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Rabo de rato e outros microcontos.

Luciano Pires
Rabo de rato

Jorge trabalha em um lixão, em Carapicuíba.

Ratos, baratas, garrafas pet, bonecas sem cabeça e cds do Cidade Negra, são alguns dos
objetos que ele encontra invariavelmente durante a caçada.

Um dia ele encontrou um dedo.

Colocou-o em um chaveiro, andava para todos os lados com aquele dedo pendurado em um
molho de chaves que nada abriam.

Segunda-feira à noite estava embriagado, bebeu meia dúzia de Corotes de limão.

Ia saindo cambaleando, desviando dos sacos de lixo derramando chorume, era noite.

Tropeçou em uma caixa de papelão, bateu a cabeça, sangrou.

Adormeceu em meio ao lixo.

Um rato mordeu o dedo-chaveiro, levou com chave e tudo.

Jorge hoje trabalhava vendendo cachorro quente no largo de Osasco, às vezes vai ao Mineiro,
beber seus Corotes de limão.

A garotada estranha aquele rabo de rato pendurado no chaveiro.

Vingança.
Casa Vazia

A ampulheta permanece estática.

A arma apontada para a cabeça, os olhos pesados, as mãos tremulas, o suor profano cintilando
no segundo eterno. Nenhum grito, nenhuma saudade, nenhuma suavidade sonora, nenhuma
santidade esquecida que pudesse ser avisada. O cano pressionado carimbava um círculo
mágico, que aos poucos ia ficando mais evidente, a pele marcada como boi, como bicho em
sacrifício, como o próprio tiro antecipado, como alvo premonitório.

A oração atravessava a linha do silêncio embalando em religiosidade a carne prestes a ser


abatida.

Lembrou-se do grito mudo. Lembrou-se da noite com a Lua apagada, pássaro mordendo e
arrancando a língua do tempo. Lembrou-se da sanidade, que gemeu e se jogou do abismo,
pairando no último segundo.

Moveu-se um pouco, sacudiu as últimas lembranças.

O tiro escorregou pela arma, bateu e vibrou como uma pedra saltitando na água, desviou do
destino para se alojar no quadro pendurado na parede, um quadro de uma casa à beira de um
lago, do outro lado do mundo, aquele dia a morte encontrou a casa vazia.
Destino

Débora levantou sonolenta, calçou os chinelos, lavou o rosto e foi tomar o café da manhã,não
sem antes ler o horóscopo.
Touro: Preste atenção nos detalhes, hoje é um dia propício para encontrar seu príncipe
encantado.
Ela sorriu.
Correu para o ponto de ônibus, tirou o celular da bolsa e leu rapidamente as mensagens do
Facebook.
Olhou para o lado e viu um rapaz, sorriu.
Bonito, pensou. Será meu príncipe?
Deu um oi timidamente, ele também a cumprimentou.
_Qual é o seu signo? Ela perguntou.
_Não acredito muito nessas coisas, ele rebateu.
_Pois é, eu acredito bastante.
Laranjas Mecânicas, Pink Floyds, Sushis, Filosofias orientais.
Trocaram telefone.
Namoraram, casaram, tiveram filhos, viajaram, xingaram o PT, discutiram, reataram,viveram.
Débora nunca irá saber que naquele dia leu o horóscopo errado.
Fome

Fome.

2 da manhã.

Leila tocou no celular para iluminar o caminho até a geladeira.

Pé ante pé, silenciosamente.

Abriu lentamente o refrigerador.

Viu algo se mexer lá dentro.

Um homenzinho estava sentado no pote de margarina comendo

um pedaço de queijo.

Correu, assustado, se escondeu atrás dos iogurtes.

Leila esfregou os olhos,bocejou, pegou um pedaço de torta e fechou a geladeira.

_Tomara que não consiga abrir meus hot pockets, pensou.


A Espera

Ela se sentou em frente ao armário.


Arma engatilhada,duas balas.
Os olhos pesados.
Ele não fugiria,não,não poderia.
Há dois minutos não se ouvia mais nenhum barulho lá dentro.
O celular toca.
Whatsapp.
Quando levanta os olhos do celular a porta está entreaberta.
Apenas a longa cauda se arrastando em um vulto por debaixo da cama.
Um tiro.
O grito foi ensurdecedor.
Abriu as asas,voou pela janela.
Elza guardou a arma,arfante.
Ligou a tv ,passava um filme de terror, bocejou.
Madrugada

Me beija, disse o mendigo

pega as moedas, disse a gostosa

não quero dinheiro, quero um beijo

(o cheiro de sua boca lembrava alguém que tinha acabado de lamber o cu de uma vaca).

Não.

Me beija.

Vou gritar.

Grita.

A mão suja se esticou.

Pegou as moedas.

Passou a mão na bunda dela.

Sujo.

Puta.

O silêncio da madrugada gritou no peito

Uma moeda caiu

No bueiro

Ele chorou baixinho

No dia seguinte, morreu de frio

Debaixo de um toldo

Na vitrine, um anúncio do dia dos namorados.


O artista

Morgan Longfield morreu.

Porra, ontem mesmo eu tirei o vinil da capa, coloquei no toca discos e ouvi o lado B inteiro,
bebendo uma taça de vinho.
O cantor mais foda que eu já conheci, um verdadeiro artista, aquele que escaneia a tua alma
em segundos, digitaliza, imprime e esfrega na tua cara, esfrega todos os sentimentos que
fermentavam por anos nas profundezas das tuas entranhas.
Fui ao banheiro, lavei o rosto, peguei uma xícara de café e abri o Facebook pra procurar
alguma notícia sobre o triste acontecimento.

Nada.

Entrei no youtube, digitei o nome, queria compartilhar alguma música, prestar homenagem.

Nada.

Nenhum vídeo,nenhuma entrevista.

Nada no Google também.

Somente o Roberto poderia me ajudar, liguei pra ele:

—Roberto, cê lembra daquele cantor que te mostrei uma vez?

Morgan, Morgan Longfield, meio folk, lembrava um pouco o Nick Drake...

— Não lembro não,cara, você sempre me mostra tantas coisas...


—Porra,que estranho. Beleza.

Corri pra pilha de discos,procurei desesperadamente: Dylan, Nick Cave, Drake, Janis, Hendrix.

Beatles, Grateful Dead, Neil Young...cadê a porra do disco?

Nada de disco.

Lembrei do celular, eu tinha o disco baixado no celular.

Nada, apenas o Dark Side of the Moon.

Porra, como pode?

Nunca mais ouvi nenhuma música do Morgan Longfield, virou até piada quando saio com os
amigos pra beber:
—Aê, mano, pede pra banda tocar aquele cara lá que só você curte e existe só na tua cabeça,
kkkk.
—Aê, tô procurando aqui na jukebox o Morgan sei lá o que, mano, tem não, deixa eu ver ali
naquela outra que tá na tua imaginação, kkkkk

Não lembro de nenhuma música, apenas lembro da voz, da melodia do violão, quase apagado
na minha mente...

É. Era o melhor artista que já existiu.


Gotta a light?

— A fita, pega a fita.


A poeira dançava por entre o feixe de luz na escuridão do quarto.
—Tá em cima do guarda-roupa, numa caixa de sapato.
—É essa? A fita VHS estava começando a pegar formiga, alguns pontos brancos de mofo.
—Se tiver alguma fita dentro pode trazer,vamos usar.
Beto colocou a fita na mesa de centro.
—Pronto. Esfregava as mãos e sorria. Esfregava as mãos e sorria. Sorria. Suspirava forte.
Esfregava as mãos.
—O André disse se vem?
—Tá vindo com o Clóvis, pararam no supermercado pra comprar vinho.
—E a Lúcia?
—Também vem, tá vindo com o Flávio.

A campainha berra.
—E aí, caras. Podem entrar e ficar à vontade, sentem no sofá, podem deixar as garrafas na
cozinha.
Outro berro.
—Chegou o casal que faltava.
Luís era um ótimo recepcionista: o sorriso lateral, gestos firmes e o aperto de mão forte.

A casa em que os irmãos moravam era grande, piscina na área externa e uma academia que
nunca era usada. A sala de cinema era onde se reuniam sempre. A mesma turma.

—Vamos começar?
As velas foram acesas, uma a uma.
Um grande caldeirão foi posto sobre a mesa de centro.
Essa reunião de cinéfilos sempre acontecia no último sábado do mês, mas dessa vez Luís e
Beto resolveram que iriam assistir o oitavo episódio da nova temporada de Twin Peaks todos
juntos.

No dia anterior Beto tinha visto alguma coisa na internet sobre fazer chá com fita VHS, que
dava barato, que alucinava, que fazia ver coisas,mas que era perigoso.

Inventou pra todo mundo que ia fazer chá de cogumelo, mentiu dizendo que quando foi pra
São Tomé das Letras ele tinha aprendido.

De tarde, enquanto Luís estava no quarto lendo, ferveu um VHS antigo da coleção Folha de
cinema, devia ser Lanternas Vermelhas ou Indochina.

Fez o ponche, duas garrafas de vinho, duas maçãs, cravo, canela, mel, vodka.

— Deixa eu tomar um gole dessa bagaça pra ver se ficou bom.


—Não, não vai tomar. Ficou bom, eu experimentei, deixa pra hora de assistir, não vamos
queimar a largada.
Todo mundo já tinha visto o episódio, iriam rever juntos.
Luzes apagadas. Velas acesas. Cada um enche a sua caneca de ponche.

Beto olhava para cada um e ficava pensando:


—Porra, é um chá feito de fita VHS, é um tributo ao cinema, é a melhor forma de viajarmos e
discutirmos depois, vai ser foda.
Estavam todos em uma roda no centro da sala. Levantaram a caneca.
"Essa é a água e esse é o poço. Beba tudo e desça. O cavalo é o branco dos olhos e o escuro
dentro deles"
Todos repetiam a frase em uníssono, como uma missa negra cinéfila Lynchiana.
Agora todos bebam.
Cada um virou o conteúdo da caneca ao mesmo tempo e se sentaram.
Beto deu o play no episódio baixado da internet.
A bomba atômica. Os vômitos. Os urros. Tudo se desintegrava. A parede suja de sangue. As
cabeçadas na parede. A luz. Desliguem essa luz. O fogo. As velas derrubadas perto da cortina.
A casa em chamas. Os corpos pegando fogo.
Quando os bombeiros chegaram não dava mais tempo, todos estavam mortos, asfixiados, com
os olhos abertos fixos na tela gigante.
O arquivo corrompido travou e a cena se repetia, os pixels se distorcendo e formando
monstros ainda piores.

Apenas se ouvia em um volume ensurdecedor:

—Gotta a light? Gotta a light?


O tempo é uma velha decrépita

A noite era fria, congelante, daquelas que quem não fuma fica brincando de soltar fumaça pelo
canto da boca, feito vapor.

No posto de gasolina não tinha nenhum frentista, todos escondidos, abrigados, encolhidos,
fora de visão.

Comprei duas heinekens, paguei pela janelinha, bebi a primeira quase de imediato e fui
caminhando para o bar com a segunda long neck na mão, parecia um daqueles velhos robôs
dos antigos filmes, camadas de roupas e agasalhos e cachecol e touca, os olhos lacrimejando
com o vento cortante.

Desci as escadas, em cada degrau havia uma vela acesa tremendo de frio.

Um instrumento desafinado projetava notas quebradas e desfiguradas pelo ambiente, havia


apenas uma pessoa quase adormecida no balcão e um velho estático segurando um violão.

Pedi um bombeirinho pro dono do bar, que sem abrir a boca colocou a mistura no copo e
voltou a se sentar, calado.

O tempo ali não andava como lá fora.

Parecia que todos os demônios de todas as religiões marcavam encontro ali, desde a
eternidade.

Sentei-me e passei a olhar com um certo desconforto para a figura que arranhava as cordas.

De vez em quando alguém saía do banheiro sem que eu tivesse visto entrar, ninguém
conversava, nenhuma palavra.

As notas cambaleantes espantavam o silêncio como uma prece mal resolvida.

Pedi outro bombeirinho e mais outro.

Espremi os olhos, nesse momento toda a atmosfera ficou mais quente e um cheiro forte
estacionou no ar.

Uma névoa pesada preenchia cada minúsculo canto e uma pequena luz, fraca e tremida, se
movia até o palco.

Nesse instante ouvi uma voz longínqua, como que saída de um antigo disco de cera, percebi
ser Robert Johnson cantando Crossroads blues, o som parecia estar em todos os lugares ao
mesmo tempo e em lugar nenhum.

Não saía dos alto falantes, apenas existia, flutuante.

Aos poucos vi a figura imponente sentada em uma cadeira de plástico, o negro de aparência
fantasmagórica dedilhava o violão envolto por uma aura amarelada e ao seu redor todo o peso
de séculos desfilavam com gemidos abafados.

Olhei para os lados e todos estavam distraídos.

A música foi terminando, o acorde final. Silêncio.


Pisquei por um instante e quando abri os olhos tudo voltou ao normal, aquela mesma figura
decrépita que antes espancava o seu violão desafinado estava novamente sentada
enganchando os dedos pelas cordas, as notas tropeçando pelo ar, o frio corroendo a alma.

Os demônios voltaram à sanidade por alguns minutos, subi vagarosamente os degraus, todas
as velas estavam apagadas, ao sair pela porta avistei uma outra escada, essa nunca tinha visto
antes, desci lentamente por ela, as velas todas se acenderam novamente, continuei descendo
até chegar outra vez ao bar, ouvi os guinchos dissonantes do violão mais uma vez e os mesmos
rostos sem expressão, tudo acontecia exatamente da mesma maneira, até que decidi outra vez
subir os degraus pra ir embora, vi as velas apagadas e na saída a mesma escada, o mesmo bar,
a mesma música e a mesma noite fria.

O tempo é uma velha decrépita que guarda cabeças de peixe no congelador.


Um dia qualquer

—É por ali, senhor.

Ele começou a andar, de cabeça baixa, contando os ladrilhos, cantando uma música
mentalmente.

Seus pensamentos se embaralhavam como sujos novelos de lã.

Abriu a porta do quarto, havia apenas uma cadeira e um pequeno palco com
um microfone.
Ouviu o barulho do ferrolho pesado fechando a porta do quarto atrás de si.

Lá dentro o silêncio era absoluto.

Sentou-se, fechou os olhos e esperou.

Uma música começou a tocar baixinho, naquele pequeno palco surgiu um anjo, de auréola e
tudo, as grandes asas recolhidas atrás das costas, o terno impecável e um coque bem
arrumado que lhe segurava os cabelos louros compridos.

Deu três pequenas batidas no microfone.


O anjo começou a fazer um stand-up improvisado relatando diversas passagens
da vida do senhor que, incomodado, se apertava na cadeira.
Desde a infância até a bebedeira da semana anterior, tudo virava piada.
Os fatos mais tristes e as desgraças, as alegrias e vitórias, tudo era
espezinhado e rechaçado e envolto em risos de claque, que preenchiam o
quarto como uma nuvem.
Depois de longas horas o anjo agradeceu, surgiram aplausos e apulpos, ele se
curvou e se despediu.

O senhor mal piscou os olhos e já não havia ninguém ali, apenas um leve perfume que
passeava pelo quarto apertado.

Pela janela aberta via-se um campo deserto, apenas algumas árvores e nenhum
ser humano, estava quente e o Sol se impunha como um peso sobre aquele
dia interminável.
O barulho da porta se abrindo o despertou do torpor

—Pode sair, senhor.

Ele abandonou o prédio olhando fixamente para o papel que tinha em suas mãos,
até que tinha sido uma quantia razoável.

Caminhou lentamente até a sua casa, olhando para o chão, a cabeça pesada e o suor
deslizando pelo seu rosto, com as costas da mão enxugava e tremia.

Depois da esquina, cruzou a avenida e continuou sem saber seu nome.


Morra

Eu andava lentamente, com o corpo vazio.


Um tiro na cara, porra.
Levei um tiro na cara e permaneço sóbrio.
Você sorri nervosamente, um sorriso podre de desgosto e lágrima.
Nem precisei me levantar da cadeira, outro trago, a certeza burocrática de mil anjos mortos.
A fumaça invadia a retina e sufocava os pensamentos.
Um outro acorde infinito.
Tropecei lentamente no destino, morri outra vez, nem lembro mais quantas vezes essa
semana.
Segurei o revólver, ainda quente.
Gritei com força.
A garoa fina permanecia dançando no teto da minha mente.
Atire, filho da puta.
Atire.
O sangue apenas esperava o momento certo pra correr livremente pelo chão sujo.
Atire.
Um casal se beijava ao som de um violão desafinado.
Atire.
Um copo de cerveja desaba da mão frouxa de um senhor embriagado e se estilhaça no chão.
Morra.
Levantei voo.
fechei os olhos e atirei.
Estou sentado de frente para a tevê desligada.
Faz duas horas.
Lá fora a garoa fina despeja suór de graça no dorso da realidade.
Dois segundos.
o mundo cai sem vida sob meus pés.
Jorge , o gnomo

Ivan acordou sonolento, coçou os olhos com as mãos, bocejou lentamente numa pantomina
engraçada.
Mal pode acreditar quando avistou um pequeno homem sentado no sofá, devia ter uns dez
centímetros, estava vendo Netflix, embasbacado e absorto.
—Ei, quem é você?
—Oi?
—Quem é você?
— Jorge, o gnomo
Ele coçou os olhos novamente, não acreditando no que via.
—Como assim um gnomo?
—Sim, eu sou um gnomo e sou músico também.
—Vai me dizer que tem uma banda de gnomos?
—Sim, tocamos música imaginária.
(Ele pensou por um instante que conhecia alguns amigos músicos que tocavam música
imaginária também)
O gnomo continuou:
—Tocamos muitas músicas imaginárias com nossas guitarras semi-distorcidas, aliás, hoje tem
show, obrigado por me deixar assistir Narcos, esse Wagner Moura realmente é muito bom.
O gnomo pulou pela janela rapidamente, deixando um rastro azul de fumaça.
Ele acidentalmente derrubou um pacotinho pequeno, que Ivan cheirou, pegou na mão,
observou e enrolou junto com o cigarro de maconha que sempre fumava pela manhã.
Desde aquele dia Ivan se encontra regularmente com Jorge, sempre tocam violão e assistem
Netflix, estão ansiosos pela segunda temporada de Narcos.
Datena, cachaça e Amado Batista

Ela borrava as unhas com esmalte.


Odiava o modo como era surda quando pintava de rosa podre
as unhas sujas de poeira.
—Meire, põe no Datena.
Cacete, Meire, muda essa porra de tv no Datena, cadê o controle?
Os mosquitos passeavam sobre o prato de arroz, feijão e um resto de ovo
mexido, ela sempre deixava algum pedaço de casca,mal sabia quebrar um ovo.
Mudei de canal eu mesmo, mais um policial morto.
Esse cara, o Datena,esse cara é meu herói, ele fala mesmo as coisas, defende o
povo.
—João, põe na novela, põe no SBT.
—Cala a boca e pinta essa merda de unha, você não consegue fazer as duas coisas,
mal sabe fritar um ovo.
—Eu vou ouvir, quero saber da história,Jorge Fernando vai se encontrar com a
Maria Mercedes hoje.
Fui pro bar.
Duas cachaças e Amado Batista na vitrola, isso conserta a alma do homem.
O Ruído

O ruído incandescente.

O vidro que cruzava o quarto e separava tua alma da minha.

Teu grito espancando minha mente.

Tua mente.

Olhei bem fundo nos teus olhos e sorri.

Cada passo que eu dava doía fundo na retina.

Você esticava as mãos, eu as tocava e me equilibrava gemendo de dor.

Aos poucos eu me deitava no chão transparente.

Posição fetal.

Você balbuciava algumas palavras inaudíveis.

Eu espremia os ouvidos, mas não escutava nada.

E cada um ia não existindo, até nunca ninguém ter ouvido nosso nome.

A parede do quarto se fechava, cada vez mais perto, cada vez mais apertado.

O quarto.

Nosso quarto.

A fotografia em preto e branco diluída.

A marca de cigarro no lençol.

A queimadura nos ombros quebrados.

Desconexo.

A janela fechada.

A cortina suja.

Você aponta a mão para o copo de água.

A sede.

O quarto vermelho.

As gotas de sangue.

A luz esperneando.

Tua palidez.

O sexo. O mijo. O gozo. O alvo.


O quadro de um cavalo negro.

Você grita, grita mais alto, eu tapo os ouvidos e fecho os olhos.

Onde está teu cheiro?

Onde você existe?

Meu primeiro passo para fora do círculo.

O quarto em silêncio.

Onde está teu rosto?

Onde está o espelho quebrado?

De repente um estrondo.

Abrem a porta do quarto.

—Onde estão todos?

Eu agitava as mãos, gritava, batia nas paredes.

Mais uma vez estaria ali, preso naquele quarto.

O ruído incandescente.
Amprodias

O silêncio calçava suas botas de algodão e serpenteava por sobre o assoalho, deslizando,
fazendo caretas, mostrando a língua.

Eu tinha apenas dois segundos para me decidir.

Dois segundos.

A garganta apertava o fluxo sanguíneo, as palmas da mão adormeciam, o vento gelado que
levantava as cortinas sussurrava aos meus ouvidos:

— Amprodias...

O quarto inteiro parecia ter sido projetado para outra dimensão.

Dois segundos.

A faca.

A luz da vela lambia meus pulsos, meu lábio estremeceu, o batimento do coração estava lento
e descompassado.

Em cima da cama o cristal girava sozinho, como que comandado por mãos invisíveis,
sombras,instantes de vazio, ausência de tempo, eu mexia os lábios e as palavras se
definhavam, acorrentadas, descalças, suplicando.

—Amprodias.

Um buraco, um útero, uma brevidade escura se equilibrando por sobre a minha cabeça, os
olhos se desviavam, os punhos, as unhas, a dor, a tosse incontrolada, a mão procurando a faca.

Dois segundos.

Me elevei no ar, a dois palmos do chão, a cabeça voltada para trás, o ar musculoso, a pressão
nas temporas, o grito contido, irreal.

—Amprodias...

Ao meu lado, a carta do louco no tarô girava no ar.

Esse instante não possui existência, o segundo primeiro da criação, o caos primordial, a dança
frenética de tudo que ainda não existe.

Ouço o azul inundando o quarto, tateio o som das flautas, vejo a suavidade da palavra, que
nunca foi escrita, nem dita, nem sequer admirada ou exaltada.

Sinto o gosto perfumado da hora exata da morte.

Dois segundos.

Caio no chão, desmaiado.


Aos poucos meu corpo dança,cada vez mais entusiasmado e febril, a coreografia sem sentido
se intensifica, respiro profundamente.

O espelho no canto do quarto não reflete nada do que vejo, uma luz violeta intensa,
grave,projetando ondas sonoras atormentadoras.

Abrahadabra, Thelema, Ipsos-Lam. Aumgn.

Abrahadabra, Thelema, Ipsos-Lam. Aumgn.

Mergulho no espelho liquefeito. O som é de um lago profundo. Violeta. Raro. Morto.

A arte é poderosa, meu caro, ela é um espelho, alguns tem medo de ver a própria degeneração
e gritam, espantadas, mandando matar a própria imagem.

Dois segundos, nenhum som, nenhum respiro, nenhuma luz, nada.

O nada.

Um segundo.

O nada.
Dia 36

É dia 36, os valores estão depositados, a roupa lavada, o café na mesa, o sorriso no rosto.

A campainha toca.

Atendo.

Você possui algo aí dentro que possa ser quebrado?

Algo que possa ser dilacerado.

Destruído a golpes de martelo.

Você possui alguma coisa valiosa bem no fundo que possa ser incendiada?

Mastigada com dentes de ferro.

Cuspida e engolida novamente.

Calem-se.

Quietos.

Vocês não tem o direito de aplaudir.

Se puderem, morram.

A cidade acorda.

A cidade dorme.

A cidade delineia sua presença por sobre os cadáveres impossíveis.

A arma, não esqueci a arma.

Não poderia esquecer, por nada nesse mundo.

O sangue fotocopiado na calçada, o revólver na têmpora.

É só apertar o gatilho.

Lentamente.

Repito, é só apertar o gatilho.

Você é capaz, claro que é, já matou antes.

A miséria adora companhia.

E a canção nunca se esgota.

Pelo tempo que resta nos arrasta pela fresta da porta fechada.

Lá fora não há nada.


Os cacos de vidro poeira fina ao redor fumaça ensanguentada.

Nada.

Teu peso sobre meu corpo.

Teu corpo.

Assim a sombra imensa da cidade está no alto de um prédio, prestes a se jogar.

—Às cinco da tarde, em frente à sorveteria?

—Ok.

Teu olhar suspenso no ar.

As paredes finas do tempo, a saudade vasta.

Teu sussurro atravessando a avenida.

O carro parado.

Os passos vagarosos de uma vida inteira.

O chapéu sobre a cabeça.

O cumprimento distraído.

E, por fim, teu nome ecoando em uma floresta imaginária.

O estampido enxovalhando o silêncio.

O corpo frio no descanso da sarjeta.

Os olhos abertos refletidos na poça d'água.

A foto em preto e branco me encarando com olhos distantes.

—Obrigado, agora tenho a certeza.

—Obrigado pelos seus préstimos, muito agradecido.

—Obrigado.

Não há nada lá fora.

Eu convivi com um erro.

Tudo é um erro.

Eu sou um erro.

Você é um erro.

A farsa sagrada.

Durma, durma enquanto há tempo.


Todos os cobertores previram a noite que teriam.

Durma.

O despertador está quebrado.

Durma.

Não voltarei a matar novamente.

Nunca mais.

Os gritos ecoam dentro da minha cabeça.

A arma embrulhada no jornal de amanhã.

O rio tenso avermelhando o horizonte.

Cada destino se aproxima dos céus, sem atalhos, sem dúvidas.

—Bom dia, senhor.

—Me leve de volta ao meu caos.

—De preferência antes da meia noite. Preciso dormir. Não durma.

O pulmão cheio de água. Os carros vermelhos gritando.

Não aplaudam.

Vocês não tem o direito de aplaudir.

Não agora.

A cidade entra em coma.

Mais uma vez.

Nada nem ninguém a fará despertar.

Nada.
Ainda não é meia-noite

Todos ao redor uivavam e se curvavam ante o ser azul.

Aos poucos se revelava os pés, as mãos, os seios, o rosto angelical e os cabelos longos e de um
azul bem claro.

O cheiro de flores invadia as narinas.

Ela eleva e encolhe os ombros, desloca a pélvis e contrai as pernas para dentro, projeta as
nádegas para trás e assume uma expressão infantil.

A expressão de estátua, indiferente, distante, contrasta com com corpo entregue, quente,
sinuoso.

Silvos e gritos e palmas e cabeças para trás chacoalhando freneticamente, os braços socando
um inimigo invisível, nocauteando a libido em pequenos golpes.

Um deles avança com ímpeto e atravessa a imagem como fantasma.

Os demais se entreolham, espantados.

A imagem pisca por um segundo e some.

A projeção se desintegra.

Os rostos se tornam sem expressão, os braços caídos, a ereção espiritual se torna impotente.

Todos se sentam nas cadeiras do balcão e olham para baixo.

Cada qual com seu copo de uísque na mão e cigarro na boca.

Os carros esporte, possantes, descansam incólumes e destemidos lá fora.

A música nostálgica e calma recomeça.

Alguém varre o chão calmamente.

Ainda não é meia-noite.


Peixes Dourados

Todos me abandonariam, dentro de algum tempo.

Todos aqueles que admiram minhas mazelas diárias e observam sem discordância os peixes
dourados dentro do aquário, nadando de lado a lado por horas intermináveis.

Todos eles.

Aperto a mão de cada um naquela sala olhando fixo em seus olhos, o sorriso lateral
circundando o ar.

—Obrigado, Senhora.

—Boa tarde, senhor.

Saio pra fumar.

Observo uma senhora que sobe a rua, passos lentos, fitando o céu e apontando algo lá no alto.

Já perto da esquina ela flutua, vai subindo aos poucos enquanto ainda aponta para as nuvens,
como que hipnotizada.

Olho para os lados como que procurando alguém que sorrisse e dissesse:

—Sim, também vejo a senhora flutuante.

Termino o cigarro, volto para dentro.

—Obrigado, cara.

— Muito obrigado, até segunda-feira.

Todos estariam bem longe daqui a alguns dias.

Todos eles.
Demônio Budista

Corri para receber das mãos do carteiro mais um livro encomendado.

Bati o portão, entrei em meu quarto e tranquei a porta.

Rasguei o papel de qualquer jeito, entrevi pelo embrulho desfigurado o título em letras
góticas:

A INVOCAÇÂO.

A ansiedade me mordia os calcanhares, queria fazer o triângulo e o círculo e já tinha a espada


em mãos.

A noite estava calma, meu pai assistia o Datena na sala, em meu quarto eu pretendia entrar
em contato com terríveis forças negras macabras sombrias de outro mundo.

Comecei a ler aqueles textos em latim, dei risada porque parecia um padre meio bêbado, sim,
tomei algumas doses de vodka pra me aclimatar ao ritual.

As velas estavam posicionadas, o círculo desenhado, pelo menos parecia um círculo, nunca
desenhei muito bem, o triângulo também estava rabiscado no chão, era um isósceles, isso eu
sabia, acho.

No momento que acabei de proferir aqueles textos mágicos as velas tremeram, um silêncio me
estapeou e senti uma pequena tontura e um arrepio em minha nuca.

No meio do círculo surgiu um ser estranho, parecia um demônio, mas usava crocs e estava de
bermuda, cabelo comprido com um coque e sentado em posição de lótus.

— Desculpa perguntar, mas você é um demônio?

— Sim, sou, mas meio que parei de usar chifres e rabo pontiagudo e essa aparência horrenda
que não contribui em nada para a nossa aceitação.

— Mas você é mau?

— Sei lá, esse conceito de bom e mau é tão ultrapassado, às vezes sou bom, às vezes mau, o
que me irrita mesmo é esse latim mal pronunciado, quase que não venho.

— Me desculpe.
— Ok, mas prossiga, você quer alguma maldição, quer dinheiro, vai me desafiar, querer me
dominar ou queria apenas conversar?

— Eu... na verdade não sei mais o que eu quero...

— A confusão, pelo menos eu ainda trago esse sentimento...cara , na verdade eu estou aí


dentro de você, eu sou você, olha ali, no espelho, tá vendo?
— Estou.
— Então, eu sou apenas uma parte de você que você não consegue acessar, dessa maneira
você me enfrenta e está enfrentando apenas sua parte mais escondida, sua sombra.

— Mas você...se eu pedir pra Deus te banir daqui? Você tem medo de Deus?

— Na verdade eu sou budista.

— Ah , tá.
FIM

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