Você está na página 1de 68

A Pantera Brasileira ou O Gato Brasileiro

- Sir Arthur Conan Doyle - 1898 (The Brazilian Cat)


O Gato Brasileiro (The Brazilian Cat) - Sir
Arthur Conan Doyle - 1898

Essa novela foi escrita por Arthur Conan Doyle


em 1898. Tradução de Sérgio Portugal em 2018. A
trama ocorre no final da década de 1890. Nesse
período praticamente não havia automóveis. O
telefone estava nascendo e o telegrama era o meio
de comunicação mais dinâmico. Arthur Conan
Doyle traz junto com essa deliciosa aventura um
relato dos costumes de uma época. Para quem não
sabe, Arthur Conan Doyle foi o escritor que criou
o famoso detetive Sherlock Holmes. Havia muita
formalidade na comunicação entre as pessoas
pertencentes à aristocracia daquele tempo. No
século atual a linguagem é muito mais informal.
Decidi traduzir esse texto por não ter encontrado
nenhuma tradução que me tivesse me agradado.
Arthur Conan Doyle (22 de maio de 1859 - 7 de
julho de 1930)
criou o famoso Sherlock Holmes, o mais filmado
personagem de ficção de todos os tempos segundo
1
o Livro dos Recordes Guiness. Esse médico
escocês inspirou inúmeros autores, uma fã sua era
nada mais nada menos que Agatha Christie !!!
As ilustrações são de Sidney Edward Paget (1860
- 1908), um ilustrador britânico famoso. São
universalmente conhecidas os desenhos de
Sherlock Holmes na revista "The Strand
Magazine". Foi ele quem deu a forma ao mais
famoso dos detetives.

Boa leitura !!!

O Gato Brasileiro (Ou “A Pantera Brasileira”) -


Sir Arthur Conan Doyle - 1898 (Título original:
The Brazilian Cat)

2
3
É difícil para um jovem ter gostos caros, grandes
expectativas, conexões aristocráticas, mas sem
dinheiro real em seu bolso e nenhuma profissão
pela qual possa ganhar algum. O fato era que meu
pai, um homem bom, otimista e ​bon vivant,​ tinha
tanta confiança na riqueza e benevolência de seu
irmão mais velho solteirão, Lorde Southerton, que
ele tinha como certo que eu, seu único filho, nunca
seria chamado a ganhar a vida por mim mesmo.
Ele imaginou que, se não houvesse uma vaga para
mim nas grandes propriedades de Southerton, pelo
menos haveria algum posto no serviço diplomático
que ainda permanece para a reserva especial de
nossas classes privilegiadas. Ele morreu cedo
demais para perceber como seus cálculos estavam
errados. Nem meu tio nem o Estado deram
qualquer atenção ou demonstraram interesse em
minha carreira. Ocasionalmente meu tio me
presenteava com alguns faisões, ou carne de
lebres, era tudo o que me chegava para me lembrar
que eu era herdeiro da Casa de Otwell e de uma
das maiores fortunas do país. Na verdade eu era
4
apenas um solteiro aristocrático morando em um
conjunto de apartamentos em Grosvenor
Mansions, sem ocupação, exceto a de atirar em
pombos e de jogar polo em Hurlingham. Mês a
mês, percebi que era cada vez mais difícil
conseguir dinheiro emprestado junto aos bancos e
agiotas, ficava cada vez mais difícil conseguir
crédito. A ruína estava no caminho, e com o
passar dos dias eu a via mais clara, mais próxima e
absolutamente inevitável. (Grosvenor Mansions)

5
O que me fez sentir minha própria pobreza foi
que, além da grande riqueza de Lorde Southerton,
praticamente todos os conhecidos de minhas
relações eram razoavelmente abastados. O mais
próximo deles era Everard King, sobrinho de meu
pai e meu primo em primeiro grau, que levara uma
vida aventurosa no Brasil e que agora retornara ao
seu país para estabelecer-se com o capital que
acumulara. Nunca se soube como ele ganhava
dinheiro, mas parecia ter muito, pois comprou a
propriedade de Greylands, perto de
Clipton-on-the-Marsh, em Suffolk. Durante o
primeiro ano de seu retorno à Inglaterra, ele não
me deu mais atenção que o avarento de meu tio;
mas, finalmente, numa manhã de verão, para meu
grande alívio e alegria, recebi uma carta em que
ele me convidava para partir naquela mesma data
e passar uns dias na localidade de Greylands
Court. Eu estava esperando a visita do oficial de
justiça sobre a decretação de minha praticamente
inevitável falência pelo Tribunal de Falências, e
aquela interrupção pareceu-me quase providencial.
Fiquei pensando na possibilidade de, quem sabe,
6
(Greylands Court)
pedir algum dinheiro emprestado a esse parente
meu que eu ainda não conhecia, poderia me safar
da ruína financeira. Em nome da reputação da
família, ele talvez pudesse impedir que eu fosse
encostado contra a parede. Ordenei ao meu criado
que fizesse minha mala e rumei na mesma tarde
para Clipton-on-the-Marsh.

Depois de pegar um trem secundário em Ipswich,


desembarquei numa pequena estação deserta,
situada em meio a um campo ondulado e relvoso,
com um rio lento e sinuoso entrando e saindo em
meio ao vale, entre margens altas e lamacentas, o

7
que mostrava que o local era litoral. Não havia
carro algum à minha espera (descobri
posteriormente que o telegrama havia se atrasado),
de modo que peguei uma charrete nas imediações
da estação. O cocheiro era um excelente sujeito,
estava cheio de elogios ao meu parente, soube por
ele que o Sr. Everard King era um nome
comentado naquela parte do país. Ele promovia
festas para as crianças da escola, tinha aberto as
portas de seu pequeno jardim zoológico para os
visitantes, havia contribuído para instituições de
caridade — em suma, sua benevolência era tal que
meu cocheiro só podia atribuí-la a ambições
parlamentares.

8
Minha atenção foi desviada do entusiasmo de meu
cocheiro pelo surgimento de um belíssimo pássaro
que pousou num poste telegráfico ao lado da
estrada. No começo pensei se tratar de um gaio,
9
mas era maior, com uma plumagem mais
brilhante. O condutor da charrete explicou
imediatamente sua presença dizendo que pertencia
ao próprio homem que íamos visitar. Parece que a
aclimatação de criaturas estrangeiras era um de
seus hobbies, e que ele trouxe consigo do Brasil
uma série de pássaros e outros animais para criar
na Inglaterra. Quando passamos pelos portões do
Greylands Park, tivemos amplas evidências desse
gosto dele. Alguns pequenos cervos malhados, um
curioso porco chamado, salvo engano, caititu, um
papagaio maravilhosamente emplumado, algum
tipo de tatu, e uma criatura estranha muito gorda
com dedos voltados para dentro, estavam entre os
animais que observei à medida que nos dirigíamos
ao longo do caminho sinuoso.

10
Everard King, meu primo, estava em pé no alto
dos degraus de sua casa, ele havia nos visto à
distância e tinha suposto que era eu. Sua aparência
era muito simpática e benevolente, era de baixa
estatura e entroncado, uns quarenta e cinco anos
talvez. Tinha um rosto redondo e bem-humorado,
bronzeado do sol tropical com mil rugas castigado
pelo calor. Usava roupas de linho branco rústico,
no estilo verdadeiramente rural, com um charuto
11
entre os lábios e um grande chapéu panamá na
cabeça. Era uma figura como a que se associa a
um bangalô, e parecia curiosamente deslocada em
frente a essa ampla mansão inglesa de pedra, com
suas sólidas alas e seus pilares paladianos que
ladeavam a porta.

— Querida! — gritou ele, olhando por cima do


ombro — Querida, aqui está nosso convidado!
Bem-vindo, bem vindo a Greylands! Estou
encantado em conhecê-lo, primo Marshall! Grato
por sua visita. É uma honra sua presença nesse
lugar pacato e sonolento.

Nada poderia ser mais cortês que suas maneiras, e


ele me fez sentir à vontade por um instante. Mas
toda sua cordialidade não foi suficiente para
compensar a frieza e até mesmo grosseria por
parte de sua esposa, uma mulher alta, pálida que
apareceu quando ele a chamou. Ela era, creio eu,
de origem brasileira, embora falasse um inglês
excelente. A princípio atribuí sua atitude à sua
ignorância sobre nossos costumes. Na verdade ela

12
não tentou esconder de mim que minha presença
em Greylands Court não a agradava. Ela era
possuidora de um par de olhos escuros
particularmente expressivos. E eu os li claramente
desde o começo: ela desejava que eu voltasse para
Londres o mais breve possível.

No entanto, minhas dívidas eram demasiadamente


urgentes e meus desígnios para com meu parente
abastado eram vitais para me deixar permitir ficar
incomodado pelo mau humor de sua esposa, desse
modo, desconsiderei sua frieza e retribuí a extrema
cordialidade de suas boas-vindas. Ele não poupou
esforços para me deixar o mais confortável
possível. Meu quarto era encantador. Ele me
implorou para eu dizer-lhe qualquer coisa que
pudesse aumentar minha felicidade. Estava na
ponta da minha língua para informá-lo que um
cheque em branco ajudaria materialmente para
esse fim, mas senti que poderia ser prematuro no
estado atual de nossas relações. O jantar foi
excelente, e quando depois nos sentamos juntos

13
fumamos charutos Havana e bebemos café, que
mais tarde ele me disse ser proveniente de sua
própria plantação, pareceu-me que todos os
elogios do cocheiro eram justificados, e que eu
nunca havia conhecido alguém tão amistoso e
hospitaleiro.

Mas, apesar de sua natureza amigável e alegre, ele


era um homem com uma determinação forte e um

14
temperamento explosivo. Disso tive certeza na
manhã seguinte. A curiosa aversão que a sra.
Everard King tinha por mim era tão forte que sua
atitude no café da manhã era quase ofensiva. Mas
suas intenções tornaram-se inequívocas quando o
marido deixou o quarto.

— O melhor trem do dia parte ao meio dia e


quinze. — disse ela.
— Mas eu não estava pensando em partir hoje.
— respondi, francamente, talvez até
desafiadoramente, pois estava determinado a não
ser expulso por aquela mulher.

— Se prefere assim ... — disse ela com a


expressão mais insolente possível no olhar.

— Tenho certeza do que quero. — retruquei.


— se tivesse abusando da hospitalidade do Sr.
Everard King, com certeza ele me daria a
entender.

— O que é isso? O que é isso? — ouviu-se a


voz dele vinda de outro cômodo. Ele tinha ouvido

15
minhas últimas palavras à distância. Quando ele
viu nossos rostos percebeu o que tinha ocorrido.
Seu rosto gorducho e alegre se transformou
subitamente em uma expressão absolutamente
feroz.

— Poderia por favor nos deixar a sós por um


instante, Marshall? — disse ele. (Aproveito para
me apresentar: meu nome é Marshall King)

Ele fechou a porta atrás de mim e então, por um


instante, ouvi-o falando com voz baixa em tom
ameaçador para sua esposa. Esta quebra de
hospitalidade evidentemente atingiu seu ponto
mais fraco. Não sou bisbilhoteiro, Desse modo saí
para o gramado. Logo ouvi um passo apressado
atrás de mim, e lá estava a senhora, com o rosto
pálido de nervosismo e os olhos vermelhos de
lágrimas.

— Meu marido me pediu para pedir desculpas


a você, Sr. Marshall King — disse ela, de pé com
os olhos baixos diante de mim.

16
17
— Por favor, não se incomode com isso, Sra.
King.

Seus olhos escuros repentinamente me fuzilaram.

— Seu idiota! — ela sussurrou com veemência


e caminhou de volta para a casa.

O insulto foi tão ultrajante, tão insuportável, que


fiquei parado olhando para ela com perplexidade.
Eu ainda estava lá quando meu anfitrião se juntou
a mim. Ele com seu jeito alegre e bonachão mais
uma vez.

— Espero que minha esposa tenha se


desculpado por suas tolices — disse ele.

— Ah, sim, certamente!

Ele pegou no meu braço e caminhou comigo pelo


gramado.

18
— Você não deve levar a sério. — disse ele —
me entristeceria imensamente se você reduzisse
sua visita em uma hora. O fato é que não deve
haver segredos entre parentes; minha pobre e
querida esposa é terrivelmente ciumenta. Ela odeia
quando alguém — homem ou mulher — fique por
algum momento entre nós. Seu ideal é uma ilha
deserta e um eterno ​tête-à-tête.​ Isso explica
algumas atitudes que são, admito, algo próximo da
loucura. Prometa-me que você não pensará mais
nisso.

— Não, não, claro que não.

— Então acenda este charuto e venha comigo.


Vou te mostrar meu pequeno zoológico.

Ele passou a tarde inteira mostrando sua coleção


de fauna, que incluíam pássaros, animais diversos
e até répteis que ele havia importado. Alguns
estavam livres, outros em jaulas e alguns inclusive
19
dentro da casa. Ele falou com entusiasmo sobre
seus êxitos e seus fracassos, dos nascimentos e das
mortes, e soltava exclamações entusiasmadas no
tom de um menino em idade escolar quando
algum pássaro exuberante se agitava na grama ou
algum animal exótico se esgueirava procurando
abrigo. Finalmente ele me levou a um corredor
que conduzia a um anexo da casa. No final deste
corredor havia uma porta pesada com um trilho
corrediço. Lateralmente projetava-se da parede
uma manivela de ferro conectada à uma roda e um
tambor de guincho. Uma lateral de gradeada com
barras robustas estendia-se pela passagem.

— Agora vou mostrar-lhe a joia da minha


coleção — disse ele. — Há apenas um outro
exemplar na Europa, desde que o filhote de
Roterdã morreu. É um gato brasileiro.

20
— Em que ele é diferente de outro gato
qualquer ?

— Você vai ver, ele respondeu, rindo. Queira


por favor abrir esse postigo para olhar aí dentro.

21
E foi o que fiz. Ao entrar vi uma sala grande,
vazia e pavimentada, com pequenas janelas
gradeadas na parede. No meio desta sala, estava
um felino enorme deitado no meio de um facho de
sol. Era tão grande quanto um tigre, mas negro e
lustroso como ébano. Era simplesmente um felino
preto gigantesco e muito bem tratado; se aquecia e
se espreguiçava como faria qualquer gato num
banho de de sol. Ele era impressionantemente
gracioso, possante e , tão diabolicamente lustroso,
que eu não conseguia afastar os olhos da abertura.

— Ele não é esplêndido ? — perguntou meu


anfitrião entusiasticamente.

— Magnífico! Jamais vi uma criatura tão


esplendorosa.

— Há quem denomine ele como puma negro,


mas na realidade não é um puma. Da cabeça à
cauda, mede mais de três metros e meio. Quatro
anos atrás, ele era apenas uma bolinha de pêlos

22
negros com olhos amarelos. Foi vendido para mim
recém nascido na região do alto rio Negro. Sua
mãe foi morta a golpes de lança após ter matado
uma dúzia de nativos.

— Eles são tão ferozes assim?

— São as criaturas mais absolutamente


traiçoeiras e sanguinárias em toda a Terra. Se

23
você falar sobre esse felino brasileiro para um
índio daquela região ele ficará arrepiado de medo.
Esses felinos preferem carne humana a outra carne
de caça. Esse indivíduo em particular nunca
experimentou sangue vivo ainda, mas quando
experimentar será um terror. Ele não admite
ninguém além de mim em sua jaula. Nem mesmo
Baldwin, seu tratador, se atreve a se aproximar.
Quanto a mim, sou para ele mãe e pai ao mesmo
tempo.

Enquanto ele falava, abruptamente abriu a porta e,


para meu espanto, entrou se esgueirando e fechou
a porta rapidamente atrás dele. Ao som de seu
rugido a enorme e ágil criatura se levantou. O
enorme felino bocejou e esfregou carinhosamente
sua cabeça redonda e negra contra a cintura de seu
mestre, e este retribuiu suas carícias.

— Agora Tommy, para dentro da sua jaula ! —


disse ele.

O gato monstruoso foi para um lado do recinto e


sentou-se debaixo de um teto gradeado. Edward

24
King saiu e começou a girar a manivela de ferro
que mencionei. A fileira de barras no corredor
então começou a mover-se e passar por uma fenda
na parede para fechar a frente do cercado. Quando
esta jaula móvel foi fechada, ele abriu a porta e me
convidou para entrar no local, onde a atmosfera
pesada estava imbuída do cheiro pungente peculiar
aos grandes carnívoros.

— É assim que funciona por aqui. — disse ele.


— Nós deixamos ele solto no recinto grande
durante o dia para que ele faça exercícios e à noite
o colocamos na jaula. Você pode soltá-lo girando
a manivela que movimenta a porta de grades,
como você viu. Não, não, não faça isso!

Eu havia colocado minha mão entre as barras para


acariciar o dorso brilhante da fera. Ele puxou
minha mão para fora com um semblante sério.

— Te afirmo que isso não é seguro. Não pense


porque eu posso tomar algumas liberdades com

25
ele que qualquer outro possa. Ele é muito
exclusivo em suas amizades. Não é mesmo,
Tommy? Ah, ele ouviu seu jantar chegando! Não
é, garoto?

Passos foram ouvidos no corredor, a criatura


levantou-se e ficou a andar de um lado para o
outro pela jaula estreita, os olhos amarelos
cintilavam e a língua vermelha agitava e tremia
por entre os dentes pontiagudos. Um tratador
entrou com uma fatia generosa de carne crua em
uma bandeja e empurrou-a através das barras. O
animal pegou a carne com extrema rapidez,
levou-a para um canto e lá, segurando-a entre as
patas, rasgou-a e puxou-a, levantando seu focinho
ensanguentado de quando em quando para nos
olhar. Era um espetáculo perverso, mas fascinante.

— Você deve estar surpreso que eu goste desse


animal, não é mesmo? disse meu primo quando
saímos do recinto. — especialmente porque fui eu
quem criou ele. Não foi fácil trazê-lo do centro da

26
América do Sul para cá são e salvo. E, como te
disse, ele é o exemplar mais belo que há em toda a
Europa. A diretoria do Zoológico daria qualquer
coisa para tê-lo, mas a verdade é que não posso
me separar dele. Bem, creio que já abusei muito
da sua paciência com meu passatempo, acho
melhor seguirmos o exemplo de Tommy e jantar.”

Meu parente da América do Sul estava tão absorto


com sua propriedade e seus curiosos ocupantes
que por algum tempo pensei que em nada mais
pudesse estar interessado. No entanto compreendi
que ele tinha outros interesses ao ver o grande
número de telegramas que recebia. As mensagens
chegavam constantemente e ele as abria sempre
com uma expressão de ansiedade e máxima
atenção. Imaginei se tratar de turfe, ou quem sabe
bolsa de valores. Estava claro que ele tinha
negócios urgentes e que certamente não tinham
relação com os confins de Suffolk. Durante os seis
dias de minha estada ele nunca recebeu menos de
quatro telegramas por dia, e por vezes até sete ou
oito.

27
Eu ocupei esses dias tão bem que, ao final deles
havia conseguido o máximo de cordialidade com
meu primo. Todas as noites ficávamos sentados
até tarde na sala de bilhar, ele me contando as
aventuras mais extraordinárias vividas por ele no
continente sul americano, relatos tão arriscados e
temerários que mal conseguia associá-los àquele
homenzinho bronzeado e gordinho diante de mim.
Eu me aventurei em algumas de minhas próprias
lembranças da vida em Londres, que o
interessaram a tal ponto, que ele prometeu me
visitar em Grosvenor Mansions. Ele estava
ansioso por ver o lado dinâmico da vida na cidade.
E, diga-se de passagem, ele não poderia ter
escolhido um guia mais competente. Estava me
segurando até o último dia de minha visita,
quando me arrisquei a abordar o que me
preocupava. Falei com ele francamente de minhas
dificuldades financeiras e de minha ruína
iminente, e pedi seu conselho, embora esperasse
algo mais concreto. Ele me ouviu atentamente,
dando fortes baforadas com seu charuto.

28
— Mas como ?! — disse ele. — você não é
herdeiro de nosso parente Lorde Southerton ?

— Tenho todas as razões para acreditar que


sim, mas ele jamais me daria qualquer
adiantamento.

— Sim, eu tenho ouvido falar de como ele é


sovina. Meu pobre Marshall, sua situação não é
nada fácil. Por falar nisso, você tem ouvido
alguma notícia sobre a saúde de Lorde Southerton
ultimamente ?

— Ele tem sempre estado numa situação crítica


desde minha infância.

— Ele está sempre com o pé na cova, mas


nunca morre. Sua herança pode estar distante
ainda. Meu caro, que situação complicada você
está !

29
— Eu tinha alguma esperança, se o senhor
pudesse, sabendo de todas as minhas dificuldades,
me adiantar algum …

— Não diga mais nada, meu caro. — disse ele


com a máxima cordialidade. — falaremos sobre
isso ainda esta noite. Dou minha palavra de que o
que estiver ao meu alcance será feito.

Não lamentava que minha visita estivesse


chegando ao fim, uma vez que é desagradável
sentir uma pessoa de dentro da casa em que se é
hóspede desejar ansiosamente sua partida. O rosto
pálido e os olhos hostis da Sra. King se tornavam
cada vez mais odiosos para mim. Ela só não era
mais abertamente rude devido ao temor que tinha
de seu marido. O ciúme dela era tão desvairado
que ela me ignorava completamente, a ponto de
nunca dirigir-me a palavra. Ela fazia o máximo
para que minha estadia em Greylands fosse o mais
insuportável possível. Seus modos foram tão
ofensivos no último dia que eu certamente teria

30
partido não fosse minha necessária conversa
marcada para a noite com meu anfitrião para
salvar-me da falência.

Tal conversa ocorreu muito tarde. Meu primo


recebera mais telegramas durante o dia que de
costume, e ele havia se trancado em seu escritório
após o jantar; e só surgiu no ambiente quando a

31
mulher e os empregados foram dormir. Ouvi ele
trancando as portas como era de seu costume à
noite, e finalmente veio ao meu encontro na sala
de bilhar. Sua figura corpulenta estava envolta em
um roupão e ele usava um par de pantufas
vermelhas sem salto. Acomodando-se numa
poltrona, ele preparou um copo de aperitivo, no
qual não pude deixar de perceber que o uísque
predominava consideravelmente sobre a água.

— Caramba ! — disse ele, — que noite !

Era verdade. O vento uivava e gritava em volta da


casa, e as janelas rangiam e sacudiam como se
estivessem a ponto de estourar para dentro. O
brilho das lâmpadas amarelas pareciam mais
brilhantes e o sabor de nossos charutos mais
perfumados pelo contraste.

— Agora, meu rapaz, — disse meu anfitrião,


— temos a casa e a noite para nós. Dê uma ideia
de como está sua situação financeira e verei o que

32
poderei fazer para organizá-la. Quero ouvir todos
os detalhes.

Me sentindo encorajado, comecei uma longa


exposição, citando os comerciantes, credores —
do meu senhorio ao meu criado. Tinha feito
anotações em minha caderneta de bolso. Fiz,
diga-se de passagem, uma exposição bem
organizada de minha própria vida mal organizada
e de minha situação lamentável. Fiquei deprimido,
no entanto, ao perceber que os olhos de meu
companheiro eram vagos e sua atenção estava em
outro lugar. De quando em quando ele expunha
uma observação superficial e inútil, querendo
indicar que havia seguido minha linha de
raciocínio. Passava mais algum tempo e ele pedia
para que eu repetisse algum ponto, mas sempre
voltava a ficar desatento em relação às minhas
palavras. Por fim ele se levantou e jogou a ponta
do charuto na lareira.

33
— Ouça, meu garoto — disse ele — desculpe,
mas nunca fui bom em visualizar números
mentalmente. Coloque tudo por escrito no papel.
Vou compreender quando estiver tudo preto no
branco.

A proposta era animadora. Prometi fazer o que foi


sugerido.

— Agora é hora de dormirmos. Nossa, o


relógio já está badalando uma hora !

O barulho do relógio da sala foi por um instante


maior que o som da tempestade. Do lado de fora o
vento de tempestade lufava com enorme
intensidade.

— Tenho que ver meu gato antes de ir para a


cama. A tempestade deixa ele nervoso. Você me
acompanha ?

34
— Certamente

— Então ande devagar e evite falar porque


todos estão dormindo.

Nós passamos silenciosamente pela ante-sala


adornada com tapetes persas, e fomos até a porta.
Estava escuro no corredor de pedra, mas havia um
lampião pendurado por um gancho, meu anfitrião
o apanhou e o acendeu. Não havia nada visível no
recinto, desse modo soube que a fera estava em
sua jaula.

— Entre! — disse meu parente ao abrir a porta.

Um rosnado agressivo nos advertia que o animal


realmente estava irritado com o mau tempo. À luz
oscilante da lanterna, o vimos. Era uma enorme
massa negra atada no canto do covil e lançando
uma sombra grosseira sobre a parede caiada. Sua
cauda movia-se furiosamente sobre a palha.

35
— Pobre Tommy não está no melhor dos
ânimos — disse Everard King, segurando o
lampião e olhando para ele. — Parece um
demônio negro, não é mesmo? Vou dar um pouco
de comida para acalmá-lo. Você poderia segurar a
lanterna por um momento?

Peguei o lampião da mão dele e ele deu um passo


em direção à porta.

— A dispensa dele está aqui fora. — disse ele.


— Aguarde um momento por favor.

Ele saiu e a porta se fechou-se atrás dele com um


barulho metálico estridente.

Aquele som duro e assustador fez meu coração


disparar. Uma súbita onda de terror me envolveu.

36
Uma percepção vaga de alguma traição
monstruosa me deixou com calafrios.

Corri para a porta, mas não havia trinco do lado de


dentro.

— Aqui ! — eu gritei. — Deixe-me sair !

— Tudo bem ! Não faça escândalo ! — disse


meu anfitrião do corredor. — Você tem luz aí.

— Sim, mas eu não quero ficar trancado aqui


sozinho.

— Você não quer ? Eu ouvi sua risada


zombeteira e gutural. — você não ficará sozinho
muito tempo.

— Deixe-me sair ! — repeti em tom irritado.


— Quero deixar claro que não admito zombarias
desse tipo.

37
— Zombaria é o que eu digo! — disse ele com
outra risada odiosa. E então subitamente ouvi em
meio ao barulho da tempestade, o ranger do
guincho e da manivela. A grade estava sendo
aberta através da fenda da parede. Meu Deus, ele
estava soltando o gato brasileiro !

38
À luz do lampião, vi a grade deslizando
lentamente pela fenda da parede. As barras iam

39
desaparecendo diante de mim. Vi a abertura ficar
com a largura de um pé. Dei um grito e agarrei a
última barra e a puxei com a força de um louco.
Eu era um louco com raiva e horror. Por pouco
mais de um minuto consegui deixar a coisa
imóvel. Eu sabia que ele estava usando toda a
força sobre o cabo de aço, e que a alavancagem
certamente me superaria. Lutei centímetro por
centímetro, meus pés iam deslizando pelo chão de
pedra, e todo o tempo implorei e supliquei para
que o monstro desumano me poupasse de tal
morte atroz. Invoquei nosso parentesco. Tentei
lembrar-lhe que era seu convidado; implorei para
saber que mal fizera a ele. Sua única resposta eram
os puxões no cabo do guincho movidos pela
manivela. A cada sacudida, uma nova barra
desaparecia pela fenda. Deixei-me ser arrastado ao
longo da jaula até que, finalmente, meus pulsos
estavam doloridos e os dedos machucados. Desisti
da luta desigual. A grade ressoou quando a soltei
e, logo após, ouvi o barulho das pantufas no

40
corredor e a batida da porta distante. Então tudo
ficou em silêncio.

Durante um tempo a criatura não se moveu. Ele


ficou parado no canto e parou de abanar o rabo. A
visão de um homem atrás das barras de seu
cativeiro sendo arrastado e gritando em sua frente
aparentemente o assombrou. Vi seus grandes
olhos me encarando fixamente. Havia deixado cair
o lampião no chão quando agarrei as barras, mas
ainda assim estava aceso, fiz um movimento para
segurá-lo, crendo que sua luz poderia me proteger.
Mas no instante que me movi, a fera soltou um
rugido profundo e ameaçador. Por um momento
me detive e fiquei em meu canto morrendo de
medo. O gato (se é que alguém pode chamar uma
criatura tão aterrorizante com um nome tão
doméstico) não estava mais que três metros de
mim. Os olhos brilhavam como dois discos de
fósforo na escuridão. Aqueles olhos me
aterrorizavam e ao mesmo tempo me fascinavam.
Não conseguia tirar meus próprios olhos deles. Em
momentos de intensidade tão grande a natureza

41
nos prega peças, e aquelas luzes cintilantes
aumentavam e diminuíam em um ritmo de
aumento e queda, parecendo faíscas elétricas na
escuridão. O recinto era preenchido com aquela
iluminação sinistra inconstante. De repente
aquelas luzes se apagaram por completo.

A fera fechou os olhos. Eu não sei se pode haver


alguma verdade na velha idéia do domínio do
olhar humano, ou se o enorme gato estava
simplesmente sonolento, mas o fato é que, longe
de mostrar qualquer sintoma de me atacar, ele
simplesmente cochilou. Ainda assim, em vez de
expressar uma intenção agressiva, ele repousou
sua grande cabeça negra e lustrosa sobre sobre
suas enormes patas dianteiras e parecia querer
dormir. Fiquei em pé, temendo me movimentar
bruscamente para não atiçar a força maligna dele.
Ao menos pude pensar, uma vez que os olhos
ferinos estavam fora de mim. Aqui estava eu
calado noite adentro com aquele monstro feroz.
Meus instintos me diziam que o animal era tão

42
traiçoeiro quanto seu mestre. Como poderia
evitá-lo até de manhã? Não havia esperança na
porta tampouco nas janelas estreitas e gradeadas.
Não havia qualquer abrigo naquela sala nua
revestida de rochas. Clamar por ajuda seria um
absurdo. Sabia que aquele cativeiro era um anexo
e que o corredor que ligava à casa tinha pelo
menos trinta metros. Além disso, com a
tempestade trovejante do lado de fora, meus gritos
provavelmente não seriam ouvidos. Minha
coragem e engenhosidade eram as únicas coisas
em que podia confiar.

E então, o desespero me assombrou novamente,


olhei para o lampião. A tocha já havia queimado
quase até o fim. Mais dez minutos e a iluminação
acabaria. Portanto, tinha apenas dez minutos para
fazer alguma coisa, pois sentia que se ficasse no
escuro com aquele animal medonho, seria incapaz
de qualquer ação. Pensar nisso me paralisou. Olhei
para todas as partes com olhar de desespero sobre
aquela câmara de morte, e fixei meu olhar num

43
44
ponto que seria senão a salvação, pelo menos um
perigo não tão imediato e iminente como o chão
aberto. Como mencionei antes, a jaula tinha um
teto gradeado da mesma forma que a frente, essa
grade horizontal permanecia fixa quando se abria
a grade frontal pela fresta da parede. O teto
gradeado era constituído de barras com poucos
centímetros de intervalo entre as mesmas, eram
fixadas por uma estrutura de arame. O espaço
entre o teto gradeado e o telhado devia de ser de
um pouco mais de meio metro. Se eu pudesse
subir lá, me espremendo entre as barras e o teto,
ficaria apenas com uma parte de meu corpo
vulnerável. Estaria mais seguro que embaixo,
minhas costas, meus pés e pernas estavam quase a
salvo. Apenas minha face poderia ser atacada. Lá,
na verdade não havia proteção, mas ao menos,
deveria estar fora da pata do brutamontes quando
este começasse a caminhar pelo seu recinto. Ele
teria que sair de seu trajeto para me alcançar. Era
agora ou nunca, pois a luz estava indo embora,
com a luz apagada tal façanha seria impossível.

45
Respirei fundo e pulei, agarrando-me à beira do
ferro do teto de grades, com respiração ofegante
consegui subir na grade horizontal. Me contorci
com dificuldade e finalmente fiquei suspenso de
bruços olhando diretamente para os olhos terríveis
e a bocarra aberta do gato. Seu mau hálito me
atingiu o rosto como se fosse um caldeirão de
água com algo podre fervendo.

Aparentemente, no entanto, ele parecia mais


curioso que zangado. Com a ondulação elegante
de suas longas costas negras, levantou-se,
espreguiçou-se e, em seguida, ergueu-se sobre as
patas traseiras, com uma das patas dianteiras
escorando na parede, deu um tapa sobre a grade
horizontal debaixo de mim, as garras afiadas de
sua pata rasgaram minhas calças — afinal, estava
vestido com traje social elegante para a noite —
Surgiu um ferimento no joelho. Não foi um ataque
propriamente dito, mas sim um experimento, pois
após eu ter gritado de dor ele voltou para o chão
novamente, e pulando levemente dentro do seu
46
recinto, ele começou a andar rapidamente pela
sala, olhando para cima de vez em quando. Recuei
o máximo possível contra a parede. Quanto mais
me afastasse da beirada, mais difícil seria para ele
me atacar.

Ele parecia mais excitado agora que começara a se


mexer e corria veloz e silenciosamente ao redor do
cubículo, passando continuamente sob a cama
improvisada de ferro sobre a qual eu estava
deitado. Era maravilhoso ver uma massa tão
grande passando como uma sombra, quase sem o
ruído algum. Era mais baixo que a mais suave das
almofadas aveludadas. A lâmpada estava
queimando — tão fraca que mal podia ver a
criatura. E então, com um último clarão veio o
último lampejo, o lampião apagou-se
completamente. Eu estava sozinho com aquele
gato no escuro!

Quando se sabe que foi feito tudo o que é possível


para vencer uma dificuldade parece ajudar no
47
enfrentamento do perigo. Não há nada a fazer a
não ser esperar silenciosamente pelo resultado.
Neste caso, não havia chance de segurança em
lugar algum exceto o lugar exato onde eu estava.
Me estendi e repousei em silêncio respirando o
mínimo possível, na esperança de a fera esquecer
de minha presença no caso de eu não fazer nada
para lembrá-lo de que eu estava lá. Calculei por
alto que já deviam ser umas duas horas. Às quatro
o dia amanheceria. Eu não tinha mais nada a fazer
a não ser esperar aquelas duas terríveis horas para
ver a luz do dia.

Do lado de fora a tempestade ainda fazia barulho,


e a chuva não parava de cair continuamente contra
as pequenas janelas. Do lado de dentro o ar
insalubre e fedido era dominante. Eu não podia
nem ver tampouco ouvir o gato. Tentei pensar
sobre outras coisas, mas a única coisa que
desviava meu pensamento daquela terrível
situação era a vilania de meu primo, sua hipocrisia
ímpar e sua maldade absurda contra mim. Por
48
detrás daquele rosto alegre, escondia-se o espírito
de um assassino medieval. A medida que eu
pensava nisso via com mais clareza como as
coisas haviam sido planejadas. Ele tinha
aparentemente ido para a cama dormir como
fizeram as outras pessoas da casa. Sem dúvida ele
teria testemunhas para provar seu álibi. A história
dele era muito simples: ele diria que havia me
deixado terminar meu charuto na sala de bilhar.
Eu tinha ido sozinho por minha conta e risco ver o
gato uma última vez, e que tinha entrado no
recinto sem perceber que a porta da jaula estava
aberta e que dessa maneira um acidente trágico
ocorreu, e que fatalmente eu havia sido devorado
pelo gato. Como tal crime poderia ser imputado a
ele? Talvez ele seria suspeito, mas não haveria em
hipótese alguma prova conclusiva.

Como aquelas duas horas apavorantes demoraram


a passar! Durante a espera ouvi um som baixo e
áspero, imaginei ser a criatura lambendo sua
própria pele. Diversas vezes aqueles olhos
49
esverdeados brilharam em minha direção através
da escuridão, mas nunca um olhar fixo, e minhas
esperanças ficaram mais fortes em que minha
presença tinha sido esquecida ou ignorada. Por
fim, a primeira luz do amanhecer atravessou as
janelas. A princípio vi dois quadrados cinzentos,
depois a coloração cinzenta foi ficando branca; em
seguida distingui novamente meu companheiro
medonho. E para piorar as coisas, ele também
podia me ver !

Ficou evidente para mim que seu humor estava


muito mais agressivo e perigoso do que quando o
vi pela última vez. O frio da manhã tinha irritado
ele, e além do mais ele estava com fome. Com um
rosnado contínuo ele caminhava de um lado para o
outro do cubículo. Ele se pôs a caminhar na parede
oposta ao meu refúgio, seus bigodes estavam
arrepiados ferozmente e sua cauda balançava e
chicoteava. Quando ele contornava os cantos seus
olhos selvagens olhavam para cima em minha
direção com uma ameaça mortal. Soube então que
50
ele queria me matar. E mesmo assim não pude
deixar de admirar a graciosidade sinuosa dessa
criatura demoníaca, seus movimentos longos e
flexíveis, o brilho de seus pelos, a palpitação de
sua língua vermelha pendurada em seu focinho
preto. Ele rosnava o tempo todo cada vez mais
alto. Estava esperando seu ataque a qualquer
minuto.

Que hora miserável para morrer — tão frio, tão


desconfortável, tremendo em minhas roupas leves
sobre aquela grelha de tormento sobre a qual
estava deitado. Me esforcei para me reanimar,
para elevar minha alma rumo a superação, e ao
mesmo tempo com a lucidez de um homem que se
vê perdido. Olhei para todas as partes buscando
algum meio possível de salvação. Uma coisa
estava clara para mim. Se a porta da jaula pudesse
retroceder, eu poderia encontrar refúgio atrás dela.
Seria possível eu puxar a grade da jaula de volta?
Me movi com muito cuidado com medo de atrair a
criatura em minha direção. Devagar, muito
lentamente coloquei minha mão sobre a porta

51
aberta. A última barra estava dentro da fresta da
parede. Para minha surpresa cedeu facilmente na
minha direção. Naturalmente minha dificuldade
estava em minha falta de apoio, uma vez que
encontrava-me deitado. Eu puxei novamente e uns
oito centímetros foram foram movidos.
Aparentemente funcionava sobre rodas. Puxei
novamente … E então o gato pulou !

Foi tão rápido, tão repentino, que realmente não o


vi. Escutei apenas um rugido selvagem, e num
segundo momento vi olhos amarelos brilhantes, a
cabeça negra achatada com sua língua vermelha e
dentes brancos, ele estava ao alcance da minha
mão, o choque sacudiu o teto gradeado no qual eu
estava deitado. Até que eu pensei (se é que
consegue-se pensar em qualquer coisa em tal
momento) que o teto gradeado iria desabar. O gato
chegou tão perto, a cabeça e as patas tão próximas,
as patas traseiras arranharam a borda da estrutura

52
de ferro. Pude ouvir as garras de trás raspando
enquanto as dianteiras se agarravam às

53
grades horizontais, e o hálito dele me deixava
nauseado. Mas seu salto havia sido mal calculado.
Ele não conseguiu manter a posição. Ele balançou
para trás e caiu pesadamente sobre o chão. Com
um rosnado ele me encarou e se encolheu para
saltar uma segunda vez.

Eu sabia que meu destino seria decidido nos


próximos momentos. A criatura tinha aprendido
por experiência. Ele não iria cometer erro de
cálculo novamente. Tinha que agir prontamente,
sem medo, caso quisesse ter uma chance de viver.
Em um instante elaborei um plano. Tirei meu
paletó e o joguei sobre a cabeça da fera. No
mesmo momento desci para o chão, agarrei a porta
com grades e a puxei com toda minha força para
dentro para fechar a porta da jaula.

A porta fechou mais facilmente que eu poderia


esperar. Cruzei o recinto arrastando a porta
comigo, mas a pressa extrema ao realizar esse
movimento me fez ficar do lado de fora da jaula.

54
Se eu estivesse do lado oposto, talvez tivesse saído
sem nenhum arranhão. Me obriguei a parar por um
instante para passar através da abertura que eu
tinha deixado. Aquele momento foi suficiente para
dar tempo de a criatura se livrar do casaco com o
qual eu tinha temporariamente o cegado e pular
em minha direção. Me esgueirei pela abertura e
puxei as porta pelo trilho atrás de mim, mas ele
agarrou minha perna antes que eu pudesse retirá-la
completamente. Um golpe de sua enorme pata
rasgou minha panturrilha da mesma maneira que
uma lâmina de serraria corta uma lasca de
madeira. No momento seguinte, sangrando e quase
desmaiado, me encontrei deitado sobre a cama de
palha imunda e protegido por barras amigas
enquanto a criatura investia furiosamente contra as
mesmas.

Demasiadamente ferido para me movimentar,


fraco demais para sentir medo, só me restava
deitar mais morto do que vivo e observar meu
inimigo. Ele pressionou seu peito preto contra as
barras e tentou me pegar com as patas dianteiras

55
como os gatos domésticos fazem em frente à uma
ratoeira. Ele arranhava minhas roupas mas não
conseguia me tocar. Tinha ouvido falar do curioso
efeito entorpecedor das feridas provocadas pelos
grandes carnívoros; eu estava experimentando na
prática essa teoria; uma vez que tinha perdido todo
meu senso de personalidade e não estava
interessado no sucesso ou fracasso do gato ... Era
como se fosse um jogo que estava assistindo. E
então gradualmente minha mente me conduziu
para sonhos estranhos, em minha visão sempre
aparecia aquela face negra com a língua vermelha.
As visões iam e vinham. Havia me perdido num
delírio de nirvana, o abençoado alívio dos que
sofrem um castigo extremo.

Ao relembrar os acontecimentos posteriormente,


concluo que devo ter ficado desmaiado por cerca
de duas horas. O que me fez acordar de minha
inconsciência foi o barulho metálico estridente da
tranca da porta externa pela qual minha aventura
teve início. Era o barulho do disparo da mola da
56
fechadura. Antes de acordar o suficiente para ter
uma percepção clara das coisas, vi o rosto redondo
e benevolente de meu primo olhando pela porta
aberta. O que ele viu certamente o agradou. O gato
estava agachado no chão. Enquanto eu estava
estendido sobre as minhas costas com a camisa em
farrapos, calças rasgadas em tiras e uma grande
poça de sangue em volta de mim. Posso ver seu
rosto espantado agora, pois estava bem iluminado
com a luz do sol da manhã. Ele olhou para mim e
olhou novamente. Então ele fechou a porta atrás
de si e avançou para a jaula para verificar se eu
realmente tinha morrido.

Não posso dizer exatamente o que ocorreu. Não


estava totalmente lúcido a ponto de testemunhar
com exatidão. O que tenho certeza é que ele estava
virando as costas deixando de olhar para mim para
encarar o animal.

57
— Tommy, meu filho ! — Gritou ele. — Meu
bom e velho Tommy !

Em seguida ele aproximou-se das barras da porta


da jaula, ainda de costas para mim.

— Quieto, sua fera estúpida ! — esbravejou


meu primo — Você não conhece seu dono ?

58
Subitamente veio a lembrança em meu cérebro
estonteado das palavras que meu primo tinha dito
sobre que quando o gato provasse o gosto de
sangue faria ele se voltar contra um amigo. Meu
sangue tinha despertado tal instinto assassino, mas
era ele quem estava lá para pagar o preço.

— Saia daqui ! — ele gritou. — Saia daqui seu


demônio ! Baldwin ! Baldwin ! Ah, meu Deus !

E então eu ouvi ele cair e se levantar novamente,


com um som semelhante ao rasgar de um tecido.
Seus gritos foram ficando gradativamente mais
fracos até que foram abafados completamente pelo
enorme rosnado de seu agressor. E depois de eu
achar que ele tinha morrido, eu vi, como num
pesadelo, uma figura cega, esfarrapada e
encharcada de sangue correndo pelo recinto —
essa foi minha última visão antes de eu desmaiar
mais uma vez.

59
Levei muitos meses em minha recuperação — na
verdade não posso dizer que me recuperei de fato
— pois até o final dos meus dias terei de carregar
uma bengala, como lembrança da minha noite com
o gato brasileiro, Baldwin, o tratador e os outros
criados não sabiam o que tinha acontecido quando,
atraídos pelos gritos de morte de seu patrão, me
encontraram atrás das grades e os restos mortais
de meu primo — ou o que eles descobriram depois
serem seus restos — sob as garras da criatura que
ele havia criado. Eles o prenderam com ferros
quentes, e depois atiraram nele para que pudessem
me libertar. Fui levado para meu quarto, e lá, sob
o teto de meu quase assassino, estive à beira da
morte por diversas semanas. Eles tinham enviado
um cirurgião de Clipton e uma enfermeira de
Londres, e, em um mês eu estava pronto para ser
carregado até a estação de trem, e assim retornei
mais uma vez para Grosvenor Mansions.

Eu tenho uma lembrança do tempo em que estava


doente, que poderia ter sido parte do panorama em
constante mudança de um cérebro delirante se não

60
tivesse sido definitivamente fixada em minha
memória. Certa noite, quando a enfermeira estava
ausente, entrou pela porta de meu quarto uma
mulher alta, vestida de luto. Ela se aproximou de

61
mim e, ao inclinar seu rosto amarelado, vi pelo
pela baixa iluminação da luz do abajur que era a
mulher brasileira com quem meu primo casara.
Ela olhou atentamente para meu rosto, e sua
expressão foi muito mais amável do que aquela
que eu tinha conhecido.

— Você está consciente ? — ela perguntou.

Eu acenei que sim com a cabeça com dificuldade.


— uma vez que estava ainda muito doente.

— Bem; eu só queria dizer que você tem a si


mesmo para culpar. Eu fiz tudo o que pude por
você, não fiz ? Desde o começo tentei te expulsar
de casa. Por todos os meios, menos trair meu
marido, tentei salvá-lo dele. Eu sabia que ele tinha
uma razão para te trazer aqui. Eu sabia que ele
nunca deixaria você sair novamente. Ninguém o
conhecia como eu conhecia, eu que sofrera com
ele tantas vezes. Eu não me atrevi a te contar tudo
isso. Ele teria me matado. Mas eu fiz o melhor que

62
pude para te salvar. Do jeito que as coisas
acabararam, você veio a ser o melhor amigo que
eu já tive. Você me libertou, e eu imaginei que
nada além da morte me traria liberdade. Lamento
se você está ferido, mas não posso me reprovar.
Eu lhe disse que você era um tolo — e você
acabou sendo de fato um tolo. Depois ela saiu do
quarto, aquela mulher amarga e singular, e eu
nunca mais voltei a vê-la novamente. Com o que
restava da propriedade de seu marido, ela voltou
para a sua terra natal. Ouvi dizer que ela virou
freira em Pernambuco.

Após algum tempo de meu regresso a Londres, os


médicos permitiram eu cuidar de meus próprios
negócios. Não era uma permissão muito
bem-vinda, pois eu previ que aquele era o sinal
para uma avalanche de credores. No entanto,
quem primeiro apareceu foi meu advogado
Summers.

63
— Me alegra muitíssimo que vossa senhoria tenha
melhorado. Há muito que espero te oferecer meus
parabéns.

— Que brincadeira é essa, Summers? Não é uma


boa hora para piadas.

— Falo sério — respondeu ele. — Faz seis


semanas que o Lorde Southerton faleceu. Não
informamos você antes com receio de atrapalhar
sua recuperação.

Lorde Southerton ! Um dos homens maiores


magnatas da Inglaterra ! Eu não podia crer em
meus ouvidos. E então subitamente pensei no
tempo que tinha passado, e de como coincidia com
meus ferimentos.

— Então Lorde Southerton deve ter morrido quase


ao mesmo tempo que eu fui ferido ?

— A morte dele ocorreu naquele mesmo dia. —


Summers olhou sério para mim e falou — e eu
estou convencido — uma vez que ele é um sujeito
muito astuto — que ele tinha suposto a verdadeira
64
natureza do acidente. Ele fez uma pausa, como
esperando uma confidência minha, mas eu não sei
o que eu lucraria expondo tal escândalo familiar.

— Sim, é uma coincidência muito curiosa. — ele


continuou, com o mesmo olhar de quem sabia. —
Naturalmente você sabe que seu primo Everard
King é o próximo herdeiro na linha de sucessão.

Agora, se tivesse sido você no lugar dele quem


tivesse sido rasgado em pedaços por este tigre, ou
seja lá o que for, então certamente era seu primo
que tinha herdado a fortuna de Lorde Southerton
no presente momento.

— Sem dúvida alguma. — disse eu.

— Soube casualmente que o camareiro de Lorde


Southerton estava sendo pago por Everard King
para informa-lhe sobre a saúde de seu patrão. O
camareiro enviava telegramas com intervalo de
poucas horas para deixar Everard King a par das
últimas novidades de saúde de seu tio. Não é

65
estranho ele querer estar tão bem informado uma
vez que ele não é o herdeiro direto ?

— Muito estranho. — disse eu. — E agora,


Summers, traga-me as contas e um talão de
cheques novo, vamos começar a colocar as coisas
em ordem.

As ilustrações são de Sidney Edward Paget (1860


- 1908), um ilustrador britânico famoso. São
universalmente conhecidas os desenhos de
Sherlock Holmes na revista "The Strand
Magazine". Foi ele quem deu a forma ao mais
famoso dos detetives.

66
67

Você também pode gostar