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Ficha

[Capa original (baixa resolução)]

Ilustração da capa: Toulouse-Lautrec, Femme qui tire son bas, 1894,


guache s/ cartão, 61,5 x 44,5 cm
Solo feminino Amor e desacerto
EDITORA RECORD RIO DE JANEIRO — SAO PAULO
2002
Cip-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
G211s
Garcia-Roza, Livia
Solo feminino: amor e desacerto
Livia Garcia-Roza. — Rio de Janeiro: Record, 2002 — (Amores
extremos)
ISBN 85-01-06380-0 1. Novela brasileira. 1. Titulo. Ii. Série.
CDD 869.93 02-0925 CDU 869.0(81)-3
Copyright (c) 2002 by Livia Garcia-Roza
Projeto editorial: Veio Libri
Projeto gráfico: Regina Ferraz
Direitos exclusivos desta edição reservados pela DISTRIBUIDORA
RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.
Rua Argentina 171 — Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 — Tel.:
2585-2000 Impresso no Brasil ISBN 85-01-06380-0 PEDIDOS PELO
REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ — 20922-
970
A Autora

Livia Garcia-Roza nasceu no Flamengo, Rio de Janeiro. Passou a


infância e adolescência em Icaraí (Niterói), retornando ao Rio onde vive até
hoje. É psicanalista, formada em Psicologia com pós-graduação em
Psicologia Clínica, pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Fez formação psicanalítica no Instituto de Medicina Psicológica, atual
Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID).
É mulher de Luiz Alfredo Garcia-Roza, psicanalista e escritor de não
ficção que se lançou ao romance policial aos 60 anos, com O silêncio da
chuva (1996), o primeiro da série sobre o delegado Espinosa.
E Livia estreara na ficção um ano antes, em 1995, com o romance
Quarto de menina (selo Altamente Recomendável concedido pela Fundação
Nacional do Livro Infantil Juvenil — FNLIJ). É autora de Meus queridos
estranhos (1997), Cartão-postal (1999) e Cine Odeon, de 2001 (os dois
últimos finalistas do Jabuti). Organizou a coletânea de contos Ficções
fraternas (2003).
1
Estava em lágrimas, montada na pia do banheiro, arrancando as
sobrancelhas no espelho, quando o telefone tocou e uma mulher, dizendo-se
amiga de uma amiga, queria falar com Cilda. Falei que era eu mesma (tenho
voz de trombone, desde criança). Ela então contou que tinha perdido o
marido e gostaria de entrar em contato com todas as pessoas que o
conheceram, e eu era uma delas, se poderíamos nos encontrar...
— A pia vai rachar!! Não há uma vez que eu esteja no telefone que
mamãe não venha passear os ouvidos por perto. Como se escutasse alguma
coisa...
Concordei em ver a mulher. Certamente teve a ver com a aparição de
mamãe.
No dia seguinte, à noite, escovei os cabelos com as pontas dos
dedos, cansa à beça porque estão enormes, mas não quero cortar, fiz
promessa para José Júlio casar comigo. Fiz tanta coisa com essa intenção...,
pus meu nome sobre o dele em encruzilhadas, pendurei em árvores pelas
estradas, fora as cachoeiras nas quais fiz oferendas, e o uso de objetos
pessoais. Até agora, nada.
Pronta, finalmente, para o encontro, me enderecei ao local
combinado, tendo dito que estaria com uma fita vermelha no cabelo. Amo o
vermelho, é a cor que mais combina comigo.
Marcamos num bar Durante o caminho, me bateu um medo. Me vi
rindo diante da mulher Quando fico nervosa rio, não consigo me controlar,
e a pressão cai, as vezes apago. Sou assim desde que nasci.
Mamãe diz que são manifestações de outro plano. Tudo para ela vem
do além. Volto depois ao assunto, senão me perco, a coisa mais fácil do
mundo.
No restaurante, depois de se encharcar de suco de laranja, a mulher
perguntou se eu havia transado com seu marido! Hein!? Pensando bem, eu
não podia dizer nada porque me arrebento de ciúmes de José Júlio. A
mulher fazia pergunta atrás de pergunta enquanto eu entornava chopes
(adoro chope acompanhado de azeitonas mistas) e ela sofria a seco. Bem
capaz também que isso me aconteça. Assim somos todas: sofremos
desbragadamente, enquanto eles mentem cinicamente. Crápulas.
Voltei para casa furando todos os sinais, tentando não ser assaltada.
Um caos as ruas, desviei de um buraco e quase caio num canteiro de
obras... Quando embiquei em direção à garagem, o carro deu um solavanco,
trepidou, não sei que diabo colocaram na calçada... Pós-tranco, consegui
subir a rampa, tenho certeza de que um dia vou rebentar uma parede desse
edifício. Todas as noites acho um milagre a operação. A síndica mandou
fazer essa entrada estreita para que ninguém beba, dizem que ela não toma
nada, expulsou de casa o general, seu marido, depois de uma limonada.
Mais uma vez guardei o carro sem fazer nenhum estrago no prédio.
Saltei e quase tropecei no Waldecir, que abria a porta para mim. Ele
e seu perfume gardênia de conquistar domésticas. A mulher desconfia e de
vez em quando aparece.
Nesses dias, é praticamente certo ouvirmos gritos esganiçados
vindos do quartinho nos fundos da garagem. Nós, mulheres, vivemos assim,
é uma desgraça; falo por mim, que trago José Júlio engasgado no meio dos
peitos, da garganta, dos dentes. Não sei como ainda não o mordi. Pensava
nessas coisas enquanto me estabacava de costas contra a parede do
elevador. Por falar nisso, o síndico anterior, antes da mulher das cavernas,
não gostou do elevador com vidro biseauté e, depois de uma reunião de
condôminos, mandou destruí-lo, revestindo-o de fórmica. Para facilitar a
limpeza, alegou. Depois dele, entrou a generala, e aqui está até hoje, os
porteiros se borram de medo dela. Parece que um dia sopapou os três,
dizem. Mas eu estava falando que havia grudado as costas na fórmica
porque estive numa fisioterapeuta que mandou que eu me cole nas paredes,
fingindo estar sendo puxada para o alto por um fio de cabelo e mantendo a
cabeça alinhada com o horizonte; assim minha coluna estaria no lugar
Enfim, que eu me concentre para virar lagartixa.
Aguardava a subida dos meus nove andares, pensando no jeito que
tinha dado para piorar da coluna, quando me lembrei que foi no momento
em que o telefone tocou, corri para atender José Júlio, e ele disse que não
podia vir me encontrar José Júlio e sua filha Bianca. Magra, anêmica,
esquálida, a um passo da desnutrição. Vi numa fotografia.
O elevador chegou ao andar, e eu precisei destrancar a porta, porque,
de uns tempos pra cá, tem ladrão por todos os lados desta cidade de Cristo
dependurado nas nuvens. Tentava destrancar a porta, e outra me esperava, a
do apartamento; depois de várias voltas nas chaves, entrei no breu da sala, e
quando procurava o interruptor, mamãe apareceu com suas gengivas moles
e movimentadas, dizendo para ela mesma que eu tinha bebido de novo
enquanto eu cuidava de desembolar os sapatos no tapete da sala. Ela
esperava que eu me desemaranhasse e eu não disse nada, além do mais
porque a cada dia está mais surda, já berrei que precisa consultar um
otorrino, mas mamãe só dá ouvidos ao médico da família, que cuida de
bicho-de-pé a caspa. Acredito que o cavernoso cidadão (consegue ter a voz
pior do que a minha) também tenha perdido a audição, porque diz que ela
não precisa de aparelho, enquanto minha voz atinge escalas épicas de tanto
gritar nesta casa.
Mamãe desapareceu no corredor, dizendo que papai tinha voltado e
que se tornaram frequentes suas visitas noturnas, insistindo para que ela o
acompanhasse. (Tem visões.) É um horror dormir depois de escutar essas
coisas.
Enquanto me despia, pensava no bosta do José Júlio, que mais uma
vez disse que iria se separar, e nada. Aí, entra naquela lenga-lenga melosa
de que a mulher sofre dos nervos, é doente, coitada... Estou fodada a viver
só! Me joguei na cama, não antes de dar uma porrada no porta-retratos com
a fotografia de José Júlio rindo, certamente de mim, e resolvi não pensar em
mais nada, quando ondas espumantes, douradas e geladas me cobriram de
alto a baixo.
Dia seguinte, batidas na porta, mamãe, achando que eu perderia a
hora. Todas as manhãs repete o ritual, apesar de eu já ter dito uma
infinidade de vezes que não bato ponto no Meio do Céu (edifício onde
trabalho). Não adianta. Em seguida, eIa pôs a bandeja na porta de tio
Hildebrando, a quem todos chamam de Lili. Ele padece de uma tristeza
aguda e infinita; nos piores dias, dorme debaixo da cama. Mamãe diz que
foi a partir de quando a mãe morreu, o irmão nunca mais se recobrou, acha
também que o episódio coincidiu com seu declínio como homem, tudo isso
contribuiu para que ele se acabrunhasse. Nina, minha irmã do meio, acha
que foi por causa de uma festa que Lili deu em menino e ninguém
compareceu. Não sei de onde Nina tirou essa história... E Dadá, a mais
velha, não acha nada porque só pensa nela, nos filhos e em seu marido. E
eu, cheguei à conclusão de que meu tio atingiu um tal ponto de
insuportabilidade da família, que mal consegue dar uma espiada.
Apesar das porradas, me levantei calma. Assim inicio os dias de uma
maneira geral, mas à medida que as horas transcorrem, não sei o que
acontece que vou me transformando numa espécie de animação
descontrolada. Enquanto eu destrancava a porta, mamãe sumia no corredor,
trilando, dando bom-dia ao passarinho. O infeliz do canarinho aprisionado
na área. Acordou o bichinho. Eu olhava para o espelho e via minha carranca
de proa, como José Júlio a chama, borrada; não tirei a madrugada da cara,
olhos semiabertos, blush... e brincos!, bem que senti durante a noite uma
coisa me espetar... A água fria, a pasta na boca me fizeram despertar calma,
assim são minhas manhãs, até a energia se manifestar Ela começa a se
apresentar por volta das sete e meia, oito horas; às nove, praticamente já
tomou conta da minha pessoa.
Surgem as primeiras vontades: fumar, beber, dançar... Aos poucos
esse fluxo vai se expandindo, dando lugar a ideias nebulosas, perigosas e
sombrias, todas ligadas a José Júlio. Mas, voltando à manhã, assim sou ao
alvorecer: tranquila, leve, simpática, menos com mamãe. Mas isso é outra
história. Mamãe me alucina. Ela e José Júlio. Não quero falar sobre ela
agora, ainda brilham os primeiros raios da manhã.
Hoje, terça-feira, vou me encontrar com José Júlio; temos dia certo
para trepar Sempre foi assim. O motel também é o mesmo, ele não
consegue variar Acho até que o porteiro nos conhece. Caso não haja
nenhuma ameaça por parte de sua mulher, e se a filha estiver bem de saúde,
vamos nos encontrar. Tudo na minha vida depende de duas pessoas que
jamais vi.
Sabia como iria encontrá-lo: verde, exausto e insone.
Particularmente, acho que ele vai morrer. Invariavelmente depois de
treparmos, José Júlio dorme ao meu lado no motel. Transcorridos alguns
minutos, acorda sobressaltado, dizendo que precisa voltar. Saímos na
disparada, e ele me deixa a quarteirões de casa.
Tomei café assistindo mamãe mergulhar os biscoitos na xícara,
depois baixando o rosto, entortando-o, sugando os pingos, fazendo barulho.
Tem dias que o canarinho na gaiola responde. Estávamos sem empregada,
foi o assunto à mesa; enquanto ela contava como se dera o desfecho com
Raimunda, que é ladra, dizia, eu lia as previsões do dia para ver se não
desabaria nenhum temporal. Caso aconteça alguma coisa à família de José
Júlio, nosso encontro é imediatamente cancelado. Tudo depende do bem-
estar de sua mulher e de sua filha. Se a água invadisse o prédio onde
moram, e ela, mãe, ficasse nervosa e tentasse afogar a menina numa poça,
José Júlio teria que correr espavorido, desatinado, para salvar a filha.
Mamãe continuava a falar da cara feia de Raimunda, que, ao sair, parecia
que ia dar pancada nela, e eu não consegui acompanhar o relato, porque via
José Júlio chegando à portaria de seu prédio, desafogando a garota e
abraçando a mulher, e os três entrando juntos no elevador — A que horas
você vai chegar? Quase respondi que dependia do tempo, cuja previsão,
aliás, consegui ler no jornal: "O dia permanecerá abafado, com sol entre
nuvens e pancadas de chuva no final da tarde:" — Não disse? falei alto.
— Não, ainda não disse.
É assim, eu digo uma coisa, mamãe entende outra, e Vice-versa.
— Não sei respondi. Todos os dias a cercação de horário...
Mamãe franziu a cara e voltou a mergulhar mais um biscoito cream
craker no fundo da xícara, repetindo a operação, chupando-o por baixo para
que não pingasse. Porquerias.
Bati a porta de casa dizendo que iria me demorar. Trepar.
"A família Matilha e Matilha tem o alívio de comunicar o
falecimento de sua desequilibrada Aurora, que, de hoje em diante, não mais
alvorecerá; para os séculos dos séculos permanecerá no breu da lápide.
Dispensam-se flores, cumprimentos e sofrimentos:" Dentro do ônibus que
sacolejava, eu imaginava o anúncio de falecimento da mulher de José Júlio:
Aurora.
A primeira vez que José Júlio me acompanhou ao trabalho,
estávamos na calçada esperando o ônibus (seu carro se encontrava na
oficina), quando olhei para baixo, para os pés, e constatei que faltava uma
florzinha numa das sandálias que usava. Teria caído no trajeto do elevador à
rua? Depois volto ao incidente porque tinha acabado de chegar ao
escritório, e o chefe, seu Evaristo, circulava inspecionando os funcionários.
De repente, girando bruscamente o corpo na minha direção, falou, entre
dentes, que assim que abriu o olho para o mundo gostou de defunto.
Quando adolescente, percorria velórios. Que beleza, dizia, aqueles seres
arrumadinhos, cobertos de flores, circundados de amor e prece. Não acha?,
perguntou. Ri, claro. Depois de minutos em silêncio, me observando, ele
voltou a dizer como se comovia, porque era o momento em que mais
gostava de alguém: morto, plácido, firme, alguns levemente sorridentes.
Uma vez, vira um de óculos: — Que imponência majestática, que entrada
no além! Seu Evaristo parou de falar, porque Susie, sorrindo, sem sutiã,
mamas trepidantes, avisou que daria uma descidinha; se alguém ligasse, já
já estaria de volta. Saiu enrolando o colar nos dedos e atirando um beijinho.
Roddy dizia para o menino que acabara de ser contratado como boy,
e que naquele momento servia um cafezinho, que ele, Roddy, era gay.
Qual o problema? perguntava, enquanto o garoto, estatelado à sua
frente, esperava que ele pegasse a xicrinha.
Esse, o meu local de trabalho.
O telefone tocou e vieram avisar que era para mim: mamãe. Liga
quase todos os dias para o escritório. Diz que não tem com quem conversar.
Às vezes, os fantasmas desaparecem. Ligou para dizer que José Júlio
telefonara logo depois de eu sair. Era para eu ligar para a casa dele. Sinal de
que a família pegaria o temporal na rua. Aquela menina vai morrer, é fraca,
pálida, magra, franzina, azulada. Vi perfeitamente na fotografia. José Júlio
diz que a menina não consegue ficar reta, em pé. Mas eu também não.
Bueno, mami cariño, hay días en que me muero de amores por ti, y otros en
los que deseo esganarte con mis proprias manos y luego llorar a
continuación diciendo: perdón! — Oi, chuchu! Estava me esperando há
muito tempo? disse José Júlio assim que eu entrei no carro, e continuou: —
Cadê meu beijo? esticou o corpo na minha direção.
Eu ainda estava chateada, ele sabia, com o saco cheio de ficar
plantada em casa.
— Precisamos conversar, José Júlio.
— Conversemos tudo, amor, pernas, bocas, braços, membros...
— Para! Ele dirigia, e, soltando uma das mãos do volante, alisou
meu joelho, dizendo que eu era beleza pura, sem mistura. Nesse momento,
o carro passou da entrada do motel, e José Júlio parou de falar; retirou a
mão do meu joelho e desandou a correr sem parar. Ao entrarmos em uma
estrada, perguntei se iríamos viajar; ele, voz diferente, disse que estava
sendo seguido pelos seus padrinhos de casamento. Mandou que eu não
olhasse para trás. Custei a me acalmar quando chegamos de volta ao motel.
Mais tarde, abraçados sob o lençol, eu contava para José Júlio sobre
a paixão de seu Evaristo pelos defuntos: — Cantada, chuchu! — Fúnebre!?
— Existiam de diversas espécies continuou ele. Rimos. E eu tive vontade
de comer a boca de José Júlio, linda, quando ele riu.
José Júlio acha que todos os homens me cantam, e eu tenho certeza
de que todas as mulheres dão em cima dele. Vivemos assim, num desespero
mútuo.
Ao enfiar a chave na porta, ela se abriu pelo lado de dentro. Há de
chegar o dia em que eu consiga entrar na minha própria casa sem que
ninguém me espione pela janela e em seguida corra para abrir a porta.
Mamãe me olhava com sua cara comprida, queixosa, balançando a cabeça,
reclamando da hora.
— Estou me resfriando... disse ela, tapando o nariz com o lenço.
Emudeci, por causa do bafo que iria exalar Depois do motel, José
Júlio e eu emendamos num bar para falarmos sobre nós, aí, tome chope e
confusão. Sem se mover da minha frente, mamãe disse que estava com dor
do lado direito da cabeça, como se fosse uma cometa ou trombeta
rompendo pelos interstícios dos poros. Esperou que eu dissesse alguma
coisa diante do que disse. Em vão. Perguntei se havia ligado para o médico.
Ela continuou imóvel, mandei que fosse tomar uma aspirina e se
deitar.
Tudo aos gritos. Quando acabei de me esgoelar, ela disse: que
tristeza, agora não há noite que chegue sem você cheirar a bebida. Dirigiu-
se lentamente para o corredor, dizendo: que caminho você está escolhendo,
que caminho... Entristecida, la madre.
No dia em que mamãe soube que José Júlio era casado, me entregou
a todos os santos conhecidos e aos parentes que tinham morrido. Aliás, não
sei com que direito ela entrega minha alma... Por isso mesmo me sobra
apenas o corpo, disse, e ela se benzeu. Continuou a cantilena, podia esperar
tudo de mim, menos que sua temporã (temporã) enveredasse pelo mau
caminho. Era uma desonra para ela, que me criara com tanta dedicação e
carinho.
Fui para o quarto. Depois de alguns minutos de luta com o colar, o
fecho emperrou, resolveu não rodar, mas para quem já tinha dormido de
brincos, não custava nada acordar de colar. Enquanto arrancava a roupa,
continuava a ouvir a voz de mamãe — saco! Não para de falar, e eu cansada
de José Júlio e sua maldita família, merda, dei com a canela na ponta da
cadeira, e mamãe não parava de falar, e eu a ponto de gritar, resolvi ir à
cozinha beber água e deixei a garrafa cair no chão, ainda bem que não se
espatifou, e mamãe voltou a dizer "tristeza"; e eu passei por ela dando uma
rabanada, enquanto ela desligava a televisão. Mergulhando na cama,
apaguei; não antes de pôr compressas nos olhos. No dia seguinte, seria
filmada.
2
Acordei com o telefone rebentando de tocar E mamãe, onde estava?
Conversando com os mortos? Não tinha ido me acordar? Quando pus o
aparelho no ouvido, escutei a voz de Nina, minha irmã, chorando do outro
lado da linha, perguntando por mamãe, e dizendo que estava cansada de
sofrer. Saí pelo apartamento sem ter escovado os dentes, desgrenhada,
calcinha e camiseta, descalça, em direção à gaiola do passarinho. Lá,
mamãe não estava, acordando o bichinho. Depois de berros pelo
apartamento, localizei sua voz vinda do banheirinho da empregada. Voltei a
berrar, perguntando o que tinha ido fazer lá. Ela disse que eu podia querer
usar o banheiro, por isso resolvera ir no de Raimunda. Avisei que Nina
estava ao telefone e que aquele banheiro não era de Raimunda porcaria
nenhuma. Assim que acabei de falar, me lembrei da filmagem no escritório,
já havia dormido com compressas nos olhos, não podia me estressar.
Nina, na verdade, se chama Geny. Mamãe tinha posto os nomes de
nós três iniciados pela letra G na esperança de que nascesse um menino, a
quem chamaria de Genival (homenagem ao seu pai). Bordara nos três
enxovais a letra G, e nascemos: Geralda (Dadá), não é por ser minha irmã,
mas é uma pessoa ruim; Geny (Nina), a infeliz ao telefone; e eu, Gilda, de
cuja existência mamãe não se deu conta até o quarto mês de gravidez. Asi
son las cosas de la vida.
Bem, mas hoje não posso me chatear porque vão filmar o Meio do
Céu para sair no jornal da tevê. Parece que houve um rombo lá, e os
repórteres vão entrevistar os funcionários, menos o diretor de contas, que
está foragido. S o que comentam. Ontem, avisei a Nina, Dadá não adianta,
mora na Flórida, e só pensa nela, em sua família, e em furacão, tornado e
terremoto, essas coisas. Avisei também a José Júlio, e mamãe se incumbiu
de espalhar a notícia pelo prédio.
O telefone voltou a tocar. Certamente mamãe está ao lado dele,
surda. Atendi. Era dona Idalina, mora na porta ao lado, não sei por que
telefona. Gritei com mamãe que era para ela; apareceu reclamando que eu
não a deixava em paz; estava no meio de uma prece.
Fui me preparar. Demorei para escolher o que usar, quase todas as
minhas roupas são curtas, leves e transparentes; é o que importa, construir
uma ilusão de nudez, mas nessa manhã queria algo forte, que estourasse na
tela, acabei optando pelo meu vestido de seda violenta, esse é direto e
impactante, e colo bonito combina com decotão... Batom escarlate, blush,
base em pó líquida, sombra dourada, rímel, lápis para sobrancelhas e para
contorno dos olhos... A ordem é brilhar! Me maquiei, escovei os cabelos até
meus dedos não mais aguentarem, calcei sandálias plataforma (elevar o
corpo aos píncaros dos olhares...), e nas orelhas enfiei argolas douradas.
— É ouro! É brilho! É força e movimento!... — Dançava, avançando
diante do espelho.
Mamãe entrou no meu quarto contando que Idalina soubera de um
excelente exercício para estimular o cérebro: tomar banho de olhos
fechados, tateando as torneiras, o sabonete e o xampu.
— Mas isso eu faço todos os dias... Será que Idalina esqueceu que
sem óculos eu não enxergo?...
Para quem relatava o telefonema?, perguntei. Respondeu que era pra
mim. Agradeci, dizendo que já escutara.
Difícil me concentrar no que interessava... Tinha certeza de que seria
a primeira entrevistada porque trabalho em frente à porta principal, como
recepcionista, e também como secretária particular de seu Evaristo. Na
verdade, acumulo funções. Após dezenas de assobios pela rua, cheguei ao
trabalho. Pouco depois, cinegrafistas invadiram o escritório, iluminando o
local com refletores, onde puseram gelatinas coloridas. Os rapazes
conversavam entre eles; alguns me olharam demoradamente. De repente,
um deles, com uma câmera na mão, focalizou o meu rosto. Me senti
radiosa, brilhando, como uma estrela nascendo, e quando ele perguntou há
quanto tempo eu trabalhava no Meio do Céu, respondi e soltei uma risada
— se você chora ninguém liga, mas se ri, chama a maior atenção. Então, o
rapaz desviou a câmera do meu rosto e subitamente tudo escureceu;
passados alguns minutos em que conversaram com seu Evaristo,
recolheram o material e foram embora. Continuei sentada, pensando,
brilhando no breu. Na volta, custei a chegar em casa, porque um sujeito
queria me assaltar. É isso o tempo todo nesta cidade de Cristo nos ares.
Assim que saía do edifício, um homem me encarou e diminuiu o passo; ao
perceber que eu iria atravessar, movimentou-se em direção à rua. Recuei,
ele também. A calçada, praticamente vazia. De longe, vi um grupinho
conversando em roda, me dirigi até eles, e o cara andando atrás de mim. Ao
me aproximar das pessoas, ouvi que falavam em Deus, diante de uma
igreja. Olhei discretamente para o lado a fim de localizar o bandido, e
quando me voltei o grupo havia desaparecido. À beira do desatino,
atravessei a rua correndo; com a graça de Deus, o circular passava; ao
colocar o pé no primeiro degrau, escutei perto do ouvido: — Fissurei em
você, tesão...
Olhei para trás, e o sujeito, do lado de fora, me atirava um beijo.
Puto! Quando cheguei em casa, mamãe perguntou pela filmagem, respondi
que a cena na rua havia sido muito mais movimentada. Ela não entendeu,
claro, resmungou que eu não conversava. Não iria explicar. Não estava nem
um pouco a fim de gritar. Então, ela resolveu falar sobre Nina. Tinha uma
ideia do que ouviria. Nina e sua vida com Sérgio, cabeludo, andrajudo,
pestilento, em Santa Teresa, numa casa caindo aos pedaços.
Vivem de fazer pão pra fora; além disso, Sérgio é músico, toca
violão, e pelo que soubemos, pra fazer Nina dormir. Segundo ela, Sérgio é
muito bom, leva café na cama, faz cafuné e, parece, só se engraçou com as
empregadas do bairro. Passa os dias telefonando para os anúncios que saem
nos jornais, mas até agora não achou nada que justifique que ele saia de
debaixo dos lençóis. Mas cozinha, lava roupa, e a espera com um sorriso
nos lábios e um botão de rosa no prato. Enfim, São zen, mas de vez em
quando sai uma pancadaria, como mamãe disse que tinha acontecido. E eu
perguntei se Nina ia lá para casa, mas mamãe achou que deviam estar se
acertando, porque ela não voltara a telefonar.
Naquele instante, Lili saiu do quarto, calça de pijama, descabelado,
em direção ao banheiro. Mamãe se dirige a ele, mas Lili jamais responde,
em parte pela surdez, cansa ficar gritando, falo por mim, que ando com a
garganta em pandarecos.
À noite, meia hora antes do jornal, mamãe saiu porta afora, tocando
a campainha dos apartamentos do andar para lembrar aos vizinhos que sua
filha iria aparecer na tevê. Quando entrou, berrei que nunca mais contava
nada para ela. Ela se enrodilhou em tromba e não respondeu.
Escutou. Em seguida, levantou-se de um salto, e depois de instantes
retornou limpando as mãos uma na outra, contando que escondera
Arnaldinho dentro do boxe do banheiro da empregada. No escuro, para que
não cantasse. Segundo ela, o passarinho não pia, mas canta como uma
flauta. Enfim, sentou-se, quase grudada à tela, precisei reclamar para que
pudesse me enxergar. Nesse instante, Lili apareceu e se postou de pé
encostado à porta, e assim ficou. Mamãe dizia a todo momento que eu iria
aparecer na tevê. Assim que o jornal começou, focalizaram a entrada do
escritório, e, mal me vi, num instante sumi. Mas a reportagem continuou
mostrando as salas dos diretores, do presidente, e de lá foi para os camarins
dos artistas. Vários apareceram dando depoimentos, enquanto mamãe
repetia o que eles diziam. Quando entraram os comerciais, ela disse que eu
tinha me saído muito bem. Me saído. Lili murmurou "merda" e
desapareceu.
José Júlio chega ao motel sempre apressado. Mal entra no
estacionamento, baixa a porta da garagem fazendo estrondo, custei a
entender que era para que não vissem a placa do carro. Sobe a escadinha
aos pulos, me puxando pela mão, dizendo um monte de elogios, corre em
direção a cama, me empurra contra ela e cai em cima de mim; se
desabotoando, aflito... Tenho sempre impressão de gincana quando vamos
transar. Já comentei com ele, e José Júlio riu. Mas, nessa tarde, no corre-
corre, eu queria contar que ninguém tinha me assistido na televisão —
Inveja, despeito, desprezo... Infâmia, chuchu... — Me beijava a cada
palavra dita, abraçado comigo.
Depois, comentou que o Carnaval se aproximava, seria muito tempo
sem nos vermos, queria propor sairmos na mesma escola de samba. Na ala
dos mendigos. Talvez sua mulher e Bianca fossem desfilar. Na hora, eu não
soube o que dizer; mais tarde, discutindo e brindando, num bar perto de
casa, concordei em nos vermos na Avenida.
A noite, ouvi a voz de mamãe vinda do quarto: — Checho, você tem
que se conformar, eu já me conformei com a sua ida para o outro lado, meu
bem, você deve ter feito descobertas importantes para a sua alma cheia de
luz, Checho... Agora encolhe as pernas e me deixa passar. Diós! O
expediente estava quase no final, quando seu Evaristo se aproximou da
minha mesa perguntando se eu podia me demorar mais uns minutinhos. O
que ele queria comigo!? Já me via no olho da rua, desempregada.
Quando todos se foram, ouvi a voz dele me chamando. Assim que
entrei em sua sala, seu rosto luzia, seus olhos se apertaram, e ele pediu que
eu me sentasse, que ficasse à vontade.
— Sabe, Gilda, há algum tempo venho apreciando seu desempenho,
e ainda não tive a oportunidade de lhe dizer o quanto estou satisfeito...
Felizmente estou tendo agora, corrigindo o erro a tempo, espero...
Tamborilava os dedos grandes sobre o tampo da mesa.
— Também não tive chance de lhe dizer que é uma moça muito
bonita, vistosa, volumosa, encorpada como os melhores vinhos... — Riu,
sem abrir a boca mas fazendo um barulhinho.
(Por quién me toma?) "Funcionária é estuprada na Agência..."; já via
meu nome estampado nas manchetes de jornal.
— Quantos anos você tem? — Vinte e seis.
Estava na bica de me estrepar.
Nesse instante, levantando-se, ele disse que era o que tinha para
dizer, lamentava não tê-lo feito antes, e agradeceu por ter me prendido fora
do horário.
— Até amanhã, Gilda disse, sorrindo e suando.
Cruzei as salas escuras e vazias, nem esperei pelo elevador, desci
pelas escadas. Muito vivo esse seu Evaristo com aquela conversa sobre
mortos. José Júlio tinha razão.
Cheguei em casa, e mamãe disse que a síndica pretendia fazer
reformas no prédio, melhorias; para isso, precisava aumentar a cota do
condomínio. Gritei, dizendo que não podia dar nem um tostão a mais. E ela,
desaparecendo dentro do quarto, comentou que eu tinha chegado muito
exaltada.
Naquela noite, sonhei que um mastodonte perguntava se eu tinha
namorado.
Depois, pegando meu braço, cheirou-o de alto a baixo. Em seguida,
perdendo o equilíbrio, o monte de banha fervente derramou-se sobre mim,
segurando meu rosto com as patas, tentando me beijar, e eu lutava para me
desvencilhar enquanto ele murmurava que gostava de mulher rude, rebelde,
selvagem como ele, e me lambia o rosto, e nesse momento avisei que ia
gritar, enquanto via meu corpo enrolado num pano branco, feito múmia,
carregado para o camburão, e ele fungava e bufava, perdigotando minha
cara e dizendo que por favor eu deixasse que me desse um beijo, e a boca
pegajosa, grudenta, melada, veio na direção da minha e eu não conseguia
me livrar e ele, arfando, sugou minha língua, a saliva e os dentes.
Acordei, e Nina dormia no sofá da sala. Sempre que o marido não
passa a noite em casa (vai farrear em outro lugar), ela baixa na nossa.
Mamãe disse que Sérgio viajara a trabalho e Nina não gostava de
ficar sozinha. Só quero ver o que vai ser de Nina, cagona, quando mamãe
morrer e eu me casar com José Júlio.
No dia seguinte, já me encontrava havia algum tempo no trabalho,
quando seu Evaristo abriu a porta de sua sala e, vindo até à minha mesa,
curvou-se, perguntando como eu tinha passado. Em seguida, empertigou-se
e sorriu. Que pergunta foi aquela?... Mastodonte! Terça-feira: recreio, folga,
relax. No telefone, José Júlio avisou que queria conversar seriamente
comigo. O quê? Terminar?...
Mal entrei no carro, notei seu aspecto abatido, cinzento, acabado.
Não havia pregado o olho, contou. Dessa vez, iria se separar, não aguentava
mais passar noites em claro. Por que não dormia? perguntei. Ele respondeu
que a mulher sequer cochilava.
— O que ela faz de madrugada? — Varia.
Como não continuou, respeitei. José Júlio rompeu o silêncio para
contar que procurava apartamento. Aí, não consegui me conter, caí em seus
braços, beijando sua boca linda, dizendo que se ele quisesse eu poderia
ajudar. José Júlio subiu os degraus do motel devagar, cansa do mesmo,
coitado. Depois, sentou-se na beira da cama e ficou sério, olhando para a
frente, estendido para o futuro, certamente, onde eu me via abraçada com
ele; José Júlio e eu, eu e José Júlio, e, para falar a verdade, não vi Bianca ao
nosso lado. Essa menina microscópica qualquer dia vai ter que ser vista de
lente.
Ao chegar em casa, encontrei mamãe fazendo palavras cruzadas a
mando de seu parente; está muito desneuronizada. Levantando os olhos da
revista, disse: — Essa, quem não sabe?... forma de Budismo, três letras...
Sorriu.
Aproveitei que sorria e contei que iria me casar com José Júlio.
Na verdade, experimentar uma relação de casamento. Silêncio. Em
seguida, levantando-se da cadeira rumo à cozinha, ela saiu dizendo que um
ambiente propício, sem notícias impactantes, também ajuda no
desenvolvimento do cérebro, depois a ouvi murmurar que ninguém é feliz
construindo a vida sobre a desgraça alheia.
Mamãe deseja o meu mal, ardentemente.
Acordei e dei de cara com uma nova empregada. Na mesa do café,
mamãe comentava que tivera ótimas referências. A única restrição era que a
moça sofria do coração; não podia se aborrecer — Hein? gritei.
Ninguém é perfeito, continuou ela, na nossa casa havia muita paz,
tinha certeza que Wilma se daria bem. A exceção de Arnaldinho (o
passarinho), ninguém fazia barulho, comentou, balançando a cabeça. Avisei
que se algum dia encontrasse a empregada emborcada no tanque ou na pia
da cozinha, não viesse me chamar. Mamãe disse que sabia perfeitamente
que não podia contar comigo. Lili, abrindo a porta de seu quarto, murmurou
"droga" e voltou a fechá-la. Não continuei a discussão porque estava para
fazer a experiência do casamento, e diante disso, nada mais importava.
Mamãe continuou a falar da empregada, adora o assunto -, dizendo
que já alertara a Wilma que, se por acaso a encontrasse doutrinando alguém,
não se assustasse, ela era médium, desde criança. Parece que a moça tinha
concordado, e assim se acertaram.
Sábado de Carnaval. Aleluia! Inspirada em Alice no país das
maravilhas, escolhi a roupa do desfile: o vestido de noiva de Dadá. Mal
cabia no meu corpo; além de curto, ficou esturricado, então se rasgou em
diversas partes, espontaneamente. Perfeito. Na véspera, eu havia lavado os
cabelos com xampu de pitanga para que ficassem vermelho-ferrugem, cor
do batom que iria usar. Basicamente, a maquiagem teria esse tom, além de
púrpura, pêssego, violeta e açafrão. Calcei sandálias havaianas e fui ao
banheiro me despentear Preparada para o desfile, cruzei a sala, e mamãe
perguntou se eu pretendia sair daquele jeito — Esquisitíssima... murmurou.
(Nem reconheceu o vestido..).
Enfiando o dinheiro no sutiã, eu disse que iria desfilar na escola de
samba, na ala dos mendigos.
Breve estaria assim, e sem esforço, foi o que pensei, fechando a
porta de casa.
3
Na Avenida, em meio a centenas de pessoas, homens bêbados
mexiam comigo, enquanto, atarantada, eu procurava a minha ala e José
Júlio. Nesse instante o vi, esmolambado, não muito distante, e em passos
largos me dirigi até ele, que disse, baixo, entre dentes: — Aurora e Bianca
também vieram...
Meleca... O que tinha ido fazer lá? Ao seu lado, Aurora, prestei bem
atenção nela, parecia bem contente, mas José Júlio tinha dito que havia uma
doença que dava muita alegria. Uma vez, uma moça tinha sido internada em
plena felicidade. É cada história do capeta. Nesse momento, o bumbo da
bateria soou e rapazes passaram entre nós, mendigos, mandando que
avançássemos, sambando, não queriam ninguém parado na Avenida.
Voltei a procurar José Júlio, e não o encontrava na imensidão
emporcalhada que desfilava. Aurora, ao meu lado, sambava com os braços
para o alto, tendo ao lado Bianca, franzina, olhos aflitos, mastigando uma
chupeta; Logo atrás vinha José Júlio, que pegou a mão da menina, cantando
a música da escola, piscando para mim, e eu, completamente confusa,
atordoada, assistia a multidão que levantava na arquibancada gritando "já
gafiliou"; no tumulto, passaram a mão na minha bunda várias vezes. Na reta
final, na hora da dispersão, ouvi a voz de José Júlio: "chuchu, você parece
mendiga de contos de fadas.." Tomei o ônibus de volta ainda ouvindo os
foliões cantando o refrão da escola, e quando cheguei à minha rua, lágrimas
de agonia escorreram no meu rosto pela merda do Carnaval.
Cheguei em casa com a cabeça explodindo, e encontrei o alarido da
novela. Mamãe, grudada na tela, virou-se e perguntou o que havia comigo,
fiz um gesto para que diminuísse a televisão.
— Nada.
Ela voltou a aumentar o som do aparelho, balançando a cabeça.
Fui me deitar pensando num jeito de terminar com José Júlio.
Escutei a voz de mamãe vinda da sala: — Sossega, Ritinha, sossega...
A noite, os espectros estão à sua disposição.
Dormi puta da vida.
Quem disse que José Júlio ia se separar? Quem? Mentiroso, cínico,
crápula. Pelo visto, estava a fim de brincar. Precisava dar um jeito na minha
vida, foi o que pensei acordando no domingo, sem pancadas na porta.
Mamãe sentou-se à minha frente, já devia ter tomado o café e
chupado os biscoitos.
— Quando você vai se casar? Pedi que me esquecesse no Carnaval.
Ela se levantou, dizendo que eu andava intratável, e foi acudir o passarinho
que cagara a gaiola inteira. Quando isso acontecia, cantava sem parar
Aliviado, coitado.
Nesse momento, o telefone tocou e eu atendi. Uma voz de homem
do outro lado disse ser Evaristo. Seu Evaristo!? Por que estaria ligando para
minha casa? Segundos depois, ainda ouvia a respiração do outro lado da
linha, quando desligaram. Mamãe voltou da área dizendo que deixara tudo
limpo para o Arnaldinho. Avisei que se voltassem a ligar, eu não estava em
casa. Pouco depois, o telefone tocou e mamãe disse para José Júlio que eu
tinha saído.
— Merda! Merda! Merda! gritei para cada parede da sala.
Mamãe virou as costas, dizendo que eu tinha acordado muito
alterada.
Felizmente, José Júlio voltou a ligar, atendi, e enquanto eu dizia que
não tinha ido a canto algum, mamãe cutucava o meu braço.
Detesto falar com alguém me cutucando. Pedi licença a ele e gritei
para que ela me deixasse em paz. A notícia que José Júlio queria me dar é
que encontrara nossa casa, estava louco para me mostrar. Desisti
completamente de terminar com ele. Combinamos de visitar o apartamento
na manhã seguinte, antes de eu seguir para o trabalho. Saí aos pulos do
telefone, até para o passarinho cantei. Mamãe me olhava, e eu voltei a pular
dizendo que era Carnaval... Em voz baixa, ela disse que estava me achando
muito, muito descontrolada.
No dia seguinte, depois de conhecer minha futura casa, liguei para
mamãe. Uma gracinha o apartamento. Dois quartos, varandinha, não batia
sol de frente, fresco, brisa suave e macia contornando nosso futuro, meu e
de José Júlio. Mamá, tengo orgullo de usted, pero vez en cuando me dan
ganas incontrolables de azogarla con el cordón de la cortina, y así sus ojos
salientes verán finalmente a su hija.
Mamãe não fez nenhum comentário diante da notícia do
apartamento; deseja continuamente minha desgraça.
No Meio do Céu, quase no final do expediente, seu Evaristo mandou
que eu fosse à sua sala, e me entregou dois contratos. Antes de sair,
perguntei por que havia ligado para minha casa.
— Não lhe telefonei, dona Gilda. Por que o faria? Não soube o que
dizer. Dona? O que estaria acontecendo? — Tome chá de alecrim, mãe,
alivia a dor de cabeça. Os temperos têm propriedades medicinais, ninguém
acredita nisso...
Encontrei Nina em casa. Pelo jeito, à noite teríamos o sofá ocupado.
Assim que ela me viu, perguntou se era verdade que eu ia me casar. Eu
disse que ia experimentar, não sabia se gostaria de morar com outra pessoa.
Ela perguntou quando eu me mudaria. Fingia-se de sonsa, mamãe já devia
ter contado tudo. É a rainha de espalhar notícias. Disse para Nina que
faríamos um almoço em casa e depois seguiríamos para Mauá.
Ela adorou Mauá, claro. Nesse momento, mamãe entrou na
conversa, perguntando se eu tinha marcado a data, respondi que tudo
dependia da separação de José Júlio. Ela sacudiu a cabeça, em seguida
pediu que assim que eu soubesse avisasse porque não queria comunicar a
Wilma de supetão, e levantou-se para pegar a pomada chinesa que fica
esfregando na testa. Quando retornou, comentou que Dadá esperava
somente um telefonema para embarcar. Não sei o que viria fazer,
certamente desejar votos ruins. Também não falei. Ando muda em família,
para evitar aporrinhação.
Sentando-se ao lado de Nina e pegando sua mão — adoram ficar de
mãos dadas, as duas -, mamãe disse que não tinha achado nada boa a cara
da empregada. Será que ouvira falar na recepção? Endereçou a pergunta a
Nina. Saí da sala. Pouco depois, Nina e Wilma conversavam na cozinha.
Nina faz tudo o que mamãe quer, por isso é a preferida; Nina e
Arnaldinho, as paixões de mamãe.
Assim que Nina virou as costas, mamãe veio atrás de mim dizendo
que precisava me contar uma coisa, já contara para Nina e ela se
emocionara. Começaram os rodeios; dá voltas enormes quando quer falar
sobre algum assunto. Então, disse que dona Idalina havia contado que uma
senhora que se mudara havia pouco para o prédio, dois andares abaixo do
nosso, uma mulher na casa dos sessenta: Idalina acha, ela disse..:" —
Continua. Pois então... a senhora, em conversa com Idalina, teria dito que
estava encantada com o som de Arnaldinho. Perguntara a Idalina se ela
conhecia a dona do passarinho. Queria saber se podia pedi-lo emprestado na
noite de Natal. Era viúva e não tinha filhos. Estava certa de que ele encheria
sua casa de alegria.
— O que você acha? perguntou, olhos marejados, mãos dadas com
ela mesma.
Respondi que o Natal estava a quilômetros de distância, na rabeira
do ano. E ela, que minha insensibilidade a impressionava profundamente,
tocava fundo sua alma.
Me levantei pensando no fim de semana que me esperava. José Júlio
me apresentaria a Bianca. Sairíamos juntos os três, rumo a um parque de
diversões. Ele, já fora de casa, dormia na casa de um irmão.
Tivera uma longa conversa com a mulher (parece que a noite tinha
sido braba). Me arrumei e desci para esperá-lo em frente ao edifício,
felizmente não precisei andar mais três quarteirões para entrar em seu carro.
Deixei Nina e mamãe conversando, depois de minha irmã ter passado a
noite na nossa casa. Na verdade, deixei Nina chorando, porque contava
como gostava de seu marido, e mamãe a consolava dizendo que o amor
sempre fora fonte de sofrimento. Cada conversa bárbara... José Júlio
chegou, estacionou o carro, saltou, e eu vi a menina descorada na parte de
trás do automóvel, munida de três chupetas. Uma na boca, e as mãos
ocupadas. Sorrindo, José Júlio mostrou a filha, dizendo que eu era a Gilda,
meu bem (para quem seria o meu bem?), amiga do papai. Para a menina,
claro. Ao entrar no carro, tentei dar um beijinho na garota, mas ela se
encolheu. Saímos, e, como se irradiasse uma partida, José Júlio desandou a
falar. Enquanto dirigia, a menina, muda, grudou as mãos enchupetadas em
volta do pescoço do pai. Tentei puxar conversa com ela, que me olhava de
esguelha e não me respondeu. Nesse instante, José Júlio comentou que
precisávamos vender um dos carros para fazer face às despesas da nossa
futura casa. Ofereci o meu, que há anos chacoalha pelas ruas. Ao ouvir
nossa conversa, a menina apertou o gogó de José Júlio quase enforcando-o,
e ele, puxando as mãos da garota do pescoço, disse, assim não, Bibi,
machuca o papai. Bibi. Tenho um medo de criança...
Saltamos diante de um parquinho e lá ficamos durante quase três
horas, percorrendo filas intermináveis em meio a um calor de bode. A cada
brinquedo que a criança ia, José Júlio corria em volta acenando.
Depois de três brinquedos, três filas e três horas, sem contar as três
chupetas, ele me deixou em casa dizendo que achava que as coisas estavam
muito bem encaminhadas. Quando o carro partiu, a menina tirou a chupeta
da boca e virou a cara para mim. O que me esperava...
Não encontrei mamãe em casa. Sobre a mesa da sala, um bilhete,
debaixo do cinzeiro vermelho de murano: "Para ativar a mente é preciso
jogos e convivência. Fugi da monotonia da casa:" M. Nem se deu ao
trabalho de escrever mamãe até o fim, ou deve ter escutado os meus passos
e saído correndo para se esconder na casa de dona Idalina.
Amassei o bilhete para jogá-lo na cesta de lixo, quando o telefone
tocou. Atendi, e a voz de um homem do outro lado da linha tornou a dizer
que era Evaristo, em seguida desligou na minha cara.
De novo? Mal desliguei o aparelho, a empregada apareceu para
avisar que o abajur de seu Lili fervia.
— E você não fez nada!?.
Fez cara mais ignorante ainda, como se fosse possível. Além de
cardíaca, era uma anta... Já que mamãe não estava, fui debelar o incêndio.
Lili dormia embaixo da cama.
Quando cheguei ao trabalho, havia um convite sobre a minha mesa.
Abri o envelope: "Evaristo e Gilda participam sua união e convidam
para a festa de comemoração:" Estava com os olhos tão colados nos nomes,
que quase não escuto a voz de Susie perguntando se também eu tinha
recebido o convite de casamento do filho de seu Evaristo. Balancei a
cabeça, e nesse instante ele entrou no escritório; e vendo o convite na minha
mão, disse que minha presença era imprescindível. Sorriu. Susie já se
encontrava em sua mesa, olhos baixos, trabalhando. No Meio do Céu, todos
têm medo dele. Eu, a cada dia estou adquirindo.
No telefone, contei a José Júlio sobre o convite, pedindo que ele me
acompanhasse, mas ele disse que teria que ficar com Bianca. Sua mulher,
depois de um dia de intensa alegria (comentou), chorava copiosamente.
Acho que José Júlio faz muito alarde das emoções de Aurora... Contou que
teria que apanhar a menina para dormir na casa de seu irmão. O único
problema era o cachorro, que só poupava o dono, mas já haviam
programado o fim de semana do bicho num canil. Enfim, notícias da família
de José Júlio. No final, sugeriu que eu ligasse para uma colega, e foi o que
fiz, combinei com Susie irmos juntas. Ela disse que nenhum de nós poderia
faltar porque seu Evaristo era muito vingativo. Vingativo? Chegamos diante
de um edifício envidraçado na Lagoa. Assim que Susie diminuiu a marcha
do fusca, manobristas se ofereceram para estacioná-lo. Contratados de seu
Evaristo, certamente. No hall de entrada, uma longa passadeira vermelha
nos fez desembocar em um elevador espelhado de alto a baixo. Reflexos do
meu medo surgiram de todos os lados. Quando chegamos ao andar, havia
uma grande escultura de mulher e, ao lado, uma porta aberta por onde
escapavam murmúrios. Entramos em um apartamento inteiramente preto.
As cores presentes pertenciam aos quadros. Seu Evaristo, terno e gravata
escuros, apareceu para nos receber Olhando fixo nos meus olhos, disse que
eu jamais poderia faltar ao compromisso. Em seguida, nos apresentou ao
filho e à sua noiva, Gilda, depois às ex-mulheres e os respectivos maridos.
Não ouvíamos ruído de passos, um pequeno conjunto, música suave,
animava o ambiente, e garçons, desfilando taças de champanhe, afundavam
os Sapatos de verniz na pluma do tapete. Tudo fluía com artificialidade.
Todos nós, da nossa sala do Meio do Céu, estávamos presentes, fora os
outros que eu via espalhados pelo apartamento. Sobre a mesa grande da
sala, entre dois castiçais com velas acesas, um vaso de cristal continha uma
infinidade de tulipas negras.
Seu Evaristo circulava pela sala com olhos postos em mim. Olhos
escuros, sombrios, y los labitos salientes... O que estaria havendo com esse
homem? De vez em quando eu olhava para as pessoas para ver se
percebiam, mas elas se encontravam distraídas, conversando em voz baixa.
Um possante sistema de refrigeração gelava o salão, as cortinas
abertas deixavam aparecer através dos vidros o Corcovado iluminado.
Antes de servirem o jantar, seu Evaristo anunciou que queria dizer
umas palavras. Então, pigarreando, iniciou dizendo que o Cristo estivera
sempre ao seu lado — apontou para a imagem -, por isso talvez tivesse sido
tão abençoado, pela família maravilhosa, pelo filho, orgulho de seu coração
de pai, Gilda, as ex-mulheres, os amigos queridos, e todos nós, do Meio do
Céu, dedicados companheiros de trabalho. Antes de terminar, queria dizer
que ali estávamos por um motivo muito feliz: selar a união de Evaristo e
Gilda, a quem desejava eterna felicidade.
Sob aplausos dos presentes endereçou o olhar para o jovem casal, e
em seguida mirou os olhos nos meus. Nesse momento, os garçons, mãos
enluvadas, voltaram a circular com travessas sob fogo brando, enquanto o
olhar de seu Evaristo crepitava sobre mim. Uma situação horrível.
Quando retiraram a sobremesa, eu disse a Susie que precisava ir
embora, me esperavam em casa; doida para me ver livre dali. Susie disse
que também ela teria que levar seu poodle para passear. De longe, seu
Evaristo percebeu que sairíamos e, caminhando a passos largos em nossa
direção, agradeceu pelo comparecimento e, de novo, disse que eu não
poderia ter faltado: — Dona Gilda.
Dentro de uma semana, eu entraria de férias. Finalmente me casaria
com José Júlio, quer dizer, moraríamos juntos. Dadá chegou sozinha, os
filhos estavam em aula, e o marido só queria saber de trabalho. Trabalho.
Me trouxe um brinde do avião. Um kit de material de limpeza... Seria este o
presente de casamento? Mamãe não sabia se ficava feliz com as filhas
reunidas, ou profundamente triste com o rumo que eu havia escolhido para
a minha vida. Destroçando um lar alheio e ainda por cima com criança
envolvida... Não se cansava de dizer que eu começaria muito mal. Por ela,
eu ficaria infeliz e aflita, una solterona pasada.
Diante da confusão instalada em mamãe, resolvi que faríamos um
pequeno almoço em casa, só para nós, e José Júlio, claro. Nina disse que
Sérgio fazia questão de comparecer; havia composto uma canção
especialmente para a data. Sabia Deus o que iríamos ouvir..
Inacreditável o almoço, e éramos poucas pessoas. O coração de
Wilma felizmente resistiu, e ela pôde fazer um estrogonofe de camarão.
Quando terminamos de comer, Sérgio, pegando o violão, disse que
tocaria a surpresa que fizera para nós. E cantou uma música que falava de
agonia, melancolia e solidão. Que comemoração. Na hora do champanhe,
José Júlio fez questão de Prometer a mamãe que se casaria comigo, teria
apenas (apenas) que assinar os papéis de divórcio. Passado algum tempo,
durante o qual a conversa não engrenou para lado algum, o interfone tocou
para avisar a dona Gilda que havia um telegrama na portaria.
Dentro do carro, despedida da família, abri o telegrama:
"Felicitações. Evaristo." José Júlio perguntou quem enviara, respondi que
tinha sido meu chefe. O que gosta de defuntos?, perguntou, rindo. Balancei
a cabeça.
— Legal! disse, espalmando a mão sobre a minha coxa.
E o assunto, por falar em defunto, morreu.
4
O telefone tocou no quarto do hotel onde passávamos a lua de mel.
Um infortúnio como outro qualquer. Enquanto o aparelho apitava, José
Júlio e eu nos entreolhamos durante segundos; em seguida, esticando o
braço, ele arrancou o fone do gancho. Fingi que tirava a maquiagem no
banheiro, enquanto o ouvia perguntar por Bianca. Em seguida, desligou.
— E aí, querido, tudo bem? — Tentei afinar a voz.
O cunhado (cunhado) contara que Aurora tinha atirado a tartaruga
pela janela do prédio. Sentando-se na ponta da cama, e pondo a cabeça
entre as mãos, José Júlio ficou pensativo, em seguida levantou-se e, me
abraçando, disse que estávamos ali para sermos felizes. Me deu vontade de
perguntar o nome do bicho.
— Judith, José Júlio?
Aurora tinha escolhido. Bem, depois de fazermos amor (nem sei se
assim se pode chamar o que se passou meteoricamente entre nós), deitados,
olhos no teto, víamos sua mulher jogando o resto da casa pela janela.
Assim começou nossa vida a quatro: José Júlio, eu, Aurora e Bianca.
Ao voltarmos, depois de dias de cachoeira, verde, frio, lareira e
muitos silêncios de José Júlio (preocupação com a menina, certamente), ele
me deixou para ver mamãe e foi direto conferir o resultado da tartaruga
despencada pela janela.
Assim que passei pela entrada do prédio, o porteiro me entregou um
buquê de rosas. Quem teria sido? Abri o envelope. "Saudades? Dessa vez,
não havia assinatura. Subi com as flores nas mãos, e depois de abraçar
mamãe gritei em seu ouvido que as flores eram para ela. Ela perguntou
como tinha sido a viagem; contei, só não disse que uma tartaruga acabara
com a nossa lua de mel logo no primeiro dia. Falei de passarinhos, riachos e
flores, ela gosta. Depois, como estava começando a ficar agoniada com a
história de seu Evaristo, resolvi contar que um homem me perseguia. Ela
ouviu. No final, perguntou se eu achava que dar flores era perseguir.
Mamãe não entende nada! Passados alguns minutos, séria, revistinha de
palavras cruzadas no colo, perguntou se eu sabia como era prato em inglês.
Dish, gritei.
Mudei-me para a casa nova. Tudo improvisado. O dinheiro da venda
do carro deu para comprar cama, colchão e geladeira, ainda bem que havia
armários embutidos no apartamento. Acampamos na sala. José Júlio tinha
posto cervejas na geladeira; jantamos sanduíches acompanhados de latinhas
geladas. Depois nos deitamos. Um flamboyant florido entrava pela janela,
esparramando seus galhos e decorando o quarto. Luz apagada, nus,
abraçados, José Júlio dizia que me amava, enquanto eu beijava sua boca
macia e linda. Tivemos uma noite tranquila pela ausência de telefone em
casa.
Na manhã seguinte, chegando ao escritório, os colegas me
cumprimentaram. A sala de seu Evaristo, às escuras, estava vazia. Depois
do almoço, ele apareceu e, detendo-se à minha frente, perguntou como tinha
sido o casamento. Bem, obrigada, respondi. Quase na hora de fechar o
expediente, ouvi sua voz me chamando. Quando entrei, ele contou que
andava com problemas de saúde e teria que fazer exames; queria saber se,
precisando de algum favor, poderia contar com a minha ajuda. Sim, claro,
eu disse. Ele agradeceu. Então, tomei coragem e perguntei se tinha sido ele
a mandar o telegrama e as flores. Quanto ao telegrama, sem dúvida,
desejava me felicitar, respondeu, mas quanto às flores, dona Gilda, de
maneira alguma. Agradeci pelo telegrama e saí; as luzes na cidade já
estavam acesas, e, de novo, como naquele dia, tive que driblar um
assaltante. E assim, uma vida desassossegada.
No dia seguinte, ao chegar ao escritório, um dos funcionários disse
que seu Evaristo me aguardava em sua residência. Nem tive tempo de
pendurar a bolsa na cadeira.
Ao entrar na escuridão do seu apartamento, entrevi-o próximo à
janela. Vestia um robe de seda vinho, e nos pés, chinelos de couro preto.
Seu Evaristo não é feio nem bonito, é antigo. Estatura mediana, um pouco
barrigudo, usa óculos e tem os cabelos crespos e grisalhos agarrados na
cabeça. Se desculpando, disse que eu ganharia um extra pelo trabalho de
atendê-lo em casa: — Desculpe, Gilda, deslocá-la até aqui, mas como lhe
comuniquei na última vez em que nos vimos, ando um pouco adoentado e
preciso que realize algumas tarefas... — Apontando o sofá para que eu me
sentasse, continuou a falar que gostaria de reiterar os elogios à minha
pessoa, e acrescentou que, no nosso departamento, não havia ninguém tão
capaz quanto eu...
Ora me chama de Gilda, ora de senhora, não se decide. Pediu que
passássemos à sala, precisava manter-se recostado. Reclinou-se no sofá;
entre nós, uma mesa de tampo de vidro cheia de papéis. A medida que
explicava o serviço, gesticulava, então o robe começou a escorregar
devagarinho, se abrindo. Uma visão horrível instalou-se à minha frente, um
verdadeiro monstro de gordura e pelo; demorei a perceber que não usava
cuecas... Não notava que estava descomposto, ou fingia? Quanto mais
falava, me encarando, olhos espremidos, boca molhada, a visão do horror se
modificava; comecei a notar sob sua barriga la transflguración del miembro.
Fazia um esforço enorme para permanecer indiferente, impossível, quando
se está diante de um animal gigantesco perambulando pelo planeta. Em
meio às frases, puxando o robe, ajeitando-o, ele bufava, babujante, se
dizendo com falta de ar. Dessa maneira, trabalhamos, com o membro dele
se anunciando.
Saí abismada; quarteirões adiante, comecei a pensar no extra no final
do mês; o extraordinário trabalho.
Mal pisei em casa, tive um troço. De vez em quando acontece,
minha pressão cai e eu apago durante algum tempo — já contei -, depois
volto numa boa, como naquela tarde em que retornei com O sopro do vento
nas folhas do flamboyant que nos visita a casa. Assim que José Júlio
chegou, contei para ele que de vez em quando desmaio, não se incomodasse
(bastava tudo que tinha vivido com sua ex-mulher). E por falar no assunto,
perguntei se estavam bem, ela e a menina, então José Júlio contou que
Aurora pusera fogo no apartamento.
Felizmente, fora acudida a tempo, uma vizinha conhecia seu
temperamento.
No final dessa tarde, chegou a primeira surpresa na nossa casa: um
abajur enorme, acompanhado de um cartão: "Ju, para você, o espírito da
luz." Aurora. Em seguida ao abajur, remessas de presentes se acumularam.
Precisei pedir a José Júlio que desse um jeito na situação porque dá trabalho
atender aos entregadores; no prédio não existe interfone, é preciso gritar,
com a cabeça fora da janela, ou despencar três lances de escada.
Na manhã seguinte, um aparelho de tevê chegou à nossa casa;
Aurora o mandara acompanhado de outro cartão. "Ju, para que você não
perca os filmes da madrugada:" Agradeci ao rapaz e entortei os olhos em
direção a José Júlio, que, constrangido, levou o aparelho para o quarto de
Bianca. Quando reapareceu, perguntei: — Ela te chama de Ju? Ele balançou
a cabeça, sem graça. Então eu disse que tinha lido uma reportagem que
talvez pudesse interessá-lo: "Auroras são decifradas"; e dei boa-noite.
No dia seguinte, tive a impressão de ter visto seu Evaristo saindo do
nosso edifício...!? Esse homem se alastra por todos os lugares...
Na volta do trabalho, subia a escada do edifício, quando seu Evaristo
passou por mim, me cumprimentando, e seguiu para o andar de cima. O que
estaria fazendo no nosso prédio!? Assim que José Júlio chegou em casa,
contei a ele. Teríamos uma vizinhança tranquila com o amigo dos defuntos,
riu, quando terminou de falar. José Júlio tem mania de rir das coisas que
diz, eu não achava a menor graça naquele homem seguindo meus passos.
No dia seguinte, no Meio do Céu, esperei seu Evaristo aparecer, e
mal entrou em sua sala, bati na porta.
— Não me mudei, dona Gilda, apenas aluguei um apartamento numa
localidade agradável do Rio. Embora muito bonita, ando cansado da vista
da Lagoa, do movimento constante do tráfego e, dependendo do vento, do
cheiro dos peixes mortos. O Jardim Botânico surgiu como uma opção
natural. Mais alguma pergunta, dona Gilda? Balancei a cabeça, e já ia sair
da sala, quando ele perguntou se eu havia reparado no galho de flamboyant
que enfeitava nosso quarto.
Alugara o apartamento em cima do nosso!? Passada uma semana, eu
chegava cansada em casa, quando vi uma ambulância estacionada em frente
ao prédio. Quase alcançava o corredor quando dois enfermeiros passaram
carregando uma maca com uma moça desmaiada. Andei ao lado deles,
fazendo perguntas gritadas — tenho o hábito de falar assim, devo-o a
mamãe -, mas os enfermeiros não sabiam o que tinha acontecido, apenas
receberam recado de uma remoção urgente. Será que a moça se encontrava
no apartamento de seu Evaristo? Subi correndo e encontrei José Júlio no
telefone, aflito. Fiquei em pé ao seu lado, louca para falar, enquanto o ouvia
dizendo que iria investigar. Investigar o quê, José Júlio, quase gritei quando
ele saiu do aparelho. Alergia. Bianca está com alergia. Falava com Aurora,
e tudo que ela diz ele tem que escutar, porque se borra de medo do que ela
possa fazer. Disse que achava melhor que ele investigasse o que tinha
ocorrido no prédio: — Uma moça saiu daqui numa maca, desacordada,
desmaiada, apagada, José Júlio!...
Ele se dispôs a verificar no dia seguinte. José Júlio tem muito boa
vontade.
Mal pus os pés no escritório, mamãe telefonou perguntando se eu
sabia qual era o filme com a Judy Garland com onze letras. O Mágico de
Oz, respondi, e ela deu um risinho do outro lado. Só acha legal quando eu
acerto palavras cruzadas. Depois, ainda queria falar, perguntar se eu
lembrava que tinha mãe. Até logo, mamãe, passe bem o dia, disse, e
desliguei.
Estava doida para chegar em casa e saber o que José Júlio descobrira
a respeito da moça. Não aguentando esperar, liguei para o seu trabalho (José
Júlio é dono de Sebo, ganha uma miséria, coitado...) Não estava, disse a
VOZ que atendeu, fora ver a filha.
Cheguei em casa muito antes dele, claro. Pela demora, devia estar
fazendo reparos no apartamento de Aurora; acho que nos acessos de alegria
ela quebra as coisas para que depois ele as conserte. De repente, comecei a
ouvir passos no apartamento de cima; resolvi testar, andar também, de um
lado ao outro, e os passos me acompanharam. Seu Evaristo devia ter
contratado uma pessoa para cada aposento. Fiquei naquela perturbação)
quando, finalmente, José Júlio chegou, contando em detalhes como
encontrara Bianca. Assim que conseguiu acabar de falar da filha, perguntei
se, finalmente, soubera o que tinha acontecido no nosso edifício. Sim,
porque não é normal uma moça sair numa maca e as coisas continuarem do
mesmo jeito. José Júlio contou que uma enfermeira aplicara morfina em si
própria. Exagerara na dose, mas parece que é um barato, disse ele.
— Que horror... José Júlio...
Mas a moça não se encontrava no apartamento de seu Evaristo.
Passei na casa de mamãe. Quando pergunta se eu lembro que ainda
tenho mãe, me dá uma coisa esquisita, acho que compaixão, culpa, amor e
raiva. S isso.
Logo que entrei, encontrei Lili à mesa, e ao seu lado um jovem.
Mamãe servia os dois, e enquanto se movimentava, perguntou se eu
me lembrava de Ricardo. Lili cismou há não sei quantos anos que é pai
desse rapaz. Ricardo é um crioulinho, magro, alto, falante, que mora no
interior de Minas, só vem ao Rio por ocasião dos aniversários, dele e de
Lili. Hoje era aniversário de meu tio, e eu tinha me esquecido. Disse que da
próxima vez lhe traria o presente. Qualquer bloco e lápis de cor agradam a
Lili, que vive desenhando no escuro; tenta, há vários anos, observar a
escuridão, é o que diz quando sai do breu do quarto.
Conversei um pouco com mamãe, quer dizer, ouvi-a enveredar pelo
seu assunto predileto: nós, filhas desde o começo. Dizia que Dadá sim,
casou bem, está feliz, tranquila com o marido e os filhos, nada lhe falta;
Nina já não teve a mesma sorte, a fixação em Sérgio não é nada boa,
mamãe acha que ela está obsecada. E eu sou uma fonte perene de
preocupação. Aproveitei que escutava, testava o aparelho da vizinha (dona
Idalina) e falei, de novo, que meu chefe andava me cercando. E mamãe
disse que eu tinha mania, desde pequena, de achar que os homens andavam
atrás de mim. Precisava parar com isso.
Às vezes, parece, que mamãe vai me escutar, mas em todas me
engano.
5
— O que aconteceu, dona Susie, desmaio?...
Ouvi a voz de seu Evaristo, depois fez-se o mais absoluto silêncio.
Olhei para os lados, e o escritório estava inteiramente vazio.
Pé ante pé, me aproximei da sala dele, me borrando nas saias.
Paralisada, vi Susie emborcada sobre a meia, tendo ele por trás se
movimentando... Assim ficaram durante algum tempo, até que escutei um
urro e os gritos de Susie. Corri para a minha sala, peguei a bolsa e saí porta
afora.
Na rua, enquanto esperava o ônibus, Susie saiu do prédio, rodando a
bolsa no ar. O ônibus, nada de chegar, de repente um carro estacionou à
minha frente, e a porta se abriu.
— Ainda por aqui, dona Gilda? — Seu Evaristo me oferecia carona,
dizendo que iríamos para o mesmo lugar. Não vi jeito de escapar. Assim
que entrei, comentei que o ônibus demorava chegar. Deve ter passado pelos
seus torpes miolos que eu o tivesse visto com Susie. Mal deu a partida com
carro, perguntou: — Como vai a vida de casada? Bem, obrigada, respondi.
Ele silenciou; passado algum tempo, outra pergunta: se era verdade que
meu ma rido era apressado. Escutava o que se passava dentro do meu
apartamento!? Quando chegasse em casa, iria falar com José Júlio que eu
queria me mudar, e também que sairia daquele infecto trabalho! O carro
chegou em frente ao edifício, agradeci a carona e desci apressada. Ele
seguiu rua abaixo, ainda bem que para outro lugar Em casa, encontrei José
Júlio no alto da escada, com a boca cheia de pregos, montando a estante na
sala. Disse que precisava falar seriamente com ele. Contei o que tinha se
passado no escritório; quando acabei, José Júlio disse que certamente minha
colega devia andar dando bola para o chefe.
— Por exemplo, no sebo ninguém jamais se engraçou com a
Verônica, e ela não é de se jogar fora... comentou, rindo.
Tive vontade de dar um tapa em José Júlio, acho que ele notou
porque acabou rapidamente com o riso nojento. Resolvi encerrar a
conversa, dizendo que ia procurar trabalho em outro lugar.
— E antes que eu me esqueça, quero também dizer que vamos
mudar deste apartamento! José Júlio voltou para o alto da escada, avisando
que tinha comprado saladas para o jantar.
Tentar conversar com ele ou mamãe dá no mesmo, não entendem
nada. Estou na iminência de ser a próxima vítima.
Quando fomos para a cama, José Júlio disse que queria fazer amor.
— Vem, chuchu, vem...
Enquanto transávamos, na afobação costumeira, eu ouvia passos
sobre as nossas cabeças; sussurrei no seu ouvido, e ele, tremelicando, disse:
— Meu bem, as pessoas aaaanndammm...
Na manhã seguinte, no escritório, Susie sorria de um lado ao outro.
Roddy disse que, pelo jeito, ela se apaixonara, e Susie falou que nem
de longe podíamos imaginar o que havia acontecido em sua vida. Era outra
pessoa. E enfiando os dedos entre os cabelos, jogou-os para trás. Pouco
depois, seu Evaristo pisou no andar, e ela saiu atrás dele sibilando, chefe,
chefe, e ele entrou apressado, dizendo que teria um dia cheio.
Durante toda a manhã, eu me via entrando na sala de seu Evaristo,
me despedindo, mas quando terminou o expediente, desisti da ideia.
Mamãe recebe uma aposentadoria de merda. Nina não ajuda em
nada, e mamãe só abre a boca para dizer coitada. Dadá não dá um tostão, já
disse que é uma pessoa ruim. Sobra pra mim, que tenho um bom salário
mas vai todo na bosta da casa, e ainda tenho que comprar alpiste... Às
vezes, penso em acabar com todos, a começar pelo passarinho.
Arrumava a mesa para sair, quando o telefone tocou e me chamaram.
Custei a entender que era dona Idalina, vizinha de mamãe. O que ela
queria? Mamãe estava mal? Sua mãe pede que, se você tiver um tempinho,
dê uma passada em sua casa, disse ela, e se desculpou pelo incômodo.
— Algum problema em casa, dona Gilda? perguntou seu Evaristo
assim que pus o aparelho no gancho.
— Posso ser útil em alguma coisa?... Por favor, não se constranja...
Agradeci, e reparei em seu olhar de falcão.
Encontrei mamãe assistindo à televisão e fazendo palavras cruzadas.
— O que aconteceu? perguntei de pé, mãos na cintura.
Ela disse que precisava urgentemente me contar o ocorrido.
Sentou-se e me pediu que também sentasse. À noite, quando ia se
deitar, foi à sala verificar se as janelas estavam fechadas, ameaçava um
temporal, sacudiu as mãos no ar; subitamente, surgiu na cadeira de balanço
um morto que ela não conhecia, jamais havia visto, nem mesmo em
fotografia, todavia não parecia atormentado, apenas deslocado; devia ter se
equivocado de endereço. Iniciou uma conversa com ele, podia estar
obsecado, sabe como é, Wilma também apareceu para ajudar, e o sujeito se
recusou a conversar e a dizer o nome de sua pessoa.
Senti a ira me tomando, subindo aos borbotões, já já iria destampar
as cordas vocais. Mas disse a ela que nada tinha a ver com suas maluquices.
Apertando os olhos — quase desapareceram de tão miúdos -, mamãe disse
que lamentava muito que logo eu, sua filha, não desse importância ao que
realmente valia a pena, a vida após a morte. Tive vontade de apresentá-la a
seu Evaristo, dariam uma boa dupla.
Estava de saída, quando Nina, olhos vermelhos, entrou. Mamãe
pediu que eu não falasse sobre o assunto; ela é muito impressionável,
segredou perto do meu ouvido. Mal as duas se viram, se abraçaram, e Nina
chorou. Contou baixinho que Sérgio saíra de casa sem se despedir. Virando
o rosto para mim, mamãe voltou a sussurrar que Nina era muito sensível,
achava que Sérgio se aproveitava.
Já que estavam entregues uma à outra, eu disse que iria embora, e
mamãe me levou até a porta enquanto ouvíamos Nina assoar o nariz no
banheiro. Está sempre assim, funguenta.
Ao chegar em casa, José Júlio estava no banheiro. Fui pôr a mesa
para o jantar e me deparei com um livro aberto "Où étudie-t-on les Aurores?
Quel est le programme des études? Quel est l'avenir de cette profession?
Peut-être serai-je un jour Inspecteur Général des Aurores? Demain je veux
m'inscrire." José Júlio levou a sério o deciframento de Auroras!? Quando
saiu do banheiro, sorri para ele, ele sorriu de volta. Sempre de bom humor.
Amanheci cantando parabéns, aniversário de José Júlio. Á noite,
jantaríamos fora, coisa rara, o dinheiro está curto, principalmente o dele,
coitado. Mas quem pode gostar de livro velho, poeirento e sujo, já
perguntei, e José Júlio respondeu que muita gente, mais do que eu poderia
imaginar. Tinha que sair preparada desde cedo porque não haveria tempo de
voltar em casa e trocar de roupa, então pus meu vestido perolado com
brilho furta-cor, decote profundo, transparente; quase nada cobrindo tudo...
Como José Júlio gostava. Ele diz que eu sou uma mulher magnética, atraio
todos para o meu âmbito; meu arrecife, minhas curvas setentrionais, e na
pequena ilha uma orada na capela, que pela, que pela... Cantarolava
enquanto calçava os sapatos salto agulha.
Ao chegar ao Meio do Céu, Roddy disse que eu estava um espanto.
Pouco depois, seu Evaristo entrou, me viu e pediu que no final do
expediente eu fosse à sua sala, precisava encontrar papéis na estante.
Quando o escritório esvaziou, ouvi sua voz me chamando. Assim
que entrei, ele perguntou se naquela noite haveria festa. Eu disse que era
aniversário de meu marido, jantaríamos fora. Sentado à sua mesa, ele me
olhava de alto a baixo. A mesa de seu Evaristo é um móvel grande, escuro,
pesado, com um buraco para que ele ponha as pernas. Apontando para mim
uma escada, pediu que eu a colocasse diante da estante. De onde estava, me
diria onde se achavam as pastas que desejava localizar. Trepei na escada e
ele me pediu que prestasse atenção porque a estante se encontrava
abarrotada e não seria fácil achar. Então, começou a me dirigir: "À direita,
dona Gilda, no canto, por favor"; meti as mãos numa maçarocada de papéis,
"estão na prateleira de cima"; mandou que eu subisse mais um degrau; à
medida que falava, sua voz se modificava, bufava, chiava como uma
televisão fora do Me virei para trás, seus olhos estavam apertados, narinas
dilatadas, o rosto úmido brilhava, e ele mandou que eu me concentrasse no
que fazia.
Mais para lá, dona Gilda, não, para cá, dizia, e sua respiração se
alterava, suando, de repente, alteou a voz, avisando que estava quase
chegando, então gritou: aí!, dona Gilda, aí!, e eu puxei duas pastas verdes e
velhas, enquanto ele dizia, calma, pega devagar e, sacudindo-se na cadeira,
despejou: -A senhora é mesmo uma beleza... — E caiu com a cabeça
apoiada sobre a mesa. Desci da escada e me aproximei para entregar a
sujeira, ele levantou o rosto, pingando suor: — Não sei o que seria de mim
sem a senhora, dona Gilda...
Palavra de honra que vou sair deste emprego nojento, pensei
enquanto pegava minha bolsa para me encontrar com José Júlio, que já
devia estar lá embaixo me esperando.
Quando José Júlio me viu, disse que eu estava uma lindeza, chuchu.
A pizzaria estava cheia, mas conseguimos uma mesa ao lado dos
banheiros. Meia hora depois, tínhamos tomado até o cafezinho.
Ninguém come mais rápido que José Júlio, estou aprendendo a
engolir comida. Assim que saímos do restaurante, deu pressa nele para
chegarmos em casa. Mal entramos, arrancou meu vestido e, correndo
comigo para o quarto, me empurrou contra a cama e caiu sobre o meu
corpo, nos embolamos e, pouco depois, comecei a sentir uma aflição
gostosa quando José Júlio se desmanchou sobre mim.
Não sei o que acontece! Inicialmente resistente, borrachudo, da
espessura de um pulso, o peru de José Júlio se exaure rapidamente.
Pensava nisso, quando escutei: — Faz, Evaristo, assim, devagar,
assim...
A voz de uma mulher no meio da noite. Depois, gritos, gritos sem
fim. José Júlio disse que, como nós, também havia um casal comemorando.
Subia a ladeira de volta para casa, e assim que me aproximei do
nosso edifício, vi um carro todo desenhado. À medida que andava, consegui
identificar que consistia em riscos dourados raios? sobre linhas: auroras.
José Júlio contou que seu carro quebrara e Aurora lhe emprestara o
dela. Nem precisava dizer. Perguntei por que ela fizera aquilo. Ele
respondeu que assim não seria roubado. Nesse instante, vi Bianca ao seu
lado, cheia de fotos de sua mãe com ela no colo. Parece que Aurora tem
medo que a menina a esqueça num fim de semana.
De mão dada com a filha, e a outra me abraçando, José Júlio entrou
no prédio dizendo que a menina viera passar a noite conosco.
Conosco. Não sei o que se passa com José Júlio quando a garota está
presente, ele não para de falar. Canso de ouvir sua voz. Depois do jantar no
qual ele entupiu meus ouvidos, foi levar a menina para a cama. Ficou lendo
histórias. Assisti a um filme inteiro na televisão e ele não apareceu. Ao me
levantar para fazer xixi, ouvi seu ronco no corredor. Chamei-o, e José Júlio
passou para a nossa cama sem escovar os dentes e trocar de roupa.
Acordei com o dia clareando e senti alguém me espiando. Deitada
entre nós, com as chupetas, inteiramente muda, a menina me olhava
fixamente. É uma sensação horrível. Tenho medo de criança, dela então...
Tocaram a campainha. Fui abrir a porta. A vizinha que eu jamais vira
dizia que era telefone para mim. Na casa dela? Fui atender Nina.
Para contar que Dadá tinha escrito dizendo que Hermano trocara de
amant.
Depois de um caso de onze anos (minha irmã fizera as contas),
escolhera uma bem mais jovem, na verdade, uma garota, que adorava viajar.
Daí os constantes deslocamentos de Hermano. Rubia, chama-se. O que
Nina queria que eu dissesse? Que os homens são torpes, indecentes e
infames? Disse, e ela logo desligou. Mas Nina ligou para a casa dessa
vizinha, que eu não conheço, para me contar isso? Saí do telefone e fiquei
esperando José Júlio para contar o que Nina acabara de fazer Depois do
almoço, tinha ido levar a menina em casa. Todas as vezes em que leva ou
busca a filha, demora uma eternidade. Certamente tem de trocar lâmpadas,
apertar torneiras, fixar prateleiras, enfim, trabalhar; o pedágio que paga por
ter saído de casa.
Bem, deve chegar para o jantar. De repente, uma música alta invadiu
o ambiente: I've got you under my skin, vinha do apartamento de cima. Seu
Evaristo estava por lá, e também sabia que José Júlio tinha saído. Devia ter
detetive espalhado por todo o quarteirão. A vizinha voltou a chamar. Dessa
vez, era mamãe.
O que está havendo com elas!? Perguntei se estava com o aparelho.
Não, claro. Sua voz aflita pedia que eu fosse correndo até lá. Nem sequer
deu tempo de deixar um bilhete para José Júlio, saí correndo pela escada;
quando alcancei a rua, olhei para trás, para ver se deixara a janela aberta,
certamente cairia um pé d'água, com aquelas nuvens baixas e negras; ao me
virar, um homem de binóculo, apoiado no peitoril da janela de cima do
nosso apartamento, acompanhava meus passos. Não disse que estava sendo
cercada? Assim que entrei na casa de mamãe, ouvi sua voz ao telefone,
ligando para a ambulância. Disse que já invocara papai e ele achara melhor
chamar o médico para atender a Wilma. Sabia que iria acontecer, sai
andando pela área, e mamãe, atrás de mim, dizia que tinha certeza de que a
empregada não tivera nenhum aborrecimento, a não ser que tivesse ficado
irritada por causa de Arnaldinho, cantara a manhã inteira. Sabe como é
chilrear de canário, comentou, atravessando a área com as mãos para o alto,
afastando os lençóis pendurados no secador.
— Pode me dizer por que está andando desse jeito? Ela mancava,
torta.
— Dor no coração da nádega esquerda.
Fim do interesse.
Encontrei a moça emborcada no tanque. Segurando pela cintura, Lili,
com o pijama pelo avesso, repetia "merda".
Esperei os enfermeiros chegarem, mamãe dizia que aguardava
levarem Wilma para falar de novo com papai, ver o que ele acrescentaria.
Quem sabe falaria também com tia Nininha, ela fora médica,
competente, séria, devota dos seus pacientes. Em meio à fala de mamãe e às
mierdas que Lili soltava, escutei a campainha. Os enfermeiros entraram e
com rapidez ajeitaram Wilma na cama; após um demorado exame,
constataram que ela não tinha nada. A empregada abriu os olhos, sorriu, e
Lili fechou a porta de seu quarto dizendo "bosta"! Os homens se foram e eu
fiquei olhando para mamãe, que, também me olhando, disse que tinha
esquecido a vela acesa no quarto. Era melhor apagar.
6
Demorei tanto para chegar, que encontrei José Júlio em casa,
cansado, claro, e com cara diferente.
— O que é, José Júlio? Diz logo, depois eu conto o que aconteceu na
casa de mamãe...
— Seu chefe ligou.
Estanquei no meio da sala. Quase gritei: — Para quê? Seu Evaristo
telefonara para nos convidar para jantar; pedia que não recusássemos
porque teria uma comunicação importante a fazer e gostaria de contar com
a presença de meu marido, anunciou José Júlio, contente. Quase gritei, de
novo, que não iria, e ele comentou que não estava entendendo a minha
reação. Não iria contar a cena do peru à mostra, tampouco o que tinha
acontecido no dia da procura das pastas.
Além do mais, quem não estava entendendo era eu; José Júlio cisma
com todos os homens, e sequer desconfia de seu Evaristo?...
Jantamos em silêncio, eu, puta da vida. Em breve era O que estaria,
certamente. Enquanto comíamos o macarrão que ele cozinhara, sempre o
mesmo, eu não ouvia passos no apartamento de cima. Quando fomos nos
deitar, fazendo carinho no meu cabelo, José Júlio pediu que eu pensasse
sobre o convite, não valia a pena não ir, eu podia me prejudicar à toa. Disse
que já conversáramos sobre a minha saída do Meio do Céu. Ele continuou
me fazendo carinho, dizendo que o travesseiro era bom conselheiro (falou
igualzinho a mamãe), que eu pensasse, porque no dia seguinte ele teria que
dar a resposta... Nesse instante, tarde da noite, o telefone tocou. José Júlio
levantou-se para atender e lá ficou.
Passado algum tempo em que eu não escutava sua voz, concluí que
era Aurora. Ela tem a liberdade de ligar para nossa casa a qualquer
momento; comprei um telefone para que os dois continuassem a se
comunicar. Quando voltou para a cama, José Júlio avisou que teria de
acordar cedo, porque, antes de ir para o sebo, assistiria à demonstração de
ginástica olímpica de Bianca no Piraquê. Aurora determina o que José Júlio
deve fazer e depois ele repassa pra mim. É assim.
No dia seguinte, ao me levantar, havia um bilhete sobre a mesa:
"Meu bem, espero que tenha dormido bem; me ligue por volta das dez,
quando já devo estar no trabalho. Fiquei de dar a resposta sobre o jantar na
hora do almoço. Beijos. José Júlio" Ao chegar ao Meio do Céu, outro
bilhete me esperava: "Dona Gilda: Espero que a senhora conceda esse jantar
a três.
Pretendo recompensá-la pela gentileza. Cordialmente. Evaristo"
Devidamente pressionada, liguei para José Júlio, que, assim que ouviu meu
sim, se alegrou. É chegado a frescuras.
Á noite, pus meu minivestido amarelo Arnaldinho (se mamãe escuta,
chora), e fiquei esperando José Júlio se aprontar, sempre indeciso quanto ao
que vestir, é comum voltar da porta para trocar calças, camisa ou sapatos.
Nesse momento, escolhia a meia, já havia vários pares sobre a cama,
quando se decidiu; comentou, sorrindo, que seu Evaristo pusera um carro à
nossa disposição. Empolgado com o programa? Mal entramos no
restaurante decorado de verde, com cadeiras de couro negras, o maître disse
que o senhor Evaristo nos aguardava numa sala reservada. Assim que nos
viu ele se levantou, nos cumprimentando, dizendo que folgava (folgava)
muito em conhecer meu marido; estapeou as costas de José Júlio. Assim
cumprimentam— se os homens, na porrada.
Passado algum tempo, em que seu Evaristo se interessou pelo
trabalho de José Júlio, e este contou em detalhes a vida no sebo, o maitre
trouxe o vinho, safra especialmente escolhida para essa noite, comentou seu
Evaristo ao efetuarmos o brinde. Em seguida, ouvimos a voz do maítre
recomendando cérebro de carneiro com azeitonas. Era uma especialidade da
casa. Se não apreciássemos carneiro, interveio seu Evaristo, havia um pato
assado delicioso, extremamente saboroso, porque ao ser morto não era
degolado. Senti ânsias de vômito acompanhadas do início de desmaio que
às vezes me acomete. Nesse instante, seu Evaristo comentou que eu
empalidecera, e José Júlio disse que devia ser a iluminação, não tínhamos o
hábito de jantar à luz de velas, terminou de falar rindo. Tem mania de se
divertir com o que diz, já comentei. Seu Evaristo me observava, e eu tentei
sorrir e esbarrei nos copos que tilintaram. Subitamente sério, em outro tom,
seu Evaristo disse que nos convidara não só para ter o prazer de conhecer
meu marido, como também para comunicar que estava em vias de uma
importante negociação, e para que esta tivesse sucesso, minha presença
seria indispensável, visto eu me encontrar plenamente habilitada a executar
a tarefa que envolvia o Meio do Céu. Voltando-se para José Júlio, e dando
um tapa em suas costas, comentou, sorrindo: — Dona Gilda é a locomotiva
da empresa!...
Continuou: pretendia me recompensar por me privar um sábado de
casa: dois mil dólares por um dia à sua disposição, fora do Rio. José Júlio
escutava com a maior atenção, e eu pensava que o sonho do mastodonte
estava em vias de se realizar. Seu Evaristo continuava sua cantada
milionária: me aguardaria no Yacht Club, e de lá seguiríamos de lancha para
Angra dos Reis, onde se efetuaria a transação. Transação.
Caso meu marido concordasse, enfatizou ele. Nesse momento,
ergueu a taça brindando, olhos brilhando, aguardando a resposta. (Precio
fijo, senõra.
O tomarlo o dejarlo). Na sua pressa costumeira, José Júlio disse que
não se opunha. Como eu nada dizia, seu Evaristo comentou que poderia
aguardar a resposta no final do jantar ou, se eu precisasse de um tempo
maior — o compromisso seria no final de semana -, teria um par de dias
para pensar. Mudando de assunto, perguntou se sabíamos que o tamanho
das orelhas e a forma do crânio determinam se alguém tem tendência ou
não para o crime. José Júlio disse que era uma teoria interessante. Que
conversa...
Nesse momento, José Júlio pediu licença e, levantando-se, sumiu
para o banheiro. Mal ele virou as costas, os olhos de seu Evaristo fixaram-
se nos meus seios; sem me encarar, disse para si próprio: magistrais,
polpudos e rosados. Em seguida, enxugou a boca no guardanapo.
Degenerado.
— Então, dona Gilda, posso contar com a sua colaboração?
perguntou, quando José Júlio retornou à mesa.
— Não, respondi. As sobrancelhas de seu Evaristo se arquearam e
José Júlio me olhou com cara de assombro. Danem-se. Muito rapapé desse
homem para me comer.
Assim dizem eles, os crápulas, cínicos, sacanas.
José Júlio voltou mudo no carro, quem sabe pensando nos dólares
perdidos. Quando conseguiu falar, perguntou o que tinha acontecido para
que eu não aceitasse o convite. Esse cara quer me foder, eu disse, com todas
as letras. E ele: — O que é isso, Gilda...
Entrando em casa, José Júlio comentou que tivera boa impressão de
seu Evaristo, eu devia estar cismada... Lembrei-lhe a cantada fúnebre;
puxando meu corpo para junto do seu, me beijando e abraçando, ele
sussurrou que em relação à sua mulher estava inteiramente tranquilo.
Dormi e sonhei que me afogava, enquanto sobre as ondas Bianca
fazia uma ginástica desordenada.
Acordei com o telefone tocando: mamãe. Queria contar que papai
aparecera e estava preocupado comigo.
Achava que eu corria perigo. Às vezes penso que mamãe tem parte
com o demo.
— Bom dia, mamãe desejei e desliguei.
Passados dois dias em que estivemos mais ou menos mudos em casa,
saí do silêncio: — Não adianta, José Júlio, você pode ficar sem falar
comigo o quanto quiser, porque eu não estou com a menor vontade de ser
lançada em goela de tubarão. Ele me olhava olhos parados, em pé ao lado
da estante.
Já já começaria a rearrumação. Muda os livros de lugar praticamente
todos os dias, diz que eles têm de ser manuseados, assim se preservam por
mais tempo, e toca a alisá-los e cheirá-los. Diz que cada um possui cheiro
próprio, enfim, loucura como outra qualquer.
Nesse momento, lembrou-se da viagem planejada, nossa turnê pelos
pampas... As coisas que fala... Quando percebeu que da minha boca não
sairia palavra, disse, "esta bem, chuchu, você é quem sabe" No dia seguinte,
quando cheguei ao escritório, seu Evaristo já se encontrava. Depois de me
cumprimentar, disse, em voz baixa, que lamentava eu não ter aceitado o
convite para os confins nunca dantes navegados e afastou-se devagar,
passando a mão no cabelo. Não entendi.
Mas devia ter sacanagem, claro.
Mais tarde, correu um zunzum no trabalho; disseram que o chefe
teria uma comunicação importante a fazer. Comunicação todos os dias...
Depois do almoço, postando-se no umbral da porta de entrada, alteou
a voz, dizendo que gostaria de nos dirigir algumas palavras.
— Como vocês sabem... iniciou, empostado -, a empresa fará vinte e
cinco anos de existência sábado próximo. Os que aqui trabalham são
conhecedores desta data que muito nos orgulha. A notícia alegra a todos
quantos envidaram esforços no sentido de fazer desta casa um celeiro de
arte no nosso país. Nós, da parte administrativa da tevê Terrestre, faremos
também nossa comemoração particular: um brunch na sexta-feira.
Sábado próximo haverá a festa na emissora. Agradeço a atenção e
conto com a presença de todos. Obrigado.
Em casa, contei a José Júlio, mas ele disse que não poderia estar
presente, sentia muito. Sentia mesmo — adora frescura, eu já disse -, teria
que ficar com a filha; Aurora iria fazer um refresco.
— Refresco, José Júlio? — É... acho que é plástica, não é? Ficou
sozinho com a dúvida, não respondi. Palavra de honra que acho estranha a
doença dessa mulher. Nada comentei, estou ficando craque em mudez.
Bem, decidi com José Júlio que eu iria apenas ao almoço de sexta-
feira, e olhe lá; no sábado, teria tanta gente, que não dariam pela minha
ausência.
Meio-dia de sexta-feira. Saía de casa, quando vi pingos na rua, voltei
para pegar o guarda-chuva. Depois de descer a ladeira, caprichando para
não quebrar os saltos dos sapatos na buraqueira, vestida como sempre,
pouco pano, muito corpo, consegui, depois de algum tempo, fazer sinal para
um táxi. Deve haver um acordo entre os taxistas para se escafederem
quando cai água nesta cidade de Cristo, meu Deus! Entortei a porcaria do
pé e quase cai...
No percurso, o chofer, Robson, um crioulão com um dos maiores
pescoços jamais visto, cabelos raspados e um chumaço no cocuruto da
cabeça, contava que essas meninas andam de amargar. Tinha dado uma
surra de fio em sua filha de quinze anos que queria namorar.
— Fio!? — Namorar.., e o estudo onde fica, madame? — Silenciei, e
o bruto continuou: — Também, arriei ela no chão, caprichei, essas meninas
só aprendem na porrada.
Eu disse que queria saltar, ali mesmo. O resto, faria a pé. Un ansia...
una opresión...
Ao entrar no restaurante, passei pelo bufê: ostras em profusão,
camarões graúdos com molhos diversos, coquilles de Saint Jacques e
mariscos na concha. O garçom ao lado enumerou os pratos. José Júlio
adoraria.
Assim que me viu, seu Evaristo levantou-se e afastou a cadeira ao
seu lado para que eu me sentasse. Esse homem cismou comigo. A mesa
comprida, repleta de funcionários. Sobre ela, bandeja de prata, taças de
cristal e vinho branco, certamente na temperatura ideal. Onde quer que seu
Evaristo esteja, um balde com vinho no gelo esta sempre preparado.
Ao me sentar, olhando duro para a frente, ele murmurou "pernas
soberbas": Depois, perdigotando dentro do meu ouvido, disse que gostaria
de desfazer a má impressão que certamente havia causado na ocasião que
falara sobre os mortos. Não queria ser mal interpretado. Bem, retornava aos
defuntos, enquanto o garçom ao lado abria uma garrafa de champanhe.
Assim que a rolha espocou seu Evaristo fez questão de encher duas
taças e me ofereceu uma, brindando. Cálice na mão, comentou que sempre
o fascinara a morte encarnada, ou seja, a atração pela pessoa morta mas
ainda viva, como eu à sua frente (a coisa era pesada); essa atração,
ressaltou, sempre o acompanhara. Susie, a três cadeiras de distância,
pescoço esticado, tentava inutilmente acompanhar o que seu Evaristo dizia.
E ele continuava: Se eu pensasse bem, eu mesma era simultaneamente
desaparecida e presente. Nessa hora, felizmente, os garçons aparecem com
os pratos quentes. Entre garfadas de lagosta, ele comentou que era muito
sensível ao fato de sermos ao mesmo tempo vivos e mortos.
— A vida, na verdade, é alvo em fuga! — exclamou, dando um
ligeiro murro sobre a mesa. As pessoas à sua frente balançaram a cabeça,
concordando. — Durante todo o tempo em que nos fartamos, e os aromas
voláteis do champanhe circularam entre nós, seu Evaristo prosseguiu com o
tenebroso assunto. De repente, ouvi atrás de mim.
— Qué desea comer ei se flor? Seu Evaristo fincou os olhos nos
meus, e eu achei que já estava mais do que na hora de ir embora.
7
José Júlio estava arrasado por eu ter recusado o convite de seu
Evaristo. Queria levar Bianca para conhecer os pampas. Cismara com isso,
ver a filha montada a cavalo, desabalada, cabelos soltos, aos quatro ventos.
Assim ganharia saúde, disse, se desenvolveria, era uma menina que
precisava de hectares de terra à sua frente. Sem comentários.
Encontrei um bilhete sobre a mesa de trabalho: "Grato por ter
abrilhantado nosso almoço. Evaristo." Esperei que ele entrasse em sua sala
e bati na porta.
Assim que ele olhou para mim, sorrindo, eu disse que aquele seria
meu último dia de trabalho. Continuando a sorrir, ele murmurou "está bem".
— Tudo o que é ligado a nós, humanos, é da ordem do imprevisível,
não é mesmo, dona Gilda? disse, antes que eu saísse.
No caminho para a casa de mamãe, quase fui assaltada no ponto do
ônibus.
Sob a caixa de chiclete tutti-frutti, uma gilete brilhava nos dedos do
meliante; o ônibus chegou, empurrei as pessoas, furando a fila, me
embarafustando entre elas, e o bandido, fodido, filho da puta, na calçada,
achacava outro infeliz. É uma desgraça. Esta cidade vai virar um grande
diamante derretido, negro. Penso muito em me mudar para o interior.
Plantar batatas, criar galinha e ver pato tomando banho no tanque da
vizinha. Outro dia, em suas frequentes recordações, mamãe contou que
quando criança, na casa da avó, gansos corriam atrás dela. Feliz menina
minha mãe, plumosas criaturas brincavam de pegar com ela.
Encontrei mamãe, revistinha de palavras cruzadas no colo; logo ao
me ver, perguntou se eu sabia o que era aspirante, onze letras.
Pretendente, respondi. Esperei que ela acabasse de escrever,
sorrindo, e contei que saíra do emprego. E não estava com a menor vontade
de lá voltar para buscar o salário a que tinha direito. Mamãe continuava
com olhos grudados na merda da revistinha, e, antes que eu continuasse a
falar, perguntou se eu sabia o que era pavorosa, horrorosa. Tétrica,
respondi, e disse também que ela precisava exercitar seus neurônios, não
eu. Chateada, ela fechou a revistinha, perguntando o que eu queria que ela
dissesse. Que eu tomava as decisões e depois vinha comunicar Como eu
viveria dali em diante? Ela estava muito preocupada, porque dona Edite,
lembra dela?, perguntou e continuou, pois então, quase sofreu um desastre
de avião. Está muito abalada... Mamãe é profundamente ligada em desgraça
alheia. Nada lhe chama mais a atenção. Assiste a todos os noticiários de
televisão. E eu sempre digo que basta o que enfrento nas ruas do Rio,
assaltantes, pedintes, tarados, bandidos e meliantes.
Repeti tudo isso.
— Não sei como um tiro ainda não acertou o Redentor! gritei.
Mamãe sacudiu a cabeça. Lili apareceu na sala. Em seguida, Nina
entrou; com sua chegada, meu tio voltou para o quarto, não suporta mais de
três pessoas ao mesmo tempo. Nina estava com uma cara horrível,
comentou que queria ter uma conversa espiritual com mamãe, se eu
quisesse poderia escutar. Imediatamente começou a falar do medo de
dormir sozinha (como se fosse uma grande novidade...); uma amiga sua
tinha morrido e ela achava que iria aparecer. Sacaneara a moça e agora se
borrava de medo de vê-la pela frente. Bem, falariam de morte a noite
inteira, quando engrenam, demoram a acabar. Fui buscar restos de mudança
no quarto; quando voltei, escutei Nina contando como sua alma conhecera a
de Sérgio.
Não aguentei, fui embora. Ainda escutei ao sair: — Lindo o encontro
de almas, não é, mamãe? Mamãe respondeu que, na verdade, era o único
encontro que valia a vida.
Assim que divisei a rua, um menino de bicicleta desapareceu no
buraco aberto havia três meses em frente ao prédio. Todos os dias cai algo
lá dentro — fora o que jogam -, hoje foi um menino de bicicleta.
Ajudei a içar o garoto. Depois, fui catar um galho para enfiar na
porra do buraco. o que as pessoas se escangalham nesta cidade é uma
enormidade...
"Ah, los vasos del pecho! Ah, los ojos de ausencia! Ah, las rosas
delpubis! Ah, tu voz lenta y triste!" Pablo Neruda "Ah, qué ganas de verte!
Ah, qué brillo amarte! Ah, los botones del seno! Ah, mi voz lenta y triste!
Evaristo "Dona Gilda: Encontrei este poema dentro de sua gaveta, e espero
que a senhora não leve a mal a paródia. Se me conceder alguns minutos de
atenção, passarei às suas mãos seus últimos proventos. Para isso, basta que
suba um lance de escada. Sinceramente, Evaristo." Encontrei a carta na
caixa de correio do edifício. Depois de ler, escutei a música vinda do seu
apartamento: Ne me quitte pas. E nada de José Júlio. Devia estar de serviço
na casa de Aurora.
Apesar do meu corpo ter começado a dar ares de agitação, fiquei
quieta em casa, esperando José Júlio, que logo depois chegou, aos
trambolhões, dizendo que Aurora desaparecera e fora difícil localizá-la.
Depois de muita procura, encontraram-na correndo pela praia,
desabalada, querendo se atirar no mar. Fora um custo trazê-la de volta,
comentou.
Queria tomar um banho noturno, quase disse, mas resolvi perguntar
pela menina. Dormiria na casa da avó, e no dia seguinte cedo estaria na
nossa casa. José Júlio continuou falando de Aurora, depois... desabou no
sofá, roncando. Da Aurora ao crepúsculo em minutos... Que vida, que
merda, eu, em turbulência corporal, e José Júlio arrasado. Fui me deitar,
com os ouvidos surdos de Ne me quitte pas. Pouco depois, tonto feito um
zumbi, José Júlio apareceu no quarto e tombou ao meu lado. Me restavam
os sonhos.
Manhã seguinte, Bianca chegou e eu tentei fazer um carinho nela,
que se afastou e grudou-se no pai. Enroscou-se em seu colo e ficou
brincando com as chupetas que dispôs sobre a mesa, e a boca tapada com
outra.
Quatro eram agora as chupetas; essa menina vive tapada. Pouco
depois, a empregada que veio trazendo a garota foi embora, não antes de
entregar uma carta quilométrica para José Júlio. De Aurora, claro, deve ter
passado a noite escrevendo. Deixei pai e filha se confortando e saí para a
feira. O apartamento de cima em silêncio. Ao descer a ladeira, encontrei um
caminhão trombado contra a árvore que os meninos moradores da rua
plantaram; os garotos davam chutes nos pneus do caminhão.
Devasta-se esta cidade por todos os lados.
Cheguei em casa carregada; depois dos três lances de escada, abri a
porta e me estatelei no sofá. Bianca, escarrapachada em frente, munida das
chupetas, amassava uma revistinha. Perguntei por seu pai e ela não
respondeu. Não fala comigo a criança. Me levantei e escutei o barulho da
água do chuveiro, abri a porta do banheiro que José Júlio deixa sempre
destrancada para a filha entrar quando tiver vontade, e ele, voz ensaboada,
perguntou: — É você, chuchu? Quem mais poderia ser, perguntei, e ele não
respondeu. Devia estar com os ouvidos entupidos de xampu. Não sei o que
tanto José Júlio lava as orelhas, deve ser para limpar o sonido de Aurora.
Fui à cozinha guardar a feira, quando escutei a voz da criança: — A onça
vai te pegar...
Apareci na sala, e ela, quase rasgando a revistinha, continuou: — Vai
puxar seus cabelos, comer suas orelhas e arrancar seu umbigo...
A primeira vez que a menina fala comigo.
De noite, na cama, contei a José Júlio o que sua filha dissera: —
Bianca é criança, chuchu... — Rindo, continuou: — Quando nosso filho
nascer, você vai ver...
— Jamais terei filho algum! — Hein? Cospem, babam, mordem...
José Júlio me interrompeu com sua risada e em seguida dormiu. E eu,
depois de me dedicar a dois ou três pensamentos macabros em relação a seu
Evaristo, fiquei pensando que não fora buscar o salário a que tinha direito.
Dormi e sonhei que estava sozinha numa casa; de repente, hordas de
crianças me rodeavam e, aos poucos, milhares eram as aves pequenas
grasnando, saltando sobre mim, me bicando, fazendo um barulho
ensurdecedor, uma das minhas orelhas voou no bico de uma delas, depois
foram as unhas, os dedos, e eu gritava; quando então me arrancaram a
língua, acordei suando, agitada, e José Júlio também acordou, perguntando
que tanto eu me debatia, quando vi sua filha na porta do quarto; saí e fui me
deitar no sofá da sala.
Assim que amanheceu, José Júlio saiu com a menina para a ginástica
olímpica; senti alívio por ficar sozinha em casa. Depois que tomei o café, o
telefone tocou, e a VOZ era de seu Evaristo.
— Você gosta de corrida de bondinho? Ou prefere apreciar uma
regata? Não entendi. Então ele disse que gostaria que eu conhecesse seu
apartamento na Rui Barbosa, única vista tranquila e animada do Rio.
Queria me pagar o que ainda devia, sempre fora bom pagador e não
era comigo que deixaria de sê-lo. Marcou para aquela tarde, e eu respondi
que não sabia se poderia ir (meu corpo se animava, entortava, empinava...),
e ele disse que, de qualquer forma, me aguardava. Lo encuentro será
costoso. Desliguei, e o telefone, pouco depois, voltou a tocar. Mamãe,
dizendo que Dadá viria de férias ao Rio por dez dias, com Hermano.
Continuou falando, dizendo que chegariam naquele mesmo dia para o
almoço. Ainda bem que Dadá avisara, disse ela, assim tivera tempo de
preparar Wilma para a enchente. Além do mais, vinham com criança.
— Que criança, mamãe? — Você não falou da menina?...
— Você está de aparelho, hein? Claro que não...
Deve ter sabido de alguma coisa, Nina fala tudo para ela...
Mamãe disse que não poderia continuar no telefone Porque teria de
dar um pulinho na casa de dona Idalina, precisava estar aparelhada quando
Dadá chegasse. Terminou o telefonema dizendo que me esperavam para o
almoço.
Deixei um bilhete para José Júlio e fui para a casa de mamãe.
Mal os viajantes entraram, cansados do fuso horário, mamãe quis
saber da menina. Finquei os olhos nela.
— Que menina? — rebateu Hermano, e suas pupilas cresceram
repentinas.
Dadá, que iria se sentar, ficou no meio do movimento, bunda
suspensa no ar.
— Mamãe cismou com a neta de dona Idalina, que volta e meia vem
nos visitar.. falei, pela primeira vez torcendo para que ela não escutasse.
Fez-se silêncio. Mamãe não ouviu, felizmente. Passado o choque da
entrada, Hermano pediu para ler os jornais, queria se pôr a par das notícias.
Ele era outro, rejuvenescido pela plástica. Foram-se as olheiras e as
pálpebras de cachorro sonolento. Em seguida à leitura, disse que precisava
dar telefonemas e se fechou no quarto. A pilantra deve estar em território
nacional.
Nisso, chegou Nina, avisando que Sérgio não viria porque viajara
atrás de trabalho, e que ela não iria se demorar porque ficaram de lhe
arranjar emprego como recepcionista. Teria que voltar para aguardar o
telefonema. Na certa, voltaria para dormir com mamãe; não iria encarar
alma penada sozinha. Nesse instante, o telefone tocou e José Júlio avisou
que não viria, devia estar às voltas com Aurora, sabe-se lá por onde andava
ou corria. Ao terminar o almoço, Hermano voltou aos telefonemas; nos
entreolhamos. Levantando-se, mamãe disse que iria devolver o aparelho de
dona Idalina, que também esperava visitas. Depois de virar outros copos de
cerveja, Dadá, olhos cheios d'água, contou que o único interesse de
Hermano era em Rubia, estava encantado com ela. Mal parava em casa...
Voltando, mamãe perguntou por que Dadá chorava, e Nina disse que era
estresse da viagem.
E eu falei que Dadá estava sendo corneada, no momento, na nossa
própria casa. Mamãe disse que não sabia a quem eu puxara, devia ser à avó
paterna espanhola, que tinha esse sangue descontrolado nas veias; que eu
estava sempre a um passo do exagero, do destempero, da explosão,
enquanto minhas irmãs sofriam dignamente, choravam tranquilamente.
Quer dizer, escutou sem o aparelho, ou não o devolveu? Nesse instante,
Nina disse que estava pensando em entrar para o convento. Mamãe, já sem
o aparelho, cara apatetada, brincava com os dedos no colo. Parece que o
médico também recomendou atividade frenética de dedos. Sugeri que fosse
apanhar o aparelho de volta. Foi o que fez.
— E aí, Nina? perguntou Dadá.
Nina disse que esperaria mamãe voltar Instantes depois, mamãe
entrou com as mãos no ouvido, tentando acertar o aparelho.
— As celas das monjas — continuou Nina — são individuais,
possuem apenas uma esteira sobre um estrado de madeira e uma pequena
mesa. A saboneteira é Uma casca de coco, e a única veste é pendurada num
cabide da parede. Deixam o claustro apenas para consultas médicas, votar
ou ver o papa.
— Não tenho nada contra Nina virar monja, o importante é que ela
esteja numa busca espiritual... disse mamãe.
Enquanto conversavam idiotices, eu pensava que seu Evaristo me
esperava pregado no "cartão-postal" da cidade. Senti meu corpo em fuga
várias vezes, mas eu dizia "quieto"; e ele sossegava.
Algum tempo se passou, mamãe num quarto, Hermano em outro (no
meu), quando escutamos: — Checho! As meninas estão todas aqui! Por que
você não vai também para a sala? Mamãe voltou a aparecer. revistinha na
mão, dizendo que papai estava por perto, e, por razão desconhecida, em
silêncio. Em seguida, perguntou: — Alguma de vocês pode me dizer o que
é cavalo com pouca chance de ganhar um páreo, e está escrito (bras.). —
Passou a revistinha sob os nossos olhos.
— Azarão! gritou Lili do quarto.
Pós-grito, ouviu-se a campainha. Ricardo, o crioulinho que meu tio
acha que é seu filho. Cumprimentando-o, mamãe disse que só faltavam ele
e os netos para que a família estivesse completa. Sérgio inexiste para
mamãe, José Júlio então... Assim que Lili viu Ricardo, seus olhos se
encheram d'água: ele apontou na nossa direção e nos apresentou: — Sua
família, Ricardinho! A essa altura, eu já desistira de ir à casa de seu
Evaristo, apesar de meu corpo, volta e meia, querer afundar na enseada de
Botafogo.
Ricardo e Lili encontravam-se sentados lado a lado em silêncio.
Mamãe contou que assim faziam, todas as vezes, não trocavam uma
palavra, era uma admiração mútua e recíproca, acrescentou (as palavras
cruzadas faziam efeito). Passada meia hora, ou hora e meia, dependendo do
tempo de que dispunha, Ricardo ia embora e deixava, de novo, Lili com
olhos cheios d'água. Nesse momento, Lili começou a sacudir a cabeça sem
parar.
— O que há com Lili? perguntou Dadá.
— Irritado com o zumbido das cigarras respondeu mamãe.
Ricardinho levantou-se instantaneamente, foi até a janela, fez chô e
voltou em seguida para perto de Lili.
Hermano apareceu na sala, sorridente, dizendo que resolvera boa
parte dos negócios com alguns telefonemas.
— Vamos, dona Dadá deve estar cansada... — (Chamando minha
irmã assim?...) Nessa hora, resolvi me despedir e encarar outra família, a de
José Júlio.
8
Havíamos acabado de instalar a secretária. Quando peguei, piscava.
Pensei muito em Aurora antes de comprar esse aparelho; o inferno podia se
ampliar. Bem, um recado: mamãe. Já? Dizia que estavam no hospital,
Wilma não aguentara o almoço, tinha sido demais para ela.
Poucos aguentariam. Desejei melhoras, mas, como ela sabia, não
dava para contar comigo. Desligou na minha cara. Odeio quando ela faz
isso! Ninguém em casa, José Júlio, Aurora e Bianca deviam estar juntos e
felizes. O apartamento de cima no mais completo silêncio. Fui me deitar,
descansar um pouco de família, sempre que estou com eles o estresse é
garantido. Instantes depois, em que os pensamentos vagavam desnorteados,
me lembrei do que Nina dissera: recepcionista.
Recepcionista!? Dei um pulo da cama e liguei para a sua casa. A
secretária atendeu, deixei recado, dizendo que precisava falar urgente com
ela. Passado algum tempo, meia hora talvez, tornei a ligar, secretária de
novo, voltei a repetir o recado. Merda! Onde Nina se meteu? Não disse que
iria para casa esperar telefonema? Passado mais tempo ainda em que achei
que José Júlio amanheceria vendo Aurora emitir seus raios, voltei a ligar
para a casa de Nina, e quando ouvi de novo a secretária quase quebro o
aparelho. Puta que pariu! José Júlio abriu a porta de casa perguntando com
quem eu brigava. Eu disse que achava legal ele se mudar de novo para a
casa de sua mulher. Ele perguntou se eu queria saber o que tinha
acontecido, respondi que, se fosse mais desgraça, me poupasse. Vem cá,
chuchu, eu estava com tanta saudade, falou, tentando me abraçar, e eu
avisei que precisávamos conversar. Depois do banho, estaria a postos, seria
todo ouvidos, disse, seguindo para o banheiro.
— Para trabalhar no Meio do Céu, é preciso primeiro que se dispa
para ver as estrelas...
A voz de seu Evaristo! O canalha vai trepar com minha irmã em
cima do nosso quarto!? Senti que começaria a gritar, quando de novo ouvi
sua voz: — Incline-se mais, para ter uma visão completa da abóbada
celeste...
Tentei sair do quarto, mas não conseguia. Andava de um lado para o
outro, desesperada, quando José Júlio começou a cantar debaixo do
chuveiro, quase gritei para que ele parasse quando sua voz entremeou a de
Nina: — Faz, faz, assim... mais...
Devasso, Corruptor, Delinquente. José Júlio entrou no quarto
enxugando os cabelos na toalha e sacudindo a cabeça e perguntando o que
havia comigo, enquanto eu escutava Nina gemendo. Piscando para mim, ele
comentou que a coisa lá em cima estava animada. Depois, insistiu em saber
por que eu estava agitada daquele jeito, e a resposta na minha língua de
ponta afiada secou.
— O que foi, meu bem?... insistia.
Pedi que saíssemos do quarto, queria conversar em outro lugar, se é
que eu teria condições de falar alguma coisa.
Fomos para a sala. Tive ímpetos de abrir a porta da entrada e correr
até o apartamento de seu Evaristo e socar a porta, mas, em vez disso, me
sentei no sofá, enquanto ouvia na calada da noite Nina gritar, então disse a
José Júlio que eu queria falar sobre sexo.
— Sexo? — É, sexo.
Ele ficou sério, subitamente.
— Eu não tenho tido prazer com você, é isso... assim comecei.
— É mesmo??...
— Você é muito desregulado, afobado, faz tudo na correria...
— Tesão, chuchu...
Ele continuava sério, me olhando, prossegui: — Acha por um acaso
que vou sumir da sua frente!?...
— Vamos resolver isso agora. Agorinha mesmo. — Pulou em cima
de mim.
Apesar de tentar se controlar, em poucos minutos José Júlio se
desmilinguia. Ao terminar, perguntou como tinha sido pra mim. Melhor um
pouco, menti, e fomos para o quarto, o silêncio reinava no apartamento de
seu Evaristo. Quando José Júlio dormiu, caí num choro raivoso, convulso e
profundo.
Acordei com o telefone tocando. Nina. O ódio borbulhou na minha
garganta ao ouvir sua voz. Perguntei o que tinha acontecido, e ela contou
que Sérgio voltara de surpresa, e como fora contratado, depois de tanto
tempo sem conseguir emprego, resolveram comemorar Num motel. Não
tinha sido ela a transar com seu Evaristo!? Fiquei em silêncio, enquanto ela
dizia que nada como variar de lugar. Nina estaria mentindo? É muito
disfarçada, mamãe diz que de nós três é a mais sexualizada. Não sei de
onde tirou isso... Antes de desligar, Nina perguntou o que eu queria de tão
urgente. Perguntei se sabia que Wilma tinha ido parar no hospital. Ela disse
que sim, cedo mamãe ligara para ela. — Era isso? Era, respondi, e ficamos
em silêncio, então eu disse que precisava desligar.
Ao sair, me beijando, José Júlio disse que quando eu quisesse saber
por que se atrasara na véspera, ele contaria.
Tomei café, me arrumei e subi o lance de escada em direção à casa
de seu Evaristo.
— Que prazer em vê-la, dona Gilda! Assim, ele abriu a porta. Sem
me convidar sequer para sentar, me entregou o envelope pedindo que o
conferisse. Tanto tempo se passara, que poderia haver algum engano. Eu
disse que não havia necessidade.
Continuamos por segundos em pé, no centro da sala, e ele, sorrindo,
comunicou que estava atrasado, mas, como dissera, tinha sido um prazer me
rever e, principalmente, acertar as contas comigo.
O telefone voltou a tocar: Dadá. Me convidando para almoçar fora.
O que será que queria? Gastar comigo? Muito estranho...
Encontrei Dadá com olhos úmidos, tinha chorado ou as lágrimas
estavam por vir? Queria me contar a sua noite, será que foi pior do que a
minha? Disse que precisava da minha opinião, eu era tarimbada com
homens. Ri. (O Riso.) Bem, continuou, queria contar que, quando chegaram
ao hotel, Hermano disse que esquecera de comprar cigarros, virou as costas
dizendo que já voltava. No pé que entrou, saiu. Ela passou a noite assistindo
à televisão, quase sem som, para que pudesse escutar o elevador trazendo
Hermano. O dia clareava quando ele voltou; ela fingiu dormir, mas foi
difícil, porque teve que suportar o cheiro de perfume que o corpo dele
exalava.
Nesse instante, descontrolou-se. Batendo com as mãos uma na outra,
rangendo os dentes, disse que estava com vontade de quebrar os copos e
pratos à sua frente.
— Depois vamos ter que pagar avisei.
Sossegou; falou em dinheiro, ela presta atenção. Perguntei então por
que não se separava de Hermano. Ela disse que o amava e temia pelo que
perderia. Começou a chorar, dizendo que naquela manhã, assim que
acordou, Hermano perguntou se ela não iria ver a mãe; sentiu que ele queria
se livrar de sua presença. Almoçamos em silêncio e Dadá, vez por outra,
deixava cair lágrimas no prato. Minha irmã, uma ruindade que se
desmantelava.
Despedimo-nos, ela me agradecendo, e dizendo que teria que voltar
para o hotel. Mesmo sem saber se encontraria Hermano.
Cheguei em casa, e, como sempre, José Júlio não estava, devia estar
ocupado com sua família, e o telefone voltou a tocar Novamente.
Dadá, para me dizer que encontrara um bilhete de Hermano dizendo
que fora mostrar o Pão de Açúcar a estrangeiros de passagem pelo Rio, não
a convidara porque lá ela já estivera várias vezes. Reles Grosseiro Vil.
Tinha ido levar a moça para passear de bondinho, claro. Disse a
Dadá que, por mim, eles podiam despencar do alto do morro. Ela ensaiou
um riso do outro lado e voltou a me agradecer, dizendo que achava que não
nos veríamos mais dessa vez, porque no dia seguinte iriam a Salvador e de
lá seguiriam direto para a Flórida. Hermano e Rubia certamente rolariam
nas dunas de Amaralina, enquanto Dadá compraria fitinhas do Bonfim.
Poderia ter a ideia de reservar uma para quando Hermano dormisse fazer
um torniquete no seu peru.
Fui contar meus dólares que escondo dentro do Pequeno Príncipe
que José Júlio me deu, dizendo ter sido o primeiro livro que lera em
menino. Livro caindo aos pedaços, claro. Apesar de sermos apenas dois
dentro de casa, fora a menina que quando aqui está não desgruda do pai, é
sempre bom não deixar dinheiro dando sopa. De vez em quando Lili diz
essa gíria antiga. O dinheiro estava acabando; sem trabalho e gastando, num
instante eu estaria sem um tostão. Fora o que tenho que contribuir na casa
de mamãe... o alpiste de Arnaldinho. O que José Júlio ganha garante a
comida e o aluguel, o resto corre por minha conta, inclusive as guloseimas
para a menina, de que José Júlio faz questão. Só come besteira, a criança.
De repente, música no ar: You're the top. Seu Evaristo estava por lá,
certamente sabe que eu falo inglês. Quando fiz a ficha para trabalhar no
Meio do Céu, essa era uma das exigências, dominar algum idioma. Falo
inglês e, de vez em quando, espanhol. Enquanto escutava a música, me vi
várias vezes fechando a porta de casa e subindo o lance de escadas, indo
bater na porta de seu Evaristo. Meu corpo fervilhava, convulsionado. Fui
para a sala tentar meditar, Nina havia me ensinado. Fiz posição de lótus,
mas não conseguia me acalmar. Então, subitamente, comecei a tirar a roupa.
Estou sempre a um passo do strip-tease. Fiquei inteiramente nua
caminhando pela casa. Sensação de liberdade desesperada; ilhada no corpo.
Nesse instante, José Júlio entrou com a menina; voei para dentro do quarto
para me vestir, e ele estranhou eu estar daquele jeito, e quando perguntou,
aleguei calor. Voltei para a sala e tentei puxar conversa com a menina, que
obviamente não me respondeu; o pai, percebendo, disse que ela estava triste
porque sua boneca tinha morrido.
— A boneca morreu? É cada coisa que escuto... José Júlio fez shhh
para mim, ou seja, que eu não continuasse o assunto. Pegando a caixa de
lápis de cor e o bloco, perguntou se a filha gostaria de desenhar. A menina
disse que sim. José Júlio riu para mim, enquanto se sentava à mesa com ela.
Bem, sessão familiar. José Júlio desenha muito bem, trabalhou como
desenhista antes de se interessar pelo sebo. Perguntou a Bianca o que ela
queria que aparecesse no papel; a menina respondeu, um homem, grande, e
ele começou a fazer o que a filha pedira.
— E agora? — Uma menina chorando.
— Chorando?...
Bianca balançou a cabeça. E ele quis saber por que a menina
chorava. Ela respondeu que tinha aparecido uma bruxa com chifres, pegou
o homem, enrolou-o num pano e o levou embora.
Chifres? Me levantei e fui para o quarto; algum tempo depois, José
Júlio entrou, propondo lancharmos. Baixinho, perto do meu ouvido, disse
que, aos poucos, Bianca estava conseguindo realizar nossa união, e piscou o
olho em seguida. Que vidinha de merda, que merdinha de vida, pensei, não
disse, e fui para a sala pôr a mesa. Perguntei a Bianca se ela queria ovo
frito: — Só se o meu pai fizer...
José Júlio passou por mim, frigideira em punho, dizendo que ia
estrelar um lindo ovo que brilharia na barriguinha de Bianca. Os dois
sorriram. Tentei outra investida, perguntando se ela queria torrada, ela disse
que não precisava, o papai iria fazer.
Desisti e fui comer minha gelatina, enquanto os dois conversavam e
brincavam na cozinha. Depois de comermos, José Júlio disse que levaria
Bianca de volta, Aurora se levantaria cedo na manhã seguinte; viajariam
para O Nordeste, casa de amigos. Voltaram a sair os dois, e eu voltei a tirar
a roupa e a caminhar com o corpo numa quantidade infinita de energia.
Decidi fazer exercícios dentro de casa. Depois, como não havia mais a
fazer, continuava em curto-circuito, resolvi inventar.
Tempos depois, José Júlio voltou e perguntou o que tinha acontecido
com o meu cabelo.
Açafrei... — disse. E uma preocupação relâmpago passou pelos seus
olhos, acho que pensou assistir a uma Aurora raiando...
Em seguida, tentou contar a história da tal boneca que tinha morrido,
mas eu disse que estava cansada e no dia seguinte gostaria de ter uma
conversa com ele, que me abraçou dizendo que eu jamais podia imaginar
como ele me amava. Voltamos à nossa gincana sexual rápida, suada e aflita.
José Júlio dormiu, e eu fiquei pensando na decisão que havia tomado e que
no dia seguinte iria comunicar.
Acordei com um bilhete debaixo da minha xícara: "Chuchu, teremos
dez dias só para nós, voltarei correndo do trabalho para os seus braços:"
Tomei café chorando, enxugando as lágrimas no guardanapo. Mas havia
tomado a decisão e não voltaria atrás. No fim do dia, quando ouvi o pigarro
de José Júlio subindo a escada (acho que ele fuma demais), me encontrava
sentada esperando para falar tudo que havia pensado nas últimas semanas.
Que, na verdade, era pouco. Ele me beijava, e dizia que eu estava com cara
séria, o que será que tinha para dizer: — Fala logo, chuchu! — Eu quero me
separar.
Nisso, a merda do telefone tocou. Por que não desliguei a meleca
dessa joça? José Júlio falava com a filha no telefone, aos berros, como se a
menina estivesse no Polo Ártico. E ai, tome revezamento no aparelho,
Aurora, Bianca, Bianca, Aurora. Eu sabia quando era Aurora porque ele
pedia que passasse o telefone para a menina. A ligação durou tanto tempo,
que eu comecei a me distrair com meu dedo do pé, minhas unhas estavam
horríveis, fui buscar o alicate e fiquei tirando cutícula, quando de novo vi
José Júlio à minha frente; a essa altura, recuperar o clima perdido foi tão
difícil, que acabei arrancando um bife.
— É por causa de Bianca... de Aurora? — perguntou, com meu pé
em seu colo, sangrando, assoprando-o.
Puxei meu pé de volta.
— Não, José Júlio, claro que não, elas são chatas, mas não é isso... já
conversamos sobre nossos corpos que não se encontram na cama e nem em
nenhum outro lugar.
Pouco a pouco, um circulo vermelho debruava seus olhos castanhos.
— Não pense que eu não estou sofrendo, mas foi um azar esse nosso
desencontro, e a cada dia eu fico mais desbaratada, perturbada, destampada.
— Você não quer pensar mais? Abracei-o.
— Não consigo. Amo tudo em você, José Júlio: orelhas, cabelo, sua
boca linda, seu cheiro, o calor de suas mãos, te amo com todos os meus
corações... — Estávamos de mãos dadas.
Também ele me abraçou e começou a chorar, instantaneamente as
lágrimas escorreram pelo meu rosto; então ele pediu que eu ficasse mais
alguns dias. Beijávamos nossas caras molhadas, quando a campainha tocou
e ele dependurou-se na janela; voltando-se para mim, disse que era o
medidor da luz. Luz.
9
Voltei para a casa de mamãe, e ela disse que sabia, sabia que aquilo
não daria certo. Sujeito comprometido, mulher adoentada, filha pequena,
vendedor de livros, não sabia onde eu estava com a cabeça. O pior era ouvir
essas coisas... Ela continuou, dizendo que esperava que, dali para diante, eu
arrumasse alguém decente; nesse instante, pulei da cadeira, dizendo que era
justamente do contrário que eu precisava. Levantando-se mamãe disse que
não apreciara em nada o comentário. Voltou pouco depois para perguntar
sobre as minhas coisas que haviam ficado no apartamento.
Respondi que ela não ia querer que eu deixasse a casa depenada... —
Não é? Pronunciando o nome de São Judas Tadeu, voltou a se afastar. Por
falar nisso, José Júlio tinha ficado de me devolver o telefone; acho que
queria um pouco de descanso de Aurora. Logo depois, mamãe reapareceu
para contar que mandara fazer o aparelho de surdez. Finalmente, o nefasto
cidadão chegara à conclusão de que ela escutava nada! Lili apareceu e
disse: "Voltou? Que bosta, hein!" Depois sorriu. E quando ele sumiu, me
joguei na poltrona abri o berreiro. Até a vizinha, dona Idalina, veio ver o
que estava acontecendo. Eu não conseguia parar de chorar, soluçava, com a
camiseta já toda molhada e amarfanhada, enquanto mamãe rezava,
invocando o nome de papai, dizendo que não sabia onde ele se metera.
Porque não respondia, e Wilma, aparecendo, disse que eu estava com a
criança de frente. Só parei quando Lili, diante de mim, disse: -Vai passar.
Mais tarde, mamãe bateu à porta do quarto e, abrindo-a devagarinho,
disse que esperava que eu estivesse melhor, mais controlada; aproveitou e
perguntou se eu estava procurando trabalho.
— Agora estou no meio do inferno! gritei, e emborquei a cara no
travesseiro. Depois, abri ligeiramente um olho e a vi saindo, se benzendo.
Não me dá uma folga!...
Durante essa semana, de vez em quando eu ia à casa de José Júlio,
me abraçava com ele, chorava, e depois ia embora. Numa dessas vezes,
encontrei seu Evaristo no corredor; ele parou ao me ver, perguntando se eu
havia me separado. Respondi que sim, e ele falou que também estava
saindo do Jardim Botânico.
— Muito silêncio para nada! E... (custei a entender: sórdido!). Me
despedi cortesmente.
Tenho aprendido expressões antigas. Descobri uma fórmula de Lili
falar.
Assim: Diz uma palavra, Lili, um, dois, três... E ele fala. Fala e
depois sorri. Voltando a seu Evaristo, nos despedimos polidamente (outra
palavra nova para o meu vocabulário), e ele me desejando boa sorte, subiu
os primeiros degraus da escada. Tive muita vontade de perguntar se ainda
havia trabalho para mim no Meio do Céu. Achei melhor não.
No dia seguinte, resolvi fazer uma visita aos meus colegas.
Apareci no escritório. Assim que me viram, fizeram a maior festa.
Mas a verdade é que, na minha ex-mesa havia uma nova recepcionista,
Patrícia, Susie me apresentou; a moça, magra, fina, branca, abatida, fingiu-
se atarefada e não me deu a menor atenção, apesar de Susie ter dito que,
antes dela, era eu a recepcionista.
— Você viu que estou em silêncio? — perguntou Roddy, e
continuou: — Treinando para falar menos. Só que assim engulo muita
saliva.
Rimos, menos a tal Patrícia. Quando eu ia saindo, seu Evaristo
chegava, e me cumprimentando, comentou: — A senhora por aqui, dona
Gilda... venha tomar um cafezinho no meu gabinete.
Entrei, e o encontrei diferente, distante, lacônico (outra palavra de
Lili). Tomei coragem e perguntei se ainda havia trabalho para mim. Ele
respondeu que os cargos estavam ocupados, mas em breve acreditava que
sim, uma funcionária se encontrava demissionária, já dera o aviso prévio.
Perguntei se era a recepcionista.
— Patrícia? Não... de forma alguma...
Quando eu ia saindo, seu Evaristo disse que, assim que a
oportunidade se apresentasse, entrariam em contato comigo, e que,
independentemente disso, gostaria de me convidar para jantar na sexta-feira
próxima, caso não tivesse compromisso.
Precisei conter meu corpo que queria sair aos saltos no Meio do Céu.
Mamãe comentou que nem bem eu me separava e já ia sair com
outro homem, eles não gostam de mulheres fáceis, disse. Mi pobre mamã.
Caprichei, pus meu vestido laranja-papaya, curto, transparente, e
esvoaçante. Gosto de me sentir assim: despojada e sensual. Escovei tanto os
cabelos com os dedos, que quase tiro as impressões digitais.
Pus gargantilha no pescoço e pulseira no tornozelo. Borrifei o
melhor perfume no corpo e saí pelas ruas ouvindo assobios, elogios,
freadas, enquanto, célere, caminhava até alcançar um táxi que me deixaria
no local combinado.
Todos os olhares refluíram na minha direção quando eu atravessei o
interior do restaurante. Ao me ver, seu Evaristo, olhando para o garçom,
murmurou: "Magnífica." — Então, dona Gilda, o casamento da senhora
teve curta duração?... perguntou, assim que o garçom desapareceu
magicamente.
— É, mas eu ainda gosto dele.
Ao acabar de pronunciar a frase, achei que não devia dizê-la.
— Quem sabe voltam? Movimentei as sobrancelhas, melhor do que
falar.
— Em qual aspecto a senhora diria que seu casamento falhou? —
Prefiro não responder.
— Está respondida, sorriu ao dizer, e tilintando uma taça na outra
chamou o garçom.
Os dois comentavam a carta de vinhos, enquanto eu olhava ao redor
Reparei em seu Evaristo; também ele caprichara na vestimenta, além de ter
passado alguma coisa no cabelo para que eles ficassem com aparência
molhada, o que o rejuvenescia. Numa das mesas próximas, um casal, ele, de
frente para mim, me olhava seguidamente. Eu sentia meu corpo
transtornado, alvoroçado, abafado.
Acho que seu Evaristo também percebeu, tanto que disse que eu
estava a própria oferta da natureza, sua mais exuberante expressão. Á
medida que ele falava e me observava, eu sentia que meus seios em
desespero eram capazes de explodir o vestido. Então me vi na cama, e seu
Evaristo com o mastro sempre desfraldado a me perfurar com estardalhaço.
— Desculpe, dona Gilda, mas achei a senhora distante de repente,
estou enganado? — Não, respondi, com vontade de dizer que seu dardo me
perfurava em todos os sentidos.
— Queria lhe dizer que a convidei para jantar na noite de hoje para
participar que estou saindo com outra pessoa... — Quase me levantei,
jogando a cadeira pra trás, indo embora. Ele continuou: Estou lhe revelando
isso para que entenda algo que, da primeira vez que conversamos, lhe fiz
notar. A morte, dona Gilda, é a rainha que governa a todos nós. A senhora
combina pulsação a uma impressionante pujança, interfere com meu prazer.
Já tive a oportunidade de lhe dizer o quanto me encantam corpos sem
movimentos, aspirantes da beleza eterna, imóveis, quase sem que se
perceba ali a turbulência vital, mas sim o apaziguamento de anseios.
Voltara a macabra conversa.
O garçom trouxe os pratos.
— Um festim ao paladar, não é mesmo, dona Gilda? — disse,
observando a comida.
Minha cara certamente era outra, a impressão que eu tinha era que os
seios murcharam, o cabelo desabara, e a maquiagem evaporara, isso sem
falar no estômago, que se fora. Então, como se ainda não fosse o suficiente,
seu Evaristo disse que estava compromissado com Patrícia, a moça com ar
doentio que agora era a recepcionista do escritório. Como não consegui
chegar perto da comida, seu Evaristo perguntou se eu desejava outro prato,
e eu tive vontade de dizer, gritar, que desejava um homem, um homem
básico — seria tão difícil encontrar? Para dizer que nada comi, engoli
azeitonas e pedi chope, que o garçom disse que não tinha, então tomei
cerveja, ouvindo seu Evaristo comentar que era quase um crime desprezar o
Château-Laffitte.
Pouco depois, ele me deixou em casa sem me tocar; minto, segurou a
ponta do meu cotovelo quando descemos os degraus do restaurante.
Em casa, encontrei mamãe com olhos perscrutadores (Lili), abanei a
mão e não emiti um som.
Antes de retirar a roupa em frente ao espelho, me vi desfeita, beirava
os vinte e sete, e nem uma única vez tivera prazer sexual, estava mal...
Deitei pensando em me masturbar, mas em todas as vezes me cansara
mortalmente... De repente, vi a porta se abrir devagarinho; mamãe,
perguntando o que tinha acontecido. Mandei que fosse ver se eu me
encontrava na gaiola de Arnaldinho. Aos berros, claro.
No dia seguinte, resolvi me abrir com Nina. Já que Dadá se
confidenciara comigo, faria o mesmo com Nina. Aproveitei que o aparelho
de mamãe ainda não tinha sido instalado e contei tudo a respeito do meu
casamento. Nina não se surpreendeu. Disse que talvez eu não tivesse dado
tempo, às vezes as coisas demoram. Com ela, acontecera muito depois.
Contou que só alcançara as nuvens (alcançara as nuvens) ao se
imaginar menina nos braços de Sérgio. E todas as vezes era assim. Ela ia
ficando cada vez menor, então, ascendia aos céus. Comigo seria difícil,
daqui que me imaginasse pequena, tudo já tinha se acabado rapidamente.
Nina é muito menor do que eu, deve ter um distúrbio qualquer; no seu caso,
facilitador.
Bem, apesar de ter sido sincera, de nada adiantou a conversa com
Nina.
Fui à casa de José Júlio, que, quando me viu, pensou que eu tivesse
voltado. Mas eu já estivera lá outras vezes e a ideia não lhe ocorrera. Que se
pasó? Nos abraçamos, olhos cheios d'água, como sempre, então eu disse a
ele que gostaria de fazer amor. José Júlio disse que podia ser pior, tentava
me esquecer, então pedi, implorei: — Uma vez só, por favor! Eu mendigava
amor, mas, na verdade, queria fazer a experiência de Nina. Ele hesitou, mas
eu disse que era muito importante. Então, ele perguntou se não tinha sido
exatamente por isso que eu havia me separado. Concordei, mas disse que
não custava tentarmos uma vez mais.
Nesse instante, o telefone tocou, e pelo que pude perceber, era
Aurora, oh, Aurora (na casa de José Júlio, nem é preciso o telefone tocar,
basta tirá-lo do gancho que se ouve a voz de Aurora), não estava bem, como
sempre. Quem sabe não fora por isso não se ressentira da pressa de José
Júlio? Sabe-se lá? Fiquei pensando enquanto ele tentava dissuadir Aurora
de se mudar para La Paz (La Paz?). Por que La Paz, perguntei baixinho, e
José Júlio, tapando o bocal, disse que ficava mais perto das estrelas, e
levantou as sobrancelhas. É cada coisa... Quando largou o aparelho, eu
disse, vem, meu bem, vem... E tirei a roupa, e José Júlio disse que nunca
mulher alguma possuiria um corpo semelhante ao meu. E eu tinha que
aproveitar, porque ele se animara, e, então, tentei me sentir pequena, fechei
os olhos, forçando me ver diminuta, enquanto ele explorava meu corpo
afogueado, e, céus, eu não diminuía nem um tiquito, e José Júlio já muito
entusiasmado, e eu dizia, espera, meu bem, enquanto me lembrava de
crianças, o tamanho das crianças, quem sabe eu alcançaria, espera, meu
bem, eu dizia, e ele afobado penetrou em mim, murmurando, chuchu, você
é a mulher mais gostosa que já vi, e, em segundos, tombou imóvel sobre o
meu corpo.
Merda! Essa história só serve mesmo para Nina, que diminui num
instante, de pequena que é. Me levantei como tinha chegado, alvoroçada,
inquieta, desesperada. Mas disse "obrigada, meu bem". Quando saí, José
Júlio disse que certamente isso tinha feito mal a nós dois. Certo. Todos
certos, e eu profundamente errada e desesperada.
fui embora com uma sensação danada. De que servia o corpo todo
que eu tinha? O pior, chegar em casa e encontrar mamãe. Ela sempre quer
saber o que houve comigo. Nada. Nada acontece no meu panorama
corporal, corporal, sensual, sexual.
Dias depois, esperava o ônibus, quando vi José Júlio e Bianca do
outro lado da rua. Acenei, e a menina, assim e me viu à distância, virou a
cara. Devo ter causado péssima impressão a essa garota.
10
No final do mês, já me encontrava no Meio do Céu. Mamãe ficou na
maior alegria porque voltei ao trabalho.
— Lá todos são tão bons com você... — comentou. Na verdade,
estava satisfeita porque o dinheiro entraria de novo; gaiola cheia dentro de
casa.
A exceção de Patrícia, que se mostrava muito ocupada quando entrei
no escritório, todos festejaram a minha chegada. A moça encontrava-se
ainda mais abatida do que na primeira vez em que a vira, seu Evaristo devia
estar vibrando... Enfim, não é problema meu. Os meus são: trabalho, que
graças a Deus recuperei, sair de vez da casa de mamãe, quem sabe um dia...
e um namorado. Não necessariamente nessa ordem.
Mal pus os pés no corredor atapetado, seu Evaristo pediu que, assim
que eu pudesse, fosse à sua sala. Queria me dar as boas-vindas, como disse
quando entrei, mas estava o mesmo do restaurante, educado, gentil e
distante. Compromissado com a pré-defunta, Patrícia. Não tenho nada a ver
com quem está morto ou vai morrer, meu caso é rir, brincar, me alegrar. E
foi num dia desses, depois do expediente, em que fui tomar chope com
Susie, que conheci o Rui. Estava com amigos, na mesa ao lado.
Como nós, devia ter saído do serviço e se divertiam. Rui puxou
conversa comigo, olhei para ele, e era um moreno bonito, cabelos
brilhantes, gestos largos e sorriso aberto.
Mudamo-nos para a mesa deles, Susie e eu. Susie não sabe beber,
logo fica enjoada, olhos miudinhos, cara de passarinho depenado, é um
horror quando entra nesse estado. Levantando-se e pedindo desculpas, disse
que já ia, e falou baixo no meu ouvido que o assoalho havia algum tempo
girava sob seus pés. Vai, Susie, vai, eu disse. Nisso, os rapazes que
acompanhavam Rui também se despediram. Quando nos vimos a sós, ele
perguntou se eu tinha namorado. Respondi que não, e ele estranhou. Não
iria contar os infortúnios passados, comentei apenas que sofrera o
suficiente, e, para espanto meu, ele disse que também já dera sua cota: —
Quem sabe a fase boa chegou, e justo na nossa hora?... disse, cheirando um
punhado dos meus cabelos.
Daí para a mão foi um pulo. Ele observou detalhadamente a palma
da minha mão, dizendo que me encontrara justamente naquele ponto, e
apontou a linha da vida, onde ela engrena, viu?, disse. Só tem esse
probleminha aqui, mostrou, uma outra linha pequenina que interfere com a
principal. (Será que também ele tinha uma filhinha?) Perguntei o que via,
ele disse que era, digamos uma interseção difícil, um entroncamento de
rotas. Esperei que explicasse porque falava muito bem, além de eu ter
gostado do som de sua voz ribombando dentro de mim. Nesse momento,
Rui perguntou se podia também investigar o meu sorriso. Sorri mais ainda e
nos beijamos, beijamos, beijamos. Três horas da manhã e ainda 108 no bar,
linhas e lábios colados, resolvemos nos despedir. Aguardamos a chegada de
um táxi tontos no meio da rua. Quando entrei no carro, quase esqueço o
endereço; ainda morava com José Júlio? "Ya no estás mas a mi lado
corázon, en el alma solo tengo soledad..." fiz uma zoeira tal entrando em
casa, que acordei o passarinho. Deve ter ficado nervoso, porque piava sem
parar, enquanto mamãe dizia que fazia muito tempo não me via tão
embriagada, mal podia andar, qual teria sido a companhia, e eu não
conseguia brigar porque não localizava a entrada do quarto, fiquei um
tempão em frente à parede, sem saber que assim estava, em castigo de
outrora, e ela, ao lado, falando que eu tinha virado alcoólatra, não tinha
mais jeito, acabaria muito mal, que futuro me aguardava, o lodo, o lodo,
quando, finalmente, identifiquei a parede, berrei com mamãe, o canarinho
piou forte na área, e ouvi Lili dizendo: passa.
Apesar da ressaca, acordei feliz da vida de ter encontrado o Rui.
Mesmo sem esquecer meu amor por José Júlio, acho que finalmente
acertara com o namorado. Alegre, forte, potente, viril... Mamãe apareceu no
quarto, dizendo que jamais tinha pensado em me ver no estado em que eu
chegara.
Eu disse, esquece, e ela disse que eu ia ver uma coisa. Que coisa?
perguntei. Detesto que me ameacem. Ela disse que depois do meu
casamento, se é que aquilo podia ser considerado um casamento (soltou um
muxoxo), eu me convertera numa moça atirada, assanhada. Não ousou dizer
depravada. Queria me informar, e era o que tinha a dizer, que me havia
entregue à santa das causas perdidas.
Não encontrara outra solução. E, para terminar, gostaria de lembrar
que, no filme Farrapo humano, o Ray Milland acaba na sarjeta.
— Já que você está tendo tantas recordações, gostaria também de
lembrar que, para quem inexistiu até quatro meses de gravidez, até que eu
não estou me saindo tão mal...
E ela, olhos rasos d'água (oh, novelas!), pediu que eu tivesse a
delicadeza de não evocar sofrimentos passados. Antes de se afastar, me
entregou uma carta de Dadá, resolvi deixar para ler quando chegasse do
trabalho, não estava a fim de me aborrecer nem tampouco me enraivecer
por causa de la Rubia.
Depois do trabalho, encontraria o Rui, e, quem sabe, ele me
convidaria para algo mais? Avisei a mamãe que chegaria tarde, e ela
respondeu que tinha certeza de que eu arranjara uma porcaria.
Fui me arrumar, apesar de mamãe ter rogado praga, impressionante,
sempre esperando um final infeliz. Veio até a porta do quarto só para me
olhar de banda e sair. Pura provocação, depois diz que não sou sua amiga,
não quero seu bem, e por acaso ela quer o meu? Acho que, com todo bem,
mamãe me quer muito mal...
Já estava quase pronta, um tesão, modéstia à parte, se não encantasse
o Rui, não encantaria a ninguém mais... Quando ia fechando a porta, mamãe
perguntou se eu sairia sem me despedir. Voltei da porra da entrada e fui até
seu quarto, e, depois de me olhar de alto a baixo, ela quis saber o que era
"signo zodiacal regido por Marte": — Áries! Aliás... tudo o que eu preciso:
um homem de fogo! Ela comentou que havia muito tempo me achava
bastante agitada. E enquanto continuava a falar do meu descontrole, pensei
que seria a primeira pergunta que faria ao Rui. Signo, por favor. Mamãe
continuava me olhando, revistinha na mão, e quando senti que viria outra
pergunta, mandei que consultasse a parte de trás da revista; lá, estavam
todas as respostas. Ela disse que preferia perguntar. Me pentelhar, falei. E
ela disse que eu andava falando muito palavrão.
— Pentelho é palavrão? Não respondeu. Faz essas coisas, provoca e
depois emudece.
No trabalho, Susie perguntou se eu queria ir à praia no final de
semana. Nem pensar. Mas já que estava tão minha amiga, eu disse que
queria lhe fazer uma pergunta, íntima, não precisaria responder, caso não
quisesse. Pode falar, disse. Então, perguntei como ela fazia para chegar ao
orgasmo. Não chegava, respondeu. Só acontecera uma vez (sei ao que se
referia). Parece que o corpo vai explodir, depois se sacode, totalmente
descontrolado, sabe como é? Disse que não precisava continuar.
— Nunca sentiu nem de perto? — Nem de longe — respondi, e me
afastei.
Com Susie, eu não chegaria a nada.
Abri a carta de Dadá. Nela, contava que Hermano chegara em casa
em brasa, mais queimado impossível. Os estrangeiros quiseram trabalhar ao
redor da piscina E Dadá ainda passou pasta d'água nas costas dele?...
Respondi em seguida. Irmã: maldade à moda antiga, mande
Hermano e essa moça à puta que os pariu. Já que estava respondendo a
Dadá, aproveitei para lhe fazer a pergunta. A que havia feito a Susie.
Dias depois, Dadá respondeu que, para ser sincera, não fazia a menor
ideia do que era um orgasmo com Hermano; de vez em quando, costumava
usar o chuveirinho do bidê. O corpo saltitava durante um tempo, depois
passava. Mas, pelo amor de Deus, que eu não contasse a ninguém.
Quer dizer, eu não era a única infeliz da família.
Quando tentei puxar o assunto com mamãe, ela disse que eu a
respeitasse, não queria saber dessas nojeiras. Nojeiras...
Pelo visto, apenas Nina se safou, assim mesmo, se diminuindo.
Que bosta.
De repente, me lembrei de duas pessoas; como tinha me esquecido
de Wilma (não há de passar mal por isso... espero) e dona Idalina? Resolvi
começar com a vizinha. Bati à sua porta; pedindo que ela não estranhasse a
pergunta, porque se tratava de uma pesquisa, gostaria de saber se ela tivera
(no seu caso tive que usar o verbo no passado) orgasmo.
— Hein? Perguntei se estava de aparelho, ela respondeu que sim,
mas que podia estar mal colocado, e ficou acertando-o enquanto eu
aguardava. A operação levou alguns segundos e vários sorrisos, quando,
finalmente, tirando as mãos da orelha, perguntou de que se tratava a
pesquisa.
Comecei tudo de novo; quando acabei, ela disse que não saberia
responder, porque uns diziam uma coisa, outros, outra, então ela ficava sem
saber se tivera ou não. Agradeci, e deixei-a na porta, olhos arregalados e
espichados na minha direção.
Quanto a Wilma, esperei mamãe dormir, porque tive a tristeza de
saber por Nina que mamãe tinha dito que eu fazia mal à empregada.
Como!? Passo os dias na rua... Entrei mansa na cozinha; Wilma acabava de
enxugar os talheres e atirá-los na gaveta, com o esporro de sempre.
Comecei a xaropada de novo. Quando terminei, ela disse: — Sei
nada disso não.
Quer dizer, dois depoimentos nulos, de nada serviram. Minha
ignorância pode ter consequências incalculáveis...
Bem, a esperança estava prestes a ser alcançada. Depois do trabalho,
me encontraria com o Rui no mesmo bar em que nos conhecemos.
Durante o expediente, comentaram o meu bom humor Assim que se
aproximava o final do horário, fui ao banheiro dar uma retocada geral.
Senoras e Senores, aqui me voy a encuentrar al Rui... mas que nome
curto e gostoso de pronunciar, ui!, quase dei de cara num tapume em plena
esquina, que lá ficou aguardando o próximo transeunte.
Quando o Rui me viu, me abraçou tão forte e durante tanto tempo,
que parecíamos namorados de longa data. Excelente recepção. Nessa hora,
lembrei de perguntar seu signo, e ele disse que era o sofredor do zodíaco.
Quem? Com o tempo, eu adivinharia; ele sorriu, beijando a ponta dos meus
dedos. Uno a uno... Bem, começamos o vira-vira dos chopes, até que, em
um dado momento, o pingente do meu brinco se enlaçou na pulseira do
relógio dele. Não sei como aconteceu... Então, ele sugeriu que eu
encostasse a cabeça na mesa enquanto tentava o desengate. A operação
demorou, em função dos chopes ingeridos sofregamente; o lóbulo da orelha
doía, e o Rui, disfarçadamente, sorria. As pessoas olhavam a cena, algumas
sorriam, e eu feito imbecil arriada numa mesa de bar, acompanhando de
banda o movimento. Quando finalmente conseguiu, Rui disse que queria
ficar à vontade comigo. Apesar da bochecha fria e melada, ainda pensei:
uau. Saímos às pressas e nos enfiamos no primeiro motel que encontramos
na cidade. Assim que entramos no quarto, ele pediu cervejas pelo telefone.
Ao ficarmos nus, nos agarramos aflitos, nos beijando, embolando de um
lado ao outro, numa luta apaixonada, suando, rolando pela cama, quando,
subitamente, esquecendo-se de mim, ele entrou numa espécie de briga
amorosa com seu peru. Segurava-O, puxava-o, dizendo, calma, calma, está
quase (se dirigia ao membro ou a mim?)... quando senti algo mole e frio
esfregado na minha xoxota. Suspendendo a movimentação, e coçando a
cabeça, Rui disse que teríamos que aguardar um pouco.
— Quer tomar uma cervejinha? — perguntou, virando-se para mim.
Sentamos na cama, desgrenhados, afogueados, manchas vermelhas
espalhadas pelo corpo, e brindamos; não sei a quê. Depois de muita cerveja,
Rui começou a falar de um amor que tivera e que achava que destruíra sua
vida.
— Ela roubou meu passado — disse, emocionado.
Roubou seu passado!? Não entendi, mas abracei-o e, feito Lili, disse:
passa.
Mas, convenhamos, não dou sorte.
Durante a semana seguinte, voltei ao meu posto de recepcionista.
A moça adoecera, eu já a achava muito mal, mas parece que dessa
vez contraíra uma pneumonia. Seu Evaristo devia estar completamente
apaixonado.
Nesse final de dia, em que depois me encontraria com o Rui, fui à
sala de seu Evaristo entregar os últimos contratos que acabara de digitar.
Nesse instante, aquela espécie de desmaio que vez por outra me acomete
me surpreendeu. A sala girou, ainda cheguei a escutar a voz dele, e senti
seus braços me amparando; acordei recostada no sofá, blusa aberta, sem
sutiã, e ele dizendo que eu tinha passado mal mas estava divina, tão pálida e
bela, um verdadeiro ser celestial. Me levantei, seios à mostra, sacolejantes,
e ele perguntava sobre o que me acometera, tentando me ajudar a pôr o
sutiã, mas eu me afastei e meus peitos enormes, rebeldes, custaram a se
encaixar nas taças. Saí confusa do seu gabinete, trôpega, e fui acabar de me
ajeitar no banheiro.
Após o sinistro episódio, me encontraria com o Rui. Era o nosso
quarto encontro, e até aquele dia, à exceção de beijos, aflições e abraços,
não acontecera nada. Rui era doce, carinhoso, inteligente, sensível, mas
conseguia frear aquém de José Júlio. Incrível. Os finais dos encontros
sempre iguais, ele bebendo, me beijando, acarinhando, emocionado, falando
na tal moça.
Dias depois, na quinta noite em que nos encontramos, resolvi
terminar com o Rui. Foi muito difícil, porque, pelo visto, ele colecionava
sofrimento, disse que daquele dia em diante sofreria também por mim.
Deixei-o no mesmo bar, terrivelmente sentido. Que horror Avante, Gilda,
um dia, quem sabe, você vai ser feliz! Cheguei cedo em casa e, por incrível
que pareça, encontrei Lili, mas não encontrei mamãe. Terminada a novela,
ela fora devolver o aparelho a dona Idalina, e parece que, ao introduzi-lo no
ouvido da vizinha, exagerara no empurrão, tudo isso disse meu tio, e em
seguida perguntou: — Rifou o rapaz? — Rifou, Lili?...
Tinha dado as costas, já havia falado por hoje, disse.
No trabalho, depois do episódio do meu mal súbito, seu Evaristo
voltou a ser o de antes. Cartões, telegramas, flores, interesse pela minha
saúde. Patrícia nunca mais apareceu, disseram no escritório que os pais a
levaram para se tratar em São Paulo. Para tristeza de seu Evaristo,
certamente. Ele voltou a bufar para o meu lado.
Ao chegar em casa, depois de negar um jantar num ambiente íntimo,
decoração refinada e cardápio seletivo, encontrei Nina, em prantos (o que se
sofre não é brincadeira), contando para mamãe que Sérgio iria trabalhar em
Vitória. Chorava de saudades antecipadas, enquanto mamãe dizia que o
amor provocava muito desassossego e dor.
Deixava a pessoa desorientada. Nisso, escutamos: — Carina! Carina!
— A voz de meu tio.
Deve ter sonhado com ela, disse mamãe se levantando e passando a
mão nos cabelos. Lili repetia cada vez mais alto: — Carina! Carina! Mamãe
disse que era necessário tomar providências, chamou Wilma, que se
encontrava no quarto, descansando (dorme todos os dias depois do almoço),
depois as duas passaram correndo pela área e foram bater no quarto de Lili,
que, ao abrir a porta, ouviu mamãe anunciar: — Carina veio lhe fazer uma
visita! — e apontou Wilma.
Lili exclamou "querida", e fechou a porta. Durante algum tempo,
ficaram os dois lá dentro fazendo sabe Deus o quê.
Nessa circunstância, perguntei a Nina se era permitido enganar ao
outro espiritualmente, e ela foi incapaz de responder. Tem horror a ir contra
mamãe. Enquanto isso, uma cena se desenrolava na área; limpando
sofregamente os azulejos na periferia da máquina de lavar, mamãe contou
que a tal Carina tinha sido noiva de seu irmão e o abandonara para se casar
com um oficial de marinha que, na época, andava muito em voga. De
repente, a porta do quarto se abriu e Wilma, tentando baixar a carapinha
com as mãos, disse que se cansara de ser Carina.
11
Encontrei José Júlio, Bianca, e uma moça os acompanhava. Parei em
frente a eles e tentei fazer um carinho na menina, que se encolheu,
escondendo o rosto nas calças do pai. José Júlio contou que se casara com
Mansa, e a moça sorriu dentes trepados. Perguntei se ele continuava
morando no Jardim Botânico, respondeu que sim, mas disse estar com
pressa, porque levariam Bianca ao Zoo. Sempre apressado. Zoo.
Desapareceram da minha frente, e eu segui andando; passos depois,
as lágrimas rolaram, pingando minha blusa. Me meti num ônibus, e assim
que me sentei ao lado da janela, lembrei do primeiro dia em que saí com
José Júlio, na verdade, primeira noite. Não nos conhecíamos, amigos em
comum marcaram um programa e não apareceram. Na hora combinada,
desci em frente ao prédio e lá estava José Júlio, no meio da calçada.
Desconhecidos, atrapalhados, tontos, nos olhávamos, enquanto as pessoas
atravessavam à nossa frente; depois de alguma hesitação, ele propôs irmos a
uma boate. O que fizera de Aurora e Bianca naquela noite de sábado?
Nunca perguntei. Mal adentramos a escuridão da paixão que pouco a pouco
nos assombrava, ele me convidou para dançar, embora não soubesse, e
assim dizendo sorriu, sua linda boca de comer ambrosia. No meio da pista,
encabulados, nossas mãos se procuraram, os cantos dos olhos se miravam, e
quando começamos a nos mover vagarosamente no meio do salão, José
Júlio iniciou uma série de histórias. Ao terminar de contar a do peixinho
dourado que não podia morrer afogado, nos encontrávamos abraçados, nos
beijando, e eu quase chorava com a chegada de algo que desconhecia, ah,
meu amor...
O trocador à minha frente avisava que era o ponto final, e eu
perguntei se poderia esperar pela próxima saída. Ele estranhou, se coçando
(não sei por que os homens fazem esse gesto), dizendo que ia demorar.
Fiquei ali dentro, numa tarde de outono nublada, uma réstia de sol se
pondo, temperatura em declínio; em condições instáveis.
Quando estava para saltar na esquina de casa, me lembrei do
aniversário de Susie. Ainda bem que havia comprado o presente. Susie
avisou que faria uma reunião íntima, porque seu cachorro não tolerava
muita gente. Me vesti com mamãe ao lado, perguntando como eu iria
chegar. Não dei resposta, para certas coisas é melhor não responder. Na
saída, disse que era aniversário de Susie; ela então comentou que a noite
devia ser menos agitada porque Susie não tinha bebida alcoólica em casa.
Quem disse? Não perguntei. Não dou a menor chance de encompridar
conversa com mamãe, todas circulares, não dão em nada. Abri a porta para
sair, enquanto Nina entrava, travesseiro dentro de uma sacola; perguntei se
estava de mudança, e ela disse que se cansara de acordar torta em cima das
almofadas duras do sofá. Em seguida, puxou uma camisola estampada de
nuvens. Sempre que Sérgio viajava, também ela ficava nas nuvens, disse.
Sei ao que se referia, enquanto mamãe a chamava de santinha. Me
despedi e deixei Nina abraçando mamãe, já com soluços na voz.
Até que Susie estava bonitinha, mas tem tamanho de pônei, por isso
está sempre de saltos. Nunca disse isso a ela, primeiro, porque deve saber,
depois, porque ninguém gosta de ser confundida com cavalinho. As pessoas
se espremiam na sala apertada de Susie. Um rapaz de rabo-de-cavalo
comprido mexia no aparelho de som e, ao se virar de frente, nos vimos; o
porte atlético e os cabelos esticados davam-lhe uma aparência rupestre,
digamos. Ele se postou imediatamente ao meu lado, perguntando meu nome
e se eu era amiga de Susie; dei várias cruzadas de pernas (sou boa nisso,
treinei muito em frente ao espelho), e, azeitona pra cá, azeitona pra lá,
comentou que eu era bonitona, daria uma grande aventureira (?). Nisso, a
porta se abriu e seu Evaristo entrou carregado de flores. Susie fez um
escândalo quando o viu. O cachorro deve ter estranhado, porque latiu rouco
na área. Susie comentou em voz alta que Afonso tossia. Afonso. Seu
Evaristo cumprimentou um por um, e quando chegou a minha vez,
exclamou, com olhos bamboleantes: — Que surpresa, dona Gilda, não
esperava encontrá-la... Susie dava gritinhos, se exibindo, dando voltas como
se estivesse no picadeiro, e os olhos de seu Evaristo, depois de passearem
por todas, pousaram em mim. Numa das vezes em que me levantei para ir
ao banheiro (segundo mamãe, devo ter bexiga caída, de tanto xixi que faço),
seu Evaristo cochichou no meu ouvido que sairia da festa comigo.
Encarnou de novo na minha pessoa. Me tranquei dentro do banheiro e
fiquei pensando que solução daria, e cheguei à conclusão de que sairia
cedo, com a desculpa de que minha irmã havia chegado de viagem, partiria
no dia seguinte e eu queria vê-la. E foi o que fiz, mas, ao chegar à rua, o
carro de seu Evaristo, com chofer, estava diante de mim, e sua voz,
repercutindo nas minhas costas: "Entre, por favor, dona Gilda, quero
surpreendê-la? Como se fizesse outra coisa... Desviei e saí andando, quase
correndo pelo calçadão da Avenida Atlântica. Ao chegar na primeira
esquina, o rapaz da festa, Bruno, ao meu lado, perguntava o que tinha
acontecido. Todos atrás de mim? Eu arfava, sem conseguir responder, e
depois de caminharmos dois quarteirões, ele me convidou para tomar
alguma coisa. Paramos num bar, e quando o garçom se aproximou, o rapaz
pediu um guaraná diet para ele. Isto mesmo que ouvi. Conversa vai,
conversa vem, contou que em sua vida buscava o bem-estar físico; fazia
mountain biking, se eu sabia do que se tratava. Como não respondi,
explicou que era pedalar em terreno acidentado. Havia também o trekking,
continuou, caminhada por trilhas, e escalada, canoagem, asa-delta, rapei,
sabe o que é? Descida de montanha com auxílio de corda, respondeu, e eu
me levantei dizendo que iria ao banheiro. Na volta, trilhas que não
acabavam mais. Enfim, encontrara um desportista, espécime desconhecido
no meu currículo, agora já não tão pequeno. Ao chegar em casa, mamãe
disse que finalmente eu arranjara boa companhia, seria ótimo que eu
repetisse saídas assim. Falei que nunca, nunca mais, e ela se afastando disse
que eu não tinha jeito, gostava mesmo era de fuzarca.
Fuzarca?...
Na manhã seguinte, no trabalho, duas pessoas praticamente não se
dirigiam a mim. Seu Evaristo e Susie. Ele, certamente porque o deixara
plantado no meio da rua, e ela, por acreditar que ele e eu seguíramos
viagem juntos. Dois imbecis. Para ela, esclareci. Disse que, se estivesse
pensando que saí com seu Evaristo, estava muito enganada, tinha passado o
resto da noite ouvindo falar em mountain biking, e Susie sorriu. No final da
tarde, seu Evaristo me chamou ao seu gabinete, fazia algum tempo usava
essa palavra, devia ter achado mais condizente com a sua idade. Assim que
entrei, ele disse que ficara sentido com a desfeita, queria me proporcionar
uma noite plena de acontecimentos prazerosos. Eu disse que avisara na
festa que queria me despedir de minha irmã, esperava que, como os outros,
ele tivesse escutado. Ele pediu que, por favor, eu não repetisse o gesto, e
deixou a mão no ar.
Com qual intuito?... Transformar-se em tapa? Perguntei se poderia
sair.
Seus olhos falcônicos acompanharam meus passos até eu
desaparecer da sala.
Na volta do trabalho, ao sair do elevador, ouvi os gritos de mamãe e
dona Idalina. Conversavam.
Quando mamãe fez uma pausa, e me viu à sua frente, disse que um
rapaz muito simpático ligara: Bruno.
Sabia que não ficaria naquele diet.
Chegou outra carta de Dadá. Tinha conhecido Rubia numa festa. A
moça cintilava em joias, cabelos negros escorridos, boca e vestido
vermelho-sangue. Dadá disse que a encarou tanto, que no dia seguinte
tivera que ir ao oculista. Resultado: ressecamento da mucosa ocular.
Mamãe apareceu no quarto perguntando o que tinha acontecido com
Dadá, e eu disse que não tinha acontecido nada. Continuou à minha frente,
aguardando sei lá o quê; pedi licença para ficar sozinha e ela perguntou o
que eu iria fazer. Pensar na vida, disse.
Pensei, pensei, e liguei para o Bruno, que atendeu de pronto.
Combinamos uma saída, para a noite seguinte. Mamãe voltou a me
perguntar por Dadá, e eu disse que, se quisesse saber dela, bastava telefonar.
Esqueci de contar que mamãe tinha mandado fazer o aparelho de
surdez mas não se adaptara, continuando a preferir o de dona Idalina.
Perguntei por que não fazia um igual. Ela disse que não tivera a ideia.
Burrinha. Toda a comunicação, como sempre, aos gritos.
Noite seguinte, antes que fôssemos parar nos diets, entrei no carro do
rapaz, dizendo: — Pronta para a aventura! — Seus braços estufados de
veias viraram o volante em direção a um motel.
— Gosto de mulher assim: decidida! — Deu uma fungada no meu
pescoço.
Chegando ao motel, ele se despiu e, mostrando o muque, pediu que
eu o apalpasse. — Viu só, bonitona, a dureza dos músculos? Depois,
dizendo-se ótimo em trepadas, perguntou se eu não iria tirar a roupa; foi o
que fiz. Ficamos nus, e ele mergulhou em cima de mim, comentando que
dava várias seguidas, e, como um réptil veloz, introduziu-se no meu corpo,
começando a se movimentar freneticamente; passados alguns minutos,
disse, agora de lado, pouco tempo depois, agora do outro, menos tempo
ainda, na beira da cama. Parando subitamente, ele comentou que o esporte
fazia o sangue correr mais rápido nas veias. Iria pedir um refrigerante,
recomeçaríamos logo a seguir.
Comecei a me vestir, alegando cansaço e dor de cabeça. Que pena,
disse ele.
Deus meu...
Está cada vez mais difícil ser feliz, foi o que pensei enquanto enfiava
a chave na porta e a porteira da madrugada abria do outro lado, dizendo-se
orgulhosa de ver como eu estava chegando em casa.
Ao acabar de pronunciar a ridícula frase, o telefone tocou e mamãe
foi atender Rápido o recado. Ela largou o aparelho muda, gesticulando,
como se fizesse ginástica. Aguardei o que seria aquela manifestação. Bem
capaz de ter falado com defunto, o dia inteiro escuta coisas e tem visões.
Quando conseguiu recobrar a fala, soprou: — Ricardo morreu! —
Despencou no sofá, abanando o rosto com a mão.
— Ah, meu Deus, o crioulinho de Lili...
Ela balançava a cabeça, e num fio de voz perguntou como daria a
notícia ao irmão.
— Não precisa dar... não diz nada...
— Tenho que dar, devo dar, o rapaz fez de Lili seu herdeiro...
Imediatamente vi uma montanha de dinheiro ser despejada lá em casa. Tudo
que ele possuía em seu quarto: um rádio, uma coleção de revistas antigas,
Cinelândia e Radiolândia, uma caneta Parker, poucas roupas, e um par de
coturnos. Deve ter ganhado essas botas, porque Lili não serviu ao
Exército... (falou para ela mesma). Seu tio tem de comparecer, se
apresentar... onde mesmo...? Esqueci. Bem, temos que nos informar.
Comunique às suas irmãs.
Súbito, Lili saiu do quarto. Aproximando-se vagarosamente dele,
mamãe disse que, infelizmente, precisava lhe dar uma notícia triste.
Lili recuou em direção à cozinha. Voltou com quatro velas nas mãos,
que acendeu e dispôs em cruz no chão da sala, deitando-se em meio a elas.
Assim ficou durante três dias, levantava-se somente para cumprir
necessidades fisiológicas, beber leite e apanhar mais velas. Nesse meio
tempo, Nina veio dormir em casa. Apavorou-se quando se deparou com Lili
esticado na sala. Mamãe a chamou e deve ter contado a história. Mas a
única coisa que Nina queria era saber onde pôr seu travesseiro, e mamãe
disse que se ela quisesse poderia dormir no colchonete do seu quarto.
No terceiro dia, meu tio levantou-se e, como era raro vestir-se,
durante algum tempo rodou dentro do terno de meu pai que mamãe
guardava dentro do armário cheio de naftalina; finalmente pronto, saiu.
Logicamente, não voltou a aparecer. No dia seguinte, estava na primeira
página do jornal. "Louco se rasga em frente ao tribunal, exigindo filho de
volta!" Precisei sair cedo do trabalho, deixei recado dizendo que tinha
perdido uma pessoa da família. A tarde, mamãe e eu fomos buscar Lili no
sanatório, que, ao nos ver, desandou a pular, pés descalços, calças
arregaçadas, pronto para a luta de reaver o filho, dizia.
No trajeto, dentro do ônibus, Lili vinha no banco da frente com a
cabeça tapada pela camisa, peito nu, encostado no vidro da janela, falando
sozinho. Mamãe resolveu conversar Como se fosse o assunto mais
corriqueiro do mundo, disse que, quando eu era pequena, havia passado
algum tempo com meu pai na Espanha. Por que só então me contava, gritei
dentro do seu ouvido. Ela respondeu que tinha sido muito sofrido ficar
longe de mim. Pedi que continuasse, e ela disse que era apenas isso; na
época, minha avó paterna adoecera, e meu pai e eu viajamos e lá ficamos
durante um ano. -Um ano!? Vários passageiros viraram a cabeça para trás.
— S, em Madri. O pior foi que lá quiseram trocar seu nome pelo de
Guadalupe, mas seu pai não deixou... Você chegou aqui falando espanhol,
tão bonitinha...
Qué vengan los toros y chefren mamá! Toquei a campainha e
saltamos.
No dia seguinte, seu Evaristo, passando pela minha mesa, disse que
assim que eu pudesse fosse ao seu gabinete. Quando lá entrei, ele quis saber
em detalhes a história do Ricardinho. Contei. Quando terminei, ele disse: —
Crioulinho quando morre é ainda mais comovente, porque lembra a nossa
pobreza, miserabilidade, instabilidade vivente.
Por que a modificação em seu estado de espírito? Chegando em casa,
mamãe disse que Lili estava muito emocionado; na verdade, vertera
algumas lágrimas porque recebera um cartão do meu chefe: "Consternado
com o desaparecimento súbito de seu filho, apresento minhas
condolências:" Mamãe continuava falando, dizendo que algumas notas
acompanhavam o bilhete, mas Lili não quis dizer quanto recebera.
Me lembrei de ligar para José Júlio e contar a história de Ricardo.
Uma voz de mulher atendeu, perguntando quem gostaria de falar.
Eu disse que era eu, e a moça respondeu que ele não podia atender,
se eu quisesse poderia deixar o recado (um custo ouvir, porque acabaram de
inaugurar uma britadeira na rua, um barulho colossal de que mamãe nem se
dá conta). Além de dentes trepados, a mulher tem língua presa? E será que
ela fala assim com Aurora? Quando desliguei, mamãe comentou que
felizmente Lili voltara ao que era: — Graças a Deus, menos uma coisa para
entupir minha cabeça congestionada por tantas células mortas espalhadas
pelo cérebro.
Quando percebeu que eu não pronunciaria uma palavra diante do que
dissera, perguntou se eu sabia O que era falta de consideração, onze letras.
Eu disse que era do que ela me acusava a todo momento. Ficou confusa;
quando isso acontece, inevitavelmente os óculos entortam. — De não ter
respeito pelos mais velhos? — perguntou. — E como se chama a pessoa
que não respeita os mais velhos, hein?... Hein?... — Desrespeitosa! —
aproveitou e respondeu em tom de xingamento.
12
Cheguei do trabalho e me sentei para ler o jornal, esperando o jantar,
quando mamãe se levantou e desligou a televisão. Não iria assistir ao
noticiário da cidade sangrenta? Caminhando na minha direção, na ponta dos
pés, inclinou-se à minha frente e, procurando o meu ouvido, perguntou se
eu tinha visto Gumercindo; continuava o mesmo, elegante, sóbrio, olhar
sonhador, apontou com os olhos a poltrona vazia. Me levantei e fui acabar a
leitura dentro do quarto.
Ia assustá-la também, voltei e disse: — Sabia que existe uma
formiga chamada "louca" que faz ninho dentro da casa dos velhos? Mamãe
disse que não iria admitir escárnios. Escárnios. Está aí uma palavra
interessante para o meu vocabulário. — E o que significa essa palavra? (Eu
já escutara, mas tinha esquecido.) Ela respondeu que bastava de conversa
por ora. — Está bem, não digo mais nada— e me precipitei sobre ela com
cuidado para não quebrar seu esqueleto de vez.— Me dá um beijo, disse,
beijando-a.
Então ela disse que não estava nada satisfeita comigo havia muito
tempo, eu sabia, por vários motivos, mas naquele momento não iria
enumerar, chegara a hora do Amor tirânico. Novela. Conversaríamos
depois, concluiu.
Antes de ela se retirar da sala, avisei que, no dia seguinte, depois do
trabalho, iria ao cinema, sozinha. Não ando boa de arranjar companhia, não
comentei. Ela permaneceu muda, já devia estar ligada na tirania da novela.
No final do expediente, quando praticamente todos saíram, eu
arrumava as coisas, quando senti uma dor Forte. Acho que devo ter soltado
um grito, porque seu Evaristo apareceu diante de mim assustado,
perguntando o que tinha acontecido. Eu estava dobrada sobre mim mesma.
Então, me levantando e abraçando, ele me conduziu para o sofá do seu
gabinete; enquanto eu me contorcia, ele me apalpou o quanto quis, até
chegar à conclusão de que a dor situava-se do lado direito da barriga.
Levantando-se, foi até o corredor e avisou que precisava sair com
urgência, uma funcionária passava mal. Voltando, ajudou-me a levantar, e
saímos do escritório cuidadosos e apressados. Assim que chegamos à
garagem, ele chamou seu chofer, que abriu a porta do carro; sentamo-nos no
banco de trás. Até alcançarmos a casa de saúde, ele alisou minha barriga,
que doía, doía, e sua mão morna passeava pelo meu ventre, e ele dizia que
em breve passaria. Mal demos entrada, fui examinada pela equipe de
emergência, que disse que eu precisava ser operada com urgência. Quadro
de apendicite aguda. Pedi a seu Evaristo que avisasse a mamãe; depois que
me puseram na maca e ela deslizou por um corredor, entrando numa sala
onde acertaram um luzeiro sobre mim, não vi mais nada. Acordei com seu
Evaristo de um lado da cama e mamãe do outro. Na mesa de cabeceira,
meus olhos se entortaram e viram um buquê de rosas rosa dentro de um
jarro. Depois de terem me contado que a operação tinha corrido bem, e que
agora era questão de repouso, seu Evaristo disse a mamãe que ela poderia ir
para casa, não precisava se preocupar, ele cuidaria de tudo. Foi levar mamãe
num táxi, e ela saiu dizendo que ainda tremia pelo susto da novidade. Susto
da novidade.
Não sei quanto tempo dormi, só sei que acordei sentindo dores,
misturadas às mãos de seu Evaristo, que dizia que ia passar, mas naquele
momento eu precisava urinar, e ele pôs a comadre sob mim, e ficou
aguardando. Pedi que chamasse a enfermeira. Ele disse que não ficaria
sossegado me deixando em mãos alheias, e eu estava infinitamente bela,
pálida, descorada, um colosso! ele se dirigiu para a ponta da cama,
suspendendo o lençol.
— Da mata cerrada, observo...
Avisei que ia gritar. Ele saiu, dizendo que eu o privava de um prazer
único. Uma enfermeira com cara retinta entrou e sentou-se na cadeira ao
lado da cama, dizendo que, se eu precisasse de alguma coisa, seu nome era
Joderlina. Joderlina? No dia seguinte, acordei cheia de dores e um tremendo
mal-estar, e com a cara de mamãe quase colada à minha; ao ver meus olhos
abertos, ela disse: — Você está tão bem disposta, minha filha...
Do outro lado da cama, seu Evaristo perguntava como eu me sentia
naquela manhã luminosa.
— "Luminosa manhã, por que tanta luz"... — Lili entrou cantando,
deu uma volta no quarto e saiu.
Foi difícil me livrar dos cuidados de seu Evaristo, mas no fim de
semana eu estava em casa.
Quando cheguei, o porteiro mandou entregar flores e bombons no
apartamento. No cartão, seu Evaristo agradecia pela bela visão da qual
ficara impregnado durante suas madrugadas. É um enfermo.
Assim que me senti boa, fui dar uma volta. Mal havia me afastado de
casa, vi uma velha perdida entre os carros na calçada; não conseguia
encontrar a saída. E os transeuntes apreciando a velhinha no labirinto... Dei
voltas procurando um guarda, não vislumbrei nenhum nas redondezas. Fui
ajudá-la.
Após a boa ação, entrei numa livraria e me lembrei de comprar O
pequeno príncipe para Susie, pelo Natal. Achei que iria gostar: O pequeno
príncipe e a pequena Susie.
Nessa tarde, na livraria, conheci o Eduardo, livro aberto e olhos em
mim. Quando estava para pagar, ouvi sua voz perguntando qual livro eu
escolhera. O pequeno príncipe, respondi, para meu sobrinho, seria seu
primeiro contato com a literatura. José Júlio que me desculpe, mas roubei
sua história. Por falar nele, como andará com aquela moça de dentes
trepados e a filha trepada nele? O rapaz, Eduardo, tinha uma pilha de livros
à sua frente; dei uma olhada, e ele, percebendo, disse que era professor de
Física, retirando um cartão do bolso e colocando-se inteiramente à
disposição.
Muito charmoso o Eduardo, gestos lentos, palavras pensadas,
pausadas, pousadas, era do que eu precisava. Chega de afobação.
Ao chegar em casa, encontrei seu Evaristo no sofá. O que fazia em
nossa casa? Ele disse que fora me fazer uma visita e saber da minha
recuperação. Contei que estava inteiramente boa e agradeci a atenção.
Mas ele não se moveu da poltrona. Como não gritávamos, mamãe,
sentada na poltrona, nada escutava, mas sorria sua boca mole e
parcialmente desdentada. Ela se recusa a colocar dentes nas falhas, assim
como o aparelho de audição. Gosta de ficar caindo aos pedaços. Seu
Evaristo perguntou se eu lhe permitia ver a cicatrização. Eu disse que o
médico tinha visto e achara tudo bem. De novo agradeci, e ele permaneceu
sentado. De repente, Lili apareceu, dizendo: mostre. Em seguida, seguiu
para o quarto. Continuei imóvel, e seu Evaristo perguntou se eu ouvira o
que meu tio dissera. Fiquei em silêncio. Lili voltou a aparecer e a repetir o
que havia dito. Nisso, mamãe se ausentara, porque achava que papai estava
em seu quarto querendo fazer recomendações. Seu Evaristo quis saber sobre
meu pai e eu respondi que era loucura de minha mãe. E ele não disse nada.
Então, insistiu, e Lili gritou do seu quarto. Me levantei e disse que estava
bem, podia olhar, rápido. Fomos para o meu quarto, fiquei de pé, enquanto
ele se sentava na beirada da cama, mandando que eu suspendesse a saia e
abaixasse as calcinhas. Olhou bem a cicatriz, e enquanto comentava, suas
mãos quentes seguravam e dirigiam a minha bunda para melhor me
observar. Tudo isso debaixo de bufos e respirações ofegantes. Por instantes,
vaguei pelo solo. Hasta cuándo poderé resistir? Quando ele se cansou da
inspeção, me agradeceu e, antes de sair, disse, quase dentro da minha boca,
que eu ainda enfeitaria seu jardim, e foi embora. Jardim!? O que será que
quis dizer com isso?...
Demente! Esse sujeito ainda vai me levar ao desatino, estou
sentindo, e não é de hoje.
Dias depois, quando mamãe finalmente desligou o telefone, liguei
para o Eduardo, perguntando se ele podia me dar aula de Física. Com
enorme prazer, respondeu. E começou pelo telefone mesmo a me dizer que
existiam dois grandes modelos teóricos consagrados pela Física: a teoria da
relatividade e a teoria quântica. São teorias extraordinárias, continuou ele,
mas seria importante que eu tivesse algumas noções de Filosofia antes que
entrássemos na Física propriamente dita. Preparando terreno. Está bem.
Assim que nos vimos frente a frente, ele disse: — Então, vamos
começar? Sorri, dizendo sim.
— A Filosofia começa com a questão do Ser.
Instantaneamente teve início a aula.
Que voz!... Deslizava em ondas pelos meus tímpanos. Em seguida,
ele escreveu a palavra Ser e desenhou um círculo em volta, perfeito.
Voltou a baixar a cabeça e a escrever, dessa vez uma frase, girando
depois o papel na minha direção.
"O ser é aquilo que é.
Estava escrito. Ele silenciou, me olhando. Como não sabia o que
dizer, repeti a frase. Seus olhos cintilaram, azuis. Então, ele disse muitas
coisas, mas delas sou incapaz de me lembrar porque suas palavras me
deixaram totalmente à deriva.
As aulas prosseguiram: Platão, platonismo, o eixo da verticalidade,
da horizontalidade, enquanto eu via suas belas mãos traçando
circunferências perfeitas (deve treinar em casa) no quadro-negro. Volta e
meia, ele fazia um imenso sinal da cruz com seus dedos espatulados, ainda
falando dos eixos, então eu me via deitada, imóvel, a seus pés, e no branco
quadro do meu corpo a filosofia se inscrevia.
Tudo isso se dava dentro da Universidade na qual ele lecionava para
turmas de graduação. A cada aula, ele me trazia um livro de presente,
depois tomávamos cafezinho e em seguida ele me deixava em casa de
ônibus.
Após inúmeras aulas, eu estava tomando gosto pela coisa enrolada,
mas o Eduardo jamais falou em bar, motel, trepada. Foi então que ele
começou a discorrer sobre a tese que escrevia "Do sujeito desde sempre
incomunicável" e tentou me explicar, mas era complicadíssima, e eu não
conseguia acompanhar, porque cessaram os desenhos, as circunferências, e
eu fiquei perdida, porque ele dizia que o imprescindível em sua
demonstração era a incomunicabilidade, e aí ficava um pouco nervoso (eu
não entendia como um estudo podia deixar alguém assim alterado...), e na
volta do ônibus vínhamos calados, e eu vendo nos céus uma porção de
circunferências, não tão perfeitas quanto as do Eduardo.
Se éramos incomunicáveis, trepada jamais, concluí, claro que não
falei porque até então, o Eduardo jamais pôs sua mão sobre a minha. É o
diabo.
Enquanto isso, seu Evaristo me cercava a cada final de expediente,
através de múltiplas atitudes, tantas cortesias, que no entanto eu não
aceitava, esperando a qualquer momento ser salva pela Filosofia. E eu lia,
lia, para ver se conseguia acompanhar um pouco o que o Eduardo dizia.
Passava os dias com a cara enfurnada nos livros, mamãe comentou que
estava encantada com meu novo namorado, mas eu gritava que não era, e
ela dizia que me conhecia, eu não perderia tempo com alguém que não
prometia.
Pois bem, num final de aula, cansada de ouvir coisas que não
entendia, perguntei ao Eduardo se ele trepava. Pós-filosofia, fiquei assim:
clara, objetiva, direta. Ele riu, riu, riu, e eu começava a me achar imbecil,
quando ele disse: "quando quiser". E eu queria, eu urgia, e fomos para o seu
apartamento. Encontramos sua mãe no meio da sala fazendo ginástica. Ele
me apresentou e seguimos direto para o quarto, enquanto ela dizia que
sentia muito mas não desligaria o programa da Jane Fonda. Melhorava a
olhos vistos, falou, metida numa malha roxa colada ao corpo. People are the
ultimate spectacle lembrei de um filme da atriz, casava perfeitamente com a
cena vista.
Entramos no quarto, e o Eduardo disse que, infelizmente, a mãe era
um ser superficial, e mais não disse, e nos deitamos ouvindo palavras
frenéticas em inglês e ele, se despindo, pediu que eu retirasse a roupa.
Comentando que meu ser era apolíneo e dionisíaco simultaneamente,
deitou-se sobre mim e, ao me penetrar, desandou a soluçar. Parou, paramos;
impasse à vista. Deitados lado a lado, perguntei se ele não queria tomar um
pouco d'água, ajudava. Ele saiu do quarto e voltou dizendo que tomara uns
goles. Seu membro mole não anunciava nenhuma outra partida. Me cobri
com o lençol, enquanto o programa da ginástica continuava. Ele deitou-se
ao meu lado, soluçante. Perguntei se era dado a soluços, disse que fora a
primeira vez. Não sei o que acontece, não dou sorte, mesmo. Pouco depois,
recomeçamos, mas as mãos do Eduardo não se movimentavam na cama.
Onde as belas, firmes e promissoras mãos das aulas? Não
participavam da arte do toque? Passado algum tempo, durante o qual eu
nem mais sabia o que fazia debaixo daquele lençol, ele deitou-se sobre mim
e, me penetrando, entramos no ritmo da ginástica que ouvíamos da sala.
Enquanto se movimentava dentro de mim, o Eduardo me olhava
olhos duros e frios, e eu tentava me lembrar das aulas mas não conseguia, e,
depois de algum tempo de vaivém, ele anunciou em voz baixa, tranquila:
estou gozando. E meu corpo e alma intactos sentiram seu estremecimento;
quando ele parou, não tive o que falar, e ele comentou que contrariávamos a
teoria, com nossos seres a se comunicar. Sorriu. O Eduardo não tinha a
menor graça. E seus olhos, azuis demais.
Depois desse episódio filosófico-muscular, ele telefonou algumas
vezes, mas em todas desconversei; cansei de estudar. No último telefonema,
no qual conversamos um pouco, no final o Eduardo disse que eu não tinha
nenhuma clareza para representar o mundo externo com um mínimo de
correspondência e adequação. Quando terminou, falei: está bem. Nunca fui
tão bem xingada. Parece que é uma prática comum em Filosofia, provocar
os outros.
Pensei em desistir, virar monja, como Nina almejava, ou então, quem
sabe, recorrer ao chuveirinho do bidê. Mas que merda de vida.
Nesse intervalo, recebi carta de Dadá. Decidira dar um flagrante em
Hermano. Para isso, tinha posto um revólver na bolsa e passara uma tarde
inteira na porta de um motel ouvindo gemidos e gritos.
Vou pedir a Dadá que me poupe de ameaças de morte de conteúdo
sexual. Meu corpo fica aturdido.
Mamãe, de novo, queria que eu desse notícias de Dadá, expliquei
que as cartas não eram familiares, ela e Dadá que se correspondessem, caso
assim desejassem. Sempre indelicada, disse mamãe. E eu não revidei.
Mas aí, ela falou que precisávamos conversar, antes do horário das
novelas. Detesto conversas com mamãe. Mas ela já dera a partida. A cada
dia se preocupava mais e mais comigo, estava ficando velha, energias
perdidas, nervos gastos, e não via um desfecho para a minha vida.
Desfecho? Não perguntei para não alimentar a conversa, senão iria
longe, sei como é. Continuou: mal ou bem, Nina e Sérgio se entendiam
(acho que quando se diz mal OU bem, é sempre mal, também não
acrescentei), Dadá era 140 casada (correto, o tempo do verbo), enquanto eu
não me acertava com ninguém, pulava de namorado em namorado, e apesar
de ser a mais bonita das três, não conseguia encontrar quem prestasse.
Quanto a isso, tinha razão, mas não lhe dei. Ficava velha, a espelhos vistos,
e não via futuro para mim. O que seria da minha vida? Solidão? Desespero?
Desproteção? Que palavras.., O que acontecia comigo, que não conseguia
fazer uma escolha acertada, o que queria com tantas noitadas
descompromissadas? E mais: invariavelmente alcoolizada? Ela ainda não
tinha acabado: sabia que não duraria muito, e nem espiritualizada eu era,
talvez fosse isso o que fazia falta na minha vida desregrada. Além do mais,
depois de sua morte, quando fizesse aparições para me confortar, como eu
iria reconhecê-la? Eu precisava pensar nisso, as relações não se acabam,
mas se eternizam no Espírito Santo, e ela não desejava jamais que a nossa
se perdesse com a sua partida. É incalculável o que eu escuto... Por que eu
não rezava, pedindo ao Senhor um bom companheiro? Fui ficando murcha,
triste, infeliz, e a única coisa que me ocorreu foi perguntar se ela estava
doente. Nesse momento, Arnaldinho fez um escarcéu na área, mamãe
levantou-se e disse que depois continuava, estava com medo de que o
barulho tivesse incomodado a Wilma, que, felizmente, havia algum tempo
passava bem.
Fiquei sozinha na sala, despencada no sofá, e uma tristeza medonha
me invadiu, não consegui nem calçar os sapatos, uma fraqueza nas pernas...
Mamãe me deixa totalmente sem forças, tem o dom de me arriar.
Continuei tombada, me vendo sozinha naquele apartamento, com
Lili trancado em seu quarto, Wilma no dela, e o canarinho cagando na área.
Que bosta de vida me esperava.
O telefone tocou e eu fui atender Seu Evaristo, perguntando como eu
estava; tive vontade de dizer "uma merda" mas respondi "inteiramente
recuperada". Ele, então, disse que faria uma festa de aniversário e contava
com a minha presença. Sem pensar, respondi que iria, e ele comentou que
seria o melhor presente com que poderia sonhar. Desliguei, enquanto ouvia
mamãe brigar baixo com o passarinho. Ela se pela de medo de que Wilma
tenha um troço. O telefone voltou a tocar. Quem seria? José Júlio, com voz
do além. José Júlio? Para me contar que Aurora morrera. De quê? Não
perguntei. Deve ter sido de uma coisa esquisita... Humm, que horror..
Então, perguntei pela sua mulher Mansa, não é, José Júlio? Havia muito se
fora, respondeu. Queria filhos, mas, como não engravidara nesse tempo de
relacionamento, médicos, consultas e espermogramas sem fim, deixara-o
para tentar sua realização como mãe em outra relação. Eu disse que
lamentava por tudo e quase contei que continuava meu périplo de encontrar
satisfação sexual, até então infrutífero, mas continuava a amá-lo. Mandei
um beijo para ele e para Bianca, e caso precisassem de mim, eu estava à
disposição. Ele agradeceu, desligou, e mamãe voltou à sala perguntando por
que tanto tocaram para a nossa casa.
— A ex-mulher de José Júlio morreu.
-Quem!?...
— O rapaz com quem um dia casei respondi.
— Ah, é...murmurou ela, arreganhando o lábio inferior para baixo.
O comentário só pode ter sido para me destratar.. maltratar..
Me deitei, e, depois de rolar na cama, sonhei com raios; vinham de
todos os lados, mortíferos, tentando dizimar a população. Eu corria pelas
ruas acompanhada de pessoas que gritavam, tentando se esconder, mas os
raios se desprendiam de todos os lados, até que um me alcançou, e eu,
tingida de púrpura, morria, mas, antes de exalar o expiro final, perguntei, e
não sei quem respondeu, onde estava o meu amor.
13
Acordei decidida a me entregar a seu Evaristo. Era o que iria fazer,
cedo ou tarde as coisas têm de acontecer, e ele aguardava havia muito
tempo; era justo, esperara pra caramba. Se bem que eu tinha muito medo do
que poderia acontecer. Me apaixonar, por exemplo, não sentir nada, outro
exemplo mais terrível, ou ainda, descobrir coisas inusitadas. Não sei por
que essa ideia me passou pela cabeça...
Ainda tomava café, imaginando como seria a cena da entrega,
quando Nina irrompeu porta adentro soluçando. Não esperava nem entrar
para chorar. Enquanto ela catava mamãe dentro do apartamento, eu me
imaginava tomando champanhe (se bem que não gosto, mas como gosto de
álcool, qualquer um serve); depois, quando estivesse bem tonta, tontona
mesmo, me despiria diante de seus olhos ardentes, rotativos, aflitos e
famintos, e estava resolvida a questão, finalmente. Já tentara demais,
debalde (recentemente tinha aprendido com Lili), em vão. Me levantei
avisando a mamãe que chegaria tarde, enquanto Nina me olhava
lacrimejante, dizendo que se mudaria para o convento próximo à nossa
casa. Estava a um passo de voltar de vez. Contou que não fora possível
mais suportar a relação com Sérgio. Ele continuaria em Santa Teresa, e seus
santos seriam outros; não, não ha veria santo, e sim o Lama. Mamãe
ziguezagueou as sobrancelhas, mas não emitiu um som. E eu m despedi das
duas, dizendo que precisava sair, comprar uma roupa pra mim.
Quando voltei, Nina já tinha ido embora, mas em compensação me
esperava outra carta de Dadá, que em hipótese alguma eu leria naquela
hora. Estava a fim de namorar meu vestido novo e pensar nos
complementos. Sutiã, fora de cogitação, claro. Ele gostava de peitos (me
lembrei da cena do desmaio no escritório), José Júlio não ligava, engraçado,
para ele era como se não existissem, e olha que são enormes.
Mamãe, quando viu a roupa nova, elogiou a combinação, mas disse
que hoje em dia parecia ter saído inteiramente de moda. E eu disse a ela que
era um vestido-véu, cor marfim, que modelaria meu corpo de formas
voluptuosas, abruptas, salientes e gostosas. Ela se retirou para o quarto
murmurando que não queria ouvir indecências.
À tarde, fui ao cabeleireiro para evitar perder as impressões digitais;
fiz luzes na juba, depilação, pintei as unhas de roxo cintilante, e quando a
noite chegou, saí disposta a uma aventura alucinante. Quando mamãe me
viu pronta, perguntou aonde eu iria nua daquele jeito. A um aniversário,
respondi, e ela avisou que não dormiria. Invocaria papai, e ele certamente
aguardaria a minha chegada.
Lili apareceu e disse: é fogo!, e tornou a sumir.
Saí pelas ruas ouvindo freadas; assim que os carros me viam,
diminuíam a marcha, e de repente eram muitos, praticamente se
engavetavam pela orla. Eu caminhava, tendo ao lado um séquito de
máquinas algumas buzinavam, outras piscavam faróis enquanto seus donos
assobiavam, gesticulavam, chamavam. E eu seguia em frente, em direção a
uma colossal noitada.
Quando adentrei o breu da casa de seu Evaristo, ele veio solicito me
cumprimentar, mas onde seus olhos aflitos? Pouco depois, percebi que se
depositavam numa moça lívida, tez clara, ossos salientes, parecendo
adoentada, claro. Pero como diablos? Os garçons circulavam com as flûtes
de champanhe, e eu resolvi beber, bebida pra mim tem múltiplas funções:
alegrar, fazer chorar, dormir, esquecer...
Desfilava pela sala. Taças depois, vi um grupinho conversando.
Um deles contava que, um dia, um químico francês viera ao Rio e
havia permanecido durante meia hora com um sapato suspenso na mão,
tentando colocar o cadarço diante de um auditório...
— Era o Sr. Barbant!— Me meti na conversa, soltando uma
gargalhada.
Seu Evaristo me olhou, nos lábios um sorriso de satisfação? Em
seguida, aproximou-se, porque queria me apresentar a seu colaborador:
Jorge. Colaborador? Rapaz frio e bonito, olhos secos e calculadores.
Outros rapazes, que eu não conhecia, volta e meia se aproximavam e
me diziam graças idiotas, e as mulheres me olhavam despeitadas e
assombradas.
— Perto de você existe gente que não se contém de inveja, fique
alerta! Por que Susie tinha dito isso? Precisava me alertar mais ainda?
Depois de dizer aquilo, ela se afastou, indo conversar com outras pessoas.
De longe, piscou o Olho pra mim.
Resolvi telefonar para mamãe, me entristecer mais um pouco. É
impressionante, seu tom de voz me aníquila, nem é preciso que diga muita
coisa. Desliguei o aparelho quase me arrastando; fui direto me servir de
mais um copo.
No final da festa, a sala esvaziou — até Susie tinha ido embora -,
quando notei a ausência de seu Evaristo, e do legume ao seu lado.
Fiquei ouvindo música, e o tal Jorge à minha frente. Perguntei por
seu Evaristo, o rapaz disse que dera um pulo lá dentro mas voltaria em
instantes. Ficamos frente a frente com um som alto vibrante. Ele me olhava,
eu volta e meia o encarava, e ele sustentava o olhar. Passado algum tempo
daquele "olhos nos olhos", começou a tocar um tango e eu me levantei,
dizendo que iria ao banheiro. Onde é o toalete, perguntei. Num pulo, o
rapaz estava ao meu lado, e pondo a mão na minha cintura me conduziu
corredor afora; pensei que daríamos início a uma dança vertiginosa, mas,
diante do banheiro, cessou a colaboração. Me sentei na privada e fiz xixi
escutando ruídos estranhos que, de repente, tornaram-se vozes, e a de seu
Evaristo destacou se. Transava com a alma penada que eu vira na sala.
Saí do banheiro, percorri o corredor e não vi mais O tal Jorge.
Atravessei a sala inundada de música, encontrei a porta da casa
aberta e fui embora.
Mas que caganitas de noite, pensava, chutando as pedrinhas na rua,
em meio aos faróis, buzinas, freadas e piadas, nem tonta eu estava.
Mamãe abriu a porta sorridente por me encontrar razoavelmente
sóbria, e também pelo fato de eu ter chegado cedo. Quis puxar conversa,
mas eu disse que o aniversário tinha sido uma bosta. E ela comentou que
parecia que eu só gostava quando chegava em casa tocada. Sem dúvida. Fui
me deitar sem dar mais uma palavra, e a carta de Dadá na cabeceira,
esperando ser aberta.
No dia seguinte, mal as batidas na porta se anunciaram, me levantei
e continuei muda. O telefone tocou e mamãe atendeu, largou o aparelho
dizendo que um tal Zé queria falar comigo. É uma tristeza...
José Júlio me convidando para tomar uma cerveja com ele. Eu disse
que iria trabalhar e depois daria uma passada em sua casa. Mamãe
perguntou com quem eu iria me encontrar. Com a perereca da vizinha,
respondi. E ela disse que deixaria de falar comigo. Mal sabia o favor que
estaria prestando Abri a carta de Dadá antes de sair para o trabalho. Mais
um flagrante que não deu certo? Acho que porque Dadá não enxerga, é
míope ao último grau. Demorei dias para responder a sua carta. Já estava
enjoada de tantos arredores de motel.
Seu Evaristo não apareceu no trabalho, devia estar em outro Meio do
Céu. Quando terminou o expediente, fui à casa de José Júlio. Assim que o
vi, notei seus olhos molhados, os meus lacrimejaram em seguida.
Perguntou pela minha vida, contei (não em detalhes) a dificuldade
que estava encontrando, e ele se queixou de solidão. Bianca fora morar com
os avós, e depois da partida de Aurora, e da outra, que o deixara por falta de
bebê, sua vida estava uma merda. Nos abraçamos no meio da sala e
choramos. Havia um calor no choro, no abraço, que eu jamais havia sentido
com alguém. Passamos a noite trocando desgraças.
Outra merda, essa, mais sentida, doída, infelizes vidas as nossas.
Bem, acabamos tentando uma, digamos, relação sexual, outra infelicidade,
essa, conhecida. Não comentei nada, porque, positivamente, se encontro
havia em minha vida, era com a porra da alma de José Júlio. Que inferno de
merda. Saí trôpega de sua casa, desejando tudo de bom que alguém pode
querer a outro e segui ladeira abaixo. Como a minha vida.
Abri a porta, e a chefe de tráfego da casa, me inspecionando, disse
que eu estava bêbada. OK, respondi, batendo continência, e ela tomou um
susto com a aceitação do porre.
Dias depois, seu Evaristo pisou no escritório. Passou pela minha
mesa dizendo que precisava esclarecer alguns assuntos, que eu me
apresentasse no gabinete assim que pudesse. No final do expediente, entrei
em sua sala, e ele disse que queria apresentar suas desculpas, havia sido
pouco lisonjeiro de sua parte ter me deixado na sala e se retirado no final do
aniversário, mas, infelizmente, aquela moça que eu vira precisava dos seus
cuidados. Agora, no entanto, se encontrava livre, desimpedido, e me pedia
uma última chance. Olhei longamente para ele e disse: — No seas maricón.
— Repita! Sentí un temblor por todas las piernas.
— Nojento, ardiloso, peçonhento, mudei o xingamento.
Tirando um pigarro, ele disse que eu tinha razão, me fizera uma
desfeita e entendia perfeitamente, caso eu recusasse o convite. Pedi licença
e saí.
Encontrei Nina em casa, vestida de monja, esquisitíssima, ela e um
outro sujeito. Partiam para uma reclusão de vinte dias de oração.
Mamãe, adepta de todas as religiões, ficou contente por Nina ter
encontrado a paz. E a abençoou. Nina partiu, nem partiu, porque a bosta do
convento era a quadra e meia de nossa casa.
Me lembrei que ainda não tinha escrito para Dadá. Fui responder
Irmã: Sugiro que corte os culhões de Hermano para que nada mais brote
daquele corpo infame e diabólico. Sua irmã, puta da vida.
14
O temporal que desabou sobre o Rio acarretou uma situação de
calamidade pública. Desabamentos, desastres e perturbações no sistema de
locomoção. A prefeitura faz um apelo à população para que se apresentem
voluntários que ajudem no serviço de desobstrução de ruas e remoção de
escombros.
Mamãe, com a televisão aos berros, assistia ao noticiário, quando me
viu arrumada ao seu lado.
— Vai sair!? Não ouviu o que está acontecendo na cidade? — Vou
prestar minha colaboração.
Depois contei que tinha um jantar da firma.
— Vai ser cancelado.
— Quem vai cancelar, você? Então, vendo que não me demoveria da
ideia, ela fez um discurso a partir do que escutara na televisão, digno de um
novelão. Depois, apelou para o de sempre, com novidades para os meus
ouvidos acostumados à cantilena.
— Seu pai não consegue ascender, apesar de querer, porque está
preocupado com você; não fosse por isso, a alma dele não estaria vagando
pela terra esse tempo todo, já teria encontrado descanso e paz.
Não dei uma palavra, mas tive vontade de dizer: interessante.
Antes de eu sair, mamãe andava de um lado ao outro e de vez em
quando espiava a chuva pelo vidro da janela, senti que ainda iria falar: —
Vou pedir ao espírito do primo Manoel que a acompanhe! Bati a porta. Era
demais! Quando passei pela portaria, divisei a calamidade. Até o porteiro,
que jamais diz uma palavra, no máximo responde aos cumprimentos, olhos
grudados como sempre num aparelho mínimo de televisão preto-e-branco,
perguntou se eu iria sair. Sim senhor, respondi. Abri o guarda-chuva,
empurrei o portão, e em pouco tempo chapinhava pelas ruas, enquanto no
céu escapavam relâmpagos por todos os lados. Apesar de la borrasca senior,
no permitas que nada arruine mi pelo...
Um toró. Além de tudo, ventava, e logo de saída a merda do guarda-
chuva ficou do lado avesso duas vezes seguidas, e eu grudada nele. A casa
de seu Evaristo, uma delas, porque parece que ele ocupa vários lugares em
diferentes pontos da cidade, ficava do outro lado do Corte de Cantagalo. O
tal apartamento da Lagoa. E tombava chuva grossa.
Quando dobrei a primeira esquina, o trânsito estava todo parado,
engarrafados e a rua que eu tinha que atravessar, inteiramente alagada.
Nesse instante encharcado, um rapaz surgiu ao meu lado. Parece que
os homens não usam guarda-chuvas, mamãe conta que papai dizia que só
servia para que se perdesse. Nisso, ouvi a voz do rapaz perguntando se eu
iria atravessar. Eu disse que sim. Ele contou que sua casa também ficava do
outro lado do Corte. A chuva escorria pelo seu rosto enquanto ele falava, e,
apesar da capa, ele pingava de alto a baixo; breve eu estaria daquele jeito.
Continuamos os dois olhando para a outra lagoa que se formara à
nossa frente, tomando coragem. Nesse momento, ele disse se chamar Luiz,
e se eu quisesse, depois de alcançarmos a Lagoa, poderia fazer uma horinha
em sua casa. Os carros buzinavam, dessa vez para eles mesmos, enquanto
avaliávamos o melhor trecho para a travessia. Uma merda. Meu vestido
colara-se ao corpo, as pernas e os pés inundados. À exceção de nós dois,
não havia ninguém a pé pelas ruas, as pessoas se encontravam trancafiadas
dentro dos carros ou nas portarias de edifícios e bares. Um dilúvio. Ao
alcançarmos a parte debaixo do Corte, o rapaz que eu nunca tinha visto me
pegou pelo braço e disse, vamos, e começamos a subir a cascata. Assim que
nos lançamos nas águas, tive metade das pernas afogadas, enquanto fazia
um esforço medonho para não perder os sapatos na correnteza. Ao
aportarmos do outro lado, ele voltou a perguntar se de fato eu não queria ir
até sua casa esperar dar uma estiada. Eu disse que me esperavam para
jantar, não poderia faltar.
Não fosse o programa a que tinha me proposto, iria, mas dessa vez
estava decidida a ter uma baita noitada. Então, tirando um cartão do bolso,
o rapaz disse que, caso eu mudasse de ideia, aquele era seu endereço. Enfiei
o papel dentro da bolsa. Nos despedimos, e eu o vi correndo; mesmo no
breu, deu para ver que era alto, magro e tinha cabelos encaracolados, a
chuva escorria dos seus cachos. Gosto de caracóis em cabelos masculinos.
Continuei meu périplo, e a porcaria do guarda-chuva volta e meia queria ir
com o vento, e eu agarrada às varetas da salvação. À medida que eu andava,
sentia meus pés pesados de lama, os sapatos rangiam, em que situação eu
chegaria naquele apartamento...
Próximo à casa de seu Evaristo, vi que não daria mais para seguir, a
não ser a nado. Aquela altura, até a calcinha estava empapada.
No mínimo, os deuses da chuva conspiravam contra nós. Fazendo
marola por onde passava, me aproximei de um bar cheio de curiosos na
porta apreciando a enchente e os imbecis que resolveram se aventurar. No
interior do bar, uma televisão ligada noticiava a intervalos regulares a
catástrofe. Perguntei no balcão se havia telefone. Com má vontade, o
português fez surgir o aparelho e o destrancou com uma chavinha. Eu disse
que não me demoraria, precisava dar notícias à minha mãe. Ele mal ouviu o
que eu falei. Mamãe perguntou como eu tinha conseguido chegar, com tudo
inundado. Não tinha conseguido, respondi, falava de um bar. Ela dizia que a
televisão não se cansava de noticiar a desgraça que se abatera sobre a
cidade. Perguntou como eu sairia de onde me encontrava.
Nas costas de um turista norueguês, respondi. Ela disse que eu não
fizesse graça, porque papai avisara que os espíritos estavam em fúria.
Eu não disse nada; quando mamãe entra nesse assunto, silencio; ela
sabe.
O português me olhava de banda, segurando um palito entre os
dentes.
Devia achar que eu estava demorando, e estava. Impossível falar
rápido com mamãe. Ela perguntou como eu sairia dali, precisava de um
banho quente seguido de álcool no corpo; estando no meio da rua, pegaria
uma gripe medonha e, quem sabe, uma pneumonia. Avisei que iria para a
casa de uma colega perto de onde me encontrava, breve estaria em casa.
Então, antes de desligar, ela disse que não passava bem. O que você tem?
perguntei, e a palma da mão do português estalou em cima do balcão. Dores
difusas, ela respondeu.
Mandei que tentasse localizar; assim que pudesse, voltaria a ligar.
Quando desliguei, olhei para baixo e havia uma poça sob meus pés;
melequei o bar do homem, logo na entrada... Perguntei se podia dar outro
telefonema, seria rápido, jurei, antes falava com minha mãe, expliquei,
inclinando a cabeça. O português fez um glissando com o palito nos dentes.
Liguei para o Luiz, estava em comunicação, fiquei aguardando.
Aí, pensei que até então não saíra nenhum tiroteio no bar. Outro dia,
uma bala perdida dentro do bar perto da minha casa atingira um freguês que
comprava uma caixa de fósforos. Disseram que a mulher aparecera num
instante chorando e dizendo que por causa de uma mísera Fiat Lux seu
marido ficaria para sempre na escuridão. Nesse momento, o português
perguntou se eu ainda usaria o aparelho. Sim, respondi, e voltei a ligar para
o Luiz, que atendeu e disse: Márcio? falei que era eu, e ele, pedindo
desculpas, disse: Gilda, viva! Viva? Era o caso. Voltou a repetir que sua
casa estava às ordens, me esperaria na portaria, para que eu não ficasse nem
mais um minuto na chuva.
— Não disse que era rápido?...lembrei ao galego.
E a simpatia lusitana cobrou os dois telefonemas e desapareceu com
o aparelho.
Vi o Luiz através do vidro do prédio, era mais bonito seco do que
molhado. Ele abriu a porta e repetiu o "viva" (tão bom ser recebida
assim...). Disse que seria melhor que eu tomasse um banho, caso não me
importasse de vestir uma de suas roupas. Mas hoje em dia todo mundo se
veste igual, não é mesmo?, disse, sorrindo, subindo as escadas na minha
frente, de dois em dois degraus. Em seu edifício não havia elevador. Me
lembrei do apartamento do Jardim Botânico, onde eu tinha morado com
José Júlio, era escada dia e noite. Mal entramos, avisei ao Luiz que
precisava dar um telefonema, me esperavam para jantar.
— Mas minha bela sereia não virá do fundo do mar? perguntou seu
Evaristo.
Prometi a nós outra noitada. Acho que ele não ficou chateado, não
sei. Nunca mais saiu da minha cabeça o que Susie dissera a respeito dele:
vingativo.
Enquanto estive no telefone, Luiz tinha escolhido um CD. Havia
uma estante coberta deles, pôs Erik Satie para tocar Depois, quando voltou
a falar no banho, aceitei o oferecimento. Enrolada na toalha, me penteava,
quando vi sobre a bancada da pia uma calça com elástico na cintura, uma
camisa aflanelada xadrez e sandálias havaianas. Quando apareci na sala,
estiquei o braço e me apresentei: Luiz. Ele sorriu, e eu nunca tinha visto
ninguém sorrir daquela maneira, a boca se abrir devagarinho, os olhos irem
se apertando, acompanhando o movimento, os dentes pouco se mostrando.
Me aproximei dele e agradeci. Então, Luiz perguntou, esfregando as mãos,
o que eu gostaria de comer, me apresentaria sua despensa. Um homem
alegre, sorridente, cozinhando só pra mim?...
Luiz fez uma carne com bouquet garni. Durante o preparo, explicou
que eram vários verdes envolvidos numa gaze: orégano, alecrim, tomilho,
folhas de manjericão, louro e um dente de alho. À medida que enumerava,
apontava; deve ter percebido que eu desconhecia folhas.
Enquanto a carne cozinhava, pôs uma massa no fogo. Uma vez, há
muito tempo, mamãe pediu que eu desse um pulinho no minimercado para
comprar couve para a feijoada. Quando ouvi a voz do vendedor
perguntando o que eu queria, respondi: couve à mineira, e as velhas que se
encontravam fazendo compras abafaram risinhos, e o homem apontou um
balcão repleto de verdes à minha frente. Fui embora de mãos vazias, e
mamãe disse que esperaria Nina chegar, porque ela conhecia os alimentos.
Luiz perguntou o que tanto eu pensava, respondi, "bobagem"; enquanto ele
tinha uma garrafa de vinho entre as pernas, tentando abri-la. Disse que era
um reserva especial, bem gostosinho. À mesa, quando foi me servir do
vinho, eu disse que não gostava, ele franziu a testa, e voltou à cozinha para
pegar uma Coca-Cola. Aos poucos, comentaria minhas preferências
pesadas.
Quando terminamos a refeição, ele disse que aquele prato, bem feito,
chamava-se boeuf bourguignon.
Ficamos ouvindo música até altas horas, e a cada CD Luiz fazia uma
introdução. Mais tarde, quando nos debruçamos na janela para checar o
tempo, não havia mais uma gota despencando do céu. Eu disse que
precisava ir, e ele me acompanhou à portaria; quando me virei de frente
para agradecer e combinar a entrega da roupa, ele perguntou se podia
provar meu sorriso. Tive a sensação de ter ouvido alguma coisa parecida
antes, enquanto sua boca engolia a minha. Nos beijamos durante não sei
quantos minutos, e só descolamos Porque uma senhora queria sair do prédio
com o cachorro. Prometemos um ao outro, no encontro seguinte, um brinde
ao temporal.
Saí tonta de lá, e não tinha tomado pingas. Será que eu iria gostar
mais do Luiz do que de José Júlio? Será? Cheguei em casa e encontrei
mamãe sentada na Poltrona, com a mão no peito, queixando-se de falta de
ar. Não conseguia se deitar.
Perguntei se tinha ligado para seu parente, ela disse que sim, que já
havia tomado o remédio que ele recomendara, e no dia seguinte tinha
consulta. Nisso, Lili apareceu na sala dizendo que ele e mamãe estavam
virando fósseis. Quando fui me dirigir a ele, já ia longe no corredor.
Mamãe perguntou por que eu estava vestida daquele jeito.
— Onde foi parar seu vestido, a correnteza levou? Não respondi,
disse apenas que iria acompanhá-la até seu quarto.
E mal virei as costas, mamãe ressonava.
Um tubarão corpulento, com os traços de seu Evaristo, se postara no
convés de uma lancha. Sentado no banco alto, atrás do leme, me convidava
para dirigir. Si entendí bien: la cosa es así: me voy a joder entera. De
acuerdo. Transmitindo que teríamos uma visão completa de tudo que nos
cercava, me circundou com suas nadadeiras, enquanto o vento batia,
embolando meus cabelos. Exalava um cheiro forte a boca do tubarão. Nesse
momento, avisando que aprumaria minha garupa, e afastando minhas
nádegas, me cravou as bandarilhas. Olé! gritei. À medida que éramos
varridos pelas ondas, suas barbatanas discutiam com cavalos-marinhos,
crustáceos e estrelas-do-mar. Num circuito de muitas horas, o monstro
marinho me lançava à superfície e depois me fazia descer às profundezas,
lentamente, me rodando, martelando, variando, enquanto nossos corpos se
emaranhavam nas algas que coordenavam esforços para dançar um chá-chá-
chá. Súbito, comecei a desprender bolhas, e o tubarão prosseguia no
compasso das ondas, num vaivém flutuante interminável, saltando mares,
quando, de repente, um tremor se espalhou pelo meu corpo, dando lugar a
espasmos; gesticulando tentáculos, gritei:— Diós! Diós! — Felizmente
você está chamando quem vai te salvar, filha! — Puta que pariu! Mamãe
saiu instantaneamente do quarto; pela primeira vez isso me acontece e ela
corta desse jeito... ainda sentia uns espasmos fracos quando ela fechou a
porta. Vou morar sozinha! No café da manhã, mamãe perguntou por que eu
estava mal-humorada. Não iria dizer que ela havia cortado a trepada, a
única na qual chego ao fim. Nada, respondi; ela então perguntou se eu a
acompanharia ao médico. Em seguida, emendou na falação. Disse que
estava pensando em comprar uma canarinha para Arnaldinho acasalar. O
que eu achava? Respondi que teríamos a cantoria dobrada, mas na verdade
pensei que seria ele o único da família a trepar. Ela continuou falando:
Queria aproveitar a ida ao médico, porque, próximo ao consultório, havia
uma casa de aves. Se eu ajudaria a escolher a Beatriz.
— Por que esse nome?...
Ela disse que seria uma homenagem à cachorrinha de sua avó que
fora engolida por um jacaré, e que eu não olhasse para ela daquele jeito,
porque sua avó morava numa fazenda que tinha um lago com jacarés e
carpas.
— Jacaré não come carpa? Mamãe disse que não continuaria a
conversa por diversos motivos, mas o principal é que estava apertada para ir
ao banheiro fazer xixi.
Estávamos de saída, quando Nina apareceu, sem o hábito, dizendo
que fora expulsa do convento. Todas as palavras fungadas, claro. Antes que
perguntássemos a razão, contou que ela e o tal monge passaram a noite
juntos. Retiro o que pensei a respeito da família que não trepa. A santinha
se enclausurara para isso.
Perguntei a mamãe se não preferia que Nina a acompanhasse,
durante o trajeto conversariam, e ela concordou. Liberada, felizmente.
As duas saíram e eu fui ao quarto pegar a roupa do Luiz.
Enquanto a dobrava para guardá-la numa sacola, O telefone tocou e
eu escutei a voz dele do outro lado da linha: serena, grave, modulada,
calma. Por segundos ficamos sem assunto, depois ele me convidou para um
cinema seguido de um jantar. Si, si, como no, hermoso que el viento me ha
traído, oh, bendita lluvia, calles que inundaron nuestros corazones, gracias!
Antes de sair para me encontrar com Luiz, chegou outra carta de Dadá, mas
não abri, já sei que atirou em Hermano, pronto.
Na semana seguinte, Dadá chegou à nossa casa, com armas e
bagagens. Conto depois. Muito mais interessante falar do que acontecia
comigo e com Luiz. Que banho providencial. Que fantástico temporal!
Enquanto esperava a hora de me encontrar com o Luiz, vez por outra um
raio riscava meu cérebro: o que seu Evaristo poderia fazer comigo? Me
mandar embora, despedir, sim, mas não procederia dessa maneira, ideias
malévolas habitavam sua cabeça. Fatalmente me encaminharia para a
calamidade. Se bem que me mandar embora seria de uma maldade única,
eu, que tenho mãe, tio e passarinho para cuidar. Ele já devia saber do Luiz,
sabia tudo que acontecia na minha vida. Devia ter contratado farejadores. A
porta da frente se abriu, mamãe chegava do médico com Nina. Esquecera a
canarinha, felizmente, menos uma cantoria em casa.
Antes de se sentar, apoiando-se nos joelhos, contou, quase sorrindo,
que estava com insuficiência coronariana.
— Isso é motivo para você estar feliz?
— Mas quem está feliz?, perguntou, franzindo a testa.
— Você!
— Eu?!
— É.
Nina achou melhor não discutirmos, porque mamãe não podia se
aborrecer. Pelo visto, somente eu posso me aborrecer nesta casa. Wilma, é o
que se sabe, poupada de tudo. Mamãe, que acorda com as galinhas, chegou
ao cúmulo de andar na ponta dos pés para não atrapalhar o sono da
empregada.
Lili, assim que a viu entrar, correu para o quarto Para se vestir.
Enquanto mamãe estivera no médico, meu tio tinha ficado nu dentro de
casa, gesticulando sem parar.
Fui me arrumar, a segunda-feira estava chegando, e no trânsito dos
meus pensamentos eu imaginava seu Evaristo passando pela minha mesa,
mandando que eu o seguisse e, depois de entrarmos no seu gabinete, me
encarando no fundo dos olhos me esbofetearia várias vezes e, em seguida,
arrancando minha roupa, treparia comigo até me deixar desfalecida sobre
sua mesa de trabalho.
Dada passara um telegrama dizendo que em breve estaria em casa.
Na nossa. Enquanto os homens saem, desaparecem, as mulheres
voltam pra casa. Já tínhamos Nina, choraminguenta. Sérgio sumira, sem
deixar pista, carregando inclusive os ingredientes dos pães, e o monge
expulso parece que fora rezar no Tibete. Dizem, ninguém viu absolutamente
nada, o fato é que Nina suspirava por ele, contou que ninguém podia
imaginar o que era transar com um homem de saias, de perder o ar,
comentou, abraçada a uma almofada e atirando a cabeça pra trás. Pedi que
não continuasse, não iria dizer que sobre o assunto eu conhecia apenas em
sonho, assim mesmo único.
Desde sua volta, Nina resolvera harmonizar nossa casa.
Transformá-la em fonte de energia positiva segundo ela. A começar
pela entrada, onde pendurou um espelho sobre a porta para que refletisse o
shar. Ninguém sabia do que se tratava. Pendurou também flautas de bambu
em fitas vermelhas pelo teto da sala. Tudo isso, para amenizar a energia
negativa; sem contar com os cristais espalhados pela casa. Resultado das
inovações: pulos de Lili atrás da porta, certamente tentando se ver no
espelho, cabeçadas nas flautas de bambu, além do tempo que fica
hipnotizado diante dos cristais. Mas mamãe diz que Nina deseja nosso bem.
Está bem.
Fomos, Luiz e eu, assistir a Cabaret, reprise com a Lisa Minelli.
Mamãe disse que eu não perdesse, ela era tão boa artista quanto a mãe.
Nem perguntou quem me acompanharia. Quando jovem, mamãe queria ser
cantora e atriz, mas o pai a proibira. Não era meio que uma moça prendada,
de família, frequentasse. Cairia na vida. Mais tarde, ao se casar, sonhou ter
uma filha artista. Deu no que deu: Dadá, vive à custa do marido; Nina, é
uma pobretona, salva pela religião e nós aqui de casa; e eu, tenho um bom
salário, não posso me queixar, mas trabalho num ambiente escroto, onde a
todo momento querem nos derrubar numa cama, banheiro, mesa, qualquer
superfície serve; abatidas em qualquer lugar.
Bem. Ao filme. Mal consegui ver a cara da artista, escutava apenas
as músicas, porque os lábios de Luiz se colaram aos meus e praticamente só
desgrudaram quando as luzes se acenderam. Na saída, estava com a boca
dormente, mas o coração pinoteava de alegria...
Será que desta vez vou ser feliz? Será? Em frente à portaria, Luiz e
eu nos desatracamos com dificuldade. Assim que entrei, mamãe suspendeu
as sobrancelhas, querendo saber se eu gostara do filme, e eu fui salva por
um telefonema. Salva e perdida, Porque uma voz dizia que eu estava
dispensada por uma semana das atividades no Meio do Céu. Voltariam a
entrar em contato comigo em breve. Bem que Susie tinha dito que seu
Evaristo era vingativo...
Pronto, estava desempregada; bela merda.
Mas por que não explicaram e sequer se identificaram? Liguei para
Susie para saber se também a submeteram a esse descanso. Tinham acabado
de ligar para sua casa, ela disse.
— Provavelmente estão fazendo obras na sala...
Susie é dona de uma inteligência estreita... Não só o II tamanho é de
pônei...
Bem, férias durante uma semana. Aproveitaria para fazer uma visita
a José Júlio. Testar meus sentimentos, tentar não fazer outra burrada. Liguei
para sua casa, ele ficou contente ao ouvir minha voz, disse que estava com
saudades, e eu adiantei que tinha novidades.
Marcamos de nos encontrar à noite, pós-sebo. José Júlio continuava
no mesmo apartamento, acostumara-se às escadas.
Antes de eu sair de casa, no dia seguinte, mamãe perguntou aonde eu
iria: — Vou me esbaldar! Não mais ouviria o desprezo de mamãe por José
Júlio.
— Vê lá como chega, hein?... Lembra que eu estou doente...
Ouvi sua voz com a porta fechada.
Acho que nunca reparei tanto em José Júlio como naquela noite, a
ponto de ele perguntar que tanto eu o olhava. Saudades, disse, e ele ficou
tão contente, coitado... Depois de muita observação, cheguei à conclusão
que amava o Luiz, e acabei contando a José Júlio sobre meu namorado. Ele
ficou arrasado... me lembrou aquele rapaz, como era mesmo o nome dele?...
Aquele que dissera que uma mulher tinha roubado seu passado... Esqueci,
completamente.
— Por acaso você vai dizer que roubei seu passado? -Hein?
Ninguém entende essa frase...
— Nada, eu disse.
José Júlio murmurou que acabara de perder a última pessoa de sua
vida. Eu disse que não ficasse daquele jeito, logo eu apareceria para uma
trepada. Ele contorceu a boca num sorriso, fazendo uma cara horrível. Não
devia ter dito isso, tinha falado para alegrar a despedida. Nunca fui tão
infeliz numa visita...
Ao chegar em casa, mamãe disse que queria me contar uma coisa.
Sim, respondi, me sentando; sei quando os relatos vão se alongar, os
trejeitos os antecipam: mãos nos cabelos, alisar de roupa, muxoxos.
— Lili deixou de falar com Arnaldinho! Sequer movi uma pestana.
Ela continuou: — No estado em que me encontro, sem poder fazer esforço,
pedi a ele que limpasse a gaiola de Arnaldinho que fizera uma verdadeira
imundície. Wilma não está passando bem — disse a última frase aos
sussurros, como se a outra fosse ouvir do quarto -, serviço feito, seu tio
virou a cara para o passarinho. Mas parece que é uma atitude muito comum;
Idalina contou que uma amiga sua não se dirige ao próprio cachorro há
meses.
Ao terminar, perguntou se eu não ia dizer nada.
Silenciei.
— Ah!... ia me esquecendo... Sua colega Susie quer falar com você
com urgência...
— E você me conta essa besteirada toda?... berrei.
Ela sumiu da minha frente.
15
Enquanto eu apertava as teclas do aparelho, pensava no porquê da
urgência. Assim que ouviu minha voz, Susie sussurrou que seu Evaristo
tinha sido preso. -Preso!? Por quê? Perguntei. Ela disse que era melhor que
eu lesse os jornais.
Corri até a banca. Antes de bater a porta, escutei a voz de mamãe
perguntando que correria era aquela. Desenfreada, ainda a ouvi dizer. Gritei
que já voltava.
Virei o jornal de cabeça para baixo, fazendo barulho com as folhas e
não encontrei notícia alguma. O jornaleiro me olhava, acho que havia
notado a perturbação. Voltei no mesmo pé em que fui, correndo.
Ao entrar em casa, fui direto para o telefone ligar para Susie.
Mamãe perguntou que agitação era aquela. Não respondi. Susie, voz
em falsete, não sabia como eu não tinha visto a notícia... Contou que seu
Evaristo fora chamado para prestar depoimento a partir de denúncias de
casos de sedução sexual (baixou o tom de falsete) seguidos do
desaparecimento das vítimas. A moça que passara a noite com ele não fora
localizada. Mas ela achava que tudo seria esclarecido. Defendendo o
bandido... Pudera. Disse que precisava desligar.
Quase gritei no meio da sala. A essa altura, poderia ser eu a fodida
desaparecida!... Esse sujeito nunca me enganou, sou uma burra muito
esperta...
Em seguida, o telefone tocou. Roddy. Queria conversar, falar sobre
seu Evaristo. Eu disse que estava ocupada com minha mãe, em outra hora
conversaríamos. Desliguei. Não quero mais saber se esse homem trepa ou
não, quero que se estrepe, como parece que finalmente aconteceu.
Tive vontade de contar tudo a mamãe, ela não diz que eu acho que os
homens estão atrás de mim? Quer dizer, não fosse o aguaceiro (o alucinado
presságio), a essa altura estaria estuprada. Muerta, a causa de las atroces
sevicias del patife... Mamãe não estava na sala; quando cheguei próximo à
porta de seu quarto, encontrei-a deitada, pálida e trêmula. Perguntei o que
estava acontecendo, e ela não sabia dizer o que sentia. Perguntei se era frio,
ela respondeu que não. Então peguei sua mão e ficamos as duas tremendo.
Depois, comecei a chorar, e também ela.
Ela comentou baixinho que não sabia por que chorava, se eu sabia,
perguntou, eu disse que sim, e como.
O telefone tocou, e Wilma deu-se ao trabalho de atender, veio avisar,
com cara de quem ia ter um troço, que era pra mim. Pedi que fizesse um
pouco de companhia a mamãe enquanto eu veria quem era. José Júlio, se
desculpando pelo passado. "Você tinha razão, o cara não presta, é um
canalha, um..." Interrompi José Júlio, dizendo que mamãe não passava bem,
falaríamos depois mal do crápula. José Júlio tinha conseguido encontrar a
notícia? Voltei para perto de mamãe, e Wilma saiu se arrastando
propositalmente para chamar atenção, mostrar que também ela passava mal.
Nisso, Lili apareceu, deu uma olhada em mamãe, voltou a sumir e
retornou nu, e assim ficou, dançando e cantando na sala.
— Nina, onde está? Mamãe respondeu que ela fora até sua ex-casa
pegar um banquinho.
Só então me lembrei de perguntar pelo parente, ela disse que devia
estar chegando. Nesse momento, a campainha bateu e... Dadá entrou! Foi
direto para o quarto de mamãe, já com olhos cheios d'água, dizendo que
viera para ficar. Mamãe, pegando as mãos de Dadá e chorando sobre elas,
perguntou por que ela voltara. Olhei de lado para minha irmã e pedi, baixo,
que contasse depois.
— Por que está tremendo, mamãe? perguntou Dadá.
E ela respondeu que não sabia, enquanto ouvíamos a voz de Lili na
sala cantando upa upa upa cavalinho alazão". A campainha tocou e eu fui
atender. Era o parente seguido de Nina segurando um banquinho. O
banquinho, depois eu soube, era do Joãozinho, o nome do filho que Nina e
Sérgio não tiveram; é cada história horrível... Nina dizia que tinha perdido a
chave, e o doutor, parecendo ter sido exumado, entrou no quarto de mamãe
dizendo que ela estava com boa aparência, melhorara desde a última
consulta. Mandando que se sentasse, ouviu suas costas, pedindo que ela
tossisse.
Quando o macróbio saiu, disse para nós três na sala que mamãe
estava bem mas seu quadro inspirava cuidados. Esperava acertar a
medicação, e entregou a receita em nossas mãos. Esperava acertar?...
Anunciando que estava de saída, apertou a mão de cada uma de nós
e se foi. Nada perguntamos e nada comentamos depois.
Entrei no quarto e mamãe perguntou, a mim, por que a todo
momento seus óculos se embaciavam. Acha que eu tenho resposta para
tudo.
Eu disse que talvez fosse o bafo que exalava quando dos cochilos.
Apesar de não ter gostado da resposta, ela comentou que considerava a
explicação correta.
Mais tarde, fiquei durante uma hora conversando no telefone com
Luiz; trocando preocupações. As minhas, com mamãe e trabalho, a dele,
unicamente com a arquitetura. Luiz é arquiteto e, segundo ele, está na fase
da vazante, são inúmeras, tirava seu sustento de dois imóveis que os pais
deixaram, e aquele em que morava era próprio. Perdera os pais fazia muito
tempo, era órfão. Tinha por família exclusivamente a si próprio. Achei o
máximo encontrar alguém assim...
Luiz pensava em montar um pequeno restaurante na serra, sua
ascendência era francesa, mas ele era craque em chucrute. O fato é que,
apesar de todo esse blablablá eu me borrava de medo do próximo convite,
seria inevitável irmos para a cama, e se no horizonte estivesse um novo
desastre e eu ficasse reduzida a quando os sonhos me brindassem?...
Desligamos com o compromisso de nos vermos no dia seguinte,
outro cinema, quem sabe? Já ia me deitar, quando o telefone tocou, e
felizmente fui eu a atender. Alguém do outro lado dizia ter sido informado
de que eu era funcionária antiga do Meio do Céu; assim sendo, podia
responder a algumas perguntas sobre seu Evaristo. Respondi que sim, mas
pelo telefone e com a garantia de que não seria identificada, caso a matéria
fosse publicada. Então, a pessoa perguntou se em algum momento desse
longo período seu Evaristo me importunara.
— De forma alguma, sempre foi muito respeitoso, um cavalheiro. O
que o medo faz...
Mesmo assim, no dia seguinte saiu no jornal que a recepcionista do
Meio do Céu não poupara elogios ao ex-diretor.
As semanas se passavam e eu não recebia nenhuma notícia. Vez por
outra, Susie e Roddy ligavam, mas ninguém conseguia nenhuma
informação nova. Até que um dia, Susie ligou cedo, para contar que havia
saído uma nota no jornal. As acusações sobre seu Evaristo não foram
confirmadas, adiantou ela. "Eu não disse?" — comentou em tom de triunfo.
Não levei a conversa adiante.
E a moça que a família levara para São Paulo? E a da noite do
chuvaréu? Ah!... e a enfermeira do edifício no Jardim Botânico que
exagerara na dose?... Assunto encerrado? Processo arquivado? Pronto, o
predador ativo e que se desloca com agilidade estava à solta.
16
Luiz e eu quase trepamos no cinema. Quase. Quando as luzes se
acenderam, foi uma movimentação danada: sobe calcinha, abaixa saia, puxa
fecho éclair... Estávamos tão convulsionados que não conseguimos emitir
um som. Quando ele conseguiu falar, propôs irmos para o seu apartamento.
Eu disse que teria que voltar. Apesar de mamãe estar acompanhada, eu
precisava me certificar de que ela estivesse bem. Ele se despediu dizendo
que eu fizera uma expressão preocupada, beijou entre minhas sobrancelhas,
depois pediu que eu desse um sorriso para que ele fosse contente para casa.
Estou quase acreditando que desta vez vou ser feliz, só falta a
experiência final, que, se Deus quiser, com ele vai dar certo. Isolei na
parede do elevador, me lembrando em seguida que era de fórmica, bosta!
Abri a porta de casa com o pé virado para cima, batendo na sola, felizmente
mamãe não apareceu para perguntar o que eu fazia.
O telefone tocava e ninguém atendia, e devia ter pelo menos cinco
pessoas lá dentro. Se bem que campainha e telefone não são com Wilma,
cansa muito atravessar a sala. Lili, no breu, também não quer saber de ser
importunado. Minhas irmãs conversavam no quarto, Dadá rememorava as
fugas de Hermano, e Nina ouvia, atenta. Mamãe dormia a sono solto,
televisão ligada, óculos no peito e, não sei por quê, descabelada. Tirei o
fone do gancho: — Dona Gilda, quero lhe agradecer pela declaração a meu
respeito; aliás, não poderia esperar outra coisa, vinda da senhora... Bati com
o telefone na voz do crápula.
Depois fiquei muda, pasma... aquele vigarista, assassino, sim, devia
ter comido e matado aquele legume, já estou fazendo confusão, não era
aquela, e sim a moça que ficara no meu lugar de recepcionista, como era
mesmo o nome dela?... Patrícia!...
Mamãe devia ter acordado, porque escutei o som de sua voz.
Quando entrei em seu quarto, ela conversava com papai. Esperei que
acabasse, não gosto de me meter nessas coisas. Às vezes ela pede que eu dê
uma palavrinha, mas em todas desconverso.
— Checho, tenho uma notícia que vai alegrá-lo, acho que em breve
estaremos juntos... Não vai dizer nada?... Mas estou vendo um sorriso no
regato dos seus lábios... Lembra que foi a primeira declaração que você me
fez: "Surpreendi um sorriso no regato dos seus lábios". lembra, meu bem?
Quando me viu, mamãe disse que papai estava de saída: — Calmo, sereno,
tranquilo, carinhoso. — E o que eu queria, perguntou. Também perguntei:
— Por que está descabelada desse jeito? Ela achava que Lili tinha estado no
quarto e passara a mão em seus cabelos, mas não tinha certeza, porque
também achava que cochilara. Em seguida, contou que tivera outra dor
daquelas, no meio do peito. Perguntei por que não chamara suas filhas, ela
respondeu que conversavam no quarto, não tinha querido atrapalhar.
— E Wilma? — Não tem andado bem, preocupada com a minha
saúde, coitada, é uma moça muito sensível...
Contratamos uma empregada para não incomodá-la.
Luiz quis conversar a sério comigo. Conversas como essas deviam
ser proibidas entre as pessoas, causam um profundo mal-estar ao serem
anunciadas.
Sentamo-nos em um dos bares da Av. Atlântica. Copo no copo, ele
começou a falar; queria saber por que eu sempre arranjava uma desculpa
para não transarmos. Saía sempre excitado dos nossos encontros e não
conseguia atinar com o que acontecia. Eu não gostava mais dele? Cortei,
rápido. Disse que, com minha mãe doente, não havia clima. Simplesmente
isso.
Ficamos de mãos e pernas entrelaçadas, observando os transeuntes.
Depois de alguns chopes, ele perguntou quando seria possível acontecer
algo entre nós.
— Acontecer está acontecendo, Luiz, só não estamos fodendo.
Mamãe diz que de vez em quando eu tenho um palavreado horrível,
mas é quando os outros entendem... Luiz não disse mais nada, nem eu.
Voltei para casa e, de fato, encontrei mamãe mal. O parente
encontrava-se à sua cabeceira, e Nina e Dadá no quarto. Me arrependi
horrivelmente do chope, de ter ficado naquela bobeira.
A múmia achou conveniente internarmos mamãe para que ela fizesse
exames. Nos entreolhamos, e como nenhuma de nós entende de medicina,
concordamos. Avisamos a Wilma e a Lili, que se agitou no quarto, devia
estar pelado; a qualquer transtorno maior, tira a roupa. Passando pela área,
vi o passarinho encolhido a gaiola.
Na sala, o fantasma balbuciava ao telefone: "Uma ambulância, faz
favor." Nina estalava os dedos dos pés, encarapitada na poltrona, e Dadá,
mãos na cabeça, olhava fixo para o assoalho, calculo que contava os tacos.
Nisso, a campainha tocou, fui abrir a Porta para dona Idalina (blush
beterraba nas bochechas), que passou reto por nós e entrou no quarto de
mamãe. Não se disseram uma palavra, o aparelho estava sumido havia dias.
Dona Idalina escreveu num pedaço de papel que mamãe iria ficar boa, já
tinha feito promessa para Santa Edwiges (mas não é a santa dos aflitos e
endividados?), e enquanto mamãe estivesse no hospital, ela iria contratar a
menina que trabalhava na casa de sua cunhada para dar uma busca, tinha
certeza de que, quando voltasse, o aparelho estaria esperando por ela.
Cruzou de volta a sala, apertando o casaco de lã no corpo e se benzendo.
O telefone voltou a tocar: — Dona Gilda, por favor...
Bati com o fone no gancho. De novo a perseguição. Minhas irmãs
perguntaram que tantos enganos eram aqueles. Eu disse que o nosso número
parecia com o dos bombeiros, depois emendei que a ambulância devia estar
chegando. E elas desandaram a catar coisas dentro de casa.
Ao chegarmos ao hospital, deixamos mamãe com Nina, que
certamente preferia passar a noite em claro a dormir sozinha.
Quando voltei, tive a grata surpresa de saber que Wilma anotara um
recado pra mim; que eu me apresentasse no dia seguinte, no horário de
sempre, no Meio do Céu. Agradeci, e Wilma disse que devia ser uma beleza
de lugar, e eu nada comentei; havia tempos a empregada se rendera à fé de
mamãe. Um dia, mamãe tinha comentado que ficara muito feliz ao levar
mais um cabritinho para junto do Senhor. Teria sido esse o bicho?...
Pela manhã, escutei um barulho de água vindo da área. Encontrei
Nina no tanque lavando, não sei o quê, não dava para ver. Perguntei como
havia deixado mamãe; bem, respondeu, depois disse que viera embora
porque Dadá tinha chegado ao hospital. Perguntei o que lavava.
— A pedra do sol. Tem que ficar sob a água corrente para retirar
todo o sal. Afasta a melancolia e é indicada para quem perdeu a vontade de
viver.
Escutei a voz de Lili: — Deixa ela! Voltei ao trabalho. Em pé, dentro
do ônibus apinhado, entre passageiros espremidos e arrancadas do
motorista, senti um promontório roçando em mim, me pressionando por
trás.
Instantaneamente, meu corpo deu sinal de turbulência.
— Que desconforto passam os vivos, não é, dona Gilda? — A voz
do animal furioso, bandido feroz, macabro, hidrófobo. Quase gritei. Sempre
de tocaia, impressionante.
— A vida é um aperto, não é mesmo? Achava que eu me dirigiria a
ele? Saltamos no mesmo ponto, e o maligno caminhava ao meu lado.
— O que está havendo, dona Gilda, não vai me dirigir a palavra?
Aborrecida por causa do terrível engano? Peço que não tire conclusões
precipitadas...
Entramos no prédio. Não sei como soltam um elemento desses...
Estaria voltando ao trabalho?? Subimos no mesmo elevador. Mas,
graças a Deus, assim como veio ele se foi, sumindo pelos corredores. Tenho
a impressão de que um dia ainda me abraço com o Redentor.
Pós-encontro com o animal selvagem, cheguei ao escritório, e o
novo chefe se apresentou. Alto, porte ereto, cabelos e barba castanhos.
Devia ter por volta de quarenta anos, e nem um fio de cabelo branco,
ou seria daqueles que arrancavam os que apareciam? Sr. Medeiros, um
homem comum, desses em que se tropeça na rua a todo momento,
insignificante.
Foi gentil comigo, amável, e disse que, em caso de dúvida, eu
poderia consultá-lo. Não seria o inverso? Expediente findo, seu Medeiros
pediu que eu me apresentasse em seu gabinete. Ao entrar, notei as feições
transtornadas e a mudança de cor. Ele me fez uma série de perguntas idiotas
enquanto me observava, depois pediu que eu lhe desse uma mãozinha:
ajudasse a fechar a última gaveta, que achava estar um pouco empenada.
Me desculpei, mas disse que estava atrasada para ver minha mãe no
hospital. Saí quase correndo da sala. O que queria aquele filhote de
lagartixa? Passar a mão na minha bunda? Do trabalho, fui direto para o
hospital, tinha que correr mesmo, render o plantão de Dadá, que devia estar
cansada de ficar naquele fim de mundo. E um lugar medonho, a começar
pelos elevadores, funcionam quando querem, e são dois, mas raramente
conseguem chegar ao térreo, os botões para chamá-los rodam
enlouquecidos; quando finalmente baixam, marcam o número quatorze; é
uma esculhambação. Mamãe se encontrava no décimo quinto andar, eu já
tinha descido as escadas várias vezes, mas subir, só se eu pretendesse me
hospedar Além de estar com as mãos sempre ocupadas, porque não há jeito
de mamãe engolir a comida do hospital.
Quando a enfermeira aparece com a bandeja, ela a manda embora
instantaneamente, não se interessa nem em ver o menu. Parece que tem
razão, porque outro dia dona Idalina, em visita, resolveu provar e cuspiu. E
um horror... Isso, sem contar com as enfermeiras, dificílimo aparecerem,
não sei onde se escondem, porque no posto também não são encontradas;
então, quem estiver com mamãe tem que levantá-la (está pesando horrores)
e transportá-la ao banheiro. O parente faz questão que ela urine e defeque
no vaso. Assim se expressou.
Minha coluna, com a qual raramente posso contar, foi para o brejo.
Faz parte também da excursão ao banheiro o soro, que a acompanhante
deve carregar; o porta-soro estacionado ao lado da cama não possui
rodinhas e pesa à beça. Enfim, tarefa para poucos, como no nosso caso,
poucas.
Cheguei ao quarto depois de meia hora na fila do elevador, quando já
havia um início de motim na recepção. Assim que entrei, Dadá sussurrou no
meu ouvido que mamãe estava afundando. O médico dissera.
Corri em direção à cama e encontrei-a de olhos fechados. Perguntei
como estava: — Você é você, ou mais alguém? Dadá voltou a sussurrar,
dizendo que mamãe não mais fazia conexões. Nesse instante, ela disse que
queria fazer xixi; teve início a operação levantamento. Mesmo assim toquei
o botão, chamando a enfermeira, que, miraculosamente, apareceu, devia ser
nova na casa. Três pessoas para levarem uma velhinha para fazer xixi.
Findo o içamento, Dadá se despediu, dizendo-se morta.
Depois que mamãe se aquietou, parecia dormir, resolvi ligar para o
Luiz, dar notícias, mas, sobretudo, ouvir sua voz. Pela primeira vez na vida
a voz de um homem me acalmava. Luiz atendeu ao primeiro toque; assim
que eu disse alô, ouvi mamãe resmungando: — Nem no hospital você larga
o telefone...
Pronto, conectada, contei ao Luiz, que entendeu em parte o meu
alívio, porque eu não mencionara a desconexão anterior. Tive a impressão
de que ela estava acordada mas não quis saber com quem eu falava. Quando
desliguei, me deu vontade de contar sobre o Luiz, mas mamãe ressonava de
boca aberta. Me deitei no sofá de plástico, a iluminação fria batendo nos
olhos, e tive um sono instantâneo. Acordei logo depois com o meu ronco,
ou teria sido o de mamãe? Acho que voltei a dormir, porque alguém me
perguntava como era alecrim em inglês. Quando a enfermeira entrou e
acendeu um luzeiro na minha cara, quase digo: Rosemary! Mamãe
'murmurou qualquer coisa, e eu, trôpega, exausta, abri os olhos para o dia e,
ainda teria que trabalhar.
Mais tarde, chegou Nina, também aos cacos; o passarinho piara a
noite inteira, ela estava até com medo de que os vizinhos reclamassem.
— Pobre Arnaldinho...disse mamãe, e nos entreolhamos, e eu falei
com mamãe que achava bom ela voltar para casa, pois se arriscava a acabar
com as três filhas naquela temporada.
Fui embora aos tombos; tentando não encontrar o crápula e atenta ao
discípulo que entrara em seu lugar.
Após a dobradinha plantão-trabalho, cheguei em casa. Assim que
entrei, Dadá perguntou por que eu estava daquele jeito.
— Farra, respondi, depois disse que iria me deitar durante uma hora,
só me chamasse em caso de incêndio ou morte. Dadá voltou a fechar os
olhos, espichada no sofá, exausta do plantão da véspera, e eu desmaiei na
cama. Não antes de pôr o despertador para tocar, jantaria na casa do Luiz
mais tarde.
Não deveria ter ido, sabia que chegaríamos àquela situação.
Praticamente nus, no sofá, entusiasmado com o meu corpo, Luiz o
elogiava, debruçado ativamente sobre mim, quando desandei a chorar.
Interrompendo a movimentação, ele perguntou o que estava
acontecendo, e eu respondi: — Minha mãe.
Ele ficou em silêncio, alisando meus cabelos, desmontando seu
tesão. Depois, vestiu-se devagar, desanimado, e disse que me acompanharia
até em casa.
— Não é má vontade, juro! disse eu, abraçando-o na porta.
E assim terminou a cena da não trepada.
Entrei e encontrei Lili sentado no breu da sala, gaiola no colo,
cantarolando para o passarinho. Acendi o abajur, e parando à sua frente
disse que mamãe logo estaria em casa. Lili saiu abraçado à gaiola e trancou-
se no quarto. Fui ver onde estava Dadá. Emborcada na cama de mamãe.
17
Luiz perguntou quando iríamos transar. Homem quando
encasqueta...
Respondi que assim que mamãe melhorasse. Ele aceitou, quer dizer,
teve de aceitar, mas senti que se convencera. Sempre desculpam quando se
fala em mãe, não lembro quando fiz essa descoberta. Deve ter sido na época
das provas escolares, quando mentia à beça. Voltando ao tesão do Luiz, eu
disse que até a data da recuperação de mamãe não voltaria à sua casa —
evitar que as latinhas de cerveja subissem e borbulhassem. Essa, a nossa
conversa dentro do cinema, triturando amendoins, enquanto a sessão não
iniciava.
Na manhã seguinte, mamãe sairia do hospital, não comentei com o
Luiz, porque ele podia achar que ela ficara boa. Nessa noite, o plantão era
de Nina. Dadá se refazia em casa, acho que muito do estresse ela tinha
trazido da Flórida. Dormia sem parar.
Depois do filme, e de dividirmos uma pizza, Luiz me deixou em
casa. Devia ser por volta das dez, eu precisava dormir cedo para enfrentar a
manhã seguinte. Abri a porta devagar, para não acordar o passarinho, Nina
disse que era um martírio a piação. Devia estar com saudades de mamãe. A
luz do abajur acesa, e a casa em silêncio. Dadá, capotada, quando não está
cuidando de mamãe, dorme em qualquer lugar.
Contou que em uma tarde dessas tirara um cochilo dentro do ônibus,
em pé; certamente amparada por ombros alheios. Lili, tranca do, e o
canário, quieto. Fui ao banheiro descalça e no escuro; voltei, deitei, e
quando dançava num campo de azaleas, a bosta do telefone tocou; puta! —
Dona Gilda, estou lhe telefonando para me despedir...
Mas não vai me deixar em paz?... O ódio era tanto, que ouvi o
telefonema, já que me acordara e ao passarinho. Ele contava que seu
médico recomendara que passasse uma temporada fora do país. Eu não
acreditava que me veria livre dele... Devia ser outro golpe, mais baixo
ainda, para me foder de vez. É um sujeito programado para a maldade.
Antes de embarcar, disse que gostaria de se despedir de mim.
Impossível, respondi ao patife, em seguida desejei boa viagem e bom
canário, isso porque tinha escutado o diabo do bicho desembestado na área.
Lili também acordara, ouvia seus murmúrios no quarto. Fui ao banheiro,
entupi os ouvidos com algodão, e me joguei na cama, tentando encontrar o
campo das flores. Quais? Azaleas lembrei.
Uma operação como poucas, trazer mamãe de volta; quase
precisamos de uma grua. Luiz nos emprestou a caminhonete, grande,
espaçosa, de carregar material quando havia trabalho. Mamãe não quis
saber quem era ele, pensava se tratar de um chofer qualquer; a cada
momento que eu tentava apresentá-lo, ela fazia uma pergunta: "Minha bolsa
veio?" "Esqueceram a chave de casa?" Apesar de estar bem, mamãe se
encontrava torta, adernada, mais um pouco beijava o chão. O médico disse
que esse era outro problema: coluna. Herança e tanto. Mamãe teve alta, com
a recomendação de se alimentar apenas de grelhados e folhas; acho que
faria as refeições com Arnaldinho. No hospital, não foram poucas as vezes
em que perguntara por ele. Achava que eu iria soltá-lo, além de apoquentar
Wilma e maltratar Lili. Tudo isso ela pensa de mim.
Ao abrirmos a porta, o telefone tocava e evidentemente ninguém
atendia. Corri, e quando pus o fone de volta no gancho, ela quis saber quem
era.
— Perguntaram se era o Oswaldo — respondi.
Antes de sairmos do hospital, seu parente fez questão de informar
que o problema de mamãe, além de clínico e cardíaco, era circulatório e
neurológico. Teríamos que consultar outros especialistas, porque ele era
cirurgião. Quer dizer, cuidara de minha mãe a vida inteira, agora que a coisa
fodera tinha resolvido escolher a especialização? Bela bosta. De onde eu
tiraria dinheiro para todas essas consultas? Fui fazer contas; na passagem,
peguei dona Idalina tentando enfiar o aparelho no ouvido de mamãe. E ela
reclamando. Na verdade, dava o troco do dia em que mamãe atochara o
aparelho nela.
— Mamãe não precisa escutar nada agora — eu disse.
A título de ajuda, quantas maldades se praticam...
Dona Idalina ficou sem graça, e mamãe disse que não queria que eu
mandasse sua amiga embora.
— Mas quem está mandando ela embora!? Ela escutara porque eu
tinha berrado, escutaram, melhor dizendo, porque o aparelho se encontrava
nas mãos de dona Idalina.
Saí do seu quarto e fui pedir ajuda às minhas irmãs. Nina meditava,
sentada no chão da sala, e ainda quis que eu a acompanhasse...
E Dadá, deitada no sofá, abriu um olho dizendo que tirava um
cochilo e dentro em pouco estaria novinha em folha.
Como eu mal sentia o corpo, resolvi ir à casa de Luiz. Estava com
saudades. Esperei as duas acordarem, uma da meditação, a outra do sono, e
avisei que iria à casa dele, mas deixaria o telefone.
Depois de duas músicas, meia dúzia de latinhas de cerveja e
inúmeros beijos, meu corpo acordou. Iniciamos a sessão tortura, Luiz pedia,
implorava para que fizéssemos amor, já estava rouco, quando se excitava
perdia a voz; novidades da cama. O sexo deixa as pessoas loucas... falo por
mim, é um desarranjo, um destempero, uma avalanche descomunal. Súbito,
me levantei, deixando seu peru apontado para o teto; em seguida, ele se
levantou atrás de mim; desandei a chorar; completamente fanhoso, ele
dizia: — Esquece sua mãe, meu bem, esquece...
Chorei mais alto ainda, enquanto seu peru declinava a olhos vistos.
Deixei-o desanimado, desapontado, decepcionado, arrasado. Tudo isso,
porque me cago de medo de que entre nós não dê certo...
Ainda vou me dar mal, o dia em que eu disser sim, é bem capaz de
ele não conseguir, haja vista experiências anteriores. Além disso, é possível
que contraia uma disfunção erétil, o ginecologista diagnosticara o distúrbio
de José Júlio, coitado. Eu pensava nessas coisas enquanto xingava as
calçadas; estava de saltos, na bica de quebrá-los, é uma desgraça a
despavimentação dessa cidade...
Cheguei em casa e encontrei mamãe estirada no chão da sala.
Corri gritando em direção a ela, que, com esforço, abriu os olhos
(dormia?), dizendo que caíra subitamente. Assim, sem mais nem menos,
estava muito bem, e tibum. Lili, murmurando palavras desconexas, me
ajudou a levantar mamãe e a levá-la para a cama. E Dadá, onde estava?
Tinha dado um pulinho na rua, para fazer uma comprinha, disse mamãe.
Quando acorda, vai ao shopping. E Nina, por onde anda? Em
reclusão, no sítio de uma amiga. Perguntava por elas enquanto discava para
o parente.
A voz soturna disse que em instantes estaria em nossa casa.
Tentei saber um pouco mais sobre o tombo. Mamãe disse que fora
relativamente simples. Escutara uma trovoada, se lembrara que Wilma
estava de folga (como se a empregada se ligasse em intempéries), levantara-
se para dar uma espiada na janela da sala e assim que pisara no carpete,
bumba, estendera-se no chão. Nesse momento, perguntei que novidade era
aquela: tibum, bumba.
— Eu disse essas coisas?...
— Disse.
— Ora.
Ora. Bem, mamãe continuou contando sobre o momento em que se
escarrapachara. Tinha certeza de não ter sido empurrada e de não ter
tropeçado em nada, até porque na nossa sala há pouco no que trombar: um
sofá com mesa ao lado e uma poltrona em frente ao aparelho de tevê. Ela
faz questão que assim seja, porque há anos teme a cegueira total (dela e a de
Dadá, não se cansa de repetir que uma tataravó não enxergava), então põe
venda nos olhos e treina todos os dias às apalpadelas caminhar pela sala.
Ultimamente anda meio esquecida, ainda bem.
O parente chegou. Com um pouco de tosse; é médico e fuma sem
parar. Parece que baixou hospital várias vezes sem conseguir respirar. A
mulher, dizem, cansou de ir ao convento de Santo Antonio, mas até agora
nada. Seria melhor que tentasse o santo das causas perdidas, cujo nome
acabei de esquecer.
Depois de um minucioso exame e alguns acessos de tosse, o
veredicto: mamãe não poderia mais ficar sozinha. Teria que contratar um
pessoal especializado. Perguntei o que ele queria dizer com isso. Uma
equipe de enfermagem, respondeu, guardando o estetoscópio, depois virou
as costas, indo embora.
Liguei para o Luiz, agitada. Desliguei o telefone mais calma, porque
Luiz tinha dito que as coisas não ficam do jeito que estão (acho que pensou
também em causa própria); de qualquer forma, ouvir sua voz me serenou
um pouco. Lili e Arnaldinho piavam na área de maneira desconexa.
Fui ver mamãe; estava quieta, deitada, olhos fechados. Quando me
aproximei, perguntou: — Adivinhe o que estou fazendo?
— O quê?
Só tenho paciência com mamãe quando ela está na bica de morrer,
depois passa.
— Palavras cruzadas; mentalmente.
Repeti o que o médico dissera, que ela precisava de companhia.
— É o Arnaldinho?
A paciência voou pela janela. Eu disse que iria me informar sobre
enfermeiras.
Voltei a fazer contas, como se com isso o dinheiro espichasse.
O telefone tocou. Corri, não dava mais para contar com mamãe para
atender telefonemas.
— Dona Gilda?...
Mas esse avião não levantou voo?... Que diabos esse homem ainda
queria comigo?
— A viagem foi adiada para daqui a dois dias, durante esse tempo a
senhora aceitaria um jantar?
— Com licença — Desliguei e nem respondi.
Tive que masturbar o Luiz. Tive. Horrível, de contar e fazer, além do
mais dentro de um cinema assistindo a um faroeste. De uma hora para a
outra ele entrou em uma espécie de estertor rouco, se contorcia pedindo que
eu o fizesse; o revólver do ator e o peru do Luiz na mesma Posição,
apontados para o alto, prontos para disparar; do jeito que ele se encontrava,
não conseguiria voltar para dentro das calças de forma alguma. O pior
foram os sacolejões finais, quando Luiz chutou a Poltrona da frente, e a
mulher olhou para trás; rapidamente, atirei minha bolsa em seu colo, e ele
soltou um grito.
Fim da sessão de masturbação e de tiros por todos os lados.
Cheguei do bangue-bangue e encontrei um vozerio em casa;
balbúrdia instalada. Ninguém conseguia comunicar o que estava
acontecendo, andavam de um lado para o outro, aflitos; mamãe soluçava,
Lili gritava, e nenhum deles contava o que se passava. Até Wilma estava
agitada, na hora da sua sesta.
Resolvi me alvoroçar também: — Alguém pode me dizer o que
houve? gritei.
Nina, em posição de ioga, no meio da sala, disse que o canarinho
fora encontrar sua luz.
Arnaldinho tinha morrido. Fui constatar; triste um passarinho
estendido no chão da gaiola. Já havia flores ao redor. Em prantos, mamãe
dizia que queria saber quem envenenara seu canarinho. Eu disse que isso
acontecia aos cachorros, não às aves.
— É o que você pensa... ela respondeu, fungando. Lili tomara vários
calmantes, e no entanto continuava a gritar, alto. Na verdade, mistura de pio
e grito. Nesse momento, mamãe proclamou em voz alta que não enterraria
Arnaldinho. Lá ele ficaria até não restar uma peninha.
Além do mais, enterrando depressa não havia tempo de a alma
chegar ao corpo.
— Ela sai pra passear? perguntei, e ela se fez de surda, e muda.
Que fedor viraria a nossa casa...
18
Demorei a sair por causa de mamãe. Passada a agitação, as dores
voltaram. Voltei a ligar para o parente. Ele passou uma medicação extra em
função da morte do passarinho. Contei, claro. E quando ele perguntou pela
equipe de enfermagem, quase respondo que estava num torneio, em breve
chegaria. Mas disse que aguardávamos a chegada de uma moça. Na
verdade, Dadá ficou esperando, porque Nina não mais saía das meditações,
alegando que todas eram para mamãe; duvido que não pense no colega de
saias.
Deus permita que eu não encontre o predador pelo caminho,
pensava, andando em direção à parada de ônibus, quando uma mão
estourou no meio do meu peito, e o pivete dizia, quieta, quieta, e num
arrancão levou meu colar. Abri a boca: — Moleque filho da puta!gritei,
enquanto via suas pernas finas e ruças saltando entre os carros.
É isso, por todos os rincões desta cidade.
Antes de sair do trabalho, telefonei para casa. Dadá disse que mamãe
estava bem, sentada na poltrona e fazendo palavras cruzadas. Ela quis saber
com quem Dadá conversava, e Dadá disse que era comigo. Aproveitou e
perguntou como era criação de demiurgo, entre parênteses estava escrito
Platão. Essa eu tive que pensar. Lembrei das aulas do rapaz de mãos
espatuladas. Cosmo! quase gritei. A filosofia servira para alguma Coisa...
Pelo visto, mamãe melhorara, e muito. Perguntei pela enfermeira. Dadá
disse que era boazinha, mas não sabia aplicar injeção. Na verdade, era
acompanhante. Dadá esperava a minha Chegada e a de Nina para
resolvermos.
Liguei em seguida para o Luiz, e ele foi me buscar no trabalho.
De lá, seguimos para conversar e comer alguma coisa. Quando
comecei a contar como iniciara o dia, Luiz me olhava olhos caídos e
aguados, esfregando minhas mãos. Fingi que não notava a excitação
instantânea.
Continuei falando do puto que rebentara a mão nos meus peitos e
levara meu colar. Luiz quase babava, como se eu estivesse contando história
de sacanagem. Quando acabei, disse que ele não tinha prestado atenção em
nada do que eu havia contado; se eu quisesse, repetiria cada uma de minhas
palavras, respondeu. Falei que não precisava, depois perguntei por que
estava epiléptico daquele jeito.
— Epiléptico? — Não sabe o que é? — A única coisa que sei é que
eu quero transar com você!... disse, me puxando pelos braços.
— Não dá!... Você sabe disso perfeitamente! respondi, me
desvencilhando da agarração.
Inclinando a cabeça, e sorrindo de boca torta, ele meteu a mão entre
as minhas coxas.
— Para! Já disse!... Que coisa... Parece que não entende! Ficou
quieto.
— Você não sabe conversar sem pensar em trepar?... Respondeu que
sabia, mas não comigo.
Propus jogarmos o jogo da velha nos guardanapos, só assim pensava
em outra coisa. Ele sorriu e me chupou a boca. Poxa.
Ao passar pela entrada do prédio, o porteiro me entregou um lindo
vaso de orquídeas, entre elas um cartão. "Fui atrás de rosas para comemorar
a chegada do seu aniversário, mas elas ainda dormiam. Aguardo a suprema
alegria de jantarmos antes do meu embarque. Evaristo." Mas era possível
uma coisa dessas? Como é que o maldito sabia do meu aniversário? A... na
ficha da empresa, claro! Minha vida estava toda ali, em suas mãos.
Entrei em casa com as flores, e Dadá comentou que Luiz caprichara.
Mamãe continuava sentada na poltrona, dizendo que várias palavras ela não
conseguira completar. Perguntei por que não perguntara a Dadá. Minha
irmã disse que os quadradinhos a tumultuavam. A miopia.
Perguntei por Nina; ela ligara, dizendo que estava no final da
meditação, em breve chegaria, e tinha certeza que passaria bons fluidos para
mamãe. Antes que eu a ajudasse com as palavras cruzadas, mamãe pediu
que eu fosse ver Arnaldinho o que ainda restava dele. Considero família
uma coisa cruel. Fui até a área, e uma porção de formigas e insetos não
identificáveis haviam coberto o cadáver do passarinho. Ao voltar à sala,
mamãe perguntou: "Então?" — Está do mesmo jeito, deitado.
— É um santinho, disse ela, se benzendo.
Então começaram as perguntas, enquanto eu via surgir no corredor
uma figura magrinha, vestida de branco, se aproximando, dizendo ser a
enfermeira; apertando a minha mão, disse que mamãe não havia gostado
dela.
— É, concordou mamãe.
Falei para a moça que conversaríamos depois, esperávamos nossa
outra irmã chegar.
Mamãe quis me mostrar a revistinha, mas eu disse que não havia
necessidade, bastava que perguntasse.
— Esta começa assim: (?) del Fuego. — Mostrou a revistinha.
— Luz. Aquela mulher que vivia nua com cobras enroladas pelo
corpo, lembra? Dadá respondeu, perfeitamente, e mamãe comentou que a
lembrança se fora com os neurônios que partiram. Nesse momento, tive
uma recordação: Dadá brincando de Luz del Fuego, enrolando a toalha e
depois esfregando-a no corpo, enquanto requebrava nua.
— Lembra?
— Isso foi há tanto tempo... — E seu olhar se perdeu janela afora.
Mamãe disse que nunca tinha visto Dadá fazendo essas coisas, e
voltou às palavras cruzadas: — Outra: o Céu.
— Quantas letras?
— Sete.
— Abóbada. Acabou?
— Não... Falta uma, enorme: causa a morte de pessoas inocentes em
tiroteios nas ruas...
— Ba-la-per-di-da! Lili, desenfinhando-se, gritou: — Parabéns! — E
tornou a desaparecer.
Nina chegou, e antes de nos endereçar qualquer palavra, ajoelhou-se
diante de mamãe e pôs as mãos sobre sua cabeça, e assim ficou, sem
pronunciar um som durante algum tempo. Mamãe, que sofre da coluna,
gemia, e nada podíamos fazer porque nossa irmã entrara numa espécie de
transe e só quando este acabasse a cabeça de mamãe seria libertada. A
enfermeira e Wilma, lado a lado, assistiam encostadas na parede da sala.
Quando Nina finalmente liberou mamãe, ela se queixou de dor no pescoço,
mas Nina disse que não era nada, compara do ao que tivera de pressionar no
interior de sua cabeça. Mas fizera uma oração jaculatória e tinha certeza de
que mamãe ficaria bem (jaculatória?) Era uma oração curtíssima, porém
eficaz, explicou Nina. Bem, nesse momento resolvi falar sobre o que
interessava, Porque a conversa evaporava a olhos vistos. Em primeiro lugar,
tivemos que chamar o rapaz da farmácia porque mamãe precisava tomar a
injeção que a mocinha não sabia aplicar.
Depois eu lhe disse que certamente houvera um engano em sua
convocação, que eu pagaria o dia, agradecia e ela poderia ir embora quando
quisesse.
Nesse instante, o telefone tocou, e como era eu que estava ao lado do
aparelho, atendi: — As flores chegaram a tempo de enfeitar a véspera do
seu dia? Eu tomava tantas providências, que, em vez de bater o telefone,
disse que estava ocupada com minha mãe doente, e ele respondeu que
lamentava muito, se eu aceitaria um jantar em sua companhia, gostaria de
esclarecer o ocorrido... Eu disse que não poderia continuar no telefone, e ele
perguntou se poderia ligar mais tarde, e eu respondi sim.
Desliguei e fiquei pensando no que dissera. Sim!? Depois da loucura
do que havia dito, fui conversar com minhas irmãs sobre enfermeiras. Nina
disse que conhecia uma moça cuja mãe tinha um serviço de enfermagem.
Ligaria para ela. Pensando melhor, daria um pulo em sua casa, ela morava
perto. Enquanto isso, a acompanhante passou por nós se despedindo e se
desculpando por qualquer coisa. Dadá, depois de um telefonema para a
Flórida, disse que nunca mais voltaria. Ficaria o resto da vida na nossa
companhia, e arriou-se no sofá.
Está bem, eu disse. Pelo visto, fim de novela na Flórida.
Fui tomar banho. No final, enrolada na toalha, ouvi a campainha
tocando. Devia ser Nina, sai sempre sem a chave. Descalça, cabelos
pingando, corri até lá, e quando abri a porta: qué es lo que veo! o
maquiavélico surgir na soleira, dizendo que fora fazer uma visita à minha
mãe.
Virei as costas e saí patinando. Dentro do quarto, tentava acabar de
me enxugar, mas meu corpo disparou em movimentos desarticulados e, sem
saber o que fazer, retornei ao banho, enquanto escutava seu Evaristo se
apresentando a Dadá, e ela comentando que andávamos muito nervosas
com a doença de nossa mãe, que não reparasse e aguardasse um momento
enquanto iria lá dentro ver se mamãe poderia recebê-lo. Abri toda a torneira
do chuveiro e fiquei sentindo a água batendo no corpo, acalmando-o com
seus jatos.
Saí do banheiro novamente enrolada na toalha, abri devagarinho a
porta para ver se o repelente ainda estava lá. Dadá cabeceava no sofá da
sala, sinal de que ele tinha ido embora, e também não adiantaria chamá-la,
ela só acorda aos sacolejões.
Depois do jantar, resolvi ligar para o Luiz. Conversamos,
conversamos, e, no final, ele quis saber o que aconteceria conosco se
mamãe continuasse no mesmo estado. Respondi que nada se alteraria,
continuaríamos da mesma forma. Então ele foi perdendo assunto, perdendo,
até eu ouvir sua voz baixa, bocejando, dizendo que me ligaria no dia
seguinte. Nesse momento, me lembrei de uma música, eu era pequena, o
rádio tocava ou mamãe cantava pra mim? "É fim de noite Nossa estrela vai
embora Seu olhar me diz agora Que eu vá embora também..." Acordei e fui
ao quarto de mamãe. Ela ouvia música aos berros.
Silenciei, esperando que me desse os parabéns.
— Que foi, acordou aborrecida? Eu disse que era meu aniversário.
Beijando minha mão, mamãe se desculpou, e seus olhos brilharam de
lágrimas.
Tive também que contar para o Luiz sobre a data. E ele perguntou se
podíamos comemorar, e arregalou seus olhos furta-cor. Eu disse que sim, e
em seguida, não!...
Ao acordar, Nina foi meditar, depois veio me dar um presente, uma
pulseira chamada o mala.
— Não sei se devia te dar, porque é usada para fazer o mantra.
Pós-explicação, fiquei repetindo: vou ser feliz com o Luiz, vou ser
feliz na cama com o Luiz. Não sabia se podia pedir certas coisas, mas como
Nina não fez nenhuma recomendação, continuei.
Dadá me abraçou forte, me beijou, amassou, mas disse que não tinha
comprado presente porque o dinheiro que Hermano enviava mal dava para
suas despesas mínimas. Mentira, sob esse aspecto Dadá continua ruim.
Wilma perguntou se era meu aniversário, eu respondi que sim, e
fiquei aguardando uma palavra da empregada; enquanto isso vi sob a minha
xícara um desenho de flor, Lili. E a empregada, nada, é uma antipatia essa
cardíaca.
Durante a manhã, Luiz me ligou três vezes, mas teria entendido o
que eu dissera, ou não? Ao chegar no Meio do Céu, um vaso de flores
enfeava a minha mesa; quando vi o cartão, constatei que não era de seu
Evaristo, cuja letra, infelizmente, eu pas sara a conhecer. Por falar nele, até
então não se manifestara, qual bomba estaria o pérfido preparando? Os
colegas apareceram cantando parabéns, e na hora do cafezinho
improvisaram um lanche. Seu Medeiros, olhos brilhantes, também veio
apresentar seus cumprimentos, assim falou o engravatadinho.
À noite, Luiz e eu fomos a uma boate. Logo na chegada,
conversamos, depois, nos descontrolamos em uma agarração medonha, a
impressão é de que seríamos expulsos do ambiente a qualquer momento.
Luiz estava desvairado, e eu, depois de entornar a chama líquida,
explodia. Meu corpo não tem cabeça. Felizmente, não trepamos na pista, no
sofá e nem no carro. Acabamos a noite na praia, assistindo à aurora
inundando o céu.
Por falar nisso, lembrei de José Júlio; tinha se esquecido do meu
aniversário? Luiz perguntou se eu estava fazendo um pedido à última
estrela. Onde está ela, perguntei. Ele apontou, e eu: — Estrela, estrelinha,
está vendo este rapaz aqui?... Fazei com que ele queira casar com aquela
ali...corri para outro lugar — Hoy es fiesta!— gritei, braços abertos,
rodopiando na areia.
Nos beijamos e abraçamos, em seguida aplaudimos os primeiros
raios silenciosos da manhã.
Luiz e eu nos despedimos próximo de casa. Eu disse que ia correr,
porque estava com vontade de fazer xixi. Ele perguntou por que eu não
havia feito na praia. Arriar calcinhas na sua frente? Jamais.
Mal cheguei na rua movimentada àquela hora da manhã, vi um carro
estacionado em frente à portaria, a porta se abrindo e seu Evaristo saltando.
Preparando uma emboscada!? Como sabia que eu chegaria àquela hora?
Virei as costas e desci a rua despinguelada, o fanático atrás.
Corrida às seis da manhã? As poucas pessoas acordadas nos olhavam
assustadas; não lembro quantos quarteirões atravessei, me mijando nas
calças, só sei que quando me virei, o primata tinha desaparecido. Fiz sinal
para o primeiro táxi que passou, e caí sentada no banco com um palmo de
língua pra fora, coração aos trancos, suando e pensando o que quereria o
malfeitor Me arriar num hospital? Eu não seria capturada assim tão
facilmente...
Podiam ter a ideia de sobrevoar o Cristo para ver se distraía os
assaltantes: o início de uma doce vida.
— Onde você estava? Assim Dadá me recebeu.
— Numa corrida.
— Mamãe está passando mal. — Dando-me as costas, minha irmã
ainda disse: — Aquele seu chefe esteve aqui e deixou uma encomenda pra
você.
Saí tropeçando pela sala em direção ao quarto de mamãe.
19
Dadá perguntava por que eu estava fazendo xixi no quarto, enquanto
eu me mijava de vontade, medo e desespero vendo mamãe afundada na
cama. De um dia para o outro mirrou desse jeito?... Ouvíamos a voz de
Nina na sala, falando com o parente. Dadá pediu a Wilma que trouxesse o
pano de chão.
Apertando o nariz com cara de nojo, a empregada saiu dizendo
"onde já se viu uma coisa dessas?" Não iria discutir com ela naquele
momento, mandá-la tomar no cu, por exemplo. Lili, segurando seu peru
mole, ensaiou um xixi e quase em coro dissemos, em voz baixa: não! A
campainha da frente tocou e pensamos que fosse o parente, mas dona
Idalina entrou, enxugando os olhos. Nesse instante, começamos a ouvir
canto de passarinhos, vários. Lili havia posto um CD de vozes de pássaros.
Mamãe movimentou os olhos, escutou. Aproveitei e perguntei se ela me
via. Seus olhos mínimos fizeram uma ligeira rotação, mas a boca não se
mexeu. Dadá disse que , melhor deixá-la descansar; Nina, entrando em
seguida disse que o médico devia estar chegando. Lili entrava sala
chilreando do quarto. Foi então que a tremedeira apareceu. Da cintura para
cima, mamãe chacoalhava; abaixei e perguntei dentro do seu ouvido se
estava frio. Mamãe voltou a não responder, e Dadá disse que obviamente
aquilo não era frio. Obviamente? Cega pelas lágrimas, saí do quarto, porque
ouvi a campainha tocando. Era o parente. Entrou apressado, e assim que viu
mamãe, disse baixo para si próprio: "Prestes a colapsar". Perguntei o que
ele queria dizer com aquilo; em vez de responder, ele me olhou com olhos
de pessoa morta. Um dia, mamãe comentara que a córnea dele havia sido
feita com células de morto. Eu devia ser garota quando ela me contara essa
história porque me lembro de um sonho que se repetiu várias vezes: as
pessoas passavam por mim na rua com os olhos vazados; uma coisa
horripilante. Apesar do verão, o frio varria o quarto. Mamãe continuava se
sacudindo, enquanto o parente a examinava, berrando perguntas. Podiam
gritar à vontade com ela, que desgraça... Soy una cria perdida. As perguntas
se sucediam, e mamãe continuava sem responder. Nina rezava uma mesma
frase desde que largara o telefone, e Wilma apareceu com a cara na porta
dizendo que tinha certeza de que mamãe ficara daquele jeito por causa do
passarinho.
Dadá pediu silêncio, o doutor a examinava, disse. E o morto lá,
grudado em minha mãe... Nesse momento, Dadá perguntou a ele se não era
melhor que a internássemos. Após uma pausa, o quase totalmente defunto
respondeu que não, e não explicou. É uma desgraça tentar conversar com
médicos. De repente, sem conseguir me controlar, comecei a chorar, alto.
Dadá disse que era melhor que eu saísse do quarto, Nina balançou a
cabeça concordando, e Dadá continuou, dizendo que daquele jeito eu
poderia incomodar mamãe. Ouvi o telefone chamar, mas ninguém foi
atender, nem Wilma, claro. O aparelho rachava de toar, quando vimos dona
Idalina se levantando ligeiro na ponta dos pés, saindo do quarto. Voltou
dizendo que era pra mim. Perguntei de quem se tratava, um senhor,
respondeu, mandei dizer que não estava, e ela falou que havia dito que eu
fazia companhia a mamãe, pedi então a ela que, por favor, dissesse que eu
tinha morrido. Ela ficou parada por momentos, pegando partes do cabelo e
amassando-o com a mão.
De repente, desdobrando vagarosamente o esqueleto, o parente
levantou-se e saiu do quarto. Foi para a sala fumar. E Dadá, atrás, fazendo
perguntas. Ele respondia a todas da mesma maneira: — Vamos aguardar —
E, vez por outra, exalava espirais de fumaça.
— Cada qual sabe com cada quem...
Súbito, ouviu-se a voz de mamãe.
Voltava à tona de novo. O parente apareceu na porta do quarto
depois de várias tossidas, esboçou um sorriso e aproximou-se da cama.
Acho que nem ele se dava conta do fôlego de mamãe. Ela afundava e
voltava, graças a Deus. Nina parou de repetir a frase, e Wilma voltou a
aparecer, dizendo que tinha sido a música. O CD dos pássaros. Lili voltou
para o seu quarto, e Dadá disse que ia descansar. Depois que o parente virou
as costas, perguntei baixo para mamãe: — Você vai morrer?... Fala mamãe,
fala, você sabe as coisas...
— Deixa eu contar por onde andei, você nem pode imaginar.. uma
estrada luminosa, brilhante, rodeada de paz, um verdadeiro êxtase
espiritual, no final dessa estrada, havia um vulto, devia ser seu pai, mas em
vez dele, vi vocês de novo.
Voltara com vontade de falar.
Pouco depois, despedindo-se de mamãe, Nina tomou sua bênção,
dizendo que iria concluir a meditação por mais uma graça alcançada.
Eu escutava o ronco de Dadá vindo do quarto, quando o telefone
tocou. Surpreendentemente, Wilma deu-se ao trabalho de atender E eu
avisei que se fosse para mim, eu estava apenas para o Luiz.
Me deitei com o fone no ouvido e contei tudo, tudo que tinha
acontecido ao Luiz.
No final do telefonema, uma ideia me assaltou: onde estaria a
encomenda que o patife deixara? E o que seria? Bomba caseira? Contei ao
Luiz. Ele disse que era incrível como as pessoas do trabalho gostavam de
mim.
— Também não era para menos...
Aumentava a lista dos descrentes: mamãe, José Júlio, e agora o Luiz.
Se bem que José Júlio me dera razão depois de ter lido o jornal.
Ao desligar o telefone, fui ver mamãe. Ela tentava se levantar.
— Quero sair, arejar...
— Está bem. Chamei Dadá para acompanhá-la, dormira o suficiente.
Algum tempo depois, vi Dadá desabada na poltrona ao lado da cama
de mamãe, roncando. Aproveitei que também mamãe dormia e pedi a
Wilma que abrisse a encomenda. O embrulho que o infame deixara. Ela
arregalou seus olhos de cobra ninja. Não enfartaria por isso, tenho certeza.
Custou a pegá-lo, é uma má vontade... Caso fosse uma molotov caseira,
preparada com vista para a Lagoa, teríamos um enfarte-explosão
instantânea. Melhor que foguete no final do ano. O Cristo estava arriscado a
trepidar Sem que Wilma notasse, dei dois passos pra trás enquanto via Lili
com as calças de pijama prontas para cair, espiando da porta.
Wilma não acabava mais de levantar o durex, tem pessoas assim,
ficam horas para desfazer a merda de um embrulho. Lili não se movia,
tampouco eu. Como pano de fundo, o ronco de Dadá. Depois que Wilma
conseguiu tirar o papel, surgiu outro, de cor diferente. Caso se empregasse
em sessão de embrulho, essa doméstica estava fodida. Nesse momento, o
telefone tocou. Nos entreolhamos, a serpente e eu. Eu disse que me
esperasse, e saí correndo. Luiz; outra vez? Não nos falamos à beça?...
Queria sair comigo naquela noite, comemorar a melhora de minha mãe.
Estava tão ocupada com a merda do pacote, que concordei. Voltei à
cozinha, e a dupla me esperava, Lili e Wilma. Prosseguiu a operação
desembrulho. Menos um papel, e nos deparamos com outro, Lili desandou a
piar (deu para isso), enquanto Wilma continuava maquinalmente o serviço.
E assim foi, até termos diante dos olhos uma caixinha mínima, que
Wilma abriu, e um solitário raiou entre nós. Muito original a ideia do débil
mental.
Agradeci a Wilma, saí da cozinha e joguei o anel dentro da gaveta.
— Eu não vou mais fazer isso! — Então vamos transar..
Dentro do carro, por sua vez dentro da garagem, Luiz babava,
arriado no banco ao meu lado, tendo o peru apontado para o capô.
Segurando-o, quis passá-lo para mim.
— Não! Não! Chega! Será que você não entende que minha mãe está
para morrer?... — Ele continuou empunhando o peru olhando para ele. Você
não liga porque não tem mais pai nem mãe...
O peru desapareceu, sumiu, evaporou. Quando o guardara, que eu
não tinha visto? Sério, Luiz ajeitou-se no banco, ligou o motor do carro e
saiu numa arrancada. Subiu a rampa da garagem e chegamos no breu da
rua, a iluminação encoberta pelas árvores. Já era tarde, perto de meia-noite;
fui da casa dele à minha me desculpando pelo que tinha dito sobre seus
pais. E Luiz, mudo. Perguntei se não falaria mais comigo. Ele disse que eu
parasse de pensar bobagem e não deu mais uma palavra, concentrando o
olhar no vazio das ruas.
Assim que abri a porta, Dadá, acordando, disse que meu chefe ligara
perguntando por mim e querendo saber se eu tinha recebido o presente.
Perguntei o que ela havia falado.
— Que você tinha saído com seu namorado.
— E ele?
— Agradeceu e desligou. Dadá me acompanhou com os olhos, mas
não perguntou do que se tratava. O maldito vai preparar outra. E esse avião
que não decola... Merda de viagem que não acontece... Bosta. Saco.
Voltei para saber de mamãe. Dadá disse que ela estava quieta;
quando acabaram as novelas dormiu instantaneamente.
Acordei com Dadá me sacudindo. Devia estar amanhecendo.
— O que é?
— Mamãe, disse, e se retirou em seguida.
Pulei da cama e corri ao quarto de mamãe. A tremedeira voltara, e
Dadá dizia que mamãe queria fazer xixi, mas nós não conseguiríamos
levantá-la. Estava torporizada. Mas que horror de palavra... A infelicidade
grassa entre nós. Falei que ia chamar o porteiro. Fui a jato ao banheiro, para
evitar um mijeiro no assoalho, me lavei, escovei os dentes e atravessei a
sala correndo, saindo de casa. Nem lembro se fechei a porta da entrada.
Entrei no elevador e ele subiu, mas eu havia tocado no térreo, ou não? Dois
andares acima, um perfume fortíssimo invadiu o elevador; atrás dele, a
dona. O elevador continuou subindo, quando, subitamente, parou entre dois
andares; em frente, a parede de cimento, branca e áspera.
A mulher, olhando pra mim, sobrancelhas suspensas, disse que
estava com pressa, respondi que também eu. Urgência, não falei porque
percebi que de repente ela Começara a se avermelhar, torcendo a bolsa e
revirando Os olhos. Totalmente fora de si. Nesse momento, avisou que iria
gritar. Além de mamãe já ter se mijado toda, assistiria a um ataque bem
próximo a mim.
— Já já vai andar... ouvi a frase saindo da minha boca.
Nisso, começamos a ouvir vozes: "Solta o elevador, solta!" A boca
da mulher ia se abrindo, quando a máquina se dispôs a voltar a funcionar.
Alcançamos o térreo, e ela saiu na minha frente, jogando os cabelos para
trás com fúria.
Chacoalhei o porteiro, debruçado sobre o aparelho de interfone; mal
ele se virou na minha direção, pedi que, por favor, viesse nos ajudar, era
uma emergência.
— Não tenho ordem pra largar a portaria não senhora... — disse, e
me deu as costas.
Fui para a frente dele e insisti, dizendo que minha mãe estava muito
mal, podia morrer de uma hora para outra. Depois de uma longa pausa, em
que eu pensei em mandá-lo tomar no cu várias vezes, ele respondeu que
mandaria o filho. Agradeci e voltei a tomar o elevador.
Entrei desabalada em casa. Contei para Dadá que o filho do porteiro
viria ajudar. Mamãe tremia de bater queixo, e Lili saltitava na entrada do
quarto de mamãe, quando a campainha tocou e eu fui abrir a porta para um
rapaz enorme, com braços que batiam nos joelhos. Expliquei a ajuda de que
precisávamos, e antes que eu terminasse de falar, ele saiu andando, entrou
no quarto, levantou mamãe pelos sovacos, perguntando onde queríamos que
ele a pusesse. Calma, dizia Dadá, calma, enquanto nossa mãe tremelicava
em seus braços.
Esse, o meu despertar.
— E Nina onde está? perguntei a Dadá, enquanto discava para o
parente.
Meditando no sítio da amiga. Enquanto uns rezam, outros trabalham.
Se mamãe morrer, Nina está arriscada a ficar repetindo a mesma frase a
vida inteira.
A mulher do parente atendeu, dizendo que veria se ele podia falar;
acordara chiando. O cigarro, disse ela, você deve saber. Não dou conversa
porque mamãe dissera que a parenta tinha um ciúme atroz do marido.
Daquele cuspe marrom? Bem... não posso falar O passado me condena.
Acho que isso era título de filme, antigo...
O homem veio ao telefone, dizendo que estava de saída para a nossa
casa.
— Checho... Checho?... — Mamãe retornava.
Me aproximei de sua cama e ela perguntou se eu vira papai; quando
eu ia dizer que ele tinha morrido, Dadá respondeu que ele já vinha.
— Melhor evitar confronto sussurrou, próximo ao meu ouvido.
Todos mentem para todos o tempo todo. Assim caminha a
humanidade; outro título de filme...
Pensando bem, seria interessante se, de repente, eu respondesse
apenas por títulos de filmes...
Nesse momento, Dadá perguntou se eu não escutava a campainha.
— Adivinhe quem vem para o jantar?... perguntei, me encaminhando
para a porta.
Dadá coçou a cabeça, balançando-a.
20
Cansei da cara desse parente, faz até mal ver esse sujeito o tempo
todo, seco, esquálido, cadavérico, mas mamãe não admite ser cuidada por
outra pessoa. Particularmente, acho que ele não tem a menor ideia do mal
que acomete minha mãe, espera "acertar" como disse um dia. E ela, coitada,
afundando e voltando, tem graça isso? O semimorto parou em frente ao
cinzeiro para depositar o que restava do cigarro; depois, virando a cabeça
para o teto, desprendeu bolinhas de fumaça que se desfizeram no ar e,
visivelmente satisfeito consigo próprio, seguiu para o banheiro, para lavar
as mãos empestadas.
Ao menos isso.
Depois de auscultar mamãe, obrigá-la a tossir e dar piparotes em
suas costas, guardou o estetoscópio e ficou olhando para ela — submersa
em seu mundo de espíritos. Breve acordaria para contar sobre a estrada que
conduz a meu pai.
Bem, o parente se foi. Dadá também saiu, disse que daria um
pulinho na rua e já voltava. Nina, de tanto meditar, rezar, saiu do ar Pode
acontecer a qualquer um, de repente, desconectar inteiramente.
Dizem eles que a palavra atrapalha a espiritualidade, a elevação, con.
Loucura como outra qualquer Boa, meiga, mansa, por isso, tantos.
Bem, pensei entrar no quarto e contar a mamãe sobre o Luiz,
descansá-la em relação ao meu futuro, mas nesse momento o estridente
tocou e eu não podia contar com Wilma, por causa da enxaqueca. Não falei
nelas, são constantes, principalmente depois das refeições, cada uma brutal,
que a arria na cama, quarto escuro, venda nos olhos, durante horas, às
vezes, tardes inteiras, enquanto eu faço seu serviço na pia.
— Dona Gilda, espero encontrá-la hoje à noite, amanhã já estarei
fora do Rio.
Sem sacanagem, esse avião escangalhou na pista? Ele continuou: —
Pelo visto, a senhora se encontra magoada comigo, mas, ao nos
encontrarmos, verá que todo o incidente não passou de um grande mal-
entendido...
Dadá, entrando, passou por mim perguntando quem era. Tapei o
bocal: — Um criminoso respondi.
Ela enrugou a testa e, depois de alguns passos, virou-se para trás e
comentou: — Você e seus fãs... — E abaixou-se para ajeitar os jornais.
Depois da leitura de Lili, ninguém entende nada.
— A senhora está me escutando, dona Gilda?...
Mugi baixo. Então ele se animou, dizendo que às nove em ponto
nosso garçom (nosso?) estaria a postos para me conduzir à sua presença, ou
até à sua pessoa, não lembro o que disse porque mamãe murmurava
qualquer coisa, e eu comuniquei ao serpentífero que tinha de acudi-la.
— Melhoras para a senhora sua mãe, dona Gilda, e até mais tarde...
Me aproximei da cama de mamãe, e ela ficou me olhando, então
perguntei se sentia alguma coisa.
— Você é muito labiúda...
Labiúda!? Depois contou que tinha tomado remédio para induzir o
sono, que era algo que também se perdia, além de cabelo, marido e filhos.
Bem, voltara ao normal, excelente de novo.
O único a ter cabeça aqui em casa era o Arnaldinho. De passarinho,
mas tinha. Todos os dias fazia o mesmo, piava e cantava; vez por outra se
esbatia, mas quem não? depois se acalmava. Nina, mamãe, Lili e Wilma
não raciocinam. Dadá é pouco inteligente. E eu...
— Estão batendo na porta disse Wilma, me interrompendo
(levantou-se?) e retornando à câmara mortuária.
Luiz. Mal o vi, porque grudou-se na minha cara, sugando a minha
boca, passando um bolo de chicletes para dentro dela, me apertando contra
o seu corpo, e eu senti seu membro duro de encontro às minhas coxas. Mas
como chega nesse estado!? — Sonhei com você, amor...disse, assim que
liberou nossas bocas.
Cuspi o chiclete no cinzeiro.
— Sossega, Luiz, sossega, pelo amor de Deus... Minha irmã está em
casa... Andávamos enquanto ele me pegava, bolinava, me cheirava,
arrastando sua voz rouca pela casa. Me desvencilhei, dizendo que trocaria o
vestido. Estava de verme lho, traz agitação. Fui pôr meu vestido cor de
camelo. Cada cor tem uma temperatura, e o ser humano se adapta à
temperatura da cor. Aprendi com Nina. Depois, chamei Dadá para avisar
que daria uma volta com o Luiz.
Intuí que iria dar merda caso ficássemos em casa.
Ao descermos no elevador, propus tomarmos sorvete, de frutas.
Outro qualquer, e não passaríamos da esquina. Saímos, e assim que o
carro entrou na Lagoa, divisamos o Cristo no horizonte, braços abertos,
tentando eternamente conter os habitantes.
Na volta, quando Luiz me deixou em casa, encontrei dona Idalina
ajoelhada no chão na beira da cama de mamãe. Nina também se encontrava
no chão, em posição de lótus. Mentalização intensa dentro do quarto.
Perguntei a Dadá se mamãe piorara, e ela disse que não, estava
ótima.
Quem se encontrava péssima era Wilma. Soubera da existência de
um rotavírus que não deixava as pessoas se levantarem da cama, e avisara
que tinha pegado, era melhor ninguém se aproximar. Rotavírus? Não queria
que a víssemos a sono solto, roncando. Dadá avisou que havia feito a sopa
de mamãe, com legumes e batata; nós, teríamos que resolver nosso jantar.
Lili, à noite, toma leite, e Nina, quando se alimenta, chá com biscoito
integral. Nesse instante, brilhou uma faísca no meu cérebro: e se eu
aceitasse o convite de seu Evaristo e aproveitasse para dizer palavras
cozidas no vapor dos meus pensamentos? Abjeto, insalubre, torpe e podre,
abominável, detestável e odioso... Seria uma ceia de dar água na boca,
entremeada de bolinhos de salmão crocante, servidos com pimenta
aromática, ou en tão um velouté de frutos do mar Nesse caldo borbulhante,
não chegaríamos à torta-musse de chocolate servida quente, porque ela se
desmilinguiria antes do final da lauta refeição.
— O que você vai querer comer? Dadá esperava resposta.
— Ainda não sei.
Ela mandou que eu pensasse, enquanto tomava uma chuveirada.
Nesse momento, Nina passou por mim dizendo que prepararia um
chá de cogumelo do sol para mamãe.
— é um alimento energético que ajuda o organismo a se defender
contra doenças.
Acha que mamãe vai tomar?...
Pouco depois, quando seu Evaristo, execrável, inqualificável e
maléfico, ainda se movimentava no meu raciocínio, escutei mamãe dizendo
obrigada, e Nina passou para a cozinha levando a xícara cheia nas mãos.
Enquanto eu decidia se diria ou não umas verdades àquele puto, a
válvula da privada disparou. Deu para ouvir direitinho. Qual teria sido o
último a usar o banheiro, pensei, e vi dona Idalina cruzando a sala.
Mora ao lado e vem cagar aqui!?...
Me levantei para constatar o estrago. Lili, na porta do banheiro,
torcia, como se assistisse a um jogo. Pedi licença a ele e fui apertar o botão
da descarga, diversas vezes, na esperança de deter o fluxo. Nada. Voltei à
sala atrás das páginas amarelas. E tinha que andar rápido, dentro de pouco
tempo não encontraria ninguém que atendesse no mesmo dia. Quando
estava com elas no colo, Wilma apareceu para avisar que a descarga
desabotinara. Deve ter usado uma expressão da terra dela. Dadá surgiu em
seguida dizendo que era melhor fechar o registro. Como se alguma de nós
soubesse. Diante da minha não resposta, ela disse que o porteiro certamente
saberia como fechá-lo. Nisso, apareceu Nina, xícara suspensa na mão: — E
se mamãe precisar usar o banheiro? soltou ela.
Havia tempos eu escolhera o mutismo em família. Nina continuou
com a palavra, dizendo que Sérgio sabia consertar descargas, um dia
consertara a da casa deles. Achei o anúncio dos bombeiros. Vários, tantos,
que fechei os olhos e apontei no escuro. Pouco depois, um homem chegou à
nossa casa com uma sacola imunda, fios de diversas cores escapando pelos
lados, e, depois de empetecar o chão e embolar o tapete do banheiro, disse
"terminei o serviço, senhorita". Ao se aproximar a hora da nota, a família se
afastou de mansinho.
Acompanhei o homem à porta. Na volta, vi Lili pulando na entrada
do quarto de mamãe. Fui ver o que estava acontecendo. Assim que entrei,
constatei o retorno da tremedeira, só que, desta vez, o corpo todo de mamãe
chacoalhava. Um frio me subiu por trás, escalando as minhas costas, e veio
dar na cabeça, arrepiando os cabelos. Tenho horror a doença... Dadá, depois
de ver o que se passava, correu para o telefone, dizendo que chamaria o
médico. Nina aboletou-se no chão e começou a reza da frase única. Mamãe,
rosto confuso, lívida, olhos mínimos me olhava? Da cintura para baixo e
para cima, um puro tremor... Pobrecita. Segurei sua mão, dizendo que iria
passar, acontecera outras vezes e havia passado, e minhas lágrimas
irromperam como grandes rios correndo sem direção; Dadá se aproximando
avisou que me chamavam ao telefone. Respondi que não atenderia ao vil.
Hein?, murmurou ela, se afastando. Na volta, disse que meu chefe me
aguardava no restaurante, depois, que era melhor deixarmos mamãe quieta
enquanto o médico não chegava. Fingi que não tinha escutado, e perguntei a
mamãe se ela sentia frio, e sua voz baixinha, também tremida, disse não.
Seu corpo não sossegava, e eu voltei a perguntar, desta vez, se ela me via;
quase sem fôlego, respiração curta, mamãe respondeu que enxergava vultos,
mas foi sempre assim, eu disse, e ela não sorriu.
— Mãe... escuta, mãe... eu preciso te falar do Luiz. Tanta coisa
aconteceu, que não consegui contar que vou ser feliz, te dar alegria, está
ouvindo, mãe? Mostra que me escuta, aperta os dedos da minha mão...
— Ela movimentou os olhos, escutou. — Não vou mais te dar
desgosto, e também não vou acabar daquele jeito, aos farrapos, como você
falou...
Também preciso dizer que não transei com ele, apesar de você não
gostar desse assunto, torce para dar certo, para eu ser feliz... Fui
interrompida por um barulho; Lili, inteiramente nu, acocorado no chão,
batia a cabeça contra a parede. Dadá tentou fazer com que ele parasse, mas,
movimentando-se agachado, Lili foi bater noutro lugar. Depois, Dadá
voltou a insistir para que eu deixasse ma mãe quieta, mas me virei para trás
dizendo que dali não sairia, então ela se retirou do quarto. Nina continuava
imóvel, repetindo sem cessar a frase inaudível. E eu me abracei com
mamãe, dizendo que ela ficaria boa e assistiria a meu casamento, enquanto
seu corpo lutava, e eu chorava, e as pancadas na parede continuavam com
mais força.
Continuei falando, dizendo o quanto ela ficaria contente de me ver
feliz, tinha certeza de que dessa vez ela teria orgulho de mim, sua temporã,
e não precisaria mais se preocupar comigo, porque eu não daria o menor
motivo... Dadá passou pela porta do quarto reclamando que o médico não
chegava... a tremedeira iria passar, seus santos e anjos estavam a lhe
guardar, e beijei sua testa, o que queria dizer, as rugas (quanta preocupação,
meu Deus...), passando a mão em seu cabelo nuvem esgarçada sobre a sua
cabeça. Dadá cochichava com Nina, que repetia a frase escolhida, e eu
continuei grudada a minha mãe, quando, subitamente, ela tremeu mais
ainda, arquejou, e Dadá tentou me puxar pelo braço, dizendo, novamente,
que queriam falar comigo no telefone, e eu disse, me larga, chorando aos
borbotões, quando os tremores se acentuaram, e também as batidas na
parede, e um longo estertor levou os olhos de mamãe a se fixarem no
espaço.
— Volta, mãe, volta! berrei. Mas ela desapareceu dentro dos olhos.
Dadá e Nina irromperam em prantos, logo a seguir Dadá debruçou-se sobre
mamãe, fazendo carinho em seu rosto; depois, abraçou-se comigo.
Nina fazia gestos suaves sobre o corpo de mamãe. Enquanto isso,
Lili desapareceu sob a cama. Da porta, ouvíamos a voz de dona Idalina
dizendo que mamãe alcançara o céu em apenas um passo; descansara no
regaço do Senhor. Depois, meu tio saiu do quarto, retornando em seguida
com uma caixa de papelão, e, aproximando-se da cama, sacudiu a caixa
sobre mamãe, dela fazendo cair estrelas de papel.
Quiseram me tirar dali, mas não saí, ainda queria lhe fazer carinho,
enquanto ela seguia outro caminho. Meus olhos líquidos corriam por toda a
extensão de seu corpo imóvel, morno, largado em meus braços.
Nesse momento, fui arrancada por muitas mãos, um punhado delas
apareceu para nos separar. Foi um custo me desgrudarem de mamãe, mas
conseguiram; Luiz me esperava na sala, me abraçou, mas eu não escutava o
que ele dizia, porque subitamente o mundo, como uma imensa gaiola, se
rompeu numa algazarra infinita de pássaros.
FIM
 

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2014
 

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