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Luciano Pires
Rabo de rato
Ratos, baratas, garrafas pet, bonecas sem cabeça e cds do Cidade Negra, são alguns dos
objetos que ele encontra invariavelmente durante a caçada.
Colocou-o em um chaveiro, andava para todos os lados com aquele dedo pendurado em um
molho de chaves que nada abriam.
Ia saindo cambaleando, desviando dos sacos de lixo derramando chorume, era noite.
Jorge hoje trabalhava vendendo cachorro quente no largo de Osasco, às vezes vai ao Mineiro,
beber seus Corotes de limão.
Vingança.
Casa Vazia
A arma apontada para a cabeça, os olhos pesados, as mãos tremulas, o suor profano cintilando
no segundo eterno. Nenhum grito, nenhuma saudade, nenhuma suavidade sonora, nenhuma
santidade esquecida que pudesse ser avisada. O cano pressionado carimbava um círculo
mágico, que aos poucos ia ficando mais evidente, a pele marcada como boi, como bicho em
sacrifício, como o próprio tiro antecipado, como alvo premonitório.
Lembrou-se do grito mudo. Lembrou-se da noite com a Lua apagada, pássaro mordendo e
arrancando a língua do tempo. Lembrou-se da sanidade, que gemeu e se jogou do abismo,
pairando no último segundo.
O tiro escorregou pela arma, bateu e vibrou como uma pedra saltitando na água, desviou do
destino para se alojar no quadro pendurado na parede, um quadro de uma casa à beira de um
lago, do outro lado do mundo, aquele dia a morte encontrou a casa vazia.
Destino
Débora levantou sonolenta, calçou os chinelos, lavou o rosto e foi tomar o café da manhã,não
sem antes ler o horóscopo.
Touro: Preste atenção nos detalhes, hoje é um dia propício para encontrar seu príncipe
encantado.
Ela sorriu.
Correu para o ponto de ônibus, tirou o celular da bolsa e leu rapidamente as mensagens do
Facebook.
Olhou para o lado e viu um rapaz, sorriu.
Bonito, pensou. Será meu príncipe?
Deu um oi timidamente, ele também a cumprimentou.
_Qual é o seu signo? Ela perguntou.
_Não acredito muito nessas coisas, ele rebateu.
_Pois é, eu acredito bastante.
Laranjas Mecânicas, Pink Floyds, Sushis, Filosofias orientais.
Trocaram telefone.
Namoraram, casaram, tiveram filhos, viajaram, xingaram o PT, discutiram, reataram,viveram.
Débora nunca irá saber que naquele dia leu o horóscopo errado.
Fome
Fome.
2 da manhã.
um pedaço de queijo.
(o cheiro de sua boca lembrava alguém que tinha acabado de lamber o cu de uma vaca).
Não.
Me beija.
Vou gritar.
Grita.
Pegou as moedas.
Sujo.
Puta.
No bueiro
Debaixo de um toldo
Porra, ontem mesmo eu tirei o vinil da capa, coloquei no toca discos e ouvi o lado B inteiro,
bebendo uma taça de vinho.
O cantor mais foda que eu já conheci, um verdadeiro artista, aquele que escaneia a tua alma
em segundos, digitaliza, imprime e esfrega na tua cara, esfrega todos os sentimentos que
fermentavam por anos nas profundezas das tuas entranhas.
Fui ao banheiro, lavei o rosto, peguei uma xícara de café e abri o Facebook pra procurar
alguma notícia sobre o triste acontecimento.
Nada.
Entrei no youtube, digitei o nome, queria compartilhar alguma música, prestar homenagem.
Nada.
Corri pra pilha de discos,procurei desesperadamente: Dylan, Nick Cave, Drake, Janis, Hendrix.
Nada de disco.
Nunca mais ouvi nenhuma música do Morgan Longfield, virou até piada quando saio com os
amigos pra beber:
—Aê, mano, pede pra banda tocar aquele cara lá que só você curte e existe só na tua cabeça,
kkkk.
—Aê, tô procurando aqui na jukebox o Morgan sei lá o que, mano, tem não, deixa eu ver ali
naquela outra que tá na tua imaginação, kkkkk
Não lembro de nenhuma música, apenas lembro da voz, da melodia do violão, quase apagado
na minha mente...
A campainha berra.
—E aí, caras. Podem entrar e ficar à vontade, sentem no sofá, podem deixar as garrafas na
cozinha.
Outro berro.
—Chegou o casal que faltava.
Luís era um ótimo recepcionista: o sorriso lateral, gestos firmes e o aperto de mão forte.
A casa em que os irmãos moravam era grande, piscina na área externa e uma academia que
nunca era usada. A sala de cinema era onde se reuniam sempre. A mesma turma.
—Vamos começar?
As velas foram acesas, uma a uma.
Um grande caldeirão foi posto sobre a mesa de centro.
Essa reunião de cinéfilos sempre acontecia no último sábado do mês, mas dessa vez Luís e
Beto resolveram que iriam assistir o oitavo episódio da nova temporada de Twin Peaks todos
juntos.
No dia anterior Beto tinha visto alguma coisa na internet sobre fazer chá com fita VHS, que
dava barato, que alucinava, que fazia ver coisas,mas que era perigoso.
Inventou pra todo mundo que ia fazer chá de cogumelo, mentiu dizendo que quando foi pra
São Tomé das Letras ele tinha aprendido.
De tarde, enquanto Luís estava no quarto lendo, ferveu um VHS antigo da coleção Folha de
cinema, devia ser Lanternas Vermelhas ou Indochina.
Fez o ponche, duas garrafas de vinho, duas maçãs, cravo, canela, mel, vodka.
A noite era fria, congelante, daquelas que quem não fuma fica brincando de soltar fumaça pelo
canto da boca, feito vapor.
No posto de gasolina não tinha nenhum frentista, todos escondidos, abrigados, encolhidos,
fora de visão.
Comprei duas heinekens, paguei pela janelinha, bebi a primeira quase de imediato e fui
caminhando para o bar com a segunda long neck na mão, parecia um daqueles velhos robôs
dos antigos filmes, camadas de roupas e agasalhos e cachecol e touca, os olhos lacrimejando
com o vento cortante.
Desci as escadas, em cada degrau havia uma vela acesa tremendo de frio.
Pedi um bombeirinho pro dono do bar, que sem abrir a boca colocou a mistura no copo e
voltou a se sentar, calado.
Parecia que todos os demônios de todas as religiões marcavam encontro ali, desde a
eternidade.
Sentei-me e passei a olhar com um certo desconforto para a figura que arranhava as cordas.
De vez em quando alguém saía do banheiro sem que eu tivesse visto entrar, ninguém
conversava, nenhuma palavra.
Espremi os olhos, nesse momento toda a atmosfera ficou mais quente e um cheiro forte
estacionou no ar.
Uma névoa pesada preenchia cada minúsculo canto e uma pequena luz, fraca e tremida, se
movia até o palco.
Nesse instante ouvi uma voz longínqua, como que saída de um antigo disco de cera, percebi
ser Robert Johnson cantando Crossroads blues, o som parecia estar em todos os lugares ao
mesmo tempo e em lugar nenhum.
Aos poucos vi a figura imponente sentada em uma cadeira de plástico, o negro de aparência
fantasmagórica dedilhava o violão envolto por uma aura amarelada e ao seu redor todo o peso
de séculos desfilavam com gemidos abafados.
Os demônios voltaram à sanidade por alguns minutos, subi vagarosamente os degraus, todas
as velas estavam apagadas, ao sair pela porta avistei uma outra escada, essa nunca tinha visto
antes, desci lentamente por ela, as velas todas se acenderam novamente, continuei descendo
até chegar outra vez ao bar, ouvi os guinchos dissonantes do violão mais uma vez e os mesmos
rostos sem expressão, tudo acontecia exatamente da mesma maneira, até que decidi outra vez
subir os degraus pra ir embora, vi as velas apagadas e na saída a mesma escada, o mesmo bar,
a mesma música e a mesma noite fria.
Ele começou a andar, de cabeça baixa, contando os ladrilhos, cantando uma música
mentalmente.
Abriu a porta do quarto, havia apenas uma cadeira e um pequeno palco com
um microfone.
Ouviu o barulho do ferrolho pesado fechando a porta do quarto atrás de si.
Uma música começou a tocar baixinho, naquele pequeno palco surgiu um anjo, de auréola e
tudo, as grandes asas recolhidas atrás das costas, o terno impecável e um coque bem
arrumado que lhe segurava os cabelos louros compridos.
O senhor mal piscou os olhos e já não havia ninguém ali, apenas um leve perfume que
passeava pelo quarto apertado.
Pela janela aberta via-se um campo deserto, apenas algumas árvores e nenhum
ser humano, estava quente e o Sol se impunha como um peso sobre aquele
dia interminável.
O barulho da porta se abrindo o despertou do torpor
Ele abandonou o prédio olhando fixamente para o papel que tinha em suas mãos,
até que tinha sido uma quantia razoável.
Caminhou lentamente até a sua casa, olhando para o chão, a cabeça pesada e o suor
deslizando pelo seu rosto, com as costas da mão enxugava e tremia.
Ivan acordou sonolento, coçou os olhos com as mãos, bocejou lentamente numa pantomina
engraçada.
Mal pode acreditar quando avistou um pequeno homem sentado no sofá, devia ter uns dez
centímetros, estava vendo Netflix, embasbacado e absorto.
—Ei, quem é você?
—Oi?
—Quem é você?
— Jorge, o gnomo
Ele coçou os olhos novamente, não acreditando no que via.
—Como assim um gnomo?
—Sim, eu sou um gnomo e sou músico também.
—Vai me dizer que tem uma banda de gnomos?
—Sim, tocamos música imaginária.
(Ele pensou por um instante que conhecia alguns amigos músicos que tocavam música
imaginária também)
O gnomo continuou:
—Tocamos muitas músicas imaginárias com nossas guitarras semi-distorcidas, aliás, hoje tem
show, obrigado por me deixar assistir Narcos, esse Wagner Moura realmente é muito bom.
O gnomo pulou pela janela rapidamente, deixando um rastro azul de fumaça.
Ele acidentalmente derrubou um pacotinho pequeno, que Ivan cheirou, pegou na mão,
observou e enrolou junto com o cigarro de maconha que sempre fumava pela manhã.
Desde aquele dia Ivan se encontra regularmente com Jorge, sempre tocam violão e assistem
Netflix, estão ansiosos pela segunda temporada de Narcos.
Datena, cachaça e Amado Batista
O ruído incandescente.
Tua mente.
Posição fetal.
E cada um ia não existindo, até nunca ninguém ter ouvido nosso nome.
A parede do quarto se fechava, cada vez mais perto, cada vez mais apertado.
O quarto.
Nosso quarto.
Desconexo.
A janela fechada.
A cortina suja.
A sede.
O quarto vermelho.
As gotas de sangue.
A luz esperneando.
Tua palidez.
O quarto em silêncio.
De repente um estrondo.
O ruído incandescente.
Amprodias
O silêncio calçava suas botas de algodão e serpenteava por sobre o assoalho, deslizando,
fazendo caretas, mostrando a língua.
Dois segundos.
A garganta apertava o fluxo sanguíneo, as palmas da mão adormeciam, o vento gelado que
levantava as cortinas sussurrava aos meus ouvidos:
— Amprodias...
Dois segundos.
A faca.
A luz da vela lambia meus pulsos, meu lábio estremeceu, o batimento do coração estava lento
e descompassado.
Em cima da cama o cristal girava sozinho, como que comandado por mãos invisíveis,
sombras,instantes de vazio, ausência de tempo, eu mexia os lábios e as palavras se
definhavam, acorrentadas, descalças, suplicando.
—Amprodias.
Um buraco, um útero, uma brevidade escura se equilibrando por sobre a minha cabeça, os
olhos se desviavam, os punhos, as unhas, a dor, a tosse incontrolada, a mão procurando a faca.
Dois segundos.
Me elevei no ar, a dois palmos do chão, a cabeça voltada para trás, o ar musculoso, a pressão
nas temporas, o grito contido, irreal.
—Amprodias...
Esse instante não possui existência, o segundo primeiro da criação, o caos primordial, a dança
frenética de tudo que ainda não existe.
Ouço o azul inundando o quarto, tateio o som das flautas, vejo a suavidade da palavra, que
nunca foi escrita, nem dita, nem sequer admirada ou exaltada.
Dois segundos.
O espelho no canto do quarto não reflete nada do que vejo, uma luz violeta intensa,
grave,projetando ondas sonoras atormentadoras.
A arte é poderosa, meu caro, ela é um espelho, alguns tem medo de ver a própria degeneração
e gritam, espantadas, mandando matar a própria imagem.
O nada.
Um segundo.
O nada.
Dia 36
É dia 36, os valores estão depositados, a roupa lavada, o café na mesa, o sorriso no rosto.
A campainha toca.
Atendo.
Você possui alguma coisa valiosa bem no fundo que possa ser incendiada?
Calem-se.
Quietos.
Se puderem, morram.
A cidade acorda.
A cidade dorme.
É só apertar o gatilho.
Lentamente.
Pelo tempo que resta nos arrasta pela fresta da porta fechada.
Nada.
Teu corpo.
—Ok.
O carro parado.
O cumprimento distraído.
—Obrigado.
Tudo é um erro.
Eu sou um erro.
Você é um erro.
A farsa sagrada.
Durma.
Durma.
Nunca mais.
Não aplaudam.
Não agora.
Nada.
Ainda não é meia-noite
Aos poucos se revelava os pés, as mãos, os seios, o rosto angelical e os cabelos longos e de um
azul bem claro.
Ela eleva e encolhe os ombros, desloca a pélvis e contrai as pernas para dentro, projeta as
nádegas para trás e assume uma expressão infantil.
A expressão de estátua, indiferente, distante, contrasta com com corpo entregue, quente,
sinuoso.
Silvos e gritos e palmas e cabeças para trás chacoalhando freneticamente, os braços socando
um inimigo invisível, nocauteando a libido em pequenos golpes.
A projeção se desintegra.
Os rostos se tornam sem expressão, os braços caídos, a ereção espiritual se torna impotente.
Todos aqueles que admiram minhas mazelas diárias e observam sem discordância os peixes
dourados dentro do aquário, nadando de lado a lado por horas intermináveis.
Todos eles.
Aperto a mão de cada um naquela sala olhando fixo em seus olhos, o sorriso lateral
circundando o ar.
—Obrigado, Senhora.
Observo uma senhora que sobe a rua, passos lentos, fitando o céu e apontando algo lá no alto.
Já perto da esquina ela flutua, vai subindo aos poucos enquanto ainda aponta para as nuvens,
como que hipnotizada.
Olho para os lados como que procurando alguém que sorrisse e dissesse:
—Obrigado, cara.
Todos eles.
Demônio Budista
Rasguei o papel de qualquer jeito, entrevi pelo embrulho desfigurado o título em letras
góticas:
A INVOCAÇÂO.
A noite estava calma, meu pai assistia o Datena na sala, em meu quarto eu pretendia entrar
em contato com terríveis forças negras macabras sombrias de outro mundo.
Comecei a ler aqueles textos em latim, dei risada porque parecia um padre meio bêbado, sim,
tomei algumas doses de vodka pra me aclimatar ao ritual.
As velas estavam posicionadas, o círculo desenhado, pelo menos parecia um círculo, nunca
desenhei muito bem, o triângulo também estava rabiscado no chão, era um isósceles, isso eu
sabia, acho.
No momento que acabei de proferir aqueles textos mágicos as velas tremeram, um silêncio me
estapeou e senti uma pequena tontura e um arrepio em minha nuca.
No meio do círculo surgiu um ser estranho, parecia um demônio, mas usava crocs e estava de
bermuda, cabelo comprido com um coque e sentado em posição de lótus.
— Sim, sou, mas meio que parei de usar chifres e rabo pontiagudo e essa aparência horrenda
que não contribui em nada para a nossa aceitação.
— Sei lá, esse conceito de bom e mau é tão ultrapassado, às vezes sou bom, às vezes mau, o
que me irrita mesmo é esse latim mal pronunciado, quase que não venho.
— Me desculpe.
— Ok, mas prossiga, você quer alguma maldição, quer dinheiro, vai me desafiar, querer me
dominar ou queria apenas conversar?
— Mas você...se eu pedir pra Deus te banir daqui? Você tem medo de Deus?
— Ah , tá.
FIM