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Assente pois, em justos t,'rmos, um quantum de originali-
dade popular na fecunda elaboração dos cancioneiros, ponde-
remos, quanto às canções dos nossos trovadores, que são
justamente as de cunho popular - em contraste com o
tom convencional e artificioso das de mestria - que pode-
remos eh. mar, com J. J. Nunes, rigorosamente nacionais, isto
é, feitas sôbre modelos populares. Além das cantigall·de-amigo,
sobretudo das parale/istloas, em que semelhante cunho espe'
cialmente se manifesta, é ainda de notar, quanto às cantigas-
-de-amor, o refrão ou estribilho de grande parte delas-
<reflexo da poesia popular do tempo> (').
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Elementos substanciais da canção, de lal modo a poesia
e a música se integram, que será lícito afirmar da segnnda,
quanto às origens, o que pudemos manifestar de nossa COn-
vicção relativamente à base estróflca da melodia. No tempo
dos trovadores, como no dos rapsodos da Grécia primitiva,
irmanavam-se e confundiam-se as duas artes (').
Como observa J_ J. Nunes, o cantar compete em antigui-
dade com a fala (4) e, movimento da intonação, poderemos
avançar com Dupré, Natham, Spencer, Dauriac, e tantos
oUlros, que a linguagem tonal dos sentimentos precedeu a
expressão articulada dos sons (b); sendo ainda de ponderar
- e exemplificamos com o douto López Chavarri - que «el
canto popular dice lo que el hombre no sabría o no se atre-
.
~
religiosa medieva (1) - tal como nas canções trovadorescas,
cnja origem litúrgica, pelo menos em grande parte, é hoje
geralmente aceita. Consideremos todavia, com J. J. Nunes
(O. d'Amigo, I, 142), que, se o povo adaptava por vezes aos
seus cantos a toada litúrgica (I), li Igreja, nào podendo extin-
guir certas costumeiras, arreigadas no povo já desde o paga-
nismo, em certa maneira as santificou, adoptando·as, e do
mesmo modo procedeu com a música.
Não esqueçamos porém, quanto à Península, entre outros
factores de justificável influxo, o elemeuto oriental advindo
da convivência árabe de sete séculos (a). Nem deixemos de
aventar, com António Sardinha: .Se houve uma lírica popular
galega, donde dimanou a lírica peninsular, tanto do Rei· Sábio,
como antes de Abencuzmlin, &por que não dimanaria também
das toadas populares do noroeste da Península a música que,
apurada pelo adiantamento musical do Oriente, acabou por
esteuder à Europa a sua fôrça inspiradora?> ('; .
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Ligada ao canto, como vimos, é ainda cadenciada a p0e-
sia • pelo rythmo d. dansa >, com base na gesticulação e
outros movimentos e atitudes expressivas (fi).
Importa neste momento transcrever, quanto à origem da
dança, o seguinte passo convergente de López Chavarri:
• El baile no as más que el ritmo realizado por el cuerpo
II
III
(I) Notar sôbre PM'tugal, li, Lisboa. H!09, pp. VIU-IX, - Cf. R. GaUop,
op. cit., p. 21:;'
fi) No Fund!i.o, é ainda chama.da. entre o povo, por seu ritmo arras-
tado e dolente, a cantiga-do-sono.
(3) Da eomposiç.li.o de Curvo Semedo O rou:ntw! e a cigarra aproxi-
mamos a qua.dra seguinte:
Atentú um pouco me escu~
se eantar melhor pretendee~
que, inda que tens a. voz ::ronca,
ao menos .o estilo aprendes.
INTRODUÇÃO AO CANCIONEIRO DA BEIRA-BAIXA 159
o remate da cantiga
foi à fonte, logo vãi:
a cantiga sem remate
nõ mete graQa a ningãi.
Alvanta-te, 6 molerinha,
vài a vãr a orvalhada,
vãi õvir cantar a rôla
õ rimanso da li vada.
j E seja,
e pelo amor de Deus seja!
IV
Em trabalhos de compilação e anotação, como o que
empreendemos, impõe·se critério de suficiente clareza ua
sistematização das matérias. Pode em verdade dizer-se,
quanto ao folclore porlugnês, que pouco de útil existe sõbre
a classificação das canções populares. António Arroio, prefa-
(1) R. Gallop, 0'fJ. dt., pp. 25-26, - CC. J. J. Nunes, Cantigas- a: AmigD,
I, pp. 7 • 18.
u
162 REVISTA LUSITANA
.4.) - Romanceiro.
B) - Cancioneiro lírico:
1 - Canções religiosas.
2 - Da vida rural.
3-De amor_
4 - Satírlcas.
5 - Hist6rico-politicas.
6 - Coreográfico-amorosas,
v
CANÇÕES RELIGIOSAS
I) - Natal.
II) - Paixão.
III) - Ressurreição.
IV) - Santos populares .
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Por sua vez, agruparemos as Canções do Natal em três
ordens distintas, consoante os temas:
a) - Menino Jesus_
b) -Janeiras.
c)-Reis.
I)-Ciclo do Natal
Ó me Manino Jasuse,
sâi vós nâ posso vivâre:
aqui tenden-Io me pelo,
poj nele vinde nasçãre.
(ZOlras).
Os pastores em Belém
todos juntos vào à lenha,
pra aquecerem o Menino
que nasceu na noite boina.
(Foo-Côa).
Pastorinhos lá da serra,
rigoardai o resmaninho,
qu'ó donde a Virza stindâu
os coeros do Menino ...
(Fundão, Caria).
Ó me Manino Jasuse,
da banderi nha bromálha,
sênden-lo pastor dovino,
ii sou a vossa ováiha.
(Aldeia de Joanea).
Rompam-se as nuivas,
tchovem nos jústeso,
nasçân 1m Belài
o Infante Angnsto.
{Teixcso}.
Era màia-nõte,
mãia-nõte im pino,
canta vem os galos,
tchorava o Menino.
Calai me Menino,
caiai 6 me bãl,
qu'a istrãla d'alva.
já rompendo vãi.
(Awaria) .
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Enquanto na Matriz da aldeia se acendem 8S luzes do
allar-mor, e já o sino 'picou> para a missa-®-galo, chegam
ainda de fora - do buli cio do adro ao redor do cepo, ou do
giro do povo para a hora festiva da Adoração - alegres
rumores de cantilenas, por vezes acompanhadas de instru-
mentos (1):
Mnino Dãs nascido,
nascido im Balái,
ãntri duas palhas.
1m Jerosalái ...
(Partida),
Ó me Manino Jajuje
qui no pri.áplo ataje,
Toquem-se as campanhas,
loquem-se os tambores,
alegre-se o mundo
que é nascido Deus!
(Castew-Branco).
Da cabana m'alavanto,
anseoso de sa bãre
qui novedade esta sãje
côsa di tanto prazâre.
E mais adiante:
Ó dovino Sacramento,
vinde õ mâio da ingrâja,
qu'ií vos quero àcinsar
dondi tôda a gente vâja.
Ó me Menino Jasuse,
nã tenho moj qui vos dare:
aqui vos traigo um cabrito
qu' ainda vãi a berrare.
E tamãi já sô pastore,
vô a vâr das ovelhinhas,
intreguei· as o rafero
lá nas maj altas cam pinhas.
Jli mi cá vô ri tirando
para as montanhas maj friaa:
levo munIas suidades
do l"i1ho da Virza Maria.
Jã os galos amitídem,
perto vãi a madrogada,
quera Dãs qui no intrassem
lã os lôbos na malhada.
Ó me Dâs-Menino,
qui hoje aootaje
nome tão dovino,
bindito sejaje!
(1) Obras de Gil l'icenu! ad. de Mendes doa Remédios, 111, Coim~
br&, 1914, p. 32.
17ll REVISTA LUSITANA
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b) JANEIRAS - Relacionadas com 3S festas romanas das
calendas, publicas iIIas ac superstitiosas meti/ias, quas Kalen-
dis lanuarii, quibu8 annus aperUur, exhibuere primum genti-
le. (1), as janeiras mantéem ainda hoje, apesar de refundida
e quãsi obliterada a sua tradição em muitos pontos da Beira-
-Baixa, os primitivos traços pagãos, em suas loas de ressaibo
profano, seus presentes, dádivas ou 'estreias' (strena calen-
daria) " seu ruidoso cortejo de forfogas e libações.
Do Douro ao Tejo, sôbre a linha da raia, as múltiplas
variantes desta curiosa tradição popular propõem à observa-
ção do etnógra fo a surprêsa de um caucioneiro, como poucos
movimentado e fecundo. Mesmo o bordão inicial de algumas
estrofes do norte da provincia-"quen, diremos n6s que viL'a?
- , com fórmulas adequadas ã rima de vários nomes', não
exprime, ao contrário do que supôe Correia Lopes, a letra
consabida ,de todas as mais parles, (').
Sohrevivência de velhas usanças gentilicas, afeiçoaram-se
as janeiras aos fastos do Cristianismo - e assim as ouvimos
cantar da vigília do Nascimento aos Reis (Cova"da·Beira), da
noite de Natal ao Bom-Ano (Covilhã, Barroca), da véspera
do Ano-Novo 80s Reis (Ou rondo, Penamacor), ou em todo o
mês de Janeiro (Sabugal, Meimoa, Donas, Telhado).
Em Foz·Côa, onde cederam o passo aos Reis, cantavam-se
nos dois últimos sábados de Dezembro e «recolhiam-se. no
dia de Bom-Ano. Cantam-se, em outras terras, oito dias anles
do Natal e no dia de Reis (Oleiros-Isna), nas vigílias do
Meia-note já é dada,
meia~n()ta vai im pino~
'lanho a trazer a notixa
qui nasceu o Dâs-Menino.
(Mei,"oa).
Boas- festas, boas- festas,
boas-festas d'aligria:
já nasçau o Dâs-Menino,
Filho da Virzem Maria.
(Cot'a-da-Beira).
cit., v. 23, p. 189) é digno de anotaç,ão o típico modo de pedir dos janei.
reiroe.:
J aneirinhas vão- pa.ssando,
ehegadinhos vem OB Reis;
olhai lâ por vossas CaBas
s'há alguma coisa que nos deis:
ou da carne do fumeiro,
ou do pIo do taboleüo,
ou do vinho do pichei,
do melhor que lá houver.
180 REVISTA LUSITANA
Aligrai-vos companhi:l'os
qui já sinto sapateare:
é o dono desta casa
qui mos vài a convidare.
(A/caria).
() qui strâla tão brilhante
alài slá a alomiare:
é a menina mãj noya
qui mos Yài a convidare.
(Tortosendo)_
(TarW8rmdo).
Trinca martelos,
torna a trincar,
êstes barbas de Ichibo
nó lãi qui mos dare.
(Oov,,·d,,- Beira).
Ó o tchõriço é gordo,
õ a faca nô o corta t
l) a criada é lambona,
qu'nõ mos vãi a abrir a porta.
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As dádivas recolhidas nas janeiras costumam logo repar-
tir-se entre os janeireiros, se não têem destino especial, v. g.,
. ,
b) Gloria nacelcis
qui já deu à luz,
nasçau im Belãi
o Alnino Jasuse.
Menino Jasus,
a graça qui tãi,
todo si parece
com a Virzem Mai.
(Cova-da. }Jeira).
lO) Glória nas celsas,
qui já é nascido,
entre nove meses
q u' andou iscondído (1).
(Col"ilhà).
d) Aq uela reI vinha
qu' o vento gelou,
8 Mãi di .Jasus
tão püra ficou.
(Cora. da· Beiru) .
• ) () enjos do céu,
qui tão bãi cantai,
cantai õ Maninu,
i bindito sezai!
(Cairão).
Graças a Dáso,
qui já deu à luz ...
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, .
Mencionaremos, por último, as janeiras de Vai verde, Foz-
-Côa e Isna, de salientes caracteristiMs diferenciais, quanto à
composição do gru po dos janei reiros, percurso Oll derrota na
aldeia e objectivo proposto_
Em Vai verde, nas noites de Natal e Bom-Ano, os quatro
foliões do Espírito Santo, acompanhados dos seis mordomos
e do juiz, tesoureiro e escrivão da mordomia, saem a dar as
janeiras com seus instrumentos e loas de tradição_ Deutre os
foliões, o do tambor, que é o 'principal>, regula a música e
nota, baixinho, o primeiro verso de cada cantiga_ Toca o
segundo viola e os dois restantes, pandeiros - espécie de
acinchos de castanho com soalhas de lata_
Dirigem-se primeiro a casa do juiz e, sucessivamente, à
do tesoureiro, escrivão e mordomos_ E todos, em ooro:
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c) REIS - No ciclo das tradições populares do Menino
,Jesus, cantar os }leis - lIsança qUfÍsí de todo delida na Beira-
-Baixa de hoje -o mesmo é que pedir as janeiras (1).
Reminiscências (como dissemos na abertura do cancioneiro
religioso) de festas gentilic"s, tais as de Saturno, as sálias e
as megalesianas ('), festejavam-se também os Heis com ale-
gres 'pontos> de saüdação e propiciação, de peditório, agra-
decimento e despedida. Por vêzes, eantavam-se simplesmente
em sell estilo nas praças e rnas da aldeia,on à missa conven-
tual (Orca, Zebras):
1m clarins d'õro,
enjos qui voem
nêlis prigoem
tanta vintüra ...
(1) Cf. Leite de Vasconcelos, Ensaios, IV, p. 59; 11.«'. LUB' r 20, p. 180,
(2) Cf. F. Manuel Alves, op. cit" IX, pp. 285-89.
188 REVISTA LUSITANA
Cantemos e ricautemos,
tornemos a ricantar,
êstes barbas di farelos
nà tem uada qui mos dar .
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Há pouco mais de viute anos, como ficou dito a propó-
sito da <adoração dos pastores>, ainda se representava em
Disprezei o meu pa is
e tBmãi o meu reinado,
vanho di reinos istranhos
pra adorar um Dâs sagrado.
Pardámos a istrâla
às portas da cedade:
prigontáramos por ela,
por uma tal novedade.
E Baltasar decide:
Responde Baltasar:
É aqui, provintura,
adonde dizem qu'istá
o Hei dos céus e da trrra
qu' a luz õ mundo dá 'I
Vai ve Herodes:
- Na época sigunda,
dizam as profecias
qu' im Belãi nasceria
o vardadêro Mersias •..
o Mersins prometido
qui vós vindens pra adorare.
VÕ dar-vos a dispedida,
a todos peço pal'dào,
para ir a ô!ra parte
dicantar a Adoração.
Nã ti poaso acraditare:
nõ vâjo o sengue na xpada
dos qui mandei digolare ...
Mil senhóres,
dexo decratado
qui todo o mnino inocente
sãje digolado.
(Continua)
JOSÉ MOIITEIRO.