cima do aparador de madeira em seu quarto.
Arranquei a tampa de uma delas com os dentes e andei até o corpo de Vicent.
Despejei o conteúdo em sua cabeça e vestes.
— O que... o que está fazendo? — ele gaguejou. Em seguida, ele tentou, mas não
conseguiu se mover do lugar. Abri as outras duas garrafas e despejei o líquido nas cortinas e
tapetes ao seu lado. Seus olhos estavam quase fechados pelos ferimentos.
Peguei a caixa de fósforos do bolso na minha calça, risquei um palito em sua frente e só
então ele percebeu o que eu estava prestes a fazer.
— Não... não — murmurou ele. — Isso não.
Abaixei em sua frente e deixei que ele visse a chama se extinguir, até consumir todo o
palito.
— Não é lindo? — perguntei, rindo. — As cores, a forma como a chama dança
consumindo o palito... — disse, vislumbrando o segundo palito aceso. Era difícil desviar os
olhos.
Vicent jogou o corpo para frente, tentando deixar o local encharcado de bebida alcoólica
em que ele estava. Levantei-me e pisei com força em sua cabeça.
— Você acha mesmo que conseguirá sair daqui? — Ri de sua tentativa patética.
Afastei-me do corpo inerte. Vicent tossiu, cuspindo sangue. Ele não duraria muito.
Andei pelo quarto de Vicent e encontrei um jornal recente em cima de uma poltrona.
Amassei os papéis deixando no formato de um bastão. Risquei um novo palito na caixa de
fósforos, coloquei fogo no papel. Uma grande chama se formou, imediatamente aproximei-a das
roupas encharcadas de álcool que cobriam o corpo de Vicente. Elas se alastraram, tomando a
superfície de seu corpo depressa. Correram, em seguida, pelas cortinas e tapetes ao seu redor.
Vicent grunhiu e usou as poucas forças que ainda tinha para se debater, tentando se libertar das
chamas, mas o fogo espalhava ainda mais a cada movimento.
Observei as labaredas amareladas e avermelhadas dançarem a à minha frente. O calor
acalmou meus ânimos animalescos.
Comecei a rir da cena à qual assistia.
Era um riso quase insano.
Parecia que finalmente eu podia respirar novamente.
Contudo, logo a fumaça dentro do ambiente transformou meu ataque de riso em tosse,
lembrando-me de que, por mais que eu desejasse apreciar o espetáculo, precisava sair dali.
Limpei minhas mãos em minhas próprias vestes. Retirei as chaves do bolso e abri a
porta do quarto. Não havia ninguém no corredor. Desci as escadas e, antes de atravessar a porta
de entrada da casa, a cozinheira de Vicent, que chegava à sala, viu-me e assustou-se ao notar a
fumaça que vinha do alto das escadas. A mulher saiu gritando na direção contrária, sem olhar
para atrás.
Montei de volta no cavalo e tomei a direção de minha casa.
Capítulo 14
Londres
3 anos antes

Ao abrir a porta de minha casa, vi Mary saltar do sofá e vir correndo até mim.
— Meu Deus! — exclamou ela. — O que houve? — Seus olhos exprimiam genuína
preocupação.
— Foi mesmo Vicent — disse a ela, com um gosto amargo na boca.
— Oh! — Mary voltou até onde estava antes e sentou-se outra vez no sofá, enquanto
massageava o peito, como se estivesse com muita dor. — Pobre menina — lamentou.
Ficamos em silêncio enquanto eu retirava o casaco sujo e depositava no cabideiro ao
lado.
— O que aconteceu com ele? — Mary encarou-me, já temendo minha resposta.
— Está morto — disse apenas. Mais um momento de silêncio.
— O senhor precisa fugir! — afirmou, de súbito. — Imediatamente! O pai de Vicent...
— Eu sei quem é o pai dele...
— Não se trata apenas de dinheiro, senhor. O pai dele também é muito amigo do
delegado de polícia.
— Eu sei disso. Como acha que nossas lutas clandestinas passavam longe de qualquer
batida policial?
— Então... — disse ela, confusa.
— Eu vou subir, me lavar, fazer a barba e trocar de roupa e depois vou até a delegacia
me entregar.
— Não é justo, senhor! Não depois do que aquele monstro fez a Amy.
— De que me adianta fugir, Mary? Eu aceitarei as consequências de minhas escolhas.
Falhei com Amy uma vez, não falharia duas... agora, serei preso... é o que me resta.
A mulher voltou a chorar.
— Não se aflija, eu estou bem com as escolhas que fiz. — Tentei consolá-la de alguma
forma.
Deixei Mary na sala para fazer exatamente o que dissera. Após o banho, vesti-me e
olhei-me no espelho de meu quarto, passando as mãos pelo rosto liso. Se eu usasse luvas nem
poderia dizer que eu havia matado um homem horas antes, já que as maiores marcas estavam
nelas.
Passei pelo quarto de Amy mais uma vez, peguei a carta que ela escrevera e a guardei
no bolso da calça. Disse adeus a ela pela última vez.
Desci as escadas devagar. Doía deixar tudo para trás.
Mary me aguardava junto da porta, segurando as mãos à frente do corpo, como se
fizesse alguma prece silenciosa.
— Mary, eu estou indo — disse o óbvio.
Ela me estendeu o casaco e ajudou-me a vesti-lo. Retirei a boina do cabideiro e a ajeitei
em minha cabeça.
— No cofre atrás da pintura de meus pais, no escritório, estão todas as minhas
economias. Use-as para cuidar de você e da casa pelo tempo que for possível. Sinto deixá-la
desamparada a partir de agora.
Mary deu-me um abraço apertado. Afastei-a, tentando não deixar o momento ainda mais
difícil. Aquela mulher tinha cuidado de mim quando eu mais havia precisado, mas agora
ninguém poderia fazer nada por mim.
— A senha do cofre é a data de nascimento de Amy.
— O senhor precisará do dinheiro, para defender-se — argumentou Mary.
— Não haverá defesa para mim. Nenhum advogado poderá livrar-me da prisão. Nós
dois sabemos disso.
Eu já estava condenado. Poderia pagar o melhor advogado e, ainda assim, o resultado do
julgamento seria o mesmo. Nada deteria o pai de Vicent. E eu não me importava.
Eu pagaria qualquer preço por ter podido ver Vicent queimar por minhas mãos.
Atravessei a porta e parei, virando-me para trás, observando a casa que havia sido de
minha família por tantos anos.
— Avise a Louis sobre o ocorrido e diga que ele que continue administrando a loja. De
maneira nenhuma ele deve me procurar, não quero o nome dele associado à morte de Vicent. Ele
pode ficar com metade dos lucros e a outra metade ele entrega a você para que administre da
forma que achar que deve.
— Está certo, senhor. — Ela confirmou com a cabeça. — Se um dia estiver livre
novamente, saiba que estaremos te esperando no mesmo lugar — garantiu, chorando. — Adeus.
— Levantou a mão, mas desistiu no meio do caminho.
— Adeus — respondi, virando-me em direção ao portão novamente.
Seria uma longa caminhada até a delegacia, mas sabendo que nunca mais caminharia
livremente, decidi aproveitar cada passo.
As ruas estavam cheias de pessoas indo e vindo. Nada de anormal parecia afetar a vida
daquelas pessoas. Será que elas imaginavam que ao lado delas andava um assassino, que adorava
brincar com fogo? Não, com certeza não pensavam muito a respeito.
Cavalos e carros passam ao meu lado atravessando as ruas de pedra. Crianças
acompanhadas e desacompanhadas permeavam o espaço.
As casas foram dando espaço a imagem de prédios cinza. Estava me aproximando de
meu destino.
Parei em frente à delegacia. Parte de mim queria subir as escadas até a porta e acabar
com isso de uma vez, outra parte queria um pouquinho mais da sensação de liberdade. Não
importava quanto tempo eu adiasse, nada poderia mudar o que estava prestes a acontecer.
Subi cada degrau, aceitando o futuro que me aguardava. Eu seria preso, mas não sem
que todos soubessem que tipo de pessoa era Vicent Morris.
Cheguei ao balcão de recepção e encarei o policial à minha frente.
— Posso ajudá-lo? — perguntou o homem de uniforme.
— Eu quero confessar um assassinato. Eu matei Vicent Morris hoje. — A expressão
inerte no rosto do policial mudou. Ele arregalou os olhos. Observou-me dos pés à cabeça.
O homem de roupa azul-marinho deu a volta no balcão e pediu que eu o acompanhasse.
Passamos por uma sala com poucas mesas e vi que apenas uma estava ocupada por um homem,
que lia atentamente algum documento sobre a mesa. Ele nem sequer levantou a cabeça em nossa
direção. Entramos em um corredor estreito e pouco iluminado.
O policial à minha frente abriu a última porta a direita e indicou com o braço que eu
entrasse. Atravessei a porta e ele a fechou imediatamente.
Ouvi o giro da chave, trancando-me dentro da pequena sala. Havia uma mesa retangular
e duas cadeiras. Nenhuma janela, o ambiente era abafado e fedia a mofo. A única coisa na parede
era um grande espelho retangular à minha direita.
Tirei o casaco pesado e o coloquei no espaldar da cadeira de madeira. Afastei a cadeira
da mesa e sentei-me, encarando o espelho. Retirei também a boina e a coloquei sobre a mesa.
Arrumei alguns fios de cabelos bagunçados e aguardei. Aguardei... aguardei...
Não sabia quanto tempo havia se passado, mas acreditava que permaneci horas naquela
pequena sala, já que meu corpo começou a reclamar do desconforto da cadeira. Estiquei os
braços e girei o pescoço, tentando relaxar a musculatura. Era melhor me acostumar com o
desconforto, seria o menor dos meus problemas a partir daqui.
Finalmente, ouvi uma chave na fechadura e a porta se abriu, em seguida. Virei meu
corpo na direção do som, esperando encontrar um interrogador ou mesmo o delegado, mas o
rosto que reconheci na porta fez meu sangue ferver.
O pai de Vicent, Abraham Morris, um dos homens mais poderosos da cidade. Ele
caminhava com sua bengala adornada em ouro, ostentando o porte de um nobre, ninguém
poderia dizer, olhando apenas para sua face indiferente, que ele havia acabado de perder um filho
de maneira brutal. Ele andou devagar até a mesa e puxou uma cadeira à minha frente, sentando-
se.
— Então você matou meu filho. Ele queimou antes ou depois? — perguntou, sem
nenhuma emoção aparente.
Respirei fundo. Aquela conversa seria cansativa.
— Ele ainda estava vivo, senhor Morris — respondi. Ele enroscou a bengala na cadeira
e retirou seu chapéu, começando a brincar com o objeto nas mãos, como se o visse pela primeira
vez e avaliasse se valia a pena comprá-lo ou não.
— Foi por causa do que aconteceu com sua irmã? — Ele finalmente encarou-me. Senti
minhas mãos cerrarem em punho e meu coração acelerar.
— Então você sabia? — Controlei-me para não gritar com o velho.
— Não tinha nada que eu não soubesse sobre Vicent: seus vícios, jogos, drogas,
mulheres, o clube... Tudo o que acontece naquela casa é relatado a mim.
— E por que diabos você não fez coisa alguma a respeito? — gritei.
— Quando eu soube, já era tarde. Eu sugeri que o idiota deixasse a cidade, mas ele não
me ouviu.
— Deixar a cidade? Era essa sua ideia de justiça? — exclamei, indignado.
— Ah, garoto! Não se faça de ingênuo. Acha mesmo que eu mancharia o nome de
minha família com uma historinha dessas? Por causa de uma vaga...
Levantei-me bruscamente, derrubando a cadeira, e avancei em seu pescoço. Dois
policiais entraram imediatamente na sala e começaram a bater com porretes de madeira em
minhas costas. Soltei o velho e virei-me, planejando ensinar a eles uma lição ou duas sobre luta...
— Basta! — gritou Abraham Morris. Sua voz ainda soava engasgada, devido ao meu
ataque recente. — Retirem-se — ordenou ele.
Os policiais se encararam, estranhando a ordem, mas obedeceram. Novamente,
estávamos apenas nós dois na sala abafada. O homem arrumou o casaco, recompondo-se.
— Eu tenho uma proposta para te fazer — disse Abraham. — Você assume o
assassinato, como já tinha intenção de fazer, mas no seu depoimento e no julgamento, dirá que o
motivo da morte foi uma dívida que você tinha com Vicent e não poderia pagar.
Não consegui acreditar no que eu acabara de ouvir.
— E por que eu contaria uma mentira?
— Porque, se você poupar o meu nome, posso aliviar o tempo que você passará dentro
de uma daquelas celas fedidas.
Eu ri.
Eu ri de verdade. Abraham não gostou, mas continuei rindo.
— Acha mesmo que vou poupar Vicent depois de tudo? Eu não me importo por quanto
tempo ficarei preso. Acha mesmo que eu planejo ter uma vida normal depois de tudo?
— Não o nome de Vicent. O meu — disse, como se fosse óbvio. — Eu sou um homem
respeitável desta sociedade. Estou prestes a me casar de novo, quero construir uma nova família
e um julgamento, envolvendo o nome do meu filho como um violentador de mulheres, arruinará
tudo.
Eu realmente não acreditava no que estava ouvindo. Aquele homem havia acabado de
descobrir que o filho fora assassinado de maneira brutal e agora estava em frente ao assassino
dele, dizendo estar preocupado apenas em como isso respingaria em seu nome.
— Não tem acordo. Todos vão saber que matei Vicent e porque o matei. Eu já confessei
a um policial e pretendo confessar o mesmo ao delegado.
— Acha mesmo que pode me desafiar, seu moleque? — ele debochou. — Eu vou te
esmagar feito uma barata.
— Mas não poderá me calar — retruquei.
Abraham pegou seu chapéu e bateu a bengala no chão, antes de caminhar até a porta
sem dizer mais nada. Quando a porta se abriu, vi quatro homens uniformizados ao lado da porta.
— Eu quero prestar meu depoimento agora — eu declarei. Nenhum dos homens olhou
em minha direção.
Passaram-se mais algumas horas, deveria ser madrugada, quando finalmente o delegado
veio me ver. Ele entrou, segurando uma pasta de papel, e parou ao lado da porta, após fechá-la.
Apoiando-se na parede, ele disse:
— É Aaron Walker, certo? — O homem parecia cansado, apesar da pose que tentava
manter. Acenei, confirmando. — Bom, eu poderia ouvir sua história, mas não será necessário. O
senhor Morris já me pôs a par da situação.
— Mas preciso fazer uma declaração, assinar uma confissão...
O homem levantou a mão, indicando que eu parasse de falar.
— Você acha mesmo que Abraham Morris permitirá que o senhor leve esta história
adiante?
— Ele não tem que permitir. Eu cometi um assassinato depois que descobri que Vicente
violentou...
— Não — interrompeu-me novamente. — É o caso de um homem que manda na cidade
contra um rapaz que administra um clube de lutas clandestinas.
Enfureci-me, já entendendo onde aquele homem covarde quer chegar com isso.
— Vocês não podem me calar. Eu direi a todos o que aconteceu.
— E o que você acha que aconteceu? — provocou ele.
— Vicent violentou minha irmã e eu o matei! — respondi com raiva.
— A investigação sobre a morte de Vicent já foi concluída e o assassino está morto.
— O que disse? Morto?
— Um ladrão, um mendigo qualquer, desses que vemos aos montes pela parte pobre da
cidade. Ele aproveitou-se da porta aberta da casa do senhor Vicent Morris, entrou e tentou roubá-
lo. O senhor Vicent o surpreendeu e tentou impedi-lo, mas infelizmente foi morto na ação, e o
ladrão colocou fogo na propriedade para criar uma distração ao fugir.
— Isso não é verdade! — esbravejei, levantando-me.
— Olhe por você mesmo — Ele andou até a mesa e jogou a pasta à minha frente. Era o
arquivo sobre a morte de Vicente.
— Felizmente, o ladrão foi reconhecido pelo mordomo de Vicent em um beco no
subúrbio da cidade e, logo após, em um momento de confronto com a polícia, o ladrão acabou
morto. — Eu revirava os papéis à minha frente, incrédulo. — Fim do caso. — Eu observei os
papéis espalhados, custando a acreditar no que via. — Quero dizer, quase. Ainda falta nos
livramos do senhor.
— Quer dizer, me matar — disse com escárnio.
— Seria mais fácil, já que não tem parentes vivos... mas você conseguiu irritar o senhor
Morris.
— E o que ele vai fazer comigo? — perguntei entre os dentes.
— Irá pagar pelo que fez onde o que você disser não fará diferença alguma. — Ele abriu
a porta e cinco homens entraram. Imobilizaram meus braços e pernas e começaram a bater em
todas as partes de meu corpo. Debati-me, tentando soltar-me, mas era em vão. Eram muitos.
Os cassetetes de madeira acertavam-me em todas as direções: face, tronco, pernas. Eu
ouvia o som de cada ataque e sentia a dor se espalhando, como brasa. Golpes e mais golpes em
minha cabeça, até que apaguei.
Não saberia dizer quanto tempo depois, acordei amarrado a uma cama branca de metal.
Vestia roupas beges e não conseguia falar, apesar de estar consciente. Neste dia, eu conheci o
doutor Shawcross e soube que eu era o mais novo interno permanente do Sanatório Saint John.
Capítulo 15
St. John
1911

Eu ainda não tinha descoberto como escapar de St. John. As portas da frente eram
vigiadas dia e noite. A propriedade era cercada por muros altos e provavelmente estávamos
longe da cidade... e o doutor Shawcross, esse nem queria ouvir-me. Minha cabeça latejava desde
o momento em que eu havia aberto os olhos pela manhã.
Joanne entrou em meu quarto.
— Como se sente hoje? — perguntou.
— Joanne, por favor, preciso falar com o Dr. Shawcross.
— Já te disse, Grace, que neste momento não será possível — lamentou.
— Mas se ele me ouvir, uma única vez, se eu puder explicar o que aconteceu, talvez ele
me deixe voltar para casa. Eu preciso voltar, Joanne.
— A melhor maneira de chamar a atenção do doutor, é mostrando a todos um
comportamento irrepreensível.
Sabia que Joanne me aconselhava com a melhor das intenções, mas não consegui evitar
lembrar-me de minha antiga tutora. A Sra. Smith. Sua voz irritante alcançou meus ouvidos, como
se estivesse ao meu lado novamente: “seja uma boa filha, Grace. Um dia você será uma boa
esposa e, depois, será uma boa mãe. E seu papel estará cumprido.” “Mantenha a boca fechada,
Grace”. “Uma moça recatada não pensa nessas coisas e muito menos fala disso, Grace”.
Tapei os meus ouvidos, como se pudesse fazer aquela voz desaparecer de minha mente.
— Você está bem, Grace? — A voz abafada de Joanne trouxe-me de volta. Era desses
momentos que eu tinha medo. De perceber que eu realmente sofria alucinações. Os sonhos, as
vozes... Será que eu estava realmente louca? Por um instante apavorante, pensei estar de volta ao
lado da Sra. Smith, enquanto ela me repreendia.
— Só estou com dor de cabeça — aleguei, retirando as mãos dos ouvidos. Não era
totalmente mentira.
— Fique aqui no quarto. Eu buscarei um remédio para você. Está bem? — concordei
com a enfermeira.
Sentei-me na cama já arrumada e alisei o lençol manchado. Sentia saudades do meu
verdadeiro quarto. Da cama grande e confortável, dos lençóis macios... De assistir Rosie dormir
tranquilamente ao meu lado na cama... lágrimas ameaçaram meus olhos. Pisquei rapidamente,
tentando segurá-las. Precisava manter minhas emoções escondidas. Nada poderia me declarar
como uma mulher instável.
— Aqui está — disse Joanne, abrindo a porta e entregando-me um copinho com o
remédio. Tomei o comprimido e devolvi o copo a bandeja de Joanne.
— Se quiser ficar no quarto, até se recuperar da dor de cabeça, não tem problema —
declarou a enfermeira.
— Eu vou fazer isso, Joanne. Obrigada.
Deitei-me na cama, acomodei minha cabeça no travesseiro e deixei que algumas
lágrimas escapassem. Meu peito doía de saudade e de medo. Eu odiava me sentir de mãos atadas.
Por que você fez isso comigo, Nolan? Eu fiz de tudo por nossa família, sussurrei baixinho,
encarando o teto branco.
A porta do quarto se abriu outra vez e assustou-me. Limpei meu rosto depressa,
tentando esconder que há pouco chorava, e sentei-me, apoiando as costas na grade da cama.
— Eu trouxe seu café da manhã. — Aaron aproximou-se com um prato de mingau de
aveia sobre uma bandeja e a depositou à minha frente. — Joanne me disse que você estava com
dor de cabeça e que por isso passaria o dia descansando. É o prato especial da casa. — Não sorri
de sua tentativa de piada.
Aaron vestia uma calça azul-marinho e camisa de mangas compridas da mesma cor. Os
suspensórios também eram escuros. Nunca tinha visto seus braços expostos, mas imaginava o
quão forte eram, já que marcavam tão bem suas roupas. Ele estava lindo, porém, sendo sincera
comigo mesma, duvidava que ele ficasse menos bonito ainda que usasse as mesmas roupas beges
que os outros internos costumavam usar.
Tentei desviar meus pensamentos de Aaron, mesmo ele estando ao meu lado. Era o que
eu sabia que precisava fazer.
Fiquei em silêncio. Apesar de sua gentiliza, eu não sabia o que falar. Ele também não
disse mais nada e andou de volta até a porta.
— Pode deixar a bandeja sobre a cômoda quando acabar, Grace. Descanse. — Eu acenei
com a cabeça e o vi se afastar pelo pequeno recorte na parte superior da porta. Vi também
quando uma mulher alta e loira, de batom vermelho, abordou logo à frente. Ela era muito bonita,
mais velha do que eu. Talvez tivesse a mesma idade de Aaron. Ela parecia exaltada. Era uma
discussão? Ela levantou a mão na direção de seu rosto e ele a deteve, segurando seu braço com
força. Tive a impressão de vê-la chorar. Em seguida, ouvi os passos duros do sapato de saltos
daquela mulher ressoarem pelo corredor.
Eu não sabia quem era ela e, por um segundo, a proximidade dos dois, que pareciam um
casal em uma discussão íntima, incomodou-me, mas deixei de pensar nisso, assim que me
lembrei de que precisava fortalecer meu corpo e sair de St. John, fosse liberada pelo médico ou
não.
Já dava a hora do almoço. Mesmo Aaron dizendo que eu poderia deixar meu prato de
comida no quarto, devolvi os utensílios à cozinha e servi-me com um pouco de sopa de batatas.
Andei até a sala de convivência ao lado. Olhei à minha volta, contudo não vi Aaron em
lugar nenhum, talvez estivesse muito atarefado com seu trabalho no prédio, ou talvez estivesse
fazendo as pazes com a mulher loira de batom vermelho. Não importava, não era da minha
conta. Terminei rapidamente minha refeição do almoço e voltei à segurança do meu quarto.
Em meu interior, odiava que este fosse meu quarto, mas, no momento, as coisas eram
como eram.
Adormeci em algum momento da tarde e, quando acordei, já havia escurecido. Todos já
haviam se recolhido e apenas o vento rompia o silêncio, cantando entre as frestas do Saint John.
Não havia muita iluminação natural em meu quarto neste momento, mas a que havia era
o bastante para enxergar a silhueta de um invasor dentro do canto escuro ao lado da porta.
Estremeci, juntando o lençol ao meu corpo. Senti-me vulnerável, ninguém com boas
intenções deveria se esconder nas sombras. Um pequeno ponto vermelho se destacava no escuro.
Senti o cheiro de cigarro. Eu não o achava ruim, eu até gostava, tinha vontade de experimentar,
mas Nolan nunca havia permitido.
— Quem está aí? — tentei parecer confiante em meu tom de voz, mas falhei, quase
gaguejando.
O vulto no canto do quarto mexeu-se.
Saindo da escuridão, vi o formato do corpo de uma mulher se aproximar. Era a mesma
mulher que discutia com Aaron pela manhã. Ela jogou o cigarro ainda aceso no chão e pisou em
cima, esmagando-o.
— Você não é tão bonita quando dizem — ela desdenhou.
Meus olhos enxergaram seu corpo. Ela era uma mulher ainda mais bonita de perto. Seu
rosto aparentava uma saúde que o meu não mostrava há muito tempo. Ela deu um passo à frente,
confiante, talvez pela experiência de uma mulher mais madura. Perto dela, eu me sentia uma
pobre coitada doente, o que não estava muito longe da verdade.
— Você costuma invadir o quarto das pacientes à noite? Seus superiores sabem disso?
Suponho que trabalhe aqui — disparei as perguntas, sentindo-me cada vez mais tensa.
— E o que você vai fazer? Me denunciar? Gritar e mostrar a todos que não passa de
uma jovenzinha histérica?
— Não sou histérica! — grunhi.
— Não é o que dizem. — Ela sorriu.
— O que você quer no meu quarto? — questionei.
— Eu vim te ajudar. Não é isso que amigas fazem? Ajudam umas as outras.
— Não somos amigas — retruquei.
— Podemos ser. É sempre bom ter uma amiga dentro de um... lugar como esse.
— E que ajuda você quer me oferecer...
— Shirley. Me chame de Shirley.
— Grace — disse meu nome, mas ela já sabia.
— Vim alertá-la: para sua própria segurança, você deve se afastar do senhor Walker.
— Walker... — repeti o nome, confusa com o rumo daquela conversa. — Não entendo o
que quer dizer.
— Ah, por favor! — exclamou ela. — Você é jovem e talvez até seja um pouco
inexperiente para algumas coisas da vida, mas não precisa fingir-se tola para mim. Conheço seu
tipo Grace. — Ela cantarolou a última parte.
Shirley inclinou-se para frente, deixando os seios quase escaparem do decote e,
espalmando as mãos no colchão, continuou a me encarar.
— Tem carinha de inocente, mas de inocente não tem nada — Seu tom era maldoso. —
Apesar disso, me compadeci de sua situação e vim ajudá-la. Não quero vê-la em perigo. — Ela
levantou-se e descansou um dos braços na cabeceira de metal de minha cama. — Ele parece ser
um homem comum, mas está longe disso. Ele gosta de brincar com fogo e não de um jeito bom.
Para sua segurança, é melhor manter distância dele.
— Você está me ameaçando? — perguntei, incrédula.
— Não! — respondeu, rapidamente. — Estou te protegendo. Aaron é um homem muito
perigoso. Por que você acha que ele está preso aqui?
— Não sei... — respondi baixo.
— A irmã foi encontrada morta em sua casa. Ela matou-se depois de ser violentada. —
A frase foi dita quase em um sussurro. — Ele matou o melhor amigo. Queimado ainda vivo! —
Ela soprou as palavras no meu rosto.
Senti meu corpo estremecer. Não pude evitar que as primeiras imagens em St. John
invadissem minha mente, assim que compreendi o que ela havia acabado de falar. Eram imagens
confusas: eu havia sido atacada. Alguém entrou em meu quarto e me atacou. Os olhos de Aaron.
Ele estava lá. Ele havia me atacado? Não, não havia. Não poderia ser. Poderia? A dor de cabeça
se intensificou. Levei as mãos à lateral de minha cabeça, massageando.
— Eu só estou te avisando, porque me preocupo com você. Uma jovem como você,
sozinha, largada à própria sorte... Ainda bem que você tem a mim, Grace.
Shirley abriu a porta devagar, espiou para fora do corredor e saiu andando
silenciosamente.
Demorei até conseguir voltar a dormir. Não conseguia lembrar-me completamente do
evento em que vi os olhos de Aaron. Não era possível que... senti meu estômago embrulhar e
desisti de tentar entender o que se passava em minhas lembranças confusas.

Na manhã seguinte, decidi levantar-me e tomar meu café da manhã antes de Aaron
aparecer. Comi o mingau na sala de convivência, como se estivesse há dias sem me alimentar.
Não queria acreditar no que aquela mulher havia falado, mas poderia acreditar nele?
Qualquer que fosse sua história, eu acreditaria?
Depois que se é abandonada pela pessoa que, um dia, prometera ser fiel a você, cuidar e
te proteger, em quem se pode novamente confiar?
Devolvi meu prato à cozinha e, assim que toquei na maçaneta da porta do meu quarto, vi
Aaron sair do seu. Ele parou ao meu lado.
— Já fez seu desjejum? — perguntou. Acenei, confirmando com a cabeça. — Ainda
com dor? Posso chamar Joanne e...
— Não é necessário — interrompi Aaron, desejando encerrar o mais rápido possível
aquela conversa. — Ficarei de repouso em meu quarto, deve bastar para minha recuperação. —
Meu tom era formal e distante. Os olhos de Aaron se estreitaram. Ele estava prestes a perguntar
algo, mas não o permiti. Abri a porta do quarto e a atravessei, sem olhar novamente em sua
direção.
Não demorou para que Joanne aparecesse e eu já desconfiava sobre quem a teria
enviado.
— Eu estou bem — digo a ela pela terceira vez.
— Espero que seja apenas uma dor de cabeça mesmo. Temos remédio para esse mal.
— Você conhece bem o Aaron? — perguntei, sem pensar muito a respeito do que ela
pudesse imaginar, sobre minha repentina curiosidade a respeito do meu colega interno.
— Bom... — ela iniciou, estudando-me. — Ele foi trazido até nós, como muitos dos
pacientes. Muito machucado e inconsciente. Sendo sincera, o Dr. Shawcross não nos permite ter
acesso à ficha de certos pacientes, são casos que ele considera “especiais”. O que foi passado a
nós é que deveríamos observá-lo de perto, dado o histórico dele.
— Como assim, “especiais”? — perguntei, sem entender.
— É melhor não falarmos sobre isso, poderemos ter problemas...
— Então você não sabe por que ele está preso aqui?
— Nenhum de vocês está preso aqui — refutou. — Estão em tratamento. — Bufei. —
Eu não sei de todos os detalhes — ela voltou a falar de Aaron.
— E o que você sabe? — insisti.
— Ao que parece, sua irmã suicidou-se e ele não soube lidar com a situação. Tem
problemas de raiva e... assassinou o melhor amigo, queimando-o vivo.
— Acha que ele machucou a própria irmã? E por que ele foi tão cruel com um amigo?
— perguntei, sentindo falta de ar.
— Eu não sei, Grace — disse ela, parecendo ser sincera. — Mas tome cuidado com ele.
É verdade que ele tem colaborado conosco, mas não podemos nos esquecer de que ele ainda é
um interno. Pode ser instável. Agora, tome o seu remédio e procure descansar. Amanhã deve sair
e aproveitar o dia no jardim. Não é bom que passe tanto tempo trancada aqui. Lembre-se de que
deve mostrar sua melhora: saindo do quarto e passando um tempo tranquilo ao ar livre. São as
pequenas coisas do seu dia a dia que ajudarão a atestar seu progresso.
Joanne já estava de saída quando a detive com mais uma pergunta, mesmo que já
soubesse a resposta.
— Como soube que eu estava indisposta, Joanne? — Ela apenas apontou a cabeça para
o quarto ao lado. Segurei um suspiro. Joanne atravessou a porta e deixou-me sozinha com todas
aquelas perguntas sobre o interno que dormia ao lado de meu quarto.
Capítulo 16
St. John
1911

Depois da minha última conversa com Joanne, procurei não pensar mais em Aaron. Eu
não sabia como encaixar o quebra-cabeças que era aquele homem. Duas pessoas me
confirmaram o que ele havia feito com o amigo, isso deveria ser motivo suficiente para manter-
me tão longe quanto possível. Aaron era um homem perigoso.
Eu tinha tantas coisas mais importantes com as quais me preocupar, senti-me culpada
por estar investigando a vida de um assassino, quando deveria estar preocupada apenas com
Rosalie.
A voz ensurdecedora da Sra. Smith voltava a mim, acusadora “você deve cuidar de seus
filhos, em primeiro e último lugar. Eu amava Rosalie mais do que tudo nessa vida e dividir meus
pensamentos entre ela e outro homem, ainda mais um que não era meu marido, não era certo.
Minha educadora me colocaria de castigo, se soubesse de meu mau comportamento. Eu não
podia colocar Rosalie de lado, ninguém desviaria minha atenção dela. Eu precisava ser a mãe que
me educaram para ser.
Imediatamente, uma torrente de pensamentos desastrosos se alastra por minha mente:
será que ela estava sendo bem cuidada? Será que Lucinda ainda estava em Red Rose? Se ela
estivesse, talvez eu pudesse ficar um pouco mais tranquila. Com Nolan, eu não poderia contar,
ele jamais seria o pai de que ela precisava...
Enquanto minha mente vagava para longe, as paredes continuavam a me oprimir, a me
sufocar. Ainda sobre a cama, dobrei os joelhos e os puxei ao meu peito. Como eu poderia livrar-
me deste lugar? E se eu conseguisse fugir, para onde eu iria? Meu Deus, o que eu fiz para
merecer esse destino?
Já era noite, quando meu estômago reclamou de fome. Eu havia passado o dia todo
sozinha em meu quarto, deixando tudo o que apavorava dominar minha mente e corpo, porque,
de alguma forma, parecia que era o certo, mesmo que não resolvesse em nada minha situação.
Evitar me preocupar até esgotar-me parecia o mesmo que deixar Rosalie desamparada e aceitar
minha situação em St. John.
Meu estômago reclamou novamente, precisava comer algo antes de tentar adormecer.
Andei silenciosamente até a porta de meu quarto e abri uma fresta devagar, para evitar o barulho.
Ainda assim, a velha porta rangeu um pouco. Coloquei a cabeça para fora, no corredor escuro.
Não enxerguei nada a minha frente. Nunca havia enfrentado tamanha escuridão antes.
Atravessei meu corpo pela abertura e fechei a porta atrás de mim. Caminhei devagar,
levando as mãos um pouco à frente do meu corpo, para proteger-me de um possível impacto
contra a parede. Eu sabia que a porta da cozinha ficava na outra ponta do corredor. Suspirei de
alívio quando alcancei porta de madeira do outro lado.
A cozinha tinha janelas enormes na parede lateral e a luz da lua, que atravessava o
vidro, era suficiente para que eu conseguisse me localizar. Andei até os armários e os abri um
por um. Encontrei alguns ingredientes, mas nenhuma refeição pronta. Será que não havia
sobrado nada das refeições do dia? Achava difícil, mas talvez eles guardassem as sobras em um
lugar diferente. Era improvável que, em um lugar como St. John, eles descartassem alimentos em
vez de reaproveitá-los.
Localizei um fogão e, sobre ele, uma panela grande. Quando tirei a tampa, vi um líquido
claro. Aproximei o rosto e senti o cheiro adocicado de leite. Voltei até um dos armários abertos,
busquei um copo e o mergulhei na panela sobre o fogão. O leite não estava quente, mas serviria
para aplacar a fome e me ajudar a dormir. Tomei todo o conteúdo do copo e me senti satisfeita
para alguém que não havia comido nada até então.
Com cautela, andei até a pia e encontrei um balde com água que parecia limpa.
Enxaguei a caneca e a sequei em meu próprio vestido, antes de devolvê-la ao armário. Não
perderia mais tempo, correndo o risco de ser pega. Não sabia quais seriam as penalidades, mas
tinha certeza de que o descumprimento do toque de recolher me traria problemas.
Silenciosamente, abri novamente a porta da cozinha, um pequeno feixe de luz, vindo das
janelas atrás de mim, alcançou o corredor. Não havia ninguém por perto. Atravessei a fresta da
porta e puxei o trinco atrás de mim. Estava imersa na escuridão novamente. Estiquei as minhas
mãos à frente, para evitar um acidente. Havia dado certo para chegar à cozinha e esperava que
agora me ajudasse a encontrar meu quarto.
Eu avancei alguns passos e não encontrei minha porta, minha mão alcançava apenas a
parede fria. Pensei estar andando em círculos ou na direção errada, porque não havia encontrado
tanta dificuldade para ir do meu quarto até a cozinha, e agora eu não conseguia encontrar o
caminho de volta.
Minhas mãos finalmente bateram em algo firme, porém, quente. Espalmei-as tateando
vagarosamente. Ele estava sem camisa, eu deveria recuar, mas em vez disso, meus dedos
moveram-se por seu peitoral duro e bem desenhado.
Ouvi um pigarrear e voltei um passo para trás, desequilibrando-me. Teria ido ao chão,
se não fosse pelas mãos fortes que agarraram minha cintura. Soltei um suspiro. Os braços que me
circularam eram fortes.
Senti meu corpo formigar ao entrar em contato com o seu.
— Não deveria andar pela escuridão — ele sussurrou ao meu ouvido, pondo-me ereta
novamente, mas ainda presa a ele.
— Estava com fome — disse, quase sem voz. O ar parecia me faltar.
— Eu poderia ter cuidado disso, mas você estava me evitando. Não estava, Grace?
Ele levou uma das mãos ao meu pescoço. Vozes gritaram em alerta dentro de minha
mente para que eu corresse, para que eu me afastasse daquele homem, que já haviam confirmado
ter matado o melhor amigo e sabe-se lá o que fizera com a própria irmã. Eu mandei minhas
pernas se moverem, mas elas não obedeceram. Eu sabia que deveria gritar, deveria reagir de
alguma forma, mas não fiz nada disso.
A verdade é que o calor do seu toque em minha pele mantinha todas as vozes presas.
Seus dedos ásperos deslizaram com suavidade, descendo e deixando um rastro de arrepios pelo
caminho, até alcançar o tecido fino que cobria meus seios.
Sua mão, com cuidado, ergueu meu rosto, como se eu pudesse enxergá-lo através da
escuridão. E, mesmo que eu não visse nada à minha frente, eu ainda podia sentir seu calor, seu
cheiro de menta e seu hálito morno alcançando-me e confundindo meus sentidos.
Ele manteve meu queixo preso entre seus dedos. Seus lábios tocaram a ponta do meu
nariz levemente. Seu rosto se afastou, e suspirei, soltando o ar preso em meu peito. Pensei que
ele deixaria meu corpo, mas ele voltou a aproximar-se e tomou minha boca em um beijo
avassalador.
Não era nem de longe suave ou doce, era selvagem. Abri os lábios, deixando que sua
língua explorasse cada canto de minha boca. Senti meu corpo amolecer. Eu nunca havia sido
beijada assim. Suas mãos começaram a passear por meu corpo, deixando uma marca de calor a
cada toque, contudo, quando ele chegou o meio de minhas pernas, eu congelei. O que eu estava
fazendo? Eu estava prestes a deixar um estranho, pior do que isso, um homem insano e
assassino, ter contato íntimo comigo. O único homem que já havia me tocado era meu marido.
— Está tudo bem? — ele perguntou, quase rouco.
— Preciso... preciso voltar ao meu quarto... — consegui dizer, saindo da sensação de
torpor que seu toque me causava.
Pensei que ele tentaria me deter, insistir, mas ele apenas girou meu corpo lentamente e
abriu a porta que eu buscava. Suas mãos abandonaram-me e senti como se tivesse acabado de
perder todo apoio que meu corpo usava para se sustentar. Paralisei por um instante, sem saber
como mover minhas pernas adiante. Virei meu rosto para trás e, com a pouca luz que invadia
meu quarto, tive apenas um vislumbre de seu corpo. Aaron vestia apenas as calças, eu já sabia,
havia sentido sua pele desnuda sob minhas mãos...
Ele deixou-me e atravessou a porta de seu quarto, sem dizer mais nada.
Capítulo 17
St. John
1911

Foi difícil para cacete deixar Grace na última noite. Eu a queria, mas quando ela recuou,
não pude insistir. Ela já passou por tanto desde que chegou aqui, não precisa que eu piore as
coisas para ela, apesar de que... Grace é linda e, puta merda, eu a desejo. Eu precisei me afastar,
assim que ela recuou, para não correr o risco de me tornar um deles.
Quando o dia amanheceu, busquei sair logo do quarto. Comecei a trabalhar ainda mais
cedo do que nos outros dias.
No café da manhã, enxerguei Grace em uma mesa afastada e sozinha. Ela estava com os
cabelos soltos e parte dos fios escondia seu rosto.
Joguei o prato ao seu lado e notei quando ela se encolheu.
— Assustei você? — perguntei.
— Não — ela respondeu apenas.
Comemos em silêncio, mas não era um silêncio tranquilo, era tenso, como se algo
estivesse prestes a se romper a qualquer momento. Seu corpo estava retesado e parecia ansiar por
manter distância de mim. Terminei de comer e deixei Grace sozinha. Não sabia o que pensar. Ela
parecia muito bem ontem à noite até que... ela afastou-se.
Deixei o trabalho ocupar minha mente, para não cair na tentação de ir atrás de Grace e
arrancar dela qualquer coisa que estivesse rondando sua mente, que agora parecia ainda mais
fechada.
Ouvi passos soarem na escada do porão e virei-me para ver Shirley, descendo devagar.
Havia sido um dia exaustivo e realmente não queria ter que lidar com ela agora.
— Eu mal coloquei os pés de volta ao Saint John e tive que ouvir que você anda dando
muita atenção a uma paciente... — ela disse, tentando conter os ciúmes, mas falhando
miseravelmente.
— E eu já te disse que o que eu faço não é da sua conta — declarei, sem me alterar.
— Vai ser se eu disser ao Dr. Shawcross que você é uma ameaça à vida dela e ele retirar
a jovenzinha louca do quarto ao lado do seu.
Subi as escadas e parei no mesmo degrau em que ela estava, ainda longe do chão.
— Você não deveria me provocar, Shirley — disse, bem próximo ao seu rosto. — Este é
um lugar perigoso e sabemos o quanto você gosta de andar por aí sozinha...
— Está me ameaçando? — perguntou, incrédula.
— Até parece que você não estava fazendo a mesma coisa, não é?!
— Estou falando isso para o seu bem. Ela é uma criaturazinha doente — choramingou.
— E não somos todos?
Avancei um degrau da escada e Shirley grudou as unhas afiadas em meu braço, tentando
deter-me.
— Você não teria coragem de me machucar, teria? — Ela pareceu ficar levemente
preocupada.
— Tente se meter na minha vida e você vai descobrir — disse tranquilamente. Shirley
soltou meu braço e subi as escadas, sem ouvir novamente sua voz que agora começava a parecer
bastante irritante.
Já era final do dia e eu havia estado na companhia de Grace apenas pela manhã. Senti-
me ansioso para vê-la novamente, mesmo que, pela manhã, ela parecesse tensa ao meu lado. Não
estava disposto a manter as coisas dessa forma por muito tempo. Olhei pelo vidro da porta de seu
quarto e não a avistei. A cama estava arrumada e nada parecia fora do lugar. Andei até a sala de
convivência e não a encontrei também. Detive-me na porta dos fundos do corredor. Ela estava no
pátio, ao lado de um cara vestido de branco. Encarei o perfil de seu rosto, mas não o reconheci.
Eles estavam conversando, Grace parecia à vontade com ele.
Cruzei os braços no peito, sentindo o maxilar travar. Exalei. Grace olhou em minha
direção, deteve-se, observando-me por um instante, e, quando o cara de branco se virou para trás,
enxergou-me. Eu percebi que ele havia me notado, mas preferiu fingir que não, voltando a
conversar com Grace como se já fossem íntimos. Aquele cara estava começando a me irritar. Ele
aproximou-se mais dela e disse algo, fazendo-a rir, com um pequeno sorriso. Eu nunca a tinha
visto sorrir. Teria sido lindo, se não tivesse sido direcionado a ele. Que inferno! Isso não estava
me cheirando bem.
Precisei controlar meus impulsos, para não ir até lá e trazê-la de volta ao quarto, no qual
sabia que ela estaria em segurança. E talvez aproveitar para ensinar a ela uma pequena lição
sobre os perigos deste lugar. Ela não se lembrava de nada do que havia acontecido com Martin,
porra!
— Ele é atencioso com todos os pacientes. — A voz de Joanne soou cautelosa atrás de
mim.
— De quem está falando? — disse, fazendo-me de desentendido.
— Do novo enfermeiro, Mathew — ela respondeu, como se fosse óbvio.
— Não havia notado que tínhamos um novo enfermeiro.
— Só estou dizendo que ele não é como Martin — disse baixo, para que apenas eu
ouvisse.
— E como você sabe? — questionei.
— Tem boas referências. — Ela deu de ombros.
— Até parece que isso é o bastante para confiar em alguém.
— Para o padrão de St. John, é algo quase inédito. Então se comporte. Você alcançou
um nível de liberdade que nenhum outro interno tem, apesar de seu histórico. Se quiser que as
coisas continuem como estão, não tente afugentar nosso novo enfermeiro.
— Como eu faria isso? — perguntei, dando-lhe o meu melhor sorriso.
— Eu não sei. Só me passou pela cabeça que talvez essa sua pose de assassino, prestes a
agarrar sua vítima em um beco escuro, possa não passar uma boa impressão.
— Se ele fugir por tão pouco, não servirá para este trabalho — afirmei, tentando soar
tranquilo, soltando os braços e os deixando relaxados ao lado do corpo.
— Apenas comporte-se, Senhor Walker — avisou-me, antes de me deixar sozinho.
Afastei-me da porta alguns instantes depois. Aquela cena estava mexendo mais comigo
do que eu gostaria. E, antes que eu fizesse algo impensável, era melhor voltar ao meu quarto.
Não poderia me aproximar de Grace neste momento, sem chamar mais atenção desnecessária. Se
o que Shirley disse há pouco fosse verdade, poderíamos ter problemas com nossa proximidade.
Não queria que ninguém tirasse Grace de perto de mim, onde eu sabia que ela estaria segura.
Eu não permitiria que fizessem isso.
Além disso, eu já havia aprendido que o único jeito de aguentar St. John era ser
esquecido, e fazia algum tempo que eu havia conseguido isso, precisava continuar sendo
invisível aos olhos de qualquer um ali. Mesmo que agora houvesse um par de olhos que eu
desejava intensamente que estivessem voltados para mim.
Senti vontade de extravasar, socando a cara de alguém ou queimando algo, até não
sobrar nada além de cinzas.
Meu corpo sentia falta das lutas e das chamas. E doía saber que eu nunca mais voltaria a
pôr meus pés em um ringue.
Eu deveria contentar-me em correr pelo pátio durante a noite, quando todos tivessem se
recolhido e controlar cada impulso que me fazia ter vontade de riscar um fósforo.
Capítulo 18
St. John
1911

Eu havia tomado café da manhã, se é que posso chamar aquela refeição sem sabor dessa
maneira, ao lado de Aaron. Sentia-me particularmente tensa naquela manhã.
A sua presença me dividia em duas.
Eu andava sentindo coisas que não queria nomear. Eu queria estar ao seu lado, mesmo
sabendo do risco que corria. Eu desejava seu toque, mesmo sabendo que deveria me manter o
mais longe possível.
E isso, sim, era loucura.
E como eu posso lidar com todas as complicações em minha vida neste momento? São
tantas perguntas que rondam minha mente: eu voltarei para casa? Serei considerada novamente
sã? Seria capaz de perdoar Nolan por nossa família, depois de tudo?
Eu precisava ser uma mãe preocupada com sua filha e apenas isso, ou poderia... não.
Não poderia ser nada além disso. Evitar Aaron é a única coisa certa a se fazer e, durante o
restante do dia, foi fácil.
Shirley não estava por perto, mas, de alguma forma, eu me sentia vigiada. Lembrar-me
da sua invasão em meu quarto me causava desconforto. Invadir meu quarto daquele jeito...
O sol aparecia parcialmente, tentando romper mais um dia nublado. Eu precisava sair do
quarto e mostrar-me bem-disposta, como Joanne havia me alertado. Saí pelo corredor e passei
pela porta dos fundos, encontrando o que eles chamavam de jardim.
Avancei até um dos bancos de madeira debaixo de uma das árvores. Era um banco
grande, maior do que aqueles dispostos nos parques por onde eu e Nolan, às vezes, passeávamos.
O vento trazia um frescor prazeroso. Sentei-me e fechei os olhos, inspirando devagar.
Precisava acalmar minha mente.
Quase pude sentir-me em casa novamente, ouvindo o farfalhar das folhas das árvores à
minha volta, porém, ao abrir os olhos, a imagem cinza do muro de pedras faz minha ilusão se
desfazer depressa.
— O dia está agradável — disse alguém ao meu lado. Virei-me e vi um homem
desconhecido. A roupa branca denunciava que ele trabalhava neste lugar. Parecia ter a idade
próxima à de Aaron. Ele era loiro como Nolan, mas, diferentemente de meu marido, seu olhar
não era presunçoso.
— Estaria melhor se eu pudesse aproveitá-lo em casa. — Minha voz não denotava
revolta, apenas melancolia.
— Não posso discordar — disse ele, surpreendendo-me.
— Eu não me lembro de já ter visto você aqui — declarei, desejando saber de quem se
tratava aquele homem.
— Comecei a trabalhar em St. John há pouco tempo — disse.
— Por que alguém escolhe trabalhar em lugar como esse?
— Às vezes, não temos outra escolha. — Não quis perguntar o que aquilo significava.
Era uma resposta incomum para alguém que escolhe a profissão que ele escolheu, mas quem era
eu para julgar qualquer pessoa?
— Está há muito tempo em St. John? — perguntou.
— Alguns meses... — respondi, triste.
— Me parece que você está se recuperando bem. — Encarei seus olhos, pareciam ser
sinceros. — Quero dizer, olhe para os outros internos. Você com certeza não está no mesmo
estágio que eles.
Observei alguns pacientes à nossa volta no pátio. Pareciam estar muitos distantes,
mesmo que seus corpos estivessem há apenas alguns passos de nós, entretanto não foram essas
imagens que me detiveram e, sim, a imagem de um homem de cabelos escuros e olhos claros, de
braços cruzados, parado ao lado da porta aberta do corredor. Estávamos a uma certa distância e,
mesmo assim, eu podia sentir sua intensa energia alcançando-me. Era paralisante, quase
sufocante.
— Ele com certeza deveria estar aqui — disse o enfermeiro ao rir, chamando minha
atenção de volta à nossa conversa. Observei seu semblante descontraído, diferente dos outros que
trabalhavam em Saint John.
— Como assim? Do que está falando? Você conhece o caso dele? — Havia certa
urgência em minha voz, mesmo que eu tentasse controlá-la. Ele pareceu ficar intrigado. Desviei
de seu olhar, sentindo-me envergonhada.
— Não tive acesso a todos pacientes, mas, de longe, posso ver que ele tem problemas —
disse em tom tranquilo. — Ele me lembra aqueles cachorros de briga. Raivosos e imprevisíveis.
Eu ri me sentindo aliviada por não ouvir a mesma história de Shirley e Joanne.
Levantei o olhar, procurando por Aaron novamente, porém ele não estava mais no
mesmo lugar. Aonde ele poderia ter ido? Uma lembrança surgiu, levando-me diretamente ao
nosso encontro no corredor, ao beijo, ao calor que meu corpo sentiu ao ser tocado por ele.
Fechei os olhos com força, tentando reprimir. Não deveria tê-lo em minha mente. Ele
não podia continuar ocupando meus pensamentos.
— Me chame se precisar de qualquer coisa — o enfermeiro disse. Abri os olhos e o vi
me direcionando um sorriso gentil. — Sou o Mathew.
— Grace — respondi apenas.
Continuei debaixo daquela árvore até o horário da última refeição do dia, quando
finalmente recolhi-me. Depois de alimentar-me na sala de convivência, voltei ao meu quarto. A
bacia com água e toalhas já estavam em cima da cama, para que eu pudesse me limpar. Sentia
muita falta de mergulhar todo o corpo em uma banheira. Na verdade, sentia falta de muitas
coisas...
Depois de vestir uma roupa limpa, estava pronta para dormir, contudo o sono fugia de
mim. Eu não entendia por que fechava os olhos e nada acontecia. Todos haviam se recolhido e
deveriam estar dormindo. A noite foi se tornando cada vez mais escura. Eu deveria estar
dormindo, repeti a mim mesma mais uma vez, mas não fez diferença.
Cansada de virar-me de um lado para o outro, levantei-me e calcei os chinelos. Abri a
porta devagar, esperando encontrar a mesma escuridão da outra noite, mas uma luz adentrava o
corredor, pela porta aberta ao fim dele. Estranhei e, sentindo-me atraída pela curiosidade, andei
até lá.
Talvez me fizesse bem respirar um pouco de ar puro. Encostei-me na porta e observei a
lua, que aparecia parcialmente sobre Saint John.
Ouvi algo entre as árvores à frente. Havia alguém lá fora, não muito longe. Forcei meus
olhos e consegui enxergar um homem correndo pelo pátio.
Eu deveria ter voltado ao meu quarto imediatamente, deveria ter dado a ele privacidade,
deveria ter prezado por minha segurança em primeiro lugar e, definitivamente, eu deveria ter
mantido meus olhos distantes, entretanto não consegui me mexer, eu mal conseguia respirar
enquanto o espiava correndo entre os troncos grossos de madeira. Seu corpo ágil se camuflava
entre as sombras.
Cada vez que eu tinha um vislumbre dele, sentia-me prestes a perder o fôlego.
Eu nunca havia enxergado um homem dessa maneira. Sentia-me culpada ao notar que
nunca vi Nolan desta forma ou que nunca senti meu corpo falhar ao seu lado, como acontecia ao
lado de Aaron.
Aaron parou de repente, como se só agora notasse que eu o observava. Ele deixou de
correr e começou a andar em minha direção. Eu precisava voltar, ou era melhor ficar e esperar
para explicar que... que...
— Não deveria estar fora do seu quarto a essa hora. — Seu tom não era apenas de
preocupação. Era intenso, quase raivoso.
— Eu... eu estava....
— Me observando — disse, mais relaxado, alcançando-me no corredor.
— Não! — protestei. — Eu precisava respirar um pouco, era só isso.
— Não respirou o bastante durante sua tarde? — Aquilo era uma cobrança?
— Eu acho que não te devo satisfação alguma, senhor.
De repente, tornei-me consciente de que estou sozinha no escuro e com um homem
perigoso. Eu deveria correr de volta ao meu quarto e nunca mais sair de lá à noite.
Viro-me dando um passo em direção a escuridão do corredor. Seu braço alcança minha
cintura, detendo-me, e, com um movimento rápido, Aaron me coloca de novo à sua frente.
Minha respiração ficou presa em meu peito.
— O que está acontecendo, Grace? — ele exigiu saber.
— Por que estaria acontecendo alguma coisa? — consegui dizer, apesar de não saber
por quanto tempo aguentaria aquela proximidade.
— Você sabe do que estou falando. Por que está me evitando?
Eu não sabia se deveria abrir a boca de novo. E se ele me beijasse... E se eu gostasse
tanto quanto gostei da outra vez? Disse a única coisa que poderia afastá-lo:
— Shirley. — Nunca vi olhos tão furiosos antes. Se eles queimassem, eu estaria em
chamas agora. Ele soltou minha cintura, deixando a pele formigando no lugar. Aaron pegou
minha mão, entrelaçando nossos dedos. Sua mão era grossa e áspera e, ainda assim, eu adorei
aquele contato.
Atravessamos a porta e pisamos no pátio escuro. Calmamente, Aaron fechou a porta do
corredor, no qual estávamos há poucos instantes, trancando-nos do lado de fora do prédio.
Seus passos foram à frente, guiando-me pela trilha de pedras no chão. Eu não disse
palavra alguma, mesmo que elas gritassem dentro da minha cabeça. Havia um alerta de perigo
berrando em minha mente, sobre o absurdo daquela situação e, ainda assim, meus passos o
seguiram.
Aaron parou em frente ao banco em que eu estive sentada naquela tarde enquanto
conversava com Mathew. Virando-se para mim, estávamos de novo frente a frente.
Senti-me tão pequena, encarando-o. A luz da lua, que rompia a escuridão da noite,
definia seus traços o bastante para que eu pudesse admirá-lo.
— O que foi que ela te disse? — exigiu saber.
— Ah... — Eu não sabia se queria repetir.
— Eu preciso saber — insistiu.
— Ela disse que... — Por que era tão difícil repetir o que aquela mulher havia me dito?
— Sua irmã foi encontrada morta em sua casa. Ela matou-se depois de... ter seu corpo violado...
e que você matou seu melhor amigo... queimado. Vivo.
— Ela não tinha o direito de contar sobre isso a você. Não agora. Eu mesmo teria
contado tudo em outro momento.
— Então é verdade? — perguntei, chocada, dando dois passos para trás. Ele não
respondeu. Não precisava. — Meu Deus! — exclamei, levando a mão ao peito. — Como... como
você pôde? Ela era sua irmã! — gritei, horrorizada.
— O quê? Do que você está falando? — perguntou, diminuindo a distância que eu havia
acabado de impor. Mantive meu corpo reto, apesar do tremor que sentia.
— Forçá-la. — Quase vomitei ao dizer aquilo. Era inconcebível.
— Eu nunca toquei em Amy, por Deus! Eu jamais... de onde tirou isso? — perguntou-
me perplexo. Fiquei sem reação.
— Shirley me disse que você veio para St. John depois de sua irmã ser violentada e
matar-se — consegui dizer, lembrando-me de parte do que eu soubera sobre Aaron.
— Sim. Porque eu matei o desgraçado que a violentou — disse, exasperado.
— Você não a... — Não pude concluir a frase.
— É claro que não! — afirmou com veemência. — Amy era minha irmã, eu teria dado a
vida por ela, jamais a machucaria.
Minha mente levou algum tempo para entender o que Aaron havia acabado de me falar.
Assim que absorvi suas palavras, dei-me conta de que eu acreditava nele. Por mais absurdo que
parecesse eu acreditar na história de um homem preso em um sanatório, eu acreditava no que ele
acabara de me falar.
O que quer dizer que eu também acreditava que ele era um assassino.
— Você matou o homem que a machucou? — perguntei novamente, mesmo já sabendo
a resposta. — Era o mesmo homem que você queimou vivo? Seu melhor amigo?
— Sim — ele confirmou, parecendo tentar controlar a raiva que surgia em seu
semblante.
— Foi o único homem que você matou? — perguntei, temendo a resposta.
— Não — ele admitiu.
— Os outros também foram queimados vivos?
— Um deles, sim. — Senti como se fosse vomitar. Ele era mesmo um assassino. Eu
sabia, eu sempre soube, e mesmo assim não consegui me afastar o bastante.
— Shirley disse a você que eu forcei minha irmã...? — indagou, rompendo o silêncio.
— Ela disse... não importa... eu devo ter entendido errado — tentei explicar-me.
— Ela não costuma deixar nada mal-entendido — disse. — Ela queria que você
acreditasse nisso.
— E por que ela faria isso? — perguntei, sentindo que já sabia a resposta.
— Para que eu não pudesse tocar em você. — Ele levantou a mão e segurou meu
queixo, erguendo meus olhos até os seus. Meu corpo estremeceu, mas eu não tinha mais certeza
se era de medo.
— Eu gosto de brincar com fogo, Grace — ele disse. — E se você me permitir, te farei
queimar sem que nenhuma chama toque em você.
Suas palavras flutuaram até meus ouvidos, causando arrepios por todo meu corpo. Eu
acreditava em cada uma delas.
Suas mãos foram para meu pescoço e ele segurou firme em minha nuca, minha cabeça
cedeu levemente para trás. Aaron abaixou sua cabeça, aproximando-se de meu rosto. Senti a sua
respiração tocar minha face e um novo arrepio percorreu por meu corpo.
Seu nariz roçou no meu e senti meu corpo enfraquecer com o toque suave. Seus olhos
continuavam intensos e eu me sentia presa a ele.
Sua boca se abriu e sua língua passeou por meus lábios, ainda fechados, como se os
experimentasse. Minhas pernas tremeram. Aaron desceu uma das mãos até minha cintura e
puxou meu corpo para junto do seu.
Senti sua pele ainda molhada pelo suor, quando minhas mãos circulam seu pescoço.
Aaron se afastou lentamente.
— Preciso que feche os olhos, Grace — ele disse em um sussurro.
— O quê? — Pensei não ter ouvido direito.
— Você confia em mim? — A pergunta era carregada de desejo. O mesmo desejo que
eu sentia correr em minhas veias.
— Sim — respondi apenas. Era verdade. Era a mais louca verdade. Eu confiava naquele
homem, que admitiu ter matado mais de um homem de forma cruel.
Eu estava louca, como nunca estivera antes.
Fechei os olhos.
Aaron os vendou com uma tira de pano, que exalava seu cheiro. Ele amarrou a tira atrás
da minha cabeça e levantou meu queixo, voltando a beijar-me. Era estranho não enxergar
absolutamente nada à minha frente, mas, ao mesmo tempo, era excitante ter cada toque ampliado
em meus sentidos.
Eu parecia ainda mais consciente dos seus lábios nos meus, de sua língua dentro de
minha boca. Ele levantou a barra de meu vestido. Ergui os braços, permitindo que ele me
despisse debaixo daquela árvore.
Ele tirou cada peça que cobria meu corpo e, depois, deu mais um passo para trás. Ouvi
os finos galhos se quebrando sob seus pés. Estava ansiosa com o que ele faria a seguir.
Ele se aproximou novamente e levantou meu corpo.
— Consegue enlaçar minha cintura com suas pernas, Grace? — ele sussurrou ao meu
ouvido. Sentindo-me tremula, obedeci.
Sua boca molhada experimentava-me, indo do meu pescoço até meus lábios. Quando
sua língua dançava no interior de minha boca, trazia uma sensação de prazer que se espalhava
por meu corpo, ansiando por mais. Eu não podia vê-lo, mas o sentia em cada parte de meu corpo.
Uma sensação de calor cresceu entre minhas pernas e aumentou minha necessidade de
contato. Minhas mãos circularam sua nuca, aprofundando nosso beijo até me sentir sem ar.
Aaron me carregou em seu colo até o banco de madeira, deitando-me de costas.
Meu corpo ainda tremia.
— Está com frio? — perguntou-me.
— Não — sussurrei apenas.
Ele aproximou-se outra vez e, depois de levantar uma de minhas pernas até seu ombro,
sua língua começou a passear suavemente por ela. Eu me sentia em contradição, não entendendo
as respostas de meu corpo. Como eu podia me sentir com frio e em chamas ao mesmo tempo?
Sua língua avançou chegando até minha coxa e, quando ele se aproximou da parte
interna, senti meu corpo enrijecer. Ele não me beijaria lá, beijaria?
— Está tudo bem, Grace — disse, calmo. Nunca havia sido beijada entre minhas pernas.
Como parte de uma criação mais reservada, eu ouvira de minha tutora que qualquer ato além da
penetração para a procriação era errado. Contudo, naquele momento, algo dentro de mim, algo
desconhecido que eu sentia emergir, ansiava por seu toque, seus beijos, onde quer que ele
desejasse me alcançar.
Relaxei as pernas, dando a ele o acesso que precisava.
Senti o calor de sua boca encontrar minha intimidade. No primeiro toque de sua língua
entre minhas pernas, um som abafado rompeu da minha garganta. Eu sentia como se fosse
desmanchar-me a cada novo avanço de língua, que deslizava quente e provocante por toda minha
extensão.
Ondas de calor passeavam por todo meu corpo, indo e vindo. Uma sensação de êxtase
crescia em meu interior com a mesma intensidade que Aaron devora-me.
Minhas mãos que se apoiavam no banco foram parar em seus ombros fortes. Um
gemido alto escapou de minha garganta. Eu me sentia prestes a explodir.
— Queime, Grace. Queime comigo — Aaron pronunciou rouco por um instante, e logo
sua língua molhada tomou-me novamente. Meu corpo explodiu em chamas e eu me deixei
queimar.
Minhas costas arquearam e minhas unhas cravaram em sua pele, enquanto fortes
espasmos atingiam-me, fazendo sons, que eu nunca havia pronunciado antes, serem anunciados
ao vento.
Meu corpo desabou no banco. Coloquei uma mão sobre o meu peito, que subia e descia,
como se eu tivesse acabado de correr por uma longa distância sem descanso.
Aaron se inclinou sobre mim, senti o peso de seu corpo cobrir-me. Ele voltou a
distribuir beijos por minha pele desnuda. Quando alcançou meus seios, seus dentes brincaram
com leves mordidas, fazendo meu corpo se aproximar ainda mais do seu. Meus dedos
formigaram de vontade de tocá-lo por inteiro. Passei as mãos sobre seu peito e desci pelos
ombros até seus braços. Havia uma textura diferente em seu braço direito. Parecia ser uma
extensa cicatriz. Minha mão recuou, como se fosse errado tocá-lo naquela parte.
— Algum problema, Grace? — perguntou-me.
— Posso tocar em seu corpo? — questionei, sentindo-me subitamente insegura.
— Pode tocar qualquer parte do meu corpo — respondeu-me, entre beijos e mordidas.
— Desde que não retire a venda de seus olhos — alertou-me. Havia perigo no seu tom de voz.
Ele intensificou as mordidas em um dos bicos dos meus seios, enquanto circulava o
outro com os dedos. Meu corpo reagia ora juntando-se ao seu, ora fugindo do contato, como se
não fosse aguentar tamanha sensação de prazer. E, quando achei que não suportaria mais esperar,
senti sua ereção preencher-me por completo.
Arfei, levantando as costas e colando meu corpo ao seu.
Entre as estocadas, que faziam meu corpo vibrar, novos gemidos começaram a escapar
por meus lábios. Aaron tomou minha boca e senti meu gosto em seus lábios e língua, que
continuavam a me devorar. Nada parecia errado naquele momento e, a cada novo movimento de
Aaron, eu me entregava mais.
Abracei seu tronco com minhas pernas, dando a ele toda passagem que precisava. Seu
ritmo se tornou ainda mais intenso e então ele se derramou dentro de mim.
Uma corrente de satisfação atravessou meu corpo.
Aaron girou meu corpo sobre o seu, deitando-me sobre ele. Eu não sentia mais o banco
de madeira em minhas costas e, sim, o calor de sua pele junto à minha.
Aproximando seu rosto do meu, ele beijou-me de maneira carinhosa. Era um beijo leve,
suave.
Afastei-me e repousei em seu ombro. Bocejei, sentindo-me exausta. O sono começou a
apossar-se de mim.
Capítulo 19
St. John
1911

Espreguicei-me e meu corpo reclamou por causa da dor. Estava de volta ao meu quarto.
Não me recordava de como havia retornado, mas lembrava-me de cada detalhe da última noite.
Desta vez, eu não tinha dúvidas sobre o que tinha acontecido. Por um segundo, a culpa quis
afrontar-me, mas recusei-me a aceitar um sentimento tão venenoso em minha mente, quando
tudo o que fiz foi permitir-me ter uma noite única.
Havia sido bom, muito bom e, mesmo assim, eu não pensava em repetir a dose. Eu
jamais poderia ser tão inconsequente. Foi uma coisa de momento e eu sabia que não podia ser
irresponsável a ponto de permitir que repetíssemos.
Lembrei-me de que logo encontraria Aaron na sala de convivência, para o desjejum.
Havia sentimentos conflitantes dentro de mim. Eu queria vê-lo, ao mesmo tempo que temia o
reencontro.
Lavei meu rosto e troquei de roupa. Depois de arrumar minha cama, estava pronta para
enfrentar o dia que se seguiria. Ou não.
Já estava com a mão no trinco da porta quando ouvi vozes abafadas, vindas do quarto ao
lado. Aproximei-me da parede e colei os ouvidos para tentar entender o que se passava. “Você
não tem esse direito. Vai enjoar dela e voltar correndo atrás de mim. Ela não pode te dar o que
eu posso...” Alguém dizia. “Cala a boca”. Ouvi a voz Aaron.
Estavam discutindo, eles baixaram o tom de voz e só pude ouvir sussurros. Decidi sair
logo do quarto, em vez de ficar espionando Aaron. Abri a porta e, assim que pisei no corredor, vi
Shirley saindo da porta ao lado. Ela lançou-me um olhar furioso, quis me encolher, mas me
mantive ereta. Ela ajustou o vestido vermelho, da mesma cor do batom nos lábios, puxando-o
para baixo em um movimento exagerado, e saiu andando depressa na direção contrária em que
eu me encaminhava.
Aaron apareceu ao meu lado, parecendo irritado. Ele abriu a boca para dizer algo, mas
levantei a mão detendo-o.
— Não quero saber — disse e saí andando deixando-o para trás. Na verdade, eu queria
saber. Mas que direito eu tinha de exigir qualquer explicação? Eu ainda era uma mulher casada.
Precisava me lembrar disso, mesmo que Nolan não merecesse nada de mim há muito tempo e eu
tivesse me negado a enxergar o quanto meu casamento... Eu odiava me lembrar...
Estava ainda mais claro porque Shirley havia me procurado e tentando me fazer sentir
medo de Aaron. Eles tinham alguma coisa... Mesmo sabendo que era errado da minha parte, não
consegui evitar me sentir enganada. Eu me sentia ficando mais louca.
Sentei-me em uma mesa distante daquela que costumávamos ocupar na sala de
convivência. Eu estava cercada por pacientes que, antes, eu não me preocupava em notar, e o
melhor era que não havia lugar para Aaron naquela mesa. Era um alívio e uma tormenta, ao
mesmo tempo, saber que ele se manteria distante. Ainda assim, senti que seus olhos me vigiavam
de longe.
— Já conhece todo o prédio de St. John? — A voz de Mathew soou atrás de mim.
— Na verdade, nunca tive interesse — confessei, afastando meu prato para o lado.
— Mesmo?! Por quê? — perguntou, interessado.
— Não quero enxergar St. John com familiaridade. Quero voltar para minha casa e
quanto menos memórias eu tiver desse lugar, melhor será para esquecer que, um dia, estive aqui.
Era verdade, em parte.
— Mas evitando St. John, pode acabar deixando passar alguma boa descoberta. — Olhei
para ele em dúvida. — Há uma sala no segundo andar, na qual guardamos materiais para
desenho e pintura, e até alguns livros. Podem ser uma boa distração, além disso aqui — disse,
apontando em volta.
— Não sei desenhar. Não sou boa com artes.
— Posso te ensinar — disse, pacientemente. De novo, olhei para ele em dúvida. — Pode
ser uma boa terapia — completou.
O barulho de passos duros ressoou perto de nós. Eu não precisava virar o rosto para
saber de quem se tratava. Aaron não disse nada ao passar por nós, apenas desapareceu pelo
corredor.
— Venha. Eu te mostro — disse Mathew, erguendo a mão em minha direção. Aceitei
seu apoio para levantar-me e sair da mesa.
Havia uma escadaria naquela direção, antes do final do corredor. De um lado, por onde
seguíamos, havia a saída pela porta da frente, na recepção do Saint John, e do outro lado, deste
mesmo corredor que já havia se tornado tão familiar, estava o pátio dos fundos, cercado pelos
muros altos de pedra.
A minha vontade era de sair correndo, atravessar aquele quadrado à minha frente e
deixar Saint John pela porta de entrada, como se os últimos meses nunca tivessem acontecido.
Eu não conseguia enxergar a entrada por completo, de onde estava, mas sabia que existiam
guardas de prontidão durante o dia e à noite, para evitar fugas do sanatório.
Voltei meus olhos as escadas à minha esquerda. Subindo os degraus, chegaríamos ao
segundo piso do prédio e, descendo a mesma escadaria, acabaríamos no porão. O caminho que
levava para baixo estava envolto em sombras.
— Mathew — Detivemo-nos antes de pisar no primeiro degrau, que nos levaria ao
segundo piso, quando ouvimos Joanne chamar. — Preciso de sua ajuda. Um paciente agitou-se
na sala de convivência. Precisaremos contê-lo.
— É claro — respondeu Mathew imediatamente. — Grace, a sala de artes é subindo as
escadas na segunda porta à direita. Ao lado do consultório do Dr. Shawcross. Está aberta. Fique à
vontade. Assim que eu resolver a situação aqui, estarei lá para te auxiliar. Tudo bem? —
perguntou ele.
— É claro — Assenti. Vi Mathew e Joanne se afastarem e voltarem à sala de
convivência.
Dois braços fortes envolveram minha cintura, girando meu corpo de encontro ao seu.
Bati contra o peito de Aaron com força. Sem tempo para reação, ele jogou-me sobre seus
ombros, como se eu não pesasse nada e me carregou em direção à escuridão.
Passamos por uma porta que foi fechada silenciosamente por ele e descemos ainda mais,
agora por escadas de madeira que rangiam, até que finalmente alcançamos o piso de terra.
Meu corpo quase foi jogado sobre alguns caixotes de madeira que fediam a mofo.
Olhei em volta, tentando enxergar o lugar onde estávamos. A maior parte estava coberto
pelas sombras, mas, pela direção que tomamos, acreditava que estávamos no porão. Pouca luz do
dia entrava pelas aberturas no alto da parede de pedras atrás de mim.
Havia uma camada grossa de sujeira sobre as caixas onde eu estava. Recolhi minhas
mãos batendo uma na outra quando senti tocar em algo leve e ligeiramente pegajoso. Poderiam
ser teias de aranhas, esse lugar deveria ter muitas delas. Encolhi-me com o pensamento.
— O que eu te disse sobre andar por aí sozinha? — Aaron questionou-me, irado, parado
à minha frente, ignorando o fato de ter me arrastado para este lugar escuro e úmido sem dizer
uma única palavra.
— Eu estava com o enfermeiro Mathew — respondi, defendendo-me do seu tom de voz
acusador.
— E vocês estavam indo aonde? — perguntou, começando a andar de um lado para o
outro impaciente.
— Sabia que tem uma sala de artes no segundo andar? — disse, cruzando os meus
braços em frente ao peito.
— É claro que sei! Conheço cada canto deste lugar de merda!
— Você fala como se eu estivesse prestes a fazer algo errado. Não estávamos indo fazer
nada além de alguns rabiscos em um papel — grunhi.
— Aposto que ele gostaria de rabiscar em outra coisa.
— E qual seria o problema? — retruquei, sem pensar. — Você se diverte com a Shirley
e eu com o Mathew — afirmei, deixando os ciúmes falar mais alto. Odiei-me por isso. Eu
deveria estar discutindo com Aaron sobre ele ter me arrastado para este lugar fedido e não sobre
com quem ele anda se divertindo, entretanto, meus pensamentos e minha boca não pareciam
estar em sintonia.
— Eu não tenho nada com a Shirley — disse, voltando-se para mim e espalmando as
mãos ao lado do meu corpo. Quando deixou seu rosto próximo ao meu, senti meu coração bater
mais forte no peito.
— Mas já teve? — Por que eu estava insistindo nisso? Não deveria me importar. Eu
sabia que não, mas...
— Estou tentando muito não castigar você por não me escutar — ele sussurrou em meu
ouvido. Senti um calafrio percorrer meu corpo.
— Não deveria ter me arrastado até aqui — retruquei, tentando falar do que era
realmente importante.
— Seria melhor te repreender na frente de todos? — pergunta, ainda próximo ao meu
rosto.
— Não sou uma criança para ser repreendida — protestei. — Eu sou uma mulher de
vinte e dois anos.
— Então não aja como uma menina inconsequente — ele proferiu, irritado.
— Por que você é um homem experiente e sabe do que está falando, não é? Você com
certeza sabe o que é melhor para mim — disse, em tom sarcástico.
— Sim, meus anos a mais me fazem mais experiente. Você nem pode imaginar a vida
que tive antes daqui, mas estes não são os anos que importam. Os três últimos anos no Saint John
me mostraram mais da vida do que os trinta anos anteriores a eles. E quando digo que você não
deve fazer algo, porque não é seguro, você precisa me ouvir.
Ele terminou seu discurso exasperado, quase sem fôlego.
— Não fique sozinha com nenhum homem deste lugar. Está me ouvindo? — Ele voltou
a falar, antes depois de respirar fundo. Tentando se acalmar.
— Isso inclui você? — Minha língua afiada pronunciou a provocação, sem que minha
mente pudesse impedir.
— Você quer ficar longe de mim? — Seus lábios se abriram levemente e ele sorriu. Mas
não era um sorriso de felicidade. Era um sorriso malicioso. Um convite silencioso que eu
desejava muito aceitar.
Aaron afastou seu rosto, mas manteve os braços estendidos ao lado do meu corpo.
— Quer que eu me afaste, Grace?
A maneira como ele pronunciava meu nome mexia comigo. Era doce e provocante ao
mesmo tempo. Meu corpo ansiou por ele novamente. Cada sinal de alerta havia sido silenciado.
Nada podia evitar com que eu me entregasse. Eu senti em cada pelo que se arrepiou ao lembrar-
me de seu toque, seus beijos, sua língua... Puxei sua camisa, trazendo-o de até mim.
— Hoje não — confessei, surpreendendo a mim mesma.
Aaron começou a beijar a minha boca, tomando meus lábios para si. A profundidade de
seu beijo espalhou calor por todo meu corpo. Uma urgência por mais contato crescia em meu
ventre a cada segundo a mais que seu beijo durava.
Enlacei meus braços atrás de seu pescoço, trazendo-o para mais perto, até estarmos
colados um no outro, meu corpo precisava do seu. Aaron se afastou de repente, rompendo nossa
proximidade para segurar meu queixo com força e me forçar a encará-lo.
— Você precisa me prometer que não ficará sozinha com algum outro homem. — Seu
agarre não era gentil e seus olhos eram duros. Vi, pela primeira vez, um anúncio real de perigo.
Não entendi o motivo de tal exigência, mas tinha certeza de que ele não se daria por satisfeito até
que eu concordasse. Ainda sem fôlego eu apenas acenei com a cabeça, mas não foi suficiente
para ele. — Prometa! — exigiu.
— Prometo — disse, rapidamente.
— Feche os olhos, Grace — Eu sabia o que viria a seguir. Obedeci. Aaron soltou meu
queixo, depositando beijos suaves no lugar. Senti o tecido circular minha cabeça, forçando meus
olhos a se manterem fechados. — Não retire a faixa de tecido. Eu farei isso no momento certo.
— Acenei, concordando.
Ele se aproximou ainda mais, expirou ao pé do meu ouvido e senti todo o meu corpo se
contrair em resposta. Cada toque seu parecia fazer meu corpo se encaminhar para um completo
colapso.
Aaron tirou meus braços de dentro da manga do vestido abaixando-o até minha cintura.
Aproximando-se ainda mais, ele se encaixou entre minhas pernas, enquanto descia sua cabeça
até meu pescoço inspirando o aroma de minha pele. Ele passou a circular meus seios com os
dedos. Apertando-os em sua palma áspera.
Seus lábios quentes deslizaram por meu pescoço, explorando minha pele. A sua língua
criava um rastro de calor por onde passava. Os beijos foram se tornando mais fortes, até
encontrarem meus seios. Então ele os tomou com voracidade. Senti mordidas ardidas marcando-
me, circulando a aréola com os dentes. Eu teria gritado, se não me faltasse o ar.
Sua boca deixou meus seios e subiu até a minha. Meus lábios se abriram e sua língua me
tomou. Não havia rastro algum de gentileza em seus movimentos, apenas uma fome possessiva,
à qual me rendi.
Uma de suas mãos tomou o lugar do tecido que cobria minha intimidade e começou a
tocar o meio de minhas pernas, intensificando em mim o desejo por mais dele, enquanto a outra
mão segurava firme em minha cintura.
Os movimentos de seus dedos no meio de minhas pernas eram agressivos, busquei sua
boca com mais vontade, como se pudesse aplacar a necessidade que crescia em meu interior. Um
de seus dedos adentrou meu interior molhado. Suspirei, deixando seus lábios e estendendo minha
cabeça para trás. Aaron introduziu mais um dedo em minha cavidade, enquanto continuava a me
estimular por fora.
Meu corpo reagia pedindo por mais, exigindo-o mais perto. Dancei com o quadril em
seus dedos, sentindo o calor sob minha pele queimar-me por inteiro. A sensação de descontrole
aumentava. Endureci minhas pernas em torno de seu corpo, enquanto meus braços seguravam
firme na borda do caixote sobre o qual eu estava.
O ar preso em meu peito foi liberado, passando por minha garganta e preenchendo o
ambiente com gemidos intensos. Aaron usou a mão que antes apertava minha cintura para tapar
minha boca.
Eu sabia que deveria ser silenciosa, mas, no momento, não me importava com isso.
Mordi seus dedos com força, contudo ele não liberou minha boca, mantendo abafado o som que
eu produzia.
Uma onda intensa de prazer passou por todo meu corpo. Senti-me amolecida em
seguida, deitando minha cabeça sobre o peito de Aaron.
Sem se afastar, ouvi quando Aaron abriu sua calça, deixando-a cair aos seus pés. Senti
seu membro duro e ereto pronto para me consumir tocar o meio de minhas pernas. Eu estava
perdida e não me importava.
Aaron livrou meu corpo das minhas roupas e as jogou de lado. Ele voltou a me beijar,
antes de me penetrar. Grudei minhas pernas em suas costas, deixando que seu corpo tomasse o
meu por completo.
O som de nossos corpos, sendo arremetidos um contra o outro, rompia ao silêncio
daquele lugar escuro e úmido. Procurei por sua camisa e a abri com força rompendo alguns
botões para aplacar o desejo de ter minhas mãos tocando seu tronco. Explorei seu corpo forte,
enquanto ele continuava a consumir-me.
Segurando firme em minha cintura, Aaron desceu-me até uma caixa de madeira mais
baixa, colocando-me em pé. Sem falar nada, ele virou meu corpo, fazendo minhas costas baterem
em seu peito.
Em seguida, puxou meus cabelos com força, livrando meu pescoço. Voltou a arremeter
enquanto sugava o suor fino sobre minha pele, sedento. Arrepios corriam livres sobre a minha
pele.
Espalmei minhas mãos à frente, sentindo as farpas de madeira e ignorei cada uma delas.
A força bruta dos movimentos de Aaron me fazia querer gritar de dor e de prazer na mesma
intensidade.
Seus dedos apertaram minha cintura com mais força, até que suas estocadas intensas
preencheram-me com seu líquido morno.
Aaron juntou os braços em volta de minha cintura, puxando-me ainda mais para si.
Deixei meu corpo descansar no seu, ele abaixou a cabeça e beijou meu ombro demoradamente.
Nós dois estávamos suados e satisfeitos.
— Como vamos sair daqui sem que percebam o que acabamos de fazer? — perguntei,
voltando à realidade.
Afastando meu corpo devagar do seu, Aaron limpou delicadamente meu rosto, secando
minha pele.
— É o que temos de mais limpo aqui — justificou ele, passando o tecido que imaginei
ser sua própria camisa. Ele se afastou novamente para vestir-se e somente depois retirou a faixa
de meus olhos.
Seus olhos varreram meu corpo.
— Não acho justo que você possa me ver nua e eu não possa vê-lo da mesma maneira
— disse com ar de divertimento.
— Não acho que você vá querer ver-me nu — ele rebateu.
— Eu devo discordar.
— Eu vou espiar o corredor — disse, mudando de assunto. — Se não houver ninguém,
você corre até seu quarto para limpar-se.
— E você? — perguntei, preocupada.
— Farei o mesmo, mas depois que você já estiver segura em seu quarto. — Assenti,
concordando. — Não esqueça do que me prometeu — disse, passando os dedos por minha
bochecha. Suspirei, mas não discordei.
Antes de sair do porão, estávamos vestidos completamente de novo, mas agora parecia
que tínhamos passado o dia trabalhando em alguma fábrica suja de carvão. Pouco tinha
adiantado a tentativa de limpeza de Aaron. De maneira nenhuma poderíamos ser vistos
atravessando aquele corredor, no estado que nos encontrávamos.
A porta do porão se abriu devagar e atravessamos silenciosamente. Andamos nos
escorando ao lado do corrimão protegidos pelas sombras. Aaron deteve meu corpo no meio da
escada e subiu o restante dos lances sozinho, ainda se ocultando.
Quando retornou até mim, guiou-me pela mão, protegendo-me com seu corpo à frente.
Ele levou parte do tronco adiante, olhando depressa nas duas direções e recuando em seguida.
— Vá rapidamente, mas em silêncio — sussurrou em meu ouvido. Assenti.
Passei à sua frente e avancei rápido até o último degrau, atravessando a passos largos o
corredor. Não respirei enquanto meus passos acelerados cruzavam o espaço da escadaria até
minha porta. Tinha medo de soltar o ar e ser surpreendida por alguém. Alcancei a maçaneta da
porta e entrei no quarto.
Um suspiro pesado deixou meu peito. Havia conseguido. Esperava que Aaron
conseguisse também. Saí de trás da porta me escondendo no canto do quarto, limpei-me com
água e toalhas limpas.
Antes de vestir-me novamente, ouvi uma batida na parede. Foi uma batida única e
firme. Não havíamos combinado sinal algum, mas eu soube naquele momento que Aaron
também havia conseguido retornar ao seu quarto.
Estávamos livres de apuros, por ora.
Capítulo 20
St. John
1911

Era a segunda vez que eu gozava dentro de Grace, assumindo um risco que não deveria.
Ainda assim, parecia tão certo, mesmo sendo errado. Porra! O que eu estava fazendo? Eu nunca
havia me deixado levar desta forma antes.
Depois de limpar-me e vestir outra roupa, subi até a sala de artes no segundo piso do
prédio de St. John. Eu conhecia a sala, mas nunca a havia frequentado como interno. Não havia
ninguém lá dentro, o cômodo continuava inalterado, como em todos os outros dias.
Alguns livros velhos ocupavam parte da estante de madeira escura e um cavalete com
papel para desenhos e pinturas estava disposto no meio da sala. Abri o armário de metal perto da
porta. Poucas tintas e alguns lápis coloridos estavam guardados.
— Não sabia que tinha interesse pelas artes. — A voz de Mathew invadiu o ambiente.
Fechei a porta de metal do armário.
— E não tenho — declarei.
— Então o que faz aqui? — indagou.
— Meu trabalho.
— Não vejo o material de limpeza por perto — disse, olhando em volta.
— Porque já terminei. — Sorri. Por sorte, havia limpado este cômodo há pouco tempo
e, como quase nunca era frequentado, mantinha-se intacto.
— E Grace? — perguntou, encarando-me.
— Não a vejo por aqui e você? — declarei, fazendo-me de tolo.
— Você sabe que é terminantemente proibido para os pacientes se relacionarem entre si.
Não sabe? — disse mais baixo, aproximando-se de mim. Como se eu quisesse mais de sua
presença desgastante.
— Assim como é para os funcionários — retruquei.
Mathew cruzou os braços em frente ao corpo e encarou-me.
— Grace é uma paciente do Saint John e vou zelar por sua recuperação e segurança.
— Assim esperamos — declarei, irônico, encaminhando-me para a porta.
— Não posso deixar que alguém se aproveite do estado frágil de uma paciente. Ainda
mais uma tão jovem...
Apertei o trinco da porta com força até ver minha mão tornar-se branca. Aquele filho da
puta estava me acusando de ser um aproveitador?
— Eu nunca me aproveitaria de uma mulher — retruquei. — E Grace tem vinte e dois
anos — completei, sentindo uma vontade súbita de esclarecer a questão.
— E você tem quantos anos mesmo? Trinta e três?
— Está insinuando algo, enfermeiro? — perguntei, olhando para trás e o encarando. Eu
não devia provocá-lo, mas ele estava conseguindo me irritar.
— De maneira nenhuma — ele disse. — Estou apenas comentando com um dos internos
do Sanatório Saint John o quanto sou comprometido com meu trabalho.
Senti meu maxilar travar. Eu, definitivamente, não gostava dele. Abri a porta e apontei
com o braço para o corredor vazio à nossa frente, dando sinal para que ele deixasse a sala. Não
tinha nada de seu interesse naquele cômodo e nós dois sabíamos disso. Eu não confiava nele.
Não confiava em nenhum deles.
Mathew não disse mais nada, apenas passou pela porta, indo em direção às escadas.
Segurei cada impulso de meu corpo para não socar sua cara presunçosa. Fechei a porta
da sala de artes e desci as escadas para buscar o material para a limpeza dos quartos do segundo
andar.
Sabia que não poderia deixar que as falas ácidas de Mathew me afetassem. Aquele filho
da puta não sabia do que falava. Nem sequer confio em seu comportamento, por que daria
ouvidos a qualquer coisa que ele dissesse? Tentei expulsá-lo de minha cabeça.

Os quartos dos pacientes do segundo andar eram do mesmo tamanho e continham os


mesmos móveis do que os quartos do primeiro andar, mas estes tinham portas de metal. Não
tinham vidro na parte superior e, sim, uma grade aramada. Os internos só saíam daqui com ajuda
dos cuidadores. Eram pessoas que não podiam ficar sem vigilância em momento algum. Aqui,
estavam os casos mais graves de St. John. Quando havia chegado ao sanatório, fiquei, nos
primeiros meses, preso em um destes quartos. Eu tive pesadelos, mesmo depois de passar a
dormir no primeiro andar.
Agora, eu entrava naquele lugar com tanta normalidade que nem prestava atenção se os
pacientes, que ali estavam, ao menos notavam minha presença.
Havia os internos silenciosos, que pareciam nem saber onde estavam, e os que gritavam
por horas seguidas, em momentos de crise. Estes últimos costumavam entrar em minha mente e
me deixar quase tão perturbados quanto eles mesmos. Alguns ainda passavam tanto tempo
amarrados em suas camas que formavam feridas nos seus punhos e tornozelos.
Durante todo o dia, não procurei por Grace. Ao anoitecer me recolhi em meu quarto,
mas logo decidi sair em meio à escuridão para assaltar a cozinha. Havia pulado as últimas
refeições e, agora, meu estômago protestava.
Não era incomum para mim sair à noite, para buscar algo para comer, e, em todas as
vezes, eu cuidava para deixar tudo exatamente como havia encontrado.
Na volta ao meu quarto, parei em frente à porta do quarto de Grace. Ela se virava de um
lado para o outro, inquieta na cama. As palavras de Mathew voltaram à minha mente.
Eu precisava passar aquilo a limpo.
Desci até o porão e busquei uma lamparina. Acendi-a e andei silenciosamente ao quarto
de Grace. Abri a porta, até ter espaço suficiente para meu corpo atravessar.
Grace sentou-se rapidamente na cama, puxando o lençol para si. Seu rosto relaxou
apenas quando enxergou o meu. Senti-me feliz por vê-la se tranquilizar ao notar que era eu quem
adentrava seu quarto, mas, mesmo assim, eu precisava ouvir dela que estava bem com o que
acontecia entre nós. Um medo irracional ameaçou-me. E se ela pedisse para que eu me afastasse?
Como eu lidaria com isso? Eu precisava dela. Da minha Grace.
— Não queria assustá-la — disse, deixando a lamparina no móvel de metal ao lado de
sua cama.
— Tenho recebido muitas visitas indesejadas, mas você não é uma delas. — Grace
sorriu, fazendo com que eu me sentisse ainda mais feliz por ser um sorriso sincero e, desta vez,
direcionado a mim. Não sabia que algo tão simples poderia causar uma sensação tão boa.
Afastando-se um pouco para o lado, Grace deixou livre o espaço no seu colchão para
que eu me acomodasse. Sentei-me, deixando minhas costas descansarem na grade da cama.
— Por que você está aqui, Grace? — perguntei, olhando para os traços delicados de seu
rosto.
— Acha que é possível que uma pessoa fique louca só de estar em um certo lugar? —
perguntou-me.
— Se este lugar for o Saint John, sim. — Ela riu. E eu adorei vê-la sorrindo novamente.
— Não sei se um lugar pode enlouquecer uma pessoa, acho mais fácil uma pessoa enlouquecer
um lugar.
Ela pareceu refletir sobre o que eu disse.
— Encontrei Mathew hoje e ele insinuou que eu estaria me aproveitando da sua situação
— confessei, rompendo o silêncio. Seu semblante mostrou-se espantado. — Eu jamais me
aproveitaria de você, Grace — declarei. — Eu desejo sua companhia, seu corpo, nossa troca de
prazer, mas não quero fazer isso me aproveitando de você. Não suportaria ser essa pessoa mesmo
que o meu desejo por você me consumisse por completo.
Em um movimento rápido, Grace saiu do meu lado para montar eu meu colo. Ela juntou
os braços atrás de meu pescoço e beijou-me, como se precisasse tanto de mim quanto eu sabia
que precisava dela.
Quando se afastou um pouco, ela encarou meus olhos.
— Você é o fio de sanidade ao qual eu ainda consigo me agarrar, Aaron. — Suspirou
profundamente. — Eu disse a mim mesma que deveria me afastar de você e me preocupar
apenas em deixar este lugar para voltar para Rosalie, mas isso seria me dividir em duas, e não
quero ser dividida, eu quero ser completa. — Aquela parecia ser uma confissão tanto para mim
quanto para ela.
Tive vontade de tomá-la novamente em meus braços. Ela era como uma nova
dependência que meu corpo experimentava. Quanto mais eu tinha de Grace, mais eu queria.
Ela deitou a cabeça sobre meu peito, ouvindo meu coração bater mais forte do que
nunca, e, quando seus olhos voltaram aos meus, tomei sua boca, sentindo-me faminto.
— Precisamos sair daqui — ela disse baixinho.
— Eu não tenho mais ninguém lá fora — anunciei.
— Terá a mim. — Ela sorriu novamente. Eu faria de tudo para continuar vê-la sorrindo.
Tive medo, pela primeira vez desde que havia chegado ao Saint John. Medo de sentir
esperança. Eu não merecia. Não merecia Grace e nem qualquer chance de vida.
— Mas terá que me prometer proteger Rosalie tanto quanto a mim — ela disse,
respirando fundo. — Eu não poderei abrir mão dela.
— Eu juro — prometi, sincero. Eu não sabia nada sobre Rosalie, além de que era filha
de Grace. E isso já me bastava. — O que te trouxe ao Saint. John, Grace?
Grace se aninhou em meu peito. Passei o braço por sua cintura, sentindo o calor de seu
corpo junto ao meu.
— Há pouco mais de um ano, eu morava em Birmingham com Nolan, meu marido —
iniciou ela.
PARTE 2
Capítulo 21
Birmingham
1910

A visita de Margarete era bem-vinda, fazia algum tempo que eu não via alguém além
dos empregados e meu marido. A velha senhora era o mais próximo de uma amiga que eu tinha.
Nunca tive amizade com moças da minha idade, devido a criação mais reservada escolhida por
meu pai, e nada mudou depois do meu casamento com Nolan.
— E como andam as coisas por aqui? — pergunta Margareth, olhando em volta. — Não
vejo o Sr. Green há algum tempo.
— Nolan passa mais tempo na rua do que em casa — admito com tristeza.
— Lamento — sussurra a senhora, encarando minha barriga de grávida. Há sete meses,
eu carregava nosso filho em meu ventre e nunca havia temido tanto o futuro quanto agora.
— Acho que cometi um erro — confesso baixinho. — Nolan não é quem imaginava que
fosse.
— Do que está falando? — diz Margareth, devolvendo a xícara ao pires, enquanto
tomamos chá com leite na sala de visitas.
— Nolan era um homem apaixonado por mim, vivia ao meu redor, fazia todas as
minhas vontades, até papai dizia que eu havia tido sorte com um marido como ele... mas algo
mudou... desde a gravidez. Ele parece outra pessoa... uma que não conheço.
— Ah, minha querida... é só um momento... complicado. Os casais passam por isso —
tentou consolar-me.
— Eu sinto a distância dele — admiti, com os olhos prontos para se derramarem em
lágrimas. — Parece que ele já não deseja meus carinhos, meus cuidados… chego a pensar que
ele nem sequer suporta minha companhia.
— Eu não acredito nisso — disse a mulher ao meu lado, sentada no sofá.
— Me sinto rejeitada — confessei entre lágrimas. Margareth deixou sua xícara na
mesinha ao lado e se aproximou de mim.
— Sinto muito que esteja sofrendo — lamentou, abraçando-me.
— Ele gasta nosso dinheiro na rua — disse baixinho, mantendo o abraço da senhora —
e tem chegado em casa de madrugada fedendo a bebida e perfume barato de mulher.
— Então é verdade o que andam dizendo na vizinhança.
— O que estão dizendo? — Saltei de seus braços.
— Podem ser apenas boatos de pessoas maldosas... — tentou convencer-me, mas eu via
a verdade em seu rosto. — Acho melhor mudarmos de assunto — falou.
— Não faça isso — protestei. Éramos vizinhas há bastante tempo e, entre tantas visitas,
Margareth sabia quando eu não estava disposta a deixar um assunto passar.
— Estão comentando que ele está gastando a fortuna de vocês com mulheres e jogos.
Que faz grandes apostas todas as noites. — Havia tristeza na face de Margareth.
Uma dor forte atingiu meu peito. Não era justo que Nolan estivesse me traindo e ainda
lapidando o patrimônio que deveria ser meu e de nosso herdeiro. Se ele acabasse com tudo o que
tínhamos, o que seria do futuro de meu filho? Já havia ouvido sobre tantos casos assim, em que o
marido perdia o patrimônio da família com bebidas e mulheres; infelizmente, não eram
incomuns.
— Talvez eu deva procurar um advogado e me informar sobre a separação de meu
marido o quanto antes. Talvez entrar com um pedido de... — declaro com a voz embargada.
Estava com medo antes, mas, agora, sentia-me apavorada. Temia pelo filho que eu
gerava, não podia deixar que sua vida fosse destruída por um pai irresponsável e traidor. Nolan
não estava me traindo apenas, mas também o fazia com a nossa família.
— Não acho que será tão fácil. Se você não conseguir provar o mau comportamento de
Nolan, não conseguirá a separação, apenas será exposta. E você também precisa pensar em seu
filho. Um marido como Nolan ainda é melhor do que marido nenhum... você sabe disso, Grace.
Sabia o que Margareth queria dizer. Eu precisava provar a “culpa” de Nolan pois
duvidava muito que ele fosse confessar, para só então ter a separação. E ainda que eu
conseguisse deixá-lo, sabia que seria julgada ao me tornar uma mulher separada e mãe solteira.
Me chamariam de abandonada, imoral e tudo mais o que pudessem dizer; isso também recairia
sobre meu filho. Uma mãe que decide criar um filho sozinha? Que absurdo, diriam. Isso se
Nolan não tentasse tirar meu filho de mim. Ah, não, isso não! Seria inconcebível. E isso sem
pensar na questão de nosso patrimônio. O dinheiro sempre foi meu, deixado para mim quando
meu pai faleceu, mas o que me sobraria depois da separação? A reserva que eu tinha escondido
de Nolan era pequena ainda. Foi um erro nunca ter pensado em procurar a lei, para esclarecer
sobre a partilha de bens. Casei-me acreditando que Nolan seria o meu companheiro para o resto
de meus dias e confiei nisto com minha vida.
— E o que devo fazer? Aceitar tudo calada? Assistir de braços cruzados ao meu marido
nos destruir? — questionei, aflita.
— Converse com ele. Tente fazê-lo ver que não pode continuar prejudicando a própria
família.
— Se ele se importasse com isso não estaríamos tendo essa conversa — disse, amarga.
— Mas você está certa, não posso me precipitar com tantas questões envolvidas — declarei,
tentando ser racional.
Depois de me despedir de Margareth, decidi ter uma conversa esclarecedora com Nolan
de uma vez por todas. Ele teria que repensar suas ações. Aquela situação não poderia continuar.
A noite estava escura, contudo só percebi que anoitecera após as luzes serem acesas por
uma das empregadas.
— Precisa de mais alguma coisa, Sra. Green? — perguntou Emma, a filha da cozinheira,
uma moça ainda mais jovem do que eu, porém muito prestativa.
— Pode pegar um livro na biblioteca para mim? Está cada dia mais difícil subir estas
escadas.
— Claro, senhora.
A menina voltou depois de algum tempo com uma pilha deles, mal podia vê-la.
— Trouxe vários pois não sabia qual deles a senhora gostaria de ler — justificou ela.
— Está ótimo. Obrigada, Emma. — Sorri, pensando que poderia me distrair por
algumas horas.
— Vou acender o fogo da lareira. A noite está chegando e a senhora ficará com frio
enquanto espera o ... — A jovem calou-se de repente.
— Enquanto espero por meu marido — concluí, sentindo o seu embaraço.
— Desculpe, senhora. Isso não é da minha conta — disse ela, ainda envergonhada. —
Vou acender o fogo e me retirar.
Estava claro que todos viam a situação na qual eu me encontrava. Nolan parecia ser o
único a não enxergar ou não se importar.
Logo a sala estava aquecida, mas eu continuava sozinha. Sentia-me tão triste. Não
queria chorar, mas lágrimas silenciosas riscavam meu rosto. Odiava saber que a única pessoa
com quem queria dividir meu tempo não desejava o mesmo. Não conseguia evitar me perguntar
o que eu estava fazendo de errado. O que havia mudado? Era meu corpo? Era esse o motivo do
distanciamento de Nolan?
Olhei a pilha de livros à minha frente e escolhi preencher meus pensamentos com uma
história de um dos livros do que continuar a torturar-me. Nas primeiras páginas, senti-me
transportada para longe dali, para um lugar onde era seguro e eu não temia o futuro. Era uma
fuga, eu sabia, e eu precisava disso agora.
O relógio bateu a meia-noite, as minhas pálpebras pesavam, porém eu lutava para
manter-me alerta e, assim, mais uma hora se passou. Estalei o pescoço, ajeitei-me no sofá, meu
corpo estava cansado.
Quanto mais Nolan demoraria a chegar?
Ouvi o trinco da porta ranger. Meu coração acelerou. Ainda ansiava por sua companhia
e doía concluir esse fato. Queria não fazer questão dela, como ele não fazia questão da minha.
A minha visão foi preenchida por meu marido. Ele parecia acabado. As roupas estavam
amarrotadas, retorcidas. Os cabelos estavam suados e desgrenhados, e não demorou para que o
cheiro de bebida alcançasse minhas narinas.
Ele assustou-se ao ver-me. Recuou um passo cambaleando.
— Ainda acordada? — perguntou ele com certa dificuldade.
— Esperava por você — esclareci.
— Já disse que não precisa se dar a esse trabalho. Você está grávida, precisa descansar.
— Também preciso de paz — repliquei.
— E eu estou tirando a sua? — Ele não disse como alguém que perguntava, mas, sim,
como quem confirmava.
— O que está acontecendo conosco, Nolan? — questionei, desfazendo-me com
gentileza do livro que segurava. A vontade que eu tinha era de jogar o livro longe, de gritar com
ele, mas controlei-me. Damas não devem perder-se: mantenha o tom de voz baixo, não ceda aos
acessos de raiva, comporte-se de maneira exemplar. Ouvia a voz de minha antiga educadora,
Sra. Smith, reverberar em minha mente.
Nolan permaneceu parado, coçando a barbar rasteira do queixo, pensativo.
— Não acho que temos problemas — respondeu, finalmente. — Homens precisam se
divertir um pouco.
— Inclusive com qualquer outra mulher que não seja sua esposa, não é? — indaguei
com desgosto.
Nolan suspirou, como se estivesse exausto. Ele pensava que estava cansado? Eu estava
cansada.
Ele se deteve por um momento, parecia refletir sobre algo. Pensei que ele iria reclamar
da cobrança e começar uma discussão.
— Você está certa, querida — disse, surpreendendo-me. — Eu tenho sido ausente.
Cometi muitos erros, contudo, com você ao meu lado, pretendo consertá-los.
Ele se aproximou e beijou de leve meus lábios. O cheiro de álcool me incomodou,
lembrava-me de seu distanciamento nos últimos meses. Ainda assim, tive vontade de puxá-lo
para mim, mais perto, mais forte. Ansiava pelo antigo Nolan de volta. Aquele apaixonado, que
correspondia aos meus sentimentos.
Queria acreditar em suas palavras, porém havia uma pequena parte de mim que dizia
que não poderia ser tão fácil assim, não depois de tanto tempo de um comportamento distante e
frio.
Havia algo a mais ali... ou não? Ou era apenas disso que nós precisávamos? Uma
conversa honesta? Preferi silenciar a voz que não permitia que eu aproveitasse aquele momento
com meu marido.
— Vou me lavar e te encontro na nossa cama? — disse ele, tão charmoso quanto antes.
Lembrei-me do Nolan por quem me apaixonei e sorri.
Finalmente, as coisas começariam a melhorar em meu casamento. Pelo menos foi nisso
que preferi acreditar.
Capítulo 22
Birmingham 1910

O cheiro de bolo quente de laranja, recém-saído do forno, invadiu o quarto, trazendo


uma sensação de aconchego. Não demorou para que eu me lembrasse da noite anterior, da
conversa com Nolan, das promessas... Finalmente, sentia-me bem e feliz, como há muito tempo
não me sentia.
— Estou ganhando café na cama? Qual a ocasião? — Arrumei os travesseiros, para que
eu pudesse me sentar escorando meu corpo na cabeceira da cama.
— Eu sei que não tenho sido muito gentil... mas sempre há tempo para mudar, não é? —
Senti-me bem ao ouvi-lo falar daquela maneira.
Ainda no quarto, escutamos quando alguém tocou a campainha da frente de nossa casa.
Nolan estava trazendo a bandeja com o café da manhã até mim, mas, ao ouvir o som, deteve-se
no mesmo lugar. O seu olhar pareceu assustado por um momento. Fiquei intrigada com sua
atitude, entretanto, em seguida, ele sorriu para mim e eu sorri também. Não havia nada de errado
e precisava acreditar nisso para poder, enfim, ter paz. Nolan depositou o belo café à minha frente
e eu salivei de fome.
O colchão cedeu um pouco com o peso de Nolan ao meu lado. Puxei a bandeja com o
café para mais perto de nós e, quando dei a primeira mordida, saboreando o delicioso bolo,
alguém bateu à porta de nosso quarto. Percebi que as costas de Nolan endureceram, ele pareceu
tenso como havia notado instantes antes e, por mais que eu quisesse ignorar os sinais, não
consegui evitar um sentimento de aflição.
Algo o estava perturbando e, de alguma forma, eu sentia que eu e nosso filhos seriamos
atingidos. Mastiguei o restante do alimento sem tanto entusiasmo.
— Pode entrar — autorizou Nolan. A cabeça da Emma surgiu pela fresta da porta de
madeira.
— Há uma entrega para o senhor, lá embaixo — disse ela. Falou tão baixo que quase
não a ouvimos.
— Ah! Claro! Minha encomenda. — Seus olhos brilharam, ele pareceu-me realmente
feliz com o anúncio.
Enquanto Nolan saía do quarto para buscar sua encomenda, continuei a refeição. O chá
quente parecia acalmar um pouco meus nervos. Eu não deveria estar preocupada, tentando
decifrar cada sinal em meu marido. Ele disse que tudo ficaria bem, era nisso que eu deveria
acreditar.
Quando a porta do quarto voltou a abrir, tomei um grande susto.
Um buquê enorme de rosas vermelhas cobria metade do corpo de Nolan, eu nem
conseguia enxergar seu rosto atrás das flores. Ele se aproximou e entregou-me as rosas. Eram tão
lindas. O perfume suave me fez suspirar.
Eu sorri, sentindo-me esperançosa.
— Eu as comprei assim que me levantei. Pedi urgência na entrega — declarou ele. —
Queria surpreendê-la, querida.
— Eu estou surpresa — confessei. — São tão lindas — disse, passando os dedos pelas
flores.
— Não se comparam a você — declarou, depositando um beijo em minha testa.
— O que vamos fazer hoje? — perguntei, animada, admirando as flores. — Gostaria
muito de sair um pouco de casa. Há muito tempo não vejo nada além dessas paredes. — Não
queria que soasse como uma cobrança pelo seu comportamento comigo, era apenas uma verdade
sendo dita.
— Gostaria de ir até o Cannon Hill Park? Caminharemos devagar para você não se
cansar muito.
— Perfeito — concordei.

O sol brilhava enquanto caminhávamos pela grama, fazia muito tempo que eu não via
um dia tão bonito. Não poderia me sentir mais satisfeita. Vi alguns casais passeando juntos e
conversando alegremente. Mães com seus filhos, sorrindo. Imaginei-me também segurando meu
filho nos braços, muito em breve. Senti um pequeno movimento na barriga e acariciei o bebê em
meu ventre.
— Está cansada? — perguntou Nolan. — Gostaria de sentar-se naquele banco embaixo
das árvores? — Apontou para um lugar mais retirado, com pouco movimento de pessoas ao
redor. Concordei.
O ar fresco bagunçou algumas mechas de meu cabelo que tentei arrumar debaixo do
chapéu, sorrindo. Nada me perturbaria naquele momento.
— Eu adoro esse parque — disse, inspirando profundamente.
— Eu sei — declarou ele, satisfeito. — Podemos ficar o tempo que desejar. — Eu
assenti.
— Talvez você devesse procurar um local para dedicar-se à sua profissão — falei,
depois de algum tempo em silêncio. Assim que disse aquelas palavras, senti-me culpada. Não
queria estragar o nosso momento. — Quero dizer, esse sempre foi o plano, não? Dedicar-se a
advogar — tentei argumentar.
— Com o dinheiro que temos, não achei que precisaria ter pressa em sair para trabalhar
todos os dias, quando posso ficar em casa e cuidar de você e de nosso filho — defendeu-se ele.
A minha língua pareceu inchar-se dentro da boca, prestes a me sufocar. Era queria
retrucá-lo, dizer que ele não havia passado um dia completo comigo em casa, desde que
havíamos descoberto a gravidez. Queria dizer que a ausência dele havia me magoado e irritado,
contudo, tive medo de que o que estávamos experimentando se desfizesse, como fumaça, assim
que meus pensamentos se tornassem palavras.
Desejava verdadeiramente acreditar que agora seria diferente, precisava acreditar que as
coisas mudariam. Eu não fazia questão de vê-lo trabalhando, apenas passou por minha cabeça
que ter um ofício o manteria ocupado e, com sorte, longe dos problemas recentes, porém talvez
não tivesse sido uma boa ideia tocar neste assunto tão cedo.
Era melhor esperar o nascimento do nosso filho e confiar que ele não desistiria de ser o
homem pelo qual eu havia me apaixonado, um dia.
O corpo de Nolan, que estava relaxado ao meu lado, tornou-se rígido de repente. Seus
olhos estavam concentrados em alguns homens distantes de nós, que não pareciam ser pessoas
amigáveis. Vestiam roupas típicas de trabalhadores das fábricas. Tentei firmar meus olhos e
identificá-los, mas as boinas escuras cobriam parte de suas faces.
— Precisamos ir agora — meu marido declarou com firmeza, levantando-se do banco.
— Acabamos de chegar. Você disse há pouco que... — tentei refutar, mas Nolan
interrompeu-me.
— Agora! — repetiu nervoso. Espantei-me com a mudança de seu temperamento e ele
percebeu. — Está muito quente — voltou a falar, mas agora de forma mais cautelosa — e este
calor fará mal a você e ao nosso filho. Não se preocupa com nosso filho? — questionou-me.
Por um momento, senti-me uma mãe descuidada. Desejei que minha própria mãe
estivesse ao meu lado, para me orientar com os cuidados que eu deveria tomar durante minha
gravidez.
— É claro que me preocupo — respondi, ofendida.
— Então estamos decididos. — Pegou em meu braço, direcionando-me para o lado
contrário do trio de homens, que encaravam meu marido.
O silêncio entre o nós, enquanto voltávamos a nossa casa, era sepulcral. Algo estava
terrivelmente errado e eu sentia isso em seus ossos. Por mais que repetisse a mim mesma que
tudo ficaria bem, em momentos assim eu não conseguia acreditar naquilo. Minha mente parecia
prestes a quebrar-se, cansada de dividir-me entre acreditar que tudo ficaria bem e estar em alerta,
esperando uma tragédia iminente.
Assim que chegamos, subimos as escadas em direção ao quarto. A cama grande parecia
chamar-me novamente. Eu sentia tanto cansaço que poderia dormir o dia todo.
Tirei parte da roupa que me apertava para vestir algo mais confortável.
— Podemos descansar um pouco — sugeriu Nolan. Eu realmente desejava deitar-me.
Aproximei-me da cama e puxei os cobertores, enfiando-me debaixo deles. Quase pude
sentir o sono tomar meu corpo assim que senti-me relaxar. Nolan deitou-se ao meu lado.
— Não vai tirar suas roupas? — perguntei, sonolenta.
— Depois — respondeu apenas.
Fechei os olhos e adormeci.
Acordei mais tarde, quando alguém bateu à porta do quarto. Olhei para o relógio sobre a
mesinha de cabeceira ao meu lado e tomei um susto quando vi que já passava das dezoito horas.
Virei-me na cama para chamar Nolan, porém meu braço encontrou apenas o vazio.
— Pode entrar — gritei da cama. Nenhum homem trabalhava conosco, era seguro que
as pessoas daquela casa entrassem em meu quarto.
Emma surgiu na porta, carregando uma bandeja. Seu rosto parecia preocupado.
— Eu trouxe uma sopa para a senhora. Optamos pela sopa, pois um chá seria pouco há
essa hora — ela declarou. — Eu sei que o senhor Nolan falou para não a incomodarmos, mas nós
nos preocupamos. A senhora não comeu mais nada durante o dia — justificou-se.
— Eu agradeço a preocupação, Emma. Eu precisava mesmo acordar para me alimentar.
— Emma sorriu mais tranquila. — E onde está meu marido? — perguntei, temendo a resposta.
— Ele saiu de casa logo depois que voltaram do parque, senhora.
— Ele saiu... — repeti, apenas para confirmar o que eu já esperava. Suspirei
pesadamente.
— Precisa de algo mais, senhora? — perguntou Emma. — Talvez alguns livros? —
Sorriu.
— Hoje não. — Agradeci, tentando não deixar minha tristeza transparecer. — Mas seria
ótimo sentir um pouco de ar fresco. Se puder abrir a janela, por favor.
— Claro — respondeu. Emma abriu as cortinas, que agora balançavam com o vento que
adentrava o ambiente.
— Obrigada — disse a ela, que assentiu.
Fiquei sozinha no quarto depois que Emma saiu. Ela acendeu as luzes para que eu não
ficasse na escuridão. Puxei a bandeja para meu colo e tomei a sopa, sentindo minhas lágrimas se
misturarem ao caldo. Era um choro silencioso e dolorido.
Nolan não havia mudado, nunca mudaria. Poderia apostar que estava na rua bebendo e
me traindo novamente. “Apostar”… ri de mim mesma, sabendo que era exatamente o que ele
estava fazendo.
Deixei a bandeja de lado, quando terminei a refeição que fiz apenas porque sabia que
meu filho precisava se alimentar. Se dependesse de minha vontade de comer qualquer alimento,
eu já teria definhado há muitos meses.
Encarei o relógio, contando os segundos, que se tornaram horas, pensando em nosso
futuro e temendo a constatação mais dolorosa do momento: eu não sabia o que seria de nós.
Acariciei minha barriga durante as próximas horas, fazendo promessas ao meu filho que
tudo ficaria bem, mesmo que eu não acreditasse nisso.
Um barulho alto chegou aos meus ouvidos.
Algo pesado havia sido arremessado contra a porta da frente de nossa casa no primeiro
andar. Joguei os cobertores para o lado para livrar meu corpo e desci da cama, indo até a janela.
Debrucei meu corpo e enfiei a cabeça pela abertura para enxergar o que estava acontecendo.
Meu coração temeu pela imagem que vi a seguir. Mesmo na escuridão da noite que já
havia chegado, reconheci aquelas vestes. Amontoado como se fosse um boneco de pano, aos pés
da nossa porta, estava meu marido.
Capítulo 23
Grace
Birmingham 1910

Não parecia haver mais ninguém naquela rua além de meu marido jogado à nossa porta.
Saí da janela indo em direção as escadas, descalça, usando uma mão para me apoiar-me
no corrimão e a outra segurando a parte debaixo da minha barriga enorme.
Quando pisei no assoalho de madeira da sala, avistei Emma, que também acordara com
o barulho.
— É Nolan — eu disse apenas, indo até a porta de entrada. Emma acompanhou-me.
Quando abri a porta, o corpo de Nolan caiu dentro de casa. Ele estava muito machucado.
Os olhos estavam inchados, quase não se abriam. As suas roupas estavam rasgadas e sujas de
sangue.
Abaixei-me ficando de joelhos, trouxe sua cabeça até meu colo. Nolan gemeu de dor.
— O que houve? — perguntei, apavorada.
Emma estava ao lado e observava meu marido no chão, assustada. A pobre ficou pálida.
— Devemos chamar o médico ou a polícia, senhora? — Emma questionou-me.
— Não... — pronunciou Nolan com dificuldade. — Sem polícia.
Nolan começou a agitar-se em meu colo. Tentei acalmá-lo.
— Tudo bem, querido. Sem polícia — garanti a ele. Emma olhou-me preocupada. Eu
não sabia o que estava acontecendo e temi descobrir.
— Emma, ajude-me a carregar Nolan até o sofá — disse.
— Não — Nolan protestou. — Cama... quarto — murmurou.
— Nolan, eu e Emma não conseguiremos carregá-lo — comecei a dizer, mas ele
interrompeu-me.
— Minha cama, por favor. Tudo dói — reclamou ele.
— Tudo bem, faremos o possível — declarei. — Emma, consegue ajudar-me? — A
menina assentiu. — Venha aqui do outro lado, eu apoio o lado direito e você o lado esquerdo de
Nolan.
Levantei-me agarrando a cintura de meu marido, Nolan apoiou um braço em volta de
meus ombros e outro em volta dos ombros de Emma. Ele não era um homem grande, tinha
minha altura e era magro. Ainda assim, eu sabia que seria difícil carregá-lo.
— Vamos subir todos juntos — anunciei, quando chegamos ao primeiro degrau da
escada.
Um passo de cada vez, fomos avançando em direção ao quarto. Com um braço, eu
segurava o corpo de Nolan, e com o outro, eu me apoiava no corrimão. Emma fazia o mesmo.
Minha barriga parecia pesar o dobro naquele momento. Senti o suor brotar em minha testa e a
respiração faltar.
— Senhora, está tudo bem? — perguntou Emma, preocupada.
— Sim. Vamos continuar, pois falta pouco — respondi.
A porta do quarto ainda estava aberta, eu havia descido às pressas quando vi Nolan pela
janela.
Ao chegar na cama, colocamos seu corpo estendido. Nolan resmungou de dor. Eu
sentei-me ao seu lado, sentindo o cansaço em meu corpo pelo esforço.
Emma apressou-se em trazer um copo de água da jarra, que estava na mesinha ao lado,
para mim. Tomei em goles rápidos.
— Precisa de ajuda com... — Ela apontou para onde Nolan estava.
— Obrigada, Emma. Eu assumo a partir daqui. Mas vou pedir que, assim que clarear o
dia, procure meu médico e peça para ele vir com urgência ver Nolan, por favor.
— Farei isso, senhora... Tenha uma boa noite — despediu-se, antes de fechar a porta do
quarto ao sair.
Olhei para Nolan, não sabia se ele dormia ou havia perdido a consciência. Aproximei-
me de seu rosto e o chamei. Ele não respondeu, chamei novamente. Ele resmungou. Estava vivo,
ao menos.
Tirei suas roupas rasgadas e sujas. Havia algumas marcas vermelhas em seu tronco e
pernas, mas sem cortes aparentes. O sangue das suas vestes vieram dos ferimentos de seu rosto.
Limpei ser corpo com uma toalha molhada, cuidando para não o machucar mais. A cada
toque, Nolan reclamava. Dei a ele um dos remédios que eu tomava, quando tinha dores de
cabeça, esperando que o ajudasse de alguma forma. Ele engoliu com dificuldade, porém
conseguiu tomá-lo.
Olhei para o espelho da penteadeira na parede em frente à cama. Eu estava uma
bagunça, não era apenas o rosto e corpo inchados, meus cabelos estavam desgrenhados e meu
rosto cansado.
Resolvi limpar-me e, depois, velar o sono de Nolan. Tive medo de adormecer enquanto
ele precisasse de meus cuidados, então mantive-me acordada na poltrona ao lado da cama.
Depois que o dia clareou, não demorou para que o médico viesse até nossa casa. Ele
havia recebido o recado de Emma e viera sem demora.
O doutor entrou no quarto, sendo seguido pela minha arrumadeira. Emma nos deixou a
sós e o médico começou a examinar meu marido.
O homem olhou os ferimentos da face, as manchas escuras pelo corpo. Tocou em partes
do seu corpo, movimentando-o. Nolan resmungou com dor.
— Aparentemente, não temos nenhuma fratura. Os ferimentos da face são os mais
profundos, contudo já não sangram mais.
— Ele reclamou de dor — disse ao médico. — Dei a ele este remédio.
Entreguei ao doutor o frasco de meus comprimidos.
— Quantos comprimidos? — perguntou ele.
— Apenas um — respondi.
— Tudo bem. Lembre-se que não pode tomar mais que dois destes em um dia. Poderá
ter muita sonolência, até perda de consciência.
— Não se preocupe, doutor. Não irei abusar — garanti.
— Quanto ao seu marido, poderá dar até dois destes por dia — disse, entregando-me
outro frasco de remédios. — Até a dor dos ferimentos passar.
— Há algo mais que possa ser feito?
— Cuidado com os ferimentos abertos e repouso. Acredito que se ele se cuidar, logo
estará melhor.
— Obrigada, doutor — disse sinceramente. Era um alívio saber que Nolan ficaria bem.
O médico despediu-se de Nolan, que não respondeu. Acertei com ele o pagamento por
seu serviço e pelo remédio.
— Qualquer piora no quadro dele, não hesite em me chamar.
— Obrigada novamente, doutor — disse ao deixá-lo na porta de casa.
— Ele ficará bem — disse a Emma, que me observava da entrada da cozinha. — Estou
exausta. Dormirei um pouco... Obrigada por tudo, Emma.
Andei até a escada, mas, ao subir no primeiro degrau, senti uma pontada forte na
barriga. Inclinei-me, gemendo de dor. Segurei com força no corrimão com medo de ir ao chão.
Emma surgiu ao meu lado.
— Quer que eu chame o doutor de volta, senhora? — perguntou aflita.
— Não — respondi, arfando. — É apenas cansaço.
— Ajudarei a senhora subir. — Assenti, apoiando-me em seu corpo.
Emma ajudou-me a deitar ao lado de Nolan, que dormia profundamente.
— Feche as cortinas, por favor — falei, sentindo-me fraca.
Emma fechou as cortinas pesadas e o quarto escureceu-se por completo. Assim que ouvi
o trinco da porta, relaxei a cabeça no travesseiro.
Desejei dormir e acordar como se a noite anterior não tivesse passado de um sonho
ruim.

Depois de quase uma semana cuidando dos ferimentos de Nolan, finalmente ele
aparentava estar melhor. Ainda não havia conseguido conversar com ele sobre o que acontecera.
Toda vez que eu tentava tocar no assunto, ele reclamava da dor que seu corpo estava sentindo e
dizia que eu deveria poupá-lo naquele momento.
Descemos as escadas para jantar. Há dias, fazíamos as refeições no quarto. Era bom
voltar a sala para nossa refeição, trazia uma leve sensação de normalidade.
Sentamo-nos um de frente para outro enquanto Emma terminava de pôr a mesa. O
cheiro fez minha barriga despertar. Tudo parecia estar delicioso.
— Que dia é hoje? — perguntou Nolan, ao levar o garfo a boca.
— É sexta-feira — respondi, também começando a saborear minha refeição. Ele tossiu,
engasgando-se com a comida. Levantei-me preocupada, mas ele fez sinal para que eu parasse no
mesmo lugar.
— Estou bem — garantiu ele. Voltei a sentar-me. — Já faz cinco dias que estou em
casa, desde...
— Desde? — Queria que ele terminasse aquela frase, que esclarecesse de uma vez por
todas o que havia acontecido para ele aparecer naquelas condições na porta de nossa casa.
— Desde quando me machuquei — completou sem olhar em meus olhos, encarando o
prato à sua frente.
— Faz — confirmei.
— Merda — disse, jogando o garfo no prato. — Eu estou com problemas, Grace. —
Minha vontade era de rir, não um riso daqueles que damos quando achamos algo engraçado,
não... — Eu fiz algumas dívidas... precisamos pagar em dois dias ou nossas vidas correrão perigo
— disse.
— Do que você está falando? — perguntei, sentindo meu corpo todo começar a tremer.
— O que esses homens fizeram comigo é apenas uma amostra do que farão conosco,
caso eu não pague a eles o montante devido.
— Então você nos colocou em perigo, é isso? — questionei, tentando controlar meu tom
de voz.
— Eu não esperava perder tanto... — tentou justificar-se.
— Não esperava... — repeti em tom zombeteiro. — Os homens do parque, no outro
dia...
— Sim, eles estavam me vigiando. — Expirei com força.
— Quanto você deve a eles? — perguntei, tentando controlar a raiva que crescia em
meu peito.
— Precisaremos deixar essa casa.
— O quê? Nossa casa? Você perdeu nossa casa? — repeti, incrédula.
— Como eu disse, eu não esperava...
— E como você perdeu nossa casa? — Levantei-me derrubando a cadeira no chão. O
som ecoou pela sala.
— Jogos... bebidas...
— E mulheres, não? — Cuspi as palavras. Nolan não teve coragem de levantar os olhos.
Peguei o copo de água que estava ao lado do meu prato e o arremessei contra a parede
atrás dele. Nolan levantou-se de repente, assustado.
— Está louca? Poderia ter me acertado. — Ele parecia não acreditar no que eu havia
feito. Eu também não acreditava. Sempre sufocando os sentimentos impetuosos, principalmente
a raiva.
— Eu não teria tanta sorte — retruquei, ressentida. Nolan pareceu absorver minhas
palavras. Passei pelo chão molhado ouvindo os cacos do copo produzirem sons estridentes sob
meus pés. Meu peito doía e a garganta parecia queimar. Eu queria chorar, eu queria gritar. Como
ele podia ter feito isso conosco?
Bati a porta de nosso quarto, fazendo a parede estremecer. Comecei a ofegar. As
lágrimas desciam como cascatas. Busquei um dos travesseiros sobre a cama e sufoquei o grito
que estava me consumindo por dentro. Arqueei meu corpo e comecei a liberar os gritos. Gritei
até ficar rouca e chorei até perder o ar. Joguei o travesseiro de lado, sentando-me na ponta da
cama.
Eu amava cada cômodo desta casa, minha vida havia sido aqui. Tinha orgulho da
propriedade construída há muitos anos por meus antepassados, era parte de minha história e, um
dia, eu sonhava que seria de meu filho também. Mas agora eu seria obrigada a entregá-la, para
garantir nossa segurança.
O que seria de mim e de nosso filho, se eu não colaborasse? Se eu não permitisse que
ele entregasse nossa casa para saldar suas dívidas…
Olhei ao meu redor. As cortinas pesadas que iam até o chão, os tapetes claros sobre os
quais eu adorava andar sem os sapatos. A penteadeira branca com um grande espelho.
Há poucos dias, eu estava cheia de esperanças e, agora, só sentia desespero.
Ainda varrendo o quarto com meus olhos, detive-me na cômoda de madeira do quarto.
Sobre ela, havia os restos das rosas que um dia foram vermelhas. Aquelas que ganhei no dia
anterior à chegada de Nolan, machucado, em casa. Agora, estavam todas murchas e escuras,
quase pretas.
Encarei minha barriga grande, acariciando-a. O que iríamos fazer, meu filho? Não
poderia arriscar sua segurança. Sinto em não ter conseguido proteger seu patrimônio.
Queria fugir daquela casa, daquela dor, do medo. Ergui novamente os olhos, as rosas
murchas escurecidas pareciam encarar-me.
Red Rose, pronunciei apenas para mim mesma. Não era um legado familiar, mas ainda
era nossa propriedade, localizada no interior do Sudoeste da Inglaterra.
Seria um recomeço, longe daqui. Poderia ser nossa salvação neste momento, porém eu
não facilitaria as coisas para Nolan, ele precisaria se comprometer a mudar seus hábitos e aceitar
meus termos. Não dava para continuarmos vivendo daquela maneira.
Passei as próximas horas pensando em tudo que acontecia em nossa vida e em tudo que
eu precisava que fosse diferente, para que pudéssemos voltar a viver em paz.
Quando estava prestes a chamar por Nolan, ele adentrou o nosso quarto.
— É seguro? — disse sem humor.
— Daremos nossa casa — o rosto de Nolan se iluminou —, desde que aceite minhas
condições.
— E quais são? — indagou, aproximando-se.
— Deixaremos Birmingham, assim que entregarmos a casa.
O rosto de Nolan endureceu-se ao ouvir minhas palavras.
— Podemos comprar outra casa na cidade — argumentou.
— Nós deixaremos Birmingham e nos mudaremos para Red Rose. — Mantive-me
firme.
— Eu não quero mudar-me para Bath. Você mesma me disse, certa vez, que o motivo
de nunca terem ido morar lá era a distância das grandes cidades.
— Mas isso é parte fundamental do acordo. Não vou ceder, Nolan.
— A casa em Red Rose está em condições de nos receber?
— Meu pai a manteve durante muitos anos. Talvez, neste momento, precise de alguns
reparos já que eu não tive o mesmo cuidado com a propriedade, mas isso não é impedimento.
Podemos pagar por isso. — Nolan andou pelo quarto, pensativo. — E tem mais — declarei.
— Mais? — repetiu, parecendo incrédulo.
— Você começará a trabalhar em seu ofício depois que nos acomodarmos em Red Rose.
— Eu duvido que haja um escritório de advogados naquele fim de mundo.
— Ótimo. Você poderá ser o primeiro na região — disse, firme.
— E se eu não aceitar?
— Você tem outra opção? — perguntei.
— Entregar essa casa e comprarmos outra aqui mesmo. Minha vida é em Birmingham e
não quero deixar a cidade — falou, despreocupado.
— Se não aceitar, eu e nosso filho iremos embora sem você — declarei. Eu não sabia se
teria coragem de levar aquela ideia adiante, mas era o que eu tinha em mãos, no momento; uma
ameaça.
— E viverão de quê? — perguntou, ameaçador. — Tudo o que está no banco é nosso.
Não é mais apenas seu.
— Eu tenho minhas reservas financeiras — confessei. Eu não esperava ter que revelar a
Nolan que eu estivera fazendo uma pequena economia, por medo do futuro, desde que o seu
comportamento começara a mudar.
Ele se deteve no mesmo lugar e encarou-me.
— Então você escondeu dinheiro do seu marido? Que bela esposa — disse em tom
sarcástico.
— E por essa conversa que estamos tendo, eu fiz bem, não fiz?
Nolan refletiu por um instante.
— Não quero deixar você e nosso filho — disse depois de um tempo. Eu queria tanto
acreditar em suas palavras, mas algo dentro de mim dizia que eu não deveria. E isso me
assustava. — Então está decidido. Faremos como você deseja, esposa. Deixaremos nossa casa
aqui em Birmingham e nos mudaremos para Red Rose — Nolan declarou. — Com isso, estou
perdoado? — Ele se aproximou, tocando na minha barriga e, pela primeira vez, temi seu toque.
Parecia errado, quase nocivo.
— Tentaremos mais uma vez, por nossa família. — Suspirei. — Mas será a última,
Nolan. Estou cansada — disse, sinceramente.
Nolan beijou meus cabelos bagunçados.
— Vamos começar a preparar as malas, então — declarou.
Esperava estar tomando a decisão certa. Desejava, verdadeiramente, que meu casamento
voltasse a ser como no início, que eu tivesse Nolan por inteiro outra vez e que nosso filho
crescesse em um lar feliz.
Decidi ignorar o sentimento de aflição, a voz que me dizia que algo ainda estava errado
e que não ficaríamos bem.
E isso foi um grave erro.
Capítulo 24
Red Rose 1910

Poucos dias depois, já estávamos entrando no Condado de Somerset, onde


recomeçaríamos em nossa propriedade, Red Rose. O carro vinha levantando poeira pela estrada
deserta. A viagem estava sendo mais cansativa do que eu imaginava. Todo meu corpo reclamava
pelas horas que passara chacoalhando dentro do automóvel.
Nem uma palavra ouvi de Nolan, desde que colocamos nossas malas no carro. Doeu
deixar minha casa para trás e toda familiaridade e segurança que, um dia, ela me trouxe. Não
sabia o que esperar dos próximos dias, ou meses, mas eu não tinha outra opção a não ser seguir
adiante.
Quando passamos pela rua central do vilarejo mais próximo de nosso destino final,
pensei que faríamos uma pausa antes de continuar, para descansar um pouco, esticar as pernas,
conhecer o local... contudo, Nolan não fez menção de suspender a viagem e eu não desejava
piorar seu humor por sugerir uma parada.
Ainda viajamos por quase uma hora mais para, só então, avistarmos um muro baixo de
pedras. Trepadeiras iniciavam no chão de terra e abraçavam parte da extensão de pedra. Meu
coração deu um salto, estávamos chegando em casa.
Nolan diminuiu a velocidade e parou o carro em frente ao grande portão de ferro, que
um dia fora preto, mas que agora a ferrugem tomava conta. No alto do portão, em formato
curvado, o nome da propriedade estava em destaque. Red Rose.
O suspiro audível de meu marido ao meu lado não passou despercebido por mim. Ele
não estava feliz com nossa saída de Birmingham, como se ele mesmo não fosse o responsável
por nossa fuga da cidade. Nolan abriu a porta do veículo e desceu, indo em direção ao portão. O
rangido do metal reverberou no meio do nada.
O som daquele lugar era diferente do que estava acostumada. Não havia barulho de
outros carros, de pessoas andando ou correndo pelas ruas. Eu não ouvia nada e, de alguma forma,
eu me sentia bem com isso.
Depois de abrir o portão, Nolan voltou ao carro e tomou a direção do veículo outra vez.
Entramos em Red Rose. Uma nova estrada de chão se mostrava entre enormes árvores,
que se fechavam sobre nossas cabeças em um corredor quase obscuro.
Respirei aliviada quando finalmente estacionamos em frente à casa. Inclinei meu tronco
para frente, maravilhada. Nosso novo lar era uma casa maior do que eu esperava e a visão dela
me deixou impactada.
O telhado pontiagudo logo me chamou atenção, as muitas janelas também me
agradaram. Eu poderia aproveitar a vista de Red Rose.
Abri a porta do carro e coloquei as pernas para fora, fazendo menção de sair. Uma
senhora de cabelos grisalhos desceu as escadas da casa, quase correndo, para me amparar.
Minhas pernas vacilaram e, se não fossem por seus passos ágeis, eu poderia ter ido ao chão.
Nolan, do outro lado do carro, nem percebeu o acidente que quase sofri.
— Meu Deus! — exclamei, segurando os braços da senhora que me amparava.
— Muitas horas viajando dentro de um carro deixa o corpo cansado — disse ela.
— Obrigada pela ajuda — agradeci seu apoio.
— Sou Lucinda — apresentou-se ela.
— Sou Grace — disse em resposta.
— Eu imaginei. — Ela sorriu.
— Então esta é Red Rose. — Ouvimos Nolan dizer, próximo à porta de entrada.
Havia uma varanda que circulava a casa e eu imediatamente me imaginei tomando chá
da tarde, acompanhada de um livro, ou ainda, em um futuro próximo, na companhia de nosso
filho.
Acariciei minha barriga.
— Quanto tempo até a criança chegar? — perguntou Lucinda.
— Acredito que menos de dois meses. — Sorri, olhando para baixo.
Flores campestres e ervas daninhas se misturavam no chão de terra à nossa volta.
Abaixei-me e recolhi uma pequena flor amarela. Levei-a ao nariz. Não tinha cheiro de nada, mas,
ainda assim, era bonita.
— Desculpe pelo estado da propriedade, senhora. Não temos jardineiro há muito tempo.
— Não se desculpe. Foi uma decisão nossa cortar custos em Red Rose.
Meus olhos varreram todo o lugar ao nosso redor. A casa era protegida pelas árvores e
os telhados pareciam disputar, em altura, com a natureza.
— Onde está o jardim rosas vermelhas de Red Rose? — perguntei a Lucinda. Ela me
olhou, confusa.
— Está à sua frente, senhora.
Virei-me, dando uma volta, sem sair do lugar. Não vi nada além de galhos secos, ervas
daninhas e flores campestres, que havia identificado há pouco.
— Não entendo.
— Tudo que não é cultivado acaba morrendo — disse apenas.
— Espero que a casa esteja em melhores condições — disse a mim mesma.
— Vamos entrar, senhora? — convidou Lucinda, estendendo o braço para que eu me
apoiasse nela. — Eu buscarei as malas depois.
— Vou levar apenas essa — disse, abraçando minha maleta de mão. — Tudo o que me
é precioso está aqui dentro — Lucinda encarou-me. — Lembranças — completei. Sim, havia
lembranças, mas também havia uma parte significativa de nossas economias que tiramos do
banco antes de deixar nossa antiga cidade.
Eu sabia que precisaríamos de mais empregados em Red Rose, tínhamos deixado apenas
Lucinda por muito tempo, e os investimentos na melhoria da propriedade não poderiam demorar
a começar. Por isso, chegamos prevenidos.
— Ainda não acredito que demorei tanto para conhecer Red Rose. — Suspirei. — É
estranho, mas já me sinto em casa. — Sorri e Lucinda retribuiu. — Onde está Nolan? —
indaguei, procurando-o à nossa volta.
— Ele entrou na casa enquanto conversávamos ao lado do carro — respondeu Lucinda.
— Deve estar ansioso para ver o novo lar de sua família.
Mantive-me em silêncio, sabia que Nolan poderia estar sentindo muitas coisas; todavia,
ansiedade em conhecer este lugar, não deveria ser uma delas.
Após subirmos os poucos degraus à nossa frente, abrimos a grande porta de madeira e
entramos na sala. Tratava-se de um cômodo amplo e com uma grande lareira. Dois sofás de
veludo vermelho e pés dourados se destacavam no espaço, sendo divididos por uma mesa de
centro de madeira com pés adornados, semelhantes às peças que ela separava.
Caminhei até um dos sofás e sentei-me. Lucinda pôs-se a abrir as cortinas pesadas, que
tinham o mesmo tom de vermelho da peça na qual eu repousava. Pude apreciar mais um pouco
da vista de Red Rose através das muitas janelas verticais que nos cercavam.
— Precisaremos de reformas — declarou Nolan, descendo as escadas, vindo do segundo
piso.
— Já esperava por isso — disse.
— E mais empregados, obviamente.
— Sim. Lucinda tem feito muito mantendo essa casa por tanto tempo sozinha.
— Amanhã, vou providenciar uma arrumadeira. — Nolan andou até o aparador ao lado
de uma das janelas e arrastou o dedo sobre a superfície, mostrando-me a quantidade pó
acumulada.
— Desculpe, senhor — disse Lucinda. — Fiz o que pude para manter a casa durante
este tempo sozinha, contudo reconheço que não foi suficiente.
— Não se desculpe, Lucinda. Nós sabemos disso — disse.
— Os quartos estão completamente limpos. Troquei todas as roupas de cama e limpei
cada canto, para que pudessem descansar. Assim que recebi a notícia sobre a chegada de vocês
na última carta que trocamos, corri cuidar dos cômodos que ocupariam primeiro.
— Agradeço a preocupação — disse a Lucinda.
— Eu descansarei um pouco e descerei em seguida para almoçar. Acredito que a comida
já esteja pronta — disse Nolan a Lucinda.
— Sim, senhor — confirmou ela. — Está fria, mas esquentarei a refeição rapidamente.
— Nolan assentiu e virou corpo para subir as escadas, deixando-me sozinha com Lucinda.
— Geralmente, seu humor é melhor — tentei justificar seu comportamento, que beirava
a grosseria.
— Ele está cansado da viagem — compreendeu ela.
Eu queria acreditar que se tratava apenas disso. Cansaço.
— A senhora deseja subir também? — perguntou Lucinda. — Posso ajudá-la.
— Não se preocupe comigo — disse tranquilamente. — Estou acostumada a escadas.
Pode ir preparar a mesa. Eu vou andar um pouco pela casa.
— Como preferir, senhora — disse ela, antes de deixar-me indo em direção ao que eu
imaginava ser a cozinha.
Subi as escadas devagar, segurando no corrimão de madeira. O tapete vermelho-sangue,
que se debruçava pelo meio da escada, permitia que meus passos fossem silenciosos e eu
apreciava isso.
O corredor, que se mostrava ao fim da escadaria, era pouco iluminado, mesmo que ao
fim dele houvesse uma janela vertical, semelhante àquelas encontradas na sala de visitas.
Entretanto, diferentemente das outras janelas, esta não tinha cortina alguma cobrindo-a.
Abri a primeira porta do lado direito e encontrei nosso quarto. Era ainda maior do que
aquele que tínhamos em nossa casa, em Birmingham. A cama tinha um dossel de madeira,
forrado por tecidos claros que se estendiam pelas laterais do móvel.
O tapete à frente era imenso e a surpresa me fez tirar os sapatos para sentir sua textura.
Sentei-me na beirada da cama e esfreguei a sola dos pés levemente no tecido. Era macio e a
sensação agradável trouxe conforto aos meus pés cansados.
Levantei-me e andei até uma das janelas à minha direita, abrindo a cortina que se
estendia até o chão. A visão dali de cima era linda, eu até conseguia enxergar parte do muro de
pedras que cercava a entrada de Red Rose.
Abrindo uma fresta, estendi a mão para tocar alguns galhos e folhas das árvores que nos
rodeavam.
Corri até outra janela do canto e vi o grande portão de ferro na entrada da propriedade
ainda aberto. Não parecia real, mas eu estava em Red Rose. Tudo era novo, encantador e
assustador ao mesmo tempo.
Virei-me em direção à porta e encontrei Nolan encarando-me. Ele deu dois passos à
frente, pensei que viria até mim, entretanto ele desviou indo até a penteadeira na parede do outro
lado. Ele abriu as gavetas calmamente e encontrou uma escova de cabelos delicada, com alguma
letra gravada no cabo. Ele observou o objeto e o devolveu ao lugar. Inclinou-se para frente,
observando-me através do espelho.
— Pode deixar a maleta no armário de roupas por hoje. Amanhã, irei ao banco e
depositarei o valor. Não é seguro ter essa quantia em casa.
— Amanhã, nós iremos ao banco e eu irei depositar — disse, enfatizando que o dinheiro
ficaria sob minha responsabilidade. Por um instante, temi sua reação. Nolan virou-se para mim,
claramente incomodado.
— Então não confia em mim, Grace?
— Eu deveria?
— Achei que tivesse me perdoado. Estamos aqui, não estamos? — ele disse, estendo os
braços.
— Isso não significa que eu esqueci o porquê de nós estarmos aqui — retruquei.
— Pois bem. Que seja... — resmungou, batendo a porta ao sair do quarto.
Suspirei, tentando não me deixar abalar. Eu não estava sendo injusta com ele. Não sabia
o que esperar de Nolan, depois de tudo o que houve em Birmingham, e só estava tentando ser
cautelosa.
Andei até o guarda-roupa de madeira, que cobria parte da parede de nosso quarto, e
escolhi a última porta. Apalpei as paredes e as divisórias dentro do armário. Bati com os nós dos
dedos no fundo e um barulho oco ecoou. Era um fundo falso. Olhei à minha volta, parecia ser o
lugar mais seguro. Guardei a mala com nossas economias e tranquei a porta, guardando a chave
comigo.
— Posso entrar? — Ouvi Lucinda bater à porta.
Voltei a sentar-me na cama, antes de responder.
— Sim. — Passei as mãos pelo tecido de meu vestido. Estava amassado e sujo de
poeira.
— Seu marido pediu para chamá-la, senhora, pois a refeição está servida.
— Obrigada, Lucinda — disse. — Descerei em instantes. — Ela assentiu, deixando-me
sozinha novamente.
Uma rajada de vento atravessou a janela aberta, levantando parte da cortina. Senti um
calafrio percorrer por meu corpo.
Levantei-me imediatamente para acompanhar meu marido em sua refeição, mesmo que
eu, apesar de tantas horas sem me alimentar, estivesse sem apetite.
Ao pisar no corredor, ouvi o som de algo bater contra o vidro da janela ao fundo.
Parecia ser uma corrente de metal pendurada. Andei até lá e puxei a corrente que estava ligada ao
teto, devendo aquela ser usada para a abertura do sótão, mas nada mudou.
Sentindo uma súbita curiosidade, por ver o que havia naquele lugar, puxei a corrente,
empregando mais força, porém a entrada do sótão permaneceu fechada.
Tentei mais algumas vezes, todavia não obtive resultado algum.
Ouvi a voz de Nolan e Lucinda no andar debaixo, lembrando-me de que eu precisava
me juntar a eles.
Soltei a corrente e virei meu corpo em direção às escadas. Dei apenas três passos e ouvi
o som do metal bater novamente contra o vidro da janela. Voltei e puxei o metal até enroscar no
batente da janela, fazendo o barulho cessar.
Encontrei Nolan se fartando à mesa da sala de jantar e Lucinda em pé ao lado da mesa.
— Começou sem mim? — Não era uma pergunta, apenas uma constatação.
— Você demorou — disse, como se fosse uma justificativa.
Sentei-me e Lucinda serviu meu prato. Agradeci. Apesar de não estar com fome, a
comida estava deliciosa.
— O que tem no sótão? — perguntei subitamente a Lucinda, que pareceu ficar
levemente desconcertada.
— Bagunça, senhora. Não recomendo que a senhora vá até lá, principalmente nas suas
condições. Não me orgulho de dizer que há muito tempo não subo as escadas até o sótão e, por
isso, o lugar está imundo.
— Vamos providenciar um chaveiro para liberar o acesso, mesmo que haja apenas
bagunça. Precisamos saber o que temos dentro de nossa casa — disse Nolan.
Concordei.
Eu desejava conhecer cada canto do nosso novo lar, só não imaginava o quanto isso
ainda me afetaria.
Capítulo 25
Red Rose 1910

O céu estava quase sem nuvens e o calor do sol era bem-vindo. Tirei o pequeno chapéu
que cobria minha cabeça e me abanei um pouco com ele, voltando a colocá-lo, em seguida.
Ajoelhada em frente à nossa casa, eu arrancava parte das ervas daninhas do chão. Queria
me ocupar com algo que não fossem minhas preocupações recorrentes e, por isso, tomei a
recuperação do jardim como uma tarefa pessoal.
— Uma limonada fresca para aplacar o calor.
Lucinda ofereceu-me um copo de suco. Levantei-me, retirando as luvas e limpado o
suor da testa.
— A senhora quer sentar-se um pouco? — perguntou, apontando para a casa. Eu
assenti, concordando. Deixei as luvas no mesmo lugar e andei até a mesa de ferro, acomodada na
varanda lateral da casa.
— A estrutura da casa está em boas condições. Vamos precisar de poucos reparos nesta
parte — disse, olhando à nossa volta.
— Essa casa foi feita com o que havia de melhor, na época.
— Você chegou a conhecer os antigos donos? — perguntei, curiosa. A face de Lucinda
mudou. Pareceu ficar assustada de repente.
Nossa atenção foi desviada pelo som do carro se aproximando. Nolan havia saído pela
manhã, sem deixar recados. Ao menos acreditava que teria sido pela manhã, como dormi cedo,
vencida pelo cansaço, não o havia visto deitar-se.
Esperava por uma explicação, assim que ele retornasse.
O carro parou próximo à entrada da casa. A porta do motorista se abriu e Nolan desceu.
Estava bem-vestido. Um lindo terno cinza que eu havia trazido em uma de nossas malas de
roupas. Ele deu a volta no carro e abriu o lado do passageiro, dando a mão para apoiar uma moça
de cabelos claros que descia do veículo, carregando uma mala.
Eles estavam muito próximos um do outro e Nolan sussurrou algo em seu ouvido,
fazendo-a sorrir. Eles pareciam tão confortáveis um com o outro. Estreitei os olhos, tentando
reconhecê-la. Ela enlaçou seu braço no dele e seguiram em direção à porta de entrada da casa.
Percebi que eu mal respirava naquele momento. Quando subiram o último e olharam para o lado,
notaram nossa presença.
— Querida... — disse Nolan, parecendo surpreso por nos ver. Ele livrou-se do braço da
moça e se aproximou de mim. — Eu consegui uma arrumadeira para ajudar nas tarefas de casa
— contou, entusiasmado. — Venha, Dayse, conheça Grace, minha esposa.
Levantei-me para cumprimentar a moça, que deveria ter pouco mais de vinte anos,
assim como eu. Ela levantou sua mão em minha direção para cumprimentar-me e aceitei. Sorriu
para mim, mesmo que eu não tenha conseguido retribuir.
— Prazer, senhora. Estou feliz por trabalhar nesta bela propriedade.
Eu não a respondi e Nolan pigarreou ao meu lado, chamando minha atenção.
— Desculpe a falta de jeito... fui apenas pega de surpresa — disse, tentando disfarçar
meu desconforto. — Meu marido não disse que você viria.
— Eu disse que contraria uma arrumadeira — retrucou Nolan.
— Não achei que fosse tão prontamente — devolvi, encarando-o.
— Não temos por que esperar. Lucinda não poderia continuar sozinha — declarou.
— E como a encontrou tão rápido? — questionei. — Veio logo de malas... — Dayse
segurava sua mala de couro marrom à frente de seu corpo.
— Eu fui até o vilarejo, procurei em alguns comércios por uma indicação de uma
arrumadeira e me recomendaram esta moça para início imediato. Não foi difícil chegarmos a um
acordo que fosse bom para ambos — explicou Nolan.
— Certo... — eu disse apenas.
— Lucinda, por favor, mostre onde a senhorita Dayse poderá se acomodar.
— Sim, senhor — disse Lucinda, sem mostrar entusiasmo.
As duas mulheres saíram nos deixando a sós. Olhei para meu marido, tentando entender
a situação.
— Até pareceu que você não gostou da surpresa, Grace — inquiriu Nolan, parecendo
estar ofendido.
— Que horas você saiu de casa, Nolan?
— Saí pela manhã — respondeu prontamente. Aquilo tudo me soava estranho, mas eu
não conseguia formar uma teoria do que se desenrolava. — Você não gostou da moça? —
perguntou.
— Eu não tenho uma opinião sobre ela. Não a conheço.
— Eu teria buscado Emma em Birmingham, você sabe, mas a mãe dela não queria que
ela deixasse a cidade. — Nolan suspirou, parecendo estar cansado. — Não entendo, Grace. Fiz
isso por você, para seu conforto.
— Está certo — eu disse, cedendo. — Você tem razão, precisamos de uma arrumadeira.
— Nolan sorriu. — Temos outros assuntos urgentes para resolver. Vamos ao banco do vilarejo
mais tarde? E precisamos de móveis para o quarto do nosso bebê. Não temos nem mesmo um
berço. Tudo ficou na casa de...
— Ah, sobre isso... — ele interrompeu-me. — Eu passei por lá rapidamente, quando
estava à procura da arrumadeira, e não me senti muito seguro com as condições do lugar.
— O que quer dizer? — perguntei, confusa.
— Que o dinheiro ficará mais seguro em nossa casa. Além disso, temos uma boa parte
de nossos recursos seguros no banco de Birmingham, em sua conta pessoal.
— E o berço, o enxoval e...
— Compraremos outro dia. Temos tempo — ele disse, interrompendo-me.
— Certo — respondi, por fim, não desejando estender aquela conversa. Uma inquietude
começava a tomar conta de mim.
— A casa é enorme. — Ouvimos Dayse falar voltando até nós.
— Já se instalou? — perguntei.
— Deixei a mala sobre a minha cama, depois guardarei tudo na cômoda. Na verdade, eu
não trouxe muita coisa, então não há muito o que arrumar.
Dayse se aproximou da balaustrada da varanda e escorou-se nela, observando em volta.
— Red Rose é linda, mesmo abandonada como está. Nem parece a casa mal-
assombrada de que tanto falam.
— O quê? Mal-assombrada? — questionei, confusa.
— Dayse! — Lucinda gritou ao aparecer na porta de entrada. — Preciso de você agora...
— disse em um tom mais controlado.
A moça voltou-se para nós e sorriu, antes de ir até Lucinda e acompanhá-la para dentro
de casa.
— Do que ela estava falando, Nolan?
— Bobagens que ouvimos no vilarejo. Não vai se preocupar com isso agora, não é?
— Não... — respondi, incerta. — Acho que não.
— Vamos entrar. Lucinda deverá servir o almoço em breve.
Capítulo 26
Red Rose 1910

Algumas semanas se passaram desde que chegamos a Red Rose.


O jardim finalmente estava livre das ervas daninhas e das plantas secas. Lucinda esteve
no vilarejo com sua bicicleta recentemente e fez a gentileza de trazer-me algumas mudas de rosas
vermelhas. Fiquei imensamente feliz em plantá-las.
Minha barriga estava enorme e meu filho estava cada dia mais agitado. Sentia-o se
mexer todos os dias desde que chegamos a Red Rose. Estava inquieto, mesmo que eu dissesse
que ele precisava ser paciente, pois ainda faltavam semanas para conhecermos seu rostinho.
Com os joelhos sobre a terra, alcancei a tesoura para podar um dos pés antigos de rosas
que havia sobrevivido ao tempo, mesmo sem o devido cuidado, contudo, por um descuido,
acabei cortando meu dedo. O sangue vermelho escorria pelo corte recém-aberto. Apertei o
ferimento, tentando fazê-lo parar de sangrar, mas de nada adiantou, não parecia ter sido um corte
superficial.
Levantei-me para voltar ao interior de nossa casa. Subi as escadas da entrada e, ao entrar
na sala, escutei Lucinda mexendo nas panelas da cozinha. O cheiro de ervas dominou o primeiro
andar da casa. Minha boca salivou de fome. Ela estava ocupada e, por isso, decidi não a
incomodar.
Encarei as escadas que precisava subir até o segundo piso, para chegar ao quarto e lavar
o ferimento. Troquei meus passos devagar, pois estava cada dia mais difícil andar. O sangue, que
escorria do meu dedo, manchava o assoalho de madeira por onde eu passava com gotas
vermelhas. Respirei fundo ao conseguir alcançar a porta de nosso quarto, que estava entreaberta.
Ouvi risadas contidas, vindas de dentro do ambiente. Aproximei-me mais um pouco e,
pela fresta, vi Dayse com o corpo inclinado para frente arrumando a cama enquanto Nolan, atrás
de seu quadril, parecendo segurar sua cintura, dizia alguma coisa em tom baixo.
Abri a porta completamente, fazendo ambos saltarem com um susto e se afastarem
imediatamente um do outro.
— Interrompo algo? — interroguei, encarando ambos.
— Não... não, senhora — disse Dayse, quase gaguejando. — Eu já terminei de arrumar
seu quarto. — Dayse passou ao meu lado apressada.
Eu fechei a porta e voltei a encarar Nolan.
— Quer me dizer o que estava acontecendo aqui?
— Absolutamente nada — disse apenas.
— Eu vi vocês dois...
— Viu o quê, Grace? — ele indagou. — Viu o quê? — pressionou.
— Você dois estavam próximos... — tentei argumentar.
— Ah! Pronto! Agora, não posso me aproximar de nenhuma mulher.
— Não foi isso o que eu disse — defendi-me. Respirei fundo, tomando coragem para
fazer a pergunta que viria a seguir. — Você está me traindo, Nolan?
— Meu Deus! Você está louca, Grace? — gritou.
— O que quer que eu pense?
— Seu ciúme está fazendo você ver coisas — refutou.
— Nolan, não é de hoje que vejo coisas que...
— Então você confessa que anda vendo coisas! — interrompeu-me.
— Não foi isso que eu quis dizer — tentei retomar meu discurso.
— Você nem sabe o que fala, Grace! Faz acusações descabidas, se contradiz. Não é
possível ter uma conversa com você!
— Eu... eu...
O ar parecia faltar. Eu comecei a respirar profundamente, mas não parecia ser o
suficiente. Corri até a cama e me segurei na cabeceira. Levei minhas mãos à barriga, sentindo
uma dor intensa, que iniciava nas minhas costas e se espalhava. Inclinei meu tronco para frente,
respirando rápido demais. Não era a mesma dor que havia sentido das outras vezes. Era mais
intensa. Uma forte pressão em meu ventre que me preocupou imediatamente.
— Chame... chame um médico — disse baixo. Nolan saiu do quarto a passos rápidos.
Ouvi o carro sendo ligado e deixar Red Rose, em seguida.
Capítulo 27
Red Rose 1910

Por favor, ainda não é hora, disse para meu filho depois de liberar um grito de dor.
Deitei-me na cama, abraçando minha barriga. As lágrimas embaçavam minha visão. Um
novo grito irrompeu de minha garganta. Eu tentei sufocar o som com o travesseiro.
A porta do quarto se abriu de repente e Lucinda correu ao meu encontro. Ela sentou-se
ao lado da cama, tomando minhas mãos nas suas.
— Vai ficar tudo bem — disse, tentando me acalmar.
— Não... não é hora — respondi, deixando as lágrimas correrem livres.
— É uma criança forte como a mãe. Vocês ficarão bem.
— Nolan foi ao vilarejo? — confirmei, mesmo tendo ouvido o carro sair.
— Sim, e ele logo estará de volta com o médico.
A dor me golpeava indo e vindo, fazendo-me retorcer sobre a cama. Lucinda
providenciou uma bacia com água e toalhas limpas, e ela constantemente usava uma das toalhas
para limpar o suor de minha pele.
Eu já havia me livrado das roupas do dia e usava apenas uma camisola branca; ainda
assim, sentia um calor insuportável misturado a ondas de dor, que se espalhavam por meu corpo.
As horas pareceram se arrastar e nenhum sinal de Nolan, ou do médico, chegava até nós.
Enquanto a dor me levava ao limite, aumentado a cada golpe, o tempo entre as cólicas
diminuíam.
— Eu não aguento mais esperar — disse, chorando. Lucinda estava aflita, eu via em
seus olhos, mas tentava disfarçar.
— Eu vou até o vilarejo — disse.
— Não precisa sair a essa hora de bicicleta. Nolan deve estar chegando — disse entre
gemidos, enquanto uma nova onda de dor passava por meu corpo.
— Eu vou! Preciso fazer alguma coisa! — declarou com firmeza.
Lucinda deixou a cama e se afastou do quarto. Ouvi sua voz alterada conversando com
Dayse no corredor, mas não consegui identificar o que falavam.
As duas atravessaram a porta. Lucinda trazia Dayse pelo braço e sussurrou algo em seu
ouvido, antes de nos deixar e sair correndo.
Dayse sentou-se na poltrona ao lado de minha cama. Parecia entediada por estar ali.
Sufoquei um novo grito de dor no travesseiro, que já estava molhado com meu suor e
lágrimas.
Virei-me para o outro lado da cama, encarando as janelas abertas e as cortinas que
flutuavam com o vento. Eu preferia encarar a escuridão da noite que se aproximava à companhia
de Dayse. Havia algo naquela moça que me deixava em alerta e eu não conseguia ignorar.
Mais algum tempo se passou e nada mudou. Dayse suspirou, entediada, ainda sentada na
poltrona ao lado da cama.
— Você pode voltar aos seus afazeres, Dayse — declarei entre uma onda de dor e outra.
Ela não parecia querer estar ali e, sendo honesta comigo mesma, eu também não desejava sua
companhia.
Ela levantou-se do lugar de onde estava e circulou a cama, parando de frente para a
janela.
— Essa casa já tomou muitos bebês. Não leve para o lado pessoal, senhora — ela disse,
como se suas palavras não pesassem nada.
— Do que está falando? — perguntei, tentando controlar o pavor que surgia em meu
peito.
— Dos antigos donos. Não sabe da história?
— Que história? — gritei durante mais uma onda de dor intensa.
— A antiga dona. A mãe louca...
— Eu não sei do que está falando, Dayse.
— Deveria conhecer a história de uma casa, antes de mudar-se para ela. Aposto que em
Birmingham a senhora não estaria nesta situação. Se perder o filho de Nolan, a culpa será toda
sua.
Um novo som carregado de dor ecoou pelo quarto. Senti o líquido descer por minhas
pernas, molhando minha roupa e a cama. Não era hora, não era hora.
Meu coração pareceu parar de bater.
Eu tinha colocado meu filho em risco. Em Birmingham, o médico já teria nos atendido
há horas. Eu podia perder meu filho e a culpa era minha. Só minha. Senti minha cabeça latejar e
meus sentidos me abandonarem na escuridão.
— Senhora Green... Senhora Green. — Alguém me chamava. Abri os olhos aos poucos.
Havia anoitecido e a luz das arandelas das paredes produziam sombras amareladas à minha volta.
Enxerguei o rosto vermelho de Lucinda e seus cabelos bagunçados. Estava suja de
poeira e seu rosto demonstrava um misto de cansaço e preocupação. Olhei para baixo e vi sua
mão suja de sangue.
— O que houve? — perguntei, assustada.
— Uma queda de bicicleta. Nada demais — garantiu-me com um sorriso.
— Senhora Green? Consegue me ouvir? — perguntou o homem que se sentava ao meu
lado na cama.
Assenti com a cabeça. Passei a mão na minha barriga lembrando das palavras de Dayse,
remoendo-me em culpa.
— Meu filho — disse baixo.
— Está prestes a nascer — disse o homem. — Sou o doutor Thompson. Sou o médico
do vilarejo. Vim atendê-la. Tudo bem?
— Sim... — disse baixo.
O homem posicionou meu corpo levantando minhas vestes.
— Está na hora senhora Green. Ainda bem que Lucinda me encontrou a tempo. A
senhora precisa fazer força para trazer seu filho ao mundo, ele não irá esperar mais.
Senti a mão de Lucinda apertar a minha. Procurei por Nolan à minha volta, mas não o
encontrei.
— Nolan? — perguntei a Lucinda, mas ela apenas desviou o rosto.
— Concentre-se agora no nascimento de seu filho, senhora Green. Preciso que faça
força para trazer essa criança ao mundo.
Eu fiz força, gemi e chorei, tudo ao mesmo tempo. O medo de não conseguir trazer meu
filho ao mundo me apavorava tanto quanto a dor que atingia meu corpo. Uma, duas, três... Eu
perdi as contas de quantas vezes fiz força para dar à luz.
Uma de minhas mãos esmagava a mão de Lucinda e a outra se fechava em uma parte da
cabeceira da cama, na qual eu estava.
E então, finalmente, meu bebê chegou ao mundo. Olhei para baixo, mas não consegui
ver nada. Apaguei assim que o médico disse: “aqui está ela”.
— Senhora... senhora — Lucinda me chamava. — Me ouve?
— Sim — respondi, quase sem forças.
— Aqui está ela — Lucinda mostrou-me um bebê com o rostinho todo enrugado.
— Oh! Ela é linda — disse, tocando a manta que protegia seu corpinho. — Não tenho
forças para segurá-la — resmunguei.
— Eu a seguro ao seu lado. Descanse, senhora. O mais importante é que vocês duas
estão bem.
Senti o cansaço vencer e o sono me embalar. Virei-me para o lado e vi minha filha nos
braços calorosos de Lucinda. Minha filha estava bem. Nós duas ficaríamos bem.
Ao adormecer, sonhei com uma menininha de cabelos castanhos como os meus,
correndo em frente à nossa casa. O jardim estava belíssimo e cercava a casa com rosas
vermelhas, como as bochechas da linda menina que sorria para mim.
Acordei pela manhã, depois de poucas horas após o parto, ainda sentindo-me cansada.
Não parecia ser real, mas, assim que abri os olhos, tive certeza de que era. Lucinda e minha
menina dormiam ao meu lado. Segurei sua mãozinha pequenina. Rosalie, pronunciei. Seu nome
seria Rosalie.
— É um lindo nome, senhora — disse Lucinda, acordando também.
— O médico já se foi? — perguntei.
— Sim. Ele disse que a senhora e a bebê, digo, Rosalie, estavam fora de perigo.
— Eu não paguei pelos serviços — lembrei-me.
— Usei o dinheiro que a senhora deixou aos meus cuidados para as despesas da casa.
— Obrigada, Lucinda. — Ela assentiu.
— Me parecia o mais certo, já que a senhora estava exausta para lidar com a questão.
— Eu quero dizer, obrigada por tudo. Não sei o que teria sido de nós duas, se você não
tivesse voltado com médico a tempo.
— Não pensaremos nisso. O importante é que deu tudo certo.
Nolan entrou no quarto, dando a volta na cama, para ficar de frente para nós. Lucinda
levantou-se da cama.
— Trarei seu café da manhã, senhora, e se quiser, posso ajudar com a bebê também.
— Grace. Por favor, me chame apenas de Grace. — Lucinda apenas assentiu. — E, sim,
sua ajuda será de grande valia.
— Não deveria dar tanta liberdade aos empregados, Grace — disse Nolan após a porta
ser fechada.
— Se não fosse a empregada, que foi de bicicleta ao vilarejo buscar o Dr. Thompson, eu
e Rosalie poderíamos não estar aqui.
— Não seja dramática. Eu cheguei algumas horas depois com outro médico.
— E por que demorou tanto?
— No vilarejo, não ouvi coisas boas sobre esse tal Thompson e não quis colocar você e
nossa filha em risco. Fui a outro vilarejo, um pouco mais distante, buscar alguém de confiança.
— Bom, quem me socorreu foi o Dr. Thompson — retruquei com rancor.
— O importante é que você e nossa filha estão bem — disse, suspirando.
— O nome dela é Rosalie. — Nolan assentiu.
— Vou levar Rosalie para o quarto ao lado, para que eu possa descansar.
— Não — eu neguei.
— Eu preciso me deitar — ele reclamou.
— E ela precisará mamar em breve. Durma você no outro quarto — disse, segurando a
mãozinha de Rosalie.
Nolan bufou.
— Esse quarto é meu.
— É nosso — retruquei. — E até que você providencie um berço para Rosalie, ela
dormirá comigo. — Se eu não tivesse insistido em trazer algumas roupas que comprei em
Birmingham, quando soube que estava esperando um filho, nem teríamos o que vestir em
Rosalie neste momento.
Nolan não discutiu mais.
Vi meu marido pegar algumas de suas roupas no armário e deixar o quarto, batendo a
porta. Fazendo Rosalie acordar de seu sono tranquilo e começar a chorar. Comecei a chorar
junto. Não sabia bem o motivo de meu choro acompanhar o seu. Sentei-me na cama, encostando-
me na cabeceira. Tomei minha filha nos braços e a embalei, fazendo ela voltar a dormir.
Fiz todas minhas refeições no quarto com a ajuda de Lucinda. Nolan não retornou para
ver como estávamos. Não viu nossa filha se alimentar pela primeira vez ou quando troquei a
primeira roupa dela.
Meu coração doía, mas eu não deixaria a dor tomar conta de mim.
Eu precisava estar bem por Rosalie e era isso que eu faria.
Capítulo 28
Red Rose 1910

A distância de Nolan era sentida por mim cada dia mais. Ele não estava saindo de casa
para beber e jogar como antes, mas parecia evitar minha companhia, assim como a companhia de
Rosalie.
O único apoio que eu estava recebendo vinha de Lucinda, que se preocupava
constantemente conosco, e, graças a ela, minha recuperação após o parto vinha ocorrendo melhor
do que o esperado.
Abri a porta de meu quarto e quase bati em Nolan.
— Vou até o vilarejo — ele anuncia.
— Ótimo. Trouxemos pouca roupa e nenhum brinquedo para Rosalie. Preciso fazer
compras.
— Ainda é cedo para brinquedos, não acha? Ela acabou de fazer um mês de vida.
— Não estou falando de uma loja inteira, apenas algumas bonecas e...
— Já entendi. Quer gastar nosso dinheiro à toa.
— Eu escolherei a dedo o que comprar — garanti.
Fui até o quarto de Rosalie e peguei o cesto Moisés para levar minha filha até Lucinda
na cozinha.
— Você pode ficar de olho nela até voltarmos, Lucinda? Não gosto de deixá-la sozinha
no quarto — pedi a Lucinda, que começava a preparar o almoço.
— Claro, Grace — respondeu com um sorriso.
Despedi-me delas e, mesmo que Rosalie ainda não entendesse minhas palavras, prometi
a minha filha que não demoraria no vilarejo.
Quando estávamos prestes a sair da propriedade, a porta do carro se abriu e Dayse
entrou no banco detrás.
— Espero que não se importem, mas preciso ir ao vilarejo ver minha família.
— Não vejo problemas — respondeu Nolan.
Saímos os três em direção ao portão de ferro, que Nolan já havia deixado aberto. Assim
que atravessamos o limiar que separava Red Rose da estrada de chão, Nolan acelerou o veículo
não fazendo menção de parar o carro. Segurei forte em seu braço, chamando sua atenção.
— O que foi? — perguntou, parando carro.
— Não vai fechar o portão?
— Voltaremos em breve — argumentou.
— Nossa filha está naquela casa. Será mais seguro para ela se mantivermos o portão
fechado.
— Não vou fechá-lo. Não temos vizinhos nas redondezas. Não há necessidade de tanta
preocupação.
Nolan começou a colocar o carro em movimento novamente e, assim que começamos a
andar, eu abri a porta ao meu lado, fazendo menção de descer.
— Está louca?! — gritou, parando novamente.
— Eu vou fechar o portão — declarei, saindo do veículo. Andei até o grande portão
pesado e o fechei.
Voltei ao carro, minhas mãos estavam sujas de poeira e ferrugem.
— Agora, você vai com as mãos sujas até o vilarejo.
— Mas com a consciência limpa — retruquei. Nolan encarou-me, zangado.
— Desde quando tem a língua afiada, Grace?
Não o respondi. Não tinha a intenção de brigar. Estava cansada dos embates com Nolan.
Voltei a cabeça para a janela ao meu lado e encarei a solidão da estrada até o vilarejo.
Ao chegarmos à rua principal, pude apreciar o quanto o vilarejo era encantador: as ruas
de pedra, casas e mais casas uma ao lado da outra, fazendo jus a beleza da arquitetura georgiana.
Os pequenos comércios... Eu observava os detalhes, admirada. As arandelas de ferro ao lado das
portas chamaram minha atenção. Red Rose não tinha nenhuma do lado de fora, poderíamos
mudar isso...
Nolan parou o carro em frente a um pub.
— Vou encontrar um amigo de longa data — anunciou ele.
— Achei que fôssemos fazer as compras juntos.
— Eu te encontro depois que conversar com meu amigo. Não há tantas lojas neste lugar.
Desci do carro, sendo acompanhada por Dayse, mas tomamos direções contrárias alguns
passos adiante. Nolan nos observou por um instante de longe e, em seguida, entrou no pub.
Caminhei pela rua sinuosa de pedras que cortava o vilarejo e, aos poucos, eu começava
a conhecer os comércios. Senti o cheiro de pão assado ao passar por uma cafeteria e quase me
rendi, entrando no lugar. As mesas quadradas de madeira dispostas debaixo do beiral à frente da
entrada pareciam muito convidativas, mas me mantive firme em minha missão de comprar o que
precisava e voltar o quanto antes a Red Rose.
Passando por uma loja de roupas, parei em frente à vitrine, observando as peças. Havia
um vestido vermelho longo e belíssimo que chamou minha atenção: as mangas eram compridas e
marcadas na altura do cotovelo. O tecido parecia leve e sedoso. Tive vontade te tocá-lo. No
peito, havia uma renda mais escura e fechada. A cintura levemente marcada dava um caimento
perfeito à peça.
Abri a porta do estabelecimento e o sino soou. Não havia nenhum outro cliente dentro
da loja além de mim.
— Seja bem-vinda. — Uma mulher de cabelos claros presos se aproximou, estendendo-
me a mão. — Me chamo Victoria.
— Sou Grace, mas... posso limpar minha mão antes de cumprimentá-la? Sujei-me mais
cedo no portão de casa — aviso, rapidamente.
— Claro. — Victoria deu a volta no balcão e sumiu para dentro de uma porta, voltando
em seguida com uma pequena toalha úmida. Limpei as mãos.
— Como posso te ajudar? — perguntou, simpática.
— Além de limpar minhas mãos? — Eu ri e ela também. — Procuro roupas de bebê.
— Menino ou menina?
— Menina. Um mês de vida. Mas quero roupas maiores, para quando ela começar a
crescer um pouco mais...
— Tenho um enxoval completo para uma menina com peças de roupas que servirão até
um ano.
Ela mostrou-me as roupinhas coloridas, todas lindas. Os vestidinhos maiores, com
babados, eram encantadores. Mantas e fraldas. Tudo o que eu precisaria nos próximos meses
para vestir minha Rosalie.
— Eu vou levar este enxoval.
— Se quiser encomendar outro, também posso providenciar para você — ofereceu-me
ela.
— Por ora, este bastará.
— Desculpe a intromissão, mas você é nova na região, não é? É que não vemos muitos
rostos diferentes por aqui.
— Sim. — Ficamos em silêncio enquanto em passava as mãos pelo novo enxoval de
minha filha. Eu não tinha a intenção de dar detalhes a uma estranha sobre minha vida ou sobre o
motivo de nossa mudança para este vilarejo.
— E para você?
— Não levarei nada hoje, apenas para minha filha.
— Eu vi que gostou do vestido na vitrine — ela disse, simpática.
— Não tenho saído de casa para ter onde usar algo tão bonito assim.
— E precisa sair de casa para vestir-se bem? — perguntou, sugestiva.
— Tem razão. Eu posso levar um vestido bonito para mim. — Sorri, sentindo-me
travessa.
Saí da loja de Victoria carregada de grandes sacolas. Ao lado, havia uma loja de
utilidades que misturava coisas de cozinha, tapeçaria e alguns brinquedos. Fiquei curiosa e entrei
na loja.
Um senhor de idade com um sotaque diferente me atendeu. Disse a ele que procurava
um brinquedo para minha filha e ele ofereceu-me uma boneca de pano, mas o preço pareceu-me
caro demais. Estava prestes a deixá-la, quando ele baixou o preço do item imediatamente. Decidi
levar a tal bonequinha. Era perfeita para Rosalie, tinha os cabelos encaracolados e castanhos,
como imaginei que ela teria um dia.
Não tinha percebido que a rua principal era tão cansativa até precisar subi-la com as
sacolas. Quando terminei a subida, avistei o carro de Nolan no mesmo local em que o havíamos
estacionado quando chegamos ao vilarejo, e ao lado do veículo, Nolan e Dayse pareciam
conversar, íntimos.
Meus braços endureceram e resisti à vontade de jogar as sacolas no chão. Respirei
fundo. Cheguei à porta do carro e esperei para que Nolan a abrisse. Acomodei as sacolas aos
meus pés e no colo.
— Podemos ir? — perguntei, friamente.
— Esperávamos apenas por você — respondeu ele, dando a volta no carro e assumindo
o volante. Dayse entrou calada.
Voltamos à Red Rose e, na chegada, ao se deparar com o portão, Nolan reclamou por ter
que descer para abri-lo. Ignorei seu mau humor.
Ao chegar em casa, corri para ver Rosalie, que ainda dormia.
— Ela nem resmungou — comentou Lucinda. Agradeci por seu cuidado com minha
filha e carreguei o cesto com Rosalie para seu quarto, devolvendo-a ao seu berço.
Busquei as sacolas no carro e comecei a guardar as roupas de Rosalie em sua cômoda.
Por último, tirei a boneca de pano e a coloquei no berço, ao lado de minha menina. Eu sabia que
ela ainda não tinha conhecimento de que se tratava de um brinquedo, mas não conseguiria
mantê-lo guardado, queria entregar logo o primeiro presente de minha filha.
Deixei a porta, que separava nossos quartos, aberta. Deitei-me em minha cama para
descansar um pouco. Sentia-me exausta. Não sabia se era pelo passeio ao vilarejo ou por ainda
fazer pouco tempo desde o parto...
De repente, senti meu corpo preso à cama, com minhas pernas e braços atados. Eu
tentava mexê-los, mas nada acontecia. À minha frente, eu via a porta que separava meu quarto e
o quarto de Rosalie, aberta, e o berço estava escondido pelo corpo de uma mulher alta, de
camisola branca e cabelos tão escuros quanto a noite.
Eu tentei gritar para que a mulher desconhecida se afastasse de Rosalie, mas minha
língua não respondia, parecia grande demais em minha boca, como se fosse me sufocar a
qualquer momento.
Meu peito começou a doer, como se algo pesado o pressionasse.
Eu me esforcei e um grito irrompeu de minha garganta. A mulher virou-se para mim e
seu rosto mostrou-se com a face de Dayse. Ela tomou Rosalie nos braços e desapareceu, em
seguida.
Todo meu corpo estremeceu.
Eu gritei até sentir minha garganta doer, enquanto debatia-me.
Acordei com Lucinda tentando conter meus braços e pernas na cama, enquanto pedia
que eu me acalmasse. Da porta, Dayse e Nolan assistiam, horrorizados.
Sentei-me na cama e os braços de Lucinda circularam meu corpo, abraçando-me.
Liberei um choro tão intenso que me fez perder o ar. Rosalie começou a chorar também. Nolan
olhou-me com reprovação. Dayse saiu da entrada do cômodo para ir em direção à porta que
separava meu quarto e o de Rosalie. Quando ela estava perto do berço, vi que ela pretendia pegá-
la, como no sonho ruim que eu havia acabado de ter.
— Não! — gritei, soltando-me do abraço de Lucinda e descendo cambaleante da cama.
Dayse não se deteve e pegou Rosalie no colo. Meu peito doeu como se estivesse vivenciando
aquele pesadelo de instantes atrás.
— Devolva minha filha! — ordenei cobrindo o som do choro de Rosalie. Dayse olhou
para Nolan, que se mantinha em silêncio. Tomei minha menina de seus braços, envolvendo-a de
maneira protetora nos meus. Beijei sua cabecinha. Meu choro misturava-se ao seu. — Tudo está
bem agora, Rosalie — sussurrei para ela.
Eu olhava apenas para os olhos de Rosalie, que começava a se acalmar.
— Isso não era necessário, Grace. — A voz de Nolan soou, repreendendo-me. — Você
deixou Rosalie assustada e Dayse só estava tentando ajudar. O que há de errado com você? —
questionou.
— Só quero proteger minha filha — justifiquei.
— De quem? Da Dayse? — desdenhou.
— Quero que saiam do meu quarto — disse, tentando me acalmar.
— Não está em condições de ficar sozinha com Rosalie — Nolan avançou em minha
direção e eu apertei minha filha em meus braços, recuando.
— Ninguém tocará nela — garanti, olhando-o ferozmente. Nolan não se deteve, fazendo
menção de tomar Rosalie de mim. Lucinda surgiu em minha frente, parando Nolan.
— Com todo respeito, senhor. É melhor deixar Grace com a filha. Eu cuidarei das duas.
Meu marido encarou-me furioso. Acenou para Dayse, indicando que saíssem do quarto.
Respirei aliviada quando a porta foi fechada, com eles do lado de fora. Limpei o rosto, que ainda
estava molhado pelas lágrimas.
— O que houve, Grace? — perguntou Lucinda calmamente, guiando-me até a cama.
Sentamo-nos na beirada enquanto eu continuava a embalar Rosalie.
— Tive um pesadelo, Lucinda.
— Que tipo de pesadelo?
— Uma mulher alta, de cabelos pretos e lisos estava em frente ao berço e pegava
Rosalie no colo. Eu assistia à cena de minha cama, mas não conseguia me mexer. Quando a
mulher se virou para mim, tinha o rosto de Dayse e segurava Rosalie em seus braços. Então ela
desapareceu em seguida, levando minha filha.
Fiquei completamente apavorada. Senti que perdia Rosalie sem poder fazer nada para
impedir que a levassem de mim.
Lucinda abraçava-nos e acariciava minhas costas tentando confortar-me.
Rosalie voltou a adormecer. Olhei para seu rostinho em sono profundo. Ainda havia
algumas lágrimas entre seus cílios grossos e escuros. Limpei-as delicadamente com uma pequena
fralda bordada. Deitei-me, colocando minha menina ao lado. Lucinda circulou a cama cercando-
nos com travesseiros e almofadas.
— Vou trazer um caldo para você se alimentar.
— Não estou com fome.
— Precisa se alimentar. Ainda está amamentando.
Assenti, concordando. Não poderia contrariar este argumento. Acariciei os cabelos ralos
de Rosalie, que continuava a dormir.
Desejava, de todo meu coração, que aquele sonho ruim não passasse de reflexo de meus
medos internos. Aqueles que eu não queria encarar.
Capítulo 29
Red Rose 1910

Mais algumas semanas se passaram desde aquele pesadelo. Nolan passou a dormir em
outro quarto em definitivo, deixando-me apenas com Rosalie. Ele não fazia questão de esperar-
me para as refeições do dia e poucas vezes vinha até nós.
Parecia ter desistido de nós. Não apenas de mim, mas de Rosalie, de nossa família.
Eu dormia em minha cama quando um vento frio entrou pelas janelas e agitou as
cortinas. Senti um toque frio em minha face, parecia que uma mão tapava minha boca. Abri os
olhos. Pela fresta da porta do quarto, vi a silhueta de uma mulher. Levantei-me sonolenta e
terminei de abrir a porta, para ver de quem se tratava.
Não havia ninguém no corredor. Respirei fundo e voltei para o quarto.
Rosalie estava em seu berço. Eu mantinha a porta que separava nossos quartos aberta.
Ela remexeu-se, parecendo acordar, e andei até ela.
Sufoquei um grito que se formou em minha garganta. Havia uma boneca de pano
assustadora nos braços de minha filha. Não era a mesma que eu havia comprado. Esta estava
suja, parcialmente queimada e ainda tinha os olhos arrancados.
Agarrei-me na lateral do berço, para acalmar-me.
Desci as escadas apressadamente, pronta para o ataque. Eu estava cada dia mais cansada
e não aceitaria esse tipo de brincadeira.
— Onde ela está? — gritei na cozinha, procurando por Dayse.
— Dayse? — perguntou Lucinda, confusa.
— O que foi desta vez, Grace? — Nolan surgiu atrás de mim, irritado, mas seu mau
humor já não me surpreendia mais.
— Onde está Dayse?
— Ela ainda está dormindo. Disse ontem que não estava bem e, por isso, ela deveria
levantar-se mais tarde hoje — respondeu Lucinda.
— Eu a liberei do trabalho — declarou Nolan.
Saí da cozinha pisando duro em direção ao corredor, no qual ficava a entrada para os
quartos dos empregados. Abri a segunda porta, sabendo que a primeira era do quarto de Lucinda.
Em um rompante, entrei no quarto e avancei sobre a cama de Dayse, puxando seu
cobertor e descobrindo seu corpo. Não acreditei quando a vi dormindo. Ela não deveria estar lá.
Era ela quem estava no corredor e quem tinha colocado a boneca queimada no berço de Rosalie,
tinha que ser. Quem mais poderia fazer uma brincadeira de tamanho mau gosto?
— O que está havendo com você, Grace? — Nolan disse, exasperado. — Parece que
perdeu o juízo de vez.
— Ela — respondi, apontando para Dayse — colocou uma boneca suja e queimada no
berço de Rosalie, no lugar daquela que eu comprei.
— Eu não sei do que a senhora está falando — disse Dayse, parecendo estar sonolenta.
— Grace, o que está acontecendo? — questionou Nolan.
— Venha. Eu vou te mostrar e vamos colocar essa aí para fora de casa ainda hoje.
Voltei pelo corredor, atravessando a cozinha apressadamente. Todos me seguiram. Abri
a porta do quarto adjacente ao meu e caminhei até o berço onde Rosalie estava.
Comecei a chorar sufocando o som com minha própria mão. As lágrimas banharam meu
rosto. Eu não conseguia entender. Levei as mãos a cabeça, sentindo uma dor forte despontar.
Todos eles circularam o berço, observando Rosalie dormir calmamente com a boneca
que eu havia comprado ao seu lado. Não havia nenhuma boneca de pano queimada.
— Eu... eu não entendo. Eu vi. Eu juro! Estava bem aqui! — disse, tentando acalmar-
me.
— O que você acabou de fazer foi muito grave, Grace. Perdeu o juízo? Peça desculpas à
pobre Dayse — ordenou Nolan.
— Ela deve apenas ter sonhado de novo, senhor. Lembra-se da última vez, como ficou
atormentada? Não é culpa dela. Está exausta, cuidando dia e noite de Rosalie sozinha —
defendeu-me Lucinda.
— Ela está exausta, porque não deixa Dayse chegar nem perto da criança para ajudá-la
— retrucou Nolan. — Agora, peça desculpas por seu comportamento inaceitável, Grace —
exigiu.
Os olhos de todos se voltaram para mim. Lucinda estava ao meu lado e discretamente
apertou meus dedos, dando-me coragem.
Eu não queria desculpar-me. Eu sentia dentro de mim que Dayse estava, de alguma
forma, ligada aos meus infortúnios recentes, mas eu não tinha nada além de conjecturas. E vendo
a boneca nova no berço, como eu poderia dizer que aquilo que vi há pouco fora real? Minha
mente brigava com meu coração. Mesmo odiando, eu pronunciei as palavras:
— Sinto muito, Dayse. — Não consegui encará-la nos olhos. Eles diriam a verdade.
Diriam que eu não sentia muito. Que eu não conseguia confiar nela.
— Espero que um novo rompante não volte a acontecer, Grace — repreendeu-me
Nolan.
Quando Nolan e Dayse deixaram o quarto, desci até o chão com meu corpo escorado
pelo berço, cobrindo meu rosto com as mãos. Lucinda sentou-se ao meu lado.
— Não sei o que está havendo comigo — confessei entre mais lágrimas.
— Está cansada. Precisa sair um pouco de casa, ver outras pessoas, pessoas que a façam
bem...
— Eu não tenho mais ninguém — disse em um soluço.
— Talvez precise conhecer pessoas novas...
Ela não disse nada além disso, mas eu senti em cada palavra exatamente o que ela
estava querendo dizer. Era o que parte de mim desejava há muito tempo, e o que a outra parte
temia.
— Não sei se consigo — confessei.
— Pense na ideia aos poucos... — sugeriu ela.
Ficamos encarando a porta do quarto por algum tempo, até Nolan voltar a nossa
presença. Ainda parecia irritado.
— Vou ao vilarejo encontrar um amigo e Dayse virá comigo — anunciou ele.
— Por que ela irá com você? — questionei, limpando os olhos.
— Porque eu lhe dei um dia de folga e ela precisa ver sua família. — Suspirou,
exasperado. — Quer vir junto e invadir o quarto deles também?
Senti-me culpada. Neguei com a cabeça e abaixei-a, descansando sobre as pernas, que
eu mantinha em frente ao meu peito. Nolan nos deixou e, pouco depois, ouvimos o carro
partindo de Red Rose.
Meu choro se tornou mais intenso e, por isso, deixei o quarto, não queria assustar
Rosalie. Desci as escadas, segurando-me pelo corrimão para não cair pelo caminho. Lucinda
seguiu-me. Fomos até a cozinha, onde ela preparou-me um chá calmante.
— Que tal fazermos um piquenique debaixo das árvores? — sugeriu ela. — Está há
muito tempo trancada nesta casa.
— Eu realmente não me sinto disposta, Lucinda.
— Precisa reagir, Grace, ou acabará adoecendo. Faça isso por Rosalie — insistiu ela.
Pensei um pouco.
— Prepare uma cesta com guloseimas. Irei me trocar. — Rendi-me.
Voltei ao meu quarto um pouco mais calma, deixando-me levar pela ideia de Lucinda.
Era verdade que já fazia muito tempo que eu não saía de dentro de casa e nem vestia
nada além de camisolas brancas. Procurei pelo vestido vermelho que eu havia comprado, queria
colocar algo bonito mesmo que fosse apenas para passar algumas horas no jardim. Abri cada
porta do guarda-roupas e cada gaveta da cômoda procurando pelo meu vestido vermelho, porém
não encontrei a peça. Por fim, trajei outro vestido, um florido de tecido leve, combinando com
um chapéu pequeno.
Senti-me um pouco melhor quando me olhei no espelho. Troquei a roupa de Rosalie e
descemos as escadas.
Lucinda preparou tudo rapidamente para o nosso piquenique. Saímos da casa e
procuramos um lugar fresco à nossa volta. Todas as árvores se pareciam, mas escolhi aquela que
chegava à altura da janela de meu quarto.
Estendemos a toalha xadrez no chão e acomodei o cesto Moisés de Rosalie ao meu lado.
Lucinda distribuiu pratos com doces e salgados entre nós.
Comi algumas torradas com geleia, que a própria Lucinda fizera. O suco de limão estava
refrescante. O vento balançava os galhos das árvores, e fechei os olhos, deixando que o som das
folhas me acalmasse. Comecei a sentir-me bem, como há muito não acontecia.
Observei à nossa volta. Algumas rosas vermelhas despontavam no jardim. Sorri ao
perceber que não havia perdido todo o meu trabalho.
— Tenho cuidado delas. Sei que são importantes para você — declarou Lucinda.
— Obrigada — disse sinceramente. — Quero voltar a cuidar do jardim. Ajudará a
distrair-me.
Como se soubesse que alguém me observava, meus olhos correram pela parede de nossa
casa até a janela do quarto de Rosalie. Uma mulher de vestido vermelho estava encarando-me à
distância. Perdi o ar.
— O que houve, Grace? — Preocupou-se Lucinda, abanando-me. — Ficou pálida de
repente.
— Tem alguém no quarto de Rosalie — disse por fim. Lucinda levantou-se, virando de
frente para casa.
— Onde? — perguntou ela.
Forcei meus olhos à nossa frente, mas eu não via mais a mulher. Não havia ninguém na
janela. As únicas pessoas em casa estavam debaixo daquela árvore.
Desesperei-me.
Eu estava enlouquecendo.
Capítulo 30
Red Rose 1910

Eu esperava por Nolan acordada em meu quarto. Mais uma vez. Eu precisava admitir
que Nolan não havia mudado quando deixou Birmingham. Ele ainda era o mesmo. Eu nunca
teria a sua versão apaixonada novamente, se é que alguma vez ela tenha mesmo existido.
Já era tarde da noite, quando ouvi o carro se aproximar. Saí da cama e desci as escadas.
Havia deixado algumas velas acesas na mesa de centro da sala, para não correr o risco de cair ao
andar pelo escuro. Estava preparada para qualquer que fosse a desculpa de Nolan, se ele ainda se
desse ao trabalho de dar-me alguma.
Quando a porta se abriu, Nolan entrou com a roupa toda amarrotada, e, de repente, eu
não estava em Red Rose, mas em Birmingham novamente. Esperando meu marido bêbado e
traidor chegar em casa.
Eu já estava abalada o suficiente com o que via, mas a gota d’agua ainda estava por vir.
Atrás de Nolan, estava Dayse. Arrumada e usando meu vestido vermelho. Aquele que comprei
junto do enxoval de Rosalie. Aquele pelo qual eu procurei em meu quarto naquela manhã e não
encontrei.
O sangue ferveu em minhas veias. Avancei sobre ela e puxei o vestido de seu corpo.
Nolan agarrou minha cintura, tentando deter-me. Eu batia meus braços e pernas, tentando
alcançar Dayse de qualquer maneira.
Eu queria arrancar o tecido de seu corpo imediatamente. Aquele vestido era meu. Eu o
havia escolhido, mesmo tendo dúvidas se o merecia e, agora, ela usufruía dele.
— Controle-se, Grace! — ordenou Nolan, gritando ao meu ouvido enquanto me
segurava pela cintura. O cheiro de álcool me atingiu fortemente, dando-me vontade de vomitar
no mesmo instante.
Ao lado da porta estava Dayse, parecendo assustada com a situação ou fingia muito
bem. Lucinda apareceu em seguida, carregando uma vela à sua frente e tentando enxergar o que
se passava àquela hora da madrugada.
— Você está descontrolada — disse Nolan, balançando-me.
— E como você quer que eu fique? — gritei. — Por que você está usando meu vestido,
Dayse? — questionei, irritada. Ela ficou sem fala por um tempo. — Ande logo! Explique-se —
exigi.
— Não sei do que a senhora está falando — respondeu-me. Eu estava tão irada que, se
pudesse chegar até ela, teria arranhado todo seu rosto. — Este vestido é meu. Comprei-o no
vilarejo.
— Eu não sei mais o que fazer com você, Grace. — Nolan empurrou-me e caí no chão,
de joelhos.
— Este vestido é meu, Dayse — disse com amargor. — Comprei no dia que fomos ao
vilarejo — reafirmei. Eu ainda estava no chão, sentindo-me humilhada. Mas eu sabia do que
estava falando. Eu havia comprado aquele vestido. Era meu.
Nolan andou até Dayse e perguntou se ela estava bem, ignorando-me. Lucinda veio ao
meu encontro e ajudou-me a levantar.
— Nolan... — chamei por meu marido.
— Agora não, Grace. Já fez demais por uma noite, não acha? — Ele nem se deu ao
trabalho de virar-se para mim. Tomou a mão de Dayse, guiando-a pelo caminho que levava ao
quarto dos empregados.
Novamente, foram os braços de Lucinda que me ampararam e me fizeram sentar-me no
sofá.
— Eu juro que comprei aquele vestido, Lucinda. É meu — garanti, entre lágrimas. —
Você acredita em mim, não acredita?
Os passos de Nolan ressoaram pela sala. Ele havia voltado.
— Lucinda nos deixe a sós — ordenou ele.
— Mas, senhor, ela...
— Ela é minha mulher e estou mandando que se retire — disse, exasperado. Lucinda
assentiu, abaixando a cabeça e nos deixando a sós.
Eu não conseguia levantar minha cabeça. Via as pernas de Nolan, andando de um lado
para o outro na sala.
— Eu não sei mais o que fazer com você, Grace — reclamou ele. Voltei a chorar em
prantos. — É disso que eu estou falando — disse, apontando para mim. — Você tem seus
rompantes, descontrola-se e depois só sabe chorar.
— E o que mais eu deveria fazer? — questionei. — Separar-me de você de uma vez por
todas — disse, levantando-me do sofá.
A mão de Nolan atingiu meu rosto, fazendo minha cabeça virar para o outro lado. O
choque do tapa foi tamanho que engoli minhas palavras. Minha pele queimava de dor no local
atingido.
— Olha o que você está fazendo conosco! — disse, apontando para mim. — Até eu
estou perdendo a cabeça. — Ele aproximou-se, mas encolhi-me no sofá. — São essas suas
alucinações, as acusações sem fundamento. O ciúme descabido. Você está perdendo a razão,
Grace, e eu estou perdendo a paciência com você. — Minhas lágrimas desciam entre meus
soluços. — Vá para seu quarto e durma! Não quero ouvir mais nada que venha de você! — ele
ordenou, deixando-me sozinha.
Eu sentia como se todas minhas forças tivessem sido sugadas de uma única vez.
Apaguei as velas da sala, deixando apenas uma para me guiar até meu quarto. Cada passo parecia
levar-me para mais perto do meu fim.
Quando amanheceu, não tive forças para sair da cama. Lucinda veio ao meu encontro.
Trouxe as refeições até mim e ajudou-me a cuidar de Rosalie.
Eu não conseguia comer como antes, por mais que eu me esforçasse. Sentia meu corpo
se entregando ao cansaço.

Mais algumas semanas se passaram depois daquela noite, e Nolan não veio nos ver um
único dia.
— Estou preocupada com você, Grace — afirmou Lucinda, deixando a bandeja com
caldo de galinha ao meu lado na cama. — Você precisa resistir. Não pode se entregar —
aconselhou ela.
Lucinda havia trazido seus pertences para o quarto de Rosalie a meu pedido e dormia na
cama de solteiro próxima ao berço. Ela revezava seus cuidados entre mim e Rosalie.
— Estou cansada, meu corpo dói e sinto frio. — Puxei os cobertores, cobrindo todo o
meu corpo.
— Está muito quente — constatou, colando a sua mão em minha testa. — Farei um chá
de ervas. Enquanto isso, preciso que você se alimente.
— Não consigo mais — disse fraca.
— Consegue, sim — insistiu ela.
Adormeci após Lucinda deixar o quarto. Sentia um cansaço como nunca havia sentido
antes e, pela primeira vez, a vontade de entregar-me era maior do que a vontade de resistir.
Ouvi vozes vindas do corredor. Parecia que Nolan e Lucinda discutiam.
— Ela não está doente. Está tentando chamar atenção — Nolan disse.
— Estou falando que ela está doente. Por favor, senhor, chame um médico para
examiná-la.
— Amanhã, ela estará melhor — disse Nolan. Mantive as pálpebras fechadas. O calor
de minha pele fazia meus olhos arderem.
Uma toalha molhada foi colocada em minha testa. Esquentou em instantes e Lucinda a
molhou novamente na bacia com água fria. A minha temperatura continuava a subir. Eu sentia
em cada parte de meu corpo.
Sonhos em que Rosalie era tirada de mim se misturavam a momentos de realidade. Não
sabia mais se estava dormindo ou acordada. Escutei uma nova discussão entre Lucinda e Nolan,
mas não consegui distinguir o que diziam. Chamei por Rosalie, contudo não tinha forças para
deixar a cama e andar até seu berço.
Não sei quanto tempo se passou até a voz familiar do médico, que fizera meu parto,
chamar-me. Eu ouvia sua voz, porém não conseguia respondê-lo. Minha garganta parecia estar
fechando-se.
— Deixarei os medicamentos para o tratamento da Senhora Green e, enquanto isso,
recomendo que ela faça refeições leves, tome bastante líquido e repouse, até que seu corpo se
recupere — instruiu o médico.
— Rosalie — chamei fracamente.
— Ela está bem, Grace. — Senti a mão de Lucinda segurar a minha. — Estou cuidando
dela.
— Ela só chama pela filha — reclamou Nolan.
— Nos períodos de febre, é comum ter alucinações — comentou o doutor.
— E sem febre? — perguntou Nolan.
— Sem febre pode ser um quadro preocupante, mas não é o caso de sua esposa — disse
sinceramente. — Ela está confusa pelo quadro febril. Estive com ela durante todo o parto de sua
filha e ela me pareceu uma mulher perfeitamente lúcida.
— Ela é, sim, doutor — defendeu-me Lucinda.
— O senhor não a conhece tão bem... — desafiou Nolan.
— O senhor tem razão, Senhor Green. Não a conheço tão bem. O que quero dizer é que
passei horas cuidando dela e, em nenhum momento, ela deu sinais de instabilidade ou
insanidade.
— A saúde de minha esposa se deteriorou muito desde o nascimento de nossa filha —
declarou Nolan.
— É apenas cansaço, doutor. Grace precisa dos remédios certos e repouso. Creio
fortemente que sua saúde logo estará restaurada.
— Tenho certeza de que sim — concordou o médico.
Aos poucos, o quarto voltou a ficar silencioso.
— É hora de tomar seu remédio. Preciso que abra a boca, Grace. — Ouvi a voz suave de
Lucinda pedir. Obedeci, engolindo o remédio amargo. — Você ficará bem. Eu prometo —
garantiu-me ela.
Eu queria acreditar em suas palavras.
Capítulo 31
Red Rose 1910

Pela janela de meu quarto, vi os dias passarem e as noites chegarem. Meu corpo doía
menos e sentia a minha saúde melhorar, mas meu coração continuava machucado. Tantos dias
sozinha tinha me feito pensar em coisas que antes eu não tinha coragem.
— Trouxe seu café da manhã — anunciou Lucinda, ao entrar no quarto.
Ajeitei-me na cama, escorando as costas na cabeceira fria. Lucinda se aproximou, pondo
a bandeja com pedaços de bolos e suco ao meu lado. Uma das fatias de bolo era de laranja, senti
o cheiro adocicado na fruta na massa ao aproximar da boca. Meu estômago rejeitou o alimento e
devolvi à bandeja.
— Algo errado com o bolo, Grace? — perguntou Lucinda, preocupada.
— Tem certeza de que está maravilhoso como tudo o que você faz, Lucinda —
respondi, triste.
— Então...? — questionou, vendo minha face retorcida.
— A última vez que comi bolo de laranja, servido em minha cama no café da manhã, foi
em Birmingham — comecei a contar. — Nolan trouxe para mim... — Uma lágrima grossa
escorreu por minha face e eu a limpei rapidamente. — Acreditei que tudo melhoraria em nossa
vida, mas eu estava enganada... de novo...
— Minha criança. — Lucinda sentou-se ao meu lado e levou minha cabeça até seu
ombro, no qual chorei silenciosamente, libertando as aflições que moravam em meu peito.
— Onde está meu marido, Lucinda? — perguntei entre os soluços que irrompiam de
minha garganta. Lucinda enrijeceu o corpo.
— Ele não está — respondeu apenas.
— Ele saiu? — perguntei, deixando seu ombro e buscando seu rosto, mas ela desviou
para as janelas, que ainda estavam fechadas. — Onde está meu marido, Lucinda? — insisti.
— Ele saiu com Dayse. — Aquilo não era exatamente uma novidade. Eu sabia que
Dayse andava aproveitando as caronas de Nolan até o vilarejo sempre que podia. Mas eu sentia
que, desta vez, havia algo mais e Lucinda temia me contar.
— O que está escondendo de mim, Lucinda? — A mulher não se moveu. Toquei em sua
mão e a apertei levemente. — Por favor, conte-me — pedi.
Lucinda virou-se para mim e sua face mostrava tristeza, quase dor.
— Seu marido e Dayse saíram de casa ontem após o almoço e ainda não retornaram —
lamentou ela.
A primeira coisa que se passou pela minha cabeça foi que Nolan tinha me abandonado.
Ele tinha ido embora com Dayse e, contrário ao medo, que achei que sentiria ao me descobrir
sozinha com minha filha, tudo o que senti foi alívio. Alívio por não ter que lidar com os embates,
com a rejeição constante, com o desprezo e tudo o que minha relação com Nolan significava nos
últimos tempos.
— Eles levaram as roupas dos armários? — perguntei, tentando confirmar minha teoria.
— Não, Grace — Sua resposta deixou-me zonza. Não compreendi.
— Se eles não fugiram juntos...
— Acredito que estejam apenas se divertindo juntos — disse Lucinda. — As pessoas do
vilarejo andam comentando... — Sua voz era calma e cautelosa — que eles têm um caso.
— E Nolan acusando-me de estar louca. — Ri, sem humor. — Aquele desgraçado. —
Levantei-me da cama, andando ao lado da cama de um lado para outro.
Eu precisava pensar, mas meus pensamentos pareciam estar embaralhados.
— Sente-se e termine sua refeição, Grace — pediu Lucinda. — Não pode descuidar de
sua saúde agora que está apresentando melhora.
— Eu preciso pensar... preciso pensar... — respondi apenas.
O som de um metal batendo ritmicamente contra o vidro, como se fosse uma música,
invadiu meus pensamentos. Tapei os ouvidos querendo silenciá-lo.
— Você está bem, Grace? — perguntou Lucinda, afastando as mãos que tapavam meus
ouvidos.
— O som daquela corrente voltou. Ninguém chamou o chaveiro para consertar. Eu
preciso que consertem aquilo — disse, apontando para o fim do corredor.
— Não acho que isso seja prioridade no momento — argumentou Lucinda.
— Eu quero que aquele barulho pare. Eu só preciso de silêncio agora — disse, sentindo-
me prestes a romper-me em lágrimas novamente.
— Daremos um jeito. Eu prometo — disse Lucinda. — Agora, sente-se e tome seu café,
Grace. Por favor.
Senti o toque de Lucinda em meu braço, guiando-me para a cama novamente. O barulho
parou e minha mente se acalmou.
— Vou deixá-la sozinha agora, para começar a preparar o almoço — Lucinda disse. —
Tudo bem, Grace? — Quis confirmar ela.
— Estou bem — garanti. — Vou fazer minha refeição e cuidar de Rosalie. — Minha
filha ainda dormia no berço, mas logo acordaria com fome.
Mastiguei o último pedaço de bolo pensando em tudo que acontecia em minha vida, por
mais que eu dissesse tantas vezes que ficaríamos bem, eu já não conseguia mais acreditar nisso.
Finalmente, havia cansado de mentir para mim mesma. Até quando eu aguentaria? Não
que infidelidade fosse algo novo em um casamento. Eu era jovem, mas sabia que muitos maridos
eram infiéis e que esposas como eu costumavam ignorar as “escorregadas” de seus cônjuges.
Eu queria mais do que um marido apenas no papel. Contudo, eu não podia pensar
apenas em mim, eu tinha Rosalie. O que seria dela se eu levasse essa ideia adiante e deixasse
Nolan?
— Eu seria capaz de viver apenas para minha filha e ignorar o comportamento de meu
marido pelo resto de nossas vidas, custasse o que custasse? Eu poderia fazer isso? Seria o
bastante para nós duas? — questionei alto, apenas para conseguir ouvir minha voz, já que a
confusão na minha cabeça dificultava um pensamento coerente.
— Não faça isso... — Alguém sussurrou em meu ouvido. Um arrepio gelado percorreu
por meu corpo, levantando os pelos de meus braços. Passei as mãos, esfregando a pele para
aquecer-me.
A porta de meu quarto estava entreaberta. A sombra de uma mulher passou por ela.
— Quem está aí? — perguntei, fazendo menção de levantar-me da cama, mas ninguém
me respondeu. — É você, Lucinda? — tentei novamente.
Andei até uma das janelas e abri a cortina pesada. O céu estava acinzentado, e os galhos
das árvores agitavam-se com o vento. Abri parte da janela, apenas para deixar um ar circular um
pouco pelo ambiente, porém, assim que o fiz, as cortinas começaram a mover-se violentamente
em várias direções.
Pensei que a porta bateria com força e acordaria Rosalie, contudo, em vez da porta de
meu quarto fechar-se, ela se abriu ainda mais e uma mulher alta, esguia e de cabelos pretos,
como aquela figura do meu primeiro pesadelo, surgiu encarando-me. Seu rosto pálido era belo,
mas exprimia uma dor que me paralisou. Ela levantou seu braço em minha direção, chamando-
me.
Fechei os olhos.
Era um pesadelo, apenas mais um pesadelo. Não era real. Não havia ninguém na casa
além de mim, Lucinda e Rosalie. Não havia ninguém.
Quando abri novamente meus olhos, não havia ninguém na porta e eu não estava
dormindo. Estava parada ao lado da janela.
Temi estar realmente louca.
O som da corrente voltou a atingir meus ouvidos, contudo agora soava ainda mais alto,
como se estivesse dentro de minha cabeça. Como um sino que badalava sem cessar.
Tive vontade de gritar mais alto do que som que preenchia meus ouvidos e, de alguma
forma, silenciá-lo imediatamente.
Aquele barulho precisava parar.
Fui até o berço de Rosalie, minha filha dormia tranquilamente. Beijei sua testa
suavemente e deixei seu quarto, encarando o corredor. Vi a corrente de metal pendurada pelo
teto. Ela balançava-se de um lado para o outro, atingindo o vidro da janela ao lado.
Corri até ela e a puxei com força. Deixaria a porta do sótão aberta e não ouviria mais o
som irritante do metal contra o vidro. Como em minha outra tentativa, a entrada continuou
fechada. Puxei com mais força e nada.
Não me dando por vencida, não desta vez, enrolei a corrente em minha mão dando
várias voltas e usei o peso de meu corpo para puxá-la para baixo.
O metal espremeu minha mão e senti o sangue brotar no lugar que machucou a pele. Um
novo som chegou aos meus ouvidos. Um ranger de madeira.
Olhei para cima e vi a abertura finalmente aparecer. As escadas de madeira que desceu
até perto do chão parecia velha. Estava empoeirada e coberta por teias de aranhas. Testei para ver
se aguentava meu peso. A madeira não cedeu e continuei a subir. O sangue de minha mão
escorria, marcando meus passos, mas eu não me importava. Algo me impulsionava a subir até
aquele porão.
Quando minha cabeça ultrapassou a abertura, percebi que não havia muita coisa
guardada ali. Quase tudo lá em cima estava coberto por lençóis, que eu acreditava um dia terem
sido brancos. O pó fazia uma grossa camada, cobrindo o que não fora protegido.
Um cavalinho de madeira chamou minha atenção. Andei até o brinquedo coberto de
sujeira, mas que parecia nunca ter sido usado.
Ao lado do brinquedo, um amontoado de coisas estava coberto com tecido, puxei o pano
até o chão. Uma nuvem de poeira me atingiu, fazendo-me tossir desesperadamente. Apoiei meu
corpo em algo à minha frente.
Olhei para baixo, a poeira começava a baixar e a luz que entrava por uma pequena
janela à frente me fez enxergar o objeto. Travava-se de um berço. Virei-me para o lado e o
retrato de uma mulher, pintado em um grande quadro, tirou o ar do meu peito. Era uma bela
mulher esguia e de cabelos pretos. A mesma mulher de meus pesadelos. Meus olhos correram
pelo ambiente. Um espelho comprido, adornado com detalhes dourados na borda, também havia
sido descoberto. Meu reflexo estava no espelho e, atrás de mim, a bela mulher do retrato abria a
boca.
“Fuja” ela disse. Não tive tempo de mover meus pés. A escuridão me pegou primeiro.
Capítulo 32
Red Rose 1910

— Grace... Grace. — Ouvi a voz distante de Lucinda me chamar.


Abri os olhos. Enxerguei parte do berço à minha frente. Eu estava no porão. Não havia
sido um sonho… ou havia? O que era verdade e o que era parte dos meus pesadelos? Eu vi
aquela mulher ou apenas sonhei com ela? O que estava acontecendo?
O choro ficou preso em minha garganta. Senti medo de minha própria mente.
— Vamos sair daqui? — A voz de Lucinda era suave e acolhedora. Ela estendeu-me o
braço e aceitei o apoio para levantar-me. Lucinda guiou-me para fora daquele lugar. Eu parecia
não ter o controle sobre meu corpo ou mente.
Ao chegar no quarto, corri até o berço de Rosalie apenas para ter certeza de que ela
continuava ali. Minha filha dormia tranquilamente e isso devolveu-me parte da sanidade.
— O que era tudo aquilo guardado no sótão? — perguntei a Lucinda.
— Vou preparar um banho para você, Grace.
— Não quero me banhar! Quero respostas — protestei. tentando conter o tom de minha
voz. Não queria assustar Rosalie.
— Você terá todas as respostas, assim que tomar seu banho. Está coberta de pó.
— Sinto que estou enlouquecendo — confessei em voz alta pela primeira vez. As
lágrimas silenciosas marcaram meu rosto sujo deixando um rastro por onde desciam. Limpei-as
com as costas das mãos.
— Está cansada. É apenas isso — Lucinda tentou justificar. — Vou preparar seu banho
e conversaremos assim que terminar.
Andei até a janela, o portão de Red Rose estava aberto. Nolan saiu por ele e não se deu
nem o trabalho de fechá-lo, mesmo sabendo que estaríamos sozinhas aqui. Era doloroso aceitar,
mas a verdade era que ele não se importava conosco. Nunca se importou.
Lucinda voltou depois de algum tempo, anunciando que o banho estava preparado.
Andei até a banheira e deixei a roupa cair de meu corpo. Eu havia perdido muito peso e as roupas
já estavam largas.
Coloquei uma das pernas, depois a outra e deixei meu corpo se afundar na água quente.
Mergulhei a cabeça e fiquei um tempo debaixo da água. Todos os pensamentos se dissiparam.
Senti-me leve por algum tempo.
Lavei minha pele, livrando-me da sujeira do porão onde estive. Sequei meu corpo na
toalha branca e vesti uma roupa limpa.
Quando voltei ao quarto, vi que Lucinda segurava Rosalie, ela havia acordado.
Aproximei-me das duas e peguei Rosalie no colo. Seus olhos grandes e verdes me encararam.
— Está com fome? — perguntei, sentando-me na beirada da cama, pronta para
amamentá-la. — Está, sim — disse para mim mesma.
Eu apreciava amamentá-la. Rosalie me encarava com seus olhos doces. Eu sabia que
faria qualquer coisa por ela, cada vez que seus olhos se dirigiam aos meus.
Depois de alimentá-la, caminhei pelo quarto com ela em meus braços. Lucinda já havia
trocado sua fralda e, agora, ela estava limpa e alimentada. Logo percebi que Rosalie dormia de
novo. Coloquei-a de volta no berço, tomando cuidado para não a acordar.
Lucinda nos observava da porta.
— Me desculpe por não ter contado sobre a outra mãe — ela disse.
Tive medo do que ouviria a seguir, algo em mim gritava que não seria uma história
bonita.
— O que era tudo aquilo lá em cima, Lucinda? — perguntei.
— Pertencia a família Hughes. Eles construíram Red Rose. O senhor Hughes deu Red
Rose à sua esposa como presente de casamento. Ela amava rosas vermelhas, por isso o jardim e o
nome da propriedade.
— Você os conheceu? — perguntei, ansiosa.
— Eu vim para Red Rose ainda nova, com quatorze anos. Uma tia cuidava de mim,
desde que eu tinha perdido meus pais em uma cidade vizinha, mas ela não tinha muitas
condições e, quando procuraram por uma jovem arrumadeira para esta casa, consegui o emprego.
Eu não me importava em trabalhar duro desde que eu tivesse comida e um teto. Eles me
receberam melhor do que eu esperava. A senhora Hughes era generosa comigo. Levava-me para
passear no vilarejo, comprava-me roupas e outros presentes. Eu gostava muito dela.
— E como era o senhor Hughes?
— Ele era um bom marido. Fazia todas as vontades da senhora Hughes, mas o maior
sonho dela era ter um filho e, mesmo há anos tentando, eles não conseguiam. A senhora perdia
os bebês. Eles não vingavam.
— Os bebês morreram aqui? Em Red Rose? — perguntei, lembrando-me das palavras
de Dayse no dia do meu parto “Essa casa já tomou muitos bebês. Não leve para o lado pessoal,
senhora”.
— Sim. Ela perdeu quatro filhos, aqui. — Vi lágrimas cederem e escorrer pelo rosto de
Lucinda. — Eu vi o quanto ela sofreu com cada uma das perdas.
Não consegui nem imaginar o sofrimento daquela outra mãe. Eu não sei se sobreviveria
à tanta dor.
— E o senhor Hughes? Como ele reagia ao que acontecia? — consegui perguntar.
— Ele tentou fazê-la feliz comprando presentes. Levando a passeios que ela não queria
fazer e prometendo que, um dia, teriam o filho que ela tanto desejava.
— E eles tiveram? — perguntei sentindo-me ansiosa.
— Depois de muito tempo, eles tiveram um menino. Mas uma enfermidade o levou
antes dele completar dois anos de idade. — Lucinda ainda chorava. Peguei seu braço e guiei até
minha cama. Sentamo-nos na beirada e esperei que ela se recuperasse. — A senhora ficou
inconsolável quando perdeu o filho. Nunca havia conhecido tamanha tristeza como a que vi
consumir a senhora Hughes. — Voltou a falar.
— Eu lamento muito... — disse baixinho.
— O senhor Hughes tentou por algum tempo cuidar da esposa, mas, em algum
momento, ele desistiu dela. Ela não via mais alegria em nada. Sua vida parecia ter perdido o
sentido. O senhor Hughes começou a chegar em casa bêbado, noite após noite. Eles começaram a
brigar constantemente. A senhora reclamava do comportamento dele e ele passou a culpá-la por
aquilo. Eu não os reconhecia mais.
— Ela estava sofrendo — declarei.
— Muito — confirmou Lucinda. — Um dia, ele chegou em casa com a camisa suja do
batom de outra mulher. A senhora Hughes ficou furiosa. Trocaram acusações horríveis. Eu nunca
os havia visto tão descontrolados como daquela vez. E então ele disse a ela “do jeito que você
vive, parece que estou casado com um defunto. Talvez fosse melhor se eu estivesse”. Eu assistia
à briga entre eles escondida na cozinha. Espiei pela porta e vi a dor nos olhos da senhora, ao
ouvir o que o marido dissera. O senhor Hughes se arrependeu assim que disse aquilo, eu senti,
mas era tarde. O estrago já estava feito. A senhora não aguentava mais.
— O que aconteceu com ela? — perguntei, segurando a mão fria de Lucinda.
— Ela tirou a própria vida logo após. Ela não o ameaçou. Não deu nenhum indício do
que faria. Apenas fez.
Engoli em seco.
— Ela suportou muito, até não suportar mais — voltou a falar. — Ela levou uma das
facas da cozinha para o banho e cortou os punhos dentro da banheira. Encontrei-a pela manhã. Já
estava morta.
— Deve ter sido horrível — disse sinceramente.
— Foi sim. Ainda sonho com o que vi — ela confessou.
— E o que houve com o marido?
— Passou os próximos anos se afundando em bebidas e casos com mulheres. Ele
tentava dizer que estava bem, feliz, livre do peso da esposa, porém eu sabia da verdade. Ele
sentia-se culpado. Havia desistido dela quando ela mais precisou.
Senti que também chorava. Lamentava por uma mulher que não havia conhecido, mas
que havia sofrido muito naquela mesma casa, que eu havia aprendido a chamar de lar.
— O senhor Hughes viveu nesta casa por muito tempo, morrendo aos poucos, até os
recursos acabarem e ele precisar vender a casa para seu pai. No fim da vida, ele foi morar com
um irmão que morava longe daqui e eu nunca mais soube dele. E seu pai, Grace, me manteve em
Red Rose para cuidar da casa.
— Eu sonhei com a mulher do quadro guardado lá em cima. E a vi mais de uma vez...
— Não poderia ser ela. Você não a conheceu.
— Eu sei que parece loucura... mas eu a vi. — Lucinda olhou-me atentamente,
procurando respostas que eu não podia lhe dar. — Você acredita em fantasmas? — perguntei,
sentindo minhas mãos começarem a tremer.
— Eu não sei... — respondeu-me ela. — Mas se eu descobrisse que a senhora Hughes
poderia, de alguma forma, se comunicar durante todo esse tempo, ficaria magoada por ela nunca
ter falado comigo.
— Não é hora para isso, Lucinda. — Segurei um riso.
— Desculpe a brincadeira, Grace. Sendo honesta, esse assunto de morte e fantasma me
deixa assustada.
Ficamos as duas em silêncios por um tempo. As cortinas voltaram a balançar.
— Acha mesmo que ela pode ter tentado se comunicar comigo? Por que ela faria isso?
Como você mesma disse, ela nunca apareceu para você — indaguei.
— Ela te disse algo... em alguma dessas vezes que você... a viu?
Aquilo parecia insanidade. Estávamos mesmo discutindo sobre o contato de um
fantasma.
— No porão — disse, levando as mãos à cabeça por sentir uma dor súbita. — Ela disse
“Fuja”.
— Você precisa deixar Red Rose, Grace.
— Por quê? Por que talvez, e só talvez, um fantasma esteja tentando me expulsar de
minha própria casa?
— Eu conhecia a senhora Hughes, ela era uma boa mulher. Se ela te deu mandou fugir,
é isso que deve fazer. Ela não faria um alerta desses, se não fosse...
— Agora, você está louca também — eu a interrompi, querendo rir, e teria feito, se não
estivesse apavorada. — Acha que ela poderia me machucar, ou machucar Rosalie?
— Se, de alguma forma, fosse mesmo a senhora Hughes, nós estaríamos todas em
segurança. Tenho certeza. Ela era uma boa mulher e uma mãe devota como nenhuma.
— Então por que ela me mandaria fugir de minha própria casa?
— Talvez o perigo não seja ela. Talvez você deva fugir de outra pessoa.
As cortinas se levantaram, como alguém as tivessem puxado, e a porta do quarto se
abriu sem que ninguém a tocasse. Meu corpo todo arrepiou-se e vi que o de Lucinda também
estava afetado.
Levantei-me, de repente, tomando uma decisão que não teria volta.
Acreditando ou não em fantasmas, louca ou lúcida. Deixaríamos Red Rose e, o mais
importante, deixarei Nolan de uma vez por todas.
Ainda hoje.
Capítulo 33
Red Rose 1910

— Você vem conosco, Lucinda? — perguntei, esperando que sua resposta fosse
positiva. Não queria fazer aquilo sozinha, mesmo sabendo que, se fosse necessário, eu o faria.
— Eu vou! — respondeu, firme.
— Certo! Desça e arrume uma mala, enquanto farei o mesmo com minhas roupas e de
Rosalie.
Lucinda saiu do quarto apressada. Rosalie ainda dormia tranquilamente no berço, sem
saber que o mundo desabava à nossa volta e, no que dependesse de mim, assim ela continuaria.
Abri duas malas grandes e comecei a guardar algumas peças. Procurei nossos pertences
mais importantes e os guardei junto.
Eu mal me dava conta do que fazia. Era como se meu corpo estivesse sendo comandado
por outra pessoa.
As duas malas estavam prontas. Retirei a maleta com o dinheiro que trouxemos e
coloquei ao lado das outras.
Peguei o cesto Moisés e o coloquei sobre minha cama. Enrolei Rosalie em uma manta e
a coloquei com cuidado dentro do cesto.
— Ficaremos bem. Eu prometo — disse a minha filha.
Saí do quarto, carregando Rosalie no cesto. Lucinda já nos aguardava, com uma mala
em mãos, no fim da escada.
Coloquei o cesto de Rosalie sobre um dos sofás e pedi que Lucinda cuidasse dela,
enquanto eu buscava as malas. Ao virar meu corpo para voltar a subir as escadas, escutamos um
carro se aproximar.
— É Nolan? — perguntei, preocupada, voltando-me para Lucinda. Eu esperava partir
antes dele chegar e, só depois, longe dali, falaria com ele através de um advogado.
Pela forma desanimada com que Lucinda deixou a cortina cair, após espiar pela janela,
eu já sabia sua resposta.
— O que faremos?
— Eu esperava sair sem me preocupar com um novo embate, mas não voltarei atrás em
minha decisão. Talvez ele não dificulte nossa saída, talvez seja exatamente o que ele deseja.
Em meu íntimo, eu sabia que contava uma nova mentira. Levei a mão ao rosto. Eu ainda
sentia o ardor na pele por conta do tapa que levei quando falei em separar-me.
— Grace? — chamou-me Lucinda.
— Duvido que Nolan nos levará de carro ao vilarejo, depois que eu o deixar.
— Eu vou até lá de bicicleta e volto com um carro de aluguel. Teríamos que fazer isso
de qualquer maneira — disse ela.
— Certo — concordei. — Vá imediatamente.
Lucinda saiu pela porta lateral da casa assim que o carro estacionou. Voltei ao quarto
para buscar as malas.
Quando estava levantando uma das malas do chão, a porta do meu quarto foi aberta em
um rompante. Virei-me assustada na sua direção. Nolan estava em casa e me encarava furioso.
— O que pensa que está fazendo, Grace? — questionou ele.
— Carregando uma mala. Não vê? — debochei.
— Eu não gosto quando usa esse tom comigo, Grace. Sabe disso — disse, fingindo
calma quando seu rosto denunciava fúria.
— Você não precisa gostar do meu tom. Não mais — disse, tentando segurar o choro
iminente. Eu estava deixando meu marido e, apesar de saber que era o certo a se fazer, depois de
tudo o que vivi ao seu lado, parte de mim sofria pelo fim de nosso casamento. Por tudo o que
sonhei que viveríamos juntos, pelo tempo perdido, pelo medo do futuro...
— Do que está falando? — Ele se aproximou de mim, parando próximo ao meu rosto.
— Estamos te deixando Nolan. Eu e Rosalie voltaremos a Birmingham.
Segurei a mala pela alça para levantá-la do chão. Nolan apertou meu braço com força.
— Você acha que pode deixar-me fácil assim?
— Você está me machucando, Nolan — protestei com lágrimas nos olhos.
— Eu nem comecei, Grace — ameaçou ele. — Você nem imagina os planos que eu
tenho para você.
— Eu vou te deixar, Nolan! Goste você ou não — declarei, sentindo me apavorada.
Lágrimas acumuladas embaçavam minha visão. Pisquei tentando me livrar delas. Assim
que abri os olhos novamente, vi aquela mulher mais uma vez, a mesma do retrato pintado no
sótão, era ela e estava na porta do meu quarto. Ela me olhou nos olhos e repetiu a mesma coisa
de antes “fuja”.
Senti o coração acelerar e minhas pernas bambearem, como se eu não fosse capaz de
mover-me, mas ao desviar os olhos para o lado, vi o berço de Rosalie. Nós precisávamos partir.
Empurrei o peito de Nolan com o braço livre e ele cambaleou para trás. Puxei o meu
braço, que ele segurava, com força de volta a mim. Escapei de seu agarre e corri em direção à
porta do quarto. Eu sairia com Rosalie daquela casa e a andaria com meus próprios pés até o
vilarejo se fosse preciso, mas eu sairia de Red Rose livre de Nolan. Estava mais decidida do que
nunca.
A minha respiração estava acelerada e meu peito doía. Corri, como se minha vida
dependesse disso. Assim que pisei no primeiro degrau da escada, senti meu vestido ser agarrado.
Virei o pescoço para ver o rosto de Nolan. Ele estava furioso. Segurando-me por minha roupa
com uma mão, ele acertou meu rosto com a outra. Estapeei seu peito para que me largasse. Nolan
me puxou contra ele e, quando encarei seus olhos, ele me disse “espero que goste da sua nova
casa. Você sabe que está doente, querida, precisa de ajuda”. Eu continuei a tentar atingi-lo com
meus braços para livrar-me dele, então soltou-me e eu caí. Senti cada batida de meu corpo contra
os degraus da escada. Do último degrau, eu vi a mulher das minhas visões.
Ela parecia chorar.
Eu chorava também.
Meus olhos se fecharam e não enxerguei nada.
PARTE 3
Capítulo 34
Hospital St. John
1911

— Quando voltei a abrir os olhos, estava em Saint John. Não sei por quanto tempo
fiquei desacordada. Naquele momento, eu ainda não sabia que havia sido enviada a um
sanatório. Minha mente estava cansada e confusa, meu corpo estava muito machucado.
Sinceramente, não sei como me machuquei tanto em uma queda de escada dentro de minha
própria casa.
Aaron tinha as mãos fechadas em punho ao redor de meu corpo. O peito dele subia e
descia mais forte, como se precisasse controlar cada respiração.
— Acha que ele pode ter... — Aaron parecia ter dificuldade para continuar a falar — te
espancado, depois que você perdeu a consciência?
— Eu não sei... — respondi, sinceramente.
Abri sua mão com cautela e entrelacei nossos dedos. Eu me sentia bem ao seu lado.
Segura, mesmo sabendo quem ele era e onde estávamos.
— Por que você achava que podia estar louca? — ele perguntou, encarando-me. Abaixei
a cabeça em seu peito. Eu ainda não sabia o que pensar sobre o que havia acontecido em minha
casa.
— Os sonhos em Red Rose. A mulher morta falando comigo... — Ele levantou meu
queixo com uma das mãos e me direcionou um meio-sorriso, como se achasse aquilo divertido.
— Não tem graça — reclamei, abaixando novamente minha cabeça.
Ele beijou minha testa, que descansava em seu peito.
— Não acho que você estivesse louca. Eu já não acreditava nisso, antes de ouvir sua
história.
— E como explica minhas alucinações? — perguntei, sentando-me ao seu lado.
— Eu não posso explicar — lamentou. — Mas prefiro acreditar que, fosse o que fosse,
não te fez machucar ninguém. Você nunca foi insana. Ao contrário, você tentou salvar seu
casamento, mesmo seu marido não a merecendo. Você lutou por você e por Rosalie.
— Queria tanto ter deixado Nolan antes. Queria ter tido coragem de ter ido embora.
Rosalie ainda estaria ao meu lado.
— Não temos como saber o que teria acontecido. Ele poderia ter pensado em outra
maneira de te tirar do caminho dele.
— Eu só espero que minha filha esteja bem. Se eu ao menos soubesse que Lucinda
continuou em casa, estaria um pouco mais tranquila.
— Ainda não sei como, mas vou tirar você daqui.
— Você vem também, não vem? — Meu coração ansiava por sua confirmação. Eu não
queria sair de Saint John sem Aaron. Eu não esperava que, dentro de um lugar como este, fosse
encontrar alguém que me compreendesse e não me deixasse duvidar de mim mesma, como ele
fazia.
Não quero ter que deixá-lo. Parece tão errado e, ao mesmo tempo, tão certo que
estejamos juntos.
— Eu não sei o que faria se precisasse deixar você, Grace. Não sei se posso enlouquecer
ainda mais — ele disse.
Inclinei meu tronco para frente e, com os braços, enlacei seu pescoço. Sua boca se
aproximou da minha e seus lábios quentes tomaram os meus. Era um beijo doce e suave, que
trazia palavras não ditas, mas sentidas por nós dois.
Aaron segurou forte em minha cintura, afastando-me de repente.
— Ouvi algo — disse ele em alerta.
Olhamos para trás e vimos que já havia amanhecido. Aaron levantou-se silenciosamente
da cama, sussurrando para que eu fingisse estar dormindo.
Fiz o que ele orientou, escondendo-me sob o cobertor cinza. Aaron escondeu-se no
canto do quarto e eu mantive-me quieta. Ouvimos passos que se detiveram em frente à minha
porta por algum tempo. Consegui liberar minha respiração apenas quando ouvi a pessoa afastar-
se.
Abri os olhos e não havia ninguém em frente à minha porta. Respirei aliviada.
Aaron se aproximou, sorrindo. Não acreditava que ele estava se divertindo com a
situação. Nós dois estaríamos com sérios problemas, se fôssemos pegos. Mas eu gostava de vê-lo
mais distraído.
— Preciso sair e fazer meu trabalho, mas não esquecerei do que te prometi. Eu juro que
vamos sair de Saint John, Grace.
Eu sabia que ele dizia a verdade. Por mais que minha razão dissesse que eu estava
realmente louca por confiar em um assassino, eu confio nele. E havia deixado meu coração se
apaixonar pelo meu colega de quarto, dentro de um sanatório.
Aaron abriu uma fresta na porta e espiou o corredor. Ele saiu, andando silenciosamente
e deixando-me sozinha, mas, pela primeira vez em muito tempo, eu não me sentia de fato
sozinha.
Eu tinha Aaron ao meu lado.
Capítulo 35
Hospital St. John
1911

Sentei-me no banco da sala de convivência, deixando o prato de mingau de aveia à


minha frente. Na primeira colherada, Mathew surgiu perto de mim. Decidi ignorá-lo, mas ele não
estava disposto a fazer o mesmo. Ele sentou-se no banco do outro lado da mesa e encarou-me.
— Onde está Grace? — ele me perguntou.
— Como vou saber? — retruquei, sem humor. Esperando que se tratasse apenas de um
joguinho infantil desse enfermeiro, que não sabia qual era o seu lugar. Afinal, ela estava agora
mesmo em seu quarto.
— Por que não estava em seu quarto pela manhã? — Então tinha sido ele a passar pelo
corredor mais cedo. — Tem problemas para dormir? Posso falar com o Dr. Shawcross para
administrar novas medicações em seu tratamento.
Segurei-me para não o puxar pelo colarinho e socar sua cara. Ele estava testando todo
meu autocontrole, meus impulsos queimavam sob a pele.
— Estou bem — respondi, tentando não me mostrar afetado. — Gosto de me levantar
cedo e correr, antes de começar o dia — menti, torcendo para que ele não tivesse me procurado
no pátio.
— Vou ver se Grace está bem. Ela tem passado bastante tempo no quarto ultimamente.
— Joanne acompanha Grace desde que ela foi internada. Ela deve ir vê-la — afirmei,
sem pensar.
— Eu sou enfermeiro, como Joanne — rebateu ele, antes de sair e andar em direção ao
corredor.
Deixei meu prato na cozinha e entrei em meu quarto. Era o único jeito de tentar saber o
que se passava no quarto de Grace, sem chamar mais atenção do tal enfermeiro.
Assim que entrei, ele deixou o quarto de Grace, fazendo-me respirar aliviado. Mathew
me viu pelo recorte de vidro da porta. Ele não parecia estar surpreso. Ignorei seu olhar
inquisidor.
Apressei as tarefas do dia, porque estava cansado e queria encerrar o quanto antes. As
tantas noites em claro começavam a cobrar seu preço.
Antes de fechar a porta do porão, depois de guardar o material de limpeza lá embaixo, vi
uma mão espalmar na madeira à minha frente, segurando a passagem aberta.
— Vamos descer um pouquinho? — A voz de Shirley soou ao meu lado.
— Já terminei o trabalho por hoje. Vou tomar um banho e descansar.
— O que está acontecendo com você, Aaron? — ela choramingou.
— No momento, estou cansado e, por isso, estou encerrando o dia.
— Posso ficar até mais tarde e te fazer uma visita em seu quarto... — sugeriu ela.
— Não se dê ao trabalho. Não quero ser acordado — disse firme.
— Ainda não enjoou da cara de santa? — Ignorei a provocação de Shirley.
— Tenho mais o que fazer, Shirley. — Puxei a porta e tranquei o porão, deixando a
mulher sozinha.
Andei até meu quarto, porém, antes de entrar, dei mais alguns passos à frente para ver se
Grace estava bem. Ela parecia dormir tranquilamente. Virei-me e dei de cara com Shirley,
encarando-me de longe, no corredor. Eu estava chamando atenção de muita gente. Precisava sair
logo de Saint John com Grace.
Depois de finalmente jogar meu corpo sobre a cama, fechei os olhos, adormecendo. A
última coisa que enxerguei foi um par de olhos verdes, que dominava meus pensamentos desde a
primeira vez que eu os havia visto.
Acordei em um sobressalto. Um som ruidoso me fez levantar na mesma hora. Andei até
o quarto de Grace e vi sua cama remexida, entretanto ela não estava lá. A porta da cozinha estava
entreaberta.
A passos curtos e silenciosos entrei na cozinha. Grace estava sozinha. Um peso pareceu
deixar meu peito.
— Você deveria ser mais cuidadosa — disse em um sussurro em seu ouvido. Ela saltou
com susto, mas tranquilizou-se em seguida, quando viu que se tratava de mim. Algo em mim
ficou feliz com isso.
— Eu estava com fome. Dormi muito durante o dia e perdi as refeições — justificou-se.
— Desculpe acordar você. Derrubei um prato de metal no chão — ela disse, parecendo sem jeito.
— Não me importo que tenha me acordado. Mas me preocupa que esteja andando por
aqui sozinha.
— Eu só precisei atravessar o corredor — argumentou. — Além do mais, você estava
logo ali. — Ela sorriu e eu não consegui fingir que estava bravo com ela, por estar andando à
noite sozinha por Saint John.
— Eu me preocupo de verdade com você, Grace — disse, fazendo carinho em sua
bochecha.
— Eu sei — disse, afetada. — Quer jantar? — perguntou, recompondo-se.
— Adoraria. Também pulei algumas refeições hoje — confessei.
— Achei uma panela com as sobras do almoço. Novidade: temos batatas com carne.
— A especialidade da casa — brinquei, dando risada.
— Eu adoro quando você sorri — ela disse.
— Posso dizer o mesmo, Grace.
— Vou preparar um prato para nós — disse, afastando-se. — Vai ser difícil com pouca
luz, mas...
Deixei Grace e andei até um armário no canto da parede. Abri uma das gavetas,
retirando delas algumas velas e um fósforo.
Acendi-as, deixando as chamas romperem parte da escuridão que nos rodeava. Pinguei
algumas gotas em um prato pequeno e fixei as velas.
— Como sabia onde estavam? — perguntou Grace.
— No começo, era difícil assaltar a cozinha no escuro. Então descobri onde guardavam
as velas e fósforos. Além do mais, gosto da companhia das chamas. Precisa de ajuda? —
perguntei.
— Para colocar comida fria em um prato? — Ela sorriu.
— Com a fome que estamos, este será o melhor prato que já experimentamos em Saint
John.
— Provavelmente — ela concordou.
Sentamo-nos a mesa, ao redor das velas, e começamos a comer. A comida estava sem
graça como sempre, mas estar jantando ao lado de Grace, enquanto estávamos sozinhos, parecia
trazer alguma normalidade aquela situação.
Assim que terminamos a refeição, lavamos os pratos e guardamos no lugar em que
estavam antes.
— Quando sairmos daqui, vou te levar para jantar em um lugar decente. Prometo.
— Está fazendo muitas promessas, senhor... — Ela disse, sorrindo.
— Walker... meu nome é Aaron Walker. — Grace aproximou-se e circulou os braços
por minha cintura. Seus olhos brilhavam perto das chamas das velas. Eu via o fogo dentro deles.
— E vou cumprir cada uma delas — garanti, admirando-a.
— Eu não tenho saído muito de casa ultimamente — lamentou. — Eu gosto de ficar em
casa, mas também gosto de passear, ver outras pessoas.
— Eu a levarei onde quiser.
Grace suspirou.
— Como vamos sair daqui, Aaron? O Dr. Shawcross se nega a falar comigo e duvido
muito que ele ouvirá você. — Ela abaixou a cabeça, acomodando-se em meu peito. Nunca nada
pareceu-me tão certo como tê-la em meus braços.
— Teremos que fugir — disse, calmo.
— Fugir... — repetiu.
— Eu ainda não sei como. Mas pensarei em algo — declarei. O rosto de Grace refletia
aflição e me doía vê-la sofrendo. Levei minhas mãos ao seu pescoço, erguendo sua cabeça para
que olhasse diretamente para mim. — Eu vou tirar a gente daqui. E não vai demorar. Confia em
mim.
— Eu confio — ela sussurrou.
Tomei seus lábios em um beijo suave. Eu estava entregue a Grace e faria de tudo por
ela, mesmo que me dar conta disso despertasse um sentimento que eu pensava que nunca mais
sentiria. Medo. Medo de ter alguém a quem proteger. Medo de amar. Grace parecia romper cada
barreira minha, sem dificuldade alguma, ela tinha meu coração nas suas mãos.
Suas mãos pequenas e delicadas se enfiaram debaixo de minha camisa, espalmando-se
em meu peito. Seu toque queimava-me como brasas. Aprofundei o beijo, sentindo necessidade
de tomá-la outra vez.
Afastei-me o suficiente para empurrar o tecido do vestido de Grace e beijar sua pele
macia. Peguei Grace em meu colo e a levei até a mesa, na qual tínhamos feito nossa refeição.
Coloquei-a sentada na beirada. Ela estava linda sob a luz de velas. Seus olhos brilhavam de uma
maneira diferente. Eles me chamavam, entregues.
Voltei a beijar os lábios doces de Grace, que corria com seus dedos por minhas costas.
Lembrei-me das cicatrizes e me afastei, de repente.
— Fiz algo errado? — perguntou-me, preocupada.
Aproximei-me dela outra vez, levantando seu rosto em direção ao meu.
— Não — disse com firmeza. — Mas preciso que feche os olhos agora. — Vi que uma
dúvida passou por seus olhos, mas ela cedeu, em seguida. Desenrolei a faixa de tecido presa em
meu punho e circulei em sua cabeça, mantendo seus olhos vendados.
Voltei a beijar seus lábios. Não importa quantas vezes eu o fizesse, não seria suficiente.
Eu estava viciado naquela pequena mulher e não faria nada para mudar isso.
— Posso? — Grace perguntou, levantando parte de minha camisa. Dando espaço
suficiente, deixei que Grace retirasse a peça. Seus dedos tremiam levemente. Eu os levei até a
minha boca e beijei cada um deles.
Grace e eu estávamos nus e desejando um ao outro como nunca. Seu corpo estava
iluminado parcialmente pela luz das velas que também estavam sobre a mesa, produzindo
sombras que se espalhavam pelo chão e armários à nossa volta. Parecia que preenchíamos cada
canto daquele lugar.
— Talvez... — ela disse com cautela, deixando sua testa descansar em meu queixo —
eu seja mesmo louca. Afinal, que mulher se deitaria com um assassino e amaria cada momento
disso?
Sua voz tremia levemente. Ela parecia estar mesmo assustada com o que acabava de
dizer.
— Eu não posso negar que seja um assassino. E ainda assumo que tenho dificuldade
para controlar minha raiva. Mas eu jamais machucaria você ou qualquer pessoa importante na
sua vida. Pelo contrário, eu daria minha vida por você ou por qualquer um que seja precioso em
sua vida. — Meu coração pareceu parar de bater, assim que me ouvi dizer aquilo. Cada palavra
era verdadeira. Grace tinha todo o poder sobre mim e faria qualquer coisa por ela.
Uma lágrima solitária escorreu pelo rosto de Grace e eu a limpei com a delicadeza que
consegui.
— Eu não deveria... eu ainda sou uma mulher casada. Ainda sou a Senhora Green. —
Ela parecia sentir nojo ao pronunciar aquelas palavras.
— Você pode ser uma mulher casada em um papel. Mas aqui dentro... — toquei em seu
peito com o polegar, massageando seu coração — você é minha. Tão minha quanto eu sou seu.
Senti meu corpo ser puxado em direção ao seu com força. A pequena mulher era mais
forte do que eu imaginava. Sorri em meios aos beijos acalorados que voltamos a trocar.
Grace era minha e eu era dela. Nada mudaria isso.
Abri suas pernas, que abraçaram minha cintura imediatamente. Abocanhei seu seio na
mesma hora que dei a primeira estocada dentro de Grace. Ela estava em chamas e engolia meu
pau com vontade, fazendo-me arremeter até o fundo.
Com um braço, eu segurava suas costas e com a mão livre, eu esfregava meu polegar em
movimentos circulares em sua entrada. Grace usou os seus braços para se firmar na mesa. Ela
gemia e, por mais que eu adorasse ouvi-la, precisávamos ser silenciosos naquele momento.
Busquei sua boca, consumindo os sons que irrompiam de sua garganta. Ela entendeu o recado.
Deixei seus lábios, descendo por seu pescoço. Cada beijo que deslizava por sua pele me
fazia querer mais dela. Voltei ao seu seio o abocanhando com fome.
Grace prendeu os seus lábios, tentando deter seus gemidos.
A cada lambida no bico endurecido de seu seio, Grace parecia se desconcertar mais.
Suguei seu mamilo intensamente, sentindo o gosto salgado de suor se espalhar em
minha língua.
Eu adorava saboreá-la.
Senti as pernas de Grace se endurecerem ao lado de minha cintura e suas coxas se
apertarem quase esmagando minha mão que continuava a estimular sua entrada. Grace gritou em
seu ápice e eu apenas torci para que ninguém nos escutasse.
A visão de Grace se libertando era realmente linda. Ela jogava o corpo, como em uma
dança sensual, e produzia sons sem pudor algum.
Após sua entrega, ela voltou a enlaçar meu pescoço e seus beijos molhados desceram
por meu pescoço, bebendo do suor que também cobria meu corpo.
Minhas estocadas se intensificaram a cada rastro que sua língua deixava em meu peito.
Segurei firme em sua cintura, enquanto Grace seguia me enlouquecendo. Como era possível que
a cada estocada eu a desejasse ainda mais?!
Despejei-me dentro dela, sentindo minhas forças se esgotarem.
Tomei os lábios de Grace mais uma vez, mas agora com suavidade.
Afastei-me para buscar minhas roupas. Grace continuava nua, sentada na beirada da
mesa. Acho que nunca a vi tão linda.
Virei-me para pegar a camisa no chão.
— Ai! — escuto Grace reclamar. Viro-me de volta ela para ver o que acontecia, mas é
tarde demais.
Ela já retirou a venda e agora pode enxergar-me.
Capítulo 36
Hospital St. John
1911

— O que você fez? — perguntei, exasperado, vendo que seus olhos corriam assustados
por meu braço direito. Vesti a camisa com pressa. — Por que retirou a merda da venda, Grace?
— questionei, irritado, indo em sua direção. Isso não era para acontecer. O que ela diz a seguir
me quebra, fazendo toda a raiva ser enterrada em algum lugar profundo.
— Me desculpe... eu... me queimei — disse, parecendo estar assustada.
Peguei sua mão vermelha e ainda coberta por parte da cera da vela. Seus olhos estavam
marejados.
— Como fez isso? — indaguei, retirado a vela endurecida da pele avermelhada. Guio
seu corpo até o balcão com o balde de água e enfio sua mão machucada lá dentro. — A água vai
ajudar a aliviar a dor — esclareci. Seu olhar continuava assustado.
— Eu só queria encontrar minha roupa, espalmei a mão sobre a mesa procurando o
vestido, mas alcancei a vela e parte do que estava derretido caiu na palma de minha mão, me
queimando. Foi por isso que retirei a venda — justificou.
— Vamos até meu quarto. Tenho uma pasta que Joanne me deu quando machuquei a
mão, pode ajudar com a dor.
Terminei de vestir-me e entreguei a Grace seu vestido. Ela se manteve em silêncio,
enquanto eu arrumava a cozinha para não deixar pistas sobre nossa invasão durante a madrugada.
Tomei seu braço e a guiei até meu quarto, levando uma das velas acesa conosco.
Deixei a vela ao lado da cama e sinalizei para que Grace se sentasse. Seus olhos
encaravam-me. Ela ainda parecia estar assustada. Perguntei-me se era pela dor do ferimento ou
pelo que vira em meu braço e costas.
Tomei sua mão na minha e passei a pomada sobre a área queimada. Usei a faixa, que já
estava de volta ao meu punho, para proteger o ferimento.
— Pode ir para o seu quarto agora — declarei.
— O que aconteceu com você, Aaron? — perguntou. Havia dor em sua voz.
— Não quero falar sobre isso, Grace — respondi, sinceramente.
Ela levantou-se da cama e se aproximou de mim. Sua mão enfaixada tocou meu rosto.
Seus olhos estavam marejados, eu não desejava vê-la sofrer. Isso acabava comigo.
— Você contou-me sobre os assassinatos que cometeu, os impulsos com o fogo, mas
não quer falar sobre isso... — ela lamentou. — Eu não imagino o quão terrível tenha sido... —
Seus braços envolveram minha cintura e sua cabeça repousou em meu peito. Abracei seu corpo,
como se não fosse capaz de soltá-la nunca mais. Meus olhos queimaram. Tive vontade de chorar,
como há muito não fazia.
Depois de algum tempo sentindo o calor de seu corpo e o cheiro de sua pele, meus
músculos relaxaram. Soltei Grace para, em seguida, pegá-la no colo. Coloquei seu corpo
pequeno na cama. Ela não me soltou em nenhum momento.
— Deite-se aqui comigo — pediu ela. Cedi, dividindo o mesmo travesseiro e encarando
seus olhos através da pouca luz que a vela ao lado da cabeceira produzia. — Eu quero muito que
confie em mim, Aaron, da mesma forma que eu confio em você. — Eu sabia que ela não estava
pedindo nada injusto. Apertei os olhos, temendo revisitar as memórias e me perder nelas. Sua
mão quente tocou minha face e me guiou de forma segura ao passado, sabendo que ele não
poderia me machucar mais.
Eu não me lembrava exatamente quando as agressões haviam começado, talvez eu
tivesse cinco ou seis anos de idade, mas lembrava-me que fora depois da morte de minha mãe.
Eu estava brincando no tapete da sala, ao lado da lareira, e papai chegou fedendo a
alguma coisa forte, que fazia minhas narinas se incomodarem. Eu já devia estar no quarto,
Mary havia me dado banho e me posto na cama, mas eu estava sem sono e queria brincar. Em
frente à lareira estava quente, achei que não teria problemas passar mais algum tempo por ali.
Eu estava distraído quando meu pai entrou, assustando-me.
— Você deveria estar na cama — disse ele, com a voz estranha.
— Estou brincando... — respondi.
— Não perguntei o que está fazendo. Disse que deveria estar na cama. — Ele retirou o
cigarro da boca e soprou a fumaça perto de mim. Tossi. — Eu disse a Mary que não queria
ninguém fora da cama a esta hora.
— Não quero dormir — resmunguei.
Meu pai ergueu meu corpo do chão pelo braço e arrastou-me pelas escadas,
tropeçando por todo o caminho até meu quarto. Depois de passar pela porta, ele me jogou sobre
a cama e disse com raiva:
— Você não tem o que querer, garoto. Amanhã, quando eu chegar, é bom que eu não te
encontre lá embaixo de novo. — Ele retirou o cigarro da boca e o encarou entre os dedos.
Encolhi-me na cama quando ele se aproximou e segurou meu braço, que ainda doía. Ele se
abaixou ainda mais, seu rosto quase tocou o meu. Seus olhos me encaravam. Senti quando algo
queimou em meu braço, fazendo meus olhos arderem pela vontade de chorar. — Se abrir essa
boca, vou deixar mais de uma marca — ameaçou-me ele. — Amanhã, quando você olhar para
isto — disse, afastando-se e mostrando o local queimado em meu braço — você se lembrará de
não me desobedecer. Sua mãe não está mais aqui para te proteger. É melhor não me desafiar.
O cheiro da minha pele queimada se misturava ao cheiro do cigarro, fazendo-me ter
vontade de devolver tudo o que eu havia comido no jantar.
Eu sabia que nunca mais me esqueceria daquele cheiro.
Demorou mais alguns dias, mas então aconteceu de novo. Desta vez, porque eu havia
derramado leite na mesa enquanto tomava café da manhã. Papai se aproximou sem falar e
afundou a parte acesa do cigarro em meu braço, deixando uma marca ao lado da outra.
Mary chegou na cozinha na mesma hora e chocou-se com o que via. Seus olhos também
se encheram de lágrimas. Ela veio em minha direção, mas meu pai a deteve. antes de ela me
alcançar.
— Se quiser manter seu emprego, não se meta na criação de meus filhos — ameaçou
ele. Mary se afastou, voltando para onde viera. Ouvi um soluço enquanto ela se afastava.
Após ter meu braço liberado pelo castigo de meu pai, corri para meu quarto e escondi-
me debaixo da cama, esperando que ele não me encontrasse ali. Sentia falta da minha mãe. De
qualquer pessoa que pudesse me salvar, mas não havia ninguém.
As queimaduras continuaram a aparecer, sempre no mesmo braço. Qualquer coisa era
motivo para que ele me machucasse. Se eu não dormisse na hora certa, se eu não comesse
quando ele mandava, se eu respirasse fundo perto dele. Não demorou para que ele cansasse de
usar justificativas, e então ele passou a me queimar sem falar mais nada. Apenas segurava meu
braço e afundava o cigarro aceso na pele, até sentir o cheiro de queimado.
Eu me escondia dele sempre que podia. Tentava não ser visto, para proteger-me como
poderia. Eu cresci com raiva do meu pai, desejando, a cada dia que eu acordava, que
descobrisse que ele estava morto.
Com doze anos, eu já não parecia mais uma criança. Era maior do que os outros
meninos e mais forte também. Enquanto eu crescia, meu pai ficava mais velho e fraco, bebendo
cada vez mais.
Um dia, antes do meu aniversário de treze anos, segurei seu braço antes de ele
queimar-me. Ele tentou me atacar, mas eu o segurei e o empurrei contra o chão. Ele caiu,
assustado.
— Nunca mais vai me queimar de novo — anunciei, deixando o velho no chão.
Eu pensei que, finalmente, estaria livre. Tinha as marcas das quais nunca mais me
esqueceria, que estavam por todo meu braço direito, mas nunca mais sentiria a pele queimar e o
cheiro forte da carne sendo ferida pelo fogo impregnar meu nariz.
Eu estava errado.
No meu aniversário de 14 anos, meu pai chegou em casa com uma menina. Ela deveria
ter um ano de idade, era apenas um bebê.
— Está é sua irmã, Aaron — anunciou meu pai. — A mãe dela não pode cuidar da
menina e, por isso, não tive escolha a não ser trazê-la para casa.
Lembrei-me de minha própria mãe. Ela estava morta, mas queria muito ter tido uma
filha menina. Certa vez, ela havia me prometido um irmão ou irmã, mas faleceu antes disso. E
agora eu tinha uma irmã e temia por ela.
Amy não dava trabalho, era um bebê quieto na maior parte do tempo. Eu ajudava Mary
com os cuidados e ela crescia. Passei a cuidar da loja, pois meu pai não aparecia mais para
trabalhar e eu sabia que aquela era nossa única fonte de renda. Às vezes, meu pai ficava dias
sem aparecer em casa, e eu não reclamava por não o ver. Quanto mais longe ele estivesse,
melhor.
Quando Amy estava com quatro anos, notei que ela tinha uma queimadura no braço.
Uma igual as minhas. Fiquei furioso, somente uma pessoa naquela casa poderia ter feito aquilo.
Chamei Mary e ordenei que meu pai não entrasse novamente naquela casa. Eu não me
importava que a casa e a loja ainda fossem dele. Ele não iria machucar minha irmã, como tinha
feito comigo. Eu a salvaria dele. Eu faria por ela o que ninguém havia feito por mim.
Um dia, cheguei mais cedo em casa. Estava nevando forte e a loja não tinha recebido
cliente algum, pois todos estavam presos em suas casas. Abri a porta e retirei o casaco pesado,
colocando-o no cabideiro. Ao virar-me, fui tomado pelo horror.
Amy estava sentada no tapete. Suas bochechas estavam vermelhas e os olhos inchados.
Havia uma nova marca de queimadura em seu braço, e na frente de seu pequeno corpo, nosso
pai a ameaçava, retirando do fogo da lareira um atiçador de brasas, com a ponta vermelha
aquecida pelas chamas. Lembrei-me da primeira vez que ele havia me queimado e de tantas
vezes mais... do cheiro... do medo...
Amy soltou um soluço profundo e lágrimas molharam seu rosto, trazendo-me de volta à
realidade.
— Continue chorando, para ver se não te queimo ainda mais, menina — ele ameaçou,
levando a atiçador em sua direção. — Você não vai calar a boca, não é mesmo?
Ele estava prestes a encostar o atiçador em Amy quando a peguei e a protegi em meus
braços. O atiçador encontrou minhas costas, passando pela camisa e atingindo minha pele,
deixando um rastro por onde desceu.
— Você de novo? — resmungou ele.
— Mary — gritei. Ela apareceu com o rosto inchado de tanto chorar.
— Aaron... — Ela começou.
— A partir de hoje, é Senhor Walker — declarei, vendo seus olhos se espantarem. —
Leve Amy ao seu quarto e cuide de sua queimadura. Nenhuma de vocês deve descer as escadas
antes que eu permita. Está me ouvindo?
— Si-sim, Senhor Walker — declarou, gaguejando.
— Senhor Walker? — debochou meu pai às minhas costas.
— Você — disse, apontando o dedo em sua direção — nunca mais vai pôr os pés nesta
casa.
— Você acha mesmo que pode me impedir de entrar na minha própria casa, garoto? —
Ele riu, jogando o atiçador ao longe.
Juntei as lapelas de seu casaco e o levantei do chão.
— Eu mato você, se pôr os pés nesta casa de novo — garanti entre dentes. Ele debateu-
se e eu o soltei, deixando seu corpo cair aos meus pés. — Saia desta casa, volte para aquele
puteiro, onde você anda vivendo, e nunca mais chegue perto de mim ou de Amy outra vez.
Meu pai levantou-se, arrumando as roupas, como se não tivesse sido minimamente
afetado por minhas palavras.
— Eu não só vou voltar, como trarei a polícia junto comigo. Vou colocar você na
cadeia e recuperar minha casa e minha loja, seu moleque.
Ele deixou a casa, levando junto dele a pouca paz que eu havia conquistado. Ele não
poderia voltar para esta casa. Amy não poderia passar pelo que eu havia passado.
Minhas costas queimavam com o novo ferimento, parecendo fazer todas as minhas
queimaduras voltarem a queimar também. Aquele maldito não podia voltar a fazer parte de
nossas vidas. Eu não permitiria.
Busquei um copo de uísque no aparador e coloquei uma dose, não mais do que isso. Eu
precisava pensar no que fazer e não podia deixar que a bebida atrapalhasse.
Sentei-me no sofá, apoiando os cotovelos nas pernas. Encarei o fogo na lareira à minha
frente enquanto eu bebia, deixando o álcool me queimar por dentro. As horas se passavam e a
minha certeza aumentava: aquele homem maldito precisava sumir de nossas vidas... e eu já
sabia o que precisava fazer.
Devolver o que ele havia me feito por anos.
Deixei o copo de lado e fui até a área de serviços. Abri o armário, no qual Mary
guardava alguns produtos. Dentre eles, a querosene. Peguei todo estoque, coloquei em um saco
de pano e então me encaminhei para a porta. Eu tinha uma missão a cumprir.
As ruas estavam vazias, ocupadas apenas pela escuridão da madrugada.
Cheguei ao puteiro onde meu pai se escondia, localizado em uma casa no fim da rua da
parte mais pobre de Londres. Abaixei a boina, escondendo o rosto, e aproveitei, quando um
homem saiu, para entrar no local sem chamar atenção.
No salão da entrada, havia poucos homens distraídos com algumas putas ao seu redor.
Nem se deram ao trabalho de olhar para trás. O ambiente era pouco iluminado e fedia a bebida
e cigarro. Aproveitei-me das sombras para segurar uma mulher, que saía de um corredor na
lateral do salão.
— Olá... — disse, dengosa, passando a mão por meu casaco. Segurei seu punho.
— Onde encontro Jacob Walker? — indaguei, perto de seu ouvido.
— No final do corredor, subindo as escadas, último quarto a esquerda. Mas acho que
ele está acompanhado...
Não agradeci, soltei seu braço e me encaminhei para onde ela havia dito, protegendo o
saco cheio de querosene nas sombras.
Se ele estivesse acompanhado, poderia ser mais difícil, mas eu não recuaria agora,
custasse o que custasse.
Assim que terminei de subir as escadas, avistei uma jovem baixa, de cabelos claros,
seminua, deixando o quarto indicado pela mulher que encontrei no salão. Não poderia ser em
melhor hora. Ela tropeçava nos próprios pés de tão bêbada. Abaixei minha cabeça, ocultando
meu rosto, ao passar por ela.
Olhei em volta, não havia mais ninguém no corredor. Abri a porta e entrei no quarto.
Girei a chave do outro lado e a guardei em meu bolso. Jacob, o homem que eu chamava de pai,
estava apenas com uma meia preta em um dos pés sobre a cama. Apagado, provavelmente
devido à bebida. Havia garrafas vazias por todo o lado.
Deixei o saco de querosene no chão e me aproximei da cama para juntar um dos
lençóis encardidos. Rasguei o tecido, fazendo uma faixa. Olhei para o desgraçado, ele
continuava imóvel. Usei a faixa para amarrar suas mãos e prendê-lo à cabeceira de madeira.
Ele resmungou, mas não fez menção de acordar. Procurei a outra meia perdida pelo quarto e,
quando a encontrei, coloquei em sua boca para que ele não tentasse gritar. E então ele
finalmente abriu os olhos.
— Oi, pai — disse tranquilamente.
Ele resmungou algo, mas não entendi. Não fazia mais diferença.
— Não deveria ter nos ameaçado. — Seus olhos se arregalaram. Ele tentou debater-se,
mas de nada adiantou. — Você me queimou muitas vezes, pai. Eu vou queimar você apenas uma,
mas esta será memorável. — Sorri.
Andei até a janela e levantei a cortina rasgada. Não havia nada além de escuridão à
nossa volta.
Sem pressa, peguei o primeiro litro de querosene e passeei pelo quarto imundo
despejando o líquido inflamável pelas cortinas e tapetes velhos, enquanto o velho tentava
resmungar algo, mesmo com a meia podre em sua boca.
Havia uma satisfação em mim que eu não poderia negar. O desejo de ver o fogo
consumindo aquele homem, que havia me machucado tantas vezes e agora ousava machucar
minha irmã. Ele ainda lutava por sua vida, tentando se libertar, o suor que escorria por sua
testa demonstrava o esforço que ele empregava em cada movimento. Era patético.
Rodeando a cama com o último litro de querosene, pensei em como aproveitá-lo bem.
Jacob me encarou, como se olhasse diretamente para a morte, e eu gostei muito do desespero
que vi em seus olhos. Muitas vezes, olhei para ele do mesmo modo, implorando silenciosamente
para que não me machucasse, nunca havia funcionado. Agora, também não funcionaria.
Joguei o líquido sobre a cabeça do homem, que se dizia meu pai. Ele tossiu, quase
afogando-se. A querosene escorreu pelos braços e peito.
Joguei os recipientes vazios no chão. Andei novamente até a janela e quebrei o trinco,
deixando-a emperrada. Não haveria possibilidade alguma de ele escapar.
Tirei a caixa de fósforo do bolso do casaco e risquei um palito à sua frente. Seus olhos
pareceram prestes a saltar. Eu comecei a rir. Não consegui controlar. Era bom estar do outro
lado.
Joguei o palito aceso no colchão da cama que pegou fogo na mesma hora. As chamas
se espalharam depressa, logo metade de seu corpo estava em chamas, que começavam a
circular o quarto.
O calor do fogo não ardia mais sob as cicatrizes de meu corpo.
A fumaça começou a nublar minha visão e me sufocar. Usei o braço para proteger meu
nariz. Tirei a chave do bolso e destranquei a porta, apenas para passar por ela, e a trancar
outra vez, deixando Jacob com as chamas do outro lado.
Atravessei o corredor de cabeça baixa e alcancei a porta, deixando meu passado ser
queimado pelo fogo que eu provocara.
Afastei-me o suficiente do puteiro e me escondi em um beco, o local me permitia
apreciar meu trabalho de longe. Surpreendi-me ao perceber o quanto as chamas se alastravam
rapidamente.
Eu estava fascinado, era lindo ver como varriam tudo o que estava no caminho.
Tomando, consumindo. Destruindo.
Ouvi gritos e observei, protegido pela escuridão, as pessoas começarem a sair de
dentro do puteiro seminuas. Meu corpo vibrava com o caos que se espalhava e com o medo que
eu havia causado.
Eu soube naquele momento que minha libertação tinha me aprisionado a outra coisa,
uma que poderia ser ainda pior, e que eu teria dificuldade em controlar. A vontade de incendiar.
De destruir.
O toque suave da mão de Grace em meu rosto trouxe-me de volta à realidade.
— Então foram esses dois homens que você matou queimados?
— Sim. Meu pai e meu amigo. Deveriam ser pessoas nas quais eu poderia confiar e,
ainda assim... — O carinho de Grace me trazia uma sensação de tranquilidade que achei que
nunca sentiria.
— É por isso que sempre me venda?
— Sim — admiti. — Não queria ter que explicar. Ter que lidar com as memórias.
Parecia mais fácil enterrá-las em algum lugar escuro da minha mente.
Ela parecia entender como aquilo era difícil para mim.
— Agora que sei de todas as suas cicatrizes... eu posso te ver na próxima vez que...
— Quê?
Ela parecia envergonhada e adorei vê-la tentando romper sua timidez.
— Que estivermos juntos — ela disse, sorrindo.
— Não há mais nada em mim que você não possa ver, Grace — declarei. — Você não
conhece apenas meu corpo, mas minha alma, mesmo as partes sombrias.
Grace suspirou e tomei seus lábios, como se não os beijasse há muito tempo, sentindo
uma necessidade sem igual de tocá-la, de ter certeza de que ela ainda estava ali.
— Você ainda se sente segura ao meu lado? Mesmo depois de tudo? — perguntei ao me
afastar. Precisava ouvir dela que, apesar de tudo, nada havia mudado entre nós. Eu precisava
disso mais do que qualquer outra coisa.
— Eu sinto muito por tudo o que tenha passado... — disse, acariciando suavemente meu
rosto.
— Eu agradeço sua compaixão, Grace, mas não foi isso que perguntei — disse sentindo
meu peito apertar.
— Você tem seu passado. Sua história o fez ser como é.
— Não tem medo de mim? — questionei, mesmo temendo sua resposta.
— Eu sei exatamente quem você é, Aaron Walker. Sem disfarces, sem mentiras, sem
máscaras. E, por isso, eu digo sem dúvida alguma que confio em você com minha vida.
Senti sinceridade em cada palavra dita. Eu não merecia Grace, mas eu a tinha e daria
valor a isso a cada segundo de nossas vidas.
Grace se aninhou em meu peito, adormecendo logo depois. Naquele momento, fiz uma
nova promessa em silêncio. Nem que eu quisesse poderia deixar Grace. Por isso, seus dias como
senhora Green estavam contados.
Capítulo 37
Hospital St. John
1911

Deixei o quarto Grace um pouco antes de amanhecer. Ela ainda dormia tranquilamente.
Passei a noite ao seu lado, mas pouco fechei os olhos. Minha cabeça estava longe, pensando em
como fugiríamos de Saint John.
O sanatório era longe da cidade e não conseguiríamos ir andando até lá, não seria seguro
dar as caras no vilarejo mais próximo logo após a fuga, precisaríamos de um carro ou qualquer
outro tipo de transporte para ir mais longe. O único funcionário do sanatório que vinha trabalhar
de carro era o Dr. Shawcross. Mas não adiantava conseguir as chaves do automóvel dele sem
saber como passar pelo guarda da entrada principal. E eu ainda precisava me preocupar com o
que aconteceria quando soubessem que havíamos fugido...
Subi ao segundo andar do prédio, carregando um balde de água e um esfregão. Eu usaria
o trabalho no local para observar de perto o comportamento do doutor. Precisava saber em que
momento ele costumava estar mais distraído, para roubá-lo, ou, até mesmo, se ele guardava as
suas chaves em algum lugar dentro do seu escritório.
Um enfermeiro passou por mim correndo e entrou apressado na sala do médico. Era
Mathew. Aproximei-me da porta entreaberta e ouvi o motivo da urgência.
— Ele pulou sobre o outro paciente e arrancou a orelha do interno em uma única
mordida — relatou. — Precisamos do doutor lá embaixo urgentemente. A nova medicação não o
deixou mais calmo e, sim, mais violento.
Eu torcia para que Grace ainda estivesse em seu quarto e não presenciasse tal situação.
Ela já tinha passado por tanto, não precisava de mais imagens que causassem novos pesadelos.
Os dois homens saíram apressados, sem nem notar que eu estava do lado oposto do
corredor.
Aproveitei a confusão e carreguei o material de limpeza até a sala do médico. Mesmo
tendo a chave de sua sala, eu só tinha permissão de limpar o lugar na presença do doutor
Shawcross, mas não podia perder a oportunidade de procurar pelas chaves do carro, se
estivessem guardadas ali. Daria qualquer desculpa se ele retornasse e me encontrasse lá dentro, o
mais importante agora era não perder a oportunidade.
Deixei o material ao lado da porta fechada. O vidro na porta era fosco, o que me dava
privacidade dentro da sala.
Sobre a mesa do médico, não havia item pessoal algum. Havia algumas pastas de
documentos e livros de medicina, um caderno e algumas canetas, mas nada além disso.
Nas paredes, havia alguns quadros pintados com imagens de florestas mortas. Seus
traços pareciam distorcidos, mas ainda eram belas imagens. Do lado direito da sala, havia um
armário de metal. Abri as gavetas, encontrando as fichas médicas dos pacientes. Mesmo
procurando pelas chaves, não resisti à vontade de encontrar o meu arquivo e o de Grace. Procurei
pelo meu nome entre as pastas, mas não o encontrei. Estranhei. Procurei pela pasta de Grace,
mas também não havia uma em seu nome. Por que os nossos arquivos não estavam ali, junto aos
demais?
Procurei sobre a mesa de madeira, porém também não os encontrei. Algo parecia estar
errado. Abri as duas gavetas embutidas do lado direito da mesa, estavam destrancadas, mas lá
dentro também não havia nada em meu nome ou de Grace. Tentei a terceira e última gaveta, era
a única que estava trancada. Forcei tentando abri-la, mas não consegui. Olhei ao redor, era a
única coisa fechada a chaves dentro daquela sala, e por isso mesmo eu sabia que precisava abri-
la.
Escutei vozes alteradas discutindo, ainda ao longe. Corri até meu material e abri a porta,
colocando-os para fora enquanto fingia limpar o chão, sem levantar a cabeça. Deixei que o Dr.
Shawcross batesse contra meu corpo quando colocou o primeiro pé no corredor, andando
apressadamente. O velho cambaleou quase caindo para trás. Segurei em seu braço com a mão
direita e o puxei de volta. Em um movimento rápido, usei a mão esquerda para alcançar o bolso
interno de seu paletó e lá estava um molho de chaves. Peguei as chaves e fechei a mão para
escondê-las, guardando-as, em seguida, no bolso da minha calça.
— Olhe por anda, Senhor Walker! — reclamou o médico. Ingrato, mesmo que eu tenha
trombado nele de propósito, também fui eu que o segurei, impedindo-o de cair das escadas.
— Desculpe, senhor — disse, fingindo culpa.
— Vamos, Mathew — continuou o velho, indicando o caminho até sua sala. — Já não
bastava a preocupação com a nova interna e, agora, isso.
— Nova interna, senhor? — Ouvi Mathew questionar.
— A tal moça que assassinou o marido brutalmente, a facadas. Olivia alguma coisa, não
me recordo do sobrenome. Não vão levá-la a um julgamento sem passar por um internamento em
Saint John, para atestar sua sanidade.
— É seguro trazê-la para este sanatório? — perguntou o enfermeiro.
— Nós a manteremos no segundo andar. Trancafiada em um dos quartos com porta de
metal e barra de segurança na janela. Ela estará contida e, se nos der trabalho, será sedada, como
a maioria dos outros.
Deixei a conversa que seguia entre eles e desci as escadas depressa, parando apenas ao
chegar à porta do porão. Eu não poderia ser encontrado com as chaves do médico. Busquei um
lugar para escondê-las. Se o Dr. Shawcross precisasse delas e não as encontrasse poderia pensar
que as tinha perdido, o que ele não poderia era encontrá-las comigo.
Evitei encontrar Grace durante as refeições do dia, para que não chamar mais atenção do
que já havia sobre nós. À noite, eu conversaria com ela sobre tudo o que havia ocorrido.
Quando o toque de recolher começou, senti a vontade de encontrá-la começar a me
dominar. Queria vê-la, mas sabia que antes precisava voltar à sala do médico para testar as
chaves que havia pegado de seu paletó e descobrir o que ele estava escondendo. Poderia não ser
nada que afetasse a mim ou Grace, ou poderia ser algo que nos ajudaria a dar o fora dali. Eu
torcia para que fosse a segunda opção.
E então, finalmente, a noite chegou. Ninguém mais circulava pelos corredores do St.
John. Caminhei até o porão e busquei as chaves. Levei uma caixa de fósforos e uma lamparina
apagada, para usá-la na sala do médico.
Eu sabia que o Dr. Shawcross havia deixado o hospital, pois o havia visto sair com
Shirley, o que também queria dizer que a chave do carro não estaria na gaveta trancada, já que
saíram no veículo. Entretanto ainda havia algo lá e eu queria descobrir o que era.
No momento, eu buscava por qualquer coisa que pudesse ajudar em nossa fuga.
Peguei o molho de chaves do prédio em meu bolso e separei aquela que dava acesso à
sala do Dr. Shawcross. Abri o local, passando pela porta e a trancando de novo, em seguida.
Acendi a lamparina e a levantei no meio da sala, buscando clarear o ambiente. À minha
frente estava a mesa de madeira que me interessava. Deixei a lamparina no canto da mesa e
busquei as chaves roubadas no outro bolso da minha calça.
Testei a primeira chave, mas não deu certo. Testei a segunda e ainda nada. Na terceira
tentativa, a chave entrou e, ao girá-la, ouvi o som da fechadura sendo aberta. Abri a gaveta,
sentindo as mãos suarem. Havia alguns envelopes de cartas lá dentro.
Sentei-me na cadeira do médico e levei as primeiras cartas para perto da luz. Em um
primeiro momento, imaginei que se tratasse de simples cartas pessoais, mas, para minha
surpresa, não eram.
O remetente das três primeiras cartas era Nolan Green, marido de Grace.
Abri as cartas e li o conteúdo. Não podia acreditar em cada frase que estava escrita ali.
Nolan descrevia Grace como uma mulher histérica, que sofria de alucinações e vinha
demonstrando um comportamento altamente agressivo. Ele relatava que temia por sua segurança
e de sua filha, e por isso, esperava que através da indicação de um amigo médico de
Birmingham, o Dr. Shawcross aceitasse Grace em sua instituição por tempo indeterminado.
Assim, o médico receberia uma significativa doação em seu nome.
Eu não acreditava que aquele médico miserável havia aceitado trancafiar Grace. Por
isso, ele se negava, apesar dos apelos de Grace, a reavaliar seu caso. Ele não tinha intenção de
atestar sua melhora, se é que Grace havia estado doente em algum momento.
Voltando a vasculhar a gaveta aberta, encontrei os recibos de pagamentos de Nolan para
Shawcross; eram registros de valores absurdos. Continuei retirando os documentos que
encontrava, descobrindo que haviam outros pagamentos. Estes eram no nome de Abraham
Morris.
Tirei do fundo da gaveta uma pasta e, ao abri-la, descobri os registros financeiros de
Saint John. Estavam ali os nomes dos pacientes e os valores que suas famílias pagavam por seus
tratamentos e, logo, notei que os números registrados eram muito abaixo do que os valores que o
médico havia recebido de Green ou Morris.
Procurei por meu nome e o de Grace na lista, contudo não os encontrei. Em uma folha
separada, dentro da mesma pasta, estava o nome de Olivia Cooper. O caso dela era uma
solicitação do Ministério da Justiça e, por isso, o pagamento não era feito pela família. Não
parecia certo não encontrar nossos nomes nos registros de pagamento, já que havia documentos
de valores recebidos de Green e Morris. Procurei em cada linha. Frente e verso das folhas. Não
havia nada sobre nós. Não estávamos listados no registro de pagamentos do sanatório Saint John.
Busquei em cada armário e gaveta daquela sala, mas não encontrei nada em nossos
nomes. Nenhum arquivo médico, nenhum registro de pagamento nos arquivos oficiais do
sanatório. Absolutamente nada além dos recibos de pagamentos do marido de Grace e Morris.
Voltei a me sentar na cadeira do médico. Meu corpo pendeu para trás, fazendo-me
recostar no encosto. Eu não acreditava naquilo. Para os meios legais e oficiais, Grace e eu nunca
estivemos internados em Saint John. Não havia nada sobre nós naquele lugar.
Agora era fácil chegar à conclusão que Morris havia conseguido o que queria: me
impedir de expor o crime do filho, para que sua imagem não fosse atingida, como ele havia dito
que faria. Minha prisão em Saint John nunca havia sido sobre o assassinato de Vicent ou sobre
meus impulsos. Ainda assim, nunca imaginei que ele não usaria meio legal algum e, sim, a boa e
velha corrupção, para manter-me preso. Eu não deveria estar surpreso, pessoas como ele sempre
conseguiam exatamente o que queriam e Morris queria-me desacreditado. Mesmo que eu
tentasse falar a verdade em algum momento, quem ouviria qualquer coisa que eu dissesse dentro
do Saint John?
Minha vontade era de esmagar a cabeça daquele médico velho maldito. Pelos recibos
encontrados em seu nome, o miserável tinha ganhado muito dinheiro com nossas prisões em
Saint John.
Desejei acertar as contas com ele imediatamente, o fogo da lamparina queimando à
minha frente me atraía, me chamava como um canto de sereia. A imagem do homem queimando,
ainda vivo, preencheu minha mente e fez meu corpo vibrar, porém em seguida, outra imagem
tomou minha mente: um rosto angelical com olhos verdes e sorriso doce.
Grace precisava de mim mais do que eu precisava ceder aos meus impulsos. Tinha que
me concentrar em nos tirar daquele lugar. Era isso que eu precisava fazer neste exato momento.
Não via a hora de compartilhar com Grace o que havia descoberto. Era uma notícia
horrível e maravilhosa, ao mesmo tempo. Usaríamos isso a nosso favor, para nos livrar de vez do
sanatório Saint John.
Antes de devolver os documentos a gaveta, notei algo preso ao fundo. Puxei o pedaço
de papel descobrindo um fundo falso. Retirei a barreira falsa e encontrei uma grande quantidade
de dinheiro. Puta Merda! Esta descoberta também poderia ser de grande ajuda. Coloquei o fundo
falso no lugar outra vez e devolvi as cartas e recibos, como eu me lembrava de tê-las encontrado,
para então trancar a gaveta de novo.
Olhei em volta, para verificar se não estava deixando nada fora do lugar. Apaguei a
lamparina e abri a porta, alcançando o corredor. Girei a chave depressa e a guardei no bolso,
junto das chaves do doutor Shawcross.
Estava prestes a me virar para descer as escadas quando vi, no fundo do corredor, que
alguém deixava o último quarto à esquerda. O toque de recolher não permitia que ninguém
andasse por Saint John fora do horário estabelecido. Os funcionários só poderiam deixar o
alojamento em caso de um chamado de emergência do próprio Dr. Shawcross, ou de Joanne,
quando ele estivesse ausente. A pessoa que eu via não poderia ser a enfermeira. Joanne era baixa,
robusta, diferente da figura alta que caminhava em minha direção.
Quando se aproximou o bastante, consegui identificar que se tratava de Mathew e isso já
era o bastante para me irritar.
— O que fazia na sala do Dr. Shawcross, Aaron? — questionou em tom baixo.
— Nada pior do que você fazia no quarto de uma das internas a essa hora. — A raiva
fez meus punhos se cerrarem.
— Não é o que parece — disse. — Eu estava apenas fazendo meu trabalho. Precisava
me certificar de que ela estava bem.
— E o que te impediu de fazer seu trabalho antes do toque de recolher?
Mathew suspirou, exasperado. Ele estava escondendo algo. Talvez ele fosse um porco
igual ao Martin, talvez não fosse, mas neste momento, eu precisava ser cauteloso por Grace. Eu
não gostava do rumo que meus pensamentos tomavam, no entanto me importava muito com
Grace para fazer qualquer coisa que pudesse colocar nossa fuga em risco. Eu não estava ali para
salvar fosse quem fosse, eu me sacrificaria apenas por uma mulher e ela se chamava Grace.
— Faremos assim, enfermeiro — disse. — Cada um vai para seu canto e fingiremos que
este encontro nunca aconteceu. — Mathew olhou para o fim do corredor e suspirou, parecendo
derrotado.
— Aceito. — Ele se encaminhou até a porta do alojamento de funcionários, sem
oferecer a mão para selarmos o acordo ou sem dizer qualquer outra palavra. Havia algo
acontecendo entre ele e quem quer que estivesse naquele quarto.
Desci as escadas com pressa e, chegando ao porão, devolvi a chave da mesa do médico
ao esconderijo. Acendi a lamparina para levar ao quarto. As ideias fervilhavam em minha mente.
Eu tinha tanto para compartilhar com ela.
Nós deixaríamos Saint John.
E seria logo.
Capítulo 38
Hospital St. John
1911

A porta se abriu e Aaron entrou apressadamente. Havia um brilho novo de expectativa


em seus olhos. Um que eu ainda não tinha visto. Ele deixou a lamparina no armário de cabeceira
e se aproximou da cama, na qual eu estava, e, segurando meu pescoço com as duas mãos, beijou-
me com vontade.
— Eu tenho novidades — disse, afastando-se.
— O que houve? — disse, sorrindo com seu entusiasmo.
— Invadi a sala do Dr. Shawcross...
— Ficou louco? — Reagi, preocupada, mas ele apenas abriu um largo sorriso.
— Primeiro, eu estava à procura da chave do carro dele, para termos um transporte ao
fugir. De nada adiantaria passar pelos muros, ou pela porta, e não ter como sair desse fim de
mundo, mas o que encontrei pode ter sido uma descoberta ainda melhor — explicou.
— Então não encontrou a chave que procurava?
— A chave deve estar com ele ou no próprio carro. Na sala dele, eu já sei que não está.
— Então não temos nada ainda?
— Na verdade — ele iniciou, levantando meu rosto —, descobri algo importante sobre
sua estadia e a minha, nesse lugar infernal. — Engoli em seco. Senti que algo importante estava
para ser dito. — Encontrei recibos de pagamentos de seu marido para o Dr. Shawcross.
— Sim, com certeza Nolan está pagamento por este tratamento. — Cuspi as palavras.
— E é aí que as coisas ficam interessantes... — ele continuou: — Seu marido pagou ao
médico quantias altíssimas, muito acima daquelas que ele recebe por outros pacientes.
— Por que ele faria isso? — perguntei, tentando entender.
— Além do mais, nossos nomes não estão nos registros de pagamentos do sanatório.
Nem sequer há um arquivo médico nos identificando como internos.
— Mas... — sussurrei.
— Nós não estamos internados no sanatório Saint John. Não pelos registros legais.
Perdi o ar por um instante.
O que eu estava fazendo naquele lugar?
— Você acha que Nolan... — Eu parecia não conseguir falar. — Ele me colocou aqui
para se livrar de mim?
— Pelo que você me contou sobre a vida de vocês em Birmingham e em Red Rose, sim.
— Ele acariciou minha bochecha.
— Aquele... aquele... — Eu nem ao menos conseguia amaldiçoá-lo. Lágrimas
inundaram meus olhos e um choro sufocante ficou preso em minha garganta. Aaron me trouxe
para perto de seu peito. Eu comecei a chorar compulsivamente. Era doloroso saber que, depois
de tudo o que eu havia feito, depois de tanto que eu havia lutado, meu marido havia me jogado
no inferno, longe de minha filha, da minha casa e da minha vida.
Aaron acariciou minhas costas, tentando me confortar, enquanto eu desabava,
lembrando-me do quanto eu havia perdido.
— Eu quero que ele morra. Ele não merece viver depois de tudo o que fez.
Aaron olhou-me com cautela.
— Você tem certeza de que é isso que deseja, Grace?
— Tenho — garanti.
— Então ele irá morrer — disse, abrindo um sorriso sombrio.
Mais calma, afastei-me limpando as lágrimas.
— Você também vai matar quem te colocou aqui dentro? — questionei.
— Você tem algum problema com isso?
— Nem um pouco — respondi imediatamente.
Ele voltou a sorrir.
— Para que dê certo o que tenho em mente, precisarei deixar o Morris no passado.
— Vai abrir mão disso? De vingar-se?
— Meu problema era com o filho dele e Vicent já pagou pelo que fez. Morris é um
miserável, mas não vale a pena. Não vou arriscar chamar atenção para nós, depois que deixarmos
Saint John, como duas pessoas mortas.
— Mortas? — perguntei, confusa.
— Vamos deixar dois corpos em nossas camas, completamente queimados pelo
incêndio que provocarei e, durante o tumulto causado pelo fogo, fugiremos.
— Dois corpos? De quem? — perguntei.
— Um do nosso amigo Dr. Shawcross e outro corpo é do Martin, que está apodrecendo
na terra.
— Martin? Quem é Martin? — Aaron me olhou, preocupado.
— O que você se lembra das primeiras noites no Saint John, Grace?
— Quase nada — confessei. — A maior parte é uma mistura confusa de sonhos ruins...
— Lembra-se de... — Ele parecia ter dificuldade para falar. Sua feição se tornou
sombria, não do jeito que eu estava acostumada. Era pior desta vez. — Ser atacada?
Então havia acontecido mesmo? A sensação do peso contra meu corpo, o cheiro que
ardeu em minhas narinas. O corpo sem rosto sobre o meu...
— Não sabia se havia acontecido mesmo — confessei.
— Eu lamento — ele disse, acariciando meu rosto.
— Você estava lá, não estava? — Mesmo que o medo estivesse mandando alerta de
perigo neste momento para todo meu corpo, recusei-me a me afastar. Havia uma explicação. Eu
sentia isso dentro de mim, lutando contra o medo.
— Eu o interrompi enquanto ele atacava você. — Levei a mão ao peito, tentando
dissipar aquele sentimento ruim.
— O que houve com ele? — Eu sabia o que havia acontecido. E não era por Aaron ter
acabado de dizer que o corpo do homem estava apodrecendo na terra. Era porque eu me
lembrava do som de algo se quebrando repetidamente, eu me lembrava do cheiro de sangue...
Respirei fundo, tentando acalmar-me.
— Eu o matei — respondeu tranquilamente. Ele havia matado uma pessoa por mim...
Eu deveria estar me sentindo enojada, assustada, mas não sentia nada disso.
— Algum outro deles... daqui de dentro do sanatório, tentou fazer o mesmo enquanto eu
ainda estava sob efeito dos remédios? — perguntei, temendo a resposta.
— Não — garantiu-me imediatamente. — Passei a dormir no quarto ao lado e, muitas
noites, passei ao seu lado enquanto dormia.
Eu sorri. Deveria ser uma revelação assustadora, porém me fazia sentir bem. Segura.
— Obrigada — disse, deixando um beijo suave em seus lábios. Aaron pareceu aliviado
ao me ouvir. — Não vamos fugir — disse, retomando o assunto que precisávamos resolver:
nossa saída de Saint John. A dúvida passou pelos olhos de Aaron. — Vamos para Red Rose.
Vamos até lá arrancar as ervas daninhas e retomar minha casa.
Ouvi uma gargalhada deliciosa. Aaron também sabia rir.
— Você é perfeita para mim, Grace.
— Eu precisei ficar louca para encontrar minha razão. E minha razão é você, Aaron
Walker.
Sua língua quente experimentou meus lábios, antes de invadir minha boca em um beijo
profundo e molhado. Seu corpo grande encobriu o meu, fazendo-me deitar sobre o colchão. Uma
de suas mãos afastou a peça de roupa que cobria minha intimidade, enquanto seus olhos famintos
encaravam os meus.
Ele estava prestes a consumir-me e eu ansiava por isso.
Aaron usou seus dedos, subindo e descendo, para espalhar minha própria umidade em
minha entrada. Eu tentava controlar meus gemidos enquanto o calor se espalhava por todo meu
corpo.
Um grito involuntário escapou por minha garganta, quando ele enfiou dois dedos dentro
de mim, de uma única vez.
Ele beijou-me, como se pudesse tirar todo o ar do meu peito e devolvê-lo em seguida.
Havia mais do que desejo naquele ato. Havia reinvindicação.
— Precisamos de silêncio, Grace — sussurrou em meu ouvido. Esse simples gesto fazia
meu corpo se arrepiar por inteiro.
— Vou tentar — respondi, sorrindo.
— Você vai me enlouquecer — disse, mordiscando minha orelha.
— Então seremos um casal de loucos. — ri.
Comecei a desabotoar a camisa de Aaron, seus movimentos se detiveram por um
instante, mas, em seguida, ele voltou a usar seus dedos em mim. Procurei outra vez seus olhos,
para ter certeza de que tudo estava bem. Não havia mais nada entre nós.
Aaron continuou a tocar-me enquanto meus dedos exploravam seu peito firme.
Apertei minhas coxas em torno de sua mão, quando um espasmo mais forte tomou conta
de meu corpo. Aaron voltou a beijar-me, calando cada gemido que saía por minha boca. Seu
braço livre envolveu meu corpo, juntando-me ao seu por completo, até que eu finalmente me
silenciasse.
Quando se afastou, comecei a retirar sua camisa. Aaron não disse nada, mas eu via em
seus olhos o quanto aquilo era difícil para ele.
— Está tudo bem — garanti a ele.
Ao retirar a camisa, pude ver de perto as cicatrizes que no outro dia me assustaram,
quando percebi as marcas. Passei os dedos suavemente sobre os muitos pontos redondos que há
tempos pareciam ter cicatrizado.
— Ainda doem? — perguntei, tentando controlar a angústia que crescia em meu peito.
Eu não conhecia o pai de Aaron, mas deseja ardentemente que ele tivesse uma alma e que o
inferno fosse real, apenas para imaginá-lo queimando naquele lugar.
— Não mais — ele respondeu, com um sorriso triste.
Levei minhas mãos ao seu pescoço, trazendo seu corpo para mais perto do meu. Aaron
afastou a calça, liberando seu membro, e desci mais um pouco no colchão para alcançá-lo. Abri
as pernas para recebê-lo. Aaron preencheu-me de uma única vez.
Arfei em uma mistura de dor e prazer.
Levantei parte de meu tronco, para alcançar seu corpo. Minha língua passeou por seu
corpo, como ele fez comigo das outras vezes que estivemos juntos. O sabor de suor junto a sua
pele me deixava ainda mais molhada, enquanto ele arremetia contra meu corpo, consumindo-me.
Beijei suas cicatrizes, uma por uma. Eram parte de Aaron e eu admitia que amava tudo
nele. Por dentro e por fora.
Senti seu braço forte passar por baixo de minha cintura, levantando-me ainda mais. Suas
arremetidas se tornaram mais intensas e, antes de se derramar dentro de mim, Aaron tomou
minha boca novamente. Eu absorvi seu grito, como ele havia feito com os meus gemidos.
Nossos corpos suados caíram sobre o colchão.
Adormeci em seus braços sonhando com nossa vida longe dali. Em casa, em Red Rose.
Capítulo 39
Hospital St. John
1911

Quando vi Grace pegar no sono sobre meu peito, senti-me tão tranquilo e em paz, como
nunca havia me sentido, como nem sabia que era possível.
Puxei a manta aos pés da cama e cobri seu corpo, desejando que esta fosse sua última
noite neste lugar. Planejei ficar ao seu lado apenas por algumas horas, mas acabei adormecendo
também.
Abri os olhos ao ouvir um leve bater de dedos no quadrado de vidro na parte superior da
porta de Grace. Olhei em volta, começava a amanhecer. Na frente da porta, estava o rosto de
Mathew! Merda!
Grace resmungou algo, quando deixei seu corpo, deitando sua cabeça no travesseiro.
— Está tudo bem — sussurrei em seu ouvido. Deixei a cama e peguei minha calça no
chão, vestindo-a em seguida.
A cara de Mathew não me entregava nada. Por sorte, parecia que mais ninguém havia se
levantado ainda. Era apenas ele.
— O que você quer? — indaguei, irritado, como se ele fosse a pessoa que estava
fazendo algo errado.
— Cuidado com o tom que usa, Walker — avisou. — Sabe o que aconteceria se
pegassem vocês dois juntos? — Eu sabia do que ele estava falando. Os banhos de mangueira de
bombeiro iriam parecer brincadeira de criança perto do que poderiam fazer conosco. — Você
está tramando algo não está, Aaron? Talvez uma fuga? — Controlei-me para não demonstrar que
sim, eu estava planejando deixar aquele inferno muito em breve.
— Uma fuga? Deste lugar? — disse, abrindo os braços e mostrando em volta. — Pareço
louco, enfermeiro?
— Não é essa a questão — retrucou.
— Por que você ainda não correu para nos denunciar? — questionei, tentando desviar
do assunto.
— Vamos dizer que posso precisar de um favor em breve.
— Não gosto de ficar devendo favores a ninguém.
— Isso é problema seu. Se não fosse eu a flagrá-los, neste momento, Grace já nem
estaria mais em Saint John, provavelmente você nunca mais a veria. Então sugiro que seja grato
pelo favor que ainda me fará.
Senti os maxilares travarem e a raiva correr solta por minhas veias. Aquele enfermeiro
era um merda arrogante, mas estava certo no que dizia.
Mathew saiu andando, sem dizer mais nada. Olhei pelo recorte de vidro na porta. Grace
ainda dormia tranquilamente e não permitiria que ninguém perturbasse sua paz ou a levasse de
mim. Precisávamos deixar Saint John imediatamente.
O dia amanheceu logo após o chamado de Mathew, trazendo uma chuva intensa.
Nenhum dos pacientes pôde deixar o prédio. Quanto mais as horas passavam, mais água
desabava sobre nós. O som dos trovões ecoavam pelas paredes de Saint John; era um dia de
tempestade, como não víamos há muito tempo.
Grace passou por mim no corredor, ainda pela manhã. Eu sussurrei que me esperasse
acordada em seu quarto. Mantivemo-nos distantes durante todo o dia, não podíamos dar qualquer
motivo de nos separarem logo agora.
Eu estava guardando o material de limpeza no porão quando ouvi a voz de Shirley nas
escadas:
— Aaron, você sabe onde estão as chaves do doutor Shawcross? — perguntou ela.
Esforcei-me para continuar o que fazia, sem me mostrar afetado pelo assunto.
— Por que eu saberia das chaves dele? — retruquei, demonstrando mau humor.
— Eu não sei, talvez porque você seja o zelador desse lugar e poderia tê-las encontrado.
Ele as perdeu.
— Eu sou responsável pelo meu trabalho, não pelo que perdem por aí.
— Se passasse mais tempo fazendo seu trabalho e menos tempo distraído com sua
colega de internamento, poderia tê-las encontrado.
— Acha que me importo com o que você pensa? — retruquei. Shirley suspirou
pesadamente.
— Bom, me avise se as encontrar. O velho está surtando com isso. Se ele não as
encontrar até amanhã mandará o chaveiro vir da cidade e resolver a situação. — Não lhe disse
mais nada, nem ao menos me virei em sua direção. — Vou embora antes que anoiteça, a
caminhada é longa até o vilarejo e, com essa chuva, levarei ainda mais tempo para chegar em
casa.
— O Dr. Shawcross não te dará uma carona? — Eu já sabia que o médico ficaria até
mais tarde, havia ouvido um dos cuidadores comentar que ele estava com problemas com a
última paciente aceita em Saint John.
— Não vai me dizer que está preocupado? — Virei-me para ver um lampejo de
esperança em seus olhos.
— Não — respondi imediatamente. — Quero saber apenas para quem entrego as
chaves, caso as encontre e o médico não esteja aqui.
— O doutor passará a noite no hospital. Então se encontrar as tais chaves, entregue
diretamente a ele. — Seu tom não era mais amigável. Parecia que ela finalmente havia se
irritado.
Virei-me outra vez, para concluir a tarefa que fazia. Ouvi os passos de Shirley deixando
o porão. Ela parecia fazer questão de bater o sapato contra a madeira das escadas.
Abri um dos armários de madeira do porão e retirei de lá vários litros de querosene. O
estoque era tanto para limpeza quanto para o uso nas lamparinas. A iluminação em Saint John
era precária e atrasada, por isso o toque de recolher era muito antes do anoitecer, e, agora, me
serviria muito bem. Coloquei tantos litros quanto foram possíveis no maior balde que tinha
disponível. Deixei coberto por um lençol velho, atrás de uma das caixas de madeira. Bati as
mãos, retirando a poeira, e me direcionei as escadas. Logo eu voltaria para buscar o meu material
pela última vez.
Quando a noite finalmente tomou conta de Saint John, eu corri até o porão para buscar o
balde com o querosene, uma pá e as chaves da gaveta trancada.
Levei o que precisaríamos nas próximas horas até o quarto de Grace. Ela estava sentada
na cama e escorada contra a cabeceira, encarando o teto.
Aproximei-me dela, deixando o material ao lado da cama, para dar-lhe um beijo.
— Vamos sair de Saint John esta noite — disse.
— Como faremos? — Seus olhos corriam por minha face, procurando respostas.
— Primeiro, vou desenterrar o Martin, na primeira hora da madrugada. A chuva deve ter
amolecido a terra novamente, não levarei muito tempo. A cova não é funda. Enquanto isso você
espalhará quase toda essa querosene, que estará guardada em meu quarto, pela cozinha: cortinas,
mesa, porta. Fará um rastro com o líquido até nossos quartos. Pode derramar bastante querosene
em nossos colchões. Reserve apenas um pouco para os corpos — orientei.
— Certo — disse ela, absorvendo as instruções.
— Agora, descanse um pouco. — Deixei um beijo suave em sua boca. — Logo
estaremos longe daqui. — Grace assentiu.
Deixei o quarto, levando junto o balde de querosenes e a pá. Se tudo desse errado, ainda
seria melhor que os litros fossem encontrados comigo. Eu saberia lidar com as consequências.
Mas torcia para que nada atrapalhasse nossos planos.
A chuva ainda caía intensamente lá fora. Assim que passou da meia-noite, separei os
lençóis e mantas do meu quarto e os embolei embaixo do braço, pegando a pá em seguida. O
corredor estava escuro e vazio. Cheguei à porta que dava acesso aos fundos da propriedade.
Abri-a e passei por ela, trancando-a outra vez. Torcia para que Grace ficasse bem até eu retornar,
eu detestava trancar o corredor, sabendo que ela estava sozinha do outro lado, porém não podia
deixar que alguém me interrompesse naquele momento.
A noite estava mais escura do que nunca. Andei até o final do muro, no lugar em que me
lembrava de ter enterrado Martin. Abaixei-me, retirando alguns galhos do local. Deixei os
lençóis ao pé de uma das árvores.
Levantei a pá para afundá-la na terra, encharcada pela chuva, e comecei a cavar. Eu
precisava fazer o serviço depressa, mas também não podia fazer de qualquer jeito e acabar
quebrando os restos do corpo de Martin. Eu precisava do corpo inteiro. Ouvi quando a pá bateu
em algo um pouco mais resistente. Relâmpagos cruzaram o céu e vi o tecido sujo pela terra. Se
meus olhos não o enxergasse, com certeza minhas narinas teriam avisado, através do cheiro
indigesto.
Cavei em volta do corpo com as mãos para não correr o risco de quebrar os ossos.
Assim que liberei seus restos mortais, envolvi o que sobrara de Martin nos lençóis e mantas que
eu havia trazido. Devolvi o que consegui da terra na cova e espalhei galhos e folhas sobre a terra
remexida. Juntei a pá e joguei o corpo enrolado sobre os ombros.
Atravessei o corredor escuro, entre as paredes frias do Saint John. O cheiro de
querosene perto da cozinha e de nossos quartos era suave, mas perceptível. Não poderíamos
demorar muito. Ao passar pelo quarto de Grace, vi-a encolhida sobre a cama. Seus olhos
alcançaram os meus na mesma hora. Assenti e segui até meu quarto.
Apesar das muitas camadas de tecido, o corpo de Matin ainda fedia. Deixei-o sobre o
colchão e alcancei um dos litros de querosene deixado por Grace. Espalhei sobre o tecido que
envolvia o corpo. A mistura dos cheiros conseguia ser ainda pior.
Ao lado da cama, havia um balde com água limpa. O mesmo que ficava na cozinha.
Sorri pensando em Grace o carregando até o quarto, para que eu tivesse como me limpar após
desenterrar Martin.
Lavei as mãos e o rosto e retirei a roupa suja. Deixei as peças aos pés da cama.
Queimariam fácil quando tudo estivesse em chamas.
Abri a cômoda e busquei roupas limpas, vesti-me e deixei o quarto levando a pá
comigo.
Andei até o quarto de Grace. Ela estava exatamente no mesmo lugar. Aproximei-me
dela, tirei uma caixa de fósforo do bolso e a entreguei em sua mão.
— Se algo der errado, quero que queime tudo e fuja, como planejamos.
— Como assim, se algo der errado? — Eu não conseguia enxergar com clareza seu
rosto, mas reconhecia o temor em sua voz.
— Se eu for pego, se eu não conseguir concluir nosso plano... você coloca fogo nessa
merda e foge — afirmei com convicção.
— Eu não vou a lugar nenhum sem você — ela declarou. — Me prometa que sairemos
daqui juntos. — Grace puxou minha camisa com força em sua direção. Eu sabia que não poderia
prometer tal coisa, mas nunca negaria nada a ela.
— Eu prometo.
Grace me beijou e precisei me concentrar no que estava prestes a fazer, para não acabar
me perdendo nela novamente.
— Se esconda na cozinha — ordenei. — Vou colocar o corpo do doutor na sua cama e
então sairemos daqui, de uma vez por todas.
Grace quis me devolver a caixa de fósforos, mas não permiti. Mesmo que tudo desse
errado, ela ainda teria uma chance, se estivesse com o objeto.
Peguei os lençóis de sua cama, junto da pá que trazia, e notei que já estavam
encharcados com querosene.
Guiei Grace até a cozinha e a deixei lá dentro, escondida nas sombras. Andei até o final
do corredor em silêncio. Não havia movimento algum no segundo andar. Aproximei meu ouvido
na porta da sala do médico. Ouvi o ronco profundo vindo de lá de dentro. Inseri a chave na
fechadura e girei devagar. Até o barulho mais suave me fazia prender a respiração. Abri a porta,
passando por ela. A sala estava escura, mas o pouco de iluminação natural, que vinha da janela
atrás da mesa, era o bastante para ver o médico dormindo profundamente na cadeira.
Os trovões ainda ressoavam pelo céu. A chuva batia incansavelmente contra as paredes
e janelas de Saint John.
Avancei, cuidando para fazer nenhum barulho que o acordasse, não queria um embate
nesse momento. Joguei o lençol no meio do tapete, que cobria boa parte do chão da sala, e
levantei a pá na direção de sua cabeça. Um relâmpago cruzou o céu, em seguida acertei a cabeça
de Shawcross. Ele nem chegou a abrir os olhos, para saber o que o atingira.
Corri com o lençol até seu corpo. Não iria deixar que qualquer ferimento causado pela
pancada sujasse o local. Tirei-o da cadeira e procurei pela chave do carro. Não havia nada em
suas vestes. Usei os lençóis para enrolá-lo e comecei a vasculhar as gavetas. A chave do carro
estava na segunda gaveta aberta. Coloquei-a no bolso.
Abri a gaveta trancada em seguida, tirei os papéis de cima e encontrei o fundo falso,
removendo-o em seguida. O dinheiro ainda estava lá. Olhei sobre a mesa, havia uma bolsa de
couro com alça. Retirei os papéis de dentro e enfiei todo o dinheiro, as cartas e os comprovantes
de pagamentos de Green e Morris no lugar.
Apenas a pasta com registros oficiais de pagamentos ao sanatório ficou na gaveta.
Passei a alça da bolsa de couro pelo tronco. Juntei o corpo do médico e o joguei sobre os ombros.
Estávamos muito perto de alcançar nossa liberdade. Meu corpo vibrava com a
expectativa do que aconteceria, em seguida.
Avancei um passo em direção à porta, mas parei antes de alcançar a maçaneta. A porta
se abriu e Mathew adentrou.
— Que merda você fez? — questionou. A pá estava no chão. Eu não poderia
surpreendê-lo. — Eu sabia que você estava tramando algo, Aaron. — Um sorriso sarcástico
surgiu em seu rosto.
— E o que você pretende fazer a respeito? Como você pode ver, não tenho muito tempo.
— Como pretende fugir? — perguntou-me.
— Vou colocar fogo na cozinha e em nossos quartos. Durante o tumulto, fugiremos com
o carro do médico — respondi. Mathew passou as mãos pelo cabelo.
— Não vou te denunciar, mas como é a segunda vez que salvarei sua pele — senti
minhas mãos cerrarem em punho — você me pagará nos levando junto.
— Nós quem? — perguntei.
— Isso importa?
— Não — respondi sinceramente. Não havia tempo para isso.
Mathew abriu a porta e espiou o corredor. Busquei a pá para levá-la junto comigo.
Mathew olhou a ferramenta em minhas mãos, mas não disse nada.
— Não há ninguém a vista — anunciou. — Vou buscá-la e te encontro...
— Na porta da cozinha, no andar debaixo — completei.
Mathew assentiu e, em seguida, abriu a porta, dando-me passagem. Atravessei e vi o
enfermeiro fechar a porta e seguir na direção contrária, pela escuridão do corredor.
Desci as escadas, carregando o corpo do médico.
Assim que cheguei à porta do quarto de Grace, respirei aliviado. Coloquei o corpo
enrolado nos lençóis sobre o colchão, que fedia a querosene. Havia um litro de querosene ao lado
da cama. Derramei o conteúdo sobre o corpo.
Saí de lá de dentro para devolver a pá ao seu lugar. Busquei os baldes no meu quarto e
os litros de querosene vazios para devolvê-los também. O cheiro do corpo putrefato de Martin já
impregnava o quarto. Peguei o que precisava e deixei o lugar o mais rápido que pude.
Após devolver os itens ao porão, subi as escadas e voltei ao corredor tão familiar.
Alcancei a porta da cozinha, sentindo o coração acelerar a cada batida.
Grace correu em minha direção, ficando na ponta dos pés para enlaçar-me. Respirei
profundamente, absorvendo perfume de sua pele.
— Estamos quase lá — garanti a ela.
— Tive tanto medo de você não voltar. — Sua voz tremia. Sorri, sabendo que logo não
precisaríamos mais ter medo.
Uma leve batida soou à porta, fazendo Grace se assustar.
— Não posso explicar agora, mas Mathew irá conosco.
— O quê? — ela questionou, confusa.
— E levará alguém com ele. — Grace não disse nada, mas eu sabia que estava surpresa.
Abri a porta e avistei Mathew, carregando uma jovem nos braços. Parecia ser a nova
interna. Olivia, se não estivesse enganado. A moça que havia matado o marido.
— Me esperem em frente à porta do porão. Nas escadas — orientei. — Vá com ele,
Grace — disse, guiando seu corpo em direção à porta aberta.
— Eu quero ficar com você — ela protestou.
— Não quero que você veja o fogo se alastrando. Pode ser assustador para outras
pessoas — justifiquei.
Grace voltou a ficar na ponta dos pés para beijar-me. Ouvimos Mathew pigarrear.
— Não temos tempo para isso — reclamou. — O cheiro de querosene está se
espalhando.
Grace se afastou e sussurrou em meu ouvido:
— Faça seu melhor. Deixe tudo queimar — disse, devolvendo-me a caixa de fósforos.
Meu peito quase explodiu ao ouvi-la.
Vi as silhuetas de seus corpos se afastarem. Deixei a porta aberta e me aproximei das
cortinas. Fediam a querosene.
Risquei o palito, minhas mãos estavam firmes. Eu conhecia o ritual do fogo. A chama
tocou o tecido velho e molhado com o líquido inflamável. A chama lambeu a superfície se
espalhando facilmente.
Outro palito foi aceso e o joguei sobre a mesa de madeira, que incendiou em seguida.
Meu corpo desejava manter-me exatamente naquele lugar, observando as chamas, mas
isso poderia significar falhar em nosso plano e eu não deixaria isso acontecer.
Passei pela porta da cozinha e usando as chaves de zelador, tranquei a porta que sempre
havia sido mantida aberta. Iria dificultar que o fogo fosse combatido o quanto eu pudesse.
Acendi um novo palito de fósforo e o joguei no colchão de Grace vendo o lençol
enrolado no corpo do médico pegar fogo, em seguida.
Repeti o processo no meu próprio quarto, sobre os restos do corpo de Martin.
Havia um rastro de querosene no chão, que ligava a cozinha e os quartos. Risquei ainda
um outro palito e joguei no lugar. Novas chamas se iniciaram, unindo a cozinha e os quartos. O
calor do fogo corria em minhas veias. Deixei que o fogo se espalhasse atrás de mim e andei até a
porta do porão.
— E agora? — perguntou Mathew.
— Eu iria esperar o fogo chamar atenção dos guardas, mas já que temos um enfermeiro
aqui, não precisaremos esperar.
— Como vou até lá com Olivia, dopada de remédios, nos braços? — disse, como se não
houvesse outra possibilidade.
— Eu seguro a moça enquanto você chama atenção dos guardas.
— De jeito nenhum — protestou, segurando o corpo miúdo da moça contra si.
— Eu não vou machucá-la — argumentei. — Prefere deixá-la no chão? Porque não
tenho problema com isso.
Ele se abaixou e colocou o corpo da menina escorado na porta do porão.
— É sério?! — Ri.
— Se tocar nela, arranco sua cabeça — ameaçou-me. Segurei o riso. Então ele era
desses que só usava a máscara de bom moço. Comecei a simpatizar com ele.
Grace segurou em meu braço com força, enquanto víamos Mathew se afastar. Beijei a
ponta de seu nariz. A fumaça começava a se espalhar.
— Que merda vocês estão fazendo que não estão vendo o fogo se espalhar? Estão
dormindo? — gritou Mathew. Ele era um puta mentiroso. Quem o ouvisse pensaria que ele
estava realmente preocupado.
Não ouvimos o que os guardas responderem, mas Mathew continuou gritando para que
eles abrissem as portas, para evacuarem os pacientes e, em seguida, fossem chamar ajuda
imediatamente. Vimos as sombras dos homens subirem as escadas, quase atropelando um ao
outro.
Mathew voltou até nós, pegando a moça com cuidado no colo.
— As portas de Saint John estão abertas — declarou.
Saímos os quatro pelo corredor, com o fogo tomando conta de parte do primeiro andar.
Era melhor que eles se apressassem, se quisessem sair dali com vida.
— Acha que vão conseguir sair? — Grace disse, dando voz aos meus pensamentos.
— Eles podem usar as escadas de incêndio do segundo andar. Se forem rápidos —
respondeu Mathew, parecendo não se preocupar mais do que nós.
Localizamos o carro do médico, estacionado em frente a uma fonte na entrada do
prédio. Abri a porta ao lado do motorista e Mathew entrou com a moça no banco de trás. Em
seguida, Grace sentou-se no banco, enquanto eu ainda segurava a porta.
Sentei-me atrás do volante e liguei o carro. Saímos de Saint John enquanto os primeiros
gritos ecoavam pelo prédio. Uma pena perder o espetáculo, mas agora eu tinha algo mais
importante do que meus impulsos, algo capaz de fazer meu coração continuar batendo dentro do
peito. E ela estava sentada ao meu lado.
Capítulo 40
1911

— Para onde vocês estão indo? — perguntou Mathew.


— Para casa — respondi.
— Não acha que será o primeiro lugar em que irão procurá-los? — indagou.
— Nosso internamento era um esquema corrupto do médico com o marido de Grace e o
pai de um amigo antigo. Nós não deveríamos estar em Saint John. Mesmo assim, corpos serão
encontrados onde deveríamos estar — disse Aaron.
— Vocês deixaram uma verdadeira bagunça para trás.
Sorri. Era verdade.
— Onde podemos deixar vocês dois? — Aaron perguntou.
— Até onde vocês irão? Qual condado? — perguntou Mathew. Aaron permaneceu em
silêncio. — Acabamos de fugir de um sanatório em chamas, que foi incendiado para que
deixássemos o lugar durante a confusão. Acha que precisa se preocupar com o que eu saberei?
— questionou.
— Vamos até o Condado de Somerset. Tenho uma propriedade lá, chamada Red Rose.
— Você sabe o caminho, Aaron? — indagou Mathew.
— Vou parar assim que amanhecer e pedir informação — respondeu.
— Isso pode chamar atenção indesejada para nós. Eu posso indicar o caminho até lá.
Conheço bem essas estradas — disse Mathew.
— Se acha que podemos chegar até lá, sem precisar parar em qualquer lugar...
— Assim que estivermos chegando à propriedade, podem nos deixar no vilarejo mais
próximo. Darei um jeito de me continuar de lá.
— Ou vocês podem ir conosco até Red Rose e depois você leva o carro para onde quer
que vocês estejam indo — sugeri.
Eu e Aaron ficaríamos bem ao chegar em Red Rose, mas Mathew e Olivia poderiam
estar longe de chegar em qualquer lugar seguro. Por algum motivo, eu me preocupei com ambos.
Sabia que poderia ser eu e Aaron naquela situação.
— Seria perfeito — assumiu Mathew.
— E então não te deverei mais favor algum, não é? — indagou Aaron. Eu não sabia do
que ele falava, mas imaginava que se tratava de algo relacionado a nossa fuga.
— Estaremos quites — confirmou Mathew. Aaron assentiu.
Virei-me para trás e flagrei Mathew livrando o cabelo do rosto da moça.
— Ela ficará bem? — perguntei.
— Os remédios que deram a ela eram muitos fortes, alguns ainda em testes. Irá demorar
para que ela acorde, mas, sim, espero que ela fique bem.
— Ela é linda — disse. Mesmo na escuridão da noite, podia ver que a moça de pele
clara e cabelos escuros era bela.
Virei-me para frente outra vez. Aaron dirigia concentrado na estrada. Fechei os olhos,
sentindo o cansaço vencer e me permiti adormecer.
As horas se passaram e voltei a abrir os olhos somente quando os primeiros raios de sol
cruzaram o céu, diferente do clima que havíamos deixado em Saint John. Ainda parecia
inacreditável que estávamos livres e a caminho de casa.
— Estamos perto — disse, esfregando os olhos. Aaron olhou para mim, sorrindo. —
Acho melhor pararmos por aqui. Se Nolan estiver acordado, poderá nos ouvir chegar.
Aaron reduziu a velocidade e estacionou o carro na beirada da estrada.
Abri a porta e desci, espreguiçando o corpo. Estava cansada, com fome e desejava ver
Rosalie o quanto antes.
Aaron deixou o volante e entregou a chave a Mathew que já havia deixado o veículo.
— Enfermeiro — Aaron chamou, antes de Mathew dar a partida no carro.
— Apenas Mathew — disse, oferecendo a mão a Aaron, que aceitou.
— Mathew, então — disse. — Leve um pouco disso. — Abrindo a pasta de couro que
trazia junto ao corpo, Aaron entregou a Mathew um maço de dinheiro.
— Não vou recusar, pois vamos precisar de recursos até chegarmos em um lugar seguro.
— Aaron deu o dinheiro a Mathew, que o guardou dentro do carro.
— Te devolvo assim que nossa vida voltar à normalidade — prometeu Mathew.
— Melhor considerar apenas um sinal de amizade — disse Aaron. — Pessoas como nós
não tem uma vida normal. — Riu.
O carro foi ligado e Mathew partiu, levando a moça desacordada no banco de trás.
— De onde veio aquele dinheiro? — perguntei, curiosa.
— Não tenho certeza, mas pode ser parte do que Shawcross recebeu de Morris e Nolan.
— Minha boca se abriu em surpresa. — Estava com Shawcross e, como ele não precisaria depois
de morto, achei que seria mais útil em nossas mãos.
— Fez bem em ajudar Mathew e a moça... espero que fiquem bem — desejei.
— Ele poderia ter nos entregado duas vezes, mesmo sabendo que não seria de graça, ele
nos ajudou... — Assenti, concordando. — E agora? — perguntou, olhando para frente, onde o
começo do muro podia ser avistado.
— Vamos atravessar os portões de Red Rose e retomar minha casa.
— Os portões estão abertos — reparou Aaron.
— Nolan é preguiçoso demais para fechá-los — disse. — Não é seguro andar pela
estrada principal até a casa. Vamos rodear o muro e usar as árvores como escudo, até chegarmos
à entrada lateral da casa. Se estiver fechada, invadiremos pela janela.
Atravessamos o portão aberto, mas o fechei em seguida. Era o primeiro sinal que eu
estava de volta. Como planejado, caminhamos perto dos muros e entre as árvores, que cercavam
a casa até chegar à porta. Testei a maçaneta, a porta estava trancada.
Andei próxima à parede, até a janela baixa. Forcei-a, sabendo que conseguiria abri-la.
Quando uma abertura suficiente se mostrou, forcei meu corpo para dentro da casa. Entrei e virei-
me para fora. Aaron sorria.
Afastei-me para abrir a porta lateral por dentro.
— Venha. — Peguei a mão de Aaron após abrir a porta, guiando-o pela cozinha até o
corredor, no qual ficava o antigo quarto de Lucinda. Duvidava que Nolan tivesse permitido que
ela continuasse dormindo no quarto de Rosalie. Isso, se Lucinda ainda estivesse em casa. Torcia
para que ele não a tivesse mandado embora. — Se não for Lucinda atrás daquela porta —
sussurrei —, precisaremos silenciar quem for.
Aaron assentiu, entendendo o que eu falava.
Abri a porta com cautela. Liberei o ar preso em meu peito ao enxergar os cabelos
embranquecidos da mulher que eu não via há tanto tempo. Entrei silenciosamente, sendo seguida
por Aaron. Fechei a porta atrás de nós e me aproximei da cama.
— Lucinda... — chamei, sussurrando seu nome.
A mulher abriu os olhos devagar e então se assustou.
— Meu Deus! — exclamou ela. — É mesmo você, Grace? — Ela apalpou meu rosto,
como se precisasse ter certeza de que era eu mesma à sua frente.
— Sou eu — garanti. A mulher se sentou imediatamente na cama. — E ele? — Apontou
para Aaron, levando a coberta até o pescoço. — Este é meu... — Eu não sabia como nomeá-lo.
— Eu sou Aaron — disse, livrando-me do embaraço. Nenhum de nós havia nomeado
nossa relação, entretanto sabíamos que nunca mais nos separaríamos. Éramos simplesmente
Aaron e Grace, para sempre.
— E o que houve com você, Grace? O Senhor Green disse que você nunca mais voltaria
— disparou a mulher, confusa.
— Eu contarei tudo, mas não neste momento. Agora, eu só preciso que confie em mim.
— Eu confio — garantiu ela.
— Onde está Nolan?
Ela pareceu cautelosa em responder.
— Ele está com Dayse... em seu quarto...
Senti a raiva brotar em meu peito e se espalhar, queimando todo meu corpo.
— Eles costumam se levantar muito tarde, depois de passar a madrugada fora.
— Eu preciso que você fique em seu quarto. Só saia depois que eu voltar e dizer que é
seguro. Me ente... — Eu estava prestes a terminar de falar quando um resmungo chamou minha
atenção. Meu coração disparou ao olhar para o fundo do quarto. O berço de Rosalie.
Levantei-me, sentindo todo o corpo tremer. Caminhei até minha menina com os olhos
cheios de lágrimas. Pisquei várias vezes, tentando livrar-me delas, eu precisava ver seu rosto.
Eu não conseguia acreditar no quanto ela havia crescido, no quanto eu havia perdido.
Peguei minha menina nos braços, aninhando-a em meu peito, sentindo o seu cheiro.
— Mamãe está de volta — sussurrei. Ela abriu os olhos encarando-me. — Senti muito
sua falta. — Beijei sua testa. As lágrimas corriam soltas.
Aaron se aproximou de nós duas.
— Ela é uma menina linda — disse.
— Este é o Aaron, minha filha — sussurrei em seu ouvido.
— Nolan não queria ouvi-la chorando durante a noite, por isso ela está aqui.
Meu ódio por Nolan crescia a cada instante.
Com esforço, entreguei Rosalie a Lucinda e reforcei o aviso:
— Não saia e não deixe ninguém entrar até que eu volte. Não importa o quanto demore.
— Sim, Grace — concordou.
Saímos do quarto de Lucinda e, ao passar pela cozinha, peguei duas facas grandes,
entregando uma delas a Aaron, que recebeu o objeto sem questionar. Continuamos indo em
direção ao meu quarto.
Eu estava prestes a limpar o meu jardim.
Capítulo 41
Red Rose
1911

Ao abrir a porta do quarto, deparei-me com a imagem de meu marido e Dayse dormindo
sobre a minha cama. Era inacreditável que estivessem usufruindo de um sono aparentemente tão
tranquilo, enquanto eu deveria estar presa em Saint John.
Aaron passou por mim e parou em frente à cama, observando os dois.
Bati a porta atrás de nós com violência, fazendo o som ecoar pelo quarto para acordar o
casal feliz.
— O que está havendo aqui? — Nolan perguntou, esfregando os olhos e escorando-se
na cabeceira da cama. Ele alternava o olhar entre mim e Aaron, tentando entender o que estava
acontecendo.
Dayse também acordou, seus olhos arregalaram-se ao me ver.
— O que ela está fazendo aqui? Você disse que havia se livrado dela — declarou a
Nolan, sem o menor pudor, revelando sua verdadeira face.
— Quem é você? — Nolan perguntou a Aaron.
— Eu faço as perguntas, agora — disse, tomando a frente de Aaron ao ficar entre ele e
Nolan. Aaron segurou em minha cintura de forma dominante. Um arrepio se espalhou por meu
corpo.
— O que está acontecendo aqui, Grace? — Ele olhava diretamente para as mãos de
Aaron em meu corpo.
— Você acha mesmo que, depois de tudo, eu é que tenho que dar explicações? —
Levantei a faca em sua direção. — Vamos lá, marido, é hora de você me explicar o motivo que o
levou a me internar naquele sanatório, depois de todo meu esforço por essa família?
Nenhum deles se mexeu na cama. Nolan encarava Aaron, como se eu não estivesse ali,
irritando-me ainda mais.
— Você, Grace, invadiu o nosso quarto, com um homem estranho, nos ameaçando com
uma faca e ainda me pergunta o motivo de ir parar em um sanatório?
— É brincadeira, não é?! — Ri. — Eu zelei por nossa família, por você, abri mão da
minha casa, deixei que consumisse meu dinheiro, pacientemente, na esperança de manter nosso
casamento e você me interna em um sanatório?
— Ele queria uma vida com noites divertidas — disse Dayse. — Ele não queria brincar
de casinha.
— Então por que se casou comigo, Nolan? — disse, quase gritando.
— Não é óbvio? Pelo seu dinheiro. — Foi Dayse que respondeu outra vez.
Depois de tudo o que eu havia descoberto em Saint John, imaginava que este fosse o
motivo de toda minha desgraça, mas ouvir com todas as palavras que tudo fora por conta do meu
patrimônio, o qual ele estava lapidando com facilidade, fez uma ferida se abrir em meu peito. Eu
queria chorar, tomada pela raiva. Nolan era desprezível e Dayse não ficava atrás.
Eles se mereciam e nenhum dos dois poderia sair vivo daquela casa.
Era nós ou eles.
Nolan jogou as cobertas em nossa direção e abriu a gaveta da mesinha ao lada da cama,
pegando uma arma. Eu nem mesmo sabia que ele tinha uma dessas em casa. Ele mirou em Aaron
e depois em mim, fazendo Aaron colocar-se à minha frente, protegendo meu corpo.
— Você não tem coragem de atirar — desafiou.
— Saiam daqui e não voltem nunca mais, ou eu mato vocês dois — ameaçou ele.
— Você é um covarde, Nolan. Tem cara de covarde. Não conseguiria apertar o gatilho
nem que sua vida dependesse disso. E acredite, depende — disse Aaron.
Em um movimento rápido, Aaron avançou sobre Nolan e golpeou seu braço, fazendo a
arma cair no chão. Aaron fechou a mão em punho e acertou o nariz de Nolan, arrancando sangue
com apenas um golpe. Nolan cambaleou para trás, batendo na parede.
Da cama, vi Dayse levantar-se rapidamente, indo em direção à porta. Corri para alcançá-
la. Tentei segurar em sua camisola, mas não a alcancei a tempo, entretanto a sombra daquela
mulher, a que tentara me avisar que eu corria perigo em minha própria casa, passou por mim.
Assisti ao corpo de Dayse ser empurrado escada abaixo. Mais do que isso, ele foi
golpeado enquanto caía. Desci as escadas, procurando pela mulher de cabelos pretos, porém não
havia ninguém ao pé dela, além de mim e o corpo inerte de Dayse.
Capítulo 42
Red Rose
1911

Eu nem precisava me abaixar para ver se ela ainda respirava, sua cabeça estava virada
ao contrário. Dayse estava morta.
Vi Aaron com o rosto respingado de sangue e mãos tingidas pelo líquido vermelho. Eu
sabia que Nolan também estava morto.
Subi as escadas e beijei Aaron. Nós havíamos finalmente vencido.
Antes de permitir que Lucinda saísse de seu quarto, ajudei Aaron a enrolar os corpos de
Nolan e Dayse no tapete do quarto e carregá-los para uma parte afastada de nossa casa,
adentrando o bosque fechado que cercava Red Rose.
Deixei Aaron com o trabalho de fazer uma cova profunda e enterrar os corpos, enquanto
eu limparia qualquer sinal de sangue em Red Rose.
Após a limpeza, juntei todas as roupas e pertences pessoais de Nolan e Dayse e os levei
até Aaron, para que ele queimasse tudo até não sobrar vestígio algum daqueles dois.
Voltei ao quarto de Lucinda e, finalmente, abri a porta. Eu estava uma bagunça e
exausta, mas ao ver minha menina acordada, minhas forças foram restauradas.
Levantei os braços na direção de Rosalie e ela fez o mesmo de imediato. Chorei
silenciosamente ao acolhê-la. Eu estava tão feliz que não podia me conter.
— Ela adoeceu assim que você foi levada, Grace. Tive tanto medo por não saber o que
havia acontecido com você e pela saúde de Rosalie.
— O que Nolan disse sobre minha ausência?
— Quando voltei da cidade com o carro de aluguel, Nolan havia levado você, segundo
Dayse, para um hospital, pois você havia se ferido. Ela me ameaçou, dizendo que Nolan me
mandaria embora se eu tentasse te encontrar. Eu fiquei aflita, mas temi que, se fizesse algo contra
eles, tivesse que deixar Red Rose e Rosalie ficaria na mãos daqueles dois.
— Obrigada por se preocupar com minha menina — disse, embalando Rosalie.
— Mas o que houve com você? Que roupas são essas?
— Eu estive internada em um sanatório, Lucinda. — O rosto da senhora transformou-se
ao me ouvir. — Meu marido queria se livrar de mim e usurpar meu patrimônio.
— Por Deus... — sussurrou Lucinda.
— Eu precisei me livrar deles. — Lucinda engoliu em seco. — Eles nunca mais terão
poder sobre nós.
— E se alguém procurar por ele, Grace? O que diremos?
— Em algumas semanas, irei a polícia denunciar meu marido. Direi que ele fugiu com a
arrumadeira, levando uma quantidade significativa de dinheiro. É claro que Nolan não contou a
ninguém sobre meu internamento, já que ele precisou pagar ao médico para manter-me lá. Se
alguém os procurar antes, diremos a mesma coisa que pretendo anunciar a polícia: ele fugiu com
a arrumadeira, depois de me roubar.
Lucinda assentiu, confirmando que havia entendido.
— E o outro homem, o que veio com você?
— Por enquanto, ninguém precisa saber sobre ele. Eu não frequento círculos sociais e
nem pretendo, portanto não precisarei explicar a natureza de meu relacionamento com Aaron.
— Então vocês têm um relacionamento?
— Ele é homem da minha vida — admiti, tentando não suspirar ao pronunciar aquelas
palavras.
Os olhos de Lucinda focaram em algo atrás de mim. Eu sabia que ela olhava para ele.
Eu ainda sentia sua presença próxima a mim. Sentiria por toda a vida.
— Ficaremos em Red Rose? — perguntou-me Lucinda.
— Esta é nossa casa, e agora seremos muito felizes aqui.
Aaron se aproximou de mim, enlaçando seus braços em volta de mim e de Rosalie.
— Eu vou preparar algo para nós comermos. Estou morrendo de fome e acredito que
vocês também — disse Lucinda, sorrindo.
Levei Rosalie até a cozinha, deixando-a aos cuidados de Lucinda, e subi as escadas,
segurando a mão de Aaron.
— Este é nosso quarto a partir de agora, Senhor Walker.
— Qualquer quarto na sua companhia serviria, Grace. — Sorri ao sentir seus lábios
tocar os meus.
— Depois que as coisas se acalmarem, com a história do incêndio e tudo mais, pretendo
escrever para Mary. Ela prometeu zelar pelo que me pertencia e, conhecendo aquela mulher
como conheço, tenho certeza de que cumpriu sua palavra.
— Acho importante recuperar o que é seu. Desde que não coloque sua segurança em
risco. É melhor que o tal Morris acredite que o corpo queimado era seu.
— Prometo me cuidar, para que ele nunca saiba que deixei aquele lugar. Tenho contatos
para conseguir uma nova identidade e nunca mais pretendo colocar meus pés em Londres.
Sinceramente, Red Rose e o vilarejo pelo qual passamos parecem ser um paraíso para se viver
isolado.
— Ficaremos bem — disse, beijando-o.
Epílogo
Red Rose
1912

Havia um ano que estávamos em Red Rose.


Depois de algumas semanas de volta, Grace procurou a polícia e informou sobre o
marido. Nem sequer houve uma investigação, todo o vilarejo comentava sobre Nolan e Dayse,
não era segredo que eles tinham um caso. Dayse se vangloriava disso, dizendo a quem quer que
quisesse ouvir que Nolan largaria a esposa para ficar com ela.
Descobrimos, ao procurar a polícia, que Dayse nem mesmo era do vilarejo, como Nolan
havia contado a Grace. Possivelmente, era uma amante de Birmingham.
O incêndio em Saint John foi noticiado em vários jornais. Suspeitavam se tratar de
causa criminosa, mas não conseguiram explicar quem o faria ou o porquê. Segundo as fichas
médicas e de funcionários, apenas o enfermeiro, Mathew Harrington, o médico, Garrett
Shawcross, e a interna e suposta assassina: Olivia Cooper, estavam listados como desaparecidos.
Foi relatado ainda que alguns funcionários tiverem ferimentos combatendo o fogo e outros
pacientes acabaram se machucando durante a evacuação do prédio. Durante as investigações
foram encontrados registros antigos de pagamentos irregulares em nome do médico e diretor
doutor Shawcross. Saint John estava prestes a ser fechado permanentemente.
Apenas depois que obtive minha nova identidade, Grace passou a sentir-se mais segura
para deixarmos Red Rose. Mesmo assim, eu ainda não me expunha ao lado de Grace nas
redondezas, ainda considerávamos cedo. Tínhamos cuidado para que nada ameaçasse a vida que
estávamos construindo e, quando desejávamos sair juntos, como prometi a ela que faríamos,
viajávamos a cidades vizinhas em um final de semana.
Mary cumpriu sua palavra, cuidou de minha casa e das finanças enquanto estive fora e,
por isso, agora dividimos os lucros da loja entre ela, Louis e eu. Era o certo, depois de tudo o que
fizeram em minha ausência. O negócio prosperou nas mãos de Louis mais do que eu poderia
esperar. Minha antiga governanta já veio nos visitar em Red Rose. Ela ficou realmente feliz por
me ver a salvo e bem, mas, apesar do convite para se juntar a nós, preferiu continuar vivendo em
Londres.
Vejo Rosalie se levantar da toalha xadrez e capturar uma pequena flor branca. Ela a
entrega para a mãe, que sorri com o gesto.
Eu faria qualquer coisa por elas. Para mantê-las seguras, para continuar fazendo-as
felizes.
— Vou buscar mais limonada para nos refrescarmos — anuncia Grace, levantando-se.
A tarde está nublada, como na maioria dos dias, mas eu havia aprendido a gostar dos
dias cinzentos.
Grace me dá um beijo suave antes de se afastar de nós. Ela sorri, fazendo-me sorrir
também.
A pequenina se abaixa, tentando colher mais uma vez, porém a planta escolhida se
mostra um pouco mais resistente.
— Quer ajuda, Rosie? — pergunto, já sabendo a resposta.
— Eu consigo — ela responde, falando quase perfeitamente. Ela adora fazer as coisas
por si mesma.
Ela enfim arranca o dente-de-leão do chão, com parte das raízes e terra, e entrega a
planta para mim.
— Obrigada, Rosie — digo, vendo a terra me sujar e não me importando nem um
pouco. — Sabia que você pode assoprar essa? — Ela balança a cabeça em negativa.
Assopro a flor, que se desfaz voando com vento. Rosie tenta pegar algumas partes, que
rodopiam no ar, com suas pequenas mãozinhas, enquanto gargalhava. O som do seu divertimento
com algo tão simples aquece meu peito.
— Trouxe mais suco e alguns pedaços de bolo de laranja — anuncia Grace, retornando
ao nosso piquenique com os olhos marejados. Eu não preciso perguntar a ela o que está
acontecendo. Sei que ela está apenas apreciando o momento, está feliz.
Grace deixa as guloseimas sobre a toalha e se aproxima de mim, sentando-se em meu
colo, e deitando a cabeça em meu peito. Circulo sua cintura com os braços.
Nunca achei que merecia tal coisa, mas ali estava eu, ao redor de Grace, minha mulher,
e Rosalie, minha filha. Minha família.
Elas tinham não apenas meu amor e devoção. Tinham a minha alma.
Mesmo em meio à toda loucura, eu também havia encontrado a minha razão.

FIM!!
“Crazy” chegou em um momento de mudanças importantes na vida e carreira. Ele veio no
momento certo e sou grata por isso.
Obrigada a minha editora e amiga Mari Vieira por seu trabalho e dedicação. Nossas
reuniões sempre ampliam minha visão e tiram o melhor de mim, obrigada por isso.
Agradeço também minha amiga, escritora Helen Tussia, por ser uma parceira de trabalho
incrível, por estar presente mesmo estando longe. E por aguentar minha ansiedade até o último
minuto antes desse lançamento. Obrigada por tudo.
Ao meu grupo de leitoras, roemos as unhas juntas mais uma vez. Obrigada por vocês
estarem comigo a cada lançamento.
A todas minhas amigas e parceiras de trabalho, minha gratidão pelo apoio e carinho. Vocês
são maravilhosas!
Ao meu marido, Willian, obrigada meu amor, por me apoiar e incentivar desde o começo.
Você acreditou em mim antes que eu sequer imaginasse que era possível trilhar este caminho.
Obrigada por me apoiar e cuidar de mim a cada passo dessa jornada.
E obrigada a todos leitores, obrigada por darem uma chance a essa história, espero que ela
tenha conquistado vocês como conquistou a mim. Nos vemos no próximo lançamento. Já
conseguem imaginar quem será o nosso próximo casal protagonista?
Vejo vocês em breve!

Você também pode gostar