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Letra e música

por Luiza Cavalcanti

Quando te vi pela primeira vez, descobri um amor diferente, algo novo que eu não
conhecia, uma mistura de medo e alegria. Te vi crescer e se transformar; se afastar
como? Se és parte de mim? Realmente ninguém é dono de ninguém. Tenho tanto para
dizer, tantos sonhos para viver e tudo isso compartilhar com você. (Encontros e
desencontros (PG)).

PRIMEIRA PARTE: LUIZA

Capitulo 01: O começo

Engraçado, o sol sempre é o mesmo em todos os lugares mas, aqui no Brasil sinto que
ele brilha com mais intensidade. Aqui, de dentro desse avião, ele me parece maior
ainda. Tinha esquecido depois dos anos que passei fora, fugindo de mim. Faltando
algumas horas para a aterrissagem, penso que não é apenas o sol que banha essas terras
que é diferente, que mudou. Eu também não sou mais a mesma e como é difícil para
mim que já relatou tantas estórias, criou muitas outras, escritora e jornalista conhecida
no mundo todo sentir essa angustia só de pisar novamente esse solo, respirar outra vez
esse ar. Inventei personagens, dei-lhes vida, vivenciei a vida de muitas pessoas e com
minhas palavras as transformei. Meu lar nesse período, eram os lugares onde as pessoas
precisassem de minhas palavras, seja para o conforto de suas vidas ou para ajudá-las a
dar voz àquilo que não se podia dizer. As palavras possuem um poder que não se pode
calcular. Por isso sempre preferi a escrita e decidi então, que o papel seria minha voz
porque assim seria ouvida. Minha mensagem chegou aonde minha voz nunca alcançaria
sozinha. Eu jamais gostei de falar de mim, por isso vou mais uma vez escrever e espero
que as lembranças do passado me ajudem a encontrar as respostas que busco, mas
lembranças podem nem sempre serem boas, mas fazem parte do que hoje sou e toda
estória boa ou má tem sempre um começo, então vamos a ele.

Nasci numa dessas cidades do interior, comum como qualquer cidadezinha desse país
continente que é o Brasil e apesar de estarmos em 1978, ainda se vivia como nos tempos
de colônia. Não conheci meus pais biológicos até porque me encontraram na porta da
igreja (na verdade, uma pequena capela em honra a Nossa Senhora das Graças) numa
noite em que ventava bastante, mês de setembro, pelo padre Antônio, segundo ele me
contou após muitos anos, guiado pela santa porque naquela noite ele tinha se demorado
um pouco mais nas orações e atrasado o fechamento da igrejinha, quando começou a
ventania que era o prenúncio de uma grande tempestade e então ele resolveu ir para a
pequena casa paroquial que ficava quase em frente e ali me encontrou, dentro de uma
caixa de papelão ainda suja de sangue, nos degraus da entrada. Então ele, homem de
muita fé presumiu ser um milagre, talvez tenha sido alguém lá de cima que deve ter
achado que eu tinha uma missão a cumprir por aqui. Há alguns dias, pensando sobre
meus pais biológicos, fiquei me perguntando se eles quiseram me conhecer ou
souberam quem eu era.

O fato logo se tornou notícia como tudo que acontecia por ali onde todos sabiam da vida
alheia e talvez alguém até soubesse algo, mas era perigoso naquela época, pois podia ser
motivo de um escândalo. Talvez filha bastarda de algum influente homem da cidade
com sua empregada, ou de uma das suas respeitáveis senhoras que por um descuido
tivesse se deixado seduzir por um de seus peões; vai saber, mas isso na verdade nunca
me preocupou, pois tive os melhores pais do mundo. Quando o padre Antônio se viu
com aquela criança nos braços, lógico, que ele não sabia o que fazer, mas a primeira
providência foi me dar um nome, então ele começou a me chamar de Luiza, nome,
segundo o bom padre, da pessoa mais santa que ele tinha conhecido até então, sua mãe.
Foi ela que lhe tinha mostrado o caminho para Cristo e eu que nunca fui santa, acreditei
nele quando da estória fiquei sabendo. O padre bem que tentou em seus sermões
convencer seus ilustres paroquianos a me adotarem, argumentos não faltavam, eu era
um bebê tão bonitinho, olhos verdes como duas esmeraldas, cabelos castanhos e
enroladinhos como de um anjinho, boa saúde, constatada pela enfermeira Joelma, a
única referência de saúde naquela cidade, mas de nada adiantou. Os poderosos tinham
sua própria linhagem para criar, nunca misturariam seu sangue com o de uma bastarda.
Mas foi aí que um casal, que nas missas costumava sentar nos últimos bancos, pois não
eram dignos segundo o costume da época de sentarem nos primeiros, resolveu me dar
uma oportunidade. Minha mãe se chamava Maria e como a mãe do Cristo, símbolo de
humildade, apesar de muitos a acharem inferior apenas pela cor de sua pele, negra,
linda, com todos os traços característicos de nossos irmãos africanos. Ela e seu marido
Sebastião, um negro forte, que também não fugia dos traços nobres de seus ancestrais,
me acolheram com muito amor e o padre achou que outra vez Deus intercedia, pois
havia alguns meses Maria tinha perdido seu pequeno José, mordido por uma cascavel,
fato corriqueiro, já que eles trabalhavam em uma grande propriedade rural. Maria viu
em mim a redenção para todo o amor que ela tinha acumulado em seu coração.
Sebastião era um pouco mais rude, mas também me recebeu bem já que eu fazia sua
mulher feliz, o que ele queria era sua Maria alegre e fogosa novamente, então também
me amou do seu jeito. No dia do batizado, os meus pais adotivos tiveram uma idéia: não
queriam simplesmente por o seu Silva, nome tão comum, segundo minha mãe para
quem estava destinada a ser grande, pois minha vida já era um milagre, então merecia
um nome mais famoso. Na única mercearia da cidade do seu Pedro, onde muitos se
reuniam para beber, conversar e conhecer o mundo lá de fora, havia uma televisão
muito simples com imagem em preto e branco que funcionava a bateria. E assim, minha
simplória mãe, que adorava um programa de auditório de um muito excêntrico
apresentador, resolveu que eu seria Cavalcanti e foi assim que eu me tornei uma mistura
da mãe do padre com o apresentador de TV: Luiza Cavalcanti.

O tempo passava e foi na infância que descobri que existiam dois mundos: o dos que
tinham poder e dinheiro e os outros que abaixavam a cabeça e só obedeciam. Os que
mandavam, a cidade inteira sabia: a família Franco Vasquez, os que obedeciam todos os
outros. Era como uma pirâmide, no topo os Franco Vasquez, abaixo, os ditos
profissionais liberais, tipo o juiz de paz e notas Seu Plínio, outros pequenos agricultores
que arrendavam terras dos Franco Vasquez, seu Pedro e outros que não precisavam
literalmente pegar no cabo da enxada para sobreviver. E por fim, nós, os que sempre
estavam prontos para servir, por qualquer prato de comida, mas na verdade, de uma
maneira ou outra, a pequena cidade dependia das vontades da família Franco Vasquez.

Meus pais adotivos trabalhavam na Fazenda Campo Belo de propriedade do ilustríssimo


Senhor Augusto Franco Vasquez, já a terceira geração de espanhóis que tinham vindo
sem nada de seu, apenas com cara, coragem, a roupa do corpo e segundo alguns mais
maliciosos, munidos de muita esperteza também, nos navios de imigrantes para
trabalhar nas lavouras de café. Muitos ficaram por aqui e fundaram nosso pequeno
povoado que a família Franco Vasquez controlava com mãos de ferro, desde que se
tornaram os senhores de quase todas as terras, diziam seus inimigos políticos, através de
grilagem e escrituras forjadas (com a ajuda do seu Plínio, diga-se de passagem, que lhe
rendeu um belo sobrado na praça central), mas que ninguém conseguiu provar.

Agora me lembrando de seu Augusto e dona Catarina, é que penso como eram
diferentes. Seu Augusto, apesar do dinheiro e posição, era um homem simples, alegre,
bem, na verdade, mulherengo mesmo, esbanjador e fanfarrão. Sempre disposto a uma
boa farra, onde houvesse bebida, jogos e muitas belas mulheres. Já Catarina Franco
Vasquez era a própria imagem da arrogância, além de autoritária e preconceituosa. Vejo
hoje que talvez tenha sido as armas que ela tenha criado para se defender de uma vida
também sem escolhas. Com 15 anos, filha de outra família de descendência espanhola,
que tinha apenas nome, mas com muitas dívidas, foi negociada com o Franco Vasquez e
casou-se com um homem 20 anos mais velho. Se Augusto um dia sentiu desejo ou amor
por Catarina, acabou com a total indiferença dela em relação a ele. Então, com menos
de um ano de casamento, ele voltou para a vida boêmia que sempre teve. A ela restou a
estampa de grande dama e tenho que reconhecer, de negociante, pois o dinheiro nas
mãos do seu Augusto já teria evaporado. E viveram assim, ela fechando os olhos para as
traições e farras dele, desde que no fundo, ela tivesse todo o domínio. Tiveram dois
filhos, o primogênito Carlos teve um parto difícil e Catarina jurou que nunca mais iria
sentir tamanha dor novamente. O menino cresceu mais na garupa do pai, que tinha
paixão por cavalos e que além das plantações de café, tinha uma boa quantidade de
cavalos de raça, que eram conhecidos em toda região e até no exterior. Mas um dia,
quando Carlos já tinha seus 10 anos, numa tarde em que o pai estava recebendo um
novo lote de garanhões, ele viu pela janela o cavalo mais lindo até então: todo negro,
com um porte altivo, Carlos se apaixonou à primeira vista, não quis mais tomar aulas
aquele dia. Sim, pois Catarina achava que na cidade ele não teria educação a altura de
sua posição, e mandou vir da Europa um tutor para lhe dar a orientação adequada ao seu
nome. Fugiu por uma janela e correu para os estábulos e lá estava seu cavalo, nervoso e
inquieto. Depois, ninguém sabe o que aconteceu, se ele tentou montá-lo ou apenas
tivesse subido na cerca para vê-lo melhor. Quando os peões avistaram o cavalo já
disparava em direção as matas e no estábulo apenas o corpo do menino caído com o
pescoço quebrado. Uma vez meu pai me disse que foi a única vez que viu seu Augusto
chorar. Ele mandou os peões caçarem o cavalo e apesar de valer uma pequena fortuna,
ele mesmo o matou. Quanto a Catarina, ninguém soube como foi afetada, pois nem no
enterro derramou uma só lágrima. Enterraram ali mesmo na fazenda, embaixo de um ipê
branco muito antigo e lindo que tinha perto das casas dos empregados. Mas isso eu só
sei de ouvir, pois eu ainda não tinha entrado na estória da família Franco Vasquez. E se
passou um ano de total silêncio entre marido e mulher. Cada um culpava o outro talvez,
isso ninguém nunca soube. Até que um dia, Augusto tinha bebido e não tinha mais
nenhuma empregada com que pudesse se servir para satisfazer seus instintos, então
depois de nove meses nasceu Júlia. Se Carlos tinha os traços do pai, Júlia era a mistura
de ambos. Os olhos azuis e afetuosos de Augusto e os cabelos vermelhos e rebeldes de
Catarina. Dizem que não há coincidências, mas naquela noite fria da porta da igreja,
quando eu era tirada do cesto, Catarina dava a luz a uma filha e diferente do primeiro
parto, ela chegou com uma suavidade que conseguiu arrancar uma singela lágrima de
sua mãe. Seu pai, já foi chamando-a de princesa, e que sua menina era a coisa mais
linda do mundo. Seu Augusto achou em Júlia, um novo motivo para viver e modificou-
se. Vivia agora para a filha, tinha por meta fazer dela uma verdadeira rainha. Foi neste
período, quando soube que seu mais fiel capataz também, após a perda de seu filho,
tinha adotado uma menininha, resolveu presenteá-lo com um pedaço de terra, o que
gerou quase uma guerra, talvez a única vez que Augusto deu a última palavra. Com a
escritura na mão, Sebastião e Maria, apesar de continuarem a trabalhar para os Franco
Vasquez, agora tinham um pequeno sítio para criar alguns animais, e quem sabe, Maria
que era boa quituteira, fazer alguns doces e vender para garantir uns trocados, que por
fim veio auxiliar muito nas nossas modestas vidas. E assim foi passando o tempo,
minha mãe sempre me deixava com o padre Antônio quando ia para Campo Belo e ali
comecei a aprender as primeiras letras, pois padre Antônio tinha toda paciência. E foi
novamente numa tarde de setembro que minha vida mudou para sempre.

Capítulo 02: O encontro

Eu estava perto de completar 10 anos e em todo esse tempo, eu ainda não tinha passado
da grande porteira da fazenda. Um dia minha mãe estava atrasada e padre Antônio
coitado, estava acamado com uma forte gripe. Talvez me deixar com seu Pedro, nosso
amigo, mas seu filho João, que apesar de ter três anos a mais era meu parceiro de
aventuras pelas redondezas, estava com catapora. Não teve jeito, ela teve que me levar
junto, mas antes me fez mil recomendações. Quando passei daquela porteira para dentro
foi como se eu entrasse em um mundo de sonhos, num castelo encantado, nunca tinha
visto coisa mais linda. Suas portas trabalhadas, suas janelas enormes que de onde se
podia ver talvez o mundo inteiro. Entramos pela porta dos fundos e na cozinha já estava
Zefa, outra empregada da casa.

_Hoje a madama ta arretada, reclamou a baiana Zefa. Já perguntou por ocê Maria. O
Tião também passou por aqui pra pegar o café da peonada e ficou preocupado. Oi
pequena Luiza, to fazendo um vestidinho de uma renda bonita que peguei das sobras da
menina Júlia e vai ficar certinho em ocê pro aniversário, falou enquanto apertava
minhas bochechas, coisa que odeio que façam até hoje. Tentei sorrir, mas Zefa era
mesmo uma figura; mulata sacudida como diziam e que fiquei sabendo anos mais tarde,
que fazia um serão para o patrão, que mesmo antes do nascimento de Júlia, dormia em
quarto separado.
_ O padre ta acamado, tive que trazer a pequena, a jararaca pode achar ruim, mas ela
prometeu ficar só por aqui me ajudando. Foi quando a porta se abriu e entrou um
homenzarrão, alto, cabelos já quase todos brancos, mas de uns olhos azuis joviais e
brilhantes.
_ Ora, quem está aqui hoje. Enfim tenho a honra de conhecer tão linda donzela,
pronunciou com um sotaque engraçado. Que beleza de menina Maria, tão grande e
bonita, e com uns olhinhos espertos também.
_ E não é pra gabar patrão, mais inteligente que só vendo. Ta tendo aulas com o padre e
ele disse que nunca viu menina tão esperta pras matéria dele lá.
_ Então, como se chama mesmo?
_ Fala menina, o gato mordeu a língua? Já perguntou minha mãe com vergonha de
minha súbita timidez, mas é que fiquei impressionada com aquela figura alta e
imponente, diferente de todos os homens que eu conhecia até então. De uma pele tão
alva, que chegava a doer só de olhar, já que a maioria de nós, eles deviam pensar, eram
apenas mestiços.
_ É Luiza, patrão, repara não que ela ta um pouco envergonhada.
_ Vim pegar minha gemada matinal que só você faz Maria, mas não se preocupe, estou
atrasado, estão chegando novos peões para a colheita e o Tião deve estar me esperando,
e saiu dando um piscadinha para Zefa.
_Zefa, se a jararaca vê manda te matar mulher, ouvi minha mãe dizer.
_Que nada, ela não ta nem aí, desde que não passe pela porta da cozinha e chegue lá nos
salão dos granfa, ria alto a mulata. Hoje sei que ainda é assim em muitos lugares e
relacionamentos desgastados. Foi quando novamente a porta se abriu e entrou uma
mulher, mas da primeira vez que vi Catarina, tive a impressão, em minha inocência de
criança que era um tipo de furacão, cujo padre Antônio tinha me mostrado fotos em seus
livros antigos. Altiva como uma rainha, com seus longos cabelos vermelhos, mas olhos
negros e frios como a noite, logo foi dizendo:
_Atrasada Maria e ainda mais com um inconveniente desses, disse me apontando.
Naquele momento, com apenas aquele olhar ela fez eu me sentir um verme. Era como
se estando ali eu atrapalhasse de algum modo sua visão da paisagem.
_Pensando bem, ela já está grande e forte, pode começar a te ajudar aqui, completou.
_Não dona Catarina, minha menina vai ser muito mior que nóis. Ela vai é ter estudo,
não capiar como os pais dela.
_E aonde ela vai estudar? Naquela escolinha que meu marido mantém para os colonos
onde um padre é professor? Faça-me o favor, mas bem isso não é de meu interesse, ande
depressa que madame Valquíria reclamou do atraso do café e a Júlia precisa começar
suas aulas pela manhã, falou deixando a cozinha.

Meus olhos faiscaram de ódio, daquela mulher e de sua princesinha. Interrompo aqui a
estória para contar o porquê de meu ódio pela pequena Júlia, que começou no natal do
ano anterior, quando eu perguntava para meus pais porque Papai Noel só visitava a casa
grande e nunca a nós que precisávamos mais dele. Era assim, todo ano de longe eu via a
fazenda enfeitada com muitas luzes e na noite de natal havia muita festa e comida, e
depois da ceia dos ricos, mamãe sempre trazia algumas sobras, eram umas comidas
estranhas e eu na minha ignorância, preferia mesmo era um bom frango frito não
aquelas comidas, mas mamãe dizia que era fino e eu achava tudo de gosto duvidoso.
Mas naquele ano, além daquelas comidas mamãe apareceu com uma boneca, meu
sonho, era linda. Loirinha, um bebê de olhos claros e roupinha rosa. Eu me perguntei
como eles tinham conseguido, pois me parecia muito cara. Foi quando ela disse que a
Júlia tinha muitas e não a queria mais e ela tinha pedido pro patrão para poder dá-la para
mim. Eu em meus nove de idade senti o gosto amargo do orgulho e inveja, como se o
que ela desprezava e fosse seu lixo, tinha que ser bom para mim. Peguei a boneca e
joguei dentro do fogão de lenha, e não adiantou minha mãe tentar salvá-la. Foi minha
primeira e única boneca.

Desde então, eu passei a ter, não sei, uma espécie de rancor por uma criança que eu nem
conhecia, pois a mim nunca foi permitido entrar além da enorme porteira da fazenda. E
não adiantou o padre Antônio dizer que era pecado e feio, mas foi naquele natal, que
descobri o sabor amargo do ódio e naquela manhã, quando aquela mulher me tratou
como um simples objeto, reforcei esse sentimento.

Aqui quero falar um pouco de outra personagem que entra na estória. Madame
Valquíria, uma senhora já com seus quase 60 anos, com um sotaque esquisito (mais
tarde, aprendi que era alemão), foi contratada para ser a tutora da pequena Júlia. Era
responsável por ela, ensinava a ela como comer, a se portar como uma dama, até claro,
conhecimentos sobre artes e matérias comuns de um currículo escolar, mas
principalmente música a grande paixão de Catarina, não sei se era a de Júlia, mas a
menina passava quase todas as manhãs ao piano, comentava sempre mamãe. Madame
Valquíria era cheia de como posso dizer, pequenas manias. Pra começar, como ela dizia,
não tinha se adaptado a nossa comida, segundo ela muito rústica, então chegava toda
semana na mercearia do seu Pedro uma encomenda vinda da capital, só com a sua
alimentação. Coitado do João, pois era ele que tinha que trazer de bicicleta toda aquela
tralha, que papai um dia se referiu como comida podre, pois além da aparência, tinha
um cheiro horrível, mas, como era vinda do estrangeiro então devia ser chique. Agora
colocando o João na estória, penso como ele sempre me protegeu, foi sempre o
companheiro, me ensinou a nadar, pescar, subir nas árvores, fazer armadilhas, até a
assobiar, teria sido tão mais fácil, se eu o tivesse amado, mas o coração não pensa,
então, voltemos para madame Valquíria. O clima, ela achava insuportável e achava
humilhante ter que tomar banho todos os dias, já que no seu país que diziam era frio
demais, isso não era necessário. Enquanto minha mãe levava o café da manhã para
madame Valquíria, fiquei olhando Zefa começar o tempero das carnes para o almoço. E
ela de repente abriu uma caixa branca enorme e de lá saiu um ventinho tão frio, que
fiquei maravilhada. Mamãe já tinha comentado em casa que na fazenda tinha uma
máquina que congelava tudo e fazia até gelo, mas como era a única por aquela região,
eu me senti grande de poder estar ali vendo ela de pertinho. De repente, comecei a ouvir
um som lindo que vinha da sala, que para meus ouvidos era novidade, pois naquele
tempo eu conhecia apenas as canções que ouvia de um rádio bem velhinho, de pilhas
que papai tinha conseguido comprar. Pequeno é verdade, mas que tocava umas “moda”
como ele dizia, que falava da nossa vida e realidade, do campo e seus moradores. Tinha
uma, em especial que lhe enchia os olhos de lágrimas, chamava-se Mãe de Carvão e
toda vez que ele ouvia se lembrava de sua mãe que ele tinha deixado há muito tempo
atrás. Mas o som vindo da sala penetrava na alma e fechei os olhos para que eu o
guardasse na mente para sempre.

_ É a menina Júlia tocando aquela coisa grande lá da sala, disse Zefa.

Eu não queria acreditar que de uma pessoa que eu odiava tanto, mesmo sem conhecer,
pudesse me fazer sentir tão bem, só com o toque de suas mãos em um piano (eu já sabia
por que havia um bem velhinho na casa paroquial, onde o padre Antônio tocava
algumas melodias sacras que segundo ele, o aproximava de Deus) e eu imaginava ser
algo mágico. Mas aquela música era diferente e naquela manhã, eu a estava odiando
ainda mais, ela podia tocar algo tão belo e olhei para minhas mãos encardidas e sujas, e
tive a certeza de que nunca poderia fazer algo assim. Foi quando de repente o silêncio se
fez e sem esperar tive a visão que iria mudar minha vida para sempre. Hoje, passados
tantos anos, tenho certeza que foi ali naquele momento, que o sentimento que até hoje
me atormenta começou. A porta se abriu e me deparei com uma menina mais ou menos
do meu tamanho, com os cabelos vermelhos e olhos azuis tão profundos que me
olharam com espanto e curiosidade. Vestia um vestido colorido e cheio de pequenos
laços, com sapatos negros, tudo elegante e combinando como devia ser.

_Menina Júlia, cada dia mais bonita né? Que cê qué aqui? Perguntou Zefa.
_Quero sorvete Zefa e quem é? Disse apontando para mim.

Senti-me embaraçada, pois estava com uma roupa velha e remendada, e com os pés
descalços, apenas abaixei os olhos e não respondi.

_ É Luiza, filha da Maria e do Tião. Ela se espantou e falou como uma constatação:
_ Não é não, pois ela nem preta é, disse com voz petulante. Aquilo fez meu sangue
ferver e eu quis partir pra cima dela e esbofeteá-la, mas Zefa deve ter percebido porque
apertou forte meu braço e apenas disse:
_ É de criação, não é de sangue não. Essas palavras me humilharam mais, pois diziam
que ninguém tinha me querido e eu era como algo que se joga fora e que alguém catou.
Sei que é um pensamento injusto com meus pais, que se não foram os melhores do
mundo, me amaram sem diferença e até muitas vezes se sacrificaram para me dar o que
eles não tiveram, mas que droga, eu era apenas uma criança e não raciocinava assim.
Como se não houvesse ocorrido nada, de uma hora para outra, ela olhou novamente para
mim e disse:
_Quer tomar sorvete também? E dizia isso com um sorriso mais lindo do mundo. E eu
que nem sabia o que era isso, só mexi a cabeça como que sim. Zefa por outro lado,
parece que não gostou, mas abriu novamente a geladeira (depois Júlia me disse como se
chamava) e tirou de lá uma vasilha com uma coisa rosa dentro, colocou em duas taças
que eu achei o máximo, já que em casa só tínhamos canecas de latão e Júlia disse:
_ Morango meu favorito e começou a devorar.

Quando eu coloquei a colher na boca, parecia que eu estava entrando no céu, nunca
tinha provado algo assim, geladinho que derretia (o João ia morrer de inveja pensei
logo, pois na mercearia do pai dele nem tinha aquilo). Quando percebi, tomei aquele
sorvete como se nunca mais fosse provar novamente. Acabei primeiro, lógico e quando
ergui os olhos, encontrei dois olhos azuis divertidos olhando para mim, talvez rindo de
minha ignorância.

_Eu também adoro e sempre peço pro papai trazer da capital, disse ainda sorrindo.

Foi quando mamãe entrou na cozinha e parece ter se assustado, pois foi logo dizendo:
_Júlia, sua mãe ta te chamando muito brava, corre lá depressa.
_Ih, deve ser mais uma das suas tarefas, já vou; e olhando novamente para mim só disse
tchau e saiu correndo. Eu me recordo da única vez da minha mãe ter ralhado comigo e
talvez eu devesse tê-la ouvido quando me disse:
_Fica longe da menina Júlia, a patroa num vai gostá de sabê que a princesa dela ta de
convercê com a fia dos empregado.

Mas, nem naquela época, nem agora, filhos dão muita atenção quando os pais proíbem
algo. Não vou me aprofundar muito em dizer, que após aquele dia, eu comecei a me
encontrar com Júlia e o João também (eu os apresentei depois), quando de suas folgas
ela saía da fazenda escondido da mãe para a gente ir brincar. O seu Augusto achou
ótimo quando descobriu, pois achava a filha muito solitária e precisava mesmo de
amigos. Dona Catarina por outro lado, ficou horrorizada e sempre a castigava depois,
mas Júlia passou a não se importar. Acho que Catarina talvez quisesse que Júlia vivesse
a vida que ela queria ter vivido, não sei dizer. E o tempo foi passando e aquele ódio do
começo, deu lugar sem que eu percebesse, a algo que chamei de amizade, mas que
descobri numa festa de quinze anos que tinha outro nome: amor.

Capitulo 03: Quinze Anos

E assim, cinco anos passaram rápido. Sempre que podia, Júlia, João e eu, saíamos
escondidos para passear pelas redondezas. João eu creio que não gostou a princípio, a
chamava de dondoca, mas Júlia tinha um charme irresistível e quando sorria, não tinha
como lhe negar nada. No dia da primeira comunhão, estávamos as duas juntas,
recebendo o Corpo de Cristo, ela num vestido de princesa, dona Catarina achou um
absurdo, misturar sua filha com a ralé, mas padre Antônio fez questão de dizer, que
perante Deus, somos todos iguais e estava acabado, para completar seu Augusto
mandou fazer um grande churrasco em praça pública para a população comemorar, o
que a deixou mais furiosa ainda. O meu, ganhei de seu Pedro, que era de sua falecida
esposa quando era mais jovem, e além de ter que ser muito lavado para tirar o cheiro de
mofo, mamãe teve que cortar ali, remendar acolá, mas acho que como padre Antônio
fez questão de salientar, Deus olhava o coração. Só não nos víamos, quando ela ia
passar férias e sempre viajava para a praia ou outros lugares, até fora do país. Já naquele
tempo, ela começou a viajar para tocar e já era conhecida como um prodígio único na
música, capaz de interpretar qualquer peça dos mais diversos compositores com sucesso
absoluto. Lembro-me quando ela me trouxe, além de fotografias, uma garrafinha com a
água do mar, só para me provar que era salgada mesmo e eu, boba tomei de um gole só.
Quase morri engasgada, primeiro pelo gosto horrível e em segundo de raiva mesmo,
pois ela não parava de rir. Era início de setembro e se aproximava nossos respectivos
aniversários de quinze anos. O meu, eu já não dava muito importância mesmo, mas o de
Júlia, no momento era o assunto da cidade. Seu Augusto fazia questão de fazer uma
festa que fosse lembrada por anos. Mandou vir tudo de bom e do melhor, contratou até
banda da capital para tocar. Um dia antes da festa, ela apareceu no sítio. Meus pais já
estavam na lida, quando ouvi uma batida na porta. Quando abri lá estava Júlia, com um
daqueles seus vestidos coloridos e lindos, que pareciam dançar no seu corpo que já
começava a ganhar formas. Ela entrou com as mãos atrás das costas.

_Vim por dois motivos. Primeiro te convidar para a festa de amanhã, papai faz questão
e eu mais ainda. Sem você que graça terá aquela festa, sem a gente poder rir daqueles
mauricinhos que a minha mãe andou convidando.
_Você sabe que em primeiro lugar, sua mãe me odeia, em segundo, não me sentiria bem
em meio a seus amigos ricos e em terceiro, não tenho roupa para essa ocasião, disse de
modo meio ríspido que deve tê-la assustado. Tenho que confessar o real motivo da
minha grosseria, é que dias antes da festa, estava comentando com o João sobre a
ocasião e ele me contou que tinha ouvido seu Augusto falar que vinha da capital um
namoradinho de Júlia. Naquele momento eu não sabia, mas era ciúme, cru e simples que
eu estava sentindo.
_Eles não são meus amigos, você é; falou com a voz sentida e você sabe que pode pegar
qualquer vestido meu emprestado, pois temos o mesmo tamanho, continuou falando
mais animada.

Sem querer, ela estava mais uma vez me lembrando de minha posição inferior. Claro
que hoje eu já cresci e esse complexo de inferioridade superado, mas naquele momento
eu era apenas uma adolescente me sentindo sozinha contra o mundo.

_Não preciso de nenhuma sobra sua, quase gritei. Sempre foi assim, Júlia não quer
mais, dá para a bastardinha.
_ Nunca percebi que se sentia assim, disse já com os olhos marejados.
_Claro, você só enxerga o que é bom para você, a Júlia estando feliz, os outros que se
virem. Não estão aqui todos na Terra com a única missão de ter que te servir?

Ela não me respondeu, apenas deixou um pacote que escondia atrás das costas sobre a
mesa dizendo feliz aniversário e saiu batendo a porta. Quando abri o pacote, meus olhos
derramaram muitas lágrimas, pois se tratava da coleção de livros de Machado de Assis
que eu sempre quis ter. Eu tinha comentado que tinha um ou dois que o padre Antônio
tinha me dado (que por sinal eram velhinhos como o bom padre) e ela deve ter se
lembrado. Mas o orgulho me impediu de pedir perdão e ainda mais de aceitar o
presente. Pensei: na primeira oportunidade, devolvo. Só não sabia que ela viria de forma
muito dolorosa.

No dia seguinte, meus pais me acordaram sempre como faziam em meu aniversário e
depois de me abraçarem e desejar felicidades, eu notei que minha mãe estava muito
abatida e parecia até com febre, mas não quis ficar porque ela disse que o dia era de
muito trabalho e ela só voltaria de madrugada, pois ia servir na festa. Meu pobre almoço
ela deixou pronto no fogão e me perguntou se eu não queria ir mesmo. Apenas com meu
olhar ela entendeu a resposta. Na verdade, eu pensava era em ir para a cidade e dormir
na casa do João, não queria ter que ouvir nenhum som que me lembrasse ela ou a
maldita festa. Era meio dia, já tinha almoçado, quando a porta se abriu bruscamente e
meu pai entrou com minha mãe nos braços, muito febril e fraca. Eu me desesperei, mas
meu pai disse que o Dr. Joaquim (nossa cidadezinha naquele tempo já tinha um pequeno
ambulatório graças ao seu Augusto claro, que deu o dinheiro pro prefeito construir, que
agora não me lembro o nome até porque não mandava nada mesmo) e ele nos disse se
tratar de dengue. Vejam só, rodeados de tantos perigos, um mosquitinho tinha
derrubado minha mãe.

_O dotô disse que era pra tomá muita água e descansá; falou papai depois de colocá-la
na cama.
_Fia, minha mãe falou como se num sussurro; a gente ta precisando do dinheirinho
extra dessa noite pro seus estudo. Vai lá, sei que vai ser doído, mas é só dessa vez, a
mãe ta pedindo e apesar daquele bando de fresco da capital que ta lá só pra atrapalhar, a
Zefa não dá conta do serviço sozinha.
Minha mãe realmente me conhecia, ela sabia que ia doer demais, mas não tinha escolha.
Quantos sacrifícios eles faziam apenas para economizar para meus estudos, sempre
pensando em mim primeiro. E assim foi, era bom, assim pensava eu, aprenderia o meu
lugar. Lembrei que a Zefa é que estava certa quando disse que da porta da cozinha não
se passava para a sala. Coloquei os livros numa sacola, com a intenção de deixar lá em
qualquer canto, sem bilhete, sem nada.

Cheguei e fiquei maravilhada como da primeira vez, agora sim, ainda mais parecida
com um castelo. A fazenda estava enfeitada com as cores rosa, branca e azul, mesas
com enfeites de flores frescas e coloridas, palco sendo montado, com jogo de luzes e
tudo e muita gente correndo de lá pra cá e madame Valquíria berrando com todos, com
aquele sotaque engraçado. Ela também me achava má influência para uma dama, bem,
quem sabe ela tinha razão.

Quando ia me dirigindo para a porta dos fundos, para que ela não percebesse minha
presença, dou de cara com seu Augusto que me dá um forte abraço.

_Que bom, chegou cedo para a festa, sobe e vai falar com sua amiga que está meio
jururu, como falam por aqui e deu uma forte risada.
_Vim para trabalhar, seu Augusto, mamãe não pode vir, pegou dengue e pediu para eu
ajudar a Zefa.
_É grave? Perguntou preocupado.
_Acho que não, o doutor Joaquim disse que repouso resolve.
_Mas aqui tem tanta gente para trabalhar, você é amiga de minha filha e sua convidada,
não quero que seja diferente, disse ainda tentando me convencer, mas o calei dizendo:
_Não há ligação entre mundos tão diferentes seu Augusto, meu lugar é na cozinha,
preciso desse dinheiro extra e já devo estar atrasada e quando ia saindo me lembrei:
_Entregue para sua filha e diga que não posso aceitar o que não posso pagar e o
deixando sem entender nada, fui virando as costas e me dirigindo a cozinha.

Capítulo 04: O pagamento

Quando entrei na cozinha, encontrei Zefa afobada com tanta coisa para fazer e ficou
aliviada com minha chegada. Faltava terminar alguns pratos para a janta, já que os
aperitivos (algumas coisas de formas e cores que eu nunca tinha visto) tinham chegado
da capital. Zefa estava preparando diversos tipos de refeições, muito variadas e em
grande quantidade, pois eram muitos os convidados, a maioria da capital e segundo ela,
gente chique de morrer, mas não dei importância porque conhecia Zefa e ela se
deslumbrava muito fácil, qualquer coisa de fora era chique. Terminamos o preparo e
começamos a levar tudo para uma mesa enorme que estava montada no pátio, toda
ornamentada com muitas flores e forrada com um pano que eu nunca tinha visto tão
macio.

A banda já começava a tocar as primeiras músicas, quando foram chegando os


convidados. As mulheres vestidas com o que devia ser a última moda, vestidos das mais
diversas cores e modelos, com uns penteados que eu achei estranhos, mais Zefa falou
que era um luxo só. Eu estava com pressa para sair dali e por isso não dei muita atenção
aos uis e ais que Zefa soltava toda vez que chegava um convidado. Já havia muita gente
quando apareceu o casal de anfitriões. Seu Augusto estava todo elegante, mais tarde
fiquei sabendo que era uma roupa típica espanhola, com brasão no peito e tudo. Dona
Catarina estava com um vestido longo lilás, com o cabelo preso em um coque, mas o
que chamava a atenção era o broche que parecia muito valioso e brilhava em seu peito,
com formato de uma flor. Vi quando cumprimentaram muito animados um senhor que
já estava sentado com um jovem casal ao lado. De onde eu estava, dava para ver que o
rapaz era bonito do tipo daqueles que saiam nas fotonovelas da época e parecia que
todas as moças em volta estavam fascinadas e olhando para ele. A moça parecia olhar a
tudo e a todos com olhar de desdém, mas no melhor estilo dama de sociedade. Foi
quando um dos organizadores contratados veio nos dizer que era para que ficássemos
preparadas, pois após a dança já teria que ser servido o jantar. Eu não sabia que teria
que ficar ali, além de ter de servir aquelas pessoas que quando passavam pela mesa, nos
olhavam como objetos, de menor valor claro, que os talheres de prata e taças de cristal.
Comecei a suar frio, tanto que Zefa me perguntou se eu estava passando bem, pois
estava pálida. Foi quando seu Augusto subiu no palco montado e pediu para a música
parar e pegando o microfone começou a falar da emoção que estava sentindo, mas eu
não guardei nenhuma de suas palavras porque meu olhar estava focado para o alto da
escada onde o jogo de luzes já anunciava a aparição da aniversariante. Foi quando ela
desceu as escadas e como uma princesa todos os olhares se renderam a sua aparição.
Dizer que ela estava maravilhosa seria chover no molhado, mas foi ali quando meu
coração começou a bater e querer saltar pela boca, que descobri que amizade não era o
que eu sentia por Júlia. Seu vestido branco com tons azuis destacava seu olhar, que
estava mais brilhante aquela noite. O cabelo estava preso por uma tiara que
provavelmente era muito cara, toda rodeada de pequenos brilhantes. A banda começou a
tocar a valsa e seu Augusto, começou a dançar com a filha, com um orgulho que parecia
saltar do peito. Depois de alguns minutos ele se aproximou da mesa onde estava o galã
de fotonovela e a entregou para ele, que dançaram mais alguns minutos, juntos com
outros quinze casais de jovens, que pensei serem os amigos da capital, aqueles da alta
sociedade. Olhei para dona Catarina e pela primeira vez vi aquela mulher sorrir
enquanto observava a dança de sua filha com o rapaz. E eu já não tão inocente, percebi
quais eram as reais intenções ali e então o ciúme me sufocou. Prestei atenção ao olhar
de ambos enquanto dançavam. O dele, em êxtase e total devoção, o dela disperso, não
sei o que procurava, mas durante toda a dança ela cruzou com o olhar todo o pátio. De
todos os lados, através dos outros empregados, chegavam muitas fofocas sobre o rapaz.
Ele se chamava Marco Antônio Bueno Galvão e seu pai era um grande industrial do
setor têxtil. Apesar disso, preferiu estudar direito e aos 23 anos, já estava quase se
formando. As famílias se conheciam porque tinham negócios em comum e pelo que
diziam os comentários, Júlia e Marco Antônio já eram vistos juntos sempre em festas e
clubes da capital. Apesar de não querer, algo dentro de mim buscava qualquer
comentário, mesmo sabendo que me faria sofrer. A valsa acabou e foi anunciado o
jantar e então vi aquelas pessoas se aproximarem depois de um cutucão de Zefa, que
disse para eu sorrir ao servir aquela gente com toda a presteza possível. Ao reparar
aquelas moças e rapazes, é que vi a diferença entre eles e eu, eles tão elegantes, alegres,
bonitos, com cabelos e peles provavelmente tratados com os melhores produtos do
mercado. Foi quando Marco Antônio parou em minha frente e educadamente me pediu
algo que sinceramente não me recordo, mas lembro que ele sorriu para mim e realmente
vi que era muito bonito. Tinha cabelos lisos e negros, os olhos eram castanhos e possuía
uma considerável estatura e tive certeza, era o par perfeito para Júlia. Mesmo ele sendo
meu rival (rival, que rival, era uma batalha que sem começar, já estava perdida, logo
pensei) não consegui sentir ódio ou antipatia por ele. Ainda estava divagando, quando
dona Catarina parou junto ao rapaz e perguntou a ele:
_ Está se divertido Marco Antônio?
_Claro dona Catarina, está tudo perfeito e o serviço excelente.
_Sei que não se deve comparar com as festas que você freqüenta na capital, e sei
também que suas palavras gentis são porque você é um cavalheiro.
_ Pode até ser, mas com certeza sem o carinho e camaradagem que só o povo do interior
sabe demonstrar, disse mais uma vez sorrindo para mim.
_Não confunda servidão com carinho, meu filho. Aqui os serviçais sabem muito bem o
seu lugar, disse olhando diretamente para mim. Entendi o recado, ela queria deixar bem
claro que eu deveria aceitar o meu lugar na comunidade, como mais uma serviçal de sua
família.

Foi quando o que eu mais temia aconteceu. Vi Júlia se aproximando e me olhou como
se não acreditasse. Primeiro percebi sua surpresa, depois seu olhar se transformou em
total rancor.

_Venha filha, você ainda não comeu nada. Venha aqui para ser servida, disse dona
Catarina já a puxando em minha direção. Zefa deve ter percebido minha paralisia, pois
veio em minha direção e me puxando falou:
_Tem mais gente do lado de lá esperando Luiza, deixa aqui que eu cuido. A menina
Júlia vai querê o quê?

Não ouvi mais nada, pois saí correndo dali como se fugisse. Durante a festa, Júlia não
tentou se aproximar mais e fiquei olhando como ela parecia ambientada com toda
aquela gente. Marco Antônio ficou do seu lado todo o tempo e ainda dançaram mais
vezes e pelos sorrisos das famílias de ambos, parecia que já era coisa decidida uma
futura união. Já estava quase amanhecendo quando os últimos convidados saíram. Eu
estava em frangalhos, muito mais emocionalmente que fisicamente. Zefa sentou-se em
uma cadeira e tirando os sapatos reclamou de uma dor nos pés, quando seu Augusto
aproximando-se de nós foi falando:
_Obrigado por tudo que fizeram essa noite. Sei que Catarina gosta de luxos, mas sem
vocês, meus empregados fiéis do dia a dia, toda essa alegria não teria sido possível.
Aqui tem além do combinado um dinheiro a mais como agradecimento Foi dando de
mão em mão, um envelope para cada um que trabalhava na fazenda e tinha ficado ali
para pegar no pesado como diziam, até o fim. Quando chegou perto de mim além do
envelope, me deu um forte abraço.
_Sei que deve ter sido difícil para você. Mande notícias de sua mãe e fale que ela não
precisa se preocupar. Tem que se recuperar primeiro.
_Não houve dificuldade, seu Augusto. Qualquer sacrifício pelos meus pais nunca vai se
comparar ao que eles já fizeram por mim e trabalho nunca foi vergonha e fui saindo,
sem olhar para trás.

Sai pensando de como aquele dinheiro ajudaria na compra de material para o ginásio.
Sim, a prefeitura, depois de quase cinco anos de obras (e muitos escândalos de desvios)
tinha conseguido inaugurar uma escola pública e assim eu poderia terminar o ensino
médio e quem sabe prestar um vestibular na capital, pois agora tinha a certeza de que
meu destino não era ali, eu queria me afastar de tudo que um dia pudesse me lembrar de
Júlia e sua família.

Quando estava chegando perto da porteira, senti uma mão em meu ombro e me assustei
e me virando dou de cara com Júlia. Ela estava já sem o vestido de festa, vestia agora
uma calça jeans, tênis e camiseta comum, mas comum, ela nunca seria. Os cabelos
estavam meio desfeitos sem a tiara que os prendia, mas assim mesmo, eu achei que
nunca ela esteve tão bela.

_O que faz acordada até esta hora Júlia? Perguntei ainda com a respiração alterada pela
surpresa.
_Meu pai me entregou isso.

Só então notei o pacote com os livros machadianos que eu tinha devolvido mais cedo.

_Cansei de esmolas, agora só vou ter o que eu puder pagar, rebati ainda com o sabor do
ciúme sentindo durante a festa.
_Bem se esse é o problema podemos chegar a uma solução, disse com uma voz
dominadora, como eu só tinha ouvido sair da boca de dona Catarina e deduzi que afinal,
as duas não deviam ser tão diferentes assim.

Sem que eu esperasse, de repente ela se aproximou e me agarrando pelos cabelos, colou
sua boca na minha. O que senti naquele momento talvez as palavras não traduzam, mas
o coração acelera até hoje só com a sua simples lembrança. Notei que a emoção devia
ser a mesma para ela, pois apesar da atitude impetuosa, senti seus lábios tremerem e
quando nossas línguas se encontraram tudo em volta passou a não ter mais importância.
Com sofreguidão, ela foi empurrando meu corpo para junto da porteira, enquanto suas
mãos abriam todos os caminhos do meu corpo, o explorando com toda a ansiedade que
ela parecia estar sentindo. Mas por um instante, me passou pela mente as cenas da festa,
da dança, de tudo que eu imaginava que ela e aquele rapaz faziam quando se
encontravam na capital e com uma força que nem eu conhecia consegui empurrá-la a
desequilibrando a ponto de quase fazê-la ir ao chão.

_Você se engana, disse ainda com a respiração totalmente alterada, é um preço alto
demais, que não estou disposta a pagar. Para ser seu brinquedinho, você parece que já
tem o rapaz da capital, completei gritando sem me importar se outros ouviriam.

Diferente do que eu estava esperando, talvez vê-la responder com ódio, ela olhava para
mim com os olhos surpresos e inesperadamente começou a rir sem parar. Isso me irritou
profundamente, pois achei que ela estava debochando de mim e para não a agredir, ia
saindo quando ela simplesmente falou:
_Eu te amo sua boba, de um jeito que nem sei expressar, apenas sentir; e não precisa
sentir todo esse ciúme, pois apesar de tudo que o Marco possa estar sentindo em relação
a mim, não posso dar a ele o que eu já não tenho: meu coração.

Quando me virei novamente, vi seus olhos ainda mais brilhantes por causa das lágrimas
que deles escorriam. Sem muito pensar, corremos uma para outra e nos abraçamos de
uma forma que pensávamos que ninguém nunca iria separar.

_Escute, ela disse ao me soltar, ainda hoje estarei de partida para capital e não sei
quando volto, vou terminar meus estudos por lá, além de fazer alguns testes para tocar
em algumas orquestras, então quero ficar agora com você, não importa o lugar e então
saberá que onde quer que eu esteja sua lembrança vai estar comigo.

Meu coração quis sair pela boca, não acreditando ser possível que também ela sentisse o
mesmo que eu, mas por um momento, a informação de que talvez não a visse nunca
mais me abateu de uma maneira que o meu sorriso sumiu da face e ela percebendo
disse:
_Não vamos pensar no futuro, vamos viver o agora, por favor, pediu com a voz
embargada. Tentando novamente sorrir, completei:
_Pois então somos duas sem corações e a pegando pela mão juntamente com os livros,
fomos para o sítio. Entramos devagar e vi o lampião acesso no quarto de meus pais e
com o dedo na boca pedindo silêncio, levei Júlia para meu quarto e encostei a porta,
enquanto fui ao outro quarto e vi mamãe dormindo com uma expressão melhor e papai
sentado na cadeira e parecia cochilar, mas abrindo os olhos perguntou:
_Como demorô fia, tava já preocupado e então ta cansada?
_Um pouco pai, e a mãe?
_Ta mior, ta sem aquele febrão, vamo vê se ela acorda miorzinha, agora vá dormi que já
ta di manhã.

Eu me despedi dele e de repente parei no corredor e pensei o quê Júlia deveria estar
achando do humilde do meu quarto em relação ao dela, com certeza, bem diferentes. Eu
não sabia o que fazer, mas sabia que queria sentir a sensação, nem que fosse por uma
única noite, de tê-la para mim. Abri a porta devagar, estava escuro, mas uma claridade
já entrava pela fresta da janela. Ela estava sentada de costas para a porta e olhava para a
janela como se buscasse algo. Quando entrei, ela se levantou senti meu rosto ficar
vermelho, não saberia se por pensar no que ela poderia estar achando de um lugar tão
simples ou da forma como seu olhar brilhava quando se aproximou e segurando meu
rosto novamente, colou sua boca na minha. Depois foi apenas instinto, acho que nem eu
ou ela saberíamos descrever o como ou o quê. Já estávamos sobre minha cama quando a
senti pesar sobre mim, sensação esta inigualável, que parecia diminuir o tamanho
daquela cama diante de tanto desejo de ter e ser. Ela beijava todo meu rosto com uma
fúria que chegava a machucar e deveria mais tarde deixar marcas. A ansiedade nos dizia
que nossas roupas se faziam um obstáculo a ser transposto e por isso, com rapidez as
tiramos. Quando sua boca e mãos começaram a tocar meu corpo com a mesma
delicadeza que ela arrancava das teclas do piano suas melodias, já senti algo que não
pensei existir e como nunca havia conversado sobre “isso” com ninguém, lembrei do
padre Antônio, que com certeza diria “é pecado”, mas naquele momento deixei o padre
e tudo que eu acreditava de lado. Ela ficou ali, lambendo com vontade meus seios, até
ver meus mamilos duros do prazer que ela me proporcionava. Bastava seu olhar, agora
com um azul diferente, o azul da luxúria, para que eu me sentisse dominada por ela.
Com um vagar desesperador, ela continuou sua exploração, hora beijando, hora dando
pequenas mordidas, quando começou a brincar, tocando seus dedos de uma forma quase
etérea, o meu sexo que doía para ser dela. Eu estava molhada como nunca imaginei e
sem me fazer esperar, Júlia com uma gana desconhecida, trocou os dedos pela sua boca
gostosa, me devorando, sugando ali não só o meu prazer, mas minha alma. Eu gemia tão
alto que temi que meus pais ouvissem e Júlia continuava me degustando ora
delicadamente, ora com vigor, saboreando todo aquele líquido que lambuzava meu
sexo, que naquele momento era dela para que usasse da maneira que quisesse. Quando
de repente ela me penetrou com um dedo, depois outro, forçando a sua entrada num vai
e vem já melado com o gozo que agora escorria em seus dedos, me fez sentir um misto
de dor e prazer que manchou de sangue meus surrados lençóis e de lágrimas de uma
felicidade até então não sentida em meu travesseiro. Foi como se uma onda me
engolisse e eu não precisasse nunca mais acordar desse sonho. Era um orgasmo e ainda
hoje, lembrando da minha primeira vez, diferente de muitas por aí, acho que tive sorte
porque me foi prazerosa e com alguém que jamais esqueci. Após aquela sensação de
paz suprema com o corpo de Júlia sobre o meu apenas repousando, senti em minhas
coxas o quanto ela estava molhada também e tive vontade de dar a ela todas as
sensações que me fizera sentir a pouco. Pedi que ela ficasse de costas e comecei a beijar
todo o seu corpo, enquanto segurava seus cabelos que pareciam me queimar a mão e fui
dando pequenas lambidas e mordidas naquela sua pele alva e macia, como a mais fina
porcelana e a mais pura seda. Enquanto minha boca passeava por seu corpo, eu ouvia
seus gemidos e me emocionou quando ela apenas dizia repetidas vezes te amo. Minha
língua começou a brincar com aquele pedaçinho de seu sexo que crescia e crescia à
medida que eu descobria o sabor delicioso de seu gozo. Quando a penetrei soube que
também era a sua primeira vez e só essa certeza me fez gozar novamente. Em minha
inocência de quinze anos, pensei, agora éramos só uma alma que dividia dois corpos.
Subi pelo seu corpo e junto ao seu ouvido sussurrei: eu te amo pra sempre, com toda a
certeza dos primeiros amores. Com as respirações ofegantes, nos olhamos com um
sorriso que só se tem quando se acredita que valeu a pena viver até ali. Queríamos mais
e nos agarramos como se pudéssemos nos tornar um único corpo, nos roçando, nos
beijando, nos tocando, sexo com sexo, e foi assim por toda a manhã, quando o cansaço
nos venceu e dormimos abraçadas.

Quando acordei, o sol já batia forte em meu rosto, deduzi ser meio dia. Júlia não estava
ali, mas seu cheiro e gosto continuavam em minha pele e boca. Levantei correndo e
abrindo a porta fui ao quarto de meus pais que também estava vazio. Meus pais com
certeza tinham ido trabalhar. Minha mãe apesar de doente, nunca iria deixar de cumprir
suas obrigações. Encontrei meu almoço simples de todo dia em cima do fogão e comi
como se fosse um banquete, pois estava faminta. Depois ainda acariciando minha
coleção de livros, peguei um caderno e lápis e passei para o papel tudo que eu estava
sentindo e não podia falar. As palavras saíram em profusão e serviriam como rascunho
de tudo que um dia viria a escrever, mas o que eu pensava ser o dia mais feliz de minha
vida se transformou rapidamente em uma tragédia, quando já quase noite, meu pai entra
em casa se contendo para segurar as lágrimas que teimavam em rolar por seu rosto
abatido.

_Onde está a mãe, já fui disparando mesmo sabendo que era uma resposta que eu não
gostaria de ouvir.
_Ela quis, eu num quiria dexa, fia, mas ela levantô e foi trabaia... Já dispois de servi o
almoço, ela cumeço a vomitá sangue e corremo com ela pro dotô mas ele falô que era
uma tar de dengue morrágica, e num demoro ela num guento fia, a Maria si foi.

Eu fiquei ali paralisada, como se aquilo tudo fosse um sonho ruim e eu tivesse que
acordar logo. Mas não era. Velamos o corpo de mamãe ali mesmo. A gente mais
simples, os amigos do dia a dia, pobres e infelizes como nós, apareceram. Zefa ficou o
tempo inteiro ao meu lado, mas para falar a verdade eu já nem percebia, quais eram as
mãos de quem eu apertava. Foi quando seu Pedro e João chegaram e aí sim, me joguei
nos braços de meu amigo e chorei tudo o que não tinha chorado até então. Padre
Antônio também chegou para encomendar o corpo como se diz, e perguntei aos berros a
ele porque Deus tinha tirado a única mãe que eu conhecia. Ele com a paciência que só a
idade confere, falou-me que nem sempre entendemos os preceitos divinos, mas que
temos que aceitar e que mamãe estaria em um lugar melhor até o dia da ressurreição. Eu
não queria aceitar nada, o lugar dela era ao nosso lado, meu e de papai, mas João me
abraçou mais forte ainda e ficou comigo até a porta se abrir e entrarem seu Augusto e
Júlia que olhou de João para mim, como se aquele abraço fosse algo proibido. Foi uma
sensação tão forte, que o soltei imediatamente e acredito que João percebeu, mas nada
comentou. Seu Augusto deu a mão para papai, mas estava com uma cara amarrada, e
quando me olhou parecia um olhar de ódio, como os de sua mulher.

_Sinto sua perda peão, Maria era uma grande mulher e vai fazer falta, disse. Júlia
também veio se despedir porque está partindo hoje mesmo, por isso não vamos nos
demorar.

Então ela se aproximou de meu pai, pegou a sua mão e beijou sua face, quando chegou
perto de mim, me abraçou muito forte e sussurrando ao meu ouvido disse:
_Ele sabe, mas não se esqueça que te amo e sempre estarei pensando em você.
_Vamos Júlia os Bueno Galvão não podem ficar te esperando, falou de uma forma
ríspida.

Ela secou uma lágrima que caía dos meus olhos com a ponta dos dedos e virando se foi.

Capitulo 05: Três Anos

Como se mede a passagem do tempo? Aprendi que isso vai depender da forma que a
vida vai passando. Dos meus quinze aos dezoito anos, o quê para muitos poderia ser
apenas três anos, para mim foram como décadas. Nesse período a minha raiva contra os
que nos pisavam apenas me tornou cínica em relação ao caráter humano. Falava apenas
em meus cadernos, pois a boca quase nunca abria. Depois de mamãe partir, papai
mudou completamente, se entregando de uma forma a bebida como eu nunca havia
visto. Começou a faltar ao trabalho e seu Augusto com prazer, o mandou embora.
Depois do velório, foi nítida a mudança dele em relação a mim. Nunca mais me dirigiu
a palavra e quando consegui entrar no ginásio, foi até lá com o intuito de me prejudicar
dizendo ao diretor que eu não estava apta a freqüentá-lo. Fiz uma prova para testar meus
conhecimentos assim mesmo a pedido do padre Antônio e todos ficaram espantados
porque eu estava acima dos outros alunos e além do mais, era uma escola pública e ali
tinham que me aceitar. João foi muito importante neste período. Não fiz amizades, mas
ele sempre procurava me ensinar no que eu tinha dificuldades, já que tinha terminado o
ginásio e tinha aulas particulares para se dar melhor no vestibular que pretendia prestar
na capital. Acho que acabei atrapalhando seus planos, porque por mim, ele foi adiando
esse sonho apesar da pressão do pai. E sempre me defendeu dos comentários maldosos,
sobre meu uniforme de segunda mão, meu sapato furado e remendado muitas vezes, das
minhas mãos cheias de calos, pois com papai sem emprego, através de um pedido de
João, seu Pedro me deu trabalho de meio período na sua mercearia, que agora estava
crescendo e tinha até serviços de padaria e açougue. Essa era minha vida, estudar de
manhã, trabalhar a tarde e chegar de noite e ver meu pai jogado no velho sofá, todo sujo
e bêbado. Muitas vezes João me acompanhava, pois sempre pegava alguns alimentos
em sua casa para dar para mim (escondido, é claro) e me ajudava a colocá-lo na cama. E
eu me refugiava nos meus livros e coisas que escrevia a esmo. Na hora do recreio,
sempre ficava na pequena biblioteca da escola, para aprender mais e mais. João me
emprestava também muitos folhetos e provas vindas da capital que o pai mandava
buscar sobre cursos de faculdade para ver se ele se decidia por um e eu aproveitava e
decorava todas as provas que já tinham saído para concursos e vestibulares de todas as
áreas, mas já tinha me decidido pelo jornalismo. Ia ser com palavras que eu ia enfrentar
as desigualdades que via e ninguém fazia nada para mudar. João tinha se decidido por
medicina, enchendo seu Pedro de orgulho, mas para isso tinha que estudar muito e
tentar entrar numa universidade federal, também minha idéia. Então passamos a estudar
e andar sempre juntos. Quanto a Júlia, não a vi neste período porque nem férias ela
voltou a passar na fazenda. Só ouvia os comentários do novo fenômeno da música
clássica que assombrava os países europeus, pois apesar de tão jovem já tocava com
personalidade e interpretação própria qualquer grande clássico da música e começava a
compor com razoável sucesso. No dia de minha formatura de colégio, seu Augusto
escolhido como patrono da turma, teve que engolir ouvir meu nome como o de melhor
aluna do curso e começou apenas com as palmas de João e seu Pedro, mas logo todos
tiveram que aderir, até ele. Meu pai não apareceu, não tinha condições. Naquele dia
quando cheguei ao sítio, ele como de costume estava caído no chão, mas diferente das
outras vezes não acordou, estava morto. Não tinha mais lágrimas para chorar e agradeço
ao padre Antônio e seu Pedro que pagaram o enterro. Decidi então partir, já tínhamos
combinado João e eu de irmos ambos para a capital e prestar vestibular na federal e ficar
em alguma pensão mais barata. Decidi também vender o sítio para seu Pedro. Não sei se
ele fez a proposta mais para me ajudar ou como ele mesmo disse, precisava de um lugar
para ter onde criar uns animais e vender na sua mercearia.

Depois do enterro, onde poucos apareceram, pois muitos fizeram questão de me virar o
rosto, João me levou até em casa e entrando disse que queria conversar comigo. Achei
estranho o tom, tão sério, ele que nunca perdia o sorriso do rosto.

_Não posso mais guardar o que sinto aqui, apontou o coração. Eu te amo e quero ir para
capital com você sim a meu lado, como mulher, casados, para construir longe daqui
uma vida juntos.

Lágrimas rolaram dos meus olhos, pois sabia que nossa amizade jamais seria a mesma.
Senti-me terrivelmente só.

_João, João, você sempre foi o irmão que a vida me deu, acho que nem merecia tanto,
você na minha vida. Mas por tudo que passamos juntos, é que não quero te enganar.
Não posso te dar o que eu não possuo, amor. Você merece alguém igual a você; puro de
coração e alma, com vitalidade e esperanças, eu só tenho rancor aqui dentro; completei
apontando o peito e vendo-o abaixar os olhos.
_É ela, não é? É a Júlia culpada de tudo, mas você não vê que isso não é possível?
Deixe eu te fazer feliz, eu sei que posso tirar de sua cabeça essa idéia absurda.
_Acho que você está equivocado, isso tem a ver com o que eu sinto por você e que não
é amor e por te respeitar é que tomo a decisão de ir sozinha para a capital e mesmo que
nos encontremos por lá, não quero que você crie ilusões de algo que nunca vai
acontecer.

Ele quis protestar, mas não me convenceu.

_Fico aqui só mais alguns dias até passar a escritura para seu pai, depois vou embora.
Peça a ele no máximo quinze dias, para eu poder me desfazer do que eu não vou levar e
diga que deixarei a casa em ordem e limpa.

Apesar de seus argumentos, ele se foi cabisbaixo, e fiquei só com meus pensamentos.
Não era hora de chorar, era hora de ter coragem e isso não me faltava para continuar e
seguir em busca do meu destino. Durante uma semana consegui empacotar o pouco de
meu que levaria, o resto que era muito pouco também, ainda achei gente mais pobre que
precisava. Já nas vésperas de minha viagem, deu para ver um grande entra e sai de
pessoas e carros chegando à fazenda Campo Belo. Pensei logo se tratar de alguma
comemoração, talvez do natal que se aproximava, até porque desde que Júlia partiu
nunca mais tinham comemorado e pensando assim tive a esperança de que, quem sabe,
ela estaria de volta. Esperança confirmada aquela mesma tarde, quando padre Antônio
veio se despedir. O velhinho se emocionou enquanto me abraçava.

_Tome, para que te acompanhe sempre e te proteja.

Quando abri o envelope, era uma medalha de Nossa Senhora das Graças e colocando na
minha mão completou:
_Ela é Maria, como sua mãe, pense assim, que é sua mãe que te acompanha. Quando a
peguei, foi realmente como se mamãe estivesse ali e isso mexeu comigo e pegando a
medalha a guardei na minha pequena bolsa.
_Agora vou indo, chegando à capital me escreva com seu endereço e mande notícias.
Tenho que ir, porque ainda hoje preciso escrever o sermão para a festa de noivado.
_Que noivado? Perguntei por curiosidade.
_De Júlia com um rapaz da capital. Vão ficar noivos no natal, imagine só que data
especial. Ela vem só para isso e depois partem para se casar na Espanha, como é do
gosto dos pais.

Entrei em estado de choque, mas não dei a perceber ao velho padre. O abracei forte,
mas se soubesse que seria a última vez que o veria, teria dito algumas palavras que
ainda hoje me sufocam o peito. O homem que me salvou, lutou para que eu fosse
alguém, era a pessoa mais nobre que conheci, mas a pneumonia o matou alguns meses
depois. Tenho certeza que deve estar em paz.

Após ele sair, fiquei parada, simplesmente com o olhar perdido, agora entendendo todo
o movimento dos últimos dias. E pior, eu teria que assistir mesmo que de longe. Por
causa da data eu tinha conseguido ônibus apenas para dia 26 de dezembro.

Era véspera de natal e o movimento de entra e sai da fazenda era mais intenso. Eu me
fechei dentro da minha singela moradia, mas mesmo assim, dava para ouvir o
burburinho e ensaios de uma banda que provavelmente ia tocar. Já passava das seis da
tarde quando João apareceu e tentou me convencer a ir passar a noite em sua casa.
Agradeci muito, mas disse que estava cansada e iria partir no dia seguinte, o que o
deixou triste.
_Porque não espera até a passagem do ano e vamos juntos, ainda tentando que eu
aceitasse. Somos amigos, quero estar do seu lado mesmo que seja assim.
_João eu tenho que aprender a viver sozinha, sem depender de ninguém.
_Você queria era estar lá na fazenda, não é? Seu Augusto andou convidando algumas
pessoas apenas da cidade. Dizem que vem toda a família do noivo e estão hospedados
na fazenda. Convidou meu pai que preferiu pela data, já que é muito devoto, passar em
família.

Pensei em Zefa, que devia estar toda deslumbrada, já que ela gostava de gente chique,
como dizia.
_Está enganado João, nada me prende aqui, muito menos a gente daquela família.

Ele se foi cabisbaixo e me abraçou desejando feliz natal e que iria à praça para se
despedir (naquela época, ainda não havia rodoviária e o único ônibus a passar por ali
esperava os passageiros na praça central). Desejei com todas as forças que o mundo se
acabasse, que fosse apenas um sonho mal. Ela me traiu pensei, tomara que o avião caia
no meio do oceano Atlântico, continuei praguejando.

Era perto da meia noite e eu estava sentada na cama, só ouvindo os burburinhos e as


músicas que tocavam e os foguetes coloridos que davam para ver da janela. Agora ela já
é dele, é isso que significam esses foguetes, ela deve estar linda, e agora com um anel
caríssimo na mão direita e todos devem estar felizes. Porque a vida não é assim para
todos? Porque apenas alguns podem vivê-la plenamente?

Mil pensamentos passavam pela minha cabeça quando começou uma forte chuva, que
junto com minhas lágrimas, parecia querer lavar de minha vida tudo de ruim até então.

Já era três da manhã e ainda se ouvia a música que vinha da fazenda. Não era uma
chuva que ia atrapalhar tão enorme festa. Quando fechei os olhos pela milésima
tentando dormir, bateram na porta da frente e me assustei, pois naquela hora, quem
poderia ser ainda mais debaixo de chuva. Deve ser o João, logo pensei, pois o rapaz era
mesmo insistente e deve ter trazido alguma coisa da sua ceia e quando abri, nem tive
tempo de falar, pois Júlia entrou correndo e já foi tampando minha boca com uma mão e
fechando a porta com a outra. Estava molhada e parecia tremer com o frio das águas que
fortemente caiam.

_Eu te solto se você me prometer não gritar e ficar quieta para ouvir o que eu tenho para
falar; disse enquanto me olhava nos olhos que naquele momento faiscavam de ódio e ela
deve ter notado e apertou ainda mais forte a minha boca, mas concordei e fiz sim com a
cabeça.

Então ela me soltou e começou a falar quase que sem respirar de tanto afobamento.

_Eu não tenho culpa, acredite. Estão me vendendo, sou apenas um objeto a ser
negociado. Meu pai perdeu muito dinheiro e pegou com o pai do Marco emprestado um
grande montante e agora não pode saldar e continuou falando com as palavras
entrecortadas com as lágrimas que caiam e deixava os olhos mais lindos ainda.

Enquanto ela falava, eu quase a engolia com os olhos, já não cheios de ódio, mas de
uma fome que parecia embrulhar meu estômago, eu estava sentindo tesão puro
misturado com uma saudade infinita. Ela estava diferente com os cabelos mais curtos na
altura dos ombros, mas com o mesmo tom vermelho fogo que queimava minha
racionalidade. Estava com as formas mais definidas, com os seios mais volumosos e me
senti molhar apenas ao imaginar tocá-los. Vestia um vestido que não deixava nada a
imaginação, negro e com um decote generoso, colado no corpo por causa da chuva.

_...então acredite, pois todo dia meu único pensamento é para você.

E eu que tinha prestado muito pouca atenção nas palavras ditas, só queria mesmo era
sentir pela última vez o gosto daquela boca e a segurei com todas as minhas forças,
sugando sua língua com frenesi.

Fui a empurrando em direção ao quarto, enquanto nossas roupas foram ficando pelo
caminho porque sentia a necessidade de esquentar seu corpo frio pela chuva com o meu.
Minha boca começou a chupar seus seios de uma forma tão gulosa que pensei que
poderia machucar, mas ela me presenteou com seus gemidos, enquanto segurava com
força meus cabelos. Eu secava seu corpo inteiro com a boca, passando a língua por
todos os seus recantos, como se fosse o alimento mais saboroso que eu já tivesse
provado, uma mistura de sabores, doce e amargo ao mesmo tempo com um cheiro só
dela, nunca mais conheci ninguém com aquele perfume que me deixava tonta.
Mordiscava sua barriga perfeita, enquanto acariciava suas pernas longas, percebendo
sua ansiedade para que eu a tocasse mais intimamente. Esfreguei meu corpo sobre o seu,
sentindo seu sexo molhar minhas coxas. Quando finalmente satisfiz sua vontade e
toquei em sua feminilidade, senti toda a paixão que nos envolvia e a vi quase perder a
respiração. Não me importava se outros já a tivessem feito sentir a mesma sensação,
pois ali naquele instante era para mim seus sussurros e gemidos, era meu nome que ela
gritava, enquanto eu lambia toda a extensão de sua vagina, com mais e mais vontade,
passando a sugá-la, como se fosse fonte de vida, minha vida, pois sabia que estava
deixando ali a parte mais bonita de meu ser. Seu clitóris inchado pediu minha atenção e
o prendi entre meus dentes, o pressionando com minha língua sedenta por senti-lo em
toda sua extensão. Eu ainda me deliciava em seu sexo quando a penetrei com os dedos
num movimento frenético, fazendo-a gozar intensamente. Era prazeroso senti-la quase
desfalecida debaixo de meu corpo, enquanto eu beijava lentamente seus olhos, agora
fechados, seu rosto e sua boca que se abria para a minha, como se querendo provar de
seu próprio sabor.

_Nunca, quero que saiba, sussurrou em meu ouvido, senti ou sentirei isso que só você
me dá. Essa felicidade completa de pertencer a alguém e quero que saiba que onde
estiver, toda vez que me ouvir tocando é para você que toco. É por isso que amo a
música, pois ali, eu te pertenço totalmente.

Quando a olhei, senti, apesar da escuridão, que seu rosto estava molhado pelas lágrimas
e sem esperar, se soltou de meu abraço e começou a se trocar.

_Agora me vou já que meu corpo não me pertence mais, fique com a minha alma.
Pegou um caderno que estava sobre uma pequena cômoda e com um lápis começou a
escrever quase com fúria._Quando quiser saber a extensão verdadeira do que só você
me faz sentir, peça para alguém tocar para você. Essa é só sua, de mais ninguém, e saiu
sem me dar tempo de tentar impedi-la.
Queria ter corrido atrás, talvez seja isso que realmente me angustie ainda hoje, a
covardia de não ter tentado, do medo da luta, queria tê-la segurado e a levado comigo
naquele ônibus no dia seguinte, mas o que eu teria para oferecer a quem era acostumada
com tudo? Quando peguei o papel ainda naquela noite, não entendi, mas depois
descobri tratar-se de notas musicais. Ela tinha composto uma música para mim e venho
guardando aquele papel amarelado por toda a vida. Nunca a ouvi, pois nunca dei para
ninguém tocar, como se só pertencesse às suas mãos, só ela teria o direito de
transformar as notas do papel, na mais linda melodia. Se ela as tocou para alguém, não
sei, porque depois de tantos anos e tantas músicas gravadas, todas lindíssimas, fico me
perguntando se poderia ser uma delas.

No dia seguinte, eu estava com minha pequena mala na mão, esperando que a partir dali
uma nova vida se iniciasse para mim. Quando o ônibus chegou, vi João do outro lado
vir em minha direção.

_Não falei que vinha? Já que você não quer me esperar, só tenho que lhe desejar boa
sorte e cuidado. Trouxe um lanche que papai preparou para você comer no caminho. Ele
não quis vir porque não gosta de despedidas e chora e mandou dizer que está tudo certo
no cartório, disse com o velho sorriso amigo no rosto.
_Não precisava, mas agradeço e saiba que apesar de tudo você, seu pai e padre Antônio
são agora a minha família e sempre vou amá-los.
_Não é o tipo de amor que eu quero de você, mas por hora basta. Não vou desistir.
Vamos nos ver na federal, falou enquanto me dava um forte abraço.

Quando entrei no ônibus dei uma última olhada no que estava deixando para trás, foi
quando vi dois carros negros dando a volta e também se dirigindo em direção a estrada
que levava para a capital. Estavam com as janelas abertas e deu para eu reconhecer no
segundo carro, sentados no banco atrás, Júlia e Marco Antônio e por um momento, tive
a sensação que ela me viu também. O ônibus arrancou e naquele dia de sol, eu e Júlia
seguíamos para nossos destinos, sem saber se um dia nos veríamos de novo. Não chorei
e quando a viagem começou, já tinha decidido nunca mais chorar por ninguém, mas a
vida como dizem, não é como a gente quer e imprevistos iriam mudar essa decisão.

Capítulo 06: Nova vida

Não saberia como descrever o meu primeiro dia na capital. Já não era meu mundinho e
sim o local onde uma quantidade enorme de pessoas viviam e eu era apenas mais uma.
Quando desci na rodoviária, fiquei atordoada com o vai e vem dos passageiros que
chegavam e partiam ao mesmo tempo. Estava com fome, pois na viagem de quase 14
horas, o lanche que João me deu foi a única coisa que pus no estômago e estava toda
quebrada pela viagem em um ônibus desconfortável e sem estrutura nenhuma para a
segurança dos passageiros, sem contar com o estado horrível das estradas, juntando
tudo, acho que só de conseguir chegar já era um prêmio. Quando eu e João
combinávamos de viajar juntos, ele tinha me passado o endereço de uma pensão onde o
pai costumava ficar quando viajava para comprar as mercadorias para o mercado. Com
o endereço na mão tentei buscar num balcão da própria rodoviária onde era essa rua,
mas o rapaz muito grosseiramente, falou-me para pegar um táxi na saída e dar o
endereço que ele me levaria. Não vou me prender aqui na descrição das minhas
dificuldades de adaptação de menina do interior para a vida moderna do final da década
de 90, vida esta totalmente desconhecida para mim até então. Mas tenho que ressaltar
que tive sorte, pois Deus como diria padre Antônio, só colocou as pessoas certas no meu
caminho.

Para começar dona Francisca ou tia Chica, como gostava de ser chamada, era a dona da
pensão onde eu morei nos meus tempos de faculdade. Foi como uma mãe, a minha
mesmo não me quis, mas Deus me mandou duas nessa vida, pois a partir do primeiro
dia que nos vimos, pode-se dizer que foi amor à primeira vista, ainda mais quando
comentei que era recomendação do seu Pedro, acho até hoje que aqueles dois tiveram
muito mais que amizade só de recordar do longo suspiro dado por ela.

Tia Chica era uma viúva sem filhos, que se viu sozinha com a morte do marido, numa
casa grande e fria e com contas chegando a todo minuto. E já alguns anos, entre
moradores temporários e permanentes (como eu), ela ia vivendo com muito bom humor
e disposição em ajudar sempre o próximo. Foi ela que me levou a um banco, já na
primeira semana para depositar o dinheiro que eu tinha da venda do sítio, pois segundo
ela, seguro morreu de velho. Eu sabia que teria que arrumar algum tipo de trabalho e
esperei passar a data do vestibular (ao qual passei nos primeiros lugares) e mesmo não
precisando pagar a faculdade que era federal, sabia que teria outras dívidas e teria que
me virar. Em tempo, João não conseguiu passar na federal mais passou numa particular
e seu Pedro para cortar despesas, mandou o pobre ir morar com umas tias dele que eram
solteiras e viviam sozinhas. O que na verdade achei melhor, pois não queria passar os
próximos anos me esquivando de suas investidas.

O meu primeiro dia então, quando entrei naquele lugar enorme me senti totalmente
desprotegida e me perguntando o que estaria fazendo ali. O ar estava cheio de
esperanças que se manifestavam nas fisionomias de tantos jovens que como eu
buscavam mais que um sonho, mas um estilo de vida para seguir. Pensei em quantos
como eu também fizeram sacrifícios para chegar até ali. Fui me deixando levar pela
multidão, tentando achar onde poderia ser a sala do curso de jornalismo. Estava
distraída quando trombei com força em outra moça que vinha na mesma direção
apressadamente quase me jogando ao chão. Mal sabia que naquele momento, mais uma
vez, o destino mudava novamente minha vida. E quem disse que somos nós que o
escolhemos? Pode até ser um pensamento que nos faça sentir realmente donos de nossas
escolhas, mas penso que quando a vida colocou Bianca na minha estória, ela não me
deu nenhuma oportunidade de escolha. Ainda bem.

Capitulo 07: Bianca


Bianca Albuquerque surgiu na minha vida a partir daquela trombada, que quase me
jogou ao chão. Ela anos mais tarde ria muito desse episódio, dizendo que existia um imã
que a puxou em minha direção. Ela era filha única de uma família tradicional da capital,
de quase 400 anos de estória, como gostava de salientar seu pai, doutor Jaime
Albuquerque, conhecido médico cardiologista do maior hospital da cidade. Como o pai,
estudava medicina, tinha 25 anos e já fazia residência médica, mas diferente do pai
preferiu a pediatria porque adorava crianças e dizia que trabalhar com os pequeninos era
estar mais perto de Deus. Tinha quase minha altura, um pouquinho mais baixa coisa que
eu gostava sempre de salientar, lindos olhos cor de mel e cabelos loiros, um pouco de
farmácia e um pouco natural, como ela dizia sorrindo. Bianca veio trazer luz para uma
escuridão que teimava às vezes em aparecer na minha alma, mas ela como eu, sempre
soube que não era amor que nos ligava e sim uma forte paixão, que sabíamos poderia se
extinguir a qualquer momento. Nunca menti para ela com juras de amor eterno e talvez
tenha sido isso que criou um forte laço de confiança que durou até o fim.

Mas voltando àquela manhã na faculdade, a primeira impressão como dizem é a que
fica, e quando ela me deu a mão para me equilibrar impedindo assim de me esborrachar
no chão, também significava uma mão para abrir as portas de um mundo que eu iria
descobrir com ela.

_Me desculpe, estou um pouco atrasada, disse abrindo um sorriso afetuoso, mas me
parece que você também colaborou ficando assim parada como uma barata tonta no
meio do caminho; completou gargalhando e era essa uma de suas características que
mais se destacavam em sua personalidade: seu bom humor.

Eu sentia o rosto arder de vergonha e balbuciei um me desculpe que quase não saiu e ela
com certeza nem ouviu. Levantei os olhos e só então reparei em seu rosto, seu corpo,
ela em si e pensei como ela era bonita, parecia um anjo toda de branco e eu na minha
simplicidade pensei que ali deveriam ser todas as moças assim, tão belas quanto.

_ E o que a baratinha procura?


_A sala do curso de jornalismo, é meu primeiro dia e estou meio perdida, respondi me
sentindo realmente uma barata, que a qualquer momento alguém pudesse pisar e
esmagar debaixo de pés pesados.
_No primeiro bloco à direita, sobe-se a escada até o segundo andar. São lá as aulas do
curso de jornalismo. Prazer, meu nome é Bianca e o seu?
_Luiza, disse abaixando ainda mais o olhar, como se tivesse medo de encará-la.
_Pois tem olhos lindos Luiza, disse se afastando e já longe gritou um nos vemos por aí.

Devo comentar que meu primeiro dia de aula foi espetacular, pois afastou o terrível
complexo de inferioridade que me assolava desde a infância. E descobri outros jovens
que como eu, apesar de possuírem talvez mais bens materiais, acreditavam em um
mundo mais justo. Em nenhum momento me senti menor ou diferente. Ali, éramos
todos iguais, sonhando todos que através das palavras iríamos transformar a realidade
que nos cercava. Em poucos minutos já estávamos discutindo a situação política do
país, gostos musicais e cinematográficos, coisa que eu conhecia só de ouvir falar, o tal
de cinema e tive que contar muito envergonhada que na minha cidade não havia, por
isso nunca tinha entrado em um.

_Não se preocupe, quando quiser ver um filme que goste, tem um cinema a duas
quadras da faculdade, disse-me Eduardo, um dos amigos que fiz na faculdade e que
mantenho até hoje. Posso até te levar, quem sabe, continuou se insinuando.
_Ih Luiza, não caia na conversa dele não, que esse aí atira pra todos os lados, comentou
Carolina, outra amiga que fiz de imediato e que conhecia Eduardo desde o primário,
pois estudaram juntos. Mas diferente de Eduardo, que era filho de uma professora
universitária e pai coronel da polícia, ela era também de uma família simples, mãe
doméstica e pai pedreiro e sempre estudou através de bolsas em colégios particulares
por causa de seu esforço e do sonho em prestar vestibular para uma faculdade e
melhorar de vida.

Eduardo e Carolina são meus amigos até hoje, apesar de não os ver tanto como gostaria,
e no meio do curso se descobriram totalmente apaixonados e se casaram logo após
nossa formatura. Hoje em dia ela é apresentadora de telejornal de uma grande emissora
de TV e ele seu editor chefe.

Mas de volta ao meu passado, após aquele primeiro dia onde tudo para mim era
novidade, a minha semana na capital passou rapidamente entre as aulas e a procura por
um emprego. Sim, pois apesar de ter um dinheiro guardado, precisaria me virar e foi
dentro da faculdade mesmo que se abriram as portas para meu primeiro trabalho
remunerado e carteira profissional. No mural da faculdade havia um aviso de que se
precisava de um ajudante para uma reformulação que haveria na biblioteca. Corri até lá,
não sem antes me perder pelo caminho, pois aquela faculdade era muito grande mesmo.
Quando consegui chegar e passar pelas imensas portas de madeiras se realizava um
sonho para uma pessoa tão devoradora de livros como eu. Eram enormes as prateleiras
que se estendiam até o teto, abarrotadas de livros, que imaginei se referirem sobre os
mais variados assuntos. O lugar estava quase deserto, vi apenas uma velha senhora
sentada atrás de um balcão de madeira e datilografava algo em uma máquina de
escrever (sim, ainda existia ali, os computadores ainda eram caros) e um ou dois
estudantes sentados em uma mesa afastada perto de uma janela.

A partir daquele dia, conheci dona Matilde, a bibliotecária, que se tornou mais que uma
amiga, mas uma grande professora não de conhecimentos educacionais, mas sim de
vida. Comecei a trabalhar por um pequeno ordenado e em meio período, pois haveria
uma estruturação no local devido a uma reforma e deveria ser verificado o que se
manteria e o que seria doado ou jogado fora. E assim se passaram dois meses desde a
minha chegada, onde além de conhecer diferentes lugares com meus amigos Edu e
Carol, me encontrava sempre que podia com João, que já havia chegado e estava
sofrendo com a faculdade, que ele dizia muito difícil e com as tias que não o deixavam
fazer nada. Em tempo, tenho que comentar a minha primeira vez em um cinema e foi
com a dupla Edu e Carol, claro, pois ela apesar de não admitir, já naquela época era
apaixonada por ele. Lembro que fiquei fascinada e que o filme era Donnie Brasco e até
hoje Johnny Depp é um dos meus atores favoritos; e este fascínio me transformou na
cinéfila que sou hoje. Adoro uma boa estória passada na tela grande, ainda mais hoje
com toda modernidade das salas com som e imagens digitais. Mas foi trabalhando na
biblioteca, que um dia uma estudante me pediu um livro e quando a olhei eu a reconheci
de imediato:
_Ora, se não é a menina de olhos verdes que vejo aqui, comentou Bianca, e sem
perceber também sorri em retribuição ao seu sorriso e feliz por encontrá-la novamente.
Capítulo 08: Eu e Bianca

Bianca me confessaria mais tarde que já vinha me observando, com segundas, terceiras,
quartas, quintas e todas as más intenções possíveis. E que também já havia me visto na
biblioteca e tinha resolvido partir para o ataque, decidida, pois como ela sempre dizia,
eu quero e posso. Mas ela começou de leve, como dizia rindo, primeiro uma conversa
sobre os sucessos musicais do momento, aquele capítulo da novela da noite passada, um
lanche na cantina da faculdade, coisas assim. Tenho que dizer que com minha nova vida
na capital, não foi só fisicamente que mudei, mas a cabeça se abriu para coisas que eu
não conhecia. Eu tinha ânsia de experimentar e conhecer todo tipo de cultura, novos
estilos musicais, o que estava se falando por aí, livros, filmes, tudo era base de minha
nova vida e Bianca tinha conhecimento de sobra para me ensinar, já que teve as
melhores escolas e oportunidades, além de falar outras línguas, aliás, me convenceu a
fazer inglês que ela sentia seria a língua oficial de um mundo cada vez mais globalizado
e ela estava com a razão, então comecei a fazer um cursinho à noite e ela sempre com a
desculpa de me tomar as lições, começou a aparecer na pensão, deixando todos
maravilhados, conquistando até tia Chica, não só com seu jeito extrovertido de ser, mas
também impondo sua posição de menina rica, através das suas roupas da moda, de seu
carro importado, enfim, de sua conversa sobre todos os assuntos, confirmando estar
culturalmente a quilômetros de distância da realidade da gente mais simples daquele
bairro.

Em uma tarde de sexta, enquanto comíamos bolo de fubá na cozinha da pensão, João
apareceu e deve ter percebido o que eu já sabia; que Bianca queria algo a mais que
amizade, pelo jeito dela conversar me jogando indiretas, de sempre procurar me tocar
enquanto falava comigo, se fazendo presente de algum modo nas diversas situações que
apareciam dentro de minha vida particular e na faculdade. João deixou claro seu ciúme
quando falou simplesmente:
_Você viu nos telejornais de hoje o destaque dado ao casamento de nossa amiga Júlia na
Espanha? Dizem que vai ser em um castelo e tudo, comentou sabendo que aquilo me
magoaria profundamente.
_Quem é essa Júlia? Logo quis saber Bianca.
_Uma moça que como nós também saiu de nossa pequena cidade para tentar conquistar
o mundo com sua arte, eu disse calmamente.
_Júlia Franco Vasquez você sabe, sempre quis mais que ser uma artista, ela adora é ser
venerada, além de ter vaidade suficiente para se casar com um milionário que possa lhe
dar o que ela está acostumada a ter, mesmo sem amá-lo, nós dois sabemos disso.
_Vocês estão falando daquela talentosa pianista? Já ouvi dizerem que ela é considerada
a maior revelação dentro da música clássica no período de mais de um século. E vocês
a conhecem, que coincidência. Eu até já tive o prazer de vê-la tocando em uma
oportunidade na Europa em um concurso para jovens talentos em uma das minhas
passagens por lá. E ela era uma adolescente ainda; comentou sem perceber Bianca, a
minha palidez.
_João sabe que a vida daquela gente e a nossa nunca se misturou e o que posso desejar é
que ela seja feliz pelo caminho que escolheu, pois não é a vida feita de escolhas? Que
ela tenha acertado nas suas, como a gente com a nossa não é João?
Ele ficou vermelho e logo se despediu, não antes de me pedir para acompanhá-lo até o
portão.

_Então é com essa que você está tendo um caso? Perguntou de forma ríspida e quase
gritando.
_Não lhe devo satisfações das amizades que faço João e acho que você já se demorou
demais por aqui. Quando quiser aparecer, venha como amigo e não como essa pessoa
mesquinha e maldosa que estava dentro daquela cozinha até a pouco, disse fechando o
portão e deixando-o sozinho parado do outro lado.

Se Bianca percebeu algo, nunca comentou, mas quando entrei novamente naquela
cozinha, tinha resolvido sim dar uma chance para minha vida e tentar encontrar algum
tipo de felicidade. Bianca me queria, porque não me deixar levar por essa onda gostosa
da paixão que se anunciava? Júlia estava morta para mim a partir daquele momento e eu
não ia parar a minha vida por isso. De uma forma impetuosa e inesperada que
assombrou até Bianca a convidei para um cinema e deixei bem claro quando me despedi
dela no portão aquela tarde e beijei seu rosto de uma forma bem atrevida que seria mais
que um simples cinema.

Mas quando entrei e fui para meu quarto a angústia que até então tinha se escondido
dentro do coração, ameaçou sair através das lágrimas que começaram a querer cair.

_Não, nunca mais vou chorar por ela, pensei com firmeza. Hoje ela já será de outro, é
hora de seguir em frente também. Ao olhar pela janela, percebi que começava a cair
uma forte chuva. Parecia que Deus adivinhava e mandava para molhar a terra, as
lágrimas que eu já não conseguia mais derramar. Do outro do lado da rua procurando se
esconder da chuva vi um vira-lata magrelo e com uma das pernas quebrada. Observando
seu esforço para se locomover e escapar da chuva, sua óbvia necessidade de comida e
carinho, me fizeram por um instante, me colocar em seu lugar.
_Não serei mais a vira-lata, decidi a partir daquela visão. Eu seria alguém que um dia as
pessoas também respeitariam e aplaudiriam e que teria dinheiro e atenção mesmo que
pagasse por elas. E se um dia, o destino permitisse, poderia encarar Júlia de igual para
igual, não mais a empregadinha que um dia ela usou, talvez por carência, quem poderia
saber e estar no topo para dizer-lhe que era feliz sem ela. Mas feliz eu nunca fui, hoje
sei que a vida é feito de remendos de felicidade e fui o que busquei na minha relação
com Bianca.

Naquela noite, quando ela parou o carro na porta da pensão para me pegar, me bateu
quem sabe o último resquício de remorso em saber estar usando outra pessoa para
emplacar a dor que eu estava sentindo. Mas logo desapareceu quando percebi no seu
olhar todo o desejo que ela deixava transparecer, o mesmo olhar que um dia eu dediquei
a Júlia. Não acreditava que uma moça como Bianca, de um mundo tão diferente do meu
poderia estar sentindo algo mais que desejo por mim. Eu tinha lá meus atributos e me
pareceu que de uma forma que não sabia explicar atraía meninas ricas, mas dessa vez eu
daria as cartas nessa relação. Mas eu estava enganada e com passar dos anos descobri
que subestimei os sentimentos de Bianca em relação a mim, o que me dói muito. Nada
pior que o gosto amargo do remorso, posso garantir.

Quando entrei naquele carro luxuoso, estava deixando para trás todo meu passado de
inferioridade e também retribui o olhar porque realmente ela estava linda, com uma
blusa decotada e uma saia que cobria muito pouco.

_Escolheu o filme? Perguntou fingindo inocência.


_Você realmente deseja assistir a um? Eu pensei que poderíamos fazer algo mais
interessante; respondi sem falsos fingimentos.
_Tipo? Falou sorrindo.
_Algo que nós duas queremos, só falta o lugar. Você escolhe; hoje eu sou toda sua.
_Cuidado com suas propostas, pois posso realmente pegar e nunca mais largar.
_Então pega e inesperadamente a segurei pelos cabelos e engoli sua boca num beijo
ousado, sem me importar em estarmos paradas dentro de um carro no meio da rua, onde
qualquer um poderia nos ver.

Ela pareceu surpresa com a minha atitude e só paramos de nos beijar quando nos faltava
o ar, levemente ela mordeu o meu lábio enquanto sorria.

_Pego quantas vezes você quiser, olhos verdes. Eu sabia desde aquela trombada que
nossos destinos se cruzariam. Eu via através desses olhos lindos um vulcão pronto a
explodir e eu queria estar perto quando isso acontecesse, completou já com as mãos
entre minhas pernas. Vamos sair daqui.

Acho que aquela noite ela deve ter ultrapassado alguns limites de velocidade. Eu apenas
acariciava seus cabelos para não atrapalhar, enquanto no rádio tocava uma música
romântica qualquer, não me lembro mais. Quando me dei conta ela já parava na entrada
de um prédio enorme e lindo e supus estarmos em um bairro de gente rica, pois ela
parou no portão com segurança e ele se abriu após ela se identificar, manobrando em
seguida para dentro da garagem.

Subimos até de uma forma calma, apenas nos olhando no elevador, olhar sacana na
verdade, de quero mais, até porque tinha um casal de idosos lá. Ela tremia enquanto
abria a porta de seu apartamento, que na verdade só vim a conhecer melhor na manhã
seguinte, pois assim que a porta se fechou, ela foi me agarrando e me empurrando em
direção ao quarto. Seria mentira se não dissesse que por uma fração de segundos,
quando entre seus beijos fui deitada sobre aquela cama enorme, que não pensei em
Júlia; mas logo passou e nunca mais nas várias vezes que fizemos amor nos anos que se
seguiriam eu cometi essa injustiça com Bianca; uma porque ela não merecia, outra
porque ela era intensa demais para que não me concentrasse apenas nela.

Intensidade esta que me deixou molhada só de ouvir suas palavras deliciosamente


obscenas sussurradas no meu ouvido enquanto me despia de uma forma carinhosa e
propositalmente lenta, ao contrário de nossas vontades. Ela me beijava e dava pequenas
mordidas em cada parte exposta. Eu já gemia alto quanto ela parou por um momento e
começou a se despir também lentamente, só para me provocar. Ela se levantou e tive o
prazer de sua visão nua e a confirmação do que eu já sabia, ela tinha tudo no lugar; seios
redondos e com bicos rosados, que me fizeram desejar mais que nunca devorá-los.
Corpo trabalhado que descobri mais tarde Bianca tinha conseguido através de muita
natação e pequenas corridas, pois academia ela já não tinha muito tempo. Seu sexo era
coberto por pêlos curtos e claros, de uma forma simétrica proporcionada pela depilação,
tortura essa que vim a descobrir bem mais tarde; depois de muita resistência de minha
parte, ouso dizer. Ela pegou um pequeno vidro derramando seu líquido entre as suas
pequenas e delicadas mãos e começou a massagear todo meu corpo, que imediatamente
reagiu ao liquido e o calor das mesmas, me transmitindo uma sensação de aconchego.
Depois molhar todo meu corpo com um óleo de perfume inebriante que recendeu por
todo o ambiente, ela procurou minha boca enviando a língua de uma forma totalmente
erótica, devagar, enquanto rebolava todo o seu corpo sobre o meu, porque agora era
com ele que era feita a massagem tocando sexo com sexo. Eu arfava como se me
faltasse o ar e com mãos arranhava suas costas e sua bunda firme e gostosa. Ela passou
a sugar meus seios, um de cada vez, lambendo, mordiscando levemente, provocando
uma leve dor que só aumentou meu estado de excitação. Senti minhas pernas tremerem
quando ela começou a chupar meu clitóris e a lambê-lo com sua língua dura de prazer,
de forma delirante e senti o orgasmo se aproximando quando ela me penetrou firme com
dois dedos, massageando com o polegar os pequenos lábios de meu sexo inchado. Gozei
bastante em sua boca e ela se deliciou com vontade, não deixando que nenhuma gota de
minha feminilidade se perdesse. Fiquei com o corpo todo mole embaixo do seu;
enquanto ela veio subindo pelo meu até nossas bocas novamente se encontrarem num
beijo longo e molhado.

_Saborosa e perfeita, sussurrou no meu ouvido; enquanto suas mãos acariciavam


levemente meus seios.

Já recuperada, decidi proporcionar a ela também todo o prazer sentido. Queria naquele
momento realmente me embriagar em seu corpo para esquecer o que vivera até ali.
Tinha a certeza que minha vida a partir daquele instante iria depender exclusivamente
de minhas vontades. Mas me esqueci do fator destino, que transforma vontades em
conseqüências inesperadas.

Segurei suas mãos e as beijei delicadamente e quando comecei a chupar seus dedos, um
a um, notei que ela deu um leve gemido. Desci devagar lambendo e beijando todo seu
belo rosto, até chegar aos seus seios perfeitos e sugava e apertava seus bicos ao mesmo
tempo, fazendo seus gemidos ficarem entrecortados com a respiração. Continuei
beijando toda sua barriga enquanto minhas mãos já procuravam o seu sexo, que de tão
úmido as lambuzou e dei meus dedos molhados de seu gozo para ela degustar como eu
tinha feito; o que ela fez de uma forma bem mais sexy. Aquilo a fez abrir ainda mais as
pernas, movendo o quadril em minha direção, deixando claro o que ela queria com
urgência. Meti quase com fúria a boca em seu sexo, enfiando a língua sobre o seu
clitóris já duro, ia mordendo e chupando devagar para guardar na memória seu sabor e
quando a penetrei com um dedo, ela pediu sem pudores que eu a comesse com vontade.
Então, enfiei mais dois dedos, a tocando fundo, enquanto minha boca continuava como
se ganhasse vida própria a sugar aquele liquido saboroso que agora saia em grande
abundância, fazendo que eu sentisse que o orgasmo chegava para ela também. Depois
me dirigi com vontade redobrada para sua boca e enquanto engolia sua língua num beijo
mais que ardente, rebolava meu sexo sobre o seu, num encaixe perfeito nos fazendo
sentir um novo orgasmo, que veio rápido e quase paralisante. Dormimos abraçadas e
senti uma sensação de luxúria como eu nunca havia sentido até então. Durante a
madrugada, acordei com sua boca novamente entre minhas pernas e deixei que ela me
proporcionasse muito prazer outra vez. Na manhã seguinte ao abrir meus olhos e ver os
braços de Bianca em volta de meu corpo, suspirei feliz e já não me lembrava do meu
passado de dúvidas e dor. Ela calmamente virou seu rosto em direção ao meu e me deu
um leve beijo nos lábios.
_Bom dia, mas muito bom dia mesmo. Eu não queria te soltar tão cedo, mas a fome
parece que bateu firme a minha porta e tive a idéia de que a gente podia se levantar,
preparar um bom café da manhã e voltar para cá, se você não tiver mais nada de
interessante para fazer neste sábado; falou e notei certa expectativa em seu olhar.
_Pois eu não disse que sou toda sua por um dia? Acho que você ainda está dentro das 24
horas estipuladas; respondi brincando. Deixe apenas eu ligar para a pensão e avisar a
Tia Chica para ela não se preocupar.

Ela abriu um largo sorriso enquanto me presenteava com um leve beijo. Deu-me o
aparelho telefônico que estava na cabeceira da cama e fiz a minha ligação. Dona
Francisca jamais desconfiou que entre mim e Bianca houvesse mais que amizade. Ela
realmente estava preocupada, mas ficou satisfeita por eu estar na casa de uma amiga,
pois ela sempre dizia que eu era solitária demais. Mal acabei de fazer a ligação, Bianca
me puxou com uma força meio que desproporcional para seu pequeno corpo em direção
ao banheiro (que ficava conjugado ao quarto, nunca tinha estado em uma suíte, e sorri
ao me lembrar de Zefa, que diria que era um luxo só) e embaixo da água que escorria
morna e aconchegante, o café da manhã teve que esperar mais um pouco, porque foi
urgente saciar nossa outra fome: a de nos amarmos ali, entre gemidos e mãos ágeis em
tocar o ponto certo de nosso prazer. Após quase uma hora de puro êxtase; ela me
enxugou carinhosamente com uma toalha que nunca tinha sentido tão macia até então.
A gente se cobriu cada uma com roupões que ela tirou de dentro de um guarda roupa
enorme que ficava num cômodo a parte, que descobri depois tratar-se de um closet. Foi
aí que pude reparar naquele enorme apartamento, onde apenas o quarto parecia maior
que minha pequena casa já agora saudosa do interior. Percebi o bom gosto da mobília,
os quadros de arte na parede e aparelhos eletrônicos antes apenas conhecidos por nome,
mais agora eu os via ao vivo. Enquanto ela se dirigia para a enorme cozinha (fiquei
imaginando o porquê de uma tão grande para uma pessoa que morava sozinha);
perguntou se eu não queria ficar na sala vendo TV. Claro que aceitei, até porque tenho
que confessar que minhas habilidades culinárias são escassas. Só o necessário e olhe lá.
Já Bianca adorava provar sabores novos e temperos e era capaz de passar a manhã toda
lá apenas para a preparação de um simples almoço quando tinha tempo, ela dizia que
adorava cozinhar para mim, porque tudo eu provava e estava bom, não tinha um
estômago exigente. Ela ligou a TV; também era a primeira vez que eu estava vendo uma
em cores, primeiro que eu tinha pouco tempo e outra que a da pensão também era meio
velhinha e em preto e branco ainda. Eu me lembro que estava passando um desses
programas que até hoje fazem sucesso na programação matutina, cujo intuito de falar de
variedades do mundo feminino é sobreposto por fofocas do mundo da fama. Eu mesma
já fui alvo desses ditos apresentadores, que fazem um jornalismo especulativo e barato
atrás de audiência invadindo a privacidade alheia. Pois bem, naquela manhã o assunto
preferido era o casamento de certa promessa do mundo da música com o rico herdeiro
da indústria têxtil. Apesar de reservado e ter sido realizado em outro país, choviam as
especulações quanto ao vestido feito não sei por qual estilista famoso, dos convidados
vips que fretaram jatinhos para não faltarem a tão badalado acontecimento, do bufê, dos
gastos não economizados para a ocasião, da lua de mel em Paris, até da presença não
confirmada da família real espanhola; tudo era debatido ali como se fosse importante
para a população saberem tais particularidades. Prendi a respiração para ver ali na tela
as imagens da felicidade de Júlia e seu marido. Mas só conseguiram filmar o exterior de
um castelo desses da idade média e o carro que saiu dali após a cerimônia estava com os
vidros escuros, impossibilitando melhor imagem. Deus existe, logo pensei, porque tinha
certeza de não suportar ver estampada em seus rostos a imagem de felicidade. Como
que por uma força que me puxava para longe de todos os males, Bianca me chamou da
cozinha, dizendo estar pronto o nosso café. Foi como despertar de um sonho ruim e me
levantando em direção a TV, apertei o botão e a desliguei, como se com aquele gesto
também pudesse desligar Júlia de minha vida. E ao me dirigir para a cozinha, resolvi
também dar uma oportunidade real para meu relacionamento com Bianca.
Relacionamento este, que naquele momento parecia uma bóia de salvação em meio ao
oceano de minha vida, mas que pensava sinceramente não fosse durar muito, até por
nossas diferenças. Mas graças novamente ao bom Deus, durou o tempo suficiente para
me mudar para uma pessoa melhor. Sete anos se passaram e tudo que hoje possa fazer
de melhor para outro ser humano, o dar de mim sem esperar outra coisa em troca, a
sempre buscar algo de bom, mesmo nas situações doloridas que a vida apresenta, foi
Bianca que me ensinou; mesmo nos seus últimos dias nunca faltou em seu rosto o
sorriso. Após aquele café, fiquei por ali mesmo o dia todo, pra falar a verdade, o final de
semana inteiro, curtindo a vida literalmente falando, como se dentro daquele
apartamento todo o sofrimento ficasse do lado de fora.

Capítulo 9: e o tempo passa

E a vida foi seguindo, não sei se por caminhos por mim escolhidos ou simples questão
de destino. A minha relação que pensava durar apenas dias, já ia para seis meses e
mesmo pouco falando de mim, não por falta de curiosidade dela, o que eu achava ser
apenas sexo, começou a ficar sério, pois passou de minha parte e principalmente dela, a
ser uma relação de confiança. Até na faculdade todos já percebiam e aquilo que poderia
me preocupar em outros tempos, a opinião alheia, passou a ser para mim algo de uma
inutilidade fundamental para minha vida. Muitos de minha turma se afastaram, como se
uma relação homossexual fosse doença e contagiasse. Acho que mais por ignorância,
pois está impregnado na cabeça da sociedade que ser homossexual é ser promíscuo.
Pois saibam, isso independe da opção sexual; e durante minha relação com Bianca, fui
fiel e tenho certeza da recíproca em relação a ela. Além do que começou a rolar pela
faculdade o papo que Bianca me sustentava e isso foi o pior, porque não me aproximei
de Bianca por sua situação financeira. Só concordava em freqüentar lugares que ambas
pudessem dividir tudo, apesar de seus protestos. Apenas Edu e Carol ainda continuaram
meus amigos, lembro-me de eles terem chegado meio que sem jeito, um dia em que eu
me sentei e alguns colegas se levantaram para se sentar em outro lugar.

_É verdade que você está de caso com a filha do doutor Albuquerque? Perguntou de
supetão Eduardo.
_Acho que caso não é a palavra certa Eduardo e sim namoro. Isso te incomoda? Falei
com toda a tranqüilidade possível.
_Claro que ele vai falar que não, não é Edu? Respondeu por ele Carolina. Acho que o
máximo que ele pode sentir é inveja, pois Bianca é mesmo muito gata; completou
gargalhando.
_Pois é agora tem duas gatas fora do alcance do conquistador aqui, completou Edu já
entrando na brincadeira e o assunto morreu por aí. Depois de algum tempo, quando Edu
e Carol realmente engataram um namoro, passamos a sair os dois casais e ele ficava
todo prosa, pois estava rodeado de gatas, como dizia e todos pensavam que todas
estavam aos seus pés, dizia rindo muito.

Mas com João não foi tão fácil. Fiquei quase aquele ano inteiro sem vê-lo, até que já era
setembro e perto do meu aniversário fiquei surpresa ao voltar da faculdade e dar de cara
com ele no portão da pensão. Estava meio que sem graça, muito formal e com um
pacote na mão.

_Vim apenas para lhe entregar isso; disse e me entregou o pacote. Era do padre
Antônio.
_Era por quê? Já perguntei como que adivinhando.
_Ele faleceu faz três dias, dormindo. Mandou chamar meu pai e antes tinha se lembrado
de seu aniversário e lhe mandou um presente. Bem já vou indo, falou enquanto ia
saindo.
_João espera, falei segurando seu ombro. Fomos criados juntos e você foi o irmão que
nunca tive e agora estamos assim, distantes e eu me preocupo com você.
_Se preocupa nada, disse com amargura. Você sabe o que me faria feliz, mas prefere
uma vida de promiscuidade ao lado daquela profana. Você acha que eu não sei o que
dizem de vocês na faculdade e que não me machuca saber que agora você virou gigolô
daquela menina rica? Tenho colegas que estudam lá e ao saberem que nos conhecíamos
não perderam tempo em fazer os mais diversos tipos de comentários maldosos. Mas
quem sabe não foi isso que você sempre quis, dinheiro e posição social e tentou o golpe
com Júlia, mas parece que seu Augusto foi mais rápido não é? Terminou de falar como
se tudo aquilo estivesse preso há anos dentro de seu coração.

Foi com toda a força daqueles anos de humilhação de minha infância que saiu o tapa
que marcou o rosto de João, o fazendo me olhar com surpresa e rancor.

_Se é realmente isso que você pensa sobre mim, me admira muito que um dia tenha
feito para uma pessoa tão sem caráter uma proposta de casamento, respondi quase com
fúria. Acreditando você ou não, sempre vou querer ver sua felicidade e creia-me ela não
está ao meu lado. Vá João, e quem sabe um dia você possa aceitar novamente minha
amizade, pois foi isso que sempre existiu entre nós. Ele pareceu querer dizer algo, mas
deve ter achado que aquele não era o momento e se foi.

Depois que João partiu, uma dor apertou meu peito ao me lembrar de padre Antônio e
de tudo que eu lhe devia como ser humano desde que ele me tirou com vida de dentro
daquela caixa de papelão para ser alguém. Derramei umas poucas lágrimas pelo bom
padre tendo por consolo a certeza que ele estava perto de Deus como um dos seus mais
valiosos filhos. Tia Chica me vendo entrar perguntou se eu estava bem porque estava
muito pálida, mas disse a ela que eram apenas más noticias de minha terra natal. Subi
correndo e me tranquei no quarto quando me lembrei do embrulho que tinha nas mãos.
Ao abri-lo, voltei aos tempos de minha infância porque se tratava da velha bíblia do
padre Antônio, que desde criança eu achava linda, porque era de uma edição especial
vinda da Itália, onde além das palavras divinas, suas páginas possuíam também em cada
passagem importante, desenhos em alto relevo e de grande beleza para dar mais
destaque. Provavelmente era obra de um grande e talentoso artista daquele país o que a
fazia ainda mais importante para o padre. Ele nunca deixou que ninguém a tocasse e era
muito antiga e tinha sido de sua família por gerações. Aquilo me fez sentir que de
alguma forma para padre Antônio eu fui a filha que o céu mandou para ele.

Chegou o dia de meu aniversário e sinceramente eu não queria que ninguém soubesse,
até porque aquilo me lembrava que também eram os dezenove anos de Júlia, mas não
sei como Tia Chica descobriu, pois ao acordar e descer para o café da manhã, já tinha
um bolo com velas e tudo a minha espera.

Tia Chica, eu nunca fui capaz de retribuir tudo de bom feito por ela em relação a mim.
Ao sair da faculdade aquela tarde, Bianca me esperava do lado de fora e sem me
importar com os outros alunos que olhavam descaradamente, segurei seu rosto e lhe dei
um beijo que quase fez ocorrer na porta da faculdade um acidente automobilístico
devido aos muitos olhares de cobiça.

_ O aniversário é seu e o presente quem ganha sou eu? Disse sem se importar com a
opinião alheia, isso nós sempre tivemos em comum.
_Quem lhe contou? Humm... Deixa-me adivinhar, certa senhorinha muito falante que
tem uma pensão num bairro tranqüilo da cidade? Disse sorrindo e a agarrando com mais
força.
_Sim e já avisei a ela que tinha preparado uma festa e que você só volta amanhã, nem se
preocupe em avisar. Hoje eu sou sua para atender a todos os seus desejos, mas não se
acostume com toda essa mordomia viu? Falou aceitando o abraço.
_E quem disse que a senhorita pode com meus desejos? Perguntei com ar de
superioridade.
_Mas posso tentar não é? Quem sabe eu não acerto, disse sorrindo.

Só tenho a dizer que suas tentativas tiveram êxito, pois aquele sim é o primeiro
aniversário que me recordo em que estava totalmente feliz. Deixei-me sim ser
paparicada sem me importar se os outros me chamariam de gigolô como João. Com
Bianca aprendi a não ter vergonha de falar de meus desejos, sejam em cima de uma
cama ou não. Ela era totalmente aberta a novas experiências e sempre me proporcionou
muito prazer, não só sexual, mas por simplesmente estar ao seu lado, porque sempre
soube me ouvir e tinha uma conversa interessante, aliás, ela era toda um interesse
constante para mim. Ao seu lado não existia a monotonia. Aquela noite, ela não só me
deixou embriagada de êxtase e prazer, pois me degustou de todas as formas e jeitos,
como me ensinou também novas formas e posições prazerosas para ambas. Sexo com
ela sempre era uma descoberta nova para proporcionar mais e mais prazer.

No final do ano chegou enfim sua formatura e tive mais um prazer, o de conhecer o tão
famoso doutor Jaime, seu pai, que diferente do que muitos deveriam achar, sempre
apoiou as escolhas da filha e na sua colação, ao ser apresentada a ele, simplesmente me
abraçou com um forte aperto e com o mesmo sorriso da filha nos lábios.

_Até que enfim tenho a honra de conhecer quem tem feito os olhos da minha filha tão
brilhantes esses últimos meses, disse e notei que o rosto de Bianca ficou vermelho, num
raro momento de timidez em todo o tempo de uma vida em comum.
_O prazer é meu de conhecer tão renomado profissional e tão amado pai. Bianca fala do
senhor como a oitava maravilha do mundo, comentei sorrindo também.
_Talvez porque ela tenha sido é muito mimada, criada sem mãe, eu sempre a deixei
livre para fazer tudo que queria. E pelo jeito, ela sempre acerta nas escolhas, continuou
falando enquanto segurava minhas mãos.
_Vamos parar com essa conversa melosa toda e nos preparar para comemorar doutor
Jaime, disse abraçando o pai. Agora o senhor pode dizer a todos que há mais um
Albuquerque no mundo da medicina para revolucionar e tirar o pó desses métodos
arcaicos usados por aí.
_Vou dizer sim filha, disse doutor Jaime com algumas lágrimas nos olhos e com muito
orgulho vou dizer que nunca conheci médica melhor. Benditas serão as crianças que
passarem por suas mãos, pois elas terão muitas chances de se curarem.

No dia seguinte, no baile de formatura, fiz questão de pela primeira vez, colocar um
vestido de festa (alugado, claro) mais de muito bom gosto; segundo Tia Chica parecia
até artista de novela e exagero à parte, reconheço que ele caiu como uma luva sobre
meu corpo. Era de um vermelho quase vinho, com umas rendas e bordados que lhe
davam um ar sofisticado, além, claro, de um decote bem generoso sem ser vulgar.

Bianca também foi feliz na escolha, pois seu vestido de tom verde era belíssimo e
correu pela faculdade o boato que era exclusivo e feito por um estilista famoso, mas ao
me pegar naquela noite para irmos juntas numa limusine com motorista e tudo (fato esse
que quase parou o bairro inteiro), senti que ela quase parou de respirar e só sussurrou no
meu ouvido ao entrarmos no carro:
_Isso tudo é para mim? Porque se não for, mando matar a pessoa que tem essa sorte;
dizia enquanto mordiscava levemente minha orelha.
_Eu sempre pensei que médicos salvavam vidas e não as tiravam, comentei já
colocando as mãos entre suas pernas.
_Com certeza, mas pode haver outros interesses em jogo e não somos perfeitos, disse já
gemendo no meu ouvido.

Não sei se por acaso do destino, a limusine demorou um pouquinho para chegar e
aproveitando o fato de estarmos totalmente sozinhas e protegidas de olhares curiosos
naquele carro enorme, deixei vir à tona todo o desejo liberado ante sua visão dentro
daquela roupa tentadora e ali mesmo a penetrei, enquanto Bianca apertava mais e mais
as pernas sobre meus dedos que entravam e saíam de uma forma delicada, mas
persistente, de dentro de seu sexo, enquanto eu engolia sua língua num beijo mais que
depravado. Mas logo o carro parou, e ela já tinha gozado em meus dedos que lambi
deliciada, como dizendo que aquilo foi apenas o aperitivo do prato principal que ainda
estava por vir. Permiti-me liberar meu lado divertido e não me importei ao ser
apresentada entre olhares e murmúrios disfarçados a tão nobres doutores pelo pai de
Bianca como sua namorada. Se ela não se envergonhava, não seria eu que iria sentir tal
sentimento em relação à tão bela mulher. Nós duas nos divertimos bastante, dançamos
mais ainda e não causou tanto escândalo nossa situação, pois não éramos ali o único
casal homossexual da festa; mas nos obrigamos a lembrar que não era um lugar gls, e
evitamos nos tocar com mais ênfase até em respeito ao doutor Jaime, que não se
importava de jeito nenhum, mas na sua frente eu não sei por que, me inibia os gestos de
maior demonstração de carinho com Bianca. Mas isso não impediu de já quase no fim
da festa, Bianca me arrastar para o banheiro feminino, trancar a porta e com o olhar
mais sacana do mundo dizer simplesmente:

_Revanche e ali mesmo foi me empurrando, me fazendo sentar sobre a pia e com mãos
habilidosas foi afastando minha calcinha e sem pudores começou a sugar meu sexo
molhado com uma vontade que esperou para ser saciada durante toda a noite. Gozei
rápido e gostoso em sua boca, por ela e para ela. Depois, já quase amanhecendo, fomos
para um motel porque segundo ela, hoje era dia de eu satisfazer seus desejos, o que
proporcionei com muito prazer até quase o fim da manhã, quando mais uma vez
dormimos abraçadas.

No primeiro mês de formada, Bianca teve muito trabalho para montar a clinica na casa
que ganhara de seu pai como presente. Em principio, ela tinha combinado com alguns
amigos doutores de montá-la, mas ficou a cargo de seu bom gosto, já que os outros
eram homens, a decoração do local. Cada um era especialista em uma área, e para
jovens iniciantes, o local era bem localizado e grande o suficiente para um bom
atendimento. Para isso, ela teve que se ausentar por um mês numa viagem que fez para
os Estados Unidos, atrás de equipamentos mais modernos e admito ter sentindo demais
sua falta. Foi um período também de mudanças para mim, pois através de dona Matilde
conheci seu Alberto, um primo dela que era editor de um jornal de grande circulação na
época e para inveja de muitos, consegui um estágio remunerado que pagava melhor
além de me proporcionar toda a experiência necessária para me tornar a jornalista
respeitada que viria a acontecer mais tarde.

Quando Bianca voltou, eu já tinha começado no meu novo emprego. Seu Alberto me
ensinou bastante sobre o que é ser realmente uma boa jornalista. Deve-se sempre em
primeiro lugar ter por compromisso a verdade, doa a quem doer. Bianca tinha me
avisado que só chegaria à noite e por isso, fui pega totalmente de surpresa ao me
deparar com ela parada, encostada na porta do carro aquela tarde ao sair de meu novo
emprego. Não nos contivemos e sem nos importarmos muito, nos jogamos uma nos
braços da outra, pois naquele instante percebi o quanto ela já era uma parte importante
na minha vida.

_Tenho que ficar longe mais tempo só pelo prazer de ver em seu olhar essa alegria em
me encontrar novamente, disse se soltando com dificuldade dos meus braços.
_E você está me saindo uma grande mentirosa, falei enquanto segurava carinhosamente
suas mãos. Disse que o vôo chegaria só à noite.
_E perder a oportunidade de surpreender você, jamais; falou sorrindo depositando um
leve beijo em meus lábios, mesmo sabendo que nossa vontade era outra.
_Você não precisa de muito para me surpreender, falei a abraçando novamente. Senti
saudades e só espero que tenha dado tudo certo.
_Com certeza. Na semana que vem espero já ter tudo montado e começar no batente.
Tenho que falar alguns assuntos pendentes com os meninos, mas acho que temos algo
mais urgente para resolver, não?
_Eu achei que você não fosse perceber, disse sorrindo e entrando no carro.

Naquela noite, enquanto fazíamos amor, senti que algo dentro de mim mudava.
Realmente a distância me levou a perceber o quanto Bianca era importante não só como
namorada, mas como pessoa fundamental na vida que eu queria construir. Senti medo
após mais uma noite intensa de sexo, quando ela segurando meu rosto exausto de prazer
me disse simplesmente:
_Te amo e posso passar a vida inteira esperando você me mostrar que me ama também.

Eu não podia mentir para Bianca e ela notou que eu não estava preparada para dizer as
mesmas palavras.
_Não tem importância, o tempo vai fazer você apreender a me amar também.

O tempo. Se soubesse o que ele nos reservaria, talvez conseguisse dizer a Bianca que a
amava sim, mas não era o amor que ela esperava de mim, mas acredito tê-la feito feliz
dentro dessa bolha de vidro que foi nosso relacionamento, que nos protegeu do mundo
lá fora. Eu era muito jovem para perceber que talvez algumas de minhas atitudes a
tenham magoado.

E como ela previa, foram anos de muito trabalho. No fim do ano que eu completei meus
vinte e um anos, me formei e contra todas as previsões, fui a primeira da classe. Na
colação, ao fazer o juramento senti que era de minha responsabilidade também a vida
das pessoas que eu via na platéia e se orgulhavam de mim. Eram poucas, mas todas
tinham um lugar especial em meu coração. Tia Chica, dona Matilde, Seu Alberto,
doutor Jaime e Bianca e para minha alegria João que eu não via há muito tempo, que me
apresentou sua namorada Mariana e como foi dito e depois percebido por suas palavras
que ele a amava de verdade. Dei-lhe um forte abraço, com um alívio dentro do peito
naquela noite. Eduardo e Carol ainda tentaram me convencer a participar do baile de
formatura, mas eu não quis, era questão de orgulho mesmo, pois durante todos aqueles
anos, a maioria ali tinha me virado as costas. E para falar a verdade, Bianca tinha outros
planos bem mais interessantes e por que não confessar, estimulantes.

Uma semana depois, para minha tristeza e de Tia Chica, tomei a decisão de dar mais um
passo na minha relação com Bianca e aceitar seu convite para irmos morar juntas.

_Sei que vocês são amigas e se dão bem e se você está feliz, estou feliz também; disse
com lágrimas nos olhos. Só não se esqueça de visitar essa velha aqui, disse me
abraçando.
_Como se isso fosse possível, esquecer da senhora, falei beijando longamente seu rosto
e quando o táxi chegou aquela tarde e coloquei as malas atrás e a abracei, não sabia que
seria a última vez. Uma semana depois, Tia Chica morreria atropelada e quase teria sido
enterrada como indigente se um dos amigos de Bianca não a reconhecesse da colação da
amiga e tendo visto ela ao meu lado na ocasião, me comunicou o fato. Sofri muito e
com ajuda de Bianca nós proporcionamos a tão nobre dama, um enterro digno por tudo
que ela representou para todos que tiveram a honra de conhecê-la. Antigos e atuais
moradores apareceram de todos os cantos e de suas bocas só saiam palavras de elogio
para quem de uma forma ou outra os ajudou na vida. Tia Chica tinha feito um
testamento e imagine só, deixou seu único bem para mim, uma desconhecida, mas que
segundo suas palavras, era a filha que nunca teve. Eu que tinha sido jogada fora, tinha
conseguido o que muitos nem sonham ter; famílias que me amaram de verdade.
Primeiro padre Antônio, depois meus pais Tião e Maria, Tia Chica e por fim, Bianca.
Fiz mais tarde, já com uma situação financeira melhor uma boa reforma e hoje o local
serve de casa de repouso para idosos sem família e mesmo os anos longe, não afastaram
a obrigação que eu tinha com aqueles velhinhos e sempre enviei não só meu, mas
dinheiro de amigos nobres de várias partes do mundo para o local, que ficou aos
cuidados da pastoral de idosos da igreja do bairro.
Capitulo 10: Vida de casada

Quando tinha resolvido dividir não só uma casa, mas a vida com Bianca sabia das
dificuldades. Primeiro em me adaptar a um apartamento tão grande, que apesar dos
esforços de Bianca, eu não conseguia chamar de lar. Era tudo diferente do que um dia
eu tinha conhecido e apesar de já freqüentar aquele lugar há alguns anos, eu me sentia
sempre como um objeto que não combinasse e destoasse do resto da mobília. Bianca
deve ter percebido, mas estava também muito envolvida no seu trabalho e talvez
achasse que com o tempo eu parasse de me sentir como bicho do mato, como ela mesma
dizia.

Foram momentos angustiantes e talvez por isso tenha começado a buscar no passado a
fuga, nas minhas lembranças de cidade do interior a paz para me adaptar a um mundo
cheio de regras e situações que eu não estava acostumada e que tive que aceitar para não
renunciar a Bianca, algo fora de cogitação para mim. Fiz um enorme esforço para
aprender como me vestir adequadamente, a comer corretamente, até a andar de uma
forma mais elegante. Bianca me disse que isso não era importante para ela e acredito
nisso realmente, mas queria que a dita sociedade me respeitasse e não queria de forma
nenhuma que Bianca se sentisse mal ao me levar a algum lugar mais sofisticado. Nessa
época, eu já assinava algumas reportagens para o jornal e tive que engolir meu orgulho
em mais uma discussão com Bianca.

_O que é meu é seu também, me disse querendo por fim a mais uma conversa sobre o
lado financeiro de nossa relação. Se vamos partilhar uma vida, não me faça sentir
culpada por ter mais dinheiro que você. Com quem você quer que eu compartilhe, quer
que eu arrume outra pessoa para poder gastar com ela? Estava exaltada e foi uma das
poucas vezes que a vi se irritar na nossa vida em comum.
_Não, só não quero que todos pensem que estou com você por causa disso.
_O que me importa é o que nós sentimos e fazemos. Os outros são os outros, pare com
esse maldito complexo de menina pobre do interior. Você cresceu e tem qualidades
suficientes para atrair todos a sua volta. Suspirou enquanto segurou meu rosto entre suas
mãos. Eu te amo e quero que todos saibam. E para mim, sinto que nossa relação não é
uma mentira ou você acha que eu não perceberia? Estive a vida toda rodeada de
interesseiros e os reconheço de longe e acho que você tem que se preocupar apenas com
minha opinião, certo? Disse me beijando com uma gula para demonstrar que me queria
sem se importar com tudo que pudesse nos fazer tão diferentes aparentemente.
Transamos ali mesmo no tapete da sala, ela me cavalgava como a se fosse a última vez
que faríamos amor, enquanto eu lambia com todo o tesão que estava sentindo seus seios
perfeitos. Foi o fim da minha época de sou pobre e daí, para me tornar sim a dama que
todos esperavam que eu me fosse ao lado de Bianca. Engraçado que quanto mais eu
crescia culturalmente, onde além do inglês que eu já sabia, procurei aprender também
espanhol e francês; línguas essas as quais Bianca também falava fluentemente e tinha
métodos mais agradáveis de ensino que o professor na sala de aula; mais saudade sentia
da vida simples. Era como se eu fosse duas pessoas vivendo uma só vida, mas agora não
tinha como voltar atrás. Nunca mais seria aquela menina do interior e para extravasar
isso foi que aos 22 anos escrevi meu primeiro livro, falando justamente dos “causos do
interior”. E eu ao que parece não era a única saudosista porque o livro foi um sucesso
instantâneo que já está nem sei em qual edição. Muitos na época me paravam para falar
que as coisas escritas ali os faziam recordar de seus pais, avós ou a estória deles quando
de sua infância e que muitos daqueles valores pregados ali tinham se perdido na dura
realidade da cidade grande. Eu me senti bem em saber que minhas palavras de algum
modo tinham agido sobre aquelas pessoas. O dediquei a padre Antônio, que tinha vivido
uma vida simples aos olhos de muitos, mas tinha me ensinado tudo que é realmente
importante: amar ao próximo como a si mesmo; e de onde estiver, espero que tenha
orgulho de mim.

Bianca também leu e deve ter entendido que eu não estava exatamente feliz e numa
noite em que chegou naquele enorme apartamento, simplesmente me comunicou que
queria agora comprar uma casa para nós que realmente parecesse um lar. Eu não sabia o
que dizer e então deixei que os atos falassem e a peguei num forte abraço a suspendendo
e a girando pelo ar e a chamando de minha pequena, que ela odiava, mas ali adorou
ouvir da minha boca.

Muitas das peças do apartamento tivemos que deixar na mansão da família de Bianca. A
maioria nem era mesmo do seu gosto, me disse ela mais tarde e apesar de serem
valiosas porque faziam parte da herança de gerações da família Albuquerque, a nossa
casa apesar de confortável não tinha espaço para tanto.

A partir do momento que entramos em nossa casa, que tínhamos pensando e posto em
prática juntas, desde a cor nas paredes ao tamanho das maçanetas das portas, sentíamos
que começava ali um novo momento de nossa relação. Eu estava feliz de verdade, até
porque, hoje, refletindo, percebi que a minha felicidade naquele momento tenha sido um
pouco egoísta. Hoje sei que Bianca teve que abrir mão talvez de muitas coisas para ficar
comigo. Nunca vou saber se também fiz o suficiente para sua felicidade. Minha vida
profissional também teve uma mudança radical. Com o sucesso de vendas de meu livro,
no jornal seu Alberto começou a me mandar mais para as ruas, pois segundo ele, eu
tinha um dom para falar com as pessoas. Conheci estórias da cidade grande que
ninguém queria ouvir. Seus problemas e injustiças e passei então a ser a voz dos
excluídos, apelido esse que pegou e virou nome de minha coluna e alguns anos mais
tarde, de um livro que contava as estórias dessa gente que não tinha voz diante de um
mundo cada vez mais feito de aparências. Ganhei prêmios de crítica e público, mas
alguns inimigos também que freqüentavam a mesma sociedade que agora eu fazia parte
por ser a companheira de Bianca. Mas o bom, segundo meu editor e amigo é que não
deixei essa dita sociedade e seus hábitos de alguma forma até meio injusta, afetar meu
julgamento sobre o certo e errado. De manhã conhecia as mazelas de uma sociedade
corrupta e injusta, e muitas noites tinha que sorrir para muitas das pessoas que eram
responsáveis por isso.

No final do ano de 2002, nossas vidas não podiam estar em melhor curso. Bianca se
sentia bem com o seu trabalho, diante de tantos desafios, sua clínica era reconhecida já
nacionalmente para tratamento de doenças infantis. Muitas vezes não se pode vencer a
morte, me dizia, mas mesmo sabendo disso, não tornava as perdas de vidas menos
dolorosas. Ela tinha convencido os seus sócios, com aquele seu jeitinho de quero e
posso, a ter uma ala para atendimento gratuito para crianças de mais baixa renda e
admirei ainda mais aquela espetacular mulher, que apesar de sempre ter tido tudo, tinha
essa visão de que muitos não tiveram a mesma sorte.

Bianca tinha conseguido uma semana de folga e decidimos passá-la longe daquele
tumulto de festas que pipocavam pela cidade. Um dia antes de nossa viagem, dia 23 de
dezembro, promovemos em nossa casa um jantar para nossos amigos íntimos, dentro os
quais apareceram João e agora sua noiva Mariana. Ele também estava indo bem como
clinico geral, mas tinha tomado uma decisão e veio me comunicar.

_Estou indo embora, me disse. Isso aqui não é para mim não. Você sabe que serei
sempre aquele matuto que saiu lá de nossa cidadezinha. Ela está me esperando, meu pai
também. Sei que serei mais útil lá que aqui.
_ Tem certeza João? Indaguei. Você pode depois se arrepender. E Mariana está sabendo
disso?
_Tanto já sabe que concorda me disse muito feliz. Aquela cidade precisa de gente como
nós. Não se anima também?
_Nunca fui muito feliz lá, confessei. E jamais pediria isso a Bianca, que já cedeu muito
em nosso relacionamento João. Mas desejo toda a felicidade do mundo para vocês.
Quem sabe você não está certo e aquela cidade precise realmente de sangue novo para
progredir?

O final da noite foi só de felicitações para o casal que se casaria até o meio do mês de
Janeiro para depois partir. Mariana que era professora do Estado, já tinha providenciado
toda a transferência e sendo também criada numa cidade do interior, estava mais que
contente.

Depois que todos saíram, fomos dormir exaustas porque no dia seguinte partiríamos
cedo para passar o natal na cidade de Nova York. Era minha primeira viagem
internacional e vocês podem imaginar toda minha excitação.

Na manhã seguinte enquanto Bianca ainda estava no banho, eu tomava meu café com
leite e via o noticiário na TV quando uma notícia me chamou atenção. Anunciavam com
muito pesar o falecimento do ilustre Augusto Franco Vasquez numa queda de cavalo em
uma exposição eqüina em uma cidade perto da nossa. Pensei em como o destino era
engraçado, o levando da mesma forma que o filho. O noticiário falava na hora e local do
velório e transmitia seus sentimentos pela perda de uma figura conhecida na sociedade
brasileira, que havia vindo de fora e ganhado fortuna com muito trabalho e suor.
Imaginei a ironia da nota, já que o mesmo nunca trabalhou na vida a não ser que a
exploração dos mais fracos fosse reconhecimento de trabalho. A notícia também falava
que sua filha, a agora conhecida mundialmente pianista Júlia Franco Vasquez não viria
porque estava em turnê fora do país.

Júlia, quantos anos eu não pronunciava aquele nome, mas não existiu um dia que sua
lembrança não se fizesse presente. Claro que com o meu crescimento cultural, não era
difícil ouvir ou admirar no mundo da alta sociedade Júlia e sua obra. Ela nunca mais
tinha retornado ao Brasil, mas fazia um sucesso extraordinário no círculo restrito da
música instrumental em todo o mundo, como muito não se via e claro que isso aqui no
Brasil era notícia, num país que não havia a tradição desse tipo de música tocar em
rádios, por exemplo. Bianca chegou a me dar de presente em VHS, uma apresentação
de Júlia em Milão no mais famoso teatro de lá; achando que estaria me agradando e
enquanto ela toda animada programava o vídeo cassete, eu me preparava para rever
Júlia como se ela estivesse ali naquele momento. Óbvio que eu já havia visto muitas
fotos suas e do marido nessas revistas de fofoca e sabia que ela continuava linda como
sempre, só que agora, como eu mesma, uma mulher no ápice de suas formas. Vê-la
tocando com toda aquela orquestra que parecia estar aos seus pés, me deu uma agonia
que pensei estar esquecida. Ela estava mais que linda, pois parecia uma deusa e todos
ali, desde músicos e platéia lhe rendiam culto. Bianca nunca soube e pensou que a fita
que chegou a lhe proporcionar lágrimas emocionadas, tinha ficado para trás quando nos
mudamos, mas a verdade é que assim que pude, digo até com muito esforço, pois pode
parecer bobagem, mas parecia um pedaçinho de Júlia ali comigo, joguei fora, tentando
em vão com aquele gesto arrancá-la de mim. Fiquei pensando em como ela reagiria à
notícia da morte do pai. Será que existiria de sua parte ressentimento quanto à obrigação
de se casar? Com certeza não, pois em todas as fotos e entrevistas que ela e o marido
apareciam juntos, eram apenas sorrisos de felicidade.

_Que boba eu sou, pensei alto. Não poderia alimentar esperanças que ela também, em
algum instante tenha sofrido um pouco que seja por mim. Minha vida agora era Bianca,
que nunca mereceria nem um tipo de pensamento sobre o que eu sentisse ainda por
outra pessoa. Ainda estava ali parada quando nem percebi que Bianca se aproximou e
veio a se sentar em meu colo.
_Porque essa ruga de preocupação que vejo em seu rosto? Não vai me dizer que ainda é
medo de entrar em um avião? Perguntou fazendo piada sobre o meu pavor real das
alturas, pavor esse, que apesar de todas as viagens feitas, ainda persiste.
_Também, procurei sorrir. Mas os meus medicamentos já estão todos prontos para
assim que me sentar na poltrona, possa tomá-los e dormir toda a viagem.
_E perder a incrível sensação de estar sobre as nuvens? Perguntou agora rindo mais.
_Sensação dispensável, prefiro outras mais táteis, falei enquanto beijava com vontade
sua boca, com minhas mãos já procurando abrir com ansiedade seu roupão.
_ Adoraria amor, disse com um ligeiro gemido, mas precisamos estar no máximo meia
hora antes no aeroporto, então devemos nos apressar se não quisermos perder o vôo. E
contra a vontade, fui terminar de fechar as malas enquanto Bianca se despedia do pai
pelo telefone.

Capítulo 11: Surpresas de viagem

Sinto dizer não poder dividir minhas sensações sobre minha primeira viagem
internacional até descer do avião, pois realmente assim que me sentei dentro daquela
máquina enorme, o pavor veio a tomar conta de minha racionalidade e imediatamente
me entupi de calmantes, vindo a acordar com Bianca me cutucando quando o avião já
pousava. E então vi pela primeira vez aquela cidade e foi paixão à primeira vista por
suas luzes, sua euforia e por até não dizer, seu caos.

Bianca tinha realmente bom gosto e feito reservas num hotel chique, mas sem ser
ostensivamente luxuoso, pois sabia que me sentiria mal com isso, apesar de na
atualidade, já poder pagar do meu próprio bolso algumas regalias. Assim que nos
registramos, buscamos informações sobre como alugar um carro, pois não queríamos
ficar a mercê de táxis ou do serviço de transporte do hotel. A cidade estava toda
iluminada naquela véspera de natal e ao ver pela janela todas aquelas pessoas
apressadas com seus pacotes, me lembrei de meus pais e de natais passados, que
poderiam não ter tanto consumismo, mas tinha o sentido maior de família e minha
família agora era Bianca, e realmente estava feliz em poder compartilhar com ela aquele
momento especial. Era inverno e eu tinha esperança de poder conhecer a tão famosa
neve. Bianca me abraçou por trás:
_Está feliz?
_Muito e você é responsável por isso. Disse a beijando levemente. Nunca vou ser capaz
de retribuir tudo que você me deu de bom.
_Bem, quem sabe podemos conversar e achar um jeito de você me pagar de uma forma
agradável para ambas, disse maliciosamente já me jogando sobre aquela enorme cama.
_Será um acordo vantajoso tenho certeza, com minhas mãos já abrindo com ansiedade
suas roupas.

Mordia os bicos de seus seios enquanto com uma das mãos afastava com pressa sua
calcinha e a tocava com força já sentindo seu sexo molhado. Bianca também abria
minhas calças e procurou tocar meu sexo com vontade, e ficamos ali, gemendo no
ouvido uma da outra, enquanto o orgasmo veio rápido.

_Espera aí, disse enquanto saiu ajeitando as roupas. Voltando uns 5 minutos depois,
com uma garrafa de champanhe nas mãos e um sorriso que despertou em mim todas as
mais maliciosas intenções.
_Feliz Natal, disse me oferecendo uma taça com o liquido já borbulhante. Queria muito
uma ocasião como essa para fazer algo novo para mim.
_Quais técnicas sexuais a senhorita quer testar agora com essa sua cobaia muito
satisfeita? Disse pensando se tratar de mais um de nossos saborosos jogos que levavam
ambas a exaustão do prazer.
_Nada disso que você está pensando sua tarada, disse gargalhando. Apesar de que
podemos continuar mais tarde, mas agora quero te dar seu presente e espero que seja
meu também.
_Huum, Bianca e suas surpresas, isso realmente é uma combinação excitante.

Enquanto eu falava, ela tirou do bolso de sua blusa uma pequena caixa e ao abrir, não
contive meu olhar surpreso.

_Case comigo, me disse mostrando as duas alianças ricamente feitas em ouro branco e
trabalhadas com pequenos brilhantes entrelaçados de uma forma única. Pensei em
muitas formas de fazer isso, mas acredito que a mais simples deve ter melhores
resultados. Esse seu olhar surpreso é de reprovação ou você realmente nunca tinha
pensado nisso? Dividir uma vida comigo não deve ser tão temeroso assim.
_Não é isso, disse me levantando com expressão séria. Nunca pensei que você achasse
que o que temos já não fosse um casamento, pois acredito já dividir uma vida com você.
_Então porque não oficializar? Quero que você não seja mais conhecida como minha
namorada, mas minha mulher de fato, com direitos que as pessoas aceitem e acima de
tudo respeitem. Não quero mais ter que ir a festas e não ver que todos se acham no
direito de te cantar ou a mim como se nossa relação fosse uma brincadeira que a
qualquer momento uma de nós duas fosse se cansar e disser adeus.
_ Não me importa mais a opinião dos outros, mas somente a sua. Você realmente
precisa disso? Devo não ter te dado segurança suficiente em nossa relação, pois você
acha que tem que me prender através de um papel para sentir que estou realmente com
você.
_Não meu amor, me falou com lágrimas já brotando de seus olhos. Não é falta de
segurança, mas um sinal que te amo mais que tudo. Eu sei que um simples contrato de
união civil não te prenderia a mim, mas quero mais que isso. Eu quero marcar com
essas alianças o fato que confio em você e em nossa relação sim e chegou a hora de
todos saberem. Quero te dar direitos, não deveres, pois você me fez feliz nesses últimos
anos como nunca sonhei ser, e enquanto falava me abraçou com força. Não quero que se
sinta obrigada a nada, foi bobagem esqueça, falou fechando a caixa com as alianças.
_Acho que é você que não entendeu, disse segurando suas mãos e a caixa entre as
minhas. Só queria que você se sentisse segura e conversasse comigo sobre essa sua
vontade e de como você estava se sentindo. Já estamos casadas, caso a senhorita não
tenha percebido. Nossa relação é a coisa mais concreta que eu tenho na vida e se te fará
feliz que eu ande com uma aliança caríssima como símbolo dessa certeza, eu não vou
me importar em assinar quantos papéis forem necessários.

Ela não segurou mais as lágrimas e me beijou e falou baixinho em meu ouvido um eu te
amo muito, enquanto nos abraçávamos naquele quarto de hotel. Na manhã seguinte, dia
de natal, como Bianca já havia planejado tudo, estávamos as duas na prefeitura da
cidade de Nova York para oficializarmos nossa união e diferente do que muitos pensam,
foi como disse a Bianca: assinaria quantos papéis só para ver o brilho que eu vi aquele
dia em seu olhar e para coroar, assim que saímos do prédio, começou a nevar e eu como
menina outra vez, fiquei de boca aberta para ver se a neve tinha sabor e descobri que ela
tinha o sabor de meus sonhos realizados. Depois fomos para um típico restaurante
brasileiro bem famoso por lá, pois queríamos nesse dia especial, nos sentir o mais perto
de casa possível.

_Vamos ao Central Park, convidou Bianca. Quero que você conheça como é lindo,
principalmente nessa época que está todo enfeitado para as festas. E olhe, vai ter um
espetáculo com músicas natalinas, falou enquanto lia o jornal e eu pagava a conta.

Saímos de lá de mãos dadas e com sorrisos nos rostos. Realmente era lindo o mais
famoso parque daquela cidade cosmopolita. E nos sentamos ali, abraçadas, junto com
milhares de outras pessoas só pelo prazer de estarem juntas em tão especial data. As
vozes de um coral infantil começaram a entoar velhas músicas natalinas, mas que
emocionam ainda hoje. Após meia hora de espetáculo, para surpresa da platéia, o
apresentador começou a falar de sua emoção de estar ali naquele momento quando da
apresentação da maior revelação da música instrumental; que apesar do drama pessoal
que estava vivendo na atualidade, tinha aceitado tocar e presentear a todos com sua arte.
Sabem aqueles momentos da vida que é como apenas seu corpo estivesse presente, mas
sua alma, essa teria sido transportada para outra dimensão, onde tudo em volta sumisse
e só ficasse você no mundo; foi assim que me senti ao ver Júlia subir no palco e sobre
muitos aplausos emocionados sentar-se no piano e começar a tocar. Não consigo saber
até hoje qual era a música, não importa. Todo o meu ser estava apenas voltado para a
sua presença ali tão próxima depois de tantos anos. Só comecei a voltar à realidade já
pela terceira música, ainda assim por causa de Bianca que estava entusiasmada com o
espetáculo e não conseguia ficar quieta.

_Não é espetacular, que numa data tão significativa para nós, tenhamos esse privilégio?
Bianca dizia toda feliz. É como se viesse a coroar toda nossa felicidade não acha?

Eu só conseguia pronunciar monossílabas como respostas e Bianca deve ter pensado


que era emoção. O que não deixou de ser verdade, mas creio que Bianca nunca
desconfiou dos motivos. E se passou quase uma hora de verdadeira tortura para mim,
que terminou com o pesar de toda a multidão com o anúncio que seria a última música
do espetáculo e seria acompanhada pelo coral de crianças e não fugindo da tradição, se
encerrou com o “noite feliz” mais bonito que eu já ouvi em outra língua, pois apesar de
todo o meu conhecimento de outras culturas, ouso dizer que a língua portuguesa tanto
falada como cantada é linda. Ao terminar de tocar sobre aplausos de toda uma multidão
de pé, Júlia se levantou e com um inglês perfeito agradeceu a presença de todos naquele
dia e esperava que nosso espírito natalino fosse uma constante para ajudar na formação
das crianças como aquelas presentes ali, que viviam em um abrigo, mas tinham a
oportunidade com a ajuda e colaboração de muitos terem um futuro. Continuou dizendo
que estava sim abalada, mas que o futuro para ela se mostrava cheio de esperanças,
dizendo isso alisou a sua barriga e só aí parece que todos notaram o que já estava bem
visível.

_Ela está grávida, disse quase num gemido.


_É mesmo e está muito feliz, nem parece que o pai morreu ontem, disse com certo ar de
reprovação, Bianca.
_Nem todos têm a sorte de ter um pai como o doutor Jaime, Bianca; falei como se a
defendendo. O seu Augusto podia ter muitos defeitos, mas acredito que amava
sinceramente a filha e tenho certeza que do modo dela, era amado também.

Como se lendo nossos pensamentos, Júlia lá do palco continuou falando que sentia
muito a perda do pai, mas o importante era o compromisso que ela tinha feito com
aquelas crianças.

_Nunca decepcionem uma criança e sejam para elas exemplos de uma vida de amor,
continuou a dizer. É esse o mundo que acredito e é nele que quero criar a criança que
logo fará parte da minha vida e meu pai onde estiver saberá entender. Nesse momento
uma única lágrima saiu de seus olhos azuis e o apresentador mais que depressa anunciou
que Júlia estaria à disposição para alguns autógrafos em uma área reservada. Fiquei
pensando se ela falava de si mesma em relação ao pai. Em qual momento ela descobriu
que o pai não era um super herói?
_Vamos lá tentar comprar um cd para meu pai que é fã da moça, brincou Bianca. Só não
sei se pelos dotes musicais ou pelos olhos dela, como o doutor Jaime diz, penetrantes e
a porta do mistério.
_Seu pai estava inspirado não? Acho que ele está é solitário e assim que voltarmos vou
lhe arrumar uma companhia feminina para ele parar de sonhar, retruquei.

Após comprarmos um cd a qual Júlia interpretava árias conhecidas de óperas nas vozes
de tenores e sopranos famosos, Bianca insistiu em tentar conseguir um autógrafo. Não
adiantou tentar argumentar com Bianca de meu súbito cansaço que nada a demoveu da
idéia de fazer essa surpresa para o pai. Teria que ter confessado ali o meu pavor e os
motivos, mas não saberia dizer quais teriam sido as conseqüências de tal ato, pois
Bianca estava realmente feliz e eu não queria despertar quaisquer suspeitas sobre meus
sentimentos.

_Só se você tiver alguma coisa contra a moça? Indagou Bianca. O que aconteceu, ela
lhe roubou a merenda no recreio? Não, só meu coração pensei.
_Não é nada, já lhe disse que pessoas como eu não eram amigas de pessoas como Júlia,
e sim trabalhávamos para elas. Mas se você quer tanto, enfrentarei com coragem essa
fila enorme só para o doutor Jaime ter seu presente, disse com firmeza.
_Possivelmente deve ser esse seu velho complexo de inferioridade falando lá no
fundinho de sua alma; contestou Bianca. A moça provavelmente não tem culpa de ter
nascido em berço de ouro e se algum dia ela tenha te humilhado, mais um motivo para
você querer ficar nessa fila e mostrar até onde chegou através de seu esforço e trabalho;
completou Bianca mostrando que de sua parte estava encerrada a discussão.

E se passou a meia hora mais longa da minha vida, que se arrastava como aquela fila. E
a cada minuto que me aproximava eu já visualizava seu rosto, enquanto ela sorria
gentilmente ao atender a todos que ali estavam presentes, ávidos apenas por um sorriso
seu. Ia tentando me preparar para o que dizer e quando esse momento chegou Bianca
falou por nós.

No momento que Bianca entregou o cd, ela estava com a cabeça baixa e perguntou em
inglês apenas para quem era o autografo.

_Para meu pai que é um grande fã, pediu Bianca em português e foi quando ela
começou a perguntar o nome também em nossa língua pátria, que levantou a cabeça e a
frase morreu em sua garganta.
_Luiza, balbuciou com olhos de surpresa.
_Como vai Júlia? Consegui dizer com a voz firme, diferente das minhas pernas que
tremiam. Então ela se levantou da cadeira e agora de perto deu para ver já a barriga bem
nítida, mostrando se tratar de alguns meses de gravidez. Seus olhos percorreram meu
rosto e o de Bianca indo parar em nossas mãos que estavam entrelaçadas, o que fiz
questão de fazer como se me fornecesse a força necessária para estar ali. Voltando
novamente a olhar em meus olhos respondeu:
_Bem apesar de tudo, disse com certa amargura.
_Sinto pelo seu pai, foi notícia em todos os jornais. Tenho certeza que se pudesse estaria
lá. E parabéns pela gravidez, são duas emoções tão diferentes em um mesmo momento,
deve estar sendo meio que confuso; completei.
_Não tenha muitas certezas na vida Luiza, você pode sempre ter que mudar de idéia.
Meu pai morreu para mim há muitos anos atrás. Quanto à chegada de meu bebê pode
acreditar, é uma emoção única e mais um dos meus sonhos que se realiza. Mas falemos
do presente, não vai me apresentar sua amiga? Disse enfatizando bem a palavra amiga.
_Bianca, disse a própria se adiantando e apertando sua mão; e somos bem mais que
amigas. Estamos aqui em lua de mel porque nos casamos hoje. Esse espetáculo foi um
presente magnífico que veio a tornar perfeito esse dia, muito obrigada. Espero que não
tenha preconceito quanto à orientação sexual das pessoas.

Júlia me pareceu buscar o ar, mas não durou muito, pois logo respondeu com a voz
límpida de sempre:
_Não sei o que Luiza contou a você, mas tenha certeza de que a imagem de menina
esnobe, preconceituosa e mimada não serve para mim. Fico feliz que Luiza tenha
encontrado a felicidade que buscava desde a infância e mesmo que ela não acredite,
torço para que seja feliz.
_Luiza fala pouco sobre o passado, mas acredite que o que tenha ocorrido lá foi
enterrado, não é amor? Hoje ela é uma profissional respeitada em todos os sentidos e
com grande talento para num futuro próximo ser reconhecida como a grande escritora
que é.
Bianca encheu a boca de elogios, enquanto me olhava com os olhos mais ternos do
mundo, me fazendo sentir pior que um verme.

_Bem, chega de falar de mim porque estamos atrasando a fila, Bianca. Tentei encerrar a
conversa e a sensação incômoda. Ela quer o autógrafo para o pai, o doutor Jaime, que
realmente é um grande fã seu.

Júlia parece que se deu conta do cd na mão e com uma caligrafia perfeita assinou o
mesmo, devolvendo para Bianca.

_Talento e muita emoção, disse me olhando novamente. Eu li seu livro sobre as


situações lá de nossa pequena cidade, hoje tão distante de nossas vidas pelo que parece.
Me fez sentir em casa novamente, obrigada. E gostaria que tê-lo aqui e quem sabe você
o autografasse para mim, e sem que eu esperasse, pegou forte minha mão e a apertou.
Desejo sorte, a soltando logo em seguida, enquanto eu ainda sentia a suavidade de sua
pele sobre a minha.
_Foi um prazer e obrigada, continuou Bianca e realmente já estamos atrapalhando.
Tenho a certeza que não faltará oportunidade para nos encontrarmos novamente, disse
sorrindo.
_Quem sabe, o futuro está aí para nos surpreender dia após dia não é mesmo? Disse me
olhando intensamente Júlia. Felicidades nessa nova etapa que estão começando hoje e
se virou para atender um rapaz que estava impaciente atrás de nós.

Não sei como Bianca se encarregou de me tirar dali, mas só me dei conta de mim
novamente já no quarto do hotel.

Bianca me falou de suas impressões sobre Júlia, que pareceu meio amargurada, mas
dizem, continuou a falar que é necessário um pouco de tristeza para ser um grande
artista.

_Tomara que o nascimento do bebê lhe traga felicidade, completou Bianca. A gente se
surpreende cada dia, das pessoas que se espera sejam as mais felizes por sempre
possuírem tudo, podem ainda serem incompletas. Mas o importante é que meu pai vai
amar esse presente, foi falando enquanto ia em direção ao closet para guardá-lo.

Eu fiquei ali, deitada na cama, com os braços cruzados abaixo da cabeça só pensando
não em amarguras, passado ou presente, apenas na certeza que sempre tive que Júlia se
transformaria na mulher linda que eu tinha visto mais cedo no parque e no esforço que
tive que ter para não agarrá-la e tomar posse de sua boca. Quando Bianca voltou, eu só
pensava na necessidade de aliviar aquele aperto que queria sair do meu peito e
literalmente a ataquei como se naquele momento só sexo até a exaustão fosse resposta
para aquela dor. Joguei-a sobre a cama com uma força exagerada o que a surpreendeu,
mas gostou pelo sorriso que saiu de seus lábios. Comecei a despi-la com urgência,
beijando todo seu belo corpo, e quando ela já estava nua embaixo de meu corpo, com as
roupas que estavam jogadas, amarrei suas mãos na cama para que eu tivesse todo o
domínio da situação e seu corpo para me satisfazer até onde eu quisesse.

_Confia em mim? Perguntei olhando agora seu olhar meio assustado, mas respondeu
quase gemendo um para sempre.
Então comecei agora com uma calma quase hipnotizante, a beijar seus pés e fui subindo
pelas suas pernas firmes e tentadoras, enquanto ela gemia baixinho com os olhos
fechados. Subi até a sua boca e mordi levemente seus lábios, murmurando em seu
ouvido palavras que eu sabia a excitava. Toquei os bicos de seus seios propositalmente
devagar, para testar sua ansiedade e desejo de ser minha, ficando ali por alguns minutos
me deliciando, passando a língua e os sugando com força, depois os tocando apenas
com minhas mãos, dando pequenos beliscões em seus mamilos duros, a fazendo gritar
meu nome e pedir mais e mais.

_Me come logo, pediu quase sem fôlego, mexendo com força os quadris em direção ao
meu sexo e molhando com seu líquido a roupa que ainda cobria meu corpo.
_Com calma, bem devagar, disse enquanto meus dedos brincavam com os lábios de seu
sexo, massageando-os junto com um clitóris duro. Procurei o centro de seu prazer com
meus lábios e o suguei com ânsia, me deliciando com seu gosto, com seus gemidos e
logo percebi que ela gozaria, então parei ouvindo seu suspiro de impaciência, que calei
com um beijo que tinha o sabor de seu gozo, enquanto tirava minha roupa com rapidez.
Comecei a penetrá-la com minha língua que queria provar todos os recantos de sua
feminilidade em um entra e sai vibrante, mas dando a ela a oportunidade de fazer o
mesmo, o que ela não desperdiçou chupando com toda gula meu sexo, no ponto exato
que eu queria enquanto rebolava com vontade sobre sua boca deliciosa; fazendo o
orgasmo chegar ao mesmo momento para ambas. Desamarrei seus braços e nossos
corpos amolecidos de prazer se abraçaram para mais uma noite de sono apaziguante.

Ficamos em Nova York até depois do ano novo porque Bianca não queria perder a
virada na Times Square e lá fui eu contra a vontade lógico, pois detesto multidões como
aquela, sem falar em um frio de me fazer até parar de raciocinar; mas claro, com um
espírito de mais um recomeço com novas esperanças. Não ouvi mais falar de Júlia,
então não saberia dizer se ela ainda estava na cidade. Viajamos de volta no dia 2 de
janeiro, abastecidas de novos planos e sonhos, pois de minha parte, após aquele
encontro com Júlia, tinha trancado em um lugar impenetrável aquele sentimento tolo,
que agora pensava se tratar de coisa de adolescente carente. Minha realidade era Bianca
e estava disposta a dar tudo de mim para que aquele presente que a vida tinha me
proporcionado desse certo. O doutor Jaime não pareceu surpreso ao nos ver com duas
alianças e pelo sorriso trocado com a filha, deu a entender já saber de seus planos e ao
nos abraçar dando sua benção, descobri que poderia contar com ele sempre, como pai,
até porque ele exigia ser tratado como tal e segundo suas palavras, tinha ganhado mais
uma filha.

Em março do ano de 2003, inspirada por essas emoções escrevi meu segundo livro de
contos, agora não tão saudosista, mas cheio de esperanças e alegrias, com o sugestivo
título de “Viver vale a pena, descubra porque” como uma forma de dar as pessoas,
como eu fui um dia, desiludidas, uma chance para serem felizes, começando a mudança
de dentro para fora. Chegamos à metade do ano dentro da euforia de mais um sucesso
literário e da ampliação da clínica de Bianca, que tinha se juntado com uma ONG
internacional, tomando como modelo o atendimento e métodos médicos aplicados lá
para implantação de programas de ajuda para crianças com necessidades, primeiro no
continente africano tão escasso de tudo, depois quem sabe o mundo, dizia uma eufórica
Bianca. Aquela sua vontade de sempre se fazer útil era uma das suas muitas qualidades.
O dar-se sem procurar recompensas, para alguém que sempre teve tudo como Bianca,
poderia parecer aos olhos dos outros uma hipocrisia e forma de desculpas por ser quem
ela era uma privilegiada num país de desigualdades, mas não, era um sentimento
verdadeiro que brotava de seu coração generoso.

Mas dizem que a felicidade é enganadora, feita de momentos e quando menos se espera
ela pode partir. Mas não esperava que a vida viesse machucar tanto quanto naquela
noite fria de julho, onde mais uma vez aproveitávamos a água que caía do chuveiro para
nos amarmos e ao tocar seu seio esquerdo como já tinha feito tantas vezes, descobri um
pequeno caroço que seria o início de mais um espinho em meu coração.

Capítulo 12: O câncer

Acho que Bianca foi a mais forte de nós três na luta de superação contra o câncer.
Doutor Jaime estava mais debilitado que a filha, pois a notícia trouxe a tona todo o
sofrimento enfrentado por ele na perda de sua amada Elisa, mãe de Bianca, que tinha
falecido da mesma doença quando Bianca ainda era quase uma recém nascida. Seu
sentimento era de que não poderia passar novamente por tudo aquilo, mas o convenci
que ambos precisaríamos nos manter fortes para transmitir a Bianca toda a confiança
necessária para o tratamento que sabíamos seria doloroso para todos. Depois de duas
semanas de exames, estávamos no consultório do doutor Ricardo, famoso oncologista e
amigo pessoal do doutor Jaime, que conhecia Bianca desde a infância.

_Não me esconda nada doutor, foi logo dizendo Bianca. Quero saber as reais chances e
todos os métodos necessários para vencer essa batalha.
_Não tenho intenção nenhuma de esconder todas as dificuldades que enfrentaremos
nessa batalha como você disse; uma em respeito a uma colega profissional como eu e
outra por ter carregado você nos braços, menina. Será uma batalha, mas com grandes
chances de vitória porque você é jovem, o câncer está no começo e temos tratamentos
mais eficazes na atualidade, ouviu Jaime? Não quero que você faça comparações com o
caso de Elisa. Bianca não precisa desse tipo de lembrança nesse momento.
_Nem por um momento desconfiei de sua competência velho amigo. Mas essa doença
maldita já levou Elisa e não vou deixar ela me levar meu único bem: minha filha.
_Acho que o doutor Ricardo quer dizer que são expectativas diferentes doutor, falei pela
primeira vez. E pode estar certo que vou tratar de mantê-lo comportado, tentei brincar.
_Que bom que ele tem uma pessoa sensata ao lado. Um dia vou contar para vocês duas
as loucuras de certo doutor nos seus tempos de juventude.
_Tenho certeza que foram todas por um bom motivo. Meu pai não faz nada sem pensar
muito, disse sorrindo Bianca ao beijar o rosto do pai.
_Bem voltemos à parte desagradável. Bianca será necessária a retirada da mama
afetada. Nesse momento ela apertou minha mão que segurava desde que entramos no
consultório.
_É um método preventivo e não está descartada a hipótese de uma radio ou
quimioterapia. Vou ser claro, não preciso descrever todo o processo para uma colega
médica, mas quero que saiba que a vontade do paciente em lutar pela vida é muitas
vezes fator determinante na cura.
_Quero que saiba que lutarei até o fim, disse com firmeza Bianca.

Ao deixarmos aquela sala, nossas esperanças estavam renovadas para a luta que iríamos
iniciar. Bianca estava mais confiante e nos passou isso. Durante a semana que antecedeu
a cirurgia, ela tratou de alguns assuntos pendentes na clínica, como se preparasse para
uma simples viagem e não falou sobre a mesma nem mesmo comigo. Era como se a
Bianca que fosse ser mutilada fosse outra, diferente daquela que dormia comigo todas as
noites. Eu, por outro lado, respeitava seu silêncio, mas já havia perdido tanto na vida,
que o medo se fez presente bem lá no fundo de meu coração.

Na última noite antes da cirurgia, ela mais uma vez me surpreendeu. Ao chegar em casa
me deparei com um jantar romântico e a luz de velas, que achei no mínimo de mau
gosto pela tensão que estávamos passando e não escondi dela minha opinião e foi
quando ela manifestou seu real desejo:
_Eu quero te amar nem que seja pela última vez, me pediu.
_Deixe de tolices Bianca, você sabe que não será a última vez que vamos estar juntas,
segurei seu rosto entre as mãos e a beijei suavemente.
_Por favor, quero sentir mais uma vez o êxtase de ser sua e de te possuir, não me negue
isso. A partir de amanhã, pela primeira vez, a minha vida não vai estar mais em minhas
mãos e estaria mentindo para você se dissesse que não estou com medo.
_Você pode sentir quanto medo for, mas quero que saiba que estarei aqui como sempre
estive, completei a abraçando.
_Ao lado de uma mulher que não vai poder mais te satisfazer? Falou amargamente. Não
tenho medo de cirurgia, quimioterapia ou qualquer que seja o tratamento, meu medo
maior é acordar sem você ao meu lado.
_Isso nunca vai acontecer, Bianca. Estarei lá e ainda vamos rir muito dessa estória toda.
_Obrigada, mas realmente te quero hoje. Vem tomar o que é teu e me deixe em êxtase
mais uma vez.

Não tive como recusar aquele pedido, ainda mais sabendo que estava satisfazendo
Bianca. Nem me passava pela cabeça que aquela seria nossa última relação íntima de
uma vida sexual ativa e satisfatória para ambas. Parece que Bianca estava pressentindo,
pois aquela noite ela estava mais que insaciável, me provocando a noite inteira, me
deixando realmente esgotada, indo adormecer só no inicio da manhã. Deixei-a
adormecendo e fui entregar uns artigos no jornal e avisar de meu afastamento pelo
menos por uns quinze dias. Seu Alberto me deu todo o apoio e falou-me para ir
tranqüila que podia dispor de todo o tempo necessário ao lado de Bianca.

Abracei meu velho amigo e olhei para todos que estavam na correria de uma redação,
num vai e vem de vozes e pessoas atrás das melhores notícias pensando que eu sentiria
falta daquela desordem na minha rotina que ia começar e sem saber, também era a
última vez que eu pisava ali como empregada.

Voltei para casa já pelo meio dia e Bianca ainda estava dormindo com o rosto mais
tranqüilo do mundo, o que achei bom. Aproveitei e retornei a ligação de Carol que
estava ansiosa por notícias e me falou que ela e Edu estavam torcendo por nós e assim
que Bianca pudesse receber visitas, era para ser avisada. Depois da ligação, me sentei só
no sofá e fiquei pensando em minha vida até ali. Bianca precisava estar no hospital às
três da tarde, então ainda poderia deixá-la descansar. Levantei-me e sem querer me
lembrei de padre Antônio, tão querido, que sempre dizia que não entendíamos os
caminhos de Deus, mas que lá na frente, descobriríamos seus objetivos. Ao entrar
novamente no quarto e vê-la tão tranqüila em seu sono, quis por um momento que tudo
aquilo fosse um sonho que logo íamos acordar; e como se faltasse algo, abri a gaveta
onde guardava coisas pessoais, com muito cuidado para não acordá-la e encontrei lá a
medalha de Nossa Senhora que o bom padre tinha me dado quando saí pelo mundo atrás
de meus sonhos e ao apertá-la tive a sensação novamente que minha mãe Maria estava
presente, ela que me amou tanto como se sua filha fosse e pedi a Maria, mãe de Jesus,
que olhasse para sua filha aqui embaixo e não me tirasse mais uma pessoa querida.

Bianca acordou preguiçosamente e ao abrir os olhos me viu sorrindo para ela e abrindo
os braços me recebeu em um abraço único.

Não vou descrever aqui, até por respeito à memória de Bianca, tudo que se passou entre
aquela tarde e os dois meses que se seguiram. A princípio com a retirada da mama e o
inicio da quimioterapia, o doutor Ricardo se mostrou preocupado, mas garantiu que
Bianca estava reagindo bem. Ela passou por dificuldades que todos passam ao enfrentar
um tratamento tão doloroso como a quimioterapia, como perda de peso e apetite,
enjôos, perda do cabelo, que procurei amenizar a presenteando com os mais diversos
tipos de lenços que ela amarrava de uma forma delicada e de bom humor. O doutor
Jaime insistiu para que fossemos para sua mansão para que ela pudesse ser mais bem
cuidada, idéia essa que Bianca logo descartou, porque como disse para o pai, eu estava
saindo uma enfermeira de primeira. Em principio, não foi recomendado em seu caso,
uma imediata operação de reparação da mama, o que a inibia ante a minha presença,
fazendo que ela passasse de forma delicada, mas persistente a não querer meu toque de
uma forma mais íntima até porque sua libido, imagino, que pelo tratamento estava no
nível zero, e realmente não me incomodava a falta de sexo, mas sim o seu pensamento
que eu a acharia menos desejável por isso e comentei com ela esse fato.

_O problema não é você com certeza, me disse. Só não quero que faça algo que se sinta
forçada, para me satisfazer.
_Pareceu a você que eu estava sendo forçada todas as vezes que fizemos amor? Quero
que você não se sinta mal por essa cicatriz que logo será substituída por outra mama,
pois continuo te achando linda como da primeira vez que a vi. Não estaria com você até
hoje se nossa relação fosse tão superficial ao ponto de julgar importante um corpo e
nada mais. Sei que está insegura e vou respeitar até que esteja pronta e com disposição,
porque eu é que não quero nada forçado. Só não se afaste de mim na cama à noite, deixe
pelo menos eu te apertar entre meus braços, pois quem mandou você me acostumar tão
mal, hein? Terminei de falar sorrindo para lhe passar a segurança que sentia era
necessária para ela naquele momento. Ela deu um leve sorriso de volta me apertando
forte entre seus braços e a partir daquela noite até o dia de sua morte, dormia com a
cabeça apoiada no meu colo.
Era começo de setembro e o doutor Ricardo chamou em seu consultório eu e o doutor
Jaime com péssimas noticias.
_ Sinto em dizer, mas parece que o câncer progrediu em direção aos pulmões e teremos
que tentar além da quimioterapia, uma radioterapia.
_Mas o senhor não garantiu que ela estava reagindo bem doutor? Eu me desesperei
levantando subitamente da cadeira.
_O tratamento de uma doença como essa, infelizmente, não é tão previsível filha, me
disse carinhosamente.
doutor Jaime estava mudo e palidamente se levantou também e apenas perguntou:
_Ela vai sofrer muito e você poderá garantir que há salvação?
_Infelizmente não sou Deus meu amigo e você mais do que ninguém deveria saber que
na nossa profissão não há possibilidade de se dar garantias.
_Bem acho que ela tem de ser comunicada logo e decidir, porque apesar de a amarmos
mais que tudo, é sua vida e sua escolha, disse saindo da sala bruscamente.

Bianca como era de ser supor tentou até o fim, mas na semana que antecedia meu
aniversário, muito abatida, pediu para ir para casa e mesmo contrariando ordens
médicas, a retiramos do hospital, pois no íntimo tínhamos o pressentimento que ela
desejava morrer em casa. Tentei fazer de nosso quarto o mais aprazível possível para
ela, enchendo de flores e cortinas novas e claras, para que sempre tivesse sol. Ela já não
tinha forças para se levantar e mais uma vez o doutor Jaime insistiu para que
contratássemos uma enfermeira que ficasse à disposição, mas agora fui eu que rejeitei a
proposta, pois pus como prioridade e mesmo obrigação que fosse estar ao lado dela até
o fim, mesmo que sentisse que morria um pouquinho também dia após dia.

Era véspera de meu aniversário e ela me pediu que a ajudasse a se banhar. Coloquei-a
sentada embaixo do chuveiro enquanto a massageava levemente com um óleo
perfumado, não com a intenção de seduzir, só de acariciar e relaxar sua tensão. Ela
gemia baixinho, mas quando minhas mãos chegaram perto da cicatriz da cirurgia, ela as
pegou com muita delicadeza e levou em direção ao seu sexo que estava molhado como
a muito não ficava e pediu entre sussurros que eu apenas tocasse seu clitóris e a
masturbasse devagar. Satisfiz seu desejo, fazendo-a gozar ali, mas ela não quis ser
chupada apesar de ter despertado todo meu desejo e pediu apenas pare ser levada nua
para a cama e que eu a abraçasse forte.

Já na cama, enquanto eu procurava apagar todos os pensamentos sobre meu estado de


excitação, ela comentou sobre o meu aniversário que se aproximava.

_Preparativos para amanhã? Perguntou se referindo a data.


_ E quem disse que gente velha faz esse tipo de comemoração, tentei brincar.
_E desde quanto 25 anos são sinal de velhice? Vamos comemorar sim, pelo menos com
bolo. Chame a Carol e o Edu, pois da última vez não deu tempo nem de papearmos
muito naquele hospital.
_Vou pensar no seu caso, menina festeira. Eu não me lembro de grandes comemorações
quando a senhorita entrou para a casa dos trinta. Quem é que não quis fazer nada e ficou
todo o dia trancada em casa sem receber ligações?
_Ali era diferente, eu estava me tornando uma balzaquiana e você só conseguia rir o dia
inteiro, mas suponho que a noite foi de grandes comemorações não acha? Disse
maliciosamente.
_Com certeza, apesar da idade demonstrou ainda ter algum preparo físico, ri bastante ao
me lembrar daquela noite onde ficamos nos amando toda a madrugada.
_Bem, logo a velhinha aqui estará pronta para mais uma maratona, mas por agora, ela
quer só estar assim, quietinha, aquecida em seus braços. Faz me sentir bem o contato de
sua pele contra a minha, me sinto amada como nunca fui por outra mulher.
_Ainda bem, pois sabe você como eu sou ciumenta. Deixe-me descobrir que alguém
mais recebeu esse sorriso lindo e eu vou lá quebrar a cara dela.
_Ciumenta você? Que eu saiba nunca demonstrou.
_Só porque a senhorita andava na linha, senão, oh, disse mostrando divertida a palma da
mão. Levaria tapas nessa sua bunda maravilhosa.
_Tenho certeza que adoraria, completou sonolenta. Estou cansada, me abraça mais
forte, assim, até que eu adormeça.
_Sempre que quiser meu amor, estou aqui para sempre que precisar de meu corpo, alma
e coração.
_Então me ama? Olhou-me com os olhos meio vermelhos.
_E você acha que não? Perguntei olhando fundo neles.
_Tenho certeza que sim, a seu modo, mais como uma irmã sentiria por outra.
_Não tenho irmã, Bianca, você é minha mulher lembra?
_Eu sei e não estou me queixando. Sei que você me deu o melhor dos sentimentos
guardados aí, mas sinto que o amor de verdade ou você não conheceu ainda, ou se já
conheceu, escondeu em algum lugar.
_Não estou entendendo essa estória e o porquê dessa conversa agora.
_Não se irrite meu amor, quero que saiba que sou grata por você existir em minha vida,
me fez plena de uma felicidade até então desconhecida. Só quero ter a certeza que se eu
partir, você não se feche à possibilidades de realmente se entregar para alguém que
saiba abrir esse coração gentil e afetuoso que se esconde por trás dessa sua seriedade.
_Eu te amo, falei pela primeira vez. Sei que talvez não seja dessas pessoas românticas
estereotipadas pela mídia mas saiba que se não houvesse sentimento aqui (apontei para
o meu coração), não estaríamos juntas por sete anos.
_Eu sei amor, mas não duvide de seu coração, disse colocando a cabeça sobre meu
ombro e fechando os olhos. Quero apenas descansar um pouco. Não se torture muito, eu
sei que você me ama a seu modo e foi o suficiente para mim. Te amo demais e espero
ter te feito feliz também.
_Como nunca imaginei ser Bianca. Quero que saiba disso, terminei de falar a abraçando
mais forte ainda, cobrindo nossos corpos nus.
_Feliz aniversário, ela sussurrou em meu ouvido. Já passou da meia noite, então já
posso desejar toda a felicidade do mundo, completou com um leve beijo na minha boca
que ansiava pela sua, mas me contive.
_Vou repetir novamente, você já é minha felicidade Bianca e nada mais preciso desejar,
falei enquanto beijava sua testa, percebendo que ela adormecia.

No dia seguinte, a vida me deu de presente a dor. Ao acordar naquela manhã ainda com
Bianca em meus braços, senti seu corpo frio e ela não mais me respondeu. Estava morta
e a abracei como se pudesse passar minha força vital para ela. Chorei como a muito não
chorava de desespero, como uma náufraga no meio do mar da vida, de remorso por
sentir que realmente não tinha amado Bianca como ela merecia. Fiquei ali não sei dizer
quantos minutos agarrada em seu corpo até ouvir o toque do telefone. Demorei um
pouco para me dar conta, mas o barulho era insistente e ao atender, doutor Jaime ao
perguntar pela filha, entendeu a minha súbita mudez.

Depois tudo se passou muito rápido. Quando me dei conta, já estávamos no velório, em
uma capela fechada, mas que não impediu a presença de fotógrafos e repórteres, já que
a família era tradicionalmente conhecida.

Doutor Jaime pareceu melhor preparado que eu, talvez os anos de medicina o tenham
ensinado quando se perde a batalha para a morte. Eu estava em um estado quase
catatônico e muito tempo passou para que eu percebesse a presença de Edu e Carol ao
meu lado. Muitas pessoas da dita sociedade apareceram e até davam entrevistas a porta
da capela, demonstrando um pesar fingido, já que a maioria não convivia com Bianca.
Eu permaneci ali do lado do caixão todo o tempo, não me importando do que seria dito.
Doutor Jaime se retirou quando era madrugada, muito abalado mas controlado e insistiu
que eu também fosse descansar.

_Eu prometi ficar ao lado dela até o fim, disse simplesmente e ele não falou mais nada.

Estava amanhecendo quando João conseguiu chegar. Não disse nada, só me abraçou e
me senti confortável naquele abraço irmão. Comentou que o pai mandava lembranças e
que estava muito sensibilizado. Perguntei por Mariana e ele comentou que estava bem, e
que logo seria pai. Eu consegui sorrir timidamente e dar-lhe os parabéns.

_Você não brinca em serviço, hein rapaz?


_É seu Pedro que não agüentava de vontade de ter um neto; ele disse.

Ele ainda com aquele seu jeito brincalhão tentou me animar mas confesso que eu não
ouvia mais nada. Minha mente estava longe e foi chegar até Júlia. Não tinha como eu
não lembrar que hoje também era aniversário dela, e que momento mais distante não
poderia ser. Ela provavelmente comemorava vida, sim, pois a pequena Maria Eduarda
tinha nascido no fim do mês de março, o que foi notificado com grande repercussão na
época por revistas de fofocas. Em todas, tinha a foto do casal feliz e da pequena
herdeira. Lembro-me de Bianca comentar que com a criança no colo, sua expressão
estava tão feliz, diferente da Júlia que tínhamos visto em Nova York. Tinha certeza que
naquele momento, ela estava tendo o melhor aniversário de sua vida, porque estava
cercada por pessoas amadas, com a filha nos braços, outra vida que agora dependia da
sua. E eu estava me despedindo da pessoa que talvez mais tenha me amado nessa minha
curta existência de perdas.

Pela manhã foram chegando mais gente, os amigos da clínica, o pessoal do meu jornal,
Seu Alberto e dona Matilde e muitas pessoas que na sua curta vida, de alguma forma
Bianca tinha influenciado.

Doutor Jaime se aproximou, eu nem o tinha visto chegar e me disse que já era hora.
Antes de fechar o caixão, ele tentou dizer algumas palavras, mas a emoção tomou lugar
e sua voz deu lugar a lágrimas.

_O que o doutor Jaime quer dizer, falei com a voz surpreendentemente firme; é que
Bianca modificou de um jeito único a vida de todos que tiveram o prazer de conviver
com ela, pois ela era a generosidade em pessoa e se fez presente de uma forma
permanente em cada dia de nossas vidas e assim será até o fim, pois o que aprendi com
ela levarei para sempre, me tornei um ser humano melhor. Fique em paz minha amada
Bianca e nos ajude a aprender a viver sem sua presença de amor; terminei de falar, e sob
o olhar até surpreso de muitos, beijei seus lábios frios e segurando com carinho sua mão
esquerda retirei a aliança que ainda estava ali e a coloquei junto a minha. Em sua mão,
depositei a velha medalha de Nossa Senhora do padre Antônio e tive a esperança que
assim que ela o encontrasse a devolvesse, quem sabe, já dizia o poeta, que há mais
mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia, então que assim seja.

Só sei que assim que aquele caixão desceu à sepultura, era enterrado ali também meu
coração, ainda mais fechado que na época que Bianca me conheceu. Ela foi o pequeno
feixe de luz que penetrou em sua camada escura, mas que agora se fechava novamente.

Capítulo 13: Sobrevivendo

Como entrar naquela casa sem Bianca? Tive que descobrir da maneira mais dolorida
como seria depois do velório. Passei a primeira noite olhando para o teto e a procurando
por toda a cama desesperadamente enquanto chorava abraçada ao travesseiro que tinha
o cheiro de seus cabelos. E quando me dei conta, uma semana já tinha se passado. Não
atendia a telefonemas e nem queria falar com ninguém. Não sei o que me mantinha ali,
talvez a esperança que Bianca voltasse, eu estava tão acostumada a pertencer a ela que
supunha não conseguir mais ser só e por outro lado, não queria aceitar que outra pessoa
entrasse em minha vida. Engraçado que foi nesse momento que meu lado criativo se
aflorou mais e passava horas seguidas escrevendo tudo que vinha em minha mente.

Outra semana começou e me pegou como vinha acontecendo nas últimas noites,
escrevendo em frente ao computador, quando tocou a campainha e nem um movimento
foi feito em direção a porta. Depois da insistência, começaram quase a esmurrar a porta
da frente e a gritar meu nome e como se despertasse reconheci a voz do doutor Jaime.
Ao abrir a porta, me deparei com um homem abatido e mais magro, mas com olhar
firme e determinado.

_Tento falar com você há dias e já estava imaginando o pior, foi comentando
preocupado.
_Sobre? Perguntei seca.
_Sei que você está sofrendo filha, disse carinhoso ignorando minha grosseria, mas tenho
certeza que Bianca não iria querer vê-la trancada aqui dentro; nem física, nem aqui,
falou colocando a mão sobre o meu coração. Ninguém mais que eu vai saber como é
difícil acordar e saber que nunca mais poderei tocá-la como faço com você agora. Não
foi só uma parte de mim que morreu com Bianca, mas a tradição de toda minha família
e seu nome que vão morrer comigo.
_Melhor viver uma vida como a sua doutor, distribuindo vida por onde passou do que a
maldição da minha, que tudo que toca morre.
_Quem disse isso filha? Nunca vi minha filha tão feliz em toda sua vida apenas por
estar ao seu lado. Não se culpe pelo que aconteceu, foi uma fatalidade e você não
honraria a memória de minha filha se ficar aqui dentro trancada quando há tanta coisa
para se fazer lá fora.

Suas palavras me remeteram a lembrança de Bianca que sempre pensava em algo que
pudesse fazer para colaborar pelo bem comum. Ela era assim, pensava antes no bem dos
outros que nela própria. Realmente Bianca iria querer que eu continuasse de onde ela
tinha parado e percebi que era isso que o doutor Jaime tinha ido fazer ali, me passar o
legado que ela tinha deixado. Levantei-me e pedi licença e pela primeira vez naquela
semana, lavei o rosto e me olhei no espelho. Não era aquela pessoa derrotada que
Bianca amava, mas sim a decidida que enfrentou e enfrenta obstáculos para alcançar
seus objetivos.

Voltei para sala e encontrei o doutor Jaime com uma foto nossa em algum dia feliz na
mão.

_Ela está tão bonita aqui, me disse como se fosse um lamento.


_Fique com ela doutor, as minhas melhores lembranças de Bianca não estão em nossas
fotos juntas. O senhor tem razão, Bianca iria querer que eu continuasse a vida, não pelo
simples ato de viver, mas de fazer da minha vida algo que gere frutos para muitos.
_Eu sei e por isso estou aqui, falou retirando a foto do porta-retratos e a guardando no
bolso do terno. Você e Bianca eram legalmente reconhecidas como um casal e com sua
morte, você é herdeira de seus bens.
_Eu não quero nada doutor, falei apressadamente. Não é isso que eu queria de Bianca.
_E eu não sei, mas não seja orgulhosa ao ponto de não aceitar o que lhe é de direito.
Tentei argumentar e ele me mandou calar e o escutar.
_Bianca era minha única filha e claro que com isso tinha bens, não só por mim, mas
também por parte da mãe, que também era de uma família rica. Mas isso não a impediu
de querer conquistar seus próprios frutos através de muito trabalho e esforço. E agora
vejo a possibilidade de seu esforço ser em vão se você não aceitar os frutos desse
esforço, até porque por testamento, você é minha herdeira também.
_Me desculpe doutor, eu me sinto honrada por tudo isso, mas sinceramente eu não
saberia viver nesse seu mundo de aparências, regras e falsidades. Era um esforço
enorme e o senhor sabe, conviver com a maioria das pessoas que freqüenta sua casa, só
para começar. Elas nunca me olhavam como outro ser humano e às vezes penso que a
maioria me achava mais uns dos adereços que Bianca tinha.
_ E desde quanto você se importou com os olhares ou dizeres dessa gente? Você os
enfrentou de frente e ganhou a batalha com seu talento e personalidade. E é por isso que
estou aqui para lhe propor que me ajude a dar ao nome de minha filha a honra que ela
gostaria. Pensei em criar uma instituição com o nome dela que atendesse crianças
carentes e doentes por esse país enorme ou onde mais seja necessário. E aí, filha, topa
essa luta? Perguntou esperançoso.
_Doutor a cada dia descubro porque Bianca tinha tanto orgulho de ser sua filha, sorri de
volta lhe dando um forte abraço.

A partir daquele momento estava criada a Fundação Bianca Albuquerque para crianças
carentes e após alguns entraves legais necessários para o andamento de nossas
intenções, se passou um mês, tempo necessário para meu desligamento do jornal, sobre
muitos protestos de seu Alberto, que claro entendeu, mas nem por isso ficou menos
decepcionado com a minha saída.

Precisava de novos ares e fui buscá-los em outros países. Doutor Jaime ficou
encarregado da supervisão no Brasil, mas eu já sentia a necessidade de conhecer outras
temáticas e me aventurei por outros caminhos. E foi no final daquele ano de 2003, que
eu me mudei primeiro provisoriamente para Nova York, mas com o passar dos anos, se
tornou o mais próximo de um lugar para chamar de lar, um lugar para se voltar. Fui
levar a nossa ajuda a países onde o poder público não se lembrava de seus cidadãos,
começando por uma viagem de quase um ano pelos países de nosso continente irmão, a
África. Lá vi vidas humanas se perderem por faltar-lhes o mais básico, como comida,
água e um tratamento de saúde digno. Mulheres oprimidas sem voz ativa, crianças
usadas como moeda de troca para armas de guerras onde irmãos lutavam contra irmãos
há tantos anos que eles nem sabiam mais porque matavam ou morriam. Pessoas
mutiladas não só física como mentalmente, sem esperanças ou expectativas. No inicio
do ano de 2005, lancei através de uma editora americana “África – A voz do continente
esquecido”, relatando justamente os horrores vistos nos países africanos, o que parece
abriu os olhos da comunidade internacional para aquele continente abandonado pelas
autoridades mundiais. Foi um sucesso de público e crítica, traduzido para muitas línguas
e que serviu de base para um documentário de um jovem cineasta inglês, que acabou
ganhando muitos prêmios cinematográficos a qual tive alguma participação na edição
do mesmo e no roteiro claro, mas ver o rosto sem esperança daquelas pessoas era o
combustível para que eu continuasse a minha luta. Como no poema de Castro Alves,
tantos anos antes, o sofrimento talvez hoje fosse diferente, mas os frutos eram os
mesmos, a desigualdade. Eu era apenas o meu trabalho, não havia espaço para mais
nada ou ninguém.

Encontrei-me na época novamente com o Doutor Jaime em Los Angeles para a entrega
de mais um prêmio para o documentário, já que fazia mais de um ano que nos
falávamos apenas por telefone ou e-mail e ele não podia estar mais feliz, parecia até
mais jovem. O trabalho com adolescentes e crianças tinha o ajudado a redescobrir
dentro de si, uma força jovem escondida há alguns anos.

_Filha que saudade, me abraçou forte. Não faça assim com o coração desse velho
porque estou morto de saudade. Deixe-me olhar para você, como está bonita meu Deus,
a África lhe deu uma cor toda especial, terminou de falar me beijando a testa.
_Não foi só uma corzinha que a África me deu doutor, mas experiências de vida que
vão me acompanhar para sempre, respondi no mesmo sorriso.
_E eu não sei? Estou tão orgulhoso! Você é o assunto do momento. Todos querem uma
palavra com você.
_E eu correndo de todos eles, brinquei. Mas o que traz o senhor aqui?
_A saudade não é motivo mais que suficiente, ora essa? Eu sabia que você estaria aqui e
vim para além de te ver, contar as boas novidades sobre nossa fundação. Vamos abrir
mais uma unidade para crianças com câncer agora no Nordeste, ainda estou estudando
qual o estado, mas logo teremos mais uma casa de apoio.
_Maravilha, doutor. Vou manter contatos com alguns amigos americanos que adorariam
ajudar.
_Você já fez muito, filha, levando nosso nome para ser conhecido internacionalmente,
porque você sabe, estamos sempre precisando de ajuda.
_E o senhor como vai indo? Parece até mais jovem, isso é só trabalho ou tem alguma
pessoa especial por trás dessa juventude? Comentei feliz.
_Ninguém, mas muitos me fizeram querer abrir os olhos e levantar todas as manhãs,
estou me sentindo útil como a muito não me sentia. Cada criança que me abraça ao se
despedir, é um filho meu que parte para passar para frente essa corrente do bem, que
ainda há chances para um mundo melhor. E você claro, que mesmo longe de mim, me
enche de orgulho quando sai uma matéria falando sobre seu talento. Segurou as minhas
mãos e olhou as duas alianças na mão esquerda e por um momento deve ter batido a
saudade da filha, mas logo passou com um sorriso e completou:
_Vim te convidar para que depois da premiação venha jantar comigo porque tenho
novidades e vou precisar mais que nunca de sua ajuda.
_Claro doutor, será um prazer.
Como de praxe, todas as premiações desse nível são regadas de muitas emoções e
alguns números meio que armados, mas aquela noite eu estava feliz como muito não me
sentia e após nosso documentário ser aplaudido de pé por todos os presentes, o diretor
agradeceu em nome de toda sua equipe e em especial à minha luta e persistência que
serviu de inspiração para mostrar um mundo que a mídia fazia questão de ignorar.
Quando todas as luzes se voltaram para meu rosto me abateu um surto de timidez e mal
consegui me levantar e agradecer tantos elogios com um aceno em direção ao diretor,
mas com vontade de me enfiar em um buraco próximo.

Depois de algumas entrevistas marcadas com alguns órgãos de diversos meios de


imprensa, consegui me encontrar com o doutor Jaime em um restaurante badalado, mas
discreto para ouvir o que ele tinha a dizer.

_Bem como se sabe, foi logo dizendo, nossa fundação atualmente tem muitos patronos
estrangeiros, graças muito a você claro e um deles me ligou em nome de uma famosa
artista a qual tenho que confessar ser grande fã e me comunicou que ela estaria disposta
a fazer um grande espetáculo, com a renda toda revertida para nós.
_Ela? Perguntei curiosa.
_Sim, Júlia Franco Vasquez se dispôs a fazer uma grande apresentação juntamente com
a orquestra londrina, onde agora reside e onde se apresentariam também alguns
renomados tenores e sopranos, seus amigos, que também estariam dispostos a colaborar.

Um súbito arrepio desceu pela minha espinha e foi com a voz meio falhando que
perguntei:
_O que o senhor quer que eu faça? Já temendo a resposta.
_Você sabe que eu não posso me ausentar muito do Brasil, aliás, estou voltando amanhã
para lá, então gostaria que você fosse a Londres para acertar os detalhes.

Quase sai dali correndo e gritando que não, mas quem me visse não iria imaginar o que
se passava dentro de meu espírito. Foi da forma mais neutra possível que falei:
_Por que eu? Não teria mais ninguém para isso? Tenho alguns compromissos aqui e não
sei se posso adiá-los.
_Você é nossa cara no mundo Luiza; falou agora sério. Tenho certeza que nada seria
mais importante nesse momento. Pense bem, um espetáculo como esse com grandes
nomes da música clássica no continente europeu, não só arrecadaria muito como
chamaria a atenção da mídia daquele continente nos abrindo portas até então fechadas
por lá.
_E para quando seria isso?
_Bem, se possível para essa semana mesmo. Você vai entrar em contato com Sir
Robert, maestro da orquestra londrina, e ele intercederá nesse encontro. Pense bem
Luiza, é uma oportunidade única e você também está precisando de um descanso,
aproveite a estada para dar um passeio pela Europa, quem sabe.
_Como entro em contato com esse homem? Perguntei ainda como se fosse uma
máquina que estivesse ali.
_Aqui tem o telefone para vocês marcarem a data e hora da chegada em Londres. Ele
faz questão de te apanhar no aeroporto. Ele já é um senhor de quase sessenta anos mas
ainda muito ativo.
_Procurarei não decepcionar doutor e espero que valha a pena.
_Você não me decepciona nunca filha e boa sorte. Muitos dependem disso.
Ao sair daquele restaurante, tinha a sensação que algo em meu destino, em algum lugar
tinha sido conectado com o de Júlia e por mais que eu tentasse, sempre acabávamos nos
achando pelos caminhos da vida. Preparei-me para esse encontro como se fosse uma
atriz, nunca deixaria transparecer meus verdadeiros sentimentos, até porque sem que eu
quisesse saíram de algum lugar trancado e agora voltavam à tona apenas com o simples
ouvir de seu nome.

Capítulo 14: Novamente Júlia

Londres naquela manhã de sexta feira estava nublada como sempre e assim também
estava meu espírito. Como era de costume, o avião pousou conforme a conhecida
pontualidade britânica e não tive problemas em identificar uma placa enorme com meu
nome nas mãos de um rapazinho tipicamente inglês, muito branco e de olhos claros.

Em inglês perguntei se era ele meu contato e ele muito educadamente pediu desculpas
em nome de Sir Robert que tinha compromissos inadiáveis aquela manhã, mas que ele
estava à minha disposição para o que fosse necessário.

Estava muito cansada e pedi se não fosse incômodo para ele me levar para um hotel
primeiramente. O lugar escolhido era chique até demais para meu gosto, mas estava
cansada para discutir.

Ele aguardou no saguão enquanto eu me banhava e comia alguma coisa. Não se


passaram 45 minutos e eu estava preparada para meu encontro com Sir Robert. Ele
muito prestativo abriu a porta do carro e foi quando perguntei seu nome.

_John, me disse e Sir Robert é meu pai, falou com aquele sotaque tão tradicional e
diferente aos meus ouvidos acostumados ao inglês falado na América. O incentivei a
falar mais de sua vida e ele que era muito jovem aproveitou a deixa para me contar que
era músico, um violonista na verdade e com apenas 18 anos já tinha planos para tocar na
orquestra do pai, tão conceituada mundialmente.
_Aposto que por isso deve ser mais cobrado que os outros candidatos.
_Com certeza, meu pai nunca me deu privilégios por ser seu filho. É como a senhorita
diz, ele realmente me cobra mais que os outros nos ensaios.
_Mas se esse é seu sonho, não desista, o incentivei.
_Gostei muito do documentário da senhorita sobre as mazelas africanas. Gilbert é amigo
de minha família e falou muito bem da senhorita.
_Gilbert é que é muito talentoso com sua câmera, falei com modéstia. Ele soube
capturar com suas lentes as emoções daquelas pessoas.
_Mas foi a senhorita que mostrou os caminhos e indicou o que ser filmado, disse com
admiração.

O trajeto foi curto porque a conversa estava agradável e John me pareceu apesar de
jovem ainda, muito diferente desses adolescentes egoístas e consumistas vistos por aí.
Em menos de 20 minutos, o carro entrou em um condomínio tranqüilo e pelas casas
avistadas, de alto poder aquisitivo. O carro parou em frente a um portão muito alto
como seus muros e dava para ver por fora que o terreno era enorme. Ele apertou o
interfone e informou que estávamos ali e então o alto portão de ferro se abriu
eletronicamente e aí sim deu para avistar a mansão que ele escondia, construída em um
estilo quase vitoriano, com um bem cuidado jardim na frente. O carro parou e foi
quando a porta de entrada se abriu e saiu de lá um daqueles estereótipos criados em
livros e filmes do típico mordomo inglês.

John saiu do carro e correu para abrir a porta para mim, e me apresentou o homem que
estava todo empertigado parado na entrada.

_Harold, essa é Miss Cavalcanti e sua patroa a espera.

Só aí me dei conta que não seria com o maestro o encontro e um pavor inesperado me
fez ficar petrificada na entrada, pois temi ser ali a casa de Júlia e pensava que seria
necessário um pouco mais de tempo para me acostumar com essa idéia. Com toda
polidez necessária para sua profissão, Harold disse que eu já era aguardada e meu pavor
aumentou ao perceber que John se dirigia de volta para o carro.

_Você não vai me acompanhar? Acho que minha voz quase saiu em desespero.
_Infelizmente tenho ensaio e Mrs. Júlia já tinha comentado que vocês se conheciam,
então acho que não é indelicado de minha parte deixá-la. Harold providenciará para a
senhorita um automóvel para seu retorno ao hotel em segurança, certo, Harold?

O mordomo confirmou com um simples aceno de cabeça e indicando com o braço o


caminho, me acompanhou enquanto fechava a porta.

Tenho que dizer que eu comecei a suar como se estivesse no deserto do Saara e
mentalmente tentava me controlar enquanto seguia por aqueles enormes corredores o
gigante mordomo que caminhava a minha frente. Não reparei em nada e não conseguiria
descrever, mas com certeza era um ambiente agradável e de bom gosto.

Chegamos a uma porta toda trabalhada, onde Harold apenas deu dois toques e a abriu
onde deu para ouvir a música que era tirada do piano que era tocado. Ele apenas indicou
o caminho e se retirou fechando a porta atrás de mim, nos deixando sozinhas. Foi
quando a vi, ainda de costas e tocando com delicadeza nas teclas, tirando dali uma
música suave, que não sei se ela sabia ou adivinhava, teve o poder de me acalmar.
Estava com um vestido branco simples que realçava ainda mais seus cabelos vermelhos,
que estavam mais compridos que da última vez que a vi, mas não menos rebeldes
enquanto os pés descansavam descalços sobre um grosso tapete. De repente ela parou de
tocar mas permaneceu com as mãos sobre as teclas. Levantando a cabeça a inclinando
para trás com os olhos fechados deu um longo suspiro e depois falou:
_Passam-se os anos e ainda consigo reconhecer seu cheiro em qualquer lugar. É
diferente de todos os outros, tem cheiro de saudade de um tempo que não volta mais e
se virou para me olhar com aqueles olhos azuis mais lindos do mundo, ou como diria
doutor Jaime, porta de mistérios.
_Saudades do passado? Falei sarcasticamente abrindo os braços. Olhe a sua volta Júlia;
conquistou tudo o que sempre sonhou, portanto imagino que o presente se faça muito
mais agradável.
_Nem tudo, disse-me com um sorriso triste. Mas tem razão, estaria mentindo se falasse
que não realizei quase todos os meus sonhos; mas você mais que qualquer pessoa deve
saber que é do ser humano não estar totalmente satisfeito, ele sempre vai buscar um algo
a mais e o que seríamos se acordássemos e não tivéssemos mais nada para realizar?
Lembro-me agora das fotos que saíram na internet quando do enterro de sua mulher
(disse frisando bem a palavra); e me pareceu que você estava muito abalada, mas
olhando para você agora, percebe-se que novamente voltou à caça de novos projetos, se
reergueu e para isso é preciso coragem.
_Não foi coragem que me fez superar a falta que sinto de Bianca em minha vida; disse
com toda sinceridade que estava sentindo naquele momento. Mas a certeza que era isso
que ela iria querer e que minha vida deveria seguir porque poderia beneficiar a muitas
outras.
_Pensamento muito nobre e talvez eu possa ajudar um pouco nessa sua luta.
_É por isso que estou aqui. Sir Robert entrou em contato com meu sogro (disse frisando
bem a palavra) e nos comunicou de seu interesse em nossa instituição.

Ainda estávamos em pé e ela parece que se lembrou disso e se encaminhou com toda a
sensualidade de seu andar em direção a um confortável sofá de couro negro que só
agora tinha percebido no ambiente.

_Me desculpe, vamos nos sentar para discutir isso. Você deseja beber algo?

Ela nem imagina o que me passou pela cabeça e que realmente mataria a secura que
arranhava minha garganta, mas procurei tirar esses pensamentos da cabeça, deve ser o
tempo sem sexo, tentei me convencer. Mas por segurança me sentei na outra ponta do
sofá, só para garantir, pensei.

_Não obrigado, passei pelo hotel antes e deu para descansar um pouco e me alimentar.

Foi nesse momento que a porta se abriu e entrou uma moça toda de branco com uma
criança nos braços e ela que vinha toda sorridente fechou o rosto ao ver outra pessoa na
sala.

_Perdão, não sabia que a senhora estava com visitas, falou num francês perfeito ao qual
Júlia respondeu na mesma língua.
_Não importa, Gisele. Dê-me Duda e voltando ao português disse-me:
_Quero que conheça meu precioso tesouro e me mostrou sua filha que me pareceu
tímida a principio se escondendo nos cabelos da mãe.
_Vamos Duda diga olá, falou segurando com delicadeza seu pequeno rosto e se não
fosse pelos cabelos negros herdados do pai, diria ser a cópia de Júlia, com os mesmos
olhos azuis, um pouco diferentes da mãe, pois se percebiam mais escuros, os de Júlia eu
só tinha visto daquela cor na hora do orgasmo. Pensei em sexo de novo, que saco; quase
disse em voz alta.
_Como vai pequena? Sabe que você é muito linda, disse tocando levemente seu rosto.
_Ela não é tão tímida como parece, falou Júlia dando um beijo na testa da filha. Mas é a
hora dela tirar a soneca da tarde e por isso está dengosa não é meu anjo? E devolveu a
filha para Gisele que me olhava agora com um olhar que para mim pareceu de ciúmes.
_Pode levá-la Gisele, deu a ordem em francês e Gisele se limitou a abaixar a cabeça e
sair discretamente da sala, fechando novamente a porta.
_Desculpe-me não queria ser grosseira, mas Gisele só usa o inglês fora daqui e quando
se é extremamente necessário.
_Não se preocupe, eu entendo bem o francês, Bianca me incentivou além do inglês a
aprender outras línguas. Sua filha é linda e se parece com você, quantos anos ela tem?
_Vai fazer dois, mas já fala quase tudo, misturando inglês, francês e português, disse
sorrindo das habilidades lingüísticas da filha.
_Idade certa para o aprendizado. Tive muitas dificuldades a princípio, mas Bianca
sempre me incentivava, além de ser uma excelente professora com métodos bastante
eficazes. Arrependi-me na mesma hora, pois me lembrei de quão excitantes eram suas
aulas e me senti molhar como a muito não sentia. E decididamente aquele não era o
melhor momento, avisava meu instinto.

Júlia deve ter percebido o meu rubor e eu decidi sair dali imediatamente antes que
fizesse algo que me arrependeria.

_Acho melhor deixar essa conversa para amanhã Júlia porque realmente me bateu o
cansaço da viagem, disse já me levantando apressadamente.
_Como queira, amanhã venha jantar comigo e resolveremos os detalhes, tenho muita
gente interessada em participar.
_Que bom, então amanhã acertaremos tudo. Pode pedir para seu mordomo chamar um
táxi para mim?
_Sem problemas e até amanhã e pegou a minha mão e com um leve toque de seu
polegar passeou sobre as duas alianças presentes no meu dedo, mas nada disse.
Enquanto eu mais que depressa soltei a sua como se tivesse levado um choque elétrico.

Júlia pegou um pequeno sino que estava sobre a mesa e o tocou e em alguns segundos,
Harold apareceu e ouviu com a mesma expressão impenetrável as ordens de sua patroa
me pediu para acompanhá-lo o que fiz sem olhar para trás. O transporte demorou uns 10
minutos para chegar e nesses longos minutos tentei buscar algumas informações da vida
de Júlia, mas Harold se saiu bem ao não me passar nenhuma informação, dentro de uma
discrição polida.

No caminho do hotel, fiquei imaginando que não tinha me saído tão mal, tinha
conseguido controlar meus instintos, mas percebi que se tivesse ficado ali mais alguns
minutos, isso seria impossível. Também notei que apenas com a filha nos braços, vi
novamente em seu olhar aquele seu brilho característico. Talvez fosse como dizia
Bianca, alguém que podia ter tudo, fosse mesmo muito infeliz e sem querer fiz a
comparação entre ambas. Bianca teve as mesmas oportunidades que o dinheiro podia
comprar, mas creio que a presença amorosa do doutor Jaime foi o ponto decisivo em
como ambas encararam a vida de menina rica. Talvez não tenha sido culpa de Júlia,
porque imagino que não deva ter sido agradável ser filha de dona Catarina. Como será
que ela estava após a morte do marido? Quem sabe no jantar eu pergunte, pensei. E o
marido? Será que estaria presente? Como será que era o relacionamento de ambos? E
aquela babá? O olhar dirigido a Júlia eu reconhecia: era adoração, será que Júlia traía o
marido com a empregada? Sem querer um pequeno e inconveniente ciúme amargou
minha boca, o que achei estúpido de minha parte e decidi que não tinha nada com isso.

Realmente ao chegar ao hotel, abateu-se sobre mim o cansaço mencionado e dormi


quase todo o dia, indo acordar já pelas 8 horas da noite e aproveitei para ligar para o
doutor Jaime.
_Estava ansioso esperando suas notícias, logo foi falando. E como foi? Já tem algo em
andamento?
_Tive apenas um pequeno encontro com nossa artista, fui tratando de esclarecer.
Marcamos de nos encontrar amanhã em um jantar para discutir os detalhes, disse.
_Muito bem, filha. Espero que dê tudo certo, completou. Algo que tenho certeza que
será um sucesso como tudo que você se propõe a fazer. Conversou com o maestro
também?
_Não tive esse prazer, mas conheci o filho que bancou meu cicerone, mas vou tratar
disso antes do jantar de amanhã.
_Então boa sorte e me ligue com as novidades.
_Até mais doutor, disse terminando a conversa.

Ao desligar o telefone quase que imediatamente o mesmo tocou. Era John me


convidando para jantar o que aceitei com a condição que ele me apresentasse o pai. Ele
concordou rindo muito e disse que o velho maestro também estava com a mesma
curiosidade.

Passou para me pegar com a pontualidade britânica exatamente na hora marcada e


fomos direto em direção ao teatro onde a orquestra ensaiava. Chegamos quando ainda
estavam tocando e o maestro estava de costas e com toda energia comandava seus
músicos. Ficamos ali por alguns minutos até o final do ensaio; e foi quando Sir Robert
avistou o filho e veio em nossa direção.

_Pai, essa é Luiza Cavalcanti, o contato da fundação para a apresentação, foi


apresentando John.
_Muito prazer, senhorita, foi logo pegando minha mão e a beijando. Pela vitalidade
demonstrada o maestro não aparentava realmente a idade que tinha.
_O prazer é todo meu, maestro. Seu filho me falou muito do senhor.
_Espero que apenas coisas boas, disse logo sorrindo. Mas diante de uma dama tão bela,
agora sei que também foram verdadeiras as palavras ditas por ele em relação à
senhorita; disse e percebi em John certo rubor.
_Duvido muito, seu filho é que é muito gentil, completei.
_O senhor com que falei por telefone no Brasil também me pareceu seu fã.
_O doutor Jaime é suspeito em falar sobre mim, pois é quase um pai, então quero que o
senhor tire suas próprias conclusões após minha passagem por aqui, o desafiei.
_Claro que sim e conte com isso mocinha, até porque muitas vezes peco pela minha
sinceridade.

Reconheço que o jantar foi muito agradável. Sir Robert era uma figura a parte, me
contou como ganhou o título e acho que até uma lágrima vi rolar de seus olhos quando
se referiu a Vossa Majestade. John estava mais calado, deixou o pai ser o centro das
atenções, mas não deixei de perceber seus olhares e pensei que era só o que me faltava,
ser objeto de desejo de um quase adolescente. Tratei logo de acabar com qualquer que
fosse suas ilusões, colocando o doutor Jaime na conversa, quando Sir Robert quis saber
um pouco mais da fundação e principalmente quem era Bianca e o porquê de seu nome
para caracterizar tão nobre ideal, disse ele.

_Bianca foi a pessoa mais nobre que conheci; filha do doutor e minha mulher, disse
para o espanto de John e um olhar que não soube definir de Sir Robert, que me
surpreendeu mais ainda ao dizer que já tinha ouvido falar dela.
_Queria só sua confirmação, mas já conhecia a estória do casamento de vocês e até a
forma trágica para o fim dele, comentou.
_Espero que isso não interfira com qualquer uma das decisões que vamos tomar,
respondi preocupada.
_Já vivi muito minha jovem para saber que a cada um é reservado o direito de escolha e
se você fala com tanto pesar sobre a falta de uma pessoa, independente de eu aceitar ou
não o tipo de relação que ambas tenham tido, eu só posso lamentar sua perda e desejar
que encontre novamente a felicidade em seu coração. Respeito o trabalho a que se
dedica e as conseqüências e frutos por eles produzidos são na verdade o que importa,
completou.
_Obrigado por sua compreensão e carinho, Sir Robert, mas creio que se o senhor tivesse
o prazer de um dia conviver com Bianca, entenderia que tudo que eu faça ou vá fazer é
pouco para honrar sua memória. Mas como o senhor ficou sabendo? Falou mais forte
minha curiosidade, apesar de já imaginar a resposta.
_Júlia me contatou há algum tempo após assistir o documentário baseado em seu livro,
ótimo por sinal e comentou sobre os motivos para sua luta e achei interessante a idéia de
poder contribuir nem que seja um pouquinho com esse trabalho.

Eu já adivinhava a resposta, mas precisava ter certeza. Então seria por acaso ou haveria
real interesse de Júlia em minha vida? Pensando em quais seriam seus reais motivos me
distraí e Sir Robert teve que me acordar de sonhos que achei que estariam distantes.

_A senhorita me parece cansada e amanhã deve tirar o dia para descansar e decidir da
melhor forma possível com Júlia como será montado o espetáculo. Confio plenamente
em ambas e seja o que decidam, eu acatarei.

Depois o jantar logo se encerrou porque para um dia apenas, tinha tido muitas emoções.
No caminho até o hotel, John pouco falou, mas ao chegarmos, ao abrir a porta segurou
meu braço com certa força e logo disparou:
_Você a amava?
_John uma vez quase perdi um grande amigo porque ele como você achava que nutria
por mim algum tipo de sentimento diferente da amizade. E eu disse a ele que havia
muitas formas de amor e o que nos ligava, não era o tipo de amor que eu dividia com
Bianca. Apenas o conheci hoje, mas tenho a certeza que se você quiser e deixar será
para mim um amigo amado, mas mentiria para você se falasse que seríamos mais que
isso.
_Agradeço a franqueza, falou e me pareceu conformado.
_Você me parece um bom rapaz e acredito que logo encontrará a pessoa certa para você,
só dê tempo ao tempo. Quando você menos esperar, ela vai bater com força na sua
frente, ainda tentei brincar. Foi assim comigo e Bianca e sem procurar ela veio até mim.
Tive sorte de poder dividir sete anos com ela e tudo que vivi, guardarei em um lugar
especial em meu coração.

Despedi-me com um leve beijo em seu rosto. Ao me deitar aquela noite, foi em Júlia
que fui buscar os pensamentos que pensava não existirem mais e na força que teria que
fazer para resistir a sua presença no dia seguinte. Se eu tivesse sorte, ela estaria com o
marido, o que me despertou sentimentos ambíguos de dor ao sabê-la de outro e alívio
por estar fora do alcance de seu fascínio.

Acordei tarde no dia seguinte, parece que realmente toda a tensão do dia anterior tinha
se abatido sobre mim. Já passava das onze e pedi um café mais reforçado porque tinha
decidido sair e fazer algumas compras, onde buscava uma roupa para arrasar no jantar
de logo mais. Pareceu-me bobagem querer mostrar-me sofisticada ou sexy diante de
Júlia, mas bateu um sabor de despeito e foi o real motivo, tipo veja só o que você
perdeu; e isso me consumiu quase a tarde toda.

Ao chegar ao hotel, havia um recado dela confirmando a hora do jantar e o endereço


correto, pois tinha sido John a me conduzir na primeira vez; e achei ótimo porque daria
tempo para um bom descanso e um banho relaxante. Ao terminar de me aprontar aquela
noite e me olhar no grande espelho que tinha naquele quarto de hotel, respirei aliviada
por saber que tinha valido a pena as horas perdidas para a compra daquele vestido,
verde como meus olhos e que valorizavam e muito minhas curvas. Prendi os cabelos
num coque nem muito formal nem muito desleixado, fazendo uma maquiagem discreta
que corrigiu as pequenas imperfeições que eu achava que pudessem existir. Chamei um
táxi que apareceu rapidamente e entrei nele, me sentindo poderosa e preparada para
qualquer coisa que viesse a acontecer naquela noite, mas o que eu não sabia e que mais
tarde se transformaria em certeza, é que na presença de Júlia, eu sempre seria aquela
menina do interior que se fascina com o simples ato de olhar para ela. Ao chegar, já
encontrei Harold na elegante entrada a minha espera.

_A senhorita já é esperada, disse de forma polida, me pedindo para segui-lo e diferente


da primeira vez, fomos direto a outra parte da enorme mansão e agora mais calmamente,
pude reparar nos pequenos detalhes e no bom gosto que mobilhava os ambientes e
descobri em cada local que passávamos o toque de Júlia.

Entramos em um tipo de sala intima e notei que havia uma mesa pequena preparada
somente para duas pessoas e tive a certeza que no jantar seriam apenas nós duas.

_Mrs. Franco Vasquez já vai descer, disse quase mecanicamente Harold me deixando
sozinha. Fiquei analisando a situação e mentalmente dizia a mim mesma para ter
controle, você está aqui a negócios, não vá por tudo a perder. Num minuto minha vida
passou rapidamente em minha mente e como cheguei até ali, o que fez não me dar conta
da entrada de Júlia com aquele seu andar fascinante e sorriso mágico. Júlia
provavelmente teve a mesma idéia que eu ao se arrumar para o encontro porque
simplesmente estava divina e me senti vítima do meu próprio feitiço. Por um momento
que não deixei ser percebido, juro que me faltou ar diante de sua beleza dentro daquele
vestido de uma tonalidade rosa que se fazia pensar quase inocente, mas que era
desmentido diante do decote generoso na frente e suas costas nuas a mostra na parte de
trás, sem falar que estava praticamente colado ao seu corpo, me fazendo perguntar como
ela teria entrado nele. Os cabelos eram como ondas revoltas de um mar vermelho de
paixão.
_Desculpe o atraso foi logo dizendo e se aproximando dando um leve beijo em minha
face me fazendo despertar de um sonho bom. É que Duda demorou um pouco a dormir,
está meio resfriada acho.
_Não se preocupe, falei saindo de meu marasmo. Você deve tentar ser uma mãe
presente apesar da vida de artista, até porque ela é bem nova ainda.
_ Ela sempre me acompanha, me confidenciou. A maternidade me fez bem, e notei que
se rosto se suavizou ao falar da filha.
_Falando em maternidade, como vai dona Catarina? Como ela está após a morte de seu
pai? Perguntei só por curiosidade e notei sua face se modificar drasticamente.
_Desconhecia esse seu interesse em minha mãe, disse quase rispidamente.
_Foi apenas curiosidade sobre uma pessoa que fez parte de meu passado, respondi em
tom neutro.
_Está vivendo em uma cama, disse simplesmente. Após seis meses da morte de meu pai
ela sofreu um derrame e veja que ironia, hoje quem cuida dela é a mulher que a vida
inteira ela fez questão de humilhar.
_Zefa? Sorri sem querer. Quero dizer, (tentei emendar) deve ser doloroso falar sobre
isso para você mas gostaria de saber como Zefa está.
_Bem, agora comanda todos os serviçais da fazenda como uma governanta sabe e vive
por lá, alias, dorme do lado do quarto de minha mãe, pois confio plenamente nela e sei
que dentro das possibilidades, ela cuidará bem de dona Catarina, deixando transparecer
o rancor ao dizer o nome da mãe.
_Que pena que se note essa rispidez de sua parte ao fazer esse comentário, Júlia. Eu que
fui abandonada pela minha, tive sorte ao encontrar em Maria a melhor mãe do mundo.
_Possivelmente teve mais sorte porque dona Catarina não estava preparada para ser mãe
de ninguém.
_Bem, deixemos o passado de lado, pois bem ou mal ele nos moldou para quem somos
hoje; quis encerrar a conversa já sabendo onde ela poderia nos levar. Em todo caso, fico
feliz em saber noticias de Zefa e logo que puder me comunicarei com João e pedirei
mais informações sobre essa pessoa tão querida para mim.
_Porque João? Perguntou curiosa.
_Ele um tempo depois que se formou, voltou para lá com Mariana. Queria me
convencer a fazer o mesmo, mas eu tinha outros planos em mente. Ele estando feliz é o
que importa.
_Quem é Mariana?
_A esposa dele, completei.
_Então ele se curou da paixão recolhida que tinha por você? Acrescentou sarcástica. Ou
será que desistiu?
_Quaisquer que sejam os sentimentos que o João tenha tido por mim, permaneceu a
amizade que será eterna, desconversei. E como disse, o passado está encerrado, nunca
me prendi a ele. Não é esse o assunto que me fez vir até aqui.
_Pois bem, você está certa. Vamos nos sentar para jantarmos? Sugeriu.

Diferente do que se possa pensar, o jantar transcorreu até de uma forma agradável e
menos tensa. Júlia tocou um pequeno sino que se encontrava ali e logo Harold apareceu
de forma discreta e silenciosa e começou a trazer o jantar e quando terminou, saiu da
mesma forma que entrou sem emitir um único som. Falamos menos de nós e mais do
nosso projeto em comum. Júlia parecia uma criança ao falar do espetáculo que pretendia
realizar e a deixei a vontade para organizar a parte artística da forma que melhor
achasse. Eu me preocuparia com a parte burocrática da coisa, além de fazer os contatos
necessários para buscar a ajuda de colaboradores conhecidos ou não. Ela estava mais
falante talvez pelo efeito do excelente vinho que tomávamos, mas realmente deu a
entender que estava muito empolgada com o concerto.

_Tenho muitos amigos interessados em se apresentarem. Todos grandes nomes da


música clássica e engajados em campanhas pelo mundo.
_Como Bianca dizia, por mais que tenha gente disposta a ajudar sempre vai existir o
dobro de pessoas necessitadas de ajuda. E sem querer o clima voltou a ficar tenso ao
ouvir a resposta de Júlia.
_A Bianca também deixava você andar na rua sozinha? Ou até para isso precisava dar
sua permissão?
_Bianca nunca foi um obstáculo para qualquer ato que eu tenha pensado em fazer, ao
contrário, ela era a mola impulsora que fazia minha vida ir para frente, pois seu amor foi
o combustível que a movia; falei duramente.
_Sorte sua, nem sei como você conseguiu continuar viva.
_Muita sorte realmente, concordei com ironia. Quando a vida me presenteou colocando
Bianca nela, ela mudou totalmente o seu curso. Algo parecido você deve ter sentido
quando se casou imagino. Aliás como é mesmo o nome do seu marido? Não vou ter o
prazer de vê-lo?
_Marco esse é o seu nome e está exatamente no Brasil, cuidando de assuntos familiares
e parece que tinha decidido deixar a memória de Bianca em paz, apesar de como dizem,
se olhar matasse, eu estaria a sete palmos naquele momento.
_Que pena, mas creio que a vida nos dará essa oportunidade; falei sem saber que nunca
iria trocar novamente uma palavra com Marco Antônio.

Ela se levantou com um olhar indefinido e convidou para nos sentarmos em um


elegante conjunto de cadeiras trabalhadas que ficavam em volta de uma pequena mesa
de centro, onde ela pegou novamente o pequeno sino e Harold voltou com uma garrafa
já aberta de champanhe com duas taças.

_Brindemos essa nossa parceria e que ela renda os frutos pretendidos, falou me
passando uma taça e propositadamente, tocando levemente com o polegar minha mão.

Senti o perigo que representava aquele toque e o sinal de alerta se acendeu. Não queria
mais ser apenas um objeto de prazer para satisfazer Júlia enquanto o marido não
estivesse, pois independente do que ocorreria tinha certeza que ela nunca seria capaz de
abrir mão da vida construída ao lado dele para ficar comigo, talvez essa fosse a forma
encontrada de ir levando a vida e me perguntava se havia em sua vida muitos amantes
para situações como aquela quando da ausência de Marco Antônio e a simples suspeita
desse fato me deixou triste e ela percebeu.

_Tem algo de errado? Perguntou com real interesse.


_Tenho que ir, disse simplesmente colocando a taça sobre a mesa. Sir Robert está
ansioso por notícias suas e de como se conduzirá tudo, então peço que logo entre em
contato com ele e me avisem assim que tiverem definido as apresentações e o tempo
previsto para o espetáculo. Pode chamar Harold e pedir para chamar um táxi, por favor?
_ Falei com Sir Robert ontem depois do jantar de vocês, disse como se não tivesse
ouvido minhas palavras, me surpreendendo com a notícia de seu interesse em meu
jantar com o maestro. Para não faltar com a verdade, ele me ligou depois do jantar de
ontem e não faltaram elogios a você. Disse que não podia estar mais bem
impressionado. E o filho então, parece que estava vivendo sua primeira grande paixão,
comentou com preocupação, já que tinha certeza que uma mulher como você jamais
sentiria alguma atração por um quase menino como de fato John ainda é; completou
Júlia de modo sarcástico.
_Situação que de minha parte foi logo esclarecida. Nunca iludiria alguém sobre
sentimentos que não poderiam ser retribuídos. Ele está apenas deslumbrado com a
novidade, mas logo descobrirá que a vida ás vezes não é o conto de fadas que
sonhávamos.
_Você fala com tanta empáfia como se estivesse acima de nós simples mortais; explodiu
Júlia com amargor. Iludir? Você julga os sentimentos dos outros, mas esconde os seus.
O que sabe sobre os sentimentos das outras pessoas? Você acha que foi fácil para que eu
entrasse naquele carro pela manhã depois de ter passado a noite com você? Terminou de
falar como se aquelas palavras estivessem trancadas em algum lugar de seu coração há
muito tempo. Mas sobre mim, surpreendentemente abateu-se uma calma e só pude olhar
para ela e dizer:
_Engana-se senhora Franco Vasquez. Os meus sentimentos eu os conheço bem e sou
madura o suficiente para assumi-los e as conseqüências resultantes dos atos por eles
praticados. Quanto à responsabilidade pelos sentimentos alheios, esperava que as
pessoas tivessem a mesma maturidade para assumirem os seus. Acho melhor nos
vermos agora apenas no dia do espetáculo e essa será a única relação existente entre nós
e deixei transparecer sim em minhas palavras um ar de superioridade, pelo menos uma
vez, queria me sentir por cima na minha relação com Júlia.

Na verdade a encarei com olhar de deboche e me dirigi rumo à porta, mas devia saber
que Júlia não aceitaria bem a situação e com força segurou com uma mão meu braço e
com a outra minha cabeça e foi como da primeira vez, me engoliu num beijo delirante,
que da inocência dos quinze anos não tinha nada. Foi um beijo lascivo, indecente
mesmo, onde a língua era um instrumento erótico, que servia apenas para dar prazer.
Sem perceber comecei a gemer dentro da sua boca deliciosa, enquanto nossas mãos se
procuravam, invadindo nossos corpos, querendo descobrir como os anos os tinham
transformado. Senti suas mãos habilidosas já buscarem meus seios sobre o vestido, me
levando em direção ao sofá praticamente me obrigando com seu olhar hipnotizante a me
sentar, enquanto se colocava entre minhas pernas buscando com as mãos a prova do que
ela me proporcionava, porque era dela toda a minha umidade. Mas quando ela afastou
minha calcinha e começou a me tocar com uma gana até então desconhecida, um último
lampejo de razão se fez presente e se me perguntarem como consegui segurar suas mãos
e me levantar dali não saberia responder, mas ainda tive tempo de ver seu olhar de
surpresa se transformar em raiva profunda antes de sair e fechar com desespero aquela
porta. Mas porque, me perguntei assim que consegui atravessar o portão e respirar
novamente. O ar daquela noite fria me fez muito bem. No fundo queria ser de Júlia mais
que tudo, não só naquela noite, mas em uma vida inteira e isso me deu forças para
resistir, a certeza que para ela seria apenas mais uma noite agradável de sexo. Hoje
pensando melhor, creio que jamais confiei em seu amor, assim como não percebi o de
Bianca, até quando foi tarde demais.

Como era de se esperar, apenas voltamos a nos ver realmente no dia do espetáculo,
ainda assim, porque inventei mil e uma desculpas para Sir Robert para não ter nem a
curiosidade de aparecer nos ensaios. Acho que ele percebeu algo, mas dentro da famosa
discrição inglesa, nada comentou. Naquela noite, fui acompanhada por John que apesar
de mais distante, fez questão de estar ao meu lado, me desejando um até breve e não um
adeus disse-me, já que eu partiria na manhã seguinte de volta a Nova York. O teatro
estava cheio de notáveis de várias partes do mundo, eu realmente tinha feito bem meu
trabalho e os grandes artistas ali presentes, fizeram o resto. Foi uma noite mágica, onde
naquele palco desfilaram as mais belas vozes da atual música clássica e a orquestra
estava inspirada, mas foi quando Júlia subiu ao palco para sua apresentação solo que
todos entraram em êxtase. Como ela conseguia trazer todos aos seus pés, realmente não
saberia dizer, mas aos primeiros acordes do piano, o teatro se fez silêncio para que
apenas ela fosse ouvida. Ao final todos se levantaram para longos minutos de aplausos.
Após agradecer elegantemente, ela pediu a palavra e num inglês perfeito agradeceu em
nome das crianças que seriam beneficiadas a presença de todos os colaboradores e de
tão queridos amigos que a ajudaram nessa missão.

_A fundação a qual se destina os fundos dessa noite, se dedica a crianças em muitas


partes do mundo e creio que sua representante gostaria de dizer algumas palavras.
Senhoras e senhores, Miss Luiza Cavalcanti.

Realmente me surpreendeu mais que as luzes em meu rosto, foi o tom seco com que
Júlia falou meu nome, mas com toda altivez que merecia o momento e até com mais
aplausos do que se era esperado, subi naquele palco sobre um olhar gélido de Júlia, que
passou de mim para John ao perceber que estávamos lado a lado. E eu não deixei que
isso me afastasse do foco de minha presença ali. Quando ela me passou o microfone,
senti que ela olhava para mim e não via nada, era como se eu tivesse deixado de existir
em sua vida para sempre. Assim era melhor, pensei, mas a indiferença dela me
machucou mais do que eu queria assumir.

_Agradeço a presença de todos e estou aqui hoje para garantir a tão nobres
colaboradores que a ajuda dessa noite realmente será utilizada para salvar vidas, muitas
vezes perdidas pelo egoísmo de um mundo cada vez mais voltado ao lucro e ao ter, nem
que seja preciso passar por cima de vidas inocentes. Lembro de ter citado nomes de
alguns colaboradores e de países onde seriam aplicados os fundos em programas para
combater principalmente a desnutrição infantil e suas conseqüências. Reparei que todo o
tempo que estivemos lado a lado, Júlia sequer uma vez olhou para mim, mas para
contrariar sua mudez e indiferença, terminei por me referir a ela, colocando em pauta
seu tão famoso orgulho. Chamei ao palco todos os artistas que se apresentaram e fiz
questão de agradecer a todos que estavam muitos amáveis para comigo, tinha até alguns
novos fãs entre tantos talentos.
_Se não fosse abusar, gostaria de fazer um pedido pessoal a tão talentosa orquestra e a
tão magnífica pianista. Foi quando me olhou surpresa e notei seu olhar faiscar. Gostaria,
continuei, que Sir Robert e tão brilhantes tenores e sopranos aqui presentes,
interpretassem para meu deleite e a do público presente, a última ária de uma das
minhas óperas favoritas: Aida de Verdi, quando a jovem Aida encontra a morte nos
braços de seu amado Radamés. Os amores impossíveis em uma obra tão grandiosa
podem parecer maravilhosos e não sei se muitos aqui presentes também já vivenciaram
esses ditos amores, mas acreditem a vida é cheia de caminhos e muitas vezes o que
pensávamos ser eterno, não passava de brincadeira de criança e descobri isso quando
conheci Bianca Albuquerque, a mulher que emprestou seu nome a obra que fazemos
pelo mundo. Ela me mostrou realmente como é amar outro ser humano, pois se doava
ao próximo a cada minuto de vida. Então agradeço se realizarem esse pequeno pedido,
pois Bianca também adorava essa ópera, meio trágica, dizia ela, mas como era uma
romântica incorrigível, achava linda e me ensinou a achar também. Ao terminar de falar
sobre muitos aplausos, notei que minhas palavras tinham provocado o efeito desejado.
Tenho certeza que feriu o seu orgulho ao citar o nome de Bianca e com um leve sinal de
cabeça, enquanto me retirava do palco, observei que se dirigia ao maestro e aos colegas
artistas e depois de cinco minutos de total expectativa, tocaram muito mais que uma ária
famosa, pois passaram para as pessoas presentes uma emoção que explodiu ao
terminarem em aplausos entusiasmados com muitos pedidos de bis. Notei que Júlia não
sorriu uma única vez, nem ao se levantar para agradecer aos aplausos. Levantei-me e dei
as costas ao me retirar discretamente do local, liguei para o doutor Jaime para comentar
sobre o sucesso da apresentação.
_Tudo bem filha? Perguntou talvez ao notar um tom diferente em minha voz. Parece
que não está feliz; mostrando ser muito perspicaz o doutor.
_Não se preocupe doutor, apenas cansaço. Amanhã voltarei à Nova York e pretendo
começar um novo livro, então, por enquanto nada de viagens para mim.
_Nem para visitar esse pai saudoso? Falou com pesar.
_Agora é impossível minha visita ao Brasil, doutor. Mas espero o senhor mês que vem
na reunião com as ONGs colaboradoras de nossos projetos pela África, pois eles
querem muito conhecê-lo.
_Está bem, Luiza. Até mês que vem e parabéns mais uma vez filha.

Ao desligar dei uma última olhada para trás como se assim pudesse me despedir de Júlia
e quando lá do palco notei que nossos olhares se cruzaram porque parecia que ela
também buscava o meu, vi refletidos neles algo que não soube definir e mentalmente,
disse adeus. Foi a última vez que a vi e não soube noticias dela até aquele fatídico 05 de
Abril de 2008, quando todos os meios de comunicação só falavam da tragédia que tinha
abatido sobre sua vida.

Capitulo 15: Depois da tragédia, a volta

Acordei naquela manhã e como em tantas outras, as horas dormidas parecem que não
eram suficientes para descansar meu corpo. Tinha chegado à cidade a apenas dois dias
de mais uma viagem para a fundação, só que apesar de se tratar de trabalho, essa tinha
sido até agradável porque tive a oportunidade de conhecer o outro lado do mundo, a
Nova Zelândia, país com paisagens maravilhosas e ainda protegidas da destruição que
se vê em muitos locais mais acessíveis para o ser humano. Estava em fase também do
término de meu livro, que tinha começado à quase três anos e não conseguia por
motivos diversos, enfim estava satisfeita. Levantei-me e após o banho fui preparar um
café da manhã e planejava passar todo o dia em frente ao computador para dar os
últimos retoques no livro que era meio que disfarçadamente uma autobiografia, claro
que mudando nomes, datas e lugares, para que saísse como obra ficcional, mas muito
das características da personagem principal, uma médica que contra todas as
diversidades conseguiu vencer com talento, quem me conhecesse saberia que ali eu
estava me descrevendo. A profissão foi uma forma também de homenagear Bianca e
queria mandar logo o rascunho para a editora para saber se lhes agradaria a estória. Sem
querer sorri, pois parecia que na minha vida tudo corria bem, pelo menos eu achava. Na
noite anterior tinha falando com doutor Jaime e pedido um tipo de férias, pelo menos
por duas semanas para me dedicar só ao livro e ele riu e garantiu que a fundação
sobreviveria sem mim. Perguntou-me como estava minha vida e principalmente a
amorosa, pois novamente tinha visto uma foto minha nessas revistas de fofoca com uma
morena exuberante palavras dele, ao meu lado.

Aqui se faz necessária uma explicação. Ao sair daquele teatro em Londres e dar as
costas para Júlia, foi para mim um gesto simbólico de encerramento de uma fase e início
de outra. Não terei pudor algum em dizer que me joguei sim nos braços de muitas
mulheres que desejei e me desejaram nesses últimos anos. Foi só sexo e porque mentir,
muito bom, mas que na maioria das vezes, não restou nem um nome para ser lembrado.
Era como uma droga necessária para seguir em frente, encontros de uma noite ou
parceiras de no máximo um mês. Com algumas mantive uma amizade colorida,
conveniente para ambas, como a morena gostosa da foto a qual se referia o doutor.
Nunca me envolvi com mulheres comprometidas até porque não queria problemas desse
tipo e todas aceitavam o jogo, que até o momento era satisfatório. Provavelmente a
Luiza dos tempos de Bianca acharia errado esse tipo de relacionamento onde não havia
entrega de sentimentos, mas naquele momento, era isso que eu procurava evitar, sentir
algo por alguém exigiria de mim um envolvimento que não estava disposta a ter.

_O senhor sabe que a imprensa, ainda mais essa sensacionalista, inventa bastante, tentei
desviar a conversa.
_Que seja, fico contente que você esteja feliz e é o que importa. Mas gostaria que você
encontrasse apenas uma pessoa e se estabelecesse novamente, de preferência aqui no
nosso país.
_Eu já disse para o senhor que agora meus interesses estão aqui.
_E pelo que eu vi, interesses com um bom par de seios e pernas torneadas, brincou.
_Não exagere doutor. O senhor mais que ninguém sabe que não tenho a intenção de me
envolver romanticamente outra vez, falava enquanto mexia com as alianças na minha
mão.
_O que é uma pena filha, porque é tão jovem ainda, mas quem sabe a vida não apresenta
uma boa surpresa. Ligue-me mais sim, quero sempre estar por dentro como dizem os
jovens, quando o assunto for sua vida.

Se me perguntarem o porquê de nunca mais ter voltado ao Brasil, nem eu saberia


responder, era algo inconsciente, talvez acreditasse que tinha encontrado fora dele, essa
ilusória felicidade.

Liguei o computador aquela manhã e ao entrar na internet, como fazia sempre, meu
coração acelerou sem motivo aparente e senti um aperto que cheguei a pensar em algum
problema físico. Passou a sensação e fiquei ali por horas trabalhando no livro e ouvindo
blues, ritmo que tinha aprendido a gostar vivendo ali. Já era quase duas da tarde e me
deu fome, o que me fez pensar em preparar algum lanche. Estava com dor nas costas
pelas horas na mesma posição e então liguei a TV a cabo para tentar me distrair. Nem
sintonizei em um canal de notícias mas em um de programação musical e estranhei a
transmissão ao vivo e a cara séria de um dos mais conhecidos vjs.

_Na manhã de hoje, hora local na França, a mundialmente conhecida pianista Júlia
Franco Vasquez sofreu um grave acidente automobilístico enquanto se dirigia para uma
estação de esqui nos Alpes franceses, disse com pesar.

Uma bomba não provocaria o efeito que aquela noticia provocou em mim. Comecei a
tremer e quase não dei conta de segurar o controle para aumentar o volume.

_A famosa artista, continuou ele como se lesse meus pensamentos, sofreu graves
fraturas nos braços e mãos e por esse motivo está sendo especulada a possibilidade da
mesma não mais voltar a tocar. O marido, conhecido herdeiro da indústria no ramo
têxtil, Marco Antônio Bueno Galvão veio a falecer no local. Já a filha do casal, que
estava no banco de trás, sofreu apenas escoriações leves e já teve alta do hospital. Já
está sendo providenciado o translado do corpo de seu marido para ser sepultado no
Brasil. Os motivos, segundo testemunhas que vinham logo atrás se devem
principalmente às más condições do tempo na hora do acidente, fazendo com que o
carro saísse da pista indo em direção a uma árvore e batendo com força. Essa emissora
como todo o mundo artístico sente muito pelo drama de tão talentosa artista e torce para
que logo se recupere.

Naquele dia, não atendi telefonemas ou fiz outra coisa que não fosse ficar ali naquele
sofá, mecanicamente mudando de canal para canal para ver e ouvir repetidas vezes as
mesmas notícias como se pudesse tratar de um sonho.

Meu Deus, Júlia nunca mais poderia tocar, pensei em agonia, certeza essa confirmada
quando os médicos que a atenderam no hospital francês fizeram cara de pesar e saiu
estampado em todos os grandes jornais do mundo no dia seguinte, que estava encerrada
prematuramente uma das mais bem sucedidas carreiras no mundo da música clássica.
Ela teria que fazer muita terapia para poder fazer movimentos simples como escrever ou
até se alimentar sozinha, mas tocar as teclas de um piano era inimaginável. Chorei
muito, por não estar ao lado dela, chorei por pensar nos sacrifícios que Júlia tinha
passado a vida toda e sua dedicação para com a música. As duas primeiras semanas ela
ficou internada sobre sigilo absoluto, sem acesso de ninguém e diziam as muitas
notícias loucas que saiam pela internet que até o rosto tinha sido desfigurado. Fiquei
pensando quem estaria ao seu lado, pois família ela já não tinha mais, dona Catarina
tinha falecido a mais ou menos um ano atrás e João quando comentou o fato, chegou a
falar que ela tinha até descansado, pois depois do derrame parecia um vegetal e ele
duvidava que ela estivesse consciente. Comentou também que havia chegado à cidade
vindo da capital, um advogado a mando de Júlia e ele pensava que com certeza Júlia iria
vender a fazenda e lembro-me de me preocupar com Zefa, pois ali bem ou mal foi seu
lar por muito tempo e pedi para João me avisar se ela precisasse de dinheiro ou um
lugar para ir, mas ele nunca mais mencionou nada e acabei me esquecendo do assunto.
Mas a verdade é que Júlia tinha agora só a filha, de resto eram estranhos para tentar dar
novo sentido a essa vida que se vislumbrava sem a música. No dia em que ela saiu do
hospital, cercada por uma multidão de paparazzi, confirmou-se que ela continuava linda
como sempre, mas em uma cadeira de rodas, seu rosto parecia impenetrável atrás dos
óculos escuros e dava para se notar que as mãos estavam todas enfaixadas. Ao seu lado
o fiel Harold empurrando a cadeira. Ela conseguiu se levantar e entrar no carro, o que
demonstrou que o problema realmente eram suas mãos. Sobre uma chuva de perguntas,
ela se manteve calada e o carro arrancou com destino incerto segundo a reportagem.
Foram meses de uma agonia disfarçada, onde havia a Luiza que sorria e cumpria com
seus compromissos e a Luzia que passava as madrugadas na internet buscando noticias
do paradeiro de Júlia. Tinha tomado uma decisão, eu a amava era certo e só de pensar
que nunca mais poderia vê-la, me fez deixar para trás todo o meu orgulho que já nem
lembrava o motivo, iria rastejar e pedir para que ela me aceitasse em sua vida, como ela
quisesse, apenas como amante, seria, aceitaria até que ela tivesse outras pessoas em sua
cama, engoliria e jogaria fora minha dignidade se necessário fosse para estar um pouco
ao seu lado. Emagreci, deixei o livro de lado e só não parei com o trabalho da fundação
para que doutor Jaime não percebesse. Uma angústia interminável tomou conta de
minha vida, pois os mais ousados paparazzi não conseguiram saber de seu paradeiro.
Mas no começo de agosto já era noite quando tocaram com insistência a campainha de
meu apartamento e ao abrir vi doutor Jaime com um rosto preocupado como não
vislumbrava desde a doença de Bianca.
_O que está acontecendo com você? Foi falando preocupado ao entrar. Meu Deus olha
pra você, porque você não me contou o que estava acontecendo, filha?
_Não está acontecendo nada, tentei disfarçar.
_Nada? Disse duramente. Então não é nada você estar destruindo sua vida sem se
importar com aqueles que te amam? Assim você não vai conseguir ajudá-la filha, disse
enquanto eu o olhava surpresa.
_O que o senhor está falando?
_De Júlia Franco Vasquez.
_Mas como?E as palavras morreram na minha boca.
_Tive que correr atrás de informações porque você já não atendia mais minhas ligações
e quando fazia estava sempre distante. Conversei com Eduardo e Carolina e com eles
também fazia meses que não se comunicava. Então liguei para a pessoa que conhece
você há mais tempo e ele nos deu a chave para acabar com o mistério.
_João e sua enorme boca, comentei com desgosto.
_Ele também está preocupado com você. Ele só abriu a caixa Luiza, agora quero que
você tire lá de dentro todos os fantasmas e me conte desde o começo a estória de vocês.

Foi uma longa noite. Não escondi nada, o que eu sabia ou pensava que sabia de meus
sentimentos e dos dela. Doutor Jaime não me interrompeu nem uma vez e não fez
nenhum questionamento. Depois da mais longa hora de minha vida, encerrei com a
certeza que ele não me julgaria, mesmo sabendo que meu amor para com sua filha não
tinha sido tão grande a ponto de tirar Júlia do coração.

_E é isso, doutor e o que está me corroendo por dentro é essa dúvida que posso ter
cometido com Júlia o mesmo engano que cometi com Bianca. Não confiei no amor que
essas mulheres sentiam por mim. Sempre fui desconfiada em relação a tudo e a todos e
até mesmo Bianca no começo era tratada como uma relação de troca, mas quero que o
senhor saiba que busquei dar a sua filha o melhor de mim naquele momento de vida.
Mas não posso mentir que nunca foi essa necessidade vital que veio com uma força
avassaladora desde o dia que percebi que podia nunca mais ter a oportunidade de ver
Júlia.

Ele respirou fundo e disse:


_Não se preocupe filha, sei que Bianca foi feliz ao seu lado como não foi toda a vida e
ela mesmo sabia que não era amor eterno o que você sentia. Sabe, ela comentava
comigo isso e muito no começo da relação de vocês eu insisti para que ela terminasse
tudo. Não me olhe com esse olhar surpreso, eu era pai e achava que ela merecia alguém
que a correspondesse da mesma forma, mas ao vê-la tão feliz e após conhecer você e
seu caráter tive certeza que nunca a magoaria. Escute o que esse velho com um pouco
mais de experiência de vida vai lhe falar. Você pode ter errado nos julgamentos que fez,
mas quem não erra? É difícil conhecer nossos próprios sentimentos que dirá o dos
outros? Você se sentiu abandonada e nunca se preocupou em saber os motivos apenas
buscar culpados para a dor de não poder estar ao lado da mulher que ama e para uma
pessoa que já tinha perdido tanto, isso é justificável. Mas agora é preciso força para
encarar uma nova batalha, não pelo amor de Júlia em relação a você, mas do amor por
ela própria. Se você atendesse os telefonemas de João, saberia que Júlia Franco Vasquez
voltou faz quase três meses para a fazenda da família e se mantém sobre o mais total
sigilo, afastada de qualquer tipo de contato fora de seus domínios. João contou que ela
está muito mudada, conforme informação de uma mulher chamada Zefa que parece
você conhece bem. Ela andou comentando com João que somente quando está com a
filha é que ela solta alguma palavra, fica trancada o tempo inteiro dentro do quarto ou
na sala do piano, que fica horas olhando sem nada dizer. João teme que nem o amor
maternal possa evitar que ela cometa algo mais drástico. Ele disse para lhe falar isso e
quem sabe convencê-la a voltar comigo para o Brasil e salvar seu grande amor.

Aquilo me doeu muito e me preparei mentalmente para a luta mais importante de minha
vida. Como doutor Jaime disse, eu já tinha perdido pessoas demais, agora era hora de
buscar a felicidade ao lado da pessoa que mais amava na vida.

_E se ela me rejeitar depois de tudo? Bateu por um momento o medo.


_E a sua tão famosa persistência? Brincou o doutor.

Demoramos ainda uma semana em Nova York para que eu resolvesse alguns assuntos
pendentes e ao fechar a porta daquele apartamento, tive a sensação que nunca mais
voltaria naquele que tinha sido meu lar nos últimos anos e descobri quando o doutor
Jaime abriu a porta do táxi para irmos em direção ao aeroporto, que lar é onde está
nosso coração.

Desembarcamos na capital e logo busquei informação quanto ao aluguel de um jatinho


para minha cidade, hoje provavelmente diferente de minhas mais distantes lembranças.

_Boa sorte, disse-me doutor Jaime. Desejo para você toda a felicidade do mundo e diga
a Júlia que sou seu maior fã e não aceito que ela não venha a tocar novamente.
_Obrigado e vou precisar mesmo, disse. Sabe doutor, me abandonaram ao nascer, mas a
vida me deu de presente três pais maravilhosos, dois já se foram, o padre Antônio e pai
Tião, mas nem eu sei se merecia a sorte de ter o senhor como terceiro pai a me guiar os
passos.

Notei que seus olhos se encheram de lágrimas e completou.


_O merecimento é todo meu filha, porque cada dia me enche mais de orgulho e sabe
que sou um pai ciumento, então mande notícias. Quando me dirigia para o avião me
lembrei de algo e voltei quase que correndo.
_Que foi filha? Esqueceu algo?
_Abra a mão doutor. E retirei da minha mão as alianças que estavam ali desde a morte
de Bianca; as coloquei na mão aberta do doutor Jaime e com a minha a fechei segurando
bem forte. Guarde para mim como lembrança de todo o bem que Bianca representou na
minha vida e de todo amor que ela me dedicou.
_E de todo bem que você representou para ela filha. Guardarei com carinho e agora vai
atrás de seu destino.

Agora dentro do jatinho já avisto nossa cidade, não mais tão pequena, já com seus
trezentos mil habitantes, pode ser considerada uma cidade de médio porte com todas as
vantagens e problemas de outras cidades iguais. Só que na prefeitura, tem uma pessoa
decente que se preocupa com suas raízes e o bem estar das pessoas que ele conhece
desde criança. Sim, João achou um jeito de ajudar mais além do que a medicina o
permitia e tinha sido eleito, para orgulho de seu Pedro, o mais jovem prefeito da estória
da cidade. Já tinha realizado muito em quatro anos de seu primeiro mandato e sendo
reeleito com margem esmagadora de votos, iniciava o segundo inaugurando o pequeno
aeroporto depois de muitos mandatos passados apenas de promessas. E para surpresa de
vocês, foi minha primeira viagem de avião que não precisei de calmantes para dormir
porque fiz questão de ficar acordada durante todo o percurso e não seria diferente
porque depois de tanto tempo pisaria novamente na minha terra natal, de onde saíra
apenas com sonhos e hoje voltava com uma missão.

_Vamos descer em cinco minutos senhorita, avisou o piloto. Aperte bem o cinto e
dentro do horário estaremos pousando.

Apertei o cinto com uma força desnecessária e respirei fundo. Eu sentia que minha vida
recomeçava e desta vez, queria Júlia fazendo parte dela e não iria aceitar uma resposta
negativa. Prepare-se Júlia sorri ao pensar, você ainda não sabe, mas será brevemente
minha mulher.

SEGUNDA PARTE: JÚLIA

Capítulo 01: O começo

Olho pela janela e vejo grossas nuvens se aproximando. Teremos mais um dia de chuva.
Nenhuma novidade, meu espírito parece estar destinado a esse eterno clima cinzento.
Duda entra toda alegre me mostrando mais uma de suas descobertas pelo pátio de
fazenda. Ela, menina criada no melhor estilo inglês de como se comportar, estava
descobrindo na terra natal da mãe uma infinidade de coisas as quais nunca teve contato
e só ela nesse momento me traz alguma alegria. Afago vagarosamente seus cabelos
negros e em seus olhos azuis enxergo toda a esperança que perdi. Logo atrás chega Zefa
dizendo com todo aquele seu sotaque engraçado que ela faz questão de conservar como
marca de sua personalidade, apesar de tantos anos passados.

_Olha vixe menina Duda, sua mãe está descansando e eu estou velha para tanta correria.
Se aquete.
_Pode deixar Zefa, venha querida dê-me logo um abraço e vai para a cozinha comer uns
biscoitos com leite.
_Oba falou animada, aquele que sai da vaquinha né? Perguntou toda em dúvida. Sabe
mamãe, gosto mais desse do que aquele da caixinha. E ri da ingenuidade que só uma
criança tem. Abracei-a forte e ela e Zefa se foram. Fiquei só. Também fui assim um dia.
Inocente e cheia de vida. Sentei-me na escrivaninha e lentamente, fui colocando
palavras em um caderno branco. Ainda dói, mas não como nos primeiros dias e o doutor
Phillipe acha que escrever será uma boa terapia tanto física como emocional. Eu nunca
fui boa com as palavras e me expressava melhor com minha música. Talvez por isso
ache que tenha perdido com a música minha voz. Escrevia apenas notas musicais e para
isso já não tenho inspiração. Ele disse que começasse devagar e então como tempo
agora é o que mais tenho, resolvi passar para o papel algumas lembranças, não que
tenha realmente talento para a escrita, não como ela. Luiza sim sabe emocionar com
palavras. Imagino que deva estar se sentindo vitoriosa com a minha desgraça. Se ela
soubesse que se apenas repousasse a cabeça em seu colo, sentiria novamente vontade de
continuar viva. Talvez passando para o papel essas lembranças descubra o que deu
errado para nós e encontre forças para me fazer seguir em frente. Toda estória tem um
começo, então vamos a ele.

Quando nasci não sei que perspectiva se esperava de minha pessoa, pois sempre me
senti como a segunda opção da vida de meus pais. Só quando tinha lá meus seis anos é
que descobri que o filho varão que meu pai sempre quis, tinha morrido num episódio
com um cavalo. Acho que meu pai queria que eu tivesse o mesmo papel que seus
cavalos premiados, levando o nome dos Franco Vasquez como um troféu, mas nunca foi
essa minha expectativa.
Quanto aos meus pais jamais conheci pessoas tão diferentes e acredito que a palavra
amor não tenha existido nessa relação. Foi uma negociação. O senhor Augusto Franco
Vasquez precisava de uma reprodutora para seus herdeiros e comprou Catarina de uma
tradicional família espanhola, com nome e sem dinheiro. A beleza de minha mãe foi se
esvaindo ao passar dos anos diante das humilhações sofridas ao ver cada dia meu pai
esbanjar dinheiro com todo tipo de mulher que passava em sua frente. Acredito hoje,
revendo as atitudes de minha mãe que nunca me deu sequer uma palavra de amor, que
não foi sua culpa até porque ela também não conhecia isso. Meu nascimento veio de um
ato de violência, pois meus pais já dormiam separados desde a morte de meu irmão
Carlos, mas naquela noite, o tesão do senhor da casa precisava ser saciado e ele não teve
pudor algum em se satisfazer, mesmo que a força com a mulher que julgava sua
propriedade, ainda que sabendo do ódio que esta nutria por ele. Sinto pena hoje de dona
Catarina e me questiono se algum dia ela foi feliz de verdade. Nasci numa noite chuvosa
de setembro em 1978 e diferente do nascimento de meu irmão que teve complicações a
ponto de Catarina não querer mais filhos, eu nasci calmamente com os cabelos
vermelhos e rebeldes de Catarina e os olhos azuis de Augusto. Na pequena cidade onde
minha família dava sempre a última palavra, meu nascimento foi assunto por semanas e
se dependesse de meu pai, motivo de festa, mas minha mãe não permitiu, pois já
naquela época, era dona Catarina que cuidava das finanças da família, até porque meu
pai era um esbanjador nato. Alguns anos mais tarde, quando já era uma adolescente,
uma vez ouvi padre Antônio comentar que esperava que o fato servisse para ligar essas
duas almas, mas só os fizeram mais distantes, dizia com todo pesar. Padre Antônio era
uma alma boa e acreditava que todos eram também. Sua ingenuidade o impedia de ver
que muitos de seus fiéis poderiam não ser tão nobres, mas acredito que meu pai viu em
mim a redenção de seus pecados, a chance de se tornar melhor se dedicando a mim, ele
queria que eu me tornasse a dama que iria levar o nome da família e não poupou
esforços e talvez tenha sido a única coisa em comum que aqueles dois tiveram a vida
inteira: a ambição de que eu levasse o nome da família ao topo e cada um de sua
maneira agia para isso. Cresci solitária e aos cinco anos imaginava que eu era a única
criança do mundo. Desde aquela época o piano se tornou a válvula de escape e o amigo
secreto. Eram horas e horas dedicadas a tocar suas teclas mágicas, era a forma que
melhor me expressava. Minha mãe achava que uma educação européia me prepararia
melhor para as ambições que tinha e mandou vir da Alemanha, madame Valquíria e seu
rígido modo de ensinar.
Madame Valquíria merece um comentário à parte. Nunca conheci pessoa tão cheia de
regras, desenvolvidas desde a infância pelo pai nazista que teve que fugir da Alemanha
depois da segunda grande guerra, indo morar na Hungria, só voltando para lá muitos
anos depois. Nunca se casou, nunca amou ninguém e achava que a vida devia ser levada
dentro da rígida disciplina militar que fora acostumada. Acho que foi a única mulher
que meu pai não desejou levar para a cama, pois brincava rindo que ela parecia mais um
soldado que mulher. E eu concordo plenamente, por causa daquele uniforme que ela
usava. Nem preciso dizer que minha mãe a adorava, até porque não via nela outra
amante de meu pai. Olhava os nativos, como se referia aos serviçais da fazenda como
gente inferior e não concebia que pessoas pudessem ser tão ignorantes e segundo ela,
quase viverem como animais no modo de se comunicarem e principalmente comerem.
_Madame Catarina dizia, esse não é ambiente para se criar uma dama, talvez a Europa
fosse mais adequada para esses fins.
_Concordo madame Valquíria, falava Catarina. Mas o senhor Augusto não cogita a
possibilidade de sair desse país de selvagens tão cedo. Ele deve ter achado aqui
interesses para querer ficar.
_Homens pensam muito com a cabeça de baixo e não são confiáveis, dizia madame
Valquíria. Por isso nós mulheres temos que tomar as rédeas do andamento da casa e
defender os bons costumes da sociedade estabelecida.
Acredito que madame Valquíria foi a única amiga que minha mãe teve na vida, talvez
porque tiveram uma relação de igualdade de pensamentos. Ambas amavam o poder e a
forma que ele poderia ser usado para favorecer apenas aos próprios interesses. Que pena
que nunca tiveram a sorte de apreenderem que o verdadeiro poder está em amar e ser
amado. Foram duas mulheres amargas que passaram a vida enfrentando o mundo como
um inimigo a ser derrotado dia após dia. Talvez por isso Catarina tenha dado para
madame Valquíria alguns privilégios, tipo mandar trazer da Alemanha alimentação
especial, já que o sensível estômago dela não se adaptava a alimentação tão pobre dessa
terra de bugres, não cansava de repetir com sua voz estranha. Lembro-me da primeira
vez que vi pela janela o rapazinho que vinha de bicicleta trazer quando chegavam à
cidade os famosos alimentos que de tão estranhos e de sabor e cheiro duvidosos eram
privilégios somente de Valquíria. Ele sempre entrava pelos fundos e mal deixava as
compras saía com toda velocidade com sua bicicleta e o vento a balançar seus cabelos.
Ele tinha a expressão de liberdade, tudo que eu não tinha e como o invejava. Então fui
crescendo entre a rigidez de regras de minha mãe e castigos de madame Valquíria e a
indolência de meu pai que achava que fechando os olhos para os abusos de minha mãe
evitava criar problemas, até porque os interesses dele na época eram as farras com
jogos, bebidas e mulheres. Buscava me compensar com suas seguidas ausências
comprando muitas coisas, ele realmente acreditava ser a forma correta de amar, me
paparicando escondido dos olhos de minha mãe, quando chegava de suas eternas
viagens. Acho que acreditava que dinheiro faria de mim a dama européia que iria
desfilar pela sociedade levando seu nome. Educar era coisa de mulher, o do homem,
dizia era fornecer apenas os recursos. Mas mesmo assim, diferente de minha mãe, tinha
um espírito bom, ajudava da forma que podia aqueles que lhe mostravam lealdade. Era
um espírito despreocupado com o amanhã e talvez quando a realidade tenha batido com
força em sua porta, ele não soube viver num mundo onde não era mais servido.

Capitulo 02: O encontro


Nunca vou esquecer o cheiro daquela manhã. Parecia que seria igual a todas as outras.
Horário para levantar, para tomar café da manhã, tomar notas de matemática e línguas,
hora do piano, enfim, tudo normal. Mas o sol brilhava lá fora e pela janela entrou um
cheiro bom, era o cheiro da vida e eu parecia uma princesa presa em seu castelo e tenho
certeza que muitos invejavam minha posição dentro daquela gaiola dourada. Tinha
acabado os últimos toques sobre as minhas teclas amigas, quando meu pai entrou.
_E como vai minha menina, foi logo dizendo e me abraçando forte. Olha o que eu
trouxe para você, presente já que estamos perto de minha rainha fazer dez anos; disse
animado, mas percebi tratar-se de mais uma boneca, não diferente das muitas que eu
tinha.
_O que foi? Perguntou notando minha tristeza.
_É que eu queria brincar lá fora, e apontei para além de minha janela.
_Nós já conversamos sobre isso, filha. Sua mãe tem razão, lá fora pode ser muito
perigoso para uma menininha e creio que pensava em Carlos.
Eu voltei meu olhar para a janela e papai tentando me tirar da tristeza que me abateu
disse simplesmente:
_Adivinha o que tem na cozinha? Sorvete de morango que mandei vir da capital só para
você.
_Oba, sorri satisfeita, uma das coisas boas que me lembro da minha infância eram as
enormes taças de sorvete que tomava na cozinha.
_Então corre lá e garanto também que tem outra surpresa te esperando, falou em tom
misterioso. Se papai soubesse que ele me mandava para meu destino, teria pensado duas
vezes.
Corri toda alegre em direção a cozinha e abri a porta subitamente e me deparei surpresa
com uma criança que estava ali. Eu nunca tinha visto uma de tão perto e a percorri com
meus olhos indagadores.
Meu Deus, agora escrevendo tenho certeza; foi ali que me apaixonei, ao me deparar
com seus olhos verdes tristes, mas de uma força impressionante, não era de se supor
aonde Luiza iria chegar. Num impulso perguntei a Zefa, nossa empregada e hoje tenho
certeza, mais uma das amantes de papai, quem era. Ela confirmou que era a filha do
Tião e Maria, um casal que papai tinha ajudado dando um pedaço de terra perto da
fazenda, motivo de muitas discussões entre Seu Augusto e Dona Catarina e eu corria
para meu quarto para não escutar. O mesmo quarto em que me escondo hoje. Tião era o
peão de confiança de papai, seu braço direito e muitas vezes o via no escritório indo
receber as ordens de seu patrão. Já Maria andava pela fazenda toda com Zefa cuidando
da arrumação e fazia uns biscoitos maravilhosos que eu tomava com leite. Alias as duas
tinham mais paciência e carinho comigo que minha mãe. Mas eram negros e a menina
que via era quase tão clara como eu. Fiquei impressionada com a força de seu olhar e
discordei de Zefa me referindo à cor de sua pele. Notei que o mesmo faiscou num misto
de tristeza e ódio ao ouvir Zefa dizer que era de criação. Como criação? Então se criava
crianças como se criava bois e galinhas? Só fui entender depois quando da visita de
padre Antônio e ele pacientemente me explicou e contou que Luiza tinha sido
abandonada e era adotada pelo casal de empregados de meu pai. Como alguém podia
abandonar uma criança tão linda, pensei. Mas naquela manhã estava feliz por confirmar
que não era a única criança do mundo. Convidei-a para tomar sorvete e acho que ela não
sabia o que era aquilo, pois simplesmente devorou a taça antes que eu chegasse à
metade da minha, até porque não conseguia desde aquela época, tirar meus olhos dela,
mas logo sua mãe entrou e me disse que a minha estava me chamando e eu estava tão
feliz que não queria criar caso com ela e precisei de uma força quase sobrenatural para
ir embora dali, pois tinha tanto para dizer e saber daquela menina.
E assim foi, comecei a sair escondido pela cozinha sempre que minha mãe e madame
Valquíria não estavam olhando indo passar da porteira pela primeira vez na minha vida
e descobrindo perto dali um mundo de aventuras com Luiza que já não me olhava mais
com ódio e sim ria das minhas estórias de menina rica e só então percebi o tanto que eu
era ignorante perto de sua sabedoria de vida. João, o rapazinho das entregas, nos levava
para pescar e caçar, e a principio com má vontade mas aceitou minha presença por
imposição de Luiza, mas hoje sei que o quê ele sentia era ciúme. Papai me pegou uma
vez chegando toda cheia de lama e me assustei pensando que iria levar bronca, mas ao
contrário riu muito ao saber com quem eu estava e o que fazia e achou que a companhia
de alguém da minha idade só poderia me fazer bem, já dona Catarina quando descobriu,
me passou vários castigos e ficou horrorizada com a influência de tão baixa gente. Mas
não me importava, quando Luiza pegava minha mão para me levar para o desconhecido,
era um mundo mágico que nem dona Catarina poderia tirar de mim. Para tentar me
controlar e afastar de Luiza, minha mãe começou a entrar em contato com renomados
professores de música de todo o país e muitas vezes me levava pessoalmente para tocar
para tão ilustres senhores. A música para mim era uma diversão apesar de muitos
poderem achar se tratar de uma obrigação. Só não gostava de estar longe de Luiza e
sempre procurava tirar fotos para mostrar a ela depois os lugares que eu visitava.
Quando conheci o mar foi tamanha emoção que a primeira coisa que pensei é que queria
muito que ela estivesse ali comigo, como tinha sido na nossa primeira comunhão, onde
ela ficou segurando minha mão todo o tempo, me passando um calor que me aquecia o
coração. E assim passaram rápidos cinco anos de nossas vidas e foi na minha festa de
quinze anos que descobri que o calor que fazia minha alma vibrar ao estar ao seu lado
tinha outro nome: era amor.

Capítulo 03: Quinze anos

Meus pais estavam eufóricos com minha festa de quinze anos, já para mim tinha
perdido toda a graça porque não pude dar uma opinião sequer sobre a mesma. Minha
mãe queria fazer daquela festa um tipo de apresentação para uma sociedade escolhida a
dedo, de pessoas que a maioria não conhecia. Andou convidando pessoas de nomes que
ela achava apropriados para uma convivência futura. Estava me sentido como um dos
cavalos premiados de meu pai, que era exposto e vendido pelo melhor lance. Papai para
minha surpresa deu carta branca para que ela e madame Valquíria organizassem da
maneira que fosse digna de uma rainha. Fomos para a capital levar convites para
pessoas que tinham posição, segundo minha mãe, e foi numa dessas visitas que conheci
a família Bueno Galvão. Ouvi mamãe comentar com madame Valquíria antes de
entrarmos na enorme mansão que meu pai era sócio de Artur Bueno Galvão em alguns
negócios. Fomos recebidas muito bem por seu Artur, que era viúvo e tinha por grande
paixão, além da fábrica, o casal de filhos gêmeos, Marco Antônio e Marisa. Hoje me
lembrando da primeira vez que vi Marco, confesso que ficou muito pouco com o passar
dos anos, daquele rapaz meigo e quase tímido que tremia, apesar de seus vinte e três
anos ao pegar minha mão para beijá-la. Provavelmente culpa minha, que com o passar
dos anos o transformei em um homem amargo e cínico, pois nunca o amei, mas que
perto de sua morte através da filha que tivemos se esforçava para ser novamente aquele
homem de alma nobre e gentil que tinha conhecido naquela tarde; onde nem ele e muito
menos eu, sabíamos que nossos destinos estavam sendo traçados. Para orgulho do pai,
Marco estava no último ano da faculdade de direito e sua irmã, que me odiou desde o
primeiro momento, estava sendo preparada como eu para ser a esposa de algum filho
rico dos amigos do pai. Não a culpo, pois desde o primeiro momento ela deve ter
percebido que eu não amava nem amaria seu irmão, mas mesmo assim, dentro da
etiqueta estabelecida, me tratou com a cortesia devida a uma dama bem educada.
Acompanhou-nos nas melhores lojas de moda e praticamente escolheu modelos, cor e
tipo de penteado que estava sendo usado para a ocasião. Seu Artur nos convidou para
um jantar no clube social mais famoso da época e Marisa tratou de nos apresentar a
outros jovens de posição como ela dizia e acabou com o consentimento de minha mãe,
organizando os casais para a valsa, claro, com todas as despesas pagas como era de bom
tom. Levou mamãe para conhecer a banda que tocava nos bailes do clube e foi nesse
momento que Marco tomou coragem e veio sentar ao meu lado.

_Está entusiasmada com os preparativos? Perguntou com a voz tão baixa que tive
dificuldades em ouvi-lo.
_Claro, tentei disfarçar minha total falta de interesse.
_Ouvi papai comentar que você tem um grande talento para a música e que toca
divinamente piano. Eu sou totalmente incapacitado para tal e mal sei assobiar, tentou
brincar.
_Como dizem, talento é 99% transpiração e 1% inspiração, queria encerrar a conversa
mas ele me surpreendeu pegando minha mão e colocando entre as suas.
_Nunca conheci ninguém que me impressionasse tanto com um simples olhar como a
senhorita. Espero ter a oportunidade de nos conhecermos melhor durante tão importante
festejo.

Sem perceber, retirei com pressa a minha mão das suas e comparei automaticamente
quando estava segurando a de Luiza e nem de longe era a mesma sensação de calor que
me enchia de felicidade. Notei que mamãe sorria ao nos ver lado a lado, como nunca
sorriu antes e ao voltar para mesa insistiu para que Marco fosse meu par na festa, depois
da dança com meu pai.

_Seria uma honra, disse ruborizado. E um sonho se realizando, mas só se a senhorita


realmente fizer questão.
Olhei para minha mãe e percebi um olhar de ameaça se eu ousasse pensar em recusar.
_Claro, a honra será minha, falei sem nenhuma emoção.

Para mim, foi uma noite longa e entediante, para minha mãe, a realização de seus mais
profundos sonhos, durante a volta para o hotel era toda alegria com seus comentários
para madame Valquíria.

_Estamos caminhando na direção certa madame. Se tudo for como o planejado, logo
estaremos colhendo bons frutos.
_Claro que sim madame Catarina. A senhora planejou tudo para ser bem sucedida.

Eu não tinha a mínima idéia do que se tratava e nem queria, pois a muito a opinião
daquelas duas deixou de ter importância para mim. Estava preocupada em comprar um
presente para Luiza e se iria dar tempo porque nosso retorno estava planejado para o
meio dia. Acordei cedo e nem tomei café, sai sozinha sabendo que minha mãe diria que
não eram aqueles modos de uma dama, mas não me preocupei. Lembrei-me que perto
do hotel havia uma livraria e queria dar a Luzia algo que ela gostasse, e o que Luiza
gostava mais do que ler? Pensei e sorri ao descobrir exatamente o que deveria comprar:
a coleção de Machado de Assis que estava ali em promoção.

_Ela vai amar, logo sorri contente, pois se me lembro, ela tinha alguns livros antigos
que o padre Antônio tinha dado no natal do ano anterior. Padre Antônio sempre
protegeu Luiza, até porque foi ele que a encontrou e a tratava como filha mesmo. E
depois a paparicada era eu, sempre comentava com ela. Eram os pais, padre Antônio,
seu Pedro, João, Zefa, de todos era a queridinha. Pensando bem, em alguns momentos
sentia uma inveja danada dessa atenção que ela ganhava de todos. Na verdade, desde
aquela época, eu a queria só para mim.

Mandei embrulhar e sai toda satisfeita. Quando voltei para minha surpresa mamãe ainda
estava dormindo mas não madame Valquíria.

_Onde estava a senhorita? Falou com ar inquisidor.


_Dando uma volta pelo quarteirão. Agora se me der licença e subi para meu quarto e só
sai quando me chamaram para irmos embora.

Papai estava na praça aguardando quando descemos do ônibus e estava muito contente.
Penso que ficar uns tempos longe de mamãe fariam bem a qualquer um. Antes
passamos pela mercearia de seu Pedro para pegar as famosas encomendas de madame
Valquíria.

_Como vai Pedro? Papai foi descendo do carro e entrando na mercearia enquanto
continuamos no carro.
_Quero você e João presentes no dia, deu para ouvir, algum tempo depois.
_Não sei não, seu Augusto. Provavelmente vai vir gente de toda capital e eu e meu João
não somos dignos; falou seu Pedro enquanto colocava as mãos sobre os ombros do
filho.
_Deixe disso homem, insistiu papai. Virão algumas pessoas que nem conheço, coisas
desse complexo de grandeza de Catarina. No mais, quero os amigos por perto, senão a
pobre Júlia ficará sem saber com quem falar. Apesar de achar que ela estará ocupada
demais com o namoradinho que arranjou por lá, disse satisfeito.

Quase saí do carro para encerrar aquela conversa e percebi que mamãe já tinha dado
detalhes da festa do clube para ele e o pior que ele parecia concordar.

_Vamos papai, quase gritei do carro. Estou cansada e quero logo chegar em casa.
_Então o convite está feito Pedro; se puder apareça. Falou e logo voltou para o carro e
seguimos em direção da fazenda.

No caminho, meu coração acelerou quando reconheci ao longe Luiza entrando pelo
portão de sua casa simples, mas que para mim significava o paraíso se pudesse dividir
com ela. Foi ali, quando o carro passou em alta velocidade naquela estrada e sua
simples visão me acelerou o coração, que descobri que a queria não mais como amiga
ou irmã, mas como a pessoa com quem queria dividir a vida, como um casal e isso me
ruborizou e dei graças a Deus por ninguém ter percebido.
_Se quiser filha, comentou papai, convide sua amiga e apontou em direção ao sítio e
notei o descontentamento de mamãe que não perdeu a oportunidade de falar:
_Se ela tivesse um pouco de discernimento, não aceitaria, pois reconheceria que seu
lugar não é entre pessoas de nível.
_Ela é amiga de sua filha e Júlia decide e se vier será bem vinda, falou seriamente papai
encerrando a discussão.

Chegamos sem maiores percalços à fazenda e subi mais que depressa para meu quarto
para tentar raciocinar sobre a descoberta que acabara de fazer. E deitada sobre aquela
cama enorme foi me subindo um calor pelo corpo que nunca havia sentido e no mesmo
instante me senti molhada só pela simples lembrança de Luiza, seus olhos verdes
brilhantes, seu corpo forte e definido, seus cabelos castanhos que modelavam tão bem
seu rosto lindo e sem saber como, instintivamente minhas mãos começaram a passear
pelo meu corpo, imaginando serem as dela a me tocar em partes que jamais sonhei que
pudessem me dar essa sensação esquisita misto de prazer e pecado. Ao tocar em meu
sexo úmido, foi crescendo uma sensação por dentro que me deixou paralisada por
alguns segundos. Tinha descoberto que queria sentir novamente a mesma sensação, mas
seria com Luiza e queria que fosse o mais breve possível, pensei.

Passaram-se dois dias ainda para que eu conseguisse sair debaixo dos olhares de mamãe
e madame Valquíria, e foi só na véspera da festa que consegui, até porque elas estavam
muito ocupadas para ter que prestarem atenção a mim. Peguei os livros e saí sem que
me vissem, correndo com o coração querendo sair pela boca, pois eram muitas as coisas
que eu queria dizer e pensava falar depois da festa e o medo que ela me rejeitasse ou me
achasse uma anormal sufocavam meu peito. Quando bati naquela manhã na porta de
Luiza jamais pensei que ela reagiria com as palavras duras que usou. Ela não me deixou
praticamente falar e foi despejando sobre mim sentimentos que estavam guardados
dentro de um coração magoado talvez por anos. Nunca me passou pela cabeça que ela
se sentisse inferiorizada já que ela era tudo para mim, talvez eu não tivesse deixado
claro que apesar de tudo que eu tinha materialmente falando, ela sim era mais rica no
que importava, nos sentimentos, pois todos se aproximavam dela pelo seu forte carisma
e não por interesse e posição como eu sentia que muitos se aproximavam de mim.
Quem deveria se sentir inferior deveria ser eu, pensei com uma raiva crescente, mas não
consegui verbalizar nem uma palavra e consegui expressar somente um feliz aniversário
e deixar os livros ali, porque sai correndo para que ela não visse as lágrimas que
começaram a cair. Ela falava em pagamento, mas se ela soubesse que nem todo o
dinheiro do mundo compraria para mim o que eu mais queria e não teria jamais, saí dali
pensando: seu amor.

Capitulo 04: O pagamento

O dia amanheceu e eu não via alegria alguma em me levantar. Meu pai como sempre
fazia, entrou com os braços abertos e cantando uma velha canção espanhola de
aniversário. Mas nesse ano não conseguiu arrancar de mim o mesmo sorriso.

_Que foi princesa? Questionou com uma sincera preocupação.


_Nada, tentei desfazer a impressão dando um leve sorriso.
_Hoje é um dia muito importante para certa mocinha e não quero saber de tristeza,
tentou me animar.
_Deve ser isso, medo de crescer, brinquei e não poder mais me esconder em seu colo.
_Ele estará sempre aqui para lhe proteger, amada, me abraçou forte. Sua mãe mandou
você se aprontar e descer porque chegaram da capital um bando de gente para a
arrumação da sua festa. Não sei para que tanto preparativo se minha princesa já é linda,
mas sua mãe diz que essa festa tem que se igualar em pompa e circunstância com as da
capital. Acho que ela está pensando que é ela que faz quinze anos. Deixe-a viver essa
ilusão, falou segurando meu rosto. Mesmo que lhe desagrade toda essa badalação,
acredite que para mim também é duro de engolir, tentaremos nos portar bem esta noite,
senão teremos que ouvir sua mãe até o fim de nossas pobres vidas e já imaginou?
Terminou de falar e deu uma gostosa gargalhada.

Dei um forte abraço e um beijo em seu rosto. Foi a última vez, pois no dia seguinte, o
homem que apesar de seus defeitos eu amava, morreria para mim por não cumprir o que
naquela manhã me prometera: o de me proteger. O dia se arrastou entre provas de
roupas, maquiagem e penteados dos mais diversos, na tentativa que caíssem bem com o
formato do meu rosto. Queriam cortar meus cabelos o que não permiti, e um
cabeleireiro meio afetado quase teve um desmaio ao ouvir um não quanto a essa
possibilidade. Ele que se virasse, falei em alto e bom som, pois estava sendo pago. Já se
aproximava das seis da tarde e se podia ouvir a chegada dos primeiros convidados,
gente que na maioria eu não conhecia. Dei uma última olhada no espelho e o que vi foi
uma princesa por fora, mas com a alma bem distante dali. Bateram na porta e
novamente era meu pai com uma caixa de veludo na mão e na outra o embrulho que
reconheceria de longe: os livros de Luiza.

_Encontrei com Luiza lá em baixo e ela mandou lhe entregar isso. Não entendi, pois ela
disse que não aceitaria porque não pagou ou coisa assim. Ela tinha pedido para você
encomendar?
_Ela veio? Nem me interessou a curiosidade do meu pai.
_Sim, infelizmente parece que Maria está doente e ela veio ajudar a Zefa na cozinha,
parece que falou que está precisando do dinheiro para os estudos.
_Provavelmente, disse com uma decepção que não deixei papai perceber.
_Mas olha o que eu trouxe para minha princesa e abrindo a caixa de veludo tirou de lá
uma tiara linda e com certeza valiosa, mas que no momento, não era importante para
mim.
_É herança de minha família e gostaria que você usasse essa noite e colocou na minha
cabeça. Pronto agora sim está realmente uma rainha, falou todo orgulhoso. Vou também
me vestir antes que sua mãe reclame novamente. Se prepare para descer assim que eu
fizer um pequeno discurso de apresentação e me beijando saiu do quarto.

Então era isso. Maldita orgulhosa, falei alto e naquele momento eu a odiava
profundamente. Então ela queria me servir, pois bem, seria assim. Já que eu não era boa
para ser amada, seria melhor para mandar e humilhar e assim ela se lembraria de mim
de uma forma ou outra.
Não me perguntem impressões sobre aquela noite até porque seria difícil recordar de
algo, pois a partir do momento que eu desci as escadas e me coloquei ao lado do meu
pai, meus olhos só buscaram por todos os cantos por Luiza. Durante as danças era
somente meu corpo que estava presente, minha mente não; tanto que se meu pai
percebeu nada comentou e logo passou minha mão para Marco, que depois de muito
tempo, este sim fez questão de comentar:
_Alguma preocupação, senhorita? Estou fazendo algo que lhe desagrade? Disse
realmente preocupado e foi como se apenas nesse momento eu percebesse sua presença
e vi em seus olhos doces que realmente ele estava interessado em mim e pressenti ao
reparar nos sorrisos de todos ali que meu destino estava traçado.

Ao me conduzir novamente para a mesa, meu pai logo se levantou e com um sorriso nos
lábios, foi dizendo:
_Filha, tenho uma novidade maravilhosa para você; veja que presente maravilhoso.
Artur estava me dizendo que conseguiu para que você termine seus estudos de música
naquela famosa escola da capital que você sempre sonhou fazer; falou animado e eu me
senti desesperada em me afastar dali naquele momento. Fiquei atordoada enquanto
todos me queriam parabenizar.
_Não foi preciso muito esforço de minha parte amigo Augusto, completou feliz seu
Artur. Quando comentei sobre o espantoso talento de sua filha, fizeram questão de tê-la
imediatamente.
_Será ótimo, entrou na conversa dona Catarina. Assim ela vai conviver com gente de
seu nível e apta a entrar para a sociedade.
_E o que é gente de meu nível mamãe? Falei numa súbita reação de revolta.
_Gente diferente com certeza dos caboclos que vivem por aqui; comentou com gesto
esnobe.

Pedi licença com a desculpa de andar pela festa, mas eu precisava agora mais que nunca
falar com Luiza. Olhava por todos os cantos e nada, provavelmente ela tinha ficado na
cozinha e me dirigi para lá quando vejo Marco conversando com minha mãe perto da
mesa onde estava sendo servido o jantar e ela acena para que eu me aproxime e foi aí
que vi que era ali, servindo os convidados, onde se encontrava Luiza. Não sei definir o
que senti no momento, revolta por perceber que minha mãe a humilhava, raiva por ela
ter que se submeter a tal circunstância quando queria tanto que ela estivesse ao meu
lado para me apoiar. Ao me aproximar, notei que ela se afastou e Zefa me perguntou se
queria algo e minha mãe fez questão ela mesma de me servir algo que não comi. As
horas se arrastaram para mim, enquanto minha mãe mandava madame Valquíria
preparar minha bagagem e a dela porque iríamos partir no dia seguinte com seu Artur e
a família para a capital. Passei toda a festa pensando em como poderia sair para falar
com Luiza sem que percebessem e quando já era por volta das quatro horas da manhã,
alegando cansaço me despedi de todos e subi mais que depressa para meu quarto. Lá
sozinha, tratei de tirar toda aquela roupa e luxo que faziam uma imagem que eu não
queria. Coloquei um jeans e camiseta e calcei um tênis confortável porque queria pegar
Luiza antes que ela chegasse em casa. Olhei para os livros que havia deixado em cima
da cama e eles fizeram me lembrar da rejeição de Luiza. Essa lembrança só serviu para
reforçar meu plano e os peguei para devolver à dona deles, ela querendo ou não. A
festa demorou mais um pouco, mas consegui sair por uma porta dos fundos com a maior
discrição que consegui.

Cheguei perto da porteira e notei que o sol já saía. Fiquei esperando encostada na
grande figueira que havia perto. De repente ouvi passos e com a claridade vi que se
tratava de Luiza e antes que abrisse a grande porteira a toquei nos ombros e pareceu que
ela se assustou. Lembro-me que ela perguntou com um ar tão sério o que eu fazia ali
mas eu não conseguia reparar em mais nada que não fosse sua boca. Engraçado que só
agora eu tinha percebido como desejava colar a minha sobre aquela boca carnuda e
linda, mas os acontecimentos que se seguiram vieram como um toque de mágica tirar as
escamas que cobriam meus olhos dos avisos que insistentemente meu coração já estava
cansado de alertar. Mas eu também estava sentida com o seu disfarçado desprezo e falei
com o tom de voz mais arrogante que me lembrava ter ouvido sair apenas da boca de
dona Catarina sobre os benditos livros. Para falar a verdade, nem me lembro da
resposta, somente da palavra pagar e não me passou pela cabeça nenhuma forma melhor
que tomar sua boca com a minha. Ainda hoje lembro apenas dessa sensação única, da
minha língua invadindo em busca da sua, enquanto minhas mãos que não conseguiam
ficar paradas, foram procurar o espaço dentro de seu corpo. Por um tempo que não
soube precisar, parecia que ela também tinha a mesma ânsia, mas que parou de repente,
quando ela com uma força inesperada se soltou de meus braços e quase me jogou no
chão. Mas o que poderia parecer de sua parte uma recusa, se mostrou apenas um efeito
do ciúme que ela sentia por mim quando me mandou voltar para o namoradinho. Não
agüentei e comecei a rir às gargalhadas de como estávamos as duas bobas fugindo dos
nossos sentimentos e não tive pudor algum ao dizer que a amava mais que tudo e que
não sentia nada pelo Marco. Depois foi só a confirmação que também era amada e não
tive como mentir para o amor de minha vida, certeza essa que tenho desde aquele dia,
sobre a minha partida. Vi que seu olhar se fez tristeza, mas queria experimentar com
Luiza as sensações que apenas tinha sentido sozinha em meu quarto e fui isso que
propus porque não sabia se a veria novamente. Ela pegou minha mão e nos dirigimos
para a sua casa e para mim era como se estivesse indo para o paraíso. Quando
chegamos, tentamos entrar sem fazer nenhum barulho mas seu pai estava acordado e a
chamou. Ela me deixou em seu quarto e foi ver se ele precisava de algo. Fiquei ali
sozinha por alguns minutos e tive a ilusão que ela poderia sonhar comigo naquele lugar.
Vi uma modesta mesinha e sobre ela algumas folhas soltas e percebi tratar-se de poemas
e comecei a ler alguns e eram realmente muito bons, pois falavam ao coração. Quando
ela voltou, estava tão emocionada com as palavras escritas naqueles papéis, que só pude
segurar seu rosto e buscar sua boca novamente. A partir daí, só queria sentir seu corpo
junto ao meu e as nossas roupas eram um empecilho que logo foi descartado. Comecei a
tocar seu corpo com desespero só de imaginar não tê-lo mais próximo. Que sensação
indescritível sentir meu corpo sobre o seu que tremia enquanto ouvia seus gemidos que
chegavam altos em meus ouvidos. A ânsia me fez tocá-la com os lábios e as mãos nas
partes que sabia tinham me proporcionado um prazer solitário, mas que agora era
compartilhado com a pessoa que eu amava acima de tudo. Suguei seus seios como se
dali tirasse a vida necessária para continuar enquanto minhas mãos brincavam com seu
sexo úmido e quando encostei minha boca lá, senti o melhor dos sabores até então
experimentado. Parecia que ela estava fora de si e que logo iria explodir todo esse
prazer como símbolo de nossa união eterna e sendo guiada por seus gemidos cada vez
mais altos de prazer, a penetrei sabendo que a estava fazendo minha e ela me presenteou
com um forte orgasmo. Subi pelo seu corpo exausto o beijando para tentar acalmá-lo
dentro de meu abraço. Vi em seu olhar que ela queria me proporcionar o mesmo prazer
e sem pudores me deixei tomar pelo frenesi que seu corpo me proporcionava enquanto
eu só conseguia falar várias vezes eu te amo entre gemidos abafados, querendo mais que
tudo me fazer sua também, o que logo acabou acontecendo e foi um dos momentos mais
mágicos de minha vida. Amamo-nos por toda a manhã e só o cansaço de nossos corpos
fez com que somente um abraço fosse necessário para nos sentirmos no céu.

Ao acordar, o sol já estava alto e fiquei com medo de que os pais de Luiza nos
pegassem, mas me lembrei que há esta hora provavelmente estavam na lida, como
diziam. Vesti-me com todo cuidado e antes de sair queria gravar para sempre aquela
imagem de seu rosto ali, tão belo e não resistindo voltei e lhe dei um leve beijo no rosto
e ela respondeu com um leve sussurro, mas não abriu os olhos. Abri a porta do quarto
com todo cuidado, olhando se não tinha ninguém em casa.

_Que bom, pensei porque Maria deve ter melhorado.

Sai correndo em direção da fazenda com a esperança que ninguém tivesse dado pela
minha falta, mas quando se tinha um cão de guarda como madame Valquíria, isso era
praticamente impossível.

_Então é assim que retribui todo o esforço dedicado a senhorita feito por seus pais? Foi
dizendo com seu forte sotaque me dando um susto ao vê-la sentada como se me
esperasse no sofá da sala.
_Desde quando eu tenho que lhe dar satisfação? Tentei ainda manter um ar de
superioridade.
_A ela não filha ingrata, mas a mim vai dizer onde esteve, foi falando minha mãe que
entrou de repente na sala. Senti que tinha caído numa armadilha e que não teria forças
para sair dali sem dizer a verdade, e no fim, não me importava nada em contar, mas me
preocupava com as conseqüências para a família de Luiza caso a minha resolvesse se
vingar.
_Estava sendo feliz como vocês duas nunca tiveram a chance de ser, disse com toda a
franqueza que foi recebida com uma forte bofetada de minha mãe.
_Imoral, gritou entre dentes.
_Eu não disse dona Catarina que tão baixa influência só iria atrapalhar os planos para
formação de um caráter que se preze, interveio madame Valquíria no momento que meu
pai entrou e notei no seu rosto, uma expressão de ódio que jamais tinha visto que me fez
afastar ainda mais para outro canto da sala e me sentir mais sozinha como jamais estive.
_Nunca pensei ser traído por você como fui hoje, disse com a voz dura.
_A culpa é sua, foi o acusando mamãe, por colocar qualquer um em contato com ela.
Nem quero pensar nas indecências que aquela bastarda andou ensinando a ela. Não nos
olhe com esse olhar de espanto Júlia, ela continuou, pois madame Valquíria a seguiu e
viu que passou a manhã toda na casa daquela promíscua.
_Vocês querem mesmo saber o que andei fazendo? Falei com uma força que veio de
não sei onde. Eu estava amando e sendo amada, coisa que provavelmente nenhum de
vocês conseguiu ser.
_Anormal, meu pai foi tirando a cinta para me bater, mas impedido por minha mãe que
o convenceu dizendo:
_Está louco homem, quer estragar tudo. Os Bueno Galvão ainda não perceberam e você
quer dar mote a perguntas. Se marcar o corpo dela, todos perceberão e aí é que estamos
fadados ao escândalo. Tenho um castigo melhor e falou me olhando:
_Você está de partida hoje para um dos melhores colégios internos da capital e só vai
sair de lá para se casar com Marco Antônio está me ouvindo? Falou me encarando
porque eu parecia estar longe dali.
_E quanto àquela família de imundos eu tomarei as providências, falou com toda certeza
meu pai.
_Pois fique sabendo seu Augusto Franco Vasquez, que se eu souber que o senhor
ergueu a mão para prejudicar Luiza e sua família, não serão apenas os Bueno Galvão
que vão ficar sabendo, mas a cidade inteira, completei ainda impulsionada por essa
mesma força. Eu cumprirei minha parte nesse acordo onde é a minha vida que está
sendo negociada, mas só se vocês cumprirem a de vocês. Deixem-nos em paz.

Ao terminar de falar ouvimos um grito vindo da cozinha e saímos eu e papai em direção


a mesma e lá chegando, nos deparamos com Maria caída no chão em meio a uma poça
de sangue no chão.

_O que aconteceu mulher? Perguntou para Zefa meu pai.


_Não sei patrão. Ela começou a vomitá sangue e caiu no chão. E nos olhamos papai e eu
como se soubéssemos que nada havia para ser feito. Ainda me lembro com tristeza ao
ver um homenzarrão forte como Tião se transformar de novo em menino em ver sua
Maria ali morta. Fiquei imaginando como Luiza iria sofrer, pois naquele dia ela estava
perdendo a única mãe que conhecia e eu não poderia estar perto para tentar consolar.
Meu pai parece que entendeu a trégua e deu sinceros pêsames para Tião e mandou
chamar o padre Antônio para encomendar o corpo e chamou uns peões para o levarem
para o sítio. Não queria que os Bueno Galvão vissem essa cena.
_Depois eu dou uma passada lá para me despedir peão, disse a Tião e achei muito pouco
para o homem que tinha sido seu braço direito e para com a mulher que tinha cuidado
de sua filha melhor que a mãe.
_Sinto muito Tião, falei abraçando-o enquanto ainda chorava. Depois passo lá para me
despedir de vocês falei seriamente olhando para papai que não me contradisse.

Claro que depois enfrentei a oposição de meus pais que me queriam o mais longe
possível de Luiza mas contei com a ajuda de um inocente e compreensivo Marco.

_Claro que você pode ir se despedir de sua amiga. Acho que me lembro dela
trabalhando na festa, falou com pesar. Coitada, perder assim a mãe tão jovem, eu sei o
que é isso porque a minha também se foi cedo. Vá sim com seu pai e logo depois
partiremos.

Meu pai foi me repreendendo durante todo o caminho e chegando à frente do sítio, já se
via muitas das pessoas simples que moravam pelas redondezas. Ele segurou meu braço
e disse:
_É apenas dar as condolências e nada mais. Se você fizer algo a mais, eles vão sofrer
mais que a perda da Maria.
_E se isso acontecer, eu irei pagar com eles, porque não vou me importar de contar para
a cidade inteira o que realmente sinto pela Luiza. Então se cale porque senão a
mercadoria pode escapar de sua mão, falei com rancor puxando com força o braço e
entrando rapidamente.

O que dizer para a pessoa amada numa situação como aquela? Ao entrar ela estava ao
lado de João, claro que não tinha perdido tempo, pensei com ciúme. Mas ao olhar para
Luiza vi no verde de seu olhar, uma tristeza infinita, que pensei não pudesse nunca ser
apagada e só pude correr para abraçá-la e alertá-la contando que papai sabia e pelo seu
olhar ela pareceu compreender o quê. Ele foi duro e logo falou que estávamos atrasados.
E diferente da última visão que tive pela manhã, agora era a visão do desespero que eu
via e só consegui limpar as suas lágrimas com um toque de minhas mãos e antes que a
beijasse ali na frente de todos, dei as costas e saí.

Ao entrar dentro daquele carro no banco de trás, entre Mariana e madame Valquíria,
meus pensamentos estavam nela e como conseguiria sobreviver longe do mesmo ar que
ela respirava.

Capítulo 05: Três anos

Contei os anos que passei dentro do colégio pelas notas tocadas em meu piano. Foi só o
piano que me fez agüentar os três anos que fiquei ali. Quando entramos por seus
grandes portões, eu parecia mais uma boneca sem vontades, madame Valquíria tratou de
tudo como sempre, sua eficiência nunca fora discutida. Marco prometeu, com esperança
no olhar, me visitar todos os fins de semana e se fosse permitido por minha diretora, me
levar para conhecer a cidade. Quando entrei no quarto que a partir dali dividiria com
outras meninas, acredito que elas tentaram ser simpáticas, mas meu silêncio foi
interpretado como arrogância e assim não tentaram ser amigas, aliás caí em muitas
brincadeiras como a novata daquele ano, mas o tempo passou e como não reagia,
acabaram por me deixar em paz. Mas me tornei alvo de inveja mesmo quando Marco
aparecia, sempre com um presente todo fim de semana que eu estava na cidade, pois já
nas primeiras semanas, o maestro de nossa escola, seu Vicente percebeu minha
facilidade com o piano e começou a me levar em viagens cada vez mais distantes para
concertos até na Europa. Assim começou minha carreira, porque o velho mestre, como
gostava de ser chamado, me ensinou a disciplina que se tem que ter para alcançar o
sucesso. Para mim foi um alivio me afastar de tudo e de todos, só não conseguiu afastar
meus pensamentos de Luiza. Cada música apresentada era para ela que eu tocava, era a
lembrança dela que me inspirava e meu mestre cada vez mais entusiasmado já previa
testes para as grandes orquestras mundiais.

Perto do início de dezembro do terceiro ano que estava ali, enquanto a maior parte das
meninas se preparava para irem passar as férias com suas famílias, eu como nos últimos
anos me propusera a ficar porque sabia que se voltasse não conseguiria resistir e ir
procurar Luiza e isso poderia por em risco sua já difícil vida. Como ela estaria? Pensava
enquanto dedilhava sem compromisso o piano, quando o mestre entrou sem que eu
percebesse e chegando perto de mim, segurou minhas mãos e me olhando atentamente
disse-me:
_Você não precisa mais de mim, Júlia. Está pronta para se tornar uma das maiores da
nova geração. O que eu tinha que lhe ensinar, já ensinei. Agora é só você se dedicar e
trabalhar duro, porque talento você tem de sobra. Não permita que o mundo e a vida
engulam isso. Não seja comum, pois você é especial demais para isso.
_O que quer dizer mestre? O senhor tem muito ainda a me ensinar e vou ficar aqui lhe
atormentando por muitos anos.
_Fiquei triste em saber de seu noivado, mas o rapaz me parece compreensivo e acho que
vai apoiar sua carreira.
_Noivado? Perguntei assustada.
_Parece que seus pais vão vir esse fim de semana para levá-la para os preparativos para
seu casamento. Espero que seja feliz com o homem que você escolheu, mas que não
abandone a música, falou me beijando as mãos e sem perceber meu espanto, foi saindo
da sala.

Então era isso, pensei, estavam concluindo a transação. Nunca me senti tão suja como
naquele dia. Estava sendo vendida e não via nenhum jeito de sair limpa disso tudo.
Perguntei-me como Luiza veria essa situação. Na certa iria pensar que eu estava
concordando e me desesperei só de imaginar que ela sequer pensasse que eu amava
Marco.

Como era de se esperar, ele apareceu com meus pais no sábado seguinte e com gestos
apaixonados e tímidos, pediu minha mão em casamento e garantiu que me faria muito
feliz. Não posso dizer que ele não tenha tentado, mas desistiu nos anos seguintes diante
de minha total indiferença para com ele.

Olhei para meus pais e reparei o olhar duro de ambos que não me deram margem a uma
recusa. Disse um sim quase inaudível e ele todo feliz começou a falar dos preparativos
que sua irmã e minha mãe estavam se encarregando para organizar uma festa digna de
mim que ele fazia questão de ser na fazenda. Imaginei que dona Catarina estaria feliz
em mostrar pompa e circunstância numa ocasião como esta e enquanto ele falava todo
animado o interrompi quase de forma brusca e pedi para falar a sós com meus pais e ele
meio que decepcionado pediu licença e se retirou.

_Então, enfim está concluída a compra, falei com amargo na voz. Quero que saibam que
aceito sim a venda, mas que para mim, ambos morrem a partir de hoje. Quero deixar
isso bem claro para que no futuro não venham a criar ilusões de que eu me preocupe ou
me sacrifique novamente por vocês. Estão sozinhos e por sua própria conta. Aproveitem
bem o dinheiro da venda, pois a fonte secou.
_Você não entende que é para seu bem? Respondeu com falsa ternura dona Catarina. O
que mais você pode querer do que um homem que a ame e poderá lhe dar tudo que você
sonha? Disse aquilo como se fosse o seu sonho de vida. Você está sendo egoísta de
querer sacrificar seu futuro e de sua família por causa de uma ilusão de adolescente,
influenciada claro por convivência com pessoas de baixo nível.
_Realmente dona Catarina, o quê mais eu poderia querer? Respondi irônica. Talvez o
direito de fazer minhas próprias escolhas. Que pena que eu tenho de você, falei a
encarando. Uma vida infeliz tentando que as pessoas próximas sejam também infelizes.
E você, falei para meu pai, um fraco egoísta que só pensa em prazeres que se podem
comprar. Sabe que olhando vocês agora, percebo que ambos se merecem. Agora por
curiosidade quanto foi que seu Artur pagou por mim? Quanto estou valendo no
mercado?
_O que você queria, abriu pela primeira vez a boca seu Augusto. Que perdêssemos tudo,
a fazenda, nossos animais e principalmente nosso nome? Você terá tudo de melhor que
se pode comprar e ainda reclama. Quanto ao valor mal vai dar para sanar nossas dívidas.
_Dívidas essas contraídas pela incompetência e orgulho de ambos. Mas chega de falar,
estou cansada. Vamos logo porque não podemos deixar o noivo esperando não é? Só
mais uma pergunta: Marco Antônio sabe de toda essa sujeira?
_Com certeza não, garantiu mamãe. Ele estava ocupado demais te colocando num
pedestal para perceber o que se passava ao seu lado. E ainda reclama. Quisera eu ter
sido tão amada, falou como se aquilo fosse algo que fizesse realmente falta em sua vida.
_Duvido que você fosse capaz de inspirar sentimento tão nobre e recebi como resposta
um tapa no rosto.
_Como ousa falar comigo assim, menina ingrata; respondeu exaltada. O que você sabe
sobre a vida? O que sabe sobre sacrifícios? Sempre teve tudo nas mãos, enquanto eu me
esforçava em fazer de você uma mulher digna e respeitada.
_Dignidade? Palavra estranha para sair de sua boca. E nunca mais ouse colocar as mãos
em mim porque posso querer revidar, a olhei com uma fúria que desconhecia e abrindo
a porta, saí.

Durante todo o caminho para a fazenda ficamos em silêncio, onde só um alegre Marco
falava. Hoje me pergunto realmente se ele nunca desconfiou de nada. Ou talvez seja
apenas minha mente querendo se absolver por ter concordado com um casamento
arranjado. Culpo-me na verdade é por não ter tido forças para lutar pelos meus
sentimentos por Luiza. Mas o que uma adolescente poderia fazer contra o mundo que
ela achava ser seu inimigo?

Ao chegarmos à cidade meu pai fez questão de passar pela mercearia de seu Pedro,
segundo ele para pegar algumas encomendas. Tenho certeza que na verdade ele queria
apresentar o futuro genro para seu Pedro e assim logo toda a cidade saberia. De dentro
do carro, enquanto Marco, meu pai e seu Pedro conversavam do lado de fora, notei João
atrás do balcão e nossos olhares se encontraram e por um minuto senti que ele me
olhava com desprezo e ódio, com a certeza de que não podia mesmo esperar nada de
bom de mim. Não resisti e saí do carro entrando apressadamente na mercearia, deixando
os três homens do lado de fora espantados.

_Ela ainda está no sítio João? Perguntei a queima roupa, antes que alguém entrasse.
_Para que você quer saber? Para magoá-la mais? Fui eu que tive que ficar aqui nesses
três anos tentando juntar os cacos que você deixou, falou com um ódio enorme na voz.
_O que não deve ter sido nenhum sacrifício para você. Só uma palavra sim ou não,
insisti; enquanto os homens do lado de fora entravam.
_Algum problema Júlia? Questionou um preocupado Marco ao entrar.
_Não só dando um olá, não é João?
_Sim, disse simplesmente e entendi que era a resposta que queria pelo seu olhar.

Voltei novamente para o carro colocando minha mente para trabalhar em como iria
fazer para ver Luiza e nos dois dias que se seguiram não ouve oportunidade até porque
só saia do quarto para as refeições, isso sobre os olhares vigilantes de madame Valquíria
que continuava a mesma de sempre, sem sentimentos, só feita de regras. Minha mãe a
tinha mantido ali até mesmo contra a vontade de meu pai que não via mais sua
necessidade, mas era a única amiga talvez de dona Catarina, e esta fez questão de sua
presença. Zefa mostrou-se feliz em me ver, mas não tive coragem de fazer a ela
nenhuma pergunta sobre Luiza.

Era véspera de natal e lá embaixo se ouvia todo o barulho da organização da suntuosa


festa que minha mãe e Mariana tinham planejado. Marco tinha voltado para a capital e
voltaria no dia seguinte com o pai e irmã. Bateram na porta do quarto, enquanto eu
observava tudo da janela. Para minha surpresa vejo entrar padre Antônio e corro para
abraçar um rosto amigo depois de tanto tempo.
_Como minha menina está bonita meu Deus, foi dizendo sorridente. E não poderia estar
mais bela, já que fez uma escolha que espero traga a você muitas felicidades. E se seu
noivo não for um bom rapaz, fale com o velho padre aqui que lhe darei um bom puxão
de orelhas.
_Não vamos falar disso padre, pedi com tristeza na voz. Vamos falar da saudade que eu
tenho de quando tocávamos naquele piano antigo lá da sacristia escondido de todo
mundo.
_Quer dizer você tocava não é minha filha? brincou ele. Ouvi coisas muitas boas sobre
suas apresentações fora do Brasil. Você ainda vai levar o nome de nossa pequena cidade
para bem longe. Vocês jovens, tão cheios de vida e esperanças.
_Espero que o senhor tenha razão, disse meio desanimada.
_O quê é esta tristeza que percebo filha? Não está feliz? Falou preocupado.
_E como estaria se sinto minha vida fugindo de minhas mãos, padre.
_Então a agarre forte filha e não solte mais, porque por mais que os outros achem que
podem guiar nossos destinos, ele está ligado somente às nossas vontades; esse é o maior
presente de nosso Criador para a humanidade.
_Parece que Deus acabou de me esquecer, padre.
_Nunca diga isso filha. Olha só sua amiga Luiza, que passou por tantas coisas na vida,
primeiro sem saber quem foram seus verdadeiros pais, depois perde os únicos que
conheceu pelas fatalidades da vida, mas nem por isso desiste e agora está pronta para
encarar o desafio de sair daqui e enfrentar os desafios da capital para estudar e tornar-se
alguém.
_Luiza está indo embora? Falei com expectativa.
_Depois de amanhã. Parece que tem planos para entrar em uma faculdade federal. Ela e
João vão prestar vestibular juntos e quem sabe em um futuro próximo também possam
se casar. Sabe, sempre torci para aqueles dois porque percebi desde cedo o amor que
João sentia por ela. E me daria muito prazer, como vou ter hoje à noite ao abençoar seu
noivado.

O padre continuou a falar sobre sua alegria por estar presente em um momento, segundo
ele, tão importante para mim, mas eu já não ouvia nada. Só pensava em uma forma de
me despedir de Luiza já que poderia ser a última vez de nossas vidas. Mas no mesmo
momento me bateu um ódio do João, que agora com certeza iria dar a cartada final, pois
estando junto dela na capital teria todo o tempo do mundo para convencê-la de seu
amor. Talvez até acabassem juntos e era bom eu realmente estar longe porque não
suportaria isso, pensei. Egoísmo meu, até porque nunca soube como o meu casamento
teria afetado a vida de Luiza.

A noite chegou e com ela o começo de minha angústia. Não vou me perder em
lembranças daquela noite onde todos pareciam felizes menos eu, até porque passei a
noite toda só pensando em como poderia escapar pelo menos por algumas horas de
todos aqueles olhares e não reparei muito em outros detalhes. Depois da benção das
alianças e da dança, onde houve um singelo tocar de lábios a qual não senti nada, era
como beijar minhas bonecas em criança, só que com menos emoção; começou a chover
o que não pareceu apagar os ânimos dos convidados, muitos amigos de Marco que
tinham vindo da capital e que eu não conhecia. Abracei forte padre Antônio ao me
despedir dele e se soubesse que nunca mais o veria, teria dito palavras mais carinhosas.
Só fui saber de sua morte através da orelha do primeiro livro de Luiza, já que ela o
dedicou a ele.
Perto das duas da manhã, notei que muitos convidados já haviam se retirado e aproveitei
que todos estavam ali mais que embriagados apenas de suas felicidades, para inventar
um súbito mal estar e subir, mas dessa vez me preocupando com madame Valquíria.
Como eu esperava, ela me seguiu até o quarto, mas dessa vez, não perdi tempo em me
trocar e assim que começou a cair quase um temporal, parece que ela pensou que era o
sinal de que eu iria me comportar, pois apenas uma pessoa fora de si enfrentaria aquele
dilúvio e saiu da porta de meu quarto. Bem, naquele momento eu era essa pessoa e não
pensei nem um minuto em recuar e trancando o quarto por fora, saí pela lateral quase
sem enxergar nada e com os pés quase atolando na lama, corri em direção ao sítio.

Ao chegar à porta da frente bati com o resto de forças que eu ainda tinha e estava
preocupada com a demora para que ela abrisse a porta e foi só naquele momento que me
veio à cabeça o que deveria dizer e quando esta se abriu, antes que ela dissesse algo fui
quase a empurrando para dentro, até porque estava quase congelada e fui tampando sua
boca com uma das minhas mãos, enquanto com a outra fechava a porta.

_Eu te solto se você me prometer não gritar e ficar quieta para ouvir o que tenho para
falar, disse antes que ela me negasse e pareceu que seu olhar brilhava com um
sentimento que eu não soube definir e ela apenas balançou a cabeça e então continuei:
_Eu não tenho culpa, acredite. Estão me vendendo, sou apenas um objeto a ser
negociado. Meu pai perdeu muito dinheiro e pegou com o pai do Marco emprestado um
grande montante e agora não pode saldar. Acredite, disse tirando a mão de sua boca, que
não é agradável saber que não passo de uma mercadoria com preço no mercado. Não me
olhe como se eu fosse a mais rastejante das criaturas, não agüentaria este seu olhar.
Fiquei sabendo que você também vai partir e fiquei morrendo de inveja e ciúmes, você
terá opção de seguir sua vida guiada por suas vontades e isso já me foi tirado há muito
tempo. Acredite, nesses três anos que fiquei longe, foi sua lembrança que me manteve
firme então acredite, pois todo dia meu único pensamento é para você.

De repente para minha surpresa, Luiza com uma reação inesperada, simplesmente
parecendo não ter ouvido nada que eu tinha falado, colou sua boca na minha e começou
quase a engolir minha língua num beijo para lá de mal intencionado. E esse diferente do
trocar de lábios com o Marco mais cedo, fez aquecer minha alma e enquanto suas mãos
aqueciam meu corpo no momento em que ela tirava meu vestido, criação de algum
famoso estilista segundo Mariana, mas que agora era só um empecilho para que Luiza
esquentasse meu corpo gelado pela chuva. As lembranças agora vão surgindo na medida
em que eu as vou escrevendo e as daquela última noite me fizeram ficar úmida como a
muito não ficava. Só Luiza tem esse poder sobre mim até hoje e fico pensando onde ela
estará agora. Quando gozei na sua boca aquela noite foi como se deixasse para ela tudo
de bom que eu tinha dentro de mim. Ela beijou delicadamente meus lábios até me
surpreendendo depois da intensidade com que literalmente ela tinha me devorado e
consegui falar quebrando o silêncio, como se as palavras saíssem da alma:
_Nunca, quero que saiba, senti ou sentirei isso que só você dá. Essa felicidade completa
de pertencer a alguém e quero que saiba que onde estiver, toda vez que me ouvir
tocando uma música é para você que toco. É por isso que amo a música, pois ali, eu te
pertenço totalmente. Não consegui conter as lágrimas que estavam escondidas desde o
dia que soube já não mais me pertencer. Ela começou a beijá-las e foi como se de
repente me fornecessem força para fazer o que deveria ser feito. Levantei-me
subitamente e pus a me trocar e vi sobre a mesma mesinha que anos antes guardava seus
poemas o velho caderno e queria deixar ali também algo que significasse minha
passagem em sua vida:
_Agora me vou já que meu corpo não me pertence, mas fique com minha alma e sem
por onde, comecei a escrever rapidamente como nunca tinha feito uma música;
provavelmente ela não entenderia, mas ao ouvir tocada por outra pessoa saberia todo o
sentimento que só a ela eu iria dedicar por toda uma vida. Ao terminar era como se
minha alma realmente tivesse ficado gravada ali e disse:
_Quando quiser saber a extensão verdadeira do que só você me faz sentir, peça para
alguém tocar para você. Essa é só sua, de mais ninguém. E saí correndo, até porque
sabia que não conseguiria sair dali se olhasse para trás. Ainda hoje penso no que ela
teria feito com aquela música e engraçado que nunca consegui reproduzir sua letra, pois
parece que foi apagada de minha mente. Compus outras melodias tão belas quanto, mas
não consegui reproduzir em um papel as sensações daquela noite. Quando saí o sol já se
anunciava e não chovia mais, consegui entrar em casa pela entrada dos fundos e o
silêncio se fazia presente e subi pelas escadas com cuidado ainda mais redobrado e
entrei no quarto com a certeza que não fui vista. Ao cair deitada na cama e vendo o sol
se levantar pela janela, vi no dia que se iniciava também o inicio para mim de uma nova
estória que me seria desconhecida e que tinha medo de descobrir, mas seria preciso
buscar em mim forças para continuar sozinha.

Quando me preparava para sair da Campo Belo com a minha nova família a tiracolo,
sob olhares de alegria de meus pais, enquanto Marco guardava as malas no carro disse
simplesmente:
_É a última vez que me verão aqui, pois nunca mais voltarei e espero ter o desprazer de
vê-los apenas no dia do casamento, isso porque o Marco faz questão. No dia que me
venderam, perderam sobre mim todo o direito de chamar-me filha e isso pareceu não os
preocupar no momento porque pensavam tratar-se de palavras de uma adolescente
birrenta, mas com o passar dos longos doze anos que estive fora, talvez em algum
momento eles tenham percebido que falava sério naquela manhã de sol forte. Eles
achavam que recuperariam o status e dinheiro para levar suas vidas com abastança e
sem se preocuparem, só não sabiam que a fonte secaria depois do casamento, até porque
de bobo meu sogro nada tinha. Olhei para trás quando passamos em alta velocidade pela
porteira e pensei jamais ver novamente esse lugar, mas a vida com um golpe me trouxe
de volta para quem sabe achar no início o sentido para a minha vida.

Marco pediu a seu motorista que parasse para comprar alguma comida para a viagem e
assim que voltou e saímos meu coração acelerou ao perceber Luiza sentada dentro do
único ônibus que vinha uma vez por semana fazer a viagem para a capital e por um
momento, pensei tê-la visto olhar em minha direção também, mas logo passou. A linha
de nossas vidas parecia que se cruzaram naquela manhã, mas a vida nos separava apesar
da mesma estrada seguida.

Capítulo 06: Nova vida


Depois que cheguei à capital juntamente com madame Valquíria, ficamos hospedadas
por quase dois meses antes do casamento na mansão dos Bueno Galvão. Debaixo dos
olhares de desconfiança de Mariana e da vigilância de madame Valquíria, o tempo se
arrastou para mim. Tenho certeza que só o carinho com que Marco me tratava foi o
responsável para que eu sobrevivesse a mais essa provação. Pouco saía do quarto que
me fora destinado e quando o fazia era somente para dar atenção a Marco que não sabia
mais o que fazer para me tirar daquela tristeza. Muitas vezes, ficava pensando que Luiza
também estava na mesma cidade, mas não poderíamos estar mais distantes. Como ela
estaria? Pensava e será que João já tinha se declarado? E só esse pensamento me enchia
de fúria. Marco apesar da família tradicional no ramo têxtil tinha preferido o direito e no
que podia auxiliava o pai, mas seguia sua paixão e apesar de muito novo já tinha um
escritório conceituado e pretendia se especializar em direito internacional assim que nos
casássemos e fossemos para a Europa até porque, dizia ele, não queria interromper
minha carreira de forma nenhuma.

Minha convivência com Marco e seu pai Artur não podia ser melhor porque me
cumulavam de atenções e acredito que isso só fez aumentar a antipatia de Mariana para
comigo, porque agora os homens da casa não a paparicavam tanto.

Deixei para que se desfizesse esse clima que ela organizasse toda a recepção e o
casamento, mas isso ela faria de qualquer forma, pois para ela eu não passava de uma
menininha mimada, frase esta que ela fez questão de dizer já a uma semana de nossa
viagem para a Espanha.

_Espero que aproveite a oportunidade que a vida colocou no seu colo e faça meu irmão
feliz, ou pelo menos finja, já que não o ama, falou com todo rancor na voz.
_Nossa, disse irônica, como você é perspicaz e imagino que deva saber também o
motivo desse casamento. Não o amo e nunca o amarei, mas me pergunto quantos dos
casamentos em nosso meio sejam por amor. Esse é um privilégio que nos é negado e
espero realmente que não aconteça com você.
_Papai pagou o que havia de mais barato no mercado, falou para me humilhar. Preferiu
uma menininha mimada, mas como disse, estava na promoção.

Meu rosto ardeu, mais descobria ali as armas para conviver com aquele tipo de pessoa,
que dá importância para as aparências e não com o que o ser humano pode ter em seu
interior.

_Eu ainda encontrei alguém que pagasse, cuidado porque mesmo com o dinheiro do seu
pai, você pode não ter a sorte de achar um homem disposto a se vender, pois nem todo
dinheiro do mundo tornaria agradável a convivência com alguém tão fútil e vazia como
você e virando a deixei só.

Parece que minhas palavras foram gravadas em algum livro do destino, porque
realmente Mariana não se casou apesar da fortuna do pai e isso a tornou ainda mais
amarga e infeliz. Apesar de gêmeos, eram totalmente diferentes no modo de encarar a
vida e mesmo com minha indiferença nos anos que se seguiriam, Marco não era capaz
de machucar intencionalmente alguém.
Capitulo 07: Marco

Uma vez seu Artur comentou comigo que Marco tinha herdado toda a doçura da mãe e
Mariana toda a racionalidade dele, seu Artur. E realmente, desde que o conheci descobri
na pessoa de Marco Antônio Bueno Galvão a figura de um amigo e irmão e seria assim
se a vida não nos colocasse diante de um altar. Era o orgulho do pai e esse talvez tenha
sido o fator determinante para a personalidade fria da filha, quase como uma defesa
contra a clara preferência de seu pai pelo irmão. Ambos eram jovens, ricos e bonitos
mas apenas Marco tinha o carinho do pai e quando Marco se apaixonou por mim,
provavelmente seu Artur viu a oportunidade de mais uma vez satisfazer os caprichos do
filho.

Desde criança com seu jeito tímido despertava nas pessoas a sua volta a necessidade de
ser protegido e talvez por isso tenha se tornado essa pessoa dependente das opiniões e
das atitudes do pai e da irmã para que se guiasse na vida. Não que fosse incapaz de
emitir uma opinião própria, mas sempre precisava do consentimento do pai ou da irmã
para certificar.

Por isso quando decidiu que iríamos partir para a Europa talvez tenha sido o seu
primeiro grito de liberdade e fui acusada de tal decisão que contrariou claro o pai e
irmã.

_Mas filho eu preciso de você aqui, argumentava seu pai.


_O senhor tem ótimos diretores e executivos e tem Mariana que está se formando em
administração.
_Mariana é mulher e você sabe que mulheres nesse meio de negócios não são
respeitadas filho. Sua irmã precisa sim é se casar e logo vou cuidar disso também.
_Não a apresse pai, que ela tenha a sorte de encontrar uma pessoa como eu encontrei
Júlia.
_Sei, sei, continuou contrariado.
_E o senhor sempre soube que a minha vocação era o direito internacional e morando lá
abrirei muitas portas para a minha carreira.
_Você não precisa disso filho, porque eu já trabalhei a vida inteira para que você e sua
irmã não precisassem.
_O senhor falou bem, seu trabalho, seu dinheiro. Eu quero construir minha própria
estória, além do que na Europa Júlia também poderá ter condições de tocar nas mais
tradicionais e famosas orquestras do mundo. Não quero que ela abandone a música,
porque a música é parte dela também.
_Que seja filho, se isto te faz feliz, abraçou forte o filho.

Marco era assim, feito de uma ingenuidade e doçura que hoje penso como seria fácil se
mandasse em meu coração e o amasse como ele sempre desejou ser amado por mim,
mas os caminhos que escolhemos nem sempre são os racionais e a vida nem sempre é
feita de momentos de felicidade, acredito que meu maior pecado tenha sido tirar dele
essa ilusão.
Capitulo 08: Eu e Marco

Enfim chegou o dia do casamento. Já estávamos na Espanha há uma semana e meus


pais já estavam chegando em um jatinho fretado, claro com o dinheiro dos Bueno
Galvão. Se havia algum motivo para me sentir menos mal, era a notícia que me livraria
da presença de madame Valquíria para sempre. Aliás, para a tristeza infinita de minha
mãe, ela estava voltando para Alemanha porque com pesar na voz, achava que não tinha
mais necessidade de sua presença, seu trabalho estava concluído. A verdade é que o
dinheiro e influência da família Franco Vasquez já não mais existia e era nele seu real
interesse. Ela tentou tirar algum de seu Artur, mas como já disse, ele era muito esperto e
não estava disposto a gastar mais que o necessário para essa transação. Então, com dor
no coração continuava a dizer, tinha que partir. E o dia do meu casamento foi à última
vez que a vi. Hoje me lembrando de madame Valquíria fico me perguntou que fim
levou uma mulher que não conheceu o amor. Onde estaria? Aposto que se sentiu feliz,
se ainda vive, com a minha atual situação, porque é o tipo de pessoa que só se satisfaz
com a desgraça de outra.

Faltava uma hora para o casamento e eu me encontrava pronta dentro de um vestido


branco caro e cheio de pedrarias, criação de um famoso estilista europeu que foi escolha
de Mariana, mas tenho que admitir que era lindo, apesar de cobrir um corpo sem alma
porque essa estava longe, no Brasil, terra que à qual agora não queria mais voltar. Tinha
que aceitar que meu destino agora era ali ao lado de Marco e iria me esforçar para tentar
levar adiante essa relação. Coisa fácil de pensar, mas impossível de fazer quando se ama
outra pessoa. Minha mãe tinha feito questão de convidar pessoas até da nobreza
espanhola e achava que até o rei apareceria, coisa sem importância me confessou pela
manhã todo alegre Marco, porque ele até preferia uma cerimônia simples, mas entendia
essa vontade de meus pais de marcar a data com grande destaque.

_O importante, me disse ele é que depois você e eu vamos ficar para sempre juntos e
vou fazer de tudo para te tornar a mulher mais feliz do mundo. Ilusão que se desfez ao
longo do primeiro ano de nosso casamento quando ele percebeu que jamais o amaria
como ele sonhou.

Não o vi mais, encontrando-o somente no altar. Quando me dirigia dentro de uma


carruagem luxuosa para o castelo onde se realizaria a cerimônia, estando lá dentro
somente eu e meu pai, o olhei por um momento e foi como se eu o visse pela primeira
vez. Estava diante de mim um homem em seu traje de gala, enfeitado com brasões de
família, símbolo de uma época morta que não voltaria mais e nem por um minuto me
preocupei com o destino dele ou de minha mãe a partir daquele momento. Não trocamos
uma palavra sequer e quando me deu a mão para saltar da carruagem por um instante
olhando dentro de seus olhos antes de entrar naquele castelo, tive pena, mas logo passou
com a certeza que os caminhos de sua vida tinham sido escolhas traçadas por seu livre
arbítrio.
Não quero me lembrar muito daquele dia de tristezas para mim, porque na verdade não
me lembro de muita coisa mesmo. Detalhes muitos exagerados pela imprensa que
transformou aquele dia em um final de estória de contos de fadas e metade das coisas
que li nas revistas depois eram invenção de pessoas que talvez vivessem em vender essa
imagem de sonho. A festa foi suntuosa realmente e a emoção de Marco verdadeira, a
mim só coube um sim e na hora de beijar o agora meu marido não tive como não
comparar com o beijo de Luiza, e isso me angustiou ainda mais.

Quando fui me trocar para a viagem de lua de mel até Paris, não sabia, mas seria a
última vez que conversaria com minha mãe, pois ela fez questão de me ajudar, era seu
papel dizia.

_Feliz? Perguntou com um tom de voz que não soube interpretar enquanto retirava o
rico enfeite que prendia meus cabelos rebeldes.
_E como não estaria, respondi ironicamente. Diga-me uma coisa, realmente você
acredita que está realizando o sonho de sua vida na minha não é?
_Você ainda vai me agradecer um dia por essa decisão. Você terá tudo que uma mulher
pode querer; um homem rico e apaixonado que te fará todas as vontades e você o terá
nas mãos para satisfazer tudo que desejar realizar.
_Dinheiro, é nisso que se resume sua felicidade? Perguntei. Agora entendo a sua
amargura.
_Você não entende não é? Quem me dera tivesse tido essa oportunidade.
_Que eu saiba meu pai era muito rico quando se casou com você, então o que deu
errado?
_Seu pai nunca amou ninguém além de sua própria vaidade. Escute filha, aproveite essa
chance que a vida te deu e seja feliz.
_Impossível, pois se você não percebeu acabou por me condenar a uma vida sem amor,
como a sua e me pergunto o motivo. Mas isso não é importante, pois você terá uma
mesada para viver o resto de seus dias com certo conforto e é só isso que posso garantir.
Não use a expressão filha para quem já não a considera mais mãe.

Ela se retirou sem olhar para trás e nunca mais a vi. Está enterrada hoje ao lado de meu
pai, no mausoléu que mandei fazer aqui na fazenda junto ao corpo do irmão que não
conheci. Mas cumpri minha palavra e pelo menos financeiramente dentro de uma
mesada controlada cuidei deles até o fim, não mais com o dinheiro dos Bueno Galvão,
até porque consegui uma boa fortuna apenas com o talento de minhas mãos.

Durante a viagem dentro daquele avião até Paris, com Marco dormindo todo satisfeito
ao meu lado, me preocupei sinceramente como seria a hora que ele me tocasse. Não
sabia como iria reagir, se sentiria algo ou deveria fingir que sentia. Eu era muito nova e
as minhas únicas experiências sobre esse assunto tinham sido com o amor da minha
vida e foi tudo muito prazeroso, mas agora estava casada e era a primeira vez que um
homem iria me tocar tão intimamente. Mas o ato sexual que tivemos após chegarmos
naquele rico hotel foi só isso, sexo, até porque intimidade foi algo que Marco e eu
nunca partilhamos e com o passar dos anos, descobrimos que éramos duas pessoas com
sonhos e planos diferentes e nem compartilhávamos gostos em comum.

A sensação de solidão após aquele ato foi tão grande que só se compara ao meu
despertar sozinha naquele quarto de hospital após o acidente que tirou a vida de Marco e
destruiu minha carreira.
Ele estava ansioso demais para reparar em meus sentimentos, coisas de homem,
acredito. Quando ele começou a tocar meus seios e passar sua língua sobre eles, já se
preparava para a penetração, que foi dolorida para mim por estar absolutamente seca,
mas contive as lágrimas e creio que ele nem percebeu minha súbita mudez, sorrindo
satisfeito e virando para o lado após seu gozo. Nem todas as belezas de Paris e seus
lugares românticos foram capazes de me deixar lembranças agradáveis daquela viagem.
Marco pareceu-me que estava com os olhos vedados por sua própria ilusão de felicidade
que não percebeu em nenhum momento a minha total falta de entusiasmo,
principalmente na cama, porque apenas ele se satisfazia. E assim começou o casamento
que iria terminar de forma trágica numa curva de estrada.

Capitulo 09: Vida de casada

Demorou menos de um ano para eu me ver dentro de um casamento como o dos meus
pais, era uma casa de espelhos onde eu não enxergava a saída. A falta de amor era o
sintoma mais visível dessa relação. Aliás, nunca nem existiu de minha parte em relação
a Marco esse sentimento e o passar do tempo só deixou claro isso. O dele se existia
durou um pouco mais talvez devido ao orgulho de reconhecer-se errado.

Não posso culpá-lo porque foram inúteis todas as suas tentativas. Não passou muito
tempo, acredito que uns seis meses para que seus olhos se abrissem ao parar para
reparar em mim.

Já residíamos em Londres onde ele fazia seu mestrado e com o dinheiro do pai tinha
comprado a mansão vitoriana em que residi até a minha volta para o Brasil. Nos
primeiros meses a comparei a uma prisão, grande demais para somente duas pessoas,
mas Marco dizia que era do tamanho adequado para a posição que representaríamos na
sociedade européia. Ele sempre pensou em brilhar nos tribunais europeus, mas passou a
vida conhecido apenas por ser meu marido e creio que minha indiferença e seu orgulho
ferido destruíram o amor que um dia ele sentiu por mim. Quando chegamos a Londres,
para completar o quadro de tradição inglesa, foi nos sugerido um mordomo e foi ai que
conheci Harold que apesar de toda fleuma que exige sua posição, me tratou sempre
como a filha que não teve e sua presença hoje ao meu lado, distante de seu país é a
prova maior de seu amor por mim.

A ilusão de Marco de um casamento feliz durou mais porque pouco nos víamos nos
primeiros meses de casamento; ele, preocupado com seus contatos e estudos, eu, com os
testes para as mais renomadas orquestras européias. Passei em todos mas descobri que
trabalhava melhor sozinha, o que não me impediu de participar de grandes espetáculos
em vários países onde eram produzidos. Isso me levou a conhecer países e culturas
diferentes e me afastar o máximo possível de Marco.

Ao fim do primeiro ano de nosso casamento, eu chegava de mais uma viagem e me


encontrava animada com uma reportagem que havia saído em uma das mais respeitadas
revistas internacionais, especializada em música e artes de um modo geral. O encontrei
sentado numa rica poltrona que decorava o escritório com a cara amarrada. Harold com
sua dscrição que o tornava quase invisível lhe servia um chá, mas saiu imediatamente
assim que entrei.

_Enfim tenho o prazer de ver a minha esposa já que isso é algo raro, falou sarcástico se
levantando para tentar me beijar o que logo fiz questão de evitar o que não me impediu
de sentir o cheiro forte de bebida.
_Não me use para descontar suas frustrações, Marco. O que não deu certo para você
dessa vez? Perguntei sabendo que provavelmente ouviria mais umas das suas
intermináveis estórias de fracasso. Marco sempre dependeu de pai e irmã para se
conduzir na vida, era tudo muito fácil porque tudo vinha sem esforço para suas mãos.
Quando a tão sonhada liberdade bateu a sua porta, ele não soube o que fazer com ela.
Ele não tinha era mesmo capacidade para ser algo, já que fora a vida toda acostumado
apenas em ter.
_Minha frustração maior se resume ao fato de minha esposa não cumprir seu papel,
disse se levantando e me segurando com força o braço.
_Me solte agora e puxei com vontade o braço o que o desequilibrou e quase o pôs ao
chão.
_O que há de errado em um marido querer tocar sua mulher? E veio novamente em
minha direção, mas me desviei e ele caiu sobre um caríssimo sofá de couro, mais uma
das inutilidades compradas com o dinheiro do pai. Diferente do que eu esperava, ele
permaneceu ali e começou a chorar como a criança que realmente era.

Senti-me horrível com aquelas lágrimas porque de certa forma também eram
conseqüências de minha total falta de amor e me abateu uma pena imensa. Ajoelhando-
me perto de seu corpo que tremia com os soluços que pareciam sair de dentro da alma,
alisei com todo o carinho que podia seus cabelos negros e procurei dizer com suavidade:

_A culpa não foi sua Marco, nós só não nascemos para nos casar. Somos pessoas
diferentes com planos diferentes. O que você quer da vida, não é o que planejei para a
minha.
_Porque você não me ama? Perguntou com a voz pastosa pela bebida. Eu te amei desde
a primeira vez que te vi. Você era a realização dos sonhos que eu tinha para uma vida
perfeita.
_Perfeição é uma coisa que não existe Marco, disse tentando acalmá-lo. Não é culpa
sua, mas é que nessa estória de amor a gente não manda no coração. Sei que você ainda
vai encontrar alguém que te valorize e retribua toda a afeição que você é capaz de dar e
me levantei. Creio que o divórcio agora seja a melhor solução para ambos.
_Não, gritou e se levantou até de uma forma surpreendente para alguém tão bêbado.
Não vou dar essa vergonha para minha família. Aos olhos deles tenho que mostrar que
eu estou feliz e você me deve ao menos essa satisfação pelo que me roubou.
_Roubei? O que poderia ter roubado de você? Sua total falta de iniciativa para o que
quer que fosse? Você não passa de um menino mimado que não soube fazer as escolhas
certas na vida, completei irritada.
_Por favor, quero ao menos a satisfação de mostrar fora dessas paredes que somos um
casal feliz. Meu pai e Mariana devem acreditar que posso ser alguém fora das asas
deles, pediu quase às lágrimas.
_Você que sabe, respondi com desdém. Pois bem, se é assim que você deseja, assim
será. Se satisfaça com o que lhe seja aprovável, mas nunca mais me toque porque é uma
tortura para mim, apesar de você nunca ter notado jamais me proporcionou um
orgasmo.

Nessa hora ele me olhou com espanto, parecendo que só agora via a real natureza de
nosso casamento. Continuei a falar:
_Vou falar para Harold preparar um dos quartos para você, disse secamente e me retirei
daquele escritório com a certeza que resolvia um conflito em minha vida.

Capitulo 10: E o tempo passa

Nada como o tempo para apagar as feridas deixadas, dizem os mais velhos e talvez
tenham razão. Os anos se passaram suaves depois que tirei o peso de um casamento sem
amor de meus ombros. Pelo menos na minha vida privada, já que para o resto do mundo
continuávamos o espelho de felicidade. Por um lado foi até bom, pois afastava de mim
qualquer tipo de investida de pretendentes a amantes que haveria se meu estado civil
passasse de casada para divorciada. Marco não foi tão discreto assim e achava que me
esfregando na cara a cada dia uma amante diferente, eu iria voltar atrás de minha
decisão. Mas para seu engano, para mim era um alivio.

Enquanto minha carreira decolava cada vez mais, Marco se contentava em gastar o
dinheiro do pai com bebidas e amantes. Por influência de meu nome, conseguiu um
emprego de assistente de um renomado advogado londrino, mas para a família, dizia ser
sócio. Muitas vezes viajava para o Brasil para tratar de assuntos da empresa do pai, mas
para mim pouco importava, já que minha vida agora eram as apresentações que fazia
por toda a parte. Eram muitos os produtos comercializados e ligados à marca de meu
nome e para quem pensa que não há muito público para esse tipo de música é porque
não vive nos países europeus. Com minha fortuna em alta, pude manter um padrão
razoável de vida para meus pais, apesar de não aceitar vê-los. Um dia chegando de uma
das viagens do Brasil, tive a surpresa de ver Marco chegar com seu pai, ele que não se
afastava de seus negócios por nada e imaginei se tratar de algo realmente sério. Seu
Artur mal me cumprimentou e se trancou com o filho no escritório e depois de quase
uma hora saiu de lá com uma cara pior do que entrou.

_Precisamos conversar, me disse e me convocou para entrar no escritório. Marco estava


encolhido no sofá e seu pai se sentou em sua cadeira preferida, nem me convidando para
fazer o mesmo e fiquei em pé esperando qual seria o assunto.
_Precisamos vender essa casa, foi dizendo Seu Artur a seco.
_Como? Falei surpresa.
_A empresa contraiu algumas dívidas e a estada de vocês aqui só deu prejuízos para
mim. Espero que colabore e aceite voltar para o Brasil juntamente com seu marido.
_Acho que está havendo um equivoco aqui seu Artur. Há muito tempo eu não necessito
de seu dinheiro ou de qualquer coisa que venha de sua família, respondi firme. Agora eu
não sou responsável por seu filho ser um inútil que só sabe gastar o que não trabalhou
para ganhar e até o pouco que ganha deve a mim, pois foi por causa de uma indicação
minha que conseguiu o emprego que tem. Engraçado me lembrar do tom de minha voz
naquela tarde, algo que me fez parecer dona Catarina e aquilo me assustou por um
momento, mas percebi que era hora de tomar mais uma vez as rédeas de minha vida de
uma vez por todas.
_O que estou ouvindo, Marco? Falou olhando para o filho que se encolheu mais ainda
no sofá. Vai deixar essa mulher falar assim com você? E você como ousa falar assim de
seu marido? Respondeu furioso.
_Vamos por as cartas na mesa, seu Artur? Quanto quer pela casa? E para sua
informação faz muito tempo que Marco não é meu marido se o senhor me entende.
Quanto aos gastos a que o senhor se refere, com certeza não foram comigo ou com a
manutenção dessa casa.
_Não posso acreditar nisso, e você filho não fala nada? E Marco apenas encarou o olhar
do pai para novamente abaixar a cabeça, sinal de sua confissão.
_Meu Deus! Seu Artur pareceu cair na realidade. Você sempre falava que gastava
dinheiro para manter a carreira de sua mulher porque a queria feliz, e colocou as mãos
sobre o rosto.
_Nosso casamento é uma fachada que mantive até por interesse de me manter afastada
de qualquer tipo de problemas quanto aos assuntos sentimentais, mas quanto à questão
financeira, o que necessito ganho com o talento de minhas mãos e Marco sabe disso. O
seu dinheiro é exclusivamente usado por ele para suas farras regadas a bebidas e
mulheres.
_Meu filho que decepção. Nunca esperava que você fosse capaz disso, completou
realmente envergonhado.
_Mas vamos ao que realmente interessa seu Artur. Quanto quer pela casa e o que
necessita para quitar as dívidas da empresa? Até porque não estou disposta a sair da
casa que ocupei pelos últimos anos e de alguma forma se tornou um lar para mim.

E assim me tornei, claro que no anonimato, acionista majoritária da indústria de meu


sogro e deixei a cargo do doutor Luiz, advogado este que já cuidava da administração da
fazenda de minha família e a gerência dos meus negócios no Brasil. Para todos os
diretores, ele foi apresentado como administrador do novo acionista que preferia não
intervir na empresa. E eu tinha total confiança nele porque até agora vinha cuidando
bem da Campo Belo, a fazendo voltar a dar lucro, coisa que não ocorria no tempo que
meus pais só gastavam mais que podiam.

Marco tinha resolvido voltar para o Brasil com o pai e por preguiça de minha parte,
apesar de já haver uma total separação de corpos, não efetivei de fato no papel nosso
divórcio. Nessa época passeando pelas ruas de Londres, entrei numa livraria e descobri
ali o livro de Luiza. Como fiquei feliz em ver que ela tinha alcançado o sucesso e como
me emocionaram as estórias ali descritas, me lembravam talvez da época que fui mais
feliz. Chorei sozinha em meu quarto ao saborear suas palavras e também de saber que
padre Antônio tinha falecido. Mais uma de suas perdas, pensei. E acordei um dia me
olhando sozinha dentro daquela casa enorme e percebi que não tinha ninguém para
compartilhar. Não queria me envolver com ninguém apesar das muitas tentativas tanto
de homens como mulheres, desde que comecei a aparecer sempre sozinha nos muitos
eventos que se fazia necessária minha presença. E pela primeira vez descobri que uma
criança poderia preencher esse espaço, pois seria uma pessoa que eu poderia dar esse
amor que estava guardado aqui dentro e que iria retribuir sem qualquer interesse. E
assim como uma produção independente nasceu Maria Eduarda. Não queria que meu
bebê não tivesse referência de um pai e mandei chamar Marco que a principio achou
que não devia gerar de uma relação morta uma criança, mas acabou concordando em ser
o doador, até porque a criança bem ou mal levaria o nome de sua família, coisa que seu
pai sempre o cobrou. E numa clinica dentro de um tubo de vidro, vi meu sonho se
formando e dei sorte, pois engravidei na primeira tentativa. Marco resolveu voltar para a
Inglaterra para acompanhar todo o processo e parece que se motivou. Mostrou-se
renovado e disposto a dedicar a vida a essa criança e realmente foi um bom pai.

Chegando o final de mais um ano e em dezembro de 2002, apesar dos protestos de


Marco que naqueles meses eu vinha redescobrindo como o rapaz gentil que ele era,
tinha marcado uma apresentação no dia de natal no Central Park em beneficio de
crianças carentes. Não sei se foi à gravidez que já se fazia notada, mas enquanto eu
acariciava minha barriga soube que tinha tomado a decisão certa e a gravadora achou
ótima a idéia para a divulgação de mais um cd meu lançado no mercado.

_Estarei de volta antes do dia 31 e assim poderemos comemorar a chegada de um ano


tão importante para nós.
_Mas é perigoso em seu estado essa viagem de avião, tentou me convencer.
_Só se deve ter precaução depois do sétimo mês, então não se preocupe, acalmei-o. E
assim foi que na semana que antecedia o natal daquele ano, embargava para Nova York
para novamente o destino voltar a jogar seus dados.

Capitulo 11: Surpresas de Viagem

Nova York como sempre naquela época do ano estava vibrante e iluminada. Eram
pessoas de diversas partes do mundo que percorriam apressadas as suas ruas atrás de
diversão e compras natalinas. Depois de me instalar no hotel onde sempre ficava quando
ia para a cidade, resolvi ligar para Marco para dizer que havia chegado bem. Então
assim que desliguei o telefone, resolvi conhecer a instituição que seria beneficiada com
o concerto no parque. Foi uma tarde emocionante a que passei ali junto com aquelas
crianças tão carentes de tudo, mas que se satisfaziam apenas com um pouco de amor e
atenção. O professor responsável pelo coral das crianças preparou uma pequena
apresentação para que eu pudesse ter a idéia de como seriam as músicas que estavam
programadas para o show. Nenhuma novidade, mas me surpreendi com o real talento
vocal de muitas daquelas crianças, até porque cantavam com o coração. Quando me dei
conta, já era quase noite e depois de lanchar com eles, resolvi voltar a pé mesmo para o
hotel, até para aproveitar o passeio. Chegando ao hotel mal tomei um banho e caí na
cama de cansaço, pois achei que realmente tinha excedido meus limites fazendo um
grande esforço no mesmo dia da chegada.

Os dois dias seguintes também foram intensos, mas nem por isso menos prazerosos,
pois estar ali com aquelas crianças era tudo de bom. Quando chegou a véspera de natal
estava tudo preparado e o programa todo definido, por isso me permiti um descanso na
parte da tarde para estar bem no dia seguinte. Sentada ali naquele quarto de hotel, fiquei
recordando dos natais passados, principalmente os de minha infância e não teve como
fugir das lembranças de meus pais. E por um instante me perguntei como os heróis que
eu tinha em um pedestal se transformaram nos vilões de hoje. E me permiti naquele
momento perdoá-los e entender que eram apenas humanos que se viram privados de
repente da única vida que conheciam e sabiam dentro do estilo de mandar e ser
obedecido. E estava nesse pensamento quando o telefone tocou. Era Marco e percebi
logo pelo tom de sua voz que algo tinha acontecido.

_Ligaram do Brasil. Aconteceu um acidente com seu pai. Não precisou ele terminar de
falar para saber que meu pai já não existia mais. E como o irmão que não conheci, foi
em cima de um cavalo que ele perdeu a vida. Segundo minha mãe, ele sempre preferiu a
eles que a ela. Não consegui sentir mais que pena e nem derramar uma lágrima. Assim
que me refiz do marasmo que me abateu consegui telefonar para o doutor Luiz que me
forneceu todos os detalhes e me perguntou se eu conseguiria voltar para o enterro.
_Isso nem me passou pela cabeça, doutor. Tenho compromissos com as crianças que
contam com meu apoio para o espetáculo de amanhã e nem daria tempo. Quero que o
senhor cuide de tudo que for necessário, com muita discrição e sem a imprensa se
possível. Quanto a minha mãe, peça para a Zefa, nossa funcionária de muito tempo para
ficar ao seu lado para o que ela precisar. Pedi isso para o doutor porque há muito tempo
Zefa já não era mais só a cozinheira da fazenda. Agora era um tipo de governanta, bem
diferente da madame Valquíria, para minha sorte. Ela era uma espécie de espiã mesmo
para mim e sempre me passava as noticias lá da fazenda. Eu claro tinha contratado mais
funcionários e Zefa ficava por conta de supervisioná-los. Ela tinha até voltado a estudar
o que a animou muito com a perspectiva de conhecer um mundo novo. Ela saberia
controlar a minha mãe caso fosse necessário, até porque a conhecia talvez melhor que a
mim.

O dia seguinte amanheceu branco como os turistas queriam nessa época do ano, passar
o típico natal com neve principalmente para aqueles que não conhecem esse lindo
fenômeno. Mas logo apareceu um sol que mesmo assim não conseguiu esquentar muito
o tempo. Não sei como ficaram sabendo mas ao sair do hotel já havia uma quantidade
de paparazzi na porta querendo informações sobre a morte de meu pai e se eu não
cancelaria a apresentação dessa tarde. Consegui com a ajuda de um empregado do hotel
entrar no carro que já estava estacionado na frente sem nada dizer.

Quando cheguei ao Central Park, as crianças todas estavam a minha espera e uma
garotinha negra veio até mim com um buquê com flores do campo e falou em nome de
todas que sentiam muito minha perda, já que elas também não tinham um pai. Logo
veio o professor das crianças e me disse que entenderia se eu resolvesse não tocar
naquele dia.

_Nada disso, falei em alto e bom inglês. Nada honraria mais a memória de meu pai que
eu estar aqui hoje e percebi novamente o sorriso em seus rostinhos.

Primeiro elas se apresentaram sozinhas e logo que entrei naquele palco fiz questão de
dizer algumas palavras para que não parecesse ser insensível diante do momento que
estava passando, mas para deixar claro também que era importante a presença de todos
ali naquele evento que beneficiaria tantas crianças que não possuíam lá muita coisa.
Enquanto tocava com aquelas crianças fiz a conexão da morte com a vida que estava
gerando dentro de mim. Momentos tão diferentes e que representariam a partir de agora,
uma nova vida. No intervalo consegui falar com Zefa e não diferente do que esperava,
minha mãe estava se portando como a dama que se esperava dela. Segundo Zefa para
ela era como se livrar de algo que não se usa mais e desejei que a morte de meu pai
realmente provocasse em sua pessoa uma mudança para que melhorasse como ser
humano, mas seria querer demais. Continuava com a mesma pose de dona do mundo
que acabou seis meses depois quando um forte derrame a acometeu e passou o que acho
para uma pessoa orgulhosa como ela pela maior das humilhações porque dependia de
Zefa até para alimentá-la, imóvel sobre uma cama, algo que suponho acabou matando-a.

Mas aquela tarde de natal ali diante daquela enorme platéia de famílias que tinham
vindo talvez empolgadas pelo espírito solidário que aflora nessa época, por um
momento acariciei minha barriga que já começava a aparecer e senti que seria para
aquela criança a família que estaria ao seu lado e a apoiaria sempre porque é isso que
significa amar.

Ao terminar a apresentação sobre muitos aplausos entusiasmados, a organização do


evento pediu para que me demorasse um pouco mais para que houvesse tipo uma sessão
de autógrafos e um contato maior com os fãs. Estava um pouco cansada mais concordei
já que estava um dia agradável. Aproveitaram para vender alguns produtos ligados ao
meu nome, idéia da gravadora com certeza. Muitos apareciam com CDs, camisetas e
outros objetos para que fossem autografados, teve até um fã mais ousado que pediu para
que eu assinasse em seu abdômen bem trabalhado para dizer a verdade. Já estava
terminando quando diferentemente do inglês ouvido até então, foi pedido um autógrafo
em português e até por curiosidade procurei olhar atentamente quando me deparei com
Luiza ali parada ao lado da mulher que me fazia o pedido. Meu coração parecia querer
sair pela boca e imediatamente reparei que ela estava de mãos dadas com aquela mulher
numa intimidade incômoda. Ela estava mais linda do que eu me lembrava e com uma
postura segura e altiva, resultado certamente de todo o sucesso e dinheiro alcançados. E
quis morrer quando aquela mulher se apresentou como sua esposa e só então percebi as
alianças. Ela era uma mulher atraente e via-se que estava totalmente confortável dentro
dessa relação. Já Luiza parecia desconfortável em estar ali, mas mesmo assim referiu-se
a morte de meu pai e me parabenizou pela gravidez. Eu não sabia o que dizer, e
lembrei-me de comentar sobre o sucesso de seu livro. Sua mulher, Bianca me lembro
bem de seu nome, falava de seu sucesso com um olhar que reconheceria de longe: era
quase de devoção e de um amor que não tinha vergonha de se mostrar. Pensei, enfim,
Luiza devia estar feliz e nunca invejei tanto outra mulher como aquela loira que a
segurava com a força da posse. Luiza parecia querer sair logo dali, talvez para coisas
mais interessantes já que estavam em lua de mel e só esse pensamento me fez quase
partir para cima delas para separá-las. Mas lembrou Bianca do pai que era meu fã se me
recordo bem e a chamou para irem, já que realmente havia muitos fãs ansiosos para
chegarem a sua vez. Mas eu queria ter a lembrança de seu toque e ao pegar sua mão na
despedida, por um momento me pareceu que ela também tremia, mas logo ela buscou se
desvencilhar e se foi ao lado da mulher. Olhando as duas se afastarem após assinar
aquele cd, me faltou coragem para fazer o que realmente tinha vontade, seguir Luiza e
arrancá-la dos braços daquela mulher e dizer que em nenhum momento a esqueci. Mas
tinha perdido esse direito há muitos anos atrás, quando nossos caminhos se separaram
naquela estrada. Eu não podia atrapalhar a felicidade que tinha certeza ela tinha lutado
muito para conseguir. E então fiquei ali atendendo mais alguns fãs com a certeza que a
vida tinha nos separado para sempre.

Capitulo 12: Novamente Luiza

Maria Eduarda veio trazer para minha vida uma nova chance de recomeçar. Para seu pai
também, pois Marco se animou tanto que voltou a estudar e até procurar um emprego e
dizia que queria que a filha se orgulhasse dele. Olhando para seu rostinho me via nele
porque os olhos azuis eram idênticos aos meus, mas os cabelos negros e lisos foram
herança do pai, que não cansava de falar que Maria Eduarda seria uma mulher assediada
por tanta beleza. E sua presença veio tirar um pouco de minhas lembranças sobre Luiza
e sua mulher. Mas à noite, quando me deitava sozinha naquela cama enorme, imaginava
se ela gemia de prazer nos braços da outra. Quantas vezes tinha se extasiado com o
sabor do gozo de Bianca. E só de pensar as lágrimas caíam sem que eu conseguisse me
controlar. Foi uma época duplamente difícil, em primeiro lugar por ser mãe de primeira
viagem e muitas vezes de sentir medo de me tornar uma dona Catarina para minha filha,
mas Marco me ajudou muito nesse período dividindo comigo todas as responsabilidades
e confirmando para mim mesma que jamais seria como minha mãe. Já por outro lado, a
certeza que jamais teria novamente Luiza me enchia de um mal estar que só conseguia
diminuir quando o passava para as teclas do piano. Foi uma época que creio compus
muito e bem, o que me gerou frutos financeiros, mas apesar de toda a ajuda de Marco e
Harold, achei por bem contratar uma babá que me acompanhasse nas minhas turnês já
que não queria me separar de Duda, e foi assim que conheci Gisele. Não vou negar aqui
que não percebi no primeiro olhar seu sex appeal, porque era uma jovem muito elegante
e do tipo que atraía todos os olhares. Veio recomendada por um músico amigo meu, que
me disse que a mesma era filha de um primo que estava fazendo um intercâmbio para
terminar os estudos, mas apesar de estar em Londres, achava horrível a língua inglesa e
só a usava quando era estritamente necessário e eu não me importava já que dominava o
francês. Ela tinha 19 anos e cursava história da arte e o dinheiro extra seria bem vindo.
Mas ela foi ficando com o passar do tempo, até porque tinha conseguido um estágio
num museu da cidade, mas tenho certeza que o motivo sempre foi a obsessão que
desenvolveu por mim. Nem na frente de Marco ela disfarçava mais a ponto de ele
chegar a comentar comigo, mas além de cortar qualquer expectativa que ele tivesse em
relação a mim, já que não possuía esse direito, o tranqüilizei deixando claro que não era
minha intenção um envolvimento emocional ou sexual com ninguém nesse momento, e
consegui inibir um pouco suas tentativas.

E foi se passando o tempo, Duda crescia forte e feliz, Marco tinha conseguido agora
com esforço próprio um estágio num escritório de uma multinacional, mas minha mãe
tinha sofrido um derrame e deixei a cargo de Zefa os cuidados com ela, já que não me
dispunha a voltar ao Brasil. Doutor Luiz cuidava de meus negócios por lá e isso me
deixava mais tranqüila, já que confiava nele totalmente. Às vezes via na internet alguma
matéria sobre Luiza ou sua mulher que era uma reconhecida cirurgiã pediátrica pela
suas técnicas desenvolvidas. Foi a internet que me ajudou a descobrir que ela descendia
de uma tradicional família de quase meio milênio de história e o pai, aquele que era meu
fã, um reconhecido cardiologista. Odiei Luiza que na adolescência se orgulhava de sua
pobreza e a esfregava como um símbolo em minha cara, mas vivia hoje com uma
mulher rica provavelmente mais que eu era na época.

E chegou mais um aniversário, completava 25 anos e não tinha como não recordar que
era aniversário de Luiza também e imaginei que Bianca com certeza lhe proporcionava
sempre comemorações que a alegrasse, porque tinha percebido naquele dia que a
mulher era totalmente apaixonada por ela, mas naquela manhã ao abrir meu
computador, descobri que a mulher que eu invejava só de imaginar Luiza em seus
braços não existia mais. E chorei ao ver as fotos do velório onde Luiza descansava a
cabeça sobre o caixão da mulher com a qual tinha dividido a vida nesses últimos anos.
Chorei por ver que o destino tinha lhe proporcionado mais uma perda numa vida onde
elas se fizeram sempre presente. Chorei pelo meu egoísmo que não me permitia aceitar
que ela amasse outra. Como tive vontade de pegar o primeiro avião e a proteger com
meu abraço. Abraço esse que desejaria ter nesse momento em que perdi o rumo de
minha vida, mas seu amor hoje já não existe mais. Pouco tempo depois, me preocupava
com a forma que Luiza reagiria e me surpreendi ao ver que ela e o sogro tinham criado
uma instituição com o nome de Bianca com objetivo de ajudar crianças por todo mundo.
Senti orgulho ao ver seu crescimento como um ser humano que doa seu tempo para ser
um instrumento de transformação e proporcionar ao próximo uma qualidade de vida
melhor. E Luiza era assim, por onde passasse sempre deixaria sua marca.

Fiquei sabendo dos seus resultados positivos em diversas partes do mundo e decidi que
talvez eu pudesse colaborar e bem lá no fundo, tinha a esperança de uma
reaproximação. Na época ela tinha lançado um livro que repercutiu com grande sucesso
sobre sua experiência no continente africano. Livro esse que acabou virando um
documentário premiado no mundo inteiro, dirigido até por um jovem cineasta inglês,
que me lembrei de haver conhecido na casa de um maestro amigo meu chamado Robert
Willians, que costumava também participar de eventos com fins sociais. Contei a ele de
meu interesse em ajudar essa fundação e a estória de Luiza e da mulher morta. Pedi a
ele que entrasse em contado e ele acabou falando com doutor Jaime, o ex sogro dela.
Exigi meio que disfarçadamente que preferiria tratar pessoalmente com ela, até por
causa de nosso velho conhecimento. Marco nessa época estava no Brasil, o pai estava
muito doente e aproveitei para planejar tudo nos mínimos detalhes. Era um sonho que
acalentava a todo instante e que tinha conseguido novamente fazer minha alma vibrar.

Quando chegou o dia, ao acordar, meu coração já parecia querer sair do peito só de
pensar que logo a veria de novo, chegava a me faltar o ar, mas percebi que teria que usar
de todo o meu controle para que meu plano desse certo, ou seja, queria mesmo seduzi-la
essa era a verdade, e tentar reacender nem que fosse bem lá no fundo, o amor que um
dia nos uniu. Logo o telefone tocou e Sir Robert, como gostava de ser chamado meu
velho amigo, falou de imprevistos que o impediam de ir buscar Luiza no aeroporto e
que pediria ao filho para fazê-lo. Agradeci a atenção e com uma voz um pouco mais
ansiosa que eu esperava, pedi para trazê-la logo para minha casa se isso fosse possível.
Assim que ele desligou, me bateu a ansiedade da espera, como se naquele dia fosse ser
decidido o rumo que deveria tomar a partir de então. Até Harold que era sempre muito
discreto quanto se tratava de minha privacidade, notou que algo estava para acontecer e
dentro de sua natural fleuma britânica me questionou:
_A senhora me perdoe, mas está precisando de algo? Sinto que está ansiosa e talvez eu
possa trazer algo que a acalme.
_Obrigado Harold, mas não necessito de nada. Estou esperando a visita de uma antiga
amiga que provavelmente chegará com John. Estarei esperando na sala do piano e
quando chegarem os conduza até lá.
_O filho do velho Sir Robert? Ele também virá madame? Pergunto para saber se será
necessário preparar algo para um coffee break.
_Não virá Harold, mas se precisar de algo lhe chamo. E Duda onde está?
_Está na sala de brinquedos com a senhorita Gisele.
_Que bom, estarei no piano então e me dirigi ao único lugar que sabia me acalmaria.

Desde criança o piano sempre foi a válvula de escape para me esconder dos problemas.
Nele eu sempre encontrava as respostas. Então mais uma vez, ao começar a dedilhar
suas teclas, esperava encontrar nelas a força necessária para ter Luiza em meus braços.
Eu não tinha ensaiado nada para esse encontro e pensava que o melhor seria deixar agir
o coração. E realmente me fez bem porque não vi passar o tempo e foi inesperado
quando escutei os dois toques na porta para logo depois ouvi-la se fechar. Não precisei
me virar para saber que Luiza estava ali. Seu cheiro era inconfundível apesar dos anos e
o reconheceria em qualquer lugar do mundo. Era o cheiro de minha saudade e foi o que
disse para ela. Se eu esperava ver uma mulher abatida, encontrei em seu olhar a mesma
determinação que se via na adolescente de muitos anos atrás. E isso só fortaleceu a
determinação que tinha de novamente fazer Luiza presente na minha vida, já que ela
parecia ter superado bem a perda de sua mulher. Mas ela logo esclareceu que diferente
do que eu pensava, era justamente Bianca que lhe dava forças se fazendo presente de
uma forma ou outra dentro de sua vida. Então tentei algo sutil, fornecendo ajuda nessa
missão que ela se dedicava como meta em sua vida pelos próximos anos me
aproximando lentamente. Logo depois fomos interrompidas pela entrada súbita de Duda
e Gisele que parece que se surpreendeu em me ver ali com outra mulher e não disfarçou
seu ciúme e fiquei preocupada que Luiza percebesse algo. Ela logo falou o que todos
falavam quando a viam, que a menina tinha meus traços e que realmente era linda,
modéstia a parte que me cabe. Assim que elas saíram, tentei uma nova aproximação,
agora mais declarada e percebi que ainda exercia algum efeito, já que logo Luiza se
descontrolou alegando cansaço de viagem. Não quis pressionar mais, apesar de quase
não conseguir conter minha empolgação, mas preferi deixar para um jantar marcado,
que seria mais uma armadilha que qualquer outra coisa. Luiza não queria que eu
percebesse que quase fugiu, mas logo que ela saiu por aquela porta eu comecei a
planejar um ataque definitivo para a noite seguinte.

O dia seguinte chegou e eu planejei todas as formas de como literalmente partir para o
ataque. Certifiquei-me de que dessa vez Gisele não nos interrompesse, antecipando o
jantar de Duda e recomendando que ela não saísse do quarto da menina. Ela claro sabia
de minhas intenções mas engoliu seu despeito e nada disse. Quando Luiza chegou
descobri que ela também devia ter lá seus planos, pois estava vestida para literalmente
matar de desejo quem a olhasse. Mas acredito que empatamos nesse quesito, porque
percebi que ela também buscou a respiração. Falamos do passado quando ela perguntou
sobre mamãe e percebeu que não havia mais a ligação de mãe e filha, o que me deixou
chateada, pois a lembrança de dona Catarina só me trazia péssimas recordações. Tentei
sair desse assunto que me aborrecia e durante o jantar levei nossa conversa para o
assunto em comum, o concerto que teríamos que elaborar juntas. E o jantar transcorreu
de uma forma leve onde a deixei falar com entusiasmo de seus projetos. Mas o clima se
transformou totalmente quando ela encheu a boca para falar de Bianca, de que Bianca
era maravilhosa, de como Bianca fazia isso ou aquilo enfim, era só elogios para a
mulher morta. Eu não agüentei saber que pelo que tudo indicava, ela tinha amado essa
Bianca e passei a ser irônica, para abafar meus ciúmes. Além disso, tinha recebido mais
cedo um telefone de Sir Robert que tinha comentado como seu filho tinha ficado
fascinado por Luiza. Então tudo explodiu quando ela com uma arrogância desmedida
fez questão de julgar os meus sentimentos. Não pensei em mais nada, só em tirar de seu
rosto aquele sorriso de ironia e literalmente a ataquei com a vontade acumulada de anos
e quase engoli sua boca num beijo que não deixava dúvidas de minhas intenções. E vi
acender em seu olhar o mesmo desejo que me extasiava e quis novamente me saciar em
seu gozo, não querendo saber se ela já tinha sentido as mesmas emoções com a outra.
Naquele momento ela se rendia a mim outra vez e quando toquei seu sexo senti toda a
umidade que meu beijo tinha provocado. Mas de repente sem que eu esperasse, ela
conseguiu segurar minhas mãos e se afastar como se fugisse de um demônio. Eu sei que
ela estava correspondendo a minha excitação, o que me deu a certeza que seu amor pela
mulher morta era mais forte que qualquer sentimento que ainda nutrisse por mim e a
odiei como nunca odiei outra pessoa, pois o gosto amargo da rejeição nunca antes
sentido se fez presente. E descobri que nunca se deve agir com a cabeça quente porque
naquela noite cometi um de meus maiores erros, dos muitos já feitos, mas que com
certeza me arrependerei até os fins de meus dias. Ao ver Luiza sair por aquela porta subi
furiosa as escadas, indo me esconder em meu quarto onde poderia desabafar toda minha
frustração. No corredor me encontrei com Gisele que saia do quarto de Duda com uma
camisola que no mínimo diríamos ser mínima, porque não cobria muito de seu corpo
jovem e cheio de curvas desejáveis. Não pensei duas vezes cedendo à vontade que ela
tinha de ser possuída por mim e ao meu tesão insatisfeito. A peguei com força pelo
braço e a joguei sobre a minha cama sem me preocupar se Harold ou outro empregado
ouviria tudo. Após trancar a porta, praticamente rasguei sua camisola indo me saciar nos
seus seios jovens, que mordiscava e lambia com força um e o outro massageava com o
polegar e repeti o processo até que seus gemidos se fizessem mais constantes. Minhas
mãos sem se preocupar se lhes era permitido ou não, começaram a explorar seu sexo,
enquanto minha boca ainda se deliciava em seu corpo com mordidas que tive certeza
que deixariam marcas. Ela tentou me tocar, mas eu era mais forte e segurava seus
braços sobre a cabeça, e descia com voracidade meus lábios, só a soltando quando
cheguei e encontrei seu sexo encharcado de desejo e me deliciei com seu líquido
abundante, lambendo sua vagina como uma fruta a ser degustada e Gisele não continha
mais seus gritos, sem se importar se era ouvida ou não. A penetrei enquanto sugava seu
clitóris e ela me presenteou com um orgasmo forte e delirante. Mas eu queria mais e a
coloquei de quatro e lambia toda a extensão de seu ânus o preparando para ser
penetrado, primeiro com apenas um dedo, depois já com dois e ela se contorcia num
misto de prazer e dor enquanto eu a penetrava e massageava seu clitóris freneticamente
a fazendo gozar novamente. Não foram trocadas palavras, somente urros de um prazer
quase violento. Ela estava exausta mas eu não, como se apenas muito sexo pudesse
arrancar Luiza de minha alma. Despi-me e a coloquei sentada de costas sobre meu sexo
também molhado e carente de prazer e ordenei num sussurro que ela rebolasse sobre
ele, o que ela fez com maestria e eu aproveitei para me deliciar novamente em seus
seios, ora os lambendo com fúria, outra apenas massageando seus bicos duros de desejo.
Quando percebi que ia gozar com seu rebolado gostoso, molhei meus dedos no meu
próprio prazer e dei para que ela saboreasse, lambendo de uma forma quase indecente
meus dedos, fazendo que chegássemos juntas a um orgasmo quase paralisante. Mas não
o suficiente para me saciar ainda e a colocando deitada, chupei novamente seu sexo e
me rendendo a vontade de Gisele, dei a ela o que me pedia em desespero e nos
devoramos num 69 rápido e guloso, que nos fez gozar mais uma vez. Seu corpo jovem
não se negava a mim e eu queria devorar seu sexo mais uma vez. Ajoelhei-me aos seus
pés, abrindo com meus dedos ansiosos seus pequenos lábios rosados que me deixava
visualizar aquela vagina suculenta à espera de minha boca. Fiquei ali, lambendo e
sugando seu prazer quando a penetrei forte, a preenchendo de todas as formas, onde
meus dedos eram engolidos para dar a ela cada vez mais prazer e ela correspondia
gritando alto que estava morrendo de tanto gozar, mas não parei até ela lambuzar suas
coxas saborosas, e aproveitei para lamber aquele liquido saboroso até a última gota. Ela
estava esgotada e pareceu-me desfalecida. Subi sobre o seu corpo exausto e encaixei
nossos sexos, rebolando gostoso com nossas pernas entrelaçadas até alcançar meu
orgasmo. Ficamos as duas suadas, mas quando ela pensou que eu a deixaria em paz,
assim que nos encontrávamos deitadas, eu a segurei e senti meus seios pressionarem
suas costas enquanto minha boca mordia sua nuca, aproveitando para penetrá-la num
vai e vem gostoso, com meu sexo roçando forte sua bunda perfeita. Ela melou meus
dedos com vontade e se rendeu com um suspiro de não agüento mais. Não nego que
usei aquele corpo sem me importar com seus efeitos na pessoa, já que eu a via apenas
como uma máquina sexual. Mas ao acordar no dia seguinte e a olhar dormindo com um
sorriso satisfeito nos lábios, fora a dor de cabeça insuportável, senti tanto nojo de mim
que imediatamente me levantei antes que ela acordasse, e quanto isso aconteceu, eu
estava sentada em uma poltrona que ficava em frente à cama e fiz algo que me deu mais
repugnância ainda, mas que se fazia necessário diante da situação:

_Quero que arrume suas coisas e saia dessa casa antes do almoço, fui dizendo com uma
expressão e voz que só havia visto em dona Catarina quando queria ser obedecida.

Não quero me lembrar das palavras que ela usou, claro em francês em alto e bom som,
mas que percebi logo que se calariam com o pomposo cheque que eu tinha a oferecer
pelos serviços prestados. E diferente do que possam pensar que ela se ofenderia por ser
paga como uma prostituta seria ela mostrou sua verdadeira face ao pegar aquele cheque
e saindo toda feliz pela porta da frente. Não que eu me desiludisse, pois o gênero
humano realmente não me surpreendia, mas esperava pelo menos que ela disfarçasse
melhor. Se Harold ou qualquer outro empregado notou o ocorrido, nada foi comentado e
o caso enterrado.

Nos ensaios que se seguiram, Luiza não apareceu e a vi novamente só no dia da


apresentação. Ver é força de expressão, pois eu estava com tanto ódio que não a olhei
diretamente nenhuma vez, mas quando ela subiu naquele palco e começou a falar da
mulher e me pediu uma ária da ópera Aida, a preferida de Bianca, onde a olhei com
surpresa a principio, percebi que ela através de todo o discurso sobre amores
impossíveis e das qualidades da mulher morta, que era um aviso para que eu me
afastasse, porque seu coração já estava ocupado por uma mulher que soube amá-la de
verdade. Então enquanto todos ali interpretavam magnificamente, diga-se de passagem,
aquela última música a seu pedido, desisti dentro de meu íntimo de outra vez ter seu
amor mesmo sabendo que a partir daquele momento eu seria apenas metade de mim. E
ao receber os aplausos no fim, nossos olhares se encontraram para se despedirem, eu
agora sabia, para sempre.
Capitulo 13: O acidente

Marco voltou muito abatido do Brasil porque o pai estava mal. Perguntou por Gisele e
eu simplesmente comentei que ela tinha conseguido algo melhor e ele não se sentiu
curioso para continuar o questionamento. Sempre confiou em meus julgamentos e
nunca desconfiou de nada. Apesar de nossa relação ser quase de irmãos, decidi que não
queria dividir com ele mais a mesma casa, não poderíamos continuar nessa farsa que só
atrasava a vida de ambos, pois se Marco caísse na realidade de que nunca mais me teria,
seria mais fácil quem sabe se apaixonar e arrumar alguém que correspondesse como ele
merecia, mas ao vê-lo tão feliz com a filha, decidi dar um pouco mais de tempo,
enquanto procurava uma nova babá para Maria Eduarda. E depois de muitas entrevistas,
encontrei Berta, prima de um cunhado de Harold, senhora já viúva e com filhos criados,
além de netos e com toda a paciência necessária para me auxiliar nessa difícil arte de
educar outro ser humano. Além de não se importar de me acompanhar nas viagens,
porque não queria me afastar de minha filha por nenhum motivo. Agora ela era a
esperança que nutria minha alma. Tudo que eu poderia querer era vê-la crescer feliz e
ter um futuro onde pudesse ser uma mulher completa com todas as chances para
encontrar o amor.

Tinha terminado mais uma turnê e voltava para casa depois de dois meses de viagens
por toda Europa e até Austrália. Os anos se passaram como plumas sopradas por uma
brisa suave. Mergulhei na música e na criação de Duda. Marco colaborava sempre que
estava por perto, pois agora, depois da morte de seu pai teve que ficar uns seis meses no
Brasil sem nos vermos para colocar em ordem os negócios e inventário da família, claro
que o doutor Luiz tinha sido muito útil. Queria ter visto a cara de Mariana quando soube
que a maioria dos bens de sua tão nobre família já não lhes pertencia mais. Ela com toda
sua altivez passou a viver com uma pensão que o irmão fazia questão de manter, mas
com certeza bem mais módica do que estava acostumada. E com isso esqueci a estória
da mudança de casas, já que via que era real o seu amor pela filha e ele nunca mais
tentou uma aproximação romântica para comigo.

Dona Catarina também nos deixou, mas acredito que tenha pagado seus pecados deitada
naquela cama sem poder fazer nada sozinha, dependendo de terceiros para tudo e sem
poder nunca mais pronunciar uma única palavra. Prefiro crer que tenha também perdido
a racionalidade, o que teria sido melhor para quem era tão orgulhosa. Zefa me ligou
para dar a noticia e saber quais os procedimentos que deveria tomar. A orientei para que
ligasse para o doutor Luiz, que com a competência de sempre providenciou um enterro
simples, porque na verdade em sua vida ela tinha construído apenas inimigos. Está hoje
enterrada ao lado do homem que nunca amou e do filho que perdeu. Não derramei
lágrimas por meus pais e talvez tenha pagado por isso. Os acusei de muitas coisas, mas
no fim, hoje no estado que me encontro, consigo perdoá-los, pois eles faziam parte de
um mundo que queria que não existisse mais: o da desigualdade social e lutava muito
para isso; pelo menos tentava fazer a minha parte, que era um grão de areia, mas se cada
um fosse um grãozinho também, pensava comigo mesma, logo encheríamos a praia.
Luiza também continuou fazendo a sua parte, sempre via seu nome ligado a alguma
ação social pelo mundo e para me machucar e abrir a ferida que eu achava estar
cicatrizada, seu nome era ligado também a muitas belas mulheres por essas revistas de
fofocas, já que ela não fazia questão de esconder sua opção sexual e seus amores.
Pergunto-me se essa foi a forma que achou para tentar aplacar a dor da perda da mulher
de sua vida como eu agi com Gisele naquela noite e não posso recriminá-la por isso.
Mas dói cada vez que a vejo com diversas mulheres e chego a odiá-la por ter fugido de
meu amor, que era sincero. Mas desisti a muito tempo de tentar entende-la e talvez o
grande problema seja sempre a desconfiança que ela teve de tudo e de todos.

Já Maria Eduarda me fez crescer muito como ser humano, porque ser mãe é uma
experiência única. Minha luta era para que ela vivesse em um mundo mais justo, apesar
de todas as facilidades que a vida tinha lhe presenteado, desde cedo gostava de levá-la
comigo para lugares onde crianças se alegravam apenas com um simples prato de
comida por dia. Minha filha era fonte de surpresas e ensinamentos, sempre comentava
com madame Berta, pois para ela não havia diferenças, já ia chegando e se enturmando,
com um carisma próprio de pessoas que se fazem amadas pela simplicidade de seus
espíritos nobres e generosos, sempre demonstrado por seu sorriso franco, talvez puxado
do pai. Com tão pouca idade já se preocupava com as outras pessoas que ela via não
poderem desfrutar do que ela achava que tinha de bom. No final de ano com o pai,
sempre separava alguns brinquedos que não gostava mais e saía para distribuir porque
apesar da idade sabia que o que para ela era desnecessário, seria alvo de alegria para
outra criança.

Estava feliz, apesar de saber que não amaria mais ninguém, a vida tratou de me dar
outras alegrias, minha filha, minha música, a amizade de pessoas queridas, tudo isso
fazia que me sentisse mais completa. Mas lá no fundo, sabia que faltava o amor de
Luiza, mas tive que aprender a viver sem ele e então me fechei dentro dessa redoma que
eu achava seria a vida perfeita para mim.

Mas tudo mudou naquela manhã, que de nada tinha de diferente das outras. Uns dias
antes, Marco veio falar comigo que tinha conseguido uma boa comissão e queria
comemorar. Tinha um amigo que possuía uns chalés nos Alpes franceses e seria uma
oportunidade de tirarmos umas férias da agitação dos últimos tempos.

_Não seja estraga prazeres, quase suplicou. Será bom para todos além de eu poder
apreender a esquiar. E Duda irá adorar não é filha? Também vamos comemorar o
aniversário com um pouco de atraso de certa menininha, disse pegando a filha no colo.
_Vamos brincar na neve mamãe? Pediu com o costume de misturar línguas que agora já
estava começando a me preocupar.
_Mas eu não posso me afastar por muitos dias, disse meio desanimada. Tenho quer
participar da gravação de um dvd para um musical que está na moda. Então posso ficar
fora só por uma semana.
_Então ta né, melhor que nada, falou Marco de uma maneira brincalhona. E você meu
caro Harold pode arrumar as malas que irá viajar também.
_Eu senhor? Perguntou surpreso.
_Claro e madame Berta, também lógico. E já começou a fazer mil planos. Dói-me
lembrar de sua alegria antes daquela viagem. Deixei que ele fizesse tudo a seu modo e
sua animação era tanta que acabou contagiando a todos nós.

Na manhã programada para a viagem, pegamos um vôo até Paris e alugamos um carro
porque Marco fez questão de ir dirigindo até os chalés do amigo para que Duda curtisse
a paisagem, dizia. Madame Berta e Harold haviam viajado no dia anterior para dar uma
boa limpeza no local em que ficaríamos, além de providenciar o que fosse necessário
para nossa estadia, como alimentação. Quando saímos, estávamos felizes e
despreocupados porque todas as providências haviam sido tomadas. Não sei se foi
distração ou destino. Marco não corria demais até porque as estradas estavam tomadas
pela neve. Ele estava alegre como não o via há muito tempo e a todo o momento se
virava para conversar com a filha que mimava até demais. Não quero aqui procurar
culpados além do destino, que me tirou naquele minuto Marco e a minha música.
Deixou-me pelo menos Duda, que é onde busco inspiração para continuar,
principalmente ao vê-la feliz correndo pelo pátio da fazenda com Zefa atrás, sendo a
criança que nunca tive a oportunidade de ser. Minhas mãos doloridas me recordaram
novamente aquele minuto, quando a escuridão tomou conta de minha vida e só despertei
dois dias depois em um hospital francês.

Capitulo 14: Sobrevivendo

Dor, essa é a primeira lembrança que tive ao abrir os olhos depois do acidente. Maria
Eduarda a segunda. Os médicos disseram que tiveram que me sedar porque voltei muita
agitada da cirurgia. Que cirurgia? Pois a dor que sentia nos braços beirava o
insuportável. Foi quando notei meus braços enfaixados. Então veio toda a explicação
técnica e sem emoção que os médicos se acostumam para serem eficientes nessa
profissão. Depois de quase meia hora de palavras do como e do por que, entendi que os
vidros tinham cortados meus braços profundamente, até pelo que os médicos achavam
que por instinto eu devia ter protegido meu rosto na batida. Eles tinham conseguido
juntar os nervos avariados e a dor era um bom sinal, pois lhes dava a esperança que eu
poderia voltar a sentir os dedos e movimentá-los. Mas tocar, eles foram categóricos, era
quase impossível. Meus olhos pareciam parados em um algum ponto, porque não
demonstravam reação nenhuma.

_Senhora, está nos entendendo? Perguntou um dos médicos que estava na sala em um
inglês meio forçado, com um forte sotaque francês.
_Minha filha onde está? E meu marido? Também estão aqui? Questionei em um francês
perfeito.

Esse médico, depois descobri tratar-se do doutor Phillipe, um dos maiores especialistas
nessa área de reconstrução de nervos da França.

_Senhora, continuou respirando pesadamente como todos ali. Sua filha está bem apesar
do susto. Teve alguns cortes apenas superficiais e está em um hotel aqui perto do
hospital, creio que com uma pessoa de sua confiança, Berta se não me engano. Ela e
outro empregado da senhora se preocuparam quando anoiteceu e vocês não se
comunicavam. Fizeram o mesmo trajeto de volta e encontraram o veiculo batido em
uma árvore. A polícia local acha que houve uma derrapagem e o carro foi em direção à
árvore com muita força. Infelizmente, seu marido sofreu múltiplos ferimentos e não
resistiu. Sinto muito.

Virei o rosto talvez para que não vissem as lágrimas que começaram a rolar. Mas aquele
não era momento de chorar e perguntei onde estava o corpo de Marco.

_Ainda está no hospital aguardando a sua liberação, senhora.

Marco, me conhecer foi a pior coisa que lhe aconteceu na vida, pensei com o remorso
por dentro. Poderia ter sido feliz longe de mim, porque nem te amar eu consegui.

_Preciso de um telefone, por favor, no que fui prontamente atendida.


_Quanto a sua recuperação, senhora...
_Desculpe doutor, mas tenho um assunto mais sério para tratar agora. Quero ficar um
pouco só. Peça a uma enfermeira para vir até aqui se não for pedir muito. Todos saíram
e entrou na sala uma mulata que percebi logo não ser francesa pelo seu rebolado e o
sorriso diferente do sisudo povo francês.
_Pois não senhora? E pelo sotaque percebi que provavelmente vinha de algumas das
colônias francesas na África.
_Em primeiro lugar, já que vamos conviver por um tempo por aqui gostaria de saber seu
nome e de onde é.
_Meu nome é Sara, senhora e sou marroquina.
_Em segundo lugar pode me chamar por Júlia, Sara.
_Como queira Júlia. O que mais você precisa?
_Que faça uma ligação para mim para o número que vou te passar e depois ponha no
viva-voz, por favor.

Ela discou os números e perguntou se eu queria que se retirasse o que falei não ser
necessário, até porque passei logo para o português. Quando consegui falar com o
doutor Luiz, pedi que viesse assim que possível para a França para me ajudar na
liberação e enterro de Marco.

_Quero que ele seja enterrado junto com o pai, aí no Brasil doutor.
_A senhora virá junto? Questionou-me.
_Com certeza não, pois não sei ainda quanto ficarei aqui, mas quero que o senhor
providencie um enterro rápido, porque senão Mariana vai querer fazer do fato um
evento social.
_Sei que não é hora, mas o irmão depositava uma quantia para ela todo mês e agora a
senhora quer que eu faça o quê?
_Continue do mesmo jeito até que eu tome alguma outra decisão. O aguardo o mais
rápido possível.

No resto daquele dia que para mim não queria acabar, pedi para me trazerem Duda que
correu assim que me viu e se escondeu no meu colo. Estava assustada claro, ainda sem
entender bem o que tinha ocorrido. Cortou-me o coração quando me perguntou do pai.
Não soube o que dizer e madame Berta me ajudou dizendo:
_Vamos Maria Eduarda sua mãe tem que descansar agora, depois vocês conversam
mais. Harold está nos esperando com aquele bolo gelado que você adora. Ela se foi mas
com o olhar mais triste do mundo e aquilo, assim que fecharam a porta foi o estopim
para eu desabar em lágrimas. Depois dormi como se entrasse em coma e só acordei no
dia seguinte. Sara me obrigou a me alimentar com algo leve, apesar de minha total falta
de vontade. Assim que terminei, Sara se retirou e doutor Phillipe entrou.
_Muito bem senhora, vejo que está se restabelecendo rapidamente. Isso é muito bom.
_Vamos ao que interessa realmente, doutor. Quais minhas chances de voltar a tocar?
Falei sem rodeios.
_Pois bem. A cirurgia que realizei na senhora foi um sucesso no ponto de vista das
condições em que a senhora me foi apresentada. Os danos foram muito sérios, não vou
mentir para a senhora, mas consegui ligar os nervos dos braços e mãos e com muita
fisioterapia, a senhora não terá problemas em recuperar os movimentos mais simples
como comer sozinha ou escrever. Mas também não mentirei que para movimentos mais
complexos como tocar piano, as previsões não são animadoras.
_Ou seja, porcentagem zero; disse sarcástica.
_É difícil prever como já foi dito senhora, pois cada organismo reage de uma maneira.
Só não quero dar à senhora esperanças para um fato que pode não se concretizar.

Os médicos, raça tão sem emoção, pensei. Tudo tem uma explicação dizem eles, mas eu
iria ter que mostrar-lhes o contrário, ou então não saberia o que fazer. Combinei que o
início dessas fisioterapias seriam feitas em Londres, onde ele me recomendou para um
médico fisioterapeuta renomado e amigo seu.

_A senhora deve ficar por aqui mais uns dias, disse percebendo minha cara de desgosto.
Vamos tirar os pontos e continuar com os curativos que vão ajudar no restabelecimento
dos nervos até a senhora começar com as sessões de fisioterapia.

Aquela talvez tenha sido a noite mais longa de minha vida, a passei acordada, pensando
no meu futuro, no que aconteceria na minha vida sem a música, ou como seguiria dali
em diante com uma criança para criar sozinha, pois agora Duda era minha única família.
As horas corriam devagar e eu não tinha vislumbrado nenhuma alternativa aceitável.

No dia seguinte, já passava das três da tarde aqui na França quando doutor Luiz chegou
e foi conduzido imediatamente ao meu quarto para me auxiliar com a tarefa mais difícil
que teria aquele dia. Era necessário o reconhecimento do corpo de Marco por alguém da
família para providenciar sua liberação. Ao descer com dificuldade aquele porão frio e
escuro, me apoiei no doutor Luiz que se mostrou mais uma vez essencial. A visão do
corpo dilacerado de Marco não esquecerei jamais. Ainda me assombra em pesadelos
que agora se tornaram mais constantes. Ao acompanhar aquele caixão até o carro que o
levou para o aeroporto, imaginei que com certeza, Mariana iria me culpar e odiar mais
por ter destruído a vida do irmão. Fiquei pensando se ela teria sentindo sua dor, já que
dizem que gêmeos são ligados quase psiquicamente.

_Vá com Deus, se afastaram todos, enquanto me despedia daquele caixão fechado.
Sinto muito se não pude te amar e quero que saiba que nunca vou deixar que sua filha te
esqueça e ela vai saber que homem maravilhoso você foi, terminei de falar entre
lágrimas. Dei as últimas instruções para doutor Luiz, que me abraçou forte e disse
aguardar notícias de minha melhora. Ao voltar para o quarto, me preparava para outra
batalha mais difícil talvez que voltar a tocar que era encarar minha filha e contar a ela
que nunca mais veria o pai que tanto amava.
Capitulo 15: Depois da tragédia, a volta

Maria Eduarda acreditou dentro de sua visão infantil da vida, que nunca mais veria
Marco porque o papai do céu precisou dele e os anjos vieram buscá-lo. Abraçou-me
forte e perguntou choramingando:

_Papai do céu não quer a senhora também, né? E me doeu o coração ao vê-la assim e
consegui somente responder:
_Não amor, agora não. E parece que ela se aconchegou ainda mais junto a mim.

No meu último dia na França, recebi a visita final do doutor Phillipe que se mostrou
satisfeito com a minha recuperação física, mas alegou que talvez seria necessário um
acompanhamento psicológico para me adequar a todo o tratamento que viria pela frente,
o que recusei. Garantiu-me que estava me enviando para um ótimo fisioterapeuta,
responsável pela recuperação de grandes astros de diversas áreas de esporte. Desejou-
me sorte e disse estar disponível a qualquer hora que eu precisasse de algo. Logo
depois, Sara veio me ajudar a me trocar para deixar o hospital. O que ela começou a
fazer de uma forma lenta e provocante. Eu já tinha notado que ela me tocava diferente
na hora do banho e não vou mentir dizendo que não estava gostando desse jogo de gato
e rato. Só que agora ela estava demonstrando claramente o que queria e não banquei a
difícil até porque senti nesse momento um tesão incontrolável e se me perguntarem o
motivo não saberia dizer. Aliviar por um momento o stress, talvez, mas a verdade é que
Sara era muito gostosa e quis experimentar uma vez na vida, o famoso sexo sem
compromisso, sem sentimentos de ódio ou amor, somente sexo prazeroso para ambas as
partes, sem a obrigação de um te ligo depois. E quando ela ao se virar deixou sua boca
perto da minha não pensei duas vezes e a beijei com vontade e ela retribuiu com um
sorriso sacana de quem sabia que isso iria acontecer. Ela me empurrou delicadamente
para a cama enquanto me despia com uma vagarosidade excitante. Começou a chupar
meus seios com volúpia, tocando com sua língua os mamilos já duros pelo prazer que
ela demonstrava em me ter. Foi descendo com sua boca carnuda por todo o meu corpo,
o enchendo de beijos molhados por todas as partes, como se querendo me provar de
todas as formas possíveis. Quando comecei a gemer, ela se aproximava com o olhar
sobre o meu sexo já em fogo e ela não me fez esperar mais, colando a boca nele,
enquanto colocava minha perna sobre seu ombro. Ela lambia e sugava com força e suas
mãos continuavam a massagear meus seios. Não foram trocadas palavras, só sussurros
de prazer e quando ela viu que este chegava para mim, me penetrou forte com seus
dedos longos e experientes, logo após os trocando pela língua até eu presenteá-la com
meu gozo. Eu não podia tocá-la, mas isso não me impediu porque ela se ajoelhou sobre
a cama facilitando meu acesso quando ela só afastou a calcinha molhada e vislumbrei
toda a extensão magnífica de seu sexo perfeito. Cai de boca me equilibrando entre suas
pernas torneadas e me saciei até não ficar uma só gota de seu prazer. Ela apertava minha
cabeça demonstrando que ainda não estava satisfeita e a penetrei com minha língua que
estava dura de excitação. Mordia com vontade redobrada os pequenos lábios de seu
sexo, sugando seu clitóris entre meus dentes. Depois de fazê-la gozar forte, ela segurou
minha cabeça para me presentear com um beijo melado e erótico. Senti-me leve depois
que ela saiu e por alguns instantes, fiquei olhando pela janela e vendo a quantidade de
paparazzi que estavam lá embaixo. Todo meu bom humor sumiu, mas mesmo assim me
preparei para o espetáculo. Harold empurrava a cadeira quando saímos porque eu ainda
estava me sentido cansada e o hospital mal conseguiu fazer um cordão humano para que
passássemos em direção ao carro que nos levou direto para o aeroporto num vôo fretado
para irmos para Londres.

A nossa volta não poderia ser mais triste. Ao entrar novamente naquela casa, que apesar
de ser meu lar pelos últimos anos, nunca me pareceu tão distante e fria.

_Vou providenciar algo para um lanche, foi dizendo Harold. Berta pegou Duda pela
mão e a levou para o quarto de brinquedos e me parece que se distraiu por lá, pois só
voltou para comer.

Não sei descrever com palavras o que senti ao entrar novamente na sala do piano. Ao
sentar em frente a ele, nunca me senti tão impotente. Os curativos ainda cobriam minhas
mãos e só seriam retirados assim que começasse a fisioterapia. Mas isso não impediu
que eu tentasse abrir os dedos e percebi que seria dolorido caso forçasse mais. Ficamos
ali, ambos mudos até Harold me avisar que ele tinha conseguido marcar para o dia
seguinte a primeira sessão de fisioterapia.

Chegamos pela porta dos fundos para evitar qualquer tipo de tumulto com a imprensa.
A primeira vez que estive frente a frente com o doutor Cristian, descobri porque ele era
considerado um dos melhores em sua área. Ele era dinâmico e me mostrou os diferentes
métodos que pretendia usar comigo, que seriam demorados, mas eficazes dentro de um
longo prazo. Falou que o doutor já havia lhe enviado todos os exames feitos antes e pós
operação e me deu esperanças que dentro de um curto tempo eu poderia voltar a fazer os
movimentos mais simples como comer, escrever, descascar uma fruta, mas quanto a
tocar novamente, foi categórico:

_As articulações foram comprometidas e não há garantias que para movimentos tão
complexos quanto o piano exige, a senhora tenha forças para executar, mas vamos passo
a passo, degrau por degrau e quem sabe não cheguemos ao topo da escada?

E foi degrau por degrau nas semanas que se seguiram que apesar da dor, me fizeram ter
de volta alguns movimentos e foi com a mesma disciplina de pianista que insisti nas
duas sessões diárias em que praticava os exercícios passados que voltei pelo menos a
me bastar para as coisas simples da vida. Duda que adorava me ajudar a comer como
fazia com as suas bonecas, se frustrou quando não se fez mais necessária, mas logo
achou outra distração. Diferente da mãe, ela parecia não ter talento ou vontade nenhuma
para a música, mas adorava passar horas desenhando em seu quarto. Eu não a forçaria a
nada, e o tempo e sua escolha iriam decidir o que ela seria.

Quando cheguei uma tarde na clinica, doutor Cristian me chamou com uma cara séria,
diferente da sempre sorridente de nossas sessões.

_Venho dizer hoje Júlia, que não quero lhe enganar até pela amizade desenvolvida entre
nós. Meu trabalho acabou. Seria mentiroso de minha parte, continuar recebendo
pagamento pelo que acho já está terminado. O que podia ser feito, fiz. Veja pelos
resultados que você alcançou em tão pouco tempo e apesar de sua frustração em não
voltar a tocar, garanto que isso dependerá apenas de sua vontade, mas levará tempo e
não será na minha clinica que você conseguirá isso.
_Agradeço sua sinceridade doutor, consegui dizer. E o senhor tem razão quando
acredita que não deva me iludir mais.
_Eu não disse que você não poderia conseguir com o tempo e com a sua perseverança
até não duvido, tentou sorrir. Só que não precisaria mais de meus serviços.

Ao sair dali, pensei e agora? Qual o sentido daria para minha vida? O que poderia fazer?
Sei que ser mãe é maravilhoso, mas eu tinha me acostumado a também ser útil para os
outros e agora mal dava conta de mim. Fiquei com medo que uma depressão me
atingisse e depois de mais uma noite acordada pensando, decidi voltar ao começo para
achar a chave do futuro. Iria voltar ao meu país, para o lugar onde há muitos anos tinha
jurado não mais voltar, mas senti dentro de meu coração que seria ali que encontraria
novamente as forças para me reerguer até como ser humano.

Duda adorou a idéia de viajar para outro país e apesar da dor no coração, chamei
madame Berta e Harold para lhes comunicar minha decisão. Tinha resolvido lhes dar
uma boa gratificação, principalmente a Harold que me acompanhava há anos. Madame
Berta se emocionou muito no dia em que partiu, mas disse que manteria contato assim
que pudesse, pois gostava de Duda como de um de seus netos, mas para minha surpresa,
Harold entrou no escritório e colocou o cheque que eu tinha lhe dado na mesa e
simplesmente disse:
_A senhora e miss Duda são a única família que tenho e as acompanharei aonde forem,
mesmo se for contra sua vontade, e saiu discreto como sempre fechando a porta.

E assim, no começo de junho de 2008, voamos os três rumo a uma nova vida no Brasil,
pelo menos até que eu me achasse. Ao fechar a porta daquela enorme mansão em
Londres, tive a sensação que não voltaria nunca mais. Harold para minha alegria estava
se adaptando bem a nova vida rural, acredito que incentivado principalmente por um
belo par de pernas de certa mulata que ainda tinha muito charme apesar de já ter
passado dos cinqüenta. Zefa estava também encantada com o jeito de lord inglês de
Harold e ambos se esforçavam em aprender palavras, ele em português e ela em inglês
para se comunicarem, mas acho que os olhares entre ambos eram mais diretos que
qualquer palavra. Harold se encarregava agora apenas da educação de Duda, que se
realmente fossemos ficar por aqui, teria que ser matriculada em uma escola no começo
do ano que vem. E não faltariam para ela boas escolas, pois a pequena cidade que
deixei, hoje era uma cidade de médio porte que tinha crescido e se desenvolvido bem.
João estava fazendo um bom trabalho como prefeito e me lembrei de Luiza ter
comentado que ele tinha voltado porque achava que aqui seria mais útil. O pai devia
estar muito orgulhoso. Sem querer e parecia ocorrer muito desde que tinha voltado,
Luiza se fazia muito presente agora em meus pensamentos. Onde estaria e com quem,
penso agora que estou aqui escrevendo essas palavras. Apesar de fazer doer minhas
mãos, as palavras que escrevi fizeram muito bem ao meu coração, sinto que estou mais
leve agora e preparada para a vida que se deslumbra a minha frente. Agora vou me
levantar e ir ter com minha filha que está correndo lá fora cheia de vida e quem sabe,
me inspire a começar a viver também.
TERCEIRA PARTE: A NARRADORA

Capítulo final: Se afastar como? Se és parte de mim

Realmente o sol brilhava com uma intensidade diferente aquela manhã. Na pista do
pequeno aeroporto recém inaugurado, o prefeito da cidade esperava para rever a amiga
que há anos tinha partido. Como a vida era estranha, pensava. Luiza que saiu em um
ônibus velho voltava agora em um jatinho fretado. Olhando para o céu avistou ao longe
a aeronave que se aproximava. Depois de um pouso perfeito, João abriu o sorriso ao vê-
la descendo pelas escadas com um passo apressado e olhando para os lados, mas ainda
se protegendo da claridade forte daquele dia.

_Estranhando estar de volta? Perguntou abrindo os braços para receber de volta um


abraço apertado.
_O que é isso agora? Brincou Luiza. O que fiz para merecer a honra de que a autoridade
máxima do município venha me receber? Só faltou a banda de música.
_E você mereceria, já que é uma celebridade internacional que pisa em nosso solo.
_Que nada meu amigo, eu sou a mesma adolescente que saiu daqui a muitos anos atrás.
Meus medos e dúvidas só se esconderam debaixo de uma fachada de mulher moderna e
independente. Mas não falemos de mim, como está Mariana e seu Pedro? Além do
pequeno herdeiro da família, claro.

E enquanto foram caminhando para fora da pista, João foi contando como o pai, apesar
da idade gostava de brincar com o neto.

_Foi uma luta após o nascimento, porque Mariana queria que fosse João como eu, e na
verdade eu queria dar o nome de meu pai por tudo que ele fez por mim a vida toda. Para
não discutirmos mais, ficou João Pedro e todos ficaram felizes.
_Lindo nome, comentou Luiza. Estou morta de vontade de rever seu Pedro e conhecer
seu menino.
_E meu pai também não vê a hora de te rever. Tem todos os seus livros, e diante do
olhar surpreso de Luiza só falou, é sério. Ele leu e chorou em muitos deles. Quer que
você autografe todos.

Depois de colocar as malas no carro de João, se dirigiram ao agora sobrado de sua


família, onde Luiza teve o prazer de reencontrar o velho seu Pedro, que se não fosse
pelos cabelos todos brancos, não estaria diferente da sua última lembrança dele.

_Que mulher linda você está, menina; foi logo dizendo seu Pedro. As fotos dessas
revistas não fazem justiça a tanta beleza.
_Bondade sua seu Pedro, foi dizendo Luiza. Continuo a mesma, apenas um pouco mais
maquiada.
_Tião e Maria teriam muito orgulho de você, além de padre Antônio, que rezava sempre
para que você encontrasse seu caminho.

Algumas lágrimas ameaçaram sair ao ouvir o nome de pessoas tão queridas, mas Luiza
sabia que elas sempre estariam vivas em seu coração.
_O mesmo orgulho que o senhor deve ter desse rapaz aqui e puxou João pelo braço.
Quando nos dirigíamos para cá, reparei em como a cidade está mudada, ruas asfaltadas
e arborizadas, tudo limpinho, muitas casas comerciais, hospitais, escolas e uma
população com a expressão feliz. Parabéns João, realmente você conseguiu mudar a
estória dessa gente.
_Essa transformação aconteceu primeiro aqui, disse apontando para a cabeça. Depois
que muitos dos jovens que tinham partido assim como nós resolveram voltar e investir
em nossa terra natal seus conhecimentos e lucros aprendemos que poderíamos
transformar esse lugar para que todos lucrassem com uma qualidade de vida melhor.
_Está vendo Luiza, indagou o velho Pedro, agora fala mesmo como político.
_E um dos melhores, espero. E cadê Mariana e o pequeno João Pedro? Perguntou muito
curiosa Luiza.

E foi agradável o almoço preparado em sua homenagem que Luiza desfrutou no meio de
pessoas tão queridas. A maternidade tinha feito bem para Mariana que estava linda e o
pequeno João Pedro era uma criança forte e de traços daquelas crianças de comercial de
TV e com esse comentário, seu Pedro sorriu inchado de orgulho. Mariana queria mais
filhos, o que alegrava muito os homens da família, porque de filho único já bastava o
próprio João, dizia esperançoso um seu Pedro, que agora pela idade, já não ficava atrás
de um balcão.

_Os negócios estavam nas mãos de pessoas capazes, dizia meio emburrado seu Pedro,
amigos lá da capital de João, que não me deixa fazer mais nada.
_O senhor já trabalhou demais e agora é hora de descansar papai; retrucava o filho.

As horas passam depressa quando se diverte e para Luiza ela só se deu conta ao reparar
que quase anoitecia e ainda não tinha pensado em um lugar para ficar.

_Preciso de um hotel ou pensão João, onde possa me estabelecer pelo tempo que for
necessário, pediu.
_Nada disso, interveio seu Pedro. Tem um lugar que está te esperando há anos e faço
questão que você se hospede lá. Temo que não esteja mais como você deixou, mas com
certeza mais confortável.

E foi com muitas lágrimas que Luiza entrou pela porta do sítio que viu o nascimento de
todos os seus sonhos, mas que o mais sonhado ainda não havia conseguido realizar. Seu
Pedro tinha feito algumas reformas que o tornaram confortável mas sem perder sua
rusticidade que atraía muitos turistas que o alugavam para passar temporadas de férias
por ali.

_Está muito bem conservado João, exclamou emocionada.


_Papai contratou um zelador que toma conta daqui quando não está alugado.
Provavelmente está diferente até porque depois que você partiu, ele deu uma boa
reforma, mas não mexeu na estrutura. Vem cá e saiu puxando Luiza pelas mãos. Olhe o
pequeno pomar que seu Osório, nosso zelador plantou aqui nos fundos. Ele cuida desse
jardim como se fosse um filho seu, diz que elas entendem e veja, arrumou até uma rede
entre as duas mangueiras para se você quiser ficar descansando.

Luiza não sabia o que dizer e ela que sempre tinha a palavra certa para todos os
momentos, simplesmente conseguiu falar um muito obrigado, dando-lhe um abraço
sincero.

_Os quartos estão arrumados e tem comida na geladeira e despensa. Não se assuste que
seu Osório aparece uma vez por semana e entra pelos fundos para cuidar do pomar,
então não se preocupe se o encontrar por aí. Bem, parece que meu dia de folga acabou,
tenho que dar uma passadinha ainda na prefeitura para assinar alguns papéis e lhe desejo
muita sorte nessa empreitada.
_João como ela está? Perguntou sem rodeios.
_Ninguém da cidade, além de minha família sabe que ela está aqui e isso porque Zefa
nos contou. Não saiu da fazenda para nada. Zefa diz que apesar das dores nas mãos já
recuperou boa parte dos movimentos, mas fica horas trancada em frente ao piano
olhando para ele sem nada dizer. Só com a filha é que demonstra alguns sorrisos, no
mais fica a maior parte do tempo no quarto.
_Veio só ela e a filha? Luiza quis saber com uma pontinha de ciúmes ao imaginar
aquela Gisele ao seu lado.
_As duas e um empregado, que conforme palavras de Zefa nunca viu homem tão
elegante e fino. Acho até que está se engraçando com ele, parece um lord, segundo
palavras dela.

Luiza sorriu ao se lembrar da mulata e pela descrição só podia tratar-se de Harold,


sempre fiel e suspirou com alívio por saber que Júlia não tinha ninguém.

_Escute João, pedirei um último favor. Ligue para Zefa e diga que preciso falar com ela
no mais tardar amanhã. Ela será peça importante nesse meu plano. E diga para ela assim
que ligar para que dê um jeito de Júlia ficar sabendo que voltei.
_Assim que eu chegar à prefeitura te ligo. Ela também está muito feliz pela sua volta.
Agora tenho que ir mesmo e muita sorte.

Antes de João sair Luiza o chamou mais uma vez:


_João obrigada por tudo, jamais vou esquecer o que você está fazendo por mim.
_E não é para isso que servem os amigos? Perguntou sorrindo.
_Amigos não, irmãos e o abraçou mais uma vez.

Depois de João sair, Luiza passou quase meia hora olhando todos os cômodos do sítio e
achou tudo arrumado e a mobília de muito bom gosto. Preferiu ficar no seu velho quarto
mesmo e o achou muito confortável e agora mais espaçoso do que se lembrava. Desfez
as malas e tomou um banho revigorante num banheiro que era sim a parte nova da casa,
já que no seu tempo, usavam uma fossa do lado de fora e banho era de caneca mesmo.

Quando se deitou para dormir a cabeça não parou de trabalhar no plano que iria elaborar
para chegar perto de Júlia depois de tê-la rejeitado na última vez que se viram, mas as
emoções do dia e o cansaço da viagem logo a fizeram pegar no sono.

O telefone tocou na fazenda Campo Belo quando já passavam das oito da noite. Júlia
ouviu, mas estava no quarto da filha fazendo-a dormir, o que não foi difícil já que Duda
estava muito cansada de suas peripécias durante o dia. Ao descer ainda viu Zefa ao
telefone e parecia toda feliz ao se despedir.

_Está bem, obrigado por te ligado, fico muito feliz sim e diga a ela que vou logo que
puder e Zefa desligou o aparelho.
_Quem era? Quis saber Júlia só por curiosidade.
_João, respondeu Zefa já pensando num modo de colocar a novidade na conversa.
_E o que ele queria? Você não contou para ninguém que voltei não é? Perguntou
seriamente Júlia.
_Claro que não, mentiu com a cara mais inocente do mundo Zefa. Ele queria era falar
comigo para me contar uma notícia que me deixou muito feliz. Com um suspiro de
alívio, Júlia mais tranqüila falou com um quase sorriso por perceber a real alegria da
empregada.
_E que noticia é essa?
_A menina Júlia não vai acreditar quem está de volta.
_Se você não me contar vai ficar difícil porque ainda não sou adivinha, perguntou
brincalhona.
_Luiza; e Zefa logo percebeu que a expressão de Júlia se transformou de sorridente para
uma inexplicável. Zefa já vivia há muito tempo por ali para conhecer sem que ninguém
tivesse lhe contado a estória de amor daquelas duas. No começo ela não entendeu muito
bem como podia ser isso. Ela tinha sido uma mulher desejável e desejado muitos
homens. Muitos conseguiram satisfazê-la e ela também lhes deu muito prazer. Foi uma
mulher fogosa como se dizia no popular e não acreditava em satisfação entre duas
mulheres em cima de uma cama. Mas conhecia aquelas duas desde crianças e soube
desde aquele dia na cozinha quando trocaram o primeiro olhar que o destino delas
estava ligado para sempre. Acompanhou a felicidade de ambas quando estavam juntas e
também a tristeza quando estavam separadas. E também, sem que os patrões soubessem,
percebeu que naquela festa de quinze anos, elas tinham descoberto o sexo. E desde
aquele dia, apesar de tudo que aconteceu nos últimos anos que as manteve distantes,
sempre soube que o destino as juntaria novamente. E mesmo sem entender, amava as
duas como as filhas que não teve e se ambas se gostavam desse jeito, não era ela que
iria criticar. Iria sim, ajudar para que elas fossem felizes como mereciam.
_O que ela veio fazer aqui? Falou uma desconfiada Júlia.
_Parece que foi o João que convidou não sei bem, para conhecer o filho, disse Zefa sem
olhar muito para Júlia para que esta não percebesse que mentia.
_Você vai vê-la? Quis saber mais Júlia.
_Amanhã, se a menina não se importar. Deixo tudo ajeitado e vou lá dá uma olhadinha
nela. Mas não me demoro muito.
_Não se preocupe, pode ficar na cidade o tempo que achar necessário. Só está proibida
de falar de mim, não quero que ela saiba que estou aqui.
_Como a menina quiser, só que ela está aqui pertinho no sítio e não devo demorar.
_Que sítio? Assustou-se Júlia.
_O que era da família dela, oras.
_Ainda existe?
_Depois que a menina Luiza foi embora e vendeu o sítio para seu Pedro, ele reformou e
aluga para turistas que sempre vem passar férias por aqui.

Zefa notou que Júlia ficou pensativa e se levantou como se ela Zefa, não estivesse mais
ali e saiu em direção ao seu quarto.

Parece que mesmo sem ver Luiza, ela já provocou mudanças no espírito dela, pensou
Zefa feliz.

Júlia subiu para o quarto como se não sentisse o corpo. Só se deu conta que tinha
chegado lá quando ouviu o som da porta se fechando.

Ela estava ali tão perto, pensou. Será que ela realmente não sabia de minha presença e
se sabia o que queria? Rir de sua desgraça? Não, por mais que o rancor da última vez
que se viram ainda estivesse forte em sua lembrança, sabia pela própria personalidade
de Luiza que ela jamais seria capaz disso.

Ao se deitar naquela cama enorme, sem querer abriu um leve sorriso ao pensar nas
coincidências que a vida nos prepara. Quantas vezes naquela mesma cama ela sonhara
em dividi-la com Luiza, no tempo em que ainda eram vizinhas e agora a mesma
situação se repetia. Mesmo sem querer, só essa possibilidade fez com se sentisse
molhada e se surpreendeu consigo mesma se sentindo uma boba. Virou de lado e tentou
dormir, mas a noite passou e pela manhã estava numa excitação só, para saber notícias
assim que Zefa voltasse.

Ainda não tinha amanhecido direito quando Zefa se preparava na cozinha para a visita
que ia fazer. Preparava um bolo de mandioca para levar para Luiza porque se lembrou
que ela adorava quando criança. Harold que também tinha por hábito se levantar cedo, a
encontrou ainda na cozinha e se esforçou em se comunicar com ela, coisa em que tinha
muito interesse, para dizer a verdade.

_Estou indo ajudar a menina Júlia, mas ela não pode ficar sabendo de nada viu.
_Como? Perguntou com forte sotaque.
_Não comente nada, que eu quando voltar lhe faço um agrado, disse e passando por ele
fez uma leve carícia em seu rosto que o deixou vermelho e com um calor que não
aquecia seu coração há muito tempo.

Era um pouco depois das oito da manhã quando bateram à porta do sítio e o coração de
Luiza acelerou. Ao abrir se deparou com a mesma mulata sacudida de muitos anos atrás
e não resistiu e a abraçou forte entre muitas lágrimas de ambas.

_Como ce ta bonita menina, Zefa segurou o rosto de Luiza. Deixe eu te olhar melhor.
Como Maria ia ficar orgulhosa de te ver assim.
_Olha quem fala, disse Luiza. Você continua um pedaço de mulher.

E Zefa soltou uma daquelas suas risadas espalhafatosas que lhe caracterizavam tão bem.
Depois o tempo passou mais rápido do que elas queriam. Comeram bolo com leite e
Luiza adorou recordar fatos de sua infância que pareciam que ela tinha guardado em
algum lugar escondido do coração. Zefa contou a ela as novidades da cidade que crescia
a cada dia mais. Contou noticias de conhecidos em comum, de como estavam hoje,
alguns já não existiam, outros mudaram, muitos voltaram. Falou também de sua vida
nesses últimos tempos na fazenda, dos seus estudos, dos antigos patrões, enfim, uma
vida que Luiza de repente se deu conta que passou, mas depois de muitas risadas e
nostalgia, Luiza que estava com o coração apertado, conseguiu perguntar o que
realmente queria saber:
_Zefa, e Júlia como está?
_Bem, quando ela chegou estava acabada e digo isso não fisicamente mais sim aqui por
dentro, e apontou o coração. Dava dó de ver ela sentada em frente aquele piano e ficar
lá horas só olhando ele. Aí ela começou a se trancar no quarto só escrevendo sabe-se lá
o quê. Agora pelo menos ela começou a caminhar com a filha pelo pátio próximo da
casa. Aliás, que coisinha mais bonita menina Duda. Criança esperta e alegre ta ali.
Diferente da mãe, coitada, que só sorri quando a filha lhe diz algo que aprendeu aqui na
roça. Imagina que ela nunca tinha visto uma vaca de perto? Achou graça Zefa.
_Crianças modernas num mundo cada vez mais informatizado minha amiga. Você
contou a Júlia que estou aqui?
_Como você me pediu.
_E como reagiu? A ansiedade apertava o peito de Luiza.
_Desconfiada, acho que não acreditou muito na estória que inventei que você tinha
vindo conhecer o menino do João. E pediu para que eu não comentasse que ela estava
aqui para você.
_Bom, você teve presença de espírito e diga mais. Diga que vim de férias e estou
aproveitando para terminar de escrever um livro e não sei quanto tempo posso ficar por
aqui.
_Ta bem, e por falar em livro que belezura os seus, hein? Depois vou querer que você
coloque o seu nome nos que eu tenho lá na fazenda.
_Com prazer minha amiga e você será muito útil no plano que estou bolando. Pra falar a
verdade, você e Harold. Fiquei sabendo que você anda encantada com ele, falou
sorrindo Luiza.
_E não é menina, ele é chique de morrer e ambas caíram na risada. Estou ensinando a
ele todos os nossos jeitinhos e logo ele vai estar no ponto.
_Essa eu quero ver e desejo sorte. Zefa, você sabe que o que eu sinto pela Júlia é mais
que amizade não é? Não posso mentir mais para ninguém e muito menos para mim e
quero saber antes de contar com sua ajuda, se você acha errado ou tem algum
preconceito, pois minha luta não é apenas para que Júlia recupere sua vontade de viver,
mas sim dividir com ela uma vida, como casal, porque amo aquela mulher por uma vida
inteira.
_O que eu sei, é que amo as duas como as filhas que nunca tive e sei que pelo jeito que
ambas se olhavam há muito tempo atrás que aquilo era mais forte que qualquer
proibição ou regra. Entender eu não entendo, mas quero é ver as duas felizes, e já sabia
desde aquela época que isso só ia acontecer com as duas juntas; terminou Zefa de falar e
abraçou forte Luiza que não segurou a emoção e deixou caírem as lágrimas. Quem
diria? Pensava naquele abraço, tinha se tornado uma boba romântica ou quem sabe
sempre tenha sido, mas os muros que ergueu a sua volta esconderam esse seu lado que
aflorava agora mais forte que nunca.

Assim que Zefa saiu, resolveu planejar o próximo passo com cautela para que Júlia não
se trancasse cada vez mais dentro de sua armadura que achava Luiza, Júlia usava para se
proteger de encarar a realidade de uma vida sem poder tocar. Deitou-se na rede e ficou
ali tentando achar uma maneira e acabou com o balanço da rede por adormecer e sonhar
com uma vida onde ambas eram felizes outra vez.

Júlia não agüentava mais esperar a chegada de Zefa. Harold lhe tinha servido o café e
ido com Duda para a sala de estudos antes do passeio que faziam sempre pela fazenda
todas as manhãs. Se ele percebeu a ansiedade de sua patroa, nada comentou. Só
respondeu quando questionado da presença de Zefa e comentou que ela tinha saído cedo
mas comentou que voltava logo.

_E como você entendeu o que ela falou? Perguntou com uma expressão divertida Júlia.
_Bem, senhora, tenho me esforçado em aprender a língua portuguesa para me colocar
melhor dentro da nova situação e confesso que tenho gostado muito, respondeu em
inglês mesmo.
_Sei do que você tem gostado aqui, mas para te ajudar, vamos tentar só o português e
quem sabe você não consegue conquistar Zefa e Júlia viu pela primeira vez um homem
que ela considerava um poço de segurança, inseguro diante de uma situação que não
estava mais só em suas mãos. É assim mesmo o amor, pensou depois que ele saiu.
Agimos como crianças quando estamos diante dele. Como eu agora, parecendo aquela
adolescente que ficava ansiosa só ao saber que ia me encontrar com Luiza. E que idiota
eu sou, provavelmente ela nem sente o mesmo por mim e foi nesse pensamento que viu
Zefa entrando pela porta com uma cara satisfeita e contra todas suas vontades teve que
se conter para não sair dali correndo e ir bater de novo na porta daquele sítio.
_Bom dia, tentou que soasse com o tom da normalidade. Harold me falou que saiu cedo.
Achei que demoraria mais.
_Eu não queria que a menina se preocupasse. E então, já tomaram o café? Realmente
Zefa estava se divertindo ao ver a vontade que Júlia tentava esconder de perguntar por
Luiza.
_Já, faz algum tempo que levantamos e Harold já está com Duda na sala de estudos. E
pensava em como perguntar por Luiza sem ser tão direta.
_Que bom, agora vou dar uma olhada pra ver se está tudo em ordem. Daqui a pouco os
peões chegam e vão querer almoçar.
_Sei, mas como foi seu encontro? Não se segurou mais.
_Bem, Zefa se continha para não rir. Menina Luiza está tão diferente, tão bonita que dá
gosto. Seus pais teriam muito orgulho dela.
_Com certeza, até porque é fruto de muito esforço. O que ela está fazendo aqui?
_Diz que aproveitou as férias e veio além de aceitar o convite de João terminar um
livro. Aliás, depois vou levar os que eu tenho aqui pra ela assinar pra mim. Ela escreve
coisas muito bonitas.
_Você não falou que eu estava aqui, não é Zefa? Perguntou com um olhar cada vez mais
desconfiado Júlia.
_A menina não me pediu? Cumpri; respondeu Zefa fingindo um ar de indignação.
_Espero que seja verdade, pois nosso último encontro não foi lá muito agradável e não
quero saber de Luiza ou seu ar de piedade que ela provavelmente venha a demonstrar
numa situação como a minha. Agora pode ir e mais uma vez obrigada. Zefa se foi e
diferente de suas palavras, Júlia queria sim que Luiza soubesse e viesse até ali, mas o
orgulho que sentia em só imaginar que Luiza pudesse sentir pena dela, a fazia querer se
esconder não só de Luiza mas de todos que a conheceram um dia. Pensando assim, se
trancou de novo na sala do piano e só saiu quando a filha a chamou com batidas na
porta para lhe acompanhar no almoço.

O destino sempre colabora com aqueles que se amam de verdade, já ouvi dizer e ele
estava realmente agindo na manhã seguinte, quando Luiza ainda planejava uma maneira
de se aproximar sem despertar suspeitas. Acordou, comeu mais um pedaço do bolo que
Zefa tinha trazido no dia anterior e ficou sentada na varanda do sítio, respirando aquele
ar fresco que só existia ali. Parecia que tinha voltado no tempo quando ficava no mesmo
lugar escrevendo seus poemas todos inspirados por Júlia. Ainda não tinha tido tempo
para passear por aqueles campos de tão saudosas recordações. Estava perdida em suas
lembranças quando pareceu ouvir por perto um choramingo de criança. Saiu pelo
pequeno portão e viu próxima a antiga mangueira que tinha perto da entrada, uma
garotinha que chorava embaixo da grande árvore. Em um primeiro olhar pareceu a
Luiza que a mesma tinha caído da bicicleta que dava para ver um pouco mais distante
na estrada.

_Oi pequena, você está bem? Perguntou se ajoelhando ao lado da criança.

Ao levantar a cabeça com os olhinhos azuis marejados pelas lágrimas derramadas,


Luiza não teve dúvida alguma de se tratar de Maria Eduarda, a filha de Júlia.

_Eu caí e machuquei aqui ó, disse mostrando o pequeno joelho que estava um pouco
ralado.
_Imagino que deve estar doendo mesmo, falou divertida, mas acho que posso dar um
jeito se você me contar porque está sozinha tão longe de casa?

Ela pareceu achar estranho ter que responder algo tão pessoal para alguém que não
conhecia e com um olhar orgulhoso que fez Luiza lembrar mais ainda de Júlia
simplesmente respondeu:
_Mamãe diz sempre para eu não falar com estranhos, então porque tenho que contar
para você?

Luiza deu uma gostosa gargalhada e a ajudando se levantar do chão debaixo de um


olhar muito desconfiado da garota falou:
_Você realmente é filha de sua mãe, pequena. E há lógica em seu raciocínio, mas eu não
sou uma estranha, pois a conheci em Londres, mas você estava emburrada no dia e se
escondeu debaixo dos cabelos de Júlia.
_Como sabe o nome de mamãe? Perguntou ainda receosa.
_Que tal eu contar para você ali dentro de minha casa de onde conheço sua mãe e
enquanto isso, eu coloco remédio nesse seu machucado. Para ajudar, você come um
grande pedaço de bolo com um gostoso copo de leite e se ninguém aparecer, eu te levo
para a fazenda.
_Vai doer? Perguntou mais confiante Maria Eduarda, já entrando no sítio.
_Talvez um pouquinho, mas prometo que passa logo, falou Luiza segurando a pequena
mão com a sua e percebeu que se sentia bem apesar de nunca ter pensado na
possibilidade de ser mãe, mas a simples idéia de criar aquela menina como filha
aqueceu seu coração.

E os minutos foram passando no sítio e Luiza contou a pequena Maria Eduarda coisas
que sua mãe fazia por aqueles campos juntamente com ela. Das brincadeiras, dos
tombos e até dos castigos que a mãe, dona Catarina, a avó que ela não conheceu,
costumava empregar para que Júlia não se comportasse mais como um moleque.

Na Fazenda Campo Belo já tinham percebido o seu sumiço e com grande desespero
Júlia já pensava o pior, pois a lembrança da morte do irmão que nem conheceu voltou a
assombrá-la. Harold estava se sentindo o pior dos seres humanos, pois sentia que tinha
sido sua culpa. A garota tinha lhe pedido para passear, mas ele disse que não porque
ainda estava muito cedo e que antes iriam estudar um pouco. Ele queria que se
realmente fossem ficar na cidade, Duda estivesse preparada para se adaptar a qualquer
escola que freqüentasse.

_Não é culpa de ninguém Harold, Júlia tentava o consolar. Se alguém tem culpa sou eu,
continuou. Desde o acidente que não tenho dado atenção a minha filha, me preocupando
apenas com meus problemas e esquecendo que ela é apenas uma garotinha, deixando-a
sozinha e talvez agora tenha que pagar por meus erros mais uma vez.
_Vixe vamos parar com essa conversa, interferiu Zefa. Não é culpa de ninguém a
menina Duda ser mais esperta que nós três juntos, tentou brincar. Estou vindo lá do
pátio e vi que a bicicleta dela não está no lugar, ela deve estar por perto e já mandei os
peões irem procurar. Vamos ter fé, gente.
_A culpa é minha sim porque miss Maria Eduarda foi confiada a mim e falhei e para
surpresa de Júlia, notou que uma pequena lágrima se formava nos olhos de uma pessoa
que sempre considerou fria e controlada. Vou achá-la e só volto com ela madame, disse
para Júlia e saiu determinado.

Luiza observou quase uma hora se passar e pensou que na fazenda já deveriam ter dado
pela falta da criança e decidiu levá-la até lá.

_Vamos pequena, acho que sua mãe deve estar preocupada.


_Mamãe depois que papai se foi está sempre preocupada. Nem brincar ela quer mais,
falou a menina com um pesar na voz que emocionou Luiza.
_Deve ser difícil para a sua mãe lidar com a saudade de seu pai, tentou consolá-la.
_Quando eu vou dormir rezo pro papai que agora está lá no céu e ele com certeza me
escuta. Quando eu sinto saudade dele, fecho os olhos e vejo que ele está do meu lado e
então eu não fico mais sozinha, falou.
_Que tal falar isso para sua mãe quando a ver, pequena? Tenho certeza que ela vai
gostar de saber que sua menina já sabe que seu pai nunca vai estar longe de quem ele
amava tanto aqui.
_Sabe, gosto de você e sem que Luiza esperasse, a menina a abraçou forte colocando
sua cabeçinha na altura de sua cintura. Aquele abraço a conquistou de vez, e a agora
tinha um motivo a mais para se acertar com Júlia: também queria ser mãe da pequena
Duda e nada nem ninguém iria impedir isso, pensou.

Estavam felizes e confortáveis ambas com a presença uma da outra, como se a amizade
recém iniciada fosse coisa antiga e enquanto caminhavam pela estrada, fez questão de
saber mais de Júlia. Luiza notou que a criança estava sentindo a falta da mãe dentro de
sua rotina e imaginou que para Júlia se afastar assim da filha é porque realmente não
devia estar bem.

De repente sem aviso, Duda soltou-se de sua mão a deixando para trás com a bicicleta
que ia vagarosamente sendo levada de lado e saiu correndo em direção a uma figura que
Luiza reconheceu de longe.

_Harold, gritou a menina se pendurando no pescoço do mordomo que a abraçou forte.


_Que felicidade miss Duda, disse com um forte sotaque a colocando no chão e
ajoelhando tratou de olhar se ela estava bem.
_Eu só machuquei um pouquinho, falou a menina mostrando o joelho, mas minha amiga
cuidou dele e apontou para Luiza.

Harold se levantou e pareceu só agora ter notado sua presença.


_Miss Cavalcanti, disse como se não estivesse surpreso.
_Harold, disse Luiza simplesmente fazendo um sinal com a cabeça.
_Sua mãe estava muito preocupada, falou pausadamente como se tentando achar na
língua portuguesa a expressão correta.
_Porque você está falando tão engraçado? Perguntou a menina mudando com facilidade
para o inglês.
_Porque ele está se esforçando para aprender uma língua nova, interveio Luiza.
_Então é só pedir minha ajuda que eu ensino Harold, falou Duda voltando para o
português com facilidade.
_Creio que não vou ter mais problemas com tão eficiente professora, brincou o velho
mordomo sisudo para surpresa de Luiza.
_Bem, acredito que minha amiguinha está entregue, disse Luiza.
_Vamos nos ver de novo? Perguntou uma triste garotinha que agora segurava sua mão.
_Claro, sempre que quiser me ver peça a Zefa para te levar até o sítio. Ela sabe o
caminho. E você pode vir com elas, Harold.
_Com prazer, miss. Só uma pergunta, é a senhorita a ajuda que Zefa encontrou para
madame Júlia? Falou com desconfiança.
_E se for? Respondeu Luiza no mesmo tom.
_Miss Duda, pegue sua bicicleta e vá pedalando devagar que eu te alcanço. E assim que
a menina se afastou um pouco, voltando-se para Luiza prosseguiu:
_Espero realmente que vocês saibam o que estão fazendo. Sabe, em todo tempo que
vivo com madame Júlia nunca a tinha visto olhar para ninguém como ela olhou para a
senhorita desde a primeira vez que esteve na mansão em Londres. O falecido patrão
Marco morreria para que a esposa o olhasse daquela maneira. E não passou
despercebido por Harold um leve rubor em Luiza.
_Em algum momento ela o amou o suficiente para fazerem juntos aquela menininha
linda que vai ali pela estrada, questionou Luiza e vendo que Duda se voltava para ver se
o mordomo a acompanhava levantou o braço e fez um leve gesto de adeus que logo foi
retribuído.
_A pequena miss Duda foi um presente de meu patrão, talvez com esperança de ter o
amor de madame Júlia. Ele decidiu ajudar na realização de um sonho. Diante o olhar de
curiosidade de Luzia, o mordomo então revelou:
_Miss Duda foi concebida em um laboratório, mas acredite senhorita, isso não a fez
menos amada pelos pais nem por um segundo depois que madame engravidou; e pode
notar na mulher a sua frente, um olhar que não poderia ser mais surpreso.
_Depois daquele desastroso último encontro entre vocês, continuou falando, madame
Júlia se fechou ainda mais aqui e mostrou o coração. Fiquei muito triste ao descobrir
que ela não queria dar uma chance para que outra pessoa a fizesse feliz, mas entendi que
a senhorita era a única que ela queria que tentasse. Então, peço apenas que não a magoe
se não tem a intenção de ficar ao lado dela.
_Vejo que é mais que lealdade que você sente por sua patroa Harold e fico feliz com sua
preocupação, mas acredite passar o resto de minha vida ao lado de Júlia é o desejo que
acalento desde que a conheci só que fui orgulhosa demais para admitir. Espero que você
aceite isso como uma certeza e que respeite, se não entender ou aceitar nossa decisão se
assim o for, de ficarmos juntas.
_Não me cabe julgar madame Júlia e se a senhorita conseguir tirá-la da depressão que
ameaça assombrar sua vida lhe serei grato, porque com a maturidade senhorita, aprende-
se que amar é também aceitar as decisões de quem amamos.
_Vou me lembrar disso. Agora se esforce ou uma menininha que estou vendo já distante
chega sem você na Campo Belo.
_Nos veremos de novo miss. Passar bem e terminando de falar se foi, tentando se
apressar para alcançar Duda que ia se equilibrando na estrada de terra.

Quando ouviu os gritos de Zefa que vinham do pátio, Júlia saiu correndo do quarto onde
se achava trancada se culpando desde que Harold havia saído. Desceu quase correndo as
escadas e já encontrou Zefa e Duda entrando pela sala. Abraçou forte a filha entre as
lágrimas que caiam como sinal de alívio por vê-la bem e ali entre seus braços. A criança
se assustou ao ver a mãe em prantos e talvez pensando que iria sofrer algum tipo de
castigo foi falando com a voz manhosa:
_Desculpe mamãe. Eu fui só passear, não queria fazer a senhora chorar.

Segurando o rosto da filha com ambas as mãos já em pé, Júlia tentou colocar em seu
semblante um ar de repreensão para que a menina se sentisse realmente culpada e não
voltasse a sair sozinha novamente.

_E como você acha que eu ficaria filha se você fosse embora e não voltasse mais? Foi
errado e quero que prometa que nunca mais vai fazer isso.
_A senhora ficou com medo que papai do céu me levasse também? Perguntou a filha
dentro de sua inocência.

Pegando a filha de novo em seus braços e dando muitos beijos em sua bochecha rosada
respondeu:
_Claro que sim, filha. E sei que não tenho sido uma boa mãe para você, mas de agora
em diante, não quero mais que me esconda nada e tudo que sentir pode vir a conversar
comigo. Agora me prometa que nada de sair por aí sem alguém do lado. Estamos de
acordo mocinha?
_Certo mamãe, e a senhora é a melhor mãe do mundo e logo foi abraçando o pescoço da
mãe, escondendo a cabeça entre os belos cabelos dela.

Só agora conseguia Harold entrar todo suado e vermelho pela porta e recebeu de Júlia
um olhar que deixava claro todo o agradecimento que estava sentindo no momento.

_Obrigado Harold por encontrar Duda e trazê-la para casa e ainda com a filha no colo se
aproximou e segurando a mão do mordomo a apertou com força.
_E parece exausto, interveio Zefa. Vou pedir para fazerem um suco de laranja bem
gelado para refrescar.
_Obrigado pelo carinho madame, mas eu já encontrei miss Duda no caminho de volta.
Ela já vinha com outra pessoa, eu só terminei de fazê-la chegar com segurança em casa.
_E quem foi a alma boa que me prestou esse favor? Talvez eu venha a providenciar uma
recompensa. E antes que Harold falasse algo a própria Duda tirando a cabeça debaixo
dos cabelos da mãe foi dizendo:
_Ela não quer nada não porque me contou que gosta de ajudar crianças. Ela passou
remédio no machucado, e só então Júlia notou o pequeno joelho ralado da filha.
Enquanto comia bolo, Duda continuou a falar: - ela disse que quando a mamãe era
maior assim como eu (falava mostrando os dedos quase juntos da mão), as duas
brincavam juntas aqui na fazenda do vovô Augusto e que vovó Catarina sempre
castigava a senhora quando fazia isso. A senhora vai me castigar também?

Não precisou que Júlia perguntasse a filha o nome de sua nova amiga e sentiu um frio
invadir seu estômago, o que acontecia sempre que sentia Luiza por perto. Olhando para
Harold só perguntou:
_Luiza contou a você como achou Duda, Harold? E tentou falar com a voz mais sem
emoção possível.
_Miss Cavalcanti como já mencionei estava a caminho. Só se despediu de miss Duda e
a convidou para visitá-la, indo embora em seguida, e procurou ver no rosto da patroa as
sensações que ela buscava esconder.

Virando para a filha, completou:


_Não vou te castigar mas que isso não se repita e colocou a menina no chão.
_Sim mamãe. Eu posso visitar Luiza no sítio dela? Ela falou que a Zefa sabe o caminho
e pode me levar de novo. Ela é engraçada mamãe e me contou como eram as
brincadeiras de antigamente e disse que se eu quiser me ensina tudo.
_Vamos ver isso depois e agora vá com Zefa tomar banho e descansar um pouco antes
do almoço. Vendo que o mordomo se dirigia para a cozinha só pediu:
_Harold espere um pouco e esperou a filha e Zefa subirem em direção aos quartos.
_Sim, madame?
_Luiza perguntou por mim? E não escondeu mais sua curiosidade.
_Não, madame; respondeu com um ar mais inocente que conseguiu o mordomo. Foi
tudo como miss Duda falou. Ela me foi entregue e logo depois convidada para uma
nova visita. Agora posso ir me refrescar porque a menina Duda realmente me cansou?
_Claro, me desculpe. Pode ir sim. E o mordomo se foi pensando que talvez Zefa tivesse
razão, porque de uma forma que não entendia, percebeu que aquela mulher exercia
sobre a sua patroa uma influência que provocava reações não vistas há muito tempo.
Precisava conversar com Zefa, pois queria saber de toda a estória e também para
decidirem sobre qual o próximo passo a ser dado e se empolgou com sua função de
cupido.

Na sala vazia, Júlia estava sozinha com seus pensamentos. Ela não quis nem saber como
estou, pensava com um ódio que chegava a sufocar seu coração. A que ponto cheguei,
se questionava. Estou com ciúmes de minha filha por ela ter estado ao seu lado por
quase toda a manhã e isso a afligiu mais. Ficou ali se remoendo até Zefa vir tirá-la de
seu marasmo a chamando para o almoço.

Depois de uma refeição onde Duda não parou de falar de sua nova amiga e Júlia se
manteve calada com uma expressão fechada, Harold esperou mãe e filha saírem para
uma pequena volta até os estábulos onde ficavam os famosos cavalos premiados da
família Franco Vasquez, para pedir a Zefa que se sentasse e contasse desde o começo,
tudo que sabia do envolvimento de sua patroa e a moradora do sítio vizinho. E Zefa não
escondeu nada, porque de uma forma involuntária tinha acompanhado toda a estória.
Após ouvi-la, como se refletisse sobre tudo, falou:

_Você acha que os pais de miss Luiza também sabiam?


_Duvido, completou Zefa. Maria morreu após aquela fatídica festa de quinze anos e
Tião a bebida levou antes do noivado de menina Júlia.
_Seria mesmo difícil agora sei, madame Júlia amar o marido. Ele lhe foi imposto e
mesmo ele sendo bom pai e até amigo, nunca passaria disso já que ela via nele toda a
estória de fracasso do amor dos pais. E ambas devem ter passado a vida querendo
provar uma para a outra, uma falsa aparência de felicidade para esconder a dor de não
poderem estar juntas.
_Nossa, como você fala bonito homem, se derreteu Zefa e deixando Harold ruborizado.
Agora que sabe, pretende me ajudar a unir essas duas cabeças duras?
_Sim, e creio que tem uma pessoa muito importante nesse jogo que vai ser peça
fundamental e nossa principal arma.
_Menina Duda, só completou Zefa e ambos concordaram com um simples balançar de
cabeça.

Luiza estava aflita a espera de qualquer notícia que fosse e nem sair de casa conseguiu.
Sua agonia só acabou com um telefonema quase no fim de tarde, onde Zefa lhe contou
tudo, até sobre a conversa que teve com o mordomo e do plano de ambos para uma
primeira aproximação. Ao final do telefonema Luiza só sorriu e pensou que aqueles
dois estavam se saindo melhor que a encomenda. Foi dormir como se tirasse um peso
enorme dos ombros e desejou como nunca que essa noite passasse rapidamente para que
o amanhã logo se fizesse presente, quando novamente teria a chance de estar perto de
Júlia. Dormiu como pedra, mas uma pedra muito feliz.

Já Júlia rolou pela cama toda a noite, não conseguindo nem um minuto desviar seus
pensamentos da moradora do lado. Tinha vontade de ir embora de volta para a Europa
no dia seguinte, mas só esse pensamento fez com que uma pontada no coração se fizesse
mais forte. Mesmo não pretendendo rever Luiza, só de sabê-la próxima a fazia plena de
uma felicidade que nem ela saberia explicar. Conseguiu fechar os olhos quando o dia
estava já amanhecendo.
Acordou com a filha entrando correndo pelo quarto e vindo pular sobre sua cama com
um ar muito feliz e a acordando com muitos beijos.

_Vamos mamãe, levanta, está tarde, falava a menina.


_Maria Eduarda, já falei que não te quero entrando em lugar nenhum sem bater, tentou
ralhar, mas logo sua expressão suavizou diante de tantos carinhos da filha. Que horas
são afinal?
_Já são quase dez, mamãe. E eu vim convidar você para um piquenique como no Hyde
Park, dizia animada a garotinha.
_Bem, imagino que isso deva ser idéia de sua cabecinha. Só que não estamos em
Londres e aqui por essas matas tem alguns perigos que não existem por lá. Tentava
argumentar enquanto a filha já estava sentada na beirada da cama a olhando
atentamente.
_Mas mamãe, Harold e Zefa vão também. Escutei ele dizer para ela que iria aproveitar
para namorar. O que é namorar mamãe?

Sem saber exatamente o que dizer para a filha, pensou que quem sabe a idéia não seria
tão má e talvez ajudasse aqueles dois a ficarem juntos, e se sentiu como se fosse um
dever seu ver ambos felizes.

_Está bem, filha. Mamãe só vai se trocar, vestir uma roupa mais apropriada e você não
se esqueça de colocar calça jeans e botas para se proteger, disse se desvencilhando do
abraço da filha e se levantando.
_Mas o que é namorar? Insistiu a menina e ela viu que não havia jeito de escapar sem
algo que preenchesse sua curiosidade.
_É quando duas pessoas querem ficar juntas.
_Para quê? Insistiu a menina.
_Para brincar, foi o que saiu na hora da boca de Júlia.
_Brincar de quê?
_De coisas que gente grande gosta de brincar que são diferentes das brincadeiras de
gente pequena. Agora, deixe-me trocar ou senão vamos nos atrasar.

A menina não pareceu convencida, mas saiu correndo para comunicar a decisão da mãe
em lhes acompanhar. Teria que pedir para Zefa e Harold para que fossem mais
discretos, principalmente perto de Duda e sorriu alto ao perceber que estava parecendo
sua mãe.

Desceu pouco tempo depois e os encontrou ansiosos a sua espera.

_Vamos logo mamãe, quase a puxou a menina.


_Calma filha, que afobamento.
_Se aquete menina Duda, vixe; falou uma Zefa animada. Temos tudo preparado aqui e
foi aí que Júlia levou um susto ao ver seu tão formal mordomo de calça jeans, camisa
pólo e sandálias masculinas. Como estava diferente e com um ar jovial. Sem querer
sorriu ao vê-lo com aquela expressão, enquanto segurava um grande cesto de comida.
Para tentar acalmar o ambiente tentou brincar.
_Mas que tamanho de cesto é esse mulher? Tem comida para um batalhão aí é?
_Que nada menina Júlia, eu que penso que é melhor passar que faltar, respondeu
também muito feliz uma Zefa dentro de um vestido simples, mas colorido e que deixava
bem a mostra seus braços bem feitos e suas pernas torneadas. Júlia estava feliz por
ambos.
_E para onde vamos? Quis saber.
_Para uma cachoeira que Zefa quer me mostrar, falou Harold com um olhar todo
derretido para a morena. Por um instante seu sorriso morreu nos lábios, mas logo depois
pegou a mão da filha com uma fingida animação e saíram em direção a tal cachoeira.
Não tinha o direito de estragar a felicidade deles por causa de seus fantasmas. E
enquanto caminhava, agora pelo caminho já conhecido, tinha a certeza que se dirigiam
para a cachoeira das antas, que tinha esse nome pela quantidade desses animais que
muitas vezes via-se perto da mesma. Foi lá que uma tarde, ainda criança, Luiza a
ensinou as primeiras braçadas como tinha aprendido com João que naquele dia não
estava presente. E foi durante outras tardes que se seguiram que ela, braçada a braçada,
foi aprendendo sempre com Luiza ao lado. Era realmente um lugar lindo e não
estranhou Zefa conhecê-lo. Quando criança ela não necessariamente mergulhava na
cachoeira, mas numa pequena piscina natural que as pedras caprichosamente tinham
formado um pouco mais abaixo. Era um lugar cercado de vegetação variada e elas
sempre ficavam admiradas muitas horas sentadas ali só olhando os mais diversos
animais que vinham para matar sua sede. Sem perceber, as lembranças mais puras de
sua vida a fizeram sorrir o que não passou despercebido pela filha enquanto
caminhavam ainda de mãos dadas.
_Está feliz mamãe? Perguntou.
_E como não estaria ao seu lado meu amor? Apertou forte a mão da menina que
também lhe sorriu como resposta.

E assim se passaram quase meia hora quando já dava para ouvir o forte barulho das
águas que caiam. Notou que Zefa e Harold tinham ficado um pouco para trás e também
de mãos dadas eram só cochichos e sorrisos entre si. Caminhava ainda distraída em seus
pensamentos quando a filha se soltou de sua mão e saiu correndo em direção a velha
paineira que ficava já bastante próxima da cachoeira. Não precisou que a filha gritasse
toda feliz o nome de quem estava lá debaixo, pois Júlia reconheceria Luiza da distância
que estivesse. Ela estava com um caderno na mão que soltou ao se levantar assim que a
menina praticamente se jogou em seus braços. Júlia ficou parada sem se mexer do lugar,
tanto que nem percebeu quando Zefa e Harold passaram por ela com uma bem fingida
surpresa. Bem, na verdade havia um pouco de remorso ao usar a pequena Maria
Eduarda que realmente não sabia da presença de Luiza na cachoeira, mas ambos sabiam
que Júlia só aceitaria um convite sem suspeitar de nada, se esse viesse da filha. Assim,
convencer Duda foi a parte fácil já que essa adorava uma aventura, mas agora ali, diante
da expressão de ambas, tinham a certeza de terem agido bem. Júlia continuava imóvel e
se pensavam que ela estaria remoendo a raiva do dia anterior, estariam todos enganados.
O que ela conseguia pensar era como com uma simples bermuda, tênis e camiseta de
uma banda de rock qualquer, Luiza conseguia ficar linda sem muito esforço. Já o olhar
de Luiza foi de um indisfarçável desejo de saber que ao vê-la, uma umidade incômoda
se fez presente. Na verdade, Luiza mal esperou o dia amanhecer e com uma ansiedade
que não deixou que ela ficasse no sítio tinha se dirigido para a cachoeira e como Júlia,
não tinha conseguido afastar as lembranças daquele lugar e tinha ficado ali, escrevendo
o que estava sentindo e nem percebeu que o tempo passava. Só se deu conta de outra
presença quando ouviu a menina chamá-la pelo nome.

_Que surpresa menina Luiza, foi logo dizendo Zefa tentando quebrar o gelo.
_Gosto de vir para cá desde criança para escrever. E você pequena, já esta melhor?
Perguntou ainda com a criança no colo.
_Ficou só o sinal aqui e mostrou o joelho. Você estava escrevendo o quê? Perguntou
apontando para o caderno.
_Estórias, respondeu a colocando no chão.
_De quê?
_Sobre uma menina que conheci há muito tempo e olhou fixamente para Júlia.
_E tem final feliz? Insistia a pequena curiosa.
_Não sei, vai depender dela. Como vai Júlia? Harold; cumprimentou ambos estranhando
claro, as roupas despojadas do mordomo.

São os ares brasileiros, pensou sorrindo consigo mesma.

_Bem, miss Cavalcanti. Miss Duda acabou me dando uma canseira ontem e cheguei
quase arrastado, como vocês dizem por aqui. Respondeu o mordomo muito animado,
mas Júlia continuava muda como uma porta. Duda veio com toda a impaciência de
criança a falar de novo:
_Sabe que vamos fazer um piquenique? Você vai ficar com a gente?
_Não posso pequena, respondeu uma Luiza demonstrando desânimo pela total falta de
receptividade de Júlia. Eu já estava voltando para o sítio, falou com a voz triste.
_Mas vai ficar sozinha lá, falou com uma percepção incrível para uma criança Maria
Eduarda.
_Não se preocupe pequena, ajoelhou-se diante da menina lhe fazendo um carinho no
rosto. A gente aprende de tudo nessa vida. Às vezes a ficar só.

Levantando do chão, se despediu de uma Zefa e Harold com expressões mais


decepcionadas que a sua.

_Adeus Júlia, passou por ela que não fez nenhum movimento sequer.
_Vocês devem achar que eu sou uma completa idiota para não perceber o que tentaram
fazer aqui, saiu de sua completa mudez Júlia, fazendo que Luiza parasse. E me admira
muito vocês dois, disse olhando para Zefa e Harold, usarem minha filha para algo
assim. E se voltando para Luiza completou:
_De todas as pessoas no mundo, a única de quem eu não suportaria um olhar de piedade
é você. Não venha me usar para talvez aliviar alguma culpa que você acredite que tenha
que purgar. Com certeza deve haver no mundo outros que necessitem dos esforços de
boa moça. Luiza que tinha se voltado para olhá-la de frente, olhou para Zefa e pediu:
_Que tal vocês três irem para a cachoeira e tratar de aproveitarem o passeio e toda essa
comida gostosa? Zefa ficou sem saber o que fazer, mas notou na voz de Luiza um tom
que não admitia recusas.
_Vamos menina Duda, disse pegando a mão da criança e sendo seguida por Harold que
foi, mas com semblante preocupado.
_Agora somos nós duas, falou Luiza se voltando para Júlia novamente. Quando você
vai crescer e assumir uma maturidade maior do que Maria Eduarda, por exemplo? Pare
de agir como menina mimada e se esconder dentro dessa aparência de auto-suficiente
que não necessita de nada ou ninguém.
_Falou a dona da verdade, respondeu irônica Júlia. Já lhe disse uma vez, mas vou
repetir; você não tem como julgar meus sentimentos e nem quero que se meta na minha
vida. Não preciso de nada que venha de você.
_Júlia vou dizer uma só vez, então guarde isso como um fato, não uma possibilidade; eu
cometi muitos erros para poder chegar até aqui e nada vai me afastar de meus objetivos.
_Que são? Interrompeu Júlia com olhar petulante, mas foi surpreendida com a
aproximação de Luiza que segurou com ambas as mãos seu rosto e ela se aqueceu com
o calor daquelas mãos e com aquela boca tão próxima da sua que chegava a sentir sua
respiração.
_Não permitir que você seja a cabeça dura que eu fui nesses últimos anos. Você pode
correr e se esconder chapeuzinho, mas eu te acho, porque eu decidi que você é minha e
nada nem ninguém vai conseguir nos afastar de novo, muito menos essa sua birra de
criança. Então vou te dar um tempo para que se acostume com a idéia, mas prepare-se
porque como sabe paciência nunca foi uma de minhas virtudes e colocou os lábios sobre
os de Júlia num quase roçar, o suficiente para fazer com que a outra sentisse a vontade
de quero mais e se afastou depois de soltá-la.

E então ficou ali parada desejando como uma boba que Luiza lhe tivesse arrancado
aquele beijo que ficou só no quase. Quando deu por si, furiosa mais com ela própria que
qualquer outra coisa, se dirigiu para a cachoeira e percebeu que todos se divertiam
bastante. Queria sair dali e pensar no que fazer, mas não queria estragar algo que estava
visível aos seus olhos, estavam todos felizes menos ela.

_Vou indo, mas vocês fiquem e continuem se divertindo, tentou colocar na voz um tom
mais ameno possível.
_Madame lhe devo uma explicação e se levantou um Harold bastante preocupado.
_Depois meu amigo, fique e se divirta. Duda está tão feliz, ela não tem que pagar por
meus pecados. E se despedindo da filha que mostrou contrariedade por ela não ficar,
mas logo saiu correndo atrás de um coelho que viu no meio do mato, ela se afastou com
a cabeça girando com um turbilhão de pensamentos.

O que ela queria afinal? Ia se perguntando uma Júlia muito confusa pelo caminho de
volta. Ela rejeita e depois quando lhe convém eu tenho que estar a sua disposição. Mas
não é o que eu sempre quis? Ter Luiza ao meu lado? Mas se o que ela sentisse fosse
apenas pena e a obrigação de estar ao meu lado por guardar remorso de algo do
passado? Eu não ia agüentar olhar dentro de seus olhos e não ver ali a mesma paixão
que acendia os meus só de fitá-la. Chegando à fazenda, se trancou na sala do piano.
Como sentia falta dele, pensou. Poderia passar para aquelas teclas todas as suas dúvidas
e angústias e de lá sabe que sairiam o conforto para seu coração. Ficou ali não soube
precisar o tempo, só despertando de seus pensamentos quando a filha entrou toda
contente para lhe contar o que tinha feito e descoberto no passeio. Ficou ali escutando e
com uma inveja boa da filha que ainda podia levar uma vida com tanta simplicidade e
inocência. Porque se perde isso quando se cresce? Não saberia dizer, mas queria que a
filha demorasse mais que ela para isso. Logo Zefa entrou atrás da menina a chamando
para tomar banho e antes que ela se referisse sobre todos os acontecimentos, um Harold
decidido entrou e pediu a Zefa para deixá-los sós. Pediu licença e permissão para falar
sem ser interrompido no que foi atendido.

_Quero dizer à madame que a confiança que sempre depositou em minha pessoa é
talvez um dos maiores tesouros que tenho na vida. E não trairia isso jamais se não
acreditasse que estava fazendo o certo. Quando chegamos aqui, não sabia de maneira
nenhuma da presença de miss Cavalcanti e nem que eram da mesma cidade. Descobri
isso só ontem na verdade, como também ontem mesmo, tive uma conversa franca com
Zefa e ela me contou o que sabia dessa estória. A madame pode se surpreender com a
percepção daquela mulher, mas ela sabe que era mais que amizade o sentimento que as
ligava desde a infância. Quando da visita de miss Luiza em Londres, eu também
presenciei que a madame tinha por ela mais que admiração profissional. E vi o resultado
daquela noite fracassada que a madame tinha preparado com tanto carinho; e percebeu
que Júlia corou, mas ontem ao vê-la com miss Duda, descobri que era todo um passado
que as ligava e do qual eu não tinha conhecimento. Acredito que ela não vai aceitar uma
resposta negativa e isso confirmei em uma conversa que tivemos ontem. Miss Luiza
voltou para o Brasil para resgatar, usando palavras dela, um amor da vida inteira e nada
vai convencê-la do contrário, pois percebi em sua pessoa muita determinação para que
isso se realize. Cabe a madame, claro, os rumos que deve tomar na vida, mas se aceitar
ainda conselhos desse velho que a ama como filha, ouça uma última palavra: não deixe
que a felicidade escape das mãos quando ela aparece tão nítida na vida. Se a senhora
não a amasse também, eu não estaria lhe dizendo nada, mas não deixe que o orgulho
que as separou por muito tempo continue mais forte que o amor que ambas sentem.
Perdoe esse velho que pode não saber muito disso, mas que teve a sorte de descobrir
quando não esperava mais e foi a vez dele ficar ruborizado.
_E como saber se é amor e não uma paixão de adolescentes que por não ter se realizado
continua com esse sabor todo por ter sido proibido? Abriu pela primeira vez a boca
Júlia, demonstrando seu medo real.
_Porque madame o sente aqui (e pegando a mão de Júlia a colocou sobre coração da
mesma), e sorriu o velho mordomo ao sentir que o mesmo batia descompassado. E
quando isso acontece tudo aqui dentro (e tocou a cabeça de Júlia com seu dedo
indicador) deixa de ser importante. Desejo que a senhora não demore muito para se
decidir, pois se perde minutos preciosos quando a gente espera demais e segurando
ambas as mãos de sua patroa as beijou, se retirando com toda a pompa inglesa. Aquela
noite ao dormir, Júlia fechou os olhos e se lembrou de todas as palavras do mordomo.
Tinha razão quando dizia que ela amava Luiza, fato visível para todos que a cercavam
aliás. Então porque o medo de se entregar totalmente? Tinha que pensar bem, pois
entrar numa relação agora que a parte profissional estava tão conturbada, talvez não
fosse uma boa idéia. Não queria que o novo relacionamento viesse a suprir o que lhe
fora tirado, mas um complemento para sua felicidade. Não desejava que Luiza fosse o
prêmio de consolação e pensando assim, demorou a dormir aquela noite.

No sítio também as esperanças de Luiza tinham se renovado apesar das palavras duras
de Júlia. A cabeça podia ainda não aceitar, mas Luiza tinha percebido que o corpo dela
pensava diferente, porque respondeu bem a um simples toque de suas mãos. Ela tremia,
pensava e quando foi dormir, encontrou sem querer a última peça que se encaixaria
nesse quebra-cabeça. E dormiu feliz.

Passavam das dez da manhã quando Luiza mais uma vez atravessou a grande porteira
da Fazenda Campo Belo e se sentiu como a menina de muitos anos atrás. Lágrimas se
fizeram presentes quando da lembrança da mãe que ela sabia que onde estivesse, estaria
sempre torcendo por ela. Por um momento sentiu medo, mas a certeza daquele
sentimento que tinha começado ali há muitos anos atrás, lhe deu forças para chegar até a
entrada da fazenda, que apesar do tempo, continuava com a mesma majestade de
sempre. Júlia vinha fazendo um bom trabalho pensou. Bateu e sobre um olhar de
surpresa de uma Zefa bem desconfiada entrou.
_Sabe que é a primeira vez que entro aqui pela porta da frente? Comentou com ar
inocente.
_O que a menina veio fazer aqui tão cedo?
_Terminar essa estória minha amiga. Vou fechar esse livro hoje, de uma forma ou de
outra. Onde está Júlia?
_Na sala do piano, onde mais. Passa as manhãs todas ali olhando aquela coisa como se
falasse com ele e ele entendesse.
_Quem sabe não entenda mesmo? Júlia não será uma pessoa completamente feliz se não
conseguir voltar a tocar. Onde é essa sala? E Zefa apontou para um corredor que ficava
a frente.
_Pode ir, ela não tranca a porta, completou.
A coragem que antes lhe deu forças para chegar até ali, pareceu vacilar agora que estava
perto do fim. Era isso mesmo, pensou. Era chegada a hora do fim, por bem ou por mal.
Não podia continuar com a vida em suspenso. Teria que ser forte para ouvir um não
caso ele ocorresse, mas lutaria com todas as armas que tinha para que a resposta final
fosse um sim. Ao chegar naquela porta, pareceu que sua confiança voltou e respirando
fundo deu dois toques na porta e ouviu Júlia soltar um entre seco.
Então entrou e viu que ela estava sentada no pequeno banco com as mãos no rosto a
olhar fixamente para as teclas mudas do piano.
_Imagino que a sua paciência acabou, falou Júlia sem se virar.
_Como sabia que era eu? Perguntou uma surpresa Luiza.
_Eu já te disse, seu cheiro é inconfundível.
_É verdade, você me disse sim, mas eu me esqueci, disse se aproximando e parando
bem perto de Júlia que ainda estava sentada, mas que agora a fitava com uma expressão
indecifrável. E não foi só isso que andei esquecendo, mas também do que me faz feliz.
_Felicidade é algo tão efêmero, falou como uma certeza Júlia. Às vezes se pensa que
tem, mas na verdade, quando se percebe, ela já se foi. Olhe para mim, tão perto de tudo
que sempre sonhei, mas sei que se ficarmos juntas agora Luiza, será como uma cortina
de fumaça para mascarar meus problemas e não quero acusá-la num futuro de ser a
causa de meu sofrimento. Você merece alguém que se dedique inteiramente a você e
nesse momento, eu não sou essa pessoa, terminou de falar e se virou para o piano.
Luiza sem querer sorriu, pois agora tinha certeza que o que as estavam afastando por
todo esse tempo era um medo bobo de um futuro desconhecido. Se aproximando de
Júlia que continuava virada para o piano, a abraçou segurando sua cabeça junto ao seu
coração. Abaixando, beijou com saudade aqueles cabelos e teve a confirmação que era o
mesmo cheiro de seus sonhos.
_Eu também pensei assim uma vez e por isso saí daquela mansão quando nos
encontramos em Londres. E veja quanto tempo perdemos, pelo simples medo de viver.
A soltou e virou Júlia para que ela a olhasse de frente, segurando delicadamente seu
rosto entre suas mãos, que antes tremiam, mas foi com a voz firme que completou:
_Não vou lhe prometer que não haverá sofrimentos ou crises, dores ou
desentendimentos porque somos apenas humanas e errar sempre vai fazer parte de nosso
aprendizado por aqui, mas lhe prometo sim, com toda a certeza que me deram os anos
que não a tive por perto, que o amor sempre vai nos ajudar a encontrar o caminho de
volta; e se aproximando, deu um leve beijo nos lábios de uma Júlia quase enfeitiçada
por aqueles olhos verdes que eram a luz de sua vida, mas dessa vez não queria apenas
aquele singelo toque e segurando com uma força inesperada a cabeça de Luiza, invadiu
aquela boca que aquecia com sua lembrança suas noites. Foi um beijo de anos de
separação, guloso, atrevido, que não cabia dentro do corpo, mas parecia que suas almas
estivessem ali se encontrando. Levantou-se e se abraçaram como se fossem uma só
pessoa que agora achava a outra parte que faltava.
_Eu te amo tanto que chega a dar medo sim, falou uma Júlia com a voz entrecortada por
seus soluços, mas descobri agora, que meu maior medo é não te sentir assim tão junto
de mim e por essa sensação vou tentar fazer dar certo, apesar de sermos duas cabeças
duras e começou a rir entre as lágrimas.
_Uma cabeça dura sim, sorria também Luiza, mas que te ama demais e novamente
segurando o rosto de Júlia, fascinada pelos olhos azuis de sua felicidade, encostou sua
testa na da mulher de sua vida e respirando como se buscasse ar, falou:
_Eu busquei em muitas partes do mundo o que eu sabia que só você podia me dar, mas
fui orgulhosa demais para aceitar isso. E essa sensação de estar completa que só sinto
quando estou com você, que por muitos anos me pareceu ser minha maior fraqueza é
hoje a razão de minha felicidade, meu motivo de querer viver. Quero me abrir como
nunca fui com ninguém até porque usei fama e dinheiro para me esconder de você; e viu
que chorava também enquanto Júlia limpava suas lágrimas com suas mãos delicadas.
_Luiza, eu...
_Não acabei meu amor. Sei que apesar de um amor imenso, não vou conseguir nunca
suprir a falta da música na sua vida, porque simplesmente vocês são uma só. É uma
parte de você que aprendi a amar primeiro, sem te conhecer, eu já sabia que só alguém
especial era capaz de tanta beleza, que eu ouvi pela primeira vez naquela manhã que nos
conhecemos.
_Não é hora para falarmos disso, interrompeu Júlia e não se menospreze porque a
senhorita é toda a felicidade que preciso. Não vou me afastar do mundo da música claro,
só não vou poder tocar como antigamente, mas estarei nos bastidores. A música que
você se refere como parte de mim só existiu por sua causa, pois é minha eterna fonte de
inspiração e lhe deu um beijo para confirmar suas palavras.
_Tem razão, disse Luiza se soltando com muito esforço, mas tinha que fazer o que era
certo. Talvez você não queira pensar nisso agora, mas irá se cobrar e a mim, num futuro
próximo como você mesma disse. Sei que vai ser difícil, mas para chegarmos até aqui
levou anos de disciplina e trabalho duro para ambas e sei que não seremos completas se
a vida profissional que tanto batalhamos para gerar frutos também não seja uma parte de
nossa felicidade. O que estou tentando dizer é que estarei ao seu lado nesta luta para que
você volte a tocar.
_Agradeço sua preocupação, falou com um sorriso amargo Júlia, mas se você não fez
nenhum curso de como fazer milagres, creio que não vai poder me ajudar e se afastou
com amargura.
_O milagre já aconteceu, falou firme Luiza. Você está viva, cercada de pessoas que a
amam e querem sua felicidade. Não vou aceitar esse derrotismo de uma pessoa que já
venceu muitos obstáculos na vida.
_Você não entende não é? Falou uma Júlia agora descontrolada, aumentando o tom da
voz. Parece até que eu estou vendo padre Antônio na minha frente, completou
sarcástica. Você acha que não tenho tentado? Como você acha que me sinto quando
coloco as mãos sobre aquelas teclas e minhas mãos doem tanto que não sou capaz de
continuar?
_Escute agora você, falou Luiza se aproximando novamente e segurando suas mãos
com força. Há muito fogo aqui e apertou mais ainda as mãos quentes de Júlia. Não vou
deixar que você as apague só pelo medo de não tentar. Será uma tecla por dia, não vai
me importar, só quero dizer que vou estar ali, do seu lado, dia após dia, mas com a
certeza que você estará tentando, porque te fará completa e sua felicidade é minha
felicidade.
Júlia tentou se soltar, mas Luiza a puxou e como uma mãe protegeria o filho
desamparado, a aconchegou com carinho em seu abraço e deixou que só as lágrimas
falassem. Passaram-se minutos que Júlia se sentiu protegida talvez como nunca em toda
a sua vida e alguma coisa dentro de si a alertou que aquela mulher que a abraçava agora,
que teve talvez dificuldades maiores que ela na vida, estava ali para lhe servir de apoio e
exemplo de atitudes vitoriosas.
_E sabendo que estará ao meu lado, levantou a cabeça, tenho certeza que vou conseguir
e tentou sorrir, sentindo-se culpada pela sua reação que agora lhe parecia egoísta.
_É assim que se fala amada, respondeu Luiza parecendo não ter se importado com as
palavras ditas tão duramente e pegando Júlia num abraço, saíram rodopiando pela sala
como duas crianças.
_Sua louca reclamou, mas se divertindo Júlia. Eu sempre fico tonta quando me rodam.
Coloque-me agora mesmo no chão, pediu sem muita convicção.
_Só se você falar novamente que me ama muito, muito e muito e vai realizar um sonho
que venho guardando há muito tempo.
_Huum, falou com um sorriso agora mais que safado Júlia. Tenho certeza que será algo
que vai nos agradar então concordo de olhos fechados, além de não precisar repetir que
te amo, amo e amo.
_Mente pervertida, falou Luiza a colocando de novo no chão e rindo muito da decepção
não disfarçada do rosto de Júlia. Não é nada do você pensou e muito menos é algo
imoral, dizendo isso pegou o que pareceu para Júlia um papel velho do bolso.
A princípio, não passava pela sua cabeça que naquele papel de aparência tão frágil,
estive a canção que ela tentou por anos recriar em cada nota que escrevia, mas nunca
conseguiu.
_Olhe, lhe estendeu o papel Luiza e assim que o pegou, Júlia fez uma cara de puro
espanto.
_Você guardou essa partitura por todo esse tempo?
_Sim, é como uma ferida que nunca se fecha, sempre que eu olhava para ela, imaginava
o que ela queria me dizer.
_Porque nunca pediu para alguém tocar para você?
_Porque hoje, como sempre, eu sabia que ela só faria sentido ou estaria completa se
você a tocasse. Não seria a mesma coisa se eu não pudesse olhar bem dentro de seus
olhos e sentir o que você quis me dizer e não conseguiu aquela noite. Fique com ela e
que seja um incentivo a mais para você tentar voltar a tocar.
_Todo o incentivo que preciso é você, Luiza. Você nem imagina quantas vezes eu tentei
reescrever essa partitura, mas algo me impedia, eu não conseguia sentir a sensação que a
criou. E quero senti-la agora e se dirigiu com determinação para o piano.
_Calma amor, se preocupou Luiza. Não quero que você prejudique de maneira nenhuma
sua recuperação.
_Isso e mostrou o papel, é a melhor fisioterapia que fiz até hoje e se sentou com a graça
excitante que só ela conseguia. Respirou fundo e abriu o piano que parecia que a
esperava e alisou com carinho suas teclas, com um misto de saudade e apreensão. E
começou a tocar como se tivesse feito isso há minutos atrás. Uma dor ameaçou paralisar
suas mãos, mas ela se perdeu dentro da música e a dor física não se fez percebida. Ela
mesma não sabia a beleza da composição criada depois de um ato de amor tão profundo
que tinha marcado para sempre a vida das duas até ali. Do lado de fora daquela sala,
Zefa e Harold se abraçaram quando começaram a ouvir as primeiras notas e se
emocionaram mais quando a pequena Duda, depois de um silêncio profundo falou:
_É mamãe no piano. Ele voltou a falar.
É verdade, pensava o velho mordomo. Sua patroa parecia que tinha perdido a voz sem
seu piano, pois era com a música a maneira que ela se expressava melhor. Ele conhecia
todas as canções gravadas por sua patroa, mas aquela, ele nunca tinha escutado. Era
belíssima, e sem perceber, apertou mais forte Zefa em seu abraço e teve a convicção que
só o amor era capaz de inspirar algo tão belo.
Passaram alguns minutos e Júlia acabou de tocar aquela canção. Não importava se
nunca mais fosse capaz de mover de novo as mãos. Ela mesma se surpreendeu com a
música. Estava elevada e se deu conta que queria muito saber de Luiza o que ela tinha
achado. Ao olhar para ela, viu um rosto marcado pelas lágrimas e se preocupou por
achar que tivesse feito algo que a magoasse de alguma forma.
_Que foi amor? E mesmo com os punhos doloridos procurou limpar as lágrimas que
ainda caiam.
_Você tinha razão e agora era ela que segurava e acariciava aquelas mãos mágicas. Eu
saberia de seu amor se tivesse ouvido essa música antes e teria ido atrás de você onde
estivesse. É prova eterna de nosso amor e quero que sempre que alguém a ouvir, saiba
também a sua estória; e lhe roubou um beijo que selava a vida em comum que
compartilhariam daquele momento em diante. Júlia se esqueceu de tudo que não fosse
aquela boca e suas mãos naquele instante queriam mesmo era tocar outra coisa tão
importante quanto seu piano para ela: o corpo de Luiza, a extensão do seu, descobria
agora.
_Vem, disse para Luiza enquanto segurava seu rosto. Quero te amar no lugar que há
muito tempo sabe de meus sonhos e desejos por você. Quero que o quarto que escondeu
entre suas paredes todas as minhas lágrimas, agora conheça seus gemidos assim que eu
te fizer minha novamente. E Luiza viu nos olhos azuis da mulher que amava a cor da
excitação que a fazia queimar por dentro só de imaginar tê-la ao seu lado até o fim de
seus dias.
_E você acha que o seu quarto aqui na fazenda não era objeto de meus sonhos lá no
sítio? Todas as noites que passei aqui perto sempre imaginava como seria o dia em que
eu poderia deitar ao seu lado sem amarras ou sofrimentos, apenas nós e nosso amor.
Quero ser sua sim, como nunca fui de ninguém, mas quero saber se você também está
disposta a se comprometer comigo.
_Não entendi, já disse que a amo muito, isso que eu saiba, é comprometimento, falou
com uma expressão séria Júlia.
_Tire essa ruguinha de preocupação da testa, minha amada. O que eu quero dizer é que
sou uma moça das antigas e não vou a lugar nenhum antes da senhorita aceitar se casar
comigo. E notou a expressão de seriedade se tornar totalmente surpresa com suas
palavras.
Júlia ficou por alguns segundos num silêncio incômodo, que fez Luiza pensar que talvez
tivesse se precipitado e já procurava uma forma de consertar suas palavras.
_Bem não é necessário me dar uma resposta imediatamente, falou muito sem graça
Luiza. Eu só quero que pense na idéia com carinho.
Júlia que continuava muda, mas agora com uma expressão divertida, não se conteve
mais e soltou uma gargalhada, que Luiza interpretou como deboche e já com o rosto
demonstrando toda sua irritação, procurava uma resposta à altura quando Júlia a
abraçou forte e disse:
_Desmanche essa carinha brava e ouça bem o que eu vou te falar. Casar com você é o
que mais quero desde que ficamos juntas naquele seu quarto lá no sítio, depois daquela
festa de quinze anos, mas você me surpreende a cada minuto, pois pensava que depois
de nossas experiências não tão bem sucedidas, você talvez quisesse apenas morar juntas
e deixar que o tempo tomasse essa decisão por nós; terminou de falar e a soltando,
abraçou Luiza pela cintura e continuou:
_Por mim, me casava amanhã mesmo com festa, bolo e vestido de noiva. Marque a
data, local e hora e estarei lá sua boba e nunca mais duvide que faço qualquer coisa para
te fazer feliz.
Agora era Luiza que estava surpresa, e como perdia a capacidade de se expressar toda
vez que Júlia a encarava com aquele olhar de dona suprema de sua vida, só conseguiu
mesmo invadir novamente aquela boca tentadora para não deixar dúvidas quanto a sua
alegria.
_Então estamos conversadas, falou Júlia se afastando quase sem ar. Agora dá pra gente
antes do casamento partir pra lua de mel? completou com um olhar inocente que
entretanto escondia todas as más intenções possíveis.
_Nem precisa pedir de novo, respondeu uma também má intencionada Luiza e foram
saindo da sala do piano, entretanto, teriam antes que passar por uma barreira humana,
pois assim que Júlia saiu, ela praticamente foi agarrada por três entusiasmados fãs.
_Como mamãe tocou bonito.
_Nunca vi madame tão inspirada.
_A menina tocou da mesma forma de anos atrás; e ao mesmo tempo falaram Duda,
Harold e Zefa, que a sufocavam em um abraço único.
_Obrigada pelo apoio de vocês, mas agora podem me deixar respirar um pouco? Falou
em tom de brincadeira uma Júlia agora radiante.
_Madame tem razão, falou meio constrangido Harold e foi se afastando. Desculpe-nos
essa atitude mais entusiasmada, mas é que causou espanto em todos ao ouvi-la tão
lindamente ao piano.
_Deixa de bobagem, Harold, foi dizendo logo Luiza. Júlia adora ser paparicada, faz seu
ego maior do que já é; falou agora sorrindo da cara do mordomo, mas não antes de
receber de Júlia um cutucão nas costas como resposta. Tenha certeza que vocês nunca
serão incômodo algum, completou ainda sentindo incômodo pela força do toque.
_Luiza, gritou logo Duda ao vê-la ali e não escondendo a curiosidade, foi logo deixando
o colo da mãe e perguntando:
_Você está passeando ou veio me ver? Perguntou sem falsa modéstia a garota.
_As duas coisas, foi logo dizendo Luiza. E não era para estar com saudade de minha
mais nova amiga? Disse olhando para Júlia, que percebeu a cara de “deixa pra depois” a
vontade que ambas tinham de ficarem juntas. Teriam que esperar, e isso deixou Júlia um
pouco impaciente, mas notou que Luiza estava se divertindo ao que parece com sua
ansiedade e pensou em mil maneiras de castigá-la assim que pudesse, entre quatro
paredes de preferência.
_Luiza veio almoçar conosco filha, tentou mudar de assunto. E depois ela vai ao sítio
pegar as coisas dela e trazer para cá, pois por enquanto vai morar aqui.
_Vai? Perguntaram surpresos Harold, Duda e Zefa de uma só vez.
_Vou? Também a questionou no mesmo tom Luiza.
_Claro e se aproximando do ouvido de Luiza, apenas sussurrou:
_Ou você acha que vou deixar você longe dos meus olhos por um minuto que seja? E se
voltando para a filha, a pegou no colo e agora com o rosto muito sério, disse:
_Preciso muito ter uma conversa séria com você, filha.
_O que eu fiz mamãe? Perguntou assustada a menina.
Júlia olhou atentamente para os três adultos da sala, um olhar que dizia que teria que ter
essa conversa sozinha com a filha e completou, olhando para a menina:
_Você não fez nada meu amor. Eu é que tenho que te contar sobre algumas mudanças
que vão ocorrer em nossas vidas e gostaria que fosse só eu e você, agora na sala do
piano. Vamos? E a colocando no chão, ainda segurando sua mão com determinação, se
dirigiram para o outro cômodo, mas antes de fechar a porta, ainda trocou um último
olhar com Luiza, que naquele momento estava mais que apreensiva e com medo de que
apesar de notar certa empatia com a pequena Duda, a menina a rejeitasse em sua vida.
Tinha consciência que era difícil para uma criança que tinha perdido o pai há tão pouco
tempo, aceitar outra pessoa dentro de sua casa, ainda mais numa relação intima com a
mãe, e pior, diferente do pai, que era homem e até por isso, totalmente novidade para
sua cabecinha tão jovem ainda.
Ao trancar a porta, Júlia ainda pensava na melhor forma de começar aquela conversa.
Não queria esconder nada da filha, mas sabia que a pequena Duda, como toda criança,
ainda não podia entender sobre assuntos tão delicados até mesmo para adultos já com
certa experiência de vida como ela e Luiza. Talvez Luiza se sentisse magoada por não
estar presente na conversa, mas Júlia não queria excluí-la, só sentia que seria mais fácil
se a filha se sentisse segura com ela, sua mãe, para todos os questionamentos que
viessem a aparecer.
_Bem filha, vejo pelo seu olhar que está curiosa quanto ao que vamos conversar aqui.
Só quero que saiba que faço isso porque nunca quero ter que esconder nada de você.
_O que a mamãe quer falar comigo? Foi algo que eu fiz de errado? Quis ter certeza a
desconfiada menina.
_Claro que não, meu amor. Só quero saber sua opinião sobre algumas mudanças que
vão ocorrer nas nossas vidas, como por exemplo, a Luiza vir morar com a gente.
_Eu acho legal mamãe, eu gosto muito dela, falou a criança animada, mas porque ela
vai vir morar aqui se ela já mora no sítio? A Luiza não gostou de lá?
_Gosta sim, filha. Você sabia que quando ela era assim do seu tamanho, o sítio era da
família dela? Só depois que ela foi embora é que ela vendeu.
_Então ela está com medo de ficar sozinha? Eu também não gosto de ficar sozinha
numa casa, mamãe.
_Bem, pode ser que sim, pois Luiza vive sozinha já há algum tempo e talvez não queira
mais, disse Júlia pegando a filha e a sentando em seu colo, enquanto a olhava fixamente,
mas acredito que é porque ela quer se sentir de novo parte de uma família, a nossa
família e queria saber o que você pensa a respeito.
_Ela não tem mamãe nem papai, nem ninguém? Perguntou agora com pesar a pequena
curiosa.
_Não tem não filha; os pais dela já morreram há muito tempo. Ela foi casada também,
mas ficou só porque a outra pessoa morreu como seu pai, disse escolhendo com cuidado
as palavras.
_Ela não teve nenhuma menininha assim como eu para cuidar dela como eu cuido de
você, mamãe?
Essas palavras deixaram as lágrimas se fazerem presente no rosto de Júlia que só
conseguiu abraçar forte a filha.
_Não, ela não teve a sorte que eu tive de ter uma pequena tão prestativa e adorável,
disse beijando suas bochechas rosadas, mas tenho certeza que aceitará de bom grado
que você passe a cuidar dela também, como cuida de mim. A Luiza é uma pessoa muito
importante para mim filha; e sinceramente quero que você goste dela tanto como gosta
de mim, sua mãe, já que agora seremos uma só família.
_Mamãe gosta dela como da Zefa e do Harold?
_De certa forma filha, por todos tenho amor, mas é diferente a forma que se sente, você
entende? Mas nem por isso menos importante ou menos bonito. A Luiza desde antes de
você nascer, já era uma pessoa querida para mim, e quando ela vier morar aqui, quero
que você saiba que eu e ela vamos ser mais que só amigas.
_Não serão amigas mamãe? Então será o que? Questionou agora olhando nos olhos de
sua mãe a criança.
_Vamos ser um casal, filha; como a Zefa e o Harold.
O silêncio tomou conta da sala e a criança parecia tentar digerir a informação porque
olhava atentamente a mãe sem nem piscar.
_Como você e o papai?
_Será diferente filha, mas a idéia é essa sim; pois quando duas pessoas se amam como a
Luiza e eu, o que elas querem é ficar sempre perto uma da outra para sempre, nos
momentos bons ou não. Querem dormir e acordar sempre juntinhas e abraçadinhas,
como muitas vezes eu com a minha pequena protetora, disse tentando fazer a filha
sorrir.
_Mamãe amava papai também? Porque eu nunca vi os dois abraçados no quarto de
mamãe e papai sempre dormia sozinho no outro quarto, e Júlia notou na voz da filha,
além de curiosidade, um tom de mágoa.
Como contar a filha que o pai que ela adorava tanto nunca tinha conseguido dela, Júlia,
nada nem sequer parecido com esse sentimento que compartilhava com Luiza? Como
explicar para sua filha que o casamento que ela tinha tido com Marco não passou de um
negócio a ser cumprido, diferente dessa relação que iria tentar agora viver plenamente
com Luiza, que só de pensar já aquecia sua alma?
_Duda, quero que você saiba sempre o homem maravilhoso que seu pai foi e que ele te
amava mais que tudo na vida, mas quando a gente é adulta, como eu já te falei, a gente
aprende a amar de diferentes maneiras as pessoas que fazem parte da nossa estória. Eu
amava sim o amigo que seu pai foi para mim, e se não bastasse, ele me deu o maior
presente que eu poderia querer: você. Por isso, ele sempre vai estar em um lugar
especial no meu coração, mas não quero mentir para você filha, mesmo que você seja
ainda muito pequena para entender o tipo de amor que me liga a Luiza, que começou há
muito tempo, na época que nós duas ainda éramos do seu tamanho, mas isso não
modificará nunca o espaço que Marco ocupa no meu coração e em você, que é a
continuação da vida dele. Tenho certeza que ele ficaria muito feliz em saber que era tão
amado assim por todos que o conheceram.
A menina ficou calada todo o tempo que sua mãe falava e quando essa acabou a olhou
fixamente, mas depois de alguns segundos que pareceram horas para Júlia, ela sorriu e a
abraçou forte.
_Se mamãe está feliz, eu também estou; falou a menina e se calou como se estivesse
ainda em dúvida.
_A Luiza vai querer ser minha mãe também? Enfim perguntou como se fosse à grande
questão ainda a ser decidida.
_Isso vai depender se assim você quiser filha. Tenho certeza que Luiza já ama você
como se fosse, mas creio que também ela não vai te forçar a sentir ou fazer nada que
não queira. Quero que saiba que apesar de diferente, nossa família terá o necessário para
se tornar muito feliz, pois será pavimentada com muito amor, não importando o que as
outras pessoas possam vir a falar para você; respondeu Júlia a espera da decisão da
menina.
_Eu quero sim mamãe, todas as minhas amigas vão ficar mais com inveja ainda de mim.
_Por quê? Quis saber Júlia.
_Porque agora além de uma, vou ter duas mães muito bonitas e legais, falou orgulhosa.
Júlia sorriu e abraçou ainda mais forte a menina. De mãos dadas saíram daquela sala e
ambas ansiosas para comunicar a Luiza, que sim, agora ela era também parte daquela
família.
Luiza também não cabia em si de expectativa. Estava na cozinha e apesar da insistência
de Zefa para que comesse um lanche enquanto esperava o resultado da conversa, não
tinha conseguido fazer nada além de andar de um lado para o outro.
_Se acalme menina, oras; tentava acalmá-la Zefa. Tenho certeza que a menina Duda não
terá problemas em aceitar você na vida dela.
_Não tenho essa sua certeza, falou preocupada. A menina a pouco perdeu o pai e agora
tem que aceitar que a mãe vai viver com outra pessoa e para completar, diferente do
padrão conhecido por ela, essa pessoa é outra mulher. Já pensou que ela pode sofrer ao
ser questionada por seus coleguinhas que a mãe dela, diferente da deles, vive um
casamento que ainda é tabu em muitas sociedades ditas liberais e modernas? Eu e Júlia
somos adultas o suficiente para nos defender, mas Duda é só uma criança e eu preferiria
morrer ao vê-la sofrer por causa de minhas escolhas de vida; desabafou Luiza.
_E vocês duas vão estar lá, do lado dela, para apoiar e mostrar a ela que é amor a base
da família que estão para construir. E isso é o que é importante, não o que pensam os
outros, tentou confortá-la Zefa.
_Espero que assim seja, completou Luiza. Onde está Harold?
_Foi fazer umas ligações lá para a terra dele, suspirou a mulata. Acho que como agora
vocês decidiram viver juntas, provavelmente vão voltar lá pros estrangeiros e deixar a
velha Zefa por aqui sozinha de novo e com certeza Harold não vai abandonar a menina
Júlia e Duda, queixou-se.
_Que é isso Zefa? Levantou-se preocupada Luiza. Você sabe que pode ir conosco se
assim desejar. Apesar de gostar de minha terra natal, não posso ficar por aqui já que
construí uma carreira pautada em minha convivência pelos diversos países que passei,
além de que tenho responsabilidades com a fundação. Imagino também que Júlia logo
queira o mais rápido possível retomar sua carreira e convenhamos, aqui, apesar de já
estar mudando a mentalidade da população, ainda não é muito o público que aprecia sua
arte.
_Eu tenho certeza que vocês me acolheriam bem, mas seria eu que me sentiria um pato
fora da lagoa. Meu lugar é aqui e sempre vou ficar esperando que minhas duas meninas
possam pelo menos uma vez por ano dar uma passadinha aqui para me fazer uma visita.
Quanto ao Harold, foi bom enquanto durou, falou com pesar Zefa.
Luiza queria dizer algo que consolasse a amiga, mas quando ia abrir a boca, entram na
cozinha Júlia e a pequena Duda e Zefa não querendo atrapalhar apenas se retira. Depois
que Zefa se foi, as três ficaram caladas talvez esperando que alguém falasse algo
primeiro e então foi Júlia que resolveu sair do silêncio que já começava a incomodar.
_Eu e Duda tomamos uma decisão e viemos lhe dizer qual é, disse com um olhar
divertido ao ver todo o nervosismo de Luiza.
_Eu quero ouvir da boca dessa pequena aqui, disse Luiza pegando a garota e a
colocando sentada sobre a mesa, enquanto a olhava atentamente; e seja qual for a
decisão que ela tomou eu prometo respeitá-la, completou muito séria.
_Bem, começou a falar a menina se sentindo muito importante por ser o centro das
atenções; eu e mamãe decidimos te fazer um convite.
_Que seria qual? Falou uma ansiosa Luiza.
_Eu queria saber se você quer formar uma família com a gente, nós três, e se você quer
ser minha mãe também, soltou de uma vez a garota.
Luiza queria falar, mas parecia que as palavras não iriam traduzir a emoção que estava
sentindo. Segurou-se para que não caíssem as lágrimas que teimavam em se formar.
Conseguiu apenas se aproximar da menina e segurar suas pequenas mãos e beijá-las e se
aconchegou quando Júlia se aproximou e as abraçou como se as protegendo com seu
calor de todos os males que poderiam enfrentar pela frente.
_Acho minha filha, falou uma também emocionada Júlia, que a resposta de Luiza é sim,
e a partir daquele momento se sentiam como se já fosse há muito tempo a família que se
formava naquela cozinha.
Depois, almoçaram numa animação só, fazendo mil e um planos para o futuro que
começavam a viver juntas. Distante da animação das três, Harold estava calado e Zefa
com o olhar distante. Luiza demorou toda a tarde para trazer suas coisas e devolver a
chave para seu Pedro e ao fechar a porta do sítio, respirou fundo e feliz, e quando se
dirigiu para a Campo Belo, se sentia a pessoa mais feliz do mundo.
Naquela tarde, não foi só Júlia e Luiza que tinham tomado uma decisão de vida, mas
Harold também. Tinha permanecido calado diante de toda a felicidade de sua patroa,
mas ao vê-la sozinha, pediu para ter uma conversa particular com ela e ao ficarem
sozinhos, Júlia percebeu que também ele tinha feito uma escolha para o futuro.
_Pois bem meu amigo pode falar; foi logo dizendo.
_Quero em primeiro lugar dizer que jamais a madame e miss Maria Eduarda vão deixar
de fazer parte de minha vida e de ocuparem um lugar especial em meu coração. Vocês
duas são a família que eu não tive e assim vai ser para sempre, mas ao chegar nessa
terra estrangeira, descobri um sentimento que eu não sentia há tempos e muito
provavelmente a vida tenha me presenteado com ele pela última vez e não quero apesar
de ficar triste em ter a certeza que vou me separar da única família que conheci perder
essa oportunidade. O que quero dizer, é que fico aqui quando a madame partir, falou o
mordomo como se tirasse um grande peso de seu coração.
_Fico feliz ao saber que finalmente você encontrou alguém que aqueceu seu coração,
mas não vou esconder de você a tristeza de não tê-lo mais ao meu lado, mas creio que
também posso ter a certeza que deixo a Campo Belo em boas mãos com você e a Zefa
por aqui tomando conta de tudo. Não posso ser egoísta em querer que você se sacrifique
mais por mim. Vai ser feliz meu amigo, porque quando o amor passa em nossa vida, só
temos que entrar de cabeça sem olhar para trás e não adianta fugir, pois isso só vai nos
trazer sofrimento. Agora saia daqui e vá contar a novidade para certa morena que andou
hoje meio jururu com medo de perder o amor da vida dela, falou Júlia com convicção.
Diferente de sua postura sempre fria, o rígido inglês não se conteve e abraçou sua patroa
com a certeza de ter tomado a decisão certa, apesar de tudo. O mordomo saiu aliviado e
todo contente atrás de Zefa para lhe contar a novidade.
Luiza voltou já quase no fim da tarde e foi recebida num clima muito diferente do que
tinha deixado. Agora, além do entusiasmo de Júlia e Duda, percebeu assim que entrou
que era também de alegria o clima entre Zefa e Harold e logo veio a saber, da boca da
própria morena o motivo. Não cabia em si de contentamento pela decisão do inglês em
ficar e deixou bem claro para todos, o que fez deixar ruborizado o mordomo, que
naquela noite, só a pequena Maria Eduarda dormiria sozinha. E parece que aquelas
palavras acenderam o desejo dos dois casais, pois apesar do clima agradável e de
comemoração durante o jantar, não conseguiam disfarçar a vontade que logo
terminasse. Já passava das nove quando Júlia conseguiu, agora com ajuda de Luiza,
colocar Duda na cama até porque a menina estava muito animada com a idéia das duas
mães estarem ali para lhe contar estórias para dormir. Depois de muitas estórias e planos
compartilhados, as duas conseguiram sair do quarto, não antes de ficarem ali um bom
tempo só olhando e quase babando para o que elas diziam ser o pequeno anjo de suas
vidas, mas as luzes da fazenda Campo Belo começaram a se apagar e os casais se
despediram com mais que malícia no olhar. Para Harold e Zefa seria uma noite de
descobertas, para Júlia e Luiza, uma noite de reencontro.
Ao fechar a porta de seu quarto, Júlia sabia exatamente o que queria e não estava
disposta a ficar nem mais um minuto sem saciar todo o desejo de uma vida, que a
consumiu por noites incontáveis de insônia. Era como se precisasse suprir uma
necessidade vital, sem a qual fosse impossível continuar vivendo. Por isso talvez, sem
muita delicadeza foi jogando Luiza em cima da enorme cama que foi a testemunha dos
momentos em que as lembranças se faziam presentes com uma força que quase era
palpável. Sentou-se sobre ela a prendendo entre suas pernas, olhos nos olhos, sem
desviá-los em nenhum momento, enquanto delicadamente sussurrava:
_Olhe bem, era aqui que eu passava horas só pensando em como seria quando a tivesse
assim, sob os meus domínios, para eu usar e abusar da forma que desejasse, falou com a
voz rouca pelo desejo.
_E você pode fazer tudo que quiser, pois estou aqui apenas para te satisfazer, saiu a voz
de Luiza quase num gemido proporcionado pelo tesão que já a molhava toda.
_E quem disse que você consegue me satisfazer? Perguntou Júlia fingindo um ar de
indignação. Como já foi dito, tenho um ego enorme e difícil de contentar.
_Bem, vamos dizer que eu tenho muitos truques escondidos na manga e até hoje as
referências são as melhores, sem reclamações, respondeu com uma forte gargalhada
Luiza.
_Pois então vamos ver se esses truques valem a pena meu tempo, dentro do meu rígido
controle de qualidade, continuou séria Júlia, começando a despir a mulher de sua vida.
E a cada botão que era aberto, Júlia redescobria o corpo de seu amor, agora diferente da
adolescente que ela amou há muito tempo atrás, no quarto apertado do sítio. Luiza tinha
se transformado numa mulher maravilhosa com todas as curvas no lugar e tinha
consciência disso, o que demonstrava sua auto-estima em alta. Júlia sem perceber
começou a salivar diante da visão do corpo que agora se mostrava nu diante de seus
olhos, após tê-lo despido vagarosamente para aumentar seu prazer. Queria tocá-lo em
todas as partes para ter certeza que não era mais um de seus sonhos e fez isso de uma
forma delicada, mas firme como uma massagem, que fazia Luiza não mais conter a
ansiedade de pertencer novamente a Júlia não só em corpo, mas também em alma, que
agora sentia completa ao achar sua outra metade. Júlia deve ter percebido, mas não
acelerou o ritmo, queria saborear o momento com uma calma enervante. Beijava
lentamente todo o rosto amado e nem a respiração ansiosa de Luiza fazia que ela
acelerasse. Era como se degustasse um alimento a muito esperado, queria guardar seu
sabor, seu cheiro, enfim, Júlia queria marcar o corpo amado com o seu.
Continuou beijando o pescoço e colo, mesclando com pequenas mordidas e palavras
obscenas que falava ao ouvido de Luiza. Seus cabelos davam a Luiza a impressão que
onde tocavam à medida que Júlia beijava seu corpo, queimavam a deixando ainda mais
em brasas. Quando Júlia começou a sugar seus seios, ambas gemeram, sinal que
compartilhavam a mesma sensação única. Ela dedicou a mesma atenção a ambos, até os
mamilos ficarem duros de prazer, fazendo-a colar ainda mais a boca ali, lambendo,
tocando, esfregando sua língua, o que a fez sentir todo o desejo úmido de Luiza
escorrendo e marcando a calça jeans que ainda vestia. Livrou-se de suas roupas agora de
uma forma intempestiva, indo se deliciar para angustia de Luiza em sua virilha, onde se
inebriou com o cheiro inigualável daquele sexo ali tão próximo, enquanto suas mãos
buscavam redescobrir através do tato a textura da porta de seus prazeres. Deu-se por
vencida ao notar os movimentos do quadril de sua mulher que demonstravam o que ela
queria que Júlia fizesse para satisfazê-la naquele momento. Começou a passar a língua e
a chupar aquele sexo que se abria para seu deleite como se devorasse um fruto que lhe
foi proibido por muitos anos. Luiza soltou um ronronar quase indecente para lhe dar a
certeza que era isso que queria. Mordia com todo carinho os pequenos lábios que
esperavam seus cuidados. Saboreou aquele gosto mágico, que ficou guardado em algum
lugar de sua memória e agora queria se lambuzar nele novamente. Prendeu com os
dentes o clitóris que se fazia protuberante como uma pequena jóia que necessitava
urgentemente ser apreciada. O degustou preguiçosamente como se torturasse, enquanto
Luiza se contorcia numa onda crescente que ameaçava engolir seu corpo. Júlia
percebendo que logo seria presenteada com o gozo de Luiza, a penetrou com os dedos
em um ritmo dominador que parecia querer alcançar sua alma, sendo guiada pela
ansiedade. Continuou ainda com a língua massageando agora um clitóris inchado de
desejo. E Luiza não a fez esperar, gozou forte, sentindo em seu corpo uma descarga de
prazer tão intenso que a paralisou por completo, lhe tirando toda racionalidade, onde ela
só lembrava o nome amado que gritava agora para quem quisesse ouvir. Júlia não queria
que se perdesse nenhuma gota daquele líquido embriagante e sugou aquele gozo que a
partir daquele momento, sustentaria sua vida como símbolo de um amor eterno. Ao ver
que Luiza gozava mais uma vez, Júlia buscou o seu gozo se masturbando de uma forma
eletrizante e rápida, mas não menos prazerosa, pois seus dedos deslizavam facilmente
em sua carne também encharcada de desejo. Luiza ainda se recuperava quando sentiu
seu gosto, pois Júlia invadia sua boca de uma forma erótica e insinuante para que
sentisse também o seu gosto. Ficaram ali, por minutos que não souberam definir, só
sentindo a sensação que um beijo apaixonado podia proporcionar. Se o mundo se
acabasse era ali, naquela boca, pensou Luiza, que queria morrer; pois com um beijo
apenas ela lhe proporcionava muitos arrepios e acendia sua imaginação.
_Assim você me mata já na primeira noite, falou uma Luiza extasiada e só encerrando o
beijo para poder voltar a ter uma respiração normal.
_Então a senhora está reclamando? Bem posso fazer diferente da próxima vez,
respondeu fingindo quase um beicinho Júlia.
_Imagine, não pense em mudar nada; e sem que Júlia esperasse Luiza movimentou-se se
sentando sobre sua pélvis e com um olhar que dizia muito bem o que pretendia, iria lhe
devolver todo o prazer proporcionado, mas de repente, seu olhar se transformou de uma
forma indefinível, sumindo o sorriso de seu rosto e o silêncio se fez tão presente que
Júlia se preocupou de verdade.
_O que foi? Te magoei? Perguntou Júlia.
_Como você consegue? Respondeu com uma pergunta Luiza, enquanto saia de cima de
Júlia e sentava-se na cama se apoiando na cabeceira.
_Como consigo o quê? Fala; quis saber uma Júlia agora aflita com os olhos fixos nos de
Luiza.
_Como você consegue ser tão dona de mim, e Luiza abriu um sorriso ao ver a expressão
de alivio de Júlia, e segurando o rosto tão amado entre suas mãos prosseguiu:
_Sabe, Bianca nunca soube de você, mas era como se ela adivinhasse que por mais que
tivesse minha dedicação, paixão e respeito, nunca teria meu coração, pois essa parte de
mim não me pertencia há muito tempo. E quando ela se foi, percebeu antes de mim qual
era o caminho que eu devia percorrer para me tornar feliz de verdade. Você é minha
estrada e por orgulho posso ter me desviado por anos, tentando pelas curvas que a vida
me apresentou fugir, mas reconheço hoje que nem um dia eu duvidei que já não mais
me pertencia porque era sua minha alma, consciência, todo o meu corpo enfim. Agora
que isso se confirma no simples olhar que te lanço, que me faz esquecer até de respirar e
apesar de sempre fugir da entrega com medo de me magoar ao me revelar de verdade
para outra pessoa, quero que você acredite que eu nunca fui tão feliz e ser de você é o
que sempre sonhei, antes mesmo de saber que era isso que eu queria, mas acima de
tudo, preciso para viver como a água e o ar.
Júlia não quis esconder as lágrimas que caiam agora diante daquela confissão de amor
que ela tinha quem sabe, esperado por toda a vida.
_Sabe, disse Júlia se ajoelhando na cama em frente de Luiza, agora segurando as mãos
de sua mulher; Marco nunca soube de você, mas era como se ele adivinhasse que por
mais que ele tentasse conquistar meu amor, teria de mim só a amizade, pois meu
coração já não me pertencia há muito tempo. E quando ele se foi, depois de anos me
escondendo em um casamento morto desde seu principio, eu sabia qual era o único
caminho que eu devia seguir para ser feliz. Você é minha estrada e por medo de ser
rejeitada posso ter me desviado por anos, tentando fugir dos meus desejos a cada curva
que a vida me apresentou, mas acredite que nem um dia duvidei que já não me
pertencesse porque era sua minha alma, consciência, todo o meu corpo enfim; pois isso
se confirmou no simples ato de te olhar assim, onde me esqueço de respirar ou pensar
em algo que não seja ser de você, e apesar de sempre ter medo de me magoar ao me
entregar de verdade dentro de um relacionamento, tenha certeza que nunca fui tão feliz
e estar aqui agora é o sonho que se realiza, tão essencial quanto a água e o ar para mim.
As lágrimas de ambas se misturaram naquele abraço que selava para sempre aquele
amor nascido desde o primeiro olhar, que cresceu e amadureceu com os anos que se
seguiram e agora em toda sua plenitude vinha a abençoar com sua força essas duas
vidas e a de todos que estavam ao seu redor. Amaram-se até a exaustão e mais que o
prazer de corpos que queriam dar e receber, elas descobriram o prazer de almas que se
encontravam afinal, pois se pertenciam desde sempre.
_Meu amor, sussurrou uma satisfeita Luiza ao ouvido de uma quase adormecida Júlia.
_Uh, custou a responder Júlia, que se sentia bem confortável no meio dos braços que a
seguravam.
_Feliz aniversário, e a presenteou com um beijo singelo que queria apenas mostrar a
felicidade de estar ali.
Sorrindo por um instante ao perceber que diante de tantas emoções nos últimos dias,
tinha se esquecido totalmente da data e se virando para tentar visualizar o rosto amado,
que naquele momento era banhado pelo luar, disse:
_Igualmente, retribuiu o beijo e brincando completou:
_Como se sente ao cruzar a barreira dos trinta? E se aconchegou mais ao corpo nu que a
envolvia.
_Me sinto com dezoito outra vez, com a vida começando agora para mim, aproveitou
para cobrir ambas ao sentir uma brisa fria que entrava pelas grossas janelas.
_Que assim seja meu amor. A partir desse momento, começará para nós uma vida cheia
de alegrias, concluiu Júlia.
Estava quase amanhecendo quando aquele cansaço tão bem vindo veio trazer-lhes o
sono das pessoas felizes, um sono diferente do que tinham vivido até então, unidas não
só pelo abraço que quase faziam de dois corpos um só, mas pelos corações que agora
batiam no mesmo ritmo. Aquela manhã na fazenda Campo Belo, quem ali chegasse
teria a impressão de que o mal e todo o sofrimento poderiam existir, mas da porteira
para fora, pois para todos os moradores da casa sede, o sol veio mais que trazer um
novo dia, ele marcava sim o primeiro dia de uma vida completa até então interrompida.
Harold e Zefa não cabiam em si, tanto que não se desgrudavam mais e faziam mil
planos e pelo sorriso de ambos, além dos comentários dos outros funcionários, Júlia
descobriu que não havia sido só ela e Luiza que tiveram uma noite agitada.
Aproveitaram a data, lembrada por Duda, que ficou maravilhada ao saber que sua nova
mãe também fazia aniversário no mesmo dia, para fazerem uma pequena comemoração,
com bolo e tudo, não faltando nem o famoso “com quem será” para as aniversariantes
que completaram a canção repetindo o nome amado. Por falar nas duas, era
indisfarçável aos olhos de todos a intenção mais que latente de que queriam o mais
rápido possível estabelecer uma rotina na vida da nova família que se formava, até para
que Duda se acostumasse logo com a presença agora de duas mães na sua vida. Entre os
planos estavam fixar para tristeza de Zefa e Harold, apesar de entender, uma residência
em Nova York, cidade pela qual ambas tinham especial afeição. Londres perdeu no
quesito diversidade, apesar de Luiza não se importar de viver na Europa. Júlia ponderou
o fato de que Luiza já tinha uma base montada para a fundação naquela cidade, e de
jeito nenhum ela queria que sua mulher se afastasse de um trabalho que só lhe dava
bons frutos, independente da lembrança de Bianca, que agora não a amedrontava mais,
tanto que assim que pudesse, queria conhecer o doutor Jaime. Doutor Luís, eficiente
como sempre, tratou de encontrar uma casa que agradasse ambas e comprá-la. Ele
achou num condomínio meio afastado no Queens, numa localidade rodeada por uma
grande concentração de área verde, um dos fatores que as fizeram decidirem pela casa,
além de ser espaçosa sem ser ostensivamente luxuosa. Tratou também dos papéis para
dar plenos direitos sobre a Campo Belo para Harold e Zefa, fazenda esta que se
transformaria segundo plano do mordomo e aprovação de sua dona, em uma estância de
repouso para a terceira idade, com preços acessíveis para que todos pudessem desfrutar
de suas maravilhas, menos em dezembro e janeiro, meses estes estabelecidos para que
Júlia e sua família viessem passar férias e rever os amigos do Brasil.
Triste foi o dia da despedida, mas ambas sabiam que agora nenhuma lembrança as
afastava daquele lugar. Harold e Zefa entendiam, mas nem por isso a saudade seria
menor. A pequena Duda estava chorosa, pois considerava agora aquele o seu pequeno
reino, cheio de descobertas e alegrias e só se foi porque as duas mães lhe prometeram
voltar ali todos os anos. Seu Pedro e toda a família vieram também se despedir, o que
serviu para João tentar se desculpar com Júlia de sua antipatia agora se sabia, motivada
pelo ciúme, atualmente injustificado.
_Espero que vocês finalmente consigam ser felizes, disse João abraçado à esposa e Júlia
percebeu a sinceridade de suas palavras.
_Obrigada João, respondeu também sem ressentimentos. Só de estarmos juntas aqui já é
o suficiente e sei que isso se deve muito a sua ajuda e disso não vou esquecer.
_Não foi nada. Quando Luiza precisou de nossa ajuda, mesmo sem saber, nos sentimos
na obrigação como a família que ela já não tinha mais, de lhe mostrar o caminho a
seguir, o resto foi com ela, que dessa vez não desistiu de ser feliz.
_E quero que você e seu pai saibam que vou fazer tudo para que ela se sinta parte de
uma e que não se esqueça daquela que vamos deixando aqui, completou Júlia apertando
a mão que João lhe estendia.
_Que bom vê-los assim, sorriu feliz Luiza que mal chegou e já foi abraçando Júlia por
trás, parecendo aos presentes uma forma dela ter certeza de que o que estava vivendo
era real.
Muitas lágrimas se formaram e caíram quando da despedida entre os dois casais. Harold
e Zefa sentiam como se lhe tomassem as filhas e Luiza e Júlia, como adolescentes que
saiam de casa pela primeira vez. Luiza os fez prometer que só se casariam com festa e
circunstância no final do ano, quando elas estariam de volta após dar uma organizada na
vida lá nos Estados Unidos. E depois de muitas recomendações, choros e risos, desta
vez Luiza e Júlia saiam juntas de sua cidade e diferente da última vez cercada de
dúvidas e ressentimentos, elas levavam nas bagagens apenas esperanças e sonhos
realizados.
Antes de pegar o vôo para a América, Luiza levou sua nova família para conhecer o
doutor Jaime que apesar da idade, como todo fã ficou todo bobo ao ver Júlia e pegar sua
mão. Ele não cabia em contentamento ao ver Luiza tão feliz e até com uma filha, coisa
que ele adorou por sinal, e para surpresa de ambas, Duda ganhava ali um avô. A
simpatia entre os dois foi tão real que Duda, depois da semana que passaram na mansão
Albuquerque (insistência do doutor claro, que nem quis ouvir nada ao contrário), já o
chamava vovô Jaime, para orgulho do velho. O doutor ficou ainda mais contente ao
perceber que em nenhum momento Júlia se sentiu desconfortável diante da lembrança
da filha morta, ao contrário, só teceu elogios à mesma; além de que apoiava Luiza em
seu trabalho na fundação, que continuaria. Júlia fez até questão de ir com Luiza e o
emocionado doutor ao cemitério, onde deixou flores no túmulo de Bianca além de por
um minuto, fazer uma oração de agradecimento por tudo que aquela mulher tinha feito
por Luiza e sentia que se hoje elas estavam ali juntas e felizes, ela devia sim a presença
amorosa de Bianca que plantou e fez germinar muitas sementes de amor e esperanças no
antes tão amargo coração de Luiza. Na despedida já no aeroporto, o doutor fez ambas
prometerem passar uns dias no final do ano com ele, além de confirmar que logo estaria
com elas na nova casa para uma visita.
Elas demoraram um pouco para se adaptarem a vida em comum, pois apesar do amor,
no começo sempre há aquele medo de se estar fazendo certo ou se isso magoa, ou se
assim ela vai gostar mais, entretanto, nada como a convivência para mostrar essas
nuances da personalidade de ambas e perceberem que apesar da individualidade bem
distinta de cada uma, acabaram por se descobrirem mulheres de gostos e jeito de ser tão
parecidos, que as pessoas muitas vezes não sabiam mais onde começava uma e
terminava a outra. Talvez fosse isso o amor. Ele nos molda aos olhos da pessoa amada
de uma maneira que já não sabemos se é ela que vive em nós ou o contrário. Luiza
adorou mais que tudo se tornar mãe e agarrou essa oportunidade com toda sua
persistência para se tornar, como sempre dizia uma Júlia com uma pitada de ciúmes,
mas em tom de brincadeira, a mãe boa e ela a mãe má, pois enquanto era Júlia que dava
as broncas e castigos, Luiza paparicava e enchia de mimos a pequena Duda. Isso claro
era bem dosado para que a personalidade da menina se desenvolvesse com o que de
melhor as duas pudessem dar e nem por um minuto, a criança preferiu essa ou aquela, e
se enchia de orgulho ao passear com as mães, ainda mais quando uma delas era noticia
na TV ou em qualquer outra forma de mídia.
Júlia não demorou muito, para assombro de todo o mundo artístico, a voltar a tocar em
público, mostrando a todos que estava melhor que nunca. Quando tocou pela primeira
vez em um espetáculo a música que tinha feito para a mulher amada, a platéia presente
se sentiu em êxtase, e aplaudiu de pé por quase cinco minutos inteiros, confirmando ser
mais um sucesso. Com isso, ela foi manchete por dias nos diversos tipos de
programação especificas sobre o assunto. Como estava agora residindo ali, logo foi
chamada para escrever um musical para a Broadway e estava se empenhando muito e
com certeza conseguiria outro êxito.
Luiza terminou seu livro que era meio uma autobiografia e logo se tornou campeão de
vendas e para sua surpresa, recebeu propostas para vender os direitos para o cinema.
Estava pensando ainda, mas tinha todo o apoio em casa para isso. Para deixar Júlia com
um pouquinho de ciúmes, comentou que se vendesse, iria querer Angelina Jolie no
papel principal, mas Júlia que estava sentada na poltrona de frente conferindo as tarefas
escolares de Duda, só a olhou por cima dos óculos que agora precisava usar para ler de
perto, e a expressão transmitida por aqueles azuis fez Luiza se esquecer de Angelina e
correr para o colo da mulher de sua vida e a encher de beijos.
A relação das duas como um casal, óbvio que não passou despercebida pelos paparazzi
e por isso estamparam várias publicações por algumas semanas, mas nada que as
irritasse. Como toda novidade causaram certo escândalo na boca de muitos jornalistas
que tanto lá como aqui no Brasil sobrevivem de falar da vida alheia, mas a atitude firme
de ambas em preservar sua privacidade e da filha, logo calaram essas vozes mais
maliciosas.
Voltaram como combinado no fim do ano e se surpreenderam ao ver quanto Harold e
Zefa estavam renovados e felizes. Com a chegada de ambas, fizeram como combinado
uma cerimônia de casamento bem simples, mas muito emocionante que levou as
lágrimas todos os presentes. Elas já chegaram ali para a alegria do casal mais velho,
com as alianças nas mãos, pois também em uma cerimônia simples, tinham se casado lá
nos Estados Unidos mesmo, pois não queriam esperar mais. Luiza ainda em segredo,
tinha visto com doutor Luiz a possibilidade de poder adotar legalmente Duda como
filha, mas só queria comentar algo com Júlia caso tivesse alguma possibilidade de
sucesso. Ficaram ali até o fim de Janeiro, prometendo sempre se manterem em contato.
Viajaram muito, trabalhavam demais, mas nada que tirasse o sorriso dos rostos daquela
família muito feliz só por estarem juntas. E assim vão levando a vida, dia após dia,
sabendo que como uma boa letra quando encontra a melodia certa, foi o destino para
elas, pois produziu uma obra eterna.

Fim

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