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Tinha acabado de arrumar a cozinha há uma boa meia hora, estava sentado à porta das
dependências, ao fundo do quintal, à espera que o calor amainasse para se deitar. Ainda pensou
em pegar na gaita mas era tarde, fumou a beatinha que lhe restava e ficou-se, entretido, a ver as
nuvens correr diante da lua.
- Paulino!
O berro da patroa arrancou-o aos devaneios, Paulino era ele, agora. Antes não, antes era
Raimundo mas quando chegou àquela casa a senhora disse agora és Paulino, aqui são todos
Paulinos. Paulino ou não levantou-se, atravessou o quintal a pensar o que é que a gaja quer?
Comprar cerveja, não é, patrão foi à caça, só volta amanhã...Abriu a porta de rede e entrou. A
cozinha estava às escuras, da sala vinha um rasto de luz, os últimos acordes de uma canção não
sei quê meu amor, depois uma voz impessoal.
Gritou a patroa, da casa de banho. O rapaz empurrou a porta, estacou. A senhora, no duche,
de costas para a porta, com a água a correr não o ouviu entrar. O olhar mufana rasgou as ondas
de plástico, entre estrelas-do-mar e peixinhos, ficaram-lhe os olhos na cor da pele dela, morena
nos braços, muito branca nas costas, nádegas, nas coxas, um contraste que tornava mais nua a
nudez. Encandeado, num querer e não querer, quedou-se a olhá-la, pequena e roliça, de ancas
largas. A água escorria-lhe pelo cabelo, espraiava-se pelas costas abaixo, afunilava entre as
nádegas, mais veloz, acamando os pelos como musgos num rápido.
Num tom já impaciente. O moço respirou fundo, a avaliar a pressão no peito, afastou
estrelas-do-mar e peixinhos, curvou-se para apanhar o sabonete, esteve tão perto que, se
estendesse os lábios, podia beijar-lhe o rabo. Começou a ensaboar-lhe os ombros, num gesto que
se esforçava por ser funcional, mas perdeu-se fascinado, mão negra na pela branca, um turbilhão.
Estás a dormir, mamparra? Não sabes o que é esfregar? Caiu em si, o movimento tornou-se mais
decidido, a mão, lubrificada pela espuma, massajou com firmeza as costas da senhora, foi por ali
abaixo, abaixo, mas não se atreveu a descer às nádegas, desviou o movimento para o alto da
anca, descreveu a curva dos quadris, escalou o torso, escalou, até que os dedos tocaram a mama.
O moleque recuou a mão, aterrado e ali ficou sem saber o que fazer, de coração aos saltos.
E pôs-se a caminho. O branco pegou no saco, saltou da cabine e foi atrás dele. Os dois ou três
quilómetros nunca mais acabavam, uma eternidade, com a correria do saco a macerar-lhe o
ombro. O motorista ia a passo largo pela beira da estrada, pisando nas pegadas mais recentes. A
cautela, que isto pode estar minado sempre a falar, sempre a falar, para matar o tempo e o medo.
O branco seguia-o, só lhe via a goiabeira colada às costas. Custava-lhe entender o motorista,
fosse pelo sotaque, pela falta de dentes ou pelo tom rancoroso que punha em tudo. Mas o mulato
não se calava . Primeiro arrasou os gajos do ministério, que comprovam carros daqueles parae o
Niassa.
-Estão com o cu sentado lá na nação, a beber whisky no ar condicionado, e a malta que se foda
depois passou à guerra.
- A Frelo só manda nas cidades, o resto é dos bandos. Na semana passada, nesta estrada
atacaram uma viatura da agricultura. Ainda vi o jipe a arder, vi os corpos, eram quatro, uma
mulher e três homens. Duas horas depois, passo eu. Ia falando enquanto caminhava, sem se
importar se era escutado ou não.
- Tencionava sair de Lichinga depois do almoço, envio um amigo, fomos celebrar. Se não
fosse aquelas médias agora estava morto, está a ver? O que é que eu vou dizer? Que a bebida dá
saúde? Não! A vida é assim.
E a discoteca Rangers não se via da rua, fui lá dar orientado por um camionista putanheiro que
conheci na pousada, ao jantar. A baiuca ficava nas dependências de uma moradia perto da
estação, moradia de quem gostava de saber, com os decibéis, o vaivém dos noctívagos, moradia
de quem? À porta, dois bêbados, bêbados demais, assediavam o gorila de serviço, os molwenes
rondavam à distância, que o gajo era bruto, um deles de olhos ensonados.
Disse-lhe que não tinha tabaco e ele lá foi, rente ao chão poeirento. Deslocava-se com
agilidade sobre os braços musculosos, entre pernas de cadeiras e de gente , e eu segui-o com os
olhos em direcção ao bar, mendigando o cigarro de mesa em mesa. Por fim, uma mulher deu-lhe
um ,e lume da sua beata.
Atravessou a sala a passo incerto, convidou-me para dançar, pediu-me uma cerveja, paguei-
lha. Abancou e ficámos sentados lado a lado, de lata na mão, com o resto da noite pela frente.
Disse que era Zaida, também me apresentei.
E lá cresceu, a ajudar a mãe na cozinha, a cuidar dos putos, ir às compras. Uma tarde, mãe
mandou-a à cantina buscar sal, a loja já estava fechada, teve de bater. O cantoneiro, que era o tal
Júlio, veio abrir, convidou-a a entrar.
-Era.
Só isso. Era. Não perguntei mais nada. A Zaida bebeu, pediu outra cerveja.
- Bons tempos.....
Até que uma noite os matsangas vieram. Quatro da madrugada, tinha acabado de dar mama
ao puto, ressoou um estrondo na porta da cantina. Num sobressalto sentou-se na cama, de ouvido
à escuta. Logo a seguir irrompia quarto dentro uma tropa maltrapilha, aos berros, armas
aperradas. O mais velho, o que dava as ordens, gritou ao cantoneiro.
....Gritar ao cantineiro.
- Mataram o Júlio, com certeza mas não sentiu pena , não sentiu nada,quando uma voz lhe
berrou.
Ela foi de olhos secos. Os matsangas queimaram a cantina e voltaram à base. Levaram as
mulheres e as crianças, mais os rapazes, para carreta o espólio.
- Farinha, capulanas.... Até bicicleta! Disse a Zaida. Em dois dias de marcação chegarão à base.
Prisioneiros e saque foram reunidos no rassemblement, cercado de palhotas arruinadas. E ali
ficaram à espera, à torreira do sol, naquele plano abandonado que a morna brisa aquece. Ao fim
de umas hora o comandante apareceu, com a artilharia toda. Makarov à cintura, Kalashnikov na
mão. A Zaida era a mais bonita, ficou para o comandante. Por fim, restavam duas velhas e uma
mulher que tinha adoecido no caminho. Estava estendida por terra, à soalheira, enrolada na
capulana, a tiritar. O comandante destacou as velhas para a cozinha e perguntou se havia algum
familiar da doente. Hesitante, um dos rapazes apresentou-se. Era filho dela, ainda um menino.
Repetiu-lhe e destravou a arma. O filho olhou para mãe, que tinha os olhos nele,
esbugalhados. Talvez chorasse. O suor não deixava perceber. O rapaz avançou dois passos e foi à
queima-roupa que fez fogo. A bala atingiu-a de raspão e esfacelou-lhe o maxilar, mas a mulher
não morreu . Da boca, agora um rasgão quase até à orelha, escorriam gemidos e golfadas de
sangue. O rapaz ficou ali, muito hirto, de arma estendida. O comandante aproximou-se, apontou
a Kalash à cabeça da mulher e disparou.