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A CÂMARA ESCURA

Minette Walters

Título Original: “THE DARK ROOM”

Tradutor: Luísa Vaz Pinto

Editorial Presença, Lisboa, 1999, 1.a edição


Para Colleen E em memória de meu pai

«Esquecemos porque temos de o fazer

e não porque o queiramos.»

Matthew Arnold (1822—1888), Absence

«A ideia do Falso Eu foi apresentada por R. D. Laing que adaptou algumas


teorias de Jean—Paul Sartre. O Falso Eu é uma imagem de nós próprios
criada artificialmente para coincidir com expectativas, enquanto o verdadeiro
eu permanece escondido e protegido.»

Brian Masters, Killing for Company


PRÓLOGO

Com a pequena cara angulosa, onde era visível o descontentamento, a


rapariga, de doze anos, sentou—se e procurou as cuecas entre as folhas da
floresta. Finalmente começava a entender que ter sexo com Bobby Franklyn
não era assim tão bom. Calçou os sapatos e deu—lhe um pontapé com força.
— Levanta—te Bobby — disse ela com rispidez. — É a tua vez de
encontrares o maldito cão.
Ele rebolou e ficou deitado de costas.
— Daqui a um minuto — murmurou ele sonolento.
— Não, agora. A mãe esfola—me viva se o Rex chegar a casa antes de
mim. Ela não é estúpida, sabes. — Levantou—se e enterrou o salto do sapato
na coxa nua do rapaz fazendo—o girar de um lado para o outro, num desejo
infantil de magoar.
— Levanta—te.
— Está bem, está bem. Pôs—se de pé amuado, puxando as calças para
cima. — Sabes que isto já está a chatear—me. Não vale a pena estarmos
juntos, se de cada vez que isso acontece temos de ir à procura do cão.
Ela afastou—se dele. — Não é por causa do Rex que quase não vale a
pena estarmos juntos. — Havia lágrimas de humilhação nos olhos dela. —
Devia ter dado ouvidos à minha mãe. Ela diz sempre que é preciso um
verdadeiro homem para o fazer como deve ser.
— Sim, bem — disse ele puxando o fecho das calças —, seria muito
mais fácil se eu não tivesse de fingir que tu és a Júlia Roberts. E de qualquer
maneira o que é que a tua maldita mãe sabe sobre o assunto? Há anos que
ninguém lhe dá uma boa queca.
Nutria, em relação a estas raparigas, poucos sentimentos que não fossem
puramente animais, mas começava a odiá—las rapidamente quando
criticavam a sua performance. A necessidade de bater nas suas pequenas
caras trocistas tornava—se irresistível.
A rapariga começou a afastar—se.
— Odeio—te, Bobby. Realmente odeio—te e vou fazer queixa de ti. —
Deu umas pancadinhas no relógio. — Três minutos. É o máximo de tempo
que consegues mantê—lo erecto. Três minutos nojentos. É isso que tu
chamas uma boa foda? Olhou triunfantemente por cima do ombro, viu
qualquer coisa na expressão dele que a alertou para o perigo em que se
encontrava, e desatou a fugir cheia de um medo repentino. — Rex! — gritou
ela. — Rex! Ele mata—te se me tocares, soluçava ela, o pequeno corpo
magro voando através das árvores.
Mas era Bobby que ia cometer a matança. Estava totalmente
descontrolado. Atirou—se a ela, deitando—a ao chão, respirando
intensamente ao tentar separar as pernas dela, que se moviam agitadamente.
— Puta — grunhiu ele. — Sua grande puta!
O medo deu—lhe força. Com dificuldade, a rapariga libertou—se dele,
chamando o cão, escorregou num monte de folhas podres e resvalou para
uma vala larga, que sulcava o leito da floresta. Caiu de pé, apenas a alguns
centímetros do corpulento lobo—de—alsácia, que rosnava pronto para atacar.
— Vou mandá—lo atirar—se a ti e desfazer—te em pedaços. E não me
vou importar nem o vou mandar parar. — Viu, com satisfação, que Bobby
estava branco. — És mesmo um TARADO! — gritou ela.
Foi então que reparou que o Rex estava a rosnar—lhe a ela e não a
Bobby e que o que fizera empalidecer o namorado não era o medo do cão,
mas o horror atordoado perante o que o cão estava a guardar. Viu
rapidamente qualquer coisa meio desenterrada e repugnantemente humana,
antes que o pânico a fizesse subir de novo a encosta, soluçando espavorida.
1
Agarrou—se com tenacidade ao sono, envolvida em sonhos ilusórios.
Mais tarde explicaram—lhe que não eram nada sonhos, apenas a realidade
penetrando através da confusão à medida que ia emergindo da profunda
inconsciência até ficar completamente consciente, o que ela achava difícil de
aceitar. A realidade era demasiado deprimente para dar lugar a qualquer tipo
de contentamento. O seu acordar foi penoso. Apoiaram—na em almofadas e,
de vez em quando, via—se reflectida no espelho da mesa—de—cabeceira,
uma imagem pálida, de cabeça rapada e com um olho tapado — quase
irreconhecível — e tinha então um desejo instintivo de se afastar dela e
deixar que representasse o seu papel sozinha. Não era ela. Um homem
enorme e rude debruçou—se sobre ela e disse—lhe que ela tinha tido um
acidente de carro. Mas não lhe explicou nem onde nem quando.
— Você é uma mulher cheia de sorte — disse ele.
Ela lembrava—se disso. Esquecera—se de tudo o resto. Sentia o tempo
a passar, ouvia as pessoas falarem—lhe, mas preferia continuar a dormitar e
ter sonhos ilusórios.
Estava acordada. Via. Ouvia. E sentia—se segura com as agradáveis
vozes femininas, que suavizavam, acalmavam e a mimavam. Respondia—
lhes interiormente, mas nunca em voz alta, pois agarrava—se à falsa
protecção da ausência intelectual.
— Então hoje está connosco? — perguntavam as enfermeiras
aproximando o rosto do dela.
Sempre estive.
— Está aqui a sua mãe para a ver.
Eu não tenho mãe. Tenho uma madrasta.
— Vá lá, querida. Tem os olhos abertos. Sabemos que consegue ouvir—
nos. Quando vai começar a falar connosco?
— Quando estiver preparada... quando estiver preparada... quando eu
quiser lembrar—me.

ACIDENTE DE TRÂNSITO
Comunicado cerca das 21.45 h a 13.6.94.
Os polícias Gregg e Hardy chegaram ao local às
22.04 h. Local: Aeródromo em desuso, Stoney Bassett, Hants. Um
veículo envolvido. Rover Cabriolei preto automático Matrícula número JIN
IX — veículo para a sucata. Condutor: Jane Imogen Nicola Kingsley
Inconsciente e a precisar de tratamento
de emergência. Segundo a carta de condução nasceu a 26.09.59
e a morada é 12 Gienavon Gdns, Richmond,
Surrey.
Filha de magnate envolvida em acidente misterioso
Foi comunicado ontem, ao fim da noite, que Jane Kingsley, de 34 anos
de idade, fotógrafa de moda e única filha de Adam Kingsley de 66 anos,
presidente milionário da Franchise Holdings Ltd., foi encontrada
inconsciente na sequência de um misterioso acidente no aeródromo
abandonado, de Stoney Bas—sett, 15 quilómetros a sul de Salisbúria. O
senhor Andicw Wilson, de 23 anos de idade e a sua namorada, Jenny Ragg
de 19, que se encontravam por acaso no local às 21.45 h, pediram
imediatamente socorros.
«O carro estava desfeito» disse o senhor Wilson. «A menina Kingsley
teve muita sorte. Se ela estivesse dentro do carro, quando este embateu no
pilar de cimento, teria morrido esmagada. Estou contente por termos podido
ajudar.»
A polícia descreve o facto de Jane Kingsley ter escapado como um
verdadeiro milagre. O carro, um Rover Cabriolei preto e automático, tinha
colidido de frente com um pilar de cimento, que em tempos foi o suporte de
canto de um hangar. A polícia acha que a menina Kingsley foi projectada
através da porta aberta segundos antes do embate.
«Aquele pilar é a única estrutura daquele aeródromo que ainda se
mantém de pé» declarou o polícia Gavin Hardy «e ainda não percebemos
como ela embateu nele». Não estava mais ninguém no carro e aparentemente
não há mais nenhum veículo envolvido no acidente.
A madrasta de Jane, a senhora Betty Kingsley de 65 anos, ficou
chocada com as notícias, que surgiram poucos dias depois do casamento da
enteada ter sido subitamente cancelado. Esta manhã, na sua casa em
Hellingdon Hall, onde ela e o senhor Kingsley vivem há quinze anos, chorou
amargamente e disse que responsabilizaria o noivo da menina Kingsley, Leo
Wallader de 35 anos de idade, se esta não recuperassse: «Ele tratou—a tão
mal.» Foram as suas palavras.
A polícia admitiu esta manhã que a menina Kingsley tinha estado a
beber antes do acidente. «Tinha uma elevada percentagem de álcool no
sangue» informou um porta—voz. A menina Kingsley encontra—se
inconsciente no hospital Odstock em Salisbúria.
Wessex Post — 14 de Junho
2
Acordou uma noite com o medo a sugar—lhe o ar dos pulmões. Abriu
os olhos, esforçando—se por ver na escuridão. Estava num quarto escuro —
a sua câmara escura, e não estava sozinha. Alguém ou alguma coisa rondava
na sombra sem que ela o pudesse vislumbrar.
O QUÊ?
Medo... medo... MEDO...
Sentou—se bruscamente, o suor a escorrer—lhe pelas costas enquanto
os gritos saíam, tumultuosamente, da sua boca aberta.
A luz inundou o quarto. Foi reconfortada por uma mulher com um peito
macio, braços fortes e uma voz doce.
— Vá lá, Jane, vá lá. Está tudo bem. Acalme—se minha querida. Teve
um pesadelo.
Mas ela sabia que não era verdade. O seu terror era real. Estava qualquer
coisa na câmara escura.
— O meu nome é Jinx — murmurou ela. — Sou fotógrafa e este quarto
não é o meu. — Encostou a cabeça rapada ao uniforme branco e engomado e
sentiu a amargura da derrota. Não haveria mais sonhos doces. — Onde estou?
Quem é você? Porque estou aqui?
— Está na Clínica Nightingale em Salisbúria — respondeu—lhe a
enfermeira — e eu sou a irmã Gordon. Teve um acidente de carro, mas agora
está bem. Vamos ver se conseguimos que volte a adormecer.
Jinx permitiu que mãos firmes lhe entalassem os lençóis.
— Não vai apagar a luz, pois não? — pediu ela. — Não consigo ver na
escuridão.

Processo de inquérito à condução da menina Kingsley por alcoolemia


Data: 22 de Junho de 1994
De: Sargento Geoff Halliwell
A menina Kingsley foi projectada do seu veículo antes de este embater
num pilar de cimento num dos cantos do aeródromo. Estava inconsciente
quando foi encontrada, às 21.45 de segunda—feira, dia 13 de Junho, pelo
senhor Andrew Wilson e a menina Jenny Ragg. A menina Kingsley sofreu
vários traumatismos graves e várias contusões nos braços e na cara quando
foi projectada do carro. Permaneceu inconsciente durante três dias e estava
muito confusa quando finalmente voltou a si. Não se lembrava do acidente e
diz que não sabe por que razão se encontrava no aeródromo. Análises de
sangue realizadas às 00.23 (14.6.94) mostraram que tinha 150 mg de álcool
por 100 ml de sangue. Foram encontradas duas garrafas de vinho, vazias, no
carro quando este foi examinado no dia seguinte.
Os polícias Gregg e Hardy tiveram uma curta entrevista com a menina
Kingsley pouco tempo depois de esta ter recuperado a consciência, mas ela
estava demasiado confusa para lhes dizer alguma coisa além de que julgava
ser sábado, dia 4 de Junho (isto é, 9 dias antes do incidente, no dia 13.6.94)
e que ia a caminho de Londres para o Hampshire. Desde esta entrevista
(cinco dias) continua num estado de torpor e incomunicável. As visitas foram
proibidas por ordem dos médicos assistentes.
Foi—lhe diagnosticada amnésia pós—traumática, em consequência do
embate. Os pais comunicaram que ela passou a semana de 4 a 10 de Junho
com eles (embora a menina Kingsley não se lembre disto) antes de voltar
para Richmond, na tarde de sexta—feira, 10 de Junho, a seguir a uma
chamada telefónica. Afirmaram que ela estava de bom humor e que
esperava, com alegria, o seu casamento a 2 de Julho. Esperavam—na no
trabalho, na segunda—feira dia 13 de Junho, mas não apareceu. Dirige o
seu próprio estúdio fotográfico em Pimlico e os seus empregados declararam
que ficaram preocupados por ela não ter aparecido. Deixaram várias
mensagens no atendedor de chamadas, no dia 13 de Junho, mas não
receberam qualquer resposta.
Em entrevistas feitas pela polícia de Richmond aos vizinhos, em
Glenavon Gdns, o coronel e a senhora Clancey revelaram que ela tinha
tentado suicidar—se no domingo, dia 12 de Junho. O coronel Clancey, cuja
garagem fica contígua à da menina Kingsley, ouviu o motor do carro a
trabalhar com a porta fechada. Quando foi tentar ver o que se passava,
encontrou a garagem dela cheia de fumo e a menina Kingsley meio
adormecida ao volante. Puxou—a para fora e conseguiu reanimá—la, não
comunicando no entanto este incidente a pedido da menina Kingsley. Ele e a
sua mulher estão profundamente consternados por ela ter tentado suicidar—
se novamente.
Tanto o coronel e a senhora Clancey, como o senhor e a senhora Adam
Kingsley referiram—se ao senhor Leo Wallader que até há pouco tempo era
o noivo da menina Kingsley. Parece que partiu de Glenavon Gdns na sexta—
feira, dia 10 de Junho, depois de dizer à menina Kingsley que não podia
casar com ela porque tencionava casar com a sua melhor amiga, Meg
Harris. O senhor Wallader e a menina Harris não estão disponíveis para
uma entrevista neste momento. De acordo com Sir Anthony Wallader (o pai)
estão a viajar em França, planeando voltar em Julho.
Tendo em vista um certificado da inspecção do carro da menina
Kingsley, que põe de parte qualquer falha mecânica e o facto de as hipóteses
de o veículo ter embatido no pilar de betão por acaso serem quase nulas,
parece claro que ela provocou o embate intencionalmente. Por isso, e a não
ser que recupere a memória para poder explicar os acontecimentos que
levaram a este incidente, Gregg e Hardy pensam que esta foi uma segunda
tentativa de suicídio, em estado de alcoolemia. O senhor Adam Kingsley, o
pai, ofereceu—se para pagar os custos dos serviços de emergência.
Entretanto a menina Kingsley foi transferida para a Clínica Nightingale,
onde está a ser tratada pelo doutor Protheroe. O advogado do senhor
Kingsley está a pressionar—nos para que tomemos uma decisão sobre a
instauração de um processo contra a menina Kingsley. A minha opinião é
que o melhor é não fazer nada, uma vez que o pai está disposto a pagar a
conta, por ela se encontrar perturbada e por ter escolhido um local tão
deserto. Por favor, dê—nos a sua opinião.
3
Quarta—feira, 22 de Junho, Clínica Nightingale, Salisbúria,
Wiltshire — 8.30 h

COMO A REALIDADF ERA MONÓTONA. Mesmo o sol que


brilhava, através das janelas, era menos intenso do que os seus sonhos.
Talvez tivesse qualquer coisa a ver com a ligadura sobre o olho direito, mas
ela achava que não. Estar consciente era pesado e enfadonho e tão limitativo
que sentia apenas uma depressão terrível. Um médico grandalhão entrou
enquanto brincava com o pequeno—almoço, disse—lhe uma vez mais que
ela tinha tido um acidente e que a polícia gostaria de falar com ela. Ela
encolheu os ombros.
— Eu não vou a lado nenhum.
Teria acrescentado que desprezava os polícias se ele tivesse ficado para
a ouvir, mas ele desaparecera novamente antes de ela ter tido tempo de
verbalizar o seu pensamento.
Não se lembrava da primeira entrevista com a polícia, no Hospital
Odstock e, delicadamente, negou ter estado com os dois polícias de uniforme
que tinham ido ao seu quarto. Explicou que não conseguia lembrar—se do
acidente e que, na verdade, não conseguia lembrar—se de nada desde o
momento em que deixara a sua casa e o noivo em Londres na manhã anterior.
Os polícias eram parecidos um com o outro, homens altos e impassíveis,
cabelos loiros e faces rosadas, que mostravam o seu desconforto ao ouvir as
respostas dela, girando os bonés, ao mesmo tempo, entre os dedos. Chamou
—lhes Tweedledum e Tweedledee e riu—se para dentro porque eram muito
mais divertidos do que a cabeça dorida o olho ligado e os braços
terrivelmente pisados. Perguntaram—lhe para onde é que ela ia, ao que ela
respondeu que se dirigia a casa dos pais, em Hellington Hall.
— Tenho que ajudar a minha madrasta nos preparativos para o
casamento — explicou ela. Ouviu—se a si própria anunciar o facto com
prazer, enquanto a voz do cinismo murmurava na sua cabeça. Leo vai fugir
antes de se casar com uma noiva careca e zarolha.
Agradeceram—lhe e foram—se embora.
Duas horas mais tarde, a madrasta desfazia—se em lágrimas junto à
cama dela, deixando escapar que o casamento tinha sido cancelado, que era
quarta—feira, vinte e dois de Junho, que Leo a deixara por Meg há doze dias
e que, na verdade, ela tinha batido com o carro num pilar de cimento numa
tentativa deliberada de se matar.
Jinx olhou fixamente para as suas mãos desfiguradas pelas cicatrizes.
— Eu não me despedi ontem de Leo?
— Ficaste inconsciente durante três dias e depois estavas muito confusa.
Estiveste no hospital até sexta—feira e eu fui ver—te, mas não sabias quem
eu era. Já cá vim duas vezes e olhavas para mim, mas não querias falar
comigo. Esta é a primeira vez que me reconheces. O pai está muito
perturbado com tudo isto. — A boca dela tremia pateticamente. —
Estávamos com tanto medo de te perder.
— Vim para ficar contigo. É por isso que estou aqui. Tu e eu vamos
confirmar o que foi combinado para o casamento. — Se ela o dissesse
devagar e com clareza, Betty teria de acreditar nela. Mas não, Betty era uma
idiota. Sempre o tinha sido. — A semana que começa a quatro de Junho. Está
na agenda há meses...
As lágrimas da senhora Kingsley escorriam—lhe pelas faces
rechonchudas, formando pequenos riachos rosados, na cara demasiado
empoada.
— Minha querida, já cá estás...Vieste para baixo há uma semana e meia
e passaste a semana com o pai e comigo, fizeste tudo o que era suposto fazer
e depois voltaste para casa e encontraste o Leo a fazer as malas. Não te
lembras? Ele foi viver com a Meg. Ai, era capaz de matá—lo Jinx, realmente
era. — Torcia as mãos. — Sempre te disse que ele não prestava, mas tu não
me deste ouvidos. E o teu pai achava a mesma coisa. «Ele é um Wallader,
Elizabeth...» — Continuou a falar, com o peito enorme a arfar tragicamente
dentro de um vestido de malha demasiado apertado.
A ideia de que tinham passado quase três semanas, sem que ela se
lembrasse de um único dia, estava tão longe da sua compreensão que
resolveu fixar a atenção no que era real. Cravos encarnados e lírios brancos
numa jarra na sua mesa—de—cabeceira. Janelas francesas que davam para
um terraço com um pavimento de lajes e, mais além, um jardim bem cuidado.
A televisão num canto. Cadeirões de couro de cada lado de uma mesinha de
nogueira, achava ela, e um toucador também de nogueira. A casa de banho à
esquerda. A porta para o corredor à direita. Para onde é que Adam a tinha
mandado desta vez? Para um lugar muito caro, pensou ela. A Clínica
Nightingale, dissera —lhe a enfermeira. Em Salisbúria. Mas porquê
Salisbúria se ela vivia em Londres?
O choro lamuriento de Betty veio interromper—lhe os pensamentos.
— Queria que não te tivesses incomodado tanto. Não fazes ideia como o
teu pai reagiu mal. Ele acha que foi um insulto para ele. Nunca pensou que
alguém pudesse levar a sua filhinha a fazer uma coisa tão — procurou uma
palavra — pateta.
Filhinha? De que estava Betty a falar? Ela nunca tinha sido a filhinha de
Adam — o seu cãozinho amestrado talvez — mas nunca a sua filhinha. De
repente sentiu—se muito cansada.
— Não percebo.
— Embebedaste—te e tentaste suicidar—te, minha querida. O teu carro
foi para a sucata. — A senhora Kingsley tirou uma fotografia de um jornal,
da sua carteira, e colocou—a no colo da enteada. — Foi assim que ficou. É
uma bênção que tu tenhas sobrevivido, de facto é. Apontou a data no canto
superior esquerdo do recorte. — Dia 14 de Junho, o dia a seguir ao acidente.
E a data de hoje — disse ela apresentando outro jornal — estás a ver, dia
vinte e dois, uma semana depois.
Jinx examinou a fotografia com curiosidade. A massa distorcida de
metal, iluminada por focos da polícia, tinha a qualidade fantástica da arte
surrealista. Era uma silhueta rígida e, olhando para as distorções do chassis e
do ângulo oblíquo em que o fotógrafo tinha tirado a fotografia, parecia
retratar um punho brilhante de metal agarrado à espada erguida do pilar. Era
uma boa fotografia, pensou ela, imaginando quem a teria tirado.
— Isto não é o meu carro.
A madrasta pegou na mão dela e fez—lhe festas.
— O Leo não vai casar contigo, Jinx. O teu pai e eu tivemos de mandar
cartões a toda a gente explicando que o casamento tinha sido cancelado. Ele
quer casar com a Meg.
Ela observou uma lágrima a pingar do queixo empoado para a sua
própria palma da mão.
— Meg? — repetiu ela. — Está a falar da Meg Harris? Porque quereria
Leo casar com Meg? Meg era uma puta. Sua puta... sua puta... sua PUTA! O
horror, apoderou—se do seu espírito e com a mão apertou a boca, sentindo a
bílis a subir na garganta.
— Ela sempre tentou obter tudo o que queria desde que a conheces e
agora roubou—te o marido. Sempre foste demasiado confiante, minha
querida. Nunca gostei dela.
Jinx deteve o seu olhar, arregalado, na madrasta. Aquilo não era
verdade. Betty sempre adorara Meg, principalmente porque Meg era tão
pouco crítica nos seus afectos. Não lhe fazia diferença se Betty Kingsley
estava bêbada ou sóbria. «Pelo menos Meg acha que eu tenho alguma coisa
sensata a dizer», era a lengalenga agressiva da madrasta sempre que estava
bastante bebida e que toda a gente a ignorava. A ironia era que Meg não
conseguia tolerar a sua própria austera mãe mais do que algumas horas. «Tu e
eu devíamos trocar», dizia ela muitas vezes. «Pelo menos a Betty não se faz
constantemente de mártir.»
— Quando é que isso foi decidido? — conseguiu Jinx dizer finalmente.
— Depois do acidente?
— Não, querida. Antes. Tu voltaste para Londres, fez esta sexta uma
semana, depois do Leo te ter telefonado durante a tarde. Que homem horrível.
Telefonava todos os dias, fingindo que ainda gostava de ti, e depois deixou
cair a bomba na noite de sexta—feira. Suponho que também não foi muito
simpático na maneira como o fez. — Limpou novamente os olhos com o
lenço. — Depois, no domingo, o coronel Clancey, teu vizinho, salvou—te da
garagem antes que morresses intoxicada, mas não teve o bom senso de nos
telefonar e dizer que tu precisavas de ajuda. — Engoliu com dificuldade. —
Mas estavas tão calma no sábado, quando telefonaste para casa a dizer ao pai
que o casamento tinha sido cancelado, que nunca nos passou pela cabeça que
fosses fazer uma idiotice.
Talvez ela tivesse estado a mentir... Jinx mentia sempre... mentir fazia
parte dela... Jinx olhou para o recorte do jornal e reparou, entre os escombros,
no JIN da matrícula pessoal que o pai lhe oferecera como presente pelo seu
vigésimo primeiro aniversário. J. I. N. Kings—ley. Jane Imogen Nicola — os
nomes da mãe — os nomes mais odiados no mundo. JINXED! Tinha de
aceitar que era a fotografia do carro dela. Embebedaste—te... o coronel
Clancey salvou—te...
— Não há gás na minha garagem, — disse Jinx, fixando—se numa coisa
que conseguia compreender. — Ninguém tem gás na garagem.
A senhora Kingsley soluçou alto.
— Tinhas o motor do carro ligado com as portas fechadas. Se o coronel
não o tivesse ouvido, terias morrido no domingo. Puxou novamente a mão da
rapariga, os seus dedos gordos procurando o conforto que tentava dar. —
Prometeste—lhe que não o tentarias outra vez e agora ele gostaria de o ter
comunicado a alguém. — Não te zangues comigo, Jinx. As lágrimas corriam
sem parar, em rios de desgosto, e Jinx perguntava—se se seriam genuínas.
Betty sempre tinha guardado o seu afecto para os seus próprios dois filhos e
nunca para a rapariguinha reservada, filha da primeira mulher de Adam. —
Alguém tinha de to dizer e o doutor Protheroe achou que devia ser eu. O
pobre do teu pai está desfeito com tudo isto. Deste—lhe um grande desgosto.
«Porque é que ela o fez?» pergunta ele constantemente.
Mas Jinx não tinha resposta para isso. Porque sabia que Betty estava a
mentir. Ninguém, e muito menos Leo, poderiam levá—la ao suicídio: em vez
disso pensou nas incongruências da vida. Por que razão tratava ela o pai por
Adam enquanto a mulher, de vinte e sete anos, lhe chamava pai? Por
qualquer razão, anteriormente isso não parecera importante. Desviou o olhar
da cabeça da madrasta e olhou, fixamente, para o seu reflexo no espelho do
toucador, pensando de repente porque sentia tão pouco em relação a tanta
coisa.
Um homem jovem entrou no seu quarto, sem ser convidado. Uma
criatura alta e desajeitada com cabelos ruivos, até aos ombros, e sardas.
— Olá — disse ele, — encaminhando—se ao acaso na direcção da
janela de batente. Mexeu no puxador para cima e para baixo antes de se atirar
para uma das cadeiras de braços que se encontrava por perto. — O que andas
a tomar?
— Não sei.
— Heroína, crack, cocaína, MDMA? Qual delas? Ela olhou—o sem
expressão.
— Estou num centro de reabilitação para drogados? Ele franziu o
sobrolho:
— Não sabias?
Ela abanou a cabeça, negando.
— Estás na clínica Nightingale onde a terapia custa quatrocentas libras
por dia e toda a gente sai com as cabeças endireitadas.
A sua fúria era ENORME. Girava à volta da sua cabeça como um
enorme predador a espera de atacar.
— Então quem dirige este centro? — perguntou ela calmamente.
— O doutor Protheroe.
— É o homem de barba?
— Sim. — Levantou—se abruptamente. — Queres ir dar um passeio?
Preciso de me mexer senão enlouqueço.
— Não, obrigada.
— Está bem. — Junto da porta parou. — Uma vez encontrei uma raposa
numa ratoeira. Estava com tanto medo que tentava morder a perna para se
libertar. Tinha olhos como os teus.
— Libertaste—a?
— Não me deixou. Tinha mais medo de mim do que da ratoeira.
— O que lhe aconteceu?
— Vi—a morrer.
Algum tempo depois o doutor Protheroe voltou.
— Lembra—se de já ter falado comigo? — perguntou—lhe, puxando
uma das cadeiras de braços e sentando—se.
— Uma vez. Disse—me que eu tinha tido sorte.
— De facto, falámos algumas vezes. Já há alguns dias que está
consciente mas, de certa forma, não tem querido comunicar. Sorriu,
encorajando—a. — Lembra—se de ter falado comigo ontem, por exemplo?
Quantos ontens teria havido em que ela funcionara sem estar consciente
do que estava a fazer?
— Não, não me lembro. Desculpe. É psiquiatra?
— Não. Então o que é?
— Sou um médico.
A imagem pálida, no espelho, sorriu educadamente. Ele estava a mentir.
— Posso fumar? — Ele acenou afirmativamente e ela tirou um cigarro
de um dos pacotes que Betty tinha trazido, acendendo—o desajeitadamente,
pois era difícil focar apenas com um olho. — Posso fazer—lhe uma
pergunta?
— Claro.
— Não teria sido correcto informar—me, antes de eu falar com a
polícia, que o acidente se deu há vários dias?
Ele tinha uma cara bastante simpática, um pouco cansada, mas vivida e
receptiva. Como o seu casaco desportivo, que já tinha conhecido melhores
dias, e as calças de sarja com a bainha descosida, onde enfiara o salto. Era o
tipo de homem que, noutras circunstâncias, teria escolhido como amigo
porque parecia não ligar às convenções. Mas tinha medo dele e procurou
refúgio numa atitude formal.
Ele girava a caneta entre os indicadores.
— Dadas as circunstâncias achei melhor você dizer a verdade como a
entendesse.
— Que circunstâncias?
— Tinha no sangue o dobro do limite legal de álcool, quando se deu o
acidente. A polícia está a pensar se deve penalizá—la por isso, mas acho que
vão esquecer o assunto depois do que se passou esta manhã. Têm tendência a
ser cépticos, em relação ao diagnóstico do médico, mas menos no que diz
respeito ao dos próprios pacientes. Não vi mal nenhum em tentar provocar
um pouco de comiseração nos polícias Gregg e Hardy.
O reflexo dela sorriu para ele no espelho.
— Foi simpático. — Ela nunca tinha estado bêbada na sua vida, porque
vira Betty a cambalear pela casa demasiadas vezes para tentar competir com
ela. — Pode passar—me o cinzeiro? — Embebedaste—te e tentaste suicidar
—te. — Obrigada. Colocou—o em cima da cama, à sua frente. — O que
aconteceu realmente comigo, doutor Protheroe?
Ele inclinou—se para a frente, enfiando as mãos entre os joelhos.
Em poucas palavras, deixou o carro ir a cerca de sessenta e tal
quilómetros por hora, provocando um embate violento capaz de derrubar um
touro, depois foi projectada, esfolando o couro cabeludo, o olho e os braços.
O primeiro milagre é estar aqui, o segundo é não ter fracturado nada e o
terceiro é que, em breve, estará pronta para outra. Depois de o seu cabelo ter
crescido, por cima dos implantes de pele que tiveram que ser feitos, ninguém
saberá que teve um acidente. O preço que teve de pagar por tudo isso foi ficar
em estado de choque, sendo um dos sintomas amnésia pós—traumática. Tem
estado consciente, mas muito confusa, durante os últimos cinco dias e essa
confusão pode persistir durante mais algum tempo. Pense no seu cérebro
como num computador. Qualquer recordação que esteja guardada em
segurança tem boas hipóteses de não se perder, mas recordações que não
conseguiu guardar devidamente, por estar demasiado confusa, podem nunca
mais ser recuperadas. Assim, por exemplo, apesar de estar consciente, não se
deve lembrar de ter sido transferida do hospital de Odstock, ou mesmo da sua
primeira entrevista com a polícia.
Ela desviou o olhar para os jardins que ficavam em frente à sua janela.
— E a amnésia pós—traumática, também é normal? — perguntou—lhe
ela. — Não me lembro do acidente nem do que o provocou.
— Não fique impressionada com o termo «pós». Refere—se
simplesmente à amnésia decorrente de um trauma. Mas, em relação ao que
não se lembra antes do acidente, é denominado normalmente como amnésia
retrógrada. Não é pouco vulgar e parece depender da gravidade dos
ferimentos na cabeça. Falamos de perda de memória — continuou ele —
quando deveríamos falar de perda temporária. Aos poucos irá lembrar—se de
acontecimentos ocorridos antes do acidente, embora vá levar algum tempo a
conseguir encaixar todas as peças, porque poderá não se lembrar delas por
ordem cronológica. Também pode, embora seja menos provável, lembrar—se
de coisas que nunca aconteceram, simplesmente porque a sua memória terá
guardado planos que você própria fez para o futuro e poderá recordá—los
como sendo reais. O truque é evitar preocupar—se com isso. O seu cérebro,
tal como o resto do seu corpo, recebeu um choque e precisa de tempo para
ficar curado. A amnésia é isso.
— Compreendo. Isso significa que posso ir em breve para casa?
— Para casa dos seus pais? — perguntou ele.
— Não. Para Londres.
— Tem lá alguém que possa olhar por si, Jinx?
Ia falar em Leo quando se lembrou que, segundo a madrasta, ele já não
estava lá. Por favor, dizia a voz intrometida do cinismo, Leo tomar conta de
ti? Ah! Ah! Ah! Em vez disso não disse nada e continuou a olhar pela janela.
Não gostava que este homem a tratasse por Jinx, como se fossem íntimos,
quando o seu conhecimento dele se resumia apenas a uma conversa sobre um
estado que a estava a agitar profundamente. E ressentia—se que ele
assumisse que ela participava voluntariamente nesta conversa, quando a
única emoção que sentia era uma raiva enorme.
— O seu pai gostaria que você ficasse aqui, porque sente que olhariam
bem por si. No entanto, tudo depende do que preferir se achar que fica mais
feliz em Londres, podemos tratar da sua transferência desde que compreenda
que precisa de alguém que tome conta de si. Pelo menos a curto prazo.
O reflexo dela examinou—o.
— Adam está a pagar—lhe? Ele anuiu.
— Isto é uma clínica privada.
— E não um hospital?
— Não. Somos especialistas em terapia para pessoas viciadas
— disse—lhe ele. — Mas também oferecemos cuidados a
convalescentes.
— Eu não sou viciada em nada. — Embebedaste—te...
— Ninguém o está a sugerir. Ela inalou o fumo do cigarro.
— Então porque é que o meu pai lhe está a pagar quatrocentas libras por
dia para eu estar aqui? — perguntou—lhe calmamente. — Podia estar a
convalescer, num pequeno hospital, por menos dinheiro.
Ele estudou—a, vendo—a sentada na cama com a dignidade de um
Buda apenas com um olho.
— Como sabia que custa quatrocentas libras por dia?
— A minha madrasta disse—me — mentiu ela. — Conheço o meu pai
muito bem, doutor Protheroe e, assim, como seria de prever, foi a primeira
coisa que lhe perguntei.
— Ele avisou—me de que você não acreditaria em nada. O reflexo
sorriu—lhe.
— Certamente que não gosto que me mintam — murmurou ela.
— A minha madrasta disse—me que eu tentei suicidar—me. — Esperou
uma reacção dele mas não houve nenhuma. — Não acredito — continuou ela
sem entusiasmo —, mas acredito que Adam pagaria a um psiquiatra para me
curar se acreditasse nisso. Por isso que tipo de terapia é que ele comprou para
mim?
— Ninguém lhe está a mentir, Jinx. O seu pai queria muito que você
estivesse num ambiente em que pudesse recuperar no seu próprio tempo e à
sua maneira. Claro que temos psiquiatras e claro que oferecemos terapia para
os que a querem, mas eu sou precisamente aquilo que disse ser, simplesmente
um médico. As minhas funções são
principalmente administrativas, mas também me interesso pelos nossos
pacientes em convalescença. Não há nada de estranho no facto de você estar
aqui.
Seria a verdade? Não parecia. Mesmo a mulher no espelho achou difícil
acreditar.
— O Adam disse—lhe que não gosto nada de psiquiatras, nem de
psiquiatria?
— Sim, disse.
— Porque é que ele acha que eu tentei suicidar—me?
— Porque foi a conclusão a que a polícia chegou depois de ter
investigado o seu acidente.
— Estão enganados — disse ela com firmeza. — Nunca me suicidaria.
— Está bem — concordou Protheroe tranquilamente. — Não estou a
discutir consigo.
Ela fechou o olho.
— Por que razão haveria eu de querer matar—me subitamente quando
nunca o desejei antes? — A raiva zumbia nos seus ouvidos.
Ele não disse nada.
— Por favor — disse ela rudemente. — Gostaria de saber o que estão a
dizer a meu respeito.
— Está bem, se aceitar que existem suficientes provas materiais que
justifiquem a teoria da polícia, então a razão fundamental, por detrás disso,
parece ser o facto de você estar perturbada por o noivado ter sido
desmanchado. Do que você se lembra é de ter dito adeus ao Leo, quando saiu
de Londres há duas semanas e meia, para ir para casa dos seus pais em
Hellington Hall. Provavelmente não se lembra de o ter feito, mas repetiu essa
recordação várias vezes — à polícia e aos meus colegas do hospital de
Odstock — que concluíram, é provável que se tenham enganado, que é
importante para si guardar uma recordação feliz, em vez da recordação
daquela noite, uma semana depois, em que Leo lhe disse que ia deixá—la
pela sua amiga Meg Harris.
Reflectiu sobre isto, em silêncio, durante bastante tempo.
— Então dizem que a minha amnésia não é totalmente física. Existe nela
um elemento para salvar as aparências. Uma vez que não consigo suportar a
ideia de Leo me rejeitar, afastei a sua deslealdade do meu espírito e depois
esqueci a minha própria fraqueza de não conseguir encarar a vida sem ele.
A sua escolha das palavras era fascinante.
— Em termos gerais, foi isso que contaram ao seu pai.
— Está bem — viu lágrimas a brilhar nos olhos dela, — se eu fiquei de
tal forma perturbada por o Leo me ter deixado, há duas semanas, que tive que
esquecer esse facto, então por que razão não estou a ficar igualmente
perturbada ao ouvir tudo novamente?
— Não sei. É interessante, não é? Como é que você explicaria isso? Ela
afastou o olhar.
— Ter de me adaptar à ideia do casamento foi qualquer coisa que trouxe
muitos problemas. A única coisa que sinto agora é alívio por não ter de o
fazer. Diria que pela primeira vez não fiquei perturbada.
Ele anuiu.
— Aceito o que disse Por isso vamos falar sobre o assunto. O casamento
foi ideia sua ou de Leo?
— O casamento foi ideia do meu pai, mas se me está a perguntar quem é
que teve a ideia de casar, foi o Leo. Há alguns meses atrás surpreendeu—me
ao propor—me o casamento e eu aceitei, na altura, porque achei que era o
que queria.
— Mas mudou de ideias.
— Sim.
— Falou nisso a alguém?
— Acho que não. — Ela sentiu o cepticismo dele, de uma forma tão
forte, como se ele tivesse chegado até ela e a tivesse tocado. Meu Deus, que
situação horrível!
— Mas tenho a certeza de que o Leo devia saber — acrescentou ela
rapidamente. — Ele diz que eu fiquei infeliz por ele se ir embora?
O doutor Protheroe abanou a cabeça:
— Não sei.
Olhou para o telefone em cima da mesinha—de—cabeceira.
— Sei o número de telefone de casa da Meg. Podíamos telefonar—lhe e
perguntar—lhe. — Mas será que ela queria fazer isso? Será que Leo alguma
vez iria admitir que era ela que não queria casar com ele?
— Neste momento ele não está acessível. A polícia já tentou. Saiu do
país por algumas semanas.
Não está acessível. Ela já o sabia. Como? Lambeu os lábios
nervosamente.
— E Meg?
— Está com ele. Disseram—me que foram para França.
Ela observou as mãos dela a contorcerem—se no colo e pensou nas
emoções complicadas que teriam levado os outros dois a traírem—na.
— Estava a contar—me porque mudou de ideias — lembrou—lhe ele.
— O que aconteceu? Foi uma decisão súbita ou alguma coisa que se
desenvolveu gradualmente?
Esforçou—se por se lembrar.
— Cheguei à conclusão de que a única razão por que ele queria casar
comigo era por eu ser filha de Adam Kingsley e Adam não ser pobre.
— Mas seria verdade? Não tinha sido Russell que tinha querido casar
com ela por causa do dinheiro? Calou—se e pensou no que tinha dito.
— Quem boa cama faz nela se deita — murmurou.
— Porque diz isso?
— Porque vai perguntar—me se a família de Meg Harris é rica. Ele não
disse nada.
— Não são. O pai dela ganha uma miséria como padre de uma aldeia. —
Esmagou o cigarro no cinzeiro e sorriu. — O que quer dizer que,
provavelmente, Leo encontrou finalmente o amor verdadeiro.
— Está zangada com Meg? A sua madrasta disse—me que você já a
conhece há muito tempo.
— Andámos juntas em Oxford. — Olhou para cima. — Não, na
realidade não estou, mas apenas porque neste momento acho difícil de
acreditar. Só tenho a palavra de Betty.
— Não acredita nela?
— Muitas vezes não, mas isso tem a ver com um complexo de Electra. É
a única mãe que eu conheci e gosto muito dela.
Ele ergueu a sobrancelha, divertido.
— O que estudou em Oxford? Clássicas? Ela anuiu.
— O que também foi uma completa perda de tempo para alguém que
sempre esteve, unicamente, interessada em fotografia. Sei fazer palavras
cruzadas e descobrir a raiz das palavras, mas para além disso a minha
educação foi um desperdício.
— O que é isso? — Coçou a barba pensativamente. — Um mecanismo
de defesa contra alguém que acha que você tem demasiados privilégios?
— Apenas um hábito — disse ela não pensando mais no assunto. — O
meu pai acha as minhas qualificações mais impressionantes do que qualquer
outra pessoa.
— Estou a ver.
Ela duvidava muito do que tinha dito. O orgulho de Adam pela sua
única filha raiava a obsessão, e essa era a razão pela qual havia tão pouco
amor entre os habitantes de Hellingdon Hall. O que saberia este médico?
Pensou ela. Teria conhecido Adam? Compreenderia a tirania em que viviam?
— Olhe, — disse ela de repente —, porque não hei—de facilitar—lhe as
coisas? Quero dizer, conheço esta rotina de cor. Que idade tinha quando a sua
mãe morreu? Dois anos. Que idade tinha quando Adam voltou a casar? Sete.
A sua madrasta tinha, em relação a si, qualquer tipo de ressentimento? Não
faço ideia, era nova demais para reparar. Você tinha—lhe rancor? Não faço
ideia, era demasiado jovem para saber o que era rancor. Tem irmãos ou
irmãs? Dois meios—irmãos, Miles e Fergus. Tem—lhes rancor? Não. E eles
em relação a si? Não. Que idade têm? Vinte e seis e vinte e quatro. São
casados? Não, ainda vivem em casa. Gosta do seu pai? Gosto. E ele gosta de
si? Gosta.
O riso de Protheroe, um barulho enorme que provocaria nela sorrisos
relutantes sempre que o ouvia, ressoou pelo quarto.
— Meu Deus — disse ele —, o que você faz para que lhe peçam bis!
Morde as cabeças dos psiquiatras? Vim cá para saber se você estava bem,
Jinx. Tanto quanto possível, gostaria que a sua permanência aqui fosse
agradável.
Ela acendeu outro cigarro. Ele não sabia nada.
— Tenho a certeza de que será. Adam não pagaria quatrocentas libras
por dia se não tivesse tirado informações pormenorizadas sobre si.
— É você que vai controlar a situação e não o seu pai. Ela olhou—o de
lado.
— Se fosse a si não contaria com isso — disse em voz baixa. — Adam
não fez milhões ficando sentado a olhar para os outros. É um homem muito
manipulador.
Protheroe encolheu os ombros.
— A preocupação dele consigo parece—me qualquer coisa que lhe vem
do fundo do coração.
Ela fez um anel de fumo no ar.
— Mostre—me o coração dele, doutor Protheroe, e talvez eu acredite
em si.
4
Quarta—feira, 22 de Junho, 53 Lansing Road, Salisbúria — 20.05 h

O RAPAZ NÃO TINHA PRESSA nenhuma de se levantar. Estava


deitado na cama por cima dos lençóis em desalinho, com as pernas afastadas,
e olhava com satisfação para a mulher que abotoava a blusa em frente ao
espelho. Os olhos dela, reflectidos no espelho, olharam—no fixamente com
uma expressão cansada. Apesar dos seus ares afectados e do uso liberal de
«por favor» e «obrigado», sabia exactamente com o que estava a lidar e
estava apavorada. Já tinha conhecido todos os tipos de homens — ou pelo
menos assim achava — mas este pertencia a uma certa categoria. Era doido.
— Agora vais ter que ir embora — disse ela, tentando esconder o
nervosismo. — Tenho outro cliente dentro de um minuto.
— Ai é? Diz—lhe para se ir embora. Pago—te o dobro.
— Não posso fazer isso, meu amor. Ele é um cliente habitual.
— Estás a mentir — disse ele indolentemente.
— Não querido, a sério. — Forçou um sorriso nos lábios doridos.
— Olha, realmente gostei. Há anos que não tenho um orgasmo com um
cliente. Se calhar não acreditas, não é? Uma profissional como eu e é preciso
um homem como tu que lhe dê alguma coisa para ela recordar. — Virou a
cara retocada com blush para o espelho e realçou os olhos com eyeliner,
observando—o atentamente enquanto o fazia.
— É um mundo duro e eu preciso do meu salário, como qualquer outra
rapariga. Se eu lhe disser para se ir embora, ele não vem mais
— deu uma gargalhada horrível — em todos os sentidos da palavra.
Percebes o que quero dizer? Por isso faz—me o favor e deixa—me com o
meu cliente habitual. Não é, nem por sombras, tão bom como tu, mas paga—
me à semana e bem. Está bem?
— É verdade que tiveste mesmo um orgasmo?
— Claro, amor.
— Sua puta gorda — disse ele, levantando—se da cama com uma
rapidez assustadora e pondo o braço à volta do pescoço dela. — Era preciso
um bulldozer para te fazer efeito. — Baixou o braço. — Odeio cabras que me
mentem. Diz—me que és uma puta mentirosa.
Mas ela já andava naquela vida há tempo suficiente para saber que
nunca se dizia a verdade aos psicopatas. Em vez disso pegou no pénis dele,
acariciando—o para o excitar, sabendo que se saísse desta situação com vida
teria sorte. Até aqui, o único prazer dele tinha sido bater—lhe na cara
enquanto tinha o orgasmo e ela sabia que ele o faria novamente.
Enquanto enterrava a mão no cabelo dela e a empurrava de costas para a
cama, ela teve tempo de pensar na ironia de tudo aquilo. Estava tão habituada
a servir homens velhos e desajustados que quando a voz ao telefone se
transformara num Adónis à sua porta, ela não acreditara na sua sorte. Meu
Deus, que estúpida que tinha sido!

Clínica Nightingale, Salisbúria — 20.20 h

O telefone tocou ao lado da cama de Jinx, irritante na sua insistência em


chamá—la para um mundo exterior, ignorando se estaria pronta a encará—lo.
Estava tentada a deixá—lo tocar quando se lembrou que podia ser uma
chamada interna. Se ela não atendesse, dizia a voz da paranóia dentro da sua
cabeça, uma pequenina marca preta seria inscrita num livro algures e o seu
equilíbrio mental seria posto em questão. Levantou o auscultador e segurou—
o contra o ouvido encostado à almofada.
— Jinx Kingsley — disse ela cautelosamente.
— Graças a Deus — respondeu uma voz de homem. — Tive um
trabalho dos diabos para te encontrar. Sou o Josh Hennessey. Consegui
encontrar—te finalmente através da tua madrasta que me deu este número.
Ela diz que estás bem, mas que tens falhas de memória.
— Josh Hennessey? — repetiu ela surpreendida, — da Harris &
Hennessey? Pareces tão perto. Onde estás?
Ele riu—se, do outro lado da linha.
— Eu mesmo, embora do momento seja totalmente Hennessey e muito
pouco Harris. Ela foi para França e deixou—me a tratar do escritório. Estou
numa cabine, em Piccadilly — Fez uma pequena pausa e ela conseguiu ouvir
o barulho do trânsito ao longe. — Estou muito contente por a tua falta de
memória não incluir os teus amigos. Alguns de nós temos estado muito
preocupados com tudo isto. Fez novamente uma pausa. — Ficámos tristes
quando soubemos do teu acidente, Jinx, mas a tua madrasta diz que estás a
recuperar bem.
Ela sorriu, debilmente. Típico do Josh, pensou ela. Sempre nós e nunca
eu.
— Não tenho a certeza de concordar com ela. Sinto—me pessimamente.
Suponho que sabes do Leo e da Meg?
Ele não respondeu.
— Não tem importância, não precisas de poupar os meus sentimentos.
Na realidade, estou contente por Leo ter encontrado um bom lar. — Estaria a
dizer a verdade? — Merecem—se um ao outro.
— Bem, se te servir de consolo, acho que não vai durar. Conheces a
Meg e os seus curtos entusiasmos. Quando voltar terá um francês atrás dela e
Leo fará parte do monte de lixo como todos os outros. Ela é uma leviana.
Sempre o disse.
Mentiroso, pensou ela. Adora—la.
— Ela não mudou só porque o Leo a prefere a mim — disse ela. — Não
guardo ressentimentos, porque os terias tu?
Pigarreou.
— Como te sentes depois de... sabes?
— Estás a falar da minha tentativa de suicídio? Não me lembro, por isso
estou óptima.
Fez—se um curto silêncio.
— Bem, então ouve, a razão por que te telefonei é que tenho tentado
apanhar a Meg durante a última semana e não recebi nenhuma resposta às
minhas mensagens. Ela jurou que ia telefonar todos os dias para ouvir as
mensagens, mas se o está a fazer, então não está a responder a nenhuma e,
aos poucos, vou ficando ansioso com o trabalho que se está a acumular.
Tentei o irmão e alguns amigos, para ver se sabiam para onde ela tinha ido
com o Leo, mas eles estão tão às escuras quanto eu. Tu és a minha última
esperança, Jinx. Tens alguma ideia de como poderei contactá—la? Acredita
que não te perguntaria nada se não estivesse desesperado. Tenho aqui um
maldito contrato que precisa da assinatura dela e tenho que o mandar por fax
rapidamente. — Resmungou irritado. — Sabes que, da maneira como me
sinto agora, estava capaz de torcer—lhe o pescoço. E ao Leo também.
Jinx colocou os dedos contra a veia, por cima do olho, que palpitava e
onde o sangue se precipitava como um rio caudaloso. Uma imagem
estranhamente obscura aparecera no seu espírito à medida que ele ia falando,
um negativo escuro e sem significado que não lhe transmitia nada a não ser
um sentimento de intensa frustração. Tentou agarrar—se a ela, mas como um
afogado, foi escorregando, deixando—a defraudada.
— Bem, se foram para França — disse ela devagar —, estão
provavelmente para a casa do Leo na Bretanha, mas infelizmente não me
lembro do número, Josh, e duvido que ele tenha um fax.
— Isso não interessa. Sabes a morada? Procurou lembrar—se.
— Acho que sim. É T.es Hirondelles, rue St. Jacques, Trinité—sur—
mer.
— És admirável, Jinx. Lembra—me de te levar a jantar fora um dia. Ela
deu uma débil gargalhada:
— Está combinado — disse—lhe. — Presumindo que consigo lembrar
—me de te lembrar. — Fez uma pausa. — Querias realmente a morada da
Meg?
Ele evitou dar uma resposta.
— Podia ir visitar—te no fim—de—semana — sugeriu ele. — Ou estás
a hibernar?
— Mais ou menos — disse ela, não tendo a certeza de querer ver
alguém. — Estou a vegetar.
— Isso é um sim ou um não?
A veia por cima do olho pulsava impiedosamente.
— Sim. Adorava ver—te — mentiu.
Durante quinze minutos a paranóia segurou a mão de Jinx. Estendera
dez vezes o braço em direcção ao telefone, na mesinha—de—cabeceira, e dez
vezes o recolhera novamente. A sua coragem tinha—a abandonado com a
memória. Tinha medo de que alguém escutasse a conversa. E que poderia
dizer que não parecesse ridículo? Às oito e meia, quando na televisão passava
o genérico de um filme, ela tirou—lhe o som, agarrou no telefone,
subitamente decidida, e marcou um número.
— Sim? — perguntou uma voz brusca que revelava os seus oitenta e três
anos.
— Coronel Clancey?
— Sim.
— É a Jinx Kingsley. Está ocupado ou posso falar consigo um
momento?
— Minha querida, claro que podes falar. Como estás?
— Bem. E o senhor?
— Preocupado — gritou ele. — Muito preocupado, para ser honesto.
Sinto—me responsável, Jinx. A Daphne também. Devíamos ter feito mais.
Espera um minuto, para eu fechar a porta. A porcaria da televisão está aos
berros. A mesma porcaria de sempre, claro, mas a Daphne gosta. — Ouviu o
auscultador a bater na mesinha do hall, seguindo—se o bater de uma porta e o
ladrar distante de Goebbels, o engraçado yorkshire terrier. — Ainda estás aí?
— disse ele um momento depois.
Ela sentiu lágrimas de afeição como pequenas picadas nas pálpebras. Ele
fazia—se muito mais feroz do que o pequeno e engraçado cão e, para ela, eles
eram sempre o coronel Goebbels e o cão Clancey.
— Sim, é bom ouvi—lo. — Fez uma pausa, sem saber o que dizer. —
Como está o Goebbels? — Por que razão lhe chamariam assim? Seria alguma
coisa que ela sabia e que tinha esquecido ou seria simplesmente uma coisa
que ela tinha aceite tal como tinha aceite todas as outras excentricidades?
— Cheio de pulgas, como de costume. A Daphne deu—lhe um banho e
ele parece uma camisola de mohair. Uma criatura absurda.
Ela não sabia se ele estava a referir—se ao cão ou à mulher.
— Estou preocupada com as minhas plantas — disse, procurando um
território neutro e lembrando—se de que os Clanceys tinham uma chave. —
Seria muita maçada se o senhor ou a senhora Clancey fossem regá—las?
— Nós vamos lá todos os dias, Jinx. Achámos que era o que querias. As
plantas estão bem e também limpámos um pouco. Está tudo pronto para ti,
logo que estejas bem para voltar para casa.
— É muito amável. Muito obrigada.
— Era o mínimo que podíamos fazer, dadas as circunstâncias. Havia
sempre uma pausa embaraçosa, enquanto ela procurava mais
alguma coisa para dizer.
— Deixe—me dar—lhe o meu número de telefone. Estou na Clínica
Nightingale em Salisbúria. Olhou de lado para o telefone. — Não sei o
código, mas o número é dois—dois—um—quatro—dois—zero. Só no caso
de acontecer alguma coisa inesperada.
— Está bem — disse ele. — E então sentes—te bem? Fico contente.
Estão a tomar bem conta de ti?
— Sim.
Mais uma pausa embaraçosa. Depois falaram ao mesmo tempo.
— O melhor é desligarmos.
— Coronel?
— Sim?
— Por favor, não desligue já. — Falou depressa. — A minha madrasta
disse que o senhor me tinha tirado da garagem. É verdade? Ela disse que eu
tinha o motor ligado e que o senhor me encontrou antes que eu conseguisse...
bem... suicidar—me.
A voz dele tornou—se áspera devido à emoção.
— Não te lembras?
— Não. — Engoliu com dificuldade. — Desculpe, mas realmente não
me lembro. Não me lembro de nada, pelo menos, desde que parti para casa
dos meus pais há duas semanas. É verdade que o Leo já não está aí? Não sei a
quem hei—de perguntar, e desculpe se é desagradável, mas preciso de ter a
certeza. Eles estão sempre a dizer—me... coisas... que não fazem sentido.
Dizem que estou com amnésia, que me embebedei e que tentei matar—me.
Mas, eu apenas, oh!, meu Deus... — colocou a mão na boca porque as
lágrimas lhe embargavam a fala. Desliga, sua estúpida.
— Vá lá, vá lá — dizia a voz reconfortante e idosa —, não precisas de
ter vergonha. Meu Deus, já tive homens com um metro e oitenta e três de
altura a chorar no meu ombro. O que tu queres são respostas claras. A tua
madrasta é uma mulher bastante simpática, acho eu, mas se ela for como a
Daphne é capaz de confundir—te. Não que eu saiba também muita coisa —
avisou ele. — Nunca fui uma pessoa que gostasse de meter o nariz onde não
sou chamado.
— Sim. Sempre a melhor espécie de vizinho. — Estranho, pensou ela,
como lhe apanhava a maneira de falar quando conversava com ele. Talvez
toda a gente o fizesse.
— O Leo foi embora há uma semana, Jinx. Partiu na noite em que
voltaste de Hampshire. Espero não estar a ser impertinente, mas diria que foi
bom livrares—te dele. Nunca gostei muito do ar dele. Não te merece. O mais
engraçado é que falei contigo no sábado e não te
mostraste surpreendida, nem triste, «O filho da mãe deixou—me,
Coronel» disseste, «e a única chatice é que ele o fez antes de mim». — Deu
uma risada ao lembrar—se. — E depois, no domingo, lá estavas tu na
garagem com o motor a trabalhar. Foi o Goebbels que sentiu que alguma
coisa estava a acontecer. Pôs—se em frente à porta da garagem a ladrar como
um doido. Fez uma pausa durante um momento, e ela conseguia imaginá—lo
cofiando o bigode e endireitando as costas. Resultado, tirei—te rapidamente
de lá de dentro e fiz—te respirar um pouco de ar fresco. Devia ter feito mais.
Chamado um médico ou um amigo. Estou bastante preocupado com isso,
para te dizer a verdade.
— Gostaria que não estivesse. Eu disse alguma coisa? Quero dizer,
expliquei—me ou disse outra coisa qualquer? — Os dedos dela apertaram o
telefone involuntariamente. — Não acredito... bem, sabe? Não por causa do
Leo
—… De facto, concordo contigo. Pessoalmente achei que tinha sido um
acidente, que as portas da garagem se tinham fechado depois de tu pores o
carro a trabalhar. Não foi como se tu tivesses uma mangueira ligada ao tubo
de escape, não é? A verdade é que depois disso não estavas muito bem, o que
não é para admirar dadas as circunstâncias. Mas não podes ter ficado lá
dentro muito tempo. Em pouco tempo voltaste ao normal, a contar piadas e a
dizer à Daphne para não se preocupar. Até fizeste um telefonema para uns
amigos que ias visitar. A velhota queria chamar um médico, mas tu não
concordaste. «Estou perfeitamente bem, senhora Clancey», disseste, «e se
não for já vou chegar atrasada.» O pior foi que achei que ias esmagar o pobre
do Goebbels, da maneira como o abraçaste e lhe fizeste festas. — Deu uma
risada em tom grave. — Ah! Ah! Disseste que, a partir daquele momento, a
única coisa que valia a pena ter na cama eram cães.
Ela bateu ao de leve nas faces.
— Então porque é que a Betty acha que eu estava a tentar suicidar—me?
— A voz dela era admiravelmente firme.
— Baseada no princípio de que uma andorinha não faz a Primavera, mas
talvez duas a façam, minha querida. Lamento dizer que é culpa nossa. Os
polícias apareceram cá há uma semana e disseram que tu tinhas batido com o
carro numa parede, o que parecia uma tentativa deliberada de suicídio e se
sabíamos de outras tentativas. Então a Daphne contou o acidente na garagem
e que tu tinhas prometido ser mais cuidadosa no futuro, disse que o Leo tinha
sido um vira—casaca e toda a gente se pôs a tirar conclusões precipitadas. —
Que mulher pateta — disse ele carinhosamente. — Está a ficar gá—gá,
embora tenhamos que admitir que está terrivelmente preocupada contigo. De
facto tentei evitar—lhe preocupações, dizendo que tu não eras desse tipo, mas
deve ter sido em vão, porque não serviu de nada. — Pigarreou. — Devo
dizer, Jinx, que ao falar contigo agora, acho cada vez mais que é tudo uma
estupidez. Nunca pensei que fosses do tipo de te deixares vencer.
Ela não conseguiu falar durante um momento.
— Obrigada — disse ela por fim. — Eu também acho que não. Dê um
abraço à senhora Clancey e ao Goebbels.
— Claro. Vens brevemente para casa?
— Bem gostaria, mas estou totalmente ligada, neste momento. Devia ver
—me, Coronel. Pareço o Boris Karloff na Múmia.
— Ah! Ah! — riu ele de novo. — Continuas a ter sentido de humor.
Parece—me que as visitas estão a levantar—te o moral.
— Não — disse ela com franqueza. — Foi falar consigo que me animou.
Obrigada por me ter tirado do carro. Telefono—lhe, assim que for
desmobilizada, para lhe dizer a que horas devo chegar.
— Estaremos à tua espera, minha querida. Entretanto, continua bem—
disposta e vê se te restabeleces o mais depressa possível, está bem?
— Está bem. Adeus, Coronel.
Jinx desligou mas segurou o auscultador contra o peito durante vários
minutos, como se, ao fazê—lo, conseguisse manter a ligação com ele, pois o
conforto que tirara da conversa era demasiado efémero. Seguiu—se um
sentimento de depressão, como uma maré que a engolisse, quando pensou
que, de todas as pessoas suas conhecidas, a única a quem tinha conseguido
telefonar era a um homem, cujo primeiro nome não conseguia, por timidez,
usar. Ter—se—ia sentido tão só, uma semana atrás? Será que o tinha feito?
Que Deus a ajudasse se tivesse...
— O seu irmão veio visitá—la, menina Kingsley — disse uma
enfermeira negra, abrindo totalmente a porta entreaberta. — Eu disse—lhe
dez minutos. As visitas têm de sair às nove horas, essa é a regra, mas como é
o seu irmão e veio de Fordingbridge... bem, desde que não façam muito
barulho.
De repente notou a palidez de Jinx e reagiu com ansiedade. — Está bem,
minha linda? Parece que viu um fantasma.
— Estou óptima.
— Ainda bem — disse ela alegremente. — Não façam barulho senão o
meu emprego fica em risco.
Miles, irradiando o seu charme juvenil, pegou na mão da enfermeira e
sorriu—lhe:
— Fico—lhe muito grato, Amy. Ela corou, sob a sua pele escura.
— Não tem importância. O melhor é voltar para a minha secretária. —
Retirou os dedos dos dele, com evidente relutância, e fechou a porta atrás de
si.
— Meu Deus — disse ele, deixando—se cair numa cadeira de braços
—, ela pensou realmente que eu lhe achei graça. Olhou para Jinx.
— A mãe disse—me que estás de novo com os vivos, por isso pensei em
vir verificar pessoalmente. Estás com um aspecto horrível, mas já deves
saber.
Ela pegou nos cigarros.
— Odiaria desapontar—te, Miles.
— Ela diz que não te lembras de nada desde o dia quatro. É verdade?
Não respondeu.
— O que significa que é verdade. — De repente deu uma risada.
— Então não te lembras da semana que passaste no Hall?
Ela olhou para ele com frieza, enquanto procurava o isqueiro.
— Pediste—me duzentas libras emprestadas naquela semana, Jinxy, e eu
quero—as de volta.
— Vai dar uma curva, Miles. Ele arreganhou um sorriso.
— Pareces—me bastante lúcida. Então o que é esta história de amnésia?
Estás a tentar livrar—te de sarilhos com o pai?
— De que sarilhos?
— O que quer que seja que tenhas feito e que não deverias ter feito.
— Não sei de que estás a falar.
Ele encolheu os ombros, indiferente.
— Então porque tentaste suicidar—te? O pai tem estado pior esta
semana. Deverias ter pensado nisso antes de te comportares de forma tão
irresponsável.
Ela ignorou—o e acendeu um cigarro.
Vais falar comigo ou será que perdi o meu tempo ao vir aqui?
— Duvido que tenhas perdido o teu tempo — disse ela calmamente —
pois imagino que ver—me era a última coisa da tua lista. Observando a cara
dele, viu um clarão de intenso divertimento nos seus olhos e percebeu que
estava certa.
Deves estar doido — continuou ela. — Adam não estava a fazer
bluff quando disse que serias expulso da próxima vez. Por que diabo o
fizeste?
— Achas que sabes tudo, não é?
— Quando se trata de ti, Miles, acho. Ele sorriu satisfeito.
— Está bem, dá—me imenso gozo. Vá lá, Jinx, uns jogos de póquer
num quarto de hotel, não se pode dizer que seja jogar a sério. E quem vai
dizer ao pai, de qualquer maneira? Tu de certeza que não vais e eu também
não. — Riu—se novamente. — Eu ganhei — bateu no bolso do casaco —
por isso nada de discursos, está bem? Não estou a planear fazer mais dívidas.
O velho filho da mãe disse—me claramente que não voltava a pagar—me as
fianças.
Ele estava mais excitado do que o normal, achou ela, tentando imaginar
quanto ele teria ganho. Mudou de assunto.
— Como está o Fergus?
— Tão chateado como eu. Há uns dias atrás, o pai levou—o às lágrimas.
Sabes o que eu acho? Ele revoltar—se—á quando o pai menos esperar e
então será o teu precioso Adam que vai apanhar. Brincava nervosamente com
as lapelas do casaco, sacudindo—as e alisando—as. — Porque o fizeste? Ele
odeia—te agora, odeia—nos, odeia toda a gente. Principalmente a pobre da
mãe.
Jinx encostou—se para trás e olhou fixamente para o tecto.
— Sabes tão bem como eu qual é a solução — disse ela.
— Meu Deus, mais discursos não. Qualquer pessoa pensaria que tens
quarenta e quatro anos e não trinta e quatro. Fez voz de falsete, imitando—a.
— Já tens idade suficiente para seres independente, Miles. Não podes esperar
que a tua mãe te dê Porsches a vida toda. Chegou a altura de saíres de casa,
de viver na tua própria casa e de formares uma família.
— Não percebo porque não o queres fazer.
— Porque o pai se recusa a pagar as dívidas. Conheces as razões. Se
quisermos viver num conforto razoável, ficamos em casa e ele toma conta de
nós. Se quisermos sair, fazemo—lo da maneira mais dura e temos que
trabalhar arduamente.
— Então bem—vindo a raça humana — disse ela severamente. — O que
é que tu achas que as outras pessoas fazem?
Ele elevou novamente a voz, mas desta vez estava zangado.
— Tu nunca tiveste de trabalhar. Herdaste logo o dinheiro de Russell
sem levantar um dedo. Meu Deus, és tão protectora. — Bem—vindo à raça
humana, Miles. Estás a chatear—me Jinx.
Ela estava exausta. Porque é que a enfermeira não voltava para a salvar?
Apagou o cigarro e virou—se para olhar para ele.
— Com certeza que qualquer outra coisa é melhor do que deixar Adam
tratar—te mal. Quando foi a última vez que ele te bateu? — Havia alguma
coisa de errado nele, pensou ela. Parecia um drogado, à espera da dose,
torcendo—se, incapaz de ficar sentado calmamente, mexendo—se, os olhos
demasiado brilhantes. Oh, meu Deus, drogas não... drogas não... Mas quando
adormeceu pensou que com certeza eram drogas, porque ser indulgente
consigo próprio era a única coisa em que Miles era bom. Pelo menos isso, o
pai tinha—lho ensinado.

Hospital de Odstock, Salisbúria — 21.00 h

O médico, que estava de banco, mal tinha acabado de sair da Escola de


Medicina e nada o tinha preparado para isto. Fez uma tentativa, sorrindo para
a mulher no cubículo. Era pior do que o Elephant Man, pensou ele, ao tomar
o seu lugar ao lado da enfermeira, cuja mão a miserável mulher segurava. A
cara dela estava tão inchada que quase não parecia um ser humano. Tinha
dado o nome de Hale.
— Você andou na guerra — disse ele vagamente.
— O meu marido... cinto... — murmurou ela através dos lábios que mal
conseguia mexer.
Ele olhou para as nódoas negras no pescoço dela, onde se viam
claramente as marcas dos dedos de alguém.
— Foi só na cara que se magoou?
Ela abanou a cabeça e com um gesto patético de desculpa, levantou a
saia, mostrando as cuecas cheias de sangue.
Ele — as lágrimas ficaram espremidas entre as pálpebras inchadas —
cortou—me.
Três horas mais tarde, uma simpática mulher—polícia tentou convencê
—la a assinar um depoimento, antes de ser levada para o bloco operatório
para lhe operarem o recto.
— Olhe, senhora Hale, sabemos que não foi o seu marido que lhe fez
isto. Já investigámos e neste momento ele está a cumprir uma pena de dezoito
meses, em Winchester, por contrabando de mercadoria roubada. Também
sabemos que é prostituta, por isso as hipóteses apontam para o animal que lhe
fez isto ter sido um dos seus clientes. Nós não estamos interessados em saber
como ganha a vida. Só queremos impedir que este filho da mãe faça o mesmo
com outra pobre rapariga. Vai ajudar—nos?
Ela abanou a cabeça.
— Mas da próxima vez ele pode matar. Quer ter esse peso na
consciência? Só precisamos de uma descrição.
Ouviu—se um riso fraco e rouco.
— Faça—me um favor, querida.
— Tem dois ossos malares fracturados, profundas nódoas negras no
pescoço e na laringe, um pulso deslocado e uma hemorragia interna por lhe
terem enfiado uma escova pelo rabo acima, disse a mulher polícia
brutalmente. — Tem sorte por ainda estar viva. A próxima mulher que ele
atacar pode não ter tanta sorte.
— Está certo. Mas não vou abrir a minha boca. Ele jurou que voltava. —
Fechou os olhos. — O hospital não a devia ter chamado. Não os autorizei e
não vou apresentar nenhuma queixa.
— Vai pelo menos pensar no assunto?
— Não vale a pena. Nunca vai conseguir provar que foi ele e não quero
passar o resto da minha vida cheia de medo.
— Porque razão acha que não o apanharemos? Ela deu outra risada
rouca.
— Por que é a minha palavra contra a dele, querida, e eu sou uma puta
gorda e ele é o Pequeno Lorde Fauntleroy.

Quinta—feira, 23 de Junho, Clínica Nightingale, Salisbúria — 3.30


h

Como era costume todas as noites, o segurança saiu da porta da frente da


clínica Nightingale e caminhou para um banco na relva iluminado pelo luar.
Era um pequeno prazer que ele desfrutava a meio do turno, fumar um cigarro
descansado, sem ter que ouvir os discursos maçadores do pessoal de
enfermagem. Limpou o banco com um grande lenço e depois sentou—se com
um suspiro de satisfação. Ao tirar os cigarros do bolso, teve uma impressão
bastante clara de que alguém estava atrás dele. Assustado, olhou à sua volta,
depois levantou—se desajeitadamente e foi investigar as árvores que orlavam
o caminho. Não viu ninguém, mas não conseguiu afastar a sensação de que
estava a ser observado.
Era um homem fleumático e achou que a explicação para esta
experiência estava no queijo que tinha comido ao jantar. Como dizia a sua
mulher: queijo de mais não faz bem a ninguém. Mas naquela noite não se
demorou a fumar o cigarro.
Jane Kingsley flutuava em águas escuras, com os olhos abertos,
esforçando—se por chegar à luz do Sol que salpicava a superfície por cima
dela. Ela queria nadar, mas esse desejo estava apenas no seu espírito e sentia
—se demasiado cansada para o pôr em prática. Uma mão horrível estava em
cima dela, puxando—a para baixo em direcção às algas — insistente,
persuasiva, compulsiva — ela abriu a boca para deixar a morte entrar...
Acordou num frenesim agitado, o suor escorrendo—lhe pelas costas.
Estava a afogar—se... Oh, meu Deus, meu Deus adorado, precisava de ajuda
de alguém! A Lua brilhava através de uma abertura nas cortinas, iluminando
um caminho no quarto. Onde estava ela? Não conhecia este lugar. Olhou
aterrada de uma sombra para outra até ver os lírios a seu lado, brilhando
brancos e puros em contraste com o preto dos cravos. Lembrou—se. Jane era
a sua mãe... ela era Jinx... Jane era a sua mãe... ela erajinx...
Com os dedos a tremer, acendeu a luz ao lado da cama e olhou para as
coisas que reconhecia. A porta que dava para a casa de banho, a televisão
num canto, o espelho na parede, a cadeira de braços, flores — mas demorou
muito tempo até que o seu coração sossegasse. Deixou—se escorregar
novamente para dentro dos lençóis, tão rígida e com os olhos tão abertos
como uma boneca de madeira pintada, tentanto controlar o medo que crescia
dentro dela. Mas era uma tentativa vã, uma vez que não sabia do que tinha
medo.
A três quilómetros dali, noutra cama de hospital, o seu terror encontrava
um eco atemorizante na cara desfeita de uma prostituta, que tinha jantado
com o diabo.

Um caso de um investidor admoestado

Se alguém precisava de se lembrar de que os investimentos tanto podem


subir como descer, a Franchise Holdings (FH), o grupo construtor de
propriedades, veio recordar esse facto quando as suas acções baixaram de
valor, devido a um rumor de que Adam Kingsley, de sessenta e seis anos,
fundador e administrador, iria demitir—se. O grupo FH tem sido um raro
sucesso, entre os falhanços espectaculares de empresas de construção, nos
anos 90.
Aparentemente, o rumor foi provocado por uma observação feita por
Kingsley, numa entrevista à BBC, na terça—feira à noite. Referindo—se ao
recente acidente de carro, da sua filha Jane, disse: «Há sempre alturas na
vida em que nos perguntamos se tudo o que fizemos valeu a pena. Mas
Kingsley, conhecido pelo Great White quando comprou Charford Gordon
Associates há oito anos, está agora interessado na BBC.
A sua política é fazer gravações privadas de entrevistas, tendo dado a
conhecer uma delas, a de terça—feira. Inclui uma frase que foi eliminada na
difusão pela rádio. «Esta não é uma boa altura» declarou. Este assunto está
a ser investigado pela Comissão de Investigação da Radiodifusão.
No entanto, este episódio extraordinário veio dar ênfase aos temores da
City sobre o futuro, a longo prazo, das Franchise Holdings. Como disse um
analista: «Adam Kingsley é um óptimo prestidigitador. Ninguém sabe
quantas bolas estão no ar ao mesmo tempo. Francamente, é difícil imaginar
quem as apanhará com segurança quando ele finalmente sair do palco.»
Daily Telegraph — 23 de Junho
5
Quinta—feira, 23 de Junho, Esquadra da Polícia de Caunning Road
Salisbúria — 9.00 h

— O PEQUENO LORDE FAUNTLEROY — repetiu um sargento


céptico na manhã seguinte. — Acha que é importante?
— Sim — disse a mulher—polícia Blake resolutamente. — Acho que
ele é muito mais novo do que ela e provavelmente bem—falante, senão
porque teria ela escolhido a analogia? É óbvio que pensa que ele causaria, em
tribunal, uma impressão muito mais provável do que ela.
— Não é muito para continuarmos.
— Eu sei. Por isso pensei que, se visse os ficheiros, talvez encontrasse
outra pessoa. Há muitas hipóteses de ele o ter feito antes. Se eu conseguisse
duas que se apoiassem mutuamente — ergueu os ombros —, talvez
arranjassem coragem para falar connosco e nos darem uma descrição. Devia
tê—la visto, Guv.
Ele assentiu. Tinha lido o relatório.
— Você vai fazer isto fora das horas de trabalho, Blake — advertiu—a
ele —, não tenho forma de lhes explicar, lá em cima, porque é que você está a
descurar as suas responsabilidades, para ir atrás de uma acusação que não
existe. — Piscou—lhe o olho. — No entanto tente e veja se consegue
qualquer coisa. Há anos que «roubo» o velhote da Flossie e ela nunca guarda
rancor. É uma boa alma.

Clínica Nightingale, Salisbúria — 10.30 h

Jinx tinha sido deixada, numa cadeira de braços, junto da janela.


— É altura de se levantar e começar andar por aí — insistiu uma
enfermeira com o cabelo de Margaret Thatcher e o nariz de Estaline.
Precisa de pôr a trabalhar esses músculos outra vez.
Jinx fez um sorriso forçado e prometeu dar um pequeno passeio mais
tarde. Decidiu ficar a contemplar o jardim, depois de a autoritária mulher se
ter ido embora. O rapaz de cabelos ruivos que a visitara no dia anterior — o
que estava obcecado com as raposas — fazia—lhe sinais de um banco no
relvado, mas ela virou a cabeça noutra direcção e ele desistiu das suas tímidas
tentativas de comunicação. Ela conseguia ver uma ala do edifício, que se
projectava ao fundo do terraço, e achou que devia estar numa mansão
georgiana, construída para uma família rica, há dois séculos. O que lhes teria
acontecido? Teriam simplesmente desaparecido tal como a família que tinha
construído Hellingdon Hall?
— Olá, Jinx — disse uma voz calma através da porta aberta para o
corredor. — Achas que consegues aturar uma visita, ou devo pedir desculpa e
ír—me embora?
Assustou—se tanto que o coração lhe começou a bater
descompassadamente.
Medo... medo... MEDO! Mas de que tinha ela medo? Reconheceu a voz
e desviou—se da janela.
— Meu Deus, Simon — disse zangada, pregaste—me um susto. Por que
diabo havia eu de querer que te fosses embora? — Colocou uma mão sobre o
peito. — Mal consigo respirar. Acho que estou a entrar em pânico. Não te
atrevas a fazer—me isto outra vez.
— O melhor é eu chamar alguém.
— Não! — Fez—lhe sinal para que entrasse e respirou profundamente.
— Estou bem.— Recostou—se, inspirando. — Não sei porquê, mas estou
mesmo muito enervada neste momento. Estou sempre a pensar, não, esquece,
não interessa. Como estás?
Simon Harris permanecia indeciso no umbral da porta, olhando
irresolutamente para o corredor
— Deixa—me chamar alguém, Jinx. Acho melhor. Não pareces nada
bem.
Tinha uma cara fina, quase ascética, característica do padre que era e
totalmente diferente da irmã. Meg ter—lhe—ia dito: «Vai para o inferno,
querida, és tu a responsável. Não me culpes se morreres.» Simon ficou
apenas a olhar por detrás dos óculos, com uma preocupação bem
intencionada mas impotente.
— Senta—te Simon — disse cansada. Ela queria gritar. — Eu estou
bem. Porque não haveria de querer ver—te?
Relutantemente, abandonou a porta e dirigiu—se a outra cadeira.
— Porque enquanto caminhava pelo corredor pensei que tinha
deliberadamente ignorado o embaraço que a minha visita poderia causar—te.
Porque tens sempre que ser tão pomposo, Simon?
— A mim ou a ti?
— A ti — disse ele. — Eu estou mais zangado do que incomodado.
Ainda não consigo acreditar que a minha irmã foi capaz de roubar o noivo da
sua melhor amiga.
— Bem, eu nem estou incomodada, nem zangada, apenas muito apática
e bastante dorida. — Olhou para o colarinho e a sotaina com desagrado. — O
teu uniforme é que me chateia. Não poderias vestir jeans e uma t—shirt como
toda a gente? Todos eles já acham que eu sou uma suicida. O facto de um
padre me visitar vai destruir ainda mais a pouca credibilidade que consegui
salvar.
Ele sorriu, sentindo—se mais seguro, ao ver o esforço dela para dizer
piadas.
— Lamento, mas não tive alternativa. Daqui a duas horas tenho que
fazer um trabalho oficial na catedral e por isso, como também te queria
visitar, não ia ter tempo de me mudar.
— Como sabias que eu estava aqui?
— O Josh Hennessey disse—me — respondeu ele, apertando os joelhos
com os seus dedos magros. — Consegui falar com a Betty, uma vez durante a
semana, mas ela desligou logo que eu disse quem era. O nome Harris é
nomen non grátis em Hellingdon Hall neste momento — concluiu ele com
tristeza —, mas não posso dizer que esteja muito admirado.
— Então como é que o Josh a convenceu? Ela sabe muito bem que ele é
sócio da Meg e não meu.
Simon fez uma careta.
— Recebeu o mesmo tratamento que eu, até que percebeu que saber
mentir era sinónimo de ser corajoso. Mentiu, disse que era Dean Jarrett e que
precisava de falar contigo sobre um assunto urgente.
Dean era o número dois no estúdio de fotografia, um tipo que brincava
com a sua homossexualidade, porque isso o divertia. Jinx massajou a cabeça
dorida.
Devia estar bêbada como um cacho para engolir essa. A voz do Josh não
é nada parecida com a do Dean.
— Completamente in vino, mas não sejas dura demais com ela. Josh diz
que ela parecia verdadeiramente preocupada contigo.
Uma súbita irritação agitou a alma de Jinx. Por que razão não deveria
ser dura com a estúpida da mulher? Com que direito podia alguém sugerir
que ela moderasse o seu desprezo? «Nunca mais fales assim sobre a tua
madrasta» dissera—lhe o pai, quando aos dez anos ela tinha observado, com
uma ansiedade genuína, que Betty era tão estúpida que achava que a Lua
girava à volta do Sol e que o Vietname partilhava uma fronteira com os
Estados Unidos e que era por isso que estavam em guerra. «Ela não faz nada
a não ser pintar as unhas e ir às compras», dissera—lhe ela com severidade.
Mas apenas comentou:
— Ela ontem foi muito querida comigo — antes de tirar um cigarro do
maço que estava em cima do braço da cadeira e de o acender.
— Então, o Josh conseguiu encontrar a Meg? Imagino que ele esteja
bastante chateado por ela o ter deixado em apuros.
Simon abanou a cabeça.
— Não, que eu saiba, mas desde ontem à noite que não falo com ele.
Ela estudou a cara dele através do fumo do seu cigarro e viu que ele
tinha mentido, quando dissera que não estava incomodado. Parecia
profundamente constrangido — quase tão esgotado e miserável como ela se
sentia — alisando e dobrando, com os seus dedos magros, a sarja preta da
sotaina e olhando para todo o lado menos para ela. A sua irritação aumentou.
— Não quero saber do Leo — disse ela com rudeza. — Se queres saber
a verdade, ele estava a começar a mexer com os meus nervos.
— Uma lágrima brilhou nas pestanas dela. — A única coisa que me está
a incomodar é a perturbação de toda a gente que pensa que eu tentei matar—
me por causa dele. — Deu uma gargalhada oca. — Não invejo a Meg.
Acredita em mim, Leo ficará insuportável se pensar que eu não aguentaria
perdê—lo.
Oh que mulher estúpida, que mulher estúpida. Ninguém vai acreditar
que as uvas não prestavam. Simon suspirou:
— O pai e a mãe não sabem para que lado se hão—de virar. Já se
sentiam mal antes do teu acidente, mas depois, bem... — Calou—se.
— Não sei o que te hei—de dizer, Jinx, excepto que nunca estive tão
furioso com a Meg como agora. Deus sabe, ela não é nenhuma santa, mas
nenhum de nós achava que fosse capaz de fazer uma coisa assim.
— Assim como? — Fumava nervosamente o cigarro. — Tudo o que me
disseram foi que o Leo tinha dito que queria casar com ela e que depois
partiram os dois para França. Mas a Meg quer casar com ele? Se for o caso,
será a primeira vez. Ela nunca quis casar com ninguém.
— Não te lembras mesmo de nada?
— Não — disse ela com amargura. — Fiz papel de idiota ao anunciar a
toda a gente que ia subir ao altar no dia dois de Julho. — Estava outra vez à
beira das lágrimas. — Olha, não é importante. Conta—me o que tem
acontecido no mundo na última semana. Ainda se andam a matar na Bósnia?
E a Rainha ainda está no trono?
Ele ignorou o que ela acabara de dizer e foi directo ao assunto.
— A Meg telefonou à mãe e ao pai, fez este sábado uma semana, e
contou—lhes que ela e o Leo tinham um caso há algum tempo, que ele queria
casar com ela e que iam para França até as coisas acalmarem, porque
achavam que seria mais diplomático. — Fez uma expressão triste ao
empregar a palavra diplomático. — Como era de prever, ela e o pai tiveram
uma discussão acesa. Ele acusou—a de ser uma desavergonhada q, ela
acusou—o de ser hipócrita, como de costume. Resultado, desligaram. A mãe
perdeu totalmente o controlo, gritou com o pobre do pai, dizendo que a culpa
era dele, porque insistia em pregar—lhe sermões e depois telefonou—me a
mim. Eu acho que se o Leo estava preparado para te largar com tanta
facilidade, então deve ser um patife que abandonaria Meg da mesma forma.
Depois a mãe disse—lhe ao telefone para ela não ir a lado nenhum com ele
sem o conhecerem. Meg disse—lhe que ela se estava a preocupar
desnecessariamente e que levaria lá o Leo logo que voltassem de França. E
era tudo o que sabíamos até lermos sobre a tua tentativa de suicídio.
Ela encolheu—se ao ouvir a palavra suicídio, mas deixou—a passar.
— Ele não era um patife, Simon. Tu não tens idade para usar palavras
como «patife». Ele era um canalha de merda.
— Eu sou um padre, Jinx.
— E daí? Eu sou filha de um milionário que andou numa escola
particular. — Esfregou as mãos na cabeça rapada. — Olha, não quero saber.
Podem foder—se até à morte se quiserem. As lágrimas enchiam—lhe a
garganta. — Não é grave! Odiava perder a Meg por causa disto. Ela é minha
amiga, Simon.
Ele sentiu—se envergonhado perante tanta generosidade e, como de
costume, condenou a irmã.
— Será que a Meg, em circunstâncias idênticas, seria tão pouco severa
com a mulher que lhe tivesse roubado o noivo? Ajuda se eu disser que não
acredito que tu tenhas tentado matar—te? É isso que te está a preocupar? O
que as pessoas pensam?
Jinx tirou o recorte do jornal que Betty lhe tinha dado e olhou fixamente
para ele.
— Só que não parece um acidente, pois não? — disse ela devagar,
mostrando—lhe a fotografia. — Dizem que é um milagre eu ter escapado.
— Os milagres acontecem, sabes? Não na filosofia dela
— Aparentemente estava bêbada quando aconteceu.
— E isso é importante?
— Sim — disse ela de maneira directa — é, pelo menos para mim.
— Por causa dos problemas da Betty?
— Em parte. — Fez uma pausa. — Não, tem mais a ver com a minha
auto—estima. Recuso—me a acreditar que tive de me embebedar para me
matar. — Sorriu debilmente. — Sabes, sou muito orgulhosa, o que me faz
duvidar que dei a alguém, e muito menos a Leo, a satisfação de saberem que
eu me importava assim tanto.
— Acredito em ti — disse ele.
As lágrimas encheram novamente os olhos dela e ela limpou—os com a
palma da mão.
— Olha, não repares, está bem? Estou cansada, chateada e queria estar
em Londres. — Respirou profundamente para controlar a sua tristeza. —
Fazes—me um favor? Diz à Meg que fico contente por ela e que não guardo
qualquer ressentimento. E diz aos teus pais que não vou acabar com uma boa
amizade, por causa de um filho da mãe como o Leo ter mudado de ideias. É
verdade, Simon, não me ralo.
Ele anuiu.
— Eu digo—lhes — prometeu ele. — És muito generosa, Jinx. Ela
ouviu os gritos de frustração que ecoavam dentro dela.
— Não o diria se não fosse verdade — afirmou cautelosamente, olhando
—o de lado. — Não tem nada a ver com generosidade.
Ele inclinou—se para a frente, olhando para o chão.
— Achamos que conhecemos uma pessoa e depois acontece uma coisa
assim. Nem sequer pediu desculpa, disse apenas que estes eram os factos, que
os tínhamos que aceitar, quer gostássemos ou não. O que causou a maior
amargura aos pais. A mãe culpa o pai por durante anos ter tentado impingir a
religião, à Meg e o pai culpa—a da sua frigidez. — Suspirou. — Ele está
mais transtornado do que a mãe. Mas acho que é por ter gostado sempre tanto
de ti. Não consegue compreender porque é que a Meg haveria de querer
magoar—te. Eu também não consigo.
— Desculpa — disse ela despropositadamente —, mas acho que ela não
queria magoar ninguém. Tu conheces a Meg. Carpe diem e confia no dia de
amanhã. Ela sempre foi assim. — Esfregou o lado da cabeça que lhe doía.
Porque é que lembranças de Russell lhe estavam sempre a vir à cabeça? — O
teu pai deve estar muito zangado se anda a dizer essas coisas à tua mãe. — ....
Russell e Meg... Meg e Leo...
— São apenas palavras — disse ele — não significam nada, assim como
aquilo que a mãe diz da religião não significa nada.
— Mas sabes, de certa forma, têm ambos razão. — De repente, ela
sentiu—se muito cansada. — A Meg nunca se sentiu muito bem no papel de
filha do pároco e, para a tua mãe, é uma rapariga demasiado vulgar. As suas
pálpebras fecharam—se de cansaço enquanto recordações giravam, sem
esforço, no seu espírito. — É tanto culpa tua como das outras pessoas.
Russell a morrer... ela também tinha tido um caso com Russell, sabes...
embebedaste—te e tentaste suicidar—te... A voz dele vinha de muito longe:
— Porquê?
— Ela não conseguia competir com um santo, então tornou—se uma
pecadora...
Acordou de repente com uma sacudidela enjoativa, abriu os olhos e viu
Alan Protheroe. Estava debruçado sobre ela e Jinx pensou, por um instante,
que devia ser Simon até que reconheceu com alívio que não era. Olhou à sua
volta vagamente.
— Eu estava a fumar um cigarro.
Ele apontou a prisca no cinzeiro. — Eu apaguei—o.
— Tive uma visita.
— Eu sei. O padre Simon Harris. Eu mandei—o embora. Tive medo que
a perturbasse.
— Não ousaria — disse ela com um sorriso retorcido. — É um padre
anglicano.
— É o irmão da Meg — disse o médico pegando na outra cadeira.
— Gosta dele, Jinx?
Ela conseguia sentir o inevitável suor a encharcar as suas costas.
— É um hipócrita pretensioso como o pai e a mãe e fez da irmã uma
puta. — Virou a cara para este homem enorme e amável, que fazia o melhor
para cuidar dela, sentindo uma imensa vontade de lhe tocar. Queria enroscar
—se no colo dele, sentir os seus braços à volta dela, refugiar—se como uma
criança no seu abraço forte. Em vez disso afastou—se para o outro canto,
pondo os braços magros à volta do peito.
— Não sei porque disse isto.
— Porque está mais zangada com ela do que pensa.
— Simon veio pedir desculpa.
— Pelo comportamento da irmã?
— Suponho que sim. — Depois calou—se.
— Ele é mais velho ou mais novo do que ela?
— É um ano mais novo.
— A Meg é parecida com ele?
— Não. Ela é muito bonita.
— Você gosta dela, Jinx?
— Gosto. Ele anuiu.
— Estava a sonhar agora mesmo e não me pareceram sonhos muito
agradáveis. Quer falar—me sobre eles?
Ela não respondeu ou não conseguiu responder. Mesmo passados dez
anos, a ferida ainda estava em carne viva e ela, instintivamente, fugia de
qualquer coisa que a pudesse abrir novamente. No entanto, havia uma
necessidade extraordinária dentro dela de convencer alguém — qualquer
pessoa — de como Leo pouco significara para ela. Gosta dela? Sim. Sim.
SIM. Mas porque custava tanto dizê—lo?
— Eu estava a sonhar com um homem que conheci — disse ela
subitamente. — Há dez anos bateram—lhe tanto que quase o mataram e fui
eu que o encontrei. Ele tinha uma galeria de arte em Chelsea. A polícia acha
que ele perturbou alguns ladrões, porque a galeria tinha sido saqueada e
alguns quadros roubados. Era suposto termos ido jantar, mas ele não
apareceu, por isso fui até à galeria e encontrei—o. Havia sangue por todo o
lado. Encontrei—no no armazém, nas traseiras, mas não o reconheci...
A voz dela vacilou e encostou os dedos aos lábios.
— Ainda estava vivo, mas não conseguia dizer nada porque tinha o
queixo partido. Por isso tentou usar os olhos para falar comigo, mas eu não
conseguia perceber o que ele queria. — Reviveu novamente a cena terrível no
seu espírito, o choque, a repugnância, a sua ineficácia perante a máscara
sangrenta e desfeita que tinha sido Russell. — E não havia nada a fazer
excepto chamar uma ambulância e vê—lo... vi—o morrer... — Calou—se.
Teria Russell caído também numa armadilha ?
Protheroe não lhe disse para continuar. Estava satisfeito por deixá—la
contar a história ao seu ritmo, percebendo que lhe faltava a fluência talvez
por ser tão raramente contada.
— Tive pesadelos por causa disto durante séculos, por isso Adam
mandou—me fazer terapia através da hipnose. O que ainda foi pior. O
homem era um charlatão. Encorajou—me a enfrentar o que mais me
perturbava no incidente e depois a perspectivar as coisas, mas o que ele
realmente conseguiu fazer foi exacerbar todos os sentimentos de culpa que eu
tinha. — Calou—se novamente e, desta vez, tinha um ar de quem está
profundamente mergulhado em pensamentos, como se estivesse a revisitar
salas há muito fechadas.
Protheroe estava mais interessado no que ela tinha omitido do que no
que tinha contado. Já conhecia os pormenores da história, não só através do
que o pai dela lhe tinha contado, ao telefone, mas também através das notas
do psiquiatra dela. Por que razão não tinha ela mencionado que tinha sido
casada com Russell Landy? Ou que o assassinato do marido lhe provocara
um aborto, quando estava grávida de treze semanas? Porque falava ela de ter
sido levada a um hipnoterapeuta, quando de facto, tinha sido internada num
hospital num estado de grande debilidade, pesando menos do que trinta e oito
quilos e com uma grave depressão? Passou o polegar pelo queixo e ponderou
sobre este último pensamento. Ela tinha—se referido ao terapeuta como
sendo um homem, no entanto as notas de que ele dispunha, no escritório,
tinham sido escritas por uma mulher.
Esperou mais um minuto ou dois, depois incitou—a suavemente quando
percebeu que ela estava perdida em pensamentos.
— A psiquiatra, no hospital Queen Mary, ajudou—a alguma coisa, Jinx?
— Está a falar da segunda, Stephanie Fellowes?
— Sim.
Ela pareceu achar a sua posição incómoda e desenlaçou os braços para ir
buscar o inevitável cigarro.
— Quando é que vou ter alta? — perguntou de repente, levando o
isqueiro à ponta do cigarro e olhando para ele através do fumo.
— Quanto mais depressa, melhor. Podíamos ir agora, se quiser. Tenho
um braço óptimo para se apoiar e podíamos encontrar um banco, longe da
confusão das ruas mais movimentadas.
Ela sorriu levemente.
— Não, obrigada. Espero até o poder fazer sozinha. — Com a cabeça
mostrou—lhe a porta da casa de banho. — Já fui à casa de banho algumas
vezes e tive de rastejar até lá, por isso vou praticar, em privado. Não me
apetece que se ria de mim.
— E porque faria eu isso? Ela encolheu os braços.
— Talvez não à minha frente, mas tenho a certeza de que daria uma boa
história para o clube de golfe. — Ela imitou o timbre mais grave da voz dele.
— Sabem, rapazes, já lhes falei sobre a minha histérica de estimação que
bateu com o carro num pilar de cimento, sobreviveu por milagre e que depois
sofreu uma enorme humilhação quando tentou levantar—se?
— Atribui sempre motivos tão baixos às pessoas que tratam de si?
— A Stephanie Fellowes pensava assim, de certeza. — Mas eu também
não confiava nela. Soprou anéis de fumo para o ar. — Sabe, eu não sou
cobaia de livre vontade. Prefiro viver com os meus medos, depressões e
obsessões do que ter um mar de gente com botas cardadas a passear na minha
cabeça. — Sorriu sem hostilidade. — Presumo que ela ou o meu pai lhe
disseram que eu estava tão deprimida que estive quase a morrer de
subnutrição? — Olhou para ele de modo inquiridor e ele concordou. — Qual
deles, só por curiosidade? Stephanie ou Adam?
Ele não mostrou qualquer hesitação em responder.
— Ambos. Stephanie mandou—me uma cópia das notas que tinha tirado
na altura. O seu pai contou—me quando você veio para cá.
— Já o conhece?
— Não. Falámos ao telefone.
Ela anuiu.
— É assim que ele faz os negócios. A tecnologia, especialmente o fax
impessoal, foi inventada para Adam. Ele sabe como pode ser intimidante ter
de lidar com alguém que não se conhece. Se fosse a si, mantinha as coisas
assim.
— Porquê?
— Por nenhuma razão em particular.
— Ele pareceu—me bastante agradável e está muito preocupado
consigo.
Ela sorriu para si mesma e ele pensou se ela tinha a noção de como o seu
sorriso era provocador. Como pessoa, era fascinante. Ela estava determinada
a afastá—lo do pai, mas da maneira mais subtil — através de insinuações e
não de factos, através da simpatia e não da honestidade. E ele sabia que não
estava imune. Havia qualquer coisa de infinitamente atraente na combinação
do intelecto mordaz e da fraqueza física. Especialmente para ele, embora ela
não o soubesse.
— Tão preocupado que nem sequer cá veio — disse ela.
— Então telefone—lhe e saiba porquê — sugeriu ele. Ela abanou a
cabeça.
— Adam e eu nunca fazemos perguntas pessoais um ao outro, doutor
Protheroe.
— E no entanto, trata—o sempre por Adam. Achei que isso significava
que se viam como iguais.
Mas isso era claramente uma coisa que ela não queria discutir.
— Estávamos a falar da minha suposta depressão — disse ela
abruptamente. — Sendo suposta a palavra mais importante.
Mas ele mudou de assunto.
— Queria saber se foi Stephanie ou Adam que me disseram que você
estava tão deprimida que não comia — lembrou ele — e eu respondi que
tinham sido ambos. Vamos continuar a partir daqui?
— Aconteceu ao contrário. Entrei em depressão porque não comia, por
isso quando me levaram para o hospital e me começaram a alimentar,
comecei a sentir—me melhor.
Ele achou mais provável que a melhoria dela fosse devida a anti—
depressivos, mas não fazia tenções de discutir sobre isso.
— Sabe por que razão não comia?
— Sei.
Ele esperou um momento.
— Vai dizer—me?
— Talvez. Se me disser o que Stephanie escreveu nas notas dela. Ela só
ficaria satisfeita sabendo a verdade, pensou ele, mas outra
coisa era ela acreditar que o que ele lhe contasse era a verdade.
— As notas estão no meu escritório, disse ele, por isso não posso citar as
palavras dela, mas posso dar—lhe uma ideia geral do que escreveu. Foi
internada com uma grave depressão a seguir ao assassínio do marido e depois
de ter perdido o bebé. Os seus sintomas eram extremos, em particular, perda
de apetite e uma insónia persistente. Para a doutora Fellowes era claro que
você estava muito perturbada e que a sua subnutrição não era devido à perda
de apetite, mas ao facto de se recusar a comer, tendo—a considerado como
uma suicida potencial. O seu tratamento consistia numa combinação de
drogas e psicoterapia e, embora ela admita que você era totalmente contra a
psicoterapia, começou a melhorar bastante passadas três ou quatro semanas.
Se bem me lembro, teve alta passadas seis semanas e, embora tenha recusado
sempre que o seu progresso fosse observado em reuniões de grupo, a doutora
Fellowes acha que você é um dos seus casos bem—sucedidos. — Fez uma
breve pausa. — Ou pelo menos até eu lhe ter pedido as suas notas.
Jinx franziu o sobrolho.
— Eu não tinha percebido que ela achava que eu o fazia
deliberadamente. — Inalou o fumo do cigarro pensativamente. — Isso
explica porque é que todos acham que foi suicídio. Pardus maculas non
deponit. O leopardo não muda as suas manchas — traduziu ela lentamente,
olhando para a janela e vendo um homem a passear no relvado. Tinha cabelos
loiros, uma camisola verde e calças de veludo castanhas. Durante uma
fracção de segundo achou que era Leo e o seu coração sobressaltou—se
violentamente.
— Se você não se estava a matar à fome por uma razão, então porque
não comia?
Ela esperou um momento, antes de responder.
— Porque o charlatão que me viu antes, usou a hipnose para libertar os
meus pesadelos, destruindo—me psiquicamente durante o processo. —
Encolheu os ombros e apagou o cigarro.
— Mas um pesadelo não é assim tão mau. A maior parte do tempo não
nos lembramos dos pormenores e o alívio, ao acordar, é sempre maior do que
os medos. — Ela limpou o braço da cadeira com as pontas dos dedos, o que
iria repetir várias vezes durante os próximos minutos. — Admito que não
dormia muito, mas fora isso estava bastante bem, tendo em conta tudo o que
tinha acontecido. E é nesse ponto que entra o meu pai. — Abanou a Gabeça.
— Tem que perceber que ele sempre odiou o Russell, em parte porque nos
casámos sem lhe dizer nada, mas principalmente porque Russell era vinte
anos mais velho do que eu e tinha sido um dos meus professores em Oxford.
Quando o meu pai se referia a ele dizia sempre «o pedófilo doido». —
Durante um momento pensou no assunto. — De qualquer maneira, uma
semana depois do aborto, Adam teve um ataque de consciência — pelo
menos acho que foi isso — e pagou a um terapeuta extremamente caro, para
me aconselhar durante o meu período de luto. — Tirou mais um cigarro. —
Se eu não estivesse tão chocada com tudo, podia ter percebido que ele era um
charlatão, mas nessas alturas não se pensa direito. Sabe o que é
dessensibilização? — Fez—lhe a pergunta ao mesmo tempo que se inclinava
para o isqueiro. Protheroe ficou surpreendido.
— Em termos psiquiátricos? Sim, é um método drástico de tratar o
medo. Força—se o paciente a confrontar as coisas de que tem medo, muitas
vezes sem o avisar e habitualmente sem lhe dar oportunidade de fugir. É
arriscado e nem sempre bem—sucedido, mas quando funciona é maravilhoso.
É utilizado para o tratamento de fobias.
— Usa—o aqui?
— Não.
— Utiliza a hipnose? Ele abanou a cabeça.
— Então o que faz, doutor Protheroe?
— Nada — sorriu ao ver a sua expressão de descrédito. — De qualquer
maneira não há truques, nem atalhos. Concentramo—nos simplesmente em
restabelecer a auto—estima, e a maior parte das pessoas que vem aqui já se
encontra a meio caminho de ganhar a batalha, mesmo antes de passar a porta,
porque já decidiu libertar—se daquilo que as perturba.
— Um dos seus pacientes veio cá ontem. Queria saber se eu tomava
heroína ou cocaína, por isso achei que ele devia ser um drogado. Não me
pareceu que estivesse a meio caminho de ganhar o que quer que seja.
— Como era ele?
— Alto, magro, cabelos compridos ruivos. Pareceu ficar contente.
— Matthew Cornell. Bem, já é uma melhoria. Pelo menos já começou a
notar um mundo para além do smack, poppers e MDMA.
— É por isso que entrou no meu quarto sem ser convidado? Porque
encoraja os seus pacientes a repararem uns nos outros?
— Confio totalmente na natureza humana — disse—lhe sem sugerir
qualquer malícia. — No fim, a curiosidade vence quase sempre. Você é a
nossa paciente mais recente, por isso tem interesse. Estou bastante satisfeito
por Matthew ter tido coragem para desafiar as restrições.
— Quais restrições?
— Há uma tabuleta enorme pendurada na sua porta que diz «Não
Incomodar».
— Não sabia.
— Devia ter olhado.
— Se lá está, porque é que Simon Harris a ignorou? Ele encolheu os
ombros:
— Tem a certeza de que ele o fez?
— Ele entrou.
— Sem ser convidado?
— Não, perguntou—me se devia desculpar—se educadamente e ir
embora, mas eu não podia dizer que não o queria ver, depois de ele ter feito a
viagem até aqui.
— Porque não?
Porque nunca ninguém me ensinou a dizer vai—te embora.
— Eu não quero fazer psicanálise, doutor Protheroe. Também não quero
fazer terapia de grupo. Não quero participar e não vou fazer jogos.
— Mas alguém a está a obrigar?
— Sei como funciona.
— Será que sabe?
— Estava a fazer—me perguntas sobre o hipnoterapeuta — disse ela,
ignorando o que ele dissera. — Ele tratou—me de uma fobia que eu não
tinha. Só tinha sentimentos de culpa por ter abandonado o Russsell. Havia
tanto sangue e a cara dele era uma massa informe. — Carregou com a mão no
olho ligado, que lhe começara a doer. — Ele queria que eu o beijasse — disse
ela insipidamente quase mecanicamente – mas eu não consegui. E depois
perdi o bebé, e nessa altura houve mais sangue. — Fez uma pausa. — Só
precisava de um pouco de tempo.
Ele deixou—a ficar sentada, em silêncio, durante alguns momentos,
limpando o braço da cadeira mecanicamente e fumando o cigarro.
— O que fez o terapeuta? — perguntou—lhe ele finalmente.
Ela olhou para ele supreendida, como se achasse que ele o tinha
adivinhado.
— Colocou um bife cru na minha cara quando eu estava em transe e
depois acordou—me. Cheirava a sangue e a carne podre, pensei que ele tinha
voltado para pedir o beijo. Passou muito tempo antes que conseguisse comer
alguma coisa sem vomitar.
— Meu Deus! — Ele estava verdadeiramente chocado. — Quem era
esse homem?
Olhou para ele sem expressão durante um momento.
— Não me lembro do nome.
— Onde era o consultório dele?
Mas também não conseguia lembrar—se.
— Algures em Londres — disse—lhe ela.
— Está bem, não tem importância.
— Não acredita, pois não?
— Não tenho razões para não acreditar.
— Como poderia eu lembrar—me de uma coisa tão horrível, se nunca
tivesse acontecido?
Ele não disse nada.
— Você acha que inventei tudo — acusou—o ela. — Mas por que razão
iria eu inventar uma coisa que nunca aconteceu?
Talvez porque nunca ninguém foi acusado do assassínio de Russell,
pensou ele, pois a culpa dela parecia estar enraizada numa angústia muito
mais profunda do que a sua relutância natural em beijar a cara mutilada do
marido moribundo.

Corpos encontrados na Floresta de Ardingly

Os restos mortais de um homem e de uma mulher foram encontrados


ontem na floresta de Ardingly em Hampshire. Desconhece—se ainda a causa
da morte, mas a polícia não põe de lado a violência. «Estamos a pedir ajuda
para descobrir a sua identidade» disse um porta—voz. «A morte deve ter
ocorrido há dez ou doze dias, mas ninguém, que corresponda às suas
descrições, foi dado como desaparecido.» O homem devia ter cerca de 1,80
m de altura, constituição média, idade entre os 30 e os 40 e cabelos lisos e
loiros. Usava calças de algodão castanho—amareladas, uma camisa aos
quadrados e uma camisola verde—escura. A mulher tinha cerca de 1,62 m,
era magra, tinha entre os 30 e os 40 anos e cabelo preto curto. Usava jeans
de algodão azuis e uma t—shirt azul—escura.
A polícia admite não compreender como os corpos lá foram parar.
«Ninguém participou sobre um carro abandonado naquela área» disse o
porta—voz, «e a floresta não fica no itinerário do autocarro. Achamos que
foram levados para lá de carro e estamos a pedir a quem tenha dado boleia
ao casal que corresponda a estas descrições para se apresentar. É possível
que tenham pedido boleia fora do condado.»
A polícia não pôs de lado um pacto suicida, embora esteja preocupada
com o facto de nenhum deles ter qualquer identificação. «Isto não é
habitual» disse o porta—voz. «Esperávamos encontrar uma carteira ou uma
mala. Continuamos a procurar indícios na floresta.»
A senhora Mary Hughes, de 73 anos, que descobriu os corpos com
Pepita, o seu Jack Russsell, encontra—se a recuperar em casa, depois de ter
tido um pequeno ataque de coração. Correu mais de um quilómetro até ao
telefone mais próximo para alertar a polícia e diz que teve o ataque devido
ao choque e ao esforço que fez.
«Não devia ter corrido» — disse ela, «já sou velha e aqueles corpos não
iam a lado nenhum. Não há tonto pior do que uma velha tonta.»
Wessex Post — 24 de Junho
6
Sexta—feira, dia 24 de Junho, Vicariato, Littleton Mary Wiltshire
—11.00 h

O REVERENDO CHARLES HARRIS observava da janela do seu


escritório o Rolls—Royce branco — matrícula KIN6 — que entrou pelos
portões do vicariato e parou junto da porta da frente. A matrícula dizia tudo.
Colocando um parafuso amarelo estrategicamente para cortar o seis e
transformá—lo num G, a palavra KING saltava à vista em ambos os lados do
ostensivo veículo. Não era a primeira vez que pensava como é que Jinx,
aparentemente, poderia ter sido tão pouco afectada pela vulgaridade da
família e, também, não era a primeira vez que se repreendia por ser tão pouco
caridoso.
O seu desânimo aumentou, quando o motorista abriu a porta de trás e
ajudou Betty Kingsley a sair. Poderia lidar com Adam, mas Betty era
diferente, especialmente, como parecia ser o caso agora, depois de ter bebido
bastante durante a viagem. Com um suspiro, abriu a porta do escritório e
chamou a mulher:
— Caroline, temos uma visita. A Betty Kingsley acabou de chegar.
A mulher apareceu à porta da cozinha com um ar apreensivo na cara
magra.
— Eu não quero vê—la — disse ela. — Não aguento, Charles. Já foi
bastante mau ter que falar com ela ao telefone. Ela vai começar a berrar
comigo outra vez.
— Acho que não temos alternativa.
— Claro que temos — disse ela com rispidez, os nervos em franja a
levarem vantagem. — Não há nenhuma lei que diga que temos que abrir a
porta. Não podemos ser culpados por Leo ter preferido a nossa filha. — A
campainha tocou. — Faz de conta que não ouviste – sibilou ela. — Não
quero ser importunada por aquela peixeira ordinária, na minha própria casa.
Mas ele era um homem antiquado, com maneiras antiquadas. Abanou a
cabeça, admoestando—a gentilmente e atravessou o hall até à porta da
entrada.
— Olá, Betty — disse ele amavelmente. Ela cheirava a gim, e o batom
estava esborratado num canto dos lábios. Havia qualquer coisa, infinitamente
triste, na cara gasta e coberta de pintura, pensou ele, e no corpo gorducho
metido dentro de um vestido de rapariga. Envelhecer seria sempre terrível,
uma vez que a bebida tinha levado o que quer que ela tivesse tido de bom
senso, e agora não havia nada que a pudesse tornar interessante.
Ela passou por ele, agressivamente, para enfrentar Caroline, dando um
encontrão a uma mesa de jogo de nogueira e entornando água da jarra de
flores na superfície encerada.
— Foi a puta da vossa filha que levou a Jinx a matar—se, não eu ou o
pai — resmungou ela, espetando o dedo em direcção à outra mulher.
— Ela nunca sentiu necessidade de se matar por nossa causa. Esta minha
irritação devo—a a si, sua Toda Poderosa. Acha que pode dizer o que quiser
sobre os meus, quando a verdade é que a sua preciosa Meg é que é a culpada?
Caroline Píarris olhou, sem saber o que fazer, para o marido. Isto é culpa
tua, dizia o seu olhar, por isso faz alguma coisa, mas ele limitou—se a
encolher os ombros e deixou—a travar a batalha sozinha.
— Não vejo qualquer sentido em discutir isto — disse ela numa voz
bastante estridente. — Já houve mexericos suficientes.
— Sim, a Meg sempre disse que você era uma safada que preferia abafar
as coisas, para evitar um escândalo. — Agarrou—se à mesa com um punho
gordo e falou com um sotaque a imitar as pessoas da alta. «Oh, não vejo
qualquer razão para discutir isto.» — Respirou profundamente.
— Mas fala sobre o assunto quando muito bem lhe convém. «Vá lá,
Betty, vá lá, não continue a culpar a Meg pelos seus próprios erros. A Jinx
precisa de uma mãe para desabafar.» — Bateu na mesa, fazendo com que a
jarra abanasse de forma alarmante. — Bem, ela tem uma mãe. Eu.
— Mas provavelmente não é a que ela quer — disse Caroline friamente.
— Você foi muito ofensiva ao telefone, Betty. Chamou—nos assassinos,
mesmo antes de saber se a Jinx estava morta. O que esperava que eu fizesse?
Concordar consigo? O Charles e eu mal tínhamos tido tempo para digerir as
notícias de que o Leo tinha trocado a Jinx pela Meg e você já estava a berrar
insultos ao telefone. Foi um choque terrível para todos nós.
— E onde está o pedido de desculpas? Quero um pedido de desculpas,
minha senhora, ou talvez você seja importante de mais para isso? — As
lágrimas enchiam—lhe os olhos de rímel. — Sabe o que se anda a dizer? Que
o casamento foi desmanchado porque Sir Anthony Wallader não queria que o
filho casasse com uma Kingsley. E porquê? Porque somos demasiado
vulgares. Mas neste caso só há uma pessoa moralmente corrupta e vou tornar
isso público. A vossa Meg que não consegue ficar com as cuecas vestidas,
mesmo que se lhe pagasse para isso.
Caroline Harris apertou os lábios, mas antes que pudesse dizer alguma
coisa, o vigário interveio. Colocou uma mão no braço de Betty Kingsley e
virou—a de forma a que ela olhasse para ele.
— É verdade, Betty? — Sorriu como se pedisse desculpa. — Sabemos
tão pouco. Só o que Meg nos disse ao telefone e, para ser franco, não foi
muito. Apenas que o Leo a preferia à Jinx e que iam para França passar
férias.
Os lábios grossos da mulher trabalhavam agressivamente.
— Porque deveríamos, eu e os rapazes, ser culpados pelas asneiras da
vossa filha? — disse ela indistintamente. — O Adam diz que arruinámos as
hipóteses da Jinx com as nossas críticas, mas eu não vejo as coisas dessa
forma. Leo é um tipo sem escrúpulos — como o pai — mas nós não fizemos
nada para entornar o caldo. — Respirou profundamente. — Não é culpa
nossa — concluiu ela passado um momento. — A Meg tem ciúmes, sempre
teve. Vai para a cama com qualquer pessoa de quem Jinx goste. Não era de
esperar outra coisa de uma pessoa tão vulgar. Foi para a cama com o Russell,
caso vocês não o saibam.
Charles olhou, chocado, para a mulher mas Caroline desviou o olhar,
recusando—se a enfrentá—lo.
— Eu não sabia, disse ele. — Desculpe.

Sexta—feira, Laboratório Forense do Ministério do Interior


Hampshire — 11.30 h

O doutor Robert Clarke, patologista do Ministério do Interior, teve pena


dos três polícias e levou—os do laboratório para o seu escritório, tirando as
luvas e a máscara pelo caminho.
— Não é uma imagem bonita — concordou ele, abrindo a janela para
deixar entrar o cheiro mais doce do ar da rua movimentada — mas selar
ambos os corpos em sacos e utilizar o spray Nuvanstykil é a única maneira de
matar as larvas e tornar apresentável o que resta deles, para poderem ser
examinados. Café? — sugeriu ele.
Os três homens engoliram em seco e admiraram—se de a ele lhe ser
possível meter o que quer que fosse à boca, depois do que tinham visto dentro
dos sacos. O cheiro putrefacto ainda lhes enchia as gargantas, tal como no dia
anterior quando tinham estado junto da vala a olhar com repugnância para a
massa branca vibrante, que espumava em desordem entre as peças de roupa e
partes de corpos em decomposição. Abanaram vigorosamente as cabeças.
— Não, obrigado, Bcb — disse o superintendente Frank Cheever,
limpando os lábios com um lenço. Era mais velho do que os outros dois
polícias, um homem de compleição longilínea e um ar bastante analítico,
cabelos cinzentos e olhos de um azul—pálido, que fixava de forma pouco
encorajadora os olhos da pessoa com quem falava. Era um tanto dandy e
provocava um certo divertimento entre os seus colegas que consideravam a
seda como o seu fetiche. Usava laços de seda, lenços de seda a condizer, no
bolso do casaco, e mantinha as meias de seda permanentemente esticadas,
utilizando ligas para meias. Também corria o boato de que usava roupa
interior de seda. — Mas esteja à vontade — murmurou ele, olhando com um
ar infeliz para a caneca de café vazia em cima da secretária — beba você.
— É o que vou fazer. O médico enfiou a cabeça pela porta, agitou a
caneca no ar e pediu à secretária para lhe trazer um café. — Tira o gosto —
disse ele inconscientemente ao sentar—se atrás da secretária e fazendo—lhes
sinal para que se sentassem nas cadeiras vazias. — Agora vamos lá ver o que
temos. — Consultou algumas notas dactilografadas que tinha à sua frente. —
Não vou maçá—los com a história da Calliphora erythrocephalus, que é a
varejeira azul com que estamos a lidar mas, de uma forma geral, o espaço de
tempo, em condições de calor, entre o pôr os ovos e o estado de pupa é cerca
de dez a onze dias. Não encontrámos quaisquer pupas e, quando foram
descobertas, as larvas estavam a tornar—se maduras, o que sugere que os
ovos tenham sido postos há uns oito ou nove dias. — Bateu num calendário
com os dedos. — Ontem foi dia 23, por isso acho que as datas prováveis,
para o pôr dos ovos, foram o dia 14 ou o dia 15. Acrescentem mais um dia ou
dois para a Calliphora erythrocephalus conseguir encontrar os corpos; assim,
a minha estimativa para a data da morte seria o dia doze, treze, ou catorze,
sendo segunda—feira, dia treze, a minha primeira escolha. — Sorriu à
secretária que entrou com o café e um prato de biscoitos de chocolate. — De
certeza que não me fazem companhia, meus senhores?
Ficaram visivelmente mais pálidos. O detective inspector Maddocks, um
homem alto e forte de quarenta e tal anos, sempre com um ar carrancudo,
achou que Bob Clarke estava a fazer isto de propósito, isto é, medir as forças
entre o homem duro da patologia e os homens duros do CID. Ele sempre
suspeitara de que este pequeno chato — Clarke tinha apenas 1,67m de altura
— sofria de um complexo. E agora tinha a certeza. Havia uma semelhança
horrível entre este pequeno e arrogante cientista e o professor de Matemática,
que era o causador do seu terceiro divórcio em curso. Meu Deus, como
detestava pequenos homens arrogantes!
— Está bem, Jenny. Obrigado. — Clarke mergulhou um biscoito na
chávena e mastigou com prazer. — As mãos e os pés deles estavam atados,
como sabem, por isso temos duas pessoas que não se podiam defender. A
causa da morte foi espancamento feroz com um instrumento rombo. — Com
o dedo empurrou algumas radiografias na direcção do superintendente
Cheever. — Tirámo—las antes de os metermos em sacos. Vê como ambos os
crânios foram fracturados em vários sítios? Este, em particular, mostra uma
clara mossa redonda no osso parietal da mulher. Aposto que foi um taco
comprido ou um malho, certamente qualquer coisa bastante volumosa.
Reparem na fractura da clavícula direita do homem, o que implicaria um tiro
falhado, possivelmente raspou ao lado da sua cabeça, alojando—se com a
força de um camião de duas toneladas no ombro do desgraçado. — Abanou a
cabeça. — Estamos a olhar para duas pessoas de joelhos, com as mãos atadas
atrás das costas, e um maníaco que os utilizou para praticar a sua pontaria,
com alguma coisa muito pesada. Acho que podemos assumir que as primeiras
pancadas foram dadas por trás, porque se trata de movimentos para baixo, e
os golpes que quebraram os queixos e os ossos malares foram dados depois
de os corpos terem caído de lado. Imaginem o nosso maníaco, segurando o
malho como um taco de golfe, batendo em ambas as caras quando eles
estavam no chão. Isso dar—lhes—á uma ideia bastante precisa do que,
provavelmente, ocorreu.
Cheever tocou novamente nos lábios ao examinar as fotografias.
— Aonde acha que aconteceu? Na vala, ou na ladeira?
— Acho que foi na ladeira. O tipo de golpes que eu vejo seria mais
difícil de desferir num espaço limitado. Não, vejo—o a matar no topo da
ladeira e depois a virar os corpos. Não é muito agradável de imaginar —
mergulhou outro biscoito no café —, mas os seus golpes, com o taco de
golfe, pode ter sido o método para fazer com que os corpos rolassem. Não
que tivesse funcionado muito bem — disse ele pensativamente. — Tinha que
os ter posto direitos e elevá—los no meio para conseguir que rolassem.
— E aquelas marcas de deslizamento que encontrámos quatro metros e
meio abaixo?
Bob Clarke escolheu outra fotografia.
— Muito interessante — disse ele. — Foi feita com um salto fino e
duro. Vê aqui, bastante profundo como se a pessoa, que o usasse, estivesse a
deslizar de um lado, enterrando o salto como um travão. Mas não é mais
largo do que 2,5 centímetros, por isso deve tratar—se do sapato de uma
mulher.
— A mulher morta usava ténis — disse Cheever.
— Sim. Ela não podia ter feito marcas como esta, nem o cadáver do
homem. Os saltos dele têm pelo menos dez centímetros de largura. Também
não foram feitos recentemente — pode ver onde a erva começou a crescer
novamente — por isso as hipóteses são, ou estava uma mulher presente
quando se deu o homicídio, ou houve outra pessoa que não o comunicou e
que encontrou os corpos antes da senhora de idade.
— Se isso for verdade — disse Cheever pensativamente —, então é
possível que sejam os nossos ladrões de carteiras. A suposição lógica é que o
assassino tenha tirado qualquer coisa que pudesse identificá—los, mas
também é possível que outra pessoa o tenha feito. Olhou em direcção aos
colegas. — O que acham?
Gareth Maddocks encolheu os ombros, não querendo comprometer—se
e, com os olhos meio fechados, afundados em pregas de gordura, observava,
com aversão, a maneira descontraída como o patologista ia molhando os
biscoitos.
— Você disse que significava que talvez uma mulher estivesse presente
durante o homicídio — lembrou—lhe ele. — Isso significa que uma mulher
poderia dar pancadas como estas, ou que estava ali apenas como testemunha
do homem que as dava?
Não ligando ao desagrado do outro homem, Clarke limpou as migalhas
dos dedos e começou a beber o café.
— Assumindo que tinha duas pessoas incapacitadas, de joelhos à sua
frente, e assumindo que tinha um malho ou um taco com um punho de um
comprimento razoável, qualquer mulher, com a força para o fazer girar várias
vezes, podia causar estes estragos. Mas é um modus operandi pouco provável
para uma mulher que actua sozinha.
— Mas não é impossível?
— Nada é impossível mas, francamente, as estatísticas e a psicologia
estão contra si. É um crime físico, que requer energia e extrema selvajaria e
nenhuma delas é típica de mulheres assassinas. Isto não quer dizer que não
existam mulheres extremamente selvagens e perigosas, mas segundo a minha
experiência preferem perpretar os assassínios dentro das quatro paredes de
uma casa, usando uma almofada por cima da cara, veneno, armas e até facas.
Se fosse a si escolheria um homem ou homens com a possibilidade de uma
mulher estar presente e que tenha testemunhado todo o acontecimento.
Realmente é uma pena que recentemente tenha chovido tão pouco. Se
houvesse um belo bocado de terreno encharcado, poderia dizer—lhe quantas
pessoas lá estiveram, quanto pesavam e provavelmente também quanto
mediam. — Fez uma breve pausa. — Claro que percebe que houve muito
sangue e que é difícil de limpar, como sabe. É provável que o vosso assassino
tenha deixado marcas de sangue no carro em que fugiu. Tenho a certeza de
que estes são aspectos que vale a pena investigar.
— Fale—nos das vítimas — pediu Frank Cheever. — Temos a altura, a
constituição e a cor. Mais alguma coisa? O que dizem as roupas?
— Bem, o Jerry está a examiná—las. — Clarke pegou noutro monte de
notas. — Vai demorar algum tempo até que ele lhes possa dar uma análise
completa, mas isto foi que encontrou até agora. Estas pessoas não eram
pobres, antes pelo contrário, Jerry diz para procurarmos entre as pessoas mais
ricas. Primeiro a mulher. Os jeans não ajudam muito: são Levis 501, de
homem, pré—lavados, mas a t—shirt é americana, fabricada por uma
companhia americana, do Arizona, e importada pela Interwear cuja sede fica
em Birmingham. Inquéritos que já efectuámos junto deles mostram que estas
t—shirts são vendidas a retalho a cinquenta e cinco libras em apenas dez
lojas, através do país, que se encontram em Londres, Birmingham e Glasgow.
Esperamos uma lista, por fax, esta tarde, e Jerry envia—la—á logo que
chegue com pormenores precisos sobre o tamanho, código da cor e estilo que
ela vestia. — Seguia as notas com o dedo. — Os ténis dela são Nike,
vendidos a oitenta e cinco libras, e a roupa interior, que mais uma vez não
nos ajuda muito, é topo de gama Marks and Spencer. O facto é que nada do
que ela usava era o que você ou eu acharíamos barato, tendo em conta que
toda a sua roupa era informal.
— Agora o homem. É a melhor aposta de todas. A camisola é verde—
escura, estilo exército, com cotoveleiras de couro, desenhada por Capability
Brown e vendida apenas no Harrods ao preço de cento e três libras. — Sorriu
ao ouvir o grunihdo de satisfação de Frank Cheever. — Isto é apenas o início,
meu amigo. A camisa é de um padrão normal verde e castanho da Hilditch
and Keys, na Rua Jermyn, vendida ao preço de oitenta e cinco libras. As
calças também são da Capability Brown, cem por cento de algodão com
pregas à frente e botão, de um cinzento—acastanhado e vendidas no Harrods
por duzentas e cinquenta libras. As meias são da Marks and Spencer e os
sapatos provavelmente comprados em Itália, uma vez que Jerry não tem
nenhum registo de um importador dessa marca mas, no entanto, está a
trabalhar no assunto. Ele acha que o nosso homem tem uma conta no Harrods
e provavelmente também no Hilditch and Keys. Encontrou algumas fibras
interessantes em ambas as peças de roupa, que ele acha serem do mesmo
tapete, provavelmente uma carpete chinesa de pêlo macio e de um branco
sujo, e alguns cabelos que ele sugere serem de um gato, mas dê—lhe mais
alguns dias e ele garante que consegue descrever o quarto em que estes dois
estiveram, antes de serem levados para a floresta de Ardingly.
— Mais alguma coisa? — perguntou Cheever. Clarke deu uma risada.
— Não chega para começar? Meu Deus, homem, tivemos menos do que
vinte e quatro horas. Que mais esperava?
— Algumas impressões digitais — disse ele. — Ontem tinha dúvidas,
mas talvez hoje tenha outras ideias? Se algum deles tem cadastro, então esse
deve ser o caminho mais rápido para os identificar.
— Sim, estarei numa posição melhor para ver isso, quando os tirarmos
dos sacos.
— E o cordel de nylon verde que foi usado para atar os pés e as mãos?
Tem alguma coisa a dizer sobre isso?
— Na verdade, não. Encontra—se na maior parte dos centros de
jardinagem, lojas de bricolage e supermercados. É impossível de partir e leva
anos e anos a gastar—se. Os nós eram nós triplos, repetidos várias vezes para
não escorregarem e estavam muito apertados, por isso as vítimas devem ter
tentado fugir. Também é um caminho que vale a pena explorar. Como é que
um homem amarra dois adultos saudáveis? E quando o fez? Se foi antes,
como os levou para o meio da floresta? Se foi depois, porque é que um deles
não fugiu enquanto o outro estava a ser amarrado? Acho que o mais provável
será você ter de procurar dois ou mais suspeitos.
O inspector Maddocks massajou o maxilar pensativo.
— Tem a certeza de que foi um martelo e não um ramo pesado? Se fosse
um ramo, podíamos estar a olhar para um ataque não premeditado. O nosso
maníaco, e utilizo a palavra deliberadamente, tropeça num casal, a dormir na
floresta, põe—nos inconscientes, amarra—os e depois espanca—os até à
morte antes de fugir com o dinheiro deles. Podia ter acontecido assim?
— Não com um ramo — disse o doutor Clarke amavelmente. — O que
quer que tenha sido a causa daquele buraco bem nítido, no crânio da mulher,
tinha uma forma simétrica, era muito duro e pesado e provavelmente formava
um ângulo recto com a haste para penetrar tão profundamente. Não apostava
a minha vida num malho, mas certamente as minhas poupanças.
O terceiro polícia, o sargento Sean Fraser, que estava encostado à parede
junto da janela aberta, deu sinal de vida.
— Com todo o respeito, chefe — disse ele para Maddocks —, se fosse
um assassinato não premeditado, teríamos encontrado um carro algures. Um
homem que compra a roupa no Harrods não vai à boleia para a floresta de
Ardingly para dormir uma soneca com a namorada. — Cruzou os braços e
bateu com os dedos na manga do casaco de couro. — É interessante ouvir a
versão do médico acerca de como tudo aconteceu. Escolha a guerra que
quiser e o que não falta são filmes que mostram as vítimas ajoelhadas em
frente a sepulturas abertas, antes de serem mortas com um tiro na cabeça,
para caírem na cova. Acho que é provável que os dois tenham sido
executados.
Os outros digeriram isto em silêncio.
— De que tipo de execução estamos a falar? — perguntou finalmente o
superintendente Cheever. — Se fosse um assassino profissional, estaríamos a
olhar para radiografias com buracos causados por balas. Você mesmo falou
de tiro na nuca. Não consigo imaginar um profissional a usar um malho.
Eu já conheci gangs que lutavam com bastões de basebol – disse praser
—? mas olhando para o que temos aqui, um homem e uma mulher entre os
trinta e tal e os quarenta, diria que devíamos procurar um marido ciumento.
Um crime passional, é isso que eu acho.
Cheever considerou esta ideia.
Ainda não percebi por que razão ninguém comunicou o
seu desaparecimento. Pessoas bem vestidas não desaparecem durante duas semanas sem ninguém dar
pela falta delas.
— A não ser que tenham sido as famílias que as tenham morto — disse
Maddocks. — Talvez Tenhamos um caso como o de Menendez, pais ricos chacinados pelos filhos
adolescentes por ganância, ou vingança por abuso sexual prolongado, dependendo da pessoa em quem
acredita. Acontece demasiadas vezes. Houve o Jeremy Bamber, lembram—se dele?, que matou a
família inteira para ficar com a casa e o dinheiro, e depois tentou culpar a irmã morta. Faz—nos pensar
por que nos haveríamos de incomodar com a geração dos mais novos.
O doutor Clarke consultou o relógio e levantou—se.
— Bem, ao contrário de vocês, eu não ganho o suficiente para que valha
a pena os meus filhos esforçarem—se dessa maneira. Um pouco de honra e
glória de vez em quando é a minha única satisfação por trabalhar tantas horas
para vocês. Procurem manchas de sangue. O vosso indivíduo, ou mais
provavelmente o vosso duo ou trio, devia ter ficado salpicado por grandes
quantidades de hemoglobina. Alguém deve ter reparado nisso e achado
estranho.
— Assumindo que o Zé Povinho repare em mais alguma coisa para além
do seu umbigo — disse Maddocks com amargura.
— Se tudo correr bem — continuou Clarke abrindo a porta —, poderei
ser mais preciso acerca das idades lá mais para o fim do dia, provavelmente
obterei também algumas impressões digitais e até saberei dizer se a mulher
alguma vez deu à luz. — Conduziu—os até ao corredor.
— Mas primeiro tenho que abrir aqueles sacos tão agradáveis. Algum de
vocês quer dar uma ajuda? — Ria—se sozinho ao dirigir—se para o
laboratório.
— Ele é um velho charlatão — disse o superintendente Cheever para os
outros. — Ganha o dobro de mim e só trabalha metade das horas.
O cheiro a morte vinha do laboratório quando o patologista abriu a porta
e entrou.
— Suponho que repararam — disse Maddocks, sorrindo para o chefe,
enquanto abanava a cabeça em direcção ao jovem sargento, cuja cara tinha
um tom pouco saudável, por baixo dos cabelos loiros — que o bom do doutor
comeu os biscoitos sem lavar as mãos.
Clínica Nightmgale, Salisbúria, meio—dia
Jinx estava junto da janela de sacada encostada às costas de uma cadeira.
Há muito tempo que tinha reparado na cabeça ruiva enfiada na sua porta,
antes de dizer alguma coisa.
— Porque não entras? — disse ela finalmente, falando para a vidraça à
sua frente.
— Estás a falar comigo?
— Não há mais ninguém aqui.
Matthew entrou devagar e cuidadosamente através da porta aberta e
juntou—se a ela na observação do jardim. Não conseguia estar quieto durante
muito tempo e, do canto do olho, ela observava divertida como ele estremecia
nervosamente. Meu Deus, como era pouco atraente.
— És religiosa? — perguntou ele abruptamente.
— Porque perguntas?
— Ontem esteve aqui um pároco. Achei que devia fazer parte do pelotão
de Deus.
Ela olhou para ele de lado, viu que estava ocupado a espremer as
borbulhas do queixo e continou a observar o relvado iluminado pelo sol e as
pessoas que lá estavam.
— Ele é irmão de uma amiga minha. Veio ver como eu estava. Nada
mais sinistro do que isso.
Ele fez um gesto em direcção a um homem à direita.
— Vês o rapaz com a camisa aos quadrados e calças azuis? Reconhece
—o? Canta com os Black Night. Costuma injectar—se, com smack, de duas
em duas horas. Agora olha para ele e para o rapaz que está ao lado. É dono de
uma companhia de transporte de mercadorias, mas só conseguia trabalhar se
bebesse duas garrafas de uísque por dia. Agora está curado.
— Como sabes?
— Fiz terapia de grupo com ele.
— Foi o doutor Protheroe que te pediu para me vires visitar? —
perguntou ela com cinismo. — Será que isto é terapia de grupo pela porta do
cavalo?
— Faz—me um favor. O doutor nunca pede nada a ninguém, limita—se
a não fazer nada e a ganhar dinheiro. Deu um pontapé no tapete com a
biqueira do sapato. — Quanto menos ele fizer, mais tempo estamos nós aqui
e mais satisfeito fica ele. Esta actividade significa dinheiro ganho sem muito
esforço.
— Mas é óbvio que alguma coisa ele deve estar a fazer bem — disse
Jinx — ou nenhum dos pacientes melhoraria. Matthew passou uma mão
trémula pelos pêlos da barba.
— Afasta—nos da tentação, é tudo. Aqui não há bebida, não há drogas,
mas acho que no momento em que saem vão todos à procura de uma dose. É
isso que eu vou fazer. Meu Deus, este lugar parece uma morgue. Não há
excitação, nem divertimentos, morremos de tédio. Eu injectava—me neste
momento, se conseguisse arranjar alguma coisa.
De repente, ela sentiu—se cansada dele.
— Então porque não o fazes?
— Acabei de dizer que aqui não há drogas.
— Deve haver algumas. Ontem à noite ofereceram—me uma pastilha
para dormir. Porque não dissolves algumas para as injectar? — disse ela
calmamente. — Se calhar não dava uma grande pedra?
— Não o tipo de pedra que eu quero, e onde é que eu ia arranjar uma
seringa?
Ela olhou novamente para ele
— Então sai. Vai até à cidade. Ou somos prisioneiros?
— Não — murmurou ele, esfregando o braço como se tivesse frio, —
mas alguém descobriria. Há imensos seguranças por aí, para evitar que os
proletários consigam chegar aos ricos e famosos. E, de qualquer maneira,
onde é que eu ia arranjar dinheiro? Quando cá chegamos tiram—no—lo.
O que explicava o facto de ela não ter a carteira. Havia alguma roupa no
armário, mas a carteira não. Jinx achara que se tinha perdido no acidente.
— Bem — comentou ela sarcasticamente —, se eu estivesse tão
desesperada como tu pareces estar, então assaltava uma pobre velha para lhe
roubar o dinheiro. Não percebo o que te impede de o fazer.
— Você é igual a todos os outros — barafustou zangado. — Atacar e
roubar senhoras de idade, bater num gerente de um banco, roubar o mealheiro
a uma criança. Meu Deus, eu não sou um criminoso. Só quero uma dose.
Devias ouvir o médico, um dia destes. O que te segura aqui, Matthew? Tens
mais de vinte e um anos, sabes o que estás a fazer, por isso vai passear,
telefona ao teu fornecedor e diz—lhe para te trazer alguma coisa. Eu até falei
ao meu pai e disse—lhe que o médico não tenta curar—me, está a encorajar
—me, e que é para isso que ele paga.
— O que disse o teu pai?
— Ele disse: «Ninguém te prende Matthew, por isso vai em frente.» Não
percebo o que se passa com toda a gente. E que tal aquele passeio? Apetece
—te andar um pouco?
— Não posso — respondeu ela bruscamente. — As minhas pernas ainda
não estão suficientemente fortes.
— Sim, esqueci—me. Tentaste matar—te. Está bem, então vou buscar
uma cadeira de rodas.
— Suponho que o doutor Protheroe te disse que eu era uma suicida? —
inquiriu ela com amargura.
— Não. Como já disse, ele não faz nada. Toda a gente sabe a história.
Veio nos jornais. Filha de milionário que tentou matar—se.
— Eu não tentei matar—me.
— Como é que sabes? Diz—se que não te lembras de nada. Ela virou—
se violentamente:
— Seu estupor de merda — disse ela. — O que sabes tu sobre o
assunto?
Ele tocou com um dedo supreendentemente macio nas lágrimas que lhe
escorriam pela cara.
— Já lá estive — disse ele.
Ainda estava em frente à janela, vinte minutos mais tarde, apoiada numa
cadeira, quando Alan Protheroe entrou.
— Tenho uma mensagem para si do Matthew — disse—lhe ele. — É
mais ou menos assim: «Diga à rapariga do número doze que encontrei uma
cadeira de rodas, mas está tão suja que tenho que limpá—la. Ela
provavelmente não diria que não a uma porcaria de almoço no jardim, por
isso arranjei—o para ela debaixo de uma bétula.» — A sua cara agradável
esboçou um sorriso malicioso. — Está interessada neste convite tão
agradável, Jinx, ou devo dizer—lhe que a mandei novamente para a cama?
Tal como anteriormente, ignorou as instruções na sua porta para não
incomodar, por isso, na minha opinião, não merece a sua companhia ao
almoço e, de qualquer maneira, acho que só iria maçá—la falando
constantemente na necessidade de injectar smack. No entanto, é livre de
escolher.
Ela sorriu—lhe de forma bastante cínica.
— Estou a começar a perceber como funciona, doutor Protheroe.
— Ai sim?
— Sim. Acha que as pessoas fazem sempre o contrário do que a figura
que impõe a autoridade lhes diz para fazer.
— Não necessariamente — disse ele. — Estou interessado em encorajar
cada indivíduo a estabelecer os seus próprios valores e é muito pouco
importante o que provoca o arranque desse processo.
— Então está sempre a obrigar—nos a fazer escolhas.
— Não obrigo ninguém a fazer nada, Jinx. Ela franziu o sobrolho.
— Então o que devo fazer? Almoçar com o Matthew ou dizer—lhe para
ir passear? Quero dizer, ele também é um paciente. Não quero fazer nada de
errado.
Ele encolheu os ombros.
— Não tenho nada a ver com isso. Ele vai pôr a cadeira de rodas a
brilhar, porque decidiu que você o merece. O cérebro dele está um pouco
limitado, neste momento, porque tomou drogas durante anos, mas o pai é um
advogado e a mãe trabalha em publicidade, e há três anos teve três A—levels,
por isso não pode ser totalmente estúpido. É uma escolha livre, Jinx.
— Gostaria que não estivesse sempre a dizer isso. Na minha filosofia,
não existe a escolha livre tal como não existem almoços de graça. Paga—se
sempre no fim. — Ela deixou que ele notasse o seu desagrado. — E, só por
curiosidade, já que está disposto a contar—me tanta coisa sobre o Matthew, o
que lhe disse a ele sobre mim?
Ele arqueou a sobrancelha, divertido.
— Disse que a rapariga do número doze era muito mais esperta do que
ele, que estudou clássicas em Oxford e, provavelmente, pensa que ele é um
estúpido de cabelos gordurosos que não tem coragem de sair e atacar uma
velha senhora para arranjar uma dose. O que está quase certo, não acha? Ele
contou—me quase toda a conversa que tinham tido.
— Excelente — disse ela firmemente. — Não conseguiria formulá—lo
melhor.
— Então o que lhe digo? Que você gostaria de almoçar com ele numa
cadeira de rodas ou que não?
— Sabe que não.
Ele apontou um dedo na sua direcção
— Então é isso que lhe vou dizer. — Com um aceno breve desapareceu
através da porta.
— NÃO! — gritou ela. — VOLTE! — Mas ele não voltou e mais
zangada do que alguma vez se lembrava de ter estado, começou a andar,
lançando—se pela porta fora. — DOUTOR PROTHEROE! — gritou para a
figura que ia desaparecendo. — NÃO SE ATREVA A DIZER UMA
PALAVRA, SEU FILHO DA MÃE!
Ele voltou—se e começou a andar para trás.
— Então sempre quer almoçar com o Matthew? Esperou que ele
chegasse ao pé dela.
— Não especialmente — disse em voz baixa —, mas vou.
— Porquê? — perguntou ele curioso. — Porque vai fazer uma coisa que
não lhe apetece?
— Porque o senhor não lhe vai dizer não de uma forma bondosa. Vai—
lhe dizer exactamento o que eu lhe disse a si e não quero que faça isso. Ele
foi mais simpático comigo do que qualquer outra pessoa e acho que o pode
magoar.
— Tem razão em tudo, Jinx. Ela suspirou aborrecida.
— Por amor de Deus. Olhe, eu sei o que está a fazer e sei porque o faz.
Não é diferente da Stephanie Fellowes. Quer que eu saia deste quarto, quer
que eu deixe de ter pena de mim própria e quer que eu comece novamente a
dar—me com as pessoas. Mas porque não diz, simplesmente, «Por favor,
Jinx, faça—o porque é bom para si»? Porquê envolver aquele desgraçado nos
seus jogos estúpidos? Ele não é responsável pelo que me aconteceu.
Por que razão não via que o quarto donde ele queria que ela saísse era o
que se encontrava dentro dela?
— Concordo, mas eu não o envolvi, foi ele que se envolveu. — Bateu na
tabuleta «Não Incomodar» que estava colada à parede ao lado da porta. —
Não acha que é um pouco condescendente referir—se a ele como um
desgraçado, Jinx? Ele tem vinte e oito anos e não precisa da minha protecção
nem da sua. — Esboçou um sorriso largo. — Só mais uma coisa. A minha
política é nunca dizer a ninguém para fazer o que quer que seja. Ou fazem
coisas de livre vontade, ou nem sequer as fazem. A minha credibilidade está
em jogo. Não quero que as pessoas recusem. Estragaria tudo aquilo em que
eu acredito.
— Então, por favor, diga ao Matthew que agradeço e que gostaria muito
de almoçar com ele. — Esticou—se, arrancou o papel, amarfanhou—o numa
bola e atirou—lha.— Como bom existencialista, doutor Protheroe, tenho a
certeza de que sabe porque é que o fiz.
As suas gargalhadas estrondosas ecoaram pelo corredor à medida que
ele se afastava, atirando a bola ao ar e apanhando—a novamente.
— Porque gostou de o fazer — disse ele por cima do ombro.
Empurraram—na pelos jardins como um porco premiado num carrinho
de mão, com o seu esbelto acompanhante a exibi—la a quem estivesse
interessado. Ela detestou cada minuto, passou o tempo a fumar cigarros uns
atrás dos outros e a ranger os dentes, contra o que ela considerava ter sido um
rapto inspirado por Protheroe. Animou—se quando, ao fim da volta pelo
muro fronteiriço, chegaram ao portão principal, parando junto do abrigo do
porteiro. Ele olhou brevemente para eles através da janela e depois continuou
a ler o jornal. Jinx fez um gesto para a saída:
— Porque não continuamos a andar? — sugeriu ela. — Tu podes
arranjar smack e eu um táxi para casa.
— Claro — disse Matthew. — Então substitui—me. Ela olhou—o de
soslaio.
— Substituir como?
Com as mãos fez movimentos como se estivesse a empurrá—la:
— Nas rodas. Não é da minha conta, se quiseres fugir. Não sou
responsável por ti. — Sentou—se de cócoras junto dela. — Mas se queres
sair, porque não dizes ao doutor e chamas um táxi, do teu quarto?
Ela encolheu os ombros.
— Provavelmente pela mesma razão que tu.
— Sim — disse ele. — Acho que o rapaz do grupo tem razão. O que ele
diz é que quando saltas para o abismo e apesar disso ainda estás viva quando
chegas ao fundo, provavelmente vale a pena perguntar o que diabo estás a
fazer lá em baixo. Então, queres almoçar ou queres fugir?
— As duas coisas — disse Jinx —, mas contento—me com o almoço.
Tu não és nada rebelde, pois não?
Matthew sorriu.
— Depende — disse ele.
— De quê?
— Cui bono? Se for eu a ganhar, então posso estar interessado. Qual é o
negócio?
— Não sei ainda — disse ela pensativa — mas digo—te o seguinte. Se
alguma vez se te vires livre desse vício, podias fazer milhões. És ainda mais
manipulador do que o meu pai.
— É preciso ser—se um deles para aprender a reconhecer outro — disse
ele, virando—a. — Tu também não és nada inocente nesse sentido. Agora
segura—te. Vamos ver a que velocidade anda esta geringonça. — Debruçou
—se para empurrar as costas dela para trás e ela virou a cabeça para lhe
sorrir.
O choque de um déjà vu foi tão forte que instintivamente arremessou a
mão e lhe deu uma bofetada na cara. Meg e Russell... Meg e Leo...
SANGUE... puta... puta... PUTA...
7
NO INÍCIO, Bobby Franklyn tinha sido cuidadoso com os quatro
cartões de crédito roubados, todos eles com a assinatura extravagante que era
tão fácil de imitar. Tinha começado, de uma forma modesta, com compras
inferiores a trinta libras para evitar expor—se a verificações pelo telefone,
mas passados dois dias tentou—se com um casaco de couro de cento e
cinquenta libras e a prudência deu lugar à ganância. Transpirava sob o olhar
brilhante do gerente da loja, enquanto era feito o telefonema para a
autorização, consciente da subida de adrenalina, quando lhe foi entregue o
casaco, apercebendo—se de que os cartões ainda não tinham sido dados
como desaparecidos. Nos cinco dias seguintes, utilizando um de cada vez,
comprou mercadoria no valor de seis mil libras, sem aparentemente ter
chegado ao limite de nenhum dos cartões.
Claro que se tornou pouco cuidadoso. Estava na sua natureza proclamar
a sua esperteza e ostentar riqueza, pois entre as qualidades de Bobby não
constava a capacidade de fazer previsões a longo prazo, apenas um desejo
infantil de satisfazer apetites imediatos e demonstrar que estava acima dos
seus iguais. Ostentava as suas coisas com uma arrogância cada vez maior,
provocando inveja e ressentimento, tendo sido denunciado por um velho
amigo da escola, que dera em informador da polícia por um cigarro e o preço
de uma cerveja.

Sexta—feira, 24 de Junho, Esquadra da Polícia da Rua Romsey


Winchester, Hampshire — 12.15 h

Quase ao mesmo tempo em que Jinx considerava a fuga, o sargento


Sean Fraser batia na porta aberta do escritório do inspector Maddocks.
— Lembra—se do que disse o superintendente sobre uma terceira
pessoa poder ter roubado os bilhetes de identidade do nosso casal e o
dinheiro? Bem, dei uma olhadela às participações da semana passada e
encontrei uma que parece excelente. É bom de mais para ser uma
coincidência, Chefe. Um rapaz chamado Bobby Franklyn foi trazido esta
manhã pelos polícias. Vive na propriedade de Hawtree, os pais estão
separados, são cinco filhos à solta. Ele é o mais velho. Parece que utilizou
cartões de crédito roubados para comprar material eléctrico e roupa no valor
de seis mil libras, em cinco dias. Quando levantaram as tábuas do chão do
quarto dele, encontraram quatro cartões no nome de Leo Wallader e dois no
nome da menina M. S. Harris. Ele diz que os encontrou num saco de plástico,
em High Street, mas quando Ted Garrety telefonou hoje para saber quando é
que os cartões tinham sido dados como desaparecidos, foi informado de que,
no que diz respeito às companhias que os emitiram, ainda estão válidos. O
Ted tem estado a tentar contactar os donos dos cartões. A morada de
Wallader é 12 Gle—navon Gardens, Richmond e a de Harris é 43a Shoebury
Terrace, Ham—mersmith. Dois números de Londres que não respondem. O
que acha? A permanente carranca na cara pesada de Maddocks suavizou—se,
dando lugar a um vivo interesse.
— O Franklyn ainda está aqui? Fraser acenou com a cabeça.
— É uma pessoa desagradável. Tem dezassete anos e conhece os seus
direitos. Já o trouxemos aqui para ser repreendido, mas esta é a primeira vez
que ele já tem idade suficiente e se portou suficientemente mal para ser
acusado. De acordo com Garrety tinha cinco televisões, meia dúzia de
aparelhagens ainda dentro das caixas ao lado da cama e uma quantidade de
roupa nova e vistosa no armário.
— Trouxe um advogado?
— Uma mulher jovem de Hicks e Hicks. Ela aconselhou—o a manter—
se calado.
Voltou a ficar carrancudo.
— Suponho que seja a Miranda Jones. Se as mulheres se limitassem a
fazer aquilo em que são boas em vez de se intrometerem nas actividades
masculinas, o mundo seria um lugar melhor. — Lançou um olhar preguiçoso
à cara pudica do jovem sargento. — Você concorda com o que eu disse, não
é? — provocou—o ele, sabendo que Fraser não tinha coragem para
contradizer um oficial superior.
Fraser olhou fixamente para uma mancha na parede, por cima da cabeça
do inspector e brincou, um pouco, com a ideia de bater no filho da mãe.
Realmente odiava Maddocks. Suspeitava que a misoginia do homem era
patológica e atribuía—a ao facto de Maddocks estar a meio do seu terceiro
divórcio. Mas não era desculpa, muito menos, para a sua aparente vontade de
abandonar os seis filhos que tinha tido.
Ela é melhor do que alguns homens que eles mandam, Chefe.
Está bem, vamos lá vê—lo — disse Maddocks, abandonando o seu
passatempo, puxando a cadeira para trás e levantando—se. — Não há
hipótese de ele ser o nosso assassino, suponho eu?
Fraser pôs—se de lado para o deixar passar.
— Acho que não, Chefe. Segundo Ted Garrety, parece que é conhecido
por gostar de raparigas. Uma rapariga de treze anos acusou—o de violação,
há uns anos atrás, mas A mãe dela retirou a queixa, quando soube com
quantos outros rapazes a filha tinha dormido. Parece que Franklyn tem todas
as características de um pedófilo e daqui a um ou dois anos vamos prender o
filho da mãe regularmente por abusar de crianças. Um tipo como ele é
extremamente mal formado, por isso é provável que roube dois adultos
mortos sem qualquer problema, mas duvido muito que tenha tido a coragem
de os raptar quando estavam vivos.
O que resumia de forma bastante elucidativa o caso daquele rapaz,
pensou Maddocks ao examinar o jovem, deprimentemente grosseiro, na sala
de entrevistas, que não sabia abrir a boca sem dizer obscenidades, coçando o
gancho das calças desde o início até ao fim da entrevista, aparentemente sem
notar que o estava a fazer. Parecia pouco saudável e pouco limpo, com
feições tristes e angulosas, olhos que olhavam para todo o lado menos para a
pessoa com quem estava a falar e mantinha um trejeito amuado na boca. Em
alturas como esta, o fascista que havia em Garreth Maddocks, perguntava—
se por que razão a sociedade tolerava tais parasitas.
— Temos um problema — murmurou ele, depois de Franklyn ter
respondido —, não faço comentários às primeiras três perguntas. Vou ser
honesto Bobby, para que tu saibas quem eu sou. Acho que depois podes
decidir dar—me algumas respostas. Não estou interessado na tua fraude dos
cartões de crédito. No que me diz respeito são um assunto à parte. Estou
interessado em duas pessoas cujos nomes estão nos cartões, Leo Wallader e
M. S. Harris, e a razão pela qual estou interessado é porque tenho dois
cadáveres que não consigo identificar e que foram encontrados na floresta de
Ardingly. Bem, o sargento Fraser e eu pensamos que o nosso casal pode
muito bem ser o senhor Wallader e a menina Harris e poupar—nos—ia muito
tempo se pudesses confirmá—lo, Bobby. Achamos que tu tropeçaste nos
cadáveres, há uma semana, e que tiveste a atitude que qualquer macho normal
e vigoroso teria, ou seja roubaste as carteiras. — Sorriu amigavelmente. —
Que importância tinha? Estavam mortos, não pela tua mão, isso não está em
questão, mas não iam precisar mais dos cartões de crédito, não é verdade?
Que tal dares—nos uma hipótese? Realmente ajudar—nos—ia muito saber
quem eles são.
— Desaparece — disse Bobby. — Não tenho nada a acrescentar.
Maddocks olhou para a jovem advogada.
— Que tal o sargento e eu saírmos da sala durante cinco minutos e você
discutir as opções com o seu cliente? Vale a pena referir, acho eu, que
podemos decidir apresentar acusações adicionais contra o senhor Franklyn,
quando e se identificarmos o nosso casal morto como sendo Wallader e
Harris, e tenho que acrescentar que obstruir as investigações da justiça será a
menor delas.
Fraser observava a masturbação involuntária de Bobby com um
desagrado marcante.
— Se formos forçados a ir de casa em casa na propriedade de Hawtree,
talvez encontremos mais alguém, uma rapariga talvez, que tenha estado na
floresta com o Bobby.
— Não estava mais ninguém comigo — disse ele repentinamente,
ignorando o aviso da advogada. Merda, se descobrissem que ele tinha fodido
uma rapariga de doze anos.
— Está bem, está bem, eu encontrei dois corpos e meu Deus como
estavam horríveis. Caras sangrentas esmagadas e varejeiras azuis por todo o
lado, mas eu estava sozinho. Acha que eu teria conseguido roubar os cartões
se tivesse alguém comigo? Pensem um bocado. Eles iam querer a sua parte
da mercadoria, não acham? Mas foi como disse, estavam os dois mortos e
não iam usar os cartões outra vez. Não vi mal em os tirar e utilizá—los para
fazer umas compras.
— Tinhas o dever de comunicá—lo, Bobby — disse Maddocks
brandamente, escondendo a sua habitual agressividade num sorriso
encorajador que significava: «Não te rales, meu rapaz, somos homens, tu e
eu, e ambos sabemos que as regras foram feitas para serem infringidas.»
— Que se lixe! Não era nada comigo. Se eu gostasse um pouco mais de
vocês, então talvez, mas nunca me fizeram favores, por isso por que é que eu
haveria de lhes fazer um? Estavam tão mortos, que vocês não iam acreditar.
Não vi que diferença lhes iria fazer se fossem encontrados há uma semana ou
se fossem encontrados hoje. Estariam mortos na mesma, não acha?
Maddocks não podia concordar com aquilo.
— Tens a certeza de que estavas sozinho, Bobby? Se estava uma
rapariga contigo, precisamos de saber. É importante. Estava a pensar nas
marcas encontradas na ladeira, feitas por um salto de mulher.
— Sim, tenho a certeza. — Pensou um momento. — Vou—lhes dizer o
seguinte. Se uma rapariga tivesse visto o que eu vi, ainda agora estaria a
vomitar por todo o lado. Eu próprio não gosto de pensar muito sobre isso. —
A pele dele ficou ainda com um aspecto menos saudável. — Tive que suster a
respiração para os revistar. Foi horrível. Acho que havia um milhão de
varejeiras azuis naquela vala. Vão—me acusar? Não fui eu que os matei. Não
faço esse tipo de coisas.
Maddocks olhou para Fraser, que encolheu os ombros. A história do
rapaz parecia verdadeira.
— Não — disse o inspector, levantando—se. — Neste momento não
tenciono acusar—te de mais nada, além das acusações com que já tens que te
haver, mas vamos precisar de voltar a falar contigo, Bobby, por isso
aconselho—te vivamente a estares disponível. Nem o sargento Fraser nem eu
queremos ter de andar à tua procura. — Fez uma pausa junto da porta. — Só
mais uma coisa. Tinha sido feita qualquer tentativa para enterrar os
cadáveres?
— Numa sepultura?
— Não, quero dizer se tinham sido cobertos com alguma coisa?
— Só com folhas.
— Bem cobertos?
— Sim, bastante bem.
— Então como sabias que eles lá estavam?
Os olhos vivos de Franklyn mexeram—se nervosamente.
— Porque qualquer coisa tinha mexido no homem, disse ele. — Talvez
uma raposa. — A cabeça e a parte superior do corpo tinham sido
desenterrados, pelo menos era isso que parecia. Eu não sabia que a mulher lá
estava até começar a tirar as folhas e encontrar a cabeça dela junto às pernas
dele. Para lhe dizer a verdade, gostaria de nunca os ter visto. — Limpou as
mãos às calças. — Já me trouxe sarilhos e não tenho a certeza de depois me
ter lavado o suficiente. Tenho estado preocupado com isso.

Clínica Nightingale, Salisbúria — 18.30 h

Alan Protheroe foi visitar Jinx naquela tarde e encontrou—a a andar


pelo quarto com uma determinação corajosa.
— Não vou sair mais numa cadeira de rodas — disse—lhe ela zangada.
— Não tinha percebido como era sensível ao facto de me olharem. Foi uma
experiência profundamente humilhante. Apontou um dedo para as ligaduras.
— Quando é que me tiram esta coisa idiota?
— Provavelmente amanhã de manhã — disse ele, perguntando—se se
teria sido apenas a humilhação que tinha provocado a raiva dela. Levaria
ainda algum tempo, pensou ele, antes de ela se sentir confiante para admitir
que se lembrava de alguma coisa. — Tem uma consulta no hospital Odstock
às nove e meia. Se tudo estiver bem, vão—lhas tirar.
Ela parou junto ao toucador.
— Ainda bem. Neste momento sinto—me como o monstro do
Frankenstein.
A cara amável dele abriu—se num sorriso.
— Você não se parece com ele. Houve um curto silêncio.
— É casado, doutor Protheroe?
— Fui. A minha mulher morreu, de cancro da mama, há quatro anos.
— Lamento.
— Porque quer saber? — perguntou ele.
Apenas por curiosidade. É simpático de mais para andar a solta e à
maior parte das suas camisas faltam—lhe botões.
— Porque são seis e meia de uma sexta—feira à tarde de Junho e estava
a pensar por que razão ainda cá está? Vive aqui?
Ele acenou com a cabeça.
— Num andar lá em cima.
— Filhos?
Uma filha na universidade, que tem dezanove anos e uma personalidade
muito forte.
— Não me surpreende. Provavelmente usou—a como cobaia para as
suas teorias sobre a responsabilidade individual desde pequenina.
— Sim, mais ou menos.
Ela olhou para ele com curiosidade.
— Por uma questão de interesse, o que acontece quando um dos seus
doentes escolhe valores errados? Ou por outras palavras, age de má—fé. Não
acredito que todos sigam a linha existencialista de Protheroe. É impossível
segundo as estatísticas.
Ele sentou—se numa das cadeiras, esticou as pernas compridas e
colocou as mãos atrás da cabeça.
— Essa é uma pergunta de muita responsabilidade, mas vou tentar
responder. Por «errado» refere—se, com certeza, a deixarem a clínica com os
mesmos problemas com que entraram? Por outras palavras, o tempo que
passaram aqui não os convenceu que pode haver outro modus vivendi que
valha a pena ter em consideração.
— Isso é uma forma muito simplista de pôr as coisas, mas serve, acho
eu.
Ele arqueou uma sobrancelha, divertido.
— Então a resposta é simples, os meus métodos não funcionaram para
eles e, ou ficam como são, ou procuram uma terapia alternativa. Mas
habitualmente são eles que saem em quarenta e oito horas porque, para
começar, não queriam estar aqui.
Como eu, pensou ela.
— No entanto, deve haver reincidentes. Não consigo imaginar Matthew
a levar uma vida honesta, quando tiver saído daqui.
— Acho que está a subestimá—lo. Só cá está há duas semanas, sabe? Dê
—lhe mais um mês e depois diga—me que ele não vai conseguir.
Ela ficou horrorizada.
— Um mês? Quanto tempo é que tenho que ficar aqui?
— O tempo que quiser.
— Isso não é uma resposta. Quanto tempo é que o meu pai espera que o
senhor me retenha aqui?
— Isto não é uma prisão, Jinx. Eu não retenho ninguém aqui.
— Então posso ir—me embora amanhã depois de me terem tirado as
ligaduras?
— Claro que pode, tendo em conta o que eu lhe disse na quarta—feira.
Você fisicamente ainda não está bem, por isso sentir—me—ia obrigado a
informar o seu pai de que você se foi embora.
Ela sorriu levemente:
— Significa que, mentalmente, estou bem?
Ele encolheu os ombros.
— A minha impressão, se é que vale alguma coisa, é que você é muito
forte. — Inclinou—se para a frente e estudou cuidadosamente a cara dela. —
Estou a ter alguns problemas em fazer corresponder essa confiança em si
própria com o quadro que a polícia me deu de uma mulher com o coração
despedaçado, vulnerável e que tinha espetado o carro contra uma parede.
Ela carregou com um dedo na pálpebra para esconder as lágrimas.
— Também eu — disse ela passado um momento —, mas reli a notícia
no jornal várias vezes e não consigo encontrar outra explicação.
— Hoje telefonei para o atendedor de chamadas da Meg. Achei que se
conseguisse falar com ela e com o Leo, pelo menos eles podiam dizer a toda
a gente que eu não estava triste por ele se ter ido embora.
— Lembra—se disso?
— Quer dizer, o facto de eu não estar triste? — Ele anuiu e ela abanou a
cabeça.
— Não, apenas tenho a certeza de que não me teria preocupado.
— Porquê?
Porque não me preocupei da última vez.
— Porque — disse ela em voz alta — eu não queria o Leo. — Ela
afastou o olhar dele, talvez com medo de ver a sua incredulidade.
— Sei que não parece verdade, mas estou aliviada por não ter que casar
com ele. Lembro—me de passar horas no estúdio apenas para evitar ter de ir
para casa e passar noites agradáveis com ele, e acho que não era ter medo do
casamento. — Estava a começar a não gostar dele. Deu uma gargalhada oca.
— Lá se vai a minha autoconfiança. Por que razão iria eu casar com alguém
de quem não gostava? Não faz sentido. — Caiu num curto silêncio. — Não
seria tão mau
— disse ela de repente —, se eu não tivesse que estar constantemente a
controlar as minhas defesas.
— Contra o quê?
Ela encostou as pontas dos dedos ao olho são para não o ver.
— Medo — disse ela.
Ele esperou um momento.
— De que tem medo?
— Não sei — murmurou. — Não me lembro.

Esquadra da Polícia de Romsey Road, Winchester Hampshire —


19.00 h

Tudo aconteceu extraordinariamente depressa, depois de terem sido


dados nomes, não definitivos, aos corpos. Um telefonema para a polícia de
Richmond pôs a descoberto a informação interessante de que o número 12 de
Glenavon Gardens tinha atraído a atenção de outra filial da polícia do
Hampshire há cerca de dez dias, depois de um acidente de trânsito que
envolvera a menina Jane Kingsley, a dona e ocupante.
— Deve querer falar com o sargento Halliwell, em Fordingbridge —
disse a voz, do outro lado, para Fraser. — Ele pediu—nos para fazer algumas
perguntas sobre a menina Kingsley porque lhes pareceu que o acidente de
carro tinha sido uma tentativa deliberada de suicídio. O facto é que estava
noiva de Leo Wallader, que viveu com ela em Glenavon Gardens durante
cerca de dois meses antes de fugir na noite de sexta—feira, dia 10 de Junho,
três semanas antes do casamento, para se juntar com a melhor amiga da
menina Kingsley. Falámos com os vizinhos de Kingsley que mencionaram
outra tentativa de suicídio no domingo, dia doze, e também com os pais de
Wallader pelo telefone. A informação que nos foi transmitida é que Wallader
e a sua nova namorada tinham fugido para o continente, para evitar a
confusão devido ao casamento desmanchado.
— Tem alguma ideia do nome da namorada? — Fraser susteve a
respiração.
— Harris. Meg Harris. Acertamos no alvo!
— Tem a morada dos pais de Wallader?
— Vamos a ver. O pai é Sir Anthony Wallader. Morada: Downton
Court, Ashwell, perto de Guildford.
— E os pais de Meg Harris?
— Lamento. Ela apenas entrou na história por ser a nova namorada. Não
sabemos nada sobre ela a não ser o nome.
— Está bem. Pode mandar—me, por fax, tudo o que souber sobre isto?
— Leu o número. — Dentro dos próximos cinco minutos, se possível.
— Está bem. Qual é a história?
— Não temos ainda a certeza, mas temos aqui dois corpos que achamos
ser Wallader e Harris. O melhor é avisar os seus colegas para nos esperarem
amanhã a qualquer momento. Adeus.
Desligou, folheou uma lista da polícia e marcou Fordingbridge.
— O sargento Halliwell ainda está aí? — perguntou ele. — Sim, sei que
é tarde.
Tamborilou com os dedos na secretária.
— Está bem, isto é urgente. Pode tentar encontrá—lo e pedir—lhe para
telefonar ou para o inspector Maddocks ou o para o sargento Fraser no
âmbito do incidente da floresta de Ardingly? — Disse o número rapidamente.
— Dê prioridade a isto, por favor.
Juntou as suas notas e encaminhou—se pelo corredor em direcção ao
fax, que estava já a imprimir a primeira de duas páginas transmitidas de
Richmond. Apanhou as duas folhas antes de se dirigir ao gabinete de
Maddocks.
— Aqui está a ligação com Hampshire, chefe. Leo Wallader estava
noivo de uma tal Jane Kingsley até há umas semanas atrás. Era suposto
casarem no dia 2 de Julho, mas Leo deixou—a no dia 12 de Junho pela sua
melhor amiga, Meg Harris. — Levantou os olhos. — O pai da menina
Kingsley é Adam Kingsley da Franchise Holdings e o casamento era para ser
celebrado em Hellingdon Hall, que é onde vive o pai. É uma mansão a norte
de Fordingbridge. — Entregou a Maddocks as folhas de papel. — Pedi para o
sargento Halliwell, de Fordingbridge, nos telefonar. Ele é que pediu esta
informação quando os seus agentes tiraram a menina Kingsley de dentro do
carro, no dia 13 de Junho, inconsciente e bêbada como um cacho. Uma
tentativa de suicídio, acham eles, que se seguiu a uma anterior, no dia 12 de
Junho. — Bateu com os dedos no mapa feito pelo Serviços Geográficos
Cadastrais, pregado na parede. — De acordo com o rapaz com quem falei em
Richmond, o acidente deu—se no aeródromo de Stoney Bassett, que fica —
espalhou a mão por cima do mapa — a dois terços do caminho entre a
floresta de Ardingly e Hellingdon Hall, digamos quinze quilómetros da
floresta até ao aeródromo e mais sete do aeródromo até ao Hall. Tenho um
pressentimento acerca disto, Chefe. A geografia está correcta, temos marcas
de escorregadelas na ladeira, feitas por um sapato de mulher e o doutor diz
que podia ter sido uma mulher.
Maddocks era mais velho e mais prudente:
— Vamos esperar o telefonema de Halliwell — disse ele.
Meia hora mais tarde foram para o gabinete do superintendente e
puseram—no a par do que sabiam.
— Aceito que haja uma chance remota de que Wallader e Harris estejam
a apanhar sol na Riviera — terminou Maddocks — ou porque Franklyn pode
estar a mentir, ou porque os nossos cadáveres roubaram os cartões de crédito,
para mais tarde serem roubados novamente por Franklyn, mas é tão pouco
provável que nem vale a pena considerar. Explica porque ninguém os deu
como desaparecidos. Segundo Halliwell, a família de Leo disse que eles
tinham fugido para França para evitarem o escândalo do casamento
cancelado. Então o que fazemos? Dizemos a Sir Anthony Wallader que
achamos que o filho está no banho no laboratório e pedimos—lhe que faça
uma identificação? Ou esperamos que a identificação esteja correcta antes de
dizermos às famílias? Provavelmente conseguimos algumas impressões
digitais, no apartamento de Harris em Hammersmith, mas Richmond diz que
não há maneira de entrarem novamente em Glenavon Gardens sem alertarem
Jane Kingsley de que há qualquer coisa de errado. O que poderia ser uma
atitude incorrecta se ela estiver implicada.
Frank Cheever encastelou os dedos na secretária e olhou pensativamente
pela janela:
— Alguma vez vos contei — disse ele por fim — que comecei a minha
carreira como polícia de giro em Londres no Mile End?
Maddocks e Fraser olhavam em frente. Se ele lhes tinha contado uma
vez?... Tinha—lhes contado cem vezes. Maddocks preparou—se para uma
estopada. Não havia mérito nas recordações do velho tonto além do facto,
incontestavelmente interessante, de que Cheever era filho bastardo de uma
prostituta de East London. Até Maddocks teve de admitir que subir de posto,
nas várias forças policiais, e permanecer casado com a mesma mulher durante
trinta e oito anos tinha sido uma façanha para um rapaz que começara a vida
numa sarjeta.
— Mal tinha saído da escola — reflectiu ele — e um dos primeiros
corpos que apanhei na rua era de um preto que tinha sido espancado quase até
à morte. — Pensou no assunto durante um momento. — Veio a saber—se
que o miserável estava noivo da irmã do chefe de um gang do East End e
havia provas circunstanciais de que tinha sido o futuro cunhado a fazer o
trabalho. O meu chefe só precisava que a identidade da vítima fosse
confirmada, mas quando esta voltou a si, recusou—se a cooperar e tivemos
que deixar as coisas como estavam. Nunca vi ninguém com um ar tão
assustado. Era preto como o ás de espadas, mas ficava branco sempre que
falávamos de formalizar uma acusação. — Olhou de um para o outro. — O
filho da mãe que o espancou chamava—se Adam Kingsley. Não estava
preparado para ter sangue preto na família. — Fixou os olhos pálidos em
Maddocks. — Mas de qualquer maneira, teve—o. O rapaz preto tinha mais
coragem do que Kingsley pensava. Casou com a irmã, uma semana mais
tarde, e subiu a nave de muletas. Maddocks assobiou:
— O mesmo homem? O pai desta rapariga? Cheever anuiu.
— Fez uma fortuna comprando propriedades baratas com inquilinos
para depois, mandando os seus guarda—costas, expulsar os desgraçados para
vender as propriedades já vagas. Nos anos 60 tornou—se uma pessoa
respeitada, provavelmente na altura em que nasceu a filha. — Olhou através
da janela para a escuridão. — Está bem — disse ele —, sugiro que sejamos
cautelosos. Você e eu, Fraser, vamos visitar Sir Anthony Wallader amanhã de
manhã. Saímos às oito e meia para estarmos com ele entre as nove e as nove
e meia e quero que avise o doutor Clarke de que talvez ele volte connosco. —
Virou—se para Maddocks. — Entretanto, Gareth, sugiro que divida a sua
equipa em dois, metade para se concentrar em Meg Harris, a outra metade em
Jane Kingsley. Quero saber onde se conheceram, há quanto tempo se
conheceram, e que tipo de pessoas são. Quero saber que tipo de relação é que
Jane Kingsley tem com o pai. Está bem? Vejam o que conseguem descobrir
até voltarmos.
— Mas não vamos falar com Kingsley, pois não?
— Não.
— E a filha? Halliwell diz que ela está na clínica Nightingale em
Salisbúria, recuperando dos efeitos do choque. Deixamo—la sossegada
também? Ela já tem uma queixa, por conduzir sob os efeitos do álcool, por
isso poderíamos fazer—lhe algumas perguntas sobre isso sem dificuldades.
— Acha que sim? — disse Cheever secamente. — Oiça meu amigo, não
estamos a lidar com os samaritanos e certifique—se de que Kingsley não
venha a tomar conhecimento das perguntas que vai fazer. Percebeu?
Ninguém se aproxima da família até termos a certeza em que ponto estamos e
o que estamos a fazer. Se Jane for parecida com o pai, trate—a com tanta
delicadeza como trataria uma cobra. Claro que vai deixá—la sossegada.
Deixe—os a todos sossegados.

Sábado, 25 de Junho, Downtown Court, perto de Guidford, Surrey


— 9.30 h

Sir Anthony Wallader, franzindo a testa perplexo, conduziu os dois


polícias de aspecto sombrio, até à sala de visitas da sua casa, fazendo—lhes
sinal para que se sentassem.
— Para lhes dizer a verdade, meus senhores, estou farto — levou a mão
até ao pescoço — daquela miserável rapariga e das suas tentativas de
suicídio. Não digo que aprove o que o meu filho fez, mas oponho—me à
forma como eu e Philippa estamos constantemente a ser arrastados para um
assunto que não tem nada a ver connosco. Não imaginam quanto tempo
passei ao telefone com os vossos colegas de todo o país, sem contar a
conversa horrível que a pobre da Philippa teve com a madrasta de Jinx.
Philippa queria fazer o que achava certo e desejar—lhe as melhoras de Jinx,
mas Betty foi tão rude e ofensiva como se esperaria de uma mulher da sua
classe e do seu meio. — Estremeceu com desagrado. — É a criatura mais
repreensível, pouco melhor do que a mais baixa das prostitutas do East End,
para ser franco. Ainda bem que saímos daquela confusão de família.
Fraser, que conhecia o meio de Cheever, sentiu—se incomodado por
causa do seu chefe. O superintendente limitou—se a acenar com a cabeça.
— Não é uma situação fácil.
— Tem razão. E porque deveríamos ser responsáveis pelo facto de uma
mulher crescida não ser capaz de lidar com as suas emoções? É realmente tão
importante que não possam esperar que Leo regresse? Recostou—se no sofá
e cruzou as pernas delicadamente, um verdadeiro aristocrata. Em
circunstâncias diferentes, Fraser poder—se—ia sentir tentado a dar—lhe uma
tareia. Ele sentia que não havia sinceridade em Sir Anthony Wallade —
Philippa e eu mal conhecemos a Jinx. Leo trouxe—a para passar um fim—de
—semana, mas não foi o suficiente para nos sentirmos à vontade com ela.
Claro que é uma rapariga muito esperta, mas moderna de mais para o nosso
gosto.
— De facto, gostaríamos muito de falar com o seu filho — disse Frank
Cheever calmamente. — Tem a morada ou telefone onde possamos contactá
—lo?
Sir Anthony abanou a cabeça.
— Não sabemos nada desde que partiram. Não é para admirar. Estão
embaraçados. — Agarrou o joelho com uma mão. — Nós também.
Temos mantido as cabeças baixas, como poderão imaginar facilmente.
Não se faz, largar a noiva quatro semanas antes do casamento, mas o pior é
que não podemos criticá—lo. Embaraço misturado com alívio é
provavelmente a melhor descrição de como nos sentimos neste momento. Ela
não era indicada para ele, levava tudo muito a sério, como ficou largamente
demonstrado por estas tentativas de suicídio.
Fraser estava a examinar algumas fotografias de família na mesa ao seu
lado.
— Este é que é o seu filho? — perguntou ele, apontando para um
homem alto, loiro, encostado a um Mercedes descapotável, de braços
cruzados e um largo sorriso na cara. Parecia—se muito com a família. Tinha
a mesma testa alta que Sir Anthony, o mesmo cabelo espesso, a mesma
inclinação elegante da cabeça nobre.
— Sim, esse é o Leo.
— Para onde, exactamente, é que ele e a menina Harris disseram que
iam, Sir Anthony?
— Não disseram. Disseram apenas que iam levar o carro através do
canal até que acabassem as críticas.
— Falou com eles pessoalmente?
— Não. Leo telefonou no sábado de manhã para dizer que não ia haver
casamento e que o melhor que ele e Meg tinham a fazer era desaparecerem.
— E sábado, era o dia 11 de Junho?
— Sim. Faz hoje duas semanas.
— E desde essa altura que não sabe nada dele ou de Meg?
— Não. — Limpou as calças com a palma da mão. — Mas devo dizer
que não percebo porque é que isto é importante. Não é um crime se a nossa
ex—noiva atenta contra a vida. Ou é? Lamento que a lei faça cada vez menos
sentido à medida que vou envelhecendo.
Frank Cheever tirou um papel dobrado do bolso da frente e abriu—o em
cima dos joelhos antes de o passar a Sir Anthony. Era uma montagem,
fotocopiada, dos cartões de crédito que tinham estado na posse de Bobby
Franklyn.
— Reconhece alguma das assinaturas nesta página? Sir Anthony
segurou—o com o braço esticado.
— Sim — disse ele passado um momento — as quatro de cima são de
Leo. Mantinha os olhos meio fechados. — As duas de baixo são de M. S.
Harris, por isso devem ser de Meg. — Olhou para o superintendente. — Não
percebo.
— Lamento muito, Sir Anthony, mas temos razões para estarmos muito
preocupados com o seu filho e a menina Harris. Viemos cá porque pensámos
que nos desse uma ideia de onde pudessem estar e assim assegurar—nos de
que ainda estivessem vivos. — Acenou com a cabeça em direcção ao pedaço
de papel. — Um rapaz, com dezassete anos de idade, foi acusado ontem, em
Winchester, por utilização fraudulenta de cartões de crédito, e estes seis
cartões estavam na posse dele. Informou—nos que os roubou, há uma
semana, dos corpos que encontrou na floresta de Ardingly, três quilómetros a
oeste de Winchester. É meu triste dever participar—lhe que achamos que os
corpos são do seu filho, Leo Walíader e da amiga, Meg Harris.
Talvez a informação fosse demasiado chocante para ser compreendida,
ou talvez, muito simplesmente, não fizesse sentido. Sir Anthony deu uma
gargalhada supreendido.
— Não seja absurdo, homem. Já lhe disse. Estão algures no continente.
O que vem a ser isto? Uma espécie de partida? — Uniu as sobrancelhas
zangado. — Deve ser coisa daquele miserável Kingsley, suponho eu.
— Não, senhor, — disse Cheever suavemente —, não é nenhuma
partida, embora por si eu desejasse que fosse. Temos realmente dois corpos
não identificados — olhou para a fotografia sorridente — um homem, com
idade compreendida entre os trinta e os quarenta, com um metro e oitenta e
cinco de altura e cabelos loiros e uma mulher, entre os trinta e os quarenta,
com um metro e sessenta e dois de altura e cabelos curtos pretos. Embora
haja ainda uma hipótese de que o rapaz nos tenha mentido em relação à
maneira como arranjou os cartões, devo avisá—lo de que é muito pouco
provável. Seguramente, a descrição do homem parece ajustar—se à do seu
filho, embora ainda tenhamos que comparar a mulher com a menina Harris.
Até agora não temos qualquer descrição dela.
Sir Anthony abanou a cabeça, rejeitando a ideia.
— Deve haver qualquer erro — disse ele com firmeza. — Leo está em
França.
— Talvez nos possa dar uma descrição da Meg — sugeriu Fraser.
— Ela veio cá uma vez — disse o velho devagar —, veio cá almoçar,
quando estava de regresso a Londres, e Leo e Jinx se encontravam cá a passar
o fim—de—semana. Philippa gostou logo dela. Era uma rapariga simpática,
obviamente apaixonada por Leo, uma candidata muito melhor do que Jinx,
em todos os aspectos. Boa família, um meio decente. Philippa e eu ficámos
muito contentes quando o rapaz telefonou a dizer que tencionava casar com
Meg. A família vem de Wilt—shire, penso eu. Uma rapariga bonita, de
cabelos escuros, magra, sempre sorridente. — Depois ficou calado.
— Que idade — começou Fraser, mas Cheever olhou para ele e fez—lhe
sinal, com a mão, para que parasse.
O desespero instalou—se na cara de Sir Anthony.
— Sabem, isto vai destruir a minha pobre mulher. Leo era filho único.
Tentámos ter mais, mas não conseguimos. Fez pressão com o polegar e o
indicador nas pálpebras para segurar as lágrimas. — O que foi? Um acidente?
Cheever clareou a garganta.
— Achamos que não. O patologista acha que foram assassinados. —
Entrelaçou as mãos entre os joelhos. — Lamento, Sir Anthony.
Ele abanou novamente a cabeça zangado.
— Não, não, isto é chocante. Fez—se outro longo silêncio. Levou uma
mão trémula à testa.
— Quem queria assassiná—los?
— Não sabemos — disse Cheever calmamente. — Já estão mortos há
algum tempo, talvez há duas semanas. Neste momento achamos que a data
mais provável foi o dia 13 de Junho.
— Então foi quando a Jinx tentou suicidar—se — disse ele secamente.
— Parece que sim.
A boca de Sir Anthony mexia—se.
— Suponho que sabem que o marido dela foi assassinado? — disse ele
rudemente.
Frank Cheever inclinou—se para a frente, franzindo o sobrolho.
— Quer dizer o marido da menina Kingsley? — Isto era novidade para
ele.
O velho anuiu.
— Nessa altura ela era a senhora Landy. Foi há nove ou dez anos. O
nome do marido era Russell Landy. Era negociante de arte em Chelsea. —
Fixou Frank com um olhar penetrante. — Foi espancado até à morte com um
martelo, mas nunca se encontrou o assassino. Landy foi tão terrivelmente
agredido, que a cara ficou irreconhecível.
Os jornais descreveram o caso como uma das mortes mais brutais de que
alguém se conseguia lembrar. Como foi assassinado o meu filho,
superintendente? Serei capaz de o reconhecer? — Viu a breve hesitação nos
olhos do polícia, como se quisesse afastar uma coisa horrível.
foi espancado até à morte como o Landy?
Frank passou uma mão cansada pela cara. Meu Deus, pensava ele.
Poderia ser assim tão fácil?
A morte nunca é bonita, Sir Anthony, e muito menos quando já
passaram vários dias.
—Mas foi espancado até à morte como Landy? — Havia raiva na
voz de Sir Anthony.
— Nesta fase — disse Frank cuidadosamente — nada foi admitido ou
excluído. O patologista ainda não teve tempo para acabar o exame e até ele o
ter feito, seria errado especular, mas asseguro—lhe pessoalmente que lhe
transmitirei as suas conclusões o mais depressa possível, logo que nos
tenham sido comunicadas.
Qualquer que tivesse sido o motivo que atiçara a fúria de Sir Anthony
extinguiu—se tão rapidamente como começara. De repente pareceu perdido,
como se o facto da morte do seu filho se tivesse tornado evidente.
— Suponho que precisam de mim para identificar o corpo. — Começou
a levantar—se.
— Não há pressa. Gostaria que levasse o tempo que precisa para falar
com a sua mulher. Por favor não sinta que isto é uma coisa que precisa de
fazer imediatamente.
— Mas é — disse ele asperamente. — Philippa foi para o trabalho de
voluntariado no hospital, por isso ela nem vai saber que eu saí. Você falou de
uma hipótese remota — lembrou ele ao polícia com lágrimas nos olhos. —
Pela minha pobre mulher, estou a rezar por isso.

Laboratório Forense, Hampshire — 11.45 h

Ficou de pé, com os olhos secos a olhar para o que restava do filho,
agora levado para uma mesa limpa, o torso discretamente embrulhado em
lençóis de algodão. O cabelo, tão espesso e loiro como tinha sido em vida, era
sem dúvida de Leo e embora fosse terrível, havia ainda suficiente estrutura
facial para a identificação.
Os olhos dele procuraram os do doutor Clarke.
— O que devo dizer à minha mulher? — perguntou—lhe ele. — Nem
sei por onde começar.
Clarke olhou para o pobre corpo sem vida.
— Ela vai precisar de conforto, Sir Anthony, não da verdade. Diga—lhe
como ele estava com um aspecto calmo.

Negociante de arte assassinado

O corpo de Russell Landy, de 44 anos, foi encontrado no armazém da


sua galeria de arte em Chelsea na noite passada, pela mulher Jane Landy, de
24 anos, vítima de espancamento. Ainda estava vivo quando chegou a
ambulância, mas morreu a caminho do hospital. A senhora Landy, que está
grávida de três meses, ficou em estado de choque. Tinha esperado por ele
durante mais de uma hora, no restaurante Le Gavroche, onde iriam jantar,
mas como ele não chegava, foi de táxi até à galeria para o procurar. Estava
sozinha quando o encontrou. Os médicos dizem que provavelmente tinha sido
atacado há uma ou duas horas e que poderia ter sobrevivido se tivesse sido
encontrado mais cedo.
A galeria tinha sido saqueada e alguns dos quadros mais valiosos
roubados. A polícia acredita que o senhor Landy pode ter perturbado os
assaltantes. Encontrou—se um malho no local. Russell Landy era
relativamente novo no mundo da arte. A sua galeria, Impressions, abriu há
menos de quatro anos e era especializada na obra minimalista de jovens
pintores como Michael Paggia e Janet Hopkins.
Daily Telegraph — 2 de Fevereiro de 1984

Jane Landy perde bebé

Duas semanas depois do assassinato do marido, Russell Landy, um


negociante de arte, Jane Landy sofreu uma segunda tragédia. Foi anunciado
ontem que tinha perdido o bebé que esperava. Dizem que está muito
perturbada. A polícia não está mais perto de encontrar o assassino do
marido.
Daily Telegraph — 18 de Fevereiro de 1984

Misterioso assassínio de Landy

A polícia admite estar intrigada acerca do assassinato do negociante de


arte Russell Landy, de 44 anos, cujo corpo espancado foi encontrado há duas
noites pela sua mulher, Jane. «O local foi assaltado» disse um porta—voz da
polícia, «e alguns quadros roubados, mas não podemos explicar o ataque
desvairado ao senhor Landy. Este tipo de roubo, feito por especialistas, não
está normalmente associado a violência extrema e selvagem. Os ladrões de
arte orgulham—se do seu profissionalismo.»
A polícia está a pedir aos negociantes e coleccionadores de arte para
tomarem atenção a quadros roubados. «Se pudermos ter a certeza de que o
roubo foi o motivo», disse o porta—voz, «ajudar—nos—á nas nossas
averiguações. Nesta fase, não sabemos se o malho usado para matar o
senhor Landy já se encontrava no local ou se foi levado pelo assaltante. É
óbvio que temos que considerar que o assassinato em si mesmo pode ter sido
a verdadeira intenção do assalto.» Jane Landy, de 24 anos, é filha única de
Adam Kingsley, presidente milionário da Franchise Holdings Ltd. Diz—se
que está profundamente perturbado com a morte do genro, embora tenha
declarado publicamente, depois do casamento, que Russell Landy era o
género de pessoa que costuma dar o golpe do baú. Kingsley tem dois filhos
do segundo casamento, Miles e Fergus, de 16 e 14 anos.
Amigos dos Landy dizem que Russell era um homem popular sem
inimigos. «Ele era um intelectual com um sentido de humor maravilhoso»
disse um amigo íntimo. «Não percebo por que razão alguém poderia querer
matá—lo.»
Os quadros roubados foram avaliados em 250 000 libras, mas a polícia
acha que serão difíceis de vender. O trabalho de Michael Paggia é bem
conhecido, em círculos de arte minimalistas, mas o seu interesse é limitado.
O seu trabalho mais famoso, Brown & Yellow, duas grandes telas castanhas
de ambos os lados de uma tela amarela mais pequena, está neste momento
em exposição na Tate. Causou furor quando foi comprado. Um crítico
descreveu—o da seguinte forma: «S**T & P**S».
«É muito pouco claro» disse um porta—voz da polícia, «porque é que os
ladrões se dariam ao incómodo de roubar quadros como este. Quem
quereria comprá—los?»
Daily Telegraph — 3 de Fevereiro de 1984

MEMORANDO
para: ACC Hendry
Oe: Superintendente Fisher
Data: 9 de Agosto de 1984
Ref: Assassinato de Russell Landy — 1.2.84
De acordo com a nossa conversa de ontem, pedi a Andrews e a
Meredith para escreverem um relatório do caso. Os pontos mais importantes
são estes:
• Nenhum dos quadros roubados apareceu. A opinião de Andrews e
Meredith, que eu partilho também, é que o roubo nunca foi o motivo.
Averiguações exaustivas não originaram testemunhos do arrombamento. (A
senhora Landy fez uma participação ao seguro para efeitos de indemnização.
Os quadros foram avaliados em mais de 200 000 libras).
• Os movimentos de Landy foram averiguados, até três meses antes do
seu assassinato, mas não há provas do que quer que fosse de estranho no seu
passado recente. O seu negócio era solvente, tal como as suas finanças e,
excepto algumas indicações de que fumava cannabis ocasionalmente, não
participava em quaisquer actividades ilegais. Embora tivéssemos
interrogado os seus amigos, colegas ou conhecidos, não existem provas de
qualquer ligação secreta. Parece extremamente improvável, que tenha sido
morto por um rival.
• Tem vários amigos homossexuais, mas uma exaustiva averiguação
junto da comunidade homossexual convenceu Andrews e Meredith de que ele
não era um homossexual activo e que isto não foi um crime perpretado por
homossexuais.
• Vivia em harmonia com a mulher. Os amigos dizem que ele era
bastante possessivo, mas não existem provas de violência ou crueldade
doméstica. O álibi dela, para a tarde e noite de 1 de Fevereiro, é sólido. A
única altura em que esteve sozinha, a partir do meio—dia, foi quando pagou
ao táxi que a levou do restaurante até à galeria e entrou no local. Estava
sozinha quando encontrou Landy. Andrews e Meredith basearam as suas
opiniões nas provas forenses, que justificaram a teoria original de que Landy
tinha sido atacado, no mínimo, uma hora antes de ela ter chegado, às 21.05.
Com a indicação do motorista de táxi da hora a que a tinha largado e com a
chamada registada para o 112, não há possibilidade de ela própria ter
cometido o crime.
• Os seus movimentos também foram investigados até três meses antes
do crime. Andrews e Meredith procuraram especificamente provas de um
caso amoroso, mas não encontraram. Também procuram provas de um
contrato entre ela e um terceiro, para eliminar o marido, mas não foram
encontradas. Também deve ser dito que não conseguiram descobrir uma
razão pela qual ela o quereria ver eliminado. Mais de cem amigos e colegas
foram entrevistados e todos falaram da relação amigável entre os dois.
Existe uma indicação de que o senhor Landy tinha periódicos ataques de
ciúmes, o que foi explicado por ser vinte anos mais velho do que ela, e não
por qualquer infidelidade.
• Existem dúvidas sobre o papel do pai da senhora Landy, Adam
Kingsley. Todas as provas indicam uma hostilidade extrema entre ele e o
senhor Landy. É evidente que se opôs à relação, desde o início, e que ficou
profundamente zangado quando o casamento se realizou sem o seu
conhecimento. Recusou—se a tornar a falar com o genro, no entanto pai e
filha telefonavam um ao outro com regularidade. Amigos dela dizem que
estava perturbada pelo corte de relações, mas que se recusava a ceder aos
ciúmes de ambos, continuando a relacionar—se facilmente com os dois. A
única condição era nunca falar a um sobre o outro.
• Depois de uma prolongada investigação dos movimentos de Kingsley,
nas semanas anteriores ao assassínio e no próprio dia, Andrews e Meredith
concluíram que embora não fosse impossível ter sido Kingsley a cometer o
crime (naquele dia estava em Londres e poderia ter ido a Chelsea entre uma
reunião em Knightsbridge, que terminou às 16.30, e outra em Edgware Road,
que começou às 18.30) acreditam que seja pouco provável. Kingsley recusa
—se a dizer onde esteve nesse lapso de tempo, mas investigações
independentes, baseadas nos seus movimentos nas semanas anteriores,
revelaram o depoimento de três testemunhas, que confirmam que ele estava
com uma prostituta em Shepheard's Market. Isto passa—se regularmente e já
dura há muitos anos.
• Na ausência de qualquer outra explicação, Andrews e Meredith
inclinam—se para a hipótese de Kingsley ter contratado alguém para matar
o genro. No entanto, não têm sido capazes de confirmar esta ideia e, sem
provas evidentes, não vêem maneira de continuar. As suas suspeitas baseiam
—se na análise do carácter de Kingsley e do seu passado, que, em resumo, é
o seguinte:
1: Sabe—se que teve um número considerável de contactos com o
submundo de Londres desde o início da sua carreira. Nascido e criado nas
docas, nos anos 30 e 40, fez fortuna no mercado negro durante e depois da
guerra. Continuou com esquemas desonestos, que envolviam propriedades
nos anos 50 e 60, antes de «legitimar» o seu negócio, formando a Franchise
Holdings, expandindo—se no desenvolvimento de espaços para escritórios
em larga escala.
2: Começou a acumular uma enorme fortuna, no início dos anos 70,
durante o boom das vendas de propriedades. Sempre teve uma reputação
(não comprovada) de fazer negócios desonestos, mas por duas vezes realizou
acordos vantajosos, fora do tribunal, com jornais, que foram suficientemente
audazes para o sugerirem.
3: Desde que Thatcher subiu ao poder tem vindo a adquirir grandes
terrenos nas Docklands de Londres por preços irrisórios. Para o conseguir,
sabe—se que utiliza os seus contactos no submundo.
4: Foi casado duas vezes. A primeira mulher, a mãe de Jane Landy,
morreu em 1962 com septicemia. Era filha de um médico da classe média,
fora educada numa escola privada e diz—se que Kingsley a adorava. Voltou
a casar em 1967. A sua actual mulher, Elizabeth Kingsley, vinha do mesmo
meio que ele e tinha sido amiga de infância da irmã dele. Pensa—se que
ficou noivo de Elizabeth, em 1958, mas desmanchou o noivado para casar
com a primeira mulher. O segundo casamento não tem sido um sucesso. A
senhora Kingsley tem um problema com o álcool e os dois filhos já foram
admoestados por pequenos furtos, vandalismo e roubo de carros. Os rapazes
têm sido educados em Hellingdon Hall, desde que foram expulsos de
Marlborough por posse de drogas. Sabe—se que Kingsley adora a filha.
Para concluir, concordo com a análise de Andrews e Meredith.
Kingsley continua a ser o primeiro suspeito, embora seja muito pouco
provável que tenha sido ele próprio a cometer o crime. Na ausência de
testemunhas do assalto, do assassínio ou do aparecimento dos quadros
roubados, é difícil sabermos como proceder. Mesmo que nos fosse dada
permissão para procurar nas numerosas contas de Kingsley a prova de um
pagamento do contrato, é muito duvidoso que o encontrássemos.
John
8
Sábado, 25 de Junho, Esquadra da Polícia de Romsey Road
Winchester — 12.30 h

O INSPECTOR MADDOCKS e a sua equipa tinham colhido uma


enorme quantidade de informações sobre Jane Kingsley, no curto espaço de
tempo de que dispunham, mas não tinham descoberto nada sobre Meg Harris
ou os seus pais.
— Por ocasião do acidente de carro da menina Kingsley, dois polícias
foram falar com os pais dela — disse ele a Cheever. — A madrasta, a senhora
Elizabeth Kingsley, estava embriagada e fez alguns comentários cáusticos
sobre Leo e Meg: ambos eram pessoas sem escrúpulos, mas Meg era uma
verdadeira cascavel que tinha começado a roubar os namorados de Jane desde
que tinham andado juntas em Oxford. — Olhou para cima. — Fazendo um
cálculo aproximado, Wiltshire tem mais de cinco mil famílias com o nome
Harris. Se tivéssemos a inicial do pai, ou até a profissão, podia ajudar mas
você diz que Sir Anthony não sabe o nome do pai dela.
— Não — disse Frank Cheever com mais cinismo do que era hábito. —
Apesar do seu entusiasmo por ela, e de a preferir como nora, parece saber
muito pouco sobre ela.
Maddocks olhou para ele de forma curiosa. Bem, bem, bem, pensou, os
tempos estão a mudar.
— Pus dois dos nossos rapazes à procura de parentes próximos de Meg,
através da universidade — continuou ele —, mas depois existe outro
problema. Harris pode não ser o nome de solteira. Ainda acho que a maneira
mais fácil seria investigar o apartamento em Hammers—mith, por isso Fraser
e eu vamos até lá esta tarde.
— Compreendido. E quanto a Jane Kingsley?
— Está bem. Primeiro o assassinato de Landy. — Apontou para alguns
papéis na secretária do superintendente. — Foi isso que conseguimos arranjar
sobre o caso. Parece bastante compreensivo e há um telefone para onde pode
falar para ficar actualizado. Acho que não percebeu a ligação com Kingsley,
porque naquela altura ela chamava—se Jane Landy. De qualquer maneira,
poucas semanas depois de ter saído do hospital, onde fora tratada a uma
depressão, negociou uma venda extremamente favorável da galeria dele e
investiu tudo no seu próprio estúdio de fotografia, em Pimlico. Adquiriu tudo
de uma vez: local, equipamento e clientela. Até àquela altura tinha trabalhado
em part—time como fotógrafa suplente quando os habituais faltavam. — A
voz dele tinha um tom de admiração relutante. — Parece que fez dele um
sucesso. Sob a gerência anterior era uma empresa rotineira, que tirava retratos
das famílias importantes lá do sítio, dos respectivos amigos e animais de
estimação. Sob a gerência da menina Kingsley tornou—se um estúdio
preferido para trabalho de promoções: actores, estrelas pop, modelos,
revistas. Fez bom nome neste negócio.
— Quem o dirige neste momento?
Maddocks consultou as notas.
— Um rapaz chamado Dean Jarrett. Está com ela desde o início. Ela
recrutou—o através de um anúncio de jornal, em que exigia um portfólio para
seleccionar os candidatos. Teve mais de mil respostas, entrevistou cinquenta
e seleccionou um. Corre entre os profissionais que ele é brilhante e devotado.
Pedi a Mandy Barry para telefonar e saber se as marcações estavam a ser
respeitadas, com a menina Kingsley no hospital e a recepcionista Angélica foi
convincente, de uma maneira agressiva, no que diz respeito ao
comprometimento do estúdio. Sentia—se profundamente que a lealdade para
com a patroa não era fingida, segundo Mandy.
Cheever anuiu:
— O que mais?
— A casa em Richmond foi comprada por Landy em 81 com uma
hipoteca de trinta mil, que era o seu dote. Quando morreu, o dote pagou a
hipoteca e a casa ficou para Jane Kingsley. Não tem mostrado interesse em
vendê—la. Dá—se bem com o coronel e a senhora Clancy, seus vizinhos e, é
estimada pelas outras pessoas da rua. Vive calmamente, sem ostentação, e
exceptuando a aparência estranha do Rolls—Royce do pai, não chama a
atenção. É interessante que ninguém se tenha referido a Landy na altura do
acidente da menina Kingsley, embora alguns se devam lembrar dele, mas
estavam prontos a falar de Leo Wallader. A opinião geral é que ninguém
gostava muito dele e que ele se portava mal, mas a polícia de Richmond ficou
com a impressão de que os vizinhos ficaram mais incomodados por perderem
um casamento em Hellingdon Hall do que com o comportamento de Leo.
— E houve outros namorados entre Landy e Wallader?
— Apenas o que soubemos através dos colunistas sociais. Houve dois
ou três, mas nada que durasse mais do que seis meses. Bem, Wallader não
chegou sequer a seis meses. Ela conheceu—o em Fevereiro e ele morreu em
Junho. Foi um romance um pouco repentino, uma vez que o casamento
estava marcado para Junho.
— Qual era o atractivo? Maddocks encolheu os ombros.
— Não faço ideia, mas o coronel Clancey disse que ele e a mulher
tinham percebido que Jane estava com medo do casamento, mesmo tendo
sido Leo a desmanchá—lo. Acha que não percebe por que razão quereria
matar—se, quando ele se foi embora.
— Tem alguma ideia?
— Parece—me óbvio que ela os matou ou que testemunhou o crime,
sofrendo depois uma depressão parecida com a que tinha tido na altura da
morte de Landy. Ela é bastante estranha, isso é certo. Quero dizer, segundo o
que descobrimos, os planos de fundo favoritos para fotografias são
cemitérios, fábricas abandonadas e paredes do metropolitano com graffitti —
Tirou uma folha dobrada do bolso que tinha sido rasgada de uma revista. —
Se estiver interessado, essa é a sua fotografia mais famosa até à data. É
aquela top—model negra à frente de uma parede de tijolo suja com toda a
espécie de obscenidades inscritas.
Cheever abriu a folha na secretária e examinou—a.
— Fascinante — comentou. — Ela é uma artista.
— Bem, eu acho horrível. Porquê colocar uma mulher bonita em frente
a merdas como essa?
— Onde a colocaria, Gareth? — perguntou o velho rudemente. — Numa
cama?
— Porque não? Num sítio mais fascinante, de qualquer maneira. O
superintendente franziu o sobrolho.
— E um ponto de vista. Eu acho que significa que a verdadeira beleza é
incorruptível, por muito feio ou profano que seja aquilo que a rodeia. —
Beliscou a ponta do nariz. — O que é interessante, tendo em vista a horrorosa
da morte de Landy. Quando teria começado a usar fundos como este no
trabalho dela? Há qualquer coisa de comovente em relação ao triunfo da
frágil perfeição humana sobre o desperdício sem sentido da imundície.
Maddocks decidiu que o velho estava a ficar ché—ché. Era apenas uma
fotografia de moda amarfanhada, não a Mona Lisa.

Hellindon Hall, Perto de Fordingbridge, Hampshire — 12.30 h


Miles Kingsley abanou a mãe furiosamente e depois empurrou—a
novamente para o sofá.
— Não acredito. Meu Deus, és uma vaca tão estúpida. Porque é que não
consegues estar calada? A quem mais é que contaste?
Olhou fixamente para o irmão que desviara o olhar para o outro extremo
da sala de estar, fingindo interessar—se pelos livros encadernados a couro
que o pai tinha comprado a metro, quando se tinham mudado para o Hall.
— Tu também estás implicado, meu palerma, por isso sugiro que tires
esse teu sorriso afectado da cara, antes que te dê um estalada.
— Vai—te embora, Miles — disse Fergus. — Se eu tivesse juízo, nunca
te teria dado ouvidos, em primeiro lugar. — Deu um pontapé numa cadeira
Chippendale. — Foi ideia tua, por amor de Deus. Um esquema seguro,
disseste tu. O que pode correr mal?
— Nada correu mal. Vais ver. Apenas um pouco mais de tempo e
ficaremos livres e senhores de uma excelente fortuna.
— Foi isso que disseste da última vez.

Esquadra da Polícia de Romsey Road Winchester — 12.45 h

Frank leu os documentos que estavam na sua secretária, relacionados


com o assassínio de Landy, depois marcou o número do contacto que
Maddocks lhe dera. O detective Andrews tinha estado envolvido desde o
início.
— O caso foi, efectivamente, encerrado em finais de 85 — respondeu
ele através do telefone da Scotland Yard — quando Jason phelps foi preso
pelos assassínios de Docherty. Lembra—se dele? Espancou uma família
inteira até à morte por 2000 libras, a mando do sobrinho de Docherty. Ambos
foram condenados a prisão perpétua. Tentámos persuadir Phelps a confessar
o crime de Landy, porque era uma cópia dos assassínios de Docherty, mas
nunca conseguimos. Embora não houvesse hipótese de ele o ter cometido, se
tivéssemos conseguido que ele falasse, teríamos apanhado o Kingsley. Era
ele que nós queríamos.
— Fale—me da filha — sugeriu—lhe Frank. — como era ela?
— Eu gostava dela, por acaso. Era uma boa rapariga, profundamente
chocada, claro, e depois teve um colapso nervoso. Dizia constantemente que
era tudo culpa dela, mas nós nunca acreditámos que ela tivesse alguma coisa
a ver com aquilo. Meredith sugeriu—lhe que ela tinha medo que o pai fosse
responsável, mas ela disse que não. Um dia ou dois mais tarde, perdeu o
bebé.
— Ela alguma vez sugeriu quem o pudesse ter feito?
— Um artista desconhecido cujo trabalho Landy tinha rejeitado. Ela
contou que ele por vezes dizia coisas terríveis e insistiu em contar que lhe
dissera, alguns dias antes do crime, que o marido andava a ser seguido por
um tipo, que tinha vindo à galeria. Naquela altura não deu importância ao
caso, porque ele falou do assunto como se se tratasse de uma brincadeira, mas
mais tarde isso perturbou—a bastante. Nós verificámos, mas não tinha
fundamento e achámos que se existisse essa pessoa, tanto poderia ser o
assassino contratado por Kingsley, como um artista frustrado.
Cheever pensou durante um momento.
— No entanto, é uma espécie de campo minado. O único contacto que
tive com Kingsley foi há anos, quando ele deu uma tareia ao futuro cunhado
para persuadi—lo a não levar por diante a ideia do casamento. Agora está—
me a dizer que ele espancou o genro depois? Porque não o fez antes?
— Esse foi o argumento da filha. Ela afirma que Kingsley tinha feito o
que podia para se livrar de Landy, três anos antes, tendo—o despedido do
trabalho, mas há muito tempo que tinha aceitado a sua derrota.
A nossa opinião foi que a gravidez veio alterar as coisas. Ela admitiu
que, ela e Landy, tinham atravessado um período difícil, mas que o bebé os
unira novamente. Nós achámos que não foi uma coincidência, quando o
desgraçado foi assassinado uma semana depois de ela ter contado aos pais
que estava grávida. Éramos de opinião que Kingsley estava a contar que o
casamento falhasse e, quando lhe foi apresentada uma prova do contrário,
assinou a autorização para matar Landy.
Cheever bateu num dos papéis à sua frente.
— De acordo com o memorando, que mandou por fax, você e Meredith
acreditavam que Kingsley adorava a filha. Mas certamente que estamos a
falar de algo muito mais doentio do que adoração, não? Poderia perceber se
Landy a tratasse mal e Kingsley quisesse castigá—lo, mas pelo que disse o
que o moveu foi uma raiva ciumenta. Tem de haver um motivo sexual
bastante poderoso por detrás de acções como esta.
— Em poucas palavras, achámos que se tratava disso. Olhe, o homem
interessava—se demais por sexo, visitava as prostitutas do Shepherd's Market
todas as semanas. O segundo casamento foi um desastre, porque a pobre
criatura que ele escolheu não era, nem por sombras, tão boa como a primeira
e passados alguns anos começou a beber. Os filhos dela não eram tão bons
como a filha da primeira mulher que, para piorar as coisas, era igual à sua
falecida mãe. Não existem provas de que Kingsley tivesse abusado da filha,
mas viveram sozinhos durante cinco anos antes de ele se casar novamente e
nós achámos que havia grandes hipóteses de isso ter sucedido. Mandámos
fazer o seu perfil psicológico, baseado no que se sabia dele, e foi muito
esclarecedor. Salientava—se bastante a sua necessidade de controlar as
pessoas e acontecimentos através de uma manipulação impiedosa e pensou—
se que era muito pouco provável que a filha tivesse escapado sem ser lesada.
— Sugeriu—lhe isso a ela?
— Sim — uma hesitação —, o que é mais lamentável. Demos—lhe o
perfil a ler e o facto seguinte de que tivemos conhecimento que ela estava a
ser tratada por um psiquiatra a uma anorexia grave e depressão suicida.
Sentimo—nos mal, para ser honesto.
— Mas repare — murmurou Frank pensativamente —, é uma reacção
típica de uma criança que foi abusada sexualmente e que, de repente, se vê
forçada a confrontar—se com um passado enterrado.

43a Shoebury Terrace, Hammersmith Londres — 15.30 h

Ainda naquela tarde, Maddocks e Fraser, entraram no apartamento de


Meg Harris em Hammersmith. À porta encontraram dois polícias da
Metropolitan Police e um serralheiro, mas dispensaram os serviços do último
quando uma vizinha forte, de meia—idade, que ao ver o grupo, da janela,
apareceu com uma chave suplente, querendo saber o que eles estavam a fazer.
—Mas a Meg está em França — disse ela, contradizendo a afirmação
complacente de que tinham razões para crer que a menina Harris estava
morta. — Eu despedi—me dela. Torcia as mãos de aflição. — Tenho olhado
pelo gato dela.
Os homens acenaram as cabeças gravemente.
— Lembra—se de quando é que ela se foi embora? — perguntou
Maddocks.
— Ó meu Deus, agora é que me perguntam. Há duas semanas mais ou
menos. Talvez na segunda—feira.
Fraser consultou a agenda.
— Segunda—feira, dia 13 de Junho? — perguntou—lhe ele.
— Sim, parece que sim, mas não posso dar a certeza.
— Tem tido notícias dela?
— Não — admitiu ela —, mas também não esperava. — Parecia
perturbada. — Não posso acreditar que esteja morta. Foi um acidente de
carro?
O inspector Maddocks evitou uma resposta directa.
— Neste momento temos muito poucos pormenores, senhora...?
— Helms — respondeu a mulher, querendo mostrar—se útil.
— Senhora Helms. Sabe alguma coisa sobre o namorado da menina
Harris?
— Está a falar do Leo. Ele dificilmente é um namorado, é velho de mais
para ser um namorado, disse a Meg. Ela chama—lhe sempre o meu parceiro.
— Vivia aqui?
— De vez em quando. Acho que ele é casado e só vem ter com a Meg
quando a mulher não está cá. — Reparou que Maddocks tinha utilizado o
passado. — Vivia? — perguntou—lhe ela. — Leo também está morto?
Ele anuiu.
— Lamento dizer que sim, senhora Helms. Será que a senhora tem, por
acaso, uma morada ou telefone dos pais da menina Harris? Gostaríamos
muito de falar com eles.
Ela abanou a cabeça.
— Ela deu—me o telefone do veterinário no ano passado, caso o gato
adoecesse, mas é tudo. Tanto quanto consigo lembrar—me, a família vive
algures no Wiltshire. Ela costumava lá ir duas ou três vezes por ano passar
um fim de semana prolongado. Mas que horror! — Parecia chocada. — Quer
dizer que ela está morta e os pais não sabem?
— Tenho a certeza de que vamos encontrar alguma coisa no
apartamento que nos ajudará.
Maddocks agradeceu—lhe a chave e desceu, à frente, as escadas de
pedra para o apartamento, na cave, onde se lia 43a e que tinha vasos de
terracota, cheios de alegrias—do—lar, junto da entrada. Meteu a chave na
fechadura e pensou na obscuridade que rodeava a família de Meg. Até Sir
Anthony Wallader, que achava que sabia alguma coisa sobre eles, não fazia
ideia alguma de que parte do Wiltshire vinham ou qual era o trabalho do pai
de Meg. «Terá que perguntar à Jane Kingsley» dissera ele. «Ela é a única que
sabe.»
Contudo, dadas as circunstâncias, a polícia de Hampshire tinha preferido
a maneira mais tortuosa de chegar a Wiltshire via Hammersmith.
Um gato manchado de amarelo e castanho recebeu—os, com franco
prazer, ao entrarem no estreito hall, roçando a cabeça macia e as orelhas
contra as pernas deles, ronronando com êxtase na expectativa de receber
comida. Fraser empurrou—o suavemente com a biqueira do sapato.
— Detesto ser eu a dizer—te, mas agora és órfão. A mãezinha morreu.
— Credo, Fraser — disse Maddocks suavemente —, por amor de Deus,
é um gato. Abriu a porta para o que deveria ser a sala e reparou na carpete
chinesa de um branco—sujo com um padrão de flores bordado em tons de
azul e rosa, que cobria o chão envernizado em frente à lareira. — Um gato e
um tapete branco—sujo — murmurou ele. — Os especialistas ficarão ainda
mais insuportáveis depois disto. — Foi lá dentro, tirou uma caneta do bolso
do casaco e carregou nos botões do gravador de chamadas.
«Olá querida» dizia uma voz feminina e leve. Calculo que vás telefonar
para ouvires as gravações, por isso fala—me logo que possas. Li hoje no
jornal que a Jinx teve um acidente de carro. Estou muito preocupada, não sei
o que fazer. Devo telefonar—lhe? Gostaria de o fazer. Apesar de tudo, vocês
eram amigas e pareceu—me pouco gentil ignorá—la só porque... bem, bem,
já disse o suficiente... não vai haver mais discussões, foi o que prometemos...
Telefona—me logo que recebas esta mensagem e falaremos sobre o assunto.
Adeus, querida.»
«Olá, Meg, onde diabo estás tu?» a voz agressiva de um homem.
«Juraste pela tua honra que passavas pelo escritório antes de partir. Bolas, já
é quarta—feira, há um monte de mensagens aqui e eu não as percebo. Quem
diabo é o BUI Riley? A maior parte delas é dele. Telefona—me antes de
telefonares a outra pessoa qualquer. Isto é urgente.»
«Meg» a voz do mesmo homem. «Telefona—me imediatamente. Raios,
estou tão zangado que me apetecia bater—te. Já percebeste que a Jinx tentou
matar—se? Os teus pais têem—me telefonado todos os dias, para saber
notícias. Sentem—se pessimamente com tudo isto e eu também. Telefona,
por amor de Deus. É sexta—feira, dia 7 de Junho, são oito e meia, ainda não
tomei o pequeno—almoço e não dormi nada. Já sabia que o Wallader só ia
trazer problemas.»
«É o Simon». uma voz diferente, mais fria. «Olha, o pai e a mãe estão a
ficar muito preocupados. Não podes enfiar a cabeça na areia e fingir que está
tudo bem. Tenho a certeza de que sabes que a Jinx tentou matar—se. Saiu
tudo nos jornais. A mãe diz que tu te recusas a atender as chamadas, mas pelo
menos telefona—me a mim, se não queres telefonar—lhe a ela. Vou visitar a
Jinx, ver como ela está. Um de nós tem de mostrar algum interesse.»
«Querida, é a mãe outra vez. Por favor, por favor telefona. Estou
realmente muito preocupada com a Jinx. Diz—se que ela tentou suicidar—se.
Não aguento pensar que ela está tão infeliz por causa de ti e do Leo. Alguém
deveria falar com ela. Não te esqueças como ficou tão doente depois de terem
morto o Russell. Por favor telefona. Estou tão preocupada. Espero que estejas
bem. Normalmente telefonas sempre.»
«Para tua informação, Bill Riley está a planear processar—nos. Diz que
nós não cumprimos o contrato. Por que diabo aceitaste trabalhar com ele, se
não estavas preparada para ir até ao fim? Mensagem deixada às 21.30 de
quinta—feira, vinte e três de Junho. Se não me telefonares, nas próximas
vinte e quatro horas, considera a nossa sociedade acabada. Estou chateado
com isto Meg, podes crer que estou.»
«Olá, Meg» uma voz de mulher, mais grave. «É ajinx. Olha, sei que
provavelmente isto não é politicamente correcto (uma gargalhada baixa) eu
devia estar a rasgar as tuas primeiras edições ou coisa parecida... mas
realmente queria falar contigo. As coisas estão um pouco complicadas aqui
deste lado... provavelmente ouviste falar sobre o assunto...» uma pausa.
«Dizem que eu bati deliberadamente com o meu carro num pilar de betão.
Acreditas nisto? O problema é que perdi a memória, não me lembro de nada
desde sábado, dia quatro, por isso toda a gente chegou à conclusão de que eu
estava perturbada por tua causa e por causa do Leo» outra gargalhada,
bastante mais forçada desta vez. «Estou muito em baixo, minha cara, por isso
é que preciso de falar com vocês os dois. Podes não acreditar, mas juro por
Deus que não tenho qualquer ressentimento, por isso, se aguentares a situação
embaraçosa, telefona—me para Salisbúria, dois—dois—um—quatro—dois
—zero. É um hospital de doidos e estou morta de medo de ficar maluca aqui.
Por favor, telefona.»
O resto da fita estava em branco.
Maddocks ergueu uma sobrancelha para Fraser.
— Verdadeira? — perguntou ele.
— Ou colocada aqui para a polícia ouvir depois de encontrar os corpos?
— Está a falar dela? — Fraser encolheu os ombros. — Acho que é
verdadeira. O sócio que está chateado fez a última chamada há dois dias, por
isso acho que a dela deve ter sido bastante recente.
— E como é que isso a torna verdadeira?
— Porque ela não podia saber quando é que os corpos foram
encontrados. Se fossse bluff teria telefonado mais cedo para ter a certeza de
que receberíamos a mensagem.
Maddocks estava mais céptico.
— A não ser que ela andasse a ler os jornais.
Virou—se para uma estante, ao longo da parede, e tirou um livro ao
calhas das prateleiras.
— A referência às primeiras edições era genuína. Olhe para isto. Um
Graham Greene assinado. — Percorreu com o dedo as lombadas. — Daphne
du Maurier, Dorothy L. Sayers, Ruth Rendell, Colin Dexter, P. D. James,
John le Carré. Até tem um Ian Fleming. A quem será que os deixou?
— Provavelmente à amiga Jane Kingsley — disse rraser, abrindo uma
porta à direita da lareira, descobrindo uma cozinha branca asseada, com
bancadas acinzentadas e equipamento de um cinzento—claro. Virou—se para
os dois polícias de Londres. — Apetece—lhes tratar disto? Há hipótese de
haver papéis em algumas destas gavetas. Eu vou para o quarto dela.
Foi pelo corredor fora em direcção a uma porta no outro lado, abriu—a e
olhou para a sala. Tal como o resto do apartamento, estava limpo e
meticulosamente arrumado — tão arrumado que ele decidiu que era um
quarto de hóspedes e dirigiu—se para a única porta que ainda não tinha
aberto, encontrando a casa de banho. Além de um par de toalhas brancas e
fofas que estavam dobradas com uma enorme precisão sobre os varões, nada
indicava que alguma vez tivesse sido usada — não havia nenhuma esponja,
nem sabonete, nem pasta de dentes. Levantou o trinco do armário por cima
do lavatório e olhou pensativamente para o seu escasso conteúdo. Um frasco
de desinfectante, uma caixa de Disprin e um copo de dentes limpo. Meg
Harris era irreal, achou ele. Ninguém era tão limpo, nem mesmo quando ia
para férias. E não havia vestígios da presença de Leo. Com certeza que
alguma coisa deveria ter ficado para mostrar que um homem lá tinha vivido e
se fora embora. Levantou a tampa do cesto da roupa suja, mas estava vazio.
Regressou ao hall novamente e reparou no caixote do gato, por baixo de
um pequeno radiador, perguntando—se por que razão Meg se daria ao
trabalho de ter um companheiro, quando obviamente era tão orgulhosa da sua
casa, que os movimentos dele teriam de ser muito restritos quando ela não
estava. Parecia que a arrumação era uma obsessão dela. De volta ao quarto,
abriu o armário e deu uma vista de olhos à pouca roupa que estava
pendurada. Reparou que era apenas de mulher, nada de roupa de homem. O
mesmo acontecia nas gavetas. Procurou alguma coisa que pudesse dar—lhe
uma noção da personalidade dela, mas era como procurar num quarto de
hotel, onde um hóspede iria ficar apenas uma noite. As roupas estavam muito
bem dobradas, pequenos artigos de strass e de maquilhagem em filas
ordenadas na gaveta do toucador, uma pequena taça de pot—pourri na mesa
—de—cabeceira de onde emanava um perfume suave. Mas se alguma vez
tivesse havido alguma coisa de natureza pessoal naquele quarto, ela tinha—a
levado com ela.
Maddocks levantou os olhos do livro quando Fraser se juntou a ele.
— A agenda do ano passado — disse ele — mas não existe um único
número de telefone ou morada. Você teve sorte?
Fraser abanou a cabeça.
— Nada. Apenas algumas roupas. Parece que ela levou tudo o que lhe
era importante o que é estranho, se ia apenas passar fora algumas semanas.
Não encontrei malas.
Maddocks abandonou a agenda e olhou para a sala, franzindo o
sobrolho.
— Não percebo. É tudo tão despojado. Reparou que não há fotografias
em lado nenhum? Procurei um álbum, mas não encontrei nada. Seria normal
haver, pelo menos uma fotografia da família, não acha?
— E papéis? — sugeriu Fraser. — Seguro da casa, detalhes da hipoteca,
um testamento? Onde estão?
Maddocks virou a cabeça para uma escrivaninha de pinho no canto.
— Ali, por muito pouco importante que seja, mas não existe nenhum
testamento, apenas um dossier onde está escrito «seguro da casa» na capa.
Nem sequer há cartas, nenhuma indicação de quem são os amigos ou qual é a
morada da família. A maior parte das pessoas deixa ficar algumas cartas
espalhadas pela casa. — Dirigiu—se à porta da cozinha. — E vocês dois?
Encontraram alguma coisa?
O homem mais velho abanou a cabeça.
— Digo—lhe uma coisa, faz—me lembrar aqueles chalés que se alugam
no Verão. Há talheres e loiça e está tudo limpo, mas não há comida em lado
nenhum, o frigorífico está vazio, a máquina da loiça também e há um saco do
lixo novo no balde. Ou ela a alugou e ia deixar a casa, ou estava a planear sair
e alugá—la a outra pessoa. — Fez um gesto em direcção a um quadro na
parede. — Até o quadro está vazio, mas não se faz isso quando se está fora a
passar férias. Eu diria que ela tem outra casa noutro sítio.
Fraser concordou com ele.
— Deve ser isso, Guv. De outra forma não faz sentido. Alguma vez viu
um apartamento tão impessoal como este?
— Porque é que ela deixou ficar as primeiras edições?
— Porque a apólice de seguros provavelmente especifica e cobre a
colecção, o que tornaria este local o sítio mais sensato para as deixar. Aposto
que mudou todas as coisas pessoais antes das férias, deixou o gato porque
tinha um vizinho que o alimentava e planeava voltar para levar os livros, o
resto das roupas e o gato quando regressasse. Ela ia mudar—se para casa do
Leo — é a única explicação lógica.
— Bolas — disse Maddocks zangado —, tudo indica que ele viria viver
com ela. Se ele tivesse um apartamento, por que diabo estaria ele a viver em
Glenavon Gardens com a Kingsley? Frank vai ficar doido com isto. Acho que
Jane Kingsley é a única pessoa que sabe alguma coisa.

Clínica Nightingale, Salisbúria — 15.30 h

Sem a ligadura e vestida com uma camisola preta e calças, Jinx estava
sentada à sombra de uma faia de ramos caídos e observava as idas e vindas
no caminho de gravilha em frente à clínica. Sentia—se confortável, escondida
atrás de um par de óculos espelhados e, pela primeira vez desde há vários
dias, deixou que o seu corpo cansado relaxasse.
A recordação de que soubera do romance entre Leo e Meg picava o seu
cérebro como uma agulha. Meu Deus! O próprio Leo tinha—lhe dito na sala
de estar da casa dos pais, na presença de Anthony e Philippa como
testemunhas silenciosas e horrorizadas. Ela tinha gritado com todos —porque
teria gritado ? — e Leo tinha dito: Vou casar com a Meg — e ela ficara tão
chocada, tão chocada. Meg e Leo... Meg e Russell... Mas quando? Quando é
que Leo lhe tinha dito?
Lutou com esta recordação, tentando desesperadamente retê—la, mas
como num sonho, começou a fragmentar—se e a desvanecer—se e, confusa,
pegou no ramo de flores, que lhe estava a ser colocado no colo e ouviu Josh
Hennessey a dizer:
— Jinx, querida, estás bem?
Ela esquecera que ele vinha e olhou para a sua cara ansiosa, sorrindo
automaticamente, enquanto desfazia o que fora tecido pelo subconsciente,
deixando ir a recordação.
— Estou óptima — ouviu—se a si própria a dizer. — Desculpa, estava
muito longe daqui. Como estás?
Mas, meu Deus, como ela tinha ficado zangada... lembrava—se da sua
fúria...
Ele pôs—se de cócoras à sua frente, colocando as mãos ao de leve sobre
os joelhos dela, examinando cada pedacinho da sua cara.
— Bastante deprimido, para ser franco. E tu?
Parecia estar à espera de uma reacção e ficou desapontado —
surpreendido? — por não haver nenhuma.
Ela colocou uma mão fina de encontro ao peito onde o coração batia
apressadamente. Qualquer outra coisa aconteceu. Esta tomada de consciência
pesava como uma tonelada. Qualquer outra coisa aconteceu... uma coisa tão
terrível que ela tinha medo de a procurar na sua memória. ..
— Eu diria que estou viva, mas que não estou consciente do facto —
disse ela, respirando convulsivamente e com dificuldade.
— Penso, logo existo, mas como não consigo pensar coerentemente, é
uma existência sem muito significado. — Ela reparou como ele era pouco
atraente, beliscando o nariz e a boca de medo e preocupação.
— Suponho que se estás deprimido, significa que não encontraste a
Meg. Ele abanou a cabeça e ela viu, consternada, que ele tinha lágrimas
nos olhos.
— Desculpa. — Mexeu nas flores que tinha no colo e depois colocou—
as ao seu lado. — Foi simpático da tua parte tê—las trazido.
Ele baixou—se e retirou as mãos.
— Sinto—me tão mal. Não podias ter—me telefonado, ter—me dito que
estavas em apuros? Sabes que eu teria vindo.
— Pareces o Simon.
Ele despenteou o cabelo e desviou o olhar da cara pisada e magra e da
cabeça rapada.
— O Simon tem telefonado quase todos os dias. Os pais estão
desesperados, culpam—se um ao outro, culpam a Meg, querem fazer alguma
coisa para compensar... Bem, tenho a certeza de que consegues imaginar
como eles se sentem. O Simon tentou telefonar para o Hall para saber onde tu
estavas e ouviu uma data de insultos. Claro que é compreensível, mas não
tornou as coisas mais fáceis.
— Desculpa — interrompeu ela —, mas é estranho, Josh, também não
torna as coisas fáceis para mim ter toda a gente a culpar—se mutuamente, só
porque eu bati com o carro numa parede de tijolo.
Ele olhou rapidamente para ela mas não disse nada.
— Não o fiz deliberadamente — disse ela rangendo os dentes. — O
carro custou—me uma fortuna e consigo pensar em cem maneiras melhores
para morrer do que mandar para a sucata um Rover em perfeitas condições.
Ele arrancou uma folha da relva.
— Falei com o Dean, ontem à noite — disse ele pouco à vontade. —
Coitado, desfez—se em lágrimas, disse que se eu te encontrasse, para
te dizer que os negócios vão bem, mas para lhe ligares logo que sejas
capaz. Dei—lhe o número daqui, mas ele tem medo de te falar, no caso de te
sentires infeliz demais para falares com ele.
Não valia a pena.
—Eu não sou infeliz — disse ela com um sorriso forçado. — Estou
contente por ir para casa. — Porque é que a comiseração era tão
insuportável ? — Olha, vamos pôr estas flores no meu quarto e depois vamos
dar um passeio. Que mulher estúpida! Se andasse 50 metros cairia de joelhos.
— Tens a certeza que consegues? — perguntou—lhe ele, levantando—
se.
— Claro — disse ela bruscamente. — Estou farta de te dizer que estou
bem. — Tomou a dianteira para que ele não lhe visse a cara. — Acredita, não
tenciono ficar aqui muito tempo. Já disseram que mentalmente estou bem
para ir para casa, agora só preciso de provar que estou fisicamente bem. —
Quem é que ela achava que estava a enganar"? — É aqui — disse, passando
uma perna bamba pela soleira das janelas francesas, arrastando—se para uma
cadeira.
As flores escorregaram—lhe das mãos e caíram no chão. Sentiu os
braços de Josh a agarrarem—na e viu imagens tenebrosas que flutuavam no
rio caudaloso da sua memória.
Shoebury Terrace 43, Hammersmith Londres — 16.00 h
Fraser tocou à porta do número quarenta e três e perguntou à senhora
Helms se Meg lhe tinha dado alguma indicação de que tencionava deixar o
apartamento depois das férias.
— Não o disse claramente — disse a mulher pensativa —, mas agora
que está a falar no assunto, houve bastante movimento pouco tempo depois
de eles terem ido embora. Lembro—me de ter dito ao meu Henry que não me
surpreenderia se houvesse uma mudança nesse aspecto. Depois pediu—me
para alimentar o Marmaduke e eu esqueci—me, mas lembro—me de ela
insistir que a pobre criatura não deveria entrar em nenhuma das
dependências. «Deixe—o ficar no hall, senhora Helms» disse, atirando—me
uma lata de comida para gato. Agora o que é que lhe vai acontecer? Henry
não o quer por perto, mas aqui ele não está bem, sabe?
— Vamos fazer os possíveis para arranjar alguma coisa — disse Fraser
—, mas talvez entretanto pudesse continuar a dar de comer ao gato?
— Não o vou deixar morrer à fome — resmungou —, mas alguma coisa
deveria ser feita quanto antes. Aquele hall abafado não é lugar para se ter um
animal.
Ele concordou com ela.
— Por acaso não sabe qual era a profissão da Meg Harris, senhora
Helms?
— Parece—me que sabe muito pouco sobre ela, sargento. Tem a certeza
de que se trata mesmo dela?
Ele anuiu.
— O trabalho dela? — insistiu ele.
— Ela dizia que era uma «caça—crânios». Costumava trabalhar para
uma grande firma de consultoria na City, depois montou a sua própria firma
há cerca de cinco anos. Mas não ia muito bem, por aquilo que eu ia
percebendo. As pessoas têm medo de se despedir por causa da crise e não se
pode «caçar crânios» se não há postos vagos para preencher.
— Tem alguma ideia do nome da companhia dela?
— Não. Falávamos do Marmaduke e do leiteiro de vez em quando, mas
para além disso — encolheu os ombros — éramos apenas vizinhas. Nada de
especial. Nada de muito íntimo. Mas tenho pena que ela tenha morrido.
Nunca nos deu problemas.
Fraser pensou na última frase enquanto transpunha os poucos metros até
ao carro do inspector. Nunca nos deu problemas — era o epitáfio mais
deprimente que alguma vez ouvira.

Clínica Nightingale, Salisbúria — 16.00 h

— O que é que se passa? — perguntou Alan Protheroe, pegando no


pulso de Jinx tentando sentir as pulsações. Pensou quem seria este homem e
porque teria estremecido de forma tão violenta ao ouvir uma voz atrás dele.
— Bem, olhe para ela por amor de Deus — disse Josh desesperado,
colocando a cabeça solta dela na almofada e deitando—a suavemente na
cama. — Acho que ela está a morrer.
— Nem pensar. Tem uma constituição muito forte. — Largou o pulso.
— Ela está a dormir. — Olhou para as narinas cansadas do homem e para os
olhos assustados. — Você parece estar em pior estado do que ela.
— Eu achei que ela estava a morrer. — Encostou as mãos à beira da
cama para se segurar. — Agora estou a ficar enjoado. Meu Deus, acho que
não vou aguentar mais. Há dias que não durmo, desde que Simon Harris
telefonou a dizer que Jinx tinha morrido.
— Porque é que ele fez isso?
— Porque a Betty Kingsley é uma filha da mãe e telefonou à mãe da
Meg. Disse à pobre mulher que a filha dela era uma assassina.
Alan fez um gesto em direcção ao terraço para onde davam as
janelas.
— Vamos sentar—nos lá fora. Eu sou o doutor Protheroe. — Pegou no
braço do homem para o ajudar.
— Josh Hennessey. — Permitiu que Alan o guiasse até ao exterior.
— Primeiro disse—me que estava bem, mas logo a seguir começou a
revirar os olhos e pumba! — Deixou—se cair pesadamente num banco de
madeira e enterrou a cara nas mãos. — Gostaria que ela não continuasse a
fingir que está bem, quando não está. Foi a mesma coisa quando
assassinaram o Russell. Passava a vida a dizer: Estou óptima e depois acabou
no hospital.
— Já a conhece há muito tempo? — Ele acenou com a cabeça.
— Há doze anos. Desde que conheço a Meg. Sou o sócio da Meg
— explicou ele. — Nós dirigimos uma consultoria de angariação. —
Cerrou os punhos irritado. — Ou dirigíamos, até que ela fugiu e me deixou a
braços com o gerente do banco muito zangado e trabalho com pessoas de que
nunca ouvi falar.
Alan conseguia sentir o stress que subia em ondas de raiva e nervos.
— Estou a perceber.
— Percebe? Eu não. Suponho que sabe que a Meg raptou o noivo da
Jinx? Quero dizer, faz alguma ideia do que isso está a fazer aos pais da Meg?
Primeiro recebem uma chamada, sem mais nem menos, a comunicar que o
Leo tinha largado a Jinx por causa dela, depois a próxima coisa que vêm a
saber é que Jinx se matou. Meu Deus! E ainda por cima, sou abandonado,
tento dirigir um escritório sozinho, enquanto a Meg está a fazer figura de
parva em França com aquele filho da mãe. — Calou—se. — Não sei o que se
está a passar. — Esfregou os olhos. — Estou tão cansado.
Alan observou—o com compaixão durante um momento.
— Se isto o faz sentir melhor, acho que se está a preocupar
desnecessariamente por causa de Jinx. Apesar de tudo, ela está bem.
— Simon avisou—me de que ela parecia doente, mas eu não esperava
isto. — Virou a cara em direcção ao quarto. — Ela está muito pior do que eu
julgava.
— Provavelmente não está. Olhe, ela rachou a cabeça e esqueceu
algumas semanas da vida dela, mas é tudo. É uma senhora corajosa. Dê—lhe
mais uma semana ou duas e vai sentir—se nova. É apenas uma questão de
dias.
Josh olhou fixamente para as mãos.
— Provavelmente nunca a viu com cabelo. Ela é bastante vistosa. Tem
um ar italiano. — Bateu com a mão no ombro. — Cabelos pretos até aqui e
olhos escuros. Sempre achei uma maluqueira ela estar atrás da câmara
quando deveria estar a ser fotografada. — Depois calou—se.
— Parece gostar muito dela.
— E gosto, mas cheguei tarde. Quando eu estava livre, ela era casada.
Quando ela estava livre, eu era casado. — Afastou o olhar em direcção às
árvores que ladeavam o relvado. — Depois divorciei—me e depois o Leo
meteu—se no meio. Acha que ela ainda gosta dele?
— Ela diz que não.
Josh virou o pescoço para examinar a cara do médico.
— Acredita nela?
— Acredito.
— Porquê?
Alan encolheu os ombros.
— Ela não está suficientemente zangada com a Meg. — Mas você
certamente que está, pensou ele.

O Vicariato, Littleton Mary, Wiltshire — 16.00 h

Charles Harris pousou a caneta e entrelaçou as mãos sobre o sermão que


estava a escrever.
— Isto tem que acabar, Caroline. Estás a ficar histérica por nada. A Meg
vai telefonar quando estiver preparada. E vamos encarar as coisas como são
— acrescentou ele bastante secamente —, «quando a Meg estiver pronta» são
as palavras mais significativas. A julgar pela frequência das chamadas dela e
das suas visitas no passado, tu e eu podíamos ter ido até ao inferno sem ela
ter reparado. Ela sempre esteve mais interessada no homem que andasse atrás
dela do que em nós.
Caroline olhou para ele com desagrado.
— É isso que tu odeias, não é? Os homens?
— Não sejas absurda — respondeu ele rispidamente. — Havia alturas
em que tinha que se dominar para não lhe bater. — Temos que falar sobre
isto novamente? — disse ele, pegando outra vez na caneta e voltando ao seu
sermão. — Tenho que trabalhar. — Fez uma nota
na margem.
— Ficaste chocado ao saber dela e do Russell, não foi? — perguntou ela
com maldade.
— Sim.
— A tua pequena Meggy nos braços de um homem que tinha idade
para ser pai dela. Ela amava—o, sabes?
Ele mantinha os olhos na folha, mas chegou à conclusão que não
conseguia escrever nada porque a sua mão estava a tremer.
— Ficas ofendido em pensar na tua filha a divertir—se na cama com
velhos, quando nem sequer consegue estar na mesma casa que tu?
— Não — disse ele calmamente —, o que me ofende é a sua cupidez em
relação à melhor amiga. Entre nós, Caroline, tu e eu criámos um monstro.
9
Sábado, 25 de Junho, Clínica Nightingale Salisbúria — 18.00 h

Jinx RETOMARA a sua posição vantajosa debaixo da faia, os óculos


escuros no lugar, o anonimato restabelecido. Para os observadores, esta
mulher magra e macilenta, que se sentava sozinha por baixo dos ramos
frondosos para se esconder atrás deles, era objecto de curiosidade. Quase
como um pássaro na gaiola, pensou Alan Protheroe, observando—a através
da janela do seu escritório, pois era a solidão dela que mais o impressionava.
Conjecturou se seria aconselhável, ou possível, afrouxar o controlo de ferro
que ela exercia sobre as suas emoções, pois duvidava que a felicidade fosse
uma condição a que Jinx aspirasse. Ela não aguentava ser tão vulnerável.
— Estou aliviada — disse ela, quando ele lhe perguntou se estava feliz
por já não ter as ligaduras. — Apenas as crianças sabem ser felizes.
— E você era feliz em criança, Jinx?
— Devo ter sido. O cheiro do pão a cozer põe—me sempre bem—
disposta. — Ela sorriu levemente ao ver que ele franzia o sobrolho perplexo.
— O meu pai nem sempre foi um homem rico. Lembro—me de ser pequena
e de viver numa casa com duas divisões em cima e duas em baixo algures em
Londres. A minha mãe cozinhava e fazia o pão e eu não consigo cheirar pão
quente sem ter vontade de dar cambalhotas.
— Que mãe era essa? A sua verdadeira mãe ou a sua madrasta? De
repente ela pareceu confusa.
— Suponho que deve ter sido a minha madrasta. Eu era pequena demais
para me lembrar de qualquer coisa que a minha mãe tivesse feito.
— Não necessariamente. Começamos a armazenar emoções numa tenra
idade, por isso não há razão para você não se lembrar se era feliz em criança,
especialmente se depois se seguiu um período de infelicidade.
Ela desviou o olhar.
— E porque acha isso?
— A sua mãe morreu, Jinx. Deve ter sido um período infeliz para si e
para o seu pai.
Ela encolheu os ombros.
— Se foi, não me lembro. O que é triste. A morte devia causar impacto,
não acha? É horrível como nos esquecemos depressa e passamos para uma
coisa nova.
— Mas é muito importante fazê—lo — respondeu ele — de outra forma
ficamos como a senhora Havisham em Great Expectations, sentados
eternamente a uma mesa vazia.
Ela sorriu.
— Se bem me lembro de Dickens, a pobre e velha senhora Havisham foi
abandonada pelo noivo no dia do casamento e passou o resto da vida
envergando o vestido de noiva e mantendo o que restava do banquete à sua
volta. Neste momento, planos de casamento não são um assunto em que eu
queira pensar.
— Então vamos falar de alguma coisa em que você gostasse de pensar.
O que a faz sentir viva?
Ela abanou a cabeça.
— Nada. Prefiro a tranquilidade de não sentir nada. Depois de um
período feliz vem sempre um infeliz e eu odeio o desgosto da desilusão.
— As relações não precisam de ser frustrantes, Jinx. Muito mais
frequentemente representam o tipo de realização que todos ansiamos. Não
acha que é um objectivo pelo qual vale a pena lutar?
— Estamos a falar de casamento e de filhos, doutor Protheroe? —
perguntou ela desconfiada. — O Josh Hennessey disse—lhe que me achava
graça?
Ele deu uma risada.
— Não tão explicitamente, mas parece gostar de si.
— Ele gosta muito mais da Meg do que de mim — disse ela rejeitando a
ideia. — Na verdade, gosta demasiado dela. Ela trata—o como um irmão,
porque não se mistura os negócios e o prazer, mas ele quer apenas ir para a
cama com ela. E também gostava da mulher, quando se casou com ela —
acrescentou ela sarcasticamente – mas abandonou—a quatro anos depois,
porque achava que ela era maçadora. É esse o tipo de relacionamento
gratificante que quer que eu tenha?
— Duvido que ele a ache maçadora, Jinx, mas de qualquer maneira, essa
é uma questão à parte. Acho que estamos a falar de contentamento.
Ela deu uma gargalhada baixa.
— Bem, eu sou uma boa fotógrafa, o que me satisfaz. Se for lembrada
por uma fotografia apenas, isso será imortalidade suficiente. Não preciso de
mais nenhuma. Também é uma espécie de nascimento, sabe. A nossa criação
emerge da escuridão da câmara de revelação com o mesmo sentimento de
realização como um bebé a sair da barriga.
— Aié?
Ela encolheu novamente os ombros.
— Acho que sim. Admito que o único nascimento com que o posso
comparar foi um assunto bastante sujo na casa de banho, mas imagino que
chegar ao fim do tempo e dar à luz uma criança viva é mais gratificante. — A
cara dela não tinha expressão. — Da mesma forma, imagino que existe o
mesmo sentimento de desilusão, quando o resultado do seu trabalho é inferior
ao que esperava. Obras de arte, sejam elas crianças ou fotografias, nunca
podem ser perfeitas. — Hesitou um momento.— Suponho que, se se tiver
sorte, podem ser interessantes.
Depois disso, pediu desculpa educadamente e foi lá para fora, deixando
Protheroe a pensar se ela estaria a falar das suas próprias esperanças em
relação ao filho, que perdera, ou das esperanças do seu pai. Talvez não
estivesse a falar nem de uma nem de outra. Pensou nos dois irmãos solteiros
que ainda viviam em casa e que, a avaliar pela expressão fechada de Jinx,
quando os seus nomes eram mencionados, gostavam pouco da irmã
intelectualmente dotada.
Ia afastar—se da janela do escritório e da observação da sua figura
sentada e solitária quando reparou num homem que se aproximava pelo
relvado. De onde teria vindo? Por nenhuma razão óbvia, além de que era
responsável pela segurança de Jinx, que como era evidente não tinha
reparado que alguém se encontrava atrás dela, teve uma sensação de perigo
iminente. Mexendo os seus dedos compridos, deu a volta à chave na
fechadura e empurrou a porta para trás. Como tinha que andar mais do que o
outro, ergueu a voz num berro áspero:
— Está aí, Jinx! — gritou ele. — Tenho andado à sua procura.
Surpreendida, ela virou a cabeça e viu primeiro o irmão mais novo e depois
atrás dele Protheroe.
— Meu Deus, assustaram—me — disse ela, acusadoramente, quando os
dois se aproximaram. — Olá, Fergus. — Cumprimentou—o baixando a
cabeça. —Já se conhecem? Fergus Kingsley, o meu irmão, o doutor Alan
Protheroe, o meu psiquiatra existencialista. É um mentiroso muito mau —
disse ela para Alan. — Há dez minutos que está a observar—me, por isso
qual a razão de um pânico tão súbito?
Ele apertou a mão a Fergus.
— Porque levo a sério as minhas responsabilidades, Jinx, e para mim o
seu irmão era um estranho. — Cruzou os braços. — Por uma questão de
curiosidade disse ele sem hostilidade — por que lado entrou? É uma regra na
Clínica Nightingale que os visitantes têm de pedir licença à entrada, antes de
se aproximarem dos nossos hóspedes. É uma regra simples, mas importante,
e tenho a certeza de que vai concordar.
Fergus corou sob o olhar do homem mais velho.
— Desculpe. — Ele tinha um ar muito jovem. — Não me apercebi. —
Com um gesto indicou o outro lado do relvado atrás dele. — Parei o carro
junto ao portão do fundo e vim a pé. — Olhou aborrecido para Jinx— Na
verdade, ia fazer as coisas como devem ser feitas, mas depois vi—te debaixo
da árvore.
Jinx tirou os óculos escuros, relanceando o olhar para Protheroe, com o
olho pisado fechado, a proteger—se da luz do fim da tarde.
— Não me lembro de me terem pedido o meu consentimento antes. É
uma regra perversa que funciona conforme o humor do director.
Ele sorriu afavelmente.
— Mas é uma regra, apesar de tudo. Tenho que me certificar que, de
futuro, será cumprida. — Cumprimentou ambos baixando a cabeça. —
Espero que goste da visita. Se quiserem chá, o seu irmão pode encomendá—
lo ao balcão e pedir para o trazerem cá para fora. Levantou uma mão em
saudação e depois dirigiu—se rapidamente para o escritório.
Jinx ficou a olhar para ele.
Eu acho que ele é mais maluco do que alguns dos pacientes — disse ela.
Fergus seguiu o olhar dela.
Ele gosta de ti — disse ele bruscamente. Ela riu—se precipitadamente.
Não sejas parvo. O homem não é cego e de vez em quando deixam—me
olhar para um espelho. — De repente ficou séria e semicerrou os olhos. —
Para falar verdade, detesto que ele esteja sempre a observar—me. Faz—me
sentir uma prisioneira.
— Gostas dele?
— Gosto.
— Ele é casado?
— É viúvo — respondeu ela, franzindo o sobrolho. — Porque estás tão
interessado?
Ele encolheu os ombros.
— Sabes o que dizem sobre os psiquiatras e os seus pacientes. Estava
apenas a pensar se ele ia ser o próximo na caça ao marido.
— Faz—me um favor, Fergus — disse ela zangada. — Não tenciono
ficar aqui o tempo necessário para que se desenvolva mais alguma coisa do
que um conhecimento passageiro.
Ele encostou—se ao tronco da árvore.
— Então estás a planear vir para casa?
— Ir para minha casa — corrigiu ela. — Quero voltar para Richmond e
para o estúdio. Ficar por aqui sentada sem fazer nada não é o meu género.
— Isso é uma indirecta?
— Não — respondeu ela suavemente. — Por mais estranho que pareça,
Fergus, estou mais interessada nos meus próprios problemas, neste momento,
do que nos teus. — Ela estudou o rosto taciturno, tão parecido com o de
Miles, mas que não tinha o charme que o irmão podia exercer ou não, como
queria. — Tinhas uma razão para vir até cá?
Ele arrastou os pés na relva.
— Queria saber como estavas, só isso. Miles disse—me que não estavas
muito bem, quando ele cá veio. Contou que desmaiaste quando estava a falar
contigo.
— É apenas cansaço. — Voltou a pôr os óculos escuros para ele não
conseguir ver a expressão dos seus olhos. — O Miles contou—me que o
Adam te fez chorar. É verdade?
Ele corou novamente.
— Miles é um filho da mãe. Jurou que não ia contar a ninguém. Sabes,
às vezes não sei quem odeio mais, se a ele ou ao pai. São ambos uns merdas.
Gostava que morressem. Tudo estaria bem se eles estivessem ambos mortos.
Era a mesma lamúria infantil que ela ouvia desde que ele tinha cinco
anos. Só o timbre da voz era diferente.
— Se calhar bateu—te outra vez com o cinto. O que tizeste para que o
Adam ficasse zangado?
— Não fui eu que o irritei. É o facto de tu estares aqui. — Deixou
escorregar as costas pela tronco da árvore para ficar sentado de cócoras. —
Ele perdeu a cabeça e começou a gritar e a berrar com toda a gente. Miles
fugiu para um canto, como de costume e a mãe ficou sentada a chorar alto.
Bem, sabes como é. Não precisas que eu to diga.
— Mas deves ter feito alguma coisa — disse ela. — Ele pode estar
zangado por minha causa e — ela fez um gesto em direcção ao edifício —
tudo isto, mas nunca te bateu com o cinto sem uma boa razão. Então o que
fizeste?
— Pedi vinte libras emprestadas — murmurou ele. — Parecia que era
um crime que dava direito a enforcamento da maneira como ele gritava.
Ela suspirou.
— E a quem desta vez?
— E isso interessa? — disse ele zangado. — És tão má como o pai. Eu
ia cumprir. — Apertou os lábios de forma pouco atraente. — O que ninguém
parece reconhecer é que eu não precisava de pedir dinheiro emprestado se o
pai me tratasse como um ser humano e não como um escravo. É realmente
degradante ter que admitir que se é filho de Adam Kingsley, quando toda a
gente sabe que recebo pouquíssimo. Passo a vida a dizer—lhe que se ele me
pagasse de uma forma decente, não precisava de pedir emprestado. Sou o
filho do patrão. Isso devia significar alguma coisa. Porque é que Miles e eu
temos que começar por baixo?
— Sabes — disse ela com uma súbita impaciência — se de vez em
quando falasses francamente, estarias a meio caminho de merecer o respeito
de Adam. São as mentiras que tu e o Miles dizem que o irritam. Não
consegues ver isso? És um ladrão — fixou—o com um olhar de desprezo —
e toda a gente o sabe, por isso porquê toda esta conversa sobre pedir
emprestado? Quem é que roubaste desta vez?
— Jenkins — murmurou ele. — Mas eu ia pagar—lhe.
— Então não estou surpreendida que Adam te tenha batido com o cinto
— disse ela cansada. — Não gostaria de ter de pedir desculpa ao meu
jardineiro depois de o meu filho, de vinte e quatro anos, lhe ter roubado
dinheiro. Suponho que achaste que o Jenkins não ia ter coragem para dizer
nada e que te ias safar. O que, para começar, ainda é pior do que roubar.
— Jinx, cala—te. Já ouvi isto tudo do pai e vocês os dois não têm razão.
Eu ia pagar—lhe. Se ele tivesse falado comigo, eu teria arranjado maneira,
mas não, teve que ir a correr falar com o velho e fazer uma tempestade num
copo de água.
Jinx apercebeu—se de qualquer coisa importante. Mais tarde pensaria
sempre que tinham sido os laços de sangue, que a uniam fisicamente a uma
família, que em qualquer outra circunstância ela tentaria evitar como se fosse
uma praga. De repente, sentiu—se livre para reconhecer que não gostava
deles. Mais, só sentia desprezo por eles. No final de contas ela concordava
com o que toda a gente sabia que Adam pensava, mas nunca formulara: Miles
e Fergus eram filhos da mãe e, tal como Betty, viam apenas Adam Kingsley
em termos da sua posição social.
Sorriu de forma selvagem.
— Vou—te contar coisas que nunca contei a ninguém na minha vida.
Primeiro, desprezo a tua mãe. Desde o primeiro minuto em que ela entrou na
minha casa. É uma bêbada gorda com um coeficiente de inteligência
extremamente baixo. Segundo, casou com o meu pai porque queria ser uma
senhora e foi suficientemente esperta para o convencer, mas embora nunca
chegasse aos calcanhares da minha mãe, pelo menos podia ser um conforto
para ele no fim de um longo dia. Ele sentia—se só e caiu, mas o que ele
realmente arranjou foi uma pega vulgar, interessada no dinheiro dele. —
Levantou três dedos. — Terceiro, não teria sido tão mau se ela não o tivesse
sobrecarregado contigo e com o Miles. Até os vossos nomes são
embaraçosos. Adam queria dar—te um nome simples, como David ou
Michael, mas Elizabeth queria um que estivesse de acordo com os filhos de
uma senhora rica.
A voz dela imitou o sotaque da madrasta.
— Tem que ser um nome chique, pai, e David e Michael são tão
vulgares. — Respirou zangada. — Quarto, Adam é pai dos dois filhos mais
preguiçosos, menos inteligentes e mais desonestos que um homem podia ter.
Cada gene que tu tens veio directamente da tua mãe. Vocês os dois são
incapazes de contribuir para a família com alguma coisa que valha a pena.
Em vez disso, só estão interessados em me colocarem a mim e ao Adam ao
vosso nível vergonhoso. Quinto, como diabo consegues justificar roubar um
jardineiro que trabalha todos os dias para ganhar dinheiro para a casa e para o
seu carro modesto, enquanto tu, seu filho da mãe — cuspiu na direcção dele
—, andas a pavonear—te no teu luxuoso Porsche, para poderes engatar
qualquer prostituta que seja suficientemente estúpida para pensar que o nome
Kingsley significa alguma coisa? Queres—me explicar isso? Podes explicar
—me isso?
Ele olhou—a fixamente. Foi um choque ver o pai reflectido no queixo
dela e na fúria da sua voz, mas ele passara anos a brincar com a consciência
dela e, como Miles, era mestre nisso.
— Sempre soubemos que tu eras uma puta snobe, Jinx — disse ele
lentamente. — O que diabo achas que foi para a mãe ter que se mudar para
uma casa, onde já vivia a criança perfeita, com fotografias da mãe, também
perfeita, em todas as paredes? Ela diz que tu eras tão condescendente que
tinha vontade de te bater. Gostaria que o tivesse feito, por acaso. Se tivesses
sido tratada como o pai nos tratou a nós, talvez as coisas tivessem sido
melhores para nós.
— Ao princípio, ele não te tratou de maneira diferente de mim — disse
ela friamente. — Lembro—me da primeira vez que ele te chicoteou, porque
foi a primeira vez que tu e o Miles foram denunciados por roubo. Tinhas
nove anos e Miles onze e roubaste dinheiro da gaveta da loja da aldeia. Adam
pagou mais de cem libras à senhora Davies para abafar o caso, depois deu—
vos uma tareia com o cinto para vos lembrar o que aconteceria se o voltassem
a fazer. — Ela abanou a cabeça. — Mas não resultou. Continuaram a fazê—
lo e ele continuou a bater—vos e era eu que tinha que tentar acalmá—lo,
porque Betty estava sempre bêbada. Achas que gostei disso?
Ele encolheu os ombros.
— Quero lá saber se gostaste ou não e de qualquer maneira estás a
exagerar. A maior parte do tempo estavas no colégio ou em Oxford, a
representar o papel do génio da família, enquanto eu e o Miles éramos
tratados como homens do Neanderthal. De vez em quando devias tentar pôr
—te no nosso lugar. Sabes muito bem que ele sempre nos odiou. Só tirámos o
dinheiro da loja, porque achámos que ele iria reparar em nós, em vez de
sonhar com a sua preciosa Jane. — Fez um trejeito amuado com a boca. —
Não sabes como era. Quando tu vinhas para casa, de férias, ele só se
interessava por ti e pelo que tu estavas a fazer, e quando estavas fora
costumava fechar—se no escritório com aquelas fotografias da tua mãe.
Ela entendeu o que ele dissera como chantagem manipuladora e
emocional de uma mente egoísta e retorcida, mas os hábitos de uma vida
inteira são difíceis de perder e, como de costume, baseou—se na certeza da
obsessão de Adam pela sua mãe e por ela.
— Mas porque é que nunca tentam ajudar—se a vocês próprios? —
perguntou—lhe ela. — Porque é que continuam a fazer o que ele odeia?
Porque é que continuas a viver lá e lhe dás a oportunidade de te desprezar?
Eu não consigo perceber.
— Porque é tanto a minha casa como a dele e não vejo por que razão ele
deveria pôr—me fora — disse ele. — Para ti está bem. Tens o dinheiro de
Russell. Tiveste sorte.
Ela sentiu a estranha sensação de uma porta a fechar—se sobre uma
recordação. Durante um breve segundo teve uma visão de alguma coisa de
que se lembrava, mas foi tão passageiro como uma lufada de vento num dia
de verão e a lembrança foi—se. Teriam tido esta conversa anteriormente?
— Tu tens ideias muito distorcidas, Fergus. Como podes achar que é
uma sorte qualquer coisa que tenha a ver com o assassínio de Russell?
Porque é que Russell continua a intrometer—se em todas as conversas?
Ela tinha—o expulsado dos seus pensamentos durante muito tempo, mas
agora via—se forçada a pensar nele constantemente.
— Pára com isso, Jinx. Tu não gostavas assim tanto dele e ficaste com o
dinheiro todo. — Mas isto foi dito sem convicção, porque ambos tinham
perdido a energia para continuar uma discussão que não ia levar a nada. Onde
já não existia a confiança a compreensão era tudo, e era muito pouco
importante que os pensamentos fossem exteriorizados ou não, quando toda a
gente sabia quais eram. Excepto...
— Erraste ao ofender a pobre mãe — disse ele, mostrando uma
agressividade hesitante. — Ela saiu para lutar por ti, fez mais do que o pai,
desde que estás aqui. Brigou com os Wallader e os Harris pela maneira como
Leo e Meg te trataram. Chamou a Sir Anthony «um irresponsável» e a
Caroline Harris «uma filha da mãe».
Jinx baixou repentinamente a cabeça para que ele não visse os olhos a
rirem.
— Está bem, ela estava bêbada — disse Fergus amuado, mas a intenção
era boa. — Na verdade, Miles e eu até achámos graça.
EJinx também... Chamara a Anthony «umparasita», mas quão mais
astuta fora a crítica de Betty...

Esquadra da Polícia de Romsey Road, Winchester — 19.30 h

— Vai ter de me deixar falar com a menina Kingsley — disse Gareth


Maddocks, deixando—se cair exausto numa cadeira. — A sério, não consigo
entender como vamos descobrir onde os pais vivem, limitando—nos a ficar
sentados junto do telefone da menina Harris à espera que toque.
— Voltou a tentar Sir Anthony? Maddocks acenou com a cabeça.
— Continua apenas a berrar que é em Wiltshire. Toda aquela conversa
de que tinha sido um alívio, quando Leo começou a andar com uma rapariga
simpática como Meg não significa nada. Tanto quanto pude aperceber—me a
única coisa que jogava a favor dela era não ser Jane Kingsley. A impressão
que eu tenho é que se Leo tivesse aparecido com uma mulher pouco
respeitável do bar da esquina e anunciasse que tencionava casar com ela, os
Walladers teriam saltado de alegria.
— Não posso dizer que os critico — disse o superintendente secamente.
— Eu também não gostaria de ter Adam Kingsley como sogro.
— Bem, embora a minha opinião seja pouco importante, a filha parece
ser razoável. Deixou uma mensagem no gravador de mensagens. Uma voz
simpática, sentido de humor, diz que não tem ressentimentos e queria que
Meg lhe telefonasse.
Frank ergueu o sobrolho.
— Tem—na consigo?
O inspector meteu a mão ao bolso e tirou uma cassete.
— Fizemos cópias na esquadra de Hammersmith, depois levámos o
original novamente para o apartamento. — Pousou—a na secretária à sua
frente. — A dela é a última mensagem. Já a ouvi várias vezes e acho que
concordo com Fraser, ela não deve fazer ideia de que Leo e Meg estão
mortos.
Cheever mexeu, durante um bocado, na cassete, depois pegou nela,
rodou na cadeira e meteu—a no leitor de cassetes que se encontrava na
prateleira atrás de si. Estava sentado de cabeça baixa, ouvindo as mensagens
gravadas e só se mexeu quando acabou a mensagem de Jinx. Carregou no
botão Rewind, ouviu—a novamente, depois esfregou o queixo
pensativamente ao carregar no Stop. — Ela diz que não se lembra de nada
desde o dia 4 de Junho — salientou ele.
— O que corresponde ao relatório de Fordingbridge — disse Maddocks.
— De acordo com este último, o choque depois do acidente provocou—lhe
amnésia.
— Está bem, mas não significa que ela não esteja a par das mortes. Está
a perceber o que eu estou a dizer? Ela pode ter apagado esse facto da
memória. — Bateu com um dedo na secretária. — Acho que seria
extremamente idiota assumir o que quer que seja, com base nesta gravação.
— Eu não estou a discutir consigo, mas acho que esta é a nossa melhor
oportunidade para a interrogar sem irritar ninguém, especialmente o pai. —
Inclinou—se para a frente. — Olhe, estamos apenas a tentar localizar a
menina Harris. Os seus cartões de crédito chegaram às mãos da polícia depois
da prisão de um ladrão, mas repetidas tentativas de a contactar, na sua
morada em Londres, falharam. A polícia de Ham—mersmith, preocupada
com o seu bem—estar, entrou no apartamento para tentar encontrar a família
e os amigos, e descobriu apenas que o apartamento tinha sido desocupado. A
única pista que encontraram foi a menina Kingsley, porque foi a única pessoa
que telefonou a deixar o número. Hammersmith pediu—nos para entrevistar a
menina Kingsley, para tentarmps encontrar o paradeiro da menina Harris. —
Abriu muito as mãos. — Vai deixar—me tentar nessa base? É uma
aproximação legítima.
O superintendente colocou os seus dedos em cima da secretária e olhou
o outro homem com desprezo:
— Você percebeu que eu lhe arranco a pele, se arranjar confusões?
Maddocks mostrou um sorriso amarelo:
— Confie em mim.
Os olhos dele semicerraram—se:
— Odeio pessoas que dizem isso. Garanta—me apenas de que consegue
o consentimento do médico, antes de falar com ela. De facto, pode ir mais
longe e pedir—lhe para estar presente enquanto você lhe faz as perguntas.
Não quero que esta força policial seja acusada de incomodar uma jovem
mulher doente.
— Fáça—me um favor — disse Maddocks de forma lamentosa. — Eu
não sei por onde começar. Eu gosto de mulheres.
As sobrancelhas de Frank franziram—se ameaçadoramente. Toda a
gente sabia que Maddocks tinha sido acusado de assédio sexual por três
mulheres—polícias, embora, como era de prever, tivesse ficado por aí.
— Foi avisado — limitou—se a dizer.

Esquadra da Polícia de Canning Road, Salisbúria — 20.00 h

A mulher—polícia — Blake colocou uma fotocópia debaixo do nariz do


sargento ao regressar do seu turno e abanou—a vigorosamente.
— Leia, sargento. É muito parecida com a experiência de Flossie Hale.
O mesmo paramédico, a mesma recusa de falar, os mesmos ferimentos.
Ele pegou na folha com ambas as mãos e colocou—a à sua frente em
cima da secretária.
— Pode ser que seja uma surpresa para si, Blake, mas tenho uma óptima
vista. Por enquanto não preciso que ponham os documentos a trinta
centímetros de distância para os poder ler.
Depois examinou a fotocópia.

Relatório de um incidente
Polícias presentes: Os polícias Hughes e Anderson.
23.3.94 — Distúrbio comunicado às 23.10 na Paradise Avenue 54
Uma mulher a bater a porta do vizinho e causando incómodo.
Depois da investigação, descobriu—se que a mulher precisava de
cuidados médicos urgentes. Várias nódoas negras na cara e laceração
do recto.
Nome: Samantha Garrison. Prostituta local conhecida.
Disse que tinha sido o marido, mas devia estar a mentir.
Recusou—se a cooperar.

— Você analisou este caso com Hughes e Anderson? — perguntou ele.


— Ainda não.
Fale com eles amanhã. — Estendeu a mão enorme por cima da folha. —
Depois fale com a Samantha, partindo do princípio de que consegue encontrá
—la e mantenha—me ao corrente. Assim é que é. Acho que pode ter
encontrado alguma coisa. Vamos a ver se apanha este filho da mãe.
Blake ficou levemente rosada. Com vinte e um anos, ainda não tinha
sido tocada pelo cinismo, por isso a aprovação de outras pessoas tinha
importância.

Clínica Nightingale, Salisbúria — 23.30 h

O tempo não tinha importância. Uma hora a ler um livro passava num
minuto. Um minuto de agonia durava uma hora. Apenas o medo era eterno,
pois o medo alimentava—se a si próprio. Medo de quem? O teu? O deles? O
nosso? O meu? O dele? O dela? De toda a gente.
Até a escuridão metia medo.
Confusão... confusão... confusão...
Esquecer... esquecer... esquecer...
Um momento de clareza.
Porque estou aqui? O que estou a fazer?
MEG ERA UMA PUTA! grita a voz da razão. O meu pai tornou—me
má.
10
Domingo, 26 de Junho, Wiltshire — 14.10 h

O SARGENTO SEAN FRASER não estava muito contente por ter de


acompanhar Maddocks, na entrevista a Jane Kingsley, por várias razões. Ia
sentado silenciosamente no lugar ao lado do condutor, enquanto o carro se
dirigia para Salisbúria. Tinha—se feito refém do destino ao prometer à
mulher e às duas filhas levá—las à praia em Studland naquele domingo. As
lágrimas delas e as recriminações ao verem o passeio cancelado pesavam—
lhe fortemente na consciência. A sua tristeza foi agravada pela desagradável
alegria de Maddocks ao pensar numa possível captura, que ele exprimia
através de uma versão repetitiva e sem melodia de «The sun has got his hat
on, Hip—hip—hip—Hourray...»
— Pare, Guv — disse ele por fim. — É pior do que tirar um dente.
— É um miserável, Fraser. Afinal, o que é que o está a perturbar?
— É domingo, Guv, por isso vai ser uma perda de tempo.
Provavelmente toda a família vai lá estar a visitá—la, o que significa que nós
não vamos poder entrar, a não ser que queiramos ter o Kingsley a chatear—
nos.
— Hum. — Maddocks resmungou satisfeito. — Mandei a Mandy Barry
falar com as enfermeiras, hoje de manhã, para saber quem tem visitado Jane e
quando. Segundo ela, Kingsley não se tem aproximado da filha desde que ela
foi admitida. A madrasta visitou—a uma vez e não parece que vá aparecer
novamente e os dois irmãos vieram separados e saíram amuados. Parece que
não gostam muito uns dos outros, por isso as hipóteses de perderem um
domingo por causa dela são nulas.
— Está a aborrecer—me tremendamente — disse Fraser zangado, ao ver
—se como cúmplice dos métodos pouco ortodoxos de Maddocks. — Tudo
como deve ser — disse o superintendente. — Vai ficar doido se souber que
você mandou a Mandy até lá às escondidas.
— Quem lhe vai dizer? — disse Maddocks despreocupadamente. — Ele
ficava muito irritado se eu fosse até lá e falhasse. — Virou o carro para a
estrada principal e acelerou para subir a colina. — Olhe, meu rapaz, tem que
arranjar coragem. Não vai a lado nenhum, se não actuar por sua conta e risco
de vez em quando. — Recomeçou a cantar a sua cantilena sem melodia.
Fraser virou a cara para olhar pela janela. O que realmente o irritava em
Maddocks era que o filho da mãe tinha quase sempre razão. A iniciativa, no
vocabulário de Maddocks, significava ir por atalhos e usar métodos que não
sobreviveriam nem por um minuto a um exame minucioso da Polícia e do
Criminal Evidence Act, mas ele saía ileso porque, utilizando a sua própria
terminologia, «conseguia farejar a culpa». Fraser atribuía isto ao facto de o
inspector ser eticamente tão corrupto como as pessoas que prendia — tinha
ouvido mais do que uma história acerca de Maddocks ter aceitado subornos
no passado — o que levantava questões perturbadoras sobre a eficácia dos
polícias e, como Fraser era um homem prudente, toda a questão o
preocupava. Era intrínsecamente absurdo forçar a polícia a seguir todas as
regras, quando o comportamento de um criminoso, que se dedicava a quebrá
—las, se mantinha inalterado.

Clínica Nightingale, Salisbúria — 14.30 h

Alan Protheroe ouviu o que os dois detectives tinham a dizer, com uma
ruga a vincar a sua cara amável.
— Presumivelmente isto é mais complexo do que parece à primeira vista
— comentou. — Se a polícia de Hammersmith apenas quisesse a morada dos
pais da menina Harris, porque não telefonou à menina Kingsley a pedir—lha?
— Porque, na mensagem que ela deixou no gravador de chamadas da
menina Harris, ela diz que esta clínica é uma clínica para doidos —
respondeu Maddocks calmamente — e, como deve saber, há regras para a
polícia que dizem respeito à forma como interrogam os que estão
mentalmente perturbados. Por isso, antes de falar com ela directamente,
Hammersmith pediu—nos para saber porque se encontra aqui e rapidamente
descobrimos, através dos nossos colegas em Fordingbridge, que ela tinha sido
internada na sequência de uma tentativa de suicídio por o noivo a ter trocado
pela menina Harris. Não temos vontade de a incomodar desnecessariamente,
por isso achámos que as perguntas deviam ser feitas por polícias à paisana.
Alan ficou ofendido com as referências a «doidos» e a «mentalmente
perturbados». Mais ainda, desaprovou o próprio Maddocks, não apreciando a
sua personalidade dominadora, que invadira a sala como um mau cheiro.
— Porque não me telefonou? — perguntou ele desconfiado. — Não me
teria importado de fazer eu próprio as perguntas.
Maddocks estendeu as mãos num gesto de capitulação.
— Está bem, vou ser honesto consigo. O problema não é a menina
Kingsley, mas o pai dela. As nossas ordens superiores são muito claras. Não
dar a Adam Kingsley qualquer motivo para processar a polícia de Hampshire
por alegada insensibilidade para com a sua filha doente. Não fazemos ideia
qual será a reacção dela a perguntas sobre a mulher que lhe seduziu o noivo.
Por aquilo que sabemos é que só o mencionar o nome de Meg Harris a faz
trepar paredes. Já temos dificuldades suficientes em pagar aos nossos
polícias, para desperdiçarmos o nosso orçamento em batalhas judiciais com
um milionário irritável, que já está preocupado com o estado mental da filha.
— Virou as palmas das mãos para baixo. — E parece que tem razões para
isso. Ela própria admitiu que está num hospital para malucos e que está morta
de medo de ficar doida. Palavras dela, não minhas.
Fraser teve que admirar a psicologia de Maddocks. Quaisquer que
fossem as suspeitas de Protheroe sobre os motivos da presença deles ali, foi
forçado a desviar a sua atenção e a defender a sua clínica e a sua paciente.
— Inspector, gostaria que parasse de se referir à clínica Nightingale
como um hospital para malucos — disse ele secamente. —Jinx tem um
cinismo saudável em relação a tudo e um sentido de humor sarcástico. Estava
claramente a brincar. Não tenho qualquer preocupação quanto ao seu
equilíbrio mental. Nem ela, acho eu. Ela perdeu um pouco a memória depois
do acidente mas, de resto, está mentalmente capaz.
— Bem, isso é um alívio — disse Maddocks. — Então podemos falar
com ela?
— Desde que ela concorde, não vejo razão para não o fazerem. —
Levantou—se e mostrou o caminho até à porta, reparando com interesse que
o sargento Fraser parecia achar o detective Maddocks tão desagradável como
ele. A linguagem corporal era fortemente eloquente, principalmente pelo
cuidado com que o homem mais novo procurava manter distância entre ele e
o seu superior. Levou—os pelo corredor fora. — Acho que seria melhor se eu
estivesse presente durante a entrevista — disse ele, batendo na porta do
número doze.
— Não vejo razão para não estar, desde que a menina Kingsley
concorde — disse Maddocks com ênfase irónico.
Por sua vez, Jinx ouviu o inspector explicar as razões da sua presença.
Estava sentada numa cadeira junto à janela e, com excepção das palavras
«boa tarde» que desejou aos dois polícias, quando estes entraram,
permaneceu calada até Maddocks terminar. Mesmo nessa altura não
respondeu imediatamente, mas olhou para ele em silêncio durante um
momento ou dois, com o rosto pálido e inexpressivo.
— Os pais da Meg vivem numa aldeia perto de Warminster, chamada
Littleton Mary — disse ela finalmente. — O pai dela é o pároco. Lamento
não poder dar—lhes o número de telefone, porque está na minha agenda e
não a tenho comigo, mas imagino que venha na lista. O primeiro nome dele é
Charles e ele e a mãe da Meg vivem no vicariato.
Pegou no maço de cigarros que estava na mesa, depois mudou de ideias
e deixou—o estar no sítio. De repente, sentiu relutância em chamar a atenção
para os tremores das suas mãos, duvidando da sua capacidade de segurar o
isqueiro com firmeza o tempo suficiente para conseguir acender um cigarro.
— Mas a Meg não está lá — continuou ela na sua voz grave. — Neste
momento, está a passar férias em França.
— Bem, isso explicaria a razão por que temos tido dificuldade em
contactá—la — disse Maddocks, como se ouvisse esta informação pela
primeira vez. Olhou para Alan Protheroe. — De facto, doutor, acho que não
precisamos de si, a não ser que a menina Kingsley fique nervosa se a deixar
sozinha. — Sorriu para ela. — Fica nervosa?
Ela encolheu os ombros com indiferença.
— Nem por sombras.
— Então muito obrigado. Não vamos demorar muito. Maddocks estava
junto da porta aberta.
Alan franziu o sobrolho zangado, tendo consciência de que estava a ser
forçado.
— Gostaria mais de ficar, Jinx — disse ele. — Tenho a certeza de que
seria isso que o seu pai esperaria.
Ela riu baixo.
— Tenho a certeza de que tem razão, mas como tenta convencer—me
continuamente, sou eu que controlo a situação e não o meu pai. De qualquer
maneira, obrigada. Acho que consigo responder a algumas perguntas sozinha.
— Bem, sabe onde estou, se precisar de mim. — Deixou que Maddocks
fechasse a porta com uma mão firme, mas estava desejoso de saber o que se
passava. Era óbvio que Jinx estava tão relutante como os polícias em deixá—
lo ouvir a conversa.
Dentro do quarto, Maddocks sorriu encorajadoramente para Jinx.
— Tem alguma ideia onde ela estará em França, menina Kingsley? Ela
abanou a cabeça.
— Não, mas posso adivinhar. Conheço o homem com quem ela foi. O
nome dele é Leo Wallader e tem um chalé na costa Sul da Bretanha. A
morada é Les Hirondelles, rue St. Jacques, Trinité—sur—mer. Há telefone,
mas mais uma vez — encolheu levemente os ombros — o número está na
minha agenda.
Maddocks anuiu.
— Mas se sabe que ela está em França — disse ele —, porque lhe
telefonou para o número de Londres?
Jinx olhou para ele por um momento, depois pegou no maço de cigarros
e tirou um cigarro. A nicotina era mais importante do que o orgulho. Tentou
chegar ao isqueiro, mas Fraser foi mais rápido, segurando—lhe firmemente a
chama por baixo da ponta tremelicante do cigarro. Ela agradeceu—lhe com
um sorriso.
— A Meg pode telefonar para o gravador e ouvir as mensagens — disse
ela. — Presumi que era isso que ela ia fazer.
— Quem lhe disse que ela estava em França?
— O sócio dela, Josh Hennessey. — Olhou fixamente para ele através
do fumo. — Telefonou—me na quarta—feira.
Maddocks olhou para Fraser para ver se ele tinha escrito o que ela
acabara de dizer.
— E Meg respondeu ao seu telefonema, menina Kingsley?
— Ainda não.
— E este sennor rlennessey está em contacto com ela?
— Que eu saiba, não. Ela não lhe deu nenhum número. Ele fez de conta
que consultava o seu bloco de notas.
— De facto sabemos da existência do senhor Leo Wallader. Apareceu
relacionado com o seu acidente de carro. Ele era seu noivo até há umas
semanas, não é verdade?
Ela soprou o fumo para o ar e observou como serpenteava até ao tecto.
— Sim — respondeu calmamente.
— Mas preferiu a sua amiga Meg Harris e deixou—a por ela. Ela sorriu
vagamente.
— Acertou novamente, inspector.
— Por isso, talvez a menina Harris não se sinta à vontade para lhe
telefonar — sugeriu ele —, apesar da insistência, na sua mensagem, de que
não lhe guarda ressentimentos.
Ela deixou cair a cinza no cinzeiro.
— Para lhe dizer a verdade — disse ela devagar —, realmente não me
lembro do que disse. — Olhou para ele com uma expressão inquiridora nos
olhos escuros.
— Falou de «incorrecção política», disse que devia estar a rasgar aos
bocados as primeiras edições dela, contou—lhe que tinha perdido a memória
depois de ter batido com o carro num pilar de betão e pediu—lhe para lhe
telefonar para aqui, se ela aguentasse o incómodo de falar consigo. Lembra—
se?
— Apenas me aflige — murmurou ela. — O senhor foi muito preciso na
sua introdução. Disse que a polícia de Hammersmith tinha ouvido as
mensagens para ela, apontado este número de telefone e que depois lhe tinha
pedido para me contactar, a fim de obter a morada dos pais dela. Não
mencionou que tinha ouvido a gravação. — Com uma mão fez pressão num
lado da cabeça, onde lhe começara a doer.
— Por isso, ou os senhores estavam lá quando eles a ouviram, ou então
mandaram—lhes uma cópia.
— Mamdaram—nos uma transcrição por fax — disse Maddocks.
— Porque é que fica aflita?
— Posso ver o fax ?
Ele olhou novamente para Fraser.
— Trouxemo—lo connosco, sargento? A última vez que o vi, estava na
sua secretária.
O homem mais novo abanou a cabeça.
— Desculpe, chefe. Achei que não íamos precisar dele. — Virou—se
para encostar o bloco de apontamentos contra a parede, esperando que a sua
raiva e o seu mal—estar fossem menos visíveis.
Jinx observou—o durante um momento. Não sabia mentir, pensou ela,
mas a sua tez também jogava a seu desfavor. Era loiro como Fergus e corava
facilmente. Sentiu uma leve simpatia por ele. Tinha um tirano como chefe e
ela sabia melhor do que ninguém que era preciso um certo tipo de coragem
para enfrentar tiranos ,
— Apenas por curiosidade — disse ela calmamente —, porque não
telefonou para o escritório de Meg e fez estas perguntas ao Josh?
— Porque Hammersmith não conseguiu localizá—lo — disse
Maddocks. — Como eu expliquei no início, parece que ela está a mudar de
casa. Segundo eles, não deixou nada a não ser as primeiras edições, algumas
roupas e o gato.
Ela virou—se para Fraser.
— Então quem está a olhar pelo Marmaduke?
— A vizinha, a senhora Helms — respondeu ele amavelmente. Fez—se
um longo silêncio.
— O que aconteceu realmente com a Meg? — perguntou Jinx em voz
baixa. — Não acredito que o Departamento de Investigação Criminal de
Winchester se desse ao trabalho de ir a Londres revistar o apartamento de
uma pessoa, apenas porque os seus cartões de crédito foram roubados.
Maddocks, tentando controlar uma necessidade de mostrar a Fraser que
o achava um tipo estúpido, debruçou—se sobre a cama de Jinx, inclinando—
se para a frente com as mãos entre os joelhos.
— Não foram apenas os dela que foram roubados — admitiu ele
gravemente —, mas também os do senhor Wallader. A morada registada para
os cartões é 12 Glenavon Gardens Richmond, que já se encontrava nos
ficheiros da polícia de Hampshire devido ao seu acidente. A polícia de
Richmond conseguiu dar—nos a morada e o número do telefone dos pais de
Leo, porque foram buscar essa informação a sua casa a seguir ao acidente. No
entanto, quando contactámos Sir Anthony para sabermos do paradeiro de Leo
e Meg, ele não nos soube dizer nada. E isso preocupou—nos, porque não
percebíamos a razão pela qual nenhum dos dois tinha notificado as
companhias de crédito, de que os cartões tinham sido roubados. Se estão num
chalé na Bretanha, então talvez esteja explicado, mas não percebo por que
razão Sir Anthony não nos pode dar a morada.
Ela afastou—se dele, encostando—se para trás na cadeira e tentou
controlar o pânico que sentia no peito. Tinha acontecido outra coisa...
qualquer coisa tão horrível que tinha medo de procurar na sua memória...
— Ele não a sabe — disse ela numa voz pouco segura que ouvia através
do sangue que batia e corria nos seus ouvidos. — Ele sabe muito pouco sobre
o filho. E a Philippa também.
A cara pesada de Maddocks aproximou—se e os seus pequenos olhos
astutos fixaram—na.
— Sente—se bem, menina Kingsley?
— Sim, obrigada. — Aconteceu outra coisa... esquecer... esquecer...
ESQUECER.
— Eles sabem apenas — continuou ela com uma voz mais firme — que
o seu único capital são umas contas e umas acções, quando de facto ele tem o
chalé na Bretanha, uma casa em Londres, que aluga a qualquer pessoa que
tenha dinheiro para isso e um condomínio na Florida. Pode até haver muito
mais. Ele falou—me dessas três coisas.
— Sabe a morada da casa de Londres?
Tinham tido uma discussão... Anthony e Philippa estavam presentes...
quero casar com a Meg... Meg é uma puta... Olhou novamente para
Maddocks.
— Apenas que é algures em Chelsea — disse ela, humedecendo os
lábios nervosamente. — O advogado dele pode dar—lha. Chama—se
Maurice Bloom e tem um escritório perto da Fleet Street. Tenho a certeza de
que conseguem encontrá—lo através da Ordem dos Advogados.
Maddocks verificou se Fraser tinha apontado o nome.
— Haverá alguma boa razão para que ele não queira que os pais saibam
das suas propriedades? — perguntou ele.
Ela pensou um pouco.
— Depende da sua definição de bom. Sim, ele tem uma razão e
pessoalmente acho horrível, mas faz sentido para o Leo. Fez uma pausa. —
Não posso dizer—lhes o que é, sem parecer resssentida.
— Acho que precisamos de saber — disse o inspector. Precisavam? Ela
estava a ter dificuldade em se concentrar. Eu despedi—me de Leo ao
pequeno—almoço... íamos casar no dia 2 de Julho...
— Eles são de uma certa espécie de pessoas, nem tanto a Philippa, mas
certamente Anthony e Leo. — A voz dela parecia estranhamente remota. —
Nunca se paga nada se conseguirmos que outra pessoa pague, utiliza—se a
perícia de outras pessoas para nos ajudarem a subir e diz—se que se é pobre,
fazendo observações maliciosas acerca de como todas as outras pessoas são
ricas. Torna—se muito cansativo para a pessoa a quem se está a extorquir
dinheiro, particularmente quando se sabe que o parasita, que estamos a
sustentar, está cheio de dinheiro.
Ela estaria doida? Estas eram as últimas pessoas que deviam estar a
ouvir a sua confissão. Fala com o médico... ele quer que a tua estadia seja
confortável... é uma escolha livre...
Maddocks viu os olhos dela a tornarem—se enormes numa cara que
parecia pequena pela falta de cabelo. Sentiu como eles o atraíam, mesmo
enquanto pensava: «Apanhei—te, sua assassina. Realmente odiava o pobre
filho da mãe.»
— E Leo fez—lhe isso a si? — perguntou ele suavemente.
— Não imediatamente. Não foi tão grosseiro. Na verdade, ao princípio
era muito generoso. Foi só quando se mudou para Glenavon Gardens que
percebi que responsabilidade eu arranjara. — Respirou profundamente.
— Não há pressa, menina Kingsley. Leve o tempo que quiser.
Recordações do assassínio de Russell enchiam a sua memória. Leve
o tempo que quiser... não há pressa... sabemos que o seu pai o odiava o
suficiente para o matar... sabemos que o seu pai é um psicopata...
— Ele acredita no princípio de que «o que é teu é meu» — disse ela
rapidamente para calar as vozes na sua cabeça —, mas isso não é recíproco.
Era tão reservado comigo como com os pais. Só soube da existência das
propriedades quando o Maurice Bloom lhe telefonou para minha casa um dia
e, pela conversa, percebi que ele tinha qualquer coisa na Florida. Fiquei
suficientemente zangada para o obrigar a falar—me sobre isso, pois dera—
me a impressão de estar em dificuldades financeiras. — Não há mais nada a
dizer, tal como Fergus, tinha ido buscar dinheiro a minha carteira. Agora
lembrava—se. Tinha sido a sovinice que a irritara, as fugas aos impostos, o
sigilo obsessivo em relação ao banco e cartões de crédito, o egoísmo do seu
estilo de vida.
— Que tipo de emprego tinha ele?
Ela reparou na utilização do imperfeito, mas não disse nada.
— Ele dizia que era corretor, mas como nunca mencionava os nomes
dos clientes, acho que comprava e vendia acções em benefício próprio.
— Saía, para trabalhar, todos os dias? Certamente que ia para algum
lado todos os dias.
— Ele passa o tempo na City. — Eu quero casar com a Meg...
— Para se manter a par das coisas, como ele diz.
— Que tipo de dificuldades financeiras lhe disse ele que tinha?
— Contou que tinha perdido tudo num mau investimento, mas acho que
estava a mentir. Estava sempre a queixar—se de como estava em pior posição
do que eu. Costumava fazer o mesmo com o pai.
— No entanto, você disse que o pai dele era igual.
Ela deixara chegar o dia em que decidiu acabar com tudo aquilo, disse—
lhes o que pensava deles, chamou—lhes parasitas privilegiados, cuja
pretensão a respeitabilidade se baseava no facto de um dos seus antepassados
ter sido suficientemente esperto e corajoso para obter um título.
— Anthony é muito sovina. Nunca paga as contas até à última, na
esperança de que o negócio tenha falido antes de ter que passar o cheque.
— Se a percebi bem, menina Kingsley, está a dizer que Leo pede
dinheiro ao pai.
Ela acenou com a cabeça, mas não disse nada. Meu Deus, eles odiaram
—na pelo que tinha feito. E o triunfante Leo dissera—lhe que tinha um
romance com a Meg e que era com ela que queria casar—se. E o choque fora
ENORME! Lembrava—se de tudo. O ódio de Anthony... «És a filha de um
vendedor ambulante... nunca te quisemos nesta família...» A angústia de
Philippa. «Pára... pára... não se podem retirar as palavras...» O amuo de Leo...
«Quero casar com a Meg... quero casar com a Meg...».
— É essa a razão pela qual nunca lhe falou sobre as propriedades? —
sugeriu Maddocks. — Ele não quer que o pai saiba dos valores que realmente
possui.
Ela acenou novamente com a cabeça.
— Ele era, é — corrigiu ela — obsessivo com o dinheiro. São ambos.
— Deixou de pensar no passado. — Uma coisa posso garantir, Leo teria
imediatamente cancelado os cartões no momento em que se apercebesse de
que tinham sido roubados. E certamente que não iria para França sem eles.
— Então o que está a dizer?
Estou a dizer que Leo está morto. Uma visão, vinda do nada, brilhou de
repente no seu cérebro cansado. Uma imagem bem definida, mas tão breve
que desaparecera antes que conseguisse perceber o que era. Meg é uma
puta... Meg é uma puta... demasiados segredos... déjà vu... isto já tinha
acontecido antes...
— Meu Deus — disse ela, apoiando uma mão pisada contra o peito —
por um momento cheguei a pensar... — Olhou sem expressão para
Maddocks... — O que foi que me perguntou?
Ele não tinha perdido a breve expressão de admiração na cara dela.
— Eu estava a pensar que conclusões teria tirado do facto de Leo não ter
cancelado os cartões?
Ela comprimia a testa com dedos trémulos.
— Sinto—me pessimamente — disse ela de repente. — Acho que vou
vomitar.
Fraser dobrou—se para olhar para a sua cara.
— Vou chamar o médico — disse ele.
— O nome da companhia da menina Harris é a única coisa de que
precisamos — forçou Maddocks, pondo—se de pé. — Podemos começar a
partir daí. Disse que o sócio dela era Josh Hennessey. Qual é o nome da
companhia?
— Pare, Guv, por amor de Deus — disse Fraser zangado, tocando na
campainha ao lado da cama. — Não vê que ela não está bem?
— Harris e Hennessey — murmurou ela. Os números estão no livro por
baixo do telefone de casa da Meg. Primeiro M. S. Harris e depois Harris e
Hennessey. Não percebo porque não telefonaram para lá antes de cá virem.
— E então? — perguntou Maddocks a Fraser ao abrir a porta do carro.
— Porque não o fizemos?
— Não me pergunte a mim, Guv. Eu fui a Downtown Court, lembra—
se? Parece que o superintendente lhe disse para descobrir o que pudesse sobre
Meg Harris.
— É culpa da polícia de Hammersmith — disse Maddocks irritado. —
Raios os partam, têm as listas de telefone à frente. — Sentou—se ao volante.
— O que achou dela?
Fraser ocupou o lugar do passageiro e fechou a porta.
— Tive pena dela. Parece realmente doente.
— Bem, isso não a impediu de fazer as coisas muito melhor do que
você, não foi? — Ligou o motor.
— Ou você — disse Fraser rudemente. — Foi você que pôs o alarme a
tocar e não eu.
Mas Maddocks não estava a ouvir. Meteu uma mudança e virou o
volante.
— Digo—lhe uma coisa, ela não gostava muito do Leo, nem dos pais.
Conheceu Sir Anthony. Diria que a descrição que ela fez é exacta?
— Não se consegue dizer muito sobre um homem quando este está em
estado de choque. Não é pobre, isso é certo. — Reflectiu um pouco. — Na
verdade, achei realmente que ele era um pouco pretensioso, mas o pobre ia
receber a notícia da morte do filho, portanto não analisei muito o assunto.
— No entanto, é estranho — disse Maddocks pensativamente. — Se ela
os desprezava tanto como diz, então por que razão ia casar—se? Quero dizer,
foi Leo que desfez o casamento, não ela, e se ele era tão obsessivo com o
dinheiro, porque é que se livrou ele de uma Kingsley para se casar com a
filha do pároco? Não faz sentido. — Deu um murro amigável no ombro de
Fraser. — Bom trabalho. Parece que tinha razão. Ela é a nossa vilã, sem
dúvida. Agora só temos que apanhá—la.
Fraser tinha as suas dúvidas. Parecia tão bem nas fotografias, mas em
pessoa, como era de prever, era diferente. Poderia uma pessoa tão frágil ter
cometido um crime tão físico? Eram dois e Leo media mais de um metro e
oitenta e dois.
Maddocks abrandou junto dos portões da clínica.
— Ela é muito esperta. Utilizou o logro para os matar, não a força. —
Parou o carro na estrada. — E não se deixe seduzir pelo papel da menina
frágil. Meu Deus, nunca conheci uma mulher tão calculista. A maior parte do
tempo estava um passo à nossa frente e não acredito que sofra de amnésia.
The Ragged Staff, Salisbúria — 18.30 h
A mulher—polícia Blake, confortavelmente discreta, vestida de jeans e t
—shirt, conseguiu finalmente descobrir Samantha Garrison num pub do
centro da cidade. Estava sozinha no bar, uma visão um tanto patética,
envergando um vestido preto sem alças e muito justo, que mostrava todas as
protuberâncias típicas da sua idade, fazendo com que a gordura do seu
antebraço deslizasse como banha derretida por cima do remate de lantejoulas.
O cabelo mole caía—lhe como uma cortina húmida à volta da cara demasiado
pintada e um perfume barato e pestilento emanava dos seus poros.
— Samantha Garrison? — perguntou ela, deixando—se escorregar para
o banco ao lado.
— O, meu Deus — suspirou a mulher —, diga—me que não é um
detective, minha querida. Neste momento não quero chatices. Estou a tomar
uma bebida sossegada no meu bar, está bem? Vê alguns clientes? Eu
certamente que não. A sorte seria uma boa coisa nesta noite de domingo num
buraco miserável como este.
— Não estou aqui para chatear — disse Blake, olhando para o barman.
— O que está a beber?
Samantha olhou para o meio litro de cerveja que fazia durar nos últimos
quarenta minutos.
— Um rum duplo com coca—cola — disse ela.
Blake pediu um gim com água tónica, esperou que as bebidas viessem, e
depois sugeriu que se mudassem para uma mesa isolada junto da janela.
— Você disse que não queria sarilhos — lembrou—a Samantha. — O
que me quer dizer ali que não possa dizer aqui?
— Quero falar sobre o que lhe aconteceu no dia 23 de Março. Acho que
seria menos constrangedor se estivéssemos mais à vontade.
Uma expressão triste instalou—se na cara pintada da mulher.
— Eu sabia que isso iria voltar para me perseguir. E se eu disser que não
quero falar sobre o assunto?
— Então vou pôr—me a falar sozinha e toda a gente vai ouvir. — Olhou
em direcção ao barman. — Estou a tentar facilitar—lhe as coisas, Samantha.
Se preferir, podemos ir para sua casa.
— Meu Deus, não. Acha que eu quero que os meus filhos se lembrem
do que aconteceu? — Saiu do banco. — Então venha para aqui, mas não lhe
prometo nada. Fico a transpirar só de pensar nisso. Suponho que foi o que
aconteceu à outra rapariga que a levou a andar atrás de mim novamente.
Blake sentou—se na cadeira do outro lado e inclinou—se para a frente
com os cotovelos em cima da mesa.
— Que outra rapariga?
— Diz—se que aconteceu a mesma coisa a outra.
— Parece que sim.
— E ela falou?
— Até ao momento não.. Está demasiado assustada. Samantha deu um
grande gole no rum com coca—cola.
— Não estou nada admirada. Blake acenou com a cabeça
— Precisamos de que uma de vocês nos ajude. Estamos preocupados,
porque ele pode matar a próxima rapariga se o fizer novamente.
Examinou de perto a cara da mulher. «Rapariga» pensou ela, era uma
expressão errada. Flossie declarara ter quarenta e seis anos e Samantha
também nunca mais teria quarenta anos. Havia outras semelhanças. Eram
ambas gorduchas, ambas loiras e ambas extremamente desajeitadas com o pó
de arroz quase branco.
— Como é que ele a contactou, Samantha? Engatou—a na rua, ou você
põe anúncios em algum lugar?
— Ouve, querida, eu disse que não prometia nada e estava a falar a
sério.
— Flosse chamou—me «querida», você também me chama «querida».
Por favor, não se ofenda, mas ela e você são muito parecidas. Diria que são
«maternais». — Fez uma pausa para pensar. — A única referência que
Flossie fez ao seu atacante foi chamar—lhe Pequeno Lorde Fauntleroy, por
isso acho que deve ser muito mais novo do que vocês, provavelmente bem—
falante e bonito e também acho que não escolheu nenhuma das duas por
acaso. A avaliar pelo facto de você e Flossie terem a mesma idade e a mesma
aparência, ele estava claramente à procura de um tipo específico de prostituta.
O que significa que a deve ter engatado na rua, senão não saberia como você
é. Estou certa?
— Já há muito que não ando na rua, querida. — Samantha suspirou
novamente. — Olhe, arranje—me mais um rum com coca—cola e nessa
altura, talvez eu lhe conte.
— Eu não vou pagar novamente a não ser que me dê a certeza — disse
Blake com firmeza. — Isto não é oficial, sabe, estou a usar um dinheiro que
ganho duramente.
— Que parva. Ninguém lhe agradece nada, nos dias que correm.
— Quanto é que ele lhe deu para você ficar calada?
— Quarenta — disse Samantha — mas não é o dinheiro querida. Era
ele. Ele disse—me que me fazia tudo outra vez, se eu abrisse a boca e eu
acreditei. Ainda acredito, se é que isso lhe interessa. Estava completamente
louco.
—Quarenta — repetiu Blake verdadeiramente admirada. — Meu
Deus! Deve ter dinheiro para deitar fora. O que leva normalmente? Dez?
— Não houve resposta. — Então ele é um jovem rico, bem—falante e
bonito? — Mais uma vez não houve resposta. — Vá lá Samantha, como é
que você sabia como ele era? Diga—me isso pelo menos. Significa que posso
passar a palavra às outras raparigas para terem cuidado no futuro.
Ela empurrou o copo em direcção à mulher—polícia.
—Eu acho que você está a ver as coisas ao contrário, querida. Acho
que ele esperava uma mulher jovem e bonita e, em vez disso, encontrou
uma prostituta gorda. Tudo o que eu sei é que telefonou para o número do
meu cartão, e o cartão está em tantas montras, que não saberia dizer em qual
deles ele o viu, marcou um encontro, meteu—se na minha cama e ficou
doido. Disse que eu podia ser mãe dele e que eu não tinha nada que fazer
publicidade, fazendo—me passar por outra pessoa. Agora volte a encher o
copo, minha linda.
Blake pegou no copo e levantou—se.
— Então acha que ele procura as prostitutas regularmente, mas que só
bate nas mais velhas?
Ela encolheu os ombros pesados.
— Pensar nunca foi o meu forte, querida. Senão teria sido
neurocirurgião. Sabe, acho que o pai bate na mãe dele: «Diga—lhes que foi o
seu velho que fez isto», disse—me ele «e eles acreditarão.»
11
Domingo, 26 de Junho, Clínica Nightingale Salisbúria — 19.00 h

NÃO HAVIA NENHUM padrão nos pensamentos de Jinx. Bocados de


conversas de que se lembrava perturbavam o seu cérebro cansado. Os seus
irmãos têm—lhe rancor? Sim, sim, SIM! Tu eras tão condescendente que ela
tinha vontade de te bater... Ela tinha sete anos de idade. Ainda era um bebé...
a criança perfeita que já vivia na casa com fotografias da mãe, também
perfeita, espalhadas pelas paredes... Era culpa dela que o pai tivesse
começado a odiar a sua segunda mulher poucos meses depois do casamento?
As relações não precisam de ser uma desilusão, Jinx... Ela nunca tivera uma
que não o fosse. Tinha casado com Russell porque tinha pena dele e
descobrira, demasiado tarde, que a piedade não era uma boa base para o
casamento. No entanto, sem o poder de prever acontecimentos antes de estes
terem acontecido, alguém poderia ter feito melhor no seu lugar? Então o que
estás a dizer? Não sei, não sei, NÃO SEI! Alguma coisa horrível acontecera...
Russell estava morto...
O doutor Protheroe foi visitá—la às sete horas.
— Como vai isso?
Ela estava encostada às almofadas.
— Estou péssima — confessou ela, sentindo novamente a necessidade
ridícula de ser tirada da cama e de se sentir confortada nos seus braços. Meu
Deus, nunca se sentira tão sozinha.
Ele debruçou—se sobre ela, e ela conseguia cheirar o sabonete das mãos
dele.
— Disse—me que a polícia não a tinha incomodado, quando o sargento
me chamou, mas acho que estava a mentir. De que queriam eles falar
realmente?
Ela fixou a sua atenção nos pêlos que saíam da camisa dele, onde faltava
o botão, como pequenas gavinhas que saíam maldosamente cá para fora e que
ridicularizavam a sua posição como director de uma clínica transformando—
a numa farsa. Adam já o teria despedido há muito tempo pour encourager les
autres, mas Adam considerava demasiado a apresentação, e Adam era um
tirano.
— Queriam apenas alguns detalhes sobre a Meg — disse ela. — E não
me incomodaram. Só estou muito cansada neste momento.
Ele puxou uma cadeira para a frente e sentou—se.
— Está bem. Então porque se sente mal? Fisicamente ou mentalmente?
Uma lágrima brilhou nos seus olhos.
— A vida — disse ela. — Fiz uma trapalhada da minha vida e não sei
consertá—la.
Que combinação sedutora, pensou ele, esta mudança de uma
independência de um espírito forte na companhia dos polícias, para uma
vulnerabilidade lacrimosa quando sozinha com o médico. Ele gostaria de
estar mais confiante de que as lágrimas eram genuínas. Como Verónica
Gordon, uma das enfermeiras, lhe dissera esta manhã:
— Ela tem o poder de atrair as pessoas, Alan. Acho que são aqueles
olhos extraordinários. Dizem uma coisa e a voz outra.
— O que dizem os olhos? — perguntara—lhe ele.
— «Ajude—me» — disse ela sucintamente —, mas é a única coisa que
ela nunca pede.
— Talvez a vida a tenha tornado confusa — sugeriu ele.
— Não — disse Jinx com franqueza. — Foi sempre essa desculpa que
usei, mas não é verdade. Deixo que as coisas aconteçam em vez de controlá
—las. Como este sítio por exemplo. Não quero estar aqui, mas estou. E a
única razão para ficar é que o meu pai me vai perseguir até Londres e
convencer—me a ficar em casa dele e isso ainda me agrada menos do que
ficar aqui. — Ela levou o lenço aos olhos para limpar as lágrimas. — Só
agora começo a perceber como sou passiva.
— Porquê? Porque não quer lutar contra o seu pai?
— Entre outras coisas. — Sentou—se e envolveu os joelhos com os
braços. — Sabe, o único homem com quem consegui falar de igual para igual
é o meu vizinho em Richmond e ele já vai na casa dos oitenta. Toda a tarde
estive a tentar lembrar—me se teria havido outra pessoa e não me lembrei de
mais ninguém.
— E as pessoas do seu estúdio? Dean e Angélica. Certamente que fala
com eles de igual para igual. Só por curiosidade, já falou a algum deles
depois de cá chegar?
Ele sabia que ela não tinha falado. Só tinha havido duas chamadas para
fora. E nenhuma para o estúdio.
— Não vejo razão para o fazer. Só falamos de trabalho e sei que vão
continuar a fazê—lo. Além disso, não acho fácil discutir a minha vida
privada.
Ele já tinha reparado.
— Josh? Pode falar com ele? — Ela fez uma careta.
— Quando o vejo, o que é muito raro. De qualquer maneira,
normalmente acabo por pedir desculpa por ser amiga de Meg. Só Deus sabe
por que razão ele se meteu num negócio com ela. Nem sempre se pode
confiar nela.
Temporariamente deixou de falar em Meg.
— E o Russell?
Ela olhou para além dele através da janela.
— Ele era como o meu pai. Era possessivo, ciumento e achava que eu
era maravilhosa. — Calou—se, perdida algures no passado. Ele ia incentivá
—la a falar, quando ela resolveu continuar: — Foi um caso clássico, saí de
uma situação para me meter noutra ainda pior. O que é estranho é que ele
estava bem enquanto não nos casámos. Foi o facto de achar que me possuía
que o mudou. Ficou como o meu pai.
— Porque sente que o seu pai a possui, Jinx?
— Eu não sinto isso. Adam é que vê as coisas assim. Acha que pode
controlar—nos a todos. — Olhou para ele. — O senhor também, doutor
Protheroe.
Ele franziu o sobrolho.
— Porque ele está a pagar esta clínica para que tomemos conta de si?
Isso não é controlo.
Ela sorriu.
— Numa situação difícil, quais seriam os interesses que poria em
primeiro lugar? Os seus e os da sua filha, ou os meus e os dos outros
pacientes?
Ele achou graça e riu—se.
— Isso é como perguntar—me se eu preferia ser o Arcebispo de
Canterbury ou Jack, o Estripador. Porque deveria eu ter que enfrentar uma
escolha tão dramática?
— Porque se fizer alguma coisa que o meu pai não goste, provavelmente
ver—se—á sem emprego — disse ela com franqueza. — Porque acha que
Russell, aos quarenta anos, abandonou uma carreira confortável e bem paga
em Oxford, para comprar uma galeria de arte decadente em Londres?
Acredite que não foi uma escolha. — Ela sorriu com determinação. —
Usando um cliché, o meu pai fez—lhe uma oferta que ele não pôde recusar.
Uma utilização interessante das palavras, pensou ele.
— Qual foi a oferta?
— Sair voluntariamente ou em desgraça.
— Lamento, mas terá que explicar.
— Adam não joga de forma civilizada. Utiliza informações para destruir
as pessoas que se metem no seu caminho. — Encolheu os ombros.
— Pagou cinquenta mil libras pela informação sobre Russell, não
contando o que pagou à sua equipa de investigadores só para desenterrarem a
existência dessa informação. Ele não brinca.
Ele escondeu a sua incredulidade.
— Posso saber qual era? Ela olhou para ele.
— Não acredita em mim, pois não? — Via que ele não acreditava.
— Então será o seu funeral, doutor Protheroe. Toda a gente o subestima.
Ele faz com que as pessoas pensem que estão a lidar com um senhor e, na
realidade, não estão. Percebe, ele não é como a Betty. Não se conseguem
detectar as suas origens olhando para ele. É esperto demais para isso.
Protheroe sentiu mais uma vez que estava a ser levado a fazer uma
escolha entre ela e o pai, e decidiu evitar o problema.
— Nem acredito, nem deixo de acreditar — disse ele. — Estou apenas a
pensar que mal poderia Russell ter feito. Mesmo há dez anos e em particular
numa universidade liberal como Oxford, «sair em desgraça» parece ser um
conceito antiquado.
— Não, se for parar à prisão. — Ela suspirou. — Russell ia à Europa
todos os anos para dar conferências. Quando voltava, trazia mais de
cinquenta quilos de cannabis no chassis do carro. Era uma transacção
honesta. Ia buscar o material a Itália e era pago quando fazia a entrega em
Inglaterra. Utilizou o dinheiro para custear a galeria. Não lhe pesava a
consciência. Achava que a cannabis era menos perigosa do que o álcool ou os
cigarros e que o Governo era doido por considerar o seu uso um crime. Mas a
pena, por fazer contrabando, é a prisão. Adam ofereceu—lhe a demissão ou a
instauração de um processo. Russell escolheu a demissão.
— Sabia que ele fazia contrabando de drogas? Ela abanou a cabeça.
— Só soube mais tarde.
— Como é que Adam descobriu?
— Segundo Russell, conseguiu descobrir o contacto em Itália e comprou
—o. Adam trabalha com o princípio de que toda a gente tem um ponto fraco
e que se persistir acabará por o descobrir. Acho que o que provavelmente
aconteceu foi que as pessoas que trabalhavam para ele calcularam o valor da
colecção de Russell, perceberam que ele não teria conseguido comprá—la
com o seu salário e começaram a investigar as suas idas ao estrangeiro.
— Presumo que foi Russell que lhe contou, não o seu pai.
— Sim.
— Ele explicou porque é que o seu pai queria que ele saísse de Oxford?
— Para o afastar de mim.
— Então porque é que Russell casou consigo, Jinx? Porque é que a
chantagem não continuou depois de ele ter ido embora? Acho que ele não
teria mais vontade de ir para a prisão nessa altura do que antes.
Ela deu uma risada oca.
— Parece que acha que eu estou a inventar tudo isto.
— Não acho nada. Estou apenas a tentar compreender. Mais uma vez ela
não acreditou nele.
— Já lhe contei, doutor Protheroe. Casámos sem o meu pai saber.
Convenci o Russell de que o meu pai recuaria no momento em que soubesse
que eu era a senhora Landy, porque apesar do que pudesse querer fazer a
Russell, nunca me arrastaria para a lama. E eu tinha razão. Ele não o fez.
Alan considerou, durante um momento, o que acabara de ouvir,
pensando que longe de ser passiva Jinx se descrevera, a si própria, como uma
manipuladora consumada.
— Nunca lhe ocorreu que o seu pai poderia reagir da maneira como o
fez?
Ela franziu o sobrolho, mas não disse nada.
— Se as minhas contas estiverem certas, Russell só era doze anos mais
novo do que ele. Realmente pensou que Adam o aceitaria como genro?
—Claro que não, mas na altura em que Adam soube o que havia
entre nós, o casamento não estava em causa. Estávamos a ter um caso
sossegado que não dizia respeito a ninguém a não ser a nós próprios.
Ela olhou para as mãos com um ar triste.
— Quem lhe contou?
— Os meus irmãos.
— E como é que eles souberam? Ela alisou o lençol no seu colo.
— O Russell costumava escrever—me durante as férias e eles abriram
uma das cartas e mostraram—na ao Adam. Realmente, devia ter contado com
isso. Eles estavam sempre à procura das minhas fraquezas. — Fez uma pausa.
— A ironia é que o meu pai passou a odiá—los a partir desse momento. Acho
que ele sabia que o nosso caso não ia levar a nada, se eles não tivessem
chamado a sua atenção.
— Está a dizer que não teria casado com o Russell, se não se sentisse
culpada pelo que o seu pai fez?
Ela sorriu levemente.
— Ele estava completamente infeliz, por isso casei—me com ele. Na
verdade, eu também me sentia pessimamente. Tinha mais um ano em Oxford
depois de ele ter ido embora e foi apenas uma série de telefonemas chorosos.
Achei que ambos seríamos mais felizes se tornássemos a coisa oficial.
— Mas não aconteceu? Ela não respondeu nada.
— Quanto tempo esteve casada? — perguntou Protheroe. Ela olhou para
ele:
— Três anos.
— E gostou? — insistiu ele.
— Era tudo muito asfixiante. Ele tinha medo que eu o trocasse por um
homem mais novo e tinha ciúmes de toda a gente. — Ela pareceu considerar
que estava a ser desleal. — Olhe, não foi assim tão mau. Ele era muito
engraçado quando estava em forma e agora quando penso nele é com afeição.
De uma maneira geral, os bons tempos pesaram muito mais do que os maus.
Inconscientemente dentro de Alan houve como que um eco dos
pensamentos de Fraser no dia anterior. Que epitáfio triste para um marido
morto. «Quando penso nele agora é com afecto.» Mas Alan percebia que ela
tentava nem sequer pensar nele.
— Só por curiosidade ——perguntou ele —, aprovava o contrabando
dele?
Ela começou a mexer nas unhas.
— Concordava com ele quanto ao facto de achar uma idiotice que fosse
considerado um crime. Ou quaisquer outras drogas. Os mercados negros
sempre minam a ordem social. Mas achei que ele tinha sido um doido por o
fazer. Alguém iria descobri—lo, mais cedo ou mais tarde.
— Que tipo de amante era ele? Ela riu—se com desprezo:
— Imaginei que iríamos falar sobre isso. Sigmund Freud é responsável
por muita coisa. Porque é que dá tanto crédito às teorias fantásticas de um
viciado em cocaína? Nunca percebi isso.
Ele sorriu:
— Acho que já não o fazemos, pelo menos não tanto como está a
sugerir. Freud tem o seu lugar na história. — Encostou—se para trás na
cadeira, cruzou as pernas, aumentando deliberadamente o espaço entre eles.
— Mas não concorda que a relação sexual entre um homem e uma mulher é
uma parte integrante de toda a relação?
— Não. Eu não faço sexo com Eric Clancey e dou—me melhor com ele
do que com qualquer outra pessoa.
— Ele é o tal vizinho já com uma certa idade? — Ela confirmou. —
Sim, bem, estou a referir—me a relações em que entra o sexo.
— E já lhe dei a minha resposta. A minha experiência diz—me que as
melhores relações não têm qualquer conteúdo sexual. — Pegou nos cigarros.
— De facto, Russell era um bom amante. Sabia exactamente o que fazer, e
quando, era atencioso e não demasiado exigente. A cama era um dos sítios
onde podíamos comunicar a um nível de igual para igual, porque era o único
lugar onde Russell conseguia esquecer os ciúmes. — Acendeu um cigarro. —
Não havia telefone no quarto, por isso Adam não conseguia falar comigo.
Novamente Adam.
— Havia razão para os ciúmes dele? Sentia—se atraída por outros
homens?
— Claro — disse ela com honestidade. — Se estivesse no meu lugar,
sentiria a mesma coisa. A relva parecia muito mais verde do outro lado
da cerca matrimonial, mas eu nunca fiz nada. — Inalou profundamente o
fumo do cigarro. — Era do meu pai que ele tinha realmente ciúmes.
Reconhecia que Adam era tão possessivo como ele e isso assustava—o.
Tinha a certeza de que Adam ganharia no fim.
—No outro dia disse—me que amava o seu pai. Era verdade ou estava a
dizer—me aquilo que achava que eu queria ouvir?
— Em parte era verdade. — Olhou para ele, subitamente divertida.
—Nunca sei se quero sentar—me ao colo dele e ser abraçada por ele, ou
dançar uma dança de liberdade sobre o seu túmulo. Acho que Freud devia achar—me fascinante.
— Ele abraça—a às vezes? Ela abanou a cabeça.
— Detesta demonstrações de afecto. Às vezes dou—lhe um beijo na
cara, se o apanho desprevenido, mas a maior parte das vezes ele nem sequer
me toca.
— E ele abraça a sua madrasta?
— Não.
— Os seus irmãos?
— Não. Somos uma família que mostra pouco os sentimentos.
— Existe algum amor naquela casa, Jinx?
— Existe uma paixão — disse ela. — Todos eles lutam como cães e
gatos para obterem a aprovação de Adam.
— Mas você não participa?
— Não preciso — disse ela, tentando não pensar no assunto. — Já a
tenho. Adam pagou bom dinheiro para transformar o seu filho mais
inteligente em alguma coisa de que ele se pudesse orgulhar. O facto de eu não
ser capaz de tomar decisões sensatas sobre a minha vida privada é uma
irritação menor. — Zangada, desviou o olhar, apoiando o queixo na mão e
olhando para o espelho. — Fez de mim uma senhora e está completamente
apaixonado por ela.
— É por isso que lhe chama Adam? Para provar que não é uma senhora?
— Não percebo.
— Presumo que seja uma declaração de igualdade: «Tu e eu não somos
diferentes, Adam. Se não consegues comportar—te como um senhor, então
também não posso ser uma senhora.» Mais ou menos isto?
Ela continuar a olhar fixamente para o espelho.
— Realmente supõe demasiadas coisas. Em circustâncias normais,
quase nunca penso em Adam e nunca em termos analíticos.
— Anteriormente disse que as melhores relações eram as que não
incluem sexo — lembrou—lhe,ele — e no entanto, não tem uma boa relação
com o seu pai. Devo inferir que você e ele tiveram uma relação sexual?
— Não — disse ela calmamente —, não deve concluir nada disso. Não
lhe vou permitir que me impinja uma teoria de abuso sexual de crianças de
mau gosto, só porque está na moda. E de qualquer maneira o que pode você
saber sobre o assunto? Pensei que me tinha dito que não era um psiquiatra.
Ele sentia a raiva dela.
— Porque está na defensiva? É porque reconhece que se não fosse o
autodomínio que ele tem, você e ele poderiam ter tido uma relação sexual?
Talvez o desejo não fosse só de um lado.
De repente ela fechou os olhos.
— Realmente peço—lhe para se lembrar do que o meu pai faz às
pessoas de quem não gosta, doutor Protheroe. Seria loucura fazer dele um
inimigo.
Então porque seria que ele tinha a sensação de que ela estava a falar de
si própria?
Com um esforço de concentração lembrou—se do telefone de casa de
Dean Jarrett.
— Dean? — disse ela quando ele levantou o auscultador do outro lado.
— Olha, desculpa estar a incomodar—te em casa.
— Quem fala?
— Jinx.
— O, meu Deus! — gritou a voz que ela recordava. Conseguia imaginá
—lo com muita clareza. O telefone estava na sala, uma excrescência art deco,
entre todas as outras excrescências na sua casa colorida e vibrante. Estaria
deitado numa chaise—longue, pensou ela, com a cabeça, de um oxigenado
prateado, encostada à ornamentada cabeceira, o auscultador numa mão e a
taça de champanhe na outra. Dean fazia teatro mesmo quando estava sozinho
e ela adorava—o por isso, uma vez que ela própria não era capaz de o fazer.
— Temos estado muito preocupados — declarou. — Eu disse a
Angélica: «Angélica querida, suponha que a perdemos? Não saberíamos o
que fazer.» Encarar o facto horrível de telefonar àquele homem horroroso que
passa por ser teu pai e que nos faz recear Deus, ou ficarmos quietos e esperar
que tu voltasses eventualmente a ti. Sabes que ele telefonou e que falou com
a Angie, foi terrivelmente grosseiro, só faltou chamar—lhe preta, mas não
disse onde estavas. Disse apenas que estavas no hospital, inconsciente e
mandou—nos continuar a fazer o trabalho pelo qual éramos pagos. Depois a
bófia veio cá fazer perguntas e nós quase morremos de susto. — Atrapalhou
—se e parou de falar. — O negócio vai bem — continuou ele já mais calmo
passado um momento. — Não te preocupes com o estúdio. Graças a Deus, as
pessoas acreditam o suficiente em ti para continuarem connosco. Ela sorriu:
— Eu sei, por isso é que não me tenho preocupado.
— Devias ter telefonado — disse ele. — Temos estado tão aflitos.
Queríamos mandar—te umas flores. A Angélica passa a vida a chorar, disse
que alguém te devia ir visitar.
— Desculpa. O problema é — fez uma pausa —, bem, para ser honesta,
só estou a funcionar a meio gás neste momento. Magoei—me muito na
cabeça e acabei por ter uma amnésia galopante. — Forçou uma gargalhada.
— Não me lembro de muita coisa das últimas três ou quatro semanas.
Estúpido, não é? Olha, vou—te explicar onde estou, depois podes entrar em
contacto comigo. — Deu—lhe a morada e número de telefone da clínica. —
Mas não tenciono ficar aqui muito mais tempo — continuou ela. — Logo que
tenha energia suficiente, salto para o primeiro comboio para Londres.
Ele cacarejou como uma mãe galinha.
— Fica o tempo que precisares. Não vejo sentido em voltares se não
estiveres bem. Está tudo em ordem, ou vai ficar, quando eu der as boas
notícias de que falei contigo. Na verdade, minha querida, pareces óptima,
mesmo que a memória esteja um pouco doente. Estás preocupada com isso?
— Sim. — Respirou profundamente. — Falei com algum de vocês entre
o dia 4 de Junho, quando fui para o Hampshire e o dia de hoje? Lembras—te?
Quero dizer, telefonei enquanto estive em casa dos meus pais ou fui trabalhar
na segunda—feira depois de voltar? Devia ser dia treze.
— Não — disse ele como se quisesse desculpar—se. — Foi isso que a
polícia perguntou quando veio cá ao estúdio. Se te tínhamos visto. Se
sabíamos porque tinhas voltado para o Hampshire na segunda—feira. E nós
dissemos a verdade. Não sabíamos nada de ti desde sexta—feira, dia três. A
Angélica telefonou—te várias vezes no dia treze, quando não apareceste no
trabalho, e só o gravador lhe respondeu. Estávamos a preparar—nos para
contactar o diabo do Hall, na terça—feira de manhã, quando o próprio diabo
telefonou com as notícias terríveis de que estavas inconsciente. E desde aí
temos andado todos muito tristes. — Ficou calado durante um momento. —
Realmente não te lembras de nada desde o dia quatro?
Ela percebeu o tom preocupado da sua voz.
— Não, mas está tudo bem — disse ela dando uma leve gargalhada. —
Contaram—me as coisas importantes, que o casamento tinha sido
desmanchado, que o Leo tinha fugido com a Meg e que eu tentei suicidar—
me. Só que não me lembro de nada disso.
— Bem, se é que tem alguma importância, nenhum de nós acha que o
acidente foi deliberado. Uma semana antes de partires para o Hall, tornaste
bem claro que tinhas decidido não ir para a frente com o casamento» A Angie
e eu achámos que tu ias dar a notícia ao velho diabo e desistir disso tudo.
Ficámos um pouco chocados quando soubemos que não o tinhas feito.
Ela olhou para o seu reflexo.
— Eu disse que não ia casar—me?
— Não exactamente, mas andavas mais feliz e eu disse à Angie, «dou
graças a Deus por estas pequenas graças, ela voltou a si e disse ao Leo para ir
dar uma curva» e a Angie concordou comigo. Claro que ele é muito bem
parecido, mas não era para ti, Jinx. Interessava—se demais por si próprio e tu
precisas de alguém que goste de ti, querida. Temos que concordar, todos nós
precisamos.
Ela riu—se:
— Como está o George?
— É demasiado embaraçoso falar sobre o assunto. Trocou—me por um
chefe filipino.
— Lamento. Estás a sobreviver?
— Claro. Não sobrevivo sempre? Agora, conta—me porque telefonaste.
Sinto que deve haver uma razão e não foi só para ouvir a minha voz.
Ela ergueu os joelhos e apoiou neles os cotovelos.
— Quero que telefones aos pais do Leo a dizer que precisas de contactar
o Leo ou a Meg Harris com urgência.
— Em relação a quê? Uma coisa horrível...
— Consegues inventar uma desculpa? Diz que és um antigo colega do
Leo, que estás cá apenas por uma semana, e que queres encontrar—te com
ele. Se eles perguntarem, ele frequenton Eton. Só quero que tentes saber onde
eles estão sem falares em mim. Fazes isso? Quero falar com eles e mostrar—
lhes que não estou zangada. Podes fazer isso por mim?
— Claro. Qual é o número dos pais?
— Não sei, mas podes sabê—lo através das Informações, porque uma
vez também fiz isso. E A.Wallader, Downton Court, Ashwell, Guild—ford e
se for ele a atender é Sir Anthony e se for ela é Lady Wallader. E Dean, seja o
que for que eles digam, tens que me telefonar hoje à noite. Por favor. Não me
ralo com o que eles possam dizer—te, tens que me telefonar. Está bem?
— Não há problema — disse ele alegremente.
O telefone tocou vinte minutos depois. Jinx levantou o auscultador com
mãos trémulas e encostou—o à cara:
— Jinx Kingsley.
— Sou eu, o Dean — disse ele com cuidado.
— Eles não estão mortos, pois não? Fez—se um curto silêncio.
— Porque é que me mandaste telefonar, se já sabias?
— Mas eu não sabia — disse ela calmamente. — Imaginei. O meu
Deus, e eu que esperava estar enganada. Desculpa. Peço desculpa. Não sabia
a quem mais recorrer. Com quem falaste?
— Com o pai. Ficou bastante incomodado. Ela apressou—se a justificar
—se.
— A polícia veio cá esta tarde e fez—me perguntas sobre eles, mas não
me disseram porquê. E eu pensei, meu Deus, eles estão mortos e ninguém me
diz nada. — Chupou o lábio inferior. — O Anthony disse o que lhes tinha
acontecido?
Silêncio novamente.
— Olha, minha querida, há meia hora atrás pensava que tu estavas
inconsciente, depois venho a saber que não estás. Não sei o que fazer.
Telefonei—te porque te tinha prometido, mas deixa—me falar com o teu
médico amanhã de manhã. Sentir—me—ia muito muito, melhor.
— Não — disse ela friamente. — Diz—me agora. — Ela julgou ouvir o
seu dedo nervoso do outro lado do fio. — E não desligues, Dean, porque juro
por Deus que ficas sem emprego se o fizeres.
Meu Deus! Parecia o pai... Embora tentasse negá—lo, tinha também a
sua tirania e a sua paixão...
— Não precisas de me ameaçar — disse ele repreendendo—a
levemente. — Estou apenas a tentar fazer o melhor.
— Eu sei, desculpa, mas aos poucos estou a ficar maluca. Tenho que
saber o que aconteceu.
Ela esperou, mas ele não respondeu.
— Está bem, — disse ela repentinamente — então vou—te obrigar a
pagar as dívidas. Os olhos dela estreitaram—se. — Lembra—te de que a
única razão pela qual qualquer pessoa tem confiança na tua gerência do
estúdio, na minha ausência, é porque eu te ajudei a fazeres um nome,
trabalhando comigo. Eu não precisava de o fazer. Podia ter feito o que toda a
gente faz e pôr o teu trabalho em nome do estúdio. Pelo menos deves—me
isso.
— Devo—te muito mais do que isso, Jinx, essa é a razão pela qual eu
estou com medo. Não quero piorar as coisas para ti. — Ele ouviu—a a
inspirar. — Está bem, calma, eu vou—te contar, mas tens que me prometer
que depois não vais fazer nenhuma tolice.
— Queres dizer suicidar—me?
— Sim.
— Prometo — disse ela cansada. — Mas se eu estivesse suficientemente
desesperada para o querer fazer, dar—te a minha palavra agora não me
impediria. É justo que saibas isso.
Ele sentiu que esta honestidade era mais tranquilizadora do que a
promessa, embora isso fosse pouco razoável.
— Sir Anthony disse que Leo e a namorada dele tinham sido
assassinados. Os corpos foram encontrados na quinta—feira passada num
bosque, perto de Winchester, mas a polícia acha que eles foram mortos na
semana anterior.
Ela cerrou o punho contra o coração.
— Que dia da semana?
— Segundo Sir Anthony foi na segunda—feira, mas eu não tenho a
certeza se ele sabe. Ele estava mesmo muito perturbado. Ela ficou gelada por
dentro.
— Que mais disse ele?
— Não disse muito mais.
— Ele falou em mim? Dean não respondeu.
— Por favor, Dean.
— Ele disse que Leo estivera noivo de uma mulher cujo marido tinha
morrido da mesma forma.
Ela olhou para a imagem horrível no espelho.
— Ainda estás aí?
— Sim — disse ela. — Desculpa ter—te obrigado. Não foi justo.
— Não te preocupes. — Mas ela tinha desligado e não chegou a ouvir o
que ele tinha dito.

Clínica Nightingale, Laverstock, Salisbúria, Wiltshire

Uma página (manuscrita) enviada por fax para:


Adam Kingsley
Hellingdon Hall
Nr Fordingbridge, HAMPSHIRE
Data: Domingo, 26 de Junho de 1994
Hora: 20.30
Caro Senhor Kingsley,
Haverá alguma hipótese do senhor vir à clínica amanhã de manhã ou
de tarde para uma conversa informal sobre os progressos de Jinx? Como
deve reconhecer, Jinx é uma pessoa reservada e tem dificuldades em falar
sobre si própria, mas ajudar—me—ia muito se eu pudesse ter um quadro
mais claro sobre a sua história e passado. Tenho alguns problemas em
entender o que a levou a atentar contra a própria vida, quando parece ser
uma pessoa segura e, apesar das circunstâncias da sua viuvez trágica, ter
uma personalidade bem ajustada. Gostaria de ouvir a sua opinião sobre este
assunto. Uma ideia que eu gostaria de discutir é a possibilidade de
realizarmos uma sessão conjunta, sob a minha supervisão, na qual o senhor
e Jinx possam falar sobre as divergências que existam entre ambos. Ela
gosta de si, mas continua a ter uma certa ambivalência depois da morte do
marido. Tentei telefonar—lhe, mas como ninguém respondeu, posso alvitrar
que me telefone amanhã de manhã sugerindo uma hora conveniente ? Sei
que tem uma vida muito ocupada e portanto não pensaria em incomodá—lo
se não achasse que era importante.
Com os melhores cumprimentos, Alan Protheroe

HELLINGDON HALL
NR FORDINGBRIDGE
HAMPSHIRE
facsímile: 27.6.1994
09. 45
uma página enviada
Caro Dr. Protheroe,
Se as instruções que recebeu estão para além das suas capacidades, por
favor, informe—me imediatamente. Julguei que a minha filha iria poder
recuperar, demorando o tempo que precisasse.
Atentamente, Adam Kingsley
12
Segunda—feira, 27 de Junho, Laboratório Forense Hampshire —
9.30 h

O REVERENDO CHARLES Harris e a mulher vieram juntos ver os


restos mortais da filha, mas foi uma identificação mais angustiante do que a
de Leo, porque a senhora Harris estava presente. Frank Cheever tinha tentado
convencê—la a ficar em casa, na companhia de uma mulher—polícia, mas
ela insistira em ver Meg. Durante a viagem de carro mostrara uma certa
serenidade, mas quando viu o aspecto horrível da filha, descontrolou—se.
— Isto foi a Jinx Kingsley — gritou ela. — Eu avisei a Meg do que
aconteceria se ela lhe roubasse o Leo.
— Calma, Caroline — disse o marido, colocando—lhe o braço à volta
dos ombros. — Tenho a certeza de que isto não tem nada a ver com a Jinx.
A sua raiva foi imediata e terrível.
— Seu estúpido! — gritou, empurrando—o para longe dela. — É a tua
filha que está aqui deitada, não o filho de um paroquiano qualquer. Olha para
ela, Charles. A tua Meggy, a tua querida, reduzida a isto. — Segurou uma
mão trémula contra os lábios. — Ó meu Deus! — A palavra saiu—lhe com
ódio. — Como podes ser tão cego? Primeiro o Russell. Agora o Leo e a Meg.
— Depois virou—se para o superintendente Cheever. — Eu tenho andado tão
preocupada. Desde o momento em que a minha filha me contou que o Leo
trocara a Jinx por ela que ando assustada. Ela é uma assassina. Ela e aquele
pai brutal. São ambos uns assassinos.
O doutor Clarke tapou, calmamente, a cabeça de Meg, depois pegou na
mão da mãe e enfiou—a no seu braço.
— Agora temos que ir embora, senhora Harris — disse com suavidade.
— Gostaria de se despedir da Meg antes de irmos?
Ela olhou para ele com os olhos cheios de lágrimas.
— A Meg morreu.
— Eu sei. — Sorriu para a cara triste. — Mas isto não é um lugar mau.
Deus também está aqui.
— Sim — disse ela —, tem razão. — Virou—se e teve uma última visão
do corpo tapado. — Que Deus te abençoe, minha querida — murmurou ela
entre lágrimas. — Que Deus te abençoe.
Frank Cheever viu como Bob empurrava a horrível mulher através das
portas e passou—lhe pela cabeça que, se calhar, os patologistas mereciam
bem o seu ordenado. Fez um gesto desastrado em direcção ao pai de Meg.
— Não sou tão bom como o doutor Clarke — disse ele desculpando—se
—, mas se quiser ficar sozinho com a sua filha... — Depois calou—se.
— Não — disse o vigário. — Tanto Deus como Meg sabem o que me
vai no coração. Não lhe posso dizer mais nada do que já disse. — Dirigiu—se
para a porta e depois hesitou. — Não deve dar atenção às palavras de
Caroline, superintendente. Jinx nunca faria nada para prejudicar a Meg.
— Tem a certeza?
— Sim — afirmou. — Ela é uma óptima pessoa, sabe. Sempre admirei a
coragem dela.
Clínica Nightingale, Salisbúria — 10.00 h
O telefone tocou no quarto de Jinx, pondo—lhe os nervos em franja com
o seu tocar irritante. Conseguiu levantar—se da cadeira e, relutantemente,
levantou o auscultador.
— Está? — disse ela.
— Sou eu, o teu pai. Vou mandar o carro para te ir buscar.
O medo dilacerou—a como um ácido que a queimasse. O que sabia ele?
Os jornais e os noticiários na televisão não tinham mencionado nem Meg,
nem Leo. Os seus dedos agarraram involuntariamente o auscultador, as
articulações ficaram brancas com o esforço, mas a voz dela estava calma.
— Está bem — disse ela —, mande o carro, não tenho nada a ver com
isso. Para começar nunca quis estar aqui. Mas não vou para casa, Adam. Vou
dizer ao motorista para me levar para Richmond e, se ele se recusar a fazer
isso, então chamo um táxi e vou para a estação. Era essa a sua intenção ao
fazer esta chamada? Fez—se um silêncio ameaçador do outro lado.
— Deixe estar as coisas como estão ou então eu própria irei embora. —
A voz dela tornou—se mais dura. — E, desta vez, perder—me—á para
sempre. Percebe Adam? Vou arranjar uma ordem do tribunal para não poder
aproximar—se mais de um quilómetro da minha casa. — Desligou o telefone
com uma força desnecessária e deixou—se cair na beira da cama quando
sentiu a força a fugir—lhe lentamente dos joelhos e coxas. Sentiu que a
cabeça lhe começava a doer atrás dos olhos e, com dedos trémulos, apertou as
fontes.
O lampejo de memória que rebentou no seu cérebro quase a cegou
devido à sua claridade. Meg de joelhos, implorando... por favor... por favor...
por favor... Ela olhou confusa para a cara assustada da amiga, sentiu uma
onda de terror que fez com que o seu coração começasse a bater
descompassadamente, antes que o enjoo a obrigasse a dirigir—se
cambaleante para a casa de banho para vomitar na sanita. Tremendo
violentamente deitou—se no chão de mosaico e, ao encostar a cara à
cerâmica fría, agarrou—se desesperada ao facto de que, apesar dos defeitos
da amiga, tinha amado Meg Harris.
Passou uma hora antes que parasse de tremer.

Hotel Wbite Hart, Winchester— 10.10 h

— Sabemos muito pouco sobre a sua filha — disse o superintendente


Cheever ao reverendo Harris e à mulher. — Como lhe expliquei, tivemos
algumas dificuldades em encontrá—los. Não existe quase nada de pessoal no
apartamento de Meg, e só podemos concluir que ela se preparava para mudar
de casa.
Recusara—se a levá—los à esquadra da polícia para uma sala de
entrevistas impessoal optando, em vez disso, por uma pequena sala num hotel
perto da morgue, onde Fraser e uma mulher—polícia podiam estar sentados,
sem darem nas vistas, a tomar notas. Trocara a extravagância do laço e do
lenço de seda em favor do preto, parecendo ser o que realmente era — um
homem vulgar num ambiente vulgar, pouco ameaçador e bastante bondoso. A
senhora Harris estava sentada numa cadeira de braços, ao lado da janela meio
aberta, com uma chávena de chá, em que não tocara, na mesa a seu lado. O
marido estava sentado numa cadeira dura, não sabendo se havia de confortá
—la ou deixá—la conciliar—se com o seu desgosto, controlando a sua
própria mágoa com medo de piorar as coisas para ela. Cheever sentia pena
deles os dois, mas guardou a sua mais profunda compaixão para o pai de
Meg. Porque seria que se esperava dos homens que disfarçassem os seus
sentimentos?
— Ela ia de férias com o Leo — disse Charles em voz baixa —, mas não
nos disse que ia mudar—se. Pelo menos, não mo disse a mim.
—Olhou hesitante para a mulher.
— Ela não te disse nada, Charles, porque sabia que tu não ias concordar.
— Caroline limpou os olhos vermelhos. — Há dez anos fez um aborto.
Também não te falou nisso, pois não? E porque não? Porque terias estragado
a vida dela. — Amarrotou o lenço entre as palmas das mãos. — Bem, de
qualquer forma está estragada, mas talvez não fosse o caso se tivesse podido
falar contigo como pai e não como padre. Tudo tinha que ser mantido em
segredo, para evitar os teus sermões.
O marido olhou fixamente para ela, lívido com o choque.
— Eu não sabia — murmurou ele. — Desculpa.
— Claro que tens pena. Agora — acrescentou ela amargamente.
— Eu também tenho pena. Tenho pena por ela, pena pelo bebé, pena por
mim. Gostaria de ter sido avó. — Começou a soluçar. — É tudo um
desperdício. — Virou—se para o superintendente. — Temos um filho, mas
ele nunca quis casar—se. Queria ser ordenado como o pai. — Os olhos
encheram—se novamente de lágrimas. — Mas que desperdício terrível.
Cheever esperou que ela recuperasse o controlo.
— A senhora deu a entender que sabia que Meg ia mudar—se do
apartamento — disse por fim. — Pode falar—nos sobre isso? Para onde ia
ela?
— Ia viver com o Leo. Ele tinha uma casa. Fazia mais sentido viverem
juntos.
— Sabe onde é a casa?
— Algures em Chelsea. Meg ia dar—me a morada quando voltasse de
França. Os pais de Leo não sabem?
Frank tentou esquivar—se à pergunta.
— Neste momento estão muito chocados. Fez—se um silêncio penoso.
— Conhece Sir Anthony e Lady Wallader? — perguntou Cheever a
seguir.
A boca de Caroline enrugou—se tragicamente.
— Nem conhecemos o Leo — disse ela. — Como poderíamos ter
conhecido os pais? Foi tudo tão rápido. Tivemos um convite para o
casamento da Jinx na cornija da lareira e depois a Meg telefonou a dizer que
Leo preferia casar com ela. — Abanou a cabeça, como se não acreditasse.
Charles mexeu—se na cadeira.
— Ela telefonou no sábado de manhã — murmurou calmamente —, no
dia onze, acho eu, e fiquei bastante incomodado com as notícias. Pensei que
tipo de homem seria Leo para abandonar a noiva tão perto do casamento para
se juntar à sua melhor amiga. — Levantou as mãos resignado. — Ela disse—
me que conhecia Leo há muito mais tempo que a Jinx e que ele só tinha
pedido Jinx em casamento por causa de uma estúpida discussão que tinham
tido. «Queria magoar—me» disse. — Fez uma pausa durante um momento.
— Às vezes esqueço que ela é uma mulher, era uma mulher — corrigiu — e
sim, concordo que eu tinha o hábito de lhe pregar sermões, mas via com tanta
clareza que este homem não era de confiança, e lamento dizer que tivemos
uma discussão enorme por causa dele. Eu disse que o comportamento dele
não era nem maduro, nem correcto e que, se tratava a Jinx tão
miseravelmente, era mais sensato da parte da Meg não querer mais nada com
ele. — A voz dele tornou—se um pouco hesitante. — Ela desligou o telefone
e nunca mais falámos, embora pense que a Caroline tentasse falar com ela
mais tarde. — Virou—se para a mulher. — Foi assim, não foi?
Ela pôs os braços à volta do corpo magro e abraçou—se a si própria com
força.
— Sabes que sim. Tu estavas a ouvir. — Suspirou, tremendo. — Ela
também não me quis ouvir, mas pelo menos não berrámos uma com a outra.
Eu perguntei porque é que ela não tinha falado nele, já que o conhecia há
tanto tempo, e ela respondeu que havia um milhão de coisas que nunca
mencionara. Era a vida dela e não havia regra nenhuma que obrigasse os
filhos a dizerem tudo aos pais. Eu culpo o pai — disse ela esgotada, virando o
ombro para não o ver.
— Ela teve que sair rapidamente de casa, para se afastar dele, por isso
havia coisas que nunca iríamos saber.
O superintendente absorveu isto em silêncio, tentando manter uma cara
neutra.
— Quando é que ela lhes disse que ia viver com o Leo? — perguntou
ele passado um momento.
— Durante o telefonema. «Vamos viver juntos até casarmos» disse ela.
«O Leo tem uma casa em Chelsea e estou a tirar agora as minhas coisas, mas
não quero contar ao pai, porque não aguento mais sermões.» Depois disse
que iam para França até passar a confusão e que ia telefonar para o atendedor
de chamadas para ouvir as mensagens.
— Mexeu no lenço, tentando alisá—lo. — Disse que íamos deixar de
nos preocupar quando conhecêssemos o Leo e prometeu levá—lo a nossa
casa, logo que voltassem. E perguntei, «então e a pobre Jinx»? E a Meg disse
que Jinx iria sobreviver porque sempre o tinha feito. Depois despedimo—
nos. — Segurou o lenço contra os olhos.
Para os ouvidos de Frank esta descrição de Meg era pouco lisonjeira e
ele pensou se a senhora Harris se dava conta do quadro que estava a pintar.
— Fale—me sobre a Meg — pediu ele. — Como era ela? A sua cara
triste iluminou—se.
— Era uma pessoa maravilhosa. Bondosa, atenciosa, muito afectuosa.
«Não te preocupes, mãe, eu estarei sempre aqui», era isso que ela costumava
dizer. — As lágrimas brotaram novamente. — Ela era tão inteligente.
Conseguia fazer tudo o que queria. «Estou a ter cada vez mais sucesso» dizia
—me sempre. Toda a gente a adorava.
Frank virou—se para o vigário.
— Era assim que a via?
Charles olhou para as costas rígidas da mulher.
— Ela tinha defeitos, Superintendente, todos nós temos. Era um pouco
egoísta, talvez, não ligava muito aos sentimentos das outras pessoas, mas era
realmente uma pessoa popular. — Entrelaçou as mãos no regaço. — O nosso
filho Simon podia mais facilmente dizer—lhe como ela era. Ele trabalhou em
várias paróquias de Londres, nestes anos, e via—a mais do que nós. Como
Caroline lhe disse, perdemo—la quando ela foi para a universidade.
Costumava vir a casa duas ou três vezes por ano, mas para além disso
tínhamos muito pouco contacto.
— Ele ainda está em Londres?
— Não, deram—lhe a sua própria paróquia há dois anos. É uma aldeia
chamada Frampton, a dez milhas a nordeste de Southampton. — Levantou o
punho da batina para olhar para o relógio. — Mas nesta altura deve estar no
vicariato em Littleton Mary. Seria mais fácil para nós se ele viesse até aqui.
— Mais fácil para ti, queres tu dizer — disse Caroline com pouca
firmeza e virando—se para olhar para ele. — Tu achas que ele vai tomar o
teu partido.
Charles abanou a cabeça.
— Não é questão de tomar o partido de alguém, Caroline. Esperava que
conseguíssemos suportar—nos um ao outro.
De repente as faces dela ficaram a arder.
— Tem havido segredos de mais. Não aguento mais. — Estendeu uma
garra para agarrar a manga do superintendente. — Eu sabia que a tínhamos
perdido — disse. — Rezei para que a tivéssemos perdido para o Leo, mas no
fundo do meu coração sabia que estava morta. Eu, perguntava—me
constantemente porque é que a Jinx tentara suicidar—se. Os olhos dela
agitavam—se de forma alarmante e Frank olhou para a mulher—polícia para
lhe pedir ajuda, mas Caroline continuou numa voz pouco segura. — Ela fez o
mesmo depois de Russell ter sido assassinado, sabe, mas naquela altura
tentou morrer de subnutrição. Se não fosse o pai dela, teria conseguido. Isto
foi obra da Jinx, superintendente. Ela não deixa que lhe tirem os seus
homens.
— Estás a dizer disparates, Caroline — disse o marido severamente.
— Ai estou? — respondeu ela rispidamente. — Bem, pelo menos não
sou uma hipócrita. Tu conheces a verdade tão bem como eu. Estamos a falar
dos ciúmes que ela tinha da Meg, Charles, que tu também conheces.
Ele levou as mãos à cara e respirou profundamente durante alguns
segundos.
— Realmente acho que não consigo continuar, superintendente — disse
ele inesperadamente. — Peço desculpa. Posso recomendar—lhe falar com o
Simon? Tenho a certeza de que é a pessoa indicada, para lhe dar uma visão
objectiva sobre este assunto tão triste.
Fraser, que estava sentado a uns metros de distância, levantou os olhos
para Cheever. «Um assunto triste» era uma forma muito fria de descrever um
assassínio brutal, mas naquela altura nenhum deles percebera quanto o
reverendo Charles Harris odiara a filha.

Clínica Nightingale, Salisbúria — 13.00 h

— Está ocupado, doutor Protheroe?


Ele levantou os olhos da secretária e viu Jinx que esperava timidamente
à entrada da porta, pronta a fugir e com uma expressão indecisa nos seus
olhos escuros.
— Aqui somos muito pouco formais, sabe. Pode chamar—me Alan se
quiser.
A ideia de uma coisa tão íntima horrorizava—a.
— Preferia continuar a chamar—lhe doutor Protheroe, se não se
importa.
— Tudo bem, — disse ele indiferente. — Entre. Ela ficou onde estava.
— Não é importante. Posso voltar mais tarde. Com um gesto indicou
uma cadeira vazia.
— Entre — convidou ele novamente. — Apetecia—me fazer uma pausa
nos meus papéis. — Levantou—se, deu a volta à secretária, introduziu—a na
sala e fechou a porta.
— O que se passa?
Tendo o caminho barrado, Jinx aceitou que a decisão estava tomada.
Atravessou o chão de parquet, mas em vez de se sentar, deixou—se ficar ao
pé da janela e olhou para o jardim.
— O meu pai telefonou a dizer que queria que eu saísse daqui. Sabia?
— Não — disse ele voltando a sentar—se e virando—se para olhar para
as costas dela.
— Telefonou—lhe a contar a visita da polícia ontem?
— Não.
Ela voltou—se para estudar de perto a cara dele, depois acenou com a
cabeça, aliviada.
— Então não percebo — disse ela. — Porque é que ele quer que eu me
vá embora?
— Suponho que pode ter a ver com o fax que lhe mandei. — Meteu a
mão na gaveta de cima e tirou o fax e a resposta que recebera de manhã.
— Leia — disse—lhe ele. — A minha carta é extraordinariamente
inócua e igual a umas centenas que tenho arquivadas, por isso não vejo razão
para o seu pai a achar ameaçadora.
Ela estava sentada na beira da cadeira e leu as duas folhas de papel antes
de as entregar novamente a ele.
— Quais foram as suas instruções? — Chupava nervosamente o polegar.
— O que ele diz. Deixá—la recuperar no seu tempo. Não queria que os
psiquiatras se metessem.
Porque não? O que haveria a temer dos psiquiatras desta vez? O que
pensava Adam que ela lhes pudesse dizer? O que poderia ela contardes?
— Então deve ser o seu convite para falar sobre a morte de Russell
— disse ela devagar. — Nada no mundo o levaria a fazer isso, ainda
menos não estando eu presente.
— De que tem ele medo?
— De nada.
Porque continuava ela a mentir—lhe, pensou ele. E porquê esta
necessidade de proteger o pai, quando estava tão claro que ela pensava que
ele tinha assassinado o marido?
— Tem que haver alguma coisa, Jinx, ou não seria necessário forçá—lo
a falar — disse ele razoavelmente.
— Não há nada — insistiu ela. — É só que, no que diz respeito a Adam,
Russell não existiu. O seu nome nunca é mencionado. O episódio é uma
história esquecida.
Protheroe reflectiu.
— É óbvio que pensa que o seu pai acha que a sua tragédia é um
«episódio esquecido» — disse ele pensativamente. — Mas é assim que você
o vê?
Ela não respondeu.
— Fale—me sobre o passado do seu pai — sugeriu—lhe ele a seguir.
— De onde veio ele?
Ela utilizou frases rápidas e convulsivas.
— Só sei o que Betty me contou. Adam nunca fala sobre o seu próprio
passado. Nasceu no East End de Londres. Era o terceiro de cinco filhos. O
seu pai e dois irmãos mais velhos eram homens do mar, mercadores, e todos
eles morreram quando os barcos foram afundados no Atlântico Norte. O
irmão mais novo e a irmã foram evacuados para Devon, enquanto ele ficou
com a mãe durante o Blitz. Teve uma educação mínima. Aprendeu muito
mais com os que estavam envolvidos no mercado negro e que trabalhavam
nas docas, do que na escola. No fim da guerra tinha arranjado uma lista de
contactos lá fora e o dinheiro suficiente para se estabelecer como importador.
As primeiras mercadorias que mandou vir foram sedas, algodões e
cosméticos, chegaram no dia em que fez dezassete anos. Duplicou o dinheiro
de um dia para o outro ao colocar tudo no mercado negro e nunca se
arrependeu. Começou a vida como um escroque, conhecia muito bem os
gémeos Kray. É tudo o que eu sei.
Ele acreditou nela. Se Adam Kingsley fosse parecido com o que ela
acabara de descrever, era um homem que colocava todos os aspectos da sua
vida em compartimentos. Tal como a filha. Seria interessante descobrir se ele
também fechava as portas dos quartos escuros e se também se desfazia das
chaves. Havia grandes hipóteses de que o fizesse. «No que diz respeito a
Adam, Russell não existiu», dissera Jinx.
— O que aconteceu à mãe? — perguntou Protheroe.
— Não sei. Não conviveu muito com ela depois de casar com a minha
mãe. Tanto quanto posso compreender, nenhum ramo da família aprovou o
casamento.
— E o irmão e a irmã? O que lhes aconteceu?
— Foram para Londres depois da guerra, provavelmente para viverem
com a mãe. A única coisa que Adam disse, sobre o assunto, foi que os
considerava uns estranhos, porque se tinham afastado.
— Ele ainda sente o mesmo?
Ela deixou—se escorregar para a cadeira e encostou a cabeça para trás.
— Já não fala com nenhum deles há mais de trinta anos. O tio Jo
emigrou para a Austrália e nunca mais se ouviu falar dele e a tia Lucy casou
com um negro. O meu pai cortou todos os laços com ela no dia em que ela se
casou.
— Porque o marido era um negro?
— Claro. É racista. A Betty conhecia a Lucy bastante bem quando eram
mais novas. Ela contou—me uma vez que Adam tentou impedir o casamento.
— Como?
Com dedos trémulos ela tentou acender um cigarro.
— A Betty estava muito bêbada. Não tenho a certeza se ela estaria a
contar a verdade.
— O que é que ela disse?
Ela fumava ansiosamente o cigarro, pensando na resposta.
— Que o Adam tentou meter medo ao noivo da Lucy, dando—lhe uma
sova — disse falando depressa —, mas que Lucy casou com ele na mesma.
Pode ser verdade. Ele realmente odeia pessoas negras.
Alan observou—a durante um momento.
— O que sente em relação a isso?
— Sinto vergonha… Ele esperou.
— Por o seu pai ser um tirano ? — sugeriu ele.
Ela sentia a bílis quente e espessa na boca e inalou o fumo para disfarçar
o sabor.
— Sim e não. Principalmente porque devia ter procurado a Lucy e a
família há anos e ter tomado uma posição, mas nunca o fiz.
Verónica Gordon tinha razão quanto aos olhos, pensava ele. O que diabo
se passaria dentro da cabeça dela para que ela parecesse tão assustada e se
mostrasse tão composta?
— Porque não?
Ela virou a cara para o tecto.
— Porque tive medo de que os rapazes que lhe deram a tareia fossem
castigados, se eu o fizesse.
— Ou seja, os seus irmãos.
— Não necessariamente. Qualquer rapaz serve — disse ela secamente.
— Se eu tivesse ido procurar a minha tia, então a Betty seria criticada porque
conheceu a Lucy em criança e teria sido acusada de ser a instigadora. Mas
acontece muitas vezes com os rapazes.
— Estamos a falar literalmente ou metaforicamente? O seu pai bate nos
filhos?
— Sim.
— Então acha que Russell foi outro em quem ele bateu? — perguntou
ele com suavidade.
Ele apanhou—a desprevenida e ela olhou para ele chocada.
— O meu pai não o matou — disse ela, levantando a voz. — A polícia
excluiu—o logo no início.
— Eu estava a falar metaforicamente, Jinx. Ela não respondeu
imediatamente.
— Acho que não — disse ela, baixando os olhos —, mas não faz
diferença nenhuma. O Russell nunca foi punido pelas minhas falhas.
— Não — concordou ele. — Suspeito que você foi castigada pelas dele.
— Brincava com a caneta. — O que sabe sobre a sua mãe? Porque é que as
famílias não aprovavam o casamento, por exemplo?
— A família dela era classe média e a do meu pai da classe operária.
Acho que foi snobismo legítimo da gente dela e snobismo invertido da gente
dele, e também acho que não ajudou muito o facto de ele fazer dinheiro com
o mercado negro. — Calou—se durante um momento. — Sei que ele a
adorava.
— Foi ele que lhe disse isso?
— Não, ele nunca fala sobre ela.
— Então como sabe?
— Porque Betty me contou. O nome dela era Imogen Jane Nicholls, era
a única filha de um médico, educada em escolas privadas e uma senhora, e
ele tem fotografias dela por todas as paredes do escritório.
Alan pensou no nome que estava na capa da ficha de Jinx. Jane Imogen
Nicola Kingsley
— Também se parece com ela?
— Claro que sim — disse ela um tanto desesperada. — Adam resolveu
recriá—la.
Não pôde deixar de reparar no desespero — estava presente na voz dela
— mas duvidava que tivesse alguma coisa a ver com a mãe.
— Nem o seu pai pode fazer milagres, Jinx — disse ele com ironia,
observando a cinza do cigarro aumentar e enrolar—se. — Suspeito que esse
pequeno argumento esteja mais no espírito da sua madrasta do que no dele.
Todos nós precisamos de arranjar maneira de viver com a indiferença de um
dos parceiros. Nenhum de nós é imune ao orgulho. — Com o pé empurrou o
cesto dos papéis na direcção dela. — Você devia saber isso.

Vicariato, Littleton Mary, Wiltshire — 13.15 h

Fraser observou a maneira cortês e compadecida com que Cheever


lidava com esta família devastada com uma admiração muito mais
condescendente do que sentira no dia anterior por Maddocks. O
Superintendente sabia tão bem como ele que estava a lidar com afectos, mas
nem por um momento pressionou qualquer um dos pais a falar sobre eles.
Regressaram a Littleton Mary em dois carros, a senhora Harris e uma
mulher—polícia no carro da frente e ele próprio, Cheever e o senhor Harris
no detrás. Falaram pouco. Era óbvio que o vigário tinha dificuldade em falar
e o superintendente sentia—se satisfeito por o deixar com os seus
pensamentos. Enquanto a iniciativa era o lema de Maddocks, o de Cheever
era a paciência.
Claro que em retrospectiva, Fraser teve que se perguntar se a
aproximação pouco sensível de Maddocks não teria sido mais apropriada,
pois foi a relativa passividade de Cheever que provocou os acontecimentos
que se seguiram. Maddocks teria tentado arrancar—lhes todas as
informações, sem levar em conta o trauma por que estavam a passar, e
Charles não teria conseguido conspirar com Simon para que guardassem para
si a informação sobre o caso de Meg e Russell. Teria sido melhor se a
tivessem sabido naquela altura e não mais tarde?
Ao pararem os carros um atrás do outro na rua do vicariato, Charles
Harris levou uma mão ao colarinho, como se procurasse tranquilizar—se.
— Importam—se que eu dê uma palavrinha ao Simon? — disse ele
rapidamente. — Apenas para explicar porque estão aqui, depois talvez
pudessem falar com ele cá fora, longe da mãe? É importante que tenham uma
ideia clara da Meg e acho que não a terão se a Caroline estiver a ouvir.
O superintendente concordou.
— Vou pedir à Graham para levar a senhora Harris para dentro. O
sargento Fraser e eu esperamos aqui.
Passaram cinco minutos antes de Simon sair. Vinha com um ar de
preocupação estampado no rosto magro. Conduziu—os pelo relvado até uma
mesa de jardim.
— O pai pediu—me para eu lhes falar sobre a Meg — disse ele,
sentando—se —, mas eu não tenho a certeza... — Tirou abruptamente os
óculos para beliscar a cana do nariz.
— Desculpem —, disse lutando para se controlar. — Foi tudo um
choque. — Respirava profundamente para tentar controlar as lágrimas que
lhe toldavam a voz. — Desculpem — repetiu.
— Não tem importância — respondeu Frank. — Seria mais fácil se lhe
fizéssemos perguntas?
Simon acenou com a cabeça.
— O seu pai diz que você trabalhou em Londres durante vários anos e
que viu mais vezes a Meg do que eles. Talvez nos pudesse contar alguma
coisa sobre o seu estilo de vida. Ela tinha muitos amigos, por exemplo? Saía
muito? Gostava de ir a discotecas, bares e sítios desse género?
— Sim — confirmou Simon, falando para todos. Ela amava a vida,
Superintendente. — Limpou os olhos com a manga da camisa, depois voltou
a pôr os óculos. — Tinha uma personalidade muito feliz, as pessoas
gostavam sempre de estar com ela.
Frank virou a cadeira contra a luz do Sol.
— Foi assim que a sua mãe a descreveu — disse ele —, mas parece que
o seu pai não concorda. Porque será? Ele e a Meg não se davam bem?
Não se conseguia ver a expressão de Simon, porque as lentes reflectiam
o sol e Frank desejava ter tido o bom senso de o colocar numa posição mais
favorável.
— Não, o pai e a Meg davam—se bem — disse ele, rmas o tom era
monótono e faltava—lhe convicção. Ficou silencioso durante um momento.
— Se calhar, seria mais simples se eu lhes contasse apenas o que o pai
me pediu para dizer. Ele está preocupado por achar que os senhores
escolheram Jane Kingsley como suspeita do crime, devido ao que aconteceu
a Russell.
Voltou a tirar os óculos e colocou—os na mesa, procurando um lenço no
bolso das calças para assoar o nariz.
— Isto não é muito divertido — disse ele tentando desculpar—se. —
Tenho estado tão zangado com a Meg durante as últimas duas semanas e
agora... bem, nunca se espera que alguém morra. — Respirou fundo para se
controlar. — A ironia é que o meu trabalho é confortar as pessoas nesta
situação, dizer—lhes que é toda a sua vida de amor que importa e não duas
semanas de raiva. Assoou o nariz. — Mas só quando se vive a situação é que
se percebe como é uma atitude paternalista.
— Só podemos fazer o melhor que sabemos — disse Frank, dando uma
pancadinha desajeitada no ombro do homem. — No nosso trabalho,
deparamo—nos constantemente com situações dessas. Há tanta tristeza no
mundo e respostas fáceis não existem.
Estranhamente, Simon pareceu achar esta resposta tão pouco original,
bastante reconfortante, talvez por lhe provar que ele não era o único a dizer
banalidades como meio de consolação. Descansou as mãos em cima da mesa,
brincando com os óculos.
— A razão pela qual o pai não queria que a mãe ouvisse isto — disse ele
—, é que ela nunca soube realmente como era a Meg. Sabia que a Meg tinha
muitos namorados, mas assumia que eram relações bastante pontuais. —
Corrigiu—se imediatamente. — Claro que eram pontuais, mas pontuais nos
termos de Meg, não nos termos da minha mãe. Suponho que descreveriam a
Meg como promíscua, no entanto isso dá uma falsa ideia dela uma vez que
tendemos a usar esse termo pejorativamente no que diz respeito a mulheres.
— Sorriu indeciso. — Realmente não sei como explicar isto sem suscitar
preconceitos nos vossos espíritos. Tinham de ter conhecido a Meg.
Estranhamente era muito inocente. Adorava divertir—se.
Fraser levantou a cabeça:
— Parece—me que o senhor está a dizer que ela gostava de sexo, mas
que não queria assumir uma relação. Isso é assim tão pouco habitual nos dias
de hoje?
— Não — disse Simon aliviado —, mas tenho a certeza de que entende
o que a minha mãe pensaria se alguma vez descobrisse. Ela é muito severa no
que diz respeito à moral. — Calou—se.
Fraser esperou um momento.
— De facto — disse ele incitado pelo superintendente, quando percebeu
que Simon não ia continuar —, a sua mãe deu—nos a impressão de que é o
seu pai que é severo. Ela referiu—se aos seus sermões e ao facto de Meg não
conseguir sair de casa suficientemente depressa para se afastar dele. Contou
—nos que tinham discussões e que ele estava constantemente a repreendê—
la ao telefone. Ela também sabia do aborto de Meg e o seu pai não. Tem a
certeza de que ela está tão pouco ao corrente como sugere?
Simon acenou tristemente com a cabeça.
— Sim, mas acho que vão ter que se contentar com a minha palavra. A
mãe gosta de pensar que sabia o tipo de vida que a Meg levava, mas não é
verdade. De facto, Meg só lhe mentia porque não queria incomodá—la.
— Então o aborto foi uma mentira?
— Não, aconteceu realmente. Mas só contou à mãe depois de terem tido
uma discussão sobre o Leo. Essa é uma das razões por que eu estava tão
zangado com ela. Se ela tivesse vindo falar com eles pessoalmente em vez de
lhes dar ultimatos pelo telefone, sobre o facto de se tratar da sua vida e poder
fazer o que lhe apetecesse, talvez eles não tivessem reagido tão mal.
Pegou nos óculos que estavam em cima da mesa e girou—os de um lado
para o outro, observando o movimento do pêndulo fascinado.
— Tenho a certeza de que ela disse uma quantidade de coisas de que
mais tarde se arrependeu.
Fraser olhou para o superintendente antes de fazer a pergunta seguinte:
— Está a dizer que quando ela comunicou a sua relação com o Leo
provocou divergências entre os seus pais?
Simon voltou a espremer o cano do nariz.
— Tem sido um pesadelo — disse passado um momento. — Acho que o
problema foi a Meg saber que o seu comportamento não foi correcto e por
isso pôs—se na defensiva desde o início. Claro que o pai se agarrou
imediatamente à sua traição em relação à Jinx, e a mãe ao facto de ela andar
sem dúvida a dormir com o Leo. Se ela tivesse pedido desculpas e deixado as
coisas assim... — Olhou para o sargento sem esperança. — Mas nunca o
fazemos, pois não? Faz parte da natureza humana justificarmo—nos.
— O que foi que ela disse?
— Só sei o que me contou depois. Telefonou—me por volta da hora do
almoço, mas nessa altura a mãe já me tinha telefonado lavada em lágrimas,
por isso eu também estava bastante zangado. — Levou o lenço aos olhos. —
Todos nós dissemos coisas que não queríamos ter dito e agora é tarde demais.
— Respirou profundamente, através do nariz, para se acalmar. — Se bem o
entendi, ela disse que o pai era um hipócrita devoto que desejava qualquer
mulher, incluindo ela e Jinx, mas que não tinha coragem para encarar o
problema e que a mãe era uma frígida que se escandalizava com tudo e que
não conseguia pensar que alguém podia gostar de sexo. Meg disse que lhe
tinha contado sobre o aborto para provar que pelo menos existia uma mulher
que não via os bebés como sendo a única razão para ter relações sexuais.
Ele percebeu o olhar interessado de Fraser.
— Estou a contar—lhe o que ela disse, Sargento — murmurou ele
cansado. — Não estou a dizer que seja verdade. Ela estava a defender—se,
por isso atacou os pontos fracos deles. A minha mãe é uma puritana na
maneira como deplora as práticas modernas de sexo, mas não é frígida. O
meu pai gosta imenso da Jinx porque ela partilha com ele o seu interesse
pelos clássicos, mas não a deseja. Se a Meg tivesse telefonado de França, ou
se a Jinx não tivesse espetado o carro contra uma parede, a tempestade teria
passado num dia ou dois. Assim, os meus pais acusaram—se mutuamente
pelo que consideram ser sua culpa, ou seja o roubo pouco correcto do noivo
da amiga e a tentativa de suicídio da Jinx. Realmente têm que perceber a
situação horrível em que se encontravam. A família de Jinx queria um bode
expiatório, o que não deixa de ser razoável dadas as circunstâncias, mas os
únicos bodes expiatórios que existiam eram os meus pais. Tiveram que aturar
insultos bastante contundentes, por isso não nos podemos surpreender por
eles se sentirem responsáveis.
Fraser acenou com a cabeça ao folhear para trás as páginas do seu bloco
de apontamentos.
— Soube do aborto da sua irmã antes da sua mãe?
— Sim. Há muito tempo. Depois de ter regressado de Oxford. Depois
disso tornou—se mais cuidadosa.
— Sabe quem era o pai?
— Não. Acho que ela também não sabia.
— Ela falou—lhe no assunto na altura? Ele anuiu.
— Fui eu que a levei ao hospital para que ela fizesse o aborto.
— Concordou com isso?
Pela primeira vez, Simon sorriu.
— Não tinha importância se eu concordava ou não.
— Mas devia ter uma opinião.
— Por mais engraçado que pareça, não tinha. No que diz respeito a
Meg, eu nunca dava opiniões. Ela não as teria ouvido.
Fraser encontrou a página que procurava.
— O senhor disse: «Seria mais fácil se eu lhe contasse o que o meu pai
quer que eu diga. Ele está preocupado com o facto de acharem que Jinx é
suspeita do crime». Poderia comentar estas observações?
Simon concordou.
— Aparentemente a minha mãe passa a vida a acusar a Jinx de ter
assassinado a Meg e o Leo e ele tem medo que o senhor acredite.
Olhou de modo inquiridor para o outro homem, mas não obteve
qualquer reacção.
— Mas a Jinx não o faria. Ela e a Meg eram mais irmãs do que amigas.
— Mais razões tinha ela para ficar zangada quando a Meg lhe roubou o
noivo — sugeriu Fraser. — Está a insinuar que isso não teria perturbado a
menina Kingsley?
— Ela diz que não. Fui visitá—la na quarta—feira e ela mostrou—se
muito obstinada, pediu—me para dizer à Meg que não sentia qualquer
ressentimento e que gostava que toda a gente deixasse de se preocupar com o
assunto.
— A menina Kingsley está com amnésia. Como pode ela saber o que
sentiu na altura?
— Não sei, Sargento, mas acredito nela e o meu pai também. —
Inclinou—se para a frente para dar ênfase ao seu ponto de vista. —
Conhecemo—la há anos e não podemos aceitar que ela seja uma assassina.
Certamente que não matou o Russell. Estava com a Meg naquela tarde. Meg
foi o seu álibi.
O superintendente acenou com a cabeça pensativamente.
— Disse que o seu pai a criticou por ter traído a Jinx. Estou certo ao
pensar que essa era a razão pela qual o senhor também estava zangado com
ela?
— Sim. A Jinx não merecia ser tratada de uma forma tão miserável. A
vida dela tem sido um inferno, mas nunca permitiu que isso a tornasse
amarga. É muito generosa. — Fez um gesto com a cabeça, indicando a igreja
da paróquia do outro lado da rua. — Ajudou o pai com o fundo para a torre
da igreja há cinco anos e persuadiu o pai dela a cooperar com uma obra de
caridade para ajudar órfãos romenos em que eu estou envolvido. É uma
pessoa muito bondosa.
Frank sorriu concordando.
— Tem uma boa opinião dela.
— Muito boa.
— Talvez melhor do que tinha da sua irmã? As pessoas que gostam de
se divertir têm tendência a ser algo egoístas e egocêntricas. Muitas vezes são
as ovelhas negras da família.
Simon olhou para ele.
— Sim — admitiu com simplicidade. — A Meg era assim, com certeza.
13
Segunda—feira, 27 de Junho, Clínica Nightingale Salisbúria —
13.15 h

ALAN SENTIU que Jinx revelara demasiado sobre si própria. Pensou se


seria esta a sua última hipótese de descobrir o que queria.
— Disse—me que o seu pai quer que você vá embora, mas não me disse
o que tenciona fazer.
Ela encostou o queixo à mão e olhou fixamente para ele com uma
expressão preocupada, mas havia qualquer coisa de estudado naquele gesto.
— Eu disse que eu própria sairia daqui e que voltaria para Richmond e
que arranjaria uma ordem do tribunal para que ele não pudesse interferir
nunca mais, a não ser que me deixasse em paz. Agora estou terrivelmente
preocupada.
Ele deu uma gargalhada, surpreendido.
— Porquê? Eu não a poderia ter aconselhado melhor. Você tem de ter a
liberdade de fazer as suas escolhas.
— Gostaria que tentasse compreender — disse ela desamparada.
— Não é a minha liberdade que está em risco de ser diminuída, mas a
sua. Se Adam pensa que foi você que sugeriu a ordem do tribunal... —
Encolheu levemente os ombros e não acabou a frase.
— Está a preocupar—se desnecessariamente — disse ele. — O que é
que ele pode fazer—me?
— Ele não construiu o seu império com charme, doutor Protheroe. Se
ele está disposto a fazer alguma coisa, agirá rapidamente. Não vai querer que
o senhor continue a pôr ideias pouco agradáveis na minha cabeça.
— Só posso repetir — disse ele, olhando para ela de forma curiosa — o
que pode ele fazer?
— Foi isso que Russell disse.
De repente levantou—se. Poderia ter acrescentado, e Leo e Meg, mas
não o fez.
Alan fez uma chamada para o pai de Matthew Cornell.
— Não — assegurou—lhe ele —, o Matthew está bem. Gostaria de
saber se posso pedir—lhe uma informação sobre um assunto não relacionado
com ele.
— Então diga.
— O que sabe sobre Adam Kingsley da Franchise Holdings?
— Sou um advogado criminal — lembrou—lhe Cornell. — Não um
corretor da bolsa.
— Foi por isso que lhe telefonei — disse Alan. — Disseram—me que
ele tinha começado a vida como um criminoso no East End e queria saber se
era verdade.
— Estou a ver. — Houve uma breve pausa. — Está bem, diz—se que
ele trabalhava com os Kray e os Richardson nos anos 50 e 60 mas que dava
muito menos nas vistas do que eles e que logo que pôde se tornou legal.
Nunca foi acusado de nada, pois adoptou o sistema cuscinetto da Máfia, e
criou mecanismos amortecedores entre ele e a violência que os seus rufias
provocavam. Mas tudo isto é o que se diz por aí, Protheroe, e não é para
consumo do público. Ele ganhou duas indemnizações de dois jornais, que
foram suficientemente idiotas para divulgar essas coisas.
Alan rabiscava no bloco à sua frente, congeminando como iria formular
a próxima pergunta.
— Como é que ele faz os seus negócios agora?
— Porquê? Está a pensar em investir na Franchise Holdings?
— Talvez — mentiu Protheroe.
— Por vezes alude—se ao facto de ele ter utilizado métodos pouco
ortodoxos para adquirir propriedades e terra nas docas de Londres, mas é
mera especulação. Penso que ele faz negócios tão limpos como os outros. Por
falar nisso — admitiu ele — também investi uma pequena quantia na
companhia dele.
— E quanto ao seu comportamento social? Descreveram—mo como
uma pessoa com quem se tem que ter cuidado em negócios pessoais.
— O que esperava você de um rapaz do East End que começou a portar
—se bem? — Cornell parecia intrigado. — Eu não gostaria de me tornar
muito íntimo dele. Ou, dizendo as coisas de outra forma, não é à toa que lhe
chamam o Grande Tubarão Branco. Se perceber que ele agora usa advogados
como amortecedores, em vez de pessoas, que contratava, provavelmente terá
alguma ideia do seu modus operandi.
— O que significa isso exactamente?
— Plus ça change, plus c'est la même chose.
— Está a dizer que quando se é um chefe da Máfia, nunca se deixa de o
ser?
Ouviu—se uma gargalhada divertida.
— Não, Protheroe, você é que o está a dizer. Eu não posso ser
processado por difamação.
— Josh? É a Jinx. Estás ocupado ou podes falar um minuto?
— De que se trata? — Parecia agressivo, pensou ela.
— A Meg morreu. Fez—se umssilêncio.
— Eu sei — disse ele.
Ela tremia de frio e a sua expressão era curiosamente vazia, como se
estivesse à espera de alguma coisa.
— Quem te contou?
— O Simon telefonou — respondeu ele com cuidado. — Morreram os
dois, a Meg e o Leo. Como soubeste, Jinx? Começaste a lembrar—te das
coisas?
— Não — disse ela abruptamente — adivinhei. A polícia veio cá fazer
perguntas sobre eles. Que mais disse o Simon?
— Não disse muito mais, apenas que a mãe está a ficar louca. Quer
saber onde vivem os pais do Leo, foi por isso que ele telefonou.
— E tu disseste—lhe?
— Eu disse que não sabia, por isso ele está a tentar o Dean Jarrett. Foi a
vez de Jinx ficar calada.
— Sabes muito bem onde eles vivem — disse finalmente. — Lembro—
me de te dizer, quando eu e Leo ficámos noivos. «O casamento vai ser um
pesadelo», disse eu «a nobreza de Surrey contra os novos ricos do
Hampshire, cada lado a tentar marcar pontos.» E tu riste e perguntaste de que
parte do burrey vinnam os Wallader. «Downton Court, Ashwell» disse—te
eu.
— Não me lembro.
Ele estava a mentir, pensou ela.
— Porque é que o Simon não me telefonou? Outro silêncio.
— Desculpa — disse ela.
— De quê?
— A morte da Meg. Ela era tua amiga e minha também.
— Foi para me dizeres isso que telefonaste?
Ela segurava o telefone com tanta força que os dedos lhe doíam.
— Eu queria saber o que as pessoas andam a dizer, Josh. Os pais da Meg
acham que fui eu? E o Simon também?
— O que te faz pensar que eles foram assassinados? — perguntou ele.
— Eu não sou uma idiota, Josh.
— Ninguém anda a dizer coisas — disse ele —, pelo menos a mim não.
Ela não acreditou nele.
— Porque tens medo de mim? — perguntou ela, falando com o medo
que notava na voz dele. — Achas que fui eu?
— Não, claro que não. Olha, tenho de desligar. A polícia deve estar a
chegar aqui dentro de um minuto e eu estou a tentar descobrir como vai ficar
o negócio com um dos sócios mortos. Mais tarde telefono—te, quando as
coisas tiverem acalmado.
Desligou e deixou—a a ouvir o silêncio. Mais uma pessoa em quem ela
não podia confiar? Ou alguém com tanto medo como ela?
Cuidadosamente voltou a pôr o auscultador no lugar, com dúvidas a
assaltarem o seu cérebro cansado. Seria alguma coisa, do que ele tinha dito,
verdade? E porque é que ele tinha medo dela? Porque achava que ela estava a
recuperar a memória? Deitou—se em cima da cama, olhando para o tecto,
sabendo que era seguro não se lembrar de nada, mas reconhecendo também
que eventualmente teria de se lembrar de alguma coisa. O pai bem podia
querer que o que estava fechado dentro da cabeça dela aí permanecesse para
sempre, mas ela sabia que isso era impossível. Se Alan Protheroe não
conseguisse forçá—la a dizer a verdade com a sua abordagem complacente,
outra pessoa o faria. E certamente não o fariam de uma forma bondosa.
As lágrimas queimavam—lhe as pálpebras. O bom senso dizia—lhe que
seria suicida— pensou um pouco sobre isso — transmitir recordações em que
ninguém acreditava. Desta vez não havia a Meg para lhe dar um álibi.
— Está lá fora um senhor que quer falar consigo, doutor Protheroe —
disse a secretária, uma mulher já de uma certa idade, enfiando a cabeça pela
porta do escritório dele. — É um senhor Kennedy. Disse—lhe que estava
ocupado, mas ele afirma que tem a certeza de que pode arranjar algum tempo
para falar com ele. É um advogado, que representa o senhor Adam Kingsley.
— Fez uma careta. — É muito insistente.
Alan acabou de escrever os seus apontamentos.
— Então o melhor é mandá—lo entrar, Hilda — disse ele.
Um homem pequeno e magro, com óculos e um sorriso simpático,
entrou na sala alguns segundos depois, cumprimentando Protheroe com um
firme aperto de mão.
— Boa tarde — disse ele, oferecendo—lhe o seu cartão e sentando—se
na cadeira do outro lado da secretária. — Obrigado por me receber, doutor
Protheroe. A sua secretária explicou—lhe que estou aqui a representar o
senhor Adam Kingsley?
— Ela disse alguma coisa a esse respeito — concordou Alan,
examinando o homem — mas não posso imaginar porque é que o senhor
Kingsley sente que precisa de um solicitador. — Meu Deus!
O senhor Kennedy riu—se.
— Disseram—me para lhe lembrar as garantias que o senhor deu ao
meu cliente quando se encarregou de tratar a filha.
Alan franziu o sobrolho.
— Repita por favor — pediu—lhe ele.
O homem encostou—se para trás na cadeira e cruzou as pernas.
— O senhor Kingsley gosta muito da filha, doutor Protheroe, e está
muito preocupado com o seu bem—estar. Ele pediu—lhe para a receber
como uma paciente em convalescença, depois de ter feito averiguações
durante bastante tempo no início do ano, tendo em vista o internamento da
mulher nesta clínica. Ficou convencido de que Jane acharia o ambiente aqui
mais acolhedor do que o de um hospital. Em particular, quis assegurar—se de
que Jane não iria sentir—se pressionada a tomar parte em qualquer terapia
psiquiátrica, que a faria recordar as suas experiências passadas pouco felizes.
Para esse fim pediu—lhe, como médico e não como psiquiatra, para se
encarregar da convalescença dela e deixá—la recuperar no tempo que
precisasse. — Voltou a sorrir com simpatia. — Concorda que isto é um
resumo justo da carta que ele lhe mandou, por fax, no dia vinte e um deste
mês?
— Sim, concordo.
— E será que é igualmente justo dizer que na sua conversa telefónica
com o meu cliente, depois de receber o fax, o senhor disse: «Tem a minha
palavra, senhor Kingsley, de que a sua filha não será pressionada, e que
certamente não vou esperar que tome parte em qualquer tipo de terapia a não
ser que o deseje.»?
— Posso ter dito qualquer coisa parecida, mas não posso responsabilizar
—me pela precisão da minha afirmação.
— O meu cliente pode, doutor Portheroe. Ele é um homem cauteloso e
insiste em gravar todas as conversas que dizem respeito aos seus negócios.
Isto foi o que o senhor disse, palavra por palavra.
Alan encolheu os ombros.
— Está bem. Tanto quanto sei essas garantias foram honradas. Kennedy
tirou um bocado de papel dobrado do bolso e consultou—o.
— O senhor mandou ao meu cliente uma carta por fax, ontem à noite,
em que diz: «Uma ideia que eu gostaria de discutir é a possibilidade de
realizarmos uma sessão conjunta, sob a minha supervisão na qual o senhor e
Jinx possam falar sobre as divergências que existam entre ambos.» Posso
perguntar—lhe se a menina Kingsley lhe deu permissão para sugerir isto ao
seu pai? Por outras palavras, ela escolheu tomar parte nessa actividade?
— Ainda não. Achei que seria mais sensato pedir a permissão dele
primeiro. Não via muito sentido em falar nisso a Jinx se o pai não estivesse
preparado para colaborar.
— No entanto, doutor Protheroe, apenas por sugerir uma forma de
terapia, o senhor foi contra as instruções do meu cliente no que diz respeito a
deixá—la recuperar com o tempo. Também se torna claro, em outras
afirmações no seu fax, que o senhor tem vindo a encorajar Jinx a falar sobre
acontecimentos que o senhor Kingsley lhe pediu expressamente para não
mencionar, uma vez que estava muito preocupado com ela. — Citou
extractos da carta: — «Ela tem dificuldade em falar sobre si própria.» «Tenho
dificuldade em perceber o que a levou a atentar contra a própria vida.» «Ela
continua a ter uma certa ambivalência depois da morte do marido.» Alan
encolheu novamente os ombros.
— Não me lembro de o seu cliente me pedir para manter Jane
encarcerada, senhor Kennedy. Se ele o tivesse feito, não teria concordado em
recebê—la.
— Lamento, mas vai ter que explicar novamente essas observações.
— Jinx é uma mulher jovem, inteligente e capaz de se exprimir. Ela é
capaz e quer participar em conversas. A única maneira de a fazer parar de
falar seria isolá—la de toda a gente da clínica. É isso que o pai dela quer? —
Os olhos dele semicerraram—se: — Impedi—la de falar?
O homem pequeno riu—se:
— Sobre o quê?
— Não sei, senhor Kennedy. — Equilibrava a caneta entre os dedos. —
Mas eu também não estou preocupado. O seu cliente está. — Quem é que
controlava a situação aqui? Adam ou Jinx?
— As preocupações do meu cliente estão relacionadas com o bem—
estar da filha, doutor Protheroe. Ele acredita firmemente que apresentar o
passado de forma diferente só irá prejudicar Jane, um ponto que ela salientou
esta manhã quando o ameaçou com uma proibição do tribunal ao telefone.
Ele sente, e com uma certa razão, que este regresso ao seu antagonismo
anterior se deve à sua recusa em cumprir os desejos dele.
Alan pensou nisto durante um momento.
— Vamos directos ao assunto? — sugeriu ele. — O senhor Kingsley
quer controlar todos os minutos da vida da filha ou quer desculpas para não
pagar?
— Eu fui instruído para lhe lembrar as garantias que deu ao meu cliente
quando se comprometeu a tratar a filha.
— Se se está a referir à pressão e terapia não desejada, então não há
qualquer desentendimento entre nós. Jinx não foi submetida a qualquer delas.
— No entanto, o senhor declara no seu fax: «Ela tem dificuldades em
falar sobre si própria.» — Olhou para ele. — Posso inferir claramente que o
senhor tentou convencê—la a fazer justamente isso.
— Isto é absurdo — disse Alan zangado. — Escrevi ao senhor Kingsley
porque achei que ele se interessava pelo bem—estar da filha e como médico
de Jinx acho que, para ela, será bom tentar reaproximar—se do pai. No
entanto, se a única resposta dele é mandar um advogado que fala numa
linguagem pomposa e difícil, então ela tem razão e eu não. O pai dela só está
interessado em manipulá—la e em controlá—la e há pouco a esperar de uma
reunião. — Arrumou os papéis em cima da mesa. — Presumo que existe uma
espécie de ameaça nestas instruções que me tem repetido. Poderia dizer—me
o que é?
— Agora o senhor está a ser absurdo, doutor Portheroe.
— Lamento, mas isto ultrapassa—me. — Alan estudou o advogado
franzindo o sobrolho. — Realmente não estou interessado em fazer jogos
com o bem—estar dos meus clientes. Se o senhor Kingsley está à procura de
desculpas para não pagar, então discutirei o assunto com a própria menina
Kingsley. Não duvido que ela queira honrar os compromissos, que o pai fez
em seu lugar. Por favor diga ao seu cliente que eu tenho sérias dúvidas
quanto ao seu conhecimento do carácter da filha. Ela parece—me muito
menos ansiosa do que ele por falar sobre as suas experiências passadas. Além
disso, não posso concordar com a suposição da polícia de que ela tentou
suicidar—se. — Inclinou—se para a frente. — Também lhe pode dizer que,
na minha opinião de profissional, é o senhor Kingsley que representa a maior
ameaça para a paz de espírito de Jinx. Existe uma ambivalência na sua atitude
em relação a ele que só pode ser resolvida se se aliviar a relação entre eles,
particularmente no que diz respeito à morte do marido e à necessidade
obsessiva e contínua de interferir na sua vida. No entanto, como ele não quer
falar com ela, a única alternativa seria um corte através de uma ordem do
tribunal. Colocou as mãos em cima da secretária e levantou—se.
— Bom dia, senhor Kennedy. Presumo que terá a amabilidade de
transmitir ao senhor Kingsley as minhas opiniões com os mesmos
pormenores com que acabou de me transmitir as dele.
O advogado sorriu, ao levantar—se, também.
— Não há necessidade, doutor Protheroe — murmurou ele, dando
pancadinhas no bolso do casaco. — Tenho tudo gravado. Acho que lhe disse
que o senhor Kingsley insiste em gravar todas as conversas relativas aos seus
negócios. Sei que estará interessado em ouvir tudo o que acabou de dizer.
Bom dia para si também.
Dez minutos mais tarde, o telefone tocava na secretária de Alan e ele
atendeu mal—humorado.
— É o reverendo Simon Harris para si, doutor Protheroe — disse Hilda.
— Quer falar com ele?
— Não especialmente — resmungou.
— Ele diz que é muito importante.
— Imagino — disse Alan sarcasticamente. — Será um dia memorável
quando uma pessoa não pense que o que tem a dizer é importante.
— Parece zangado — disse Hilda.
— E estou. — Suspirou. — Está bem, passe—o lá. Ouviu a voz de
Simon através da linha.
— Doutor Protheroe? Lembra—se de mim? Sou um amigo de Jinx
Kingsley. Fui visitá—la na quinta—feira.
— Eu lembro—me — disse ele.
— Estou numa posição um tanto delicada — disse o homem com uma
voz obviamente perturbada. Fez uma breve pausa. — A Jinx disse—lhe que a
Meg e o Leo estão mortos, doutor Protheroe?
Alan levou a mão à barba e alisou—a automaticamente.
— Não — respondeu.
— Foram assassinados, provavelmente no mesmo dia em que ela tentou
matar—se.
Alan olhou fixamente para uma gravura de Albrecht Dúrer, Knight,
Death and Devil, e pensou como era apropriado estar a olhar para ela.
— Lamento, senhor Harris. Deve estar muito perturbado.
— Não tivemos muito tempo para ficarmos perturbados — disse Simon
à laia de desculpa. — Esteve cá a polícia até há cerca de uma hora.
— Lamento — disse Alan novamente. — O que o leva a pensar que a
Jinx sabe?
— O assistente dela disse—me.
— Está a falar de Dean Jarrett?
— Estou.
— Como é que ele soube? Simon suspirou.
— Aparentemente a polícia foi vê—la ontem e ela pressentiu que
alguma coisa estava errada. Telefonou ao Dean, durante a noite, e convenceu
—o a telefonar aos Wallader para obter uma confirmação. — Fez uma nova
pausa. — Ela soube antes de nós. Só disseram aos meus pais ontem à noite às
dez horas e a identificação formal só foi feita hoje de manhã. A minha mãe
está muito amargurada com tudo isto. Acusa a Jinx da morte da Meg.
Alan pensou no que mais a sua paciente lhe teria escondido.
— Porque me está a contar tudo isto? Nova hesitação.
— Como eu disse, encontro—me numa situação delicada. E o meu pai
também. — Pigarreou. — É difícil pensar direito quando se está chocado...
bem, tenho a certeza de que sabe isso. — Calou—se de repente. — Sir
Anthony Wallader, encorajado pela minha mãe, vai ao The Times acusar a
Jinx e o pai. É compreensível. Estão ambos muito incomodados, como pode
imaginar... claro, estamos todos. — Assoou—se. — Não faço ideia do que os
jornais vão publicar, mas podia ser muito mau, especialmente se os jornais
souberem do caso. A minha mãe não está muito bem, ela... isto é... o pai e eu
achámos que a Jinx devia ser protegida do pior, é um pouco melhor do que
fazer justiça pelas próprias mãos — e eu não sabia a quem mais telefonar.
Achei que ela lhe tinha contado... sobre as mortes deles. — A voz dele ficou
embargada devido à comoção. — Desculpe, desculpe.
Alan ouviu as lágrimas silenciosas do outro lado.
— Eu não me preocuparia em demasia — disse ele com uma calma que
não sentia. —Jinx é uma jovem mulher extraordinariamente forte — ele
próprio ainda não percebera, até ao momento, quão forte ela era — e acredito
que é uma questão de dias até que recupere completamente a memória. Nessa
altura será capaz de apaziguar os espíritos das pessoas. — Pensou durante um
momento. — Estamos a especular e não a falar acerca de factos, presumo eu?
Se houvesse qualquer prova contra a menina Kingsley, a polícia já a teria
interrogado. Não concorda?
Simon tentou recompor—se.
— Tanto quanto percebi, sim, mas disseram—nos muito pouco. Sir
Anthony está ao corrente, desde sábado de manhã, e ele disse que Leo fora
espancado até à morte... Da mesma forma que Russell Landy.
— O pai de Jinx sabe que Meg e Leo estão mortos?
— Acho que não. O pai e eu achamos que a intenção dele é apanhar a
Jinx enquanto ela está vulnerável, mas achamos que assim não se faz justiça.
Alan ficou curioso.
— Está a ser muito generoso com ela, senhor Harris.
— As coisas não são tão lineares como parecem ser — disse Simon com
firmeza. — Estamos preocupados com a minha mãe e não queremos que o
suicídio da Jinx pese nas nossas consciências. Ela vai estar sob uma grande
pressão, quando souber as notícias, e pode tentar novamente o que já tentou
uma vez.
— Bem, quanto ao último ponto acho que não precisa de se preocupar
— disse Alan devagar. — Se eu tivesse quaisquer dúvidas sobre o seu
equilíbrio mental, você acabou de me sossegar. Obrigado por me informar,
senhor Harris.
Despediu—se e colocou o auscultador no lugar, franzindo a testa
pensativo. Que diabo se estava a passar? Adam Kingsley saberia? Seria por
isso que enviara Kennedy? Meu Deus! Estariam ele e a clínica, a serem
levados para uma espécie de armadilha a fim de desviarem o curso da justiça?
— MERDA! — gritou ele para o Knight, Death and Devil de Dúrer. Por
que diabo tinha ele concordado em aceitar a mulher?
Foi procurar Verónica Gordon, a irmã responsável.
— Estou até aqui — disse—lhe ele, batendo no pescoço com a mão. —
Durante algumas horas vou estar ausente. Se houver uma emergência, o
Nrgel White que trate do assunto. — Pensou durante um momento. — Mas se
houver uma emergência com a menina Kingsley, ligue—me para o
telemóvel. Não — emendou —, quanto a ela vamos tentar fazer melhor.
Quero que ela seja vista de meia em meia hora, sem falta, entendeu? Um
exame físico feito por si ou uma das enfermeiras de meia em meia hora e se
você ficar preocupada, mande—me uma mensagem. Está bem?
Verónica anuiu.
— Alguma razão em particular?
— Não — resmungou ele —, apenas uma precaução. O pai dela mandou
o chato do advogado dar—me uma ensaboadela e isso aborreceu—me. Não
quero ser processado por negligência se ela resolver fazer uma estupidez.
— Não o fará — disse a mulher com confiança.
— Porque tem tanta certeza?
— Tenho—a observado. Toda a gente faz exactamente o que ela quer,
incluindo você, Alan, e pessoas assim não arrumam as botas com tanta
facilidade.
— Ela já fez uma tentativa.
— Disparate! — disse Verónica com um sorriso amável. — Ela pode
querer que o pai pense assim, mas se tivesse sido uma tentativa séria ela
estaria morta. Acho que ela estava a tentar alguma coisa, embora aparentasse
ser outra, quando se atirou do carro, e um pouco de compaixão pelo pai foi
uma delas. No entanto — acrescentou ela pensativamente —, ela não
aprofundou muito os efeitos de objectos móveis a colidirem com o betão
armado. Não estou convencida de que um abalo profundo e amnésia
estivessem previstos.
Alan encolheu os ombros.
— Também pode não ser parte do jogo final. Não é preciso ser—se
Einstein para fingir que se tem amnésia, Verónica.
Ela olhou para ele supreendida.
— Está a dizer que ela é uma fraude?
— Não necessariamente — mentiu ele —, estava apenas a constatar um
facto.
— Mas porque se importaria ela com uma coisa tão elaborada, a não ser
que tivesse alguma coisa a esconder?
— Talvez ela tenha.
Fergus estava encostado ao Wolseley de Protheroe, quando o médico
saiu da clínica num fim de tarde quente e se aproximou atravessando a
gravilha. Cumprimentou o outro homem com um aceno de cabeça indiferente
e passou a mão pelo boné.
— Achei que devia ser seu — disse ele. — Reparei nele quando visitei a
Jinx no outro dia. Quer vendê—lo?
Alan abanou a cabeça.
— Lamento, mas não. Estamos juntos há demasiado tempo para nos
separarmos tão facilmente. — Meteu a chave na fechadura. — Já viu a Jinx
ou vai entrar agora?
— Estou à espera. Ela anda a passear algures pelo jardim. O Miles foi à
procura dela. Então o Kennedy deu—lhe um raspanete?
— É esse o trabalho dele?
— Depende do estado de espírito do meu pai. Eu disse—lhe que você
tinha sido bastante autoritário comigo no sábado, por isso pensei que ele
tivesse mandado o seu Rottweiler para lhe lembrar quem paga as contas.
Também lhe disse que achava que você gostava da Jinxy. — Olhou para Alan
pelo canto do olho, observando a reacção dele. — O pai ficou muito zangado,
por isso não me admiro que tenha mandado o Kennedy até aqui. Alan
resfolegou divertido.
— Duvido que tenha a coragem de contar ao seu pai alguma coisa,
Fergus. — Abriu a porta do earro. — Por uma questão de curiosidade, como
soube que o Kennedy cá esteve?
— Vi—o sair. — Bocejou. — Miles quer conhecê—lo. Prometi que o
segurava aqui até ele voltar.
— Talvez noutra altura.
— Não, agora. — Fergus agarrou—lhe o braço. — Queremos saber o
que se está a passar. A Jinx lembra—se de alguma coisa?
— Sugiro que lhe pergunte a ela. — Alan olhou para a mão que o
retinha. — Poderá vir falar comigo em qualquer altura, desde que primero
faça uma marcação. Mas de momento — colocou a sua mão sobre a do
jovem, tirando—a do seu braço — tenho coisas mais importantes a fazer. —
Sorriu amigável e descontraidamente por detrás do volante. — Gostei de o
conhecer, Fergus. Os meus cumprimentos à sua mãe e ao seu irmão. —
Fechou a porta, deu vida ao Wolseley, antes de virar o volante e de descer a
rua, fazendo imenso barulho com o motor.
Quando a irmã Gordon fez a ronda, às nove naquela noite, encontrou
Jinx de pé à janela, observando o pôr do Sol, que se tornava de um carmesim
—acinzentado.
— Não é maravilhoso? — disse Jinx sem se virar sabendo, por instinto,
quem era a sua visita. — Se eu pudesse ficar aqui a olhar eternamente, então
teria a felicidade eterna. Imagina que o Céu é assim?
— Acho que depende até que ponto gostaria que o seu Céu fosse
estático. Presumo que o observou a desenvolver—se de um simples pôr do
Sol a um fogo glorioso, por isso em que ponto teria parado para realizar o seu
momento de felicidade eterna? Eu acho que ficaria sempre a pensar se o
momento seguinte teria sido mais bonito do que o que eu escolhera, o que
tornaria a experiência numa frustração enorme.
Jinx riu—se baixinho.
— Então o Céu não existe?
— Para mim, não. A felicidade só é felicidade quando é encontrada
inesperadamente. Se durasse para sempre, seria insuportável. — Sorriu. —
Está tudo bem?
Jinx afastou—se da janela.
— Exactamente na mesma como estava há meia hora e na meia hora
anterior. E agora vai—me dizer porque é tão importante continuar a observar
—me?
— Talvez o doutor esteja preocupado que você se esteja a esforçar
demais. Pregou—me um susto enorme com aquele passeio desgraçado. Foi
demasiado longe e longo demais.
— Sabe, não foi — disse Jinx com preguiça. — Passei a maior parte do
tempo a esconder—me. — Sorriu ao ver que a outra mulher estava
surpreendida. — Vi o meu irmão e escondi—me num dos barracões lá fora.
— Olhou para trás em direcção à janela. — O doutor Protheroe disse—me
que estava à espera de uma visita do meu pai — mentiu Jinx com facilidade.
— E sabe se ele chegou a vir? Achei que depois ele viria visitar—me.
— Acho que foi o advogado que veio — disse ela, arranjando as
almofadas e alisando os lençóis —, mas acho que o seu pai não chegou a vir.
Jinx encostou a testa ao vidro.
— Porque é que o doutor Protheroe ainda não veio visitar—me?
— Ele ausentou—se algumas horas. Pobre rapaz — disse desejando,
como muitas vezes o fazia, não ter assentado com aquele homem de apelido
Gordon. — Ele tem muito em que pensar, de uma forma ou de outra, e
ninguém com quem possa partilhar os problemas.
Jinx envolveu o seu corpo magro com os braços para parar de tremer.
Será que ele pensava em Leo e Meg? E teria sido o Kennedy a dizer—lhe?
A irmã Gordon franziu o sobrolho.
— Esteve demasiado tempo nessa janela, sua pateta. Agora rápido, vista
a camisa de noite e meta—se na cama. Não faz sentido apanhar uma
pneumonia ainda por cima. — Fez estalar a língua, irritada, ao abrir a camisa
de noite e enfiá—la pelos ombros de Jinx. — Foi uma sorte aquele jovem
casal ter aparecido na noite do seu acidente, bem podia ter apanhado uma
pneumonia.
— Foi bastante conveniente — disse Jinx impassível.

Terça—feira, 28 de Junho, Clínica Nigbtingale Salisbúria — 0.05 h


O Wolseley entrou pelos portões da clínica, os faróis da frente
desenhando um arco branco na relva. Já passava da meia—noite e Alan
abrandou para não acordar os pacientes quando travasse na gravilha. Não
sentia qualquer alívio em voltar para casa, nenhum sentimento de boas—
vindas no fim da viagem, apenas um ressentimento que ia crescendo por ver
que não tinha mais nada. A euforia temporária que uma garrafa de um Rioja
caro lhe dera, acompanhando uma refeição de lagostins com manteiga de alho
desaparecera durante a sua viagem cuidadosa para dar lugar a uma depressão
frustrada. Que diabo estava ele a fazer da sua vida? Onde estava a satisfação
em ajudar um bando de filhos da mãe ricos, enfatuados e sem autocontrolo?
Porque é que Jinx não lhe dissera que Meg e Leo estavam mortos? E porque
não conseguia ele tirar o raio da mulher da cabeça?
Tamborilou com a mão no volante, torcendo—o alarmado quando o
clarão das luzes iluminou uma cara pálida, a alguns metros da ala mais
próxima, separada do corpo contra a escuridão das árvores que bordejavam a
estrada. Merda! MERDA! O seu coração começou a bater desenfreado
quando carregou com o pé no travão, parando o carro quase
instantaneamente. Ele tinha dito para a irem ver, de meia em meia hora e ela
estava cá fora evitando os malditos carros.
— Jinx — chamou ele, tentando abrir a porta e saindo do carro com
dificuldade colocando uma mão no tejadilho. — Está bem?
Silêncio.
— Oiça, eu vi—a. — Que Deus o ajudasse se a tivesse atropelado. Usou
a luz dos faróis de trás para examinar cuidadosamente a borda do relvado
atrás do carro, mas não estava lá nenhum corpo escondido. — Sei que me
está a ouvir — continuou ele, olhando fixamente para as árvores, procurando
—a. Deu a volta para se encostar à porta do outro lado. Mais cedo ou mais
tarde ela teria de se mexer e ele voltaria a ver o reflexo da cara pálida. —
Acho que você é uma fraude, Jinx. Aquela história da amnésia e até acho que
você não tentou suicidar—se. Foi uma artimanha, pura e simples, para que o
seu pai ficasse do seu lado, e resultou, mesmo que você se tenha prejudicado
mais do que tencionava. Então vai dizer—me do que se trata? — Esperou. —
Devo avisá—la de que, de momento, me sinto bastante zangado e a minha
disposição não está a melhorar por estar aqui nesta porcaria de estrada, só
porque um dos meus pacientes se está a comportar de forma pouco
responsável. Mas não espere que eu desista tranquilamente e que a deixe
aqui. Se mexer um músculo, apanho—a. Então vai mostrar—se ou vamos
esperar até que nasça o dia? A escolha é sua.
Sentiu um movimento, tão rápido e tão próximo, que ficou
completamente dominado. Deu um salto para o lado mas sentiu uma forte dor
quando a cabeça de metal de um malho quase arrancou o seu braço do ombro.
Baixou—se para evitar outro golpe e arrastou—se com dificuldade à volta da
capota do automóvel, em direcção à porta aberta. Com um instinto que lhe
vinha do desespero, atirou—se para dentro do carro e fechou a porta com
força. Mas ao esticar o braço desajeitadamente para tentar meter a marcha a
trás, o malho entrou pelo pára—brisas em direcção à cara dele.
Amy Staunton olhou para o relógio.
— Porque é que o doutor Protheroe quer visitas de meia em meia hora
— resmungou ela. — A rapariga está a dormir desde as dez horas.
— Nós não temos de saber as razões — disse Verónica Gordon. —
Temos apenas de fazer o que nos mandam. Acabe o seu chá. Não vejo que
diferença possam fazer cinco minutos aqui e ali.
Ele não sabia se era suor ou sangue o que lhe escorria pela cara.
A medida que o carro acelerava para trás, só sabia que estava a sofrer
terrivelmente. Com uma sensação de irrealidade viu a figura — um homem
— a desaparecer na escuridão, antes de a traseira do Wolseley embater num
sólido carvalho. Que diabo se estava a passar?
O puxador do número doze fez um ruído e a porta foi aberta até meio
quando a enfermeira negra olhou para o quarto imerso em escuridão. Ouviu
qualquer coisa e, com um sobressalto de medo, tacteou para encontrar o
interruptor.
— Está bem, querida? — Acendeu a luz, olhou para a cama onde Jinx
agitava violentamente os lençóis, depois olhou para as janelas francesas onde
as cortinas esvoaçavam com a brisa. Com um gesto de impaciência,
atravessou o quarto para fechar as janelas, depois dirigiu—se à cama e
colocou uma mão suave na testa da mulher.
Como se tivesse sido galvanizada por um choque eléctrico, Jinx sentou
—se de um salto na cama chupando freneticamente o ar com a boca. Não
conseguia respirar... Meu Deus, não conseguia respirar... Agarrava o pescoço
numa tentativa vã de afastar o que estava a bloquear as suas vias respiratórias.
Mas era terra, terra suja e acre... e estava a matá—la... NÃO — O — o!
Atirou—se da cama e irrompeu pela casa de banho dentro, girando
violentamente a torneira de água fria no lavatório e metendo a cabeça debaixo
da água gelada. Começou a respirar ofegante e deixou que a água doce
lavasse o sabor a morte.
— Mmeu Deus, rapariga, que foi que lhe deu? Está a sentir—se mal? O
que tomou? O que está a fazer vestida? Estava a dormir da última vez que a
vim ver.
Jinx caiu no chão e olhou para ela com os olhos vermelhos.
— Foi um sonho, Amy — murmurou ela. — Apenas um sonho.
— Sua menina má! Nunca apanhei um susto tão grande! Espere até eu
contar ao doutor Protheroe. Achei que tinha dado cabo de si. — Bateu no
peito. — Podia ter tido um ataque de coração. E porque é que abriu as
janelas? Os vidros de cima só se abrem depois das nove horas, são essas as
regras. O que andou a fazer?
Jinx enrolou—se no chão de azulejo.
— Nada — disse ela.

Identificados os corpos no bosque

Foi confirmado, ontem à noite, pela polícia do Hampshire que os dois


corpos descobertos no bosque de Ardingly, na quinta—feira perto de
Winchester, foram identificados como Leo Wallader, de 35 anos, de Downton
Court, Ashwell, Guildford e Meg Harris, de 34 anos, de Shoebury Terrace,
Hammersmith, Londres. A polícia considera que se tratou de um crime.
Informações sobre a identidade das duas vítimas foi dada pelo pai de
Leo, Sir Anthony Wallader, de 69 anos, que está indignado com a ineficácia
da polícia. «Identifiquei o corpo do meu filho na manhã de sábado» —
afirmou — «mas não tenho tido qualquer contacto com a polícia do
Hampshire desde então. Dizem—me que o meu filho e a namorada foram
assassinados há duas semanas, no entanto não há urgência no inquérito. Fui
contactado pela mãe de Meg, que vive em Wiltshire, e ela está tão
incomodada pela falta de acção da polícia como eu. Sentimos que deve ter a
ver com o facto de ambas as famílias viverem fora do condado. Se se tratasse
de uma investigação da polícia do Surrey, eu estaria mais confiante».
Não é segredo que Leo Wallader esteve noivo de Jane Kingsley, filha de
Adam Kingsley de Hellingdon Hall, Hampshire, presidente da Fronchise
Holdings, mas o casamento foi cancelado quando Leo anunciou que queria
casar com a amiga de Jane, Meg Harris.
Em consequência, a menina Kingsley sofreu um misterioso acidente de
carro, num aeródromo abandonado, no Hampshire. A polícia acha que foi
uma tentativa de suicídio falhada. Embora o teste de alcoolemia tenha sido
positivo, quando a tiraram do carro, a polícia de Hampshire ainda não
formalizou qualquer acusação contra a menina Kingsley.
O primeiro marido de Jane Kingsley, Russell Landy, foi agredido e
morto com um malho há dez anos, mas o seu assassino nunca foi encontrado.
A polícia do Hampshire recusou—se a comentar a morte de Leo Wallader e
de Meg Harris, mas Sir Anthony disse que ambos tinham sido brutalmente
espancados. «Foi horrível de ver» disse ele. «Nem quero pensar como a
senhora Harris se sente.»
«Nesta altura temos muito pouco para podermos avançar», afirmou o
superintendente Cheever da polícia do Hampshire, mas estamos a seguir
todas as pistas. Lamento que Sir Anthony se sinta assim, «mas posso afirmar
que vamos tentar tudo para descobrirmos o assassino do seu filho.»
O superintendente Cheever não pode confirmar a utilização de um
malho para matar o casal. «Os corpos estiveram expostos durante dez dias»
declarou «e nessas circunstâncias é sempre difícil ser preciso quanto à forma
e o dia em que as vítimas morreram.»
The Times — 28 de Junho
14
Terça—feira, 28 de Junho, Clínica Nightingale Salisbúria — 1.00 h

Os dois polícias inspeccionaram o pára—brisas partido e a mala


amolgada do Wolseley com uma repugnância que não conseguiam disfarçar.
Estava tristemente parado junto da porta da frente, para onde Alan o
conduzira, quando se apercebeu de que se não agisse rapidamente, o seu
ombro deslocado, iria necessitar de intervenção, com anestesia geral, na
urgência mais próxima. Tinha buzinado com o vigor dos anjos e arcanjos
soando a trompa do Juízo Final e soluçara aliviado quando o segurança da
noite aparecera para o socorrer, e Verónica Gordon, com as mãos fortes e
nervos sólidos, colocara os ossos no lugar. Mesmo assim, tinha sido por
pouco. Passados quinze minutos a articulação estava tão inchada que a dor
era insuportável.
— Foi criminoso — disse um polícia, iluminando os danos com a sua
lanterna. — Quantas vezes é que disse que ele o atingiu?
— Uma vez — disse Alan, segurando o cotovelo esquerdo na palma da
mão direita, pouco convencido de que a ligadura que lhe tinham posto era de
confiança. — Fui eu que amolguei a parte de trás, quando recuava, para me
afastar dele. Preocupa—me mais o facto de ele ter feito pelo menos duas
tentativas para me atingir com o malho.
— No entanto — disse o outro ponderadamente —, parece que foi o seu
carro que sofreu mais estragos.
— Lembre—me de lhe mostrar algumas fotografias de articulações
trinta minutos depois do acontecido — disse ele secamente — e diga—me
que ele causou mais danos ao meu carro. — Dirigiu—se para o seu escritório,
arrastando—se exausto até à secretária e apoiando—se a um dos cantos.
— Suponho que lhe possa ter ocorrido que ele ainda anda por aí.
— Muito pouco provável, não com toda a agitação que se gerou por
estes lados.
O carro da polícia chegara dez minutos depois da chamada para o 112 e,
após a descrição dos acontecimentos feita pelo doutor Protheroe de que tinha
avistado uma cara com a luz dos faróis e que parara para investigar, os
polícias assumiram, logicamente, que um intruso entrara com a intenção de
roubar e que o médico tinha tido a infelicidade de se atravessar no seu
caminho. Uma verificação completa de todas as portas e janelas não revelara
quaisquer sinais de arrombamento.
— Não podemos criticar a sua segurança — disse o mais alto dos dois
polícias, franzindo o sobrolho perplexo —, o que me leva a duvidar que este
rapaz tenha inspeccionado a clínica muito bem. Se ele tinha planeado um
roubo, não pode ter sabido como era difícil entrar por arrombamento. Por
isso, tem a certeza de que não o reconheceu? De outra forma não percebo por
que razão ele se deu ao trabalho de o atacar. Naquela altura ele não tinha
cometido qualquer crime, a não ser que tivesse entrado e saído pela porta da
frente, o que o seu segurança diz ser impossível, uma vez que esteve na
recepção desde as dez horas.
— Tenho a certeza. De qualquer maneira eu estava a começar a pensar
que me enganara ao pensar ter visto uma pessoa, até sentir o malho a bater—
me de lado. Não fazia ideia de que ele estava tão perto de mim. Certamente
que não o ouvi mas, como deixei o motor do carro a trabalhar, não é para
admirar.
— E consegue pensar numa razão para que alguém o quisesse atacar?
Alan abanou a cabeça.
— A não ser que ele soubesse que eu era médico e pensasse que eu tinha
drogas no carro. Tenho puxado pela cabeça, mas não consigo pensar em mais
nada. — Amanhã teria muito tempo, pensou ele, para decidir se vira a cara de
Jinx, com os faróis da frente, ou se fora imaginação sua por estar a pensar
nela.
— Talvez um ex—paciente que pudesse reconhecer o seu carro?
— Acho que não. É uma das primeiras coisas que eu esclareço quando
eles chegam. Temos um stock limitado de drogas e estão sempre fechadas
naquele cofre ali. — Fez um gesto com a cabeça indicando o sólido Chubb ao
canto. — Eles sabem que eu nunca ando com nada no carro.
O polícia sentou—se numa cadeira e tirou um bloco do bolso.
— Bem, vamos apontar alguns pormenores. O senhor diz que ele fugiu
depois de ter partido o pára—brisas, por isso, nessa altura, deve ter visto
muito bem o homem.
Alan puxou um Kleenex de uma caixa na sua secretária e tocou
levemente na cara, que ainda sangrava no sítio onde pequenos fragmentos de
vidro se tinham enterrado na pele.
— Nem por isso. Eu estava a ter um trabalho dos diabos para encontrar a
marcha atrás, com a minha mão direita, por isso estava concentrado nisso.
— Pode descrevê—lo, por favor?
— Era um pouco mais baixo do que eu, cerca de um metro e setenta e
oito ou um metro e oitenta. Tinha uma constituição média, não era gordo, e
estava vestido de preto.
Com o lápis pousado sobre o bloco nos joelhos, o polícia esperou que
ele continuasse. Como não o fez, olhou para cima.
— Uma descrição mais completa ajudaria mais. Por exemplo, de que cor
era?
— Não sei. Acho que trazia uma máscara de esquiador. Tudo o que eu
vi foi um homem vestido de preto, dos pés à cabeça, brandindo um malho.
— Está certo. Então talvez pudesse dar—me alguns pormenores sobre o
que ele tinha vestido. O que usava na cabeça?
Alan abanou a cabeça.
— Não sei.
Percebeu que o polícia estava a ficar impaciente.
— Olhe — disse ele um pouco zangado —, está muito escuro. Eu saio
do carro e a próxima coisa que eu sei é que um filho da mãe me quer desfazer
em bocadinhos. Francamente a última coisa em que eu penso é reparar nos
pormenores da sua roupa.
O polícia esperou um pouco.
— Talvez tenha reparado em mais alguma coisa, quando voltou para
dentro do carro e ele fugiu.
— Aconteceu tudo muito depressa. Tudo o que lhe posso dizer é que ele
estava vestido de preto.
— Não é muito, para podermos avançar.
— Eu sei — disse Alan um pouco irritado. Fez—se um curto silêncio.
— No entanto, tem a certeza de que era um homem. — Porquê? Ele
disse—lhe alguma coisa?
— Não.
— Poderia ter sido uma mulher?
— Talvez, mas não acredito. Tudo nele, a forma do corpo, a força, a
agressão, aponta para um homem.
— Não estaria tão convencido se visse algumas das mulheres com que
lidamos — disse o polícia com um humor pesado. —Já não existe o sexo
fraco nos dias de hoje.
Alan respirou fundo,
— Olhe, se não vê inconveniente, que tal se deixássemos isto para
amanhã? Estou bastante cansado e o meu ombro dói—me muito.
Os polícias trocaram olhares.
— Não vejo qualquer impedimento — disse o que tinha ficado de pé. —
Este lugar parece ser bastante seguro e, de qualquer maneira, sem uma boa
descrição, não há muito que possamos fazer hoje à noite. Amanhã mandamos
um polícia à paisana falar consigo. Entretanto, poderia fazer uma lista dos
sítios onde esteve hoje e com quem falou. — Baixou a cabeça cortesmente.
— Acho que foi bem pensado. Alguém que chegasse, depois da meia—noite,
seria mais provavelmente um médico do que uma visita ou um paciente. Se a
minha opinião vale alguma coisa, acho que a sua teoria sobre as drogas é a
explicação mais provável.
Alan parou, na sala das enfermeiras, antes de se ir deitar.
— Está tudo bem? — perguntou ele.
Verónica Gordon, a única pessoa que lá estava, olhou para a cara dele
cheia de sangue.
— Está a fazer—se de mártir? — perguntou ela. — É por isso que não
me deixa tratar esses cortes?
— É demasiado desajeitada, mulher — grunhiu ele. — Prefiro ser eu a
tratar deles, sossegada e suavemente, quando me apetecer. Algum problema?
— Meu Deus, não — disse ela sarcástica. — Porque haveria de haver
problemas, quando uma casa cheia de bêbados inseguros e drogados é
acordada a meio da noite pelos seguranças e polícias a andarem na gravilha,
apontando as lanternas através das janelas? Para sua informação, Amy e eu
estamos exaustas. Neste momento, ela está a atender três campainhas que
tocaram antes de o doutor entrar. — Uma luz começou a piscar no painel
junto do seu cotovelo. — Mais uma. São todos curiosos demais para o seu
próprio bem. Querem saber o que se está a passar.
— E a Jane Kingsley? Ainda a vai ver de meia em meia hora? Ela virou
o registo da noite na direcção dele.
— Está a dormir desde as dez horas. É a única que não nos deu nenhum
trabalho. Amy tinha ido vê—la antes do senhor começar a tocar a buzina,
mas não foi registado porque não tivemos tempo, com toda a confusão que
tem havido. Desde essa altura fui vê—la uma vez, mas ela está a dormir.
Quer que continuemos?
— Sim — disse ele pensativamente. — Por prevenção. Sinto—me mais
aliviado, sabendo onde ela está.
Foi só depois dele se ter ido embora que Verónica reparou que o que ele
dissera era muito pouco adequado. Tencionava falar no assunto a Amy
Staunton, quando a chamada de outra campainha a levou pelo corredor fora.
Se não fosse isso, e se Amy tivesse sido encorajada a contar—lhe que Jinx
estava completamente vestida, também ela, como o sargento Fraser,
pensariam mais tarde como o resultado final teria sido diferente.
As faces pálidas de Jinx empalideceram ainda mais quando Alan
Protheroe entrou, na manhã seguinte, no seu quarto, antes do pequeno—
almoço. O braço esquerdo ao peito e a cara cheia de pequenos cortes e
arranhões.
— Foi o Adam que lhe fez isso?
Ele ficou visivelmente admirado. Qualquer que fosse a reacção que
esperava dela, certamente que não era aquela.
— Por que razão o seu pai quereria partir o meu pára—brisas?
— Não o faria — disse ela rapidamente. — Esqueça que eu o disse. Foi
uma estupidez. Foi isso que aconteceu? Foi por isso que a polícia esteve cá na
noite passada?
Ele sorriu.
— E eu que fui seguramente informado que você dormiu o tempo todo.
— E dormi.
— Então como sabe que a polícia esteve cá?
— O Matthew contou—me. Esteve aqui há meia hora.
Maldito seja o Matthew! Parecia passar mais tempo neste quarto do que
no seu.
— Ele contou—lhe o que se passou? Jinx abanou a cabeça.
— Anda a ver se descobre alguém que saiba.
Era uma grande mentirosa porque percebia a importância de ser
plausível.
— Estou a ver. Empoleirou—se na beira da cama.
— E você não lhe pode dizer, porque não sabe. Ela fixou o olhar dele,
antes de desviar os olhos.
— Sim.
— A polícia acha que foi um intruso à procura de drogas. Examinou a
cara exausta dela.
— Para alguém que dormiu o tempo todo, você não parece muito
descansada.
Ela forçou um sorriso alegre.
— É o meu aspecto de skinhead. Não me favorece mais do que o
criminoso normal. Mas não é essa a ideia, pois não? O cabelo é um acessório
de moda primitivo.
— Está com frio? — perguntou ele. — Está a tremer.
— São os nervos.
— Está nervosa por me ver?
— Não.
— Então porque está nervosa?
— Não sei — disse ela. — Não me lembro. Ele sorriu abertamente.
— Sonhei consigo na noite passada. Sonhei que estava deitado de
costas, na beira de um penhasco, quando apareceu uma mão, agarrou o meu
tornozelo e começou a puxar—me. Quando comecei a escorregar, olhei para
baixo e vi a sua cara olhando para mim. Você ria—se.
Ela franziu o sobrolho.
— É suposto significar alguma coisa?
— Sim — disse ele levantando—se. — Significa que estava a meter—se
comigo.
Foi o detective Hadden, da polícia de Wiltshire, que continuou onde os
dois polícias uniformizados tinham parado na noite anterior. Era um homem
de meia—idade, que estava ali para justificar o seu papel de polícia, mas sem
qualquer intenção óbvia de adiantar o que quer que fosse. Para aborrecimento
de Alan, chegou com o jornal que, pelo menos por enquanto, destruía as
tentativas de Alan de confirmar o que Simon Harris lhe dissera pelo telefone.
— Francamente, senhor — confidenciou—lhe o detective Hadden,
sentando—se o mais confortavelmente possível no sofá de couro — sinto—
me levado a concordar com a teoria do drogado, a não ser que se tenha
lembrado de alguma coisa durante a noite que aponte para algo de mais
concreto. Está a ver o nosso dilema. Seria mais fácil procurar uma agulha no
palheiro do que vasculhar os arredores à procura deste homem que o senhor
descreveu. Seria diferente se nos desse um nome, ou se ele tivesse roubado
alguma coisa. Haveria uma pequena hipótese de o apanhar através da
mercadoria mas, sendo assim — abanou a cabeça — é como procurar uma
agulha num palheiro, senhor, tenho a certeza de que compreende o problema.
— Então esta lista que eu fiz, das pessoas com quem falei ontem, foi
uma completa perca de tempo — disse Alan irritado. — Poderia ter ficado
mais meia hora na cama, o que me teria feito muito melhor, do que tentar
ajudar a polícia num inquérito no qual ela nem sequer está interessada.
Agarrou na lista, que estava em cima da mesa do café e preparou—se
para a amarfanhar.
— Não, eu não disse isso — disse Hadden, estendendo a mão para o
pedaço de papel. — Claro que vamos verificar todas as informações que nos
der, mas o relatório do incidente da noite passada acentua bastante que o
senhor não acreditou que o ataque tivesse sido pessoal. Talvez tivesse
reconsiderado? — Alan abanou a cabeça.
— O que eu disse foi que não consigo lembrar—me de ninguém que
quisesse fazê—lo, mas eu fiz notar que o homem me atingiu novamente
quando eu já estava dentro do carro. Se andava à procura de drogas, porque é
que não desistiu?
Hadden olhou para a lista enquanto ia falando.
— Porque estes tipos não agem logicamente, como o doutor deve saber.
Ele queria o que o senhor tinha no carro, por isso, partiu o pára—brisas. Os
hospitais perdem milhões de libras, de stock, todas as semanas. Mais cedo ou
mais tarde, alguém iria forçosamente pensar que valia a pena roubar um lugar
como este. — Com o polegar levantou o canto da página.
— O senhor Kennedy, advogado de Adam Kingsley — leu ele devagar.
— É o Adam Kingsley, da Franchise Holdings?
Alan acenou com a cabeça.
A transformação de uma indiferença enfadada para um vivo interesse foi
surpreendente.
— Posso perguntar por que razão o advogado o veio visitar?
— A filha do senhor Kingsley é minha paciente.
— Estou a ver. — O detective franziu o sobrolho. — Mas porquê
mandar o advogado? Há alguma desavença entre ambos?
— Não que eu tenha dado por isso.
— Então de que falaram? Foi uma discussão amigável?
— Perfeitamente amigável. Falámos sobre o progresso da menina
Kingsley.
— E isso é normal? Discutir o progresso do paciente com o advogado do
pai?
— Não, não é costume, mas o senhor Kingsley é um homem muito
ocupado. Talvez ele ache que o advogado é capaz de guardar segredo das
informações confidenciais.
O outro homem franziu profundamente o sobrolho. Era claro que achava
este episódio tão inexplicável como Alan.
— Conheceu o próprio senhor Kingsley?
— Não. Correspondemo—nos porfax e falámos ao telefone.
— Então não pode dizer que tipo de homem é? Alan abanou a cabeça.
— Existe um Fergus Kingsley na sua lista. Será um parente?
— O filho mais novo. O meio—irmão da menina Kingsley.
— E a sua conversa, com ele, foi amigável?
Ele pensou na mão de Fergus pousada no seu braço. O gesto incomodara
—o, mas não fora hostil.
— Sim, foi.
O detective Hadden dobrou a página e enfiou—a no bolso.
— Disse que o homem tinha um malho. Não tem dúvidas sobre isso?
— Nenhumas.
— Está bem. — Levantou—se. — Vamos a ver o que podemos fazer.
Alan ergueu uma sobrancelha de modo inquiridor.
— Porquê esta súbita mudança? Há dois minutos atrás ia esquecer o
assunto e agora está com grandes expectativas. O que tem Kingsley a ver
com isto?
Hadden encolheu os ombros, não querendo comprometer—se.
— Devo ter causado uma impressão pouco verdadeira. A polícia de
Wiltshire leva a sério todos os assaltos. Presumo que o encontraremos aqui,
se precisarmos de vir ter consigo. Não está a planear ausentar—se nos
próximos dias?
— Não.
— Então obrigado pela ajuda. Vou—me embora.
Alan viu—o a afastar—se e depois, franzindo pensativamente o
sobrolho, pegou novamente no jornal. O artigo sobre Meg e Leo estava numa
das páginas interiores e, depois de o ter lido, percebeu porque é que o
mencionar «malhos», no contexto do nome Kingsley, entusiasmara um
homem tão indolente como o detective Hadden.

Esquadra da Polícia da Rua Romsey Winchester — 10.00 h

Uma hora mais tarde, e a trinta e dois quilómetros de Winchester, Frank


Cheever ouviu o que o seu amigo em Salisbúria lhe contava pelo telefone e
sorriu pela primeira vez em doze horas. Tinha sido uma noite terrível,
começando pela chamada do Times, que queria uma confirmação da
identificação dos corpos, continuando com um bombardeio de outros
jornalistas, que exigiam saber se as informações do Times tinham algum
fundamento. Parecia que Sir Anthony Wallader tinha sido muito específico
nas suas acusações contra Kingsley e a filha e, embora nenhum dos jornais
tivesse sido suficientemente estúpido para imprimir o que ele dissera, palavra
por palavra, tinham todos seguido o Times, mencionando a morte de Landy e
citando a recusa do próprio Frank em especificar se fora usado um malho.
Também fingiam estar interessados nas outras acusações de Wallader, de que
Kingsley estava a usar a sua influência para impedir a investigação no seu
condado natal de Hampshire, deixando à imaginação dos leitores tirar toda a
espécie de conclusões.
Os ouvidos de Frank ainda lhe doíam, de um profundo e crítico
raspanete que o chefe da polícia lhe dera, por não ter mantido Sir Anthony e a
senhora Harris ao corrente dos desenvolvimentos. Frank salientara, em vão,
que o corpo de Meg não fora identificado formalmente até há poucas horas, e
que as declarações de Sir Anthony aos jornais tinham sido muito específicas,
ou seja, ele queixara—se do facto de a polícia do Hampshire não ter preso
imediatamente, ou acusado, Adam ou Jane Kingsley. O chefe da polícia não
se deixou impressionar por tais subtilezas. Frank deveria ter lidado com as
preocupações dos Wallader e dos Harris desde o início e nunca deveria ter
permitido que se desenvolvesse um clima de desconfiança.
— Deve ter—lhe ocorrido que ambos os pais se juntariam. Porque é que
não foi ter novamente com os Wallader assim que os Harris se foram
embora? Claro que vão suspeitar do pior, se não nos dermos ao incómodo de
os informar. Vou organizar uma conferência de imprensa esta tarde e espero
que, entretanto, você tenha conseguido alcançar ambas as famílias. Ninguém
pode ficar com dúvidas sobre o facto de a polícia do Hampshire estar a seguir
este inquérito com vigor e empenhamento, sem ter em consideração quem
poderá estar ou não envolvido.
Frank olhou para o relógio e voltou a colocar o auscultador no sítio. Sir
e Lady Wallader iriam chegar em menos de dez minutos. Os Harris não
tinham aceite o convite, mas tinham concordado em receber o
superintendente Cheever, em casa, ao meio—dia. A conferência de imprensa
era às três e meia. Voltou a pegar no telefone e ordenou que o detective
Maddocks viesse imediatamente ao seu gabinete.
— Senhor — disse Gareth, apresentando—se sessenta segundos depois,
tão ansioso por não aborrecer o superintendente como Frank ansiava não
aborrecer o chefe. As hierarquias tinham estado tremendamente activas desde
as sete horas do dia anterior.
— Tive uma chamada de Salisbúria. O doutor Alan Protheroe, da
Clínica Nightingale, foi atacado ontem à noite com um malho. Evitou ser
seriamente magoado, dando o alarme e atraindo ajuda, e a parte interessante é
Salisbúria declarar que Protheroe teve uma visita do advogado de Kingsley
ontem à tarde. Quero que vá a Salisbúria, leve Fraser consigo, fale com o
superintendente Mayhew e o detective Hadden e depois siga até à Clínica
Nightingale para entrevistar o doutor Protheroe. Dê—me um relatório
completo deste dia, dos nomes de toda a gente com quem ele falou e o que
disse. A visita do advogado não pode ser uma coincidência.
Sir Anthony Wallader não estava em estado de espírito de ser
apaziguado. Denunciou os Kingsley como assassinos, repetiu as suas
acusações contra a inércia da polícia, quis saber por que razão a morte de
Landy não tinha sido punida, insistiu que, se a polícia tivesse feito o seu
trabalho, Meg e Leo ainda estariam vivos. Parecia incapaz de conter o seu
desgosto ou de lidar com ele e, em três dias, a raiva que crescera dentro dele
precisava de ser descarregada em qualquer pessoa, que pudesse ser culpada
da perda que sofrera. Lady Wallader, ao contrário, estava sentada de cabeça
baixa e não dizia nada. Frank ouviu—o em silêncio, até a tempestade se
acalmar.
— Por favor aceite as minhas desculpas por qualquer falta de
sensibilidade que eu e a minha equipa possamos ter tido em relação a si e à
sua mulher, Sir Anthony — disse ele calmamente. — A nossa dificuldade foi
encontrar os pais de Meg e, como a senhora Harris lhe deve ter dito, só ontem
de manhã é que foi possível fazer a identificação formal. É claro que eu lhe
deveria ter telefonado imediatamente, para o pôr a par dos acontecimentos e
lamento imenso não o ter feito.
— Pelo menos alguém deveria ter sido enviado para consolar a minha
mulher. Porque não o fizeram? O reverendo Harris disse—me que o senhor
mandou uma mulher—polícia para acompanhar a mulher dele.
— Sim, oferecemos apoio e aconselhamento, mas lembra—se de nos ter
dito que&seria pior se tivesse estranhos em sua casa?
— Bem, não vou deixar as coisas ficarem por aqui. Vou apresentar uma
queixa. Acho que o senhor deveria ser retirado imediatamente do caso e
substituído por alguém mais competente. — Os olhos encheram—se—lhe de
lágrimas. — O meu filho foi assassinado e o que está a fazer em relação a
isso? Nada. Tal como nada foi feito depois do homicídio de Russell Landy.
— Asseguro—lhe que fizemos muito nos poucos dias que tivemos. Por
exemplo, localizámos a casa do seu filho, em Londres, onde esperamos
encontrar a maior parte das suas coisas, bem como as da menina Harris. —
Verificou as horas. — Uma equipa de detectives ia lá esta manhã,
acompanhada pelo advogado do seu filho. Também pedimos à polícia
francesa para entrar na sua casa na Bretanha mas, como achamos que ele e
Meg morreram sem terem saído de Inglaterra, não estamos à espera de nada
de importante do outro lado do Canal. E há ainda o condomínio na Florida,
mas pensamos que também aí uma busca não há—de ser produtiva. — Fez
uma pausa durante um momento, fingindo não ver a expressão de magoada
surpresa estampada no rosto do velho. — Ainda estamos a tentar localizar os
dois carros.
O seu advogado tem a certeza de que um deles, pelo menos, está na
garagem da casa em Chelsea e também nos deu a morada de outra garagem
em Camden, que Leo arrendou durante vários anos. O senhor Bloom
concordou em levar os detectives até lá, logo que tenham terminado as
investigações no apartamento de Chelsea. Também existem dois cofres, que
pediremos para ver, e várias contas bancárias que nos podem dizer alguma
coisa, quando tivermos acesso a elas. Lamento que todos estes esforços
tenham sido protelados até ao dia de hoje, mas só nos deram o nome do
senhor Bloom no domingo à tarde. Contactámo—lo ontem e combinámos
que as buscas seriam feitas esta manhã.
— Mas isto é um ultraje — protestou Wallader. — Deviam—nos ter
dito tudo isto imediatamente.
— De facto, esta informação só nos foi confirmada ontem, ao fim da
tarde, através de um fax enviado do escritório do senhor Bloom
— disse Frank. — Levou algum tempo a ser reunida, devido à
complexidade dos negócios do seu filho. — Entrelaçou os dedos no colo.
— Lamento que as coisas se tenham passado assim. Por favor, acredite
que o senhor Bloom tinha concordado em me acompanhar até Guilford
depois das buscas efectuadas nas propriedades do seu filho, para clarificar e
explicar o que ele sabe sobre o património de Leo. Talvez tenha achado,
erradamente, que seria mais adequado o senhor ser informado acerca desses
pormenores através de um advogado. Parece que o seu filho tinha bastantes
haveres, cuja existência o senhor e a sua mulher desconheciam pelo pouco
que nos disse no domingo.
Lady Wallader olhou para Cheever.
— Ele tinha um andar em Kensington, que teve de vender em 88 para
pagar as dívidas — disse com ar cansado. — Perdeu tudo no colapso da bolsa
e teve de viver numa casa alugada em Kew, durante cinco anos, até que
conheceu Jinx e foi viver com ela.
Frank consultou o fax de Bloom.
— Seria um andar em Kensington Garden Road? Ela acenou com a
cabeça.
— Faz parte do seu património, Lady Wallader, juntamente com três
andares em Kew e dois em Hampstead. A lista das suas propriedades é a
seguinte: uma casa com cinco assoalhadas em Chelsea, que esteve alugada
até Abril deste ano; nessa altura ele deu ordens a Bloom para a manter
desocupada; um andar em Kensington que está livre de momento mas que é
para alugar; dois andares em Hampstead que estão alugados; um edifício de
três andares em Kew, que foi convertido em três apartamentos há quatro
anos, todos eles alugados; uma casa na Bretanha, que é alugada durante o
Verão e quando Leo não precisa dela e um condomínio na Florida, que é
alugado durante todo o ano a pessoas em férias. Consegue lembrar—se onde
ficava o apartamento alugado?
— The Avenue, Kew — murmurou ela.
— Tremayne, The Avenue, Kew? — perguntou—lhe ele.
— Sim.
— Ele comprou toda a propriedade há oito anos por duas mil e
oitocentas libras, Lady Wallader. Talvez a senhora tenha feito confusão
quando ele mencionou uma casa alugada.
— Não — disse ela. — Levou—nos a pensar que estava com
dificuldades financeiras, mas eu sabia que ele estava a mentir. Senão, talvez
tivesse feito o que ele queria e lhe tivesse emprestado algum dinheiro.
Olhou para ele com os olhos vermelhos.
— Foi a Jinx que lhe deu o nome do senhor Bloom?
— Sim — confirmou ele.
— Isso significa que ela está melhor? Falei com a madrasta dela ao
telefone e ela disse—me que Jinx tinha perdido a memória. Fiquei com muita
pena.
— Parece que é só uma amnésia parcial, Lady Wallader. Dois dos meus
detectives falaram com ela no domingo e a maior parte das coisas que ela
recorda têm a ver com acontecimentos que se passaram duas semanas antes
do acidente.
— Mas que conveniente — disse Sir Anthony furioso. — Percebe que,
provavelmente, ela está a mentir?
Frank ignorou—o.
— Gostava dela, Lady Wallader?
— Sim, gostava — disse ela baixinho. — Mas ela estava zangada da
última vez que a vimos e achei que Leo andava a fazer das suas outra vez. É
difícil ser—se objectivo com os nossos próprios filhos, superintendente.
Continua—se a gostar deles apesar de todos os seus pecados e, por mais que
se deseje, os pecados não vão embora.
O marido agarrou—lhe o braço com força.
— Estás a ser desleal — disse ele zangado.
Fez—se um breve silêncio.
— Estou a dizer a verdade, Anthony — disse ela calmamente.
— Não quer dizer que eu amasse menos o Leo. Sabes isso. Ignorou os
dedos fortes que se lhe cravavam na carne.
— A única verdade que importa agora é que o teu filho foi assassinado
— resmungou ele. — Queres que o criminoso saia impune?
Ela olhou para ele.
— Não — disse ela —, por isso é que é importante que o
superintendente saiba a verdade.
— Está a magoar a sua mulher, Sir Anthony — disse Frank calmamente.
Com um ar perturbado, Sir Anthony virou—se para ele sem expressão.
— A sua mão, acho que devia tirá—la. Obedientemente, ele abriu a
mão.
— Diga—me porque é que Jinx estava zangada na última vez que a viu.
— Porque estava farta das mentiras dele — disse Lady Wallader
prosaicamente. — Como todas as outras namoradas que Leo teve. No fim
acabavam todas por descobrir que todo aquele charme escondia uma
personalidade muito egoísta. — Olhou por um instante para o marido.
— Ele não sabia partilhar, nem mesmo em criança. Tornava—se
bastante violento quando outra criança lhe pedia uma coisa emprestada e, por
fim, acabámos por o levar a uma psicóloga, que diagnosticou um desajuste na
sua personalidade. Ela disse—nos que não havia nada a fazer, mas que
provavelmente ele iria aprender a controlar melhor a sua agressividade à
medida que fosse crescendo.
— E aprendeu?
— Suponho que sim. Já não usava os punhos, mas não posso jurar que
ele se sentisse menos zangado interiormente por ter que partilhar o que tinha.
Era muito imaturo.
— A menina Kingsley descreveu—o como excessivamente reservado.
Acha que foi assim que ele resolveu o problema? Recusando—se a divulgar
aquilo que possuía.
— Sim. — Fez um gesto em direcção ao fax. — Bem, parece que é
verdade. Não fazíamos ideia de que ele tinha tanta coisa. Eu sabia que ele
estava muito melhor de vida do que dava a entender, mas não a este ponto.
Tenho a certeza de que parecemos muito ingénuos, superintendente, mas a
vida sem Leo era tão mais calma quando lhe permitíamos que guardasse os
seus segredos.
Frank esperou um momento.
— Disse que a Jinx estava farta, Lady Wallader. Isso significa que foi
ela que desmanchou o casamento?
Foi o marido que respondeu.
— Não — disse ele com firmeza. — Foi muito malcriada connosco mas,
com que fim, continua a ser um mistério. Não disse em nenhuma ocasião que
não queria casar—se. Foi o Leo que lhe disse que não ia haver casamento,
quando ela por fim parou de gritar.
— Ele explicou porquê?
— Disse que estava a ter um caso com a Meg Harris e que ia casar—se
com ela.
— E qual foi a reacção da Jinx?
— Ficou chocada — disse ele. — Era a última coisa que esperava e
olhou para ele completamente chocada.
— Concorda, Lady Wallader? Ela olhou para cima.
— Sim — admitiu ela —, concordo. Ela não disse nada, mas não
esperava uma resposta como aquela. Fiquei com a impressão de que estava
muito zangada, mas acho que ainda ficou mais zangada com a Meg do que
com o Leo. Agora é difícil de avaliar. Ficámos todos muito aborrecidos e,
francamente, o Anthony e eu ficámos aliviados quando eles se foram embora.
— Quando foi isto?
— Foi no fim—de—semana em que houve um feriado, no fim de Maio.
Cheever franziu o sobrolho.
— No entanto, de acordo com as provas que temos, a última coisa de
que a menina Kingsley se lembra, é de ter dito adeus a Leo no dia 4 de Junho,
quando partiu para ir visitar os pais. Porque é que Leo ainda estava em casa
dela, uma semana depois de dizer que planeava casar com a sua melhor
amiga?
— Não sabemos — disse Sir Anthony. — Saíram daqui, furiosos um
com o outro, depois o Leo telefonou mais tarde para nos pedir que não
disséssemos a ninguém antes de ele nos avisar. Mas não explicou porquê e só
telefonou duas semanas depois. Foi no sábado, dia 11 de Junho, e disse que
ele e a Meg iam desaparecer até que a confusão passasse. — As suas
sobrancelhas uniram—se, dando—lhe um ar zangado. — Aceito que o Leo
tenha os seus defeitos, mas ele era um partido muito bom para a filha de um
patife do East End. A minha opinião é que ela não o ia largar com facilidade.
Enfureceu—se naquele fim—de—semana de Maio e depois, sem uma boa
razão, mudou de ideias. É assim que eu vejo as coisas. Ficou com ele até ir
para Fordingbridge, depois perdeu—o novamente para a Meg, enquanto
esteve fora. Quero dizer, se ela estava a planear sair da situação, então porque
é que durante a semana que passou no Hall não pediu ao pai para mandar
anunciar que o casamento não se iria realizar? Seria a altura mais indicada
para o fazer. Está a ver, as coisas não batem certo.
— Sim — disse Cheever devagar —, percebo o que quer dizer.
15
Terça—feira, dia 28 de Junho, Clínica Nightingale Salisbúria —
11.30 h

QUANDO ALAN PROTHEROE chamou Jinx ao seu escritório para lhe


dar a notícia da morte de Meg e Leo, ela afastou—se dele, indo sentar—se no
canto do sofá de couro branco, com uma expressão infeliz. Ele interrogou—
se se ela estaria a prestar atenção, ou se escolhera apagar o que não queria
ouvir, como tanta coisa na sua vida. Recusou—se a ser acalmada pela
simpatia da voz dele ou pelo seu olhar de compaixão, sentindo que ambos
eram falsos. O doutor Protheroe não era um homem em quem se pudesse
confiar, pensou ela.
— Além da identidade dos dois corpos, duvido que muitos dos outros
detalhes no jornal sejam verdade — terminou ele calmamente. — Parece—
me que o pai do Leo fez comentários virulentos num momento de dor dos
quais, provavelmente, virá a arrepender—se, mas acho que podemos contar
com outra visita da polícia e eu não queria que soubesse isto por eles.
Ela dignou—se a dirigir—lhe um sorriso forçado.
— Já sei isso desde sábado à noite. Mas você já sabia, não é verdade?
Ele acenou com a cabeça.
— Quem lhe disse?
— Simon Harris. Telefonou ontem à tarde. Queria avisar—me de que a
história seria publicada hoje.
Um olhar de alívio passou pela cara dela.
— Simon? — Perscrutou a cara dele. — Por que razão se daria ele ao
trabalho?
— Penso que ele e o pai acham que este tipo de tratamento — bateu com
o jornal no colo — não é justo. Afirmou que a mãe e o Sir Anthony estavam
a tentar fazer justiça pelas próprias mãos.
— A Caroline não gosta nada de mim — disse ela desconsolada.
— Por alguma razão sempre me culpou pelo comportamento da Meg.
Acha que a Meg começou a andar em má companhia. Suponho que olhou
para o Adam e decidiu, tal pai, tal filha.
— Isso é normal. Todos nós culpamos outras pessoas pelos falhanços
dos nossos filhos. — Fez uma pausa. — Porque não me disse que a visita da
polícia a tinha incomodado?
Ela esfregou os olhos.
— Não confio na polícia — disse ela — mas é uma forma de paranóia
de que eu não gosto muito. Podia estar a imaginar coisas. Não fazia sentido
estar a preocupá—lo desnecessariamente até eu ter a certeza.
— Podia ter—me dito ontem.
— Ontem estava paranóica com o que o meu pai estaria a planear. Ele
levantou as mãos num gesto de desespero.
— Como posso eu ajudá—la se guarda tudo para si?
— O senhor é um homem muito arrogante — disse ela sem hostilidade.
— Não lhe passou pela cabeça que eu posso não querer a sua ajuda?
— Claro — disse ele rudemente —, mas isso não significa que eu tenho
de parar de lha oferecer. Acha que os meus outros pacientes querem a minha
ajuda mais do que você? Começam com boas intenções, mas passadas
algumas horas, a maior parte deles trepam as paredes por não poderem sair
para irem arranjar uma dose. A única arrogância que vejo é do seu lado, Jinx.
— Porquê?
— Acha—se suficientemente esperta para me enganar a mim, à polícia e
ao seu pai.
Ela voltou a olhar para ele.
— Certamente que desprezo idiotas, que se fecham nas suas torres de
marfim e ignoram o que se passa cá fora — disse ela com rispidez.
— Russell foi assassinado. Durante dez anos evitei qualquer tipo de
envolvimento sério. Depois, quando achei que a poeira tinha assentado,
deixei—me ir e apaixonei—me pelo Leo. Agora ele também está morto,
juntamente com a única amiga que eu tive. Por isso, diga—me, que tipo de
ajuda me está a oferecer? Ajuda é lembrar—me as mortes do meu marido, da
minha amiga e do meu amante? — Parecia muito zangada.
— Eu gosto das coisas como estão. Não quero lembrar—me de nada.
Não quero saber nada. Não quero sentir nada. Só quero poder tirar
fotografias surrealistas, onde todos os meus medos e desejos reprimidos
competem para se exprimirem numa justaposição peculiar, susceptível de
pureza e corrupção. — Mostrou—lhe os dentes num sorriso feroz.
— E isto é uma citação directa de uma crítica do meu trabalho no
Sunday Times. É um disparate pretensioso, mas soa lindamente.
Ele abanou a cabeça impaciente.
— Sabe perfeitamente que não é um disparate. Já vi alguns dos seus
trabalhos publicados e esse tema aparece sempre. — Inclinou—se para a
frente. — Parece que vê o mundo em termos extraordinariamente
contrastantes. Preto e branco. O bom e o mau. Para cada acto de bondade,
uma crueldade; para cada positivo, um negativo. Porque é que não existem
para si zonas cinzentas, Jinx?
— Porque a perfeição só pode existir num enquadramento imperfeito.
Num enquadramento perfeito torna—se vulgar.
— Então é a perfeição que a fascina?
Ela susteve o olhar dele durante um momento, mas não respondeu.
— Não — disse ele, respondendo por ela —, é a imperfeição que a
fascina. Sente—se mais atraída pelo preto do que pelo branco. — Observou a
cara dela de perto. — Os segundos planos das suas fotografias são sempre
mais constrangedores do que o tema, excepto em poucos casos em que você
virou a ideia ao contrário, fazendo da fealdade o tema, e da beleza o
enquadramento.
Ela encolheu os ombros.
— Acho que tem razão. O humor negro atrai—me.
— Como em schadenfreude ?
— Sim.
— Está errada, mulher. Você sente angústia pelos outros enquanto a
única pessoa de quem se ri é apenas de si própria. — Repetiu—lhe as suas
próprias palavras — «A minha educação foi uma perda de tempo. O Sunday
Times escreve disparates pretensiosos sobre a minha arte. Não me quero
expor ao seu olhar, porque você fará de mim uma anedota para contar no
clube de golfe.» — Fez uma pausa. — Está a rir—se do Leo neste momento?
Deveria estar, se gosta da schadenfreude. Não há humor mais negro do que o
desaparecimento oportuno de alguém que lhe fez mal.
— Posso pensar em várias outras situações — disse ela sem ânimo.
— Como acordar uma manhã numa cela da polícia e lembrarmo—nos
que fomos nós a desferir o golpe de morte. Vai ser muito desagradável
quando acontecer. Ha! Ha! Ha! Vamos morrer a rir. — Olhou para a janela,
isolando—se, aumentando simbolicamente o espaço entre eles.
— Acho que não é muito provável que isso aconteça.
— Alguém os matou. Porque não poderia ter sido eu?
— Não estou a discutir se foi você ou não, Jinx. Contesto o seu acordar
um dia, numa cela da prisão, e lembrar—se de que foi você. Isso é que é
improvável. A amnésia não desaparece de um dia para o outro, por isso vai
saber muito antes da polícia a prender, se tiverem boas razões para o fazer. —
Observou—a. — Têm?
Ela continuou a olhar fixamente pela a janela, durante vários segundos,
antes de finalmente se virar para ele, suspirando.
— Estou sempre a ver a Meg de joelhos, implorando — disse —, e
ontem à noite lembrei—me de ter ido ao apartamento dela e de me sentir
terrivelmente zangada porque o Leo estava lá. Tenho pesadelos em que me
estou a afogar e sou queimada viva e acordo porque não consigo respirar.
Lembro—me de sentir emoções fortes.
Depois calou—se.
— Que tipo de emoções?
— Medo — disse ela. — De repente, toma conta de mim e começo a
tremer. Lembro—me do medo.
Estas revelações foram feitas tão de repente, que ele não estava
preparado para elas. Sentiu uma enorme tristeza porque ela parecia estar a
lembrar—se de uma culpa devastadora.
— Fale—me sobre a Meg — incitou—a ele.
— Ela estava a implorar, com as mãos estendidas. Por favor, por favor,
por favor. — As pestanas dela brilhavam com as lágrimas que tentava reter.
— Ela implorava—lhe a si?
— Não sei. Estou sempre a vê—la de joelhos.
— Onde é que estava?
— Não sei.
— Estava lá mais alguém?
— Não sei.
— Está bem. Então conte—me o que consegue recordar sobre a ida ao
apartamento da Meg quando o Leo lá estava.
— Eu só tive uma imagem do Leo a abrir—me a porta e sabia que era o
apartamento da Meg, porque o Leo tinha o Marmaduke ao colo.
Marmaduke é um gato — explicou ela. — O mais estranho é que o ouvi
ronronar, mas o resto estava completamente estático, como numa fotografia.
— Mas lembra—se de estar zangada com o Leo?
— Eu queria bater—lhe. ——.Cerrou os lábios. — É isso que recordo,
não tanto a fotografia, mas um sentimento de uma raiva incrível. De repente
apercebi—me de que o Leo me irritara e depois vi—o à porta da Meg.
— Sabe quando foi isso? Ela reflectiu profundamente.
— Deve ter acontecido depois do dia quatro de Junho, porque é a última
coisa de que me lembro: de me despedir do Leo. Ele entrou no hall e disse:
«Porta—te bem, Jinxy, e sê feliz...»
Ela voltou a cair num silêncio pensativo.
— O que foi que você lhe disse?
— Não sei. Só me lembro do que ele disse.
Ele puxou de um bloco de notas e de uma caneta.
— Diga—me o que se passou no dia anterior. Que tipo de dia foi? Ela
falou com segurança:
— Eu estava a trabalhar. Estávamos a fazer fotografias publicitárias de
uma nova banda de adolescentes. Era difícil encontrar uma coisa original,
porque eles eram muito pouco originais mas tremendamente satisfeitos com a
sua própria imagem. Quatro jovens bem—comportados e arranjados, com
dentes brancos brilhantes e peitos sem pêlos, que se julgavam tão bonitos que
bastariam alguns disparos da câmara para que todas as miúdas desmaiassem.
— De repente riu—se. — Por isso disse ao Dean para os irritar um pouco.
Passadas três horas acabámos por ter óptimas fotografias de quatro jovens
extremamente zangados, que olhavam de forma ameaçadora para a lente.
Alan riu—se também.
— O que foi que Dean lhes disse?
— Estava sempre a chamar—lhes «suas pequenas e bonitas virgens».
Depressa se irritaram, especialmente porque os deixámos para ali, durante
quatro horas, enquanto arranjávamos as luzes e as lentes. No fim odiavam—
nos, mas o resultado foi conseguirmos algumas boas fotografias.
— E depois foi logo revelar o filme?
— Não. Tínhamos um trabalho a fazer lá fora e, como estávamos
atrasados, arranjámos umas sanduíches e saímos. — Ela fez uma pausa,
confusa. — Depois fui logo para casa. — Olhou fixamente para ele.
— Então quando é que eu vi essas fotografias?
— Bem, agora não nos vamos preocupar com isso. O Leo estava em
casa quando chegou?
— Não — respondeu devagar —, mas não era suposto ele lá estar. De
repente os olhos dela brilharam com excitação. — Lembro—me de ter ido
revistar os quartos, para me certificar de que ele se tinha ido realmente
embora e depois senti—me verdadeiramente em paz, porque tinha novamente
a casa para mim. — Bateu com as mãos na cara.
— Eu lembro—me. Ele não estava lá e eu fiquei contente. Protheroe
pensou por que razão ela não reparara na evidente incoerência. Ou talvez a
incoerência fizesse parte do jogo.
— Então o que fez para festejar?
Os olhos dela brilharam subitamente divertidos.
— Bebi um litro de cerveja e comi feijão cozido de lata, fumei dez
cigarros em meia hora, vi telenovelas na televisão, e às dez e meia comi ovos
estrelados com bacon, na cama.
Ele olhou para ela com um sorriso.
— Isso é bastante preciso.
— Estava a fazer um manifesto.
— Porque eram as coisas que o Leo não aprovava?
— Apenas uma parte delas. A visão dele, de como as mulheres se
deveriam comportar, baseava—se na mãe e ela teve sempre uma vida
próspera, apaziguando constantemente um marido chauvinista.
Ele arqueou uma sobrancelha, mostrando—se interessado, mas não a
encorajou a desenvolver aquele tema.
— Então o que viu na televisão?
— Imensas telenovelas. Umas a seguir às outras. EastEnders. The BUI.
Brookside. — Sorriu. — Depois fartei—me e ouvi as notícias. As telenovelas
são muito maçadoras quando não se faz ideia nenhuma do que se está a
passar.
— Porque não viu Coronation Street?
— Não estava a dar.
— Tem a certeza?
— Absoluta — disse ela. Folheei o Radio Times e escolhi, de propósito,
as telenovelas. Se estivesse a dar, teria visto.
Ele afagou a barba pensativamente.
— Admito que não sou perito, mas tenho a certeza de que a Coronation
Street passa à sexta—feira, e você diz que se lembra que era sexta—feira, dia
três de Junho.
Levantou—se cuidadosamente da cadeira, o ombro a protestar devido ao
movimento, e dirigiu—se à secretária.
— Hilda — disse ele pelo intercomunicador — consegue arranjar um
Radio Times e trazê—lo cá? Preciso de saber os dias da semana em que não
transmitem o Coronation Street, mas em que passam o East Enders, The Bill
e Brookside.
Ouviu—se o riso dela através da linha.
— Olhem só, e eu que sempre pensei que preferia programas
intelectuais.
— Muito engraçado. Isto é importante, Hilda.
— Desculpe. Eu posso dizer—lho sem o Radio Times. Coronation
Street é às segundas, terças e quintas. The Bill é às terças, quintas e sextas e
Brookside é às terças, quartas e sextas. Por isso, se não quiser ver Coronation
Street mas se quiser os outros, então isso quer dizer terças.
— Meu Deus! — disse Alan admirado. — Vê—as todas?
— A maior parte dos dias — concordou ela alegremente. — Posso ajudá
—lo em mais alguma coisa?
— Não, obrigado, é tudo. — Voltou para o seu lugar. — Ouviu o que ela
disse? — perguntou ele a Jinx. — Parece que você se lembra de uma terça e
não de uma sexta, e também parece pouco provável que Leo tivesse voltado
para o pequeno—almoço, logo depois de ter feito as malas e de se ter ido
embora.
Ela olhou para as mãos com um ar infeliz.
— Será que você se lembra com tanta clareza do sábado, dia quatro?
Lembra—se de ter dito adeus ao Leo e foi muito categórica quanto ao dia e à
data, mas sabe porquê? O que aconteceu para reter o sábado, dia quatro, na
sua memória?
— Estava no meu diário há séculos — disse ela. — Semana no Hall,
começando no dia quatro de Junho.
— E ia mesmo partir para o Hall quando se despediu do Leo?
— Sim.
— E quantas malas levava? Ela olhou para ele confusa.
— Levava alguma mala? — perguntou ele.
— Eu sei que ia visitar o meu pai — disse ela devagar.
Ele esperou.
— E? — incitou—a ele finalmente.
— A minha carteira estava pendurada nas costas da cadeira. — Olhou
para o passado. — E uma pochette pequena de couro com uma asa comprida.
Pu—la no ombro e disse «agora vou—me embora». — Franziu o sobrolho.
— Acho que devo ter posto as malas no carro na noite anterior.
— Era isso que fazia habitualmente?
— É a única coisa que faz sentido.
— Será? — Tirou uma agenda do bolso do casaco. — Vamos trabalhar
para a frente — sugeriu ele — começando com o que sabe que é verdade.
Fale—me sobre a primeira vez que viu o Leo.

O Vicariato, Littleton Mary Wiltshire — 12.15 h

Simon Harris foi à porta e olhou, com algum desalento, para Frank
Cheever.
— Nós, isto é, o meu pai e eu — parou de falar, quando se ouviram
berros vindos da janela à direita.
— A minha mãe não está muito bem. Não consegue aceitar o que
aconteceu. Gostaríamos que ela fosse vista por um médico, mas ela não quer.
O problema é que está a fazer acusações graves e nós estamos preocupados
bem, francamente, está a acusar o pai de coisas terríveis e nós, quero dizer
eu... — calou—se quando a voz da senhora Harris se elevou num grito,
ouvindo—se as suas palavras claramente através da janela.
— Como te atreves a negá—lo? Achavas que eu não sabia como a
desejavas? Achavas que ela não me ia contar o que tu lhe fazias? Ela estava
doida para sair desta casa, estava doida para se afastar de ti. Foste tu que
fizeste dela o que ela foi, e agora atreves—te a acusá—la de fraqueza. Enojas
—me. Sempre me enojaste.
Charles Harris murmurou qualquer coisa, que não se conseguiu ouvir.
— Claro que vou dizer à polícia. Por que razão deveria proteger—te
quando tu nunca a protegeste? Seu nojento. — A voz dela elevou—se
novamente num grito. — Pedófilol — Ouviu—se uma porta a bater, seguindo
—se um silêncio.
Frank olhou para a cara chocada de Simon.
— Nada daquilo seria admissível no tribunal. Eu não podia jurar que era
a voz da sua mãe que estava a ouvir e não um programa de rádio, por isso não
se preocupe desnecessariamente. Como diz, ela está com os nervos em franja
e todos nós dizemos coisas que não queremos dizer quando estamos
zangados.
— Mas o senhor ouviu.
— Sim.
— É uma pura mentira. O meu pai nunca abusou de ninguém na vida e
muito menos da Meg. É a minha mãe que tem o problema. — A angústia
atormentava a sua cara já cansada. — Isto é horrível. Pergunto—me
constantemente porquê? O que fizemos nós para merecermos isto?
Frank foi poupado a responder, pois uma porta abriu—se atrás de Simon
e o pai pôs o braço à volta dos ombros do filho, puxando—o para dentro.
— Entre, Superintendente. Lamento que nos encontre nesta confusão. O
desgosto é muitas vezes a emoção mais egoísta.

Clínica Nightingale, Salisbúria — 12.30 h

Alan sorriu encorajadoramente, quando Jinx demonstrou os primeiros


sinais de hesitação.
— Está a ir muito bem. Mais tarde poderemos verificar tudo isto com o
Dean, mas você relatou—me tudo até à sexta—feira, dia 27 de Maio, sem
qualquer hesitação. — Consultou a agenda. — A segunda—feira seguinte,
dia 30 de Maio, era um feriado nacional. Isso ajuda alguma coisa? É pouco
provável que tenha ido trabalhar, por isso talvez tenha aproveitado a
oportunidade para passar fora um fim—de—semana prolongado.
— Sexta—feira foi o último dia em que fotografámos a passagem de
moda para a Cosmopolitan — recapitulou ela devagar. — O Dean tinha
bilhetes para um concerto rock em Wembley e tinha de se encontrar com o
namorado, às cinco horas, na estação de metro, por isso deixou—me a revelar
os filmes. Queria fazê—lo porque... — Fez uma pausa no mesmo sítio em
que parara anteriormente. — Sei que era urgente — disse ela — mas não sei
porquê.
— Havia apenas quatro dias de trabalho nessa semana, devido ao feriado
nacional na segunda—feira — disse ele — e você ia passar a semana seguinte
em Hellingdon Hall. Talvez achasse que tinha pouco tempo.
Ela olhou a meia distância.
— Miles e Fergus vieram — disse ela de repente. — Foi depois da
Angélica ter ido embora. Bateram na porta do estúdio até que eu os deixei
entrar. Um motorista de táxi vinha com eles, exigindo dinheiro. Estavam
ambos chateados. Disseram que tinham perdido todo o dinheiro ao jogo, que
não podiam voltar para casa e que precisavam de um sítio onde passar a
noite. Eu perguntei porque é que não tinham ido para Richmond e esperado
por mim, e eles disseram que Leo se recusara a pagar o táxi e que os mandara
ir ao estúdio pedir—me para pagar. O que eu fiz. — Tirou um cigarro e
observou a espiral azul de fumo na ponta durante um segundo ou dois antes
de continuar. — Agora lembro—me — disse ela com uma voz estranha. —
Fiz—lhes café e disse—lhes para esperarem no vestíbulo, até eu acabar o que
estava a fazer, mas Miles estava tão bêbado que entrou pela câmara escura,
deixando entrar a luz.
— O que aconteceu então?
— O filme com o qual eu estava a trabalhar ficou completamente
estragado e por isso fiz o que o meu pai faz e dei—lhe uma sova. — Deu uma
gargalhada rouca. — Empurrei—o para dentro do estúdio e comecei a bater
—lhe com uma cadeira de plástico. Estava tão zangada. E depois entrou o
Fergus a cambalear para saber o que se estava a passar e por isso bati—lhe
também. Mas, a pessoa em quem eu queria realmente bater, era no Leo. Foi a
última gota, mandá—los ir ter comigo, quando sabia que eu estava cheia de
trabalho.
— Como é que ele sabia?
— Porque lhe telefonei quando Dean saiu. íamos passar o fim—de—
semana com os pais dele, e ele queria sair na sexta ao fim da tarde. Por isso
telefonei para lhe sugerir que fosse andando sozinho. Eu iria no sábado, mas
ele disse que também tinha coisas a fazer, por isso, não tinha importância.
— E foi depois do telefonema que ele mandou Miles e Fergus ter
consigo?
Ela acenou com a cabeça.
— O que aconteceu?
— Decidi desmanchar o casamento. Foi o dinheiro, mais do que
qualquer outra coisa, que o levou a não ter pago o táxi. — Cerrou os lábios
zangada. — Ele andava a cravar—me dinheiro emprestado há tanto tempo e,
mesmo assim, não pagou o táxi deles. Achei que estava doida. Que diabo ia
eu fazer com aquele filho da mãe egoísta que não se importava com ninguém
a não ser ele próprio? — Olhou para Alan. — Larguei o que estava a fazer,
meti os rapazes dentro do carro e fui ter com ele para discutir o assunto. Não
estava em casa. — Ela encolheu os ombros. — Por isso encomendei uma
pizza, obriguei os rapazes a comerem um bocado e mandei—os para a cama
para recuperarem.
Fez—se um curto silêncio.
— O Miles e o Fergus não ficaram zangados quando lhes bateu?
— Acho que ficaram demasiado chocados. — Pensou
retrospectivamente. — O mais engraçado é que já tinha perdido a cabeça com
o Fergus e achei que era a primeira vez que acontecia, mas não era nada
comparado com a raiva que senti naquela noite. Lembro—me de ter gritado
tanto com eles que, no dia seguinte acordei rouca. — Sorriu levemente. —
Não lhes bati com muita força. Foi o facto de eu lhes ter batido que os
chocou. Miles desatou a chorar e disse que eu era igual a Adam e eu pensei:
Pela primeira vez entendo porque é que Adam o faz.
— E porque é, Jinx? Ela olhou para ele.
— Porque estamos tão cansados, trabalhámos tanto, ligámo—nos a
parasitas sem valor, e dois bêbados imaturos estragam tudo o que se fez
porque acham que é divertido. Naquela noite acho que os teria morto a todos.
Não consegui dormir por estar tão zangada, e só pensava que por ter tanto
trabalho atrasado, ia ter uma semana dos diabos. E continuava a preocupar—
me, porque o filme que se estragou era o único filme que valia a pena. Como
ia eu explicar à Cosmopolitan que teríamos de fazer tudo de novo?
— O Leo voltou nessa noite?
— Se voltou, não o ouvi. Fechei, por dentro, as portas da frente e de
trás, para ele não poder entrar. — Ela limpou a manga de pêlos imaginários.
— Voltou no sábado à hora do almoço.
— O Miles e o Fergus ainda lá estavam? Ela acenou com a cabeça.
— Estávamos todos na cozinha, quando ele entrou pela porta de trás.
Eles não podiam ir embora, a não ser que eu lhes emprestasse algum dinheiro
para o metropolitano para irem buscar o Porsche do Miles, que estava parado
em frente a um casino qualquer, mas eu recusava—me a pagar mais. Disse
que por mim podiam ir a pé ou então telefonar ao Adam e explicar o que
tinham andado a fazer. Ele já lhes tinha dito que se continuassem a jogar os
deserdaria. — Fechou os olhos e com as pontas dos dedos tocou nas
pálpebras como se lhe doessem. — Por isso Leo ofereceu—se para os levar.
Houve um novo silêncio.
— E o que fez você? — perguntou Alan.
— Não sei — disse ela. — Não me lembro de nada depois de eles terem
saído. Acho que devo ter adormecido. — Baixou a mão e olhou para ele com
uma espécie de desespero.

O Vicariato, Littleton Mary Wiltshire — 12.30 h

Estavam sentados na sala de estar num profundo desconforto. Caroline


Harris parecia estar agachada no sofá e o sofrimento estava gravado em cada
ruga da sua cara. Charles sentava—se o mais longe possível dela, enquanto
Simon, com um ar infeliz, se empoleirara num banco. Ofereceram a Frank,
cheio de calor e cansado, uma cadeira de couro que lhe magoava as costas.
— Já localizámos a casa de Leo em Chelsea — explicou ele — e, de
acordo com a informação que nos deram pelo telefone, antes de eu sair, há
várias caixas e malas que parecem pertencer à sua filha. Numa busca
preliminar, descobriu—se um álbum de fotografias que mostra várias
fotografias de Meg e de Leo, tiradas em Julho de 1983. — Dirigiu a pergunta
à senhora Harris. — Tinha conhecimento de que eles se relacionavam, pelo
menos, há onze anos?
Os seus lábios formaram uma linha muito fina.
— Não — disse ela.
— Ela era uma pessoa reservada, senhora Harris? A mulher olhou, cheia
de desprezo, para o marido.
— Comigo não. Contava—me tudo. Era do pai que guardava segredos.
— Isso não é verdade — disse Simon.
Frank olhou para ele.
— Diria que ela era reservada?
— Muito. Ela não queria que ninguém soubesse nada sobre a vida dela e
muito menos a mãe ou o pai. Especialmente, a mãe. Ela sabia quanto a mãe
odiava o sexo, por isso só lhe contou, recentemente, com quantos homens
dormira e só o fez porque estava zangada.
— Fechou os olhos para evitar ver a dor da mãe. — Ela adorava o sexo,
via—o como expressão saudável da vida, do amor e da beleza e não
suportava que pensassem que era sujo e nojento.
— Tu também a desejavas, Simon — disse Caroline num murmúrio —
tal como o teu pai. — Não interessava que fosse tua irmã. Achas que eu não
reparei? Vi como olhavas para ela.
A cara de Simon ruborizou—se levemente.
— Eras tu que a fazias sentir pouco à vontade — disse ele em voz baixa
— não o pai. Tudo o que ela fazia era o oposto do que tu tinhas feito.
Foi decentemente educada, rejeitou Deus, adorava o sexo, ficou solteira e
mergulhou na vida de Londres para fugir da esterilidade dos bons costumes
da aldeia. Viveu mais durante os trinta e quatro anos do que tu alguma vez
viverás numa vida inteira. — As lágrimas brilhavam nos seus olhos. — Ela
não sufocava a vida, ela glorificava cada minuto como se fosse o último.
Quem me dera que nós o pudéssemos fazer também.
Fez—se um silêncio desesperado e terrível. Frank pigarreou.
— Uma das fotografias tem uma legenda, um pouco misteriosa. Diz
assim: — consultou o bloco de notas — «Felicidade AA». Disseram—me
que Meg está sentada ao colo de Leo numa praia. Sabem o que significa
AA*? Parece pouco provável que AA seja a Associação Automobilística ou
os Alcoólicos Anónimos.
Simon olhou para a mãe, mas ela retirara—se para o seu mundo interior
e embalava—se suavemente no sofá.
— «Depois do Aborto» — disse ele em voz baixa. Os casais falam
sempre das suas vidas AC — Antes das Crianças. Meg referia—se sempre à
vida depois do aborto como um tempo com dois AA. Ela nunca se
apercebera, anteriormente, como seria horrível ter crianças, e agradecia a
Deus ter descoberto, a tempo, não ser feita para ser mãe.

* After Abortion, no original (NR).

— Leo era o pai?


— Eu não sei. Ela nunca me disse quem era e eu não perguntei.
— Você soube do Leo antes dos seus pais?
— Não sabia quem era. Sabia que ela tinha um amante, há bastante
tempo, que ia e vinha entre os seus outros casos. Gostava muito dele,
chamava—lhe o seu velho disponível. Presumo que se tratava de Leo uma
vez que já o conhecia há onze anos.
— Ela alguma vez disse porque não se casou com ele? Simon encolheu
os ombros.
— Uma vez disse que ele estava permanentemente falido, mas eu acho
que a verdade é que ela não queria casar—se. E não queria filhos, com
certeza. — Olhou para o pai. — Ela sempre achou que eu me integrava
melhor na nossa família do que ela e tinha medo de trazer ao mundo uma
criança que não fosse bem recebida. Dizia que não era
justo.
— Não pode ter sido o Leo — disse o pai. — Certamente que ela não ia
descrever um homem com uma casa em Chelsea como alguém que estivesse
permanentemente falido.
Frank Cheever meteu ao bolso o bloco de notas.
— De facto, ele tinha várias propriedades, tanto neste país, como lá fora,
mas ninguém sabia nada sobre isso, nem mesmo os pais. Ele tinha o hábito de
se fazer passar por pobre e, segundo o seu advogado, os seus bens
constituíam uma fortuna considerável. A menina Kingsley descreve—o como
um parasita, obsessivamente reservado quanto ao dinheiro. A mãe descreve—
o como um jovem perturbado, com uma aversão patológica a partilhar. Não
tinha, de forma alguma, um carácter honesto e franco, por isso é muito
provável que tenha dado a impressão à sua filha de que não tinha dinheiro.
— Mas que trágico. — Charles Harris parecia desgostoso. — Temos
tendência a pensar que esse tipo de pessoa já não existe, sobretudo entre os
jovens. Suponho que temos que culpar Dickens por ter criado uma
personagem tão paradigmática que em comparação outros exemplos deixam
de chamar a atenção. — Viu a expressão perplexa de Simon. — Avarento —
explicou ele. — Miseráveis. Pessoas que necessitam de acumular riqueza,
mas que não conseguem gastá—la. De tempos a tempos ouve—se falar delas
nos jornais, pessoas velhas que morreram numa degradação chocante e que
deixaram ficar uma fortuna. — Entrelaçou as mãos no colo. — Como eu
digo, não é uma coisa que se associe à juventude, mas suponho que um
avarento seja um avarento a vida toda. Pobre Leo. Mas que situação tão triste.
A mulher dele começou a gritar. Era um som horrível e estridente que
gelava a compaixão e punha os nervos em franja.

Clínica Nightingale, Salisbúria — 12.45 h

— Vamos seguir um caminho diferente — sugeriu Alan. — Você disse


que ia passar o fim—de—semana, com o Leo, a casa dos seus pais. Lembra
—se de o ter feito, ou desistiu da ideia, quando decidiu que não se ia casar
com ele?
A expressão de Jinx desanuviou—se.
— Não — disse ela — nós fomos. Tive uma discussão com eles. Parece
que tive discussões com toda a gente nesse fim—de—semana.
— Não me surpreende. Estava sob uma grande pressão. Só faltavam
poucas semanas para o casamento e você estava com dúvidas se devia casar
—se ou não.
— Mas por que razão fui com ele se sabia que não nos íamos casar? —
Era um puzzle, mas achava que Protheroe não o conseguiria resolver.
Ele lembrou—se de ela ter aceite o convite de Matthew Cornell para o
almoço.
— Presumo que estivessem à sua espera, por isso talvez achasse que ir
era uma questão de boa educação.
— Sim — disse supreendida. — Achei que não seria justo, para com
Philippa, não ir.
— Fale—me da discussão.
— Lembro—me tão bem — disse ela. — Foi depois do almoço de
segunda—feira. Perdi as estribeiras quando o Leo pediu algum dinheiro ao
pai e Anthony disse que tinha pouco, porque tinha sido obrigado a pagar um
trabalho de constução que tinha encomendado. — Abanou a cabeça. — O
trabalho estava pronto há seis meses e ele estava zangado porque o construtor
tinha ido falar com um advogado. — Fez uma careta manhosa. — Eu estava a
controlar—me há vinte e quatro horas e fiquei doida. Chamei—lhe todos os
sinónimos de miserável de que me lembrei, depois voltei—me para o Leo e
esbofeteei—o violentamente.
A pobre da Philippa estava muito incomodada, tive pena porque ela
sempre foi muito querida comigo. — Suspirou. — Quem me dera ter tido o
bom senso de não ir. Não foi um espectáculo muito edificante. Acho que não
fazia senão cuspir, porque as palavras não me saíam suficientemente
depressa.
— Foi nessa altura que disse ao Leo que já não havia casamento? Viu
um olhar de irritação na cara dela.
— Não tive hipótese. Fiz apenas imenso barulho, gritei, berrei e chamei
—lhe nomes. Não me lembro o que pensei que estava a fazer, excepto que
estava a tirar todo o veneno do meu corpo. Foi o Leo que disse que não ia
casar—se comigo. — Deu uma pequena gargalhada. — Anunciou que tinha
um caso com a Meg e que estava a planear casar—se com ela. — Olhou para
ele. — Eu disse—lhe que não me iria suicidar por causa do Leo e da Meg.
Agora acredita? Lembro—me do meu alívio, quando ele o disse. Graças a
Deus, pensei, estou livre.
— Mas deve ter sido um choque.
— Suponho que sim. Nunca pensei que ela o fizesse novamente, não
depois do que aconteceu com o Russell.
Ele ficou perdido.
— Fazer o quê novamente?
Ela olhou para ele sem expressão.
— Era a história que se repetia — disse ela impaciente, como se fosse
uma coisa que ele deveria saber. — A Meg tinha um caso com o Russell
quando ele foi assassinado.

Mistério envolve a relação do casal assassinado

A polícia do Hampshire revelou esta tarde que o casal assassinado, Leo


Wallader, de 35 anos e Meg Harris de 34, tinham escondido das famílias a
sua relação de onze anos. «Nesta altura ainda não percebemos», afirmou o
superintendente Cheever que está a chefiar a investigação «por que razão o
segredo era importante, mas esperamos que, ao publicarmos fotografias
deles, alguém que os tivesse conhecido como casal se apresente». Um outro
mistério envolve o património de Leo Wallader, que foi avaliado em mais de
um milhão de libras. «Ele dizia a amigos e a parentes que estava com
dificuldades financeiras» declarou o superintendente Cheever «e foi uma
surpresa para toda a gente descobrir o que ele realmente possuía.»
Sir Anthony Wallader, o pai de Leo, que ontem acusou a polícia do
Hampshire de inércia, recusou—se a comentar os assuntos financeiros do
filho. «A minha mulher e eu estamos demasiado incomodados para falarmos
com alguém» afirmou ele. Na ausência de um testamento, Sir Anthony e Lady
Wallader como parentes mais próximos, herdarão a fortuna do filho. Pensa
—se que Sir Anthony seja ele próprio detentor de uma fortuna considerável .
O superintendente Cheever concordou que a polícia do Hampshire se
sentia incomodada com as acusações de ineficácia. «Temos trabalhado
duramente para encontrarmos o assassino de Meg e Leo», declarou aos
jornalistas «mas casos como este não são fáceis. O período de tempo durante
o qual eles mantiveram uma relação, confere uma importância diferente ao
acontecimento, restando—nos apenas descobrir, porque é que manter o
relacionamento secreto era tão importante neste caso».
Continuou, dizendo que reconhecia a pressão em que ambas as famílias
se encontravam e lamentou qualquer falta de sensibilidade que a polícia do
Hampshire pudesse ter demonstrado. «Temos tendência a assumir» admitiu
«que as famílias das vítimas percebem que estamos a trabalhar arduamente
por elas. Mas nem sempre isto é reconhecido e, de futuro, teremos cuidado
para que não haja mal—entendidos.»
Southern Evening Echo — 28 de Junho
16
Terça—feira, 28 de Junho, Clínica Nightingale Salisbúria — 12.50 h

ALAN PROTHEROE PASSOU uma mão cansada pela cara, depois


levantou—se da cadeira e dirigiu—se inquieto em direcção à janela. Poderia
ele jurar que acreditava em tudo que Jinx lhe contara? Quando tudo o que ela
afirmava lembrar—se podia ser tão fantástico como ela quisesse, pois não
havia ninguém para a contradizer. Havia três pessoas mortas e todas elas
estavam intimamente ligadas a esta mulher. A lógica dizia que ela devia saber
alguma coisa sobre as suas mortes. Também era lógico que o pai soubesse
alguma coisa, caso contrário porque teria ele enviado a filha para aqui com
instruções tão precisas em relação ao seu tratamento? Parecia que Adam
estava tão ansioso como ela que as suas recordações permanecessem
adormecidas.
— Não tenho a certeza de poder acreditar nisso — disse ele de costas
viradas para ela. — Descreveu—me o Russell, apenas há alguns dias, como
sendo possessivo e ciumento. Disse que o seu casamento era sufocante.
Agora diz—me que ele e a sua melhor amiga tiveram um caso. Não bate
certo, pois não?
— Russell acreditava em critérios duplos — disse Jinx com moderação.
— Se ele era capaz de enganar a alfândega, não acha que seria igualmente
capaz de enganar a mulher?
— Sabe, isso não é uma resposta. A obsessão por uma mulher não leva,
normalmente, aoflirt com outras mulheres. Não acha que os dois se excluem
mutuamente?
— Depende de que tipo de obsessão você está a falar. Russell estava
muito mais obcecado com ele próprio, do que comigo. Eu era pouco mais do
que um troféu, que ele podia mostrar aos seus amigos de meia—idade, a
noiva—criança, que o adorava tanto que renunciara à fortuna e à fama, para
se casar com ele. A Meg era um tipo de troféu diferente, que lhe provava que
era sexualmente activo e atraente aos quarenta e tal. Mas não tínhamos mais
valor para ele, do que os quadros da sua colecção. Ele gostava de ter coisas.
— O meu problema é ter de acreditar em si. Infelizmente para Russell,
os mortos não falam.
— Há alguma razão para não acreditar na minha palavra? — Ela disse—
o sem hostilidade, mas havia raiva nos seus olhos. — De repente é um polícia
e no entanto há dez minutos só queria ajudar. Fez menção de se levantar. —
Isto é apenas um exercício profissional para si e, de qualquer maneira, estou
com fome. Quero almoçar.
Ele recusou—se a deixar—se intimidar.
— Não seja tão infantil — disse bruscamente. — Um cepticismo
saudável e um desejo de ajudar não se excluem mutuamente, Jinx. Se calhar
um até reforça o outro. Convença os cépticos e terá aliados fortes. Talvez se
mudasse a sua opinião em relação à polícia, nesse campo, pudesse libertar—
se da sua paranóia e fazer uma tentativa positiva de ajudá—los a encontrar o
assassino da Meg e do Leo. Ou sente—se tão pouco disposta a fazê—lo,
como se soubesse o nome do assassino de Russell?
Ela olhou para ele com desagrado.
— Vou telefonar ao coronel Clancey e pedir—lhe para lhe mandar os
diários e as cartas de Russell. Estão guardados na minha estante em casa. Se
lhe interessa saber o que ele escreveu, no dia em que nos casámos, foi o
seguinte: «Senti—me óptimo e estava com óptimo aspecto. Vesti um fato de
veludo preto e uma camisa de cetim branca. O discurso foi um sucesso em
humor e cultura. Que pena estarem tão poucos convidados para o
apreciarem.» Interpreto—o como uma auto—obsessão, mas eu sou
declaradamente uma mulher arrogante e fiquei ofendida por a noiva nem
sequer ser mencionada.
— No entanto, estou admirado por não ter mencionado a relação deles
antes. Não acha estranho que a Meg tenha dormido com o Russell e com o
Leo? Ela tinha o hábito de roubar os seus namorados?
— Se quiser ser exacto, era eu que os roubava a ela. Ela teve um caso
com o Russell durante seis meses, aborreceu—se e apresentou—mo a mim.
Fez o mesmo com o Leo, disse—me que ele era um parceiro de negócios,
acrescentou que ele e eu nos daríamos tão bem como uma casa a arder.
Percebi que um parceiro de negócios significava amante.
— Não se importava por ficar com os que ela rejeitava?
— Toda a gente é rejeitada por alguém. De certa forma é mais fácil se
conhecermos a nossa antecessora, porque nessa altura sabemos que não
estamos a competir com uma supermulher.
Ele voltou a sentar—se.
— Está a fugir à pergunta. Ficou perturbada?
— Apenas em retrospectiva. Meg era bastante mais atraente do que eu e
não ligava absolutamente nada aos sentimentos das outras pessoas, em
particular dos homens. Não tinha pejo em começar a andar com alguém, trocá
—lo, dois ou três meses depois, por outra pessoa. O pior é que eu sou menos
entendida no assunto, por isso apanhava com os idiotas todos, quando lhe
dava jeito a ela.
— Mas ela voltava a andar com eles mais tarde quando lhe dava jeito.
Ele abanou a cabeça genuinamente admirado.
— Se isto é verdade, Jinx, então não percebo porque a descreve como a
melhor amiga que alguma vez teve.
— Não estou a fazer isto muito bem — disse ela, surpreendentemente
optimista ao ver a descrença dele. — Você teria gostado da Meg. — Ordenou
os seus pensamentos. — Olhe, quando digo que ficava com eles, não
significa que a responsabilize pelo que acontecia depois. Dizia—me
constantemente para não me casar com o Russell, que eu era doida em me
ligar a alguém aos vinte e um anos, mas já era tarde demais. Eu não podia
abandoná—lo depois do que Adam lhe tinha feito e isso não era culpa da
Meg.
Alan duvidava bastante de que Meg Harris fosse uma mulher de quem
ele teria gostado. Se Jinx tinha dito alguma coisa de verdadeiro, era sobre a
sua incapacidade de tomar decisões sensatas sobre a sua vida pessoal,
principalmente no que se referia à escolha dos seus amigos. Parecia ser
completamente cega quanto aos seus pontos fracos e ele conjecturou se ela
teria consciência de que apenas as personalidades egocêntricas a atraíam.
Seria porque achava difícil distinguir entre o egoísmo e a autoconfiança? Ela
tinha tantos sentimentos confusos, em relação ao pai dominador, que não era
para admirar que não conseguisse perceber as outras pessoas.
— Suponho que também não foi culpa da Meg ter uma ligação com o
Russell depois de ele ser casado?
Ela olhou para ele durante um momento.
— Não totalmente. Presumo que o Russell tenha tido alguma coisa a ver
com o assunto. — Encolheu os ombros. — De qualquer maneira, foram
muito discretos. Só vim a descobrir depois da morte dele e, nessa altura, eram
águas passadas.
— Quem lhe contou?
— Ninguém. Ela escreveu—lhe algumas cartas, que ele tinha escondido
entre um monte de velhos papéis de exame, no sótão, em Richmond. Eram
bastante queridas — disse ela, lembrando—se. — O que é mais triste é que
eu acho que ela o amava realmente, mas não conseguia pensar em ligar—se a
uma pessoa. Tinha um medo horrível de acabar como a mãe, no papel de
esposa obediente.
— Alguma vez falou com ela sobre Russell?
— Não.
— Porque não?
— Não vi razão para isso.
— A polícia sabe?
— Se sabem, nunca o mencionaram.
— Porque não o mencionou você?
— Porque só encontrei as cartas um ano depois e, nessa altura, o caso
estava oficialmente encerrado. — Puxou o lábio inferior. — Acho que não
faz ideia do que é fazer parte de um inquérito sobre um assassínio. Não é uma
experiência muito agradável. Eu teria de ter alguma razão muito mais forte do
que algumas cartas de amor, para nos obrigar a todos a passar por tudo aquilo
novamente.
Ele inclinou—se para a frente.
— Então durante os nove anos que se seguiram fingiu que nada
acontecera e, depois, quando soube do caso dela com o Leo teve medo que a
história se repetisse.
Ela não disse nada. Talvez tivesse a noção de que tudo soava falso e
como o seu comportamento devia parecer estranho nestas circunstâncias.
— Então o que fez, Jinx?
— Achei que era melhor se ninguém soubesse, por isso, quando
voltámos para Londres, disse a Leo para telefonar aos pais a pedir—lhes para
não dizerem nada até que ele lhes desse autorização. Disse que precisava de
falar primeiro com o meu pai. — Apoiou o queixo nas mãos e olhou com um
ar miserável para o tapete. — Mas não me lembro se falei ou não com o
Adam, por isso não sei se... — Calou—se repentinamente.
— Não sabe se lhe deu uma razão para os assassinar.

53 Lansing Road, Salisbúria, Wiltshire — 13.15 h

A mulher—polícia Blake meteu um pé na abertura da porta de Flossie


Hale e recusou—se a retirá—lo.
— Não me vou embora até ter falado consigo — disse ela com firmeza
—, por isso o melhor é deixar—me entrar.
Passado um segundo ou dois a pressão contra o pé dela cedeu e a porta
abriu—se de repente. Flossie olhou para ela sem entusiasmo, com a cara
cheia de nódoas negras de vários tons. Com um braço engessado segurava um
roupão de algodão com um padrão em relevo no peito largo, parecendo vinte
anos mais velha do que os seus quarenta e seis.
— O que quer?
— Só quero conversar. Como se sente agora?
— Assim—assim. — Respondeu, respirando com dificuldade,
mostrando—se amargamente divertida. — Ainda um pouco dorida quando
me sento, mas sobrevivo.
Dirigiu—se para uma pequena sala de estar cheia de móveis demasiado
grandes.
— O melhor é sentar—se — disse ela sem graça, apoiando os braços
gorduchos num aparelho de televisão e encostando—se a ele. — Eu devia
estar na cama, mas não posso dizer que me apeteça muito neste momento.
Tentei convencer o hospital a deixarem—me ficar um pouco mais tempo mas
tiraram—me de lá por causa de um rapaz com hemorróidas.
Olhou, desconsolada, para a outra mulher.
— Suponho que a vida seja bastante deprimente para todos, nos dias que
correm.
Blake acenou com a cabeça.
— Parece que sim. Só oiço histórias infelizes.
— Eu não me importava tanto se não tivesse que pagar impostos. Temos
o direito de esperar alguma coisa em troca de todo o dinheiro que pagamos.
Pessoalmente, Blake achava muito pouco provável que Flossie alguma
vez tivesse declarado o que ganhava, mas anuiu complacentemente.
— Concordo consigo e, por isso, é que estou aqui. Uma parte do que se
deveria esperar, num país civilizado, é paz de espírito e segurança, mas acho
que não vai ter nem uma coisa nem outra até termos encontrado o homem
que a atacou. — Ignorou a expressão de resistência teimosa de Flossie e tirou
o bloco de notas da carteira. — Você não é a única prostituta que ele
espancou. Houve outra, há três meses, e ele foi também muito mauzinho com
ela. Ela diz que ele lhe pagou quarenta libras. Foi isso que ele lhe pagou a si?
— Deve ter sido — respondeu Flossie de mau humor.
— Ela também declarou que ele estava à espera de alguém jovem e
atraente e que se virou contra ela, quando viu que ela tinha idade para ser mãe
dele. Foi essa a sua experiência?
— Pode ter sido — disse ela novamente.
— Ela põe anúncios em cabines telefónicas e em montras de lojas. Acho
que também é assim que arranja clientes, não é?
— Talvez.
— Está bem, nos últimos dias andei a tirar informações entre as
raparigas que se anunciam da mesma forma e, embora pareça que nenhuma
delas sofreu o mesmo que você e a outra mulher, três delas deram—me uma
descrição de um jovem bem—falante e bonito, que se tornou agressivo
durante o acto. — Consultou o seu bloco de apontamentos. — Uma delas
disse que ele lhe torcera os cabelos e que quase os arrancara pela raiz. Outra
disse que ele lhe bateu na cara com a escova e a terceira contou que lhe tinha
tirado a peruca e que depois ficara tão zangado que a enfiara dentro da boca
dela. Essa rapariga contou que ele depois pedira desculpa e que lhe pagara
dez libras a mais pelo incómodo. — Olhou para Flossie — Todas as três
raparigas têm cerca de vinte anos, mas todas elas concordaram que ele tinha
uma obsessão por cabelos e escovas de cabelo. Isto diz—lhe alguma coisa,
Flossie?
Ela suspirou.
— Parece que andou a fazer horas extraordinárias, minha querida.
Continue, qual é a descrição?
Blake leu:
— Altura, cerca de um metro e oitenta. Magro, musculoso, de peito
peludo. Bem parecido, cara de rapaz, cabelo louro—escuro e levemente
ondulado, possivelmente mais claro dos lados e olhos azul—acinzentados.
Não tinha pêlos na cara. Uma rapariga achava que ele depilava as
sobrancelhas, porque eram muito finas e tinham uma forma bonita. As roupas
variavam entre um fato escuro e camisa branca e umas Levi's e uma t—shirt
branca. Todas elas disseram que ele era limpo, bem—falante e provavelmente
educado numa escola privada. Acha que condiz?
— Parecia que a manteiga se lhe derretia na boca mas, meu Deus, que
brutamontes que era. — Com uma mão tocou nas nódoas negras.
— Vou—lhe dizer uma coisa, ele não conseguia aguentar—se mais de
meio segundo. A gritaria, os berros e a pancada, era para fingir que conseguia
manter a erecção. Da primeira vez, não percebi, quero dizer, não se sente
muito, quando já se anda nesta vida há tanto tempo como eu. Mas, da
segunda vez, nem sequer teve tempo de introduzi—lo, porque se veio logo. E
castigou—me violentamente por isso. Não era só o facto de eu ter idade para
ser mãe dele, embora eu achasse que tinha alguma coisa a ver com isso, foi
principalmente porque ele não era potente.
— Há alguma coisa que possa acrescentar à descrição? Ela abanou a
cabeça.
— Lamento. Era muito bem parecido, lindo, lembrava—me um pouco o
Paul Newman em The Hustler. Não que isso tenha algum significado para si,
é demasiado nova para se lembrar — Fez uma pausa durante um momento.
— Mas disse coisas estranhas. — «Não sou culpado por o meu pai me ter
tornado mau». Essa foi uma delas. E quando ia a sair: «Nunca antes tive que
matar uma mulher.»
— Antes de quê?
Flossie olhou para ela morosamente.
— Acho que ele queria dizer que já tinha batido em muitas raparigas,
mas que nenhuma delas tinha morrido. — De repente estremeceu.
— Meu Deus, ele era doido, tinha dupla personalidade. Parecia um anjo
quando chegou e transformou—se num zombie, com olhos enormes e fixos,
no minuto em que ficou excitado. É um milagre que ainda não tenha morto
ninguém, isso é o que eu acho.
Blake concordou com ela.
— Sabe como ele chegou cá? De carro? A pé?
— Não sei. Espero que a campainha toque e deixo—os entrar. —
Franziu o sobrolho. — Espere, ele tinha umas chaves de carro com ele.
Lembro—me de ele as tirar do bolso, quando saiu. Tinha um casaco bem
bonito, justo, com chumaços nos ombros, tirou as chaves do bolso e segurou
—as na palma da mão, enquanto me dizia que era melhor eu não abrir a boca.
— Franziu a testa, concentrada. — O porta—chaves tinha um disco preto.
Estava pendurado entre os dedos dele e lembro—me de o ter fixado, porque
não queria que pensasse que eu estava a olhar para ele. — De repente, os
olhos dela brilharam. — Tinha um F e um H em letras douradas, são também
as minhas iniciais e foi essa a razão por que reparei nelas. Sabe uma coisa?
Acho que FH são as iniciais daquele doido!

Clínica Nightingale, Salisbúria, Wilstshire — 13.30 h

Ouviu—se bater à porta e Hilda enfiou a cabeça através dela.


— Lamento incomodá—lo, doutor Protheroe, mas estão lá fora o
inspector Maddocks e o sargento Fraser. Já lhes disse que está ocupado, mas
eles insistem que é importante demais para ficarem à espera.
— Cinco minutos — disse Alan.
A porta abriu—se para trás, antes que Hilda pudesse responder, e
Maddocks empurrou—a para entrar na sala.
— É importante, senão eu não insistiria. — Parou quando viu Jinx. —
Menina Kingsley.
Alan franziu o sobrolho zangado.
— Desde quando é que o facto de ser polícia lhe dá o direito de irromper
pelo consultório de um médico, sem ser convidado?
— Peço desculpa — disse Maddocks — mas já esperámos quinze
minutos e precisamos mesmo de falar consigo com urgência.
Jinx levantou—se.
— Não faz mal, doutor Protheroe, eu volto mais tarde.
— Preferia que ficasse — disse ele, olhando para ela com uma clara
mensagem nos olhos escuros. — Não posso deixar de sentir que isto é
psicologia barata.
— Para quem? — perguntou—lhe ela, com um brilho malicioso no
olhar. — Illi intus aut illi extra?
Procurou no seu latim a tradução. As pessoas de dentro ou as de fora,
decidiu ele.
— Oh!, illi extra, claro — disse ele acenando imperceptivelmente em
direcção a Maddocks. — «Caput odiosus iam maximus est». — A sua cabeça
odiosa já tem o tamanho máximo, era o que ele desejava ter dito.
Jinx sorriu—lhe.
— Se reconhece isso, doutor Protheroe, então eu não me importo que
seja má psicologia. Significa que está em vantagem. De qualquer maneira,
estou realmente esfomeada e por isso, pedindo desculpa por desertar, acho
que vou ver se almoço. — Fez—lhe um breve aceno com a cabeça e
esgueirou—se, passando por Fraser e Hilda, que estavam junto à porta, sem
saberem o que fazer.
— Está bem, Hilda, obrigado. — Fez um gesto em direcção ao sofá.
— Sentem—se, senhores.
— Posso perguntar o que é que a menina Kingsley lhe disse? —
perguntou Maddocks ao sentar—se.
— Lamento, mas não faço ideia nenhuma, disse Alan amavelmente.
— Era tudo chinês para mim.
— O senhor respondeu—lhe.
— Consigo produzir aquilo à farta — disse ele. — Vos mensa puel—
larum dixerunt babebai nunc nemo conduxit». Não faço ideia do que
significa, mas soa sempre bem. Em que posso ser útil?
Maddocks, admitindo a derrota silenciosamente, olhou para o Times,
que estava dobrado em cima da mesa do café.
— Calculo que o tenha lido.
— Li.
— Então sabe que o senhor Leo Wallader e a menina Meg Harris estão
mortos.
— Sei.
Maddocks olhou para a cara dele de perto.
— A menina Kingsley sabe? Alan acenou com a cabeça.
— Eu disse—lhe depois de ler a notícia.
— Qual foi a reacção dela?
Ele olhou para o inspector de alto a baixo.
— Ficou muito chocada.
— Também lhe disse que o homem que o atacou ontem à noite, tinha
um malho?
Alan pensou sobre aquilo.
— Não me lembro — confessou. — Falei dessa ocorrência a todos os
meus pacientes, hoje de manhã, mas não me lembro se dei pormenores
precisos ou não. — Olhou para Maddocks com curiosidade. — Porquê? —
perguntou ele. — Vê alguma ligação entre o ataque de que fui vítima e as
mortes do senhor Wallader e da menina Harris?
Maddocks encolheu os ombros.
— Certamente, achamos interessante que a menina Kingsley e um
malho sejam os únicos factores comuns entre três assassinatos e um ataque
violento — disse ele com rispidez.
— Sendo o terceiro assassínio o primeiro marido da menina Kingsley.
— Bem, lamento, mas não percebo a sua lógica. Vamos supor
simplesmente que há uma ligação entre o homicídio de Russell Landy e o do
senhor Wallader e que essa ligação é o afecto da menina Kingsley por ambos
os homens. Casamento no primeiro caso e planos para casamento no
segundo. E continuemos, novamente apenas como hipótese: como o senhor
Wallader mudou de ideias e resolveu casar com a menina Harris, alguém
decidiu que ela também tinha que morrer. Como é que o ataque de que fui
vítima se ajusta a este enredo? Conheço a menina Kingsley há uma semana e
acho que ela é uma pessoa consciente e que funciona. Temos uma relação de
médico—paciente. Não sou, nem casado com ela, nem estou noivo dela. Não
dormi com ela e também não estou a planear fazê—lo. Não conheço nenhum
dos seus amigos e ela não conhece os meus. É hóspede na minha casa, paga
pela estadia e pode ir—se embora quando quiser. — Os seus olhos cerraram
—se enquanto especulava. — Será que não entendi alguma coisa, que torne
esta maneira de forjar o encadeamento dos factos pelo menos meio credível?
— Sim — disse Maddocks calmamente. — A coincidência. É uma coisa
que nós, como polícias, não podemos realmente ignorar. A nossa experiência
mostra que onde há fumo há fogo. — Sorriu levemente. — Ou, por outras
palavras onde a menina Kingsley está, existe também um malho.
— Está a sugerir que é ela que brande aquela coisa?
— Nesta altura, não estou a sugerir nada. Estou apenas a chamar a sua
atenção para a coincidência. Seria insensato, se fizesse de conta que não
existe.
— Bem, tenho a certeza de que não foi ela, quem me atingiu ontem à
noite. Não é, nem suficientemente grande nem suficientemente forte e, a
julgar pela constituição e pela altura, foi um homem.
— Soubemos que ontem teve uma visita do advogado do pai dela.
— Também não foi ele, Inspector. É um sujeito pequeno, com pés e
mãos delicados. Tê—lo—ia reconhecido imediatamente, com máscara de
esquiador ou sem ela.
Maddocks sorriu.
— Eu estava a pensar em termos do próprio senhor Kingsley. Talvez
tenha dito alguma coisa ao advogado que o patrão dele não tivesse gostado?
— Não sei. Nunca conheci o senhor Kingsley, por isso não faço ideia
como ele é. — Pensou durante um momento. — De qualquer maneira, tenho
a certeza de que foi um homem jovem e o senhor Kingsley tem sesssenta e
seis anos.
— E o Fergus Kingsley? Ele também está na sua lista. Alan acenou com
a cabeça.
— Sim, ele tem uma estatura idêntica. O mesmo se passa com o criado,
que me serviu o jantar de ontem, mas as minhas conversas com ambos foram
perfeitamente amigáveis e não consigo imaginar nenhum deles a darem—se
ao trabalho de ficarem à espera, na clínica, para me baterem. — Mas estaria
ele certo ? Já tinha encontrado o Fergus duas vezes e, em nenhuma das
ocasiões, se sentira a vontade com ele.
Maddocks reparou na súbita expressão de concentração de Protheroe.
— Conte—me de que falou com Fergus Kingsley — pediu—lhe ele.
— De nada de especial. Estava ao pé do meu carro, quando eu saí.
Exprimiu interesse em comprá—lo, tanto quanto consigo lembrar—me e,
depois, convidou—me para ir conhecer o irmão. Eu expliquei que estava com
pressa e sugeri que o fizéssemos noutra altura. Depois fui—me embora.
Fraser olhou para ele de sobrolho franzido.
— Mas o senhor não estava com pressa. De acordo com o relatório que
vimos, decidiu ir dar um passeio de carro e comer uma refeição decente,
porque já há algum tempo que não tinha uma noite livre.
Alan deu novamente uma risada cordial.
— Dei uma desculpa simpática e fui—me embora. É assim tão
estranho? Tinha passado muito tempo a falar com o advogado do pai dele,
estava com fome e tinha—me prometido a mim mesmo uma refeição
excelente. Correndo o risco de parecer mal—educado, não—me apetecia
passar mais meia hora a fazer conversa com um estranho.
— Então nunca conheceu o Miles Kingsley?
— Não.
— Mas ambos os irmãos vieram cá visitar a irmã. — Era mais uma
afirmação do que uma pergunta e Alan interrogou—se sobre como é que
Maddocks teria sabido.
— Parece—me que o Miles veio cá, na última quarta—feira cerca das
nove horas, quando eu não estava de serviço. O Fergus veio no sábado.
— Então ambos conhecem isto aqui. —Afirmou de novo. Alan franziu o
sobrolho.
— Fergus falou com a Jinx no jardim, por isso provavelmente saberia
encontrar o caminho até à árvore onde estiveram sentados, e Miles, que a
visitou no quarto, saberia provavelmente ir até lá novamente. Mas significa
isso que se poderiam movimentar por aqui à vontade? Eu não diria isso.
— Estava a pensar mais em termos do percurso.
— Por amor de Deus! — disse Alan impacientemente. — Qualquer
doido pode esperar nos arbustos, perto de um portão, que alguém entre. Não é
preciso conhecer um sítio para seguir um carro que vai a cinco quilómetros à
hora, que era a velocidade a que eu ia, porque não queria acordar os pacientes
fazendo barulho na gravilha. — Suspirou pesadamente. — Olhem, a não ser
que tenham algo de mais concreto para me dizerem, não vejo razão para
continuarmos. A minha opinião é que deviam falar sobre as vossas suspeitas
à menina Kingsley, ao pai e aos irmãos. — Acenou com a cabeça em
direcção ao Times. — De facto, se como estão a seguir, existe uma ligação
tão forte entre os três homicídios, partilho a surpresa de Sir Anthony e da
senhora Harris por ainda não terem feito nada.
— Defende muito essa família. Tem alguma razão especial para o fazer?
— Tal como?
— Talvez seja mais parcial em relação à menina Kingsley do que quer
demonstrar e talvez fosse por isso que alguém achou conveniente atacá—lo
com um malho.
Alan alisou o queixo pensativo.
— Mas não seria preciso eu ter dito a alguém que era parcial em relação
à menina Kingsley, para provocar tal reacção?
— Não necessariamente. Pareceram—me bastante íntimos, quando há
pouco falaram chinês um com o outro. Talvez alguém tenha descoberto que
os seus sentimentos, em relação a ela, não são assim tão reservados, como o
senhor diz.
O riso estrondoso de Alan provocou uma contracção nos lábios de
Fraser.
— Eu estava apenas a brincar consigo, Inspector, quando disse que era
tudo chinês para mim.
Levantou—se.
— Duvido, ipso facto, que possamos confiar em qualquer uma das
conclusões a que chegaram. Agora, se me dão licença, tenho doentes para
ver.
Lá fora, Maddocks franziu o cenho numa expressão zangada enquanto
procurava o auscultador do telefone do carro.
— Ligue—me ao superintendente Cheever — grunhiu ele — e diga—
lhe que é urgente. Fala o inspector Maddocks e estou na Clínica Nightingale
em Salisbúria.
Tamborilava impacientemente com os dedos no capo do carro.
— Sim, senhor. Não, tivemos alguns problemas aqui. O doutor está a
fazer—se difícil e isto parece—me tudo pouco claro. Ele e a rapariga estavam
a conversar muito bem, quando chegámos, e eu acho que ele sabe muito mais
do que está a dizer. Sim, o Fraser concorda comigo.
— Olhou para o sargento, num pedido de apoio. — Não, acho que agora
devíamos falar com ela. Estamos aqui, ela já nos viu e sabe que Wallader e
Harris morreram. Se demorarmos mais tempo, terá um advogado para
defender os seus interesses. De facto, até estou admirado por o pai não ter
mandado um para cá, ou então, talvez o médico seja o cão de guarda. — Os
seus olhos brilhavam triunfantemente.
— Está bem. — Continuou a ouvir durante um momento. — Sim,
percebi. Cartas do Landy... aborto em 84... Wallader ou Landy o pai.
Voltou a colocar o telefone no lugar e sorriu com desprezo para Fraser.
— Deram—nos a chance de mostrar um pouco de iniciativa, pá, por isso
vamos agarrá—la bem. E aconteça o que acontecer, não quero aquele médico
idiota e arrogante por perto. Por isso, não pedimos permissão, nada de
confianças, está bem? — Acenou com a cabeça em direcção ao caminho que
dava a volta ao edifício e que conduzia ao terraço. — Vamos por aqui.
Jinx estava sentada na cadeira de braços, vendo o noticiário local na
televisão, e não reparou nos dois homens que se aproximavam. Sentiu que as
sombras deles tapavam o sol, na parte de trás da sua cabeça rapada quando,
sem fazerem barulho, atravessaram a soleira das janelas abertas. Adivinhou
imediatamente de quem se tratava. Sem pressa, utilizou o comando para
desligar a televisão e virou—se para trás para olhar para eles.
— Aqui há uma regra em que os visitantes têm primeiro de pedir
autorização, antes de imporem a sua presença aos doentes. Acho que não
fizeram isso, pois não, Inspector?
Maddocks entrou calmamente e sentou—se na cama dela, como já o
fizera anteriormente.
— Não — disse ele rudemente. — Isso significa que você está a pôr
objecções em ajudar a polícia?
— Várias — disse ela —, mas imagino que não fará qualquer diferença.
— Sorriu friamente. — De qualquer forma, para si não. — Olhou para Fraser
com um olhar inquiridor. — Talvez faça diferença ao seu companheiro. —
Examinou, de perto, a cara mais jovem e mais agradável. — Não? Bem, nem
todos podemos ter princípios, suponho eu. Seria um mundo muito, muito
aborrecido.
— Está muito atenta para uma pessoa que perdeu a memória —
comentou Maddocks.
— Ai, sim?
— Sabe que sim.
— Não sei, não — disse ela. — Sou a primeira pessoa que conheço com
amnésia, por isso não tenho um padrão de comparação. No entanto, se estiver
interessado, uma pessoa não se transforma num zombie, só porque lhe faltam
alguns dias da sua vida. — Sorriu—lhe divertida. — Suponho que não se
lembra de todas as mulheres com quem dormiu, inspector, principalmente se
estava bêbado quando o fez, mas isso não o afectou, pois não? — Pegou num
cigarro. — Ou talvez tenha afectado e é, por isso, que me acusa de estar
atenta.
— Aceito o seu argumento — disse ele amavelmente.
Ela acendeu o cigarro com o isqueiro e olhou para ele através do fumo.
— Freud teria gostado disso — observou ela preguiçosamente. Ele
franziu o sobrolho.
— O quê?
Ela riu—se baixinho.
— Da sua observação um tanto infeliz, à qual se seguiu a minha
descrição dos seus hábitos sexuais. Freud teria suspeitado que é isso que as
suas amigas lhe dizem no momento do coitus. — Ela ouviu Fraser a
resfolegar divertido. — Não é importante, Inspector. — Depois calou—se.
Maddocks não estava a gostar.
— Temos algumas perguntas para lhe fazer, menina Kingsley. Ela
observou—o, mas não disse nada.
— Sobre Leo e Meg. — Esperou. — Sabemos que o doutor Protheroe
lhe disse que eles estão mortos.
Ela acenou com a cabeça.
— Deve ter sido um choque.
Ela voltou a acenar com a cabeça.
— Bem, perdoe—me por dizer isto, menina Kingsley, mas o choque não
durou muito tempo, pois não? O seu noivo e sua melhor amiga foram
espancados até à morte com um malho, as caras deles ficaram desfeitas como
a do seu marido e, no entanto, está aqui calmamente sentada, fumando um
cigarro e dizendo piadas. Mostra o desgosto da forma menos convincente que
eu alguma vez vi.
— Desculpe, Inspector. Sentir—se—ia melhor, se eu me portasse como
uma mulher e chorasse à sua frente?
Ele ignorou—a.
— Tão pouco convincente, francamente, como este disparate da
amnésia.
— Desculpe? — Comprimiu os lábios num sorriso selvagem. —
Desculpe, mas já não me lembro do que estávamos a falar.
Maddocks olhou para Fraser, que se ria para si próprio.
— Estamos a falar das mortes de três pessoas, menina Kingsley, todas
elas intimamente relacionadas consigo e que foram brutalmente assassinadas.
Russell Landy, Leo Wallader e Meg Harris. Além disso, estamos a falar de
um violento ataque ao doutor Protheroe, ocorrido ontem à noite e, se não
fosse a sua rápida reacção, teria acontecido o mesmo espancamento de que
foram vítimas o seu marido, o seu noivo e a sua melhor amiga. Presumo que
ele lhe tenha contado que foi atacado com um malho?
Fez—lhe a pergunta e esperou pela reacção.
— Não contou — disse ela em voz baixa.
— Como se sente em relação a isso?
— Óptima — disse ela. — Não espero que o doutor Protheroe me conte
tudo.
— Não a incomoda, um pouco, o facto de ter sido usado um malho,
menina Kingsley?
— Sim.
— Então diga—me agora que acha a situação divertida, porque eu não
acho, nem as desgostosas mães, cujos filhos foram tirados de uma vala,
cheios de larvas, na última quinta—feira.
Ela deu uma passa no cigarro e evitou olhar para ele.
— Digo—lhe o que o senhor quiser, Inspector — disse ela com um
estranho tom de voz — porque não fai fazer qualquer diferença. — Voltou a
olhar para ele. — Você vai distorcer o significado de tudo o que eu disser.
— Isso é um disparate, menina Kingsley.
— Experto credite. Confie naquele que já passou por isto. — Sorriu—
lhe debilmente. — O senhor não é diferente dos outros. Também queriam
provar que o meu pai era o assassino.
17
Terça—feira, 28 de Junho, Clínica Nightingale Salisbúria — 14.30 h

FRASER COLOCOU—SE NA linha de visão de Jinx. Puxou a segunda


poltrona para a frente e sentou—se, as mãos entrelaçadas nos joelhos, a cara a
menos de um metro da dela. Agarra a iniciativa, dissera o inspector. E Fraser,
pelo menos, era suficientemente inteligente para reconhecer que não
chegariam a lado nenhum, usando a intimidação. Mas, ao contrário de
Maddocks, não sentia que tinha alguma coisa a provar, pelo menos contra as
mulheres.
— Estamos realmente a tentar manter um espírito aberto — assegurou—
lhe ele —, mas achamos difícil ignorar a semelhança no método de matar, e o
facto de as três vítimas serem todas suas conhecidas, embora haja um espaço
de tempo de dez anos. Não estamos a falar de conhecidos, menina Kingsley,
estamos a falar sobre os dois homens que, provavelmente, estiveram mais
perto de si durante a sua vida e da mulher que, na altura do seu acidente, foi
descrita pelos pais como a sua melhor amiga. — Sorriu com humor. — Vê o
problema que temos aqui? Mesmo para o observador mais imparcial, o seu
envolvimento com as três pessoas pode parecer importante.
Ela acenou com a cabeça. Meu Deus! Pensaria ele que ela era pateta?
— Eu percebo isso. Também me parece importante, mas não sei dizer—
lhes porquê. Já pensei no assunto várias vezes e continuo a esbarrar no
assassino de Russell. — Apagou o cigarro, para não soprar o fumo para a
cara dele. — A razão, por que nunca foi solucinado, foi a polícia de Londres
ter—se concentrado em mim e no meu pai. Fomos ambos absolvidos de um
envolvimento indirecto, porque não havia uma razão óbvia, para eu querer o
Russell morto. O meu pai, por outro lado, odiava—o e não fazia segredo
disso, por isso a polícia convenceu—se de que ele tinha contratado alguém
para o matar e, assim, deixaram de procurar outra pessoa. Mas suponha que
estavam errados? Suponha que o meu pai não teve nada a ver com o assunto,
qual é a importância de eu conhecer as três vítimas? Percebe o que quero
dizer?
— Acho que sim. Está a dizer que se outra pessoa matou Russell, então
pode haver uma ligação desconhecida entre os assassínios.
— Sim, e se cometerem o mesmo erro que a polícia de Londres, essa
pessoa desconhecida vai sair incólume.
— É um pouco difícil de aceitar, menina Kingsley. Mandaram—nos
relatórios detalhados do caso Landy, e não há qualquer alusão a uma pessoa
misteriosa.
Ela abanou vigorosamente a cabeça.
— Mas há. Passei a vida a falar—lhes sobre um artista que Russell
tratou mal. Ele mencionou duas vezes tê—lo visto nas proximidades da
galeria de arte e disse que se ele voltasse novamente, participaria à polícia.
Depois foi assassinado. — Ela estendeu as mãos num gesto suplicante. —
Tenho a certeza de que é este homem que deviam procurar.
— Foi mencionado no relatório, mas parece mais provável que fosse o
assassino contratado pelo seu pai, do que um artista ressentido. Seria
diferente, se tivesse dado à polícia uma descrição ou um nome mas, segundo
percebi, não pôde dar—lhes qualquer informação.
— Porque eu não sabia nada. Tudo o que eu lhes podia dizer era o que
Russell me tinha dito. Um artista foi à galeria com alguns maus quadros,
Russell disse—lhe que eram maus, o homem insultou—o e Russell ordenou
—lhe que saísse. Ele nunca me falou do assunto na altura, mas disse—me
mais tarde, por duas vezes, que reparara num homem a vigiar a galeria e que
achava que era o mesmo artista. — Ela suspirou. — Sei que não é muito, mas
nunca ninguém se mostrou minimamente interessado em seguir essa pista.
Estavam todos tão convencidos de que tinha sido o meu pai...
— Acha que tinham razão ? Ela não respondeu.
— Ele não fazia segredo de não gostar do seu marido. Oh!, eu conheço
todos os argumentos. Na altura, ouvi—os vezes sem conta. O meu pai
conhecia gente no submundo capaz de aceitar um contrato para matar. Ele é
impiedoso, duro, começou a vida no mercado negro e pensa—se que fez
milhões graças a práticas de negócio desonestas, embora ninguém fosse
capaz de o provar. Tem as credenciais de um padrinho da Máfia nacional, a
mesma lealdade cega para com a família e, para ele, a morte de um genro
odiado seria uma maneira natural de resolver um problema. — Sorriu sem
esperança. — Até me mostraram uma avaliação psicológica da personalidade
dele, baseada em factos conhecidos da polícia, na qual foi retratado como um
psicopata com uma energia sexual fenomenal. Parece que era por isso que
visitava prostitutas, uma vez que eu era o verdadeiro objecto do seu desejo,
não podendo por isso satisfazer adequadamente as suas necessidades animais.
Fraser esperou um momento.
— E acha que nada disso era verdade? — incitou—a ele.
— Não sei — disse ela com honestidade —, mas não vejo porque é que
isso pode interessar. A polícia conseguiu essa avaliação de carácter, mas não
conseguiu ligar Adam à morte de Russell. Não significa que Adam,
provavelmente, nada teve a ver com o assunto?
Fraser abanou a cabeça relutantemente.
— Pode significar que tenha pago uma grande quantia em dinheiro, para
manter a distância entre ele e o assassino. — Mas também ele achava
interessantes os olhos escuros naquele rosto pálido, e tentou amaciar um
pouco o golpe. — Isso não significa que eu não queira pensar no assunto,
menina Kingsley. Para um contrato de homicídio foi um trabalho malfeito:
Russell ainda estava vivo, quando o encontrou, por isso o assassino teve
muita sorte em safar—se, bem como a pessoa que o contratou.
Molhou os lábios secos com a língua, antes de se encostar abruptamente
para trás e de tapar o nariz e a boca com as mãos.
— Eu devia ter pensado nisto há muito tempo — disse ela com uma voz
abafada. — Meu Deus, que idiota que fui. — Tirou as mãos da cara. — O
meu pai é um perfeccionista em tudo o que faz — disse ela — bem como as
pessoas a quem ele dá emprego. Nenhum deles se atreveria a fazer um
trabalho malfeito. Adam tê—los—ia esfolado vivos.
Fraser olhou para ela curioso.
— Quer dizer, acha que ele era capaz de mandar matar Russell, mas que
de facto não o fez?
— Sim. — Ela inclinou—se novamente para a frente. — Olhe, o meu
pai esteve em Londres naquele dia, por isso o seu álibi não era perfeito. Ele
não pagaria para se distanciar, acabando por se comprometer. E além do
mais, como disse, Russell ainda estava vivo quando o encontrei e poderia ter
sobrevivido, se eu tivesse chegado lá mais cedo. Adam nunca usaria uma
pessoa tão incompetente que deixasse a vítima consciente uma hora depois de
ter sido atacada.
— Talvez o assassino tivesse sofrido algum precalço...
— Não — disse ela excitada. — Não percebe? Se Adam tivesse
ordenado o assassínio, teria dado instruções para que Russell fosse morto em
qualquer lugar, menos na galeria. Ele sabia que eu era a única pessoa, que
tinha outra chave, por isso sabia que o mais provável era eu encontrar o
corpo, a não ser que alguém entrasse por trás e visse que a janela do armazém
tinha sido partida. — Ela reparou no cepticismo dele. — Por favor, Sargento
— implorou—lhe —, oiça o que estou a dizer. A polícia disse que Adam
estava tão apaixonado por mim que tinha uns ciúmes doentios de Russell.
Mas se isso fosse verdade, teria mandado matar Russell longe de mim.
Certamente que não era suposto ficar vivo e esvair—se em sangue até morrer,
sendo eu, nessa altura, a pessoa que provavelmente o iria encontrar. A última
coisa que ele queria era que eu tivesse um esgotamento nervoso e que me
refugiasse na minha concha. Não acha?
Fraser ficou impressionado com este argumento.
— Deu esse argumento à polícia de Londres?
— Como? Acabei de pensar nele agora mesmo. Olhe — insistiu ela —,
sei que parece estranho, mas quando uma coisa terrível nos acontece,
tentamos bloqueá—la o mais depressa possível, para não ficarmos doidos.
Antes do meu esgotamento, nunca tive tempo para pensar no assunto como
deve ser, havia a polícia, o funeral, o aborto... Hesitou levemente. — E
depois quando saí do hospital, decidi não voltar a pensar mais no assunto,
nunca mais. Foi só depois do meu acidente que começou tudo a voltar. Os
pesadelos, ver Russell no chão, o sangue... — Ela hesitou de novo, mas desta
vez não continuou.
Maddocks ouvira a troca de palavras com um cepticismo crescente, mas
falou de maneira suave.
— A polícia não estava virada para um assassino contratado, menina
Kingsley. Sempre achou que o seu pai poderia ter brandido o malho. Vamos
imaginar que ele foi até à galeria e que ele e Russell tiveram uma discussão.
Acha que ele se importaria, nessa altura, que encontrasse o corpo ou não?
Estaria a salvar a sua própria pele e a pôr—se a milhas o mais depressa que
pudesse.
Jinx virou—se para olhar para ele.
— Tem que decidir entre uma coisa e outra, Inspector. Se Adam é o
criminoso organizado, que querem que ele seja, então teria arranjado maneira
de evitar a confusão. E não teria deixado Russell com vida. — Pressionou a
palma da mão contra a testa. — Ele não comete erros, Inspector.
— Quase matou à pancada um negro — disse Maddocks casualmente —
que se tornou seu tio. Talvez isso fosse outro erro. Talvez ele quisesse matá
—lo também.
Jinx deixou cair a mão no colo e colocou—a por cima da outra. Sentia—
se muito mal, mas sabia que Maddocks tiraria partido, se ela dissesse alguma
coisa. Concentrou—se em Fraser, querendo que ele respondesse.
— Vamos dizer que tem razão, menina Kingsley — disse o sargento,
passado um momento — e que há outra ligação entre os três assassínios. Tem
alguma ideia do que ou de quem possa ser?
— A única coisa de que me lembro é da Meg — disse—lhes ela
gravemente. — Era tão íntima de Russell e de Leo, como eu.
Maddocks agitou—se de novo.
— Estava mais perto — disse ele rudemente. — De acordo com algumas
cartas e diários encontrados em casa de Leo, a sua amiga Meg Harris estava a
ter um caso com o seu marido, na altura da sua morte e também se deitava
regularmente com o seu noivo. Um deles, e pelo que ela própria escreveu no
diário não sabia qual dos dois, era o pai de uma criança, que ela abortou,
pouco tempo depois do assassinato de Landy.
Fez—se um breve silêncio antes de Jinx ficar corada.
— Não me admira que ficasse tão transtornada, quando eu perdi o meu
bebé — disse ela devagar.
Maddocks franziu o sobrolho.
— Não parece muito surpreendida com a ligação deles.
— Eu sabia — disse ela —, mas não sabia que ela tinha feito um aborto.
Pobre Meg. Devia sentir—se culpada, se achava que o filho dela era também
filho do Russell.
— Então também não falou disto à polícia de Londres? Ela aguentou o
olhar dele durante um momento.
— Como poderia eu falar—lhes numa coisa da qual não tinha
conhecimento? Foi só muito tempo depois da morte do Russell que descobri
o caso entre eles.
— Ah! — murmurou ele —, acho que poderia ter previsto isso. Foi a
menina Harris que lhe disse?
— Não.
Repetiu o que dissera a Alan Protheroe, sobre as cartas no sótão e a sua
relutância em reabrir velhas feridas.
— Mas, talvez, se eu tivesse dito alguma coisa, a Meg e o Leo ainda
estivessem vivos — concluiu ela deprimida. — É muito mais fácil ser—se
sensato depois dos acontecimentos.
— Sim — disse Maddocks pensativamente. — As coisas parecem
demorar muito tempo a germinar no nosso espírito, não é? Quem mais sabia
da existência desta relação?
— Acho que ninguém sabia. Eu disse—lhe que eles eram discretos.
— Falou ao seu pai no assunto?
— Quer dizer, quando descobri? — Ele acenou com a cabeça. — Não vi
razão para o fazer.
— A mais alguém? Ela abanou a cabeça.
— Apenas ao doutor Protheroe. Disse—lhe esta manhã. Maddocks
acenou com a cabeça.
— Alguma vez discutiu a morte de Landy com a menina Harris?
— Uma ou duas vezes, antes de eu ir para o hospital — disse numa voz
pouco uniforme. — Já tínhamos falado antes, mas nunca depois.
— Ela disse—lhe quem achava que o podia ter feito?
Ela apoiou a face na mão e tentou lembrar—se de episódios.
— Foi há tanto tempo — disse —, e nenhuma de nós queria pensar
muito no assunto, mas acho que ela concordava com a opinião inicial da
polícia, porque foi a única a sair nos jornais. Um assalto que correu mal.
Tanto quanto sei, é o que a maior parte das pessoas ainda pensa.
— Então ela nunca soube que o seu pai e você estavam sob suspeita?
Ela fingiu pensar no assunto. Toda a gente sabia, seu estupor... todos
os meus amigos... por que diabo acha que tenho estado tão só nos
últimos dez anos ?...
— Tive de dar à polícia uma lista dos nossos amigos, a maior parte deles
eram amigos do Russell, mas a Meg constava como minha amiga e lembro—
me de ela me ter dito que a polícia andava a fazer perguntas sobre a relação
entre Adam e Russell. — De repente franziu o sobrolho. — Sabe, lembro—
me agora. Fez um comentário um pouco estranho. Disse: «Vão continuar a
pedir informações, mas acho melhor deixar as coisas como estão. Já sofremos
tanto.»
— O que queria ela dizer com isso?
— Na altura pensei, provavelmente, que estava a falar da relação entre
Adam e Russell, dizendo que não via necessidade em dar mais pormenores.
Mas agora penso que podia estar a referir—se à sua própria relação com o
Russell. Sei que a polícia tentou encontrar provas para qualquer coisa
parecida, partindo do princípio que ele podia ter sido morto por um marido
ciumento. — Fez uma pausa durante um momento. — Mas ela sabia que eu
ignorava a existência do caso entre eles, por isso, talvez não quisesse magoar
—me sem necessidade, revelando o facto à polícia.
— Deve ter ficado perturbada, quando finalmente descobriu —
comentou Fraser.
Ela virou—se para ele visivelmente aliviada.
— Sei que vai parecer pouco sensível, mas de facto senti—me melhor.
Há meses que Russell e eu não nos dávamos bem e eu sempre me senti
culpada por isso. É horrível quando alguém morre e tomamos consciência de
que o tornámos infeliz. Pensava continuamente, se eu tivesse feito isto, ou se
eu tivesse feito aquilo — sorriu perturbada — e afinal foram umas cartas de
amor que me libertaram daquele peso.
Maddocks observou aquela declaração com uma objectividade cínica. A
história era demasiado conveniente e polida e, por trás, via o trabalho do
doutor Protheroe.
— Então deixe ver se eu percebi, menina Kingsley — disse ele
sarcasticamente.
— Primeiro: na altura da morte de Russsell Landy, não se estavam a dar
bem, mas disse à polícia de Londres que sim. Segundo: acreditava que o seu
pai era capaz de mandar matar o seu marido, mas defendeu—o na mesma.
Terceiro: Russell e a sua melhor amiga estavam a ter um caso, mas a senhora
não sabia de nada e ela não o revelou à polícia. Quarto: ela fez um aborto da
criança que concebera ou com o seu marido ou com o homem que mais tarde
se tornou seu noivo, mas nem a senhora nem a polícia de Londres foram
informadas. Quinto: quando descobriu que a sua amiga e que o seu marido
tinham tido uma ligação, guardou a informação para si. Sexto: a sua melhor
amiga, que tinha tido um caso com o seu marido e sabia que o seu marido
tinha sido assassinado, continuou no entanto a reviver um velho caso com o
seu noivo, persuadindo—o assim a abandoná—la a si. Sétimo: ela e ele foram
em seguida assassinados de uma forma idêntica à morte do seu marido,
embora em locais diferentes. Acha que é um resumo justo do que acabou de
nos contar?
— Sim — disse Jinx com sinceridade. — Tanto quanto sei, está certo.
Tomando em consideração o aborto e a forma como Meg e Leo foram
assassinados, é a verdade. São essas as únicas duas coisas que eu não sabia.
Ele assentiu.
— Está bem, então eu só tenho uma última pergunta a fazer—lhe sobre
a morte de Landy, antes de falarmos sobre Wallader e Harris. De acordo com
os relatórios que temos, foi excluída de um envolvimento directo, porque
tinha um álibi muito forte. Quem lhe deu o álibi?
— Foi a Meg — disse ela. — Passei a tarde e o princípio da noite com
ela e depois ela levou—me ao restaurante por volta das sete e meia. Esperei
cerca de meia hora e quando o Russell não apareceu, tomei um táxi até à
galeria. Isso não está no relatório?
Maddocks ignorou a pergunta.
— Não teria sido mais simples telefonar para a galeria?
— Telefonei. Ninguém respondeu. Por isso telefonei para casa, mas
também ninguém me respondeu.
— Então porque pensou que ele estaria na galeria? Porque se deu ao
trabalho de ir de táxi até lá?
— Porque ficava a caminho de casa.
— Mas pagou ao táxi antes de entrar na galeria.
— Eram nove da noite e o motorista não me deixou sair sem pagar.
Acho que ele teve medo que eu fugisse pela rua abaixo. Disse que esperava
cinco minutos e que se eu não tivesse voltado, nessa altura, iria embora.
Voltei passados dois minutos, gritando como uma doida. O motorista chamou
o 112, enquanto eu fiquei ao pé do Russell e, depois, esperou lá fora, até que
a ambulância chegasse. Foi por isso que a polícia hão teve qualquer
dificuldade em encontrá—lo, para que ele corroborasse a minha história.
Maddocks riu—se em surdina.
— Tem uma resposta para tudo, não tem?
Ela estudou—o com um olhar extremamente frio.
— Só estou a contar—lhe a verdade, Inspector.
— E temos de concordar que teve dez anos para a contar da maneira
mais conveniente.
Harry Elphick, que fazia parte da segurança da clínica, depois de saber
do ataque ao doutor Protheroe, fez um desvio para verificar as casas perto dos
lugares de parqueamento dos funcionários, quando se ia embora. Lembrava—
se de ter visto há umas semanas um malho numa delas e ocorreu—lhe que
podia valer a pena dar uma segunda vista de olhos. Raciocinou, com bastante
lógica, que a pessoa que mais provavelmente poderia atacar o doutor
Portheroe era um dos drogados mais agressivos ao seu cuidado, e continuou a
pensar que uma vez que a Clínica Nightingale não era uma prisão, qualquer
paciente observador tinha as mesmas hipóteses que ele de reparar no malho.
Harry teria considerado uma tolice assumir que nenhum deles se daria ao
trabalho de atacar o doutor Protheroe, porque sabiam que ele não tinha drogas
no carro. Harry, um ex—militar que já passara a meia—idade, tinha pouca
paciência para o tipo de escória superprivilegiada que o doutor Protheroe
tratava. Foi com alguma satisfação que abriu uma das casas exteriores e,
depois de uma busca superficial, encontrou um malho ainda com a tinta
encarnada do Wolseley, aderente à cabeça.
— Quando é que descobriu finalmente que Leo e Meg estavam a ter um
caso?
Jinx olhou para suas mãos durante um momento, antes de pegar no maço
de cigarros.
— Quando acordei há alguns dias atrás. A minha madrasta disse—me.
Maddocks franziu o sobrolho.
— Está a dizer que é a primeira vez que ouviu falar no assunto? Ela
recostou—se para trás, na cadeira, e acendeu um cigarro.
— Não sei — disse ela. — Não me lembro de muita coisa antes do
acidente.
— Então do que se lembra? Ela olhou para o tecto.
— Lembro—me de ter dito adeus ao Leo, ao pequeno—almoço, na
manhã do dia 4 de Junho. Eu ia passar alguns dias com os meus pais no
Hampshire.
— Isso é bastante preciso.
— Sim.
— Quando é que descobriu que eles estavam mortos, menina Kingsley?
Ela pensou em mentir novamente, mas depois achou melhor não.
Gostava demasiado do Dean para o meter naquela porcaria.
— Domingo — disse ela. — Sabia que estavam a mentir sobre o que
tinha acontecido, por isso pedi a um amigo para telefonar aos Wallader.
Anthony informou—o de que eles tinham morrido e o meu amigo telefonou
—me para mo dizer.
— Que amigo?
— Isso é importante?
— Depende se quer que eu acredite em si ou não. Este amigo pode
confirmar que ficou verdadeiramente chocado, quando soube das notícias. De
outra forma, tenho alguma dificuldade em perceber como uma mulher, cuja
melhor amiga e noivo foram brutalmente chacinados, pode manter uma
compostura tão extraordinária.
— O meu número dois no estúdio, Dean Jarrett.
— Obrigado. Ficou perturbada, quando a sua madrasta lhe disse que Leo
a trocara por Meg?
Ela abanou a cabeça.
— Não especialmente. Fiquei mais aliviada do que perturbada. Acho
que, no domingo, lhe disse claramente que estava com dúvidas sérias em
relação ao Leo. Tenho a certeza de que, no meu espírito, não tinha qualquer
intenção de me casar com ele, mesmo sem ter em consideração o facto de ele
ter um caso com a Meg.
— Então porque tentou matar—se?
— Quem me dera saber. — Sorriu repentinamente. — Parece muito
pouco adequado a uma pessoa com uma compostura tão extraordinária. —
Ela deitou fora a cinza do cigarro. — Tão pouco adequado ao meu carácter
que acho que não o fiz.
— Estava bêbada e bateu com o carro a toda a velocidade na única
estrutura de algum peso no aeródromo deserto. Que outra explicação poderá
haver?
— Mas realmente não me suicidei — disse ela.
— Porque teve sorte. Foi projectada.
— Talvez eu me tenha atirado para fora do carro — disse ela. — Talvez
eu não quisesse morrer.
— O que quer dizer com isso?
As suas pestanas ficaram húmidas, mas ela conteve as lágrimas.
— Não sei, mas tenho tido muito mais tempo para pensar sobre isso do
que em Meg e Leo. Parece—me que se eu não estava a tentar matar—me,
então a única explicação é que outra pessoa o estava a tentar.
Deixou de tentar convencer Maddocks e virou—se para Fraser, que
parecia mais aberto. — Teria sido muito fácil. O meu carro era de mudanças
automáticas. Tudo o que era preciso fazer era apontá—lo em direcção ao
poste, colocá—lo em Drive, carregar no acelerador com toda a força e depois
largar o travão de mão. Se eu estivesse inconsciente e presa com o cinto, teria
ficado esmagada no embate. Isso podia ter acontecido, não acha? É uma
possibilidade, não é?
— Se estivesse presa com o cinto, como poderia ter sido projectada?
— Então talvez não tivesse o cinto — disse ela ansiosamente. — Talvez
a ideia fosse eu sair pelo pára—brisas. Ou, se calhar, acordei a tempo e soltei
—me a mim própria.
Ele gostaria de acreditar nela, mas não podia.
— Então este assassino hipotético teria visto o que acontecera e teria
acabado com a sua vida. Ele não poderia deixá—la com vida, se acabara de
tentar matá—la.
— Olhe, menina Kingsley — disse Maddocks —, detesto ser cruel, mas
factos são factos. De acordo com os seus vizinhos em Richmond, não foi a
primeira vez. A sua primeira tentativa foi no domingo. Quer queira quer não,
quer se lembre ou não, e admite ter o hábito de bloquear qualquer sentimento
que a perturbe, alguma coisa tão terrível aconteceu que apanhou uma
bebedeira e fez uma segunda tentativa.
Alguma coisa de terrível acontecera...
— Eu nunca estive bêbada em toda a minha vida — disse ela
teimosamente. — Nunca quis embebedar—me.
— Há sempre uma primeira vez. Ela encolheu os ombros.
— Não no que me diz respeito, Inspector.
— Tinha consumido o equivalente a duas garrafas de vinho, quando teve
o acidente, menina Kingsley. As garrafas foram encontradas no chão do seu
carro. Está a dizer—me que consegue absorver essa quantidade de álcool,
sem ficar bêbada?
— Não — disse ela. — Estou a dizer que eu nunca teria querido beber
tanto.
— Nem mesmo se tivesse feito alguma coisa de que se envergonhassse?
Ela olhou para ele fixamente.
— Como por exemplo?
— Talvez participar num homicídio? Ela abanou a cabeça.
— Não vê como esse argumento é pouco lógico? Se bem percebi, os
corpos da Meg e do Leo foram encontrados perto de Winchester, o que
significa que quem os assassinou deve ter desenvolvido uma estratégia
bastante complicada. Não consigo descobrir, através dos jornais, se foram
mortos no bosque, ou levados para lá depois de mortos mas, de qualquer das
maneiras, alguém teve muito trabalho a levá—los até lá. Mas porque é que
alguém faria isso, se estivesse tão envergonhado do que tinha feito que depois
tentou suicidar—se? Não faz sentido. Por um lado, está a descrever uma
personalidade muito calculista, que quis ver—se livre de duas pessoas; por
outro lado, está a descrever uma personalidade muito fraca, que pode ter
atacado num momento de raiva e que ficou tão horrorizada com o que tinha
feito que tentou emendar as coisas suicidando—se.
— Pensou bastante no assunto, não foi?
Os grandes olhos negros encheram—se novamente de lágrimas.
— Como o senhor teria feito, se estivesse no meu lugar. Eu não sou
doida, Inspector.
Maddocks surpreendeu—a, ao admiti—lo com um aceno da cabeça.
Estava prestes a dizer «Compreendo» mas controlou—se a tempo.
— Não há lógica num assassínio, menina Kingsley, pelo menos é a
minha experiência. São normalmente as últimas pessoas, que esperaríamos
que o fizessem. Algumas delas revelam o remorso cedo e outras nunca o
demonstram. Acredite em mim, não é pouco vulgar um indivíduo calculista
planear um crime, levá—lo a cabo, esconder o corpo e depois ter um ataque
de consciência. Não há razão para este caso ser diferente.
— Então o melhor é algemar—me já — disse ela —, porque eu não
posso defender—me.
Nada me daria mais prazer, minha querida.
— Isso não está em causa — disse ele amavelmente. — Como o
sargento Fraser lhe disse, estamos a seguir várias pistas, e esta é apenas uma.
No entanto, tenho a certeza de que percebe como é importante que nos dê
alguma indicação do que aconteceu nas duas semanas antes do seu acidente e
da morte de Leo e Meg. Infelizmente parece ser a única pessoa que resta e
que nos pode esclarecer um pouco.
Ela deu uma passa no cigarro, franzindo o sobrolho preocupada.
— E os amigos da Meg? Já falaram com alguns deles? Com certeza que
lhes podem dizer alguma coisa.
— Depois das informações que nos deu, falámos ontem com Josh
Hennessey. Disse—nos que só soube que Leo e Meg iam ficar juntos através
de um telefonema da Meg no sábado, dia 11 de Junho. Ela disse—lhe que o
vosso casamento já não se realizaria, que ela e Leo iam partir para França,
mas que passaria pelo escritório antes de partir para o pôr a par do seu
trabalho. Nunca apareceu e ele nunca mais ouviu falar dela. Também nos deu
os nomes de alguns dos amigos mais íntimos da Meg. Falámos com alguns
deles, Fay Avonalli e Marian Harding e eles contaram—nos a mesma
história.
— Mas não perguntou ao Josh sobre o seu relacionamento com o Leo,
antes disso? Quero dizer, ele e Meg trabalham juntos há anos, ele sabe tudo
sobre ela, por isso presumo que soubesse da relação deles.
Foi Fraser que respondeu.
— Ele deu—nos o nome de um homem, que teve um papel importante
durante dois ou três meses no início do ano, mas disse que Meg quase não
mencionara Leo e que ficara surpreendido, quando ela telefonara a dizer que
estavam a planear casar. Disse que Leo andava com ela há anos e que tinham
um relacionamento que ora começava, ora terminava, e que voltavam a andar,
quando ambos não sabiam o que fazer. Mas não sabia que tivessem andado
juntos mais do que um mês ou dois, porque Meg se irritava muito com o... —
procurou uma palavra adequada — egoísmo de Leo. Contou que lhe tinha
dito que ela era doida em pensar que desta vez seria diferente e deu—lhe um
mês para que tudo terminasse. Também lhe disse que era uma safada e que a
única razão por que ela queria o Leo era porque ele se ia casar consigo. —
Sorriu complacentemente. — Segundo ele, Meg tinha ciúmes de si.
Aparentemente, estava zangada por a menina ter herdado o dinheiro do
Russell, além do dinheiro que iria herdar do seu pai. Dizia que a Jinx sempre
se recuperava, enquanto ela acabava sistematicamente na lama.
— O que é verdade de uma certa forma. Tudo o que a Meg sempre quis
foi ter dinheiro suficiente para se divertir. Ela dizia que era muito injusto ter
um pai vigário, quando a penúria era a única coisa que odiava. Não percebia
porque é que eu não pedia dinheiro ao Adam, sempre que tinha oportunidade
para o fazer. Fraser imitou o cepticismo de Protheroe.
— Estou surpreendido por gostar dela.
— Não tenho muitos amigos. De qualquer maneira, ela era divertida.
Suponho que éramos o típico caso dos opostos que se atraem. Eu levo a vida
demasiado a sério. Ela divertia—se. É a única pessoa que conheci que vivia
inteiramente para o presente. — Uma lágrima escorreu—lhe pela cara abaixo.
— Tinha muito mais ciúmes dela do que ela de mim.
— Então diria que os seus ciúmes se transformaram em raiva, quando
ela lhe roubou o seu noivo? — perguntou Maddocks.
Jinx apagou o cigarro.
— Não — disse ela cansada —, não. Lamento, Inspector, mas acho que
realmente não há mais nada que lhe possa dizer.
Alan Protheroe estava à espera junto do carro deles, quando deram a
volta ao edifício.
— Espero que tenham sido mais corteses para a menina Kingsley do que
foram comigo, quando entraram no meu escritório. — Os olhos dele
semicerraram—se. — Tenho grande desconfiança em relação às vossas
tácticas esmagadoras.
— Tivemos uma pequena conversa — protestou Maddocks — a que
poderia ter assistido caso o senhor ou a menina Kingsley o desejassem.
Alan abanou a cabeça irritado.
— O senhor é um génio, inspector, e não é um génio que eu admire ou
que eu ache que deva fazer parte da polícia. Precisa que eu lhe lembre que a
menina Kingsley esteve em coma há menos de uma semana? Ou que os
vossos colegas, em Fordingbridge, acreditam que ela tentou suicidar—se
duas vezes?
— É um assunto engraçado, essa tentativa de suicídio. — Maddocks
acenou a cabeça em direcção a Fraser. — Ela disse ao sargento que pensava
que alguém estava a tentar matá—la. O que acha, doutor? Uma tentativa de
suicídio ou uma tentativa de homicídio? Acha que a menina Kingsley é do
tipo suicida? Eu acho que não é.
— Mas uma tentativa de assassínio convence—o?
Maddocks sorriu—lhe com malícia.
— Diria que foi uma tentativa desesperada de deitar as culpas para cima
de outra pessoa.
— Então o que lhe resta, se não foi nem uma, nem outra?
— Uma pequena peça de teatro, acho eu. Ela é uma óptima actriz, esta
sua paciente, mas tenho a certeza de que já sabia disso.
Então Alan apontou com a cabeça na direcção das portas da frente.
— Um dos meus seguranças tem uma coisa para lhes mostrar. Acho que
devia ser entregue à polícia de Salisbúria, que segundo percebi estava a tratar
do meu caso, mas parece que eles estão a passar a responsabilidade para si.
— Dirigiu—se para dentro e fez um gesto em direcção ao malho, que estava
em cima da secretária da recepção, com um saco de plástico amarrado à
cabeça. — Harry Elphick — disse ele apresentando o segurança. —
Encontrou—o numa das casas exteriores. Tem lascas de tinta vermelha no
metal, que pode ter vindo do meu Wolseley.
Maddocks sorriu apreciativamente.
— Muito bem, Harry. O que o levou a procurá—lo?
Harry, que se orgulhava do seu raciocínio, sabia reconhecer um bom
homem quando via um à sua frente.
— Bem, foi assim. O patrão que me desculpe, mas eu não dou tanto
valor aos jovens daqui, como ele. — Depois começou a fazer um relatório do
seu processo de raciocínio, acabando assim:— Assim, como eu sempre digo,
quando se anda à procura de uma resposta, procura—se o óbvio e, neste caso,
o óbvio é um dos pequenos inúteis desta casa ter decidido correr o risco.
Maddocks olhou para Alan com um sorriso malicioso.
— Ou uma — murmurou ele. — Não me tinha apercebido, até a menina
Kingsley se levantar na sua sala, como é alta. Diria que mede cerca de um
metro e setenta e oito.

Clínica Nightingale, Salisbúria — 22.00 h

Verónica Gordon ouviu a confusão no hall de entrada, enquanto


bebericava a sua chávena de chá na sala de estar do pessoal. Saiu e franziu o
sobrolho, zangada, quando avistou Betty Kingsley, querendo libertar—se de
Amy Staunton.
— Sua puta preta — gritava Betty. — Tire as suas mãos de cima de
mim. Quero ver a minha filha!
— O que se está a passar? — perguntou Verónica friamente, pondo uma
mão no colarinho da mulher e puxando—a com uma força surpreendente. —
Como se atreve a falar com uma das minhas enfermeiras nesses termos? Não
o permitirei e especialmente não a uma bêbada. — Parecia muito zangada. —
Mas que espectáculo horrível. Quem diabo acha que é?
Betty controlou—se a contra—gosto.
— Sabe quem eu sou — disse ela agressivamente. — Sou a senhora
Adam Kingsley e vim ver a minha filha. — Mas era visível que estava a
perder a energia perante a sobriedade da irmã e que a força estava do lado
desta.
— Está fora de questão — disse Verónica rispidamente. — São dez
horas da noite e não está em condições de falar com ninguém. Sugiro que vá
para casa curar a bebedeira e que volte amanhã, de manhã, num estado mais
apresentável do que está neste momento.
Os olhos de Betty tornaram—se salientes na cara empoada.
— O meu marido vai saber disto. Você tem cá uma lata.
— Mas que boa ideia. Porque não telefonamos agora ao senhor
Kingsley? Tenho a certeza de que ficará encantado por saber que a sua
mulher, por estar bêbada, se envolveu numa briga na Clínica Nightingale.
As lágrimas caíam pela cara grotesca.
— Eu preciso de ver a Jinx — disse ela a chorar. — Por favor, deixe—me
ver a minha filha.
Mas parece que percebeu que as lágrimas não iam provocar qualquer
compaixão, por isso respirou fundo, alisou o cabelo e ajeitou o casaco.
— Muito bem, assim está melhor, não está? Não vou causar problema
algum, se me deixar vê—la. — Limpou os olhos e pôs um sorriso
pateticamente maldoso nos lábios. — Estou muito alegre. Não repare no que
eu disse antes. — Fez uma festa no braço de Amy. — Não quis dizer nada
com aquilo, querida. Às vezes, tenho uma língua cruel. Vai deixar—me ver a
Jinx? Por favor, é importante.
Verónica tornou—se um pouco mais branda.
— O que é assim tão importante que não possa esperar até amanhã,
senhora Kingsley?
— Meg e Leo — disse ela. — Eu e os rapazes lemos que tinham sido
assassinados, mas o pai dela recusa—se a fazer alguma coisa em relação a
este assunto. Acho que alguém devia consolar a pobre rapariga, ainda que
seja eu.
Verónica concordou com ela e, embora achasse um pouco estranho que
Betty esperasse doze horas antes de pôr a ideia em prática, não disse nada.
Em vez disso mandou Amy ir ver se Jinx ainda estava acordada, antes de
acompanhar Betty ao número doze, deixando as duas mulheres sozinhas com
a porta aberta.
— Eu fico no corredor — informou—as ela. — Tem quinze minutos,
senhora Kingsley e espero não ouvir vozes alteradas. Percebeu?
Betty esperou que ela se tivesse ido embora e depois fungou
depreciativamente.
— Aquela é mesmo uma filha da mãe. — Andou cambaleante até à
cadeira mais próxima, deixando—se cair nela e ficando a olhar
demoradamente para a enteada, que já estava na cama. — Suponho que já
alguém te disse que a Meg e o Leo morreram.
Jinx escondeu o seu desalento.
— Quem te trouxe, Betty?
— Obriguei o jenkins a trazer—me. Acenou com uma mão sapuda em
direcção à porta. — Ele está à espera lá fora.
— Adam sabe que vieste?
— Claro que não. — Abanou a cabeça. — Está em Londres. As acções
têm vindo a descer todo o dia. Está a tentar reparar os estragos.
— Eu vi nas notícias.
— Meu Deus! És mesmo fria. Sempre foste. — Assoou—se. — E sabes
porque estão a descer? Porque Leo morreu, Russell também e tudo aponta
para ele.
Jinx observou—a durante um momento.
— Não te vai afectar a ti ou aos rapazes — disse calmamente. — A
companhia está bem e Adam não vai deixar que as acções continuem a descer
indefinidamente. As tuas acções vão subir novamente, por isso não vais
perder.
— E como é que o teu querido Adam vai resolver isso? — sibilou ela, os
olhos pequenos parecendo pedras. — Diz—me como. Eu e os rapazes a
preocuparmo—nos terrivelmente, enquanto tu e o teu pai se comportam como
se nada tivesse acontecido.
— Se for necessário, ele demite—se. — Via—se uma pequena ruga na
sua testa. — Sabes isso tão bem como eu. Foi o que ele sempre disse que
faria numa emergência.
— E nós, como ficamos?
— Com todas as acções que Adam te deu há dez anos.
Betty tirou uma caixa de pó—de—arroz e empoou a cara estragada.
— Não — disse ela com firmeza — ficarei sem uma casa, que possa
chamar minha. Não é nossa, lembras—te, pertence à companhia. Um valor. É
isso que lhe chamam, não é? Pensaste nisso, quando fizeste com que esta
crise se abatesse sobre as nossas cabeças? Se o teu pai se demitir, perderemos
o Hall. Os rapazes ficarão sem emprego e nenhum de nós terá um tecto. O
que tens a dizer sobre isso?
— Diria que significa que vendeste as tuas acções e que tens medo que
Adam lave daí as suas mãos. — Jinx encostou a cabeça à almofada. — E já
não é sem tempo. Merece melhor do que três pesos mortos que só sabem
puxá—lo para baixo. Deviam todos estar ao lado dele, em vez de se
lastimarem sobre o que poderá acontecer—vos. — Sorriu para si própria. —
Sabes que mais? Quando entraste, pensei, meu Deus, um deles veio segurar a
minha mão. Um deles veio dizer, acreditamos em ti, Jinx. Sabemos que deves
estar a passar um mau bocado, mas estamos aqui para te apoiar. Mas que
parva. Por que diabo fui eu imaginar, por um minuto, que tu e os teus filhos
da mãe, que não prestam para nada, iam mudar os hábitos de uma vida
inteira?
— Não chames aos meus filhos, filhos da mãe.
— Porque não? — disse Jinx, carregando na campainha ao lado da
cama. — Éo que eles são. Tu nunca foste uma mulher para o meu pai.
Os olhos de Betty encheram—se novamente de lágrimas.
— Odiei—te desde o primeiro momento em que te vi.
— Eu sei. Sempre tornaste isso muito claro.
— Também me odiavas.
— Porque eras estúpida. — Virou—se para Verónica Gordon que
apareceu à entrada da porta. — A minha madrasta vai—se embora disse ela.
— Fiz ó meu melhor — disse Bety —, eu queria gostar de ti.
— Não, não fizeste. Quiseste foi tomar o meu lugar. Os ciúmes são uma
doença para ti. Sabias muito bem que Adam me amava muito mais do que
alguma vez te amaria a ti.
Sorriu friamente e Verónica viu—se a avaliar cada opinião que formara
sobre a jovem mulher. Não era uma vítima ingénua, pensou ela.

MEMORANDO
De: Superint. Cheever
Para: CC
Data: Quarta—feira, 29 de Junho de 1994
Ref: Wallader/Harris
Abaixo seguem todas as informações importantes, que obtivemos até às
9.00 horas de hoje.
• Apesar de extensas investigações não conseguimos encontrar
testemunhas que tenham visto um indivíduo com roupas manchadas de
sangue nas proximidades de Ardingly Woods nos dias 12/13/14 de Junho.
Não foi encontrada qualquer arma. Foram vistos vários carros na área, mas
não há pistas verdadeiras. (NB: O exame de laboratório do carro de Jane
Kingsley não revela manchas de sangue).
• Os objectos pessoais de Wallader e Harris foram localizados em
Eagleton Street, 35, Chelsea.
• Foram encontrados os dois carros de Wallader. Um em Eagleton
Street e o outro numa garagem alugada em Camden. O carro de Harris foi
localizado na rua à porta do número 35. Todos os três carros estão a ser
examinados hoje pelo laboratório, mas uma pesquisa preliminar não revelou
nada de importante.
• A leitura dos diários de Harris, em conjunto com o testemunho de
amigos e conhecidos, sugere que Harris e Wallader tinham um
relacionamento sexual, que embora fosse irregular, já durava há mais de
onze anos. Além disso, sabemos agora que Harris teve um caso com Russell
Landy antes e durante o casamento deste com Jane Kingsley.
• Existem provas de que Harris fez um aborto em Fevereiro de 1984,
cerca de cinco dias depois do assassinato de Landy, embora não se saiba
quem era o pai. Pode não ter sido nem Wallader, nem Landy. Os seus diários
revelam que tinha uma personalidade promíscua, como foi confirmado pelo
testemunho do seu irmão.
• Existem dúvidas sobre a família Harris. Indicação clara de tensão.
Nem Simon, nem o reverendo Harris tinham muito tempo para Meg,
exprimindo ambos a sua preferência por Jane Kingsley (bizarro nas
circunstâncias); a senhora Harris, por outro lado, parece gostar muito de
Meg e está zangada ou tem ciúmes (?) de Jane.
• Uma avaliação psicológica de Wallader, de há vinte e cinco anos,
dada pela mãe, descreve uma criança com uma personalidade bastante
conturbada.
• Os Wallader mencionam uma discussão na segunda—feira, dia 30 de
Maio, durante a qual Leo disse que planeava casar com Meg. Telefonou mais
tarde para avisar os pais, para não divulgarem o facto até ele lhes dar
autorização para tal. Esta só foi dada no sábado, dia 11 de Junho, embora
Sir Anthony e Lady Wallader não percebam o atraso.
• Uma estimativa da fortuna de Wallader, nomeadamente em
propriedades, capital, acções e ouro é de um milhão de libras.
De acordo com o seu advogado, Wallader recusava—se a fazer um
testamento, por isso não existe nenhum.
• Harris informou os seus pais dos acontecimentos de sábado, dia
11 de Junho. No mesmo dia também telefonou ao seu sócio e a dois
amigos, para dar a informação. Não conseguimos encontrar ninguém que
conhecesse os factos anteriores ao sábado, dia 11. Ela disse ao sócio que
estaria no escritório na segunda—feira, dia 13 de Junho. (NB: as anotações
de Harris no diário são irregulares. Existem semanas vazias, seguindo—se
um dia ou dois, totalmente registados. Não há nada escrito depois de
segunda—feira, dia 18 de Maio e nenhuma referência a Leo Wallader desde
Dezembro de 1993, quando ela escreve que passados todos estes anos
finalmente apresentou Leo a Jinx.)
• De acordo com o sócio, não foi ao escritório na segunda—feira, dia
13 de Junho.
• NB: Registo no diário de Harris, a seguir ao casamento de Kingsley
com Landy: «Desde que Russell se tornou inatingível está muito mais
atraente.» O que foi recordado em Abril de 1994: «Jinx diz—me que vai dar
o passo decisivo. Sabia que havia de vir a arrepender—me de os ter
apresentado.»
• De acordo com os depoimentos do senhor e da senhora Kingsley na
terça—feira, dia 14 de Junho (a seguir ao acidente de Jane Kingsley) foram
informados pelo telefone no sábado, dia 11 de Junho, que o casamento da
filha fora cancelado. Isto foi corroborado pelo coronel Eric Clancey que
afirmou, também na altura do acidente, que Jane lhe falara no dia 11 de
Junho sobre a alteração dos planos de casamento.
• O senhor e a senhora Kingsley testemunharam (depois do acidente)
que Jinx passara a semana de sábado, dia 4 de Junho até sexta, dia 10 de
Junho, em Hellingdon Hall. Parecia estar bem—disposta, não mencionou a
discussão com Leo e falou sobre os preparativos para o casamento, como se
este se fosse realizar.
• Jane Kingsley testemunhou, numa entrevista feita a 28.6.94, que não
consegue lembrar—se de nada desde o dia 4 de Junho. Admite ter
conhecimento do envolvimento de Harris com Landy, embora afirme que só o
tivesse sabido depois de um ano . Diz que não se lembra de lhe terem falado
sobre Wallader e Harris, o que é posto em causa pelo testemunho dos pais de
Wallader, que diz que Leo lho contou na tarde de segunda—feira, dia 30 de
Maio, (i.e. antes da perda de memória a partir do dia 4 de Junho). O
inspector Maddocks está convencido de que ela se lembra de mais coisas, o
que parece ser confirmado pelo acima descrito.
• A menina Kingsley admite acreditar que o seu pai poderia ter
mandado matar Landy, mas não acredita que o tenha feito. Não consegue
arranjar provas que confirmem a sua suposição, a não ser a sua própria
convicção de que ele não permitiria que ela encontrasse o corpo. Há algum
mérito neste argumento se Kingsley gostar dela.
• Um acidente, que poderá estar relacionado, ocorreu na Clínica
Nightingale durante a noite de segunda—feira, dia 27 de Junho.
O doutor Protheroe, director da clínica, foi atacado por um intruso com
um malho. A menina Kingsley é sua paciente há cerca de dez dias e, além
disso, o doutor Protheroe recebera a visita do advogado de Kingsley durante
a tarde do dia 27 de Junho.
• Protheroe escapou relativamente ileso, no entanto a arma foi
encontrada mais tarde num pavilhão exterior, na Clínica Nightingale, por
um membro da sua equipa de segurança, que diz que ela pertence à clínica.
O que foi corroborado por testes de laboratório preliminares, que não
encontraram nem sangue, cabelos ou tecido no malho, mas restos de tinta
vermelha do carro de Protheroe, que ficou muito danificado durante o
assalto. Isto sugere que o assaltante conhece bem a disposição dos terrenos
da clínica e aponta para um paciente antigo ou actual, ou possivelmente um
visitante. Protheroe descreveu o seu atacante como sendo um homem com
cerca de
1,78 m ou 1,80 m e de constituição média. O assaltante estava vestido
de preto e usava uma máscara de esquiador ou algo parecido.
• A menina Kingsley mede 1,78 e é magra. No entanto (1) o ataque foi à
noite, (2) Maddocks acha que Protheroe está a fazer o possível, por qualquer
razão, para proteger a sua paciente, (3) a menina Kingsley podia estar a
usar chumaços. Um indicador que poderá valer a pena considerar,
assumindo que o incidente tem a ver com os assassinatos de
Landy/Wallader/Harris, é que a menina Kingsley ficou sem dúvida muito
fraca a seguir ao seu acidente, e Protheroe defendeu—se facilmente. O
doutor Clarke não põe de lado a possibilidade de uma mulher ter atacado
Wallader e Harris. Além do mais, as marcas dos saltos perto do declive,
onde os corpos foram encontrados, parecem indicar que uma mulher esteve
presente.
• Em relação ao assassínio de Landy: o álibi da menina Kingsley para
essa tarde e início da noite do dia 1 de Fevereiro de 1984, foi dado pela
menina Harris. À luz dos novos testemunhos, de que Harris e Landy estavam
a ter um caso, e que a menina Kingsley poderia saber, este álibi não é assim
tão claro como parecia na altura. Vale a pena analisá—lo melhor. (NB: O
diário de Harris não menciona o assunto, nem sequer fala do assassínio de
Landy.)
CONCLUSÃO:
1. Meg Harris tentou que ambos os homens voltassem para ela depois
de terem assumido compromissos sérios com Jane Kingsley. Só temos a
palavra de Kingsley, que diz não saber de nada sobre isto e não guardar
ressentimentos.
2. Parece que Wallader e Harris não revelaram os seus planos de
casamento até pouco tempo antes da sua partida para a relativa segurança
em França.
3. Jane Kingsley também achou melhor guardar segredo.
4. O assassino levou—os, provavelmente, para Ardingly Woods no
carro dele/dela.
5. Na data mais provável para as mortes de Wallader e Harris, Kingsley
bateu com o carro num pilar de betão, apenas a trinta e dois quilómetros de
Ardingly Woods.
6. Pouco tempo depois de Kingsley dar entrada na Clínica Nightingale,
o doutor Protheroe foi atacado com uma arma semelhante à que foi usada
contra Landy/Wallader/Harris.
A equipa de investigação está a concentrar os seus esforços para
descobrir os movimentos de Wallader/Kingsley/Harris entre o dia 30 de
Maio e 13 de Junho. Todas as pessoas relevantes serão questionadas
novamente, para podermos estabelecer uma sequência dos acontecimentos.
Cumprimentos,
Frank

A City preocupa—se com a Franchise Holdings

Houve ontem uma queda bastante grande do valor das acções da


Franchise Holdings (FH) Ltd, na sequência da identificação de um dos
corpos encontrados em Ardingly Woods, na última quinta—feira, como sendo
o de Leo Wallader. Até à pouco tempo, Wallader, um corrector de 35 anos,
estava noivo da filha de Adam Kingsley, Jane, e o mercado reagiu à
especulação da imprensa, ligando este homicídio ao do genro de Adam
Kingsley, Russell Landy, há dez anos.
Há já algum tempo que existem preocupações quanto ao sucessor de
Adam Kingsley na presidência e são estas preocupações que estão a
alimentar a crise actual. Adam Kingsley é conhecido por uma gerência
prática e, sem a sua força, existem dúvidas sobre o futuro da Franchise
Holdings.
Um porta—voz da companhia disse, esta tarde, que os investidores
estão a entrar em pânico devido ao relato irresponsável dos acontecimentos
feito pela imprensa. «Não se põe em questão o facto de Adam Kingsley se
demitir» afirmou. «Os nossos investidores foram bem sucedidos e
continuarão a sê—lo durante muitos anos.»
No entanto, analistas da City estão mais cépticos. «A Franchise
Holdings é um grupo de um homem só» disse uma fonte. «Se Kingsley sair, a
quebra de confiança será catastrófica. Francamente, será um milagre se ele
conseguir dominar a presente tempestade. O medo é que qualquer
investigação nos negócios de Kingsley poderá pôr a descoberto
irregularidades financeiras. Os fundos, para algumas das suas aquisições
antigas, nunca foram explicados adequadamente. Seria diferente, se existisse
um sucessor óbvio.»
Os filhos de Kingsley, Miles de 26 anos e Fergus de 24, foram expulsos
de colégios privados por posse de drogas e, no passado, foram admoestados
por vandalismo e roubo. Frequentam regularmente os casinos de Londres e
as corridas de cavalos.
A filha de Adam Kingsley, Jane de 34 anos, que é dona e gere com
sucesso um estúdio fotográfico no Sul de Londres, foi casada com Russell
Landy durante três anos antes da morte dele. A polícia reabriu este caso
desde a morte do seu noivo.
Daily Mail — 29 de Junho
18
Quarta—feira, 29 de Junho, Esquadra da Polícia de Canning Road
Salisbúria — 9.00 h

A MULHER—POLÍCIA BLAKE reparou nas nuvens de tempestade


que se acumulavam na expressão do detective Hadden, quando passou por
ela, empurrando as portas duplas.
— O que se passa com Hadden? — perguntou ela ao sargento apoiando
os cotovelos no balcão.
— Política — resmungou ele, atento a algumas notas que estava a
escrever. — Ele acha que o Inspector—Chefe entregou o melhor caso que
alguma vez teve.
— A quem?
— A polícia do Hampshire. Ontem à noite entregou uma prova muito
importante sobre os crimes na floresta de Ardingly e Hadden está furioso. Diz
que foi ele que resolveu o caso e que agora ninguém vai reconhecer isso.
— De que prova se trata?
— Do malho, que foi usado para atacar o médico da clínica Nightingale,
na segunda—feira à noite — contou o sargento.
Blake observou durante algum tempo a sua caneta atarefada.
— Então qual é a ligação com a floresta de Ardingly? Facilmente se
conseguem obter malhos em locais de construção. O que tem este de tão
especial?
— A noiva do homem que morreu é uma paciente da clínica Nightingale
e parece que tem o hábito de perder maridos e amantes, que morrem
espancados com malhos. — Olhou para cima. — Jane Kingsley, filha de
Adam Kingsley. Vem tudo nos jornais nos últimos dias.
— Tenho andado ocupada.
Ele empurrou um jornal na direcção dela e espetou a caneta numa coluna
dupla.
— A polícia do Hampshire deu ontem uma conferência de imprensa.
Está tudo aí.
Blake pegou no jornal e leu rapidamente o artigo.
— Bem, já percebo porque é que o Hadden está chateado — observou
ela, voltando a colocá—lo sobre o balcão. — Quem acha que foi o autor?
Ele encolheu os ombros, enquanto assinava o seu nome.
— Só sei que eu não queria ser empregado na Franchise Holdings, se
eles prenderem Adam Kingsley. De acordo com o suplemento económico, as
acções já estão a cair, só com medo que ele esteja envolvido. — Endireitou—
se. — Como está a correr o caso da Flossie Hale?
— Não está a correr mal. — Fez—lhe um relatório do que tinha
descoberto. — Ele levava um porta—chaves com um disco preto e as iniciais
F e H gravadas a ouro. Flossie acha que podem ser as iniciais dele, mas eu
não quero mencionar isso na descrição, caso ela esteja enganada. O que acha?
Ele olhou para ela pensativo durante uns momentos, depois pegou no
jornal e folheou—o impacientemente, procurando o suplemento económico.
Inserido no artigo sobre a Franchise Holdings, vinha uma fotografia do
logotipo da empresa — iniciais entrelaçadas sobre fundo preto. Ele mostrou
—lha. — Algo parecido com isto?
— O que é você, Sargento — perguntou Blake admirada —, um
mágico?

Clínica Nightingale, Salisbúria — 9.30 h

O chão à volta dos pés de Jinx estava cheio de jornais, quando Alan
Protheroe bateu à porta às nove e meia.
— Fui eu que os encomendei — disse ela com um sorriso débil. — Já
viu o que está a acontecer?
Ele acenou com a cabeça.
— Vi as notícias ao pequeno—almoço. As acções começaram
novamente a descer, logo que o mercado abriu.
— Pobre Adam, é muito injusto disse ela com amargura. — Há anos que
estão mortos por o colocar no seu lugar e agora tiveram essa oportunidade.
— Juntou as mãos no regaço. — Sabe o que mais me irrita? é todo este
disparate sobre o facto de não haver sucessor. É uma forma pouco digna de
expor as fragilidades da família. Três pessoas da presente administração. São
perfeitamente capazes de dirigir a empresa, se alguma coisa acontecer ao
Adam, e a City sabe isso. Nunca se falou em Miles, Fergus ou em mim para
lhe sucedermos. Ele não queria. Trabalhou demais para ver os filhos
destruírem o que ele construiu. — Suspirou. — Bem, de qualquer maneira,
estamos a destruí—lo. O que eu fiz não teria qualquer importância, se se
pudesse contar com Miles ou Fergus.
— O que foi que você fez, Jinx?
— E que tal isto para começar? — disse ela sarcasticamente. —
Consegui escolher como vítimas de assassínio, marido, noivo e melhor
amiga. Implica que há qualquer coisa de podre no reino da Dinamarca,
quando três corpos juncam a entrada, não acha?
— Sim.
Fez—se um breve silêncio.
— Sabe por que razão eu odiava tanto a Stephanie Fellowes e porque é
que não me empenhava na sua psicologia estúpida? — perguntou Jinx
friamente. — Porque ela não acreditava que eu não tivesse nada a ver com a
morte de Russell. Ela escreveu isso nos apontamentos?
— Não.
— E você está a anotar o seu cepticismo nos seus apontamentos? Doeria
menos, se ela gostasse menos dele?
— Não.
— Mas está a tirar apontamentos? — Ele anuiu. — Então o que escreve
sobre mim, doutor Protheroe?
— São notas particulares. — As fantasias sexuais de um homem que
está a ficar maluco por ser celibatário... Está bem, Russell soube puxar os
cordelinhos certos, mas excitava—a?... Como é você na cama, menina
Kingsley? — Ontem, por exemplo, escrevi: «É uma pena que Jinx não sorria
mais. Fica—lhe bem.»
Ela franziu imediatamente o sobrolho.
— Em vez de dizer «sim», porque é que não disse: as probabilidades
contra você ou a sua família são inquietantes, Jinx, mas existem? O que o
leva a pensar que eu sou tão forte, que não preciso de ser tranquilizada,
mesmo que seja por um filho da mãe como você?
Ele fez—lhe um sorriso amarelo:
— Porque provavelmente você me teria criticado por ser paternalista.
Sabemos ambos que você não é uma pateta e que terá de enfrentar problemas.
A única coisa que posso fazer, na ausência de alguma coisa de concreto para
trabalhar, é apontar—lhe os perigos de que você poderia não suspeitar. Agora
você é livre de escolher como quer negociá—los.
— É condescendente dizer que sorrir me fica bem.
— Era essa a intenção, mas se é assim que prefere entendê—lo, então
assim seja.
— Odeio o existencialismo.
— Claro que sim — disse ele. — É por isso que você o utiliza tão bem.
— Tocou nos jornais com a ponta do sapato. — O que vai acontecer à
Franchise Holdings?
— Se não conseguirem fazer parar a queda das acções, Adam terá de se
demitir — disse ela sem mostrar qualquer emoção. — Certamente que não
vai ficar de braços cruzados, enquanto os auditores analisam a companhia. De
facto, se tiver algum dinheiro agora é o momento de comprar acções. São de
borla neste momento. Garanto que o preço vai começar a subir no momento
em que o pânico diminuir.
— E os rumores sobre irregularidades financeiras?
— Aposto que não há nenhuns, ou nenhumas que possam ser provadas.
Adam disse uma vez que se o «Nipper» Read da Scotland Yard não tinha
conseguido nenhuma prova contra ele, então ninguém conseguiria.
— E você vai comprar algumas acções? Os olhos dela tiveram um
sorriso perverso.
— Já comprei. Telefonei ao meu corretor esta manhã. Vai vender tudo
da minha carteira de acções, para poder comprar da Franchise Holdings.
— E se você estiver enganada e perder tudo?
— Será por uma boa causa — disse ela. — Pelo menos saberei que
declarei em quem acreditava, quando era importante.
— O motivo é realmente tão puro quanto parece? Ela olhou desconfiada
para ele.
— O que significa isso?
— Verónica Gordon disse—me que a sua madrasta veio cá ontem à
noite. Pensei apenas se não haveria um bocadinho de maldade misturada com
o altruísmo.
Verónica ficara muito mais chocada com a crueldade de Jinx, do que
com o facto de Betty estar bêbada.
«Acho que a subestimei, Alan.» Comentara. «Acho que é tão implacável
como o pai dela.»
— Que tipo de maldade?
— Do tipo que salta para cima e para baixo e diz: Olhe para mim,
Adam, estou a apoiá—lo. Olhe para ela, ela não está.
Jinx acendeu um cigarro.
— A oportunidade de o fazer seria excelente, não acha? Será que
alguma vez a vou ter? Não me lembro de Adam cá vir, mas talvez isso seja
outra coisa que eu esqueci.
— Convidou—o?
Ela sorriu debilmente.
— Também não convidei o Simon Harris, e ele veio. Não convidei o
Miles ou o Fergus, mas eles vieram. Porque é que Adam precisa de um
convite? Com certeza que os pais afectuosos visitam as suas filhas doentes,
naturalmente.
— Talvez ele tenha medo da rejeição, Jinx.
— Duvido. Se tivesse, não seria tão rápido a rejeitar todas as outras
pessoas. — Voltou a falar sobre o facto de ele pôr em questão os motivos
dela. — De qualquer maneira, maldade seria redundante no que diz respeito à
Betty. Ela não pode voltar atrás e está a afundar—se, e eu não vou levantar
um dedo para a ajudar.
Então porque estás tão triste?, pensou ele.

14 Glenavon Gardens, Richmond Surrey — 10.30 h

Estava planeado voltar a interrogar toda a gente ligada a Jane King—


sley, Leo Wallader e Meg Harris no decorrer naquela quarta—feira, com
perguntas especificamente adaptadas a formar um quadro claro dos seus
movimentos e dos locais onde tinham estado todos os dias, desde o feriado
municipal, na segunda—feira, até à noite de segunda—feira, dia treze.
O sargento Fraser foi mandado para Londres, para entrevistar os
Clancey, Josh Hennessey, Dean Jarrett e a vizinha de Meg, a senhora Helms.
Começou pelos Clancey em Richmond, explicando primeiro o objectivo das
perguntas, e fazendo—os recuar até à segunda—feira, dia 30 de Maio, duas
semanas antes do acidente de carro de Jinx.
— Soubemos, pelos pais de Leo, que ele e Jinx voltaram para Londres
durante o fim da tarde, princípio da noite. Pode confirmar isso?
Ao falar fazia cócegas nas orelhas de Goebbels. O pequeno cão tinha—
se esticado ao longo dos seus joelhos, com o focinho pendurado e, Fraser,
completamente seduzido, ficou contente por Maddocks não estar lá para fazer
troça deste afecto simples.
O coronel Clancey franziu os lábios.
— Lembro—me de ter visto Jinx na manhã de sábado, mas não na
segunda — disse ele por fim. — Eu estava no jardim e ela saiu para falar
comigo. Estava muito zangada, tanto quanto me lembro. Os dois irmãos
estavam lá em cima a curar as bebedeiras e Leo não tinha voltado para casa
na noite anterior. Ela perguntou—me se eu sabia onde ele tinha ido, porque
era suposto irem juntos para Guildford. Respondi—lhe que já há uns dias que
não o via. — Olhou por uns segundos para a mulher. — Também lhe disse —
continuou ele com firmeza — que ela estava a cometer um erro com o Leo e
ela respondeu que eu não precisava de me preocupar, pois já tinha chegado à
mesma conclusão. Depois foi para dentro e um pouco mais tarde apareceu o
Leo.
— Tu nunca me disseste isso — disse a senhora Clancey.
— Achei que ias ficar zangada — replicou ele. — Estavas sempre tão
desejosa que ela se casasse outra vez.
— Disparate. Eras tu que passavas a vida a dizer—lhe que ela estava em
dívida para com a sociedade, por não ter tido bebés. «Uma mulher como
você, esperta e com iniciativa» dizias—lhe tu «tem a responsabilidade de
passar os genes. Todos estes adolescentes parasitas a produzirem centenas,
enquanto as pessoas espertas não produzem nenhuns. Acabe com o facto de
serem os idiotas a comandarem o planeta.»
Fraser agiu rapidamente antes que esta discussão se desenvolvesse.
— Quando é que voltou a vê—los?
— Vi—os a partirem juntos no domingo de manhã — disse Daphne
querendo ajudar. — Jinx tinha um boné de basebol, porque Leo insistia em
guiar o carro sem a capota, e lembro—me de ter pensado como ela ficaria
mais bonita com um chapéu de palha.
— Porque é que ela foi com ele, se já tinha decidido que ele não lhe
servia? — perguntou Fraser pensativo.
— Ela é muito bem—educada — disse a senhora Clancey.
— Na quarta—feira a seguir — disse o coronel com simplicidade, que
tinha estado a pensar. — Estávamos no jardim, por volta das seis horas, horas
do Gin & Tonic, quando Jinx desceu o caminho da garagem — fez um gesto
em direcção à janela — vai à volta da cerca, sabe? Estava muito satisfeita,
cantava e eu gritei: «Quem ganhou o jackpot?» Ela espreitou por cima da
cerca e disse: «Como estão?»
— Sim — concordou Daphne — e eu respondi: «Deve estar contente
por ir passar uma semana ao Hampshire» ao que ela respondeu: «Vou matar
dois coelhos de uma só cajadada, senhora Clancey. Uma mudança faz tanto
bem, como descansar.»
Fraser esperou um momento, enquanto Goebbel se virava de costas e lhe
oferecia a barriga para que ele a coçasse.
— Foi tudo? — perguntou ele, dobrando furtivamente um dedo e
enfiando—o no pêlo dourado.
Acenaram ambos as cabeças simultaneamente.
— Não lhe perguntaram sobre Leo e como fora o fim—de—semana? O
coronel pareceu ofendido.
— Meu Deus, claro que não — disse ele. — Não temos nada a ver com
isso. De qualquer maneira, duvido que ela nos tivesse contado. É uma pessoa
reservada, a Jinx. — Ralhou com o Goebbel, cujo pénis erecto se via através
do pêlo.
— Seu animal porco. Dê—lhe um pontapé, se o incomodar. Fraser, que
não tinha reparado, sorriu debilmente e recolheu o dedo.
— Viram o Leo naquele dia?
— Não. Na verdade — o coronel fez uma pausa para pensar — não me
lembro de o ver depois de sábado de manhã. Não tinha pensado no assunto,
para lhe dizer a verdade, mas agora que pergunta... — Olhou
interrogativamente para a mulher. — Lembras—te de o ter visto?
— Para mim foi no domingo — lembrou—lhes ela. O coronel
resfolegou impaciente.
— Depois, mulher, depois.
— Bem, eu não esperava vê—lo, não era costume — disse ela, virando
—se para Fraser. — Ele nunca se esforçava por ser simpático. De vez em
quando lá dizia bom—dia e era o máximo que se podia esperar. Acho que ele
não gostava de nós, porque tínhamos conhecido o Russell e tinha medo que
fizéssemos comparações. Também não gostávamos muito do Russell e
ficámos um pouco desapontados por vermos que Jinx escolhera novamente o
mesmo tipo de pessoa.
O marido fixou—a com um olhar reptilíneo.
— A pergunta era, sua velha tonta, se o viste depois de domingo? Ela
sorriu distraída:
— Acho que não.
— Nem mesmo durante a semana em que Jinx esteve fora? —
perguntou Fraser.
— Certamente que não — respondeu o coronel, alisando o bigode —
mas não era suposto ele estar aqui. Jinx foi lá a casa na sexta—feira à noite,
seria no dia 3 de Junho, para dizer que ia para o Hampshire de manhã e que
ele ia passar a semana no Surrey. Disse—nos que não valia a pena regarmos
as plantas da casa, mas pediu para lhe regarmos o jardim, quando eu tivesse a
mangueira ligada. Voltaria no próximo domingo, disse—nos ela.
Fraser franziu o sobrolho e baixou—se para folhear alguns papéis, que
tinha colocado no chão ao lado da sua cadeira.
— Eu tinha a impressão de que ela tinha voltado na sexta—feira, dia dez
de Junho.
— Bem, na verdade voltou. Só o soubemos na manhã seguinte. Ela veio
à minha procura no sábado — seria o dia onze — e disse: «Sabe, Coronel,
desmanchámos o casamento ontem à noite. Aquele patife largou—me e a
única chatice é que o fez antes de mim.» — Voltou a cerrar os lábios e
franziu o sobrolho. — E deixe—me dizer—lhe Sargento, ela estava muito
satisfeita, parecia que um peso lhe tinha sido tirado dos ombros. Depois
voltou a entrar para telefonar ao pai, dizendo—me para fazer figas, para que
ele não a obrigasse a pagar as despesas do casamento cancelado.
— Segundo os pais dela, voltou mais cedo para casa do que planeara,
depois de receber um telefonema na tarde de sexta—feira. Quando cá chegou
encontrou o Leo a fazer as malas. Foi nessa altura que ele lhe disse que ia
casar com a melhor amiga dela e se foi embora. O que significa que ele
esteve aqui o tempo todo.
— Não — disse o coronel resolutamente — e tenho a certeza de que ele
também não apareceu na sexta—feira. Estive no jardim da frente toda a tarde,
por isso teria visto o carro dele.
— Tem a certeza?
— Claro que tenho. Nós temos uma rotina inflexível. Às terças e sextas,
o jardim da frente. Segundas e quartas, a parte de trás. Às quintas vamos às
compras. Nunca varia.
Fraser olhou para Daphne Clancey, que acenou com a cabeça.
— Nunca varia — concordou ela. Um sorriso malicioso insinuou—se
nos seus lábios. — Culpo o exército por muita coisa.
Fraser chupou o interior do lábio pensativo.
— Porque não disse isto à polícia de Richmond, quando eles o
entrevistaram depois do acidente de Jinx? — perguntou ele.
— Porque só estavam interessados em saber, porque é que a Jinx
quereria suicidar—se — respondeu o coronel. — Por isso a Daphne contou—
lhes que o Leo a abandonara e antes que eu pudesse explicar que ela não
parecia estar muito infeliz, Daphne começou a chorar por causa do incidente
no domingo. Se quer saber a minha opinião, só tiraram conclusões falsas em
todos os aspectos.
— Qual é a sua explicação para o incidente no domingo?
— Foi um acidente — disse ele. — A porta fechou—se com o vento.
Goebbels dirigiu—se para lá rapidamente. E eu também. Tirei—a da garagem
e, em pouco tempo, ela ficou bem.
— O velho tonto quase que se matou — disse a senhora Clancey
carinhosamente. — A Jinx não é muito leve, para dizer a verdade.
Fraser acenou novamente com a cabeça.
— Ela deu—lhe alguma explicação depois de a ter tirado da garagem?
— Apenas concordou que devia ter sido um acidente — disse o coronel
— e depois pediu à Daphne para não se preocupar. «Eu estou bem» disse ela.
Fraser observara o exterior da garagem quando chegara. Tal como a dos
Clancey, que estava separada da dela por um caminho estreito, junto do muro
de um metro e vinte, que dividia as propriedades, fazia parte de uma elevação
lateral com dois andares na parte traseira da casa e com acesso pelo lado
interior. As portas da frente ficavam em frente uma da outra, por baixo de
alpendres discretos entre as esquinas das casas e as respectivas garagens,
deixando um terreno bastante espaçoso entre os portões e as elevações da
frente. O de Jinx estava cheio de arbustos e pequenas árvores, tapando o
andar de baixo da casa visto da rua; o dos Clancey era mais formal, com
canteiros de rosas à volta de um pequeno relvado. Afinal de contas, não era
surpreendente que tratassem dele às terças e às sextas. Olhando para o jardim
de trás, através da janela da sala de estar, via—se uma área de tamanho
equivalente.
— A menina Kingsley saiu de carro depois de a ter salvo? — perguntou
ele ao coronel Clancey.
— Não imediatamente.
— Mas saiu?
Ele acenou com a cabeça.
— Primeiro fez um telefonema, depois mandou—nos embora, dizendo
que estava óptima.
— A quem estava ela a telefonar?
— Não faço ideia. Fez o telefonema do quarto. Presumo que tivesse de
explicar, a quem quer que fosse visitar, que estava atrasada.
— Acha que foi sensato deixá—la guiar nessas circunstâncias?
— Para dizer a verdade, acho que não, mas não podíamos fazer muita
coisa para a impedir.
— Ela voltou mais tarde?
O coronel olhou para a mulher.
— Honestamente, não sei dizer, mas imagino que sim. Ela não era das
que passavam noites fora.
Fraser puxou uma das orelhas de Goebbels.
— E as portas da garagem estavam trancadas ou não, quando foi ver por
que razão Goebbels estava a ladrar?
— Destrancadas — disse o coronel.
— Eric! — ralhou a mulher. — Porque estás a mentir? Não vai ajudar a
Jinx. Estavam trancadas — disse ela a Fraser. — Eric olhou através da janela
da garagem, viu o que estava a acontecer e veio ter comigo para pegar no
duplicado da chave. Francamente, foi uma sorte não ter trancado também a
porta da frente, pois assim ele teria um trabalho enorme para poder entrar.
O homem idoso levantou—se da cadeira para olhar para o jardim.
— Conheço a Jinx desde que ela se mudou para cá com o Russell —
disse ele abruptamente. — Há treze ou quatorze anos, um ano a mais ou a
menos. Ela é uma mulher excelente, um pouco distante talvez, às vezes
demasiado independente, acha que pode fazer tudo o que um homem faz,
depois descobre que não é tão forte como acha que é, uma vez tirei—a de sob
um saco de cimento porque era pesado demais para ela. — Fez uma pausa,
rindo—se. — Ficou entalada como um grande caranguejo a estrebuchar, há
anos que não me ria tanto. — Fez novamente uma pausa. — Ajudei—a
naquele assunto horrível do Russell, vi como ela refez a vida e obteve
sucesso com as suas fotografias.
E sem a ajuda do pai, devo acrescentar. Não queria. «Ou consigo
sozinha, coronel, ou então não.» Foi isso que ela disse. — Virou—se com as
sobrancelhas brancas e salientes franzidas ferozmente. — Uma mulher como
aquela não se suicida, nem sequer pensa em fazê—lo. E se o fizesse, fazia—o
bem. Teria colocado uma mangueira no tubo de escape e taparia os buracos
da janela. Não confiaria no fumo da garagem para a matar.
— Talvez ela quisesse ser salva — sugeriu Fraser. O coronel fungou
ironicamente.
— Então teria chorado amargamente e ter—nos—ia dito como era
infeliz — argumentou ele. — Parece—me que a questão importante é porquê.
Antes de alguém saber que Leo e Meg tinham sido assassinados, a polícia
agarrou—se à infelicidade de Jinx por ter perdido Leo. Duas tentativas de
suicídio, quando se está deprimido, faz algum sentido. — Os seus olhos
semicerraram—se. — Mas o que pensam agora que sabem que Leo morreu?
Estão a sugerir que ela sabia dos assassínios e que tentou suicidar—se
depois?
Fraser pensou nisto durante algum tempo, olhando de perto para a cara
do velhote. Era um bom argumento, admitiu ele. Existia um paradoxo
inerente, se a primeira tentativa de suicídio tivesse ocorrido antes de Meg e
Leo terem sido assassinados, porque era psicologicamente estranho e
implicava uma lógica complicada, que nos levava do desespero suicida à
vontade de matar e novamente ao desespero suicida.
Pôs as mãos à volta do cãozito, virou—o e colocou—o novamente no
chão, depois pegou nos seus apontamentos e folheou—os.
— Estive com ela ontem — disse—lhes ele. — Ela falou sobre o
acidente de carro, disse que não achava que fosse uma tentativa de suicídio.
— Isolou uma página. Ela disse: «não condiz com o meu carácter.» Depois
continuou: «Se eu não estava a tentar matar—me, outra pessoa devia estar a
tentá—lo em vez de mim». Olhou para cima. — Viu alguém a ir a casa dela
no sábado? Ouviu alguém? Reparou em alguma coisa quando entrou pela
porta da frente?
O coronel Clancey abanou a cabeça com ar de quem lamenta.
— Não — admitiu ele.
Fraser sentiu—se estranhamente desapontado.
— Está bem. Então vamos passar à segunda—feira, dia 13 de Junho.
— Eu vi — disse a senhora Clancey, com um olhar distante nos olhos.
Deixou de recordar o que quer que fosse, para fixar o sargento com
concentração. — Eu vi — repetiu ela. — Que estranho, tinha—me esquecido
completamente. Estava tão preocupada que Eric pudesse ter um ataque de
coração ao tirar a Jinx do carro, que me esqueci. — Inclinou—se para a
frente, os seus olhos pálidos brilhando de excitação. — Goebbels entrou em
casa com o Eric — disse ela — e eu conseguia ouvi—lo a ladrar
furiosamente. Claro que pensei que ele estivesse com o Eric mas, de repente,
vi—o a subir o caminho do jardim de trás, a ladrar e a rosnar como se
estivesse à procura de alguém. Bem, o senhor conhece o barulho que os cães
fazem quando vão atrás de um intruso. Ele deve ter saltado pela janela da sala
de estar, o que significa — disse ela com firmeza — que alguém tinha saltado
antes dele, provavelmente quando Goebbels deu o alarme. Tenho a certeza de
que a janela da sala de estar estava aberta, quando levámos Jinx para dentro.
Fui eu que a fechei quando Jinx estava a fazer o telefonema.
— Muito bem, minha velha, disse o coronel aprovadoramente. — Deve
ter sido isso. Algum filho da mãe a tentar matá—la. Mais nada faz sentido.
— Então porque é que Jinx não lhes falou sobre isso? — disse Fraser
relutantemente. — Nessa altura ainda não sofria de amnésia.
— Fez uma enorme festa ao Goebbels, depois de lhe termos contado que
tinha sido ele a alertar—nos para o que estava a acontecer. Quase esmagou o
pobre coitado.
— Mesmo assim... — O cenário não fazia sentido, pensou Fraser para si
mesmo, mas sentia—se com vontade de continuar. — Olhe, não se põe uma
pessoa consciente no carro e não se liga a ignição, esperando que ela seja
suficientemente estúpida para ali ficar até morrer. Ela teria que estar
inconsciente.
— Ela disse que lhe doía a cabeça.
— Possivelmente alguém deve ter—lhe batido primeiro. Então porque é
que ela não participou o caso à polícia?
Fez—se outro silêncio.
— Porque — disse a senhora Clancey resolutamente — ela conhecia a
pessoa muito bem e não acreditava que pudesse querer magoá—la. Ao fim e
ao cabo, ela não tinha sofrido nada e Eric falava constantemente no facto de
ter sido um acidente estúpido. Faz parte da natureza humana assumir o
melhor, sabe.
— Ou — disse o coronel Clancey pensativamente — tinha coisas mais
importantes a fazer do que responder às perguntas da polícia.
Como eu disse, é uma mulher muito independente, a Jinx.
Provavelmente pensou que tinha a situação sob controlo. Para quem seria o
telefonema? Naquela altura pareceu perfeitamente natural, mas agora, diria
que vale a pena investigar. Fraser tomou nota.
— Quando é que voltaram a vê—la?
O homem de idade olhou para a mulher.
— Não me lembro de voltar a vê—la. Logo a seguir a polícia veio bater
—nos à porta, foi na terça—feira, para nos dizer que ela estava no hospital.
Fraser olhou para ambos pensativamente.
— A vossa vizinha tentou suicidar—se e não foram verificar se estava
tudo bem?
— O suicídio só foi mencionado na terça—feira — disse o coronel
friamente. — Tanto quanto sabíamos, tinha sido um acidente. Claro que
estávamos atentos, mas não aconteceu nada de anormal. Não íamos tornar—
nos um incómodo, quando a pobre rapariga provavelmente se sentia uma
completa idiota.

Hagrris e Hennessey, Soho, Londres — 12.30 h

Josh Hennessey, que apesar de ter ameaçado Meg no gravador de


chamadas de abandonar a sociedade, ainda estava a trabalhar para manter o
negócio a andar, cumprimentou o sargento Fraser com pouco entusiasmo.
— Já lhes disse tudo o que sei — disse ele, despenteando o cabelo de
forma a formar uma crista e olhando carrancudo para o homem que tinha
diante de si.
Fraser explicou ao que vinha.
— Se tiver uma agenda —— sugeriu ele — pode fazer andar as coisas
mais depressa. Preciso de um timing o mais preciso possível dos movimentos
de Meg.
Relutantemente, Hennessey tirou um livro da gaveta da sua secretária e
folheou as páginas.
— Muito bem, estas são as marcações de Meg na segunda—feira, dia 30
de Maio. Nada. Era feriado nacional, terça—feira, 31 de Maio, nada. Mas
está cortado com um lápis azul, o que significa que provavelmente estaria a
trabalhar no escritório.
— Lembra—se de ela estar aqui?
— Não — disse Josh friamente. — Foi há três semanas e Meg e eu
trabalhamos juntos há anos. Como é que me vou lembrar de um dia em
milhares deles? De qualquer forma, se eu estivesse fora, não poderia saber.
— Esteve fora?
Ele olhou para a agenda.
— De acordo com isto estive em Windsor a recrutar.
— Estas linhas azuis são de confiança? Ela poderia cortar um dia,
mesmo que não tivesse estado no escritório?
— Sim, se lhe desse jeito.
— Continue.
— Quarta—feira, dia 1 de Junho: 10 horas, Bill Riley, 12 Connaught
Street. O dia inteiro. Quinta...
— Um momento — interrompeu—o Fraser. — Ela manteve essa
marcação?
— Está cortada, o que significa, em teoria, que o assunto foi tratado. —
Encolheu os ombros. — Está bem, sim. Tendo em consideração o tempo que
eu passei desde então com esse cliente, esteve lá provavelmente até à meia—
noite, resolvendo os problemas dele com o pessoal. Na verdade — admitiu
ele de má—vontade — neste momento, se não fosse eles, estaríamos em
dificuldades. O que não acontece com mais nada.
— Está bem. Quinta — incitou—o ele.
— Quinta—feira, dia 2 de Junho: em branco de manhã, encontro com o
gerente do banco às três e meia. Ambos cortados.
— Seria o gerente da sociedade ou o gerente do banco dela?
— Provavelmente o da sociedade. Temos tido grandes dificuldades
devido à recessão e Meg tem reuniões regulares com o safado que tem na sua
posse os nossos empréstimos. Tinha — corrigiu—se ele acabrunhado. —
Continuo a esquecer—me que ela morreu. Sexta—feira, dia 3 de Junho: em
branco mas cortado. Segunda...
— Lamento estar sempre a interromper, mas faz alguma ideia do que ela
fez durante o fim—de—semana de quatro a cinco?
— Tínhamos um relacionamento profissional, Sargento, como eu lhe
expliquei da última vez que falei consigo. O que ela fazia aos fins—de—
semana era um livro em branco para mim, a não ser que envolvesse a
sociedade. Segunda, dia 6 de Junho: às dez horas Bill Riley novamente.
Cortado. Terça...
— Talvez fosse mais fácil, se eu fizesse uma fotocópia, disse Fraser. —
Suspeito que seja uma perda de tempo para ambos folhear a agenda assim, se
não há nada que possa acrescentar ao que está escrito.
Hennessey empurrou o livro para o outro lado da secretária.
— Não há nada aí. Eu verifiquei depois da última vez que vieram cá e,
exceptuando algumas reuniões com Riley e as exigências do gerente do
banco para um plano empresarial no dia dez, parece ter passado a maior parte
dessa semana a evitar o trabalho. Francamente, está a perder o seu tempo e a
ser irrealista, se acha que existe alguma coisa que lhe possa dizer.
— O senhor não está a ser muito prestável — disse Fraser suavemente.
— Não quer que encontremos o assassino da sua sócia?
Josh pegou num maço de cigarros que estava ao lado da secretária.
— Achei que ia parar com este maldito hábito, até que tudo isto
aconteceu. Agora fumo muito mais. — Acendeu um cigarro e atirou o fósforo
para o cinzeiro, olhando de mau humor para o fumo que subia da ponta acesa.
— Não sei o que quero, sargento. A Meg era uma boa amiga. A Jinx é uma
boa amiga. Cara, ganha o senhor, coroa perco eu.
— Porque diz isso?
— Porque sei ler — disse Josh bruscamente. — Os jornais estão cheios
com isso e, a não ser que estejam enganados, os senhores estão a tentar
prender Jinx, ou o pai, pela maneira como Russell morreu.
— Conhecia o Russell?
— Não muito bem. A Jinx trouxe—o ao escritório algumas vezes,
quando a Meg e eu ainda estávamos com Wellman e Hobbs.
— Ele alguma vez veio visitar a Meg sem a Jinx? Josh abanou a cabeça.
— Não que eu me lembre.
— Sabia que eles estavam a ter um caso? Josh deu uma grande passa no
cigarro.
— Não naquela altura. Soube depois.
— Quem lhe disse?
Josh não respondeu imediatamente.
— Não me lembro — disse ele enfadado. — Ou foi a Meg ou o Simon,
acho eu. — Pareceu decidir—se. — Foi a Meg. Ela estava realmente
perturbada com a morte do Russell, passava a vida a chorar por nenhuma
razão aparente, por isso perguntei—lhe porquê e ela disse—me.
Fraser não acreditou nele.
— Acho que foi a menina Kingsley que lhe disse.
Josh olhou para ele durante algum tempo.
— Não me lembro — disse ele novamente. — Foi há muito tempo.
Fraser sorriu agradavelmente.
— Não é muito importante, mas estamos a tentar relacionar informações
soltas. Consegue lembrar—se em que altura, depois da morte de Russell, ela
lhe disse?
— Olhe, eu não disse que foi a Jinx, está bem?
Fraser estava fascinado com as mãos de Hennessey, que pareciam ter
vida própria, contraindo—se, agarrando e mexendo—se constantemente.
— Percebi. Consegue lembrar—se quando ouviu falar do assunto pela
primeira vez?
— Acho que foi depois de ela ter perdido o bebé.
— Obrigado — disse Fraser sem duvidar. — Não preciso de si muito
mais tempo. Agradecia que examinássemos a última conversa, que teve com
a Meg, se não me engano o telefonema que ela fez para sua casa no sábado,
dia 11 de Junho. De acordo com o que nos disse anteriormente, ela afirmou
que o casamento de Leo e de Jinx fora cancelado, que ia casar com ele, que
iam partir para França na terça—feira, mas que passaria por cá antes para o
pôr a par dos assuntos do escritório.
— Está correcto.
Fraser consultou a agenda do escritório.
— No entanto, de acordo com o que está aqui, ela voltou ao escritório na
sexta—feira à tarde, a seguir a um encontro com o gerente do banco. Porque
não lhe falou nessa altura? É um pouco estranho, não é?
— Tem razão, é estranho — resmungou ele. — Bolas, recebo uma
chamada, sem contar, a dizer que ela vai para França, deixando—me a
segurar as pontas até voltar. Ralhei com ela e disse—lhe que a enforcaria, se
ela não passasse aqui para arrumar a secretária antes de partir.
— Então foi ideia sua e não dela de passar aqui na segunda—feira? Josh
franziu o sobrolho ao recordar.
— Provavelmente. Fiquei muito zangado por ela me abandonar sem me
avisar. Quem é que ia confiar num negócio em que um sócio desaparece, sem
uma hesitação? Eu investi todo o meu dinheiro neste maldito projecto. —
Abanou a cabeça. — Faz alguma diferença?
— Talvez — disse Fraser. Fez uma pausa para pensar no assunto. —
Talvez a tenha feito sentir suficientemente culpada, para que ficassem mais
tempo por cá do que tencionavam.
— Não percebo.
— A Meg fez todos os telefonemas na manhã de sábado, disse Fraser
devagar. — Será que a ideia era comunicar o casamento e depois partir
imediatamente para França? Temos de encarar o facto de que ela, melhor do
que ninguém, sabia o que acontecera a Russell Landy.
— Está a dizer que eles ainda estariam vivos se eu não a fizesse sentir
culpada pela viagem? — perguntou Josh asperamente.
— Não sei. Acho que temos de saber onde eles estiveram na segunda—
feira, antes de tirarmos qualquer conclusão. Quero dizer, foi o senhor que a
pressionou a adiar a partida. — Fraser olhou de perto para o outro homem
antes de continuar. — E da maneira como as coisas estão, tenho apenas a sua
palavra de que ela e Leo não vieram cá como tinham prometido.
19
Quarta—feira, 29 de Junho, 53 Lansing Road, Salisbúria Wilshire –
meio—dia

FLOSSIE HALE EXAMINARA o recorte do jornal com o emblema da


Franchise Holdings.
— Oh!, sim — disse ela —, não há dúvida, é o porta—chaves. Fixou a
sua atenção na fotografia cheia de grão de Miles e Fergus
Kingsley no recinto para membros, em Ascost, e, depois de uma breve
hesitação, apontou para uma cara com o dedo.
— Parece ele, mas não é uma fotografia muito boa, pois não é querida?
Não me lembro do cabelo dele ser tão escuro. O casaco é parecido.
— E quanto ao homem que está com ele?
Ela afastou a página, com os olhos meio fechados, como se estivesse a
olhar para um quadro impressionista.
— O problema é que não se olha muito para as caras deles, quando eles
nos estão a bater. Estamos demasiado assustadas. Sim — disse ela,
subitamente decidida —, é ele. O filho da mãe. Eu disse que ele tinha um ar
inocente. Quem é ele?
— O nome dele é Miles Kingsley.
A mulher—polícia Blake pegou na fotografia e enfiou—a dentro da
carteira. Samantha Garrison também escolhera Miles e, embora nenhuma das
mulheres tivesse sido tão decidida como Blake gostaria, atribuiu o facto à má
qualidade da fotocópia e adiou as suas preocupações, se alguma vez isto
poderia levar a uma acção penal, bem sucedida.
— Bem, eu não percebo — dizia Flossie. — Como é que transforma o
que eu lhe disse numa fotografia notável de alguém com as iniciais MK?
— Foi apenas sorte, Flossie. Ele é umplay—boy, este estupor. Se quer
saber, esta fotografia foi mandada por fax pelo The Tatler. Foi espancada por
um dos melhores da sociedade. O pai dele é um multimilionário.
Flossie abanou a cabeça.
— Faz—nos pensar no que o mundo se está a transformar. Porque anda
ele à procura de velhas pegas, como eu, em Salisbúria, quando pode pagar as
de excelente qualidade em Londres?
Blake não sabia responder a isso.

O Estúdio, Pimlico, Londres — 13.00 h

Dean Jarrett foi efusivamente prestável.


«Mas com certeza, querido.» disse ele a Fraser, espalhando o seu
charme, enquanto o observava friamente pelo canto do olho. Achou que este
polícia parecia sofrer menos de homofobia do que a maior parte, até podia ser
complacente com Jinx e a sua bizarra equipa no estúdio, a acreditar no sorriso
simpático. Tinha aceite bem o cabelo cor—de—rosa de Angélica e parecia
não ter ficado confuso com as maneiras insinuantes de Dean.
— Posso dar—lhe um relatório detalhado de tudo o que a Jinx fez desde
terça—feira, dia trinta e um, até sexta—feira, dia três. Mas depois disso não
sei nada, infelizmente. Na semana seguinte esteve em Hell Hall e não
soubemos nada dela, claro que também não o esperava, porque eram dias de
férias e depois pregou—nos uma partida e desapareceu. Angélica telefonou
várias vezes na segunda—feira, quando era suposto ela estar aqui, e só lhe
respondeu o gravador de chamadas.
— Seria no dia 13 de Junho?
— Sim. E depois, na terça—feira, soubemos as terríveis notícias de que
a pobre estava inconsciente num hospital. Suponho que já a viu. Ela está
bem?
A sua cara contorceu—se num trejeito de preocupação e Fraser acenou
com a cabeça de forma tranquilizadora, mesmo tendo achado a expressão
pouco sincera.
— Parece óptima. Um pouco confusa sobre o que aconteceu, mas de
resto muito viva e muito calma.
— Não é espantosa? — disse Dean. — É a minha senhora favorita.
— E no entanto não foi vê—la — disse Fraser friamente —, pelo menos,
tanto quanto sabemos. Tem alguma razão para isso?
O trejeito desapareceu abruptamente.
— Sim, bem, ao contrário dos Josh Hennesseys e dos Simon Harrises
deste mundo, que me dizem ambos que se impingiram, prefiro esperar por
um convite. Imagine como deve ser terrível sentir—se pessimamente e ter
amigos bem—intencionados a imporem a sua presença. Jinx é uma pessoa
muito reservada. Acho que por um lado, nem ela sabe quanto nós todos a
adoramos, e por outro lado, meto—me na minha concha, porque acho que a
verdade é que a maçamos terrivelmente. — Ele suspirou. — De qualquer
maneira, durante muito tempo não sabia onde ela estava. O bruto do pai não
me disse.
— Mesmo assim, estou surpreendido por ela não se preocupar com o
estúdio.
Dean deu um guincho de desespero.
— Como você é dominador, Sargento. Não acha que a pobre querida
tem preocupações mais sérias de momento, do que deixar o negócio nas mãos
do segundo melhor fotógrafo de Londres?
Os lábios de Fraser contraíram—se.
— O que pensa de Leo?
— Ele era absolutamente horrível. Uma verdadeira sanguessuga, mas a
Jinx via isso? Bem, sabe qual era o mal, ela ficava cega quando se tratava de
uma cara bonita. Apaixona—se pelo exterior e esquece—se que o mais
importante é o que está por baixo. A culpa é do pai. Parece um abutre velho e
esteve sempre tão distante dela, que ela acha que uma cara bonita significa
uma personalidade bonita. — Girou os olhos em direcção ao céu. — Odeio
dizê—lo, porque ele é um homem muito malcriado, mas na verdade penso
que Adam Kingsley vale pelo menos dez Leo Walladers. Se o número de
telefonemas, que ele fez para saber de mim e da Angélica, significa alguma
coisa, preocupa—se muito mais com a Jinx do que ela alguma vez
reconheceu. Meu Deus, se nós tivéssemos pensado em deixar andar as coisas
— o que não fizemos —, ele teria aparecido para nos comer vivos!
Fraser sorriu:
— Então conheceu—o?
— Fui—lhe apresentado da primeira vez que ele nos fez uma das suas
terríveis visitas — disse Dean arrepiando—se —, assim como a Angie. Mas
como eu sou homossexual e ela é negra, não se pode dizer que tenha sido o
acontecimento social do século. Ele foi lavar as mãos a seguir não tivesse
apanhado alguma coisa. Em todas as visitas seguintes, resmungou qualquer
coisa na nossa direcção e passou por nós para falar com a Jinx em privado.
— Porque é que as suas visitas são assustadoras?
— Porque ele insiste em trazer o seu amestrado gorila com ele. — Dean
voltou a revolver os olhos. — Diz que ele é o motorista, mas desde quando é
que os motoristas precisam de ter quase metro e meio de largura de peito? O
homem está ali para fazer carne picada de alguém, que não concorde com o
patrão.
— Isso é vulgar nos dias de hoje, sabe. Um guarda—costas como
motorista. A maior parte dos milionários têm—nos. Disse que o senhor
Kingsley era uma pessoa distante, mas diria também que ele gosta da Jinx?
— Sim, de uma forma depressiva. Nunca a toca, senta—se apenas a
olhar para ela, como se ela fosse uma peça de loiça de Dresden. Eu sinto que
ele realmente não consegue acreditar que ela é dele. Quero dizer, ele é muito
vulgar, e ela é uma senhora, e os outros dois filhos que teve são uns grandes
parvalhões. — Pensou durante um minuto. —, Acho que gostar não é a
palavra certa. Acho que ele a idolatra.
— E como é que ela sente isso?
— Odeia, mas também tem de perceber que ele não está a adorar a Jinx,
está a adorar a pessoa que ele acha que ela é. Quero dizer, teríamos de ser
débeis mentais para ver a Jinx como loiça de Dresden. Uma peça de loiça
resistente de Staffordshire, que salta quando se deixa cair e que mantém a sua
integridade depois de mil lavagens, é uma analogia melhor.
— Porque é que a Jinx não lho diz?
— Ela tentou, mas não há ninguém mais cego do que aquele que não
quer ver. Ela ia casar com Leo Wallader, por amor de Deus. Que melhor
prova poderia haver para uma opinião errada e um gosto pavoroso? Não que
o pai o visse, claro. Leo tinha sangue azul nas veias, por isso devia estar
acima de nós.
Fraser sorriu.
— Fale—me de terça—feira, dia 31 de Maio — convidou—o ele.
— Foi um dia muito ocupado. Durante toda a manhã tivemos uma banda
de adolescentes aqui, que pensavam que eram extremamente bons. A
produtora queria algumas fotografias publicitárias e foi quase impossível
fazer com que eles fizessem outra coisa, além de sorrirem como idiotas para a
objectiva. — Pensou durante um momento. — Durante a tarde fizemos um
pouco de trabalho exterior, perto da estação de Charing Cross, para uma
companhia de televisão. Instantâneos para um documentário sobre os sem—
abrigo. Parámos por volta das seis, porque Jinx queria chegar a casa a horas.
— Ela disse porquê?
Ele abanou a cabeça prateada.
— Mas esteve muito bem—disposta todo o dia e, quando lhe perguntei
se podíamos agradecer a Leo por isso, respondeu: «Decerta forma, acho que
sim.» Por isso eu disse: «Não me digas, minha querida, que finalmente que se
tornou generoso nas relações sexuais.» «Não sejas absurdo, Dean. Leo teria
de estar com a cabeça em cima de um espelho para fazer isso.» E eu pensei
que graças a Deus ela tinha percebido, mas tive demasiados escrúpulos em
lho dizer.
Fraser sorriu novamente:
— Quarta—feira, dia 1 de Junho — incitou—o ele.
— Deixe—me pensar. Sim. Passei a manhã a revelar e a imprimir folhas
de acetato. Havia uns metros de película por revelar, da semana anterior e os
dois projectos da véspera. Jinx tinha um monte de papéis para pôr em dia
antes de ir para férias. As quartas—feiras à tarde são sempre reservadas para
fazer retratos e eu acho que tínhamos cinco ou seis famílias nesse dia. Depois
fomos jantar por volta das seis e meia, antes de voltar a Charing Cross para
terminar o trabalho exterior. Eles queriam fotografias durante o crepúsculo e
também à noite, por isso nesse dia só terminámos cerca das dez e meia.
— E como estava a disposição dela na quarta—feira?
— Igual. Feliz, radiosa, brilhante. Angie e eu estávamos convencidos
que ela tinha mandado o Leo embora, mas ela não disse isso, por isso
pensámos que ela estava a adiar agir, até poder contar ao pai, durante as
férias. Tem de perceber que andávamos a pisar ovos, Deus sabe há quanto
tempo. A pura menção do nome de Leo provocava olhares furiosos e uma
mudança de conversa. E de repente, sem se perceber como, voltou a ser o que
era.
— E o senhor atribuiu isso ao facto de ela ter decidido que não ia casar
com ele?
Dean acenou com a cabeça.
— Mais do que isso, querido, atribui isso ao facto de ele já não viver lá e
certamente não partilhar a cama dela. Pela primeira vez em semanas, ela
queria ir para casa. Por exemplo na quinta—feira. Fez—me trabalhar toda a
manhã como um escravo, e à tarde olha de repente para o relógio e diz:
«Dean, faz—me um favor, toma conta da loja. Tenho algumas coisas para
fazer em casa e amanhã vamos estar fora todo o dia.» Fiquei espantado. Ela
evitava a casa como se fosse uma praga desde que o Leo foi viver para lá.
— Porquê?
Dean reagiu com impaciência.
— Porque percebeu que não o aguentava, claro, mas não sabia como
admiti—lo. Mais uma vez a culpa era do pai. Ele já tinha ido à cidade para
fazer os preparativos para o casamento, convidou metade de Surrey e
Hampshire, e Jinx inibia—se de dizer o que quer que fosse. Quero dizer, iam
alguns ministros e não se lhes podia dizer para irem passear, sem mais nem
menos, pois não?
Fraser riu—se à socapa:
— Nunca tive essa hipótese. No entanto, podia ser divertido. — Fez uma
pausa. — Fazia sentido, se ele não estivesse lá. Ele e ela tiveram uma enorme
discussão no feriado nacional, na segunda—feira, e o lógico seria ele sair
imediatamente. — Pensativamente, mordiscava o lábio.
— Mas ela diz que ele esteve lá na manhã do sábado seguinte, dia 4 de
Junho, quando partiu para Hellingdon Hall, e lembra—se das despedidas
terem sido carinhosas.
Dean encolheu os ombros.
— Então o Leo deve ter feito, um transplante de carácter, entretanto.
Juro por Deus, que se ver sangue não me incomodasse tanto, já lhe teria
batido no nariz várias vezes. Ele era um completo panhonhas.
— O que quer dizer?
— Que a Jinx está a mentir sobre a despedida carinhosa.
— Acha que eles tiveram uma discussão?
— Não. Penso que ela não queria que ninguém soubesse que ele se tinha
ido embora e por isso fingiu despedidas carinhosas que nunca aconteceram.
Quero dizer, se tivéssemos sempre de dizer a verdade sobre as nossas
relações, não seríamos mais do que pudins sem auto—estima. Eu minto
constantemente sobre as minhas, mantenho alguns amantes durante muito
tempo depois de eles me terem abandonado.
— É uma pena não ter contado nada disto a polícia, quando ela teve o
acidente — disse Fraser, repreendendo—o levemente.
— Bem e tê—lo—ia feito, se eles estivessem minimamente interessados
em acontecimentos passados antes de sexta—feira, dia 10 de Junho, mas só
queriam saber se a tínhamos visto, ou se sabíamos alguma coisa dela depois
do seu regresso do Hampshire. Eu disse que ficámos um pouco
surpreendidos, quando soubemos que ela só tinha desmanchado o casamento
no sábado, depois de ter voltado do Hell Hall, quando tínhamos a certeza de
que ela já se decidira há duas semanas, mas eles disseram que tinha sido ele a
abandoná—la e como eu não podia provar que as coisas se tinham passado de
outra maneira, não havia muito mais para dizer.
— Está bem. Falta—nos rever a sexta—feira, dia três. Aconteceu
alguma coisa de anormal nesse dia?
— Apenas uma sessão fotográfica de moda nas docas de Londres.
Começámos às oito e meia e continuámos até às sete da noite, sem uma
pausa. Jinx deixou—me com todas as máquinas e equipamento no estúdio
por volta das sete e meia, atirou—me um beijo e disse: «É todo teu durante
uma semana, por isso porta—te bem.» E desde essa altura não a vi mais.
— Falou com ela? — perguntou Fraser preguiçosamente.
— Apenas uma vez, ao telefone.
— Quando foi isso?
— No domingo à noite.
— Quem telefonou a quem?
— Ela telefonou—me.
— Para casa?
Dean acenou com a cabeça.
— Então deve ter sido importante — concluiu Fraser.
— Sim, era — disse Dean. — Eu fazia trinta anos e ela sabia que eu
morreria se não falasse com ela, não queria saber se ela estava deitada de
costas num hospital a sofrer de amnésia galopante. — Sorriu
encorajadoramente. — Como disse, ela é a minha senhora favorita.
Fraser virou uma página ou duas do seu bloco de apontamentos.
— Que estranho — acrescentou. — Parece que ela lhe pediu para
telefonar para os Wallader, para descobrir se Leo e Meg estavam mortos.
Nunca mencionou o seu aniversário. Será que posso acreditar em alguma
coisa do que disse?

Esquadra da Polícia de Romsey Road, Winchester — 13.00 h

A chamada de Salisbúria foi parar à sala de ocorrências, quando o


superintendente Cheever estava a esclarecer a equipa que escolhera como
deveria fazer as entrevistas em Hellingdon Hall naquela tarde. Durante cinco
minutos ouviu, emitindo uma interjeição ocasional para mostrar que estava
interessado, e depois disse:
— E a prostituta tem a certeza quanto à identificação? — Uma longa
pausa. — Existem duas que juram que é ele. Sim, estamos a planear
entrevistar toda a família esta tarde. Não, ele nunca foi suspeito. — Mais uma
longa pausa. — Porque tinha dezasseis anos, quando mataram o Landy. Está
bem, está bem, todos nós sabemos que crianças de dez anos o fazem. —
Comprimiu os lábios frustrado. — Quanto tempo leva ela a chegar aqui?
Meia hora. Sim, está bem, vamos esperar. Sim, sim, sim. Temos carros
estacionados lá fora desde ontem à tarde. Está lá a família inteira, incluindo o
Kingsley. Chegou de Londres esta manhã. — Ouviu mais uma vez. — Não,
não nos vamos antecipar a ela e estragar a sua tentativa de impressionar.
Atirou com o telefone e olhou para os outros detectives.
— Bolas! — grunhiu.
— O que aconteceu? — perguntou Maddocks.
— O Miles Kingsley tem andado a espancar prostitutas em Salisbúria. O
Inspector Chefe diz que ele tem todas as características de um psicopata
clássico.
— E agora?
Irritado, Cheever mexia no seu nó da gravata.
— De momento, estamos sem saída. Vão mandar uma mulher—polícia
com o que conseguiu saber sobre ele. Sugiro que paremos com tudo até ela
chegar cá .
Colocou as mãos uma por cima da outra, à frente da cara.
— Isto é o que se chama sabotar um plano, meus senhores. Por que
diabo teria Miles Kingsley assassinado o marido da irmã, o noivo e a amiga?
Algum de vocês consegue ver algum sentido nisto?
— O senhor está a precipitar—se — protestou Maddocks. — O sacana
bate em prostitutas, mas isso não faz dele um assassino.
— Ainda acha que foi a Jane a assassina?
— Claro. Ela é a única com um motivo para matar os três.
— E o pai, sabendo o que ela fez, protege—a?
— Parece que sim. Depois da morte de Landy, ela é mandada para uma
unidade psiquiátrica, enquanto o pai é severamente criticado, pois ele sabe
que o Met nunca conseguirá processá—lo. Desta vez ela aparece na
Nightingale a seguir a um falso suicídio e dizem—nos para não a maçarmos
porque está com amnésia. Entretanto o advogado do pai ocupa—se a resolver
uma situação de crise com o administrador da clínica. Ela é culpada. O pai
sabe—o e também o doutor Protheroe.
— Isso é uma teoria de conspiração diabólica e, de qualquer maneira,
está cheia de falhas. Se o médico a está a proteger, porque é que ela o atacou
na noite de segunda—feira?
— Porque está maluca.
— Por outras palavras, é uma psicopata.
— Claro que é.
Frank baixou as mãos e sorriu sarcasticamente.
— O Met disse que o pai era um psicopata. Salisbúria diz que o irmão é
um psicopata. Você diz que ela é uma psicopata. Está a começar a parecer
uma epidemia e eu não acredito nisso, Gareth.
Maddocks encolheu os ombros:
— Em que é que o senhor acreditaria?
— Talvez num psicopata, mas não em três. Penso que atribuíram aos
outros os mesmos defeitos.
A participação de que Adam Kingsley se demitira, em favor do número
dois John Normans, foi dada pela sede da Franchise Holdings em Londres, ao
meio—dia. A uma da tarde, nas notícias da BBC na televisão, uma imagem
em vídeo dos portões de Hellingdon Hall formava o fundo do cenário para a
história.
«Adam Kingsley tomou a sua decisão esta manhã, na paz e sossego da
sua mansão do século XVIII perto da New Forest, embora seja pouco
provável que ele continue aqui durante muito mais tempo. Hellingdon Hall
pertence à Franchise Holdings e certas fontes dizem que será vendida para
recuperar algumas das perdas dos últimos dias.»

Sala de Ocorrências, Esquadra da Polícia de Romsey Road


Winchester — 13.45 h

A mensagem pelo rádio crepitava de excitação.


«Um Porsche, com a matrícula MIL 1, saiu agora mesmo de Hel—
lingdon Hall, por uma entrada de serviço, e está a subir a rua a grande
velocidade. Nós estamos a segui—lo, mas temos a certeza de que não é o
velho Kingsley. Voltamos para o Hall ou continuamos?»
— Quem é que vos está a ajudar?
«O Frederick está junto à entrada de serviço e meia dúzia de polícias da
localidade encontram—se no portão da frente, para manterem os paparazzi na
ordem. Mas esta manhã tem estado tudo muito sossegado. Este foi o primeiro
acontecimento que presenciámos.»
— Está bem, continuem — disse Frank Cheever —, mas não o percam
de vista. Provavelmente é o Miles Kingsley, e eu quero saber para onde ele
vai. Fredericks, está a ouvir—me? Fique alerta e se mais alguém sair, avise—
me imediatamente. Percebeu?
«Está bem.»
O primeiro rádio deu novamente sinal de vida. «Ele está a yirar para a
A338, chefe. Parece que vai na direcção de Salisbúria.»

43 Shoebury Terrace — Hammersmith Londres — 14.00 h

A última visita de Fraser era a vizinha de Meg em Hammersmith, a


senhora Helms. Ela saudou—o, muito calorosamente, como se estivesse a
cumprimentar um velho amigo e levou—o para a sala da frente.
— O meu marido — disse, fazendo um gesto com a mão para o vulto
patético de um homem que estava sentado, com um cobertor por cima dos
joelhos, e olhava tristemente para a rua sossegada. — Uma esclerose múltipla
— disse ela. — Levantou a voz. — Este é o sargento Fraser, Henry, que veio
falar—nos sobre a pobre Meg. Voltou a falar baixinho. — Ignore—o. Ele não
vai dizer nada. É raro dizer alguma coisa. E uma pena. Costumava ser uma
pessoa muito ocupada.
Fraser pegou na cadeira de braços, que a senhora Helms lhe indicou e,
pela quarta vez naquele dia, explicou o objectivo das suas perguntas.
— Tem alguma ideia do que Meg fez durante o fim—de—semana do
feriado nacional?
Ela deu um gritinho como se fosse uma rapariga.
— Não posso dizer — declarou ela. — Meu Deus, nem me lembro do
que nós fizemos nesse fim—de—semana.
Fraser olhou para o marido, pensando que se ele se mexia assim tão mal,
então as hipóteses de eles não terem estado em casa seriam bastante remotas.
— Talvez tivesse visitas da família? — sugeriu ele. — Isso faz—lhe
lembrar alguma coisa? A Meg não estaria a trabalhar na segunda—feira.
Ela abanou a cabeça.
— Os dias são todos iguais. Dias da semana, os fins—de—semana, os
feriados. Nada varia muito. Agora, se me disser o que deu na televisão, isso
ajudar—me—ia.
Fraser tentou um caminho diferente.
— Eu quase que aposto que o Leo esteve cá durante as noites de sexta—
feira, dia 27 de Maio, possivelmente na segunda—feira dia trinta, e muito
provavelmente na terça—feira, dia trinta e um. De facto, talvez ele possa,
muito bem, ter estado em casa durante o resto da semana e da semana
seguinte. Por outras palavras, reparou nele mais do que o habitual?
Anteriormente, quando falei consigo, disse que houve um grande movimento,
pouco tempo antes de partirem para França.
— Bem, certamente que reparei que ele saía e entrava mais do que o
habitual, mas se estava a viver com ela... — Abanou a cabeça. — As datas
não significam nada para mim, Sargento. E como iria eu saber se o Leo ficou
numa certa noite? Francamente, nós não nos interessávamos pela vida
amorosa da Meg. Já temos problemas suficientes.
Fraser acenou, com a cabeça, complacentemente.
— Leo tinha dois Mercedes descapotáveis muito característicos; um
preto com estofos de couro bege e o outro era branco com estofos grená.
Achamos que, um ou outro, deveria estar estacionado, quando ele estava em
casa. Lembra—se de os ter visto em qualquer altura das duas semanas, antes
de partirem de férias para França?
Ela deu novamente um gritinho de rapariga.
— Eu não sei distinguir um Mercedes de um Jaguar — disse ela — e
nunca reparo em carros, a não ser que estejam a estorvar o meu caminho.
Uma invenção horrível.
Fraser suspirou frustrado. Voltou a lembrar—se do epitáfio da senhora
Helms, dias antes — ela nunca nos deu qualquer problema. Que pena,
pensava ele, porque se assim fosse, então a senhora Helms talvez tivesse
reparado um pouco mais nela. Olhou desconsolado para o marido.
— Talvez o senhor Helms tenha visto alguma coisa. — sugeriu ele. Ela
abanou vigorosamente a cabeça.
— Nem repararia num autocarro de dois andares, se estivesse parado no
seu colo — disse ela. — O melhor é não o incomodar. Fica ansioso, se é
incomodado.
Mas Fraser insistiu nem que fosse para se assegurar de que não
descurara nada.
— O senhor pode ajudar—me, senhor Helms? É importante, senão eu
não estaria a insistir. Temos dois assassinatos por resolver e precisamos de
saber porquê e quando foram cometidos.
Virou a cara magra para ele e olhou—o sem expressão durante vários
segundos.
— Que dia foi o dia dois?
— De Junho?
O outro acenou com a cabeça. Fraser consultou a agenda.
— Foi uma quinta—feira.
— Eu tinha uma consulta no hospital no dia dois. Vim para casa de
ambulância e o motorista reparou no Mercedes. Disse: «É novo, ainda não o
tinha visto aqui» e eu disse—lhe que pertencia aos do andar de baixo e que
estava lá há dois dias ou três.
Fraser inclinou—se para a frente.
— De vez em quando ou permanentemente?
— Estava lá todas as noites — conseguiu ele dizer com dificuldade —
mas nem sempre durante o dia.
— Lembra—se em que dia deixou de o ver?
Era claro que tinha dificuldade em articular palavras e Fraser esperou,
pacientemente, que ele continuasse.
— Não tenho a certeza. Provavelmente quando foram para França.
Fraser sorriu encorajadoramente.
— E o senhor seria capaz de dizer em que dia foi, senhor Helms? O
homem acenou com a cabeça.
— Dia de lençóis lavados — na segunda—feira.
— Meu Deus — disse a senhora Helms. — sabe que ele tem razão?!
Tinha desfeito as camas, quando chegou a Meg com a comida do gato. Atirei
os lençóis para o colo de Henry, enquanto fui lá fora falar com ela. E eu que
já me tinha esquecido.
— Isso é óptimo — disse Fraser. — Estamos a fazer bastantes
progressos. Eles partiram juntos no Mercedes?
O senhor Helms abanou a cabeça.
— Eu não vi. Anthea empurrou—me a mim e aos lençóis para a
cozinha. — Via—se uma certa irritação nos seus olhos e Fraser pensou,
coitado, aposto que ela colocou os lençóis no colo dele, como se fosse um
cesto de lavandaria móvel.
— Por acaso reparou quando o carro de Meg partiu? É um Ford Sierra
verde—escuro. Encontrámo—lo numa rua em Chelsea.
— Na sexta—feira ao fim da tarde. Ambos os carros saíram. Apenas o
carro desportivo voltou.
— Com a Meg e o Leo?
— Sim.
— O que faz sentido. Estavam a preparar—se para se irem embora. —
Tamborilou com os dedos no joelho e fez a pergunta seguinte à senhora
Helms. — Meg disse—lhe alguma coisa, na segunda—feira, sobre o facto de
terem adiado a partida por qualquer razão?
Ela fez uma careta.
— Nem por isso. Limitou—se a tocar à campainha, atirou—me a
comida do gato e a chave e disse que iam partir para França. Muito estranho,
achei eu.
— Reparou em mais alguma coisa estranha?
— Acho que não — respondeu. — Ela não tinha o cabelo arranjado e os
olhos estavam bastante vermelhos, por isso achei que estivera a chorar, achei
que fora uma pequena discussão entre namorados.
— Mais alguma coisa?
— Dizer que Marmaduke tinha de ficar preso no hall, também foi um
pouco estranho. Ela nunca tinha feito isso antes. Pobre criatura, não é
maneira de tratar um gato.
Fraser franziu o sobrolho e folheou os seus papéis.
— Da última vez que falámos — murmurou ele isolando uma página —
a senhora disse que Meg insistira para que o Marmaduke não entrasse em
nenhum quarto.
— É verdade.
— Mas acabou de dizer que ela o queria manter prisioneiro no hall.
— Bem, sim. É a mesma coisa.
— Lembra—se das suas palavras exactas?
— Meu Deus! Já foi há quase três semanas. — Tentou concentrar—se.
— Vamos lá ver. Passoy—se tudo num segundo. «Lembra—se de eu lhe ter
dito que íamos para França, senhora Helms?» — foi assim que ela começou.
— Claro que ela nunca mencionara nada de parecido, mas fui demasiado
educada para lho dizer. «E lembra—se que me prometeu olhar pelo gato?»
disse ela a seguir. O que me aborreceu, porque eu não tinha dito nada. Ter—
lhe—ia respondido, mas ela atirou—me a chave e a lata e não me deu
hipótese de responder. «O gato está fechado e vai querer sair. Por favor tenha
cuidado na maneira como abre as portas. Não quero mais estragos». Foi tudo
o que ela disse. E foi isso que eu fiz, embora não perceba porque era
necessário. Os estragos nunca a preocuparam antes.
— Ela disse «o gato» e não «Marmaduke?». — A mulher acenou com a
cabeça. — E a senhora estava, lá fora, nas escadas?
— Sim, ela não quis entrar.
Ele imaginou o pequeno alpendre, por baixo das escadas da cave, e
percebeu o que se tinha passado. Alguém tinha lá estado a ouvir, pensou ele.
Bateu com o lápis nos dentes. Interpretar Leo como o leão, como o gato.
«Leo está fechado. Por favor tenha cuidado. Não quero mais estragos.» Jesus!
Que desespero deveria a Meg ter sentido, ao saber que a sua única hipótese
era esta mulher estupidamente irritante. Honestamente, será que alguém teria
percebido uma mensagem tão misteriosa?
— Está bem. — Virou—se novamente para o senhor Helms. — O que
fizeram eles no sábado e no domingo? Sabe? Reparou em alguém a sair de
casa?
A boca dele mexeu—se.
— Veio a amiga dela — disse ele de repente. — A alta. No sábado à
noite. Levantou uma mão inerte e deixou—a cair sobre a coxa. — Bateu à
porta, com força. Disse: «Deves ser doida. O que diabo estás a fazer?»
— Era uma mulher?
— Era.
— Jinx Kingsley?
— Alta, morena. Tem um Rover Cabriolei, JIN 1X.
— Quando é que ela foi embora?
Mas o senhor Helms abanou a cabeça.
— A Anthea gosta de televisão. Não me deixa estar aqui o tempo todo.
— Acho que não — disse a mulher rispidamente. — Os vizinhos
ficariam com uma ideia errada. Diriam que te estava a negligenciar.
Fraser olhou para o homem com simpatia.
— Não tem importância — disse ele. — Por acaso reparou noutras
visitas?
Mas o senhor Helms já lhe tinha dito tudo o que podia.
— Vamos a caminho agora — disse o superintendente Cheever, ao
telefone portátil, para o seu colega da polícia de Wiltshire. — Parece que ele
se dirige para Nightingale. Sim, percebi. Vai mandar reforços para a clínica?
De acordo. Só lhe falaremos sobre os assassínios, depois de o senhor o ter
acusado das agressões. Não, Adam Kingsley está sob controlo, neste
momento. Estou mais interessado no que Miles tem a dizer.
Clínica Nightingale, Salisbúria, Wiltshire — 14.30 h
Miles irrompeu pelas janelas de Jinx, que estavam abertas, e atirou—se
para uma cadeira livre com a expressão amuada de um miúdo de cinco anos
contrariado.
— Suponho que já saibas o que ele fez?
— Estás a falar da demissão?
— Claro que estou a falar da demissão dele — disse imitando uma voz
de falsete. — De que diabo poderia eu estar a falar? — Batia com os pés no
chão. — Meu Deus, estou tão irritado. Não sei qual de vocês os dois eu
gostaria de estrangular neste momento. Já percebeste que entre vocês os dois
estragaram tudo?
— Não — disse ela calmamente, acendendo um cigarro. — Não posso
dizer que tenha percebido. O que é que está estragado, Miles?
— POR AMOR DE DEUS! — gritou ele, semicerrando os olhos até
ficarem umas fendas pouco atraentes. — Perdemos tudo, a casa, tudo.
Ela olhou para ele através do fumo.
— De quem estás a falar? — murmurou ela. — Eu não perdi nada. As
acções subiram dez pontos, desde que Adam se demitiu, o que significa que
já tive bastante lucro apenas com o meu investimento desta manhã. Espero
que não me venhas dizer que vendeste as tuas acções, Miles. Quando Adam
as deu, disse: «Vendam tudo, mas estas não.» Devias confiar mais nele.
— Tive que o fazer — disse ele através dos dentes cerrados. — O
Fergus também. Pedimos dinheiro emprestado sobre as acções e o filho da
mãe a quem devíamos dinheiro, obrigou—nos a vendê—las para pagar a
dívida.
Ela encolheu os ombros:
— És um tonto.
Ele estava tão tenso, como um arco novo.
— O, meu Deus, se tu soubesses como eu te odiei... tudo isto aconteceu
por culpa tua... — A voz parecia desesperada.
Ela arqueou uma sobrancelha trocista.
— Como é que explicas isso?
— Russell, Leo, eram ambos uns merdas.
— E o que tem isso a ver com o resto?
— Se tivesses escolhido alguém decente, não estaríamos nesta confusão.
Ela viu os nós dos dedos dele ficarem brancos ao agarrar com força os
braços da cadeira. Ao fim e ao cabo o que sabia ela sobre este irmão?
— Tu só tinhas dezasseis anos, quando o Russell foi assassinado —
disse ela devagar. — Betty jurou que tu e o Fergus estiveram todo o dia no
Hall.
Ele olhou para ela com olhos zangados e intensos.
— De que diabo estás a falar?
— Pensei... não interessa.
— Achaste que tinha sido eu? — disse ele com desprezo. — Às vezes
gostaria de o ter feito. Depois disso, o velho teria feito um esforço enorme
por mim. Claro que o teria feito de graça, porque teria prazer em fazê—lo. Eu
odiava o Russell. Era quase tão arrogante e protector como tu és. — Levantou
—se da cadeira com um movimento agressivo e prendeu—a na dela,
inclinando—se para a frente e agarrando os braços da cadeira. — Custou ao
pai uma boa quantia para se ver livre dele, sua estúpida, e mais outra para o
Leo e a Meg. E agora, Fergus e eu estamos na merda por causa disso. A
polícia está parada à volta do Hall, só à espera de o prender e no momento em
que o fizerem, a mãe, Fergus e eu ficaremos na rua. Estamos desgraçados,
não percebes? A mãe também, ela vendeu as acções dela há meses. Não
sobrou nada.
— Vocês ainda têm os vossos empregos — disse ela, olhando—o
firmemente, para ele não perceber como estava assustada.
Depois atirou—se petulantemente para a cadeira, a raiva já tinha
passado.
— Meu Deus, és tão ingénua. O John Normans não vai manter—nos. Só
lá estamos por causa do pai. Tu sabes isso. Toda a gente sabe isso. Meu Deus,
nem sequer somos precisos. Tudo o que eu tenho de fazer é ver se os
contratos, com as empresas de segurança, estão actualizados. Qualquer idiota
o pode fazer. — Bateu com o punho no braço da cadeira. — Ganho um
salário de um idiota por causa disso. Sabes o que eu faço? Contrato o guarda
—nocturno e ponho a minha assinatura no contrato standardizado, que sai do
processador de texto.
— Então porque não o estás a fazer agora? — perguntou—lhe ela. —
Com certeza esta é a altura de provar que vale a pena manterem—te.
Ele ficou novamente zangado.
— Sua CABRA estúpida e condescendente! — gritou ele. —
ACABOU! O pai assegurou—se de que tu estavas bem, porque tu és a
queridinha dele, mas largou—nos a todos nós. Não consegues meter isso
nessa cabeça dura?
Ela atirou o fumo para o tecto e observou os padrões que formava na
corrente de ar que vinha das janelas abertas.
— Como é que sabes que Adam mandou matar o Russell? — perguntou
ela em voz baixa.
— Quem mais o poderia ter feito?
— Eu — sugeriu ela. Miles pareceu divertido.
— A pequena Miss Perfeita. Deixa—te disso, Jinx, tu não tinhas
coragem.
— E achas que Adam tem? Ele encolheu os ombros.
— Sei que tem.
— Como?
— Porque ele é mau. Olha para a maneira como ele nos trata, a mim e
ao Fergus.
Ela quase sorriu.
— Eu quero provas, Miles, e não impressões. Podes provar que Adam
mandou matar o Russel?
— Posso provar que ele o queria morto. Ele depois disse que Russell
tinha o que merecia. O teu precioso marido estava a ter um caso com a tua
melhor amiga. O pai odiava—o por isso.
— O que disse ele quando soube do Leo e da Meg?
Até para a própria Jinx, a sua voz soava estranhamente longínqua. Miles
encolheu novamente os ombros.
— Esperava que nunca recuperasses a memória, depois fechou—se no
escritório e chamou o advogado. Ele tem um medo paranóico que comeces a
lembrar—te de coisas, por isso achamos que deves ter visto algo que não
devias.
Ela olhou para a parede do outro lado.
— Dizes que lhe custou bastante dinheiro. Quanto exactamente?
— Muito.
— Quanto, Miles?
— Eu não fei — disse ele de mau humor. — Só sei que sai muito caro.
Ela voltou a olhar para ele.
— Tu não sabes nada, pois não? Estás a falar do que gostarias que Adam
tivesse feito e não do que ele fez realmente. Suponho que te faz sentir melhor
pensar no teu pai como um assassino. — De repente riu—se. — Sabes, de
facto tenho pena de ti. Passaste os últimos dez anos a justificar as tuas
pequenas fraudes, culpando o Adam por isso. Como diabo vais tu aguentar—
te, quando se souber que ele é honesto? — Reparou num movimento perto
das janelas e, ao olhar interrogativamente para os dois polícias
uniformizados, que tapavam a luz, ouviu bater à porta. Franziu o sobrolho,
quando viu a mulher—polícia Blake entrar sem ser convidada.
— O que deseja? — disse Jinx educadamente, olhando para o
superintendente Cheever, para Maddocks e Alan Protheroe, que estavam
também à porta.
Blake olhou brevemente para ela antes de transferir a sua atenção para o
irmão.
— Miles Kingsley ?— perguntou ela.
Ele acenou com a cabeça.
Ela mostrou—lhe a sua identificação.
— Blake da polícia de Wiltshire. Miles Kingsley, tenho razões para
acreditar que nos pode ajudar nos nossos inquéritos sobre os maus tratos e
agressão à senhora Flossie Hale, na tarde do dia 22 de Junho passado, no
número cinquenta e três de Lansing Road, Salisbúria.
— De que diabo está a falar? — interrompeu—a ele zangado. — Quem
é a senhora Flossie Hale? Nunca ouvi falar dessa cabra.
20
Quarta—feira, 29 de Junho, Clínica Nightingale Salisbury — 14.45
h

O PEQUENO LORDE FAUNTLEROY, pensou Blake, era uma boa


descrição de Miles Kingsley, com a sua cara bem delineada e os seus olhos
azuis bem afastados. Ele não era do tipo que a atraísse — preferia os homens
mais rudes e mais fortes — mas conseguia imaginar Flossie a achá—lo
atraente.
— Ela é uma prostituta, senhor Kingsley. Foi brutalmente atacada na
noite do dia vinte e dois. Identificou—o como o seu agressor, tal como a
senhora Samantha Garrison, outra prostituta, que sofreu uma agressão
parecida no dia 23 de Março.
Ele franziu o sobrolho zangado.
— Estão a mentir. Nunca estive com uma prostituta em toda a minha
vida — voltou—se para Jinx, subitamente furioso. — Que diabo se está a
passar aqui? Foi alguma coisa que o pai tivesse tramado?
— Não sejas estúpido — disse ela, rispidamente, olhando para a mulher
—polícia. — Como é que conseguiram identificá—lo? O agressor deu um
nome?
Blake ignorou—a.
— Acho que seria melhor, se discutíssemos o assunto na esquadra.
Senhor Kingsley estou a pedir—lhe para me acompanhar.
— Olhe, sua vaca carrancuda — disse Miles levantando—se
agressivamente — não sei qual é o seu jogo...
— Senta—te Miles — sibilou Jinx através dos dentes cerrados,
agarrando o braço dele e forçando—o a sentar—se novamente na cadeira —
e cala—te. — Respirou profundamente. — Diz que tem razões para acreditar
que o meu irmão a pode ajudar, por isso explique, por favor,
que razões são essas. Especialmente, como é que as duas mulheres
conseguiram identificar o agressor como sendo o meu irmão. Blake franziu o
sobrolho.
— Não sou obrigada a explicar nada, a não ser que temos uma
identificação do homem que duas mulheres afirmam tê—las atacado.
Gostaríamos que ele respondesse a algumas perguntas sobre o assunto e, para
esse fim, estamos a pedir—lhe que nos acompanhe à esquadra. Vê algum
problema nisso, menina Kingsley, tendo em mente o facto de as agressões
terem sido suficientemente graves, para que ambas fossem parar ao hospital?
— Sim — disse ela friamente —, acho que o Miles se deveria recusar a
ir consigo. É óbvio que não tem mais nada de concreto além desta
identificação inexplicável, senão teria vindo com um mandato de captura. —
Olhou para Maddocks. — Acho que estão a tentar que, um por um, vamos
respondendo a perguntas sobre os homicídios da Meg e do Leo. Até duvido
que as prostitutas existam.
Miles sorriu com desprezo:
— Isso Jinx, fá—los passar um mau bocado.
A jovem mulher—polícia olhou para ele curiosamente durante um
momento e depois dirigiu—se à irmã.
— Eu sou da polícia de Wiltshire, menina Kingsley, e passei a última
semana a investigar a agressão de que Flossie Hale foi vítima. Ela tem
quarenta e seis anos. Teve vários ferimentos na cabeça, na cara e nos braços e
teria morrido na cama, se não fosse a sua coragem de ir ao hospital. Ela
identificou o seu irmão como sendo o homem que a feriu. Admito que a
publicidade à volta da morte do seu noivo e da sua melhor amiga levou
indirectamente à sua identificação, mas a ligação não vai para além disso. Eu
não estou interessada em si ou na sua relação com a polícia do Hampshire.
Estou apenas interessada em impedir que mais mulheres sofram, como
Flossie sofreu.
— Está bem — disse Miles arrogantemente, encostando—se para trás na
cadeira e esticando as pernas à sua frente — então prendam—me. Não vão
conseguir levar—me de outra maneira. Faz alguma ideia do que o meu pai
poderá fazer, quando souber disto? Ser despedida será a menor das suas
preocupações, logo que o seu advogado comece a tratar do assunto.
Jinx pressionou a cabeça latejante com os dedos.
— Cala—te, Miles.
— Não, não vou calar—me — disse ele com rispidez, movendo—se
rapidamente para olhar para ela. — Tu realmente chateias—me, Jinx. Podes
dizer tudo o que te apetecer porque és muito esperta, mas o estúpido do Miles
não. Tem de ficar aqui sentado e calar a boca. — Bateu com o punho na mão.
— Meu Deus, eu nem sequer estive em Salisbúria no dia vinte e dois e posso
prová—lo.
— O senhor veio visitar a sua irmã às nove horas da noite na última
quarta—feira — disse Maddocks asperamente. — A última quarta—feira foi
o dia 22 de Junho e a Clínica Nightingale é em Salisbúria. Tanto a sua irmã,
como o pessoal de serviço, poderão confirmar isso. A senhora Hale foi
agredida às oito e um quarto, o que lhe daria muito tempo para resolver os
seus problemas, antes de se apresentar aqui.
A cara dele parecia perturbada.
— Está bem, esqueci—me. Não é grave. Vim para aqui directamente de
Fordingbridge. A minha mãe e o meu irmão jurarão que estive em Hellingdon
Hall até às oito e meia.
Blake olhou para Jinx.
— Foi isso que ele lhe disse quando chegou aqui? Ela não respondeu.
Miles olhou para ela assustado.
— Diz—lhe que eu te disse isso.
— Como? Não me lembro de tu o dizeres.
— A enfermeira disse—o, quando me trouxe até aqui. Aqui está o seu
irmão de Fordingbridge. Deves lembrar—te disso.
— Não. — Ela apenas se lembrava de ele lhe ter dito que tinha jogado
naquela noite. Mas será que tinha?
— Merda, Jinxy — implorou ele — tens de me ajudar. Juro, por Deus,
que nunca magoei ninguém. — Estendeu uma mão e agarrou o braço dela. —
Por favor, Jinx, ajuda—me.
Meg é uma puta... por favor... por favor... por favor... ajuda—me Jinx...
tanto medo... ó, meu Deus, um medo tão terrível...
— Eu vou falar com o Adam para mandar vir o Kennedy — disse ela
hesitante. —Não digas mais nada até ele cá chegar. Consegues fazer isso,
Miles?
Ele acenou com a cabeça e levantou—se.
— Desde que não me abandones.
Blake colocou uma mão firme no braço dele e levou—o até às janelas.
— Por aqui, senhor Kingsley. Temos um carro lá fora à espera.
— E o meu Porsche? Ela estendeu a mão.
— Se me der as chaves, pedirei a um dos polícias que o leve. — Fez um
aceno com a cabeça em direcção aos dois polícias de Salisbury. — Ele pode
seguir atrás de nós.
Miles tirou—as do bolso e atirou—as para a mão dela com maus modos.
Ela olhou para a corrente — um disco preto com letras douradas — e depois
levou—o com ela.
Com as mãos a tremer, Jinx pegou no maço de cigarros, que estava no
braço da cadeira e depois voltou para o toucador, apoiando—se na sua beira
firme. Olhou brevemente para Alan Protheroe, que estava encostado à parede
junto da porta e, depois, concentrou a sua atenção em Frank Cheever.
— Estou a reconhecê—lo da televisão — disse—lhe ela, acendendo um
cigarro com dificuldade. — No outro dia deu uma conferência de imprensa,
mas lamento não me lembrar do seu nome.
— Superintendente Cheever — disse—lhe ele. Ela olhou para
Maddocks.
— Então estão aqui para falar de Leo e Meg? Frank acenou com a
cabeça.
— E acham que Miles o poderia ter feito, devido ao que aconteceu a
essas desgraçadas mulheres?
— É uma possibilidade. Ela acenou com a cabeça.
— Se estivesse no seu lugar, provavelmente diria o mesmo.
— E se os papéis fossem invertidos, se eu estivesse no seu lugar, o que
diria eu então?
Durante um momento ela olhou para ele de forma bastante estranha.
— Acho que estaria demasiado ocupado a abafar os gritos dentro da sua
cabeça para dizer o que quer que fosse.
Frank observou—a.
— Sente—se bem para falar connosco, menina Kingsley?
— Sinto.
— Mas não tem que o fazer — disse Alan rispidamente. — Tenho a
certeza de que o Superintendente lhe dará tempo para se recompor.
Aquilo divertiu—a.
— Passavam a vida a dizer—me isso quando Russell morreu.
Significava que tinha dez minutos para me recompor, antes de eles
começarem novamente. — Deu uma passa no cigarro. — O pior é que nós
nunca nos recompomos de uma coisa dessas, por isso dez minutos é apenas
tempo perdido e, como eu preciso de falar ao meu pai, preferia acabar com
isto o mais depressa possível.
— Por favor — disse Frank fazendo um gesto em direcção ao telefone.
— Nós saímos, enquanto telefona.
Ela abanou a cabeça.
— Prefiro esperar até terem ido embora.
— Porquê? — perguntou Maddocks. — Quanto mais depressa o seu
irmão tiver um advogado, melhor para ele, não acha?
— Por muito estranho que pareça, Inspector, tenho de pensar primeiro
no que vou dizer. O meu pai vai ficar desolado, quando souber que o filho foi
acusado de uma agressão sexual brutal. O seu não ficaria? Ou é alguma coisa
que ele espere de si? — Virou—se abruptamente para o superintendente. —
O Miles não matou o Russell, por isso, se foi a mesma pessoa que matou o
Leo e a Meg, não foi o Miles.
— Importa—se que nos sentemos?
— Por favor.
Os dois polícias dirigiram—se para as cadeiras, mas Alan permaneceu
onde estava.
— Porque tem tanta certeza de que não foi ele que matou o Russell?
Ela pensou profundamente durante alguns segundos, antes de responder
e depois fê—lo de forma bastante evasiva.
— Realmente é bastante irónico, tendo em conta que lhe acabei de dizer
para ficar calado, até chegar o advogado. Sabe, eu não acredito que os
advogados dêem sempre bons conselhos. Consultei um depois do Russell ter
morrido — contou—lhes ela — porque percebi que estava no topo da lista
dos suspeitos. Convenceu—me a ser muito cautelosa na maneira como
respondia às perguntas da polícia. Não dê informações sem que lhas peçam,
seja breve nas respostas, evite a especulação e diga—lhes apenas o que sabe
que é verdade. — Suspirou. — Mas agora acho que teria feito melhor em
dizer tudo o que pensava, porque tudo o que consegui foi que eles
suspeitassem ainda mais do meu pai. — Calou—se.
— Isso não é uma resposta à minha pergunta, menina Kmgsley. Ela
olhou para o chão, fumando nervosamente.
— Estávamos a falar da morte do Russell antes de chegarem — disse ela
subitamente. — Miles disse—me que sempre acreditou que o meu pai era o
responsável, o que significa que ele e Fergus podiam dar—se ao luxo de
poderem ser desonestos sem pensar duas vezes. Roubar vinte libras ao
jardineiro, ou forjar a assinatura da mãe nos cheques, não era nada em
comparação com a enormidade de um homicídio. — Ergueu os olhos. — Mas
aquilo em que Miles acredita, — na verdade, no que toda a gente acredita,
está condicionado pelos seus próprios preconceitos e, neste caso, é muito
importante que perceba como o meu irmão sempre desejou desesperadamente
ser superior ao pai.
— Ele tem provas da cumplicidade do seu pai no assassínio?
— Não, claro que não, porque Adam não esteve envolvido.
— Mas presumo que não possa provar isso, tal como o seu irmão
também não pode provar o contrário. — Sorriu sem hostilidade. — A
verdade é um fenómeno extremamente instável. Tudo o que eu posso fazer,
como polícia, é acumular os factos e pesá—los na balança. Espero que no fim
a verdade adquira peso.
— Então porque é que tantos polícias só ouvem o que querem ouvir?
— Porque somos humanos e, como acabou de dizer, o acreditar está
condicionado pelo preconceito. — Fez um gesto em direcção a Maddocks. —
Mas acho que somos ambos suficientemente profissionais, para sermos
objectivos em relação ao que nos declarar, por isso espero que isso lhe dê
confiança para falar.
Ela deu uma passa no cigarro e olhou fixamente para Maddocks,
— Concorda comigo, Inspector?
— Certamente — assentiu — mas está a pedir um milagre, se espera que
acreditemos em tudo o que nos disser. Por exemplo, explique—me isto.
Como é que nunca recorreu ao pequeno furto, como uma forma de se vingar
do seu pai? Certamente que tenho razão em pensar que também acreditou
sempre que ele foi culpado da morte de Landy? Qual foi a sua vingança,
menina Kingsley?
— Demasiado subtil, para o senhor a entender — disse ela rispidamente
antes de voltar ao ponto anterior. — Se quer ser objectivo, porque rejeitou
tudo o que eu lhe disse ontem?
O sorriso dele não se reflectiu nos olhos.
— Não me lembro de o ter feito. Lembro—me de ter posto em causa
alguns dos depoimentos que fez. Também é suspeita deste crime — referiu
ele — o que significa que qualquer coisa que diga será sujeita a um exame
minucioso. Acha isso pouco razoável?
— Não, mas estaria interessada em saber se o senhor seguiu alguma das
sugestões que lhe dei. Por exemplo, procurou outra ligação entre os três
crimes? Examinou a possibilidade de alguém estar a tentar matar—me no dia
do meu acidente?
— Estas coisas levam tempo — disse ele. — Não podemos fazer
milagres, menina Kingsley.
— Mas está pelo menos a tentar, inspector? — Virou—se para Cheever.
— Alguém o está a fazer?
O superintendente, que não estava a par de ambas as sugestões, porque
não lhe tinham sido contadas, respondeu com honestidade.
— Não, que eu saiba, mas se me conseguir convencer de que vale a pena
segui—las, então certamente que o farei. Porque acha que alguém estava a
tentar matá—la?
Ela olhou para Protheroe, porcurando apoio, mas ele estava a olhar para
o chão.
— Por causa de uma série de negativas — disse ela monotonamente. —
Eu não sou do tipo suicida. Eu não queria casar com o Leo. Nunca me
embebedo. Não matei o Russell, por isso, não posso imaginar porque haveria
de ter morto o Leo ou a Meg. E o acidente de carro não foi um acidente. Não
consigo pensar noutra explicação para o que aconteceu, excepto uma
tentativa de assassínio. E passo a vida a pensar, e se eu tivesse morrido ?
Teriam procurado mais alguém ligado às mortes do Leo e da Meg? Não,
teriam todos pensado: isto explica tudo, ela deve ter morto o Russell também.
— Lembra—se de alguma coisa relacionada com o acidente, menina
Kingsley?
Ela desviou o olhar.
— Não — disse ela sem expressão.
Ele estudou—a durante um momento, não tendo a certeza se acreditava
nela.
— Bem, não me importo de verificar todos os documentos relacionados,
para ver se há alguma coisa que nos escapou, mas devo avisá—la de que não
estou muito optimista. Mesmo que tenha razão, não vejo como
conseguiremos prová—lo.
— Eu percebo isso, mas o importante é que nao rejeite essa
possibilidade. Tem de perceber que esclarece tudo de maneira diferente.
Penso continuamente nisso. Se alguém tentou matar—me, então significa que
eu — encostou as mãos ao peito — tenho de saber quem matou o Leo e a
Meg, embora não me lembre. E também significa que esse alguém é o elo de
ligação que falta, porque quem quer que fosse a pessoa provavelmente matou
os três. — Olhou para ele ansiosamente. — Percebe?
— Sim — disse ele —, percebo muito bem. É uma hipótese interessante,
mas não nos ajuda muito, a não ser que possa sugerir um nome.
E se eu sugerir um nome, o que acontece então ? Tem alguma prova,
menina Kingsley?
— De que serve um nome, se não posso dar—lhe provas? O
superintendente encolheu os ombros.
— Dar—nos—ia um ponto de partida.
Mas ela só estava interessada na conclusão e duvidava que a polícia
pudesse, alguma vez, obter um resultado.
A verdade é um fenómeno ilusório muito perturbador... presumo que
não possa provar isso... os polícias acumulam os factos e pesam—nos na
balança... qual foi a sua vingança, menina Kingsley ?
— Ontem — lembrou—lhe Maddocks — argumentou que era Meg a
ligação entre os três crimes.
— E ainda acredito que isso está certo — disse ela, regressando de
compridos corredores, que não iam dar a lado nenhum. — Olhe, passei a
noite toda de ontem a pensar nisso. — Deu mais uma passa no cigarro, antes
de o apagar no cinzeiro. — Não ando a dormir muito bem — explicou ela. —
Não o culpo por ver a minha relação com o Russell e o Leo como o centro do
que aconteceu, mas a relação de Meg com os dois era igualmente forte.
Ontem à noite, só me lembrava do que se pensava na altura do assassinato de
Russell, que o meu pai o tinha morto por não gostar dele. Lembro—me de
um polícia me ter dito: quem quer que o tenha morto odiava—o, porque foi
feito com muita raiva. O que me levou a pensar, se a raiva seria raiva
ciumenta. — Sorriu perturbada. — Ciúmes por causa da Meg.
Fez—se um breve silêncio.
— Lemos os diários dela — disse Frank Cheever. — Calculando mais
ou menos, dormiu com cinquenta homens diferentes nos últimos dez anos.
Mesmo segundo os padrões dos nossos dias, seria considerada uma mulher
promíscua.
— Só porque tinha uma visão muito hedonista do sexo. Porque dizer que
não, se ambos querem? Em algumas coisas tinha uma visão muito masculina
da vida. Ela conseguia amá—los e deixá—los e não tinha medo de o fazer.
— Mas certamente que consegue ver a falha no seu argumento? Se
alguém fosse tão ciumento que estivesse preparado para matar os amantes
dela, então teríamos cinquenta cadáveres em vez de dois.
Foi Alan Protheroe que respondeu. Tinha ficado de pé, com a cabeça
inclinada, ouvindo atentamente a argumentação de Jinx, mas neste momento
olhou para cima.
— Porque Russell e Leo eram os únicos dois amantes, de quem ela
gostava realmente — disse ele. — Pelo que ouvi, os outros não significavam
nada para ela. Jinx disse—me que as cartas que Meg escreveu ao Russell
eram muito comoventes e os jornais falam de um relacionamento de onze
anos entre ela e o Leo. Se mais alguém estivesse apaixonado por ela, então
eram esses dois homens que representavam a ameaça, não os outros
cinquenta, que vinham e iam com perfeita regularidade.
— E porquê matar também a Meg?
— Pela mesma razão que maridos ciumentos matam as mulheres quando
as apanham em flagrante delido com outros homens. Julgando pelas
aparências é pouco lógico. Se se ama uma mulher o suficiente para se ser
ciumento, como se pode arranjar a raiva necessária para a matar? Mas as
emoções nunca são lógicas.
— Então porque não foi morta, quando o Russell foi morto? Porquê
matá—la apenas por causa do Leo?
Alan encolheu os ombros.
— Por qualquer razão entre vinte, acho eu. Um desejo de lhe dar uma
segunda hipótese. Acreditar que Russell era uma espécie de Svengali, que a
influenciara contra a sua vontade. Uma estratégia simples: ela não estava com
ele no dia do assassínio. Eu talvez escolhesse a opção Svengali, porque isso
explicaria porque é que ela teve de morrer desta vez. Se ela conhecia o Leo
há onze anos, então toda a gente que os conhecia devia saber que ela
representava uma parte igual em todas as decisões. Precisa de descobrir quem
mais sabia do relacionamento com o Russell. Não acha que a solução está aí?
O inspector Maddocks pigarreou.
— Eu quase que poderia acreditar nessa teoria, se não fosse um pequeno
obstáculo. Como diz o superintendente Cheevers, lemos os diários dela, ou o
que resta deles, e em nennum menciona outro homem, que tenha durado mais
do que três ou quatro meses. Então quem é este amante misterioso? Conhecia
—a melhor do que qualquer outra pessoa, menina Kingsley. Sabe quem é?
— Não — disse ela — não sei. Maddocks observava—a
cuidadosamente.
— Então dê—nos uma mão—cheia de candidatos prováveis, e deixe—
nos descobrir o que conseguirmos.
— Pergunte ao Josh — disse ela, evitando a pergunta. — Ele conhecia
muito melhor os namorados dela do que eu.
— Então faremos isso. Também conhecia melhor as amigas?
— Provavelmente.
— Tinha muitas ?
Jinx franziu o sobrolho, não percebendo aonde ele queria chegar.
— Algumas íntimas, como eu.
— Era isso que eu pensava. Ela olhou para ele intrigada.
— Porque é que é importante?
Ele citou—lhe as suas próprias palavras. «Porque dizer que não, quando
ambos o desejam? Meg tinha uma visão da vida muito masculina.» Ele
aguentou o olhar dela.
— Será que este amante ciumento era uma mulher, menina Kingsley?
Esquadra da Polícia de Canning Road, Salisbúria — 15.30 h
Blake levou Miles para uma sala de entrevistas.
— Pode esperar aqui até o advogado chegar, embora talvez tenha de o
mudar, se alguém mais precisar da sala.
— Quanto tempo estão a planear manter—me aqui?
— O tempo que for necessário. Primeiro esperamos pelo advogado,
depois fazemos as perguntas. Pode levar várias horas.
— Eu não tenho várias horas — resmungou ele, olhando para o relógio.
— Preciso de sair daqui o mais tardar às cinco.
— Está a dizer que não quer esperar pelo advogado, senhor Kingsley?
Ele pensou rapidamente.
— Sim, é isso que estou a dizer. Vamos lá a isto.

Clínica Nightingale, Salisbúria — 15.30 h

— Por onde? — perguntou Maddocks ao sair dos portões da clínica. —


Para Salisbúria ou voltamos a Winchester?
— Para o aeródromo de Stpney Bassett — resmungou o
superintendente. — A Blake aguentará o rapaz, até nós chegarmos. Temos de
concordar que ele não tem pressa de ir a lado nenhum.

Hellingdon Hall, Fordingbridge Hampshire — 15.30 h

Betty pousou a extensão no seu quarto e arrastou—se até ao banco do


toucador, o suor escorrendo—lhe por baixo dos braços e molhando—lhe o
espartilho. Virou a cara para o espelho e aplicou desesperadamente o pó—de
—arroz numa tentativa de reparar os estragos do tempo e a negligência do
marido. Tentou escutar os seus passos na escada, sabendo que tudo estava
terminado. Desta vez não haveria uma suspensão temporária da sentença para
ela ou para os rapazes. Como de costume, ressentiu—se contra a primeira
senhora Kingsley, cujo fantasma tinha desafiado todas as tentativas que ela
fizera para o aplacar. Não era justo, dizia ela para si mesma. Está bem,
ninguém lhe tinha prometido um mar de rosas, mas ninguém a avisara de que
o casamento com Adam seria tão difícil.
— Olá, pai — disse ela com uma alegria desesperada, quando a porta foi
aberta de rompante — foi um dia muito maçador, não foi?

Aeródromo de Stoney Bassett, New Forest Hampshire — 16.15 h

Estavam na planície deserta e coberta por urze, onde pistas de


descolagem de macadame, em mau estado, era tudo o que restava do
aeródromo do tempo da guerra.
— De que estamos à procura? — perguntou Maddocks, esforçando—se
por manter um tom neutro. Ficaria contente se pudesse dar um pontapé ao
chefe, que o levasse para bem longe. Tal como Fraser, algumas palavras
inteligentes e um sorriso perturbado, fizeram—no duvidar da culpa da
rapariga e Maddocks não percebia como ela o tinha feito.
Frank apontou para o pilar de betão, que se erguia como um único dente
partido a alguma distância de onde estavam.
— Vamos começar por ali — disse ele. — Parece que foi ali que ela
bateu. Que largura acha que tem?
— À volta de três metros — adivinhou Maddocks.
— Interessante, não acha? — murmurou Frank.
— Porquê?
— Achei que era muito mais estreito. Viu as fotografias? O carro
parecia envolver o pilar como se fosse um punho de metal. — Virou a cara de
um lado para o outro, estudando ângulos diferentes. — Deve ter batido num
dos cantos, e os faróis lançaram tudo o resto na sombra,— Avançou, para
rodear a estrutura.
— Que diferença faz o tamanho? — Perguntou Maddocks seguindo—o.
O superintendente pôs—se de cócoras, para examinar a área de betão
cheia de buracos e muito riscada de ambos os lados de uma das esquinas.
— Se você fosse contra uma parede de três metros de largura, com a
intenção de se espatifar contra ela, não se dirigiria para o meio? Porquê fazer
pontaria para um dos lados?
Ainda havia vidros partidos do pára—brisas pelo chão e marcas de
pneus intermitentes até cinquenta metros mais atrás, onde era óbvio que o
carro ficara parado até que, com as rotações no máximo, ela largara os
travões para se atirar juntamente com o carro contra a estrutura de betão.
Frank gastou dez minutos a andar para a frente e para trás numa grande
extensão à volta do pilar, depois voltou para ficar parado a olhar para as
marcas de borracha queimada, onde os pneus tinham girado antes de
aderirem ao macadame. Agachou—se e seguiu a linha, que o carro tinha
feito.
— Ela ia direitinha ao meio daquela parede, quando partiu — disse ele.
— Por isso, como acabou ela por ficar embrulhada à volta do canto direito?
— Bateu num buraco e perdeu o controlo? — sugeriu Maddocks.
— Mas não existe nada suficientemente grande, não neste troço. Era isso
que eu estava a verificar. Ela poderia ter batido contra qualquer um dos três
lados, em frente ao macadame, mas escolheu o que tinha uma melhor
aproximação. Se tinha a intenção de se matar, nada a podia impedir de guiar
numa linha recta.
— Mudou de ideias no último minuto — disse Maddocks. — Não
gostou muito, quando viu a parede a aproximar—se e tentou mudar de
direcção.
— Sim, é uma possibilidade. — Virou—se de costas para a parede e
observou a área, que ficaria por trás do carro. — Porque é que ela não
começou mais atrás e utilizou a distância para aumentar a velocidade? Porquê
ficar aqui e forçar o motor a andar mais depressa?
— Porque estava escuro e ela precisava de ver a parede.
— Eram dez horas num dos dias mais longos do ano. Ela também
conseguiria ver aquilo a trezentos metros de distância.
— Está bem, então ela parou aqui, ficou a olhar para a parede enquanto
ia bebendo e, de repente, resolveu fazê—lo. Olhe, sei o que quer provar. Está
a dizer que tentativa de homicídio não está fora de questão. Alguém a
embebedou, embora eu deva dizer que isso também é um mistério, escolheu o
melhor lugar para o carro ficar numa linha recta, colocou—o suficientemente
perto do pilar, para impedir que houvesse uma divergência muito grande do
caminho, colocou—a inconsciente no lugar do condutor, pôs o carro em
Drive, carregou no acelerador com uma das garrafas vazias e soltou o travão.
Nessa altura, a corajosa menina Kingsley recupera da bebedeira, vê o que está
a acontecer, tenta afastar—se, vê que não consegue e por isso atira—se pela
porta aberta. — Sorriu amargamente. — Além do facto de uma pessoa se
magoar imenso, ao debruçar—se para soltar o travão de um carro com a
válvula de regulação completamente aberta, por que diabo não morreu,
quando se atirou para fora?
— Não utilizaria o travão de mão — disse Frank — utilizaria o travão
com uma espécie de um grampo, uma peça de dois por quatro, talvez até um
malho — levantou uma sobrancelha trocista — entre a armação de metal do
lugar e o pedal, com uma corda amarrada. Depois prenderia o acelerador e
usaria a corda para tirar o grampo. A outra alternativa seria bloquear os pneus
e não usar os travões. — Fez um gesto em direcção ao chão. — Mas acho que
se notaria, se tivessem usado cunhas.
— E o facto de ele não se dar ao trabalho de a matar? — murmurou
Maddocks sarcasticamente.
— Talvez achasse que o tinha feito — disse o superintendente
suavemente — ou talvez não tivesse tempo para verificar. Ficou silencioso
durante um momento. — Pode explicar—me porque é que este pequeno
exercício o está a pôr tão zangado?
— Porque ela é culpada. Tudo foi uma armadilha, para conseguir a
simpatia do velhote. Não vejo que possa fazer a menor das diferenças a
aproximação que ela escolheu, a que distância estava quando começou, se
foram usadas cunhas ou não ou quando foi encontrada. Ela controlava o carro
desde o momento em que começou.
Frank arrastou o pé na superfície desfeita do macadame.
— Ela podia ter arrancado a pele da cara, atirando—se para fora de um
carro em andamento. Porque não escolher alguma coisa menos dolorosa?
— Porque ela gosta de dramas. De qualquer das formas, ela não
arrancou a pele da cara. Não vai ficar permanentemente desfigurada, quando
o cabelo crescer e as nódoas negras desaparecerem. Tendo tudo em conta, até
se safou bem. Demasiado bem para uma tentativa de homicídio, ou um
suicídio verdadeiro, não acha?

Esquadra da Polícia de Canning Road, Salisbúria — 16.45 h

— Olhem — disse Miles zangado, para os dois polícias que estavam


sentados à sua frente — quantas vezes preciso de lhes dizer? Nunca estive
com uma prostituta na vida. Porque haveria de o fazer? Jesus, a primeira vez
que tive relações foi aos quinze anos. — Bateu com o punho na mesa. — Não
conheço nenhuma Flossie Hale nem nenhuma Samantha Garrison e, se eu
quisesse dormir com uma mulher de quarenta e seis anos — o que não quero
— podia dormir com a governanta do pai sem pagar. Há anos que ela gosta
de mim.
— Tem uma opinião muito boa de si próprio, senhor Miles — disse o
sargento.
— E porque não?
— Por nenhuma razão, excepto que as pessoas que se gabam são
melhores na teoria do que na prática.
— O que espera que eu faça? Que desate a chorar a dizer que sou tão
pouco seguro, que tenho de pagar a uma puta velha para me divertir? Faça—
me o favor.
— É isso que faria, se sentisse que não era apto? — perguntou Blake.
Miles encolheu os ombros e acendeu um cigarro.
Ela virou—se para o gravador em cima da mesa.
— A resposta do senhor Kingsley foi encolher os ombros.
— Não foi nada — disse Miles furioso. — A resposta do senhor
Kingsley é: não sou nada inapto, por isso não saberia o que faria, se o fosse.
— Gritou para o microfone. — Perceberam bem?
— Acalme—se Miles — disse o sargento cansado. — Vai avariar a
máquina, se continuar a gritar assim. Porque não nos conta onde esteve e o
que fez na noite do dia vinte e dois?
— Já me fizeram essa pergunta cem vezes e eu já dei a mesma resposta
cem vezes. Estive em casa até às oito e meia e depois saí para ir visitar a Jinx.
— E nós não acreditamos em si. Diga—me, a governanta sensual
mentirá por si, da mesma maneira como diz que a sua mãe e o seu irmão o
farão?
— Eu nunca disse que eles mentiriam. — Olhou para o relógio. — Meu
Deus! Tenho que me ir embora. Vão acusar—me ou não? Porque se não o
vão fazer, quero sair daqui.
— Porquê? O que acontece às cinco horas de tão importante?
— Estou a dever dinheiro, seu estúpido — disse Miles com os dentes
cerrados — e preciso de mais tempo. É isso que acontece às cinco horas. Por
que diabo acha que fui visitar a Jinx? Está bem, gritámos um com o outro um
bocado, mas ela sempre teve sucesso no passado.
Ouviu—se bater à porta e uma segunda mulher—polícia espreitou lá
para dentro.
— Está aqui um senhor Kennedy, sargento. Diz que o senhor Kingsley é
seu cliente.
— Então mande—o entrar. Parámos de gravar às quatro e cinquenta e
um da tarde.
Kennedy olhou para Miles com desagrado, recusou a cadeira que lhe foi
oferecida e, em vez disso, colocou duas fotografias em cima da mesa. A
primeira mostrava Miles a entrar no hall de um hotel, a segunda mostrava—o
a entrar no Porsche.
— A irmã do meu cliente informou—me que estão a investigar uma
agressão a uma prostituta em Lansing Road, Salisbúria, por volta das oito da
noite na quarta—feira, dia 22 de Junho. Certo?
— Sim — concordou Blake.
Kennedy bateu com os dedos nas fotografias, indicando as datas e horas
impressas nos cantos inferiores direitos.
— O meu cliente, Miles Kingsley, entrou no Regai Hotel, Salisbúria, às
cinco e trinta da tarde de quarta—feira, dia 22 de Junho. Voltou para o carro
às oito e quarenta e cinco da mesma tarde, e dirigiu—se à Clínica Nightingale
para visitar a irmã. Enquanto esteve no Regai, passou três quartos de hora no
quarto número 431, saindo apenas uma vez para ir ter com um homem na
entrada. — Colocou outra fotografia, de Miles, na mesa, com a cabeça para
baixo a falar com alguém, que estava de costas para a máquina. — Isso foi às
sete horas. Esteve com este homem três minutos antes de ir à casa de banho
na entrada. Voltou ao quarto 431 às sete e um quarto. Foi seguido,
fotografado e vigiado, desde o meio—dia até à meia—noite do dia 22 de
Junho por Paul Deacon, que pode ser contactado através deste número e desta
morada. — Colocou um cartão ao lado das fotografias. — Acho que isto
liberta o meu cliente de quaisquer suspeitas em relação à agressão em
Lansing Road.
Blake olhou das fotografias para a cara pálida de Miles.
— Parece que sim — concordou ela. Kennedy sorriu friamente para o
seu cliente.
— O seu pai está lá fora, Miles. Sugiro que não o façamos esperar mais
do que é necessário.
Miles encolheu—se no lugar.
— Eu não vou — disse ele. — Ele vai matar—me.
— A sua mãe e o Fergus estão com ele. Tenho a certeza de que vão ficar
muito satisfeitos por o verem. — Fez um gesto em direcção à porta. — O seu
pai está muito triste com tudo isto, Miles, e fica muito zangado quando está
triste, como sabe. Não quer que a sua mãe e o seu irmão sofram o impacte da
sua raiva, pois não?
Miles parecia apavorado.
— Não — disse ele, pondo—se de pé. — Foi ideia minha. A mãe e o
Fergus estavam só a tentar ajudar. Achei que se déssemos acções como
garantia, poderíamos sair disto de uma vez por todas. Por isso, é a mim que
ele deve culpar.
Blake observou o jovem a tentar reunir o que lhe restava de coragem e
achou que ele era mais valente do que ela alguma vez pensara. Mas que tipo
de homem era Adam Kingsley para inspirar tal medo no filho de vinte e seis
anos?
21
Quarta—feira, 29 de Junho, Clínica Nightingale Salisbúria — 17.00
h

O DOUTOR PROTHEROE estava à porta do quarto de Jinx,


observando—a. Ela estava ao telefone, o corpo rígido de tensão, os dedos
agarrados ao auscultador e os ombros extraordinariamente tensos. O pai,
pensou ele, pois duvidava que mais alguém conseguisse provocar—lhe uma
energia tão nervosa. Lembrou—se de outra mulher, na mesma posição, a
ouvir uma voz do outro lado da linha. A sua mulher a ouvir a sua própria
sentença de morte. Lamento, senhora Protheroe. Quanto tempo? É difícil
dizer. Quanto tempo? Doze meses — dezoito, se tivermos sorte.
Jinx observava—o enquanto falava.
— O que se passa? — perguntou ao pousar o auscultador. Ele abanou a
cabeça.
— Nada. Estava a pensar noutra coisa. Más notícias?
— Não, boas — disse ela deprimida. — Libertaram o Miles.
— Foi acusado ou não?
— Não, não foi. — Subiu para a cama e sentou—se com as pernas
cruzadas. — Kennedy conseguiu provar que ele estava noutro lugar.
— Não parece muito satisfeita.
— Adam falou do telemóvel. Consegui ouvir a Betty a chorar. Acho que
finalmente a espada acabou por cair.
— Estamos a falar da espada de Dâmocles? Ela acenou com a cabeça.
— Há anos que pendia sobre as cabeças deles. O pior é... — Calou—se.
— Eles foram demasiado estúpidos, para o perceberem — sugeriu ele.
Ela não disse nada.
— Então o que estava Miles a fazer naquela noite?
Ela encostou as mãos à colcha, aparentemente intrigada pelas pequenas
cavidades que fazia.
— Cocaína — disse ela de repente. — Para além de ter perdido a sua
fortuna, que não existia, ao jogo. Ele e Fergus estão endividados até às
orelhas. — Ficou em silêncio durante um bocado, fazendo festas e batendo na
cama. — Adam pagou cinquenta mil libras pelas dívidas de jogo, em Março,
e dísse—lhes que se eles jogassem outra vez, os poria fora de casa e os
deserdaria. Há quatro semanas que os anda a vigiar.
Alan pôs—se na sua posição favorita, encostado ao toucador.
— Porquê?
— Porque a Betty vendeu as últimas acções em Maio e ele achou que
era para cobrir o que tinham perdido.
— Então porque não pôs em prática a ameaça? Ela sorriu amargamente.
— Imagino que quisesse saber com quem teria que lidar, quando os
rapazes não pagassem.
— Eles têm mais que vinte e um anos — disse Alan friamente. — Ele
não é responsável pelas dívidas deles.
— Você meteu—se outra vez na sua torre de marfim — disse ela, com
as faces coradas, de zangada que estava. — Acredita realmente que alguém se
daria ao trabalho de roubar os filhos de Adam Kingsley, se não achasse que ia
receber o seu dinheiro? Já viu como Miles é. Agora imagine o que ele e
Fergus terão dito sobre Adam e a Franchise Holdings, quando estavam sob o
efeito da cocaína. Deve haver um vídeo cheio de declarações, que podem
causar estragos.
Alan cruzou os braços.
— A imprensa não lhe pode ser mais desfavorável do que foi nos
últimos dias, por isso o que importa o que os seus irmãos possam ter dito?
— Teria feito diferença há quatro semanas — disse ela com os dentes
cerrados. — Há quatro semanas estava a planear um casamento social e não
podia dar—se ao luxo de haver um escândalo, para que a sua preciosa Jinx
pudesse ter o dia dela. Miles tinha razão. É culpa minha. Se eu lhes tivesse
dito que não queria casar—me, bem... Calou—se novamente.
Ele observou—a durante um momento.
— Só por curiosidade, porque é que não os pôs ele fora de casa aos vinte
e um anos e lhes disse para irem ganhar a vida?
Ela não respondeu imediatamente.
— Porque o teriam feito na mesma — disse por fim. — Se os deixasse
ir, ainda esperariam que ele pagasse as dívidas. Acho que o meu pai esperava
que, se os tivesse por perto, poderia controlar os seus excessos. — Baixou a
cabeça para que ele não pudesse ver a sua expressão. — Sempre quiseram
atirar—lhe o dinheiro à cara, como eu faço, mas só pensavam em esquemas
para enriquecerem depressa.
Seria essa a sua vingança subtil, pensou ele, fazendo publicidade ao que
o pai mais valorizava, a sua riqueza?
— Agora está a levar a cabo a sua ameaça — continuou ela
monotonamente.
— Então vai expulsá—los, sem um tostão, e divorciar—se da Betty.
— E culpa—o por isso?
— Não. O que lhes vai acontecer?
— Não sei. Duvido que possa deixar a Betty sem um tostão, porque os
tribunais não o permitirão — encostou a testa às mãos entrelaçadas — mas
não tenho a certeza quando ao Miles e ao Fergus. Ele diz que já não se
importa.
Estava mais perturbada do que seria de esperar. Se tinha algum amor
pela madrasta e pelos irmãos, sempre o escondera bem.
— Há um lado positivo — disse ele passado um momento. — Se o seu
pai os mandou vigiar, nas últimas quatro semanas, então pode ter a certeza de
que nenhum deles é culpado da morte do Leo e da Meg ou responsável pela
agressão de que foi vítima.
— Nunca pensei que fossem — disse ela baixinho.
— Ai, não? — disse ele, mostrando surpresa no tom de voz. — Sempre
me pareceram candidatos prováveis. São egoístas, não muito espertos e muito
habituados a fazerem o que querem, habitualmente através de si ou da sua
mãe. Posso imaginar ambos a considerarem o homicídio como uma solução
para um problema.
— Nunca me ocorreu — disse ela teimosamente.
Claro que não, porque sempre soubeste quem é o assassino.
— Gostaria que me explicasse porque não confia em mim — disse ele,
num tom de voz cuidadosamente impassível. — O que foi que eu disse ou fiz,
para a fazer sentir que não pode confiar em mim?
Ela apoiou o queixo na mão e olhou para ele friamente.
— Como sabe que não fui eu que o ataquei?
Ele aceitou a súbita mudança sem grande esforço.
— Não parecia você.
— O Matthew diz que estava escuro, que a pessoa estava vestida de
preto e que a única descrição que você soube dar foi um metro e setenta e
oito e uma constituição média.
— Como é que Matthew sabe o que eu disse? — perguntou Alan.
— Toda a gente sabe.
— Verónica Gordon — murmurou ele. — Um destes dias aquela mulher
vai ficar sem emprego por falar demais. — Observou—a, durante um
momento, com curiosidade. — Olhe, há muitas razões que nos obrigam a
aceitar que não podia ter sido você. É fraca demais para brandir um malho.
Não tem razão para querer atacar—me. Não sabia quando eu ia voltar e eu
mandei que a fossem ver de meia em meia hora, antes de sair. Se tivesse
saído do quarto, Amy ou Verónica teriam notado.
— Mas eu saí do quarto.
Ele não fez qualquer tentativa para se mostrar surpreendido.
— Depois de a irmã Verónica ter feito a visita às nove horas —
continuou ela — foi Amy que a substituiu. Eu estava na cama, com a luz
apagada, da primeira vez que ela veio. Da segunda vez estava na casa de
banho, às escuras, e ela não se deu ao trabalho de verificar se a almofada que
eu tinha colocado por baixo dos lençóis era eu ou não. Depois disso, vesti—
me e saí. Enfiei uns jeans pretos e uma camisola preta. Tenho um metro e
setenta e oito de altura e antes do acidente pesava cinquenta e sete quilos, por
isso a minha roupa precisa de chumaços.
— Continue — disse ele.
— Eu queria saber por que razão o Adam mandou o Kennedy até aqui e,
por isso, achei que lhe ia fazer uma espera. Esperei por baixo da faia até que
fiquei tão cansada que não consegui esperar mais, depois voltei para a cama e
adormeci. Estava a ter um pesadelo, quando a Amy me encontrou. Estou
espantada por ela não lhe ter contado nada. Estava cheia de medo que eu
estivesse a fazer alguma coisa, que não devesse e que ela pudesse ser
responsabilizada por isso. — Examinou a cara dele. — Ou talvez ela lhe
tenha contado e o senhor não me tenha dito.
Ele abanou a cabeça.
— Não.
— Então é óbvio que ela confia mais em mim do que em si, doutor
Protheroe.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Então foi isso? Uma lição sobre quem merece confiança e quem não
merece?
— Mais ou menos — confirmou ela, recusando—se a olhar para ele. —
O senhor já sabia que eu estava lá fora, Matthew ouviu—o a chamar—me.
Mas nunca o mencionou, pelo menos a mim.
Maldito Matthew! Ia desfazer o filho da mãe, na primeira oportunidade.
— Só porque eu percebi que tinha cometido um erro. — Achei que a
tinha visto na beira da estrada quando entrei, mas como não foi você que me
atacou, não vi necessidade em falar no assunto. Ficou sossegada?
— Não — disse ela com franqueza. — Fala de confiança, como se a
pudesse obter pedindo—a. Bem, não pode, quando está profundamente
envolvido nisto. Tudo o que eu sei é que o meu pai lhe está a pagar para
cuidar de mim, que, por alguma razão, mandou o seu advogado ter consigo,
na segunda—feira à tarde, e que pouco tempo depois você mandou vigiarem
—me de meia em meia hora, antes de desaparecer. — Um brilho (de humor?)
luziu nos olhos dela. — Depois, quando finalmente aparece, é atacado com
um malho e a polícia cai em cima de mim.
Pensativamente, ele coçava a barba.
— Você relatou os factos numa sequência relacionada, quando na minha
interpretação não há qualquer relação entre eles.
— Porque é que Kennedy veio falar consigo?
— Partindo do princípio que não houve assuntos secretos, para me
lembrar que eu tinha prometido ao seu pai que não seria submetida a terapia,
se não quisesse. Kennedy gravou a nossa conversa e, como desde essa altura
não soube de mais nada, concluí que tinha dito as coisas certas e não as
erradas.
— O que foi que disse? — perguntou—lhe ela.
— Sugeri que era Adam e não você, que não queria lembrar—se de
nada. — Ele reparou na sua expressão alarmada. — Também disse que ele
tinha interpretado mal o seu carácter e que se preocupava desnecessariamente
com a confusão criada aquando do assassínio de Russell, porque você não
partilhava as ansiedades dele quanto a este assunto. Mas repare, naquela
altura eu não sabia que a Meg e o Leo estavam mortos ou que você já sabia.
— A perturbação dela aumentou. — Se soubesse, teria sido mais duro nas
minhas observações sobre o facto de ele interpretar mal o seu carácter,
porque nunca encontrei ninguém, homem ou mulher, que fosse tão
independente como você.
Ela puxava a colcha.
— É uma coisa que se aprende muito depressa, quando estamos no lado
errado de um inquérito sobre um assassínio — disse ela. — Nunca deixamos
de estar vigilantes.
— E no entanto você é uma grande adepta de que os outros o façam por
si.— disse ele suavemente. — Amy, por um lado, e Matthew por outro.
Ela sorriu relutantemente.
— Pobre Amy, ela está a tomar cuidado. Tem pavor de ser despedida,
mas não pode usar o que eu lhe disse como uma desculpa. É o meu médico, e
tudo o que eu lhe disse é confidencial. — Mudou de táctica. — Segundo
Matthew, a polícia acha que o malho que foi usado para o atacar, pertence à
clínica. É verdade?
— É.
— Há alguma dúvida?
— Acho que não. Um dos nossos seguranças foi à sua procura, porque
sabia que tínhamos um. Foi largado numa das casas exteriores com tinta do
meu Wolseley na respectiva cabeça.
Ela ficou sentada durante vários segundos, profundamente pensativa.
— O seu segurança podia estar enganado? — perguntou ela de repente.
— Quero dizer, parece uma coisa tão estranha para se deixar por aí. Como é
que ele podia ter a certeza de que havia cá um malho? — Observou a cara
dele com interesse. — Deve ter trazido um com ele. De outra forma, não faz
sentido.
Ele sentiu—se comovido pelo desejo de compaixão nos olhos
extraordinários dela. Seria que Matthew e Amy também se deixavam
comover tão facilmente?
— Quer dizer que há por aí outro malho? Ela acenou com a cabeça.
— Está bem. Se lá estiver, farei tudo para o encontrar, mas não seria
mais fácil dizer—me quem ele é?
A cara dela tinha uma expressão fechada.
— Quem quer que lhe tenha batido. Ele endireitou—se com um suspiro.
— Não, Jinx, foi quem quer que tenha querido matar—me. — Você não
é a única a estar vigilante neste momento. — Pense nisso.
Matthew Cornell estava encostado ao alpendre da frente a fumar um
cigarro, quando Alan foi lá para fora. Alan pensou em arrancar—lhe os
braços, depois abandonou a ideia, porque tinha poucas hipóteses de ser bem
sucedido. De uma maneira geral, estava a gostar cada vez mais do seu
convertido ruivo.
— Com vão as coisas, Matthew?
— Bastante bem, doutor. E o ombro?
— Assim—assim. — Relaxou os músculos com cuidado. — Podia ter
sido muito pior.
— Sim. Podia estar morto.
Alan observou—o pelo canto do olho.
— Tem alguma ideia de quem o poderia ter feito? Uma das teorias é que
foi um drogado à procura de droga.
— Não foi o que ouvi dizer.
— Não.
— Só uma pessoa o podia ter feito e de certeza que não é nenhum
drogado.
— Está a falar da menina Kingsley.
— Elaé a única que tem malhos no passado. — Pisou o cigarro com o
salto.
— Excepto que ela não serve. Foi um homem, vi—o com os faróis.
— Tem a certeza, doutor? O senhor tem uma voz forte e eu estava
sentado à minha janela na segunda—feira à noite, a fumar um cigarro. Não
fiquei com a impressão de que pensasse que era um homem.
— E foi—lhe contar tudo na manhã seguinte. Matthew sorriu—lhe.
— Não me pareceu justo não o fazer. É um mundo mau, doutor, e como
ia eu saber que o senhor não ia dizer à polícia? Eu sabia que ela estava lá
fora. Ela iluminava a cara sempre que dava uma passa. Estava a observá—la
há cerca de uma hora, antes de você voltar e ser espancado. Devia lembrar—
se onde é o meu quarto, lá em cima no canto, com janelas que dão para
ambos os lados.
— Está a dizer que viu tudo o que aconteceu?
— Não vi tudo. Observei a Jinx durante algum tempo e, um pouco
depois, ouvi—o a chamá—la e olhei pela outra janela. Vi o seu carro parado,
depois pimba! — o seu pára—brisas explodiu. E vi uma silhueta iluminada
pelos faróis, quando o senhor fez marcha atrás a toda a velocidade e bateu na
árvore. — Acendeu outro cigarro. — Pensei, merda, que diabo se está a
passar, e o que é que eu vou fazer? E quando tinha decidido, o diabo já
andava à solta. O senhor ia a guiar até à entrada, a buzinar e todas as luzes
estavam a acender—se. Por isso achei melhor não me mostrar e ver o que
acontecia.
— Muito obrigado — disse Alan sarcasticamente. — Podia estar morto,
quando você tomou uma decisão. Esperava que agisse de boa—fé e não que
se escondesse.
Ele sorriu novamente.
— Bem, achei que tinha sido apenas o seu pára—brisas partido, não o
seu ombro, e ninguém morre por causa de um pára—brisas partido. Devia ter
luzes ao longo do caminho, nessa altura talvez eu tivesse visto um pouco
mais.
Alan olhou para ele zangado.
— Então só viu uma silhueta — protestou — e também não sabe melhor
do que eu quem foi.
— É mais ou menos isso.
— Está a pensar explicar os pormenores, ou é só isso que me vai dizer?
— inquiriu ele rispidamente. — Pode não ter reparado, mas atentaram contra
a minha vida há duas noites sem eu ter feito nada para isso e não me apetece
repetir a experiência.
Matthew atirou o fumo para o ar.
— Não acho que o senhor não o tenha provocado. Lembro—me que
ameaçou ficar ali toda a noite, até a Jinx se mostrar. O senhor é convincente
demais, esse é que é o seu problema. O filho da mãe acreditou em si.
Alan tinha—se esquecido disso.
— Então o que estava ele a fazer ali?
— À espera. — Olhou para ele de lado.
— Para quê?
Matthew encolheu os ombros.
— Para fazer o que tinha vindo fazer. — Viu o médico começar a ficar
zangado. — Olhe, doutor, posso adivinhar, tal como o senhor, mas isso não
quer dizer que algum de nós tenha razão. Pessoalmente, não consigo imaginar
aquele espantalho do número doze a assassinar alguém, por isso há um
maníaco qualquer lá fora, tentando incriminá—la. Deve estar cheio de medo,
caso ela resolva falar, por isso acho que está à espera para tentar novamente.
Alan pensou nisto durante um bocado.
— Isso não pode estar certo. Disse que ela esteve lá fora durante uma
hora e que via a cara dela, cada vez que acendia um cigarro. Se a viu a ela,
então ele também a deve ter visto, por isso porque não acabou com ela?
Matthew olhou para o caminho, na direcção em que Alan parara o carro,
na noite de segunda—feira.
— Porque ele não esperava encontrá—la cá fora. Ela teria gritado como
uma doida, se ele se tivesse aproximado da árvore por baixo da qual ela se
encontrava.
— Não, se lhe tivesse batido por trás. Ela não teria tido tempo para
gritar. Eu não tive.
— Meu Deus! — disse Matthew severamente —, não tem muita
imaginação, pois não? Ele não o faria de forma a que parecesse um
assassínio, não depois de ter tanto trabalho a fingir suicídio da última vez. Ia
apanhá—la no quarto, cortar—lhe os pulsos ou pendurá—la na porta da casa
de banho, o senhor teria um suicídio na manhã seguinte e os polícias
esfregariam as mãos e encerrariam o caso. Penso que há dias que ele tem
estado à espera de uma oportunidade de entrar lá dentro e tratar do assunto,
mas houve problemas. Provavelmente não contou que houvesse tanta gente
aqui à noite. O senhor tem uma boa segurança, doutor, mas também precisa
dela com os preços que cobra. — Sorriu novamente. — Há demasiados ricos
aqui dentro, que ficariam muito zangados se intrusos pudessem entrar e sair,
quando lhes apetecesse.
— Porque é que ele tinha o malho se não tencionava bater—lhe?
Matthew abanou a cabeça exasperado.
— O senhor não é psicólogo, pois não? É o instrumento do seu ofício,
doutor, e a regra é que se levam as ferramentas, para o que der e vier. Olhe
para o Violador de Yorkshire, levava o martelo e o cinzel para onde quer que
fosse. Devia estudar um bocado. Este rapaz é um doido organizado e o doido
organizado médio não sai sem estar preparado.
— Mas não estamos a falar de um serial killer.
— Acha? Três homicídios parecem—me uma série.
— Matthew, houve um espaço de dez anos entre eles, duas das vítimas
eram homens e uma era uma mulher e todas estavam ligadas a Jinx Kingsley.
Isto não é um padrão típico para homicídios em série.
— Talvez ainda não — disse Matthew — mas diria que ele está a perder
o controlo, não acha? Passaram nove anos entre o primeiro e o segundo
homicídio de Jeffrey Dahmer e depois, nos quatro seguintes, cometeu mais
quinze. Ainda vai dizer que este homem não é um serial killer, quando a
pobre da próxima vítima for espancada até à morte. — Viu o cepticismo de
Alan. — De qualquer maneira, como vamos saber o que ele fez entretanto?
Aposto que encontrou outra maneira de planear as suas agressões. Devia falar
com o meu pai. Ele representava patifes como este nos julgamentos. São
muito espertos e manipuladores e vou—lhe dizer mais, se eu fosse a Jinx,
também estaria com amnésia.
— Ela só tem que dizer o nome dele.
— O que significa que será a palavra dela contra a dele. Caia na
realidade, doutor. Ela é o suspeito número um, por isso é lógico que tente
atirar as suspeitas para cima de outra pessoa. Esse é o nome do jogo, no que
diz respeito à polícia. Ela precisa de provas e eu acho que ela não as tem.
Diria que ela está desesperadamente a protelar os acontecimentos, até
conseguir lembrar—se de alguma coisa, que possa apanhar o filho da mãe.
— Ela não poderia estar em pior situação do que está agora. Matthew
virou—se de costas para o caminho.
— Está a esquecer—se de que ela já passou por isto uma vez com o
Russell. Já sabe o que acontece quando ninguém é condenado por um crime.
As pessoas mais próximas e mais queridas da vítima vivem para sempre com
um sentimento de culpa e destroem—se nesse processo. A suspeita é uma
coisa má, doutor. Eu sei. Já passei por isso. O meu velho acusou—me de
coisas horríveis no passado, não porque ele saiba que eu fiz alguma coisa,
mas porque tem medo que eu tenha feito.
— Então ela disse—lhe quem foi?
— Não faria sentido. O que poderia fazer um drogado? Ela precisa de
contar ao pai. Ele é a única pessoa que tem poder para acabar, de uma vez por
todas, com esse filho da mãe.
Alan franziu o sobrolho.
— Não lhe sugeriu isso, pois não?
— Meu Deus! Por favor!
— Tem que agir de boa—fé Matthew e isso, normalmente, significa agir
dentro da lei.
Matthew riu—se.
— Eu sei o que é boa—fé, doutor. Mas saberia ?
A Clínica Nightingale empregava dois jardineiros que, quando
interrogados, concordaram ambos que havia um malho na casa das
ferramentas, antes da agressão ao médico.
— Eu próprio o usei há uma ou duas semanas atrás — disse um deles.
— Quando estava a substituir os postes da vedação, perto do portão do fundo.
— Lembra—se onde o colocou quando terminou? — perguntou Alan.
Ele acenou com a cabeça em direcção ao homem mais jovem.
— O Tom levou—o no atrelado, como de costume. Alan virou—se para
o rapaz.
— Lembra—se em que barracão o colocou? Houve uns momentos de
silêncio.
— Não o pus em lugar nenhum — disse Toni, arrastando os pés que
eram demasiado grandes para ele. — Emprestei—o ao meu pai, para fazer um
trabalho de construção em casa. Não tinha importância. Aqui só o utilizamos
uma vez em seis meses e o pai estima—o como se fosse seu.
Esquadra da Polícia de Romsey Road, Winchester — 19.15 h

Frank Cheever encontrou o bilhete na sua secretária quando voltou ao


escritório, mais tarde, a seguir a uma viagem em vão a Salisbúria, depois de o
seu pássaro já ter voado.
— Não pudemos mantê—lo aqui — disse Blake. — E, se estiver
interessado, o advogado deu—nos outra fotografia ao sair. Acho que era para
si e não para nós. Disse para lembrar a quem estivesse interessado, que leva
pelo menos cinco horas a ir daqui até Redcar, e outras cinco horas para
regressar.
O Superintendente olhou para uma fotografia de Miles e Fergus a
apostarem numa corrida de cavalos. Eram três da tarde, estava datada do dia
30 de Junho e o local de encontro era Redcar em Cleveland.
— Como é que Adam Kingsley sabia que a Meg e o Leo tinham sido
assassinados no dia trinta? — grunhiu ele desconfiado. — Nem nós próprios
temos a certeza quando morreram.
— Porque foi no dia trinta que a filha fingiu o suicidio — disse
Maddocks impacientemente.
«O doutor Protheroe telefonou» dizia o bilhete. «O malho encontrado na
Clínica Nightingale, na terça—feira, não é o que Harry Elphick viu antes da
agressão. O doutor Protheroe interrogou os jardineiros e descobriu que o
malho da clínica foi emprestado ao senhor G. Stack nas últimas duas semanas
e que ainda se encontra na posse deste. Morada: 43 Clonmore Avenue,
Salisbúria. Ele sugere que isto liberta a menina Kingsley de qualquer suspeita
de o ter atacado e, além disso, sugere que analise o martelo na sua posse ,
para ver se tem sangue do Leo e da Meg. Se for positivo, ele acredita que isso
absolverá a menina Kingsley de ambos os assassínios. NÃO há qualquer
hipótese (pediu—me para sublinhar «não» duas vezes!) de ela ter levado a
arma do crime para a clínica, uma vez que não estava consciente, quando
chegou de ambulância e não abandonou o local desde essa altura. (O doutor
Protheroe insistiu no seguinte PS) Por que esperam que eu faça o trabalho do
inspector Maddocks? Estou tentado a dizer que se o assunto fosse deixado ao
cuidado da polícia de Salisbúria, os factos acima citados, teriam sido
descobertos ontem a tarde.»
Frank atirou o bilhete a Maddocks.
— E então? — perguntou ele. Maddocks leu, franzindo o sobrolho.
— Não tenho culpa, só posso seguir uma linha de averiguação de cada
vez.
— O que quer dizer isso precisamente?
— Significa que nunca me deu a hipótese de me pôr a par. A arma foi—
nos entregue ontem à tarde e eu tenho sido seu motorista todo o dia. De
qualquer forma, o Bob Clarke já tinha feito um relatório a dizer que a arma
estava de boa saúde. Não há sangue, apenas tinta.
— Bem, é uma pena que você, ontem à tarde, não tenha visto a quem ela
pertencia — disse Frank rispidamente. — Poderia ter—nos evitado o
exercício de hoje.
— É pouco provável — disse Maddocks com ênfase cuidadoso —o
senhor estaria ainda mais disposto a perseguir Miles Kingsley, se soubesse
que o malho tinha vindo do exterior. — Voltou a olhar para o bilhete. —
Gostaria de saber o que levou o doutor Protheroe a fazer perguntas aos
jardineiros. Ele estava presente, quando Elphick me disse que já tinha visto o
malho e acredite, nem ele, nem eu, nem Fraser pensámos que ele pudesse
estar enganado. — Pousou o papel na secretária. — Que é que a rapariga lhe
terá sugerido, quando eu e você saímos de lá esta tarde?
— O que está a sugerir agora? Uma espécie de teoria de conspiração?
— Estou apenas a comentar a forma como estamos a receber
informações, que servem uma certa pessoa.
Frank sentou—se na cadeira e pegou no telefone
— Descubra se o sargento Fraser já chegou e diga—lhe para vir ao meu
escritório. — Encostou—se para trás para olhar para Maddocks. — Continue
— convidou—o ele.
O inspector encolheu os ombros.
— É instintivo. Ela é a nossa assassina. Está a ver, sempre imaginei
como eu procederia, se quisesse matar alguém. A sabedoria diz que tem de
ser de uma forma simples, engendrar um álibi razoável e negar tudo, mas ela
não o podia fazer, por causa do assassínio de Russell. A polícia iria
certamente fazer comparações e qualquer que fosse o método que ela usou
para matar o Leo e a Meg, ainda estaria debaixo da linha de fogo. — Afagou
o queixo. — Por isso, fez o que eu teria feito. Tornou—se o suspeito óbvio,
ligando os assassínios do Leo e da Meg ao de Russell há dez anos atrás e
acho que ela só está à espera do momento certo para provar, sem qualquer
sombra de dúvida, que o álibi que a Meg Harris lhe deu, na altura, é sólido. O
que nos vai deixar aos tropeções porque tentámos ligar os três assassínios.
— Está a dizer que ela não assassinou o Russell, mas que o fez com o
Leo e a Meg?
Maddocks acenou com a cabeça.
— Sim. Você já leu os relatórios do Met. O assassínio de Landy foi um
contrato para matar, levado a cabo por Jason Phelps a mando de Adam
Kingsley. Nunca houve mais ninguém sob suspeita. Todo este disparate sobre
Adam não deixar Jane encontrar o corpo vem dela e, bolas, ela teve imenso
tempo para inventar desculpas. Ela própria diz que os irmãos sempre
acreditaram que o pai era responsável, o que é bastante óbvio, pela maneira
como se comportam. Não se cresce de uma forma normal, quando se pensa
que o pai é um assassino impiedoso. E olhe para a mulher. Bêbada como um
cacho às dez da manhã segundo Fordingbridge. Estamos a falar de um
colapso da família e a ideia de a filha ter ficado imune à loucura é descabida.
— Fez uma pausa para ordenar os seus pensamentos, fazendo um leve aceno
de cabeça a Fraser, quando este entrou na sala. — Acho que ela nos está a
contar a verdade sobre Russell. Na altura da morte dele, acho que ela não
sabia nada sobre o caso dele com a Meg. Também penso que ela não sabia
nada sobre o assassínio e que ficou genuinamente chocada. Mas dez anos de
vida a saber o que o pai ordenara e que ficou impune, prejudicou—a tanto
como ela afirma ter prejudicado os irmãos.

Clínica Nightingale, Salisbúria — 19.15 h

A irmã Gordon foi insistente.


— São ordens do médico, Jinx. Quer que mude para um quarto lá em
cima.
— Porquê?
— Meu Deus, rapariga — disse ela irritada —, pergunta tudo? Como
posso eu saber? Como de costume, ninguém se deu ao trabalho de me
informar.
Jinx olhou para as janelas de batente.
— Preferia estar num quarto de onde pudesse sair se precisar.
— Sim, talvez seja isso que está a preocupar o doutor — respondeu
Verónica rispidamente. Ela tinha estado a juntar pequenas informações com a
estranha observação de Alan, na segunda—feira à noite, e a sua súbita
decisão de mudar Jinx para um quarto lá em cima. — Calculo que ele se sinta
mais seguro se souber que você só tem uma saída.
Esquadra da Polícia de Romsey Road, Winchester — 19.25 h

— Existe uma hipótese de ela saber sobre o caso da Meg com o Russell
na altura do assassínio — disse Fraser devagar. — Segundo Hennessey, ela
falou—lhe sobre isso depois de ter perdido o bebé, mas se se lembra, a
história dela foi que tinha encontrado algumas cartas de amor no sótão um
ano depois.
Maddocks colocou as mãos em cima da secretária do superintendente e
debruçou—se agressivamente.
— Tenho a certeza de que não foi a única mentira que ela nos disse. Juro
por Deus que ela nos está a controlar completamente.
— Refere—se ao álibi que a Meg Harris lhe deu?
— Porque ela a convenceu de que estava inocente. Bolas, ela quase o
convenceu a si e o senhor mal a conhece.
— Há cinco minutos atrás você argumentava que ela não tinha morto o
Russell.
— Há cinco minutos não havia provas de que ela soubesse do adultério,
mas nunca se arranja um motivo melhor para assassinar, do que simples
ciúmes. Bolas, tudo o resto que eu disse se confirma. Nada melhor, se foi a
querida Jane que ficou impune pelo assassínio de Russell, podia ligar os
outros assassínios a esse e dizer: «Mas o Met provou que eu não estive
envolvida. Sabem que foi o meu pai.»
— Mas ainda não há provas de que ela soubesse do caso antes do
acontecimento — lembrou Fraser. — Se Hennessey disse a verdade, então
tudo o que temos são indícios de que ela sabia na altura do aborto e isso foi
duas semanas depois do assassínio.
— Existe alguma razão para pensar que ele não está a dizer a verdade?
— perguntou o superintendente.
Fraser abanou a cabeça.
— Não, mas eu não gostaria de contar com ele como testemunha. Ele
está bastante excitado neste momento, tanto está zangado com a Meg por o
abandonar numa situação complicada, como está angustiado quando se
lembra de que ela morreu, passando para uma espécie de protecção amuada,
sempre que o nome da menina Kingsley é mencionado. Eu acho que ele
pensa que a Jane é responsável, mas também penso que culpa a Meg por a ter
levado a fazê—lo. Acho que ele gostava das duas e não sabe a quem culpar.
Frank desenhou um boneco no bloco à sua frente.
— Gostava como?
— Ele conhece—as há muito tempo. — Consultou o bloco de
apontamentos. — Trabalhava com a Meg numa companhia chamada
Wellman & Hobbs, quando Jane era casada com o Russell.
— Quer dizer que ele dormia com alguma delas?

Clínica Nightingale, Salisbúria — 19.30 h

Fergus abriu caminho para o novo quarto de Jinx e olhou


agressivamente para Matthew.
— Quero falar com a minha irmã — disse ele virando a cabeça em
direcção à porta.
Matthew inclinou—se para a frente, para apagar o cigarro no cinzeiro,
que se encontrava na mesa do café.
— Achei que a ideia de ter um outro quarto, era impedir visitas
agressivas de entrarem — disse—lhe ele. — Aposto que foi aquele velho
estúpido do Elphick, que lhe disse onde você está.
— Ouviu o que eu disse — gritou Fergus. — Desapareça. Matthew
ignorou—o.
— Ele é perigoso ou apetece—lhe falar com ele em privado?
— Acho que estou segura sozinha.
— Eu fico no corredor. Se chamar, estarei de volta. — Levantou o corpo
magro da cama e enfrentou Fergus. — Espero que se porte como um
cavalheiro, senhor Kingsley.
— Desapareça — disse Fergus.
Matthew sorriu suavemente, antes de enfiar o joelho num golpe rápido
na virilha do jovem, empurrando—o contra a parede.
— Nunca se deixe levar pelas aparências — murmurou. Levantou um
dedo em direcção a Jinx. — Desculpe, mas o seu irmão é um tonto. Até à
vista.
Jinx esperou que ele se fosse embora e depois olhou para os ombros
caídos do irmão.
— Onde está o Miles? — perguntou—lhe.
— Lá fora no carro — disse ele a chorar. — O pai deu—nos uma tareia
enorme e depois expulsou—nos de casa.
— E a Betty?
— Ela também está no carro — disse ele envergonhado. — Olha, sei
que é pedir muito, mas precisamos de um sítio onde ficar. Pusemos toda a
gasolina num carro e temos o suficiente para chegar a Richmond. Miles e a
mãe disseram que tu nunca irias concordar, mas... — Corou. — Bem, eu
disse que talvez concordasses e que valia a pena tentar.
Ela deixou—o ficar naquele desconforto durante vários segundos.
— Crucifico—os a todos, se fizerem alguma coisa naquela casa que eu
não goste — disse ela zangada. — Isso significa que não quero confusões,
jogo, drogas, bebedeiras e façam um esforço para serem simpáticos com os
Clancey. Percebeste? Ele acenou com a cabeça.
— Precisamos de uma chave.
— Tenta dizer: Obrigado, Jinx, és admirável. Ficamos em dívida.
— Obrigado jinx, és admirável. Ficamos em dívida — sorriu
atrapalhado. — Ainda precisamos de uma chave.
— Os Clancey têm uma. Vou—lhes telefonar e pedir—lhes que a
entreguem, quando vocês chegarem. Provavelmente há comida suficiente no
frigorífico até eu chegar — olhou para ele zangada. — E não aumentem a
conta do telefone. E não digam ao Adam onde estão. Não quero que a minha
casa se transforme numa zona de guerra. Percebeste?
— Claro. — Levantou—se. — Sabia que ias concordar.
— Não vai ser para sempre, Fergus.
— Eu sei. Olha, vamos tomar conta da casa, prometo. Vou—me
certificar de que o Miles e a mãe se portam bem. E nada de telefonemas.
Estaremos sossegados até tu voltares.
Ela acenou com a cabeça. Ele parou jumto à porta.
— Para ser honesto contigo, não tinha a certeza de que dirias que sim.
Não és assim tão diferente do pai, sabes. Acho que tinhas razão no outro dia.
Tu herdaste os genes bons e nós os maus. — Controlou—se não fosse ela
mudar de ideias. — Mas olha, estou—te grato. Não te vais arrepender,
sinceramente.
De repente, ela sorriu.
— Eu sei que não. Teria muito mais para me arrepender, se tu não me
tivesses pedido, Fergus. Esta tarde estava realmente com medo de nunca mais
ver nenhum de vocês.
Ele pareceu surpreendido:
— Porquê?
— Achei que não se iam importar comigo, se Adam os expulsasse.
— Foi isso que pensámos de ti — disse ele. — Acho que nunca
aprendemos a confiar uns nos outros. É uma pena, realmente. Quero dizer, se
não se pode confiar na família, em quem diabo se pode confiar, Jinx?
22
Quarta—feira, 29 de Junho, Esquadra da Polícia de Romsey Road
Winchester — 22.00 h

O SUPERINTENDENTE CHEEVER ABANOU ligeiramente a cabeça,


enquanto pousava o auscultador.
— Seguiram o Porsche com o Fergus, a senhora Kingsley e o Miles da
Clínica Nightingale até a casa de Jane em Richmond — disse ele a Maddocks
e a Fraser. — O vizinho do lado acabou de os deixar entrar, ligou as luzes e
saiu. Têm várias malas com eles e o maior número de caixas cheias de coisas
que conseguiram encafuar no Porsche. Segundo a pessoa que os seguiu
parece que vão ficar durante muito tempo. — Bateu pensativamente com a
caneta nos dentes. — É interessante, não acha?
Maddocks dirigiu—se irritado para a janela.
— Vem nas notícias que o Kingsley sénior vai perder Hellingdon Hall,
por isso acho que mandou os três embora. Ela deu—lhes um tecto. O que tem
isso de estranho? É irmã deles.
— Eu disse interessante e não estranho — disse Frank rispidamente,
tirando o laço e batendo com ele na secretária. Desabotoou o colarinho e
passou o dedo por dentro da camisa. — É óbvio que a família de Jane não
partilha a sua fraca opinião sobre ela. Mudar—se—ia para casa dela, se
tivesse a opinião que tem?
— Miles e Fergus viveram o tempo suficiente debaixo do tecto do pai,
acreditando que ele era um assassino. É mesma coisa, não acha?
— Não. — Frank espetou o dedo no ar, zangado. — Não se pode
comparar. Se Kingsley é responsável, então manteve uma distância saudável
entre ele e os homicídios. Se a filha é responsável, então foi ela que os
cometeu e está quase a ficar louca. Por isso repito, mudar—se—ia para casa
dela, se duvidasse dela?
Fraser pigarreou.
— Olhe, com a melhor das vontades deste mundo, isto não nos vai levar
a lado nenhum. A verdade é que precisamos de mais provas, ou então será
uma repetição do inquérito do assassínio de Rachel Nickel', ou mesmo de
Russell Landy, se chegarmos a esse ponto.
— Meu Deus, Fraser — disse Maddocks, furioso. — Como diabo é que
passou nos seus exames para sargento? — Ergueu as mãos para o céu. —
Mais provas, diz ele. Onde espera encontrá—las, por amor de Deus?
Analisámos tudo minuciosamente; Ardingly Woods, os haveres de Leo, a sua
casa, os seus carros, a sua garagem, os haveres de Meg, o andar dela e o carro
de Jane Kingsley. Nada. Zero. Temos a marca de um salto numa ladeira, que
pode ou não ter sido feita por um sapato de uma mulher, e até podíamos
verificar se algumas manchas de sangue são do Leo e da Meg, uma vez que
as roupas da menina Kingsley foram deitadas fora, pelo hospital, depois do
acidente. — Fez uma pausa para respirar. — Não é muito, concordo, mas o
que temos em abundância são provas circunstanciais, que apontam numa
direcção e apenas numa direcção. Para a mulher que tinha motivo e
oportunidade. Acho que, baseando—nos nisso, a convencemos a falar.
— Explique por que razão o sangue, na roupa dela, não manchou o carro
— disse Frank. — A equipa do Bob Clarke desfê—lo e não há nem um
pingo, nem mesmo do dela.
— Quando ela foi encontrada, usava um casaco. Vestiu—o por cima das
roupas manchadas de sangue, quando entrou no carro.
— Isso é fantasia e não uma prova. Explique como é que o malho foi
parar à clínica Nightingale na segunda—feira à noite.
— Foi uma armadilha, cortesia do pai. Ajude—me pai e o pai consente.
Finge uma agressão ao doutor Protheroe com um malho novo e tudo aponta
para que uma pessoa de fora esteja envolvida.
Frank virou o queixo para Fraser.
— É a sua vez — disse abrutamente.
Já tinham andado à volta deste assunto cem vezes e Fraser, com um
suspiro, começou novamente.
— Está bem, o Inspector acha que ela está a manipular os
acontecimentos por ser culpada. Eu acho que ela está a manipulá—los,
porque está inocente e tem medo. Acho que o Leo a deixou, na noite de
segunda—feira, dia 30 de Maio, para ir viver com a Meg e também acho que
ela não se ralou nada por o perder. O que a preocupava era como o pai iria
reagir. Acho que ela tinha pavor dele, porque partilhava a opinião do irmão,
de que ele tinha mandado assassinar o Russell. Mas ninguém conseguiu
prová—lo, por isso fez os possíveis por se manter afastada dele e por o banir
da sua vida. Tudo o que conseguiu foi aumentar a estranha obsessão dele por
ela. Dean Jarrett descreve Adam sentado a olhar para ela, como se não
conseguisse acreditar que ela lhe pertencia. Acho que ela ficou tão paranóica
com isso que convenceu o Leo e a Meg a irem embora para França, por
tempo indeterminado, caso o pai reagisse mal às notícias do abandono do
Leo.
Frank desenhou um cupido no bloco à sua frente e espetou uma flecha
através do coração.
— Excepto que a altura ideal para eles irem era o dia 4 de Junho, o dia
em que ela foi para o Hall. Porquê esperar até ao fim—de—semana seguinte?
— Porque eles não partilhavam da paranóia dela. Olhe, no que lhes diz
respeito, Russell foi morto por um ladrão. — Olhou para Maddocks e viu o
seu sorriso sardónico. — Estamos a falar de duas personalidades muito
egocêntricas, dito pelas suas próprias famílias. Por outras palavras, eu, eu, eu.
Leo pensava principalmente em termos de dinheiro e haveres. Meg pensava,
principalmente, em termos de gratificação sexual. Acredita seriamente que
algum deles pensaria na morte do marido da menina Kingsley? Meg ficou
provavelmente perturbada durante um tempo, mas lembro—me de que, no
diário, ela registou ter ido para a cama com um estranho menos de um mês
depois e não há provas sequer de que Leo conhecesse Russell. Francamente,
se pensavam nele, era quase certamente em termos de um assalto, que tinha
corrido mal.
Continuou.
— A única perseguida pela morte do homem miserável era a sua viúva,
mas mesmo ela acabou por esquecer. É certo que andava mais sozinha do que
a maioria, mas fazia uma vida independente, recusava qualquer ajuda do pai,
que suspeita de ser um assassino e, no fim, acaba por vencer. Depois o
pesadelo começa novamente. Embarca noutra tentativa de casamento e acaba
por descobrir que Leo não é diferente de Russell e que está a cometer outro
erro. — Foi a sua vez de sorrir maliciosamente para Maddocks, que já ia no
terceiro casamento. — O que não é assim tão invulgar. As pessoas tendem a
sentir—se atraídas pelo mesmo tipo de parceiro. O que é invulgar é que o seu
primeiro casamento tenha terminado num assassínio e não num divórcio e
que Meg tenha estado envolvida com ambos os homens.
— Então ela fica furiosa e mata pela segunda vez — disse Maddocks.
— Ainda não explicou porque não partiram no dia quatro — lembrou—
lhe Cheever cansado.
— Porque não podiam ir antes do dia onze. Meg tinha um negócio e Leo
tinha que olhar pelos investimentos. O mais cedo que podiam partir era no
dia onze.
— Está a adivinhar novamente.
— Sim, mas faz sentido. Olhe, a Jane está convencida de que o pai
mandou matar o marido, provavelmente porque o perfil da polícia a
persuadiu. Até pode suspeitar de que ele sabia do caso com a Meg, o que lhe
teria dado um motivo. Mas quando ela tenta convencer a Meg e o Leo, eles
ficam muito cépticos. No entanto, sentem—se suficientemente culpados pelo
seu próprio envolvimento, para lhe fazerem a vontade. Concordam em
manter a coisa secreta até poderem partir para França, o que provavelmente
lhes dá jeito, porque estão conscientes de que serão criticados quando se
souber. Entretanto, Jane tem de enfrentar a semana no Hampshire com a
família. Se ela não for, serão feitas perguntas. Se for, terá de fingir que o
casamento se mantém. Por isso finge. Regressa a Londres na sexta—feira
para a discussão fictícia, quando Leo lhe diz que vai casar com Meg, fazem
os três os telefonemas na manhã de sábado e Meg e Leo fogem. — Fez uma
pausa. — De qualquer maneira, era esse o plano.
— Depois o Josh Hennessey convence a Meg de que ela está a ser uma
grande safada e atrasam a partida para segunda—feira — disse Frank,
enfiando outra seta no coração do cupido. — O que leva a Jane a ir lá
rapidamente, no sábado à noite, para saber por que diabo ainda lá estavam.
— É tão plausível como o enredo do Chefe.
— E o que se passou na garagem dela no sábado? — perguntou
Maddocks. — Como é que isso encaixa?
— Como é que isso encaixa no seu cenário? — perguntou Fraser.
— Foi fingido, como o segundo. Quanto mais tentativas fizesse, mais
protector se tornaria o pai.
— Com todo o respeito, Chefe, isso é um disparate — disse Fraser
rispidamente. — Tal como disse o coronel Clancey, se ela quisesse que se
pensasse que era suicídio, teria chorado à frente dele e da mulher. E mais,
teria feito o possível para nos fazer acreditar nisso, uma vez que não é do tipo
suicida. Não bate certo. E mais outra coisa. Você continua a insistir na
protecção, que o pai supostamente lhe está a dar. Bem, onde diabo está ele?
Não se aproximou dela. Está muito mais interessado em salvar o seu precioso
negócio.
— Ele está a pagar quatrocentas libras por dia a um charlatão corrupto,
para a deixar fingir que está com amnésia. Se a conseguíssemos trazer aqui
para a interrogarmos, ela contaria tudo muito rapidamente.
Frank ouviu esta troca de impressões acalorada com mau humor.
— Vou para casa — disse abruptamente. — Vamos mas é ficar por aqui
e dormir sobre o assunto. — Começou a tirar o casaco das costas da cadeira e
depois parou. — Porque é que ela disse a Fordingbridge que a última coisa de
que se lembrava era ter dito adeus a Leo, no dia 4 de Junho, se ele nem
sequer estava em casa dela? — perguntou a Fraser. — E não me diga que ela
estava a manipular os acontecimentos, quando estava semiconsciente, porque
se tentar eu aposto consigo e ganho.
— Não, não estou a dizer isso. — Olhou para Maddocks que sorria
estupidamente. — Olhe, não há dúvida que ela estava abalada e também não
há dúvida de que achava que tinha tido o acidente no dia quatro. Tenho a
certeza que até aí a sua amnésia era genuína. E pode ainda ser, tanto quanto
sei. Mas li algumas coisas e acho que essa história é uma grande invenção.
Por outras palavras, ela engendrou tudo. Era a história, que ela ia contar ao
pai, quando o visse no dia quatro, aquela que provavelmente ensaiou na
viagem de carro e que depois contou de forma convincente. Leo está óptimo.
Despedi—me dele ao pequeno—almoço. Manda cumprimentos. O facto de
não ser verdade não tem importância. Ficou guardado na memória dela como
algo que aconteceu, porque ela sabia que era isso que tinha de dizer ao pai,
quando o visse.
— Então o pai é o nosso assassino?
— Diria que é uma probabilidade.
Frank levantou—se, enfiando os braços nas mangas do casaco.
— Tem razão quanto a uma coisa, Sargento — disse ele
sarcasticamente. — É uma cópia do caso Landy. Temos os mesmos dois
suspeitos, sem probabilidades de acusar qualquer um deles, a não ser que
alguém me arranje provas.

Quinta—feira, 30 de Junho, Hawtree Estate, Winchester — 3.30 h

Os gritos da criança rasgaram o ar como todas as noites durante as


últimas duas semanas. Na cozinha, o Rex começou a ladrar.
— CINDY! — gritou a mãe dela, enfiando os braços no roupão,
irrompendo pelo patamar, para abrir a porta do quarto da filha. — Agarrou na
criança e abanou—a furiosamente. — Ou tu me dizes o que se está a passar,
ou levo—te ao médico. Estás a ouvir? ESTÁS A OUVIR—ME? Não aguento
mais.
Clínica Nightingale, Salisbúria — 6.30 h

Alan Protheroe dormiu mal naquela noite. Às seis horas desistiu de lutar,
saiu da cama com um gemido, vestiu—se e foi fazer jogging nos terrenos da
clínica. Tinha chovido durante a noite e a relva estava ensopada debaixo dos
seus pés. A água passava através do tecido dos ténis, a cara doia—lhe onde
os pedaços de vidro tinham cortado a pele e o ombro magoava—o a cada
passo que dava. Que diabo estava ele a fazer? Jogging era para masoquistas,
não para médicos cínicos de meia—idade, que sabiam que a morte não
escolhia sistematicamente e que era tão injusta como as políticas de saúde do
governo.
Sentindo—se aliviado por ter tomado uma decisão, encaminhou—se
com dificuldade até um banco no terraço e sentou—se a olhar a paisagem
cheia de neblina. Lá ao longe, para além dos limites da clínica, montes baixos
elevavam—se roxos contra o céu pálido de Verão. Mais perto, a majestosa
torre da maravilhosa catedral de Salisbúria mostrava—se acima dos vários
tons de verde das árvores. Olhou, como sempre, com um pessimismo
cansado. Talvez conseguisse sobreviver à terrível intromissão do homem e
aos artifícios humanos, mas ele duvidava.
— Está muito pensativo — disse Jinx, deixando—se escorregar para o
lugar ao seu lado.
Estava vestida de preto, com um chapéu de lã preto puxado para a testa.
Ele observou os sapatos molhados dela durante um momento, antes de acenar
com a cabeça em direcção à torre da igreja.
— Estava a pensar sobre a destruição ao homem — disse ele — e
quando se chegar a esse ponto, como certamente acontecerá, se ele se
destruirá primeiro a si próprio ou aos seus artefactos.
— Acho que não tem muita importância — respondeu ela, seguindo o
olhar dele. — A natureza ocupará o que deixarmos, por isso os nossos
artefactos deixarão de existir, quer os destruamos ou não.
— É bastante deprimente, não é? Ela riu—se.
— Não vai acontecer se o homem aprender a viver com os seus meios e,
se não conseguir aprender, então não merece este lugar no planeta. Não estou
sentimentalmente ligada à humanidade como espécie. Diria que, em geral,
somos um dos piores produtos da selecção natural. — Apontou para as
árvores à volta da demarcação. — Não fazem senão bem. Nós só fazemos
mal.
— Elas não têm escolha — disse Alan.
— Sim — disse ela devagar. — O livre—arbítrio é uma chatice, não é?
Ficaram sentados, em silêncio, durante algum tempo.
— Bonito chapéu — disse Alan finalmente.
— O Matthew emprestou—mo para proteger a cabeça contra o frio.
Decidiu não lhe perguntar se ela o tinha usado na segunda—feira à
noite.
— Onde é que andou? — perguntou em vez disso.
— A passear.
— É muito corajosa. Segundo Matthew, este lugar está cheio de
prováveis assassinos. Não acredito que ele não a tenha alertado para esse
perigo, quando se deu ao trabalho de me avisar a mim.
Ela acenou com a cabeça.
— Ele já lhe falou da raposa na armadilha, aquela que estava a morder a
própria perna para se libertar?
— Não.
— Morreu de medo. Não quero morrer de medo.
— Então foi dar um passeio, para provar que não tem medo.
— Sim. — Olhou para ele rapidamente, depois continuou a observar a
torre da catedral. — Mas de qualquer maneira não consegui dormir. A
banheira de Matthew não era muito confortável.
— Raramente são — murmurou ele. — Há alguma razão em particular
para querer dormir na banheira de Matthew?
— Claro. Não tenho o hábito de fazer nada sem uma razão.
— Vai—me dizer qual é?
— A casa de banho dele tem uma fechadura.
— Estou a ver. Outro silêncio.
— E onde estava o Matthewr?
— Provavelmente na minha casa de banho, a não ser que fosse
suficientemente corajoso para dormir na minha cama.
Ele esperou.
— Vai explicar — disse ele finalmente — ou está à espera que eu
continue a cansar o meu pobre cérebro exausto e bastante confuso?
— Eu substituo a raposa dele. Ele tornou—se muito mandão nos últimos
dias e eu culpo o existencialismo por isso. Matthew acha que assumir a
responsabilidade significa ser capaz de controlar. — Ela virou—se para olhar
para ele e o seu riso baixo produziu um sopro.
Meu Deus, Protheroe, pensa em sacos de gelo. Ela é uma paciente, por
amor de Deus.
Aeródromo de Stoney Bassett, New Forest, Hampshire — 7.30 h
Ouviu—se um ruído enorme, quando um carro, que estivera parado na
estrada desde a madrugada, se dirigiu a toda a velocidade, batendo no pilar de
betão. Não houve nenhum sobrevivente. Também não estava por perto
nenhum casal a namorar, para os salvar. O carro incendiou—se quase
imediatamente após o impacte, provavelmente porque estava cheio de bidons
de gasolina abertos e, quando um motorista ao passar viu o fumo e chamou os
bombeiros, o único ocupante — que ia ao volante — estava morto.

Esquadra da Polícia de Romsey Road, Winchester — 9.00 h

— O melhor é ler isto — disse Frank, empurrando com a ponta da sua


caneta, um depoimento para o outro lado da sua secretária. — Uma tal
senhora Hanscombe e a filha Cindy vieram cá, por volta das quatro horas da
manhã, para que Cindy pudesse desabafar. Aparentemente há duas semanas
que tem pesadelos e a mãe achou que quanto mais depressa viesse, mais
depressa a família poderia ter uma boa noite de sono.

Era terça—feira, dia 14 de Junho. Eu e o Bohhy Franklyn encontrámos


os corpos depois de termos tido relações no bosque. Eu fugi do Bohhy e
escorreguei pela ladeira. Estava com tanto medo. O Rex, o meu cão, tinha
andado a cavar na vala e eu vi uma pessoa morta. Acho que era um homem.
Bohhy disse que me metia lá dentro com ele, se eu alguma vez dissesse
alguma coisa, mas eu não aguento mais. Sonho constantemente que o homem
me vai apanhar. Não, não sabia que existia uma vala. Enterrei o salto para
não escorregar. Tive medo que o Bohhy me apanhasse no fundo. Odeio o
Bohhy Franklyn. Não serve para nada. Tenho doze anos. Sim, ele sabe isso.
Assinado: Cindy Hanscombe
Assinatura da mãe: P Hanscombe

Maddocks leu—o devagar.


— E então, o que fazemos a seguir? — perguntou ele.
— Voltamos ao princípio — disse o superintendente. — Quero que
vasculhem novamente o bosque de Ardingly e quero toda a água drenada
num raio de um quilómetro e meio. Também quero que voltem a examinar os
depoimentos de todos os que viram alguma coisa no dia 13 de Junho e, se for
necessário, vamos de porta em porta para avivar as memórias. Existe um
malho e roupa manchada de sangue algures. Quero que encontrem tudo isso.
— E os Kingsley?
Frank acenou com a cabeça em direcção à porta.
— Ouviu o que eu disse, Inspector. Vamos começar de novo e, desta
vez, fazemo—lo da maneira mais difícil.

Esquadra da Polícia de Canning Road Salisbúria — 10.30 h

— Flossie é peremptória ao afirmar que o porta—chaves tinha o


emblema da Franchise Holdings — protestou Blake. — Ela diz que era
idêntico ao que Miles tinha.
— Ela também disse que foi Miles que a agrediu — lembrou—lhe o
sargento. — Ela não é uma testemunha de confiança, não acha?
— Aceito isso, mas ela insiste que os dois homens eram parecidos, e
deve haver alguma verdade nisso, senão ela e Samantha ter—me—iam
mandado embora, quando lhes mostrei a fotografia.
— Aonde quer chegar, Blake?
— Deve haver uma ligação com a Franchise Holdings caso contrário
porque teria ele o porta—chaves?
— Tenha juízo! O filho da mãe é casado com alguém que trabalha lá.
Foi—lhe dado durante uma promoção. Encontrou—o na rua. É uma grande
organização, Blake. Vai estar a entrevistar pessoas até ao século vinte e um.
— Não necessariamente. Achei que devia tentar mais uma vez e, se não
der resultado, desisto.
Ele olhou para ela desconfiado.
— Jane Kingsley, suponho eu.
— Ela está muito perto, Sargento. Seríamos doidos se perdêssemos a
oportunidade.

Clínica Nightingale, Salisbúria — 11.30 h

Jinx estava à janela, quando Blake bateu à sua porta e a abriu.


— Via—a chegar — disse ela sem se virar. — Achei que Miles estava
livre de suspeita.
— E está, no que me diz respeito a mim. No entanto, não posso falar
pelos meus colegas — disse ela com honestidade. — Lamento, mas acho que
ele vai ser condenado por jogar e por consumo de drogas, como resultado da
informação que o seu pai forneceu.
Jinx virou—se.
— Suponho que isso significa que lhe foram dados os nomes e moradas
de toda a gente com quem Miles esteve em contacto nas últimas quatro
semanas?
Blake acenou com a cabeça.
— Sim. Um senhor, Paul Deacon, foi lá esta manhã a nosso pedido e
forneceu—nos cópias de tudo o que tinha, incluindo fotografias.
— Então o Fergus também está implicado?
Blake acenou com a cabeça.
Jinx sorriu debilmente.
— Devia estar a contar com isso, realmente. O meu pai não perderia
uma oportunidade como esta, para se livrar dos parasitas. — Deixou—se cair
numa cadeira de braços e acendeu um cigarro, oferecendo o maço à mulher
polícia. — Fuma?
— Não, obrigada. — Blake sentou—se na outra cadeira. — Eu poderia
estar a falar na altura errada, mas uma condenação nem sempre é uma coisa
má. Depende dos seus irmãos. Pode ser o tipo de choque de que eles
precisam, para se controlarem.
Jinx suspirou.
— Está a perder o seu tempo, se veio falar comigo sobre o Miles e o
Fergus. Sinceramente, não faço a menor ideia do que eles têm andado a fazer
e não quero saber. Quanto a mim é um assunto encerrado.
Tu não és tão diferente dopai... no que diz respeito a Adam, Russell
nunca existiu... é um assunto encerrado...
— Não estou. É um caso diferente, no qual não estou envolvida. —
Tirou uma fotografia de um porta—chaves da Franchise Holdings da carteira
e mostrou—a a Jinx. — Reconhece—o?
— Sim.
— Pode dizer—me o que é?
— Sabe exactamente o que é. É o porta—chaves do Miles. Tirou—lho
ontem.
— Como sabe que é do Miles?
Jinx tocou numa marca no disco em relevo preto.
— Os diamantes estão em sítios diferentes. É assim que os distinguimos.
Foi ideia da minha madrasta. Pense no disco como um mostrador de um
relógio, com o logotipo da Franchise Holdings virado para cima. O diamante
de Adam está nas duas, o meu nas quatro, o da Betty nas seis, o de Miles nas
oito e o de Fergus nas dez. Foi este, que tirou ontem ao Miles.
Blake não conseguiu esconder o seu espanto.
— Achámos que era um bocado de vidro. Então deve ser bastante
valioso.
Jinx sorriu.
— Acho que cada um custou cerca de três mil libras. O disco é de jade e
as letras e o rebordo são de ouro. A Betty encomendou—os há dois anos a
um joalheiro em Londres, para as bodas de prata dela e do Adam. Ela disse
que era uma coisa que devíamos todos celebrar. — O sorriso tornou—se
malicioso. — Foi uma ideia simpática até Adam ver a conta. Depois disso foi
o diabo à solta.
— Se calhar há uma versão mais barata em plástico, que os empregados
do seu pai usam?
— Suponho que possa haver. Mas nunca vi nenhuma. Betty sempre me
disse que a inventara. Queria algo único para nós os cinco. — De repente
franziu o sobrolho. — Porque quer saber?
Blake debatia—se consigo própria.
— Que diabo! — disse ela de repente. — Acho que a Flossie se enganou
novamente. — Suspirou tão fortemente, como Jinx o fizera.
— Uma das razões por que pensámos que o seu irmão estava envolvido
na agressão à Flossie Hale, foi por ela ter dito que o agressor tinha um porta
—chaves como este. Ela lembrava—se porque as iniciais eram as mesmas
que as dela e, quando lhe mostrámos o logotipo da Franchise Holdings,
identificou—o imediatamente. Depois mostrámos—lhe uma fotografia dos
seus dois irmãos e ela escolheu o Miles. Aceito que tenha cometido um erro,
mas esta manhã foi peremptória que este, ou outro exactamente igual a este, é
o porta—chaves que o homem trazia.
— Encolheu os ombros. — Lamento. Parece que lhe fiz perder o seu
tempo.
— Já tornaram isso público? — perguntou Jinx num tom de voz
desinteressado, como se não se importasse com à resposta.
— Sobre o porta—chaves? Não. Tem sido uma investigação sem
prioridade, porque as prostitutas não queriam publicidade.
— Quais são as hipóteses de o homem ainda ter este porta—chaves?
— Bastante boas, diria eu.
Jinx fechou os olhos de repente e Blake achou que vira lágrimas nas
suas pestanas.
— Eu dei o meu — disse ela numa voz pouco firme. — Achei que não
havia muito que celebrar, depois de o meu pai ter perdido as estribeiras. De
qualquer maneira ele pagou e eu fiz uma promessa há muito tempo de nunca
mais aceitar nada dele. — Ela pressionou as pontas dos dedos contra as
pálpebras, antes de os baixar para olhar para a mulher—polícia. — A ironia é
que quando o dei, disse «espero que te dê sorte». — Passou a língua pelos
lábios secos. — Mas acho que a sorte permaneceu comigo.
— A quem o deu, menina Kingsley?
— A um vigário. Ele é anglicano e disse que o F podia significar
Father*. Father Harris. Tem uma paróquia numa aldeia chamada Frampton.
Tem melhor ar do que Miles — disse ela numa voz stressada — mas não
deixam de ser parecidos. Simon é mais magro e não é tão moreno. A irmã
confundiu—os uma vez, por isso não deve culpar as prostitutas por se
enganarem.
Blake ouviu os tremores na voz dela.
— Será o irmão da Meg Harris? A sua amiga que foi assassinada?
— Sim.
— E este Simon teve alguma coisa a ver com isso? Os olhos de Jinx
tornaram—se enormes.
— Acho que estou a sentir—me mal — disse ela. — Desculpe. Blake
desviou os pés rapidamente, enquanto o vomitado se espalhava pelo tapete.

O Vicariato, Frampton, Hampshire — 12.25 h

Blake parou ao lado do outro carro da polícia e desligou o motor.


— O que se está a passar? — gritou ela para um polícia de uniforme,
que estava junto da porta da frente. — O vigário está aí?
— Não que eu saiba.
— Sabe onde está?
— A última coisa que sei é que ele estava a cheirar a carne de porco
assada no aeródromo de Stoney Bassett.
* Padre (NR).

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Eu não acredito em Deus, mas todos os domingos peguei na hóstia nas
minhas mãos e proferi o Credo pelos outros. As vezes penso se teria sido
diferente se eu acreditasse, mas,acho que não. Se Deus existe, Ele não tinha
poderes para mudar o que tinha ordenado, que eu fosse irmão da Meg. Não
há tormento maior do que amar uma mulher que não se pode ter.
As pessoas dirão que sou doido. Talvez seja. No entanto, é uma loucura
estranha que dá sentido às acções, que os homens dizem serem maldosas, e
confusão aos que as perdoam. Dizem que sou um bom padre, no entanto eu
tropeço a noite em frente ao altar do corpo e sangue de Deus e só vejo com
clareza, quando a carne e o sangue do Homem estão quentes nas minhas
mãos. Nessa altura compreendo que o sacrifício é necessário, para que os
compartimentos escuros do meu espírito sejam purificados, uma vez que o
objectivo se apodera de mim e o que eu faço se torna inevitável. Estou vivo,
vejo a verdade.
A CONFUSÃO começa novamente
Meg tornou—se uma PUTA, mas eu sabia porquê e perdoei—lhe. Ela
disse que era melhor ser uma puta generosa, do que uma mulher maldosa.
Ela foi aberta e honesta e não escondeu nada de mim. Não havia amor,
apenas gratificação física e excitação até.
SEGREDO
terrível incerteza onde está deus deus dorme mas o Russell não. Russell
ri e o seu riso explode na minha cabeça, esmagando o meu cérebro,
esmagando, esmagando. Meg ama.
russell simon odeia deus
Recordar dói. Percebo porque é que a Jinx prefere esquecer. Sempre
odiei a Jinx. Ela tornava a Meg ciumenta. O que foram o Leo e o Russell
para a minha irmã, até Jinx os tornar desejáveis? Nada. Pequenos homens
de pouco valor, sem a Jinx. Ela tornou—os deuses e devolveu—os a Meg.
Com a Jinx existe sempre o segredo e a MALDADE, sem a Jinx a Meg é uma
puta honesta novamente confusão. Horrível, perigo perigo horrível perigo
esquecer, esquecer putas putas jovens putas velhas. És mau onde está a
minha escova do cabelo seu rapaz malvado zás zás espero que doa não voltes
a olhar assim para a tua irmã malvado.
malvado malvado
DEUS o pai tornou simon no DIABO
Onde estão eles? Não em Hammersmith. Os pássaros voaram porque
Jinx os enxotou era um SEGREDO mas o simon obrigou a Jinx a contar.
matar matar matar não há ARMA deus ama Jinx milagres para ela mas
não para o simon
ela está SALVA
ela segue o simon até a casa de leo e simon diz que a vontade de deus
seja feita, ámen.
Mas porque é que deus salva a Jinx? Simon tentou matá—la três vezes e
deus salvou—a. Ele não salvou a MEG ou o Leo. Eles tentaram salvar—se
com mentiras
tu não queres que o gato morra, Simon tu gostas do gato deixa—me ir
para hammersmith e dar de comer ao gato deixa o gato viver o gato está
preso
ela quer dizer o leo o leo está preso na mala do carro de simon já morto
tal como ajinx está presa numa caixa em chelsea, enterrada viva num caixão,
morta se a Meg desobedecer
ninguém vê ninguém ouve ela implora pela vida tarde demais Tarde
demais
por favor SIMON por favor SIMON simon diz NÃ O
esquecer esquecer esquecer esquecer esquecer esquecer esquecer
esquecer esquecer
simon pede desculpa

EPÍLOGO

Sexta—feira, 1 de Julho, Clínica Nightingale, Salisbúria — 11.00 h

O SUPERINTENDENTE CHEEVER e o sargento Fraser esperaram em


silêncio, enquanto Jinx lia a carta que Simon Harris deixara na sua secretária,
antes de sair para se suicidar. Era um documento que causava arrepios, não só
pela loucura que revelava não ser visível em mais lado algum em sua casa,
excepto talvez numa única batina, que embora tivesse sido limpa, ainda
estava manchada onde o sangue tinha salpicado a parte da frente. Apesar
disto e da carta, sentia—se um desconforto em relação ao suicídio de Simon,
particularmente no que dizia respeito aos contentores de gasolina abertos, que
tinham tornado o seu carro uma bola de fogo, eliminando todas as hipóteses
de uma análise laboratorial, e à ordem extraordinária da sua vida, que
contrastava enormemente com a aparente desordem do seu espírito.
A polícia não conseguira descobrir um único paroquiano em Frampton,
que acreditasse minimamente nas tendências homicidas do seu vigário. «Era
um homem doce.» «Nada era demasiado trabalho para ele.» «O padre Harris
não faria mal a uma mosca.» «Foi o padre mais trabalhador que alguma vez
tivemos.»
Havia provas circunstanciais de que ele se tinha ausentado do vicariato
desde a hora do almoço de domingo, dia 12 de Junho, até à manhã de terça—
feira, dia 14 de Junho, mas que não aguentaram uma investigação mais
cuidadosa.
— Reparei que o carro de Simon não estava lá fora no domingo, nem na
segunda à noite — disse o seu vizinho do lado —, mas por vezes costumava
guardar o carro na garagem, por isso podia lá estar. Não me lembro de o ter
visto a seguir à missa da manhã, mas isso era normal. Somos pessoas
ocupadas e não estamos a vigiar os movimentos das outras pessoas. Tenho a
certeza de que o carro lá estava na terça de manhã. Tinha um formulário para
ele assinar e tive que dar a volta ao carro, para chegar à porta da frente. Não,
não achei nada de estranho nele. Estava de bom humor como de costume.»
Caroline Harris, destruída pela catástrofe, que tinha devastado a família
inesperadamente, surpresa, jurou que Simon tinha estado com ela e com
Charles na noite de sábado e de segunda. Também afirmou que ele tinha
estado com eles no dia 27 de Junho, quando Protheroe fora atacado. Mas,
quando mais tarde pediram ao marido para confirmar estas histórias, ele
abanou a cabeça.
— Não — disse ele em voz baixa —, lamento mas não é verdade. Tinha
lido a carta do filho com uma emoção evidente e entregou—a novamente a
Cheever, pedindo que nunca deixassem que a mulher a visse. — Eu culpo—
me a mim próprio — disse ele. — Devia ter percebido como era prejudicial
crescer numa casa onde o acto sexual era visto como uma coisa degradante e
nojenta. Egoistamente, pensei que eu era o único afectado mas é claro que a
Meg o confundiu com amor e o Simon com ódio...
No início, Flossie Hale e Samantha Garrison duvidavam que Simon
fosse o homem que as agredira.
— Ele não usava óculos, percebe — disse Flossie, observando a
fotografia do jovem e sério vigário —, e tinha melhor ar.
— Mas quando lhe mostraram uma fotografia de um Simon mais novo e
sorridente, sentiram—se mais confiantes. — O Pequeno Lorde Fauntleroy —
disse Flossie triunfantemente — e ele não é assim tão diferente do primeiro
que eu escolhi. Tem os mesmos olhos. E a inocência. Meu Deus, vou—me
lembrar para nunca mais me deixar levar por olhos azuis bonitos.
O inspector Maddocks era o elo de ligação com a Metropolitan Police
numa tentativa de descobrir se algumas prostitutas de Londres tinham sofrido
agressões parecidas com as de Hale e Garrison durante os cinco anos em que
Simon aí trabalhara. Se conseguissem estabelecer um padrão prolongado de
agressão criminosa a prostitutas, isso facilitaria as dúvidas da polícia sobre as
poucas provas que apontavam para o envolvimento de Simon nos assassínios
de Landy, Wallader e Harris. Pois, como Maddocks dissera a Cheever
quando este lera a carta de Simon: «— Alguém lhe deve ter batido para o
obrigar a escrever isto. Tem manchas de sangue.»
Frank observou Jinx a pousar a carta sobre os joelhos.
— Como vê, menina Kingsley — disse ele —, há duas ou três questões
por responder. Ainda andamos à procura da arma, mas havia uma batina na
casa dele, que parece ter manchas de sangue. No entanto, vai demorar algum
tempo, antes de podermos dizer, com certeza, que o sangue era da Meg e do
Leo. É provável que ele tenha tirado a batina depois de ter morto os seus dois
amigos, o que explicaria porque ninguém nos comunicou ter visto alguém,
usando roupa manchada de sangue. Achamos que ele usou o mesmo método
para matar o seu marido, vestiu a batina para que a roupa não ficasse
manchada de sangue.
Ela parecia mais pálida e mais cansada do que nunca, pensou ele, e a
mão que segurava a carta tremia violentamente.
— Não quero incomodá—la mais, mas ficaríamos gratos se nos pudesse
fornecer pormenores.
Ela olhou para Alan Protheroe, para que a apoiasse e depois, acenou
com a cabeça.
— Talvez pudéssemos começar com o sábado, dia 11 de Junho, o dia em
que telefonou ao seu pai, para lhe dizer que já não ia haver casamento.
Lembra—se desse dia, menina Kingsley?
— De quase tudo.
— Lembra—se de ter ido ao apartamento da Meg ao fim da tarde e de
ficar zangada quando ela ou Leo lhe abriram a porta? —Jinx acenou com a
cabeça. — Pode falar—me sobre isso? Achamos que era suposto eles já
terem partido há muito tempo, por isso, o que a levou a pensar que ainda lá
estavam? Porque é que lá foi?
— Para ir buscar o Marmaduke e levá—lo para casa comigo — disse ela
com simplicidade. — Não pude acreditar, quando vi o carro do Leo parado cá
fora. Fiquei furiosa. — Os olhos dela encheram—se de lágrimas. — Eu tinha
tido tanto trabalho e eles achavam que eu estava paranóica.
— Então tinha uma chave do apartamento da Meg? Ela abanou a cabeça.
— Era suposto eu ir buscá—la ao vizinho. Mas vi o Leo sentado na sala,
por isso bati à porta e zanguei—me violentamente com eles. — Esfregou
tristemente os olhos. — Quem me dera não o ter feito. Foi a última vez que
falei com eles os dois e estava tão mal—humorada. Eu sabia que eles
estavam em perigo. Tinha um pressentimento de que algo de terrível ia
acontecer.
Frank esperou um momento até sentir que ela se controlara.
— E então o que aconteceu?
— A Meg contou—me uma grande história sobre o Josh e como ela se
estava a portar mal com ele. Disse que era culpa minha, que eu estava a usar
o assassínio de Russell como desculpa para os confundir, porque queria
tornar—lhes a vida o mais desconfortável possível. Tivemos uma discussão
horrível. — Olhou para as mãos. — Bem, isso agora já não é importante. Eu
chateei—os para irem para casa do Leo, em Chelsea, até segunda—feira.
Disse que pelo menos aí estariam mais seguros do que em Hammersmith,
porque eu era a única pessoa que também sabia a morada.
— E eles foram?
— Foram.
— A que horas foi isso?
— Acho que foi por volta da meia—noite. A Meg insistiu em deixar o
apartamento a brilhar, para que possíveis compradores não ficassem
desapontados quando o fossem ver.
— Então ela ia vendê—lo?
— Sim — disse Jinx. — Eu ia pô—lo à venda, numa imobiliária, logo
que partissem para França. Isso fazia parte do acordo. O negócio da Meg
precisava de dinheiro e eu prometi tentar arranjá—lo através da venda do
apartamento, se ela e o Leo desaparecessem por uns tempos. O plano era eu
explicar tudo ao Josh depois de eles terem partido... — hesitou. — Mas a
Meg teve medo, quando falou com ele ao telefone, no sábado, e decidiu adiar
a partida para lho poder dizer pessoalmente. — Lambeu as lágrimas dos
lábios. —Josh ameaçou sair da sociedade, a não ser que ela lhe desse algumas
garantias quanto ao seu interesse, e tinham tido tantas dificuldades
ultimamente que ela acreditou que ele o faria, a não ser que conseguisse
acalmá—lo.
Frank observou a cabeça dela, com curiosidade.
— Tenho alguns problemas em perceber porque é que eles aceitaram
manter segredo, menina Kingsley, especialmente, se como diz, achavam que
estava a ser paranóica.
Ela olhou para ele com tristeza durante um momento.
— A Meg já me tinha traído duas vezes. Não estava em posição de
argumentar. De qualquer forma, o Leo estava do meu lado. Sentia—se muito
contente por estar em França, quando se soubessem as novidades. A última
coisa que ele queria era encarar a vergonha de um casamento desmanchado.
Teria ido imediatamente, se a Meg estivesse livre para partir.
— E porque não estava?
— Tinha um cliente que não queria perder e algumas reuniões com o
gerente do banco. Ela disse que ele deixaria de apoiar o negócio, se tentasse
cancelá—las. O mais cedo que podia partir era no dia onze. — Calou—se.
— E depois não cumpriu a promessa? Jinx acenou com a cabeça.
— Ela só concordou com tudo, porque o Leo era a favor, mas no minuto
em que o Josh a criticou violentamente, recusou—se a ceder e disse que eu
estava a ser neurótica e absurda. — As lágrimas caíam—lhe pela cara abaixo.
— Acho que mais tarde quis desculpar—se, mas tinha demasiado medo do
Simon para olhar para mim. Foi muito triste.
— Compreendo. — Esperou novamente. — Por isso partiram para
Chelsea, por volta da meia—noite, no sábado? Tem a certeza de que foram
para aí?
— Sim. Segui—os. O Leo parou o carro na garagem e eu vi—os entrar.
Depois fui para casa.
— E o gato? O que lhe aconteceu?
— Mantivemos o plano original, mas adiámo—lo até segunda.
Deixámos o pobre e velho Marmaduke no hall, com alguma comida e a cama
dele, mas ele só ia lá ficar trinta e seis horas no máximo. Eu iria buscar a
chave ao vizinho, trazer o Marmaduke e explicar que a casa ia ser posta à
venda. Meg deveria telefonar logo que chegasse a França, dizer—lhes que eu
era de confiança e pedir—lhes que me deixassem entrar.
— Mas porque é que era necessário não contar nada ao senhor e à
senhora Helms? — perguntou Fraser. — Não pode ter suspeitado que eles
estavam envolvidos na morte de Russell.
— Claro que não. — Um longo silêncio. — Achei que era do meu pai
que tínhamos que ter medo — disse ela por fim — e não podia ter a certeza
do que ele já sabia sobre a relação do Leo e da Meg. Sei que ele descobriu
sobre a Meg e o Russell, porque Miles me contou depois. Essa é uma das
razões por que achei que ele podia ter mandado matar o Russell. — Esfregou
a cabeça. — Leo jurou que os pais não tinham dito nada a ninguém, mas... —
ergueu as mãos num gesto de desamparo — o Adam tem sempre maneira de
descobrir as coisas. Se o senhor e a senhora Helms soubessem alguma coisa
de antemão, diriam à primeira pessoa que lhes perguntasse. De facto, a Meg
disse que era pior, que a senhora Helms não esperaria que lhe perguntassem e
que contaria a toda a gente.
— Porque é que não ficou preocupada por o Leo ter parado o carro em
Shoebury Terrace, se pensava que o seu pai andava a vigiá—lo a ele e à
Meg? — perguntou o superintendente.
Ela levantou a cabeça para olhar para ele e, pela primeira vez, ele
percebeu alguns dos sofrimentos por que ela tinha passado.
— Fiquei, sim. Tentei persuadi—lo a deixá—lo em Richmond, mas ele
não concordou. Disse que era levar a coisa longe demais. Mas eu sabia o que
tinha sido feito ao Russell e eles não. Passei uma semana horrível no Hall,
preocupando—me terrivelmente. Obriguei o Leo a telefonar—me todos os
dias a dizer que estavam bem e para que a minha família pensasse que estava
tudo normal. Depois ele telefonou, na sexta—feira à tarde, a dizer que iam
partir logo na manhã seguinte e que era seguro voltar e dar as notícias. E eu
pensei, graças a Deus que tudo terminou. Fiz figura de idiota, mas não quero
saber. — Levou um lenço aos olhos. — Não consigo explicar porque não
acredito em antever o futuro ou em premonições, mas soube, no mesmo
instante em que Leo me disse que queria casar com Meg, que eles iam
morrer. Foi como se me atirassem água fria. — Olhou desesperada para Alan.
— Por isso juntei dois mais dois e inventei o Adam e, se não o tivesse feito,
talvez..., talvez ainda estivessem vivos.
— Não — disse ele. — Não teria feito diferença. Pelo menos, Adam era
um panorama suficientemente assustador, para os obrigar a ouvi—la. De
outra forma teriam morrido uma semana antes.
Ela estendeu a carta de Simon.
— Mas eu obriguei—os a guardar segredo — disse ela — e foi por isso
que morreram. Foi o segredo que o obrigou a fazê—lo.
— Não — disse Alan que tinha lido a carta antes dos dois polícias a
levarem ao quarto de Jinx. — Ele era um homem muito perturbado, Jinx. Foi
a doença, que o levou a fazê—lo, e nada que você tivesse feito o teria
impedido.
— O doutor tem razão, menina Kingsley — disse o superintendente
Cheever. — A única pessoa que poderia ter adivinhado que Simon
assassinara Russell era a Meg. Ela estava mais perto dele do que qualquer
outra pessoa, para ser completamente honesto. Se nunca se tinha lembrado de
ter medo dele, então também não vejo razão para pensar nisso. — Fez uma
pausa. — Ela alguma vez mostrou medo dele?
— Não da maneira como está a pensar. Ela temia por ele desde que a
conheci. Se o Simon fosse mais parecido comigo, dizia sempre, estaria bem.
Ela preocupava—se por ele se estar a tornar um solitário. Parecia nunca ter
amigos. Lembro—me de ela me ter dito um dia, «ele só finge ser um padre,
mais nada».
— Ela não pensou que ele pudesse estar doente? A sua expressão tornou
se sombria.
— Ela perguntou—me uma vez se eu reparara em alguma coisa de
estranho nele e eu disse: «Que tipo de coisa?» «Eu acho que ele finge» disse
ela. «Tenho a certeza de que ele odeia os nossos pais, especialmente a mãe,
mas nunca diz nada de indelicado sobre ela ou mesmo a ela. Eu sou
exactamente o oposto. Sou sempre rude com ela, porque ela é incompatível
com a posição em que está, e não faz nada contra isso, mas na verdade gosto
bastante da velhota rabugenta e, está bem, o pai é um velho hipócrita, mas eu
não quero que ele seja diferente.» — Cerrou os lábios para tentar conter as
lágrimas. — Ela queria saber se alguma vez eu tivera a impressão de que
Simon os odiava, mas como nunca reparei, ela não pensou mais no assunto.
Sei que sempre achou que ele era muito pouco comunicativo, mas acho que
atribuía isso ao fanatismo religioso. Tenho a certeza de que nunca lhe passou
pela cabeça que ele tivesse alguma coisa a ver com a morte do Russell. —
Entrelaçou os dedos nervosamente. — Bem, nunca ocorreu a ninguém.
— Explicou tudo de forma muito clara, obrigado. Vamos continuar. Fale
—nos sobre o domingo à tarde e o incidente na sua garagem. O que foi
aquilo? Presumo que a referência, que ele faz na carta aos pássaros que
voaram, e a frase «era um segredo mas o Simon obrigou a Jinx a contar»
tinha alguma coisa a ver?
As mãos dela começaram novamente a tremer tão violentamente que ela
as apertou no colo com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.
— É o que ele diz. Eu disse—lhe onde eles estavam. Ele sabia que eles
tinham deixado Hammersmith, porque a Meg não atendia o telefone.
— Fixou Cheever desesperada. — Foi... ele pensou que eles tinham ido
para França... mas obrigou—me... eu era a única que sabia. — Com um
esforço conseguiu controlar—se. — Depois do almoço veio desculpar—se
pelo que a Meg tinha feito — conseguiu articular. — Ele disse que durante as
missas, naquela manhã, tinha rezado por mim mas que se apercebera de que
orações não eram o suficiente e que precisava de vir confortar—me
pessoalmente. Eu ri—me — a voz dela embargou—se novamente — e disse
que não havia nada a lamentar. Disse que se alguém precisava de compaixão
era a Meg dentro de alguns meses, quando descobrisse que se tinha ligado a
um filho da mãe ignóbil e egoísta. — Engoliu com dificuldade. — Não devia
ter rido. Acho que ele adivinhou que eu já sabia há algum tempo. Ficou tão
zangado... só falava de segredos... chamou puta à Meg... — A voz dela
tornou—se mais fraca até ficar silenciosa durante muito tempo.
— E depois o que fez ele? — perguntou Frank com brandura. Ela
abanou a cabeça.
— Acho que será mais fácil se eu lhe contar — disse Alan. — Quando
ontem recebemos as notícias de que Simon tinha morrido, a Jinx contou—me
o máximo de que se lembrava. — Sentou—se de cócoras e colocou uma mão
quente e protectora na nuca dela. — Gostaria que fosse eu a contar, Jinx?
Ela olhou para a cara dele durante um momento e depois desviou o
olhar. Porque é que não conseguia ele ver o que lhe estava a fazer? Ela estava
demasiado perturbada emocionalmente, para conseguir sobreviver a um Alan
Protheroe sem ficar prejudicada. Ela gostaria que ele retirasse a mão e que
fosse para o outro lado do quarto. O, meu Deus, gostaria...
— Se lho permitirem — disse ela rispidamente. O superintendente
anuiu.
— Não tenho objecções a fazer, doutor. Alan endireitou—se.
— Então acho que é importante que perceba como é aterrorizador ser
confrontado com uma pessoa que se conhece há anos como uma pessoa
pouco importante e com maneiras suaves e que, de repente, se torna
perigosamente psicótica. Foi essa a experiência de Jinx naquela tarde de
domingo. É difícil dizer qual seria o diagnóstico de Simon, se alguma vez
tivesse sido examinado, mas parece claro estar a sofrer de um distúrbio
paranóico extremo, provavelmente de origem sexual, ou centrado na mãe ou
na irmã, ou em ambas. Acho que o ódio, que sentia por Deus, pode muito
bem ter sido um ódio mais generalizado por qualquer figura masculina
dominante, porque parece que ele via o acto sexual como uma actividade
degenerada. Só as putas gostavam, por isso, se um homem sentisse prazer
teria que usar putas ou então tornar mulheres respeitáveis numas miseráveis.
— Olhou inquiridoramente para o superintendente. — O que pode ter sido
uma ideia, que a mãe lhe incutiu. Se ela o persuadiu de que as mulheres
honestas achavam o sexo nojento, então ele teria uma atitude muito
ambivalente em relação a isso quando fosse mais velho, especialmente se a
sua irmã adorada fizesse alarde da sua libido, enquanto ele controlava a sua,
escolhendo voluntariamente o celibato dentro da Igreja Anglicana.
— A mãe dele tem problemas nessa área, mas duvido que o seu
objectivo fosse destruir o filho deliberadamente.
— Tenho a certeza de que não o fez e tenho a certeza de que houve
outros factores envolvidos. Por exemplo, ele odiava que se rissem dele. Isso
parece ter provocado a sua paranóia. Pode ter sido uma das razões por que
resolveu entrar para a igreja, pois era mais provável que o levassem mais a
sério lá dentro do que cá fora. Outra causa bastante clara foi o segredo. Desde
que soubesse o que se estava a passar, ou achasse que sabia, conseguia
controlar a sua paranóia, mas no minuto em que descobrisse que tinha boas
razões para ficar paranóico, então o controlo abandonava—o. É interessante
ver como ele registava tudo. A Jinx diz que ele costumava telefonar—lhe a
ela ou ao Josh regularmente e eu suspeito que ele continuou a fazê—lo depois
de a Meg e o Leo terem morrido. Ele telefonou—me a mim, para tentar
descobrir as informações que eu tinha. — Esfregou o ombro pensativo. —
Um dos factores complicados de uma perturbação paranóica — continuou ele
— é que enquanto pode danificar o funcionamento das pessoas a certos
níveis, particularmente no que diz respeito a relacionamentos, o seu
pensamento continua claro e ordenado, e consegue—se funcionar
normalmente no trabalho e no ambiente social mais alargado. Foi por isso
que lhe disse que era importante reconhecer o que a Jinx teve de enfrentar, de
repente, naquele domingo e era igualmente importante que ela o reconheça
também. — Ele olhou para a cabeça dela inclinada — Ela tem estado
aterrorizada com o Simon, desde que começou a lembrar—se do que
aconteceu, mas acho que ela sente que não fez o suficiente para proteger a
Meg e o Leo. Não é verdade, Jinx?
Ela não respondeu e Fraser, pelo seu lado, considerou que ele estava a
ser surpreendentemente insensível.
— Ela entrou na cozinha para fazer café e acha que o Simon lhe deve ter
batido na cabeça, enquanto o fazia, mas não se lembra da pancada. Do que se
lembra é de acordar no chão com as mãos atadas aos pés atrás das costas.
Depois o Simon enfiou—lhe um saco de plástico pela cabeça e ameaçou—a
de que a sufocaria, se ela não lhe dissesse onde estavam a Meg e o Leo. Ela
não conseguia respirar e acreditou nele. Por isso, quando ele retirou o saco da
sua cabeça, ela disse—lhe a morada de Chelsea. A próxima coisa de que se
lembra é de ser tirada do seu carro por um vizinho. Não sabia quanto tempo
lá tinha estado, quanto tempo demorou a clarificar as ideias ou a encontrar o
número da casa de Leo em Chelsea, mas quando telefonou para dizer à Meg
que Simon acabara de tentar matá—la, Simon já lá estava. Está tudo certo até
aqui, Jinx?
Silêncio.
— Foi—lhe dada uma escolha simples — continuou Alan. — Simon
disse: o Leo está na mesma posição, em que tu estavas. Por outras palavras,
morrerá asfixiado em dois minutos. A Meg está amarrada, mas pode falar ao
telefone, se eu lhe segurar o auscultador perto da boca. Se fizeres o que eu te
disser, eles viverão. Se não, morrerão. — Passou as pontas dos dedos pela
nuca dela. — Ela escolheu ajudá—los a viver. Agarrou—se, como todos nós
o teríamos feito, ao Simon que conhecia melhor. O vigário, o irmão que
adorava a irmã, o homem a quem tinha dado o seu porta—chaves caro para
lhe trazer sorte. Foi a tragédia dela e da Meg só saberem e só terem aprendido
a confiar no falso eu do Simon, enquanto o seu verdadeiro eu, o seu eu
perturbado permanecia escondido. Todos nós protegemos partes de nós, Deus
sabe que é normal, mas para a maior parte de nós, o eu escondido não é
perigoso.
Jinx limpou as lágrimas.
— Eu devia ter contado ao coronel Clancey. Ele sempre foi o meu
melhor amigo. — Engoliu a sua angústia com um suspiro. — Sei que
algumas pessoas o acham excêntrico e estúpido e que fazem troça dele nas
suas costas, mas ele saberia como lidar com o assunto. — A boca dela mexia
—se enquanto procurava as palavras. — Eu fiz tudo mal. Disse aos Clancey
que estava tudo bem e não estava. Pensei que se fizesse o que Simon dizia...
porque costumávamos brincar com isso como se fosse um jogo: Simon diz.
Mas era apenas arrogância da minha parte ... acho que sabia o que devia
fazer.
Fraser olhou para Protheroe a pedir—lhe autorização de que não
necessitava.
— Não é arrogância acreditar numa ameaça, menina Kingsley,
especialmente se sabia do que Simon era capaz. Admito que não sou um
perito, mas parece—me que agiu por amor, e diria que é louvável da sua
parte.
Alan acenou com a cabeça.
— Ele disse que não havia muito trânsito, por ser domingo, e que ela
tinha vinte minutos para ir de carro até casa do Leo, em Chelsea. Se não
chegasse em vinte minutos, ele saberia que ela tinha falado para a polícia e
mataria a Meg e o Leo. Depois voltou a dar o telefone a Meg.
— E a Meg pediu—lhe para fazer o que ele tinha dito? Jinx acenou com
a cabeça.
— O que aconteceu quando chegou a casa deles?
Alan falou por ela novamente, quando ela não respondeu.
— Através de uma porta aberta viu o Leo por uns instantes. Ele estava
deitado no chão e, pela maneira como ela o descreveu, teria provavelmente
morrido asfixiado antes de ela chegar, por isso o que lhe foi feito a seguir foi
para disfarçar esse facto. Pelo menos deu a Meg a hipótese de viver,
chegando na altura em que chegou. Simon prometeu que não lhes faria mal,
porque nunca matava mulheres. Só queria conversar. Sentou—se ao lado
delas encostado à parede, atou—lhes as mãos e os pés, e falou durante horas.
Falou tanto que Jinx achou que ele estava mais calmo.
— E? — perguntou Frank Cheever, quando nenhum deles continuou.
— A Meg ofereceu—se para fazer amor com ele — disse Alan
quebrando o silêncio. — Ela achava que era isso que ele queria.
Provavelmente era, mas não queria que lhe lembrassem isso. — Abanou a
cabeça. — Para ser honesto, acho que não interessava nada do que Meg
dissesse. Qualquer que fosse o papel que ela escolhesse, irmã, mãe, amante,
amiga, ele ter—se—ia zangado tremendamente. — Olhou para as mãos de
Jinx que se agitavam. — Mas não há nada que Jinx lhes possa dizer sobre o
que aconteceu a Meg e a Leo depois disso — continuou ele. — Simon ficou
louco nessa altura. Agarrou a Jinx pelos tornozelos para a afastar da Meg,
depois enfiou—lhe um saco de plástico pela cabeça e atou—o atrás. Ela só se
lembra de ouvir Meg a gritar e a bater com os saltos no chão, antes de ficar
inconsciente.
Fez—se outro silêncio.
— Pode dizer—nos o que lhe aconteceu a si, menina Kingsley? —
perguntou Frank. — Ou prefere que seja o doutor Protheroe?
Os seus olhos enormes examinaram a cara dele, procurando
compreensão.
— Na realidade, não me lembro de muita coisa — disse ela vacilante,
excepto que acordei a dada altura. Havia um buraco no saco, no sítio onde
estava a minha boca e, como as minhas mãos estavam por baixo do meu
queixo, consegui tornar o buraco maior. Mas foi tudo o que pude fazer. Eu
estava enfiada numa espécie de caixa e, de cada vez que me tentava mexer,
doía tanto que desisti. — Mordeu os lábios. — Achei que ele me ia enterrar
viva e eu só queria morrer. — Fez uma pausa, perdida num inferno. —
Depois o motor começou a trabalhar e então soube que estava na mala do
meu carro. E o mais engraçado é que me senti melhor ao saber isso. Não
parecia tão assustador. — Deu uma pequena risada estranha. — Mas ele
estava tão zangado — disse ela. — Dava—me continuamente pontapés e
dizia: levanta—te, levanta—te. Não percebia por que razão eu não estava
morta: «Devias estar morta. Devias ter morrido na tua garagem e devias ter
morrido na mala do teu carro. Porque é que Deus gosta de ti?
— Onde foi isso?
Ela olhou para ele sem expressão.
— Não sei. Algures no exterior. Acordei e estava deitada no chão, mas
não conseguia mexer—me, porque estava muito hirta. Havia um saco do lixo
preto à minha volta, que cheirava mal, porque eu — olhou de relance para
Alan — acho que devo ter estado lá dentro durante horas.
— Então sabe que horas eram?
— Não, mas estava a escurecer.
— Lembra—se dele lhe ter dado alguma coisa a beber?
— Acho que sim. Ele falou de sacrifícios — disse ela um pouco
confusa, e em Jesus.
— Foi quando, provavelmente, bebeu o vinho, embora devesse estar
muito desidratada, se já lá estava há horas. Duvido que tenha bebido tanto
como indicaram as análises ao seu sangue. O que aconteceu a seguir?
Ela olhou para baixo, para a carta que deixara ficar no colo.
— Não me lembro de mais nada. — Amarfanhou a fotocópia numa bola
apertada. — Não me lembro de mais nada — disse ela elevando a voz
alarmada. — Acho que me lembro de ele me ter posto no lugar do condutor,
mas depois disso não me lembro de mais nada.
— Está bem — disse Frank com um sorriso encorajador. — Acho que
vamos conseguir descobrir o resto. Parece que tem uma vontade muito
grande de viver, menina Kingsley. Invejo—lhe a sua coragem, qualquer que
seja o anjo da guarda que a está a proteger, porque eu não posso acreditar que
aquele casal de namorados tenha chegado por acaso. — Observou—a durante
um momento. — O doutor Protheroe diz—me que Simon a veio visitar no dia
em que ficou novamente consciente. Nessa altura sabia que ele era
responsável?
— Não.
— Quando foi que se lembrou? Ela manteve a cabeça baixa.
— Ontem de manhã — disse ela, quando a mulher—polícia me
perguntou sobre o porta—chaves.
— Antes não?
Ela não disse nada.
— Disse ao seu pai que o Simon tinha assassinado a Meg e o Leo,
menina Kingsley?
Ela levantou a cabeça rapidamente, os olhos enormes de espanto.
— Não, claro que não. Porque haveria de o fazer? Cheever acenou com
a cabeça.
— Aos seus irmãos? A sua madrasta?
— Não.
Alan Protheroe franziu o sobrolho.
— Porque pergunta, Superintendente?
Frank Cheever encolheu levemente os ombros.
— Estou apenas a tentar juntar as peças, doutor. Não queremos que
depois haja rumores sobre as acusações — procurou a palavra — isto é, que
se fale da conveniência do suicídio de Simon Harris. Quase se pode falar da
justiça poética, da forma como ele pôs termo à vida. O nosso problema é que
há apenas esta carta e as manchas de sangue na sotaina, que o ligam aos
assassínios e, como a sotaina foi limpa recentemente, pode não fornecer as
provas de que andamos à procura. Achamos que Simon levou o Leo e a Meg,
no seu próprio carro, para a floresta de Ardingly mas, como ontem ficou
completamente carbonizado, temos muitas dúvidas se poderemos provar
alguma coisa com um exame laboratorial. Também examinámos o seu carro,
menina Kingsley, e tenho que lhe dizer que não há nada que prove que
passou dezoito horas na mala do carro.
— Claro que não — disse Alan. — Não se ele a embrulhasse em
plástico preto, antes de a colocar lá dentro.
— Aceito isso, mas no entanto é um problema. Teria ajudado se tivesse
conseguido identificá—lo como o seu agressor.
Alan acenou com a cabeça em direcção à fotocópia amarrotada nas mãos
de Jinx.
— Mas têm uma confissão por escrito. Isso não conta para nada?
Presumo que tenham verificado que é a letra de Simon?
— Certamente que sim, mas o original está a ser examinado, neste
momento, para detectar manchas de sangue e mucosidade. Achamos que
Simon estava a sangrar do nariz quando o escreveu. E isso significa que pode
ter sido forçado a fazê—lo.
— Por quem?
— Não sabemos, por isso é que estamos interessados em descobrir
quando é que a menina Kingsley começou a lembrar—se e se contou a
alguém. — Olhou para Jinx. — Seria muito desagradável se começasse a
haver dúvidas sobre a responsabilidade de Simon.
Alan esfregou o queixo, os dedos raspando a barba curta e espessa.
— Está a sugerir que Jinx está a mentir sobre o que aconteceu,
Superintendente? — perguntou ele. — Porque se estiver, então começo a
perceber porque é que ela tem uma opinião tão má sobre os polícias
britânicos. Bolas, homem, imagine se o filho da mãe do assassino ainda
estivesse vivo e se ela tentasse dizer—lhes que ele era culpado. Não teria
qualquer hipótese. Ainda estaria aí sentado, todo satisfeito, falando—nos
desta parvoíce de falta de provas. Bem, graças a Deus que ela não se lembrou
antes, é tudo o que eu posso dizer, porque estaria a assinar a sua própria
sentença de morte ao dizer o nome dele. Ele era obviamente um psicopata
com ilusões paranóicas, mas foi suficientemente esperto para o convencer da
sua inocência, enquanto matava a mulher que ele considerava responsável
pelos seus vícios assassinos.
Cheever encolheu os ombros.
— O senhor resumiu bastante bem o nosso dilema. Pessoalmente, não
tenho dúvidas de que a menina Kingsley está a dizer a verdade. Também
espero que encontremos outras prostitutas em Londres, que identificarão
Simon Harris como o cliente que as agrediu que, por sua vez, apontará para
um padrão de comportamento de um serial killcr. No entanto, a curto prazo,
temos um suicídio bastante oportuno nas nossas mãos, que em vista da
esperteza incontestável de Simon Harris, à qual o senhor se referiu, e da sua
determinação anterior de atirar a culpa para cima da menina Harris, levanta
demasiadas dúvidas para que fiquemos sossegados. Tenho a certeza de que a
menina Kingsley não quer que esta história continue eternamente e nós
também não — dirigiu a sua atenção para Jinx e fixaram—se mutuamente —
por isso, qualquer coisa que ela nos possa dizer agora, que possa resultar no
veredicto de suicídio inequívoco do juiz, seria auspicioso. Jinx acenou com a
cabeça.
— Eu compreendo — disse, olhando para o bloco de apontamentos
aberto no colo de Fraser. Pensou durante um momento. — Eu não me
lembrava de nada, até a mulher—polícia me fazer perguntas sobre o porta—
chaves, depois recordei tudo de repente e senti—me muito mal, como ela
poderá testemunhar. Disseram—me que Simon já estava morto há algumas
horas, antes de eu lhe dar o seu nome. Como eu não me lembrava de quem
tentara matar—me, não podia dizer a ninguém quem era. O doutor Protheroe,
em quem eu confio implicitamente, e a quem eu teria dito se me conseguisse
lembrar, testemunhará que eu nunca lhe disse ou sugeri um nome. Se eu me
conseguisse lembrar, é claro que teria contado à polícia de Hampshire. Desde
o início da investigação esclareceram—me que, embora eu fosse suspeita,
não deixariam que a especulação dos meios de informação toldasse a sua
opinião. Daí resulta que sempre confiei no superintendente Cheever e na sua
equipa, dando—lhes todo o tempo e ajuda que pude.
Olhou inquiridoramente para Frank, viu como ele erguia levemente as
sobrancelhas de forma encorajadora e continuou.
— Acho que o Simon, através dos telefonemas para os meus amigos, o
meu médico e as minhas relações, soube que a polícia do Hampshire se
recusara a aceitar qualquer coisa pelas aparências, e percebeu que seria preso
no minuto em que eu recuperasse a minha memória. Conheço—o há muito
tempo e sabia que ele gostava muito dos pais. É minha convicção que teria
feito tudo para evitar que a mãe e o pai passassem pelo trauma do seu
julgamento e estou triste, mas não supreendida, por ele se ter suicidado.
— Duvido que quisesse também que os seus colegas ou paroquianos
fossem sujeitos a esse tipo de trauma, e a menina? — incitou—a Cheever.
— Eu sabia que ele era um clérigo muito dedicado — continuou ela
obedientemente —, que deve ter ficado horrorizado, ao ficar lúcido, por
perceber que o fardo da sua culpa iria recair sobre pessoas que ele amava. Era
um homem doente, mas não era mau.
Cheever estendeu—lhe a mão quando se levantou.
— Não é muito adequado dizer isto, menina Kingsley, mas gostei de
falar consigo. Só tenho pena que nos tenhamos conhecido nestas
circunstâncias tão trágicas. Pode ser que lhe peçam para aparecer no
inquérito, mas se aí testemunhar tão claramente como o fez connosco, não
deve haver problema. A minha experiência diz—me que a generosidade é
favorável. O suicidio é sempre mais fácil de aceitar, se houver uma boa razão
para isso.
— Eu sei — disse ela, apertando a mão dele. — Se o Simon tivesse feito
com que o meu desastre de carro parecesse um acidente, então estaria um
pouco mais preocupada. Está a ver, eu poderia sempre aceitar que talvez
tivesse morto a Meg e o Leo. Realmente, comportaram—se indignamente.
Mas não conseguia aceitar que tinha tentado suicidar—me.
Os olhos dele brilharam.
— Então não estava assim tão indiferente, como nos levou a querer?
— Tenho o meu orgulho, Superintendente. — De repente sorriu. — Ao
fim e ao cabo sou filha de Adam Kingsley.
Fraser virou o carro para a rua principal.
— Então qual é o veredicto? — perguntou ele. — Ainda acha que ela
conseguiu que o pai matasse o Harris?
— Acho — disse o superintendente suavemente. — Ela tinha medo que
fosse a sua palavra contra a de Simon, achava que nós não íamos acreditar
nela, por isso pediu ao pai para arranjar uma solução.
— Bem, eu não tenho tanta certeza. Ela parece—me ser muito honesta.
— Mas, como ela própria disse, Sean, ela é filha de Adam Kingsley.
— Desculpe, mas não vejo que diferença isso possa fazer.
— Mas veria, se alguma vez tivesse conhecido o tipo. — Frank olhou
pela janela para a paisagem iluminada pelo sol.
— São eficazes. Fazem coisas.
— Não foram muito eficazes, quando o Landy foi assassinado.
— As pessoas raramente o são, quando existe um mal—entendido entre
elas.
— Porquê?
— Suspeito de que ele ficou convencido de que ela matou o Russell, e
ela estava convencida de que tinha sido ele. Se ambos souberam do caso
amoroso com Meg mais tarde, ambos sabiam que havia um motivo para que
o outro cometesse o assassínio. Divididos cairiam, juntos vencem.
— No entanto, parece estranho que a menina Kingsley não tenha
contado à polícia. Achei que ela gostaria de ver o assassíno do marido
castigado e temos que concordar que ela não gosta assim tanto do pai como
isso.
— Acha?
— Certamente que não se esforça muito para exprimir o seu afecto por
ele.
Cheever sorriu mas guardou os seus pensamentos para si.
— Então vai acusar Adam Kingsley do assassínio de Simon?
O superintendente fechou os olhos e deixou que o sol aquecesse a sua
cara.
— Acho que não o ouvi bem, Sargento. Disse alguma coisa sobre um
assassínio?
— Não é isso que acha... — Fraser calou—se.
— Sim?
— Nada.

Clínica Nightingale, Salisbúria — 12.45 h

Matthew Cornell estava refastelado num dos bancos do jardim da clínica


e, quando abriu os olhos, viu a figura ameaçadora de Alan Protheroe à sua
frente.
— Olá, doutor.
Colocou uma mão à frente dos olhos para tapar o sol, depois tirou as
pernas do banco e sentou—se, acendendo um cigarro.
Alan sentou—se na extremidade livre do banco.
— A polícia inventou uma teoria bizarra sobre o suicídio de Harris
— disse ele em tom de conversa. — Acham que a Jinx pode ter dado o
nome dele ao pai, para que ele o matasse de vez. — Olhou para o lado.
— No entanto, ela está convencida— de que não se lembrava de nada
até ontem de manhã, o que significa que nem ela, nem nenhum dos seus
amigos, poderiam ter passado a informação a Adam Kingsley.
Matthew olhava em frente.
— Porque me está a contar isso a mim?
— Porque sei que está sempre a par dos factos. O jovem virou—se para
ele e riu—se.
— Além disso, como existencialista, quer ter a certeza que eu continuo a
agir de boa—fé. Não é verdade?
— Não o poderia ter formulado melhor, Matthew.
— Bem, eu penso que boa—fé tem a ver com a justiça. — Matthew
fazia girar o cigarro entre os dedos. — Alguma vez pensou no que as vítimas
de um assassínio exigiriam, se as suas vozes não tivessem sido silenciadas?
Pelo menos pediriam para serem ouvidas tanto como os seus assassinos, não
acha?
— Há uma diferença entre a justiça e a vingança, Matthew.
— Ai há? A única diferença, que eu vejo, é que a justiça é muito cara.
Se não fosse, o meu pai não poderia manter—me aqui.
Meia hora mais tarde Alan estava com Jinx à janela e observou um
homem alto e bem constituído, num fato imaculado, sair do banco de trás de
um Rolls—Royce.
— O seu pai?
— Sim.
— Nunca explicou porque lhe chama Adam.
— Porquê? Acha que existe uma explicação? Ele sorriu.
— Pela sua expressão de cada vez que falamos no assunto. Ela observou
a figura alta a entrar dentro do edifício.
— Eu queria puni—lo, por isso fiz o que Deus fez, e amaldiçoei o Adam
por permitir que a sua mulher o seduzisse. — Virou—se para Alan. — Eu
tinha sete anos. Desde essa altura que lhe chamo Adam.
— Tinha ciúmes da Betty?
— Claro. Não queria partilhar o meu pai com ninguém. Adorava—o.
Alan acenou com a cabeça.
— Apesar de tudo, acho que ainda o adora.
— Não — disse ela. — Isso já passou. Mas admiro—o. Sempre o
admirei. Ele tem êxito, enquanto nós nos limitamos a sobreviver.
— Bem, espero que reconheça que ele está a dar o primeiro passo
— disse Alan com naturalidade. — Vai ser generosa com ele?
— Se não for, ele não paga a clínica. — Sorriu levemente ao ver a
expressão dele. — Não seja sentimental comigo, doutor Protheroe. A única
coisa de que pode ter a certeza é que o meu pai nunca mudará. Ele processá—
lo—ia, se pensasse que você me tinha envenenado o espírito contra ele.
— Então agora o que vai acontecer?
— Vou—me embora. Já não sou sua paciente. Acho que vamos dizer
adeus.
— Para onde vai?
— Para Richmond.
— O seu pai sabe que Miles e Fergus lá estão?
— Não, a não ser que eles lhe tenham dito.
— Se precisarem de um bom advogado, não se esqueça do pai de
Matthew. Disseram—me que ele era um dos melhores.
Jinx sorriu e bateu no bolso.
— Matthew deu—me o cartão dele. Acho que vou usar o que ganhei
com as acções da Franchise Holdings para pagar os seus honorários. Matthew
diz que vão ser exorbitantes. — Encolheu os ombros.
— Então, com sorte e um pouco de chantagem emocional, talvez possa
convencer o Adam a aceitar de novo a Betty e os rapazes, quando tudo tiver
passado.
— Não acha que seria melhor deixar o Miles e o Fergus travarem esta
batalha sozinhos?
— Provavelmente.
— Então porque não o faz?
— Porque são meus irmãos — disse ela — e a mãe deles é a única que
eu alguma vez conheci. Vale a pena tentar outra vez, não acha?
— Depende se acredita no triunfo da esperança sobre a experiência.
— Acredito. Olhe para mim. Olhe para Matthew. Ele acenou com a
cabeça.
— O Matthew gosta muito de si, Jinx.
— Sim. — Ela ouviu passos no corredor. — Mas só porque eu tenho os
mesmos olhos escuros, como a raposa dele que morreu. Ele quer ser
veterinário, quando sair daqui. Já lhe disse isso? Alan abanou a cabeça.
— Ele não resiste, quando vê animais feridos. Quanto às pessoas
consegue pegar nelas ou largá—las.
— Então não é muito diferente de si.
Ela estremeceu, quando ouviu os passos de Adam no topo das escadas.
— De uma maneira geral — disse ela rapidamente — não estou assim
tão preparada para as deixar como costumava estar. Talvez a minha
capacidade de julgar esteja a melhorar.
— Isso é bom. — Sorriu—lhe. — Então a Clínica Nightingale
conseguiu fazer alguma coisa.
— Mas eu não acho que fosse a clínica. — Atravessou o quarto em
direcção à porta e virou—se de costas para ela. — Nem sempre pareço
qualquer coisa que o cão tenha vomitado, sabe. Ficaria admirado com o que
um pouco de cabelo pode fazer por mim. — Hesitou. — Eu... bem... suponho
que não gostaria de me ver daqui a um mês ou dois, quando estiver mais
apresentável?
Ele abanou a cabeça.
— Acho que não.
Ela corou envergonhada.
— Foi apenas uma ideia, doutor Protheroe. Bastante estúpida, desculpe.
Ouviu—se bater à porta.
— Jane, estás aí? É o teu pai. Alan baixou a voz.
— O meu nome é Alan, Jinx, e quem é que precisa de cabelo? Eu só
fantasio sobre mulheres carecas.
Outra pancada na porta.
— Jane? É o teu pai.
Os olhos dela brilhavam.
— Estarei consigo dentro de dez minutos, Adam — gritou ela. — Há
uma coisa que tenho que fazer primeiro. Pode esperar por mim no foyer?
— Porque não posso esperar aí?
O administrador da clínica ergueu uma sobrancelha.
— Dentro de dois meses estarei com uma psicose — murmurou ele.
— Não faz bem a um homem guardar os seus sentimentos assim. Estou
a sofrer bastante.
Jinx tremia de riso, enquanto fechava a porta à chave lentamente.
— São coisas de mulheres, Adam — gritou—lhe ela numa voz
hesitante. — Só ficaria embaraçado.
— Ah, estou a perceber. Bem, não há pressa — disse o pai asperamente
— Passei pelo escritório do doutor Protheroe quando entrei. Dar—lhe—ei
uma palavra enquanto espero.
— Então faça isso — disse ela, limpando as lágrimas dos olhos.
— Vai gostar dele, Adam. É o seu tipo de homem. Honesto e maior que
a vida.

FIM
Table of Contents
A CÂMARA ESCURA
PRÓLOGO
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
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22
EPÍLOGO
FIM

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