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Crónicas do José Pinto de Sá

Os filhos de Mussa Mbiki

- Os soldados espalharam-se pela base, que o inimigo tinha abandonado. Progrediam


metodicamente, pode dizer-se. Comunicavam mais por gestos que por palavras, é verdade, mas
nunca perdiam a coordenação, sempre um a dar cobertura, outro a escavar qualquer coisa, tanto
faz, uma coronhada no pote, uma rajada no bidão, nem que fosse um pontapé nas brasas da
fogueira. Reviravam tudo, recolhiam informação, souvenirs, cartas, uma velha foto, um colar de
missangas, o que calhava. Pegavam fogo à palhota, passavam à seguinte. Já havia chamas por
toda a parte quando o Trinta e Um e o Teotónio chegaram a um casebre junto à trincheira em
ziguezague a rodear a base. Com o Teotónio a dar cobertura, o Trinta e Um escancarou a porta a
pontapé e entrou de rompante. Os olhos do soldado e o cano da G3 varreram a penumbra, deram
com um vulto por ter, meio encoberto por uma manta. O vulto moveu-se, o Trinta e Um fez fogo.
Um estertor, mais nada. Com a biqueira da bota, o soldado empurrou o volume inerte para o
rectângulo de luz diante da porta. Com o cano da arma afastou a manta, deu com uma velha e um
bebé. A velha, morta, cortada ao meio pela rajada. Olhos esbugalhados, boca entreaberta, o
sangue a escorrer entre os dentes limados em serra. O bebé, abraçado à velha, com a cara
escondida entre as mamas ressequidas. Não chorava. O Trinta e Um pensou que estivesse morto,
mas não. Estava ileso e dormia, sim, parece mentira mas dormia, talvez estivesse tão habituado a
ouvir tiros que já nem acordava, ou se acordava, agarrava-se mais à avó e voltava a adormecer,
sei lá, o certo é que dormia, indiferente à guerra, na paz infinita que é o sono dos bebés. O
Teotónio acorreu, quis saber. O que foi? Mas o Trinta e Um não respondeu, não conseguia tirar
os olhos da criança, agarrada ao cadáver. O outro apercebeu-se, puxou-o pela manga do
camuflado, mas o Trinta e Um hesitava.

O outro lado da lua

Tinha acabado de arrumar a cozinha há uma boa meia hora, estava sentado à porta das
dependências, ao fundo do quintal, à espera que o calor amainasse para se deitar. Ainda pensou
em pegar na gaita mas era tarde, fumou a beatinha que lhe restava e ficou-se, entretido, a ver as
nuvens correr diante da lua.

- Paulino!
O berro da patroa arrancou-o aos devaneios, Paulino era ele, agora. Antes não, antes era
Raimundo mas quando chegou àquela casa a senhora disse agora és Paulino, aqui são todos
Paulinos. Paulino ou não levantou-se, atravessou o quintal a pensar o que é que a gaja quer?
Comprar cerveja, não é, patrão foi à caça, só volta amanhã...Abriu a porta de rede e entrou. A
cozinha estava às escuras, da sala vinha um rasto de luz, os últimos acordes de uma canção não
sei quê meu amor, depois uma voz impessoal.

Gritou a patroa, da casa de banho. O rapaz empurrou a porta, estacou. A senhora, no duche,
de costas para a porta, com a água a correr não o ouviu entrar. O olhar mufana rasgou as ondas
de plástico, entre estrelas-do-mar e peixinhos, ficaram-lhe os olhos na cor da pele dela, morena
nos braços, muito branca nas costas, nádegas, nas coxas, um contraste que tornava mais nua a
nudez. Encandeado, num querer e não querer, quedou-se a olhá-la, pequena e roliça, de ancas
largas. A água escorria-lhe pelo cabelo, espraiava-se pelas costas abaixo, afunilava entre as
nádegas, mais veloz, acamando os pelos como musgos num rápido.

Num tom já impaciente. O moço respirou fundo, a avaliar a pressão no peito, afastou
estrelas-do-mar e peixinhos, curvou-se para apanhar o sabonete, esteve tão perto que, se
estendesse os lábios, podia beijar-lhe o rabo. Começou a ensaboar-lhe os ombros, num gesto que
se esforçava por ser funcional, mas perdeu-se fascinado, mão negra na pela branca, um turbilhão.
Estás a dormir, mamparra? Não sabes o que é esfregar? Caiu em si, o movimento tornou-se mais
decidido, a mão, lubrificada pela espuma, massajou com firmeza as costas da senhora, foi por ali
abaixo, abaixo, mas não se atreveu a descer às nádegas, desviou o movimento para o alto da
anca, descreveu a curva dos quadris, escalou o torso, escalou, até que os dedos tocaram a mama.
O moleque recuou a mão, aterrado e ali ficou sem saber o que fazer, de coração aos saltos.

. Estendeu-lhe a toalha e a senhora começou a enxugar-se, primeiro a cara e os braços, depois o


peito. Ao passar a toalha entre as nádegas, arqueou o corpo, retesando os quadris, a projectar a
massa escura dos pentelhos. Por fim curvou-se, a esfregar-se entre as coxas, com um pé no
tampo da retrete, num movimento que lhe fazia balouçar as mamas. Agia como se o rapaz não
estivesse ali, como se ele não existisse. Não o Olhava, tinha no rosto uma expressão que o
mufana não conhecia, um rito entre desdém e dor.
- Esta merda gripou. Daqui já não passamos .A tarde caía. Ainda havia sol na copa das árvores,
mas a sombra, oblonga e roxa, já cobria a picada. Dormir ali, nem pensar, os motsangas não
deviam andar longe. O chofer era um veterano da administração, sobrevivente de uma data de
emboscadas, não se alterou.

E pôs-se a caminho. O branco pegou no saco, saltou da cabine e foi atrás dele. Os dois ou três
quilómetros nunca mais acabavam, uma eternidade, com a correria do saco a macerar-lhe o
ombro. O motorista ia a passo largo pela beira da estrada, pisando nas pegadas mais recentes. A
cautela, que isto pode estar minado sempre a falar, sempre a falar, para matar o tempo e o medo.
O branco seguia-o, só lhe via a goiabeira colada às costas. Custava-lhe entender o motorista,
fosse pelo sotaque, pela falta de dentes ou pelo tom rancoroso que punha em tudo. Mas o mulato
não se calava . Primeiro arrasou os gajos do ministério, que comprovam carros daqueles parae o
Niassa.

-Estão com o cu sentado lá na nação, a beber whisky no ar condicionado, e a malta que se foda
depois passou à guerra.

- A Frelo só manda nas cidades, o resto é dos bandos. Na semana passada, nesta estrada
atacaram uma viatura da agricultura. Ainda vi o jipe a arder, vi os corpos, eram quatro, uma
mulher e três homens. Duas horas depois, passo eu. Ia falando enquanto caminhava, sem se
importar se era escutado ou não.

- Tencionava sair de Lichinga depois do almoço, envio um amigo, fomos celebrar. Se não
fosse aquelas médias agora estava morto, está a ver? O que é que eu vou dizer? Que a bebida dá
saúde? Não! A vida é assim.

E a discoteca Rangers não se via da rua, fui lá dar orientado por um camionista putanheiro que
conheci na pousada, ao jantar. A baiuca ficava nas dependências de uma moradia perto da
estação, moradia de quem gostava de saber, com os decibéis, o vaivém dos noctívagos, moradia
de quem? À porta, dois bêbados, bêbados demais, assediavam o gorila de serviço, os molwenes
rondavam à distância, que o gajo era bruto, um deles de olhos ensonados.

Disse-lhe que não tinha tabaco e ele lá foi, rente ao chão poeirento. Deslocava-se com
agilidade sobre os braços musculosos, entre pernas de cadeiras e de gente , e eu segui-o com os
olhos em direcção ao bar, mendigando o cigarro de mesa em mesa. Por fim, uma mulher deu-lhe
um ,e lume da sua beata.

Eu acompanhava a cena, quando a mulher reergueu a cabeça os nossos olhares cruzaram-se.


Franzina e escura, carapinha espichada, saia lambada e lenço descaído sobre os olhos, não se
pode dizer que fosse bonita, mas tinha o encanto do patinho e feio entre as beldades acostadas ao
bar.

Atravessou a sala a passo incerto, convidou-me para dançar, pediu-me uma cerveja, paguei-
lha. Abancou e ficámos sentados lado a lado, de lata na mão, com o resto da noite pela frente.
Disse que era Zaida, também me apresentei.

E lá cresceu, a ajudar a mãe na cozinha, a cuidar dos putos, ir às compras. Uma tarde, mãe
mandou-a à cantina buscar sal, a loja já estava fechada, teve de bater. O cantoneiro, que era o tal
Júlio, veio abrir, convidou-a a entrar.

Na cantina, o balcão separava , ou unia, a casa e o mundo. Atrás, contra o cenário da


mercadoria, imperava o Júlio, do lado de fora era a clientela, camponeses dos arredores,
camionistas de passagem, gente que vinha comprar ou vender e beber. Sem concorrência nas
redondezas, o negou corria de feição. Quando o bebé nasceu chamaram-lhe Júlio. Ficou Julinho.

- O puto também é Júlio?

-Era.

Só isso. Era. Não perguntei mais nada. A Zaida bebeu, pediu outra cerveja.

- Bons tempos.....

Até que uma noite os matsangas vieram. Quatro da madrugada, tinha acabado de dar mama
ao puto, ressoou um estrondo na porta da cantina. Num sobressalto sentou-se na cama, de ouvido
à escuta. Logo a seguir irrompia quarto dentro uma tropa maltrapilha, aos berros, armas
aperradas. O mais velho, o que dava as ordens, gritou ao cantoneiro.

....Gritar ao cantineiro.

- Você, anda abrir o cofre. Depressa!


E, sem mais, desferiu-lhe uma coronhada que lhe abriu um lanho na testa. O Júlio levantou-se e
lá foi em cuecas, aos tropeções, com o sangue e correr pela cara abaixo,rodeado pelos
assaltantes. A Zaida vestiu-se, pegou no bebé d saiu do quarto. A cantina estava atravancada de
prateleiras derrubadas e de tudo o que não valia a pena pilhar . Ficou especada no meio dos
destroços com o bebé nos braços, naquele negrume só de tempos a tempos varrido pelo feixe de
uma lanterna. Pensou.

- Mataram o Júlio, com certeza mas não sentiu pena , não sentiu nada,quando uma voz lhe
berrou.

- Você está fugir ? Anda cá!

Ela foi de olhos secos. Os matsangas queimaram a cantina e voltaram à base. Levaram as
mulheres e as crianças, mais os rapazes, para carreta o espólio.

- Farinha, capulanas.... Até bicicleta! Disse a Zaida. Em dois dias de marcação chegarão à base.
Prisioneiros e saque foram reunidos no rassemblement, cercado de palhotas arruinadas. E ali
ficaram à espera, à torreira do sol, naquele plano abandonado que a morna brisa aquece. Ao fim
de umas hora o comandante apareceu, com a artilharia toda. Makarov à cintura, Kalashnikov na
mão. A Zaida era a mais bonita, ficou para o comandante. Por fim, restavam duas velhas e uma
mulher que tinha adoecido no caminho. Estava estendida por terra, à soalheira, enrolada na
capulana, a tiritar. O comandante destacou as velhas para a cozinha e perguntou se havia algum
familiar da doente. Hesitante, um dos rapazes apresentou-se. Era filho dela, ainda um menino.

Repetiu-lhe e destravou a arma. O filho olhou para mãe, que tinha os olhos nele,
esbugalhados. Talvez chorasse. O suor não deixava perceber. O rapaz avançou dois passos e foi à
queima-roupa que fez fogo. A bala atingiu-a de raspão e esfacelou-lhe o maxilar, mas a mulher
não morreu . Da boca, agora um rasgão quase até à orelha, escorriam gemidos e golfadas de
sangue. O rapaz ficou ali, muito hirto, de arma estendida. O comandante aproximou-se, apontou
a Kalash à cabeça da mulher e disparou.

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