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Copyright © 2023 Widjane Albuquerque

1º Edição

Capa: Mirella Santana


Revisão: Carla Fernanda
Diagramação: Géssica Fernanda
Ilustração: Esttrellar Ilustradora

Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de


19/02/1998.

Nenhuma parte desse livro, sem autorização prévia da autora por


escrito, poderá ser reproduzida ou transmitida, seja em quais forem
os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos,
gravação, ou quaisquer outros. A violação dos direitos autorais é
crime estabelecido na lei nº. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do
Código Penal.

Esta é uma obra fictícia, qualquer semelhança com pessoas reais


vivas ou mortas é mera coincidência
“Os irmãos Demonidhes não são homens, eles são uma
matilha de lobos em busca do próximo alvo.”

Gabriel é o mais insano general da Ordem. Um homem


intenso, arrebatador, que, em meio ao caos de sua vida, irá
encontrar em uma jovem cantora, um novo propósito.
Jenny Monroe deseja apenas uma coisa: fugir de seu
padrasto e do inferno que fica logo ali, atrás da porta de seu quarto.
Em meio a um perigoso jogo de poder, os assassinos que
espreitam os irmãos Demonidhes farão jogadas ainda mais
ousadas, colocando em risco a vida daqueles que eles amam. Entre
perdas e ganhos, todos descobrirão que os filhos de Roman não
são heróis, e sim, homens capazes de descerem ao inferno por
aqueles que amam.
Esta é a história de Fire, e ele é quem governa no caos.
A presente obra possui gatilhos de estupro, tortura física e
psicológica, dependência emocional, consentimento duvidoso,
assédio, violência doméstica, cenas de tortura, assassinatos,
pensamentos e atitudes suicidas.
Se você possui sensibilidade para qualquer um dos gatilhos
apontados, ou receio de uma leitura mais profunda e pesada, esta
obra não é para você.
Caro leitor, desejo alertá-los de que as histórias dos irmãos
Demonidhes não são apenas romances com pitadas de ação.
Nas páginas deste livro, você encontrará o entrelaçamento de
realidade e ficção, por isso perdas, vitórias, tristezas e alegrias são
o tempero de cada capítulo.
Ao longo de toda sua trajetória, os personagens aprenderam
que o único caminho é sempre continuar seguindo em frente,
mesmo quando aparentemente as forças estiverem esgotadas.
PRÓLOGO
Kinsale – Sul da Irlanda
Verão – 2001
Regan Tierney O’Vaugh

Éramos quarenta e nove pessoas sobrevivendo num


ambiente fétido e úmido.
Mas esse era o único lar que eu conhecia. Era aqui que
ficava a única vida que eu possuía e que diziam ser a única que eu
poderia ter. Qualquer rebelião, ou ato de bravura, culminaria em
morte, e isso ainda nem era o passaporte para a liberdade, afinal
nem os mortos ficavam livres desse lugar.
Todos aqueles que iam contra Viggo eram assassinados e
usados para abastecer a caldeira. Sem enterro, lápide ou qualquer
recordação, além das memórias, que, aos poucos, iam se
apagando.
Só restavam cinzas e um espaço que Viggo logo tratava de
substituir.
Era esse o destino de todos nós. Não havia ninguém para se
importar, para lutar por nós ou com o mínimo de coragem para
enfrentar Viggo.
Eu e todos os outros não passávamos de lixo, entregues nas
mãos da escória. Peças fáceis de substituir no grande negócio de
Viggo Walsh, o maior e mais fodido traficante de drogas da Irlanda.
Isso era também o que diziam para nós.
Quem ia lutar por pessoas que não valiam absolutamente
nada? Quando alguém iria se importar o suficiente para lutar por
nós? Nunca!
Não valíamos a pena. Éramos ninguém, um monte de nada
vezes nada. Pensar diferente disso era tolice, mesmo que, por
vezes, a esperança de correr em direção à liberdade fosse
esmagadora.
Eu já não suportava mais isso, e precisava fazer o que
ninguém mais faria.
Depende de mim.
Respirei fundo, olhando a paisagem bonita através das
barras de ferro da janela.
— Eu conheço esse olhar, Regan.
Balancei a cabeça, possivelmente Killian conhecesse. Talvez
ele já tivesse passado pelo mesmo e soubesse que, a cada dia, o
desejo de desafiar Viggo se tornava mais tentador.
— Não quero continuar vivendo deste jeito — murmurei,
encarando-o.
Não queria chorar como um idiota, mas sentia-me
perigosamente perto das lágrimas, mesmo que eu soubesse o
quanto elas eram inúteis.
— Não quero viver sem propósito, isso aqui não é vida,
Killian, é somente uma forma lenta e agonizante de morrer.
— Regan, não podemos...
— A cada dia, eu sinto que vou perdendo mais um pouco do
que ainda resta de mim. A expectativa que temos para os dias é
baseado nas decisões de Viggo, não suporto mais isso.
— Você é rebelde. — Ele respirou fundo. — Eu também já fui.
— Eu quero ser livre! — rangi os dentes, baixando o tom de
voz. — Eu quero ir embora daqui. E, se não fosse por Cassy, eu já
teria tentado alguma coisa.
Como atacar Viggo nas malditas vezes que ele me levou para
fazer exames e testes no laboratório.
— Não podemos...
— Não podemos? — Senti que algo crescia em meu peito,
como se um fogo começasse a me queimar, impulsionando-me a
lutar pelo que eu acreditava. — Você aceitou essa merda de vida,
Killian?
— Eu não quero morrer! — rosnou baixo, com os olhos
verdes queimando de raiva.
Ele era o mais velho, um tipo de líder para nós. Talvez, se ele
ficasse do meu lado, pudéssemos derrotar Viggo e fugir. Mas sem
ele, eu estaria sozinho, ainda mais sozinho.
— Eu sou forte e grande o suficiente para lutar. — Respirei
fundo. — Eu vou lutar, o único meio de conseguirmos ser livres é
matando Viggo.
A vontade de contar o que eu vinha planejando me
atormentou. Precisava de Killian ao meu lado quando tudo
acontecesse.
— Viggo vai rir de você, vai rir na sua cara. Não seja idiota,
Regan! — Killian rosnou. — Se você perder, ele vai te matar, e a
porra do seu corpo vai alimentar a caldeira dessa merda de prédio.
— Em todo caso, eu seria livre.
— Não fale tolices! E Cassidy? — Encolhi-me, ele não
deveria falar do meu ponto fraco. — Você a acolheu, a cuida e
protege. Já imaginou o que vai acontecer se você morrer? Ela
também pagará.
Senti como se meu sangue fosse transformado em gelo. O
pavor veio forte e rápido como um piscar de olhos. Só de pensar em
alguma coisa acontecendo com a minha criança, sentia ânsia de
vômito.
Desde o dia que ela foi jogada aqui ano passado, tenho
cuidado dela. A amava como uma irmã, e morreria por ela se fosse
necessário. Por isso precisava de Killian, ele era a minha garantia
de que Cassy teria uma chance.
O meu plano não ia, e nem podia dar errado, pois a cada dia
sentia-me menos disposto a continuar aceitando que minha vida e a
de Cassy estaria resumida aos desejos de um bastardo insano.
Eu não queria ficar aterrorizado toda maldita vez que ela era
levada para fazer exames, não queria mais conviver com o
sentimento de perda eminente.
Isso só piorava a merda de vida com zero expectativa que
todos nós possuíamos. Era minha responsabilidade mudar isso ou
pelo menos tentar.
— Pense bem nesses seus ideais de liberdade, Regan.
— Ideais? — repeti, odiando que justo ele me dissesse isso.
— Sim, ideais que nunca se realizaram! O único meio de sair
daqui é pela caldeira, quando seu corpo não passar de cinzas e
lama.
Alguma consciência que eu desconhecia me alertou para
ficar quieto, mas, sabendo que eu precisava de Killian, não podia
apenas acenar como um idiota e concordar com suas palavras
mesmo que elas fossem verdade.
— Você aceitou essa vida, vai continuar aceitando calado
sermos levados para a ala sul e nunca mais voltar? — Travei a
mandíbula. — Seja lá o que acontece, as pessoas morrem. Você
não percebe o odor terrível de um corpo queimando? Eu não quero
ser morto para satisfazer os caprichos de Viggo. Não somos gado,
Killian, somos seres humanos, eu... — me odiei por perceber que
minha voz embargou. — Como você pode aceitar isso?
Killian olhou para fora, suspirando.
— Eu quero continuar vivo, e isso torna tudo mais fácil.
— Eu nunca vou te entender! — rosnei, limpando as lágrimas
que escorreram sem que eu pudesse evitar.
— Você é jovem, Regan, tem apenas quinze anos. Quando
for velho como eu, vai saber que não tem para onde fugir e vai
aceitar que continuar vivo é melhor do que nada.
Ele desceu da janela e foi cuidar de suas coisas. Antes de
fazer o mesmo, controlei a vontade absurda de chorar e apenas
quando me senti seguro, desci da janela indo direto a minha cama.
Cassy estava lá, brincando com a pequena fita preta que eu achei
em uma das limpezas que fiz na ala norte da fábrica.
A observei por um momento.
Os cabelos ruivos eram lindos e bagunçados. Apesar da cor
estar um pouco apagada por causa de toda sujeira que a cobria,
isso não diminuía a beleza deles. O rosto era miúdo, delicado
demais para viver no meio daquela imundície toda.
Com toda certeza, quando crescesse, ela seria uma garota
linda e vivaz.
Eu preciso te tirar daqui! O pensamento me desesperava.
Temia cada maldita vez que o doutor queria verificar a saúde dela.
Morria de medo de que ela não voltasse, como tantas outras
crianças.
Eu não sabia o que eles faziam, mas suspeitava que, se eu
soubesse, enlouqueceria. Estava com Cassy há tempo demais para
simplesmente acreditar que suportaria perdê-la. Não conseguia
imaginar nada de mau lhe acontecendo, ela era minha; e era minha
responsabilidade lutar para que estivesse livre e segura, longe
daquele maldito lugar.
Algo me dizia que eu precisava ser rápido, essa sensação de
peso no coração era opressora demais para eu ignorar. Era como se
mudanças estivessem prestes a acontecer, e, para nós, elas nunca
eram boas.
Temia que Viggo fizesse outra limpeza, a última ocorreu dois
meses atrás. Metade das crianças de até seis anos foram levadas e
nunca retornaram. Era isso que acontecia quando todos nós
fazíamos exames juntos.
Desde que assumi a responsabilidade de cuidar de Cassy, as
“limpezas” se tornaram meu maior medo. Precisava colocar meu
plano em prática antes que fosse tarde demais.
— Se alguma coisa acontecer comigo — respirei fundo,
buscando Killian com o olhar. A cama dele era ao lado da minha —,
você vai cuidar dela para mim, vai garantir que ela tenha um futuro.
Prometa-me.
Talvez eu devesse fazer tudo em segredo, mas não havia
outra pessoa que eu confiasse. Killian era meu amigo, tivemos sorte
de crescermos juntos, ele se achava velho por ser o mais antigo de
nós, no entanto a diferença era de apenas três anos.
Ele era meu tiro de fé, para que Cassy tivesse uma
oportunidade.
Respirando fundo, decidi lhe contar tudo.
— Quando fui designado para limpar o depósito, achei um
pouco de pólvora. — Ele arregalou os olhos. — Eu construí uma
bomba.
— Impossível... — murmurou, horrorizado.
— Passei o último mês juntando os componentes que
encontrei no depósito.
— Como você está... Como você... Não sabemos ler... —
Notei que ficou pálido demais e ofegante.
— Eu compreendo algumas palavras, eu escolhi meu nome,
esqueceu? — Ele balançou a cabeça, desacreditado. — Bom, fiz
alguns testes e...
— Então aquela queimadura na sua mão não foi porque você
estava limpando a caldeira! — constatou, chocado demais.
Concordei, agora não precisava mentir.
— Vou explodir Viggo. Se eu não conseguir escapar, você vai
com Cassy.
— Nem pense nisso. — Killian empalideceu, então sentou-se
na minha cama ao meu lado. — Por acaso enlouqueceu? Como
diabos você construiu uma bomba, porra? — perguntou ofegante,
deixando-me orgulhoso do meu sucesso. — Você não deveria saber
essas coisas, nós somos burros, não sabemos...
— Como falei, eu fiz testes até conseguir o que eu queria; e
outra, a pólvora explode sozinha. Eu só precisei compactar para
aumentar o poder de fogo. — Sorri, orgulhoso de mim. — Aqui é
uma fábrica, Killian. E antes de ser fechada, o que quer que eles
fabricassem, usavam pólvora.
— Você enlouqueceu?
Sorri, retirando de dentro da calça esfarrapada um pão duro.
Notei o olhar do meu amigo, então eu abri o pão que guardava o
passaporte de Cassy para fora dali.
— Veja.
— É ela? — Killian murmurou quando viu a bomba.
— Estou esperando a oportunidade. Não parece muita coisa,
mas toda a pólvora está reunida aqui. Eu a embalei com papel e,
então, a revesti com tiras de tecido.
— Você disse que sua camisa tinha rasgado...
— Não menti sobre isso. — Pisquei um olho, não
escondendo o sorriso de satisfação.
— Você colocou dentro do pão para o caso de te
encontrarem? — Killian a pegou com cuidado, avaliando. — É
pesada.
— Sim, será suficiente para causar estrago, eu vou jogar
dentro da caldeira. Quando o Viggo estiver fazendo aquele seu
discurso de merda antes do jantar, lembre-se de ficar bem atrás.
Quando eu for explodir essa merda, você vai pegar Cassy e correr.
— Você está tão bom quanto morto! — Killian respirou fundo,
me devolvendo a bomba. — Se ele sequer imaginar...
— Ele não vai.
— Desista! — Killian apertou meu braço. — Desista dessa
ideia, Regan, prometa-me que não vai fazer nada. Prometa-me,
porra!
— Não!
Nos encaramos por alguns instantes, então ele me soltou.
Parecia incrédulo e, ao mesmo tempo, quebrado.
— Eu estou vendo que isso é uma decisão tomada. —
Esfregou os cabelos longos. — Eu tenho medo, porra! — suspirou.
— Não acredito que vai mesmo fazer isso.
— Eu não sou tão idiota quanto pensa, eu nunca aceitarei
viver sub judice de um ditador até ele decidir que minha vida não
vale mais a pena.
— Regan, eu sei que você está desesperado, mas você
poderia planejar melhor. Juntos, talvez...
— Não posso esperar mais.
— Me ouça, caralho, você não está me ouvindo!
— Já ouvi o suficiente.
— Você é um bastardo irritante e que não mede as
consequências. Quer salvar Cassy? — Acenei. — Mas o que você
vai fazer pode condená-la. Apenas pense um pouco e imagine o
cenário em que você não consegue o que quer. Cassy vai pagar por
seu delito e sabemos que os métodos de Viggo são terríveis.
— Ele não vai sobreviver, pode acreditar em minhas palavras.
— Guardei a bomba com todo cuidado. — Quando tudo isso virar
um inferno, você vai ter a chance de escapar com Cassy. Me espera
na cidade, perto daquela cruz que conseguimos avistar da nossa
janela. Se eu não chegar até o amanhecer, vá embora e comece
uma nova vida.
Não queria lhe dizer que meu plano tinha uma vertente
apenas: eu e Viggo morreríamos juntos. Mas eu ia me certificar de
que o bastardo não escaparia.
— Você fala com tanta convicção — riu, debochando. —
Talvez, se você explodir junto com Viggo, consiga que... — A voz de
Killian foi morrendo e ele me encarou com os olhos arregalados de
pavor, finalmente compreendendo meu plano.
— Estou cansado — murmurei, de cabeça baixa. — Não
suporto mais isso e desejo que Cassy conheça outra realidade. Não
importa o que eu precise fazer.
Killian olhou ao redor como se buscasse alguma intervenção
que me fizesse mudar de ideia.
— Regan, eu quero, eu anseio todos os malditos dias sair
daqui. Mas, agora, não é o momento.
— E quando será? Quando o medo de tentar for maior que
todo o resto? Não, eu tenho o meu “negócio” em andamento e irei
usá-lo hoje.
Ele estremeceu, esfregando os cabelos e a barba rala.
Por um momento, eu pensei que ele fosse ficar feliz e me
apoiar, mas, talvez, os anos vivendo sob o poder de Viggo tenham
sido demais para Killian e o medo fosse ainda mais potente do que
o seu desejo de conhecer outra realidade.
— A cada dia viver aqui se torna insuportável. Não nasci para
ser prisioneiro, Killian.
— Regan, ouça o que vou te dizer... — Ele pegou meus
braços, dando-me uma leve sacudida.
Eu me levantei e ele precisou olhar para cima. Eu era o mais
alto daqui, e o único que constantemente desafiava sua liderança
quando tínhamos pontos que discordávamos.
Esse era um deles.
— Primeiro, pare de me tratar como se mandasse em mim.
— O empurrei. — Estou tirando qualquer poder de liderança que
tenha sobre Cassy e eu. Não quer participar do que farei,
compreendo, mas não tente me parar, porque você não vai
conseguir.
— Eu não posso arriscar...
— Não seja tolo, Killian, temos que fazer algo, somos os mais
velhos, depende de nós.
— Se der errado, se nós não conseguirmos, então será pior.
Fechei os olhos e respirei um pouco do ar morno e abafado.
A constante recusa dele piorava o meu estado de espírito.
— Todos merecem uma oportunidade, meu amigo. — Tentei
que minha voz não soasse embargada, era vergonhoso para mim
reclamar quando todos estávamos na mesma situação. — Meu
coração dói, é insuportável ver as crianças sendo levadas para a ala
sul e não voltando. Isso precisa acabar, alguém tem que fazer algo.
— Eu sei — meu amigo pigarreou, como se estivesse
segurando o choro. — E se nós fizéssemos uma rebelião? — Killian
perguntou baixinho, pálido ainda.
— Esse é o seu plano? — Balancei a cabeça, incrédulo.
— Um deles.
— Então, fica bem claro que precisamos de medidas mais
drásticas e definitivas. Como iríamos nos rebelar se Viggo tem um
monte de segurança armado? Levaríamos um tiro na cara antes de
sequer chegar perto dele.
A certeza de que meu plano era a melhor solução cresceu à
medida que eu sentia Killian mais inclinado a concordar. Ele não
tinha nada a perder, era eu quem ia arriscar, mas precisava de sua
colaboração para tirar Cassy daqui.
— Você está fazendo tudo isso por Cassidy, não é?
Dei de ombros, ela era o foco principal, quem me fez ter mais
desejo de enfrentar Viggo sem pensar em consequências.
— É por mim também, por você. — Dei uma olhada pelo
alojamento. — Por todos nós.
Alguém precisava fazer algo.
— E se nós tentássemos abrir um túnel no depósito? —
Killian sorriu. — Poderíamos escondê-lo com as caixas, faríamos
isso até ter o suficiente para fugir.
— E o que faríamos com a terra? — Cruzei os braços,
esperando sua resposta. — Colocar dentro das caixas? E quando
os homens de Viggo fossem pegá-las para o transporte de droga? A
refinaria fica do outro lado do depósito. O seu plano levaria anos.
Como você pretende esconder o túnel por tanto tempo?
— Não sei ainda.
Era o que eu precisava saber.
— Vamos explodir Viggo, colocar fogo nesse lugar e ponto
final. — O olhar que recebi dizia que ele me considerava louco.
Talvez, eu fosse mesmo, mas quem liga para isso?
Dei de ombros, pouco me importando com o que eu parecia.
— Às vezes, você me assusta, Regan — Killian suspirou,
então esfregou o rosto com força. — Quando começamos essa
conversa, não imaginei que você estivesse tão determinado, que
tampouco possuísse uma bomba e que, pior, pretendesse usá-la.
— Eu não preciso alardear. — Olhei ao redor, penalizado
pelos rostos de expressões cansadas que me encaravam de volta.
Pouco me importava que eles pudessem ter ouvido coisa que
não deveria. Nenhum deles teria coragem de falar, afinal era a única
chance de liberdade que todos teriam.
Por sorte, Viggo nos subestimava, hoje ele teria uma
surpresa.
— Ainda acho que deveria pensar melhor, esse plano é
arriscado demais e tem grande chance de dar errado. Todos nós
pagaremos pelo seu erro.
— Meu erro? — Balancei a cabeça, sentindo raiva que fosse
tão pessimista e medroso.
Os sinais dúbios que Killian me enviava tiravam a plena
confiança que eu possuíra mais cedo. Justo agora, não precisava
me sentir inseguro quando finalmente havia tomado a decisão mais
importante da minha vida.
— Vamos esperar um pouco mais, eu tenho medo de que
você sofra, Regan!
— Mais? — ri sem humor. — Não lembro quando cheguei
aqui — suspirei exausto. — A memória mais distante que possuo é
deste lugar, às vezes eu sinto que nasci aqui. — Olhei para Killian,
cujos olhos verdes pareciam tristes e cansados. — Se eu não fizer
nada, é como se concordasse com tudo que vivemos até agora. Me
recuso a ser um prisioneiro quando não cometi crime algum, não
aceitarei mais isso.
— Regan, é complicado, seu plano é uma sentença de morte.
— Ficar também é.
Através da janela, vi que estava quase amanhecendo, em
breve precisaríamos sair para iniciar o turno de trabalho.
— Chega dessa conversa. — Antes que Killian pudesse se
afastar, eu o segurei.
— Você tem medo, eu também tenho, mas a única maneira
de sermos livres é lutando. Hoje eu irei arrancar a nossa liberdade
das mãos de Viggo, assunto encerrado. — Sorri. — De um jeito ou
de outro vamos ter o que queremos, eu tenho certeza.
Killian puxou o braço, eu sabia que isso significava que ele
não queria mais ouvir.
— Nosso turno vai começar, se apresse. — Ele voltou para a
sua cama.
Hoje, trabalharíamos na caldeira. Mais tarde, abordaria o
assunto outra vez, e o convenceria de que meu plano era o melhor.
Precisava que Killian ficasse ao meu lado, eu só confiava nele para
cuidar de Cassy.
Terminei de me vestir e fui em direção a minha garotinha. Ela
continuava distraída brincando com a fita. Esse era o único item
especial que ela possuía, por sorte eu o encontrei amarrado em um
pequeno saco de pólvora.
— Vamos, Regan, deixe-a. Hoje não estou a fim de ouvir o
choro dela. — Killian me puxou.
Estávamos prestes a sair do quarto, quando uma mão
pequenina segurou minha perna. Olhei para baixo e Cassy me
encarava com os enormes olhos azuis no rosto sujo.
Por um momento, a certeza do que eu faria me balançou. Se
desse errado, ela pagaria também, pois todos sabiam o amor que
eu sentia por ela.
— O que foi, pequenina? — Baixei-me diante dela.
— Você já vai? — Os olhos azuis foram se enchendo de
lágrimas. — Não ia se despedir de mim?
— Sim, você sabe que eu preciso trabalhar. — Esfreguei sua
bochecha e ela fungou. — E você estava brincando, então pensei
em não atrapalhar.
— Você não atrapalha, Regan. — Ela sorriu. — Você
esqueceu que hoje é o dia de ficarmos com as pessoas que
amamos?
Franzi o cenho, Cassy era inteligente demais. Ela criava
histórias, imaginava que vivia em um lugar bonito. Por mais que
nossa realidade fosse cruel, eu não me culpava por alimentar suas
fantasias.
— Todos os dias são dias de ficarmos com as pessoas que
amamos.
— O domingo é um dia especial. — Ela cruzou os braços. —
Dia de diversão.
— Quem te falou que domingo é dia de diversão? — Ensaiei
um sorriso, enquanto empurrava seus cabelos ruivos para trás.
Eu ainda me espantava com a rapidez com que essa criança
entrou no meu coração. Ela não era sangue do meu sangue, mas eu
morreria por ela.
O que ia acontecer de todo modo.
— Você disse, Regan — ela disse com convicção. — Pelo
que sei, os mais velhos não mentem.
— Isso, por si só, já é uma mentira, Cassy. — Juntei seus
cabelos para trançá-los. Estavam duros de tanta sujeira e ficariam
piores se os deixasse soltos. — Conseguirei um sabonete para te
dar banho, você está imunda. — Respirei perto dela. — E fedendo
como um cachorro sarnento.
A testa franzida da menina de cinco anos me dizia que ela
discordava, a pequena odiava qualquer coisa que remetesse a
limpeza. Dar-lhe banho era como lavar um pequeno gato selvagem.
— Eu não vou tomar banho nunca. — Fez cara feia, pelo
menos esqueceu do choro, por enquanto. — Eu quero brincadeiras
e diversão, você prometeu!
Regan, seu idiota, por que você foi dizer isso?
Em minha defesa, eu estava cansado, precisava dormir
desesperadamente e diria qualquer coisa para que ela parasse de
me importunar.
Foi má sorte, que ela não se esquecesse dessa promessa.
Porra!
Sacudi a cabeça, um tanto revoltado comigo mesmo, mas
derretido pela pequena criança que me pertencia enquanto Viggo
permitisse.
— Se você prometer que vai se comportar, mais tarde, depois
do jantar, vamos brincar. Vou te levar para conhecer um lugar novo.
— Ela me deu um sorriso enorme. — Fique quieta no seu canto, não
tente sair daqui até eu voltar. Depois do seu banho, vamos brincar.
— Sem banho. — Cruzou os bracinhos, fazendo cara feia.
— Com banho e vamos pentear os cabelos também, ele já
está ganhando vida própria. — Prendi a ponta da trança com a fita
preta, ela sorriu parecendo satisfeita. — Por favor, Cassy, fique aqui
no alojamento, não tente escapar como fez da última vez.
Estava prestes a levantar quando ela me abraçou.
— Você é o melhor irmão do mundo. Is breá liom tú[1], Regan.
Não éramos irmãos. Eu apenas cuidava dela. Cassy era a
menor do grupo, precisava de um escudo, resolvi que seria eu.
— Somos parecidos, Killian disse que somos irmãos, por isso
você cuida de mim.
— Killian é um bastardo burro, não acredite nele, pequenina.
— Eu não sou pequena, eu sou grande. Olhe aqui. — Ela
colocou a mão acima da cabeça. — Grande, e eu vou trabalhar para
te ajudar, então, nos domingos podemos nos divertir.
— O que você tem com domingos? — perguntei franzindo o
cenho.
— Eu te conheci no domingo, Killian disse. Então foi o melhor
dia da minha vida. — Cassy era uma pequena coisa, e Killian sabia
que colocar ideias na cabeça dela era um problema.
Para mim, óbvio.
As outras meninas do alojamento eram mais tranquilas,
minha Cassy não, ela era como uma tempestade, incontrolável. O
que por vezes me apavorava. Principalmente quando ela queria
explorar.
Já a peguei indo bisbilhotar a ala sul. Lá era estritamente
proibido, era para onde as crianças iam e não voltavam mais.
— Domingo é o melhor dia do mundo. — Ela me abraçou de
novo. — Eu quero que me conte uma história de princesa hoje, ela
tem um cavalo com o rabo colorido.
Revirei os olhos. Como falar sobre contos de fadas sendo um
prisioneiro? As histórias que eu inventava eram ridículas, mas ela
gostava de ser a princesa que morava num castelo.
E ah, sim, que possuía um cavalo com rabo colorido.
Eu não sabia de onde Cassy veio, mas ela gostava de contos
de fadas, talvez, alguém lhe contasse essas histórias antes de ser
trazida para cá. Pelo visto, ela não esqueceu.
— Vou contar quantas histórias você quiser, se permanecer
aqui e não chorar até eu voltar. — Dei uma puxadinha em sua
trança, ela riu.
— Como é bom ser pai, não é? — Killian me provocou.
Balancei a cabeça, lançando um olhar de ódio para o
bastardo recostado na porta.
— Não me culpe pela pequena mentira. — Ele ergueu as
mãos. — Ela não parava de fazer perguntas. Você estava fora,
então eu fui criativo.
— Tanto faz. — Abanei a mão, achando pouco relevante essa
discussão. — O dia não importa, agora. Faça como eu mandei, fique
quieta, Cassy, até breve. — Eu beijei o topo de sua cabeça, mas,
quando estava saindo, algo espetou meu coração.
Voltei para ela e a puxei para os meus braços, apertando-a
firme.
— Is breá liom tú, pequenina. — Ela suspirou, apertando meu
pescoço. — Nunca se esqueça disso.
— Você é o melhor irmão da minha vida, Regan.
— Eu sou o único. — Beijei sua testa e a deixei no chão.
Antes da porta fechar, soprei um beijo.
Quando saí do alojamento, senti meu coração pesado.
Hoje isso acaba! Respirei fundo, reunindo-me com os outros
trabalhadores. Na escala anunciada, eu ia ficar com o exaustor da
caldeira.
Não haviam equipamentos de proteção, então amarrei um
pedaço de pano da minha camisa para proteger o nariz e a boca.
Atento, comecei o processo de molhar e esfregar até a espessa
mancha de fumaça ir sumindo das paredes do quarto, e as cinzas
aos poucos virarem lama.
O processo de limpeza era lento e exaustivo, era como se a
fumaça fétida impregnasse nas paredes, e até mesmo no ar. Esse
era o pior lugar para se limpar, o serviço parecia interminável, e a
gente sabia que, em meio àquelas cinzas de carvão, haviam cinzas
de amigos também.
Pessoas que estavam conosco até ontem.
— Perdoe-me por demorar tanto, Marcos. — Limpei os olhos,
chorando pelo menino de nove anos que foi levado ontem.
Eu sabia que o cheiro que permeou a madrugada era seu
corpo queimando.
— Isso vai acabar e, em breve, a gente vai se encontrar —
solucei, dando liberdade ao choro de dor e tristeza.
Eu prometo que vai acabar!
Continuei trabalhando, enquanto chorava feito o condenado
que ansiava por uma vida que eu jamais teria.
— Regan! — Limpei os olhos apressadamente.
— Senhor... — pigarreei.
— Hora da água, apresse-se, bastardo. — Um dos
cozinheiros chamou.
Eu estava sedento, o pequeno gole não foi suficiente para
matar a minha sede, mas ajudou a diminuir a queimação na
garganta.
— Poderia me dar mais um pouco?
A porta foi fechada e o pedido ficou suspenso. Balancei a
cabeça, voltando ao trabalho.
Hoje, eles teriam uma surpresa.

***
Horas mais tarde...

Eu nunca me senti tão cansado.


A vontade de encostar em um canto e dormir era quase
insuportável, eu só não fazia isso porque estava prestes a resolver a
minha vida e não podia deixar o cansaço me vencer.
— Só mais um pouco. — Respirei fundo, incentivando-me a
seguir pelo longo corredor que me levaria até o refeitório.
— Porra, o que diabos está acontecendo comigo? — ofeguei,
apoiando a mão na parede quando um enjoo terrível me dominou.
Comecei a arquejar, meus olhos lacrimejavam enquanto uma
ânsia de vômito me dominava. Minhas pernas bambearam e pontos
pretos piscaram diante dos meus olhos.
Não lembrava de já ter sentido algo semelhante.
— Droga, será que eu fiquei doente? — questionei-me,
largando o balde e o esfregão.
Passei as mãos no rosto, empurrando meus cabelos para
trás. Respirei fundo várias vezes, antes de continuar seguindo em
direção ao refeitório.
Foi necessário mais esforço do que imaginei para chegar ao
meu destino. Entretanto, nada me preparou para o que eu encontrei.
Killian estava ali me esperando. Ao seu lado, Viggo, que
acariciava os cabelos de uma Cassy sorridente.
Na hora, meu sangue gelou e eu me obriguei a endireitar o
corpo, apesar de todo o mal-estar que eu sentia.
— Não sabia que seria recepcionado — zombei, lutando para
que o meu cérebro funcionasse direito. — Você parece limpo,
Killian. — O olhei e ele não conseguiu me encarar nos olhos.
Fui na direção dele, estava perto de alcançá-los quando
Viggo e Cassy foram flanqueados por quatro seguranças. A bílis
subiu outra vez, meu corpo inteiro começou a tremer.
— Cassy, venha aqui. — Estendi a mão e ela tentou correr,
mas não foi capaz de dar mais que um passo.
A trança que fiz estava enrolada na mão de Viggo. Ele a
estava prendendo.
— Solte-a.
— Por quê? Ela me pertence. — O sorriso que ele deu
arrepiou-me, mas não demonstrei o pavor que eu sentia. Mantive o
queixo erguido, mesmo que estivesse perto de desabar.
— Não sabia que pretendia me recepcionar. — Cruzei os
braços, avaliando minhas opções.
Viggo possuía estatura média, era magro e vestia-se
elegantemente. Os cabelos pretos estavam arrumados para um
lado, ele mexia no bigode que, a meu ver, era ridículo demais. Para
alguns, ele pareceria inofensivo, mas bastava olhar mais
atentamente em seus olhos, que dava para enxergar o quanto era
vil.
— Sabe, Regan, eu recebi informações de que você
planejava me matar.
Eu senti como se as palavras de Viggo fossem como punhais
que me cortavam profundamente. A dor da traição me queimava
como as chamas na caldeira.
— Revistem esse miserável.
Dois seguranças me cercaram e eu me preparei para lutar,
todavia meu corpo estava lento demais, fraco.
Não fazia sentido, mas, então, eu me lembrei do sabor
estranho na água.
Eles fizeram algo comigo! Eu tinha certeza.
— Você me traiu — acusei Killian.
— Foi preciso. — Ele ergueu o queixo, aceitando a batidinha
que Viggo deu em seu ombro. — Eu fui promovido, não mais um
escravo.
A traição foi tanta que eu senti o gosto amargo na boca. Eu
acreditava que ele era meu amigo, um irmão. Crescemos juntos,
tínhamos planos.
Como ele pôde me entregar desta forma, sabendo que Cassy
pagaria por meu delito?
Deus, ele não podia ter feito isso comigo, não podia acabar
com tudo desta forma.
— Como você pôde?! — gritei, lutando contra a vontade
absurda de chorar. — Você me traiu. — Encarei seus olhos verdes
traidores. — Um dia, Killian, você vai me pagar muito caro, um dia
iremos nos encontrar e...
Um golpe me deixou atordoado, alguém passou o braço ao
redor do meu pescoço cortando minha respiração. Meu corpo foi
apalpado, eu me debati lutando com tudo que eu tinha para escapar.
— Achei, senhor.
A bomba foi cuidadosamente retirada de mim, então, eu
desabei, observando em choque o que planejei por tanto tempo
virando pó.
Alguém pressionou minhas costas, imobilizando-me. Eu não
consegui nem pensar direito, apavorado demais para fazer qualquer
coisa se não ouvir o choro de Cassy enquanto assistia eu caindo em
desgraça.
— Tudo bem, vai ficar tudo bem, pequenina — disse o mais
alto que pude.
— Não prometa coisas que não pode cumprir — Viggo deu
uma risada.
A surra começou. Concentrei-me na voz de Cassy enquanto
recebia os chutes, minha cabeça parecia a ponto de explodir, mas
não soltei nem um único gemido. Recebi cada golpe em silêncio,
recusando-me a dar a Viggo o meu sofrimento.
Engoli a dor, a decepção e me concentrei apenas em respirar.
— Não vai implorar para que isso pare? — A voz debochada
e cheia de diversão soou próxima.
Eu fui erguido do chão e, apesar de estar com o corpo frouxo,
Viggo precisava erguer a cabeça para me encarar.
— Você não vai implorar?
— Não costumo implorar para crianças menores que eu — ri,
cuspindo sangue na cara do bastardo.
A raiva mudou suas feições, ele esmurrou minha boca com
tanta força, que dois dentes foram arrancados. A dor viajou por mim
como uma onda crescente de agonia enquanto Viggo tomava
impulso para golpear meu corpo.
— Não vai implorar?
— Você bate como uma garotinha. — Sorri e ele continuou a
sessão de tortura.
Pontos pretos piscaram diante dos meus olhos, eu lutei
contra a escuridão, mantendo-me concentrado na dor para não me
permitir desmaiar. Não sei quanto tempo durou, mas, quando
percebeu que não me faria implorar com seus punhos, ele usou um
bastão.
Ouvi o som dos meus ossos quebrando, a dor lacerante me
impediu de respirar. Minha cabeça rodou, a consciência vacilou.
— Sabe, Regan, você nunca se perguntou como veio parar
aqui? — Viggo sorriu, enquanto eu lutava para me manter acordado.
— Você foi deixado para trás, e não, sua mãe não era uma drogada
imunda como suponho que acredite. Você apenas não servia para
ela e para os propósitos da boa família que possuía. — Viggo fez
uma pausa dramática, então continuou: — Antes que se questione
se ela sabia o que te aguardava, eu devo esclarecer que sim, e digo
mais, ela contava com isso. É uma pena que seja tão inútil, que nem
para os meus negócios você tenha servido. — Estalou a língua,
balançando a cabeça. — Regan, você não passa de um grande
estorvo. — Segurou meu rosto, apertando com força minha
mandíbula. — Nem para salvar uma vida com qualquer um desses
seus órgãos você serviu. É somente a porra de um bastardo inútil,
rejeitado, que apenas me deu despesas.
— Você está mentindo. — Ofeguei, a dor de suas palavras
dilaceravam o que restava da minha alma.
Uma das coisas que me afligia era a dúvida de como havia
chegado aqui, pois não tinha lembranças de outro lugar a não ser
aquele. Nem nos piores sonhos imaginava que fosse tão ruim. Viggo
estava me dando todas as respostas para as perguntas que
passaram anos me atormentando.
Na verdade, ele fez mais do que isso, pois fomentou a
certeza de que eu era uma peça de descarte.
Para ele, mas principalmente para a minha mãe.
Ela sabia o que ia acontecer e mesmo assim... Lutei
bravamente contra a vontade absurda de chorar. Não daria mais
essa vitória a esse bastardo de merda.
— Eu não preciso mentir, e se precisasse ainda não o faria
porque você não é ninguém, Regan, não tem quem se importe com
você. Foi pura sorte que tenha nascido, sua mãe tentou te abortar,
mas o pequeno animalzinho não quis morrer. — Ele pareceu feliz ao
proferir cada maldita palavra. — Mas hoje você vai morrer, garoto,
então não há nenhum motivo para mentir. Sua mãe não te quis,
você não servia para ela, como também não serve para mim. Agora
— ele apontou para onde estava Cassy —, veja o que acontecerá
com essa pirralha que você tanto adora.
Pelo único olho que estava aberto, eu vi quando Cassy foi
espancada. Eu lutei para ficar em pé, mas não consegui. Respirar
era uma tarefa árdua.
— Não, por favor, não a machuque. — Chorei, arrastando-me
em direção a eles. — Viggo, por favor, não a machuque... — Ela não
estava chorando mais, não emitia som algum. — Cassy... — Estendi
a mão enquanto as lágrimas ardiam em meus olhos.
— Que sirva de lição, bastardo. — Recebi outro chute nas
costelas, mas não tirei os olhos da minha criança. — Levem a
garota para a ala sul, sirvam-se à vontade, mas a mantenham viva,
enquanto o doutor está a caminho para o procedimento.
— Não! — murmurei, acreditando que minha voz estivesse
alta e forte o suficiente para que fosse ouvida. — Não!
Fui levantando-me, a dor foi tanta que, por alguns instantes,
tudo escureceu. Apenas consciente, vislumbrei um suporte ao lado
da caldeira.
Era para lá que eu estava sendo levado.
— Você vai servir de lição para qualquer um que se atreva a
sonhar em escapar — Viggo rosnou, segurando meu queixo. — Vai
morrer lentamente, Regan, sabendo que jamais irá sair daqui, vou
espalhar suas cinzas no seu dormitório, e, mesmo após a morte,
estará preso aqui, comigo.
Ele me prendeu, esticado além do que meu corpo quebrado
suportaria. Arame foi enrolado em meus pulsos, cortando minha
pele profundamente. Sentia-me gelado por dentro, mas estava tão
perto da caldeira, que o calor que desprendia dela me sufocava ao
mesmo tempo esquentando insuportavelmente as minhas costas.
— Alimente a caldeira, quero-a em capacidade máxima.
Tragam os outros aqui, eles devem assistir.
Madeira foi espalhada em um círculo ao meu redor, ele queria
me fazer cozinhar sob a alta temperatura. Quando as chamas da
caldeira foram atiçadas, a porta foi aberta e eu recebi todo o calor,
faíscas caíram no chão, iniciando o fogo na madeira que me
circulava.
Eu ia morrer queimado, Cassy seria estuprada e Viggo
continuaria fazendo o que sempre fez.
A dor que eu sentia no meu coração era tanta que os soluços
irromperam. O que não lamentei ao longo da minha vida, tampouco
quando era espancado, eu lamentava agora.
O destino foi um filho da puta comigo e com certeza me
odiava.
— Apaguem as luzes, o show ficará melhor. — O refeitório
mergulhou na semiescuridão, eu pude ver o reflexo da minha
sombra.
Crucificado, era a posição que ele me colocou.
As chamas começaram a lamber meus pés, os braços e as
costas já estavam quentes como o inferno, por causa da
proximidade com a caldeira. Sentia-me sufocando enquanto meus
pulmões queimavam em busca de ar.
Aos poucos, os escravos foram se juntando diante de mim.
Eu os encarei, vislumbrando os olhos marejados, a tristeza profunda
que compartilhávamos.
— Lutem — arquejei, sufocando com a fumaça e o calor. —
Lutem por suas vidas, por liberdade.
— Tolos ideais de liberdade, Regan. — A voz de Killian
acendeu um fogo no meu peito.
Eu o olhei.
— Um dia, acertaremos as nossas contas, Killian.
O bastardo estava com os olhos enevoados.
— Os mortos não se vingam — ele disse e saiu, em direção a
ala sul.
Minhas lágrimas queimavam rastros em minha bochecha,
mesclando-se com o sangue que pingava. O fogo ardia em meu
corpo, mas ele era o meu libertador.
A dor inominável de ter a pele queimada eclipsava qualquer
outra que eu já houvesse sentido. O silêncio era quebrado pelo som
ensurdecedor da madeira estalando.
Nenhuma palavra era proferida, sob pena de castigo, todos
assistiam a minha morte com expectante horror.
— Eu o amaldiçoo, Viggo — engasguei-me, sufocado. —
Você vai...
Quando abri a boca para lhe dizer que eu daria um jeito de
voltar do inferno para me vingar, as sombras do canto começaram a
se mover. Por um momento eu pensei que eram os espíritos do
norte vindo me buscar, mas as formas aproximavam-se
silenciosamente no ambiente iluminado apenas pelo fogo.
Pisquei as lágrimas, mas a minha visão estava embaçada, eu
não sabia se era real ou a morte vindo me buscar.
As sombras se aproximaram, carregando consigo a morte em
suas ações silenciosas. Eu observei os homens de Viggo caírem
todos de uma vez, suas gargantas foram cortadas antes mesmo que
percebessem que alguém havia se aproximado.
Não é real. Julguei que o meu desejo de vê-los morrendo
estava criando uma última fantasia. Ainda assim, eu sorri.
— Olá, Viggo. — Uma voz profunda e levemente rouca
quebrou o silêncio.
Aquela voz carregava todo o inverno da Irlanda, mas era
sedosa como a brisa da manhã. Ainda assim, destilava poder
absoluto e primitivo.
Era como a morte encarnada, imputável e tão real quanto o
fogo que me queimava.
— Você foi julgado e condenado, agora aceite a sua
sentença.
Viggo não teve tempo de dizer nenhuma palavra, a ponta da
lâmina brilhou como o fogo da caldeira e, então, meu carrasco
desabou. O puro choque torceu suas feições, enquanto segurava a
garganta aberta de um lado ao outro.
Foi tão fácil... tão fácil... A esperança brilhou em meu peito.
— Por favor... — murmurei, lutando para chamar a atenção
daquele homem. — Por favor...
Ele se aproximou, não pude me segurar, chorei como o
bastardo que eu era.
— Ala sul, Cassy é o nome dela, salve-a. — Pisquei, lutando
para enxergá-lo. — Por favor, salve-a.
Ele fez um pequeno gesto e duas de suas sombras correram.
Observei o meu salvador avaliar o fogo que me circulava, os meus
pés estavam chamuscados, mas era no peito que eu sentia mais
incômodo.
— Não se aproxime... o fogo vai queimar você também —
avisei, vislumbrando um pequeno sorriso em seus lábios.
Como se aquilo não fosse nada, ele pulou as chamas; e tão
rápido, que me surpreendeu, ele chutou a madeira para longe e
depois fechou a porta da caldeira, aproximando-se de mim.
— Deixe-me aqui, salve a minha criança, por favor! —
implorei, chorando de alívio, dor e medo.
O homem puxou o capuz, e, desta vez, eu que precisei olhar
para cima. Os olhos azuis pareciam frios, mas, de algum modo,
foram aquecendo ao me encarar. Eu não consegui encará-lo por
muito tempo, pois sentia-me sujo, pequeno e humilde demais para
olhar nos olhos de alguém como ele.
— Olhe para mim, criança — falou suavemente.
Eu neguei, não poderia.
— Não posso encarar você. — Sufoquei a vergonha,
encolhendo para que, de algum modo, ficasse menor.
— Você está livre agora, ninguém mais vai te machucar. —
Havia uma promessa em sua voz e eu não suportei.
Solucei, chorando ainda mais intensamente como o fiz
minutos atrás.
Eu estaria livre, Cassy também. Poderíamos superar tudo, eu
ia amá-la e cuidar dela. Viveria para fazê-la feliz.
Minha pequena criança... Um bom sentimento foi crescendo,
eu sabia que era muito jovem, mas poderia ser um bom pai para ela,
iria trabalhar, a vida não seria injusta para nós dois.
— Estamos soltando você — avisou, instantes depois, e meu
corpo desabou.
Eu teria caído no chão se ele não me segurasse com firmeza.
Seu corpo parecia sólido demais para ser ilusão, o calor que
desprendia dele, junto com um perfume que eu nunca senti antes,
era bom demais para não ser verdade.
Não me envergonhei em respirar fundo, tentando trazer mais
de seu aroma para mim. Era como madeira e café.
Não mais cinzas e carne queimada, não mais fumaça.
— Eu sou real — ele murmurou, apertando-me junto ao seu
peito. — Você está a salvo.
— Não estou criando ilusões?
Outro breve sorriso foi a única resposta que me deu.
— Devilish. — Um homem se aproximou.
Em seus braços estava minha Cassy. Sentindo que poderia
vencer um gigante, eu me endireitei. Cambaleando em direção a
eles, estendi os braços para recebê-la.
— Entregue-me — pedi baixinho, o homem titubeou. — Ela é
minha, entregue-me!
O corpo pequeno e ensanguentado foi depositado
gentilmente em meus braços. O homem que me libertou, sustentou-
me outra vez quando minhas pernas falharam. Com cuidado, ele
ajudou-me a sentar no chão.
A dor lancinante em cada parte do meu corpo me deixava
enjoado, mas eu era forte, ia me recuperar. Tudo estava bem, as
dores iriam embora com o tempo.
— Conseguimos, pequenina. — Sorri, acariciando o rosto
inchado. — Nós conseguimos.
Ela não respondeu, estava tão quieta que parecia
adormecida profundamente. Mas a pele ainda estava rosada, ela
não estava fria.
— Cassy, sou eu, Regan, está tudo bem, pode acordar. —
Peguei sua mão, colocando-a em meu rosto.
Só então notei os dedos frios e a cor estranha que começava
a tomar conta de sua pele.
Eu sabia o que isso significava, mas recusava-me a aceitar.
Outra vez as lágrimas amontoaram-se sem que eu pudesse
evitar.
— Cassy, acorda, eu ainda não contei suas histórias. — Dei
batidinhas em seu rosto, mas ela não respondeu. — Estamos livres,
eu vou te levar para conhecer um cavalo com rabo colorido de
verdade. Acorda, seu irmão está te chamando, acorda, amor.
Ela estava quente, por Deus, estava quente, então isso
significava que estava tudo bem, não é?
— Cassy, por favor, acorda, bebê — solucei, baixando os
olhos, e notei que o lençol que a cobria estava encharcado.
Trêmulo, comecei a descobri-la e o que eu vi terminou o
serviço que Viggo iniciou. Enquanto olhava para o corpo mutilado da
minha criança, eu senti como se a vida fosse deixando meu corpo.
O peito estava aberto, não havia um coração ali dentro.
— Deus nos abandonou. — As palavras rasgaram-me e eu
joguei a cabeça para trás, gritando por toda injustiça disso.
Minha criança... minha criança...
Meus dedos tremiam como nunca o fizeram, eu tentei fechar
o corte profundo que havia no peito dela.
— Me ajude. — Olhei para o meu salvador. — Por favor,
salve-a para mim, é tudo o que tenho.
Havia pesar, tristeza e outros sentimentos que eu não pude
descrever marcando seu semblante. Talvez ele me considerasse um
louco, por pedir o impossível, mas ele havia me libertado, isso
também era impossível.
— Você pode salvá-la, não é? — solucei alto, sem um pingo
de vergonha. — Você matou Viggo, salvou todo mundo, você pode
salvá-la também. Eu troco a minha vida pela dela, pode me deixar
aqui, mas salve-a. — Estendi Cassy para ele. — Ela é tudo o que
tenho, por favor... — solucei com a pena refletida nos olhos azuis. —
Por favor, senhor.
— Filho, não há o que fazer. Ela... se foi.
Voltei meu olhar para a criança que eu amei com todo o meu
ser. Os sons foram diminuindo até que eu não pudesse ouvir mais
nada.
Diante dos meus olhos, eu vislumbrei o que poderia ter sido o
nosso futuro. Cassy estava correndo e em seu rosto bonito havia um
sorriso enorme. Os cabelos vermelhos continuavam rebeldes,
caindo ao seu redor como uma aura de fogo.
— Eu sonhei com um mundo melhor para você. — A abracei.
— Mas eu falhei, sinto muito.
A visão do meu sonho morreu enquanto a realidade me
golpeava duramente. Cassy estava morta, seu corpo mutilado era a
prova mais real e dura que eu possuía.
— Quem fez isso com ela era um açougueiro de merda. O
coração foi retirado enquanto ela estava viva.
Ouvi alguém dizer, e então eu compreendi o porquê da ala
sul ser proibida, do porquê sempre ter crianças novas chegando, e
do porquê quem ia para lá nunca voltava.
— Perdoe-me, pequenina. — Recostei a minha testa na dela.
— Você não vai estar sozinha, lembra-se de que os mais velhos não
mentem? Eu vou te encontrar e vou cuidar de você, seremos livres
juntos.
Não havia mais sentido continuar vivendo, ou sair daqui.
Tudo pelo que eu havia lutado, tudo que eu sempre quis, estava
resumido em ver aquela criança livre.
Ela nunca teria isso.
Respirando fundo, ergui a cabeça para o meu salvador. Ele
continuava ao meu lado, esperando paciente.
— Você tem olhos gentis. Eu nunca recebi esse tipo de olhar.
Obrigado. — Ele secou minhas lágrimas e o gesto carinhoso me fez
chorar ainda mais. — Por favor, me mate — pedi baixinho enquanto
ele franziu o cenho. — Nos enterre juntos, fora daqui, eu imploro.
Era somente o que eu desejava agora, descansar, depois de
uma vida de luta, tristeza e decepção. Estava cansado demais, não
tinha propósito para viver, eu não tinha mais nada.
— Você está livre. — Seu tom foi suave, caloroso.
— Eu não tenho nada, senhor. — Apertei Cassy contra o meu
peito. — Eu não tenho ninguém, apenas me mate e me enterre com
ela. Me permita descansar.
— Você está machucado, cansado. — Sua mão pesou em
meu ombro. — Venha comigo.
Não o olhei, não teria coragem. O que eu estava implorando
era para que acabasse com a minha miséria, porque, sozinho, eu
era covarde demais para fazer.
— Eu perdi tudo, até o meu sonho de liberdade — solucei,
sentia-me pronto para descansar. — Eu agradeço, mas não tenho
para onde ir, tampouco por que ir. A minha vida está em meus
braços. Eu estou muito cansado. — Olhei para ele. — Não tenho
forças para ficar de pé, senhor, então somente acabe com isso e me
deixe descansar, eu mereço.
Ele me encarou por alguns momentos e, pela primeira vez,
eu sustentei seu olhar. Aos poucos, seu rosto foi se transformando,
e algo brilhou em suas íris azuis.
O sentimento que vi ali aqueceu-me de um jeito bom, pois eu
senti que meu coração ansiava por carinho, aceitação, ainda que
fosse tarde demais.
— E se eu te der um propósito? — sondou. — O que você
escolheria? A morte ou a vida?
Aquele assassino libertou-me da minha prisão, e agora
olhava-me com carinho.
— Se eu tivesse um propósito, eu escolheria a vida. —
Pontos pretos piscaram diante dos meus olhos, eu apertei Cassy
para que não caísse. — Obrigado por tudo... — Franzi o cenho. —
Eu não sei seu nome.
— Roman Demonidhes — respondeu suavemente.
Ele me abraçou quando minhas forças acabaram e eu tombei
em sua direção. Sentia que ele foi me puxando para os seus braços,
de modo protetor, como eu sempre fazia com Cassy.
— Regan, sou Regan. Eu escolhi meu nome.
Antes de apagar, o ouvi dizer:
— Te darei o propósito que você precisa, filho. — Sua voz
retumbou em meu consciente. — Escolho a vida para você. — Suas
palavras acenderam uma chama em meu coração.
1
Gabriel Demonidhes

As chamas lambiam as paredes do teto com uma intensidade


alarmante.
O calor que desprendia daquele inferno era insuportável o
suficiente para nos deixar com uma sensação de estar cozinhando
em um forno a trezentos e sessenta graus. A roupa de proteção, de
certa forma, não conseguia manter o excesso de calor sob controle,
visto que já estávamos expostos às altas temperaturas por mais
tempo do que elas aguentavam.
Neste ponto do meu trabalho, era fundamental manter o
controle, não podia permitir que a necessidade natural de sair desse
inferno fosse maior que o desejo de salvar uma vida. Eu e meu
parceiro ficaríamos bem, tínhamos treinamento, e o peso do cilindro
de oxigênio em nossas costas era um indulto que nos permitiria
concluir essa missão com sucesso.
— Capitão, o fogo está se alastrando rápido demais! —
Connor, meu parceiro há cinco anos, apontou para o teto.
— Isso vai ficar pior, as instalações de gás ficam nos fundos,
eu avaliei e garanto, vai ser um efeito cascata quando o fogo chegar
lá. — Apontei para as escadas, onde deveria haver uma porta corta-
fogo. — Logo toda aquela área vai começar a queimar. Vai ficar
mais difícil.
Isso significava que era uma questão de tempo antes que as
explosões começassem.
— Merda! — O suor escorreu dentro do pesado macacão,
sentia-me sufocando com o calor.
Era apenas um detalhe que eu adorasse essa merda de
situação, a adrenalina, o risco que a minha vida corria. O fogo e eu
tínhamos história, e eu gostava de poder, de certa forma, controlá-
lo.
Eu vivia para isso.
— Vamos avançar. — Apontei para a frente.
A fumaça densa e pesada impedia que eu pudesse enxergar
muito. Era graças aos anos de treinamento árduo que meu pai me
proporcionou, que eu conseguia fazer esse tipo de resgate. O
instinto aflorado guiava-me.
— Porra! — Connor gritou, furioso.
Ele não deveria estar aqui, o tolo correu comigo quando
soube que uma criança não fora evacuada do prédio. Eu poderia
fazer isso sozinho, mas o bastardo decidiu ajudar.
— Gabriel, porra, não vai dar tempo! — Senti o aperto no
meu ombro, eu o olhei. — O fogo corre em nossa minha direção
como se uma mão invisível o estivesse guiando. Vamos ficar presos.
— Só sairemos daqui com a criança! Precisamos seguir. —
Virei-me para continuar avançando em direção ao apartamento
quatrocentos e seis, mas ele segurou meu braço.
— Vamos perder a saída, o fogo vai fechar o corredor.
O desespero na voz dele era tão perceptível que nem parecia
um bombeiro da Divisão de Incêndio e Resgate.
— Vamos morrer se continuarmos!
Ele não sabia, mas era nesse ponto que eu sentia que estava
mais vivo. Era aqui o lugar que eu considerava como meu. Havia
riscos? Sim, óbvio. Mas eu os administrava. Por outro lado, essa
breve incerteza, a iminência de morte era como saltar sem
paraquedas.
A sensação era libertadora, viciante. Por mais louco que isso
pareça, só que eu sou louco, gostava disso, vivia para esses
momentos. Era por isso que nos resgates de alto risco — como
esse —, eu sempre tentava estar sozinho.
— Você está respirando bem, Connor? — Puxei o cilindro e o
avaliei, a oxigenação era ótima. — Cheque os seus equipamentos.
— Ele me encarou, por um breve instante julguei ter visto algo em
seus olhos, mas não tinha tempo para avaliar.
Pela posição que estávamos, e a intensidade do fogo no teto,
compreendi que o incêndio havia alcançado os apartamentos que
estavam intactos no andar superior. Estávamos encurralados.
O pavor que Connor não conseguia disfarçar era um fator
desnecessário, ele não deveria estar aqui se não conseguia lidar
com a situação.
Merda! Puxando o comunicador, testei a conexão com a
equipe externa.
— Equipe de apoio, aqui é o Capitão Demonidhes, alguém na
escuta? — Esperei alguns segundos. — Alguém na escuta?
— Sim, Capitão, Sargento Davis na escuta. — A linha estava
com interferência.
— Atualize.
— O fogo alcançou os andares superiores... — o chiado na
linha se intensificou. — ... hidrante foi esmagado... Não vamos
conseguir...
— Davis, não compreendi. — Olhei ao redor, ainda havia uma
chance, se saíssemos agora.
Mas isso significava que a criança ficaria para trás.
— Não vamos... — a linha ficou muda por alguns instantes,
então eu captei fragmentos. — Evitar... o fogo... dutos de gás...
Estávamos realmente fodidos.
— Preparem uma rede. Varanda!
— Okay.
Desde o começo isso aqui era uma bomba relógio,
instalações clandestinas, prédio sem revisão. Era apenas uma
questão de tempo, ainda mais quando noventa por cento dos pisos
eram revestidos com madeira.
Isso era alarmante, as chances de sairmos com vida apenas
diminuíam e eu, nunca deixaria, uma maldita criança para morrer
nesse maldito inferno.
Se ela não pudesse sair, então morreríamos nós dois.
— Vamos sair agora! — Connor apertou meu braço, me
puxando. Ele apontou para o corredor, se fôssemos agora, ainda
conseguiríamos.
Minha filha está lá dentro, minha filha! Quase pude ouvir o
grito desesperado da mulher outra vez. A infeliz tentou entrar no
prédio, e nós a impedimos. Era suicídio, e eu era louco suficiente
para fazer o que ninguém pretendia.
Eu não acreditava em amor materno, ou qualquer uma
dessas merdas, então foda-se tudo isso. O fato é que tinha uma
criança ali, e eu a buscaria. Ela merecia viver, não por causa sua
mãe irresponsável que a deixou sozinha, e sim, porque merecia
uma chance, alguém que se importasse o suficiente para arriscar a
própria vida por ela.
Ponto final.
Continuei seguindo em direção a porta, quando a alcancei eu
comecei a preparar os itens de resgate.
— Derrube a porta, Connor.
O bastardo já havia atuado em um incêndio dessas
proporções, não deveria estar em choque ou desesperado para sair.
Sua atitude o tornava um fardo, e isso poderia custar muito caro.
— Derrube a porta, foque na porra do seu trabalho e para de
surtar como se isso aqui não fosse a sua realidade, porra! — Bati
em seu capacete, e ele acenou com os olhos arregalados de pavor.
— A porta não abre! — Ele chutou com força quatro vezes, a
porta nem se mexeu. — Com certeza possui trava de segurança.
Jesus Cristo, não temos tempo!
Não tínhamos, tampouco nos restavam opções, mas eu não
ia sair sem a criança.
— Vamos morrer, Gabriel! — ele gritou quando mais uma vez
chutou a porta, quando ela não abriu, ele recostou-se na parede,
com as mãos na cabeça. — Vamos morrer.
Era aqui que eu precisava dominar meus instintos de
sobrevivência. Marquei no meu relógio três minutos e trinta
segundos, com sorte era esse o tempo que levaria para o fogo
chegar aos dutos de gás.
Seria excelente se eu estivesse sozinho. O meu treinamento
na Ordem me dava tudo que era necessário para aguentar o tempo
que fosse preciso até que a última vítima fosse resgatada.
O meu parceiro não sabia controlar a dor, o medo, o estresse.
Eu consegui ver seus olhos arregalados de pavor, através da
máscara transparente que revestia seu rosto.
— Volte pelo corredor, Connor, quando eu entrar no
apartamento, não poderei voltar, isso aqui está prestes a desabar.
— Apontei para o corredor ofuscado pela fumaça.
O fogo que consumia o teto, como se o próprio diabo
houvesse abertos as portas do inferno, não tardaria para que tudo
fosse tomado.
— Você enlouqueceu? — arquejou, o jeito que respirava
estava desregulado, desse jeito ia consumir o oxigênio mais rápido.
— Apenas volte, faça como eu digo. — Apontei dois dedos
em direção ao corredor, exigindo que ele se apressasse para fora.
— Não vou deixá-lo, Capitão, morreremos juntos!
Eu agarrei sua roupa de proteção e o puxei, obrigando-o a
me encarar nos olhos. Ele com certeza conseguiria enxergar a raiva
que começava a me dominar.
— Isso aqui não é um treinamento, porra! — gritei para que
me entendesse. — Se você começar a agir como um herói de
merda, teremos problema. Agora, volte pelo corredor e...
Para pontuar minhas palavras, houve uma explosão que fez o
teto do corredor desabar, bloqueando a única saída.
Porra!
Por um breve instante, meu coração acelerou, então a calma
me varreu. Essa era a minha vida, e se eu, por acaso, não
conseguisse sair não tinha problema, eu havia feito a minha parte. O
mesmo não se aplicava ao grande bastardo que embaçava a
máscara com sua respiração ofegante.
— Não é o momento para ficar com medo. — Bati em seu
capacete. — Vamos encontrar a criança e sair daqui.
Puxei o comunicador.
Estávamos no quarto andar de um prédio antigo localizado na
região do Bronx, considerado não exageradamente o mais violento
de Nova York. Eu tinha certeza de que foi por esse motivo que a
porta possuía uma boa trava de segurança, uma mulher com uma
criança sozinhas eram presas fáceis.
— Chegamos tarde, não conseguiremos... — Suas palavras
me irritaram, não precisava que ele verbalizasse tão
descaradamente algo que poderia ser verdade. — A criança já deve
ter...
Bati em seu capacete mais forte, então decidi que essa era a
última vez que trabalharia com ele. Connor não possuía o que era
necessário para trabalhar comigo. Ele poderia ir para outro
departamento, de preferência um que não envolvesse tantos riscos.
— Quando isso acabar, vamos conversar. — Apontei o dedo
em seu rosto.
Agora não dava para ocupar Connor, ele não ia conseguir
fazer porra nenhuma enquanto não estivesse lutando apenas para
sair. Tomando um pouco de distância, usei o peso do corpo para
bater nas dobradiças. A porta quebrou, mas o lado com as travas se
manteve fixo. Um chute abriu mais espaço, e eu entrei no
apartamento.
Imediatamente fui em direção ao quarto, esse seria o lugar
mais provável de encontrá-la, porém não vi a criança.
— Merda! — Olhei ao redor, estava começando a ficar ruim
de enxergar. — Resgate! — berrei, procurando-a. Busquei em todos
os lugares do quarto, da sala, e da cozinha.
Nada.
— Porra! — Olhei o relógio. — Dois minutos.
Uma explosão fez tudo estremecer.
Onde você está? Meus ouvidos zumbiam, não conseguia
escutar direito, o som do incêndio era ensurdecedor, os estalidos de
madeira e coisas desabando criavam uma cacofonia horrível.
A criança parecia não estar aqui, mas algo me dizia que sim
ela estava, só precisava descobrir onde. Voltei para o quarto
buscando qualquer pista que me dissesse onde ela se escondeu,
não havia nenhum sinal.
— Onde ela está? — Connor olhou ao redor. — Ela fugiu.
— A porta estava trancada por dentro! Ela está aqui.
Se estivesse desmaiada, então poderia já ter sido
envenenada por dióxido de carbono, não ia me responder por mais
que eu gritasse.
Onde você está criança? Olhei ao redor mais uma vez e, por
uma intervenção Divina, eu soube onde ela estava.
Era o único lugar que não procurei. Correndo para o
banheiro, deparei-me com a luz apagada e o silêncio sepulcral. A
cortina do boxe estava esticada, a pia estava cheia de água e o
chão ensopado.
— Criança esperta! — Empurrei a cortina, encontrando-a
encolhida dentro de banheira cheia d’água. — Sou a ajuda, querida.
Ela tinha aproximadamente oito anos, tinha os cabelos
escuros e seus traços eram latinos. Ela se salvou quando encheu a
entrada da porta com toalhas e encharcou o chão.
— Tudo bem, vai ficar tudo bem. — Ergui as mãos, me
aproximando. Ela estava com os olhos arregalados, encarava-me
sem piscar, um tecido molhado cobria seu nariz e boca.
— Venha comigo, querida, não tenha medo, eu vou te tirar
daqui. — Eu a peguei nos braços, correndo em direção a sala.
— As janelas têm proteção!
Mais uma vez, Connor pareceu mais como uma vítima do que
um bombeiro. Seu comportamento me deixava nervoso, pois não
gostava de lidar com bombeiros que perdiam a linha quando não
podiam se dar ao luxo de fazer isso.
— Vamos derrubar então! — Apressei-me em direção a
varanda.
O meu relógio apitou quando o tempo que eu estimei
terminou, outra explosão abalou o prédio, a criança gritou. Nos
breves instantes que antecederam o caos, eu me senti ansioso para
o que estava por vir.
Uma emoção violenta me dominou, o fogo alcançou a porta
do apartamento e foi invadindo o espaço tão rápido que me
surpreendeu. O piso de madeira estava sendo consumido como se
fosse folha seca. Num piscar de olhos estávamos presos entre a
varanda e a sala.
— Não tenha medo. — Deixei a menina no canto da varanda.
Ela não disse uma palavra, só manteve os olhos arregalados, então
começou a tossir de maneira terrível e sufocante. — Aqui. — Tirei a
minha máscara, colocando-a nela.
Com cuidado, ajustei o cilindro em suas costas. Quebrar o
protocolo era um erro gravíssimo, mas era isso, ou correr o risco de
que ela se intoxicasse gravemente ao ponto de não resistir.
Antes de derrubar nosso caminho até a saída, peguei o
tecido que ela tinha enrolado no rosto, e o coloquei no meu. Estava
úmido ainda, serviria.
Tentei não tomar respirações muito profundas, infelizmente,
não levou muito tempo para que eu começasse a sentir-me
letárgico. Por mais que eu houvesse colocado uma “proteção”, ela
não era boa o suficiente, devido a quantidade de fumaça que
entrava pela janela.
— Vamos ter que arrancar essa proteção. — Apontei o local
que Connor deveria ficar. — Você puxa aqui, enquanto eu bato.
Meus olhos arderam por causa da fumaça, os pulmões
começaram a queimar.
— No dois. — Tomei distância. — Um... dois... — Me joguei
contra a grade enquanto Connor a puxava. Reparei que era menor
que o espaço da janela, isso facilitaria para nós.
— De novo — arquejei, tossindo.
Joguei meu corpo com todas as minhas forças e a estrutura
afrouxou mais um pouco. Foram necessárias cinco pancadas, antes
de a proteção desprender.
Apressado puxei o comunicador.
— Sargento Davis, na escuta? — Antes que houvesse
resposta, eu limpei os cacos de vidro.
— Davis na escuta, estamos prontos, Capitão, proteção
instalada abaixo da varanda, seja rápido, o prédio mostra sinais de
falha. — Fui avisado, e o alívio de finalmente conseguir tirar a
menina daqui me preencheu.
Quando me virei para ir até ela, pontos pretos piscaram
diante dos meus olhos. A minha cabeça se tornou pesada, os
pensamentos pareciam soltos.
Merda...
— Você vai ficar bem. — Eu retirei o suprimento de ar, e a
joguei antes que pudesse entender que ia despencar do quarto
andar. — Agora você, Connor.
Pontos pretos piscaram diante dos meus olhos, apressado
comecei a mexer no cilindro para recolocar a máscara, mas um
chute o jogou para longe de mim. Na hora, eu fiquei calmo, então,
devagar, olhei para Connor.
— Eu tive que esperar essa oportunidade por longos anos. —
Ele apontou a arma em minha direção. — Ajoelhe-se, quero que
você morra de joelhos perante mim.
Um sorriso desenhou-se em minha boca.
— Ajoelhe-se, porra! Você será executado como eu quero
que seja, não há para onde escapar. — Ele atirou na minha perna,
sua intenção era que eu desabasse, mas não foi o que aconteceu,
ao contrário, eu o ataquei.
Eu só tinha uma chance, e a usei.
Puxando seu braço com a arma, eu o quebrei tão rápido que
seu grito reverberou mais alto que o fogo estalando. A adrenalina
estava correndo por minhas veias como um combustível insano, era
vida ou morte, eu não me importava, mas seria maldito se não
levasse esse filho da puta comigo.
Antes que Connor pudesse entender o que estava
acontecendo, arranquei sua máscara de oxigênio, esmurrando-o na
garganta.
Por causa da roupa, o golpe não pegou com a intensidade
que quebraria sua traqueia, mas, nas condições que estávamos,
com a fumaça e tudo mais, foi suficiente para que começasse a
sufocar.
— Você mexeu com o Demonidhes errado, porra! — Chutei
suas costelas. — Não deveria ter me atacado aqui, quando estou
dando a mínima pela minha vida. — Eu o peguei pelas pernas, ele
começou a me chutar, eu recebi os golpes, gostando da dor, de
como meu corpo implorava por descanso. — Mas eu adoro queimar
coisas, e hoje vai ser você.
Connor arquejou, tossindo, louco por respirar. Eu o arrastei
em direção a sala, lá o fogo estava mais forte. Nossas roupas nos
protegiam, mas não da intoxicação. Eu já sentia o peito
comprimindo.
Uma tontura foi me varrendo, não me permitindo ficar em pé,
ao ponto de eu acabar desabando ao lado do bastardo. Ele estava
tentando levantar-se, certamente para escapar.
Não tão rápido! Eu o ataquei como podia, ele revidou.
Lutamos em meio àquele inferno pela sobrevivência. Eu já
estava perdendo a força, era por pura raiva e o treinamento
implacável da Ordem que eu estava aguentando.
Um golpe particularmente ruim me atingiu na perna, a dor
lacerando parecia rasgar o tecido, mas não me importei. Já havia
levado tiros demais e sofridos lesões graves para ser parado
apenas por isso.
Foda-se! Já estava na hora de acabar essa merda, em outras
circunstâncias eu estaria brincado com a minha presa, queimando-o
pedaço por pedaço, arrancando a pele, fazendo implorar pela morte.
Sorte dele, que tudo o favorecia para uma morte
ridiculamente rápida.
Connor tentou escapar em direção a varanda, mas não foi
capaz, pois eu travei o braço em sua garganta começando a sufocá-
lo.
— Não se deve brincar com um Demonidhes — murmurei em
seu ouvido. — Seremos nós dois, Connor, você não vai sair daqui.
Prometi, apertando sua garganta, usando toda força que meu
corpo esgotado possuía.
Sentia-me enfraquecer rápido, como se minha vida estivesse
sendo drenada. Não era tolo, eu sabia que eram os pulmões
falhando. Não podia respirar fundo, alimentando os músculos com
energia suficiente para aguentar o tempo necessário, eu estava
sufocando.
— Eu também sei jogar sujo — ofeguei, tonto enquanto
recebia seus golpes na tentativa de escapar daquele aperto mortal.
— Quando tiver um Demonidhes na mira, apenas mate. Agora leve
ao inferno as minhas considerações, bastardo!
Quando seu corpo afrouxou, eu soube que havia acabado,
mas, por puro prazer, ajustei o agarre em seu pescoço e, como uma
alavanca, usei meu corpo para quebrá-lo.
Com muita satisfação ouvi o estalo agudo da cervical.
— Merda! — O empurrei para o lado, lutando para me
levantar.
Estava levando tempo demais, o problema é que meu corpo
não me obedecia. Quando encontrei forças para sair daquele
inferno, outra explosão fez o prédio tremer. Fui arremessado de
encontro a parede da varanda. Na hora, perdi o agarre com a
realidade, o que restava do fôlego escapou dos meus pulmões
numa única baforada.
Não consegui levantar-me.
Senti-me completamente desorientado, com o peito
queimando. Um zumbido fez meus ouvidos doerem, não conseguia
sair do lugar onde havia caído.
Parece que o fogo vai mesmo ser o seu carrasco, grande
bastardo. O pensamento me deu vontade de rir, e se aqui seria a
minha sepultura, não ia me privar de nada. Jogando a cabeça para
trás, comecei a rir.
— Que merda do caralho. — Uma tosse absurda me fez
sentir ainda mais sufocado, era como se meus pulmões estivessem
do tamanho de uma moeda.
As coisas começaram a entrar e sair de foco, era impossível
me mexer. Por um momento, eu pensei em fechar os olhos e parar
de lutar contra a dor opressora em meu peito, ou a necessidade
esmagadora de respirar.
Eu sabia o que era tudo isso que eu estava sentindo, meu
corpo ia entrar em colapso a qualquer momento.
Vai ser rápido, logo você vai apagar, não vai doer... Convenci-
me, notando que todas as minhas tentativas de levantar se
mostraram inúteis.
Não tinha força para mais nada, pontos pretos piscavam
diante dos meus olhos, a dor no peito estava aguda, e cada
pequena respiração era superficial demais para que fosse o
suficiente.
— Puta que pariu! — Por um breve momento a situação
divertiu-me, então meus olhos começaram a fechar, em meio ao
calor, estranhamente, começava a sentir frio.
O corpo já não se sentia mais tão pesado, era como se
estivesse flutuando. Talvez, se eu me esforçasse muito,
conseguisse sair daqui, afinal havia lutado por minha vida agora e o
vinha fazendo desde que tinha consciência.
Jamais deixaria que um bastardo filho da puta escolhesse por
mim.
Era minha decisão.
Morrer era somente minha decisão.
Estava escolhendo esperar — acima de qualquer força de
vontade para levantar-me e saltar para a segurança —, estava
ficando aqui. Era uma questão de instantes e pronto.
— Chega de ser atormentado pelas coisas que eu não posso
mudar. — As palavras saíram engasgadas, precisei de um esforço
colossal para vocalizar, sentia a garganta fechando cada vez mais.
Era bom sentir que seria atormentado pelo desejo de
alimentar dia após dia o vício que era o único responsável por eu
sentir que ainda estava vivo.
Quando a adrenalina queimava em minhas veias, fazendo
meu coração acelerar, eu sabia que estava vivo e essa sensação
havia se tornado um vício, que apenas piorava com o passar o
tempo.
Antes o que me motivava perdeu o sentido, e estava indo
cada vez mais fundo na tentativa de encontrar aquela centelha
primordial que mantinha meu fogo aceso, mas, até aquele momento,
não havia encontrado, e me sentia cansado demais para continuar
procurando a paz que me faria não sentir culpado por ter perdido as
duas pessoas mais importantes da minha vida.
Perdoe-me, Cassy.
Ela sempre seria uma das minhas dores mais profundas, e
estava tão enraizada dentro de mim que nada nessa Terra seria
capaz de curar-me.
— Não suporto mais isso! — arquejando, senti os olhos
arderem.
Não tinha a ver com o fogo ou a fumaça. Era apenas
decepção comigo mesmo, de estar aqui, desistindo da minha vida
porque estava cansado de viver uma farsa, de fazer todos
acreditarem que eu era despreocupado, quando, na verdade, era
justamente o contrário.
— Filho... — Ouvi a voz forte, carregada com o sotaque que
eu conhecia tão bem.
Meus olhos arderam, mas ficou nisso. Há muito tempo eu não
sabia o que era chorar. Em minha loucura, pude ver a imagem do
meu pai surgindo diante de mim. Ainda que eu soubesse não ser
real, e que essa fosse a minha última visão consciente, era bom
demais poder vê-lo outra vez.
— Pai... — Ergui a mão para tocá-lo, mas ele balançou a
cabeça, encarando-me com aquela expressão estoica tão
semelhante a de meu irmão mais velho.
Estranhamente, o rosto dele parecia muito com o de Rafael,
era como se eu estivesse vendo uma mistura dos dois.
— Sinto muito. — Tossi, com o peito dolorido e a mente
começando a se perder. — Pai, sinto muito, por tudo.
Por ser o filho mais louco, o mais difícil de controlar, por tê-lo
feito me buscar em todas as confusões que me meti, por
simplesmente tê-lo feito se arrepender de ter me escolhido quando
eu era nada mais que uma casca vazia de um homem.
— Você não tem um propósito a cumprir? — Sua voz pareceu
retumbar em meus ouvidos, e ela parecia misturada com a de
Rafael. — Você é meu filho, é um Demonidhes, levante-se!
Ele sempre dizia isso. Sempre fazia questão de deixar claro
que éramos uma unidade, e que deveríamos lutar para nos
mantermos. Todas as vezes que treinei, que pensei não ter força
para ficar de pé, meu pai fazia questão de mostrar o contrário.
Levantar-se, sempre seguindo adiante era uma obrigação
dos filhos de Roman. Lutar até o fim também.
— Você e seus irmãos são o meu legado, são a minha
unidade, devem permanecer unidos, você não pode abandoná-los!
— Havia uma fúria incontida naquela voz que a cada instante
parecia mais com a de Rafael. — Vá para casa.
Não posso abandonar meus irmãos... O pensamento me
fortaleceu, acelerando meu coração quando pensei neles.
— Levante-se, filho. — Aquela voz ecoou como um berro
furioso em minha consciência. — Agora!
Obrigando-me a ficar de pé, precisei de cada grama do que
restava das minhas forças, minhas pernas estavam bambas, a que
levou o tiro mal conseguia arrastá-la.
São só dois metros, bastardo! Arquejei, a falta de ar deixou-
me a um passo de perder os sentidos. Quando, finalmente cheguei
na janela, só tive tempo de deixar metade do corpo para fora
quando outra explosão soou.
Fui arremessado, antes de apagar, senti o fogo me
abraçando.
2
Gabriel Demonidhes

A sensação que eu tinha era de que estava afundado na


maior ressaca da minha vida. A cabeça parecia que ia explodir e a
garganta estava tão seca como o deserto em pleno verão.
— Água... — murmurei com esforço, sentindo os lábios
ressecados e a língua grossa. Estava tendo dificuldade para falar.
Tentei me mexer, mas tudo doía pra caralho. Era como se
tivesse acabado de sair de um ringue em que fiz sparring[2] com
Heylel e Lysander. Quando tentei me mexer outra vez, um gemido
escapou.
Finalmente havia percebido que não era uma boa ideia tentar
sair do lugar.
Abrindo os olhos, concentrei-me ao redor. A primeira coisa
que vi foi um teto branco e uma luz claríssima machucando meus
olhos; depois, deparei com o olhar gelado de Lysander.
O modo fixo, inexpressivo e totalmente estranho que ele me
encarava poderia deixar qualquer um desconfortável em sua própria
pele e, dependendo da situação, isso me incluía. Era apenas
detestável que ele e Rafael tratassem os outros irmãos como se
fossem os donos desse negócio de liderar a família.
Rafael, por ser o chefe, era pior, mas, foda-se, isso irritava
pra caralho.
— Irmão... — tossi, quando ele se aproximou, e começou a
verificar os aparelhos conectados em mim. — O que houve?
— Não sei, diga você. — A voz de Lysander soou
mortalmente baixa, e tão controlada que eu pude ouvir o meu
coração acelerar no aparelho.
Ele, Rafael e Draikov eram os mais velhos. Porém, diferente
dos outros, desde que perdemos nosso pai, Lysander tomou para si
a responsabilidade de ser um irmão mais velho implacável e, depois
de quase perdermos Heylel no ano passado, ele se tornou pior.
Não conseguia evitar o nervosismo que sentia todas as
malditas vezes que Lysander ou Rafael ficavam putos comigo. Era
como se eu voltasse a ser o bastardo de quinze anos
superprotegido pelos irmãos mais velhos.
Era irritante, vergonhoso, mas, ao que parece, eles não se
importavam com isso.
Porra!
— Água... — Olhei ao redor, sentindo coisas estranhas no
meu corpo.
Coisas que incomodavam intimamente e que me deixavam
consciente demais, porque ardia onde não deveria arder.
— Alguma coisa está estranha. — Fiz careta, o desconforto
foi aumentando, conforme eu fui sentindo meu corpo, desde os pés
até a virilha.
— Fica calado! — Ele anotou alguns dados e, por mais que
eu quisesse rebater, não o fiz.
Esperei, pacientemente, que terminasse suas anotações,
depois pude notar o breve e quase imperceptível sorriso que se
desenhou no canto de sua boca quando ele puxou o lençol,
descobrindo meu corpo, e me deixou ver a fonte do incômodo.
— Que porra é essa? — engasguei-me, encarando o tubo
enfiado no meu pau. — Tira... — engoli em seco, nervoso de ver
aquilo ali — ... essa porra do meu pau. Tira isso agora!
Olhei para Lysander, ele havia cruzado os braços, encarando-
me como se ter uma sonda enfiada no pau não fosse o maior dos
meus problemas agora.
— Tira!
— A sonda para urinar vai ficar onde está. Se você me irritar,
eu vou colocar uma sonda em outro lugar então... — Ele inclinou
para mim, estreitando os olhos. — Não me irrite.
— Bastardo. — Estremeci, porque, de algum modo, eu
estava sentindo cada parte daquela porra. — Sádico do caralho!
— Com toda certeza! — Ele se aproximou, até estar cara a
cara comigo.
Com a mão, ele empurrou meu peito para que eu ficasse
deitado. O fato de não poder oferecer nenhuma resistência, porque
estava fraco demais, foi a gota d’água. Meu corpo esquentou de
raiva e eu me vi pronto para começar a brigar, entretanto, algo me
dizia que era melhor ficar quieto.
Nos encaramos por alguns instantes, então Lysander deixou
um pouco do seu controle escorregar.
Os olhos verdes sempre tão frios acenderam com uma fúria
que aterrorizaria quem não o conhecesse. Lysander era parecido
com Heylel nesse quesito, total e completamente no controle de
suas emoções, o que nós enxergávamos era o que ele nos permitia
ver.
E ele sempre escondia o pior, sob muitas camadas de
indiferença.
— Irmão... — murmurei, ele apenas estreitou os olhos ainda
mais.
— Você não seguiu o protocolo de segurança — disse baixo,
era quase impossível ver Lysander levantar a voz, nada conseguia
quebrar o controle sempre tão seguro do grande bastardo. — Você
arriscou a sua vida, além do que deveria.
— Eu sou um bombeiro da divisão de incêndio e resgate. —
Forcei as palavras, não gostava de deixar meus irmãos
preocupados comigo, ainda que minha profissão fosse por si só,
arriscada. — Acha que eu brinco com fogo?
— Você tirou a máscara, demorou demais para sair! —
rosnou, na típica pose de irmão mais velho. — Sabe quanto faltou
para que você caísse fora da rede de proteção? Menos de um
metro, sabe como foi acalmar Amira?
Porra! Outra vez o monitor cardíaco apitou.
— O que aconteceu? — ofeguei, sentindo o peito apertado.
— Ela está bem? O bebê?
— Agora está tudo bem, mas ela teve uma crise de
ansiedade horrível, porque acreditou piamente que você estava
morto e não queríamos contar. Eu acessei o relatório do resgate,
você foi negligente e descuidado, além de que tomou um tiro. Por
que diabos você tomou um tiro, porra?
— Eu fiz o meu trabalho! E claro, o meu “parceiro” era da
Cöntrax. Ele queria que eu me ajoelhasse. — Comecei a rir, mas
logo tudo se transformou numa tosse miserável que fez com que eu
me sentisse estar afogando.
Tentei não me sentir tão vulnerável, pois não gostava de estar
nesse papel de vítima. Mas era difícil se impor quando estava na
porra de uma cama.
— Você e esse desejo louco por adrenalina, por viver
perigosamente... — Lysander parou, então puxou a respiração e
com prazer indisfarçável disse: — Você está afastado do seu
trabalho por tempo indeterminado. Vai ter tempo para esfriar, digo,
se recuperar. — Ele se afastou. — Em casa, sob nossos cuidados.
Irei solicitar pessoalmente que Chronus faça uma varredura em todo
departamento. Se por acaso eu achar algum suspeito, farei questão
de eliminá-lo eu mesmo. — Ele me olhou fixamente. — Deixarei
como aviso para quem ousar ir atrás de vocês.
Por alguns momentos, eu fiquei sem palavras, era tão
absurdo que Lysander se metesse na minha vida desta maneira que
o desejo de brigar voltou ainda pior.
— Não sou uma criança! — rosnei, tentando levantar-me,
mas o meu maldito corpo não estava respondendo. — Não se meta
nos meus assuntos, porra!
— Não, você não é, mas gosta de viver como se fosse
invencível. — Ele abanou a mão. — Primeiro, não era nem para
estar aqui, mas como te levar para a porra do Complexo quando
você chegou no resgate do Corpo de Bombeiros quase morto?
— Ócios do ofício.
Lysander não disse nada, se continuasse terminaríamos
tendo problemas. Ele sabia que eu era rebelde mesmo e não agia
de acordo. Era somente por estar com uma sonda no meu pau, que
eu estava quieto.
Não ia arriscar machucá-lo de jeito nenhum.
— Heylel está fazendo a guarda da sua porta, ou esqueceu
que estamos todos marcados para morrer? Não duvido que
poderiam te atacar aqui, quando, obviamente, você parece o
escolhido da vez. — Lysander empurrou o cabelo para trás. — Eu
espero que você tenha ao menos acabado com o bastardo que te
feriu.
— Claro, quebrei o pescoço. — Dei de ombros.
— O mínimo. — Lysander estreitou os olhos, deixando claro
que, se fosse ele, teria feito muito pior. — Parabéns, irmãozinho,
você está de férias. Vai ficar um tempo sem nos dar dor de cabeça.
— É o caralho do meu trabalho, e eu fui atacado, porra! —
explodi, a raiva esquentou meu sangue ao ponto de eu sentir a
cabeça começar a latejar e a respiração ficar mais difícil.
— O tiro não foi o problema, mas o fato de você ter removido
o seu equipamento de oxigênio. — Cruzou os braços. — Repito,
você foi descuidado, e a consequência disso foi bem grave. Outra
coisa, se você estivesse completamente no controle de suas
funções, teria notado o movimento do seu parceiro quando ele te
atacou. A não ser, é claro, que tenham o hábito de fazer resgates
balançando armas.
— Vá se foder, Lysander.
— Suponho que não — continuou como se eu não houvesse
dito nada. — Não há discussão, irmãozinho, você está afastado do
seu trabalho.
— Você e Rafael não podem agir como ditadores! — berrei,
machucando a garganta ainda mais. — Eu não sou uma criança de
merda!
Comecei a arrancar os aparelhos que estavam conectados
em meu corpo. Lysander cruzou os braços, não dizendo uma
palavra quando puxei a intravenosa e o sangue jorrou. A breve dor
apenas fez minha raiva aumentar.
Quem ele pensa que é, porra?
Rafael e Lysander precisavam de limites. Caralho, eles não
podiam tratar os irmãos como se fôssemos malditas peças de jogo.
— Estarei fora dessa merda de hospital em cinco minutos! —
falei alto, ignorando que eu me sentisse fraco como um filhote de
cachorro.
Quando me preparei para arrancar a sonda de urina, as
palavras de Lysander me fizeram congelar:
— Cuidado, se você puxar errado vai lesionar o seu pau por
dentro, então, sim, você terá um grande problema, irmãozinho. —
Ele parecia até se divertir.
Claro que sim, afinal tinha alguém sofrendo.
Bastardo!
— Tire isso de mim! — exigi, cruzando os braços.
— Como quiser.
Observei meu irmão colocar luvas e se aproximar, então, com
cuidado ele pegou meu pau, começando a retirada da sonda.
Quando vi aquela porra longe de mim, o alívio foi tanto que me senti
tonto.
— Deite-se. — Outra vez, a mão de Lysander espalmou em
meu peito, ele empurrou gentilmente. — Aliás, feliz Natal e feliz Ano-
novo. Você passou quinze dias fora do ar, ainda não está nem perto
de estar totalmente recuperado. Então, apenas colabore comigo,
caso contrário irei usar restrições. — Um brilho perverso acendeu
em seus olhos. — Você sabe que não irá conseguir se soltar.
— Como assim feliz Ano-Novo? Quinze dias? — Sentia como
se toda a minha energia houvesse evaporado após a pequena
explosão de raiva. — Perdi o Natal e o Ano-Novo? Porra! — Fechei
os olhos, sentindo-me tonto e um pouco enjoado. — Estou exausto,
merda.
— Sim, estamos oficialmente em janeiro de 2018. — A voz de
Lysander soou próxima. — E sim, você está exausto. Inalou fumaça
tóxica o suficiente para me deixar muito nervoso. Estou usando
broncodilatadores e estão funcionando muito bem. Mas vai levar
tempo para que volte a plena forma.
— Então, eu estou ótimo. — Me animei, logo mais eu voltaria
a minha rotina.
E ao trabalho com certeza. Eu gostava do que fazia, na
verdade, eu precisava dessa rotina louca, da constante exposição
ao perigo, da adrenalina que estar entre a vida e a morte me
proporcionava.
Esse era o meu combustível, o maldito vício.
— Faltou isso para você ser entubado. — Lysander juntou o
polegar o indicando, deixando uma brecha quase imperceptível. —
Seus pulmões precisam de tempo para se recuperar, e, como eu
disse, você está afastado.
— Uma porra!
— Você pode discutir com Rafael sobre isso. — Lysander
arqueou a sobrancelha. — Você vai precisar de uma autorização do
seu médico garantindo que está apto para voltar ao trabalho.
— Lysander...
— É isso, irmãozinho, como seu médico, eu digo que você
não vai voltar tão cedo. Apenas, e quando eu tiver plena certeza de
que não corre nenhum risco de ter uma recaída, ou que seus
pulmões apresentem problemas, é que eu vou te liberar. Até lá, nem
pense, você não pode lutar comigo e com Rafael ao mesmo tempo.
— Razhiel vai me ajudar, ele vai...
— Fazer nada. — Lysander alisou um amassado invisível de
seu jaleco. — Apesar dos seus trinta e dois anos, ainda age como
uma criança descontrolada, então vamos te tratar como uma. Nada
de fugas, nada de resgates, nada de... nada.
— Isso é ridículo.
— Pois é. Você arriscar sua vida como se ela não valesse um
maço de cigarro, é, de fato, ridículo.
— Eu não arrisquei porra nenhuma, a criança precisava ser
salva.
— Não à custa da sua vida! — A voz do meu irmão alterou-
se, mas logo tratou de controlar-se.
Talvez de todos nós, e por sua posição, ele nunca poderia
perder o controle. Até onde sei, não houve na história da Ordem, um
torturador como Lysander, e que houvesse recebido o título de
Mercador da Morte, por ser a própria encarnação dela.
— Eu salvo vidas, irmãozinho, como você! — Toquei na sua
ferida. — Minha vida não vale menos que a de qualquer vítima que
eu já tenha salvado.
— Para mim vale. Não importa quem esteja na linha de
frente, foda-se. — Sua boca torceu, como se quisesse sorrir, mas
não soubesse como. — O meu juramento está abaixo da minha
lealdade para com meus irmãos, se vocês estiverem na linha de
frente, então eu removerei o que estiver no caminho para salvá-los,
não importa o quanto eu precise ser hediondo. Acredite, eu serei.
Por um breve instante, ele me permitiu ver que toda essa
situação o havia afetado. Talvez, eu não tenha chegado aqui na
melhor das condições, e Lysander era insuportavelmente rígido
quando se tratava da segurança de sua família.
— Lysander, meu irmão...
Ele balançou a cabeça, deixando claro que nada do que eu
dissesse o faria mudar de ideia. Infelizmente, Lysander era como
uma montanha, impossível movê-lo do lugar, o bastardo seguia
apenas o seu código, claro. Talvez, Rafael fosse o único que ele
ouvia.
Ambos pensavam quase igual.
— Você se arriscou demais quando retirou a máscara e a
colocou na criança. — Ele parou um momento, como se estivesse
pensando em outra coisa. — Entre a saída dela e a sua levou três
minutos. Vou acreditar que você usou todo esse tempo para lutar
por sua vida.
— Claro que sim.
Lysander inclinou a cabeça, o cabelo preto, mais longo que o
normal caiu em seus olhos.
— Eu odeio mentiras.
— Eu também. — E ele sabia o quanto eu estava falando
sério.
— Então vai entrar nesse jogo que nós dois sabemos quem
vai ganhar? — Ele se afastou. — A partir de hoje, você vai fazer
fisioterapia respiratória, vai ficar de molho em casa, irmãozinho.
— Eu estou me sentindo ótimo, e voltar à rotina será o melhor
para mim.
— Respire fundo. — Obedeci, mal pude encher o peito antes
de começar a tossir feito um condenado. — Calma. — Lysander me
ajudou, ele me puxou para si e esfregou minhas costas num ritmo
que foi aliviando meus sintomas. — Deite-se, devagar.
Não pude discutir, as reações do meu corpo apenas
corroboravam com cada uma de suas palavras. Estava afundado
até o pescoço na merda, só de imaginar ficar em casa, quieto, era
desesperador.
— Caralho. — Minhas mãos tremiam, o corpo todo na
verdade. — Me sinto fraco.
— Sim, porque seus pulmões estão com problema, então
você vai sentir mais cansaço que o normal, e não vai poder realizar
muitas atividades, até que seu médico libere. — O jeito como ele me
olhou, fez-me sentir uma sensação de que algo gelado descia por
minha coluna. — Eu já te disse que você foi afastado? — Estreitei
os olhos, cruzando os braços outra vez. — Ah, eu disse.
— Você e Rafael são responsáveis pelo meu afastamento! —
Balancei a cabeça, cansado até para ficar puto.
— É óbvio que sim. — Ele estendeu um copo com água. —
Beba devagar.
Estava sedento ao ponto de ignorar o conselho de Lysander
e beber tudo de um gole só. Na hora, o prazer virou-se contra mim,
pois a água, apesar de acalmar a minha garganta, não caiu bem no
estômago.
— Merda! — Fechei os olhos, para que a sensação ruim
passasse logo.
— Eu não vou dizer, eu avisei. — Havia um ar divertido no
meu irmão.
Na verdade, todos nós estávamos “desbloqueando” certas
coisas desde que Amira entrou em nossas vidas. Havia certa
suavidade em nós, para que, de algum modo, a vida para ela não
fosse tão difícil.
Já era complicado o suficiente que fosse a esposa do Senhor
da Ordem, ser amada por seus generais, a colocava com um
gigantesco alvo nas costas e, infelizmente, a nossa gatinha era
propensa a pensar demais e imaginar os piores cenários possíveis e
era estupidamente inteligente para tentarmos enganá-la.
— Me sinto péssimo. — Coloquei um braço no rosto,
cobrindo os olhos.
— Óbvio que se sente, agora coloque a máscara de oxigênio
de volta.
Obedeci, pois não adiantava discutir. Lysander estava em seu
elemento, e eu em desvantagem, não ia chegar a lugar algum ir
contra sua vontade principalmente quando ele era um bastardo
inflexível até a medula.
Recoloquei a máscara e o alívio foi imediato. Até fechei os
olhos e respirei fundo, satisfeito por conseguir puxar ar e não sentir
que estava com uma banda de aço me apertando.
— Viu, eu sempre tenho razão — Lysander brincou, eu nem
me dei ao trabalho de rebater.
Uma batida à porta me fez gemer, não queria que Rafael se
juntasse a ele no linchamento. No geral, eu sempre recorria a piada
e diversão até nos piores momentos para esconder que chateá-los
me afetava, mas agora, eu só queria silêncio e não me sentir tão
péssimo.
— Dr. Demonidhes, um alerta nível quatro está chegando, o
senhor é esperado na emergência.
Meus olhos foram guiados para a belíssima enfermeira.
Observei a postura do meu irmão mudar. Ele pegou o aparelho
eletrônico, entregou para a mulher e saiu apressado.
Dei-lhe uma olhada mais demorada, sorrindo. Ela pigarreou,
colocando o cabelo atrás da orelha. Infelizmente, hoje, não era um
dia para testar os limites.
— Olá, docinho. — Ergui a mão e ela me encarou com os
olhos muito azuis.
— Eu vim aqui ajudá-lo. — Observei quando retirou
discretamente a aliança e a guardou no bolso do jaleco.
Uma traidora dissimulada, eu tinha verdadeira aversão a
pessoas assim, tanto que a presença dela começou a me incomodar
quase que instantaneamente.
Queria-a fora do quarto.
— Por que escondeu a aliança? Isso não muda o fato de ser
casada, querida — falei educadamente. — Coloque-a de volta e
retire-se do quarto.
— Está quase na hora de seus medicamentos. — Sua voz
gentil apenas me deixou irritado.
Era uma mentirosa. Coitado do idiota que era seu
companheiro, deveria ser enganado com facilidade por essa voz
doce e olhos bonitos.
Puta!
— Apenas saia! — Ela franziu o cenho encarando-me como
se eu fosse louco.
— Aqui diz que eu devo ajudar o senhor no banho.
Lysander, bastardo!
— Eu agradeço, mas terei que gentilmente rejeitar sua oferta.
— A minha garganta estava dolorida, falar só piorava a situação.
— Isso foi por que eu tirei a aliança?
— Com toda certeza. — Cruzei os braços. — Não que eu
seja um puritano, mas eu prefiro lidar com mulheres que assumem
seus desejos e não tentem me enganar. Agora saia.
— Não!
Estreitei os olhos, era um absurdo que todo mundo quisesse
me impor as coisas. Não bastasse Lysander e Rafael, agora até a
enfermeira?
— Fora daqui porra! — Ela pulou assustada, eu comecei a
tossir como um filho da puta.
Por um momento não consegui puxar o ar, a sensação foi de
esmagamento, como se uma tonelada acabasse de ser colocada
em cima do meu peito.
A porta abriu outra vez e, para a minha felicidade, Heylel
entrou. Ver a enorme cicatriz recortando sua face fez o passado
voltar como uma explosão dentro da minha cabeça.
As imagens rodaram num caos assustador. Primeiro Cassy e
seu pequeno corpo brutalizado, o último contato com meu pai, e,
então, Heylel ensanguentado. O horror do seu resgate, a certeza de
que havíamos perdido nosso pai, e o que se seguiu após o
abandono de Draikov, e, por último, quando quase perdemos Heylel
de novo.
Tudo isso bateu em mim, pois durante algum tempo — um
longo tempo — meu irmão lutava para se manter conosco, como eu
vinha lutando arduamente durante o último ano.
Mas era sempre assim, Heylel mergulhava nos combates
como se sua vida não valesse uma moeda, nós tivemos que ficar ao
seu redor e, quando Rafael percebeu, o isolou para protegê-lo. Se
Rafael soubesse o que estava acontecendo comigo, e que eu ia
apenas esperar que o fogo me levasse, eu seria preso também.
Preso outra vez... E só de cogitar a hipótese, começava a
enlouquecer.
— Porra... — Fechei os olhos, lutando contra a sensação
opressora que começou a rastejar por meu corpo.
Sentia como se fosse explodir e precisava disfarçar antes que
fosse tarde demais.
— Nos deixe, por favor. — A voz do meu irmão soou como
um bálsamo, logo senti seus braços a minha volta. Ele me apertou
forte, não me deixando desabar. — Está tudo bem, irmãozinho. — O
abracei como se minha vida dependesse disso.
Tossindo, sem controle do meu corpo ou mente, eu apenas
me agarrei a ele. Suas mãos calosas esfregaram minhas costas, ele
me segurou firme, ajudando-me a atravessar essa situação e
merda.
— Está melhor? — Acenei. — Você precisa falar com
Lysander sobre isso. — Neguei.
— Eu não tenho nada.
— Eu vi em seus olhos, eu percebi. — Suas palavras me
deixaram em alerta. — Você demorou a sair, porque não queria sair,
não é? — Dei um aceno curto. — Tenho te observado, meu irmão,
eu sei o que você ia fazer.
Heylel era a porra de um Sentinela, ele possuía todas as
nossas malditas habilidades juntas, a ele nada escapava. Quando
queria, poderia, sim, ser pior que Rafael.
E agora, ele queria ser.
— Você acha que vai esconder essa veia suicida de Rafael?
Você não vai, nosso irmão nos conhece e ele tem o observado mais
de perto. Você vai ter que ser muito mais convincente, se quiser
enganá-lo.
— Heylel...
— Nas últimas missões, você apenas mergulhou de cabeça
nos combates. Eu já passei por isso, então, irmão, não tem como
esconder de mim, e garanto, mais cedo ou mais tarde, Rafael e
Lysander irão notar. — Mordi a bochecha até o sangue explodir em
minha boca. Não queria imaginar o que poderia acontecer se eles
percebessem. — O que você acha que vai acontecer quando eles
descobrirem?
— Não importa, não irão perceber — tossi, apoiando a
cabeça no peito de Heylel. — Eu não tenho que dizer nada, eu
escolho como vou morrer, não vou ser pego numa emboscada como
se fosse um maldito pato.
Depois que minha casa foi explodida e que Lysander sofreu o
atentado após sair do plantão, eu comecei a ter essa sensação de
que estava preso numa rede. Como se alguém pudesse decidir por
mim o meu destino.
Em partes, era como estar de volta àquelas épocas
longínquas. O mero pensamento de alguém com esse tipo de poder
sobre minha vida enlouquecia-me.
A minha vida era apenas minha para decidir o que porra
fazer. Era minha para eu tomar quando eu quisesse.
— Eu vou ficar de olho em você, Gabriel, e se eu notar que
está querendo levar essa ideia adiante, eu mesmo direi a Rafael.
Quando abri a boca para dizer que ele não tinha o direito, a
voz de Rafael soou alta e clara o suficiente para parecer que ele
havia escutado o que não deveria:
— Dizer o que para mim?
Olhei para o meu irmão mais velho e líder. Ele estava parado
à porta, recostado displicentemente, numa postura relaxada. As
mãos estavam dentro dos bolsos da calça, era a imagem da
indiferença.
Seria tolo se eu acreditasse nisso. Nada escapava à Rafael,
ele era assim, poderia aparentar tranquilidade, mas num piscar de
olhos atacava.
— Não ouvi você entrar. — Lutei para respirar normalmente,
qualquer erro da minha parte ele perceberia.
Como Heylel percebeu, talvez Lysander também.
Deus...
Rafael era o caçador-mestre, sempre coletando sinais,
avaliando, montando quebra-cabeças. Se ele parasse sua atenção
em mim, estaria fodido.
— O que você está escondendo, Gabriel? — Havia muita
paciência em seu tom, era quase como se não se importasse
realmente com uma resposta.
Outro engano para quem não o conhecia. Rafael nunca
jogava as palavras, ele sempre dizia o que queria dizer.
— Nada — respondi rápido demais, ele inclinou a cabeça.
Apenas uma leve mudança na postura, eu sabia que ele estava me
avaliando.
Não demorou mais que alguns segundos para que o canto de
sua boca arqueasse sutilmente, era o máximo que ele sorria quando
não estava com Amira.
— O que você está escondendo de mim, irmãozinho? — Sua
voz pareceu seda, a expressão tranquila não escondia o escrutínio
de seu olhar gelado. — Vocês têm algo para me contar? Ou vão
esperar que eu descubra sozinho?
Depois que soube que ia ser pai, Rafael havia mudado, não
para melhor devo acrescentar. O bastardo estava infinitas vezes
pior. Era irritante que ele agisse como se fôssemos incapazes de
nos cuidar. Digo, ele agia assim comigo, Razhiel e Heylel.
Pelo visto, Lysander era um bastardo assustador demais para
ele se preocupar e Draikov, bem, já havia deixado claro que não
precisava de nós.
— Era eu quem deveria estar perguntando, você não tem
nada para me dizer? — Cruzei os braços, tentando inverter o jogo.
— Eu? Absolutamente.
Refugiei-me na raiva, era mais fácil do que tentar convencer
meu irmão de que eu não estava louco.
— Você conseguiu que eu fosse afastado do meu trabalho,
por acaso enlouqueceu?
Rafael caminhou até estar ao meu lado, então,
pacientemente, alisou o lençol que me cobria.
— Eu sempre consigo o que quero, irmãozinho, e você já
deveria saber disso.
— Rafael...
— Sem discussão, você vai ficar de molho, até que Lysander
diga que está tudo bem e que você pode voltar ao trabalho.
— A Ordem...
— Vai sobreviver sem você. — Ele estreitou brevemente os
olhos. — Por enquanto.
Houve uma época que eu queria ter liberdade e eu quase
morri por isso. Mas, agora, eu sentia como se o excesso de cuidado
dos meus irmãos fosse uma nova prisão.
E eu não nasci para ser prisioneiro de ninguém.
3
Gabriel Demonidhes

Hoje eu me sentia particularmente cansado. Era apenas


ridículo que eu fosse um bastardo de quase dois metros de altura,
mas não conseguia tomar um banho sem achar que ia cair de
exaustão.
O mínimo esforço que eu empregasse desgastava-me, o
mero ato de secar-me exauria minhas forças. Vivia numa perpétua
sensação de ter corrido uma maratona.
— Estou cansado — suspirei, sentindo que alguma coisa me
impedia de respirar direito. — Porra.
— Eu disse que vai levar tempo até os pulmões se
recuperarem, você não está oxigenando como deveria, por isso o
excesso de fadiga. — Lysander nem alterou o tom de voz, parece
que nada abalava o filho da puta.
Nem o fato de eu insistir que estava bem para receber alta.
Sentia-me no limite, não suportava hospitais.
— Você precisa me dar algo para resolver isso. — Fechei os
olhos, desabando na cama. — Dê-me algo para isso, Lysander.
Meu irmão apenas me ignorou, isso já havia se tornado a
porra de um hábito.
Precisei me esforçar para não perder a pouca paciência que
eu tinha, pois, diferente dos meus irmãos que tinha controlado essa
parte de suas personalidades, eu não havia chegado nem perto.
Era uma bomba relógio.
No geral, eu tinha tendência a atacar primeiro, perguntar
depois. Claro que, nos anos de treinamento, eu havia aprimorado
tudo que precisava para ter ciência da dinâmica das missões e para
que pudesse continuar alimentando meu vício por adrenalina e os
riscos que meus desejos representavam.
— O tempo vai se encarregar de fortalecer seus pulmões,
você precisa ser paciente, continuar o tratamento e de repouso,
irmãozinho, muito repouso.
O modo como proferiu as palavras pareceu-me uma afronta.
Ele sabia que me mandar ter paciência era o mesmo que agitar uma
bandeira vermelha na frente de um touro. Eu tinha tudo, menos
paciência, meu estoque foi gasto nos primeiros quinze anos da
minha vida fodida.
— Controle sua tendência a rebeldia. — Dei de ombros,
passando a mão no cabelo.
Um hábito que eu precisava controlar, pois não havia mais
cabelo. Tudo havia sido queimado na explosão que me jogou para
fora do prédio.
— Merda.
— Não está tão ruim, você teve sorte de sua maior perda ter
sido apenas os cabelos. Apesar de que você está com a aparência
repugnante, essa camada de pele que queimou foi superficial,
então, torno a repetir, paciência, e tudo se resolverá.
Quando acordei não reparei de imediato, sentia-me estranho,
mas não ao ponto de perceber que meus cílios, sobrancelhas e
barba haviam sido queimados.
O breve instante que o fogo me abraçou foi suficiente para
causar esse estrago, tudo isso porque eu não estava com a
proteção. A parte do cabelo queimado estava áspero.
— Eu quero raspar. — Passei a mão no rosto, estranhando
não encontrar a barba.
— Em casa.
— Quando você vai me liberar?
— O cirurgião plástico vem te visitar hoje. — Lysander
ignorou minha pergunta. — Mas eu tenho certeza de que não vai
ficar com cicatrizes, como falei a queimadura foi bem superficial.
— Quem se importa com isso, Lysander? — Cruzei os
braços, ignorando sua preocupação.
— Eu não, mas Heylel tem dado voltas sobre você ter
cicatrizes no rosto e não me deixa em paz. Portanto...
— Eu não preciso de um cirurgião plástico. Se você diz que
não vai ficar cicatriz, então eu acredito, agora, quando vai me
liberar?
Lysander estreitou os olhos, cruzando os braços também. Ele
me olhou por um breve instante, antes de dar de ombros. Eu sabia
que não importava a minha opinião, meu desejo ou qualquer merda
dessa. Lysander só escutava Rafael e, dependendo do contexto,
nem isso.
Meu irmão possuía um ridículo senso de proteção para
conosco, talvez por Rafael ser o Senhor da Ordem e já ter mostrado
milhares de vezes que rivalizava com Lysander nesse lado extremo
de ser protetor, é que ambos se entendiam e se escutavam.
O mesmo não se estendia ao restante de nós, que éramos
tratados como se precisássemos de tutores.
Foda-se!
— Tivemos sorte que você tenha ficado quinze dias fora do
ar. — Ele balançou a cabeça. — Você é insuportável, mas eu gosto,
porque, estando sob minha responsabilidade, garanto que não vai
piorar a sua condição. Você sabe, não é, Gabriel, que, se me irritar
demais, vai ser pior.
— Lysander, não me provoque.
— Você saberia se eu estivesse. — Ele foi checar o monitor
cardíaco. — Você enche a minha paciência e ainda diz que não
devo tratá-lo como uma criança. — Sem alterar o tom de voz, ele
me olhou. — Não aja como uma e tudo ficará bem.
— Eu me sinto ótimo, tenho certeza de que estar em casa vai
ajudar nesse longo e exagerado processo de recuperação.
Ele não respondeu, mas se aproximou para avaliar meu
rosto.
— Eu insisto em dizer que você teve bastante sorte. — Ele
começou a retirar os curativos.
Eu compreendia parte de seu excesso de cuidado. A
sensação de queimadura era ruim pra caralho, e mesmo sendo
“acostumado”, meu rosto nunca havia sido atingido. Até agora.
Não me importava com cicatrizes, já possuía uma cota
enorme delas, entretanto, parece que Heylel e Lysander estavam
empenhados para que meu rosto fosse poupado.
— Irmão, estou cansado de ficar aqui. — Observando-o tão
de perto, pude ver manchas douradas em seus olhos. — Me dê alta.
— Não.
Puxei o ar, soltando-o devagar para não iniciar outra guerra
sabendo que eu estava em desvantagem.
— Lysander, o cheiro desse lugar, as luzes, tudo me
incomoda. Estou perdendo a minha mente preso aqui, você não
entende, não posso ficar aqui neste quarto nem mais um dia.
Ele não deu qualquer indício de que se incomodava. Admitia
que não era o melhor dos pacientes, e a cada dia ficava pior. O
problema era que ele não compreendia, mas havia coisas
profundamente enraizadas que começavam a vir à tona.
Eu precisava de liberdade, escolher para onde ir e vir. Não
aguentava mais ficar nesta cama, de sentir-me preso a este
ambiente como um inútil dependente.
Não foi para isso que Roman Demonidhes me adotou, não foi
para isso que ele me mandou lutar. Eu tinha que fazer algo, para
que, de algum modo, valesse a pena tudo que ele fez por mim.
— Eu vou te dar alta quando eu achar que devo, não torne
isso tão cansativo para nós dois. — Lysander não fez os curativos,
decerto considerava meu rosto recuperado o suficiente. — Agora
respire fundo e prenda o fôlego. — Obedeci, lutando para manter-
me estável, mas não consegui.
Comecei a tossir desesperadamente, Lysander sequer
alterou sua expressão, apenas continuou avaliando. Todos os dias,
eu fazia fisioterapia respiratória, exames, e mais um sem fim de
coisas que comprovavam a minha constante evolução.
Não era apenas por me sentir mal estando confinado neste
quarto, mas eu acreditava piamente que, se estivesse em casa,
poderia me recuperar mais rápido.
— Você vai continuar com a fisioterapia.
— Posso fazer isso em casa. — Olhei para Lysander. —
Irmão, me libere.
Foi o último aviso. Hoje, eu ia sair daqui. Já havia deixado
que meus irmãos cuidassem de mim por tempo mais que suficiente.
Ninguém ia me manter prisioneiro nesse hospital, foda-se que
Lysander ainda não me considerasse apto para receber alta.
— Você precisa de suporte de oxigenação, isso aí no seu
nariz não é um objeto de enfeite. — Revirei os olhos. — Você está
se recuperando, mas não estou gostando do modo como dificulta as
coisas.
— Eu posso fazer isso em casa — repeti, encarando-o. — A
clínica do nosso Complexo serve apenas para dizer que existe? Por
que eu não posso ficar lá?
Lysander não respondeu, ele apenas terminou de fazer suas
verificações como se minhas palavras não possuíssem o mínimo de
importância. Quando terminou, ele foi embora.
Por um breve instante fechei os olhos. Onde faltava cílios
pinicava, a sensação era estranha, mas não insuportável.
— Porra... — respirei fundo, olhando ao redor e sentindo que
as paredes estavam se fechando a minha volta.
Eu precisava de ar puro, de liberdade. Não dava mais para
ficar aqui, tendo uma maldita janela como passaporte para o mundo.
Meus irmãos não entendiam a necessidade que eu tinha de ir para
casa, de sentir que estava no meu lugar, rodeado pelas minhas
malditas coisas.
A qualquer momento poderia surtar, não era exagero, mas
um fato. Ansiava ficar em constante movimento, das surpresas que
provinham do meu trabalho no Corpo de Bombeiros e na Ordem.
Ficar aqui contra a minha vontade só fazia eu me sentir como
se estivesse com quinze anos outra vez.
— Porra! — Ignorando qualquer possível represália, comecei
a arrancar as coisas conectadas a mim.
Estava puxando a intravenosa quando o som da porta
abrindo me fez congelar.
— O que você está fazendo? — A voz de Razhiel preencheu
o quarto. E o alívio que senti foi entristecedor.
— Corta a conversa fiada. — Empurrei o lençol para sair
logo, pois, quando puxei o monitor cardíaco, ele começou a apitar.
— Eu estou indo embora daqui, não suporto ficar nem mais um
minuto, portanto, ou me ajuda ou saia do caminho.
Razhiel cruzou os braços, sabia que, se ele decidisse me
impedir, eu não ia conseguir ir embora, estava fraco demais para
lutar.
Ele apenas me observou.
— Não vai tentar me impedir?
— Por que eu faria isso? — Ele foi até o monitor e o desligou.
Observando a atitude do meu irmão, acreditei que talvez ele
fosse o único a me ajudar. Heylel não ia querer que eu fosse
embora daqui. Mesmo eu não correndo risco de vida, meu irmão
mais novo sempre concordava com Lysander quando se tratava de
questões médicas.
Rafael não ouso acreditar na mera possibilidade, nem por um
instante, de que ele me ajudaria a fugir. O único modo de eu sair
daqui com sua bênção seria se Lysander autorizasse.
Draikov, bem, ele não se importava o suficiente conosco para
que eu contasse com ele para alguma coisa.
Então, tinha Razhiel. O meu cúmplice. Ele podia ser
normalmente tranquilo, mas sempre tomava atitudes de acordo com
a sua vontade e não se importava com as consequências.
Era um rebelde silencioso, por isso compartilhávamos de
alguns pontos semelhantes.
— Te devo uma, irmão. — Ergui o punho e ele o tocou.
Antes que alguma enfermeira gostosa e que não fosse
mentirosa aparecesse, comecei a me vestir. O tiro que levei na
perna doía um pouco, eu sentia como se o músculo estivesse longe
de estar recuperado.
Estava mancando, com o equilíbrio prejudicado porque, ao
invés de estar treinando, havia ficado na cama.
— Você vai arranjar problema com Lysander — Razhiel me
alertou, enquanto eu juntava as minhas coisas na mochila que
Heylel trouxe dias atrás.
— Eu sei, mas posso lidar com nosso irmão. O importante é
sair daqui primeiro. — Calcei os sapatos com dificuldade, quando
terminei estava ofegante como um filho da puta corredor. — Não
pretendo causar problema. — Puxei o fôlego, apoiando-me na
parede. — Vou seguir o tratamento, mas farei isso em casa.
— Gabriel, você não tem condições de sair do hospital, cara.
— Razhiel segurou meu braço. — Irmão, talvez...
— Não. — Abanei a mão. — Se eu ficar mais um minuto
preso nesse quarto, eu vou enlouquecer. Não posso ficar preso,
irmão, a sensação que tenho...
Desviei o olhar. Havia coisas que apenas nosso pai sabia. Eu
não falei para os meus irmãos como fui resgatado, nunca contei que
quase metade da minha vida passei numa prisão, e que eu fui a
porra de um objeto de manuseio.
Eles não sabiam o quanto eu lutaria ferrenhamente por minha
liberdade.
— Apenas me ajude desta vez, eu...
— Tudo bem, tudo bem. — Razhiel deve ter percebido meu
desespero, o pânico de ficar aqui.
Ele era quieto demais, parecia plácido e tranquilo. Mas não,
era parecido com Rafael nesse quesito, alguns podiam acreditar que
ele não se importava, mas o silêncio de Razhiel era muito
significativo; ele sempre estava avaliando as coisas, planejando,
descartando o que não precisava e encaixando peças onde deveria.
No final, as coisas sempre saíam como ele queria.
Era um bastardo até fácil de lidar; por outro lado, quando
decidia algo, nada o fazia mudar de ideia. Não importava o quanto
fosse complicada e pesada a carga que ele estivesse tomando para
si.
— Eu vou ajudá-lo. — Ergueu o queixo. — Desta vez.
Ele estendeu a mão e eu lhe entreguei a mochila. O alívio
que senti me fez cambalear.
— Fique ao meu lado, eu serei o suporte se precisar. —
Razhiel era mais alto que eu, corpulento e com a expressão
fechada. Ninguém se atreveria a questioná-lo.
— Obrigado, irmão.
Sem pensar em qualquer hipótese de que isso desse errado,
seguimos em direção a saída. No corredor, algumas enfermeiras
nos encaravam. Eu sabia que elas estavam vendo a dupla de caras
caminhando a passos firmes e com posturas que não dava margem
para qualquer aproximação.
Diferente de Razhiel, que estava de queixo erguido, eu usava
a aba do boné para ocultar o máximo do rosto, mas não conseguia
esconder as falhas na barba e os pedaços rosados de pele
cicatrizando, e o fato de estar mancando. Foi apenas ótimo que
ninguém tenha tido a infelicidade de tentar me abordar.
— Porra, finalmente. — Assim que coloquei os pés para fora
do hospital, fechei os olhos respirando o ar gelado da noite.
Sentia o peito enchendo de um bom sentimento, era como se
aquelas algemas invisíveis fossem arrancadas. Agora, eu podia ir
para onde quisesse, não era um prisioneiro do meu irmão louco.
— Parece que vai chover. — Razhiel franziu o cenho,
olhando para mim. — O que foi?
Um arrepio na coluna alertou-me de que eu deveria sair o
mais rápido possível daqui. Provavelmente, Lysander já soubesse
da minha fuga.
— Precisamos ir, onde está o seu carro? — Razhiel apontou
para outro lado do estacionamento. Mas o carro que vi ali não era
do meu irmão, ou melhor, não era o carro que ele normalmente
utilizava. — Essa eu vou querer dirigir. — Me animei, admirando as
rodas cromadas e os detalhes exclusivos da gigantesca Shelby
preta.
— Nem pensar, ela chegou ontem. — Razhiel deu um
sorrisinho.
Subimos no carro e o painel chamou atenção. O carro
misturava força bruta com elegância. Era uma referência direta ao
meu irmão. Um assassino profissional, e um admirador de arte.
— Combina com você. — Balancei a cabeça. — Você acertou
na escolha, irmão.
— Eu sempre acerto, mas nenhum dos meus irmãos está
pronto para essa conversa.
— Bastardo.
— Nunca neguei esse fato.
Piscando um olho, Razhiel deu a partida. Levou cerca de
quarenta minutos para chegarmos em casa. Pegamos o horário de
rush e meu irmão parecia não querer ir além dos sessenta
quilômetros por hora.
— Mercadoria entregue. — Razhiel estacionou a pick-up na
sua área da garagem.
Notei que faltava o carro principal de sua coleção. O carro
que ele não deixava ninguém tocar. Razhiel era tão egoísta com
suas coisas quanto qualquer um de nós, mas com essa pick-up era
especialmente ciumento.
— Onde está a RAM? — perguntei, antes de descer do carro.
Eu esperava que a resposta fosse simples, mas ele respirou
fundo, o olhar preso na área onde deveria estar o primeiro carro que
ganhou de nosso pai.
— Ela está na oficina. — Razhiel não me olhou, apenas
desceu do carro e veio para o meu lado. — Eu ajudo, venha. —
Estendeu a mão.
Eu aceitei a ajuda porque não estava em posição de recusar.
Minha perna estava debilitada, na verdade eu estava exausto
demais para agir como se não precisasse de uma mãozinha.
— Sabe, nosso pai dizia que a mentira tinha um sabor
amargo. — Estalei a língua. — Sinto um gosto bem amargo agora.
— Cara, apenas descansa. Você “fugiu” do hospital. — Fez
aspas com os dedos, encarando-me com a sobrancelha arqueada
como se dissesse que não ia dizer mais nada. — Apenas vá relaxar.
Entre na piscina aquecida, beba uma cerveja, sossegue.
Ele se afastou, mas não o deixei ir muito longe. Eu passei
exatos trinta dias no hospital e não recebi nenhuma atualização do
que aconteceu aqui fora. Nem Amira foi me visitar, o que era bem
estranho visto que nós éramos bem próximos.
O que diabos estava acontecendo aqui? Olhei ao redor, como
se a resposta fosse aparecer milagrosamente.
— Razhiel! — Ele estava apressando-se em direção à porta
de acesso, que levaria ao primeiro pavimento da nossa casa. —
Razhiel, não finja que não me ouviu, porra! — Ele parou. — Não
tente me excluir, o que diabos aconteceu?
Seus ombros caíram, e ele voltou, aproximando-se o
suficiente para que, se algum dos nossos irmãos nos visse,
percebesse o quanto parecíamos suspeitos.
— Sofri um atentado quatro dias atrás. Capotei a RAM. — Foi
curto e grosso, sem aparentar o menor sentimento de preocupação.
Confesso que esperei ele rir e dizer que era piada, mas me
lembrei que quem fazia isso era eu. Razhiel era muito direto, tanto
quanto podia e não se importava com isso. Era o tanque de guerra
que Rafael sempre dizia, pois aguentava as pancadas sem
reclamar, sempre guardando as coisas para si.
Filho da puta inflexível.
— Estava na rodovia a caminho daqui. As motos surgiram do
nada, trocamos tiros, consegui derrubá-los, mas os bastardos
estavam carregados. — Ele coçou um corte pequeno que havia na
bochecha. — A RAM vai ser restaurada e aposentada. Perdi a
carroceria quando capotei, o eixo partiu no meio.
— Filhos da puta! — Esfreguei a cabeça. — Você não falou
para Rafael, suponho.
— Exato, todos estavam revezando para ficar com você,
Rafael está sobrecarregado. Tivemos um alerta na Somália e na
República do Congo. — Pela primeira vez, meu irmão demonstrou
certo cansaço. — Falta muito pouco para estourar outra guerra civil,
e o povo está exausto, faminto, lutando para sobreviver. Desta vez,
a Ordem vai intervir, não importa o quanto estejam chamando a
atenção. Hunter decretou, estamos apenas esperando.
— E por causa disso você escondeu de Rafael, nosso líder e
irmão mais velho, que você sofreu a porra de um atentado? —
Minha voz endureceu. — Você não soou o alerta? Onde está o seu
dispositivo?
— Não enche o saco, Gabriel. — Ele se afastou.
— Lysander sabe?
Outra vez Razhiel parou e, quando ele virou, sua expressão
era aterradora. Deveria causar desconforto nas pessoas que ele
intimidava. Ótimo, que eu não fosse uma delas.
— Nem ouse — rosnou, aproximando-se de mim outra vez.
— Lysander está a ponto de enlouquecer, não vou colocar outro
punhado de merda no prato dele. Você sabe o que aconteceria se o
nosso irmão usasse seu indulto de Mercador, todos nós estaríamos
na merda com as consequências disso.
— Lysander sempre foi pirado, o que está diferente agora? —
Franzi o cenho. — A ponto de enlouquecer em que sentido?
— Você deve saber, afinal esteve pedindo para ir embora há
dias e ele fez o quê? Apenas o que quis. — Um flash de luz iluminou
o rosto de Razhiel, ele sorriu. — Agora, você pode perguntar a ele
diretamente porque está prestes a surtar de vez. — Virei-me a
tempo de ver um Lysander puto de raiva bater violentamente a porta
de seu conversível.
Ele caminhou em minha direção e eu pude sentir a energia
tempestuosa que desprendia de seu corpo. Era pura violência, na
verdade, Lysander era se não a própria encarnação de tudo que era
violento. Ainda que ele controlasse muito bem seu temperamento,
apenas Rafael e Heylel conseguiam lidar com sua fúria quando ele
se perdia o mínimo que fosse, no caos de sua mente.
Rafael, porque era frio para lidar com a situação; e Heylel,
porque não era capaz de sentir dor.
— Gabriel Demonidhes, dê-me um motivo para eu não te
derrubar e arrastar sua bunda de volta para a porra daquele
hospital? — Os olhos do meu irmão pareciam vidrados, ele me
encarava fixamente, daquele jeito que deixava as pessoas
desconfortáveis, inclusive eu.
Respirei fundo, grato por não começar a tossir.
— Eu já disse que preferia ficar em casa. — Modulei o tom,
não era inteligente provocar Lysander quando ele estava parecendo
um louco.
Sua boca torceu, ele me olhou um pouco de cima, era mais
alto do que eu, do que Razhiel também.
— Não brinque comigo irmão. — Sua voz pareceu saída de
um pesadelo, era um eco de sua cólera, e perceptível no brilho
insano de seus olhos.
Ele realmente estava a ponto de enlouquecer. Um breve olhar
na direção de Razhiel me fez entender — um pouco — o seu lado.
Ainda que esconder um atentado fosse perigoso demais, contar o
que aconteceu poderia ser o que faltava para que Lysander
perdesse o controle.
— Eu não vou fazer qualquer coisa que coloque minha
recuperação em risco, eu vou ficar em casa, tranquilo e fazer
companhia a Amira. Devo começar a construir uma nova arma, mas
preciso estudar a melhor forma de fazer isso agora que tenho
tempo.
Lysander não disse nada, ele ficou ali, parado, me encarando
por uma eternidade. Parecia buscar qualquer traço de mentira, mas
como de fato eu não estava mentindo ele aceitou minhas palavras,
dando um passo atrás.
— Eu ia preparar sua alta para o final de semana. —
Estreitou os olhos. — Aceitarei o que me diz. — Ele voltou para seu
carro e entrou. — Mas, se você ousar me desafiar dentro do meu
campo outra vez, teremos sérios problemas, irmãozinho, e eu
prometo que você irá odiar cada momento disto.
Ele saiu cantando pneu, deixando-me com a sensação de
que quem estava precisando de cuidado era ele.
— Viu, a ponto de enlouquecer — Razhiel suspirou. — Estou
preocupado com Lysander, ele tem dado voltas com Rafael. Tenho
certeza de que estão planejando algo e isso me preocupa.
— Por quê?
Não gostei da sensação que essa notícia me trouxe. Eu só
fiquei um mês fora do ar e parece que tudo mudou na minha
ausência.
— Eu ainda não sei, mas vou descobrir.
— Isso pode ser coisa da sua cabeça, ou não?
— Pode ser. — Razhiel deu de ombros, afastando-se em
direção a entrada. — Mas temos um pé no abismo da loucura, o
problema é que, às vezes, alguns de nós inclinam-se demais para
ver o que há lá dentro.
— Filosofando, irmão?
Tentei aliviar a tensão, talvez Razhiel não estivesse passando
bem para esconder de nossos irmãos o que havia acontecido com
ele. Mas, como ele cobriu as minhas costas na minha saída do
hospital, era a minha vez de retribuir o favor.
— Óbvio, o que eu faria se não filosofar sobre questões
meramente humanas? — Ele estendeu o braço. — Vamos, aqui está
esfriando e você precisa ficar aquecido.
Revirei os olhos, mas o acompanhei.
Parece que os ventos estavam trazendo mudanças, e eu
esperava que fossem boas.
4
Gabriel Demonidhes

Pretendia passar direto para o meu quarto, mas, assim que


entrei em casa, pelo acesso da garagem, Rafael me aguardava.
Avistá-lo ali, de pé, sério, encarando-me como se eu fosse um
grande problema, me fez sentir mal.
Era inacreditável que eu o enxergasse como uma extensão
de nosso pai, e, por mais incrível que isso pareça, era tão natural
que me irritava. Meu irmão nunca alardeou que, ao assumir a
Ordem, deveríamos tratá-lo com o respeito que tínhamos por nosso
pai — ainda que isso fosse acontecer —, mas, aqui estava eu,
incomodado de estar lhe causando problema e querendo que ele
não se decepcionasse comigo.
“Será que isso me tornava um cara fraco?”, questionei-me,
cansado de me sentir como se precisasse provar que merecia a
porra de um lugar nessa família.
— Irmãozinho...
Bastou essa única palavra para que eu me sentisse alguns
centímetros menor, digo, não era o fato de ele me chamar assim,
mas o modo como chamava. O tom baixo, carregando todo
julgamento e frieza do mundo, não era fácil de ouvir.
Rafael conseguia fazer com que eu me sentisse o jovem que
ansiava a aprovação de Roman e do irmão mais velho. E se
tratando de um cara da minha idade isso era extremamente
vergonhoso.
— Eu dispenso o sermão Rafael. — Abanei a mão, retirando
o boné e apertando a aba de modo repetitivo. — Estou cansado,
quero apenas tomar um banho e mergulhar na minha cama.
Ele não disse nada, tampouco precisava. Ele conseguia
julgar, condenar e fazer com que qualquer um se sentisse um rato
apenas com o olhar. Era como se soubesse os segredos mais
profundos e sombrios que cada um escondia.
Eu odiava esse traço do meu irmão, na verdade, odiava como
ele me fazia sentir.
— Por que não baixa a guarda? — Rafael arqueou a
sobrancelha e eu me senti bastante desconfiado.
Meu irmão mais velho não era flexível, ele não era. Não antes
de se casar, menos ainda depois. Se tem uma coisa sobre Rafael é
que ele tinha ficado pior.
O tempo estava se encarregando de aprimorar a arma letal
que o Senhor da Ordem era.
— Não estou a fim de ouvir você questionar minha decisão
de sair do hospital, assumo a responsabilidade por qualquer coisa.
— Respirei fundo e a sensação de constrição no peito me fez sentir
sufocado.
Eu não queria começar a tossir, isso apenas daria razão a ele
e ao Lysander.
Observei Heylel se aproximar, silenciosamente como um
felino, daquele jeito tão dele e que aterrorizava nossos inimigos. Era
apenas demais que um bastardo tão alto e corpulento pudesse se
movimentar com tanta graça e fluidez.
Nos combates ele era como um dançarino, que deixava um
rastro de corpo em meio a toda beleza que era sua dança mortal.
Ele sorriu, cruzando os braços sobre o peito.
— Você parece um tanto nervoso. — Rafael deu um meio
sorriso. — Bem-vindo de volta à casa, irmãozinho.
— Porra! — Levei uma mão ao peito. — Tudo bem, eu não
esperava por isso.
Não esperava mesmo, o foda é que, por mais que eu tenha
considerado minha saída do hospital como algo correto, Rafael tinha
poder para que, sem uma única palavra, eu me sentisse culpado.
Como se minhas decisões fossem erradas.
— Eu já posso ir? — A voz carinhosa de Amira flutuou até
mim.
— Claro que pode — eu disse alto e ela apareceu. Assim que
me viu, um sorriso enorme tomou conta de seu rosto lindo e ela
correu em minha direção.
— Sem correr, malen’kiy — Rafael resmungou, antes que ela
se jogasse em meus braços e eu a apertasse.
— Você é um herói, eu li as reportagens, só que heroísmo as
vezes é um ato muito irresponsável. — Ela me encarou de um jeito
que me fez sentir culpado por ter cogitado ficar naquele prédio e...
bem, apenas ficar mais tempo e deixar os dados rolarem. —
Estudos apontam que... — fez um bico, como se lutasse para
controlar o choro — ... apontam que atitudes tomadas no calor do
momento, não tem base para avaliação de peso e consequência, e
elas podem causar tragédias. Você lembra quando eu pensei que
Rafael tinha morrido quando sofreu aquele acidente? — Acenei,
limpando suas lágrimas com os polegares. — Você me salvou,
então seria muito se eu te pedisse para que, quando for salvar
outras vidas, que você se preocupasse em salvar a sua também?
Caralho! Por que eu sinto que eles desconfiam? Até agora,
Lysander e Rafael tinham ignorado que eu fui atacado, o tiro para
eles não era nada, pois consideravam acima de tudo o treinamento
na Ordem, então o que justificava eu ter ficado mais tempo, era
porque eu queria ficar.
Engolindo em seco, não consegui olhar para o meu irmão,
doeria eu ver a certeza em seus olhos.
— Não se preocupe comigo, gatinha. Ainda tenho planos
para aquele harém, você lembra? — Apertei seu nariz e ela sorriu.
— Gabriel, você está usando uma narrativa para mudar o
foco do discurso.
— Amira, alguém já te disse que você é doida? — Balancei a
cabeça, a inteligência dela ainda me espantava. — Você é doida.
— Não importa, só quero que responda a minha pergunta.
Ela me encarava com aqueles olhos grandes, parecendo um
filhote de gatinho que usava essa tática para conseguir tudo que
queria. Como eu ia dizer a adorada esposa do meu irmão que havia
coisas que eu não podia controlar?
— Que pergunta? Eu acho que você precisa considerar o
meu pedido, vamos fugir, pense pelo lado positivo, seu filho teria
dois pais.
— Isso é uma falácia, não fuja da minha pergunta por favor.
— Ela sorriu, mas eu vi o queixo tremer. — Prometa que vai ser
mais cuidadoso, tudo bem?
Eu revirei os olhos, achando injusto que alguém tão pequeno
e indefeso pudesse ter tanto poder sobre nós. Era certo que
nenhum dos irmãos Demonidhes faria algo para magoar aquela
garota.
— Eu prometo — murmurei, inclinando para beijar sua testa.
— Afinal, como vou convencer Rafael de que temos todo o contexto
para um harém reverso?
Amira soltou uma risadinha feliz, agora não era mais a garota
retraída e assustada que conhecemos. Ela sabia seu lugar ao nosso
lado, e não se deixava intimidar.
— E você fica com o domingo, não é?
Domingo era o dia de diversão, de ficar junto e aproveitar. Era
isso que minha Cassy dizia, era isso que...
— Gabriel?
— Exatamente, gatinha, eu fico com o domingo. — Pisquei
um olho, sentindo o peito doer. Mas estando na presença de Rafael,
precisei disfarçar. — Imagine as reuniões da escola? Poderia ser
muito divertido.
Amira me abraçou outra vez, acalentando-me, ainda que
fosse alheia a uma das perdas mais significativas de toda minha
vida.
— Chega de abraços, eu já sou problema demais para Amira
se preocupar. — Rafael enlaçou a cintura de sua esposa puxando-a
para si. Ela se aconchegou, encaixando-se perfeitamente nos
braços do meu irmão.
Era surreal como ambos pareciam peças de um quebra-
cabeça improvável.
Chocava-me que alguém tão delicado e sensível quanto
Amira, fosse a metade perfeita de alguém tão implacável e mortal
quanto Rafael Demonidhes.
— Eu tenho uma surpresa para vocês, finalmente vou poder
entregar meu presente de Natal — Amira falou, quebrando o breve
instante de silêncio. — Agora que Gabriel está em casa.
— O que é? — Rafael olhou para a sua esposa e, quando
seus olhares se encontraram, a expressão sempre fechada do meu
irmão mudou sutilmente.
Eu pude enxergar a forte devoção que ele tinha por sua
mulher. Amira não ficava atrás, era como se Rafael fosse o mundo
dela.
— Um presente para os irmãos Demonidhes. — Ela sorriu, as
bochechas avermelhando. — Deixe-me correr, eu tenho que
preparar o jantar, Lysander deve chegar antes das sete. Vai dar
tempo.
— Eu te ajudo, pensaremos em algo rápido — Razhiel se
prontificou.
— Estou com fome, a comida do hospital é péssima. — Sorri
e Amira veio para perto de mim, tocando o meu rosto.
— A gente vai cuidar de você, não se preocupe. Agora
descanse um pouco, quando tudo aqui estiver pronto, eu vou te
chamar.
— Obrigado, gatinha, é bom estar em casa. — Eu a abracei
outra vez, satisfeito por não ter tido problema com Rafael e pela
recepção acolhedora.
Amira se afastou e Corso apareceu por ali, o cachorro estava
maior do que eu me lembrava. Inicialmente ele não se aproximou,
parecia desconfiado, farejando o ar ao meu redor.
— Vem aqui, garoto. — Bati suavemente nas coxas e ele veio
devagar. Primeiro cheirou minha mão, depois começou a me lamber,
o rabo balançando com desespero. — Eu também senti sua falta. —
Acariciei suas orelhas, ele se deitou no chão, mostrando-me a
barriga. — Não consigo chegar aí, amigão.
Era impossível, o tiro na perna atingiu músculos importantes
e recuperar isso levaria mais tempo.
— Onde está Yang? — Olhei ao redor, procurando o Husky
peludo e brincalhão.
— Preso no quarto, ele ainda não controla a ansiedade muito
bem. — Heylel deu de ombros. — Eu estou deixando-o livre para ir
aprendendo aos poucos.
— Mimado — disse, porque era a mais pura verdade. —
Você está deixando Yang mal-acostumado.
Heylel tinha uma filosofia estranha de que seu cachorro
aprenderia tudo que era necessário com o tempo. Juntos eles
estavam trabalhando em um treinamento com estímulos positivos,
diferente de Rafael que treinou Corso de maneira mais rígida. Hoje,
ele era uma arma perfeitamente sob controle.
Em momentos como esse, o treinamento de Corso era bom,
pois eu não aguentaria um animal de quase cinquenta quilos
pulando em cima de mim.
— Claro que ele é mimado. — Heylel deu de ombros,
afastando-se com uma pequena bola de borracha nas mãos.
— Vou para o meu quarto.
Passei por eles, seguindo em direção à minha ala do
Complexo Demonidhes. Chamar de quarto era um eufemismo, cada
área foi construída para parecer uma casa. Com toda certeza, essa
foi a parte do projeto que mais nos deixou satisfeitos, incluindo
obviamente a ala subterrânea que dispunha de tudo que
precisávamos para ser uma extensão da Ordem.
Razhiel projetou cada ala de modo que nós tivéssemos toda
privacidade. Por exemplo, cada um de nós tinha sua própria piscina
— pequena, devo salientar — e vários ambientes, a única coisa que
não possuíamos eram cozinhas particulares.
Rafael queria que todos nos reuníssemos todos os dias,
então não encarei como um problema naquela época.
— Finalmente — soltei o ar, entrando na minha “casa”.
A sala ampla estava impecável, o quadro que ganhei de
Amira emoldurava todo o espaço acima da lareira, que estava com
meias natalinas.
— Amira... — Balancei a cabeça, minha atenção voltou-se
para o quadro.
Por um momento observei a minha imagem ali, ainda me
surpreendendo como ela conseguiu capturar a minha essência.
Na imagem de corpo inteiro, ela desenhou-me sob sua
perspectiva. Um lado do meu rosto era mais claro — ouso até dizer
mais suave —, havia o que poderia ser um sorriso querendo
transparecer, no entanto, o outro lado do quadro ela captou aquilo
que todo Demonidhes possuía.
A escuridão de cada um de nós, mas a minha era mesclada
com o fogo. Ela não desenhou chamas em si, mas os tons de tinta
davam a impressão de que o quadro pegaria fogo a qualquer
momento e era em meio a isso que eu caminhava.
Apesar de haver certa beleza na imagem, eu conseguia
enxergar o caos, os segredos mais sombrios que se escondia em
meus olhos. Era como se ela soubesse do meu passado, dos erros
que cometi e do quanto eles me custaram caro.
— Se eu houvesse esperado só mais um dia. — Olhei para
fita preta que descansava na moldura. Eu havia pregado ali e era
meu bem mais precioso. — Se eu houvesse esperado...
Quase que involuntariamente acariciei o tecido gasto. A dor
de tantos anos voltou ainda mais amarga, quente e dolorosa.
— Você também adoraria essa família, Cassy. — Sorri,
imaginando a linda moça que ela seria. — Roman teria aceitado
você também. — As palavras ecoaram no espaço vazio. — Sinto
sua falta, sabia? Se passaram dezessete anos desde que tudo
aconteceu, mas essa dor não vai embora. — No silêncio e proteção
do meu quarto, eu me permiti sentir livremente a perda da minha
criança.
Há muitos anos as minhas lágrimas secaram, mas continuava
sentindo a dor batendo em mim de maneira implacável, constante e
que não me permitia viver sem a culpa. Éramos como duas
entidades compartilhando um corpo.
Um dia, talvez, a culpa levasse a melhor, e nem a lembrança
do meu pai ou autoridade de Rafael seriam fortes o suficiente para
me fazer hesitar.
— Perdoe-me, pequenina, eu não fui um bom irmão para
você. — Baixando a cabeça, senti o peito doer. — Sinto tanto,
Cassy.
Se eu houvesse esperado apenas mais um dia...
Uma batida à minha porta fez com que eu me apressasse em
disfarçar o que sentia. Esfregando o rosto, respirei fundo, tossindo
mais do que antes.
— Estou entrando — Razhiel anunciou, carregando a minha
mochila e uma bolsa menor nas mãos. Ele largou a maior no sofá,
se aproximando de mim. — Pensei que talvez você precisasse
disso. — Razhiel estendeu uma bolsa pequena, mas, ao me olhar,
ele a puxou de volta. — Irmão, você está bem?
— Sim, claro que sim, por que não estaria? — Apontei para a
bolsa. — O que tem aí?
— Kit de barbear novo. — Entregou-me, então seus olhos
prenderam-se na lareira. — Amira também colocou meias na sua
lareira — ele riu, parecendo divertido. — Queria ver a reação de
Lysander quando viu a dele. Ela disse que nós iríamos retirar as
decorações quando você voltasse, e pudesse entregar o presente
que fez para nós.
Concordei, usando o tema para empurrar minhas dores mais
profundamente, para que assim continuassem ocultas dos outros.
— Ele deve ter detestado.
— Com certeza, mas não a magoaria — Razhiel deu uma
risadinha.
Por causa dela, havia certa leveza. No começo, pareceu-me
uma loucura que Rafael — logo Rafael — se envolvesse com
alguém. Ele era sempre tão rígido e no controle de tudo, que
sentimentos como amor e pertencimento não pareciam fazer parte
de sua vida.
Bem, eu estava enganado, muito na verdade. Provavelmente,
por causa de Amira, toda fealdade de nossas vidas estivesse
amenizando. Os desejos simples que ela possuía — como querer
uma árvore de Natal — talvez fosse um alento para homens tão
acostumados à crueldade.
— Ela fez bem a Rafael, e a nós também — Razhiel
murmurou. — Vou voltar para a cozinha, Amira quer um jantar
caprichado para você.
Ele foi embora e eu direito para o quarto. Ainda na porta,
deparei-me com tudo em seu devido lugar, diferente do como deixei.
Se me lembro bem, havia garrafas de cerveja ao lado da cama, e
roupas espalhadas pelo chão.
O ambiente estava impecável, mas o frio era tão grande que
tive a plena certeza de que mais um pouco, eu teria minha cama
congelada. As portas da varanda estavam abertas, por isso o frio
opressor ali dentro.
— Porra. — Esfreguei as mãos, soprando um pouco de calor.
Pretendia fechá-las, mas, olhando para o imenso jardim
coberto com neve fresca, senti um pouco de nostalgia. Haviam luzes
de Natal espalhadas por todo lado, algumas árvores foram
decoradas, exatamente como o nosso pai fazia em nossa casa na
Rússia.
Até hoje, eu não fazia ideia dos motivos que o levavam a
sempre comemorar datas especiais. Roman Demonidhes não
precisava disso e seus filhos também não. Mas ele fazia questão.
Aniversários, eventos que ele considerasse importante.
Inclusive cozinhava, cuidando de nós ele mesmo.
— Que saudade de você, meu pai. — Recostei-me na porta,
aceitando o frio congelante.
Estava imaginando-o ali. Provavelmente meu pai surtaria de
felicidade quando soubesse que seria avô. Ele trataria Amira como a
preciosidade que ela é, mimando-a tanto que Rafael teria ciúmes.
Apesar de tantos anos, ainda me impressionava que Roman
Demonidhes fosse um homem letal, bruto, uma verdadeira besta
selvagem quando estava em combate, mas que adorava seus filhos
acima de tudo, e fosse tão cuidadoso e protetor.
Mesmo na fase adulta, ele nos tratava como se fôssemos
seus garotos. Nunca vi um homem que amasse seus filhos como
Roman nos amou.
— Você faz tanta falta. — Fechei os olhos, permitindo as
emoções fluírem. — Você me acolheu e me fez sentir amado
quando eu não tinha nada.
Ele me deu um propósito numa época que eu não tinha nada
para agarrar. Ele foi a minha esperança, e depois compreendi que o
aceitar era ter uma família. Roman Demonidhes havia conseguido
forjar um elo de união entre nós que, a meu ver, era mais forte que
os laços que regiam o sangue.
Eu adorava meus irmãos, morreria e mataria por qualquer um
deles. E eu sabia que tudo isso era recíproco. A nosso modo, meio
bruto e desajustado, éramos uma família feliz.
— Você não deveria estar recebendo esse frio. — Me
aproximei da balaustrada da varanda, deparando-me com Heylel e
Yang lá embaixo. — Entre e feche as portas da varanda. O seu
sistema de aquecimento está conectado ao controle, use-o.
— Vou ser vigiado? — Arqueei a sobrancelha.
— Claro. — Heylel sorriu enquanto Yang esfregava-se no
chão, como se a neve fosse lama. — Meu turno.
— Não seja irritante. — Revirei os olhos, sentindo a vontade
de tossir começando a aumentar.
— Não estou sendo, quero apenas ter cuidado com você. —
Ele ficou sério. — Não complique, é só o que peço. — Ele respirou
fundo, parecendo nem sentir frio. — Amira está com uma gravidez
recente, o estresse com seu “acidente” foi tanto que ela teve uma
perda de sangue. Rafael está louco, Lysander também.
Não recebi muito bem a notícia. Então era isso que Rafael e
Lysander estavam discutindo? Era por isso que ele estava me
mantendo no hospital e Amira não podia me visitar?
— Porra, eu não sabia. — Esfreguei a cabeça. — Razhiel
sabe disso?
Heylel negou, se aproximando da minha varanda.
— Eu descobri porque escutei “sem querer” uma conversa
que não deveria. — Heylel estreitou os olhos. — E Rafael não está
muito feliz com Razhiel, porque o bastardo escondeu um atentado
que sofreu. Nosso irmão está esperando-o contar que capotou a
RAM, mas, enquanto isso não acontece, talvez, Rafael não diga
nada sobre a situação de Amira.
Meu sangue gelou e nem foi por causa do frio. Era muita
tolice da nossa parte acreditar que Rafael não saberia do atentado.
Ele sempre sabia de tudo.
Isso era mais um aviso de que eu deveria me cuidar. Se meu
irmão sonhasse que, por um momento, eu havia decidido ficar
naquele incêndio e esperar pela morte, eu estaria fodido, ele ia
mandar me prender.
Arrepiava-me só de imaginar o tempo que nosso pai prendeu
Lysander.
— Não vou causar problema. — Engoli em seco, sentindo-me
egoísta por sobrecarregar meus irmãos quando eles apenas
queriam o melhor para mim.
— Amira está bem, mas não vamos brincar com a sorte. —
Heylel jogou uma bola para Yang. — Como pode ver, irmãozinho,
tem muita coisa acontecendo. Rafael está sobrecarregado, mas ele
não está reclamando; em todo caso, não pense nem por um
segundo que nosso irmão não vai tomar medidas drásticas se
considerar que deve fazer isso.
Ergui as mãos, aceitando as palavras de meu irmão e muito
disposto a colaborar em qualquer coisa que mantivesse o clima
ameno. Eu não seria o problema.
Pelo menos não agora.
— Estou entrando.
— Obrigado, eu vou entrar em breve também.
Ao voltar para o meu quarto, acabei preferindo descer as
persianas metálicas também. De acordo com Razhiel, a blindagem
das placas aguentava tiros de calibre ponto cinquenta.
Depois, para amenizar a sensação de claustrofobia, fechei as
cortinas, cobrindo a visão do metal e a sensação de que meu quarto
era um cárcere.
— Rafael sabe do atentado. — Balancei a cabeça, indo até o
meu celular.
Ele estava na mesa de cabeceira, no suporte de
carregamento. Havia milhares de chamadas e mensagens. A
maioria de Christoffer Miller García, diretor geral do departamento
do Corpo de Bombeiros de Nova York. A última mensagem havia
chegado há cerca de trinta minutos:

Diretor C.M. García: Estou fora do país desde o resgate,


mas soube de sua recuperação. Em breve, você receberá uma
medalha por honra e bravura. No entanto, Capitão Demonidhes,
precisamos falar sobre Connor. Há alguns questionamentos que
apenas você poderia responder.
Por alguns instantes, pensei em retornar suas ligações, mas
não fiz. As perguntas que ele provavelmente faria, eu não poderia
responder, não sem antes saber o que foi colocado nos relatórios.
Deixaria qualquer problema a cargo do futuro. Quando
precisasse resolver, então eu resolveria. Agora mesmo, eu avisarei
a Razhiel que seu segredo não era mais um segredo, rapidamente
digitei uma mensagem com a seguinte frase:

Rafael sabe...

Balancei a cabeça, precisando de um banho longo que


tirasse o fedor do hospital, e que me fizesse sentir novinho em folha.
Despindo-me no quarto, não me importei em recolher as
roupas, elas ficariam amontoadas ao lado da cama até eu ter
vontade de retirá-las. O que não seria agora.
— Merda. — Dolorido, sentindo a perna latejar, fui mancando
até o banheiro.
O espaço era grande para acomodar alguém da minha altura,
e ali, na entrada, havia um espelho de corpo inteiro, que me fez
parar.
Havia mais cicatrizes do que poderia contar. O braço direito
ainda não havia se recuperado da explosão da minha casa, a pele
estava vermelha, esquisita, com sobressalências. Ainda não dava
para tatuar. Havia também as escoriações do último grande
incêndio, e outras marcas antigas, que riscavam meu corpo de cima
a baixo, resultantes do meu estilo de vida louco.
— Não parece tão ruim.
Meus olhos prenderam na lateral direita, onde ficava minha
tatuagem. A Ouroborus se estendia pelas costelas e parte da coxa.
Era a única tatuagem que eu possuía e adorava. Apenas eu e meus
irmãos possuímos Ouroborus tão grandes. Os outros membros da
Ordem restringiam-se ao formato pequeno, fácil de esconder.
Por um instante, fixei-me em meu rosto. Havia partes
rosadas, onde a pele estava se renovando, a barba estava estranha,
despontando em alguns lugares, enquanto em outros — onde não
queimou — seguia grande.
— Caralho. — Pegando o kit que Razhiel trouxe, eu comecei
a raspar tudo.
Não levou mais do que quinze minutos. Quando terminei
sentia-me estranho, por aparentar ser mais jovem.
— Ridículo. — Torcendo a boca, entrei no chuveiro.
Estava pronto para deixar o último mês no passado.
5
Gabriel Demonidhes

A mesa estava absurdamente linda. A decoração foi feita com


tanto capricho e atenção que eu senti voltando vários anos no
tempo.
— Parece que nosso pai arrumou essa mesa — Lysander
resmungou e eu o vi acariciar o tecido da toalha.
Havia certo silêncio ao redor, como se todos estivessem sem
saber como reagir diante aquela lembrança. Era como se a qualquer
momento Roman fosse aparecer com um sorriso nos lábios, os
olhos azuis brilhantes de alegria, pronto para lidar com a energia
caótica de seus filhos problemáticos.
Ele amava tudo isso, e deixava bem claro para qualquer um
que questionasse nossa legitimidade que teria problemas.
— Sinto falta dele — Razhiel quebrou o silêncio.
— Todos nós sentimos. — Lysander não olhou para qualquer
um de nós, parecia estar revivendo suas próprias memórias.
John, seu braço direito na Ordem e melhor amigo, sempre
questionava, mas, em cada ocasião, Roman sempre deixava claro
que éramos seus filhos, uma parte fundamental dele.
Quem não aceitasse, poderia ir se foder.
Muitas pessoas dentro da alta sociedade de Moscou, queriam
saber o porquê de adotar jovens, quando poderia ter conseguido um
bebê se queria tanto um filho.
Ele disse-me uma vez, quando eu mesmo o questionei sobre
o assunto, que, quando olhou para cada um de nós, soube que
éramos seus. Os filhos que o destino encarregou de lhe permitir
encontrar. No final das contas, apesar de cada um possuir uma
história fodida, nosso pai se encarregou de descobrir habilidades,
nos treinar e o mais importante, nos dar escolhas moldando-nos
para que não fôssemos vítimas outra vez.
E ele havia conseguido.
— Essa foi a toalha do nosso último Natal juntos. — Heylel
franziu o cenho, ele também acariciava o tecido. — As coisas
deveriam ter sido diferentes. — O pesar em sua voz não passou
despercebido.
Meu pai. A dor que sua ausência causava ferroou mais uma
vez.
Por mais que ele tenha nos feito sentir como se fôssemos
sangue de seu sangue, chocava-me o modo como nosso encontro
aconteceu. Depois do que eu havia perdido, pensava que não teria
condições de seguir em frente. Quando acordei estando livre pela
primeira vez que podia me lembrar, Roman olhava para mim como
se eu fosse um presente.
Eu só compreendi o significado quando fui apresentado aos
seus filhos, pois ele me olhava igual olhava para eles.
Quando eu te vi, Regan, foi meu filho quem me olhou de
volta. Quando disse isso pela primeira vez, lembro-me de ter
chorado por mais de uma hora enquanto era abraçado por ele.
Depois, havia tanta naturalidade no modo como me tratava
que eu acreditei quando dizia que eu não estava sozinho, que agora
eu tinha uma família. Foi como um filho que ele me fez sentir, e era
como um filho que eu o amava.
— Está exatamente igual. — A voz Rafael soou carente de
emoção.
— Desculpa. — Amira baixou a cabeça, estava pálida, eu
tinha certeza de que ela estava torcendo as mãos de nervosismo. —
Eu não pensei que... que isso fosse ser algo ruim.
— Eu mostrei a foto para ela — Razhiel pigarreou. — Eu
encontrei as caixas com todos os itens. Pensei que, talvez,
pudéssemos confraternizar o Natal e Ano-Novo como nosso pai
gostava. Ele não está aqui, mas em partes ele está.
— Sinto muito. — Amira olhou para Rafael, ele não disse
nada.
A expressão ilegível, parecendo um quadro branco, me
deixou um pouco tenso, nunca gostava quando meu irmão mais
velho se fechava desta forma.
— Eu posso mudar. — Amira se levantou, só então Rafael
reagiu. Ele segurou a mão dela trazendo-a até os lábios.
— Está perfeito, malen’kiy. Nós apenas estamos surpresos.
— Rafael sorriu e foi um sorriso verdadeiro. — Eu não imaginava
que pudesse sentir saudade disso.
Amira soltou o fôlego, a cor retornando as suas bochechas.
— Esse é o nosso primeiro Natal e Ano-Novo juntos nessa
casa, não importa que esteja atrasado. — Ela olhou para nós. — Eu
nunca tive uma família tão incrível quanto a que tenho agora, por
isso eu farei qualquer coisa para cuidá-los, protegê-los e amá-los
como eu nunca fui. Eu sinto que a cada dia tudo parece mais
incrível. — Ela sorriu, ficando tão vermelha que eu me preocupei. —
Eu sei que estamos enfrentando um inimigo perigoso, mas nós
devemos nos manter juntos. — Amira olhou para mim. — Devemos
nos apoiar e acreditar que não importa o que seja, sempre podemos
contar uns com os outros. Somos uma família, e é só isso que
importa para mim.
Heylel tomou um gole generoso de sua vodca, então ergueu
o copo.
— À Senhora da Ordem.
Todos nós brindamos e ela se refugiou em sua taça de suco.
Pude perceber a timidez voltando a engolir Amira, o breve rompante
de coragem havia acabado. Esse era apenas mais um dos seus
traços de personalidade, por mais que houvesse evoluído, e até
amadurecido, havia momentos que ela parecia não saber como
reagir.
— Vamos comer, que, além de ter sido preso no hospital, me
alimentaram mal — tentei quebrar o clima estranho, Lysander
balançou a cabeça em discordância.
— Não sei por que eu ainda te suporto. — Ele cortou um
pedaço de carne e pediu o prato de Amira. — Primeiro você.
Apenas quando ela estava servida, nós começamos a encher
nossos pratos. Talvez, a única coisa que se comparasse a uma
trepada gostosa, era uma boa refeição. Eu era um bastardo viciado
em boa comida, sempre aproveitava o máximo e não me arrependia
depois.
Quando provei o primeiro pedaço de carne, não pude evitar o
gemido. Estava derretendo na boca, do jeito que eu gostava. Por
cerca de meia hora apenas ouvi as conversas enquanto me fartava.
Depois, sentindo-me satisfeito, o cansaço começou a bater.
— Razhiel você deveria largar a Engenharia — suspirei,
recostando-me na cadeira. — Você com certeza ganharia as três
estrelas Michelin[3].
— Então você deveria incluir Amira nisso, porque todos os
processos para preparação deste jantar ela fez parte. — Estendeu a
mão para ela. — Até o próximo ano, você estará cozinhando melhor
que eu.
— Impossível. — Amira deu uma risadinha. — Mas eu posso
tentar.
— Eu vou gostar disso, malen’kiy. — Rafael sorriu meio de
lado. — Você pode cozinhar apenas para mim.
Era muito bom ver como Amira fazia bem para o meu irmão.
Na verdade, ela fazia bem para todos nós. As particularidades de
sua personalidade, as manias e o modo como tentava cuidar de sua
família a tornavam de certo modo um porto seguro.
Ela sempre favorecia a união, mas não se colocava entre nós
e Rafael, nas brigas — quando ocorriam —, ela esperava que
resolvêssemos e depois dava apoio.
Para Rafael, ela era o mundo; para nós, uma parte dele. Era
como se, estranhamente, ela preenchesse um lugar que pertencia
apenas a ela.
— Vocês dois podem ir para o quarto — provoquei, essa era
a minha função. Manter a fachada de leveza para que o olhar deles
não se voltasse para mim.
Meus irmãos perceberiam que eu estava com os dois pés
tremulando na borda da loucura, e que, a cada dia, a vontade de
saltar era mais tentadora.
— Gabriel, fica quieto. — Lysander colocou um pouco mais
de água na minha taça.
— Eu aceito vinho, ou cerveja.
— Ou um murro?
— Calma, doutor, para quê o estresse? — Ergui as mãos,
Amira riu e eu pude perceber que ela estava feliz por eu voltar ao
meu “normal”. — E essa sobremesa? Sai ou não?
— Claro, eu vou buscar. — Amira se levantou, mas Rafael a
deteve.
— Eu irei.
Meu irmão beijou a mulher antes de sair, no começo, dava
certo desconforto vê-los tão apaixonados, ou melhor, ver Rafael
apaixonado. Isso significava que, se um homem tão endurecido
quanto ele podia amar, qualquer um de nós — exceto Lysander e
Heylel — poderiam.
Observei meu irmão sumindo em direção a cozinha, alguns
instantes depois ele voltou. Quando avistei o que ele trazia, senti o
peito aquecido pela consideração.
— Fiz sua sobremesa favorita, Gabriel. — Amira sorriu. —
Espero que você goste.
Precisava admitir que ser recebido desta forma colocava as
coisas sob uma nova perspectiva. Não era apenas meus irmãos que
sentiriam minha falta se alguma coisa acontecesse comigo, e,
diferente deles, Amira era sensível demais para compreender que
todos nós possuíamos mentes fodidas e meio loucas que nos fazia
cogitar certas atitudes.
O lado positivo era que ela não precisava saber disso. Amira
poderia ficar com a parte boa da história, os momentos em família,
as narrativas. O fato de ter aceitado que éramos assassinos, sem
fazer qualquer escândalo ou discurso falso moralista, a tornava
ainda mais parte de nós.
Todos nós sabíamos que não havia muitas mulheres
dispostas a entrar para essa família. Como disse, mentes fodidas
demais para um relacionamento saudável, e mesmo se houvesse
alguma possibilidade — o que não é o caso obviamente — de que
Razhiel ou eu tivesse o que Rafael tinha com Amira, então não
haveria concessões.
Nenhum Demonidhes abandonaria a Ordem como Draikov
fez!
Os que estão aqui, jamais mudariam. Uma mulher para fazer
parte desta família, teria que aceitar tudo que isso significava, e
todos sabíamos que um raio jamais cairia duas vezes no mesmo
lugar.
Amira era exceção, não existiria outra como ela.
— Era disso que eu precisava. — Relaxei confortavelmente
na cadeira. — Estar em casa, na minha área e com a minha família.
— Eu não esqueci que você ignorou as minhas ordens. —
Lysander cruzou os braços, encarando-me com seus olhos verdes
avaliadores. — Em algum momento, eu irei fazê-lo pagar por
tamanha afronta dentro do meu hospital.
— Deixa eu ficar cem por cento, a gente pode acabar com as
diferenças no ringue. — Ele pareceu interessado, o que me
preocupara. Chamar atenção de Lysander era tão perigoso quanto a
de Rafael, e deixá-lo com expectativa para algo era pior ainda.
— Ah, irmãozinho, esperarei ansioso.
— Eu vou querer ver essa luta, aposto meio milhão em
Lysander. — Heylel esfregou as mãos.
— Dobro, aposto em Gabriel. — Amira sorriu, piscando um
olho para mim.
— Estou fodido eu sei. — Sacudi os ombros, sentindo-os
doloridos. — Mas eu vou arrebentar a sua cara, irmão, e depois vou
dividir o dinheiro do prêmio com Amira.
— Eu topo! — ela deu risada.
— Podemos aproveitar a chance, fugir e nos casar em Las
Vegas, o que acha? — Pisquei um olho.
— Começou — Rafael suspirou, mas eu notei a diversão em
seus olhos.
Quando a garrafa de vodca acabou, fomos para a saleta
intimista onde havia a lareira e a árvore de Natal. Lysander e Rafael
encarregaram-se de retirar a mesa, para que Amira pudesse nos
acompanhar.
— Deus, estou cansado. — Estiquei-me confortavelmente no
sofá.
A perna lesionada ainda estava latejando, havia percebido o
incômodo quando precisei subir as escadas e depois descer. A
atividade simples, e o desconforto que eu sentia, deixava-me
consciente da tentativa de assassinato frustrada.
Logo mais, eu faria um rastreamento nas atividades do
bastardo que tentou me matar.
Precisava saber se ele era o único infiltrado no departamento,
se alguém o indicou diretamente para minha equipe, e se sim,
quem. Quando puxasse esse fio, descobriria quem estava
envolvido, e, então, mataria todos eles.
— Você quer um apoio para a perna? — Amira estava ao
meu redor, tentando me deixar o mais confortável possível. — Você
quer?
— Não precisa. — Soprei um beijo para ela, chamando os
cachorros para ficarem perto de mim.
Corso e Yang ajustaram-se aos meus pés e ficaram
quietinhos, era como se o cuidado com que eles se aproximavam de
mim dissesse que sentiram a minha falta.
— Yang não parece que vai surtar a qualquer momento. —
Acariciei a pelagem mista do Husky Siberiano. O pelo estava tão
grande que ele parecia um urso de pelúcia.
— Ele correu por quase uma hora na neve, gastou toda a
energia ansiosa. — Heylel se sentou ao meu lado, esticando as
pernas e bebericando sua vodca.
Cerca de dez minutos depois, Rafael e Lysander voltaram,
acomodando-se lado a lado de Amira.
Achei que seria ótimo provocar os três.
— Então, aquele lance do harém vai acontecer? Vocês
formam um trisal tão bonito, mas, se houver adições, eu quero
participar. Imagina, esse bebê ter cinco pais?
— Ele terá. — Lysander cruzou os braços. — Todos nós
cuidaremos dele.
— Eu acho interessante como Gabriel insiste nisso. —
Razhiel arqueou a sobrancelha. — Por que você não procura outra
mulher casada e vira amante dela?
— Porque Amira é perfeita para nós. — Pisquei um olho para
ela, satisfeito por sentir que o clima havia amenizado e não tinha
nada de bobagem emocional.
— Estou fora desse tipo de absurdo. — Heylel balançou a
cabeça. — O que é meu, é somente meu.
— Você é um estraga-prazeres. — Voltei minha atenção para
Amira. — Você nunca vai se estressar, querida, e quando qualquer
um de nós a chatear, você procura outro. Não é ótimo?
— Não, eu só amo Rafael — Amira começou a rir. — Vocês
são meus irmãos.
— Não o leve a sério, esse bastardo está com tempo
sobrando. — Heylel cruzou os braços, enquanto Rafael apenas
balançava a cabeça como se me considerasse um caso perdido.
Lysander parecia alheio, o bastardo nem se alterava mais
com as provocações, e isso me dava certeza de que, num futuro
breve, eu teria que mudar a tática.
— Gabriel, se você arrumar uma namorada... — Amira
começou, mas eu a interrompi.
Esse tipo de discussão nunca seria voltada para mim.
— Jamais, cunhada, eu nunca irei me envolver para algo
além de uma noite de sexo. — Abanei a mão. — Eu não tenho
material para um relacionamento a longo prazo, um dia é suficiente,
e então já quero passar para a próxima. Se você quiser outra mulher
nesta casa, deve começar a rezar para Razhiel ou para que o seu
bebê seja uma menininha.
— Não conte com isso, uma sessão de tortura é menos
dolorosa que um relacionamento — meu irmão resmungou baixinho.
— É isso, não haverá mais mulheres para os irmãos
Demonidhes. — Olhei ao redor. — Não tenho um copo para brindar,
mas é isso.
Jamais assumiria outra vez a responsabilidade por alguém.
Eu era louco, mas não o suficiente para entregar a alguém o poder
de me destruir, e isso nem era me referindo ao relacionamento em
si, mas ao que a perda me causaria.
Só de pensar, sentia como se pudesse reviver o meu
pesadelo, e a vontade de explodir o mundo era apenas mais difícil
de controlar.
— Gabriel, eu acho que você poderia investir naquela garo...
Antes que Amira abrisse a boca grande dela, e falasse
demais, eu a interrompi:
— Não nasci para pertencer a uma mulher só. — A encarei,
para que entendesse que não deveria trazer o maldito assunto outra
vez. — Aquela breve obsessão foi uma coceira passageira e
totalmente errada, nada demais.
Talvez agora ela esquecesse que eu havia falado demais, e
não traria o assunto à tona. Não sei onde eu estava com a cabeça
para deixar escapar que tinha desejo numa garota jovem demais e
que, com certeza, só me traria problema.
Quem mandou ouvir aquela voz de anjo? Balancei a cabeça,
achando irracional que ver os olhos castanhos encarando-me
através da câmera me afetasse.
Por longos meses, eu me fodi, desejando uma garota que
não podia ter, por tantas razões que nem dava para enumerar.
Naquela época, já seria um escândalo, e, por sorte, eu havia
superado.
Agora as coisas estavam bem menos complicadas. Eu só era
obcecado por sua voz.
Não por ela.
— Se qualquer um de vocês me ver com uma mulher por
mais de dois dias, apenas me prendam, até que minha sanidade
volte ao normal. — Cruzei os braços, encerrando o assunto.
— Anotado. — Lysander me lançou-me um olhar gelado.
— Vamos cessar as provocações. — Razhiel pegou uma
caixa vermelha e a destampou. O cheiro de canela flutuou ao redor,
trazendo aquela sensação de que meu pai surgiria a qualquer
momento.
— Eu tenho um presente para vocês. — Amira se levantou.
— Esperem aqui.
Ela correu em direção ao que eu acreditava ser o estúdio de
pintura, Rafael e Corso foram atrás.
— Ela não deveria estar correndo assim. — Lysander olhou
para o corredor. — Porra.
— Por que não? — Razhiel questionou e eu esperei que ele
dissesse que Amira havia tido um sangramento.
— Nada.
Franzi o cenho, relanceando o olhar para Heylel, ele apenas
deu de ombros.
Que diabos!
— Você deu para esconder as coisas de nós? — Razhiel
questionou, e na hora eu percebi a merda.
Devagar demais Lysander o olhou e pareceu como se ele
fosse um animal que havia acabado de prender sua presa.
— Parece que eu não sou o único. — Cruzou os braços. —
Possivelmente, você tenha algo a dizer sobre a sua RAM, ou não?
Heylel sorriu, mostrando para nós a face de demônio que ele
possuía. Na frente de Amira, ele agia como um cara
despreocupado, tranquilo, mas não dava para se enganar.
Estávamos falando do anjo da morte. Heylel era tudo, menos
tranquilo. Ele apenas fingia bem demais.
— Eu achei que você estivesse sobrecarregado, eu não
queria preocupar você ou Rafael.
— Vamos conversar depois, irmãozinho, e não pense nem
por um instante que você está fora do radar. Rafael sabe do
atentado, eu também.
Antes que Razhiel pudesse dizer algo, Amira voltou, Rafael
logo atrás carregando uma tela enorme, coberta por um tecido.
— Coloque aqui. — Amira apontou para um local perto da
árvore.
Quando a tela foi depositada no chão, Amira a segurou e
Rafael veio sentar-se.
— Eu... eu espero que vocês gostem.
Ela puxou o tecido da tela e foi como se eu acabasse de levar
um murro bem no meio da cara. Primeiro eu senti desconforto,
depois eu não sei qual emoção me dominou. Era um misto de
nostalgia, choque, tristeza e algo terrivelmente forte que ferroava
bem no coração.
— Eu não acredito. — Heylel inclinou para a frente, e ficou
ali, congelado, encarando a imagem de nosso pai naquela tela.
— Como? — A voz de Razhiel pareceu amortecida pelo
choque.
— Feliz Natal e Ano-Novo. — A voz de Amira apenas foi
ouvida.
Não consegui tirar os olhos da imagem do meu pai, era tão
real, tão perfeita, que alguma emoção louca e irreal me fez esperar
que ele saísse daquela tela e abrisse os braços, exigindo o abraço
que não damos há anos.
— Pai — Lysander murmurou, a voz levemente embargada.
Ele negou, baixando a cabeça, começando a trabalhar a respiração
para se controlar.
Nada resultava em algo bom quando Lysander perdia a linha,
alguém sempre acabava bastante machucado para que
conseguisse derrubá-lo até um ponto que já não pudesse mais se
levantar.
— Sinto como se ele fosse caminhar em minha direção. —
Rafael se levantou. — Parece que está vindo para nós.
A mão do meu irmão tremia quando tocou o rosto de nosso
pai. A imagem era tão surreal, que eu não tinha palavras que fizesse
jus ao quanto aquele quadro estava perfeito. Eu não era um
estudioso da arte como Razhiel era, não possuía o dom de formular
palavras bonitas.
Nunca conseguiria descrever as emoções que esse quadro
invocava, mas estava sentindo como se estivesse mergulhando num
caldeirão de sentimentos conflituosos.
Aquele quadro era uma representação de quem era Roman
Demonidhes, o mais poderoso Senhor da Ordem que já existiu, e
isso porque ele possuía um coração generoso, capaz de amar e
defender jovens rapazes de um mundo cruel e até de si mesmos.
Ela o representou tão bem. Ali, naquela cena incrível, eu
pude matar a saudade de meu pai, depois de tanto tempo sem
coragem para ver suas fotos.
Na tela, a neve que ia caindo daquele céu obscuro mesclava-
se com a fumaça e o fogo. A floresta congelada parecia fantasmas
do passado, as árvores apontando para o céu como dedos que
imploravam bênçãos que nunca seriam atendidas. Em meio a todo
aquele caos de beleza surreal e triste, nosso pai caminhava como
se fizesse parte da noite, como se a controlasse.
Havia o indício de sorriso em seus lábios, ele olhava para
nós, e, por Deus, havia tanta profundidade em seus olhos, que até
pareciam reais. A imponência de sua figura extraordinária fora
capturada naquela tela de modo perfeito e visceral. A aura de poder
o rodeava, como se, de algum modo, ele fosse uma criatura imortal
capaz de envolver o mundo em sua mão e destruí-lo de acordo a
sua vontade.
Esse era Roman Demonidhes, o Sentinela, Senhor da
Ordem, nosso salvador e amado pai.
O peso de tudo que ele representava me golpeou duramente,
pois era como se ele pudesse julgar as minhas decisões e as
desaprovasse. No final, a última coisa que eu queria era
decepcionar meu pai, e ele não estava ali para que eu pudesse me
esforçar para lhe dar orgulho.
Fazer frente a isso, quando há poucos dias eu pensei em
morrer naquele incêndio, acabou sendo demais para mim.
— Preciso ir.
Apressei-me para fora da sala, buscando quase com
desespero refúgio no meu quarto.
Necessitava ficar sozinho, pois não poderia guardar o que
ameaçava explodir de dentro de mim. Não cuidei da minha perna,
não me importei, eu apenas fui o mais rápido que pude em direção
ao único lugar que me permitiria enlouquecer sem a presença de
testemunhas.
Assim que a porta do meu quarto bateu num estrondo que
condizia com a loucura que me engolia, eu gritei o mais alto que
pude:
— Porra! — Sentia furioso comigo mesmo porque eu sabia
que havia decepcionado meu pai, digo, a memória dele. — Porra,
porra, porra!
Esfregando o peito, sentia o desejo de aliviar aquela dor
crescente e que se perpetuava há tantos anos. Sozinho, triste por
meus erros, senti-me acuado como um filho da puta que não tinha
para onde fugir, porque eu sabia que mais dia menos dia eu faria
outra merda.
Esse era eu.
— Caralho! — Por um momento, eu vi as paredes se
fechando ao meu redor.
Derrubando-me de joelhos, a saudade veio como uma onda
demolidora.
Forte, bruta e tão miserável, que chegava ao ponto de doer
fisicamente e, ainda assim, não fui capaz de chorar. Estava seco,
revoltado, era nada mais que um miserável que não merecia nada
do que possuía.
O desejo de buscar algo que colocasse minha vida em risco
veio forte e foi muito angustiante. Eu sabia que a adrenalina que eu
ia sentir, doparia essa sensação de perda horrível e irreparável.
— Preciso disso. — Olhei para as persianas fechadas,
imaginado a possibilidade de abri-la, e me jogar do primeiro andar. A
neve amorteceria minha queda, mas a perspectiva de me arrebentar
poderia oferecer o que eu precisava para ter um pouco de acalento.
Levantando-me, fui até o controle. Quando ia abri-las, algo
me impediu.
Os olhos de Roman naquele quadro, avaliando minhas
atitudes.
Sem condenação, apenas muita tristeza.
— Pai...
Não podia ser egoísta, pensando apenas na minha dor e
necessidades. Minha família inteira seria prejudicada, Amira e o
bebê...
Eu não podia...
— Deus! — ofeguei, tossindo, com as mãos tremendo devido
a necessidade de sentir o prazer da adrenalina navegando pelas
minhas veias como uma droga viciante.
Sentia o peito congestionado, queimando, mas agora estava
precisando lutar contra o meu mais antigo vício. Não havia muitas
coisas capazes de me acalmar que não envolvesse algo
extremamente arriscado.
A sorte que eu tinha nessa vida de merda era que a voz de
uma garota, era capaz de fazer esse milagre.
— Preciso de você... — balancei a cabeça corrigindo-me —
... da sua voz.
Meio louco, busquei desesperadamente a playlist dedicada a
ela. Sua voz era capaz de me acalmar o suficiente para que
retomasse o controle e não pensasse em coisas tão absurdas. Fora
esse poder desconhecido que me tornou tão atento a ela.
Aquela jovem cantora havia se tornado minha obsessão,
depois apeguei-me apenas à voz dela. A maioria das músicas que
cantava eram covers, mas as que escolhia batiam como um murro
em mim; e pior, as que ela escrevia pareciam ser feitas para mim.
Eram músicas tristes, que ocultava dores profundas e
pedidos de socorro. Ela era uma compositora habilidosa, pena que
não tinha um acervo digno de si.
— Vamos. — Apertando o play, deixei rolar.
A voz melodiosa e gostosa de ouvir fluiu pelos altos falantes.
Respirando fundo, fechei os olhos, concentrei-me nela, deixando
que entrasse em mim.
“Você me combate como um bombeiro.
Então me diga
Por que você ainda me queima?”

— Eu poderia queimá-la se você me deixasse — murmurei


para a escuridão do meu quarto, como se ela pudesse me ouvir.
“Esqueça isso, Gabriel! Se convença de suas palavras como
você tenta convencer os outros”, alertei-me, mas quase sem querer
vislumbrei os olhos castanhos e inocentes.
Às vezes, me questionava se seriam tão bonitos
pessoalmente. Nos vídeos, ela encarava com tanta profundidade,
que, em todas malditas vezes que a assisti, pensei que, talvez, ela
pudesse estar pedindo algo.
Mas o quê?
— Não importa! — Sacudi os ombros, relaxando cada vez
mais.
A voz dela era um vício seguro, que não me afetaria em
absolutamente nada fora destas paredes.
6
Jenny Monroe

Aquele dia era um dos que começava ruim.


A sensação de que eu não estava com roupas suficientes
continuava sendo esmagadora e isso nem pelo frio terrível que fazia
em Manhattan, mas sim pelo olhar peçonhento do homem sentado
do outro lado do sofá.
Ele era o passaporte para entrar naquela gravadora. Uma
gigante norte-americana, que era capaz de transformar qualquer
artista em uma estrela mundialmente famosa.
Não era meu sonho.
Não queria ser famosa, esse desejo era de John, não meu.
Meu sonho era mais simples. Só queria ter uma vida tranquila.
Estava cansada demais de ter que ficar sempre com um olho
aberto, com medo do que meu padrasto poderia fazer.
Suas atitudes e promessas me aterrorizavam, seus planos...
— Olhe para mim, querida. — A voz de David Smith, CEO da
gravadora, causou-me ânsia.
Não queria erguer a cabeça e ter que ver o modo como ele
me encarava. Era tão invasivo e angustiante que eu me sentia a
ponto de vomitar. O desconforto era tanto que precisava lutar contra
o impulso de sair correndo sem olhar para trás, eu queria estar ali,
não queria estar fazendo parte daquela conversa horrorosa entre ele
e meu pai... quero dizer, padrasto.
Deus, me tire daqui... Ainda que eu soubesse que não havia
um Deus olhando por mim, o que restava para pessoas como eu era
o mínimo de esperança. Por mais absurdo que fosse, em situações
como aquela, a única saída era agarrar-se a qualquer coisa, pois
era o único meio de não enlouquecer de vez.
— Olhe para mim. — A voz exigente de David me fez
encolher de medo e eu acabei obedecendo.
Contra a minha vontade, tive que erguer a cabeça, apenas
para encontrá-lo de pernas abertas, mostrando o quanto estava
excitado. O volume na calça social repugnava-me. Tudo naquela
entrevista era tão vergonhoso que eu só queria sair dali e nunca
mais voltar.
Não queria um contrato, não queria nada do que ele poderia
oferecer. Estar ali não era um desejo meu, nada da minha vida era.
— Então, David, posso chamá-lo assim? — John parecia
ansioso, enquanto David não estava nem aí. — Estive avaliando seu
elenco, e garanto que minha filha será uma excelente aposta para
este ano.
Não sou sua filha! Meu peito estava doendo, a pressão
daquele lugar estava transformando um dia ruim em um dos piores
da minha vida.
— John, até que ela é boa, tem uma voz gostosa de ouvir,
mas... — David inclinou-se em minha direção, e o movimento
deixou-me ainda mais desconfortável —, mas adoraria saber até
que ponto Jenny está disposta a ir para conseguir esse contrato.
— Ela está disposta a tudo!
Não estou! Sentia-me perigosamente perto das lágrimas, o
diálogo deles era asqueroso, medonho ao ponto de me deixar com a
sensação de que havia algo se rastejando sobre a minha pele.
— Isso soa interessante. — David passou a mão no meio das
pernas, eu baixei a cabeça outra vez. Era demais para mim. —
Tímida, gosto disso.
Não sou tímida, apenas não suporto olhar para você. O frio
na barriga que eu sentia estava aumentando aquela sensação de
mal-estar generalizado que antecedia uma crise.
Meu coração moribundo estava começando a dar defeito de
novo, e eu desejava que ele realmente parasse de uma vez. Antes
— há tanto tempo que nem lembrava mais — temia o que poderia
acontecer, todavia, naquele momento, ansiava pela paz que apenas
o meu coração poderia me dar.
Se ele falhasse, eu seria livre, e todos os malditos planos de
John cairiam por terra.
— Você acha que ela fará o que for necessário para ter esse
contrato? — David acendeu um charuto.
— A minha filha fará o que for preciso. — John sorriu. — Se
você garantir que ela será a nova voz da Universal Record’s. —
Ambos deram uma risada cúmplice, como se o que eles
combinavam não fosse tão podre.
Não era dito abertamente, mas estava claro como água. Para
eu ter o contrato, precisaria prestar “favores”. John, o meu padrasto,
estava me vendendo.
— Você é um caça-talentos falido, John. — David deu uma
risada. — Mas, talvez, consiga alguma coisa, vai depender do
quanto sua filha é boa.
— Não vamos nos enveredar por esse caminho, eu tive
minha cota de sucesso anteriormente.
— Com quem? Sua esposa? — David provocou. — Ela tinha
uma bela voz, pergunto-me por que sumiu?
Porque ele gosta de usá-la para aliviar suas frustrações. O
problema é que ele faz isso usando os punhos.
Eu sabia que John estava furioso, pois estava acostumado
demais a ser o personagem de autoridade, o que decretava as
coisas, punindo também. Naquele lugar ele tinha que baixar a
cabeça ou jamais conseguiria o que buscava.
Alguém pagaria pelo quanto ele havia se sentido inferior.
— Vamos ao que interessa, David, você quer um encontro
coma minha filha?
— Com certeza, uma noite e eu garanto seu contrato.
Fechando os olhos, não pude evitar a lágrima que escorreu.
A vergonha por estar naquela situação golpeava minha dignidade
tão profundamente, que sentia o amor pela música ir morrendo.
Faça algo! Podia ouvir o grito dentro de mim. Ainda que eu
sofresse represálias, ficar quieta era como se eu concordasse com
todo aquele absurdo. Reunindo toda coragem que ainda possuía e
as migalhas da dignidade que meu padrasto ainda não tinha
roubado, eu disse:
— Não! — Havia soado tão baixo e fraco que eles
continuaram como se eu não tivesse dito nada.
— Vamos combinar para amanhã à noite, quero que ela vista
algo sexy e fácil de remover.
— Não! — Ambos silenciaram e, mesmo tremendo, eu
consegui ficar em pé.
— O quê? — David relaxou no sofá, apoiando os braços no
encosto. A visão geral dele, de sua postura e olhar era nojenta.
— Eu disse não! — Aumentando o tom, sentia que ficava
mais forte. Precisava lutar por mim, porque outra pessoa não o faria.
Talvez minha mãe, mas ela vivia numa situação pior que eu.
Não dava para querer empurrar-lhe um fardo que ela não podia
carregar.
— Não vou sair com você. Não quero nenhum contrato, não
vou me prostituir! — Lutei para que minha voz soasse firme, mas ela
foi embargando.
Ele arqueou a sobrancelha, então sorriu com aqueles dentes
horríveis e a expressão divertida de quem sabia que estava numa
posição vantajosa.
— Parece que você tem fogo, querida. — Ele colocou a mão
na virilha, dando um aperto. — Gosto disso.
Deus... O nojo foi tanto que meu estômago parecia mais
revirado.
— Jenny, sente-se e pare de drama. — Meu padrasto tentou
aliviar o clima. — Ela vai vestir algo sexy, David, fácil de tirar. — Os
olhos dos dois bastardos voltaram-se para mim.
Um parecia esperar que eu desafiasse as palavras que foram
ditas; o outro, advertia no brilho cruel do olhar que eu estaria bem
ferrada se não ficasse calada.
Eu estava com medo, eu sabia que John ia me bater, mas
não podia ficar calada, não podia aceitar isso que estavam fazendo.
— Muito bem, podemos organizar. — A voz do meu padrasto
soou decisiva. — Mas, antes, o contrato.
— Ofereço contrato de um ano, nós iremos cuidar de tudo.
Imagem, lançamentos, turnês...
— Parece perfeito para mim. — John pareceu-me exultante.
Ele estava conseguindo o que tanto queria.
— Mas terá uma cláusula contra escândalos. Se ela sair da
linha, você terá que pagar uma multa de... — David fez uma pausa,
que me fez prender o fôlego. — Seis milhões de dólares que será
ajustada anualmente de acordo a valorização da carreira e da
imagem dela.
— A cláusula é conveniente, Jenny não faz nada sem minha
autorização. A vida dela é minha. — John secou a testa. — Mas seis
milhões de multa? Isso precisamos negociar.
— Você não confia no controle que possui sobre a sua
putinha? — Encolhi, sentindo-me golpeada. — Sem discussões, a
multa será essa ou nada feito, ambos podem sair daqui agora. —
David sorriu. — Você está vendendo a garota enquanto ela faz esse
teatrinho ridículo de moça insultada. — Abanando uma mão, tomou
um gole de sua bebida. — Acha que não sei o tipo de
comportamento que garotas como ela possuem? A reputação da
gravadora vem em primeiro lugar, então é pegar ou largar.
John resmungou alguma coisa que eu não pude entender,
mas estava bem claro o ódio que ele sentia.
— Eu pego, Jenny não faz nada sem minha autorização,
então se quer uma multa pode colocar. Eu garanto que tudo será do
meu jeito.
Lutando contra o choro, não o permitindo sair, eu consegui
engolir a vontade de gritar. Mas a dor no peito estava ali, crescendo,
tão pesada como se alguém estivesse segurando meu coração na
mão.
Não podia deixar transparecer minha desolação com aquele
acordo, isso só me deixaria mais fraca perante os dois. Não podia
chorar, só precisava lutar com as armas que estivesse a minha
disposição.
Um dia, tudo isso ia acabar.
— Eu não aceito nada disso, John! Eu não aceito nada diss...
O murro veio antes que eu pudesse terminar a frase. A sala
girou tão depressa que apenas quando meu corpo bateu no chão,
foi que percebi o que havia acontecido. O gosto de sangue explodiu
na minha boca, aumentando o desconforto no estômago.
Abraçando meu corpo, eu tentava me proteger, John nunca
batia apenas uma vez. Ele o fazia até que estivesse cansado, sem
forças para levantar o braço.
— Me chame de pai, já falei. — A voz de John reverberou na
minha cabeça. — Da próxima quebro seus dentes.
— Gosto de como você controla uma mulher. — Havia
diversão na voz de David. — Ela me parece do tipo que causa
problema, talvez seja melhor repensar, tenho muitas garotas com
potencial parecido ao dela, dispostas a rebolar no meu pau aqui
mesmo nesta sala. Não vou arriscar dor de cabeça por causa de
uma boceta.
— Ela não vai causar problema! — John falou alto, o tom de
voz submisso. — Sei que muitas estão dispostas a tudo para ter um
contrato aqui, mas quantas delas ainda não foram tocadas por
nenhum homem? — Balancei a cabeça fervorosamente, com um
lado do rosto latejando com cada movimento. — Imagine você
rasgando a virgindade dela? Fazendo-a gritar? Você tem isso das
outras? Há quanto tempo não fode uma boceta virgem?
— Uma virgem, nessa idade? — Havia muito interesse na
voz de David. — Quem me garante?
— Eu garanto! — Relancei um olhar para meu padrasto, ele
me olhava com desejo e não escondia. Há muito tempo havia
revelado suas verdadeiras intenções, e eu rezava para que minha
mãe não soubesse. — Cuidei para que fosse algo que eu pudesse
usar.
— Você tem planos para ela. — Uma risada soou. — Você é
esperto, John.
— Sou o bastante.
O pavor estava rolando sobre mim na velocidade de um trem-
bala. Eu sabia do que John era capaz, convivia há anos com suas
insinuações de merda, mas nunca o vi alardear em alto e bom som.
— Quem garante que ela não vai causar problema?
— Eu a deixarei pronta. Você vai poder ficar à vontade para
fazer o que quiser, só não pode prejudicar o rosto dela...
— Como você acabou de fazer? — David deu uma
gargalhada. — Olhe a boca dela, está arrebentada. Como vai
chupar o meu pau?
Vomitei no tapete caro, enquanto eles me ignoravam.
— Um pouco de sangue e dor não fazem mal a ninguém. —
John era tão confiante de seu domínio sobre mim e que sempre
sairia ileso, que nem considerava que eu pudesse fazer algo. — A
mãe dela sempre transa melhor após uma surra.
A imagem da mulher mais incrível que eu conhecia veio à
mente. Por muitos anos ela escondeu os abusos que sofria.
Cada vez que um machucado novo ia aparecendo, ele dizia
que havia caído, escorregado, batido na cômoda, ou cadeira. Eu só
compreendi o que tudo aquilo significava quando eu a vi levando um
soco, e afirmar que havia tropeçado no carpete.
— Ela tem milhares de seguidores, se ela abrir a boca...
— Eu monitoro as contas. — John abanou a mão.
— Tudo bem, e como eu posso falar com a Jenny? Sem
passar por você.
— Por que você iria querer isso?
— Se eu quiser, como eu faço para falar com ela?
— Eu a deixo com um celular que serve apenas para receber
as minhas ligações quando não estou em casa. — Havia raiva na
voz de John. — É a única linha cadastrada no nome dela. Você
pode usá-lo.
Um dia eu conseguiria acesso as minhas contas, e então
todo mundo ia saber a verdade sobre aquele acordo sórdido.
— Você garante, John?
— Óbvio que sim, Jenny não vai causar problema. Apenas
aproveite.
— Então, ela será minha. — David sorriu.
Não, eu jamais serei! Queria ter gritado, mas não fui capaz.
Estava com medo, sabia que em algum momento haveria
represálias, mas eu não era covarde.
Eu não podia ser.
— Às nove da noite está ótimo. — David esfregou as mãos.
— Não.
Talvez eu nunca encontraria a força necessária que mudasse
minha vida para sempre, mas, naquele momento, eu lutaria minha
dignidade não importando quais fossem as consequências.
— Ouçam bem, pois falarei apenas uma vez. — A minha
boca doía muito e o rosto também, ainda que isso fosse um
lembrete do que irritar John me causaria, não ia desistir. — Se
vocês continuarem com isso, vou dedicar a minha vida a acabar
com a sua carreira, David Smith. — Limpei o sangue da boca,
mantendo-me ereta para não demonstrar o quanto eu me sentia
frágil. — Eu juro que, um dia, eu vou acabar com você. Pode ser em
um show, numa entrevista, você vai viver apavorado, eu juro.
— Jenny, cale-se! — meu padrasto rosnou, com os olhos
escuros acendendo com uma fúria que eu já conhecia.
— Eu juro que nunca mais cantarei um único verso, e você
sabe, papai, que eu sempre cumpro as minhas promessas! — Um
soluço ameaçou escapar, mas estava de cabeça erguida.
Ele odiava quando era enfrentado.
— Jenny, tem certeza de que vai usar isso? — John se
levantou. A postura agressiva deixava claro que pretendia partir
para cima de mim. — Sabe que eu posso fazê-la mudar de ideia,
não é, querida? Lembre-se do que aconteceu quando você chamou
a polícia para mim?
Na hora um calafrio me arrepiou, quando as lembranças do
pior dia da minha vida começaram a voltar.
Eu tinha dezesseis anos, quando finalmente havia
compreendido o tipo de vida que ela levava, a minha reação foi
chamar a polícia, pois eles estavam ao “lado da justiça” e poderiam
salvar a minha mãe.
Mas, ao invés de, no mínimo, investigarem, eles acreditaram
no teatro de John, quando disse que eu era uma adolescente
rebelde querendo chamar atenção. Sequer falaram com a minha
mãe, mas eu tive que aguentar o sermão, para não fazer chamadas
falsas.
O resultado disso? Minha mãe foi brutalmente espancada
enquanto eu assistia.
Então eu tive que suportar o terror de viver dois longos
meses sem saber como ela estava, enquanto eu seguia me
culpando por ter tentado protegê-la.
Naquela época, John a machucou sendo que era eu culpada,
e ali mesmo, ele descobriu como nos controlar e eu entendi que não
havia ninguém lá fora para nos salvar, a não ser nós mesmas.
Éramos eu e minha mãe, apenas.
— Não vamos nos precipitar. — David se levantou, sorrindo,
mas eu notei as gotículas de suor pontilhando sua testa. — Toda
esta conversa não passou de uma brincadeira. — Ele estendeu a
mão. — Samarco, infelizmente a gravadora não tem interesse na
sua filha, esta reunião está encerrada.
O alívio transbordou de mim quando ele foi caminhando em
direção a porta. Depois disso, eu poderia aguentar a fúria de John.
— Espere, isso não pode terminar assim, eu sei que Jenny
vai relevar, apenas me dê um tempo para conversar com ela melhor,
e fazê-la entender. — John segurou o braço de David. — Eu garanto
que ela vai aceitar, e nós dois teremos o que desejamos.
— A boceta dela não vale o risco. — A voz de David soou
decisiva. — Não vou arriscar.
— Eu garanto que não terá problemas, apenas me dê um
tempo. Você e eu sabemos que ela vale o investimento.
— Não sei.
Meu coração acelerou ao ponto de eu sentir que havia uma
batedeira no peito. A pequena pausa de David me deixou
apavorada.
— Confie em mim, a nossa parceria será muito lucrativa. —
John me lançou um olhar enviesado. — Eu a entregarei como quer,
e você me dará o que eu quero. Ambos sairemos ganhando.
A atenção dos dois se voltou para mim, o desconforto que
senti foi ainda maior, John sabia que possuía armas e ele as usaria.
Se David não decidisse naquele dia, então, as minhas chances de
fugir dessa situação seriam menores.
Isso não podia ficar para depois, se John chegasse em casa,
poderia machucar minha mãe até que eu aceitasse, então...
— David, confie em mim — John insistiu e o homem hesitou.
Foi como se eu recebesse um soco no estômago. Cruzando
os braços, David estreitou os olhos.
— Daqui a um mês viajarei para o festival de Londres.
Por favor, Deus, não permita, não permita. Baixando a
cabeça, rezava para que alguma coisa acontecesse e ele não
dissesse mais nenhuma palavra.
— Você tem até lá para fazê-la concordar com os meus
termos. Eu a quero na minha cama durante o final de semana que
acontecerá o evento. Mas eu a quero de forma voluntária. Londres é
a última chance que você terá, Samarco, caso não aconteça, eu vou
pessoalmente inviabilizar qualquer chance que você tenha no
mercado, ou melhor, que vocês dois tenham. — Havia um ar de riso
em sua voz. — E eu não quero você nesta viagem, sua presença
inútil. Portanto, Jenny Monroe deve estar sozinha em Londres, e eu
me certificarei de que você cumpra com sua parte, não tente
sabotar. — Ele abriu a porta e antes de sair disse: — Lembre-se,
última chance, envie o número dela para mim.
— Se eu não estiver presente, ela pode...
— Eu vou saber controlá-la melhor sem você, tenho meus
próprios métodos. Ela vai ficar no quarto, me esperando na cama e
pronta para trepar quando eu chegar.
— Como quiser.
Fomos deixados sozinhos e a primeira coisa que John fez foi
vir até onde eu estava. Tremendo, me encolhi quando colocou as
mãos em meus ombros, levantando-me.
— Você não deveria ter aberto a porra da boca. — Seu joelho
subiu conectando-se com o meu estômago. — Você vai estar sem
mim nessa viagem, mas eu juro que se der um passo para fora do
que eu vou planejar, eu mato a sua mãe!
— Você não tem o direito — arquejei, com a dor me cortando
ao meio. — Você não tem o direito de fazer isso comigo.
— Tenho todo o direito, eu sou seu dono! — rosnou,
enfurecido. — Você é minha, porra!
— Nunca!
Ele segurou meu queixo com tanta força, que a dor disparou
pela minha cabeça. Pontos pretos começaram a brilhar, senti que ia
amolecendo.
— Eu queria arrebentar essa sua cara, mas não posso e que
Deus me ajude, pois, no seu lugar, farei sua mãe pagar caro.
— Não!
Meu coração acelerou e então começou a bater de um jeito
estranho, fora de ritmo. John estava com os olhos presos em mim,
mas eu não permiti que ele notasse o que eu estava sentindo.
Há meses vinha sentindo que o meu marca-passo ou os
remédios não estavam funcionando de maneira adequada. Era
sempre uma surpresa, às vezes, nada acontecia, mas, então,
haviam momentos que parecia que estava enfartando.
Não contei para John, decidindo que o destino se
encarregaria de escolher por mim. Com sorte, meu coração seria o
responsável por dar um basta naquela vida horrível, dando-me a
liberdade que eu tanto ansiava.
— Não lute contra mim, Jenny. — Sua voz era um eco na
minha cabeça, a tontura fez com que eu o ouvisse longe. — Sua
vida é minha. — Ele encostou o nariz no meu. — Você é minha.
— Não desconte sua raiva na minha mãe! — Deixei que
percebesse o ódio que me dominava. — Você deveria fazer isso em
mim, quer machucar alguém? Machuque a mim. Me mate se quiser,
mas não machuque a minha mãe, ela é inocente nesse seu jogo
sórdido.
Respirando fundo, ele me soltou, abraçando-me.
— Eu te amo, Jenny. Agora recomponha-se, esperarei no
carro. — Ele beijou o topo da minha cabeça, antes de ir.
O som da porta batendo ecoou no silêncio daquela maldita
sala. Daquela vez, levou mais tempo desta vez para que meu
coração se normalizasse. Pareceu uma eternidade até que eu
conseguisse respirar melhor, e que a tontura não fizesse parecer
que a sala estava rodando.
— Um dia isso vai acabar. — Secando as lágrimas, tentei
limpar o sangue do lábio partido o melhor que pude.
Sentindo a vergonha ferroar, eu imaginava que receberia
olhares. Mas não, enquanto caminhava pelos corredores da
gravadora em direção à saída, ninguém me parou. Eles olhavam
para mim e continuavam com suas atividades como se uma mulher
machucada transitando por ali fosse corriqueiro.
Eles sabem e não se importam.
A certeza era esmagadora e isso me fez chorar porque eu
ainda esperava que alguém aparecesse para me ajudar, que se
importasse o suficiente para olhar direito e entender o apelo que eu
emitia em silêncio.
Não havia ninguém ali fora para lutar por mim, para segurar
na minha mão. Era eu e minha mãe, só que ela, talvez, precisasse
ser salva mais do que eu.
Quando finalmente pude chegar na rua, meu corpo foi
aguilhoado pelo frio. Fechando os olhos, permiti-me respirar fundo,
trazendo aquele ar congelante para dentro.
O frio amenizava a dor emocional porque doía fisicamente.
Naquele corpo maltratado, era apenas o frio que poderia consolar.
Não havia calor para mim.
— Pare de me fazer perder tempo! — A buzina do carro de
John soou próxima.
“Deus, quando isso vai acabar?”, questionei-me, ansiando
por liberdade, pelo direito de escolher o que eu faria da minha vida.
Era triste admitir, mas meu maior sonho de vida não era me tornar
uma cantora famosa, e sim, poder ter o mínimo para viver sem
medo, sabendo que eu e minha mãe estávamos protegidas.
— Apresse-se!
Entrando no carro, eu tentei ficar o mais distante possível
dele, mas sua mão, macia demais para meu gosto, repousou na
minha coxa. Ele começou a acariciar.
— Não pense que eu gosto de ter que dividir você, mas será
por um bem maior.
— Eu não sou sua. — Encarava minhas mãos, notando as
pontas dos dedos roxas.
Se era por causa do frio, ou do meu problema cardíaco, eu
não fazia ideia. Também não importava.
— Você é sim. — John aumentou o aquecedor do carro. —
Jenny, você está tomando seus remédios direito?
— Sim.
Não estava, mas ele não precisava saber disso.
— Amor, você precisa se cuidar. — Acariciou meus cabelos.
— Não posso perder você.
Sentia tanto ódio por John, que meu corpo tremia com a
intensidade do sentimento. Dentro daquele carro, ele nem parecia o
miserável de outrora. Sua voz soava sensível, carinhosa, mesmo
que eu soubesse o que aguardava quando chegássemos em casa.
Minha mãe ia pagar pelo que fiz, e eu me sentiria culpada por
tudo.
Até quando ela suportará tudo isso? Até quando o corpo dela
ia aguentar antes que quebrasse para além do reparo?
O questionamento atormentava-me dia após dia, pois ainda
que vivesse dentro de um pesadelo controlado por um psicopata,
minha mãe continuava a criatura mais gentil, delicada e amorosa
que eu conhecia.
Eu nunca poderia entender como alguém tinha coragem de
levantar a mão para machucá-la, sendo que ela era tão doce que
até sua voz era mansa.
Será que, se eu não tivesse mais ali, John pararia de
machucá-la? Ele fazia isso porque gostava e porque sabia que
podia me controlar, mas e se eu não estivesse mais ali?
Por um momento, a vontade de poder abrir a porta do carro e
me jogar para fora foi forte o bastante para eu apertar a maçaneta.
Tudo acabaria de uma vez.
Não teria que suportar seus abraços excessivos, os toques
desconfortáveis, as insinuações e os olhares...
Os malditos olhares de cobiça que John destinava a mim.
Além do desejo doentio e asqueroso que ele não fazia questão de
esconder.
Era só abrir a porta e pronto...
Abra a porta, Jenny... Respirando fundo, fechei os olhos e...
O carro havia parado.
— Chegamos, querida. — Ele apertou minha coxa, eu olhei
ao redor, tentando entender, por qual razão eu não tive coragem. —
Não se assuste com os novos seguranças, são para nos proteger.
Sim, ele tinha negócios com pessoas muito ruins.
Vários homens caminhavam pelo jardim como se fossem
donos do lugar, nem se preocupavam em esconder as armas,
nenhum deles estavam ali quando saímos mais cedo.
— Você vai subir pela garagem e vai direito para seu quarto,
não saia de lá até eu mandar.
Antes que eu pudesse escapar, ele me puxou, abraçando-
me. Meu corpo enrijeceu, repudiando seu contato.
— Não fique com raiva de mim, tudo que faço é para o seu
bem, eu te amo, querida, sou seu papai. — Acariciou minhas costas,
por baixo do casaco. — Quando eu terminar com o visitante, iremos
relaxar na piscina aquecida, eu e você.
— Estou cansada.
— Eu e você iremos relaxar juntos. — A sensação de vômito
me fez arquejar e ele percebeu. — Você quer vomitar porque eu te
abracei?
— Eu te odeio. — Minha voz soou estranha, a garganta
estava queimando devido a vontade de vomitar, que só ficava cada
vez pior.
— Você me ama! — Me empurrou para fora do carro com
grosseria. Não tive coragem de olhar para o motorista, a última
pessoa que tentou ajudar estava morta e enterrada no terreno dos
fundos.
— Até mais, querida.
A vontade que eu tinha era de correr para dentro de casa,
mas me controlei. Fui caminhando devagar, colocando o máximo de
distância possível daquele homem. Quando cheguei no acesso da
garagem, apressei-me para dentro de casa.
Só então pude correr. O mais rápido que pude, ignorando
meu coração problemático e todo o restante. Apenas na segurança
do meu quarto pude respirar melhor, apesar da tontura, do mal-estar
enorme que me engolia.
— Me sinto tão suja. — Arranquei as roupas o mais rápido
que consegui. — Deus, me sinto tão suja.
Correndo para o banheiro, pretendia me enfiar debaixo da
água mais quente possível. Não queria me ver, mas o boxe possuía
vidro espelhado, e eu tive que ver os resultados daquele dia
horrível.
Havia sangue acumulado no canto da minha boca, os olhos
pareciam grandes e assustados demais, havia um hematoma se
formando no meu estômago, onde ele bateu. A região estava
sensível ao toque.
— Tudo vai passar. — Tentei sorrir para aquela Jenny
apavorada que estava me encarando. — Como das outras vezes,
vai passar, tudo vai ficar bem.
Não ia, eu sabia disso, mas precisava ter esperança. Ou não
restaria mais nada ao qual me agarrar.
Estava sozinha — eu e minha mãe estávamos —, não havia
uma única alma capaz de enfrentar meu padrasto. A pessoa que
tentou foi assassinada.
Era eu quem precisava fazer algo.
— Apenas lide com essa merda, Jenny. — Sequei as
lágrimas, elas não iam resolver nada.
Colocando a água no mais quente possível, tentaria expulsar
de mim aquela sensação de sujeira, mas não havia sabão o
suficiente. A água não estava quente o suficiente, e eu não tinha
força suficiente para esfregar.
A esponja de banho já arranhava a pele, mas ainda podia
sentir o toque de John. Eu sabia que ele levaria o que restava de
dignidade, não estava satisfeito em me manter prisioneira nessa
maldita casa.
Ele queria roubar tudo de mim.
7
Jenny Monroe

Às vezes, pensar que eu poderia mudar a realidade da minha


vida apenas com força de vontade era o que me motivava a acordar
todos os dias. Uma parte de mim acreditava fervorosamente que lá
fora havia algo muito bom me esperando, por isso eu precisava ser
resiliente e aguentar o que fosse preciso.
Mas então havia os dias como hoje.
Dias que eu precisava ser forte para suportar aquela vida
miserável e feia.
— Você vai fazer tudo que for preciso, querida. — John
sorriu, parecendo bem satisfeito com o rumo daquele dia. — Você
se recusa a me ouvir, considerando que vou mudar de ideia apenas
porque você quer isso. Jenny, não seja tola, eu sou seu dono,
comando sua vida, você respira porque eu deixo, então,
compreenda que não adianta qualquer bravata, eu sempre vou
ganhar e sabe por quê?
Eu não suportava o sorriso de superioridade que nunca saía
de sua boca. Era apenas asqueroso, eu sentia tanto nojo que sua
proximidade me repugnava.
— Você é um psicopata. — Lutei contra as minhas amarras,
machucando-me. Eu queria me aproximar da minha mãe. — Você é
um maldito lunático, com síndrome de rei, você é louco.
— Não, apenas sei do seu potencial e faço o que é preciso
para que tenhamos tudo que considero ade...
— Tenhamos tudo? — o interrompi. — Tenhamos tudo o quê?
Você fica com o que eu ganho, me mantém presa, me bate,
ameaça. Você é um miserável, John, o pior tipo de ser humano que
existe na face da Terra.
Esperei que ele me batesse, mas não, ele se voltou para a
minha mãe. Ela já estava toda machucada após a sessão de
espancamento.
Era assim que ele nos controlava.
Desde que fomos trancadas no escritório aquela tarde, minha
mãe estava lidando sozinha com a ira de John, e ele estava sendo
implacável, pior que das outras vezes.
Eu sabia sua verdadeira intenção e estava disposta a
colaborar, mas nem isso parecia suficiente. Eu havia desafiado sua
autoridade, agora estávamos recebendo as consequências.
— Diga-me, Jenny, você vai fazer tudo que David quiser?
— Eu já disse que farei tudo — murmurei, não me importando
deixá-lo me ver humilhada e derrotada. — Eu farei tudo, mas pare
com isso.
Ele me encarou por alguns instantes, sorrindo.
Não fazia ideia do porquê ele estava sorrindo daquela
maneira. Sorrisos como aqueles eram pavorosos demais, pois, ao
longo dos anos, fui compreendendo que significavam coisas muito
ruins.
— Eu não acredito em você. — Deu de ombros — Vou me
certificar de que faça tudo do jeito que eu quero.
O observei caminhar em direção a minha mãe, quando
percebeu que seria golpeada ela ergueu as mãos, encolhendo-se
numa bola para tentar se proteger. Infelizmente, isso não o impediu
de desferir-lhe chutes e socos.
Ela não proferiu som algum, mas o barulho abafado que cada
golpe fazia arrancavam gritos de mim.
Era eu quem estava implorando para que tudo parasse.
— Por favor, por favor. — Senti as cordas mordendo meus
braços. — John, por favor, eu faço o que quiser, eu faço!
Por um breve momento ele parou as agressões, voltando-se
para mim. Havia muita felicidade e prazer em seu maldito rosto.
— Você vai? — Acenei rápido, concordando.
Eu já sabia há muito tempo que não adiantava acreditar que
poderia escapar daquele inferno. Era inútil acreditar, ninguém se
importava o suficiente para enxergar além da fachada de homem de
família que John fazia questão que todos vissem.
— Não, filha. — A voz da minha mãe soou quebrada. — Não
faça nada, eu aguento tudo. Mas não faça nada.
Minha mãe estava tão machucada que eu não sabia de onde
ela tirava forças para manter-se consciente. John sentia prazer em
fazer o que estava fazendo, amava espancar minha mãe, sempre a
castigava a cada uma das transgressões.
Quando John queria demonstrar o quanto era vil, ele fazia
sessões como aquela.
— Minha mãe é inocente — solucei. — Bata em mim, por
favor, John, se quer extravasar o faça em mim, não nela. Eu sou
culpada, eu te provoquei, então volte-se contra mim! — Puxei os
braços, arranhando-os ainda mais nas cordas. — Por favor, não a
machuque mais.
— Não, filha! — Minha mãe estendeu o braço para mim, mas
John a esmurrou na lateral do rosto.
Ela desabou e não se mexeu.
É tão injusto!
O choro explodiu em meu peito, a dor de viver tudo aquilo foi
tão forte que era como se algo estivesse me rasgando por dentro.
Doía saber que ninguém viria ajudar, que eu não possuía
força para nos tirar daqui.
— Bata em mim, John, mas não machuque a minha mãe, ela
não aguenta mais, por favor. — Não me envergonhei de implorar,
faria qualquer coisa para que isso acabasse.
Ele franziu o cenho, vindo em minha direção.
— Você sabe que eu não posso te machucar. — Acariciou
meu rosto, como se ele não costumasse me espancar também. —
Eu tenho desejado colocar as mãos em cima de você, mas não
posso te machucar, você precisa ficar bem.
— Por que você faz isso? — perguntei baixinho quando ele
ajoelhou na minha frente. — Minha mãe te amava, John. — Ele
secou minhas lágrimas, porém não havia nenhum sinal de
arrependimento em seus olhos. — Eu pensei que você estivesse
feliz com nossa família. Eu acreditei, por um momento eu acreditei.
E esse foi meu maior erro.
— Aprenda, querida, homens não são confiáveis. — Piscou
um olho. — E se forem ambiciosos como eu, farão tudo para
alcançarem seus objetivos, passando por cima de quem quer que
seja. Você e sua mãe são o meu meio mais rápido para chegar
aonde eu quero. Cansei de ser uma ponte, de ganhar pouco, eu
quero muito. Quero fazer parte da maldita elite desse país.
— Sendo cruel? O que você vai conseguir batendo na minha
mãe?
— Respeito e um lugar de honra. Não quero receber ordens,
eu as quero dar. Eu só preciso que você assine o contrato e, então,
as coisas vão mudar.
— Um contrato não vai mudar nada, John. Seja racional ao
menos uma vez na sua vida, até conseguir chegar aonde você quer,
e eu esteja ganhando dinheiro suficiente para que você consiga tudo
que deseja, vai levar muitos nãos.
— Não, querida, não vai. Só preciso que você assine o
contrato, e o resto se encaminhará. — Acariciou minha boca. — Eu
tenho planos...
— Não me conte! — Sacudi a cabeça. — Não quero saber
dos seus negócios.
Ele puxou meu queixo com força, obrigando-me a encará-lo.
— Drogas. — Seu hálito fétido me deixou enjoada. —
Quando eu estiver dentro da gravadora, poderemos lavar o dinheiro,
e eu ficarei tão rico que essa mansão que vivemos parecerá um
casebre em comparação à que terei.
Eu sabia que John era envolvido com gente barra pesada,
não me surpreendia nada que fosse tráfico de drogas. Ele era o tipo
de cara que faria tudo para ter o que quisesse, não importando o
quanto fosse sujo.
— Respondendo a sua outra pergunta. — Ele se levantou,
sua expressão mudou radicalmente. — Gosto de sentir meu punho
chocando-se contra o corpo macio da sua mãe, e como eu sei que
batendo nela eu controlo você também, isso são dois coelhos numa
cajadada, entendeu? Prazer e satisfação, ao mesmo tempo.
Não pude e olhar para ele, sequer tinha uma resposta
adequada. Suas palavras nublavam minha mente ao ponto de eu
não encontrar palavras que descrevessem o que eu sentia.
— Olhe para mim quando estiver falando com você. — Ele
segurou meu queixo outra vez, mais forte agora. — Eu estou perto
de conseguir tudo que sempre quis. — Ele se aproximou, respirando
meu cheiro ruidosamente. — Sabe por quantos anos eu sonho que
seja minha? Sabe o quanto tenho esperado?
— Me solta. — Tentei puxar meu rosto de seu toque, mas não
consegui.
— Eu transo com sua mãe pensando em você, eu gozo
chamando seu nome. Eu te quero, Jenny, e eu vou te ter. O único
motivo para que ainda não seja minha é que essa porra de
virgindade vai servir para um propósito maior. Eu vou assumir o
lugar de David quando o acusar de estupro. — Um sorriso vitorioso
brincava em seus lábios. — Você acha que ia te entregar assim?
Não, eu conheço David, ele fazia parte dos meus planos.
— Você não pode mentir para sempre. Um dia, as pessoas
vão descobrir o que você faz e pagará caro.
— Não, porque vai ser tarde demais. — Ele piscou um olho,
então, sua atenção se voltou para o gemido de dor vindo do outro
lado do escritório. — Parece que meu animalzinho está
despertando. — Ele foi para ela.
— Não! — gritei. — Volte aqui, volte aqui!
— Você já se perguntou por que a sua mãe nunca vai me
deixar?
Sim, porque era inútil.
Os anos só comprovavam que lutar contra alguém mais forte
era impossível. Ele não nos deixaria ir, não sem um plano muito
bom e que ainda não tínhamos.
— Porque você a ameaça, porque não aceita que nós não
queremos estar aqui, porque ela tem medo! — gritei ensandecida.
— Um dia eu vou matar você, John! — berrei, sacudindo-me tão
violentamente que senti o coração acelerar daquele jeito que eu
sabia ser um problema.
Eu só queria que meu marca-passo parasse de funcionar de
uma vez, mas, quando pensava no que aconteceria com minha
mãe, eu sempre ficava com medo. O alívio seria apenas para mim e
isso seria puro egoísmo.
— Diga-me, Jenny, você vai aceitar encontrar com David nos
termos dele e depois ficar comigo nos meus?
— Não! — Sacudi os ombros, lutando para me soltar. — Não
vou me prostituir para que você tenha o que quer!
John gargalhou, não me levando em consideração. Ele sabia
que no final ganharia, ele sabia.
— Terei prazer em demonstrar o quanto você está errada.
Acha que me importo se vai me aceitar? Essa decisão não é sua e
nunca será. Você nunca vai escolher a quem dar essa boceta, você
é minha, e eu faço o que quiser com você.
— Você é asqueroso! — gritei tão alto que sentia a garganta
queimando como se eu houvesse engolido brasa. — Como você
pode imaginar que eu iria para a cama com você? Eu era uma
criança quando nos conhecemos, você me viu crescer!
— Eu tirei sua mãe e você da pobreza, nada demais que as
duas sejam minhas. — Ele se aproximou de novo e o pavor que
senti foi tão grande, que perdi o controle da bexiga. A urina escorreu
pela cadeira, pingando no chão. — Um dia, você vai mijar no meu
pau, quando eu estiver te fodendo.
John segurou meu rosto bruscamente, beijando-me à força.
O nojo que me engoliu foi imediato. Ele só teve tempo de se afastar
antes que vomitasse tudo que comi mais cedo. Por mais que eu
estivesse queimando de ódio, a sensação de vulnerabilidade minava
minhas energias, era como se tudo isso fosse um pesadelo que
começava quando eu abria os olhos.
— Você vai ser minha, então, não gaste seu tempo
acreditando o contrário.
— Nunca!
Em meio à loucura, esqueci-me de qualquer cautela que
possuísse. Deveria ficar calada e não trazer mais desgraça para
mim ou para a minha mãe, mas era tudo tão injusto que, antes de
silenciar, explodia. Sabendo que jamais seria ouvida, gritar a minha
verdade amenizava por alguns instantes tudo que eu sentia.
— Você vai, e, se não me obedecer, eu vou matar a sua mãe.
— Sorriu, daquele jeito cheio de dentes amarelos e sujos. — Você
quer ver?
Para comprovar suas palavras, ele sacou uma arma e atirou
na perna dela, seu grito de agonia me arrepiou inteira e eu nem
sequer podia reagir.
Ele nunca havia usado qualquer tipo de arma além dos
punhos. Estava tão chocada, que não encontrei voz nem para gritar.
Apenas encarava o sangue fluindo da ferida, manchando a calça de
yoga que ela vestia.
Como se eu estivesse saindo de um estado catatônico, com
duração de segundos, o desespero assumiu o controle, pois, a partir
daquele momento, estávamos iniciando um novo capítulo de nossas
vidas, um que eu tinha certeza, seria bem pior.
— Mãe! Socorro! Socorro!
No mais completo estado de terror, eu pude observar John
erguendo a arma outra vez, com um sorriso sádico, louco e imoral
brincando em seus lábios.
— Atire em mim! — berrei. — Atire em mim!
— Não... — Minha mãe arquejou. — Não machuque minha
filha, nunca machuque a minha filha. — Ela estendeu a mão para
mim, eu percebi que tentava sorrir. — Meu bebê, perdoe-me.
— Não, mãe, não diz isso, você é inocente. — Sacudi-me na
cadeira, as cordas não afrouxaram nem um centímetro, não
importava o quanto eu estivesse empenhada em me libertar. — Eu
te amo muito, mamãe, eu te amo muito.
— Eu a você, minha menina.
Ela estava se arrastando em minha direção, pouco se
importando com seus machucados. Queria chegar a mim, para
acalentar-me.
Ela sempre fazia isso.
— Mãe, você vai se machucar ainda mais. — Olhei para
John, ele sorria alegremente. — Ajude-a, por favor.
— Ela vai morrer e eu vou enterrá-la no quintal. Diga-me,
quem iria perguntar por ela? Quem sentiria falta? Eu com certeza
não! — John pisou nas costas dela, inclinando numa perna, ele se
apoiou no joelho. — Decida, mas escolha bem, vai fazer o que eu
quero ou vai ser a responsável pela morte da sua mãe?
Não tinha o que pensar.
Sempre soube que ele ganharia.
Por anos minha mãe carregou tudo sozinha, enquanto lutava
para manter-me alheia ao que vivíamos. Naquele momento
estávamos juntas, para o bem e mal, vida ou morte.
E isso incluíam sacrifícios e tudo mais que eu precisasse
fazer.
— Farei tudo que quer, mas a ajude, eu imploro que a ajude.
— Não, filha, não faça nada. — Ela tentava continuar vindo
em minha direção, mas John não deixava. — Não se importe
comigo, eu sou nada, apenas fuja daqui, fuja!
— Não sem você, mãe — solucei, sacudindo-me. — Nunca
sem você.
De todos os dias terríveis que já tive, aquele com certeza era
o pior. Se eu fugisse sozinha, John mataria minha mãe; se eu
ficasse, em algum momento ele iria me estuprar.
— Parece que uma de vocês tem bom senso. — John bateu
palmas como se aquilo fosse um show. — Agora eu vou cuidar da
minha linda esposinha, enquanto você grava um vídeo para os seus
fãs. Cante alguma música romântica, eu vi alguns comentários no
último vídeo, vamos agradar ao público.
John veio até mim, ignorando minha mãe e o fato de ela estar
agonizando de tanta dor.
— Quando seu tempo com David terminar, o meu começa. —
Ele deslizou a mão por meu rosto.
Assim que eu pude sentir as cordas afrouxando, fui o mais
rápido possível até minha mãe. Com todo cuidado do mundo, eu a
peguei, segurando-a com todo carinho e embalando-a suavemente
com todo meu amor.
— Um dia, isso vai acabar. — Encostei nossas testas,
fazendo-lhe a promessa. — Um dia, isso vai acabar, mamãe, eu
juro.
— Nos seus sonhos, querida. — John baixou ao nosso lado.
— Nos seus sonhos, você vai conseguir ir embora e me deixar.
Vocês duas são minhas para eu fazer o que quiser, e se qualquer
uma de vocês tentar escapar, então a que ficar aqui sob meu poder
irá se arrepender tão amargamente, que tudo que vivemos até
agora vai parecer um comercial de família feliz. Eu sei como
controlar minhas mulheres. Você irá se aposentar em breve. Jenny
vai assumir o seu lugar na minha cama e na minha vida.
Apesar de estar machucada, sangrando, minha mãe se
impulsionou para a frente e o esmurrou, John sorriu, parecendo
divertido com a situação.
— Querida, não seja tão patética, sabe que se irritar eu posso
transformar as próximas horas em um pesadelo.
— Eu vou te matar! — ela ofegou, o olho que não estava
fechado devido ao inchado, brilhava com uma fúria tão poderosa
que eu me orgulhei de sua força. — Eu vou fazê-lo pagar por cada
maldita coisa.
— Estarei esperando, agora vem comigo, amor, eu preciso
consertar você.
Ele a recolheu com tanto carinho e cuidado que a cena
chagava a ser doentia. Minha mãe não esboçou nenhuma reação,
mas quando John depositou um beijo na testa dela, a vontade que
eu tive foi de arrancar os olhos.
Suas atitudes eram absurdas demais, mas esse era John
Samarco Monroe. O homem que não se importava com o sofrimento
alheio, que justificava suas ações porque dizia merecer o melhor e
não importava quem precisasse passar por cima para conseguir
seus objetivos.
Eu odiava que conseguisse dissimular tão bem, que pudesse
sorrir, e parecer o cara mais incrível do mundo quando minha mãe
estava toda quebrada em casa.
Era tudo absurdo demais...
Insuportável.
— Vá tomar um banho, grave o vídeo que pedi e o faça bem-
feito.
— Preciso do celular. — Precisei me esforçar para que ele
me ouvisse.
Era como se não possuísse energia para qualquer coisa além
de respirar.
— Vou levar para você em breve. Primeiro cuidarei da minha
amada esposa. — Ele piscou um dos olhos saindo e fechando a
porta do escritório atrás de si.
Por um longo tempo não consegui sair do lugar, sentindo-me
pregada no chão, fraca demais para fazer qualquer coisa.
A sensação de desmaio começou a se fortalecer, minhas
mãos gelaram e as palpitações seguiram num ritmo estranho.
Respirar foi ficando difícil e eu apenas me deixei levar.
Não lutei contra o terrível mal-estar, deixei que me engolisse
inteira. Durante minutos intermináveis, eu pensei que meu coração
fosse parar de bater.
— Aguente — arquejei, encolhendo-me para atravessar essa
aflição sozinha.
Não saberia dizer o tempo que levou, mas, quando me senti
melhor, fiz o que deveria fazer.
Precisava gravar um vídeo, parecer feliz e alegrar as pessoas
que eu não conhecia, mas que, sem querer, ofereciam um alento.
De qualquer modo, havia alguém esperando por mim, pela minha
música.
Mas, ainda que eu estivesse maquiada, sorrindo e parecendo
bem, não poderia evitar que meus olhos marejassem enquanto
olhasse para a câmera, e pior, não conseguiria deixar de emitir
aquele pedido de socorro silencioso, mas que eu sabia que ninguém
iria entender.
Há muito tempo viver tinha se tornado uma obrigação, por
mais que eu odiasse cada aspecto da minha vida, existia uma parte
a quem destinava meu amor. Era por ela que eu vivia, eram dela
meus sonhos e esperanças.
Ela era o meu tudo, como sabia que eu era tudo isso para
ela.
Não sei quanto tempo levou para que eu conseguisse
levantar e ir para o meu quarto. Depois, o tempo não tinha muito
sentido quando se era prisioneira, os dias sempre eram longos
demais, dolorosos demais.
Tristes demais.
Enquanto me maquiava, minhas mãos tremeram, depois,
enquanto me sentia cansada para continuar tentando, deixei fluir.
Talvez alguém me entenda...
Enquanto gravava o vídeo, as lágrimas fluíram e eu chorei
tentando cantar. Do outro lado, as pessoas acreditariam que eu
estava emocionada com a música, mas não era isso.
Era desta forma que eu encontrava uma maneira de dizer
que já não estava suportando mais.
— Entregue-me o celular. — John estendeu a mão,
esperando-me lhe entregar o aparelho que ganhei de presente de
um patrocinador.
Ele era tão cuidadoso, nunca me deixava sozinha com o
aparelho, e ficava responsável por editar e publicar o vídeo nas
plataformas. As cartas e presentes que eu ganhava eram dele
também, não importava o que fosse.
Pertencia-lhe.
— Meu celular não está funcionando direito — falei baixinho,
cansada de brigar contra ele.
— Você só precisa atender ligações. — Ele mirou a câmera
do celular de última geração. — Mostre os seios, essa foto aquecerá
minhas noites enquanto você não está aqui.
— Ainda falta um mês. — Baixei a cabeça, apertando os
dedos. — Não faça isso, John.
— Mostra a porra dos seios pra mim!
Apertei os lábios, a sensação de mal-estar pesou no
estômago. Virei o rosto, não obedecendo. John deu uma risada e eu
pude senti-lo se aproximando.
— Mostre os seios ou eu vou arrancar as suas roupas e a
foto será nua.
Fechando os olhos, imaginei que não estava aqui, que,
quando eu tirasse a roupa para um homem, foi porque eu quis tirar.
Outra vez, as lágrimas escorreram. Eu tive que obedecê-lo.
— Delícia.
Rapidamente, eu me cobri. Me sentindo suja demais, uma
vagabunda. Era isso que ele havia me tornado.
Uma mulher que sentia nojo de si mesma.

***

O dia feio rivalizava com o que eu sentia dentro de mim.


Havia chegado o dia que eu teria que viajar para Londres e
John parecia tão feliz que me preocupava. Sua alegria sempre
resultava em desastre para mim e minha mãe.
— Fique mansinha, entendeu, Jenny? — Ele acariciou minha
cabeça como se eu fosse seu animal de estimação. — Quando eu
for o novo CEO da gravadora, terei tudo que sempre quis. Nossa
vida vai ser ótima.
— Você tem tudo, John — murmurei, olhando a mala aberta
sobre a cama.
— Não faço parte da elite, e preciso de coisas que me
coloquem lá. Entrar na gravadora é o primeiro passo.
Durante anos ele tentou me colocar no meio artístico, mas
nunca conseguiu. Eu não tinha carisma, não era simpática. Mas ele
insistiu até descobrir que meu corpo poderia ser uma moeda de
troca.
— Você vai ver, Jenny, vamos ser felizes.
Afastando-me dele, fui em direção a porta do quarto. Era
apavorante demais ficar num lugar sozinha com aquele homem.
— Preciso ver minha mãe. — Não o olhei. — Depois eu
arrumo a mala.
— Você não vai ver sua mãe, e ela está bem. — Ele
entendeu que eu pretendia fugir de sua presença. — Arrume sua
mala. Eu venho me despedir.
Ele se aproximou de mim outra maldita vez, só que, quando
ergueu a mão para acariciar meu rosto, me afastei.
Isso pareceu diverti-lo.
— Guarde um pouco desse fogo para mim.
— Minha mãe...
— Ela vai se comportar muito bem. — Ele sorriu. — Vou
anunciar nas suas redes o hotel que você estará, isso vai garantir
que você não irá se aventurar fora do quarto.
Ele saiu, durante um longo tempo ouvi sua risada como o eco
de uma maldição.
— Isso pode piorar? — Sequei uma lágrima inútil.
Eu tinha que descobrir um meio de acabar com a vida de
John Samarco Monroe. Até lá, eu precisava manter o controle e
fazer tudo que fosse preciso.
Minha mãe e eu dependíamos disso.
8
Gabriel Demonidhes

Quase um mês em casa e eu me sentia pronto para outra. A


ferida à bala estava em plena recuperação, o cansaço havia
acabado e eu já não tossia com tanta frequência.
Os únicos sinais do que havia acontecido eram meu cabelo,
que seguia curto demais, e o fato de estar mancando um pouco.
Meu rosto havia se recuperado melhor que o previsto, a
barba possuía um tamanho agradável.
— Você anda quieto demais, Rafael. O que houve? — A voz
de Lysander me fez prestar atenção na interação entre os dois.
Rafael andava meio distante, e isso, de certa forma, pesava
no clima. Amira também não estava ali, o que só tornava as coisas
ainda mais estranhas.
Eles nunca estavam separados.
— Estou pensando.
Rafael passou um bom tempo encarando um ponto fixo,
como se estivesse esperando respostas ou tentando entender
alguma situação e não houvesse chegado a uma conclusão
plausível.
Nós seguíamos em silêncio, esperando por respostas para as
quais nem sabia as perguntas.
— O que foi agora? — Lysander quebrou o silêncio.
E eu agradeci por ter um irmão impaciente. Os demais
apenas esperavam, eu mesmo não ia interromper o momento de
introspecção de Rafael, ele parecia chateado, e, se não era eu o
causador de sua raiva, então não me importava quem fosse.
Rafael olhou para Lysander, então, para cada um de nós.
— Draikov irá se casar.
A notícia caiu como uma bomba, não porque ele fosse se
casar, mas porque, ao que parece, nenhum de nós foi convidado.
Ninguém teve coragem de dizer nada, o silêncio pesou como
a ausência de Draikov ainda pesava para todos nós.
Particularmente acreditava que toda aquela conversa de que
ficaria mais tempo conosco e que ainda se importava era pura
mentira. Talvez, Draikov tenha devolvido o favor a Heylel.
Afinal, nosso irmão fora o único a se deslocar todas as
semanas até a Inglaterra para lhe fazer companhia quando sua vida
estava pairando por um fio. Era justificável, Draikov querer estar
presente quando era Heylel precisando de cuidados.
Depois, basicamente, ele nos esqueceu de novo. Bastardo
egoísta e ingrato. Virou as costas para nós como se não
precisássemos dele, e pior, como se tudo que o nosso pai ensinou
não fosse nada. Então, somando mais um crime, não nos convidava
para o próprio casamente.
Por qual razão ele não nos convidou?
— E em que o casamento de Draikov me afeta? — Lysander
foi o primeiro a quebrar o silêncio.
Sua expressão era tão indiferente que o fato de ter sido
excluído parecia não o afetar.
— Ele é nosso irmão. — Razhiel cruzou os braços,
parecendo não considerar a informação completa.
— Por mim, ele pode ir se foder. — Dei de ombros. — Se ele
não se importa conosco, eu não faço questão de tê-lo na minha
vida, tampouco de me envolver em seus assuntos. Cansei de
esperar que ele fosse recuperar o juízo e voltasse para nós.
— Draikov não me faz falta — Lysander completou e eu sorri.
— Estou a um passo de riscá-lo de vez da minha vida.
— Não vamos nos apressar, talvez ele ainda nos convide —
Heylel tentou apaziguar, era apenas demais para mim que ele fosse
capaz de perdoar Draikov após o bastardo nos abandonar. — Para
quando é?
— Amanhã — Rafael respondeu como se isso não piorasse
tudo.
O silêncio que se seguiu foi constrangedor ao ponto de tornar
o jantar indigesto. Estava bem claro que Draikov não havia nos
incluído em seus planos. Então, por que Rafael nos contava sobre
esse maldito casamento?
O que ele pretendia?
— Como você descobriu? — Razhiel inclinou para a frente.
Ultimamente ele andava quieto demais, e eu conhecia meu
irmão o suficiente para saber que algo o incomodava.
— Depois do atentado que quase matou Draikov, coloquei
toda essa nova família que ele tem sob minha proteção. Eu sei
deste casamento há algum tempo.
Lysander se levantou da mesa e o jeito brusco com que
empurrou a cadeira de volta para o lugar e apertou o encosto até os
nódulos de seus dedos ficarem brancos, deixava claro que ele
estava além de puto.
— Suponho que você estivesse esperando que ele entrasse
em contato. — Não foi uma pergunta.
Lysander conhecia Rafael o suficiente para entender seu
modo de agir, na verdade, os dois pareciam as faces de uma
mesma moeda.
— Possivelmente eu tenha esperado demais. — Rafael
balançou a cabeça. — Mas isso foi remediado, nosso avião decola
em duas horas. Chegaremos em Londres pela manhã, teremos
tempo.
Por um instante, eu considerei que as palavras do meu irmão
fossem uma piada, mas, então, Rafael não era do tipo que fazia
piada, ele não possuía humor suficiente para isso.
— Felicitações para o casal. — Lysander afastou-se. —
Enviarei um presente. — Ele abanou a mão, dando pouca
importância enquanto seguia em direção a saída.
Levantando-me, não prestei atenção a expressão de Rafael,
mas ouvi sua voz fria e dura ecoar pela sala:
— Todos nós iremos ao casamento.
Antes que eu pudesse abrir a boca e dizer que não ia mover
um dedo para ir a esse casamento de merda, Lysander voltou.
Apoiando as duas mãos na mesa, ele se inclinou para encarar
nosso irmão.
Rafael não estava nem um pouco afetado pela raiva que
Lysander não escondia.
— E quem vai me obrigar a ir?
Rafael também se levantou. Nunca resultava em coisa boa
quando ele e Lysander se digladiavam, nesse momento eu
acreditava que eles estavam com humor para uma boa briga.
— Irmão. — Franzi o cenho para o tom apaziguador, eu não
esperava por isso. — Roman teve seis filhos, não cinco. Draikov
pode não nos querer, mas nós o queremos e não importa o que ele
acha sobre isso, nós somos sua família e continuaremos sendo.
Meu coração doeu, cada palavra de Rafael era verdade, e,
mesmo assim, Draikov nos abandonou. Então, fazer o mesmo que
ele seria apenas concordar com sua atitude.
Que porra!
— Ele renegou a nossa família! — Lysander aumentou o tom.
— O nome Demonidhes, nosso pai! Não me importo com o que ele
possa sentir, deixei de fazê-lo quando ficou claro que ele não quer
um lugar conosco.
— Cada um lida de uma forma com a dor e a perda de nosso
pai.
— Não venha com essa conversa fiada, Rafael! — Lysander
bateu o punho na mesa. — Ele nos abandonou, porra, virou as
costas, fingindo continuamente que não existimos! Se ele quer se
casar, foda-se, que se case.
— Um dia, ele vai perceber que estamos aqui e voltará.
— Ele é cego se não percebeu — resmunguei, chateado que
Rafael o defendesse. — Draikov não merece que você advogue por
ele. Não é como se ele se importasse.
— Não me importo com o que Draikov pensa, mas a nossa
atitude será comparável com a atitude que nosso pai teria. Por isso,
nós vamos. — Rafael se afastou, em direção ao corredor que dava
acesso aos quartos. — Espero todos aqui, com uma mala pronta,
em uma hora.
— Você não pode me obrigar, irmão — eu e Lysander
falamos juntos.
Rafael parou, dizendo:
— Então fiquem à vontade, apenas não se sintam melhores
que Draikov agindo igual a ele. No mínimo, deveriam orgulhar
Roman Demonidhes, não a porra de seus egos.
Fechando os olhos, respirei fundo para não dizer uma merda.
Nenhum de nós teve vidas fáceis, mas o abandono agia em
mim como uma bomba visceral, desencadeando tanto sentimento
autodestrutivo que não tinha nem palavras para descrever.
Draikov foi o único que se chutou para fora do nosso barco,
numa época que ele parecia prestes a afundar. Foram Rafael e
Lysander os que seguraram as pontas para lidar com minha loucura,
a apatia de Razhiel e a quase morte de Heylel.
Enquanto eles lutavam por nós, Draikov recomeçava longe,
agindo como se não tivesse uma família quebrada, que tentava
arduamente juntar os pedaços devido a perda de nosso pai.
— Rafael tem razão — Heylel proferiu num tom de voz que
não dava margem para discussão. — Draikov está feliz na sua nova
vida, é tranquila o suficiente para que ele não consiga abandoná-la.
— Ele não precisaria abandonar, o ponto aqui não é sobre
esse tipo de escolha. — Razhiel balançou a cabeça enquanto
brincava com a borda de sua taça. — Se quisesse, Draikov poderia
fazer parte de nossas vidas e continuar na vida que ele possui hoje,
mas ele não quer. Por outro lado, o fato de ele querer se manter
distante não significa que devemos retribuir o favor.
— E ir para um lugar que não fui convidado é a solução? —
Cruzei os braços, puto com a tranquilidade dos meus irmãos.
— Draikov ainda é um Demonidhes — Razhiel suspirou. —
Mesmo que ele não queira, ele foi escolhido por Roman, como nós
fomos.
— Eu vou arrumar a mala. — Heylel se levantou. — Terei
sorte se encontrar um terno que ainda caiba em mim.
Razhiel também saiu, sem dizer nenhuma palavra. Ficamos
apenas eu e Lysander, naquela sala enorme.
— Você o odeia? — perguntei, sabia que não precisava dar
voltas sobre esse assunto com Lysander.
Ele e eu éramos os únicos que pareciam não aceitar com
tanta simpatia as atitudes de Draikov. Talvez, em algum momento, a
minha história e a de Lysander se cruzassem, por isso era muito
difícil aceitar o que Draikov fez.
Ele nos abandonou, porra!
— Odeio que tenha renegado tudo que nosso pai fez. Ele
mudou o maldito nome, como Rafael pode aceitar isso? —
Concordei, talvez esse fosse o maior absurdo de Draikov. —
Amanhã veremos ele se casando com a porra de um nome maldito.
Ele não se importa que isso poderia entristecer nosso pai. É
insuportável que Draikov queira esquecer seu passado e no
processo apague nosso pai também.
— Não me importo com Draikov, Lysander. — Passei a mão
nos cabelos, e os teria puxado se pudesse. — Mas incomoda-me
pensar que, possivelmente, esteja decepcionando nosso pai.
— Rafael sabe muito bem usar gatilhos mentais e eu,
sabendo disso, ainda me permito cair. — Observei meu irmão
esfregar o rosto, ele parecia cansado. — Vamos, Gabriel, temos um
voo para pegar.
O observei afastando-se. Eu não ia a lugar algum. Não me
importava o que pensariam de mim, foda-se toda essa merda,
Draikov não merecia a consideração que estavam tendo.
— Bastardo!
Tranquilo, comecei a retirar a mesa do jantar sem me
importar com o tempo. Depois, quando tudo estava arrumado,
sentei-me no sofá, fechando os olhos quando o barulho de passos
chegou até mim.
Qualquer um dos meus irmãos poderia se mover no mais
absoluto silêncio, então quem se aproximava queria ser ouvido.
— Gabriel. — A voz de Rafael soou perto demais.
— Eu não vou. — Abanei a mão, ainda de olhos fechados. —
Capaz de não ter um lugar para nós, não vou estar onde não sou
bem-vindo.
— Gabriel.
O tom de voz baixo estava ausente de repreensões, ainda
assim eu senti como se levasse um soco no estômago. O
sentimento de culpa bateu forte.
Maldito Rafael por me fazer sentir péssimo apenas pelo modo
como pronunciava meu nome. Somente o meu pai conseguia esse
feito, e ele sempre esteve certo porque, até onde me lembro, fui seu
filho mais rebelde.
— Irmão.
— Tudo bem. — Levantei-me, puto que, no final das contas,
Rafael sempre conseguisse tudo que queria. — Mas você está
manipulando.
Uma caricatura de sorriso desenhou-se no canto de sua
boca, ele acenou, dando dois toques no relógio.
— Vinte minutos e sairemos. Apresse-se.
Quando comecei a sair, uma ideia começou a tomar forma.
Baseando-me numa informação vista mais cedo, talvez, essa
viagem pudesse ser interessante.
— Onde ficaremos hospedados?
— Hilton. — Rafael estreitou os olhos. — Por quê?
— Nada, mas quero ficar hospedado no La Riviera Plaza. —
Meu irmão pareceu surpreso.
— Você quer ficar no mesmo hotel em que vai acontecer a
festa de casamento?
Eu não sabia disso, o meu interesse era outro.
— O mínimo, se vamos ser penetras no casamento de
Draikov, ficar hospedado no mesmo hotel da festa não vai fazer
diferença. Apenas consiga que eu me hospede lá.
Rafael me encarou por alguns instantes antes de acenar.
— Então ficaremos todos. — Ele indicou as escadas. —
Adiante, sua mala não vai se fazer sozinha. Irei providenciar nossas
acomodações no La Riviera, como você deseja.
Ele sabia que eu não podia correr, mas, diante das novas
possibilidades, eu até que poderia colaborar.
Assim que cheguei ao meu quarto, rapidamente joguei dentro
de uma mala pequena, algumas roupas e o terno preto que mais
contrastava com meu cabelo e barba. Antes de sair, parei dando
uma boa olhada em mim.
Estava diferente do Gabriel que Draikov conhecia. Será que
ele ia perceber que eu quase perdi a minha vida recentemente?
— Não importa — murmurei, encarando meu cabelo que já
despontava.
A barba estava num bom tamanho, deixando meu rosto
marcado com aquele sombreamento avermelhado; de resto, não
parecia como se eu houvesse estado em um incêndio.
Meu peso ainda não havia voltado completamente, o último
mês havia descansado demais, por causa dos pulmões e da perna
fodida. Quando voltasse dessa viagem, iniciaria o treino pesado.
Logo, logo, recuperaria tudo.
Uma batida na porta avisou-me que o tempo havia esgotado.
— Estamos esperando por você. — Lysander encostou na
porta, ele arqueou a sobrancelha quando ergui a mala pequena. —
Você ao menos dobrou o terno?
— Quem se importa? Vamos.
No caminho para o aeroporto, havia notado que Amira não
disse uma palavra. Na verdade, a linguagem corporal dela era meio
tensa e nada amistosa. Rafael segurava a mão dela, mas parecia
como se estivessem brigados.
— O que houve com vocês?
Amira me olhou e eu percebi que ela parecia a ponto de
chorar.
— Que porra você fez, Rafael? — Inclinei para a frente. —
Amira, você quer ficar comi...
— Não é o momento para provocação! — meu irmão cortou-
me.
— Eu nem queria ir — minha cunhada falou baixinho, estava
realmente chateada. — Ele me obrigou!
Depois ela virou o rosto em direção a janela, ficando assim
até chegarmos no hangar da propriedade. Dentro do avião, ela
escolheu seu lugar primeiro, afastada de onde Rafael costumava
sentar-se.
Qualquer abordagem que meu irmão tentava ia se mostrando
inútil. Amira o ignorava ao ponto de fazer com que meu irmão,
sempre tão invulnerável, parecesse perdido.
— Se ao menos Amira dissesse tudo que Rafael precisa
ouvir, fosse mais fácil de resolver as coisas. — Balancei a cabeça,
falando com Heylel.
— O silêncio é pior. — Meu irmão sorriu, repuxando a cicatriz
na face, os olhos coloridos brilhando de diversão. — Não que eu
goste de vê-los assim, mas Rafael merece.
— O que diabos aconteceu? E onde eu estava que não vi
essa briga?
— Não houve briga, Amira não briga, você sabe. — Sim, era
verdade, ela era racional demais, e isso por vezes era o terror de
Rafael. — Agora, nosso irmãozinho tenta encontrar uma brecha
para diálogo, mas, como pode ver, não há nenhum. Isso significa
que...
— Amira está puta com nosso irmão. — Sorri, satisfeito. —
Finalmente alguém para fazer o Senhor da Ordem ficar abalado. Ela
se vinga por nós.
— É isso. — Heylel deu um risinho, o sádico que havia em
nós divertindo-se por nosso irmão estar às voltas com sua mulher.
Em partes era divertido olhar para o modo amistoso como
Rafael estava tentando se aproximar dela. Acariciando uma mecha
dos seus cabelos, então a capturava trazendo-a para o nariz.
Quando ele respirava o cheiro dela, fechava os olhos, como se
fosse o aroma mais incrível do mundo.
— Deus, olhe para ele. — Não escondi o assombro, ainda me
chocava o quanto Rafael era apaixonado e devoto. — É um pouco
assustador.
E não estava mentindo, era bom ver meu irmão tão feliz na
vida de casado, mas esse era o lance dele, e imaginar que
possivelmente qualquer outro Demonidhes estivesse nessa situação
era no mínimo nauseante.
— Um dia pode ser você — Heylel provocou, enquanto bebia
de um gole só sua cerveja.
— Estarei morto primeiro.
Fechei os olhos, optando por ignorar Heylel e seu humor
alegre.
Essa viagem seria apenas insuportável, eu tinha plena
certeza.

***

Esperávamos na frente da igreja junto com a maioria dos


convidados. Faltava cerca de meia hora para o casamento começar
e Draikov ainda não havia chegado.
— Malen’kiy retorne a ligação assim que puder.
— Saímos do hotel faz quinze minutos. — Lysander respirou
fundo, estava com zero paciência. — Você já fez sete ligações. O
que diabos aconteceu para que ela ficasse tão puta com você?
Nenhuma das “divergências” que tiveram ao longo do ano passado
chegou a esse ponto e olha que você foi insuportável, Rafael.
Eu era um bastardo curioso, mas não era tolo de cutucar meu
irmão quando ele estava irritado. Amira continuava tão chateada
que nem conversava conosco, não adiantava o quanto tentássemos
e ela nunca havia ficado assim.
Lysander era o único que não se importava se precisasse
enfiar o dedo na ferida, na verdade, ele até gostava.
— Não vai responder?
— Por acaso Amira está doente? — indaguei, considerando
que não era isso, afinal Lysander saberia se fosse.
— De raiva? Com certeza! — Rafael suspirou, parecendo
cansado. — A minha esposa não está falando comigo, e eu não sei
por quanto tempo ela vai continuar me ignorando.
— O que diabos você fez? — Franzi o cenho, achando
absurdo que estivesse acontecendo algo que eu não houvesse
percebido.
Mas desde ontem, ela estava irritantemente quieta, ignorando
Rafael.
— Eu fiz um negócio e não comuniquei a ela. — Meu irmão
balançou a cabeça, como se estivesse... perdido?
Imaginar a possibilidade era absurdo, Rafael não era do tipo
que explicava suas decisões, e certamente não iria começar agora.
Mas, então, o que poderia deixar Amira tão chateada a ponto de ela
não querer nem falar com Rafael? Nem estar aqui conosco?
— Que negócio, Rafael? — Lysander cruzou os braços. —
Que negócio?
— Você viu o Corso nos últimos dois dias? — Rafael arqueou
a sobrancelha, como isso fosse resposta suficiente.
— O que você fez com Corso? — perguntei baixinho.
Dependendo da reposta, não queria que algum desavisado ouvisse.
— Realmente, ele sumiu, como eu não percebi?
Estava tão viciado nos vídeos e na vida da minha cantora que
passava horas esperando qualquer conteúdo que ela postasse. Isso
até soava ridículo, mas, como falei, a voz dela me acalmava, era
minha droga.
Nos últimos dias eu precisei muito, muito disso. Até o último
vídeo em que ela chorava. Algo parecia fora do lugar e isso passou
a me incomodar ao ponto de eu ter me afastado de suas redes.
Até ontem, quando vi o comunicado de que estaria em
Londres...
— Você anda distraído, Gabriel. — Heylel mexeu na manga
de seu terno. — Distraído demais, acho que dá para voltar ao treino,
você precisa recuperar mais ou menos quinze quilos e eu vou ser o
responsável por isso.
— Não tente mudar de assunto. — Me animei, afinal Heylel
era o treinador mais filho da puta que tínhamos no nosso Complexo.
Um feito significativo quando tínhamos Rafael e Lysander no
páreo.
— Vamos, diga-nos, o que fez com Corso? — Voltei minha
atenção para Rafael, ele já estava prestes a ligar para Amira de
novo.
— Eu negociei.
Eu não soube o que dizer. Amira era apaixonada por Corso,
tanto que ela dormia com ele no quarto. Rafael tê-lo negociado era
surreal.
— Você imaginava que Amira ficaria chateada quando
soubesse, ou estou enganado? — Não pude evitar rir, às vezes meu
irmão agia tão racionalmente que não pensava nas consequências.
— Você é louco — Razhiel se pronunciou pela primeira vez.
— Você não pode fazer negócio com o cachorro da sua mulher.
— O cachorro é meu! — Rafael estreitou os olhos. — E ele
vai voltar em dois meses, não preciso me preocupar.
— Mas então por que você está preocupado? — Razhiel
arqueou a sobrancelha, então olhou para algo atrás de nós.
— Razhiel tem um ponto — endossei, esperando respostas.
— Você sabe que Amira deve ficar tranquila, por que a
provocou desta forma? — Lysander estava a par do estado clínico
dela, ele sabia do que estava falando. — Talvez, Rafael, você tenha
sido imprudente.
Ele foi na verdade, mas não queria admitir.
— Não provoquei, apenas dei sequência a um plano
previamente traçado. Se eu perdesse o prazo, iria esperar seis
meses, não posso esperar seis meses.
— Você poderia tê-la informado. — Razhiel parecia um tanto
alheio, mesmo eu sabendo que não estava. — Amira respira o
mesmo ar que você, então, se você houvesse comunicado seus
planos...
— Não esperava uma reação tão... — Rafael parou um
momento, como se estivesse escolhendo as palavras. — Impulsiva
da minha esposa. Mas isso não é pauta para vocês opinarem,
portanto vamos focar no que viemos fazer. Parece que Draikov
chegou.
— Dê-me os detalhes desse negócio, verei o que posso fazer
— Lysander disse antes de se virar.
Eu estava com os olhos presos em Draikov, e na aparente
irmandade dele com Rocco, e mais dois homens que eu não
conhecia.
— O mais alto se chama Dimitri Romanov, é um advogado
russo e eu já fiz negócios em que ele era o representante legal —
Razhiel falou baixinho. — O loiro se chama William Savage, Décimo
Conde de Ravembrock, ele é dono das maiores jazidas de
diamantes na África. Eu construí um Complexo hoteleiro para ele há
dois anos.
Quando nos viu, Draikov congelou. As nossas posturas
estavam aparentemente relaxadas, mas, por estarmos em campo
aberto, mantínhamos todos os pontos da rua sob o olhar de um de
nós, com Rafael protegido em nosso meio.
Ele odiava que fizéssemos isso, afinal era tão letal quanto
qualquer um de nós, mas estar aqui apenas como irmão do noivo,
não mudava o fato de que ele era o Senhor da Ordem, e sua vida
era a mais importante.
— Irmão — Rafael quebrou o gelo quando Draikov se
aproximou.
Estranhamente, quando ele sorriu e seus olhos brilharam ao
nos ver, toda raiva que eu sentia diminuiu um pouco. O suficiente
para que eu não desejasse arrebentar a cara dele e fazê-lo se casar
jorrando sangue.
— Rafael. — Draikov estendeu a mão. — Que bom que
vocês vieram.
— Não poderíamos deixar de vir — eu disse sorrindo
abertamente e me aproximando dele. Draikov me olhou
desconfiado, mas não podia fazer outra coisa se não me abraçar.
— Gabriel, seu lunático.
— Você não nos convidou — murmurei em turco, sua língua
natal, para apenas ele. — Eu não vou esquecer isso tão cedo,
irmãozinho.
Antes que ele pudesse me responder, Razhiel o puxou para
um abraço.
— Razhiel, meu irmão. — Percebi que Draikov suspirou,
fechando os olhos e apertando nosso irmão como se buscasse
forças dele. — Que bom ter vocês aqui.
— Quando soube que ia se casar, precisei ver com meus
próprios olhos. Nem parece verdade, logo você? — Razhiel cutucou.
Pois é, ele era o mais fechado e propenso a seguir o fluxo,
entretanto nenhum Demonidhes era pau no cu, Draikov não ia se
safar tão facilmente.
Quando os novos amigos de Draikov se afastaram, mudamos
a formação que mantínhamos quase que de modo automático,
Draikov e Rafael estavam mais para o centro, enquanto Lysander
ficava de frente para a rua, e Heylel observava a movimentação ao
lado da igreja.
— Você não nos convidou — Lysander atirou. — Por qual
razão continua fingindo que não fazemos parte de sua vida?
— Irmão...
— Corta o papo, Rafael nos avisou ontem, caso contrário
você não teria nos dito. — Eu gostei de ver que Lysander não ia
deixar passar, Draikov precisava saber que suas atitudes mais cedo
ou tarde trariam consequências.
— Não posso simplesmente alardear que tenho uma família e
que nosso negócio é matar pessoas.
Draikov soube o exato momento que cometeu um erro
quando Rafael estreitou os olhos.
— Lembre-se, irmãozinho, foi o negócio da família que salvou
a sua bunda quando você não podia, agradeça ao negócio da
família por estar aqui, prestes a se casar.
— Perdão. — Draikov engoliu em seco, um tanto pálido. —
Eu falei merda.
Sim, ele sabia disso.
— Nosso pai nos deu uma família, mas parece que, para
você, o elo era bastante frágil. — Lysander era mais alto que
Draikov, ele o olhou de cima. — Estou deixando claro para você que
o único motivo de eu estar aqui é porque eu sei que essa seria a
vontade de nosso pai, entretanto este é meu último ato. Quando
isso acabar, pode ter certeza de que estarei te riscando da minha
vida.
— Lysander, eu amo você.
— O seu amor é egoísta e todos nós já tivemos nossa cota
de egoísmo na vida. — Deu de ombros. — Faça o que lhe convém,
Draikov, mas não espere que sempre estejamos com a mão
estendida. Somos família, mas você sabe que também somos
péssimos em perdoar.
O único que não disse nenhuma palavra foi Heylel, ele
observava a interação como se fosse um espectador ausente. Sua
expressão não mudou nenhuma grama, ele parecia entediado.
— Acho que as coisas ficaram claras. — Eu esfreguei as
mãos. — Aí vem seus amigos, irmãozinho.
A postura de todos mudou, para quem estava olhando diria
que estávamos numa conversa amistosa, nada mais que isso.
— Está na hora de entrar, a noiva está chegando — a mulher,
que julguei ser a responsável pela organização do casamento,
avisou.
— Estamos indo. — Draikov olhou ao redor, como se
estivesse procurando algo. — Onde está Amira, Rafael?
— Minha esposa ficou no hotel, estava enjoada da viagem.
Rafael não diria que estava brigado com Amira, e por qual
motivo, não fazia ideia.
— Você vai ser pai? — Draikov parecia chocado, tanto que
ficou pálido de novo. — Você?
— Ainda não tive essa sorte, minha mulher não gosta de
viajar, ela sempre passa mal e fica irritada.
Amira adorava viajar, mas a mentira de Rafael soou pura
verdade e isso deixou claro, que ele não confiava em Draikov para
compartilhar que havia um bebê Demonidhes a caminho.
Sua atitude significou muito para mim, pois, diferente do que
eu pensava, Rafael não havia perdoado o abandono de Draikov, ele
apenas estava agindo como um irmão mais velho agiria: controlando
os danos e mantendo o fluxo tranquilo.
Nosso pai escolheu bem, não havia como nenhum de nós
desempenhar o papel de Senhor da Ordem melhor que ele.
Draikov — a primeira escolha de nosso pai — era fraco
demais.
— E você não conseguiu convencê-la a vir, não é? — Draikov
riu, alheio à mentira de nosso irmão.
— Ela apenas fingiu que não estava me ouvindo e eu cansei
de insistir. Amira é especialista em ignorar, estou aprendendo alguns
truques com ela.
Qualquer pessoa ao redor consideraria que estávamos nos
divertindo, mas Rocco Masari não, ele olhava além da fachada.
Afinal, sabia o que fazíamos, por isso sua expressão era de total
desagrado e não escondia isso.
Eu o olhei, piscando um olho, divertindo-me com o quanto o
bastardo era hipócrita. Quando precisou resgatar sua esposa
daquele buraco de merda, ele não se incomodou com a nossa
presença, agora agia como se fôssemos uma ameaça.
Era bom que ele soubesse quem éramos mesmo. E o que
poderíamos fazer, assim não tentaria bancar o idiota.
Algo que eu particularmente detestava nas pessoas.
9
Gabriel Demonidhes

Nunca estive em um casamento como esse. O que Rafael fez


para Amira foi tão singelo que apenas nós estávamos presentes.
Agora havia uma multidão, o casamento de Draikov estava sendo
digno da realeza.
— O bastardo vai chorar. — Balancei a cabeça, achando um
absurdo.
Não muito tempo atrás, Draikov e Razhiel eram uma dupla
quase imbatível quando se tratava de combate. O Fantasma e o
Destroyer eram como uma arma de destruição em massa.
Parecia demais que ele houvesse amolecido tanto, ao ponto
de buscar uma vida tão diferente.
Quando o padre começou a ladainha irritante, precisei lutar
para não batucar os pés de impaciência. Queria sumir dali porque
aquele tipo de coisa não era para mim.
Tudo soava emocional, falso, com arquétipos pré-moldados
de comportamento.
— Jason, você aceita... — o padre falou alto e eu nem
continuei prestando atenção.
A raiva bateu tão pesada ouvindo aquele nome, que eu
precisei baixar a cabeça para controlar o temperamento.
Que palhaçada! Draikov sequer usaria o nome que nosso pai
lhe deu, não usaria o sobrenome Demonidhes. Ele estava se
casando com a porra daquele nome falso, ridículo, como se
estivesse apegado demais a mentira não cogitando a possibilidade
de sair dela.
Filho da puta! Recusava-me a presenciar mais daquela
mentira, da prova flagrante que ele queria que ficássemos no
passado.
Quando me preparei para me levantar, a mão de Lysander
pesou na minha perna baleada.
— Não se mova — rosnou baixo, pude ver seus olhos
brilhando de fúria. — Apenas suporte toda essa porcaria e vamos
embora assim que acabar.
Cruzando os braços, lutei contra o ímpeto de dar o fora.
Aquilo era uma farsa, aquela mulher estava casando-se com uma
versão mentirosa do homem que amava.
Eu odiava pessoas mentirosas com tanto fervor que isso
estava no topo da lista. Não importava que fosse algo complicado,
que tivesse justificativas, mentira era sempre a porra de uma
mentira.
Quando contada para alguém que se “ama”, como Draikov
dizia amar sua pequena ruiva, tudo ficava infinitas vezes pior.
— Eu aposto meu relógio que essa pobre coitada não faz
ideia de quem seja o homem com quem está se casando. — Cruzei
os braços, rindo cinicamente. — Lysander, esse circo apenas
comprova o que já sabemos: Draikov não existe mais.
— Eu sei. — Meu irmão relanceou o olhar para mim, e, pela
primeira vez, não havia nenhum sentimento.
A raiva de outrora fora apagada como se nunca houvesse
existido, e, talvez, de todos os meus irmãos eu fosse o único que
ainda não conseguia aperfeiçoar essa parte do treinamento.
Dificilmente conseguia ter paciência necessária para esperar
os desdobramentos que viriam, era impulsivo, beirando ao raivoso.
Não era algo que eu pretendesse mudar algum dia. Meu lema
sempre foi atirar primeiro e escrever na lápide a pergunta. Portanto,
não ia dar colher de chá para alguém que simplesmente virou as
costas para a família.
Esse casamento não serviu de merda nenhuma. Por isso,
antes de forjar um encontro com a minha cantora, iria acalmar os
ânimos. Precisava de uma boa trepada, e não, não pretendia fazer
isso com ela.
Buscaria quem fosse capaz de lidar comigo e até sabia
aonde ir.
— Por que o sorrisinho, Gabriel? — Lysander indagou.
— Talvez essa viagem não tenha sido completamente inútil.
— Esfreguei as mãos nas pernas. — Estou ansioso que essa
palhaçada acabe logo, tenho que visitar um lugar.
Lysander arqueou a sobrancelha como se não quisesse
imprimir esforço para o diálogo, depois sua atenção se voltou para
os noivos. Eu estava ouvindo pela metade os votos matrimoniais de
Draikov, ou melhor de Jason, como queria ser chamado agora.
Bastardo do caralho! Havia renegado descaradamente o
sobrenome Demonidhes e tudo que nosso pai lhe dera.
— Vontade arrebentar a cara dele — respirei fundo, sentindo-
me tenso e cada vez mais irritado.
— Sossegue, irmão, está quase acabando. — Rafael apertou
meu ombro e concordei relaxando o suficiente para aguentar a
tortura.
Notei que não era apenas eu que estava encarando Draikov,
como se pudesse fuzilá-lo. Razhiel também estava puto e não
escondia a decepção enquanto Heylel demonstrava puro tédio.
Apenas Rafael e Lysander pareciam não se importar com nada.
Suas expressões eram o que eu chamava de morte cerebral. Não
havia nada, nenhum sinal de sentimento.
Eu gostaria de ser assim, ocultar a parte visceral das minhas
emoções como se apertasse um interruptor, mas nunca consegui.
Era à flor da pele demais, como se vivesse em carne viva.
— Ele não usou o nome de nosso pai, realmente, eu estou
puto o suficiente para quebrar a cara desse merda. — Respirei
fundo, lutando contra o meu temperamento.
— Eu vos declaro marido e mulher — o padre falou, e eu
agradeci que finalmente havia acabado. — Pode beijar a noiva.
Depois do último ato que foi recebido com animação por
todos os convidados, os noivos começaram a posar para fotos com
os familiares. Draikov não nos chamou. E nós, ficamos ali, de pé,
alinhados como a parte excluída da família.
Somente quando já estava saindo, ao lado de sua esposa, foi
que Draikov nos olhou e pôde perceber o erro que havia cometido
casando-se como se fosse o pária, que ele não era.
Todavia, estava bem claro para nós que ele havia tomado sua
decisão.
— Draikov não é mais um Demonidhes — Heylel murmurou,
como se aquilo lhe doesse.
— Todos nós sabemos disso — Lysander soltou o fôlego,
demonstrando o cansaço que, com certeza, pesava-lhe nos ombros.
Aos poucos, os convidados começaram a sair. Lá fora a
cacofonia de sons mesclavam-se. Os gritos de felicitações, as
risadas, os sons de câmeras fotográficas disparando.
— Eu vou para o hotel — Rafael quebrou o nosso silêncio. —
Amira não retornou as ligações, estou preocupado.
— Você deixou um pequeno exército fazendo a segurança
dela. — Razhiel balançou a cabeça, lembrando o óbvio.
Havia cerca de dez Caçadores nos arredores do hotel e todos
bem-posicionados. Um só poderia causar muito estrago, dez então,
significava que ninguém chegaria perto de Amira. Rafael era
paranoico com a segurança dela, principalmente depois do que
aconteceu, e nós certamente concordávamos com ele.
Ela era importante demais para que descuidássemos.
— Ela não retornou porque ainda está com raiva, e
infelizmente nossa garota não grita nem quando você merece — eu
disse, esperando que ele não parecesse tão abatido.
— Esse silêncio é pior. — Rafael indicou a saída, as pessoas
estavam se dispersando. — Vou para o hotel, preciso tentar uma
nova abordagem.
Isso significava que ele iria ser agressivo e atacar. Amira não
ia ver o que a atingiu até estar feliz e dando a Rafael toda atenção
que ele estava acostumado a ter. Ao que parece, o Senhor da
Ordem poderia suportar as piores torturas, mas não que sua mulher
o ignorasse.
Deus, eu nunca me sujeitaria a isso!
— Irei para o hotel também. — Lysander esfregou o cabelo,
então movimentou o pescoço como se quisesse aliviar a tensão. —
Não dormi nada desde o plantão de ontem, e essa viagem foi
exaustiva, preciso de uma cama e no mínimo oito horas de sono.
— Irmãozinho, eu sei de algo que pode te ajudar a relaxar. —
Lysander apenas estreitou os olhos e isso era suficiente para eu
saber que não era o momento de piadinhas com suas esquisitices.
— Eu só estou tentando ajudar. — Ergui as mãos, sorrindo.
— Eu sei qual é a sua intenção, bastardo. — Lysander
balançou a cabeça, esfregando os cabelos escuros e mais longos
que o usual. — Você deveria ir para o hotel. Se não reparou,
continua mancando demais.
Eu não pretendia passar a noite sozinho, e estava pronto
para testar se estava bem recuperado.
— Minha perna vai se recuperar quando ela tiver que se
recuperar, agora eu conheço um lugar. — Esfreguei as mãos,
ansioso. — House of Queen. Melhor casa de prazer de Londres, eu
vou passar algumas horas me divertindo.
— Você está em recuperação. — Lysander cruzou os braços,
insistindo como o médico insuportável e irmão superprotetor que
era.
— Então, fazer repouso, prometo que vou ficar deitado
enquanto uma gostosa rebola no meu pau. Não farei nada que piore
a minha perna, prometo. — Acenei, já me afastando. — Volto
quando amanhecer.
— Eu estou a fim de uma noite de sexo. — Razhiel estalou os
dedos.
Sorri, pois, quando Draikov foi embora, eu ganhei um
parceiro de combate e que mergulhava de cabeça nas minhas
loucuras.
Gostávamos de compartilhar.
— Vamos.
Rafael indicou o Escalade preto e eu quis rir, pois o carro
estar ali significava que ele provavelmente já sabia que eu ia cair na
farra.
— Divirtam-se.
Antes que eu e Razhiel pudéssemos entrar no carro, Heylel
se juntou a nós.
— Vamos nos divertir. — Ergui o punho, os dois bateram.

***

A House of Queen era uma mansão construída no século


passado, e, diferente das outras mansões da região, ela foi
idealizada para o prazer. Com todo esquema de alta segurança,
acesso com códigos e digital, ela se diferenciava de qualquer
prostibulo de alto padrão que eu já tenha frequentado em qualquer
lugar do mundo.
Aqui estavam as melhores garotas de toda a Europa, e o
melhor era que tudo estava legalizado. Sem drogas, sem tráfico
ilegal de garotas, sem cafetão explorador.
Naquele lugar todo mundo conseguia o que queria, e a única
droga permitida era a boceta ideal para aceitar qualquer demanda e
fetiche dos clientes. Conhecidas como as damas do prazer, a House
Of Queen possuía a elite de prostitutas.
Infelizmente, por pura questão de logística, eu não era um
cliente muito frequente, mas possuía um cartão de acesso especial,
que me permitia entrar em qualquer dia, hora.
Sem fila de espera.
— É tudo que eu estava desejando. — Sorri, avistando a
fachada imponente da mansão. — Sexo gostoso, mulheres lindas e
experientes.
E o principal, nada de expectativas ou cobranças, e com
certeza, sem perigo de envolvimento emocional.
— Parece que está lotado. — Razhiel indicou a fila de carros
na entrada principal.
— Aqui sempre está lotado. — Continuei em frente, até a
entrada particular dos clientes VIP.
Paramos em um portão alto e escuro. Retirando a minha
carteira, puxei o cartão de metal prateado, ele possuía apenas o
brasão da casa. Eu o inseri no leitor digital, digitei o código e,
instantes depois, os portões começaram a abrir.
Um caminho de pedra, ladeado por palmeiras altíssimas,
guiavam o acesso a área VIP. Deixei o carro na minha cabine e,
junto dos meus irmãos, seguimos por um corredor até a entrada
principal.
— Sejam bem-vindos à Casa da Rainha. — Um mordomo
nos recebeu. — Sigam-me, senhores.
O hall estava era decorado com bom gosto de elegância. Na
verdade, tudo ali era luxuoso, mas não exagerado, cada ambiente
parecia minimamente pensado para ser uma experiência sensorial.
Nas paredes havia quadros de corpos femininos, em poses e
movimentos elegantes. O perfume que circulava no ar combinava
com o ambiente.
Eu não me importava com nada disso, apesar do quanto era
agradável. Meu desejo era chegar ao grande salão de festa, o lugar
onde o prazer não tinha que ser limitado apenas a uma trepada.
— Este lugar é agradável. — Razhiel parecia satisfeito com
tudo que estava vendo.
— Existe um lugar muito mais agradável. — Esfreguei as
mãos, sentindo-me excitado. — O que você acha, Heylel, vai cair na
farra?
Eu não fazia ideia de como ele levava sua vida sexual, na
verdade, nem tinha certeza se ele possuía uma. Heylel era tão
fechado nesse assunto que eu não me sentia confortável para
perguntar, e ele jamais falava.
Hoje era um dia atípico. Apenas isso.
— Vim apenas a título de acompanhante. — Ele ergueu as
mãos. — Estou aqui para conter os danos.
— Irmãozinho, foder alguém até que ela desmaie não é
necessariamente um dano.
Heylel não respondeu, e, se o houvesse feito, eu não teria
prestado atenção. O mordomo responsável que nos recebeu, havia
aberto as portas do paraíso.
O grande salão era onde as meninas ficavam. Os sofás
estendiam-se por todo ambiente, assim como os espaços
reservados para os exibicionistas e para o sexo grupal. Havia
também palcos montados em pontos estratégicos, para que
desfrutássemos de deliciosas performances.
Todo o ambiente fora planejado para que os clientes tivessem
uma visão ampla de todo lugar, a atmosfera de decadência,
perversão e prazer engolia a todos nós.
— É isso. — Sentei-me em um dos sofás, com meus irmãos
ao meu lado.
Algumas garotas dançavam, outras estavam sentadas no
colo de seus clientes, amaciando seus egos enquanto lhes serviam
bebidas caras.
Em todas as minhas visitas, sempre saí esgotado, não
satisfeito, pois estranhamente alguma coisa lá no fundo mantinha-se
com fome. O corpo por vezes atingia o limite, mas a mente
continuava insaciável e não havia nada que apaziguasse meu
tormento por completo.
— O que vocês vão querer, rapazes? — Uma linda morena
se aproximou, ela tinha os cabelos na cintura, eram cacheados e lhe
emolduravam o belo rosto.
Estava de calcinha e sutiã, deixando-me vislumbrar as curvas
de seu corpo perfeito.
— Você, para começar. — Acomodei-me melhor no sofá,
estava excitado, louco para sentir uma boceta quente abraçando
meu pau até o talo.
— Não estou disponível, senhor. — Ela sorriu, ruborizando
quando eu desabotoei o terno e o retirei. Depois, abri os três
primeiros botões da camisa.
— Pena. — O canto da minha boca arqueou, o sorriso dela
aumentou. — Diga-me, qual o seu nome? Vamos começar assim.
Eu me chamo Gabriel.
— Eu sei. Fomos avisadas quando o senhor chegou. —
Respirou fundo. — Sou nova aqui.
— Está se adaptando ainda?
— Sim, senhor. — Ela mordeu o lábio, dando uma olhada nos
meus irmãos.
Quando viu Razhiel, eu percebi seu interesse, mas, quando
ela olhou mais detalhadamente para Heylel, vi certa repulsa.
— Duas garrafas de vodca e três copos. — Não pude evitar
que meu tom soasse rude. — Pode ir.
— Senhor...
Não a olhei, como disse anteriormente, não conseguia
disfarçar quando algo me desagradava.
— A vodca deve ser gelada?
— Apenas uma — Heylel respondeu, mas ela não o olhou,
estava-o evitando descaradamente.
— Uma sugestão. — Eu segurei seu braço antes que se
afastasse. — Uma puta não deve menosprezar seus clientes, ainda
mais quando eles são da família Demonidhes.
Pálida e com os olhos cheios de lágrimas, ela se afastou.
— Não precisava disso. — Heylel balançou a cabeça. —
Você sabe que não me importo.
— Mas eu sim.
Eu não podia dizer se Heylel estava falando a verdade, ele,
mais que Rafael ou Lysander, conseguia disfarçar bem suas
emoções e deixar ver apenas o que lhe convinha.
— Irmão, viemos aqui para relaxar, então faça isso. — Ele
arqueou a sobrancelha, o piercing repuxando.
Irritava que Heylel fosse tão cordial quando estava fora de
combate. Ele era o anjo da morte, aquele que matava seus
oponentes sem que percebessem, mas no geral, a meu ver, ele era
apenas tranquilo e ouso dizer gentil.
As pessoas o julgavam pela aparência e, talvez por isso, toda
sua preocupação com a possibilidade de eu ficar com cicatrizes no
rosto também.
Bom, eu não fiquei.
— Vamos nos divertir, foi para isso que viemos, não é? —
Razhiel retirou o terno, cruzando as pernas confortavelmente.
— Quem vê você desse jeito nem acredita que gosta de
brincar com suas “presas” — provoquei, pois meus irmãos não
mereciam que eu estragasse a noite só porque todo meu pavio foi
comido no casamento de Draikov.
— Elegância e sofisticação não têm nada a ver com minha
forma de caçar. — Piscou um olho. — E, por mais que eu esteja
aparentando relaxamento, já mapeei todo o lugar. — Ele fez um
pequeno gesto. — Uma nova atendente está vindo, a outra foi
retirada do salão, agora mesmo um grupo com quatro garotas estão
se preparando para nos abordar e uma delas está de olho em
Heylel.
— Percebi. — Heylel sorriu. — Não estou a fim, então vocês
podem dividir, eu vou beber um pouco.
— Parece que eu sou o único que está desatento. — Subi as
mangas da camisa, deixando à mostra as cicatrizes no braço.
Se isso repelisse alguma mulher, então certamente elas não
conseguiriam lidar com o restante das cicatrizes espalhadas por
meu corpo.
— Por isso estou aqui, irmãozinho, para cuidar de vocês,
então podem se divertir — Heylel ponderou. — Nossas bebidas
chegaram.
Bastardo.
Uma nova atendente trouxe as bebidas e quatro mulheres
sentaram-se ao nosso redor. Uma delas ficou perto de Heylel, eu vi
o interesse brilhando nos olhos azuis, mas ele a ignorava de tal
maneira que era como se a garota não estivesse ao seu lado, pronta
para levá-lo ao quarto mais próximo.
Ou ficar ali mesmo se ele quisesse.
— Você é tão alto — ela suspirou, eu tive vontade de rir
quando Heylel segurou seu queixo.
A garota fechou os olhos esperando um beijo que nunca
chegou. Ao invés, seu irmão lhe disse:
— Cuide do meu irmão. — Virou o rosto dela para mim. —
Vá.
Heylel não demonstrava nenhum interesse, e, apesar de ter
uma aparência agressiva, a garota estava realmente a fim dele.
— Eu te prometo uma noite inesquecível. — Ela tentou se
aproximar e ele a segurou.
— Nenhuma de vocês conseguiria lidar comigo. — Um meio
sorriso arqueou o canto de sua boca. — Nem todas juntas. Apenas
vá.
A garota entendeu e veio para mim. Balancei a cabeça,
querendo rir. Heylel esticou-se confortavelmente no sofá, que
parecia pequeno demais para ele. Era como se a atmosfera não o
afetasse.
Aquele lugar cheirava a sexo, na verdade era projetado para
o prazer e para que as pessoas esquecessem qualquer pudor que
possuíssem. Os homens que estavam agora mesmo prestes a
trepar eram figurões da política local, homens que alardeavam moral
e bons costumes, mas que em lugares como esse eram predadores
sexuais.
Não que as mulheres daqui fossem presas, elas não eram.
— Esse lugar é indecente. — Heylel bebeu todo conteúdo de
seu copo. — Eu gosto.
Ouviam-se aqui e ali sons de gemidos, era como se
mesclasse ao som da música ambiente criando uma sinfonia de
prazer que me esquentava.
Eu era um bastardo hedonista, gostava de experimentar o
prazer extremo, aquela adrenalina deliciosa que vinha junto com o
gozo, ou a sensação de quando minha vida estava por um triz. Em
partes buscava coisas que me fizessem sentir assim, pois gostava
de perambular pela borda do abismo, arriscando tudo só pelo
prazer.
A minha existência estava ligada a isso.
Quando as duas garrafas secaram, pedimos mais duas.
Sentia-me quente, excitado, estava pronto para a diversão.
— Venha, Candy, sente-se aqui. — Bati na minha perna boa,
chamando a garota que queria Heylel. Ela veio sorrindo, os peitos
grandes coroado por mamilos com piercing pareciam apetitosos. —
Deixe-me provar se você é doce como seu nome.
Ela juntou os seios oferecendo para mim. Sorrindo, sem tirar
os olhos dos dela, lambi um mamilo puxando a joia de metal com os
dentes.
— Ohhh, isso — ela gemeu, jogando a cabeça para trás,
enquanto passeava as mãos pela minha cabeça porque não havia
cabelo para ela agarrar. — Que delícia.
Endurecendo a língua, dei pequenos golpes em seus
mamilos, ela rebolava na minha perna, eu podia sentir o calor da
boceta através do tecido da calça, se a tocasse, estaria molhada,
pronta.
Dedos hábeis serpentearam pela minha virilha, acariciando o
meu pau através do tecido. Eu o sentia dolorido, pulsando de tanto
tesão. Olhei para a garota que tentava abrir a minha calça.
— Ainda não, querida. — Ela era uma coisinha linda. Eu já
podia até imaginar-me segurando seus cabelos loiros enquanto ela
mamava meu pau como se sua vida dependesse disso. — Não
temos pressa.
Ela sorriu, sentando-se na minha outra perna. Na hora, a dor
disparou, mas não me importei. Gostava daquela mescla de prazer,
desejo, dor e necessidade.
— Vem, eu quero ver se você beija tão bem quanto parece.
— Ela se aproximou. — Me chame de Becca, quero ouvir você
gemendo meu nome quando eu estiver mamando o seu pau.
— Eu vou lembrar de fazê-la engolir tudo. — Ela sorriu, antes
de me beijar. Sua língua enredou-se na minha, e, porra, a excitação
me fez estremecer.
Perdi-me em seu beijo, tomando tudo que ela tinha para dar.
Desejava ardentemente que hoje fosse uma noite memorável, pois
há muito tempo só tinha mais do mesmo, nada emocionante e que
não saísse da minha cabeça. O prazer parecia limitado, como se
não houvesse nada que fosse além.
Recusava-me a acreditar que uma das melhores coisas da
minha vida começava a ficar chato.
— Você é grande, quero-o dentro de mim. — Becca me
acariciou por cima da calça. — Quero foder gostoso, desejo ficar
dolorida o dia inteiro.
— Eu posso providenciar isso. — Sorri, puxando seus
mamilos com os dedos.
— Oh, senhor… — gemeu, de olhos fechados, com a boceta
quente molhando minha calça.
— Gabriel, me chame de Gabriel.
Becca acenou, lambendo os lábios. Seus olhos estavam
pesados, na boca o gosto de vodca parecia picante.
— Me sinto negligenciada. — Candy fez um beicinho.
— Abre as pernas para mim. — Ela obedeceu e a minha mão
perdeu-se dentro de sua calcinha. — Toda molhada, boceta
gostosa. — Acariciei o clitóris durinho, ela tinha um piercing ali
também, eu o puxei satisfeito pelo gemido alto e despudorado.
Sabia que estava atraindo atenção. E isso não me importava.
Que todos ali assistissem ao maldito show.
Empurrei um dedo dentro dela, depois outro e a fodi
enquanto beijava Becca. Ao lado, podia ouvir os gemidos das
gêmeas de Razhiel. O olhei brevemente e o bastardo estava
seminu, uma mulher estava com a cabeça entre suas pernas, a
outra ele beijava fodendo-a com os dedos.
— Divirtam-se. — Olhei para Heylel e o observei afastando-
se. Ele estava indo em direção ao bar do salão.
Voltando minha atenção para as garotas em meu colo, deixei
que elas começassem a me despir. Estávamos no lado dos
exibicionistas, Razhiel era um devasso como eu, compartilhávamos
mulheres, fodíamos até que elas estivessem cheias de porra em
todos os buracos e sem forças para levantar.
— Vamos para aquele sofá ali — Razhiel chamou e entre
beijos, amassos e gemidos, fomos para o espaço maior.
As garotas me despiram completamente, meu pau estava tão
duro que doía, as veias saltadas, latejando.
— Eu disse que ia lembrar do que seu desejo. — Enredei as
mãos nos cabelos de Becca beijando-a grosseiramente. — Vamos
esquentar as coisas. — Pisquei um olho, e ela ajoelhou. — Sem as
mãos, engole o meu pau até engasgar-se. — Ela molhou os lábios,
abocanhando meu pau até onde conseguiu. — Mais fundo, relaxa a
garganta.
Sorri, observando o esforço que ela fazia e mesmo assim não
conseguia levar tudo. Candy ajoelhou ao lado dela e ambas
revezaram na chupada. Fechei os olhos, ansiando por mais. O
prazer era bom, mas não incrível. Em algum momento, eu ia gozar e
tudo ia acabar em nada.
A fagulha não existia mais, porém sexo era sexo. Esperar
mais que isso era uma tolice que eu não cometeria.
— Becca, abre a boca. — Ela arregalou os olhos, mas
obedeceu. Devagar, comecei a empurrar em sua boca, depois
aumentei ritmo, fodendo como eu queria. — Isso, respire pelo nariz,
isso.
Lágrimas saltaram de seus olhos, seu rosto estava vermelho,
a baba escorrendo. Belisquei os mamilos de Candy, puxando os
piercings, eu a beijei com fome, agressivo. Nossas línguas
duelavam, enquanto Becca mamava meu pau e eu controlava as
duas mulheres, me perdendo nelas.
A sensação era boa e eu buscava mais, queria tudo. Alívio,
prazer, qualquer coisa que acalmasse aquele fogo que me consumia
cada vez mais.
— Me fode! — Candy gemeu na minha boca, instigando-me.
— Me faz gritar para todos aqui saberem como foder uma mulher.
Boca suja, eu gostava disso numa mulher. Ansioso, puxei
Becca e a beijei rapidamente.
— Empina a bunda, Candy. — Peguei uma camisinha num
dos recipientes disponíveis. Quando fui colocar, Becca adiantou-se.
— Porra, que delícia. — O gemido da mulher ao lado chamou
atenção. Uma das gêmeas cavalgava Razhiel enquanto a outra
estava com a boceta na cara dele, rebolando e gemendo feito uma
condenada.
O corpo bonito de pele escura estava suado e brilhando com
perfeição. Os seios coroados por mamilos durinhos estavam
empinados, ela os apertava, enquanto tinha a boceta chupada pelo
meu irmão. Eles formavam um quadro bonito.
— Vem — Candy me chamou e eu encaixei as mãos em seus
quadris, puxando-a para mim.
Ela empinou ainda mais, rebolando, chamando-me com o
gesto. Ela estava molhada, convidativa demais. Sem aviso, eu a
lambi inteira, desde a boceta até o cuzinho rosado. Candy gritou,
arqueando.
— Becca, deite-se, Candy vai chupar você. — As mulheres
sorriram, concordando com a putaria.
Uma das gêmeas de Razhiel se aproximou, ela lambeu meu
peito, então veio subindo até a minha boca.
— Quero participar.
— Você quer? — Agarrei seus cabelos curtos e bem
cacheados, beijando-a grosseiramente. — Becca vai lamber sua
bocetinha, depois eu vou ver se você me aguenta.
Ela ofegou quando a toquei. Estava molhada, depois de ter
sido chupada por Razhiel.
— Vai, gostosa, encaixa essa boceta na boca dela. —
Indiquei Becca, que já lambia os lábios, esperando.
— Livy é meu nome.
Acaso importa? Não para mim.
Candy gemeu quando me sentiu esfregar o pau em sua
umidade. Brinquei um pouco, deixando-a em expectativa, então sem
aviso eu a penetrei de uma vez.
Seu grito de prazer reverberou em mim.
— Chupe, se qualquer uma de vocês parar eu também paro.
As mulheres gemeram e nós formamos um belíssimo quadro
imoral. A boceta de Candy me abraçava, recebendo cada golpe sem
reclamar. Eu não era pequeno, mas entrava e saía com facilidade,
escorregando deliciosamente naquele calor gostoso.
O som de sexo era bom de ouvir. Eu gostava de olhar meu
pau entrando e saindo, de ouvir as mulheres gemendo, de saber
que nos observavam.
Ao lado, Razhiel estava fodendo sua vadia com força, a
mulher gritava pedindo mais.
— Ah, isso, fode minha boceta! — Candy também gritou,
empurrando-se contra mim. — Que delícia, mais forte, mais forte.
Não lhe dei o que pediu. Ela havia parado de chupar a boceta
de Becca e seria punida por isso. O grupo ia mudar. Saindo de
dentro dela, chamei por Becca.
— Não! Espere, começamos agora! — reclamou, brincando
com o clitóris para não perder aquela onda de prazer.
— Eu disse que, se qualquer uma parasse, eu também
pararia. — Respirei fundo, frustrado por estar sentindo um pouco de
cansaço. Ainda nem havia começado. — O mesmo serve para esta
rodada. Vem, Becca, me dá essa boceta.
Quando cada uma estava em seu lugar recomeçamos.
Fechei os olhos, penetrando-a com força, sentindo o aperto ao redor
do pau. O prazer começou a se reconstruir, aumentando e me
deixando mais agitado, eu pensei, por um momento, que fosse
ultrapassar aquele ponto que eu já esperava, mas não, eu só
consegui sentir o mesmo de sempre.
E isso não era o bastante.
Queria sentir meu corpo apagando de tanto prazer. Sequer
lembrava da última vez que tive um sexo explosivo ao ponto de ficar
desorientado.
— Porra. — Balancei a cabeça, fodendo mais forte. Becca
gemeu alto demais e isso me fez desconfiar se ela estava sentindo
dor.
Respirando fundo, parei um momento. Ela me olhou,
puxando-me, querendo continuar.
— Temos a noite toda. — Pisquei um olho, mas sentia-me
cada vez mais cansado.
Merda do caralho.
Olhando para o lado, achei que estava em um bom momento
para me juntar ao meu irmão. Me aproximei da gostosa que brilhava
de suor e estava rebolando no colo de Razhiel. Acariciei a bunda
avantajada, ela olhou para mim, sorrindo.
— Os dois? — Ela mordeu o lábio quando acenei.
— Se você quiser — eu disse, pegando o tubo de lubrificante
dentro do suporte que continha vários brinquedos e itens para uso.
— Eu quero.
— Todas queremos. — As mulheres sorriram, Becca e Candy
estavam se masturbando, os dedos perdendo-se na boceta
molhada.
— Então façamos de hoje uma noite memorável.
Comecei a preparar a mulher para a dupla penetração.
Mesmo sabendo que possivelmente ela já tenha feito, não pude
evitar ser cuidadoso. Eu era um bastardo grande, Razhiel também.
Primeiro, comecei a alargar seu cuzinho, ela gemeu,
rebolando nos meus dedos. Ficamos assim por um tempo, até que
eu pude perceber que ela estava pronta. Atento as suas reações,
comecei a penetrá-la.
— Porra! — gemi, o ajuste apertado era bom pra caralho.
Olhei para Razhiel, e ele sorriu, juntos, quase que
sincronizados começamos a foder aquela mulher linda. Não
demorou muito para que ela perdesse o controle e nos desse o que
buscávamos.
— Sim... sim, ahhh, delícia, fode, ahhh! — gritou, aceitando
cada impulso firme que eu e meu irmão dávamos. — Ah, isso... Oh,
Deus, sim, mais rápido.
Segurei no quadril voluptuoso, dando o que ela pedia. Olhei
para o meu pau entrando e saindo, alargando o cuzinho apertado.
Ao lado, as mulheres brincavam, se masturbando, chupando uma à
outra.
Uma delícia de se ver.
— Você gosta assim, não é? — Enrolei seu cabelo no punho,
obrigando-a a arquear e ficar numa posição que não lhe permitia
qualquer movimento. — Gosta de ter dois paus te fodendo. — Mordi
sua orelha, ela gritou, presa entre mim e Razhiel.
— Quero mais, quero mais. — Ela balançou a bunda, e eu
sorri.
Olhei para Razhiel e ele estava apertando os mamilos da
garota, como se fossem duas pinças. Ela estava sendo estimulada
até o limite.
— Quero mais, quero mais! — gritou, perdida em suas
próprias sensações.
— Mais? — Saindo de dentro dela, troquei a camisinha
rapidamente, coloquei lubrificante e sem aviso comecei a penetrar
na boceta. — Que tal assim, hum? — Mordi sua orelha, penetrando-
a até o fim. — Dois paus no mesmo buraco, você gosta? — Ela
gritou quando a fodemos juntos.
— Deus, ohhh, por favor. — A mulher abriu a boca, puxando
o ar, lágrimas saltaram de seus olhos, ela continuava gritando,
rebolando com os dois paus na boceta. — Vou gozar, isso, não
parem. Que delícia, fode a minha boceta, assim, assim... ahhh.
Ela perdeu o controle, pude sentir o aperto, as paredes
internas palpitando ao redor do meu pau quando começou a gozar.
Continuamos fodendo duro, contínuo, enquanto ela gritava, com
lágrimas de prazer e dor molhando seu rosto bonito.
Ela desabou em cima do meu irmão, eu me retirei, satisfeito
pelo gemido que ela soltou.
— Parece que elas gostam de intensidade. — Razhiel deu
um sorriso de lado, levantando-se. — É muito bom saber que não
preciso me conter. Vem, Candy, vou comer o seu cu.
Deitando-me no lugar de Razhiel, esperei que Candy se
sentasse no meu pau devagar, para acostumar-se ao tamanho. Ela
respirou fundo, rebolando um pouco antes de deitar-se no meu
peito.
— Empina a bunda para o meu irmão. — Enfiei as mãos no
cabelo de Candy, virando seu rosto para o lado. — Vem, Livy, chupa
os peitos dela enquanto nós a fodemos. — Apontei para a garota
que havia acabado de gozar. Ela estava com a boceta vermelha, o
clitóris inchado e eu podia vê-lo pulsar. — Becca, você gosta de
uma boceta, não é? Chupe.
— Estou sensível.
— Vai ficar pior. — Pisquei um olho e logo ela fechou os dois
olhos, aceitando a outra mulher com um gemido rendido.
Sua gêmea ficou ali beijando Candy e a mim, logo seria a sua
vez.
— Me fodam até eu chorar de prazer. Não tenham
misericórdia.
Ela havia pedido por isso.
10
Gabriel Demonidhes

Sentia-me relaxado, mas não o suficiente para dormir, minha


cabeça continuava o mesmo turbilhão de sempre e estar deitado,
num emaranhado de pernas e braços, não me parecia nem um
pouco agradável.
— Fiquem mais um pouco. — As gêmeas ergueram as mãos
para mim e meu irmão.
Razhiel estava terminando de fechar a calça e eu de abotoar
a camisa. No nosso reservado havia quatro mulheres belíssimas, e
que haviam sido fodidas até o ponto de estarem com a boceta e o
cu inchados. Pareciam satisfeitas, mas sabia que, se eu saísse
agora, teriam que continuar.
Era o trabalho delas, ganhar o máximo possível quando
tinham a oportunidade.
— Heylel, nos espera — Razhiel avisou e eu avistei meu
irmãozinho, do outro lado do salão, bebendo enquanto fazia
companhia para Dimitri Romanov.
— Estamos saindo.
Minhas roupas estavam amassadas no corpo, diferente de
Razhiel que parecia ter acabado de tirar as roupas do closet. Meu
irmão era sempre tão organizado, que não me surpreendia se ele
dobrasse as peças antes de uma foda.
— Por que parece que tirei as roupas de uma garrafa e você
não? — Alisei a camisa, jogando o casaco do terno por cima do
ombro.
— Porque eu me despi no sofá e você aqui, possivelmente
tenhamos rolado por cima das suas roupas. — Sorriu, apenas para
me irritar. — Você cheira a sexo, irmãozinho.
— Fiquem. — Becca sorriu, estava com os cabelos molhados
de suor, o corpo com marcas de tudo que fizemos.
Ela parecia esgotada e estava linda assim. Infelizmente, nem
isso me instigava a deitar e somente relaxar. Eu nunca fazia isso e
não ia começar agora.
Ainda que eu estivesse cansado, precisava estar num
ambiente que eu controlasse.
— Descasem pelo resto do dia. — Candy e Becca
levantaram-se, vindo para mim.
— Não podemos descansar, ainda é madrugada, tem fila lá
fora. — Candy fez beicinho. — Apenas fique aqui, deite-se um
momento.
Eu investiguei esse lugar e ele era limpo. As moças estavam
aqui porque queriam uma vida diferente das que possuíam, todavia,
se eu desconfiasse minimamente que estariam sendo exploradas,
então acabou para o dono desse lugar.
Mudando a posição, puxei Candy para mim.
— Vocês estão fazendo algo que não queiram? — murmurei,
passeando o nariz por seu rosto. — Me beije se a resposta for sim e
eu vou resolver tudo ainda hoje.
Havia um número grande de Caçadores espalhados por
Londres, afinal o líder da Ordem e os quatro generais estavam aqui.
Seria fácil resolver qualquer problema que surgisse. Ainda que não
nos envolvêssemos com coisas pequenas, havia transado com
essas mulheres, pagava para ser VIP, pois acreditava que tudo
estava correto com as meninas.
Talvez as coisas tivessem mudado e eu ainda não sabia?
Questionei-me, pronto para destruir o lugar apenas por vingança.
— Estou esperando, Candy. — Puxei seu cabelo, obrigando-
a a inclinar a cabeça. — E eu não gosto de esperar.
— Não é isso — ela gemeu baixinho, quando acariciei seus
mamilos. — Estão doloridos — ofegou. — Mas não, não está nada
errado; é só que, quanto mais tempo você ficar conosco, mais
ganharemos.
— Ah, então é isso. — Sorri, prendendo seu lábio inferior
entre os dentes. — Não se preocupe, eu vou providenciar um bom
descanso para vocês quatro. — Dei um tapinha em sua bunda, e ela
sorriu voltando a deitar junto das outras.
Fui em direção a Condessa — dona deste lugar — e a
abordei. Ao me ver, ela sorriu, como se já soubesse o que viria a
seguir.
— Foi um belo show. — Sorriu, soprando a fumaça do cigarro
para cima. — O que deseja, Sr. Demonidhes?
— Quero comprar o dia delas.
— Das quatro?
— Sim.
Eu pude ver a satisfação cintilar nos olhos azuis, eu a
conhecia bem o suficiente para saber que era uma belíssima
ambiciosa.
— A conta será bem alta.
— Você está me vendo reclamar? Apenas faça o que eu digo
e continuaremos nos dando bem, Condessa.
— Lilian, você pode me chamar assim, querido. — Ela sorriu,
deslizando a unha grande e vermelha pelo meu peito. — Devo
acrescentar um bônus para elas?
— Como quiser. — Abanei a mão e ela suspirou
demonstrando que estava excitada com o rumo da conversa.
— Irei providenciar. — Ela se ergueu na ponta dos pés e me
deu um beijo rápido. — Aguarde um instante.
A observei se afastando, a camisola transparente deixava
que todos vissem o conjunto de lingerie abraçando o corpo
voluptuoso. Ela era uma figura imponente ali, via-se que era
diferente das outras, mais experiente, dona de si.
Como uma abelha rainha, sabia dirigir cada detalhe de seu
próprio show.
— Lasciva, gostei dela. — Razhiel cruzou os braços.
Não levou mais que cinco minutos para que a conta
chegasse. Fazendo o pagamento, não me demorei mais que o
necessário ali. Ainda que fosse relativamente cedo, a casa ainda
possuía um fluxo alto de clientes, o que significava que a noite, ou
melhor, que a madrugada estava apenas começando.
Relanceei o olhar para Heylel e ele estava inabalável, não
parecia como se houvesse bebido vodca pura por horas seguidas.
— Você está bem, irmãozinho? — perguntei, entrando no
carro.
— Por que não estaria?
— Não sei, quantas garrafas foram?
Ele arqueou a sobrancelha e eu esperei ver divertimento, ou
que a quantidade de bebida o houvesse deixado torpe, mas não.
Heylel sequer parecia tonto.
— Você prestou atenção em mim? — Ele cruzou os braços,
havia sentado no banco do passageiro ao meu lado. — Irmão,
pensei que estivesse ocupado.
— Ocupado sim, não desatento. — Heylel deu de ombros,
então fechou os olhos, recostando a cabeça no banco.
— A bebida não funciona como deveria — murmurou, e eu
achei que funcionava. Apenas pelo fato de ele estar falando. — Se
ao menos eu pudesse esquecer...
— Relaxa, irmão, em breve você terá uma boa cama para
dormir.
— Não tenho sono. — Seu peito subiu e desceu com a
respiração profundamente cansada que ele soltou. — Eu gostaria de
sentir mais.
Quando me comparava com Heylel, notava que estávamos
em pontas opostas. Ele era o mais “insensível” e isso nem era sua
culpa, mas de sua condição genética, o tempo e tudo que viveu
apenas o instigaram a aprimorar a capacidade de ser indiferente a
tudo.
Já eu, era o fio desencapado, a bomba relógio que eles
precisavam lidar. Talvez por isso Heylel houvesse notado a loucura
que me ameaçava constantemente.
— E eu queria não sentir.
Trocamos um olhar, depois segui direto para o hotel que
estávamos hospedados, mais tarde iríamos embora, depois do café
da manhã, e eu tinha um encontro para organizar.
Será que a voz dela é tão boa pessoalmente? Era essa a
dúvida que pretendia sanar, apenas isso.
— Rocco Masari é o dono. — Heylel indicou o hotel. — Me
surpreendi que você quisesse ficar aqui.
— Por acaso a festa de casamento não é aqui? — Arqueei a
sobrancelha, não diria os verdadeiros motivos nem morto. — Vamos
continuar no papel de família indesejada e participar.
— Não, eu passo, mas... — Heylel ergueu a mão — por que
não admite que quer ficar mais próximo de Draikov, irmãozinho?
— Como você adivinhou? — Não escondi o tom cínico. —
Era tudo o que eu planejava.
— Me sinto ridiculamente enganado — Heylel suspirou
falsamente.
— Não é como se fôssemos realmente — Razhiel ponderou.
— E, pelo que averiguei, está tendo um festival na cidade, cantores
e gente da indústria estão hospedados. Veja ali, tem fãs montando
acampamento na entrada.
— Interessante.
Eu não estava pronto para simplesmente ir para a cama.
Ainda era cedo — para os meus padrões — e o mais importante:
havia algo a ser feito.
— Esse seu sorrisinho me deixa preocupado. — Heylel
esfregou os olhos. — Sossegue, irmão, você já brincou demais.
— Quando voltar para casa eu descansarei, agora vou
aproveitar que estou livre da prisão que nossos irmãos me
colocaram.
Assim que chegamos na frente do hotel, havia um corredor
para acesso dos carros. Eu entreguei a chave para um manobrista,
adentrando no saguão com meus irmãos lado a lado.
Havia seis relógios marcando fuso-horário de grandes
cidades dos continentes. Aqui eram duas e meia da manhã, mas em
Nova York eram nove e meia da noite, portanto cedo demais para
dormir.
— Vou tomar um banho e descer para o bar.
— Eu vou dormir. — Razhiel empurrou o cabelo para trás. —
Tenho que enviar um projeto muito importante lá pelas sete da
manhã. Preciso descansar pelo menos duas horas antes de finalizar
os cálculos.
— E você, Heylel?
Diga não, irmãozinho...
— Se não notou, as pessoas estão me encarando demais e,
como eu não estou a fim de segurar o seu temperamento, eu passo.
— Deu de ombros. — A não ser que você os ignore como eu o faço.
Olhei brevemente no hall de recepção e, de fato, as pessoas
encaravam meu irmão com certo asco. Era óbvio que eu não ia
conseguir segurar a onda.
— Pois é. — Ele deu um meio sorriso. — Parece que você é
o único com disposição para continuar.
— Minha disposição nunca acaba, talvez, quando eu estiver
morto... — Deixei no ar.
Razhiel resmungou algo ininteligível quando entramos no
elevador. Heylel sequer me encarava, mas notei que não gostou
muito do que eu disse.
— Relaxa, eu pretendo vagar pela Terra por muito, muito
tempo. — O olhei pelo espelho do painel, ele me encarava com um
ar sombrio.
— Eu vou descer com você — disse, assim que chegamos no
nosso andar.
Respirei fundo, considerando que o fato de eu ter hesitado
em sair daquele prédio em chamas, e Heylel ter notado que minha
cabeça não estava das melhores, havia se tornado um ponto de
discussão entre nós dois.
Ele conhecia o meu segredo, sabia como eu estava mais
louco que o de costume e havia tomado para si a missão de ser a
minha maldita sombra.
— Até breve. — Razhiel entrou no quarto dele, deixando-nos
a sós no longo corredor acarpetado.
— Gabriel, não temos falado muito sobre o “problema” que
você tem. — Fez aspas com as mãos. — Então, se eu vejo que há
problema, vou estar por perto, independente da sua vontade ou não.
— Claro, você é o Sentinela, nunca dorme ou descansa.
Heylel se aproximou e eu precisei olhar para cima para que
conseguisse encará-lo nos olhos.
— Não quando meu irmão considerou suicídio dois meses
atrás.
Suas palavras foram como um soco, deixou-me sem ar por
um momento devido a crueza e veracidade que havia ali. Eu não
pensei em acabar com a minha vida, digo, pensei, mas o negócio
era muito mais complicado do que eu poderia explicar.
Era uma sensação de sentimento, ou melhor, era a ausência
do sentimento que não ter Roman me causava.
Desde que eu havia sido adotado, cada maldita atitude que
tive ao longo dos anos, imaginava como ele iria reagir. Bem, fui um
filho da puta feliz por ter esse propósito enquanto ele esteve vivo.
Agora, eu não sabia como explicar aos meus irmãos que não
havia propósito para mim, que a Ordem não era suficiente e que por
isso buscava sanar minhas necessidades arriscando minha vida
para que, de algum modo, fosse mais fácil suportar tudo que meu
pai levou consigo quando morreu.
Era isso.
E eu nem podia dizer em voz alta, pois todos eles também
sofreram com a perda, Heylel mais que todos nós, porque ele se
sentia culpado pelo ocorrido.
— Irmão...
— Gabriel, não comece. — Heylel franziu o cenho. — Eu sei
que há muito mais do que você meramente nos conta e permite
enxergar. Mas eu tenho fé que, seja lá o que esteja atravessando,
vai passar e logo mais estará aí explodindo as coisas alegremente.
— Bastardo — ri baixinho.
— Até lá, eu vou ser o suporte. — Meu irmão passou a mão
no cabelo moicano. — Eu já te disse isso.
— Controle de danos. — Afastei-me. — Sei.
— Entenda, não estou menosprezando o que você sente, ou
resumindo toda história do que aconteceu única atitude que, eu sei,
foi impensada. Mas, quando você começa a se arriscar mais que o
normal no seu trabalho e nas missões, a pensar demais como se
livrar desse vazio que te consome, eu sei que vai achar razoável
quando chegar à conclusão que acabar com tudo é uma boa opção.
— Ele olhou para algo além de mim. — Vai parecer sedutor, e, às
vezes, é muito.
Cada palavra me golpeou de um jeito diferente, porque era
verdade. E se ele falava com tanta propriedade era porque já devia
ter passado pelo mesmo que eu vinha passando.
— Como seguir adiante então?
— Propósito. — Sorriu. — Você é um general, Gabriel, o
melhor Incendiário que a Ordem tem em décadas, conseguiu chegar
num patamar que apenas nós, os Demonidhes, alcançamos. Acha
mesmo que não tem pessoas que desejam ser você? Que se
inspiram em você? Olhe o que faz, você é mais do que apenas um
propósito.
Sentindo meu peito doer, não pude dizer que, para mim, não
bastava.
— Eu vivi metade da minha vida com o propósito que nosso
pai me deu. Agora, nada faz sentido.
— Então faça de nós o seu propósito, como eu faço. —
Acenei, não conseguindo encará-lo. — Vou lhe fazer uma pergunta,
quero que avalie e pense sobre o assunto.
— O quê?
— Qual você imagina que seja o propósito de Rafael e de
Lysander, e por quê?
— A família e a Ordem, porque foram moldados para isso.
— Exato, como você também foi. — Ele apertou meu ombro.
— Como todos nós fomos. Você está puto com Draikov por ele ter
seguido sua vida e nos deixado.
— Sim.
— Mas, irmãozinho, ele ainda está aqui para que possamos
vê-lo, abraçá-lo ou dizer tudo que pensamos de seu abandono. —
Heylel me olhou de cima. — O que você queria fazer tornaria tudo
definitivo e, se quer minha opinião sobre isso, é bem pior que o
abandono de Draikov, porque nos tira qualquer possibilidade de
recomeço, ainda que seja aos trancos e barrancos.
Foi aí que entendi por que Rafael e até mesmo Lysander
sempre voltavam a receber Draikov, mesmo que ele os magoasse
continuamente. Era porque o bastardo estava aqui e porque ele era
família, quer queira ou não.
— Eu vou tomar um banho, nos encontramos no bar em meia
hora.
Balançando a cabeça, eu neguei. Meu irmão não
demonstrava qualquer coisa e eu sabia que ele estaria em meu
encalço para garantir que tudo permanecesse sob controle.
— Eu vou sozinho, quero encontrar alguém antes. —
Esfreguei a cabeça. — Vou apenas beber um pouco, conversar e
depois vou para cama.
Sua resposta foi me encarar e eu deixei que ele percebesse a
verdade em meus olhos. Estava tudo bem, pelo menos por
enquanto ou até quando eu fosse confrontado pela escuridão que
rondava minha mente dia após dia.
— Tudo bem, mas, irmão, estou aqui para qualquer coisa que
queira fazer. — Ele deu de ombros. — Até esconder um corpo.
— Bastardo louco. — Ergui o punho e ele bateu.
Quando entrei no meu quarto fui recebido pelo frio. Ali
mesmo, fui retirando as roupas, o relógio de diamante e as
abotoaduras. No boxe da suíte, coloquei a água gelada, numa
tentativa de relaxar a velha tensão que nunca saía dos meus
ombros.
— Porra. — Repousei as mãos no ladrilho, deixando que a
água escorresse por minhas costas, e, de certa forma, lavasse todo
mal-estar impregnado na minha alma. — Um homem como você
não pode achar que uma metáfora seja solução para alguma coisa.
— Balancei a cabeça, rindo.
Fechando os olhos, ergui a cabeça, deixando que a água
fizesse seu trabalho de lavar aquela sensação de que Heylel
sempre tocava perto demais da ferida.
— Pensei que conseguia disfarçar o suficiente.
Foi um erro da minha parte, meus irmãos não eram homens
comuns, como eu também não era.
Desligando o chuveiro e não me sentindo nem um pouco
relaxado, parei um momento diante do espelho. Meus olhos
pareciam injetados, as muitas cicatrizes no braço e no peito
excluíam definitivamente a imagem de despreocupação que eu
tentava passar.
Eu era filho de Roman, irmão de homens implacáveis e
mortais. Eu era dono de mim e não ia sucumbir sem antes queimar
cada maldito filho da puta que fazia parte da Cöntrax.
Vingaria meu pai e depois eu pensaria em algo.
— Heylel tem razão. — Apressei-me para fora do banheiro.
Por um momento, olhei ao redor do quarto. O silêncio que me
recebeu foi tão significativo que incomodou. Apressando, comecei a
me vestir, não gostava de quietude, porque, em toda a minha vida,
sempre pressagiava problemas.
Era por isso que preferia viver imerso no caos, com a
adrenalina batendo no teto e a excitação me deixando dopado.
Agora mesmo não ia encontrar nada que fosse instigante ao ponto
de me animar, então ia buscar algo que fosse.
Caso desse errado, a solução era beber até que o álcool me
anestesiasse o suficiente para que eu conseguisse dormir. Mas
antes de ver se descobria onde estava minha cantora, iria ver como
estava a festa de Draikov.
Decerto, resultaria em divertimento ver sua cara de idiota
apaixonado.
— Vamos ver. — Eu me aproximei do corredor do salão de
festas, ele estava reservado.
— Senhor, você tem convite? — um segurança questionou
quando viu que a minha intenção era entrar. — Apenas convidados
tem acesso a esta ala do hotel.
— É mesmo? — Sorrindo, enfiei as mãos nos bolsos, a
camisa de seda caía folgada no meu corpo, deixando claro que eu
não estava vestido adequadamente.
— O bar do hotel fica do outro lado. — Indicou o hall do hotel.
— Ele é aberto vinte e quatro horas.
Draikov estava saindo e, assim que me viu, seu olhar
iluminou. Encarando-o por instantes, decidi que não fazia sentido
estar ali. Apenas dei-lhe as costas, indo embora.
— Irmão. — Escutei o chamado, mas o ignorei. — Gabriel,
espere.
Draikov apertou meu braço, fazendo-me parar. Devagar, olhei
para a sua mão segurando-me firme, depois o olhei.
— Você vai amassar a minha camisa. — Estreitando os
olhos, ele me soltou, dando um passo atrás. — Boa noite, Jason.
— Gabriel...
Ele sabia que havíamos cruzado a linha. O casamento e suas
mentiras tornaram frágeis o elo que nos fazia irmãos, ainda que os
outros não considerassem isso, e que, sozinho, eu pudesse titubear,
a presença dele me fazia ter muita raiva.
— Nenhum de vocês veio para a festa. — Sua voz soou
baixa, humilde.
— Sorte de termos vindo para a cerimônia. — Ele encolheu
como se houvesse sido golpeado. — Claro, levando em
consideração que não fomos convidados.
Uma careta acompanhou a palidez que acentuou sua pele.
Eu não me importei com o que sentia.
Era acostumado a bater sempre que levava qualquer golpe.
Ele deveria saber disso.
— Gabriel, eu...
— Vai tentar justificar o injustificável? — Virei-me totalmente
para ele. — Você não usou o nome que nosso pai lhe deu, renegou
tudo que lhe foi dado. Você rejeitou o legado que mantém a
memória do nosso pai viva. — Recostei-me na parede, com as
mãos nos bolsos da calça, aparentando um relaxamento que estava
longe de sentir. — Sua mulher sabe da sua história? Ela sabe que
você foi um pobre coitado, que teve a vila sequestrada e que viu sua
mãe e irmã serem estupradas e mortas? Ela sabe que você foi salvo
e amado e que, na primeira oportunidade, abandonou a família
quando ela mais precisou de você? Ela sabe que, quando as coisas
ficarem difíceis, você tende a fugir como um grandessíssimo
covarde?
Seus olhos foram acendendo e a postura mudando. Com
prazer vi que a raiva foi aparecendo, era isso que eu queria. Pelo
menos, sua raiva era verdadeira; o resto, compunha a mentira do
personagem que Jason Strauss criara.
— Você não sabe nada — rosnou, totalmente agressivo. —
Você não faz ideia do que eu precisei fazer para...
— Ir embora foi a desculpa mais ridícula e mal formulada que
você poderia ter inventado e nosso pai nunca aceitaria tal coisa
porque, se tinha algo que Roman jamais seria, era a porra de um
covarde.
Eu me aproximei até estar perto o suficiente para notar
pontos dourados nas íris de seus olhos.
— Você só pensou em si mesmo, Heylel estava morrendo e
você foi embora.
— Ele estava fora de perigo, eu me cerifiquei de que... —
Draikov passou a mão na cabeça raspada — ele estava bem...
— Desculpas, desculpas e mais desculpas. — Respirei
fundo, travando a mandíbula para evitar berrar a verdade. — Heylel
estava morrendo, agonizando todos os malditos dias e chamava por
nós! Mas você não estava lá. Você não estava, porra! — Senti algo
queimando meu peito, era como se pegasse fogo de tanta raiva. —
Eu te odeio pra caralho e, se morresse, não me importaria, afinal já
não faz parte das nossas vidas mesmo.
Draikov cambaleou, seus olhos umedeceram e eu não senti
remorso. Ele havia ferido a todos nós, merecia ser ferido também.
— Você não faz ideia — ele disse erguendo o queixo.
— Nem vou saber, deixei de me importar com você.
Ele não disse nada, mas eu não tinha a porra de um filtro.
Estava enraivecido.
Sabia que era o momento de ir embora, para que eu não
falasse mais nada que o machucasse, só que não o fiz. Tinha por
hábito ferir quem me feria e Draikov — Jason, seja lá como ele
queira ser chamado — era a minha ferida aberta.
Estava na hora de ser fechada.
— Nosso pai morreria de tristeza por saber que você se
casou e não pretendia convidar os irmãos; pior, que você não usou
o nome dele, que foi lhe dado com todo amor. Você não renegou
apenas o passado, mas toda a importância de quem foi Roman
Demonidhes na sua vida. — Respirei fundo. — Você seria a
prostituta de qualquer bastardo, foi Roman quem lutou por você, seu
grande pedaço de merda. Mal-agradecido do caralho!
— Não diga isso, meu irmão. — Lágrimas escorreram dos
seus olhos. — Eu amo nosso pai e vocês. Mas eu precisava de algo
que me desse sentido, um propósito. — Ele pareceu desesperado
para colocar para fora, era como se fosse um segredo. — Nosso pai
me deu um propósito e, quando ele morreu, eu senti que perdi tudo.
Desta vez, quem cambaleou fui eu, atingido em cheio pelo
golpe que eu nem vi chegando. Recusava-me a deixar-me enredar,
ele sabia que Roman era tudo para mim, não ia aceitar que usasse
isso agora.
— Jason...
— Draikov para você. — Sua voz soou embargada. — Eu
não rejeitei meu passado, mas estou tão enterrado no presente, que
não sei como misturar os dois. Perdoe-me, irmão, perdoe-me. — Ele
me abraçou, eu não retribuí. — Eu amo você, Gabriel.
— Você ama a ideia de nos ter. Você disse que ia ficar e não
ficou, para você é muito fácil virar as costas e partir. — Fechei os
olhos. — O legado de nosso pai é tudo que nos resta e você o
rejeita continuamente.
— Eu não quero fazer parte da Ordem, não quero o
dinheiro...
— Bastardo de merda! — Empurrei-o. — O legado do nosso
pai somos nós, seu idiota! — Ele se encolheu. — Roman dizia que
éramos a melhor parte dele, mesmo que não fôssemos de sangue.
Ele nos escolheu e isso foi um divisor de águas, porque em nenhum
momento ele nos tratou diferente. Éramos seus filhos, amados como
tal.
Respirando fundo, senti o peito estranho. Era como se
houvesse uma dor completamente nova causando uma pressão
quase insuportável. Precisava me afastar dele, do ódio que sentia
quando imaginava o quanto meu pai estaria triste com as atitudes
de Draikov.
— Um dia, você vai querer voltar e notará que nenhum de
nós vai estar ali. Eu estou renunciando a você e Lysander não
pretende fazer o mínimo esforço. — Draikov engoliu em seco. —
Estar aqui foi o último ato que nós fizemos para caminhar em sua
direção, qualquer esforço, a partir de agora, terá que ser da sua
parte. — Esfreguei a cabeça, os cabelos espetaram minha palma.
— Nem Rafael poderá intervir desta vez.
— O que aconteceu com você?
— Você notou que eu raspei a cabeça apenas agora? —
Negou, mas então eu tive vontade de rir de sua expressão
preocupada. — Eu quase morri, nenhuma novidade. — Dei de
ombros, afastando-me para não ter que receber, com dois meses de
atraso, sua maldita preocupação.
De nada adiantaria agora.
— Irmão...
Parei um momento, mas não o olhei.
— Pois é, diferente de Draikov, Jason não se importa com
nenhum de nós. — Sorrindo, completei: — Talvez, em relação a
você, John tenha acertado. Uma pena que nosso pai não o tenha
ouvido.
Não esperei para ouvir sua resposta, segui meu caminho em
direção ao bar. Havia desistido de encontrar Jenny, o que eu
precisava agora era de um barril de álcool.
Ou dois.
11
Jenny Monroe

Eu decido sua vida...


As últimas palavras de John, antes que eu embarcasse,
seguiam martelando em minha cabeça. Durante as mais de dez
horas de voo, a voz dele continuava imperando acima da minha
própria voz e dos meus pensamentos.
Ele havia se cercado de garantias para que continuasse
tendo controle sobre mim, ainda que eu estivesse do outro lado do
oceano ele tinha o trunfo.
Não tinha me permitido ver o estado da minha mãe. Desde
que tudo ocorrera, eu não fazia ideia de como ela estava e isso
apenas agitava a ansiedade, que parecia me comer a cada mísero
minuto do dia.
Tinha que confiar nele, no maldito causador de todos os
meus problemas, e apenas isso já era suficiente para que o mal-
estar me dominasse. Como poderia convencer a mim mesma que
estava tudo bem? Eu acreditava na minha ilusão, de que minha mãe
estava bem.
Era por isso que estava aqui, viajando sozinha pela primeira
vez na minha vida. Durante anos sonhava em como seria abrir as
asas e voar, mas até isso John tinha o poder de macular. Eu podia
enxergar o que ninguém poderia. As correntes invisíveis que me
prendiam ao meu carrasco, as mesmas que me levariam de volta a
ele.
— Isso ainda vai ficar pior. — Olhando para o copo de bebida
à minha frente, não sabia como poderia lidar com o que iria
acontecer em breve, no relógio marcavam três e meia e às quatro
David voltaria.
E eu não teria como fugir outra vez.
— Meu Deus... — Fechei os olhos, sentindo o corpo
estranho.
Havia tomado os meus remédios e deveria estar longe da
bebida, mas precisava de ajuda, de algo que entorpecesse minha
mente para todo o resto. Podia jurar que o som do tique-taque do
relógio estava alto o suficiente para que eu pudesse ouvi-lo da
minha mesa.
Por um breve momento tinha acreditado que pessoas boas
viveriam o tempo todo em desgraça, mas a cada novo dia a
realidade me mostrava que sim, era possível. Saber o que ia
acontecer me deixava tão doente, que a sensação de estar
permanentemente suja me consumia.
Era tudo tão injusto que a vontade de gritar queimava minha
garganta pior do que aquela bebida horrível que eu me obrigava a
engolir. Não me conformava que meus sonhos virassem pós, e que,
quando sonhei em ter minha primeira vez, seria porque eu havia
decidido.
Eu sonhava com alguém, um herói que chegaria num cavalo
branco e que me amaria. Eu sabia que seria ele, pois, no primeiro
olhar, ele arrancaria meu fôlego, deixando-me sem chão e sem voz.
Ele seria o meu príncipe, o responsável por levar embora o
frio, pois seus braços me aqueceriam e eu não ia mais temer os
monstros que povoavam meus pesadelos, pois ele acabaria com
todos.
Deus... Antes que eu pudesse me controlar, senti uma
lágrima escorrer, pois os sonhos com meu cavaleiro estavam se
tornando a cada dia mais distantes. Ele estava sumindo junto com a
esperança que eu me forçava a ter.
— Pare com isso. — Me obriguei a parar de chorar como
uma idiota, lágrimas não resolveriam nada. Elas nunca o fizeram.
Agitando os ombros, empurrei mais um gole de bebida. Não
sabia há quanto tempo estava naquele bar do hotel, mas, desde que
David havia sido obrigado a correr para o festival por problemas
graves com sua equipe, eu não suportei ficar no quarto reservado
para nós dois.
Só de pensar sentia a bílis queimando. O jeito que havia me
olhado fez com que eu me sentisse um pedaço de carne exposto.
Sabíamos que eu estava ali para ser o brinquedo que ele usaria até
se fartar.
Ainda assim, eu teria que empurrar para baixo do tapete a
vergonha, o horror e tudo mais, porque precisaria ir até o final.
— Dois dias passam rápido. — Respirei fundo, encolhida na
cadeira, como se isso pudesse me proteger. — Vai ser rápido
quando a primeira vez passar, não vai doer mais, você pode fingir
que não está ali e imaginar que o homem em cima de você não é
um monstro.
Eu não vou lutar. Fechei os olhos e baixei a cabeça. Havia
imaginado o que poderia fazer para amenizar a situação.
— Ficarei parada — em tom confidencial, comecei a me
acalmar. Precisava estar preparada. — Não vou revidar nenhum
insulto ou agressão. Ficarei como morta, imóvel, sem emitir
qualquer som.
Ele estava esperando uma coisa, mas receberia outra
completamente diferente.
Fechando os olhos, terminei de beber tudo que havia naquele
copo. Eu não deveria beber nenhum tipo de bebida alcoólica por
causa de todos os meus problemas de saúde, mas não me
importava. O líquido âmbar, caindo como uma pedra no meu
estômago, era o menor dos meus problemas. O que eu precisava
era de entorpecimento, apenas isso.
Com sorte eu não ia me lembrar de nada depois, ou quem
sabe poderia ficar tão bêbada, causar problemas naquele hotel
cinco estrelas e pronto, tudo seria resolvido.
— Acabar com a imagem de moça tímida, exemplar que John
construiu. — O mero pensamento de que os planos de John
poderiam dar errado me aqueceu de um jeito que a bebida não foi
capaz. — Ser a cantora problema, que ninguém gostaria de ter por
perto.
Mas então ele me faria pagar caro, ou a minha mãe, e eu
seria a culpada.
— Preciso de mais uma bebida.
Desviando a atenção do meu copo vazio, estava pronta para
chamar o garçom quando meus olhos foram atraídos para a porta
de entrada do bar. Todos os meus pensamentos sumiram, deixando-
me gloriosamente em branco.
— Meu Deus! — Meu queixo deveria estar no chão, porque
aquele era o homem mais inacreditavelmente bonito que eu já visto
em toda a minha vida.
Seu cabelo era ruivo, só que eu podia jurar que havia uma
aura de fogo ao seu redor. Alto, ele era muito alto e musculoso. A
blusa de seda preta que estava usando, parecia cair por seu corpo
como uma carícia.
Ele só podia ser um supermodelo com aquele cabelo quase
raspado e a barba e todo um conjunto de perfeição que eu poderia
descrever numa música que o enalteceria.
— Minha nossa! — Minhas bochechas esquentaram, ele
lembrava algo selvagem, mas que também possuía um toque de
refinamento.
Todas as conversas cessaram, pois sua presença dominou o
lugar como se ele carregasse a essência de algo primal, destruidor
e tão profundamente intrínseco que me afetou dos pés à cabeça.
Nunca havia reparado em um homem como estava fazendo agora,
nunca havia sentido meu corpo esquentando só de olhar para
alguém.
“É a bebida fazendo efeito”, disse a mim mesma, tentando
me convencer.
Como se percebesse que estava sendo comido com os olhos
por todas as pessoas naquele bar, ele começou a caminhar como se
fosse dono do lugar, a inclinação sutil da cabeça não escondia nada
da expressão sisuda que o deixava ainda mais bonito e misterioso.
Quando ele passou próximo a mesa que eu estava, baixei a
cabeça, encolhendo ainda mais no casaco para não ser pega em
flagrante.
— Não encare... — Fechei os olhos, sentindo-me quente de
vergonha. Ele era lindo demais, meu Deus do céu! Respirei fundo,
apertando as mãos nervosa.
Eu tinha certeza de que essa era a única chance na vida que
eu teria para admirar um homem sem temer represálias. John
morria de ciúme, tanto que chegava a desligar a TV se notasse que
eu estava encarando demais um ator.
Por alguns minutos, enquanto estava ali, eu poderia ser a
garota livre que sempre sonhei em ser, fingiria que minha vida não
era uma merda e que eu não ia ser a prostituta de um homem vil
para satisfazer os caprichos de outro homem vil.
Olhando para o relógio, decidi que usaria o tempo que me
restava para fugir da realidade.
— É isso. — Devagar, mudei um pouco na cadeira,
permitindo que meus olhos vagassem pelo bar.
Quando o encontrei, ele estava com os olhos fixos mim e o
impacto foi tanto que roubou meu fôlego. Agitada, acabei
derrubando o meu copo, sentindo-me tremer inteira.
— Meu Deus! — Encostei as mãos na bochecha, notando o
calor espalhando.
Será que ele estava chateado por eu ter encarado?
Mordendo o lábio, comecei a torcer os dedos, não esperava ser
pega em flagrante. Em minha defesa, eu não fui a única que ficou
olhando quando ele chegou. Todo mundo o fez, e ele sabia, portanto
era impossível que não estivesse acostumado com toda essa
atenção.
— Já chega — soltei o fôlego, não querendo ter problemas.
Recorrendo a saída dos covardes, comecei a vasculhar a
minha bolsa como se ela tivesse a resposta para o porquê de meus
olhos ansiarem correr para aquele desconhecido e por que eu
estava agindo desta forma.
Eu não encarava homens, não sentia o corpo amolecendo
como se eu estivesse fraca por causa da presença de um. E isso
nada tinha a ver com meu coração moribundo, que havia acelerado
sutilmente a mera visão do deus grego.
— Você viu aquele ruivo? — A moça que estava na mesa ao
lado inclinou em minha direção.
— Sim, eu vi. — Senti a nuca esquentando e a sensação de
estar sendo observada ferroava-me. — Acho que é meio impossível
que ele passasse despercebido. — Coloquei uma mecha de cabelo
atrás da orelha, envergonhada por toda situação.
— Concordo. — Ela sorriu para mim. — Ele é alguém
importante, a gente consegue perceber pela confiança com que ele
adentrou aqui, como se fosse dono do lugar.
— Ele é o dono do hotel? — Não queria parecer uma idiota
ignorante, mas era isso o que eu era.
Estava na minha primeira viagem sozinha, enquanto tentava
enganar a mim mesma que era uma garota livre, fingindo que daqui
a pouco não vou entrar — caminhando com minhas próprias pernas
— no inferno.
— Não é, mas se comporta como se fosse. — Seu tom
pareceu-me confidencial. — Quando estava fazendo check-in, ele
estava chegando. Você precisava ver o grupo, é bem impactante.
Foram tratados como realeza. São estrangeiros, pude perceber pelo
sotaque.
Ele tinha um jeito de poderoso mesmo. O modo como chegou
realmente era o de alguém que estava acostumado a estar no topo
da cadeia alimentar. Mas ele não precisava alardear sobre isso, eu
pude perceber que era algo natural dele.
— Talvez ele seja um dos convidados do casamento que está
havendo no hotel — cogitei, sentindo-me um tanto incomodada, pois
um formigamento estranho me fazia sentir uma sensação esquisita
rastejando por minha pele.
Não era ruim, mas eu nunca havia sentido nada igual.
“Seria a bebida fazendo efeito?”, questionei-me, um tanto
ansiosa.
— Querida, se ele fosse convidado do casamento, você acha
mesmo que ele estaria sozinho no bar do hotel? — Havia um ar
deboche em seu tom, ela me olhava como se eu fosse burra por
cogitar tal coisa.
Ela tinha razão, um homem como aquele não ficaria sozinho.
— Hoje era um excelente dia para ser solteira — suspirou,
olhando fixamente para um ponto atrás de mim. Era onde ele
estava. — Deus, eu queria muito estar sozinha aqui. — Ela sorriu,
eu vi suas bochechas corando.
Provavelmente ele estava devolvendo a encarada dela.
— Não o encare! — murmurei, desconfortável.
Antes que ela pudesse responder, seu acompanhante voltou.
O homem possuía um sorriso acolhedor e parecia bem mais velho.
— Vamos, querida? — O tom carinhoso não passou
despercebido. Ele ergueu a mão para ela, ajudando-a levantar-se da
mesa. O suspiro que ele deu quando enlaçou a cintura dela, foi...
fofo. — Você precisa de algo? — Olhou para mim. — Quer que a
escoltemos até seu quarto? Está um pouco tarde para ficar sozinha
no bar do hotel.
Sua preocupação me deu vontade de chorar. Havia
suavidade no olhar dele, gentileza. Apesar de conviver com John,
eu conseguia diferenciar muito bem as coisas.
Nem todos os homens eram como John, e nem todos eram
como aquele diante de mim. Eu sabia que existiam homens incríveis
por aí, eu só não os conhecia. Mas minha mãe sim, e ela falava do
meu pai com todo amor.
E isso fazia toda diferença.
— Eu estou bem, obrigada. — Aqueceu meu coração que se
importasse comigo.
— Meu marido é um cavalheiro. — A mulher sorriu, apoiando
a mão no peito dele. Observando enquanto se afastavam, eu
compreendi que a linguagem corporal de ambos conversava.
Aquele homem não parecia ser capaz de machucá-la quando
estivessem sozinhos.
Eu queria saber como era ser assim.
Poder me expressar sem medo de surras e ossos quebrados.
— Ele pode estar atuando — cogitei, com os olhos presos no
casal que ia embora. A verdade era que não dava para acreditar no
que acontecia em público.
Sem querer, meus olhos foram para o relógio acima do bar,
eram três e meia da manhã. O tempo estava passando rápido
demais, logo David chegaria e eu teria que ir com ele, para aquele
quarto de hotel...
Vai passar rápido... A sensação de frio voltou, o mal-estar
também. A ansiedade fez meus pensamentos se embaralharem, e
pela primeira vez, desde que tomei meus remédios, o meu coração
acelerou além do normal.
Sozinha, lutando para manter a respiração regular, rezei para
que ninguém notasse. Desta vez, havia levado mais tempo para que
me sentisse normal de novo.
— Está piorando. — Fechei os olhos, concentrando-me
apenas em mim. Depois, quando me senti calma o suficiente,
levantei-me e fui até o bar.
A bebida provavelmente me faria sentir pior, mas era a única
via de escape que eu tinha ao alcance da mão. Fugir não ia
funcionar, isso só deixaria John furioso e David também.
— Okay. — Respirei fundo. — Eu posso fazer isso.
Esperava com todas as minhas forças conseguir ficar bêbada
o suficiente para que tudo parecesse menos ruim. Eu tinha pouco
tempo, e isso só me deixava mais louca e angustiada.
— Uísque, por favor. — O barman me encarou parecendo um
tanto reticente. — Sou maior de idade se quer saber.
— Identidade, por favor.
Por um momento achei que ele estava fazendo algum tipo de
piada, mas não. Pela expressão, percebi que estava falando muito
sério.
— Mas eu estava bebendo ali na mesa. — Franzindo o
cenho, apontei para o lugar. — Eu não estou mentindo.
Ele ficou me encarando, nem um pouco disposto a colaborar.
Balançando a cabeça, não vi sentido algum ele desconfiar de mim.
— Eu tenho dezoito — falei baixo.
— Por favor, mostre sua identidade.
— Tudo bem, só um instante. — Joguei os cabelos para trás
enquanto vasculhava a minha bolsa. — Aqui, tenho dezoito. — Ele
conferiu os dados, depois sorriu.
— Eu peguei o turno agora, senhorita. — Piscou um olho,
justificando sua implicância. — Portanto, não me culpe por estar
apenas seguindo regras. Aqui não podemos cometer nenhum
deslize.
Isso me pareceu plausível, afinal ele estava fazendo seu
trabalho, seguindo regras. Eu entendia disso, pois também vivia em
meio às regras que não podia quebrar.
— Tudo bem, eu te entendo. Mas agora você pode me dar o
que eu pedi?
Ele acenou, pegando um copo e o colocando na minha
frente. Quando foi servir o uísque, um homem se aproximou,
tocando na garrafa e o impedindo de despejar o líquido no copo.
— Um Martini para ela — o desconhecido disse, sentando-se
no banco ao lado do meu. — Prazer, me chamo James Graham. —
Ele estendeu a mão, eu o encarei.
Talvez fosse alguém trabalhando para John, e estivesse aqui
com o intuito de me testar. Estreitado os olhos, eu o avaliei por
alguns instantes.
Sua postura era confiante demais, como se estivesse
esperando que eu aceitasse sua mão e a bebida que ofereceu.
John não ia te deixar sozinha em Londres!
A sensação de que havia olhos em mim ficou ainda mais
forte. E isso só aumentava a certeza de que John havia mandado
seus capangas me vigiarem.
— Eu escolho minha própria bebida. — Olhei para o barman.
— Eu fico com o uísque, obrigada.
— Querida, eu só quero ajudar. — O homem se inclinou para
mim. — Seja boazinha.
Apertando as mãos, eu tentei não demonstrar medo.
Por que ele achava que eu estava disponível? Ele está
testando? A dúvida me fez ter mais certeza de que ele estava aqui a
mando de John.
— Se você estiver aqui por causa do meu pai — não escondi
o nojo ao me referir daquela forma —, desista. Você não vai
conseguir nada!
O homem riu sem graça, se aproximando ainda mais. Parecia
que éramos íntimos, ou que, no mínimo, nos conhecíamos, e isso
começou a me deixar ansiosa. Não gostava de sua abordagem, de
como me olhava.
Não me fazia sentir bem.
— Querida, não me importo se você vai beber, eu só quero
que seja gentil comigo. — Sorriu, seu mau hálito, misturado ao
álcool, embrulhou meu estômago.
— Você poderia se afastar? — Empurrei seu ombro,
esticando-me para trás. — Por favor, se afaste.
— Vamos lá. Não seja grosseira. — Ele segurou meu braço,
ignorando o que eu havia dito. — Podemos ir para um lugar mais
confortável.
— Não, nós não podemos. — Tentei soltar meu braço. —
Você está me machucando. — Ele apertou com força, puxando-me
para ele. — Me solta!
— Não se faça de difícil. — Sua boca torceu, a expressão
mudou. — Eu sei que esse não quer dizer sim. — Olhei para o
barman, ele estava de costas, mexendo em alguma coisa. — Venha
comigo, vamos ficar mais confortáveis e...
O homem parou de falar abruptamente. Seus olhos
encararam algo atrás de mim. O sorriso fácil em seus lábios foi
apagando conforme um tom pálido ia colorindo sua pele.
— Odeio que toquem uma mulher sem a permissão dela. —
Senti um arrepio correr por todo meu corpo. — Ouvi dizer que existe
uma punição para esse tipo de conduta.
O cheiro gostoso de perfume bom e me abraçou.
— Ela está sozinha, cara, eu estou...
— Não está mais. — Lutei contra o impulso de ofegar,
estranhamente, sentia como se pudesse derreter naquele banco. —
Finalmente te encontrei, Beag[4].
Deus... era ele. O estranho irresistível com cara de viking.
Ele estava mesmo ali, pertinho de mim, envolvendo-me com
seu calor. Eu deveria me afastar, mas contra todos os meus medos
e instintos, inclinei-me contra ele.
Uma mão grande pousou em minha barriga e alguma coisa
dentro de mim achou isso muito, muito certo.
12
Jenny Monroe

As minhas pernas estavam tremendo tanto que eu tive


certeza de que, se precisasse caminhar agora, não ia conseguir.
— Sentiu minha falta, querida? — Sua boca roçou meu
cabelo e o jeito com que ele falava fez eu sentir que partes muito
íntimas do meu corpo palpitavam.
Eu nunca havia sentido nada remotamente parecido, e a
sensação não era ruim, na verdade, era muito surpreendente.
Isso deve ser uma ilusão, como sonhar acordada!
Estupidamente minha cabeça foi baixando e eu vi as veias saltadas
em sua mão e antebraço, as cicatrizes que percorriam sua pele,
como uma renda cruelmente tecida.
Que Deus me ajudasse, mas eu me senti atraída da pior
maneira.
— É a bebida. — As palavras soaram inaudíveis, e eu
agradeci aos céus por isso.
Meu corpo reagia a sua proximidade de um jeito sensível, e
que me deixava consciente de nossas diferenças. Era como se com
ele eu não precisasse ter medo, e isso era o que deixava tudo mais
estranho.
A experiência que eu tinha com homens, resumiam-se a
John, e pessoas como ele, então eu deveria estar com os dois pés
atrás, mas não estava, sequer havia uma partícula de medo em
mim.
Para o bem ou mal, essa sensação era quase como
experimentar liberdade, e se eu estivesse me iludindo, também não
importava. Só queria mais disso, do jeito protetor com que seu corpo
grande e forte abrangia o meu, do calor que me rodeava.
Esse estranho mexia com minha cabeça e não estava me
importando com isso.
— Você não está com ela, amigo. — A voz de James chamou
minha atenção, seus olhos encaravam-me com malícia. — Eu
cheguei primeiro, vá procurar outra para você. — Quando James
tentou me tocar, meu viking segurou sua mão.
— Toque-a outra vez. — Sua voz sou baixa, com o tom de
ameaça. — E eu vou arrancar o seu braço.
Para provar seu ponto, deixou o homem decidir, soltando-o.
Os segundos se passaram, prendi a respiração, temerosa de que
pudessem brigar.
— Não vim procurando briga. — Erguendo as mãos, James
deu um passo atrás.
— Bom garoto, esperto e obediente. — Eu sentia a vibração
da voz dele às minhas costas e eu estava gostando. — Saia, ela
está acompanhada.
Deus... A voz dele era melodiosa como o fogo crepitante. O
sotaque levemente marcado, apenas fazia com que eu sentisse que
poderia derreter como uma mocinha de filme de romance.
Emudecida, observei o homem que me abordou indo embora.
O meu “salvador” tirou a mão da minha cintura, eu precisei conter o
impulso de puxá-lo de volta. Ele se colocou diante de mim.
— Você parece perdida. — Ele apoiou o corpo no balcão.
De perto, era ainda mais bonito. Os traços do rosto,
marcados e elegantes.
— Não estou... perdida. — Minhas mãos tremeram, estava
tão nervosa que, quando a bebida chegou, eu dei um bom gole,
engasgando-me como uma grande idiota desajeitada. — Isso é tão
horrível.
— Você não está acostumada. — Ele me encarava sem um
pingo de vergonha. — É a primeira vez que bebe uísque?
Os olhos dele eram os mais bonitos que eu já vi na minha
vida. Verdes como as folhas na primavera, e salpicos de dourado
aqui e ali. Na verdade, seus traços eram surreais. Tão impecáveis,
que nem o fato de haver algumas marcas rosadas que pareciam
queimadura, diminuíam isso.
Onde ele poderia ter machucado o rosto? Com certeza
deveria ser um homem que vivia de luxos e pessoas o servindo.
— Não esperava que você fosse tão pensativa.
— Eu sou um pouco. — Coloquei uma mecha atrás da
orelha. — Tenho o hábito de remoer os meus assuntos o tempo
todo.
Ele acenou, arqueando o canto da boca no que poderia ser
um quase sorriso.
— Percebi, mas então você não pretende responder a minha
pergunta, Beag?
— Beag? — Franzi o cenho, tentando pronunciar a palavra.
— Como aquele cachorro?
Ele jogou a cabeça para trás rindo com vontade, e me
deixando desfalecida porque não estava preparada para como o
meu corpo reagiu a isso.
— É Beag, não Beagle — ele me corrigiu, com o sorriso
aumentando.
— Você não está me xingando, não né? — perguntei
baixinho, morta de vergonha, porque ele não parava de olhar para a
minha boca.
Eu não sabia como reagir a total atenção que ele me
dispensava.
— Não.
— O que Beag significa?
— Primeiro a minha pergunta, então a sua. — Ele piscou um
olho e eu precisei segurar no balcão para não cair no chão, sequer
lembrava o que ele havia perguntado.
Não fazia o menor sentido o descontrole que meu corpo
havia mergulhado. Era como se ele houvesse apertado todos os
meus botões, deixando-me com uma enorme pane no sistema.
— O que você perguntou? — A frase soou tão idiota, que eu
me arrependi assim que as palavras saíram da minha boca.
Ele me fazia sentir muito estranha, e durante toda nossa
interação não houve nada em suas atitudes ou palavras que
pudesse ter me deixado incomodada.
Ele só parecia genuinamente curioso, e prestando atenção
em mim como alguém interessado apenas em conversar. Não tinha
experiência em diálogos sem que eu estivesse na defensiva. Nunca
havia tido a chance de conversar com um homem.
John não deixava.
Ele não está aqui! Uma voz gritou dentro da minha cabeça e
acenei, respirando fundo para não parecer louca de pedra.
— Por que está bebendo algo tão forte se claramente não
está acostumada? — Arqueou a sobrancelha, avaliando-me.
Sua curiosidade era mais do que eu esperava. Eu não sabia
como lidar com esse tipo de atenção. O olhar dele era tão gentil,
havia somente curiosidade, nada de cunho sexual.
De certa forma, isso foi muito revigorante.
— Estou bebendo isso porque... eu... tenho que... — As
palavras enrolaram na minha boca, a verdade era tão vergonhosa
que jamais teria coragem de lhe contar.
Duvido que entenderia.
— Não precisa dizer, se isso a incomoda. — Ele ergueu dois
dedos. — Vodca. — O barman colocou um copo ao seu lado, quase
como se estivesse esperando. — A você. — Ele bebeu tudo de uma
vez.
Não o acompanhei, estava ocupada demais vendo seus
lábios abraçarem a borda do copo, o movimento da garganta. Ele
não fez careta, era como se fosse a vodca fosse água.
— O que foi, Beag? — O meio sorriso estava de volta. —
Você está me olhando com os olhos arregalados. Não precisa ter
medo de mim.
— Não tenho, quero dizer, não estou com medo de você.
Se ele soubesse que medo era a última coisa que estava
sentindo se surpreenderia.
— Desculpe, se pareço um tanto idiota, mas é que você é
impressionante. — Assim que as palavras saíram, eu cobri a boca
com as mãos, o rosto esquentando ainda mais. — Eu estou meio
tonta, desculpe.
— Por que bebeu ou por que está frequentemente
esquecendo de respirar? — Ele deu uma risadinha, que me pareceu
uma carícia. — Você está prendendo a respiração de novo. — Ele
deslizou as pontas dos dedos pelo meu pescoço. — Respire, Beag.
Hipnotizada, tudo deixou de existir, era somente ele e nada
mais. Alheia ao mundo à nossa volta, fiz como ele pediu. Quando
puxei o fôlego e soltei, meu corpo inteiro pareceu mais leve.
Um sorriso completo foi seu jeito de dizer que estava
satisfeito.
— Por que me chama assim? O que esse nome significa? —
Lambi os lábios, ele acompanhou o gesto.
Pela primeira vez, eu percebi que havia interesse em seus
olhos.
Em resposta a isso, um frisson foi se instalando na minha
barriga. Na verdade, todo meu corpo estava reagindo a sua
proximidade, o cheiro, o som da voz. Sentia os seios mais pesados,
formigando. A vontade de apertar as coxas para aliviar o palpitar na
minha intimidade estava quase insuportável.
Nunca havia sentido meu corpo tão vivo desta forma, tão
energizado.
Será que isso era culpa do uísque que finalmente estava
fazendo efeito?
— Você parece um pouco distante, quer que eu vá embora?
— Ele estava tão relaxado que eu o invejava.
Queria essa tranquilidade para a minha vida.
— Fique! — A resposta rápida o agradou, pois se aproximou
um pouquinho. Como se estivesse esperando minha reação.
Como se fosse puxada por um fio invisível, inclinei em sua
direção, perdendo-me em seus olhos incríveis.
— Posso? — Ele ergueu a mão e eu acenei.
Contive o impulso de gemer quando seus dedos se
entremearam em meus cabelos. Ele trouxe uma mecha para si,
esfregando-a entre os dedos. Encarando-me, ele a levou até o nariz,
respirando o cheiro.
— Como eu imaginava que fosse.
Seja lá o que isso significasse, sua expressão mudou para
algo que eu não saberia descrever, mas que aumentava aquela
sensação esquisita na minha barriga.
— Você não respondeu minha pergunta — murmurei, sem
importar que eu parecesse estar caindo em cima dele.
— Você não responde as minhas. — Estávamos tão perto,
que eu podia ver alguns fios loiros no meio da barba ruiva. — Beag,
nunca te disseram para não brincar com fogo?
Era como se ele quisesse me avisar de algo, mas eu já
estava além de ouvir. A dose de uísque não foi capaz de me
esquentar, mas este homem sim, e ele fazia isso basicamente
respirando.
— Nunca brinquei com fogo. — Mordi o lábio, sentindo uma
ansiedade completamente nova misturada com o sentimento que
ele me fazia sentir, livre. — Sou covarde demais, porém, e se um dia
eu quiser?
Seus olhos vaguearam por meu rosto, ele foi se aproximando
devagar, a minha respiração ficou presa na garganta quando seu
perfume me abraçou.
Ele vai me beijar! Meu primeiro beijo de verdade com um
homem que eu posso escolher. Uma emoção incrível me dominou,
fechei os olhos, esperando que ele fizesse a caridade, dando-me
algo para eu levar comigo quando fosse embora.
— Eu posso te queimar — sussurrou, mordiscando minha
orelha e me fazendo engolir um gemido. — Se você me deixar, é
claro.
Quando ele se afastou, eu estava pronta para acenar como
um cachorrinho e seguir com ele apenas para que esse sentimento
bom continuasse me embalando.
Durante boa parte da minha vida, eu estive nas mãos de um
lunático com síndrome de rei. Eu nunca havia tido segurança para
estar confortável no meu papel de mulher, e agora que eu estava eu
queria que...
— Jenny, finalmente eu te encontrei! — A voz de David soou
como um murro na minha cabeça, que me trouxe de volta para a
realidade a qual eu pertencia.
Aquela languidez gostosa acabou como se nunca houvesse
existido. Em seu lugar, a vergonha voltou com força total.
Sequer podia olhar para David ou para o meu viking.
Não conseguia encarar minha realidade quando estava
diante de um homem que não me tratava como um pedaço de
carne.
— Você não parece que quer ir com ele, você quer? —
perguntou, cruzando os braços, avaliando a situação. Eu não
encontrei minha voz, mas quando o encarei, não pude evitar que
meus olhos implorassem por ajuda.
Meu tempo havia acabado.
Era horrível admitir, mas eu estava implorando
silenciosamente para que aquele homem não me deixasse. Ainda
que ele buscasse apenas por diversão, estar com ele foi a melhor
coisa que aconteceu comigo nos últimos anos.
Não queria ter que ir embora e entregar minha virgindade a
David, porque eu não era escolha minha.
— Vamos, Jenny! — A mão pesada repousou no meu ombro
sem a menor gentileza.
O nojo que me dominou foi tão grande que estremeci,
repudiando o toque daquele homem.
— Venha comigo agora! — o tom de comando não admitia
recusas da minha parte, eu peguei a bolsa, descendo tão devagar
do banco que qualquer pessoa notaria a resistência que eu
impunha.
Os olhos verdes do meu viking estreitaram, encarando David
de um jeito tão profundo, que o homem tirou a mão do meu ombro
como se algo o queimasse.
— Não gosto do modo como a você a trata, senhor... — A voz
dele soou baixa demais, porém havia uma nota de agressividade
que não passou despercebida para mim, tampouco para David.
Ele se adiantou, estendendo a mão, que foi prontamente
ignorada. Meu estranho, que estava de braços cruzados,
permaneceu assim.
— David Smith Barack, CEO da Universal Record’s, e você
é? — Nada poderia ser mais constrangedor do que ficar com a mão
estendida, o meu viking não disse seu nome. David precisou
recolher a mão. — Estou gerenciando o festival de música de
Londres. Esta é Jenny Monroe, uma aposta para este ano. Se nos
der licença, ela precisa descansar, amanhã o dia será bem
cansativo para nós.
— Hoje, quer dizer — David foi corrigido, afinal, já eram
quase quatro da manhã.
Por que ele chegou mais cedo? Por que estourou a minha
bolha?
Respirei fundo, sentindo meu peito começar a doer e os
batimentos cardíacos enlouquecerem.
— Sim, o fuso horário me pegou. — Escutei o suspiro. —
Vamos, querida, temos muito o que fazer.
Balancei a cabeça sutilmente, não pude evitar que meus
olhos se enchessem de lágrimas. O pavor começava a rastejar outra
vez por meu corpo. Era como se uma camada finíssima de gelo
fosse cobrindo cada centímetro de pele, deixando-me com a
sensação opressora de frio interno.
Quando eu estava prestes a seguir meu caminho, uma
mulher com a camisa do Staff de uma banda gerenciada por David
se apressou em nossa direção. Ela estava pálida demais e eu tive
certeza de que havia mais problemas a caminho.
Obrigada, Deus, por me conceder mais alguns minutos.
Lutando contra a respiração errática, não queria que eles
notassem que eu estava tendo problemas com meus batimentos.
A doença do meu coração era um segredo.
— Senhor, perdoe-me, mas aconteceu algo que requer sua
atenção imediatamente.
David me soltou, mas desta vez ele não foi muito longe. O
que significava que não importava o que viria a seguir, ele não me
deixaria para trás.
— Você parece relutante em ir com ele. — Cruzando os
braços, o meu viking começou a sondar.
— É porque eu estou — murmurei, torcendo a alça da bolsa.
Ele ficou me encarando por alguns preciosos instantes. Aos
poucos, um sorriso misterioso foi se desenhando em seus lábios.
— Você se importaria se ele se sofresse um acidente?
— Não! — respondi apressada, por mim David poderia
morrer. Eu não me importava.
Não seria minha culpa, afinal eu vim até aqui, estava
cumprindo minha parte. Se ele não era capaz de cumprir a dele —
porque o destino estendeu-me a mão — não era problema meu.
— Eu preciso fazer algo, mas não quero fazer, então se ele,
por alguma razão, estivesse “impossibilitado” de se mexer durante
todo final de semana, seria muito bom para mim. Eu vou embora na
segunda, então.
Mordi o lábio com força, temerosa de ter falado demais e
parecer uma psicopata por estar querendo, ou melhor, desejando
ardentemente que, nos minutos seguintes, algum milagre
acontecesse e David enfartasse.
Para piorar a situação, o pavor de sentir que estava perto
desse plano absurdo ser consumado, a sensação de desmaio veio,
e isso era um dos piores sintomas da minha cardiopatia.
Pontos pretos começaram a piscar diante dos meus, olhos, e,
se não fosse o estresse diário e a convivência com esses sintomas,
eu não conseguiria disfarçar.
— Você está bem?
— Sim, apenas um pouco tonta. — Ele poderia imaginar que
era da bebida.
Ele se inclinou em minha direção, dizendo baixinho, para que
apenas eu pudesse ouvi-lo:
— Então você deve me escolher. — Ele estava sorrindo.
— Escolher você como?
“Será que ele era capaz de notar a minha ansiedade?”,
questionei-me, vendo o quanto estava tranquilo.
— Escolhendo. — Deu de ombros. — Então, eu posso
resolver o seu problema.
Suas palavras me deixaram emudecida por alguns instantes.
Ele estava me dando poder para fazer algo que eu não podia, e me
permitindo escolher. Era a primeira vez que eu poderia decidir, e
fazer algo pensando apenas em mim.
Ele não sabia, mas havia acabado de mudar tudo.
Este homem lindo, altivo, elegante e com um poder que
vibrava ao seu redor estava me deixando escolher meu destino.
Naquele dia, o poder fora depositado na minha mão.
Por uma fração de segundo o encarei, buscando qualquer
coisa que me dissesse que estava mentindo, mas não. Havia
confiança demais no modo como mantinha o queixo erguido e os
olhos fixos em mim.
Ele não temia o que poderia acontecer. Ele era forte o
bastante para me salvar.
— Eu escolho você. — Decidir nunca foi tão fácil.
Ele acenou como se já soubesse o que eu diria. Mas a sua
expressão pareceu-me tão indiferente que me deixou nervosa.
— Até breve. — Ele passou por mim, caminhando em direção
a saída do bar.
Aonde você vai? Queria gritar, mas não pude, então apenas o
observei indo embora levando consigo a esperança que havia
criado.
Eu escolhi você...
David se aproximou outra vez.
— Você vai na minha frente, e não fuja, ou vai ser pior. —
Sozinha eu fui em direção ao saguão do hotel. Não havia ninguém,
além de um recepcionista, atendendo ao telefone. Disfarçadamente
procurei pelo meu viking, mas não o avistei em lugar algum.
Será que eu entendi errado?
Assim que entrei no elevador, não apertei nenhum botão, e,
pelo horário, ninguém o chamou. Pouco tempo depois, David entrou.
— Por que você me fez esperar? Por que não me esperou no
quarto? — Não respondi. — Está me ouvindo, vadia? — David
apertou meu pulso com força, empurrando-me grosseiramente,
enquanto o elevador subia. — Eu perdi tempo indo te procurar no
quarto, você vai me pagar por isso. Não te trouxe aqui para se
divertir. — Ele me olhou de um jeito horrível. — Você está pálida,
parece que está doente, melhore essa cara, ou vai se arrepender!
— Não me sinto bem.
— Foda-se, se você desmaiar eu vou te foder assim mesmo,
não me importo se está inconsciente. — Ele segurou meu queixo,
apertando. — Eu sempre tenho o que quero, e desde que eu
coloquei os olhos em você...
— Me solta! — O empurrei, mas não tive sucesso em fazê-lo
se afastar.
Entramos no elevador, a essa hora não havia quase ninguém
por ali e os funcionários não iriam vir em meu socorro. David era
alguém importante, pelo modo como se comportava, não precisava
saber que ele perseguiria qualquer um que se metesse.
Mesmo havendo uma festa, para minha total infelicidade, não
havia ninguém para entrar naquele elevador.
— Você parecia íntima daquele homem, onde o conheceu?
— Não te interessa. — Minhas palavras foram silenciadas por
um tapa.
Quando as portas do elevador abriram, a luz do corredor
estava acesa, mas não havia ninguém. Mesmo assim percorri o
olhar de um lado ao outro, buscando por ajuda.
— Anda logo! — O desespero foi aumentando conforme
fomos nos aproximando do quarto. Meu corpo tremia inteiro, minhas
pernas estavam moles. Sentia como se estivesse prestes a
desmaiar, o horror golpeando cada vez mais forte.
— Por favor, não faça isso. — Ergui as mãos, lutando para
não chorar.
Aquele mantra de ficar quieta, não revidando qualquer
agressão, não estava funcionando. Sentia apenas horror e vontade
de correr para o mais longe possível.
— Não seja idiota! — David abriu a porta, empurrando-me
para dentro, então a fechou com um chute, começando a arrancar
as roupas.
— David, você sabe que isso é errado, podemos fechar o
contrato e eu te darei a maior porcentagem da sua vida. Posso
assinar um documento te dando 100% dos direitos autorais de todas
as minhas músicas, pelos próximos dez, quinze ou vinte anos, se
achar melhor. — Ergui mãos outra vez, tentando negociar. — Por
favor, não faça isso, eu estou te implorando, você não tem uma
filha? Não faça isso comigo. Não me machuque desta forma.
Ele parou um momento, como se estivesse ponderando.
— Eu tenho músicas que podem te dar um bom lucro, eu sou
maior de idade e posso assinar sem que John saiba. Você prepara o
documento e eu assino aqui mesmo. Tudo bem? Por favor.
A esperança que nasceu com sua pausa morreu quando ele
começou a rir.
— John disse que você faria isso. — Ele balançou o dedo. —
E não traga a minha filha para a conversa. Se ela fosse uma
vagabunda como você, eu mesmo resolveria o problema. Agora, tire
o casaco, eu quero te ver. — Neguei, com as mãos erguidas. — Tire
o casaco, porra!
Não conseguiria nem se tentasse.
— Então deixe que eu mesmo tiro. — Deu aquele sorriso de
tubarão. — Lute contra mim, adorarei subjugar você. — Ele apertou
a virilha. — Estou ansioso para foder sua boceta virgem enquanto
implora que eu não faça isso.
Deus do céu...
— Por favor, não...
Ele agarrou meu casaco puxando-o. Eu estava com várias
camadas de roupa, dificultando o acesso ao meu corpo. Pensava
que iria me ajudar, dando-me tempo.
— Acha mesmo que isso vai me impedir? — A raiva brilhou
em seus olhos, quando notou a blusa de manga comprida, o suéter
e a calça jeans.
Ainda havia a segunda pele, as meias. Naquele momento, eu
vi que não ia conseguir ficar quieta, como esperava ficar. Não ia
tentar amenizar a situação.
Meu instinto era de lutar, eu nunca aceitaria ser estuprada
pacificamente, mesmo sabendo que minha mãe estava correndo
risco eu não podia ficar quieta. Ele até poderia conseguir o que
pretendia, mas eu lutaria até que não restassem forças em meu
corpo.
Como eu pude acreditar o contrário?
— Isso será interessante. — Ele atacou, derrubando-me
antes mesmo que eu pudesse perceber sua intenção.
Freneticamente comecei a lutar, batendo em seu peito, rosto,
usando os joelhos, dificultando qualquer ação de sua parte.
— Vagabunda! — Ele bateu no meu rosto, quando eu o
arranhei. — Você vai me pagar.
O breve instante em que minha consciência vacilou, ele
conseguiu me subjugar. Ele ajustou o peso em cima de mim,
impedindo-me de respirar direito.
— Não consigo... respirar — arquejei desesperada, ele não
se importou. — Não... — Pontos pretos piscaram diante dos meus
olhos, ele curvou sobre mim enquanto eu sacudia os braços e as
pernas aleatoriamente na tentativa de conseguir retirá-lo dali.
A sensação que tinha era de que havia uma tonelada em
cima do meu peito, esmagando meus pulmões, fazendo-me
contorcer em desespero.
— Vou tirar sua virgindade aqui no chão. — Sua mão apertou
a minha garganta. — Depois vou comer seu cu. Te farei sangrar,
vadia.
Estava quase apagando, quando ele saiu de cima de mim e
arrancou a minha blusa. Não pude reagir, enquanto respirava
profundamente, ele me deixou sem a parte de cima da roupa.
— Vamos nos divertir, você vai gostar. — Ele estava
começando a puxar minha calça jeans quando alguém bateu à
porta. — Merda!
David congelou. Eu não pude me mexer, ele estava
apertando a minha garganta outra vez, deixando-me desorientada.
— Não faça nenhum som.
As batidas continuaram insistentemente, até que David
praguejou.
— Fica quieta ou eu prometo que ligarei para o seu pai e
contarei tudo. Sua mãe vai pagar caro. — Quando ele se levantou,
eu o desobedeci, não ia poder fugir do quarto, então só me arrastei
até o sofá, encolhendo-me o máximo que conseguia.
Eu já havia passado por muita coisa convivendo com John,
mas nada se comparava ao que acontecia ali.
De longe era pior do que ter um osso quebrado por causa de
uma surra ou das promessas que, até então, eram apenas isso,
promessas.
Observando David escancarar a porta, o ouvi perguntando:
— Quem está aí?
Antes que ele pudesse reagir, um punho se chocou contra
sua cabeça. David caiu no chão como uma pedra.
Ele havia sido nocauteado.
Meu Deus!
Uma figura grande o suficiente para preencher a soleira da
porta apareceu, a luz do corredor o iluminava enquanto ele
encarava o homem no chão e o cutucava com o pé.
— Você veio. — Minha voz tremeu, sua imagem embaçou. —
Você veio mesmo.
— Pegue as suas coisas e saia daqui. — Desta vez, eu tive
medo. Sua voz estava sombria demais, nada daquela gentileza de
outrora.
— Não consigo me mexer — soluçando, eu tentei destravar
os braços que abraçavam meus joelhos, mas foi impossível.
Era como se meu corpo estivesse entrado em modo de
segurança. Erguendo as mãos, ele veio para mim, parando apenas
para recolher as minhas peças de roupas no chão. A todo momento,
ele demonstrava que não estava ali para me atacar, e sim em
missão de paz. Pelo menos, no que se referia a mim.
Ele baixou na minha frente.
— Eu vou tocar em você, mas vai ser para vestir isso. —
Acenei quando mostrou a segunda pele e o suéter. — Okay, agora
relaxe um pouco, você está segura, ninguém vai te machucar, eu
prometo. — Ele não olhava para o meu corpo, seus olhos estavam
fixados nos meus, passando-me tanta confiança que eu fui
relaxando, até ser capaz de soltar os braços.
Tudo ficaria bem. Ele havia dito e eu acreditei em cada
palavra porque aquele estranho não precisava me ajudar, tampouco
se importar com os meus problemas. Mas ali estava ele, tratando-
me como nenhuma outra pessoa havia tratado.
— Eu vou te passar a blusa agora.
Ele foi cuidadoso, evitando que seus dedos roçassem em
meu corpo. Quando dei por mim, estava vestida outra vez.
— Você consegue fechar sua calça?
— S-sim, consigo. — Meus dedos tremiam tanto que a tarefa
de enfiar o botão na abertura pareceu a tarefa mais difícil.
— Okay, vamos acabar logo com isso. — Ele me levantou e,
com uma destreza impressionante, fechou minha calça.
Por um instante, eu não conseguia acreditar que aquele
homem que conhecia há poucos minutos estava realmente me
salvando. As pessoas não faziam isso para mim, mas ele disse que
ia me ajudar e ajudou mesmo, sem questionar nada.
Não fazia ideia de quem ele era, mas, no decorrer de todos
os anos que me lembrava, ninguém se importou o suficiente para
fazer o que ele estava fazendo agora.
— O-obrigada. — Minha voz quebrou. — Obrigada. — Eu o
abracei, mas ele não retribuiu. — Obrigada por ter me salvado.
Por ter se importado...
Um gemido baixinho chamou nossa atenção, David estava
despertando.
— Você precisa ir, agora. — Não havia nenhuma fração de
calor na voz dele, apenas uma frieza incomparável.
— Jenny... — A voz de David me fez arrepiar de pavor, ele
estava se mexendo.
— Mova-se! — meu viking rosnou baixo, puxando algo do
bolso. — Aqui, ala presidencial, quarto 752. Irei encontrá-la em
breve.
Não pretendia lhe fazer perguntas, ainda que eu devesse.
Havia decidido aceitar a boa oferta sem pensar em possíveis
consequências. Ansiosa para fugir daquele inferno, só parei para
recolher meu casaco e pegar a mala antes de me apressar em
direção a saída.
Pretendia ir embora sem olhar para trás quando sua voz me
fez congelar:
— Você não tem medo do que vai acontecer com ele? —
Havia diversão em sua voz.
— Se você ouvisse metade do que eu ouvi, você não me faria
essa pergunta. Então não me importo, pode fazer o que quiser com
ele. — Minha resposta pareceu satisfazê-lo.
— Feche a porta. — Antes de soar o clic o ouvi dizer: —
Agora somos eu e você.
No corredor, uma vontade enorme de rir e chorar começou a
me dominar. Sentia uma coisa estranha borbulhando dentro de mim,
junto com uma tremedeira horrível. Minhas pernas estavam moles,
mal sustentando meu peso.
— Apresse-se, Jenny — exigi a mim mesma, obrigando-me a
colocar um pé na frente do outro.
Um sentimento horrível de que só estaria salva se saísse
daqui foi o impulso que eu precisava para dominar o medo e o que
me incapacitava.
O meu viking havia feito o que prometeu, eu precisava me
ajudar também. Estava me sentindo meio louca quando cheguei ao
elevador, e basicamente espanquei o botão para que as portas se
abrissem.
Quando ele começou a subir, eu senti um alívio tão grande
que os tremores pioraram. Uma moleza enorme começou a rastejar
por meu corpo, a sensação de que estava perdendo as forças
deixando-me em pânico.
— Não posso desmaiar aqui, não posso. — Comecei a
trabalhar a respiração, devagar, constante.
Dentro e fora... Dentro e fora...
Um... dois... três...
— Por favor, Deus, me ajuda. — Apertei o peito, lutando
contra o mal-estar.
Fechando os olhos, me encolhi no canto do elevador,
usando-o para me sustentar. Então, abracei-me o mais apertado
que pude, acalentando-me como fiz por tantas vezes ao longo dos
anos.
Os planos de John foram frustrados, e ele jamais saberia que
a culpa foi minha. Quando eu voltasse para casa, ele não poderia
ter certeza se David foi atacado antes ou depois de ter me
estuprado, esse seria um segredo que eu levaria para o resto da
minha vida.
Por ora, desfrutaria do imenso alívio que estava sentindo, e
da certeza de que havia pessoas boas no mundo dispostas a ajudar
estranhos.
Desta vez, havia sido meu dia.
O dia que eu tive muita sorte.
13
Jenny Monroe

Estava parada há tempo demais, porém não havia nenhuma


grama de força em meu corpo para que eu saísse do elevador.
Sentia-me paralisada, em pânico de sair e me deparar com David ou
John.
Mesmo que eu soubesse racionalmente que isso seria
impossível, não conseguia reagir diferente.
— Você está bem? — Uma voz grave e profundamente rouca
chamou minha atenção.
Engolindo o pavor, eu ergui a cabeça apenas para dar de
cara com um homem enorme, todo tatuado, e com uma cicatriz que
recortava sua face com crueldade. Em seus olhos de duas cores,
havia ausência de emoção.
Ele era aparentemente assustador, mas alguma coisa me
disse que não precisava tê-lo, e isso era um absurdo, pois tudo nele
gritava pura violência.
A mais profunda e real obscura violência, capaz de fazer
homens grandes ajoelharem-se de medo. Só que agora, naquele
instante, sua postura não era agressiva e eu conhecia muitos
homens com posturas assim.
— Moça? — A carência de emoção estava entremeada com
a beleza de sua voz.
Ele parecia entediado, talvez um pouco incomodado também
por eu estar ali atrapalhando seu caminho.
— Eu posso esperar o próximo elevador. — Deu um passo
atrás, como se estivesse acostumado demais com as pessoas
emudecidas em sua presença.
— Desculpe. — Minha voz soou tão baixa que eu tive certeza
de que ele não poderia ter ouvido, mas, ao invés de se afastar, ele
inclinou a cabeça aceitando meu pedido. — Não consigo sair daqui,
estou paralisada, morta de medo...
— De mim? — Agora havia diversão.
Era se para ele aquilo não fosse uma novidade e eu não
queria que ele me interpretasse errado.
— Não, de você não. Desculpe, eu estou confusa, mas... —
Engolindo em seco, me considerei uma idiota por falar tudo errado.
— A verdade é que estou em pânico de sair e encontrar alguém que
me machuque.
Sua imagem embaçou, eu sequei os olhos rapidamente.
— Desculpe, senhor. — Por mais que eu não quisesse
chorar, não conseguia parar.
Era para eu estar fora dali, entretanto, o pavor do que poderia
ter acontecido ainda me paralisava.
— Não se preocupe com isso, neste corredor ninguém vai te
machucar, não comigo aqui — ele disse tranquilamente. — Qual é o
seu andar? Irei escoltá-la até o seu quarto. — Ele cruzou os braços,
e isso o fez parecer ainda maior.
— Estamos na ala presidencial certo? — Ele acenou,
estreitando os olhos coloridos. — Estou com um amigo... — Minha
voz foi morrendo. — Ele me...
— Não tenha medo de mim — suspirou, e eu percebi que
havia suavizado um pouco o tom de voz.
Talvez para parecer mais gentil. Não sabia, mas havia
pessoas capazes de ir mudando a voz, ele conseguia fazer isso com
facilidade.
— Desculpe-me. — Apertei-me ainda mais contra a parede
espelhada do elevador, o gigante entrou ali e as portas se fecharam.
— Não é você, sou eu.
— Tudo bem, deixe-me ajudar você. — Ele ergueu as mãos,
eram enormes e cheias de cicatrizes nas palmas. — Primeiro, eu
não vou te machucar, entendeu?
Acenei como um cachorrinho obediente.
— Estamos avançados. Agora, me diga, qual é o número do
quarto do seu amigo?
Os tremores que eu sentia eram estranhos, pois era como se
fosse algo interno e que reverberava. Isso me assustava muito
porque eu não sabia se sustentaria meu peso caso desse um passo.
Era como se estivesse sob o efeito daquele remédio que John
gostava de me dar quando me queria calma.
Ele me acalmava, porém me deixava com a sensação de que
estava tremendo por dentro e as coisas se movendo. Por causa de
seu costume em me medicar, quase tive uma parada cardíaca,
apenas por isso ele parou com seu vício de me dopar. Era isso, ou
aumentar as minhas chances de infarto aos dezesseis anos.
— O número do quarto, moça.
Sacudindo a cabeça, eu foquei nele.
— 752.
Um leve sorrisinho arqueou o canto de sua boca. Vê-lo
esboçando um pouquinho de emoção foi bom, o tornou mais
humano, fez eu me sentir mais segura.
— Venha. — Estendeu a mão. — Vou levá-la até o quarto,
você está no andar correto.
Aceitando sua oferta, me surpreendia com o quanto ele foi
cuidadoso ao me puxar. Havia tanta gentileza, em seus gestos que,
por um momento, eu pensei que ele estava testando para garantir
que eu poderia caminhar.
— Obrigada, muito obrigada — murmurei, olhando de um
lado para o outro quando saímos para o corredor da ala
presidencial.
— Não tenha medo, nada vai te machucar. Você está segura.
— Piscou um olho, e eu apertei sua mão. — A única ameaça aqui
sou eu. Se alguém tentar algo contra você, eu prometo revidar com
bastante empenho.
Ele deu dois tapinhas na minha mão, como se me
acalentasse. Suas atitudes apenas comprovaram que não dava para
julgar o livro pela capa, ele estava sendo gentil comigo, fazendo-me
sentir protegida.
— Você é segurança?
— Pode-se dizer que sim.
Seus gestos eram ponderados, tranquilos. Era como se ele
soubesse que poderia lidar com qualquer situação que surgisse.
— Chegamos. — Ele indicou uma porta. — Quarto 752.
— Obrigada — tentei encaixar o cartão, mas não consegui.
Na terceira tentativa, o gigante tomou à frente.
— Permita-me. — Ele deslizou o cartão no local e a porta
destravou. — Entre.
Obedecendo, adentrei o quarto com a minha pequena mala e
o casaco firme em minha mão como se ele fosse um escudo
protetor.
— Precisa de algo? — Ele me encarou por alguns instantes.
— Eu estou segura agora. — Sorri, levando uma mão ao
peito. — Obrigada por ter me ajudado, muito obrigada mesmo.
Ele deu um aceno curto.
— Fique bem. — Ele fechou a porta, deixando-me sozinha
em meio à escuridão.
Por um tempo não consegui me mexer, era tão atípico
receber ajuda que não estava sabendo lidar. Parecia que a ficha
ainda não havia caído e meu cérebro não conseguia processar
aquele fim de noite.
— Hoje é seu dia, Jenny. — Uma lágrima escorreu e eu a
limpei com raiva. — Hoje é seu dia.
Abraçando-me, olhei ao redor. O quarto estava escuro, mas
eu podia ver os contornos de uma sala espaçosa, de móveis aqui e
ali. Ao lado da porta, ficava um pequeno painel, eu acendi as luzes.
Odiava o escuro com todas as minhas forças. Não importava
que eu estivesse sozinha, eu sabia que os monstros andavam
escondendo-se nas sombras.
— Pare com isso. — Sacudindo a cabeça, eu fui até o sofá
da sala de estar e me sentei.
Não ia bisbilhotar, pretendia esperar meu viking. Pensar que
o veria em breve me fez sentir bem, confiante.
Mas pensamentos ruins começaram a se infiltrar.
Eu estava no quarto de um estranho, ninguém, salvo aquele
gigante tatuado, havia me visto entrar aqui.
E se ele for uma pessoa ruim? O pensamento me assustou
trazendo o medo de volta e o desejo insano de sair correndo.
— Não posso ficar aqui. — Levantei, indo até a porta, quando
segurei a maçaneta, hesitei.
Ele não me olhou de um jeito que me fizesse sentir
desconfortável, ele me ajudou. Por que iria me machucar depois de
tudo?
Eu não sabia por qual razão confiava nele, afinal, eu o
conhecia há menos de uma hora, mas a verdade era que ele me
inspirava confiança.
Homens ruins não se importam com os outros, eles não
enxergam o desespero nos olhos de ninguém, e se por algum
milagre o fazem, continuam seguindo seus caminhos, ponto final.
Mas meu viking não, ele me enxergou, me dando uma
escolha.
E eu o escolhi.
— Ele me salvou. — Respirei fundo, fomentando a certeza
em meu coração. — Ele não vai me machucar.
Um cansaço absurdo foi me invadindo ao ponto de eu me
sentir tonta. Eu me arrastei de volta para o sofá desabando assim
que encostei nele.
Um profundo silêncio me saudou e, com ele, novos
questionamentos.
— Como será quando eu voltar para casa? — Não queria
pensar nisso, mas era inevitável.
Tudo que aconteceu foi uma exceção, e na minha vida não
havia coisas do tipo. Eu sabia que, em algum momento, as
consequências chegariam, pois, com David fora da jogada, não
haveria contrato. As peças mudariam, e John teria que articular
outra vez.
Uma hora ou outra, ele iria conseguir o que queria.
— Ele vai me usar de novo. — De olhos fechados, senti as
lágrimas escorrerem.
De tudo que ele já me roubou, tirar-me o direito ao meu corpo
e me vender como uma coisa qualquer foi uma das piores. Eu havia
me livrado desta vez, mas e quando ele tentasse de novo? E
quando ele descobrisse que eu ainda era virgem? Será que ele
desistiria de me usar como moeda de troca e iria fazer o que vinha
prometendo tão abertamente?
O mero pensamento de ter suas mãos sobre mim era
repugnante. Um dia ele ia conseguir, um dia eu seria dele...
— Mas não será hoje, tampouco amanhã — solucei baixinho.
Estava em paz para chorar, para tentar fingir que minha vida
não era tão ruim e que, quando eu voltasse para casa, não
encontraria minha mãe quebrada. Nunca mais eu teria a chance que
estava tendo agora.
De estar a mais de um braço de distância de John, de saber
que não acordaria com ele por perto.
Você pode fugir...
— Nunca mais voltar para aquele inferno. — As palavras se
perderam no vazio, elas não possuíam força, apesar de alimentarem
um imenso desejo.
Ir embora significava conviver com a certeza de que minha
mãe pagaria por minha liberdade, e eu sabia — John também —
que não possuía coragem para tal coisa.
Eu odiava as minhas opções, ou melhor, a falta delas. O que
restava nada mais era que um amontoado de desespero misturado
com anseios que iam sendo sufocados todos os dias.
Nunca ia escapar de John, para isso acontecer era
necessário que um de nós morresse primeiro, e até onde eu sei, ele
era invencível.
— Maldito bastardo! — A ansiedade do que o futuro
reservava começou a me dominar. — Meu Deus, o que eu posso
fazer para mudar tudo isso?
Minha mãe seria responsabilizada se eu fizesse algo ruim e
isso me deixava com os pés e as mãos atados.
Teria que sutil, quase imperceptível em qualquer tentativa de
fuga.
Precisava de um plano perfeito, mesmo sabendo que as
chances de escapatória eram nulas.
Para onde eu iria? Como me esconder de alguém tão
poderoso quanto John?
— Pedir ajuda ao meu viking?
Ele demonstrou muita segurança em cada gesto, desde o
caminhar tranquilo, até o jeito ponderado de manter um ritmo de
diálogo. Era como se soubesse todas as causas e consequências
de suas atitudes, e, ainda assim, isso não o afetasse.
Por um breve instante, eu tive certeza de que deveria pedir
sua ajuda, mas, então, que tipo de pessoa eu seria se o colocasse
em risco? Seria mais uma culpa para eu carregar.
Todas as vezes que lutei por dignidade, minha mãe terminava
pagando caro, e eu arrependida. Como havia dito, John conseguia
reverter as coisas, fazendo com que eu me sentisse culpada mesmo
que eu soubesse não ser.
Colocar meu viking no meio dessa história seria um ato de
puro desespero e egoísmo. Jamais faria isso, retribuindo sua ajuda
com um problema sem solução.
Uma batida à porta fez com que eu pulasse. Então, a
sensação de que meu estômago estava agitado voltou, o jeito que
meu coração acelerou nada tinha a ver com a minha cardiopatia.
— Meu Deus... — Não queria sentir nada disso, mas também
não conseguia evitar.
Por quê? Por que eu não tinha medo dele? E por que eu me
sentia feliz e segura? Estou ficando louca!
Outra batida, desta vez mais forte, me fez estremecer. Por
um mísero instante cogitei não responder até ele desistir, mas a
realidade, mais uma vez, só comprovava que eu estava ferrada.
Eu era a intrusa, não tinha o direito de deixá-lo do lado de
fora de um quarto que era dele.
Antes de ir atender limpei os olhos, vestindo o casaco e o
fechando. Quando abri a porta, ele não entrou imediatamente. Ficou
ali no umbral, recostado, de braços cruzados, avaliando-me.
— Você parece arrependida de estar aqui. — Meu coração
saltou ao mero som de sua voz. Mordendo o lábio, não o respondi.
O que eu poderia dizer? Eu estava cheia de sentimentos
dúbios, feliz pelo que fez por mim, e com medo de estar me
metendo em problemas. Mesmo ele não tendo feito nada contra
mim.
— Você parece não gostar de responder as minhas
perguntas, Beag — ele disse baixinho, tão perto, que, mais uma
vez, o calor de seu corpo me abraçou. — Está arrependida? —
Sorriu, com os olhos verdes brilhando de um jeito tão bonito que eu
senti um aperto no peito.
Ele é perfeito! Parecia um anjo caído.
Cruel e ao mesmo tempo divino.
— Jenny. — Sua voz soou mais forme quando disse meu
nome, e eu gostei. Por Deus, eu gostei muito. — Organize seus
pensamentos, mas faça isso enquanto respira. Você está ficando
roxa. — Ele pegou uma mecha do meu cabelo, levando-a ao nariz.
— Respire. — Obedeci, e aquele peso no meu peito foi
desafogando. — Agora diga-me, você está arrependida?
— De quê? — Ele me confundia, meu cérebro parecia
enevoado o suficiente para eu não saber meu nome.
— Você sabe. — Sorriu outra vez, eu jurei que poderia
desmaiar. — Você quer ficar sozinha? Posso arranjar para que não
seja incomodada.
Outra vez ele estava me dando opções, deixando-me
escolher o que eu considerava melhor para mim. O gesto apenas
fomentou a confiança que decidi lhe entregar.
Ele poderia tomar a decisão, afinal este era o seu quarto,
mas estava abrindo mão disso por mim.
Se eu quisesse! Em toda a minha vida, apenas ele me deu
escolhas.
Quando eu voltasse para casa, eu não teria mais esse direito.
— Quero estar aqui. — Minha voz soou ridiculamente fraca.
— Não estou arrependida.
Ele endireitou-se, então colocou as mãos em meu rosto,
segurando-me perto. Ele era tão grande, tão bem constituído que
parecia indestrutível, era como se seus músculos fossem de aço,
envolvidos no mais fino veludo.
O mais chocante era que, apesar de ter derrubado David só
com um murro, ele me tocava com muita gentileza e suavidade.
— Você está com medo, Beag, sim, posso notar nesses seus
belos olhos agitados, na respiração acelerada. — Seu tom foi
puramente gentil. Ele tinha razão em tudo. — Não precisa me temer,
porque eu nunca vou te machucar. Você está segura comigo.
Eu era muito idiota por precisar me esforçar para segurar as
lágrimas. Eu via a verdade de suas palavras, ele estava sendo
sincero e me deixava ver isso.
— Eu estou com medo, mas não quero ter.
— Você não está errada, eu sou um desconhecido. — Piscou
um olho.
O que ele não sabia era que estar comigo o colocava em
risco, mesmo que eu dissesse a mim mesma que John não poderia
machucá-lo, aquele homem era o meu algoz, e eu sabia que, se ele
soubesse metade do que aconteceu aqui, iria caçar meu salvador
até encontrá-lo.
Jamais contarei absolutamente nada para John.
Tampouco para o meu viking, melhor acreditar que havia
resolvido todos os meus problemas, acabando com a raça de David.
— Entre. — Dei um passo para o lado e ele entrou.
O som da porta se fechando reverberou como um estrondo.
Engolindo em seco, senti as mãos gelarem. Não queria que ele
notasse o meu desconforto, a culpa por eu ser essa garota
problemática não era dele.
— Beag... — o modo gentil com ele dizia essa palavra me
deixava meio boba. Era tão estranho sentir isso, fazia eu parecer
confusa até para mim mesma. — Eu não vou te atacar, não sou um
estuprador.
— Desculpa. — Apertei as mãos, baixando a cabeça. — Eu
não... q-quero fazer parecer. Não é isso...
— Reitero minha oferta anterior. — Eu o olhei, buscando
qualquer indício de mentira, mas não havia nenhuma. — Reitero
minha oferta anterior — tornou a repetir.
Ele parecia tão seguro de si, tão tranquilo naquela postura de
invulnerabilidade que o invejei.
Queria ser forte assim, como ele.
— Você quer que eu saia?
Um breve instante de silêncio se seguiu, e eu esperei que ele
fizesse alguma coisa, mas não, ele somente esperou por minha
resposta pacientemente sem qualquer dissimulação.
John fazia muito isso, ele conseguia passar uma imagem
para as pessoas que era totalmente contrária a quem de fato ele
era.
Meu viking não, ele era transparente, pelo menos naquele
momento, estava me deixando perceber tudo que eu precisava.
— Não quero que saia. Está tudo bem. — Respirei fundo,
indo até ele e estendendo a mão. — Obrigada por ter me ajudado,
eu sou a Jenny Monroe. — Sorri, envergonhada do quanto eu
parecia ridícula.
Ele aceitou minha mão, fazendo-me estremecer. Havia
cicatrizes, sua palma era calosa e mais quente que o normal, eu
decidi que gostava disso.
Do quanto ele era alto e forte.
De seus dedos longos abraçarem os meus, da mão grande
que engolia a minha.
— Eu não sei seu nome — murmurei, um tanto desorientada
pelo sorriso misterioso que arqueava seus lábios cheios.
— E isso faz diferença para você? — Havia algo nas
entrelinhas que não fui capaz de identificar.
E eu não era inteligente o suficiente para tentar entender.
— Não faz.
Ele me puxou com gentileza, nos aproximando ao ponto de
seu perfume flutuar ao meu redor, abraçando-me carinhosamente
como ninguém foi capaz de fazer em toda minha vida.
Com ele, eu sentia uma sensação estranha de segurança, de
estar sendo cuidada. Era como se aquele homem fosse capaz de
acalentar todas as minhas dores, medo e anseios.
Quem sabe eu estivesse ficando louca, pois a cada gesto, ele
me fazia reagir, querendo estar mais perto, abraçá-lo e... e, talvez,
apenas desfrutar daquela paz que ele havia me proporcionado.
Não sabia se era correto estar reagindo a ele depois de tudo
que havia passado, mas não podia evitar e, mesmo se pudesse,
ainda não o faria. Algo muito forte dentro de mim dizia que não era
errado, pelo menos dentro daquele quarto.
— Você pensa demais. — Ele acariciou o espaço entre as
minhas sobrancelhas. — O que a preocupa tanto?
— Nada.
— Relaxa, Beag, não tem por que essa ruga estar aqui. —
Ele inclinou a cabeça, concentrado em mim. — O seu problema está
resolvido, ninguém vai te machucar, não hoje, nem pelo resto do
final de semana.
Só quando eu voltar para casa.
Não fui capaz de dizer mais nada, sentia-me hipnotizada,
presa numa teia invisível, era como se meu cérebro houvesse
desligado todos os alertas de perigo, pois algo intrínseco avisava
que, daquela vez, não precisava temer.
Afogando-me em seus olhos verdes, as coisas foram
sumindo, perdendo o sentido. Tudo passou a se resumir apenas a
ele, sua proximidade, o calor de sua mão.
Eu estava presa e não me importava. Aquele desconhecido,
de expressão ilegível e beleza arrebatadora, fez com que minhas
ressalvas evaporassem junto com o instinto de autopreservação.
— Sinto que estou caindo. — Meu coração acelerou, eu dei
mais um passo para perto dele. — Parece certo.
Busquei em seus olhos algo que me repelisse, mas o que
encontrei foi mansidão.
Nele, eu vislumbrei algo que ansiava.
Um lar.
— Eu sei que estou ficando louca. — Todo meu corpo
começou a tremer e o meu coração a acelerar tanto, que me
assustou. — Mas eu...
— Jenny, não diga mais nada. — Meu nome em sua boca
pareceu o paraíso, causou-me uma euforia boa e a vontade de
sorrir. — Não faça isso.
Sua voz me puxava por fios invisíveis, minhas mãos coçavam
para tocá-lo. Precisava que ele me abraçasse. Ele me fez desejar
estar dentro do círculo de seus braços, e, a respeito de toda
estranheza da última hora, querer isso não parecia errado.
Meu viking... Suspirei quando ele tocou meu lábio inferior,
seus olhos escureceram com um tipo de desejo que eu sabia muito
bem reconhecer em um homem.
Ele me queria.
E ainda assim, eu não tive medo. Não me apavorou perceber
o desejo de um homem por mim.
— Beag... — Sua voz soou profunda, eu inclinei para receber
o carinho quando sua mão embalou o meu rosto.
— Gosto quando me chama assim. — Busquei seus olhos,
necessitando a afirmação de que tudo isso realmente existia. — Faz
tudo parecer, certo.
Ele balançou a cabeça, como se estivesse em conflito
consigo mesmo. Então, deu um passo atrás, deixando os braços
caírem frouxamente ao lado do corpo. Percebi que estava apertando
os punhos.
Com a cabeça, ele indicou o quarto.
— Você pode ficar com ele. — Ele foi para o sofá, sentando-
se. Por um momento, eu não consegui reagir, era como se, agindo
assim, ele levasse todo calor consigo. — Se te fizer sentir mais
segura, tranque a porta. Não a incomodarei.
Recostando-se no sofá, ele esticou as pernas e cruzou os
pés. Parecia confortável e ao mesmo tempo distante, um homem
intocável.
— Descanse, Jenny, sua noite foi longa e... — Ele me olhou
de relance. — Desagradável.
Antes que eu pudesse formular uma frase adequada, ele
fechou os olhos, excluindo-me completamente.
Por um momento, não fui capaz de raciocinar, nunca havia
me deparado com nenhuma situação semelhante em que eu me
sentisse sintonizada com alguém e ela me excluísse.
Aquela sensação de leveza na barriga evaporou, e quase que
de imediato o frio me engoliu, junto com um sabor amargo que me
fazia querer me encolher.
— Por que não experimenta o chuveiro? — disse sem ao
menos me olhar. — A água quente vai te ajudar a relaxar, e, talvez,
consiga levar embora o toque daquele bastardo.
— V-você o matou? — A frase soou trêmula, mas eu não ia
me acovardar. Por isso ergui a cabeça, perguntando de novo: —
Você o matou?
Seus olhos abriram e ele me olhou como se estivesse se
divertindo.
Com o quê?
Erguendo as mãos, ele me mostrou que estavam limpas e
sem machucados recentes. Baseando-me na minha experiência, ele
poderia ter arrebentado David e não necessariamente ter usado as
mãos para fazer isso.
— Você o matou? — Tornei a perguntar.
— O que você acha? — Arqueou a sobrancelha, desafiando-
me. — Pareço um assassino?
— Não, claro que não. — Levei uma mão ao peito,
apressando-me em desfazer qualquer mal-entendido. — Não quis
dizer isso, mas é que eu não me importaria se você o houvesse
matado. Ele bem que merecia.
Na mesma hora que as palavras saíram da minha boca, o
arrependimento me fez sentir como se houvesse acabado de
cometer um erro enorme. Esperava que ele dissesse algo, mas seu
silêncio serviu para me deixar ainda mais preocupada.
Que merda eu disse, meu Deus?! Minha respiração acelerou
mais um pouco e eu precisei me esforçar muito para que ele não
percebesse o quanto eu estava ferrada.
Precisava de outra dose do meu remédio, o mais rápido
possível.
— Você parece sanguinária. — O ar divertido continuava lá.
— Devo me preocupar, Beag?
— Você não precisa, se eu representasse perigo ou fosse
alguém capaz de me defender sozinha, não teria pedido ajuda. —
Cruzei os braços, na tentativa de parecer menos vulnerável.
— Isso poderia ser divertido. — O canto de sua boca arqueou
levemente. — Você poderia me atacar. Tenho certeza de que
gostaria do meu modo de revidar.
Não soube o que responder, parecia haver muito mais
contexto em suas palavras. Eu não sentia medo do rumo da
conversa, na verdade, a única coisa que eu sentia era curiosidade.
E se eu o atacasse?
— Poderia ser muito bom.
— O-o quê? — Senti que meu corpo estava ficando estranho
de novo, pesado e, ao meu tempo, leve demais.
— Se você me atacasse.
A curiosidade estava mexendo comigo, aquele homem sabia
exatamente o que estava fazendo, além de que tinha o poder de
trancar numa caixa toda a minha realidade, tornando apenas este
momento ao seu lado, real.
E isso era preocupante demais.
Aquele homem havia me enfeitiçado, não é possível.
— Eu não mordo, Jenny. Não precisa ficar nervosa, você está
segura comigo. — Piscou um olho. — Vá para o quarto e descanse.
Essa conversa está indo por um caminho tortuoso e eu não quero
que você sinta medo de mim.
— Eu já disse que não estou com medo.
Pelo contrário. Se ele soubesse o que me fazia sentir desde
que nos conhecemos, então talvez ele tivesse medo.
— Deixa eu te contar uma coisa sobre mim. — Até me inclinei
para ouvir. — Eu repudio mentira com o mesmo fervor que você
repudia o homem que te atacou. Então, se não quer contar sobre
seus assuntos, eu não me importo, mas não minta para mim. Isso
vai romper a linha que nos mantém do mesmo lado.
Suas palavras me fizeram encolher como se houvesse aberto
as janelas da suíte para que o frio londrino entrasse. Ele tinha esse
poder de me afetar instantaneamente.
— Seja sincera, eu não estou aqui para te julgar sobre o que
quer que seja.
Ele não entenderia se eu lhe dissesse que aquela era a
primeira vez que eu me importava com a opinião de um homem.
Que o fato dele ter conversado comigo naquele bar e demonstrado
interesse apenas na conversa me fez querer estar perto dele.
Você é uma surpresa boa. Não tive coragem de dizer nada,
não era necessário. Mas queria aproveitar o máximo ao seu lado,
pois, quando voltasse para casa, tudo seria bem diferente.
— Não estou com medo de você — reafirmei, tentando soar
convincente.
Aquela situação não era culpa dele.
— Você não está com medo? — Neguei, erguendo o queixo.
— Seus olhos de corsa assustada estão me dizendo o contrário. —
Indicou o quarto. — Vá descansar, tranque a porta. Você está
segura aqui.
Ele cruzou as mãos atrás da cabeça, fechando os olhos e
encerrando o assunto.
— Precisamos conversar. — Ele não pareceu me ouvir. —
Você pode ser descoberto, tem câmeras nos corredores e...
— Não é um problema, eu já resolvi.
— Como?
— É bem melhor que você não saiba algumas partes da
informação. Então, eu estou fazendo pequenos cortes e deixando
que saiba apenas o que importa.
— E o que importa? — Mordi o lábio, apertando as mãos no
casaco para que ele não visse como eu estava tremendo.
— Que você não vai ser importunada, nem hoje, e nem
amanhã. Talvez nunca. — Ele permanecia de olhos fechados, como
se o que fizemos não fosse importante. — Suponho que seu
acompanhante tenha sofrido um acidente. Uma pena, não é?
— Sim.
A frieza com que proferiu as palavras não me deixou dúvidas
de que David havia encontrado alguém capaz de lhe enfrentar. O
único problema para mim era que meu viking pudesse responder
por isso.
Ele não teria feito nada se eu não o houvesse envolvido.
— Você o matou? — Eu deveria deixar o assunto para lá,
mas não ia conseguir.
David era alguém importantíssimo na indústria da música,
iriam investigar o que aconteceu dentro daquele hotel chique.
— Pensei que já houvéssemos passado por essa parte. —
Sua cabeça inclinou levemente, ele abriu um olho. — O que
importa? Ele não vai incomodar, não era isso que queria?
— Então você o matou — constatei, ele diria de uma vez se o
houvesse deixado com vida.
— Talvez sim, talvez não. — Deu de ombros. — Quem se
importa?
A carência de sentimento em sua voz, a indiferença me deu a
certeza de que ele já havia feito isso antes.
— Agora você tem medo. — Ele sorriu, indicando a porta do
quarto.
Daquela vez não ia refutar suas palavras, eu fiz o que deveria
ter feito desde a primeira vez que ele mandou. Fui para o quarto,
trancando a porta assim que a fechei.
— Um banho, é disso que eu preciso.
Pelo menos era o que achava, mas, ao entrar no banheiro e
me encarar no espelho, pude me enxergar como uma mulher livre.
Na segurança daquele quarto de hotel, podia desfrutar de
liberdade.
Ainda que fosse ilusória, era o máximo que eu possuía.
Quando tudo isso acabasse, eu voltaria para a minha vida,
para o horror daquela prisão governada por meu padrasto e sua
loucura.
Tudo que havia acontecido naquele hotel seria um segredo
meu.
Algo que jamais iria se repetir.
14
Jenny Monroe

A água quente massageava meus músculos ao mesmo


tempo que me deixava consciente da sensibilidade em lugares
inapropriados. Eu deveria estar dormindo, feliz por minha noite ter
acabado bem diferente, mas não conseguia parar de pensar no
homem do outro lado da porta.
— Hoje eu posso escolher — murmurei, sentindo uma
ansiedade louca me fazer tremer dos pés à cabeça.
Havia decidido que não voltaria para casa virgem, recusava-
me a permitir que John tivesse outra vez posse de algo que era
apenas meu. Eu já havia escolhido, quando me tranquei no quarto,
não precisou de mais que cinco minutos para que eu desejasse
correr de volta para sala.
Para ele.
Quero que seja o primeiro! Não me importava quem ele era, o
que fazia, se era bom ou mal. A única coisa que me interessava foi
o que ele fez por mim, como me tratou e, acima de tudo, o fato de
que eu jamais teria outra chance como aquela.
De todos os modos, terminaria na cama de um homem, mas
seria com meu consentimento, e isso fazia toda a diferença, ainda
que não fosse assim que eu tenha sonhado com a minha primeira
vez.
Não haveria romance, tampouco relacionamento. Era
somente uma noite, em que eu não seria peça de tabuleiro, e sim
um jogador.
Pensar o contrário seria um erro, dentre tantos que já cometi.
— Farei isso. — Respirei fundo, sentindo que o tomento que
me consumia desde que vim para Londres não havia acalmado.
Queria que tudo fosse diferente, o homem do outro lado do
porta não merecia ser usado como o meu grito silencioso de
liberdade. Mas era a minha única chance de escolha.
Era só isso que eu possuía. Uma única dose de liberdade,
que seria engolida de uma vez só.
— Você pode fazer isso, Jenny. — Meus olhos arderam. —
Você pode fazer. — Permiti que minhas lágrimas fluíssem, sentindo-
me culpada nem sabendo exatamente pelo quê.
Apenas quando senti que havia chorado tudo que deveria,
reuni toda coragem, para terminar o banho. Quando puxei a toalha
jogada na bancada da pia, o cheiro dele me inundou, a certeza da
minha escolha fez meu corpo estremecer, levando embora qualquer
resquício daquela sensação de estar sendo pressionada.
— Meu viking — murmurei, fechando os olhos.
Estranhamente, saber que era ele fazia-me bem.
Não me apressei enquanto secava o corpo, fiz isso como um
meio de me acalmar e não parecer tão ansiosa quando saísse
daqui. Não era justo para ele que percebesse a minha loucura, o
desespero.
Tinha certeza de que não me tocaria se cogitasse a verdade.
A minha mala estava no canto, eu a coloquei em cima da
cama, abrindo-a. Não tinha nada que eu quisesse usar, pois cada
lingerie colocada ali dentro por John foi com a intenção de agradar a
David.
Se vir essa mala, seu viking vai ter certeza de que você é
uma vagabunda. O mero pensamento me fez encolher, pois, no
meio daquele monte de calcinha minúscula e sutiã transparente,
havia um pacote de preservativos.
O ponto alto de todo absurdo!
— Obrigada por isso, seu bastardo. — Joguei o pacote na
cama, sentindo-me vingada pela justiça da situação. John havia
preparado tudo, acreditando na conclusão de seu plano.
Rá!
Desistindo de tentar encontrar dentro da minha mala alguma
peça de roupa que me fizesse sentir menos puta, comecei a prestar
atenção nas peças de roupas espalhadas no sofá.
— Pegar uma roupa emprestada na escala de coisas
estranhas desta noite, vai ser o de menos. — Dando de ombros, e
sem peso nenhum na consciência, me aproximei da mala de grife,
pegando uma camisa branca no meio das roupas bagunçadas. —
Vai ser você.
Quando a coloquei, ficou enorme. As mangas passando e
muito as mãos minhas mãos, o comprimento indo até o joelho. O
lado positivo era que cobria tudo; o negativo, eu estava parecendo
ridícula.
Por um momento encarei-me no espelho de corpo inteiro,
então comecei a desabotoar a camisa, deixando apenas um botão
fechado. Não coloquei calcinha. Buscando meus olhos, gostei de
perceber que a mulher que me encarou de volta não parecia tão
assustada.
Essa Jenny estava bem diferente da garota que chegou aqui,
e isso era muito bom, porque, pela primeira vez em muitos anos, eu
me identifiquei comigo mesma, reconhecendo-me.
Não havia medo ou ódio em meu semblante, talvez apenas
um pouco de tristeza.
— É isso. — Respirando fundo, fui até a minha mala, peguei
um comprimido do meu remédio e o engoli. Depois, sentindo que
meu coração não me atrapalharia, abri a porta do quarto.
A primeira coisa que me saudou foi o ar gelado. As portas
francesas da varanda haviam sido abertas, e ele estava ali.
Sua postura era de alguém inabalável, consciente de seu
lugar no mundo e poder.
Eu o invejei.
— Deus do céu. — Minha boca secou com a visão daquela
calça pendurada de um jeito absolutamente sexy em seus quadris
estreitos.
Não pude evitar que meus olhos o percorressem. Seu corpo
era perfeito, uma obra de arte esculpida por um mestre que
conhecia a anatomia do próprio deus da guerra.
Havia cicatrizes riscando sua pele, como assinaturas de suas
vitórias, queimaduras, cortes, tudo criava uma rede de detalhes que
gritavam violência. Mas em suas costelas havia o desenho de um
dragão — ou cobra — que mordia a própria cauda.
A coisa toda era enorme, belíssima, mergulhada em
arabescos de chamas alaranjadas que pareciam queimar
infinitamente.
É lindo.
— Você não deveria encarar um homem desta forma. — Sua
voz flutuou, acariciando-me em todos os lugares. — Você deveria
estar na cama, dormindo.
Ele cruzou os braços e continuou ali, recostado na varanda,
com as luzes da cidade às suas costas, desfrutando do frio como se
não o incomodasse nem um pouco.
— Eu não quero estar sozinha. — Me aproximei dele.
A ansiedade estava me corroendo, sentia tremores e
arrepios, tudo ao mesmo tempo. Mas não desistiria.
— Aqui está frio, volte para o seu quarto. — Suas palavras
soaram baixas.
— Não. — Parei à sua frente, e, sem permissão, ergui a mão
para traçar os contornos de suas cicatrizes.
As marcas de queimaduras arruinavam a pele de seu braço,
mas isso estranhamente o tornava mais atraente.
— Você parece invencível — murmurei, deslizando a ponta
dos dedos. — É como se nada pudesse afetar você. — Busquei
seus olhos, mas ele acompanhava o toque dos meus dedos.
Por um instante, seus braços afrouxaram, caindo ao lado de
seu corpo. Pude perceber que este era o braço mais danificado, a
cor da pele era avermelhada, os vincos causados pela queimadura
criavam traços cruéis.
Não pude evitar tocar, apesar da gentileza com que me
aproximei, temia que pudesse doer.
— Não faça isso — advertiu, quando, aos poucos, comecei a
percorrer os contornos de seus músculos do braço, subindo,
parando a meros centímetros de seu peito. — Não faça isso. — O
tom que usou foi mais baixo.
Era uma advertência que deveria me fazer desistir, mas
aquele era outro lugar e eu não precisava ter medo.
Com ele, eu jamais precisava ter medo.
— Beag...
Minha respiração se tornou mais difícil, e isso nada tinha a
ver com o meu coração. Deixando-me levar pelo momento, pela
minha loucura e por qualquer outra coisa que justificasse o que eu
estava fazendo, espalmei a mão e, por Deus, era como tocar o aço
envolto no mais puro veludo. Macio, quente, duro.
Fascinante...
— Gosto quando me chama assim. — Sorri, tomando
coragem e me inclinando para depositar um beijo suave em seu
peito.
Notando que sua pele arrepiou, um sentimento gostoso
cresceu em minha barriga. Gostava de saber que o afetava, nem
que fosse um pouco.
Eu era inexperiente, mas faria de tudo para que esse
momento fosse bom para nós.
— Não faça isso... — Seu corpo tensionou levemente.
Buscando seus olhos, reparei que estavam pesados, havia algo
obscuro ali, tão intenso, que me roubava o fôlego. — Não foi para
isso que eu te trouxe aqui. — Ele segurou meu pulso, afastando
minha mão de seu peito. — Os eventos da noite foram
emocionalmente exaustivos para você, acredito que não esteja
pensando com clareza. Volte para o seu quarto, tente descansar,
amanhã será outro dia. Um melhor, talvez.
Ele estava me rejeitando.
Desde o primeiro momento, eu soube que ele era demais
para mim. Eu não era páreo para ele, e nem me considerava boa o
suficiente, mas eu não esperava que ele pudesse me rejeitar.
Até onde eu sabia, homens não recusavam mulheres
dispostas, na verdade eles não as recusavam nem quando elas não
estavam, então por que ele não me queria?
Você é inferior, Jenny, e teve sorte uma vez na sua vida
patética. Seja realista. A verdade golpeou a minha cara porque eu
acreditava que seria fácil, digo, fácil porque ele tomaria as rédeas
quando compreendesse o que eu queria.
— Não pense muito. — Ele me afastou. — Se está fazendo
isso como forma de agradecimento, desista, não tenho interesse.
Agora, volte para o quarto.
Ainda que estivesse com o remédio que acalmava meu
coração, os sintomas da ansiedade começaram a me consumir. Era
como se uma coisa muito ruim internamente fizesse tudo silenciar,
por um breve instante a parte sensorial ficou estranha, era como se
meu corpo quisesse explodir, mas o remédio o segurava.
E isso era uma sensação horrível.
— Jenny?
Sacudindo a cabeça, tentei clarear as ideias, não podia me
perder agora, não quando eu só tinha o aqui e agora.
— Não me mande embora — pedi baixinho, sentindo
desespero ao imaginar que não era apenas o meu querer que faria
as coisas acontecerem.
A reticência daquele homem apenas comprovava que eu
havia escolhido certo, ele não estava se aproveitando, era um
homem bom. Alguém que eu desejaria conhecer se tivesse a
oportunidade.
Mas não tínhamos.
— Você não entende, garota. — R,espirou fundo, afastando-
se.
Ele parou ao lado da porta, de frente para mim. Deixando
claro que aquele lugar era dele, e eu quem deveria sair.
— O que eu não entendo?
— Eu não sou homem para você. — Era como se estivesse
tentando me alertar. — Acredite em mim, Beag, eu estou longe de
ser homem para você. — Ele esfregou o cabelo e o rosto, pela
primeira vez, notei que havia certa agitação. — Vá para o quarto,
em algumas horas amanhecerá, então tudo isso vai acabar.
Seus olhos percorreram meu corpo e eu vi o volume
alarmante entre suas pernas crescer mais um pouco. Ele poderia
dizer o que quisesse, mas seu corpo também falava.
Ele me desejava, só não ia fazer nada a esse respeito.
Eu teria que fazer, porque o havia escolhido.
“Será você, então, não me mande embora. Por favor”, rezei,
soltando a respiração devagar, numa tentativa de acalmar os
tremores nas minhas mãos.
— Vou descer para o bar. — Deu-me as costas, e eu senti
que, se ele saísse daquele quarto, tudo estaria acabado.
Balançando a cabeça, como se precisasse clarear as ideias,
ele foi em direção a sala.
— Eu escolhi você. — Ele parou, como se minhas palavras o
atraíssem.
Em suas costas também havia cicatrizes, e isso me fez
questionar que tipo de trabalho ele exercia. O homem era intrigante,
bonito e misterioso. Tudo acentuava o quanto éramos diferentes.
Ele era forte e eu fraca.
— Escolhi você quando me fez sentir o que ninguém foi
capaz.
Aproximando-me não tive coragem de tocá-lo, apesar de
querer. Precisava desnudar uma parte de mim para que ele
compreendesse o quanto era importante que não me rejeitasse.
— Não me mande embora. — Ele suspirou, virando-se. —
Não vá embora. — Ergui as mãos outra vez, sem tocá-lo. Só o faria
com sua autorização.
Ali não era sobre tomar, era sobre doar, e eu entregaria
livremente tudo que ele quisesse de mim.
— Fique comigo — pedi tão baixinho, que, por um momento,
cogitei a possibilidade de ele não ter ouvido. — Fique... — Minha
mão continuou erguida, esperando.
Até que ele buscou meus olhos e quase me derreti com o
calor que vi ali.
— Porra, Jenny! — rosnou, encarando-me como se sofresse.
— Toque-me se é o que deseja.
E eu o fiz. Espalmando as mãos em seu peito, senti as
pernas amolecerem quando ele gemeu baixinho, fechando os olhos.
Parecia que desejava isso também, talvez tanto quanto eu.
— Quero você — murmurei, antes de beijar seu peito outra
vez. Como não houve recusa de sua parte, deslizei a língua em seu
mamilo enrugado.
— Sim, caralho. — Sua voz soou grosseira, ele me puxou,
fazendo-me sentir sua ereção pressionando minha barriga.
— Quero tanto você — proferi, mordiscando-o. Ele gemeu
alto, e eu juro que senti a umidade escorrendo entre as minhas
pernas, só pelo som disso. — Me ensine o que gosta e eu farei.
Quero que seja o primeiro...
Soube que havia falado algo errado quando seu corpo ficou
tenso.
— Pare. — O que vi em seus olhos me deixou confusa, ele
parecia guerrear consigo mesmo. — Eu não sou gentil, tampouco
carinhoso. Se isso acontecer será do meu jeito. — Ele enredou a
mão em seu cabelo, segurando com força, demonstrando que não
estava brincando. — E mesmo assim você ainda me quer?
Eu não respondi, estava absorvendo suas palavras. Okay, ele
não era gentil, mas eu poderia lidar. Eu esperava que pudesse.
Ele soltou meu cabelo, afastando-se.
— Não confunda as coisas, Jenny. Não posso dar o que
procura. — Respirou fundo. — Tampouco o que merece. E o mais
importante, definitivamente, eu não transo com virgens.
Ele segurou meus ombros, afastando-me mais um pouco.
— Você me quer. — Franzi o cenho, seus gestos
confundiram-me ainda mais.
— Eu quero e muito. — Comprimiu os lábios, como se admitir
o que estava estampado em seu rosto fosse um pecado. — Mas sei
que isso é um erro, você não vai querer chamar minha atenção mais
do que já tem feito, sou do tipo bastante obsessivo e não falo isso
para te assustar, mas alertar. — Ele sorriu. — Não vai dar certo.
Então, não vai rolar.
Franzi o cenho, sem entender direito o que ele estava
falando. Nós conhecemos hoje e em vista do homem
inacreditavelmente lindo, interessante e chamativo que ele era, eu
não passava de uma pobre coitada.
Nunca chamaria a atenção de alguém como ele se a situação
não fosse tão extrema.
E sobre ser obsessivo, eu convivia com um, e ele não era
nada igual a John. Estava a anos-luz daquele bastardo miserável e
o fato de estar me recusando o colocava ainda mais distante.
— Você não me assusta. — Tentei me aproximar de novo,
mas ele se afastou.
Sua atitude me fez sentir um misto de emoções, e na
tentativa de fugir desse sentimento estranho, voltei para a varanda
inclinando-me sobre a borda, apenas para tentar respirar mais
daquele ar gelado, e não sentir como se o meu corpo estivesse
morrendo enquanto meu coração seguia batendo.
Não há mais o que fazer, ele não me quer e eu não posso
insistir. Uma risada escapou, as lágrimas arderam em meus olhos
outra vez.
Eu era patética e a minha vida uma piada cheia de ironias,
falta de sorte e muitos baldes de merda.
— Por favor, saia daí. — Eu o olhei, estava com a mão
estendida. — Não está vestida o suficiente para enfrentar esse frio.
Venha, você pode ficar doente se continuar aí. — Eu me virei para
ele, mas continuei onde estava.
— Isso não é problema seu. — Ergui o queixo, lutando para
não chorar e piorar a situação. — Você estava aqui também.
— Eu sou diferente. — Ele se aproximou. — Vamos entrar,
pedirei algo quente para você beber.
— Não!
— Beag. — Fechei os olhos, sentindo o peito aquecendo pelo
jeito carinhoso que proferia essa palavra. — Não vamos brigar,
apenas entre.
— Eu escolhi você. — Sua boca abriu e fechou, então ele
estreitou os olhos, como se houvesse atingido o limite. — Eu escolhi
você — repeti, mais alto. — Por que você não pode me escolher
também? — Não houve respostas, mas ele me deixou perceber a
indecisão guerreando.
— Jenny... — Ele passou a mão na cabeça, e eu tentei, pela
última vez.
— Por favor, me escolha também. Só desta vez, me escolha.
Pude ver quando tomou a decisão.
Antes que eu pudesse reagir, ele veio para mim. Sua mão
enredou-se em meu cabelo, segurando firme o suficiente para que
eu não conseguisse mexer a cabeça.
— Você não sabe o que isso significa para mim — rosnou
com os lábios perto dos meus. — Você não sabe onde está se
metendo, porra!
— Me escolha.
Sem aviso, ele desceu a mão entre as minhas pernas,
enquanto me encarava, desafiando-me a impedi-lo. Não fiz nada.
Deixei que seus dedos sondassem minha entrada, quando o
pressionou um pouco meu copo inteiro ficou tenso.
— É sobre isso! — ladrou, com os olhos inflamados de raiva.
— Eu não sou cavalheiro, não vou ser carinhoso porque você é
virgem. — Ele pegou minha mão, colocando em cima de sua
ereção. — E eu não sou pequeno. Se continuarmos com isso, você
vai terminar a noite chorando, porque o meu pau vai rasgar sua
boceta sem dó e vai doer pra caralho, é isso que quer?
Não, não era isso que eu queria.
Nada na minha vida fodida era escolha minha, apenas ele.
— Eu escolhi você. — Minha voz embargou. — Não importa
se vai doer. — Senti as lágrimas escorrerem. — Só fique comigo.
A cada palavra, uma parte do meu coração se partia. Sua
recusa era para me preservar, e isso apenas me dava mais certeza
do quanto eu havia escolhido certo. Nosso encontro devia ter sido
providencial.
Ele poderia estar em qualquer lugar, mas tinha que estar ali
para me salvar e para que eu pudesse escolhê-lo.
— Não coloque algo tão importante nas mãos de alguém que
não merece você. — Ele encostou a testa na minha. — Eu não sou
homem para você, é delicada demais, pequena. Eu sou um bruto
maldito.
— Serei sua. — Respirei fundo, perdendo-me em seu cheiro
maravilhoso. — Aceito tudo, mas, antes, escolha-me.
— Caralho, mulher!
Sua língua invadiu minha boca com tanta ganância, que, por
míseros instantes, não fui capaz de reagir, mas então eu senti. O
toque de vodca, menta e algo mais profundo, embriagou-me. Não
pude evitar o gemido que pareceu se libertar do fundo da minha
alma, agarrando-me a ele, à loucura que me consumia como fogo
em floresta seca.
Havia loucura, dor, necessidade e a mais profunda entrega.
Era como se nós dois estivéssemos perdidos, em meio a uma
turbulência que culminava nesse beijo desesperado, ansioso,
sedento. Sua língua acariciava a minha, explorando,
enlouquecendo-me, eu também o buscava, igualando sua
necessidade, com meus próprios desejos, aqueles que se
mantinham escondidos e que despedaçavam a minha alma.
Ele consumia o meu fôlego, levando tudo até que já não
pudesse manter-me de pé, e ainda assim, derretia em sua boca, à
mercê de sua língua quente.
— Ohhh... — gemi alto, perdendo a cabeça quando sua boca
desceu por meu pescoço. Ele mordeu a pele, lambendo a mordida
dolorosa como se assim me dissesse que haveria dor, mas também
prazer.
— Eu te dou o que quiser. — rosnou contra o meu pescoço,
chupando forte. — Serei seu, por esta noite, eu serei todo seu.
Sim, eu queria tudo.
Buscando sua boca outra vez, não me importava de desmaiar
em seus braços, de beijá-lo até que não restasse fôlego em meus
pulmões que me mantivesse consciente. Ele me apertou contra si, o
vento gelado acabou sendo nada perante o calor que nos
incendiava.
— Boca gostosa. — Segurando meu pescoço, ele mordeu
meu lábio, então o lambeu. Sem tirar os olhos de mim, fez isso uma
e outra vez.
Eu não fui capaz de sustentar meu próprio peso. Sorrindo, ele
me manteve em pé.
— Me beija — ofeguei, querendo me aproximar, mas estava
completamente dominada por ele.
Ele lambeu meus lábios, brincado com meu desejo.
— Você quer? — Acenei, ele fez de novo, apenas
provocando. — Você está brincando com fogo e esta é a última
chance de fugir, depois não deixarei que vá.
Ele quase explodiu meu cérebro com apenas um beijo,
fazendo-me esquecer porque eu estava aqui nessa cidade.
— Fugir parece um absurdo. — Lambi os lábios, sentindo-os
formigar.
Afrouxando um pouco seu agarre, ele me olhou. Era muito
mais alto que eu e essa diferença me afetava demais.
Queria estar em seus braços, acima de qualquer outra coisa,
suas atitudes, antes e agora, apenas aumentavam minha certeza.
Sua postura era a de que estava disposto a me deixar ir se eu
quisesse, eu só não queria.
Apoiando-me em seus ombros, fiquei na ponta dos pés.
— Venha para mim. — Ofereci meus lábios, ele gemeu
curvando-se e me deixando beijá-lo.
Devagar agora, somente saboreei sua boca macia e gostosa,
repetindo o que fez comigo. Primeiro mordendo, então chupando,
vagueando a língua preguiçosamente dentro de sua boca. Queria
que percebesse o que eu sentia, que seu beijo acendeu uma chama
dentro de mim e que me fazia sentir o corpo todo doer por seu
toque.
Nunca imaginei que um beijo me faria sentir tão incrível. Era
como se ele soubesse exatamente como nos encaixar, fazendo-me
derreter, ao ponto de eu sentir a umidade escorrendo entre as
minhas pernas.
— Jenny... — o modo como chamou meu nome apertou meu
peito.
Nossos olhares se cruzaram brevemente e o que vi me fez
sentir tão incrível, que eu queria abraçá-lo por simplesmente ter me
olhado de maneira diferente.
— Não importa que não seja gentil comigo. — Repousei a
mão em sua bochecha, acariciando a barba bem cuidada e bonita.
— Eu te quero como você é e aceito o que pode me dar. — Sorri. —
Não precisa ser gentil.
Eu não sabia o que esperar, mas o sorriso que ele deu foi
uma completa surpresa. Milhares de pequenas criaturinhas voaram
em minha barriga, quando acariciou meu rosto com muita gentileza.
— Minha pequena... — murmurou, beijando-me suavemente.
— Você merece mais.
Ele enlaçou minha cintura erguendo-me e eu o abracei com
as pernas, buscando seus lábios. Perdi-me em sua boca enquanto
ele caminhava pelo quarto. Não estava me importando nem um
pouco com o que poderia acontecer agora.
15
Jenny Monroe

Eu nunca pensei que uma noite destinada ao absoluto horror,


pudesse mudar ao ponto de eu estar desejando com todas as
minhas forças o toque de um homem que conheci poucas horas
atrás e que não sabia nem o nome.
E por mais absurdo que isso pareça, isso era o mínimo diante
de todo o resto.
— Que boca deliciosa. — A voz grave parecia ainda mais
profunda quando me olhava com desejo escancarado. — Você não
deveria ter me provocado. — Ele segurou meu pescoço outra vez,
obrigando-me a encará-lo. — Não deveria, garotinha.
— Garotinha?
— E você, não é? Jovem demais para mim, para o que quero
fazer com você. — Deslizou o dedo por meu rosto. — Um problema
grande que eu não estava disposto a encarar.
— E agora está? — Engoli em seco, sentindo que poderia
desmaiar apenas com sua proximidade.
Ou pelo fato do meu coração funcionar como um relógio
velho e com pilhas fracas, não sabia quanto tempo o remédio faria
efeito, mas esperava que fosse o suficiente.
— Estou.
Ele sorriu, daquele jeito que não era um sorriso completo,
apenas uma sugestão que poderia ser concordância, ameaça, ou
qualquer outra coisa misteriosa que o envolvesse.
— Você me ofereceu algo proibido, Beag. — Meu coração
bateu mais rápido a menção dessa palavra. Quando ele me
chamava assim, sua voz mudava para algo mais aveludado, o
sotaque era gostoso demais para a minha saúde mental. — Agora
não há mais escapatória.
Mordendo o lábio, joguei fora todo o instinto de
autopreservação e que dizia para não provocar um homem que
aparentava perigo.
Eu o provoquei.
— E se eu não quiser mais, e se eu disser não? — Ele
continuou sorrindo, me avaliando.
— Eu teria que te convencer. — Ele estreitou os olhos, e,
para minha total surpresa, deu um aperto na minha bunda. — Teria
que te convencer e isso seria muito prazeroso para nós dois, é
claro.
Ele mordiscou meu lábio, então me beijou. Rápido, duro, e
então mais suave. Não fazia sentido para mim, em instantes era
rude e ao mesmo tempo gentil. Como uma dose calculada de um
remédio forte e que poderia viciar.
Era tão maluco o modo que me fazia sentir que eu desejava
que essa noite se perdesse num paradoxo interminável em que
nunca precisaríamos ir embora.
Pela primeira vez, eu estava sozinha com um homem que me
fazia sentir muito bem.
— Não precisa me convencer de nada. — Tentei beijá-lo, mas
sua mão enredou-se em meu cabelo, dominando meus movimentos
e impedindo-me de ir mais longe. — Quero tanto você, que dói.
Pensei que ia me beijar, mas ele esfregou a barba na minha
bochecha, mordiscando o lóbulo da minha orelha fazendo-me
estremecer.
— E vai doer mais. — Sua voz me causou arrepios, senti o
clitóris latejando como nunca havia sentido antes. — Vai doer
quando eu te fizer chorar de tanto gozar na minha boca. — Ele
buscou meus olhos, como se quisesse me mostrar que não estava
brincando. — Vai doer quando meu pau estiver enterrado na sua
boceta virgem. — Puxei o ar, sentindo que estava prestes a
desfalecer.
Como ele poderia dizer coisas tão obscenas sem um pingo
de vergonha?
— Você se deu para mim, Jenny Monroe. — Ele acariciou
minha bunda. — E eu vou te mostrar o que isso significa.
O modo como me olhava apenas fazia meu corpo agir como
se de fato pertencesse a ele. Havia sintonia, como música e
instrumento sob domínio de um especialista.
— Estou ansiosa para ver — provoquei, e ele estreitou os
olhos. — Eu te desafio a nunca me fazer te esquecer.
Um pequeno sorriso se desenhou em sua boca.
— Desafio aceito. — Ele me beijou.
Desabamos na cama e ele não desgrudou de mim,
estávamos emaranhados, nossas bocas buscando-se com tanta
impaciência que era como se, instintivamente, soubéssemos que
não tínhamos todo o tempo do mundo.
A necessidade de tocar, de sentir era quase tão primordial
quanto respirar. Não tínhamos o depois, então, esse momento era
um segredo, que apenas nós dois, as paredes e o frio conheceriam.
O peso dele em cima de mim, a dureza de seu corpo, de certo modo
encaixavam com minha suavidade.
Gostava do quanto éramos diferentes, e do quanto isso
parecia combinar.
— Foco em mim. — Ele segurou meu rosto, encarando-me
tão de perto que o ar que escapava de seus lábios era o mesmo que
me alimentava. — Não quero que pensamentos atrapalhem isso
aqui, então, seja lá que está pensando, apenas esqueça e sinta. Me
sinta.
Ele balançou devagarzinho, fazendo-me sentir sua ereção
esfregando na minha umidade. Arfei, fechando os olhos. Era como
se pequenos choques disparassem a partir de onde nos
conectávamos.
E isso era bom demais.
— Meu Deus. — Arqueei, puxando-o para mim. — Isso é...
é...
— Gostoso? — A voz dele me fez arrepiar, sentia os mamilos
doendo de tão duros.
Não dava para pensar em outra coisa que não fosse naquela
deliciosa sensação que crescia em meu corpo e levava embora
qualquer rastro de sanidade.
Nunca havia sentido como se pudesse explodir de felicidade
a qualquer momento, ou que estivesse difícil de respirar apenas
pelo prazer que surfava em minhas veias. O latejar constante em
meu clitóris era apaziguado e, ao mesmo tempo, estimulado.
As sensações eram tão confusas, dolorosas, mas tão
viciantes que não cogitava a hipótese de ele parar.
— Eu nunca sen... — Puxei o ar, minha mente estava
nublada. — Senti algo assim...
— Você não se masturba?
— Nunca. — Senti o rosto queimando de vergonha.
— Então me encarregarei de fazê-la sentir tudo. — A
promessa contida em sua voz eletrizou minhas terminações
nervosas, como se eu houvesse levado um choque.
Eu não fazia ideia de como aguentaria, mas eu queria viver
isso. Naquele momento, não importavam as consequências, eu
queria tudo que aquele homem pudesse me dar.
— Faça o seu pior ou melhor, não sei, apenas faça o que
quiser — sussurrei, fora de mim.
Lentamente um sorriso foi tomando conta de seus lábios. Ele
sabia o efeito que tinha nas mulheres e era confiante o suficiente
para eu ter certeza de que não era apenas pela minha primeira vez
que a noite seria inesquecível, e sim porque eu estava com um
homem experiente e que pretendia me revirar do avesso.
— Umedeça os lábios. — Obedeci. Ele esfregou o polegar,
depois deslizou dois dedos dentro da minha boca. — Chupa, deixa
bem molhado.
Meu coração deu um salto, mas eu fiz como ele mandou.
Comecei a chupar seus dedos, como se fosse um pirulito. O meu
favorito.
Os olhos verdes incendiaram, eu o senti palpitar entre as
minhas pernas, o pau teso confirmou que ele estava tão excitado
quanto eu.
— Você já chupou um pau? — Neguei, um sorriso predador
tomou conta de seus lábios. — Então eu serei o primeiro — rosnou
baixinho, começando a entrar e sair da minha boca, testando. — Eu
vou foder sua boceta bem assim. — Ele empurrou os dedos mais
fundo, arquejei, sufocando. — Respira pelo nariz, Beag... —
Obedeci. — Isso mesmo, devagar... assim...
A única coisa que separava nossas peles de se tocarem era
a blusa que eu vestia e a calça dele; e eu ansiava sentir seu calor
abraçando-me por inteiro.
— Vamos ver se está disposta a esquecer o seu pudor. —
Lambeu meus lábios, com os dedos ainda na minha boca. — Eu
acho que virgens são tímidas, você é tímida? — Acenei, então
neguei. Não sabia ao certo o que lhe responder. — Continua
chupando, isso vai ser tão divertido.
Obedecendo, fiz como mandou, até que ele substituiu os
dedos por sua língua, gemendo, enquanto eu o chupava. Sua mão
foi explorando, indo por meu pescoço, as pontas dos dedos
roçavam minha pele como se a mapeasse.
— Oh! — arfei quando apertou meu mamilo, quis puxá-lo
para tentar aliviar aquele prazer e a sensação enlouquecedora que
disparava em mim.
— Sem pressa. — Mordiscou meu queixo. — Agora, vamos
ver o quanto você me quer.
— Muito...
— Isso quem vai dizer não é você. — Ele ergueu-se um
pouco, e assim que seu peso saiu de cima de mim, eu senti falta.
Seus dedos deslizavam pela minha intimidade, quase que
automaticamente, e minhas pernas se fecharam. Ele parou de me
tocar, encarando com a sobrancelha arqueada, deixando-me decidir.
Meu coração deu outro salto, apavorando-me de que o
remédio não pudesse segurar toda aquela turbulência. Minha
respiração estava descompassada e eu precisava que ele
acreditasse que era a excitação que me deixava assim.
— Jenny. — Meu nome soou como música em seus lábios.
— Relaxa para mim.
Minhas pernas tremiam muito, mas não pude resistir ao
comando carinhoso. Ele sorriu, voltando a me acariciar. Seus dedos
eram gentis, firmes e experientes. Ele acariciava minhas dobras,
espalhando umidade, cada vez que passava em minha entrada, eu
sentia ficar tensa, mas então ele voltava a massagear.
Eu não conseguia mais controlar a respiração, estava
ofegando demais, sentindo calor, desesperada para que ele nunca
parasse. Não tive coragem de encará-lo, não ia aguentar a
vergonha de saber que ele estava com os dedos na minha boceta
enquanto eu o olhava.
Parecia hedonista demais, sem-vergonha.
— Timidez agora? — Havia diversão em sua voz. — Olhe
para mim.
Mordendo o lábio e sentindo que meu rosto ia queimar de
tanta vergonha, eu obedeci. Quase que meu coração não
aguentava. Como um homem podia transparecer tanta indecência
apenas no olhar?
Eu nunca havia me deparado com um homem tão selvagem,
e que parecia ter sido feito para o pecado. Ele inclinou, mantendo a
boca pertinho, mas não me beijou.
O sorriso continuava lá, brincando no canto de sua boca.
— Me beija. — Tentei alcançá-lo, ele não deixou.
— Deixe-me ver se você gosta disso. — Foi o único aviso
que eu tive antes dele começar a esfregar meu clitóris.
— Oh, Deus! — Agarrei os lençóis, sentindo-me desnorteada.
Eu nunca havia me tocado antes, então não imaginava que
poderia ser assim. Temia que John chegasse, pois, às vezes,
costumava invadir meus banhos para me observar. Era
simplesmente horrível, o olhar malévolo, cheio de desejo e cobiça
e...
— Beag... — Sua voz me trouxe de volta. — Você quer que
eu pare? — Ele parecia preocupado, e eu sabia que qualquer
hesitação da minha parte o faria desistir.
— Não pare nunca. — O puxei pela nuca, beijando-o e me
abrindo para as suas mãos.
Seus dedos voltaram a me tocar, eu arfei em sua boca,
beijando-o com ardor, esquecendo qualquer coisa que me esperava
quando isso acabasse. Ele continuou brincando com meu clitóris,
massageando de um jeito tão perfeito que senti meu ventre
estremecer.
Senti uma necessidade louca de gritar, de apertá-lo e... não
sei. Mas era uma coisa louca, crescente, que vinha fervendo como
lava.
— Por favor! — Balancei a cabeça, ansiosa. — Não pare,
apenas não pare.
Cravei as unhas em seus ombros, puxando-o para o beijo
mais desesperado da minha vida. Ele sabia que alguma coisa
estava prestes a acontecer, pois, em um instante, sua boca me
devorava, para depois ele se afastar e me encarar.
O tempo pareceu congelar, tudo dentro de mim silenciou,
então explodiu como fogos de artificio. Abri a boca para gritar, mas
nenhum som saiu. Meu corpo estava sendo consumido pela mais
devastadora sensação de prazer.
Era como um incêndio de proporções inimagináveis. Não
havia nenhum pensamento restante, não havia uma vida me
esperando lá fora, eu havia morrido aqui.
Lágrimas salpicaram meus olhos, eu nunca imaginei que meu
corpo pudesse produzir uma sensação tão, tão, incrível e
completamente viciante.
— Mais... — implorei, e ele me deu.
Sem tirar os olhos de mim, penetrou-me com os dedos.
A dor veio, primeiro senti uma pequena alfinetada, e depois
algo mais forte e crescendo. Ele não tirou os olhos de mim, estava
me prendendo, me desafiando a negar-lhe algo que ele agora
considerava seu direito. Eu via a possessividade brilhando no fundo
das íris verdes, e eu não tive medo.
— Me tome. — As lágrimas escorreram, ele inclinou,
lambendo-as.
Diferente do que pensei, ele estava tirando a minha
virgindade com o dedo. Primeiro prazer, depois dor. Ele havia
prometido dor, e eu estava acostumada com ela. Mas agora havia
prazer também, uma mistura caótica e insana demais para uma
pessoa que só conhecia a parte ruim.
— Você continua apressada. — Ele era tão dono de si, nem
um pouco afetado enquanto meu coração esforçava-se para manter
o ritmo. — Estamos começando, e você saberá que acabou quando
não puder manter os olhos abertos, até lá, desfrute.
— Meu Deus! — gritei, quando o senti romper o hímen. A dor
foi mais forte, intensa, abrasadora. Ele retirou os dedos, e eles
vieram sujos de sangue.
A vergonha foi tanta que acabei perdendo o controle da
respiração e pontos pretos piscaram diante dos meus olhos.
— De-desculpa, eu não... não queria que...
As palavras morreram quando percebi que ele estava
levando os dedos até a própria boca. Encarando-me, ele os lambeu.
Por um instante, o choque foi tanto que eu apenas o encarei como
uma completa idiota. Não era possível que ele houvesse... que
houvesse mesmo...
— Sinta o gosto da sua virgindade na minha língua.
Ele me deu o beijo mais perverso que poderíamos ter
compartilhado. O gemido dele, enquanto nossas línguas
acariciavam-se, pareceu-me sombrio, como um sussurrar obscuro e
irresistível.
Eu deveria estar sentindo nojo, mas aquele era tão viciante
que não me importava com nada.
Só queria mais.
— Agora, vamos brincar. — Ele ergueu-se sobre mim e
rasgou a blusa que eu vestia, espalhando-a pelas laterais.
Institivamente minhas mãos cobriram a cicatriz e o pequeno
inchaço que o marca-passo causava na pele. Ele balançou a
cabeça, retirando minhas mãos.
— Acidente. — Lambi os lábios quando ele traçou o contorno
da marca com a ponta dos dedos. — Estilhaço alojado, não é nada.
Essa era a desculpa que eu usava e ninguém nunca me
questionou antes. Mas o seu silêncio começava a me incomodar.
— Hum... — Seu olhar foi descendo por meu corpo e eu pude
ver claramente o desejo refletido em seus olhos.
— Eu sei que é feio, mas não se importe, eu posso colocar a
blusa de volta e...
— Você é perfeita — murmurou, percorrendo um dedo pelo
vale dos meus seios, até o umbigo. — Caralho, eu quero te devorar,
você não imagina... — Esfregou a boca. — Porra!
Percebi que, talvez, ele estivesse se contendo e eu não
queria isso. Era a única noite que teríamos, e as ressalvas deveriam
ser esquecidas. Depois, teria tempo para pensar em tudo que
poderia ter feito diferente.
— Não se contenha. — Estendi as mãos, percorrendo as
unhas por sua pele cicatrizada. Ver os músculos contraindo
mediante meu toque foi muito satisfatório. E eu queria mais, queria-
o por inteiro. — Dê-me tudo.
Ele suspirou, como se fosse sua rendição final, e me beijou.
Desta vez, ele foi mais bruto, mostrando-me que eu talvez não
estivesse preparada para receber tudo dele, o modo como
saqueava meus lábios, machucando só para acariciar depois era um
alerta que eu não quis ouvir.
— Dê-me tudo. — Mordisquei o lóbulo de sua orelha, ele
chupou meu pescoço, então foi descendo.
Ele segurou meu seio, lambendo o mamilo. Um gemido alto
escapou, meu corpo curvou-se perante a sensação deliciosa.
Continuou dando atenção aos meus seios, às vezes moderado,
então mais bruto. Essas mudanças me instigavam. Eu gostava, pois
nunca sabia o que esperar.
Sua barba me arranhava, cada vez que ele ia de um seio
para o outro, raspando em minha pele como se quisesse me deixar
marcada de todas as formas.
Devagar, agitando toda a ansiedade que eu possuía, ele foi
descendo. Deixando um rastro de puro fogo em minha barriga,
fazendo-me estremecer quando mordiscou o osso do quadril. Não
consegui parar de encará-lo, hipnotizada, completamente presa a
ele.
O seu sorriso foi crescendo enquanto ele se encaixava entre
as minhas pernas.
— Aproveita a viagem. — Piscou um olho, lambendo-me
lentamente.
Não poderia pensar em algo racional, a sensação que eu tive
foi de mente explodida. Como se houvesse recebido uma pancada e
não soubesse como ajustar meu sistema sensorial.
Era demais, era apenas demais.
— Meu Deus... — Tentei fechar as pernas, mas ele estava ali,
bem encaixado no meio delas, deixando exposta para a sua língua
perversa.
Estava completamente vulnerável, à mercê de seu ataque
alucinante. Sua língua era quase tão cruel quanto os seus dedos,
ele golpeava meu clitóris, chupando em seguida e, então, o prendia
nos dentes, puxando até eu gritar.
Não tinha como controlar, por mais que eu quisesse não
parecer escandalosa, mas ele estava saqueando, roubando minha
vergonha, e deixando para mim nenhum pudor. Outra vez, eu senti
que poderia morrer.
Meu coração acelerou demais, a respiração descontrolou-se
ao ponto de eu sentir que sufocava com aquele prazer que viajava
por meu corpo e, ao mesmo tempo, confundia todo meu sistema.
Não posso desmaiar, não posso desmaiar... O desespero foi
tanto que eu mordi o lábio até sentir o gosto de sangue. Sabia como
atravessar essas crises, e eu queria muito viver isso.
— Meu Deus, vou morrer. — Minha voz soou tão baixa, que
eu não esperava que ele pudesse ter ouvido.
— Você não vai morrer, você vai gozar. Muito. — Me
penetrou e eu o senti curvar o dedo lá dentro e esfregar um lugar
que me fez ver estrelas.
— Não pare!
Eu estava perto, tão perto, que podia sentir meu ventre
contraindo, minhas pernas tremendo e todos os pensamento
voltando-se apenas para aquele momento, mais um pouco e eu
poderia...
Meu corpo todo ficou tenso, por um breve instante até meu
coração pareceu haver parado, apenas para, num piscar de olhos,
tudo virar um caos. Era como se tudo dentro de mim explodisse, o
prazer foi tão absurdo que, desta vez, meu cérebro pareceu apagar.
Sentia-me como um fio desencapado, e o ponto de curto-
circuito estava no feixe de nervos entre as minhas pernas que
latejava intensamente.
— Você fica ainda mais linda quando goza. — Abri os olhos,
sentia-me embriagada, sem força para mexer um músculo.
Ele estava ajoelhado na cama completamente nu. Estava se
acariciando de modo tão lascivo e desavergonhado que me excitou.
Era grande, grosso. Parecia capaz de me rasgar ao meio.
— Não tenha medo. — Sorriu, pegando uma das camisinhas
que eu trouxe e a colocando. — Eu prometi que ia doer, e vai, mas
eu serei gentil. — Ele franziu o cenho, como se falasse consigo
mesmo. — Desta vez, eu serei gentil, porque você merece isso.
Não pretendia fugir, mas começava a sentir medo. Ele ia me
machucar, mesmo que não quisesse, não havia um modo de isso
entrar em mim sem causar dano.
— Jenny. — Ele se deitou em cima de mim, aliviando o peso
para não me sufocar. Ele começou a beijar meu rosto, então roçou o
nariz no meu, e o gesto carinhoso foi me tranquilizando. — Farei
isso ser bom para você — prometeu. — Mas não sou um cara
pequeno, e, por mais que eu não queira, vou te machucar. Ainda
quer continuar?
Ele disse que não transava com virgens, que não era gentil e
até agora ele apenas me deu prazer e um pouco de dor. Na balança
que regia minha vida, ele estava sendo mais que cuidadoso comigo,
contrariando suas próprias palavras.
E isso era mais do que eu havia pedido.
— Eu escolhi você — falei baixinho, segurando seu rosto. —
Eu aceito tudo em você. Quero continuar.
Ele roçou o nariz no meu, então seus lábios foram tomando
os meus com muita gentileza e carinho. Não havia pressa, mas a
paixão estava ali, no modo como ele gemia baixinho, deixando-me
saber que não havia distanciamento de suas emoções.
Éramos desconhecidos, mas, aqui, parecia que havíamos
nos encontrado. Ele não desgrudou sua boca da minha quando o
seu pau começou a pressionar, exigindo sua posse.
Arfei, agarrando-me a ele e me perdendo em sua boca. Ele
era o meu veneno, mas também o antídoto. Com ele, eu não era
uma prisioneira, com ele eu podia ter liberdade para viver isso ao
seu lado, de igual para igual.
— Me faça sua. — Busquei seus olhos, estávamos tão perto
que respirávamos o mesmo ar. — Por esta noite, me faça toda sua.
Ele empurrou com força e me beijou, engolindo o grito dor
que sua invasão causou. Por um momento pensei que não poderia
aguentá-lo, sentia como se minha boceta estivesse pegando fogo.
Estava ardendo, mesmo que eu estivesse molhada ele era demais
para mim.
— É doloroso para nós dois — grunhiu, com o suor
pontilhando sua fronte. — Caralho, eu sinto como se estivesse
preso, foda-se, eu poderia morrer dentro de você, mulher.
— Dê-me um instante — pedi baixinho enquanto ele secava
minhas lágrimas, seu rosto era uma máscara de dor e remorso.
— Porra! — Beijou-me carinhosamente, dando-me tempo
para acostumar-me com seu tamanho.
Aos poucos, ele começou a entrar e sair, olhando para mim,
prestando atenção nas minhas reações.
— Devagar, assim. — Por mais que eu estivesse tentando
relaxar, a dor ainda incomodava.
Ele lambeu os dedos, levando-os até o meu clitóris sensível e
inchado. Com o primeiro toque, o prazer disparou, mas junto com a
dor trouxe-me uma sensação nova.
— Farei isso ser bom para você — disse outra vez,
erguendo-se. — Brinque com os seus mamilos, como eu fiz.
A imagem que se formou em meu cérebro foi como uma dose
de bebida. O calor foi se espalhando e a dor foi mesclando-se com
prazer. Ele não parou me massagear meu clitóris.
— Não pare, por favor — gemi, apertando os mamilos,
brincando com eles como ele fez antes.
Eu estava me sentindo cheia até o limite, completamente
preenchida por ele. O sentia em todos os lugares, na minha boca,
no meu corpo hipersensibilizado, mas principalmente na minha
boceta.
E por Deus, eu gostava disso.
— Não tenha pressa. — Ele não estava tendo, mas, talvez,
precisasse que eu lhe dissesse isso.
Respirando fundo, ele foi testando meu limite, devagar,
constante com estocadas longas e deliciosas. Aos poucos, eu fui me
acostumando com a dor e a emoção que tudo aquilo representava
para mim.
— Como isso é difícil. — Ele respirou fundo, estava se
contendo, fazendo o melhor para não me machucar.
— Mais rápido. — Ele me encarou, para confirmar o que eu
havia dito. — Me beija enquanto me fode.
— Caralho, Beag! Não teste o meu controle — rosnou,
abrindo ainda mais as minhas pernas, e vindo me beijar.
Derretendo em sua boca, nas emoções que me dominavam,
eu não me importei com o palpitar descontrolado do meu coração,
ou com a minha respiração errática. Talvez, tudo isso fizesse parte.
Não me importava, queria cada migalha desse momento,
queria guardar para mim o cheiro dele, o toque e a dor.
— Que boceta gostosa, porra. — Sua voz soou rude, o tom
grave me causou arrepios de prazer. — Está apertando meu pau, eu
não vou aguentar, caralho, que delícia.
— Não pare, me fode assim.
— Não me pede isso, menina, estou lutando muito duro para
não te machucar, mas se você continuar...
— Me fode. — Mordi seu queixo. — Eu quero tudo.
Não poderia doer mais do que já estava doendo, então agora
eu queria que ele me desse o que prometeu.
— Eu quero te sentir quando já não estiver mais dentro de
mim. Quando for embora, eu quero te sentir. — Segurei seu rosto.
— Me faça nunca te esquecer.
Ainda que isso fosse impossível. Ele sorriu, erguendo-se
outra vez. Ele segurou a minha cintura, ajustando meu corpo, então
disse:
— Agora eu vou te foder.
Ele puxou quase tudo e, antes de empurrar, piscou um olho.
— Ahhh, sim, porra — gemeu, erguendo a cabeça, os
músculos tensos enquanto me fodia. — Eu poderia me viciar em
você.
Então, olhe para mim, enxergue além do que as pessoas
conseguem ver...
As emoções me dominaram e isso eclipsou todo o resto. O
meu viking me levou numa viagem de descobertas, onde prazer e
dor mesclavam-se criando algo único. Sentia-o atingindo lugares
impossíveis, outra vez começou a massagear meu clitóris enquanto
continuava me fodendo com força.
Tudo foi se misturando, criando algo ainda mais arrebatador e
caótico, desta vez não pude me preparar, minha boceta apertou,
senti tudo se contraindo, meu coração voando numa corrida louca.
— Não para! — gritei, apertando os mamilos, enquanto ele
me fodia e brincava com meu clitóris. — Por favor... — Perdemos o
controle, juntos caímos no abismo.
— Caralho... — Ele fechou os olhos, sentindo cada instante
de seu próprio orgasmo.
Meu corpo tremia, palpitando como se estivesse sofrendo
choques, eu não conseguia pensar nada, estava afogando. Das
outras vezes não foi assim, intenso, arrebatador, doloroso.
Meu viking saiu de dentro de mim e eu não pude evitar
choramingar, não porque doesse, mas porque eu não queria que ele
se afastasse. Fechando os olhos, não consegui mexer nenhum
músculo, estava anestesiada, tremendo dos pés à cabeça.
Ele deitou-se ao meu lado, e por um breve instante não
soube o que fazer.
— Vem aqui. — Puxou-me e eu me aninhei em seu peito.
As batidas do coração dele soavam firmes, e eu me
concentrei nisso para manter a respiração tranquila.
Ele não podia imaginar que eu estava doente, que o que
fizemos foi arriscado, ou então jamais teria encostado um dedo em
mim. Agora, estava tudo bem, e o meu coração não ia me tirar as
horas que ainda restavam ao lado dele.
— Descanse um pouco. — Suas mãos começavam a
acariciar minhas costas, num ritmo tão cadenciado e suave que isso
ajudou que eu mesma encontrasse a calma necessária para respirar
melhor.
— Você ainda está ofegante demais — ele ponderou.
— Você acabou comigo. — Sorrindo, roubei-lhe um beijo
rápido. — Estou exausta.
— Descanse um pouco. — Suas mãos desceram até a minha
bunda, ele me bateu então acariciou. — Estamos longe de terminar.
Fechei os olhos, rezando para que meu coração voltasse ao
normal antes que começássemos tudo de novo.
16
Jenny Monroe

Respirar era uma árdua tarefa, não conseguia me concentrar


em outra coisa a não ser naquela sensação arrebatadora que me
inundava dos pés à cabeça.
Sentia-me a ponto de perder os sentidos, não sabia se por
causa da respiração ruim, do coração acelerado, do vapor no
chuveiro ou do prazer absurdo e quase doloroso que aquele homem
me proporcionava.
— Por favor, não suporto mais — gemi, arquejando,
tremendo dos pés à cabeça.
— Eu disse que não terminamos. — Ele esfregou a barba
onde eu estava mais sensível.
Minhas pernas estavam bambas, e se não fosse ele me
segurando, com certeza já teria desabado no chão daquele boxe.
— Estou muito sensível aí — ofeguei.
— Aí aonde? — Seus olhos estavam semicerrados, sua
expressão era cínica e ao mesmo tempo provocadora.
— Você sabe. — Acariciei seu rosto.
— Beag, você está toda vermelha, isso é timidez? — Havia
um ar perverso nele. — Depois de tudo que fizemos? Eu acho que
devo ter feito algo errado, então observe. — Ele me lambeu,
sacudindo a ponta da língua no meu clitóris antes de chupá-lo, fez
isso sem tirar os olhos dos meus.
Quase chorei de tão bom que era. Estava sendo dominada
por aquele homem, pelo ataque sensorial.
— Essa bocetinha vai aguentar meu pau até o sol nascer —
ele gemeu, chupando-me. — Agora, quero que goze na minha boca
até estar exausta ao ponto de não poder se sustentar em pé, por
isso não temos pressa.
— Você vai acabar comigo. — Apoiando a mão em sua
cabeça, sentia que estava perto de gozar outra vez.
Quando entramos no banho pensei que seria rápido, mas não
foi o que aconteceu. Primeiro, ele lavou meu corpo com calma,
estimulando pacientemente até eu estar implorando para tê-lo
dentro de mim, queria-o outra vez, mas ele tinha outros planos.
Ajoelhando, começou a me foder com a boca e com os
dedos, não sabia quanto tempo estávamos aqui, mas eu poderia
viver desta maneira para sempre.
— Que delícia de boceta. — Ele esfregou a barba outra vez,
expondo-me com os dedos. — Delícia... — Me chupou forte,
golpeando a língua sem parar.
Eu sentia como se todo o meu corpo estivesse formigando,
uma vontade de gritar, gemer alto, engolindo o medo de que alguém
pudesse nos ouvir.
— Dentro de mim... — implorei, ofegando. Sua reposta foi me
foder com os dedos.
Ele conhecia exatamente os lugares que eram meu ponto
fraco. Seu toque se intensificou, eu não conseguia controlar mais.
— Por favor, preciso... — ofeguei, gemendo quando ele
mordiscou um clitóris. — Ohhh, isso é tão bom...
— Gosta assim? — Ele esfregou o rosto outra vez, o prazer
foi tanto que eu quase desabei. — Eu sinto sua boceta contraindo
ao redor dos meus dedos, vai gozar assim. Não resista, apenas se
deixe ir.
Fechando os olhos, não lutei contra seu ataque. Eu me deixei
ir, e nem forças para gritar eu tive, apenas solucei, gemendo pelo
prazer que me roubou todas as forças.
Eu não aguentava mais, ele me fez gozar tanto que me sentia
fraca.
— Jenny... Jenny. — Ele se levantou, sustentando o meu
peso enquanto eu tremia inteira. — Você parece quase lá.
Não abri os olhos, apenas me apoiei nele, não me
importando quando segurou firme em meu cabelo molhado. Seus
lábios encostaram nos meus, o gosto salgado do prazer foi tão
indecente quanto tudo que fizemos.
Estava pulsando, sentindo meu gosto em sua boca, quase
podia vê-lo ajoelhado, me chupando.
Jamais seria capaz de esquecer aquela noite, ou ele. Tudo
que fazia, estava ficado marcado em minha memória para sempre.
— Hum... — Chupei sua língua, ele gemeu em resposta,
esfregando-se em mim.
— Abra os olhos. — Obedecendo, eu perdi-me nele.
Elevando-se sobre mim, seu corpo poderoso parecia ainda
maior. Em seus olhos havia promessas que jamais poderiam ser
cumpridas, pois não tínhamos tempo.
Uma noite não era suficiente.
Nunca seria.
— Fique comigo — proferi baixinho. — Fique.
Franzindo o cenho, ele soltou meu cabelo para que pudesse
acariciar meu rosto. Havia indecisão — e talvez, um pouco de
sentimento — em seus olhos verdes e lindos, eu pude perceber e
isso me deixou emocionada.
— Fique. — Toquei seu rosto, ele suspirou, esfregando o
nariz no meu, encostando a testa na minha. — Uma noite não é
suficiente.
Ele deu um passo atrás e ficou me encarando
silenciosamente.
Talvez ele estivesse assustado, mas como eu poderia
explicar que era a primeira vez que me sentia feliz em estar com um
homem? Não poderia lhe contar sobre minha vida, só queria um
pouco mais de todas as sensações boas que iam além do sexo
gostoso que ele proporcionava.
— Termine o banho. — Não havia sentimento em sua voz.
Ele deu-me as costas, saindo.
O frio me inundou de tal maneira, que nem mesmo a água
quente foi capaz de me aquecer.
— Deus, eu sou patética. — Erguendo a cabeça, permiti que
a água escorresse por meu rosto. Desejava que a água pudesse
levar embora as minhas palavras.
Queria poder retirar o que eu disse, e não sentir como se
houvesse acabado de construir um muro gigantesco entre nós dois.
— Não importa, Jenny, amanhã não fará diferença. —
Desligando o chuveiro, tentei disfarçar a repentina vergonha que me
inundou, por isso usei a toalha como um escudo.
Não contra ele, mas contra mim mesma.
Não sei o que eu esperava encontrar, mas com certeza não
era vê-lo perambulando pelo quarto, completamente nu, enquanto
tinha uma conversa acalorada ao telefone em um idioma que eu
nunca vi alguém falando.
Encará-lo com certeza não era o que eu deveria estar
fazendo, mas não podia evitar. Ele era bonito demais, olhar para ele
era por si só prazeroso. Pouco me importava se parecia grosseria,
eu queria decorar cada contorno de seu corpo impecável, cada
cicatriz que apenas o tornava mais atraente.
— Jenny, não me encare assim! — Sentindo as bochechas
aquecendo, eu fui em direção a minha mala, buscando algo para
vestir. — Preciso resolver algo, me espere nua.
Ele fechou a porta do quarto, saindo apressado.
— Fique nua. — Imitei sua voz, enquanto me vestia com uma
de suas blusas. — Não vou ficar.
Pensava que ia demorar a adormecer, mas estava exausta
demais, o corpo tão relaxado como não sentia há anos.
— Meu Viking. — Sorrindo decidi que ia perguntar o seu
nome quando voltasse.
Eu poderia adicionar aquela informação ao segredo que
jamais contaria a alguém enquanto vivesse.

***

Um toque suave foi me despertando, a mão calosa deslizou


entre as minhas pernas. Sabia que era ele, reconheci o cheiro
picante, o toque firme e gentil.
— Hummm... — Abri as pernas ainda mais, dando-lhe
liberdade para me explorar. — Tão bom... — gemi, com a voz
abafada pelo travesseiro.
O quarto estava mergulhado na escuridão, mas, ele sabia
exatamente onde me tocar. Era como se, enquanto estávamos
juntos, ele houvesse mapeado todas as minhas curvas e descoberto
o que me fazia delirar.
— Jenny...
Mordendo o lábio, o senti pressionar em minha intimidade.
— Vou te foder tão gostoso. — Havia um tom de despedida, a
certeza me fez despertar completamente, para que pudesse
aproveitar a última gota da minha droga.
Seu corpo estava colado ao meu, ele me abraçava de um
jeito protetor, a gente estava tão encaixado que parecíamos peças
de um quebra-cabeça. Encolhendo-me em seus braços, não pude
evitar que a emoção me dominasse.
Eu queria me sentir protegida assim, todos os dias.
Para sempre.
Ele esfregou o rosto em meu cabelo, fez um carinho com a
mão enquanto beijava aqui e ali.
— Jenny... — Não se mexeu por um tempo, e eu imaginei
que ele pudesse estar esperando que eu decidisse algo.
— Estou aqui, grandalhão. — Minha voz embargou. — Estou
pronta para você. — Eu o guiei para mim, gemendo baixinho
quando ele me penetrou.
Sem pressa, ele começou a se movimentar, e eu também,
ditando um ritmo gostoso, apaixonante. Essa era a nossa
despedida, eu tinha certeza de que jamais o veria novamente e isso
quebrava algo dentro de mim.
É a última vez. O pensamento foi doloroso, essa era a última
que eu me entregaria por livre e espontânea vontade a alguém.
Deus, isso doía tanto!
Como se percebesse meu desespero, ele me puxou ainda
mais para junto de si, abraçando-me apertado, enquanto me fodia
lentamente. Estar com ele transcendia qualquer ilusão que eu tenha
criado, escolhê-lo foi a melhor decisão da minha vida.
Jamais esqueceria o breve momento que nos foi permitido,
esse foi meu presente, um indulto por todos os anos que sofri e
pelos que ainda viriam.
— Não se esqueça de mim — arfei baixinho, sentindo-o
esticando-me além do limite. — Não se esqueça de nós.
Sua respiração soprou em minha orelha, ele gemeu. O modo
como me abraçava, o calor debaixo dos lençóis e o sentimento de
que aquilo parecia certo golpeavam-me incessantemente.
Respirando seu cheiro, quis gravar em minha memória cada
instante de entrega, do prazer viciante. Nos escolhemos para viver
um segredo, que, infelizmente, tinha um prazo de validade curto
demais.
Queria que isso não acabasse. O pensamento ferroou a
minha realidade. Eu sabia que, quando eu saísse daqui, não haveria
uma história, o ponto final seria colocado quando a porta do quarto
fechasse.
E isso começava a me desesperar.
Não queria voltar para a minha vida, desejava poder
conhecer a mim mesma, as nuances de um relacionamento
consensual.
— Quero tanto você — falei para ele, beijando o braço que
me abraçava. Sua mão apertou meu quadril, ele continuou entrando
e saindo devagar, fazendo aquele sonho estender-se infinitamente.
— Jenny — gemeu, e ouvir meu nome em seus lábios
excitou-me ao ponto do desespero.
O quarto estava mergulhado na escuridão, seu corpo tomava
o meu sem pressa alguma. Diferente de todas as outras vezes, ele
me tomou, agora parecia querer que isso durasse para sempre.
— Isso... — arfei, de olhos fechados, presa em seus braços,
sentindo-o atingir todos os lugares que me faziam vibrar de prazer.
— Não pare nunca.
Ele gemeu outra vez, fodendo-me mais forte, e eu não me
importei com a breve dor. Estava tão sensível, à flor da pele. Minha
boceta ardia, mas a sensação era aliviada quando ele esfregava
aquele lugar secreto em meu interior.
— Você é tão gostosa. — Mordendo o lábio, segurei em seu
braço quando ele aumentou o ritmo. O som de nossos corpos
chocando-se era tão perverso que eu não pude evitar de gemer alto.
Ele começou a acariciar meu clitóris e, como se meu corpo já
estivesse programado para responder ao seu toque, eu senti minha
boceta contrair ao se redor.
— Vem para mim. — A voz rouca deslizou por minha pele
como seda, eu não pude segurar, eu o senti intensificar as
estocadas, endurecer mais, perder-se. — Se deixe ir.
Ele tocava em todos os lugares certos, e sabia que eu estava
perto, havia aprendido a reconhecer os meus sinais.
— Sim, sim. — Meu fôlego travou, nos breves instantes que
antecederam a minha explosão, eu o senti empurrar tudo e parar.
Eu gozei assim, com ele todo dentro de mim, fazendo-me
sentir cheia até o limite e tão feliz como apenas uma garota idiota
como eu poderia estar. Eu já não sabia se as batidas loucas do meu
coração se deviam ao que acabamos de fazer, ou se era o
sentimento inoportuno que esse breve interlúdio me causava.
Fechando os olhos, trabalhei na minha respiração, gemendo
quando ele deslizou fora e me puxou para cima dele, ele não havia
gozado, talvez porque não estava com proteção. Eu podia sentir sua
ereção molhada com meu orgasmo.
— Eu jamais vou me esquecer de você — eu lhe disse.
Deitei-me em seu peito e ele empurrou meus cabelos para o lado.
Acariciou meu rosto, ali na escuridão eu podia jurar que ele
me enxergava.
— Jenny... — meu nome soou como uma prece em seus
lábios e eu me permiti chorar, porque mexia comigo. Ele conseguia
trazer muito sentimento apenas na maneira como pronunciava meu
nome. — Vem aqui, Beag, não chore.
— Não estou — funguei, acalentada pelas batidas do seu
coração.
— Péssima mentirosa, você.
Ele me beijou de um jeito muito carinhoso, e o meu coração
moribundo agitou-se de esperança. Apesar de viver uma realidade
horrível, havia uma parte de mim que ainda sonhava com um
destino diferente.
Não acreditava em amor à primeira vista, mas, na construção
de coisas boas, de carinho e entrega. Talvez, se houvesse tempo
para nós, eu e ele pudéssemos ter algo.
— Fique aqui — murmurou, como se soubesse o meu
desespero. — Fique comigo pelo tempo que nos resta, deixe os
pensamentos longe. Aqui dentro, somos apenas nós dois. Não há
problemas. — Ele enlaçou nossos dedos, repousando em cima de
seu peito.
Eu o beijei, derramando em sua boca todo sentimento de
desespero que me consumiu por muitos anos. Queria implorar que
me ajudasse, mas não podia fazer nada disso.
Não com ele, ou com qualquer outra pessoa. Não suportaria
que ele se tornasse mais uma vítima daquele maldito.
— Queria que as letras das minhas músicas falassem as
verdades do meu coração — disse lhe baixinho, não podendo me
segurar. — Queria poder te dizer mais sobre mim. Você não sabe,
mas essa noite foi um lindo sonho e eu jamais vou me esquecer de
você, eu juro.
— Eu ainda estou aqui. — Sua mão deslizou por minhas
costas. — Você ainda pode me sentir.
— Então, por favor, preencha os espaços vazios com
lembranças dessa noite. — Rocei meus lábios nos seus. — Permita-
me reviver nossos momentos quando eles forem a única coisa
somente minha.
— Há tanta desilusão em suas palavras, Beag. — Fechei os
olhos, sentindo a ponta dos seus dedos deslizando por minha
bochecha. — Não deveria desperdiçar suas lágrimas, conte para
mim o que a preocupa, eu prometo que resolverei para você.
O desejo ferroou como uma picada de abelha, mas não podia
fazer isso. Sua boa intenção poderia ser a sua ruína. John era
esperto demais, e eu nunca colocaria meu viking em uma situação
de perigo que custaria sua vida.
— Não ligue para mim — ri baixinho, eu era boa fingindo uma
alegria que não sentia. — Sou artista, esqueceu? Minhas emoções
sempre estão tempestuosas demais.
— Eu gosto disso.
Ele mudou nossas posições num giro tão rápido que me
assustou. Antes que eu pudesse protestar, ele me beijou, sem
gentileza.
— Eu gosto disso — repeti suas palavras. Ele riu baixinho,
mordiscando meu lábio, antes de sua língua invadir minha boca e eu
me derreter em seus braços.
— Ainda temos muito tempo, enquanto não sairmos deste
quarto será noite.
Ouvi o barulho do pacote de preservativo rasgando, não
demorou muito para que estivesse dentro de mim outra vez.
— Que boceta gostosa, agora eu vou gozar! — rosnou,
mordendo meu pescoço. — Eu poderia morrer aqui.
Eu o abracei, ansiando que o tempo parasse e que nunca
precisássemos sair deste quarto, mas eu sabia que garotas como
eu não tinham tanta sorte. Toda minha cota de vida estava sendo
gasta desde que eu o conheci.
Não me importava, se pudesse escolhê-lo outra vez o faria.
De novo, e de novo.
— Por favor, mais rápido. — O puxei para mim, arranhando
suas costas. — Quero te sentir quando não estiver comigo.
— Porra! — Ele segurou minha cintura. — Então, eu darei o
que quer.
Ele me fodeu com força, num ritmo alucinante e que parecia
nunca acabar. Era como se ele não se cansasse, e estivesse
mesmo disposto a deixar sua impressão em mim.
Eu ainda iria senti-lo amanhã, talvez depois também, e era
isso que eu queria, algo que reafirmasse o que tivemos.
— É assim que você quer? — Ele deu golpes profundos, me
fazendo sentir cada centímetro de seu pau grande e grosso.
— Sim. — Ele abriu ainda mais as minhas pernas. — Eu
quero assim.
— Que delícia do caralho — ele gemeu alto. — Vou gozar.
Ele golpeou mais rápido, gemendo sem parar, como se
estivesse alcançando um prazer tão absurdo que não pretendia ser
controlado.
Eu queria poder vê-lo agora, mas apenas a melodia de seu
prazer foi meu presente.
— Porra. — Ele desabou e, pela primeira vez, eu percebi que
estava esgotado.
Não levou mais que alguns instantes para que se levantasse.
Foi para o banheiro e eu ouvi o som do chuveiro ligar. Por um
momento quis me juntar a ele, mas desisti.
Estava sem um pingo de energia para levantar-me, a única
coisa que fiz foi me encolher de lado e suspirar, como uma tola feliz.
O colchão ao meu lado afundou, quando ele se deitou. Não proferi
nenhum som, mantive-me quieta, estava acabada.
— Jenny?
— Hum...
— Não se afaste de mim — ele pediu baixinho, puxando-me
para o seu peito. Suspirando, deixei-me embalar pelas batidas de
seu coração e por seu abraço.
Aos poucos, meu próprio coração pareceu acompanhar o
ritmo calmo do dele e a paz de estar em seus braços foi se
infiltrando em meus sentidos.
— Durma, eu estarei aqui protegendo você.
Fechando os olhos, deixei-me levar, pois, ao seu lado, não
havia medo.
Eu podia dormir e não temer o que escondia nas sombras.

***

A sensação de frio me despertou. Erguendo-me, olhei ao


redor do quarto notando algumas coisas. Primeiro, a luz do banheiro
fora deixada ligada; segundo, só havia uma mala, a minha.
Não tinha nenhum sinal do meu viking.
— Minha nossa! — gemi, sentindo dor entre as pernas
quando me levantei da cama.
Não estava nem conseguindo andar direito, ainda podia senti-
lo dentro de mim em cada passo que eu dava.
— Onde eu estava com a cabeça quando pedi para ele me
foder com força? — Fui andando devagar pelo quarto.
Não podia chamá-lo, porque fui idiota o suficiente para não
perguntar seu nome e achar que isso era uma maneira de protegê-
lo.
— Como se John fosse saber o que fiz! — resmunguei,
sentindo uma coisa estranha porque não havia nenhum sinal de que
houvesse outra pessoa ali.
Era como se nunca houvesse existido. O pensamento intruso
não foi confortável. Ele não iria embora sem se despedir.
— Não... — Uma risada escapou. — Ele não faria isso.
Aquele homem era incrível demais para simplesmente ir
embora sem olhar para trás. Ignorando o mal-estar, o procurei na
sala, mas, como o quarto, não haviam sinais de que outra pessoa
tenha passado por ali, tudo estava impecavelmente arrumado, sem
vestígios.
— Não é possível. — Olhei ao redor e a incredulidade foi
tomando conta de mim.
Eu não estava sonhando, a dor entre as minhas pernas eram
o sinal de que tudo aconteceu.
Indo para o banheiro, me deparei com uma tolha
perfeitamente dobrada e seca. Na verdade, tudo parecia arrumado,
limpo, como se apenas eu houvesse habitado aquele quarto.
— Como? — Não havia nenhum sinal dele.
Mas quando olhei para o meu corpo diante do espelho, as
marcas estavam ali. Os chupões, os seios inchados e a minha
intimidade doendo comprovavam que eu não havia passado a noite
sozinha.
— Talvez, ele tenha ido tomar café.
A esperança cresceu e eu me apressei em tomar um banho
para ir até o saguão. Não levou mais de quinze minutos para que eu
chegasse até o restaurante do hotel e o encontrasse vazio.
Já passava de uma da tarde, as pessoas estavam
almoçando.
E ele não estava ali...
— Não pode ser.
Segurando a vontade de chorar como uma completa idiota,
ergui o queixo, indo para a recepção.
— Boa tarde, senhorita, em que posso ajudá-la?
Sentindo-me ansiosa, dei-me conta do quanto toda a situação
era absurda. Eu nem ao menos sabia o nome do homem que eu
passei a noite.
Parabéns, Jenny, sua grande imbecil. Em que merda você
estava pensando quando decidiu que era melhor o anonimato
unilateral? Ele sabe sobre você, mas é apenas isso.
— Eu estou no quarto 752. — Respirei fundo, para não
gaguejar. — E eu quero saber no nome de quem está registrado.
O recepcionista ficou me olhando por uns cinco segundos
não disfarçando todos os julgamentos que estava fazendo. Pude
ver, claramente, a palavra “vadia” brilhando nos olhos do rapaz e na
expressão de pura zombaria.
— Está no nome de Jenny Monroe. — Balançando a cabeça,
neguei suas palavras. — E está pago até terça-feira.
— Mas... quem pagou?
— Senhorita, você é Jenny Monroe?
Meu rosto foi esquentando, o olhar que recebia era
condenatório e, ao mesmo tempo, superior.
— Eu sou, mas tinha um homem hospedado no quarto... — a
frase soou ridícula — antes de mim. Ele estava hospedado antes de
mim, qual o nome dele?
— Não compartilhamos os nomes dos hóspedes. Protocolo
de segurança do hotel, desculpe-me.
Minhas mãos começaram a tremer, um desespero crescia a
cada instante que a realidade me golpeava. Quando eu quis ficar
com ele, todo o ar misterioso pareceu-me interessante, mas agora
imaginar que eu ia viver sem ao menos saber o nome do homem
que me tornou uma mulher machucava.
A culpa é sua... Engolindo em seco, a sensação que eu tive
foi que havia areia nos meus olhos.
— Por favor. — Lembrei-me do que aquela mulher no bar
havia me dito, que ele estava ali em um grupo e que era
impressionante. — Parece que estava em família, o número do
quarto é o 752.
— Moça, você está confusa, não estou entendendo onde
quer chegar.
— Tudo bem. — Respirei fundo, erguendo a mão para tentar
parecer menos louca. — Só veja quem estava hospedado no quarto
antes de mim.
Como se eu fosse idiota, ele disse:
— Sinto muito, não compartilhamos a identidade os
hóspedes.
— Eu só preciso de um nome e...
Não tive tempo de terminar o que ia dizer, a agente de um
dos artistas de David se aproximou de mim, interrompendo qualquer
possível diálogo com o recepcionista.
— Jenny, finalmente te encontrei. — Ela segurou meu braço.
— Você soube o que aconteceu? — Seu tom foi totalmente
confidencial.
— O quê? — tentei soar inocente, eu sabia que o assunto era
sobre o bastardo abusador.
— O Sr. Barack foi encontrado desacordado no banheiro do
quarto.
Uma pedra caiu no meu estômago, senti-me gelar dos pés à
cabeça imaginando o que ela poderia me dizer a seguir.
Será que tinha ideia de que eu estava no quarto com ele? A
dúvida começou a me corroer numa velocidade alarmante.
— Ele morreu?
— Não, mas o estado é grave. — Ela balançou a cabeça,
estava um tanto pálida. — Parece que ele sofreu um acidente.
— Que tipo de acidente?
— Pelo que estão dizendo, ele escorregou e bateu a cabeça
no vidro do boxe. — Pelo tom, pude perceber o quanto estava
horrorizada.
Talvez não fizesse ideia do quanto David era um filho da puta,
que merecia se foder muito.
— Ele estava sozinho no quarto, por isso o socorro demorou
a chegar.
— Como você sabe disso tudo?
— Eu percebi que ele estava atrasado para tratar de algumas
pendências e fui até o quarto — ela suspirou. — Estou com uma
bomba nas mãos.
— Por quê?
— Eu vi as câmeras do corredor.
Estou fodida, meu Deus, estou muito fodida! Tentei disfarçar,
mas estava apavorada demais, em pânico real.
— Você está bem?
— Sim, estou. — Engoli o bolo em minha garganta. — O que
você viu?
— David entrando sozinho no quarto, às três da madrugada.
Ele só foi encontrado hoje pela manhã, você não estava no quarto
com ele?
Meu Deus! Ela sabia, estava me sondando, tinha certeza.
— Não. — Mantive a voz uniforme. — Estou hospedada em
outro andar. Mais para cima.
— Ah, eu pensei que você pudesse me ajudar, eu estava
esperando que tivesse respostas. O Sr. Barack não me disse que
você estava em outro quarto, eu pensei que...
— Pensou errado, eu estou sozinha.
— Eu sei, desculpe-me, mas está tudo complicado demais.
— Ela esfregou o rosto. — Quando nos encontramos no bar do
hotel, você se lembra de que horas eram?
— Quase três — respondi apressadamente. — Estava
conversando com um rapaz, o relógio do bar ficava bem em frente.
— Eu não me lembro exatamente, mas, pelas minhas contas,
temos cinco minutos do horário, mas eu sei que ele subiu para o
quarto. As câmeras do hotel só filmaram até o momento que ele
estava subindo, depois nada.
O que você fez? Quando meu viking havia dito que tinha
resolvido, ele de fato o tinha. Mas como ele mexeu nas câmeras do
hotel?
— Olha, eu não faço ideia do horário. Inclusive, hoje eu tinha
que conversar com o Sr. Barack sobre um possível contrato, mas eu
acho que não vamos fechar. Eu super entendo, e estimo melhoras
para ele.
— Eu vou resolver isso, ele me deixou avisada sobre você.
Não queria esse contrato, isso seria o passaporte de John
para dar andamento ao seu plano infeliz. Na verdade, eu não queria
fama, nada dessas coisas.
Eu só queria uma vida tranquila, paz e escrever as minhas
músicas. Não buscava holofotes sobre mim. nunca busquei.
— Sim, você vai assinar conosco. Eu irei agenciar sua
carreira, ele não quer representantes fora da empresa. — Ela sorriu.
— Sei que o seu pai cuida de sua carreira, mas o Sr. Barack não
gosta desse tipo de coisa, pode causar conflitos de interesses.
— Eu entendo, e até prefiro.
Talvez, conseguisse impedir que John tivesse o acesso a
gravadora que ele desejava. Se ele não fosse meu agente, seria um
mero acompanhante, então, não estaria por dentro dos contratos.
— Diga que pode cantar hoje no festival, temos uma vaga,
um dos nossos cantores está... impossibilitado.
— Sem condições para subir ao palco? — questionei,
sabendo que poderia ter sido excesso de droga e álcool.
Era o que mais tinha dentro daquele meio.
— Isso.
Um homem se aproximou, chamando-a. Antes que ela
pudesse ir muito longe, pude ouvir:
— Ele está em coma, parece que foi um aneurisma.
A certeza de que eu não havia errado quando reparei que
meu viking era perigoso apenas se confirmou.
Ele quase matou David...
Saber disso não me afetou muito, na verdade eu desejava
que David e todos os homens como ele encontrassem pessoas mais
fortes e capazes de lhes apresentar uma nova perspectiva.
A da vítima.
John merecia encontrar alguém que lhe desse um tratamento
pior. Alguém capaz de lhe enviar só com passagem de ida para o
inferno. Então ele saberia como era se sentir à mercê de alguém
mais forte e sem misericórdia, que lhe dispensaria a mesma cortesia
que ele dava aos outros, ou seja, nenhuma!
Mas não existia alguém capaz de fazer tal coisa. John era
forte demais, implacável demais para ser vítima de alguém.
— Deseja mais alguma coisa, senhorita? — Olhei para o
recepcionista, negando.
Não havia mais o que fazer, talvez nunca soubesse o nome
do meu viking. Sentindo-me sozinha, voltei para o quarto. O silêncio
me saudou, juntamente com o frio daquela tarde cinzenta.
Era tão surreal que ele houvesse desaparecido sem deixar
vestígios. Se não fosse os sinais em meu corpo, o cheiro sutil de
seu perfume pairando no ar, jamais diria que esteve aqui.
— Você foi sem se despedir. — Abraçando meu corpo, me
encaminhei para a varanda.
Relembrar o que aconteceu naquele mesmo lugar, acendeu
uma fagulha em meu coração, e eu jamais deixaria que ela se
apagasse.
Não foi um sonho. Fechando os olhos, ergui a cabeça,
sorrindo para o céu.
— Você me salvou. Mesmo sem saber, você me salvou.
Ele havia me dado um segredo para aquecer as minhas
lembranças quando tudo não passasse de sofrimento, ele também
me deu saudade e a esperança de reencontrá-lo outra vez.
— Meu viking ruivo e lindo. — Sorrindo, senti uma lágrima
escorrer. — Hoje no festival, cantarei pensando em você.
Obrigada por olhar para mim e perceber que eu precisava de
ajuda.
17
Gabriel Demonidhes

A sensação de que alguma coisa estava muito errada


continuava me deixando incomodado. Normalmente, não ficava
dando voltas acerca do que era certo ou errado quando tomava uma
decisão, e não, não me arrependia de nada.
Sempre fui capaz de arcar com quaisquer consequências,
sejam elas quais fossem. O problema é que agora o que me
incomodava não era uma situação de conflito, ou qualquer maldito
contratempo na Ordem, tampouco o meu trabalho no Departamento
de Combate a Incêndios. Não havia nada para resolver, não havia
conflito — pelo menos externo — que requeresse minha atenção.
Sobrava tempo para pensar e tentar entender que merda era
aquela que parecia estar furando meu peito a cada minuto que se
passava.
Eu era um bastardo impaciente, imediatista demais, estava
quase sempre metendo os pés pelas mãos apenas pelo prazer de
ver o caos desenrolando. Gostava da confusão, da loucura que
atitudes impensadas causavam, mas agora não existia nada disso.
E era esse silêncio que me incomodava.
— Merda. — Balancei a cabeça. — Que porra é essa?
Pela primeira vez em anos, minha mente conturbada havia
encontrado a paz, havia um silêncio interno tão absurdo que me
deixava calmo. Era estranho não sentir aquele turbilhão frenético,
nem a louca necessidade de extrapolar os limites enquanto deixava
minha segurança pairando por um fio.
Jenny Monroe, você é a culpada por eu estar deliciosamente
esgotado. A garota que foi a minha obsessão por dois longos anos
acabou se convertendo na melhor noite da minha vida.
Não sei onde diabos eu estava com a cabeça quando quebrei
todas as minhas regras. Eu não trepava com virgens, não suportava
garotas mais novas e menos ainda tão delicadas quanto Jenny
Monroe.
Sua insistência deveria ter sido nada comparada a minha
vontade. Eu era capaz de resistir, mas por que não o fiz? Como eu
pude transar com ela? Como pude curtir pós-sexo abraçando-a
porque a ideia de não fazer isso parecia absurda demais?
— Que porra do caralho é essa me remoendo por dentro? —
Respirei fundo, começando a ficar irritado.
Foi um erro, a melhor foda da minha vida foi um erro e eu não
ia ficar pensando nisso mais do que o necessário.
O que aconteceu era algo que não ia se repetir.
— É isso. — Baixei a aba do meu boné, porque eu estava
sendo observado.
E com certeza, nenhum deles parecia como se estivesse
prestes a despressurizar a cabine para saltar em direção ao oceano
atrás do paraquedas que não tinha colocado.
Inclusive, saudade de fazer exatamente aquilo. Era uma das
melhores sensações que já tive, ver a mochila caindo, enquanto eu
ia em sua direção, vendo que meu tempo para fazer aquilo não virar
um salto mortal se esgotava...
Talvez, fazer isso me ajudasse a não pensar em uma certa
garota.
Você está louco, bastardo! Cruzei os braços, precisando de
uma distração, por isso comecei a reparar na dinâmica dentro do
avião. Havíamos decolado cerca de três horas atrás, cada um havia
buscado seu próprio espaço como habitual, só que, daquela vez,
nada de silêncio absoluto.
— Malen’kiy, apenas converse comigo, já chega de me
ignorar. — Rafael continuava tentando fazer as pazes com Amira.
Para mim, ainda era um absurdo a total incapacidade que
meu irmão tinha de controlar a si mesmo quando estava com sua
mulher, pior ainda, que ela — mesmo tendo aceitado ficar
aconchegada em seus braços — continuasse o ignorando com tanta
perícia, que meu irmão já dava os primeiros sinais de que seu
controle escorregava.
Razhiel seguia trabalhando no computador, o som das teclas
soava quase como música. Pude perceber que ele estava lidando
com algum problema, a julgar pela quantidade de vezes que
comprimiu os lábios, ajustando os óculos e respirando fundo como
se buscasse paciência.
Ele não era do tipo que demonstrava muita coisa, gostava de
manter seus assuntos em sigilo, e isso era algo que nos deixava
preocupados.
Lysander seguia como de costume. Braços cruzados, pernas
esticadas e o olhar fixo em algum ponto no corredor do avião. Meu
irmão parecia uma estátua viva, mal notava sua respiração, mas eu
podia enxergar com clareza que seus olhos refletiam uma solidão
tão profunda, que nem mesmo a unidade que os Demonidhes
representavam era suficiente para preencher aquele vazio.
A cada dia meu irmão parecia mais e mais afundado dentro
da loucura que consumia cada um de nós, era o nosso inferno
individual e que ia nos empurrando mais e mais à beira do
precipício. De certa forma, compreendia que esse era o pagamento
por nossos pecados.
Há mais de uma década convivia todos os dias com uma
fome insaciável, que era alimentada unicamente pela minha própria
loucura.
Uma loucura que — especialmente hoje — estava
apaziguada. Não queria pensar muito sobre isso, recusava-me a
acreditar que uma boceta fosse a responsável por me deixar menos
propenso a sair explodindo coisas.
Era apenas inaceitável.
Jamais me permitiria cometer tamanho erro outra vez.
Garotas inocentes são um grande problema, elas são sensíveis
demais, melosas, gostam dessas idiotices românticas e que só
servem para encher o saco.
Mas fora que não havia conseguido me afastar! Admitir era
aterrorizante.
Sempre mantive as mulheres a um braço de distância, sexo
era apenas isso, sexo. O problema é que daquela vez foi diferente.
— Merda de garota viciante! — Estava muito puto com toda a
situação.
O melhor sexo da minha vida foi com uma garota virgem e
sem um pingo de experiência. Nem uma mamada no pau eu recebi,
mas isso não fez a menor diferença. Só de pensar no tesão que foi
sentir meu pau entrando naquela boceta apertada, meu corpo
arrepiava.
Porra... Apoiei os braços nas pernas, permitindo que minha
cabeça pendesse para a frente. Estava cansado ao mesmo tempo
que havia uma poderosa energia crepitando ao meu redor.
Era como se aquele vício por adrenalina houvesse
apaziguado quando a maldita garota me fez gozar a ponto de ver
estrelas. Há anos não sentia tanto prazer, ou cobicei os gemidos de
uma mulher.
Se eu fechasse os olhos, poderia sentir o cheiro gostoso do
cabelo longo e bonito, a textura macia que me surpreendeu
enquanto meus dedos entremeavam-se pelos fios sedosos.
— Caralho. — Senti meu pau estremecer, minha boca
salivando para lamber sua pele delicada.
O jeito que ela reagia ao meu toque, atiçava aquele lado
obscuro e possessivo. Até a respiração dela me excitava, cada vez
que ela arquejava em busca de ar, como se estivesse sufocando, eu
sentia meu pau sendo apertado pela boceta gostosa.
— Que mulher deliciosa. — Esfreguei o rosto, ainda sem
entender minha reação.
Quando acordei, percebi que estava agarrado a ela, mal pude
sair do quarto rápido o suficiente.
Eu não era daquele jeito, não gostava daquilo.
Porra! Eu nem dedicava outro pensamento para as minhas
fodas, mas com Jenny Monroe tudo foi e era diferente. Estava
pensando nela desde que a deixei. E nada fazia o meu foco mudar.
— Você parece um tanto agitado, irmãozinho. — Heylel
largou-se na poltrona ao meu lado. — O que está te deixando tão
irritado?
— Nada.
— A culpa não seria de alguém com cerca de um metro e
cinquenta, olhos de animalzinho assustado e voz de anjo? — Havia
sarcasmo e diversão na voz do grande bastardo.
Ao ouvi-lo falar dela, o ciúme me correu. Eu o olhei e não sei
o que Heylel viu, pois sua postura mudou. Ele cruzou os braços,
encarando-me atentamente.
— Não ouse. — Forcei as palavras através dos dentes
trincados. — Razhiel, você fez o que eu pedi? — Não ia dar margem
para um assunto que fosse diferente daquele.
— Sistema de câmeras e registro do hotel foram alterados! —
Razhiel falou alto, sem tirar os olhos da tela do seu computador.
O bastardo parecia focado demais, todavia acreditar que não
estava prestando atenção em tudo que acontecia ao seu redor era
um erro que jamais iria cometer.
Razhiel era parecido demais com Rafael e em quase todos
os outros quesitos.
— Houve muita movimentação durante a madrugada. —
Heylel estreitou os olhos, o piercing na sobrancelha repuxou um
pouco. — Hoje eu estive ocupado de olho na equipe que
acompanhava o empresário que você arrebentou.
Ele não ia deixar o assunto afinal.
— Não foi culpa minha, ele caiu enquanto tomava banho. —
Dei de ombros. — Cesse a conversa.
— Por que, Gabriel? Você arrebentou o cara. — Notei que
não havia recriminação na voz de Heylel. Entretanto, por qual
motivo ele continuava levantando o assunto eu ainda não sabia.
— Por que eu deveria me preocupar? — Estreitei os olhos,
deixando claro ao meu irmão que não me importava por ele estar
explanando algo que não deveria.
— O que vocês aprontaram? — Rafael inquiriu. Seu tom de
voz baixo e aparentemente indiferente soava como se ele não se
importasse, mas, na verdade, as portas do inferno estavam sendo
abertas.
Eu sabia — todos nós na verdade — que ele nunca alterava
a voz, e quando falava assim, parecendo tão controlado, era motivo
para temer.
Sua mansidão era prenúncio de tempestade, soando mais
ameaçadora que uma arma apontada para a cabeça.
— Vocês vão me contar o que aconteceu ou terei que
descobrir eu mesmo? — Pude ouvir meu irmão respirando fundo. —
Gabriel?
Deixei que Heylel visse o quanto eu estava puto. Ele ter
abordado o assunto tendo ciência de onde chegaríamos, foi
proposital. Rafael não deixava nada passar, todos esses bastardos
sabiam disso.
— Gabriel foi o cavaleiro errante da noite passada — Razhiel
disse em alto e bom som.
Ele parecia a porra de um nerd gentil, mas gostava de ver as
coisas incendiando, cutucava, nos incitando a ir até o fim mesmo
quando não queríamos.
Nada apaziguador.
— Por que eu não fui informado disso? — Ouvi meu irmão
respirando fundo e não me dei ao trabalho de olhar para ele.
Certamente ele estaria me encarando com os olhos fervendo de
raiva. — Heylel, me atualize.
Arqueando a sobrancelha, reparei que Heylel estava
divertindo-se. Seja lá o que ele pretendia, estava pouco se
importando com a confusão.
— Como disse, Gabriel arrebentou o homem. — Heylel
inclinou a cabeça. — Ele está em coma, teve ossos quebrados. Foi
encontrado desacordado, com um talho na cabeça dentro do boxe.
— Estimo melhoras. — Sorri, lembrando do quanto foi
divertido para mim acabar com o bastardo que queria machucar a
minha Jenny, digo, machucar a cantora.
— Como você fez? — Rafael sequer piscava, com os olhos
fixos em mim.
— Eu usei o dispositivo de Amira nele. Ele caiu, os ouvidos
estavam sangrando — revelei. — Os ossos quebraram na queda, eu
acho. — Ergui o punho, não escondendo o sorriso. — Fim da
história.
Heylel inclinou para a frente, com os olhos fixos em mim. Ele
balançou a cabeça, não deixando transparecer nada de suas
emoções. Isso era irritante pra caralho, essa frieza, indiferença.
— Irmão, você pode me encarar o quanto quiser, não me
importo. Tampouco me arrependo do que fiz.
— Você não teve nenhum cuidado, poderia ter usado
somente o dispositivo, mas você foi longe demais. — Heylel
esfregou o rosto. — Irmão, você quase o matou.
— Ele teve sorte. — Relaxei contra a poltrona. — Ele teve
muita sorte.
— Suponho que você tenha uma justificativa para ter agido
assim? — A voz de Rafael soou tão gelada, que senti os pelos da
nuca se arrepiarem.
Odiava quando me sentia, como se houvesse feito algo de
errado. Rafael não era Roman, eu não tinha que me sentir estúpido
por irritá-lo.
— Ele me encarou por mais de dois segundos, e eu não
gostei.
— Gabriel!
— O quê? — rosnei, puto com a inquisição. — Por que você
vai me questionar? Eu tive as minhas razões, e não me arrependo!
Faria tudo de novo se pudesse, quantas vezes fossem preciso.
Não suportava ficar me justificando, ou prestando contas da
minhas ações como se Rafael fosse responsável por mim.
Foda-se, eu disse que não me importava com as
consequências dos meus atos, e não estava mentindo. Se Rafael
quisesse me punir por ser imprudente, então ele que o fizesse.
— Você precisa ser um pouco menos impulsivo — Rafael
suspirou, como se eu o houvesse compreendido errado.
— Ele era um estuprador, porra! — falei alto, então parei um
momento, respirando fundo. Não queria brigar com meu irmão por
um assunto acabado.
Nunca mais veria Jenny, tampouco David. Eles eram
passado.
— Irmão... — Rafael franziu o cenho.
— A garota estava desesperada, ela me escolheu! —
Esfreguei o rosto. — Ela me pediu ajuda. Como eu iria virar as
costas e fingir que não podia ajudar? Sabe o que me custou?
Absolutamente nada! Ela ia ser estuprada. Se você fizer uma
pesquisa breve vai descobrir os casos abafados de estupro que
circulam dentro da gravadora que o bastardo é CEO. Eu deveria ter
acabado com a vida dele, esse é meu único arrependimento de
todos os fatos da noite.
— Se você houvesse usado o dispositivo por um minuto, ele
teria morrido — Amira bocejou, estava tão acostumada com nossa
conduta que parecia nem se importar mais. — Você não teria
machucado a mão.
— Não machuquei, gatinha. — Olhei para os nódulos dos
dedos, estavam meramente vermelhos poderia dizer que havia sido
o frio inclusive. — Obrigado por se importar.
— Sempre me importarei, vocês são minha família. O que
tenho de mais importante no mundo inteiro. — Ela sorriu. — E isso
inclui Corso e Yang. Eles também são família.
— Sim, eles são. — Não pude evitar o sorrido ao ver Rafael
olhar para o teto, como se pedisse intervenção Divina.
Amira era uma Demonidhes até a medula, ela não se
acovardava. Havia aprendido onde era seu lugar em nossa família,
e era no topo, com todos nós. Ela sabia que podia dizer o que
quisesse, que nós a ouviríamos.
Ela era nossa.
Para cuidar, proteger e servir. Ela e a criança que carregava
eram o mais importante de nossas vidas. Se algo acontecesse a ela,
então, a nossa família ia quebrar porque eu não sabia se Rafael
aguentaria.
— Você ajudou alguém que não podia se salvar, eu estou
muito feliz que você tenha feito isso, Gabriel. — Amira estendeu a
mão para mim. — Estou muito feliz que você estava lá para ela e
não se preocupou com as consequências. Ela jamais esquecerá o
que você fez, eu estou realmente feliz que você se importou.
— Eu também, gatinha. — Pisquei um olho para ela.
— Você precisa que eu faça algo, irmãozinho? — Rafael
acariciou os cabelos de sua esposa, um hábito que a cada dia ficava
pior.
— Não, eu já deixei tudo organizado.
Eu esperava que o assunto fosse encerrado. Mas quando
Rafael pigarreou, eu sabia que havia mais.
Sempre havia.
— Se houver uma outra vez, quero ser avisado com
antecedência. — Rafael ajustou Amira em seu colo. — Estávamos
em um lugar complicado para agir sem pensar no depois, ainda que
eu entenda suas motivações, não posso deixar de salientar que
qualquer atitude desta natureza deve ser tomada com muito
cuidado.
Meu irmão era um líder muito inteligente, conhecia os limites
de cada um de nós, sabendo empurrar e recuar nos momentos
certos, ele sabia do meu temperamento colérico, e que não tinha os
atributos necessários para agir com frieza.
— O homem está vivo. — Abanei a mão, fazendo pouco
caso. — Se eu não houvesse me livrado do mau humor na Casa da
Rainha, teria desmembrado o bastardo e deixado as peças
espalhadas no quarto para qualquer um encontrar. — Pensar no
sofrimento dele me trouxe satisfação.
— Isso seria uma forma peculiar de cortejar a sua garota. —
Razhiel fechou o computador, encarando-me. — Por que complicar
tanto? Desmembramentos sempre são um problema para limpar.
— Não se você tirar o sangue primeiro. — A voz de Lysander
ecoou como um pesadelo frio e apavorante. — Sem sangue, sem
sujeira. Fica mais fácil cortar. — Ele me olhou, a expressão cruel era
ainda mais terrível que suas palavras.
Nos livros da Ordem, Lysander era descrito como o mais
cruel torturador do último século. Ele era o general de sua
especialidade, e seu livro de honra escorreria sangue se fosse
espremido.
Inclusive, algumas páginas foram censuradas para os jovens
em treinamento.
Meu irmão era perverso demais, sádico, um verdadeiro
psicopata. As pessoas não faziam ideia do quanto ele era perigoso
apenas porque não consideravam que ele pudesse ser.
Nenhum de nós havia sido preso por nosso pai, Lysander já
foi. O seu demônio particular era o pior de todos, pois carregava
desejo por sangue, dor e sofrimento.
Ele perdeu o controle uma vez e sua mente foi junto. Trazê-lo
de volta foi a coisa mais difícil de se fazer desde que nossa família
se formou.
Foi necessário muito resiliência de todos nós, sangue
derramado, dor e ossos quebrados.
— Vocês não fazem sentido, a conversa girava em torno de
um espancamento... — A voz de Amira soou como melodia em meio
a pequena turbulência que nós facilmente criávamos.
— Queda — eu a corrigi, divertindo-me.
— Okay, eu entendi o significado dessa “queda”. — Ela
revirou os olhos, haviam olheiras profundas, podia perceber o
cansaço em seu semblante. — Vocês estão falando sobre
desmembramentos, no mesmo tom de conversa cordial. Não
acredito que vocês façam algo do tipo. — Ela olhou para Lysander.
— Você não faz, né?
— Eu faço, inclusive tenho predileção por coisas
particularmente hediondas que não vem ao caso agora. — Lysander
deu de ombros, não havia nenhuma emoção aparente em sua voz
ou expressão. — Isso a assusta?
O silêncio reinou enquanto Amira e Lysander se encaravam
por alguns instantes. Então ela deu de ombros, suspirando.
— Assusta, mas não me importo realmente. Pessoas ruins
devem pagar por seus crimes. — Ela se levantou do colo de Rafael.
— Eu vou para a cama, meus pés estão doendo.
Ela estava com a mão na barriga. Na verdade, andava com a
mão ali, como se estivesse sustentando seu bebê monstro.
Sua barriga estava linda, pequenina, redonda. O
comportamento de todos nós giravam em torno dela e de sua
gravidez.
— Eu vou examiná-la. — Lysander também se levantou,
oferecendo a mão.
— Obrigada, Lysander. — Ela sorriu, apoiando-se nele. —
Minha cadeira no laboratório está alta demais, meus pés ficam
pendurados. Acho que por isso estão ficando inchados.
— Por que não me disse isso, Malen’kiy? — Rafael ergueu-
se, pegando a mão dela e a puxando para si.
— Você não me conta tudo, então não espere que eu faça o
mesmo.
Meu irmão suspirou, eu pude perceber como estava cansado.
Amira ainda não lidava bem com mudanças, ele sabia disso e
mesmo assim levou Corso sem avisá-la. Rafael errou, agora
bastava admitir e trazer o cachorro de volta.
— Amira...
— Sim? — Ela o encarou com aqueles olhos grandes demais
para o rosto pequeno. Meu irmão ergueu as mãos.
— Eu desisto. Desta vez, você ganhou. — O rosto bonito da
minha cunhada iluminou.
Até ousaria dizer que a apatia em seu semblante estava
desaparecendo diante dos meus olhos.
— Eu te amo. — Amira abraçou Rafael, beijando-o.
Não pude esconder o riso, lá estava meu irmão derretido pela
sua mulher e ele nem escondia mais isso de nós.
— Então, se já terminaram com essa demonstração inútil de
afeto — havia certo nojo na voz de Lysander —, podemos ir?
— Me sinto bem melhor. — Amira sorriu, mas Rafael a guiou
em direção ao quarto.
— É inacreditável como ela aprendeu a conseguir tudo que
deseja. — A situação de Rafael era no mínimo ridícula, Amira o
dominava e ele sabia disso, mas não se importava. — Rafael perde
continuamente para Amira.
— Ele a deixa ganhar. — Heylel esticou as pernas
confortavelmente. — Você esperava algo diferente? Ela é o coração
do nosso irmão, pelo menos a parte boa.
— Não, mas ainda é um absurdo, sabendo quem é Rafael. —
Apertei o botão, chamando a comissária de bordo.
— Não se iluda achando que nosso irmão está amolecendo.
— Razhiel retirou os óculos, havia um sorriso conhecedor em seus
lábios. — Acho que você percebeu que ele está infinitas vezes mais
perigoso, intransigente e tirano.
— Eu sei muito bem. Em todo caso, reafirmo, eu nunca me
permitirei estar nas mãos de uma mulher. — Torci a boca, o mero
pensamento soava ridículo. — Afinal, uma só não conseguiria lidar
comigo.
Essa era uma das maiores mentiras da minha vida.
18
Gabriel Demonidhes

O cheiro gostoso e adocicado fustigava meu nariz. Antes de


abrir os olhos, eu sabia que era ela. Não pude evitar puxá-la ainda
mais para mim, queria que seu cheiro adocicado penetrasse em
minha pele, marcando-me como as cicatrizes que enfeitavam meu
corpo.
Temendo despertá-la e perder qualquer instante daquele
momento, fiquei quieto, deixando de lado — mesmo que
brevemente — as minhas ressalvas. Ninguém, além de mim,
saberia que eu estava apertando-a tão fervorosamente, querendo
saciar o desejo que sentia por ela, há mais tempo do que me
permitia aceitar.
— Porra, que delícia! — murmurei contra seu cabelo,
esfregando o nariz na maciez aveludada.
Ela se aconchegou, buscando meu calor. Era como se
compreendesse que ali estava segura, que eu a defenderia de
qualquer criatura que ousasse machucá-la.
Se alguém houvesse me dito que eu encontraria a garota que
sou malditamente obcecado pelos últimos dois anos, não
acreditaria. Pior, que ela estivesse precisando de ajuda, num dia
particularmente ruim para mim.
Não planejava levar ninguém para o meu quarto, mas,
quando eu a vi ali, foi quase como uma provocação do destino. Não
estava saciado, as horas da House of Queen não serviram para
apaziguar aquela fome insaciável que me apunhalava.
Precisava de mais, algo que me fizesse esquecer — mesmo
que momentaneamente — o ódio que eu sentia de Draikov.
Jenny Monroe foi uma surpresa, e, apesar de estar com ela
em meus braços, não deveria ter deixado as coisas irem tão longe.
Ajudá-la foi fácil demais, quase uma brincadeira, e era para ter
acabado aí.
Mas não, eu me deixei seduzir.
— Caralho! — soltei o fôlego, impactado com sua beleza.
Eu sabia que ela era linda, mas não que me deixaria
emudecido e completamente vidrado. Cabelos longos e castanhos
emolduravam um rosto delicado e feminino. A boca rosada parecia
me convidar com cada maldita palavra que ela proferia, o tom de
voz me acalmava, ao mesmo tempo que incitava a violência.
A mulher despertava sentimentos dúbios, conflitantes e
inesperados. Ela me enfeitiçava com seus olhos desesperados, que
imploravam por consentimento. Aquele toque de angústia
misturando-se com necessidade eram intoxicantes.
Eu deveria ter dito não e ponto final, mas eu a quis.
O certo era ter me afastado, mas como oferecer droga a um
viciado esperando que ele recusasse? Era simplesmente
impossível.
Em anos, ela foi a única mulher capaz de silenciar o meu
tomento interno, me saciando sexualmente, enquanto acalmava os
meus desejos insanos. Ela me deu o melhor sexo da porra da minha
vida, entregou a virgindade para ser tomada por um bruto como eu,
não exigiu caralho nenhum, igualando minha paixão.
Eu a queria mais. Desejava ardentemente o que apenas ela
foi capaz de me dar.
Queria a inocência, a paixão, o desespero com que me
buscava e a surpresa com o prazer avassalador que nos envolvia,
queria sentir o meu pau penetrando a boceta apertada, enquanto ela
gemia, arranhando-me, completamente entregue àquela loucura que
criávamos juntos, só de imaginar suas reações enquanto eu
chupava, sentia o pau doendo de tanto tesão.
Queria mais...
Queria Jenny Monroe outra vez...

— Gabriel! — A voz estrondosa de Lysander me despertou.


Balançando a cabeça, não soube imediatamente se estava
sonhando acordado ou divagando naquele estado de
semiconsciência. Sentia-me excitado, o coração acelerado e o
cheiro dela flutuando ao meu redor, provocando-me a fazer algo a
respeito.
Era como se ela houvesse acabado de sair do meu lado.
Porra!
— Acorda, bastardo, você estava gemendo. — Lysander
estreitou os olhos, analisando-me daquele jeito incriminatório e que
me fazia sentir culpado mesmo eu não sendo. — Quem é Jenny?
A menção do nome dela, eu me ajeitei. Estávamos ambos
acordados, a luz de leitura iluminava parcamente nossos rostos,
permitindo-me enxergar Razhiel e Heylel dormindo do outro lado do
avião.
— Gabriel, quem é Jenny?
— Ninguém. — Cruzei os braços, não admitindo
questionamentos, ele não tinha que saber mais do que já havia sido
dito.
Lysander recostou-se em sua poltrona, numa posição
confortável demais para o meu gosto. Pegando seu corpo de
bebida, ele girou o líquido, cheirando-o brevemente antes de sorver
um gole.
— Um bom uísque leva anos para ficar pronto. Ele precisa
passar por processos meticulosos que exigem cuidado e excelência.
— Ele olhava para o líquido âmbar, girando-o devagar. — Tudo isso
para que apreciadores como eu, possam ir provando para
determinar quais são os melhores, de acordo ao sabor, notas,
fragrância, textura e corpo. — Lysander sorveu outro gole. — Este
aqui, eu diria que o sabor não combina com o corpo. Adicionaria
mais alguns anos em sua levedura e ele estaria perfeito. — Com um
trejeito cínico da boca, ele bebeu mais um gole. — Ainda, prefiro o
The Macallan 1926.
A mudança brusca no assunto, seus gestos metódicos e o
modo frio como agia, sempre me deixavam ansioso.
Odiava que Lysander e Rafael possuíssem esse poder sobre
mim. Nossas diferenças de idades não significavam nada, mas,
ainda assim, ambos estavam numa posição de irmãos mais velhos
que me incitava a recuar na maioria das vezes.
Naquele momento, a atenção de Lysander parecia estar na
merda do uísque enquanto filosofava sobre o assunto, entretanto eu
sabia que isso era uma forma de me confundir.
Detestava isso.
— Você está desconfortável, irmãozinho? — O canto de sua
boca arqueou, como se a pergunta fosse o primeiro passo para
atingir seu objetivo.
E eu sabia que era.
— Não, por que eu estaria? — Arqueei a sobrancelha,
tentando soar tranquilo.
— Irmãozinho. — Lysander parecia estar se divertindo, até o
tom de voz parecia mais macio que o de costume.
Não era preciso muito para eu entender que estava sob seu
radar, o modo como me chamava era o suficiente. Ele não estaria
aqui me questionando se não quisesse descobrir algo.
Com Lysander não havia privacidade para nós, apenas para
ele, essa era a desculpa que ele usava para nos proteger. Por mais
que eu ou os outros guerreassem com esse seu modo vicioso de
agir, ele apenas continuava, como se nada o abalasse.
O Mercador da Morte era conhecedor sobre tudo que o
cercava, e o seu principal alvo era sua família.
— Quantas destas você bebeu? — Indiquei o copo.
— Não o bastante. — Aquele quase sorriso morreu.
Era quase impossível ver Lysander sorrindo, eu nem me
lembrava da última vez que ele deu um sorriso de verdade. Até
Rafael, que parecia viver puto com o mundo, sorria mais que ele. No
geral, qualquer demonstração de humor fora do comum prenunciava
problemas.
— Desde que saímos do hotel, você está esquisito. Onde
estão as piadinhas? — Ele estreitou os olhos. — Você chamou por
essa tal de Jenny cinco vezes, suponho que seja a mesma garota
que você ajudou.
Não respondi de imediato, pois não dava para conversar com
Lysander sem pensar meticulosamente em cada palavra a ser dita.
Ele não era do tipo que esquecia as coisas, e poderia dar voltas no
mesmo assunto até confirmar que não havia brechas a serem
exploradas ou dúvidas.
Ele era obcecado demais, e talvez, isso fosse uma das coisas
responsáveis por torná-lo ainda mais perigoso.
— Sim, eu ajudei. — Sua cabeça inclinou para o lado, os
olhos escurecendo. — Mas isso você já sabe.
— Eu sei?
— Seja claro, o que diabos quer saber? — Inclinei-me em
sua direção — Pergunte de uma maldita vez e, se eu considerar
adequado, responderei.
Outra vez, ao invés de apenas despejar o assunto, ele ficou
calado, avaliando o maldito copo como se sua bebida fosse a coisa
mais importante do mundo.
— Essa garota te afeta e, Gabriel, você a conhece há mais
tempo do que nos fez acreditar.
Eu esperava que ele dissesse qualquer coisa, menos aquilo.
Não sabia exatamente como digerir suas palavras, mas eu ri,
enquanto sentia o sangue fervendo de raiva. Ele não deveria estar
cuidando da minha vida enquanto a sua não era nem um pouco
melhor.
— Você enlouqueceu, Lysander. De onde eu a conheceria?
— Balancei a cabeça, rindo.
Não é possível que ele soubesse.
— Dezembro de dois mil e dezesseis, jantar de boas-vindas a
Heylel após a alta do hospital. Você e Amira falavam sobre uma
garota. E, agora a sua retórica é saudosista, você não a conheceu
ontem como quer nos fazer acreditar. Por isso suponho que seja a
mesma garota, e que, coincidentemente, ela precisou de sua ajuda
ontem. — Ele estreitou os olhos. — Rafael me disse que você pediu
para ficar hospedado no La Riviera. Você sabia que ela estaria lá, e
isso não é uma pergunta.
Merda!
— Que diabos...
— Irmãozinho, você pode enganar a si mesmo, não a mim. —
Sorveu outro gole, como se suas palavras não me atingissem como
um soco na cara. — Percebo que suaviza quando está falando
dessa garota. Devo salientar que sua expressão se torna emocional.
— Ele colocou o copo ao lado, inclinando-se em minha direção. —
Você já a conhecia, e eu quero saber de onde.
Por um momento, eu encarei Lysander sem acreditar que ele
estivesse avaliando as minhas microexpressões para definir o que
havia acontecido no hotel. E o pior que ele estava no caminho certo
de suas afirmações.
— Então, devo investigar eu mesmo? — Arqueou a
sobrancelha, e eu sabia que ele não estava blefando.
Ele iria buscar informações, então Jenny estaria sob seu
radar.
Eu não a queria sob o radar de Lysander. O bastardo era...
Ele era apenas cruel demais.
— Você não ousaria! — Não pude esconder a raiva, não tinha
como esconder, e eu estava cansado desse joguinho ridículo.
Ele não tinha o maldito direito de se meter nas minhas
questões particulares. Isso era ir muito além de suas atribuições na
Ordem. Como meu irmão, ele sabia que precisava existir um limite.
— Gabriel. — Sua voz continuou baixa, mas o tom mudou. —
Isso é um desafio?
Neguei apressadamente.
Há muitos anos eu aprendi a não provocar Lysander em
certos quesitos, e esse era um deles. Meu irmão era um homem
concentrado, metódico e inteligente no modo de pensar. Era o único
Mercador da Morte que a Ordem possuía, isso porque ele se
tornava obcecado demais quando se dedicava a algo.
Era um erro desafiá-lo.
— Não, Lysander, não é um desafio. — Respirei fundo. —
Vamos falar sobre coisas práticas, irmão, não me interessa falar o
que houve nessa maldita viagem para a Inglaterra.
— Esse assunto ainda não acabou, irmãozinho, mas por ora
aceitarei isso. — O meio sorriso estava lá outra vez. — Quais
seriam as coisas práticas? Sou todo ouvidos.
— Quando você vai assinar aquele documento de liberação?
Eu preciso voltar ao trabalho, pretendo investigar pessoalmente o
departamento e descobrir...
— Se há mais agentes da Cöntrax ansiosos para te matar
enquanto você está distraído? No seu segmento da Companhia, não
há. — Deu de ombros. — O departamento de Nova York está em
conformidade. Minha vontade foi feita.
Por um momento, eu o encarei e ele não me deixou ver nada.
Sua expressão era tranquila, até ouso dizer, serena. Às vezes, o
odiava só por isso.
— O que você fez?
— Limpeza.
— Lysander...
— Você acha que deixaríamos tamanha ousadia sem
resposta? — Ele parecia verdadeiramente incrédulo. — Irmãozinho,
enquanto você se recuperava eu cacei.
— Você não deveria ter feito isso. Era meu direito descobrir
os envolvidos e caçá-los. — Não escondi minha indignação. Ele
sabia que havia cometido um abuso.
Nenhum membro — salvo o Senhor da Ordem, e o Mercador
— poderia tomar sub judice, a vingança de outro. Era meu direito
tomar a vida de todos os envolvidos na tentativa de assassinato.
Lysander deveria ter esperado, mesmo sendo quem era. O
problema era que ele não se importava com o quanto agiu errado; e
se o fazia, não deixava transparecer.
— Chronus os rastreou para mim, em poucas horas eu sabia
até a comida preferida de cada um deles. — Balancei a cabeça, ele
deu de ombros. — Tomei o assunto em minhas mãos, usei o meu
direito de Mercador da Morte, agora eles sabem que estou
negociando. A vida de todos os envolvidos no seu atentado e no de
Razhiel, em troca da paz no submundo ou irei matar
indiscriminadamente qualquer um que eu considere culpado, e você
sabe que eu posso considerar todos.
Sim, eu sabia.
Era o direito do Mercador, que apenas ele possuía.
Nesta geração de caçadores, apenas Lysander possuía o
título de Mercador, dado por nosso pai, quando ficou provado que
meu irmão não titubeava quando precisava matar, não que algum
caçador o fazia, mas Lysander era diferente.
Sem sentimentos, como uma máquina de matar, que não
enxergava homens ou mulheres, apenas inimigos para serem
derrubados. Sua obscuridade tinha o poder de atingir seus alvos
antes mesmo que ele se aproximasse, era como se, em
determinados momentos, soltasse o monstro que habitava seu
interior e isso o tornasse mais aterrador do que qualquer um de nós.
Ou todos juntos.
— Lysander, irmão. — Tentei soar calmo, não queria que ele
entrasse naquele caminho de loucura e destruição. Era muito difícil
trazê-lo de volta. — Não tente ser responsável por tudo, certas
coisas você não vai poder controlar.
Sua reação foi estreitar os olhos, como se eu houvesse dito
uma blasfêmia.
— Rafael declarou guerra, eu enviei os corpos como um
aviso de que não daremos recados, irmão. As cabeças de qualquer
membro da Cöntrax, e de seus apoiadores serão empilhadas onde
quer que eles estejam. — Como se estivesse se lembrando de algo
que gostava muito, Lysander fechou os olhos. — Eu anseio o dia
que chegaremos ao topo disso. Outra vez, lavaremos a terra com
sangue, eu não precisarei me conter.
— Disso eu gosto. — Sorri. — Eu gosto o suficiente para
esquecer que você matou os bastardos que eram meus para matar.
Ele me encarou por mais alguns instantes, então me disse:
— Quando chegarmos, você iniciará um novo treinamento.
Heylel vai ajudá-lo. Se ao final de um mês, você estiver cem por
cento em todos os testes...
— Se não percebeu, eu estou ótimo — o interrompi, algo que
ele detestava.
Lysander me deu uma olhada avaliativa, negando.
— Percebo pela sua respiração desregulada. Você está
pálido, irmão, e eu ainda não sei se culpo seu pulmão ou a noite de
foda.
— Culpe os dois, o fato é que eu estou pronto para voltar à
minha antiga vida.
— Em um mês, eu irei avaliá-lo.
— Lysander...
— Um mês. — Recostando-se na poltrona, ele olhou para a
janela.
O gesto me disse que não queria mais conversar. Eu fiz o
mesmo.
Algumas horas depois, o jatinho pousou na pista particular do
nosso Complexo.
Pretendia ir para o meu quarto e dormir por, no mínimo, duas
horas. Era o que eu desejava, antes de Heylel sorrir e apontar para
o ginásio.
— Em uma hora no ringue, vamos iniciar o seu treinamento.
Eu sabia que estava entrando no inferno.

***
10 de abril de 2018
Primavera em Nova York

Meus braços e ombros gritavam de dor, mas continuava


esmurrando violentamente o saco de pancadas. Heylel fazia as
contagens e eu seguia, batendo, indo e voltando, enquanto
controlava a respiração.
Lento e fácil, um passo para a frente e soco; um para trás,
defende.
— Troque o lado — Heylel grunhiu, eu virei, começando a
usar o lado esquerdo.
Todo o peso perdido por causa do tempo de repouso já havia
sido recuperado. Estava me sentindo ágil, forte, capaz de voltar a
minha antiga vida sem medo de porra nenhuma.
Era estranho, mas depois de um mês inteiro de trabalho
intenso, percebia o quanto estava fora de forma. Não teria
demorado tanto para pegar aquele maldito que tentou me matar, eu
o teria percebido antes.
— Hoje é o último dia de treinamento. — Heylel sorriu. —
Lysander vai testá-lo.
— Quando? — ofeguei, abraçando o saco de pancadas.
— Agora, irmãozinho. — A voz de Lysander soou fria como
gelo.
Quando me virei, ele estava ali do lado de fora do ringue.
Vestindo preto, encarando-me pacientemente.
— Você vai lutar comigo.
— Eu estava louco para arrebentar sua cara bonita. — Tirei
as luvas, deixando apenas as faixas de proteção.
Lysander entrou no ringue, esperando-me.
— Boa sorte. — Heylel bateu no meu ombro. — Parece que
Amira vai ficar um milhão mais pobre. Lembre-se de que ela
apostou em você.
— E você deveria confiar mais no seu treinamento.
— Eu confio, mas é com ele que você vai lutar. — Heylel deu
de ombros. — Você não pode esquecer que foi um paciente
problemático, nosso irmão vai castigá-lo agora por ter fugido do
hospital.
No último mês, Lysander esteve me observando atentamente,
e eu me dediquei ao maldito treinamento porque sabia que, quando
ele viesse para esta luta, não teria o mínimo de pena.
Heylel foi implacável, passávamos o dia quase todo no
ginásio, treinando dentro do esquema insano que ele havia
montado. No começo, eu terminava meio morto, passando
literalmente mal.
Foi no decorrer dos dias, do lento avanço da primeira semana
que eu compreendi um pouco da preocupação dos meus irmãos
com meu estado geral.
Eu estava fraco, sentindo falta de ar, tendo muitas noites
maldormidas por conta da respiração ruim. O treino pesado pareceu
levar a melhor no começo, mas as coisas foram evoluindo e agora
eu estava pronto.
Cem por cento de novo.
— Eu espero que você esteja com o seu treinamento em dia,
irmão — alertei, antes de atacá-lo.
Lysander desviou, esmurrando minhas costelas.
— Eu sempre estou. — Piscou um olho, explodindo o punho
na minha boca.
— Vamos nos divertir. — Sorri, cuspindo sangue e o
atacando outra vez.
A dor fazia meu corpo esquentar, eletrizando-me enquanto eu
recebia minha dose de adrenalina. Lysander não ia ser moderado,
ele nunca era.
Agora, eu precisava mostrar que podia ter minha liberdade de
volta, e só conseguiria isso, passando por cima dele.
Quando meu punho conectou com seu rosto, Lysander sorriu.
Eu sabia que a verdadeira brincadeira iria começar.
19
Jenny Monroe

Um tempo depois...

Eu não fazia ideia de quantas vezes eu já havia vomitado


somente naquele dia. Estava me sentindo muito enjoada, o
estômago embrulhado e mal podendo sentir o cheiro de algumas
coisas.
O pior de tudo, com certeza, era o perfume de John. O cheiro
sempre chegava antes, anunciando sua presença. Era com muito
custo que eu conseguia disfarçar o quanto havia se tornado
asqueroso. Cada maldita vez que ele se aproximava, tinha que
prender a respiração, ou começava a suar frio de tanto nojo.
Pela manhã tudo parecia ainda pior. No começo, eu não
estava entendendo, mas, quando comecei a avaliar tudo,
compreendi que isso se devia as semanas de noites péssimas.
Não conseguia dormir, porque vivia num pânico contínuo de
que, a qualquer momento, aquela normalidade que havia se
instalado na casa pudesse acabar.
O medo constante piorava minha ansiedade, virando um
efeito cascata de malefícios que me inundavam desde que eu havia
voltado. A tensão me deixava numa sensação de instabilidade
tremenda, porque estava esperando o dia que John ia voltar a agir
como antes.
Ele não precisava fingir, a época de enganar já acabou há
muito tempo, mas então por que ele estava agindo como um pai
dedicado a mim e marido exemplar para a minha mãe?
— Meu Deus. — Ergui-me, fechando a tampa do vaso e me
sentando.
Meu corpo tremia tanto que eu não sabia se seria capaz de
caminhar. Havia perdido peso, a prova disso eram as minhas roupas
folgadas. Sentia dores estranhas, hipersensibilidade, estava emotiva
demais para alguém que vivia com um psicopata.
Não podia vacilar, se o fizesse corria o risco de acordar com
o bastardo na minha cama. Ele havia prometido que teria sua vez
comigo, disse-me o que pretendia fazer e agora eu vivia apavorada
de que esse dia chegasse.
Conviver com isso estava acabando comigo. Toda incerteza e
sensação de insegurança pareciam uma bomba prestes a explodir
na minha cara.
— Maldito estresse. — Respirei fundo, tentando me acalmar.
Desde que voltei da Inglaterra, John estava muito sorridente,
atencioso e prestativo.
Ele fez algo surpreendente, deixava minha mãe e eu ficarmos
juntas sem nos vigiar. Era tão surreal que, a cada dia, as mudanças
me apavoravam.
“O que ele estava aprontando?”, perguntava-me todos os
dias, mas até hoje não havia encontrado uma resposta. Ele estava
feliz e isso me deixava com a sensação de que estava aguardando
na antessala da pré-condenação.
Eu não sabia se toda a felicidade dele era uma trégua,
porque havia conseguido o contrato, mesmo com ressalvas. Ele
havia negociado, não eu. Entretanto, alguma coisa me dizia que
havia mais, e não saber do que se tratava poderia ser determinante
quando a merda explodisse no ventilador.
Eu tinha certeza de que John estava tramando algo, o
conhecia bem demais para saber que a paz das últimas semanas
não era em vão. Jamais acreditaria que ele havia mudado. Ele ia
voltar ao seu estado normal e, quando o fizesse, faria eu e minha
mãe pagarmos até pelo que não fizemos.
Estávamos há muitos dias sem espancamentos, e isso era
muito surpreendente visto que John não aguentava ficar sem nos
bater, portanto todo esse carinho repentino ainda era um choque.
Sua felicidade era apenas apavorante, pressagiava coisa
ruim. John não era um homem bom, ele estava feliz sim, porque
tudo estava saindo melhor do que o planejado, e o “acidente” de
David fora um bônus excelente, deixando o caminho livre para fazer
o que bem entendesse.
Sem David para se defender das acusações que viriam, John
poderia da continuidade ao seu objetivo: tomar o lugar de David na
gravadora.
Certeza que havia negociado alguma coisa no contrato. Se
ele não pudesse ter o que queria, então por qual motivo estaria
feliz?
“O que ele está esperando?”, questionava-me todos os dias,
pior, o que isso interferia em seu modo de agir?
— Você vai ficar louca. — Recostei a cabeça na parede. —
Por que ele está agindo assim?
John não havia tentado se aproximar, estava me deixando
sozinha, respeitando um espaço que nunca me deu. Acreditava que
era a ansiedade de imaginar quando ele poderia voltar a ser o
mesmo bastardo de sempre, que me deixava tão doente.
— Jenny, querida? — A voz dele soou do outro lado da porta
do banheiro.
Só de ouvir sua voz, os tremores que estavam quase
passando voltaram ainda piores.
O pavor de que ele me visse tão vulnerável, fez a bílis ir
subindo, a minha boca encheu d’água, só tive tempo de chegar até
a pia antes de vomitar outra vez.
Meu Deus, o que está acontecendo? Liguei a torneira, para
que o som da água ocultasse o mal-estar, lutava contra a dor no
peito e a fraqueza.
A cada dia estava me sentindo pior, e eu nem achava que era
o marca-passo, e sim os remédios. Não estavam fazendo efeito.
Não ajudavam em nada.
Havia decidido contar a minha mãe e, juntas, decidimos
deixar a cargo do destino.
Em algum momento próximo, meu coração ia falhar, eu tinha
certeza disso.
— Jenny, o que está acontecendo?
— Nada! — gritei, desesperada para que o mal-estar
passasse e ele não estivesse aqui. Seu cheiro apenas pioraria tudo
que eu estava sentindo e ele não podia perceber que os meus
remédios não serviam mais, que minhas arritmias estavam
piorando.
— Abra essa maldita porta ou vou derrubá-la! — berrou e eu
sabia que ele o faria.
Sentindo-me como se fosse desmaiar a qualquer momento,
eu me aproximei da porta, abrindo-a.
— O que está acontecendo com você? — Ele segurou meu
rosto, avaliando-me. — Você está doente! — Havia pânico em sua
voz. — Meu amor, o que você está sentindo?
Não me toque, não me toque... Queria gritar, mas em meio ao
desespero de estar tão próxima, de não entender por que ele estava
agindo desse jeito tão carinhoso, meu coração acelerou como um
louco, chegando ao ponto de doer meu peito.
Pontos pretos piscaram diante dos meus e eu me odiei por
ser tão fraca perto do meu inimigo.
— Comi algo que me fez mal — murmurei, quando ele me
ergueu nos braços, levando-me até a cama.
— Você está pálida demais. — Ele aproximou o rosto do meu
e eu jurei que poderia morrer com o quanto isso era insuportável. —
Sua respiração está péssima. — Ele se afastou, estreitando os
olhos. — Jenny, o seu marca-passo...
— Está ótimo. — Abanei a mão. — Eu estou assim porque
vomitei. Já disse que comi algo que me fez mal.
— Tem certeza? — Ele tocou meu rosto, causando-me
repulsa. — Eu não posso perder você. Não imagina o quanto é difícil
me manter distante.
Ele suspirou, mal pude disfarçar a ânsia.
O último homem que me beijou foi o meu viking, imaginar que
John poderia apagar os vestígios daquela felicidade com sua boca
imunda era terrível.
— As coisas vão se alinhar em breve, querida. — Ele tocou
minha barriga. — Meus planos sempre tendem a funcionar.
Ele sorriu e, por um momento, pude ver o antigo John de
volta.
20
Jenny Monroe

Hoje o dia amanheceu mais frio que o de costume. Em abril,


o clima era bem ameno durante o dia e gostoso à noite, mas
ultimamente estava apenas frio. Ou era eu que não conseguia me
aquecer o suficiente?
Adorava a primavera, a chegada do calor e todas as cores
sempre me traziam alegria, mas não estava sentindo isso agora. Lá
fora estava bonito, mas era como se o inverno não houvesse saído
de mim.
Sentia-me como árvores secas, triste e desanimada.
— Jenny, coma a sua comida. — A voz de John me trouxe de
volta. — Você precisa se alimentar.
— Estou sem fome — falei baixinho, tentando não encarar o
pedaço de carne malpassada diante de mim.
John gostava da carne quase crua, e ele não se importava de
perguntar como preferíamos. Na verdade, eu e minha mãe nunca
pudemos escolher, era sorte que ele estivesse nos permitindo comer
mais do que duas vezes ao dia.
Para onde fora o antigo John? Eu sabia que ele estava
espreitando, mas o que esperava?
— Querido, como andam os negócios? — Minha mãe sorriu,
fazia parte do nosso plano fingir que estávamos comprando as
mudanças que ocorreram. — Tenho percebido que está feliz.
— Sim. — Ele sorriu, pegando a mão dela. — Você não
imagina a surpresa que estou preparando, vai ser um estouro.
Por um breve instante, ele me olhou, foi o suficiente para que
meu corpo inteiro começasse a tremer de medo, quase que
imediatamente tive a sensação de que havia acabado de correr uma
maratona, o cansaço batia pesado por causa do coração
descontrolado.
A cada dia as crises se tornavam mais fortes, com menos
tempo de espaço entre elas, era como se as arritmias gritassem que
meu coração estava pedindo socorro.
Eu não me importava.
— Você está se sentindo bem? — John perguntou, havia
preocupação genuína em sua voz. — Querida?
Eu estava ouvindo-o falar, mas sua voz foi ficando distante, o
que parecia explodir nos meus ouvidos era o ritmo acelerado do
meu coração, a sensação de fraqueza e o espaço ao meu redor que
ia se fechando.
Tentei olhar para a minha mãe, mas não conseguia encontrar
forças para isso. Estava presa naquele pedaço de carne sangrenta,
e então o cheiro insuportável me rodeou.
— Não me toque...
Acreditava ter dito, mas não tinha certeza.
Tudo ficou escuro.

***

O cheiro pungente de álcool queimou meu nariz. Abrindo os


olhos me deparei com o médico de confiança de John me
encarando com um sorriso enorme.
— Como se sente?
— Bem. — Tentei não deixar transparecer o mal-estar, queria
ele longe de mim. — Onde está minha mãe?
Aquele doutor era amigo de John, ele sempre vinha quando
meu padrasto perdia o controle e nos machucava além da conta. Ele
sempre elogiava John pela sua forma de nos golpear e, no meu
caso, escondendo áreas visíveis.
Não queria nenhum dos dois enquanto eu estivesse me
sentindo vulnerável. Não conseguiria lutar contra os dois.
— Sua mãe está descansando. — John sorriu, sentando-se
ao meu lado. — Conte a novidade a ela, Charles.
Algo muito ruim foi tomando conta de todo o meu ser,
primeiro o frio que me arrepiava dos pés à cabeça, então a
sensação de que alguém havia acabado de engatilhar uma arma na
minha nuca.
Sabia que o que estava por vir seria terrível.
— Parabéns, você está grávida.
Por um breve momento, não encontrei uma resposta
adequada, era como se meu cérebro não fosse capaz de processar
a pequena frase. As palavras pareciam descontextualizadas,
confusas e totalmente sem sentido.
Levou alguns instantes para eu entender o que ele havia dito,
e então o terror me envolveu como um abraço apertado e sufocante.
Tudo parecia se encaixar.
— Não! — O ar escapou dos meus pulmões, senti-me
petrificada, morrendo.
— Sim, pelos sintomas que John me descreveu...
Comecei a negar em completo desespero. Colocando as
mãos nos ouvidos, fechei os olhos o mais apertado que eu pude.
— Não é verdade! Não é verdade! — De alguma forma, se eu
recusasse o que ele dizia tudo não passaria de um equívoco.
Deus não permitiria que eu estivesse grávida.
— Jenny! — O berro furioso, seguido de um tapa na cara, fez
minha cabeça rodar. — Olhe para mim!
Não queria obedecer, mas, às vezes, havia lutas que não
mereciam empenho, e aquela com certeza era uma.
— Você está grávida. — John sorriu, repetindo o que seu
amigo havia dito.
A felicidade estampada em seu semblante me deixava
querendo morrer. Ele estava tão satisfeito, como se mais uma etapa
de seu plano houvesse sido concluída.
— Não! — gritei. — Eu estou com intoxicação alimentar,
ansiedade. Eu tenho um contrato com uma gravadora, eu não... não
fiz coisa “errada”, eu não posso estar grávida. — Olhei para John. —
Eu não estou grávida!
O destino não seria tão cruel comigo.
— Sua contratação será anunciada hoje à noite nos jornais
da cidade — John cantarolou, exultante. — Parabéns, querida. —
Ele tocou a minha barriga, eu o empurrei.
— Como você pode afirmar que estou grávida? — Levantei-
me apressada.
Aquele quarto estava pequeno, fechando-se ainda mais, pois
o demônio que se alimentava de todo o desespero e angústia que
eu sentia espreitava por perto com seus olhos cruéis e sorriso
maldito.
John Samarco Monroe não era um ser humano. Não era
possível que uma pessoa de carne e osso pudesse ser tão ruim
quanto ele.
— Vocês estão errados! — Apontei para os homens no
quarto. — Estão errados, porra!
John e seu amigo não disseram nada, eles apenas me
olhavam como se eu fosse louca.
A certeza brilhava no semblante de ambos, eles não se
importavam com o que eu acreditava, isso não significava nada.
— O que pretendem? — Apontei o dedo para John. — O que
pretendem?
Na troca de olhares entre eles, eu soube que estavam
escondendo algo grande. Eu era o bode expiatório, alguém que teve
a infelicidade de ser uma peça importante no plano sórdido que eles
criaram.
— É uma pena que esteja tão contrária a ideia, mas,
acostume-se, você está grávida. — John parecia brilhar de
felicidade.
Não pode ser, não pode ser! A vontade de chorar bateu tão
forte quando imaginei a possibilidade de John ter mais poder sobre
mim.
A nova perspectiva transformava o passado em algo
insignificante. Uma criança me tornaria refém de suas loucuras,
como minha mãe era refém. O que poderia acontecer com ela?
Comigo? Ele sabia que uma criança mudaria tudo.
E isso não era o pior, mas o que John poderia fazer com ela,
ou ele.
Por favor, Deus, que eles estejam errados... por favor, eu
imploro.
— Eu não estou grávida! — A imagem dos dois homens se
tornou disforme conforme meus olhos iam enchendo de lágrimas. —
Você não pode afirmar isso sem exames. Não acredito em nada do
que estão dizendo, e não, não farei parte de nenhum esquema que
estejam planejando.
Rejeitava qualquer possibilidade de estar grávida, preferia
que meu coração fosse arrancado do meu peito sem anestesia.
Com toda certeza seria menos doloroso.
— Acalme-se, Jenny, eu posso afirmar...
— Mediante o quê? — gritei, sentindo-me ferida de morte. —
A vontade desse louco? — Apontei para John. — Eu não estou
grávida!
Deus não seria tão injusto comigo.
— Você está. — Cruzando os braços, John me encarou
friamente. — Arrume-se, vamos para a clínica. Se você quer
confirmação, eu te darei! Você tem cinco minutos, se não estiver
pronta eu te arrasto nua, é bom que matarei a saudade de olhar
para você.
— Nojento, você é nojento! — berrei, enquanto saíam do
quarto.
Por breves instantes, eu olhei para a madeira rústica e a
única coisa que pensei foi que não podia permitir estar grávida.
Era melhor estar morta.
Num rompante louco, disparei em direção a janela, ia me
jogar do primeiro andar, não importava o que poderia acontecer,
mas eu não ia aceitar estar grávida, não sem tentar acabar com
isso.
Perdão... perdão... não posso deixar uma criança nas mãos
de John.
Quando a varanda do meu quarto se precipitou diante de
mim, o pavor me dominou, mas eu não me importei, estava pronta,
ia saltar.
Perdão...
Com o vento resfriando o rastro de lágrimas em meu rosto,
senti que era puxada de encontro a um corpo duro e excitado.
— Luta — John murmurou contra o meu ouvido, com a
respiração ofegante. — Esfrega essa bunda no meu pau, que eu
vou mandar o plano à merda e te foder aqui e agora, como eu
desejo há tanto tempo.
Paralisei, deixando meu corpo amolecer como se eu fosse
uma boneca de pano.
— Você acha que eu não te conheço? Eu estou dentro da
porra da sua cabeça, você nunca vai conseguir me surpreender,
querida. Eu vou estar ali, sempre a um passo na sua frente. Agora
você só tem dois minutos, e vai se trocar na minha frente.
Ele me soltou e eu me obriguei a engolir o soluço.
Que merda de vida era essa?
— Jenny!
Consciente de seu olhar atento, eu escolhi um vestido longo
de mangas compridas e um casaco grosso. Deixaria a calça de
moletom por baixo como segurança, ainda que isso não fosse
empecilho suficiente se John resolvesse ter acesso ao meu corpo.
— Vamos.
Antes de sair de casa, avistei minha mãe. Ela estava com um
lado do rosto vermelho, encarando-me com pesar e medo. Desejava
ir até ela, abraçá-la, dizer que nossos planos ainda estavam de pé.
Meu coração moribundo não ia aguentar muito tempo.
— Mamãe... — Estendi a mão para ela, mas um empurrão
me disse que hoje não era um dia minimamente bom para provocar
a ira do meu algoz. — Você ainda vai me pagar por tudo, John
Samarco Monroe — prometi e ele apenas riu, enquanto abria a
porta do carro.
— Eu vou esperar pacientemente, querida. — Bateu na
minha bunda e eu encolhi, envergonhada, pois sabia que minha
mãe estava vendo. — Vou esperar que tente algo, eu sei que não
pode me surpreender, mas ainda estarei sedento por você. O dia
está chegando, e eu farei a espera valer muito a pena. — Ele
apertou meu queixo. — Você é minha, melhor aceitar isso de uma
vez por todas.
Não respondi, estava cansada de sentir medo todos os dias,
de chorar pelo simples fato de acordar, e odiar que meu coração
fosse tão resiliente.
O que faltava para ele desistir de continuar batendo? O que
faltava para que, num rompante desesperado, já não aguentasse
mais e parasse de uma maldita vez?
Eu não entendia, as crises estavam mais frequentes,
demoradas e bastante doloridas. Os betabloqueadores não faziam
mais efeito — eu tinha certeza — ainda assim continuava acordando
todos os dias.
Por quê?
Seria essa a minha penitência por algum erro de outra vida?
John era o meu carma e eu teria que suportar tudo até o final?
Perguntava-me todos os dias o porquê de tanta infelicidade.
Não queria muitas coisas, apenas liberdade, poder escrever e
cantar minhas músicas em paz, ver minha mãe feliz e, talvez, ter um
pouco de amor.
Isso era muito? Balancei a cabeça, deixando as lágrimas
fluírem. Eu queria ser mais forte, mas estava cansada demais,
ansiava por um ponto final.
Nada mais.
O caminho até a clínica pareceu uma eternidade, a cidade foi
passando como um borrão disforme, a todo momento a sensação
de corda no pescoço só ia aumentando. Estava me sentindo tão
aflita que não conseguia me concentrar direito para fazer uma
contagem simples.
Pense, Jenny, quando foi seu último ciclo? Esfregando as
têmporas, tentei me lembrar, mas meu período era uma bagunça, eu
nunca sabia quando ele ia chegar.
Naquele momento parecia uma eternidade desde a última
vez que ele veio e a possibilidade de que John poderia ter razão
deixava-me tonta.
— Coincidência — murmurei, respirando devagar, para que
John não percebesse a crise chegando.
Meu coração deu uma guinada brusca, acelerando de um
jeito louco e que me deixava com a sensação de que poderia
desmaiar a qualquer momento. Fechando os olhos, recostei-me na
janela, fingindo que estava tudo bem, quando, na realidade, estava
tendo uma das piores arritmias de toda a minha vida.
Era como se uma mão apertasse meu coração, enquanto um
abraço de morte impedia meus pulmões de obter oxigênio
suficiente. O estresse estava me enlouquecendo e eu contava que
fosse ele o responsável por estar bagunçando todo o meu
organismo.
Apenas isso.
Eu não estou grávida, não estou!
Não sei quanto tempo levou, até que a dor e o palpitar
desenfreado começassem a diminuir. Aos poucos, meu coração foi
voltando ao normal, mas o cansaço estava lá. Me mantive firme,
John não podia perceber ou me levaria ao médico.
— Uma pena David não ter saído do coma, ele não vai saber
que será pai. — John deu uma risada.
Ele não será pai, idiota! Secando uma lágrima, acabei
voltando para a melhor noite da minha vida.
No começo eu sonhava com ele, até que passei a lutar contra
as lembranças. Elas destoavam demais da minha realidade e só
faziam com que eu sofresse mais, desejando poder estar com ele
outra vez, com meu viking.
Queria sentir o cheiro gostoso que desprendia do corpo
grande e másculo, a melhor sensação da minha vida foi dormir
aninhada em seus braços. Ele me fez sentir tão protegida e
confiante que nunca mais havia conseguido descansar, sentia medo
demais para fazer tal coisa.
Estar grávida do homem que eu escolhi não seria um
pesadelo se a realidade fosse outra.
Mas não era.
— Na volta, passaremos na gravadora. — John colocou uma
mão na minha perna. — Se você se comportar, eu deixo você gravar
algo para os seus fãs. Venho recebendo muitas mensagens e
presentes. Eles estão com saudade, precisamos alimentá-los.
Não gravava nada desde a ida para Londres, havia sumido e
não fazia ideia do que estava acontecendo. A minha última
performance fora no festival.
O meu vídeo havia se tornado um viral, pelo fato de ser a
primeira apresentação em público. Pelo menos era isso que a
produtora achava. Ela havia me mostrado o vídeo antes de eu voltar
para casa.
— Chegamos. — O motorista anunciou, antes que eu
pudesse descer do carro John segurou meu braço. — Não tente
nenhuma gracinha, porque estou de bom humor. Advirto que, se
tentar a sorte, não será você quem vai pagar por qualquer
indiscrição.
— Não vou fazer nada. — Não conseguia encará-lo.
— Óbvio que não, afinal você sabe quem vai ter que lidar
com a minha raiva.
Sim, eu sabia e por isso fui como um cordeirinho, obediente,
sem voz que reagia as instruções dadas. Não demorou muito para
que a realidade se chocasse contra mim e, ainda assim, eu não
podia acreditar.
Meus olhos estavam pregados numa tela embaçada,
enquanto encarava um ponto preto.
— O saco gestacional. Você acredita agora? — A voz do
médico preencheu a sala. — Quase seis semanas. John, nós
conseguimos.
— O chefe vai gostar de saber. — Eles se cumprimentaram,
felizes demais.
Eu havia parado de escutar. Já não me interessava mais
saber de nada.
Eu estava mesmo era muito, muito fodida.
— Vou imprimir as imagens para que você olhe quando
duvidar.
Como um zumbi, levantei-me da mesa de exame, depois fui
para o banheiro me limpar. Não conseguia reagir, estava chocada
demais com a minha nova realidade.
A única vez... A única, maldita vez que havia tomado uma
decisão e feito algo apenas para mim, trazia-me consequências
desastrosas. Não dava para acreditar. Realmente Deus, ou qualquer
entidade Divina, me odiava.
— Venha, querida. — John me guiou de volta ao carro.
Ele estava conversando alegremente com alguém, enquanto
eu sentia apenas ódio da minha vida ser uma porcaria tão grande,
que até a parte boa havia se tornado um pesadelo.
Eu não podia levar essa gravidez adiante, não podia deixar
que John tivesse acesso a uma criança inocente. Ele era um
psicopata, megalomaníaco que não tinha o mínimo de empatia por
ninguém. Imaginar a minha criança perto dele era aterrorizante.
E se for uma menina? O horror foi tanto que nem tive tempo
de abrir a janela, vomitei dentro do carro.
— Filha da puta, meus sapatos! — John gritou, empurrando-
me.
Estrelas piscaram diante dos meus olhos quando minha
cabeça bateu na janela. Mal fui capaz de registrar a dor, estava
presa dentro de um filme de terror enquanto um cenário pior que o
outro ia passando diante dos meus olhos.
— Desculpe, meu amor, se você não me deixasse tão irritado
esse tipo de coisa não aconteceria. — Ele acariciou meu cabelo. —
Eu te amo, Jenny, não pense que é fácil para mim te ver grávida de
outro, mas é por uma boa causa. Meu chefe, o Sr. Langford, irá me
promover, teremos muito dinheiro.
Não respondi, ele continuou me acariciando, falando comigo.
— Sinto tanto, querida, eu sei que está infeliz por carregar
essa criança, mas, pense, não vai demorar para que sejamos
felizes. Eu te amo e você vai descobrir que me ama também. Sou o
homem da sua vida, e você é a mulher da minha.
— Você enlouqueceu, John — disse baixinho, não
conseguindo segurar a sensação de que havia algo se rompendo
em meu interior.
— Eu vou cuidar de você. — O suspiro sonhador me causou
tanta repulsa, que o enjoo aumentou. Todo meu corpo estremeceu
em pequenos espasmos de ânsia. — Esse bebê será nosso e
faremos bom uso dele. — Tocou minha barriga. — Eu vou ser um
bom pai.
Eu não tinha palavras para descrever o que eu sentia
ouvindo-o falar, minha vontade era de esmurrar sua cara imunda,
arrancar o sorrisinho cínico e aquele maldito ar superior. Queria uma
arma, só para ter o prazer de estourar os miolos daquele filho da
puta de merda.
Inclusive, cantaria ao seu redor enquanto observava a vida
indo embora de seu corpo.
— Que olhar é esse, Jenny? — Ele pegou meu queixo
avaliando-me. — Vejo fogo, intensidade. — Ele sorriu. — Vamos nos
dar tão bem na cama. — Deslizou o dedo pelo meu pescoço, depois
pela lapela do casaco, se aproximando para falar baixinho no meu
ouvido: — Quando eu estiver dentro de você, desejo ouvi-la
gritando: Me fode, papai.
— Você é doente! — O empurrei. — Doente!
— Doente de amor por você. — Segurou meu queixo,
obrigando-me a encará-lo. — Você fodeu a minha cabeça, eu te
amo e nunca vou deixar que se afaste outra vez. Será minha, Jenny,
custe o que custar.
Nunca! Queria berrar, mas precisava manter o controle para
descobrir o que ele pretendia fazer. Eu ia conseguir arrumar uma
solução, eu ia tinha que conseguir!
— Eu me protegi, como posso estar grávida? — Tirei o foco
daquela conversa.
— Você não transou nenhuma vez sem camisinha, querida?
Neguei.
Mas, então, lembrei-me de que houve aquela vez que meu
viking não usou proteção. Ele não foi até o fim, não havia gozado,
apenas eu. Ele havia sido cuidadoso.
— Claro que você se protegeu. — John sorriu, recostando-se
no banco. Por um longo tempo, não disse nada e isso só me deixou
mais preocupada. — Eu fiz acontecer, Jenny. — Havia soberba em
sua voz. — As camisinhas na sua mala não estavam lá por acaso,
eu as preparei. Queria aumentar as minhas chances. Depois só
precisei contar com a sorte para que você engravidasse.
— Por que, John?
— Acusação de estupro. Não poderia haver melhor prova que
uma criança. Os acionistas da gravadora não terão chance, David
não terá chance! Eu ganhei, de novo.
Deus... Não é possível!
— Vou solicitar um DNA, e então, quando tiver com o
resultado nas mãos, irei até os acionistas da gravadora e exigirei o
cargo de CEO, ou irei levar aos jornais e farei um escândalo.
Certamente irão querer evitar o problema, afinal o pai do David é
detentor de sessenta por cento da empresa. — Ele se inclinou para
mim, enrugando o nariz para o cheiro de vômito. — Em seis
semanas você vai poder fazer o DNA fetal, então vou colocar em
prática essa parte do plano, depois poderemos ficar juntos.
— Você não vai conseguir acesso a David.
Estava horrorizada de que, mais cedo ou mais tarde, John
saberia a verdade. A noite com meu viking não seria um segredo
apenas nosso.
John ia descobrir, e ele ia me matar quando soubesse. Mas
antes que isso acontecesse, quanto sofrimento ele infligiria a minha
mãe para que pudesse me atingir? O que ele seria capaz de fazer
com ela enquanto me obrigava a assistir? Não podia deixar isso
acontecer.
Seis semanas...
Era o tempo que eu tinha para acabar com a minha gravidez.
21
Jenny Monroe

A sensação que eu tinha era de que todos sabiam a verdade


por trás da minha contratação.
Por mais que eu cantasse há algum tempo, que possuísse
um número considerável de pessoas que acompanhavam meu
trabalho, toda cobertura midiática que eu estava tendo era no
mínimo estranha.
Em poucos dias, eu havia me tornado notícia em todos os
meios de comunicação, estavam especulando sobre minha vida e o
mais terrível, consideravam que John Samarco Monroe era um
homem incrível por ter mudado a minha vida e a da minha mãe.
Odiava com todas as minhas forças que pessoas
acreditassem na história dele, que tenham caído no papinho de
homem incrível que havia se apaixonado pela cantora de jazz, dado
seu nome a ela e a filha pequena, e que até aquele dia eram uma
família feliz.
— Jenny, você foi adotada aos seis anos pelo Sr. Monroe...
— Desculpe, eu não fui adotada. — Tentei sorrir, mesmo que
estivesse sentindo uma tensão horrível e a vontade de berrar as
verdades que todos mereciam saber. — Ele se casou com a minha
mãe, eu vim no pacote.
Um coro de risadas constrangidas se fez ouvir, a
entrevistadora de vez em quando olhava para John, que mais
parecia um abutre pairando ao meu redor.
Aquela entrevista era mais uma das muitas que precisei fazer
desde que fui anunciada como promessa da música nacional, dona
de um contrato milionário.
— Você se lembra do seu nome antigo?
— Grenadine. — Sorrindo, sacudi a cabeça, empurrando a
franja recém-cortada para o lado.
Parte do meu passado misturava-se com as lembranças de
dor, fome e desespero. Até a descoberta da minha cardiopatia e
todas as mudanças que ocorreram depois. Não conseguia lembrar
exatamente quando John me deu seu nome.
Apenas sabia que um dia tudo ficou diferente.
— Você se lembra do seu pai?
— Desculpe, não me lembro. — Era um tema proibido na
presença de John, mas minha mãe falava que ele foi bom, até
morrer de um infarto jovem demais.
Talvez fosse dele que eu havia herdado o coração defeituoso.
— Então, você não sabe que seu pai biológico era um
produtor muito requisitado da indústria?
— Não. — Mexi-me desconfortável, foi-me dito que, se eu
não me comportasse, as coisas ficariam péssimas em casa.
John prometeu retaliação, e, nas últimas semanas, apenas
minha mãe era quem pagava por qualquer erro da minha parte
porque a minha gravidez impedia que eu fosse seu alvo.
A entrevista era ao vivo e cada coisa que eu dissesse
precisava ser bem colocada, afinal, quando meu anúncio foi feito,
descobriram que, de fato, a grande maioria do meu público era
composto por jovens.
Minha a imagem tinha que ser imaculada, o que me dava
certeza de que um escândalo agora poderia colocar tudo a perder.
— Senhorita Monroe, você também é compositora, o que a
inspira? — A entrevistadora era uma mulher linda, com um sorriso
amigável e que transmitia tanta paz que, por um momento, quis
abraçá-la e lhe contar toda a minha vida.
Ela me olhava como se me conhecesse e o desejo ardente
de desabafar era tão grande que parecia um caroço preso na
garganta.
— Escrevo sobre os meus sentimentos. — Respirei fundo,
apertando as mãos para esconder os tremores de ansiedade.
— Suas músicas são quase sempre sobre sentimentos
dolorosos, perdas. Sendo você tão jovem, como pode escrever tão
bem sobre a dor de um coração partido?
Estava tentando com muito custo não deixar transparecer o
meu desespero, a vontade de dizer por que eu escrevia músicas
melancólicas e as interpretava tão bem.
Eu não era uma pessoa naturalmente triste, eu havia me
tornado assim, as minhas músicas eram um reflexo disso.
— Mas o que é o amor senão um desejo ardente do
impossível? — Ela franziu o cenho. — Há muitas maneiras de partir
o coração de alguém, não necessariamente dentro de um
relacionamento amoroso.
— Isso é verdade, eu tive o coração partido por uma amiga.
— Ela deu uma risadinha, brincando com as câmeras. — Mas você
é jovem, só tem dezoito anos, tenho certeza de que, no decorrer de
sua carreira, terá oportunidade de conhecer pessoas e experimentar
vivências incríveis.
— Eu espero, tenho saudade de liberdade.
— O que disse, querida? — Ela ficou séria e eu a encarei nos
olhos.
Sorrindo, implorei em silêncio que pudesse entender o que eu
não podia falar.
— Jenny vive para a música. — John acenou, ele estava na
cadeira ao lado da minha. — Ela trabalhou muito duro para
conseguir um contrato, têm se dedicado há muitos anos para que
pudesse chegar até aqui, foi uma tarefa árdua, constante. Agora, a
minha filha poderá realizar os sonhos dela.
Ele pegou a minha mão e a beijou, meu braço inteiro ficou
arrepiado de nojo. Era como se vermes rastejassem por meu corpo.
— A relação de vocês é muito linda, vejo que você a ama de
verdade.
— Sim, Jenny é a filha que eu nunca tive — John suspirou. —
Quando ela e a minha amada esposa entraram na minha vida, eu
soube que estava completo. Ao longo de todos esses anos, tenho
me dedicado a elas, única e exclusivamente.
John olhou para mim, estava sorrindo, os olhos brilhando de
felicidade. Ele estava onde queria, os holofotes também eram dele,
porque nunca me deixava sozinha em nenhuma entrevista, ou
gravação de estúdio.
— Isso é maravilhoso, percebe-se que são uma família feliz.
— Sorriu, olhando para mim. — Você se tornou conhecida do
público através do seu canal no YouTube, e depois publicando as
músicas e covers em canais de streaming, você mantinha uma
constância de, no mínimo, dois vídeos por semana, entretanto,
desde o festival de música de Londres, que, devo salientar, foi a sua
melhor interpretação músical, seu canal não recebe atualizações. —
Mônica fez uma pausa, acho que para criar suspense. — Aquele
vídeo do festival foi uma despedida? O seu público pode considerar
que esteja abandonando os canais gratuitos?
Não é minha culpa! Queria poder dizer, mas apenas sorri sem
saber o que responder. John não me deixava postar nada, ele
controlava tudo o que meu público tinha acesso, como também o
que eu fazia.
Àquele dia na clínica, ele não me deixou gravar como havia
prometido. Agora que ele havia conseguido o contrato, não tinha
mais interesse em manter os canais.
Era essa a resposta verdadeira que eu queria dar, mas não
podia.
— Jenny esteve trabalhando muito nas últimas semanas —
John adiantou-se. — Ela vai voltar sim aos canais, quando surgir a
oportunidade, mas agora o foco está na construção de seu primeiro
álbum.
— Querida, você está abandonando seu público? — Quando
abri a boca para responder, John outra vez não permitiu.
— Não, ela está trabalhando para entregar algo inédito e
incrível, mas, em algum momento, voltará aos canais.
— Sim, eu gostava de ver como você poderia interpretar as
músicas do momento, acredito que algumas delas ficariam melhor
na sua voz. — Ela deu uma risadinha. — Será que poderíamos
esperar por uma turnê nacional ainda este ano?
— Eu...
— Não, Jenny vai focar no álbum que tem data para ser
lançado. — Havia um ar de riso e tranquilidade na voz de John, mas
eu sabia que ele estava contrariado, conseguia notar pelo modo
como ele respirava fundo algumas vezes.
Se pudesse, tenho certeza de que ele estaria batendo em
Mônica para mostrar que não deveria sair do roteiro de entrevista
que ele havia aprovado. Mas aqui ele não podia sair do personagem
ou todos saberiam que John Samarco Monroe era um monstro, um
maldito agressor de mulheres.
— Jenny, por que você mal aparece em público? Sua vida é
tão sigilosa que nós, que acompanhamos seu trabalho, ficamos
sedentos. — Mônica sorriu, parecendo estar buscando algo. —
Quando anunciei sua entrevista, meu inbox explodiu de perguntas e
eu separei algumas aqui.
— Isso não estava no roteiro — John deu uma risada,
descontraindo. Ele até trocou a perna cruzada, de modo que
estivesse inclinado para o meu lado. — Eu amo isso.
— Eu também, por isso farei as perguntas selecionadas. —
Mônica estava tão satisfeita em afrontar John, que eu me perguntei
se havia algo a mais ali entre os dois.
Não era possível que ela provocasse todos os entrevistados
daquela forma.
Eu estava gostando dela. Parecia-me empoderada o
suficiente para não baixar a cabeça para ninguém.
— Pergunta de Maeve, da Carolina do Norte: Eu acompanho
a Jenny tem alguns anos, mas eu nunca a vi usando os presentes
que enviamos, ela não responde as mensagens, não interage com
os comentários nas postagens. Eu sei que o volume de pessoas
entrando em contato deve ser grande, mas ela não responde a
ninguém e eu gostaria de saber o por quê?
John esticou-se para responder, mas, sorrindo
educadamente, Mônica ergueu a mão.
— Querido, a pergunta é para a Jenny, não para você.
— Sim, claro. — Havia uma nota de ira na voz dele, que
apenas quem o conhecia como eu poderia notar.
Meu Deus...
Não pude evitar que o medo me dominasse. Por um
momento, eu precisei disfarçar o fato de meu coração estar
acelerando e a respiração saindo do controle. Tossi, depois peguei
um pouco água, para tentar aliviar o aperto no peito e a sensação
de estar afogando.
— Bom, eu sou péssima em controlar meu tempo nas redes
sociais, então meu pai cuida dessa parte. Se ele deixar, eu passo o
dia todo lendo os comentários. Eu adoro e leio tudo. — Coloquei a
mão no peito, encarando Mônica. — Mas, quando vejo, já passou
tanto tempo que eu preciso voltar ao trabalho. É um erro meu, e eu
peço perdão, vou melhorar isso, prometo.
— Okay, Maeve com certeza vai te cobrar. Ela enviou oitenta
mensagens com essa mesma pergunta — Mônica falou em tom
confidencial e nós duas rimos.
— Obrigada, Maeve, por se importar, eu prometo que as
coisas serão diferentes a partir de agora. — Balancei a cabeça. —
Próxima pergunta.
— Essa eu selecionei porque estou curiosa, coisas de garota.
— Engasguei-me, tendo a certeza de que ela estava sim afrontando
John. Mônica piscou um olho, voltando a atenção para o celular. —
Brandon, da Califórnia, disse que te segue há mais de quatros anos
e nunca viu nenhuma notícia sobre qualquer affair que você já tenha
tido, a pergunta é: você mantém seus relacionamentos em segredo?
Você tem algum crush?
A imagem do meu viking saltou diante dos meus olhos. Alto,
forte, com cicatrizes e tatuagem. Dono de um rosto de anjo de caído
e um olhar tão quente, que era capaz de derreter as calotas polares.
— Eu vejo que você tem sim um affair — Mônica disse
animada. — Me fale sobre ele.
— Bom, ele é bem alto, muito bonito e tem o sorriso mais
perfeito que eu já vi na minha vida. — Senti o rosto esquentando. —
E a voz dele é a mais bonita do mundo. Se eu pudesse o ouviria
falando para sempre, ah... e o melhor, ele é ruivo natural, e
absolutamente incrível.
— Meu Deus, você está apaixonada!
— Com certeza.
— Quem é o felizardo?
— Segredo... — Pisquei um olho, rindo enquanto fingia que
estava tudo bem.
Havia verdade em minhas palavras, por isso ela estava
acreditando. Meu viking era o meu crush, o primeiro e único.
— Última pergunta dos fãs, Jenny. — Concordei. — Andy, do
Texas, perguntou: Você e seu pai possuem dezenas de fotos, mas
por que não há fotos de sua mãe também?
Eu sabia que era perigoso o que eu ia dizer, mas era a minha
chance de fazer com que John parasse de agredi-la o tempo inteiro.
— Minha mãe é tímida, mas eu prometo aos meus fãs que
irei postar mais sobre meu dia a dia e minha mãe estará presente.
Ela tem uma belíssima horta, ama produtos naturais, talvez ela
possa ter um próprio canal para mostrar suas flores e o que ela
cultiva. — Mantive o sorriso no lugar, mas a vontade que eu tinha
era de chorar ao pensar na minha mãe. — Ela tem o hábito de
passar muitas horas na estufa, ela diz que as plantas precisam de
música. São seu público fiel.
Mônica sorriu e eu senti o peito doendo por causa da mentira,
digo, havia partes de mentira. Minha mãe não passava o tempo todo
na estufa, ela passava se recuperando e os momentos que ela
estava forte o suficiente ela ia para lá, para fugir do pesadelo que
era dentro de casa.
— Sua mãe deve ser uma mulher incrível.
— Sim, ela é tudo o que tenho e eu faria qualquer coisa por
ela.
Mônica acenou, então chamou o intervalo comercial. Quando
ela avisou que estávamos fora do ar, John adiantou-se.
— Mulheres, elas nos excluem tão facilmente — John
brincou, pegando a minha mão. — Jenny também tem a mim, eu
nunca a deixaria desamparada. É minha filha, eu a amo tanto que
só quero que seja feliz. — Ele beijou minha mão.
Tentei puxá-la de volta, mas o aperto firme me fez desistir.
Ele não ia me soltar.
— A relação de vocês é bonita, dá para ver o quanto você é
protetor — Mônica disse enquanto alguém retocava sua
maquiagem.
— Pessoal, estamos nos encaminhando para o último bloco
da entrevista — o editor anunciou. — Entramos no ar em cinco,
quatro, três, dois, um...
— Estamos de volta com a nova promessa da música pop —
Mônica falou para a câmera, então voltando para mim, continuou: —
Jenny, agora que está com a carreira decolando, tem algum recado
que gostaria de dar aos seus fãs?
O que eu queria dizer era que, por mais que eu amasse a
música, ser forçada a fazer coisas que eu não queria em prol de um
homem imundo e sádico havia me deixado desanimada.
Eu não queria mais cantar, não queria mais escrever, eu só
queria que tudo isso acabasse e ponto final. Não havia mais prazer
em nada do que eu fazia, o que antes era meu refúgio havia se
tornado a minha prisão.
— Eu gostaria de dizer para que eles nunca desistam de
seus sonhos. — Talvez fossem os hormônios da gravidez, mas a
vontade de chorar ficou ainda mais forte. — As coisas podem
parecer difíceis por um tempo, mas depois tudo vai melhorando,
nunca deixem de acreditar.
Como eu já deixei há muito tempo. Sequei uma lágrima,
continuando:
— Olhem para mim, até mês passado eu nem imaginava que
poderia estar na maior gravadora do país.
— Foi um prazer entrevistar você, querida, tenho certeza de
que teremos outras oportunidades e que você vai fazer muito
sucesso.
Eu não quero isso. O pensamento ecoou feroz, mas não
deixei transparecer, ao invés disso apenas dei um breve aceno,
concordando com suas palavras:
— Obrigada, eu espero muito poder atender as expectativas
que estão sendo depositadas em mim.
— Apenas continue fazendo o que esteve até agora, suas
músicas são lindas. — Mônica abanou a mão. — Eu tenho uma
playlist que sempre escuto, amo sua voz.
— Obrigada. — Levei uma mão ao peito, verdadeiramente
emocionada.
— Não chore, querida, estou apenas falando a verdade. —
Ela estendeu a mão para mim e eu aceitei, feliz pela acolhida que
ela estava me dando.
Lutando para me controlar, sequei os olhos com cuidado e
depois bebi um pouco de água. Mônica estava se despedindo dos
telespectadores, fazendo a chamada do artista que seria
entrevistado no dia seguinte.
— Vamos. — John me puxou, mas antes que eu pudesse
levantar, Mônica o impediu.
— Calma, querido, eu ainda não terminei com Jenny. — A
firmeza na voz dela o fez recuar. Ali ele não podia agir como o
ditador misógino que era comigo e com minha mãe.
Ele não estava em um lugar que controlasse, ali não
mandava em nada.
— Como quiser. — Aqueceu meu coração vê-lo sentar-se em
silêncio.
Nunca havia visto alguém do sexo feminino colocando John
em seu lugar. A satisfação era tão grande que, se ela pedisse o meu
fígado de presente, eu lhe daria numa bandeja decorada.
— Agora que estamos longe das câmeras me diga, Jenny,
você se considera sortuda? — Não entendi a pergunta, ela parecia
estar me sondando.
— Eu não sei. — Fui sincera, Mônica já havia deixado claro
que era uma mulher muito perspicaz. Se eu fosse inteligente como
ela, talvez pudesse deixar pistas que a ajudassem a entender um
pouco o que acontecia comigo.
E quem sabe me ajudar.
— Então se você avaliar sua vida, o que você se
consideraria?
Amaldiçoada. Minha vida era ruim o suficiente para que
suicídio fosse a pauta de noventa por cento dos meus pensamentos
recentes.
— Se eu considerar tudo que aconteceu, então eu acredito
que sou sim, muito sortuda. Tenho uma mãe supertalentosa, que,
inclusive, tem uma voz melhor que a minha. — O aperto que John
deu na minha mão soou como advertência. — Mônica, eu estou te
convidando para ir até a minha casa e conhecer a minha mãe
pessoalmente, ela é incrível e precisa de amigas como você.
O sorriso da entrevistadora foi enorme e contagiante, ela
realmente estava feliz pelo convite.
— Sinto-me lisonjeada.
— Quando você quiser, a receberemos com prazer —
reforcei o convite, mantendo o sorriso nos lábios enquanto sentia os
meus dedos sendo esmagados por John.
— Eu adoraria fazer uma visita. — O sorriso dela aumentou,
satisfeita pelo rumo da conversa.
— Quando você quiser. — A ansiedade para que ela
marcasse uma data começou a me deixar fraca.
Talvez, essa fosse uma garantia de que John não poderia
encostar a mão na minha mãe até que, pelo menos, Mônica a
visitasse.
— Eu vou ligar para marcar, com toda certeza.
— Um chá da tarde? Soube que você gosta — perguntei, não
deixando transparecer a pressa que eu tinha.
Ela deve ter percebido, pois abriu um sorriso enorme,
concordando.
— Eu adoro, tenho certeza de que será um prazer. Podemos
gravar você no seu ambiente, isso vai fazer com que os fãs se
sintam mais próximos, fortalecer o seu relacionamento com o
público vai te ajudar nessa nova etapa, agora deixe-me fazer algo
que quero desde que chegou. — Ela pegou o celular, colocando em
modo selfie. — John você poderia se afastar? — Não olhei, mas
senti a energia pesada que vinha em minha direção.
Ele estava com ódio.
— Sim, claro.
Ele se levantou, mas não foi muito longe.
— Sorria... — Ela ajustou o celular, batendo a foto. — Vou
anunciar que iremos fazer uma entrevista na sua casa, mostrar um
pouco de você, da sua mãe, para o público... — Ela olhou para
John. — Você autoriza?
— Sim, claro. — Ele parecia tão dócil.
Mas era tudo uma grande mentira.
— Será em breve, no máximo semana que vem. Entrarei em
contato, Jenny. — Eu me levantei e ela também. Sorrindo, ela me
abraçou. — Soube que houve denúncia de violência doméstica, que
foi arquivado por falta de provas. Ficarei de olho, e em cima de
vocês o tempo todo. Confie, querida, tempos melhores estão vindo
— ela cochichou tão rápido, que eu não tive tempo de reagir
tamanho choque. — Foi ótimo, eu adorei que tenha aceitado essa
entrevista — disse alto, para que pudessem nos ouvir.
— Pessoal, parabéns, a audiência foi excelente — o diretor
anunciou. — Parece que o fato de Jenny ser tão reclusa, atiçou a
curiosidade. E, Mônica, o seu celular está explodindo notificações.
Ela se afastou por um momento, quando olhou o aparelho
deu um sorriso enorme.
— Um minuto e a nossa foto é a mais curtida do meu feed,
veja aqui a quantidade de comentários.
Ela me mostrou e eu não acreditei nos números. Não possuía
acesso a essa parte, John ficava com tudo.
Sentir que era querida por tantas pessoas foi bom para mim,
talvez houvesse mais pessoas como meu viking, capazes de lutar
por mim.
— Você vai fazer muito sucesso. — Mônica sorriu. — Vamos
jantar, eu quero comemorar o sucesso de hoje.
— Jenny tem outro compromisso — John anunciou não
deixando que Mônica ou qualquer outra pessoa dentro do estúdio se
aproximasse.
Antes que eu pudesse dizer algo, ele pegou minha mão,
agradecendo a entrevista e me levou embora.
Ele estava com muita raiva e isso nunca era bom.
22
Jenny Monroe

John odiava quando alguém recebia minha atenção, que nem


conseguia disfarçar o ciúme doentio. Com mulheres, ele agia de
maneira mais sutil, com homens seus olhos brilhavam com fúria mal
contida.
As pessoas acreditavam quando dizia que isso era coisa de
pai de menina, e que estava apenas cuidando de mim. Durante os
últimos dias, aquela foi uma das frases que mais escutei quando
questionavam por que não aceitava muitas entrevistas com homens.
Ele possuía tanta desenvoltura para se sair de situações
potencialmente complicadas, que, no final, algumas pessoas o
estavam considerando um símbolo de modelo masculino, porque
dava voz as mulheres.
Era tudo uma grande piada, ele não queria homens perto de
mim, ponto final!
Temia que, em algum momento, ele não soubesse disfarçar
seu real interesse em mim e depois me culpasse por isso.
Certamente diria que eu estava provocando, e por conta de toda
exposição que eu vinha sofrendo com o contrato e minha ascensão
na mídia, seria um escândalo.
John nunca aceitaria o rótulo de abusador. Ele nos culparia
por qualquer pessoa que o considerasse menos que perfeito,
dizendo que nós aflorávamos seu lado pior.
Típico.
— Solta minha mão, você está me machucando. — Dei um
puxão e ele percebeu que sua máscara estava escorregando.
Na hora, o olhar colérico suavizou e ele não disse nada,
voltando de modo assombroso ao personagem educado, modesto e
gentil, cumprimentando as pessoas sorrindo enquanto permitia que
eu tirasse fotos.
Pela primeira vez, desde que eu me tornei meramente
conhecida na internet, estava podendo receber os presentes e
agradecer as pessoas.
Na saída da emissora havia um pequeno grupo de fãs,
aquele era também meu primeiro contato real com eles. Sem John
como um filtro, eu estava diante de pessoas de carne e osso que
gostavam de mim.
Eu podia ver nos rostos delas a emoção por me ver.
Meu Deus, eles me escolheram. Naquele momento, a coisa
mais difícil foi segurar o choro. Eu queria poder abraçar e agradecer
todo mundo.
— Jenny, é para você. — Uma garotinha se aproximou,
entregando-me um ursinho de pelúcia branco com um laço rosa no
pescoço.
— Muito obrigada, pequenina. — Baixei, ficando na altura dos
olhos dela. — Eu prometo que vou guardá-lo com muito amor. —
Minha voz embargou. — Me dá um abraço?
Tímida, ela passou os braços ao redor do meu pescoço e eu
a apertei. Por um momento, todas as minhas dores sumiram.
Sentindo o carinho daquela criança, fez parecer como se eu fosse
mais forte.
— Eu quebrei meu cofre e comprei com meu dinheiro — ela
disse quando nos afastamos. Ao redor, flashes explodiam. — Você
parece uma princesa, eu gosto de te ouvir cantar. Você poderia
cantar uma música das princesas para mim?
“Deus, não me permita chorar, eu não quero que essa
menininha pense alguma coisa errada!”, implorei, enquanto lutava
para não desmanchar em lágrimas ali, na frente de todo mundo.
— Você quer que eu cante agora? — Acariciei a franja dela.
— Você pode agora? — Ela sorriu, faltavam dois dentes na
parte de cima de sua boca.
Ela era a criança mais linda que eu tive o prazer de conhecer.
Eu cantaria quantas músicas ela quisesse.
— Eu posso. — Concentrada apenas nela, naquele
momento, eu tentaria fazer especial.
— Precisamos ir. — John me puxou, mas eu segurei no braço
a menina como se ela pudesse me salvar. — Jenny...
Pude sentir o tom repreensivo, mas não podia estragar o
momento para aquela menina.
Nem para mim, pois precisava daquilo.
— Um trechinho, apenas. — Ela aceitou apressada. Um
sentimento bom, que aqueceu o meu peito dominou-me. Os olhos
dela eram verdes, risonhos. Ela era linda demais, uma bonequinha.
— Vamos ver se você sabe essa. Cante comigo, tudo bem?
— Sim, eu prometo, eu canto. — Respirou fundo, apertando
minha mão.
Sorrindo para ela, comecei...
— Tantos dias, olhando da janela, tantos anos, presa sem
saber, tanto tempo nunca percebendo, como tentei não ver. Mas
aqui, à luz das estrelas, bem aqui vejo o meu lugar... — Acariciei
uma mecha de seu cabelo escuro, e ela sorriu, com os olhos
enchendo de lágrimas. — Vejo, enfim, a luz brilhar...
— Já passou o nevoeiro — ela cantou.
— Vejo, enfim, a luz brilhar, para o alto me conduz. — Minha
voz estremeceu, eu estava emocionada com tanto amor por mim,
que eu via refletido nos olhos daquela criança — ... E ela pode
transformar, de uma vez o mundo inteiro, tudo é novo, pois agora eu
vejo, é você a luz. — Nos abraçamos outra vez e John me puxou,
impedindo-me de falar qualquer outra coisa.
— Já chega. — Sua voz se sobressaiu, eu apertei o ursinho
contra o peito.
Assim que entramos no carro, o motorista acelerou. Não
demorou muito para que John enfiasse as mãos nos meus cabelos,
puxando minha cabeça em sua direção. Sua respiração estava
ofegante, ele parecia prestes a explodir.
— Sorriso incrível, ruivo? — rosnou, com os olhos brilhando
de cólera. — Você não estava mentindo, querida, eu te conheço
melhor que a mim mesmo, você não estava mentindo, quem é o
maldito? — Ele sacudiu a minha cabeça. — Diga e eu irei matá-lo!
Juro por tudo que há de mais sagrado, eu irei matá-lo, porra!
— Jamie Fraser — ofeguei, com a cabeça doendo pela força
com que me puxava. — Da série Outlander. — Ele pegou o celular e
digitou o nome, quando viu as fotos deu uma risada estranha, em
seguida seus olhos voltaram para os meus. — Você é minha,
entendeu? Minha mulher, só minha!
Cada palavra era dita com tanta força, que ele me fazia
acreditar. Era como se eu lhe pertencesse como qualquer outro
objeto.
Minha vontade não importava, apenas a dele.
Sempre a dele.
— John, você está me machucando. — Senti o queixo
tremendo. — Você está me machucando.
— Você não vai mais assistir essa porra, vai ver noticiário
para ficar informada. — Aproximou a boca da minha, na hora meu
coração deu um solavanco. — Você tem que me amar, tem que me
querer, entendeu? Você não vai ter outro homem, apenas eu!
— Me solta.
— Eu te amo, Jenny, tenho ciúme, porra! — rosnou contra a
minha boca. — Me beija, eu não suporto mais esperar.
Apertei os lábios, mas ele me beijou, não se importando com
minha relutância. Ele tentou que eu retribuísse enquanto eu
esmurrava seu peito, lutando contra o agarre.
— É assim que vai ser? — Sorriu.
Antes que eu pudesse me afastar, ele agarrou minha
mandíbula apertando com força. O tiro de dor que disparou em
direção à minha cabeça e ouvidos foi tão forte, que não consegui
segurar o grito.
Aproveitando-se disso, ele invadiu minha boca, enfiando a
língua, me obrigando a sentir o gosto asqueroso que ele possuía.
Meu corpo inteiro arrepiou de nojo, ele só teve tempo de se
afastar antes que vomitasse no carro outra vez.
— Você é doente. — Eu tremia tanto que o queixo batia.
Meu cérebro se recusava a processar, meu corpo todo. A
vontade que eu tinha era de arrancar a minha pele, a língua.
Queria bater a cabeça na parede, ou me jogar na frente de
um carro. Não ia suportar isso.
— Você é doente. — As lágrimas escorreram.
— Doente por você, olhe como estou, vem, sente-se no meu
colo. — Ele esfregou a ereção por cima da calça. — Vem, ou vai ser
pior.
Neguei, sentindo o peito prestes a explodir. Um frio terrível
estava me deixando gelada, ainda que fosse uma estação mais
quente, era como se dentro de mim, cristais de gelo se formassem.
— Jenny!
— Não! Por favor, não. — Chorando, ergui a mãos. — Por
favor, John, não.
Ele me pegou pelos cabelos outra vez, puxando-me. À força,
me colocou sentada de costas. Bruscamente puxou meu casaco,
levantando minha blusa.
Ouvi o som o zíper de sua calça abrindo.
— Não faça isso comigo, não faça isso! — implorei, tentando
me afastar, enquanto ele tentava baixar minha calça. — Não faça
isso, John! — Eu lutei tanto que ele desistiu de me deixar nua.
— Ah, não importa — gemeu como um filho da puta
miserável e infeliz que ele era. — Vai ser assim mesmo.
Eu senti que poderia morrer quando ele começou a esfregar
o pênis nas minhas costas.
— Ah delícia, delícia — gemeu mais alto. — Eu quero sentir
meu pau dentro de você. — Podia ouvir o barulho dele se
masturbando. — Quero isso, eu quero!
Não se mova, Jenny. Vai acabar logo. Não se mova. Em meio
ao caos da minha mente, tentava fazer o controle de danos, mas eu
não conseguia me ouvir. O desespero me dominava, não queria sua
pele na minha, não queria suas mãos em mim, causava-me repulsa
e um pavor tão violento, que me fazia sentir dor física.
— Isso, fica quietinha! — Ele continuou esfregando-se em
mim, se masturbando nas minhas costas.
Não lutei.
Fiz a única coisa que podia, eu me abracei para que, de
alguma forma, não perdesse nenhum pedaço quando tudo aquilo
acabasse.
— Que pele macia. — Sua voz soou como um gemido
asqueroso.
Deus, me tira daqui, me tira daqui... Fechei os olhos,
tentando não sentir. O motorista estava nos olhando, eu tinha
certeza.
Eram todos como ele.
— Foda-se! — gemeu, eu podia perceber pela respiração no
meu pescoço que ele estava chegando lá. Não demorou muito para
que um líquido quente atingisse minhas costas e escorresse em
direção ao cós da minha calça.
A sensação que eu tive foi de que havia perdido todas as
forças do meu corpo. Ele encostou a testa no meu ombro, eu me
imaginei em outro lugar.
Vai passar, vai passar. Não queria ter que ouvir a respiração
daquele homem, ou sentir o esperma escorrendo em minha pele,
queimando-me como ácido.
Queria sumir daqui e nunca mais voltar.
— Eu te amo tanto, Jenny. — Ele respirou fundo, esfregando
a boca no meu ombro. — Ninguém jamais vai te amar como eu.
Não tinha nenhum pingo de força para limpar as lágrimas que
escorriam abundantemente por minhas bochechas. Seus braços
vieram ao meu redor, ele repousou a mão na minha barriga.
— Um dia, você vai entender que tudo que eu faço é para
nós dois — suspirou. — Te vendo com aquela menina, me fez ansiar
te ver segurando o nosso filho. — Fez carinho em minha barriga —
Irei adicionar um termo de sigilo quando fizermos o DNA, eu vou
conseguir o cargo de CEO da gravadora, mas esse bebê será
apenas nosso.
Não!
A certeza de que eu não permitiria que John colocasse as
mãos no meu filho apenas se intensificou. Ele nunca iria tocar em
nenhum fio de cabelo da minha criança.
— Você me odeia, John — expulsei as palavras, sentia-me
tão estranha, era como se uma parte do meu cérebro não estivesse
funcionando.
— Não, Jenny, eu não te odeio. — Ele beijou meu ombro. —
Eu te amo.
Não dissemos mais nada.

***

Quando chegamos em casa, fui direto para o meu quarto,


quase que com desespero arranquei as minhas roupas, correndo
para o banheiro.
Havia uma esponja áspera que minha mãe sempre deixava
ali, eu a peguei, e, como uma louca, comecei a esfregar a pele.
Meu desejo era arrancá-la.
Podia sentir o esperma escorrendo, a sensação deixava-me
tão doente que eu quebrei o espelho e peguei um pedaço.
Há muito tempo John não deixava nenhum material cortante
por perto e me vigiava para que eu não cometesse erros.
Pressionando o caco de vidro nas costas, a dor dilacerou-me
enquanto cortava a pele.
— Meu Deus, filha, pare com isso. — As mãos gentis da
minha mãe me impediram de continuar cortando. — Amor, pare, por
favor, pare.
— Por favor, mamãe, me ajuda a me limpar — solucei, de
cabeça baixa, não conseguiria olhar para ela. — Por favor.
— Amor... — um soluço baixo escapou dela. — Entregue-me,
por favor.
Gentilmente, ela removeu o caco, minha mão estava com um
corte pequeno, eu não me importei.
— Estou tão suja. — As palavras saíram num fiapo de voz. —
Estou imunda, arranca, mamãe, corta a pele fora, prometo não
gritar.
O choro dela mesclou-se com o meu, enquanto me lavava,
esfregando minha pele com carinho.
— Perdão, meu amor, perdão por não ter percebido antes e
tentado nos tirar daqui. Perdão por não ter visto os sinais.
Como ela saberia? John era um ator perfeito.
— Não é culpa sua. — Virei-me, abraçando-a. — Ele finge
tão bem, todo mundo acredita, mamãe, todo mundo.
— Temo por ele. — Ela colocou a mão na minha barriga. —
Temo por vocês dois.
Antes que pudesse pensar direito no que fazer, as palavras
começavam a escapar da minha boca:
— Não é de David — murmurei tão baixinho, que ela curvou
para escutar. — Não dormi com David, mamãe.
— O que você fez? — ofegou, parecendo desacreditar das
minhas palavras.
— Eu me entreguei para um desconhecido. — Meu queixo
tremeu, o choro voltou ainda mais intenso. — Eu escolhi me
entregar para o homem que me salvou de ser estuprada. E eu não
me arrependo, ele é incrível, absolutamente incrível.
— Jenny!
— Eu o escolhi. Pela primeira vez na minha vida, fiz algo para
mim, porque eu sabia que não ia ter outra chance. — Deixei que o
desespero me consumisse, dela eu não precisava esconder. — Era
para ser meu segredo, mas agora eu estou grávida e John vai
saber. Ele vai fazer um DNA, eu não posso ter essa criança, mas
como vou fazer um aborto? Estou apavorada.
Uma cor doentia tomou conta de seu rosto, ela me abraçou
apertado.
— Eu vou resolver, confie em mim. — Ela acariciou as
minhas costas. Eu estremeci de dor quando suas mãos tocaram o
ferimento que eu fiz. — Vai dar tudo certo.
Ela me ajudou a levantar, então cuidou de mim. O
machucado que fiz não era grande o suficiente, talvez precisasse de
alguma sutura, eu não fazia ideia, mas ela deu um jeito com o kit de
primeiros socorros que tinha no meu quarto.
— Você vai ter que ficar quieta, e não deixar John perceber
que você cortou suas costas.
— A minha mão. — Mostrei o corte pequeno, onde eu segurei
o vidro.
— Vou deixar enfaixada, ele vai achar que foi por causa do
espelho. — Ela acariciou minha bochecha. — Confie em mim,
querida.
— Eu confio minha vida a você, mamãe, inclusive se você me
ajudasse a tirá-la, eu te agradeceria ainda mais. — Olhei para o
banheiro. — Eu posso fazer isso agora, basta apenas um pedaço
daquele vidro.
Ela negou.
— Você vai ter uma vida bonita, você vai ser feliz.
— Não vou, mamãe — Minha voz embargou outra vez. — Eu
nunca vou ser feliz, não enquanto John viver. — Bati no peito. —
Por que meu coração simplesmente não para de funcionar?
Meu coração era doente, cada nova arritmia berrava o quanto
estava problemático, mas, apesar da dor, de cada crise, eu
continuava viva, respirando.
Odiava-me por isso.
— Vamos deixar essa parte a cargo do destino — ela
suspirou. — Estou cultivando uma planta nova e, se ela florescer,
quem vai dar adeus a este mundo não seremos nós. — Ela sorriu.
— Agora, eu vou resolver outro problema. Descanse, em breve eu
voltarei.
Eu pensei que não seria capaz de fazer como ela pediu, mas,
quando fechei os olhos, só acordei porque minha mãe estava me
chamando.
— Querida, me diga o nome do pai do seu filho.
— Eu não sei. — Eu me senti envergonhada. — Eu não
perguntei e ele não me disse.
Não havia julgamento no semblante da minha mãe, mas
curiosidade. Ela sabia o quanto eu era reservada e que, se eu o
escolhi para ser o meu primeiro, era porque havia sentido para mim.
— Você não sabe de absolutamente nada sobre ele?
— Apenas que é o homem mais incrível e lindo que já vi na
minha vida. — Não pude evitar de sorrir, ainda que a tristeza me
engolisse por inteira. — Ele me fez sentir livre pela primeira vez na
vida, dona de mim.
— Jenny...
— Ele me deixou escolhê-lo, mamãe, ele me deu poder para
decidir e eu o fiz acreditando que não teríamos consequências, mas
agora...
— Agora eu trouxe algo para resolver. — A voz dela
embargou, com os olhos iguais aos meus enchendo-se de lágrimas
— Meu neto — soluçou. — Eu receberia essa criança com todo
amor se as circunstâncias fossem outras.
Havia um dor no peito que nada tinha a ver com a minha
doença. Era como se houvesse uma faca cravada no meu coração,
que ia retorcendo cada vez que eu pensava no meu filho.
— Não queria renunciar a ele. — Toquei minha barriga. — É
uma parte de mim. Isso dói tanto, sinto como se fosse morrer um
pouco.
— Sinto muito, minha filha. — Ela me abraçou. — Eu sinto
muito por tantas coisas.
— Mamãe, eu amo essa criança. — Fechei os olhos,
deixando minha dor falar. — Eu não queria ter que fazer isso, mas
não posso arriscar. O que temos aqui não é vida, não posso colocar
meu filho sob o poder de John, isso seria pior.
— Sinto muito.
— Não é culpa sua, não é culpa de nenhuma de nós.
Nos braços uma da outra, pranteamos por tudo que
estávamos abrindo mão. Eu nunca imaginei que pudesse querer
outra pessoa como queria a criança em meu ventre, e a decisão de
não permitir que ela vivesse rasgava minha alma.
Era tudo muito injusto.
— Está no limite, precisamos fazer isso agora. — Ela apontou
para a xícara que descansava no móvel ao lado da cama. — Eu
engravidei de John — confessou baixinho, e o modo como se
encolheu pareceu que alguém lhe batia. — Por um longo tempo, eu
não pude engravidar. Mas, por alguma razão que desconheço, três
anos atrás, John quis ter um filho a todo custo. Ele precisava fazer
um tratamento e o fez. — Ela desviou o olhar. — Eu engravidei, por
duas vezes, John conseguiu o que queria.
A sensação que eu não tive não foi boa, nunca havia
imaginado que John quisesse ser pai, ele era um homem cruel
demais, então por qual razão quereria ter uma criança?
Para machucá-la como fazia comigo e com minha mãe?
— Recusei-me a permitir que outra criança inocente caísse
nas mãos de um bastardo tão cruel quanto John. — Ela pegou a
xícara, mostrando-me o líquido escuro e fumegante. — Esse chá
sempre resolveu os meus problemas, também vai resolver o seu.
— Eu não fazia ideia. — Engoli em seco. — A senhora não
fica apenas cuidando de flores na estufa, não é?
— Não, quando estava esperando você eu trabalhava para
uma mulher especialista em plantas medicinais durante o dia. — Ela
tocou meu joelho. — Ela me ensinou muitas coisas boas, como
também o lado não tão bom. Levei algum tempo para aprender, mas
ela me tornou sua aprendiz. — Sorriu, triste. — Sempre tive comigo
as sementes das principais plantas abortivas. Cultivá-las aqui sob
pretexto de serem apenas flores foi o que me garantiu que John
nunca desconfiasse.
— Você está cultivando debaixo do nariz dele. — Não pude
evitar o medo em minha voz, ele a mataria sumariamente se
soubesse.
Levantando-se, ela deu dois tapinhas no meu joelho.
— Quando começar não grite, precisamos ter certeza de que
deu certo. Em algumas horas, eu virei vê-la.
Minha mãe foi embora, deixando-me sozinha para fazer uma
das coisas mais difíceis da minha vida.
Por um longo tempo, observei o líquido escuro. A minha
imagem estava refletida ali, disforme, como me sentia por dentro.
— Sinto muito. — Toquei minha barriga, ainda plana. — Sinto
muito por estar fazendo isso com você, mas eu sei que no céu você
vai ser feliz. — Fechei os olhos, tendo a primeira e última conversa
com meu bebê. — Não se sinta menos que amado, porque eu juro
que te amo, mas a vida aqui é horrível. Eu não sei quem é o seu pai,
mas eu tenho certeza de que ele também te amaria. Me perdoa por
não te dar uma chance, por favor, me perdoa por te tirar do seu
lugar seguro. Acredita em mim que, quando você abrir os olhos, vai
estar num lugar bonito e feliz. — Acariciei a minha barriga,
ignorando a dor no meu coração. — Eu te amo, mas não posso
deixar você viver.
Me perdoe, me perdoe, me perdoe... Sentindo meu coração
quebrar em milhares de pedaços, tomei o chá amargo. O líquido
desceu queimando por minha garganta.
— Está feito. — Levantando-me da cama, fui até o banheiro e
lavei a xícara, depois deixei com água ao lado da minha cama.
Estava mentalmente exausta, um cansaço como nenhum
outro foi rastejando por meu corpo como se eu estive afundando
num lago pantanoso. Quando me deitei, tentei ficar o menor
possível, encolhida, abraçando meu corpo numa alusão ao abraço
que eu nunca poderia dar ao meu bebê.
— Sinto muito. — Fechei os olhos, deixando as lágrimas
rolarem num fluxo constante e dolorido.
O tempo foi perdendo o sentido, havia um silêncio ao redor. A
escuridão do meu quarto estava permeada por uma profunda frieza.
Aos poucos, meus pensamentos foram se pendendo, como se
finalmente houvesse chegado ao final.
Então a primeira pontada surgiu, e depois outra e mais outra.
A dor foi aumentando tão rápido, que não pude controlar a
respiração ou um meio para aguentar. Fui pega de surpresa, o
choque deixou-me atordoada, estava sentindo o sangue escorrendo
entre as minhas pernas.
— O que eu fiz? Meu Deus, o que eu fiz?! — O horror me
golpeou junto com um arrependimento tão forte, que não pude evitar
o grito de desespero que rasgou minha alma ao meio.
A dor havia se tornado tão surreal, que pontos pretos
piscaram diante dos meus olhos.
— Jenny? — A voz de John soou próxima, mas eu não pude
localizá-lo.
Estava cega, mergulhada em um tormento tão grande, que
não sabia o que fazer além de sofrer as consequências dos meus
atos.
— Meu amor, o que... — Senti suas mãos em meu corpo,
então o grito que ele deu soou mais desesperado que os meus.
Seu rosto entrou e saiu de foco enquanto eu sentia o sangue
escorrendo.
— A culpa é sua — eu lhe disse, com a voz fraca, quebrada.
— A culpa é toda sua.
A escuridão me levou.

***

Em meio à chuva torrencial, eu corria desesperadamente.


Podia ouvir os gritos de John cada vez mais perto. Não importava o
quanto eu corresse mais rápido, ou o quanto eu tentasse, ele
sempre estava próximo, como um sopro de ar quente em meu
ouvido.
Meu coração estava doendo, o ar escapava dos meus
pulmões em curtas baforadas exigentes, eu me sentia fraquejando,
uma tontura enorme me invadia e aquela apatia terrível começava a
dominar.
Não adiantava fugir, ele sempre me encontrava.
— Jenny, cadê você? — ele me chamou melodiosamente
como um personagem de filme de terror.
Quase pude sentir sua euforia, era como se ele antecipasse o
momento de me encontrar e castigar.
— Jenny, vem para o papai. — Ouvi o barulho irritante de
metal contra metal. — Não seja uma garota desobediente, você
sabe o que acontece quando eu fico irritado.
Tentei correr outra vez, mas não consegui. Quando olhei para
o que me segurava, vislumbrei um grilhão no tornozelo, entendendo
de uma vez por que eu não conseguia correr.
Pude avistar John se aproximando, a corrente enrolada no
punho, com um sorriso vitorioso nos lábios finos. Eu estava presa,
nunca conseguiria escapar.
— Apenas continue tentando. — Uma voz rica, carregada de
sotaque e calor, espantou o frio que me impregnava até os ossos.
Busquei por ele, sentindo no mais profundo do coração uma
euforia enorme, misturada com uma felicidade incomum.
— Onde está? — Olhei ao redor, desesperada para encontrá-
lo.
— Perto — sussurrou em meu ouvido, mas eu não pude vê-
lo.
Era como se não existisse.
Aquele calor que sua voz me trouxe evaporou quando uma
mão apertou meu ombro e eu fui levantada bruscamente.
— Achei você... — John sorriu, e eu sabia que agora iniciaria
a punição.

Acordei sentindo o coração retumbando no peito. O medo


enrolava-se em meu corpo como uma mortalha, por um momento
tentei levantar-me, fugir da sensação agonizante de pavor, mas não
pude.
Meu corpo estava pesado, esquisito. Percebia os sons ao
redor, mas estava confusa demais, a mente enevoada, incapaz de
segurar o fio de pensamento.
— Querida? — A voz da minha mãe soou como um bálsamo,
seu toque gentil em meu rosto aliviou aquela sensação de medo. —
Filha, pode me ouvir?
Abrir os olhos levou tudo que restava das minhas energias,
senti-me fraca como nunca estive, tonta e dolorida.
— Mamãe. — Lambi os lábios, sentindo a garganta tão seca
que queimava.
— Calma, querida. — Havia um sorriso triste nos lábios dela,
os olhos estavam vermelhos, com olheiras destacadas por causa da
palidez. — Beba um pouco de água.
Ela encostou o copo na minha boca e eu tomei devagar,
sentia o estômago vazio, a água deixava-me enjoada.
— O que aconteceu?
— Você teve uma hemorragia — confessou baixinho.
Não tive coragem de perguntar, pois eu tinha certeza de que
nosso plano havia dado certo. Uma parte de mim se arrependia,
considerando que talvez eu pudesse ter esperado até o último
minuto para tentar algo, mesmo eu sabendo que, no final das
contas, não ia adiantar.
Você fez o que foi preciso! Uma voz sensata alertou-me.
Ainda que eu não fosse capaz de me perdoar, eu fiz o que tinha que
fazer.
— Jenny, o... — Minha mãe foi interrompida quando a porta
do quarto abriu e John entrou parecendo um louco.
Seus olhos assombrados me encaravam fixamente. Decidido,
veio para mim, ignorando a presença da minha mãe e segurou meu
rosto.
— Eu nunca senti tanto medo na minha maldita vida. — Ele
me deu um beijo rápido. — Eu te amo demais, não posso viver sem
você.
— Não me toque! — Tentei empurrá-lo, mas não consegui
que se afastasse.
— Graças a Deus, você está bem, nosso bebê também. — O
gelo tomou minhas veias ouvindo suas palavras. — Foi por pouco,
Charles disse que foi o estresse, prometo, Jenny, eu vou cuidar de
você. Nunca mais vou te machucar, eu te...
— Buscamos por sobreviventes.
Essa voz... Eu poderia reconhecê-la em qualquer lugar. Já
não ouvia o que John dizia, pois aquela voz chamou minha atenção,
substituindo o medo pela sensação de segurança.
Buscando-o desesperadamente, quase não pude acreditar
quando o vi na televisão.
O homem dos meus sonhos estava ali. A emoção foi tanta,
que comecei a rir e chorar. Ele continuava tão lindo quanto eu me
lembrava, só que agora a barba estava maior, o cabelo alaranjado
também e ele lhe conferia uma aura de fogo que combinava
perfeitamente.
Ele estava sento entrevistado.
— Capitão, até o presente momento enumeram-se doze
mortos, entre eles, quatro crianças. Você acredita que há
perspectiva de encontrarmos os desaparecidos com vida?
— Estamos trabalhando incansavelmente, lutaremos até o
fim. — Ele esfregou o cabelo, estava sujo, mas, para mim,
continuava tão bonito que chegava a doer. — Esperamos que
estejam em bolsões de ar, os edifícios foram construídos em blocos
inteiros, talvez, no desabamento, algumas placas possam ter criado
espaços.
— O prefeito afirma que o processo de evacuação estava
sendo feito, e o senhor atribui o que aconteceu a uma fatalidade, o
que tem a dizer sobre isso?
Ele estreitou os olhos, parecia estar se contendo.
— Demorou demais, esses edifícios foram condenados ano
passado, a evacuação deveria ter sido feita imediatamente. A
irresponsabilidade do prefeito culminou na morte de dezenas de
pessoas, esta é uma dívida que ele vai ter que pagar perante a
sociedade.
Ele olhou para a câmera e eu senti o impacto do seu olhar
roubar meu fôlego. Era como se ele estivesse olhando para mim e
pedindo-me para escolhê-lo de novo.
Pela segunda vez, senti-me hipnotizada por ele, por sua
beleza arrebatadora.
Queria correr para ele, dizer que estava esperando seu filho e
que precisava desesperadamente de ajuda. Talvez, ele pudesse me
salvar e me fazer sentir feliz outra vez.
— O que você tem com ruivos? — John entrou na minha
frente, seus braços estavam cruzados e os olhos estreitados. —
Não gosto que encare outros homens!
Ele desligou a TV, antes que eu pudesse saber o nome do
meu viking.
— Mãe... — Sentia como se não pudesse respirar direito.
Na breve troca de olhar que tive com a minha mãe, ela
percebeu que aquele bombeiro, dando a entrevista, era o pai do
meu filho.
— Alguns prédios desabaram no Bronx — John quebrou o
silêncio. — Vou preparar sua alta, não quero ficar aqui, irei cuidar de
você em casa.
Não me importei com suas palavras.
Um sentimento muito forte estava aquecendo meu peito. Ele
vivia aqui em Nova York.
Ele estava perto!
Deus... Toquei a minha barriga.
Ainda havia esperança.
23
Gabriel Demonidhes

Meu corpo gritava de dor, os músculos estavam travados


pelos longos dias de trabalho árduo. Geralmente, não era difícil
manter o ritmo pesado e exaustivo, afinal tinha treinamento para
suportar isso e muito mais, o problema é que havia uma sensação
de que algo estava errado, fora do eixo.
Não fazia ideia do que se tratava, afinal as coisas haviam
voltado ao normal.
Estava reintegrado ao Corpo de Bombeiros, as pessoas
envolvidas com a Cöntrax estavam todas mortas, inclusive mulheres
e filhos.
Sem descendência.
Aquele foi o recado de Blood.
Ultimamente, o submundo não estava colocando nenhum pé
para fora da linha. Não havia desafios para a Ordem e, mais uma
vez, a Cöntrax precisava se reconstruir, pois a cabeça que havia
dentro do departamento anti-incêndios, fora decepada.
E a minha única tristeza diante tudo que aconteceu, foi não
ter participado.
Lysander foi um bastardo egoísta e sanguinário deixando
claro que era o Mercador sedento, e que não era bom chamar sua
atenção naquele momento. Ele estava usando o indulto que
possuía, e o único capaz de segurá-lo, estava deixando-o livre.
Rafael era o Senhor da Ordem e nós estávamos em guerra.
Ainda que fosse uma guerra silenciosa, em que cada movimento era
calculado como num jogo de xadrez.
A Cöntrax havia dado um golpe, nós revidamos sem qualquer
misericórdia.
— Capitão, estamos prontos para encerrar. — Um jovem
recruta se aproximou, tirando-me de meu momento de descanso. O
observei puxar o capacete de proteção. Estava exausto, com
olheiras profundas no rosto magro e jovem. — As novas equipes
chegaram, os cães foram levados para a Central.
— Obrigado por informar. — Levantei-me da cadeira,
estávamos numa tenda improvisada que servia de apoio. — Faça
um relatório detalhado das atividades de hoje. Vou assumir o
próximo turno.
— Senhor, você está aqui desde o momento que chegamos.
— Ele engoliu em seco. — O seu último resgate quase lhe custou a
vida, descanse um pouco.
Para eles que não sabiam a verdade sobre todas as mortes
que ocorreram dentro do departamento, acreditavam que uma
sombra de má sorte pairava sobre as nossas cabeças.
As mortes e acidentes trágicos, causados por Lysander, fez
com que todos se tornassem bastardos cautelosos e irritantes.
— Faça o relatório e vá para casa. — Não admiti recusa. Ele
acenou, afastando-se.
Estávamos nas horas decisivas, não demoraria muito para
que as chances de encontrarmos sobreviventes fossem nulas.
Queria estar aqui para tentar reverter esse quadro, iria tentar até o
fim encontrar os últimos desaparecidos.
Talvez, hoje fosse um dia melhor que os outros. Ainda que eu
não fosse aquele tipo de pessoa que ficava emanando pensamento
positivo, acreditava na força do trabalho e na rapidez com que o
começávamos.
Não importava que o ambiente fosse desfavorável, eu só iria
embora quando não restassem sobreviventes, ou corpos para
desenterrar.
— Merda de dia ruim do caralho — rosnei, pegando meu
capacete.
Tudo estava contra nós, o modo como a porra desabou
complicava, as máquinas que precisávamos usar, para retirar as
placas de concreto, poderiam causar rupturas e mais desabamento.
Estávamos fazendo um trabalho delicado, porque aquela
porcaria era frágil como um castelo de areia.
Um passo em falso e tudo acabava.
— Capitão? — Um tenente, que fora promovido
recentemente, franziu o cenho quando eu me aproximei.
— Sem perguntas, vamos continuar. — Posicionando-me
onde deveria ter sido uma entrada de incêndios, comecei a remover
os pedregulhos.
Quando algumas áreas estavam acessíveis, os cães voltaram
a farejar onde ainda havia necessidade o uso de maquinário
pesado. Pela análise da planta, a parte mais instável era a garagem,
onde os cães estavam latindo, mostrando que haviam encontrado
algo.
— Os cães estão arranhando o solo! — gritei para a
escavadeira. — Pare, ou as placas não aguentarão o peso. —
Atento, desloquei-me para onde os animais estavam.
Era simplesmente uma merda que houvesse alguém ali, a
garagem era o pior local para se estar em um maldito desabamento.
— Silêncio. — Erguendo a mão, estiquei-me por entre os
destroços, enfiando a cabeça em um pequeno acesso para tentar
ouvir alguma coisa.
Por um tempo não tinha nada, mas comecei a notar que
havia uma vibração recorrente. Era o eco de pancadas.
— Há sobreviventes aqui!
Saber disso me deu uma descarga de adrenalina, o cansaço
foi embora deixando em seu lugar pura determinação. Pelos relatos,
e contagens de moradores, ainda restavam cinco desaparecidos.
Um professor e quatro alunos.
— Senhor, podemos erguer a placa com um guindaste. —
Balancei a cabeça, olhando ao redor.
A placa estava rachada ao meio, apoiando-se precariamente
numa estrutura de metal retorcido. Não ia aguentar a fixação de
pinos, tampouco ser erguida. Ela ia quebrar, o que poderia resultar
na morte daquelas pessoas.
— Precisamos abrir um caminho paralelo e ir fazendo a
sustentação da placa por baixo. — Apontei para o local que
deveriam começar a usar a escavadeira, depois peguei o megafone.
— Todas as equipes, afastem-se da placa de concreto demarcada,
temos sobreviventes aqui embaixo.
Todo o sistema de resgate modificou-se, as equipes
especializadas em desastres dessa natureza se mobilizaram e logo
começamos a fazer o túnel.
Levou algum tempo para conseguirmos um acesso seguro e
confiável. Depois, com ajuda de um mecanismo de comunicação
guiado por controle remoto, conseguimos chegar até onde os
sobreviventes estavam.
— Professor Jackson, pode me ouvir?
— Sim, posso ouvir. — Pelo tom de voz ficou óbvio que ele
estava no limite. Isso me incentivou a agir com mais cautela.
Não arriscaria cometer um erro agora que estávamos tão
perto.
— Aqui quem fala é Gabriel Demonidhes, capitão do Corpo
de Bombeiros de Nova York. Peço que mantenha a calma, confie
em mim e siga as instruções. Dou-lhe minha palavra que você e as
crianças sairão daí em segurança.
— Obrigado. — Sua voz soou embargada.
— Diga-me, estão todos conscientes?
— Sim, tenho quatro crianças, todas conscientes. Estamos
debaixo de uma pick-up, mas ouço som de estalos. Alguma coisa
está quebrando, senhor.
O desespero dele não me afetou, apenas deixou-me mais
consciente do pouco tempo que tínhamos para terminar tudo aquilo.
— A estrutura não é confiável, por isso criamos um acesso
paralelo para que possam sair, os estalos são por conta da pressão
que a estrutura está sofrendo. — Minhas palavras soaram
tranquilas, ele não poderia saber que aquele local poderia desabar e
que eles seriam esmagados. — Preciso que você nos ajude.
Falar diretamente com ele, dando-lhe responsabilidade, era o
primeiro passo para que mantivesse a calma e fizesse o que era
necessário. Ele era um líder, as crianças dependiam dele.
— Sim, Capitão, eu entendo.
O homem estava cansado, mas teria que se manter firme e
confiante.
— Okay, agora preste atenção. — Ergui a mão, para os
equipamentos que mantinham a placa sustentada por baixo. — Este
cabo que chegou até você, funciona com pequenas rodas
controladas a distância, no túnel cabe uma pessoa apenas. Preciso
que você explique para as crianças que elas devem seguir as luzes,
a distância é curta, mas, quando começarem a vir, preciso que não
parem. Acha que consegue convencê-las a fazer isso?
— Sim, eu consigo. — Não houve hesitação.
— Ao seu sinal, podemos começar.
Ele levou alguns minutos importantes para explicar as
crianças o que precisariam fazer, eu podia ouvir o choro através do
microfone que havia na ponta do cabo. Elas estavam apavoradas.
Mas o professor tinha métodos que pareciam promissores.
— Estamos prontos para começar. A primeira a ir é Kate, ela
tem seis anos — o professor Jackson nos comunicou.
— Vamos recebê-la, Kate, venha para nós — falei o mais
gentil possível.
— Quero a minha mãe, meu braço está doendo e eu estou
com fome.
— Venha, prometo que você pode escolher o que comer.
— Bolo de chocolate e sorvete, a mamãe não me deixa
comer, eu quero.
— Você terá. — Eu lhe prometeria qualquer coisa. — Mas
você não pode parar, venha.
Os momentos seguintes foram de pura tensão. Quando a
juba cacheada e cheia de poeira apareceu na boca do túnel, os
paramédicos estavam prontos para recebê-la.
Kate havia conseguido.
— Professor Jackson, estamos prontos para continuar.
O que poderia ter sido um problema não foi, as crianças não
pararam no túnel, elas seguiram exatamente como foram instruídas,
sem se entregarem ao medo. Graças a trabalho de todos, mas,
acima de tudo do professor Jackson, a parte mais difícil do resgate
havia sido um verdadeiro sucesso.
Todas as crianças estavam fora daquele maldito lugar, faltava
o professor.
— Agora é a sua vez.
— As crianças estão bem? — A voz dele soou baixa demais.
— Sim, estão, comece a vir.
— Um momento.
Ele não ia vir.
Tive tanta certeza de que nem precisou dizer mais nada.
— Eu vou até lá. — Comecei a tirar os equipamentos do
corpo ou não caberia no buraco.
— Não, não. — A voz do professor pareceu-me desesperada.
— Você vai morrer.
— Ou você vem, ou eu vou. Escolha. — O silêncio que se
seguiu pareceu durar uma eternidade. — As crianças estão aqui,
esperando por você.
Jackson me parecia o tipo de cara que lutava para fazer a
diferença na vida das pessoas, principalmente naquela região
violenta e com baixas expectativas. Ele era importante, precisava
continuar vivo.
— Estou indo.
— Se você não tem condições de vir, enrole o cabo no corpo,
nós iremos te puxar.
— Obrigado. — Ele parecia aliviado.
Ao seu sinal, nós trabalhamos lentamente para retirá-lo.
Quando o pobre homem saiu daquele lugar, ele sorriu enquanto
respirava fundo.
— Bem-vindo de volta, professor. — Ergui os polegares.
— Obrigado.
Logo, uma equipe de paramédicos estava ali para cuidar de
seus ferimentos, e eu finalmente poderia dar o trabalho por
encerrado. Não levou muito tempo para que eu estivesse a caminho
da Central.
Depois de dois dias de trabalho intenso, havia acabado.
— Porra, você é insano! — Fui abordado assim que desci o
caminhão. — Um dia desses, você não vai aguentar, seu maluco!
Quer morrer de exaustão? Por que não tomou os plantões? O chefe
está puto!
— Isso não é problema meu, Collin. O chefe pode ficar puto
com quem quiser.
Eu e o chefe tínhamos nossas diferenças. O bastardo havia
viajado desde o meu “acidente”, mas adorava continuar ditando
regras, que eu, obviamente, não seguia. Eu gostava do que fazia,
mas porque trabalhar no Corpo de Bombeiros me dava tudo que
precisava para não perder o juízo.
Somente o trabalho aqui e na Ordem eram capazes de me
manter minimamente controlado.
— Okay, sem problemas. — Collin ergueu as mãos. — Os
rapazes estão indo para o Jazz Club comemorar, está a fim?
— Não. — Indo até o meu armário, comecei a retirar o
uniforme. Mas o bastardo continuava ali. — O que diabos você
quer? — Cruzei os braços, esperando.
— Uma mulher procurou por você hoje. — Na hora, senti o
corpo agitado. — Ela parecia ansiosa para falar com você, ficou
insistindo, mas eu não disse onde você estava. Talvez ela tenha ido
para a área de rergate, mas não sei.
— Como ela era?
Imagens de Jenny e de tudo que fizemos em Londres
explodiram diante dos meus olhos. Sentia-me abalado desde aquele
dia, não tinha conseguido tirá-la da cabeça, e, pior, eu me masturbei
pensando nela.
Gozei chamando seu nome.
Porra! O que aquela mulher fez comigo?
— Gabriel?
— Puta que pariu! — Sacudi a cabeça. — Como ela era?
— Ruiva, alta, bonita pra caralho. — Collin sorriu. — Ela
estava ansiosa para te ver, cara, parece que você a deixou com
uma boa impressão.
Eu não lembrava de nenhuma das minhas fodas do último
mês, era como se, depois de Jenny, as outras não tivessem rosto.
Eu trepava pensando naquela mulher, somente assim conseguia ter
o mínimo de prazer.
— Ela disse que ia voltar. Eu passo o número do seu
telefone?
— Não. Diga apenas que estou ocupado. — Abanei a mão,
pegando as minhas coisas.
Fui direto para o chuveiro, queria uma boa massagem do jato
forte de água gelada. Eu estava cansado, mas não me surpreendi
quando notei que ainda havia muita energia circulando em meu
sistema.
Aquela sensação de incômodo que me espezinhava desde a
volta de Londres estava ficando pior, era uma constante, que me
incitava a certeza de que havia algo errado, mesmo eu sabendo que
não havia.
— Preciso de uma boa foda. — Esfreguei os cabelos,
desligando o chuveiro. — E definitivamente tirar aquela mulher da
cabeça.
Eu não tinha o hábito de conversar sobre os resgates. Desde
que entrei no Corpo de Bombeiros de Nova York, não permiti que
nenhum vínculo de amizade fosse criado. Meu assunto com eles era
apenas sobre trabalhos, treinamento e missões, nada mais.
Não possuía nem um pingo de senso de camaradagem ou
qualquer uma dessas merdas, por isso a grande maioria nem
tentava se aproximar mais.
Apenas Collin, o sempre sorridente e idiota Collin.
— Gabriel, você está saindo para o final de semana de folga.
O relatório...
— Eu não estava como Comandante, apenas permaneci, o
relatório da minha etapa já está pronto. — Peguei meu capacete e a
mochila.
— Okay, nos vemos na próxima semana.
Não estava precisando de diálogo, nem de toda essa
felicidade insuportável que pessoas como Collin exalavam.
Eu só queria chegar na maldita boate de Razhiel, encontrar
uma garota disposta a transar a noite toda. Ansiava exaurir minhas
energias e essa angústia queimando meu peito dia e noite, desde
que havia regressado de Londres.
Maldita viagem.
Eu só queria relaxar depois de trabalhar feito um condenado.
Isso era o mínimo, mas não, minha mente continuava vivendo
dentro de um inferno, pensando em coisas que não deveria.
— Caralho! — Acelerei a moto, desconsiderando o limite de
velocidade e todo o resto.
Conscientemente, eu deveria seguir direto para a casa
noturna que havia se tornado minha segunda casa, mas, outra vez,
eu estava na rua dela.
Parando em frente à casa dela.
Outra, maldita, vez...
— Porra! — Não pretendia demorar, estar ali era somente
mais uma parte do meu ciclo vicioso de merda.
Era estranho que um pouco do meu tormento acalmasse
sempre que eu vinha àquela mansão feia e caindo aos pedaços,
isso fazia eu me sentir tranquilo até certo ponto e menos propenso a
sair arrumando confusão.
O único problema era que hoje, especialmente, havia um
número bem maior de seguranças, mais do que era necessário para
proteger uma casa como aquela.
“O que está acontecendo aqui?”, questionei-me, incomodado.
Jenny havia explodido na mídia, os números de pessoas que
a acompanhavam tinha mais que dobrado, a mídia em cima dela
estava pesada no que dizia respeito a entrevistas, reportagens, e
etc. Eu estava de olho em tudo, mas não acreditava que fosse por
isso que houvesse tanta proteção ali.
Jenny havia mudado sua vida, e o modo como fez isso me
irritava.
Não havia mais nada daquela simplicidade hipnotizante que
me deixou cego por muito tempo, tudo parecia ter evaporado. Ela
tinha se transformado na cópia glamourizada da antiga Jenny.
Sentia falta daqueles vídeos em que era apenas ela, o
celular, um violão e sua voz interpretando dolorosamente as
músicas que escolhia e que me faziam sentir tranquilo.
A última vez que eu quase enlouqueci, foi com o vídeo do
festival, eu nunca a vi cantando de uma maneira que me deixou
excitado ao ponto de eu precisar me aliviar como um adolescente.
Mas agora não havia mais a sua voz de anjo cantando para
mim, não havia mais calma.
Não havia nenhuma paz.
Eu me sentia roubado, não gostava dessa nova versão.
Queria a antiga.
— Dane-se!
Recusava-me a aceitar que sentia falta da voz dela. Estava
cansado de me contentar com as mesmas músicas que já havia
ouvido mais vezes do que poderia contar.
Saberia dizer cada mudança no tom de sua voz, os trejeitos,
o modo como fechava os olhos parecendo sofrer as dores do mundo
inteiro enquanto me deixava paralisado com usa interpretação.
Fora isso que me atraiu no começo.
Depois, ouvi-la cantando passou a acalmar o tormento que
me consumia dia após dia. Ela apaziguava a necessidade de buscar
o caos, de ver coisas queimando e sendo destruídas, de arriscar
minha vida uma e outra vez.
Ela segurava minha sanidade.
Agora não mais e isso estava me enlouquecendo.
Desejava ouvi-la cantando coisas novas, por isso procurava
todos os dias, mas só encontrava um monte de entrevistas ridículas,
que me deixavam puto.
Elas não eram suficientes para mim.
— Algum problema? — Um dos seguranças se aproximou.
Relaxando na moto, cruzei os braços tranquilamente. Talvez
uma boa briga resolvesse parte de meu problema.
— Não sei, me diga você. — Não retirei o capacete, nem um
pouco incomodado quando ele mostrou a arma no coldre.
— Se você não sair, posso te dar um grande problema. Tenho
ordens para não deixar fãs amontoarem-se na porta. — Ele indicou
a rua. — Saia.
— Acho que vou ficar. — Descendo da moto, recostei-me
nela. — Mas você sempre pode tentar me retirar.
Consequentemente, um de nós vai ter problemas para dormir hoje e
eu garanto que não serei eu.
Ele estava avaliando, porque não conseguia ver meu rosto.
Um sorriso tomou meus lábios quando deu um passo em minha
direção, eu já o havia medido, o bastardo era corpulento, mas não
tão grande quanto Heylel ou Lysander.
Talvez, fosse bom de briga e isso seria divertido. Certamente
os outros viriam armados e, apesar de ter certeza de que eu poderia
me foder, ainda estava disposto a encarar.
Com a raiva que eu estava, poderia ser muito interessante,
até que fossem capazes de me derrubar, o negócio seria como eu
gostava.
Sangrento e brutal.
Quem se importa se eu acabar com um tiro no peito? Eu
certamente que não.
— Esta propriedade é privada, o chefe foi avisado que há um
“estranho” vindo regularmente. — Suas palavras soaram baixas por
causa do isolamento que o capacete proporcionava, mas isso não
amenizou o tom de ameaça. — É o último aviso, da próxima vez não
irei abordá-lo.
— Vou esperar ansioso. — O capacete espelhado lhe
permitia enxergar a si mesmo, acho que isso era o motivo de sua
hesitação, ele não sabia com quem estava lidando. — Quando você
quiser, podemos brincar, você se ajoelha e eu te fodo bem gostoso.
— Bastardo! — Ele veio em minha direção, parando quando
fomos iluminados pelos faróis de um carro que havia acabado de
dobrar a esquina. — Você teve sorte.
Minha resposta foi um dar de ombros.
Permanecendo onde estava, observei enquanto o carro se
aproximava até parar em frente ao portão de ferro alto. A janela do
passageiro abriu e o segurança começou a conversar em tom
confidencial.
Não levou muito tempo para que a porta do carro fosse
aberta e um homem de estatura mediana, calvo e com um rosto
avermelhado de bebida descesse. Eu o reconheci das entrevistas:
era o pai de Jenny.
Ele veio até onde eu estava, parando à minha frente.
— Tire o capacete! — berrou, esticando-se.
Desencostando da moto, eu me aproximei dele, o bastardo
batia um pouco acima do meu peito, seu rosto era uma máscara de
raiva.
Era um rato comparado ao meu tamanho.
— E se eu não quiser? O que você vai fazer? — Ele recuou.
O infeliz me lembrava Viggo, eu o detestei completamente.
— Fui alertado que você vem com frequência até aqui,
chamarei a polícia.
— Faça isso.
Não tinha o menor sentido estar provocando o pai de Jenny,
mas não podia evitar. Era a minha natureza ser um bastardo reativo,
com predileção para confusão, e aquele homem aflorava meu pior
lado.
— Eu estou avisando, hoje será o último dia que você ronda
a minha casa.
— Você tem algo que eu quero. — Antes que eu pudesse
pensar direito, as palavras saíram, mas não as retirei.
Sua postura mudou, ele pareceu menos agressivo.
— Willian, digo, o chefe m-mandou você me v-vigiar? — ele
gaguejou, notei sua respiração um pouco ofegante. — Hoje foi um
susto, o plano vai funcionar como previsto, acredite.
Havia algo aqui. O pai de Jenny não era apenas um cara
preocupado com a carreira da filha, ele não era o que dizia nas
entrevistas.
— Estou de olho em você. — Joguei a isca. — O chefe
também.
Observando-o secar o rosto com o lenço, cruzei os braços,
esperando por respostas.
— Em breve farei o teste, então, vou dar segmento ao que foi
combinado. — Sorriu. — Vou pagar o que devo, não se preocupe.
A vontade que eu tinha era de amassá-lo na porrada. Por
qualquer razão estranha, eu queria moê-lo até não restar um único
osso inteiro no corpo do bastardo. Mas não havia nenhum sentido
nisso.
Arrebentar o pai de Jenny, porque eu a queria e não aceitava
isso, era ir longe demais, até para mim.
Como se sentisse a energia pesada ao meu redor, o homem
recuou mais um pouco, mantendo uma distância segura, ou que,
pelo menos, ele achasse segura.
— Estou vindo do médico, está tudo bem. Charles vai
explicar melhor. — Respirando fundo, o pai de Jenny se aproximou
mais um pouco do carro. — Diga ao chefe que ele não precisa se
preocupar. Agora preciso ir, Jenny precisa descansar. — O observei
afastando-se.
Jenny estava dentro daquele carro. A certeza foi tanta, que
senti algo retorcendo por dentro. A vontade que eu tinha era de
colocar tudo abaixo apenas para exigir que ela voltasse a cantar
como antes.
Para que minha vida voltasse a ser como antes.
— Você está ficando louco. — Subindo na moto, acelerei
para longe dali.
Aquela era a última vez que eu fazia papel ridículo, se não
tinha mais a voz de Jenny Monroe para me dar o que eu precisava
iria encontrar outra coisa para substituí-la.
E eu sabia exatamente onde começar a procurar.

***

Dias depois...

A voz gutural do vocalista do Metallica explodia nos alto-


falantes enquanto eu esmurrava sem parar o saco de pancadas.
Sentia-me meio louco, agitado demais para fazer qualquer coisa que
exigisse mais concentração do que dar um soco após o outro.
Estava cansado, os músculos enrolados em nós pesados e
doloridos, mas, além de tentar me levar à exaustão física para que
pudesse apagar, nada poderia apaziguar os pensamentos frenéticos
e o desespero silencioso que se alastrava constantemente.
O que diabos estava acontecendo? Balancei a cabeça,
batendo uma, duas, três vezes no saco.
— Porra! — Respirei fundo e aquele familiar aperto no peito,
a sensação de que não conseguia ar suficiente, me deixou excitado.
Desde que meus pulmões ficaram fodidos, passei a gostar
desse novo e degradante desespero que me sentir como se
estivesse com uma corda no pescoço causava.
Lysander havia dito que eu precisava moderar. Eu havia
parado de fumar, mas de resto, peguei suas instruções e as joguei
fora. Não me importava com possíveis consequências, e se não
fosse por Heylel estar sempre por perto, talvez houvesse tentado
ver até onde eu suportaria.
— Parece que você está tentando se matar. — A voz de
Rafael soou perto, eu nem me dignei a encará-lo.
Esse bastardo andava tão silenciosamente, que não era uma
surpresa ele chegar sem que eu percebesse. Talvez, se eu
conseguisse ter aquele nível de concentração que meus irmãos
possuíam, ele não me surpreendesse, mas eu não possuía.
Não quando eu sentia que estava prestes a estourar a
qualquer momento.
— Você está desatento, irmãozinho. — Havia um tom
acusatório que não passou despercebido.
— Qual a novidade? — Dei de ombros. — Eu sou um
incendiário, não um gatuno.
— Você anda ansioso, agitado demais. — Ele cruzou os
braços. — Gabriel, não me obrigue a tomar medidas mais extremas.
Você sabe que eu farei sem pestanejar.
Rafael mandaria me prender no centro de treinamento que
havia dentro do Complexo. Eu ficaria lá, até que não houvesse
nenhuma falha em minhas percepções.
Ele faria, se acreditasse realmente que esse era o problema.
Meu irmão era paranoico demais com questões de segurança, e
havia se tornado pior desde que descobrimos a Cöntrax.
Rafael achava que tinha a obrigação de manter todos na
linha, o problema era que eu já havia ligado o foda-se. Quando
chegasse a hora de morrer, aconteceria, ponto final.
Já não me importava.
Heylel sabia que eu precisava de um propósito, de algo que
fosse além do que eu possuía como um general da Ordem.
— Por que eu deveria vigiar às minhas costas? — perguntei-
lhe, enquanto seguia em direção às máquinas de musculação. — Eu
não sou paranoico como você.
— Justo. — Eu o olhei, e lá estava o Senhor da Ordem.
Altivo, sério. Um mestre obscuro e cruel, capaz das mais
terríveis atrocidades para defender os seus.
— Justo o quê? — Desconfiava quando ele concordava
comigo, Rafael nunca era tão simplório.
Seus olhos estreitaram, um leve arquear dos lábios fez
parecer como se estivesse sorrindo.
Ele não estava, havia montado sua armadilha, e eu, como um
idiota desatento, havia caído.
— Justo que você esteja arriscando sua vida
desnecessariamente. — O quase sorriso aumentou. — Porque lhe
falta um propósito.
Por um momento, eu me senti paralisado por ele atingir o
alvo bem no meio. Não soube o que dizer, pois foi apenas com
Heylel que eu tive coragem de revelar meus anseios.
Eu tinha certeza de que Heylel jamais abriria a maldita boca,
ainda que soubesse que eu estava beirando o precipício.
Então, como Rafael poderia imaginar que...
— O que foi, irmãozinho, você acha que eu não saberia? —
Ele colocou as mãos nos bolsos. Estava todo de preto, os cabelos
caindo nos olhos glaciais e a expressão ilegível de alguém
acostumado a sempre estar certo. — Eu sei de tudo, inclusive do
que você acha que eu não sei. Aliás, tenho avaliado seus passos
desde que você acordou do coma. Você está sob o meu radar, e
sabe o que isso significa, não é?
— Rafael... — Ele ergueu dois dedos, eu engoli o que ia
dizer.
Era nítido que meu irmão estava segurando a onda, e que, se
eu o esticasse um pouco mais, ele deixaria a cortesia de lado. Às
vezes, Rafael mostrava sua opinião com os punhos, depois cabia a
nós lidarmos com isso. Pior, ele não tinha remorso de usar os
recursos não ortodoxos.
— Todos vocês sabem que eu não me importaria de usar o
poder que tenho para mantê-los seguros. — Rafael empurrou o
cabelo para trás. — Chame-me de egoísta, de filho da puta, o que
quiser, mas, se você continuar agindo assim, serei pior que o nosso
pai. — A revolta borbulhou, ele não tinha o direito.
Erguendo a cabeça, apontei o dedo em sua direção.
— O que eu faço da minha vida não lhe diz respeito. Rafael,
cuide da sua mulher grávida, ela precisa de você mais do que eu.
— Você pertence a essa família, irmãozinho, sabe que somos
uma unidade, então se quer continuar afundando sozinho, eu
deixarei, até o ponto que a corda esticar. Quanto isso acontecer,
você vai estar sob as minhas regras. — Havia algo implacável em
Rafael. — Não sou tão tolerante quanto o nosso pai para lidar com
as suas merdas, e, certamente, estou longe de ser tão amável
quanto ele.
Não lhe respondi.
Eu sabia dos meus problemas, não precisava que ninguém
dissertasse sobre eles. Fingindo que suas palavras não me
afetavam, voltei a atenção para o que estava fazendo.
Ajustando a carga do supino para cem quilos, deitei-me no
suporte e me preparei para começar a puxar.
— Trago notícias que o interessam. — Esperei que
continuasse, mas ele ficou em silêncio.
Rafael sabia que eu era impaciente, e que estava numa
época que de mau humor constante. Ele esperava que perguntasse,
mas, daquela vez, não caí.
Sabia que ele não me procurara para jogar conversa fora ou
deixar as coisas no ar, então, se tinha algo para dizer, ele diria.
— Irmãozinho, você sabe que eu sou um homem muito
paciente. — Havia um ar tranquilo em sua voz, como se nada
pudesse abalá-lo naquele momento. — Mas você ia gostar de saber.
Merda! A curiosidade começou a ferroar, deixando-me
desconcentrado.
— Não posso conversar agora, Rafael. — Ergui a barra, com
o meu peito e os braços queimando com o esforço. — Estou um
tanto ocupado se não percebeu.
Enquanto subia e descia a barra, Rafael se posicionou atrás
do supino. Havia certa indiferença no modo como me encarava, mas
isso era Rafael sendo Rafael, qualquer um que o visse diria que ele
era incapaz de expressar sentimentos.
— David Smith acabou de desembarcar nos Estados Unidos.
— Eu estava com a barra alta e meu braço falhou. Se não fosse por
meu irmão que a segurou, eu teria sofrido um acidente grave. —
Vejo que tenho sua atenção. — Ele encaixou a barra no suporte e
eu me sentei, deixando suas palavras assentarem em meu cérebro.
Quando machuquei David não tinha a intenção de matá-lo,
mas causar danos permanentes por ele ousar pensar em machucar
Jenny.
Não importava que ela tivesse se arrependido de estar ali.
Ela não queria mais, ele insistiu.
Para mim, acabava ali.
— Eu tenho certeza de que ele não vai mais poder estuprar
ninguém. — Isso me deixava bastante satisfeito.
— Talvez, com uma boa terapia de reabilitação ele consiga
melhorar um pouco sua condição. — A sobrancelha de Rafael
arqueou brevemente. — Mas, atualmente, ele está numa cadeira de
rodas e a única coisa que consegue fazer sem ajuda é falar.
— Parece que o cérebro dele não derreteu o suficiente. Isso
é uma pena.
Rafael balançou a cabeça, como se me considerasse um
caso perdido.
— Terei que averiguar se ele lembra daquela noite, espero
que não possa associar você, ou eu terei que matá-lo.
— Não se incomode, eu mesmo farei isso. — Respirei fundo,
gostando da ideia. — Era só isso?
Meu irmão negou.
— Chronus, encontrou um desgarrado. Ele é seu.
Pude sentir os anos de treinamento de combate pesado
sobre os meus ombros, enquanto a tranquilidade me dava o que era
preciso para controlar os pensamentos viciosos que me consumiam
diariamente.
Eu tinha um alvo, isso era bom.
— Entregue-me os dados. — Sorri, pronto para um pouco de
ação.
— Christoffer Miller García. — Rafael estreitou os olhos, o
único sinal de emoção que ele foi capaz de demonstrar.
— Você só pode estar brincando! — Uma risada escapou,
estávamos falando do chefe do Departamento do Corpo de
Bombeiros de Nova York. — O bastardo egocêntrico faz parte da
Cöntrax? Quem diria.
— O codinome dele é Firebird, Chronus interceptou uma
mensagem e, após cruzar algumas informações, ele descobriu que
alguns códigos soavam familiares. As mensagens falavam sobre
enviar o diabo de volta para o inferno e voar para o céu. Acredito
que o diabo a qual se referem seja você.
Agora tudo fazia sentido, desde o que aconteceu comigo ele
havia feito uma viagem, não tendo retornado.
O bastardo estava fugindo, pois sabia que em breve
chegaríamos até ele.
— Essa descoberta encerra uma pequena dúvida que eu
possuía. — Rafael cruzou os braços, pensativo. Esse jeito calmo
dele de resolver as coisas me irritava, eu sabia meios mais rápidos
de fazer os dados rolarem. — O incêndio foi provocado para que
você fosse assassinado.
— Porra! — Eles mataram pessoas inocentes para criar uma
armadilha para mim.
Agora, iriam me pagar.
O sentimento inoportuno de diversão começou a tomar conta
de mim.
Era uma euforia crescente e instigante, que me impelia a criar
meu próprio império de caos, em busca de vingança e retaliação.
Eles pensariam antes de atacar qualquer membro da minha família,
ou inocentes, por medo do que poderia acontecer.
Eu estava no meu elemento.
Havia aprendido a não temer o fogo, quando compreendi que
éramos parecidos. Os meus inimigos sabiam que era desse caos
que eu me alimentava, que era esse caos que regia Gabriel
Demonidhes.
Talvez, eu precisasse lembrá-los disso.
— Chronus colocou as máquinas para trabalhar em algo
novo. — Um breve sorriso arqueou o canto de sua boca. — A rede
está varrendo todo o sistema político de Nova York. Isso levará um
tempo considerável, mas quando obtivermos todos os nomes,
iremos caçar. Será um golpe extenso para a Cöntrax, desta vez não
iremos camuflar as notícias. Deixarei que saibam, que venham até
nós.
— A Cöntrax vai precisar de muitos lugares no cemitério. —
Esfreguei as mãos, antecipando o sabor da guerra. Gostava disso.
— Firebird está vindo para casa, antes de matá-lo tente
descobrir algo. Heylel irá com você — Rafael avisou. — Certifique-
se de deixar um recado para os outros.
— Isso não será um problema.
O canto de sua boca arqueou, enquanto ele acenava,
afastando-se. Antes de sair do ginásio, ele parou, inclinando a
cabeça um pouco de lado, disse:
— Se você quer um propósito, irmãozinho, eu te darei um.
Suas palavras bateram em mim como um soco, pois nosso
pai havia dito a mesma coisa. O único problema era que ser filho de
Roman foi meu propósito.
— Prepare-se, hoje você irá caçar.
24
Gabriel Demonidhes

O cheiro de flores permeava todo ambiente com uma doçura


irritantemente delicada. O chefe do Departamento possuía uma
casa grande, bem localizada numa área pacata do Queens.
Era uma ironia que um bastardo como ele morasse ao lado
de tantos veteranos, tinha certeza de que era do tipo que
cumprimentava os vizinhos, e que era bem-visto por todos como o
excelente cidadão que ele fingia ser. Tudo fachada, e eu bem sabia
que os membros da Cöntrax eram tudo, menos pacatos.
Estranhava que Firebird tenha escolhido esse lugar, as casas
da rua seguiam um padrão de condomínio, o design, as cores e a
estrutura pareciam-se umas com as outras. Era como se ele
quisesse se misturar, mas eu conseguia perceber a sutil diferença.
Os detalhes que deixavam claro que o morador dali era alguém
poderoso, e que precisava de uma cobertura capaz de protegê-lo.
Diferente os outros moradores, Firebird havia preparado um
sistema de segurança com triangulação, modificado os pontos de
visão da casa, puxando as janelas mais para as extremidades.
Pessoas normais não saberiam as necessidades daquelas
mudanças.
Mas eu não era uma pessoa normal.
— Então? — Olhei para Heylel, ele deu de ombros.
— Um sistema de segurança moderno como esse, ter um
ponto primário de fragilidade é uma vergonha. — Balançou a
cabeça. — Hoje é um bom dia.
Eu quase pude vê-lo sorrindo através da máscara.
Estávamos com os uniformes de combate, confeccionados
com a cor produzida em laboratório e que era tão densa que
absorvia a luz, mas não a refletia. Ela nos permitia misturar-se,
como se fôssemos a própria escuridão.
Era prazeroso estar dentro do ambiente de um inimigo
declarado e invisível, que trabalhava incansavelmente para nos
eliminar. Atualmente, o maior problema que tínhamos era não saber
quais eram os membros da Cöntrax, quando eles sabiam de nossas
identidades.
E ainda que possuíssem tamanha vantagem não foram
capazes de nos eliminar.
Isso apenas comprovava que não o faziam por pura
incapacidade, afinal, eles estavam à nossa frente, sabiam quem era
o inimigo.
Se por um acaso, fosse o contrário, o mundo seria sacudido.
Em pouco tempo, não existiria Cöntrax.
— A casa está vazia — Heylel falou num russo arrastado, ele
era do tipo que se divertia caçando sua presa, deixando-a fugir
apenas para que tivesse a falsa sensação de segurança. — Vamos
brincar.
Seu olho azul brilhava com perversidade. Ele era aquele a
quem chamavam de sombra da morte, a última coisa que os
inimigos — sortudos — conseguiam ver era o brilho de seus olhos
coloridos e das Angellus, antes do golpe final.
Às vezes, Heylel entregava a morte de maneira mais rápida,
silenciosa. O último sopro de vida que escapava dos lábios de seus
inimigos ainda em meio ao choque e a surpresa.
Mas então havia aquelas ocasiões especiais em que ele
tomava seu tempo. Era demasiadamente lento, fazendo-o com
perícia e prazer. Heylel arrancava cada gota de dor e lamento, até
que a única coisa mais desejada por seus inimigos fosse a bênção
do fim, que ele muitas vezes não dava.
Heylel e Lysander eram alinhados nessas questões,
perigosos em igual medida, insanos em suas atribuições. Admirava
os métodos e a maneira elegante com que trabalhavam.
Talvez Rafael tenha enviado Heylel comigo, porque ele sabia
que nosso irmão tinha paciência para manipular as coisas para que
acontecesse do seu jeito, eu não tinha.
Dispunha do meu maçarico e da intenção. O resto eu
conseguia com empenho e ameaça. Por mim, já poderíamos estar
dentro da casa, mas, por causa de Heylel, esperávamos.
— Calma irmão. — Sua voz soou tão baixa, que parecia
mesclar-se com a brisa.
— A paciência nunca foi uma virtude minha.
— Conte uma novidade. — Heylel balançou a cabeça.
Desde que nosso pai morreu, eu acordava preparado para ir
até o fim, sem me importar com as consequências. Ansiava por uma
missão, desejava poder liberar um pouco do lado mau, ainda que a
parte mais sombria fosse mantida bem presa.
Lysander já demonstrou o quanto era perigoso alguém com
nosso treinamento perder a cabeça.
— Estou invadindo o sistema de segurança — Heylel avisou,
enquanto digitava comandos no pequeno aparelho portátil. —
Vamos entrar em alguns instantes.
Christoffer tinha sorte de Rafael querer respostas, caso
contrário eu apenas o prenderia numa cadeira e me divertiria
ouvindo seus gritos enquanto o fogo ia derretendo sua pele,
cozinhando seus órgãos e o fazendo agonizar numa das piores
maneiras de morrer.
O que não me impede de fazer isso depois. O pensamento
me deixou ainda mais ansioso para começar logo.
— Estamos entrando — Heylel avisou, instantes depois um
clique soou. — A casa é toda sua. — Fechando o aparelho portátil,
ele se afastou mesclando-se com as sombras da noite.
Uma vez dentro da casa, comecei a reparar que o lado de
fora era somente uma fachada. Havia luxo excessivo, que o chefe
de um departamento de bombeiros não deveria possuir.
— Interessante. — Parei em frente ao quadro belíssimo que
ficava pendurado acima da lareira de mármore que havia na sala.
Eu não era o especialista em arte, isso ficava para os meus
outros irmãos, principalmente Razhiel, mas depois do que
aconteceu com Amira, descobrimos que o tráfico internacional de
arte tem boa parte do escoamento acontecendo pelos EUA.
Não seria uma surpresa se os quadros daqui fossem
originais.
— Filho da puta! — rosnei, tendo certeza de que a armadilha
preparada para mim e que arrebentou meu braço dois anos atrás
fora orquestrado por esse bastardo. Ninguém melhor que ele para
saber das minhas atribuições. — Você vai pagar por isso.
Jurei, olhando ao redor da sala enorme. Vasos alinhavam-se
de um lado, ocupando um grande espaço. Alguns estavam
enrolados em plástico de proteção, outros expostos ao lado de
caixas de transporte.
— O que temos aqui? — Peguei o papel preso em um dos
vasos, notando que era uma etiqueta de identificação. — Dinastia
Ming, ano mil e quinhentos, tapeçaria. Réplica. Destino: Oriente
Médio. — Coloquei a etiqueta de volta no lugar. — Interessante.
O som da aproximação de um carro me fez sorrir, era hora de
finalmente começar o acerto de contas.
Posicionando-me próximo a lareira, esperei pelo anfitrião. Do
outro lado da sala, percebi uma sombra movendo-se. Heylel acenou
quando passou por mim.
A porta da frente abriu e eu pude ouvir a voz alterada de
Firebird.
— O transporte está chegando em uma hora. Eu voltei por
causa da incapacidade de vocês em conseguirem arrumar a porra
do carregamento. — Ele bateu a porta com violência, depois se
aproximou do sofá, deixando uma pasta lá. — Esse cliente não vai
aceitar que o prazo se estenda outra vez, você acha que estamos
lidando com um idiota?
A sala estava parcamente iluminada pela luz que vinha da
rua. O observei indo até os vasos e admirá-los. Com cuidado, foi
deslizando o dedo pelas bordas de uma das maiores peças.
Seria ele o novo responsável pelo tráfico de artes? Com Jean
Pierre fora da jogada e todas as baixas que causamos quando
invadimos sua fortaleza para resgatar Amira, a Cöntrax precisaria
remontar o esquema de liderança rápido.
Fazia sentido para mim.
— A carga está pronta, o último lote está comigo, será
enviado hoje, sem falta. — Ele ouviu o que lhe era dito, mas
pareceu-me ansioso. — Não, este lote já foi comprado... Não,
caralho, eu disse que não. Se atrasarmos de novo, não
conseguiremos negociar. O Sheik pode desistir e nós precisamos
dele. Não vou renunciar à minha cadeira, foda-se que estou na mira
desses malditos, todos não estamos? — Ele passou a mão pelo
cabelo. — Amanhã a esta hora estarei na Suíça. Vou enviar minha
carta de demissão. Todos foram mortos, sim, porra, o Mercador
deixou seu recado, eu não vou ficar aqui. Estou sem amparo. —
Houve um breve silêncio, carregado de tensão. — Certo, o Sheik
não precisa esperar, desta vez não haverá atrasos, dou a minha
palavra.
Ele desligou o telefone, apressando-se para acender a luz. O
som do interruptor estalando inutilmente me divertiu.
Estávamos num ambiente sombreado, com pouca
iluminação, mas conseguia enxergá-lo, era o suficiente.
— Por que essa merda não liga?
— Nervoso, senhor García? — Minha voz deslizou como um
eco de pesadelo.
— Capitão Demonidhes! — Ele pulou, virando-se para a sala
bruscamente, a cabeça girando de um lado para o outro. — O que
faz aqui? — Não lhe respondi, e isso o fez começar a simular,
voltando ao papel de chefe de departamento. — Gabriel, eu esperei
por sua mensagem para conversarmos sobre o que aconteceu
naquele incêndio, mas nunca obtive respostas. Apesar de o
inquérito ter sido encerrado, ainda me questiono por que não
respondeu ao seu chefe. Eu poderia afastá-lo por insubordinação
e... — Minha risada o fez calar, entretanto, o bastardo tinha
treinamento, logo se recompôs. — Por que não me respondeu,
Gabriel?
— Para você não é Gabriel, ou Capitão Demonidhes. — De
onde estava, comecei a brincar com o meu maçarico, acendendo e
apagando a chama, como um tique-taque. — É Fire, o incendiário.
Mas isso você já sabe. — Fui em sua direção.
Cada passo que eu dava, ele ia afastando-se. Tinha certeza
de que seu plano era chegar até a porta e correr, mas Heylel estava
ali esperando-o.
— Diga-me, você realmente acreditou que ia conseguir
escapar do Senhor da Ordem? Depois de atentar contra um dos
seus generais?
Notei que tateava a mesa, como se buscasse algo.
— Podemos negociar. — Suas palavras soaram arranhadas,
mais um pouco e ele não conseguiria proferi-las tamanho
nervosismo.
— Negociar? — Não escondi o divertimento. — Sabe o que é
interessante? Por um tempo, te considerei alguém digno e
merecedor de estar no topo. — Era mentira, mas ele não sabia, eu
estava somente criando uma narrativa. — Admito que estava errado
a seu respeito, agora pergunte, o que eu faço quando cometo algum
erro?
Erguendo as mãos, ele disse:
— Gabriel, não vamos por esse caminho. Nenhum de nós irá
gostar do resultado que...
Ergui um dedo, fazendo-o calar-se.
— Eu vou gostar, você com certeza não. Agora, lhe advirto,
se errar meu nome só mais uma vez, irei queimar um lado do seu
rosto antes que possamos começar qualquer outro assunto. —
Sorri, brincando com a chama do maçarico portátil. — Você deve
saber como é a sensação de pele queimando.
— Fire. — Havia medo em sua voz e eu gostei.
Estava saboreando cada gota disso. Eu era um assassino,
qualquer coisa além era mera fachada.
— Vamos negociar.
Estalando a língua, me aproximei um pouco mais. Não havia
para onde ele ir. A mesa às suas costas o impedia de encontrar uma
rota de fuga.
Se por qualquer milagre ele conseguisse passar por mim,
ainda havia Heylel; e dele, com certeza Firebird não escaparia.
Ninguém conseguia.
— Você armou para mim e vidas inocentes foram perdidas.
— Balancei a cabeça. — Você teve tanta sorte de não ter sido alvo
do Mercador... Se ele o capturasse, como mandante do atentado e
considerando tamanha covardia, sua morte seria exemplar. — Ele
ofegou, levando uma mão ao peito. — Ainda vai ser, não se
preocupe.
Firebird respirou fundo, parecendo chegar num consenso de
que não havia escapatória.
— A única diferença é que nos intitulamos como os bons da
história. Vocês são assassinos exatamente como nós. Somos
semelhantes. — Ele ergueu o queixo, apesar de estar tremendo.
— Mas quando eu disse que não somos assassinos? — ri
baixinho. — Eu sou, e gosto muito do meu posto, a diferença é que
na Ordem não agimos como se fôssemos ratos, atacando às
escondidas como párias de merda. — A raiva começou a me
golpear, e eu queria dar liberdade àquela besta que cada
Demonidhes carregava dentro de si. — Você foi covarde, Firebird,
mas todos vocês são, e isso nos difere muitíssimo.
— Eu sou o seu superior. — Ele bateu o punho na mesa. —
Você não pode me tocar ou haverá consequências.
Continuei, como se ele não houvesse dito nada.
— Por isso a Cöntrax, mesmo sabendo a identidade dos
Demonidhes, não conseguem fazer o mínimo, são todos inúteis.
— Bastardo! Você me deve respeito.
— Eu sou um rebelde, odeio seguir regras. — Ondeei a mão.
— Diga-me, você soube o que aconteceu com os outros membros
da Cöntrax que estavam no departamento? — Baixei o tom, ele
negou engolindo em seco. — Se você me irritar, vou entregá-lo
numa bandeja ao Mercador. Ele está numa fase particularmente
sedenta, creio que você iria viver dias, talvez semanas, do mais
puro inferno.
— Vocês e seus irmãos nos devem muitas vidas, não
esquecemos o que aconteceu na França! — O som de uma cadeira
sendo arrastada o fez arquejar. — Essa é uma dívida que...
precisava ser saldada. Melhor ir embora, Fire, e seja lá quem estiver
com você. Garanto que não vão conseguir o que querem, já chamei
por reforços. Tenho um botão do pânico, eles estão vindo.
— Então isso será ainda mais divertido. — A voz de Heylel
deslizou pela semiescuridão, sua figura parecia uma sombra que se
movia.
A respiração de Firebird acelerou, tornando ofegante como se
estivesse sofrendo um infarto.
— Vamos negociar. — Ele ergueu as mãos. — Eu tenho
informações, vamos negociar.
— Claro — concordei. — Vou te dar algumas opções, você
pode escolher uma e finalizamos.
— Okay, eu aceito os termos.
O encarei por alguns instantes, então fui até os vasos e
comecei a brincar com um deles.
A tensão estava subindo, podia senti-la como um combustível
que me instigava a provocar o bastardo, fazê-lo surtar e com sorte
me atacar.
— Ele é muito caro, por favor, não faça isso. — Cada palavra
soou trêmula, com o pânico cada vez mais nítido.
— Aqui diz que é uma réplica. Você não vai se importar se
quebrar. — Joguei o vaso de uma mão para o outra; na terceira vez,
deixei que caísse.
O som de porcelana espatifando no chão foi gostoso, mas o
melhor foi o suspiro de puro choque e horror que se seguiu.
— Não faça isso! — Firebird correu, ajoelhando-se ao lado
dos cacos. — Meu Deus... Meu Deus!
O pânico que o dominava era nítido e, enquanto juntava os
pedaços do vaso, eu empurrei os maiores que estavam enfileirados,
quebrando-os sucessivamente.
— Não, não... — Ele colocou as mãos na cabeça, com os
olhos arregalados para o monte de destroços. — Estou perdido.
— Claro que está.
Antes que pudesse responder, eu dei uma joelhada em seu
rosto, o som da cartilagem do nariz quebrando fez uma deliciosa
dose de adrenalina disparar no meu organismo.
Sentia o meu corpo esquentando.
— Agora, aqui estão suas opções. — Cruzei os braços. —
Ser queimado inconsciente ou acordado? O que prefere?
Ele gritou, e eu decidi.
Já havia esperado demais, tido paciência demais, estava na
hora de entenderem por que eu era volátil, por que não conseguia
ser morno em porra nenhuma e por que não suportava a ideia de ir
dando tempo ao tempo.
— Você matou pessoas inocentes. — Esmurrei seu rosto. —
Você me provocou, porra!
Ele não revidava nenhum golpe, era a porra de um covarde
do pior tipo, estava encolhido, recebendo cada murro em silêncio,
como se isso fosse amenizar minha raiva.
— Diga o que você está querendo barganhar com o Oriente
Médio? — rosnei, empurrando o antebraço em sua garganta para
mantê-lo sob domínio. — Eu não vou perguntar de novo.
— Não falarei, você me sentenciou. — Pela primeira vez,
estava demonstrando o mínimo de coragem. — Levarei para o
túmulo a informação, sabendo que vocês jamais poderão imaginar o
que os aguarda, a minha luta não será em vão, a causa levantará
honra em meu nome.
— A sua causa é uma piada, vocês têm uma missão, estão
em vantagem, mas não conseguem cumpri-la. — Me aproximei até
quase encostar em seu nariz destroçado. — Não gosto que seja
uma presa tão fácil, mas isso não me fará menos cruel. — Olhei
para o canto, a sombra vigilante de Heylel estava ali, esperando sua
vez. — Torment.
Meu irmão caminhou em nossa direção. Quando avistou o
gigante se aproximando, Firebird lamentou baixinho, iniciando uma
luta desesperada para escapar do meu domínio.
— Vamos libertar o mundo... — engasgou, atropelando as
palavras, então, como se percebesse o que havia dito, mudou o
rumo da conversa. — Acham que apenas nós acreditamos nisso?
Que começamos isso? A Ordem não é tão limpa quanto parece.
Guardando a última informação, atentei-me às outras partes.
— Libertar o mundo de quê? — ladrei, batendo sua cabeça
no chão.
— Não falarei. Não importa o que aconteça.
Percebi a resolução em sua voz e a certeza que possuía de
que, em algum momento, iríamos matá-lo. Bastava apenas que
aguentasse o tempo necessário.
— É sua responsabilidade o que vai acontecer a partir de
agora. — Afastei-me, passando a vez para Heylel.
Satisfeito, observei meu irmão puxar suas facas, as
belíssimas Angellus, girando-as com habilidade.
— Faça com que ele não possa gritar. — A voz de Heylel
retumbou como se o pior pesadelo de alguém houvesse acabado de
encarnar. — É hora de brincar.
Havia um aparelho ao lado, usado para selar as caixas. Sem
titubear, eu me aproximei agarrando-o. O horror de Firebird foi tanto
que o cheiro de urina impregnou o ar.
Ele sabia que o que viria a seguir seria horrível.
— Exército vermelho de Ahm-Shëer — ofegou, com os olhos
arregalados na pregadeira que eu segurava. — Oitenta mil homens
prontos para embarque. Estamos negociando.
A menção do exército mais sanguinário do Oriente, o
atentado contra mim perdeu o enfoque.
Aquele exército era composto por mercenários, ex-militares,
guerrilheiros, lunáticos do mundo inteiro que acreditavam serem a
salvação de um mundo decadente. A Ordem os monitorava há anos,
mas nunca haviam ultrapassado a linha além do que era permitido.
Agora, se estavam na mira da Cöntrax, significava que
pretendiam levar nossa guerra para outras proporções. Caso isso
acontecesse, a terra seria banhada no sangue de inocentes ou não.
— Por que querem os Ahm-Shëer? — Heylel questionou.
— Proteção.
Estranho. Não fazia o menor sentido, esse exército não
protegia ninguém, eles apenas matavam. Eu tinha certeza de que
aquele era o início do fim para todos nós.
— Os Demonidhes precisam morrer. — Pela primeira vez, ele
riu. — E você, Incendiário, no momento ocupa o topo da lista.
— Eu agradeço a preferência. — Esmurrei sua boca, ele
gemeu baixinho quando um pequeno estalo soou de sua mandíbula.
Quando virou a cabeça em minha direção, o terror era tão
perceptível que eu tive certeza de que ele tentaria algo. O
movimento foi rápido demais, Firebird atacou a si mesmo, mas
Heylel o interceptou colocando a mão na frente do caco de cerâmica
destinado à sua garganta.
A expressão determinada escorregou quando percebeu que
não havia conseguido.
Heylel ergueu a mão com o pedaço de cerâmica incrustado
nela.
— Não acredito que você pensou que fosse acabar assim. —
Meu irmão entoou baixinho, com a voz obscura e aterrorizante. —
Você zomba de mim.
Heylel pegou o grampeador e o avaliou rapidamente, depois
ele puxou a cerâmica, ajustando o tecido da luva em cima do corte.
Para estupefação de Firebird, meu irmão começou a grampear o
tecido na palma da mão, evitando sangramento.
Ele não sentia dor, mas isso não significava que poderia ficar
sangrando livremente. No caso de Heylel, era até mais perigoso, ele
poderia sangrar até a morte sem perceber.
— Bonita cerâmica. — Meu irmão admirou o objeto. — Irei
guardá-lo.
— Eu vou g-gritar, as p-pessoas irão me ouvir — o homem
gaguejou. — Essa casa não tem isolamento acústico, logo as
pessoas chegarão. — Notei seu pavor aumentando conforme
observava Heylel. — Diziam que havia um de vocês incapaz de
sentir dor. É verdade!
— E o que mais disseram? — Heylel removeu sua máscara,
os olhos de Firebird prenderam na enorme cicatriz que riscava sua
face. — Que eu sorri enquanto rasgavam meu rosto? — Meu irmão
deu um sorriso largo, o homem no chão parecia sem palavras. — Eu
escolho por você, queimado vivo parece um bom negócio, já que
não vai falar, vou me satisfazer na certeza de que terá o destino a
qual condenou meu irmão.
Heylel avaliou o grampeador por um momento, e então
mexeu nos ajustes, em seguida o deixou de lado. Depois, meu
irmão puxou um estojo do compartimento de seu uniforme, abrindo-
o. Havia uma única seringa, estava cheia até a metade. Antes que
Firebird fizesse qualquer pergunta, Heylel pressionou a agulha em
seu pescoço.
— Algumas drogas ligeiramente modificadas podem se tornar
aliadas em momentos como esse. — O corpo de Firebird estava
sofrendo pequenos espasmos, como se ele estivesse
convulsionando. — Você vai paralisar por completo, mas será capaz
de sentir tudo que iremos fazer. — Meu irmão se aproximou do rosto
de nosso inimigo. — Sem gritos ou lamentações. Quando
começarmos, você não vai poder entoar nenhum murmúrio. As
pessoas não irão te ouvir, você está sozinho.
Seus olhos quase saltaram, ele tentou abrir a boca, podia ver
os músculos faciais tremendo, ele não conseguiu. Seu corpo jazia
estendido.
Heylel pegou o grampeador mecânico, mostrando-o para o
bastardo que nos encarava com olhos grandes e alagados de
lágrimas.
— Isso aqui é um grampeador e pinador mecânico. Se eu
apertar aqui... — Heylel mostrou. — Não sairão grampos, e sim
pregos. — Meu irmão ergueu a mão do homem, encaixou o
grampeador debaixo da unha e disparou.
O corpo de Firebird sofreu um pequeno espasmo, o prego
havia arrancado a unha, enfiando inteiro no dedo. Podíamos ver a
cabeça chata destacando-se na ponta.
— Viu? — Meu irmão sorriu mostrando o dedo
ensanguentado. Heylel pegou outro dedo, fazendo o mesmo.
Desta vez não houve quaisquer espasmos, mas podíamos
ver a dor gravada em seus olhos, o pavor brilhando como as
lágrimas que se derramavam.
— O que faremos com você será um aviso — eu disse,
pegando o maçarico. — Eles saberão que você sentiu cada parte
disso. — Inclinei-me até seu ouvido. — Desfrute, chefe.
Enquanto Heylel fazia sua parte, e eu a minha.
Começando pelo nariz destroçado, observei o sangue
escurecendo, carne empolando até derreter, aos poucos, fui
descendo, divertindo quando seus olhos rolaram para trás quando
desmaiou.
Heylel bateu com o grampeador ao lado do rosto de Firebird,
quando seus olhos abriram meu irmão disse:
— Se você desmaiar de novo, eu vou fazer isso no outro
lado. — Heylel encostou o aparelho no olho direito disparando o
prego. — Fique acordado.
Isso não era algo que ele pudesse controlar, o nível de dor ao
qual era submetido logo faria com que seu corpo entrasse em
colapso.
Sabíamos disso.
O cheiro de carne queimada era capaz de eclipsar todo o
resto, o odor rançoso, pesado, era do tipo que impregnava os
sentidos e memória como uma tatuagem. Por muitos anos tive pavor
disso, mas depois passei a gostar.
Sentia um prazer mórbido em ver coisas queimando por
minha causa, e em contrapartida também gostava de apagar
grandes incêndios.
Eram essas as minhas duas partes.
Liberar o caos e controlá-lo.
Aos poucos, o rosto de Firebird foi derretendo.
Pacientemente, ia alastrando o estrago, carbonizando pedaços até
que a pele chegasse num ponto de não poder mais ser queimada.
Heylel estava basicamente descascando partes de seu corpo.
Arrancando pedaços do peito, riscando desenhos aleatórios, depois
expondo músculos como se estivesse fazendo uma autópsia.
Bem, ele pode.
O bastardo desmaiou várias vezes, acordando em meio a dor
agonizante que seu corpo produzia. Levou cerca de quarenta
minutos para que ele não aguentasse. Mas foi quando estava com o
corpo todo retalhado, o rosto carbonizado que Christoffer Miller
García deu seu último suspiro.
Ele morreu sofrendo como todo membro de sua estirpe
mereciam sofrer.
— Se tivéssemos tempo, eu não o deixaria morrer tão rápido.
— Heylel parecia insatisfeito. — Termine aqui, faça a seu modo. —
Ele guardou suas ferramentas, depois cobriu o rosto com a máscara
que compunha o uniforme. — Não se preocupe com isso. — Ele
ergueu a mão. — Não deixarei DNA para trás. — Havia diversão em
sua voz. — Irei relatar tudo que aconteceu aqui a Rafael, levarei o
celular e a pasta de documentos comigo, apenas finalize.
Meu irmão apressou-se em direção a saída, enquanto eu
fiquei para terminar. Ele sabia que a parte final ficava sempre
comigo.
Por um momento olhei para o corpo, a única parte
reconhecida de seu rosto eram os dentes, expostos num sorriso
macabro.
— Que pena que tenha acabado tão rápido. — Chutei a
carcaça ensanguentada de Firebird.
Considerava que ali naquela casa deveria ter mais
documentos importantes para a Cöntrax. Infelizmente não tínhamos
tempo para encontrar, o que restava era garantir que tudo ali dentro
fosse queimado. Atento a cada cômodo, preparei a residência para
o grande incêndio que viria a seguir.
Estava a uma distância segura quando a explosão soou. Não
pude evitar o sorriso, tampouco a onda de satisfação ao vislumbrar
as chamas alaranjadas crescendo em direção ao céu.
Depois de crescer com pavor daquela maldita caldeira, do
trauma de quase morrer queimado naquele fatídico dia, aprendi que
poderia mudar minha mente se aprendesse a controlar o medo.
Sob o direcionamento de Roman, eu encontrei o meu lugar.
Era um incendiário.
Gostava de cada parte do meu trabalho.

***

Meados de maio
Auge da primavera nova-iorquina.

— O jogo vai começar em meia hora, hoje é minha folga. —


Razhiel estendeu a cerveja, e eu a peguei. — É um clássico do
Campeonato Brasileiro.
— Eu não acompanho esse campeonato. — Larguei-me no
sofá ao lado de Corso. — Como você está, garotão? — Acariciei
suas orelhas, ele deitou-se de barriga para cima esperando que eu
o coçasse.
Corso era um cachorro intimidante, podendo ser bem
agressivo e ele era quando dávamos o comando. Rafael garantiu
que ele fosse bem treinado. Naquele momento poderia estar
relaxado, mas era uma arma com mordida potente.
Além do corpo grande e musculoso, o adorado “filhote” de
Amira, era um protetor eficiente, aprovado em todos os testes
realizados por Rafael e treinadores.
— Rafael adquiriu quatro ninhadas dessa raça, Corso é pai
de duas. — Olhei para Razhiel, desacreditado de suas palavras. —
Em breve, o canil que eu construí vai estar lotado.
— Nosso irmão está cada vez mais paranoico. — Franzi o
cenho, lembrando-me de que, no último jantar, ele não tirou os olhos
de Amira e sequer tocou na comida.
Ele era como a sombra dela, estava sempre ao redor,
pairando. O bastardo havia adaptado o escritório da empresa aqui,
para que pudesse ficar com ela. Ele não confiava naquilo que seus
olhos não podiam ver, e mesmo que nós fizemos um revezamento
para que sempre um dos irmãos estivesse em casa, ele tinha que
estar também.
Amira não ia ter paz durante a gravidez, ela não ia conseguir
dar um espirro sem que Rafael aparecesse oferecendo um lenço.
— Ele está negociando duas ninhadas de kangal[5] e um casal
de wolfdog[6], nosso irmão pretende que o casal seja criado dentro
de casa, como Corso e Yang.
— Ele enlouqueceu — ri da insanidade de Rafael. —
Wolfdog, sério?
— Com os novos terrenos anexos, temos por volta de cem
metros quadrados de terreno — Razhiel suspirou. — E mesmo que
eu e Heylel tenhamos verificado o sistema de segurança, mais
vezes do que poderia contar, Rafael ainda não está satisfeito. Ele
quer uma linha de “soldados”, e os cães são perfeitos para o papel.
As ninhadas chegarão aqui juntas, para que cresçam como irmãos.
Serão treinados juntos também.
— Vamos precisar de uma equipe gigantesca de treinadores.
— Ele está providenciando pessoalmente. — O telefone de
Razhiel tocou e ele resmungou, insatisfeito. — Pela primeira vez,
estou arrependido de ter fechado um contrato. Porra de mulher
irritante.
— Percebo um clima, irmãozinho.
— Sim, entre mim e o velho de oitenta anos que ela está
casada. — Razhiel ergueu o dedo médio. — Sem gracinhas. —
Indicou a TV. — Quando o jogo começar me chame.
O observei saindo, enquanto discutia detalhes de uma
construção em grande escala.
— Vamos ver o que tem de interessante. — Pegando o
controle, comecei a zapear pelos canais. Não tinha muita paciência
para ficar assistindo o mesmo programa por muito tempo, sequer
conseguia assistir a um filme inteiro.
Ultimamente, apenas as entrevistas de Jenny me prendiam
até o final. Depois, eu ficava mal-humorado porque estava irritado e
sentindo falta de ouvir músicas cantadas por sua voz de anjo.
Estava passando por um canal quando a foto enorme de
Jenny me fez parar. Curioso, inclinei-me para ouvir o que era dito.
— Parece que um escândalo envolvendo Jenny Monroe
poderá afetar sua imagem. — A voz da mesma mulher, responsável
por entrevistar Jenny alguns dias atrás, soou firme. — Conversei
com alguns contatos dentro da gravadora e seu contrato poderá ser
cancelado. É uma prática comum do mercado algumas empresas
arrolarem multas milionária para garantir que nenhum artista faça
besteira. Vejo isso como uma forma de proteger o investimento.
“Escândalo envolvendo Jenny?”, perguntei-me, franzindo o
cenho, esperando mais informações.
— Recebi em primeira mão, de uma fonte extremamente
confiável, que Jenny Monroe, a nova aposta da Universal Record´s,
teria marcado um aborto clandestino.
A mulher continuou falando, mas eu já não ouvia mais nada.
Sentia como se houvesse acabado de receber um chute no
estômago, por um momento a sensação que eu tive era de que as
paredes estavam fechando-se ao meu redor. Abalado, obriguei-me a
prestar atenção ao que era dito.
— A imagem da jovem cantora jamais será a mesma, e,
apesar de termos entrado em contato para que pudesse dar sua
versão dos fatos, sua assessoria não quis gravar entrevista ou
esclarecer os pontos confusos dessa história. Infelizmente, até o
presente momento, não obtivemos nenhuma resposta da artista,
portanto fica o questionamento: quem é o pai do bebê de Jenny
Monroe?
Por um momento, eu pensei que não pudesse respirar.
Aquele bebê poderia ser meu.
Ela era virgem, Gabriel! Pude ouvir uma voz no fundo da
minha mente, junto com a sensação excitante de Jenny se
entregando completamente a mim pela primeira vez.
Puta que pariu!
25
Gabriel Demonidhes

Ainda não saberia descrever o que eu senti ao ver essa


reportagem na TV. Era como se a melhor noite da minha fodida vida
houvesse se tornado a porra de um pesadelo. Minhas mãos
tremiam, sentia o corpo esquentando com uma onda de raiva tão
grande que temia infartar.
Eu não podia acreditar que ela vai tirar meu filho. Aquela
maldita filha da puta vai tirar o meu filho! Um zumbido alto apitou
nos meus ouvidos, minha cabeça começou a latejar
incessantemente.
A vontade que eu tinha era de explodir a casa da maldita com
ela dentro, mas não podia, não enquanto ela carregasse o meu filho.
— Porra! — Levantei-me, nervoso. E comecei a andar de um
lado para o outro na sala.
— O que foi? — A voz doce de Amira chamou a minha
atenção, ela estava em pé, a mão repousando na delicada barriga
de seis meses. — Você está bem?
— Não, eu não estou!
A mulher de Rafael adorava o fato de estar grávida, eu já a
peguei conversando com o bebê como se ele pudesse entender. A
voz suave e bonita sempre murmurava palavras de amor, carinho,
aceitação.
Amira gostava de dizer que o bebê era esperado, e que ele
era muito amado e querido por todos nós. A verdade era que o bebê
de Rafael já era tão adorado, que era capaz de querer fugir quando
completasse a maioridade.
Agora, imaginar que meu filho estava correndo risco, porque
a sua mãe pretendia tirá-lo deixava-me insano.
Se ela não o queria, ótimo, problema dela, mas eu o queria e
a minha família com certeza o quereria também.
— Fale comigo. — Amira se aproximou, pegando meu braço.
— Posso te ajudar, você está com uma cara assustadora.
— Estou puto, e preciso pensar. — Esfreguei os cabelos,
puxando-os.
Eu precisava falar com ela, ouvir seus planos. Não era
possível que a garota que derreteu nos meus braços, que me
aceitou em seu corpo virgem, fosse capaz disso sem ao menos me
dizer.
Mas ela não sabe quem é você... Lembrei-me, o que apenas
aumentou o meu desespero.
Eu não disse que era um Demonidhes, ela não poderia me
encontrar mesmo se eu quisesse. Foi pura sorte eu estar no mesmo
hotel que ela, admito, não foi tanta sorte, eu dei um empurrãozinho.
— Okay, preciso falar com Andröyd. — Peguei o celular e fiz
a ligação, no segundo toque ele atendeu.
— Senhor?
— Descubra o número de celular de Jenny Monroe. A
cantora.
Ouvi os sons da tecla e não demorou muito para que ele
encontrasse o que eu pedi.
— Estou enviando o contato para o seu celular. Só isso?
— Por enquanto sim, obrigado.
Desligamos e eu respirei fundo. Eu poderia ter o número dela
se não houvesse agido como um filho da puta e houvesse ido
embora quando ela apagou após a noite de sexo gostoso.
O modo como ela me fez sentir foi assustador, e eu fui
embora. Ponto final. Agora as consequências disso estavam aí.
Parei um momento, quando um pensamento me ocorreu.
Eu nunca transei sem proteção, então essa criança pode não
ser minha.
Respirei fundo, tentando me acalmar e organizar os
pensamentos.
A verdade é que a acompanhei através das redes sociais.
Jenny havia se tornado minha obsessão por tempo demais, e,
depois de nossa noite juntos, isso apenas piorou. Ela era uma figura
pública e não houve qualquer relato de que houvesse saído com
alguém.
Eu preciso saber!
— Merda! — Esfreguei as têmporas, ligando para ela.
Chamou até cair, então continuei insistindo, até que, na
décima ligação, ela atendeu.
— Quem é? — A voz chorosa de algum modo me quebrou,
evaporando toda a minha raiva.
Uma parte de mim amoleceu, e isso era tão fodido e
perigoso.
— Beag[7] — eu disse baixinho e ela desabou num choro
dolorido.
Foi assim que a chamei desde o primeiro momento que
estendi a mão e ela aceitou vir comigo, confiando que eu lhe faria
bem.
Pelo menos, por uma maldita noite.
— É você, é você.
— Sou eu. — Fechei os olhos, sentindo o corpo todo
arrepiado.
— Por que foi embora e me deixou sem dizer adeus?
— Perdoe-me — pigarreei, na tentativa de não parecer tão
idiota e amenizar o meu erro estúpido.
— Preciso de ajuda — ela disse. — Preciso de ajuda, por
favor...
O som da porta sendo derrubada a fez gritar. Na hora, senti
como se alguma coisa apertasse o meu coração.
— Jenny? — chamei, mas não me respondeu.
— Pai, eu não vou! — ela gritou, notei que sua voz estava um
pouco distante. — Eu não vou tirar o meu bebê! Eu não vou!
— Vai! Eu juro por Deus que você vai ou eu te mato.
O som de queda e gritos me desesperou. Tudo se tornou
uma cacofonia de sons e berros ensurdecedores.
— Não bata nela, John, não faça isso! — Uma mulher gritou.
Senti o gosto de sangue na boca, o desejo de estar lá e
protegê-la desse agressor me deixou trêmulo. Era inconcebível que
estivesse em perigo e eu não pudesse fazer nada.
É sua culpa, você foi embora como um fugitivo.
— Você viu? Alguém vazou a informação da clínica de
aborto, agora eu vou ter que encontrar outra! Porra, hoje à noite eu
tiro essa coisa de dentro de você, eu investi tempo demais e
dinheiro para perder tudo agora, apenas porque a sua filha, Mary,
trepou com o primeiro filho da puta que surgiu!
— Não fale assim, Jenny precisa de nós.
— E eu vou cuidar dela, devolvendo a carreira que ela estava
começando a construir. Vou plantar a notícia de que tudo foi um
boato, e, quando perceberem que ela não está grávida, tudo isso vai
cair no esquecimento.
— Eu não vou tirar o meu filho! — Jenny berrou, e os gritos
recomeçaram.
Ouvi tudo paralisado de choque. Mas, então, uma fúria
flamejante rastejou por mim, ao ponto de eu ver tudo vermelho. Eu
não era como Rafael ou Heylel, que podiam controlar as emoções e
fazer parecer que nada os abalava.
Eu sentia que ia explodir, e o que viria a seguir não seria
nada bom. Esse bastardo que ameaçava o meu filho ia pagar caro.
Eu o faria chorar quando encarasse o pesadelo que eu seria em sua
vida de merda!
Não tive coragem de desligar o telefone, quando se fez
silêncio do outro lado, continuei esperando.
— Você está aí?
— Sim, eu estou.
— Eu não dormi com mais ninguém, o bebê é seu, por favor,
me ajuda, eu não quero tirá-lo.
— Essa notícia que eu acabei de ver na TV é falsa, então?
Constatar isso me deixou feliz. Ela não queria se desfazer do
nosso bebê, ela o queria.
Porra!
— Eu pedi para a minha mãe contar a uma amiga dela, que
trabalha na TV, ela se encarregou de espalhar a notícia. Eu
consegui atrasar um pouco as coisas. Caso contrário... — soluçou.
— Por favor, me ajuda.
— Eu vou te buscar agora.
— Meu pai protegeu a casa, eu tentei fugir, ele me pegou.
Não consigo sair e você não vai conseguir entrar.
Sorri.
— Eu estou indo te buscar, se prepare. Assim que o sol se
pôr, eu chego.
— Você vem mesmo?
— Nada me impedirá de chegar até você, Jenny. — Respirei
fundo. — Quem ousar se colocar no meu caminho, eu vou derrubar.
Agora prepare uma bolsa fácil de carregar e me espere.
— Por favor, tome cuidado. Os seguranças são pessoas
ruins.
— Não se preocupe comigo. Beag...
Ela soluçou outra vez e eu desliguei.
Quando olhei para a entrada da sala, Rafael estava me
encarando com uma expressão tão obscura e pesada, que, por um
momento, eu me encolhi. Não gostava de decepcionar o meu irmão,
tampouco de ver a gravidade com que mantinha os olhos fixos em
mim.
— Quem é a moça que você engravidou? — Sua voz soou
baixa, trazendo toda a frieza que apenas Rafael era capaz de me
fazer sentir.
— Jenny Monroe — respondi, erguendo o queixo.
Eu não ia me envergonhar porque engravidei a mulher que
passei muito tempo desejando.
Você ainda a deseja! Pude ouvir o eco do meu pensamento
mais recorrente.
— Você não se cuidou.
— Eu me cuidei, a camisinha deve ter estourado, não faço
ideia, mas esse filho é meu.
Meu irmão respirou fundo, como se buscasse o centro de seu
equilíbrio para não quebrar a minha cara.
Heylel estava ao seu lado, com a expressão tão tranquila que
não me deixava saber o que diabos ele estava pensando.
— Estou fodido, irmão — soltei o fôlego. — Muito fodido.
— Ainda bem que você sabe. — Rafael estreitou os olhos. —
Você não vai fazer nada contra essa mulher e o bebê que ela
carrega.
Machucou que ele pensasse isso de mim, mas não podia
condená-lo. Afinal, eu nunca disse que queria ter um filho e sempre
deixei claro que me contentaria com o filho que ele e Amira
esperavam.
— Eu nunca faria nada contra ela, ou contra o meu bebê. —
Esfreguei o cabelo, tenso. — Na verdade, o pai dela quer fazer um
aborto e Jenny está lutando contra isso. Eu e ela temos pouco
tempo para evitar que o pior aconteça.
— Quem esse homem pensa que é para impedir um
Demonidhes de nascer? — Heylel cruzou os braços, seus olhos
bicolores acenderam com fúria.
— Exato, eu preciso ajudá-la. — Comecei a andar de um lado
para o outro, como se as paredes se fechassem ao meu redor. —
Eu darei um jeito de consertar as coisas.
— O que diabos você quer fazer? — Rafael perguntou, e eu
parei encarando-o solenemente. — E o que precisa que nós
façamos?
O fato de Rafael estar disposto a me ajudar significou muito
para mim. Ele era o meu irmão mais velho, de certo modo tê-lo ao
meu lado era importante.
— Diga, o que quer que façamos? — tornou a repetir.
Eu respirei fundo, dizendo:
— Quero que vocês me ajudem a sequestrá-la.
Rafael manteve os olhos fixos em mim, como se, fazendo
isso, pudesse ler os meus pensamentos, coisas que por vezes
questionava se ele poderia.
Heylel não disse nada, mas, ali no fundo dos olhos coloridos,
eu vi acender com um sentimento devastador, transformando os
traços de pura indiferença em algo digno de pesadelo.
Ele estava furioso e poucas coisas no mundo seriam capazes
de despertar a ira do meu irmão desta forma.
— Eu o farei o sozinho. — Ergui o queixo, pronto para lutar
com ele se fosse preciso. — Irei derrubar a maldita casa, tijolo por
tijolo, mas eu vou tirar a minha... a mãe do meu filho daquele lugar.
— Gabriel... — Rafael começou, eu ergui a mão.
— Não estou pedindo autorização, irmão, neste assunto não
cabe a você decidir, ou me ajuda, ou sai do meu caminho. São
essas as opções.
— Opções de quê? — Lysander apareceu na sala, largando
no sofá a bolsa que sempre levava para o hospital. — O que diabos
está acontecendo aqui? Por que estão com essas caras?
A postura do meu irmão mudou, eu vi quando sua expressão
começou a se transformar em algo horrível.
— O que aconteceu? — Sua voz soou carregada com uma
fúria mal controlada.
Ele estava assim, estalando rápido demais.
— Gabriel engravidou uma moça. — Heylel ergueu a mão
como se quisesse apaziguar. — O pai dela quer tirar o bebê.
Devagar demais para a minha paz de espírito, Lysander
olhou para mim.
— Suponho que seja a mesma garota de Londres. — Acenei.
— E o pai dela quer tirar a chance de um Demonidhes nascer? —
Ele cruzou os braços, então movimentou o pescoço, torcendo a
boca num esgar cruel. — Não aceitarei que o filho do meu irmão
corra riscos. Este bebê deve ser protegido até que seja comprovado
que ele é um Demonidhes.
— Ele é meu! — rosnei. — Eu sei que ele é.
Não havia motivos para Jenny mentir.
Existiam coisas demais envolvidas, e ela não sabia quem eu
era para planejar algo. Na verdade, ela ainda não sabia, mas estava
confiando em mim cegamente, pela segunda vez.
Ela me escolheu e me permitia lutar por minha criança sem
saber o que isso significava para mim.
Porra!
— Seu? — Lysander balançou a cabeça suavemente. —
Tente dizer nosso.
Não soube classificar a emoção que suas palavras causaram.
Ninguém era sentimental aqui, mas, certas coisas, minúcias do
passado ainda eram entranhadas demais com os motivos que nos
trouxeram à vida de Roman.
Meus irmãos não sabiam, mas essa situação mexia com a
parte mais danificada, sombria e angustiada da minha alma.
Cassy... Meu peito doeu, antes que eu pudesse evitar as
memórias da minha garotinha explodiram e a dor de perdê-la me
queimou como um maldito incêndio.
Apesar de todas as circunstâncias, seria condenado se
permitisse que alguma coisa acontecesse com o meu filho.
Eu não fui capaz de defender Cassy quando ela precisou de
mim, agora eu era mais que capaz de fazer as coisas serem
diferentes.
— Decida, Gabriel. — A voz de Rafael soou carregada de
autoridade. — Essa é a sua última chance de definir as coisas, ou
eu tomarei à frente e você vai lidar com as consequências disso.
Por um momento pensei em Jenny, na minha obsessão e no
quanto eu estive fodido enquanto buscava migalhas de sua vida.
Só de imaginar a possibilidade de ter ela por perto, de ouvi-la
cantarolar qualquer porcaria que ela gostasse sentia a excitação
subir.
Eu a queria aqui, comigo, até que...
Até que pudesse ser eu mesmo de novo.
— Ela vai estar onde eu estiver — decretei, se meu irmão
pretendia enviá-la para algum lugar, era bom que soubesse que eu
iria junto.
Rafael caminhou até estar na minha frente, ele me encarou
de um jeito que me fazia sentir alguns centímetros menor. Eu sabia
que não era momento para isso, portanto, o encarei de volta, de
cabeça erguida.
Nenhum dos meus irmãos tinha o direito de interferir nos
meus assuntos, mas, então, quase podia sentir a fúria emanando de
Rafael, seus olhos sempre tão glaciais queimavam de raiva.
— Você não conhece essa garota, e aqui é nosso Complexo,
onde a minha mulher grávida está. — Seus olhos estreitaram. —
Fica sob sua responsabilidade qualquer coisa que ela faça, qualquer
passo em falso que dê, e, irmão, você sabe, eu não vou perdoar
absolutamente nada.
Dando um passo em direção a Rafael, quase encostei em
seu corpo, queria que ele percebesse onde estava o limite de suas
atribuições.
— Se você... — as palavras soaram bruscas — não a fizer se
sentir bem-vinda nesta casa, e ela decidir que não pode ficar aqui...
— Respirei fundo, estava decidido. — Eu irei com ela para onde for.
E eu não vou dar um único olhar para trás.
Rafael deu um passo atrás, recuando, algo que ele nunca
fazia. Ao invés de tentar emendar meu discurso, ele somente
concordou.
— Ela não deve saber quem você é, o único meio disso
acontecer seria se ela fosse da Cöntrax.
— Se ela for da Cöntrax e estiver mentindo, eu mesmo a
matarei. — Dei minha palavra, ali, diante de todos.
— Justo. — Meu irmão inclinou a cabeça. — Em todo caso,
ela não terá acesso a parte do Complexo, tampouco saberá que ele
existe.
Rafael deu as costas, foi até Amira puxando-a para si.
— Você lidera esta missão. Trace o plano e aponte a direção.
— Ele beijou o topo da cabeça de sua esposa. — Vamos
“sequestrar” a sua mulher, Gabriel.
— Mãe do meu filho — o corrigi. — Não é minha mulher...
Rafael arqueou a sobrancelha, sem dizer uma palavra pude
perceber que havia meia tonelada de sarcasmo nele.
— Nos reuniremos em uma hora — ele avisou, pegando
Amira nos braços.
— Isso vai ser interessante — Razhiel falou pela primeira
vez. — Quem diria, não é mesmo, Gabriel Demonidhes, pai.
— Foda-se. — Esfreguei o cabelo. — Isso foi um acidente.
Um acidente com consequências bastante agradáveis. Não
importava se teríamos problemas pela frente — eu sabia que
teríamos — mas, enquanto Jenny ficasse aqui, eu poderia acabar
com essa obsessão que me atormentava há tanto tempo.
É isso.
— Acidente? — Lysander cruzou os braços. — Defina
acidente.
— Ela está grávida, não foi o que planejei. Acidente.
— Você usou camisinha?
— Usei.
— Então não foi acidente. — Lysander estreitou os olhos. —
Tem alguma coisa que não encaixa. Apesar de que nenhum método
contraceptivo funciona cem por cento. Estou incomodado,
irmãozinho.
— Isso não é problema meu. — Dei de ombros.
Não lhe diria que houve um momento que eu quis senti-la
sem barreiras, fiz Jenny gozar com meu pau, sem proteção. Na
ocasião, eu não gozei, então...
Não importa!
— Tudo que envolve essa “garota” é problema seu. —
Lysander deu um sorriso totalmente desagradável, eram assim seus
sorrisos. — Eu vou ficar de olho nela.
— Não ouse...
— Não temos um sequestro para fazer? — Ele colocou as
mãos nos bolsos da calça preta. — Você está ficando atrasado,
então, não perca tempo tentando mudar o curso do rio, Gabriel,
certas coisas não podem mudar. Eu sou uma delas. Agora, faça
como Rafael disse, trace o seu plano, esperarei as coordenadas.
Ele se afastou, e eu precisei de alguns instantes para colocar
as ideias em ordem. Lysander era do tipo maníaco, se ele
acreditasse que Jenny era uma espiã da Cöntrax...
Deus... Sacudi a cabeça, não podendo deixar de sentir que
estava trazendo Jenny para a toca dos lobos.
O que, definitivamente, não deixava de ser verdade. Ela não
fazia ideia da família que estava entrando e eu só esperava que,
quando ela soubesse, não resolvesse sair, porque, certo como o
inferno, eu não a perderia de vista nunca mais.
— Irmão. — A mão de Heylel pesou em meus ombros. —
Apenas siga em frente. Estou contigo nessa.
— Eu também. — Razhiel sorriu, piscando um olho.
Eu não estava sozinho e jamais estaria outra vez.
— Então vamos buscar Jenny Monroe. — Assim que as
palavras deixaram meus lábios, tudo se concretizou.
Eu tinha um filho a caminho, com a mulher que desejava
acima de todas as outras. A certeza de que ela faria parte da minha
vida para sempre me trouxe uma estranha sensação de
tranquilidade.
Não tinha pretensão de seguir um relacionamento de casal,
mas só de imaginá-la por perto meu corpo esquentava. O sexo com
ela ainda era o melhor que já tive na vida. Nos últimos dois meses e
meio, nenhuma mulher foi capaz de me saciar ou fazer-me esquecê-
la.
Agora esperava que, enquanto ela estivesse aqui,
pudéssemos desfrutar do quanto éramos bons juntos. Depois,
quando as coisas se acalmassem, colocaríamos um ponto final em
qualquer relação íntima.
Para mim, isso parecia perfeito.
26
Jenny Monroe

Em todos os meus anos conhecendo a verdadeira face de


John, eu nunca o vi me olhar com tanto ódio. Após visitar David, sua
nova obsessão era saber com quem eu fiquei.
John acreditava erroneamente que se tratava de algum
cantor, membro de Staff ou empresário do ramo musical. Nem
passava por sua cabeça que eu tinha escolhido um gigante ruivo,
cheio de cicatrizes e misterioso.
Eu só havia descoberto que ele era um bombeiro por causa
da tentativa de aborto, caso contrário, continuaria revivendo
memórias, quando achasse que tudo não passou de um sonho.
— Deus do céu? — Tentei me levantar do chão, mas não
consegui.
Eu sabia que em breve John voltaria para mais uma nova
sessão de interrogatório, desde que descobriu a verdade ele estava
com ódio e as marcas no meu corpo eram somente o lembrete de
que eu o traí.
John considerava o que aconteceu como uma traição e
queria se vingar. Não escondia a ânsia por descobrir o nome do pai
do meu filho. Ele queria fazer meu viking pagar.
Mesmo que o erro fosse apenas meu, pois só eu sabia o
quanto John era perigoso.
— Estou tão cansada. — Respirei fundo, sentindo o peito
dolorido.
Não fazia ideia do que estava acontecendo com a minha
mãe, John a levou daqui, depois de me espancar outra vez e pegar
o meu telefone que eu havia escondido. Agora já não importava
mais, eu havia conseguido o que queria.
Mesmo que fosse perigoso, eu não sabia como ele iria
conseguir entrar aqui.
Meu Deus... Não queria chorar como uma idiota, sabia que
lágrimas não resolveriam nada e que John as odiava, pois, segundo
ele, elas atestavam minha culpa, entretanto, era insuportável demais
toda a incerteza em que minha vida estava mergulhada.
Talvez, em outros tempos, eu não me importasse com o que
John faria comigo, mas agora eu tinha alguém que dependia de
mim, e eu não trairia meu filho outra vez.
Não quando havia chance de ele ter algo mais.
— Tenho que sair daqui. — Acariciei a barriga, em pânico do
inferno que minha vida foi mergulhada nos últimos dias.
Poucas horas atrás, John disse que voltaria e ele queria um
nome.
Estava completamente fora de si, transtornado como nunca o
vi. Sedento para se vingar do homem que tomou minha virgindade,
me engravidando no processo.
Tudo que ele havia planejado fazer quando assumisse a
gravadora estava indo por água abaixo. Sem o trunfo que ele tanto
esperava, não havia como chantagear ninguém, pelo contrário, ele
ia perder dinheiro.
Muito dinheiro.
O som da porta abrindo me fez encolher, ele veio até onde eu
estava, baixando na minha frente.
O cheiro de seu perfume me causou náuseas, eu também era
capaz de reconhecer seu caminhar até nos meus sonhos.
— Chegamos ao fim. — Ele acendeu a luz do abajur.
Suas mãos estavam cheias de sangue, a blusa e o rosto
também. O cheiro rançoso me envolveu num abraço de morte.
Eu sabia... sabia de quem era aquele sangue.
Sua expressão de satisfação havia deixado claro.
— Por sua culpa, eu perdi o controle. — Ele tocou meu
queixo, espalhando o sangue por meu rosto. — Você é tão bonita,
Jenny.
— O que você fez? — Minha voz soou tão fraca quanto eu
me sentia. — O que você fez?
Um soluço fez meu peito sacudir, ele sorriu.
— Eu vou garantir que você compreenda que nenhum
homem aceita uma mentirosa em sua vida. — Um dedo
ensanguentado deslizou por minha bochecha. — Eu te amo, Jenny
— falou baixinho. — Mas não suporto olhar para você, e por isso
precisei descarregar um pouco dessa raiva na sua mãe.
— Não... — Tentei me afastar, mas ele me puxou. — Não me
toque, eu te odeio, te odeio!
— Foi sua culpa eu ter ido longe demais — ele suspirou de
um jeito profundo e dramático.
— Onde está a minha mãe?
Uma dor maçante começou a se estender por meu peito.
Queria gritar, lutar mais bravamente, porém não conseguia pensar
direito, além da angústia que me rasgava por dentro.
John me ajustou em seus braços, eu não tinha forças para
lutar contra ele.
— Respire com calma, amor. — Ele acariciou meus cabelos,
desta vez ele sabia que eu estava passando por uma crise, eu não
pude disfarçar. — Eu vou te perdoar, Jenny, se você me disser o
nome do pai do seu filho. — Ele apertou minha cabeça entre o braço
e o corpo, ao ponto de sentir a pressão explodindo no meu crânio.
— Eu preciso saber, não consigo fazer outra coisa se não pensar no
maldito que roubou o que era meu.
Essa era a sua nova obsessão.
— Eu não sei... — ofeguei, doendo em todos os lugares. —
Não sei, John...
A mão dele enredou no meu pescoço, seus olhos queimavam
de ódio.
— Você sabe, porra, você sabe! — rosnou, apertando minha
garganta, tornando tudo que eu sentia ainda mais difícil.
— Meu coração... — Buscava por ar.
— Não o proteja, Jenny, não me traia mais uma vez. Eu não
mereço isso!
John estava tão louco, que ignorava os problemas do meu
coração, o que eu dizia.
— Não... consigo res... pirar. — Lutando contra o seu aperto,
pontos pretos piscavam diante dos meus olhos. — John...
Batendo em suas mãos, eu tentei não desmaiar.
— Cansei de esperar, quatro dias é muito tempo. — Ele
sorriu, não afrouxando o aperto. — Agora, dorme, meu amor.
Quando você acordar, estaremos em outro lugar. Vou tirar essa
coisa de dentro de você e vamos fugir daqui.
— Não...
— Nossa vida em Nova York acabou. — Ele aproximou os
lábios dos meus. — Vou providenciar nossa fuga. Por sua culpa,
estou sendo perseguido, todo o dinheiro que eu peguei emprestado
para investir em você... — Ele apertou a minha garganta ainda mais.
— Porra, como você pôde me trair desta forma?
Meus pulmões estavam queimando, a sensação de frio
começava a se espalhar por meu corpo, era como se tudo estivesse
travando, encolhendo.
— John... — Bati em seus braços. — John...
Sua imagem começou a embaçar, o terror que sempre foi
meu companheiro me invadiu de modo avassalador, e infinitas
vezes pior. Daquela vez, meu coração estava doendo mais que o
normal.
Uma dor que nunca havia sentido tão forte.
— O que foi? — Ele franziu o cenho, afrouxando o aperto.
Estava tonta demais, a garganta e o peito queimando. Lutava
para respirar, para me sentir um pouco melhor.
— O que você está sentindo? — Havia preocupação em sua
voz.
— Me deixa... em paz...
— Você tomou seus remédios? — Ele me empurrou,
largando-me.
Eu tentei colocar mais distância entre nós, encolhendo-me no
canto da parede, o menor que eu conseguia ficar.
— Não vai responder? — Não o olhei, mas senti que diminuía
quando ele pegou em cima da minha cama o ursinho branco com
laço rosa que eu ganhei e arrancou a cabeça com uma faca. — Não
vai responder? — Jogou os pedaços em mim. — Tudo bem, esse
seu coração é uma porcaria mesmo.
Fechei os olhos, tentando ir para outro lugar bem longe
daqui.
— Vou sair por um momento, quando voltar chamarei o
doutor. Quero ter certeza de que você estará bem antes de nossa
viagem. Sairemos de madrugada, descanse um pouco.
O som de seus passos e da porta se fechando foi como
romper uma barreira. Sozinha, eu me permiti sentir aquela dor que
me cortava ao meio e que não era causada somente pelo meu
coração doente.
O que eu sentia era maior e muito pior.
Mãe...
Encolhida no canto, abracei-me enquanto o cheiro do sangue
da minha mãe rodeava meu corpo. Não sabia quanto tempo lutei
para não enlouquecer, mas, em algum momento, eu senti que
estava perdendo o controle.
— Não! Não! — Comecei a me balançar para frente e para
trás como ela fazia comigo.
Negando tudo que John havia dito, rejeitando a sensação que
me inundava, mas que eu não podia controlar.
O primeiro grito explodiu, sem que eu pudesse segurar. ele
esteve preso em meu peito por tempo demais, junto com todo o
controle que eu não possuía mais.
Erguendo a cabeça, respirei fundo, gritando o mais alto que
podia, uma vez após outra, até sentir que minha garganta estava
ferida.
Não me importava em arrebentar as cordas vocais para
sempre, não me importava se nunca mais pudesse cantar uma nota.
A loucura poderia ser a única coisa que restaria para mim,
porque agora não havia mais ninguém.
— Por que me odeia tanto? — Olhei para o teto do quarto
como se pudesse falar com Deus. Mas não houve respostas.
E isso era o que bastava para que minhas forças esvaíssem.
No final das contas, eu estava sozinha.
Encolhendo-me outra vez, tentei não enlouquecer
imaginando como a minha mãe poderia estar.
— Sinto muito. — Naquele mundo de tristeza, eu me fechei
no casulo protetor.
Não saberia dizer quando tempo havia se passado, mas a luz
do abajur apagou e um silêncio incomum se fez presente. Não tinha
ideia do que poderia estar acontecendo, mas, quando a porta se
abriu outra vez, não pude evitar o gemido de pavor.
Esperei o som de passos, mas não houve nada.
Apenas medo, receio.
Era a hora? John iria me levar? Os pensamentos
embaralhavam de tanto pavor.
— Beag...
Erguendo a cabeça, busquei pelo dono daquela voz quase
que com desespero. A única coisa que avistei foram os contornos
de um corpo grande demais se aproximando.
Ele se abaixou diante de mim, parecendo misturado com as
sombras do quarto, como num sonho impossível. Não conseguia ver
seu rosto, ele não possuía um.
— Encontrei você. — Ele me puxou para os seus braços.
Meu fôlego escapou em meio a um gemido doloroso.
Eu sabia que era ele.
Meu viking.
— Você está me salvando de novo. — O calor de seu corpo
invadiu o meu, seus braços estavam como bandas de aço a minha
volta.
— Estou aqui agora.
— Por... favor... — Sentia que não precisava mais lutar. —
Por favor, salve a minha... mãe também.
Falar era quase impossível, minha garganta estava fechada,
doendo como se houvesse engolido pedras em brasa.
— Salve a minha mãe. — Tentei agarrá-lo, mas não consegui
erguer a mão, estava presa. — Salve-a.
Foi a última coisa que pude dizer.
27
Gabriel Demonidhes

Não sabia exatamente o que esperava quando eu


encontrasse Jenny.
Talvez, vê-la em seu ambiente, esperando por mim, ou em
meio a discussão com seu pai e mãe, ou pior, chorando.
Mas nada chegava nem perto da realidade com que me
deparei. Por um breve instante, em meio à escuridão que eu e meus
irmãos mergulhamos a casa, meu corpo congelou ao encontrá-la
daquele jeito tão deplorável.
Encolhida num canto, vestida com uma roupa ensanguentada
e tão assustada, como se estivesse dentro de um pesadelo real.
Eu estava acostumado demais a vivenciar situações
parecidas e até piores, mas, até agora, nada teve o poder de me
afetar ao ponto de eu me sentir atordoado. Em partes, eu era
responsável por tudo isso, afinal, se ela não estivesse esperando
meu filho, não teria levantado a ira de seu pai.
— Vamos sair daqui. — Olhei para a corrente que a prendia,
então a enrolei no meu braço, puxando-a com força. Na segunda
tentativa, um elo rompeu.
Recolhendo seu corpo miúdo, estranhei o quanto parecia
leve.
Cada detalhe sobre ela estava gravado em minha memória,
as curvas delicadas do corpo, o olhar assustado, a gentileza com
que me tocava, então, por mais que eu dissesse que tudo aquilo era
apenas obsessão “por sua voz”, precisava admitir que vê-la daquele
jeito, puxava algumas cordas.
Ela não pesava quase nada, parecia até menor do que me
lembrava, os ossos sobressalentes, e, porra, ela estava grávida.
Precisava de cuidados, atenção.
Sabia que havia dias melhores que outros, Amira estava ali
para provar que nenhuma mulher nessas condições deveria ficar
sozinha.
Quem a protegeria quando estivesse exausta? Quem
massagearia seus pés quando estivessem inchados?
Não haveria romance entre mim e Jenny, mas era minha
responsabilidade cuidar dela e de todas as suas necessidades até
que fosse capaz de fazer isso sozinha ou quando eu julgasse que
ela era capaz.
— Por enquanto você é minha. — Respirei fundo, confortável
com isso.
Estava decidido.
Jenny pertenceria somente a mim, qualquer ato contra ela
seria um ato contra mim. Suas lutas seriam minhas, os receios
também. Tudo, e absolutamente tudo relacionado a ela, se
entrelaçaria com meus interesses.
Quem ousasse feri-la, teria que aguentar a minha ira e
vingança.
Não importando quem fosse.
Eu e Jenny, até que tudo se resolvesse, éramos um só.
— Ninguém vai te machucar outra vez. — Esfreguei o nariz
no dela. — Eu juro.
Não havia uma bolsa à vista como esperei que houvesse,
então não me importei de pegar nada. Saindo dali, não dediquei um
único olhar para aquele quarto.
Jenny teria tudo que quisesse.
No corredor de acesso aos quartos, encontrei com Razhiel.
Ele olhou para o pequeno fardo em meus braços, então para mim.
— Sua mulher — murmurou, estendendo a mão para afastar
o cabelo do rosto de Jenny. — Dê a ordem, irmão, e eu irei revidar
por ela.
Eu o encarei por alguns instantes, Razhiel era sempre tão
moderado que muitos acreditavam que ele poderia ser o mais
“suave” de nós. Talvez, fosse por isso que ele tinha tanta facilidade
em fazer seus inimigos caírem.
Razhiel Demonidhes era o tanque de guerra, o nerd de
sorriso calculado que escondia, sob uma fina camada de civilidade,
um dos homens mais cruéis da Ordem. Ele matava sorrindo, nada o
fazia perder o controle.
Era uma mistura de Rafael e Lysander, um maldito
Indominus, como nosso pai carinhosamente o chamava.
— Os outros estão fora. — Ele digitou algo no aparelho
eletrônico. — Sem mortes, como você disse. — Seus olhos foram
para Jenny outra vez. — Mas isso pode mudar.
— O pai dela deve estar voltando, vamos sair. — Passei por
meu irmão, mas, antes que pudesse descer as escadas que me
levaria para a sala, parei um momento, voltando-me para ele. —
Preciso que você encontre a mãe dela — proferi as palavras em
russo. — Faça isso para mim, irmão, por favor.
Pude vislumbrar certa surpresa. No pouco tempo que tive
para planejar esse sequestro, tirei toda agressividade
desnecessária, não cogitando que a situação pudesse ser tão ruim.
Talvez tenha sido um erro.
Eu conhecia profundamente a maldade humana, mas ainda
me chocava o jeito que havia encontrado Jenny. Seu pai era louco
por machucá-la daquela maneira, por causa de uma gravidez.
Pelo que pude ouvir no telefone, a mãe dela a apoiava,
defendia, só seu pai que havia surtado.
— Considere feito.
Apressei-me para fora da casa, vislumbrando corpos aqui e
ali. Os seguranças foram neutralizados com armas não letais, não
tiveram tempo de reagir ou perceber o que estava acontecendo.
Nunca foi tão fácil concluir uma missão, levando em conta o
medo idiota que Jenny possuía, ao alegar que a casa estava sendo
bem vigiada.
— Você se preocupou à toa. — Olhando ao redor, vislumbrei
a escuridão, um céu nublado e frio.
Aquela casa parecia abrigar algo ruim, como a fábrica onde
vivi por tantos anos.
— Não gosto da ideia de que volte para cá, mesmo que seu
pai aceite nosso filho. — Franzi o cenho. — Não gosto nem um
pouco.
Jenny estremeceu em meus braços, eu precisei lutar para
não correr com ela. Rafael estava esperando na entrada, ele
adiantou-se quando me viu chegando.
— Lysander o espera no carro. — A voz do meu irmão soou
como o frio que nos cercava. — Apresse-se, irei quando Razhiel
voltar.
Assim que entrei no grande SUV blindado, Lysander apontou
para o banco.
— Deite ela ali. — Cuidadosamente depositei Jenny, ela
gemeu baixinho, ainda inconsciente.
— Irmão, ela perdeu peso desde a última vez que a vi. —
Respirei fundo. — Preciso ter certeza de que ela está bem.
— Percebo sua ansiedade. — A voz de Lysander soou calma
demais, era como se ele não se importasse com a mulher
machucada sob seus cuidados.
Mas, então, por que ele se importaria? Lysander não
dispensava atenção por aí, não se importava com ninguém salvo
sua família, a relação dele com Amira começou péssima e ela
conquistou seu lugar em nosso Clã.
Ponto final.
Agora, Jenny teria que fazer o mesmo, e isso era algo no
qual eu não poderia ajudar. Caso desse tudo errado, poderia ir
embora juntos, até que nosso filho e ela estivessem a salvo.
Depois, eu ia ver o que fazer.
— Não estou ansioso, apenas preocupado, ela carrega o
meu filho. — Pegando sua mão fria, não gostei de perceber que as
pontas de seus dedos estavam roxas, e que havia um pequeno
corte em processo de cicatrização.
— Vou cortar esse vestido, isso está podre — Lysander
avisou antes de pagar a tesoura e cortar o tecido ao meio.
Meu irmão apenas estava fazendo seu trabalho, mas não
gostava que ele a visse apenas de calcinha. Atento a cada um de
seus movimentos, fiquei ao lado, encolhido naquela porra de carro,
observando enquanto ele a avaliava.
— Percebo várias contusões na cabeça. Sinais óbvios de que
foi golpeada — ele avaliou clinicamente o crânio dela, as mãos
grandes demais pareciam engoli-la. — Alguém esmurrou sua
cabeça várias vezes, mas não considero que haja nenhuma
intercorrência mais grave. Irei verificar melhor quando chegarmos no
Complexo. — Ele continuou sua avaliação, indo agora para o rosto.
Precisei respirar fundo algumas vezes para me acalmar. De
repente, o plano de uma invasão não agressiva pareceu idiotice, eu
deveria mesmo era explodir a casa, deixando para trás um aviso
direcionado ao seu agressor.
— Sossegue. — Lysander estava tocando na cicatriz que
havia no peito dela. — Ela tem um marca-passo. — Apontou para o
volume. — Vou ficar atento a esse detalhe.
— Ela disse que foi um acidente e que havia algo alojado. —
Lysander apenas arqueou a sobrancelha e eu me senti um idiota por
ter acreditado em Jenny.
Será que ela mentiu sobre outras coisas? Não gostei de
como me senti.
— Com certeza é um marca-passo.
Lysander voltou sua atenção para Jenny, e ele estava sendo
bastante metódico em sua avaliação. Mesmo com os equipamentos
de primeiros socorros que dispunha ali no carro, ele não deixava
nada passar. Era como se suas mãos fossem um scanner, e eu
confiava cegamente no que ele dizia.
— Ela foi espancada em dias diferentes. — Ele apontou as
manchas no peito, ombro, braços e pernas. — Algumas marcas
estão mais sutis, outras não. — Ele pegou o pulso dela trabalhando
na algema, quando a soltou, mostrou-me a laceração. — Ela tentou
se soltar.
Porra... Não sei o que eu sentia ouvindo isso, mas o orgulho
de saber que, desde o começo ela lutou por nosso filho, aumentava
minha admiração e a certeza de que Jenny seria uma mãe incrível.
Diferente da minha, que me largou para ser morto, Jenny
lutava para que o nosso filho tivesse uma chance ainda que o preço
para ela fosse alto demais.
— Ela está desidratada também, provavelmente por conta
dos enjoos. — Lysander tocou a barriga dela, que variava em tons
de roxo e azul. — Eu quero fazer uma ultrassonografia, preciso ter
certeza de que o bebê está bem. Por ora, não encontro rigidez ou
sinais de hemorragia interna. — Lysander desceu até a região
pélvica, e mais embaixo. — A calcinha está limpa, isso é um bom
sinal. Em todo caso, irei fazer todos os exames para garantir que
está de fato, tudo bem.
— Sim, eu gostaria disso, você dispõe de todos os
equipamentos necessários no Complexo?
— Sim, graças ao bebê de Amira eu me precavi, temos tudo
para cuidar da sua mulher também.
— Mãe do meu filho, não minha mulher — o corrigi.
— Sei. — Lysander puxou as luvas, não dando a mínima para
as minhas palavras. — Precisamos ir, não estou gostando dessa
demora. — Meu irmão pegou a mão de Jenny, a que eu estava
segurando, então aproximou uma pequena lanterna dos dedos. —
De fato, não estou gostando nada disso.
— O que diabos você não está me contando?
Não parei para avaliar o fato de uma sensação ruim ter se
apossado do meu corpo, era como se houvesse uma urgência, a
necessidade de ter plena certeza de que ela e meu filho estavam
bem.
— Ela não te disse por que precisava de um marca-passo.
Então eu direi. O coração da sua mulher está doente, e eu preciso
saber o quão ruim ele pode estar. Isso vai ser determinante no modo
que iremos cuidar dessa gravidez, irmão. Não vou enganar você.
Dependendo do que irei descobrir, posso considerar que a gravidez
da sua mulher é de alto risco.
Sentia como se houvesse levado uma porrada na cabeça,
duas palavras piscavam em letras garrafais e néon:
DOENÇA, CORAÇÃO.
— Irmão...
Era apenas um absurdo que Jenny tivesse um coração frágil.
Parecia que o destino estava rindo da minha cara de novo,
fazendo-me associar o agora com o passado.
Por um instante, me vi preso naquele horror de tantos anos
atrás, quando o coração da minha criança fora arrancado de seu
peito. O ódio veio como uma onda maciça, esquentando meu corpo,
ao ponto de eu sentir a cabeça latejar.
Tudo era injusto demais, e, talvez por isso, um sentimento
antigo começava a rastejar por mim outra vez.
Era o medo em sua forma mais básica. Medo de perder de
novo uma criança que era minha e alguém que era importante.
Precisava admitir — ainda que fosse apenas em segredo —,
Jenny era importante. Não porque carregasse meu filho, mas
porque, sem saber, ela apaziguava meu tormento com sua voz e
músicas tristes.
Imaginar que ela poderia morrer, levava-me a pensar no
quanto eu fui estúpido e egoísta quando não me importei em
entender o que a motivava a agir tão desesperadamente.
Seu coração seria tão frágil assim? O pensamento me
assustou, e isso, para alguém como eu, era uma novidade difícil de
engolir. Não estava pronto para abrir espaço para mais ninguém,
meu filho era uma exceção, sua mãe não.
Ela era uma escolha. Mas ainda assim...
Porra!
— Gabriel, pare. — A voz de Lysander trouxe-me de volta.
Quando percebi, estava apertando a maçaneta da porta. — Há algo
em seus olhos, irmão, eu não gosto nada disso. — Ele não
escondeu a preocupação.
Nenhum dos meus irmãos sabia do meu passado. Meu pai
jurou nunca contar, e ele nunca o fez. Agora, não encontrava
palavras para descrever a Lysander o que aquela garota frágil e o
bebê que ela carregava significavam para mim sem voltar para o
ponto da minha vida, que ainda era insuportável lembrar.
— Basta você saber que eu acabei de encontrar meu ponto
fraco. — Apontei para a Jenny. — Ela e essa criança precisam ficar
bem.
— Você está volátil. — Ele voltou a trabalhar nela. — Preciso
que mantenha a cabeça fria, eu vou cuidar da sua mulher e do seu
filho. Ambos ficarão bem.
— Sim — murmurei, engolindo o pesado nó que havia se
formado em minha garganta. — É fundamental que ambos fiquem.
— Irmão, calma. — Lysander apertou meu ombro. — Não
subestime sua garota por causa do tamanho dela, ela é forte. —
Respirei fundo, concordando. — Quando chegarmos em casa, vou
avaliar melhor, terei uma ideia abrangente de sua condição e depois
eu vou conversar com ela. Agora, precisamos sair daqui. Dê-me sua
camisa, ela precisa ficar quente. Heylel, coloque o aquecedor no
máximo.
Removi a parte superior do meu traje, o tecido especial
mantinha-se quente, ou frio dependendo do clima. Com a ajuda de
Lysander, nós conseguimos vesti-la sem causar maiores estresses.
O carro tinha um bom espaço interno, mas éramos grandes demais,
e trabalhar ali era uma merda, ainda mais quando alguém tão
pequena quanto Jenny estava machucada.
Estava pronto para dizer a Heylel que poderíamos ir embora.
Mas tínhamos que esperar os outros.
Queria chegar no Complexo, fazer os exames, ter certeza de
que tudo estava bem ou corria o risco de surtar.
— Rafael vem aí — Heylel avisou poucos instantes depois a
porta do SUV abriu.
— Pegue-a, Lysander. — Razhiel entregou a mulher que ele
carregava, entrando em seguida.
Ninguém ousou dizer nada, a pequena mulher estava
ensanguentada para além da razão, o rosto deformado, dedos
quebrados. Ela fora brutalmente espancada.
— Pega sua mulher, Gabriel, preciso do espaço — Lysander
ladrou a ordem, e eu obedeci.
Jenny pareceu tão minúscula perto de mim quanto eu me
lembrava. Quando me acomodei no banco lateral, eu ajustei seu
peso, encaixando-a nos meus braços, para que ficasse protegida e
meu corpo a aquecesse.
Não havia me permitido avaliar como parecia certo ela estar
ali, ou como uma parte do tormento que era meu companheiro
acalmava. Sem querer, uma nova fonte de expectativa começava a
ganhar vida dentro de mim, e isso eclipsava algumas coisas que se
alimentavam da minha insanidade.
— Estou dando o fora — Heylel avisou.
Abandonamos aquela casa horrível e os faróis do carro que
se aproximava. A viagem de volta para o Complexo pareceu-me
uma eternidade, e eu só esperava que as coisas não ficassem muito
ruins.
— Essa mulher está claramente pior que a sua, Gabriel. —
Razhiel apontou para a mãe de Jenny, assim que entramos na
nossa propriedade. — Ela precisa ir para o centro médico com
urgência.
— Os sinais vitais estão baixos. — Lysander respirou fundo.
— Vou ter que abri-la, tenho certeza de que há hemorragia interna.
Heylel precisamos ir para a sala de cirurgia agora.
Lysander estava com a mulher nos braços, apressando-se
para o acesso paralelo que nos levava direto para o Complexo
subterrâneo.
— Você vai operar sem uma equipe? — Rafael cruzou os
braços. — Talvez seja melhor ela ir para o hospital.
— Eu tenho tudo que preciso, Heylel será minha equipe, ele
pode operar comigo.
— Irmão... — Eu respirei fundo, apertando Jenny. — Essa
mulher não é prioridade, a minha é. Quero que verifique Jenny e
meu filho primeiro.
— Não é sua mulher quem precisa de mais atenção neste
momento. — Lysander estreitou os olhos. — Mas não me importo
com nenhuma das duas, se você quiser eu atendo sua mulher
primeiro, deixo a mãe dela morrer, mas, quando ela perguntar, você
conta o que aconteceu. — Lysander deu de ombros. — Então
decida agora.
Antes de apagar, Jenny só queria saber de sua mãe. No
breve instante, eu pude perceber o quanto a mulher era importante.
Agora estava em minhas mãos decidir.
Queria que Jenny fosse primeiro, ela era importante. Mas
então, o que poderia acontecer se sua mãe morresse? Ela me
culparia por isso? No pior dos casos, eu poderia mentir, mas odiava
mentiras com cada grama do meu ser.
Ainda assim, estava preparado para lidar com sua ira. Meu
filho e Jenny eram mais importantes.
Havia decidido, Jenny poderia me odiar, mas ela era a
prioridade.
— Quero que veja a mãe do meu filho primeiro, preciso ter
certeza de que ambos estão bem.
— Como quiser. — Foi a única resposta do meu irmão.
Quando chegamos no centro médico de alta tecnologia, ele já
estava todo ligado. Razhiel havia acessado o sistema remoto e
ativado tudo que precisava.
— Eu vou seguir para o centro cirúrgico, começarei o preparo
para os procedimentos, Lysander, faça os exames em Jenny —
Heylel anunciou e eu concordei.
Apesar de não declarar abertamente e tampouco exercer,
Heylel era formado em medicina também, portanto, possuía
conhecimento suficiente trabalhar num hospital. Ele era uma
Sentinela, tinha o nível mais alto de treinamento, portanto, para ser
um torturador como Lysander, ele estudou por muitos anos.
Todos nós confiávamos em suas habilidades, ele jamais
errava.
— Vamos. — Lysander indicou um corredor.
Fiquei atento a cada uma das coisas que ele fazia em Jenny,
cada maldito exame que ia descartando possíveis traumas, e
concussões. Não havia inchaços na cabeça, ossos quebrados ou
hemorragias, digo, seu nariz estava com sangue seco, mas
permanecia intacto.
— Agora, vamos para a ultrassonografia.
— Estou ansioso. — Esfreguei as mãos, quando Lysander
começou a preparar os equipamentos.
Eu o ajudei a erguer a camisa que Jenny vestia. Depois meu
irmão colocou um gel no pequeno montículo da barriga feminina.
— Vamos ver o que temos aqui. — Lysander espalhou o gel
no aparelho, depois começou a deslizar suavemente.
Confesso que não compreendi absolutamente nada da
imagem borrada, era tudo uma confusão de manchas acinzentadas.
— Parece que estamos indo bem. — Lysander parou um
momento, então estreitou os olhos. — Quem diria. — Notei surpresa
na voz do meu irmão, ele balançou a cabeça.
— O que foi? — Inclinei próximo a tela, lutando para entender
o que ele estava vendo. — Lysander...
— O seu bebê está aqui, firme e forte. — Ele congelou a tela.
— Aqui, saco gestacional. — Ele circulou para que eu pudesse
entender. — Aqui o embrião. — Ele fez o contorno do meu bebê. —
Com dez semanas aproximadamente.
O alívio que senti foi tão grande, que precisei me apoiar.
— Porra. — Balancei a cabeça. — Ele está bem, e o tempo é
isso mesmo. Dez semanas desde a viagem a Londres.
Lysander virou para mim e eu nunca vi sua expressão tão
séria. Era como se o que ele fosse me dizer, tivesse o poder de
mudar tudo.
— Não é ele, e sim eles.
— Sim, sim, Jenny e meu filho. — Engoli em seco, havia
muito peso nessas palavras.
Lysander cruzou os braços, com os olhos verdes fixos em
mim.
— Não, Gabriel, eu estou dizendo, eles. — Apontou para a
tela. — São dois bebês.
Por um momento, as palavras do meu irmão embolaram na
minha cabeça e eu o encarei como um perfeito idiota sem
capacidade cognitiva para formular uma resposta adequada.
Mas então Lysander se levantou da cadeira, puxando-me
para um abraço.
— Parabéns, porra. Você vai ter gêmeos.
Deus...
Engoli em seco, abraçando meu irmão apertado, ainda sem
acreditar no que ele havia acabado de me dizer.
— Está tudo bem. — Ele bateu nas minhas costas. — Agora,
sua mulher precisa de cuidado e muita atenção. Encontre tudo isso
dentro de você e dedique-se a ela. Depois, quando ela acordar,
vamos conversar sobre seu problema cardíaco. Até lá, cuide para
que ela se sinta segura. Faça-a se sentir acolhida como Rafael fez
Amira se sentir.
— Irmão.
— Rafael não amou Amira no primeiro momento, Gabriel,
você sabe o que eu fiz, sabe os motivos que levaram ela até a casa
de Heylel. Nosso irmão foi idiota negando coisas que estavam
óbvias. Você gosta dessa garota, a engravidou. Agora, temos
gêmeos a caminho, e isso torna a situação de risco.
Eu sabia que havia um longo caminho pela frente, uma
gravidez múltipla numa mulher cardiopata.
Deus, não ia deixar que Jenny e meus bebês saíssem de
perto de mim, não importava qualquer coisa que eu tenha dito antes.
— Agora vá, leve-a para o seu quarto, dê-lhe um banho, vou
pedir para Razhiel preparar algo.
Lysander me deixou sozinho e eu não pude resistir. Com
cuidado, peguei Jenny nos braços, ainda sem acreditar que ela
gestava duas crianças.
Minhas crianças.
— Beag... — Fechei os olhos, sentindo o peito enchendo de
um bom sentimento que me acalmava. — Obrigado por lutar pela
vida deles.
Ela havia me salvado quando lutou por meus filhos, ela me
deu o que Roman levou consigo quando morreu.
— Jenny Monroe, você me surpreendeu. — Beijei seu cabelo,
segurando-a com cuidado.
Sem saber, ela havia me dado um propósito para a vida toda.
E isso mudava tudo.
28
Gabriel Demonidhes

Ainda não sabia descrever com exatidão o que eu estava


sentindo, mas sabia que não era ruim.
Ter Jenny no meu quarto, invocava sentimentos tão fortes
que começava a me sentir preocupado com o quanto eu me permitia
esquecer rápido o passado. Eu era a porra de um homem que até
horas atrás tinha uma única certeza na vida, jamais voltar àquela
sensação de vulnerabilidade.
Era disso que eu me assegurava todos os malditos dias
quando não me envolvia, nem deixava ninguém chegar perto
demais. Nunca havia vacilado em minhas decisões, Jenny foi a
primeira. E eu nem podia dizer que me arrependia.
— Você deve me odiar. — Olhei para o teto. — Você deve me
odiar pra caralho!
O mais foda era que nem conseguia sentir arrependimento de
ter decidido ficar com ela. Porra, eu quis, e ela estava aqui.
É minha! Basta apenas que eu a deixe se situar, e entender
que não havia mais volta, ela não teria uma vida longe de mim, dos
meus cuidados.
A expectativa pelo futuro me deixava eufórico e ansioso, e
essa combinação era explosiva para alguém tão impaciente quanto
eu. Podia ver, a cada instante, todas as bases que mantive a minha
vida de pé, simplesmente desmoronando.
Eu tinha uma mulher que precisava de mim, dois filhos a
caminho, nada era mais importante que isso, nem minha liberdade.
— Puta merda! — soltei o fôlego, as novidades quebravam
todos os alicerces que construí e que me mantinha emocionalmente
distante de relacionamentos.
Naquele momento, pensar em deixar Jenny era inconcebível,
não podia nem cogitar a possibilidade de me afastar do quarto.
— Você mexe comigo sem o menor esforço. — Beijei a mão
fria, estava sentado numa cadeira ao lado da minha cama, desde
que a trouxe. — Eu sinto muito por tudo que tenha passado, mas
acho que me ter como pai dos seus filhos não é a melhor coisa. —
Esfreguei a mão dela em meu rosto. — Sou louco demais, pequena,
um tanto desajustado e possessivo. — Não pude evitar beijar as
pontas de cada um de seus dedos. — Vou te avisar. Se tiver
oportunidade, apenas fuja de mim. Sim, fuja.
Temo que, se conseguir entranhar ainda mais sob minha
pele, eu que não te deixarei ir. Completei em silêncio, observando
seu peito subindo e descendo. Essa era a garantia de que eu
poderia manter as coisas calmas, caso contrário estaria caçando
seu pai pelas ruas de Nova York, apenas para estripá-lo por ousar
machucar a mãe dos meus filhos.
Gêmeos... Eu vou ter gêmeos! Ainda era surreal demais.
— Você pensa que nosso encontro foi meramente acaso — ri
baixinho. — Eu sou um filho da puta, no sentido literal. — Balancei a
cabeça. — Eu fiz acontecer, me hospedei no hotel. Ia te procurar,
mas, quando entrei naquele bar, eu te vi, e você se tornou meu alvo.
Jenny, porra, eu te quis antes mesmo de te ver.
E por isso, ela estava toda machucada, com a vida da mãe
por um fio. Porque eu não pude controlar a porra do meu pau.
— As coisas vão ser diferentes agora. — Beijei sua mão
outra vez. — Meus irmãos vão me infernizar, porque eu sempre falei
demais que nunca ficaria com alguém, mas isso não importa. Vamos
ver como as coisas irão se ajeitar, até que isso aconteça, eu cuido
de você. — Toquei sua barriga. — De vocês.
Jenny ia precisar de muita atenção e cuidado. Toda essa
situação era infinitas vezes péssima para ela. Estava num lugar
estranho, com desconhecidos, e grávida. Havia sido hostilizada pelo
seu pai, provavelmente perderia o contrato de seus sonhos.
— Que caralho. — Estalei a língua, disposto a consertar tudo
para que pudesse amenizar o que havia dado errado para ela.
Os bebês que carregava eram meus, se não fosse por isso,
sua vida não estaria de cabeça para baixo como estava agora. Mas
no momento não tinha muito o que fazer.
Precisava que ela acordasse, não quis levá-la para o banho
daquele jeito. Preferia que estivesse acordada quando o fizesse,
pois acreditava que, talvez, ficaria assustada e confusa caso
despertasse sendo tocada por um homem.
Eu nem sabia como ia ser quando ela despertasse. As
opções não era as melhores. Ela podia me odiar por ter ido embora
do hotel e feito parecer como se nunca houvesse existido, por tê-la
engravidado, pelo contrato perdido e até pela violência que sofreu.
— É sua culpa, bastardo! — Respirei fundo.
Eu tinha trinta e dois anos, Jenny dezoito. Se havia alguém
para carregar a culpa, seria eu.
Merda! Um aperto suave em minha mão fez com que todos
os meus questionamentos perdessem o sentido, inclusive meu
coração — o grande inútil — acelerou um pouco.
Ela estava despertando.
— Jenny? — chamei baixinho, inclinando em sua direção.
Seus olhos abriram de repente, como se fosse acostumada a
despertar assim. Esperei que me reconhecesse, que me olhasse
com raiva ou algo do tipo, mas nunca esperei que ela gritasse, como
se estivesse dentro de um pesadelo.
Esse havia sido o grito que me levou até ela naquela casa e
que me fez entender que, naquele momento, tudo que eu já havia
dito não significava nada, e que ela estava no topo das minhas
propriedades.
— Sou eu, Jenny. — Minha voz soou rasgada, eu sabia que
era necessária muita dor e medo para alguém gritar daquela forma.
Puxando-a para mim, eu a abracei apertado, mantendo-a
junto ao peito, ignorado o desespero com que seus punhos se
chocavam contra as minhas costas.
— Socorro... — Sua voz me quebrou, derrubando muitas
barreiras que eu levei anos para construir, porque eu percebi que
seu pedido era o mesmo que o meu eu jovem, o Regan, fazia
quando não tinha ninguém por ele.
Ali, eu decidi que não importava o que viesse do futuro, eu
jamais a deixaria desamparada.
— Sou eu. — Balancei um pouco com ela, tentando confortá-
la como Rafael fazia com Amira. — Sou eu, Beag...
À menção do apelido carinhoso, ela congelou.
Ainda não havia tido tempo para avaliar o porquê do meu
coração pesar tanto ou do porquê de eu sentir como se estivesse
com a minha vida pendendo por um fio. Eu era Fire, o Incendiário,
um general de guerra, vivia sob a corda bamba, flertando com a
morte por puro esporte.
Eu nunca tive medo, mas ali o sentimento que me corroía era
medo.
Atento, para qualquer movimento surpresa, eu comecei a ir
me afastando. Primeiro, minhas mãos deslizaram por seu cabelo,
depois pelos ombros até que eu segurei em seus braços, afastando-
me para que ela pudesse me ver.
— Sou eu. — Tirei sua franja dos olhos, depois testei um
sorriso.
Jenny permaneceu estática encarando-me, como se eu fosse
uma miragem. Seus olhos percorriam meu rosto como se buscasse
garantir que eu era real.
— Toque-me — murmurei, não tirando os olhos dos seus. Ela
levantou a mão, percebi que estava tremendo demais. — Toque-me,
Jenny.
Ela estava congelada, os olhos arregalados enchendo de
lágrimas no rosto cheio de hematomas.
Sua expressão era algo que eu não saberia descrever com
precisão, pois pareceu-me uma mistura de alívio, tristeza, raiva e,
talvez, um pouco de felicidade, que, com certeza, não eram porque
estava comigo.
— Toque-me... — pedi gentilmente, porque até certo ponto
acho que eu também necessitava daquilo.
Jenny se inclinou para mim, tocando a minha barba. Era
como se, nas pontas dos dedos, ela carregasse eletricidade. Meu
corpo inteiro reagiu, não apenas de excitação, mas uma coisa
intrínseca, forte e desconhecida.
Totalmente diferente de tudo que já experimentei. O jeito que
ela me tocava era como o de um apreciador, havia cuidado,
gentileza, carinho.
Por mim? Não pude resistir, fechando os olhos, repousei
minha mão na dela e a pressionei contra o meu rosto.
Ansiava aquele carinho com cada grama do meu ser.
— É você mesmo. — Sua voz estava embargada. — Você
veio para mim.
— Por que eu não viria? — Busquei seus olhos. — Estou
aqui, Jenny. — Respirei fundo. — Estou aqui para vocês. — Toquei
sua barriga. — Sempre.
Suas lágrimas escorreram e era como se fossem adagas
rasgando meu peito. Não queria que ela chorasse nunca mais,
tampouco que aquela sombra de medo permeasse seus olhos.
— O que você quiser será seu, peça, e eu te darei. — Ela
não fazia ideia do alcance do meu poder.
Ela não sabia que eu era um assassino, bilionário, perigoso
como apenas meus irmãos poderiam ser.
Ela não sabia o que significava ser minha.
— Não quero ser machucada — soluçou. — Não quero ser
machucada nunca mais.
Eu precisei abraçá-la.
Não para confortar apenas sua dor, mas a minha também. De
algum modo, Jenny me afetava, não sei se por ela ser a mãe dos
meus filhos, e ter passado pelo inferno por causa disso, mas ela
mexia comigo.
De maneiras que não irei classificar agora.
— Perdoe-me por tudo, Jenny. — Ela me abraçou de volta. —
Eu juro que ninguém vai te machucar outra vez.
Ela se encolheu dentro dos meus braços, como se quisesse
sumir. Eu não sabia lidar com mulheres assim, mas segurar Jenny
agora não estava sendo a coisa mais difícil do mundo.
Ela encaixava nos meus braços, as nossas diferenças
pareciam certas. Há muito tempo, não me sentia como se,
finalmente, houvesse encontrado a paz.
Verdadeira e silenciosa paz.
Que merda está acontecendo com você, Gabriel? Soltei o
fôlego, sentia como se eu houvesse arrancando o freio da minha
moto e pisado fundo no acelerador, sabendo que logo mais chegaria
na curva.
Era um grande problema, mas continuava acelerando a porra
da moto.
— Jenny? — pigarreei, na tentativa de manter o mínimo de
controle. — Talvez você queira se livrar de toda a sujeira que está
em seu corpo. — Precisava lidar com questões práticas, fazê-la se
sentir melhor era o começo. — Posso preparar um banho, e depois
vamos conversar.
— Não me solte. — Ela apertou os braços ao redor da minha
cintura. — Apenas me abrace de volta, só você me faz sentir
segura.
Não faz isso, garota!
Quando eu a puxei para o meu colo, sabia que estávamos
ultrapassando uma linha muito tênue.
Pensamentos e vontades estavam se tornando ações, e era
nesse lugar onde habitava o perigo.
— Estou aqui, Jenny. — Fechei os olhos, apertando-a o
máximo que podia sem machucar. — E eu não pretendo ir a lugar
algum.
— Obrigada. — Sua voz soou abafada. — A minha mãe...
— Falaremos sobre isso depois.
— Você a salvou também? — Ela ergueu a cabeça,
estávamos tão perto que eu podia ver algumas manchas mais claras
que o tom castanho de seus olhos.
— Meu irmão o fez.
— Obrigada. — Suas lágrimas voltaram a escorrer e ela me
abraçou de novo. — Obrigada por, mais uma vez, olhar para mim.
— Jenny, você fala por enigmas. O que isso quer dizer?
Como eu não ia olhar? Sou obcecado por você há muito
tempo. Não disse em voz alta, pois sabia que poderia aterrorizá-la e
a nossa situação requeria cuidados.
— Eu... — Uma batida à porta a fez estremecer, ela apertou o
resto contra o meu peito. Sua respiração ficou louca e eu quase
podia sentir as batidas do seu coração.
— Beag. Calma. — Tentei afastá-la para explicar que estava
segura, mas ela me agarrou, como se quisesse fundir nossos
corpos.
Seu medo era perceptível no modo como seu corpo reagia.
Ela parecia estar sofrendo uma crise de pânico, pelo modo terrível
como tremia e respirava.
— Jenny?
— Não me solta. — Sua voz estava estranha. O quarto
estava frio, mas ela suava muito. — Não me solta. — Percebi que
batia o queixo.
— Não vou te soltar — falei baixinho no ouvido dela. Então,
somente a segurei contra mim, morto de preocupação. — Nunca
vou te soltar.
Quem estivesse do outro lado da porta, compreenderia que
não era o momento para conversas.
— Tudo bem, tudo vai ficar bem. — Acariciei seus cabelos,
sem saber se estava fazendo o certo. — Ninguém vai entrar aqui,
seremos apenas eu e você. Fica tranquila, pequena, só estamos
nós dois.
— Não me deixe — arquejou, tossindo. — Não me deixe, por
favor.
— Beag, eu não estou indo a lugar algum.
Não estava dizendo aquilo porque ela precisava ouvir. Sem
qualquer subterfúgio, ou brincadeira idiota que fazia com Rafael e
sua esposa, eu não queria alguém para mim. Como disse, não
aceitaria a responsabilidade, mas estando com Jenny em meus
braços, com medo do que uma gravidez de risco poderia fazer ao
seu coração frágil, eu compreendia que estar com ela fazia algum
sentido.
— Vai passar e tudo vai ficar bem — continuei conversando,
enquanto ignorava o irmão que queria falar comigo.
Alguns instantes foram necessários para que quem estava ali
fora compreendesse que deveria ir embora. As batidas silenciaram,
mas levou um bom tempo para que a garota em meus braços
parasse de tremer. Sua respiração também ficou melhor, mas me
deixou preocupado o quanto ela parecia exausta.
Estranhamente, meus pensamentos silenciaram levando
embora aquele burburinho incessante que me acompanhava desde
o momento que meus olhos abriam pela manhã. Pensar em Jenny,
nos cuidados que eu teria com ela a partir daquele momento,
eclipsava todo o resto.
— Desculpe-me por isso. — Ela se afastou e eu precisei
conter o impulso de puxá-la de volta para mim.
Deixei as mãos pendendo frouxamente diante de mim, e eu
percebi que ela estava envergonhada. Jenny não olhava para mim,
mas eu tirei um momento para avaliá-la.
Sua franja estava molhada de suor, ela ainda respirava um
pouco fora do normal. Era como se houvesse corrido uma maratona.
Pude notar que seus dedos ainda tremiam, ela estava tentando
disfarçar.
— Olhe para mim. — Tentei não soar autoritário, mas não
pude evitar o tom de comando.
Jenny ergueu a cabeça e, por mais clichê que possa parecer,
ela era a única mulher capaz de me deixar sem palavras.
— Você não precisa me temer, sabe disso, não é?
Ela acenou.
— Ainda não acredito que isso seja real. — Ela presenteou-
me com o sorriso mais doloroso que já recebi. — Pessoas como eu
não têm tanta sorte assim. — Tocou minha barba. — Em algum
momento sei que vou acordar, ele vai chamar por mim e eu terei que
ir.
O sorriso estava ali, as lágrimas também. Era como se ela
nem percebesse que estava toda quebrada.
— Mas eu aceito isso. — Traçou o contorno do meu queixo.
— Se é a única coisa que posso ter, eu aceito.
— Jenny? — Ela fechou os olhos, o sorriso foi aumentando, o
choro também. Não havia controle algum sobre suas emoções, ela
estava à flor da pele, ou melhor, ela estava em carne viva e
sangrando.
Atormentava-me o seu desespero, não a queria assim porque
agitava aquele monstro que deveria permanecer preso.
— Pessoas como eu não têm sorte, meu Viking. — Ela me
abraçou outra vez. — Eu sonhei com você por dias infindáveis. —
Senti meu coração encolhendo. — E isso era a parte mais doce dos
meus longos dias carregados de dor.
— Jenny...
— Tudo pareceu um sonho, eu não fazia ideia do seu nome,
talvez eu ainda esteja sonhando, ou ficando louca — ela soluçou. —
Você é o meu viking, te chamar assim fazia eu sentir como se
pudesse te tocar outra vez.
Gabriel, seu merda! Suas palavras me fizeram sentir um lixo,
porque eu a tratei como as minhas putas, e Jenny estava longe de
ser isso.
Era a primeira vez que uma mulher estava me fazendo sentir
um nada por causa das minhas atitudes. Ainda que eu houvesse
alertado de que não era o tipo de homem que ela merecia, cabia
somente a mim decidir, e eu a quis.
Agora, havia muita coisa para ser reparada, até a mais
simples.
— Gabriel — pigarreei, sentindo o peito queimando com algo
que me aquecia e, ao mesmo tempo, fazia doer. — Meu nome é
Gabriel Demonidhes. — Sorri, tentando fazê-la sorrir também. —
Posso ser o seu Viking, ou apenas Gabriel, chame-me como quiser.
— Gabriel — ela repetiu baixinho. — Gabriel... — Precisei
conter o gemido, quando pareceu testar o som do meu nome e,
porra, isso estava mexendo comigo. — Como o arcanjo. Soa incrível
para mim.
— Não se iluda, Beag. Estou mais para um demônio. —
Pisquei um olho, satisfeito quando ela sorriu. — Um demônio
perigoso, e que vai te proteger a partir de agora.
— Demônio do fogo. — Apontou para o meu cabelo.
— Exatamente.
Ela desviou o olhar, como se não soubesse mais o que dizer
ou até mesmo pensar. Em silêncio, observei Jenny afastar-se de
mim até que suas costas batessem na cabeceira.
— O que foi? — sondei, ela era como um animal assustado
que se aproximava, e então corria.
Precisava de toda minha paciência — o pouco que eu
possuísse — para esperar cada etapa desse novo capítulo de novas
vidas.
— Não sei — murmurou, enquanto esfregava os dedos no
tecido da camisa, nervosamente. Reparei que ela olhava para a
minha calça e então de volta para o tecido da camisa que a cobria.
Não era preciso ser muito inteligente para saber que ela
estava juntando um mais um.
— Não pense muito sobre isso.
— É quente. — Puxou as mangas que passavam muito de
seus braços. — É bem grande.
— Beag, você precisa de um banho. Acho que isso pode te
fazer sentir um pouco melhor. — Abanei a mão. — Você está em um
novo lar, esse é o meu quarto...
— Beag... — Ela me olhou outra vez, ignorando o que eu
havia dito. — Você me chama disso desde que nos conhecemos. O
que significa?
— Pequena, em minha língua natal. — Jenny suspirou então
abraçou os joelhos, ficando minúscula na maldita cama gigante. —
Vou preparar um banho para você, depois vamos ver algo para
comer.
Levantei-me da cama, mal havia dado um passo antes que
ela segurasse minha mão.
— Vou com você. — Vi o desespero em seu semblante,
enquanto sua respiração começava a aumentar o ritmo outra vez. —
Não me deixe aqui, por favor.
— O banheiro fica ali. — Apontei para o outro lado do quarto.
— Você ainda vai me ver.
— Por favor...
As reações dela eram muito viscerais. Tudo no máximo. No
futuro, precisaria entender o que a levou a ser daquele jeito.
Talvez, o passado recente fosse o culpado, afinal seu pai a
machucou, ela estava em choque e assustada.
— Vamos. — Pegando-a nos braços, segui em direção ao
banheiro.
Jenny não estava olhando ao redor, não parecia curiosa. Eu
sabia que estava me encarando, conseguia sentir seu olhar como se
fossem dedos tocando a minha pele.
Quando chegamos na suíte, eu a deixei sentada na pia.
— Acho que o chuveiro é a melhor opção — sondei. — Eu
posso preparar a banheira depois.
— Chuveiro.
Concordando, eu fui até o boxe para regular a temperatura e
a intensidade do jato d’água. Quando considerei que estava tudo
apropriado, apontei para o armário ao lado da bancada de mármore.
— As toalhas ficam ali. — Me aproximei outra vez. — Vou
descer você. Quando terminar, chame. Eu vou esperar no quarto.
Colocando-a no chão, eu me afastei a contragosto. Não havia
nada ali que eu já não tivesse visto e memorizado. Se fosse sincero
não precisava nem me concentrar para sentir em minhas mãos, a
textura da sua pele macia.
Caralho.
Eu sabia que não era o momento para pensar em coisas do
tipo, mas ela não precisava ter vergonha de mim.
— Chame, entendeu? — Segurei seu queixo, fazendo-a me
olhar. — Chame que eu venho. — Mantive os olhos nos seus,
esperando que ela me pedisse para ficar, mas, como não disse
nada, eu apenas saí, deixando a porta recostada.
Ao voltar para a cama, eu me sentei na beirada, de frente
para a porta. A vontade que eu tinha era de ficar naquele maldito
banheiro, mas ela não havia me pedido.
E a minha vontade não era nada perante a de Jenny.
— Merda — rosnei, apoiando as mãos nos joelhos e
trabalhando a respiração para não meter os pés pelas mãos.
Concentrando-me nos barulhos que vinham do banheiro,
estava pronto para correr até ela caso precisasse.
E algo me dizia que eu faria muito isso a partir daquele
momento.
29
Jenny Monroe

Todo meu corpo tremia como se eu houvesse corrido. Ainda


estava tentando processar os últimos minutos e temia, que a
qualquer momento tudo aquilo desvanecesse como num sonho.
Sonhos de outra vida, em que estaria com a minha mãe em
algum lugar bem longe dos olhos de John e de sua fúria. Não
importava que precisássemos fugir para sempre, era um preço
pequeno a se pagar para viver longe daquela maldita casa e dos
horrores que habitavam dentro dela.
Agora, eu estava em um lugar estranho, sob o teto do único
homem que eu escolhi entregar uma parte de mim e confiar. Não
fazia ideia de como fui salva por meu viking...
Viking não, Gabriel.
— Agora eu sei seu nome. — Respirei fundo, sentindo-me
segura pela primeira vez desde que a fúria de John me encontrou.
Não tinha palavras para agradecer ao meu salvador por tudo
que ele fez, não sabia como ele foi capaz de passar pela segurança
e me tirar daquela casa. Eu me lembro dele estar chegando no
quarto, sim, eu me lembro, mas como ele o fez?
— Não importa! — Ergui o queixo, permitindo-me chorar sem
vergonha de me sentir fraca.
Eu já havia sido forte por um longo tempo, agora, sozinha
naquele banheiro luxuoso, eu podia chorar por ter conseguido fugir
do meu algoz.
Ainda não sabia o que fazer, quais atitudes tomar. Tinha
certeza de que John não ia desistir de me encontrar sob hipótese
alguma. Eu era sua propriedade, ele não aceitaria perder sua posse
sem uma boa luta.
— Deus... — Senti as pernas bambearem enquanto o
chuveiro enchia tudo de vapor. Não fui capaz de caminhar até o
boxe, eu precisei me sentar no vaso sanitário ou cairia.
Lutando para controlar a respiração, os tremores e aquela
sensação de pânico que começava a me invadir quando imaginava
o que John poderia fazer para me ter de volta.
Ao me ajudar, Gabriel se colocou na linha de frente, não só
por isso, John estava com sede para descobrir quem era o pai do
meu filho, e quando o fizesse apenas Deus teria misericórdia de
todos nós.
Gabriel era um bombeiro, ajudava as pessoas. Não tinha
culpa de ter caído na mira de um psicopata de merda.
— Ele não pode descobrir. — Minhas mãos praticamente
batucavam de tanto que tremiam. — Preciso saber como minha mãe
está e fugir para bem longe.
Fechando os olhos, esperava que o pavor me deixasse, mas
não conseguia parar os pensamentos, tampouco organizar as
ideias. Era como se a qualquer momento uma bomba fosse explodir,
e, por meu egoísmo, pessoas inocentes seriam afetadas.
— Jenny? — Fechei os olhos, ignorando sua voz do outro
lado da porta. — Jenny, você está bem?
Neguei, mas não disse nada. Talvez, eu nunca ficasse bem
porque o medo seria meu companheiro para sempre.
Acreditava que John poderia me encontrar e depois, quando
meu filho nascesse, eu tinha certeza de que ele tornaria minha
criança um alvo.
Sua vingança contra minha traição, e ele jamais descansaria
até me encontrar, era assim que as coisas funcionavam.
— Estou entrando.
Eu pude sentir o perfume amadeirado e o calor de seu corpo
antes que Gabriel me tocasse. Suas mãos grandes e ásperas
repousaram acima das minhas, então, como se soubesse que eu
estava enlouquecendo, deslizou os dedos por minhas pernas, num
movimento rítmico de sobe e desce.
— O que está acontecendo com você, Jenny? — Ele
continuou acariciando minha perna com uma mão e, com a outra,
ele segurou meu queixo, erguendo minha cabeça para que pudesse
encará-lo. — Você precisa conversar comigo.
— Está tudo bem — menti, não poderia contar o que me
assombrava, temia que ele tentasse fazer “justiça”.
John era perigoso demais, envolvido com pessoas barra
pesada. Gabriel ia ser mais uma vítima daquele homem.
Não podia permitir.
— Está tremendo demais, diga-me o que está sentindo?
Talvez eu possa ajudar.
Ele era doce, gentil e preocupado. Não importava que fosse
porque eu carregava seu filho, ele estava me tratando com carinho.
Era só o que importava para mim.
— Estou com medo e acho que você está em perigo — falei
mais rápido do que pensei. Sua resposta foi me dar um meio sorriso
que o tornava quase irreal de tão magnífico.
— Eu, em perigo? — Arqueou a sobrancelha, divertido. —
Você acha que seu pai pode tentar algo?
Ele não é meu pai! Quis gritar, mas alguma coisa enraizada
dentro de mim não me permitia. Era como se John ainda estivesse
me controlando, mesmo que eu conscientemente soubesse que
não.
— Tenho certeza. — Busquei seus olhos. — Como... como
você me tirou daquela casa? Os seguranças andavam armados e...
Só de pensar, pude sentir as palpitações no peito
aumentando. A imagem de Gabriel começou a entrar e sair de foco.
— Jenny! — Ele deu tapinhas no meu rosto. — Porra! Jenny!
— Me dê um minuto. — Inclinei para a frente, apoiando a
cabeça em seu ombro, esperando todo aquele mal-estar horrível
passar.
Sentia o frio começar a espalhar por minhas pernas e braços,
e um cansaço tão grande como nunca imaginei que poderia sentir.
— Você disse para mim que isso no seu peito foi um
acidente, mas você mentiu. — Havia recriminação em sua voz. —
Se eu soubesse que você tem um problema no coração, jamais teria
te tocado.
— Por isso... não contei — falei baixinho. — Eu queria você.
Sua risada vibrou através do meu corpo, e de algum modo a
cadência do som foi acalmando todo o meu nervosismo. Eu o
abracei, concentrada nele, em seu cheiro, no calor do corpo.
— Você me olhou e me quis? — O tom amistoso e gentil
mexeu comigo.
Era como se ele conseguisse fazer com que os rumos dos
meus pensamentos mudassem, tornando ele o único foco. Era
estranho e confuso, mas parece que Gabriel — Demo alguma coisa
— havia criado seu próprio lugar dentro da minha cabeça.
O mais incrível era que, mesmo que nós houvéssemos tido
pouquíssimo tempo juntos, e que desde o começo eu tenha
misturado mentiras com verdades, ele era como um pilar de
possibilidade.
Ele criava o “e se”, conseguindo empalidecer — mesmo que
por pouco tempo — os meus maiores medos.
— Todos naquele bar queriam — murmurei contra seu ombro.
— Você sabe disso, as pessoas ficaram em silêncio quando você
chegou. Todo mundo ficou meio chocado.
— Bobagem.
— Estou falando sério, você é o homem mais bonito que eu
já vi.
Outra vez sua risada agitou meu corpo, deixando-me com a
sensação de leveza e peso no estômago. Era muito esquisito sentir
algo do tipo que não estivesse entrelaçado com medo ou receio.
Era uma novidade, outra vez, por causa dele.
— Espere até conhecer meus irmãos. — Neguei. — Eles
poderiam ser modelos, claro se não fossem uns bastardos tão
ignorantes.
— Ninguém pode ser mais impactante que você.
— Tenho que concordar, eu sou o único ruivo desta família,
provavelmente tenho o maior pau também.
Engasguei-me, chocada com suas palavras tão diretas. Ele
possuía um humor agradavelmente estranho, e isso, levando em
conta a vida que eu tinha, parecia bom.
— Gabriel... — Ele não respondeu, então o chamei de novo.
— Gabriel?
— Gosto do meu nome em seus lábios. — O jeito íntimo com
que disse fez meu corpo arrepiar. — Chame sempre assim. —
Franzi o cenho, agradecendo por estar abraçada a ele, assim não
poderia ver o quanto eu era idiota.
— Assim como?
— Soa como uma prece. — Suas mãos deslizaram por
minhas costas, tentei não ficar tensa quando ele bateu na ferida que
eu fiz com o vidro do espelho.
Ainda estava com os pontos e bastante dolorida como o
restante do meu corpo.
— O que foi? — Sua postura relaxada mudou, ele começou a
procurar onde eu estava ferida.
— Machuquei as costas. Nada demais. — Tentei me afastar.
Decidi que não lhe diria nada sobre a minha vida.
Também jamais lhe contaria sobre a tentativa de aborto ou
sobre os anos de abusos nas mãos do John. Gabriel não ia saber
da parte ruim além do que eu não podia esconder.
Não aceitaria que ele arriscasse sua vida tentando fazer
algum tipo de reparação que não ia mudar nada.
— Preciso te perguntar uma coisa. — Afastei-me, buscando
seus olhos. — Você quer esse bebê acima de qualquer coisa? —
Para mim era importante demais saber.
— Sim, mas... — Toquei seus lábios.
— Deixe-me terminar, então você pode perguntar também. —
Ele colocou meus cabelos atrás da orelha, depois afastou a franja
que insistia em cair nos meus olhos. — Você seria capaz de
machucar um filho seu?
— Não! — Sua resposta rápida me deixou muito feliz, isso
significava que ele não estava mentindo. Era um fato para ele, não
havia o que contestar. — Tampouco aceitaria que outras pessoas os
machucassem. As minhas crianças estão sob minha proteção,
totalmente amparadas por mim e pela minha família, ninguém
ousaria machucá-los.
Lágrimas de felicidade inundaram meus olhos. Eu podia
sentir a verdade em cada uma de suas palavras e isso era todo que
eu precisava naquele momento.
— Então, se alguma coisa acontecesse comigo, você
protegeria esse bebê para sempre?
— Jenny? — Ele franziu o cenho, estava confuso sobre o
rumo da conversa.
— Tenho que saber, por favor, me diga.
— Sim, para sempre. — Ele segurou meu queixo, se
aproximando. — Eu e minha família somos uma unidade,
protegemos uns aos outros.
— Você vai aceitar o nosso filho e vai cuidar dele mesmo se
eu não estiver aqui?
— Sim.
O alívio foi tanto que eu o abracei de novo, a tontura estava
voltando.
— Obrigada por isso.
— Por que você está fazendo essas perguntas? — Notei o
desespero que ele não ocultou, era uma surpresa que me deixasse
perceber suas emoções, levando em conta o nosso começo fora da
curva.
Para alguns isso poderia ser uma fraqueza, mas Gabriel era
forte o suficiente para saber que não mudava nada.
— Existem coisas que... — Por um momento não soube o
que dizer.
Primeiro, não queria mentir tão descaradamente, mesmo que
eu tenha feito isso desde o começo. Tudo que já havia lhe dito e
omitido deveria permanecer como estava, e eu não podia voltar
atrás.
Se Gabriel soubesse de tudo, não ia confiar em mim. Eu
sabia como os homens poderiam mudar de humor num piscar de
olhos e a última coisa que eu queria era que ele mudasse comigo.
Não pretendia arriscar de jeito nenhum, pois, no momento,
qualquer perspectiva era ruim, podendo acabar em tragédia. Eu não
o conhecia o suficiente para saber o que poderia fazer, ele poderia
comprar minha briga com John e ir resolver meus assuntos, ou me
odiar por saber que eu tentei tirar nosso filho.
— É o seu coração?
— O quê? — Franzi o cenho.
— Você tem medo de que alguma coisa aconteça com o seu
coração, por isso teme que não esteja aqui?
Sem querer, ele havia acabado de me dar a desculpa
perfeita, e, em meio a tantas coisas erradas que eu já fiz, aceitar
isso como uma intervenção Divina foi a menor delas.
— Sim. — Talvez houvesse um pouco de verdade, agora o
meu coração também preocupava-me.
Era fundamental que ele aguentasse até o parto. Depois...
bom, depois não me importava mais.
Sem Jenny, sem ameaça daquele maldito.
— Beag, vamos por partes. — Ele testou um sorriso. — Nada
de mau vai te acontecer, eu não vou deixar. Nossos bebês nascerão
com saúde e você ficará bem quando...
— Espere, o que disse? — o interrompi.
Ou suas palavras estavam erradas ou ele havia acabado de
se referir ao nosso bebê no plural.
Seria possível? O mero pensamento fez meu coração dar um
tranco.
— Quando chegou aqui, estava desacordada. Confesso que
eu estava meio louco de preocupação, então pedi que meu irmão a
examinasse primeiro.
— Seu irmão é médico?
— Um muito bom por sinal. — Sorriu. — Ouça, clinicamente
está tudo bem, levando em consideração o que passou. — Sua voz
baixou um tom e eu me senti hipnotizada como se ele estivesse
fazendo aquilo de propósito. — Fizemos um ultrassom, e meu irmão
viu que você espera gêmeos, digo, nós esperamos.
Eu achei que poderia estar me afogando. Não sei se pela
notícia, pelo verde lindo de seus olhos ou porque eu estava
realmente tendo outra crise.
— Gê-gêmeos? — A pergunta saiu num fiapo de voz.
Não é possível! A culpa que eu sempre carregaria parece que
duplicou, não era suficiente tentar matar apenas um bebê, eu
poderia ter feito isso com dois.
Meus filhos...
— Não mereço... — Foi a única coisa que consegui dizer
diante de tamanha novidade.
— Jenny, você precisa saber algo sobre mim.
Respirei fundo, acenando.
Havia muitas coisas que precisávamos saber um sobre o
outro. Nosso relacionamento começou todo errado, e nós dois
estávamos lidando com as consequências.
Ele mais que eu. Afinal, foram as camisinhas sabotadas que
me fizeram engravidar; foi a minha loucura de querer ter a chance
de escolher com quem perder a virgindade, que o colocou numa
rota de colisão com o homem mais perigoso que eu conhecia; foi a
merda da minha vida que culminou nessa situação em que ele se
via obrigado a invadir uma casa — não sei como — para salvar seu
filho — filhos — ainda no ventre.
— Eu não sou um cara muito paciente. — Estava sério,
encarando-me enquanto falava. — Não gosto de subterfúgios ou
mentiras. Você entrou na minha vida do jeito que deveria entrar,
agora temos dois bebês a caminho. Não me importo com o resto.
— Mas...
— Não tem mas. — Seus olhos estreitaram, ele inclinou a
cabeça de lado, avaliando-me. — Você quer os bebês?
— Sim, quero muito.
Eles eram o melhor presente que a vida poderia me dar. A
prova de que eu não era tão podre e que atraía apenas coisas ruins.
A má sorte era problema meu e da minha mãe, esses bebês teriam
um bom pai para os proteger de todo o mal.
Ouvindo, e percebendo como Gabriel os queria, fazia-me
acreditar com todas as minhas forças que ele nunca os deixaria.
— Se você os deseja como eu, é somente isso que importa.
— Notei certo alívio em sua voz. — Sobre o seu coração, vamos
conversar, ver um especialista e o que mais for preciso. Você terá o
melhor tratamento que o dinheiro possa pagar, dependendo, até um
pouco além.
Eu o abracei de novo sentindo que talvez isso fosse se tornar
um vício. Estar em seus braços, aceitando o acolhimento bondoso e
quente, era o paraíso para uma desgraçada como eu.
— Obrigada por tudo que está fazendo por mim.
— Não, eu que agradeço por ter lutado por nossos bebês,
sinto por ter demorado tanto para chegar, mas agora que estou aqui
não permitirei que nada e ninguém te faça mal. — Ele segurou meu
rosto, obrigando-me a encará-lo. — Não vou sair da sua vida, então
qualquer pessoa que fizer algo contra você, considerarei um ato
contra mim, e eu irei retaliar.
Suas palavras, o fervor em seus olhos me deram certeza de
que o meu passado deveria ficar morto e enterrado.
Gabriel não parecia do tipo que perdoava.
— Agora, que tal aquele banho?
— Eu aceito.
Ele se levantou e me ergueu junto. Sem perguntar entrou no
boxe, mergulhando a nós dois no jato de água morno. O alívio que
senti foi imediato, meu corpo começou a relaxar, ao ponto de eu
sentir normal pela primeira vez em muito tempo.
As dores estavam ali, mas não sentia palpitações no peito,
tremores no corpo ou algo do tipo. Éramos apenas eu e ele, meu
viking, o homem que me salvou mais de uma vez.
— Se você quiser, eu posso sair. — Ele ergueu meu rosto
com uma gentileza que ainda me surpreendia vindo de alguém tão
grande, depois beijou a minha testa. — Ou eu posso ficar aqui e te
dar mãos extras. Você decide. — Havia um ar de riso nele, que eu
achava ser o meio que usava para amenizar o quanto o nosso
reencontro fora ruim.
— Eu gosto de ter opções. — Testei um sorriso. — Eu gosto
muito que pergunte o que quero e que me deixe escolher.
— Quero te conhecer. — Piscou um olho. — Então, irei
perguntar muito.
— Obrigada — pigarreei, feliz pela água e vapor do boxe
disfarçarem as minhas lágrimas idiotas.
— Você pode chorar quando quiser, ouvi dizer que mulheres
grávidas ficam sentimentais. — Ele me deu o sorriso mais bonito de
todos, foi como se o sol iluminasse seu rosto. — Você tem dois
bebês, então pode ser que você chore muito, Beag.
Solucei, retribuindo seu sorriso, sua aceitação era tudo que
eu precisava.
— O lance do tudo em dobro? — Ele acenou, deixando-me
ainda mais emocionada. — Não quero incomodar, Gabriel, mas eu
não consigo controlar.
Todo seu cuidado para comigo é algo novo, e eu ainda estou
aprendendo a lidar. Gostaria de lhe dizer, mas não disse.
— Não incomoda porra nenhuma. Eu vou estar aqui para te
abraçar todas as vezes que quiser chorar.
Ele realmente me abraçou e isso amenizou o que eu sentia.
De algum modo, Gabriel conseguia diminuir a dor no meu coração
pelo que eu havia feito, e por saber que ele merecia alguém melhor
que uma garota mentirosa e com um passado tão sujo quanto os
esgotos de Nova York.
— Você não está mais sozinha. — Acariciou meu cabelo. —
Tenha um pouco de paciência comigo e com meus irmãos. Você
entrou numa família meio desajustada, mas você vai ver que,
apesar de tudo, cuidamos uns dos outros.
Não tive coragem de dizer que não pretendia ficar, meus
bebês só estariam seguros se eu estivesse bem longe e que John
não podia chegar perto de Gabriel ou dos meus filhos.
O único meio de garantir isso era indo embora.
— Então, par de mãos extras ou não?
Por enquanto, viveria como se aqui fosse um sonho, onde
não havia medo e que eu poderia ser feliz sem me preocupar com o
amanhã.
— Mãos extras — falei baixinho, estremecendo com sua
risadinha.
— Erga os braços para mim — pediu suavemente, eu
obedeci.
Não tinha um pingo de medo dele. Como havia dito, Gabriel
tinha conquistado um lugar que me remetia à proteção e não o
contrário.
Ele não ia me machucar, era somente nisso que eu
acreditava.
— A título de informação, eu me lembro de cada detalhe do
seu corpo, mas, quando você voltar para a minha cama, vai ser
porque você pediu. — Ele inclinou, sussurrando em meu ouvido. —
Como fez na nossa primeira vez. Portanto, não se preocupe, eu
estou aqui só para ajudar no banho mesmo.
Não consegui formular uma resposta adequada, pois, quando
percebi, ele estava me virando de costas e despejando uma
quantidade enorme de xampu no meu cabelo.
— Vamos lá, não deve ser tão difícil.
Ele começou a massagear meu couro cabeludo, as mãos
grandes eram tão gentis que me surpreendeu. Não me lembro de ter
alguém cuidando de mim assim, além da minha mãe, todavia, há
muito tempo ela não tinha a oportunidade.
John não nos queria juntas e, quando conseguíamos
momentos para nós, havia coisas mais importantes a tratar que uma
massagem na cabeça.
— Como você disse que conseguiu esse machucado nas
costas?
— O vidro do meu banheiro estourou, eu caí em cima dos
cacos e me cortei. — Pude sentir seus dedos contornando o corte.
— Jenny... — Fechei os olhos por causa do tom de
advertência.
— Oi.
— Não minta para mim.
Okay, eu poderia falar partes de verdade e mentira.
Essa havia sido a melhor maneira que aprendi a lidar com
John, e amenizar as consequências de seus ataques de fúria.
— Tudo bem, eu fiz. — Percebi sua respiração mudar, ele
soltou meu cabelo virando-me lentamente.
— Por que você se cortaria? — Havia choque em sua
expressão. — Por que se machucaria desta forma?
— Amenizar a dor.
A dor e o nojo de sentir o esperma do meu padrasto
escorrendo por minha pele! Uma voz estrondosa gritou dentro da
minha cabeça, levando-me de volta àquele momento horrível.
O cheiro dele sobre mim, o toque carregado de posse.
Naquele momento, foi como se ele houvesse me marcado como um
animal para sempre.
Arrancar a pele doeria menos do que tudo que aquele
monstro me fazia sentir.
— Pare de esfregar os braços com tanta força. — As mãos
de Gabriel seguraram as minhas com gentileza. — Beag, de que dor
você está falando? — Baixei a cabeça, não queria falar mais.
Temia cair naquela piscina de lama que representava meu
passado recente. Aqui era um porto seguro, estas paredes não
sabiam tudo que eu vivenciei. Não queria nem pensar, para não
reviver as memórias cruéis que espreitavam qualquer erro da minha
parte.
Aquele lugar onde estava era um recomeço, pensar sobre
tudo que aconteceu na antiga casa iria macular algo que deveria
permanecer puro.
— Adoro quando me chama de Beag. — Olhei para ele,
implorando que compreendesse que aquele assunto não era para
ser discutido. — E eu acho que estou ficando com fome. Não pude
me alimentar direito nos últimos dias.
Eu não comi nos últimos dias.
— Temos um assunto censurado. — Balancei a cabeça, feliz
por ele não insistir. Gabriel me encarou por alguns instantes, já
podia sentir a ansiedade apertando meu peito. — Tudo bem, eu
posso aceitar isso. Por ora, vamos terminar seu banho, e depois
vamos para a cozinha ver algo para você comer.
Em algum momento, o assunto voltaria e eu esperava estar
mais forte e tranquila para conseguir escapar de suas perguntas.
— Obrigada.
Ele voltou a lavar meus cabelos, contrariando sua fala
quando disse que era impaciente. Alguém assim não seria tão
atencioso, ao ponto de me fazer quase dormir em pé.
— Eu acredito, Jenny. — Ele despejou sabão nas mãos,
depois começou a passar por meu corpo, e não havia nada de
caráter sexual em seu toque. Eu reconheceria. — Acredito que,
quando você confiar o suficiente em mim, contará tudo que eu
preciso saber sobre você e o seu passado. Até que este dia chegue,
eu espero que você não minta sobre qualquer outra coisa.
— Tudo bem.
Perdoe-me, mas não poderei fazer isso. Vai depender de
quais assuntos serão abordados. Não pude lhe dizer, mas iria
garantir que nunca tivesse problemas comigo, mantendo-me o mais
invisível possível, para que ele não se importasse em perguntar.
Seria como uma sombra. Eles nem notariam minha presença,
com certeza não se importariam.
— Jenny?
— Sim.
Ele acariciou a minha barriga, demorando-se no pequeno
montículo endurecido. Suspirando suavemente, perguntou:
— Você acha que algum deles pode nascer parecido comigo?
A mudança brusca de assunto me pegou de surpresa no bom
sentido porque o tema era melhor. Mentir nunca era fácil, portanto,
se Gabriel mantivesse suas perguntas voltadas para as coisas
simples e que envolviam os gêmeos, eu ficaria feliz em responder
com a mais absoluta verdade.
— Eu gostaria que os dois fossem exatamente como você. —
Coloquei minhas mãos acima das suas. — Eu acho que adoro
pessoas ruivas.
— Pessoas ruivas não, eu. — Ele beijou meu ombro. — Eu
sou a única pessoa ruiva na sua vida.
— Isso é verdade, mas agora estou torcendo para que, no
futuro, eu tenha três pessoas ruivas na minha vida.
— Esse é o espírito da coisa. — Ele enxaguou o sabão,
pigarreando. — Você pode tirar a calcinha ou eu faço isso? Posso
ficar de costas se te deixar mais confortável.
Não seja um fofo, Gabriel.
— Você está tímido?
Sua risada ecoou pelo banheiro e eu não pude deixar de
acompanhá-lo. Por que com ele tudo era mais incrível e fácil?
Apesar de toda porcaria que me envolvia, ele me fazia sentir uma
garota como qualquer outra.
Não uma mentirosa que tentou matar os filhos que ele
arriscou a vida para salvar, e que colocou um alvo em suas costas.
Bem, eu precisava protegê-lo de algum modo.
— Eu não tenho nenhuma célula tímida no meu corpo, mas
isso aqui é sobre você. Eu posso terminar seu banho sem problema
algum, mas não quero que se sinta desconfortável.
— Você nunca seria capaz de me fazer sentir assim.
— Então, adiante, vamos deixar essa bocetinha limpa.
— Gabriel! — arquejei e sua risada ecoou pelo banheiro,
arrepiando-me de um jeito muito bom.
Você é o único capaz de me fazer sentir assim.
Talvez, um dia, eu pudesse lhe dizer isso.
30
Jenny Monroe

Eu gostava de ver o jeito que Gabriel parecia uma força da


natureza, capaz de dominar todo o espaço com sua presença e
fazer com que apenas ele fosse o foco de tudo.
Quando saímos do banheiro, ele vestiu uma calça de
moletom que pendurava de um jeito confortável em seus quadris
estreitos e agora ele buscava algo para mim.
Em questão de instantes, ele fez parecer como se um furacão
houvesse passado no closet.
— Você é pequena demais. — Ele esticou uma camisa,
virando-a para mim. — Isso não vai servir nem para ficar
confortável. — Sua atenção voltou para os cabides. — Deve ter algo
aqui.
Não pude evitar o sorriso, sentia-me estranha naquele
momento de intimidade, que mais parecia uma rotina de casal. Em
partes, acho que necessitava viver algo assim para saber que
existia mais coisas além do que eu conhecia.
Minha mãe dizia que haviam homens bons, que
relacionamentos saudáveis poderiam existir. Eu nunca havia tido um
relacionamento com um homem, entre mim e Gabriel houve sexo e
necessidade, nada além disso.
Agora as coisas seriam diferentes, e não seria um sacrifício,
pois estar com Gabriel era instigante, tudo nele era.
— Jenny, não me olhe assim — pigarreou e eu desviei o
olhar.
— Desculpe. — Senti as bochechas quentes.
Ele deveria saber que era impossível não olhar para ele
quando tudo me atraía para fazer. Quando o vi pela primeira vez,
enchi-me de curiosidade, agora, sabendo que ele trabalhava no
Corpo de Bombeiros, algumas das minhas questões haviam sido
sanadas.
Como, por exemplo, a queimadura que abrangia todo
antebraço direito, as cicatrizes espalhadas por seu peito, isso se
devia ao seu trabalho. Gabriel era um homem bom, altruísta,
arriscava sua vida em prol de salvar pessoas desconhecidas. Saber
que o pai dos meus filhos era um homem assim me deixava com um
misto de alívio e felicidade, pois se ele vivia para salvar os outros,
com certeza faria muito mais por suas crianças.
— Você não precisa se preocupar com isso. — Apertei a
toalha de encontro ao peito. — Eu posso me virar com uma camisa
grande. — Apontei para a que ele havia jogado no chão. —
Realmente estou com muita fome, se você me mostrar onde fica a
cozinha do seu apartamento, eu posso fazer algo.
Ele virou para mim, franzindo o cenho. Havia uma camisa em
cada mão.
— Apartamento?
— Sim, aqui? — Olhei ao redor do closet gigantesco. —
Enquanto você estava no banho, eu fui explorar um pouco. — Ergui
uma mão. — Não mexi em nada, mas eu vi que tem uma piscina e
uma lareira, então considerei que aqui fosse um apartamento.
— Você foi até a varanda?
— Não abri nenhuma porta, só caminhei por aí.
— Beag, este é o meu quarto, dentro da casa que
compartilho com meus irmãos.
Eu devo ter feito cara de idiota. Não fazia o menor sentido ele
ter uma piscina e uma lareira no quarto, tampouco uma sala
enorme, ricamente decorada com ambientes diferentes e um bar.
— Um quarto? — Ele concordou. — Mas quem tem uma
piscina no quarto?
— Todas as suítes principais possuem piscina. — Ele deu um
sorriso. — A ideia era parecer que estávamos em nossa própria
casa. Mas, ainda assim, é apenas um quarto.
— Do tamanho de uma casa. — Não pude disfarçar o quanto
eu estava impressionada.
Era apenas demais que ele agisse de modo simples
enquanto obviamente era podre de rico.
— Beag, eu terei prazer em mostrar a casa para você depois,
por enquanto vamos focar numa roupa, para que possamos descer
para o jantar.
— Eu posso fazer algo, me mostre a cozinha do seu quarto.
— Parecia tão estranha a frase. — Você deve ter uma, não é?
Negou.
— Não há cozinhas nos quartos, essa foi uma das proibições
do meu irmão mais velho. Ele gosta que estejamos juntos durante
as refeições. — Ele esticou uma camisa de mangas compridas. —
Aqui, você pode vestir essa, é a menor que tenho.
Peguei a camisa, acariciando o tecido macio e confortável.
Não soube o que dizer a respeito do jantar, por isso me concentrei
nos movimentos circulares que meus dedos traçavam.
Não estava pronta para conhecer a família dele, pior, não
queria que eles me vissem assim. Tinha vergonha da minha vida,
não queria sentar-me à mesa de uma família inocente, que não fazia
ideia da pessoa que haviam acolhido.
Todos eles estariam em perigo, John iria machucá-los,
bastava saber onde eu estava. Era melhor manter-me escondida,
dentro deste “quarto”.
— Eu fico aqui, espero por você. — Mordi o lábio. — Eu sou
uma intrusa, então acho melhor não atrapalhar.
— Não, você não é intrusa aqui. — Gabriel cruzou os braços,
deixando claro sua contrariedade. — Você é a mãe dos meus filhos,
tem um lugar nesta família, enquanto eles estão em seu ventre e
depois quando nascerem.
Suas palavras deixaram meu coração quentinho, era tão
notável o quanto ele queria construir uma ponte entre nós, eu tinha
que fazer a minha parte, só assim conseguiria garantir que minha
presença não fosse um incômodo maior do que já era.
— Você tem certeza? — Apertei o tecido contra o peito. — Eu
posso esperar, não tem problema algum para mim.
— Mas para mim tem, você não vai ficar trancada no quarto
como se fosse uma prisioneira. — Ele abrangeu ao redor. — Você
precisa conhecer a casa, os cães e os meus irmãos.
— Você tem cachorros? — Não pude explicar como saber
daquilo me animava. Eu havia tido um, ele se chamava Otto, era um
poodle fofinho e que morreu de velhice.
Parece que, quando ele foi embora, levou consigo toda
felicidade que eu possuía, porque tudo desandou depois.
A minha vida se tornou um inferno, não havia melhor maneira
de descrevê-la.
— Temos dois por enquanto, mas em breve chegarão uns
cinquenta.
— Meu Deus, alguém trabalha com cães aqui?
— Não, mas meu irmão mais velho quer encher o terreno
com eles.
— Mas são muitos cães.
— Sim, meu irmão é exagerado. — Ele sorriu, indicando a
camisa que eu segurava com um menear da cabeça.
Pretendia vestir sozinha, mas quando movimentei o corpo
senti fisgadas disparando em direções opostas, nas costas e
ombros.
Não consegui segurar o gemido de dor.
— Deixe-me ajudá-la. — Gabriel puxou a camisa das minhas
mãos, colocando-a rapidamente em mim. — Ficou parecendo um
vestido. — Ele sorriu, a barra da camisa estava quase nos meus
joelhos.
— Você disse que essa era pequena. — Puxei as mangas,
para que minhas mãos ficassem livres.
— Sim, ela fica apertada em mim. — Ele estava se divertindo
e eu precisava admitir que eu adorava.
A situação era tão tranquila e até meio trivial, mas talvez
fosse disso que eu precisava para manter-me sob controle e ir
ficando mais forte até sentir que estava realmente livre da influência
de John e do medo de que ele poderia aparecer a qualquer
momento.
— Agora precisamos de uma calça.
Ele foi para outro lado do closet e, ao invés de olhar apenas o
tamanho das peças, ele as estava tirando, medindo e descartando.
Já havia uma montanha de roupas no chão.
— Você vai tirar tudo do lugar. — Era surreal como ele
conseguiu bagunçar o lugar em tão pouco tempo. — Deixe-me ver,
eu posso encontrar algo.
Ele se afastou, não se importando que eu bisbilhotasse suas
roupas. Por um momento olhei para a quantidade de prateleiras.
Havia uma parede inteira, repleta de tênis e sapatos e, do outro
lado, ternos e camisas. Parecia uma loja de grife.
Aquele closet gritava poder aquisitivo. Na verdade, tudo que
eu vi até o momento dava a certeza de aquele homem não era tão
singelo, afinal, um bombeiro não poderia financiar uma vida tão
luxuosa.
Não importa o que ele faz, Jenny! Não me importava mesmo,
desde que não me fizesse mal, ele poderia ser o maior gangster do
mundo.
— Beag, seja mais rápida.
Estava olhando com cuidado as peças dobradas, mas não
havia nada que eu pudesse usar. Ele possuía pernas enormes, era
todo grandalhão. A camisa que eu vestia era longa o suficiente para
parecer um vestido, talvez não precisasse de uma calça.
— Você tem quanto de altura? — Continuei procurando, até
que, no meio das roupas de inverno, encontrei uma calça de frio,
estilo segunda pele.
— Um e noventa e quatro, por quê?
Parei um momento para olhá-lo, a sensação que eu tive foi
agradável, as nossas diferenças me faziam sentir segura, como se
ele fosse uma montanha inabalável, que de fato era.
— Você é um gigante. — Sorri. — Gosto disso.
— Comparado a você eu sou mesmo, mas, acredite, sou o
menor dos meus irmãos.
— Não é possível. — Não pude esconder o espanto, ele já
era alto demais para os padrões. — O mais alto mede quanto?
— Cerca de dois metros e cinco, por aí.
— Caramba! — Devo ter feito uma cara de idiota, porque ele
riu, claramente divertido. — Vocês devem ser uma visão e tanto
juntos.
Eu não estava nem um pouco apressada para conhecê-los,
antes queria parecer mais normal, e menos propensa a surtar a
qualquer momento. Eles pensariam que sou louca, também não
sabia como iam me receber, eu era uma intrusa sim, e poderiam não
gostar disso.
— Gabriel, talvez você possa ir na frente. Seus irmãos podem
estar te esperando.
— Eles estão, mas eu e você desceremos juntos.
Olhei ao redor, não queria insultar ninguém ou parecer
ingrata, mas não estava pronta para sentar-me em uma mesa e
comer como se nada houvesse acontecido. Ainda não tive notícias
da minha mãe, meu corpo era uma bagunça de hematomas, não
sabia se suportaria o olhar de pena e especulação.
— Eu prefiro ficar aqui, você poderia trazer algo para mim. —
Concentrei-me na peça descansando em minha mão. — Acho que
não estou pronta para encarar outras pessoas.
Não esperava que Gabriel me puxasse para um abraço, mas
ele o fez. Apoiando o queixo no topo da minha cabeça, ele suspirou.
— Eu gostaria de ser menos impaciente. Mas eu entendo que
você precisa de tempo. Direi ao meu irmão que eu e você vamos
jantar no quarto. — Fechei os olhos, concentrada nas batidas do
seu coração. — Podemos conversar, há muito que quero saber
sobre você.
— Eu também tenho perguntas.
Muitas na verdade, a começar por como ele havia
conseguido meu número de telefone. Aquele número era usado
apenas por John e David, ele não compartilhava com ninguém.
— Se você se sentir confortável, amanhã irei pedir que
tragam roupas aqui para que escolha.
Queria dizer que não precisava se preocupar com isso, mas
era tolice. Eu precisava de algo para vestir que coubesse em mim, e
não ia me fazer de difícil quando ganhar roupas novas era o menor
dos problemas.
— Obrigada, eu aprecio o gesto.
— Mesmo que eu goste de você vestindo algo meu, não
quero que fique desconfortável.
— Eu não estou. — Ergui a cabeça. — Sinto-me aquecida, e
macia. Agora só preciso de um analgésico e saber notícias da
minha mãe.
— Ela precisa de cuidados, meus irmãos estão com ela. —
Gabriel empurrou a minha franja para trás. — Quando eles tiverem
notícias do real estado em que se encontra, virão até nós.
— Você a levou para um hospital? — Franzi o cenho, com
medo de que John pudesse encontrá-la.
Tinha certeza de que ele a mataria só para se vingar por
termos fugido.
— Sim, tudo foi feito com o mais absoluto sigilo. — Ele
pareceu adivinhar meus pensamentos. — Não se preocupe, Beag,
sua mãe vai ficar bem e seu pai não vai encontrar vocês, apenas se
quiserem.
— Padrasto — corrigi. — E não queremos.
— Confie, ele não vai encontrá-la de jeito nenhum. — Deu de
ombros. — Por ora deve focar apenas em si mesma, concentre
todas as suas energias na sua recuperação. Quero que fique bem,
preocupe-se somente com isso e deixe que o restante eu resolverei.
— Você é incrível. — O abracei apertado. — Obrigada por
olhar para mim e ver que eu precisava de você.
— Eu fui atrás de você — revelou baixinho, certamente ele
não havia compreendido que eu estava me referindo ao nosso
primeiro encontro. — E agora que está sob meu amparo, nada vai te
acontecer. Confie em mim, Jenny, eu nunca vou te machucar, nem
deixarei que qualquer outra pessoa o faça.
— Eu confio em você. — Fechei os olhos. — Eu confio em
você.
— Eu sei. — Senti seus dedos entremeando-se nos fios dos
meus cabelos. — Eu sou um bruto, eu nunca escondi de você, mas,
Jenny, eu vou cuidar para que seja feliz.
— Dizer apenas obrigada não é suficiente para expressar o
que suas palavras significam para mim. — Respirei fundo, buscando
seus olhos. — Você faz eu sentir que tudo vai dar certo.
— Porque vai dar. Sua mãe vai se recuperar, você também.
Então, nossos bebês irão nascer e vamos ter muito trabalho para
cuidar deles. Já imaginou, como será quando eles estiverem
maiores? Vamos enlouquecer. — O sorriso que me deu foi enorme,
ele estava muito feliz. — Eu estou ansioso para experimentar a
paternidade.
— Já parou para pensar se tivermos uma menina?
— Não, eu ainda não fui tão longe — ele disse de um jeito
engraçado. Parecia como se estivesse apavorado com a ideia. —
Eu sou um bastardo ciumento demais, por isso vou manter o foco
apenas no que interessa agora. Você e o que precisa para ficar forte
e saudável.
— Somente paz.
— Então eu vou providenciar isso. — Ele beijou o topo da
minha cabeça. — Vamos para a sala, vou acender a lareira, não
gosto do quanto você parece fria.
Ele me ajudou a vestir a calça e, apesar de ser a menor de
todas, ficou caindo. Em todo caso não importava, não pretendia sair
daquele quarto, então só enrolei o cós, depois fomos para a sala
juntos.
— Fique à vontade, quero que se sinta em casa.
O espaço da lareira era bem minimalista, como se houvesse
sido projetado para ser mais que um ambiente para aquecer. Tipo
uma sala reduzida, com um único sofá grande, tapete fofinho e
almofadas.
— Esse quadro é lindo. — Não pude deixar de admirar outra
vez, era incrível como Gabriel e o fogo pareciam uma coisa só.
— Foi a esposa do meu irmão quem fez.
— Sério? — A riqueza de detalhes que havia no desenho era
surreal demais. — Ela deve ser uma artista e tanto.
— Ela é. — Havia muito carinho na voz de Gabriel. —
Inclusive Amira está grávida também, talvez, em algum momento,
você queira conversar com outra mulher sobre isso.
— Eu gostaria.
O mundo de Gabriel parecia tão bonito, me fez sentir uma
sensação boa de felicidade. Parecia que eu estava dando o primeiro
passo em outro mundo, e era incrível.
Minha mãe ficaria bem, ele disse, e eu tenho certeza de que
não mentiria sobre algo tão sério.
Neste lugar, eu não precisaria ter medo de ser atacada a
qualquer momento. Desde que eu acordei, e entendi o que havia
acontecido, Gabriel tentava deixar as coisas tranquilas, e era disso
que eu precisava para gestar os bebês.
— Eu vou falar com meu irmão, ele vai trazer nossa refeição.
Há algo específico que queira?
— Chocolate. — Só de imaginar sentia a boca enchendo de
água.
— Você gosta? — Gabriel arqueou a sobrancelha.
— Eu adoro. — Para se certificar de minhas palavras, o ronco
no meu estômago foi constrangedor. Gabriel deu um sorriso,
parecendo satisfeito.
— Espere-me, Jenny, eu não vou demorar. — Ele saiu
deixando-me sozinha.
Por um momento fiquei sentada na ponta do sofá, depois fui
me empurrando mais para trás, até estar totalmente aconchegada
em meio às almofadas. Fiquei observando a dança do fogo, as
chamas tremeluzindo, criando padrões suaves.
De repente, pude ver uma melodia se formando, era suave,
delicada. Aos poucos, a letra de uma nova canção começavam a
ganhar forma.
— Você estendeu a mão para mim... — cantarolei baixinho.
— Num dia que o céu não era azul... — Comecei a testar algumas
palavras, brincando com a sonoridade em complemento com a
primeira frase. — Sua voz... olhos... ou toque. — Estreitando os
olhos, pensei nas palavras, misturando-a com a letra. — Sempre
esteve tão longe... Muito longe...
Gostaria de ter lápis e papel para anotar tudo. No geral, não
acostumava esquecer letras de músicas, mas já fazia tanto tempo
não me sentia inspirada para criar, que nem me lembrava mais da
sensação.
Era muito bom sentir isso outra vez, depois de tanto tempo,
quase podia sentir a esperança brotando como uma flor no deserto
que nascia em meio às adversidades. Eu não queria acreditar que,
mesmo estando com as marcas dos abusos recentes, sabendo que
meu futuro era incerto, ainda sentia que algo florescia dentro de
mim.
— E quando eu parecia quebrada, você foi o único capaz de
me completar. Partes de nós dois, misturando... ou misturado?
Moldando-se para... — Cocei a cabeça, pensando em como
encaixar as palavras ou se frase estava legal. — Nos completando...
— Balancei a cabeça, não gostando da conexão entre as linhas de
estrofe. Então, voltei a cantar, seguindo um ritmo de teste, ainda
sem muitas projeções. — Meu paraíso. Todas as vezes que chama
por mim... Chamando por mim, eu te ouço, e eu te...
— Jenny... — A voz de Gabriel me surpreendeu, e eu calei a
boca. Quando o olhei, ele estava paralisado, me encarando de um
jeito estranho.
Em sua mão o celular parecia esquecido, era como se
estivesse congelado.
— Oi. — Ergui a mão, mas ele não se mexeu, continuava
com os olhos pregados em mim. — Tudo bem? Gabriel?
Ele largou o telefone, caminhou até onde eu estava,
ajoelhando-se na minha frente, segurou meu rosto com as duas
mãos.
— Perdoe-me por isso.
— O que...
Minhas palavras foram engolidas por sua boca. Ele gemeu,
acariciando meus lábios, como se exigisse aceitação e entrega. Por
um instante, o choque de sua atitude me impediu de reagir, ele se
afastou um pouco, encarando-me.
— Beije-me de volta, Beag, e eu prometo não te pedir mais
nada.
E o puxei para mim, aceitando seu beijo, o abraço quente
responsável por derreter aquele gelo entranhado em minhas veias.
Havia alguma justiça naquele beijo, no modo como sua boca
deslizava suavemente sobre a minha, testando, provocando aquela
Jenny, que o escolheu desde o começo se fazer presente.
— Gabriel — chamei por ele, seu nome era uma prece que
sempre se perdia entre nós dois.
Ali não era um campo neutro, era a casa dele, seu quarto.
Mas eu não estava me importando, a autopreservação não existia
quando estávamos juntos, era como se uma parte de mim o
houvesse reconhecido desde o começo.
— Chama meu nome como se eu fosse seu mundo — ele
rosnou, segurando meu rosto. — Sua voz me enlouquece, acalma,
você toda é como uma droga feita especialmente para mim.
— Desculpe. — Eu nem sabia por que estava me
desculpando, talvez fosse pelo flagrante desespero que ele não
escondia.
— Nunca mais peça desculpas. — Ele fechou os olhos, como
se estivesse sendo derrotado por algo. — Uma Demonidhes não
baixa a cabeça para ninguém.
Antes que eu pudesse entender melhor suas palavras ou
questioná-lo pela colocação totalmente errada, ele me beijou outra
vez. E eu sabia que isso era o sinal de que não pediria permissão.
Retribuí, aceitando sua língua macia enquanto navegava
naquela onda de felicidade que inundava meu corpo. O beijei com o
desespero, saudade, deleitando na certeza de que todos os meus
beijos sempre seriam dele enquanto nosso tempo nos permitisse.
Meu corpo começou a cair, não queria desgrudar meus lábios
do seus, pois adorava como sua barba arranhava meu rosto, como
me segurava firme e gentil. Sua língua acariciava a minha,
provando, buscando tudo que eu podia lhe dar. Sentia-me
consumida, como se ele quisesse me devorar e eu gostei de cada
instante disso.
Poderia me afogar nele, talvez a escuridão que começava a
me arrastar fosse o indício de que eu de fato estava sendo levada.
Meu coração estava acelerando daquele jeito louco, Gabriel roubava
meu fôlego, devorando-me inteiramente.
Não me importo de morrer por um beijo.
— Porra, eu sou um filho da puta. — Ele mordiscou meu
lábio, eu não pude evitar sorrir. — Olhe para mim, vamos, pequena,
olhe para mim.
Eu sentia como se estivesse caindo, mas não era uma coisa
ruim. Meu corpo estava leve demais, minha cabeça navegando
naquelas sensações que apenas ele me proporcionava.
— Porra, eu não deveria ter feito isso.
— Deveria sim, eu adoro seus beijos.
— Beag, você está quase desmaiando. — Ele estava
desesperado, enquanto eu estava feliz.
— Você disse que minha mãe está bem, nossos bebês estão
seguros. — Ergui a mão para acariciar seu rosto, ele a segurou,
repousando em sua bochecha e inclinando para receber o carinho.
— Meu coração é um idiota fraco, mas ele aguenta — ri, sentindo-
me bêbada por causa da tontura e dos pontos pretos que piscavam
diante dos meus olhos.
— Vamos ver um especialista. — Ele pegou o celular e voltou
rapidamente para mim. — Eu quero garantias que você está bem,
faremos exames, tudo que...
— Meu coração é o menor dos nossos problemas, por isso
não se desespere. — Depositei um beijo em seus lábios. — Eu sou
mais forte do que pareço.
— O que você está sentindo? — Percebi que estava tentando
falar com alguém ao telefone.
— No momento, felicidade. — Diria a verdade sempre que
pudesse, sem me importar no quanto isso me deixasse exposta.
— Jenny... — suspirou, fechando os olhos enquanto eu
acariciava sua barba, e alguém o respondia do outro lado da linha.
— Irmão, preciso que me ajude em algo. Cardiologista, quero o
melhor do país, com urgência... não vou esperar Lysander sair da
cirurgia. Preciso para ontem.
— Não... — Nem tive coragem de concluir, o jeito que me
olhou fez-me calar.
— Obrigado, não vou descer, já falei com Razhiel, ele irá
trazer para mim. Okay, espero retorno. — Ele desligou o telefone,
largando no sofá. — Vamos ver um especialista, quero ter certeza
de que você está bem. — Gabriel sentou-se no sofá ao meu lado,
depois me puxou para o seu colo. — Acho que agora entendo o
meu irmão.
Muitas coisas não faziam sentido para mim, como, por
exemplo, a confiança cega que tinha nele. O fato era que apenas
aceitaria o que não dava para mudar, aproveitando dessa felicidade,
antes que a parte ruim começasse, porque eu sabia que ia
acontecer.
— Se sente melhor? — Ele colocou a mão no meu peito,
sentindo as batidas do meu coração. — Desregulado. Você ainda
está ofegante, mas não está tremendo. Jenny, você poderia me
dizer por que agora parece diferente do que aconteceu das outras
vezes?
Sim, eu poderia.
— Fui diagnosticada com ansiedade severa há alguns anos.
— Busquei seus olhos. — Mas o meu padrasto considerava isso
uma frescura, e eu nunca fiz o tratamento adequado. Nos últimos
dois anos, tenho piorado.
— Posso cuidar disso, mas, primeiro, me diga por que o
chamou de pai ao telefone. Você parece avessa a isso.
Porque estava falando com você, e eu sabia que chamá-lo de
pai o abalaria o suficiente para que ele não tomasse o celular
naquele momento. Não ia dizer isso, porque sabia que faria outras
perguntas que não podia responder.
— Quando ele e minha mãe se conheceram, eu ainda era
criança.
— Ele te adotou, eu vi em uma das suas entrevistas. —
Gabriel franziu o cenho. — Você acha que pais adotivos são
diferentes de biológicos?
— Quando os pais, adotivos ou biológicos, desempenham a
sua função corretamente, não acho que tenha diferença. Só que eu
não tive uma boa experiência com nenhum. Primeiro, porque não
me lembro do meu pai; segundo, porque meu padrasto é louco. —
Apontei para o meu rosto. — Você deve ter notado.
— Ainda não consigo aceitar que ele tenha planejado um
aborto. — Havia uma raiva latente em suas palavras. — Te obrigar a
fazer algo que você não queria é apenas demais para mim.
— Ele queria proteger um investimento. — Mordi o lábio. —
Gabriel, eu odeio o meu padrasto. Ele é um homem horrível.
— Então, não tem chance de sua mãe e ele ficarem juntos?
De você querer voltar para a sua antiga casa?
— Não, com certeza não. — Pensei no que poderia dizer,
sem precisar mentir para ele. — Minha mãe já queria se separar há
muito tempo, ele que não deixava.
— Você sabe que possivelmente seu padrasto buscará as
autoridades para relatar o seu sumiço, não é?
— Ele pode chegar até você. — Meu pavor cresceu, mas a
negativa de Gabriel me fez conseguir frear a onda de pânico. —
Então como você conseguiu me pegar?
— Fácil demais, Beag. — Gabriel ajustou a minha posição
para que eu ficasse ao alcance de sua boca. — Mas, como você
tem temas censurados, eu também tenho. Um dia, quando você
estiver pronta para compartilhar comigo os seus segredos, eu farei o
mesmo com os meus.
— Não sou curiosa. — Sorri, porque eu não era mesmo.
— Eu sou. — Ele beijou minha testa. — Por enquanto, vamos
nos manter nas zonas seguras. O que estava cantando quando
cheguei?
— Algo novo.
— Você pode cantar para mim se quiser, sou um ótimo
ouvinte. — Piscou um olho.
— Quando a minha garganta se recuperar, eu posso fazer
isso — prometi. — Acho que danifiquei as cordas vocais. Está um
pouco dolorido.
— Vou pedir para o meu irmão examinar, ou melhor, vou
procurar um especialista...
— Não se preocupe comigo, eu vou ficar bem.
— Claro que vai, vou garantir isso.
O som de alguém batendo à porta estourou a bolha que
havíamos criado e eu tentei não ficar com medo, mas não podia
controlar a acelerada que meu coração deu.
— Não tenha medo, é o meu irmão com nosso jantar.
— Tudo bem, desculpe.
Gabriel depositou-me com gentileza no sofá, depois foi
atender a porta. Quando voltou, um homem o acompanhava. Era
um pouco mais alto e tão robusto quanto Gabriel, além de muito
bonito também. Os óculos de grau que usava pareciam adicionar
um toque de suavidade em seu rosto marcante.
Ver os dois juntos era uma visão bem impactante.
— Olá, eu sou o Razhiel. — Ele se aproximou, baixando-se
diante de mim. — Como você se sente?
— Bem. — Aceitei sua mão, notando que era bastante
áspera. — Eu sou a Jenny.
— Você está tremendo. — Ele colocou a outra mão em cima
da minha, prendendo-a num casulo de calor. — Não tenha medo,
aqui você está segura. Ninguém vai te machucar.
Suas palavras trouxeram lágrimas aos meus olhos, mas, ao
invés de chorar como uma idiota, eu sorri.
— Obrigada, é muito importante saber disso.
Ele deu um aceno curto levantando-se, depois seguiu
caminho em direção a outra sala. Gabriel foi junto e eu pude ouvir
claramente a conversa que estavam tendo.
— Eu quero o harém reverso, irmão, fico com todos os dias
da semana e você com o domingo. — Razhiel deu uma risada, eu
gostei dele, pois pareceu-me sincero e não me olhou com segundas
intenções. — É justo para você?
— Cale a boca, seu bastardo! — o tom ríspido de Gabriel não
condizia com o teor da conversa. Por que ele parecia chateado? —
Ninguém vai ficar com nada aqui, se manda.
— Está com raiva, irmãozinho? A ideia foi sua. — O tom
divertido estava tão claro para mim. — Com prazer vou aliviar seu
fardo. Eu pego todos os dias, e deixo o domingo para você. Não
parece ótimo?
— Razhiel, não me provoca. As coisas estão fora do controle,
eu... — Como se notasse que eu estava ouvindo, eles começavam a
falar num idioma que eu nunca havia escutado.
Não demorou muito para que Gabriel voltasse, carregando
uma bandeja enorme.
— Nosso jantar, eu espero que você goste.
Quando ele destampou os pratos, a minha barriga roncou de
fome. Senti o rosto esquentando de vergonha, o som era
constrangedor demais.
— Você pode escolher.
— Obrigada.
Ele não sabia, mas o gesto simples me enchia de felicidade.
31
Gabriel Demonidhes

Finalmente Jenny havia dormido e agora eu podia avaliar


melhor aquele sentimento estranho que me revirava do avesso.
Para mim não fazia o menor sentido, eu já havia tido dela
mais do que desejava, entretanto, continuava querendo mais e isso
fazia com que todas as minhas certezas deixassem de ter
importância.
Não queria uma mulher para mim, menos ainda um
relacionamento a longo prazo, mas, desde que Jenny acordou e eu
pude vislumbrar suas fragilidades, não conseguia me afastar.
Pior, não fazia ideia de como parar o instinto protetor que
berrava nos meus ouvidos que ela era minha, que essa gravidez foi
só o destino dando um empurrãozinho final.
— Puta que pariu, não tenho material para relacionamento —
murmurei enquanto acariciava os longos cabelos castanhos. — Mas
não vou ficar fugindo do que sinto, não sou a porra de um covarde.
Ainda estava em frente a lareira, aconchegados no sofá, e,
porra, eu nunca me senti tão em paz em toda a minha vida. O
barulho dentro da minha cabeça estava silenciado, e eu podia
desfrutar de estar com a minha beag nos braços.
Ela era linda demais em seu sono. Os lábios macios estavam
entreabertos, e ela suspirava como se estivesse sonhando com algo
bom. Não havia mais aquela ruga entre as sobrancelhas, sua
expressão agora era de descanso.
— Quero que sonhe comigo. — Tirei a franja que caía
insistentemente seus olhos, depois tracei com a ponta dos dedos os
contornos dos hematomas em seu rosto. — Há muitas incógnitas
sobre você, pequena Jenny.
Coisas que eu me certificaria de descobrir no momento certo.
Por enquanto, ia dando tempo ao tempo, ela não podia passar por
mais nenhum estresse, as coisas deveriam manter-se calmas, pois
somente ela e meus filhos importavam.
— É isso.
Havia certo prazer naquele momento, o ambiente refrigerado,
mais o estalar da lareira criavam uma atmosfera aconchegante,
calorosa o suficiente para lembrar o lar que me acolheu quando eu
não passava de um adolescente furioso com a vida.
No entanto, ter Jenny comigo e dois filhos a caminho fazia
com que a saudade do meu pai doesse ainda mais, porque eu sabia
que ele adoraria ser avô. Ao mesmo tempo que eu também podia
sentir uma expectativa ansiosa para aproveitar a gravidez, para ver
o nascimento das crianças e como elas seriam.
Quase sem querer, olhei para a fita preta que descansava na
moldura do meu quadro, ali acima da lareira.
— Te queria vivendo isso comigo. — Senti a garganta
apertando e os olhos ardendo, mas fazia tanto tempo que eu não
derramava uma lágrima, que provavelmente jamais o faria outra vez.
Conviver com a dor de todas as minhas perdas era mais
difícil, e eu tinha que conviver. Por isso, compreendia a importância
de tudo que estava acontecendo, era uma segunda chance para
Regan, e a primeira para mim. Não ia ser por convicções tão frágeis
quanto castelos de areia que ia perder essa oportunidade.
Rafael e seus erros davam uma ótima perspectiva para todos
nós.
Por outro lado, havia um conflito do qual nenhum de nós dois
poderia fugir.
Tudo que estava acontecendo era muito turbulento e brusco
para ambos e eu tinha certeza de que Jenny pensava demais, tanto
que, às vezes, ela divagava e eu precisava puxá-la de volta.
Bom, eu também não podia deixar de ficar remoendo as
coisas porque até ontem eu era um puto desgarrado, que vivia
numa busca perpetua por satisfação, e o fazia colocando a vida em
risco e fodendo mulheres aleatórias.
Nem tudo ainda era muito claro para mim, certas coisas
precisariam ser descobertas no decorrer dos dias, e isso me dava a
certeza de que se minha vida fosse um livro, muitas pessoas
poderiam considerá-lo exaustivo.
É assim que me sinto as vezes, exausto, de tanto problema,
de ver meus irmãos no limite sabendo que qualquer passo em falso
resultaria em morte.
Eu não me importava comigo mesmo, mas temia por eles.
— Gabriel. — Fechei os olhos, quando a voz de Lysander
chegou até mim.
— Você não bate à porta, irmão? — Olhei para ele, o
bastardo estava de preto, com os cabelos molhados do banho e os
olhos analíticos, mais frios que o de costume.
Por algum motivo, Lysander me pareceu mais sombrio. Ele
de fato, estava perdendo sua mente cada vez mais rápido.
E precisava de algo para mantê-lo são.
— Eu bati, você não atendeu. Eu entrei. — Deu de ombros,
aproximando-se.
Ele parou em frente ao sofá de apoio, olhando para Jenny e
para mim, pelo que pareceu uma eternidade.
— Caindo rápido demais, irmãozinho. — Entendi que não
havia sido uma pergunta. — Você vai ficar com ela, ou vai fingir que
não a quer como Rafael fez?
Não era da personalidade de Lysander fazer aquele tipo de
questionamento, mas nos últimos tempos ele estava apenas
diferente, agindo contrário ao seu normal.
— Você não deveria se meter nos meus assuntos. — Meu
tom de voz manteve-se neutro, não queria que Jenny acordasse,
tendo que presenciar uma briga entre mim e Lysander.
De todos os meus irmãos, era ele o que mais me preocupava
se precisamos lutar sem qualquer tipo de controle.
— Você estava indo até a casa dela. Perguntava-me, porque
você tinha tanto interesse naquele lugar. — Indicou Jenny com a
cabeça. — Essa era a resposta.
A sensação de que havia caído numa armadilha não foi
agradável.
— Você não tem o direito de invadir...
— Corta a conversa. — Ondeou a mão, deixando claro que
não se importava.
— Você enlouqueceu, Lysander.
— Isso parece uma novidade? — Arqueou a sobrancelha,
zombando de mim. — Eu disse que ia manter um olho em você, o
problema é que só acredita no que quer. Você está obcecado por
essa garota há tempo demais, agora ela está esperando dois filhos
seus. — Colocando as mãos nos bolsos da calça, ele inclinou para
mim, em tom confidencial, e perguntou: — Você por acaso a
engravidou de propósito?
— Não! — Sequer fui capaz de disfarçar o ultraje. — Não
seria um bastardo tão filho da puta assim.
— Mesmo que eu saiba que os métodos contraceptivos não
sejam cem por cento, parece-me apenas coincidência demais que
você a tenha engravidado, quando não era com você que ela
deveria estar. — Ele deu de ombros. — Se eu não estiver errado,
você a livrou de um estupro, não é? E se não fosse um estupro?
— Você está avançando demais o sinal, Lysander. — Respire
fundo, lutando contra a vontade de brigar com aquele bastardo. —
Pare.
— Tenho pensado. — O canto de sua boca arqueou, em
pessoas normais aquilo poderia ser um sorriso, mas não em
Lysander.
Aquilo era seu jeito demonstrar que algo tinha sua total
atenção. E isso estava longe de ser bom para mim.
— Você disse que não me causaria problemas — o lembrei.
— Poucas horas atrás. Você prometeu.
— Promessas são facilmente quebráveis. Você e toda
situação em que se encontra são uma prova. — Seus olhos
pareciam estar me perfurando. — É o momento em que eu devo
prendê-lo numa cela e jogar a chave fora até que seja capaz de
recuperar sua mente?
Comprimi os lábios, não encontrando palavras que
expressassem a raiva que eu estava sentindo. Lysander não tinha o
direito de se meter nos meus assuntos daquela maneira.
— Fora do meu quarto.
— Ainda não. — Ergueu a mão. — Tenho alguns pontos para
avaliar, e quero discuti-los com você. Primeiro: Quando ela acordar,
eu vou querer conversar.
— Nem fodendo — rosnei.
— Lógico que não. — Lysander correu os olhos por Jenny. —
Ela não aguentaria.
Foi o suficiente para mim. Com cuidado, deitei a mulher no
sofá e me levantei, depois, avancei para Lysander, ele ergueu a
mão, encostando-a no meu peito. O bastardo olhava-me de cima,
superior. Agora sua expressão era de puro enfado, como se a minha
vida estar de cabeça para baixo fosse um problema trivial como
trocar uma roda de carro.
— Você não vai querer me irritar mais do que já o tem feito!
— Sua voz soou como alerta. — Então, mantenha a porra da calma.
— Você invade o meu quarto, vem falar merda e...
— Mero detalhe.
— Lysander!
— Gabriel. — O jeito com que disse meu nome me fez
recuar.
Não por medo de uma boa briga, mas das consequências
dela naquele momento. Jenny estava dormindo, não ia acordá-la
caindo na porrada com meu irmão, ainda mais sabendo o quanto
éramos violentos.
— As peças não estão encaixando. — Apontou para Jenny.
— A mãe dela está ruim. Ela tem traumas antigos, e que não
tiveram tratamento adequado. Eu identifiquei ferimento a bala, de
poucos meses atrás. Há fissuras em ossos, alguns com absoluta
certeza foram quebrados mais de uma vez.
— O que quer dizer?
— Simples, não tinha como essa mulher — apontou para
Jenny — não saber o que acontecia com a mãe. Ela está
escondendo algo e espero descobrir o que é.
— Não sabemos o que acontecia, ela não está escondendo
nada.
— Eu avaliei brevemente a última entrevista que sua mulher
deu, há inconsistências que me fizeram criar duas linhas de
pensamento. — Ergueu um dedo. — Ela sabe de tudo e é conivente
ou também vive sob ameaças. Visto isso, considerei o que
aconteceu em Londres, e sim, David Smith tinha acusações de
estupro que foram abafadas. Agora diga-me, por que Jenny estava
hospedada no mesmo quarto que ele? No mínimo, ela deveria estar
num quarto próprio. Isso significa que, desde o começo, ela sabia o
que aconteceria.
— O que você fez, bastardo?! — vociferei, desacreditando
que Lysander houvesse ido tão longe.
— Eu fiz o que você deveria ter feito, ao invés de acreditar
como um idiota no que ela te contou. Ela estava hospedada no
mesmo quarto que um homem acusado de estupro. Ela não fazia
parte dos cantores do festival, sua participação fora confirmada de
última hora. Essa mulher é tudo, menos inocente.
— Cale a boca, Lysander!
— Você tem certeza de que a sua garota não pode estar
mentindo sobre a paternidade dos gêmeos?
— Tenho! — Esfreguei o cabelo, dando-lhe as costas.
Não queria abrir a minha intimidade e a de Jenny, mas talvez
fosse preciso, afinal havia prometido que ela estaria segura, mas
seria impossível conviver naquela casa tendo que lidar com um
Lysander desconfiado.
Ele não a deixaria em paz. Estaria a julgando qualquer ato
que fizesse e ele era capaz de fazer isso apenas com o olhar.
Se ele conseguia me afetar agindo assim, com Jenny seria
infinitas vezes pior.
— Ela era virgem. E ela me disse que estava lá para fazer
algo e havia se arrependido. Pediu minha ajuda e eu ajudei. O que
mais você precisa? Para mim é o bastante!
— Dormir com o CEO de uma gravadora para ganhar um
contrato parece o mínimo.
— Não vou tolerar que você a acuse desta maneira! —
Apontei o dedo na cara dele. — Você não tem o direito.
— Tenho todo o direito, Amira está esperando um filho,
aquela criança também me pertence, como as suas, e eu não vou
colocar nenhum deles em risco por causa dessa sua obsessão de
merda!
— Foda-se, eu não sou idiota! — Me aproximei mais, quase
batendo em seu peito. — Você sabe que eu a estava vigiando,
então não, ela não dormiu com ninguém.
— Você a estava vigiando aqui, mas não em Londres. —
Senti como se houvesse chegado no meu limite, girei o braço, a
intenção era esmurrar Lysander, quebrar seu nariz e lhe dar algo
para se preocupar, mas o bastardo desviou, afastando-se.
— Isso não muda o fato de que ela está escondendo algo. —
Deu de ombros. — Só preciso descobrir o que é.
— Ela não fazia ideia de quem eu era.
— Não seja tolo, ela poderia não saber quem você era, mas
não é necessário ser um expert para imaginar que você nunca foi
um qualquer. — Lysander abanou a mão. — O hotel que ficamos
custa uma fortuna.
— Você continua especulando, criando teorias da
conspiração na cabeça. Olhe para ela, Lysander, o que poderia
fazer contra nós? Contra mim?
— Não costumo menosprezar o meu inimigo, é isso que me
garante cem por cento de sucesso nas minhas missões. — Estava
se referindo a Ordem, tinha certeza. — Vou manter um olho nela,
avisá-lo é mera cortesia.
— Se você a machucar teremos problemas — também avisei.
— E quando não temos? — Havia uma falsa diversão em sua
voz, então ele se afastou. Antes que pudesse ir muito longe, ele
disse: — A mãe dela vai sobreviver, se ela lutar muito pela vida. As
coisas não estão boas, e irmão, deixarei que você conte as
novidades para a sua mulher. Ah... antes que eu me esqueça,
amanhã iremos para a Califórnia, embarcamos às sete horas da
manhã. Há um cardiologista que faz parte da Ordem, iremos vê-lo.
— Iremos?
— Você achou que eu ia ficar de fora?
Lysander foi embora, deixando-me com a sensação de que
havia cometido um enorme erro trazendo Jenny para aquela casa,
pior ainda, quando acreditei que justamente aquele bastardo a
deixaria em paz.
— Merda. — Puxei o fôlego, soltando-o numa única baforada.
Depois, não havia muito o que fazer naquele momento além
de engolir a raiva.
Em breve, eu saberia o que tinha de errado no seu coração,
por enquanto o que poderia fazer era estudar e tentar entender
melhor tudo que se passava.
Obrigando-me a acalmar, peguei o celular e comecei a ler
tudo que pude sobre gravidez.
Acho que seria um novo hábito.
32
Jenny Monroe

Eu podia sentir o cheiro rançoso do perfume de John e sua


respiração em meu pescoço. Por mais que estivesse me esforçando
para correr, não conseguia sair do lugar. Estava cercada de floresta,
os galhos secos apontando para o céu como dedos que imploravam
por misericórdia.
Podia notar que ele estava chegando mais perto, cada vez
mais próximo de mim e de cumprir suas promessas.
— Querida, por que se esconde? Eu vou te encontrar. —
Havia felicidade em sua voz. — Jenny, vamos poder ficar juntos
para sempre.
O horror me engolia inteira, eu tentava me esforçar para sair
do lugar, mover as pernas, mas era tudo em vão. Estava presa
dentro do meu corpo.
— Você consegue ver, querida? Eu me livrei do que nos
impedia de sermos felizes.
Suas palavras pareceram um decreto, e ali, em meio às
folhas secas, vislumbrei Gabriel deitado numa poça do próprio
sangue, sua barriga estava rasgada, eu podia ver suas vísceras.
— Não... não... — Lutei para chegar até ele, mas não ia
adiantar.
Era tarde demais, seus olhos estavam abertos encarando-me
com profunda tristeza e acusação. Não havia mais aquele brilho
bonito, fora apagado para sempre.
E a culpa era minha.
— Querida. — A voz de John flutuou até mim junto com o
perfume fétido que ele usava.
Ele estava ali, na minha frente, com um sorriso monstruoso,
rasgando seu rosto de orelha a olha. Ele não era um homem, a não
ser uma criatura feita de maldade.
Seus dentes estavam pontudos, o sangue escorria do seu
queixo, a pele branca, fina como papel, sustentava os olhos que
saltavam das órbitas. Ele embalava algo no peito com um braço;
com o outro, apontou para Gabriel. Seus dedos eram garras.
Ele era um monstro saído diretamente do inferno.
— Você gostou? Eu fiz para você — gargalhou se
aproximando. — Eu tenho outro presente para você. — Sua voz se
tornou mais grave.
Ele mudou sua posição, para que eu pudesse ver o que
estava embalando. Fui capaz de ver o corpinho pequeno, os
cabelos escuros.
— Você quer? — John o estendeu para mim, o jeito que ele
segurou o bebê parecia como se fosse um boneco, com uma mão
só, de qualquer jeito. Depois, estendeu para mim, oferecendo-me.
Era um bebezinho perfeitamente formado, entretanto, a pele
que deveria estar rosada estava em um tom meio roxo e
acinzentado.
Ele não emitia nenhum som.
— Eu o tirei de você. — John lambeu os dentes, cortando a
própria língua. — Eu o tirei de você.
Impossível!
Olhei para a minha barriga, ela estava murcha, eu podia ver,
junto com o sangue que escorria entre as minhas pernas, um fio
grosso, como um cordão saído de mim, e, ao segui-lo, pude ver que
ele me conectava ao bebê morto.
— Não. — Foi impossível expressar todo o meu horror. —
Meu filho.
Estendi as mãos, aquele sorriso macabro de John aumentou
tanto que consumiu seu rosto, e foi crescendo até se tornar uma
boca enorme. Não dava para ver seu pescoço.
— Entregue-me o meu filho! — gritei, quando percebi que ele
levava a minha criança para a boca. — Entregue-me!
Seus olhos grandes fixaram-se em mim, ele fechou a boca, e
era como se fosse John de novo. Ele puxou o cordão, e eu senti
tudo caindo de dentro de mim. Em choque, observei quando soltou
o bebê morto em cima de Gabriel.
— Ele pode ficar com o pai. — John sorriu empurrando-os
com o pé para um buracão. Depois estendeu a mão para mim. —
Eu te amo, Jenny, nunca vou desistir de você.
Meus olhos fixaram-se na figura de Gabriel e nosso bebê
dentro daquela cova rasa. Ele ainda olhava para mim, com a
expressão congelada em meio a tristeza e decepção.
— Não... — solucei. Olhando para o homem que me salvou e
para o bebê que eu amava. — Não.
Eu havia perdido os dois e isso dilacerou meu coração ao
ponto de eu sentir que não poderia suportar. Minhas pernas
cederam, eu me arrastei até eles, jogando-me dentro do buraco.
— Sinto muito. — Abracei o bebê e Gabriel. — Sinto muito
por tudo, você é inocente. Por favor, me perdoa.
— Vamos para casa, Jenny.
As mãos de John apertaram meus ombros, ele me puxou,
obrigando-me a soltar os meus amores.
Sabia que jamais os veria outra vez, por isso fiz a única coisa
da qual ainda era capaz.
Gritei.
— Jenny! Acorda! — Uma voz estrondosa soou como uma
explosão nos meus ouvidos, senti que era arrancada dos braços
daquele John cruel e trazida para uma realidade que eu não
conseguia respirar. — Acorda!
Abri os olhos, deparando-me com Gabriel e o verde intenso
de seus olhos incríveis.
— Estou aqui, Beag. — Ele me puxou, apoiando-me em seu
peito para que pudesse esfregar minhas costas. — Respira comigo,
sente meu peito subindo e descendo.
O desespero que me consumia era tanto, que, mesmo
podendo tocá-lo, não conseguia deixar de sentir o arrepio
repugnante da presença de John.
Ele possuía olhos invisíveis e famintos, me seguindo por
todos os cantos.
Aquele homem estava marcado irrevogavelmente em mim.
Era o dono do meu medo, dos receios e da certeza de que não
haveria um mundo bom para os meus filhos enquanto John
Samarco Monroe me fizesse de alvo.
Ele não estava aqui, mas povoava meus pesadelos,
perseguindo-me com suas promessas e atos hediondos até nos
sonhos, onde eu não podia fugir, porque ele ainda controlava tudo.
Não suporto mais isso! Quis gritar, mas restringi-me a abraçar
Gabriel, sentir o seu cheiro e o calor que desprendia de seu corpo.
— Estou aqui, moça — murmurou, beijando meu rosto. —
Estou aqui, tudo vai ficar bem, confie em mim.
Buscando seus olhos, deparei-me com tanta confiança, que
eu só pude concordar. Ainda que houvesse um medo pavoroso
rastejando por minha pele, a firmeza de Gabriel e a segurança com
que dizia cada palavra trouxeram-me alívio.
— Foi um pesadelo. — Acenei, sentindo-me exausta. — Você
estava gritando por mim, Jenny, o que você sonhou?
— Monstro. — Ofeguei, com o peito doendo — Um monstro
horrível.
A expressão de Gabriel suavizou, ele tirou a franja dos meus
olhos e sorriu. Vê-lo tão forte, bonito e carinhoso diante de mim,
trouxe-me lágrimas aos olhos, pois não conseguia esquecer a
imagem de seu rosto paralisado na morte, encarando-me.
Ele me condenava por causa de toda omissão que atestava
minha culpa.
— Pesadelos de gestantes.
— O quê? — tossi, tentando aliviar a pressão esquisita no
peito.
— Enquanto você dormia, eu decidi ler um pouco sobre
gestações, e eu vi que é normal ter pesadelo, eles são o filme que o
subconsciente constrói a partir dos seus medos e inseguranças.
Ele é tão incrível!
— Você leu sobre gravidez?
— Sim. — O sorriso aumentou afetando-me. Outra vez, em
meio àquela confusão de sentimentos ruins, os bons começavam a
aparecer, sobrepujando e me fortalecendo.
Olhar para ele, e saber que estava bem, fazia-me sentir mais
forte.
— É pressuposto também que você deve descansar, não ter
estresses ou coisas do tipo. Então, nós vamos para a Califórnia em
algumas horas, você quer descansar um pouco mais ou descer para
comer alguma coisa?
Não sabia se foi o tom de sua voz, mas eu me senti tão
querida que se fosse possível usar o termo “coração aquecido” de
modo literal eu usaria, porque era assim que eu me sentia.
As palpitações estavam diminuindo, um calor gostoso
espalhava-se por meu corpo. Eu podia perceber a preocupação
dele, o olhar atento, o carinho indisfarçável.
Gabriel era um homem intimidante por causa de sua
constituição física musculosa, porém lindo, e não era apenas por
causa do rosto de anjo vingador.
— Gabriel, você realmente se importa comigo de verdade ou
tudo isso é porque estou grávida?
Sua cabeça inclinou para o lado e eu quis retirar tudo que
havia dito, afinal não tinha o direito de fazer tais perguntas.
— Me importo com você, Jenny. — Segurou meu queixo com
gentileza. — Me importo muito com você, não já deixei isso claro?
— Eu... desculpe. — Havia diversão no sorriso bonito que ele
me deu.
— Já disse que não deve pedir tantas desculpas, você pode
perguntar o que quiser, eu vou te responder. Quero que o nosso
canal de diálogo esteja sempre aberto, por isso, até que eu te
entenda melhor, e vice-versa, perguntas serão necessárias. Agora,
eu gostaria de saber, você tem pesadelos com frequência?
— Acho que sim. — Respirei fundo, sentindo um pouco de
alívio.
— Com o que você sonha?
— Floresta, um monstro, ele me persegue e sempre me
pega. — Baixei a cabeça, era uma meia-verdade.
Eu era tão covarde que me envergonhava, Gabriel não
merecia a garota que ele tinha, e eu esperava que em algum
momento ele percebesse isso.
— Se um dia... — comecei, tentando aliviar um pouco do
peso que eu sentia na consciência. — Se um dia eu te magoar, não
foi porque eu quis.
— Jenny? — A dúvida estava impregnada em seu tom.
Ele deveria me achar louca.
E eu me sentia assim.
— Se um dia, você se arrepender de tudo que aconteceu
entre nós eu te entendo. — Fechei os olhos. — Se você...
— Chega! Olhe para mim. — Obedeci, pois, apesar do tom
de comando, havia uma suavidade ímpar que fazia tudo nele ser
diferente.
Gabriel parecia um caçador, que havia encontrado uma fera
presa numa armadilha. Ao invés dele virar as costas e seguir seu
caminho, havia decidido ficar ali e ajudar.
— Descul... — Seus olhos estreitaram, ele ergueu o dedo.
— Todas as malditas vezes que me pedir desculpa, eu vou
beijá-la. — Não esperava por isso. — Agora me peça desculpa. —
Seu tom baixou. — Eu acho que talvez possa gostar do que vem a
seguir.
— Você é estranho.
Como ele podia mudar os assuntos, com tanta facilidade?
Digo, a atmosfera, ele conseguia mudar a atmosfera pesada que eu
sempre me metia.
— Notou isso agora? Eu sempre posso furar o bloqueio
quando encontro um. — Ele mexeu na minha franja, parecia gostar
de fazer isso. — Então, que tal sair um pouco do quarto?
Em algum momento eu não ia conseguir me esconder.
Haviam coisas importantes para fazer, e a maior delas, por
enquanto, era receber notícias da minha mãe.
— Você disse que me diria quando soubesse da minha mãe,
você já sabe? — Gabriel franziu o cenho, suspirando baixinho, eu
senti que gelava. — O que aconteceu?
— Sim, eu tenho notícias da sua mãe.
— Por favor me conte. — Estava ávida por qualquer
informação. — Você disse que estava tudo bem, que ela ia ficar
bem. Ela está bem, não é?
Tentei procurar por algum indício de que ele pudesse estar
escondendo algo, mas não encontrei nada. Gabriel pareceu-me
muito transparente até o momento.
— Jenny, meu irmão veio aqui não faz muito tempo —
sondou, atento a mim. — Você sabe que ela estava bastante
machucada, não é?
— Sei. — Minha voz falhou. — Eu posso vê-la, Gabriel? —
Engoli o nó que estava se formando em minha garganta. Eu tinha
que parar de chorar, de surtar.
Precisava ser mais forte!
— Você pode me levar até ela? Por favor? — Juntei as mãos.
— Por favor, me leve para ela.
— Não podemos agora, Jenny. — Ele acariciou meus
cabelos. — Mas acredite, tudo que puder ser feito para que sua mãe
fique bem, meus irmãos farão. Eles estão cuidando dela.
— Por favor, preciso vê-la. — Engoli diversas vezes, não
queria chorar.
— Primeiro, vamos cuidar de você. — Segurou meu rosto. —
Confie que sua mãe é forte e vai melhorar.
Suas palavras deram-me a certeza de que ela não havia
sobrevivido, e ele estava escondendo isso para me proteger, ou
melhor para proteger seus filhos.
— Você disse que ela estava bem. — Afastei-me dele,
precisava me movimentar ou poderia explodir. — Você disse para eu
não me preocupar.
Tentava não pensar no pior, mas isso foi impossível. Havia
muito sangue em John, e então suas palavras...
Não pode ser!
— Deus, Jenny! — Senti que era abraçada outra vez, mas
não conseguia parar de pensar no pior.
Daquela vez, não lutei para disfarçar o que eu sentia, só fui
deixando ir. A taquicardia aumentou, os tremores nas mãos e por
dentro.
— Porra, acalme-se. — Gabriel estava dando batidinhas em
meu rosto, mas sentia-me estranha demais para responder. —
Porra, não desmaie, não desmaie.
Eu não ia, em breve tudo isso ia passar, o que ficaria para
trás seria um extremo cansaço permeado de angústia e sentimentos
ruins.
Era sempre assim.
— Jenny, tudo vai ficar bem, eu te prometo. — O desespero
era gritante na voz dele. — Sua mãe vai aguentar, ela vai ficar bem.
Somente não desanime, vocês estão a salvo agora, para recuperar
tudo que necessitarem. Eu te dou minha palavra, juro que não
importa o futuro, eu vou sempre deixar as duas sob meus cuidados,
tudo vai ficar bem, confia em mim!
A minha mãe já havia superado muitas coisas, aguentado
cada tortura, humilhação e sofrimento a qual foi submetida. Mas até
quando ela poderia aguentar? Só mais dessa vez?
Não! Aquele homem havia ido longe demais, e foi por minha
causa, pelo que fiz, que ele perdeu o controle.
— É minha culpa — arquejei, deixando-me afundar. — Eu
mudei as coisas, ele bateu nela para me punir.
— Pequena, ouça. — Ele me ajeitou em seus braços. — A
culpa não é sua ou de sua mãe. Pessoas covardes tendem a
responsabilizar os outros por suas atitudes, porque nem eles
conseguem conviver com elas.
— Você não entende, eu só tenho a ela. — O olhei, deixando-
o notar a base de tudo. — Somos apenas nós duas, nós duas para
lutar, sem ela eu sou nada.
Ele balançou a cabeça, negando com veemência.
— Presta atenção em mim. — Não queria, mas ele esperou
até que eu não pudesse fazer outra coisa a não ser refugiar-me em
seus olhos. — Presta atenção no que vou te dizer, porque eu acho
que você ainda não entendeu. — Ele se aproximou um pouquinho.
— Você não está sozinha, nunca mais estará.
— Gabriel...
— Aceite o que estou te dizendo como algo certo. — Ele
respirou fundo, como decidisse algo importante. — Jenny, eu nunca
vou te deixar. — Ele me abraçou apertado, esperando com
paciência eu me sentir minimamente melhor. — Temo por sua
saúde, você é frágil, Beag. — Gabriel acariciou minhas costas com
movimentos circulares, eu sentia que ia amolecendo em seus
braços.
— Não sou frágil, acredite.
— Eu acredito, mas, enquanto eu não souber o que
exatamente você tem no coração, não sossegarei, então, até lá,
acho que vou ter alguns excessos.
— Gabriel, eu gosto de tudo que você faz para mim. —
Retribuí seu abraço, acho que isso era algo que eu sempre faria. —
Eu gosto de estar aqui com você, faz com que eu me sinta segura.
— Isso é muito bom, porque você não vai a lugar algum, não
sem mim. — Ele se afastou um pouco para que pudesse me
encarar. — Se sente melhor?
— Sim, e ficaria ainda mais se me dissesse como está a
minha mãe. Tomarei como certo tudo que me disser, mas não minta.
Mesmo que eu o faça. O pensamento intruso me fez
encolher.
— Ela estava bem machucada, precisou de cuidados
especiais, e meu irmão, que é um dos melhores médicos do país,
cuidou pessoalmente dela.
— Você me garante que ela está viva?
— Sim, eu garanto.
— E quando poderei vê-la?
— Eu te disse que precisamos ter paciência. Seu padrasto
precisa fazer o movimento dele. — Ele olhou o relógio no pulso. —
Faz nove horas que eu te tirei de casa, ele deve contatar a polícia
em breve.
— Não corre risco de ele achar minha mãe no hospital?
— Não, já disse que não. Onde sua mãe está é
provavelmente um dos lugares mais seguros que existe — ele disse
com tanta certeza, que eu me agarrei a isso.
— Tudo bem, tudo bem. — Respirei fundo, aceitando que não
podia fazer outra naquele exato momento a não ser cuidar da minha
saúde e dos meus filhos. — Tudo bem — repeti, olhando ao redor.
A lareira ainda estava acesa, só que agora havia uma colcha
macia no sofá.
— Eu não te levei para a cama porque acreditei que pudesse
despertar, você parece ter um sono bem leve. — Concordei, tinha
que ser assim para não ser pega de surpresa. — Vamos sair do
quarto um pouco?
Ele parecia meio desesperado para dar o fora daquele lugar,
talvez não gostasse de se sentir preso, e ficando comigo o tempo
todo ali dentro, fosse assim que ele se sentisse.
— Vamos — disse não muito firme.
— Podemos assaltar a geladeira. — Piscou um olho,
segurando a minha mão.
Juntos saímos do quarto, e logo de cara eu me deparei com
um corredor enorme que parecia não ter fim. Era tudo tão elegante,
tão ricamente decorado que eu me senti ridícula de estar pisando
descalça naquele chão chique.
— Não se importe com isso — Gabriel sussurrou no meu
ouvido, como se pudesse ler meus pensamentos. — O trabalho do
meu irmão mais velho é fazer dinheiro e dar ordens, e ele é muito
bom nisso.
Olhei para mim, vestindo apenas uma roupa emprestada e
que ficava enorme, sem um tostão no bolso, documentos ou algo
parecido.
— Eu sou uma indigente. — Olhei para Gabriel, ele estava
sorrindo. — Pareço com aqueles cachorros que as pessoas adotam
das ruas.
— Não diga isso, Beag. — Ele deu uma risada. — De todos
nós você é a mais famosa.
— O que adianta ser famosa e não ter nada? — Balancei a
cabeça. — Eu e minha mãe só possuíamos o que estamos
carregando: Ela, feridas; e eu, duas crianças.
— Não se importe com isso. — Ele me puxou pelo corredor.
— Esta ala é minha, você deve ter notado que o meu quarto parece
um apartamento, certo?
— Sim.
— Então, cada um de nós possui uma área reservada para
expansão. — Um meio sorriso tomou o canto de sua boca. — Eu
acho que terei que usar o meu.
— Para mim?
— Não, você vai ficar comigo. — Apontou para a minha
barriga. — Para eles.
— Ah. — Não quis avaliar a sensação de borboletas no
estômago, ou o calor que se propagava por meu rosto.
— Gosto quando ruboriza, faz-me lembrar que sua boceta
fica assim depois que...
— Gabriel! — Cobri sua boca com minhas mãos, não
permitindo que ele continuasse falando aquele tipo de coisa.
— O que foi? — Ele estava se divertindo, e isso me deixou
ainda mais envergonhada.
— Não diga essas coisas. — Balancei a cabeça de um lado
para o outro, espiando se havia alguém no corredor que pudesse
ouvi-lo. — Podem pensar que...
— Transamos? — Ele retirou minhas mãos, depois beijou a
ponta dos meus dedos. — Que transamos muito, e que sua
bocetinha ficou vermelha de tanto levar pau.
— Meu Deus. — Tropecei e teria caído se ele não fosse
rápido o bastante para me segurar.
— Beag, não foi por indução que eu coloquei duas crianças
em você.
Soprei o ar, sentia que estava superaquecendo, e o mais
absurdo de tudo era que eu não sentia repulsa com suas falas. Era
meu Viking, Gabriel, o único homem capaz de me fazer implorar
para ser tocada.
— Você é sempre tão, tão...
— Tão o quê? — Cruzou os braços, inclinando-se para me
ouvir.
— Assim. — Respirei fundo. — Assim, Gabriel, sem vergonha
de dizer essas coisas íntimas e que são segredo.
Ao invés de me responder, ele jogou a cabeça para trás e
gargalhou tão alto, que eu não pude evitar sorrir. Havia felicidade
naquele som, e por algum motivo isso me deixou emocionada.
— Jenny, você esqueceu o que fizemos?
Não, mesmo que tudo parecesse um sonho. Neguei, ele me
puxou pela cintura.
— Então, você acha que sou tímido? — Sua voz baixou para
um mero sussurro. Quase não consegui formular o pensamento
quando ele inclinou, respirando no meu pescoço. — Acha que não
estou louco para te ouvir dizendo que me escolheu.
Quando abri a boca para responder, ouvi o som de unhas
arranhando o chão. Desde muito jovem era sensível para os sons.
Ao longo dos anos, consegui ir aprimorando, para conseguir saber
quem estava se aproximando, na maioria das vezes conseguia
diferenciar as pessoas apenas pelos sons dos passos.
Um gigante de pelagem escura surgiu no corredor, ele era
simplesmente lindo, com aquelas orelhas caídas e fofas.
— Corso, mais devagar! — Uma voz feminina se fez ouvir e o
cachorro parou, sentando-se quase ao nosso lado.
Não demorou muito para que uma garota linda dobrasse a
esquina do corredor, vindo em nossa direção.
— Fugindo de Rafael. — Ela ergueu as mãos, havia manchas
de tinta nos seus dedos. — Estou com fome.
Ela acariciou a barriga, e eu não pude evitar o sorriso quando
notei que estava grávida também.
— Olá, eu sou a Amira, bem-vinda. — Ela olhou para Gabriel,
depois para mim. — Bem-vinda a nossa casa, eu estou feliz que
esteja aqui.
Olhei para Gabriel também, ele estava balançando a cabeça,
orgulhoso.
— Me chamo Jenny, obrigada por me aceitar na sua casa. —
Estendi a mão e ela a pegou. — Obrigada de verdade, eu não vou
atrapalhar vocês, eu prometo.
— Atrapalhar em quê? — Amira parecia genuinamente
confusa, os olhos azuis cintilando.
Era realmente linda demais.
— Não sei.
— Você é de Gabriel, e nós somos uma família, você não
atrapalha. — Ela sorriu.
Não sabia exatamente como reagir as suas palavras.
Eu era de Gabriel? Não queria pensar no quanto isso parecia
bom de ouvir.
— Está com fome, Jenny?
— Um pouco — pigarreei, disfarçando o quanto suas
palavras haviam me deixado feliz.
— Vamos para a cozinha encontrar algo gostoso para comer.
— Ela passou por nós, parando em seguida. — Corso. — O
cachorro juntou-se a ela, caminhando ao seu lado tranquilamente.
Observei-os por um momento e a sensação que tive foi muito
boa. A confiança com que ela caminhava pela casa, enchia meu
coração de bons sentimentos e me fazia desejar ter o mesmo.
Aquela garota gentil e delicada, tinha um semblante de paz,
aconchego e inocência. Podia notar que estava feliz, ela quase
exalava pelos poros.
— Vamos, Beag. — Gabriel ofereceu a mão, e eu a aceitei.
Logo nos juntamos a Amira e a Corso.
Obriguei-me a não ficar olhando para casa em completo
estado de choque. Eu pensei que nada poderia me surpreender,
pelo menos não depois de ter visto o quarto de Gabriel, mas estava
errada.
Era tudo tão elegante e luxuoso que até os moradores
pareciam combinar com o ambiente. Nem sabia dizer por que
pensava isso, mas era a sensação que tinha. Era como se todos ali
houvessem nascido em berço de ouro e não conhecessem uma
realidade diferente.
— Sentem-se ali, eu vou servir vocês. — Gabriel adiantou,
puxando dois bancos que ficavam na imensa bancada de mármore
que compunha a ilha da cozinha mais inacreditável que eu já tinha
visto na vida.
Primeiro, ele me ajudou a sentar no banco depois foi a vez de
Amira.
— Eu quero aquela torta de chocolate. — Assim que Amira
terminou de falar, eu senti a boca salivando. Na minha antiga casa,
esse tipo de coisa era difícil, e só quando o monstro desejava. —
Aqui, bebê. — Amira bateu no balcão e o cachorro ficou em pé,
chocando-me com seu tamanho.
Ela lhe deu um biscoito e ele nem sequer latiu.
Era mais educado que muita gente por aí.
— Aqui. — Gabriel colocou uma torta bonita à nossa frente,
quando ele retirou a tampa de vidro o chocolate estava brilhando. —
Primeiro, a minha garota. — Ele colocou uma fatia generosa num
prato e me entregou. — Agora a minha outra garota. — Ele fez o
mesmo para Amira.
— Sua não, minha! — Eu congelei, incapaz de mexer um
músculo.
A voz do homem que havia acabado de chegar, possuía um
timbre levemente rouco e aveludado, mas que carregava a potência
de um líder. Eram como notas subjacentes, entranhadas no timbre
natural e reforçada com anos de prática. Apostava que aquele era o
irmão mais velho.
O líder da família.
— Acha mesmo que pode fugir de mim? — Ele chegou ao
lado de Amira e a abraçou. — Malen’kiy, eu notei sua ausência
quando colocou os pés no chão.
Não pude ouvi-lo se aproximando e isso era algo assustador
vindo daquela família. Todos pareciam silenciosos demais.
— Rafael, quero apresentá-lo a alguém. — Gabriel pareceu-
me polido demais e isso de certa forma me preocupou.
Sua mão enlaçou a minha cintura, ele ficou ao meu lado. O
gesto fez com que me sentisse ainda mais querida por ele.
Obrigando-me a não parecer tão covarde, e envergonhada por toda
situação, eu olhei para o recém-chegado.
Olhos azuis tão frios quanto os meses de inverno encaravam-
me, não pude perceber nada em sua expressão, era como se não
possuísse sentimentos, mesmo que, instantes atrás — enquanto
falava com sua mulher — vi ele demonstrando amor.
— Jenny, este é Rafael, meu irmão mais velho — Gabriel
soou firme e seu irmão estendeu a mão. Trêmula, repeti seu gesto.
— Seja bem-vinda a esta casa. — Sua voz soou gentil, e seu
olhar gelado suavizou um pouco. — Você está segura aqui. — Suas
palavras e a aceitação que elas trouxeram, emocionou-me.
— Obrigada por me acolher. — Tentei segurar o embargo na
voz, mas não pude. — Obrigada por tudo.
Talvez, eu pudesse realmente acreditar que o passado ficaria
para trás e que ninguém conseguiria penetrar as paredes daquela
fortaleza para me fazer mal.
Nem o pior dos algozes, porque ali dentro moravam lobos.
E eu tinha certeza de que eles caçavam.
33
Jenny Monroe

Eu sentia que estava sendo avaliada.


O olhar de Rafael era superior, mas não digo isso me
referindo à arrogância, mas porque a sensação que eu tinha era de
que aquele homem estava no topo da cadeia alimentar, e ele sabia
disso.
— Rafael, você não tinha que combinar com Gabriel a
viagem para a Califórnia? — A voz de Amira quebrou o silêncio que
já começava a me angustiar.
Não queria ser um incômodo para aquela família, mas não
sabia como me comportar na presença deles.
Gabriel era diferente, tudo que nos envolvia não estava
seguindo um fluxo minimamente normal, então eu acho que estava
acostumada a ele.
Mas sua família era diferente, não sabia como me comportar.
Em partes porque não queria destoar ainda mais daquele ambiente
em que as pessoas pareciam despreocupadas em abrigar uma
desconhecida.
— Sim, Malen’kiy. — Rafael beijou a cabeça de Amira, então,
antes de sair da cozinha, ele murmurou algo em outro idioma, que a
fez sorrir e as bochechas corarem.
— Claro, Senhor da Ordem. Eu aceito. — Ela suspirou.
Estranhamente, achei que o apelido carinhoso combinava
com ele.
— Eu vou cobrar e você sabe que nunca deixo alguém me
devendo.
— Vocês poderiam voltar para o quarto? — Gabriel estreitou
os olhos, fazendo um gesto exagerado com a mão. — Você vê,
Jenny, o que eu tenho que suportar? A nossa sorte é que estão
menos piores, no começo, corria o risco de ver...
— Irmãozinho, você não quer assustar a sua mulher...
Engasguei-me, sufocando com a própria saliva.
O tom cínico e provocativo de Rafael não me passou
despercebido, e o pior, foi que, ao invés de negar, Gabriel sorriu
como se estivesse orgulhoso de algo que eu desconhecia.
— Ela precisa se acostumar. — Ele repousou a mão no meu
ombro. — Eu sou o menos ajustado dessa família — Gabriel
murmurou em meu ouvido, e eu precisei de forças para não derreter
na cadeira. — Mas eu sou o seu desajustado.
Meu Deus!
Não fui capaz de dizer coisa alguma, Gabriel conseguia
deixar meu cérebro em pane total.
Eu sabia que ele não era meu, mas sinalizava naquela
direção, e a vontade que imperava era a de roubá-lo e sair correndo
apenas para que nunca mais retirasse suas palavras ou voltasse
atrás nas decisões que nos permitiria ficar juntos.
Um dia, ele ia perceber o quanto eu era desinteressante, e
que não tinha nada a oferecer além das duas preciosidades que
cresciam em meu ventre.
— Vocês podem ir resolver seus assuntos, eu quero terminar
de comer em paz. — Amira acariciou a barriga. — Meu bebê está
com fome.
— O que precisa ser discutido? — Gabriel cruzou os braços.
— Podemos conversar aqui mesmo, eu quero esperar Amira e
Jenny alimentarem nossos monstrinhos, se elas precisarem de
algo?
— Já disse para não chamar meu filho de monstrinho, seu
bastardo! — Rafael cruzou os braços, mas eu pude perceber o tom
divertido e a falsa raiva que ele demonstrava.
— Você parece muito certo de que terá um menino — Gabriel
provocou. — Amira, você deixou Lysander dizer o sexo?
— Não, eu quero saber quando nascer, e ele me prometeu
não contar para o Rafael. — Amira sorriu, acariciando a barriga
redonda. — Falta pouco, em três meses saberemos.
— Você deveria se preocupar com a possibilidade de você ter
uma menina, porque, irmãozinho, suas chances são maiores que as
minhas. — Rafael olhou para mim. — Eu realmente espero que seja
uma menina, Gabriel merece ser pai de uma.
— Ah, eu... — Engoli em seco, pois eu preferia que fossem
dois meninos, eu tinha muitas razões para isso. Mas não ia acabar
com o clima divertido e de provocações entre irmãos. — Eu acho
que não me importo.
— Eu também não. — O sorriso de Amira aumentou, Rafael
lançou um olhar para mim como se soubesse que eu estava
mentindo.
— Vamos, Gabriel, eu tenho algumas novidades do trabalho,
aquele cliente do Oriente Médio parece que vai nos causar
problemas, estou enviando Heylel e Razhiel para uma visita. — O
tom de Rafael continuou baixo e tranquilo, mas eu percebi que
Gabriel mudou a postura pelo aperto sutil que deu em minha cintura.
Quem quer que fosse aquele cliente era alguém muito
importante.
“Por que Gabriel precisava saber disso se ele era um
bombeiro?”, questionei-me, realmente curiosa.
— Tudo bem se eu me ausentar por alguns minutos? —
Gabriel ofereceu sua mão e eu aceitei. — Eu posso resolver isso
depois que te colocar na cama.
— Eu vou terminar isso aqui. — Apontei para o bolo. — Pode
resolver seus assuntos sem problema.
— Nem eu, pelo menos não enquanto houver torta. — Amira
sorriu, colocando um pedaço na boca. — Razhiel precisa me
ensinar essa receita. — Ela suspirou fechando os olhos como se
estivesse vivendo um acontecimento.
— Vamos, Gabriel, deixemos nossas mulheres desfrutarem
em paz.
Observei ambos se afastando em direção a porta de correr
que havia do outro lado da cozinha.
— Experimente. — Amira tocou meu ombro e eu quase pulei
do banco.
O susto fez meu coração dar uma acelerada.
— Desculpe — ri sem graça, tremendo um pouco.
Olhando para o pedaço suculento de torta de chocolate, eu
fui covarde o suficiente para me refugiar, então, fingindo que estava
prestando atenção nas camadas de bolo e recheio, eu contei ao
menos seis.
— É um Ópera.
— O quê?
— É como se chama. — Amira indicou o bolo com o garfo. —
Esse é o favorito de Heylel, o irmão caçula.
— Ah... — ri sem graça outra vez.
Não sabia o que dizer, como me comportar. Estava nervosa,
nunca havia me deparado com uma situação como aquela, em que
o ambiente era tranquilo e saudável demais.
Não sabia o que fazer.
— Jenny. — Algo no tom de Amira me fez sentir vontade de
chorar. Não consegui engolir a torta. — Olhe para mim.
— Desculpe-me. — Meu queixo tremeu.
Ela pegou a minha mão, e eu não tive outra escolha se não
encará-la.
— Aqui ninguém vai monitorar suas lágrimas. — Sorriu,
encorajando-me. — Chore se quiser.
— Eu não quero. — Respirei fundo, engolindo a massaroca
que estava na minha boca. — Eu quero ser mais forte, não essa
garota que chora por tudo. Eu não gosto de chorar.
— Ninguém consegue ser forte o tempo todo — Amira baixou
o tom de voz, para algo íntimo e acolhedor. — E aqui você não
precisa ser. Às vezes, chorar é a única coisa que podemos fazer em
determinados momentos.
Mesmo que eu estivesse fazendo tudo para que nenhuma
lágrima escorresse, foi inútil. Sorrindo, Amira estendeu a mão,
recolhendo com a ponta do dedo uma lágrima.
Ela fez isso antes que eu me envergonhasse por ser tão
fraca.
— Jenny, eu já estive no seu lugar.
O choque me varreu quando compreendi suas palavras.
Não é possível... Aquela mulher, ela não poderia ter passado
o mesmo que eu.
— Você engravidou e teve que fugir e... — As palavras
atropelaram-se.
— Não isso. — Ela ficou séria. — A outra coisa.
— Que coisa? — A vontade que eu tive de sair dali correndo
foi tão grande que meu corpo até vibrou.
— Jenny, eu já estive nas mãos de pessoas abusivas, eu
consigo ver os sinais...
Meus olhos correram para o Gabriel, ele estava tendo uma
conversa acalorada com seu irmão, digo, ele estava agitado,
enquanto o outro ouvia pacientemente com as mãos nos bolsos da
calça.
— Jenny, presta atenção em mim. — Amira tocou meu rosto.
— Não se preocupe, nesta casa ninguém vai te machucar.
— Tenho medo de atrair o perigo para cá. — Respirei fundo,
sentindo que deveria alertá-la. — Meu padrasto é um homem ruim,
muito ruim.
— A única maneira de você sair daqui, é por vontade própria,
caso contrário ninguém conseguirá fazer isso.
— Se algum de vocês se machucar por minha causa... —
Lambi os lábios, não estava conseguindo me segurar, parecia como
se eu fosse capaz de vomitar toda a história da minha vida para
aquela mulher. — Meu padrasto não é só ruim, é perigoso também.
Ele conhece pessoas muito cruéis.
Esperava que isso fosse assustar Amira, mas foi o contrário,
a sensação que eu tive foi que havia acabado de dizer algo sem
importância. Ela até sorriu, como se acabasse de se lembrar de
alguma piada particular.
— Medo é somente uma sensação, claro que é
desagradável, mas ela é desencadeada pela percepção do perigo
real ou imaginário. O que você sente agora é imaginário, baseado
no que viveu.
O que ela estava querendo dizer?
— Amira, eu não sei se consigo acompanhar. —
Envergonhei-me por não ser mais inteligente. — Poderia explicar
melhor?
— Claro. O que quero dizer é que você tem medo por criar
situações hipotéticas em sua mente. Mas, nesta casa, não há
razões para ter medo. Se você pensar racionalmente, vai
compreender que seu padrasto não tem acesso a você aqui. — Ela
abrangeu a cozinha. — Essa casa foi projetada para ser uma
fortaleza, se você quiser conhecer o sistema de segurança para se
sentir mais confiante eu posso mostrar.
— Não precisa, eu acredito em você.
— Você acha que ficar aqui irá trazer riscos para nós, não é?
— Sim. — Baixei a cabeça, fechando os olhos. — Não
suporto a sensação de que possam estar correndo riscos por causa
de mim.
— E se eu disser que é o contrário, como você recebe isso?
— Ela parecia muito interessada numa resposta.
Eles eram uma família abastada, e, claro, haviam pessoas
por aí interessadas em colocar a mão no dinheiro que possuíam.
Pensar nisso não mudava em nada o que sentia em relação a
Gabriel, quando o escolhi não foi por quem ele era, e sim pelo que
havia feito para mim, naquele momento.
Ele foi perfeito e continua sendo.
— Não faz diferença para mim.
— Então, por que acha que para nós faria? — Não tinha uma
resposta adequada. — Você e Gabriel terão filhos, são um casal
agora, então você vai ter medo de recomeçar ou prefere manter-se
no passado?
— Eu quero muito acreditar que posso recomeçar. — Franzi o
cenho. — E eu e Gabriel não somos um casal, nós apenas...
— Estão esperando bebês. — Amira sorriu. — Vocês são um
casal, o jeito que você o busca com os olhos quando fica com medo,
me diz que há mais do que você acredita.
Ela não pode estar falando sério. Nos conhecemos agora e
ela já conseguia traduzir o meu sentimento em relação a Gabriel
antes mesmo que eu o fizesse.
— De algum modo, ele se tornou um porto seguro para você,
como o Rafael foi para mim. — Ela colocou a mão em cima da
minha. — Natural que você desenvolva sentimentos, e que isso a
assuste. Gabriel é um pouco intenso.
— Eu diria que é muito. — Mordi o lábio. — Mas eu pensei
que fosse capaz de disfarçar o caos que me encontro. Só você é
capaz de me ler.
Conversar com ela estava me deixando com a sensação de
alívio, e eu ainda não sabia se isso era bom demais ou muito
estranho e ruim.
Eu não podia baixar a guarda.
— Não apenas eu sou capaz de ler você como a maioria das
pessoas dessa casa é. Principalmente meu marido. — Amira pegou
a minha mão outra vez. — Jenny, além do que nós podemos ver em
você — ela apontou para meu rosto —, você demonstra sinais de
outro tipo de abuso. — Encolhi, sentindo suas palavras doerem. —
Talvez, Gabriel possa estar confuso, eu acredito que ele pense
apenas no que aconteceu agora. Mas eu consigo ver muito além
disso.
— Por favor, não diga em voz alta. — Minha voz embargou.
— Não o diga.
— Eu não vou dizer, mas está claro. Gabriel vai perceber
também. — Amira apertou a minha mão, confortando-me. — Você
está com uma postura retraída, como se quisesse sumir, fica
pedindo desculpas, preocupa se vai cometer algum erro. Não
consegue encarar nos olhos direito, e fica puxando a blusa como se
quisesse se cobrir ainda mais.
Não havia percebido que fazia isso, mas naquele momento a
minha mão livre estava segurando a barra da camisa, como se a
qualquer momento fosse puxá-la para baixo.
— Desculpe, eu...
— Jenny, não peça desculpas. Por favor, você não cometeu
nenhum erro. — Amira sorriu. — Você está livre agora, tente se
encontrar.
Suas palavras tiveram o peso de uma tonelada e elas
golpearam com muita força aquelas correntes invisíveis que ficavam
dentro da minha cabeça.
Estava diante de uma mulher jovem, linda, dona de si e que
me instigava ser forte para mostrar todas as minhas fragilidades.
Amira era como a realidade personificada do que eu poderia ser,
caso conseguisse abandonar o medo.
— Eu nunca fui livre. — Respirei fundo. — E agora que sou,
não sei o que fazer.
— Eu também já me senti assim, quando Rafael me levou
para morar com ele, eu não sabia nem como passar o dia.
Duvidava que aquela mulher tão incrível pudesse ter vivido
algo semelhante ao que eu passei. Ela era tão aberta, digo, ela
havia me feito sentir bem-vinda, estava conversando sobre coisas
pessoais para que pudesse me ajudar sem se importar por eu ser
uma completa estranha.
Mas, ainda assim, era difícil acreditar que ela tenha estado no
meu lugar alguma vez.
— Posso perceber sua dúvida.
— Desculpe, mas você é tão confiante e incrível que parece
impossível te enxergar no meu lugar. — Olhei para onde Gabriel
estava, não queria que ele escutasse nada daquela conversa. — Eu
não consigo te ver nesse lugar.
O sorriso que recebi foi caloroso, mas os olhos dela por um
momento escureceram como se lembrasse de algo horrível.
— A garota que eu era dois anos atrás, também não se
enxergaria nesse lugar que estou agora. — Os olhos azuis
encheram-se de lágrimas. — Mas eu aceitei o que não podia mudar,
como também que era meu direito recomeçar do ponto que eu me
encontrava. Nós não podemos ser responsáveis pelas atitudes de
outras pessoas, cada um deve carregar sua cota de consequências.
— Amira ergueu o queixo espantando as lágrimas. Um sorriso lindo
floresceu em seus lábios. — O que quero dizer com tudo isso, é que
você pode recomeçar a partir deste ponto aqui e deixar o passado
onde ele está, no passado.
Eu posso tentar! Uma voz gritou dentro da minha cabeça.
Era a voz rebelde da garota que não aceitava ser tratada
como objeto de um bastardo sádico e cruel. Eu podia ser livre, na
verdade eu já era livre, e o tempo que eu levaria para recomeçar só
dependia de mim.
Amira conseguiu passar por cima do que havia acontecido
em seu passado, e ela era feliz. Eu também ia conseguir, só tinha
que tentar.
Por mim e por Gabriel, mas principalmente por meus filhos.
— Deixe o passado onde ele deve ficar e siga em frente. —
Ela deu um aperto firme em minha mão. — Essa é uma nova
chance, cabe somente a você decidir o que vai fazer com ela.
— Acho que eu nem sei mais quem eu sou.
— Então você vai descobrir.
Por muito tempo não tive a chance de ser eu mesma, e agora
que não corria o risco de ser espancada, ou de ver minha mãe
sendo, precisava fazer a ideia entrar na minha cabeça.
Talvez, fosse o que precisava para conseguir me libertar de
uma vez por todas das correntes de John.
— Obrigada, Amira. — Respirei fundo, soltando o ar. —
Obrigada de verdade, eu acho que conversar com você tenha girado
a chave aqui. — Apontei para a minha cabeça, e ela sorriu.
— Deixe Gabriel conhecer a verdadeira Jenny, não tenha
medo do seu passado, quem te feriu antes não vai poder te ferir
agora.
Deixei que a verdade de suas palavras assentasse dentro de
mim. A certeza que ela demonstrava era tão surpreendente que me
abalava. Sabia quem era o meu padrasto, mas não quem eram
aquelas pessoas.
Quero dizer, Gabriel era o bombeiro, havia um irmão que era
médico e outro cozinheiro — pelo que entendi era Razhiel —, havia
outro que se chamava Heylel, e então o marido de Amira, Rafael, o
chefe da família, o que “fazia” dinheiro, esse com certeza deveria
ser um empresário.
Isso não me falava muito sobre eles, mas eu tinha certeza de
que possuíam poder. Estava implícito na postura na Rafael e de
Gabriel, inclusive daquele que conheci brevemente. Outra coisa,
pessoas comuns não moravam em casas como aquela. E Amira me
garantiu que eles tinham um bom sistema de segurança, certamente
deveriam ter pessoas treinadas patrulhando ao redor.
Certo?
— Amira, você garante mesmo que ninguém pode invadir
essa casa? — perguntei baixinho. —Estamos seguros cem por
cento dentro destes muros?
Para demonstrar o interesse na conversa, o cachorro imenso
colocou as patas no colo da Amira, e eu quase infartei de susto,
porque ele era um animal gigante e que poderia causar um enorme
estrago se estivesse com raiva.
— Aqui, amor. — Amira lhe entregou dois biscoitos e ele
desceu. — Jenny, apenas com treinamento militar de alto padrão,
talvez conseguisse passar pelo primeiro perímetro de segurança,
com certeza não passaria pelo segundo. Temos câmeras
termoativas, que cobrem cem por cento do terreno; se alguma delas
for ativada, saberemos imediatamente. Além de que há também
equipamentos mais “robustos” espalhados por todo perímetro. —
Ela deu ênfase a palavra robusto, depois estreitou os olhos,
inclinando-se para mim. — Seu padrasto tem treinamento militar?
Porque, se ele tiver, eu falarei sobre isso com Rafael.
Neguei, sentindo aquela chama de esperança aumentando.
— Ele é um bastardo inútil.
— Então não tenha medo, Gabriel é um bombeiro e tem
treinamento militar. — Amira sorriu. — Você poderia contar que seu
padrasto é um filho da puta, deixar que ele e Gabriel tenham uma
conversa de homens.
— Não, não, pelo amor de Deus! — Minha reação foi de
pânico, qualquer coisa que levasse meu viking para perto de John
assustava-me. — O que você descobriu sobre mim tem que ser um
segredo nosso, ninguém pode saber.
Ela ainda não sabia o pior, e ninguém saberia, porque, além
de ser humilhante demais, eu jamais conseguiria olhar para as
pessoas daquela casa de novo.
— Jenny, Rafael sabe, no primeiro olhar que lhe deu, ele
soube. — Senti como se o chão se movesse debaixo de mim. —
Mas garanto que ele não vai falar nada.
— Isso é tão vergonhoso. — Deixei que ela notasse o pavor
que eu estava sentindo. — Amira, eu nunca compactuei com nada
do que aconteceu, eu fiz o que precisei para sobreviver e garantir
que minha mãe... — As palavras morreram, eu não ia falar mais
nada. — Eu só fiz o que precisei.
— Não estamos aqui para julgar a sua história. — Amira me
passou ainda mais segurança. — Mas, Jenny, recomece sua vida
aqui, ao lado de Gabriel, desta família. Aceite-nos, e acredite que
suas batalhas serão nossas batalhas. — Eu não sabia o que dizer,
ela me puxou para si. — Abraços servem para conforto, desde que
eu soube que você viria eu estou estudando como ser uma boa
amiga.
Fechei os olhos, retribuindo o carinho que ela me dava tão
livremente.
— Obrigada, você está fazendo muito bem — ri, emocionada
e feliz. — Além da minha mãe, eu não tenho amigas.
— Eu quase tive uma amiga, mas, antes que pudesse
acontecer, ela me traiu.
— Eu nunca vou te trair — murmurei com fervor, queria que
ela sentisse a verdade em minhas palavras.
— Eu sei, nenhum Demonidhes colocaria um traidor dentro
de casa. — O cheiro dela era doce e ao mesmo tempo
reconfortante. — Os irmãos Demonidhes são uma unidade fechada,
e o fato de você estar aqui demonstra o quanto você é importante
para Gabriel.
— Estou grávida, ele está cuidando dos filhos dele.
— Ele não precisaria te trazer para cá para fazer isso. —
Amira afastou-se um pouco, encarando-me. — Ele te trouxe para cá
porque queria você perto dele.
Realmente, ele não precisaria. Mas, seria como Amira
acreditava? Era algo a se pensar, ainda mais considerando o quanto
ele foi incrível desde que nos conhecemos. Desde o começo,
Gabriel foi guiado por minhas atitudes, eu o quis, eu insisti e ele me
aceitou, depois não fez absolutamente nada que me assustasse.
Não havia uma explicação para o que sentia, mas, eu sempre
confiei nele; e depois, nas lembranças do quanto ele me fez sentir
segura e feliz no pouco tempo que estivemos juntos.
— Você pode vislumbrar um futuro incrível. — Amira deu voz
aos meus pensamentos.
Eu queria mais do que Gabriel me proporcionava. Queria me
sentir feliz, protegida sem ter medo de que pudesse acabar.
Desejar, fazia borboletas voarem no meu estômago, porque naquele
momento a possibilidade era real.
Não um sonho.
— Pode parecer louco, mas desde que eu vi Gabriel pela
primeira vez, ele mexeu comigo. — Senti o rosto esquentando. —
Quero dizer, bastou uma conversa rápida para que eu confiasse
nele. Parece um absurdo para você?
Amira deu um sorriso tão bonito, que parte daquela feiura que
eu estava mergulhada se dissipou.
— Deixa eu te contar uma coisa. — Os olhos dela brilharam,
com o rosto ficando vermelho como um tomate. — Eu conheci
Rafael em um dia e, no outro, ele me chamou para morar com ele e
eu fui.
Um riso meio idiota escapou de mim, era como se eu
estivesse trocando confidências com uma amiga de longa data e
que eu confiaria os mais obscuros segredos.
— Você está falando isso sério, sério ou é metáfora?
— Sério. — Pelo modo como me encarava, eu tive a certeza
da veracidade de suas palavras. — Meu tutor estava me dando uma
surra, Rafael chegou bem na hora. Foi um caos, porque ele ia
arrebentar Salonvery na porrada.
Eu acho que meu queixo estava no chão, havia tanta
naturalidade no modo que ela falava que eu não conseguia imaginar
a situação acontecendo.
“Quem era louco de machucar uma garota tão gentil quanto
Amira?”, questionei-me, entretanto, logo eu mesma soube a
resposta, pessoas horríveis como John eram capazes.
— Jenny, eu estava ferida, Rafael cuidou de mim, e me
chamou para morar com ele. Eu fui, e essa com certeza foi a melhor
decisão da minha vida, a primeira que eu pude tomar por mim
mesma.
Ela estava me contando algo importante e eu quis retribuir,
compartilhando algo meu. Sentia que podia confiar em Amira.
— Escolher Gabriel foi a primeira decisão que eu tomei
pensando apenas em mim e no que eu queria, claro eu também não
pensei nas consequências. — Olhei para a minha barriga. — Eu não
fazia ideia de que terminaria grávida de gêmeos.
— Se soubesse, mudaria o resultado?
Nem precisei pensar antes de lhe responder, agora que meus
bebês estavam seguros eu não me arrependia de nada.
— Não.
— Então, você escolheu certo. — O sorriso dela cresceu. —
No futuro, vai entender que você também foi escolhida por Gabriel.
Um calor gostoso espalhou-se por mim e eu sabia que desta
vez era de felicidade começando a criar raízes.
— Não parece esquisito olhar para uma pessoa e, sei lá, as
outras coisas perderem o sentido? — perguntei, pois ela havia
aceitado Rafael em sua vida tão rápido quanto eu havia aceitado
Gabriel. — Apesar de as circunstâncias serem diferentes.
— Você sabia que uma pessoa leva um quinto de segundo
para se apaixonar?
— O quê? — ri baixinho, eu não fazia ideia. — Não entendo
onde quer chegar.
— Se você estiver apaixonada por Gabriel não precisa se
assustar, há explicações cientificas para isso. — Eu até inclinei para
ouvir. — A paixão pode surgir mais rápido que o pensamento
consciente, é mais como uma sensação inevitável.
Será que eu me apaixonei por Gabriel quando o vi entrando
naquele bar? Não é possível, esse tipo de coisa só acontece nos
livros.
— Isso parece tão absurdo.
— Você poderia ter se apaixonado assim que o viu. — Amira
piscou um olho. — Cientificamente explicando, seria mais ou menos
dizer que é desta forma que a natureza faz a seleção.
— Seleção de quê? — Eu estava me sentindo uma completa
idiota com dificuldade de acompanhar o raciocínio dela.
— Seleção natural para que a espécie se perpetue. No caso,
a paixão é quando o subconsciente mais profundo é afetado pelo
outro, você não percebe no campo da racionalidade, por isso não
entende por que está tão atraído por um desconhecido. Muitas
pessoas dizem que é coisa de “pele” ou “química”, ainda que essas
reações sejam de fatos químicas cerebrais. — Amira deve ter
notado que eu estava em choque com tanta inteligência. — Isso são
apenas conceitos que simplificam o conhecimento, não quebre a
cabeça pensando muito.
— É surreal, nunca tinha ouvido falar, mas explicaria um
pouco da atração.
— Sim, um pouco, mas a atração está muito ligada a fatores
externos, aparência em maior escala. — Ela coçou a cabeça,
pensativa. — O fato é que precisava entender por que Rafael me
afetava tanto, não era somente porque dele cuidar de mim.
— Você o ama muito, não é?
— Não poderia viver sem ele. — Amira suspirou. — Ele foi a
primeira pessoa a me enxergar, dando uma liberdade que eu nunca
tive. Com Rafael, pude escolher e fazer o que eu quisesse. Depois
compreendi que ele era as asas que me possibilitavam voar.
Não pude evitar olhar para Gabriel, ele estava rindo,
enquanto Rafael balançava a cabeça como se o considerasse um
caso perdido.
— Eu estava apaixonada desde o começo, mas eu consegui
chegar num entendimento de quando a paixão virou amor.
— Você tem explicação para isso, quero dizer, como você
sabe que virou amor?
Eu estava muito interessada naquele assunto.
— Entende-se que é amor quando a paixão acaba, mas você
ainda quer ficar. Depois, você compreende que ainda está
apaixonado. Não há ponta solta.
— Isso parece meio complicado. — Franzi o cenho, coçando
a cabeça. — Mas eu acho que estou entendendo, mais ou menos.
— Jenny, amor precisa ser cultivado, paixão não, porque ela
acaba. Quando existe amor, a paixão tem do que se alimentar.
Provavelmente fosse a primeira vez — desde que estava sem
os medicamentos — que tinha uma longa conversa, abordando
temas sensíveis sem passar mal. Meu coração seguia calmo, não
correndo como um carro sem freio do jeito que eu estava
acostumada.
A serenidade de Amira e o jeito doce que se expressava
parecia a fórmula certa daquela paz que eu sentia ao seu lado. Era
ela uma pessoa boa, se importava com sua família.
Eu queria muito ser parte de algo assim.
— Você vai para a Califórnia com Gabriel e Lysander. — Ela
ficou mais séria. — Lysander é um ano mais novo que Rafael, então
ele meio que é um dos chefes também, e acha que tem o dever de
cuidar de todo mundo. Lysander é muito observador e sincero. Ele
pode falar coisas ríspidas, mas nunca será capaz de te machucar
fisicamente. — Ela puxou o ar, depois soltou devagar. — Não tenha
medo dos homens desta casa, você está segura para recomeçar, se
for isso o que deseja.
— É tudo o que mais desejo.
— Então, deixe que o Gabriel te mostre porque o seu coração
o escolheu.
— Eu deixarei. — Uma comichão diferente começou nos
meus pés e foi subindo, era antecipação pelo futuro, pelas
possibilidades de viver coisas boas.
Desde o nosso começo, Gabriel foi incrível, então, se havia
mais uma gota de sorte para ser despejada no meu copo, eu iria
aceitá-la.
— Quando algo não te agradar, fale, não se preocupe, todos
nós a ouviremos.
— Obrigada, Amira, eu acho que você está me salvando
também.
— Não, você se salvou quando escolheu um Demonidhes
para si. — Ela piscou um olho. — Quando houver dúvidas converse
com Gabriel, mantenha a linha de diálogo sempre disponível.
— Ele me disse isso.
— Vai facilitar as coisas para todos nós. — Ela deu um
sorriso enorme. — Não se assuste, eles se provocam o tempo todo
também, e brigam às vezes. — Ela olhou para algo atrás de mim. —
Razhiel...
— Eu não esperava uma reunião de madrugada. — A voz
sonolenta do irmão que eu havia conhecido mais cedo chegou até
mim. — Vocês não deveriam estar na cama? Soube que mulheres
grávidas precisam dormir o dobro do tempo.
Ele se aproximou de Amira e a beijou no topo da cabeça,
depois ele estendeu a mão para mim. Um pouco envergonhada
coloquei a minha mão na dele.
— É um prazer revê-la, Jenny. Razhiel, ao seu dispor. — Ele
estava com os cabelos despenteados e os olhos verdes brilhando
como duas esmeraldas.
Era absurdamente lindo como Rafael e Gabriel, mas ele
possuía algo puramente aristocrático, como se fosse o legítimo rei
de alguma coisa.
— O prazer é meu. — Sorri, quando ele beijou a minha mão.
— Afaste-se, bastardo! — Gabriel empurrou o irmão,
surpreendendo-me, eu nem tinha visto quando ele entrou na
cozinha.
— E são ciumentos também. — Amira colocou a mão na
boca, disfarçando a risada. Rafael a abraçou por trás, e ela se
recostou nele.
Ele parecia divertir-se com alguma piada particular enquanto
observava seus irmãos interagindo.
— O quê? — Razhiel sorriu. — Eu não posso mais
cumprimentar a senhorita Jenny?
Eu gostava muito que eles não usassem o sobrenome
Monroe. Era repulsivo carregar algo que me ligava ao pior ser
humano da Terra.
— Razhiel, não comece — Gabriel alertou, o tom de ameaça
não me passou despercebido.
— Irmão, eu não comecei, ainda. — Ele sorriu para mim. —
Mas poderia, diga-me, Jenny, você já ouviu falar em harém reverso?
— Hum, não, digo, eu ouvi mais cedo quando você foi levar a
comida. — Ergui a mão, sentindo-me nervosa, não queria que eles
pensassem errado. — Mas foi porque vocês estavam falando alto,
eu não estava bisbilhotando nem nada do tipo, eu prometo.
— Beag, sabemos. — Gabriel entrelaçou os dedos com os
meus e eu me senti aquecida por causa disso. Depois, ele me
abraçou por trás, como Rafael fez com Amira, e eu gostei mais
ainda. — Tudo bem.
— Então, eu quero um harém reverso, o que acha? —
Razhiel apontou para seu irmão atrás de mim. — Gabriel gosta do
domingo.
Minha mente estava nublada demais, porque eu não
conseguia entender onde ele queria chegar, e isso só me fazia sentir
mais boba e sem graça no meio deles. Em todo caso, não ia deixá-
lo sem resposta, não me parecia o correto com pessoas que
estavam sendo legais para mim.
— Eu tenho que escolher um dia? — franzi o cenho. — Um
dia para você?
— Sim, escolha três dias para mim.
— Razhiel... — Senti Gabriel ficar tenso. — Eu vou quebrar a
sua cara.
— Irmãozinho, não seja egoísta, você...
As palavras de Razhiel foram interrompidas pelo murro que
Gabriel lhe deu. Tudo aconteceu tão rápido, que eu nem tive tempo
de acompanhar, apenas congelei, na cadeira, toda travada.
Razhiel sorriu, limpando o canto da boca.
— Eu disse, Rafael, ele não caiu, ele mergulhou sem
paraquedas. — Razhiel piscou um olho, pouco se importando com o
lábio partido.
— Eles brigam demais, Jenny, eu te avisei, então não tenha
medo, isso é frequente — Olhei para Amira, ela havia voltado a
comer a sobremesa.
— Vamos para a cama, temos um voo para pegar em breve
— Gabriel falou baixinho, e acenei. Depois se dirigiu ao irmão. —
Quando for para o Oriente Médio, fique por lá.
— E perder a diversão que tenho aqui? — Razhiel negou.
Gabriel me ajudou a descer do banco, antes de sairmos da
cozinha pude ouvir o início de uma conversa divertida entre Razhiel
e Amira, e a sensação de que estava sendo observada.
Era Rafael, encarando-me como se fosse capaz de enxergar
a minha alma. Eu queria correr, mas me obriguei a continuar, antes
de desviar o olhar dele o vi acenar para mim.
Tive certeza de que ele havia enxergado mais do que eu fui
capaz de esconder.
A pergunta que ficava era: quando Gabriel também iria
perceber?
34
Jenny Monroe

Gabriel estava tendo problemas no trabalho, enquanto ele


tentava organizar uma bolsa para a nossa viagem, alguém havia
ligado para ele, desde então a conversa estava sendo bastante
acalorada.
Pelo que entendi havia alguma coisa importante acontecendo
no Corpo de Bombeiros, e ele deveria ir para lá com urgência.
— Não existe tal possibilidade. — Deu de ombros, como se a
pessoa do outro lado pudesse vê-lo. — Eu estou dizendo que tenho
prioridades, agora, neste momento — ele riu, recostando-se na
porta do closet.
Por um momento, eu só pude admirá-lo vestido com uma
calça jeans desabotoada, mostrando a cueca preta colada ao corpo.
Ele estava diferente de quando eu o vi pela primeira vez. Quero
dizer, os músculos estavam bem maiores, marcando os contornos
de seu corpo grande e tornando nossas diferenças de tamanho
ainda mais gritantes.
Ele parece um caminhão do próprio Corpo de Bombeiros. Um
sentimento de felicidade fustigou meu peito, eu ri baixinho da
comparação.
— Comandante, sua ameaça é irrelevante... Faça isso então,
mande os papéis para o escritório do meu irmão, eu assinarei com
prazer.
Ele desligou o telefone, voltando para a cama. Por um
momento prendi a respiração conforme se aproximava, ainda não
estava acostumada em como ele me fazia sentir.
Era como se ao seu lado tudo fosse mais fácil.
— Compraremos roupas para você na Califórnia. — Ele se
sentou ao meu lado, pegando o tecido da camisa que eu estava
usando e o esfregou entre os dedos. — Apesar de gostar de te ver
usando as minhas.
A voz dele tinha uma profundidade atraente, era limpa, grave
e um pouco arrastada. Mexia com cada sinapse do meu cérebro e
do meu corpo e me deixava toda idiota.
— Você não precisa faltar ao seu trabalho. — Acariciei seus
cabelos super curtos, mas gostava da sensação deles entre os
meus dedos. — Podemos ver esse médico depois, seu trabalho é
mais importante.
— Nada é mais importante que você. — Aproximou o rosto
do meu. — Absolutamente nada.
— Eu posso esperar que resolva seus problemas. — Lambi
os lábios ressecados, meu coração estava acelerando com sua
proximidade, até seu perfume me deixava fora de órbita.
— Nós vamos para a Califórnia, Jenny. — Ele sorriu.
Gostava de como pronunciava meu nome, era único e ouso
dizer, íntimo. Ele arrastava as sílabas, algo como Jeaa-nie, e
parecia fofo, algo só nosso.
— Não vou cancelar nossa viagem. — Seu tom baixou, ele
estava me hipnotizando, eu sabia disso e concordava. — Necessito
ter certeza de que está bem.
— Estou. — Sabia que soava ofegante, e nem tentaria
disfarçar, sua proximidade era demais para mim. — Meu coração
pode esperar.
— Eu não posso, já te disse o quanto eu sou impaciente,
Jenny? — Ele se inclinou mais um pouco em minha direção, eu
podia ver o desenho bonito de suas íris. — Algumas coisas exigem
que eu exercite a cada segundo todo o meu controle, você gostaria
de saber quais são essas coisas?
— Tenho a impressão de que, talvez, seja melhor eu não
saber. — Seus olhos desceram para a minha boca, então voltaram a
me encarar.
O que vi em seu rosto me fez tremer inteira.
— Gabriel?
— Você está respirando difícil, Beag. — Ele traçou o contorno
do meu lábio inferior.
— Desculpe-me.
— Pelo quê? — Podia reconhecer as mudanças que iam
ocorrendo em sua voz.
Naquele momento, seu tom fazia a atmosfera parecer
eletrizante e sedutora. Eu me sentia conduzida por fios invisíveis.
Estar com ele era fascinante eu me sentia ávida por cada minuto.
— Beag, não me olhe assim — Gabriel murmurou, inclinando
a cabeça em minha direção.
Fechei os olhos, esperando ansiosamente o toque de seus
lábios nos meu, mas foi o som de sua risada que fez meu corpo
arrepiar.
— Jenny... — Ele mordiscou o lóbulo da minha orelha, eu
precisei me conter para não gemer. — Você deve pensar apenas em
você, em se recuperar. — Sua boca desceu por meu pescoço, e eu
só conseguia pensar no quanto era bom. — Temos todo o tempo do
mundo, pequena.
— Eu nunca vou embora — falei a primeira idiotice que
passou pela minha cabeça, Gabriel me deixava confortável para que
eu pudesse ser assim.
— Você não vai mesmo, porém, antes de qualquer outro
passo na direção do que iremos construir, preciso que se acostume
comigo. — Ele se afastou, com os olhos verdes sondando os meus.
— Mas eu já te conheço. — Sentia-me envergonhada, mas ia
manter os pensamentos seguros ao seu alcance, talvez isso nos
ajudasse a chegar algum lugar. — Você também me conhece.
— Antes, nós tivemos um tempo emprestado. — Ele pegou
uma mecha do meu cabelo, levando-a ao nariz. — Agora não temos
mais, o tempo é nosso. — Gabriel fechou os olhos. — Eu decidi
assumir algumas coisas, e não pretendo esconder de você, por isso
quero que me conheça e me deseje o suficiente para que não se
assuste com a intensidade do que sinto. — O jeito que seus ombros
caíram foi um pouco preocupante. — Faço coisas que a
assustariam, tenho certeza de que sairia daqui correndo.
— Eu não posso correr muito longe, você sabe, coração
moribundo. — Tentei brincar, mas ele fez uma careta. — Não se
importe, meu coração não é tão fraco quanto parece.
— Ah, Jenny. — Ele balançou a cabeça. — Não posso aceitar
que, sendo tão jovem, tenha que passar por isso. Porra, quando
encontro alguém importante para mim... — Franziu o cenho, como
se os pensamentos que o assolavam o fizessem sofrer. — Eu
pensava que as coisas seriam de um jeito, mas, quando eu te
resgatei, vi que nada seria como eu esperava. Você carrega meus
gêmeos, é muito jovem e tem um coração delicado. É foda, não é?
O que é a minha vontade diante de tantas coisas?
— Do que está falando?
Ele parecia desesperado.
— Eu tenho dado voltas com minha impulsividade porque
estou tentando não ser muito louco ao seu redor. Mas eu não te
esqueci, e eu fiz coisas... Porra. — Ele esfregou a cabeça. — Se
você soubesse o que está na segunda página, com certeza teria
medo de mim.
Gabriel era a última gota de esperança para que eu pudesse
ter um pouco de felicidade naquela etapa da minha vida. Desde o
começo, ele veio para mudar tudo, para me fazer enxergar que
pessoas como eu também poderiam ser abençoadas, e não, não me
referia a ele, mas a tudo.
Bastava olhar para trás e ver as grandes mudanças que
aconteceram, até ontem, eu estava literalmente presa; hoje, eu
podia até acreditar que nunca mais me sentiria assim. Ao que
parece, as pessoas daquela casa não usavam correntes para
prender, quem ficava era porque queria.
E eu queria muito.
— Não importa o que tem na segunda página, eu nunca vou
ter medo de você. — Toquei seu rosto, ele fechou os olhos se
inclinando para receber meu carinho. — Você não tem receio do
quanto isso está acontecendo rápido entre nós dois? Os bebês, o
modo como você parece tão confortável em dividir seu espaço
comigo. Você está me inserindo em sua vida numa velocidade
vertiginosa, não que eu esteja reclamando, mas temo que possa me
acostumar.
Obrigada por isso, Gabriel, não sabe o quanto eu estava
necessitada de ter alguém que me fizesse sentir vontade de viver.
Sorri, com o coração quente de alegria.
— Era para você estar aqui há mais tempo. — Ele retribuiu o
sorriso. — Eu sei que não quer fugir de mim, entretanto, há
momentos de tensão quando aqueles temas “censurados” surgem.
— Ele ondeou a mão, quando eu abri a boca para tentar justificar. —
Não se incomode, por enquanto estou lidando bem com a sua caixa
de segredos. Afinal, todos nós temos, e, garanto, os meus são
piores que os seus.
Eu tenho sérias dúvidas. Não lhe disse, então apenas
concordei com suas palavras.
— Eu sou um bastardo egoísta e ciumento pra caralho, mas
eu nunca vou te machucar, porque não foi para isso que te trouxe
aqui. — Gabriel me puxou para si. — Você fala o que precisa e eu
irei conseguir, seja o que for.
— Eu queria ser forte como você. — Olhei para ele. — Eu
queria não sentir medo de nada.
— Um homem como eu não pode ter medo. — Ele sorriu,
fazendo-me suspirar. — Não precisa ser forte, eu sou por você e por
eles. — Tocou minha barriga. — Porra, não imagina o que significa
para mim, Jenny.
Mesmo se eu parasse para pensar no quanto parecia
assustador a intensidade do que ele demonstrava, eu gostava de
ouvi-lo dizer.
Com ele, o desenvolvimento da relação havia feito saltos
olímpicos, e a respeito de todo o resto, não importava mais.
— Às vezes, você age como se tivéssemos uma história.
— Estamos nos braços um do outro. — Gabriel esfregou o
rosto no meu. — Você gostaria de estar em outro lugar?
— Não.
— Pois é, nem eu. — Ele olhou para a minha boca. — Você
me encanta, garota, e entre nós dois, eu era quem deveria te
preservar. Você é jovem demais para mim, inexperiente, e, mesmo
assim, foi a única capaz de me dar o que eu precisava.
— Jovem demais para você? — repeti como uma idiota,
porque sempre havia coisas nas entrelinhas. — Não importa,
Gabriel. — Ele arqueou a sobrancelha, esperando o que eu ia dizer.
— Ainda escolheria você, acima de todos os outros.
Esperei por uma resposta que não veio, então o quarto girou.
Em um instante, eu estava sentada conversando; no outro, me vi
deitada com aquele gigante ruivo em cima de mim.
— Não diga essas coisas para mim — rosnou, com o rosto
muito perto do meu. — Você não sabe como isso me deixa louco, e
é foda porque eu deveria me controlar, mas eu tenho problema com
controle.
— Eu confio em você. — Lambi os lábios, querendo que ele
visse a verdade em minhas palavras. — Eu sei que estamos tendo
que lidar com muita coisa, você teve sua vida virada de cabeça para
baixo, agora que tem dois bebês a caminho, eu não quero que se
sinta pressionado...
— Jenny, você fala como se a responsabilidade fosse sua,
mas não é. — Ele beijou minha testa. — Eu tenho trinta e dois anos,
você é jovem demais, um bebê para mim. Eu estou roubando a
porra da sua vida porque eu te quero só para mim. — Ele parecia
descontente. — Você tem a sua carreira pela frente, o mundo inteiro
para conhecer. Deveria estar mais preocupada com as suas
músicas, mas não, sua vida é um caos, está toda machucada,
apenas porque eu não pude me controlar.
— Gabriel, eu não q-quero uma c-carreira — gaguejei e ele
franziu o cenho, duvidando. — Eu quero viver em paz, ter
tranquilidade e uma vida segura. Eu amo cantar, escrever músicas,
mas não sonho com o glamour de uma popstar.
Ele negou, como se achasse tudo aquilo um absurdo.
Talvez, eu pudesse lhe contar partes da minha vida, que o
fizesse compreender minhas motivações, eu sabia que era
realmente difícil acreditar que eu estava rejeitando abertamente o
sonho dourado de muitas pessoas, afinal, quem não ia querer a
fama e tudo mais que a carreira de cantora proporcionaria?
— Quando as coisas acalmarem, eu tentarei conversar com
seu pai, ver meios para que possa retomar algumas coisas.
Deus, não! Respirei fundo, precisando abrir aquela caixa de
segredos.
— Eu vivia um inferno na minha antiga casa, meu padrasto
era louco, ele...
— Batia na sua mãe — interrompeu-me, e eu concordei.
— Gabriel, não era apenas nela que ele descarregava sua
raiva, apesar de ter predileção por machucá-la para que pudesse
me manter na linha. — Olhei para o lado, não conseguiria encará-lo
agora. — John é um disciplinador, com uma mão pesada.
O silêncio perdurou por tanto tempo que eu precisei olhar
para ele. Temia que não acreditasse em mim — sequer seria uma
novidade se isso acontecesse —, mas, na verdade, ele parecia
estar deixando minhas palavras assentarem, e, quando o fez, eu vi
a mudança acontecendo.
Gabriel se afastou, levantando-se da cama e me dando as
costas. Ele estava ereto demais, os braços caídos ao lado do corpo,
as mãos em punhos tão apertados que estavam brancas.
Eu me arrependi de ter falado demais.
— Então essa não foi a primeira vez que ele bateu em você?
— Sua voz soou inexpressiva, como eu nunca a tinha escutado.
O arrependimento bateu mais forte, e eu não podia voltar
atrás.
— Não — falei tão baixo que precisei repetir. — Não, não foi.
Sem dizer uma palavra, ele caminhou em direção a porta.
Não esperava que ele fosse sair e isso me deixou tão nervosa que
meu coração acelerou.
— Aonde você vai? — tentei não soar tão desesperada. —
Gabriel? Por favor. — Quando ele virou para mim, eu estendi a mão.
— Não vá.
Ele deve ter percebido o pavor que eu sentia porque ele
voltou para mim, puxando-me outra vez para os seus braços e
enterrou o rosto em meu pescoço, respirando fundo. Quando o
abracei, percebi que estava tremendo.
Eu não, ele.
— Cante para mim. — Suas palavras soaram abafadas. Ele
estava me apertando com força, mas tendo cuidado para não
machucar as feridas em meu corpo.
— O quê?
— Sua voz me acalma, então cante para mim, qualquer
coisa, apenas cante. — Ele afastou-se um pouco, havia algo em
seus olhos que deveria me amedrontar, mas não conseguia sentir
medo dele. — Eu quero ir lá e arremeter o seu padrasto até que ele
não saiba a porra do próprio nome, o que me impede de fazer isso é
o receio de te deixar.
Gabriel não fazia ideia de quem era John Samarco Monroe,
do quanto ele era cruel e um filho da puta covarde. Não podia
sequer imaginar o meu lindo viking no mesmo lugar que aquele
verme, o pensamento me aterrorizava.
— Prometa para mim que nunca vai chegar perto dele. —
Segurei seu rosto. — Prometa para mim.
— O quê? — Ele me olhou como se eu fosse louca. — Você
o está protegendo?
— Não, nunca. — Odiei que pensasse isso. — Mas, se ele
descobrir onde estou, minha vida vai se transformar num inferno
outra vez. Por favor, Gabriel, não se aproxime daquele miserável.
John poderia contar coisas que eu preferia morrer antes que
Gabriel soubesse. Todas as fotos nuas que ele tirou, as vezes que
me beijou, o que fez no carro naquele dia, e tantas outras coisas.
Eu não suportaria que Gabriel soubesse da minha maior
vergonha. Não suportaria que seu olhar mudasse para mim. Não
queria perder aquela normalidade, gostava do quanto tudo parecia
leve, ainda que fosse recente e frágil demais, era o mais perto da
felicidade que eu já estive.
— Ele vai me tirar daqui, eu não quero ir embora. — Não
pude esconder o medo. — Também descobrirá onde minha mãe
está, ele não vai deixá-la em paz.
— Jenny...
— Ele vai conseguir, ele sempre consegue o que quer, você
não entende...
— Jenny...
— Ele vai pedir ajuda das pessoas que...
— Jenny, me escuta! — Gabriel berrou, tirando-me daquele
ciclo de horror. — Respira devagar, eu estou em pânico de que
possa ter um infarto. — Obedeci, seguindo o ritmo que ele impôs. —
Muito bem, agora presta atenção no que vou dizer, ninguém pode te
tirar de mim. — Concordei. — Apenas você tem esse poder. Se
quiser ir deixarei que vá, mas se quiser ficar, então eu lutarei para
que permaneça ao meu lado.
— Fica comigo. — Os olhos dele queimavam com uma fúria
tão poderosa que eu tive quase certeza de que ele queria sair daqui
e encontrar John.
Não posso permitir!
— Eu estou aqui.
— Por favor, Gabriel, não chegue perto daquele homem, não
terei paz se acreditar que irá enfrentá-lo.
— Eu preciso acertar as contas com ele. — Havia tanta
ferocidade em sua voz que, por um momento, não o reconheci.
Toda gentileza e doçura se foram, restando nada mais que
determinação brutal.
— Não, você não precisa. — Segurei seu rosto,
demonstrando o quanto o rumo da nossa conversa havia me
deixado assustada. — Gabriel, me ouça, por favor, não se impor...
— Eu não vou perdoar o que ele fez com você.
— Não se importe com John! — Respirei fundo. — Ele não
vale o esforço.
— Mas você vale. — Gabriel tentou se levantar, mas eu o
segurei.
— Por favor, só deixa isso para lá, como eu quero deixar. —
Que Deus me perdoe pelo que eu vou fazer agora. — Só de pensar
em você saindo, meu coração dói, sinto como se pudesse morrer.
— Jenny, não use isso contra mim, você disse que seu
coração não era tão frágil.
— Estou sem tomar meus remédios há muito tempo, vivo
numa roleta-russa. Por favor, não me deixe mais ansiosa.
— Porra! — Ele fechou os olhos, isolando-se. — Eu sei o que
está fazendo, e, mesmo assim, estou deixando que faça. Pagando a
língua. — Balançou a cabeça. — E eu nem posso dizer que estou
surpreso. Mas eu vou pegar o desgraçado e arrebentá-lo inteiro.
Apenas não posso deixá-lo se safar por ter ousado levantar a mão
para bater em você.
Havia inflexibilidade em seu tom e isso me preocupava, pois
ele não fazia ideia do quanto John poderia ser perigoso. Aquele
bastardo não estava sozinho, ele tinha contatos, poderia querer
vingança, então todo mundo ali estaria de fato em perigo.
Por minha causa.
— Quando você me trouxe para cá, deu-me uma
oportunidade de abandonar o passado. Eu prometo superar tudo,
qualquer medo das coisas que já passei, mas eu preciso que você
me ajude a fazer isso. — Sua imagem borrou. — Eu quero
recomeçar com você, se me permitir. Por favor, não vá atrás de
John. Ele é um ser humano horrível, não suje as suas mãos; e o
principal, não volte o olhar dele para esta casa. — Gabriel respirou
fundo, ele estava lutando para se controlar. — Por favor, me ajude a
deixar o passado para trás e recomeçar. Deixe que a vida seja a
encarregada de dar a lição que o John merece.
— Então eu serei a vida para ele. — Seu rosto estava
transformado.
Ele ansiava pelo que pretendia fazer.
Meu Deus!
— Gabriel, eu estou te implorando, pedindo com todo o meu
coração para não fazer nada. Já passou, eu nem sinto mais doer.
Logo estarei cem por cento, por favor...
— Há tantas lacunas entre nós. — Ele ergueu a cabeça,
fechando os olhos. — Tantas etapas que foram jogadas fora.
Caralho, eu aceito seguir a partir daqui, considere uma cortesia,
mas se eu souber de mais alguma coisa...
— Não há mais nada, eu juro. — A mentira queimou a minha
boca como ácido. — Podemos seguir a partir daqui, não importa o
que aconteceu antes.
Ele veio para perto de mim e tocou minha barriga.
— Menos isso, essa parte aqui importa muito. — Sorri,
concordando.
— Eles são o mais importante, então vamos focar nisso, em
nós, na nossa... — de repente, a timidez foi me invadindo —
família?
— Sim, nossa família. — Ele sorriu, encarando-me. — Um
quinto de segundo, não é? — Balançou a cabeça. — Amira tinha
razão.
— Você sabe sobre isso? — sondei, lutando para não surtar,
enquanto a parte racional me dizia que ele não ouviu nada da
conversa que eu tive com ela.
— É a única explicação para o que sinto. — Ele suspirou,
segurando meu rosto e se aproximando. — Eu irei deixar o seu
passado para trás, como deseja, será como um presente de boas-
vindas para a minha vida.
Eu deveria sorrir de alívio, mas, ao invés disso, a única coisa
que fui capaz de fazer foi chorar como uma louca.
— Você é o meu presente, Gabriel. — Ele claramente estava
assustado com minhas palavras. — Mas eu aceito o que me
oferece.
— Jenny... — Ele encostou sua testa na minha. — Eu posso
te dar o mundo se desejar.
— Eu não quero o mundo. — Toquei suavemente nossos
lábios. — Eu quero você.
Ele me beijou, afogando-me em sua boca e o quanto ele era
exigente. Gabriel sabia o que ele desejava, seu toque fazia-me
lembrar de como era estar em seus braços, e ali era o único lugar
capaz de me fazer esquecer todo o resto.
— Porra, não podemos... — ele murmurou, mas continuava
me beijando. — Você é tão gostosa.
— Você também. — Estava sem fôlego, mas não queria me
afastar.
Gabriel enredou os dedos em meus cabelos, puxando-me
para o beijo mais delicioso que já compartilhamos. Sem pressa, ele
brincou com a língua, fazendo um vai e vem suave, depois
mordiscou meu lábio inferior, gemendo baixinho, safado.
Ele me deixava tonta quando fazia isso.
— Beag, não podemos continuar — murmurou, distribuindo
beijos por meu rosto.
— Por que não?
— Você já está ofegante e nós temos que ir ver o médico.
Depois, tem que se recuperar de todos esses machucados. — Ele
respirou fundo, roubando-me um beijo rápido. — E eu preciso me
lembrar disso.
— Pode esquecer e me beijar até que eu desmaie, não vou
reclamar. Eu juro. — Levei a mão ao peito, em garantia. — Posso
aguentar mais um pouco.
— Guarde essa vontade para quando estiver fora de perigo.
Quando puder, vamos incendiar a porra desse quarto. — Ele
segurou meu queixo, beijando-me uma última vez. — Vou matar a
saudade de estar todo enterrado na sua boceta apertada.
— Gabriel! — Engasguei-me de ver como ele tinha coragem
de falar essas coisas assim, tão de repente. Meu rosto estava
pegado fogo, na verdade, meu corpo inteiro estava.
— E o melhor é que não vamos precisar de proteção. — Ele
se levantou, alguém estava batendo à porta. — O que eu vou fazer
com você vai escandalizá-la, espero que depois não queira fugir. —
Ele ajeitou a ereção pesada, o volume quase saindo pela borda da
cueca. — Como você me deixa. — Ele fechou o zíper da calça,
ajustando o botão.
Depois, foi atender a porta, enquanto eu estava me sentindo
desorientada com o quão rápido ele se tornava um devasso.
Caramba.
Era como se, de repente, fizesse quarenta graus naquele
quarto.
— Jenny, você tem visita. — Gabriel voltou como se nada
houvesse acontecido. Era injusto que ele pudesse aparentar
indiferença quando havia acabado de falar coisas tão obscenas. —
Amira, pode entrar, ela está aqui.
Tentei me arrumar antes que ela entrasse. Primeiro ouvi as
patas de Corso fazendo barulho no chão, depois Amira apareceu
carregando uma mochila e uma mala pequena.
— Eu preparei para você. — Ela empurrou a mala em minha
direção. — Você vai precisar dessas coisas. E do que coloquei aqui.
— Estendeu a mochila. — Boa viagem, estarei te esperando quando
voltar.
Antes que Amira pudesse sair, eu fui até ela e a abracei.
— Obrigada por se importar comigo.
— Você é da família, e nós cuidamos uns dos outros.
Naquele momento, eu tive certeza de que estava no lugar
certo, e que, se eu fosse cuidadosa e demonstrasse o quanto tudo
aquilo era importante para mim, eles pudessem ver que havia valido
a pena me acolher.
Mãe, você vai adorar essas pessoas. Pensar nela me deixou
ainda mais feliz, eu sabia que logo estaria aqui.
Olhei para Gabriel e de fato, ele era o anjo que havia me
salvado.
35
Jenny Monroe

Estava tentando com muito afinco não me sentir tão


deslocada, mas era impossível. A cada curva nessa nova realidade,
o abismo entre mim e Gabriel se mostrava cada vez maior.
O sentimento de que não pertencia àquele lugar era enorme
e as pessoas não tinham nada a ver, porque todos que conheci
foram acolhedores. O negócio era certeza de não merecia estar
num lugar tão bonito, que mais parecia saído de um conto de fadas.
Não esperava que a propriedade fosse tão gigantesca,
rodeada por árvores a perder de vista, com jardins belíssimos e
espaço com ambientes minimalistas saídos de revistas de design.
Como eles achavam que poderiam proteger tudo isso? Olhei
ao redor, incapaz de acreditar na possibilidade.
Era ainda pior quando eu imaginava que tudo ali ia muito
além do que John poderia sonhar, e a certeza de que, se ele
soubesse onde eu estava, então encontraria um meio de tirar
proveito daquelas pessoas que haviam me salvado e estavam
sendo tão boas para mim.
— Não pareça tão impressionada. — Gabriel enlaçou a
minha cintura, beijando o topo da minha cabeça. — Meu irmão fez
uma casa assim, porque, caso contrário, nenhum deles moraria
comigo. Algo grande o suficiente que pudesse comportar todos os
irmãos e ainda deixar espaço para que não nos encontrássemos
quando o clima esquentasse. — Ele segurou meu queixo com
gentileza, eu o olhei. — Você percebeu que somos temperamentais,
as brigas ocorrem com frequência.
Isso porque, pelo que entendi, faltava conhecer dois irmãos.
O médico era um deles e eu estava ansiosa, pois queria notícias
que apenas ele poderia me dar.
— Por que não queriam morar com você?
Era um absurdo pensar nisso, porque Gabriel era a pessoa
mais incrível que eu havia conhecido na minha vida.
— Eles me consideram um pouco irritante e desorganizado
— suspirou. — Uma mentira, se eu tenho algo a dizer.
— Você não é irritante coisa nenhuma, na verdade te acho
incrível demais — apressei-me em dizer. — Você só é um
pouquinho desorganizado. — Coloquei dois dedos na frente de um
olho, Gabriel fez uma careta. — Mas não importa, eu vou arrumar
tudo que você bagunçar. — Coloquei a mão em seu peito,
prometendo.
— Não vai não, você vai descansar, sua gravidez é de risco
— suspirou. — Rafael vai terminar a transição da nossa Matriz,
então, os empregados de lá, virão para cá.
— De onde você é? Eu percebo um sotaque de vez em
quando, e seu inglês é muito rápido e diferente.
— Meu pai é russo, os negócios da família estão sendo
transferidos para a América, nos últimos anos.
Não me surpreendia, Gabriel era uma caixinha de surpresa
inacreditável. Cada coisa sobre ele era mais interessante, e me
instigava a querer saber mais.
— Você é um gigante russo então. — Sorri, ele negou.
— Eu sou um gigante irlandês. Apenas meu pai era russo.
— Meio-sangue — brinquei, e ele acenou.
— Exatamente.
Por isso, às vezes eu não compreendia muito bem algumas
palavras do que ele dizia, o inglês dele era rápido demais, algumas
frases soavam quase incompreensíveis, porque óbvio que seu
idioma era afetado pelo inglês britânico.
— Minha mãe é de Porto Rico. — Ele sorriu, parecendo
surpreso. — Ela veio tentar a carreira de cantora aqui quando tinha
dezesseis anos, ela me teve aos dezessete.
— Você não tem contato com o restante de sua família? —
Gabriel parecia bem interessado em saber tudo sobre a minha vida,
e eu queria contar.
Pelo menos, a parte que não era proibida.
— Minha mãe fugiu de casa, eles nunca a aceitariam de
volta, e ela nunca tentou voltar.
— Por acaso saberia qual o sobrenome deles?
— Não, minha mãe nunca contou. — Franzi o cenho, porque
aquela parte da minha história era confusa até para mim. — Depois
que fugiu de casa, ela adotou um nome artístico, depois trocou por
Grenadine, que era o do meu pai biológico, depois o Monroe quando
se casou com John, na primeira oportunidade, eu vou mudar para o
Grenadine, não quero o Monroe de jeito nenhum.
Gabriel ia me dizer algo, porém seu irmão chegou com um
carro enorme e preto, acho que ele nos levaria para o aeroporto.
— Vamos fugir? — Razhiel piscou um olho para mim e o seu
sorriso me fez corar. Ele era lindo demais, porém não mexia com
meu coração como Gabriel.
Na verdade, ele era alguém que me passava tranquilidade,
nada como Rafael, que parecia um lobo assustador.
— Razhiel, cesse as piadas!
— E perder toda a diversão? — O sorriso aumentou. — Veja,
Jenny, ele está com ciúmes, não parece legal?
Olhei para Gabriel, ele encarava o irmão como se pudesse
fuzilá-lo. Mas, quando ele virou a cabeça e seus olhos pousaram em
mim, se tornaram suaves e gentis.
Senti-me até fraca com o carinho que eu percebi transbordar.
— Não é legal, Razhiel, por favor, não provoque seu irmão.
— Não seja um estraga-prazeres, você não imagina como o
seu bastardo infernizou Rafael, agora é a vez dele. — Se possível o
sorriso de Razhiel aumentou. — Jenny, você se prepara porque eu
vou te sequestrar e deixar meu irmão louco.
— Não me envie numa caçada, irmão. — Gabriel rosnou,
pressionando-me ainda mais de encontro ao meu corpo. — Ela é
minha e carrega meus filhos, encontre uma para você.
— Por quê? Se você dividir, esses bebês terão dois pais,
imagine as reuniões escolares...
— Bastardo! — Gabriel riu, eles estavam em meio a alguma
coisa ali.
— É isso, irmãozinho, agora é só aceitar.
— Do que estão falando?
— Nada, Beag, meu irmão é um provocador.
— Posto que era seu, até ser pego pelas bolas. — Razhiel
colocou óculos escuros, e só faltava os fotógrafos para que ele
pudesse estrelar qualquer campanha publicitária.
Como é que uma família era tão linda daquele jeito? Todos
que eu havia conhecido sem exceção eram modelos de capa, Amira
parecia uma obra de arte, linda demais, os traços angelicais que
combinavam com a voz macia e suave.
— Onde estão Lysander e Heylel? — Gabriel perguntou ao
irmão.
— Verificando um paciente e passando instruções para
Rafael, ele irá ficar em casa.
— Perfeito.
Olhei de um para o outro, eles estavam encarando-se
mutuamente como se pudessem conversar por telepatia.
— Vamos, eu vou levar vocês para o jatinho, o piloto e os
comissários já tiveram acesso ao hangar.
Gabriel abriu a porta do carro e me ajudou a subir. Eu esperei
que se sentasse ao meu lado, como normalmente John fazia, mas
ele colocou a mochila e a bolsa pequena ao invés disso.
— Obrigada. — A verdade era que eu odiava carros, por
todas as lembranças horríveis que traziam.
— Jenny, você gosta de cães? — Razhiel perguntou de
repente e eu agradeci, porque temia o rumo dos meus
pensamentos.
— Sim.
— Quando voltar da Califórnia, se tudo correr como
planejado, terá uma surpresa. — Razhiel sorriu pelo retrovisor.
— Você poderá escolher um. — Gabriel virou para mim. —
Se você quiser, é claro.
— Eu quero. — Não pude esconder a emoção, eu amava
animais, porém tinha uma queda enorme por cães e gatos.
John odiava gatos e cachorro. Depois que o meu morreu, ele
nunca mais me deixou ter outro.
— Então você escolherá um filhote. — Gabriel piscou um
olho, voltando a olhar à nossa frente. — Talvez goste da paisagem.
Eu pensei que nós fôssemos para o aeroporto, mas, por
enquanto, seguíamos por uma estrada ladeada por palmeiras. Não
havia nenhuma outra casa pelas redondezas.
— Nosso terreno construído possui quarenta e dois mil
metros quadrados — Razhiel quebrou o silêncio, certeza de que ele
deve ter notado o quanto eu estava deslumbrada com tudo aquilo.
— Mas Rafael comprou os terrenos laterais e do fundo. Temos uma
área de mais de cem mil metros.
Gabriel não parecia nem um pouco impressionado.
— Quando pretende iniciar a construção das casas dos
empregados?
— Eu terminei os projetos ontem, por isso não consegui
dormir, o seu irmão é um explorador. — Razhiel balançou a cabeça.
— Boris chegará aqui com a família ainda nesta madrugada, ele
ficará no setor leste da casa, onde tem as casas de apoio. Vou
começar a construir assim que voltar do encontro no Oriente Médio.
— Espere, você é construtor, Razhiel? — ele concordou. —
Eu pensei que fosse cozinheiro.
Sua risada ecoou pelo carro, Gabriel o acompanhou.
— Eu sou engenheiro e arquiteto, cozinhar é meu hobby.
— Ele herdou isso do nosso pai. — Gabriel cruzou os braços.
— Razhiel é um nerd dos pés à cabeça, ele e Amira adoram fazer
cálculos juntos.
— Eu não acompanho o ritmo de Amira, apenas Heylel
consegue, e com esforço.
—Amira não faz pintura?
— Também. — Gabriel sorriu para mim. — Mas ela é PhD em
física nuclear e sei lá mais o quê.
— Você está brincando comigo? — Olhei de um para o outro.
— Gabriel, você é alguma coisa além de bombeiro?
— Armador.
— O quê? — Minha voz falhou, porque, diante daquelas
pessoas tão incríveis, o que eu tinha para agregar? Porra nenhuma!
— Eu sou especialista em explosivos.
— Engenharia de armamento — Razhiel completou.
— Então, por que você é bombeiro? — A conversa não
estava sendo problema, mas eu já sentia o coração acelerando e
isso afetava minha respiração diretamente.
— Beag, eu e o fogo temos uma relação de longa data. — Eu
pude ver o divertimento em seus olhos. — Além do mais, ficar
sentado numa mesa diante do computador não é algo que eu
consiga fazer. Sou muito agitado, preciso de ação e adrenalina.
Desenhar armas é tão enfadonho que eu provavelmente dormiria.
— Minha nossa, você é incrível! — Não pude disfarçar a
admiração que eu sentia por Gabriel, ele era tantas coisas.
Enquanto eu não era nada.
— Obrigado pelo elogio. — Seu sorriso até aumentou. — Mas
eu e meus irmãos nem falamos por aí que eu faço isso, porque
todos sabem que eu não me importo. É só uma formação inútil e
que me pareceu fazer sentido na época.
— Você constrói armas, como isso pode ser inútil?
— Eu construo, mas principalmente bombas, por que eu
preciso saber como desmontá-las entendeu? — Concordei,
finalmente achando o ponto da questão. — O Corpo de Bombeiros
não é chamado apenas para quando tem algum incêndio? E não
seria esquadrão antibombas quem deveria resolver esses
problemas?
— Eu também faço parte do esquadrão antibombas, Beag.
Não soube o que dizer, pois uma sensação ruim me tomou.
Imaginar que era ele quem tirava as pessoas do risco, ficando no
lugar delas, doía em um lugar profundo e que também havia sido
recém-descoberto no meu coração.
— Jenny, não pense demais. — Gabriel estendeu a mão para
mim. — Eu sou bom pra caralho no que eu faço.
— E ele é uma pessoa ruim, gatinha. — Razhiel piscou o olho
através do retrovisor. — Pessoas ruins são difíceis de morrer,
acredite.
— Gabriel não é uma pessoa ruim. — Tentei não soar
grosseira. — Ele é a melhor pessoa que eu conheço, não diga isso
dele.
Razhiel deu uma risadinha, parecia divertir-se com a situação
enquanto Gabriel balançava a cabeça. Estava nítido para mim que a
conversa tinha mais de um sentido, o que eu compreendia era o
real.
Eu não era a pessoa mais esperta do mundo, mas os anos
de convivência com John me deixaram mais atenta para
compreender narrativas com margem para várias interpretações. A
diferença é que aqui eu não tinha medo.
— Jenny? — O toque em minha perna fez-me prestar
atenção neles. Eu tinha uma tendência a perder-me em
pensamentos, agora parece que havia piorado.
— Não pense demais. — Gabriel estendeu a mão, eu aceitei.
— Está tudo bem, e agora que te encontrei não vou a lugar algum,
confie que estaremos juntos para ver os nossos pirralhos correndo
por aí.
O som de assovio que Razhiel fez me lembrou de algo caindo
e se espatifando no chão.
— Pare a piada. — Gabriel parecia incomodado com aquilo.
Seja lá o que fosse.
A resposta de Razhiel veio em outro idioma, não o inglês
acelerado e que eu sequer compreendia algumas palavras.
— Sim, está bom para você? Há muito tempo. — Gabriel
relanceou o olhar para mim.
— Que idioma é esse? — Não me senti mal por perguntar,
tampouco por Razhiel ter preferido usar uma língua que eu não
conhecia.
Sequer falava espanhol, a língua oficial de Porto Rico, e
minha mãe não havia se preocupado em me ensinar, porque ela
estava ocupada demais sobrevivendo.
— Gaélico irlandês. — Gabriel não tirava os olhos de mim,
era como se estivesse preocupado com o fato de eu me sentir
excluída. — Meu pai nos obrigou a aprender todos os idiomas que
circulam em nossa família.
— Quais seriam? — Tentei não começar a sacudir o pé, a
ansiedade já começava a dar sinais de que estava chegando.
— Não se incomode com isso. Prometo que não falarei em
outro idioma na sua frente, meus irmãos também não o farão.
— Não seria mais fácil ensiná-la, não gostaria de aprender?
— Razhiel parou o carro, virando-se para mim. — Jenny, nosso pai
foi insuportável com questões de educação, ele basicamente nos
obrigou a enfiar a cara nos livros e nos treinamentos de...
— ... sobrevivência — Gabriel completou.
— Ele era preocupado com o rumo das coisas ao redor do
mundo, por isso queria que soubéssemos nos proteger.
— Seu pai com certeza era um homem incrível. — Foi só o
que me ocorreu dizer.
Já havia ficado claro para mim o quanto aqueles irmãos eram
unidos. Eles serem estupidamente inteligentes parecia parte do
pacote.
Eu que era idiota.
— Quais idiomas vocês falam, além do inglês?
Achava que com esforço e empenho eu poderia aprender.
Queria fazer parte do que eles tinham. O que vi Amira ter.
Razhiel sorriu para mim.
— Todos nós falamos russo, gaélico, turco, dinamarquês,
essa é minha língua materna, italiano e espanhol. Mas Rafael,
Lysander e Heylel falam mais alguns.
— Meu Deus do céu! — Minha cara deve ter ido no chão. —
Não sou inteligente a esse ponto. — Uma risada histérica escapou.
— Eu só fiz o ensino médio.
— Você é inteligente. — Gabriel franziu o cenho, como se
não aceitasse que eu menosprezasse a mim mesma. — Você sabia
que algumas pessoas aprenderam de fato a ler e escrever depois
dos quinze? Eu, por exemplo, tenho alguns problemas para manter
atenção e o foco, fui bem ruim nos meus treinamentos, até meu pai
encontrar um meio de me ajudar.
— Sério? — Não conseguia imaginar Gabriel sendo ruim em
algo.
Ele era perfeito.
— Sim, eu passei por épocas insuportáveis, vendo meus
irmãos avançando e eu não. Portanto, se eu aprendi, você com
certeza também pode, escolha qual idioma prefere e eu irei
providenciar as aulas.
— Eu quero aprender o seu.
— Gaélico. — Ele abriu um sorriso enorme, como se
estivesse satisfeito com a minha escolha. — Depois, vou te ensinar
russo, a língua do meu pai.
— Eu posso te ensinar a tocar violão, se quiser.
— Eu quero. — Razhiel piscou um olho, então ficou sério. —
Jenny, eu fiz uma busca por você ontem na internet e percebi que
seus perfis estão abandonados. Pretende manter isso, ou...
Não era minha culpa, mas eu tinha vergonha da minha antiga
vida.
— O meu padrasto tem os acessos, eu não posso mexer —
murmurei, sentindo o familiar desconforto por ter que trazer John à
tona. — Com certeza, ele irá excluir tudo. — Senti os olhos ardendo,
mas, então, não importava. O agora era melhor. — Não tem
problema, eu estou recomeçando. — Olhei para Gabriel, ele estava
sério demais. — Eu posso recomeçar os perfis também, estou feliz
agora, inspirada. Posso fazer.
— Recomeçar? — O jeito que Razhiel me olhou deixou claro
que ele me achava doida. — Seu perfil é muito lucrativo e com o
escândalo mais pessoas estão consumindo seus conteúdos. Você
sabia que tem uma música que bateu cem milhões de acessos?
— Não tinha autorização para ficar verificando isso. — Odiei
como minha voz soou embargada. — Mas eu posso recomeçar de
verdade, não tem o menor problema.
Um silêncio constrangedor me fez ter vontade de sair dali.
Parecia que, enquanto tentava ir editando partes do meu passado,
uma hora ou outra essas mesmas partes voltavam pra bater na
minha cara.
— Jenny, você vai recomeçar sua vida aqui comigo e minha
família. — Gabriel segurou meu queixo com gentileza, eu o olhei. —
Mas não aceitarei que perca nada. Eu vou recuperar tudo de volta.
— Não precisa, eu não me importo. — Balancei a cabeça,
mantendo o sorriso no lugar. Mas sua imagem começou a embaçar,
e eu não pude disfarçar.
— Mas eu me importo. — Sorriu, e foi o mais bonito e incrível
sorriso que eu já vi. — Você vai ter tudo de volta, Jenny, e então
pode decidir o que fazer.
— Obrigada.
Ele piscou um olho, e o carro voltou a se mover.
Não dissemos mais nada, e eu voltei a minha atenção para o
caminho que fazíamos, aos poucos as árvores e jardins foram
substituídos por uma área aberta, em que havia um rio belíssimo.
Com certeza, o pôr do sol deveria ter de outro mundo.
Então, alguns minutos mais adiante avistei uma imensa
construção que me lembrava um galpão.
Quando nos aproximamos, eu não acreditei no que vi.
Três jatinhos estavam enfileirados, sendo que dois estavam
sendo abastecidos e verificados.
— Chegamos. — Razhiel estacionou na área reservada para
os carros. — Vou retirar as malas, apressem-se, os outros estão
vindo.
Ele saiu do carro, deixando-me sozinha com Gabriel. Eu não
queria parecer tão abismada, mas como evitar? Pessoas normais
não tinham garagem com aviões, menos ainda com três deles.
— São só coisas, Beag. — Gabriel fazia parecer mais
simples do que era. — O que importa de verdade é a família. O
resto não.
— Eu não tenho nada, eu sou na...
— Pare, não gosto do rumo que essa conversa está
tomando. — Ele saiu do carro, vindo até o meu lado para me ajudar
a descer. — Vem comigo.
Para onde quiser...
— Quero te ver recuperada. — Acariciou meu rosto,
segurando-me com cuidado.
Ele me tratava como se eu fosse quebrar. Talvez por causa
dos hematomas que ainda coloriam a minha pele.
— Eu também.
— Quero poder fazer algumas coisas agora que tenho você
comigo.
Meu coração acelerou, as borboletas dançaram na minha
barriga só com a mera possibilidade de tudo que iríamos viver.
— O que você quer fazer comigo? — Apoiei as mãos em seu
ombro.
— Quero ver como anda seu espírito aventureiro.
— Com certeza morreu no parto. — Sua risada fez coisas
boas comigo. — Sério, na sua vida inteira não vai conhecer alguém
mais covarde que eu.
— Não diga isso, Beag, você me escolheu, isso foi muito
corajoso da sua parte.
— Por acaso você não tem espelho, Gabriel? — Um arquear
de sobrancelha disse-me que sim, ele sabia do que eu estava
falando. — Você é o homem mais bonito que eu já vi na minha vida.
— Mentindo para mim de novo?
— Não. — Sacudi a cabeça. — Você e seus irmãos são as
pessoas mais bonitas, Amira também.
— Eu vou esperar que veja Lysander, então retornaremos a
essa conversa. — Ele deu um tapinha na minha bunda e a felicidade
que me dominou por eu não sentir repulsa foi incrível. — Aquele
bastardo está no topo.
— Lysander é o médico?
— Sim. — Estreitou os olhos. — Por falar nele.
Pude ouvir o ronco de um motor potente, e então um carro
esportivo se aproximou até estacionar do nosso lado.
Quando eu prestei atenção no motorista, meu cérebro
simplesmente deu pane. Eu fiquei sem palavras.
Ele estava de óculos escuros, combinando com os cabelos
negros como a noite. A barba bem-feita emoldurava a face de anjo
caído. Ele vestia preto e a blusa de gola alta e mangas compridas
era colada ao corpo, marcando os músculos.
Aquele homem era mais alto que Gabriel e Razhiel.
— Bom dia, Lysander.
— Bom dia. — Sua voz era diferente de todas as outras. Mais
grave, profunda e macia. — Jenny Monroe, finalmente nos
conhecemos apropriadamente.
Eu tive medo.
Foi tão natural quanto respirar. Aquele irmão era o que
deixava mais próxima da ansiedade que John me causava. Era
como se ele escondesse uma personalidade cruel sob várias
camadas de indiferença e refinamento.
Como eu havia notado? Ele não se importou em esconder.
Queria que eu soubesse.
— É um prazer conhecê-lo, Sr. Demonidhes. — Ele não
respondeu ao meu cumprimento, e demorou tanto para aceitar que
eu senti o rosto esquentando de vergonha.
Talvez, não houvesse aceitado a ideia de ter uma intrusa na
sua casa.
— Obrigada por cuidar da minha mãe. — Ele soltou minha
mão, por um momento pensei que ele fosse limpá-la na calça. Mas,
para a minha humilhação não ser tão grande, ele não o fez.
— Ela irá se recuperar. — Suas palavras serviram como uma
bomba de alegria. Antes que eu pudesse pensar direito, eu o
abracei.
— Obrigada, obrigada, por ajudá-la, ela é tudo para mim.
— Jenny! — Gabriel me puxou de volta, colocando-me atrás
dele. — Irmão...
Percebi que havia cometido um grave erro. Lysander parecia
não ter se movido, suas mãos estavam no mesmo lugar, mas havia
um esgar de nojo em sua boca. Devagar demais, eu o vi retirar os
óculos, e, então, sim, eu estava diante do segundo homem mais
bonito que eu já havia visto na minha vida.
Os olhos verdes pareciam insondáveis, como se ele
ocultasse segredos tão terríveis quanto os meus.
Só que, naquele caso, ele era o causador dos pesadelos.
— Lysander... — Gabriel chamou outra vez, ele o olhou.
Seus olhos estavam escurecendo, mas nada de sua postura
mudou.
— Nunca mais faça isso. — Sua voz continuou macia, mas
eu percebi claramente a merda que fiz ao abraçá-lo.
— Lysander. — Outra vez Gabriel tentou chamar sua
atenção, mas ele estava focado em mim, como se eu fosse algo
perigoso.
— Desculpe, desculpe, eu não quis... — murmurei,
envergonhada de ter sido tão invasiva. — Eu não quis incomodá-lo.
Ele me olhou por alguns instantes a mais e, mesmo que eu
estivesse com Gabriel sendo um escudo, ainda podia sentir ondas
de animosidade vindo em minha direção.
— Em breve conversaremos, Jenny Monroe — ele falou de
modo tão superior, que eu encolhi. — E então eu saberei se você é
o que meu irmão acredita que seja. Espero que não esteja
escondendo nada.
Um arrepio de pavor subiu por minha espinha. Ele ia saber
que eu era uma mentirosa.
Meu Deus...
— Foda-se, Lysander, se você não parar com essa merda eu
não vou ficar aqui! — Gabriel vociferou. — Não vou tolerar que trate
Jenny assim.
O alívio quando ele parou de me olhar foi tanto que me senti
fraca. Então, como se nada houvesse acontecido, ele pegou uma
bolsa de couro no banco de trás do conversível.
— É bom que sua mulher saiba onde pisa. — Sem um olhar
para trás, encaminhou-se para o avião.
— Ele me odeia. — Pude respirar melhor assim que ele
sumiu de vista.
— Lysander odeia todo mundo. — Pela primeira vez, Gabriel
pareceu-me cansado. — Não é você, o problema foi como eu fiz as
coisas. Eu errei desde o começo, Jenny, e o meu irmão não tolera
erros.
— Não diga que você errou. — Testei um sorriso, queria que
ele se sentisse melhor. — Você me salvou, não ache que isso foi um
erro.
— Não essa parte, Beag. Lysander é metódico demais, se ele
achar que alguma coisa está fora do lugar vai ficar em cima disso
até que sua loucura seja apaziguada. Geralmente, ele só faz o que
acha que é melhor para nós, e nesses casos apenas sua opinião
importa. — Gabriel beijou minha testa. — Por mais que meu irmão
seja tão direto e infeliz em suas palavras, ele nunca vai te machucar,
ele também te salvou.
Eu podia lidar com uma pessoa que falava o que pensava ao
invés de agir com pretextos e subterfúgios. Era tudo que eu queria,
a verdade escancarada, mesmo que fosse unilateral e doesse.
— Você não vai se chatear se eu disser que tive medo dele?
— Não vou, porque, às vezes, até eu tenho.
E eu não sabia se isso me fazia sentir melhor. Afinal, Gabriel
era o meu herói. Se ele tinha medo de algo, então eu deveria ter
cuidado para nunca ficar no caminho de seu irmão.
Os planos de me tornar invisível dentro daquela casa teria
que funcionar, pelo menos para Lysander.
— Eu não deveria ter invadido o espaço dele, eu não faço
isso. — Respirei fundo. — Mas todos me trataram tão bem que eu
pensei... Desculpe, Gabriel, eu errei feio.
— Você tem que se sentir confiante sim para fazer o que
quiser. Não se importe, Jenny, Lysander é diferente, mas ele vai
lidar com isso, afinal ele vai te ver muito. — Gabriel sorriu. — Heylel
está chegando, ele também é um cúmplice nas minhas put...
loucuras.
Uma moto estava se aproximando. Quando Heylel chegou
por ali e desceu da moto, eu precisei olhar bem para cima porque
aquele irmão era alto, mais do que qualquer um dos outros.
Até Gabriel perto dele parecia pequeno.
Observei suas mãos tatuadas, então ele retirou o capacete.
— É você! — Não pude evitar o choque.
— É um prazer reencontrá-la. — Ele sorriu, a cicatriz no rosto
repuxando um pouco. — Espero que meu irmão esteja cuidando de
você e dos meus sobrinhos como se deve.
Como no dia em que nos conhecemos, ele estendeu a mão
para mim, rapidamente aceitei. Os olhos de duas cores pareciam
tão gentis que meu coração enterneceu por ele e pelo que ele deve
ter passado para adquirir aquela marca no rosto.
— Ele está cuidando sim, obrigada.
— Você está segura aqui, sabe disso, não é?
— Sei sim.
— Mas se, por acaso, ele te chatear, me chame que eu terei
prazer em arrebentá-lo para você.
— Obrigado por isso, irmão. — Gabriel me abraçou. — Você
faz parecer como se eu não fosse capaz de te surrar também.
O sorriso de Heylel aumentou, eu notei que suas presas eram
um pouco maiores que o restante dos dentes. Eu achei que
combinava com o piercing na sobrancelha e os alargadores nas
orelhas.
Era como se cada detalhe de seu rosto estivesse
harmonizado com a figura impactante que ele representava.
E por Deus, como ela bonito.
— Estamos prontos, senhor. — Um homem uniformizado nos
chamou.
— Nos vemos em breve. — Heylel piscou um olho. — Quer
algo do Oriente Médio?
— O quê?
— Você quer que eu traga algo para você? — Heylel tirou a
mochila do ombro. — Amira quer algumas tintas específicas, e
você?
— Eu? — Olhei para Gabriel, ele apenas deu de ombros. —
Não sei. Mas obrigada por perguntar.
— A surpreenda, irmão. — Gabriel pegou a minha mão. —
Vamos.
— Até breve. — Heylel acenou, e eu não pude evitar de
retribuir com um sorriso.
Ele era um gigante, com a voz grave e arranhada, tatuado,
com cicatriz na face e piercing, mas que, diferente do outro, não me
passava aquela sensação de medo.
Na verdade, ele me deixava segura, sua aceitação ainda
mais. Reencontrá-lo ali, apenas fomentava a certeza de que Gabriel
e sua família eram especiais, pois Heylel também havia me ajudado
no dia particularmente difícil.
— Boa viagem, Heylel. — Acenei, entrando no avião.
Assim que eu avistei Lysander, a tensão voltou para o meu
corpo.
Eu não queria pensar que passaria as próximas horas perto
dele.
36
Jenny Monroe

Gabriel estava concentrado no desenho que ele desenvolvia


no tablet. Durante os primeiros minutos de voo, ele ficou ao meu
redor, perguntando se eu estava confortável, se queria algo, e se
estava me sentindo bem de um modo geral.
Toda sua atenção me encantava, e eu não lembrava de uma
época que estivesse suspirando por alguém. Gabriel era o primeiro
em quase tudo e vê-lo ali, ao meu lado, trabalhando no seu projeto
era hipnotizante. Sequer conseguia desgrudar os olhos de seu perfil
impecável.
Ele era tão bonito que doía.
— Beag, não fique me olhando assim. — Ele sorriu, mas não
desviou o foco da tela.
— Assim como? — Sorri, estava com o queixo apoiado na
mão, os olhos pregados nele. — É bom olhar para algo tão
espetacular.
— Jenny! — rosnou baixo.
— Não estou fazendo nada. — Inclinei para ele, falando em
tom confidencial. — Você está desenhando o quê?
Era fácil fingir que estávamos apenas nós dois ali. Seu irmão
havia escolhido uma poltrona atrás de mim, e ele não emitia
nenhum som. Acreditava que pudesse estar dormindo, afinal vida de
médico era bastante corrida.
Depois, quando as luzes baixaram criando um ambiente
íntimo e particular, eu pude enganar a mim mesma dizendo que era
somente eu e Gabriel naquela viagem.
— Estou reajustando um projeto de uma bomba de
fragmentação. — Ele sorriu. — Veja aqui. — Ele indicou a tela com
uma caneta de desenho. — Esse dispositivo é proibido, é uma arma
de destruição em grande escala.
— Por quê? — Ouvi-lo falando era tão bom, eu poderia ficar
assim para sempre.
A voz dele possuía escalas que iam flutuando conforme sua
empolgação, quase podia enxergar as notas de melodia ao nosso
redor. Era estranho, mas a voz de Gabriel possuía notas calmantes
para mim, porque seu tom era sempre muito macio, aveludado.
— Jenny, você está me ouvindo?
— Hum? — Busquei seus olhos, ele estava divertido. —
Estou te ouvindo.
— É mesmo, e o que eu disse?
— Que o dispositivo é de destruição em grande escala. —
Arqueei a sobrancelha.
— E depois? — Ele desligou o tablet.
A atenção de Gabriel se voltou totalmente para mim. Ele
desafivelou o cinto, e antes que eu pudesse entender sua intenção
ele me puxou para seu colo.
— Você é tão pequena, Jenny — ele murmurou contra o meu
cabelo. — Eu adoro isso.
— Eu não sou pequena, você que é um gigante.
— Um metro e meio, Beag, você é um pigmeu.
— Gabriel! — Fingi indignação. — Eu tenho um metro e
cinquenta e sete.
Ele começou a rir de um jeito tão gostoso, que eu não pude
evitar acompanhá-lo. Em um dia ao seu lado, a vida havia saído de
um inferno para o céu, era maravilhoso.
“Deus, permita que eu possa retribuir toda felicidade que ele
me proporciona”, desejei ardentemente, enquanto recebia as
vibrações de sua risada feliz.
— O que é tão engraçado? — Cutuquei seu peito. — Eu
tenho um tamanho adequado, você que cresceu demais, aliás todos
os seus irmãos. Seu pai era um gigante, tenho certeza.
— Sim, ele possuía mais de dois metros, como Heylel —
Gabriel suspirou, nostálgico. — Ele era um pai incrível, Jenny. Se eu
for para os nossos filhos, metade do que ele foi, nossos bebês serão
muito felizes.
— Você é incrível também, Gabriel. — Acariciei seu rosto,
notando que seus olhos foram escurecendo. — Você salva pessoas,
não titubeou antes de me salvar antes e agora. — Mordi o lábio,
então suspirei, tirando mais uma camada de proteção. — Você não
faz ideia do que significa para mim, tudo que fez mudou algo aqui.
— Toquei a minha cabeça. — E aqui. — Repousei a mão no
coração. — Eu prometo que nunca vou te magoar.
— Você vai cuidar do meu coração, senhorita Grenadine? —
O sorriso que ganhei foi o mais bonito, porque pareceu iluminar tudo
ao redor.
Gabriel sabia que eu não suportava o sobrenome Monroe, eu
disse para ele apenas uma vez. Sua sensibilidade aqueceu-me.
— Eu vou, como você está cuidando do meu. — Ele fez
careta. — Você entendeu.
Era um assunto que o abalava. Ainda que eu garantisse que
não estava ruim — na tentativa de tranquilizá-lo —, Gabriel sempre
parecia assustado.
— Gabriel, eu nasci com isso, estou firme e forte há dezoito
anos. Não se preocupe, meu viking, eu não vou a lugar algum.
— Quinze horas que estamos juntos, e eu sinto que o tempo
está passando rápido demais. — Ele inclinou. — Quero você, Beag,
e não vou admitir que escape de mim, agora que te tenho.
Se fosse qualquer outra pessoa dizendo aquilo, eu iria correr,
mas era Gabriel, e o sentimento que eu tinha era de pertencimento,
encontro e mais um sem-fim de coisas que significavam conexão.
Confiava nele com cada fibra do meu ser. E eu o protegeria
também.
— Eu não sou uma boa corredora. — Pisquei um olho,
sentindo-me feliz por estar com ele. ­— Com suas pernas de dois
metros, em duas passadas você me alcança.
— E o que eu faria quando te pegasse? — Ele ajustou-me
em seu colo, podia sentir que estava ficando excitado. — Você me
enviaria numa caçada, eu aceitaria o desafio e então, quando eu te
pegasse, como seria?
— Eu posso não correr, mas sei me esconder. — Ele deu
uma risada, parecia genuinamente divertido.
Era isso que eu queria.
— Jenny, o que te faz pensar que pode se esconder de mim?
— Eu posso tentar. — Ele inclinou a cabeça em minha
direção. — O que foi?
Sem dizer uma palavra, Gabriel esfregou o nariz no meu
cabelo, ele respirou fundo, descendo para o meu pescoço, como se
estivesse mapeando-me de alguma forma.
— Eu te sinto — murmurou, arrepiando-me inteira. — Eu te
vejo, Jenny, e por mais que eu seja esse bastardo louco, eu estou
reajustando tudo para que você seja feliz comigo.
— Gabriel...
— Estou louco para te beijar. — Fechei os olhos. — Mas eu
quero que você peça, ou melhor, que exija meus beijos.
— Você pode me beijar quando quiser. — Sentia o ar mais
pesado. — Você pode qualquer coisa, Gabriel.
— Eu posso, tem certeza? — Um meio sorriso desenhou-se
em seus lábios bonitos.
— Sim, quando eu te escolhi você deixou claro o tipo de
homem que era, eu só não imaginava que você fosse tão incrível. —
Toquei sua barba. — O que começou como uma necessidade,
terminou sendo a melhor coisa da minha vida.
— Porra, Beag, não fala assim. — Ele fechou os olhos, mas
as sobrancelhas estavam franzidas como se algo o preocupasse. —
Eu sou um filho da puta, e isso não é no sentido literal. — Havia
certa fúria em suas palavras. — Mas o nosso começo não vai
determinar a maneira que iremos prosseguir. Você merece mais,
Jenny, e eu vou te dar isso.
— Não precisa me dar nada, eu...
— Eu vou te mimar. — Até ele pareceu surpreso com suas
palavras. — É isso, eu vou te mimar, e você vai perceber o quanto é
importante.
Eu já percebo, Grandalhão...
— Sua vida será boa, Jenny, confortável, segura, feliz. Não
importa o que virá a seguir, garantirei que você nunca mais tenha
medo.
— É mais do que eu jamais sonhei ter. — O abracei apertado,
enterrando o rosto em seu pescoço. — Obrigada, Gabriel, por me
escolher também.
— Você é minha, acho que era só uma questão de tempo até
eu ir te buscar. — Sua mão deslizou por minhas costas com carinho.
— Eu ia te buscar, e acho que não demoraria muito.
Seu cheiro me deixava tonta, eu o apertei mais, adorando
tudo que estava falando, pois, desta forma, ele me fazia entender
que não foi apenas pelas crianças que ele me salvou.
Gabriel me queria, e isso significava que, em algum
momento, ele iria me tirar de John.
— Parece que você está admitindo coisas demais,
irmãozinho. — A voz de Lysander me deixou gelada, e toda aquela
bolha de intimidade entre mim e Gabriel foi estourada bruscamente
quando ele se sentou diante de nós. — Hoje me parece um bom dia
para esclarecimentos.
— Agora não. — Percebi que a postura de Gabriel mudou,
ele me colocou de volta em minha poltrona ao seu lado, e inclinou-
se para o seu irmão. — Você prometeu.
Lysander olhou para Gabriel, pelo que pareceu uma
eternidade, depois deu de ombros, voltando seu olhar para mim.
— Não é apenas sobre as suas vontades, irmão. — Não
havia nenhum tom amistoso em sua voz, e o jeito superior que ele
me olhava, fez toda aquela sensação de inferioridade voltar ainda
pior. — Existem muitas coisas envolvidas, e, enquanto eu não tiver
as minhas dúvidas sanadas, eu não irei descansar. — Seus olhos
estreitaram. — Por isso, diga-me, Jenny Monroe, você sabia quem
era meu irmão quando aceitou trepar com ele?
— Lysander!
Sua pergunta foi como um soco e ele não se importava do
quanto poderia me deixar constrangida. Não havia nenhuma veia
acolhedora naquele homem.
— O quê? — Desviou o olhar para Gabriel, e eu percebi o
clima esquentando entre os dois.
— Eu respondo, não tem o problema, por favor, eu respondo.
— Ergui as mãos, parecia que Gabriel, estava a ponto de partir para
cima do irmão. — Tudo bem, eu respondo.
— Você não precisa passar por um interrogatório. — Seu
olhar suavizou quando o direcionou a mim, depois toda sua
expressão mudou quando ele focou no irmão. — Ela é minha, não
responderá a você, bastardo!
— Sua, minha, de todos nós. — Lysander abanou a mão,
como se aquilo fosse nada. — Você sabe como funcionam as
coisas, Amira está perto de ter o bebê, e por sua responsabilidade
tivemos que colocar uma completa estranha dentro da mesma casa
que ela, por isso, enquanto eu não estiver seguro de que ela não vai
causar problema, eu não irei sossegar.
Gabriel levantou, Lysander também. Eu tinha certeza de que
eles iam brigar, e por mais que eu me apavorasse com isso,
precisava deixar claro que eu não tinha nenhuma intenção de trazer
problemas para a família.
Na verdade, era a última coisa que eu queria, e em partes,
Lysander tinha razão, eu também desconfiaria das intenções de
qualquer desconhecido, e era isso que eu era para eles.
— Por favor, não briguem. — Toquei no peito de Gabriel outra
vez, tomando o cuidado de não fazer o mesmo com Lysander. —
Vamos conversar, tudo bem? Eu respondo suas perguntas, até que
qualquer dúvida seja sanada. Eu não me importo. Por favor, vamos
sentar-nos de novo, sem brigas.
Não pude evitar o medo e o tremor na voz, atos de violência
como aquele mexiam com a minha cabeça, e diferente do que
aconteceu entre Gabriel e Razhiel mais cedo na cozinha, tinha
certeza de que tudo o que acontecesse ali seria brutal.
Lysander emanava uma energia tão violenta, que contradizia
sua aparente indiferença. Sabia que ele não ia desistir do que
procurava, e não importava o que Gabriel achasse daquilo.
— Eu não conhecia o Gabriel. — Como nenhum dos dois deu
sinal de que iriam acolher meu pedido, eu achei melhor trazer o foco
de Lysander para o que lhe interessava. — Nós conhecemos no bar
do hotel, um homem estava me importunando porque eu estava lá
sozinha.
— Você não precisa fazer isso, Jenny. — Gabriel tocou meu
ombro, chamando minha atenção. — Você não precisa.
— Tudo bem, não tem problema. — Testei um sorriso,
querendo que ele ficasse tranquilo. — É sempre bom manter o canal
do diálogo aberto, você disse isso.
— Eu estava falando de nós dois. — Seu olhar voltou-se para
o seu irmão. — Eu não vou perdoar o que você está fazendo,
Lysander.
— Eu posso lidar com isso sem o menor problema. —
Sentou-se na poltrona de modo elegante, cruzando uma perna e os
braços. — Então, continue com sua historinha.
Concordei, sentando-me também.
— Gabriel me ajudou, mas eu não sabia quem ele era. —
Engoli em seco, achando que não tinha problema editar partes da
história. — Depois, nós ficamos juntos.
— Meu irmão sempre teve o hábito de usar proteção. — Seu
olhar estreitou. — Mas, inexplicavelmente, foi sob circunstâncias
estranhas que você engravidou. Diga-me, você fez algo com as
camisinhas?
— Vá se foder, Lysander.
— Eu não fiz!
— É quase improvável engravidar com o uso de
preservativos. — Arqueou uma sobrancelha. — As chances são de
dois por cento.
— Eu...
— Porém, ainda são chances, eu aceito — ele me
interrompeu, e eu suspirei aliviada. — Por outro lado, eu não
acredito que meu irmão tenha caído nessa pequena probabilidade,
em vista do que ele normalmente fazia, as chances de aparecerem
filhos perdidos seriam altas.
— Filho da puta! — Gabriel esmurrou o irmão, mas, diferente
do que aconteceu com Razhiel, que havia recebido o golpe,
Lysander o deteve com a mão, balançando a cabeça
negativamente.
— Não inicie algo que não tem condições de terminar. — Sua
voz soou tão gelada que eu temi por Gabriel. Nenhum dos outros
me deixou tão em pânico assim, nem mesmo Rafael. — Eu estou
lhe dando a cortesia de conversar com ela na sua frente, por isso
controle o temperamento, irmão. Quando chegarmos em casa, eu
lhe darei a chance de extravasar sua ira.
— Eu vou esperar ansioso.
— Não briguem por minha causa. — Respirei fundo, sentindo
o coração começando a doer. — Por favor, não vale a pena.
— Você vale muito a pena — Gabriel rebateu, segurando
meu rosto. — Nunca duvide disso.
— Não esperava que você ficasse pior que Rafael em tão
pouco tempo. — Ele olhou o relógio, num gesto que complementava
sua provocação. — E nem fazem vinte e quatro horas.
Lysander parecia tão confortável naquela sua redoma
impenetrável de autossuficiência.
Eu nunca havia encontrado alguém tão consciente do poder
que possuía, nem mesmo Gabriel, que a meu ver era indestrutível.
— Voltando ao que importa. — Seu olhar se voltou para mim,
e eu quis desparecer. — Então, Jenny Monroe...
— Chame-a apenas de Jenny — Gabriel interveio mais uma
vez, e eu me senti ainda mais protegida, pois ele sabia que eu
odiava meu sobrenome.
Passar pela sabatina de seu irmão mais velho, era o mínimo,
diante tudo que ele já havia feito para mim. Lysander estava
preocupado, e eu não podia culpá-lo por isso, quando eu mesma
tinha medo de John e do que ele faria se descobrisse onde eu
estava.
— Eu não fiz nada com as camisinhas.
— Sabe, Jenny Monroe, quando eu levo em consideração
todos os aspectos do que aconteceu entre vocês, eu insisto em
perguntar.
Ele nem piscava, estava tão focado em mim que eu precisei
lutar para não sair correndo. Não havia para onde fugir, e,
dependendo do rumo da conversa, eu ia mentir, como eu fiz com
Gabriel.
O que poderia acontecer?
— Pergunte o que quiser. — Respirei fundo, tentando não
deixar transparecer o desconforto no peito.
— Você pretendia engravidar do CEO da Universal Record’s
e conseguir o seu contrato, corrija-me se eu estiver errado.
Eu não soube o que responder porque seu tiro foi quase no
alvo, e mesmo que houvesse coisas pelo meio, não deixava de ser
horrível.
— Não eram meus planos. — Falar mais que isso, seria
como entregar em suas mãos o fio do novelo. Ele iria puxar até
descobrir que eu havia tentado abortar e, quando eu fosse explicar,
meu passado viria à tona.
Eu preferia morrer antes que Gabriel descobrisse, porque eu
poderia suportar qualquer coisa, menos que ele mudasse comigo ou
me olhasse com raiva e decepção.
— Então, quais eram os seus planos?
— Suportar o final de semana. — Ergui o queixo. — Eu não
tinha planos, apenas desespero, e foi Gabriel quem me salvou. — O
aperto suave em minha coxa tranquilizou-me, eu não estava
sozinha.
Talvez nunca mais estivesse.
— De quem foi a ideia de explanar o aborto na mídia? No
Estado de Nova York essa prática é legal, você sabia? — ele falou
as palavras tranquilamente. — Abortar é um direito adquirido no
estado em que vivemos, por que, então, jogar na mídia e causar um
escândalo que afetaria diretamente a sua carreira?
— Porque eu não queria abortar. — Assim que as palavras
saíram da minha boca, o canto de seu lábio arqueou e a expressão
“te peguei” foi tão clara que eu soube que ele estava deixando-me
perceber.
Foi como se o tempo parasse, e eu esperei que ele dissesse
algo.
— Jenny foi espancada por proteger meus filhos! — Gabriel
se exaltou mais uma vez. — Você não vai continuar importunando-a,
Lysander.
— Tem razão. — Para meu total horror, ele se levantou. — Eu
já consegui o que queria.
Naquele momento, eu soube que havia cruzado a linha.
Lysander me mostrou a realidade que garotas com o meu passado
sempre vão olhar por cima do ombro.
Eu precisava voltar para o meu lugar, essa era a verdade.
— Jenny, olha para mim. — Gabriel tocou meu queixo com
gentileza. — Eu disse que poderíamos recomeçar daqui, e nós
vamos. Não importa o que aconteceu antes.
— Eu quero tanto isso — murmurei, aceitando quando me
puxou para o seu colo, abraçando-me apertado.
— Você vai ter isso. — Sua voz soou abafada e carregada de
verdade. — Você vai ter tudo. As coisas mudam, e as pessoas
também.
— Só não fazem isso num piscar de olhos. — A voz de
Lysander pareceu divertida. — Menos ainda com pessoas que
desconhecem. Ninguém aqui acredita na velocidade de sentimentos
tão ridículos e que causam dependência. E Gabriel, você ganhou o
pacote completo, aceitando-o sem questionar. Nada mais que isso.
— Você não sabe o que diz, Lysander!
— Deixarei que você lide com as consequências de suas
omissões, irmãozinho, então veremos se eu não sei o que digo.
Fechando os olhos, eu me encolhi no abraço de Gabriel. Seu
irmão tinha razão, e as omissões da qual falava era porque ele
havia captado a minha mentira.
Gabriel não, porque ele simplesmente não queria enxergar, e
eu sabia que era porque ele me queria. Não importava o quanto foi
rápido. Amira tinha uma explicação para tudo que estávamos
sentindo.
— Eles não sabem, Jenny — sussurrou no meu ouvido,
causando-me arrepios. — Mas, você me salvou também quando
lutou por nossos filhos e me deu um novo propósito.
— Você me salvou antes. — Senti a voz embargando. —
Nunca duvide disso.
— Então, talvez, juntos, possamos nos curar também. — Ele
sorriu. — Farei as coisas direito para você, e então, talvez, perceba
o quanto é importante para mim.
— Eu já percebo, você não esconde.
— Pois é, algo me diz que você precisa que levemos as
coisas tranquilas e que eu seja transparente, então eu serei. —
Piscou um olho. — Posso até ser a porra de um bruto, mas nunca
serei com você. Sabe que nunca te machucaria, não é?
— Sei, e confio a minha vida a você.
— Confia o seu coração também. — Seu sorriso aumentou.
— Não importa que estejamos juntos há tão pouco tempo, garanto
que isso não importa. Eu gostei de você quando te encontrei.
— Um quinto de segundo — falei timidamente. — Eu
acredito.
— Agora eu também.
— Então, ignore meu irmão, ele vai aceitar que você veio
para ficar, ou nós fugiremos.
— Você não seria tão louco.
— Ah, eu seria sim, você não faz ideia. — Percebi que estava
falando a verdade. — Meus irmãos também sabem disso. No
momento certo, você vai descobrir quem é Gabriel Demonidhes, até
lá vamos apreciar a viagem.
Eu não pensei um segundo, antes de puxar seu pescoço e
beijá-lo.
Ambos gememos pela justiça do ato, pelo prazer tão visceral
e profundo. Todo meu corpo amoleceu em seus braços, ele me
puxou ainda mais, apertando-me o suficiente para fazer o
machucado nas costas doer.
Não tinha problema algum desde que ele não parasse de me
beijar.
Por muitos anos, a dor foi minha companheira, e agora que
podia desfrutar do que era o verdadeiro prazer, não me importava
que eles caminhassem de mãos dadas.
Se para ter um precisava do outro, era isso que eu teria com
Gabriel, eu queria tudo. Sentia sua barba me pinicando, a língua
molhada e macia instigando-me a repetir seus gestos.
— Eu vou te chupar assim — rosnou antes de chupar minha
língua. — Is liomsa an sásamh.[8]
— O quê? — arquejei, pontos pretos piscando diante dos
meus olhos.
— E o prazer será meu. — Ele deu um sorriso tão devastador
que eu senti a calcinha molhando. — O prazer, Beag, será todo
meu.
Quando eu entendi o que ele quis dizer, a ansiedade de viver
aquilo outra vez explodiu a minha mente.
— Posso ver em seus olhos o quanto deseja isso. — Acenei,
porque não tinha condições de dizer nada. — Então, em breve, eu
vou realizar esse desejo. — Ele se aproximou do meu ouvido,
sussurrando: — E todos os outros que você tiver.
Ele me beijou outra vez até eu sentir que o mundo estava
apagando.
Agarrando-me a Gabriel, tentei não desmaiar, lutando muito
duro para me manter com ele, para sentir cada vez que sua língua
acariciava a minha, que ele me chupava, brincando, provocando.
Mas o meu coração idiota tinha outros planos, acabei
perdendo o agarre no homem dos meus sonhos.
Tudo ficou escuro.
37
Jenny Monroe

Alguma coisa estava fora do lugar. Uma sensação de


entorpecimento fazia com que meu corpo parecesse anestesiado.
Eu era consciente de cada parte, mas não conseguia me mexer.
— Isso, Beag, volte para mim. — Aquela voz linda soava tão
angustiada que eu não pude fazer outra coisa se não obedecer.
Antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo,
havia percebido que não sentia mais angústia respiratória, pela
primeira vez em muito tempo, respirar era uma tarefa muito fácil.
Meus olhos pesavam, mas, seguindo aquela voz insistente,
eu pude finalmente abri-los.
— Oi, linda. — Gabriel sorriu, parecendo tão aliviado que um
pouco da palidez acentuada que marcava seu rosto diminuiu.
Era incrível como ele parecia ainda mais ruivo. Seu cabelo,
criando um halo de fogo ao redor de sua cabeça. Era de fato um
deus Viking, que havia descido do céu para me abençoar com sua
presença.
— Você é tão bonito. — Sorri e ele retribuiu, os olhos verdes
brilhando. — O que é isso? — Toquei meu rosto, estranhando a
máscara de oxigênio.
— É para te ajudar a respirar melhor. — Gabriel beijou minha
mão, colocando-a em seu rosto. — Eu nunca estive tão preocupado.
Creio que nunca mais irei te beijar, ou fazer qualquer coisa parecida.
Celibato, acho que vai funcionar para nós dois.
— O que aconteceu? — Olhei a redor, constatando que
estávamos num quarto de hospital.
— Tivemos tanta sorte, Beag, meu irmão te socorreu quando
você desmaiou. Graças a Deus estávamos perto de pousar, então,
meu irmão fez os procedimentos de primeiros socorros e uma
ambulância estava te aguardando na pista de pouso.
— O quê? — Ele parecia tão assombrado. — Seu irmão me
ajudou? Por que ele faria isso?
— Porque você pertence a Gabriel. — A voz de Lysander fez
um arrepio subir por meu corpo. Não foi algo agradável, mas eu
tentei disfarçar. — E porque leva as nossas crianças na barriga.
Ele não disfarçou a ênfase, deixando claro que aqueles
bebês eram desejados não apenas pelo pai, mas por todos.
— Eu desmaiei, e o que aconteceu depois? — Talvez, Ignorar
Lysander fosse o melhor, ele me aterrorizava demais.
Eu tinha certeza de que Lysander era do tipo que fazia as
pessoas se arrependerem amargamente por ousar afrontá-lo. Por
isso, ia tentar de todas as formas ficar bem longe do seu radar, ser
invisível para ele, mesmo eu tendo certeza de que ele não ia
facilitar.
Ele era um dos mais velhos, respeitado e só fazia o que
queria. Era uma responsabilidade minha aprender a lidar com sua
desconfiança.
Talvez, ele me esquecesse quando notasse o quanto eu era
inofensiva.
— Seu coração, ele ficou lento demais. — Lysander se
aproximou da minha cama, eu me obriguei a não divagar. — Quase
teve uma parada, o seu marcapasso segurou a onda, mas, ele
sozinho, não vai aguentar por mais tempo.
Então, finalmente havia chegado o momento que eu havia
desejado tanto tempo atrás. Era apenas uma grande merda que,
quando eu tinha motivos para viver, meu coração decidisse fazer o
contrário.
Depois de tudo que passei nas mãos de John, quase morrer
por causa de beijo era no mínimo revoltante.
— Quais remédios você toma, Jenny? — Lysander não usou
o Monroe e eu agradeci por isso. — Você tem um especialista na
sala ao lado esperando para te atender, eu irei participar de cada
etapa do processo de avaliação e exames, não se preocupe, eu
cuidarei de você.
— Você? — Não pude evitar a surpresa era melhor que o
medo flagrante. — Mas você me odeia.
— Posso lidar com as contradições dos acontecimentos
recentes, sugiro que faça o mesmo.
Okay, ele não negou, mas, pelo menos, deixava claro que
não gostava de mim, era mais fácil lidar com alguém sincero do que
com um falso. Eu acreditava que qualquer golpe que Lysander fosse
me dar, ele caminharia em minha direção, sendo assim eu o veria
chegando.
Para mim estava ótimo.
— Tudo bem. — Respirei fundo, gostando da forma que o ar
passava pelos meus pulmões com facilidade. — Nossa, a sensação
é tão boa. — Fechei os olhos, puxando o ar várias vezes e soltando.
Antes que eu me sentisse mais estranha na presença de
Lysander e desconfortável com aquele seu olhar fixo, a porta abriu e
um homem entrou.
Ele estava de jaleco, possuía uma expressão de eu te mato,
se sair da linha.
— Que bom que finalmente acordou. Eu sou o Dr. Ezdra
Milanni, serei o responsável por mapear o seu coração. — Ele se
aproximou de mim, verificando os sinais vitais nos aparelhos, e o
que havia anotado em seu dispositivo eletrônico.
Esperei que estendesse a mão em cumprimento, mas não o
fez. Na verdade, ao invés de olhar para mim, sua atenção foi para
Gabriel.
— Obrigada, doutor — eu disse.
— Como se sente, senhorita Grenadine?
Imediatamente busquei Gabriel, ele sorriu, acenando. Mais
uma vez, ele comprovava o quanto era incrível e sensível.
Deus, eu não o mereço.
— Me sinto muito bem, não lembro de quando foi tão fácil
respirar — respondi com um sorriso. — Não sei se é por causa da
máscara, mas sinto-me ótima, de verdade.
Pela primeira vez, o médico sorriu, diminuindo um pouco da
sua expressão mal encarada.
— Isso é ótimo. — Ele puxou um aparelho que estava
conectado em mim. — Seus batimentos estão moderados, e a
saturação está ótima. Agora que acordou, podemos conversar e
iniciar a maratona de exames.
— Faz muito tempo que não tenho ido ao cardiologista. —
Franzi o cenho, tentando me lembrar da última vez.
A certeza que eu tinha era de que foi antes do inferno na
minha vida começar. Inevitavelmente, havia separado minha vida
em duas etapas: a antessala do inferno e o inferno real.
Não havia uma época feliz para me lembrar.
— Antes disso você era acompanhada por um médico
regularmente? — Ele pegou uma caneta digital, estava anotando
tudo no tablet. — Jenny?
Era seguro responder isso? Será que eu conseguia mantê-los
longe das zonas censuradas. Era tudo tão conectado que me
parecia impossível.
— Jenny, por favor, responda tudo. — Gabriel pegou a minha
mão, olhando-me com tanta expectativa que eu senti o coração
palpitando. — É importante para que eu possa cuidar de você e dos
nossos bebês.
Não havia outra solução, não podia desapontar Gabriel, além
do mais, naquele momento, era primordial que minha saúde ficasse
ótima, só assim eu poderia gestar meus filhos em paz.
— Eu não era acompanhada por um médico, as minhas
consultas eram aleatórias, em plantões de urgência. — Olhei para o
médico. — Foi assim, até meu padrasto considerar que eu estava
saudável o suficiente, devido a ausência de crises perceptíveis.
Um pesado silêncio se seguiu. Eu não olhei para Gabriel,
tampouco para o seu irmão. Mantive-me atenta somente ao Dr.
Milanni e às suas perguntas.
— Quando você colocou o marcapasso?
— Eu lembro-me de ter feito a primeira troca com doze anos,
e foi nesse período a mudança dos medicamentos. — Mordi o lábio.
— Mas perderam o efeito, por isso parei de usá-los.
Porque eu acreditava que, com sorte, meu coração iria me
ajudar a sair daquela vida miserável.
— Você está me dizendo que a única coisa que mantém seu
coração funcionando é um marcapasso que está mais do que na
hora de ser trocado?
— Sim.
— Você está quase no limite para uma nova troca, levando
em consideração a extensa sobrecarga que a bateria vem sofrendo.
— O doutor balançou a cabeça. — Você tem consciência de que
não sofreu um enfarto por que teve sorte?
— Eu tenho dezoito anos, Dr. Milanni, sou jovem para ter
esse tipo de coisa.
— Você realmente acha isso? — Lysander cruzou os braços.
— Você realmente acredita que, com um coração tão frágil, estaria
livre de ter um enfarto?
A mentira veio na ponta da língua, mas eu desisti. Já havia
notado que mentir para o irmão de Gabriel era uma péssima ideia.
— As minhas crises estavam mais frequentes e dolorosas, eu
reparei nisso, tenho que admitir. Já estava bastante complicado
fazer coisas normais e eu me sentia cansada o tempo todo,
sonolenta também.
— Porra, Jenny! — Gabriel vociferou, assustando-me, porém
nem mesmo assim meu coração acelerou. A sensação pareceu-me
fascinante e muito surpreendente. — Você poderia ter morrido.
— Eu estou bem. — Estendi a mão para ele, tocá-lo me
acalmava.
Gabriel havia se tornado um porto seguro, eu confiava nele
para que as coisas funcionassem da melhor maneira possível, ele
sempre garantia isso.
— Vamos ver. — O doutor balançou a cabeça. — Cada crise
pode prejudicar as cavidades do seu coração, além de quê, com o
tempo, poderia desenvolver uma arritmia maligna, não daria tempo
de você ser socorrida.
— Mas isso não aconteceu, e agora eu vou receber
acompanhamento, cuidarei muito bem da minha saúde.
— Eu vou garantir isso. — Gabriel esfregou o cabelo. —
Tenha certeza.
— Ótimo. — O doutor franziu o cenho. — Quais
betabloqueadores você usava?
— Metropolou, 12,5 mg uma vez ao dia e bisoprolou, 1,25 mg
uma vez ao dia. — Eu li aqueles nomes por tantas vezes que era
impossível esquecê-los. — Tomava esses medicamentos com essa
dosagem desde o início do tratamento, até perceber que não
surtiam mais efeito.
— Durante esse tempo, você fez adequações na dosagem?
— Não, comecei com ela, seguiu-se a mesma pelos anos
seguintes.
— Por isso que não surtiam efeito. Neste momento, você está
usando mais que o dobro dessa dosagem. — O Dr. Milanni
continuou anotando os dados no seu tablet. — Devido as condições
que chegou aqui, fiz uma associação com os bloqueadores dos
canais de cálcio e antiarrítmicos. Agora seu coração está sob
controle, sua bradicardia aparentemente controlada e por isso está
respirando tão bem.
— Eu tenho fibrilação ventricular também. — Olhei para
Gabriel e ele franziu o cenho, confuso. — Bradicardia são os
batimentos lentos, fibrilação são batimentos descoordenados e mais
acelerados. Eu tinha indicativo para uso de Cardioversor, mas não
fiz nenhum tratamento.
— Cardioversão elétrica externa?
— Sim, eu não sei se poderia fazer implante por causa do
marcapasso.
— É realmente uma situação complicada. O cardioversor
desfibrilador implantado poderia afetar o marcapasso, danificar a
bateria e causar danos permanentes. Por isso, a indicação do uso
externo. — Ele olhou para Lysander. — Mediante a situação, irei
chamar uma cardiologista pediátrica que irá realizar exames
específicos para avaliar a saúde do coração dos bebês.
— Ela com dez semanas. — Lysander interveio. — Eu irei
cuidar disso pessoalmente quando o tempo chegar, até lá quero
saber sobre a condição de Jenny e o plano de tratamento, eu irei
seguir com ele.
— Você irá acompanhar a gestação?
— A gestação e a evolução da saúde dela. Farei isso,
juntamente com uma equipe de Nova York.
— Okay, então, vamos seguir a partir daqui. — Ele retirou a
máscara de oxigênio do meu rosto. — Respire fundo. — Obedeci,
sentindo a mesma sensação confortável, era como se tudo
estivesse macio dentro de mim. — Muito bem, começaremos seu
mapeamento com um ecocardiograma, depois partiremos para a
ressonância magnética cardíaca, ela pode ser realizada durante o
primeiro trimestre — ele disse para Lysander, como se fosse para
ele a quem deveria se dirigir.
— Eu irei acompanhar. — Gabriel pegou minha mão outra
vez. — Ela é minha mulher, eu vou participar de tudo.
Meu coração acelerou mediante suas palavras, o aparelho
apitou e todos na sala perceberam.
— Não vamos tumultuar. — Lysander pareceu-me cordial,
mas a meu ver era um sorriso lupino. — Eu irei, e não se preocupe,
irmãozinho, vou cuidar da sua mulher, como se ela fosse minha.
— Se você queria me tranquilizar, garanto que fez justamente
o contrário. — Gabriel balançou a cabeça. — Não podemos ir
todos?
— Melhor não — Lysander proferiu, parecia tranquilo demais.
— Eu preciso ver as imagens e acompanhar todo o procedimento
em tempo real, você fica nervoso com facilidade. Eu e Milanni
precisaremos ir discutindo o que for sendo descoberto, você vai
tornar tudo mais difícil se as coisas não saírem como você deseja.
Afinal, irmão, quer ou não que eu esteja a par de tudo? — Ele sabia
que tinha um ponto.
— Caralho, Lysander. — Gabriel esfregou os cabelos,
respirando fundo como se precisasse de controle. — Eu juro que te
mato se...
— Já disse que terá sua oportunidade, agora decida, eu não
tenho o dia todo. — Cruzando os braços, ele sabia que não
tínhamos opções.
Gabriel me olhou e, por mais que eu quisesse pedir que ele
fosse comigo e não me deixasse sozinha com seu irmão, não tive
coragem. Não queria causar problemas para ninguém, e Lysander
não me parecia do tipo que aceitava que algo ficasse entre ele e
seus desejos.
Ele ia bater até conseguir o que queria.
— Tudo bem para você? — Gabriel repousou a mão em meu
rosto.
— Sim, está tudo bem. — Fechei os olhos, colocando a
minha mão em cima da dele. — Eu estou ótima, obrigada por me
proporcionar isso.
— Beag...
— Senhor Demonidhes, precisamos ir — o Dr. Milanni
chamou, ele foi até a cadeira de rodas que havia no canto da
parede, trazendo-a para perto da cama. — A sala de exames já está
sendo preparada.
Gabriel me ajudou a sentar na cadeira. Ele teve cuidado para
não deixar nada à mostra através do vestido hospitalar, e ainda teve
a sensibilidade de colocar uma manta nas minhas pernas.
— Obrigada por tudo isso, Gabriel. — Toquei seu rosto,
enquanto ele terminava de ajustar o tecido nas laterais da cadeira.
— Eu cuido do que é meu, aprenda a lidar com isso mulher.
— Piscou um olho.
Não conseguir parar de sorrir feito uma idiota.
— Está pronta para irmos? — o Dr. Milanni perguntou,
abrindo a porta. Eu ergui o polegar.
Eu e Gabriel o seguimos, até a área em que o acesso era
permitido apenas para pessoas autorizadas.
— Eu te esperarei aqui. — Ele baixou na minha frente, os
olhos verdes sondando os meus.
— Eu não demoro. — Sorri, na tentativa de amenizar o medo
que sentia de ficar sozinha com Lysander.
Gabriel me deu um beijo na testa, antes de se afastar. Engoli
em seco quando Lysander tomou seu lugar, empurrando a cadeira.
Antes que pudéssemos nos afastar, a voz do meu viking soou:
— Irmão, por favor...
— Eu entendi. — Assim que a porta se fechou atrás de nós,
Lysander tocou meu queixo com uma gentileza surpreendente.
Ergui a cabeça, para olhá-lo. — Eu sei que você mentiu para o meu
irmão sobre a questão do aborto, e eu vou deixar isso em off até
que esteja pronta para contar.
Um dedo gelado desceu por minha espinha.
Como ele sabia?
— Eu não... — Tentei emendar com alguma desculpa, mas
ele me interrompeu.
— Posso detectar uma mentira a quilômetros, eu poderia
enumerar as verdades que contou, verdades e mentiras, e eu
garanto, Jenny Monroe, que eu não erraria nenhuma das vezes.
Não quero saber suas motivações, mas não vou permitir que
continue mentindo para o meu irmão.
— Lysander...
— Todos nós odiamos mentiras, mas Gabriel é especialmente
mais duro com elas. Ele abomina na verdade, então conte tudo o
mais rápido possível, ou eu contarei.
Vi que não adiantava mais negar.
— Você não vai me deixar recomeçar em paz, não é? —
Minha voz embargou. — Eu precisei tentar porque... — Senti os
olhos enchendo de lágrimas. — Eu precisei, Lysander.
— Não importam suas motivações, você vai contar a verdade
para Gabriel, e então, sim, recomeçar como se deve.
— Ele vai me odiar, não é?
— Houvesse pensado antes, você teve a oportunidade de
começar fazendo as coisas do jeito certo, optou por mentir, agora
lide com isso. — Ele voltou a empurrar a cadeira por um corredor,
então entramos numa sala e o Dr. Milanni nos deixou a sós. —
Deixo claro que o problema não é o ato em si, mas a grande mentira
que meu irmão caiu, ele acredita que você é uma heroína, que lutou
pelos filhos dele, e agora quer te recompensar por isso. Nós
sabemos que não foi bem assim, e você vai contar a verdade.
— O que eu fiz para que me odeie tanto?
— Você é insignificante demais para que eu tenha
sentimentos tão fortes, mas eu cuido da minha família, eles são
minha responsabilidade, e não importa o que eu tenha que fazer,
Jenny, eu farei.
— Mas eu nunca te fiz nada, Lysander!
— Mas vai fazer para Gabriel. — Lysander estreitou os olhos.
— Meu irmão não merece que minta para ele, e, o pior, você não faz
ideia do que essas crianças significam para ele. Isso vai muito além
do que qualquer problema.
— Você não imagina os meus motivos. — Minha voz quebrou
em meio a um soluço. Lysander me pegou nos braços,
surpreendendo-me com a gentileza de seus gestos. Com cuidado,
ele me colocou numa maca de exames.
— Então os conte para mim. — Estávamos tão perto que eu
podia ver auréolas azuis em meio ao verde de seus olhos.
Ainda pensei em contar tudo, mas não conseguia colocar
para fora. Apavorava-me que aqueles irmãos soubessem das
humilhações que passei. Eu acho que nunca mais conseguiria
encará-los.
— Não contarei. — Ergui o queixo, estava tremendo. —
Nenhum de vocês sabe o que é não ter escolha, vocês têm
segurança, nasceram em berço de ouro com um pai que os amava,
não fazem ideia do que é...
— Você nos julga como se tivesse alguma propriedade para
definir quem somos. — Ele apoiou as mãos nas laterais da maca,
encarando-me com frieza. — O fato de estar aqui mostra que
sempre há uma escolha.
— Eu não tive!
— Você tinha acesso a mídia! — Arqueou a sobrancelha,
como se nada pudesse abalá-lo. — Teve oportunidades, mas foi
omissa! Seja lá quais foram seus motivos, você os guardou para si
porque é a porra de uma covarde.
— Você não faz ideia de tudo que eu já precisei fazer, aceitar
e silenciar! — Senti a raiva começando a crescer, eu a empurrei de
volta, nunca era bom demonstrar esse sentimento. — Continue no
seu lugar de homem invencível.
Sua expressão torceu com um sentimento que me fez
encolher. Eu virei o rosto. Mas Lysander segurou meu queixo, o
toque suave, contradizendo todo o resto. Eu o olhei.
— Meu irmão está cego por você! E eu não vou deixar que
ele seja enganado. Nesta família, traição é algo imperdoável.
— Eu não traí ninguém! — falei baixinho e talvez ele
considerasse isso uma grande mentira.
Eu não me importava mais.
— Você carrega a descendência de Roman Demonidhes. —
Ele estreitou os olhos, eu pude ver que havia algo mais profundo e
não revelado sobre suas emoções. — Você nos traiu quando tomou
a decisão de impedir que os filhos de Gabriel vivessem.
— Eu não tive escolha, minha mãe corria risco!
— Corria? — Ele me olhou como se sentisse nojo. — Suas
decisões quase a mataram, você teve a chance de explodir a merda
no ventilador, naquela última entrevista. Mas não o fez e sua mãe
quase morreu, quer detalhes de como a encontrei?
— Lysander, eu não queria nada disso. — Balancei a cabeça,
perdendo o controle.
— Você sabia que ela sofria espancamentos, tem marca de
bala, ossos quebrados que eu precisei quebrar de novo para
consertar. Você sabia disso, e não fez nada quando teve a chance.
Seja lá o que tenha acontecido, você foi conivente, aceitou o que
era imposto como uma regra, não correu risco quando teve a
chance.
— Ele a mataria.
— Você joga a responsabilidade para os outros apenas para
se eximir de uma culpa que também é sua, porra! — Cada palavra
parecia um murro na minha cara. — Sua omissão quase custou a
vida da sua mãe e dos filhos de Gabriel.
— Você não está falando do aborto.
— Não estou. — Senti-me fraca, mas não era uma sensação
que vinha de um coração doente ou um de uma mente que já estava
no limite há tempo demais. — Você me disse tudo que eu precisava
saber, e, ainda assim, continua protegendo alguém. Eu poderia
investigar o seu passado, mas não farei isso, deixarei que me conte
tudo. Eu não sei quais são os seus planos, Jenny Monroe, mas
advirto que se ousar machucar a minha família, e isso inclui os
bebês que espera, vai se arrepender tão amargamente que
qualquer coisa que tenha vivido até agora vai parecer um passeio
no parque.
— Eu não vou contar nada para você, acredite no que quiser.
Me orgulhei de que minha voz não quebrasse como as finas
camadas de gelo sob um lago, por outro lado o leve sorriso que
Lysander deu, foi pior do que qualquer outra coisa.
— Você vai contar quando perceber que não tem outra saída.
— Seu sorriso aumentou, a sensação que eu tive doía como se
alguém houvesse injetado água congelada nas minhas veias. — Até
que este dia chegue manterei um olho em você, enquanto espero
pacientemente.
Respirei fundo, lutando contra a sensação de frio opressor.
— Você prometeu que não me machucaria — o lembrei. —
Devo supor que não mantém sua palavra?
— Suponha o que quiser, Jenny Monroe, não me interessa!
— Ele foi até a porta e deu uma batida. — Estamos prontos.
O doutor voltou e começou a realizar os exames que ele
pretendia. Eu nem sequer prestei atenção porque Lysander havia
tirado qualquer paz que eu pudesse ter.
Agora eu tinha um novo prazo.
A minha felicidade ao lado de Gabriel duraria enquanto seu
irmão quisesse.
Isso era tão injusto!
38
Gabriel Demonidhes

Era fundamental que eu conseguisse controlar meu


temperamento, mas não estar ao lado de Jenny era quase uma
provocação. Eu sabia que Lysander não ia facilitar para nenhum de
nós; por outro lado, também sabia que ele não ia descuidar dela ou
dos meus filhos. O problema era que meu irmão não acreditava que
o grande responsável por nossa situação era eu.
Por isso, se Jenny não pudesse conviver com os bastardos
Demonidhes, então para onde ela fosse eu iria. Não importava que
ela entrou, de fato, na minha vida agora, o que me interessava era
que ela me pertencia e eu nunca a deixaria sozinha.
— Porra. — Esfreguei o rosto, cansado.
Precisava admitir que aquela garota me acalmava, fazia-me
ansiar por coisas que até dias atrás eu não queria. Por mais
absurdo que possa parecer, o novo propósito da minha vida era
mais forte que o anterior, ver meus filhos crescerem era o meu
maior desejo, enquanto isso eu ia limpar o mundo da escória.
Talvez, por isso que meu pai estivesse tão empenhado em
nos manter juntos, em lutar contra o terror para que o mundo fosse
“melhor” para os seus filhos, eu queria isso também para os meus, e
tendo a certeza de que éramos fundamentais para manter equilíbrio
no submundo, não podia deixar de fazer o eu trabalho.
O desejo de quem possuía poder era adquirir mais poder, não
importando o que fosse necessário para conseguir, e, no submundo,
a coisa que menos possuíam era escrúpulos.
Em alguns lugares havia certos códigos de conduta, mas isso
só funcionava internamente, pessoas inocentes não estavam
incluídas, na verdade, eram gado, usados para abastecer as
pessoas famintas por poder.
Eu mesmo vim de um abatedouro, fui traído e machucado
pela única pessoa que confiava naquela época, eu perdi a minha
criança e o sentido da minha vida.
Só depois, quando fui escolhido por Roman, tive a
oportunidade de recomeçar, de ter uma família.
Era esse tipo de união que eu queria para os meus filhos, e
uma família sólida em que pudessem confiar acima de qualquer
coisa.
— Merda, por que está demorando tanto?
Conferi meu relógio, fazia uma hora que Lysander e Jenny
haviam passado por aquela porta. E eu estava aqui, esperando —
nada paciente — que eles voltassem.
Estava prestes a levantar em busca de informações quando o
alerta de mensagem chegou.
E o conteúdo dela me deixou puto.

Rafael: O que eu esperava aconteceu. Acabei de ser


informado por um dos caçadores que atuam na polícia que o pai da
sua mulher os procurou. A partir da meia-noite de hoje, irão soar um
alerta de sequestro. Pare o que estiver fazendo e retorne, quero
vocês dentro do avião imediatamente, o piloto está esperando.

Por um instante, pensei em Jenny. Ela não queria voltar para


casa, mas o seu padrasto a queria, afinal ela era a galinha dos ovos
de ouro. Sem ela, não havia carreira, música ou dinheiro para
sustentar o bastardo.
Bom, eu não deixaria nem que ele chegasse perto, e se
estávamos indo para uma briga ótimo, era o que eu queria.
Consciente do que eu precisava fazer e tranquilo quanto a
isso, eu liguei para Rafael.
Já havia aprendido da maneira mais difícil que meu irmão
sempre dava um jeito de saber de tudo, melhor tê-lo do meu lado, a
par da situação, do que tendo que lidar com sua raiva e a mídia em
cima.
Havia decidido que não pretendia esconder Jenny.
— Demonidhes.
— Não precisamos de formalidade, irmão. — Baixei a
cabeça, concentrando-me no que eu precisava falar. — Preciso de
ajuda.
— E quando não precisa? — Poderia sentir a ironia gotejando
de sua voz. — Recebi no escritório documentos de suspenção que
foram assinados pelo governador. Você foi acusado de
insubordinação, está a um passo de ser expulso da Corporação.
— Não importa.
— Não importa? — Ouvi o barulho de algo sendo golpeado.
— Que merda você acha que está fazendo porra? Estamos lidando
com algo complicado...
— Eu sei que a mídia vai cair em cima de nós quando
souberem que eu e Jenny...
— Não estou me referindo a isso, seu idiota! — Rafael nunca
se alterava, mas agora eu havia percebido que ele estava quase lá.
— Pare de pensar somente nisso.
— Rafael, há muito tempo eu só penso em Jenny, então não
é nenhuma novidade que ela seja tudo em que consigo pensar
agora que está comigo. — Esfreguei a cabeça. — Ela está doente,
irmão, é pior do que esperávamos.
Fez-se silêncio do outro lado da linha, mas eu pude ouvir
Rafael respirando fundo.
— Okay, Gabriel, eu entendo tudo que você está passando, e
eu vou te apoiar em absolutamente tudo, mas antes, você precisa
aprender a dividir sua atenção. Temos coisas grandes acontecendo,
por acaso esqueceu o que lhe contei?
Como eu poderia? Rafael havia despejado um monte de
merda em cima de mim.
O que foi descoberto no celular de Firebird, poderia resultar
numa guerra de proporções inimagináveis.
Descobrimos que alguns generais do exército americano
estavam trabalhando com terroristas, as bases deles — de acordo
com os relatórios — estava sendo no Oriente Médio e na África. Lá,
aldeias estavam sendo dizimadas, mulheres e crianças traficadas
para a prostituição, e homens para a mão de obra.
Estes generais, faziam parte um grupo seleto de soldados de
elite, escolhidos por lideranças do mundo inteiro, que
compartilhavam treinamentos de ponta e atuavam na linha de frente
em missões de combate de alta complexidade. Eles se
denominavam Forças das Nações, e respondiam aos governos que
faziam parte do pacto global.
Rafael descobriu que eles estavam trabalhando para
amenizar o impacto da extensa atividade de narcoterroristas, o
problema era que a instituição estava corrompida.
Rafael sabia de tudo isso, e nós também, mas, quando o
mundo soubesse que os EUA estavam envolvidos nos assassinatos
dos generais que chegaram perto demais do esquema,
personalidades políticas, jornalistas e pessoas que combatiam o
terrorismo, haveria caos.
Em outros tempos, eu mergulharia de cabeça em qualquer
conflito, mas agora não, precisava ser cuidadoso.
Eu tinha Jenny, os meus filhos. Não poderia cometer erros.
— Gabriel, presta atenção! — A voz de Rafael soou irritada,
eu balancei a cabeça, lutando contra os milhares de pensamentos
que iam se atropelando.
— Estou aqui, irmão, desculpe-me — falei baixo, não queria
irritá-lo quando sabia que ele já estava louco com a gravidez de
Amira e cheio de problema.
— Estou rastreando um soldado das Forças das Nações, ela
é engenheira de armamento como você.
Estreitei os olhos.
— Não vou trabalhar com ninguém! — repudiei outra vez, eu
sabia que Rafael estava sondando-me, aquela conversa dele mais
cedo na cozinha não havia sido em vão.
Nunca era. Pensar o contrário era uma idiotice que há muito
tempo eu não cometia.
— Irmão, precisamos de armas novas, e você, apesar de
entregar projetos incríveis, não suporta o trabalho técnico. — Ele
não estava errado, eu mal suportava ficar ao redor de um
computador. Gostava do trabalho manual, da parte da construção e
do combate. — Você irá aprovar os projetos, revisá-los e dar o okay
final, mas precisamos de alguém que desenvolva com mais rapidez.
Eu sabia que era uma falha da minha parte. Desde o começo
do meu treinamento, eu tive dificuldade em me concentrar nas
técnicas de combate, aprender a usar mãos e pés simultaneamente
foi difícil; em contrapartida, haviam épocas em que nada tirava meu
foco.
Meu pai e irmãos aceitavam que eu era um animal livre, que
precisava de tempo para desenvolver meus negócios.
— Temos muitos engenheiros de armamento — o lembrei. —
Por que quer essa garota?
— Prodígio. — Respirei fundo. — Ela esteve ao redor de
armas desde criança e, pelo que investiguei, trata-se da filha de
militares do alto escalão, que foram mortos num atentado. Ela é
uma combatente incrível, experiente e implacável, será uma
aquisição perfeita para a Ordem.
— Você já decidiu. — Não foi uma pergunta.
— Sim, está decidido. — Escutei a voz de Amira chamando-
o, e, pelo tom, ela parecia bem animada. — Os cães e as equipes
da Rússia acabaram de chegar, avise a sua mulher que teremos
pessoas novas circulando pela casa.
— Eu espero que Boris não estranhe a mudança em nossa
família.
— Ele estava ansioso para nos acompanhar. — Meu irmão
suspirou. — Acho que a família Ivanovich vai ser o complemento
necessário para que tenhamos mais segurança nesta casa.
— Rafael, vamos! — Amira o chamou outra vez.
— Preciso ir, termine o que está fazendo aí e volte, temos
que traçar um plano para evitar que seu nome e o de sua mulher
caiam na mídia de maneira errada. Até breve.
Ele desligou, não me deixando muitas opções.
— Caralho. — Apertei o celular, pensando no quanto seria
mais fácil se Jenny não fosse famosa.
Nós poderíamos segurar as mídias, a polícia e as
informações, porém não para sempre, além de que havia a massa
de fãs que Jenny possuía.
Bastava um vídeo de seu padrasto maldito e a bomba ia
explodir da maneira mais errada possível.
— Preciso fazer algo antes. — Estalei o pescoço, pensando
nas possiblidades.
Eu queria algo que limpasse a carreira de Jenny, e de quebra
não deixasse nenhuma brecha para que seu padrasto conseguisse
algo.
Ele não ia sair ganhando.
Desta vez, era comigo que ele ia jogar.
Eu havia prometido a Jenny não ir atrás dele, mas não falei
nada sobre ficar quieto.
Aquele filho da puta merecia uma resposta, e uma que fosse
à altura.
— Perdoe-me, Beag... — Liguei para Andröyd, não demorou
muito para a linha conectar.
— Senhor?
— Consiga para mim o número pessoal da apresentadora
Mônica Andersen, ela trabalha na NBC[9].
Podia ouvir o som rápido das teclas enquanto ele buscava as
informações.
— Estou enviando para você agora. — Meu celular vibrou. —
Mais alguma coisa, senhor?
Pensando por um momento, considerei que seria
interessante manter os olhos bem abertos sobre o padrasto de
Jenny. Eu e ele tínhamos questões a resolver, mais cedo ou tarde
nos encontraríamos.
Acidentalmente ou não.
— Inicie o monitoramento de John Samarco Monroe, envie
para mim toda a rotina. Quero saber absolutamente tudo.
— Considere feito.
39
Jenny Monroe

Uma pessoa deveria se sentir em pânico por causa mesmo


que aparentemente nada estivesse acontecendo? A pergunta
estava rondando a minha cabeça desde que eu precisei repetir a
ressonância do coração duas vezes.
Eu até tentei ficar quieta, mas entrar de cabeça naquela
máquina era tão horrível, que eu sentia sufocar, o corpo tremendo
tanto que, na primeira vez, apertei o botão de segurança quando
mal havíamos começado.
Na minha cabeça, eu ia morrer ali dentro. Para piorar tudo, só
de imaginar que estava irritando Lysander, deixava-me ainda mais
nervosa. A minha intenção não era atrapalhar ninguém, eu não
queria ficar parando o exame o tempo todo, mas não conseguia me
controlar.
Eu me sentia vulnerável demais, em completo estado de
pânico. Não tinha para onde fugir e era como estar de volta dentro
do mesmo carro que John.
Onde ele mais se aproveitava.
— Jenny, feche os olhos. — A voz de Lysander soou calma
pelo alto-falante da sala terrivelmente fria. Graças a Deus, não havia
nenhum sinal de recriminação de sua parte. — O exame leva em
torno de quarenta minutos, ele precisa ser feito integralmente e esta
é a terceira vez que nós temos que recomeçar.
— Desculpa-me, eu... — Fechei os olhos, sentindo-me tremer
inteira. — Apenas desculpe.
— Não se importe com isso, Jenny. — Sua tranquilidade me
deixava ainda mais nervosa. Por que ele estava tranquilo? — Esse
maquinário é um problema para muitos pacientes, não é algo
exclusivamente seu.
— Não quero causar problema — murmurei, agoniada. Podia
sentir o desespero crescendo e minha respiração indo no mesmo
embalo. — Posso ver Gabriel? — Ele não respondeu. — Lysander,
por favor, me tira daqui. Me tira daqui!
O teto branco da máquina estava quase na minha cara, era
apertado demais, sufocante.
— Jenny, feche os olhos, me obedeça.
— Me tira daqui. — Sacudi as pernas, balançando a cabeça
de um lado para o outro.
— Feche os olhos, Jenny, apenas faça isso. — Ele fez uma
pausa. — Por favor.
Eu fiz como ele mandou, o tom gentil de sua voz soou um
bálsamo, e também eu não queria desagradá-lo.
— Agora me diga, você já pensou em nomes para os bebês?
— O barulho da máquina disparando soou muito alto. Eu precisei de
toda concentração para manter o diálogo com Lysander. — Então, já
pensou em algum nome?
— Eu tenho alguns preferidos.
— Diga-me quais são para o caso de serem meninos.
Eu não pensava muito sobre aquelas coisas desde que fui
jogada na realidade de um lar violento.
Agora eu podia voltar a sonhar, a sensação era quase
libertadora.
— Jenny?
— Sim, hum... Os meus favoritos são Kraven e Constantino.
— Toda minha atenção se voltou para isso. Eu até podia ver dois
meninos com cabelos ruivos e olhos verdes. — Quero que eles se
pareçam com Gabriel. — A imagem que se formou em minha
cabeça, era perfeita.
— E se forem meninas?
Era o meu maior pavor enquanto vivia com John. Agora, não
temia mais.
— Cassie e Candy, são os nomes mais lindos para menina.
— Mordi o lábio. — Na minha opinião.
— Por que a preferência por essa letra? — Ele pareceu
genuinamente curioso.
— Tem um filme que minha mãe gostava, a protagonista se
chamava Carrie, eu não gosto muito de como soa.
Como explicar para ele que eu podia sentir a melodia das
coisas? Bom, não tinha necessidade. Era somente uma esquisitice
minha.
— Então, Jenny?
— Carrie não tem muita sonoridade, então eu mudei para
Cassie, que poderia ser o abreviativo de Cassandra, mas eu ainda
prefiro Cassie e Candy, eu acho doce, como chocolate derretido e
caramelo salgado. Candy, doce...
— Fazendo piadas, Jenny? — ele me interrompeu e eu quis
rir do quanto eu deveria parecer ridícula. — Prossiga.
— Kraven é porque gosto da sonoridade, e Constantino é por
causa do filme do Keanu Reeves, eu sou fã. — Sorri, imaginando
um futuro incrível para os meus filhos. — Desejo que meus filhos se
pareçam com Gabriel.
— Parece que você é aficionada no meu irmão. Devo me
preocupar?
Meu coração bateu mais rápido só de imaginar Gabriel e o
quanto ele sensível, modesto, atencioso, sempre me deixando
confortável ao seu redor.
Ele havia criado um lugar de refúgio para mim, que
transbordava um sentimento tão bom que acalmava meu coração e
ao mesmo tempo o deixava louco.
Em pouco tempo, Gabriel mudou a minha vida, se tornando
tão importante mim quanto minha mãe era.
Ele se importava de pôr em prática coisas simples, mas que
era fundamental para mim, como não me chamar de Monroe e me
ouvir com atenção, dando-me liberdade para escolher o que eu
achasse melhor.
— Você é igualzinha ao Gabriel, ambos possuem uma
capacidade enorme de divagar e perder-se em pensamentos. —
Não havia recriminação na voz de Lysander. — Não vai responder a
minha pergunta? Ou é um hábito, você não responder as pessoas
que estão conversando com você?
— Desculpe. — Pensei no que ele havia perguntado. —
Lysander, eu não prestei atenção. Poderia repetir?
— Desde que mantenha os olhos fechados, sem nenhum
problema. — Houve um burburinho, então ele disse: — Você é
deslumbrada por Gabriel, eu devo me preocupar com uma
groupie[10] na cola do meu irmão?
Eu não estava nem perto de ser uma groupie, mas a
comparação vinda de Lysander poderia muito bem ser um
xingamento.
— Eu quero nossos filhos parecidos com Gabriel porque
parece que ele foi esculpido pelo melhor artista do mundo, em sua
fase mais apaixonada. — Não pude evitar suspirar como uma
completa idiota. — Apenas muita inspiração é capaz de compor
obras de arte e eu não chego aos pés dele, portanto acho que
nossos filhos terão sorte se parecerem com alguém capaz de fazer
supermodelos chorar de inveja e não com uma...
— Smurfette? — O tom pareceu-me mais cínico do que
divertido.
Ah, mas Lysander não era divertido então...
— Você encontra meios surpreendentes para xingar alguém.
Mas não importa, Gabriel é a pessoa mais bonita que eu conheço e
não me refiro apenas a aparência, ele é o pacote completo. Bonito
por dentro também.
— É um pouco divertido como as pessoas se iludem tão
facilmente, não acha?
— Gabriel salva vidas como você, mas, diferente da sua
profissão, a dele contém muitos riscos. — Já não me importava se
eu parecesse deslumbrada por aquele homem. — Ele é um ser
humano incrível, altruísta, bom de verdade. Ele prestou atenção em
mim e me ajudou sem se importar se isso traria problemas para si
mesmo. Meus filhos têm sorte do pai maravilhoso que eles têm.
— Pessoas apaixonadas são ridículas, você e meu irmão são
cegos. Você o engana, e ele retribui. Eu espero ansioso para o dia
que todas as verdades virão à tona.
— Você pode falar o que quiser de Gabriel e eu não me
importo com o que ele já tenha feito, só com o que fará daqui para a
frente. Não julgo as pessoas por decisões que cabem apenas a
elas.
— Como eu faço?
— Exatamente.
Esperei por uma resposta que não veio. Instantes depois, o
apito da máquina parou e eu comecei a sair de dentro dela. A luz da
sala acendeu, e o som de uma porta abrindo soou alta demais.
— Finalmente conseguimos concluir o exame. — Lysander
apareceu ao meu lado. Ele começou a retirar as coisas de cima de
mim, depois me ajudou a sentar. — Percebi que tem feito careta
quando toco em suas costas, deixe-me avaliar.
Concordei, fechei os olhos e respirando fundo.
Quando senti ele abrir a camisola hospitalar o pavor que me
dominou foi tão grande que eu tentei pular da maca. Teria
conseguido se ele não houvesse me segurado.
— Calma, calma, ninguém aqui vai te machucar — ele falou
baixinho, puxando-me contra seu peito.
Todo meu corpo começou a tremer incontrolavelmente, a
sensação das mãos de John em mim, do esperma escorrendo nas
minhas costas foram tão reais e intensos que eu bati em mim
mesma para tentar esquecer.
— Me solta, me solta, me solta! — arquejei, apavorada.
— Que porra está fazendo? — Lysander segurou meus
braços, abraçando-me para que eu não me machucasse. — Jenny,
Jenny, ouça-me...
Continuei lutando contra Lysander, ele não se importou em
receber cada golpe que eu lhe dei, na tentativa de machucar a mim
mesma.
— Jenny, Gabriel está esperando logo ali, lembre-se. Você
está segura agora.
Ainda assim não conseguia evitar que as lembranças mais
asquerosas me inundassem.
Deus, isso nunca ia acabar?
— Jenny, tudo bem. — Lysander foi afrouxando o abraço. —
Tudo bem agora.
Não, não estava tudo bem. Nunca estaria bem.
— Ele não tinha o direito de fazer isso comigo — chorei,
sentindo-me tão suja quanto na época. — Ele não tinha o direito.
Senti o aperto de Lysander voltar, ele me abraçou de um jeito
que eu estivesse completamente dentro de seus braços.
— Não foi sua culpa, ouça-me, não foi sua culpa. — Neguei,
lutando contra ele. — Jenny!
— Eu não lutei com todas as minhas forças. — Balancei
cabeça — Eu não lutei.
Foi como se eu voltasse para dentro daquele carro. Podia
ouvir os gemidos de John no meu ouvido enquanto ele masturbava.
— Porra, não tente bater em si mesma!
Se pudesse arrancaria a pele inteira das costas para não
sentir o esperma escorrendo, o toque.
— Eu nunca vou conseguir me libertar. Nunca vou conseguir
— solucei, balançando para frente e para trás. Tentando apagar com
os punhos as lembranças. — Ele sempre vai estar na minha cabeça,
nos meus pesadelos. Ele sempre vai ganhar, ele vai ganhar.
— Quem fez isso com você, Jenny? — Lysander peguntou
baixinho. — Compartilha esse segredo comigo, e eu juro que não
contarei a ninguém.
— Não posso ou ele vai ganhar de novo. — Fechei os olhos,
murmurando como se John pudesse me ouvir. — Eu tenho a minha
chance de recomeçar, não posso trazê-lo para cá. Amira disse que,
se eu quiser, eu posso ter uma família. Eu quero essa chance.
Mesmo eu sabendo que não mereço, eu quero essa chance,
Lysander, mas eu não mereço porque eu sou suja, imunda. —
Balancei a cabeça. — Eu estou tão suja.
— Jenny... — Ele abraçou ainda apertado. — Conte-me esse
segredo, garanto que Gabriel jamais saberá.
Não me importava que Lysander me visse daquele jeito, mas
dei liberdade ao choro mais desesperado da minha vida.
Ele não fazia ideia de quem era John e eu não teria sangue
daquela família nas minhas mãos.
— Ele é um homem muito ruim, perigoso, eu não posso dizer
— solucei. — Se algum de vocês for machucado por minha causa,
eu juro que morro. — Ele me soltou, para que viesse ficar na minha
frente.
Ele segurou meu rosto, abaixando-se para ficar na altura dos
meus olhos.
— Quem fez isso com você?
Neguei, com sua imagem embaçada por causa das lágrimas.
— Você é o irmão de Gabriel, é importante para ele. Não
posso deixar que se coloque em perigo para se vingar por mim. Já
passou, de algum modo eu vou superar. — Queria parar de chorar,
mas não conseguia. — Eu me vingarei sendo feliz, tentando
superar. Eu mereço isso e prometo, Lysander, que eu não vou
atrapalhar ninguém. Vou cuidar de Gabriel, me dedicar a ele. Não
me odeie, eu só quero a chance de recomeçar.
Ele me encarou por alguns instantes, eu não podia decifrar
sua expressão, para saber se ele aceitava o que eu estava dizendo.
— Jenny, compreendo que esteja tentando nos proteger, mas
essa função pertence aos homens dessa família. — Sua voz soou
calma demais. — Você e Gabriel precisam ajustar as coisas, ele
esconde segredos e você também. Entretanto, nesse caso
específico, o assunto ficará entre nós. Diga-me quem te machucou.
— Não falarei. — Ele apertou os lábios. — Não vou colocar
vocês em risco. Eu vou superar o que aconteceu. Não quero que
Gabriel saiba, ele pode tentar...
— Acha que meu irmão não vai perceber o que está
acontecendo? — Lysander balançou a cabeça. — Ele vai perceber e
não terá a frieza necessária para fazer o que é preciso. Ele vai
enlouquecer, você pertence a ele e, pelo quão recente nota-se a
ferida, eu diria que tem menos uma semana. Jenny, se quer evitar
uma tragédia, melhor me dizer, e deixar que eu resolva.
— Não falarei.
— Tudo bem. — Respirou fundo, então pegou-me nos
braços, levando-me até onde estava a cadeira de rodas. — Eu vou
descobrir por mim mesmo, e, quando o fizer, você compreenderá a
qual família pertence.
Lysander ia colocar a vida em risco, e se algo acontecesse
com ele, sua família não me perdoaria.
Eu não me perdoaria.
— Por favor, não se coloque em risco por algo que não pode
ser mudado. — Peguei sua mão, quando ele começou a empurrar a
cadeira. — Eu posso superar.
Ele não respondeu, apenas continuou empurrando a cadeira
pelo corredor.
Depois, quando começaram a coletar meu sangue, não
reclamei, mas Lysander ficou por perto, atento a cada gesto do Dr.
Milanni.
Não houve mais perguntas, tampouco qualquer tipo de
diálogo. Ele me levou de um lado para o outro, cuidando de mim.
Seus gestos eram gentis, mas eu sabia que ele não havia engolido
meu pedido.
Seu olhar era agressivo demais, rude.
Pouco me importava se ele me odiasse por não lhe dizer o
que queria, desde que não metesse o nariz onde não era chamado,
tudo ficaria bem, eu podia lidar com sua raiva.
Mas não com a culpa, eu já carregava coisas demais.
— Terminamos. — O Dr. Milanni olhou para Lysander, depois
deu um aceno curto como se houvessem acabado de ter um
diálogo. — Irei enviar para você todos os resultados e imagens. Boa
viagem de volta.
— Obrigada por tudo. — Estendi a mão para o doutor e ele
aceitou, sorrindo gentilmente.
— Cuide-se, Lysander está a par da nova dosagem dos seus
medicamentos, depois, quando os bebês nascerem, faremos a troca
do seu marcapasso, apesar de esse ser um dos modelos mais
atuais, compatíveis com a ressonância magnética, nós colocaremos
um melhor. — Ele olhou para Lysander. — Vou indicar uma colega
em Nova York, ela estará a par do quadro e poderá auxiliá-los em
qualquer emergência até eu chegar.
Apesar de todo estresse que tive mais cedo, meu coração
mantinha-se num ritmo moderado e calmo, era muito bom sentir que
estava saudável.
— Estamos voltando para Nova York, vamos daqui direto
para casa. — Lysander estendeu a mão, e o outro apertou. —
Obrigado.
Os olhos do Dr. Milanni brilharam como se ele não estivesse
acostumado a ouvir Lysander lhe agradecendo.
— Estarei aqui para o que precisar, senhor.
Eu e Lysander seguimos pelo corredor e eu podia jurar que
sentia o quanto eu estava perto de encontrar o Gabriel.
— Quando aconteceu o seu ferimento nas costas?
— Não sei exatamente, talvez os pontos estejam bons para
retirar.
— No avião irei dar uma olhada.
Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, a porta abriu e
Gabriel apareceu. Assim que meus olhos pousaram nele, uma
sensação de paz e felicidade me dominaram. Nem esperei que ele
viesse para mim, eu levantei da cadeira e me joguei em seus
braços.
— Que saudade de você, Beag — ele disse contra o meu
cabelo. — Meu irmão se comportou ou eu devo esmurrar a cara
bonita dele?
— Ele se comportou. — Sorri, deslumbrada com o sorriso de
Gabriel. — Eu também senti sua falta.
— Sim, não parava de falar: Posso ver Gabriel? Posso falar
com ele? — Lysander cruzou os braços. — Uma garota
insuportável, devo salientar.
— Lysander! — Gabriel vociferou, mas eu estava muito
agradecida por ele não ter dito nada além daquilo.
Mas quando Lysander passou por nós, eu pude ver que ele
não ia deixar o assunto morrer.
Meu tempo estava correndo.
Eu tive certeza, no breve instante que nossos olhares se
cruzaram.
40
Gabriel Demonidhes

O modo como Jenny pareceu desesperada para estar em


meus braços surpreendeu-me a ponto de eu acreditar que Lysander
havia feito algo com ela.
— Sossegue, bastardo, ela só está exausta. — Meu irmão
girou o uísque no copo, então o bebeu tudo de um gole só.
Prestando atenção, Lysander também estava diferente. Mais
calado que o de costume. Ele poderia ser confundido com uma uma
estátua de cera se não fosse o olhar perdido em memórias do
passado.
— O que você fez com a minha mulher?
— Já é sua mulher? — Arqueou a sobrancelha, com o tom de
zombaria nítido. — Sabe, irmão, você já estava apaixonado antes
mesmo de ir buscá-la. Diga-me, a culpa disso é das inúmeras vezes
que a escutou cantando?
Não soube o que dizer. Suas palavras deixaram claro que ele
havia invadido a minha privacidade muito mais do que eu poderia
imaginar.
— Seu filho da puta, você...
— Cuidado, irmãozinho, ou irá acordá-la. — Havia o que
poderia ser um sorriso em seu rosto, claro se meu irmão fosse do
tipo que sorria. — Eu não fiz nada, apenas deixei claro algumas
coisas e a acompanhei em cada exame. Ah, ela tem problemas com
lugares fechados, você sabia?
— Lysander, o que diabos aconteceu com você? Pare de
provocar, porra!
— Você não respondeu a minha pergunta. — Ele voltou a
encher o copo. No geral, não bebia muito, porém, em pouco mais de
uma hora e meia de voo, ele já havia bebido metade da garrafa. —
Você se apaixonou antes de encontrá-la, tenho avaliado você e seu
comportamento não é normal, tampouco adequado. — Meu irmão
olhou o céu escuro através da janela. — Como isso funciona,
Gabriel? — Sua atenção se voltou para mim. — O que você sente
de fato? Tendo em vista que até um dia atrás você não era essa
coisa ridícula e pegajosa.
Ele parecia genuinamente curioso, talvez, se eu pudesse lhe
explicar como eu me sentia, Lysander entendesse que aquele tipo
de sentimento não podia ser controlado.
— A voz dela me acalma e era isso que me ajudava a não
perder a cabeça, foi assim por um tempo. — Olhei para Jenny, ela
estava em meus braços, dormindo tão profundamente que
suspirava. — Nas épocas mais difíceis, ouvi-la cantando me fazia
ter o controle para não cometer uma loucura. Ela já estava sob a
minha pele antes mesmo que eu a encontrasse pessoalmente,
depois, bem, eu tive sorte do destino interferir a meu favor.
— Destino, sei...
— Destino, irmão, foda-se, eu não me importo que qualquer
um de vocês implique comigo ou jogue na minha cara todas as
vezes que eu disse que jamais me relacionaria. Eu estava bem com
isso, e não esperava nada até tê-la em meus braços, até saber que
esperava meus filhos e que precisava de mim.
— Você a ama?
— Não sei, eu nunca amei nenhuma mulher. — Dei de
ombros. — Tudo que senti até hoje que possa remeter a amor está
relacionado aos meus irmãos e ao meu pai.
Eu não precisava desenhar. Ele sabia, todos na verdade. De
um jeito louco, meio doentio e abusivo, nos amávamos. Sabíamos
que, para o bem ou o mal, eram os Demonidhes contra todo o resto.
— Você me honra, Gabriel. — Ele fechou os olhos, colocando
uma mão no peito, e inclinando a cabeça para a frente. — Obrigado
por isso.
— Só porque eu não fico alardeando como um idiota não
significa que todo cuidado que você, Rafael e os outros têm comigo
não seja importante. — Olhei para Jenny outra vez. — Foi apenas
por saber que vocês sofreriam, que eu não fiquei naquele incêndio.
Eu estava cansado, Lysander.
Em partes, ainda estou, mas agora haviam crianças e uma
mulher que precisava de mim. Eu tinha que ser forte por eles, lutar
contra a minha loucura por eles.
Era isso.
— Todos nós estamos cansados, irmãozinho, uns mais que
outros. — Ele respirou fundo, virando o rosto para a janela outra
vez. — Depois que nosso pai morreu, tomei para mim a
responsabilidade de cuidar de vocês, de mantê-los vivos da maneira
que eu pudesse. Eu teria matado Amira sem titubear se Rafael não
houvesse chegado. E eu nem me arrependeria.
— Eu sei.
— Não tenho nenhum traço misericordioso, irmão, sou mais
monstro que homem. Estou banhado com o sangue dos meus
inimigos, e, ainda assim, não me arrependo de nada do que fiz. —
Um pequeno sorriso arqueou o canto de sua boca, e isso era bem
preocupante, Lysander era perigoso quando sorria daquele jeito. —
E eu continuo estudando para que possar matá-los de maneiras
ainda piores.
— Você é o Mercador da Morte, tem que saber como matá-
los.
— Eu tenho mesmo, e sabe do que mais? — Ele bebeu o
uísque, enchendo o corpo logo depois. — Eu gosto do que eu faço,
tirar e salvar vidas é um tesão para mim, gosto desse poder, de
saber que eu controlo. Óbvio que, invariavelmente, acontece de eu
pegar alguns casos impossíveis, mas pessoas inocentes merecem
meu empenho.
— Claro que merecem, você é o melhor na sua profissão.
— Cirurgião ou assassino?
— Os dois — respondi, ele ergueu o copo, brindando. — Mas
você é melhor assustando as pessoas, com certeza.
— Então eu estou no caminho certo. — Balançou a cabeça,
deixando claro para mim o quanto parecia cansado. — Primeiro
Rafael, agora você. Quem será o próximo que vai aparecer com
uma mulher que eu terei que investigar?
— Lysander...
— Eu não investiguei Jenny, porque estava de saco cheio de
você e sua impulsividade, um erro que eu não irei cometer outra
vez.
— Você não vai investigar a minha mulher — elevei o tom,
mesmo sabendo que não ia adiantar porra nenhuma.
Lysander e Rafael eram invasivos se eles achassem que
precisam ser.
— Gabriel, você me surpreende. — Ele olhou o relógio. —
Fazem poucos mais que vinte e quatro horas que está com ela,
deixe-a se acostumar primeiro antes de sair por aí declarando
posse. Você nem sabe se vai levar essa história adiante.
— Acha que vou deixar meus filhos longe de mim? Que
deixarei Jenny? — Eu a apertei um pouco mais. — Não o farei.
— Claro que não, mas precaução nunca é demais. — Ele
estreitou os olhos, inclinando-se em minha direção. — Se você
quiser, eu posso levá-la em segurança para outro lugar. A ausência
dela te proporcionará o que precisa para se livrar de qualquer
sentimento que esteja crescendo. Corte isso de uma vez!
— Você é louco.
— Sua vida voltará a ser como antes. Não deseja isso?
Eu nunca pensei eu precisaria admitir que havia gostado de
segurar uma mulher enquanto ela dormia, saber que ela confiava
em mim para protegê-la invocava coisas tão enraizadas que nem eu
poderia explicar.
E imaginá-la longe de mim, não era algo agradável.
— Jenny não vai a lugar algum.
— Foi o que pensei. — Lysander deu de ombros, ele não se
importava de fato, mas gostava de provocar. — Em todo caso, o
aconselharia a ir com calma. Ao menos uma vez, não coloque os
pés pelas mãos.
Meu irmão tinha razão, mas como explicar que tudo que eu
estava sentindo era visceral demais e que não fugia nem um pouco
da minha personalidade?
Explosivo pra caralho e de paixões ainda mais intensas,
sempre gostei de explorar os meus limites, até quase o ponto do
suicídio; e ser manso, calmo para refletir sobre sentimentos era tão
contrário que me causava repulsa. Preferia me jogar nessa merda e
ver o que poderia acontecer. De resto, não poderia ser pior do que
foi metade da minha vida.
Lysander não compreenderia nem se eu tentasse explicar,
pois ele era do tipo que dissecava o que sentia e ia catalogando o
que era importante e o que não era. Talvez, por isso quase nunca eu
podia ler suas expressões, no geral, era como se ele estivesse
indiferente a tudo.
Ele só compreenderia o que estava acontecendo comigo se
pudesse vivenciar algo parecido.
— Talvez um dia, você tenha a chance...
— Pare por aí. — Ele ergueu um dedo. — Eu não tenho um
coração para dá-lo a alguém, e, mesmo se eu possuísse um,
preferia arrancá-lo do peito e dar aos cães antes de me relacionar.
Não serei tolo de me deixar levar como você e Rafael, não existem
surpresas em minha vida e eu tenho muito cuidado para que
permaneça assim.
— Lysander, você é um cara tão incrível...
— Eu sei, irmãozinho, eu sou foda. — Ergueu o copo que ele
havia acabado de abastecer. — Um brinde a isso. — Ele bebeu
tudo, voltando a me encarar. — Você acha que ela o aceitaria se
soubesse que é um assassino? — Lysander não fazia perguntas
aleatórias, o teor de nossa conversa era manipulado por ele com um
único propósito: sondagem.
Eu sabia daquilo, mas estava cansado demais para buscar
entender suas motivações.
— Não sei se Jenny me aceitaria. — Comprimi os lábios,
começando a ficar irritado.
— Então, irmãozinho, eu aconselho que descubra. — Ele
colocou o copo no suporte à sua frente. Apoiando os braços nos
joelhos, ele me encarou. — Estamos numa guerra, a qualquer
momento as coisas podem incendiar. Não é interessante que ambos
mantenham segredos que possam nos atrapalhar.
— Eu sei disso, irmão. — Fechei os olhos, sentindo o calor
de Jenny e a satisfação de saber que ela estava segura comigo. —
No momento certo irei contar.
— Claro, você não pretende deixá-la ir.
— Apenas se eu percebesse que era esse seu desejo, então
eu a deixaria ir.
Não antes de lutar com as armas mais pesadas que
estivessem a minha disposição. Uma vez que Jenny havia me
deixado ansiando por uma família só minha, eu não aceitaria perder
tudo sem uma boa luta.
— Eu jamais permitiria que a minha mulher me deixasse,
claro, hipoteticamente falando. — Ele deu de ombros, pensativo. —
Você vê, eu não tenho aquela parte fundamental. — Meu irmão
estreitou os olhos, esfregando o polegar no indicador como se
quisesse lembrar de algo. — Ah sim, sentimento. Então, apenas a
minha vontade imperaria. Convenhamos, irmão, agora entende por
que eu não posso me relacionar? — Um meio sorriso curvou a sua
boca. — Há um limite para certas coisas, eu já estou bem distante
do que é meramente aceitável, e, no mundo real, não há quem
deseje alguém assim.
— E se houvesse? — sondei, já que ele estava tão falador.
— Irmão, eu me envolvo apenas para sexo. Uma boa
trepada, que, na maioria das vezes, termina com alguém chorando.
— Lysander torceu a boca, parecendo enojado de alguma coisa. —
Eu gosto de mostrar para as pessoas gananciosas que desejos
podem se tornar pesadelos.
— Lysander...
— O quê? — O meio sorriso estava de volta, só que um
pouco mais aterrorizante. — Elas querem meu pau, eu quero a dor
delas, ambos temos o que queremos, isso não é suficiente?
— Não somos parecidos nessas questões. — Balancei a
cabeça. — Não somos nem um pouco parecidos.
— Claro que não, você é fofo — provocou, e eu percebi que
ele estava se divertindo.
— Filho da puta. Você é um bastardo.
— Claro que sou. — Ele se levantou. — Você vai usar a
suíte?
— Não, fique à vontade.
— Seis horas de voo, uma eternidade. — Antes que pudesse
sair do meu campo de visão, ele parou olhando para Jenny. — Se
precisar, chame.
— O que aconteceu para que você a aceitasse tão rápido? —
Franzi o cenho, desconfiado.
Lysander era assim, seus gestos poderiam significar uma
coisa, e seus pensamentos outra. Meu irmão era especialista em
ocultar seus sentimentos. Tanto que nem nosso pai conseguiu
prever o seu surto.
Era frustrante.
— Quem disse que eu aceitei? — Cruzou os braços,
recostando-se na poltrona. — Apenas suporto a ideia de que os
meus irmãos estão se apaixonando. Tenho que conviver com as
mudanças e você sabe o quanto eu odeio isso. Em todo caso, eu
machuco quem merece, por enquanto, ela não merece.
— Sei, irmão, agora vá descansar. — Era melhor ele ir
mesmo. Suas palavras estavam me instigando a mostrar meu ponto
de vista e a única coisa que me segurava era a mulher nos meus
braços. — É melhor você ir, antes que a única me impedindo de
socar a sua cara seja a oportunidade.
— Vaffanculo figlio di puttana[11]. — Lysander arqueou a
sobrancelha. — Para mim parece ótimo, você tem a oportunidade.
— Fottiti bastardo del cazzo[12] — respondi em italiano, sua
primeira língua. — Vá descansar de uma maldita vez ou apenas
comece a planejar uma nova maneira hedionda de cometer
assassinato.
— Já tenho um alvo em mente, só preciso encontrá-lo. — Ele
esfregou as mãos. — É meu tipo preferido. Ah, irmão, o que farei
com ele será memorável.
Observei Lysander ir em direção ao corredor da suíte, por um
instante tive pena de quem havia chamado sua atenção, pois meu
irmão estava numa época em que ser perverso parecia diversão.
Eu ia conversar com Rafael sobre Lysander, talvez nosso
irmão estivesse mais perto de perder o controle do que
imaginávamos.
— Merda. — Ajeitei Jenny em meus braços.
Não queria ter que me preocupar, mas meu irmão estava
estranho demais.
— Irônico, não? — Acariciei a barriga de Jenny. — Estou
tentando ser responsável. Não sei se vai funcionar, o pai de vocês é
louco, mas eu vou tentar manter-me na linha.
— Gabriel? — Olhei para Jenny, ela estava despertando.
Por um momento perdi-me na beleza de seus olhos
castanhos e grandes, emoldurados por cílios longos e cheios.
— Oi. — Beijei sua testa, ela sorriu de um jeito tão bonito que
meu coração doeu.
Havia certa humildade no modo como ela me olhava, e isso
mexia comigo de todas as maneiras.
— Com quem você estava conversando?
— Por quê? Você ouviu algo? — Não me preocupei que ela
houvesse escutado o que não devia, em algum momento Jenny
saberia quem eu era de verdade.
— Você disse que ia tentar se manter na linha, o que
pretende fazer? — Havia um ar preocupado em sua voz sonolenta.
— Eu posso te ajudar?
— Claro, cante para mim. — Ajudei-a a sentar-se no meu
colo.
— O que gostaria de ouvir? — Jenny colocou uma mecha de
cabelo atrás da orelha.
— Qualquer coisa que queira cantar eu estarei satisfeito. —
Recostei-me na poltrona, fechando os olhos.
Ela pigarreou, então sua voz maravilhosa, deslizou por meu
corpo como uma carícia.
— Eu desistiria da eternidade para poder tocá-lo. — Sorri, eu
sabia qual era a aquela música, nunca a tinha ouvido na voz de
Jenny, e eu garanto, era uma experiência totalmente nova. — Pois
sei que de algum jeito você me sente.
— Íris... — murmurei, sentindo o meu coração acelerando de
prazer.
— Você é o mais próximo do paraíso que eu já cheguei. — A
intensidade com que disse cada palavra me fez buscar seus olhos,
havia sentimento demais no modo como declarava a música para
mim.
Eu não estava louco.
— Jenny...
— Eu não quero recuar agora. Tudo que consigo sentir é
esse momento. — Os olhos dela se encheram de lágrimas. — Tudo
que eu respiro é...
Não esperei que terminasse de cantar, eu a beijei. Talvez, eu
nunca fosse capaz de ter o controle para que ela pudesse terminar
uma música inteira, o jeito que me afetava era tão intrínseco, que
não suportava.
— Que boca gostosa. — Segurei seu rosto, lutando contra o
impulso de devorá-la. — Delícia. — Mordisquei seu lábio inferior, ela
gemeu baixinho, agarrando na minha camisa.
— Gosto tanto do seu beijo, Gabriel — suspirou, eu sabia que
precisava ir devagar, intercalando para que pudesse respirar.
Nunca mais queria vivenciar outro susto igual o de mais cedo.
Um beijo que se transformou num desmaio e num procedimento de
primeiros socorros. Mesmo estando sob os efeitos dos novos
medicamentos, não queria cometer erros, então fui testando seus
limites.
Primeiro mais lentos, eu ia explorando, chupando sua língua
e mordiscando. Depois esperava que retribuísse, dando início a uma
dança lenta, gostosa. O beijo gostoso, molhado com direito a
gemidos cúmplices eram os melhores, e eu fazia isso com Jenny.
Desde o começo, os beijos com ela tinham um apelo
diferente, excitando-me sem o menor esforço.
— Devagar, Beag — ri contra seus lábios. — Não quero que
desmaie outra vez.
— Me beija, Gabriel, e pare de conversar.
Ela me puxou pela nuca, tomando minha boca com um
gemido puramente feminino de prazer e que me deixava insano.
Meu pau estava doendo, e eu nem podia disfarçar, ela sentia entre
as pernas.
Jenny chupou minha língua, eu demonstrei o quanto era
gostoso para mim, meu pau latejava entre as minhas pernas, eu
estava louco para afundar naquela boceta apertada, e foder até
perder a mente.
Outra vez, eu me afastei, Jenny ofegou encarando-me com
aqueles olhos lindos e brilhantes.
— Vamos chegar em casa primeiro. — Acariciei seu lábio
com o polegar. — Então, vamos testar o seu coração.
Ofegou, com o rosto todo corado.
— O que você vai fazer? — Lambeu os lábios, para meu
prazer, ela não estava muito ofegante.
— Não sei, você vai me dizer o que quer que eu faça. —
Quase podia adivinhar o rumo dos seus pensamentos. Estava tão
explícito no seu rosto delicado que não pude evitar o sorriso de
antecipação. — Talvez você queira que eu chupe a sua boceta até
que goze. — Me aproximei de seu ouvido. — Você lembra da
sensação da minha língua?
Ofegou, o peito subindo e descendo cada vez mais rápido.
— Gabriel...
— Quero que chame o meu nome quando eu estiver
gozando. — Segurei seu queixo. — Não sabe como desejo isso.
— Não fale as coisas assim — murmurou, olhando para as
poltronas ao redor. — São nossos segredos, ninguém deve saber o
que fazemos.
Um prazer incomum me dominou, ela era tão... não tinha
palavras suficiente para descrever aquela garota.
— Beag, você escolheu um filho da puta promíscuo. —
Acariciei seu rosto. — Não imagina o que quero fazer. Quando o
momento chegar... — Deixei a promessa no ar, satisfeito por ver
suas pupilas dilatando ainda mais.
O toque do meu celular quebrou o momento. Quando pequei
o aparelho, Jenny tentou sair do meu colo, mas balancei a cabeça e
ela se deitou no peito, confortável em estar ali.
Era Rafael, eu já podia imaginar do que se tratava.
— Irmão — atendi cordialmente, sabia que ele estava com
raiva.
— Você marcou uma entrevista aqui? Você enlouqueceu?
— Fiz o que achei necessário — respondi o mais calmo
possível.
Eu havia feito merda quando não falei com ele primeiro para
compartilhar meus planos, mas o momento exigia pressa e queria
colaboração, nada menos que isso.
— Será amanhã, bastardo! — Pude ouvi-lo respirar fundo. —
Porra, você ao menos imagina como as coisas estão por aqui?
— Eu saberei quando chegar.
— Às vezes, eu quero te matar! — Ao fundo, a voz de Amira
tentava acalmá-lo. — Você deveria ter me dito o que pretendia fazer,
mas, se prefere agir como um idiota inconsequente, eu vou deixa-lo
se foder. Cansei de segurar a tua onda, porra!
— Desculpe-me, irmão, mas não encontrei outra solução. —
Olhei para Jenny. — Precisava que fosse o mais rápido possível.
Não falei diretamente para você porque precisava ter Razhiel nisso,
eu conversei com ele e pedi que o avisasse.
Houve uma breve pausa e eu não quis me sentir ansioso com
a possibilidade de Rafael ficar chateado, mesmo eu sabendo que
ele estava.
Para proteger Amira e seu filho, ele faria qualquer coisa,
inclusive deixar uma corda ao redor do pescoço de todos nós,
puxando-a quando considerasse adequado.
Isso me preocupava, porque eu tinha Jenny e minhas
próprias crianças a caminho.
Eu poderia seguir sua liderança sem questionamentos, no
que concernia a Ordem, mas o confrontaria sem titubear quando o
assunto fosse ligado ao meu relacionamento e os problemas que ele
nos trouxe.
— Você está indo rápido, Gabriel, pense bem. — Com
certeza Rafael estaria passeando de lado para o outro, enquanto
queria fumar e não podia. — Razhiel me comunicou sobre Mônica
Andersen.
— Ele cuida dos arquivos, era fundamental que estivesse
conectado quando tudo ocorresse. — Rafael entenderia a
referência. — Ele precisava estar a par, mesmo que esteja distante.
— Justo. — Meu irmão fez uma pausa longa, eu pensei que
ele iria desligar. — Todos os termos para que a equipe de gravação
tivesse acesso a nossa casa foram aceitos. Apenas a entrevistadora
e um câmera, ninguém mais passará dos portões e a entrevista será
no jardim.
— Para mim está ótimo. — Dei de ombros. — Não preciso de
mais que isso.
— Você já conversou com Jenny? Ela sabe o que você vai
fazer?
Pela tensão no corpo da garota nos meus braços, ela ouviu o
que precisava ouvir.
— Ela sabe.
De uma parte...
— Então, irmão, eu espero que você tenha certeza. Uma vez
que tenha feito, não vai voltar atrás. Não ficarei limpando suas
bagunças. Você começou isso, então irá até o fim. Mandarei
preparar os documentos. — Rafael xingou em russo. — Espero o
dia que algum de nós irá agir normalmente.
Ele desligou, e eu quis rir do quanto tudo aquilo era ridículo.
Meu irmão se casou com Amira sem que ela soubesse, enganou a
pobre coitada por meses e agora queria ser o paladino da moral,
querendo me frear em algo que ia acontecer mais cedo ou mais
tarde.
Rafael prendeu Amira a ele sem que ela estivesse grávida,
apenas porque ele não queria perdê-la. Claro, pesavam-lhe algum
tempo de relacionamento, enquanto eu e Jenny pulamos todas as
etapas direto para o momento que tinham bebês a caminho.
Não importava, as coisas eram como eram, nos
adaptaríamos e foda-se.
— O que você fez, Gabriel?
— Lembra que eu falei da possibilidade do seu padrasto
declarar que foi sequestrada? — Todo aspecto saudável sumiu de
sua face, num piscar de olhos Jenny estava pálida, tremendo e
ofegante. — Calma, Beag, está tudo bem.
— Ele não pode saber onde estou. — Encolheu. — Eu
preciso ficar escondida, sim, é isso. — Jenny me olhou com tanto
pavor que eu odiei seu padrasto ainda mais. — O seu quarto parece
um apartamento, eu posso morar ali para sempre, não preciso sair.
— Ela segurou meu rosto, com o pânico transbordando. — Você me
deixa ficar, Gabriel? Eu prometo que não vou atrapalhar, nunca vou
reclamar de nada, eu juro.
— Jenny...
— Eu vou limpar tudo, manter bem-organizado. — Notei que
não estava respirando direito. — Eu vou cuidar de você também, só
me dizer o que precisa, o que não souber eu vou aprender e...
— Jenny, eu não te tirei de uma prisão para te colocar em
outra, já conversamos sobre isso. — Eu a abracei. — Eis o que
faremos, se você quiser, é claro. — Comecei a esfregar as suas
costas. — Primeiro, quando for se preparar para a entrevista, irá
deixar os machucados do rosto bem aparentes, de preferência
trance os cabelos. Queremos que todos vejam nitidamente seus
hematomas.
— Só isso que eu preciso fazer?
— Não, a melhor parte vem agora. — Sorri, empurrando seus
cabelos para trás. — Seu público vai estar sedento por notícias,
então use a oportunidade para se vingar do seu padrasto e acabar
com qualquer possibilidade de ele continuar trabalhando com
música. Fale também que ele sequestrou suas redes sociais, por
isso não tem postado nada.
— Eu quero fazer isso. — Jenny arregalou os olhos, mas eu
vi que ela de fato queria tudo aquilo.
— Conte o que ele lhe fez. — Ela estava assustada, mas eu
começava a ver seus olhos brilharem de interesse. — Fale sobre
toda violência doméstica. Destrua o bastardo que te fez mal, essa é
a sua oportunidade.
— Você acha que vai funcionar?
— Eu darei um jeito para que funcione. — Ela confiava em
mim, acreditava no que eu dizia, nunca questionava. Era hora de
usar aquilo ao meu favor. — Você foi uma vítima, mas não irei
permitir que continue sendo.
Era uma promessa.

***

— Estou tão nervosa. — Jenny esfregou a saia do vestido


pela milionésima vez.
— Não precisa ficar, querida. — Mônica sorriu, estendendo a
mão. — Vamos começar em cinco minutos, tudo bem?
O jardim primavera havia sido preparado para aquela
entrevista. Propositalmente, foi garantido que não houvesse
imagens da mansão. O importante, era relacionar o nome
Demonidhes a paternidade dos bebês de Jenny, para que John e
todas as pessoas soubessem que agora ela fazia parte daquela
família, e que estaria segura.
Havia me posicionado atrás da câmera, era dali que daria
suporte a minha mulher.
Já tinha reparado que sempre me buscava com o olhar,
então, seja lá o que ela enxergasse, a ajudava a se acalmar.
— Eu quero agradecer por ter me contatado. — Mônica olhou
para mim, apenas acenei, ela que estava sendo útil para os meus
propósitos. — Eu irei tornar isso grande. — Ela mexeu no celular. —
Meu produtor garantiu que vai explodir quando entrarmos ao vivo,
teremos uma audiência sensacional.
Para o que pretendia sim, precisava que fosse.
Eu havia prometido a Jenny que não iria atrás de seu
padrasto, mas isso não significava que ele não poderia tentar me
encontrar e se isso acontecesse então, a responsabilidade do
desenrolar dos fatos seria toda dele.
Manteria minha palavra, em contrapartida ainda teria a minha
vingança.
Parece-me justo para ambos.
— Está pronta, querida? — Mônica estendeu a mão para
Jenny.
— Não sei, mas vamos em frente. — A voz dela estava
trêmula, não havia dormido quase nada durante à noite, os
pesadelos se assomaram, até que começamos a planejar tudo que
ela iria dizer.
— Vamos entrar em cinco, quatro, três, dois um, estamos ao
vivo... — o cinegrafista anunciou, dando início a entrevista. — Olá a
todos os telespectadores, hoje, não é com felicidade que eu darei
início a esta exclusiva. — Gostei da seriedade com que Mônica
iniciou. — Dias atrás, eu anunciei o escândalo envolvendo a carreira
de Jenny Monroe, todos sabemos que isso culminou no fim de seu
contrato com a gravadora Universal Record’s. Como havia dito
previamente, não obtivemos resposta da equipe de relações
públicas da cantora, para que pudessem explicar o que estava
acontecendo. — Uma pausa de dois segundos, aclimatou o tom da
entrevista. — Mas, hoje, eu estou com Jenny Monroe, e garanto que
ela tem algo a nos dizer.
A câmera virou, eu estava assistindo pela minúscula tela,
acompanhando cada ângulo. O foco da lente foi colocado no rosto
de Jenny, nos hematomas, e foi se aproximando lentamente.
Pela câmera, era gritante o quanto ela era pequena,
assustada e frágil. Seus olhos buscaram os meus, eu acenei.
Você consegue!
Jenny respirou fundo, e ali eu tive ainda mais certeza de que
a tomaria para mim. Ninguém ousaria feri-la, não quando ela fosse
uma legítima Demonidhes.
— Obrigada por ter aceitado vir aqui. — Seu queixo tremeu,
ela respirou fundo outra vez, continuando. — Eu e minha mãe
sofremos violência doméstica por anos. Recentemente, fui
espancada pelo meu padrasto John Samarco Monroe, quando ele
descobriu que eu estava grávida. Ele queria proteger o investimento,
obrigando-me a fazer algo que eu não queria, além de que,
considerava uma traição o fato de eu não lhe contar com quem
havia me relacionado. — A câmera foi se aproximando dos olhos
dela. Podia ver as lágrimas não derramadas, a tristeza e o medo. —
Fui presa em meu quarto, algemada e impedida de exercer o meu
direito de liberdade. — Ela ergueu os braços, mostrando as marcas
nos pulsos. — Eu precisei lutar para que pudesse seguir com a
minha gravidez.
— Sinto muito, querida. — Mônica deu-lhe um aperto no
joelho.
— Obrigada. — Jenny baixou a cabeça por alguns instantes,
então, quando a ergueu, olhou para a câmera. — Eu vivi em um lar
abusivo, sendo obrigada a ver meu padrasto batendo na minha mãe
e em mim. — Mônica estendeu um lenço bordado, Jenny secou os
olhos.
Tudo aquilo era necessário, apesar de me corroer por dentro
vê-la tendo que reviver tudo.
— Se precisar de uma pausa, Jenny, sinalize e nós paramos.
— Mônica não tirava os olhos de Jenny, podia ver o horror em seu
semblante com as revelações.
— Não, vamos continuar, as pessoas precisam saber.
— No seu tempo. Não temos pressa.
Jenny secou os olhos outra vez, mas seu queixo tremia, a
voz seguia embargada. Ela estava lutando para não chorar, mas
parecia impossível mediante o que precisava recordar.
— Ele costumava dizer que a sensação do punho afundando
em nós era prazeroso.
Tentei não me alterar, precisava manter a calma para que
Jenny ficasse bem, mas estava sendo bastante difícil segurar a
onda. Vê-la abrindo sua caixa de Pandora, incitava-me a buscar
John onde estivesse e arrancar cada parte de seu corpo lentamente.
— Você está me dizendo que sofreu violência doméstica
repetidamente por anos? — Mônica perguntou apenas para
fomentar a certeza de quem assistia.
Para quem estivesse ligando a TV naquele momento, seria
saudado pela pergunta chocante.
— Sim, Mônica, e não só isso, mas havia todo um terror
psicológico, as ameaças dele eram tão terríveis quanto as sessões
de espancamento.
— Quais ameaças? Você se sente confortável para nos
dizer?
— Ele prometia matar a minha mãe, se eu não fizesse o que
desejava. Convidar você para nos visitar, foi o modo que encontrei
de garantir que ele não a machucaria por um tempo. Infelizmente,
eu nunca fui forte para lutar contra ele.
— Sinto muito. — A voz da própria Mônica embargou. —
Sinto de verdade.
— Eu não conseguia pedir ajuda, ele não me permitia acesso
on-line a nada. Ele não me deixava ter um celular moderno, e essa
era uma das várias maneiras que me controlava. — Ela respirou
fundo, franzindo o cenho. Por um breve instante, eu vi a raiva em
seus olhos. — Eu chamei a polícia uma vez, acreditando que
estaríamos a salvo, mas eu estava errada. John os convenceu de
que eu não passava de uma adolescente rebelde.
— E os serviços de proteção, você os chamou?
— Eu recebi ajuda de uma única vez de uma pessoa que
trabalhava na casa. — Uma sombra de pesar passou por seus
olhos. — O resultado da minha tentativa foram duas costelas
quebradas e um mês sem poder falar com a minha mãe, ainda que
morássemos na mesma casa.
— Jenny, isso foi há quanto tempo?
— Mais ou menos dois anos, eu acho — suspirou. — Sabe o
que é mais estranho, Mônica? A música era o meu mundo e, por
causa dele, eu perdi a paixão que possuía. John Samarco Monroe
corrompeu a única coisa bonita que eu tinha.
— Não diga isso, as pessoas estão conhecendo a verdade.
Tenho certeza de que tudo será diferente a partir de agora.
Jenny negou, era como se houvesse chegado a uma
conclusão e não mudaria de ideia.
— Meu sonho não era ser uma popstar, mas John viu
potencial, e a possibilidade de entrar na gravadora para alavancar
seus negócios sujos. — Jenny olhou para mim. — John é um
homem cruel, perigoso. Tem amizades piores que ele. Eu tenho
pavor de pensar o que poderia ter feito, se conseguisse o que
desejava.
— Por que não me disse nada quando a entrevistei?
Poderíamos ter feito algo.
— Quando tínhamos algum compromisso, ele fazia questão
de deixar claro que minha mãe seria responsabilizada por qualquer
coisa que eu fizesse. — Jenny balançou a cabeça, seu olhar tornou-
se perdido em lembranças. — Eu sempre colaborava, mas, às
vezes, nem assim funcionava. Ele gostava de bater na gente.
— Filho da puta — o câmera rosnou baixinho, indignado com
tudo que ouvia.
— Jenny, eu sinto muito que tenha passado por tantas
coisas. — Outra vez, Mônica fez contato, compreendi que era seu
jeito de confortar a minha mulher.
As microexpressões dela eram reveladoras. Havia muito
asco, tristeza e raiva. Mônica estava lutando para não demonstrar o
quanto estava puta com tudo que ia sendo revelado.
— Foram tempos de obscuridade na minha vida, mas que
agora acabou. — Aqueles doces olhos castanhos fitavam-me com
tanto carinho, que eu senti o golpe direto no coração. — Não
deixarei que o passado seja o medidor da minha felicidade, eu
posso e mereço mais do que tive.
— Claro que sim, e eu estou muitíssimo feliz que você tenha
essa oportunidade. — Pelo modo como o tom da entrevistadora
mudou, percebi que a segunda fase começava agora.
O primeiro golpe em John havia sido dado, agora ele
precisava ser mais provocado.
Se ele era um bastardo possessivo como eu achava que ele
era, então, saber que Jenny prosperava longe de seu alcance seria
o suficiente para causar uma reação.
— Jenny, em que momento nessa história entra o
relacionamento com Gabriel Demonidhes? — Mônica sorriu, sua
intenção era deixar minha mulher confortável para que não
houvesse margem para que algo desse errado.
Aquela entrevista precisava ser perfeita.
— Nos conhecemos no festival de Londres e eu voltei de lá
grávida. — Jenny sorriu, olhando para mim. — Eu olhei para ele e
todos os meus pensamentos sumiram. Foi a primeira vez em anos
que eu não pensava no quanto a minha vida era ruim.
— Eu e os telespectadores adoraríamos ouvir a versão de
Gabriel dessa história. — Mônica pareceu-me descontraída. Ela era
experiente e estava conseguindo transitar pelos assuntos com
maestria, exatamente como eu esperava que fosse. — O que me
diz? Será que teríamos a chance de conhecer o homem que
arrebatou o seu coração?
O rosto de Jenny aqueceu, eu sabia que teria aquele
momento. Eu mesmo havia combinado para que acontecesse.
— Você nos daria o prazer de sua presença, Sr.
Demonidhes? — Mônica olhou para mim e eu pude ver através da
tela da câmera que a dinâmica da entrevista seguia impecável.
Estava descobrindo coisas importantes sobre o passado da
minha mulher, bastava juntar as peças e, então, seu desespero para
que as coisas acontecessem no nosso primeiro encontro estava
desvendado.
Talvez, aquela fosse a primeira vez que Jenny poderia
desfrutar de liberdade, havia muito significado em sua entrega.
No quanto era importante poder escolher. Agora, era a minha
vez de ajudar a concretizar o romance. Saindo do meu lugar, eu me
aproximei delas.
— Será um prazer estar ao lado de Jenny. — Sorri de
maneira agradável e sedutora.
Havia uma cadeira fora do campo de filmagem, eu peguei,
colocando-a ao seu lado.
— Agora eu entendo quando disse que era apaixonada por
um ruivo. — Mônica brincou. — É um prazer conhecê-lo, Sr.
Demonidhes.
— Me chame de Gabriel, não precisamos de formalidades
aqui. — Peguei a mão de Jenny, entrelaçando nossos dedos.
— Vocês são lindos juntos, podemos esperar por um
casamento em breve?
— Com certeza, não pretendo deixar que essa mulher
escape de mim. — O intuito era continuar provocando John. Sabia
que ele estava assistindo aquela porra.
— Gabriel? — Ela apertou minha mão, os olhos arregalados
de surpresa.
— Beag, você achou que eu estava brincando? — Sorri para
ela, percebendo que me olhava com deslumbramento. Voltei minha
atenção para Mônica, agora precisava ir até o fim. — Eu pretendia
que o sequestro terminasse em Las Vegas, mas, como pode
reparar, quando eu a busquei em sua casa, ela estava machucada
demais. Bom, quando vi o estado em que a encontrei, decidimos
que poderíamos nos casar nesta casa, afinal temos um belo jardim.
As fotos ficarão perfeitas.
Um idiota frívolo e que não foge das responsabilidades. Eu
esperava que John caísse no papo e viesse discutir comigo seu
ponto de vista.
— Está óbvio que esse alerta de sequestro é uma atitude
desesperada de um homem que acha que tem posse sobre as
pessoas. — Mônica ficou séria. — Eu acredito no amor à primeira
vista e isso é claramente o que aconteceu com vocês.
— Eu fugi com Gabriel porque eu quis — Jenny endossou. —
Mas o meu padrasto não aceita, ele está mentindo sobre tudo,
desde o começo. — Senti o aperto em minha mão. — John não é
cuidadoso, nunca amou a família que tínhamos, ele não passa de
um aproveitador, maldito explorador de mulheres.
A respiração de Jenny começou a mudar, ela estava agitada,
na sua pressa para livrar-nos da acusação de sequestro. Em breve,
teria uma crise e eu não podia permitir, não agora quando ela
parecia tão bem.
— Querida, não se apresse — murmurei, acariciando seu
braço. Atento a ela, trouxe sua mão aos meus lábios, beijando-a. —
Estamos bem, está tudo bem agora.
Ela acenou, respirando fundo, sem tirar os olhos de mim.
— Obrigada — disse baixinho, eu pisquei um olho,
descontraindo a situação. Jenny olhou para a Mônica. — John não
me permitia interagir com as pessoas que me acompanhavam.
Sempre foi ele quem postou os vídeos, fotos. Era quem editava e
respondia as pessoas. — Lambeu os lábios, fechando os olhos. —
Eu menti por causa dele, me envergonho de não ter lutado mais e
peço perdão a todos que, de algum modo, se sentem
decepcionados comigo.
— Primeiro de tudo, a culpa nunca será sua. Nós não
podemos assumir a responsabilidade pelos desvios de caráter de
outras pessoas, ainda mais quando são criminosas como as
atitudes de John Samarco Monroe. Infelizmente, muitas mulheres
são reféns de homens assim. — Mônica olhou para a câmera. —
Eles fazem um trabalho minucioso na cabeça delas. São sutis na
arte de manipular, até que nos tornemos dependentes de aprovação
e aceitação, enquanto nos culpabilizamos por tudo. E aí, já
estávamos dependentes do círculo vicioso que o abusador criou.
— Por um tempo, eu não tive esperanças. — Jenny olhou
para mim, com os olhos brilhando, o aperto em minha mão dizia
muito. — Você sabe que me salvou de muitas maneiras, não é?
— Eu poderia dizer o mesmo. — Aquilo não fazia parte do
roteiro que eu havia criado.
— Gabriel não desistiu de mim, Mônica, nem da minha mãe.
— Jenny, então, ficou séria, a atenção na outra mulher. — Requer
muita coragem pedir ajuda, quando eu a busquei, fui ridicularizada e
depois castigada por lutar por um direito que deveria ser meu. No
meu caminho encontrei alguém que me enxergou, e eu tive uma
segunda chance. Muitas não conseguem, porque homens como
meu padrasto fazem mulheres como eu e minha mãe serem
números. Depois, não adianta nada, estatísticas e boa vontade não
servem para aliviar a dor, precisamos de ações, algo que seja bom e
palpável, que faça diferença.
— Eu irei garantir que esta discussão não acabe aqui. Nós
vamos reabrir o diálogo neste país.
— Obrigada, Mônica. Poder contar com pessoas com sua
visibilidade vai ajudar muito. — O sorriso de Jenny era tão bonito e
esperançoso que eu me orgulhei do quanto ela estava se mantendo
forte quando precisava se expor daquela maneira.
— Não ficarei em silêncio. — A entrevistadora retribuiu o
sorriso. — Vamos tirar o sono de todos os abusadores deste país.
— Como capitão do Corpo de Bombeiros de Nova York, apoio
a iniciativa. — Olhei para a Jenny. — Você está segura agora.
— Eu sei. — Sorriu, balançando a cabeça afirmativamente.
— Eu desejo toda felicidade do mundo para vocês, gostaria
de agradecer a oportunidade desta exclusiva, eu acredito que os
ânimos agora estarão mais calmos. — Estávamos caminhando
para o final da entrevista. — Jenny, seus fãs irão te apoiar. Agora
que todos sabem a verdade, tenho certeza de que tudo vai ser
incrível daqui para frente.
— Eu desejo muito que tudo possa se resolver. Obrigada,
Mônica, por tanto.
— Foi um prazer. — Ela virou-se para a câmera. — Eu me
chamo Mônica Andersen...
Eu tinha mais alguns segundos antes que tudo acabasse, e o
que eu ia fazer agora jogaria um balde de gasolina na entrevista.
Era errado, mas eu sabia que acertaria o alvo. Pensando
objetivamente no que ia fazer, eu disse:
— Case-se comigo, Jenny, agora — falei alto, para que fosse
bem capturado pelo microfone.
— Meu Deus! — Mônica ofegou. — Você pegou isso?
— Saímos do ar, mas eu peguei. — Havia satisfação na voz
do câmera.
Não estava prestando muita atenção naquele diálogo e sim
na garota que me encarava como se houvesse acabado de criar
uma cabeça extra.
— Jenny? Não vai responder? — Mônica questionou, e, ao
invés de dizer sim, minha garota levantou e saiu correndo como se
os cães do inferno a perseguissem.
Bem, não era isso que eu esperava.
41
Jenny Monroe

Eu não fazia ideia de para onde estava indo, mas continuei


correndo, ignorando as dores no corpo, na barriga.
Queria parar de sentir a sensação de que as paredes
estavam se fechando, de que, a qualquer momento, a minha vida se
tornaria um inferno de novo e que a culpa de tudo era minha porque,
quando eu imaginava um recomeço, uma parte de mim considerava
que a qualquer momento precisaria fugir.
Não era isso que Gabriel desejava.
E ele fez questão de mostrar na frente de milhares de
telespectadores.
Casamento.
União matrimonial sagrada.
Só de imaginar acontecendo o pânico me invadia.
Por que ele iria querer se casar comigo?, questionei-me,
avistando a divisão do jardim. Havia uma linha de árvores frutíferas
bastante frondosas, que davam início a floresta particular deles. Eu
me apressei ainda mais, buscaria refúgio na solidão.
Queria pensar em tudo que estava acontecendo, nos meus
erros e na facilidade que eu poderia ser desmascarada por
Lysander, caso ele quisesse.
Eu tinha tanto medo daquilo acontecer. Mas, para a minha
total desgraça, a única responsável por estar naquela situação era
eu mesma, que deveria ter contado tudo na primeira oportunidade.
— Não posso contar. — Olhei ao redor, não conseguia mais
correr, por isso apoiei-me numa árvore, abraçando os joelhos. —
Não faz sentido algum.
Por que Gabriel queria casar? Eu não queria algo do tipo,
principalmente por não ter nada a oferecer.
— Para uma garota pequena, você até que corre rápido. — A
voz de Gabriel me fez estremecer. Eu nem tive coragem de olhar
para ele. — Os remédios estão surtindo efeito, não está nem
ofegante. — O seu calor me rodeou quando ele se sentou ao meu
lado. — Não vai olhar para mim?
Neguei, o que mais eu poderia fazer? A minha vida estava
mudando tão rápido, que eu nem conseguia acompanhar. Uma
hora, eu acreditava que tudo caminhava para algo tranquilo, então
do nada eu estava de cabeça para baixo, angustiada com um
padrasto louco tirano e pedidos de casamento aleatórios.
— Beag...
Quando ele me chamava assim, eu sentia as pernas moles.
O tom carinhoso alcançava pontos específicos.
Era bom, pura e simplesmente.
— Você está sendo precipitado — murmurei, o olhar fixo nas
árvores a frente. — Nem me conhece direito, Gabriel, não criamos
um relacionamento, e se não formos compatíveis? E se eu não for o
que espera? Casamento é um erro.
Principalmente quando escolhe alguém que não te conta a
verdade. Senti os olhos arderem, era injusto que John houvesse
tirado a minha autoconfiança, ou melhor, que ele houvesse minado
qualquer possibilidade de eu acreditar que merecia um homem
como Gabriel.
Eu não merecia, e Lysander tinha razão quando dizia que eu
era conivente com o meu passado de merda. Parando para pensar,
eu tive chances de fazer as coisas acontecerem, mas fui covarde,
escondendo-me atrás do medo.
Não tinha desculpa para aquilo.
— Eu sou assim, Jenny. — Gabriel soltou o fôlego. — Meto
os pés pelas mãos, me arrisco, vivo perigosamente e tomo decisões
no calor do momento. Eu sou assim, quente demais, não sei ser frio
como meus irmãos. Não há meio-termo comigo.
O jeito com que falava de si mesmo não me surpreendia.
Para ser como Gabriel, era necessário ter muita certeza de seu
lugar no mundo. Desde o primeiro momento, havia percebido que
ele era uma pessoa consciente de seu próprio poder.
— Casamento... — Balancei a cabeça.
— Você disse que queria recomeçar ao meu lado.
Mas sem algo que prendesse e que me fizesse lembrar que
eu menti para você. Não tive coragem de lhe dizer.
— Não faz muito tempo que estamos juntos Gabriel. E isso
só aconteceu porque estou grávida, eu não vou aceitar que se
prenda a mim por causa disso.
— Olhe para mim. — Obedeci, no momento esconder-se era
apenas covardia.
Eu já havia sido covarde demais.
— Você é incrível, Gabriel. — Ele arqueou a sobrancelha,
parecia divertido. — Merece alguém que seja... — Desviei o olhar.
— Alguém que tenha algo a oferecer. Os seus filhos continuarão
sendo seus, não precisamos nos casar. Eu pretendo ficar, mas sem
casamento.
— Eu nunca imaginei que levaria um fora. — Suas palavras
me pegaram de surpresa.
De tudo que eu havia dito, era nisso que ele focava?
— Jenny, você se mostrou desconcertante, e,
inesperadamente, eu gostei.
— O quê?
Ele só pode estar brincando.
— Você é a primeira mulher que eu peço em casamento, a
primeira a me dar um fora também. — Engoli em seco com sua
tranquilidade. Ele até estirou as pernas, cruzando os braços. — Se
sua intenção é tornar isso um desafio, aviso de antemão que eu
aceito.
— Não é um desafio, que classe de pensamento é esse? —
Virei-me para ele, Gabriel estava de olhos fechados, a cabeça
recostada no tronco da árvore. Tinha um sorriso bonito nos lábios,
como se alguma coisa o agradasse muito.
— Os papéis estão prontos, caso esteja repensando.
— Você... — engoli em seco, com as mãos gelando de
ansiedade. — Não fez isso.
— Rafael casou-se com Amira sem que ela soubesse, levou
um longo tempo até ele contar a ela.
— Não acredito. — Imaginar que Rafael havia feito algo do
tipo era absurdo demais.
O que havia com os homens daquela família? Balancei a
cabeça, considerando que, talvez, eles fossem loucos, era a única
explicação justificar o modo estranho como agiam.
— Pois é, ele fez, e eu deveria ter feito o mesmo. — Gabriel
olhou para mim. — Resolveria alguns problemas.
— O nosso problema atual é que agora meu padrasto sabe
onde estou. — Tentei disfarçar o quanto estava amedrontada. — Ele
vai fazer da minha vida um inferno.
— Eu poderia resolver isso assim. — Estalando os dedos,
mostrou-me o quanto era fácil para ele resolver problemas, que para
mim não havia solução. — Mas não sei por que estou sendo
permissivo demais com você.
— Você prometeu.
— Pois é, eu gosto de ser leal a minha palavra, mas isso não
significa que eu não possa mudar de ideia se o momento exigir. —
Algo que eu não soube identificar brilhou em seus olhos. — Se John
se aproximar dos muros dessa casa, eu o matarei. Simples assim.
John não ia desistir de mim, eu sabia disso. Eu era sua
propriedade. Ele ia vir, de algum modo ele iria e Gabriel havia dito
onde poderia encontrá-lo.
Deus... pensei por momento, chegando a conclusão de que
não havia nenhum ato deliberado por parte de Gabriel. Ele sabia o
que estava fazendo, era uma armadilha.
Que ele poderia cair por ser autoconfiante demais.
— Você planejou tudo. — Balancei a cabeça, horrorizada de
imaginar o que poderia acontecer. — Você quer encontrar John! Por
quê?
— Bravo. — Seu sorriso aumentou. — Temos contas a
acertar, Beag, e os homens desta família não deixam homens como
seu padrasto sem punição.
— Você não sabe o enorme problema que está trazendo para
cá! — Levantei-me, sentindo que poderia morrer. — Ele vai vir, e
não fará isso sozinho! — Olhei ao redor, milhares de coisas
passando pela minha cabeça.
John ia dar um jeito de entrar naquela casa, o terreno era
grande demais para que eles conseguissem cobrir todos os lugares,
a brecha que fosse encontrada, seria usada. John machucaria
aquela família e me culparia por cada maldito ato que fizesse.
Preciso fugir!
O desespero crescente me impedia de pensar com clareza.
Para onde eu ia? Sozinha, sem dinheiro para nada.
Não só isso, havia os bebês, o acompanhamento da gravidez
de risco, a saúde da minha mãe.
Deus... Pensava que a ideia da entrevista serviria para
descredibilizar o alerta de sequestro que John tinha feito, e talvez,
com sorte, as autoridades começariam a tratar as denúncias de
violência doméstica com mais cuidado.
Ao invés disso, um alvo foi pintado nas costas daquela
família.
— Jenny...
Não pude olhá-lo, sentia que ia morrer ali e agora.
— Ei, Beag, você está bem?
Neguei, arquejando. Fui abraçada, as mãos de Gabriel
começaram a esfregar as minhas costas com gentileza. Num ritmo
que eu deveria me concentrar para enfrentar aquela crise horrível.
— Estou aqui, nada vai acontecer, agora respire comigo. —
Seu peito expandiu quando puxou o ar. Não o acompanhei. —
Vamos, Jenny, respire comigo!
Fechei os olhos, concentrando-me nele, nas batidas de seu
coração. As imagens catastróficas que se formavam em minha
cabeça mesclavam-se com o pavor abissal de encontrar John outra
vez.
Ele faria algo, em breve atacaria e quando conseguisse me
pegar.
Seria pior que antes.
— Jenny, con... centre-se em mim. — Não conseguia ouvi-lo
com clareza, a minha respiração estava cada vez pior, o meu
coração batendo como um louco, esmurrando meu peito.
Havia dor, muita dor.
John encontraria Gabriel, e o machucaria para me punir.
Você pertence a mim, eu comando sua vida... Encolhi no
abraço caloroso, porque eu jurava que poderia ouvir a voz daquele
maldito, sussurrando dentro da minha cabeça.
— Jenny... — Gabriel segurou meu rosto, não conseguia
olhar para ele. Não quando eu sabia tudo que ia acontecer. — Estou
aqui para você, presta atenção em mim, pequena. — Ele acariciou
meu rosto. — Você não pode permitir que o medo te controle,
enfrente-o.
— Eu não consigo. — Sua imagem embaçou. — Você não
entende, Gabriel.
— Me faça entender. Conte-me tudo.
Eu queria contar, mas teria que ser tudo, e eu não tinha
coragem. Ainda era muito recente, as feridas seguiam inflamadas,
dolorosas demais.
A culpa que eu carregava por ter demorado demais a
enxergar que eu mesma desperdicei as melhores chances que tive,
e tomei todas as decisões erradas, que me levavam até aquele
momento.
— Eu me arrependo de tudo — murmurei, sentindo o coração
partir. — Eu me arrependo de ter aceitado essa entrevista, de ter
acreditado quando disse que tudo ia ficar bem, de ter... — Balancei
a cabeça. — De ter escolhido você.
Não estava pensando com clareza, tampouco nas
consequências. Só queria que aquela dor no meu peito, o medo
insano sumisse.
Pude ver a decepção estampada no rosto de Gabriel, ele não
queria esconder.
Sentia-me tola por ter acreditado no que ele me disse.
É somente uma entrevista, Jenny.
Mas ele tinha planos, manipulou tudo. Fez-me de idiota.
— Vamos lá, Beag, você não quer dizer isso. — Ele me
abraçou outra vez. — Acalme-se, precisamos esclarecer algumas
coisas. — E eu o empurrei, afastando-me.
— Era minha chance de recomeçar, você não deveria ter
provocado meu padrasto daquele jeito.
— Te pedir em casamento foi uma provocação? — Ele cruzou
os braços, encarando-me. — Não, Jenny, foi um aviso.
— Eu te odeio, Gabriel. — Seus olhos estreitaram, todo calor
sumiu num estalar de dedos.
De repente era como se ele não possuísse sentimentos.
— Cuidado com o que diz. — Inclinou a cabeça para o lado,
olhando-me de cima a baixo. — Eu posso acreditar.
O seu olhar me fazia refém, o jeito que parecia me queimar
transbordava a normalidade. Eu não tinha mais nenhuma palavra
para dizer, só podia sentir o tremor e o desespero tomando conta.
— Sabe que eu odeio mentiras. — A aura de perigo que o
rodeava era densa, pesada demais. — Eu cansei de fechar os olhos
para as suas. Que se dane o seu passado, mas você prometeu que
não ia mentir.
— Não estou mentindo.
— Então repete que se arrependeu de ter me escolhido. —
Ele estreitou os olhos, inclinando em minha direção. — Repete! Mas
fala isso olhando para mim.
Não tive coragem, então só baixei a cabeça. Sentia-me tão
estúpida que a sensação de desmerecimento só piorava.
Eu não deveria estar ali. Não era eu quem deveria ser
escolhida por ele.
Gabriel merecia mais, muito mais do que eu poderia lhe
oferecer.
— Beag, ouça. — O toque gentil me fez estremecer. —
Vamos conversar sobre como você se sente, podemos chegar a
algum lugar, mas, por favor, não me deixe de fora. — Era como se
houvesse um peso em cima de mim. — Eu sei, que é tudo muito
recente, mas já atropelamos nossa história tantas vezes, que não
importa mais a ordem natural das coisas.
Ele sempre validava meu sentimento, me ouvia. Gabriel era
especial demais, e eu não podia machucá-lo com palavras apenas
porque era acostumada a receber golpes e revidar.
— Eu tenho medo de que alguma coisa aconteça com você.
— Ele sorriu, como se eu houvesse dito algo engraçado. — Não
desconsidere, autoconfiança é uma bosta.
— Eu acho que preciso começar a trabalhar a sua. — Ele
brincou com a minha trança. — Se sente melhor?
— Sim. — Meu coração ainda batia fora de ritmo, minhas
mãos tremiam, mas era só isso.
— Parece-me bom.
Gabriel me abraçou e não disse nada, mas o fato de estar
comigo e não perder a cabeça já era de grande ajuda. Eu não sabia
como ele conseguia se manter tão controlado, óbvio, não fazia ideia
das pessoas que havia provocado.
— Vamos para casa. — Antes que eu pudesse dizer qualquer
coisa, ele me ergueu nos braços. — Antes que sua cabeça se
exploda com tanto pensamento idiota.
Durante o caminho de volta, eu não disse nada. Preferi
abraçá-lo. Talvez, houvesse outros meios de proteger a família
Demonidhes, eu só precisava descobrir como.
O burburinho de vozes começou a se aproximar, agora havia
pessoas trabalhando na casa vinte e quatro horas por dias. Pelo que
soube, eram todos russos, de uma família que trabalhava para os
Demonidhes há décadas.
Quando chegamos de viagem eu os conheci, e foi meio
assustador, pois eram sérios demais e impecáveis em cada detalhe.
— Gabriel, precisamos conversar. — Assim que entramos na
sala, Rafael nos abordou. — É urgente, irmão.
— Algum problema?
— Sim. — Na breve troca de olhares, eu soube que era muito
sério.
— Eu posso esperar aqui — proferi, olhando de um para o
outro —, se não for um problema.
— Não é, fique à vontade, tem chocolate na cozinha. —
Rafael indicou para onde eu deveria seguir. Ainda não estava
familiarizada com a casa. Ela era grandiosa demais. — Amira está
lá.
— Eu não vou demorar. — Gabriel me colocou no chão,
beijando o topo da minha cabeça. — Me juntarei a vocês em breve.
— Ele segurou meu rosto. — Não pense muito, não fique chateada,
afinal fui eu quem levou um fora. — Ele sorriu olhando para o seu
irmão. — Ela não aceitou meu pedido, Rafael.
Eu acho que Gabriel esperava alguma piadinha, mas,
prestando atenção, Rafael estava sério demais. Em seus olhos
azuis, havia tanta frieza que eu me encolhi, apesar de ele manter-se
estático, podia ver claramente que mantinha sob rédeas curtas algo
muito ruim.
Por algum motivo, o impulso de pedir desculpas pelo que
quer que seja foi tão forte que dei um passo em sua direção.
— Desfrute de um momento tranquilo com minha esposa,
Jenny. — Meneou a cabeça, impedindo-me de dizer qualquer coisa.
A sensação que eu tinha era de que a minha chegada havia
acabado com o equilíbrio da casa e eu não fazia ideia de como
melhorar as coisas.
— Eu e meus irmãos resolveremos os problemas da família.
— Sua voz soou calma, contradizendo a dureza em seu olhar. —
Não importa o que o mundo pense sobre suas mudanças, nesta
família, as mulheres sempre serão protegidas e você faz parte da
família. Tomarei para mim, a responsabilidade de colocar as coisas
em ordem. — Ele indicou a direção da cozinha com a cabeça. —
Vá, agora.
Olhei para Gabriel, ele também parecia confuso com a forma
solene com que Rafael estava se comportando. Havia mais por trás
de suas palavras.
Me afastei, no entanto, não fui capaz de ir muito longe. Eu
virei-me para eles de novo, emocionada por ter encontrado refúgio.
— Obrigada por tudo.
Rafael não respondeu, e eu me apressei em direção a
cozinha antes que pudesse me envergonhar ainda mais. Quando
me aproximei, fui capaz de ouvir a voz de Amira, ela estava
conversando com alguém e parecia animada com algo.
Não entendi o idioma, mas ela falava com tanta rapidez e
beleza que parei, admirando-a.
Ao seu lado, uma mulher bonita e mais velha, indicava
algumas frutas em cima da mesa. Se eu não estivesse errada,
aquela mulher se chamava Ivana, era a chef de cozinha e esposa
de Boris, o mordomo.
Amira estava atenta a alguma receita, enquanto observava
Ivana explicar as coisas.
Era estranho o que eu ia dizer, mas a mulher mais velha
estava ao redor de Amira como se fosse uma mãe. Os sorrisos, o
calor nos olhos, o carinho com que lhe entregava algo para
experimentar.
Eu não me vi ali com elas.
— Oi, Jenny. — Amira olhou para mim, sorrindo. —
Estávamos te esperando, Ivana vai fazer korzinotchki[13].
— Obrigada, mas eu estou... — Pensei numa desculpa
convincente. Amira era muito inteligente. — Preciso encontrar
Lysander, ele ia me dar notícias da minha mãe.
— Ah, ele está no escritório. — Amira se aproximou. — Tem
certeza de que não quer ficar? Vamos cozinhar juntas.
— Eu volto — menti, e Amira apenas aceitou.
— Fique à vontade.
Eu me afastei. A verdade era que eu não queria encontrar
Lysander, só queria ficar sozinha, mas até o momento eu havia
aceitado o que eles me diziam sobre o estado de saúde da minha
mãe, eu precisava demais.
Queria vê-la.
Não fazia ideia de onde ficava o escritório, para qual lado ir.
Então, fiz a única coisa provável, comecei a explorar. Sabia onde
estava o corredor que levava a ala dos quartos, se fosse pensar
com lógica, o escritório deveria estar perto das salas.
Tentando não fazer barulho, eu fui passando pela sala. Mas a
voz alterada de Gabriel chamou a minha atenção. Com cuidado, me
aproximei, espiando.
Rafael estava de braços cruzados e havia entregado o celular
para Gabriel. Não levou mais que dois segundos antes que ele
fechasse os olhos e apertasse o telefone. Sua respiração parecia
estar saindo do controle, vi quando seu peito começou a subir e
descer, então tudo pareceu explodir.
Ele deu um berro furioso, que poderia ter assustado até os
mortos. Não havia nenhum resquício do Gabriel que eu conhecia,
ele estava fora de si.
— Se não quiser ser pega, melhor sair daí. — Quase enfartei,
pois não havia notado que Lysander estava atrás de mim. — Amira
me avisou que você estava à minha procura. Eis-me aqui.
Aquele dia estava tão estranho que eu tinha certeza de que
ele não podia piorar.
— Eu quero notícias da minha mãe — falei baixinho,
encolhendo-me diante do som de coisas quebrando na sala.
Seja lá o que Rafael tenha mostrado, parece que foi o
suficiente para enlouquecer Gabriel. Eu não fazia ideia do que
estavam falando, mas Lysander ficou sério, pois ele sim
compreendia o que era dito.
— Venha. — Lysander indicou o corredor. — Vamos para a
biblioteca.
Não questionei, apenas o segui na direção que ele indicou.
Passamos por mais duas salas enormes, e entramos em outro
corredor. Lysander foi indicando o que havia atrás de cada porta.
Eles tinham ali, uma sala de jogos, e uma nova área sendo
decorada para receber as crianças. Pelo que entendi seria onde os
brinquedos ficariam.
— Aqui é o cinema. — Ele abriu uma porta e a escuridão
saudou. Lysander acendeu uma luz, e eu avistei o lugar que mais
me interessou.
As cadeiras pareciam camas, a tela gigantesca ia de um lado
a outro.
Eu não deveria ficar surpreendida, o que era um cinema
comparado a um hangar com jatinhos? Se algum dia dissessem que
faziam parte da realeza, eu só ia concordar.
Na quinta porta depois do cinema, Lysander parou.
— A piscina aquecida fica ali. — Ele indicou o final do
corredor. — Toda estrutura é de vidro, das paredes ao teto, você
pode usá-la como referência para chegar neste corredor. Há um
acesso pelo lado de fora.
A distância era considerável entre uma porta e outra. Estava
cansada de tanto caminhar, e nem um pouco surpresa de ter
descoberto que a casa era ainda maior do que eu tinha imaginado.
Certamente, não encontraria o escritório ou a biblioteca
sozinha.
Lysander abriu uma porta, finalmente havíamos chegado.
Como os outros espaços da casa, a biblioteca era grandiosa, com
prateleiras naquele tom de madeira escura que ia do chão ao teto,
repletas de livros.
Havia sofás, espaços acolchoados na parede envidraçada.
Era um paraíso para alguém que gostava de ler.
— Eu estou avaliando alguns livros. — Lysander apontou
para a mesa principal. Havia uma pequena pilha. — Preciso
entender melhor o seu problema.
Olhei para ele, desacreditando do que tinha dito. Por que ele
iria estudar meu caso? Era só passar para outro médico.
— Eu não te entendo. — Balancei a cabeça, meio
desorientada. — Há momentos que parece não me suportar, outros
que é cordial. Isso é tão confuso.
Ele deu de ombros. A sensação que eu tinha era de que ele
enviava sinais dúbios para confundir de propósito.
— Não tente me entender, apenas não fique no meu caminho
e tudo vai dar muito certo, agora. — Ele indicou uma cadeira. —
Quando Gabriel me contou da entrevista, eu resolvi esperar para ver
o que você iria me contar.
— Contar a você? — Franzi o cenho, confusa. — O quê?
— Sim, você acabou respondendo algumas questões.
— Eu não entendo. — Busquei na mente, tentando lembrar
de tudo que eu havia dito na entrevista.
Denunciar John em rede nacional foi meu objetivo principal,
não disse mais nada além disso.
Ou disse?
— Foi o seu padrasto, não foi, Jenny?
Havia muita certeza camuflada na sua pergunta. Ele apenas
me dava a cortesia de dizer algo que ele já sabia.
— Lysander, por favor...
— Jenny, eu não me comovo com pessoas que imploram. —
Ele cruzou os braços. — Isso apenas me irrita. Sejamos francos, eu
não quero que você diga com todas as letras, eu já sei tudo que
preciso saber.
— Você vai contar para Gabriel? — Baixei a cabeça,
sentindo-me fria por dentro, como se estivesse morrendo. — Você
vai dizer a ele?
— Dizer o quê exatamente?
— Você quer que eu diga em voz alta, Lysander? — Meu
queixo tremeu, mas recusei-me a chorar, estava cansada demais
até para isso. — Eu quero notícias da minha mãe.
— Ela está viva e eu a estou mantendo sedada, quero dar-lhe
tempo para que se recupere.
— Onde ela está? — Abracei-me. — Eu gostaria de vê-la.
Lysander me olhou por um tempo e eu não consegui
sustentar seu olhar. Ele parecia contemplativo, e isso me fazia sentir
como se algo desagradável.
— Por que ainda insiste em protegê-lo, mesmo estando
segura? — Sua pergunta me pegou de surpresa. — Não revelar o
nome dele para mim, mesmo que claramente esteja óbvio quem lhe
machucou, levanta questionamentos. Você alegava que fazia o que
ele mandava porque temia pela sua mãe, okay, ela não está nas
mãos dele. Então, o que a impede?
— A sua família. — Respirei fundo, ia ter que confiar em
Lysander, talvez ele fosse a resposta e o que eu precisava para
manter todos daquela casa seguros.
Se ele colaborasse comigo, ficando do meu lado, então seria
mais fácil.
— Esclareça, possivelmente eu esteja com dificuldade para
entender o seu ponto.
— Você disse que protegeria sua família, certo? — Ele
concordou. — John trabalha com pessoas perigosas, quero dizer,
ele mexe com coisas realmente grandes. E quando eu digo grande,
é sério. Estou falando de drogas, lavagem de dinheiro, e sei lá mais
o quê. — Abanei a mão, sentindo-me cada vez mais ansiosa. — Ele
me queria na gravadora, porque pretendia usá-la para fazer o
trânsito das drogas, e do dinheiro. Isso é o que eu sei, mas tenho
certeza de que é pior, o chefe, ele enviou um grupo de segurança
muito bem armados para proteger a nossa casa, quando
perceberam que o plano estava dando certo. Muitos seguranças,
Lysander, armados até os dentes, armários com cara de ódio e más
intenções.
— E daí?
— Como assim, e daí? Enlouqueceu?! — Espantava-me que
ele fosse tão louco ao ponto de banalizar o que eu havia acabado
de dizer. — Vocês são pessoas inocentes e agora ele sabe onde
estou. Ele vai vir aqui e atacar. Não espere um homem comum, ele
pode machucar vocês, e eu vou me sentir tão culpada se alguém
daqui se ferir. — Por que ele não podia entender de uma vez? — Eu
já te disse, eu só quero paz. Um lugar para ficar sem ter medo, não
tente resolver qualquer coisa do meu passado, vamos apenas
deixá-lo lá.
— Há muitas coisas em aberto e meu irmão não deixa
assuntos inacabados. Nenhum de nós, na verdade. — O canto de
sua boca arqueou levemente. — Percebo que não vai contar a
verdade para Gabriel. Eu o farei.
Senhor!
— Não faça isso, Lysander. — Ergui as mãos, não estava
longe de implorar caso fosse preciso.
— Gabriel a pediu em casamento, e você não pensa em
contar a verdade?
— Eu disse não, não vamos nos casar.
— Ao menos alguém sensato no meio de tudo isso. — Tive
que concordar. — Agora continue fazendo o certo, e conte toda
verdade para o meu irmão, certamente vai te ajudar para com o
sentimento inferioridade, de que não merece estar aqui, e toda
merda que você pensa sobre si mesma.
— Como você sabe? — Dei um passo trás, chocada demais
que ele fosse tão certeiro.
— Você dá muitas voltas nos assuntos, Jenny. Uma hora
parece que está tudo bem, então, de repente, você volta para o
começo. Francamente, conte a verdade para o meu irmão, faça de
uma maldita vez o que deveria ter feito quando chegou aqui,
assuma o seu lugar nesta família e ponto final. — Balancei a cabeça
horrorizada com sua análise impecável, e quase enlouquecendo
devido a sua insistência.
Que merda, por que ele tinha que ser assim?
— De qual verdade está falando, afinal? — Precisei apoiar
num sofá, o que ele tinha jogado na minha cara foi o suficiente para
eu sentir o chão se abrindo. — Que eu tentei matar os bebês e não
consegui? Ou que eu fui vít...
— O que você acabou de dizer? — A voz de Gabriel soou às
minhas costas e eu compreendi, tarde demais, que Lysander
manipulou a conversa para chegar àquele momento.
Eu me virei incapaz de olhar para o seu rosto imediatamente,
então mantive os olhos no chão, buscando forças para o que viria a
seguir.
Aos poucos fui subindo, era o tempo que eu precisava para
me preparar.
Ainda assim foi pouco demais.
Ele me olhava com tanto ódio que eu recuei.
— Gabriel, eu...
— Você mentiu para mim. Me fez acreditar... — Respirou
fundo, parecendo ainda mais transtornado. — Tudo foi uma farsa?
Qual é o seu plano afinal? — Ele estreitou os olhos. — Esses bebês
são meus realmente? Ou você mentiu sobre isso também? — Havia
nojo em seus olhos, ele me encarava como se não me
reconhecesse. — Você ultrapassou uma linha tênue aqui, Jenny!
— Você disse que o passado não importava. — Lutei contra a
voz embargada, não conseguia encontrar as palavras certas e fazer
parecer menos pior.
— Parece que ambos mentimos. — Ele sorriu, mas foi algo
horrível, irreconhecível. — Você é uma ótima atriz, parabéns, Jenny
Monroe, eu me sinto um idiota.
— Não é nada disso, se você me ouvir. — Ergui as mãos,
aproximando-me dele. — Eu vou contar. Ouça, eu tentei sim
interromper a gravidez, mas não era o que eu realmente queria,
foram...
— Ah, não comece. — Abanou a mão, dando-me as costas.
— Obrigado por recusar meu pedido, você me trouxe a sanidade de
volta.
— Gabriel, espere! — Segurei seu braço, congelando quando
o puxou de volta.
— Não me toque, porra! — Ele olhou para mim por cima do
ombro. — Mentirosa do caralho. Eu pensava que você havia lutado
por meus filhos, e você os teria matado. Olhando por esse ângulo, é
fácil mudar a ótica do culpado.
— Eu não tive escolha, entenda, não havia o que fazer.
Gabriel riu alto, mas foi uma risada amarga que carregava
mágoas profundas e que não pertenciam apenas aquele momento.
— Você acaba-se de juntar ao hall das pessoas que
roubaram de mim. É pura sorte que tenha dado errado — ele riu,
mostrando-me o celular a foto que eu estava com os seios à mostra
no meu quarto.
Eu lembrava da foto, John a tirou antes de eu viajar para
Londres.
Deus...
— Vou descobrir o que aconteceu de verdade, porque não
acredito que seja tão inocente. — Gabriel olhou para a foto. — Eu
sou um idiota comprovado, mas irei corrigir meu erro, ouvindo o
outro lado da história.
— O que está falando? — O medo me dominou, ele não
podia sair daquela casa sem antes saber de tudo.
Pior do que ver aquela foto exposta numa rede social minha,
de saber que todo mundo estava vendo meu corpo quando eu
estava vulnerável, era a certeza de que o meu passado sempre
voltaria para bater na minha cara.
Eu era tola por ter acreditado por um momento sequer, que
seria diferente.
— Irmão, tire-a do meu quarto, coloque essa mulher em
qualquer lugar longe de mim. — O jeito que me encarava, partia o
meu coração de tantas maneiras que eu não tinha nem palavras. —
Eu perdi um filho uma vez, e eu serei maldito se perder outro agora.
Irei me assegurar de que estes bebês nasçam, depois vou ter
certeza de que fiquem comigo, sendo meus ou não.
— São seus!
— Menos pior. — Ele se afastou outra vez.
— Espere, aonde vai? — Ele parou, mas não se deu ao
trabalho de olhar para mim.
— Trepar com alguma vadia que não seja uma mentirosa
descarada, e que não ache tão ruim carregar meus filhos ao ponto
de querer tirá-los!
Ele saiu da biblioteca, enquanto meu sangue gelava diante
suas palavras.
Sabia que, se ele saísse daquela casa, tudo estaria perdido
para sempre.
Com o coração partido pelo que estava acontecendo,
apressei-me em direção ao corredor. Gabriel caminhava apressado,
logo mais ele estaria longe o suficiente para que eu não pudesse
detê-lo.
Ia contar tudo, depois se ele quisesse ir, já não importava
mais.
— Eu tentei abortar porque era a única escolha que eu tinha!
— gritei, desolada por avistar Amira e Rafael se aproximando. Eles
também saberiam a verdade sobre mim. — Nenhuma criança
merecia viver no mesmo lar que um estuprador!
Gabriel parou e eu senti que minhas pernas falhavam,
naquele ponto da minha vida em que a única coisa que me restava
era a dignidade, recusei-me a cair no chão. Usando a parede como
apoio, deixei que toda dor que eu guardei por anos explodisse.
Eu preferia morrer a ter que segurar aquilo por mais um
segundo.
42
Gabriel Demonidhes

Há muito tempo algo não conseguia me deixar sem palavras,


mas, ali, diante de Jenny, eu estava. Desde o começo eu soube que
ela estava escondendo algo, mas acreditava que ela confiasse em
mim, contaria tudo que fosse preciso.
Foi um erro da minha parte.
Agora eu tinha que suportar ver a máscara que ela lutou para
manter no lugar, caindo. Havia muita dor e cansaço em seu rosto, o
modo como se segurava na parede representava toda a fragilidade
sentia.
Ela estava no limite, e fui eu quem a empurrou para lá.
— Jenny, por favor, não diga mais nada. — A voz de Amira
quebrou o ensurdecedor silêncio. Era notável o quanto ela estava
abalada com o que estava acontecendo. — Você não está aqui para
ser julgada e ninguém deveria forçá-la a fazer isso.
Senti a nuca esquentando de constrangimento por ter feito a
garota que confiava em mim, revelar diante de todos, os segredos
que a feriam e envergonhavam.
— Você não deveria ter sido manipulada para esta situação.
— Amira olhou para Lysander. — E eu espero que você esteja
satisfeito com o que conseguiu, porra, você me decepcionou tanto.
— Eu não estou feliz, Amira, mas esse era um mal
necessário. — Meu irmão deu de ombros, inabalável como sempre.
— Garanto que depois será melhor.
— Para quem? — Rafael se aproximou, deixando que todos
notassem sua fúria. — Eu disse que ela estava segura aqui, mas eu
esqueci de você, irmão.
— Neste caso, estou sendo uma solução. — Ele encarou
Rafael. — Há certas coisas que precisam serem expurgadas, do
jeito que tiver que ser. Jenny precisava disso, Gabriel também.
Balancei a cabeça, a situação toda era absurda demais. Ela
não deveria estar sendo exposta daquela maneira.
— Venha comigo, Jenny, deixemos que eles se resolvam. —
Amira se aproximou ainda mais, era a única pessoa que conseguia.
— Eu vou cuidar de você, eu li que é isso que amigas fazem.
Não! Era eu quem deveria fazer aquilo, era eu quem deveria
cuidar da garota doce e machucada que havia escolhido se entregar
e confiar em mim.
— Não importa mais, Amira. — Jenny balançou a cabeça, o
profundo cansaço flagrante. — Eu nunca fui dona de mim, acreditar
que aqui seria diferente foi um erro. Uma prisão, mesmo que
dourada, continua sendo uma prisão. Lysander me trouxe a
realidade, e fez entender que todas as vezes que me considerei
indigna de estar aqui era verdade mesmo. Eu acho que até
agradeço.
Suas palavras doeram num lugar muito profundo, porque eu
me enxerguei nela.
Para mim também houve uma época de desesperança, em
que cada dia parecia interminável, cheio de dúvidas. De não saber
onde era meu lugar, se eu deveria ficar.
— Beag — pigarreei, clareando a voz para que ela não
falhasse. — Sinto muito por tudo isso.
Ela baixou a cabeça, respirando fundo algumas vezes, acho
para controlar o que sentia.
Quando me olhou, percebi que era a primeira vez que ela se
despia totalmente, e nos deixava ver o quanto estava perdida, triste
e desolada.
— Parem de querer que Jenny guarde tudo para si porque
isso a machuca. — O toque de Lysander em seu ombro a fez
encolher. — Às vezes, a única maneira de se libertar da dor é
vivendo-a até o fim.
Ela recuou diante das palavras do meu irmão, buscando em
Amira a confiança necessária para continuar.
— Ele dizia que me amava e prometeu me tornar sua esposa.
— Jenny não escondeu o nojo e cada palavra que saía de sua boca
ela encolhia como se estivesse sendo golpeada. — Ele tinha muitos
planos, seu desejo absurdo de chegar no topo do mundo justificava
suas ações. O meio que ele encontrou para conseguir o que
desejava era me colocando na gravadora. Ele precisava daquele
contrato e vendeu-me para conseguir. — Seu queixo tremeu, mas
ela manteve a cabeça erguida. — Ele sabotou as camisinhas e,
antes que qualquer um de vocês pergunte, eu não sabia de nada ou
jamais teria permitido que elas fossem usadas.
— Não importa, Jenny. — Ergui as mãos, me aproximando.
— Esses bebês são meus, e eu os amo.
— Tudo importa. — Ela recuou, como se estar perto de mim
fosse a última coisa que quisesse. — Não quero que fique qualquer
mal-entendido, eu vou falar tudo que nunca tive coragem porque,
sim, eu sempre fui uma grande covarde.
— Não diga isso — Amira pediu baixinho, ela também estava
sendo afetada pelo que estava acontecendo.
— John pretendia acusar David por estupro, mas uma
gravidez seria sua garantia de o cargo de CEO. Ele teve certeza de
que ia ganhar quando o resultado do meu teste deu positivo.
Ela começou a rir baixinho, então sua risada aumentou,
tornando um choro compulsivo e muito angustiado.
Tentei me aproximar outra vez, ela recuou.
— Eu aceitei fazer o que ele queria porque não me restou
outra saída, e eu garanto que John possuía métodos bastantes
eficazes para me fazer concordar com qualquer coisa. — Ela
respirou fundo. — Um dia antes da viagem eu fui amarrada no
escritório, e obrigada a assisti-lo espancar minha mãe até a
inconsciência. Ele atirou nela e me culpou por estar fazendo aquilo.
Eu me lembro do desespero em seus olhos naquele dia, de
certo modo fora aquele mistério que a rondava o que me atraiu,
depois que sua voz foi meu bálsamo por tanto tempo.
— Ficar com Gabriel foi meu ato de coragem e rebeldia, mas
eu não esperava que houvesse consequências. Era para ser um
segredo. Um segredo apenas meu.
— Jenny, vamos conversar a sós. — Fui para ela, ia tirá-la
dali e tentar consertar as coisas, mas o jeito que se comportou com
minha proximidade me fez paralisar.
Eu não queria piorar a situação, ela já estava no limite e eu
temia que seu coração não aguentasse.
— Não, eu já entendi que nesta família todos precisam estar
a par de tudo. Eu farei isso pelo bem dos meus filhos. — Repousou
a mão na barriga. — John estava feliz porque seus planos deram
certo, mas, então, ele soube da verdade.
— Sinto muito que tenha passado por tudo isso sozinha. —
Amira pegou a mão dela, Jenny não se afastou. — Sinto de verdade
e não digo da boca para fora, ou porque o momento exige palavras
de consolo. Não quero que sofra mais, eu disse que você poderia
recomeçar aqui, e reafirmo minhas palavras, você pode recomeçar
aqui comigo e com seus bebês. Nossos filhos crescerão juntos. —
Amira sorriu, dando-lhe algo para agarrar além do passado. —
Podemos ser felizes, Jenny.
— Obrigada por se importar comigo. — Jenny a abraçou,
mas podia notar que não havia nenhum pingo de felicidade. Ela
olhou para Lysander. — Você me culpou por eu ter demorado tanto
a falar o que estava acontecendo, e eu concordo que fui uma
grandessíssima covarde. Eu deveria ter contado a verdade para
Gabriel desde o começo, mas eu não contei porque era o meu
direito não contar. Eu queria recomeçar aqui, abandonar o passado,
e não receber o olhar de pena que estou recebendo de todos vocês
agora. Eu não sou uma vítima que mereça pena, eu sobrevivi a tudo
da maneira que eu pude sobreviver. Eu aprendi a não exigir muito,
eu queria apenas ser livre, ou morreria tentando.
— Não diga isso. — A voz de Amira soou embargada.
Naquele momento precisei lutar com mais empenho contra o
impulso de puxar Jenny para mim, e eu mesmo acalentar sua dor,
proteger seu coração frágil, acabando com toda aquela angústia.
Sentia-me culpado por ter falado tanta merda, por ter agido
como um filho da puta que eu era e a feito se sentir menos que
nada.
Seus olhos buscaram os meus, eu precisei me segurar,
porque em seu semblante eu percebei que o pior começava agora.
— Essa ferida que tenho nas costas foi causada por mim. —
Ela respirou fundo, podia enxergar o horror que vivenciava de novo.
— Eu tentei arrancar a pele porque era angustiante a sensação do
esperma daquele maldito escorrendo. Eu tenho nojo de mim por não
ter conseguido... — soluçou. — Por não ter conseguido impedi-lo de
me usar.
— Vou matar o desgraçado! — As palavras soaram rasgadas,
tamanho o ódio que eu sentia explodir dentro de mim.
— Ele nunca havia ido tão longe. Nunca havia ultrapassado
aquela linha. Mas, ele o fez, se masturbou na minha pele, me fez
sentir... — Antes que eu pudesse chegar até ela, Jenny vomitou.
— Venha comigo, Beag, permita-me aliviar um pouco do que
sente. — Quando a segurei, ela me empurrou, olhando-me como se
eu fosse um estranho — Jenny, sou eu.
— Eu nunca confiei em ninguém. — Ela me empurrou outra
vez. — Mas eu confiei em você. Eu nem sabia seu nome, mas eu
me entreguei a você, o que eu poderia fazer? — Suas palavras
foram se transformando em gritos e só então eu percebi o quanto
ela havia sido forte para me escolher e permitir que eu me
aproximasse.
Depois, para aceitar ficar ao meu lado, agindo como se não
houvesse um trauma a ser tratado.
Deus, como eu fui tolo e egoísta.
Porra!
— No dia que eu tentei o aborto. — Ela fechou os olhos. —
No dia que eu tentei o aborto, deu tudo errado. Precisei ser levada
para o hospital. Foi lá que descobri que eu e você morávamos na
mesma cidade e que havia uma chance de salvar meus bebês. Você
estava na televisão, Gabriel, e assim que te vi eu soube o que fazer.
— Balançou a cabeça, rindo de si mesma. — Você salva vidas,
havia me ajudado quando eu era uma estranha, eu sabia que você
ia fazer alguma coisa.
— Tudo bem, não fale mais nada.
— Eu tive esperança de que eu, minha mãe e o bebê
tínhamos uma chance. Não sei como você conseguiu me tirar
daquela casa, ou como conseguiu aquele número de telefone, mas
foi isso que nos salvou — soluçou, rindo e chorando. — Eu estava
escondendo as minhas crises, já havia parado de tomar os
remédios, eu...
Ela não me olhou, a vergonha mesclava-se com todos os
sentimentos que a machucavam naquele momento.
— A morte seria uma bênção para mim, mas meu coração
moribundo sempre se mostrou mais forte do que o esperado — ela
riu mais alto, histérica. — Eu ia fazer o que fosse preciso para sair
daquela vida, minha mãe e eu havíamos aceitado, deixamos a cargo
do destino e o destino me trouxe até aqui.
— Você foi a melhor a coisa que aconteceu na minha vida. —
Eu segurei seu rosto, ela me empurrou de novo. — Jenny, ouça-me.
— Não, é você quem precisa ouvir. — Apontou o dedo para
mim. — Eu fiz o que foi preciso fazer, o que eu achei melhor
baseado na minha experiência. Eu não ia permitir que John tivesse
acesso as minhas crianças, mesmo que elas fossem a melhor coisa
que havia me acontecido! — Ela limpou lágrimas com raiva,
estapeando o próprio rosto. — Quando eu escolhi você para tirar a
minha virgindade, eu o fiz porque era a minha única chance de
escolher um homem que olhou para mim e não me enxergou como
um pedaço de carne. Você me ouviu, me fez sentir uma mulher
normal e eu quis que você fosse meu. Nem que fosse por uma única
noite.
Deus, ela não estava pronta para contar tudo aquilo. A
situação toda era um trauma, meus irmãos, Amira. Todos ouvindo
algo que era íntimo demais. Talvez, aquela pequena multidão a
fizesse sentir mais aquém de nós e isso era a última maldita coisa
que eu queria.
— John odiou ter que me vender. Mas ele o fez, e eu só
estava no bar daquele hotel porque queria beber o máximo possível.
— Ela abanou a mão. — Eu esperava que, quando a hora chegasse
fosse mais fácil, mas eu tive medo. — Ela virou-se para Lysander. —
Se você ainda tiver alguma dúvida, desejo que a engula e morra
engasgado.
Sua atenção se voltou para Rafael. Meu irmão estava pronto
para decidir as coisas, ele nunca titubeava.
— Eu sei que aqui não é o meu lugar, e eu não espero que
seja. — Fiz careta. Ela pertencia àquele lugar sim, ou qualquer um,
desde que fosse ao meu lado. — A única coisa que eu desejo é a
certeza de que meus filhos serão cuidados e protegidos, não
importa o que acontecer comigo.
— Não vai acontecer nada com você! — eu disse, ansioso
para tê-la em meus braços e me assegurar de que estava bem, ou
melhor, de que tudo ficaria bem. — Jenny, venha comigo.
— Eu não vou a lugar nenhum com você. — Havia resolução
em sua voz. — Eu só quero paz, não viver com medo, ansiosa de
cada passo. Não estou pronta para nada, além de cuidar da minha
saúde e dos meus filhos.
Minhas mãos tremeram, porque eu senti medo de tudo que
ela dizia. Depois a sensação angustiante de que as paredes
estavam se fechando a minha volta apenas cresceu.
E eu precisei de muito esforço para não demonstrar o que
sentia. Aquilo não era sobre mim, era sobre a garota que havia
arrebatado meu coração antes mesmo de me conhecer.
— Jenny, venha comigo. — Ergui a mão, precisando que ela
aceitasse. — Por favor, venha. — Minha respiração ficou estranha,
porque o sentimento aterrorizante de perda começava a rastejar por
meu corpo. — Precisamos conversar a sós, você também precisa
saber coisas sobre mim.
— Rafael, peço desculpas por todo transtorno que tenho
causado. — Ela não me olhou e sua rejeição doeu pra caralho. —
Eu temo pela segurança de todos vocês. John é um homem
perigoso, cruel e faria qualquer coisa para machucá-los apenas por
terem me abrigado. Eu me sentiria melhor se houvesse outro lugar
que eu pudesse ficar.
— Você não vai sair daqui — meu irmão disse, porque
naquele momento eu não tinha voz.
A sensação que eu tinha era que alguma coisa apertava a
minha garganta.
— Venha comigo — Amira a chamou, um leve aceno em
concordância foi a única resposta que obteve.
— Eu espero que reconsidere, Rafael. — Não consegui me
mover, ambas foram em direção a piscina, mas, antes que
pudessem ir mais longe, Jenny parou e me olhou. — Eu entendo
sua raiva, Gabriel, eu acho que em seu lugar eu também ficaria.
Deve ser péssimo escolher tão errado, eu peço desculpas por isso
também. — Ela respirou fundo. — Quando eu pedi para você me
escolher não esperava que a vida nos juntasse dessa forma, ou
jamais teria feito. Eu não tenho nada a oferecer, tenho buracos
demais, e, sinceramente, não me vejo no meio de uma família tão
perfeita e bonita quanto a sua. — Ela olhou para Amira. — Por favor,
me tire daqui.
Congelado no lugar, eu a observei partindo.
Um misto de emoções turbulentas sacudiu-me por inteiro.
Revolta, dor, tristeza, por tudo que ela passou enquanto eu estava
dando voltas com meu egoísmo.
Porra, não houve um dia sequer que eu não tenha dormido e
acordado pensando nela. Eu poderia ter amenizado parte de seu
sofrimento se houvesse ido buscá-la. Mas não, agarrei-me a
incerteza, algo que eu nunca tinha feito.
— Gabriel? — Os dedos de Rafael estalaram diante dos
meus olhos, sacudi a cabeça tentando me concentrar. Havia um
conflito crescendo dentro de mim, deixando-me cego para todo o
resto.
Queria ficar com Jenny a todo custo, ansiava confortá-la, e
ter a certeza de que estávamos bem. O mero pensamento de que
ela pudesse me rejeitar para sempre me deixava insano.
Não sei o que faria para que ela me perdoasse pelas
palavras que lhe disse.
— Porra. — Esfreguei o peito.
Mas também sentia o impulso de buscar John e matá-lo com
minhas próprias mãos. Desejava retribuir o que fez para a minha
mulher, puxar cada grama de dor e sofrimento que ele pudesse ter e
só então fazê-lo implorar pela morte, algo que não lhe daria
facilmente.
Jenny o temia, mas ela deveria saber que, naquele inferno
em particular, o único diabo era eu.
— Gabriel! — Pisquei os olhos, focando em Rafael. —
Concentre-se em mim e respire comigo. — Ele colocou as mãos em
meus ombros. — Irmão, Jenny não vai a lugar algum.
— Não posso perdê-la. — Rafael franziu o cenho. — Não
posso.
A sensação era tão ruim que eu sentia como se já estivesse
acontecendo.
Merda, eu não sabia lidar com perdas.
Sempre acontecia alguma coisa muito ruim quando eu
precisava confrontar esse meu lado, que talvez fosse a porta que
mantinha tudo de mais horrível guardado.
— Ninguém vai perder nada aqui. — Rafael estreitou os
olhos. — Concentre-se agora em resolver as coisas com Jenny,
deixe-a gritar, depois a convença de que você é louco por ela. —
Meu irmão sorriu. — Aproveite o dia, irmão, que, quando a noite
chegar, caçaremos.
— Obrigado. — Respirei fundo. — Eu estava ficando louco.
— Você é incontrolável, volátil, complicado e obviamente
explosivo demais. — Arqueei a sobrancelha, ainda sentindo o peito
doendo com a vontade de encontrar Jenny. — Mas nosso pai me
ensinou a lidar com você.
— Eu preciso ir. — Ele acenou e eu me apressei.
Havia muitos lugares que Amira e Jenny poderiam ter ido,
mas eu tinha certeza de que elas não iriam muito longe. Entrando
na área da piscina coberta, eu avistei as duas conversando perto
das cadeiras de descanso.
Assim que me viu, Jenny se levantou, apressando-se para os
vestiários. Eu a deixei ir, seguindo-a.
Quando entrei na grande área, ouvi uma porta fechando, ela
havia entrado numa das cabines dos chuveiros.
— Jenny... — Apoiei a mão na porta, ela não respondeu. —
Não me deixe de fora. — Recostei a testa ali, fechando os olhos. —
Eu sinto muito por tudo que eu disse.
Também não houve resposta.
Aquela área de banho não era muito alta, eu poderia espiá-la
pela parte superior se ficasse nas pontas dos pés, mas não invadiria
sua privacidade daquela forma.
Tive que me contentar em vislumbrar a sombra de seus pés e
saber que estava próxima de mim. Era apenas uma maldita porta de
vidro que nos separava.
— Vamos conversar. — Ela não respondeu. — Posso esperar
aqui o dia inteiro.
Para mostrar que eu não estava mentindo, sentei-me com as
costas apoiadas na porta de vidro fosco. Pude ver quando ela fez o
mesmo. Havia uma brecha na parte inferior, dava para minha mão
passar com tranquilidade, e eu a deixei ali, para que ela notasse que
eu não ia a lugar algum.
— Jenny... — murmurei, pensando numa maneira de
alcançá-la naquele momento que a última coisa que ela desejava
era eu.
Será que insistir era o melhor? Ou eu deveria esperar que se
seu desgosto diminuísse? Para qualquer pessoa normal e
minimamente altruísta era o que deveria fazer, mas eu não
suportava a ideia de deixá-la sozinha. Sua solidão teria que ser
acompanhada, eu até poderia controlar a minha agitação e o
desgosto de ficar parado, mas não poderia ir.
Podia ouvir o choro baixinho, e cada soluço era como uma
facada atravessando meu peito.
— Jenny, me deixe entrar, te abraçar — insisti, e ela não me
responde.
Finalmente pude compreender Rafael. Era mais fácil lidar
com gritos, discussões, do que com silêncio, pois ele era mais
perigoso e determinante. Angustiava-me demais saber o que Jenny
pensava, e sim, eu faria qualquer coisa para que ela falasse comigo.
Não sabia como abordá-la sem ser truculento. Jenny era uma
garota sensível, uma artista, e fora tratada com arbitrariedade por
quem deveria protegê-la. Eu era um bastardo impaciente, que
gostava de bater primeiro e perguntar depois, entretanto, com ela,
precisaria ser diferente. Por Jenny, eu tinha que encontrar um meio
de atingir seu lado mais humano, o lado que a fazia inspirar através
de seu canto.
Queria o seu coração para mim, porque o meu já era dela.
— Tenho algo a dizer. — Peguei o meu celular, escolhendo
uma das primeiras músicas que a ouvi cantando. Já conhecia todo
seu repertório, porque já fui salvo da minha loucura por ela muitas
vezes. — Ouça, Jenny.
Antes de empurrar o telefone através da porta, apertei o play.

“Sei que não sou uma pessoa perfeita.


Há muitas coisas que gostaria de não ter feito,
Mas eu continuo aprendendo.
Eu nunca quis fazer aquelas coisas com você.
E então eu tenho que dizer, antes de ir...
que eu só quero que você saiba,
Eu encontrei uma razão para mim.
Para mudar quem eu costumava ser.
Uma razão para começar de novo.”

— E a razão é você, Jenny. — Ela desligou o celular,


empurrando-o de volta. Depois quando o clique da fechadura soou
eu me levantei.
A porta abriu e ela olhou para mim de um jeito especial. Eu
compreendi que aquele era um olhar de esperança, um que ela
sempre me destinou desde o princípio.
Talvez fosse por isso que eu me senti tão afetado, porque ela
era a única pessoa me olhava como se eu valesse a pena.
E o pior de tudo era que ela me consolava sem saber, e isso
era o que doía ainda mais.
— Venha comigo, temos muito a falar. — Estendi a mão, ela
olhou por um tempo, antes de aceitar. — Você vai entender muitas
coisas. — Beijei sua mão, puxando-a gentilmente para mais perto.
Só então pude sentir que meu coração estava aliviado.
Lado a lado, seguimos para o jardim, pegando o acesso na
piscina coberta.
No jardim, próximo a piscina semiolímpica, havia um grande
lounge externo com piso rebaixado. Ele fora projetado para que
pudéssemos nos reunir em dias de folga, e ao redor da fogueira
como nosso pai gostava.
— Cuidado. — Eu a ajudei a descer os dois degraus. Jenny
se acomodou primeiro, eu me sentei de frente para ela.
— Gabriel, você entende agora por que não podia aceitar seu
pedido de casamento? — Ela quebrou o silêncio.
— Não. — Testei um sorriso. — Mas eu farei com que me
queira o suficiente para que não considere nada mais importante do
que ficarmos juntos. — Toquei seus lábios, interrompendo qualquer
recusa que viesse a proferir. — Não diga nada.
Jenny respirou fundo, eu precisei de alguns instantes para
organizar os pensamentos, antes de começar:
— Minha família não é perfeita, Jenny. — Ela negou, tão logo
soubesse a verdade compreenderia. — Pelo contrário, somos
cheios de defeitos, cicatrizes e toneladas de ódio.
— Não diga isso. — Eu sabia que ela ia desacreditar das
minhas palavras.
— Ouça tudo que direi, e eu desejo que pense antes de
tomar qualquer atitude. — Engoli em seco, nervoso pra caralho. —
Eu fui adotado quando tinha quinze anos. — Ela pareceu ainda mais
chocada. — Eu era um escravo na Irlanda, Beag, fui deixado para
morrer por minha própria mãe.
— Eu sinto muito. — Ela se aproximou mais de mim,
tocando-me como se quisesse amenizar a minha dor. — Tudo bem,
não precisa continuar, a gente pode deixar para lá.
— Você é especial, Jenny, não percebe? — Ela negou. —
Despois do que passou, ainda quer me confortar. — Não escondi
que aquilo mexia comigo, aquela garota era única e havia me
escolhido. A mim! — Você é um presente que eu recebi e não soube
dar o devido valor, mas, se me permitir, eu irei corrigir isso.
— Gabriel, não se preocu...
— Jenny, apenas me ouça. Depois o que decidir fazer, eu vou
aceitar, ainda que invariavelmente me deixe ainda mais louco.
— Eu vou ouvir tudo e não vou julgar, eu prometo.
— Obrigado por isso — pigarreei. — Roman Demonidhes não
podia ter filhos, mas seu desejo de encontrar algo que o motivasse
fez com que seu olhar se voltasse para nós. Havia um desejo em
seu coração, que nenhum poder era capaz de lhe dar. Ele queria
filhos, e ele adotou jovens quebrados, que possuíam pouca ou
nenhuma vontade de viver, eu fui um deles. — Fui notando as
emoções passando por seu rosto.
Era linda demais, vivaz. Só não percebia isso ainda.
— Seu pai deve ter sido um homem incrível. — Ela apertou
minha mão, confortando-me com seu jeito manso e caloroso.
Para ela, o que fazia por mim era pouco. Mas, não, Jenny
havia mudado tudo.
— Ele me salvou, Beag, no dia que eu estava marcado para
morrer, ele me salvou, dando-me um propósito pelo qual lutar.
— Estou muito feliz que ele tenha estado lá para você. —
Acariciou meu rosto. — Estou feliz mesmo.
— Ele formou a nossa família. Nos amou quando ninguém
mais ousaria amar, criou o laço de irmandade que nos une. — Sorri,
lembrando do homem que Roman Demonidhes era. — Ele
transformou o sofrimento que cada um carregava em força de
vontade, depois em habilidades. Ele nos fez irmãos quando não
passávamos de jovens cheios de ódio e desejo de vingança.
— Ninguém jamais diria que não são irmãos de sangue.
— O laço que nos une é maior. — Ela concordou. — Ele nos
deu um nome, honra, dignidade, e nós escolhemos ser como ele.
Era Roman quem nos motivava, e foi por ele e por meus irmãos que
eu vivi até que o cansaço abateu-se sobre mim, eu havia perdido o
meu propósito.
— Você salva vidas, não tem propósito maior que esse.
Havia chegado a hora de avançar nas questões, e saber se
Jenny aceitaria ser mulher de um assassino vicioso como eu.
— Beag. — Segurei suas mãos um pouco mais forte. — Você
não ficou curiosa para saber como eu entrei na sua casa? Como eu
descobri o seu telefone?
— Você me salvou, Gabriel, não importa como o fez, apenas
o resultado.
Concordei, esperando que ela continuasse com aquele
pensamento.
É agora.
— Jenny, eu sou um assassino profissional — revelei sem
mais preâmbulo. — Entrar em sua casa foi a coisa mais fácil do
mundo, como tirar doce de criança. Gosto do Corpo de Bombeiros
porque estar ao redor do fogo é o meu negócio. — Deu de ombros.
— Eu ia morrer queimado e o meu pai ensinou-me a não ficar
sentado em cima do meu trauma. Quando eu entendi que esse
medo poderia ser uma arma tudo mudou, fiquei mais forte, agora eu
controlo o meu próprio caos. — Ergui o braço, mostrando a extensa
cicatriz de queimadura. — Eu gosto disso.
Um tom doentio tomou conta de sua pele, ela me encarou por
um longo tempo e eu podia enxergar as engrenagens de sua
cabeça rodando.
— Mas você sempre foi tão gentil e carinhoso.
— A minha ira e a dos meus irmãos é destinada a quem
merece. Homens como o seu padrasto são apenas covardes, e ele
deve pagar por tudo que fez com você. — Deixei que ela visse um
pouco do meu lado ruim. — Eu irei matá-lo, ainda hoje.
— Não, por favor, ele vai machucar você. — Ela ficou de
joelhos, segurando meu rosto. — Ele é ruim.
— Jenny, eu sou muito pior. — Sorri, enquanto ela continuava
negando. — Eu mastigo homens como John no café da manhã, ele
é um alvo fácil, uma presa inútil e indefesa diante das minhas
habilidades. Ele não vai escapar, já foi decretado.
— Gabriel, não suje suas mãos...
Por um instante, eu considerei que ela não houvesse
entendido tudo que eu falei. Outra garota não estaria preocupada
comigo, e sim com o fato de eu ser a porra de um assassino, com
tendências psicopatas.
— Jenny, eu estou mergulhado até o pescoço na merda do
mundo que eu vivo. — Desta vez, minhas palavras foram ainda mais
cruas. — Eu sou um assassino, você entendeu? Não poderia
elencar quantos já enviei para o inferno. Todos os meus irmãos
possuem dupla identidade. Rafael, por exemplo, é um empresário
renomado mundialmente, e é nosso líder.
— Vocês são justiceiros? — Parece que ela estava
finalmente entendendo.
— Não, a Ordem não mata indiscriminadamente, nós somos
os mantenedores do equilíbrio. — Ela estava tão atenta que nem
piscava. — A paz precisa do caos para existir, e o caos precisa da
paz para ter sentido. Nós cuidamos para que ninguém avance para
fora da linha; quando isso acontece, agimos.
— Você está falando sério? — Jenny engoliu em seco
quando acenei. Para o mérito dela, ela não se acovardou e saiu
correndo.
Isso é bom, não é?
— Eu sou o mais instável dos meus irmãos. — Já que estava
mostrando-lhe a verdade que fosse toda de uma vez para que não
restassem dúvidas. — Meu nome na Ordem é Fire, sou um dos
generais de Rafael. — Ela arregalou os olhos outra vez, em choque.
Ainda assim preferi continuar: — Tenho muita habilidade no
manuseio de armas e bombas, e na construção de armamentos de
grande médio e pequeno porte.
— Meu Deus, Gabriel!
— Entenda, eu nunca vou te machucar, mas eu vou acabar
com a raça de qualquer um que o faça. — Toquei seu rosto e, ao
invés de recusar-me, ela fechou os olhos, aceitando meu carinho. —
Quero você para mim, Jenny, foda-se que não desenvolvemos a
porra de um romance bonitinho como todo mundo esperava. —
Abanei a mão. — Sou imediatista, mas prometo que aprenderei a
ser um idiota engraçado e romântico para você, se me deixar tentar.
Ela mordeu o lábio e eu senti como se algo retorcesse as
minhas tripas. Eu não gostava da sensação, da incerteza e da
maneira como a minha respiração parecia suspensa, ainda assim eu
não mudaria nada do que aconteceu — talvez alguns detalhes —,
mas era isso. A vida não entregava roteiro a ninguém, não dava
para fazer edições até que tudo fosse impecável.
— Pode parecer louco, mas você falando assim faz meu
coração bater mais forte. — Ela balançou a cabeça. — Você quer
adaptar sua vida para que eu caiba nela, é isso?
— Eu já fiz. — Respirei fundo. — Eu era a porra de um
vagabundo, Jenny, e zombava do quanto Rafael é devotado a
Amira. Meu irmão é um homem duro, implacável, mas ele
demonstra todos os dias o quanto ama sua mulher.
— É notável. — As bochechas dela coraram. — E fofo
também.
Me aproximei mais dela, de modo que pudéssemos estar tão
próximos que eu conseguia respirar o ar que escapava de seus
lábios. Segurei seu rosto, encostando nossas testas.
— Não se assuste com o que direi.
— Você é um assassino, temo que não possa haver
revelação mais chocante.
— Segure esse pensamento. — Beijei a ponta de seu nariz.
— Eu te acompanho há algum tempo, e sou viciado na sua voz.
Estar naquele hotel não foi coincidência, eu sabia que você estaria
lá e eu fui te encontrar.
Sua respiração deu uma leve acelerada. Eu percebi que ela
estava pensando, certamente naquele dia e em tudo que aconteceu.
— Eu desci para o bar porque eu quis. — Franziu o cenho. —
Você não tem nada a ver com isso.
— Se você não estivesse lá, eu daria um jeito, Beag. — Não
pude evitar o sorriso. — Aquele era um dia de merda, te encontrar
foi a melhor parte. Veja, o sexto irmão Demonidhes se casou e nós
não fomos convidados.
— Sinto muito.
— Não sinta, Draikov não deseja fazer parte de nossa família.
— Deu de ombros. — Dói admitir, mas ele nos abandonou e eu
decidi lutar por quem quis ficar. — Busquei seus olhos. — E você,
Jenny, vai querer ficar?
Ela não respondeu de imediato, e eu jurei que poderia ouvir o
som do meu coração rachando.
43
Gabriel Demonidhes

Tentei não deixar transparecer, mas eu estava em pânico


dela dizer não. Por outro lado, nada me impediria de tentar
conquistá-la.
Era ela, eu havia achado a minha mulher, a única que mexia
comigo o suficiente para fazer com que todo o resto ficasse em
segundo plano.
— Gabriel, eu acho que não te mere...
— Pelo amor de Deus, não diga que não merece, que somos
diferentes e toda essa merda! — Pausei, lutando para não meter os
pés pelas mãos de novo. — Se quiser ser minha, você será. Eu te
quero pra caralho, Jenny, das melhores e piores maneiras possíveis.
Só que você também precisa me querer. — Lembrei-me do que ela
disse quando ficamos pela primeira vez. — Eu estou te escolhendo
agora e só te peço que me escolha também.
Antes que pudesse pensar em qualquer outra coisa que
pudesse fazê-la me querer, seus lábios tocaram os meus.
— Confio em você, anseio o seu toque. — Seu sorriso aliviou
meu coração. — Eu vou ficar com você e não me importo com
romance bonitinho. As pessoas são diferentes, e elas possuem
histórias diferentes. Eu estou quebrada aqui. — Tocou o coração. —
Mas se você me ajudar, eu acho que posso consertar.
O alívio que senti diante de suas palavras foi tanto, que não
pude evitar rir do quanto aquela pequena mulher me deixava
nervoso.
— Você me tornou um homem vulnerável, isso é passível de
punição.
— Eu não tenho medo de você, Gabriel. — Havia
tranquilidade em sua voz, mas o que me chocava era que seu olhar
não mudou nem um pouco. Ela continuava me enxergando como se
eu fosse especial.
Era o mesmo olhar deslumbrado, esperançoso e cheio de
expetativa que destinava a mim desde a primeira vez que nos
encontramos.
— Com você tudo sempre foi diferente. — Ela não escondia
que isso a intrigava e eu precisava admitir que o que aconteceu
conosco era algo fora da curva. — Gabriel, obrigada por confiar em
mim. Eu prometo que nunca vou revelar nada do que me disse.
— Não pedi segredo, Beag. — Peguei uma mecha do seu
cabelo, enrolando-a em meu dedo.
— Mas eu percebi que é um e você me incluiu nisso.
— Sim, você faz parte da família e... — Ela se jogou nos
meus braços e eu a segurei contra mim, feliz por estar com a minha
pequena família segura. — Vamos construir algo só para nós dois.
Eu, você e nossas crianças seremos uma unidade, eu vou te
proteger de tudo, não precisará temer mais ninguém.
— Eu confio em você. — Jenny me presenteou com um
sorriso enorme. — Eu sinto uma sensação tão boa por ter contado
tudo, eu pensei que você ia me odiar.
— Beag, você adiou a morte daquele desgraçado. — Ela
encolheu. — Hoje, eu irei quebrar a corrente que ele possui sobre
você e farei algo grandioso. Você verá a notícia nos jornais.
— Você tem certeza de que... — notei que tentava manter a
voz firme, mas seu corpo estava tremendo levemente.
— Será hoje.
— Então, o faça pagar caro. — Seus olhos se encheram de
lágrimas. — O faça pagar por ter transformado a minha vida e a da
minha mãe num verdadeiro inferno. O mate, Gabriel, mas antes o
faça saber que você foi enviado por mim.
Suas palavras me deixaram muito orgulhoso.
Jenny não era uma pessoa ruim, mas abraçava a justiça e
era isso que nós entregávamos: Justiça para quem não podia se
defender.
— Então eu serei a sua mão. O farei clamar pela morte, mas
não a entregarei tão facilmente. — Roubei-lhe um beijo rápido. —
Será o meu presente de casamento. — Pisquei um olho, ela riu de
um jeito tão bonito.
Era primeira vez que o fazia como uma mulher livre.
— Você deveria rir assim mais vezes. — Acariciei seu rosto.
— Você é linda demais, Jenny.
— Não sou. — Um rubor começou a subir. — E eu não disse
sim ao seu pedido. — Estreitando os olhos, eu a empurrei, ficando
por cima.
— Mulher, isso é besteira, mas eu entendo que você quer ser
conquistada. — Havia diversão em seu semblante, e eu me senti um
bastardo sortudo por ela ser aquela criatura tão amável ao ponto de
me perdoar por ter falado merda. — Nós vamos ser pais, eu tenho
um ponto a meu favor, e eu posso tomar isso como um desafio.
— É mesmo, por que tem tanta certeza de que vamos dar
certo? — Ela enlaçou meu pescoço.
— Porque eu já sei que ficarmos juntos faz parte do nosso
destino. — Baixei a cabeça. — E nós temos que cumpri-lo.
— Cumprir o destino — ela murmurou. — Eu aceito, Gabriel,
deixarei você tentar me conquistar, e eu ainda estou brava com o
que disse. Não vou esquecer.
— Okay, eu vou conquistar seu perdão. Poderíamos selar o
acordo com um beijo? — Me aproximei um pouco mais. — Vamos
superar juntos seus medos e, quando você estiver pronta para me
permitir subir o nível, eu saberei.
— Podemos selar este acordo. — Ela me puxou. — Eu gosto
muito dos termos que você colocou.
— Tem algo que queira adicionar? — Estava a um fôlego de
seus lábios, ansiando beijá-la de uma vez — É agora ou nunca.
— Não desista de mim.
Tomando seus lábios, eu senti que aquele beijo era diferente.
Havia um novo tipo de entrega, aquela barreira que a mantinha com
um pé atrás não existia mais. Das outras vezes, ela se entregava
com paixão, deixando-me tomar tudo que eu queria, mas agora era
diferente.
— Não há chance de eu desistir de você, garota. — Segurei
seu queixo, beijando-a outra vez. — Eu ainda temo que seu
coração...
— Meu coração está ótimo. — Ela acariciou meu rosto. —
Não se preocupe com isso.
Concordei, mesmo que eu não fosse capaz de fazer com que
meu próprio coração não sofresse imaginando o pior.
Eu não podia perder, Jenny. Só ela havia conseguido
penetrar as barreiras que eu havia criado. Julgava-me incapaz de
me apaixonar por alguém, mas eu o fiz, antes mesmo de olhar nos
olhos dela naquele bar, e sentir que o meu mundo estava sendo
abalado.
— Gabriel? — Sacudi a cabeça, prestando atenção nela. —
Tudo bem?
— Sim. — Mudando de posição, deitei-me de lado, apoiando
a cabeça na mão, para que pudesse admirá-la.
Ela era delicada enquanto eu estava bem longe disso, sua
estatura pequena e suave combinava com o fato de ser um homem
endurecido, cicatrizado e louco. Gostava daquelas diferenças,
porque, de certo modo, era o que nos completava.
— Sua vida nunca mais será como foi — prometi. — Sem
medo desta vez. Você é livre para fazer e dizer o que quiser, mas,
se decidir que deseja conhecer outros lugares, te peço que me
permita acompanhá-la.
Seu sorriso foi a minha ruína.
— Isso é outro termo?
— Não, Beag, é somente um pedido.
Um beijo selou aquele adendo do nosso acordo, e eu jurei
que faria de tudo para que ela compreendesse que valia a pena ficar
ao meu lado.

***

Finalmente havia chegado a hora do acerto de contas.


Eu estava tranquilo, não tinha pressa para sair correndo e ver
as coisas explodirem, aquele dia eu sabia que demoraria para
atingir meu objetivo, faria de John um exemplo, depois iria encontrar
David.
— Você tem certeza de que quer fazer isso? — Jenny estava
pálida, de olhos arregalados, enquanto eu terminava de me vestir.
Tinha decidido que não ia esconder as coisas dela, e, por
mais que eu quisesse introduzi-la com calma no meu mundo, certas
partes era melhor que fosse assim, de uma vez.
— Eu estou ansioso. — Sorri, puxando a camisa do uniforme
que consistia num tecido preto, com uma gola que cobria até o nariz
quando a esticávamos.
— Por que esse tecido parece tão escuro? — Ela esticou a
mão para tocar. — É tão suave.
— Esse tecido foi desenvolvido nos laboratórios da Ordem —
respondi, mostrando o tecido mais perto. — Aqui, ele não reflete a
luz, ele a absorve. — Apontei a lanterna do celular. — Percebe?
— É incrível. — Jenny sorriu, mas, quando eu puxei duas
pistolas e as coloquei nos coldres, parecia que ia desmaiar. — Tudo
bem. — Ela respirou fundo, quando eu estendi os braços para ela.
— Estou bem, vou me acostumar ao fato de que eu engravidei de
um assassino.
— Aproveita para ir acostumando-se a estar casada com um.
— Pisquei um olho, pegando meu maçarico preferido e o colocando
no suporte feito especialmente para ele.
— Por que vai levar isso? — Sua curiosidade vinha
temperada com uma dose perfeita de medo.
Eu gostava daquilo.
— Melhor você não saber.
Ela concordou apressada.
Uma coisa era ela ter ciência de que eu era um assassino,
outra totalmente diferente era saber o que eu gostava de fazer com
meus alvos.
Eu estava ansioso para colocar as mãos em John, tanto que,
quando o timer tocou, não pude evitar o sorriso.
Estava na hora de ir.
— Venha comigo. — Estendi a mão e ela aceitou, sem ao
menos titubear.
Jenny olhou para as nossas mãos juntas, então respirou
fundo, balançando a cabeça de maneira positiva.
— Vamos. — Um meio sorriso de pura satisfação tomou
conta de mim. Orgulhoso do quão bem ela estava levando tudo
aquilo, fomos para garagem.
Rafael e Lysander estavam esperando. Ambos vestidos com
uniformes iguais ao meu.
— Vocês vão fazer isso mesmo? — Jenny olhou para os
meus irmãos. A palidez estava lá, mas ela não estava se
acovardando.
— Será um prazer. — Lysander sorriu. — Um prazer
inenarrável.
— Eu me sinto uma donzela medieval tendo a honra
defendida. — Sua risada soou nervosa. — Não quero que se
coloquem em risco por minha causa, então, se quiserem desistir, eu
acho que a hora seria agora.
— Você não contou para a sua mulher quem somos, Gabriel?
— Rafael cruzou os braços.
— Ele contou. — Jenny deu um passo, ficando na minha
frente. Eu percebi que foi involuntário, mas, de certa forma, aquela
era sua maneira de me “defender” e não passou despercebido por
nenhum de nós, apenas para ela, talvez. — Mas não consigo
enxergá-los como... — Jenny olhou ao redor. — Assassinos... —
sussurrou a palavra receosa de ser ouvida. — O segredo está bem
guardado, eu juro.
— Sem surtos? — Lysander arqueou a sobrancelha. — Você
parece que aceitou bem.
— Não sei o que estou sentindo, mas o fato é que vocês me
mostraram um lado que ninguém nunca mostrou. — Ela deu de
ombros. — Menos você, Lysander, que nunca escondeu que me
odeia, mas, sendo sincera, prefiro trabalhar com verdades duras a
mentiras açucaradas.
— Eu não te odeio.
— Sim, eu sou insignificante demais. — Ela abanou a mão,
deixando claro que pouco se importava. — Em todo caso, apesar da
maneira truculenta que as coisas aconteceram, eu te agradeço por
ter me empurrado. Me sinto com cem quilos a menos nas costas,
até respiro melhor.
Lysander não respondeu, mas fez um gesto positivo com a
cabeça, sinal de que Jenny havia ganhado muitos pontos quando
não surtou e saiu correndo quando eu lhe contei a verdade sobre
mim... sobre nós.
— Precisamos ir — Rafael chamou, entrando no SUV pesado
que gostávamos de usar em “missões”.
Olhei para Jenny, ela me encarava com olhos enormes e eu
pude ver claramente que queria que desistíssemos.
— Gabriel, eu... — Antes que ela pudesse terminar a frase,
eu a beijei.
Queria me perder em sua boca, afogando-me no prazer que
apenas ela era capaz de me proporcionar, mas não tínhamos
tempo, pelo menos não naquele momento.
— Trarei suas coisas.
— Só quero o ursinho branco com laço rosa. — Ela apertou
minha mão. — Encontre-o para mim, o resto não importa.
— São suas coisas.
— Tudo que aquele homem comprou. — Jenny balançou a
cabeça. — Não quero nada.
— Eu trarei o ursinho. — E era bom que aquele bastardo não
o houvesse destruído, caso contrário eu o faria pagar ainda mais
caro. — Preciso ir, Beag.
— T-tudo bem — gaguejou, engolindo em seco. — Eu
entendo.
O jeito que ela me olhou aqueceu meu coração. Havia um
misto de preocupação e assombro.
— Jenny, você precisa me soltar. — Acariciei seu rosto. —
Você pode planejar algo para fazermos amanhã?
— Por que amanhã?
Ela estava me segurando com as duas mãos, seu olhar
alternando entre mim e o carro. Rafael e Lysander esperavam,
ambos pareciam estátuas o que, de certa forma, a deixava ainda
mais nervosa.
— O que faremos hoje requer tempo. — Pisquei um olho, sua
respiração ainda estava trêmula. — Quando eu voltar, passaremos o
dia juntos, pense em algo que queira fazer.
— Não consigo pensar em nada agora. — Seus olhos
buscaram os meus. — Estou com medo, Gabriel.
— Não tenha. — Puxei-a para um abraço. — Eu vou voltar,
sem nenhum arranhão.
Era estranho dizer aquilo, quando não muito tempo atrás eu
pouco me lixava se sairia vivo das missões. Ainda que hoje à noite
não fosse uma missão, e sim uma vingança bem aplicada, com
crueldade suficiente para se tornar um pesadelo para abusadores.
— Eu vou esperar por você então.
— Não me espere acordada. — Beijei sua testa, soltando
nossas mãos. — Hoje, eu não terei pressa.
Quando me afastei, relanceei o olhar para Boris, ele estava
próximo, silencioso como seu treinamento o ensinou a ser.
Enquanto estivéssemos fora, seria dele a responsabilidade de
cuidar de tudo. Qualquer intruso que tivesse a péssima ideia de
tentar a sorte, toparia com um tanque de guerra, armado e com
habilidade suficiente para derrubar um exército sozinho.
— Por favor tomem cuidado. — As mãos de Jenny estavam
apertadas junto ao peito.
— Até mais tarde. — Pisquei um olho.
Quando nos afastamos, o clima mudou.
Foi como girar uma chave.
— Eu terei um tempo com ele, primeiro. — Lysander me
olhou através do retrovisor, sua expressão era puramente cruel. Ele
ansiava pelo que viria a seguir. Estava me deixando ver cada parte
de seu desejo.
Ele faria John implorar, e, apesar de querer acabar com o
bastardo, havia coisas que apenas Lysander poderia fazer, eu
deixaria porque todo sofrimento para John Samarco Monroe seria
pouco, e ele merecia um tempo a sós com o torturador.
— Como quiser, irmão. — Sorri, e vi em seus olhos
assassinos o quanto ele ficou satisfeito.
Lysander gostava de pegar seus alvos quando estavam em
sua melhor forma, sendo aquela a garantia de que poderia ser o
mais monstruoso possível, e poder saciar a fome do seu lado
perverso.
O trajeto até a casa de Jenny foi curto. Quando chegamos,
eu esperei encontrar o mínimo de segurança, mas parece que a
desgraça havia recaído sobre aquela casa. Os muros haviam sido
pichados, o lixo amontoava-se na entrada.
Rafael deu a volta no bairro, estacionando o carro na rua de
trás. Àquela hora, o distrito em que se localizava a mansão estava
deserto.
— Estou conectando nossos comunicadores — Lysander
avisou, instantes depois pude ouvir meus outros irmãos.
— Estamos conectados — Razhiel anunciou.
— A rua está segura, temos todas as câmeras. — A voz de
Heylel soou um pouco irritada, e sabendo eu que ele era capaz de
camuflar com perfeição suas emoções, ele estava deixando que
percebêssemos aquilo.
Eles haviam sido informados mais cedo do que aconteceu. E
queriam estar ali para participar.
— Podem avançar. — Assim que o sinal foi dado, eu e os
outros nos dividimos.
Foi fácil sumir em meio às sombras e invadir a propriedade. A
segurança eletrônica dali era ridícula, não causaria o menor
transtorno para um invasor sem treinamento. Antes, quando busquei
por Jenny, havia seguranças patrulhando, mas agora, nem isso.
— O bastardo foi abandonado. — Olhei ao redor, estava
chegando na garagem. — Vou entrar assim que o sistema de
segurança precisar ser desativado. Razhiel, como andam as coisas?
— Tranquilas demais, eu queria um pouco de agitação. —
Podia ouvir o som de suas teclas. — O sheik não quer falar, mas
Heylel fará uma visita cordial nesta madrugada. Tenho o sistema,
estará desarmado em três, dois, um... — O som de clique na porta
soou como mágica.
Aquelas fechaduras eletrônicas eram uma diversão para
hackers.
— Estou desconectando — avisei, antes de desligar o
comunicador.
Em silêncio, caminhei pela casa em busca do meu alvo.
Tinha conhecimento da planta, precisei estudá-la para o resgate de
Jenny, e agora o conhecimento me favorecia.
Primeiro segui para os quartos, estavam vazios. Depois, fui
para o escritório e cozinha, não havia sinal de John.
— Ele está no andar superior — Lysander anunciou, quando
nos encontramos na sala.
Rafael não estava à vista.
— Então que ele venha até nós. — Peguei um vaso horrível
que estava num pedestal ao lado da sala, o bati no chão.
O som reverberou pelo ambiente, causando um estrondo em
meio ao silêncio. Satisfeito, me posicionei diante da escada, com
Lysander oculto do lado esquerdo.
A casa estava mergulhada na escuridão, eu podia ouvir as
tentativas inúteis de John acender a luz enquanto ele vinha para
nós.
— Você mandou alguém aqui, Willian? — ele berrava ao
telefone. — Eu já disse que vou pagar o que devo, preciso de mais
tempo, sim, eu irei recuperá-la, os rendimentos dela aumentaram,
vou vender as músicas exclusivas. Conseguirei tudo o que devo até
o final da semana.
Satisfeito, o observei despontando no topo da escada. Estava
vestido como se estivesse preparando-se para sair.
Interessante...
— Eu estou a caminho. — Ele parou na metade das escadas.
— O quê? Você quer as contas e as músicas? Não! — Pude ouvir
quando respirou fundo. — Willian, vamos conversar melhor quando
eu chegar... não, espere... eu entendo, desculpe-me, senhor. — A
raiva transparecia de seu tom, ao que parece John odiava estar em
pose subserviente. — Não demoro.
Quando desligou o telefone, gritou de fúria. Estava óbvio para
mim que quem sustentava o estilo de vida daquele bastardo era o
trabalho de Jenny, agora, sem ela, precisava recorrer a outros meios
para manter-se naquele padrão.
— Quando eu colocar as mãos naquela filha da puta a farei
pagar caro por me trair desta forma! Eu jurei que seria minha, Jenny,
e você vai ser! — resmungou com ódio.
De propósito eu me coloquei na sua frente. Estava escuro o
suficiente para que ele não conseguisse me enxergar, o meu traje
ajudava a me tornar parte daquele lugar.
— Mas que porra...
Ele bateu em mim e, antes que pudesse entender o que
estava acontecendo, eu o capturei pelo pescoço, sussurrando em
seu ouvido:
— Olá, John. — Apertei sua garganta. — Estava ansioso
para conhecê-lo pessoalmente.
O homem começou a lutar, eu o dominei com facilidade. Era
um bastardo fraco demais, talvez por isso tivesse preferência por
machucar mulheres com metade do seu peso.
— Isso, lute contra mim, vai tornar tudo ainda melhor —
rosnei em seu ouvido, gostando de ver o quanto ele estava
apavorado.
Do outro lado da sala, o som de portas abrindo soou alto
demais. De propósito, eu o virei para aquele lado, e juntos
observamos Lysander aparecer, era como um fruto da escuridão.
Uma luz foi acesa no escritório, nos dando uma boa visão da
parte interior. Satisfeito, não pude evitar o sorriso ao perceber que
Lysander agia com certa lentidão, ele ia aumentando os níveis de
pavor de John, com cada gesto seu.
— Então é ele? — A voz de Lysander soou ligeiramente
desinteressada, enquanto dava um olhar de cima a baixo em John.
— Eu gostei.
Parado em frente às portas, a luz do escritório contornava
seu corpo, e o bastardo era grande o suficiente para intimidar.
E meu irmão sabia ser aterrorizante.
— O que diabos está acontecendo? — John lutou com mais
empenho, tornando as coisas mais interessantes. — Quem são
vocês?
Lysander se aproximou.
— Eu sou o seu macho. — Meu irmão segurou o queixo de
John. — E você vai adorar cada minuto que passar ao meu lado.
Eu podia sentir o corpo do homem que segurava, tremendo.
— Filho da puta, não estou brincando, quem são vocês? —
Tentou chutar meu irmão, mas Lysander apenas deu um passo ao
lado, demonstrando o quanto era fácil prever o que ele faria. —
Quem são vocês? Willian os mandou? Eu já disse que vou pagar o
que devo, estou perto de recuperar Jenny, eu montei a cela...
A vontade que eu tinha era de quebrar o pescoço dele, mas
não lhe entregaria uma morte tão rápida. Por isso, me aproximei de
seu ouvido, dizendo:
— Soube que desejava saber quem engravidou Jenny. Pois
bem, eis-me aqui.
Seu corpo congelou e eu tive certeza de que precisava disso
para entender o que eu havia acabado de dizer, e quando o fez, sua
luta recomeçou, mais furiosa, violenta.
— Ela é minha! Minha mulher, porra!
— Me excita vê-lo lutar dessa forma. — A voz de Lysander
pareceu-me macia demais, ele encarou John. — Você será meu,
estou ansioso para começar a brincar.
— Quem você pensa que é? — berrou, lutando com mais
desespero.
— Seu pior pesadelo. — Lysander inclinou a cabeça de lado,
quando Rafael surgiu das sombras. — Quando começarmos, você
vai desejar nunca ter chamado a minha atenção.
Sem qualquer aviso, Lysander esmurrou a barriga de John. O
golpe poderoso o fez gemer e eu o soltei permitindo que a
satisfação deslizasse por meu corpo quando o horror o invadiu ao
perceber que estava encurralado.
— Vamos negociar.
— Todos tentam fazer isso. — Rafael cruzou os braços. —
Mas eu não negocio com estupradores.
— Eu não sou um estuprador, Jenny é minha mulher.
Tínhamos um relacionamento familiar, era nosso segredo...
Antes que eu pudesse golpeá-lo, Lysander tocou o meu
ombro. Meu irmão conseguia segurar as provocações e transformar
sua raiva em tortura, já eu queria partir para a melhor a parte. Bom,
eu compreendia que quanto mais John sofresse, mais a minha fome
de vingança estaria saciada.
— Ele é seu Blood — falei para Lysander. — Faça o seu
negócio.
Meu irmão acenou, pegando John pelos cabelos e o
obrigando a ir engatinhando em direção ao escritório. Meu irmão o
chutou no peito, fazendo-o arquejar e tentar buscar refúgio.
Observei John ajoelhar, lutando para respirar. Ele manteve
uma mão sobre o peito, como se pudesse evitar a dor e falta de ar.
— O que vai fazer comigo?! — John gritou, mas Lysander
não respondeu. Meu irmão virou-se para mim e, antes dele fechar a
porta, eu pude ver um sorriso em seus lábios.
Poucos instantes depois, iniciou-se os gritos.
— Não! Não me toque! — John berrava, enquanto ouvíamos
o som de coisas quebrando. — Não me toque, porra!
Era de conhecimento nosso que Lysander não tinha limites
para absolutamente nada. Apesar de seguir o código da Ordem e do
Mercador, ele possuía uma cartilha própria e a usava quando queria
ser particularmente ruim.
— Não faça isso! — O pavor na voz de John era notável, o
som de luta também. — Socorro! Socorro! Oh, Deus, socorro!
A satisfação desenrolou sobre mim, pois sabia que os
métodos de Lysander jamais poderiam ser questionados, meu irmão
era o melhor no que fazia, e, quando tinha uma licença para ser
ainda pior, era quando ele permitia que seu monstro tivesse a
chance de assumir.
— Socorro! — Os gritos se transformaram em lamento, num
choro alto. — Me ajudem, por favor, eu imploro. Socorro!
Havia agonia em suas palavras, medo, horror.
Depois de um tempo, o que restara foram apenas soluços
altos, daqueles mais sofridos e desesperados.
Chequei meu relógio.
— Menos de trinta minutos. — Sorri, olhando para Rafael.
— Ele está ficando cada vez melhor nisso. — Meu irmão deu
de ombros.
Não demorou muito para que a porta do escritório fosse
aberta. Lysander recostou-se na entrada, acendendo um cigarro.
— Ele é todo seu — meu irmão anunciou, indicando John,
que estava encolhido no chão, chorando como uma garotinha.
Ele estava com o rosto arrebentado, havia sangue no chão.
Não nos encarava, havia perdido toda a bravata, parecia
envergonhado com a situação, tanto que nos deu as costas.
E foi aí que pude ver de onde saía todo aquele sangue: era
do seu cu.
Não só isso, havia algo estranho explodindo para fora do
ânus. Era vermelho vivo, disforme e gotejava sangue e fezes.
— Quando um opressor se torna o oprimido, é deveras
filosófico. — Lysander prendeu o cigarro na boca, sua voz sequer
alterou. Nem parecia que havia acabado de deixar um intestino
exposto. — Eu gosto disso. — Girou o punho, massageando. — Eu
gosto muito disso.
O gesto me fez compreender como ele havia feito tudo
acontecer.
— Minha vez. — Me aproximei de John, ele chorou mais alto,
escondendo o rosto entre as mãos. — Vamos nos divertir muito. —
Acendi o maçarico. — Agora, grite para mim.
Ele tentou lutar, mas Rafael o prendeu no chão. O joelho do
meu irmão encaixou entre suas costas, John não podia fazer nada,
a não ser implorar e gritar muito enquanto eu derretia um lado de
seu rosto até a mandíbula e os dentes ficarem expostos.
— Socorro!
— Ninguém vai ajudá-lo — Rafael murmurou. — Você sabe
que ninguém se importa o suficiente.
Lysander se aproximou outra vez, John surtou, lutando
desesperadamente.
— Não o deixe se aproximar de mim, não o deixe se
aproximar de mim.
— Pensei que tínhamos firmado uma relação. — Meu irmão
se ajoelhou, abrindo seu pequeno estojo. — Eu até comi o seu cu,
pensei que me amasse.
— Maldito! — cuspiu, com um lado do rosto deformado. — Eu
vou me vingar.
— Terá sua chance quando nos encontrarmos no inferno,
mas até lá, desfrute da noite. — Lysander prendeu o cigarro na
boca, então começou a cortar as costas de John.
Seus gritos se transformaram em súplicas, depois em
guinchos de agonia quando eu fui puxando suas costelas para fora
da pele. Meu irmão havia deixado-as expostas, eu as arranquei,
depois cauterizei tudo com o maçarico.
Não aguentou por muito tempo, desmaiando antes mesmo
que eu pudesse começar a queimá-lo de verdade. Lysander se
encarregou de acordá-lo.
— Fique conosco, isso aqui só é interessante se você
participar.
— Me mate, eu imploro, não aguento mais.
— Aguenta sim, não seja um covarde. — Rafael deu dois
tapinhas no rosto dele. — Estamos apenas começando.
Faltava muito para que eu me sentisse saciado.
— Jenny manda lembranças — sussurrei em seu ouvido. —
Agora desfrute, a noite será toda nossa.
Ele gritou, sacudindo o corpo quando Rafael começou a
cortar suas mãos.
— Veja como funciona, você machucou a mulher do meu
irmão, então suas mãos pertencem a ele. — Meu irmão balançou as
mãos de John diante dos seus olhos, o horror dele era tanto que
desmaiou outra vez.
Ficamos assim, cada parte da tortura era dividida entre os
seus desmaios. John foi sendo despedaçado aos poucos, morreria
em breve, por isso, quando ainda lhe restava um fio de consciência,
eu arranquei o seu pau, com bolas e tudo.
— Você é uma putinha. — Balancei sua genitália. — Não vai
precisar mais disso.
Coloquei o órgão dentro do que restava de sua boca, depois
pegando o atiçador de fogo que havia ao lado da pequena lareira
que havia ali o transpassei.
John deu o último suspiro, o olho que havia restado encarava
o teto. Não havia um lado do seu rosto, mas o horror ficava gravado
na parte que não havia sido queimada.
— Uma pena que não tenha aguentado muito. — Lysander
estava com as mãos cheias de sangue. O observei acender outro
cigarro, indo assistir o amanhecer através da janela francesa que
havia ali no escritório. — Bastardo covarde.
Por um instante achei que meu irmão estivesse falando
consigo mesmo.
— Irmão, vá buscar as coisas de Jenny. — Rafael ergueu o
celular que ele havia pegado. — Vai facilitar a recuperação do
acesso as contas dela.
Concordei, apressando-me para o seu quarto. Da outra vez,
não tive tempo de avaliar o ambiente, estávamos com muita pressa,
mas, agora que podia, eu não conseguia enxergar a minha garota
ali.
O lugar era branco demais, sem nada que pudesse remeter a
ela. Não havia o toque pessoal, era como se ela não quisesse criar
nada seu ali, mesmo que eu reconhecesse o fundo quarto, era ali
onde ela gravava suas músicas.
Fora naquela cama que o bastardo tirou sua foto seminua. A
cabeceira da cama era a mesma.
Na janela havia grades, na penteadeira tinha apenas uma
escova de cabelo. Jenny não possuía muitas coisas, o quarto era
estéril demais, feio. Não havia cor, nenhuma beleza que lembrasse
a alma sensível de uma artista.
Aquele quarto era nada menos que uma prisão.
— Não interessa mais. — Respirei fundo, recolhendo o
ursinho que estava com a cabeça separada do corpo.
Procurei não me demorar nem mais um segundo ali, porque,
invariavelmente, pensar no que Jenny sofreu reacendia a minha
raiva e eu não tinha mais o bastardo para lidar com isso, porque se
eu pudesse matar John outra vez o faria, mas, como não podia,
restava-me compensar a minha mulher por tudo que viveu,
oferecendo um futuro tranquilo — na medida do possível — afinal,
ser minha a tornava um alvo dos meus inimigos também.
De posse do que Jenny queria, saí daquele quarto maldito,
voltando para os meus irmãos. Ambos já estavam terminando de
preparar o corpo. Faríamos parecer que aquilo era uma cobrança de
dívidas — o que não deixava de ser verdade — e quando fosse
investigado, descobririam que John Monroe tinha assuntos mal
resolvidos com pessoas perigosas.
— Irei preparar a casa — anunciei, entregando para Rafael o
urso de pelúcia destruído. — Leve-o.
Sem pressa, dirigi-me para o porão, onde estaria instalado
todo o sistema de gás e aquecimento. Mas, ao chegar, encontrei
uma cela pronta. O cheiro da tinta ainda era fresco. Havia uma
cama, um vaso sanitário e uma pia.
Na cama, um vestido feminino repousava, e na parede havia
um retrato belíssimo de Jenny.
— Que filho da puta louco! — Respirei fundo, o ódio me
cegou por um instante.
Eu tinha certeza de que ele iria prendê-la ali.
Miserável.
Furioso, comecei a instalar microbombas nas pilastras de
sustentação da casa e na central de gás. Antes de sair, estourei
todo o sistema para propagar a explosão mais rápido.
Meus irmãos me aguardavam na saída. Juntos,
abandonamos o passado de Jenny, em breve aquela casa não
existiria mais.
Apenas quando já estávamos distantes, as bombas foram
ativadas, cerca de dois minutos depois a explosão sacudiu tudo.
Alarmes de carros foram disparados, no céu espiralava uma nuvem
densa de fumaça.
Era o fim de John Samarco Monroe e de toda sua maldade,
agora visitaria David.
Ainda hoje, ele encontraria seu amigo no inferno.
44
Jenny Monroe

O som da porta abrindo fez meu coração agitar-se. Não


pensei absolutamente em mais nada antes de correr em direção a
Gabriel e abraçá-lo.
— Isso tudo é saudade? — Ele me abraçou, soltando a
sacola que carregava enquanto erguia-me do chão. — Preocupada
comigo, Beag?
— Claro que estava, John é um monstro, Gabriel, ele... —
Respirei fundo, buscando algum machucado aparente, mas em seu
rosto não havia nenhum.
Eu sabia como John poderia ser meticuloso em suas torturas.
Com minha mãe ele batia em todos os lugares, em mim, sempre
teve cuidado de manter o rosto de fora, apenas quando sua raiva
era maior que sua capacidade de manter controle, ele golpeava meu
rosto.
— Por favor, remova a sua camisa. — Um meio sorriso surgiu
em sua boca, ele removeu a peça rapidamente.
Por um momento eu precisei me lembrar de como respirar.
Era realmente chocante que alguém fosse tão bonito como Gabriel
era. Além das cicatrizes que marcavam alguns lugares, não havia
nenhuma marca nova.
— Deixe-me ver suas costas. — Segurei em seu braço, ele
riu, virando-se.
Não havia nenhum machucado, apenas as marcas do
passado, causadas pela intensidade de sua vida. Seus músculos
estavam relaxados, mas não diminuía o quão grande era.
— Se você me quiser nu para inspeção, basta avisar. —
Havia certa diversão em sua voz. — Estou bem, Jenny, nada me
aconteceu. — Ele enlaçou a minha cintura, sentando-se na cama,
comigo no colo.
Ele me olhou com seriedade, avaliando-me, talvez para saber
se eu estava preparada para o que diria a seguir.
— Acabou. — Sua mão repousou na minha barriga. — Você
está livre daquele bastardo, para sempre.
Por um momento não soube o que lhe dizer, era como se,
mesmo sabendo da minha liberdade, encarar que era real parecia-
me impossível. Gabriel não disse nenhuma palavra, apenas me
segurou em silêncio, enquanto eu lidava com a sensação estranha
de não ter medo.
Sem querer, minhas lembranças voltaram ao passado,
revivendo os piores momentos da minha vida. A dor ainda era real,
a humilhação e todo resto, mas, diferente de todas as outras vezes,
não havia medo.
Eu estava, verdadeiramente, livre.
— Tudo bem. — Gabriel tocou meu rosto, eu não percebi que
estava chorando. — Eu o matei, e antes que o fizesse, garanti que
sofresse o suficiente. John Samarco Monroe morreu em agonia.
A crueza de suas palavras deveria aterrorizar-me, mas não
foi isso que aconteceu. O que eu senti, foram as correntes que John
havia prendido em mim, sendo quebradas, e, pela primeira vez na
minha vida adulta, eu pude respirar aliviada.
— Obrigada por tanto. — O abracei, sentindo o calor de seu
corpo retribuindo meu abraço. — Você é a melhor pessoa da minha
vida.
Fechei os olhos, quando ele me apertou, fazendo-me sentir
minúscula dentro de seus braços fortes.
— O que pensou para fazermos hoje? — Ele acariciou minha
bochecha, os olhos parando em minha boca. — Sou todo seu,
Beag.
A sensação de revoada agitou minha barriga, meu coração
acelerou um pouquinho, dando-me a certeza de que Gabriel
conseguia mexer tanto comigo que nem os remédios eram capazes
de me controlar.
— Não me olha assim, pequena. — Ele fez uma careta. — Eu
sei que você precisa de tempo para entender tudo que está
acontecendo na nova realidade da sua vida.
— Eu não preciso de tempo para mais nada. — Respirei
fundo, apesar do olhar suave e amoroso, que ele destinava a mim,
eu podia ver claramente que havia certa reticência.
Era como se temesse me assustar.
— Temos todo o tempo do mundo, sem pressa desta vez. —
Ele segurou meu rosto, se aproximando.
— Não mude comigo, Gabriel, por favor. — Fechei os olhos.
— Não mude comigo, deixa que qualquer trauma eu cuido, eu
sempre...
— Jenny... Jenny. — Ele repousou os lábios nos meus. Foi
um leve toque, carregado de carinho. — Você não está mais
sozinha ou desamparada para cuidar de suas dores. Eu sou forte.
— Ele fez uma exibição dos músculos do braço, talvez, numa
tentativa de deixar as coisas num terreno mais tranquilo e calmo. —
Viu? Forte. Eu posso lidar com a espera, porque eu sei que vai valer
a pena.
— Você promete que não vai mudar, comigo? — Tentei não
transparecer desespero, mas como explicar para ele que o meu
medo não existia com ele?
Desde o primeiro olhar, Gabriel dominou o terror que habitava
o meu peito, deixando livre pelo tempo que eu estivesse ao seu
lado. Gabriel me inspirou um sentimento de confiança que, mesmo
não estando ao seu lado, eu podia sentir e isso me fortalecia.
Ainda que naquela época eu fosse uma covarde por me calar,
ali eu não precisava mais.
E ele merecia saber, respirei fundo tomando coragem.
— Você alterou isso aqui. — Toquei no meu cérebro. — Não
há medo quando estou com você. É como se fosse capaz de criar
uma barreira que me protege, permitindo-me que eu seja apenas a
garota descobrindo como é bom ser feliz.
— Porra, Jenny — murmurou, com os olhos brilhando feito
duas esmeraldas.
Ele era lindo demais, ainda que possuísse concorrentes de
peso nos irmãos, Gabriel era uma obra da mais pura arte.
— É verdade, há algo no seu olhar, um tipo de bondade tão
grande que eu não sei explicar. — Segurei sua mão, colocando-a no
meu coração mais forte, e que batia pelas minhas crianças e por
ele. — Eu consigo te ver, e o que eu vejo é muito bonito, Gabriel.
Ele não respondeu nada, também não havia o que dizer.
Naquele momento queria apenas que entendesse o quanto foi
importante na minha vida, que por causa dele eu comecei a
enxergar que, para mim, havia mais do que sofrimento.
— Eu não queria alguém para mim. — Tocou a minha barriga.
— Estava satisfeito e em “paz” através de Rafael, mas, agora que
tenho esses bebês a caminho, não consigo imaginar-me sem eles.
— Seus olhos buscaram os meus. — E sem você também, Beag.
— Um quinto de segundo, eu acredito no que Amira disse. —
Estava feliz, porque não havia correntes me prendendo ao passado.
A família Demonidhes sabia de tudo, e eles me aceitaram
mesmo assim. Não só isso, eles vingaram a minha honra, fazendo o
meu algoz pagar por tudo que havia feito.
— Agora, precisamos cuidar da próxima parte. — Gabriel
segurou meu queixo. — De acordo com o que Amira estudou, são
pequenas coisas que constroem a base de um sentimento mais
profundo e sólido.
— Você fez tantas coisas para mim.
— Jenny, você não faz ideia do que fez para mim. — Franziu
o cenho, como se estivesse tentando organizar os pensamentos. —
Eu tenho uma natureza bem temperamental e as minhas decisões
são tão loucas quanto eu levo a minha vida. Eu tinha certeza de que
eu e você teríamos boa uma boa convivência e que cada um
seguiria seu rumo, mas bastou eu perceber o quanto você precisava
de mim ao seu lado para que tudo desabasse.
— Eu não achava que era boa suficiente, porque eu sabia
que precisava esconder coisas importantes. — Sorri, sentindo toda
aceitação daquele homem maravilhoso. — Mas agora que eu não
tenho nenhum segredo, Gabriel, podemos tentar.
— Beag, nós seguiríamos em frente de um jeito ou de outro.
— Respirou fundo. — Você foi a única mulher capaz de mexer
comigo além da superfície. Por isso, eu não me importo de esperar,
quero que tenhamos tudo, mas do jeito certo. Por enquanto... — Ele
se levantou, indo pegar a sacola de papel que havia largado no
chão. — Eu demorei um pouco mais porque queria te trazer isso.
Quando ele me entregou, eu senti o coração ficar ainda mais
quentinho, logo de cara podia ver a pelúcia branca. Ao retirá-lo da
sacola, notei que a cabeça não estava mais separada do corpo.
— Eu o consertei. — Gabriel esfregou a nuca. — Não queria
entregá-lo como estava.
— Você o costurou? — Não pude evitar a surpresa e a
emoção que me engoliu por inteiro.
— Quando eu vivia na antiga fábrica, precisei aprender
coisas básicas. Eu arrumava minhas roupas e as de... — ele parou,
então sorriu. — A costura não ficou das melhores, mas, pelo menos,
a cabeça está onde deveria.
— Você é maravilhoso demais, Gabriel! — Eu o abracei
apertado, beijando seu peito onde o coração batia acelerado. — E
será o melhor pai do mundo.
— Eu prometo que vou tentar. — Piscou um olho, antes de
me beijar rapidamente. — Agora veja se está do seu agrado.
Claro que estava, mas eu o olhei, não vendo sequer as
linhas. Ele fez bem-feito, com capricho, exatamente como tudo que
ele fazia. Sorrindo, eu apertei o ursinho contra o peito, sentindo a
maciez que representava o carinho das milhares de pessoas que
me acompanhavam.
— Jenny, o que foi? Se quiser posso encontrar alguém que o
conserte melhor e...
— Não é isso, está perfeito. — A felicidade era tanta que eu
senti a risada borbulhando. — Esse foi o primeiro presente que eu
ganhei e pude ficar...
— Você cantou com uma garotinha, eu assisti. — Concordei,
aceitando seu abraço. — Irei recuperar tudo que perdeu, eu
prometo.
Havia ferocidade em suas palavras, e eu acreditei, pois
Gabriel não mentia para mim. E eu nunca mais mentiria para ele
também.
— Eu já tenho quase tudo. — Busquei seus olhos. — Eu
gostaria de ver a minha mãe, agora que John...
— Não suje a sua boca mencionando aquele verme. —
Gabriel beijou o topo da minha cabeça. — Você não deve sequer
pensar nele, imagine que, quando qualquer lembrança ruim voltar,
eu estarei lá para arrebentar o miserável, e é ele quem tem medo.
— Tem razão. — Ergui a cabeça, apoiando o queixo em seu
peito. — Ele morreu com medo de você.
— Sim, eu sou mais perigoso.
— E cruel.
Pensar que ele era horrível com pessoas ruins e maravilhoso
comigo mexia ainda mais com a minha cabeça. Não mentirei
dizendo que não gostava — porque eu gosto muito —, fazia me
sentir protegida ao ponto de não aceitar mais que John pudesse
mandar em mim quando, naquele momento, estava morto e
explodido.
— Muito cruel — endossou, inclinando-se para me beijar. Por
um breve instante olhou para os meus lábios, então seus olhos
prenderam os meus. — Quando estiver comigo, é apenas em mim
que deve pensar. — Ele me apertou em seus braços. — É apenas o
meu toque que deve sentir. Mas o principal, é apenas o meu rosto
que deve enxergar quando seus olhos fecharem e você se entregar.
Minhas pernas bambearam, tudo dentro de mim foi se
apertando ao mero sussurro de sua voz exigente. Estava derretendo
como uma mocinha indefesa, mas não ia me sentir culpada, Gabriel
destilava sedução pelos poros.
Ele sabia exatamente qual tom usar para abalar as estruturas
de qualquer mulher.
— Só há você, Gabriel — suspirei, o corpo inteiro arrepiando.
Quando ele inclinou a cabeça, eu quase podia sentir o beijo que
viria.
Todo meu corpo se preparou, eu fiquei na ponta dos pés,
pronta para tocar o paraíso em seus lábios.
— Agora o mais importante — disse, com sua boca tocando a
minha. — Não se esqueça de que você é minha.
Ele me tomou, causando um choque elétrico dentro do meu
cérebro que disparou prazer por cada terminação nervosa do meu
corpo. Sua língua brincou com a minha, acariciando, instigando-me
a retribuir. Era tão macia, gostosa. O sabor mentolado, aquecia-me.
— Gabriel — gemi quando mordiscou meu lábio, esfregando
a barba em meu rosto. — Não pare.
Voltando a me beijar, ele enredou a mão no meu cabelo,
dominando-me por completo. Não havia nenhuma pressa, ele
estava degustando, tomando seu tempo com prazer, como se
houvesse esperado muito por aquilo.
— Minha linda cantora. — Seu beijo me consumia, eu não
queria parar nunca, poderia beijá-lo até morrer de prazer. — Você é
tão delicada e pequena. Eu vou cuidar de você, eu prometo. —
Esfregou seu nariz no meu. — Case-se comigo, Jenny, carregue o
meu nome com orgulho, me deixe te fazer feliz.
— Gabriel, eu...
— Não precisa responder agora. — Voltou a me beijar,
daquele jeito mais exigente, dominante e que me deixava fora do
eixo.
Suas mãos vieram para a minha bunda, erguendo-me, e eu o
abracei com as pernas. Seus cabelos estavam molhados, ainda
curtos demais para eu puxar como queria. Devagar, fui descendo os
dedos por sua nuca, acariciando, arranhando com as unhas.
Gabriel gemeu na minha boca, daquela vez, quem mordiscou
seu lábio fui eu. Sentia que estava excitado, quando se sentou na
cama, as mãos ainda repousadas em minha bunda. O prazer foi só
crescendo. Sentia-me palpitar, ansiando preencher aquele vazio
interno que me fazia doer.
— Gabriel, preciso de você. — Segurei seu rosto, beijando
seu queixo e o mordiscando também.
— Calma, Beag. — Sua respiração estava celerada. — Não
vamos nos precipitar.
— Estamos com duas precipitações a caminho. — Uma
risada cúmplice escapou de nós dois.
— Então, na sua cabecinha, agora podemos nos precipitar
sem preocupações?
— Sim, nós podemos.
Esperei que ele fizesse algo a respeito, mas Gabriel apenas
sorriu, capturando uma mecha do meu cabelo e a levando até o
nariz. Ele respirou o cheiro, acariciando-a entre os dedos.
Não era a primeira vez que ele fazia aquilo.
— Quando suas marcas não passarem de lembranças de
uma época ruim — ele acariciou meu rosto. —, você vai estar pronta
para mim. Até lá, permita-me fazer o que deveria ter feito antes. —
Ele estendeu a mão, quando aceitei ele beijou meus dedos,
dizendo: — Vou levá-la até a sua mãe.
Eu achava que não poderia ficar ainda mais feliz, mas estava
errada. Parece que, ao lado dele, eu era uma garota de sorte.
— Obrigada. — Pressionei meus lábios nos seus, roubando-
lhe um beijo rápido. — Obrigada!
Gabriel me ajudou a levantar, depois vestiu sua camisa,
guiando-me em direção à porta. Antes de sairmos, eu olhei para
mim mesma.
Estava usando um dos muitos vestidos que Amira me deu
ainda na etiqueta. Misteriosamente, muitas roupas estavam
perdidas para ela.
Meu cabelo estava escovado, e eu havia tomado banho
porque a crise de ansiedade que me pegou antes da chegada de
Gabriel me fez suar como um maratonista.
— O que foi?
— Eu... — Alisei o tecido macio. — Será que estou bem? Não
quero estar feia para encontrar minha mãe. Não quero que ela se
preocupe comigo.
A expressão de Gabriel foi amorosa, eu podia reconhecer,
pois minha mãe olhava com amor para mim, havia suavidade,
carinho e preocupação naquele homem lindo à minha frente.
— Beag, sua mãe tem suportado bem, mas ela chegou aqui
em estado grave. Ela está fora de perigo, de acordo com Lysander,
ela respondeu bem ao pós-cirúrgico e está se recuperando, mas
ainda está sedada. Ela não vai te ver, mas, talvez, você queira
contar as novidades, e isso a ajude a se recuperar. — Ele acariciou
meu cabelo. — Você está linda.
Apesar de ter estado em seus braços instantes atrás, eu senti
o rosto esquentando. Quando ele me elogiava, eu sentia uma
timidez louca, porque, apesar de não concordar com o que ele dizia,
eu gostava de ouvir.
— Não percamos tempo.
De mãos dadas, seguimos em direção ao corredor que nos
daria acesso às duas salas de jantar. Passamos pelo acesso que
nos levaria ao cinema, sala de jogos e demais ambientes. A casa
parecia que não acabava nunca, mas não reclamei, eu estava
ansiosa para chegar logo e ver minha mãe.
— Estamos indo para a garagem? — Olhei para trás, porque,
se fosse, o caminho que estávamos fazendo era contrário.
Gabriel não respondeu, mas continuou me guiando para uma
parte da casa que eu não havia conhecido antes. Era uma área que
me pareceu mais sóbria, o longo corredor não possuía portas nas
laterais, apenas uma no final do corredor. Ao seu lado constava um
painel, piscando uma luz azul.
Quando paramos na frente da porta — que eu percebi ser de
ferro —, Gabriel soltou minha mão para segurar meu rosto.
— Jenny, eu contei que eu e meus irmãos fazemos parte de
uma grande e poderosa Organização de Caçadores. — Concordei,
prestando atenção em cada uma das suas palavras. Sabia que tudo
que ele estava falando era importante. — No último, eu e meus
irmãos sofremos numerosos ataques.
— O quê? — A notícia caiu como uma pedra. — Quer dizer
que você corre risco? Gabriel!
— Levamos uma vida arriscada, mas temos treinamento para
estar um passo à frente ainda que estejamos em partes no escuro.
Imaginar que ele poderia não voltar para casa era mais do
que eu poderia lidar no momento. Imaginava Gabriel como alguém
invencível.
Ele ganhou de John, isso significava muita coisa! Tentei que o
pensamento me acalmasse, mas não obtive sucesso algum. Gabriel
era especial, minha fortaleza, nada poderia acontecer com ele.
— Jenny, presta atenção em mim. — Balancei a cabeça,
tentando clarear as ideias. — Nós precisamos construir um
Complexo de alta segurança aqui.
— Eu sei, a casa é segura e...
— Não, pequena, refiro-me ao Complexo da Ordem. —
Gabriel respirou fundo. — Você é minha companheira aqui, significa
que terá direito a acesso, e eu confio em você o suficiente para
compartilhar. Peço, que sob hipótese alguma, passe adiante o que
verá aqui.
— Não irei! — Ergui o queixo, sentindo-me honrada pelo que
ele estava me entregando. — Eu nunca vou trair sua confiança outra
vez.
— Não volte para lá. — Segurou meu rosto. — Você não me
traiu, fez o que precisava fazer. Eu que fui um filho da puta, sou eu
quem deve pedir perdão por ter falado tanta merda e feito com que
se sentisse menos que incrível.
— Erramos, mas já passou, estamos bem.
— Sim, estamos bem. — Ele me deu um beijo rápido, depois,
relanceando um último olhar, abriu a placa de aço do painel.
Havia uma tela, que foi ativada quando ele digitou um código
de oito dígitos. Em seguida, ele colocou a palma da mão. Em
choque, observei quando uma cópia exata de sua mão foi
aparecendo na tela.
— Leva alguns instantes. — Depois, cinco quadrados
começaram piscar verde e ele encostou apenas os dedos.
O mais interessante de ver foi que os espaços vermelhos
possuíam o tamanho das digitais de Gabriel. Conforme foi
encaixando de maneira correta, os quadrados ficavam verdes. Por
último, ele baixou e seu rosto foi escaneado.
— Deus!
Quase enfartei quando uma voz robotizada e horrível, falou:
“Gabriel Demonidhes – Fire
General – Incendiário
Especialista em explosivos e armas.
Classe 2.
Acesso concedido.”
As portas destravaram, e eu pude ver a espessura. Eram
mais largas que a minha mão, e davam para um elevador.
— Vamos para o subsolo — ele avisou assim que a porta
fechou. — Temos um metro e meio de concreto armado, as paredes
possuem a mesma espessura. Ambos revestidos por placas de aço
em blocos de vinte centímetros.
Não levamos muito tempo descendo, mas quando paramos e
a portas abriram, eu não pude acreditar no que estava vendo.
— É igual. — Olhei ao redor, estava diante de uma réplica da
parte superior da casa. — Que magnífico.
— Sim, Razhiel quis manter desta forma para o caso de
precisarmos evacuar para cá. — Gabriel abrangeu a enorme
cozinha, a entrada começava a partir dela. — Você vai encontrar
tudo igual, a diferença estará na ala de acesso para cá. Ali ficam os
laboratórios e o Centro Médico. Há outro acesso por fora, que nos
trará pela garagem do subsolo.
— É surreal. — Olhei ao redor, ainda abismada. — Levou
quantos anos para construir isso?
— Um ano, foi o prazo que Rafael deu para Razhiel construir
a casa e o nosso Complexo particular da Ordem.
— Vocês são muito poderosos para financiar algo desse
porte.
— Condizente a reis, Beag. — Gabriel pegou minha mão. —
E você agora faz parte disso.
Uma repentina timidez me dominou. Ele dizer com a maior
naturalidade do mundo que eu fazia parte daquilo tudo, era meio
impossível imaginar.
— Venha, não percamos tempo. — Segurou minha mão,
levando-me para o centro médico.
Quando chegamos no corredor de acesso, uma porta
chamou a minha atenção. Ela possuía código para entrada e um
nome que me fez arrepiar.
Contenção.
— O que é isso? — Eu sabia o que era, mas queria ter
certeza.
— São as celas — Gabriel respondeu com tanta naturalidade
que eu me espantei. — Alguns de nós já fomos contidos por nosso
pai — ele riu. — Apenas celas especiais conseguiriam segurar
alguém com nossas habilidades.
Não pude esconder o choque que suas palavras causaram.
Era demais imaginar que qualquer um deles pudesse ser detido
pelos próprios irmãos.
— Beag, não pense muito sobre isso. — Ele acariciou meu
rosto. — Estamos todos bem, e com a chegada das crianças, temos
algo para nos manter na linha.
— Gabriel, se você precisar de mim para conversar, sabe que
estarei aqui, não é? — Mordi o lábio, queria que ele entendesse que
eu poderia fazer algo para ajudar. — Eu prometo que canto para
você se quiser.
— Eu vou cobrar. — Ele piscou um olho, apontando para a
frente.
Mais adiante, havia portas duplas, identificadas por um nome
em dourado: Centro Médico. Ali, não tinha código para acesso,
então com um empurrão de Gabriel, as portas abriram-se e eu me
deparei com um lugar elegante, altamente moderno e luxuoso.
— Lysander está aqui. — Gabriel mal havia terminado de
falar, e ele apareceu.
Estava vestindo roupas escuras, que cobriam seus braços e
pescoço. Os cabelos pretos como as asas de um corvo estavam
molhados e penteados para trás.
Ele havia ido encontrar John, e, talvez, estivesse escondendo
possíveis lesões. Meu padrasto não era um homem singelo, com
certeza deve ter dado muito trabalho.
— Você está bem? Se machucou? — Estendi a mão, num
gesto instintivo, mas logo a recolhi.
Lysander não gostava de ser tocado.
— Nenhum arranhão. — Cruzou os braços, sua expressão
era indiferente, como se estivesse entediado. — Suponho que veio
ver sua mãe?
— Sim, por favor. — Com um aceno, ele ficou ao lado da
porta, indicando que eu deveria entrar.
Queria correr para ver minha mãe, mas, antes de dar um
passo sequer, olhei para o homem ao meu lado, estendendo a mão
para ele.
— Seria uma honra para mim se você me acompanhasse. —
Gabriel sorriu, tocado por minhas palavras.
— Será um prazer.
Juntos, fomos na direção ao que deveriam ser os quartos.
Passamos por várias salas envidraçadas, eu vi leitos vazios, mas
que estavam montados com aparelhos de todos os tipos.
— Ela está ali. — Era o último leito.
Antes mesmo de entrar no quarto, a avistei através do vidro.
Precisei de um instante para controlar as emoções.
— Chore, Beag, não se segure. — Gabriel apertou minha
mão, suas palavras gentis abriram as comportas. — Vocês estão
livres, podem recomeçar e construir algo tão incrível quanto
queiram.
— Obrigado por tudo. — Ele sorriu, indicando o quarto.
— Vá, esse é um momento apenas de vocês. Depois,
Lysander pode explicar tudo que queira saber.
Eu abracei Gabriel o mais apertado que consegui, queria
transmitir o que eu sentia explodir no meu peito com todo seu
cuidado, carinho e dedicação para comigo.
O que havia acontecido mais cedo era pequeno diante todo o
resto.
— Vá. — Ele sorriu.
Emocionada, eu me aproximei da cama em que minha mãe
repousava. Quando vi seu rosto inchado, disforme e roxo, eu
precisei lutar contra as lágrimas. Tinha que ser forte por ela, agora
não era mais tempo de chorar.
Então, ao invés de lamentar o que passamos, eu segurei sua
mão com todo cuidado, beijado seus dedos frios, depois acariciei
meu rosto com eles, desfrutando de saber que ela estava ali, e que
iria ficar bem.
Não sabia se ela poderia sonhar com coisas boas, ou se
apenas o passado iria ferroar seu descanso e recuperação, mas eu
iria tentar dar-lhe algo melhor.
— Mamãe. — Beijei seus dedos outra vez, repousando-os no
meu rosto, fechei os olhos. — Eu tenho uma história para contar,
mas antes quero que saiba de algo. — Respirei fundo. — Eu acho
que estou apaixonada de verdade.
Olhei para Gabriel, ele estava conversando com Lysander do
lado de fora, ambos pareciam entrosados, dando-me total
privacidade.
— Eu sinto dentro de mim que finalmente encontrei o meu
lugar, eu acho que nunca mais estarei sozinha.
Sentindo que eu falava dele, Gabriel me olhou e o sorriso que
me deu foi maravilhoso.
Tive certeza de que, naquele momento, alguma coisa
houvesse mudado para sempre.
45
Gabriel Demonidhes

Mesmo após quase dez dias, da morte repentina do CEO da


Universal Record’s, David Barack Smith, os noticiários ainda
continuavam explorando todos os pontos de sua vida e carreira.
Para a indústria da música, a perda era retratada como significativa
demais para que não fosse dada a devida atenção.
Com prazer, ouvia a repórter falando que a causa da morte
havia sido um acidente vascular cerebral, de caráter hemorrágico.
— Relembrando que David morreu sozinho, em seu quarto, e
foi encontrado apenas no dia seguinte por seu assistente pessoal.
— Um sorriso tomou meus lábios.
Não, ele morreu porque havia machucado a mulher de um
assassino.
Era mero detalhe que Jenny não fosse minha na época. Ele
até poderia se considerar sortudo, pois sua morte foi rápida. O
responsável fora o dispositivo de Amira que derreteu seu cérebro.
John não teve tanta sorte.
— Gabriel, você não vem? — As risadas das mulheres
vinham da varanda. Eu estava na sala, dividido entre assistir
aquelas notícias e ver como minha Jenny parecia uma criança ao
redor de tantos filhotes. — Gabriel?
— Me juntarei a vocês em breve.
Ela sorriu, voltando-se para Amira.
Rafael conversava atentamente com Boris, sobre as
ninhadas.
Nosso mordomo e seus filhos possuíam experiência com o
tipo de treinamento que meu irmão queria. Boris foi o responsável
por treinar o último Alabai[14] que nosso pai teve.
Ele também havia ensinado Rafael como tornar um cão numa
arma de combate.
— O corpo de John Samarco Monroe, produtor musical,
ainda não foi encontrado em meio aos escombros da explosão que
destruiu a sua casa.
A notícia chamou minha atenção, a imagem que apareceu na
tela era de uma propriedade na mais completa ruína, digo, não dava
para discernir se antes era mesmo uma casa.
Em meio à imensa pilha de pedregulhos, o Corpo de
Bombeiros ainda estava lá. Do jeito que eu preparei a explosão, o
terreno precisou ser interditado, para evitar possibilidades de novas
explosões devido ao vazamento de gás.
Toda a propriedade precisou ser isolada.
— As buscas continuam, entretanto, segundo informações do
Corpo de Bombeiros, há possibilidade de que o corpo de John
esteja debaixo de todos aqueles escombros, dificultando ainda mais
o resgate. — Ela apontou para onde antes havia uma mansão,
pessoas protestavam em frente, com cartazes e palavras de ordem.
Mesmo que John estivesse morto, o que ele fez com Jenny e
sua mãe não foi esquecido, e as pessoas estavam deixando claro.
A repórter tocou o ponto eletrônico em seu ouvido e então
sorriu, como se a próxima notícia fosse capaz de abalar o mundo.
— Acabo de receber informações de que está confirmada a
associação de John Samarco Monroe com o narcotraficante Willian
Longford. — Estreitei os olhos, a minha mulher tinha razão. John
possuía relações muito perigosas. — Repito, acaba de ser
confirmado por agentes federais a relação entre o produtor musical
e o narcoterrorista conhecido como O coiote.
Uma foto em péssima qualidade foi colocada na tela, não
dava para distinguir muito bem as feições do bastardo. Era estranho
que, com o acesso difundido da tecnologia, das câmeras de
vigilância, ninguém tenha conseguido uma foto decente.
— Willian configura o número um na lista dos mais
procurados da CIA e INTERPOL, a recompensa para quem trouxer
informações confiáveis, gira em torno de cinco milhões de dólares.
— A repórter olhou suas anotações. — Vale ressaltar que a disputa
territorial recente pelo distrito do Brooklyn culminou na morte de
cinquenta homens. O ato foi nomeado como a noite mais sangrenta
de Nova York.
O embate entre gangues aumentou a temperatura da cidade
no último ano. Estranhamente, eles se mantinham no limite do que
era permitido. Nenhum jovem em meio às guerras, apenas homens,
os que escolhiam seus malditos destinos.
A risada de Jenny chamou a minha atenção outra vez. Ela
estava deitada no chão brincando com um kangal de dois meses,
que já era bem maior que todos os outros cães. O filhote a lambia,
pulava em cima dela, enquanto Jenny aceitava cada um dos
carinhos do pequeno gigante.
A visão da minha Beag feliz enchia o meu coração de um
sentimento poderoso. Desde que ela passou a ver sua mãe todos os
dias, e pôde confirmar com seus próprios olhos que a mulher estava
melhorando, tudo havia mudado para muito melhor. Sua expressão
estava mais suave, não havia mais aquela sombra ao redor de seus
olhos.
Seus sorrisos eram sinceros e eu a ouvia cantarolar o tempo
inteiro.
O medo havia ido embora, eu a estava vendo florescer diante
dos meus olhos.
— Minha Jenny. — Respirei fundo, repleto dela.
Todos os dias a necessidade para tê-la em meus braços se
tornava insuportável. Eu havia prometido esperar seu tempo, e a
melhor coisa para fazer aquilo era respeitando os limites que eu
mesmo impus.
Mas a cada dia, estava ficando mais e mais difícil. Balancei a
cabeça, desligando a televisão e indo me juntar a ela.
— Eu fiz um amigo. — Ela fechou os olhos, o cachorro estava
mordendo seus cabelos, babando-a toda. — Ele não me deixa
levantar. — Sua risada ecoou, ambos estavam travando uma
batalha divertida.
Ela tentava esconder o rosto, ele querendo que ela brincasse.
— Cuidado para não se machucar. — Me aproximei para
retirar o kangal de cima dela, o cachorro rosnou. — Ela é minha,
bastardinho. — Segurei o filhote de diante de mim. — Eu cheguei
primeiro.
Ele tentou me lamber, eu o segurei debaixo do braço,
ajustando para não machucar seu corpo.
— Ele é ansioso. — O filhote estava tentando morder a minha
camisa — Sossegue.
— Lembra quando você disse que eu poderia escolher um. —
Jenny bateu o pelo da calça, seus cabelos estavam assanhados, os
olhos brilhando como duas estrelas. — Ainda é verdade?
— O quê? — Balancei a cabeça, deixando que ele mordesse
minha mão.
— Sobre o filhote, quando eu cheguei aqui, você disse que
eu poderia escolher um. Eu ainda posso?
Como negar alguma coisa para você? Era impossível. Se
Jenny me pedisse o mundo, certamente daria um jeito de lhe dar.
— Suponho que esse bastardinho seja o seu escolhido? —
Arqueei a sobrancelha, quando seu sorriso aumentou. — Jenny, um
kangal fica enorme, um pouco maior que o Corso, você entende
isso?
— Não entendo das diferenças, mas ele é fofo, não acha? —
O sorriso não saiu de seus lábios. — Veja, ele é temperamental, ele
me escolheu. Quando chegamos para ver os filhotes, ele veio direto
para mim. Somos amigos.
— Beag, ele vai ficar enorme.
— Não tem problema.
— Por que não escolhe um igual ao Corso? — Apontei para o
monstro de Amira, ele estava ao redor da ninhada, parecendo
desesperado com a imensa bagunça. — Aqueles ali são da mesma
raça.
— Eu sei, mas eu gostei desse. — Por incrível que pareça, o
sorriso de Jenny aumentou, ela se aproximou mais um pouco de
mim. — Ele pode ser meu?
— Beag... — Respirei fundo. — Este filhote é macho, ele vai
ficar maior que a fêmea. Agora mesmo — testei o peso dele no
braço — ele está com mais de quinze quilos e só tem dois meses.
Quando chegar na fase adulta estará em torno dos sessenta. Ele vai
ser mais pesado que você.
— Você também é mais pesado que eu. — Suas bochechas
coraram, ela desviou o olhar para o filhote em meus braços. — E
você não reclama.
— Está me comparando a um cachorro? — Tentei ficar sério,
mas ela parecia enrolada com suas próprias palavras, e isso a
deixava muito linda. — Jenny, você recusou meu pedido de
casamento, agora me compara a um cachorro. O que eu fiz de
errado para ser desprezado assim?
Deixei que notasse a minha não tão falsa tristeza. Nunca
mais voltamos a falar sobre casamento, temia receber outro não.
— Você não fez nada de errado. — Ela se aproximou,
pegando nas orelhas do filhote. — Ele é lindo. Eu acho que estou
apaixonada. — Para provar um ponto, o kangal começou a ganir e
tentar lambê-la. — Ah, eu sei, você também me quer.
— Claro que eu quero. — Inclinei-me para ela. — O que eu
ganharia se te deixasse ficar com ele? Estou pronto para uma
negociação.
— Depende, o que você quer?
— Não sei. — Não pude disfarçar o sorriso cafajeste, ela
sabia o que eu queria.
Mas, óbvio, a iniciativa teria que partir dela, do seu desejo e
vontade. Eu poderia esperar até que me quisesse, como eu a
queria.
O principal era que curasse qualquer fissura que tenha ficado
em sua autoconfiança e tempo necessário para que aquilo
acontecesse, não importava o tempo.
Em nossa história, o tempo sempre foi relativo, não teve
muita influência mesmo.
— Eu não sei de nada. — Sua respiração mudou o ritmo. —
Gabriel, não me olhe assim, as pessoas vão perceber — murmurou,
olhando para onde estavam meu irmão, Amira, Boris e seus filhos.
— Perceber que eu sou louco por você? Isso todos já sabem,
eu não escondo de ninguém.
— Gabriel!
— Eu gosto dessa timidez. — Inclinei para ela. — Vamos
fazer algo a respeito disso?
Jenny soltou uma risadinha puramente feminina, o rubor foi
tomando conta de seu rosto.
— Tudo bem, deixarei que esse tipo de conversa ocorra
quando estivermos em nosso quarto. — Ela concordou quase que
com desespero. Mas não estávamos tendo aquele tipo de conversa,
eu seguia como um pretendente bem-comportado. — Voltando ao
assunto, você sabe que esse saco de pulgas vai dar trabalho, não
é?
— Grandalhão. — Quando ela me chamava assim, eu sentia
o pau ficar duro. Era um tesão do caralho. — Ele é um filhotinho,
não tem pulgas. — Ela tentou pegar o cachorro de mim. — Ele vai
ser meu companheiro.
— Seu companheiro sou eu.
— Eu sei. — Ela estava tão linda, e aceitando quando eu
dizia coisas do tipo.
Jenny não recuava mais quando eu deixava claro que
ficaríamos juntos.
A morte de John e o contato com sua mãe fizeram as
engrenagens funcionarem. Era nítido para todos que havia uma
Jenny antes e uma após os acontecimentos.
Foi como um divisor nas etapas de sua vida. Ver a mudança
nítida na minha mulher deixava feliz, ainda que, às vezes, eu
desejasse ter a chance de torturar o bastardo outra vez, achava que
poderia fazê-lo sofrer um pouco mais.
— Eu me apaixonei, Gabriel. — Jenny fez carinho nas
orelhas dele.
— Você se apaixonou por um cachorro, mas não por mim?
Jenny, o que tenho feito de errado? — Deixei que minha expressão
aparentasse certa tristeza, era uma manipulação, eu sabia, mas não
estava acima disso para que ela dissesse o que eu desejava ouvir.
Havia se tornado uma nova obsessão.
Jenny ainda segurava algo de si mesma, e eu queria tudo,
por isso esperava com tanto desespero.
— Quem disse que não me apaixonei por você? — Ela jogou
na minha cara, pegando-me de surpresa. — Um quinto de segundo,
eu saltei e foi sem paraquedas, agora, não mude de assunto,
estávamos falando desse mocinho aqui.
— Então você admite? — O prazer desenrolou sobre meu
corpo com se eu houvesse acabado de gozar. — Fale para mim
ouvir.
— Falar o quê? — provocou, com os cílios longos
sombreando seus olhos.
Puta merda, como é linda! Balancei a cabeça, apaixonado
por cada aspecto daquela mulher. Era foda como seus olhos eram
incríveis brilhando com felicidade, leveza.
Sem muito esforço, ela havia conseguido tocar meu coração,
aliviando todas as dores da minha alma, enquanto ia curando as
feridas mais antigas e dolorosas.
— Jenny, fale que me ama. — Estreitei os olhos. — Fale de
uma vez, se sentirá melhor depois.
— Você não quer esperar mais alguns meses? — Seu sorriso
aumentou, estava se divertindo, e eu adorava aquele lado dela. —
Só para dizer que tivemos um relacionamento normal, que foi
desenvolvido com fases de contentamento, discussões e etc.
— Inferno de relacionamento normal. Aí está o seu
relacionamento normal. — Apontei para a sua barriga.
Estava linda bem redondinha. Mal podia esperar para tê-la
nua e poder admirar as mudanças incríveis que estavam
acontecendo.
Jenny olhou para mim de uma maneira tão linda que eu quis
roubá-la de novo, só que daquela casa.
Talvez, um tempo na ilha da família pudesse convencê-la a
dizer sim ao meu pedido de casamento. Queria torná-la minha
mulher antes das crianças nascerem.
Jenny Demonidhes... Parecia perfeito para mim.
— Eu te odeio, Gabriel. — Ela colocou a mão na boca, rindo
baixinho. — Eu te odeio muito.
Por um momento, a confusão pegou-me desprevenido, mas
então ela parecia muito feliz, sorridente e aberta que acabei
compreendendo seu jeito de dizer o que eu queria ouvir.
Havia possibilidade de ela não estar lá ainda, claro que sim,
mas porra eu estava demais, até o talo. O que me impedia de ir
avançando nas questões como um trem de carga era porque eu
ainda a considerava frágil devido, os traumas.
Não podia assustá-la agindo precipitadamente. Mesmo que
eu fosse um bastardo que não se importava com as consequências.
— Então você me odeia. — Entrei na brincadeira, inclinando-
me em sua direção. — O quanto você me odeia?
— Muito.
— Muito quanto? Em números.
— Toda fortuna da sua família multiplicado pelo dobro. —
Suas bochechas coraram. — Provavelmente mais.
— Hum, isso é muita coisa. — Ela não fazia ideia do quanto.
— Mas eu acho que te odeio alguns milhões a mais. — Antes que
eu pudesse dizer mais alguma palavra, ela me beijou. Foi rápido,
mas o suficiente para me atordoar.
— Quero esse filhote — murmurou, enlaçando meu pescoço.
— Eu já tenho um nome para ele.
— Qual? — pigarreei, estava com o pau duro, pulsando pra
caralho, só de tê-la pressionando o corpo no meu.
— Bob.
Podia parecer idiotice, mas aquela pequena normalidade em
meio à vida caótica estava se tornando uma nova obsessão. Quem
diria que eu estaria discutindo o nome de um cachorro com a mãe
dos meus filhos e futura esposa?
O Gabriel de meses atrás riria da minha cara, com certeza.
— Bob combina com ele. — Ela olhou para o filhote orelhudo.
— Vem aqui, bebezinho.
— Ele não vai se chamar Bob, eu te proíbo de cometer uma
atrocidade dessas. — Jenny jogou a cabeça para trás, gargalhando.
Por um breve instante, eu não pude me concentrar em outra coisa
que não o som de sua risada de felicidade.
Eu não esperava que esse seu lado doce, divertido e
amoroso fosse tão incrível, tampouco que pudesse conhecê-lo tão
rápido.
— Bob é perfeito — provocou-me.
— Ele vai virar chacota no meio dos irmãos. — Balancei a
cabeça. — Sua preferência por nomes é duvidosa o suficiente para
me preocupar. Tenha em mente que, com certeza, irei avaliar a sua
lista para os nossos filhos, não quero correr o risco.
Outra vez o som de sua risada me acariciou. Era como se
fosse o toque de sua língua em minha pele, causava frisson,
arrepiava. Nenhuma mulher foi capaz de me fazer reagir de um jeito
tão visceral apenas respirando.
Eu estava completamente tomado e foda-se, eu não me
importava.
— Vamos discutir a lista depois. — Piscou um olho. — Agora,
entregue-me Bob.
— Escolha outro nome para ele.
— Então eu posso ficar? — Concordei, e ela me abraçou,
fazendo o filhote surtar nos meus braços. — Kang, eu acho que
combina mais.
— Sim, combina. — Acenei, admirando o filhote grande
demais para a idade. — Ele irá viver conosco, não ficará no canil.
Coloquei o filhote no chão, ele correu para o meio da
ninhada, era o maior até de sua própria raça. Seria um monstrinho
no futuro.
— Eles vieram em pares, a fêmea está ali, coitadinha, será
que não é ruim separá-los?
— Jenny. — Enlacei sua cintura, puxando-a para mim. —
Acabou de conseguir um filhote, deixe-me acostumar com ele antes
de querer outro.
— Tudo bem, mas ficará em aberto? — Acho que ela tinha
descoberto um jeito de conseguir tudo.
Bastava me encarar com esses olhos grandes e expressivos,
para que minha ruína fosse decretada.
Era um tanto absurdo que eu pudesse esquecer ao redor
quando estava com ela. O som de tantos cachorros latindo, o fato
de estarem tentando morder as minhas pernas deveria incomodar,
mas eu não estava nem aí.
Eu só tinha olhos para Jenny, e para o quanto ela estava
linda naquela tarde.
— O que foi? — murmurou, com os olhos presos aos meus.
— Tudo bem, Gabriel?
— Tudo. — Sorri, tirando o seu cabelo de seu rosto, uma
ideia surgindo. — E sobre aquele espírito aventureiro?
— Eu disse, morreu no parto.
— Você não precisa mais ficar em casa. Pensei em darmos
um passeio de moto pela cidade.
Vi o desejo e a curiosidade guerreando, mas Jenny não
suportava sair de casa. Ela explorava os jardins, a sala de jogos. Ela
e Amira passeavam pela casa, iam para o cinema ou biblioteca.
Mas ela não queria sair.
— Eu amo estar em casa — suspirou. — Eu sinto que aqui
nada pode nos machucar.
— Beag, não precisa temer. — Acariciei sua bochecha,
roubando-lhe um beijo rápido.
— Eu sei, mas o fato de eu poder sair quando quiser,
aumenta a minha vontade de ficar. Aqui tem tudo que eu poderia
querer. — Seu peito expandiu quando respirou fundo. — Hoje, eu e
Amira vamos para o cinema.
— Eu estou convidado?
— Claro, se quiser assistir a um romance açucarado.
Não pude evitar o nojo indisfarçado. Filmes de romance
estavam numa categoria acima no quesito insuportável, mas por ela
eu poderia fazer um esforço.
— Então, é por isso. — Jenny tinha um ponto.
— Se você me convidar com jeitinho, eu posso pensar. —
Pisquei um olho. — E esse poderia ser um encontro.
— Um encontro normal? — Percebi o flagrante desejo em
sua voz.
Depois de tudo, Jenny merecia o mínimo de um
relacionamento, ou, pelo menos, que eu tentasse dar-lhe isso.
— Sim, eu te pego as sete. — Olhei o relógio. — Faltam três
horas.
— Gabriel, você está falando sério?
— Por que eu não estaria? — Inclinei-me sobre ela, com os
lábios pairando acima dos seus. — Vou levar a minha namorada
para o cinema, acho que não tem coisa mais normal que isso,
certo?
— Eu acho que não.
Percebi a emoção latente em sua voz, nos olhos brilhando
mais do que o normal. Jenny possuía uma alma sensível, ela
gostava de coisas que afloravam aquele lado.
Eu me encarregaria de dar-lhe isso.
— Gabriel, você tem um minuto? — Rafael se aproximou, de
mãos dadas com Amira.
— Claro, o que houve? — Pelo modo como ele me olhava, eu
sabia que havia problemas a caminho.
— Razhiel e Heylel estarão chegando em breve. — Franzi o
cenho, não sabia que seria hoje. — Precisamos encontrá-los,
Lysander está a caminho.
Uma reunião com todos? Rafael deve ter percebido a
pergunta, pois acenou, como se isso explicasse tudo.
E explicava.
Nós estávamos com problemas, e ele não queria dizer na
frente de Jenny e Amira.
— Amira e Jenny têm cinema mais tarde. Enquanto elas
estão ocupadas com isso, iremos receber nossos irmãos. — Rafael
espalmou a mão na barriga de sua mulher.
Em pouco mais de dois meses, nós teríamos um bebê para
cuidar. Sendo bem sincero, não fazia ideia de como faríamos aquilo,
mas teria que aprender rápido, pois os meus também não tardariam.
Nós teríamos quatro meses para aprender com o primogênito de
Rafael.
Era surreal que, ainda naquele ano, teríamos três crianças
Demonidhes.
Deus...
— Consegue sentir, Rafael? Nosso bebê está chutando. —
Amira sorriu, levando a mão do meu irmão para onde o pequeno
monstrinho a cutucava.
— Ele sabe que sou eu. — Havia orgulho na voz do bastardo.
A expressão de Rafael era concentrada, e por mais que
sempre fosse tão sério, ali, o grande e poderoso Senhor da Ordem,
demonstrava a emoção que o momento lhe trazia.
— Pode ser ela, você sabe — provoquei, recebendo um olhar
afiado do meu irmão.
— E se for? — Rafael esticou-se em seus um metro e
noventa e oito. — E se for uma menina? Foda-se, eu a quero de
todo jeito.
— Não importa o que seja, mas, se o trabalho na Ordem não
te causou um enfarto, com certeza ser pai de menina o fará.
— Pense nisso também, grande bastardo. — Ele estreitou os
olhos. — Pense em tudo que já fez, e só imagine que com você a
possibilidade de acontecer será em dobro.
Eu deveria me preocupar, porque não havia Demonidhes
mais filho da puta que eu, entretanto eu estava mesmo era ansioso
para ter os meus bebês nos braços. Pouco me importava se fossem
duas menininhas de cabelos e olhos castanhos.
— Não importa, eu tenho um arsenal. — Dei de ombros. —
Eu vou cuidar das minhas garotas, ainda que eu acredite que eu
terei dois meninos.
— Ruivos — Jenny completou. — Com olhos verdes.
Ela parecia tão sonhadora, tão linda, e, porra, toda minha!
— Beag, ruivos como eu são chamados de muitas coisas.
Consegue imaginar algo? — O tom avermelhado de sua pele
aumentou.
— Deus grego? — Um sorriso sacana se desenhou em
minha boca, mas não pude evitar continuar eu mesmo irritando-a.
— Ferrugem, bola de basquete, uniforme da Holanda e por aí
vai.
— Por causa de todo o bullying que Gabriel sofria, Lysander
quebrou as pernas de um jogador de futebol na faculdade. — As
palavras de Rafael me trouxeram lembranças de uma época
divertida.
Eu tinha ódio do mundo e um pai que sabia como controlar o
meu temperamento tendencioso.
— Lysander é sempre muito radical. — Jenny soltou uma
risada nervosa, ela evitava meu irmão, mesmo que precisássemos
encontrá-lo para as suas avaliações de rotina.
Meu irmão estava estudando a cardiopatia de Jenny, eu o vi
dormindo em cima dos livros dias atrás. Ele não queria surpresas.
Inclusive, já havia comprado o aparelho responsável por avaliar os
corações dos gêmeos.
— Eu tive problemas na escola por causa do meu tamanho,
sempre fui a menor da turma. — Jenny balançou a cabeça. — Era
péssimo.
— Eu também, e isso nem era o pior, o fato de eu estar na
faculdade com dez anos me tornava ainda mais estranha. — Amira
endossou, fazendo uma careta e alisando as costelas. — Eu acho
que, às vezes, ele chuta onde não deveria.
— Espera, você disse faculdade com dez anos?! — Jenny
quase gritou, eu tive vontade de rir, porque a minha reação quando
soube da capacidade de Amira foi parecida.
— Eu consegui ser PhD aos quatorze.
— Amira é doida — brinquei. — Ela precisou desenvolver
uma teoria para poder justificar o fato de amar Rafael. Ela é doida
de pedra.
— O que eu te disse? — Antes que eu pudesse defender,
Rafael esmurrou a minha cara.
Só não caí porque já esperava, era uma delícia provocá-lo.
— Meu Deus! — Jenny ofegou entrando na minha frente. —
Não vou deixar que faça isso outra vez, Rafael. — Ela abriu os
braços, sendo meu pequeno escudo humano. — Amira, por favor,
perdoe o que Gabriel disse, não foi por querer, você é incrível, linda
e inteligente.
Cuspindo sangue do lábio partido, não pude disfarçar o
sorriso enorme que rasgou meu rosto. Era apenas um absurdo que
Jenny pensasse em me defender, e o fato de ela me colocar
naquele lugar de proteção aquecia o meu peito.
Fazia eu me sentir importante, como se eu fosse a pessoa
dela. Até conhecê-la, eu achava aquele tipo de coisa ridículo o
suficiente para ser chacota, mas agora não.
Toda autodefesa que criei para justificar que não ia me
envolver caiu por terra no minuto que eu tive um motivo para roubá-
la para mim.
— Jenny, eles brigam por qualquer motivo. — Amira abanou
a mão. — Eu te disse, não se importe. Quando for sério, eles não
irão fazer isso na nossa frente.
— Mas não faz sentido. — Ela olhou para mim, a
preocupação nítida ao ver minha boca machucada. — Vamos
colocar gelo, sempre alivia a dor.
Sim, ela sabia disso por experiência própria. Respirei fundo,
recorrendo a distração para não permitir que ela enxergasse a raiva
que ainda fervia dentro de mim. John estava morto, mas já havia
perdido as contas de quantas vezes quis matá-lo outra vez.
— Isso é só para manter o ritmo, Beag. — Puxei-a pela
cintura, ela veio para mim, encaixando-se nos meus braços. —
Gostamos de brigar.
— Isso é tão estranho. — Franziu o cenho, com os olhos em
minha boca. — Está sangrando. Vamos entrar? Eu quero cuidar
disso.
— Está tudo bem. — Me aproximei, esfregando o nariz no
seu. — Eu tenho que ir encontrar os outros. Assim que voltar, a
gente vai assistir o filme romântico açucarado.
— Eu te espero. — Ela ficou na ponta dos pés, beijando-me
com tanta gentileza que, por um momento, eu me esqueci de que
não estávamos sozinhos.
Foi ela quem se afastou primeiro, e ali, em seus olhos, eu
pude ver algo que, talvez, ela nem soubesse ainda.
Havia muito sentimento, e estava ali, exposto para quem
quisesse ver. Seu coração machucado estava abrindo-se para mim,
aceitando-me para ser seu protetor, aquele que cuidaria de suas
feridas e ajudaria a curar.
Depois de toda verdade ter sido revelada, não havia medo.
Ela estava se despindo para mim, e, por Deus, a garota que
desabrochava era tão linda que me atordoava.
— Jenny. — Segurei seu rosto, percebendo que meu irmão
havia se retirado para nos dar privacidade. — Te quero tanto. — Ela
fechou os olhos, aceitando meu beijo.
O gosto de sangue mesclou-se em nossas bocas, mas, ao
invés de se afastar, ela agarrou-se a mim, gemendo aceitando
compartilhar o beijo de sangue e todas as partes. Podia sentir todo
meu corpo arrepiando-se de prazer com o mero toque de sua língua
na minha.
Sua inexperiência era meu ponto sem volta, a timidez com
que explorava, buscando equilibrar as minhas demandas mexia com
a minha sanidade ao ponto de eu esquecer a porra do mundo e só
pensar nela, em sua boca gostosa, nos sons de seus gemidos
suaves.
— Você será a minha morte. — Precisei me afastar, ou não
conseguiria sair de perto dela. — Uma morte deliciosamente doce.
Ela sorriu, enquanto balançava a cabeça negativamente.
Jenny pegou a minha mão, afagou meu braço cheio de cicatrizes de
queimadura.
Parecia ter predileção por ele.
— Quando estiver no trabalho... — ela colocou minha mão
em seu rosto, fechando os olhos e suspirou — e tudo parecer ruim,
pensa no quanto você é importante para mim, e que muitos
corações batem por você.
Eu não sabia que precisava ser amado por ela, até eu sentir
que era.
— Is breá liom tú[15], Jenny Grenadine — murmurei. —
Quantos dias precisou para você se tornar numa necessidade,
hum?
Ela continuava sorrindo.
— O tempo não pode medir o que temos — disse baixinho.
— Apenas eu e você somos capazes de compreender. Nesse
sentido, para tudo o que importa, nós tivemos tempo suficiente.
— Nós tivemos.
Meus irmãos diriam que eu estava avançando nas questões
rápido demais. Bom, eu estava em torno de Jenny por muito tempo,
era apenas sorte minha que ela pudesse me aceitar tão rápido.
— Sabe, Gabriel, eu estava errada.
— Sobre o quê? — Seu sorriso aumentou, então foi a vez
dela acariciar meu rosto.
— Eu pensava que garotas como eu não podiam sonhar com
finais felizes, mas eu estava errada. Graças a você, eu posso
sonhar...
— Beag, não dê tanto valor a um bastardo louco como eu. —
Fiz careta, em partes eu gostava que ela me colocasse num lugar
acima, mas a realidade era que eu não passava de um filho da puta
egoísta.
Não merecia ser objeto de adoração, mesmo que eu
secretamente ansiasse por aquilo.
— Me abraça. — Eu fiz, e ela me apertou. — Obrigada,
Gabriel.
Não disse nada, pois nenhuma palavra poderia traduzir o que
eu estava sentindo.
Jenny achava que a sorte era dela, grande engano, o único
sortudo ali era eu.
46
Gabriel Demonidhes

Ao longo de todos os anos convivendo com meus irmãos,


poucas vezes eu havia me deparado com Heylel agitado, e isso era
suficiente para eu saber que alguma coisa estava o incomodando.
Não era nem um pouco comum que meu irmão caçula
andasse de um lado para o outro desde que havia desembarcado,
sua agitação era flagrante e ele não estava fazendo absolutamente
nada para disfarçar. Aquele seria o primeiro ponto, o segundo era
que Razhiel aparentava uma exaustão tão profunda que mal se
aguentava de pé.
Ele também não parava de estalar os dedos, ou mexer nos
óculos.
Aquele era um dos poucos sinais que ele dava quando
estava sob muito estresse e baseando-me no que vinha
acontecendo conosco nos últimos dois anos, as notícias do Oriente
Médio não eram nada boas.
— O que diabos está acontecendo com vocês? — Depois de
todo silêncio e observação, fui o primeiro a questionar, não tinha
paciência para o concurso de paciência. — O que descobriram?
Heylel me encarou e eu recebi todo o impacto de seus olhos
bicolores. Meu irmão parecia estar acordado há dias.
— Dois laboratórios de pesquisa foram invadidos. — Razhiel
tirou os óculos, esfregando a ponta do nariz. — Cinco células de
polônio foram roubadas.
— Polônio? — Lysander cruzou os braços pensativo. —
Interessante.
Eu pude entender o motivo da agitação dos meus irmãos,
porque a minha preocupação foi instantânea. Nada resultava em
algo bom, quando material radioativo sumia do mapa daquela forma.
Muitas possibilidades se abriam, e todas eram péssimas.
Antes que pudéssemos fazer o controle de danos, um desastre de
proporções épicas já poderia estar em andamento.
Polônio era um material complicado, por isso todas as
estações de uso eram catalogadas, para evitar problemas.
— A Biontech usa polônio no desenvolvimento da droga que
promete aumentar a sobrevida de pacientes graves. — Rafael
franziu o cenho. — Os últimos relatórios que recebi apontaram
avanços na pesquisa da droga.
— A extração de polônio é muito difícil. Poucos laboratórios
conseguem fazê-lo, por isso meu interesse na Biontech. — Lysander
estreitou os olhos. — Faz sentido o roubo, mas cinco células de
polônio não são suficientes nem para começar a desenvolver uma
pesquisa.
— A não ser que ele seja um dos ingredientes, não a base —
sugeri, para mim tinha coerência.
— Cinco células é um pouco demais, se formos falar em
níveis de contaminação em caso de desastre, na forma bruta, ele
não iria causar tantos danos. O problema mesmo é a motivação por
trás do roubo. — Razhiel balançou a cabeça. — Averiguamos sinais
e que houve atividades das Forças das Nações nas proximidades
dos laboratórios.
— Forças das Nações. — Rafael estreitou os olhos. — Temos
conhecimento de que alguns generais estão trabalhando com
terroristas.
— Homens do exército de Ahm-Shëer estão controlando o
tráfico de armas no continente africano. Os satélites da Ordem
mostraram forte atividade no rio Benue. — Razhiel mostrou a tela de
seu computador. — Os roubos das células têm ligação com esses
homens.
Eu estava prestando atenção em tudo, mas principalmente
em Heylel, ele era quem mais me preocupava.
Por qual razão meu irmão estava tão agitado? O que ele não
estava nos contando?
— Heylel, você está bem? — Rafael se aproximou, colocando
a mão em seu ombro e o impedindo de continuar andando de um
lado para o outro. — Irmão, o que houve?
Como se percebesse apenas naquele momento seu estado
de agitação, meu irmão mudou quase que num piscar de olhos. Sua
expressão se tornou um quadro em branco, ele recostou-se na
parede, cruzando os braços e relaxando.
Bastardo, havia acabado de fechar-se outra vez. Ele levantou
seus escudos, deixando-nos de fora.
— Pensemos. — Sua voz pareceu-me entediada, eu sabia
que ele estava projetando-a assim de propósito. — Há uma relação
entre generais das Forças da Nações com o exército narcoterrorista.
As células de polônio foram roubadas e os rastros levam até Sharif
Al-Halah, líder da porra dos Ahm-Shëer.
— Temos aqui um problema. — Lysander apoiou a mão na
mesa. — As Forças das Nações é uma base de proteção, não
deveriam ter generais trabalhando com terroristas. Os generais com
maiores números de equipes são americanos, há possibilidade de
estarem tentando desenvolver uma arma química?
— Não precisariam do polônio se esse fosse o intuito. —
Heylel se aproximou da mesa, ele pegou seu próprio computador,
logo virou a tela para nós. Ele havia aberto a tabela periódica,
estava mostrando a cadeia de átomos de polônio. — Ele é um
metaloide capaz de destruir o DNA; mas se ele for bem isolado e os
átomos repartidos e recondicionados, agiria como um propulsor. Daí
o motivo de ser tão importante para a droga desenvolvida pela
Biontech. — Heylel manteve os olhos na tela, ele havia colocado
uma estrutura de DNA para rodar, e a inferência do polônio nela.
A imagem mostrava toda a estrutura quebrando e se
tornando falha, era como se as partículas de polônio fosse uma bola
de boliche e o DNA os pinos; depois a imagem avançou, mostrando
um DNA normal, e novas partículas agindo, só que, ao invés de
quebrar a estrutura, ela causava uma blindagem.
— A partir daí, as células são fortalecidas, por um curto prazo
de tempo.
— O tempo necessário para o corpo se tornar uma máquina
de recuperação. — Lysander estreitou os olhos, avaliando a cadeia
de DNA. — Mas esse tipo de droga leva tempo demais para estar
nessa categoria, a Biontech estima trinta anos.
— Eu não encontrei nenhuma outra indústria que estude a
mesma linha da Biontech — Razhiel ponderou. — Não pude
avançar depois disso, não há nada para onde olhar.
— As células foram somente roubadas, há alguma coisa a
mais? — Rafael não prestava atenção na conversa, eu sabia que
ele estava fazendo seu negócio de avaliação e método.
— Foram leiloadas. — Heylel digitou novas informações no
computador. — De acordo com Sharif, o leilão ocorreu mês
passado, compradores anônimos, pagamento em ouro.
— Quem roubou as células tem outro objetivo.
— Polônio não é como outros materiais radioativos, ele não
penetra a pele, para acontecer a contaminação precisa ser ingerido
ou inalado. — Lysander adicionou mais uma peça naquele quebra-
cabeça.
— Segundo Sharif, as células estavam em forma sólida —
Razhiel proferiu.
Precisávamos ir excluindo as opções, baseando-nos nos
fatos acerca do material, mas ainda estávamos no escuro,
trabalhando com pouco.
— Em forma sólida, transportá-lo não é difícil. O problema
gira em torno da extração. Quem o roubou, sabia que encontraria o
material refinado. — Lysander gostava de imaginar que estávamos
às portas de um conflito, o bastardo era atraído para aquilo como
imã.
— O que me deixa mais tranquilo é que células roubadas não
são suficientes para desenvolver algo grande. — Razhiel tirou os
óculos outra vez, e esfregou os olhos.
Meu irmão era a imagem da exaustão, estava claro que seu
controle pendia por um fio. Heylel também, por mais que ele sempre
se mantivesse à margem, deixando parecer que nada fosse capaz
de afetá-lo, eu conseguia perceber que aquilo estava mexendo com
ele.
Era desconfortável ver meu irmão mais controlado
demonstrando tanto estresse, talvez porque a minha loucura
encontrasse equilibro em sua calma. Naquele momento, e, pela
primeira vez, eu era o mais tranquilo.
— Vamos por partes. — Ergui a mão. — Heylel, onde estão
localizados os laboratórios roubados?
— China e Rússia. — Meu irmão apontou a tela do
computador. — Tentei rastrear os membros da Ahm-Shëer que
estavam envolvidos, segundo a delação de Sharif, mas todos que
fizeram parte do esquema estão mortos.
— Queima de arquivo — ponderei, a princípio era o que
parecia.
— Não, eles aceitam missões suicidas, para que não haja
conexões com seus clientes. — Razhiel não escondeu o tom
preocupado. — A partir do celular de Firebird, eu e Chronus
pudemos rastrear algumas negociações de Sharif, a Cöntrax queria
o exército de Ahm-Shëer, mas, com a morte de Firebird, não
avançaram.
Alguma coisa me dizia que não poderíamos nos deter apenas
naquelas informações, havia algo mais correndo paralelamente a
tudo que já sabíamos.
— Por qual razão o roubo das células de polônio chamou a
atenção de vocês? — Rafael questionou, eu sabia que ele estava
tentando capturar pequenos detalhes, e ele era muito bom naquilo.
Era a porra de seu diferencial, não importava o quê, mas
Rafael Demonidhes nunca deixava de ser Hunter.
— Qualquer material radioativo roubado chamaria a minha
atenção. — Heylel deu de ombros. — Ainda mais quando quem o
roubou estava negociando com a Cöntrax.
— Os Ahm-Shëer atuam em muitas frentes, eles fazem o que
são pagos para fazer. — Lysander acendeu um cigarro, o observei
erguer a cabeça, dando uma boa tragada. — Ou a Cöntrax pode ter
feito um contrato à parte para roubar as células. — Ele soltou a
fumaça, olhando para nós.
— Não encontrei nenhuma conexão. — Razhiel foi até seu
computador, digitando rapidamente. — As células foram vendidas
em leilões, a conexão se perde aí. Não há para onde olhar, mas, por
ventura, a Cöntrax possuir as células, o que poderiam estar
planejando?
A resposta pareceu óbvia para mim.
— Uma bomba de fragmentação. — Eu me aproximei. — Se
você diz que o polônio precisa ser ingerido ou inalado para
contaminação, então, uma bomba contendo as células seria
suficiente. — Peguei o computador, acessando meu sistema.
Quando o fiz, abri uma projeção em escala de contaminação,
baseando-me no transporte das partículas pelo ar. — Aqui, a célula
poderia ser anexada e espalhada na explosão. Micropartículas de
polônio, leves o suficiente parta ser transportada pelo ar. Uma
explosão na Times Square. — Mostrei aos meus irmãos a região
toda vermelha num raio de cinco quarteirões. — E esse seria o raio
de contaminação em apenas um minuto.
— Se esse fosse o intuito, eles teriam que estar com a
bomba pronta para ser detonada. — Heylel se aproximou, olhando o
raio de alcance de dano. — A sobrevida do polônio é curta e a
produção mundial gira em torno de mais ou menos cem gramas.
Cada célula que foi roubada possui apenas um micrograma, eles
não a querem para uma bomba, o risco de perder a funcionalidade
ainda é alto demais.
— Eu construo uma bomba de fragmentação em um dia, se
for pelo tempo, então...
— Nos documentos que rastreamos, as células foram
roubadas cerca de quatro meses atrás, na época elas possuíam
alguns dias de extração. Isso significa que resta pouco mais de uma
semana de funcionalidade. — Razhiel balançou a cabeça. —
Caralho, o que estamos deixando passar?
— A célula poderia ser transformada em gás. — A voz de
Lysander pareceu saída um pesadelo. — Pode ser isso.
— Uma arma química, então. — Rafael se endireitou, era a
segunda vez que voltávamos àquele ponto.
Arma química, com alto poder de destruição nas mãos de
terroristas.
Agora eles tinham toda a nossa atenção.
— Um micrograma de polônio solto no ar pode matar uma
pessoa a oitenta quilômetros, com uma grama, o contágio seria de
cerca de vinte milhões de pessoas, pelo menos cinquenta por cento
morreria. — Heylel olhou para Lysander, então um pequeno e
estranho sorriso se desenhou em sua boca. — Mas quem a possui,
não tem essa quantidade.
— Eu devo acreditar que estamos com sorte? — Rafael
cruzou os braços. — Uma célula seria suficiente para matar a todos
nós.
— Se fosse a Cöntrax quem a possuísse sim. — Heylel deu
de ombros. — Em breve saberemos.
O humor estranho do meu irmão estava bem fora da
realidade. Heylel nunca era do tipo mórbido, pelo menos não
conosco. Sua esquisitice era sempre voltada a si mesmo à maneira
como levava sua vida desde que nosso pai morreu.
Ele não temia a morte, fora o primeiro de nós a dar as mãos
com algo que era a realidade de cada Demonidhes vivo.
— Então o que devemos esperar? Um ataque? — Eu apoiei
as mãos na mesa, inclinando-me para a frente. — Em outros
tempos eu mandaria tudo à merda, mas agora não. Eu vou checar o
sistema antiaéreo, qualquer porra que venha em nossa direção será
neutralizada.
Eu seria maldito se ficasse esperando um ataque de
proporções tão alarmantes, sem fazer nada.
— Você acha que uma bomba contendo polônio entraria na
América sem que eu soubesse? — Pela primeira vez, Rafael sorriu
e não foi algo agradável. Era um sorriso predador, mais um
relampejar dos dentes do que outra coisa. — Por acaso estão se
esquecendo de quem eu sou? Uma bomba aqui, não afetaria
apenas a nós, acham que o submundo não iria se movimentar para
proteger seus interesses? Ninguém vai se sacrificar apenas para
que o poder mude de mãos.
— Sendo lógico, se fossem usar uma arma química contra
nós, já o teriam feito. — Razhiel pareceu-me quase convencido. —
A Cöntrax não iria perder a chance.
— Eu não perderia. — Lysander olhou o relógio. — Tenho
uma cirurgia em uma hora, preciso ir.
— Vou checar os sistemas de defesa da propriedade. —
Heylel endireitou-se, então, sem mais uma palavra, ele pegou sua
bolsa, computador, indo embora com Lysander.
No momento, nos restava apenas esperar, até porque não
havia tempo hábil para encontrar as células, sabendo que apenas
uma seria suficiente para causar danos irreversíveis.
Ainda que a direção não apontasse para a Cöntrax, jamais
deixaríamos de cogitá-los em qualquer ato que fosse minimamente
terrorista.
Células de polônio, armas químicas e qualquer porra do tipo
era a cara dos bastardos.
— Quando descobrimos a existência da Cöntrax, algumas
peças encaixaram — Rafael ponderou, eu sabia que ele não ia se
contentar com o mais fácil, afinal ele era o Senhor da Ordem, o
caçador mestre, era sua responsabilidade enxergar o que não
conseguiríamos.
Apenas Heylel possuía uma habilidade como a sua, e, por
mais que meu irmão mais novo fosse peculiar, ele era um ser
humano, também precisava descansar. Pelo menos em algum
momento.
Acho que ele estava naquele ponto.
— Eles não querem simplesmente acabar conosco. —
Razhiel estreitou os olhos. — Por que atentados? Luke poderia ter
explodido sua cabeça, Rafael, nas milhares de oportunidades que
ele teve.
— Exatamente. — Meu irmão concordou. — Eles querem
uma tomada de poder à moda antiga, que justifique soberania e o
porquê de estarem ali. Pense, a Ordem é um organismo vivo, nós
morremos, outra linhagem se iniciaria. A Cöntrax seguiria
necessitando eliminar os líderes. Eles não conseguiriam o controle
pelo qual anseiam.
— Explodir nosso Complexo não aplacaria o desejo que
possuem. — Sentia que estávamos chegando a algum lugar. — Eles
querem a Ordem, e a forma de conseguir isso é nos tornando
reféns.
— Isso é impossível... — Razhiel soltou uma risada incrédula.
— A única maneira de controlar a Ordem seria nos controlando.
— Bingo! — Rafael estalou o pescoço, sua postura mudando
radicalmente.
Quando nos olhou, eu pude ver aquele lado obscuro, a parte
feia que ele ocultava.
Rafael era uma besta, cruel, viciosa. E ele gostava quando
podia caçar com liberdade.
— Preparem-se, irmãos. — Ele olhou o celular. — Acho que o
alvo da Cöntrax está mudando.
Eu sabia do que ele estava falando, já vivi na pele estar
refém por causa de outra pessoa, e até aquele dia me culpava pela
morte da minha Cassidy.
Só de pensar na possibilidade da minha mulher estar sob a
mira dos meus inimigos, sentia que ficava um pouco mais louco.
— Nossas mulheres — Razhiel rosnou baixo, determinando o
que eu ou Rafael não tínhamos coragem de dizer. — Amira e Jenny
são nossos pontos fracos. Eles sabem.
— Se a Cöntrax possuísse a célula e pretendesse usar contra
nós já o teria feito. — A frieza de Rafael para analisar as coisas era
sempre fundamental, mas seus métodos para extrair informações,
eram sempre mais radicais e sangrentos. — Por que eliminar os
Demonidhes se poderiam controlar-nos? A ordem foi dada antes de
eu e Gabriel termos mulheres, mas, prestem atenção, estamos há
meses sem qualquer ataque. Isso soa comum para qualquer um de
vocês?
— Não — concordei.
— Exatamente, e eu não acredito que sejam tão
incompetentes, levando em consideração que são uma estrutura
organizada, com hierarquias. Imagine o que a Cöntrax não poderia
fazer se a Ordem se tornasse uma aliada.
— Rafael, fizemos um juramento — Razhiel elucidou, e era
verdade, naquela linha de raciocínio o caminho que estávamos
traçando era perigoso demais.
— Sim, nós fizemos e eu pretendo mantê-lo. — Ele acendeu
um cigarro e Rafael não fumava mais por causa da gravidez de
Amira, ele estar recorrendo ao seu antigo vicio, era complicado.
Sem uma palavra a mais, meu irmão se afastou, entretanto,
antes de entrar em seu carro, parou dizendo:
— Vou colocar Chronus nisso definitivamente, a partir de hoje
ele terá acesso ao nosso Complexo sempre e quando for preciso.
— As coisas vão esquentar. — Razhiel finalmente sorriu, e
ele e Chronus juntos poderiam causar estragos sem precedentes no
que dizia respeito a parte cibernética da coisa. — Eu estava
esperando por alguma diversão. — Ele guardou o computador,
jogando a mochila no ombro. — Tenho novidades sobre a
recuperação de dados da sua mulher. Eu consegui obter tudo de
volta, mas as contas estão zeradas.
Okay, aquela parte era bem fácil de resolver.
— Transfira vinte milhões para ela, da minha conta pessoal.
Faça parecer que estava lá, se ela questionar, diga que devem ser
investimentos.
— Essa é a parte tranquila, agora vem as notícias ruins... —
Razhiel me olhou de um jeito estranho.
Sempre havia. Balancei a cabeça, era assim que as
engrenagens funcionavam.
Partes iguais de coisas boas e ruins, o perfeito equilíbrio.
— Vamos, no caminho para casa você vai me contando, eu
estou atrasado para um encontro.
47
Jenny Monroe

A garota que me olhava de diante do espelho parecia outra.


Antigamente, havia algo ruim sombreando seus olhos e uma tristeza
que nunca ia embora.
— Isso não existe mais. — Sorri, sentindo o peito explodindo
de felicidade, ao ver que não havia marcas em meu corpo.
Era a última etapa que faltava para que o passado fosse
embora por completo. Ainda era difícil de acreditar que o medo que
habitava em mim havia morrido junto com John. Foi como se a
notícia houvesse extirpado todo o mal que ele causou, deixando-me
livre para me encontrar, para acreditar nas coisas boas, mas,
principalmente, para aceitar que eu merecia ser feliz.
Quando olhava para Gabriel, não conseguia encontrar
qualquer sentimento que não fosse apenas de adoração e
pertencimento.
Eu pensava apenas nele, no homem incrível e que me fazia
ter certeza de que havia encontrado meu lugar. Era ao seu lado,
com aquela família.
Até Lysander e sua raiva do mundo me deixavam confortável.
Eu sabia que podia confiar nos homens daquela família. Foi no dia a
dia que eu percebi que eles eram cruéis, mas apenas com quem
merecia.
Eu era um deles agora, porque acreditava piamente em cada
uma de suas motivações e convicções.
— Deus, obrigada por tudo isso. — Sorri, olhando para as
mudanças no meu corpo.
Meus seios estavam maiores, os mamilos escurecendo. Mal
suportava tocá-los por causa da sensibilidade. A minha barriga
estava linda, adorava olhar de lado para ver o contorno. Havia
desenvolvido o hábito de manter uma das mãos na parte de baixo
da barriga, era como se pudesse segurar meus gêmeos daquela
forma.
— Eu amo isso.
Todos os dias eu estava aprendendo a me amar. O fazia
desde que aceitei que não podia me culpar pela crueldade dos
outros.
Conviver com Gabriel estava me ensinando que somos
responsáveis por nossas ações, e que devemos arcar com cada
uma delas. De um jeito incrível ele me libertou, não só isso, ele
também me deu condições para que eu fosse eu mesma,
fortalecendo-me de dentro para fora.
Gabriel tinha um jeito todo especial de me tratar. Um de seus
hábitos, inconsciente, era enrolar uma mecha do meu cabelo nos
dedos e ficar acariciando, enquanto conversávamos.
Mas a melhor parte era que ele me olhava como se eu fosse
a pessoa mais importante do mundo para ele, e, sem perceber, tudo
que ele me fazia sentir foi me tornando consciente de todo valor que
eu possuía.
O conceito de que eu não era ninguém caiu por terra
definitivamente.
— O papai é o homem mais incrível do mundo. — Eu estava
tão feliz naquele momento, que não conseguia compreender a
vontade de chorar, mas, por culpa de Gabriel, eu aprendi que havia
lágrimas de felicidade também. — Eu sou tão feliz.
Eu nunca fui uma pessoa religiosa, mas o meu caminho e o
de Gabriel ter cruzado da maneira como aconteceu não poderia ser
apenas coincidência, alguém tinha que estar olhando para mim.
Eu sentia, no fundo do coração, que todos os sonhos de
liberdade que me mantiveram inteira eram promessas. Deus não ia
me permitir desejar algo com tanto ardor apenas para que eu jamais
alcançasse.
— Beag... — A voz rouca de Gabriel me fez estremecer. —
Eu te chamei e você não respon... deu. — Sua voz foi morrendo,
conforme seus olhos percorriam meu corpo. Eu estava apenas de
calcinha.
Era a primeira vez que ele me via daquele jeito em muito
tempo, e a fome em seus olhos não me passou despercebida, ele
me encarava de um jeito que me fazia sentir fraca.
— Porra... Jenny — rosnou baixinho, agitando o pequeno
buquê que havia trazido.
Ele estava lindo, vestindo aquela camisa verde que
combinava perfeitamente com a cor de seus cabelos e olhos. Por
um momento me esqueci de como respirar.
— Você está linda pra caralho. — Respirou fundo, engolindo
em seco. — Linda pra caralho, porra.
A mão que não segurava o pequeno buquê, estava abrindo e
fechando como se quisesse agarrar algo. Havia um brilho perverso
em seus olhos. Eu tinha certeza de que ele poderia me queimar
inteira se eu não tivesse cuidado.
Mas eu queria me queimar, sentia saudade de seu toque, de
como me fazia sentir. Desejava saber como seria agora que
tínhamos todo o tempo de mundo, que estávamos juntos, sem
ressalvas.
— Você não está pronta. — Respirou fundo, o olhar
descarado fazendo meu corpo pulsar. — Porra.
Eu sabia Gabriel queria ter certeza de que eu havia superado
tudo que aconteceu comigo, já havia deixado claro. O que ele não
sabia era que não estava disposta a permitir que o passado
continuasse em meu presente, John estava morto, e tudo que ele
me fez eu ia enterrar com muitas camadas de felicidade.
Ele não tinha mais poder sobre mim, e aquilo ali não era
sobre ele. Era sobre mim e o desejo absurdo de sentir Gabriel outra
vez.
Eu estava livre e a melhor maneira de mostrar a Gabriel que
eu estava pronta era demonstrando.
— Eu vou esperar por você no quarto. — Ele afastou-se
antes que eu pudesse lhe dizer como me sentia.
O fato de ele estar tão agitado era bom, deixava-me
confiante. Sentindo-me confortável sob minha pele e podendo
enxergar beleza em mim, peguei uma de suas camisas, vestindo-a
exatamente como da primeira vez.
Mas, diferente de outrora, não havia nada por trás da
oportunidade. Eu teria Gabriel hoje, amanhã e para sempre.
Ele era meu.
Todos os dias, suas atitudes e gestos amorosos reafirmavam.
— Deus. — O calor precipitava-se por meu rosto, sentia a
barriga leve e ao mesmo tempo pesada, as pernas estavam
bambas.
Da porta do closet, avistei Gabriel andando de um lado para o
outro. Estava agitado, ansioso como um animal preso numa jaula.
Eu podia sentir a energia poderosa que o rodeava, atraía-me como
uma mariposa era atraída para luz.
E para a sua completa ruína.
Não tive coragem de chamar sua atenção, estava presa
demais admirando o quanto ele era magnífico.
Percebendo que não estava sozinho, ele parou de andar de
um lado para o outro, virando-se em minha direção. Quase desabei
quando seus olhos percorreram meu corpo lentamente.
— Jenny. — Um pequeno sorriso pecaminoso se desenhou
em sua boca.
Cheia de coragem, eu me aproximei, parando à sua frente.
Gabriel não moveu um dedo para me tocar, seus olhos
estavam presos nos meus, comendo-me sem pudor algum.
— Gosto dessa diferença de altura — eu disse, precisando
jogar a cabeça para trás, para poder olhá-lo nos olhos. — Só que eu
gostaria ainda mais de estar em seus braços. — Gemeu baixinho,
parecendo dolorido.
— Não me provoque desta maneira. — Suas palavras
soaram como uma clara advertência. — Você não imagina o que eu
quero fazer. — Respirou fundo. — Caralho, Beag, você não imagina.
Suas pupilas estavam dilatadas, ele respirava com mais
dificuldade.
— Sinto sua falta. — Espalmei a mão em seu peito,
desejando sentir sua pele contra minha. — Gabriel, eu quero você.
Ele respirou fundo e aquilo me excitou ao ponto de eu sentir
minha calcinha molhando. Estava toda sensibilizada, as terminações
nervosas eletrizadas pela atração que sentia. Meus seios estavam
tão pesados e sensíveis que o roçar no tecido da camisa fazia meu
clitóris palpitar ainda mais.
Havia um vazio dentro de mim que apenas ele podia
preencher.
— Se eu te tocar agora...
Não deixei que ele terminasse, eu mesma tomei a iniciativa,
colando nossos corpos. Gabriel não se mexeu, era como se
quisesse confirmar o que eu estava pretendendo.
Rocei meus lábios nos seus, aumentando aquele delicioso
tormento que me consumia.
— Não vai me beijar de volta? — murmurei, mordiscando seu
lábio inferior. — Me beija, Gabriel.
Seus braços estavam caídos ao lado do corpo, ele não se
mexia, mas eu notava a tensão vibrando por seu corpo. Era como
se ele estivesse mantendo-se daquela maneira, pois, se tomasse
qualquer atitude, não poderia voltar atrás.
— Me beija — implorei baixinho.
— Você tem certeza? — Havia sofrimento em sua voz.
Quando tentei beijá-lo outra vez, ele segurou meu rosto, impedindo-
me de avançar. — Jenny, você tem certeza?
Não havia dúvidas da minha parte.
— Gabriel, eu sou sua, não é? — Acenou, com seus olhos
me queimando. — Então prove.
Ele me beijou, só que daquela vez foi diferente.
48
Jenny Monroe

Eu sentia que não podia sustentar meu próprio peso. Meu


corpo se sentia diferente, era como meu cérebro estivesse entrando
em curto, por causa do beijo devastador que Gabriel me dava.
Não havia como resistir, ou raciocinar coisas coerentes. Tudo
se resumia à sensação abrasadora de seu corpo musculoso
pressionado ao meu, no quanto eu amava aquilo.
— Quero você demais — rosnou, segurando meu cabelo com
uma mão; e com a outra, encarregava-se de desabotoar o único
botão que eu fechei. — Jenny, temo que possa...
— Dê-me tudo de você, não se esconda de mim, Gabriel. —
Lambi o lábio, ele acompanhou o movimento. — Eu não sinto medo,
finalmente estou livre. Quero que você também não tenha. — Suas
pupilas dilataram um pouco mais.
Podia sentir sua ereção entre nossos corpos, lembrava-me
de como era tê-lo dentro de mim, o pensamento de que estava perto
de acontecer de novo, deixou minha calcinha alagada.
— Se eu for longe demais, peça para parar e eu irei.
Acenei, presa em seu olhar felino.
Ele voltou a me beijar, daquela vez mais devagar, a língua
explorando, buscando. Gabriel mordiscou meu lábio, puxando-o
enquanto eu gemia de prazer com a delícia de seu beijo.
— Não sei por onde começar, quero te devorar da pior
maneira. — Sua voz soou profunda, rouca e sexy demais.
— Faça o que quiser — ofeguei, estremecendo quando
esfregou a barba em meu pescoço.
Seus dentes beliscavam minha pele, depois lambeu,
acariciando-me. Eu esperava que ele apenas me deitasse na cama
e me fizesse sua, mas Gabriel tinha outros planos.
— Você tomou seus remédios? — A pergunta me pegou de
surpresa.
— O quê? — Sentia os olhos pesados, estava excitada
demais, não queria conversar. — Tomei. — Ele sorriu.
— Bom.
Antes que eu pudesse questioná-lo, sua boca tomou a minha
outra vez.
Sem gentileza, apenas um choque em nossas necessidades.
Sua mão seguia firme em meu cabelo, segurando a minha cabeça,
comandando os movimentos que fazíamos. Ele gemeu em minha
boca quando chupei sua língua.
Oh, Deus... Os sons que ele fazia, os gemidos masculinos de
prazer estavam me enlouquecendo, e, ao mesmo tempo, deixando-
me com a sensação de poder.
— Delícia. — Segurou meu queixo, dominando-me por
completo.
Sem tirar os olhos dos meus, beijou-me de novo e de novo.
Não sabia o que mantinha de pé, mas estava tão excitada, que meu
clitóris doía. A única coisa que desejava para ser feliz naquele
momento era tê-lo dentro de mim, sem preliminares.
Era só nisso que eu era capaz de pensar no momento.
— Calma, não temos pressa, eu quero que seja bom, como
você merece.
— Eu tenho pressa — arfei, quando ele me soltou, dando um
passo para trás. — E a nossa primeira vez foi incrível, apenas me
faça sua e pronto.
— Mas você já é minha — murmurou. — E isso aqui não é
tomar. Agora venha, desabotoe a minha camisa. — Minhas mãos
tremiam quando comecei a trabalhar nos botões, a minha estava
aberta, ele podia ver meu corpo, mas eu queria ver o dele também.
Era a única ressalva.
— Gabriel... — Engoli em seco, apertando as pernas,
tentando aliviar o latejar insistente.
Quando finalmente o último saiu, eu enfiei as mãos dentro da
camisa, empurrando-a de seus ombros, enquanto o acariciava.
Por um momento, admirei suas cicatrizes, então as beijei,
traçando os contornos com a minha língua.
— Jenny. — Ele jogou a cabeça para trás, gemendo, lambi
seu mamilo, antes de morder. — Caralho, eu gosto disso, porra.
Continuei beijando, descendo até o cós de sua calça. Gabriel
me olhou, em seus olhos havia o claro desafio. Era como se ele
estivesse dizendo: Atreva-se...
Eu me atrevi, abrindo o botão de sua calça. Antes que
baixasse o zíper, ele segurou minhas mãos, balançando a minha
cabeça.
— Primeiro você. — Antes que eu pudesse reagir, ele me
ergueu nos braços. — Vamos brincar.
Deitou-me na cama, depois ergueu-se para se livrar da calça,
revelando uma cueca branca que o marcava de um jeito tão
obsceno que eu não pude olhar.
— O que foi? Quer desistir agora? — Havia diversão em seu
tom. — Olhe para mim, Jenny.
Eu o obedeci, quase morrendo de tanto calor quando o vi
abrir as pernas, ajeitando o pau. Longe de estar tímido, Gabriel era
pura safadeza. Ele voltou para a cama, subindo em cima de mim,
encaixando-se entre as minhas pernas.
— É isso que deseja? — Ele esfregou um pouco,
pressionando nossas intimidades.
O prazer com o gesto disparou por meu corpo, sentia meu
clitóris pulsando no mesmo ritmo do meu coração.
Era quase dolorido.
— Por favor, Gabriel, sem brincadeiras! — implorei.
Sua resposta foi me beijar, e eu me esqueci de todo resto.
Eu não sabia o que esperar, e isso deixava-me ansiando pelo
que ele faria. Não havia pressa de sua parte, e eu podia sentir cada
nuance do que ele estava criando.
— Para quê pressa? — murmurou contra a minha boca,
esfregando nossos lábios, beijando-me outra vez, e outra vez.
Sua língua invadia minha boca com maestria, entrando e
saindo, enquanto eu o sentia esfregar aquele ponto de prazer entre
as minhas pernas. Era como se daquele jeito me dissesse em breve
o que faria.
Ele mordiscou meu lábio, puxando-o. Podia ver em seus
olhos toda a devassidão que ele não tentava esconder, e isso, ao
invés de assustar, me excitou ainda mais. Minha boca formigava de
seus beijos, eu queria mais.
Um sorriso safado arqueou o canto de sua boca, ele
encostou dois dedos em meus lábios.
— Chupa. — Obedeci, vendo seus olhos escurecerem ainda
mais. — Isso, bem gostoso.
Meu coração bateu mais forte, eu gemi, fechando os olhos de
tanto prazer ao imaginar o que ele faria.
— Não feche os olhos! — ordenou. — Eu quero ver. —
Gabriel retirou os dedos da minha boca, beijando-me rapidamente.
— Ver... o quê? — arfei, com o peito subindo e descendo
cada vez mais rápido.
— Quero ver você gozando. — Seus dedos serpentearam por
meu corpo, em um mero roçar quase imperceptível, mas que me
arrepiava inteira.
Ele brincou com a borda da minha calcinha, sem nunca
deixar de me olhar, ele invadiu, tocando a minha intimidade.
— Quente e molhada — murmurou demonstrando o quanto
parecia satisfeito. — Como deve ser.
— Gabriel... — gemi, arqueando quando ele tocou meu
clitóris.
Sem pressa alguma, começou a massagear, com
movimentos circulares, firmes e torturantes. Dentro de mim, sentia
uma necessidade crescente, um anseio tão forte que ameaçava me
engolir.
— Preciso de você. — O puxei pela nuca, beijando-o com o
desespero que me consumia.
Tudo havia perdido o sentido, meu mundo se resumia a ele,
seu toque e o prazer que me arrebatava sem qualquer misericórdia.
Ele me beijava enquanto seus dedos estavam me dando prazer.
Involuntariamente abri ainda mais as pernas, puxando-o para
mim. Queria senti-lo apaziguando aquela dor que só crescia dentro
de mim.
— Sem desespero, amor. — Havia diversão em sua voz. —
Apenas prazer, agora desfrute enquanto eu bebo os seus gemidos.
Sua boca devorou a minha, enquanto seus dedos
continuavam me torturando. Gabriel não me tocava com rapidez,
tampouco aplicava força suficiente para que eu pudesse sentir
alívio.
Ele continuava massageando, no mesmo ritmo, levando-me
uma vez ou outra ao topo me deixando lá, suspensa, ansiando,
louca para que ele me permitisse atingir o ápice.
— Por favor — gemi contra seus lábios. — Por favor.
— Nós ainda nem começamos. — Ele mordiscou meu
queixo, descendo a boca por meu pescoço, lambendo a pele.
Quase gritei em protesto quando parou de brincar com meu
clitóris. Eu pensei que ele ia apenas me tomar, mas seus planos
eram outros, e eu não sabia se ia suportar tudo que pretendia fazer.
Ofegante e meio revoltada por ele estar brincando comigo,
não estava preparada para tê-lo beliscando o meu mamilo.
— Meu Deus. — Engasguei-me, os dedos dos pés curvando
porque eu senti o tiro de prazer disparando direto para o meu
clitóris.
— Há muitas maneiras de explorar o prazer — murmurou
espalhando a umidade no meu mamilo. — Agora, vejamos se gosta
disso.
Sem tirar os olhos dos meus, Gabriel deu uma lambida lenta
demais no meu seio, capturando o mamilo inchado entre os dentes,
para depois sugar com força.
— Ahhh! — gritei, não estava preparada para aquilo. — Pare,
por favor, pare...
Ele parou e a sensação abrasadora arrefeceu pouco,
entretanto, meu seio ainda formigava, o mamilo palpitando.
— Parar o quê exatamente? — Sua língua fez movimentos
circulares, lentos, malvados. Eu juro, estava quase chorando de
tanto prazer. — Quer que eu pare? — perguntou, olhando-me.
— Parece que eu vou morrer. — Engasguei-me. — Eu sinto
intenso demais.
— Você sente. — Ele sorriu, os olhos verdes me queimando.
— Quer que eu pare?
— Não... — ofeguei — Não pare nunca.
Ele voltou a me torturar, sugando meus mamilos, enquanto
brincava com o outro. Eu nunca pensei que poderia ser ainda
melhor, que sentiria mais intensamente o que ele fazia comigo.
A primeira vez foi inesquecível, mas, daquela vez, eu estava
quase morrendo e nem havíamos começado direito.
— Grita, Jenny, chame por mim, me deixa saber o que você
gosta. — Suas palavras de algum modo estranho mexiam comigo,
era como se ele instigasse meu corpo e mente, tudo ao mesmo
tempo.
Sentia sua boca descendo, a língua traçando caminhos,
provocando. Ele esfregava sua barba, as mãos grandes
manuseando meu corpo com maestria. Estava ofegante, tonta de
prazer e eu sabia que ele ia me deixar ainda mais louca.
— Você está tão molhada. — Senti o rosto pegar fogo, não
conseguia encará-lo. — Mas ainda não é suficiente, quero você
pingando de tesão.
— Estou pronta — arquejei, com o coração prestes a
explodir, quando ele rasgou a minha calcinha com um movimento
simples, jogando-a de lado.
— Não, mas logo estará. — Ele puxou minhas pernas,
encaixando-as entre seus ombros. — Olhos em mim. — Ele só
esperou que eu o obedecesse antes de enterrar o rosto entre as
minhas pernas e chupar meu clitóris com força.
— Gabriel! — gritei, a mente explodindo com o prazer louco
que me devastava.
— Gostosa pra caralho! — Ele arreganhou minha intimidade,
expondo-me ainda mais. — Minha gostosa, porra!
Voltou a me chupar, aumentando aquele desejo insano de ser
preenchida. Ele não tinha misericórdia, pelo amor de Deus, ele não
tinha nenhum pingo de misericórdia, chupava com força,
endurecendo a língua, lambendo-me inteira.
Ele mordiscava meu clitóris, eu jurava que morreria morrer de
verdade, porque a sensação era tão insuportável e ao mesmo
tempo incrível que a vontade de tirá-lo dali guerreava com o desejo
para que não saísse nunca mais. Estrelas piscavam diante dos
meus olhos.
Eu sentia tudo dentro de mim apertando, o corpo ficando
tenso como se eu estivesse numa escalada para atingir o céu.
— Estou perto — gemi, arqueando, abrindo-me ainda mais
para o seu ataque.
— Então goza na minha boca. — Senti um dedo me penetrar,
então outro. Gabriel pressionou algo dentro de mim, foi suficiente.
Nem deu tempo de me preparar, foi como se ele roubasse
alguns instantes, jogando-me diretamente no fogo.
— Oh, meu Deus, Gabriel... não pare, por favor, não pare! —
gritei como uma atriz pornô, não conseguia me controlar.
Todo meu corpo tremia, em espasmos que pareciam sair de
dentro de mim, enlourecendo-me de prazer.
— Que delícia, apertando meus dedos. — O sentia entrando
e saindo, enquanto um dedo pressionava meu clitóris, prologando
aquele prazer insano e doloroso.
Quando aquela onda devastadora abrandou, eu não sentia
meu corpo, sequer conseguia seguir o raciocínio, eu era um fio
desencapado, dando curto.
Gabriel sabia que eu precisava de um momento para me
recuperar, mas, ao invés de me permitir alguns segundos, ele voltou
a me chupar.
— Por favor. — Lágrimas salpicaram meus olhos, solucei de
prazer. — Sensível demais — arfando, eu agarrei seu cabelo,
puxando-o para mim.
Gabriel construiu uma trilha de beijos, enquanto ia subindo,
pensei que ia me beijar, mas ele parou, os olhos prendendo os
meus.
— Você está pronta para mim? — Acenei, podia sentir. —
Então fale: Gabriel, fode a minha boceta até eu chorar de prazer.
Não fui capaz de formular a frase, a vergonha bateu na cara
com tanta força, que nem olhar para ele eu conseguia. Eu sabia que
ele era um devasso, mas ainda me chocava que pudesse
transformar-se tanto num piscar de olhos.
O Gabriel diante de mim exalava uma sensualidade animal
tão potente que me desnorteava. Eu até acreditava que sabia o que
esperar, mas eu estava errada.
— Olhos em mim. — Ele virou meu rosto. — Na nossa cama,
não é permitido pudor, timidez ou coisas do tipo. — Um sorriso
pervertido se desenhou em sua boca. — Na nossa cama você é
minha puta.
— Meu Deus... — Suas palavras me excitaram.
Ele mudou a posição para que pudesse se apoiar, eu vi sua
mão descendo, logo sentia o pau esfregando na minha intimidade.
— Por favor. — O puxei para um beijo, mas ele só permitiu
que nossos lábios ficassem a um fôlego de distância. — Por favor...
— Gabriel, fode a minha boceta... — murmurou, lascivo,
provocando-me a repetir suas palavras — até eu chorar de prazer.
Se possível, mais excitação escorreu. Eu estava latejando,
dolorida e me sentindo vazia. Será que ele não entendia que eu
precisava dele?
Esfreguei os seios em seu peito, arfando de prazer com o
contato.
— Tentando ganhar um jogo no qual sou mestre? — Ele
mordeu o lóbulo da minha orelha, rindo baixinho. — Basta falar o
que desejo ouvir e eu vou te foder tão gostoso que nem vai
acreditar. Não se esconda atrás do recato, eu prometo que tudo fica
melhor quando...
— Gabriel, fode a minha boceta até eu chorar de praze... —
não terminei a frase, ele começou a me penetrar. — Ahhh...
Fechei os olhos, mergulhando num prazer tão profundo que
tudo mais perdeu o sentido.
— Puta que pariu — Gabriel gemeu, o nosso ajuste era
apertado demais, dolorido.
— Não pare, quero te sentir todo dentro de mim.
— Calma, Beag... — Ele entrou mais um pouco, testando
meus limites. Devagar, quase como numa tortura orquestrada, ele
começou a me foder. — Assim, sem pressa.
Voltou a brincar com meu clitóris, estava tão sensível que seu
toque era uma deliciosa tortura, e ainda assim eu ansiava mais. Eu
o sentia deslizar mais fácil, e a cada vez ir mais profundo.
— Assim, pingando tesão. — Sua voz era como uma
extensão de todo seu arsenal de sedução.
Daquela vez não me privei de olhar para ele, sem pudor,
havia dito, e eu faria como disse.
Gabriel elevava-se sobre mim, seus músculos estavam
tensos, como se ele empregasse muito esforço para não me foder
com força. A visão dele era extraordinária, nunca deixaria me
espantar com a beleza surreal que possuía.
— Você parece que gosta do que vê. — Piscou um olho,
sorrindo de lado.
— Eu adoro — gemi baixinho, amando a sensação de tê-lo
dentro de mim.
— Eu também gosto muito do que vejo. — Ele olhou para
baixo. — Gosto pra caralho. — Ele segurou as minhas coxas,
fodendo-me devagar. — Ah, tesão — gemeu, com a expressão tão
selvagem que eu quase gozei só de olhar para ele.
— Mais rápido — arfei baixinho, com minha respiração cada
vez mais rápida.
— Brinque com os mamilos — ordenou, e imediatamente eu
obedeci.
Senti meu corpo apertando, as sensações dominando-me.
Gabriel sabia que eu estava me deixando ir, ele conhecia meu corpo
melhor que eu.
— Não vai gozar sem mim. — Ele começou a me foder mais
forte. — Vou encher essa boceta de porra.
Seus movimentos ficaram mais frenéticos, e eu estava
amando que ele também pudesse perder o controle. Ele gemia alto,
pouco se importando que pudessem nos ouvir, Gabriel era sem-
vergonha, nem um pouco tímido.
Era um homem vocal, e, por Deus, era uma delícia ouvi-lo.
Eu o sentia impulsionando com força e rapidez para que cada golpe
parecesse durar para sempre. Ele conseguia atingir cada lugar
secreto e ponto sensível dentro de mim com uma precisão cruel que
me surpreendia.
Era como houvesse me gravado na memória.
— Te sinto me apertando — rosnou, eu apenas gemi,
entregue. — Porra, que delícia.
Sentia que estava prestes a ter uma sobrecarga sensorial,
meu corpo começou a formigar, respirar foi ficando mais e mais
difícil.
— Gabriel...
— Eu sei. — Ele me fodeu mais duro, empurrando-me em
meio a um mar revolto. — Vem para mim, Jenny, goza no meu pau.
Não tive tempo de me preparar, meu corpo explodiu como
num evento com fogos de artifícios. Pontos pretos piscaram diante
dos meus olhos, vagamente ouvi o gemido de prazer de Gabriel,
depois ele pulsando dentro de mim.
Eu nunca fui tão feliz.
Havia me entregado ao homem que eu amava — sim — que
eu amava, e ele havia me feito sentir incrível. Buscando seus
solhos, deparei-me com uma miríade de sentimentos em suas íris
verdes.
— Tudo bem? — perguntou baixinho, afastando os cabelos
do meu rosto.
Minha resposta foi puxá-lo para um beijo, Gabriel havia
arrasado o meu passado em todos os âmbitos, definitivamente.
Eu era dele, e ele era meu.
Para mim, era somente o que importava.
— Você está pensando que acabou? — foi a primeira coisa
que disse quando nos afastamos.
— Ainda lhe resta fôlego, Sr. Demonidhes? — Sorri,
admirando sua expressão saciada.
— Isso é uma provocação? — Para fomentar a pergunta, o
senti pulsar dentro de mim.
— Não sei, é?
Ele não respondeu, mas alguma coisa me disse que eu não
deveria lançar aquele tipo de desafio.
***

Não era nem um pouco inteligente provocar homens como


Gabriel Demonidhes, e em pouco tempo ele havia me feito
compreender exatamente o meu erro.
Naquela altura do campeonato, eu já havia gozado tanto, que
não sentia as pernas. Não tinha força para levantar a mão, pois meu
corpo estava tão mole quanto macarrão cozido, e ele ainda estava
ali, lambendo a minha boceta, como se fosse a melhor coisa do
mundo.
— Eu desisto, você venceu — soltei num único fôlego, era o
máximo que eu conseguia. — Meu coração vai parar.
O som de sua risada vibrou no meu clitóris inchado e muito
dolorido. Até a sua respiração ali me fazia estremecer.
— Seu coração parece forte para mim. — Ele distribuiu
beijos, mordiscando meu quadril antes de esfregar a barba na minha
barriga e vir para mim. — Você desiste então. — Não era uma
pergunta.
— Hum...
— Beag, você lançou o desafiou e eu aceitei, vai fugir?
— Eu não conseguiria. — Gabriel era a viva imagem da
satisfação masculina. — Não sinto minhas pernas.
Mas podia senti-lo dentro de mim, ainda que não estivesse.
Minha boceta estava ardendo, mas se eu tinha algo a dizer, era que
havia amado cada instante.
— Sabe, eu poderia continuar. — Esfregou o nariz no meu. —
Tenho muito tesão por você acumulado. Mas eu entendo que a
jovenzinha sedentária não aguenta passar a noite trepando com o
macho dela.
— Gabriel! — Bati em seu ombro, ele apenas riu de mim.
— Eu menti? — Neguei, porque não, eu não aguentava
mesmo.
Não tinha mais energia sobrando para gozar, a única coisa
que conseguia era continuar respirando, nada mais.
— Você é tão boca suja. — Acariciei sua barba. — Eu estou
chocada.
— Admita, você gosta que eu seja um puto. — Concordei. —
Isso vai te garantir muito sexo gostoso com orgasmos ainda
melhores.
— Convencido.
— Você quer que eu prove o meu ponto?
Sabia que ele o faria.
— Não... — falei tão rápido que nós dois começamos a rir.
Gabriel estava feliz. Parando para pensar, na época que eu o
havia conhecido, ele tinha algo pesando em seus ombros, que eu
não sabia identificar, mas, vendo-o agora, eu conseguia perceber a
diferença.
— O que foi? — Seus olhos esquadrinhavam meu rosto.
— Nada, só te admirando. — Toquei seu rosto, desliando os
dedos por sua pele. — Você é tão bonito.
— Não, Jenny. — Ele fez uma careta.
— É sim, e só minha opinião importa. — Dei-lhe um beijo
rápido.
— Tudo bem, eu vou preparar um banho para nós dois. —
Ele saiu da cama, dando-me uma bela vista de sua bunda.
Como podia ser bonito em todos os ângulos? O homem não
tinha um defeito, era simplesmente demais para mim, e, por mais
que estivesse ao seu redor o tempo inteiro, de vez em quando me
surpreendia.
Gabriel Demonidhes era uma obra de arte com certeza.
— E ele é meu — suspirei, fechando os olhos. — Ele é todo
meu.
49
Gabriel Demonidhes

Quando a banheira encheu, voltei para o quarto apenas para


encontrar minha mulher adormecida. Por um momento eu apenas a
admirei, ainda desacreditado com o rumo delicioso que nossa noite
havia tomado.
Ela era minha de novo, só que, daquela vez, eu não iria
embora. Sem separações, nada daquela necessidade insuportável,
a falta de saciedade. Ela era a parte que eu não tinha e que agora
me completava.
Ficaríamos juntos para sempre.
Eu me encarregaria de fazer acontecer.
— É isso. — Me aproximei, pegando-a nos braços.
— Gabriel... — murmurou, abrindo os olhos. — Aonde
vamos?
— Relaxar. — Esfreguei meu nariz no seu, hábito que ficava
pior. — Preparei um banho para nós.
Ela não disse nada, apenas repousou a cabeça em meu
peito, aceitando de bom grado que eu tomasse as rédeas. Levando-
a para o banheiro, primeiro eu a coloquei dentro da banheira,
depois, entrei, ficando às suas costas.
— Vem. — Estendi a mão, ajudando-a, pois temia que
escorregasse.
— Que delícia — suspirou afundando na água morna.
Eu havia deixado o temporizador para mantê-la aquecida em
vinte e sete graus. Algum tempo ali, ajudaria a aliviar um pouco os
desconfortos musculares.
Observando-a prender o cabelo no topo da cabeça, me
surpreendi com a facilidade com que ela dava conta. Os cabelos de
Jenny eram longos demais.
Eu tinha certa obsessão por eles, na verdade, por ela toda.
— Encosta aqui — chamei, ela recostou-se em meu peito.
Por um tempo não dissemos nada, apenas desfrutamos um
do outro, daquele momento que parecia bem mais íntimo do que
tudo que fizemos no quarto.
Beijando seu ombro, eu espalmei as mãos em sua barriga.
Meus filhos ainda não chutavam como o de Rafael, mas eles
estavam ali, e, de alguma forma, eu sentia que podia segurá-los se
fizesse aquilo.
— Estou ansioso para conhecê-los — murmurei, sentindo-me
tão em paz que o mundo fora daquela casa poderia explodir à
vontade.
— Eu também. — Jenny colocou as mãos em cima das
minhas. — Lysander disse que gravidez gemelar nunca chega aos
nove meses.
Semana passada fizemos uma ultrassonografia, e os bebês
estavam muito bem. Graças a Deus a saúde de Jenny também
seguia ótima, os remédios estavam funcionando como deveria, e
não tivemos nenhuma intercorrência.
— Ele falou também que nós precisamos marcar uma
cesariana e terá que ser no hospital.
— Eu sei. — Apoiei o queixo no ombro dela. — Temos muitos
inimigos, eu não gostaria que você tivesse nossos bebês longe do
Complexo.
Era apenas muito bom poder falar abertamente com ela
sobre aqueles assuntos. Óbvio que havia grande cortes de edições,
mas ela sabia o que importava saber.
Não estava completamente no escuro.
— E se o meu parto for dentro do Complexo? — ela sugeriu.
— Não precisa ser aqui, mas em outro. Deve ter alguém dentro da
Ordem que possa fazer isso.
Sim, era uma possibilidade.
— Vou conversar com Lysander e Rafael. — Gostei muito
daquela ideia. — Mas, independente, se você precisar ir para o
hospital, eu prometo que vai dar tudo certo.
— Eu sei que sim — suspirou. — Nunca pensei que pudesse
ser tão feliz. Ainda é chocante para mim.
— Acostume-se com isso.
— Eu já estou.
Compartilhando um silêncio confortável, continuei acariciando
sua barriga, gostando do quanto minha mão era grande em relação
a ela.
— Gabriel?
— Hum.
— Quais nomes você pensou?
— Ainda não pensei — ri baixinho, na verdade eu preferia
esperar que eles nascessem para escolher. — E você?
— Bom, eu tenho minhas preferências. — Ela mudou de
posição ficando de frente para mim. — Eu gosto de Kraven e
Constantino.
— Kraven é bem diferente... — Não pude evitar a careta.
Sinceramente, era horrível.
— Você não gosta?
— Acho que não. — Cruzei os braços — Mas Constantino, eu
acho interessante.
— Amira disse que Rafael e ela colocarão um nome russo no
bebê deles. — Jenny sondou meu rosto. — Você gostaria de um
nome Irlandês?
Eu não queria voltar para o meu passado, mas acabou sendo
inevitável. Eu já tinha aprendido que ele sempre iria me encontrar,
não importa o quanto eu estivesse empenhado em mantê-lo longe
de mim.
— Nem sempre eu me chamei Gabriel — falei baixinho,
Jenny se aproximou de mim. Quando eu entendi o que ela queria,
vim mais para a frente, para que ela pudesse encaixar no meu colo.
— Estou aqui. — Segurou meu rosto, beijando-me com todo
carinho que apenas ela era capaz.
— Eu sei que está. — Refugiei-me nela. — Eu me chamava
Regan. E eu mesmo escolhi o meu nome quando eu fui capaz de
fazê-lo, depois, quando fui adotado por Roman, ele me deu o nome
de Gabriel.
— Regan é um nome lindo. — Ela tocou a barriga. — Regan
e Constantino, ou Roman e Constantino, o que te parece?
— Eu acho que seria incrível. — Sorri, pegando uma mecha
de seu cabelo que havia soltado. Esfregá-lo por entre os dedos,
sentindo a textura macia, era quase uma terapia. — Percebi a
preferência por Constanino. Mas e se forem meninas?
— Cassie e Candy.
Fechei os olhos, daquela vez, sentindo um nó grande demais
para engolir.
— Cassidy — murmurei, juntando os dois nomes que ela
gostava. — Era o nome da minha criança.
— Você tinha uma filha?
— Não, era como uma irmã, mas que, no final das contas, eu
cuidava como filha. — Sorri, sentindo o peito doendo. — Vivíamos
amontoados, e alguns de nós tinham crianças para cuidar. Cassidy
era a minha.
— Agora eu entendo seu desespero para proteger nossos
bebês. — Jenny me abraçou. — Sinto muito, Gabriel.
— Por minha culpa, ela morreu. Se eu não tivesse tentado
fugir, ela estaria viva. — Fechei os olhos, aceitando que me
confortasse. — Meus irmãos não sabem disso, apenas meu pai, e
agora você.
— Será nosso segredo, eu prometo.
— Jenny. — Eu a apertei contra mim. — Prometa-me algo.
— O que quiser.
— Prometa-me que nunca vai me deixar.
Era o último resquício de qualquer dúvida que ela pudesse
ter.
— Eu prometo, Gabriel, eu nunca vou te deixar.
Esperava que fosse verdade, porque eu achava que não
dava para ficar sem ela ao meu lado.
Jenny havia se tornado fundamental na minha vida.
50
Jenny Monroe

Acordei com a barriga doendo de fome.


A última coisa que eu me lembrava era de estar na banheira
com Gabriel. Não fazia ideia em que momento ele me trouxe para a
cama, não me lembro de nada.
— Oh, minha nossa! — Estiquei-me, sentindo os músculos
doloridos.
Só de pensar nos motivos que me levaram a estar naquelas
condições, sentia o rosto pegando fogo com um misto de vergonha
e desejo para repetir tudo de novo.
Claro quando eu não sentisse que Gabriel ainda estava
dentro de mim.
— Como é possível? — Olhei para ele adormecido, todo
enroscado a minha volta.
Por um momento, eu fui arrebatada mais uma vez por ele.
Gabriel era demais, em todos sentidos e detalhes. E eu só não ia
ficar ali quietinha dentro daquele casulo protetor porque precisava
assaltar a geladeira.
Mas, para conseguir sair dali, eu ia precisar desvencilha-me
de meia tonelada de pernas e braços.
— Okay. — Comecei empurrando seus braços, e eu juro, ele
pesava uma tonelada.
Se eu o acordasse seria muito mais fácil, óbvio, mas ele
estava dormindo tão profundamente, que parecia um pecado, por
isso eu fui o mais cuidadosa e devagar possível para que
conseguisse sair sem despertá-lo.
Estava suada e trêmula pelo esforço quando finalmente
consegui desenroscar nossas pernas.
— Ufa. — Soprei a minha franja, arrastando-me para fora da
cama.
Eu estava vestida com uma camisa de Gabriel, em mim
ficava um vestido. Mas eu não era louca de sair sem calcinha.
Antes que eu pudesse me afastar da cama, minha barriga
roncou alto. Foi tão constrangedor, que eu temi acordá-lo.
— Estou indo. — Acariciei os “bebês”, seguindo para o closet.
Eu não havia saído para comprar roupa, mas, não precisava.
Eu tinha um guarda-roupa completo, muito mais do que o
necessário graças a Amira e tudo combinava comigo.
— Eu não sei como retribuir tudo que fazem por mim.
Quando estava pronta, fui saindo na ponta dos pés. Gabriel
não havia nem se mexido, e eu queria voltar antes que ele pudesse
acordar e não me encontrar.
Chegando na sala, não pude evitar o sorriso. Kang estava
dormindo com as patas para cima. Ele estava em um sono tão
profundo que roncava.
— Super ameaçador. — A vontade que eu tinha era de
apertá-lo, mas ele ia fazer barulho, acordar Gabriel e eu não queria.
Abri a porta sem fazer barulho, na verdade, uma coisa que
tinha reparado naquela casa era que nada rangia. Digo, era tudo tão
perfeito que chegava a ser assustador.
O corredor possuía uma iluminação suave, eu já sabia o
caminho para a cozinha, entretanto, quando meus pés tocaram o
último degrau da escada, algo chamou a minha atenção.
Meu ouvido era bastante apurado, e eu conhecia aquela
música.
Em meio ao silêncio da noite, alguém tocava Moonlight
sonata. A solidão que eu podia sentir era carregada pelas notas do
piano, meu coração encolheu no peito, dolorido, pois quem estava
tocando conseguia transmitir toda dor e angústia que carregava
dentro de si.
Podia perceber também uma fúria latente, como se nas teclas
do piano a pessoa conseguisse encontrar um meio de libertar sua
ira.
Eu sabia que não deveria ir, mas, quando percebi, estava
seguindo a música, atraída pela dor de quem a tocava. A sala de
música ficava logo no início do corredor de acesso a piscina
coberta.
Tive o máximo de cuidado para não fazer nenhum som, ao
me aproximar.
Meu Deus... Cobri a boca, quando avistei Lysander. Ele
estava de costas para mim e não foi a técnica impecável que deixou
estarrecida, mas o que havia em suas costas.
Ele possuía uma tatuagem igual a de Gabriel, só que a dele
ia de ombro a ombro. O desenho era preto, bonito, mas os
contornos ao redor eram de um vermelho tão forte, que a pele
parecia estar sangrando.
Abaixo da tatuagem maior, três colunas de palavras cobriam
todo o restante das suas costas, sumindo dentro do cós da calça. A
curiosidade me dominou, eu queria saber o que estava escrito, mas,
quando prestei mais atenção, notei que havia mais coisas.
A pele de suas costas não era lisa.
Havia uma rede de cicatrizes de aparência terrível. Alguém
tinha retalhado a pele em tiras, deixando que cicatrizasse de
qualquer jeito.
Ele deve ter sofrido tanto...
De repente, a música parou e eu congelei, nem ousando
respirar. Lysander ergueu a cabeça, olhando de lado, disse:
— Volte para a cama, Jenny, aqui não tem nada para você.
Foi com se um dedo gelado descesse por minha espinha.
Como ele sabe que sou eu? Eu não fiz barulho algum, tinha
plena certeza. Estava espiando com cuidado, então como ele sabia
que era eu?
Antes que Lysander se irritasse, eu me apressei em direção
ao quarto. Queria fugir e tentar apagar a visão de suas costas.
Quem fez aquilo com ele, foi muito, muito cruel.

***

Alguns dias depois...

— Anime-se, Jenny. — Gabriel segurou meu queixo. Ele


havia se ajoelhado diante da cama, estava ali tentando mudar o
meu humor depressivo. — Você precisa ser um pouco mais otimista.
Concordando, eu apenas o abracei, buscando refúgio em sua
força. Gabriel era tão inabalável que eu o responsabilizava por estar
quase sempre feliz. Ele havia mudado o rumo da minha história,
havia aberto um leque de possibilidades, deixando-me escolher o
que eu queria.
A minha vida estava seguindo por um caminho maravilhoso.
Eu havia conseguido acesso as minhas redes, e, juntos,
descobrimos que eu tinha sim onde cair morta.
Por enquanto, seguia sem um dólar na conta, mas as
projeções de ganhos, eram otimistas. Além do mais, eu estava
inspirada e escrever havia se tornado um prazer de novo.
Ainda não tinha voltado a gravar, mas podia interagir com
meus fãs, e aquilo era uma novidade que eu ainda estava me
adaptando.
— Você está muito quieta. — Ele me puxou um pouco mais
para a beirada da cama. — Converse comigo.
— Eu conheci o que é felicidade ao seu lado, mas eu gostaria
que a minha mãe pudesse compartilhar comigo. — Franzi o cenho,
naquele dia não havia acordado muito animada. — Lysander disse
que todos os exames estão bons, então por que ela não acorda?
— Beag...
— Uma parte de mim se culpa por eu estar feliz enquanto
ela...
Ele negou, não me deixando terminar.
— Não é assim. — Gabriel afastou a minha franja dos olhos.
— Sua mãe não ia querer que você se culpasse.
— Eu sei — murmurei, baixando a cabeça. — Mas a
sensação que tenho é de que, mesmo que tenhamos atravessado o
inferno juntas, apenas eu houvesse conseguido sair.
Todos os dias eu estava lá, conversando, mas já não sabia
de onde tirar ânimo para esperar o dia que ela acordaria. A espera
era dolorosa, frustrante demais.
— Por que não lhe dá algo para sonhar ao invés de chorar
quando está com ela? — Fiz careta, ele tinha toda razão, mas ver a
minha mãe tão pálida, imóvel, dava-me a sensação de que, a
qualquer momento, ela iria me deixar para sempre.
— Você tem razão. — Eu o abracei outra vez. — Obrigada,
Gabriel.
— Disponha. — Ele me apertou, mas a minha barriga já
começava a dificultar os nossos abraços. — Eu sei de algo que
pode te alegrar.
— Não comece. — Bati em seu ombro, já sentindo a risada
borbulhando.
Ele tinha um jeito peculiar de fazer qualquer assunto
importante ou sentimental acabar em safadeza. Deus era
testemunha da habilidade daquele homem, porque não era possível.
— Eu só quero te ajudar a relaxar. — O sorriso cafajeste
estava lá. — Seu médico disse, para manter as coisas tranquilas e
felizes.
— Ele não disse isso. — Tentei segurar o riso. — Gabriel, não
seja tão safado.
— Como evitar? Eu sou filho de uma puta. Está no meu DNA.
Ele nunca falava sobre como se sentia em relação ao
abandono de sua mãe, mas, quando se referia a ela, era sempre
daquela forma pejorativa.
— Na próxima semana, a minha suspenção vai acabar. —
Ele começou a acariciar minha perna. — Eu vou voltar ao trabalho e
não poderei mais chupar a sua bocetinha a hora que eu quiser.
— Gabriel! — engasguei-me entre a risada e o gemido.
— Mas é verdade, você sabe como funcionam os plantões?
— Neguei. — Quarenta e oito horas por setenta e duas. Dois dias
sem te ver é mais do que posso suportar.
Não tinha pensado naquilo, pois, desde que eu havia
chegado não nos desgrudamos, mas então, por enquanto, imaginar
que, em algum momento, eu teria que me acostumar com a ideia de
não tê-lo.
— Não pense nisso.
— Você que trouxe o assunto — suspirei, sentindo meu
coração acelerar ao encará-lo. — Não vamos pensar nisso. —
Esfreguei meus lábios nos seus, ele sabia que eu estava toda
apaixonada.
Apesar de não dizer diretamente, não é possível que não
tenha percebido.
— Vou sentir saudade de te acordar com uma chupada. —
Havia tanta lascívia em seu olhar que eu senti meu corpo todo
estremecer. — Gosto quando você acorda gozando.
— Eu também.
— Então, hoje você não acordou assim... — Sorriu de lado,
subindo enquanto eu já ia deitando. — Mas, se quiser, eu posso
remediar. — Uma mão infiltrou-se dentro do meu vestido. — Você
quer?
Ele sabia exatamente o que dizer, qual tom usar, para que eu
sintonizasse na sua frequência. Era surreal, eu sabia o que ele
estava fazendo, mas não estava nem um pouco me importando.
Ser mimada por ele — até daquela maneira tão íntima — era
apenas uma das melhores coisas.
— Abre as pernas para mim, Jenny. — Às vezes, ele
aprofundava o sotaque irlandês para dizer meu nome, deixando-me
molhada de tesão. — Eu quero só experimentar uma coisa.
— O quê? — Não ofereci resistência, era inútil fingir que não
queria, porque eu queria muito.
Gabriel subiu meu vestido, depois puxou a minha calcinha
com os dentes. Eu quase morri só com aquela parte.
— Quanto tempo você leva para gozar quando já começamos
brincando sério.
— Você não deveria me.... — As palavras se transformaram
em um gemido.
Sem preliminar, eu não ia durar mais que algumas batidas de
coração e ele sabia disso.
Todo meu corpo parecia cantar, vibrando de prazer no ritmo
que ele impôs. Ele não provocou, não daquela vez, foi apenas um
ataque, direto preciso. E até mesmo cruel.
Ele me lambia e então chupava. Eu nem tentava conter os
gritos de prazer, porque era inútil, em algum momento eu ia perder o
controle, melhor então aproveitar tudo de uma vez.
Agora eu o queria dentro de mim, rápido, duro, mas Gabriel
continuava me instigando, provocando. Golpeando o clitóris, então
chupando. Ele não permitia o ritmo alucinante, não parava, era
como uma máquina insaciável.
— Sim, Gabriel, assim... — Arqueei, ele me penetrou com os
dedos. — Isso é tão... — gemi, agarrando seu cabelo, puxando-o
para mim. — Vou gozar, não pare... Por favor, não pare.
Ele riu, como se eu houvesse dito algum absurdo, mas então,
ele disse:
— Goza na minha cara.
Não bastou mais nada, o prazer foi tanto que eu fiquei tonta.
Gabriel continuou me chupando, fodendo-me com os dedos até eu
soluçar, e literalmente chorar de prazer.
Só quando o último espasmo deixou meu corpo, então ele se
afastou.
Eu precisava de alguns instantes para reconectar, a
sensação que eu tinha era de que havia sido desossada, e isso, em
poucos minutos.
— Então, onde estávamos? — Lambeu os dedos úmidos,
sorrindo.
— Não sei. — Fechei os olhos, enquanto tentava entender o
que diabos tinha acontecido. — Mas você é perigoso. Muito
perigoso.
— Eu conheço o seu corpo, sei cada lugar que sente prazer.
Você estava tensa, eu só queria te fazer relaxar.
— Eu estou notando orgulho em sua voz ou eu estou louca?
Ele riu ficando em cima de mim.
— Talvez.
Piscou um olho, antes de me beijar, fazendo-me esquecer
completamente qualquer tristeza que eu tenha sentido.
— Vamos tomar banho juntos, o dia está quente.
Eu aceitei, amava ter suas mãos em mim. Não houve
provocações no banho, eu sempre ficava pensando qual seria o jeito
que faríamos amor.
Gabriel era sempre muito criativo, porém daquela vez, foi
apenas banho mesmo, para refrescar.
— Você está linda demais, Jenny. — Ele abriu uma toalha. —
Eu seria muito filho da puta se tentasse te manter grávida por uns
dois anos?
Ele me abraçou, repousando as mãos na minha barriga e o
queixo no meu ombro. Estávamos de frente para o espelho do
banheiro.
— Estamos falando de quantas crianças? — Entrei na
brincadeira.
Tinha certeza de que não estava falando sério. Gabriel não
era louco.
Ou era?
— Hum, cinco.
— Você é louco mesmo. Cinco crianças é demais.
— E se eu supostamente te engravidar por acidente? — Seus
olhos brilharam através do espelho.
— Supostamente, como?
— Não sei, talvez, uma trepada bêbada na madrugada.
Comecei a rir de sua loucura. Não dava para acreditar que
aquele era o mesmo Gabriel sério, que eu conheci em Londres. Ao
longo do tempo que compartilhamos, ele mostrou-me ser um
homem multifacetado, e eu descobri que adorava todas as suas
faces.
— Vamos pensar hipoteticamente.
Ele retirou a minha toalha, pegando o óleo que eu gostava de
usar, depois pingou algumas gotas em suas mãos, começando a
espalhar pela minha barriga.
— E se, hipoteticamente, participarmos de uma noite de
bebidas e as camisinhas sumirem?
— Hipoteticamente, não vamos transar. — Ele fez uma
careta, pegando mais óleo, ele foi descendo, começando a acariciar.
— Ah, não jogue sujo Gabriel.
— E se minhas mãos te acariciarem assim. — Seus dedos
deslizaram por entre as minhas dobras, eu abri as pernas, querendo
mais. — É só uma massagem, não seja tão safada, estamos tendo
uma conversa importante.
Meu corpo estava esquentando, ele me tocava sem
pretensão, pelo menos era o que parecia, mas eu não queria saber.
— Eu não consigo pensar com clareza — gemi quando ele
esfregou meu clitóris. — Impossível... — tentei me controlar, mas
não dava. Ele era experiente demais.
Sabia o que fazer comigo.
— Então se minhas mãos te acariciarem assim, talvez, uma
coisa vá levando a outra...
— Sexo sem proteção? — inquiri, meio desorientada.
— Eu nunca transei sem proteção, apenas com você, a
minha mulher.
— Parecemos um casal com cem anos de relacionamento. —
Fechei os olhos lutando para manter as pernas firmes. — Isso é tão
bom. — Segurei na borda da pia, ou correria o risco de cair.
— Você quer meu pau dentro da sua boceta, hum?
— Deus, que mudança brusca — ri, nem um pouco chocada
com sua ousadia.
Tentei lhe dizer que, sim, eu o queria, mas sem precisar
verbalizar. Eu estava pronta para aquele passo, para me entregar de
costas.
— Você gosta do meu pau te fodendo gostoso. — Ele
deslizou a mão na pequena cicatriz que eu tinha nas costas. — Mas
estamos conversando.
— Eu prefiro outro tipo de linguagem. — Mordi o lábio. — Vai
me fazer implorar?
— Não. — Suspirei quando ele esfregou o pau em mim. —
Agora não.
A promessa ficou ali, junto com meus pensamentos quando o
senti me penetrando.
— Está tudo bem? — Beijou meu ombro. — Quer continuar
assim?
— Quero.
— Então olha pra o espelho. — Obedeci, vendo-o agigantar-
se sobre mim. — Assim... — Seu olhar prendeu o meu, nunca me
deixando refugiar-me na vergonha.
Era proibido.
Perdendo-me nele, nas sensações, eu sentia que poderia
mover cada estocada lenta, escorregadia e agonizante. Ele era
grande em todos os sentidos, mas encaixava dentro de mim como
se eu fosse feita especialmente para ele.
— Você é meu número, sabia? — Ele segurou meu pescoço,
beijando-me. — Eu te quero tanto.
Ele demonstrava todos os minutos do dia, ele demonstrava
que eu era importante, ou melhor, que eu era fundamental. Depois
de toda aquela situação horrível que Lysander nos meteu, foi como
girar uma chave.
Uma chave que abria a porta da felicidade.
— Consegue sentir como somos incríveis juntos? — Ele me
fodeu mais rápido. — Você está sob a minha pele, caralho, eu sou
louco por você.
— Sim, eu percebo — arfei, sentindo que ia gozar.
Ele esfregou meu clitóris e eu mal tive tempo de me segurar
antes de sentir que estava desmanchando.
— Ahhh, meu Deus...
— Porra... — Ele ficou mais frenético, e isso prologava meu
próprio prazer. — Ah, que delícia do caralho. — Gabriel gemeu,
socando tudo e deixando lá dentro. Podia sentir ele pulsando. —
Boceta gostosa. — Gemi quando ele deslizou fora. — Pingando
minha porra. — Ele beijou as minhas costas. — Hipoteticamente,
poderíamos repetir todos os dias.
— Vou precisar fazer exercícios — brinquei, ele concordou.
— Sim, eu estou pegando leve com você. — Um sorriso
arrogante se desenhou em sua boca.
— Convencido.
Ele deu um tapa na minha bunda, apontando para boxe.
— Segunda rodada.
51
Gabriel Demonidhes

Jenny visitava sua mãe todos os dias, várias vezes. Em


algumas ocasiões, ela parecia mais otimista; em outras, nem tanto.
Hoje era um desses dias.
Não gostava de vê-la triste, isso mexia com os botões do
meu coração tolo, e eu não sabia lidar com tudo aquilo ainda.
— Pare de olhá-la como se, a qualquer momento, ela fosse
sumir. — Lysander cruzou os braços.
— Não fale merda — grunhi, ouvindo Jenny cantarolar partes
de uma música que já tinha ouvido antes.
Era inédita, pela minha experiência em seu repertório.
— Ela canta para a mãe, como se, de alguma forma, pudesse
ajudar. — Meu irmão estreitou os olhos. — Parece que a mulher não
deseja acordar. Isso é um reflexo dos traumas, creio que tenha
ficado com a pior parte.
— Não sei como vai ser quando ela acordar. — Recostei-me
na parede de vidro. — Os planos delas eram outros, e não incluía
um irlandês assassino no pacote.
— Vocês estão praticamente casados. A mãe de Jenny não
tem sobre o que opinar.
— Elas são muito ligadas, você não entende.
— Claro que não. — Franziu o cenho. — Parece que você
está amolecendo.
— Só parece mesmo. — Olhei para a minha mulher.
Ela estava de olhos fechados, segurando a mão de sua mãe
contra o rosto.
— Não é como se eu a deixasse ir. — Dei de ombros. — Não
é apenas sobre os bebês, é sobre ela.
— Você a ama, irmão. — A repulsa não me passou
despercebida, e eu sabia que Lysander não fazia de propósito.
Ele era apenas daquele jeito.
— Você sabe disso há muito tempo, mas ainda continua
insistindo em perguntar. — Sorri. — Sim, eu a amo.
— Ela sabe?
— Deve saber, eu tento demonstrar. — Franzi o cenho,
sentindo que alguma coisa estava fora do lugar. — Jenny precisa ir
se acostumando devagar com as coisas, eu aprendi que não posso
despejar as minhas demandas em cima dela, pelo menos não todas
de uma vez.
— Nunca imaginei que você pudesse ser paciente para algo.
— Lysander balançou a cabeça. — Mas compreendo que as coisas
mudam.
O celular do meu irmão tocou; assim que atendeu, ele
estreitou os olhos, parecendo chateado.
— Estamos indo. — Pelo tom, eu aceitei. A conversa não
levou mais que alguns instantes. Quando desligou, Lysander olhou
para mim.
— O que foi?
— Rocco Masari solicitou o Ricto.
Merda!
52
Gabriel Demonidhes

Rafael apontava para a imagem que ele havia destacado na


sala de reuniões dentro do nosso Complexo. Ele havia recebido os
dados da missão que cumpririam o Ricto de Rocco Masari, e agora
passava as informações para nós.
— Sharif Al-Halah está morto — Rafael proferiu, apontando
para a divisa do rio Benue. — Houve um conflito armado na região,
as Forças das Nações neutralizaram muitos homens do exército de
Ahm-Shëer, mas tiveram perdas também. A principal, foi da Capitã
Lara O’Brien, é ela que devemos resgatar.
— E por que as Forças das Nações não fizeram isso? —
Cruzei os braços.
Os detalhes da parte burocrática das elites militares não me
interessavam; por outro lado, Rafael sabia de absolutamente tudo,
e, por isso, nunca era pego de surpresa.
Eu só precisava saber em qual direção ir, e o restante eu
resolveria.
— Há uma regra nas Forças das Nações: soldados que
ficarem para trás, não serão resgatados. Eles acreditam que se há
possibilidade de alguém com o treinamento que possuem ser pego,
então não irão arriscar mais soldados num resgate. Eles são caros
demais.
— Quanto amor. — Balancei a cabeça, achando que aquela
regra era apenas uma justificativa para serem filhos da puta.
Parecia-me conveniente demais.
Se, porventura, qualquer membro da Ordem ficasse para trás
nós voltaríamos com mais poder de fogo, e, se fosse qualquer um
de nós, então nós derrubaríamos o mundo tijolo por tijolo.
Mas ninguém seria deixado.
— Essa garota. — Rafael colocou a foto dela. — Eu estava
de olho em Lara O’Brien desde o casamento do nosso irmão. Na
verdade, foi ali que ela chamou a minha atenção.
A garota era linda, uma belíssima ruiva de rosto angelical.
Mas eu não me enganava. Seu olhar era afiado, profundo demais,
que só pessoas que já haviam visto e feito coisas horríveis eram
capazes de ter.
— Ela agia de como se estivesse interpretando um
personagem. Quando a investiguei, eu descobri o porquê. — Ele
trocou a imagem, a foto da garota de aparência delicada, vestida
com roupas elegantes, mudou para a de uma mulher
ensanguentada, portando um fuzil que apenas especialistas usavam
e vestida com roupas de guerra. — Lara é uma das melhores
armadoras que as Forças das Nações possui, foi a melhor da turma,
e recebeu apadrinhamento de um General muito influente, para que
recebesse permissões de treinamentos especiais. Ela é Sniper, com
relatos de sucesso em tiros de um quilômetro.
— Não me ferra! — Aquela informação me surpreendeu.
Finalmente parecia com uma concorrente à altura.
Meus irmãos eram fodas nas zonas de tiro, mas não eram tão
bons quanto eu. Afinal, era eu quem desenvolvia as armas, as
experimentava.
Tinha conhecimento de cada parte da mecânica da coisa, e a
melhor maneira de manuseá-las.
— Lembra-se de que eu falei sobre uma engenheira de
armas? — Acenei. — É ela.
Ele trocou a imagem para um dispositivo interessante de
acoplagem. Eu havia projetado algo parecido, a diferença estava na
parte interna do cano. O dela era cilíndrico, o meu com ranhuras
horizontais.
— Lara o desenvolveu ainda na faculdade militar. Suas
patentes são muito interessantes, eu a quero na Ordem.
— Você vai recrutar? — O tom de Lysander aumentou só um
pouco, meu irmão não gostava de mudanças.
— Eu não, nós. — Rafael cruzou os braços. — Mas
poderemos testá-la primeiro.
— Ela será uma incendiária, suponho? — Arqueei a
sobrancelha, meu irmão concordou.
Era muito difícil acontecerem recrutamentos na Ordem. O
último quem fez foi nosso pai, era muito significativo que Rafael a
quisesse.
— Pelo que Rocco falou, ela tem um rastreador. — Meu
irmão colocou a imagem da triangulação da área. — Só precisamos
ir buscá-la.
— Os novos amigos de Draikov vivem perdendo suas
mulheres. — Havia certo asco na voz de Lysander, ele não havia
perdoado Draikov, eu acho que nem eu. Ele apontou para a
triangulação da área. — O sinal está ativo na Tribo Nadgebale, uma
das maiores zonas de conflitos, tomada por terroristas e
extremistas, a Boko fica bem na frente de onde precisamos chegar.
— O canto da boca do meu irmão arqueou levemente, era o maldito
prenúncio de tempestade. — Eu gosto disso.
— Os relatórios da equipe que matou Sharif apontam que
eles estavam ao norte da tribo Zimbahue, e o conflito estourou
próximo ao rio Benue, bem na divisa de Chiata e Ugba, no território
nigeriano.
— O mesmo local das atividades de Sharif. — Esfreguei a
barba. — Parece-me muita coincidência.
— Não é coincidência, o general da equipe de Lara
trabalhava com Sharif, ele liderava a organização corrupta dentro do
exército americano. E essa era a carta que precisávamos para
entrar na sua vida.
— As células de polônio sumiram em “leilões” não
rastreáveis. — Razhiel franziu o cenho. — Eu acho que, talvez, nós
tenhamos encontrado o elo, afinal Sharif era a única pessoa que
sabia quem havia contratado o roubo, agora ele está morto, por um
general corrupto que leva terrorismo para a África.
— Exatamente — Rafael pontuou, então ele colocou a
imagem do general. — O comandante Davis lidera a equipe de
limpeza das Forças das Nações. Queima de arquivo total.
— Ele tem tudo. — Apontei o óbvio. — Ele monta os
esquemas, depois mata os envolvidos com o aval do governo. Filho
da puta, jamais seria descoberto.
— Em algum momento, pelo que descobri, os pais de Lara
foram mortos por Sharif. Sharif trabalhava com Davis. Ela estava
buscando informações sobre a morte dos pais, Chronus rastreou os
acessos. — Rafael sorriu. — Ela pediu dispensa, então surgiu a
última missão que era milagrosamente assassinar o homem que
matou seus pais. Ela matou Sharif, e ficou para trás.
— Porque eles não fazem resgates, e, por se tratar de uma
área de conflito, acreditam na morte dela — completei.
— Bingo! — Rafael balançou a cabeça, concordando.
— Que grande filho da puta!
Traição era uma das coisas mais abomináveis para os irmãos
Demonidhes. Ainda mais naquelas circunstâncias.
— O conflito estourou aqui. — Rafael voltou a imagem da
triangulação da área. — Mas o sinal do localizador aponta que Lara
está a doze quilômetros de distância, descendo o rio. — Ele marcou
a distância. — Mesmo que o corpo dela tenha sido arrastado pela
água, nessa época do ano o rio sofre com a seca, e há uma faixa de
terra que o divide em duas partes.
— Um corpo não ia passar, seria nesse ponto que ela ou o
localizador deveriam estar, mas ela avançou por mais nove
quilômetros — Razhiel falou, mexendo no computador. Outras
marcações apareceram na tela da sala de reuniões. — O sinal do
localizador está na tribo, e ela fica a quinhentos metros do rio. Não
sabemos em que condições a garota se encontra, mas há
possibilidade de que esteja morta nesse exato momento.
O silêncio se seguiu. Se nossa teoria estivesse certa — e
haviam grandes possibilidades de estarem —, a garota havia sido
levada para uma armadilha. Não teve chance de se defender.
— Nosso piloto está preparando nosso voo, sairemos em
breve para a Inglaterra, depois para a África.
— Por que não vamos direto?
— Uma das exigências do Ricto era que Dimitri Romanov
estivesse conosco.
Lysander se levantou da sua cadeira, a expressão não dizia
nada, mas os olhos queimavam com ira.
— Eu espero que não conceda mais nenhum Ricto a nova
família de Draikov. Não me importo com os bastardos. As mulheres
deles não são responsabilidade minha.
— As coisas não funcionam assim. — A voz de Heylel ecoou,
ele não havia dito nada até o momento. — Se quer odiar alguém,
que seja Draikov.
— Foda-se, tudo nos leva àquela família.
— Eles não têm culpa das ações do nosso irmão. — Rafael
apoiou as mãos na mesa. — Agora, voltemos ao que importa. Não
sei quanto tempo isso vai levar, então, preciso saber se está tudo
bem com as nossas mulheres. — Meu irmão estreitou os olhos. —
Amira está caminhando para o último trimestre, o que me diz?
— Elas estão bem. Amira não tenho o que dizer, e Jenny
segue cada dia mais forte. Em todos os exames que fiz, os gêmeos
não apresentaram problemas.
— Boris e sua família estarão em alerta. — Rafael acendeu
um cigarro, ele havia retornado ao hábito, mas só o fazia longe de
Amira. — Vamos decolar em breve.

***

Jenny andava ao meu redor, cada arma que eu colocava


dentro da bolsa ela parecia ainda mais nervosa. A cena parecia com
a anterior. Ela demonstrava sua aflição, o medo claro nos olhos.
— Por que você tem que ir? — Ela segurou meu braço. —
Por que tem que ir?
— Beag...
— Fica. — Sua expressão era de dor. — Fica aqui comigo.
Soltando as armas, eu a puxei para que pudéssemos sentar
na cama. Ela passou as mãos por meu pescoço, notei que estava
respirando mais difícil.
— Beag, você já deve saber que nós não deixamos assuntos
inacabados. — Tirei a sua franja dos olhos, mesmo que ela
insistisse em voltar. — O Ricto é um assunto inacabado, pois ele é a
palavra do nosso líder, e ele é a extensão de todos nós. Nenhum
caçador, pode dizer não para o Senhor da Ordem.
— Mas você não poderia ficar apenas hoje? — Ela me
abraçou. — Só hoje, pode colocar a culpa em mim.
O pavor estava nítido em sua voz. Sabia que ela ainda estava
se adaptando às questões da Ordem, e estava se saindo bem. Por
outro lado, eu compreendia que a vida que eu e meus irmãos
levávamos era estranha, havia sim a possibilidade de alguém, não
voltar para casa.
Antes não importava, mas agora sim.
— Beag...
— Odeio que me chame assim. — Ela me olhou com tanto
amor que eu não resisti, beijando-a.
Daquele jeito gostoso, molhado, que me fazia enlouquecer.
— Claro que odeia. — Mordisquei seu lábio inferior. — Você
odeia tudo sobre mim, não é?
— Sim, terrivelmente. — Seus olhos se encheram de
lágrimas. — Odeio tanto que me sufoca, e enlouquece. Só de
pensar em viver com você me enlouquece.
Eu não sabia se ela tinha problemas para dizer um “eu te
amo”, ou algo do tipo. Esse lance de falar ao contrário começou
como uma brincadeira, mas eu passei a compreender que havia
mais profundidade.
Eu não me importava, pois sabia a verdade. Conseguia
enxergar nos olhos dela, nos sorrisos, no jeito quando chamava
meu nome quando eu tomava seu corpo.
— Eu também te odeio de mais, Jenny. Tanto, mas tanto que
dói.
Inacreditavelmente, era muito mais fácil falar daquela
maneira.
— Por favor, Gabriel, fique comigo, com nossos filhos.
Havia tanto receio misturado com amor, que ela me deixava
tonto. Jenny havia aberto o coração, deixando uma parte de si para
mim, e eu fui completado por ela. Não havia mais segredos.
Ela estava nua, completamente exposta para mim.
— Preciso ir, pequena. — Beijei a ponta de seu nariz. —
Quando eu voltar, quero ouvir aquela música que estava
cantarolando para a sua mãe.
— Eu fiz para você — revelou, as bochechas aquecendo. —
Para o quanto nos odiamos.
Empurrei seus cabelos para trás, estava muito orgulhoso
dela. Notava que o caderno de composições não saía de seu lado,
agora faltava que voltasse a cantar e gravar.
Sentia falta daquilo.
— Você vai cantar para mim, não é?
— Para sempre, se você quiser.
Jenny não fazia ideia do poder que ela possuía. Em relação a
mim era como se ela fosse o meu próprio Ricto, eu faria de tudo por
ela. A artilharia pesada era minha, e nada no mundo me impediria
de voltar para casa.
Para ela.
Nem a morte.
— Prometa que vai voltar, Gabriel.
— Eu prometo. — Pisquei um olho, me aproximando de seu
ouvido. — Vai se preparando, que, quando eu chegar, vou encher
essa boceta de porra.
— Meu Deus, por que você é assim? — O tom de vermelho
em seu rosto se aprofundou. — Estamos falando coisa séria.
— E isso não é? Pense sobre o assunto, vou te comer na
frente do espelho de novo, mas vou mudar o ângulo. — Ofegou, ela
não dizia, mas gostava das minhas putarias. — Você vai ver meu
pau entrando e saindo.
— Gabriel!
— Um privilégio que eu tenho, acho justo compartilhar com
você. — Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, eu a beijei
duro, rápido e intenso. — Não se preocupe.
Apressado, juntei o restante das coisas. Era ali que eu
guardava as minhas armas de estimação, as que eu havia
modificado e que possuía poder de fogo maior, mesmo que não
aparentassem.
Antes de sair, beijei a minha mulher uma última vez.
— Estarei no celular o tempo todo. Manda mensagem que,
assim que puder, eu respondo. — Acariciei seu rosto, gravando
suas feições preocupadas. — Até breve, amor.
Eu e meus irmãos decolamos rumo a Inglaterra, deixando em
casa qualquer traço de humanidade. O plano estava previamente
traçado, mas cada um se recolheu em seu próprio lugar para checar
material.
O que nos garantia sucesso em missões daquele tipo, era o
excesso de cuidado e atenção que empenhávamos em cada etapa
do processo. Não era como se a Boko fosse um grupo de idiotas
que havia ultrapassado a linha.
Eles eram um grupo forte, ligados intimamente com suas
tradições e religião. Eles eram perigosos e se multiplicavam
rapidamente. Até o momento, eles não haviam avançado para além
do que era permitido.
Entretanto, poderiam fazer. Há algum tempo perambulavam
na borda.
Hoje, seria um aviso para recuar.
— Descansem. — Rafael desligou o seu computador. —
Quero que estejam prontos para o que vem a seguir.
Havia um treinamento de meditação que era justamente para
que conseguíssemos controlar o máximo possível de nossas
funções corporais. Isso significava manter o ritmo cardíaco e as
respirações calmas.
Eu não tinha ido muito longe no treinamento, não tinha
paciência para tanto.
— Irmão, você precisa descansar — Rafael murmurou,
estava na poltrona ao lado da minha. — Eu posso imaginar que
esteja um tanto ansioso para resolver o problema e voltar para
Jenny, eu também quero voltar para casa. Então, sem
intercorrência, poderemos fazer isso mais rápido.
Como quase sempre Rafael tinha razão.
Eu iniciei a meditação, primeiro fechando os olhos, e me
concentrando no som da minha respiração, entrando e saindo. Aos
poucos, minha mente foi ficando em branco, os pensamentos
perdendo-se.
Surpreendentemente, estava entrando no estado que os
instrutores da Ordem chamavam de Modus On-off, que era quando
os caçadores “hibernavam” antes de uma missão.
A última coisa que eu me lembrei antes de ficar
semiconsciente, foi que eu tinha um bom motivo para voltar para
casa.
Jenny Grenadine, em breve, Senhora Demonidhes.

***

A casa de Dimitri Romanov foi completamente esvaziada


para a nossa chegada. O homem que eu lembrava de ter conhecido
no casamento de Draikov, parecia uma sombra desesperada do que
foi.
Podia ver o desespero em seu semblante, a vontade de sair
de qualquer jeito para buscar sua mulher. Ele queria trazê-la para
casa, viva ou morta.
Eu o compreendia. Agora que tinha minha Jenny, eu
compreendia.
— Fechamos o planejamento — Rafael falou, chamando
atenção de todos. — Vamos sair agora.
— Rocco, cuide de tudo para mim, se algo der errado... —
Dimitri falou baixinho, mas estávamos atentos a cada coisa que ele
dizia.
— Não vai, meu irmão. — Rocco confortou seu amigo. —
Não com esses caras. Confie em mim quando digo, a Ordem
sempre cumpre com sua palavra e ela sempre paga as suas
dívidas.
Sim, nós sempre pagávamos nossas dívidas, como também
a cobrávamos a todos que nos deviam.
— Obrigado. — Eles se abraçaram.
A interação entre ambos me fez compreender que havia uma
irmandade ali, caso contrário, Rocco jamais teria usado uma carta
tão poderosa quanto o Ricto, para ajudar outra pessoa.
Eu me afastei, não queria começar a enxergar aquelas
pessoas além do rancor que Draikov fez surgir em meu coração. Eu
ia fazer o que era preciso, então voltar para a minha mulher e filhos.
O resto, poderia se foder.
Já a caminho da pista de decolagem, Dimitri mantinha-se
atento a nós. Eu até podia imaginar que ele estivesse se
questionando o porquê de estarmos tranquilos quando estávamos
prestes a invadir uma zona de guerra.
— Vocês não moram aqui na Inglaterra, como conseguiram
chegar tão rápido?
Ele deveria estar cogitando permissões para decolagem, e
organização da viagem como um todo. Mal sabia o bastardo que
sempre estávamos prontos.
— Resolvendo problemas — menti. — Aparando algumas
arestas.
— Como assim? — Franziu o cenho, entre curioso e confuso.
— Ovelhas desgarradas. — Sorri, e ele me olhou de um jeito
que me divertiu. — Mandamos todas de volta para casa.
— Vocês são como uma máfia?
A vontade que eu tinha era de trucidar o filho da puta. Sua
curiosidade me irritava mais que o normal, e o fato dele fazer parte
da nova família de Draikov, piorava tudo.
— Na boa. — Ergueu as mãos, em tom apaziguador. — Não
me importo, eu fui criado por um dos maiores mafiosos da Rússia e
não pensem que era do tipo que deixava o perdão rolar solto.
— Sabemos quem é Roman Ivanovich — Rafael falou com
simplicidade, e eu vi a cara de Dimitri ficar tão pálida quanto cera.
Aquele mafioso não costumava mostrar o rosto, ele era uma
incógnita. Mas construiu seu império sem chamar atenção da
Ordem.
Ele agia com crueldade e temor, mas sempre dentro das
regras.
— Então, se não fazem parte de uma máfia, mas sabem
quem são os mafiosos, então quem são vocês?
— O que eles temem — Heylel encerrou a conversa.
Sorri, gostando de como meu irmão chegava nos assuntos.
O voo até a Nigéria foi insuportável porque Dimitri estava
impaciente demais. Ele não parava de bater os dedos na mesa ou
sacudir os pés.
Bastardo irritante.
— Se concentre e pare de batucar os dedos! — Rafael havia
dito.
Mas ele não conseguia se segurar, a situação o havia
colocado num lugar ruim, e eu não podia dizer que entendia, porém
me lembrava de como Rafael havia ficado quando Amira fora
sequestrada.
No caso de Dimitri, as chances de sua mulher estar viva eram
pequenas.
— Sabe usar? — Observei Heylel sentar-se na poltrona em
frente a ele e mostrar uma arma. — Retire as balas do pente, conte-
as e depois recoloque, faça isso e controle-se. — Meu irmão lhe
entregou a arma, depois voltou para o seu lugar, mais afastado.
Desde a volta do Oriente Médio, Heylel estava se
comportando com estranheza. Seja lá o que havia acontecido lá, ele
não nos contou tudo, eu tinha aquela convicção.
Ademais, não dava para questionar Heylel, ele não ia contar
nada.
O tempo das revelações ainda não havia chegado.
Com Dimitri mais controlado, o voo passou sem
intercorrência. Na última hora, todos nós nos vestimos com os
uniformes adequados para a floresta. Eu chequei as minhas armas,
depois o fuzil e os óculos noturnos.
Estava pronto para um pouco de diversão.
— Nosso trabalho começa agora — Rafael avisou assim que
pousamos na pista clandestina, ao seu lado, Heylel estava girando
as Angellus, ele iria cobrir a retaguarda do nosso líder.
— Você está pronto? — Lysander perguntou a Dimitri. Meu
irmão estava armado até os dentes, em suas costas, havia uma
bolsa grande de primeiros socorros.
— Como nunca estive — Dimitri respondeu, ele havia
manuseado a arma por cinco horas.
— Então vamos, o inferno fica logo ali.
Ele arregalou os olhos, compreendendo que não faríamos o
caminho do rio. Seguiríamos pela terra, e isso significava que
precisaria atravessar o acampamento terrorista da Boko.
Rafael fez o sinal, e nós avançamos. A primeira parte de
missão era reduzir o acampamento terrorista a nada, eu e Lysander
estávamos lado a lado, e, antes que nossos alvos compreendessem
o que estava acontecendo, foram mortos.
Com um tiro limpo na testa ou com a garganta cortada.
Quando não havia mais nenhum bastardo para matar, eu me
encarreguei de incendiar as tendas.
Aquele era o aviso de que estávamos de olho.
Sem alarde, silenciosos como a brisa, letais como uma arma
perfeita.
53
Jenny Monroe

Há muitos dias, passava grande parte do meu tempo com a


minha mãe. Era a melhor forma de amenizar a saudade absurda
que eu sentia de Gabriel e dos nossos momentos incríveis.
Eu nunca poderia imaginar que, em alguma parte da minha
vida, estaria tão conectada a um homem, tão flagrantemente
diferente de mim, e da ideia de vida tranquila que eu desejava, era
com ele e com sua aura turbulenta que eu estava sendo
imensamente feliz.
— Eu descobri uma coisa, mamãe. — Pegando sua mão, a
usei para acariciar meu rosto. Era uma forma de me confortar e
fazer parecer que era ela fazendo-me carinho. — Quando estamos
felizes, o tempo passa muito rápido. Você acredita que, às vezes, eu
nem sei qual dia da semana é? — A saudade ferroou ainda mais
forte. — Mas, quando estamos tristes, o dia se arrasta infinitamente.
Não parece que tem somente vinte e quatro horas.
Uma parte de mim esperava que ela reagisse, mas não havia
nada. O monitor cardíaco continuava igual.
Eu já havia contado tudo que eu e Gabriel vivemos — com
alguns cortes — e ela não havia reagido. Eu lhe disse que esperava
gêmeos, falei sobre os nomes e o quanto estava ansiosa para
conhecer meus bebês.
Mas não importava que eu lhe contasse as histórias mais
bonitas, ou o sentimento grandioso que me fazia sentir cheia, ela
continuava igual.
Sempre igual.
— Estou fazendo vinte semanas de gestação, acho que, em
breve, eu vou poder ver o sexo deles. Por enquanto, estão se
escondendo — murmurei, tentando não lhe passar minha tristeza
por vê-la naquela situação. Por não estar vivendo aquele momento
comigo.
Além de tentar lhe dar algo para agarrar naquele sono
profundo, eu não podia fazer mais nada. Se eu pudesse estalar os
dedos e fazer acontecer, eu faria.
Com toda certeza, eu faria.
— Minha barriga está enorme. — Fiz um carinho suave, eu
podia sentir que estavam de um lado só. — Amira disse que eu vou
perder o centro de equilíbrio em breve. — Não me importava, eu
estava mesmo era ansiosa para sentir meus bebês chutando, como
ela sentia. — Eu já lhe contei sobre a querida amiga que tenho?
Sim, eu havia contado, mas continuava repetindo as mesmas
histórias. Agora precisava construir mais lembranças, para que
pudesse passar para ela.
— Amira é uma mulher muito forte, sabia? Ela parece tão
tranquila, mamãe. Nossos homens estão fora há tanto tempo e as
mensagens que trocamos não são capazes de resumir tudo que
sinto.
Olhei para o monitor cardíaco, Lysander havia me dito que,
quanto mais próxima de despertar ela estivesse, mais reações às
emoções seu coração teria. Era por isso que eu esperava, um bip
diferente, um aperto de mão, qualquer coisa que me dissesse que
estávamos no caminho certo.
— Mãe. — Beijei seus dedos, fechando os olhos. — A vida
aqui é tão maravilhosa, acorde, para que possa ver por si mesma.
Eu prometo que seremos felizes.
Não me deixe viver nosso sonho sozinha. Completei apenas
para mim, lutando para não chorar.
Queria poder lhe contar sobre o meu amor, olhando em seus
olhos, e vendo sua felicidade por mim. Ela notaria o quanto Gabriel
me inspirava, o quanto era fácil escrever letras bonitas quando
pensava nele.
— Não posso ser plenamente feliz sem você — murmurei,
beijando sua testa.
Todas as marcas da violência que sofremos já haviam
desaparecido há muito tempo. Seu rosto estava tão bonito quanto
eu me lembrava, e eu queria muito que ela pudesse florescer nessa
nova vida, como eu havia florescido.
Aqui não precisávamos ter medo, vivíamos numa fortaleza.
As pessoas eram boas. Eu tive tempo para descobrir minha
autoconfiança. Eram nítidas as mudanças que ocorreram em mim,
eu conseguia enxergar a nova Jenny, e eu responsabilizava Gabriel
pela estabilidade emocional que eu precisava para conseguir ser eu
mesma.
— Mãe, eu estou tão apaixonada — ri baixinho, sempre
repetia essa parte. Se houvesse alguma maneira dela estar me
ouvindo, então aquela era uma das coisas que eu desejava que ela
soubesse. — Eu também te amo. — Beijei sua outra mão. — Qual
música quer que eu cante? — Fechei os olhos, começando a
cantarolar Sleeping at last:

“Você me ensinou a coragem, das estrelas antes de partir;


Como a luz continua interminavelmente, mesmo após a morte.
Com falta de ar, você explicou o infinito,
quão raro e belo é até mesmo existir.
Eu não pude deixar de perguntar,
para que você me dissesse tudo de novo.”

A última estrofe eu cantei com um sorriso nos lábios. Em


algum momento, ela me responderia e eu só precisava continuar até
que o dia chegasse.
— Amanhã estarei de volta, prometo. — Dei-lhe um último
beijo, antes de partir.
Saindo do Centro Médico, não fui bisbilhotar nas outras áreas
do Complexo. Pelo que Gabriel havia me dito, cada irmão possuía
sua própria área, mas não tive interesse em visitar quando ele
propôs.
Agora que não estava aqui, não fazia sentido, ainda mais que
o lugar era enorme e assustador. A única coisa que me impedia de
surtar sabendo que minha mãe estava sozinha naquele mausoléu
debaixo da terra, era que ela estava “dormindo”. E sendo
monitorada por câmeras, e por Boris.
Estava saindo do elevador quando meu celular vibrou,
alertando mensagem.
— Meu Deus. — Senti borboletas no estômago, porque eu
sabia quem era. Na pressa de mexer no aparelho, eu quase o
derrubei. — Calma, Jenny, calma — rindo de nervoso, eu abri o
ícone e o nome de Gabriel estava em destaque.
Apenas os contatos da família estavam adicionados. Todos
os dias, eles me mandavam mensagem perguntando se estava tudo
bem — se eu estava bem —, nunca havia me sentido tão querida e
tão parte deles.
Clicando na mensagem, eu quase não acreditei no que li.

Gabriel: Nosso quarto parece muito grande sem você.

— Ele voltou. — Uma euforia enorme me dominou, foram


tantos dias de saudade que nem parecia verdade ele estar ali.
A vontade que tive foi de correr, mas não estava louca de
fazer algo do tipo, era capaz de Gabriel sofrer um enfarte.
Sorrindo como uma boba, eu vi que ele estava digitando.

Gabriel: Eu terei que caçar a minha mulher, é isso mesmo?

Não pensei em nenhum momento antes de responder.


Provocar Gabriel era uma das coisas que eu adorava fazer, porque
tudo se tratava de diversão ou safadeza. Nunca era ruim.

Jenny: Sim, eu acho que você terá, mas não sei se vai
conseguir. Sou ótima em me esconder.

Respondi, sentindo o corpo todo formigando. Assim que as


portas do Complexo travaram, eu me apressei em direção à sala de
cinema. Ia me esconder ali e ele não ia me encontrar tão rápido.

Gabriel: Então fuja, porque eu estou indo.

Estremeci, em outros tempos a possibilidade de ser “caçada”


seria aterrorizante, inclusive algo parecido povoou meus pesadelos,
por muitos anos, entretanto, o que eu sentia naquele momento era
uma mistura de antecipação, saudade, vontade de pular nos braços
de Gabriel.
Medo nem sequer fazia parte da equação.
O celular vibrou em minha mão, uma risada escapou. Eu
estava ficando louca com aquela brincadeira.
Gabriel: Qual a possibilidade de você lamber o meu pau
como se fosse um sorvete?

Meu rosto esquentou com a crueza de suas palavras. Eu


quero experimentar, estava curiosa para saber como ele se sentiria,
em vista que amava quando ele beijava a minha boceta daquele
jeito tão safado.
Eu ainda não tinha feito sexo oral nele, e Gabriel não me
empurrava, o fato dele mencionar era porque não passava de um
devasso boca suja. Por sua culpa estava me tornando parecida com
ele — apenas entre quatro paredes — devo salientar.
Antes que ele pudesse me encontrar, enviei uma resposta:

Jenny: Você quer que eu fique de joelhos?

Quando apertei enviar precisei apoiar uma mão na parede e


respirar algumas vezes, minha barriga estava dando cambalhotas
de ansiedade, as pernas estavam bambas e a calcinha molhada.
Esperei que ele digitasse uma resposta, mas não o fez.
Por que ele não digitou uma resposta? Franzi o cenho,
confusa. Gabriel nunca deixaria de responder alguma safadeza,
ainda mais uma como aquela. Talvez estivesse se concentrando em
me encontrar.
Eu me apressei para a sala de cinema, eu estava entrando
quando tudo girou.
— O que... — Alguém me puxou para dentro do cinema e eu
só não gritei porque uma mão tampava minha boca.
— Não grite, sou eu. — A voz de Gabriel fez minha calcinha
encharcar ainda mais. Juro por Deus que foi instantâneo,
principalmente depois de tantos dias sem nos vermos. — Que
saudade de você, mulher.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele me encostou
na parede, devorando minha boca. Suas mãos deslizaram por meu
corpo, apertando minha bunda, seios.
Nossos lábios se buscaram com desespero flagrante, ânsia,
vontade. Ele chupava minha língua, mordia, gemendo gostoso e me
deixando louca. Sua barba me arranhava, deixando-me ainda mais
arrepiada, excitada e delirante.
Gabriel era puro afrodisíaco. Seu toque, o cheiro, calor do
corpo. O modo como sua barba arranhava meu rosto, arrepiando-
me inteira.
— Eu estava ficando louco. — Ele mordeu meu lábio, tinha
uma predileção por isso. — Porra, que saudade dessa boca
gostosa, sente como você me deixa. — Ele guiou minha mão até o
volume da sua calça. — Estou com as bolas doendo tem quinze
dias.
— Eu também — ofeguei, apertando sua ereção.
— Sofreu com as bolas doendo? — Estávamos no escuro,
mas eu podia jurar que podia ver o brilho divertido dos seus olhos.
Gabriel era maluco, fazia piadas nos piores momentos, era
um anticlímax profissional.
— Você sabe — respondi, tomando a iniciativa de enredar a
mão dentro de sua calça.
— Ahhh, caralho — gemeu, quando eu o acariciei — Que
foda.
O corpo dele estremeceu, e eu sabia que era o momento
para deixá-lo louco. Tentei remover sua calça, mas Gabriel não
deixou.
— Não vou receber o primeiro boquete da minha mulher no
escuro. — Sua voz soou pesada. — Quando você estiver com meu
pau na boca, eu quero ver tudo.
— Gabriel... — arfei, excitada com a imagem que ele colocou
na minha cabeça.
— Eu só tenho alguns minutos para te deixar ansiando o meu
retorno. — Arqueei quando puxou as alças do meu vestido, expondo
meus seios.
Ele segurou ambos, massageando como se estivesse
testando o peso, o mero ato me fez estremecer de prazer.
— Que delícia — arfei, ensandecida.
— Estão maiores.
— Sensíveis também. — Meu fôlego saiu trêmulo.
— Caralho, eu vou mamar gostoso. — Ele lambeu meu
mamilo. — Valeu a pena ter fugido de Rafael.
— Você é louco. — Agarrei seus cabelos, pronta para o mar
de sensações que ele me proporcionava.
— Com certeza sou muito louco por você, agora chega de
conversa.
Foi o único aviso que eu tive antes de Gabriel começar a
chupar meus seios. Ele alternava de um para o outro, e cada
sugada mais forte eu sentia minha boceta contraindo, o clitóris
palpitando de desejo.
Qualquer pensamento coerente derreteu quando ele enfiou a
mão dentro da minha calcinha, seus dedos escorregaram, eu estava
molhada demais, quente, louca para tê-lo dentro de mim.
— Porra. — O gemido de Gabriel foi profundo, doloroso. —
Preciso dessa boceta na minha boca.
Eu apenas me segurei, antecipando o prazer que viria.
Gabriel puxou meu vestido e a calcinha, deixando-me
completamente nua. Por um momento ele tateou a minha barriga,
distribuindo beijos aqui e ali.
— Vem aqui, amor. — Ele me guiou. Eu precisei colocar uma
perna de cada lado de seu corpo, suas mãos vieram para a minha
bunda e ele me puxou para si. — Agora coloca essa boceta na
minha cara.
— Talvez, nós devemos ir para... — Minhas palavras se
transformaram num gemido deliciosamente longo, por causa do jeito
que ele me lambeu.
Estava escuro, mas eu olhei para baixo, tentando vislumbrar
algo. Mas não consegui, então com uma mão eu me apoiei na
parede, com a outra segurei em seu cabelo.
— Gabriel, isso é... ohhh, não pare, não pare. — Joguei a
cabeça para trás, puxando fôlego, sentindo que dentro de mim um
caldeirão fervia.
Um dedo me penetrou, ele foi gentil, brincou um pouco.
Minhas pernas tremeram, eu não ia aguentar ficar em pé.
— Gabriel...
— Eu sei, eu sei.
— Por favor, preciso de você dentro de mim.
— Eu já estou dentro de você. — Tocou a minha barriga. —
Mas eu entendi o que precisa. — Ele me puxou para baixo. — Vem,
amor, senta no meu pau.
Ele me guiou, quando senti a cabeça do pau tocar a minha
vulva eu quis descer de uma vez, mas ele segurou, mantendo um
ritmo lento.
— Assim, devagar, você precisava se acostumar com meu
tamanho.
Gabriel começou a massagear meu clitóris do jeito que
apenas ele sabia. Eu senti que ficava mais suave, molhada,
escorregando mais fácil.
— Porra, isso.
Gememos juntos quando ele entrou por completo. Eu o
busquei, beijando-o enquanto ele me ajudava a subir e descer,
aceitando tudo que ele podia me dar. Não tínhamos muito tempo,
como ele havia dito, mas o pouco que Gabriel havia roubado para
nós era suficiente para matar um pouco da saudade.
O som de sexo, o cheiro, nos abraçava dentro do pequeno
casulo que criamos. Tudo se resumia a ele, a sua boca na minha, no
prazer absoluto que eu sentia crescer cada vez que eu sentia as
paredes internas esticando-se para aceitá-lo.
Era sempre demais para mim, no entanto, perfeito.
— Que delícia do caralho — ele murmurou em minha boca,
ofegando de prazer.
Gabriel enlaçou a minha cintura, mudando nossa posição.
Minhas costas tocaram o chão acarpetado e macio, ele abriu mais
as minhas pernas, daquele jeito, quando tocava meu clitóris, meu
corpo faiscava.
Pelos sons dos meus gemidos, as reações do meu corpo e
os espasmos da minha boceta apertando, como se não quisesse
que ele saísse de dentro de mim, eram os sinais que ele sabia
reconhecer.
—Mais forte! — implorei, ele não o fez, mas o jeito que
estocava mudou, tornando-se mais longas, num ritmo louco, mas
cuidadoso.
— Me beija. — Ele tomou a minha boca, enquanto me fodia e
estimulava meu clitóris.
Era só daquilo que eu precisava. Mordi seu lábio, o prazer foi
tanto que não houve a menor capacidade de gritar, eu queria fugir,
meu coração parecia que ia explodir, a respiração estava errática.
— Caralho, porra que saudade! — Gabriel rosnou, fodendo-
me um pouco mais forte. — Vou gozar, ah, cacete.
Ele era tão vocal, fazia questão de me mostrar seu prazer.
Por alguns instantes, ele ficou em cima de mim, aliviando o peso por
causa da minha barriga.
— Obrigado pelo presente de aniversário, gostaria de ficar
com você. — Ele me beijou rapidamente. — Mas eu preciso ir.
— Espere, aniversário?
— Sim, três e três anos de merda. — Ele me beijou
rapidamente. — Agora eu preciso ir de verdade.
— Você vai demorar? Talvez possamos fazer algo para
comemorar.
— Além dessa trepada gostosa? — Ele me beijou, sua
respiração já normal, enquanto eu parecia um maratonista depois de
um trajeto de vinte quilômetros.
— Gabriel!
— Eu gostaria de ficar, mas vai haver uma cerimônia, Beag,
estamos preparando um teste e um recrutamento e isso vai durar a
noite toda. — Ele saiu de dentro de mim, eu suspirei, com o corpo
relaxado. — Eu fui incumbido de montar um circuito de treinamento,
preciso sabotar as armas, para ver se a nova possível armadora da
Ordem, é boa mesmo. Mas, ao invés de fazer meu trabalho, eu vim
te ver, agora vou resolver minhas pendências.
Eu sabia que ele era louco, e que a Ordem era algo de
extrema importância. Gabriel ter fugido para vir me ver, era mais
uma das muitas maneiras que ele comprovava seu amor.
— Vem, eu preciso voltar para o Complexo. — Gabriel me
ajudou a levantar. Assim que fiquei em pé, um líquido escorreu entre
as minhas pernas. — Gosto assim. — Ele tocou a minha boceta. —
Escorrendo a minha porra.
Gabriel falava tudo que pensava, ele não tinha um filtro entre
o cérebro e a boca. Não tinha como se acostumar, a gente nunca
sabia quando ele soltaria uma pérola. Naquele momento, eu
agradecia por estar escuro, porque o calor havia inundado meu
corpo.
— Deixe-me ajudá-la a se vestir. — Antes de fazer qualquer
outra coisa, Gabriel parou um momento para fazer carinho na minha
barriga. — Eu estava com saudade de vocês também. — Distribuiu
beijos, como se fosse nos bebês. — Anseio segurá-los nos meus
braços, ano que vem vou comemorar com vocês três.
Meus olhos foram começando a pinicar, era demais para mim
que aquele homem enorme, tatuado, com cicatrizes e que era um
assassino perigoso, agisse com tanta gentileza e fofura.
Gabriel era a melhor pessoa do mundo, pelo menos do meu
ele era.
Naquele momento só nosso, enquanto acariciava seus
cabelos, ele repousou o rosto em minha barriga, murmurando
palavras amorosas, num gaélico belíssimo arrastado.
— Beidh an t-am seo difriúil, beidh deis agat fás suas i
ndomhan saor in aisce, timpeallaithe ag sábháilteacht agus grá. Sin
gealltanas.
Suas palavras eram pontuadas por beijos, ele deslizava a
mão pela barriga. Eu não entendia nada, mas eu não pude deixar de
me emocionar. Talvez, o que ele dizia tivesse uma conexão com seu
passado, e isso era algo forte demais, pois estava intrinsecamente
ligado a quem era Gabriel Demonidhes.
— Jenny, você está bem? — Pigarreando, eu acenei, mas
então me lembrei de que ele não podia me ver.
— A maneira que você demostra amar nossos filhos. —
Inclinei-me para beijá-lo, naquele momento era bom que ele fosse
um gigante. — O que você disse para eles?
— É uma promessa em minha língua natal, um segredo
nosso, ninguém deve saber.
— Não vai me contar? — Acariciei seus cabelos, ele negou.
— Eu sou uma mamãe curiosa.
— Desta vez, eu vou ficar te devendo, Beag. Agora se apoie
em mim. — Eu o fiz, ele vestiu minha calcinha, depois o vestido.
Ele vestiu minhas roupas, juntos saímos do cinema como
dois namorados que havia aprontado, o que de fato havíamos feito.
Primeiro, quando ele fugiu para me ver; segundo, quando fizemos
amor num lugar que não deveríamos.
Eu nunca mais iria ver o cinema com os mesmos olhos.
Quando chegamos na sala, ele me levou até a escada de acesso
aos quartos.
— Eu deixei um presente para você em nossa cama. — Ele
me beijou uma última vez. — Eu espero que goste. Até breve, amor,
eu te odeio.
— Eu te odeio mais. — O abracei. — Cuidado, lembre-se de
que tem uma garota e duas crianças te esperando.
— Sempre.
Aquele homem era perfeito em todos os sentidos e,
sinceramente, apenas a minha opinião importava.
Gabriel se apressou em direção à saída, mas antes de sumir
de vista ele virou para mim, parecendo ter esquecido algo.
— Se eu chegar muito tarde, eu posso te acordar com uma
chupada?
— Gabriel!
Desesperada olhei ao redor, em pânico de alguém ter ouvido
o que ele disse.
— Eu posso? Vai ser para finalizar a comemoração do meu
aniversário.
Acenei, enquanto gesticulava para ele parar de dizer aquilo
em voz alta.
Seu sorriso aumentou, ele sabia que sempre ganhava
qualquer embate naquela direção. Antes de sair de casa, ele piscou
um olho. O gesto deixou claro que era uma promessa e que eu
poderia esperar, que ele ia fazer exatamente o que havia dito.
Levou alguns instantes para eu conseguir subir as escadas.
Eu havia acabado de fazer amor, mas agora estava com a ideia de
ser acordada com a boca dele em minha cabeça, e eu não sabia se
ia conseguir dormir, a ansiedade de esperar ele voltar com certeza
ia acabar meu sono.
— Gabriel... — Balancei a cabeça, apressando-me em
direção ao quarto.
Naquele horário, Kang não estava por ali, ele seguia em
treinamento e eles eram rigorosos demais. O pobrezinho tinha uma
rotina exaustiva e precisava socializar com os outros filhotes para
que não houvesse problemas.
O quarto estava impecável, como eu havia deixado, então eu
atravessei a sala, ansiosa para ver o que Gabriel havia aprontado, e
logo de cara meu coração derreteu.
Havia uma caixa de tamanho médio, com um laço verde, e
outras menores.
— Como pode ser tão incrível? — Sorri, como uma idiota ao
perceber a caixa de chocolates de tamanho considerável. Peguei o
bilhete que havia ali.

“Uma lembrança da Espanha.


Espero que goste desses chocolates, eu escolhi os sabores.
Desfrute, Beag.”

O gesto de Gabriel me fez sentir a mulher mais especial do


mundo, porque foi apenas depois que ele entrou na minha vida para
que coisas como aquela acontecessem.
— Você me fez perceber que eu mereço ser tratada com
amor. — Percorri os dedos pela caixa bonita, que mais parecia uma
joia. — E você também me fez perceber que merece todo o amor do
mundo, Gabriel.
Eu não consegui abrir a caixa de chocolate por puro apego
emocional, então passei para a caixa maior, nela também havia um
bilhete.

“Eu estava a caminho do Complexo na Espanha e avistei isso


numa vitrine.
Você consegue imaginar o mesmo que eu?
Te odeio, Gabriel.”

— Deus... — Havia pijamas fofos, de bichinhos. Um de leão,


com direito a juba; e outro de elefante, com orelhinhas. — Eu posso
imaginar, Gabriel. — Sentia o peito explodindo de amor.
Eu até conseguia imaginar a cena. Gabriel escolhendo cada
pijama, esticando-os diante dos olhos, sorrindo de satisfação ao
imaginar nossos pequenos vestindo-os.
— Eu te amo, Gabriel, que comprou pijamas de bichinhos. Eu
te amo.
54
Gabriel Demonidhes

Eu havia sabotado todas as armas do circuito avançado de


tiros. A maioria dos caçadores não perceberiam onde estavam as
mudanças, mas um bom armador tinha que saber. As principais
mudanças variavam entre pequenos ajustes na mira, gatilhos
frouxos e suportes desalinhados.
Militares não conseguiriam usar as armas, mas os Caçadores
da Ordem sim, e, pelo que Rafael havia dito, a garota que ele
desejava recrutar se enquadrava no último grupo, mesmo ela não
sendo uma de nós.
Ainda.
As informações apontavam que ela fora introduzida no
manuseio de armas por volta dos nove anos de idade e treinava
tiros desde então. Se fosse verdade tudo que Rafael dizia sobre ela,
ao final de seu teste ela diria quais problemas aquelas armas
possuíam, comprovando que, de fato, tinha um treinamento
semelhante ao nosso.
Em breve, nós veríamos.
— Ela vai ter que aceitar minha proposta. — Rafael enrolou
as mangas de sua camisa. — Nós estamos em rota de colisão com
a vingança dela, e eu posso tirar a chance dela se vingar do
bastardo que matou seus pais, e quase a matou. Em todo caso, eu
posso usar Dimitri para convencê-la.
Bastardo manipulador. Balancei a cabeça, a garota não
sabia, mas ela já pertencia a Ordem, tão logo aceitasse melhor.
— Lara é um soldado até a medula. — Heylel se aproximou.
— Ela não vai aceitar que seu direito de vingança seja retirado.
— Não, mas, eu sei quais botões apertar. — Meu irmão se
aproximou. — Parabéns. — Nos abraçamos rapidamente. — Eu
vou fingir que não sei que você deu uma escapada.
— Filho da puta. — Não escondi a diversão, estava de muito
bom humor.
Ficar com Jenny conseguiu acabar com o mau humor que foi
meu acompanhante durante todo o período que estivemos
separados. Apesar de ter sido apenas alguns minutos roubados,
eles foram suficientes para me dar energia necessária para controlar
o meu temperamento.
Há dias estava volátil demais, irritado, e não escondia de
ninguém. Estar tanto tempo afastado da minha mulher, numa época
que eu não podia, era suficiente para me fazer questionar se eu
seria capaz de continuar obedecendo ordens quando elas
conflitavam diretamente com meus interesses.
— Ver sua mulher não foi suficiente? — Rafael questionou, e
eu neguei.
— Foi pouco.
— Logo, irmão.
Pela primeira vez, meu irmão demonstrou o cansaço. Sentir
saudade não era um mérito apenas meu, Rafael estava
enlouquecendo e não era para menos, ele estava longe de sua
mulher, como eu estava da minha.
— Rafael? — Razhiel se aproximou e estava sorrindo como
um filho da puta que havia acabado de encontrar o mapa do
tesouro. — Eu acabei de interceptar uma ligação, as células de
polônio estão com o general Davis. O lance dos leilões foi fachada.
— Pelo tempo, elas foram desativadas, certo?
— Sim, mas ainda podem ser estudadas. Eu ficaria mais
tranquilo se nós as conseguíssemos de volta.
Rafael balançou a cabeça, parecendo animado.
— Inevitavelmente, teremos um encontro com esse general.
— O canto de sua boca arqueou e isso se dava ao fato de que
Rafael não gostava de deixar pontas soltas.
Células de polônio roubadas era uma ponta muito solta. O
mais interessante era que, nesse caso, a Cöntrax não estava no
meio, certamente a morte de Sharif Ah-Halah tenha feito parte da
queima de arquivos que envolvia no roubo.
A pergunta que ficava era: por quê? Qual a razão de o
general Davis assassinar seu maior aliado? Por causa das ameaças
de uma garota?
Não, não era apenas aquilo.
— Preparem-se, ela está vindo — Rafael avisou.
Lara, Dimitri e Lysander estavam vindo em nossa direção. A
garota não escondia o quanto ela estava chocada ao adentrar na
zona de treinamento avançado da Ordem.
Ali, ficavam os testes dos especialistas e levava alguns anos
para que os caçadores pudessem adentrar aquela área.
— Então, você mandou me chamar? — Ela encarou Rafael, a
postura era altiva, os olhos verdes faiscando. A garota era pequena,
mas tinha uma energia tão caótica que combinava com sua
aparência selvagem.
— Eu gostaria de testar uma coisa. — O tom de voz do meu
irmão não admitia desafios.
Ele não precisava falar alto para se impor, Rafael era tão
consciente de seu poder que ficava confortável em sua pele.
— O que você quer? — Lara ergueu o queixo, com o cabelo
ruivo flamejando.
Rafael apontou para o circuito que eu havia preparado. O
maior e mais complicado circuito de combate com várias armas de
fogo.
— Adiante, mostre o que sabe.
Observei seu namorado tentar puxá-la, mas a garota não se
moveu. Ela sabia que era um teste e tinha que passar.
— Como quiser.
Ela foi até a mesa das armas. De propósito, todas eram de
categoria inferior. Observei quando ela pegou um fuzil de linha
média e o desmontou rapidamente, recolocando as peças de volta
com a mesma velocidade, às vezes ela nem olhava para ter certeza
de onde estava encaixando as partes.
Eu gostei daquilo.
Lara estava checando as armas que estava escolhendo para
usar no circuito. Não importava, todas haviam sido modificadas para
dificultar seu trabalho. Não demorou muito para que ela estivesse
armada até os dentes e preparada para começar.
— Só para que saiba, o recorde é de quarenta segundos e
trinta e sete alvos derrubados nesse circuito, meu recorde aliás.
Mentira, meus números eram quarenta alvos em vinte e nove
segundos, todos os Demonidhes estavam abaixo dos trinta e sete
segundos, mas ela não precisava saber.
O intuito era aflorar seu instinto competitivo, mas isso só era
possível sabendo que havia possibilidade de vencer.
— Pronto para perder de novo?
Um sorriso se desenhou em meus lábios, eu havia perdido
uma pistola para ela na viagem de volta.
Ela não sabia, mas estava sendo manipulada. Perder a
pistola fazia parte do script. Queria que ela mostrasse quem era de
verdade, sem os subterfúgios que usava com aquele idiota que não
saía de sua cola.
O som de tiros começou, enquanto ela ia mudando as
etapas, eu a avaliava. A postura era impecável, o corpo sempre
bem-posicionado para receber o coice das armas de grande porte.
Apesar do tamanho, ela havia encontrado seu equilíbrio adaptando
o modo de atirar.
Era realmente muito boa no que fazia.
— O fuzil não está balanceado. — Ela olhou para Rafael. —
O contrapeso está com uma leve inclinação para a direita, desse
modo o tiro não sairá no alvo, e sim deslocado alguns centímetros
para o lado. — Sua atenção se voltou para mim. — A metralhadora
está com atraso de um segundo desde o aperto no gatilho até o
engate no sistema. Resumindo: suas armas não valem nada.
Gatilho frouxo. Sua avaliação me divertia.
— Bravo! — Rafael bateu palmas, um meio sorriso
suavizando seu rosto sempre tão sério. — Você fez trinta segundos,
acertou os quarenta alvos. — Ela revirou os olhos, pobre garota
arrogante que não sabe que perdeu. — Se vale saber, todas as
suas armas foram sabotadas. — Apenas acenou, concordando.
— O que você quer, afinal? — Deu um passo mais próximo
do meu irmão. — Se era um teste, eu obviamente passei, desde o
começo eu vejo a forma como vocês agem, estou de olho no
protocolo e ele gira em torno de manter o chefe seguro, mesmo que
seja obviamente gritante que você não precisa de proteção. —
Rafael acenou. — Vamos embora, Dimitri.
Ela chamou o bastardo que a rodeava como um cão de
guarda, só então meu irmão se pronunciou:
— Você tem habilidades excepcionais com as armas. A sua
técnica não é crua, e sim moldada, perfeita...
Ia começar, Rafael estava começando a criar sua teia em
volta da garota, quando percebesse ela estaria concordando com
ele e lhe entregando suas habilidades, que era o foco do meu irmão.
— Com quantos anos começou a atirar? — Ele já sabia, mas
precisava criar o enredo, deixá-la confortável ao seu redor.
— Nove.
— Você é um prodígio, deveria ser um Tenente do exército,
mas conseguiu avançar três anos de patente porque assumiu um
cargo nas Forças Especiais. — Ela ia rebater o que Rafael estava
falando, mas ele ergueu o dedo. — Você está no exército há quase
sete anos, geralmente a patente e Capitão vem com dez e, em meio
a todas as informações que recebi sobre você, a que mais me
deixou extasiado é que você não deixou que a sua idade interferisse
em seus propósitos.
— Você está narrando a minha vida para me surpreender?
Eu já sei de tudo isso.
— Você é forte, sabe lidar com o estresse como ninguém. —
O sorriso de Rafael aumentou um pouco mais. — Eu quero você. Na
verdade, a Ordem quer.
— O meu punho na sua cara é a única coisa que você vai
receber! — Dimitri rosnou furioso.
Eles haviam caído na teia, agora Rafael ia fazer o que sabia
de melhor: manipular.
— Você pode tentar, e, quando eu terminar, estará bem mais
fácil dela fazer o que planeja.
Observei Lara ficando pálida. Ambos afrontavam Rafael
porque não faziam ideia de quem era o meu irmão de verdade. O
que Dimitri vislumbrou no resgate de sua mulher, era apenas uma
pequena parte.
Se ele visse o que seu amigo viu, jamais teria coragem de
levantar a voz para qualquer um de nós.
Sua ignorância era sua salvação.
— Fica na sua, chefe, não se meta nos meus assuntos. —
Lara apontou o dedo para Rafael.
— Eu tenho uma proposta a fazer.
Quando meu irmão deu um passo em direção ao casal, nos
reorganizamos numa linha de defesa, era natural, quando
estávamos na presença de alguém com potencial de combate.
No caso, Lara era o problema.
— Eu sei que, quando sair daqui, irá caçar o homem que
tentou tirar a sua vida. Agora, veja o lado positivo, nós somos
caçadores e estaria feliz em fazer parte de sua vingança.
— A troco de quê?
— Simples, eu quero que você se junte a nós.
— A resposta é não! — Dimitri ficou na frente de Lara, como
se quisesse escondê-la de Rafael. — Eu vi o que vocês fazem, não
permitirei que ela saia de uma equipe militar só para entrar em
outra.
— Não somos militares. — Havia diversão na voz do meu
irmão, o bastardo sabia como encenar tudo. — Mas somos
melhores.
— Não importa.
Observei meu irmão arquear a sobrancelha, as coisas
estavam saindo exatamente como o planejado.
Rafael era um filho da puta mesmo.
— Você sabe quais são os planos dela? — Ele deixou o
cinismo transparecer no tom, agora ele faria Dimitri se sentir deixado
para trás.
Em breve, ele pediria para a sua mulher aceitar a proposta.
— Fica na sua! — Lara estreitou os olhos, estava deixando a
emoção falar mais alto e isso tornava o trabalho ainda mais fácil.
— Conte para ele, Capitã O’Brien. Diga que você planejava
deixá-lo quando fosse atrás do Comandante Davis.
Lara arregalou os olhos, claramente chocada com o tiro
certeiro que havia acabado de receber.
— O que merda ele está falando? — Dimitri se voltou para a
sua mulher.
Eu ou os outros não dissemos nada, mas o fato de estarmos
ali assistindo todo o desenrolar tornava tudo ainda melhor, pois não
reservávamos espaço para qualquer mentira que Lara quisesse
produzir.
— Você é como nós, cerca-se de estratégia e protege o que é
devido. Foi muito fácil compreender como sua mente funciona e, por
isso, não precisei saber o seu plano. Ele é muito óbvio. Você vai
atacar, mas fará isso sozinha.
— Lara, isso é verdade? — A decepção na voz de Dimitri foi
tão flagrante que eu me perguntei se ele ia chorar. Ao que parece,
ele não conhecia sua mulher o suficiente, mesmo estando com ela
há muitos meses.
— Você não tem treinamento... — Dimitri deu um passo atrás,
como se suas palavras fossem uma traição a qualquer acordo que
tenham feito.
— Por saber do que somos capazes e ter visto como agimos,
é suposto que uma missão ao nosso lado as chances de vitória
aumentariam. — Rafael continuou empurrando, o foco agora em
Dimitri. — Saiba que Lara ainda irá colocar seu plano em prática, a
questão é: Qual a chance de ela sair ilesa? Ou melhor, qual a
chance de ela sair viva?
— Eu não vou entrar na sua máfia, se é isso que quer! — Os
olhos dela brilharam com fúria. — Eu quero a minha casa, minha
família. Tomar as minhas decisões, não vou sair de uma rede de
comando para entrar em outra. Eu quero liberdade e...
— Você terá tudo isso. — Lara calou-se. — Sua vida será sua
para decidir o que quiser, você não irá em nossas missões,
tampouco será traída como foi. Se disser sim, os tentáculos da
Ordem se estenderão sobre sua família, porque nós protegemos os
nossos, acima de tudo e qualquer coisa.
Nós sabíamos que os soldados das Forças das Nações eram
prisioneiros de regras absurdas. Suas vidas não eram suas.
Homens e mulheres não podiam se casar, ter filhos, ou sair sem
autorização de todos os membros do Conselho.
Era um caminho sem volta.
— O que você quer de mim, então?
— Suas habilidades, métodos, inteligência. — Rafael se
aproximou de Lara. — Quero que você seja a mente por trás de
nossas armas. Quero suas patentes, projetos, técnicas de
desenvolvimento.
E uma parceira de trabalho para mim. Ainda não sabia se
havia digerido aquela conversa.
— Eu não iria para o campo de batalha? — Pude notar o
interesse na voz dela, certamente estava pensando no quanto seria
bom nos ter protegendo a sua família.
— Você desenvolveria os projetos de onde achasse melhor,
não precisaria vir aqui, salvo quando fosse convocada, mas, em
todo caso, estará segura, longe de qualquer coisa que possa
colocar sua vida em risco.
— Eu trabalharia apenas na engenharia de armamentos? —
Ela pareceu duvidar. Realmente, era muito bom para ser verdade, a
sorte dela era que Rafael queria suas habilidades em projetos, não
em combate. — Quem garante?
— A minha palavra uma vez dada é definitiva. — O canto da
boca de Rafael arqueou, aquilo significava que ele estava chegando
ao fim da conversa. — Eu sou o Senhor da Ordem, ninguém está
acima de mim. Se eu digo que será dessa forma, então será.
Lara olhou para Dimitri, e ambos pareciam conversar. Ali eu
compreendi que Rafael tinha razão, usar os sentimentos da garota
para que ela fizesse o que ele queria era uma maneira rápida e fácil
de atingir os objetivos.
O medo que ela tinha de perder o homem ao seu lado,
somado a certeza de que ele não a deixaria enfrentar o comandante
David sozinha, faziam a balança pender definitivamente para o lado
que Rafael desejava.
— Eu poderei ter filhos quando eu quiser? E me casar? —
Meu irmão afirmou. — Eu vou poder escolher onde morar? Não vai
ficar me infernizando para correr até aqui de repente?
— Pode acontecer se houver alguma emergência, porém seu
companheiro terá total acesso ao nosso Complexo. Vocês vêm
como um pacote, isso eu já notei e estou disposto a aceitar.
Sorte a dela. Rafael não era do tipo que fazia muitas
concessões, agora era a hora de decidir.
A mulher voltou-se para o seu companheiro, e ambos
começavam a discutir as possibilidades. Como havia sido previsto,
pesava na decisão a certeza de que Lara iria atrás do homem que
quase a matou, e Dimitri queria garantir que ela voltasse inteira para
ele.
Nós poderíamos garantir aquilo. Ele sabia.
Um abraço apertado selou o acordo de ambos.
— Então, qual o veredito? — A voz de Rafael quebrou o
clima do casalzinho.
— Eu aceito.
Meu irmão acenou, caminhando em direção à saída. Quando
chegou na porta ele parou, virando-se.
— Você não vem? — a pergunta foi feita para Lara.
— Para onde? — Lara questionou, segurando firme a mão de
Dimitri.
— Para a sua iniciação, já está tudo preparado.
Rafael seguiu caminho, sabendo que havia vencido. Ele
previra o cenário, manipulando a situação para que, no final, tudo
ocorresse de acordo.
— Filho da puta! — Dimitri rosnou, deixando claro que,
apesar de ter concordado, não gostava da situação.
— Somos todos nós. — Heylel sorriu, estalando os dedos. —
Vamos, não se pode deixar nosso líder esperando.
Juntos, fomos em direção ao grande salão de iniciação.
Todos os Caçadores dos Estados Unidos estavam reunidos ali. De
pé, alinhados em fileiras que se perdiam de vista, olhando para a
frente como soldados.
Aquela era a Ordem em sua essência, homens e mulheres,
armas que viviam e respiravam.
Cada irmão Demonidhes se posicionou em seu devido lugar,
eu fiquei nas fileiras dos incendiários, eu era o general deles.
— Isso vai ser interessante — Heylel falou num gaélico baixo,
apenas para que eu o ouvisse. Meu irmão sentou-se em sua
cadeira.
Ainda hoje, Lara receberia a marca da Ordem.
Então, definitivamente seria uma de nós.

***
Semanas depois...

Todas as equipes estavam posicionadas, nós havíamos


estudado a planta da casa e qualquer possível rota estava sendo
coberta. Davis havia construído sua própria fortaleza e estava
cercado por homens fortemente armados.
Eles não sabiam, mas estavam marcados para morrer. O pen
drive que Lara possuía, continha nomes de todos os traidores.
Rafael e a Ordem odiavam traidores. Por isso, os homens de
Davis foram julgados e sentenciados.
Para a sociedade, eles eram militares, mas, para quem
conhecia a realidade, se travavam de estupradores, traficantes de
drogas e armas, além de assassinos de seus pares.
Davis era o pior.
— Seguirei pelo Norte — avisei, ajustando o fuzil enquanto
adentrava ao terreno.
— Eu vou seguir pelo sul — Lara respondeu, Heylel estava
com ela.
Eu entrei pelos fundos da casa, dois homens estavam
fumando, eu atirei nos dois antes que pudessem entender o que
estava acontecendo. Aos poucos, fui avançando, cada tiro sendo
abafado pelo silenciador especial que projetei.
O tiro soava macio e fazia mais barulho quando perfurava o
crânio do meu alvo.
Naquela missão, não poderíamos agir como me apetecia.
Homens como aqueles não mereciam morrer na ignorância, eles
deveriam saber que a morte estava chegando, ter medo, tentar se
esconder.
Isso transformaria aquela caçada em algo mais interessante.
— Estou entrando — Razhiel avisou.
Podia ouvir o som de gemidos. Na garagem, um cara estava
recebendo uma mamada, sorri vendo o militar ajoelhado chupando o
pau como se sua vida dependesse disso.
— Bela maneira de morrer. — Atirei em um, depois no outro.
Ainda sorrindo, avisei aos outros: — Um lado está limpo.
Quando me virei para sair, avistei Dimitri — eu ainda não
havia entendido por que ele estava ali — entrando na casa.
— Porra! — rosnei pelo comunicador. — Dimitri entrou na
casa.
Eu corri atrás do bastardo. Nós geralmente agíamos rápido,
com sucesso e nenhum ferido em missões surpresa. Eles sabiam
que estávamos ali, e isso trouxe o caos que eu precisava.
— Fire, fique posicionado nas escadas — Rafael avisou. —
Você não vai deixar ninguém se aproximar do escritório. Dimitri foi
capturado.
— O bastardo inútil não deveria ter vindo.
— Se ele morrer, o problema não será meu. — Podia ouvir a
indiferença na voz de Lysander. — Bastardo irritante do caralho!
Eu tinha que concordar, ele havia sido aceito naquela missão
por causa de Heylel, nosso irmãozinho havia intercedido pelo filho
da puta que se achava bom o suficiente apenas porque havia sido
criado por um mafioso.
Como se ser criado por um mafioso lhe garantisse terreno
militar para fazer aquilo que nós fazíamos. Mal sabia ele que todo
treinamento que os mafiosos possuíam não os livrava da morte
quando a Ordem precisava intervir.
— Estou posicionado. — Eu estava em um lugar da escada
que me dava visão da entrada e do escritório, qualquer um que
entrasse ali, iria decorar a parede com o crânio.
Na porta da frente, avistei Lara e Heylel entrando. Meu irmão
carregava um homem desacordado no ombro como se fosse um
saco.
— Torment está entrando — avisei, concentrando-me na
entrada.
Poucos minutos depois, um tiro soou no escritório; instantes
depois, mais dois. Foi como abrir as portas do inferno, os tiros
começaram a soar. Até que tudo silenciou.
— Estou abrindo o cofre de Davis agora. — Meu irmão
utilizou nossa transmissão privada. — Fire, todos estão mortos,
acabei de checar pelas câmeras de calor.
Seguindo para o escritório, me deparei com uma cena
ridícula. Lara segurando Dimitri, o bastardo havia sido atingido.
— Eu não deveria ter visto isso. — O corpo do idiota estava
amolecendo como macarrão cozido. — Muito sangue...
— Ei, ei... — Lara ainda tentou mantê-lo acordado, mas ele
desmaiou como uma donzela enfraquecida.
Balancei a cabeça, não pelo fato dele ter desmaiado, mas
porque se colocou em risco quando não precisava. Em partes
entendia aquele lado, mas ainda considerava um absurdo ele estar
ali.
A prova era que o bastardo não seguiu as ordens, estava
baleado e havia desmaiado por ter visto sangue.
Inacreditável.
— Pessoal, vocês não vão acreditar. — Podia notar o êxtase
em Razhiel. — Seu palpite estava certo, Hunter. — Olhei para
Rafael, meu irmão tinha o ar arrogante de quem sabia estar sempre
certo. — Achei as células de polônio.
— Vamos voltar para o Complexo, o serviço aqui acabou. —
O canto da boca de Rafael arqueou.
Finalmente, aquela merda de missão havia acabado. Lara
havia sido resgatada e Rafael conseguiu o que queria, e nós
também.
No final das contas, o Ricto estava concluído, e eu podia
voltar para a minha mulher e filhos.
55
Jenny Monroe

Havia algumas coisas sobre gravidez múltipla que tornava o


dia a dia uma verdadeira maratona, dos seios para baixo eu só
conseguia ver a curva da barriga, mais nada, coisas simples haviam
se tornado muito difíceis.
Parecia até mentira, mas calçar um sapato sozinha, era
impossível. Meu fôlego sempre acabava antes mesmo que a minha
disposição.
Sem Gabriel para me auxiliar, minhas opções se resumiam a
chinelos ou ficar descalça. Dormir também não estava sendo a
melhor coisa, eu precisava de muitos travesseiros, porque, se eu
ficasse deitada sem um pouco de elevação, sentia falta de ar.
— Jenny, eu estou tendo dificuldade para dormir — Amira
suspirou, estávamos na piscina externa, tentando aproveitar um
pouco daquele dia ensolarado. — Rafael não me deixa em paz.
— O que está acontecendo? — Mudei de posição, para que
pudesse ficar de frente para ela. — Está tudo bem?
— Comigo está. — Ela acariciou a barriga enorme de trinta e
oito semanas. — Mas qualquer careta que eu faça, ele surta, acha
que nosso bebê está nascendo.
— Será que o estresse que ele e todos os homens estavam
enfrentando nas últimas semanas não seja o responsável? —
Peguei sua mão, tentando passar conforto.
Ela sabia que poderia contar comigo para tudo.
— Os problemas foram resolvidos, eles conseguiram
recuperar algumas coisas importantes, a missão principal foi bem-
sucedida. — Ela me encarou, e eu fui impactada por sua beleza, eu
nunca vi uma mulher tão bonita quanto Amira. — Rafael não está
dormindo, e ele não me deixa em paz.
— Ele só está preocupado com você. O nascimento do bebê
está perto.
— Todos nós estamos prestes a sofrer uma mudança
significativa. — Concordei, a vida daquela família era bastante
complicada, com crianças na equação ficaria muito pior. — Nós
temos inimigos perigosos, e eu acho que Rafael, pela primeira vez,
está deixando a preocupação falar mais alto.
— Eu não vejo Rafael nenhuma grama diferente. — Apertei
sua mão. — Ele continua sempre muito sério, com aquele olhar frio
e assustador.
— Ah, ele não tem esse olhar.
— Ele tem sim — Amira riu, então gemeu, fechando os olhos.
Notei que ela estava concentrada, como se estivesse
sentindo dor, pontos de suor brilhavam em sua testa e eu pude
perceber que havia tensão em seu corpo.
— Meu Deus, isso está ficando cada vez pior. — Ela respirou
fundo. — Contrações de treinamento, não se assuste.
— Rafael sabe dessas contrações?
— Não dá para esconder as coisas de Rafael — ela riu outra
vez. — Talvez seja por isso que ele esteja enlouquecendo. Meu
marido não gosta de perder o controle e ele sabe que, nessa
questão — ela apontou para a própria barriga —, ele não tem muito
o que fazer, além de ficar ao meu lado.
— Gabriel anda lendo muitas coisas relacionadas sobre
gestantes cardiopatas. — Franzi o cenho. — Ontem eu acordei
porque ele teve pesadelos, e ele sabe, que, dentro das minhas
condições, eu estou saudável. Ele pediu outro afastamento do
trabalho, e, apesar do meu lado egoísta não ficar triste, o lado
racional fica porque ele está mudando a vida inteira para se adaptar
a mim.
— Rafael era um viciado em trabalho, ele mudou o escritório
para home office. Os irmãos Demonidhes sabem lidar com
prioridades como ninguém. Eu não achei ruim, até ele começar a
me policiar em absolutamente tudo.
— Nessa parte, eu acho que concordo com Rafael, você
também é uma viciada em trabalho.
— Eu tenho círculos viciosos. — Amira baixou a cabeça. — E
apesar de todos os avanços que eu já tive, não consigo mudar isso.
Estou trabalhando no aprimoramento de um dispositivo que eu criei,
preciso, não, necessito que ele cubra todos os pontos, e que, de
qualquer maneira, os irmãos estejam protegidos. Na medida do
possível.
— Amira, você é a mulher mais foda que eu conheço. —
Toquei seu ombro. — Nunca te vi deixando de trabalhar, enquanto
eu nem lembro a última vez que gravei algo. O que quero dizer é
que sempre que está fazendo o que deve, eu estou procrastinando.
Não se cobre tanto, você precisa sossegar nessa reta final.
— Você está compondo, e isso não deixa de ser um trabalho.
— Ela sorriu, amenizando um pouco do pavor que andava sentindo
de voltar a me expor.
Parecia irracional, mas não conseguia avançar além da
questão.
— Estou compondo uma música para Gabriel, e que eu acho
que nunca está boa o suficiente para mostrar a ele. — Balancei a
cabeça. — Eu prometi mostrar, e até agora nada.
— Eu entendo o seu nervosismo, quando eu mostrei o
dispositivo pela primeira vez eu fiquei nervosa, mas eles adoraram.
— Amira, você é cientista, artista e é maravilhosa em tudo
que faz. Não tem como ficar ruim.
— Se formos comparar a nós duas, você na sua área e eu na
minha, somos iguais, e eu garanto que... — Suas palavras foram
interrompidas por outra contração, ela fechou os olhos, apertando a
minha mão com tanta força que eu quis retirá-la, mas não o fiz.
Desta vez, pareceu durar mais tempo, e ela nem sequer
estava respirando.
Todo seu corpo estava contraído de novo. Eu achava que ela
estava se concentrando para aguentar a dor, mas não queria dizer.
— Deus — suspirou, acariciando a barriga enorme.
— Amira, eu não acho que sejam contrações de treinamento.
— Até mudei a postura. — Você tem certeza de que não está em
trabalho de parto?
— Tenho... Pelo menos, eu acho. — Franziu o cenho. — Não
tenho como afirmar baseando-me nas leituras que fiz, de acordo
com a ciência cada mulher tem seu tempo, inclusive, a mesma
mulher pode ter partos diferentes.
— Sim, mas você está sentindo muita dor?
— Eu fiz uma lista mental de algumas semelhantes que
acontecem com a grande maioria das mulheres. — Ela olhou ao
redor, os cachorros estavam fazendo treinamento, Gabriel e Rafael
monitoravam tudo. — Tem algumas coisas que precisam acontecer,
como, por exemplo, a primeira etapa do parto é a saída do tampão
mucoso. O meu ainda não saiu.
— O que isso significa? Quanto tempo depois que isso sai
que o bebê nasce?
— Depende, em alguns casos, até três semanas depois. —
Ela sorriu. — O seu aniversário é amanhã.
— O quê? — Inclinei a cabeça, confusa com a mudança
repentina de assunto.
— Seu aniversário, eu estava pesquisando, e me surpreendi
com o quão perto estávamos. — Amira pareceu-me empolgada, o
que era bem esquisito, já que estávamos falando de parto e coisas
do tipo. — Vamos comemorar.
— Ah não, por favor, sem comemoração. — Só de imaginar,
eu sentia um calafrio percorrendo as minhas costas. — Eu não
lembro qual foi meu último aniversário que a noite não terminasse
em dor e sofrimento. Vamos apenas pular essa parte.
— Você está indo bem na construção de novas memórias. O
segredo, Jenny, é sempre continuar.
Ela tinha razão, não tinha nem o que discutir. Mas as pessoas
daquela família eram tão ocupadas, que imaginá-los parando suas
atividades para comemorar o meu aniversário era apenas um
absurdo.
— O que você gostaria?
— Que ninguém soubesse. — Olhei para Gabriel, ele estava
ensinando alguns comandos a Kang.
Desde que ficamos com o filhote, ele havia engajado no
treinamento. A primeira etapa era tornar Kang um ótimo defensor,
depois transferir para mim o senso de defesa dele.
Pelo que entendi, aquele filhote fofo seria minha arma.
— Jenny, foco aqui. — Amira estalou o dedo diante dos meus
olhos. — Você olha para o Gabriel com uma expressão de
deslumbramento, sabe que todos os irmãos percebem, né?
— Não me importo — murmurei, sentindo-me cada vez mais
apaixonada pelo meu Demonidhes.
A cada dia que passava ao lado dele, eu ia me distanciando
do passado. Como Amira havia dito, as novas memórias que
estávamos criando eram tão incríveis. Toda normalidade, segurança
diária e felicidade eram os melhores e mais perfeitos presentes de
aniversário que eu poderia querer.
— Há uma regra nessa família. — Minha atenção se voltou
para Amira. — Nós comemoramos aniversários e datas importantes
juntos sempre que podemos. Se você não quiser uma festa, eu
entendo, mas você é uma Demonidhes agora, e amanhã é seu dia.
— Okay, você vai me fazer chorar. — Senti os olhos ardendo,
mas nós estávamos sorrindo. — Amanhã eu tenho exames de rotina
e consulta.
— Já falei com Lysander, ele remarcou.
— Ele nem me avisou. — Acariciei a minha barriga, estava do
tamanho da de Amira, e ainda havia um longo caminho para mim.
— Certamente ele iria. Mas, então, o que gostaria?
— Eu tenho que escolher mesmo? Não poderíamos apenas
deixar para lá?
— Realmente quer isso?
Talvez, se não precisasse pensar sobre o assunto apenas o
deixasse para lá, todavia, agora que eu tinha que decidir, se fosse
sincera, eu acho que queria sim.
Por que não?
— Eu gosto dali. — Apontei para o lounge rebaixado com
sofás e lareira. — Eu gostaria de aproveitar o clima. — Estava
gostando cada vez mais daquela ideia. — Poderíamos vir depois do
jantar, conversar, contar histórias.
— Poderíamos organizar algumas bebidas para os rapazes.
— Amira sorriu. — Parece perfeito para mim.
— Para mim também.
Voltei minha atenção para o Gabriel, que estava com um
sorriso enorme, o sol criava um halo de fogo ao redor de sua
cabeça, os cabelos ruivos estavam de um bom tamanho, e eu
percebi que ele gostava de manter a frente maior que a parte de
trás.
Para mim, o corte combinava com ele. Era sexy, moderno,
perfeito, emoldurando a perfeição seu rosto.
— Você sabia que Heylel toca violino?
— Não. Mas eu sei que tem um que toca piano. — Quase
que imediatamente a imagem de Lysander me veio à mente.
Amira sorriu, balançando a cabeça.
— Você o viu tocar? — Claro que ela sabia de quem eu
estava falando.
— Sim, e foi bem chocante. — Sacudi as mãos, dando
ênfase ao que eu estava falando. — Não sabia que ele era tão bom.
— Inclinei-me para ela, sua atenção ao que eu falava me deixava
muito empolgada. — Amira, ele tocava a Moonlight sonata com uma
perfeição ímpar.
A expressão da minha amiga entristeceu, era como se ela
soubesse de algo terrível sobre ele e que a machucava muito. Eu
podia compreendê-la; aos poucos, cada membro daquela família foi
conseguindo um lugar no meu coração.
Eu descobri que mentiria para protegê-los, enganaria
qualquer um para que a realidade deles nunca mudasse.
Não sei se mataria, mas que não me testassem. Porque eles,
de certa forma, eram meus também.
— Todos eles têm uma história terrível, Jenny. — Amira olhou
para sua barriga. — Eles foram salvos em sua juventude para que,
hoje, eles pudessem nos salvar. Eu só estou com meu amado bebê
na barriga porque Roman enxergou a necessidade de salvação em
nossos homens. O mesmo que, talvez, eles tenham enxergado em
nós.
Um sorriso triste moldou os olhos dela. Eu a compreendia,
não era fácil descobrir que as pessoas que eram importantes em
nossas vidas, em algum momento haviam sofrido.
Eu sabia que a vida não era fácil, mas parece que, para
alguns, era infinitas vezes pior.
Talvez, para os irmãos Demonidhes fosse assim.
— Lysander precisou se ocupar de muitas atividades. — Ela
olhou para Rafael. — E o meu amor, cuidava para que ele sempre
tivesse um olho sobre seu irmão. Foram tempos difíceis, de muita
obscuridade e tristeza.
Abri a boca para dizer sobre as cicatrizes que vi nas costas
de Lysander, mas então desisti. Se fosse um segredo, então eu o
manteria assim.
— Quando ele estava tocando, não foi apenas a música que
me atraiu, mas o quão nítida era sua dor, angústia e sofrimento. Ele
tocava com fúria, como se pudesse aliviar seu fardo através daquela
música.
— Lysander não esconde quem ele é — suspirou, como se
lembrasse de algo. — Essa música é sua preferida; quando ele
começa a tocar, não saímos do quarto. É o momento que ele
precisa de solidão, e os irmãos sabem disso.
— Agora eu também sei. — Olhei para o Rafael e Gabriel,
ambos estavam de preto em meio ao jardim perfeito que os
rodeava. — Todos eles são uma caixinha de surpresa, eu não me
espantaria se alguns deles cantasse.
— Imagine só, se fosse Rafael. — Um sorriso apaixonado
emoldurou seu rosto. — Ele canta a mais linda canção de ninar do
mundo. — Acariciou a barriga, com os olhos brilhando como joias
preciosas.
— Rafael? — duvidei. — O sempre tão assustador Rafael?
Ela acenou, o sorrido aumentando.
Uma risada incrédula escapou de mim. Não era possível que
o Senhor da Ordem, o homem mais poderoso que eu conhecia,
simplesmente cantasse.
Isso significava que havia um artista dentro de cada
Demonidhes.
Incrível!
— Ele me disse que cantava para Heylel quando era
pequeno — Amira suspirou enquanto olhava para seu marido. —
Era sua forma de fazê-lo não ouvir os horrores que aconteciam em
sua casa. Agora, ele canta para o nosso bebê, eu acho que é sua
forma de dizer que o ama.
Por algum motivo, meus olhos começavam a embaçar,
porque eu vim a conhecer o conceito de família, de acolhimento e
amor, com um grupo de assassinos.
Não tinha sentido algum, pensando com clareza, mas só
quem vivia ali com eles sabia.
— Eu não esperava por isso. — Sorri, secando os olhos
como a boba chorona que havia me tornado.
Outra vez minha atenção se voltou para Gabriel, e meu
coração se encheu de muito amor por ele.
— Somos mulheres sortudas, temos homens especiais ao
nosso lado. — Amira piscou um olho. — E eu incluo os cinco,
porque eles são nossos para cuidar enquanto não encontrarem
alguém que os ame exatamente com são.
Eu compartilhava do pensamento. Eu havia compreendido
também que os irmãos Demonidhes eram homens que amavam
apenas uma vez.
Que Deus tivesse piedade do mundo, caso a mulher de
qualquer um deles fosse machucada.
Não vi o que Gabriel fez com John, mas eu li as notícias e
elas foram terríveis.
— Eles vão ficar insuportáveis quando nascerem os bebês,
mas eu odeio estar fora de casa, então meu mundo se resume aqui.
— Ela abrangeu a mansão.
— Descobri que eu amo ser cuidada.
— Oh, eu descobri isso também. — Amira apertou a minha
mão. — Como também, o fato de que é muito bom ter uma amiga
de verdade por perto.
— Você vai me fazer chorar de verdade. — A gente se
abraçou do jeito que dava.
— Acho que você está se tornando uma irmã para mim.
— Sinto o mesmo sobre você. — Olhei para o céu, estava de
um azul tão bonito, com nuvens fofinhas que pareciam algodão-
doce. — Obrigada, Roman, por olhar para os seus filhos, hoje
somos felizes por sua causa.
Seu gesto lá atrás, tornou aquilo tudo possível.

***

Estávamos todos aconchegados no lounge externo, Gabriel


havia acabado de acender a lareira e brincava com um objeto que
não parecia um maçarico. A meu ver era mais como um isqueiro
grande.
— Ele tem uma chama potente, Beag. — Ele acendeu para
me mostrar, e era de fato bem forte, porque, em um simples aperto
de botão, a chama azul explodia a centímetros de altura e não
apagava por nada. — Ele é um Jobon, feito de alumínio temperado,
banhado a ouro e cabo de madeira. Aqui é a trava de segurança. —
Ele virou o maçarico, mostrando-me tudo, por último as iniciais
esculpidas numa letra bonita. — Esse meu pai mandou fazer para
mim, é o meu favorito.
Notei que ele ia dizer algo, mas desistiu, recuando
visivelmente. Gabriel não era do tipo que deixava de falar algo, eu já
estava acostumada com seu jeito sem filtro, supersincero. Inclusive,
isso me fazia sentir cada dia mais apaixonada.
Ele não era um homem manipulador, seu jeito era sempre
franco, aberto demais.
— Gabriel, o que você ia dizer? — Toquei seu rosto, nunca
me cansando do quão belo ele era. — Você não precisa ter
segredos comigo. Por acaso, o lance envolve um corpo? Eu não
posso ajudar a enterrar, mas posso entreter as pessoas enquanto
você faz isso.
Por um momento ele me olhou, tentando ver se eu falava a
verdade. Eu mantive sua encarada, deixando que notasse que eu
estava do seu lado para qualquer coisa, não importando o que
fosse.
— Porra, você é minha tampa certinha.
Ri descontrolada porque ele começou a beijar meu pescoço e
a barba estava me pinicando.
— Eu derreti uma pessoa, é só isso que vai saber, e eu usei
meu maçarico preferido, por puro capricho. Um assassino não é
bom, Beag, e eu sou o mais ganancioso deles.
Certo, tinha muita problemáticas naquela fala, mas, enquanto
ele estava judiando do meu pescoço e ia murmurando suas
atrocidades, eu não conseguia sentir outra coisa senão prazer e
satisfação.
— Espere, eu não consigo me concentrar — suspirei, fingido
que o empurrava, porque, na verdade, não queria me afastar. —
Gabriel, não tente me distrair.
— Estou conseguindo? — murmurou contra a minha pele.
— Pornô ao vivo? Posso assistir? — A voz de Razhiel me fez
morrer de vergonha, por um momento eu me esqueci de que
tínhamos mais cinco pessoas conosco.
— Nós vamos ter problemas se você não parar de ficar
dizendo essas merdas para a minha mulher. — Gabriel se afastou e
apontou o maçarico para o irmão. — Pare.
— Por quê? Eu quero meu harém, inclusive tem dois bebês
aí, um pode ser meu. — Segurei o riso, Amira havia me contado
aquela brincadeira, Gabriel era um provocador, agora tinha que lidar
com a revanche. — Pensa bem, Jenny, você vai ter dois... — Ele
olhou para Heylel e Lysander, ambos não estavam com aquelas
expressões de indiferença, também não sorriam, mas eu podia ver
certo relaxamento. — Temos um harém reverso, eu fico com mais
dias porque sou egoísta.
— Eu vou te matar — Gabriel rosnou. — Será um bastardo a
menos.
— Você está tendo seu desejo atendido. — Rafael ajeitou
Amira, ela estava bem quietinha, aproveitando o calor da lareira e os
carinhos de seu marido. — Não reclame.
Observei o homem ao meu lado abaixar a cabeça, e respirar
fundo, então pareceu chegar a alguma conclusão, pois o modo
como olhou para Rafael pareceu-me bem interessante.
— Okay, eu me rendo. — Ergueu as mãos. — Rafael,
perdoe-me por todas as vezes que eu o importunei, eu me arrependi
amargamente. Não quero um harém reverso, eu juro que só de
pensar, eu sinto que estou enfartando. Não vou compartilhar minha
mulher, ela é minha e só minha.
— Nossa. — A voz de Lysander soou mais cálida que o
comum. — Como Amira também é.
Meu coração aqueceu. Era a primeira vez que ele declarava
abertamente que eu fazia parte da família, e que ele me incluía no
mesmo lugar que estava Amira.
— Aliás, chega de conversa fiada. — Lysander estreitou os
olhos. — Até hoje eu nunca vi você cantar ao vivo.
— Meu privilégio — Gabriel rosnou, apontando o maçarico
também para o seu irmão mais velho.
— Nosso, a partir de hoje. — O canto da boca de Lysander
arqueou, era como se ele desafiasse Gabriel a continuar. Aquilo não
era bem um sorriso, eu não sabia dizer o que era. — Então,
ragazza, o que vai cantar para nós?
Eu senti minhas pernas bambeando mesmo eu estando
sentada, um frio na barriga me deixou ansiosa, a minha mente ficou
em branco, eu não conseguia me lembrar de nenhuma letra.
Absolutamente nenhuma.
Jesus!
— O que eu vou cantar? — Engoli, com a garganta
repentinamente seca.
— Não sei, o que você sugere? — Lysander pegou algo que
estava escondido as suas costas. — Feliz aniversário.
Gabriel pegou o violão, o retirou da capa e me entregou.
Minhas mãos coçaram de vontade de segurá-lo.
— Meu Deus. — Percorri os dedos com todo cuidado do
mundo pela madeira com bordas pretas e envernizada. — É um
Gibson, J-200, vintage, ele foi considerado o rei dos Flats-tops por
causa desse design mais fino e arrojado. — Não pude esconder a
euforia, pois as marcações de madrepérola e o acabamento de ouro
o tornavam uma verdadeira joia.
Não dava para acreditar.
Olhei para Lysander e precisei limpar os olhos
apressadamente porque sua imagem embaçou.
— É meu mesmo? De verdade?
— Sim, inclusive soube que esse aí é um dos primeiros
modelos. Adquiri de um colecionador.
A informação me deixou tonta, porque significava que aquele
violão havia custado mais de cento e setenta mil dólares.
— Sem reclamações. — Ele ergue a mão, certeza de que
deve ter percebido que eu não estava sabendo lidar com tudo
aquilo. — O que vai cantar?
— Não sei.
— Então, você pode pensar, enquanto vai recebendo seus
presentes. — Gabriel beijou meu ombro, retirando uma caixinha do
bolso. — Lysander roubou meu direito de te dar esse violão,
bastardo.
— Você demorou demais, sua culpa.
— Continue se divertindo à minha custa, uma hora você vai
se arrepender.
— O ringue está vazio, se você quiser... — Lysander sorriu
esticando as pernas e cruzando os braços. — Vamos lá, entregue o
seu presente de uma vez.
— Filho da puta! — Gabriel rosnou, mas quando sua atenção
se voltou para mim, ele sorriu. — Eu pensei muito sobre isso, e eu
espero que você goste.
Ele me entregou uma caixa, dentro havia uma chave. Olhei
para ele, não podendo evitar o sorriso, tampouco a chance de lhe
fazer carinho. Gabriel parecia-me preocupado.
— Eu comprei uma casa para você, para nós. — Ele sorriu.
— Em Aspen, para quando quisermos fugir do caos da cidade.
— Ouvi dizer que é a cidade mais bonita dos Estados Unidos
— murmurei, apertando a chave junto ao peito. — Obrigada por
isso, Gabriel.
— Você vai poder decorar como quiser, quando os bebês
nascerem e estiverem bem para viajar, nós vamos fazer uma visita,
apenas nós cinco.
— Cinco?
— Kang, nosso não tão pequeno filhote.
Eu o abracei, porque naquele momento não tinha palavras
para descrever o sentimento que me inundava. Gabriel me dar uma
casa, era como se ele dissesse mais uma vez que sempre estaria
comigo, e que seus pensamentos eram voltados para a nossa
família.
— Você é a melhor pessoa da minha vida.
— Eu te odeio, Beag — ele murmurou, colocando meu cabelo
atrás da orelha.
— Eu também te odeio. — Fechei os olhos para receber seu
beijo, mas alguém pigarreou quebrando totalmente a bolha de
intimidade que havíamos criado.
— Eles esquecem que não estão sozinhos. — Era Razhiel
outra vez, provocando. — Aqui o meu presente. — Ele se aproximou
sentando-se do meu lado. — Veja se gosta.
Ele ligou seu tablet, digitando algumas informações, logo um
projeto surgiu.
— O seu estúdio, aqui você poderá gravar músicas, vídeos, o
que mais desejar. Vai ficar ao lado do laboratório de Amira, dentro
do Complexo. Ele será completamente isolado, para que possa
trabalhar. Vou organizar algo para a casa de Aspen também.
— Razhiel... — Meu queixo tremeu, eu estava perdendo a
batalha contra as lágrimas. — Obrigada. — Engoli o soluço.
— Começarei a construir na próxima semana, mas, se quiser
modificar algo, podemos fazer sem problema.
— Não há o que mudar, é perfeito.
Cada espaço, decoração. Ele havia pensado nos mínimos
detalhes. Se o resultado ficasse parecido com o que estava rodando
naquele projeto, então eu teria o melhor lugar do mundo trabalhar as
minhas músicas.
— Eu acho que hoje é o dia mais feliz da minha vida,
obrigada.
— Ainda não acabou. — Amira estendeu um envelope,
Gabriel o pegou para mim. — Você sabe que Rafael é um investidor
agressivo, mas que tem um feeling inacreditável para fazer as
coisas prosperarem. — Eu não sabia que ele era aquilo, mas
concordei. — Compramos ações para você de algumas empresas
que ele acha que irão dar um retorno bem significativo.
Eu não conseguia entender os termos legais do que estava
no papel, mas na lista de empresas estavam a Tesla, SpaceX,
Amazon, Biontech e mais outras que eu nunca tinha ouvido falar.
— Obrigada. — Olhei para ambos. — Eu não sei nem o que
dizer.
— Não precisa dizer nada, gostamos de presentear nossas
garotas. — Gabriel beijou meu ombro.
— Aqui, eu mandei fazer para você. — Heylel me estendeu
ume estojo de veludo, quando abri, um sorriso enorme tocou meus
lábios.
Era uma joia, um colar delicado de ouro, com um pingente no
mesmo formato que a tatuagem deles. A Ouroborus perdia-se em
meio ao símbolo do infinito, cada detalhe da cobra da peça fora
esculpida com delicadeza, eu podia vislumbrar as escamas, a boca
aberta engolindo a cauda. Em seus olhos, havia duas pedras
alaranjadas, que me remetiam ao fogo.
— Eu consegui essas pedras no Oriente Médio. — Ele
sentou-se na mesma posição que Lysander. — Nós carregamos o
símbolo da Ordem em nossos corpos, mas você é mulher de um
dos generais de Hunter. — Apontou para Rafael, para dizer quem
seria Hunter. — Achei que você deveria ter o símbolo também.
— Eu o tatuaria em minha pele com prazer. É uma honra
para mim ser aceita, e participar de algo tão grande e incrível, eu
jamais os colocaria em risco. — Respirei fundo, fazendo, pela
primeira vez, uma afirmação: — Eu sou uma de vocês agora.
— Sim, você é. — Foi Lysander quem respondeu.
Eu estava ficando muito emocionada, todos eles estavam
percebendo. Para frear aqueles hormônios ensandecidos da
gravidez, ele pigarreou, dizendo:
— Então, o que vai cantar para nós?
Olhei para Gabriel, pensando em uma música que eu
encaixava na narração de nossa história.
Eu só esperava que a emoção não me impedisse de fazer as
coisas direito. Pegando o violão, testei rapidamente as cordas,
sorrindo ao perceber que estava perfeitamente afinado.
— Eu nunca cantei essa antes. — Pude perceber a
ansiedade no meu homem.
Quando ele me observava cantando, era como se o mundo
não existisse. Sempre fechava os olhos, sua expressão suavizava.
Eu notava que sua pele ficava arrepiada, ele parecia absorver cada
palavra, ficando imerso o suficiente para inclusive adormecer.
— Escolhi Because you loved me, da Celine Dion.
Um assovio que me pareceu mais como um “Garota, você vai
mesmo fazer isso?” veio de Razhiel.
Por alguns instantes cantei a música, buscando o tom e as
notas para dar início. Quando o encontrei, meus olhos buscaram
Gabriel.

“Por todos os momentos que você ficou ao meu lado;


Por toda verdade que você me fez enxergar;
Por toda alegria que você trouxe para a minha vida;
Por todo erro que você corrigiu...”

O sorriso de Gabriel era lindo demais e inspirador, ele me


encarava com um misto de adoração, amor, um pouco de choque.
Ele sempre fazia aquela expressão de fã número um quando eu
cantava, não importava quantas vezes, o olhar era o mesmo.

“Por cada sonho que você tornou realidade;


Por todo o amor que encontrei em você;
Eu sempre serei grata, meu amor...”

Minha voz embargou, mas eu continuei cantando, aquela


música também era uma declaração de amor para o homem da
minha vida.

“Você é o único que socorre;


nunca me deixando cair.
Você é o único que enxerga além;
através de tudo.”

Gabriel se aproximou de mim, eu fechei os olhos, quando ele


encostou sua testa na minha. Seu calor, o amor palpável, paciência
para esperar meu tempo, foram as sementes que ele plantou e que
floresceram em mim.
“Você foi a minha força quando eu estava fraca;
Você foi a minha voz, quando eu não consegui falar;
Você foi meus olhos, quando não pude enxergar;
Você viu o melhor que havia em mim;
Me ergueu quando eu não consegui, levantar;
Você me deu fé, porque acreditou...”

Afastando-me um pouco, abri os olhos, pois precisava olhar


para ele. Gabriel compreendeu a minha necessidade, pois seus
olhos buscaram os meus.
— Eu sou tudo que sou, porque você me amou. — Sorri, ele
acariciou meu rosto, havíamos apenas nós dois ali. — Você me deu
asas e me fez voar, você tocou a minha mão e eu pude tocar o
céu... Sou grata, por cada dia que você me deu.
Ele não me deixou terminar, o beijo veio carregado por todas
as promessas não ditas, mas que eram certezas em nossos
corações. Aquele beijo não era sedento, ou insano, mas paciente,
cheio de sentimento, desejo, sonhos.
— Beag...
— Eu sei — murmurei, sentindo o coração repleto.
Eu queria poder ficar com ele, apenas nós dois, mas
precisava me lembrar de que não estávamos sozinhos. Quando me
virei, todos olhavam para mim como se não pudessem acreditar no
que haviam acabado de presenciar.
— Gente, vocês já tinham me ouvido cantar, não é? —
perguntei a Amira, que acenou.
— Mas eu não esperava que, pessoalmente, te ouvir me
fizesse sentir emoções tão fortes. É tão bonito.
— Gente. — Senti o rosto esquentando de vergonha. —
Obrigada.
— Agora eu entendo, Gabriel. — Ela sorriu. — Eu vou fazer
uma playli...
Amira franziu o cenho, então ela olhou para baixo e sua calça
de ioga superconfortável estava ficando molhada.
Ela olhou para Rafael, que estava com a atenção fixa para o
meio das pernas dela.
— Caralho — ele murmurou, então olhou para a sua mulher.
— Estou bem, não é como... — Antes que ela pudesse
terminar a frase, um grito escapou de seus lábios, ela agarrou o
braço de Rafael, com o rosto contorcendo numa careta terrível de
dor.
— Começou. — Lysander já estava se movendo.
Aquilo pareceu despertar Rafael, ele pegou Amira nos
braços, encaminhando-se apressadamente para o centro médico do
Complexo.
Ela teria o bebê lá. Lysander estava liderando o caminho,
Heylel seguia ao lado de Rafael.
— Vamos. — Gabriel se levantou, auxiliando-me para que eu
também pudesse fazer o mesmo. — Precisamos estar todos juntos.
Eu podia sentir o desespero começando a crescer, aquela era
uma situação atípica para todos eles, mas ia dar tudo certo no
nascimento do pequeno e muito amado Demonidhes.
Eu tinha certeza.
56
Jenny Monroe

Nascimento do filho do Senhor da Ordem


19 de agosto de 2018
Outono

Gabriel e Razhiel não paravam de andar de um lado para o


outro. Cada grito de Amira eles paravam, olhavam para a sala de
parto como se quisessem entrar lá e ajudar.
Estavam agitados, e de vez em quando olhavam para mim
com os semblantes apreensivos.
— Por que estão demorando tanto? — Razhiel fez a mesma
pergunta centenas e vezes nas últimas três horas.
Eu o entendia, era como se o parto não estivesse avançando.
Entramos com tudo na madrugada, e até agora nada.
— Partos podem levar até mais de um dia. — Gabriel me
olhou, ele estava um pouco pálido. — Deus, que agonia!
— Calma, eu acho que está tudo correndo como deve ser.
Eu podia perceber certo cansaço vindo de Amira, os gemidos
dela eram sofridos, aquela parte era inevitável, eu não imaginava
alguém tendo um bebê com um sorriso.
Parto doía, e, talvez, os gemidos e gritos eram de onde ela
tirava força para seguir em frente, além da vontade de ver o seu
bebezinho.
— Lysander, anestesia, por favor. — Eu nunca imaginaria que
poderia ver Rafael implorando, mas ele estava. — Não suporto vê-la
assim.
— Não! — A voz de Amira soou esganiçada. — Faz parte do
processo que eu escolhi.
— Malen’kiy, o processo vai ser o mesmo, só que menos
doloroso. — O lamento estava nítido na voz de Rafael. — Por favor,
meu amor, apenas aceite a anestesia.
— Não!
— Cabeça-dura, não vai fazer diferença! — Rafael engrossou
o tom. — Só vai diminuir um pouco sua dor.
— Não vai ser a mesma coisa.
— Você enlouqueceu? — Rafael explodiu. Pela primeira vez,
ele estava sem nenhum controle de si mesmo.
— Eu que estou tendo um bebê aqui e você...
— Enquanto vocês brigam, o bebê está querendo nascer,
apenas parem! — Lysander interveio. — Agora isso mesmo, força,
agora é mais rápido. Descanse entre os intervalos das contrações,
boneca, agora serão mais frequentes e durarão mais tempo.
— Estou pronta. — Amira pareceu-me bastante segura. —
Está tudo dentro do meu planejamento.
— Você não pode ter montado um roteiro para o seu parto!
Malen’kiy, essas coisas são muito aleatórias, nosso filho está
nascendo antes do previsto.
— Será porque ele é enorme e está pronto para vir ao
mundo? Já olhou para si mesmo? Você é um gigante!
Amira deu uma risada, que se transformou em gemido e mais
incentivos para empurrar. O único que não havia dito nenhuma
palavra foi Heylel. Se ele houvesse dito, nós teríamos escutado.
— Não pareça tão desesperado — Amira disse, assim que a
contração passou. — Você é o Senhor da Ordem, pode lidar com
isso.
— Okay, eu posso lidar com o parto do meu filho numa boa.
— O parto está indo bastante rápido, devo salientar. — As
palavras de Lysander serviram para confortar todos nós. — E Amira
está sendo incrível, não se espante com os gritos, irmãozinhos, a
dor faz parte de todo processo e... — Ele fez uma pausa. — Aí vem
outra.
— Vamos. — Pude notar claramente que Amira pareceu mais
forte.
— Isso, continua, eu já posso ver a cabeça.
— Cristo! — Gabriel esfregou os cabelos, estavam uma
bagunça. — Meu coração está acelerado. — Ele olhou para mim. —
Isso é pior do que saltar de um avião tendo que pegar o paraquedas
no ar.
— Você não é louco! — arfei, o horror deveria estar
estampado na minha cara.
Ele fazia mesmo aquele tipo de coisa tão radical? Pela sua
cara, eu tive certeza de que, sim, ele fazia.
— Você é louco. — Engoli em seco, temerosa que aquela
fase pudesse voltar.
— Eu era. — Gabriel ajoelhou-se na minha frente, com as
duas mãos repousando na minha barriga. — Mas agora não sou
mais. Eu tenho você, e tenho eles.
— Ou elas. — Ele sorriu.
— Ou elas, não me importo. — Ele encostou a bochecha na
minha barriga, suspirando. — Eu só quero que tenham saúde. Estou
tão ansioso, Beag.
O jeito que ele falava, o brilho nos olhos era tão especial que
eu acreditava na possibilidade de os bebês sentirem todo aquele
amor.
Na sala ao lado os incentivos de Lysander, o desespero de
Rafael e a força com que Amira estava lidando com tudo aquilo me
motivaram para quando chegasse a minha vez.
Eu tinha recebido indicação de que meu parto não poderia
ser aqui e que eu teria um cardiologista presente. Não sabia se era
uma prática comum, mas Gabriel e Lysander estavam se cercando
de todas as possibilidades para que não houvesse surpresas.
Vendo como o sempre controlado Rafael parecia fora de si,
eu compreendia que não havia treinamento que os preparassem
para aquilo. Era sua mulher e filho, vivendo o momento mais bonito
e vulnerável para ambos.
Rafael não tinha controle nenhum da situação, tampouco de
si mesmo, e aquilo deveria ser apavorante para alguém como ele.
— Vamos lá, Amira, nosso bebê está quase aqui — Lysander
incentivou.
— Isso, Malen’kiy, eu já posso ver que ele é cabeludo. —
Rafael não escondia o quão exultante ele estava, ainda que tivesse
medo.
Tudo fazia parte daquele momento caótico e único.
— Em breve seremos nós. — Gabriel me deu um sorriso tão
bonito, eu podia ver o desejo em seus olhos, a vontade de ter
nossos bebês aqui conosco.
— Sim, em breve seremos nós.
Na sala ao lado, Amira deu um grito, em seguida um choro
forte se fez ouvir.
— Eu sabia, porra! — A voz de Rafael trovejou. — É um
menino! Meu menino, caralho!
Podia sentir o amor transbordando por aquela criança que
chegava num lar de pessoas feridas e que buscavam justamente
por amor e redenção.
Eu entendia que havia um tempo para cada mulher e estava
tudo bem, mas eu também acreditava que poderíamos criar vínculos
antes mesmo de poder segurar nosso filho nos braços.
Como não amar meus bebês quando eu sentia dentro de mim
a vida fluindo? Meu corpo precisava se adaptar diariamente as
mudanças, eu acreditava que compartilhávamos os sentimentos.
— Porra, quando poderemos entrar? — Razhiel continuava
andando de um lado para o outro.
Ele havia feito parte do processo de organização do quarto
do bebê, ainda não sabíamos o sexo, por isso ele e Amira
idealizaram um safari fofo, em tons de marrom e branco. As cores
ficavam por conta dos animais de pelúcia, confeccionados com um
algodão antialérgico.
Ele já havia feito uma encomenda para os gêmeos,
começaríamos a arrumar tudo na próxima semana quando eu
completasse seis meses.
— Venha. — Gabriel estendeu a mão, a porta da sala de
parto finalmente havia sido aberta.
Eu tremi um pouco, a emoção me deixava meio besta.
— Espera. — Ajeitei meu vestido e os cabelos. A sensação
que eu tinha era de que estava indo ver o filho da minha irmã, e
Amira não estava muito longe de ser isso.
Ela me acolheu sem quaisquer ressalvas, me fez sentir
querida quando ficou ao meu lado no meu momento mais frágil. Ela
era a matriarca daquela família, e me fez sentir a garota mais
especial do mundo ao me reconhecer como uma Demonidhes
quando nem eu mesma acreditava que tinha o direito sequer de
sonhar com tal coisa.
— Deus... — Razhiel murmurou, quando pudemos vislumbrar
a cena do quarto.
Amira segurava seu bebê junto ao peito, com um sorriso
incrivelmente apaixonado tornando-a radiante. Então, meu foco foi
para a preciosidade que ela segurava.
O filho de Amira possuía os cabelos de seu pai, ele chutava e
reclamava o tempo todo.
Ao lado de sua cama, Rafael e Heylel seguravam um ao
outro num abraço apertado. Eu pude ver a expressão de Heylel, era
um misto de felicidade, sofrimento e realização.
Eles conversavam num russo apressado, nostálgico,
doloroso.
— Rafael está dizendo que o passado deles foi esquecido
para sempre, que agora eles tinham uma nova vida e que foram
ensinados a serem pais com Roman, e o que não deveriam ser com
seus pais biológicos — Gabriel traduziu. — Perdoe-me, eles estão
emocionados, por isso estão falando na primeira língua.
— É isso, irmão. — Heylel bateu nos ombros de Rafael. —
Você tem toda razão.
Rafael se voltou para Amira, ele sentou-se ao seu lado,
acariciando os cabelos de seu bebezinho lindo.
— Ele se chamará Mikhail Demonidhes. — Um sorriso que eu
nunca o vi dar transformou seu rosto em algo inacreditável. — O
primeiro neto de Roman.
Eu não consegui segurar a emoção nem mais um segundo, a
cena era tão linda e o amor tão palpável, que me trouxe lágrimas de
felicidade.
— Parabéns, meu irmão. — Razhiel se aproximou da cama,
ele também estava emocionado. — Ele é perfeito, e o nome... —
Rafael abraçou seu irmão, eu pude sentir os ombros de Razhiel
tremerem como se ele chorasse. — Miguel, em russo. Nosso pai
adoraria isso.
Pela voz embargada, eu percebi que ele estava chorando
mesmo. Ver aqueles homens fortes demonstrando tanta
vulnerabilidade me fez amá-los ainda mais. Dentro daquele quarto
— naquela bolha que criamos — não havia espaço para dureza.
Gabriel foi o próximo, ele não disse nada, mas, pela troca de
olhares, eu percebi a longa história que eles vivenciavam. No
abraço apertado, no momento que Rafael fechou os olhos e
suspirou, eu tive a certeza de que eles eram capazes de forjar suas
próprias realidades.
O passado os moldou e o sofrimento os manteve fortes.
As cicatrizes os fizeram mais ferozes.
Eles curvavam às circunstâncias para que pudessem forjar
uma realidade em que todos se protegiam.
A fortaleza Demonidhes não era a casa e sim aqueles
homens.
E o lindo bebê que pegava o seio de sua mãe com vigorosa
intensidade, não era apenas fruto do imenso amor entre Rafael e
Amira, ele era a resposta para cada maldita vez que aqueles
homens desceram ao inferno e voltaram.
Eles ditaram o ritmo de suas próprias histórias.
E eu fazia parte daquilo.

***

Semanas depois...

A rotina da casa naturalmente foi se tornando cada vez mais


voltada para as necessidades do bebê e dos pais de primeira
viagem. Rafael era muito capaz de cuidar de sua mulher e filho,
ninguém ali estava questionando aquilo, mas o fato era que todos
queriam participar.
Outra vez, eu ia descobrindo como a rede de apoio daquela
família era poderosa.
Era quase como se eles não precisassem dormir, sempre
havia um irmão acordado, tomando seu turno com Mikhail para que
Amira e Rafael pudessem descansar.
— Mãe, há uma coisa incrível acontecendo. — Apertei sua
mão. — Estou vivendo a época mais feliz da minha vida, e eu queria
que estivesse vivendo-a comigo. Lembra que eu te falei do Mikhail?
Ele está cada dia mais lindo e fofo. Eu estou apaixonada — suspirei,
a vontade de segurar o neném foi me deixando animada.
Eu continuava visitando a minha mãe todos os dias. Mas
quando saía da tristeza dos meus encontros unilaterais, eu tinha a
pura felicidade injetada nas minhas veias quando estava diante do
filho de Amira.
Amar havia se tornado uma tarefa fácil depois que Gabriel me
mostrou o caminho para aquele sentimento.
— Eu preciso ir. — Toquei seu rosto, ela estava magra
demais, entretanto, um dos filhos de Boris fazia exercício todos os
dias com ela para que suas pernas não atrofiassem.
Era incrível como aquela família sabia fazer tudo. Gabriel
havia me dito que eles serviam aos Demonidhes desde muitas
gerações passadas. O negócio da família era justamente trabalhar
para eles.
E eles eram muito bons em tudo que faziam.
— Amanhã eu volto, prometo. — Antes de sair, eu repousei
sua mão em minha barriga. — Seus netos estão perto de nascer,
algumas semanas a mais, e bum. Acorda, mãe, eu sinto a sua falta.
Como das outras vezes, não houve qualquer alteração em
seus monitores, ela estava muito longe de mim, pelo menos naquele
momento.
Saindo do centro médico, eu não deixei que a tristeza por sua
condição me abatesse. Ela estava tendo o melhor tratamento e
acessos a tudo que o dinheiro podia comprar.
Lysander era o melhor médico do mundo, ele mantinha os
exames da minha mãe em constante repetição. Era metódico nas
avaliações, quando não se satisfazia ia buscar mais conhecimento.
O problema era que, por mais que os resultados concluíssem que
não havia nada de errado em seu cérebro que justificasse o coma,
ela não acordava.
Não importava o que ele fizesse ou o quanto eu implorasse.
Em algum momento, eu compreendi que não estava apenas
nas minhas mãos, o que poderia fazer era continuar vindo todos os
dias, insistir, lhe dando razões para sonhar.
Assim que apontei na área de laboratório, Gabriel me
aguardava. Ele não me deixava sozinha — salvo quando estava
conversando com minha mãe ou Amira —, ele sabia que eu estava
sem centro de gravidade, minha barriga enorme cobrindo a visão
dos meus pés.
Havia também a questão do peso — oh, Deus —, o peso era
demais, digo, as pontadas dentro da minha vagina eram dolosas.
Aquele era a pior parte com certeza.
— Chegaram os móveis que encomendamos, Razhiel está
montando. — Gabriel ofereceu o braço para mim. — Eu pensei de
aproveitarmos o restante da tarde. Eu já deixei a banheira pronta,
depois eu vou fazer uma massagem bem safada em você com
atenção especial na sua bocetinha linda. Estou avaliando a
possibilidade de uma chupada. — O calor foi se espalhando por
meu corpo, ao ponto de eu sentir o ar ficar quente. — Depois você
vai relaxar e dormir o restante da tarde, o que acha, Beag?
— Eu acho que você me mima demais. — Ele me abraçou
por trás, eu me ajeitei para beijá-lo.
Sua mão escorregou por meu pescoço, eu podia sentir o
peso em minha pele, o modo como dominava o beijo, que sua
língua me acariciava. Excitando-me, arrancando gemidos de prazer
porque era a partir do beijo que ele começava a mexer com minha
cabeça.
— Eu adoro a sua boca. — Mordiscou meu lábio inferior. —
Você está tão gostosa.
— Maior que essa casa, você sabe, e eu ainda estou
aumentando, certeza que...
Ele me beijou outra vez, fazendo-me esquecer todo o resto.
Gabriel era uma gasolina aditivada, ele me potencializava ao ponto
de transformar meu corpo em um fio desencapado.
— Vamos para o quarto, quero transar com a minha mulher.
— Gabriel...
— Me chama assim de novo e não vamos chegar ao quarto.
Eu sabia que ele cumpriria sua palavra.
— Vamos logo. — Seguimos em direção às salas, e a cena
muito fofa nos saudou.
Heylel estava ninando Mikhail.
Era tão acolhedor ver um gigante com o corpo repleto de
tatuagens que representavam cenas de morte, tragédia e sofrimento
segurando docemente um bebezinho de apenas dois meses vestido
com um pijama de pelúcia.
Ele perambulava de um lado para o outro, cantarolando
naquela sua voz de roqueiro famoso, rouca e sensual.
— Logo seremos nós. — Gabriel respirou fundo, senti suas
mãos tremendo. Ele estava bastante ansioso ultimamente. — Eu
acho que preciso saltar de paraquedas ou de bungee jumping.
— Não, você não precisa.
— Como pode ser tão corajosa e ao mesmo tempo tão
medrosa? — Ele apertou meu nariz. — Eu adoro isso, sabia?
Eu achava que não podia ficar tão apaixonada por ele, mas
bastava Gabriel sorrir e meu coração estava acelerando
loucamente.
— Eu não tenho espírito aventureiro, Sr. Demonidhes. —
Pisquei um olho. — Mas, se precisa de adrenalina para conter a
ansiedade, desista da ideia de manter o afastamento do seu
trabalho. Ser bombeiro deve te dar o que precisa.
— E te deixar? — Ele me olhou como se eu fosse doida.
— Ela não estaria sozinha. — Heylel ergueu dois dedos. —
Se não notou, eu estou livre para o posto de babá.
— E eu também. — Razhiel entrou na sala, girando uma
chave de fenda. — Minha vez de ficar com esse garotão, você pode
ir terminar os móveis do quarto dos gêmeos.
Por um momento, eu pensei que Heylel ia fugir com Mikhail,
mas ele trocou o bebê de mãos, sem causar uma segunda guerra
dentro daquela casa.
A primeira aconteceu quando Rafael decidiu que ficar no
Complexo pelos primeiros dois meses era o melhor para todos nós.
Em todo caso, morar em cima era exatamente igual, os andares
eram espelhados mesmo.
O que tinha lá tinha aqui.
— Ninguém vai ficar com a minha mulher. — Gabriel cruzou
os braços. — Ela precisa de cuidados...
— Você esqueceu que eu também sou médico? — Heylel
arqueou a sobrancelha. — Eu posso cuidar dela melhor que você.
— Bastardo!
— Boa tarde, rapazes, vamos. — Puxei Gabriel.
Juntos fomos em direção ao corredor dos quartos. Mal
havíamos entrado na ala, quando a voz irada de Lysander soou:
— Por esse motivo, eu gosto de estar a par de tudo. — Eu
encolhi, com pena da pessoa do outro lado da linha. — Você
esqueceu? Inútil do caralho! Como você não confirmou?
Sobrecarregado? Isso é uma desculpa para a sua incompetência!
Você só tinha duas coisas para fazer, contratar os artistas e checar
a lista de convidados. Qual a dificuldade que se tem de fazer o
mínimo?
— Eu estaria chorando — murmurei, Gabriel deu uma
risadinha, o olhar de Lysander se voltou para nós.
— Você está fora, eu resolvo. — Ele desligou o telefone, com
os olhos fixos em mim. — Jenny, qual a possibilidade de você cantar
no jantar beneficente do hospital? A festa anual foi adiada para
começo de novembro, você estará com trinta e três semanas. Acha
que conseguiria ir?
Não precisei nem pensar, óbvio que eu iria!
— Claro.
— Não sei, os pés dela estão inchados demais — Gabriel
interveio. — Não quero que se canse.
— Inchaço é normal, eu já te disse em todas as milhares de
vezes que questionou. — Lysander esfregou o cabelo, que já estava
grande o suficiente para ficar caindo em seus olhos. — Sua mulher
e filhos estão ótimos, claro, dentro de todas aquelas questões que
acompanham a saúde dela.
— Eu me sinto muito bem. — Ergui as mãos.
Lysander vivia numa intensa maratona entre o hospital, aqui,
as missões. Eu nunca o vi pedindo nada a qualquer pessoa, até
agora.
Não havia possibilidade de eu recusar, iria cantar nesse
evento de todo jeito.
— Eu acho que poderia ser o pontapé para que eu volte a
gravar minhas músicas. — Os olhos de Gabriel brilharam diante da
ideia. — Eu posso fazer. — Balancei a cabeça. — Se eu puder ficar
sentada numa cadeira, vai funcionar. Eu vou escrever o repertório
de músicas, e enviar para o seu celular, Lysander, eu vou deixar o
tom anexado, é só entregar para a banda. Você quer que dure
quanto tempo?
— Seis músicas serão suficientes.
— Parece perfeito para mim. — Ele pareceu aliviado.
— Obrigado por isso, o hospital agradece.
Lysander se afastou já com o celular no ouvido.
— Eu consegui, crie o marketing sobre o nome de Jenny
Demonidhes, ela irá cantar no evento.
Dei um sorriso gigante ao ouvir suas palavras.
— Você disse não para mim, mas sim para Lysander.
— Lysander não me pediu em casamento! — Cruzei os
braços, ele estava me olhando com uma expressão engraçada.
— Saiba que os papéis são apenas formalidades, se você
fugisse eu iria te caçar e te trazer de volta.
— Quando você vai esquecer isso? — tentei disfarçar a
diversão.
De vez em quando, ele me provocava sobre aquilo. De
repente, ele conseguia introduzir o assunto que não tinha nada a ver
com o que estávamos conversando.
— Você vai ter que fazer algo grande para que eu esqueça
de que fui rejeitado.
— Você não foi rejeitado, Gabriel.
— Eu recebi um não, dá no mesmo.
Era tão bom ver aquele homem incrível sem qualquer
máscara ou subterfúgio. Apesar de eu sempre levar para o lado
divertido — era melhor —, eu percebia que havia certa tristeza
permeando aquela questão.
Talvez, eu devesse remediar.
— Quão grande teria que ser para que me perdoe?
— Meu ego está ferido, então você teria que fazer algo muito
surpreendente. Vou pensar em algo. — Ele deu um tapa na minha
bunda. — Agora vamos, eu te quero nua nos próximos segundos.
Enquanto seguíamos para o nosso quarto, comecei a pensar
em algo que poderia surpreendê-lo.
Finalmente havia conseguido terminar a música que fiz para
ele. Estava simples, mas carregada de significado — pelo menos
para mim. Eu sabia que ele estava louco para me ouvir cantando,
mas usava cada grama de paciência para deixar que eu fosse no
meu tempo.
Ele sempre fez aquilo.
Um pedido de casamento também soaria incrível, Jenny. A
voz da loucura deu mais corpo àquela ideia. Só de imaginar a cara
de Gabriel, eu sentia um frio na barriga.
Respirando fundo, precisei segurar a minha onda.
Eu tinha tempo para organizar tudo.
— Por que eu sinto que você está planejando algo contra
mim?
— Porque somos inimigos e eu te odeio. — Pisquei um olho,
ele balançou a cabeça.
Agora, quem estava ansiosa era eu.
57
Gabriel Demonidhes

Assim que Jenny começou a choramingar, eu acordei.


Recentemente, nem a montanha de travesseiro estava ajudando em
seu sono, ela tinha pesadelos com frequência e acordava com a
respiração agitada.
Aquilo me preocupava.
Como poderia sequer cogitar a hipótese de que eu a
deixasse pelos plantões de quarenta e oito horas no Corpo de
Bombeiros? Era impossível, eu nunca a deixaria quando mais
precisava de mim.
— Calma, estou aqui. — Acariciei seus cabelos. — Está tudo
bem.
— Eu te amo, Gabriel.
Por um momento meu coração parou, para depois acelerar
ao ponto de me deixar tonto.
Era a primeira vez que escutava aquelas palavras saindo de
sua boca. Ainda que eu soubesse que ela me amava, ouvi-la dizer
era uma experiência completamente nova.
Queria que repetisse até eu me cansar, algo que jamais
aconteceria.
— Eu te amo, minha Beag. — Tirei os cabelos de seu rosto.
— Te amo demais.
Seu rosto contorceu, ela estava apertando o lençol como se
tentasse agarrar-se a algo.
— Entregue-me o meu bebê! — gritou. — Entregue-me o
meu bebê.
— Jenny, amor. — Não dava para deixá-la presa naquele
pesadelo. — Acorde!
Ela arregalou os olhos, estavam vidrados, sem foco. Certeza
de que ainda estava presa dentro daquele sono ruim.
— A culpa foi minha, eu te perdi e a culpa foi minha.
— Eu estou aqui. — Penteei seus cabelos para trás, ela
piscou, com o olhar entrando em foco. — Está tudo bem.
Ela negou, jogando os braços em meu pescoço e me
puxando para si.
— Não está, o monstro dos meus sonhos voltou e ele não se
parecia com o John — soluçou. — Ele sorria com aquela boca
enorme e dentes pontudos. Ele arrancou meu bebê de mim, ele
matou o meu bebê. Gabriel, ele matou você também.
— Shhh, está tudo bem, foi apenas um pesadelo. — Acariciei
seus cabelos. — E nós temos dois bebês.
E as coisas se manteriam daquele jeito, até que ela
engravidasse outra vez.
58
Gabriel Demonidhes

A imagem em 3D me permitia ver os traços do rosto de um


dos meus filhos. Lysander estava atento ao exame, anotando cada
mínimo detalhe. Eu estava atento também para conseguir notar
qualquer expressão de desagrado que ele fizesse.
Mas, além de um breve estreitar de olhos, não havia nada.
— Sua queixa da semana foi um aumento do desconforto nas
costas.
— Sim, é como se a minha barriga estivesse pequena para
os gêmeos e estivessem empurrando minha coluna. — Jenny
franziu o cenho. — O que foi? Você está vendo algo de errado?
— Não de errado, mas um bebê está completamente na
frente do outro. — Ele movimentou a ultrassom perto do umbigo da
minha mulher. — E está sentado.
— Isso pode ser um problema? — perguntei, mal
conseguindo respirar.
Cada novo exame de imagem eu sentia como se perdesse
alguns anos da minha vida. Eu tinha um medo do caralho do meu
irmão dizer que havia encontrado algo no coração de um dos meus
filhos, ou, pior ainda, dos dois.
Mas, graças a todas as divindades, todos os exames
cardiofetais foram ótimos.
— Irmão, eu já te disse que não há regras ou limites para a
posição de um bebê na barriga, eles mudam, entretanto, por serem
gêmeos, nessa situação a casa vai ficando pequena bastante
rápido. — O canto da boca do meu irmão arqueou. Daquela vez, eu
sabia que não eram problemas. — Pelo menos, desta vez o bebê
número um está com as pernas bem abertas. — Ele olhou para
Jenny. — Você quer saber o sexo ou quer deixar meu irmão
enlouquecer de curiosidade?
— Eu quero saber.
Porra. Eu já estava pronto para argumentar. Eu já estava no
limite da ansiedade, não era como Rafael que segurava a onda até
quando as pessoas ao seu redor, estavam loucas.
— Obrigado, Beag. — Peguei sua mão, beijando seus dedos.
— Eu não sei se aguentaria esperar.
— Mais algumas semanas? — Lysander arqueou a
sobrancelha. — Podemos começar a planejar no final deste mês,
Jenny não vai aguentar mais que trinta e seis ou trinta e sete
semanas, chutando com bastante otimismo.
— Por quê? Lysander, você está vendo algum problema que
não está me contando?
— Não há problema. — Foi Jenny quem me acalmou. — Mas
Amira teve Mikhail com trinta e oito, você viu tamanho do bebê? Ele
nasceu enorme.
— Sim. — Eu não sabia explicar, mas qualquer coisa
relacionada aos meus bebês e a minha mulher me deixavam tão
ansioso que eu sentia falta de ar.
Não ia admitir, mas, recentemente, não tinha boas noites de
sono porque eu temia que ela precisasse de mim, então eu não
dormia, e, enquanto eu esperava que ela precisasse, eu surtava
porque ela não precisava.
Era um inferno.
Jenny seguia tão forte quanto sempre foi, o louco era eu.
— Gabriel? Respire. — Um toque gentil em minha barba
aliviou aquela pressão no meu peito.
— Tudo bem. — Balancei a cabeça. — Estou bem.
— Meu grandalhão, eu acho que nossos gêmeos serão
grandes.
— Eles serão. Pelo menos, o que vejo já está com dois quilos
e cem. — Lysander balançou a cabeça, pude notar certa animação.
— Geralmente, gêmeos nessa idade gestacional deveriam estar por
volta do um quilo e meio.
— Okay. — Respirei fundo, aquela sensação de estar
afogando estava passando.
Mesmo assim, eu só tinha certeza de que só ia sossegar
quando pudesse segurar meus filhos e mulher nos braços, porque
eu sabia que poderia lidar com qualquer situação que viesse a
surgir, nas questões de segurança, cuidados extensivos, e o que
mais fosse preciso.
Enquanto eles fossem um combo, muitas coisas poderiam
dar errado. O coração de Jenny, o parto e tantas coisas.
— Você não deveria ter lido tantos livros sobre gravidez. —
Jenny não conseguia esconder o tom de riso.
— Informação é poder.
— Mas você está paranoico — Lysander completou. —
Insano, agitado, ansioso, me irritando pra caralho.
— Quando você estiver no meu lu...
O olhar que recebi foi tão significativo que não concluí a
frase. Havia muitas coisas ao redor de Lysander, umas piores que
outras e ele era fechado como um cofre de banco sobre as piores
partes.
— Eu só quero Jenny e nossos gêmeos bem. Eu quero poder
olhar para eles, separadamente, eu sinto que assim posso controlar
melhor os problemas, quando eles seguirem.
— Então é assim que funciona a mente de um ansioso? —
Meu irmão estava olhando para a tela. — Você fica antecipando
problemas, criando tantos outros e entrando num ciclo de surtos.
Por acaso quinze anos de treinamento não fizeram diferença? Está
mais agitado que sua mulher.
— Eu não sou um fearcloiche.[16]
— Com prazer. — Lysander deu de ombros.
— Entenda, irmão, eu só estou muito pronto para ser pai.
E para ser o homem que cuidava da mulher no pós-parto,
que satisfazia todas as suas vontades. Eu queria acordar de
madrugada, ou nem dormir porque os bebês não dormiram.
Merda, eu estava mais ansioso vendo Rafael já vivendo o
que eu queria viver.
Deus é minha testemunha de como eu estava pronto para
tudo aquilo. Respirei fundo, controlando-me.
— Gabriel, concentre-se no agora, você quer ou não saber o
sexo de um dos bebês?
— Eu quero.
— Então, respire, parece que vai desmaiar.
— Eu não desmaio — pontuei cada palavra, com os olhos
pregados na tela.
Lysander congelou a imagem, depois fez um círculo pequeno
ao redor de um ponto específico.
— Está aí o sexo do bebê, número um.
Esticando-me em direção a tela, eu pude ver claramente e
entender o que estava ali naquela imagem. Na hora meu coração
apertou, e uma sensação estranha de antecipação fez parecer como
se minha vida estivesse indo devagar demais.
— Meu Deus — Jenny arfou, então começou a rir e a chorar.
— Nosso Constantino. — Não pude evitar de sorrir como um
desgraçado que havia recebido mais uma bênção na vida. — Nosso
garoto.
— Sim, nosso menino — ela soluçou, eu apertei sua mão,
inclinando-me para beijá-la rapidamente.
— Obrigado, amor. — Distribuí beijos por seu rosto. —
Merda, eu estou feliz pra caralho.
— Agora pensem no nome para uma menina ou para outro
menino. — Lysander continuou fazendo o exame. — Inacreditável,
parece que esse bebê está na mesma frequência do pai.
— O quê? Por quê? — Voltei a prestar atenção na imagem.
— Ele está sorrindo. — Lysander balançou a cabeça, — Você
sorri demais, Gabriel.
— Vai se foder! — Mas eu estava sorrindo de orelha a orelha.
Eu nunca estive tão feliz.
Meu irmão congelou a imagem, e nós podíamos ver
claramente a mãozinha aberta ao lado do rosto, o sorriso.
Deus, eu sei que não mereço tanto, mas obrigado.
Eu amava aquelas crianças, e ver que meu filho estava
sorrindo talvez fosse uma prova de que ele também pedia meu
amor, mas, eu ainda me sentia regido pela necessidade de
afirmação. Por isso, encostei os lábios na lateral de sua barriga,
fechando olhos, murmurei para meu filho:
— Eu te amo, mac mo ghrá[17]. — Sorri, emocionado. — Você
e seu irmão são muito esperados.
— Não seja tão fofo, Gabriel. — A voz de Jenny soou
embargada. — Ai.
— Desculpe-me, Beag. — Alisei onde nosso filho chutou,
como se estivesse respondendo às minhas palavras. — Calma,
amor, a sua mãe é pequena, seja gentil com ela.
— Eu tenho uma apresentação hoje, não posso chorar,
Gabriel — Jenny reclamou. Eu beijei seus olhos, colhendo suas
lágrimas não derramadas.
— Eu te alegro daqui a pouco — disse em seu ouvido,
satisfeito pelo suspiro trêmulo que lhe escapou.
— Querem que eu me retire para que possam pular para a
parte mais dezoito?
— Lysander! — Jenny se engasgou, com o rosto ficando
vermelho quase que instantaneamente.
— Fazendo piada agora? — Eu não pude segurar a risada
diante aquela idiotice.
— Não sei o que é isso. — Havia tanta seriedade em sua voz
que, por um momento, eu me questionei se ele estava falando sério.
— Okay, não importa. — Voltei a minha atenção para a tela.
— Salva a imagem do meu filho sorrindo para mim.
— Ele não está sorrindo para você, bastardo.
— Foda-se, Lysander. Salva essa imagem.
Eu podia vê-la em uma moldura delicada ao lado da minha
cama.
Meu irmão fez como eu pedi, e durante alguns minutos ele
tentou ver se conseguia uma imagem do outro bebê, mas não deu
certo. Constantino estava ocupando toda visão.
— Você acha que pode ter algum risco para o bebê que não
estamos conseguindo ver? — Eu não me importava de parecer
irritante.
— Eu repeti todos os exames cardiofetais, e nenhum deles
apresentou problemas, a única coisa que não consegui ver foi o
sexo dos bebês.
— Você me assegura de que o coração dos bebês está bem?
— Os exames até semana passada não apontaram nada. —
Lysander retirou o aparelho e me entregou uma toalha para limpar a
barriga de Jenny. — Depois de amanhã irei fazer o cardiotoco. É um
exame de rastreio, feito mais para o final da gestação. Irei buscar
qualquer alerta de má oxigenação dos gêmeos, caso tenham.
Talvez, até lá, Constantino mude de posição.
“Então por que não fez antes?”, questionei-me, sabendo que
meu irmão era minucioso em suas questões.
— E se procurássemos um cardiologista fetal? — Antes que
eu pudesse segurar, as palavras saíram.
Lysander me olhou de lado, por um momento ele me deixou
ver a raiva brilhando em seus olhos verdes.
— Fique à vontade, mas eu não estaria cuidando da sua
mulher se eu não tivesse plena certeza de que sou capaz. — Ele
cruzou os braços. — A única maneira de eu não ter visto uma
cardiopatia, é se ela não estivesse se mostrando. Até o momento,
foram feitos quatro cardiogramas fetais e todos foram okay.
— Irmão...
— Tenho compartilhado absolutamente todos os dados de
Jenny com Dr. Milanni e com a Dra. Wood. Ela é uma obstetra da
Ordem bastante acostumada a fazer partos de alto risco. Garanti
que estivesse presente no evento de hoje. — Lysander me deu um
olhar frio. — Se quiser, você pode buscar um cardiologista fetal com
ela.
— Não precisa, Lysander. — Jenny tentou sentar-se, mas ela
jamais conseguiria sem ajuda. — Você é melhor que todos eles.
— Desculpe-me, irmão, não estou colocando em xeque suas
habilidades.
— Eu saberia se estivesse. — Olhou para mim. — Você acha
realmente que eu descuidaria de crianças que também são minhas?
— Não — pigarreei. — Não, meu irmão, você não
descuidaria.
— Muito bem. — Sua atenção se voltou para Jenny. —
Descanse no período da tarde, às dezoito horas uma equipe
chegará para arrumá-la.
— Obrigada, eu tenho certeza de que vai dar tudo certo.
Meu irmão havia anunciado que Jenny seria a cantora do
evento, e apenas por isso já estavam recebendo muitas doações.
Eu sabia que ele sempre doava os valores integrais para reformas
ou compra de equipamentos, mas, para um hospital daquele porte,
quanto mais dinheiro melhor.
— Vamos juntos. — Lysander retirou as luvas, descartando-
as. — Sairemos às vinte horas.
Ele não olhou para mim, e eu sabia que havia de certa forma
ferido seu ego. Foi apenas uma idiotice da minha parte, eu sabia o
quão dedicado meu irmão era, ele não colocaria meus filhos em
risco por nada no mundo.
— Eu acho que você precisa falar com ele. — Jenny pegou a
minha mão. — Lysander é bruto como um touro zangado, mas, ele é
minucioso em seu trabalho, eu confio nele cegamente para cuidar
da minha gravidez.
— Eu sei, merda. — Esfreguei o cabelo. — Eu vou consertar
as coisas com ele.
Ajudei a minha mulher a descer da cama, e a levei para a
sala. Quando chegamos, Rafael estava sentado no sofá com os
olhos fechados e Mikhail adormecido em seu peito desnudo.
— Estão dormindo, vamos para o quarto — Jenny falou
baixinho, mas quase que imediatamente Rafael abriu os olhos. —
Desculpe, não queríamos acordá-lo.
Meu irmão não disse nada, mas observou cada um dos
nossos movimentos enquanto nos aproximávamos.
— Onde está Amira?
— Relaxando na banheira, eu a obriguei. — Rafael acariciou
as costas do seu filho. — Shhh, estou aqui, aguente mais uns
minutinhos, a mamãe precisa de mais tempo.
Eu havia percebido que Rafael tinha um timbre de voz
especialmente para o seu bebê, o bastardo hipnotizava a criança,
eu nunca imaginei que veria algo parecido. Mas eu estava vendo,
com meus próprios olhos, ele murmurando em russo, e Mikhail
parando de reclamar para ouvir.
“Será que eu conseguiria fazer algo parecido?”, questionei-
me, levando em consideração que eu costumava conversar com os
gêmeos e eles respondiam com chutes.
— Ele não dormiu à noite, e Amira também não. — Um
sorriso discreto desenhou-se na boca do meu irmão. Todos
dedicados ao pequeno monstrinho e a sua esposa eram genuínos.
— Ele queria ficar em pé, caminhando pelo quarto. Creio que o
tenhamos deixado um tanto mimado.
— Quem se importa? — Eu dei de ombros.
— Mikhail é a pessoa mais irresistível dessa casa. — Jenny
sorriu, acariciando a própria barriga. — Rafael, um dos gêmeos é
menino.
O seu sorriso abriu-se mais um pouco, seus olhos azuis
brilharam com um sentimento genuíno.
Era muito bom ver aquele lado do meu irmão. Talvez, fosse o
detalhe que faltava para que ele, de fato, se tornasse a versão mais
jovem de nosso pai.
— E o outro?
— Não conseguimos ver, ele ou ela está sendo encoberto por
Constantino.
— Constantino?
— Sim, nós decidimos. — Não queria que meu irmão
dissesse algo que pudesse magoar os sentimentos de Jenny, mas o
que ele fez foi testar o nome que nosso filho teria.
— Constantino Demonidhes, neto de Roman, filho de Gabriel,
o incendiário. — Meu peito estufou de orgulho. — Eu gostei de
como isso soa, irmão, ótima escolha.
— Obrigado, irmão.
Rafael se levantou, a cabeça voltada para o bebê que
começou a resmungar. Observei meu irmão o acalentando, depois,
quando Mikhail acalmou, Rafael disse em russo:
— Uma mulher procurou você no departamento, o seu
superior entrou em contato. Está semana foram cinco vezes. Ela foi
barrada pelo meu escritório. Mandei investigá-la, em breve terei
respostas.
— Não faço ideia de quem seja — respondi, aquela não era a
primeira vez.
Lembrava que há muito tempo, uma mulher havia me
procurado, mas eu procurei saber quem era. Certamente era
alguma foda querendo um novo encontro que jamais aconteceria.
Um toque no celular de Rafael chamou sua atenção, ele leu a
mensagem, lançando-me um olhar significativo.
Seriam as tais informações sobre a mulher que me
procurava? Não perguntei, precisava saber de quem se tratava
antes de resolver o problema.
— Amira está me esperando. — Capturei a mentira, mas
acenei, observando-o ajustar o filho na curva dos braços, era
impressionante como todos nós adaptamos rapidamente aos
cuidados que um bebê precisava. — Até breve.
Meu irmão se afastou, nos dando um vislumbre de sua
Ouroborus que ia de ombro a ombro. Eu sabia que ela escondia
uma parte de seu passado.
Algumas marcas ainda davam para ver.
— Gabriel? — Jenny tocou meu rosto. — Vá falar com
Lysander, eu posso chegar ao nosso quarto sozinha.
— Tem certeza?
— Absoluta.
Antes de nos afastarmos roubei-lhe um beijo, no breve
instante que nossos lábios se tocaram a minha mente estava
sintonizada a ela. Jenny ocupava minha cabeça, a vontade de
deixar tudo em segundo plano me dominava, ainda que eu
soubesse que havia cometido um erro e que precisava remediar.
O cheiro dela, o toque, a língua macia, até os suspiros eram
aditivos para mim.
— Eu não vou demorar. — Beijei-a outra vez, e mais outra,
reticente em me afastar.
— Gabriel, eu preciso respirar — Jenny ofegou, eu busquei
seus olhos, percebendo que ela de fato precisava que eu levasse as
coisas com mais calma.
— Não demoro.
Eu me apressei na direção do centro médico outra vez, iria
resolver as coisas com meu irmão e voltar para Jenny.
Sentia a necessidade de estar ao seu lado, hoje, mais do que
nunca.
59
Jenny Monroe

Gabriel passava óleo na minha barriga enquanto me


elogiava. Por culpa dele estávamos atrasados, a equipe que
Lysander contratou, que havia chegado há cerca de dez minutos,
estavam esperando no quarto de hóspedes, onde foi montado um
estúdio para que eu fosse arrumada.
— Você está gostosa. — Ele esfregou o pau na minha bunda,
estava diante do espelho.
— Sim, eu pareço suculenta como um pêssego maduro. —
Fechei os olhos, amando ter suas mãos sobre mim.
Eu tentava não pensar nos mais de vinte quilos que já tinha
ganhado. E nem quão grande e desengonçada eu me sentia. Eu
amava o que aquelas mudanças significavam, e o homem ao meu
lado continuava me enaltecendo.
Ele não mudou nenhuma grama. Continuava o mesmo
pervertido, descarado, que me falava o que queria fazer comigo,
excitando-me antes mesmo de suas mãos me tocarem.
— Você vai me deixar provar seu leite quando o momento
chegar?
— Gabriel... — gemi, sentindo a boceta molhando com a
imagem pervertida que ele colocou na minha cabeça. — Que ideia é
essa?
— Eu li que, quanto mais estimular, mais leite você terá.
— Você e seus livros. — Apertei as coxas, gemendo quando
ele começou a massagear meus seios. — Veja.
Havia um líquido escorrendo do meu mamilo. Com um sorriso
puramente obsceno, Gabriel ficou na minha frente, capturando a
pérola transparente com a ponta da língua.
Com os olhos presos aos meus, ele foi me guiando para trás,
até que eu pudesse sentir a cama em minhas pernas. Com cuidado
me ajudou a deitar, ficando fora da cama.
— O que acha de um pouco de diversão antes de sairmos?
A minha resposta foi de abrir as pernas e tentar não gritar
quando ele me lambeu inteira, o primeiro toque, para que me
preparasse para o ataque. só um único aviso de que seria um
ataque.
Era quase um “segure-se”, antes da verdadeira brincadeira
começar.
— Minha nossa — engasguei quando ele esfregou o rosto em
minha boceta, espalhando minha excitação e me chupando com
força.
— De fato, deliciosa como um pêssego maduro. — Ele
chupou meu clitóris com força, fazendo estrelas piscarem diante dos
meus olhos. — Mas é o meu pêssego, só meu.
Fechei os olhos, agarrando os lençóis frios.
Meu corpo havia mudado bastante, mas ele me olhava com
ainda mais intensidade de antes. Ele desfazia as minhas
inseguranças com um sorriso, e então demonstrava como se sentia.
Ele me amava de todas as maneiras e em todas as formas.
— Você é minha.
— Eu sou.
Era a primeira vez que eu confirmava. Não havia o que
preservar, ele já tinha conquistado todas as partes de mim.
60
Jenny Monroe

Eu não esperava que alguém conseguisse fazer uma mulher


de trinta e três semanas de gestação se sentir tão bonita num
vestido.
Nunca, em toda a minha vida, eu me via tão incrível. Era
quase como se houvesse uma aura ao meu redor, eu estava
radiante, os olhos brilhando, a pele.
Tudo estava surreal, cada detalhe.
— Deus do céu. — Toquei meu rosto, achando-me linda com
aquela maquiagem delicada e o cabelo preso num coque que
parecia prestes a se desfazer.
Aquela Jenny era a viva imagem de como alguém feliz
deveria parecer. Eu não reconhecia a antiga garota que eu já fui,
não havia mais tristeza ou a sombra do medo em meus ombros.
— Porra! — A voz de Gabriel chamou a minha atenção.
Por um momento, eu não tive um raciocínio lógico na minha
cabeça. Eu não me lembrava de já tê-lo visto tão elegantes quanto
naquele momento.
— Você está absolutamente incrível — murmurei,
observando-o se aproximar de mim.
O smoking preto parecia ter sido feito sob medida pois
encaixavam esplendidamente, deixando seu porte ainda mais
robusto e incrível. A camisa branca com brilho perolado exaltava a
cor de seu cabelo ruivo, e os olhos mais verdes e lindos do mundo.
— Você está linda, Beag.
Não mais que você. Não me assustava que ele visse o quão
apaixonada eu estava, não havia mais o que esconder, e aquela
brincadeira do “eu te odeio” acabaria mais tarde.
— Gostei da cor do seu vestido. — Ele me abraçou por trás,
repousando as mãos na minha barriga.
— São da cor dos seus olhos — suspirei — Não deveria ser
aceitável um homem ser tão bonito quanto você. — Apoiei-me nele,
tendo o cuidado para não bagunçar meu cabelo.
— E mesmo assim você recusou meu pedido de casamento.
Onde está o problema comigo então?
— Você nunca vai parar de usar isso contra mim? — Mesmo
eu sabendo que ele estava apenas provocando, não pude evitar a
careta.
— Eventualmente eu irei parar, mas não será hoje, nem
amanhã. Talvez quando eu esquecer, em dois ou dez anos. — Ele
piscou um olho.
— Rancoroso demais.
— Só um pouco. — Ele se afastou e através do espelho eu o
vi retirando algo do terno. Era um estojo preto, alongado. — Depois
de muito tempo, hoje é a primeira vez que você vai cantar para um
público.
Ele abriu o estojo, e eu não tive nem palavras para descrever
a beleza das joias que estavam ali. Elas não eram exageradas, e
sim minuciosas, como se alguém houvesse dito exatamente como
queria o designer.
— Quero que me sinta enquanto eu não estiver te tocando.
— São lindas. — Acariciei a corrente fininha de ouro branco,
deslizando os dedos pela esmeralda em formato de lágrima. —
Você sabia que meu vestido seria verde?
— Possivelmente. — O seu sorriso me deu a confirmação.
Ele sabia. — Permita-me.
Gabriel deslizou a corrente pelo meu pescoço, a pedra verde
encaixou entre os meus seios. Depois, ele colocou os brincos.
Eu me senti uma princesa.
— Linda demais. — Gabriel beijou meu ombro, encarando-
me por um momento solene. — Eu sei que não nos casamos
formalmente, mas nós temos uma vida de marido e mulher. Hoje eu
quero usar isso.
Ele retirou uma caixinha do bolso, colocando-a diante dos
meus olhos.
— Estou com isso há alguns meses. — Ele abriu-a,
mostrando que havia duas alianças simples ali dentro. Um grande e
outra pequena.
A menor encaixava dentro da outra.
— A sua não vai caber, mas eu gostaria que colocasse a
minha em meu dedo.
Um nó gigantesco se formou em minha garganta, os olhos
ardendo de emoção. Lutando para não chorar, tremendo, peguei a
aliança maior.
— Todos irão ver a quem pertenço — ele disse baixinho,
enquanto eu deslizava em seu dedo. Fechando os olhos, inclinei
sobre ele, beijando a aliança. — Eu te amo, Jenny.
Ele me beijou, e eu derreti em seus braços, enquanto
lágrimas da mais pura felicidade escorriam. Não existia coisa melhor
do que ser valorizada, querida e amada apenas por ser você
mesma. A vida ao lado de Gabriel era incrível, em todos os sentidos,
porque ele me fazia saber que o lugar dele era ao meu lado.
Como o meu era ao dele.
— Não chore. — Ele segurou meu rosto. — Hoje é um dia
para comemorar, você está retomando sua carreira. Eu prometo,
Jenny, você vai ser muito feliz.
— Se eu estiver ao seu lado, eu serei.
— Eu sempre vou estar aqui para você. — Ele me abraçou.
— Eu sempre vou estar.
— Eu também. — Fechei os olhos, porque eu sentia que
precisava lhe fazer aquela promessa. — Eu nunca vou te deixar,
Gabriel Demonidhes.
Seus braços me apertaram um pouco mais, eu o senti
estremecer.
— Vai me aguentar até quando eu me tornar insuportável
como Lysander? Você sabe, meu irmão tem por volta dos oitenta
anos, mal-humorado o desgraçado.
— Eu juro.
Ele sorriu, deixando-me perceber a felicidade brilhando nos
olhos verdes mais lindos do mundo.
— Vamos, ou não sairemos deste quarto. — Pigarreou,
oferecendo a mão esquerda, a que estava com a aliança.
Juntos seguimos ao encontro de Lysander. Quando nos
aproximamos da garagem, os outros irmãos estavam lá, todos
vestidos a caráter.
— O que estão fazendo? — Gabriel questionou,
compartilhando a mesma confusão que eu sentia.
— Seguiremos juntos. — Rafael tomou à frente. — Amira e
meu filho estão seguros dentro do Complexo, nós vamos garantir
que a sua mulher também esteja.
Outra vez precisei me segurar para não chorar, não havia
melhor sensação no mundo do que a que estava sentindo, era como
se num dia muito frio, alguém colocasse um cobertor quentinho em
meu ombro.
— Obrigada por tanto. — Olhei para cada um deles. —
Significa muito para mim. — Levei uma mão ao peito.
— Agora vamos, nós estamos atrasados — Lysander
chamou, ele se sentou no banco do motorista.
Razhiel ficou ao seu lado, no banco de trás; eu fui colocada
no meio, entre Gabriel e Rafael. Heylel estava na última fileira do
enorme SUV, ele estava bem atrás de mim.
Seguimos viagem em um silêncio confortável, quando
chegamos no hospital — que seria onde o evento iria acontecer.
Havia fotógrafos e repórteres. A meu ver parecia um evento do
Oscar.
— Todos os anos acontece assim, por causa da lista de
convidados — Lysander esclareceu.
Nós paramos em frente ao local da recepção, primeiro os
irmãos saíram, eu só fui autorizada por último.
Deus, me sinto uma estrela da música com tanto cuidado.
— Segure em meu braço — Gabriel ofereceu, porque assim
que eu ergui a cabeça, tantos flashes brilharam que, por um
momento, eu ceguei.
Uma mão repousou na base das minhas costas, eu comecei
a ser guiada, até que pude ouvir meu nome sendo gritado por várias
pessoas.
— Estão me chamando, Gabriel. — Olhei para ele e nós
paramos. Atento ao redor, viramos para as pessoas que estavam ali.
Meu coração bateu forte, eu não fazia ideia de como ele iria
lidar com a situação, era a primeira vez que estávamos em público
daquela forma.
— Vamos até eles. — Sorrindo guiou-me até onde estava o
grupo.
— Uma foto, por favor, uma foto — era o que mais pediam.
— Cuidado, pessoal, ela está grávida. — Gabriel era tão
charmoso que as meninas deram risadinhas envergonhadas. —
Vamos lá.
Ele pegou o celular e começou a tirar as fotos. Algumas
pessoas tiravam por si mesmas.
— Precisam avançar, senhores. — Um dos seguranças
avisou. Naquele momento, uma atriz jovem e famosa estava
chegando junto com seu namorado e pai.
Havia pessoas ali esperando por ela. Ficamos próximas, e
ela pareceu-me bastante simpática, pois tratava as pessoas com
bastante atenção e carinho.
— Meu pai surta — falou baixinho, em tom cúmplice. — Mas
ele gosta do engajamento, ajuda na arrecadação de fundos,
inclusive meus fãs estão fazendo doações, os seus estão?
— Eu não sei. — Engoli em seco, porque a sensação de
estar sendo observada por alguém muito ruim me deixou
desconfortável.
Era quase como se John estivesse ali, com aqueles seus
olhos de réptil e sorriso de tubarão.
— A propósito, meu nome é Mia, sou filha do Dr. Cameron
Parker.
— Jenny M...
— Demonidhes — Gabriel interveio, piscando um olho para
mim.
— Vocês são lindos juntos. — Mia sorriu, quando eu aceitei a
mão estendida. — Feliz que está voltando, estou ansiosa para ver
seu show.
— Não vai ser um show. — Senti o rosto esquentando. —
Apenas algumas músicas.
— Não importa, eu sei que vou amar. — Ela puxou o homem
que estava ao seu lado.
Ele era alto, não tanto quanto Gabriel, mas tinha um porte
grande, cabelos longos e escuros, preso na nuca. Ele também
possuía uma barba bem-feita e sorriso gentil. Não sabia, mas ele
tinha um ar de gente famosa.
— Esse é o meu namorado, David Mullër. Ex jogador de
futebol — ela cochichou.
— Prazer, senhora Demonidhes, Mia estava falando muito
sobre encontrá-la hoje.
Ele estendeu a mão, mas, quando eu a toquei, seus dedos
gelados me causaram arrepio. Não saberia descrever exatamente a
sensação, mas era como se alguma coisa pegajosa estivesse se
enrolando em mim.
Gabriel deve ter percebido, pois ele estendeu a mão para o
homem, encarando-o fixamente nos olhos.
— Nos conhecemos? — Observei a interação, meu viking
estreitou os olhos, avaliando.
— Não, tenho certeza. — David sorriu, os dentes
exageradamente brancos deixando seu sorriso estranho. — Me
aposentei há seis meses, lesão do ligamento cruzado.
— Você estava jogando onde? — As perguntas de Gabriel
poderiam parecer inofensivas, mas eu sabia que ele estava
avaliando o outro homem.
Eu tinha certeza, talvez, por estamos num local com tantas
pessoas ele estivesse apenas sendo cuidadoso, mas eu
considerava que sempre estarem em alerta era algo natural para os
Demonidhes, afinal eles não eram o que diziam ser.
— Campeonato brasileiro, primeira divisão.
— Qual time? — Razhiel perguntou, entrando na conversa.
— Eu gosto do campeonato brasileiro.
— Athletico Paranaense — David pigarreou. — Passei dois
anos lá.
— Bom. — Razhiel balançou a cabeça. — O Athletico estava
num ritmo muito bom de jogos e vitórias. Qual foi mesmo o placar
daquele jogo em casa contra o Flamengo que ocorreu em agosto?
A pergunta de Razhiel pareceu simples, mas o outro homem
sorriu um tanto sem graça. A meu ver pareceu como se ele não
soubesse o que responder, ou estivesse constrangido.
— Meu namorado estava sofrendo com uma lesão — Mia
interveio, com seu jeito simpático. — Ele não pôde jogar a final, mas
aqui vai um spoiler, o Athletico ganhou.
— Eu sei. — Razhiel inclinou a cabeça, sorrindo de um jeito
estranho. — Desde 1974 que o Athletico não perde para o
Flamengo em casa. Três gols em vinte minutos de partida. Foi bem
expressivo, você não lembra desse resultado, David?
— Eu já estava fora do time. — Ele pareceu constrangido.
— Precisamos ir, estão me chamando ali. — Mia sorriu para
mim, acabando com o momento estranho entre os homens. —
Jenny, depois, quando você tiver um tempo livre, poderíamos
marcar alguma coisa.
— Eu vou adorar.
— Eu vou pedir para a minha assessoria entrar em contato
com a sua. Até breve.
Não demorou muito para que nos organizássemos, e ela
ficasse próxima do seu grupo e eu do meu.
Eu tirei muitas fotos. Algumas pessoas queriam fotos do
casal, e Gabriel pareceu que sempre viveu como artista, ele tinha
jeito com o público, era carismático, charmoso até dizer chega.
Havia percebido que meu público havia abraçado a ele
também e vê-lo sendo tratado com tanto carinho, me fez ter certeza
de que as pessoas que gostavam de mim de verdade, sabiam que
éramos um combo.
— Acho que acabou. — Gabriel tocou a minha cintura,
quando olhei, não pude evitar de sorrir. Ele estava lindo demais, a
expressão relaxada de alguém feliz. — Vamos?
Estávamos nos preparando para sair, quando alguém se
esticou pelo cordão de isolamento, dando um puxão suave no meu
vestido, chamando minha atenção.
Quando eu me virei, acabei deparando-me com uma garota
linda, baixinha como eu, com grandes e bonitos olhos escuros. De
cara havia notado que estava assustada, ela abria e fechava a boca,
os olhos arregalados de nervosismo.
— Tudo bem? — Notei sua respiração ficar mais rápida
quando me aproximei. — Calma, não fique nervosa. Como é o seu
nome?
Ela estava olhando para a minha boca, as mãos tremendo
muito. Devagar, começou a fazer gestos e quem se desesperou fui
eu.
Meu Deus e agora? Eu não sabia ASL — língua de sinais
americana — e a sensação de que estava desapontando alguém
que se importava comigo era muito ruim.
— Deixe-me tentar algo. — Razhiel se aproximou, ficando no
lugar de Gabriel ao meu lado. — Tudo bem? — Ele gesticulou, e o
sorriso da garota ficou enorme, seu rosto iluminou-se.
Ela começou a falar movendo as mãos, fazendo gestos com
muita habilidade. Era simplesmente lindo de ver como ela era
expressiva.
— Ela está dizendo que é surda, está pedindo desculpa por
isso.
— Oh, não por favor. — Coloquei a mão no peito, balançado
a cabeça. Razhiel estava sendo nosso intérprete. — Eu que peço
perdão por não conseguir me comunicar com você sem ajuda. Eu
vou tentar remediar isso, eu prometo.
Era uma promessa que eu ia cumprir com certeza. Nunca
mais queria ter aquela sensação de que havia uma barreira de
comunicação entre mim e um fã.
— Eu me chamo Lisa tenho vinte e três anos e te acompanho
desde o começo da sua carreira. — Ela foi “falando” mais devagar, e
apesar de não entender me mantive atenta aos seus gestos, a voz
de Razhiel me fazia acompanhar tudo direitinho. — Você legendava
seus vídeos, e isso fazia toda diferença para mim, depois quando
parou eu me senti muito triste e excluída.
— Desculpe-me. — Olhei para Razhiel desesperada que ele
falasse para ela. — Por favor, desculpe-me.
— Eu sei, quando disse que não era você quem cuidava das
suas redes eu entendi o porquê. — Ela estendeu as mãos para mim,
eu aceitei apertando-a de leve e soltando-a logo depois. — Jenny,
você vai voltar?
Ali, eu descobri que não era apenas sobre mim e que não
havia motivos para ter medo. Eu teria oportunidade de aprender
quando os erros chegassem, bastava fazer como Gabriel me
ensinou.
Deixar o diálogo aberto e tentar resolver, melhorar.
— Sim, Lisa, e eu vou voltar. — Ela abriu um sorriso enorme.
— Quando os bebês estiverem maiores, eu volto com tudo. E
obrigada por me deixar saber como se sente.
— Eu vou esperar ansiosa, te desejo muita felicidade. Eu te
amo, Jenny. — Ela fez um gesto que eu entendi. — Podemos tirar
uma foto? — Razhiel olhou para mim.
Balancei a cabeça, e ela mesma tirou a nossa foto juntas.
Depois, pegou uma sacola bonita entregando-me.
— Eu mesma fiz. — Razhiel disse. — Você pode ver depois?
— Posso sim, obrigada — agradeci, e ela acenou, dando-me
um tchauzinho, que eu retribuí.
— Agora precisamos ir. — Lysander fez um gesto com a
cabeça. — Vamos.
Nós entramos no salão, e eu não pude esconder todo
deslumbramento que eu senti ao ver o quão elegante estava. Eu
não fazia ideia de que um hospital teria um lugar para festas, mas ali
estava eu, diante de muita beleza e glamour.
— Isso aqui fica comigo. — Razhiel pegou o presente que eu
havia ganhado. — Vou avaliar, depois coloco no carro, tudo bem?
— Tudo. Obrigada. — Acenei, sentindo-me feliz.
— Eu aceito o agradecimento quando você escolher meu dia.
Sábado estou de folga. Vamos para a minha casa na praia? Posso
preparar um jantar e...
— Não começa, bastardo! — Gabriel deu uma cotovelada no
irmão.
— Você não pode culpar um homem por tentar. — Razhiel
piscou um olho, sorrindo largamente enquanto se afastava.
— Por aqui, nossa mesa está localizada mais perto do palco.
— Lysander nos mostrou a mesa em que ficaríamos, para a minha
surpresa, o Dr. Milanni estava lá e, ao lado dele, havia uma mulher
belíssima.
Ela olhava ao redor, como se estivesse prestando atenção
nas pessoas, mas, quando nos aproximamos, ela sorriu,
levantando-se para nos receber.
— Essa é a Dra. Blake Wood, a especialista em gestação de
risco que falei mais cedo — Lysander falou para mim. — Ela estará
na cadeira ao seu lado.
— Lysander, não precisava disso, você sabe... — Segurei em
seu braço quando começou a se afastar. — O que você diz para
mim, é o que eu acredito.
Seu olhar suavizou um pouco, mas depois ele voltou a ser
tão frio e indiferente quanto sempre foi.
— Uma conversa não será nada demais.
Lysander sentou-se em seu lugar, ao lado de Rafael. A mesa
de jantar era redonda, possuindo dez lugares. Vendo o modo como
eles estavam posicionados, deu para perceber que tinham todos os
pontos do salão sendo monitorado por um irmão.
Eu sabia que o Dr. Milanni era um membro da Ordem, mas
eu não fazia ideia se a doutora Wood também fazia parte.
— Boa noite, Jenny. É um prazer finalmente conhecê-la. —
Ela ofereceu a mão, que eu aceitei.
— O prazer é meu, Dra. Wood.
— Tenho acompanhado os seus exames, e quero deixar claro
que não há nada para temer. Tudo tem estado incrível, inclusive sua
saúde está melhor que a de muitas mulheres que não possui
cardiopatia.
Gabriel havia dado um jeito de sempre estar por perto. Ele
tinha mudado sua vida radicalmente para adaptar-se a minha.
Ainda era difícil para mim acreditar que ele pudesse cogitar
renunciar ao seu trabalho no Corpo de Bombeiros, mas ele estava
bem-disposto a seguir em frente se sua licença não fosse estendida,
já inclusive tinha me avisado que não se importava.
Eu tinha medo de que no futuro ele se ressentisse de mim
por ter que abrir mão de alguma coisa, por isso, em breve teríamos
uma conversa sobre o assunto, e eu o faria mudar de ideia.
— Sou muito feliz, talvez por isso esteja tão bem.
A doutora me olhava como se nos conhecêssemos, e eu não
podia evitar de me sentir meio estranha. O que era até verdade,
levando em consideração que ela sabia todo meu histórico médico.
— Você está preocupada com o seu parto?
— Não. Mas eu acho que o pai dos gêmeos está. — Olhei
para a minha barriga acariciando-a. — Sinto-me ótima, apesar dos
pesares.
— Na segunda que vem, iremos montar o seu plano e parto.
Eu e o Dr. Demonidhes, deixaremos seu marido a par de todo passo
a passo; e de antemão, eu asseguro que o seu acompanhamento foi
impecável, portanto não se preocupe, o principal agora é levar a
gestação o máximo que possamos para que os bebês amadureçam
mais.
— Tudo bem, nós vamos conseguir.
Apesar de estar ao redor de Lysander, conversar com aquela
médica havia sido bom. Ela era animada, e eu acho que não
mentiria quando tinha tanta coisa em jogo.
Gabriel não deixaria passar, e naquele momento ele estava
sorrindo, prestando atenção em nós.
— Viu? — o provoquei, ele apenas acenou.
— Cuidado nunca é demais. — Beijou minha mão, enrolando
a mecha solta nos dedos. — Quando você irá cantar?
— Não sei, creio que em breve.
O em breve chegou mais rápido do que eu esperava. Logo
após o jantar, o homem responsável por fazer o discurso de
apresentação estava explicando sobre as necessidades daquele
evento.
Pelo que eu havia entendido, o hospital que Lysander
trabalhava atendia quase todas as áreas, mas a principal era
traumatologia, ou seja, os casos mais graves eram enviados para lá
e os custos daqueles pacientes eram exorbitantes por causa do
volume de entradas ser muito extenso.
Depois vinha a ala de oncologia, a de neonatal e de doenças
raras. Para aquelas, eles destinavam os maiores recursos por
serem referência em tratamento e atendimento.
— Temos muitos homens ricos aqui hoje, por isso eu espero
que não sejam tímidos na hora de assinar o cheque. — Um coro de
risadas se fez ouvir. — Agora, eu vos deixo com a maravilhosa
Jenny Monroe e sua bela voz.
Eu precisei levantar, sob um monte de aplausos. Eu não
sabia como eventos daqueles funcionavam, tampouco sobre o
marketing que Lysander fez, mas não pude evitar o nervosismo.
— Você está perfeita. — Gabriel sorriu, levando-me até o
pequeno palco, onde a banda tocava.
No meu repertorio, incluí músicas autorais e grandes
sucessos de artistas conhecidas, e que permitiam cantar mais
lentamente, no meu estilo.
— Boa noite a todos, eu gostaria de agradecer os presentes.
Hoje é um dia especial, em que temos a chance de fazer a diferença
na vida de muitas pessoas.
A banda já havia iniciado a sequência de acordes, eu fui
seguindo o plano, introduzindo minha voz na melodia. Cantar nunca
foi difícil, mas houve uma época que pareceu um fardo pesado
demais.
Naquele momento, eu sentia que havia recuperado tudo de
volta, era como a Jenny que começava a carreira, cheia de sonhos
e paixão pelo trabalho. E eu devia tudo ao homem que me olhava
como se o mundo não existisse e ele sequer escondia a admiração.
Seus olhos brilhavam de encantamento, e mais uma vez,
fazendo-me sentir a mulher mais amada do mundo. Eu cantei para
ele, estendendo a mão, dedicando cada palavra, nota, sentimento.
Conforme as músicas foram mudando, ele permanecia com a
mesma expressão de êxtase. Meu coração estava aquecido e todo
o nervosismo foi indo embora porque o meu porto seguro estava ali
diante de mim.
De vez em quando eu apertava a esmeralda, o sorriso dele
crescia ainda mais. Estávamos nos comunicando silenciosamente, e
talvez aquilo tornasse a surpresa que eu tinha preparado ainda
melhor.
Quando terminei a última música do repertório oficial, um
assistente entregou-me o meu violão, ajustando o microfone.
— Quando eu recebi o convite, sabia a importância do que
seria feito, e eu agradeço ao Dr. Lysander Demonidhes por me
colocar neste lugar hoje. — Outra vez eu fui aplaudida, porém o
mais entusiasmado continuava sendo o meu viking. — Por isso, hoje
eu gostaria de compartilhar uma música inédita com vocês. —
Gabriel arregalou os olhos, inclinando-se para a frente. — Ela conta
um pouco sobre a história do meu amor e o quanto a minha vida
mudou quando Gabriel olhou para mim.
Havia chegado o momento.
Toquei alguns acordes da melodia suave, que mais parecia
um deslizar carinhoso para quem estivesse ouvindo.

“Querido, quando você estendeu a mão para mim,


e perguntou se eu ficaria, eu vi como o sol brilhou em seus olhos.
Eu disse que sim, porque você era o meu paraíso,
e o que sempre esteve tão longe, agora estava perto.
Eu posso ouvir sua voz, a doce melodia quando chama meu nome.
Você fala comigo, sempre fala comigo sobre os seus sonhos,
e pela primeira vez, eu sinto que faço parte de algo.
Eu amo tudo isso, amo tudo em você.
Saiba que você é meu paraíso,
O céu parece muito perto de mim quando estou em seus braços,
É com você, eu sei que sempre será assim.
Eu te amo, meu anjo, porque eu posso te ouvir,
todas as vezes que você chama por mim.
Eu posso te ouvir, e posso te sentir.
Você é meu paraíso, e eu jamais vou embora,
Porque o céu é mais perto, sempre que você me toca.”

Quando recitei a última frase e o último acorde da melodia


soou, os aplausos soaram. Colocando o violão ao lado, eu me
levantei, com a emoção trasbordando, pois eu conseguia ver a
emoção estampada nos olhos de Gabriel.
Ele havia gostado, dava para ver no enorme sorriso
orgulhoso que ostentava. Quando ele deu um passo em minha
direção, eu me preparei para fazer o pedido, pois podia perceber
que ele não estava aguentando mais ficar “longe”.
Sorrindo, aproximei o microfone.
— Gabriel Demonidhes, você aceitaria se...
Minhas palavras foram interrompidas pela sensação de fogo
que se alastrou rapidamente pela minha barriga.
Franzindo o cenho, olhei para baixo.
Havia sangue se espalhando.
Então, eu estava caindo.
61
Jenny Monroe

Eu não conseguia respirar, tampouco sentir o toque de


Gabriel em mim. Podia ver o horror em seu rosto, o desespero com
que ele me tocava. A cada instante, ia perdendo a sensação de seu
toque em minha pele, mas a dor continuava aumentando, crescendo
e se espelhando por meu peito, pela minha barriga.
Por todo o meu corpo.
Eu não entendia o que estava acontecendo.
— Ela levou um tiro, porra! — Alguém gritou.
Eu levei um tiro? Mas eu não havia escutado nenhum tiro,
não percebi nada.
— Gab... — tentei falar, mas a língua estava estranha,
pesada.
Meu corpo todo estava.
— Vai ficar tudo bem, amor! — Gabriel gritava, sua voz foi se
tornando cada vez mais distante.
Aquela sensação de que alguém estava sentado no meu
peito estava crescendo cada vez mais. Respirar parecia mais difícil,
era como se estivesse mergulhando numa crise, só que daquela vez
era diferente, porque a dor me consumia com tanta crueldade.
Era como se meu corpo estivesse lutando uma última vez,
mas eu sentia que era a definitiva.
Meu coração estava falhando.
Perceber aquilo me desesperou. Durante tanto tempo eu tive
a chance de falar para Gabriel que eu o amava, não pela música,
mas olhando em seus olhos, declarando como ele merecia ouvir.
E ali, enquanto eu sentia que estava perdendo as forças, a
única coisa que eu desejava era estar em casa, com ele, dizendo
que o amava.
Ele precisava saber como eu me sentia.
Eu tinha que dizer.
— Não se esforce — ele implorou, e eu nem sabia que
estava tentando.
Aos poucos, a realidade pareceu ir se desprendendo, era
como se meus olhos estivessem se fechando mesmo que eu lutasse
para mantê-los abertos.
A imagem de Gabriel estava embaçando, ele ia sumindo
cada vez mais.
— Gabriel... — arquejei, ofegando desesperadamente, a dor
era intensa demais, agonizante. — Gab...
— Eu sei, eu sei, meu amor, não se esforce, tudo vai ficar
bem. — Ele estava perto, mas eu não conseguia erguer a mão e
tocá-lo. — Aguenta só um pouco, você vai ficar bem, Beag, nós
vamos para casa e tudo vai ficar bem.
Arquejei, lutando para manter os olhos abertos, para não
perdê-lo.
Eu preciso dizer que te amo...
Eu te amo!
— Gabriel, eu...
Ele sumiu diante dos meus olhos, mas, então, naqueles
breves segundos que antecederam o silêncio, eu ainda pude ouvi-lo
gritando meu nome.
Sinto muito...
Gabriel Demonidhes

A respiração da minha mulher cessou enquanto ela tentava


dizer que me amava.
Mas não houve tempo.
— Jenny? — murmurei, tomado pelo mais absoluto e
paralisante terror. — Jenny?
Ela não se mexeu.
Ela não podia.
— Não... não... — Puxei-a para mim, empurrando Lysander
da frente para que eu pudesse abraçá-la — Por favor, por favor, eu
imploro. Não me deixe.
Meu Deus, oh, meu Deus, por favor... Não faça isso comigo.
— Estou aqui, Beag. — Fechei os olhos, apertando-a contra
mim. — Sinta meu calor, por favor, estou aqui.
Eu sentia que tentavam me separar dela, mas não conseguia
pensar em outra coisa a não ser mantê-la em meus braços.
— Estou aqui. — Balancei nossos copos. — Por favor, estou
aqui. — Cego pelas lágrimas que eu não derramava há tantos anos,
eu continuava implorando.
Desacreditado do que estava acontecendo, do meu erro.
Meu Deus, como eu não pude perceber?
— Não me deixe, Jenny, você prometeu!
— Gabriel! — um berro alto explodiu no meu ouvido, alguém
apertou meu pescoço com tanta força, que o ar foi cortado
imediatamente.
Ali, iniciou-se uma luta terrível. Eu estava sozinho, um
zumbido alto ecoava nos ouvidos.
Não posso deixar que a levem, não posso deixar! Tentavam
arrancá-la de mim, sentia várias mãos lutando contra mim, o agarre
em meu pescoço aumentando, eu me sentia sufocar, mas não ia
soltá-la.
— Solte-a, meu irmão, solte-a.
Nunca!
— Jenny precisa de ajuda e você está acabando com
qualquer chance que ela tenha de sobreviver! — Reconheci a voz
de Rafael. — Solta ou eu vou quebrar seus braços! — meu irmão
rosnou furiosamente em meu ouvido, era ele quem estava me
segurando. — Solte-a, agora!
Precisei de todas as minhas forças para deixá-la ir.
Quando a soltei, foi como se arrancassem metade da minha
alma. Paralisado de horror e descrença, observei Lysander
pegando-a com cuidado e ali mesmo, no chão, ele rasgou o vestido
dela, para ver o furo minúsculo ao lado de seu umbigo.
O sangue estava vazando num ritmo sutil, porém constante.
— Centro cirúrgico agora! — ele gritou. — Preciso de todas
as equipes preparadas agora!
Médicos se reuniram ao redor encobrindo a minha visão.
Eu me estiquei, tentando me arrastar para ela, mas eu ainda
estava preso, Rafael mantinha um agarre poderoso sobre mim.
— Não consigo vê-la! Não consigo vê-la.
Limpando os olhos, eu pude perceber que eram as lágrimas
que não me permitiam enxergar. Tampouco eu conseguia me
controlar, a sensação de que meu peito estava sendo aberto e
alguém arrancava meu coração era real demais.
Não estava pronto para viver aquilo, Deus sabia que eu não
era tão forte.
— Jenny, vamos para casa — lamentei estendendo o braço,
louco e completamente partido ao meio. — Vamos para casa.
— Ela voltou. — Lysander ergueu a cabeça. — Preparar para
transporte.
— O bloco cirúrgico está pronto, senhor.
Quando eu percebi que estavam colocando-a numa cama e
que a levariam para longe de mim, o desespero me engoliu por
completo.
Ela não podia ir.
Eu não podia perdê-la de vista, senão eles a tirarão de mim
para sempre.
— Gabriel, meu irmão, por favor, não lute contra mim. — A
voz de Rafael penetrou um pouco daquela névoa de loucura. —
Meu querido irmão, não lute contra mim.
— Eles vão levá-la — ofeguei, sentindo dor de verdade no
peito. — Eles não podem levá-la de mim.
— Ela precisa ir — Rafael disse devagar, como se falasse
com uma criança. — Meu irmão, calma.
Quando Jenny e a equipe atravessaram as portas, todas as
minhas forças acabaram.
Eu não podia ir com ela.
Eu não podia ajudá-la.
E eu me senti fraco por tudo aquilo.
— Tudo bem. — Rafael me abraçou porque meu corpo
começou a tremer. — Tudo bem.
Buscando seus olhos, eu só queria encontrar a mesma
confiança que ele sempre transmitiu, mas o que havia ali era medo.
Rafael estava assustado e eu só o tinha visto daquele jeito
duas vezes.
Quando perdermos nosso pai, e quando quase perdemos
Heylel.
— Prometa para mim... — As palavras soaram atropeladas,
minha garganta doía como se houvesse um nó gigantesco
atravessando-a. — Prometa que não me deixará vi...
— Não vamos nos precipitar. — Ergueu a mão,
interrompendo-me. — Lysander está com ela e nosso irmão vai
resolver, ele sempre resolve.
A imagem de Rafael voltou a embaçar, por mais que eu
piscasse os olhos não conseguia enxergá-lo com clareza.
— Não posso perdê-la — confessei baixinho. — Eu não sou
forte o bastante para suportar.
— Você não vai. — Rafael segurou meu rosto. — Gabriel,
sua mulher é forte.
— Ela estava com medo. — Minha voz quebrou. — Porra, ela
estava com tanto medo.
Seu olhar assustado estaria marcado para sempre em meu
cérebro. A mancha de sangue se espalhando em sua barriga linda
também.
Meus filhos... Eu podia sentir como se voltasse ao mesmo dia
que todas as minhas esperanças foram esmigalhadas diante dos
meus olhos. A dor, a injustiça de tudo aquilo repetia-se num
turbilhão feroz.
Eu tinha chegado na porra do meu limite.
Não suportava perder mais ninguém. Estava cansado
demais, exausto de toda aquela merda.
— Gabriel... — Rafael encostou sua testa na minha. — Meu
irmão, fique comigo. — Havia medo até em sua voz. — Você não
pode cair. Por favor...
Imagens de um passado recente começaram a correr dentro
da minha cabeça. A morte de nosso pai, o que aconteceu com
Heylel e Draikov.
Tudo foi misturando-se em meio à loucura de um monte de
sentimentos ruins de perda e desolação.
— Não deixe os sentimentos te dominarem. Controle-os,
irmão. — A voz de Rafael foi um guia, exatamente como nosso pai
quando eu acordei num lar estranho, num país estranho e com
pessoas estranhas.
Eu estava vivo e odiava aquilo, naquela época Roman lutou
por mim, como Rafael fazia agora.
Ele sabia da minha loucura, do meu flerte com a morte.
Compreendia que meus propósitos estavam entrelaçados
com Jenny.
E ele também sabia que, se eu a perdesse, ele também me
perderia.
— Gabriel, olha para mim. — Rafael respirou fundo. — Irmão,
olha para mim!
Eu obedeci, concentrando-me nele para que ao menos,
naquele primeiro momento, eu conseguisse agarrar o fio que me
seguraria para que não cometesse uma loucura antes da hora.
— Você tem um espírito forte. Nascido do caos, para
governar no caos. — Ele espalmou a mão no meu peito. — Preciso
do seu espírito forte agora.
O pavor que eu sentia foi dando lugar a um ódio tão grande,
que um gosto amargo encheu a minha boca.
A dor estava ali, o desespero também, mas, então, outro
sentimento tão poderoso quanto assomava-se, crescendo como
uma avalanche que destruía tudo em seu caminho.
— Jenny precisa de você forte. Dono de suas emoções —
Rafael insistiu. — Forte, meu irmão.
Eu acenei, e foi como se aquelas emoções turbulentas
fossem adormecendo. Jenny precisava de mim, ela necessitava do
Gabriel forte.
— Vamos para a sala de espera. Em breve teremos notícias.
— Acenei, ele me ajudou a levantar. Não sentia meu corpo direito,
era como se estivesse ali e, ao mesmo tempo, não. — Vai dar tudo
certo, irmão. — Rafael apertou meu ombro.
A partir daquele ponto, a única coisa que eu poderia fazer era
esperar, torcendo por um milagre que, certamente, não viria.

***

Horas mais tarde...

Naquele momento entendia por qual razão Rafael se


manteve imóvel como uma estátua quando Amira havia sido
sequestrada.
Eu sabia que, se saísse do lugar, não ia ter o mínimo de
controle sobre as minhas ações. Sentia meu corpo formigando, as
mãos doendo com vontade de explodir meio mundo apenas para
que todos sofressem junto comigo.
Não me importava, apenas queria mergulhar a cidade no
inferno que eu sentia queimar dentro de mim.
Meus irmãos estavam ali, todos silenciosos, carregando o
peso da culpa que, mais uma vez, nos assolaria até os dias de
nossas mortes.
Eles sabiam que nós havíamos falhado, que no futuro muito
breve as consequências seriam pesadas demais para todos nós.
Deus, será que você vai me perdoar? Fechei os olhos,
preferindo acreditar que a minha mulher ia sair com vida e que tudo
ficaria bem.
Pensar diferente ia terminar por colocar um fim no fio de
sanidade que eu havia conseguido agarrar. Era ele quem me
mantinha capaz de ficar quieto, esperando notícias que não
chegavam.
“Por que você está demorando tanto, Lysander?”, a pergunta
rondava a minha cabeça a cada segundo, a espera foi se tornando
mais difícil conforme as horas avançavam e nada.
Continuava na mesma maldita situação.
Imponente, perdido, à beira do colapso total.
O som da porta abrindo me fez estremecer, mas eu me
levantei procurando meu irmão ou alguém que me trouxesse
notícias.
A mulher que entrou não parecia estar trabalhando em um
hospital. Ela estava vestida como se tivesse acabado de sair do
tapete vermelho.
— Merda! — Voltei para a minha posição.
Baixando a cabeça, tentei me concentrar de novo. Em partes,
talvez fosse bom a falta de notícias, pois aquilo significava que não
havia nada para ser dito e eu poderia continuar agarrando meu fiapo
de esperança. Por outro lado, poderiam estar postergando.
Porque as notícias eram ruins.
Aquele tiro...
— Regan? — Um arrepio me tomou por inteiro.
Erguendo a cabeça, eu busquei a mulher que me chamou por
aquele nome há muito esquecido. Meus olhos prenderam-se aos
dela e foi como encarar uma versão feminina de mim mesmo.
Que merda estava acontecendo? Levantando-me, eu a
avaliei de cima a baixo.
Era alta, ruiva, elegante pra caralho. Os olhos verdes
brilhavam, ela começou a vir em minha direção.
— Tenho tentado falar com você por tanto tempo.
Então aquela era a mulher que estava me procurando no
Corpo de Bombeiros, e que havia entrado em contato com as
relações públicas da nossa família.
A minha maldita mãe!
— Filho, que bom que eu te encontrei. — Ela sorriu, e aquele
foi o motivo de todo controle que eu estava lutando para manter no
lugar ter ido direto para o inferno.
Antes que ela pudesse dizer qualquer outra merda, minha
mão se fechou ao redor de sua garganta e eu apertei.
— Veio aqui para morrer, vagabunda? — rosnei, aproximando
meu rosto do seu. — Então eu vou lhe dar o que quer.
Bati seu corpo contra a parede, nenhum dos meus irmãos me
impediu. Na verdade, pude notar que estavam se aproximando, mas
não fizeram nada além daquilo.
— Você me deixou para morrer, e agora tem a ousadia de me
chamar de filho? — A revolta era tanta que eu tremia. — Como
ousa?
“Por acaso, aquele era o dia escolhido para me foder?”,
questionei-me, porque não havia outra justificativa para que aquela
mulher aparecesse do nada.
Não havia contexto, sentido ou qualquer merda do tipo. Ela
simplesmente apareceu como se fosse um acidente de trânsito. Um
breve instante e pronto, havia acontecido.
Era inaceitável demais.
— Preciso... — Ela lutou, apertando meu braço com as unhas
longas e vermelhas. — Você... Regan.
— Eu me chamo Gabriel Demonidhes. — Apertei seu
pescoço um pouco mais. — Ouse me chamar de outro nome e eu
vou arrancar sua língua — rosnei, deixando-a perceber que eu não
estava blefando. — Você escolheu um péssimo dia para este
encontro.
A porta se abriu de novo, daquela vez foi Lysander quem
entrou. Todo o resto deixou de ser importante.
— Irmão! — Corri para ele, notando o quão abatido e
cansado ele estava.
Muito diferente do que eu conhecia, aquele Lysander me
encarava como se não soubesse por onde começar. Vê-lo daquela
maneira já me disse muita coisa.
— Lysander? — Sentindo-me em transe, pela metade,
incompleto, não tinha vergonha de admitir que estava apavorado do
que ele poderia me contar. — Por favor, irmão...
Ele esfregou o rosto, então buscou meus olhos.
— Jenny teve uma hemorragia e isso sobrecarregou seu
coração. — A cada palavra que ele dizia, sentia como se estivesse
perdendo o agarre com a realidade. — Ela teve duas paradas, mas
foi estabilizada com sucesso. Para a sua segurança, o cirurgião
cardiovascular optou pela intubação e sedação continuada depois
que o marcapasso foi trocado. — Meu irmão parecia confiante,
mesmo que suas palavras me causassem pura angústia. — O
quadro geral dela é muito grave, mas Jenny é forte.
Deus, se você existe, por favor...
— O outro bebê é uma menina.
Precisei lutar para controlar o que eu estava sentindo porque
não queria chorar como um desgraçado, mas, porra, não estava
conseguindo. As notícias eram ruins e boas, e eu não sabia como
gerenciar aquele caos emocional.
— Ela nasceu pequenina. Pouco mais de um quilo e meio, é
forte como a mãe. — Meu irmão soltou o fôlego. — Ainda inspira
cuidados, mas eu acredito que ela vai conseguir.
Então tudo ia ficar bem. A esperança cresceu, eu quase
podia sorrir de alívio. Só faltava saber sobre Constantino.
— Gabriel...
Só pelo modo como ele chamou meu nome, eu soube. A
sensação que eu tive foi de que alguém havia acabado de golpear-
me na cabeça.
Uma tontura me fez cambalear, as coisas começaram a
entrar e sair de foco.
Antes que eu pudesse desabar, Lysander me puxou para si,
prendendo-me num abraço forte e que me manteve de pé.
— Eu sinto muito. — Um soluço rasgou meu peito, sua voz
quebrada terminava de me matar.
— Não. — Balancei a cabeça. Fechando os olhos, eu me
enterrei naquele lugar escuro da minha mente, lutando, querendo
ardentemente não ouvir o que ele tinha para me dizer.
— Constantino nasceu vivo e sobreviveu à cirurgia. — A voz
de Lysander ia diminuindo conforme ele falava. — Infelizmente,
houve o comprometimento significativo de órgãos internos, e ele...
— Não diga — neguei, afastando-me, enquanto olhava ao
redor como se pudesse encontrar a solução para tudo aquilo.
O que eu vou fazer? Esfreguei os cabelos, puxando-os com
força.
— Irmão... — Lysander segurou meu ombro, virando-me para
ele.
Seus olhos estavam vermelhos, a sensação que eu tinha era
de que meu irmão havia envelhecido alguns anos.
— Jenny e sua filha precisam de você.
Elas vão me odiar quando souberem.
— Gabriel! — Lysander me sacudiu, seu olhar preocupado
avaliava-me com pesar. — Irmão, eu...
— Onde está o meu garoto? — Foi apenas o que pude
proferir.
Naquele momento, Lysander sentia muito.
Ele me deixava ver cada parte de sua profunda dor, de toda
aquela desolação que carregava há anos. Sua armadura estava
aberta para que eu pudesse ver que ali dentro havia apenas um
homem.
E ele estava sofrendo junto comigo.
— Venha.
Eu o segui, não parando para olhar onde estávamos indo, e
se os outros nos seguiam. A cada novo corredor, meu coração ia
diminuindo de tamanho até o que restara me fazer duvidar se seria
suficiente para seguir adiante.
— Chegamos. — Lysander parou diante de uma porta.
Era como se ele me desse a oportunidade de desistir.
— Deixe-me vê-lo — murmurei, sendo golpeado pelo frio
desolador daquele lugar.
Olhei para o local onde havia máquinas desligadas, e os
registros de que alguém havia lutado até o fim. Agora, tudo estava
silencioso demais, sem vida. Munindo-me de toda coragem e força
que me restavam, fui me obrigando a colocar um pé na frente do
outro.
Minhas mãos tremiam, o corpo inteiro na verdade. Eu não
queria olhar, mas, ao mesmo tempo, eu precisava fazer aquilo. Fui
me aproximando do local em que ele repousava, deparando-me
com um pacotinho de cabelos pretos.
— Filho. — Eu o recolhi com cuidado, fechando os olhos
enquanto tentava esquentá-lo com meu corpo. — Tudo vai ficar bem
— murmurei, embalando seu corpo miúdo bem devagar. Ele havia
sido envolto numa manta branca. — Eu esperei tanto por você.
Sentia outra vez as lágrimas transbordando, e uma dor tão
absurda, tão surreal, que eu não poderia sequer começar a
descrevê-la. Não me encontrava capaz de fazer outra coisa se não
segurar aquela criança que eu tanto esperei.
— Meu amor — proferi baixinho, beijando sua cabeça. —
Você é tão lindo.
Ele continuava com o mesmo sorriso e era tão absurdo, mas
estava ali diante dos meus olhos.
Toquei sua bochecha, ele estava frio.
Abraçando-o de novo, voltei a embalá-lo com todo amor e
gentileza que havia em mim. Por muitos dias, eu sonhei com aquele
momento, quando poderia ter minhas crianças em meus braços.
Senti que cambaleava e, mais uma vez, eu fui abraçado.
Eu e meu filho fomos segurados nos braços de Lysander. Era
o calor dele que lutava para expulsar o frio que penetrava meus
ossos e que me vestia como uma mortalha.
Foi no abraço do irmão que odiava abraços que eu fui sendo
acalentado, porque, naquele momento, eu não tinha forças para
nada além de segurar o meu amado filho.
— Estou aqui para você — ele murmurou com a voz tão firme
quanto seus braços a minha volta. — Eu nunca vou te deixar,
irmãozinho.
Fechei os olhos, dependendo dele para me manter em pé.
— Nós não tivemos tempo — solucei, permitindo-me dar
vazão àquela dor terrível e dilacerante. — Não tivemos tempo para
nada. Ele não vai saber o quanto o amei, o quanto o esperei. —
Meu pranto cresceu, ao ponto de minhas palavras mal poderem ser
distinguidas. — Ele não vai saber que fez parte de um sonho que eu
nem sabia que possuía, ele nunca vai saber o quanto sua mãe lutou
por ele. Ele nunca vai saber.
Enquanto eu chorava como uma criança, meus irmãos foram
me abraçando. Quando percebi, estava dentro de um casulo
protetor.
Naquele instante, eu não era Gabriel Demonidhes, um
general da Ordem. Eu era apenas um pai que havia acabado de
perder seu filho amado.
Sem qualquer ressalva, ou escudo, eu apenas chorei.
Chorei como nunca havia feito antes e enquanto ainda era
capaz de segurar o meu filho.
Diante dos meus irmãos, transbordava em angústia, pesar,
remorso e tantas outras coisas que sentia afundando cada vez mais.
Não saberia dizer quanto tempo levou – se um minuto ou
uma hora – até que eu fosse capaz de erguer a cabeça e encarar
meus irmãos. A noção de tempo estava tão deturpada que eu
passei a ser guiado como uma marionete, e eles eram os que
tinham as cordas.
— Deixe-me segurá-lo um momento — Heylel pediu e eu
permiti que ele o pegasse.
Observei meu irmão fechar os olhos e encostar o nariz na
cabeça de Constantino. Uma lágrima escorreu, então outra e mais
outra. Ele murmurava tão baixo que não fui capaz de compreender,
mas eu sabia que ele estava se despedindo.
Todos os outros fizeram o mesmo. Carinhosamente,
segurando a nossa criança e o tocando com amor enquanto as
palavras de despedida eram mescladas com lágrimas.
Por último, foi Lysander.
Ele pegou Constantino de Rafael, nos dando as costas. Seus
ombros tremiam, enquanto murmurava carinhosamente.
— Piccolo bambino, perdonami per non essere così forte[18].
— A voz de Lysander embargou. — Grazie, per aver protetto tua
sorella. I’hai salvata, amore mio[19].
As palavras de Lysander penetraram a densa névoa de
tristeza, havia mais a se fazer só que naquele instante eu não sabia
como lidar com o que estava sentindo.
Estava dormente demais e anestesiado de tantas maneiras,
que não era capaz de ir além.
Ainda não havia acabado, mas eu estava mergulhado
completamente na escuridão.
E eu não sabia se ia conseguir sair dela.
62
Gabriel Demonidhes

O caixão pequeno e branco foi descido lentamente para onde


seria o eterno descanso do meu filho. Eu estava ali, ouvindo tudo
que era dito apenas parcialmente, não havia sido capaz de fazer
nada.
Era como um boneco de um metro e noventa e quatro de
altura que precisava de alguém para guiá-lo, e Rafael havia
assumido o posto. Ele resolveu os trâmites legais, enquanto eu
perambulava pelo hospital, sem a menor coragem de ver a minha
filha ou Jenny.
O dia nunca pareceu tão longo, pois eu conheci e precisei
enterrar meu filho no intervalo de poucas horas.
— Irmão. — Uma mão pesou sobre o meu ombro, eu apenas
neguei.
Queria ficar sozinho, tentar entender o que havia acontecido
e se aquilo não se tratava de um pesadelo.
A lápide era branca, marcada com o pequeno túmulo rodeado
de flores.

Constantino Demonidhes
 02/11/2018  03/11/2018
Amado e esperado filho
Mac Mo Ghrá

Quando todos foram embora, eu me aproximei da lápide,


ajoelhando-me ali, repousando a minha mão.
— Não sei o que fazer — murmurei, olhando para as flores
delicadas. — Eu não sei o que fazer.
E eu esperava que a resposta surgisse de algum modo. Meus
pensamentos estavam estranhos, a revolta ainda continuava
doendo como um membro amputado, mas sentia uma paralisia que
não me permitia fazer absolutamente nada.
Tudo havia se transformado em caos.
E o hospital fora mergulhado num inferno, porque as pessoas
queriam saber o que havia acontecido. Ainda podia ouvir o
desespero com que ansiavam por notícias, nos corredores o
burburinho era insuportável.
Daquilo eu não podia fugir, tão logo conseguisse me afastar
do túmulo do meu filho, eu voltaria para a minha mulher e para a
outra criança que eu havia deixado.
Ambas precisavam de mim inteiro. Mas como eu ia voltar a
ser como antes depois do que aconteceu? Como olharia para a
Jenny, carregando a culpa pela morte do nosso filho?
Eu sempre lhe disse que lhe protegeria, mas não pude
cumprir a minha palavra e eu tinha certeza de que, quando ela
acordasse e descobrisse a verdade, me odiaria.
Como eu me odiava agora.
— O que eu vou fazer? — perguntei a ninguém, mesmo
assim esperava por uma resposta.
Que, com certeza, nunca chegaria.
63
Rafael Demonidhes

Quando eu me tornei o Senhor da Ordem, eu sabia que teria


o poder da vida e da morte e que, inevitavelmente, se tornaria uma
extensão de mim, de quem eu era.
Todos sabiam que não dava para separar Rafael e Hunter.
Meu pai havia me alertado para a responsabilidade que eu
carregaria e que, independente de qualquer coisa, aquilo não era
nada além do que um fardo capaz de ir levando aos poucos partes
da minha alma.
Tomar decisões que nos trariam inimigos cada vez mais
ousados e perigosos era parte de tudo aquilo, e por muito tempo eu
acreditei que poderia lidar com a situação.
Bem, eu não poderia.
Enquanto eu olhava para o meu irmão, ajoelhado diante da
lápide do seu filho, eu não conseguia sequer imaginar estar em seu
lugar; e ainda que eu pudesse compartilhar sua dor, a minha não
chegava a uma fração da sua, e jamais chegaria.
As últimas vinte e quatro horas me ensinou que, até para
homens como nós, havia um limite; e Gabriel havia atingido o dele.
Naquele momento, meu irmão não passava de um animal ferido,
que havia buscado refúgio na solidão para sofrer em paz.
Vê-lo encolhido diante aquela lápide, com a mão estendida
parecendo esperar um milagre, jogava-me de volta àquela época
em que eu o conheci.
O homem dali estava tão assustado quanto o garoto de
outrora, ambos tristes, sem força para levantar, desejando a morte.
Naqueles tempos, nós tínhamos Roman Demonidhes e sua
força de vontade ferrenha. Ele tinha propósitos, que sabiamente
despertou cada um de nós. Para além do que vivíamos.
Eu vi como ele salvou o jovem irlandês, mas, naquele
momento, cabia a mim tentar salvar o meu irmão.
Era minha responsabilidade fazer algo, era meu dever não o
deixar sozinho, não sofrer sozinho. Meu pai havia me escolhido não
porque eu fosse o melhor dos meus irmãos para liderar, mas ele
sabia que, no papel de pai, talvez eu me encaixasse melhor para
quando ele não estivesse ali.
Inevitavelmente, a dor de Gabriel nunca iria embora, mas, ao
longo dos dezessete anos que convivíamos como irmãos, eu sabia
como sua cabeça funcionava. Ele precisava de combustível para
continuar seguindo em frente.
Meu irmãozinho precisava de um propósito, até que ele
mesmo pudesse encontrar seu equilíbrio, ficando forte para a sua
mulher e filha.
— Faz seis horas que ele está ali, na mesma posição. —
Razhiel se aproximou, o semblante marcado pelo cansaço. —
Lysander ainda está no hospital, Jenny e a nossa princesa estão na
mesma. — Acenei, eu estava atualizado, mas eu compreendia a
necessidade que Razhiel tinha de continuar colocando-se em
movimento.
Ele era um tanque de guerra, ia destruindo as coisas que
estavam na sua frente até atingir seu objetivo. Mas, como todos nós,
aquele era um momento delicado demais, cada passo precisaria ser
calculado.
— Heylel vai começar o método canguru hoje à noite. Eu irei
amanhã, Lysander vai assumir após o plantão. Vamos revezar vinte
e quatro horas. Talvez, em breve, nossa garotinha tenha alta.
— Eu também irei fazer, pegarei os turnos da tarde. — Já
havia alertado a Lysander que faria parte de cada estágio da
recuperação da nossa menina.
Por mais absurdo que possa parecer, ela estava mais
saudável que a sua mãe, e, enquanto seu pai não pudesse cuidar
dela, nós o faríamos.
Em parte, éramos seus pais também.
Assim o considerávamos.
— O que vamos fazer com ele? — Pela primeira vez, Razhiel
deixou transparecer o pânico. Ele sempre era tão controlado, que
vê-lo daquela forma era preocupante. — Temo que Gabriel não se
recupere desse golpe.
Razhiel era parecido comigo em muitos aspectos, mas,
diferente de mim, ele estava se deixando levar pelo medo do que
Gabriel poderia fazer.
Mesmo sabendo que nosso irmãozinho era louco o suficiente
para cometer uma idiotice, aceitava que ele ainda não estava lá. Ele
tinha motivos para lutar contra a insanidade.
Ele só precisava se lembrar disso.
— Desde que Jenny apareceu na vida de nosso irmão, ele
mudou — falei, com os olhos fixos na figura solitária mais adiante.
— Ele está mais emocionalmente estável, e eu atribuo a ela o
controle que ele precisava para se manter são.
— Eu não sei como lidar com a situação — Razhiel suspirou,
ajustando os óculos. — A sensação de que cometi um erro me
despedaça, as consequências foram grandes demais, Rafael.
— Todos nós erramos.
E aquela culpa seria como uma ferida aberta e sangrando
que teríamos que carregar para sempre.
— Mas vamos seguir em frente. É isso que fazemos. —
Mantive a voz firme, mas no mesmo tom inexpressivo. Aquilo não
significava que eu não estava sofrendo como o inferno, era que eu
apenas sabia fingir melhor. — Neste momento, precisamos do
antigo Gabriel de volta e toda loucura que o acompanha.
— Quando vamos começar a procurar os responsáveis? —
Razhiel cruzou os braços.
— Logo.
— Vai fazer vinte e quatro horas, é tempo demais de dar uma
resposta.
Por um breve instante, eu o olhei e havia em seus olhos uma
chama tão poderosa que assustaria homens mais fracos. Razhiel
era subestimado por nossos inimigos, mas ele matava com um
sorriso nos lábios, satisfazendo-se com a dor e sofrimento de seus
alvos.
Eu podia ver aquela parte ruim ansiando por liberdade, e
diferente de Lysander que possuía poder para decidir, era quem o
segurava.
Razhiel iria caçar, mas precisava do meu consentimento; por
outro lado, o que aconteceu mudava as regras do jogo.
— Não há como se esconderem de mim. — Voltei a atenção
para Gabriel.
— Eu quero solicitar oficialmente o título de Mercador da
Morte por vinte e quatro horas. — O desejo de vingança desprendia-
se do meu irmão como ondas violentas batendo contra a rocha. —
Dê-me isso, Hunter.
— E tirar de Gabriel o que lhe é de direito? — Neguei, o fato
dele me chamar de Hunter quando estávamos apenas nós dois
significava muito. — Onde está a sua paciência?
— Não é o momento para ser paciente, porra! — Razhiel
esbravejou, então respirou fundo, controlando-se outra vez. — Dê-
me o indulto.
— Não.
— Irmão, eu não quero iniciar uma caçada sozinho, mas eu
vou.
Devagar, eu o olhei, deixando que notasse a fúria que me
queimava por dentro. O desejo que eu tinha de ir atrás de quem fez
aquilo com o meu irmão.
Mas o meu desejo unicamente não importava.
— Você não ousaria. — Minha voz soou inalterada, mas
Razhiel sabia que aquilo não queria dizer nada.
— Você tem estado quieto demais, Rafael. Eu não gosto
disso. O que aconteceu foi um tapa na nossa cara, precisamos
revidar. — Ele respirou fundo, esfregando os cabelos. — Não
importa que nos ataquem, mas as nossas mulheres?
— Sabíamos que estava para acontecer. — Acendi um
cigarro. — Tampouco espero que eles parem.
— Foi covarde demais, Jenny não teve chance de defesa.
Concordei com meu irmão.
Pensar naquilo me deixava fervendo de ódio, era somente os
anos de muito treinamento que me seguravam.
Naquele momento, perder o controle não me ajudaria em
nada.
— Você acha que nossos inimigos seguem um código? —
perguntei, dando uma longa tragada segurando a fumaça, a
queimação me ajudava a pensar.
— Não — meu irmão suspirou. — Eu não acho. Mas eles
continuam agindo de maneira tumultuada. Não vai ser difícil
encontrar o atirador.
— Nós faremos do jeito certo. — A sensação de queimação
no peito foi boa, eu voltei a olhar para Gabriel. — Desta vez, o
recado será para o mundo inteiro. Eles pensarão melhor antes de
escolherem seus alvos. — Soltei a fumaça, a ira queimava mais
forte. — Vamos elevar o nível, e vingar a morte de Constantino
Demonidhes, como o nosso avô faria.
Razhiel respirou fundo. Ele sabia que a cidade mergulharia
no caos, tão logo aquele que a incendiaria riscasse o fósforo.
— Gabriel irá nos liderar.
Já havia percebido que deveria ser ele o responsável por
fazer o acerto de contas.
Estava preparado para lidar com toda a sua agressividade e
loucura, não para vê-lo transformado na sombra de si mesmo.
Era como se, diante dos meus olhos, a chama que o
mantinha aceso estivesse apagando, eu não ia deixá-lo afundar até
o ponto sem volta.
— Precisamos tirá-lo dali — Razhiel disse baixinho.
Concordando, apaguei o cigarro.
— Eu o farei.
Comecei a caminhar em sua direção. Seria maldito se
deixasse meu irmão afundar numa culpa que não era apenas dele.
Se Gabriel Demonidhes queria sangrar, então que todos nós
sangrássemos.
Mas o faríamos juntos, entretanto estava na hora de dar uma
resposta a quem fez aquilo.
E ela seria inesquecível.
64
Gabriel Demonidhes

Percebi que não estava sozinho como eu queria estar. O


cheiro de sândalo, cigarro e canela me rodeou antes mesmo que o
casaco de Rafael fosse depositado em meus ombros.
Ele não disse nada, apenas abaixou-se ali, compartilhando
comigo daquela sensação de desamparo.
— Não posso deixá-lo sozinho — murmurei, baixando a
cabeça ainda mais.
Ainda que a sepultura do meu filho houvesse sido feita
próximo ao lago que ficava dentro da propriedade, não suportava a
ideia de deixá-lo sozinho.
Era terrível demais para mim.
— Rafael, o que eu vou fazer? — Talvez meu irmão mais
velho pudesse me ajudar. — Como vou contar para a Jenny que,
por minha culpa, nosso filho morreu? — Senti os meus olhos
enchendo de lágrimas outra vez.
Não fui capaz de encarar meu irmão.
— Por que você se culpa? — Sua voz soou tão calma como
sempre, e de certa forma eu agarrei-me a ela. — Não vai
responder?
Franzi o cenho, não compreendendo onde ele pretendia
chegar. Era óbvio que a responsabilidade era minha, afinal fora eu o
responsável pelas promessas, por idealizar sonhos e Jenny
acreditou.
— Como posso pensar o contrário? Sequer pude encarar
minha filha ou minha mulher.
— Você sabe como as coisas funcionam em nossa família,
não sabe? — Sua voz continuava a mesma, só que, estranhamente,
eu podia ver Roman ali diante de mim e eu senti como se quebrasse
mais um pouco. — Você sabe, Gabriel? — Acenei.
— Eu sei.
— Amira e Jenny pertencem a todos nós. Cuidar para que
ambas estejam seguras é a responsabilidade compartilhada dos
irmãos Demonidhes. — Ele colocou a mão no meu ombro, dando
um aperto firme. — Todos nós falhamos, todos nós iremos amargar
essa perda, mas eu sei que, para você, as coisas são infinitas vezes
piores, a dor não vai embora, irmão, até hoje eu sinto e anseio de
ter nosso pai, mas ele não está, só que Jenny e sua filha estão.
Você sabe, disso, ainda não acabou.
Antes que eu pudesse mergulhar mais um pouco na minha
reclusão, evitando suas palavras e o que elas me causariam, aquela
coisa que sempre ardeu dentro de mim queimou mais forte.
— Seus inimigos esqueceram o que poderia acontecer ao
atentarem contra sua mulher.
Ouvir aquilo foi como mergulhar num caldeirão fervendo. Um
calor insuportável estava começando a me queimar, sentia como se
meu sangue estivesse sendo substituído por metal fundido.
A cabeça parecia que ia explodir, meus olhos arderam, mas
não foi por causa das lágrimas.
— Eles sabiam, Gabriel, que, ao machucarem Jenny, eles
abriram as portas do inferno.
Eles sabiam.
E o único a caminhar pelo fogo seria eu.
Não importava o que precisasse fazer, até onde eu tivesse
que ir. Desafiaria o próprio diabo e vingaria a minha mulher.
— Eu vejo em seus olhos. — O canto da boca do meu irmão
arqueou. — Nos lidere, Gabriel, a Ordem é sua para mergulhar a
cidade no caos, e destruí-la pedra por pedra.
Secando os olhos, encarei meu irmão. Rafael havia me
entregado seu poder para enviar um recado. Naquele momento, o
passado não poderia ser modificado — Deus sabia como eu daria
minha vida para voltar no tempo —, mas ainda não havia acabado.
Respirando fundo, agarrei a camisa de Rafael e o puxei para
mim.
— Você vai descobrir tudo que preciso — cuspi cada palavra,
enquanto olhava em seus olhos. — Encontre-o para mim, irmão.
— Como quiser.
Ele levantou, afastando-se. Antes de seguir para o Complexo,
toquei a lápide do meu filho mais uma vez.
Ele era um anjo.
Mas eu, não passava de um demônio, e estava sedento.
Em breve, Nova York saberia o porquê.

***

Há muitas horas eu estava sentado na capela do hospital,


não porque eu acreditasse que estar ali faria alguma diferença, mas
porque aquele foi o lugar que eu havia parado.
Ainda não havia conseguido ver a minha filha, ou Jenny. Um
sentimento de que eu não era digno ferroava-me tão profundo que
não conseguia avançar na questão; por outro lado, também não
conseguia me afastar.
Talvez fosse uma coincidência estranha que a capela ficasse
justamente no meio entre os dois lugares que eu precisava
frequentar: a UTI neonatal e a UTI adulta.
Uma parte de mim se culpava por deixar meus irmãos
cuidando da minha mulher e filha, mas não conseguia encontrar
forças além do que eu estava fazendo.
— Covarde, Gabriel, é isso que você é — murmurei,
deixando a cabeça pender para frente.
Era inevitável não escutar as orações cheias de fervor das
pessoas que estavam ali, orações como aquelas que nunca seriam
atendidas. Mas todos os dias as pessoas continuavam voltando,
continuavam pedindo, ou melhor, implorando por uma nova chance.
Podia notar o quão sinceras eram os pedidos de perdão,
parece que as orações dali eram mais reais do que as proferidas
dentro de uma igreja, e, ainda assim, não eram atendidas.
Alguém se sentou ao meu lado e eu estranhei, pois ninguém
havia tido coragem de fazer aquilo desde que eu havia encontrado
aquele lugar e apenas ficado ali.
A pessoa se aproximou um pouco mais e o cheiro familiar me
abraçou. Antes de erguer a cabeça, uma avalanche de sentimentos
me dominou, eu já estava mais afundado naquele limbo estranho.
Eu sentia muito mais que antes, parecia em carne viva,
queimando.
— O que você está fazendo aqui? — Deixei que ele
percebesse toda raiva que me engolia a cada respiração.
— Onde mais eu deveria estar se não ao seu lado? —
respondeu, encarando-me. — Eu sou seu irmão mais velho, você
precisava de mim, e eu vim.
— Por quê? Não é sua obrigação estar aqui. — Olhei para o
pequeno altar, para a cruz do calvário. — Não venha até nós em
momentos como esse para dar as suas migalhas, Draikov.
Pelo tempo que tudo havia acontecido, para Draikov estar ali
era necessário que houvesse corrido para cá imediatamente.
— Gabriel. — Ele segurou meu queixo, e eu o olhei. — Estou
aqui para você, meu irmão.
Balancei cabeça, a imagem dele embaçou sutilmente.
— Sua ausência faz parte de nossas vidas, mas voltar em um
momento tão difícil, apenas para que depois nos abandone é cruel
demais. — Sequei os olhos bruscamente. — Apenas vá, Draikov,
aqui não tem nada para você.
Voltei a baixar a cabeça. Não odiava meu irmão, mas eu só
estava cansado e sem disposição para entender suas motivações.
Nada ali era sobre ele, então não fazia sentido continuar ao meu
lado.
— Quando você chegou em nossa casa, você estava
segurando a mão do nosso pai. — O olhei de novo, Draikov me
encarava com um pedido de perdão estampado na face. — Você
lembra o que Roman disse?
— Aquele é seu irmão. — Minha voz quebrou. — E esta é
sua família.
— Eu estendi a mão para você e naquela hora, apesar de
toda raiva que o consumia, você aceitou. — Draikov se levantou,
dando um passo atrás. — Eu sou seu irmão, eu enxergo a sua dor.
— Ele estendeu a mão para mim, atrás dele meus outros irmãos se
aproximaram. — Esta é a sua família, e você não está e nunca
estará sozinho.
Emocionado pela forte corrente de apoio que me cercava, eu
levantei, aceitando a mão estendida do meu irmão Draikov, a força
que desprendia dele, eu me permiti ser abraçado.
— Eu te amo — murmurou beijando meu rosto. — E quando
qualquer um de vocês precisar de mim, eu estarei aqui. Não importa
se me querem ou não.
Não saberia dizer quanto tempo ele me manteve em seu
abraço, mas, quando nos separamos, a capela estava vazia, as
outras pessoas haviam ido embora, restando apenas eu e meus
irmãos.
Dando um passo atrás, Draikov ficou ao lado de Lysander.
Olhando para cada um dos meus irmãos, eu vi os semblantes
carregados de propósito, raiva, tristeza.
De fato, eu não estava sozinho e ainda que a minha dor fosse
inominável, sabia que, se eu caísse, eles estariam ali para me
levantar, incluindo Draikov.
Olhando para Rafael, eu percebi meu irmão esticar-se.
— Está na hora. — Sua voz soou como um decreto. Meus
cinco irmãos ergueram a cabeça, olhando para a frente como
soldados esperando instruções.
Pela primeira vez em anos, todos os filhos de Roman
caçariam juntos.
— Conte-me o que preciso saber.
— Era David Müller — Rafael disse baixinho. — Ou melhor,
Willian Longford, o Coiote. Ele fazia negócios com o padrasto de
Jenny.
— Como ele passou despercebido? — questionei, os olhos
presos em Lysander.
— Ele não estava na lista. Eu a chequei minuciosamente
antes do evento, e depois.
— O relacionamento dele com a atriz não era de muito tempo
— Razhiel adiantou-se. — Eu e Chronus cruzamos algumas
informações, eles se conheceram no mesmo período que o nome de
Jenny foi vinculado ao evento.
Antes que eu pudesse verbalizar meus pensamentos, Heylel
adiantou-se:
— Ele se aproximou da garota para entrar sem ser notado.
Por quê? Estreitei os olhos, sentindo que alguma peça
daquele quebra-cabeça estava faltando.
— Analisei as câmeras, ele aproveitou a distração que a
apresentação de Jenny causou para atirar e depois misturar-se,
porém ele teve a chance de estourar a sua cabeça, Gabriel. —
Razhiel respirou fundo.
Era o que deveria ter feito, mas por que não o fez?
— Se ele fosse da Cöntrax, teria tido a chance de golpear
pelo menos três de nós — Rafael endossou. — Mas o alvo sempre
foi Jenny.
Ouvir aquilo foi como riscar um fósforo num pavio
encharcado. Eu podia me afogar na dor da minha perda, morrer com
ela, mas seria um maldito se deixasse quem fez aquilo ver o
próximo dia nascer.
Olhei para os meus irmãos, todos me encaravam com
solenidade.
— E onde esse bastardo está?
— Em sua fortaleza localizada em Waterfront Hamptons. —
Heylel mexeu em seu dispositivo eletrônico. — Está guardado
fortemente por um pequeno exército, talvez, planejando uma rota de
fuga. A mídia está em cima querendo respostas, mas eu tornei
impossível saber quem foi pelas câmeras, ele é seu.
Concordei, caminhando em direção a saída.
— Gabriel, o que vai fazer? — Draikov perguntou.
A resposta era simples:
— Matar todos eles.
Saindo daquele hospital, eu deixei a minha mulher e filha
guardadas por um pequeno exército de caçadores da Ordem. Sob
meu comando, eles matariam qualquer um que se aproximasse com
atitudes suspeitas.
No meio do caminho, os meus sentimentos foram se
perdendo, apagando-se lentamente até chegar o ponto de não
restar nada além do desejo de ver o responsável por toda aquela
tragédia sofrendo, desejando a morte e implorando por ela.
Aos poucos, eu percebi que estava acontecendo uma
inversão.
Aquela parte ruim que ficava na parte mais profunda de cada
Demonidhes ergueu a cabeça e rugiu.
Finalmente havia chegado a sua vez de assumir o controle.
65
Gabriel Demonidhes

Encarava a mansão localizada num terreno grande e


arborizado. Ao redor, vários homens caminhavam portando armas
de grosso calibre.
Diferente das outras vezes, eu não estava com pressa para
chegar até o meu alvo, eu queria ir devagar para que ele soubesse
que estava chegando.
— A câmera termosensível detectou trinta e dois sinais na
área externa — Chronus avisou. — Mais dezoito na interna.
Dez caçadores estavam fazendo parte daquela caçada e da
matança que ia seguir. Eu tinha ciência de que eu e meus irmãos
poderíamos lidar com a situação, mas o alvo não era apenas Willian
Longford.
Todo seu grupo fora sentenciado e eles saberiam por que
estavam sendo assassinados um por um.
Começávamos aqui, e, então, estenderíamos pelas ruas da
cidade.
— Todos prontos? — Abri a comunicação, recebendo um sim
conjunto. — Ao meu sinal.
Ajustando a mira noturna do meu rifle militar DRS-
PRECISION, sete meia dois, eu acompanhei o meu alvo por alguns
instantes antes de atirar, e sorri quando a cabeça do bastado sumiu.
Aquela arma especifica era a mais poderosa que eu possuía,
e, com alguns ajustes que fiz, havia se tornado a mais perigosa
também. A prova era que não dava nem tempo de perceber de onde
o tiro estava vindo.
Como uma máquina sem sentimentos, eu fui explodindo a
cabeça de cada homem que compunha a linha de defesa daquela
casa.
O som de cada destrave, engate e tiro soavam
ininterruptamente, em uma sincronia perfeita.
Quando restou apenas um alvo, atirei ao lado de sua cabeça.
Ele fez como eu esperava, correndo em direção à entrada da
mansão. Seus gritos foram o alerta, vários homens saíram de dentro
da casa.
Sabiam que estava sob ataque.
E para provar, eu atirei na cabeça do homem que corria em
desespero para a segurança. Ele caiu aos pés da porta, com o
crânio estilhaçado.
— Quinze mortos — Heylel avisou. — Estou cortando a
energia, mais homens estão vindo.
Quando a casa foi mergulhada na escuridão, ajustei os
óculos de visão noturna avançando em direção ao meu alvo.
Mesclados com a noite, os caçadores da Ordem, seguiam em
frente no propósito, nada nos impediria de terminar o que iniciamos.
Como tudo aquilo que era inevitável fomos amontoando corpos.
Diferente do quão silenciosos costumávamos ser, daquela
vez era para que soubessem. Os tiros soavam incessantes, eles
tentavam lutar por suas vidas, mas era inútil lutar contra o que não
podiam ver.
— Mason, Josh, Dane? Estão me ouvindo? — Eu reconheci
aquela voz, era o mesmo bastardo que me abordou quando, em
mais um surto de necessidade, eu fui na casa da minha mulher. —
Bishop? Porra, não sei o que está acontecendo. Os outros não
respondem.
Podia sentir seu desespero, o horror que a morte iminente
trazia era sempre assustadora.
— Meu irmão está seguro, sim, no quarto do pânico.
Pegando a minha faca, eu me aproximei por trás. Cada passo
me levava mais próximo do meu alvo, da carnificina que aquela
noite proporcionava.
— No escritório, só pode ser acessado por ele, sim, chame
reforços. Eu acredito que... — Ele parou, então olhou o celular. —
Bishop? Bishop?
Sua respiração soou trêmula, o medo era tão grande que eu
podia sentir o sabor na língua.
— Deus, o que farei? — Antes que pudesse reagir, eu o
ataquei.
— Você vai se juntar aos outros. — Antes que pudesse
reagir, eu cortei sua garganta de ponta a ponta e na hora o sangue
quente encharcou a minha roupa. Então, eu me curvei diante dele,
agarrando seus cabelos, continuei cortando. — Você vai comigo.
Largando o restante de seu corpo, continuei avançando.
Os tiros soavam por alguns minutos, então, cessavam. Era os
momentos em que eles recarregavam.
Depois de gritos de terror, a casa estava mergulhada no
perfeito caos.
Seguimos naquela dança até que os tiros cessaram
definitivamente. Às minhas costas, um rastro de corpos e gargantas
cortadas indicavam o meu caminho. Em minha mão, segurava
firmemente a cabeça do irmão do meu inimigo.
Sentia a minha roupa encharcada, inclusive a touca que
abrangia toda a minha cabeça, estava banhado no sangue daqueles
malditos. E, ainda assim, não era suficiente.
Estava longe de me sentir saciado, cada morte me instigou a
ser mais cruel, a deixá-los em pânico enquanto eu brincava.
Na escuridão daquela casa, os homens que eram o pesadelo
de muitas pessoas, hoje enfrentaram o seu próprio.
— Todos mortos — Chronus falou no comunicador, eu sorri,
parando em frente ao escritório.
Os caçadores foram se aproximando, sombras dentro das
sombras.
— Ele está aqui. — A voz de Rafael pareceu saída direto do
próprio inferno. — Adiante.
Eu a abri, adentrando ao ambiente iluminado. Certamente,
ele havia feito todo o sistema daquele cômodo separadamente, era
dali que controlava o que acontecia na casa.
— Você me enviou um convite, Willian. — Ergui a cabeça de
seu irmão. — E eu aceitei.
Houve um som e interferência, como se ele estivesse
ativando os alto-falantes do ambiente.
— Então, nós estamos quites. — Sua voz soou de todas as
partes.
— Não, você ainda me deve a sua vida. — Dei um passo à
frente, colocando a cabeça em cima da mesa do escritório. — E eu
não vou sair daqui sem ela.
— Então você terá que se esforçar para conseguir isso. —
Sua risada soou desdenhosa. — Estou protegido por uma chapa de
concreto de trinta centímetros, antes que você consiga acessar os
reforços chegarão.
— Que reforços? — Sorri, observando Razhiel se
aproximando da porta de metal. — Eu conheço o seu rosto, eu vou
caçá-lo incansavelmente até o último dia da minha vida, esta é a
única oportunidade que terá de ver o rosto do seu assassino. De um
jeito ou de outro, você vai morrer.
O silêncio foi sua única resposta.
— Continue — Rafael instruiu. — Ele sabe que não tem
escapatória.
Eu queria ter a oportunidade de experimentar seu medo,
ansiava por seus gritos de dor, mas, se não poderia, então foda-se.
Buscaria meios mais agressivos; se o bastardo queria morrer
dentro daquela porra, então eu satisfaria seu desejo.
— Eu tenho aqui um rifle DRS-PRECISION. — Afastando-me
até a porta de entrada, o ajustei no ombro. — O tiro perfura doze
centímetros de concreto, quatro tiros e eu abro a porta por você.
— Está blefando.
Antes que pudesse formular qualquer outra frase, atirei
sucessivamente no mesmo lugar, fazendo a poeira voar e o
concreto estraçalhar. Um buraco grande o suficiente para passar o
cano do rifle fora aberto.
— Eu posso continuar.
— Bastardo.
E ali estava, a primeira nota de medo.
— Essa é sua única chance de me enfrentar. Depois disso,
você será morto como o animal que é. Você sabe que perdeu,
Willian.
Razhiel ainda estava avaliando a estrutura, mas a porta
começou a abrir.
No primeiro momento a vontade que eu tive foi de explodir os
miolos daquele filho da puta, uma fúria tão colossal me dominou
quando vi o sorrisinho vitorioso em seus lábios que a minha mão
tremeu no gatilho.
Coisa que nunca jamais acontecia.
— Olá, Regan. — Foi só então que eu soube quem era
aquele homem. — Não vai cumprimentar um velho amigo?
Não podia ser verdade! Instantaneamente, um ódio tão
grande me dominou, que pude sentir um gosto amargo na boca.
— Killian! — rosnei, sentindo como se anos de ódio me
engolissem por inteiro.
Ele estava muito diferente, quase outra pessoa, porém,
prestando atenção, os olhos eram os mesmos.
Como eu não o reconheci?
— Sentiu saudade de mim? — Ele colocou as mãos no bolso
da calça, enquanto caminhava em minha direção. — Eu o procurei
por tanto tempo em cada maldito lugar desse mundo. Assassinei
sem piedade, qualquer um que fosse minimamente parecido com
você, até encontrá-lo aqui. — Ele me olhou de cima a baixo, com os
olhos brilhando de satisfação. — Vejo que cresceu, Regan. Diga-
me, como anda a família?
Minha respiração se tornou mais forte, mal podia segurar a
vontade de golpeá-lo enquanto guerreava com o desejo de saber
suas motivações para fazer o que fez.
— Por que machucou a minha mulher, se poderia ter me
matado? — Aquela era a primeira dúvida. — Você não terá outra
chance.
Seu sorriso aumentou, ele pareceu genuinamente
interessado no diálogo.
— Eu não queria que você morresse, somente que sofresse.
Sofresse muito. — Em meio ao silêncio opressor, sua gargalhada
me provocou ainda mais. — Eu precisava fazer algo, não dava para
viver num mundo em que você tinha tudo e eu nada. — De repente,
sua expressão se tornou séria, o ódio cintilando. — Era para eu ter
sido o escolhido, não você. — Ele deu de ombros, sorrindo outra
vez. — Eu tive sorte de sermos “salvos”, foi bem fácil me passar por
um dos pioneiros inocentes de Viggo.
— Você deveria ter morrido naquele maldito dia!
— É, eu deveria, mas aqui estou eu. — Abriu os braços. —
Voltando para assombrar Regan, o escravo inútil. Sabe que, quando
eu vi que você estava sendo levado para um lugar diferente de
todos nós, eu pedi para ir junto? Mas aquele desgraçado só quis
você. Você!
— Meu pai viu o lixo que você era, bastardo traidor! —
Larguei o rifle, com o corpo tremendo de ódio. — Você acha que
tem material para ser aceito numa família? Você é escória, Killian,
um filho da puta.
— Filho da puta é você, e que puta — Killian brincou com as
partes íntimas. — Tenho fodido a sua mãe por alguns anos. Quando
eu delatei você, pedi para saber quem era sua mãe, e Viggo me
disse quem era a vadia antes mesmo que você chegasse para a
morte que havíamos planejado.
— Você é um miserável!
— Quem se importa? — Deu de ombros. — Eu e você somos
feitos do mesmo material, viemos do mesmo buraco. Então, por que
você poderia ser filho de um rei enquanto eu tinha que me contentar
com pouco? — Apontou o dedo para mim, com o ódio claro como
um dia sem nuvens. — Eu sabia como acabar com você no
momento que eu te vi naquela entrevista. Eu planejei por muito
tempo, mas você só me deu uma chance. A verdade, Regan, era
que eu desejava foder a sua puta; e se as coisas fossem como eu
planejei, a teria feito abortar numa trepada e ficaria com ela, até que
não servisse mais como a viciada da sua mãe.
Eu já não era capaz de me segurar, ou controlar
minimamente a onda de pura fúria que me cegou. Minha mãe
poderia ir direto para o inferno, mas seria um maldito se ficasse
quieto ao ouvi-lo falar da minha mulher.
— Uma luta justa. — Ele ergueu as mãos.
— Você não merece! — Puxando a minha faca, eu o ataquei.
Como um trem de carga desgovernado, meu corpo se chocou
contra o dele.
Batendo em seu peito, ambos caímos no chão.
Estava cego, não conseguia enxergar além da minha fúria e
do desejo de ver aquele miserável morrendo. Segurando a faca, bati
em seu peito, mal sentindo seus golpes e tentativas inúteis de se
libertar.
— Socorro! — gritou em puro desespero, a adrenalina
correndo enquanto ele lutava para se libertar daquilo que eu estava
fazendo.
Bati em seu peito outra vez, de novo e de novo, cada golpe
foi me deixando mais violento, ansiando por sua dor, pelo sangue
derramado. Sua pele foi cedendo, os gritos de agonia reverberando
no silêncio da casa.
Eu me importava, não conseguia parar, não conseguia ir mais
devagar para fazê-lo sofrer mais.
Em algum momento, a lâmina quebrou, partindo-se ao meio,
mas eu continuei, abrindo espaço, escavando, recebendo seus
golpes desesperados e cada vez mais débeis.
O ódio por tudo que aquele maldito fez me consumia. Meus
irmãos me chamavam, mas ali só existiam eu e Killian.
O responsável pela morte de Cassie e do meu filho.
Nosso acerto de contas havia demorado demais para chegar,
ele havia tirado muito de mim, ele me devia tudo que possuía.
Vermelho tomou a minha visão, eu continuei golpeando seu
peito abrindo o externo, buscando seu maldito coração, estava
preso naquele propósito macabro.
— Você me deve! — berrei, agarrando seu peito e o
rasgando com minhas próprias mãos.
O guincho de agonia que explodiu de sua boca deveria ter
sido ouvido do inferno, ele já não lutava mais, ainda assim eu
agarrei seu coração.
Arrancando-o do peito.
— Você me deve! — Podia senti-lo quente, escorrendo
sangue e pulsando uma última vez antes de parar para sempre.
Havia acabado.
Jogando a cabeça para trás, eu gritei.

***

Quando a cabeça de Killian foi pregada numa estaca e


deixada em frente à porta daquela mansão, nós fomos embora.
Nenhum dos meus irmãos disse nenhuma palavra, mas
estavam ali ao meu lado, sem questionar-me sobre coisa alguma.
— Aquele bastardo foi o responsável pelo assassinato da
primeira criança que eu tive. — Minha voz quebrou o silêncio, havia
chegado a hora de contar a eles. — Eu fui condenado à morte aos
quinze anos, por tentar fugir. Não suportava mais ser a porra de um
prisioneiro, eu não sabia o que era ter uma vida longe daquele lugar,
porque a minha mãe entregou-me nas mãos de um negociador de
órgãos infantis quando eu ainda era um bebê.
— Irmão. — Rafael pegou minha mão, apertando-a. Por um
momento, eu encarei as manchas e o quão vermelhas estavam por
causa de todo o sangue. — Não continue.
— Eu contei a Killian que estava construindo uma bomba e
ele me entregou. Como castigo, a minha criança foi morta e eu fui
sentenciado a morrer queimado. Serviria como exemplo para os
outros.
— Nosso pai o salvou. — Razhiel me olhou com pesar, talvez
ele compreendesse um pouco a forma de como eu funcionava.
— Quase metade da minha vida, eu fui prisioneiro e, quando
Roman me escolheu, ele mudou tudo. — Havia uma pedra instalada
no meu peito, viver aquele inferno era a pior coisa do mundo, mas
inevitável. — Eu pedi para ele me matar, porque, com a morte da
minha criança, tudo pelo que eu havia lutado perdeu o sentido. Mas
ele me deu um propósito. Sua partida me enlouqueceu, até Jenny
chegar. Ela me escolheu para ser dela. E eu falhei.
— Gabriel, você não pode se culpar. — Draikov me encarou
com tanta seriedade que não pude rebatê-lo. — Você foi vítima da
mesma pessoa por duas vezes. Eu sinto muito, meu irmão, mas
aquele filho da puta esperou por muito tempo, ele planejou, você
não tinha como saber.
Neguei.
— Eu deveria ter suspeitado. — Balancei a cabeça, as
lembranças doíam tanto que eram quase como uma dor física. —
Killian ainda parecia um prisioneiro quando Roman chegou, ele foi
resgatado como todos os outros. Eu deveria saber!
— Não somos perfeitos, por isso treinamos tanto, estudamos.
— Rafael inclinou-se na minha frente. — Você se esqueceu do que
aconteceu comigo? Quase perdi Amira, Luke trabalhava comigo há
anos. Não temos como saber tudo, por isso precisamos nos
preparar.
— Não sei como encarar Jenny. Eu prometi que ela estaria
segura. — Respirei fundo, mesmo assim era como se alguma coisa
apertasse meu peito. — Ela vai me deixar quando souber, e eu não
vou poder fazer nada para impedi-la porque eu a amo demais para
mantê-la infeliz ao meu lado.
O cenário estava todo em minha cabeça. Ela não ia aceitar o
que aconteceu, me culparia porque eu havia prometido que ela
estava segura ao meu lado e falhei miseravelmente.
Eu iria perdê-la.
Porra! Como doía. Esfreguei o peito, sentindo o desespero
batendo cada vez mais forte.
— Gabriel, que merda está falando? — Rafael segurou a
minha nuca, puxando-me. — Pare de enlouquecer, caralho! Jenny te
ama, ela não vai te deixar. — Tentei respirar melhor, ele continuava
me encarando muito sério. — Concentre-se, e pense no que precisa
fazer a partir daqui.
Focado na voz de Rafael, eu pensei na minha menina, que
ainda não havia tido coragem de visitar.
Ela tinha dois dias de vida, ela e sua mãe estavam lutando
para sobreviver, enquanto isso eu permanecia afundado até o
pescoço numa miséria sem fim.
— Minha filha — murmurei, Rafael me incentivou a continuar.
— Ela precisa de você, Jenny também. — Ele colocou a mão
no meu peito. — Você é meu espírito forte e coração indomável. Eu
acredito na sua capacidade de se reerguer para se manter firme
para as suas garotas.
— Nós estamos aqui — Lysander disse.
Eu precisava lutar.
Ainda não era o fim.
66
Gabriel Demonidhes

A água gelada escorria por minhas costas lavando o sangue


de todas as pessoas que eu matei horas atrás. Ainda sentia
resquícios daquela sede de sangue, do desejo louco de dar
liberdade a parte ruim. Era como uma energia densa, primitiva
demais para ser controlada e, no entanto, era o que eu deveria
fazer.
O que precisava fazer a todo custo.
Pela primeira era capaz de compreender Lysander, e o
quanto foi difícil colocar a cabeça no lugar depois de atravessar a
porta.
Flertar com a loucura e saboreá-la era um caminho sem
volta, não dava para ser exatamente igual. Homens como eu sabiam
o peso de suas atitudes ainda mais quando éramos detentores de
habilidades que poderiam determinar a vida e a morte.
Por muito tempo, eu achei que poderia controlar-me, mas não
sabia se conseguia prender o homem louco que havia perdido o
filho por puro capricho de um bastardo.
— Controle-se, Gabriel. — Olhei para as minhas mãos,
estavam tremendo.
Eu queria continuar matando, como a besta viciosa que eu
poderia ser, mas não poderia porque precisava encarar a minha
realidade. Sabia que estava protelando, e aquele banho demorado
nada mais era que o refúgio de um covarde.
Não era forte o suficiente para segurar a minha filha,
tampouco para encarar a mulher que confiou em mim quando não
lhe restava nada, além de sua esperança.
Distraindo-me pelo amontoado de roupas ensanguentadas no
canto do boxe, pelos filetes carmesins que escorriam até meus pés,
eu sabia que não poderia ficar ali para sempre.
— Deus... — Respirei fundo. — Jenny precisa de você, porra!
E eu tinha que permanecer inteiro para ela, mesmo
acreditando que, quando soubesse tudo que aconteceu, jamais me
perdoaria. Em partes, sabia que os irmãos Demonidhes não eram
infalíveis, mas era difícil aceitar que fosse meu filho a sofrer as
consequências.
Estávamos preparados para morrer, havíamos aceitado que
era uma parte do trabalho. Mas nenhum treinamento era capaz de
ensinar alguém a perder um filho; e o que eu estava vivendo,
finalmente havia me feito compreender as atitudes do meu pai.
Ele que não hesitou em correr para salvar Heylel quando ele
sabia que era a única coisa que poderia fazer. Roman morreu, mas
salvou seu filho; e se eu pudesse, faria o mesmo pelo meu.
Só que eu não poderia. O que restava agora eram
pensamentos ininterruptos de como eu poderia ter evitado o que
aconteceu. Apesar de tudo, eu deveria ter imaginado; em algum
momento, deveria ter parado para pensar na possibilidade de que o
meu passado se chocaria brutalmente com o meu presente.
Eu teria buscado meios de resolver, porque saberia que
Killian viria atrás de mim, eu o teria arrancado seu coração muito
antes.
E então, meu filho estaria aqui comigo.
— Nunca vou aceitar. — Baixei a cabeça, com a sensação de
impotência devorando-me.
Sentia que começava a tremer, o desejo de destroçar Killian
outra vez impedia-me sequer de respirar. Arrependia-me de não tê-
lo feito mais lentamente, seus gritos foram poucos, sua dor também.
Era para que ele sofresse infinitamente, e apenas quando parte da
minha loucura fosse saciada, então eu o mataria, porque, mesmo
sabendo que ele estava morto, o sentimento de ódio continuava
queimando.
Desejava ter seu coração em minha mão outra vez, queria
sentir o sangue quente escorrendo, enquanto vislumbrava a careta
de horror estampada em seu cadáver.
Eu deveria ter feito mais. Arrancado parte por parte de seu
maldito corpo até que não restasse nada a ser reconhecido ou
enterrado.
— Maldito! — Soquei a parede e a dor que disparou pela
minha mão foi boa.
— Gabriel?
— Que merda... — Olhei para Lysander, ele estava dentro do
banheiro, de braços cruzados, encarando-me daquele seu jeito tão
particular. — Você não bate à porta? — Desligando o chuveiro,
puxei a toalha que havia pendurado ali.
— Eu bati uma vez, você não atendeu. — Inclinando a
cabeça de lado, pareceu me avaliar. — Esperei por uma hora, foi
suficiente. — Deu de ombros, como se fosse o bastante para
explicar que ele estivesse na minha cola.
E bem, eu entendi.
Meus irmãos não estavam me deixando “sozinho”. Eles se
revezavam entre mim, Jenny e o bebê. Sempre havia um deles por
perto, como se não confiassem em me deixar por muito tempo com
meus pensamentos.
— Avise aos outros que eu não vou cometer nenhuma
loucura. — Cruzei os braços. — O que quer aqui?
Lysander esticou-se em seus quase dois metros, os cabelos
pretos, maiores do que normalmente usava, estavam penteados
para trás. Ele parecia pronto para um jantar de negócios, nem
parecia que havia acabado de participar de uma carnificina.
— Os jornais estão noticiando o que aconteceu. — Ele
estreitou os olhos enquanto falava. — Ter deixado a cabeça do seu
inimigo presa numa estaca, na entrada da casa, lhe rendeu um novo
apelido. A mídia o apelidou de Empalador.
— Não me interessa. — Dei de ombros, vestindo-me com a
primeira roupa que vi pela frente.
Estava subindo a calça de moletom quando Lysander
pigarreou.
— Vista-se adequadamente. — Havia um ar de nojo em sua
expressão. Ele ondeou o dedo em minha direção, apontando para
as minhas roupas. — Você irá conhecer a sua filha. — Senti como
se suas palavras fossem chicotadas. — É um encontro importante.
O bastardo usava apenas alta costura. Era elegante em cada
maldito sentido, como um perfeito aristocrata. Diferente de mim, que
nunca havia me importado com as porcarias que estavam
disponíveis para vestir, só que, naquele momento específico, eu
devia me importar.
Eu ia conhecer a minha filha, rever Jenny. Olhando para mim
mesmo, notei que parecia um psicopata fugindo da prisão.
— Tem razão — concordei, buscando por novas roupas.
Não quis pensar na falta que Jenny fazia em momentos como
aquele. Era sempre interessante ver como ela ficava vestindo as
minhas roupas, ou quando se espantava ao encontrar etiquetas.
Sentia falta das coisas simples, do mínimo, que me fazia feliz.
— Deixe-me ajudá-lo. — Lysander começou a fechar os
botões da camisa de seda preta que eu escolhi, depois, sua atenção
se voltou para o meu cabelo, ele começou a penteá-los com os
dedos. — Arrume-se direito, porra.
— Eu vou arrebentar a sua cara — rosnei, empurrando sua
mão. — Sai fora, bastardo, eu estou pronto.
Lysander me encarou por alguns instantes, sua expressão
mudou para algo mais suave e ouso dizer, gentil.
— Você sabe que eu não sou do tipo que enrola. Poderia
esperar mais, no entanto, acredito que a dor ensina, e que você
precisa viver tudo de uma vez para que consiga ficar inteiro para a
sua família. — Ele foi até a cama, pegando a pequena sacola que
havia lá.
Ele me entregou, ficando ali como se esperasse a minha
reação ao descobrir o havia dentro. Um tanto receoso, eu abri a
embalagem, era um porta-retrato.
— Lysander...
— Ainda há muito o que fazer, irmão. — Sua voz foi tão
gentil, que fez com que meus olhos se enchessem de lágrimas, e eu
me odiei por isso. — Suas meninas ainda não estão totalmente fora
de perigo, então o que eu vou dizer pode parecer ruim, e talvez seja,
mas você precisa seguir em frente, por elas.
— Deixe-me sozinho.
— Gabriel...
— Deixe-me sozinho — repeti, sem conseguir encará-lo.
— Esperarei no carro. — Ele colocou a mão em meu ombro,
dando um aperto suave. — Não importa o quão difícil seja, você não
está sozinho. Se cair, vamos te levantar, quantas vezes for preciso.
Não respondi, mas eu me sentiria daquela forma em relação
a todos eles.
Quando meu irmão saiu do quarto, eu fui até o meu lado da
cama, sentando-me. Um tanto dolorido, ainda lutando para fazer
frente a tudo que aconteceu, eu encarei a foto do ultrassom do meu
filho.
— Constantino. — Toquei seu rosto, o sorriso que nem a
morte conseguiu apagar de seu rosto. — Eu queria te ter aqui.
Fechando os olhos, eu abracei aquela imagem. Era tudo que
eu tinha dele. Além das lembranças boas e ruins, não restava
absolutamente nada.
Eu teria que conviver com o desejo de ser o pai daquele
garoto, com a saudade dos momentos que não tivemos e com a
certeza de que eu poderia tê-lo feito a criança mais feliz do mundo.
O quarto compartilhado se tornaria para uma criança só e a
raposinha vestida com o macacão verde não iria acalentar o bebê
chamado Constantino.
As mudanças eram muitas, e cada uma pior que a anterior, e,
ainda assim, eu tinha que levantar, tinha que ir para aquele hospital.
— Eu preciso ir. — A despedida partiu meu coração, pois era
o único jeito. — Eu não sei quando vou voltar para casa, sua mãe e
irmã precisam de mim, e eu vou encontrar um meio de estar inteiro
para elas. Perdoe-me, mac mo ghrá[20].
Colocando o porta-retratos na minha cabeceira, toquei sua
imagem uma última vez. Então, sem olhar para trás, engoli toda a
minha covardia, e saí daquele quarto.
Estava indo para a minha família.
Eu seria o que elas precisassem que eu fosse, não importava
que por dentro eu sentisse como se uma parte faltasse. Quando
cheguei à sala de estar, quase todos os meus irmãos estavam ali.
Seus olhares se voltaram para mim, e Amira, que segurava a
versão miniatura de Rafael nos braços, começou a se retirar.
Não disse uma palavra, mas vê-la levando meu sobrinho,
machucava uma parte ainda muito frágil do meu coração.
— Malen’kiy, volte. — A voz de Rafael quebrou o silêncio
esquisito que se iniciou com a minha chegada.
Amira voltou com Mikhail, o bebê fazia barulhinhos fofos. Eu
me aproximei, emocionado de ver que ele estava saudável, era forte
e não corria risco algum de “nos deixar”.
— Oi, garotão. — Toquei sua bochecha rosada, os olhos
muito azuis brilhando em inocência.
— Desculpa, Gabriel — Amira soluçou baixinho. — Eu pensei
que ver Mikhail poderia ser doloroso, eu só não quero que sofra
ainda mais.
— Está tudo bem — murmurei, sentindo os olhos arderem.
Não era capaz de erguer a cabeça, encarar meus irmãos ou quem
quer que fosse. Por isso, minha atenção era toda voltada para
aquele bebê lindo. — Você é a cópia do seu pai, já te disseram
isso? — Ele segurou meu dedo com uma força surpreendente. —
Quando crescer, eu vou te ensinar a chutar alguns idiotas. —
Inclinei-me, depositando um beijo em sua cabeça cheirosa.
Por um instante, eu fechei os olhos, respirando aquele cheiro
doce e suave. Em minha loucura imaginei que poderia ser meu filho,
meu Constantino.
Eu juro que vou proteger você, garoto. Abrindo os olhos, eu
sabia que as minhas palavras eram para Mikhail. Por um breve
instante, o bebê me olhou como se compreendesse a intensidade
das minhas emoções, depois voltou a agitar os braços e as
perninhas.
Secando os olhos rapidamente, voltei minha atenção para
Rafael.
— Eu vou para o hospital, ficarei por lá até que eu possa
trazer minha filha e Jenny de volta. — Ele acenou. — Não deixe
Consta...
— Eu entendi, todos os dias, eu irei vê-lo. — A voz firme de
Rafael me interrompeu.
— Todos nós iremos — Razhiel completou.
— Obrigado. — Respirei fundo, controlando a emoção. — E
até breve.
— Nós esperaremos por vocês. — Amira tentou sorrir, mas,
não conseguiu. — A gente te ama muito, Gabriel, não se esqueça
disso, por favor.
Concordei, apressando-me para fora de casa.
Lysander me esperava, juntos, fizemos todo o caminho em
silêncio. Todos os meus irmãos sabiam que levaria muito tempo até
que as coisas se ajeitassem, mas, talvez, de todos, o que poderia
me compreender melhor fosse Lysander.
Era ele quem buscava reclusão quando precisava lidar com
suas coisas; como eu não podia fazer aquilo, ele respeitava que eu
não queria conversar. Ainda levaria uma quantidade considerável de
tempo e pensamentos para que eu conseguisse aceitar
minimamente o que aconteceu.
Mas eu tinha certeza de que encontraria um meio de não
enlouquecer com conjecturas, como poderia ter feito e não fiz. Não
havia nenhuma maneira de voltar atrás, e para tudo que importava
eu não estava sozinho.
Quando Jenny acordasse, ela ia precisar que eu estivesse
forte.
— Heylel está com ela agora — Lysander disse assim
estacionou na sua vaga do hospital. — Ele tem assumido a maior
parte do turno com a Baby. Por mais que os outros queiram, ele é
um tanto ciumento.
— Heylel tem ciúme da minha filha?
— Tem. — Lysander deu de ombros. — Então, ele passa a
madrugada com ela, eu o autorizei.
— Jenny está sozinha? — Eu não soube classificar a
angústia que me causou pensar na minha Beag sozinha naquele
lugar estranho.
— Ela está na UTI ainda, tem acompanhamento vinte e
quatro horas.
— Quando ela vai sair da UTI e ir para um quarto? — Tentei
não deixar transparecer o pavor que eu sentia de que alguma coisa
pudesse dar errado. — Lysander, a minha mulher está se
recuperando, não é? — A seriedade com que meu irmão me
encarava torceu meu coração. — O que você não está me
contando?
Ele olhou para a frente por alguns minutos, então sua
atenção se voltou para mim.
— Jenny teve uma recaída hoje, nos anexamos o
desfibrilador, por enquanto.
— O quê? — Tentei não surtar, mas era impossível. — Eu
não deveria ter sido informado? Porra, Lysander! — Esfreguei o
cabelo, puxando-o no final.
Que merda do caralho!
— Em que momento? — Meu irmão arqueou a sobrancelha.
— Você não podia lidar, então eu resolvi a questão. Assumi os
riscos e, bem, deu certo.
A sensação que tive foi de que havia alguma coisa
retorcendo minhas vísceras.
— Por que não me contou?
— Eu não achei que adicionar mais um problema a sua conta
fosse ajudar. — Ele me olhou por alguns instantes. — Foi preciso, e
isso a estabilizou, mas ela deveria ter acordado quando a sedação
passou. — Meu irmão olhou para a frente. Pude notar que ele
estava buscando meios de me deixar a par da situação. — Ela não
acordou, Gabriel.
Deus...
— Ela vai acordar. — Respirei fundo, não aceitando que o
medo me dominasse. — Quando eu chamar, ela vai me ouvir.
Esperei que Lysander tivesse mais alguma coisa para me
dizer, mas ele não disse nada, ficou apenas me encarando, como se
procurasse o indício de alguma coisa que eu não fazia ideia. Então,
para meu choque e surpresa, o canto de usa boca arqueou, e ele
soltou um suspiro do que poderia ser alívio.
— O que foi, bastardo? — Algumas de suas atitudes eram
confusas e eu não tinha tempo para perder.
— Todos estão preocupados com você, porque desde
sempre teve um temperamento infernal do caralho. — Lysander riu,
eu nunca o vi fazendo nada parecido com aquilo. — Porra, faz
merdas que colocam sua vida em risco, mas eu vejo claramente
agora.
— Vê o quê?
— Que você é forte o suficiente para aguentar tudo, porque
tem muita gente que precisa de você, principalmente as duas que
estão logo ali. — O sorriso do meu irmão aumentou, e eu não soube
como reagir porque, sorrindo daquele jeito, ele se tornava
inacreditável. Eu tinha que admitir. — O quê? Nunca me viu
sorrindo?
— Não desse jeito.
Então como se ele houvesse acabado de usar toda a alegria
de sua vida, a expressão do meu irmão tornou-se a mesma de
sempre. Indiferente, distante, quase monótona.
— Vamos, Baby precisa te conhecer.
— Baby?
— O apelido da sua filha. — Lysander quase sorriu outra vez,
mas, antes que o fizesse, ele saiu do carro e eu o segui.
Que Deus me ajudasse.
Eu não fazia ideia do que me esperava.
Aquela área do hospital era a mais colorida, ao invés de
brancas as paredes possuíam desenhos delicados, com paisagens
de animais e florestas. Eu reconhecia aquele traço, a beleza de
cada desenho.
Amira fora a responsável, e era estranho como ela havia
conseguido trazer leveza a um lugar de dor.
— A maternidade e a pediatria ficam na mesma ala, mas são
separadas pelos blocos cirúrgicos, brinquedoteca e biblioteca —
Lysander informou, e eu não fazia ideia se havia alguma regra para
aquilo. — No último projeto, optamos por colocar as crianças longe
dos adultos em todas as áreas de atendimento. A oncologia
pediátrica fica no final do último bloco, próximo ao jardim primavera.
Temos alguns aviários, os animais ajudam.
— Isso é uma regra?
— Não, mas foi algo que eu conversei com o antigo diretor do
hospital. — Meu irmão abriu a porta que dava acesso a área da
maternidade. — Ele concordou desde que eu financiasse.
— Então é uma regra no seu hospital, irmão.
— Mais ou menos. — Lysander deu de ombros. — Adultos
são pessimistas, idiota, e estavam corrompendo as crianças. Eu os
separei, caso contrário, eu mesmo mataria os bastardos.
— Lysander, pessoas doentes não pensam além do que elas
são capazes de sentir.
— Explique para mim, porque eu não sei. — Sua voz
destilava ironia. — Vamos, é por ali. — Ele indicou outra porta, que,
quando nós entramos, eu não soube direito como reagir.
No canto mais afastado, sem camisa e segurando um
bebezinho minúsculo entre as mãos estava Heylel. Era apenas
ainda mais chocante vê-lo com a minha filha, uma vez que o único
comparativo era Mikhail e ele era enorme.
Heylel era o mais alto de todos nós, possuía mais de dois
metros, cento e poucos quilos, e tatuagens de cima a baixo. Não
dava para ver a pele, seu corpo era um quadro da violência que
vivíamos.
— Olha quem chegou, Baby — Heylel murmurou e, como se
estivesse sendo puxado em sua direção, eu fui para eles sem ao
menos perceber o que estava fazendo. — O seu segundo pai,
porque o primeiro sou eu. Lembre-se do nosso acordo, eu vou te
levar para a Disney vestida de princesa ou de príncipe, não sei, o
que você decidir para mim está ótimo.
Vários suspiros femininos se faziam ouvir, as enfermeiras e
médicas que estavam naquela sala de crianças prematuras, mal
desviavam os olhos do meu irmão. Ele e a minha filha
protagonizavam uma cena de puro amor.
Era a única palavra que eu usaria para descrevê-los.
— Dr. Demonidhes. — Uma mulher se aproximou de mim e
Lysander. — O senhor irá fazer segundo turno do canguru com
Baby?
— Não, desta vez o pai dela o fará.
— Ainda não decidiram o nome, senhor?
— Só quando a minha esposa acordar — proferi, esticando-
me para ver Heylel e a minha filha. — Ela é ruiva.
— Como você. — Heylel sorriu abertamente. — Mas, se ela
tiver o seu temperamento, estamos todos fodidos.
Deus... A sensação de que eu havia nascido para ser pai me
ferroou ainda mais forte.
— Controle a língua, bastardo! — Lysander se aproximou de
Heylel. — Como vai, pequena? — Ele deslizou o dedo pelos cabelos
alaranjados. — Seu pai está aqui para te ver.
— Estou pronto, Lysander. — Não pude esconder o
nervosismo. Minhas mãos coçaram, eu queria segurá-la mesmo
temendo fazê-lo.
Ela ainda era tão pequena e tão frágil.
— Retire a camisa, irmão — Lysander instruiu, eu o fiz. —
Sente-se naquela cadeira. — Ele apontou para uma poltrona
grande, que ficava em frente à parede de vidro que dava uma ótima
visão do jardim primavera.
Sentindo o coração batendo na garganta, e o corpo
tremendo, eu me sentei. Ansioso e ao mesmo tempo angustiado,
observava Lysander pegando a minha filha, eu mal podia respirar
quando ele se aproximou com ela.
— A pele precisa ficar em contato direto. — Quando a minha
filha foi depositada em meu peito, e eu finalmente pude segurá-la,
alguma coisa girou e acendeu dentro de mim.
Aquela chama que eu julgava ter apagado ganhou vida, com
ela a certeza de que não importava o que precisasse fazer, eu não
ia perder mais ninguém.
A garotinha em meus braços merecia que eu estivesse inteiro
para ela, a mulher que lhe deu a vida também merecia um homem
completo.
— Eu vou fazer de tudo para ser o melhor pai para você. —
Ela abriu a boca, os olhos movendo-se lentamente. — Eu estou aqui
agora, e prometo que jamais vou te deixar.
Meu coração bateu mais forte, porque daquela vez a minha
filha estava quente, e era o seu calor que ia aquecendo meu corpo,
espantando todo o frio que havia me inundado.
— Obrigado, amor. — Fechei os olhos.
Aquele ali era o meu verdadeiro lugar. O tormento que me
consumiu nos últimos dias foi apaziguando, a paz e o caos estavam
lado a lado. Para a minha Baby, Jenny e família eu daria o que
tivesse de melhor.
Mas, para qualquer um que se atrevesse a machucá-los,
deixaria a porta da jaula aberta. Uma vez que aquela parte ruim
saía, era fácil deixá-la livre de novo.
No momento, ia apenas dedicar-me a cuidar das minhas
garotas e idealizar um futuro melhor.
Constantino estaria para sempre conosco, como a memória
de um sonho interrompido. Não importava o que viesse pela frente,
eu continuava sendo o pai de duas crianças.
Mas, agora, era aqui que meus esforços deveriam se manter.
— Irmão? — Um toque em meu ombro me fez abrir os olhos.
— Está na hora da visita da UTI adulta — Lysander avisou. —
Deixaremos Baby com Heylel, está na hora de ver sua mulher.
— Tudo bem. — Respirei fundo, relutante em soltar meu
bebê.
— Gabriel, relaxa um pouco, eu não vou machucar a nossa
bebê. — Lysander tentou retirar as minhas mãos, mas eu estava
travado. — Irmão, deixe-a ir.
Engoli o nó em minha garganta, tentando não deixar
transparecer a respiração que começava a agitar-se. Não conseguia
pensar além do fato de que não podia me afastar daquela criança.
— Não consigo soltar — arquejei, buscando os olhos de
Lysander. — Irmão, sinto que vou enfartar.
Ele acenou, então repousou a mão em cima da minha.
Juntos, nós segurávamos Baby.
— Sua filha está bem, é forte. Não houve intercorrências, ela
come bem, não tem qualquer obstrução. Está aqui única
exclusivamente para ganhar peso. — Suas palavras foram me
deixando mais calmo. Lysander nunca ia mentir para mim, e no
estado de sanidade que eu me encontrava, nada ia passar
despercebido. — Você só vai até o outro lado do complexo
hospitalar, vai ver sua mulher e então voltar para a Baby e ela estará
aqui esperando por você. — Aos poucos, Lysander foi afastando
minha mão. — Eu prometo que ela estará aqui quando você voltar.
Confie em mim, irmão, eu não vou deixar que nada aconteça a sua
filha.
Atento a cada movimento do meu irmão, eu observei quando
retirou Baby dos meus braços, colocando-a de volta em Heylel. Meu
irmão mais novo a segurou com habilidade e ela pareceu
confortável ali.
— Estamos bem, não é, pequena? — Ele sorriu, os olhos de
duas cores brilhando. — Vá, irmão, eu cuido da nossa garotinha.
— Eu volto. — Levantei-me da cadeira, vestindo a camisa.
Antes de sair, eu olhei para Heylel e ele ficou sério. Não
precisei dizer nenhuma palavra, ele acenou, a cicatriz na face
deixava claro que ele já havia descido ao inferno, e voltado.
Ninguém ousaria tocar na criança que ele estava protegendo.
— Vá. — Concordei, seguindo Lysander.
Como ele havia dito mais cedo, a ala adulta ficava do outro
lado do hospital, mas nós chegamos lá rapidamente.
—Jenny é uma paciente do Trauma — ele falou, assim que
acessamos a área destinada aos que estavam em estado mais
graves. — Lave as mãos como farei. — Eu fui seguindo o passo a
passo. Quando terminado, ele me entregou alguns itens. — Vista
tudo isso.
Apressado, eu comecei a colocar os itens. Por último, a
máscara. Todos aqueles cuidados me deixavam assustado, pois não
foi necessário nada daquilo para que eu pudesse ver Baby.
Lysander abriu a porta e uma rajada de frio me golpeou.
— Irmão, ouça com atenção. — Engoli em seco, mas
concordei. — Jenny não está em estado crítico, mas ela ainda
inspira muitos cuidados. Portanto, não se assuste com os aparelhos
ligados a ela, com a tonalidade da pele. Lembre-se de que ela
perdeu muito sangue.
— Okay.
— Converse com ela, fale sobre Baby. — Concordei, e ele
abriu a porta, e eu finalmente pude ver a minha garota.
Perdida naquela cama enorme, cheia de fios conectadas ao
seu corpo. A máscara de oxigênio presa ao rosto, uma bandagem
cobrindo o lado esquerdo de seu peito, resquícios da cirurgia
recente.
— Você continua a mesma garota linda que eu amo. —
Peguei sua mão, trazendo-a para o meu rosto e me confortando
com as carícias que eu mesmo me fazia. — Sinto a sua falta, Beag,
por favor, volte para mim.
Fechei os olhos, recusando-me a pensar que ela não voltaria.
Por um longo tempo, apenas desfrutei de sua companhia, me
fortalecendo na certeza de que eu me obrigava a ter.
Ela ia voltar para mim e para a nossa filha.
Mas então, enquanto aquilo acontecia, eu lhe daria coisas
para sonhar. Talvez, ela pudesse me ouvir, e, um dia, me responder.
— Eu sempre vou estar aqui. — Tentei esquentar sua mão.
— Você me escolheu, não foi? — Sorri, com o coração doendo. —
Então não há nada que eu possa fazer além de ser seu.
Quando meu tempo acabou, eu precisei ir, mas não iria muito
longe.
Eu havia dito, que só voltaria para casa com as minhas
garotas e eu estava mais do que pronto para viver ali dentro com
elas, pelo tempo que fosse preciso.
A minha vida se resumiria a esperar por elas.
67
Gabriel Demonidhes

Há tantos dias tenho estado morando dentro do hospital que


já conhecia todas as pessoas que cuidavam da minha família.
A mera possibilidade de voltar para casa sem Baby ou Jenny
era aterrorizante. Não conseguia me imaginar sem elas, portanto,
não havia nada que me interessasse além de estar ali.
Admitia que no começo, as coisas foram bastante
complicadas. Primeiro porque não podia ficar com Jenny pelo tempo
que eu desejava, e Baby era delicada demais, frágil como nunca
imaginei que um bebê pudesse ser.
Mesmo que ela não tenha apresentado nenhuma
intercorrência devido a prematuridade de seu nascimento, não podia
evitar o medo que me assolava a cada segundo do dia. Até chegar
aonde estávamos, percorremos um longo caminho.
Baby estava tão saudável quanto alguém que nascia no início
do oitavo mês poderia estar. Ela havia ganhado peso, possuía uma
curva de crescimento e ganho de peso impecável.
Ela estava quase pronta para ir embora.
Que Deus me ajudasse!
— O que eu vou fazer, pequena? — Ela prestava atenção em
mim, e na nossa interação eu descobri que todas as conversas que
tive quando ela ainda estava na barriga de sua mãe a fizeram me
conhecer. — Como vou ficar em paz sem você perto de mim? — Eu
estava falando em gaélico, ninguém precisava entender o teor da
nossa conversa.
Era coisa de pai e filha.
Ela bocejou, piscando os olhos de cor indefinida e me
deixando tonto com a gama de sentimentos que me inundavam
todas as vezes que eu a segurava nos braços.
Havia caído de amores por aquela criatura minúscula que
apenas comia, dormia e recheava fraldas o tempo inteiro.
Porra. Não podia deixar de admirar o quanto ela era perfeita.
Os cabelos ruivos eram apenas uma penugem fininha, mas eu sabia
que, quando crescessem, seriam como os meus.
— Não me imagino sem você. — Percorri os dedos pela
bochecha rosada. — É linda como a sua mãe.
Ao longo dos dias ali, eu fui aprendendo como cuidar dela e a
realidade era bem mais complexa do que todos os livros que eu li.
Baby não era uma criança tranquila, como a maioria dos outros que
estavam na UTI, ela era irritadiça, brava, resmungona.
Quando chegava a hora de sua alimentação, só faltava
derrubar o hospital com os gritos, mas ela gostava de ouvir as
pessoas falando. Ou melhor, ela gostava de me ouvir e aos meus
irmãos.
Todos estavam participando dos cuidados para com ela.
Heylel vivia ali dentro, no turno da noite ele ficava para protegê-la;
no período da manhã estava com Amira e Mikhail. Sem que eu
pedisse, meus irmãos iniciaram uma maratona entre a paternidade,
trabalho, hospital e casa.
Inclusive Rafael, que não havia deixado de vir nenhum dia
sequer.
Toda turbulência que nós estávamos vivendo, estreitou ainda
mais os laços que nem o sangue era capaz de forjar. A minha
família era foda, e eu descobri que era amado pra caralho, eles
demonstravam todos os fodidos dias.
— Senhor Demonidhes? — Uma enfermeira chamou, ela era
uma das responsáveis pelo turno da manhã na UTI neonatal. — Os
exames da Baby chegaram agora, os resultados foram ótimos.
Mais cedo, haviam retirado sangue e feito vários
procedimentos nela. Heylel esteve ali comigo, e ele era a minha
testemunha do quanto a minha pequena havia ficado furiosa.
Levou cerca de meia hora para acalmá-la, conversando a
todo momento e prometendo o mundo.
— Baby é forte. — Sorri esfregando o nariz em sua cabeça
cheirosa.
— Sim, a recuperação dela foi incrível, nós fizemos a
neuroproteção como se deve e olhe para ela agora? Está muito
bem. — A mulher sorriu. — Estamos prontos para fazer os últimos
testes e, se estiver tudo okay, ela receberá alta do pediatra.
Acenei, permitindo que pegasse minha filha, mas não desviei
o olhar. Estava atento a cada passo que davam ao redor da minha
criança, cada toque, modo de pegar. Não me importava que fossem
especialistas, Baby era minha.
— Vamos lá. — O pediatra chamou. O Dr. Vitório Assumpção
era um neonatologista jovem e muito dedicado. — Você está com
frio, pequenina? — Ele conversava com Baby, pois havia percebido
que ela gostava de ouvir vozes.
Convivendo ali com eles, percebi que aquela profissão era
delicada, muito diferente da minha que, literalmente, arrancava um
coração com as próprias mãos.
Não pense nisso, não o traga para cá! Sacudindo a cabeça,
cruzei os braços.
— Doutor, ela vai se irritar se continuar assim. — Ele deveria
saber, mas não pude deixar de alertar, já conseguia perceber o tom
avermelhado colorindo seu rosto, ela estava resmungando a cada
vez que ele a tocava com a mão fria.
— Sei que sim — falou baixinho, com tranquilidade. — Mas
preciso ver todas as reações dela, inclusive as coisas que a irritam.
Quero ver se é apenas irritação ou dor, desconforto de algum tipo.
Eu podia aceitar aquilo.
Os testes foram continuando e a cada minuto Baby ia ficando
mais irritada. Estava bem claro que ela detestava ser manuseada
pelas mãos geladas do médico. Todas as vezes ela reclamava
muito, até começar a chorar a plenos pulmões.
— Ela tem um temperamento agressivo.
— Com certeza não puxou a mim. — A vontade de rir me
surpreendeu, há tanto tempo não fazia isso que meu rosto até
pareceu destreinado.
Foi estranho.
— Ela é a sua cópia, irmão. — Olhei para Lysander, e ao
ouvir a voz dele, Baby parou de se agitar, prestando atenção. — Eu
cheguei para salvá-la dessas pessoas ruins, bambina.
— Ela está indo tão bem, Dr. Demonidhes. — O
neonatologista sorriu, depois começou a fazer cócegas nos
pezinhos do meu bebê, ela reclamou, mas eu fiquei encantado ao
ver seus dedinhos encolhendo e reagindo perfeitamente ao toque.
— Muito bem. Agora vamos só testar aqui. — Ele colocou um
aparelho no ouvido dela, que a fez reclamar na hora.
Se eu não estivesse louco, ela havia se assustado um pouco.
— Isso causa dor? — Segurei a mão do médico, apertado. —
Eu lhe fiz uma pergunta.
Tentava não soar ameaçador, mas aquela parte civilizada
havia tirado ferias há quase um mês.
— Não causa. — Foi Lysander quem respondeu. — Mas
incomoda, porém é necessário. — Meu irmão estava ao lado
neonatologista, mas nem isso me aliviava.
— Esse aparelho nos possibilita produzir um estímulo sonoro
e captar o retorno, Sr. Demonidhes. É um exame de triagem
neonatal, necessário para detectar problemas auditivos e, caso o
encontremos, já iniciamos o tratamento precocemente.
— Esse exame não já foi feito uma vez? — questionei, eu
estava aqui com Rafael, meu irmão encarava os responsáveis com
aquele seu olhar de que, se alguma coisa errada fosse feita, iriam
responder a ele.
— Sim, mas Baby está repetindo todos os exames, é comum
em bebês prematuros que vão receber alta.
— Okay — soltei o fôlego, um tanto ansioso para segurá-la
em meus braços de novo.
— Vamos fazer o teste do olho agora. — Ele sorriu para
Baby, mas ela não estava a fim de papo com seu médico. — Vamos
lá.
Quando tocou no rosto dela, o grito foi explosivo. Ela havia
encontrado seu limite.
— E ainda tem coragem de dizer que ela não puxou a você.
— Lysander balançou cabeça.
Bem ela era minha cópia mesmo. Admitia, cheio de orgulho.
A pequena era temperamental, à flor da pele, tanto que em alguns
momentos só parava de chorar quando a pessoa que ela queria
estava segurando-a e conversando.
Por enquanto, eu e os meus irmãos estávamos na lista de
vozes preferidas, digo, menos Draikov, ela sempre chorava quando
ele a segurava, e eu me sentia um tanto satisfeito.
Minha filha não ia aceitar aqueles que nos abandonaram tão
facilmente. Agora, estávamos num dilema, Draikov queria ser aceito
por ela, tanto que havia dito que só ia embora quando a
conquistasse.
Bem, ele estava determinado a estender o ramo de oliveira
para a pequena Demonidhes, e eu esperava que ela não aceitasse.
— Doutor, deixe-me tentar — Lysander interveio, quando, na
terceira tentativa de realizar o teste, se mostrou inútil. — Estive
estudando pediatria nos últimos seis meses, acho que posso
realizar um simples exame de reflexo vermelho. — Meu irmão
pegou o aparelho, e antes de ele tocar na minha filha ele disse: —
Sou eu, o seu tio preferido, agora seja uma mocinha comportada
que vou lhe recompensar depois.
Como se fosse mágica, ele fez o exame tranquilamente.
Quando terminou, parecia orgulhoso da nossa pequena.
— Ela respondeu a todos os testes e exames muito bem. —
A voz do neonatologista soou feliz, era sempre uma comemoração
quando um prematuro conseguia bons resultado e a alta. — Vou
preparar a papelada, ela pode ser arrumada para ir. É o tempo de
deixar tudo em ordem.
Eu estava vendo com meus próprios olhos que Baby estava
bem, mas não via a hora de ela crescer, ficar grande e forte como
Mikhail, o bebê monstro de Rafael.
— Vamos para casa, bambina? — Lysander colocou o dedo
mindinho na mão dela, satisfeito pelo modo como ela o agarrou.
— Lysander? — Me aproximei do meu irmão, ele estava
terminado de retirar a fralda de Baby. — Ela vai hoje?
— Agora. — Ele me olhou, colocando-a em cima de uma
balança. — Dois quilos e oitenta. Parabéns, mia bambina. — A voz
dele era sempre muito carinhosa quando estava com Baby, e ele era
um dos seus preferidos.
Meu irmão começou a preparar o banho dela, eu fiquei por
perto, sentindo que meu coração ia diminuindo só de pensar que ela
ia embora sem mim e Jenny. Era bom para ela, eu sabia, mas era
tão insuportável imaginar que ficaria longe, que era quase uma dor
física.
— Irmão — murmurei, observando-o apoiá-la em sua mão e
começar o processo de banhar seu corpo miúdo. — Por que ela tem
que ir hoje?
— Sabia que você tem um cachorro que pode fazer de
pônei? — ele falou para ela ignorando-me. — Ele estava chorando
com frequência, querendo entrar no quarto do seu pai, por isso
Razhiel o adotou temporariamente. Kang, é o nome dele.
Havia negligenciado o filhote, mas, com tudo que aconteceu
e as mudanças bruscas na vida de todos nós, não havia muito o que
eu pudesse ter feito.
— Eu comprei uma roupa nova para você, bambina. —
Lysander passou os dedos gentilmente pelos cabelos ruivos dela. —
Creio que comprar coisas para você e Mikhail tenha se tornado um
vício. Provavelmente, não vai dar tempo para que vista tudo, mas
não importa, eu continuarei comprando.
— Lysander...
— Agora, seu pai vai tentar impedir que eu te leve. — Baby
piscou os olhos, atenta a voz do meu irmão. — Mas eu não vou
deixar, a família está te esperando em casa.
Esfreguei o cabelo, num gesto nervoso. Me recusava a fumar
enquanto estivesse naquele lugar. Ainda que eu pudesse me limpar,
o vício não era mais importante que meu tempo com elas.
— Ela não poderia ficar comigo e com Jenny aqui?
— Você quer mesmo que Baby fique neste lugar, quando
pode ir embora? — Ele me olhou por um momento, antes de voltar
sua atenção para ela. — Não me surpreenda negativamente
dizendo que sim.
— Porra, Lysander, eu, só não quero me afastar dela.
— Não estamos indo para o outro lado do país, bastardo. —
Meu irmão pegou a toalha, e a embalou num pacote. — Eu trouxe
sua moto, você vai poder ir todos os dias em casa e voltar.
Ele a levou para a cama de apoio, depois com cuidado a
depositou, começando o processo de secá-la. A todo momento meu
irmão conversava em italiano, dizendo o que estava fazendo e
pedindo permissão. Baby prestava atenção, como se
compreendesse cada parte do diálogo.
Ambos possuíam uma conexão interessante.
Eu nunca esperaria que pudesse acontecer, sabendo quem
era Lysander, mas, desde o nascimento das crianças, ele havia se
tornado um pouco mais maleável, quero dizer, ele passou a mostrar
uma parte de si mesmo que raras vezes se fazia presente,
entretanto, eu sabia que aquilo não queria dizer muita coisa.
Ele ser especificamente carinhoso com os bebês não mudava
o fato de ele ser um dos caras mais perigosos que eu conhecia.
— Vamos ver se você vai gostar da sua roupa nova. — Ele
abriu a bolsa, retirando um macacão felpudo.
Por qualquer motivo idiota, meu coração encheu de um bom
sentimento quando vi os desenhos que havia no tecido.
— Caveiras? Sério? — Balancei a cabeça, tentando não rir.
— E ensanguentadas? Lysander!
— Qual o problema? — Ele colocou a fralda nela, depois as
meias. — Ela é a garota do Blood — falou em russo, começando a
vestir o macacão. — Um pouco de sangue falso não tem problema.
Eu até já podia imaginar o caos que seria quando as crianças
estivessem maiores.
— Pronto. — Ele terminou de arrumá-la, entregando-me em
seguida.
A minha pequena estava cheirosa, limpa e sonolenta.
— Obrigado, irmão.
— Leve-a para conhecer a mãe. Em breve, eu iriei encontrá-
los.
— Eu consigo sair daqui sem os papéis da alta? — Franzi o
cenho.
— Não. — Meu irmão fez um movimento de cabeça,
indicando alguma coisa atrás de mim. — Os papéis estão vindo aí.
Não demorou muito para que eu estivesse fora da ala
pediátrica com Baby e uma bolsa de maternidade no ombro. Todas
as pessoas que nos viam, tinham ciência do que haviam acontecido
e elas sorriam com alegria quando passávamos.
Ao meu lado, havia dois seguranças da equipe de Rafael,
mas aquilo era apenas para manter a fachada, pois, dentro do
hospital, vários caçadores da Ordem, da classe de incendiários,
circulavam como pacientes, médicos ou enfermeiras.
Depois do que havia acontecido, os rumores de que os
Demonidhes estavam marcados para morrer começou a se espalhar
dentro da Organização, e eles estavam se movendo também.
Aquilo havia sido ideia de Rafael, apenas quem não o
conhecia era capaz de acreditar em coincidências.
— Senhor, esperaremos aqui. — O líder do grupo de
segurança falou, assim que chegamos no corredor de acesso ao
quarto de Jenny.
Em sua porta, havia mais dois seguranças e três caçadores
pelas proximidades. Quando eu me aproximei da porta, um deles
passou ao meu lado. Era uma mulher pequena, médica da ala de
Trauma.
A mesma que Lysander liderava.
Antes de entrar no quarto, respirei fundo, não sabia o que
esperar daquele encontro. Não havia sido daquela maneira que eu
tinha planejado, na verdade, nada na minha vida seguiu de acordo
ao que eu esperava.
Em alguns momentos foi muito bom; em outros, nem ousava
classificar.
— Vamos conhecer a mamãe, amor? — Baby estava de
touca e dormindo. Mas conversar com ela era um hábito que vinha
desde antes de seu nascimento e que apenas se fortaleceu depois
dele.
Abri a porta, deparando-me com a minha mulher adormecida
exatamente do jeito que eu havia deixado.
Sabia todos os horários de visitas dos médicos. Eu sempre
estava com ela, ouvindo o que eles tinham para me dizer, e
torcendo para que sua recuperação fosse ascendente como a de
nossa filha.
— Beag. — Me aproximei, deixando a bolsa no sofá pequeno
que vinha sendo minha cama. — Alguém veio te ver, meu amor.
Com cuidado, depositei Baby na curva de seu braço e me
afastei um pouco. Daquele jeito, ela parecia apenas adormecida e o
amor que eu senti foi tão forte que meu corpo inteiro estremeceu.
Era a primeira vez que estavam juntas, longe de nossos
planos, dos sonhos que criamos juntos. Com muita dor, lembrei que
ainda havia espaço em nossos braços e aquele vazio jamais seria
preenchido, não importava o que o futuro nos reservasse.
No começo, não encontrei palavras para expressar o que
sentia ao vê-la juntas. Era tudo forte e caótico demais, então,
apenas me sentei na cadeira, pegando a mão da minha mulher.
Tentava transmitir um pouco de calor, talvez, ela pudesse me sentir,
onde quer que estivesse ela saberia que eu estava morrendo de
saudade.
Fechando os olhos, apoiei sua mão em meu rosto, um hábito
que havia se tornado um vício.
— Está difícil de viver sem você. — Fiz carinho em mim
mesmo. — Hoje, a nossa filha vai para casa, e eu queria que
estivéssemos todos juntos. Diga-me, Jenny, quanto mais tempo terei
que esperar?
Não houve respostas, mas eu sabia que esperaria a minha
vida inteira.
Um toque suave na porta alertou para a chegada de visita.
Era Lysander e um dos cardiologistas que acompanhavam Jenny.
— Irmão?
— Oi. — Levantei-me, considerando o quão injusto era o fato
de que ele levaria Baby, quando era para ser eu e Jenny a fazer
aquilo.
— Os novos resultados dos exames de Jenny saíram, o
marcapasso segue com recuperação plena e funcionando muito
bem — o cardiologista falou, indo verificar os dados emitidos pelos
aparelhos conectados à minha mulher. — O coração parece mais
forte hoje. — Suas palavras me fizeram ter esperança.
— Você acha que ela pode acordar?
— Gabriel, o problema não é mais o coração, e sim o que as
duas paradas cardiorrespiratórias podem ter causado ao cérebro.
Ela teve uma hemorragia, você sabe e...
— Você disse que estava tudo bem! — o interrompi,
alterando a voz. — Você mentiu?
— Não, e você sabe disso. — Lysander cruzou os braços. —
Os exames estão bons, mas ela está igual a mãe dela, a gente só
saberá exatamente se não houve sequelas quando ela acordar. Ela
não está com sedação, Gabriel, as atividades cerebrais continuam
as mesmas, mas tampouco ela está reagindo aos estímulos.
— Porra. — Esfreguei os cabelos, andando de um lado para
o outro. — Ela tem melhorado, não é? Não houve nenhuma
decaída, então por quê?
Eu nunca ia entender. Tudo parecia bem, ela estava se
recuperando, os exames apontavam que o quadro foi apenas
evolutivo, então por que ela não acordava e por que eles não tinham
uma explicação que me tranquilizasse?
A sensação que eu tinha era de que havia algo que sempre
ficava por ser dito.
— Irmão, acalme-se, ou vai acordar Baby. — Olhei para a
milha filha, ela havia colocado o dedão na boca e o chupava
enquanto dormia com sua mãe. — Ouça, Jenny pode acordar e não
ter absolutamente nenhuma sequela, ou ela pode acordar e ter.
Você estava ciente de...
— Eu só quero que ela acorde, nada mais — murmurei,
voltando para o meu lugar ao seu lado. — Não importa, eu só quero
que ela acorde, para que possa conhecer a filha linda que me deu.
— Irmão, ela vai acordar. — Lysander apertou meu ombro,
ele estava prestes a dizer algo quando seu telefone tocou. Ele
atendeu às pressas. — Rafael? — Os olhos do meu irmão foram
para o cardiologista e ele fez um gesto com a cabeça. — Saia.
Quando a porta fechou, Lysander colocou o celular no viva-
voz.
— O que foi? — eu questionei.
— Gabriel está ouvindo também.
— A mãe de Jenny acordou. — Rafael foi direto como um
tiro. — E ela perguntou pela filha e por você, Gabriel.
— Por mim? — Não pude disfarçar a surpresa.
Por que ela perguntaria por mim? Olhei para Jenny,
imaginando se teria dito algo sobre mim para sua mãe.
— Ela estava confusa, perguntando por Jenny e pelo viking
ruivo, só pode ser você. — Esfreguei a nuca, finalmente
compreendendo. — Heylel e eu explicamos algumas coisas, na
medida do possível. Ela está fraca, mas vai se recuperar.
— Estou indo para casa, Heylel já começou a bateria de
exames? — Lysander perguntou.
— Sim. Agora venha, estamos prontos para receber Baby.
Lysander desligou a chamada, seus olhos prenderam-se em
Jenny por alguns instantes, depois voltaram-se para mim.
— Clinicamente falando, a mãe dela estava pior. — As
palavras do meu irmão foram um tanto alentadoras. — Apenas
tenhamos paciência, Gabriel, e tudo se resolverá. Agora eu preciso
ir. — Ele apontou o armário. — O capacete está ali dentro, a
chave... — Ele a retirou do bolso, me entregando. — Até breve.
Ele se moveu para pegar Baby, e eu fiquei à sua frente.
— Hoje não.
— Como pretende alimentá-la? — Suas palavras foram um
murro. Era injusto com a minha filha mantê-la ali quando poderia ir
para casa. — Gabriel, irmão, apenas organize as ideias, sem
desespero. As coisas estão se ajeitando.
— Não sei. — Respirei fundo, pegando Baby. Fechando os
olhos, passei o nariz pela touca, absorvendo aquele cheiro de bebê
tão delicioso. — Amanhã eu vou te ver, não deixe que os seus tios a
levem para o mau caminho, e não aceite Draikov, faça-o ficar
conosco por mais um tempo.
— A título de informação, Mikhail também não é o maior fã do
nosso irmão mais velho. — Pude notar a satisfação de Lysander. —
Agora eu preciso ir, está esfriando.
Balancei a cabeça, afastando-me do meu irmão.
— Ela vai dormir com quem? — murmurei, com o coração
doendo por ter que deixá-la.
— Comigo.
— Mas você está saindo do plantão. Está cansado demais.
— Eu pareço cansado?
Não, não parecia. Na verdade, Lysander possuía a energia
de um reator nuclear. Era incansável quando tinha um propósito, ele
estava com um muito importante.
— Dez minutos, irmão. Só mais dez minutos.
— Pensa, bastardo, quem dormiria com Baby? Nós! — Eu
acenei, porque era o nosso acordo. Eu dormia com Jenny desde
que ela havia ido para o quarto. Isso aconteceu cerca de uma
semana após a minha primeira visita. — Então, você vai amanhã em
casa, passa o dia com ela, e volta para dormir aqui. A diferença é
apenas o espaço que percorrerá. Nada demais.
Okay, ele estava certo. Mas ainda assim não foi mais fácil
deixá-la ir.
— Vem comigo, bambina — Lysander provocou, pegando
Baby e a ajustando com maestria na curva de seu braço. — Até
amanhã, irmão.
Acenei, observando-o partir levando uma parte do meu
coração.
Sentindo-me estranho com as novas mudanças, eu olhei para
Jenny, não acreditando quando eu vi um sorriso delicado em seus
lábios.
— Amor... — Peguei sua mão, esperando que ela abrisse os
olhos para mim. — Jenny? Estou aqui, amor, estou aqui. — Beijei
seus dedos, dividido entre chamar alguém e ser a primeira pessoa
que ela veria quando acordasse.
Mas, os segundos se transformaram em minutos, e a única
coisa que aconteceu foi aquele pequeno sorriso, nada mais.
Deus, com quem ela sonhava para que sorrisse daquele jeito
tão lindo? Desamparado, larguei-me no sofá.
— Seu sorriso está longe do meu alcance, Beag. — Balancei
a cabeça, pendendo-a entre as mãos.
Eu estava sozinho.
De novo.
68
Dezembro de 2018
Início do inverno
Gabriel Demonidhes

Observando Grace, a fisioterapeuta fazendo os exercícios da


minha mulher, eu a considerei gentil o suficiente para que não fosse
necessário pedir uma substituição. Eu gostava do modo como ela
fazia cada parte do processo, conversando com Jenny como se ela
pudesse ouvir e até mesmo concordar.
Quando a questionei o porquê daquilo, ela me disse que se
tratava de respeito para com o paciente, e sua condição de
vulnerabilidade.
Porra, eu gostei do seu método de trabalho, do modo como
dava seguimento as atividades de um paciente no estado da minha
mulher.
— Só mais uma elevação. — Ela movimentou a perna direita
de Jenny, tendo cuidado com as sondas. — Não vou deixar que
tenha ainda mais perda muscular, amanhã farei uma sessão de
quiropraxia visando as articulações. Quando a senhora acordar, vai
sentir menos desconfortos.
— Obrigado por isso. — Grace sorriu, com toda sua atenção
voltada para a minha mulher.
— Eu tive medo de dizer antes e acabar não tendo permissão
de participar da equipe multidisciplinar, mas sou fã de Jenny —
revelou, terminando o alongamento, e repousando cuidadosamente
a perna dela no lugar. — Eu a acompanho desde o início, estava
muito empolgada com a possibilidade de ela estar numa gravadora.
— Houve problemas.
— Verdade — concordou, dando início ao alongamento dos
pés.
Aquela era uma das poucas pessoas da equipe
multidisciplinar que havia ganhado a minha confiança. Ela era
jovem, e foi selecionada por Lysander para fazer parte, então, ele
deve ter visto algo nela que o fez escolher, visto que meu irmão era
um bastardo metódico e filho da puta quando se tratava da saúde
dos Demonidhes.
— Talvez ela volte a cantar. — Olhei para Jenny. — Eu quero
que ela volte, mas eu deixo isso para que ela decida. Eu só vou dar
meu apoio total para o que escolher.
Pude perceber que estava um pouco emocionada.
— Eu sinto que Jenny tem um futuro brilhante e muito feliz.
Ela vai sair daqui e vai conquistar tudo que merece. Eu acredito e
peço a Deus todos os dias em minhas orações.
Ela deve ter percebido meu ceticismo, eu não acreditava em
Deus, mencioná-Lo era apenas força do hábito e questão de frases
feitas. Não por acreditar.
— Bom, às vezes são os mais céticos que têm os encontros
mais verdadeiros com Ele. — Havia algo brilhante ao redor daquela
garota, quero dizer, ela era sempre tão otimista.
Talvez, eu houvesse encontrado algo que a tornava irritante.
— Eu perdi um filho, Grace. — Cruzei os braços, geralmente
não falava muito com os profissionais que iam e vinham, mas,
naquele momento, especificamente, eu não pude evitar. — Eu
acredito que alguém com poder para evitar algo do tipo, não
permitiria que isso acontecesse.
— Você já foi na ala pediátrica, Sr. Demonidhes?
— Sim, eu vivi lá por um mês inteiro.
Ela sorriu, concordando. Algo que havia reparado, Grace
sempre vivia de bom humor.
E já começava a irritar-me.
De repente, ela não estava tão distante do grupo de
profissionais que me tiravam do sério.
— Eu me refiro a Oncologia, Doenças raras ou unidade de
queimados.
Neguei.
Mesmo sendo um bombeiro há quase doze anos, eu nunca
visitei uma unidade de queimados. Nem aqui, tampouco na Rússia.
Eu sabia muito bem o que o fogo poderia causar a uma pessoa.
Eu era especialista naquilo.
— Você sabia que o Dr. Demonidhes teve a brilhante ideia de
separar o bloco adulto e o infantil? — Acenei. — Bem, é que as
crianças, mesmo passando por coisas ruins, elas nunca perdem a
esperança, ou o sorriso. Elas acreditam até os últimos instantes que
tudo vai ficar bem, e é essa fé que parece amenizar um pouco do
sofrimento.
— Você terminou?
— Perdoe-me se me excedi. Eu terminei. — Ela ajustou os
pés de Jenny, então voltou a posicionar a cama na posição cem por
cento horizontal — Ela precisa mudar a posição com mais
frequência, a partir de agora.
— Eu farei.
Era meu trabalho mudar a posição dela a cada poucas horas
para evitar feridas nas áreas de pressão. Lysander me mostrou
como eu deveria banhar o corpo dela, eu fazia isso e todo o resto
também.
Jenny era minha para cuidar e eu não ia vacilar em nenhum
instante sequer.
— Até amanhã, Sr. Demonidhes. — Ela saiu, e eu voltei
minha atenção para Jenny.
Já havia lhe dado banho mais cedo, estava indo pentear seus
cabelos quando a fisioterapeuta chegou, agora poderia concluir o
serviço.
Na bolsa com nossos itens de cuidados pessoais, eu peguei
a escova e um pequeno elástico.
Cuidadoso, virei a cabeça de Jenny para o lado, a intenção
era deixar seus cabelos voltados para mim.
— Eu amo seu cabelo longo assim. — Sentei-me na cadeira,
começando a escovar. Não havia muitos nós, eu tive o cuidado de
sempre mantê-los desembaraçados. — Amanhã eu vou lavá-los,
Heylel trouxe o seu xampu preferido.
Os cabelos de Jenny davam três voltas na minha mão, a
franja já ia na altura das maçãs do rosto. Eu estava com uma
saudade do caralho de vê-la fazendo aquele coque frouxo no topo
da cabeça.
Na verdade, eu sentia falta de cada parte dela. Do sorriso, do
jeito que empurrava a franja dos olhos.
— Sinto sua falta, Beag — murmurei, dividindo as mechas,
para que pudesse trançá-los. — Sinto muito a sua falta.
Quando estava terminando a trança, alguém bateu na porta.
Pelo horário, deveria ser um dos meus irmãos.
— Bom dia, como vai a nossa esposa? — Razhiel entrou,
carregando um vaso repleto de flores.
— Meu pau, seu bastardo. — Prendi o elástico, levantei-me
da cadeira. — Como Baby passou a noite?
— Muito bem. — Sorriu, colocando as flores no móvel de
apoio. — Houve uma pequena confusão, porque Heylel queria
dormir com ela, mas Lysander não permitiu. No final das contas,
Rafael precisou interferir e quem ficou com ela foi ele.
— Deus, eles enlouqueceram?
— Provavelmente. — Meu irmão deu de ombros. — Mikhail
foi sequestrado por Heylel hoje de manhã. Nós o encontramos na
biblioteca, lendo Guerra e Paz para o garoto.
— Isso é bizarro.
— Bizarro foi Lysander dizer que ia tirar a semana de folga
para cuidar de Baby. — Razhiel pareceu-me divertido. — Ele
inclusive comprou grades, e instalou na cama dele. Ele disse que
ser pai é interessante. — Meu irmão sondou-me, se aproximando
mais um pouco. — Você sabia que a mãe de Jenny é mais nova que
Rafael?
Puta que pariu.
— É uma piada? — A notícia me deixou um tanto
desconfortável, porque eu era apenas cinco anos mais novo que
Rafael. — Quanto é essa diferença?
— Pouco, irmão. — Razhiel deu uma risada, o bastardo
estava se divertindo. — Menos de um ano. Em todo caso isso não
importa realmente. — Ele se aproximou da cama, por um momento
observou Jenny e o seu semblante mudou. — A vida delas foi um
inferno, Gabriel. Um inferno no mais literal sentido da palavra, mas
você acredita que ao conversar com a mãe da sua mulher, o que eu
senti foi que havia apenas gratidão e ela não quer saber do
passado, quer somente recomeçar.
— Posso imaginar.
— Fui eu quem a encontrou, inconsciente numa poça do
próprio sangue. Quando soube que fui eu quem a tirou de lá, ela me
abraçou. — Razhiel franziu o cenho. — Ela chorou enquanto me
agradecia por não ter sido deixada para trás. Podia imaginar o quão
ruim deve ter sido, afinal todos os irmãos Demonidhes foram
arrancados do inferno. — Ele balançou a cabeça. — Vamos deixar a
parte emocional de lado, eu vim para ficar com Jenny enquanto
você vai para casa. — Meu irmão afastou a franja do rosto dela. —
Rafael não pôde vir, Mikhail amanheceu choroso, irritadiço.
— Ele está bem?
— Sim, são reações por causa da vacina. — Observei
Razhiel pegando a mão de Jenny. — Eu vou precisar fazer algo?
— Sim. — Tendo muito cuidado por causa das sondas, eu
mudei a posição da minha mulher, deixando-a de lado, Razhiel
estava atento. — Ela precisa mudar, para evitar feridas. — Mostrei o
quadril, um pouco avermelhado. — Pegue aquele hidratante ali.
— Deixe que eu passo. — Razhiel lavou as mãos, depois
passou o hidratante nas costas de Jenny. — Ela precisa mudar a
cada duas horas, certo?
— A fisioterapeuta disse que precisa ser com mais
frequência, talvez a cada uma hora e meia.
— Okay, pode ir, eu assumo daqui.
— Você sabe o que fazer, não é? Sem dúvidas? — A
pergunta foi mais pela força do hábito, todos os dias era a mesma
coisa, só que antes Baby estava no hospital, agora eu ia demorar
mais tempo para voltar.
— Eu sei — meu irmão respondeu com seriedade. — Eu sei
exatamente o que fazer, o cuidado com as sondas, com a
intravenosa, lembrar de tirar o cabelo de baixo, e apertar o botão
vermelho se algo der errado. Eu sei, irmão, sossegue.
— Tudo bem, obrigado. — Voltei para perto dela. Curvando-
me, beijei seu rosto, falando baixinho: — Eu vou ver a nossa filha,
mas você não vai ficar sozinha, Razhiel está aqui, eu confio nele
com a minha vida, então pode confiar também. — Esfreguei o nariz
gentilmente por sua bochecha. — Se você acordar e eu não estiver
aqui, perdoe-me, mas lembre-se, eu te amo, Beag.
Antes de me afastar, acariciei seu cabelo. Não me importava
de demonstrar o quanto a amava, Jenny tinha mesmo que saber o
quanto era esperada, querida, desejada.
— Gabriel, Lysander deixou a sua moto na vaga dele. —
Assim que eu peguei o capacete no armário, meu irmão me avisou.
— E outra coisa, aquela mulher está tentando contato com todos
nós. Não contamos antes porque você não estava saindo daqui,
mas agora que vai, certamente irá encontrá-la.
— Você acha que ela não tentou se aproximar de mim? — ri
sem humor. — Ela tentou, e vai continuar tentando. Aquela viciada
não tem nada melhor para fazer.
Sério demais, Razhiel se aproximou de mim.
— Você quer que ela desapareça? — indagou sem
preâmbulos, e eu neguei.
— Não quero que se sujem com aquela escória. Ela não
merece a bala que você usaria.
— Tem certeza? — Um pequeno sorriso curvou o canto de
sua boca.
Enganava-se quem acreditava que Razhiel era o menos
perigoso e ponderado.
Nenhum de nós era.
— Eu tenho.
— Tudo bem, depois não diga que eu não tentei.
— Cuide da minha mulher...
— Eu pensei que fosse nossa. — Seu sorriso aumentou.
— Razhiel!
— Tudo bem. — Ele ergueu as mãos. — Estou apenas
brincando, você sabe, eu sou ciumento demais para dividir o que é
meu.
— Você é louco.
— E todos nós não somos?
Sim, nós éramos.
Com a certeza de que a minha mulher estaria bem, eu saí do
hospital e como Razhiel havia dito, aquela mulher estava por ali,
esperando a oportunidade.
Antes que ela pudesse me notar, eu coloquei o capacete,
caminhando apressadamente em direção a minha moto.
Mais cedo, havia dispensado os seguranças que me
acompanhavam ao berçário, agora já não necessitava mais deles.
Os outros, continuavam guardando a porta do quarto de Jenny.
E ali, era inacessível para a desgraçada que me colocou no
mundo.
— Regan? — Ela se aproximou assim que me sentei na
moto. — Regan?
Não me importei em responder, aquele nome já não era o
meu. Sequer, fora ela quem o escolheu.
— Gabriel? — Fechei os olhos, odiando meu nome nos lábios
daquela mulher.
Era uma blasfêmia, não porque fosse meu nome, mas sim,
porque ouvi-la me chamando, fazia com que eu me lembrasse do
meu pai e do orgulho com que ele o proferiu pela primeira vez
quando trouxe o papel da adoção.
— Gabriel Demonidhes, meu filho.
Eu ainda podia lembrar da sensação de ter sido escolhido, do
que era ter a proteção de um lar. Eu tinha quinze anos, mas era
como se fosse uma criança muito menor.
— Gabriel, filho? — Ela surgiu na minha frente, eu liguei a
moto, tentando sair. — Graças a Deus, finalmente. — Eu podia notar
o alívio em sua voz, ver o quanto estava desesperada por aquele
encontro. — Estou tentando te ver faz semanas, e...
— Eu sei. — Retirei o capacete. — Eu sei que tem procurado
a mim e aos meus irmãos, inutilmente devo salientar.
— Preciso conversar com você, é urgente. — Lambeu os
lábios. Prestando um pouco mais de atenção, ela pareceu-me estar
passando pela fase ruim da abstinência.
Suas roupas elegantes estavam com pequenas manchas de
sujeira, os cabelos desalinhados, e a maquiagem pareceu-me
estranha demais como se fosse feita por cima de uma mais antiga.
Ela era a imagem de uma viciada que tentava passar a
imagem de boa aparência.
— Soube que teve uma filha, posso conhecer a minha neta?
— Não. — Estreitei os olhos, descreditando de tamanha
ousadia. — Você não vai chegar perto da minha filha. Era só isso?
— Estava prestes a sair quando suas palavras me fizeram congelar.
— Eu fui buscar você. Eu voltei lá, filho.
Eu a encarei seriamente.
— Quando você foi me buscar?
Ela lambeu os lábios outra vez, pedaços de pele e batom
estavam se soltando. Ela olhou ao redor, então, tentou contar uma,
duas vezes, sem sucesso.
— Quantos anos depois que você me deixou naquele
matadouro? — Inclinei a cabeça, ela respirou fundo.
— Eu voltei lá com... — Ela olhou para o céu, então deu dois
tapas cabeça. — Dezesseis, não, dezessete. Eu voltei lá para te
buscar quando você tinha dezessete anos, mas eu só encontrei
Killian. Eu voltei por você filho.
— Com dois anos de atraso — respondi, não escondendo o
nojo que eu sentia dela. — Seguindo a sua lógica patética, eu
estaria morto há cerca de dois anos se os planos de Viggo dessem
certo. — Dei de ombros. — Reze para que seu filho morto a ajude,
porque eu não sou o que procura.
Quando tentei sair com a moto, ela agarrou o guidão, se
colocando na frente.
— Sr. Demonidhes, algum problema? — Um dos seguranças
se aproximou, certamente enviado por Razhiel.
— Nada que mereça atenção. — Acelerei o motor de partida,
deixando claro que, se ela não saísse da frente, eu a tiraria.
— Você não pode fazer isso comigo. — Seu tom aumentou.
Era pura sorte que não tivesse ninguém da mídia no
estacionamento, porque, desde o acontecido, sempre havia alguém
em busca de informações sobre Jenny e Baby. — Preciso de
dinheiro. Você tem que me ajudar, eu sou sua mãe.
— Não, você não é. — Acelerei outra vez, a moto deu um
tranco para frente. — O que foi? O seu cafetão perdeu a cabeça? —
Ela empalideceu. — Sim, é isso mesmo que está pensando, e
agradeça por não ter enfeitado a estaca ao lado da dele, agora saia
da porra da minha frente ou eu passarei por cima.
— Eu preciso muito da sua ajuda. Muito mesmo.
Não sentia absolutamente nada com suas palavras. Aquela
mulher era uma estranha, eu não me importava se ela se jogasse na
frente de um trem e tivessem que recolher seus restos com uma pá.
— Você é meu filho, eu te coloquei no mundo, se não fosse
por mim... — Ela tentou desligar a moto, naquele momento o
segurança se aproximou, tirando-a de perto de mim.
Eu não respondi as suas palavras, embora eu devesse.
Preferi seguir meu caminho deixando-a para trás, exatamente como
havia feito comigo. E não, eu não dediquei um único pensamento a
mais para aquela desconhecida.
Ela não merecia, era ninguém, que se fodesse longe de mim.
Não demorou muito para que eu chegasse em casa. A
primeira coisa que avistei foram os cachorros, estavam em
treinamento no jardim, e pareciam um miniexército obediente.
— Senhor Demonidhes, bem-vindo de volta. — Kade, filho
mais velho de Boris, se aproximou. — Kang está em formação, ele
ganhou seis quilos nas últimas semanas, e a agitação está mais
controlada.
— Obrigado. — Kang estava sentado, virado para o outro
lado. — Antes de sair, eu irei passar um momento com ele.
— Será ótimo para ele, senhor, e para manter os laços
afetivos. — Concordei, deixando a moto e o capacete na entrada da
casa.
Foi estranho voltar depois de tanto tempo, ainda mais
sozinho.
Não sabia exatamente o que esperava encontrar, no mínimo
uma casa decorada para o Natal, mas não. Tudo estava exatamente
como antes.
Por um momento não soube por onde começar a procurar,
mas eu sabia que Rafael havia ordenado que todos fossem para o
Complexo.
— Bom dia, Sr. Demonidhes. — Boris apareceu na entrada.
— Baby está na saleta.
Claro que ele saberia por que eu estava ali.
— Obrigado. — Apressei-me em direção a menor sala da
casa. Era lá que Amira montava a árvore de Natal e que
mantínhamos o bar.
Assim que eu cheguei, avistei uma mulher de costas, sentada
numa cadeira de rodas. Por um momento, meu coração acelerou,
pois era como se eu estivesse diante da minha Jenny.
Engolindo em seco, eu me aproximei. Notando que não
estava mais sozinha, ela olhou para o lado.
— Quem é? — Deus, a voz dela era tão parecida, só que a
de Jenny era muito mais bonita, suave, apaixonante.
Pigarreei, para que ela não se assustasse com minha
proximidade.
— Sou Gabriel. — Ela não disse nada, tampouco eu.
Estávamos nos avaliando mutuamente. Ela com certeza
estava me amaldiçoando, sabia que iria me afastar de Jenny, afinal,
parte da culpa do que aconteceu era minha.
— Eu sou a senhora Grenadine. — Sorriu, um lado de seu
rosto mantendo-se imóvel. — Seu irmão disse que eu precisava
refazer os documentos, então eu mudei meu segundo nome.
— Fez bem. — Acenei, puxando uma cadeira e sentando-me
de frente para ela, queria resolver as coisas de uma vez, deixando
claro que jamais desistiria da minha mulher.
— Você é o amor da minha filha, sabia?
Julgando não ter ouvido direito, eu estranhei o fato dela
parecer tão cordial.
Seria algum truque?
— O que foi? — Franziu o cenho, a preocupação
transparecendo no semblante. — Eu disse algo errado?
— Não, apenas inesperado. Você sabe o que aconteceu,
deve me culpar...
— Por que o culparia? Você salvou a vida da minha filha, deu
a esperança que ela precisava para suportar o pior. — Não ser
julgado me deixou confuso. — Ela havia desistido, você sabe? —
Acenei, Jenny havia me contado. — Quando ela te viu na televisão,
o semblante mudou, eu vi a minha filha renascer diante dos meus
olhos. — Ela estendeu a mão, eu aceitei. — Eu sei como tudo
começou, ela escolheu você.
Ela me escolheu.
Jenny foi a segunda pessoa que me escolheu sem se
importar com quem eu era. Mas sem saber havia me salvado
quando insistiu para que a escolhesse também.
Ali, eu me tornei o homem dela.
— Você me deu uma neta linda. — Sua voz embargou. — Ela
estava aqui agora mesmo, seu irmão Lysander a levou quando
percebeu que estava chegando.
— Acho que ele está fugindo com a minha filha — brinquei,
estranhando aquele encontro. Não sabia como manter um diálogo
que não parecesse estranho, então, talvez, ficar pela zona segura
fosse melhor. — Como se sente?
Ela balançou a mão, demonstrando que estava mais ou
menos.
— O pior é a fraqueza, eu queria ter ido ver Jenny, mas o seu
irmão não deixou — ela suspirou. — Ele é bem mandão.
— De qual irmão está falando? Lysander?
— Não, o gigante de olhos coloridos. — Ela sorriu. — Ele é
um médico muito exigente.
— Você teve sorte, Lysander é pior. — Balancei a cabeça,
aliviado pela mãe de Jenny não ser uma megera filha da puta.
— Falando de mim, irmãozinho?
— Falando no diabo... — Levantei-me, estendendo os braços
para pegar Baby.
— Você veio da rua, vai tomar um banho.
— Foda-se, me entregue ela. — Eu não ia ficar nem um
minuto a mais longe da minha pequena.
— Lave as mãos ao menos.
A mãe de Jenny pareceu se divertir com meu embate com
Lysander. Antes que o bastardo me negasse outra vez, eu fui ao
lavabo que havia ali, e lavei as mãos, depois voltei, ansioso e
prestes a socar na cara dele suas recomendações.
— Você quer ir com ele, bambina? Só dizer que sim.
Baby agitou os bracinhos e as pernas, estava com um
macacão verde, na frente havia uma caveira rosa. Não era possível,
certamente Lysander havia mandado fazer aquelas roupas, os
desenhos eram específicos demais.
— Lysander! — Fui até ele e o bastardo deu um passo atrás.
— Cara, eu vou...
Ele me deixou pegar Baby, no final das contas eu percebi que
ele estava me torturando, porque era seu jeito psicopata de ser.
Mas então, tudo deixou de ter importância, segurar minha
filha foi como receber uma dose alta de ocitocina direto na veia. Eu
precisei me sentar para que pudesse absorver aquela sensação
ímpar de felicidade instantânea.
O cheiro dela me envolveu, o mundo deixou de existir por
alguns míseros instantes.
— Que saudade de você, meu amor — murmurei, inebriado
pelo tamanho do sentimento que eu tinha por aquela menina.
— Eu não achava que pessoalmente você fosse tão ruivo, eu
te vi pela televisão uma vez — a mãe de Jenny falou, e eu a olhei..
— Minha filha disse que você era o viking dela. Eu acho que a
minha neta terá cabelos de fogo — brincou, em tom amistoso. —
Vocês são lindos juntos.
— Obrigado.
— Eu vou levá-la para o seu quarto — Lysander anunciou. —
Você precisa descansar.
— Hum, quando eu poderei ver a minha filha?
— Quando eu disser que está pronta.
— Eu estou pronta.
Lysander não disse nada, ele apenas estreitou os olhos e ela
não conseguiu sustentar a encarada.
Nem um pouco surpreso, a observei baixando a cabeça.
— Muito bem, agora vamos. — Meu irmão guiou a cadeira de
rodas, antes de sair ele parou olhando para mim. — Baby deve
comer em meia hora, eu já deixei a mamadeira pronta, está no meu
quarto, ao lado do berço dela.
Sozinho, olhei para a minha filha, dizendo:
— A única garota que ele ama é você. — Ela me olhou como
se compactuasse com o que eu dizia. — Grande feito, amor. Você
quebrou o coração de pedra do seu tio.
Baby e Mikhail haviam mudado tudo.

***

Depois de algumas horas de maratona que incluíam


alimentação, tempo de repouso, banho e muitas tentativas de fazê-
la tirar um cochilo, Baby havia se dado por vencida e eu, apesar de
querer ficar com ela, precisava voltar para Jenny.
Eu sabia que não havia criança mais segura que ela e
Mikhail, que estavam sobre a vigilância constante de pelo menos
três Demonidhes, mas era eu quem deveria estar cuidando dela.
— Você vai ficar com ela hoje também, Lysander? — Meu
irmão estava na cama, de pijama, às três da tarde, lendo alguma
coisa sobre desenvolvimento infantil. — Heylel disse que era o dia
dele.
— Ele pode dizer o que quiser. — Meu irmão olhou para a
sobrinha, dormindo tranquilamente ao seu lado. — E sim ela vai
ficar, eu não tirei a semana de folga para ficar perambulando pelo
Complexo sem ter o que fazer.
— Você realmente está apaixonado por ela.
— Claro, ela é a única filha que terei. — Ele retirou os óculos
de leitura. — Ela e Mikhail são meus, e os futuros filhos de vocês
também serão. — Concordei, eu tinha o mesmo pensamento. Os
filhos de Rafael também seriam meus.
— Sabe, eu pensava...
—Não perca seu tempo, eu não vou cair como você caiu. —
Ele cruzou os braços, muito confortável em seus domínios. — Eu
sempre tenho a garantia de que as coisas saiam como eu planejo,
então, irmãozinho, eu terei filhos quando você e nossos outros
irmãos o tiverem.
— Okay, eu desisto de você. — Ergui as mãos, esticando-me
sobre a cama para fazer um carinho na minha pequena. — Ela é
linda demais, que porra.
— Puxou a mim.
— Sei. — Balançando a cabeça, eu fui embora.
Era isso ou ficar protelando até não poder mais.
Preferi não me despedir de Rafael ou de Amira, eles
permaneciam reclusos no quarto, porque Mikhail estava com febre,
e eu não queria atrapalhar.
Antes de voltar para o hospital, havia outro lugar que
precisava ir, eu peguei Kang, e o coloquei no banco carona do meu
carro.
Depois, fui para o lago.
Quando cheguei, não foi uma onda de tristeza que me
invadiu, mas sim de saudade. Conviver com Baby me fazia sentir
falta de estar fazendo as mesmas coisas por Constantino, ele
também seria um bebê pequeno, prematuro. Eu e meus irmãos o
cuidaríamos com todo gentileza que nunca imaginei que
pudéssemos ter.
Éramos assassinos sanguinários, cruéis por prazer, mas que,
com a chegada daquelas crianças, tivemos que nos readaptar.
E o fizemos bem.
— Oi, filho. — Sorri, com o peito cheio de amor por aquela
criança que não teve a chance de ter uma vida ao conosco.
Kang ganiu, deitando-se ao lado da lápide como se estivesse
acostumado a fazer aquilo.
— Eu quero te dizer que sua irmã está bem, ela já veio para
casa. — Baixei ali, admirando a raposinha de macacão azul que
seria dele. Tinha quase certeza de que havia sido Razhiel o
responsável por deixá-la ali.
Não só isso, mas também havia um trenzinho de madeira, e
uma meia de Papai Noel pequena pendurada por uma fita de cetim
vermelha.
— Sua tia Amira, ela gosta de comemorar datas importantes.
— Limpei os olhos, considerando o quanto aquele monólogo era
ridículo.
Por um tempo eu apenas fiquei ali em silêncio, sentindo
saudade de todas as memórias que poderíamos ter juntos e que
seriam vividas por Baby e Mikhail. Mas, sempre haveria espaço de
alguém que faltava e que jamais seria preenchido.
Eu sabia daquilo e todos os meus irmãos também sabiam.
Era tão absurdo o desejo que eu sentia de ter meu filho
comigo, que as atitudes da mulher que me colocou no mundo se
tornavam ainda mais repugnantes. Ela me deixou para morrer,
sabendo que aquele era o meu futuro.
Não traga a vadia para esse lugar! Recriminando-me, eu a
empurrei para o fundo da minha mente, trancando a porta e
deixando-a lá.
Aliás, aquele era o lugar de onde nunca deveria ter saído, eu
não iria dedicar nenhum pensamento à viciada de merda outra vez.
Todo os anos que esperei inutilmente por ela, que desejei ser
salvo já bastavam.
Ela me riscou de sua vida quando não passava de uma
criança, então, agora eu estava apenas retribuindo o favor.
Assunto encerrado.
— Preciso ir. — Levantei-me, estalando o dedo para que
Kang viesse. — Amanhã eu volto para te ver.
Eu não parei para conversar com mais ninguém, somente
tomei um banho e já voltei correndo para o hospital.
Quando cheguei, encontrei Razhiel ao lado de Jenny, ele
estava esfregando a mão dela.
— O que aconteceu? — Meu coração acelerou, eu larguei o
capacete no chão, me aproximando.
— Nada, mas está fria demais, estou esquentando. — Meu
irmão se afastou, permitindo que eu tomasse seu lugar. — Beag,
sentiu a minha falta?
Quando ia colocar sua mão em meu rosto, notei um
estremecimento.
Deus...
Nem ousei respirar, enquanto a esperança crescia
enlouquecidamente.
— Jenny? Pode me ouvir? — murmurei, lutando para não
surtar. — Sou eu, Gabriel. — Senti sua mão apertando a minha bem
de leve. — Razhiel, liga para Lysander e mande-o vir agora!
Aquele delicado sorriso se desenhou em seus lábios outra e
o aperto ganhou mais força. Pude notar que tentava falar algo,
então suavemente eu ouvi o nome de nosso filho escapar de seus
lábios.
— Constantino... — Ouvir o som de sua voz quase me deixou
de joelhos.
Eu estive esperando aquele momento por tanto tempo que
parecia uma vida. A sensação que tinha era de que meu coração
estava prestes a explodir no peito.
— Jenny, volte para mim — implorei, rezando, para que ela
pudesse ouvir.
Seus olhos tremeram, quase me matando.
Graças a Deus estava acontecendo.
A minha mulher finalmente estava voltando para mim.
69
Jenny Monroe

O mar e o céu mesclavam-se como se alguém houvesse


apagado a linha do horizonte. Uma brisa suave, balançava meu
cabelo com delicadeza, enquanto o sol que deveria queimar minha
pele, apenas esquentava gostosamente.
Naquele lugar, o cheiro de maresia não parecia tão ruim, era
como se as minúsculas partículas de sal adicionassem o tempero
certo ao cenário paradisíaco e irresistível.
Eu não sairia dali nunca mais.
A paz que me inundava, a sensação de que estava no lugar
certo eram tão fortes que não questionava por que a minha mente
continuava em branco.
Não havia nada. Ou talvez, não tivesse nada para lembrar.
Eu deveria apenas sentir, e era a melhor coisa do mundo.
— Oi. — Uma voz doce e infantil me abordou. ao meu lado,
avistei um menininho de cabelos castanhos e belíssimos olhos
verdes.
Verdes como os olhos de... De quem?
Não lembrava o bastante para dar sentido àquela frase, ou
melhor, ao pensamento intruso.
— Olá. — Olhei ao redor, não havia mais ninguém, era
apenas eu e aquele menino lindo que era pequeno demais para
estar sozinho ali.
— Onde estão os seus pais? — perguntei sentando-me o
mais ereta possível. — Você está perdido?
— Não, eu não estou perdido. — Ele sorriu e eu percebi que
faltava um dente em sua boca.
Deus, ele era muito lindo e estranhamente familiar.
— Então, você está aqui sozinho?
— Não, estou com você. — Ele apontou o chão ao meu lado.
— Posso me sentar aqui?
— Pode sim. — Continuei olhando ao redor.
Não é possível que seus pais o tenham deixado sozinho.
— Não se preocupe. — Ele sorriu de novo, e eu juro que era
quase como se eu pudesse ver outra pessoa, um homem, sorrindo
igual a ele.
Que loucura.
— Você sabia que é perigoso falar com estranhos? — Tentei
soar como se fosse uma reprimenda, mas ele continuava sorrindo,
despreocupado.
— Você não é estranha.
— Eu sou sim. — Arqueei a sobrancelha, cruzando os
braços.
— Não, você não é.
Não soube o que dizer, pois o jeito dele era tão calmo e
tranquilo, que me lembrava aqueles senhores de idade que já
tinham vivido tanto que nada poderia abalá-los.
Como era possível que uma criança daquele tamanho
pudesse parecer tão adulto?
— Meu pai está muito triste. — Ele olhou para o mar à nossa
frente. — Ele tem chorado todos os dias e sabe o que é mais
engraçado? — neguei. — Ele pensava que não era capaz de chorar.
Engoli em seco, por alguma razão, sentia-me dolorida porque
eu podia notar que aquele garotinho estava triste também, mesmo
que não demonstrasse.
— Sinto muito, mas eu acredito que as coisas vão se
resolver. Não se preocupe com isso. — Peguei sua mão, apertando-
a na intenção de confortá-lo. — Os adultos têm problemas, mas eles
conseguem resolvem. Preocupe-se apenas com suas coisas de
criança, tudo bem?
— Não posso, eu não gosto que meu pai esteja tão triste. —
Seu suspiro foi como o de alguém muito cansado. — Ele está feliz
por algumas razões, mas triste por outras.
— Os adultos são assim, querido. É que são muitas
responsabilidades e elas trazem problemas, e os problemas deixam
as pessoas tristes. Mas você vai ver, logo, logo, tudo vai se resolver
e seu pai estará feliz de novo.
— Ele se culpa por coisas que não são culpa dele. — Os
olhos verdes brilharam de emoção. — Ele pensa que eu não sei que
ele me ama, mas eu sei. Ele me ama muito.
— Claro que o seu pai te ama. — Baguncei seus cabelos. —
Tenho certeza de que sua mãe também te ama.
— Ela me ama muito. — Ele me encarou de um jeito tão
diferente, que não poderia deixar de questionar.
Como uma criança parecia ter vivido tanto?
— Bom, claro que ama — pigarreei. — Inclusive ela deve
estar preocupada com você.
— Eu moro aqui.
— E onde seria aqui? — Olhei ao redor outra vez, mas só
havia mar, praia e a sensação de que estava num lugar seguro e
que não precisava me preocupar com mais nada.
— Meu pai está com saudade da minha mãe — ele jogou
assim, do nada.
Minha nossa, por que ele tinha que saber daquelas coisas?
Parecia vivenciar as tristezas de sua família e ele era um bebê
ainda, para coisas daquele tipo.
— Você tem o hábito de ouvir atrás da porta?
— Não.
— Então...
— Eu não podia ficar, sabe? — Ele suspirou, mas o sorriso
manteve-se no lugar. — Era apenas para proteger a minha irmã.
— Você protegeu a sua irmã?
Estufando o peito, demonstrou o quanto estava orgulhoso de
si mesmo.
— Sim, e ela está bem.
Ele era um pequeno herói.
— O que você fez?
— Eu a salvei. — Eu jurava que seu sorriso brilhava mais que
o sol. — Dessa vez, ela terá a chance de ficar com o nosso pai. Ele
estava esperando por ela há muitos anos.
Eu estava encantada com aquele menino. Não tinha outra
palavra para definir o que eu sentia.
O jeito como ele falava aquelas coisas era uma mistura de
inocência com sabedoria e que não fazia o menor sentido.
Na verdade, aquela conversa toda era aleatória, mas, talvez,
ele quisesse desabafar com uma desconhecida que não contaria
aos seus pais.
Acho que era importante para ele estar desabafando.
Inclusive, quem sabe aquela fosse sua interpretação dos problemas
que sua família estava enfrentando.
Não cabia a mim julgar.
— Eu tinha um propósito, apenas isso.
— Tudo bem.
Eu não pretendia questioná-lo se ele sabia o que significava
ter um propósito, por isso ficamos em silêncio encarando o mar
adiante.
O que sabia com certeza naqueles breves instantes ao seu
lado, era de que aquele garoto não era como os outros.
— Você esperava mais? — ele perguntou, e como o decorrer
da nossa conversa já havia deixado claro que ele não agia como
uma criança, eu sequer me surpreendi com sua pergunta.
— Mais do quê?
— Da sua história.
Meu Deus do céu, como é possível?
— Bom, talvez. — Dei de ombros. — Não sei exatamente.
Mesmo que eu tentasse lembrar de algo, eu não conseguia,
era como se não pudesse, e o pior era que antes eu não me
incomodava, mas agora um sentimento de que as coisas estavam
erradas começava a me dominar.
Havia ali uma dor no peito, que no começo parecia somente
um incômodo leve, mas que, aos poucos, ficava mais forte.
— Você não deveria perguntar coisas desse tipo. — Levantei-
me, por mais que eu quisesse continuar conversando, ele estava
começando a me assustar. — Acho que está na hora de você voltar
para casa, seu pai pode estar preocupado.
— Eu só vou voltar quando todos os problemas estiverem
resolvidos. — Ele sorriu, nem um pouco abalado. — Eu sou muito
amado, você sabia? Por isso eu vou voltar. Ninguém pode
preencher meu espaço, ele é apenas meu. Então eu vou voltar para
casa, para o meu pai e para a minha família, eles precisam de mim.
— Você fugiu de casa? — Olhei ao redor outra vez,
certamente alguém estaria procurando por ele.
— Não. — Ele também se levantou, me encarou por alguns
momentos e eu senti que começava a ficar meio tonta, sonolenta
talvez. — Você vai cuidar do meu pai, não vai?
Eu? Apontei para mim mesma, deixando claro a minha total
confusão. De onde ele tirava aquelas coisas?
— Eu não sei quem é seu pai.
— Você o escolheu.
— Eu?
Aquela sensação de dor no peito ficou mais forte. A imagem
de um homem com cabelos que pareciam fogo começava a se
formar dentro da minha cabeça. Quase podia ouvir sua voz dizendo:
você me escolheu.
— Você também foi escolhida por ele.
— Okay, já chega dessa conversa.
Eu ia manter uma distância segura dele até que um de seus
pais aparecesse, mas, quando eu dei a entender que ia me afastar,
ele me abraçou, e eu não pude fazer outra coisa se não retribuir.
— Cuida do meu pai.
Talvez eu só precisasse dizer o que ele desejava ouvir.
Aquele menino amava muito seu pai, eu tinha absoluta certeza.
— Eu vou cuidar do seu pai, tudo bem. — Ele me olhou e
uma emoção louca transbordou do meu peito.
Eu o ergui nos meus braços, abraçando-o apertado. O calor
de seu corpo pequeno me esquentou mais do que o sol, ele me
apertou com seus bracinhos pequenos e eu percebi pequenos
soluços abalando-o.
— Shhh... pequeno, tudo vai ficar bem. — Eu o balancei um
pouco na tentativa de confortá-lo. — Tudo vai ficar bem, eu prometo.
— Eu sei. — Naquele momento, ele agiu como uma criança
de verdade. — Mas é que eu também sinto saudade.
Fechando os olhos, comecei a cantar baixinho. Aos poucos,
ele foi se acalmando, até que parou de chorar e apenas ficou ali,
com a cabeça em meu ombro, sendo embalado pela doce melodia.
Olhando para o mar, permiti que minhas lágrimas
escorressem porque eu senti que estávamos perto de nos
despedirmos para sempre. Ele também percebeu, pois me abraçou
mais forte.
— Eu vou voltar — cochichou. — Eu prometo.
— Eu acredito em você — murmurei, sorrindo enquanto ele
secava meus olhos.
— Não precisa ficar triste. — O sorriso doce me fez chorar
ainda mais.
— Tudo bem, eu prometo que não vou ficar triste. — Ele
acenou e então, para a minha total surpresa, me deu um beijo na
bochecha.
— Eu preciso ir agora.
Eu o coloquei no chão. Sem uma palavra ele começou a se
afastar, e só então eu havia percebido que não sabia seu nome.
— Ei. — Ergui a mão, ele parou, virando-se. — Você não me
disse seu nome.
— Você sabe meu nome. — Deu-me as costas outra vez,
caminhando até que eu não pude mais vê-lo.
Por um tempo eu cogitava a possibilidade de ir à sua procura
para garantir que estava seguro, mas, aquela dor no peito ficou mais
forte. Precisei me sentar para aliviar o desconforto.
Só que estranhamente não parava de pensar no que ele
havia dito.
— Você sabe meu nome.
De repente, foi como se uma lâmpada explodisse na minha
cabeça e eu pude ouvir o som de uma voz masculina.
E por algum motivo, que estava muito além da minha
capacidade de raciocínio e entendimento, eu soube o nome daquele
garotinho especial.
— Constantino... — pronunciei seu nome.
E uma luz forte explodiu nos meus olhos, e tive a sensação
de que minha cabeça estava sendo aberta.
Desabando na areia, não consegui mover o corpo ou pedir
ajuda, e aquele céu muito azul, estava escurecendo.
Meus olhos se fecharam e tudo ficou em silêncio.

***

A sensação de que alguém apertava a minha mão foi a


primeira coisa que pude sentir. Também, havia calor e um perfume
familiar que me dava a sensação de conforto.
Notei, também que algumas coisas me alfinetavam,
deixando-me dolorida em lugares estranhos.
— Jenny, volte para mim. — Havia tanto sentimento naquele
simples pedido que eu me agarrei a ele.
Lutando para que meu corpo obedecesse, retribuí o aperto
em minha mão, mas todo o resto pareceu-me impossível. Era capaz
de sentir dor física, mas não de me mexer como deveria.
Estava presa dentro do meu corpo.
— Jenny, amor, por favor. — Um beijo suave em meus lábios
fortaleceu-me, eu me esforcei mais, estava quase lá. — Isso, abra
os olhos para mim.
Aos poucos eu consegui, mas imagem do homem diante de
mim estava embaçada. Precisei piscar algumas vezes, para que
finalmente pudesse focar nele.
A primeira coisa que eu percebi foram os belíssimos olhos
verdes familiares. Pareciam com os de alguém que eu não
conseguia lembrar.
— Beag. — Ele sorriu. — Senti tanto a sua falta.
Tentei me mexer, mas não obtive sucesso. Estava estranha
demais.
Deus... Fechando os olhos, tentei me concentrar no meu
próprio corpo para entender o que estava acontecendo.
Não conseguia lembrar das coisas, havia um buraco
gigantesco na minha memória.
— Não feche os olhos, por favor, não feche os olhos.
Por que ele estava tão desesperado? Franzi o cenho, pois
notei que havia medo na maneira que me encarava. Até sua
respiração parecia mais rápida e ofegante.
— Ga... briel... — Minha garganta estava queimando, minha
boca tão seca que a língua parecia uma lixa. — Estou acor... dada.
— Tudo bem, só não feche os olhos. — Concordei, e ele
sorriu soltando o fôlego.
— Lysander está a caminho, chega em vinte minutos. —
Razhiel surgiu ao lado de Gabriel. — Como se sente?
— Es... tra... nha. — Respirei fundo, com os olhos pesando.
— O que acon...
— Aconteceu? — Foi Gabriel quem perguntou. Ele olhou
para o seu irmão e, sem uma palavra a mais, Razhiel saiu do
quarto.
Ele segurou a minha mão, beijando meus dedos com o amor
que eu notava trasbordar de seus olhos mesmo em meio a dor que
ele não conseguia esconder.
— O que você se lembra?
Tentei, mas não consegui me conectar a nada, estava com a
mente curiosamente em branco.
— Na... da. — Gabriel acenou, baixando a cabeça e
respirando fundo buscando força para o que vinha a seguir.
Vê-lo daquela maneira me machucava mais que as coisas
presas ao meu corpo. Inclusive, começava a notar mais dele.
Gabriel estava cansado, na verdade eu ousaria dizer que ele
estava exausto. Os olhos, por mais lindos que eles fossem, estavam
caídos, as olheiras profundas demais.
Lambendo os lábios, engoli algumas vezes para que minha
voz melhorasse, precisava entender o que estava acontecendo.
Minha garganta arranhando somente aumentava a vontade
de tossir que tinha.
— Não se esforce. — Ele sorriu, mas, daquela vez, não
alcançou os olhos. — Você esteve ausente por muito tempo, precisa
ficar quieta para que possa se recuperar.
Ele tocou meu rosto, notei que tremia.
O que aconteceu para que aquele homem tão forte que
conheci, parecesse tão frágil? Era a palavra que usaria para
descrevê-lo naquele momento, e isso me fez ter mais certeza de
que ele precisava de mim.
— Gabriel? — Me orgulhei por minha voz sair mais firme.
— O que, Beag?
— Você deveria... — Engoli saliva, molhando a garganta já
dolorida. — ... me abraçar agora.
Seus olhos se encheram de lágrimas, ele acenou, abraçando-
me como podia. Seus ombros sacudiram devagar.
Ele havia deixado seu controle ir e descarregava tudo que
sentia.
— Estou aqui... agora. — Ele acenou, o rosto escondido no
meu pescoço.
Queria poder apertá-lo, para que de algum modo o
confortasse, mas ainda me sentia fraca demais, meio dormente,
esquisita.
Mas o que machucava sem piedade, era a dor dele.
— Jenny... — Ele ergueu a cabeça, as lágrimas ainda
escorrendo. — Não me odeie por não ter conseguido te proteger.
Foi então que flashes de imagens do que aconteceu
começaram a piscar dentro da minha cabeça. Eu cantando, ele me
olhando em choque pelo deslumbramento, a dor abrasando meu
corpo, o sangue se espalhando pela minha barriga.
Pude perceber quando ele entendeu que eu havia lembrado.
Seu rosto ficou pálido, os olhos arregalados de pavor.
— Por favor, não me odeie. — Encostou nossas testas,
repousando a mão ao redor do meu rosto. — Não posso seguir sem
você, Jenny, você tomou o meu coração, e eu só posso pertencer a
uma mulher. Por favor, não me odeie.
Compreendi o motivo de ele estar tão devastado. E não pude
evitar o grito que rasgou a minha garganta. A dor em meu peito foi
tanto que eu senti como se estivesse morrendo.
Gabriel me abraçou apertado, quando percebeu que o peso
da realidade havia se chocado contra mim. Eu não estava
preparada, talvez nunca estivesse.
— Por favor, me perdoa — lamentou, abraçando-me tão firme
que eu não pude fazer outra coisa se não apenas gritar e gritar,
colocando para fora, do único jeito que eu podia, aquela coisa
rasgando por dentro.
— Eu os perdi. — Chorei, abraçada ao pai dos meus filhos,
ao homem que havia lutado por mim mais vezes do que eu poderia
contar.
— Me perdoa por não ter sido forte o bastante para te
proteger. — A dor crua em sua voz me fez chorar ainda mais, sentia
como se minha cabeça pudesse explodir de dor, de tristeza.
Era tudo tão injusto. Depois de tudo que vivemos, do que
passamos, para que aqueles bebês pudessem vir ao mundo. E
agora.
Deus... por quê? Tudo que vivi já foi o bastante? Até quando
eu vou ter que ser forte para aguentar tanta dor?
— Não me odeie, Jenny. — Gabriel segurou meu rosto, suas
lágrimas ainda corriam num fluxo constante.
Ele era a viva imagem da desolação. De uma pessoa que
estava em carne viva. Gabriel havia sido injustiçado em sua própria
história quando por duas vezes, as suas crianças foram arrancadas
de seus braços.
A tristeza de perceber que ele se culpava mesclava-se com a
certeza de que mais do que nunca precisávamos ficar juntos para
aguentar tudo que vinha pela frente.
Todos os sonhos que compartilhamos, enquanto
esperávamos nossos filhos, foram destruídos.
Juntos, nós aguardamos por aqueles bebês; juntos, nós
lutamos por eles; e naquela tragédia que rodeava nossas vidas,
seria junto que sofreríamos a nossa perda.
— Não me odeie. — Ele limpou as minhas lágrimas,
enquanto as suas rolavam. — Me perdoa por estar tão fraco, é que
eu me sinto tão quebrado. — Seus ombros tremeram ainda mais. —
Não estou preparado para te perder também. Então, se você
considerar que não suporta voltar para a nossa casa, e decidir que
precisa ir, por favor, leve-me com você. — Ele balançou a cabeça.
— Não posso te perder também.
— Só me abraça, Gabriel. — Ele o fez, acolhendo-me em seu
calor, enquanto sentia que, se ele não me segurasse, jamais poderia
juntar os pedaços.
Ele não me soltou, ficando ali, enquanto juntos pranteávamos
a nossa perda. Não poderia dizer quanto tempo levou, mas eu
chorei até meu rosto doer e a garganta ficar ainda mais dolorida.
— Sinto tanto que tenha que passar por isso. — Ele se
afastou, seus olhos estavam vermelhos, e as íris verdes tão
resplandecentes que era como se houvesse uma luz por trás deles.
— Não me odeie.
Ele precisava saber que aquilo era impossível.
— Eu te amo, Gabriel. — Finalmente pude lhe dizer, e o
sorriso emocionado que ele deu me confortou um pouco. — Eu
nunca poderia te odiar. — Ele sondava meu rosto, talvez não
estivesse acreditando nas minhas palavras. — Eu te escolhi. — Ele
fechou os olhos, e eu pude perceber o fluxo de suas lágrimas
aumentando. — Eu te escolhi para ser meu.
— Eu sou seu e sempre serei. — A voz dele soou
embargada. — Mas a culpa foi minha, eu...
— Não. — O desconforto na minha garganta estava
aumentando, mas aquela conversa era fundamental, precisávamos,
dela.
— Eu prometi que sempre estaria segura comigo, era meu
dever te proteger e...
— Nós nos protegeremos. — Tentei erguer a mão, ele
percebeu e a trouxe para o seu rosto. — Faremos juntos, entendeu?
— Ele acenou. — Não se culpe por termos perdido nossos... —
Minha voz falhou, eu não queria chorar, precisava ser forte por ele
que já estava quebrado demais, porém não consegui. — Você será
a minha fortaleza — solucei, Gabriel me puxou com carinho,
abraçando-me. — E eu serei a sua.
— Você é. — Sua voz soou abafada. — Talvez, nunca
possamos superar plenamente a perda do nosso filho, mas
precisamos encontrar um meio de ficarmos fortes para a nossa filha.
— Filha?
— Sim, meu amor, nossa filha.
Suas palavras me fizeram descobrir que era possível
compartilhar alegria e tristeza em um único momento.
A verdade era que minha vida nunca foi plenamente incrível
— pelo menos para mim —, mas cada dia de dor e sofrimento, de
esperança e desesperança, me fortaleceram para que naquele
momento eu pudesse ser forte para o homem que eu amava.
Eu nunca havia sido a fortaleza de ninguém, mas agora eu
precisava ser.
— Temos uma filha. — Busquei seus olhos, havia um brilho
que antes não estava lá. — Baby é ruiva e temperamental —
Gabriel suspirou, secando as lágrimas que eu não pude conter. —
Ela é pequeninha, mas é saudável.
— Baby?
— Eu não quis colocar um nome sem que você estivesse
aqui, não pude registrá-la, eu... — ele baixou a cabeça. — Não
podia fazer isso sem você, então, Baby virou um apelido.
— Você esperou por mim? — Ele deu um aceno tímido, nem
parecia o Gabriel que eu conhecia.
— Eu acho que sempre vou esperar por você.
— Gabriel — sussurrei, como se eu nome fosse uma prece.
— Eu não podia escolher o nome dela sozinho — disse
baixinho. — Não tinha certeza do que você gostaria, não havíamos
decidido ainda e... — Franzindo o cenho, ele pareceu um tanto
contemplativo. — Já havíamos perdido tanto, eu não queria te
roubar isso.
— Eu acho que te amo um pouco mais, sabia?
— Fale outra vez. — Ele se aproximou um pouco mais de
mim. — Diga que me ama.
— Eu te amo. — Ele pegou minha mão, colocando-a em seu
rosto. — Eu te amo — disse-lhe, de pertinho eu podia ver suas
pupilas dilatando. — Eu te amo, meu grande e incrível futuro marido.
— Jenny?
Quando eu pensava que tínhamos todo o tempo do mundo e
que nada poderia nos atrapalhar, fazer planos parecia tão certo
quanto tentar concluí-los, mas a realidade era que não dava para
controlar tudo, na verdade, não dava para controlar nada.
Perder tempo poderia significar perder grandes
oportunidades.
— Guarde o pensamento, senhor.
— Eu sou ansioso. — Respirou fundo. — Então, se você tem
alguma pedido para me fazer, siga em frente, faça-o agora, de
antemão, eu digo que a resposta é sim.
— Fora daqui.
— Mas...
Uma batida anunciou que tínhamos companhia. Razhiel
estava entrando acompanhado de Lysander.
— Finalmente. — Ele não sorriu, mas eu percebi que havia
certo alívio. — Como se sente?
Rapidamente Gabriel esfregou os olhos, saindo do meu lado
para dar espaço a Lysander.
— Esquisita.
— Você passou muito tempo fora do ar. — Lysander colocou
as luvas com uma habilidade surpreendente. — Vamos ver se está
tudo bem.
Eu esperava que ele fosse avaliar apenas os sinais vitais,
mas eu fui mergulhada numa maratona de exames e testes que
apenas me deixaram mais exausta. Quando o último deles
finalmente havia acabado, mal conseguia me manter acordada.
— Aos poucos, o seu organismo vai entrando no ritmo. —
Lysander mexeu no meu acesso intravenoso. — Vou retirá-lo. — Ele
me livrou daquilo, mas o que eu queria mesmo era retirar as sondas
que estavam mais para baixo.
— Quando eu poderei ir para casa? — Olhei para Gabriel, ele
ficou ao meu lado o tempo todo. — Minha garganta está doendo.
— Você precisa repousar, vamos conversar sobre a alta
depois que os resultados dos exames chegarem e você apresentar
um bom quadro evolutivo. Até lá, vamos com calma. — Lysander
olhou para Razhiel, que estava no sofá minúsculo do quarto, digo,
minúsculo para homens tão grandes. — Eu vou retirar as sondas,
saia.
— Espere, você vai... retirar... — Engoli em seco, para isso
ele ia precisar me ver. nua. Balancei a cabeça, morta de vergonha.
— Lysander, por favor.
— Beag, o deixe fazer. — Gabriel ficou do meu lado. Assim
que a porta fechou, Lysander girou a chave.
— Vamos com isso, eu tenho dois bebês me esperando em
casa. — O monitor cardíaco apitou. — Jenny, respira com calma, o
seu marcapasso é novo, mas você precisa colaborar.
— Desculpa. — Respirei fundo, tossindo algumas vezes. —
Eu só...
— Eu compreendo você. — Seu olhar suavizou por um
momento, mas então rapidamente ele voltou a ser o mesmo. —
Confie em mim, tudo bem? Hoje, você vai tomar um banho e fazer
sua primeira refeição normal. Contenha a ansiedade, e amanhã de
manhã eu trago a Baby e a sua mãe.
— O quê? — Olhei para Gabriel, ele acenou, outra vez o
monitor cardíaco apitou. — Você quer dizer que...
— Sim, sua mãe acordou e está se recuperando bem. —
Lysander colocou as luvas outra vez. — Apesar de que ela vai
precisar de cuidados por um tempo.
— Que tipo de cuidados?
— Fisioterapia, exames periódicos. — Ele pegou a ponta da
manta que me cobria. — Permita-me. — Lysander ergueu o tecido.
— Espere. — Ele parou olhando-me. — Tem que ser você
mesmo?
— Não, mas se o problema é o fato de que eu vou te ver nua
e mexer nas suas partes íntimas, não se preocupe. — Seus olhos
brilharam com uma diversão sádica. — Eu já te vi nua, eu vi dentro
de você. Inclusive, fui eu que coloquei essas sondas.
Olhei para o Gabriel, sua postura manteve-se estoica. Não
havia maneira melhor de descrever.
— Eu já coloquei e tirei a sonda dele, de Heylel também —
Lysander estava se divertindo, não é possível. Apesar de não haver
sorrisos, eu tinha certeza. — Estou nessa coisa há muito tempo.
— Tudo bem, você venceu. — Respirei fundo, esperando-o
remover a manta e as sondas.
— Posso prosseguir? — O fato dele perguntar me deixou
menos envergonhada, porque eu me senti respeitada.
— Sim.
Foi menos ruim do que eu esperava. Quando eu estive livre
das sondas, Lysander retirou os plugs em meu peito, e avaliou o
implante do marcapasso.
— Perfeito. — Ele tocou a cicatriz. — Vou liberá-la para tomar
um banho. Use a cadeira. Eu vou apressar os resultados dos
exames.
Quando ele saiu, Gabriel fechou a porta outra vez. Sem dizer
uma palavra, ele me pegou nos braços, levando-me para o
banheiro, a todo momento, me tratando como se eu fosse quebrar.
— Acha que consegue aguentar?
Tomar banho sozinha? Não tive coragem de perguntar se era
aquilo, mas assim que ele saísse eu ia descobrir.
— Sim — respondi, e ele me colocou de pé começando a
desatar os nós dos laços daquela roupa hospitalar. — O que está
fazendo? — Ele me olhou como se a resposta fosse óbvia.
— Amor, você acha que vai fazer isso sozinha?
— Você vai me dar banho? — Um sorriso lindo se desenhou
em seus lábios.
— Eu venho fazendo isso por um tempo. — A bata
escorregou por meu corpo e ele se ajoelhou, para beijar a longa
cicatriz vertical que recortava meu corpo.
Minha barriga estava com muitas marcas da minha gestação,
além da cicatriz gigantesca e uma perfuração ao lado do umbigo.
— Você levou um tiro, teve hemorragia. — Ele percorreu o
dedo pela longa cicatriz. — Oitenta e sete pontos. — Gabriel me
olhou, eu deslizei os meus dedos por seus cabelos. — Ter você
aqui, Beag, é mais do que poderia pedir. — Suspirou, o alívio foi tão
grande que seus ombros caíram. — Se eu soubesse que te amaria
tanto, não teria sido um bastardo idiota. Eu te disse coisas ruins, eu
nunca vou me perdoar por nada disso.
— Você foi perfeito. — Ele me abraçou, repousando a cabeça
em minha barriga e suspirando. — Você foi perfeito para mim,
Gabriel. Esquece o que aconteceu, estamos juntos, temos muito o
que superar, deixa essa parte do nosso passado no passado.
— Eu te amo pra caralho, sabe disso, não é?
— Eu sei, e não mudaria nada sobre você. — Ele me olhou,
parecendo um tanto cético.
— Nem o fato de eu ser um assassino filho da puta?
— Nem isso.
Levantando-se ele me abraçou apertado, seu gesto me fez
sentir segura e pronta para voltar para a nossa vida.
Ao seu lado era o meu lugar.
— Nós vamos conseguir, Beag.
Sim, eu sabia ao que ele estava se referindo. A longa jornada
de luto, de aprendizado, recomeços e aceitação do que não
poderíamos mudar.
Algo que um ou dois capítulos não seriam capazes de
resumir.
70
Jenny Monroe

Eu ainda estava sem acreditar na habilidade que Gabriel


possuía em trançar meu cabelo. Ele não havia me deixado sequer
escová-lo, pois, segundo ele, a simples tarefa tinha se tornado uma
atividade que o mantinha calmo e relaxado.
— Pronto. — Ele beijou meu ombro. — Você está linda.
— Sei, pareço como se houvesse passado um mês no spa.
— Ele cruzou os braços, a expressão que não me permitia discutir.
— Okay, eu vou tentar me sentir tão bem quanto você diz que eu
estou. — Olhei para o vestido bonito que Razhiel havia trazido mais
cedo.
— Você está linda. — Olhei para Gabriel, não consegui
esconder o sorriso sem graça. — E só a minha opinião importa.
— A minha não? — Arqueei a sobrancelha, ele negou.
— Não, você é cega. — Gabriel baixou na minha frente,
apoiando um braço no joelho. Daquele modo, ele ficava quase na
altura dos meus olhos. — Você precisa olhar para si mesma, como
olha para mim.
Senti o calor esquentando meu rosto, ele deu um pequeno
sorriso, entendendo que eu ainda era meio tímida quando se tratava
daquilo.
— Eu não pareço um supermodelo. — Toquei seu rosto. —
Você é inacreditavelmente lindo, Gabriel.
Amava ver o sorriso em seus lábios. Depois de uma longa
noite de conversa e companheirismo, eu podia sentir que ele havia
deixado uma grama de toda culpa que sentia, ir embora.
— Isso aqui. — Ele circulou o rosto. — É nada, você vê
Lysander, ele está alguns números acima de mim e é
completamente ruim da cabeça.
— Não fala assim — tentei não demonstrar o quanto
concordava.
Lysander era assustador em muitos quesitos, mas também
havia um lado maleável que eu tinha certeza de existir, caso
contrário ele não seria tão carinhoso com as crianças.
Eu me lembrava muito bem da sua relação com Mikhail.
Era coisa de pai.
— Falo porque é verdade, nenhum Demonidhes tem isso
aqui funcionando direito. — Ele apontou para a própria cabeça.
Por um tempo, ele me encarou em um silêncio contemplativo.
Depois, se aproximou, beijando-me suavemente.
— Eu sei que está ansiosa para conhecer Baby.
— Eu estou. — Baixei a cabeça. — Eu só quero estar
apresentável para ela e para a nossa família.
— Amor, ninguém se importa que pareça apresentável. — Ele
segurou meu queixo, e eu o olhei. — O que importa é que está bem,
forte e em breve estará em casa. Todos nós possuímos cicatrizes.
— Ele apontou o braço. — Todos nós possuímos feridas que talvez
nunca se curem, mas o importante é que...
— Fiquemos juntos — concluí, puxando-o para um abraço.
— Sim, você é minha mulher, mas em tese, pertence a todos
nós. — Meu coração aqueceu com suas palavras. — Como Amira,
você é uma legítima Demonidhes. Vamos lutar por vocês, matar por
vocês, incendiar o mundo se for preciso.
Toda toda aceitação, cuidado e carinho que aqueles irmãos
destinavam a mim eram grandes demais. Eles me faziam sentir
parte de algo maior, como uma corrente com elos poderosos e
impossíveis de romper.
Eu sabia que, se qualquer um de nós caísse, seríamos
abraçados por uma rede de proteção instransponível e que fazia
toda diferença.
Finalmente, eu sabia o que era fazer parte de uma família, e
que, acima de tudo, éramos uma unidade forte.
Tudo que havia acontecido tornou muito fácil enxergar a
verdade.
— Eu amo fazer parte dessa família. — Respirei fundo,
buscando os olhos de Gabriel. — Você foi o único homem que eu
amei.
— E eu serei o último. — Ele me beijou, deixando claro que
não havia como ser diferente. — Eu te amo, Jenny — murmurou
beijando meu nariz. — Eu te amo pra caralho, você me consome
ainda mais intensamente que o fogo que queima aqui dentro. — Ele
apontou para o peito.
A cada instante ao seu lado, Gabriel me fazia amá-lo ainda
mais. Cada gesto, olhar, beijo, ele demonstrava a profundidade de
seus sentimentos.
Ele não escondia nada, e estava ali para mim, exposto,
mostrando-me toda sua vulnerabilidade.
— Você me ensinou que eu merecia ser a chance de ser
amada. Você fez a minha vida ter sentido. — Acariciei seu rosto, ele
fechou os olhos. — Você me deu o que eu precisava para não ter
medo. Eu prosperei ao seu lado, florescendo todos os dias em meio
às minhas próprias incertezas.
— Jenny... — Sua voz foi um mero sussurro, mostrando que
estava emocionado.
— Por sua causa eu me tornei forte o suficiente para te
segurar na sua dor, enquanto você me segura na minha. — Sorri,
sentindo os olhos ardendo. — Você abalou o meu mundo desde o
começo Gabriel, e me ajudou a me tornar a mulher que nunca
imaginei que poderia ser.
Ele encostou a nossas testas, em silêncio, desfrutamos de
nossa intimidade, daquele amor que transbordava. O tempo havia
perdido o sentido, talvez fôssemos ficar nos braços um do outro
para sempre, mas uma batida à porta nos alertou que tínhamos
visitas.
Gabriel se afastou, respirando fundo ele disse:
— Chegaram.
E eu sabia que era nossa família. Concordando, eu alisei
meu cabelo, a roupa, tentando não parecer tão nervosa.
A porta foi aberta e a primeira pessoa que eu vi foi Lysander,
ele estava carregando um pacotinho nos braços. Quando se
aproximou de mim, senti como se meu coração fosse capaz de
parar.
Queria levantar, segurar a minha menina, mas não sabia se
era capaz de sustentar meu próprio peso. Sem uma palavra, ele
veio até mim e eu me preparei para recebê-la.
— Sua filha, Jenny. — Lysander foi colocando-a com cuidado
nos meus braços. Eu tentei com afinco não chorar, mas não pude
evitar.
Eu estava diante do meu milagre.
— Chore, não precisa ser forte neste momento — Lysander
disse baixinho, enquanto eu desabava.
Eu deveria me controlar, eu sabia que sim, mas não pude e
como se estivesse sentindo o caos que eu havia me tornado, o
pequenino bebê agitou-se, reclamando.
— Meu amor. — Assim que proferi as palavras, ela ficou
quieta, como se estivesse prestando atenção. Emocionada, olhei
para Gabriel, ele acenou, sorrindo.
Olhando para a minha filha, eu não pude evitar. Fechei os
olhos, trazendo-a até meu rosto, para que pudesse sentir seu
cheiro, calor. Aquilo tornava tudo mais real.
— Finalmente eu posso te segurar em meus braços. —
Esfreguei o nariz em seus cabelos, desfrutando da sensação incrível
de tê-la comigo e chorando porque eu precisava. Ainda havia um
vazio nos meus braços, mas aquele bebê quentinho me fazia ter
certeza de que tudo ia dar certo. — Você e o seu pai fazem meu
coração doer de tanto amor — murmurei para ela. — Esperamos
por você, lutamos para que estivesse aqui, você e o seu irmão são
muito amados.
Fui rodeada por um abraço quente. O cheiro de Gabriel me
confortou e eu o olhei.
Em seus olhos, eu vi tudo que precisava.
— Nós vamos conseguir, amor — disse para ele. — Nós
vamos conseguir.
Por enquanto era mais do que eu poderia querer.
Como se soubesse da necessidade de estarmos sozinhos
naquele momento, Lysander havia saído. Eu e Gabriel desfrutamos
de ter nossa menina nos braços, em silêncio contemplamos a
perfeição que ela era.
Ruiva como o pai, temperamental como ele, eu me apaixonei
por aquela sua versão nascida de mim.
— Eu acho que sei como ela deve se chamar. — Gabriel me
olhou, eu pude ver sua expectativa. — Romana Cassie
Demonidhes, a filha do nosso amor, a neta de Roman um dos
homens mais incríveis do mundo.
Ele me abraçou e eu soube que havia escolhido certo.
— Ela voltou para mim. — Sua voz transbordou de um
sentimento tão profundo, que eu passei um braço ao redor de seu
pescoço para mantê-lo por perto.
Aquele homem era muito forte, já havia passado por tantas
coisas e sobrevivido. Não importava que houvesse rachaduras
profundas demais em sua armadura, eu sabia que, ao me juntar a
ele, nossas lacunas seriam preenchidas.
Achava que aquele era o verdadeiro sentido do amor.
— Estou aqui para você — disse baixinho, beijando seu
rosto. — E eu sempre vou estar.
— Eu sei.

***

Eu contemplava o meu quarto lotado, com um sorriso enorme


nos lábios. Quando Lysander disse que eu receberia visitas, não
esperava que fosse a família toda.
— Parece que eu vivo um sonho. — Minha mãe repousou
sua mão na minha perna, dando um aperto suave. Ainda era surreal
tê-la ali ao meu lado, poder abraçá-la, ouvir sua voz amada, ver o
quão bem ela parecia.
Eu não lembrava de quando foi a última vez que vi seus olhos
brilharem daquele jeito. Nem o lado paralisado e seu rosto
conseguiam diminuir o tamanho de seu sorriso.
Ela estava muito feliz.
— Soube que Razhiel está construindo um estúdio de
gravação para você — ela suspirou, parecendo um tanto nervosa —
Filha, por que eles têm que ser tão bonitos? Não me acostumo com
isso.
— É chocante, eu sei.
— Todos são inacreditáveis — cochichou. — Mas Lysander...
— Eu sei, mãe. — O olhar dela mudou-se para ele.
— Tem algo nele que me deixa confusa e em alerta sempre
que ele aparece. — Ela franziu o cenho. — Ele é diferente dos
outros, é como se carregasse algo muito poderoso, e ouso dizer
sombrio. Eu tenho medo dele, mas, ao mesmo tempo, confio.
Sabendo um pouco do que eles faziam, eu podia imaginar o
alerta neon que ele acendeu na cabeça da minha mãe.
— Foi assim para mim também. — Meus olhos passearam
pelos irmãos. — Com todos eles. Havia certo receio, porém eu sabia
que não me fariam mal. Estranho, não é? Vindo de onde viemos.
A diferença era que alguma coisa havia mudado desde o que
aconteceu comigo, era como se uma camada daquela civilidade
houvesse sido arrancada bruscamente. O que estava mais exposto
era Gabriel.
Ele estava conversando com Lysander, enquanto embalava a
nossa filha nos braços.
— Esses homens são protetores com sua família. — Olhei
para a minha mãe. — E nós fazemos parte da família, mamãe.
Ela sorriu, abraçando-me. Talvez para esconder a emoção
que a engolia. Depois de uma vida de inferno, ela era como um
passarinho que teve a gaiola aberta, mas que havia passado tanto
tempo preso que havia desaprendido a voar.
— Eu não acredito que nós conseguimos. — Sua voz soou
embargada. — Eu não acredito que posso dormir em paz. É tão
difícil acostumar-se.
— A vida é boa, mãe. — Olhei para Gabriel, e, como se
sentisse meu olhar, ele o retribuiu. — Apesar de tudo que
passamos, nós temos motivos para continuar sonhando.
Ela se afastou e, segurando meu rosto, disse:
— Os recomeços apenas são possíveis para quando não sei
deixa de sonhar.
O sofrimento que passou nas mãos daquele homem a fez ter
o semblante de alguém que, por muitos anos, viveu mergulhado em
tristeza e desolação.
Mas, agora que tínhamos um futuro pelo qual ansiar, eu
acreditava que a felicidade seria o remédio perfeito para curar
qualquer ferida que ainda pudesse existir.
— Eu não sei nem por onde começar. — Minha mãe respirou
fundo. — Mas Rafael disse que eu poderia fazer o que eu quisesse.
— Em que está pensando?
— Voltar a cantar — respondeu timidamente. Aquele homem
a humilhava muito acerca daquilo, dizendo que ela jamais
conseguiria voltar.
— Mãe, isso é... incrível. — Puxei-a para outro abraço. —
Podemos fazer algo juntas.
— O meu maior sonho, Jenny, é cantar com você.
Imaginei o estúdio que Razhiel ia fazer. As possibilidades e
todos os projetos que poderíamos colocar em andamento era tão
grande que eu senti aquele familiar turbilhão no estômago.
— Eu não desejo os palcos — soltei o fôlego. — Você
entende, mãe? — Ela concordou, e não vi nenhum tipo de
recriminação em seu semblante, apenas aceitação, apoio.
Era muito, muito bom poder dizer o que eu queria fazer com a
minha carreira. Eu não desejava ir em busca de holofotes, ou de
uma carreira alucinante.
Talvez em algum momento eu tivesse desejado, mas, não
lembrava. Agora, tudo o que eu queria era cantar, escrever. Poderia
gravar as minhas músicas, clipes talvez, mas não me imaginava
indo de um lugar a outro, deixando para trás o que eu tinha de mais
precioso.
Eu sabia que, se aquele fosse o meu desejo, Gabriel ficaria
ao meu lado, era só que eu queria outras coisas.
— Eu quero ir em busca disso — minha mãe falou,
respirando fundo. — Quando eu acreditar que estou pronta, eu irei.
Você ficará bem sem mim.
— E eu vou te apoiar. — Apertei sua mão. — Você é tão
jovem, há tanto que pode fazer.
— Sinto falta daquele frio na briga que antecipava cada
apresentação. — Pude perceber o tom nostálgico.
A minha mãe era boa, muito boa no que fazia. Foi apenas
uma crueldade o que aquele homem fez com ela, arrancando-a de
seu sonho quando ela estava vivendo a melhor parte dele.
— Jenny. — Sua voz tremeu.
— O que foi?
— Tem certeza de que ele não vai voltar?
Eu não sabia o que foi contado a ela. Mas acreditava que
minha mãe não fazia ideia de quem eram os homens da família
Demonidhes, por isso preferi manter as coisas no terreno seguro.
— Mãe, a casa queimou até o chão com ele dentro. — O
suspiro de alívio foi audível. — Vazamento de gás.
— Ele era um porco, não cuidava do mínimo. Bem-feito o que
aconteceu, espero que tenha sofrido muito.
— Eu não tenho dúvidas.
Observei Lysander se aproximando de nós.
— Está na hora de ir para casa, senhora Grenadine.
— Sim, claro. Eu volto amanhã, filha. — Ela estendeu a mão,
eu aceitei.
Lysander foi até a porta e abriu. Um homem entrou
rapidamente e eu o reconheci, como sendo o filho mais velho de
Boris.
— Vamos? — ele falou para a minha mãe ela acenou,
partindo.
Quando ela saiu, Lysander voltou sua atenção para todos no
quarto.
— O horário de visitas acabou — ele avisou. — Jenny precisa
descansar e as crianças também.
— Lysander, quando eu poderei ir para casa?
Ele se aproximou de Gabriel para pegar Cassie.
— Quando eu disser que pode. — Ele segurou minha filha,
acolhendo-a junto ao peito. — Vamos para casa, bambina?
Meu coração encheu de carinho por aquele homem tão
sombrio e, ao mesmo tempo, tão humano. O jeito que ele olhava
para Cassie e Mikhail era como os pais das crianças olhava.
Na verdade, todos os irmãos estavam daquele jeito.
Haviam se tornado pais juntos.
— Você por acaso vai me deixar aqui para que possa ficar
com ela? — brinquei e ele arqueou a sobrancelha.
— Claro que sim, eu sou ciumento com as minhas crianças,
inclusive, estou prestes a chutar Rafael e pegar Mikhail também.
— Apenas tente. — Rafael inclinou a cabeça. — Mas na terça
tenho um compromisso com Amira, então se você puder...
— É meu dia. — Heylel se aproximou de Amira, e ela o
deixou pegar Mikhail. — Lysander tem roubado todos os turnos para
ele, e eu estou vendo até onde irei tolerar isso.
— Até onde eu quiser, irmãozinho. — Ambos se encararam,
eram quase do mesmo tamanho, só que Heylel ganhava por alguns
centímetros. — Você não tem nenhuma luta para ir?
— Se você aceitar um round na minha arena, então eu tenho.
Lysander inclinou a cabeça de lado, avaliando o gigante a
sua frente. Um pequeno e quase discreto sorriso arqueou o canto de
sua boca.
— Faça um convite formal, e eu irei.
— Eles estão disputando as crianças, você percebe o quanto
são doentes? — Razhiel pegou Cassie. — Vocês deveriam proibir
esses dois psicopatas de se aproximarem. Hoje, você dorme
comigo, princesa.
— Veremos. — Lysander cruzou os braços. — Vamos, está
frio e eles precisam estarem em casa antes que o clima piore.
Pelo que Gabriel havia me dito, estávamos a cerca de quatro
dias do Natal, a neve estava vindo com tudo e eu esperava ir para a
casa antes daquilo.
— Precisamos ir. — Rafael se aproximou, baixando para ficar
na altura dos meus olhos. — Bem-vinda de volta.
— Obrigada.
Lysander e Razhiel foram os últimos a sair, porque eu
precisava de mais algum tempo com a minha criança.
— Eu vou sentir sua falta. — Toquei a ponta de seu nariz
miúdo, ela espirrou. — Dê muito trabalho aos seus tios, eles
gostam. — Sorri, pois ela me olhava como se entendesse. — Até
amanhã, meu amor.
Observei-os partindo, levando consigo um pedaço de mim.
Quando ficamos apenas eu e Gabriel, ele me levou para a frente
para a janela, e ali, nos braços um do outro, encontramos um pouco
de alento para a saudade que havia ficado no lugar de nossa
menina.
— Romana Cassie Demonidhes — ele quebrou o silêncio
com um suspiro de puro encanto.
Sim, era perfeito.

***

Todos os dias, a família vinha me ver e, quando eles iam


embora, eu preenchia o restante do dia com muitas doses de
descanso e com uma nova música que praticamente exigia que eu a
escrevesse.
No começo, eu não quis fazer, porque sempre que pensava
tinha crises de choro, mas Gabriel estava ao meu lado, me
incentivando a deixar que a minha arte fizesse parte do meu
processo de aceitação e perda.
— Terminou a música? — ele questionou, enquanto juntava
as nossas coisas.
Era Natal, e eu havia recebido alta junto com a
recomendação de continuar em repouso por mais alguns dias.
— Terminei.
— Você vai me deixar ver? — Olhei para ele, Gabriel era um
companheiro perfeito. Eu sabia que ele estava ansioso para ver a
música que eu escrevi usando os recursos do seu celular.
Depois eu melhoraria a melodia, entretanto a letra estava
pronta, e eu não imaginava absolutamente nenhuma palavra
diferente do que continha ali.
— Eu vou deixar sim. — Ele sorriu, fechando o zíper da
bolsa.
— Está pronta? — Acenei. — Vamos sair pelo outro lado, há
muitas pessoas na frente do hospital. Pelo que Lysander disse,
alguém vazou a informação de que sua alta seria hoje.
Nós saímos e fomos direto para o estacionamento dos
funcionários. Não havia muitas pessoas ali, por isso conseguimos
chegar até o carro e ir embora sem mais problemas.
— Você poderia passar numa loja de brinquedos? — Gabriel
me olhou rapidamente, mas acenou.
Não demorou muito para que ele estacionasse numa famosa
loja de brinquedos. Ela estava linda com enormes ursos na entrada
e aqueles enfeites típicos do Natal.
— O que você quer? — Ele olhou para a loja, havia uma fila
na entrada. — Você não vai ficar ali esperando.
— Eu quero um violão de brinquedo — falei baixinho, ele não
disse nada, apenas saiu do carro e foi em direção a fila.
Eu o vi desaparecer dentro da loja, nem dez minutos depois,
ele estava voltando com uma sacola.
— Espero que você goste desse.
Voltamos a seguir caminho. Não tive coragem de olhar o
violão de brinquedo, pois a emoção já estava me tomando.
Certamente Gabriel tinha uma ideia do que eu desejava fazer, mas
ele não disse nada, esperando que fosse eu a trazer a questão.
— Leve-me até ele. — Foi somente o que fui capaz de dizer.
Quando chegamos em casa, ele passou direto pela mansão,
nos levando até o lugar onde nosso filho estava. A neve já cobria
tudo, mas o local dele estava preservado, como se todos os dias
alguém fosse limpar e colocar flores novas.
— Todos os dias algum dos meus irmãos vem aqui — Gabriel
disse, eu não havia conseguido descer do carro ainda. — Você tem
certeza de que é o momento?
— Tenho. — Abrindo a porta do carro, eu já senti parte das
minhas forças indo embora.
— Vem, eu te seguro. — Ele me apoiou, ajudando-me a
chegar até onde eu precisava.
Cegada pelas lágrimas eu levei alguns instantes para
conseguir falar, e, quando o fiz, foi como se pela primeira vez eu
estivesse perto dele.
— Meu filho amado. — Com cuidado, eu depositei o violão ao
lado da raposinha e do trenzinho de madeira. A meia, estava cheia
do que pareciam biscoitos de canela. — Sinto a sua falta.
Fechando os olhos a sensação que eu tive era de que havia
calor em meus braços, como se eu estivesse segurando-o. Eu não
conseguia formular direito tudo que eu queria lhe dizer, mas, então,
eu tinha colocado tudo que eu sentia na música que escrevi para
ele.
Nela continha todo sentimento de dor, perda, e
agradecimento pelo tempo que pude carregá-lo dentro de mim.
Ele iria me entender.
— O celular. — Gabriel o depositou na minha mão, e eu
coloquei a melodia simples e de poucas notas para tocar.
Apesar da dor, do nó na garganta e da voz embargada, eu
cantei para o meu filho:

“Eu vivi a experiência de te carregar em meu ventre;


mas eu não pude te segurar em meus braços.
Eu sonhei em te alimentar do meu seio; de sentir teu cheiro
e eu não pude.
Mas eu pude sentir quando você ouvia minha voz.
Você me respondia.
Prometo, meu amado Constantino;
Que cantarei para você todos os dias.
Que te amarei pela eternidade.
Que conviverei com saudade que sua ausência traz.
Oh pequenino, filho do meu amor, diga-me:
Onde estarás agora?
Recolhendo a lágrima da minha saudade;
Enquanto eu não posso te segurar em seu choro.
Prometo, meu amado Constantino;
Que cantarei para você todos os dias.
Que te amarei pela eternidade.
Que conviverei com saudade que sua ausência traz.
Eu sonhei com a sua chegada, e agora te aguardo
quando você quiser voltar.”

Gabriel me abraçou quando eu perdi o controle. Ele me


segurou firme até que eu tivesse colocado para fora tudo que eu
sentia naquele exato momento.
— Beag...
— Você sabe o que me consola? — Olhei para o amor da
minha vida.
— O quê? — murmurou, secando meus olhos.
— A certeza de que ele sabia que era muito amado.
Um sorriso doloroso se desenhou em seus lábios, Gabriel me
abraçou outra vez.
E ali, em seus braços, eu tive certeza de que estava em casa.
Epílogo
Junho de 2019
Gabriel Demonidhes

O novo governador do estado de Nova York era um membro


da Ordem e ele me queria no comando do Corpo de Bombeiros,
algo que eu ainda relutava estava em aceitar.
Haviam muitos prós e contras a considerar, e quase cem por
cento estavam voltados para a minha mulher e filha. Se mal
suportava os meus plantões, quem dirá o cargo de Comandante que
exigiria mais do meu tempo.
— Desejo que considere. — Estalei o pescoço, mantendo o
telefone no ouvido. — É importante para nós.
Óbvio que, quando decidisse, não ia desconsiderar o fato de
estarmos vivendo em um campo minado. O que aconteceu comigo
ano passado era apenas um reflexo do quão longe a Cöntrax havia
ido ao aparelhar o Corpo de Bombeiros.
Talvez, eles houvessem feito o mesmo em outros lugares, por
isso Rafael queria investigar todo o sistema político do estado, e
Chronus estava empenhando muitos esforços nisso.
Sabia que logo, ele nos traria as respostas que todos nós
desejávamos e, então, as coisas iriam realmente esquentar de
verdade.
— Senhor, se concordar com o meu pedido, irei providenciar
a solenidade de posse para o dia do seu aniversário.
— Não sei ainda — respondi, puxei um pouco a cortina da
varanda da sala do meu quarto. — Mas eu vou decidir. — Sorri, por
causa da felicidade que tomou conta de mim.
A mãe de Jenny estava com Mikhail e Cassie, brincando no
jardim. Ao redor do trio e do monte de brinquedos, Corso e Kang
estavam deitados, como seguranças altamente treinados.
O monstrinho de Rafael era um menino maior que o normal,
já vestia roupas de crianças com o dobro de sua idade, diferente da
minha Cassie que eu tinha certeza de que puxaria a mãe e seria
pequena. Tinha certo de vício de sempre mantê-la por perto, e eu
precisava admitir que voltar para o meu antigo trabalho, foi uma das
piores torturas da minha vida.
Ainda que a minha Beag tenha tido razão acerca da minha
volta, ainda era difícil me afastar.
— Senhor Demonidhes? — Sacudi a cabeça, prestando
atenção na conversa ao telefone.
Se ficasse olhando para as crianças, não ia conseguir manter
a conversa razoavelmente interessante, pois a vontade que eu tinha
era de ir me juntar ao grupo lá fora.
— O que disse, governador? — pigarreei, sentando-me no
sofá próximo a lareira.
— Há algumas atividades acontecendo no ancoradouro do
Brooklyn que tem chamado a minha atenção. — Franzi o cenho,
prestando total atenção. — Pensei em levar o assunto para Hunter,
mas já que estamos falando...
— Prossiga. — Pude escutar o som de uma porta fechando
e, então, pareceu-me como se ele estivesse mexendo em algumas
coisas.
— Tenho informações que precisam ser avaliadas. — Ele
baixou o tom, mesmo estando no telefone eu podia notar sua
preocupação. — Algumas embarcações estão fazendo travessias
sem os sinalizadores obrigatórios.
— Isso é um problema?
— Sim, quando a rota atravessa o rio Hudson, até o rio East,
passando pelo estreito de Kent Ave, em Williamsburg. A primeira
parada acontece em Greempoint, e a segunda em Long Island.
Imaginei a rota do rio, as paradas e de fato não fazia muito
sentido. Primeiro porque desde o final do ano passado, houve uma
diminuição significativa no volume do rio, tornando o tráfego pelo
estreito de Kent Ave arriscado demais.
Por precaução, o tráfego de embarcações foi proibido
integralmente. A área, portanto, vinha sendo patrulhada todos os
dias.
— A guarda costeira pode ter sido comprada para fechar os
olhos e permitir a passagem das embarcações — proferi, afinal era
uma possibilidade.
— Eu tive acesso as notas, e elas me chamaram atenção. —
Ele baixou o tom um pouco mais. — O antigo governador fazia
negócios com um homem chamado Armstrong, e, antes de sofrer o
acidente, ele recebeu cinco milhões de dólares, eu pedi para
Andröyd invadir as contas, e o dinheiro sumiu poucas horas depois
que foi depositado. Greyson já estava morto.
Greyson era o antigo governador de Nova York, morto após
seu motorista perder o controle do carro na State Route 343. Ele, o
motorista e o assessor morreram carbonizados. Detalhe, a rodovia
era a mais segura e, pelo horário, tinha baixa circulação de
automóveis.
— Você acha que ele foi assassinado? — sondei, desejava
saber aonde queria chegar.
— Era ele quem assinava as notas de partição. Em que lugar
do mundo um governador assina as notas de partição de uma
empresa que trafega numa zona proibida pela lei do próprio estado?
— Ele fazia parte do esquema. — Parecia óbvio demais. —
Os cinco milhões eram seu pagamento.
Era algo para ser investigado, mas não em meio a uma
conversa que começou uma promoção indesejada.
— Aqui fica interessante, o homem responsável pela
empresa de navegação desapareceu, sem deixar rastro.
A porta do quarto abriu e a minha mulher entrou, tirando
completamente o meu foco naquela conversa.
— Querido. —Jenny soprou um beijo, deixando-me
desconcertado.
Meus olhos percorreram seu corpo, ela usava um short curto,
blusa de mangas compridas e o longo cabelo preso naquele maldito
coque frouxo. Ela deixou seus materiais de estudo em cima da
mesa, depois caminhou em minha direção.
Havia um sorriso indecente em seus lábios, enquanto me
olhava daquele jeito que me deixava de pau duro instantaneamente.
— Conte-me o que descobriu — pigarreei, observando-a ir
até a porta e a fechar com chave.
— Primeiro, as notas fiscais eram todas ilegais. O volume de
carga mencionado sendo dez vezes menor que a capacidade do
navio, o destino final de todas estava marcado sempre para
Maspeth Creek.
— A zona industrial do Queens. — Meus olhos não
desviaram de Jenny, ela arrancou a blusa começando a desabotoar
o short.
Precisei me ajeitar melhor no sofá e me concentrar porque
não estava entendendo mais nada do que era dito.
— Senhor, por que eles levariam meia tonelada de peças
eletrônicas para uma fábrica de produtos alimentícios?
Interessante.
— Isso você vai ter que descobrir.
Apoiei o braço no encosto do sofá, desacreditado que a
minha mulher estava tirando a roupa na sala só para me provocar.
Ela havia acabado de retirar o sutiã, suspirando enquanto
massageava os seios.
Caralho! Esfreguei a boca, a vontade de fodê-la ali mesmo no
chão da sala me deixando faminto.
— Estou com o governador na linha. — Apontei o celular
quando ela parou na minha frente. — Jenny? — Ela se ajoelhou,
abrindo as minhas pernas.
— Eu não vou atrapalhar. — Piscou um olho, deslizando os
dedos dentro da minha calça. — Jenny, a conversa é importante.
Era porra nenhuma, eu só estava apenas me fazendo de
difícil, num jogo de vingança que havíamos iniciado mês passado.
Certamente, estava me fazendo pagar por algo que eu havia
dito.
Inferno! Quando ela beijou a minha barriga, toda a minha
resistência foi pro espaço. Não precisou nem pedir que eu fizesse,
eu mesmo ergui o quadril para que ela puxasse a minha calça.
— Senhor Demonidhes?
— Sim... sim, estou ouvindo. — Ela segurou meu pau, eu
precisei de muito esforço para não gemer.
Enrolei a mão em seu cabelo, sabia que ia receber a melhor
chupada da minha vida. Ainda podia lembrar de como ela explodiu a
minha cabeça numa época que eu estava me sentindo estranho sob
minha própria pele.
— Eu enviei um decreto hoje, irei fechar o acesso a Maspeth
Creek. Deixei claro que as cargas serão apreendidas, modifiquei
também as equipes que atuam na região, as nomeações serão
feitas ainda no final desta semana.
— Você vai mexer com famílias poderosas.
— Eu sei, mas quero que os ratos saiam da toca. Irei entrar
em contato com Hunter, vou preparar a lista de quem eu considero
suspeito. — Pude perceber que ele estava ansioso para fazer os
dados rolarem. — Voltemos a discutir sobre o seu novo cargo.
— Não decidi ainda.
— Senhor, precisamos aumentar nossas bases. Estamos
cientes do perigo que nosso líder e seus generais correm.
— Eu estar no comando não vai mudar nada. — Tentei
segurar Jenny, que estava prestes a enfiar meu pau na boca.
Ela me olhou eu mostrei o celular.
“É importante.” Ela apenas riu.
— Onde está o seu espírito aventureiro? — Piscou um olho,
lambendo a cabeça do meu pau, fazendo-me estremecer dos pés à
cabeça.
— Senhor Demonidhes, deve considerar a importância...
Fechei os olhos, melhorando a posição para que ela pudesse
me chupar direito. A sensação de ter o pau engolido foi demais, ela
sabia que me virava do avesso quando não começava com
preliminar.
Sem mãos, ela só chupava gostoso me levando o máximo
que conseguia.
Era foda pra caralho.
— Você apela demais. — Olhei para ela, seus olhos estavam
lacrimejando, mas podia ver a satisfação.
Ela sabia o imenso poder que possuía sobre mim. E eu não
me importava. Pertencia àquela mulher, era todo dela.
— Não estou apelando, senhor, é apenas porque considero
importante. Eu estarei a par de sua agenda, poderia organizar para
que esteja com uma defesa ao seu redor. Eu sou um incendiário,
você é meu general.
— Posso me cuidar, Gregori. — Minha voz não soou afetada,
ponto para mim, mesmo que fosse muito difícil não gemer como um
filho da puta.
— Os incendiários irão mantê-lo sob o radar — avisou, e eu
não me importava.
— Podemos conversar sobre isso depois. — Jenny segurou
minhas bolas, massageando-as. — Eu vou pensar e...
— O novo comandante precisa ser definido.
— Em breve você terá sua resposta.
Jenny lambeu meu pau inteiro, sem tirar os olhos de mim. Ela
estava começando a brincar.
“Sem brincadeira, apenas chupa meu pau, sua safada.” Ela
arqueou a sobrancelha, golpeando a língua na ponta, e chupando
só a cabeça.
— Jenny! — Deixei que notasse que sua provocação teria
represálias.
— Senhor, está ocupado?
— Sim, preciso resolver algumas coisas importantes com a
minha esposa.
— Por favor, decida-se sobre o cargo, preciso de uma
resposta agora.
Não consigo pensar, porra! Era o que queria dizer, mas não
disse.
— Em breve.
— Irei aguardar, mas seja breve. Mudanças estão
acontecendo, e nós precisamos estar preparados. Se descobrir mais
algo, irei contatá-lo.
Ele desligou, e eu joguei o celular do outro lado do sofá.
— Agora você vem aqui! — Fiquei em pé, puxando Jenny
para mim. — Me provocando, não é?
Antes que ela pudesse responder, eu a beijei com todo tesão
que eu sentia.
— Agora ajoelha e chupa meu pau direito. — Ela fez como eu
disse. — Vou gozar na sua boca e você vai engolir.
— Como um pirulito? — Para demonstrar, ela me deu uma
lambida lenta demais para não ser considerada uma provocação. —
Assim? — Piscou os olhos, toda inocente.
— Não me provoque.
Mas ela não deu ouvidos, continuou me infernizando,
chupando rápido e depois muito devagar, sempre mantendo os
olhos nos meus.
— Sem as mãos. — Ela obedeceu. — Agora quero te ver
sufocar com meu pau na boca. Vou te foder assim.
Segurei firme em seu cabelo, foi o último aviso antes de eu
começar a foder sua boca. Meus gemidos ecoavam pela sala, os
dela também, pois se masturbava enquanto engolia meu pau.
— Você gosta quando eu sou um bruto, não é? — Ela
acenou, com lágrimas deslizando por suas bochechas — Isso, ahhh,
delícia do caralho.
A baba escorria pelo meu pau, eu estava indo mais forte,
dentro do limite que eu sabia que ela aguentava.
Fechei os olhos, apenas me deixando ir, já podia sentir o
corpo arrepiando, as bolas endurecendo e o prazer insuportável.
Estava quase gozando, os pensamentos se perdendo de
tudo, quando ela se afastou.
— Porra! — ofeguei, buscando seus olhos, completamente
atordoado.
— Pós mé[21]. — Quase não acreditei que havia me pedido
em casamento na minha língua natal. — Pós mé, Gabriel, ou eu não
vou continuar.
Era inacreditável como Jenny sabia quais botões apertar em
mim, pequena chantagistazinha safada.
— Você quer superar o seu mestre? — Ela começou a
acariciar meu pau, mantendo um ritmo firme e gostoso, porém não o
bastante para que eu gozasse.
E eu estava tão perto.
Caralho!
— Case-se comigo, Gabriel. — Senti o corpo todo preparado,
um pouco mais firme e eu ia explodir na boca dela. — Case-se
comigo.
— Isso é chantagem — rosnei quando chupou duro por
alguns instantes, parando de novo. — Jenny!
— Não aguento mais esperar, você está demorando demais
para me fazer sua esposa.
— Quem começou nosso tomento foi você. — Respirei fundo,
gemendo de prazer. — Eu sou um bastardo vingativo. Para eu
aceitar o seu pedido tenho saber o que eu ganho. Você me rejeitou
de novo mês passado, e eu estava esperando que fosse você a
fazer o pedido que eu esperava há meses, agora não sei se quero
mais. — Dei-lhe o meu melhor sorriso cafajeste. — Mas podemos
negociar, o que eu ganho para dizer sim?
Ela se levantou, ficando na pontas dos pés, precisei baixar
um pouco para que ela pudesse falar no meu ouvido.
— Eu te dou aquilo que você tanto me pede.
Meu pau até pulsou só de imaginar.
— Porra, mulher, você veio pronta para brigar, mas se é
assim... — Antes que ela pudesse me provocar mais um pouco, eu
a empurrei no sofá, lhe dando deu uma chupada na boceta gostosa.
— Dois podem jogar.
— Gabriel! — gritou, agarrando meus cabelos para me
manter preso ali. Mordi seu clitóris, esfregando a barba que eu sabia
que a enlouquecia. — Ohh, você é tão mau.
Antes que ela pudesse gozar, eu a virei, dando um tapa em
sua bunda.
— Hummm, me fode. — Balançou os quadris, me
provocando.
Por uma fração de segundo, eu olhei a tatuagem de gaiola
aberta que cobria o local da cicatriz que havia nas suas costas,
depois inclinei dando-lhe um beijo.
Jenny estava livre, e juntos nós poderíamos tudo.
— Me fode, meu viking gostoso.
— Você quer uma surra de pau? — Mordi sua orelha. —
Então toma. — Foi meu único aviso antes de penetrá-la de uma vez.
— Ga. Bri. El!
— O quê? — Comecei a foder rápido e duro. — Não é assim
que você gosta?
— É assim mesmo!
Com uma mão eu apertei a sua cintura, com a outra eu
agarrei seu cabelo, e a fodi até que eu pudesse sentir as paredes
internas apertando meu pau.
— Ah, eu vou morrer! — Ela molhou meu pau todo,
escorrendo prazer entre as pernas.
— Vai morrer porra nenhuma que eu não deixo! — rosnei,
quase lá também.
— Que delícia, que delícia! — gritou me molhando todo.
— Era só uma chupada. — Dei um tapa em sua bunda, ela
gemeu. — Mas você me provocou.
Eu a virei, queria gozar olhando para o seu rosto.
— Gabriel... — Eu a deixei arreganhada, ela ia ver meu pau
entrando e saindo da sua boceta. — Oh, Deus...
— Você não deveria iniciar jogos assim. — Eu a beijei,
fodendo duro e gostoso, até que eu mesmo explodisse dentro dela,
gozando feito louco. — Caralho, você é deliciosa.
Quando meu pau parou de pulsar, eu me retirei de dentro
dela e a puxei, encaixando suas pernas nos meus ombros.
— Você pensa que acabou? — Um suspiro foi sua resposta.
Ela estava linda demais, toda vermelha, suada, escorrendo a minha
porra. — Estamos apenas começando.
Antes que ela pudesse me impedir, eu comecei a chupar sua
boceta.
Eu havia dito, ela escolheu um puto, e na nossa cama,
timidez era proibido.

***

Estávamos deitados no sofá, nos braços um do outro. Jenny


ainda estava ofegante, depois de toda maratona frenética de sexo.
— Gabriel. — Ela apoiou-se no meu peito. — Case-se
comigo. — Sorrindo a beijei. — Não seja tão vingativo, vai dar mal
exemplo para Cassie.
Se ela soubesse o que fiz...
— Beag... — Eu a beijei outra vez, quando nos afastamos eu
a encarei por um tempo.
Eu nunca pensei que a vida ao lado de uma mulher pudesse
ser tão incrível. Eu a amava com cada fibra do meu ser, e não era
um amor calmo, manso. Era um amor louco, turbulento, caótico.
Que me fazia surtar de saudade quando estava trabalhando
ou desobedecer às ordens de Hunter.
Não me importava o quanto dependente dela eu havia me
tornado, Jenny me deu a chance de me sentir verdadeiramente
completo, e nós funcionávamos de maneira perfeita.
— Eu te amo demais, mulher.
— Eu também te amo, mesmo você recusando meu pedido.
— Eu disse que você ia ter que fazer algo grande.
Ela se levantou, começando a andar de um lado para o outro.
A visão de seu corpo desnudo me enlouquecia. Nem a
cicatriz enorme diminuía sua beleza.
Eu amava as marcas permanentes em sua barriga, elas me
lembravam constantemente de uma época tão maravilhosa que até
hoje eu sentia saudade.
Era estranho, mas depois de todos aqueles meses,
conseguia pensar nas nossas perdas e ao mesmo tempo estar feliz.
Ter Jenny e Cassie ali comigo significava que nem tudo estava
perdido, e que eu precisava ser forte.
Elas eram meus motivos para continuar acordando todos os
dias.
— Eu eternizei o nosso amor numa música, você quer coisa
maior que isso? — Apontou do dedo para mim. — É um sucesso,
você imagina? Tenho um monte de proposta de cantores famosos
que a querem. — Sorri, deixando-a continuar. — Eu demorei para te
pedir porque queria fazer em seu idioma, o problema é que é muito
difícil. Poxa, Gabriel, só diga sim, ou vou fazer uma música horrível
sobre você.
— Você quer que eu aceite me ameaçando? — Não pude
evitar a diversão.
— Você é cabeça-dura, seu bruto ignorante. Melhor aceitar
logo.
Acho que estava na hora de lhe mostrar algo.
— Espere-me aqui. — Fui até o meu móvel de cabeceira e
peguei um documento que havia ali. Antes de sair, percorri os dedos
pela foto do meu filho.
Não pude deixar de sentir uma fisgada no coração, mas eu
passei a me considerar sortudo por ter aquele sorriso dele para que
eu pudesse admirar e matar um pouco da saudade.
— Jenny... — Assim que voltei para sala, ela se levantou do
sofá. — Olhe o que tem dentro. — Entreguei-lhe o envelope.
Esperei que ela olhasse, depois observei seus olhos correndo
pelas palavras. Quando terminou de ler, ela se jogou os meus
braços.
— Viu, faz meses que sou legalmente casado com você.
— Todo esse tempo me dizendo não, eu te odeio! — Ela deu
um tapa no meu peito. Depois foi até a mesa, onde havia deixado
seus materiais de estudo.
— Você demorou demais e feriu meu ego de novo. Eu sou
um incendiário, se não fizesse nada eu não ia honrar as bolas que
tenho — ri baixinho, enquanto ela assinava os papéis de
casamento. — Possivelmente eu estivesse esperando que você
terminasse aquele projeto. Quero uma lua de mel. Vamos para a
nossa casa em Aspen.
Ela correu para mim, e eu a peguei apertando-a firme de
encontro ao meu peito.
— Você é meu marido agora. — Ela sorriu, os olhos
brilhantes como estrelas numa noite sem nuvens.
— Eu sou seu marido desde o dia que você me escolheu. —
Segurei seu queixo. — E eu já era seu, bem antes disso. Esses
papéis são mera formalidade. Agora, faça as malas. Quero ver o
quanto aguentamos transar antes que nossas bundas congelem.
Jenny me beijou, e eu a girei pela sala. Éramos um casal de
apaixonados que havia vencido a morte e lidado com perdas
irreparáveis.
Merecíamos um pouco de descanso.
— Eu vou arrumar agora.
— Agora não.
— Por quê? — Franziu o cenho. — Eu aceitei seu pedido. —
Sorri largamente. Ela sabia que eu não tinha todo os parafusos na
cabeça.
— Você disse que ia me dar o que tanto pedia, se eu
aceitasse. — Cruzei os braços. — A ordem dos fatores não altera o
resultado, eu ainda quero o que me prometeu.
— Você não está cansando?
— Para você eu sempre tenho energia extra. Já não deixei
isso muito claro?
Ela balançou a cabeça afirmativamente.
— Mas você me enganou, agora se quiser minha bunda, vai
ter que me pegar. — Ela ergueu as mãos, andando para trás.
— Eu não quero a sua bunda, eu quero o seu cuzinho. —
Esfreguei as mãos, sorrindo como o filho da puta que eu era.
Era claro que íamos fazer nada agora, mas não custava nada
provocá-la um pouco. Quando eu a fodesse daquela maneira, ela
tinha que estar subindo pelas paredes.
— Não era para você estar correndo, bean chéile[22]?
Jenny disparou em direção ao quarto. Eu estava indo para
ela quando alguém bateu à minha porta.
Estranhei, mas vesti a calça descartada no chão e fui
atender.
Provavelmente seria a mãe da minha mulher, para entregar
Cassie.
Lysander já deveria estar chegando do trabalho e nós
precisávamos esconder as crianças. Era uma metáfora, óbvio, mas
o bastardo estava tão mergulhado nesse negócio de ser pai, que
vivia mais surtado que o normal.
Todos os dias queria examinar as crianças, ver se estava
tudo bem. Ele nem estava dormindo, porque a época das doenças
respiratórias estava começando.
Ele era médico, sabia das coisas.
— Boris? — Franzi o cenho.
— Senhor, o Rafael mandou chamá-lo. — Pelo tom de voz,
eu soube que alguma coisa estava acontecendo. — Ele o espera na
sala de reuniões do Complexo. As crianças já estão lá, por favor,
leve sua esposa.
— Diga-lhe que descerei em quinze minutos.
— Sim, senhor.
O que diabos estava acontecendo?

***
Meu irmão andava de um lado para o outro, enquanto seguia
tentando se comunicar com os outros. Há cerca de meia hora, ele
não parava de fazer ligações, Para Heylel, Lysander e Razhiel.
— Por que esses bastardos não me atendem?
— Calma, amor. — Amira segurava Mikhail, enquanto tentava
acalmar o marido. — Eles devem estar ocupados.
Não.
Era quase uma regra sempre atender as chamadas de
Rafael. Ainda mais quando ele não parava de ligar.
— Lysander, assim que você ver a porra do meu recado,
retorne! — Ele olhou para mim. — Você já ligou para o hospital,
Gabriel? — Acenei.
— Lysander saiu faz três horas.
Não queria dar margem para pensamentos ruins, mas, desde
que eu e Jenny chegamos no Complexo, pude perceber que algo
estava acontecendo.
Parecia um presságio, que eu ou qualquer um de nós não iria
ignorar.
— Razhiel, onde diabos você se meteu?
— Ele tinha me dito que ia encontrar com Chronus — Jenny
falou. Desde que nós chegamos, ela esteve quieta, tentando manter
Cassie distraída com o cavalo de rabo colorido, que era seu
brinquedo favorito.
Mas a minha filha estava impaciente. Naquele horário,
Lysander já teria passado no mínimo uma hora ao seu lado.
— Ligue para Chronus, Gabriel. — Meu irmão esfregou o
cabelo. — Vou tentar falar com Heylel de novo.
Nenhuma das nossas tentativas foram bem-sucedidas. Os
telefones estavam desligados ou fora de área, às vezes chamando
até cair.
Era uma merda, e só tornava o humor do meu irmão ainda
pior.
— Por que você está tão preocupado, Rafael? — Amira
questionou, e a respeito de toda tensão que estava se construindo
eu acho que ela era a única com coragem para questioná-lo.
— Eles desaparecem, não atendem as minhas ligações.
— Eles não poderiam estar com alguém? — Jenny perguntou
baixinho. — Tipo um encontro?
Rafael negou, porém nem ele mesmo sabia explicar por que
estava tão tenso.
O som da porta da sala de reuniões abrindo chamou nossa
atenção, Boris e seu filho Kade entraram, arrastando um Lysander
sujo de terra, ensanguentado e semiconsciente.
— Fomos atacados — rosnou, com o sangue escorrendo de
sua boca.
— Por que não usou o dispositivo?! — Amira gritou. — Por
quê?
— Não... houve... tempo. — Pude ver o quão ruim ele estava.
Lysander não conseguia ficar em pé sozinho e vê-lo daquela
maneira me destruiu por completo.
— E os outros? — Rafael segurou Lysander e o carregou até
o sofá. — Irmão, Por favor, me diga e os outros?
— Sinto muito. — Foi a única coisa que ele conseguiu dizer
antes de desmaiar.
Eu senti como se todo o sangue se esvaísse do meu corpo,
um medo absurdo me devorava por inteiro.
Quem havia conseguido deixar Lysander naquelas
condições?
— Ra... fael, o seu telefone. — A voz de Amira soou
embargada.
Estávamos entrando no inferno de novo.
Eu plena tinha certeza.
— Permita que possamos ouvir — eu pedi enquanto
verificava Lysander.
— Onde você está? — Rafael perguntou, mas ninguém
respondeu. — Irmão?
— Nós estamos com ele, e, em breve, o enviaremos numa
caixa.
A linha ficou muda.
Trecho do próximo livro

Um balde de água me despertou.


— Que recepção calorosa. — Cuspi água na cara do
bastardo que estava mais perto. — A quem devo a honra?
Enquanto ele me encarava, eu tentei entender a minha
condição, e não foi preciso mais que alguns instantes para eu saber
que as coisas pareciam interessantes demais.
Eu havia sido pendurado, mãos e pernas presos por
correntes. Tinha quase nenhuma mobilidade, não só isso eles me
deixaram nu.
— Por que você está me olhando desse jeito? — O homem
vociferou. — Não me encare, seu filho da puta.
Ele esmurrou meu rosto, o gosto de sangue explodindo na
minha boca causou-me um pouco de satisfação.
— Conheço garotas que batem mais forte. — Sorri, lambendo
o sangue. — Delícia.
Por enquanto, não tinha visto nenhuma maneira de escapar,
mas em breve eu encontraria.
Ou então, eu mesmo criaria a minha oportunidade, e o
homem alto, forte e de pele escura, não ia gostar nada.
— Ouvi dizer que existe um de vocês que não sente dor. —
Ele avaliou o meu rosto, eu pude ver o asco. — Isso é verdade?
Como se eu fosse lhe dizer, filho da puta.
— Por que não tenta descobrir? — Arqueei a sobrancelha. —
Você tem ferramentas legais.
— Farei exatamente isso e, quando eu começar, você vai
desejar não ter nascido.
— Vamos, eu estou ansioso.
Ele foi até a mesa e começou a testar algumas coisas. Ele
tentava passar a imagem de superioridade, mas nos breves
instantes em que mexia num par de facas, notei que suas mãos
tremiam.
Todos ali consideravam que eu estava em desvantagem, mas
era o contrário.
Em breve, eles saberiam.
— Você sente dor, demônio? — O homem se aproximou de
mim outra vez. Em sua mão, havia uma faca pequena. — Grite para
mim.
Era isso, estávamos iniciando o jogo.
Ele me encarou enquanto começava a deslizar a faca por
meu peito.
— Grite! — Meu sorriso alargou, eu não deixei de encará-lo.
Ele tinha que saber o monstro que havia levado para casa.
— Isso vai ser tão divertido.
Minhas palavras marcaram o início do seu pesadelo.
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SÚMARIO

PRÓLOGO
Regan Tierney O’Vaugh
1
Gabriel Demonidhes
2
Gabriel Demonidhes
3
Gabriel Demonidhes
4
Gabriel Demonidhes
5
Gabriel Demonidhes
6
Jenny Monroe
7
Jenny Monroe
8
Gabriel Demonidhes
9
Gabriel Demonidhes
10
Gabriel Demonidhes
11
Jenny Monroe
12
Jenny Monroe
13
Jenny Monroe
14
Jenny Monroe
15
Jenny Monroe
16
Jenny Monroe
17
Gabriel Demonidhes
18
Gabriel Demonidhes
19
Jenny Monroe
20
Jenny Monroe
21
Jenny Monroe
22
Jenny Monroe
23
Gabriel Demonidhes
24
Gabriel Demonidhes
25
Gabriel Demonidhes
26
Jenny Monroe
27
Gabriel Demonidhes
28
Gabriel Demonidhes
29
Jenny Monroe
30
Jenny Monroe
31
Gabriel Demonidhes
32
Jenny Monroe
33
Jenny Monroe
34
Jenny Monroe
35
Jenny Monroe
36
Jenny Monroe
37
Jenny Monroe
38
Gabriel Demonidhes
39
Jenny Monroe
40
Gabriel Demonidhes
41
Jenny Monroe
42
Gabriel Demonidhes
43
Gabriel Demonidhes
44
Jenny Monroe
45
Gabriel Demonidhes
46
Gabriel Demonidhes
47
Jenny Monroe
48
Jenny Monroe
49
Gabriel Demonidhes
50
Jenny Monroe
51
Gabriel Demonidhes
52
Gabriel Demonidhes
53
Jenny Monroe
54
Gabriel Demonidhes
55
Jenny Monroe
56
Jenny Monroe
57
Gabriel Demonidhes
58
Gabriel Demonidhes
59
Jenny Monroe
60
Jenny Monroe
61
Jenny Monroe
62
Gabriel Demonidhes
63
Rafael Demonidhes
64
Gabriel Demonidhes
65
Gabriel Demonidhes
66
Gabriel Demonidhes
67
Gabriel Demonidhes
68
Gabriel Demonidhes
69
Jenny Monroe
70
Jenny Monroe
Epílogo
Gabriel Demonidhes
Trecho do próximo livro
Outros livros da Autora
Redes Sociais
SÚMARIO
[1]
Do irlandês: Eu te amo.
[2]
Treino comum a esportes de combate.
[3]
Estrela Michelin é nota de excelência de um restaurante. Três estrelas significam que o
local é excepcional.
[4]
Do irlandês: Pequena.
[5]
Raça de grande porte, oriunda da Turquia. São criados para pastoreio, o Kangal pode
ser um cão letal, se for criado para guarda.
[6]
Cão de grande porte, nascido da cruza entre husky siberiano e lobo.
[7]
Do irlandês: Pequena.
[8]
E o prazer será meu.
[9]
Emissora de TV em Nova York.
[10]
Termo em inglês, utilizado para caracterizar jovens mulheres que admiram um cantor de
música pop ou rock, seguindo-o em suas viagens em busca de envolvimento com seu
ídolo.
[11]
Foda-se seu filho da puta, em italiano.
[12]
Foda-se você, bastardo de merda, em italiano.
[13]
Tortinhas crocantes de massa podre e cobertas de creme e frutas para decorar.
[14]
Cão de grande porte, utilizado para pastoreio.
[15]
Do irlandês gaélico: Eu te amo.
[16]
Do irlandês: Homem de pedra. No texto, está relacionado a insensibilidade, frieza.
[17]
Do irlandês: Filho do meu amor.
[18]
Do italiano: Pequena criança, me perdoe por não ser tão forte.
[19]
Do italiano: Obrigado por proteger sua irmã. Você a salvou, meu amor.
[20]
Do irlandês: Filho do meu amor.
[21]
Do irlandês: Case comigo.
[22]
Do irlandês: Esposa

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