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CAPRICHOS DO CORAÇÃO

The Christmas Wish

Debbie Raleigh

Londres, Século XIX

Um amor impossível
Sarah Cresswell levava uma vida tranqüila, dedicando seu tempo aos menos
afortunados... Até ser chamada para ajudar na investigação do roubo de um
valioso tesouro da família de Oliver Spense, o conde Chance. O ar de
superioridade e a arrogância do conde levam Sarah à determinação de provar
sua capacidade, encontrando o ladrão e as jóias. No entanto, ao conduzir lorde
Chance pelo submundo de Londres, Sarah percebe que a hostilidade pouco a
pouco dá lugar a outro sentimento; inteiramente oposto. Na verdade, Sarah
descobre que está apaixonada por Oliver! Mas é um amor impossível, sendo ela
filha de quem é... A menos que o mais improvável e inesperado dos milagres
aconteça...
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Série Malvado Dândi


1) Caprichos do Coração – The Christmas Wish (Julia Históricos 1414) - Sarah
2) The Valentine Wish - Emma
3) Anjo rebelde – The Wedding Wish (Julia Históricos 1380) - Rachel

Debbie Raleigh
Suas histórias se caracterizam pelos cenários históricos vívidos,
personagens marcantes e um senso de humor, transportando o leitor a
um tempo remoto, quando galantes cavalheiros e jovens donzelas
escapavam dos salões de baile para um beijo roubado à luz do luar.

Querida leitora,
Os personagens interessantes, a atmosfera sensual entre os protagonistas e a trama inteligente
são responsáveis pelo carisma deste delicioso romance. As fãs de Debbie Raleigh vão adorar
esta história!

Leonice Pomponio Editora

Projeto Revisoras 2
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Copyright © 2001 by Debbie Raleigh


Originalmente publicado em 2001 pela Kensington Publishing Corp.

PUBLICADO SOB ACORDO COM KENSINGTON PUBLISHING CORP NY, NY - USA


Todos os direitos reservados. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com
pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência.

TÍTULO ORIGINAL: The Christmas Wish

EDITORA Leonice Pomponio


ASSISTENTE EDITORIAL Patrícia Chaves
EDIÇÃO/TEXTO
Tradução: Vânia Canto Buchala
Copidesque: Roberto Pellegrino
Revisão: Giacomo Leone Neto

ARTE Mônica Maldonado


ILUSTRAÇÃO Thomas Schliick
MARKETING/COMERCIAL Silvia Campos
PRODUÇÃO GRÁFICA Sônia Sassi
PAGINAÇÃO Dany Editora Ltda.

© 2006 Editora Nova Cultural Ltda. Rua Paes Leme, 524 – 10° andar –
CEP 05424-010 - São Paulo - SP
www.novacultural.com.br
Impressão e acabamento: RR Donnelley Moore
Tel.: (55 11) 2148-3500

Projeto Revisoras 3
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Capítulo I

Como de costume, Oliver Spense, conde de Chance, encontrava-se na biblioteca


com uma caixa recém-chegada da Grécia. Poucos de seus conhecidos
contemplariam aquela última entrega de cerâmica quebrada e estátuas sem
valor com tanto respeito, mas já era sabido que, apesar de o "impecável conde"
ser incomparável em se tratando de esportes, um mestre na pista de dança e
um ás no carteado, possuía essa atração por relíquias empoeiradas. Tal gosto,
tão estranho e peculiar, era normalmente relevado, não apenas porque de certa
forma honrava sua posição social, mas também porque o conde era sensato o
bastante para não atormentar os amigos com os tediosos detalhes de seus
estudos.
Alto, musculoso, com cabelos muito negros e olhos escuros e penetrantes,
Chance pouco se importava com o que pensavam sobre sua fascinação pelo
mundo antigo. Na verdade, não dava a mínima para a opinião alheia. Não por
arrogância, mas por estar mais do que satisfeito com sua bem organizada vida.
Naquela manhã, sentia-se particularmente feliz. Um sorriso iluminava-lhe as
feições e abrandava-lhe o leve ar de superioridade. Ergueu um fragmento da
louça com cuidado, examinando-o à luz pálida do sol de novembro que banhava
a biblioteca. Logo estaria registrando suas formas no papel, mas, por enquanto,
limitava-se a imaginar os cidadãos que um dia a haviam utilizado cruzando as
ruas de Atenas.
Continuava mergulhado em imagens do passado, quando o desagradável ruído
da porta sendo aberta as desfez como por encanto. Ergueu a cabeça devagar,
tentando não deixar transparecer seu aborrecimento, enquanto o criado se
aproximava. Recostou-se na bergère, observando o mordomo estacar diante
dele e fazer uma mesura.
— Perdoe-me, milorde.
— Receio que tenha se enganado com as horas, Pate — Oliver comentou.
Nessas ocasiões, a boa educação era muito mais contundente do que a ira. Na
verdade, costumava ser seu maior trunfo.
O mordomo, criado da casa desde que chegara a Londres dez anos antes, era
um dos poucos que não se abalavam diante de seu olhar incisivo.

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— Creio que não, milorde. São precisamente dez e meia. Foi muito específico
quando disse que não deveria ser interrompido no período das oito às onze.
Chance respirou fundo. Gostava de ver certas excentricidades suas respeitadas
pela criadagem, tais como não comer pudins na hora das refeições, ver os cães
sabujos devidamente cuidados e ter as manhãs livres para se dedicar às
antiguidades. Nada muito difícil de ser atendido, ponderou, considerando-se os
hábitos extravagantes de tantos outros nobres.
— E, ainda assim, aqui está você... às dez e meia.
O semblante do mordomo não se alterou diante da repreensão.
— Sim, milorde.
— A casa está pegando fogo? Os franceses estão invadindo a Inglaterra?
Uma ponta de divertimento brilhou nos olhos azuis de Pate.
— Não que eu saiba, senhor.
— Então, imagino que o príncipe regente esteja à minha espera.
— Não o príncipe, mas o sr. Coltran.
Uma ponta de surpresa se fez notar nas feições másculas. Embora seu irmão
mais novo sempre o visitasse na elegante mansão da cidade, com mais
freqüência quando estava às voltas com cobradores, jamais se arriscara a
interromper seus estudos.
— Santo Deus! Ele está embriagado?
— Não creio, senhor. Disse apenas ser um assunto da máxima urgência.
Chance disfarçou um sorriso. Não lhe incomodava que Pate tentasse abrandar a
inconveniência do rapaz. Ben podia ser impetuoso, desajuizado, inconseqüente,
mas não duvidava de seu charme e carisma. Poucos não se deixavam encantar
por seu espírito alegre; ele inclusive. Ainda que nos últimos meses sua afeição
tivesse sido testada até o limite.
— Tudo é da máxima urgência para meu irmão — Oliver suspirou.
— Sim, milorde.
Chance tamborilou os dedos no braço da cadeira.
— Aparentemente, você também pensa que devo recebê-lo. Estou certo?
— Sim, senhor. Ele me parece um tanto incomodado.

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— E, de novo, eu seria o vilão se o obrigasse a resolver suas próprias encrencas.


Pate limpou a garganta.
— O senhor é quem manda.
— Muito bem — Chance capitulou com um suspiro. — Se eu não o receber, na
certa ele vai à procura de minha mãe que, em seguida, virá até mim reclamar da
minha falta de sensibilidade.
— Certamente, senhor.
— Mande-o entrar.
Após curvar-se com elegância, o mordomo bateu em retirada.
Nessas horas, Chance sentia muita falta do pai. Embora estivesse com apenas
vinte e um anos quando ele sucumbira à doença nos pulmões, na ocasião seu
irmão não passava dos onze e fora profundamente abalado pela perda. Não era
de admirar que a mãe deles o tivesse mimado ao extremo. A irreverência e falta
de responsabilidade de Ben eram apenas uma conseqüência de sua criação.
E tal combinação era sempre um desastre quando ele aparecia em Londres. Em
um mês, havia perdido toda a mesada nas cartas. Sem falar na fortuna que
gastava com extravagâncias e com sua declarada generosidade; como no dia em
que doara dinheiro para um mendigo que lhe contara uma história triste.
No começo, Oliver costumava usar de condescendência para com as loucuras do
irmão, pois, afinal, a maioria dos jovens ficava deslumbrada com Londres. Ele
próprio nunca havia achado graça em se embebedar ou virar a noite em meio a
jogos e apostas; daí sua esperança de que, com o tempo, Ben perdesse o gosto
por tais passatempos.
Infelizmente, isso não havia acontecido. Longe de se afastar daquela vida
desregrada, o rapaz ainda se envolvera com amizades suspeitas que o levavam
a um comportamento cada vez mais intolerável. Da última vez, Chance pagara
as dívidas de Ben, jurando que não o faria novamente. Ameaçara, inclusive,
mandá-lo de volta para o interior, caso não refreasse sua conduta.
Era óbvio, contudo, que as ameaças lhe tinham entrado por um ouvido e saído
por outro, concluiu com irritação. Talvez devesse mesmo enviá-lo de volta a
Kent. Alguns meses no campo poderiam lhe devolver parte do juízo.
Com isso em mente, Chance observou o irmão caçula entrar na biblioteca, mas
fraquejou diante da aparência do rapaz. Conforme havia dito Pate, Ben parecia
um tanto abalado. Aparentemente, dormira com aquela roupa. Trazia os cachos

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castanhos desalinhados e uma estranha palidez no rosto bonito. Mais preo-


cupante que isso era a ausência do eterno sorriso, que o fazia tão querido entre
todos os que o conheciam.
Uma leve apreensão fez o estômago de Oliver se apertar. Um dia a natureza
impetuosa de Ben ainda o meteria em uma encrenca da qual ele não conseguiria
livrá-lo. Tomara que esse dia não houvesse chegado.
Aproximando-se a passos largos da bergère, o rapaz correu os dedos pelos
cabelos revoltos.
— Chance... Graças a Deus está em casa!
— Sabe que estou sempre em casa a esta hora.
— Ah, sim. Também sei que fica zangado quando alguém interrompe os seus
estudos.
— Não tão zangado quando fico sabendo o que andou aprontando — retorquiu,
seco. — Sente-se.
Ben ignorou a poltrona de couro e preferiu remexer a gravata, num claro sinal
de que a situação era extremamente desconfortável.
— Incrível como faz as coisas parecerem ainda piores — reclamou, num
murmúrio.
— Ah, faço? — Oliver ironizou. — Até onde sei, não fiz nada mais sinistro do
que permitir que me interrompesse.
— Se não fosse tão perfeito em tudo, eu não me sentiria tão canalha.
— Que inconveniência a minha! O que deveria fazer então? Arriscar a fortuna da
família no carteado? Ou ser preso por desacato às autoridades?
Ben comprimiu os lábios bem-feitos.
— Podia ao menos discutir de vez em quando. Não é fácil conversar com um
gentleman que não faz mais do que erguer uma sobrancelha diante das
adversidades.
— Ora, ora... Que estranho perfil esse meu.
— Mais estranho ainda se considerar o tempo que passa olhando para essas
coisas emboloradas. — Ben franziu o nariz ao pousar os olhos sobre a estátua
em cima da mesa. — Mesmo assim, ainda é a sensação de Londres, meu irmão.
Não imagina que tédio é ficar ouvindo sobre suas infinitas qualidades e ver
todas as moças da cidade se aproximarem de mim só para ver se conseguem

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ser apresentadas ao "impecável conde". Até meus amigos gastam horas


tentando imitar o estilo como você usa a gravata.
Embora muitos pudessem ter se regozijado com a informação, Chance limitou-
se a estreitar o olhar.
— Parece mais grave do que imaginei a princípio. O que aconteceu desta vez?
— É que... — Ben tornou a mexer na gravata. — Receio ter gasto toda a mesada
outra vez.
A expressão de Chance não se alterou.
— Que novidade. Apesar de eu não compreender por que ainda acha que pode
viver à minha custa. Da última vez que me pediu um empréstimo, eu disse que
não me responsabilizaria mais por suas dívidas. Será que não fui bem claro?
O sangue tingiu as faces do rapaz por um instante, para fugir em seguida e
deixá-lo ainda mais pálido do que antes.
— Foi. Por isso mesmo, estou nesta situação.
Chance experimentou um segundo de ira diante do tom um tanto petulante do
irmão. Às vezes Ben agia como um garoto de cinco anos, e não como adulto.
— Está querendo me culpar por sua falta de responsabilidade? O que andou
aprontando desta vez, Ben? Está metido com agiotas?
— Antes estivesse.
— Melhor dizer de uma vez o que está havendo.
Ben finalmente largou a gravata e passou as mãos pelo rosto.
— Não é fácil explicar — murmurou, fitando o irmão com cautela. — Muito bem.
Como fiquei sem dinheiro e, como você deixou óbvio que não me ajudaria mais,
fui forçado a procurar outra pessoa.
— Quem?
— Lorde Maxwell.
Chance esperava por tudo, menos por aquilo. E por que não?, indagou uma voz
irônica dentro dele. Em Londres, a reputação de Maxwell em "tosquiar" os que
lhe deviam era pra lá de conhecida. Não imaginara, porém, que Ben pudesse ser
tão ingênuo a ponto de procurar aquele infeliz.
— Perdeu de vez o juízo? Nem um principiante se meteria nas mãos daquele
patife.

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— Era isso ou ser arrastado para a prisão de Newgate. Maxwell, porém, me


recusou ajuda, a menos que eu lhe desse uma garantia.
Chance sentiu um frio no estômago.
— Que tipo de garantia?
— Jóias da família, por exemplo.
Chance se pôs em pé, levando Ben a recuar um passo.
— Você entregou as jóias de mamãe para aquele salafrário?!
— N-não — gaguejou o rapaz, desejando estar em qualquer lugar, menos na
presença do irmão. — Não tive a oportunidade.
— Explique-se!
— Eu peguei as jóias da mamãe emprestadas.
— Emprestadas... — Chance apoiou-se na escrivaninha com ambas as mãos. —
Ou seja, roubou as jóias!
— Não, eu só as peguei enquanto não recebesse a mesada.
Chance cerrou o maxilar. Recusava-se a acreditar que Ben fosse tão idiota.
— E acha mesmo que Maxwell pretende devolvê-las — disse devagar.
Ben engoliu em seco.
— Eu ainda não as entreguei a ele. Deixei-as num cofre, mas...
— Mas?
— Elas desapareceram.
A casa na modesta periferia de Londres era como outra qualquer. Estreita, com
uma janela em arco e um jardim bem cuidado, dificilmente se revelaria como o
lar da filha do mais famoso ladrão da cidade.
Mas o que ele imaginara?, Chance indagou a si mesmo. Com certeza algo mais
de acordo com a fama do Malvado Dândi. Afinal, poucos em Londres não
estavam familiarizados com os feitos do lendário cavalheiro. Mestre do disfarce,
charmoso e inteligente, o homem circulara pela Inglaterra e pelo continente
surrupiando apenas as jóias e obras de arte mais valiosas, para depois desapa-
recer como mágica. Na verdade, quase se tornara moda perder algum objeto de
estimação para o notório criminoso. Oliver chegara até a ouvir histórias de
damas ofendidas por seus pertences não terem atraído o Malvado Dândi.

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A carreira do ladrão, contudo, chegara ao fim havia alguns meses, quando fora
desmascarado por um concorrente. Ele tinha sido, então, levado para Newgate
e, por um tempo, aguardara sua sentença na cadeia; até que escapara bem
debaixo do nariz dos guardas. Dizia-se que fugira para a Índia, a fim de se livrar
da forca imposta pela Coroa. Deixara para trás três filhas, uma das quais,
prometera lorde Scott, seria a solução para o problema com Ben.
Chance comprimiu os lábios. Já não tinha tanta certeza disso.
Embora houvesse depositado toda a confiança em seu bom amigo, não havia
como sentir o mesmo pela filha de um marginal. Não estaria fazendo um papel
mais ridículo do que o irmão dele?
Agora, três dias após saber do roubo das jóias da família, via-se diante daquela
casa. E isso porque não tinha sequer idéia de onde começar sua busca.
Com um suspiro, aproximou-se da porta. Não podia ficar na rua o dia inteiro.
Ainda assim, foi com relutância que ergueu a alça de ferro e a bateu contra a
madeira.
Foi logo atendido por um sujeito baixo e atarracado, cujo rosto trazia diversas
marcas. Chance ergueu as sobrancelhas ao reconhecer um antigo boxeador que
se aposentara alguns anos antes. Já o vira em ação por uma ou duas vezes,
portanto não havia como confundir o nariz largo e achatado, os frios olhos
azuis e o vão entre os dentes.
— Sim? — O inesperado mordomo o fitou com desconfiança.
— Gostaria de falar com a srta. Cresswell. — Oliver estendeu o cartão com
borda dourada.
O homem o estudou por um segundo antes de recuar um passo.
— Ela está à sua espera.
Conforme adentrou o hall apertado, o ex-lutador ofereceu-se para apanhar-lhe o
chapéu e a casaca. Em seguida subiu uma escadaria, fazendo um sinal para que
o conde o seguisse. Chance foi obrigado a se apressar e quase trombou com o
homem quando este estacou para abrir uma porta.
— O cavalheiro chegou — anunciou, colocando a cabeça para dentro.
— Obrigada, Watts — respondeu uma mulher lá de dentro. Abrindo espaço para
ele, Watts fez um gesto displicente.

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O cômodo era simples, porém delicadamente decorado. Chance divisou uma


bonita paisagem pela janela e um vaso que poderia ter sido da dinastia Ming.
Era tudo de muito bom gosto.
Certo de que não estava prestes a ser acossado por um bando de meliantes,
voltou-se para a filha mais velha do Malvado Dândi que o aguardava em pé, no
meio do aposento.
E parou em choque.
Tinha de haver algum engano. Diante dele, uma jovem esguia, de feições
delicadas e fartos cabelos castanhos e cacheados o fitava com dois enormes
olhos azuis. Embora trajasse um vestido rosa bem cortado, teria suspeitado se
tratar de uma simples criada se não fosse pela safira que lhe pendia de uma
corrente dourada em torno do pescoço.
Aquela era Sarah Cresswell, filha do Malvado Dândi?
Chance ainda a fitava de boca aberta, feito um lunático, quando a voz arrastada
do mordomo se interpôs em seus desconexos pensamentos.
— Se precisar, é só chamar, senhorita — alertou, com um olhar significativo na
direção dele.
— Claro.
Um breve silêncio se instalou no ambiente, enquanto o homem se afastava
devagar, tomando o cuidado de deixar a porta semiaberta. Chance apertou os
lábios. Dificilmente uma dama tão segura de si poderia precisar de socorro. Era
como se ela estivesse habituada a receber um nobre por dia. E talvez recebesse,
concluiu, com um certo desdém. Ao contrário dele, havia muitos de sua mesma
posição social dispostos a cortejar jovens de procedência duvidosa como a dela.
— Seja bem-vindo, milorde. — Sarah sorriu de leve, por fim. — Posso lhe
oferecer uma bebida? Tenho um conhaque muito bom.
Tentando recuperar a habitual compostura, Chance estreitou o olhar.
— É a srta. Cresswell?
— Parece surpreso.
— Estou... realmente.
Um brilho de malícia iluminou os olhos azuis, obrigado-o a admitir que, apesar
da péssima reputação do pai dela, Sarah Cresswell era extremamente
interessante.

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— Esperava que eu tivesse chifres e um rabo?


O rosto de Chance se fechou numa máscara. Já era hora de assumir o controle
da situação.
— Pensei que fosse a governanta — devolveu com calculada frieza.
Ela nem sequer se abalou.
— Sinto desapontá-lo. Não quer se sentar?
Chance hesitou, pensando se não deveria simplesmente bater em retirada. Mas
optou por aceitar o convite e acomodar-se na cadeira de brocado. Por causa do
amigo, lorde Scott, era melhor que agisse no mínimo com educação.
Observou com louvável paciência enquanto sua anfitriã se deslocava para uma
bancada próxima e servia o conhaque. Nem sequer se moveu quando ela
tropeçou de leve no tapete e quase derrubou a bebida em sua elegante casaca
verde-escura.
— Obrigado — murmurou, seco, aceitando o cálice. Tomando assento à sua
frente, Sarah o observou, atenta.
— Lorde Scott me contou que lhe roubaram um colar e uma tiara de brilhantes.
— Não costumo ser tão displicente com os bens da família... Ao contrário de
meu irmão caçula, Ben.
— Certamente foi um lamentável descuido — concordou ela — E as jóias
pertenciam a lady Chance, certo?
— Certo. — Oliver moveu-se de leve na cadeira, combatendo um súbito e
incômodo interesse por aquela mulher.
— Sua esposa? — Sarah indagou.
— Minha mãe. — Ele pousou o cálice na mesa lateral. — Que, aliás, ainda não
sabe do roubo das jóias.
— Deve ter muitas, se não se deu conta do sumiço de um colar e uma tiara.
— Esse conjunto, em particular, é muito valioso e raramente sai do cofre. Na
verdade, a única ocasião em que ela o usa é na festa de Natal.
Sarah Cresswell o fitou por um instante, pensativa.
— Por que não contou a ela?
— Porque minha mãe acredita que meu irmão mais novo não passa de um
garoto e se recusa a aceitar que, na verdade, ele é um adulto irresponsável.

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— Mas não vai demorar a descobrir, já que o Natal é daqui a um mês.


— Não se eu encontrar as jóias antes disso.
— E é o que quer de mim.
Chance aquiesceu.
— Lorde Scott me convenceu de que a senhorita possui certas habilidades que
serão úteis na minha busca... Infelizmente, porém, creio que estava equivocado.
Ela ergueu as sobrancelhas bem-feitas.
— Chegou a essa conclusão depois de cinco minutos de conversa?
— Sim.
— Posso perguntar por quê?
— Porque imagino que seja mais madura e experiente do que eu imaginava.
— Não compreendo o que a minha idade tem a ver com a situação.
Chance comprimiu os lábios. Sarah Cresswell havia entendido da pior forma.
Para tanto, bastaria ter dito que esperava encontrar uma moça impudica que se
harmonizava com a escória da sociedade londrina.
— Acho que me expressei mal. Quis dizer apenas que a tarefa pode ser um
tanto perigosa para alguém como a senhorita.
— Se é assim, veio até a pessoa certa — informou ela, com firmeza.
Chance piscou diante da audácia. Tinha de admitir que jamais conhecera uma
mulher como Sarah Cresswell.
— Acha mesmo que é capaz de lidar com o perigo melhor do que eu?
— Claro que sou.
Ele deixou escapar uma risada seca, e os olhos dela se estreitaram.
— Já percebeu, lorde Chance, que possui uma estranha tendência a subestimar
as pessoas?
Mas que mulherzinha insolente! Por um segundo, Oliver ficou em dúvida se ria
ou se lhe dizia umas boas verdades.
— Se está insinuando que me deixo enganar com facilidade, srta. Cresswell —
replicou, mordaz —, ainda está para nascer o gatuno que vai me fazer de idiota.

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— Com certeza. — O brilho nos olhos profundamente azuis tornou-se mais


intenso à medida que, devagar, ela abria a mão delicada para expor um alfinete
de gravata contendo um brilhante. — Acho que isto lhe pertence.
Chance fitou o valioso objeto, totalmente desconcertado. A infeliz devia tê-lo
surrupiado enquanto lhe entregava o conhaque, embora com tanta habilidade
que ele nem sequer notara seu intento!
— Santo Deus, srta. Cresswell! Costuma roubar as visitas com tanto
descaramento?
Sarah permaneceu inabalável.
— Só estava querendo provar meu ponto de vista.
— E que ponto de vista seria esse?
— Que a sua arrogância pode lhe garantir sucesso na sociedade, mas de nada
lhe servirá se pretende ir atrás de um ladrão profissional — explicou ela, com
uma calma irritante. — Se deseja mesmo ter seus brilhantes de volta, terá de
engolir essa sua soberba e admitir que precisa da minha ajuda.
Por um breve instante, Oliver fulminou-a com o olhar, ultrajado. Ninguém falava
com o conde de Chance daquela maneira! Então, inesperadamente, sentiu uma
ponta de admiração. Sarah Cresswell era, no mínimo, intrigante. E estava certa
em uma coisa: ele realmente precisava de ajuda.
— Muito bem, srta. Cresswell. Conseguiu me convencer.
Sarah nunca desejara conhecer lorde Chance. Apesar de seu restrito círculo
social, já tinha ouvido falar do "impecável conde". Quem não tinha? Seu menor
movimento era motivo de comoção na sociedade londrina; suas roupas,
descritas em detalhes, e suas discretas amantes, invejadas. Já esperava,
portanto, que ele fosse um arrogante; e nisso estivera certa. No momento em
que o conde pisara ali, havia lhe lançado um olhar de reprovação. Nem mesmo a
surpresa por ela não ser a mulherzinha vulgar que ele devia ter imaginado tinha
abrandado a ironia na voz profunda ou seu ar de superioridade. Por isso, Sarah
não resistira à tentação de usar seu velho truque.
E agora era como se Chance descesse de seu pedestal e lhe estendesse a mão,
clamando por ajuda!
Ela comprimiu os lábios. Droga! Por que se deixara convencer por lorde Scott a
ajudar aquele presunçoso?

Projeto Revisoras 14
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Porque jamais recusaria um pedido de lorde Scott, respondeu-lhe uma voz


interior. Afinal, devia muito ao amigo.
Agora precisava suportar aquele almofadinha que a fitava como se Sarah fosse
um espinho em seus bem engraxados sapatos!
Muito bem. Podia sentir-se na obrigação de ajudá-lo, mas não precisava se
desculpar por ser filha do Malvado Dândi. Tampouco pretendia se deixar
intimidar.
Entrelaçou as mãos sobre o colo e forçou-se a encarar os olhos escuros.
Inquieta, sentiu um aperto no estômago. O mesmo de quando ele entrara na
sala.
Ergueu o queixo de leve, num desafio. Iria se concentrar apenas nos brilhantes
de Chance e dar um jeito de encontrá-los. Quanto antes, melhor.
— Preciso saber mais detalhes do que aconteceu — anunciou, seca.
De maneira concisa, Oliver revelou os problemas com o irmão e a maneira como
as jóias haviam desaparecido do cofre.
Sarah escutou em silêncio, notando, perspicaz, detalhes que o conde
convenientemente omitia: como o fato de o rapaz ter preferido se arriscar com
um escroque a pedir ajuda a ele. Aquilo só podia significar uma coisa: ou lorde
Chance era um sovina, ou se recusara a socorrer o irmão por alguma razão.
Imaginava que fosse pelo segundo motivo, já que o conde agora se sujeitava a
lhe pedir auxílio. Somente o sentimento de culpa, mesmo que inconsciente, o
levaria até sua porta. Também observou algo esquisito na história; algo que
lorde Chance obviamente não se dera conta.
— Estranho — disse, tão logo ele terminou.
— O quê?
— Mais alguma coisa foi roubada?
— Não creio. Por quê?
— Se alguém desejava roubar as jóias de sua mãe, por que não o fez quando
estavam no cofre dela? — indagou, com irrefutável lógica. — Afinal de contas,
lady Chance deve possuir outras de enorme valor. E como o ladrão sabia que
estavam com seu irmão justamente naquela noite?
O silêncio se instalou entre eles mais uma vez, enquanto Chance considerava a
questão.

Projeto Revisoras 15
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— Talvez tenha sido apenas uma infeliz coincidência. O desgraçado pode ter
arrombado o cofre sem nada de especial em vista.
Sarah negou com a cabeça. Anos vivendo às voltas com os ladrões mais
audaciosos e inteligentes lhe permitiam analisar qualquer roubo sob o ponto de
vista deles, e não da vítima.
— Se fosse assim, teria levado também a prata da casa ou as economias de seu
irmão. Não perderia tempo abrindo o cofre. Só o fato de ter conseguido se
esquivar dos criados e fazer o serviço sem ser notado implica um plano bem
elaborado e uma certa habilidade. Alguém teria motivos para imaginar que seu
irmão possuía algo de muito valor?
— Não. — Chance esfregou a testa, parecendo repentinamente cansado. — Na
verdade, meu irmão é famoso por nunca ter um tostão.
Era do que Sarah suspeitava.
— Então, só mesmo um tolo escolheria entrar na casa dele. A menos que
soubesse que seu irmão estava com os brilhantes.
— Sim — concordou Chance, a contragosto, seguindo a lógica do raciocínio.
— Quem poderia saber que seu irmão os havia pegado?
— Maxwell — respondeu Oliver, sem hesitação.
Sarah não pôde evitar um leve sorriso. Era óbvio que o conde desejava que o
notório lorde Maxwell fosse o culpado. Já tinha ouvido falar no homem. Sem
dúvida, ele poderia achacar um jovem inexperiente ou fazer chantagem com
uma vítima desavisada; mas dificilmente se esgueiraria noite adentro
arrombando cofres.
— E quanto aos criados de seu irmão?
— É improvável que Ben tenha comentado seu plano sórdido com a criadagem.
— Não deveria subestimar a criadagem. Costumam saber tudo o que se passa
dentro de uma casa.
— Sua perspicácia é impressionante.
— Ele costuma fazer confidências aos amigos? — indagou Sarah.
— Isso eu não sei.
— Então, precisamos descobrir. — Curvando-se sobre a mesa de centro, ela
apanhou os papéis e a pena que preparara com antecedência. Com caligrafia

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firme, começou a listar todos os prováveis suspeitos de saberem da existência


das jóias. — Também precisamos considerar os criados de sua mãe. Seria a
oportunidade perfeita para roubarem os brilhantes sem que a suspeita recaísse
sobre eles.
— Será uma lista e tanto.
— É só o começo, milorde. — Sarah pousou a pena. Não era necessário ser
muito inteligente para perceber que lorde Chance preferia permanecer no
comando e reagia com sarcasmo cada vez que ela tomava a dianteira. — Antes,
porém, precisamos chegar a um acordo.
— Qual? — A voz profunda soou neutra, porém Sarah não deixou escapar uma
ponta de divertimento.
— O senhor sabe quem eu sou. Portanto sabe que minha vida não foi
exatamente... tradicional.
— Sei.
— Se quer que eu o ajude, melhor não questionar meus métodos e nem tentar
interferir.
— Está me assustando, srta. Cresswell. — Ele esticou as pernas longas e cruzou
as botinas. — Pretende agir de alguma forma vil?
Sarah abafou um sorriso. Ele podia ser irritante, insuportável, arrogante ao
extremo, mas não podia negar que tinha sua porção de charme.
— De modo algum — respondeu, com uma calma estudada. — Apenas serei
obrigada a circular por lugares em que, com certeza, o senhor jamais pôs os
pés. E, talvez, me fazer passar por quem não sou.
O olhar de Oliver percorreu as feições delicadas, detendo-se por um instante
nos lábios deliciosamente cheios.
— Por que concordou em me ajudar? Despreparada para a pergunta, Sarah
piscou.
— Porque lorde Scott me pediu.
— E sempre faz o que ele pede?
Ela enrijeceu. Não tinha intenção de discutir com ninguém seu relacionamento
com lorde Scott. Era um dos poucos segredos que possuía e que pretendia
manter como tal.
— Isso não é da sua conta — respondeu.

Projeto Revisoras 17
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Os olhos escuros se estreitaram diante da rispidez, porém o semblante moreno


logo suavizou, como se o conde soubesse ser inútil insistir no assunto. Nem por
um momento Sarah pensou que ele se contentara com a resposta. Era apenas
sábio demais para desafiá-la mais do que isso... por enquanto.
— Muito bem. — Chance a encarou. — Também tenho algumas exigências a
fazer.
Ela não se surpreendeu dessa vez. Aquela seria uma infindável batalha pelo
poder.
— E quais são?
— Antes de mais nada, quero participar de todas as etapas dessa investigação.
Sarah franziu o cenho de leve. Não pretendia trombar com o homem todo o
tempo. Já seria difícil ser obrigada a prestar contas vez ou outra.
— Receio que isso não seja possível.
— Desculpe-me, mas não abrirei mão desse detalhe.
— Não confia em mim?
Significativamente, ele olhou para o alfinete de gravata sobre a mesa.
Dessa vez, ela foi incapaz de segurar uma risada.
— Touché!
Os olhos de Oliver brilharam diante da inesperada reação.
— Esteja certa de que apesar de os brilhantes serem muito valiosos, minha
maior preocupação é poupar minha mãe de toda essa sujeira. Farei o que for
necessário para assegurar sua paz de espírito.
Sarah não duvidava disso. Era óbvio que ele adorava a mãe.
— Muito tocante.
O conde ignorou o sarcasmo.
— Preciso dessas jóias antes do Natal.
— Farei tudo o que estiver ao meu alcance.
— Eu também. — Ergueu-se e foi até ela. — Voltarei amanhã.
Os olhos azuis se arregalaram. Não tinha concordado que ele se envolvesse na
investigação. Não se imaginava trabalhando com Chance a seu lado,
interferindo em cada detalhe.

Projeto Revisoras 18
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A expressão nos olhos escuros, todavia, a deteve. Ele a desafiava abertamente a


rejeitar sua presença, como se Sarah pudesse duvidar das próprias habilidades.
Por um instante, sentiu o sangue ferver nas veias. Podia não se sentir de todo
satisfeita com o ambiente em que crescera, mas de uma coisa tinha certeza: sua
criação incomum havia lhe proporcionado todas as habilidades necessárias para
reaver aqueles brilhantes. Iria mostrar ao cavalheiro que podia ser mais
eficiente do que qualquer ladrão de jóias.
— Combinado... — Sarah suspirou, por fim.
O primeiro sorriso genuíno do conde suavizou-lhe as feições bem-feitas.
Fitando-a nos olhos, ele tomou-lhe a mão e a levou aos lábios.
— É uma mulher extraordinária, srta. Cresswell.
Ela engoliu em seco.
Antes que Sarah pudesse se recuperar do inesperado elogio, Oliver se afastou e
deixou a casa.
Sentindo a pele arder onde ele a beijara, esfregou-a, inconscientemente,
pensando que lorde Scott lhe devia algumas explicações. Com certeza
desconfiara que Chance era o tipo de homem capaz de tirá-la do sério.
Mas, talvez, houvesse sido exatamente essa a intenção de Scott. Quantas vezes
não a recriminara por ser independente demais para os seus vinte e cinco anos?
Vivia dizendo que a competência dela assustava qualquer pretendente.
Sarah já estava farta daquela história. Que importava se sua auto-suficiência ou
seu parentesco com o Malvado Dândi afugentava os homens? Estava mais do
que feliz solteira. Afinal, tinha a própria casa, o trabalho numa escola da
periferia e, claro, a amizade das irmãs mais novas, Emma e Rachel. Não lhe
faltava nada na vida; muito menos um conde metido a besta como lorde Chance
no caminho.
Com um movimento brusco, pôs-se em pé. Mas o que estava pensando? Não
ficaria às voltas com Chance por muito tempo. Tão logo localizasse os tais
brilhantes, não poria mais os olhos naquele rosto moreno. O que seria um
prazer!
Ignorando o alfinete de ouro que ele esquecera sobre a mesa, saiu da sala. Com
certeza tinha mais o que fazer, além de ficar ruminando a respeito daquele
arrogante.

Projeto Revisoras 19
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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Virou-se para a escadaria que levava a seus aposentos, mas parou, de repente,
ao ouvir um assobio vindo da pequena biblioteca. Mais curiosa do que
assustada, atravessou o hall e entrou no cômodo estreito, ladeado por estantes,
no fim do qual havia uma elegante escrivaninha em estilo Luís XIV.
— Watts? — Sarah chamou, esperando que o mordomo, sempre atento,
estivesse por perto caso precisasse de seu potente soco para se defender.
Mas não foi Watts quem saiu de trás da cortina de veludo azul.
Sarah estacou, em choque. Ele havia mudado desde a última vez em que o
encontrara. Sua figura alta parecia mais magra, os cabelos castanhos pincelados
de branco estavam mais compridos e amarrados na nuca com uma fita. Sem
falar no bigode cheio e no tapa-olho.
Para ela, contudo, o Malvado Dândi era inconfundível.
— Papai!
— Bom dia, minha querida — ele a saudou fazendo uma reverência.
— O que faz aqui?
Embora não fosse exatamente um homem bonito, Solomon Cresswell era dono
de um ar elegante e jovial que sempre o fizera bem-vindo nos altos círculos de
Londres. Trajando uma casaca listrada, camisa branca de punhos com babados
e calçando sapatos de fivela, parecia mais um autêntico dândi do que um
criminoso fugitivo.
— Você acha que eu abandonaria minhas amadas filhas? — comentou, com um
brilho divertido no olho verde que ela conseguia enxergar.
Sarah relaxou de leve, para em seguida ser tomada por uma onda de
indignação. Para um adulto daquela idade, às vezes o pai dela agia como um
moleque!
— Perdeu o juízo de vez? Se for capturado, como vamos...
— Relaxe! — Solomon abriu uma caixinha incrustada com esmeraldas e cheirou
uma pitada de rapé. — Esses imbecis não são páreo para o Malvado Dândi.
— Não precisam ser páreo para ninguém se você vai até eles! Pensei que
estivesse na Índia.
— Francamente... Tudo que fiz foi deixar algumas pistas falsas para poder
circular em paz por aqui mesmo. Melhor permanecer em Newgate do que ir
para a Índia!

Projeto Revisoras 20
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Uma pontada de apreensão doeu no peito de Sarah quando o pai mencionou a


famosa prisão. Às vezes ainda acordava à noite, depois de sonhar que ele
continuava confinado naquele lugar horrível.
— Por que se arrisca tanto?
— Sarah! Pensei que fosse ficar feliz em me ver!
— Não quando Londres inteira está pronta para passar uma corda pelo seu
pescoço!
Ele soltou uma risada gostosa.
— Direta como sempre, não, querida?
— Prática, você quer dizer.
Solomon aproximou-se com um sorriso e tocou a safira que pendia do pescoço
da filha.
— Está usando o colar que eu lhe dei. Que bom!
A jóia chegara logo após ele ter desaparecido, junto com um pingente de
esmeralda para Emma e outro de rubi para Rachel.
— Ficou lindo em você, como eu imaginava... embora não possa dizer o mesmo
deste vestido. Sinceramente, meu doce, podia ficar muito mais vistosa se não se
vestisse como uma solteirona!
Sarah não se ofendeu com a observação. Ele passara a vida tentando fazer com
que ela e as irmãs seguissem o mesmo estilo de vida empolado que escolhera
para si. Ela e Emma não tinham aderido à idéia, preferindo uma vida mais
pacata e discreta. Já Rachel herdara o espírito exibicionista do pai; além de seu
charme, o que já lhe tirara o sono mais de uma vez.
— Eu sou uma solteirona, papai.
— Bobagem! Simplesmente ainda não encontrou um cavalheiro capaz de lhe
roubar o coração. — Um brilho de malícia cintilou no olhar dele. — Se existe
alguém nesta cidade digno de minha filha, é o "impecável conde".
Sarah fez de tudo para ocultar o sangue que sentiu lhe subir à face. Santo Deus,
o que havia em lorde Chance que a abalava tanto?
— Chance veio aqui apenas para pedir ajuda — retorquiu, irritada.
— E por que ele viria em busca de ajuda?

Projeto Revisoras 21
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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— Não importa agora, papai. Estávamos falando da necessidade de você voltar


para o campo!
— Bah! Não tenho estômago para esses lugares bucólicos. — Tornou a encará-
la, como se soubesse que ela escondia alguma coisa. — Além do que, tenho a
impressão de que vai precisar de mim.
— Por que se arrisca tanto? — Sarah indagou, exasperada.
— O que é a vida sem um pouco de risco?
— Um sossego!
— Bobagem. Até porque estou disfarçado. Foi a vez de ela rir, sem vontade.
— Do quê?
Ele tocou o tapa-olho.
— Serei seu tio Pierre, recém-chegado da França. — Tornou a fazer uma mesura.
— Enchante, ma enfant.
Sarah fechou os olhos por um segundo e suspirou. Embora poucos pudessem
realmente identificá-lo, esses poucos não se deixem ludibriar por um tapa-olho
e um bigode. Era ridículo.
— Só pode estar brincando.
— Claro que não.
— Ninguém vai acreditar nessa história, papai!
Ele levou a mão ao coração.
— Está subestimando meu desempenho, filha. Sabe que posso levar as pessoas
acreditarem no que eu quiser. Foi mesmo uma pena eu não ter feito carreira no
teatro.
— Nunca duvidei das suas habilidades teatrais, mas a vida não é nenhum palco.
— Não se preocupe, minha querida. Estarei perfeitamente seguro. — De
repente, a expressão de Solomon se transformou. — Agora me conte sobre
lorde Chance.
Sarah suspirou, pesadamente. Não havia como enganá-lo.
— Alguém roubou as jóias da mãe dele, e o conde quer recuperá-las.
O Malvado Dândi soltou um assobio.
— Os brilhantes dos Chances? Ora, ora...

Projeto Revisoras 22
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— Nem pense nisso, papai!


— No que? Só estou admirado, filha. Sabe que me aposentei.
— Conversa!
Mais uma vez a risada de Solomon ecoou pela biblioteca.
— Talvez. Mas saiba que a cilada que me armaram me fez ver que já estou
velho para esse tipo de serviço. Agora, tudo o que almejo é ser um porto-seguro
para as minhas amadas filhas.
— Que lindo... — Sarah não se deixou convencer. O pai era um trapaceiro por
natureza.
— Vejo que terei de lhe dar uma prova. — Ele não se abalou com o sarcasmo. —
Pois bem, para começar, vou ajudá-la com o caso do conde.
Os olhos dela se arregalaram, incrédulos. O Malvado Dândi e lorde Chance
juntos? Só de pensar já sentia arrepios.
— De jeito nenhum!
— Quem melhor do que eu para encontrar um ladrão de jóias?
— Sou perfeitamente capaz de fazer isso sozinha!
Sarah praguejou baixinho quando Watts entrou, de repente, não demonstrando
surpresa alguma com a presença do ex-patrão.
— Perdoe-me a interrupção, senhorita, mas a sra. Surton está aqui para vê-la e
se recusa a ir embora.
— Ah... droga!
A sra. Surton era a patrona da escola que Sarah fundara, e sempre um poço de
problemas. Não passava um só dia sem atormentá-la com alguma tarefa
desagradável ou reclamação. Via de regra, Sarah aceitava as queixas com
estudada diplomacia, já que a mulher costumava doar generosas quantias para
a instituição, além de obrigar outras senhoras da sociedade a seguir seu exem-
plo. Era o preço que precisava pagar para manter a escola em funcionamento.
No momento, contudo, não estava com a menor paciência para enfrentá-la.
— Vou ter de atendê-la — capitulou, mal-humorada, antes de erguer um dedo
para o pai. — Você fica aqui!
— Mas, querida...
— Aqui! — Com um olhar ameaçador, Sarah virou-se e deixou a biblioteca.

Projeto Revisoras 23
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Que dia! Já fora obrigada a suportar a arrogância do conde, a inconseqüência do


pai e, agora, uma matrona intratável. Talvez fosse ela quem devesse ir para o
campo, tirar umas férias, pensou, deprimida.

Capítulo II

A sra. Surton era uma mulher alta, magra e com uma maneira rude de se
expressar. Diziam que seu marido, muito tímido, morrera precocemente devido
ao veneno que ela destilava; e Sarah não duvidava disso.
Por outro lado, apesar de todos os defeitos da mulher, não podia negar que a
escola progredira graças à sua generosidade. De um exíguo celeiro com cinco
alunos, haviam se mudado para um armazém reformado que abrigava agora
trinta estudantes e três professoras, assim como uma cozinha na qual eram
servidas refeições básicas às crianças carentes. Somente por isso, Sarah se
dispusera a suportar os comentários ácidos e a infindável grosseria da patrona,
o que não facilitava de todo a obrigação de recebê-la quase diariamente.
Ao entrar no vestíbulo, viu-a bufar com impaciência. Como de costume, a sra.
Surton vestia-se de negro e trazia os cabelos escuros presos num coque.
— Sra. Surton...
Os lábios finos da mulher praticamente desapareceram de tão apertados.
— Sabia que aquele rufião do seu mordomo tentou me dispensar?
Sarah reprimiu um sorriso. Watts já havia nocauteado mais de cinqüenta
desafiantes. Salvara seu pai em inúmeras ocasiões e agora atuava como um
verdadeiro anjo da guarda para ela. Mas nem mesmo ele era páreo para a sra.
Surton.
— Perdão. Eu estava com enxaqueca e disse a Watts que não receberia ninguém.
Mas, no que posso ajudá-la? — perguntou Sarah, querendo se livrar logo da
visita. Já era difícil receber a mulher normalmente. Com o pai dela na casa,
então, era um martírio.
— Vim apenas para informá-la que lady Milhouse concordou em apadrinhar a
escola.

Projeto Revisoras 24
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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Dessa vez Sarah não precisou camuflar as próprias emoções. Lady Milhouse não
era apenas extremamente rica, como também respeitada o bastante nos
círculos sociais para ser considerada um exemplo. O fato de patrocinar a
instituição logo traria outras doações.
— Isso é muito bom!
— Sim. E significa que poderemos aceitar pelo menos mais cinco alunos.
— Estarão conosco até o fim desta semana — prometeu Sarah, entusiasmada.
— Também poderemos providenciar mais alguns casacos e botinas para as
crianças. Se soubermos economizar, claro.
— Claro.
— Sendo assim, amanhã eu...
Ao ver o olhar da mulher desviar-se além dela, Sarah voltou-se devagar e sentiu
um aperto no estômago ao avistar o pai descendo as escadas com aquele
sorriso que conhecia tão bem. O Malvado Dândi atacava outra vez, e não havia
nada que ela pudesse fazer.
— Ma petite... — disse Solomon com voz arrastada e com um forte sotaque
francês. — Por que estão aí, paradas no vestíbulo? Com certeza a senhora ficaria
mais à vontade na sala.
Sarah lançou-lhe um olhar fulminante.
— A sra. Surton já está de saída.
— Antes de sermos apresentados? — protestou Solomon, cortês. — Mon Dieu...
— Voltou-se para a mulher e se curvou com um floreio. — Seu criado, monsieur
Valmere, tio da srta. Cresswell e recém-chegado de Paris.
Sarah prendeu a respiração, esperando que, a qualquer momento, a outra fosse
soltar um grito ao reconhecer o Malvado Dândi, ou, no mínimo, manifestar seu
desgosto por estar sendo obrigada interagir com mais um membro da família
Cresswell. Ao contrário, o rosto anguloso da viúva iluminou-se como o de uma
colegial diante das atenções do desconhecido francês.
— Ora, eu não sabia que a senhorita possuía parentes na França — comentou
com simpatia.
— Somente porque fui casado com a irmã do pai dela.
— Compreendo. — A mulher parecia totalmente esquecida da presença de
Sarah.

Projeto Revisoras 25
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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— Infelizmente, minha amada esposa faleceu há alguns anos. Para amainar


minha solidão, vim em busca da companhia de minha querida sobrinha. Teria
vindo antes se soubesse que ela possuía uma amiga tão encantadora.
Sarah revirou os olhos ao ouvir a sra. Surton soltar um gritinho de puro prazer.
Até o momento, nem sequer imaginava que a mulher fosse capaz de fazê-lo.
— Tio Pierre... — falou por entre os dentes. — Eu e a sra. Surton estamos no
meio de uma conversa de suma importância.
— Imagine! — A viúva descartou a hipótese com um gesto, sem tirar os olhos
do pai dela.
Sarah respirou fundo. Já tinha perdido a conta de quantas vezes testemunhara
aquela reação diante do Malvado Dândi. Mas jamais imaginara que a sra. Surton
se incluiria no rol de admiradoras de Solomon Cresswell! Parecia até não notar o
bigode exagerado e o ridículo tapa-olho.
— Podemos deixar nossa conversa para mais tarde — ouviu-a completar.
— Então, permita-me acompanhá-la até o salão. — Com um movimento
estudado, Solomon pousou a mão da mulher em seu braço e a guiou escadaria
acima. — Ah... Watts! Traga-nos o melhor conhaque da casa, por gentileza.
— Agora mesmo, monsieur.
Sem mover um músculo da face rude, Watts desceu as escadas, parando
somente ao lado de Sarah, como se esperasse por mais instruções.
— Ninguém mais vai precisar armar ciladas para o Dândi — ela murmurou por
entre os dentes. — Eu mesma me encarregarei de estrangulá-lo!

Após deixar a residência da srta. Cresswell, lorde Chance teve um dia cheio.
Mesmo em meio a uma palestra sobre artefatos egípcios, contudo, a imagem da
filha do Malvado Dândi não lhe saía da cabeça.
Não era de admirar, pensou. A moça era mesmo a mulher mais incomum que já
conhecera. Em nenhum momento havia corado ou ficado desconcertada com
seus olhares, além de argumentar e opinar com segurança sobre cada ponto. Na
verdade, nem por um segundo ele tivera o domínio da conversa... o que não era
normal.
Na manhã seguinte, Oliver levantou-se tomado por uma estranha ansiedade.

Projeto Revisoras 26
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Ainda era cedo quando galgou os degraus até a porta da casa modesta,
surpreendendo-se ao encontrá-la aberta.
— Bom dia, Watts — saudou, entregando-lhe a casaca e o chapéu.
— Bom dia, milorde. A srta. Cresswell o aguarda no salão.
— Obrigado.
Subiu a escadaria, bateu de leve na porta e entrou, esperando encontrá-la outra
vez no sofá. Em vez disso, deparou-se com um jovem vestido com o uniforme
de cavalariço dos Chance.
O conde franziu o cenho sem entender nada. Então, com uma exclamação de
surpresa, notou que, por debaixo da roupa e peruca pesadas, estava nada mais,
nada menos do que a própria Sarah Cresswell.
— Santo Deus!
Uma ponta de divertimento cintilou nos olhos azuis.
— Bem-vindo, milorde.
— Onde conseguiu esse uniforme?
— Nada de perguntas, por favor.
Chance piscou, completamente desconcertado. Que a srta. Cresswell não fosse
lá muito convencional, isso ele já esperava. Mas jamais por aquilo. Não sabia se
ficava furioso ou lhe admirava a audácia.
No fim, foi incapaz de reprimir um sorriso.
— Posso ao menos indagar por que está vestida como o meu cavalariço?
— Só preciso que nos leve até a casa de seu irmão, para que possamos montar
uma lista completa de todos os que sabiam da existência dos brilhantes.
— O que não exige que se vista assim — ele insistiu, certo de que havia algo
mais por trás do disfarce.
Com um suspiro, Sarah se moveu com o andar largado de um rapazola. Chance
a observou, abismado. Se não soubesse que por debaixo daquelas roupas havia
uma linda mulher, ele próprio teria se deixado enganar pelos trejeitos.
— Na hora em que o senhor estiver distraindo seu irmão e os criados
particulares dele, irei até a cozinha para checar o resto da criadagem. Enquanto
isso, Lucky vai revistar os aposentos deles para procurar os brilhantes.
— Lucky?

Projeto Revisoras 27
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Sem aviso, um garoto magricela, com seus catorze ou quinze anos, de cabelos
negros e olhos escuros, surgiu na sala e se postou ao lado dela.
Chance o fitou, surpreso. Nem sequer notara a presença do menino!
— Meu pai o ganhou numa aposta — contou Sarah, rindo. — Não fique tão
chocado. O antigo patrão de Lucky era um bruto, e o garoto ficou mais do que
feliz em vir trabalhar para nós.
Chance perguntou-se se ela não era meio maluca.
— Está imaginando que um menino seria capaz dar uma busca na casa de meu
irmão?
Sarah passou um braço pelos ombros do garoto.
— Claro que é. Lucky é extremamente hábil em passar despercebido, como
pôde notar.
Chance observou o garoto com atenção. Não podia negar que havia um ar de
inteligência nas feições infantis. Isso, contudo, não diminuía sua preocupação
por envolver um menor num plano tão arriscado.
— E se ele for apanhado?
— Perdoe-me, sir, mas ninguém me vê, a menos que eu queira — retrucou
Lucky.
— É verdade — corroborou Sarah, com um sorriso. — De que outra forma eu
teria conseguido este uniforme?
Oliver sentiu-se enrijecer. A srta. Cresswell ousara enviar o moleque até a sua
casa? Aquilo era o cúmulo da impertinência, concluiu, para depois perceber que
seu senso de humor sobrepunha-se à sua irritação inicial. Não gostava de ser
passado para trás, mas tinha de admitir: aqueles dois eram mais espertos do
que imaginara.
— Espero que ele não tenha se apossado de mais nenhum pertence meu.
— Não, senhor! — protestou Lucky, indignado.
— Isso não foi muito delicado, milorde. — Sarah lançou-lhe um olhar de
reprovação. — Lucky é um rapaz de bem e apenas seguiu minhas instruções.
— Não lhe ocorreu que bastava ter me pedido o uniforme?
Um brilho de divertimento voltou a iluminar os olhos azuis.

Projeto Revisoras 28
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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— Claro que sim. Mas também me ocorreu que o senhor, convenientemente,


poderia esquecer de trazê-lo para mim esta manhã.
Chance comprimiu os lábios. Mais uma vez ela estava certa. Jamais teria
concordado com aquela idéia.
— Que péssima opinião tem a meu respeito — limitou-se a dizer, com forçada
indiferença.
— Então, não faz objeções ao meu plano?
— Várias. Mas algo me diz que refutá-lo só me faria gastar saliva.
— Verdade.
Embora localizada numa área nobre da cidade, a casa de Ben não era muito
grande e mobiliada com modéstia. Além de não ter interesse no assunto, o
rapaz não contava com muitos recursos para transformá-la numa atração como
a residência do irmão mais velho. Ainda assim, para a moradia de um jovem, o
lugar até que era bastante agradável e organizado.
Sentado na biblioteca, lorde Oliver Chance observou o irmão caminhar de um
lado para outro. Tentou se concentrar na conversa, embora o fato de a srta.
Cresswell estar com Lucky pela casa não tornara fácil a tarefa. Definitivamente,
um homem da sua posição não podia estar habituado com aquele tipo de
estratégia, refletiu, inquieto. Ainda assim, precisava admitir: era um plano
arriscado, mas bastante criativo.
Lembrando-se do próprio papel por ali, tamborilou os dedos sobre o braço da
cadeira.
— Pense, Ben — insistiu com voz grave.
— Estou pensando! — O rapaz parou por um momento, retomando os passos
nervosos em seguida. — Eu e Goldie fomos até a casa de mamãe apanhar as
jóias...
— Nenhum criado os viu?
— Não, Goldie estava vigiando. Depois viemos para cá e pusemos os brilhantes
no cofre... Ah!
— O que foi?
De cenho franzido, Ben tentava recordar os fatos.
— Estávamos guardando as jóias quando Moreland e Fritz nos chamaram.

Projeto Revisoras 29
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Chance recordava-se vagamente de ter sido apresentado aos dois rapazes. Pelo
pouco que sabia, ambos eram do mesmo estilo de lorde Goldmar, ou Goldie,
como Ben o chamava. Todos, sem exceção, faziam o tipo estouvado e de
inteligência duvidosa. Também eram famosos por viver muito além das próprias
posses.
— Eles também viram os brilhantes?
— Não. Fui distraí-los enquanto Goldie trancava o cofre... que também chequei
antes de dormir e continuava trancado.
Chance comprimiu os lábios. O melhor que podia fazer era ficar de olho
naqueles amigos do irmão.
— E não contou a mais ninguém que estava de posse das jóias? — insistiu com
certa irritação.
Um leve desconforto transformou o semblante bonito do rapaz.
— Devo ter comentado alguma coisa com Flora.
— Sua namorada?
— Ela não roubou nada, se é o que está tentando dizer! — retorquiu Ben, na
defensiva. — Não ouse dizer uma palavra contra Flora!
Chance estreitou o olhar. Sem dúvida, precisava incluir o nome da moça na
crescente lista de suspeitos.
— E quanto a Goldie? Será que ele não contou para ninguém?
Ben refutou a questão com desgosto.
— Meu Bom Deus, claro que não!
— Alguém roubou essas jóias, Ben — lembrou o conde com rispidez.
— Com certeza foi um maldito ladrão que entrou aqui enquanto eu dormia!
— Um ladrão que sabia que os brilhantes estavam com você.
Ben encarou o irmão, confuso. Depois negou com a cabeça.
— Nenhum amigo meu pode estar envolvido.
— Não tenho tanta certeza assim.
— Diz isso porque nunca gostou deles!

Projeto Revisoras 30
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Não gosto nem desgosto de ninguém — retrucou Chance, seco. — Mas não
pode negar que não passam de moleques fúteis, de moral duvidosa, e que não
hesitariam em se rebaixar ainda mais ao se verem numa situação difícil.
Ben empalideceu. Antes que pudesse dar voz à sua indignação, todavia, o
mordomo entrou na sala.
— Perdoe-me, sir, mas o cavalariço de lorde Chance pediu que eu o lembrasse
sobre seu compromisso daqui a meia hora.
Oliver se pôs em pé no mesmo instante. Pelo visto, Lucky concluíra sua tarefa e,
de alguma forma, avisara a srta. Cresswell.
— Obrigado — o conde agradeceu ao homem e aguardou sua retirada antes de
se voltar para o irmão: — Quero que faça uma lista de todos que podem ser
suspeitos de estar com os brilhantes. E, Ben... não se deixe enganar por gestos
de lealdade. Quero todos os nomes, entendeu?
O rosto do rapaz empalideceu ainda mais, mas ele parecia plenamente
consciente de sua delicada situação. No momento, tudo o que podia fazer era
obedecer às ordens de Oliver.
— Está bem.
Com um último olhar significativo para o irmão, Chance deixou a sala e se
dirigiu à saída. Apanhou a casaca e o chapéu com o mordomo e saiu.
Mas antes que pudesse descer os degraus, deteve-se ao avistar uma criada
aproximar-se da carruagem. Observou o andar furtivo, perguntando-se o que
ela pretendia ao parar ao lado da srta. Cresswell, que o aguardava com a porta
já aberta, como se exigia de um fiel cavalariço. Somente ao notar o olhar da
moça, deu-se conta do que ocorria. Ela havia se interessado pelo "criado" dele!
— Só um instante, Samuel! — a criada disse com voz macia. — Eu lhe trouxe um
pedaço de bolo.
Sarah corou visivelmente.
— Oh, não... obrigado — recusou, engrossando a voz, tensa.
— Ora, aceite, por favor! Por mim.
— Está bem — concedeu, apanhando o pequeno embrulho, constrangida.
— Quem sabe não nos encontramos de novo? Tenho a tarde livre na última
quarta-feira de cada mês.

Projeto Revisoras 31
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Reprimindo um sorriso ao divisar o desconforto da srta. Cresswell, Chance


subiu na carruagem. Acomodou-se no coxim aveludado, depois projetou o
corpo para fora da porta.
— Sinto interromper o idílio, Samuel, mas não pretendo apanhar um resfriado
neste frio.
Os olhos azuis o fulminaram por um instante, e Sarah bateu a porta com força
exagerada. Tão logo sentou-se ao lado do verdadeiro cavalariço, Chance jogou a
cabeça para trás e deu uma gostosa gargalhada.
Sarah apertou os lábios, irritada, enquanto a carruagem se afastava da casa.
Sentia-se uma idiota. Como poderia imaginar que o disfarce provocaria uma
situação tão constrangedora? Aquela moça devia ser maluca. E pensar que lorde
Chance testemunhara cada instante!
Respirou fundo, tentando usar de bom senso. No fim, até fora engraçado. Se os
papéis estivessem invertidos, também morreria de rir. Não que alguém pudesse
confundir a figura máscula do conde com a de uma mulher. Nem que ele
trajasse saias, admitiu a contragosto.
Seus pensamentos foram interrompidos quando Lucky surgiu na estrada.
— Pare! — Sarah ordenou ao cavalariço. Em seguida abriu a porta e se
acomodou com o garoto em frente a lorde Chance. Fitou-o, relutante, e ele
devolveu o olhar, divertido. Engolindo em seco, cruzou as mãos sobre o colo e o
encarou. — Que bom que gostou da cena, milorde.
— Foi impagável — disse ele, rindo. — Nunca vi uma paixão tão fulminante.
— Foi mesmo! — Lucky não demorou a se juntar à gozação, um sorriso maroto
iluminando-lhe a face. — Devia ter visto a boboca se engraçando para o lado da
srta. Cresswell, oferecendo bolinhos e tudo o mais.
Sarah combateu o rubor que sentiu subir à face.
— Muito engraçado.
Levando a mão ao peito, Lucky bateu os cílios:
— "Oh, Samuel, beba um pouco de chá" — imitou, com voz fina. — "E fui eu
quem fez os bolinhos!"
Lorde Chance jogou a cabeça para trás com nova gargalhada.
— É admirável a atração fatal que exerce sobre ambos os sexos, minha querida.
— Faça-me o favor! Aquela maluca deve se apaixonar até pela vassoura!

Projeto Revisoras 32
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

De súbito, o olhar do conde tornou-se mais intenso.


— Não acredita em amor à primeira vista?
— A srta. Cresswell diz que só os tolos acreditam no amor — interferiu Lucky.
O olhar de Oliver não vacilou.
— Pensei que todas as mulheres viviam ansiosas por isso. Sarah endireitou os
ombros num desafio.
— Pois está enganado, milorde. Estou muito satisfeita com minha vida de
solteira.
— Talvez porque ainda não tenha encontrado alguém digno do seu coração —
replicou ele com voz rouca.
— Verdade! — palpitou Lucky, com entusiasmo. — A srta. Cresswell não é para
qualquer um!
Chance sorriu de lado.
— Tem toda a razão.
Quase hipnotizada pelo brilho nos olhos escuros, Sarah virou a cabeça. O que
dera nela, afinal? Aquilo não passava de provocação. Se não se recompusesse
rápido, lorde Chance iria achar que era tão fútil quando a criada do irmão dele.
— Chega dessa bobagem. Encontrou alguma coisa, Lucky?
— Nada de importante. O mordomo esconde uma garrafa de conhaque, a
governanta deixa as pratas sem limpar debaixo da cama, e o lacaio faz o
mesmo com chocolate.
— Essa é boa! — resmungou Chance, balançando a cabeça.
— Nenhuma jóia? — indagou Sarah.
—Não. E nada indica que algum deles tenha ganho muito dinheiro ultimamente.
Sarah respirou fundo, considerando a informação. Não duvidava de que Lucky
fora cuidadoso na busca. Se os brilhantes ou qualquer outro indicador de
riqueza estivessem na casa, ele fatalmente os teria localizado.
— Precisamos pensar no próximo passo — ela decidiu, ignorando o aperto que
sentiu no estômago ao lembrar que teria de continuar às voltas com o conde.
— Acho que deveríamos ir atrás de Maxwell. Para mim ele é o suspeito número
um — declarou Oliver.

Projeto Revisoras 33
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— E como pretende fazer isso? — Sarah indagou com indisfarçável cinismo.


— Lucky já provou que é capaz de descobrir se ele está com as jóias — retrucou
o conde.
— Lorde Maxwell não seria tolo o bastante para mantê-las em seu poder; ainda
mais sabendo que as suspeitas fatalmente recairiam sobre ele — ela declarou.
— Também pode tê-las vendido...
— Já comecei a investigar aqueles que poderiam ter interesse nos brilhantes. Se
alguém tentar negociar as jóias, vamos saber.
Uma vez mais, o rosto moreno do conde ganhou um ar divertido.
— Impressionante. Está sempre um passo à minha frente, srta. Cresswell. O que
sugere que façamos agora?
Sarah hesitou levemente antes de revelar seus planos.
— Acho que devemos conversar com sua mãe.
Certa de que ele não lhe permitiria se aproximar de lady Chance, ergueu as
sobrancelhas, surpresa, ao vê-lo concordar com um gesto de cabeça.
— Muito bem. — Fitou-a dos pés à cabeça. — Mas não irá até lá como meu
cavalariço.
— Por que não?
Oliver deu um sorriso travesso.
— Não quero que parta o coração das criadas da casa.
Sarah comprimiu os lábios.
— Tem uma desculpa melhor?
— Tenho — replicou ele de pronto. — Quero apresentá-la à minha mãe.
— Absurdo! Acha mesmo que ela vai permitir que eu entre lá?
— Podemos dizer que a encontrei no meio do caminho com o pé torcido e que,
como um perfeito cavalheiro, apenas lhe ofereci ajuda e a carreguei até a casa
dela.
Por alguma razão, a imagem do conde carregando-a nos braços fez o coração
de Sarah disparar. Contrariada, tentou lembrar a si mesma que mulheres de
valor não se deixavam impressionar daquela maneira, muito menos por um
arrogante como ele... apesar de sua extrema beleza.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— E eu estaria andando por aí desacompanhada? — questionou, tentando agir


com sensatez.
— Dizemos que mandou buscar sua carruagem, mas que estava demorando
demais.
— E quanto a Lucky?
— Ele terá tempo mais do que suficiente para revistar a casa enquanto
estivermos todos às voltas com seu pé machucado.
Sarah fitou o obstinado conde, desejando encontrar uma falha em seu plano.
Não era bom ter alguém ditando as regras.
— Não devia obrigar sua mãe a conhecer a filha do Malvado Dândi — ponderou,
numa última tentativa.
— Minha mãe não vai demorar mais do que um minuto para gostar da
senhorita. Tem um prazer especial em se relacionar com jovens modernas e
atrevidas.
Sarah enrijeceu. Aquilo era uma ofensa ou um elogio? Sempre fora calma, lógica
e extremamente prática.
— Não sou atrevida.
— Somente quando provocada — ele se corrigiu.
— Só se for na sua presença, sir.
— Intrigante comentário, srta. Cresswell.
Os olhares se encontraram e, por um instante, ambos se esqueceram do
menino, que riu, perspicaz.
— Pensei que ela fosse lhe dar um tabefe, sir! Ninguém enfrenta a srta.
Cresswell assim...
Chance soltou uma risada.
— Então, já é hora de alguém fazer isso.
Sarah entreabriu os lábios, chocada. Antes que pudesse retrucar, porém, a
carruagem parou.
— Aqui estamos. Nos veremos amanhã — disse Oliver, sem admitir recusas.
Atrevida.
O conde havia tido a audácia de chamá-la de atrevida.

Projeto Revisoras 35
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Uma vez dentro de casa, Sarah resistiu à tentação de se voltar na direção da


sofisticada carruagem e mostrar a língua. Aquele homem era...
Nem tinha palavras para descrever lorde Chance!
Não costumava se deixar incomodar por brincadeiras, garantiu a si mesma.
Depois de uma criação como a sua, havia descoberto que, se não aprendesse a
rir de alguns absurdos da vida, se tornaria uma mulher amarga, o que estava
disposta a evitar a todo custo.
Mas lorde Chance tinha a intensa capacidade de tirá-la do sério e expor sua
porção mais vulnerável. Isso era o que mais a perturbava.
Irritada, marchou escada acima, ansiosa para se livrar do uniforme, que já
começava a pinicá-la.
Mal pisou no primeiro patamar, um ruído desviou sua atenção para a sala.
Franziu a testa ao avistar duas jovens sentadas no sofá.
— Droga! — praguejou baixinho. A manhã intensa fizera com que ela se
esquecesse por completo de haver convidado as duas irmãs mais novas para
uma visita naquela tarde. Nem sequer estava vestida para recebê-las.
Por um momento, observou as moças. Emma usava um comportado vestido
cinza-azulado, e os cabelos cacheados, cor de mel, presos na nuca por um
coque. Os olhos muito verdes tinham uma sombra de preocupação. Apenas a
esmeralda que lhe pendia do pescoço dava-lhe um toque de cor. A pobrezinha
havia sido, talvez, a que mais sofrera com a mancha que recaíra sobre o nome
Cresswell quando o Malvado Dândi fora capturado. Sarah fizera de tudo para
consolá-la, porém sabia que Emma ainda não se recuperara por completo.
Rachel, ao contrário, não negava ser filha de Solomon Cresswell. De estatura
pequena, cabelos loiros e olhos cor de avelã, encarava a sociedade de cabeça
erguida e com um charme que nem mesmo os mais preconceituosos
conseguiam ignorar. Infelizmente, havia herdado do pai também o gosto por
aventuras, pensou Sarah, com um suspiro. Não era à toa que vivia preocupada
com as maluquices da moça, temendo que um dia ela se envolvesse em algum
escândalo que nem mesmo sua inegável graça pudesse evitar.
Dando-se conta da presença dela, por fim, ambas se voltaram para fitá-la.
Rachel soltou uma gargalhada ao ver o uniforme, enquanto Emma se limitou a
arregalar os olhos.

Projeto Revisoras 36
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— O que é isso, Sarah... — A mais jovem riu, por fim. — A troco de que está
vestida desse jeito?
Não querendo discutir a busca pelos brilhantes dos Chance e muito menos seus
últimos contatos com o conde, ela dispensou a pergunta com um gesto.
— Melhor nem saber.
Rachel pendeu o rosto bonito para um lado, divertida.
— Se eu não soubesse que é minha irmã, juro que iria jogar meu charme.
— Engraçadinha... — Sarah fez uma careta, lembrando-se de imediato da reação
do conde ao assédio da criada. Olhou o vestido de musselina indiana ricamente
estampado da irmã e o decote que deixava entrever mais do que o suficiente do
colo alvo. — E escandalosa como sempre!
Sem se abalar com a crítica, Rachel empurrou para trás um cacho dourado.
— Pelo menos não estou vestida como um criado.
Emma se interpôs na discussão:
— Por que nos chamou aqui, Sarah?
Ela suspirou profundamente. Sabia que estava prestes a provocar uma
comoção... Especialidade do Malvado Dândi.
— Achei que deviam saber que papai voltou a Londres.
Um silêncio pesado desceu na sala, antes que Emma se pusesse em pé.
— Ele está aqui?
Rachel ergueu-se do mesmo modo, porém com um sorriso iluminando-lhe o
rosto.
— Eu sabia que papai não iria para a Índia! Onde ele está? Posso vê-lo?
Outra pergunta à qual Sarah preferia não responder.
— Não o vejo desde o café da manhã.
— O que ele veio fazer aqui? — indagou Emma.
— No momento, está se fazendo passar por um tal tio Pierre, de Paris.
— Só pode estar brincando... Que coisa ridícula!
— Ridícula por quê? — rebateu Rachel, zangada. — Deixe de ser covarde,
Emma. É maravilhoso ver papai outra vez!

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Claro. — A jovem enrijeceu. — Nada mais agradável do que voltar a ser


assunto de fofocas por toda a Londres.
— Bobagem!
Ansiosa por acabar com o bate-boca, Sarah ergueu as mãos.
— Chega de briga. Eu só achei que deviam saber, nada mais.
— Obrigada, Sarah — agradeceu Emma, calçando as luvas com mãos trêmulas.
— Melhor eu ir, então. Não estou disposta a encontrá-lo.
Sarah a deteve pelo braço.
— Emma... Tente não ser tão radical. Ele é seu pai.
Os olhos verdes encheram-se de lágrimas.
— Não é assim tão simples.
Sarah engoliu em seco.
— Eu sei.
— Adeus.
— Espere... Como vão as coisas com os Farewell? — perguntou, não querendo
ver a irmã partir daquela maneira.
A idéia de mencionar a família para quem Emma trabalhava como governanta
não foi das melhores. Um arrepio pareceu percorrer a moça.
— Um horror!
Sarah acariciou o braço da irmã, penalizada.
— Sabe que esta casa é sua, não sabe?
Emma sorriu de leve, porém balançou a cabeça, decidida. Sempre estivera
determinada a sustentar a si própria.
— Estou vendo um emprego fora de Londres. Ouvi dizer que uma tal lady
Hartshore, de Kent, está à procura de uma dama de companhia.
O coração de Sarah se apertou. Mas Emma precisava exorcizar os próprios
demônios à sua maneira.
— Não se esqueça de ser feliz — disse. — Existem coisas piores.
A face pálida de Emma suavizou-se, tornando mais belas as feições delicadas.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Serei sempre feliz enquanto tiver você. — Após beijá-la no rosto, a moça
bateu em retirada.
Sarah observou-a partir, voltando-se apenas quando a irmã mais nova soltou
uma risada seca.
— Que boboca.
Cruzou os braços, zangada.
— Emma ainda não se acostumou com as circunstâncias menos do que
respeitáveis da família.
— É uma tola, isso sim.
— Emma é muito responsável — Sarah defendeu, contrariada.
— Ao contrário de certas pessoas que conheço... Aliás, chegaram umas contas a
respeito das quais precisamos conversar.
Rachel parecia não perceber o quanto as irmãs se sacrificavam para manter o
alto padrão a que ela se acostumara.
Por um instante, Sarah viu-se solidária a lorde Chance. Nenhum dos dois
pretendera desempenhar o papel de feitor dos irmãos mais novos, porém
ambos haviam sido levados pelo destino a cumprir tal tarefa. Não era uma
situação fácil.
Rachel fez uma careta. Bem ao estilo Cresswell, a moça detestava assuntos
"mundanos" como economizar dinheiro.
— Agora não, Sarah — dispensou a conversa com um gesto.
— Prometo que vou pagar tudo direitinho, mas recebi um convite para jantar
com os Montford e estou atrasada.
— Sempre arranja um compromisso quando quero falar com você.
— Minha vida social é muito intensa — explicou a outra, com um sorriso
maroto.
— Ah, é mesmo. Muito. — Sarah suspirou, escolhendo as palavras. — Espero
que saiba o que está fazendo.
— Por que isso agora?
Uma sombra passou pelos olhos azuis. Apesar de tudo, sabia que, no fundo,
Rachel tinha bom coração e uma alma generosa. Somente aquele seu gosto
exagerado por festas e aventura a tirava do bom caminho.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Não quero vê-la metida em nenhuma encrenca.


Tal como o pai delas, a jovem ergueu o queixo delicado num desafio.
— Só estou querendo me divertir. Por que não deveria?
— Porque tem o hábito de se envolver em situações sem pensar nas
conseqüências.
— Então, prefere que eu seja insegura e apática como Emma?
Sarah suspirou. Como três irmãs podiam ser tão diferentes uma da outra?
— Quero apenas que não se arrependa de nada.
Os olhos cor de avelã cintilaram por um segundo, exatamente como os do
Malvado Dândi.
— Nunca me arrependi de nada. — Num impulso, Rachel beijou a irmã no rosto.
— Desculpe-me, mas preciso mesmo ir. Diga a papai que falo com ele depois...
Será que tem umas libras para me emprestar? Vi uma oferta imperdível, hoje.
— Não.
Rachel riu, sem se abalar um segundo.
— Está bem! Adeus, então, maninha, e tente não ser tão séria. Fica muito bonita
quando sorri.
Deixando para trás uma nuvem de perfume, Rachel retirou-se.
Uma vez sozinha, Sarah suspirou profundamente. Se a mãe delas houvesse
sobrevivido além da infância de Rachel, agora talvez ela, Sarah, conseguisse
domar melhor o gênio da garota e tivesse a solução para os problemas de
Emma. Ao menos o fato poderia ter-lhes proporcionado mais segurança,
enquanto o pai arrastava a família Europa afora até fazê-la firmar-se na
Inglaterra.
Havia feito o melhor que podia, auxiliada por lorde Scott, a única pessoa a lhe
dar auxílio quando o Malvado Dândi fora preso. Entretanto, parecia não ter sido
suficiente.
— Com licença, srta. Cresswell.
Recriminando-se por perder tempo com arrependimentos, Sarah voltou-se para
Watts, que a aguardava na porta.
— Sim?
— Imaginei que gostaria de saber... Fiz a visita que me pediu àqueles joalheiros.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— E?
O mordomo balançou a cabeça.
— Nada. E isso porque sabem que trabalho para o Malvado Dândi. Não
perderiam a oportunidade de revelar que alguém superou o mestre.
Sarah não pôde evitar um sorriso. Watts tinha verdadeiro horror de que o pai
dela perdesse o posto de ladrão mais conhecido de Londres.
— Obrigada.
— Há mais alguns colecionadores com quem seu pai costumava negociar. Vou
vê-los amanhã.
— O que eu faria sem você? — Sarah sorriu. — Viu meu pai hoje?
— Não o vejo desde o café da manhã, senhorita.
— Seria muita ingenuidade imaginar que não está se metendo em outra
encrenca.
As feições rudes iluminaram-se com um raro sorriso.
— Isso eu já não sei.

Capítulo III

Poucos que olhassem pela janela, naquela manhã de novembro, prestariam


atenção na carruagem escura deslocando-se devagar ao longo de uma cerca
viva, para em seguida descer rua abaixo. E dificilmente alguém notaria a figura
esguia de um garoto saltando e embrenhando-se nas sombras das árvores do
elegante bairro.
Uma vez a sós com a linda srta. Cresswell na carruagem, Chance permitiu-se
admirar-lhe o traje e as delicadas feições. Ela podia perfeitamente passar por
uma das donzelas que freqüentavam as altas-rodas de Londres. Porém, ele tinha
consciência, Sarah estava muito longe de ser uma mulher comum. Não se
lembrava de nenhuma outra com tanta coragem. Qual, de suas conhecidas,
demonstraria tamanha habilidade em ajudá-lo a recuperar os brilhantes?
Sem dizer que era um verdadeiro quebra-cabeça. Para um cavalheiro que
costumava orgulhar-se da própria astúcia, a srta. Cresswell constituía um

Projeto Revisoras 41
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

desafio. Por isso ela vivia agora em seus pensamentos. E apenas por essa razão
acordara ansioso naquela manhã. Quando se encontrava na companhia de
Sarah, nunca sabia o que estava por vir... o que lhe parecia extremamente esti-
mulante.
Conforme corria os olhos pela pele perfeita, o conde sorriu de leve. Ela era
realmente linda.
A carruagem parou e Chance observou-a olhar, admirada, a casa da mãe dele.
— É enorme!
E era mesmo. Construída em estilo italiano, Primrose tinha uma fachada
imponente com arabescos em gesso e balaustradas de bronze. O interior era
ainda mais luxuoso, com uma escadaria de carvalho em curva e mobília de pau-
cetim. Poucos não se impressionariam com o lugar.
— Não se preocupe — Oliver a tranqüilizou. — Minha mãe é uma pessoa
acessível, que adora conhecer gente nova.
Como Chance já esperava, a breve tensão que detectara na srta. Cresswell foi
logo substituída pela ironia.
— Ao contrário do filho.
O sorriso dele se alargou.
— Receio ter puxado a meu pai. Foi Ben quem herdou o jeito alegre de minha
mãe. Talvez por isso ela se derreta tanto por ele.
— E isso o incomoda?
— De certa maneira, sim. Adoro os dois, embora, no momento, esteja com
vontade de torcer o pescoço de meu irmão. E quanto à senhorita, tem irmãos?
Havia uma ponta de tristeza no sorriso de Sarah.
— Tenho. Emma, que trabalha como governanta dos Farewell, e Rachel que, à
esta hora, deve estar na casa de alguma amiga. Assim como o senhor, às vezes,
tenho vontade de esganar Rachel.
Chance esfregou o queixo, pensativo.
— A senhorita é a mais velha?
— Sim.
— Então, temos mesmo muita coisa em comum.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Os olhares se encontraram num momento de compreensão mútua. E como se


percebesse que revelava mais do que pretendia, Sarah endireitou os ombros.
— Lucky já deve ter chegado aos fundos da casa. Vamos.
Sem demora, Oliver saltou da carruagem e, antes que ela pudesse evitar,
ergueu-a no colo.
Surpresa, Sarah apoiou-se no peito largo e quente. Chance a acomodou contra o
próprio corpo, admirado ao perceber como era bom tê-la nos braços. Sempre se
interessara por mulheres delicadas e femininas, que se submetiam às suas
menores vontades. Entretanto nenhuma lhe parecera tão atraente quanto a srta.
Cresswell.
— Lembre-se de que torceu o tornozelo — sussurrou-lhe no ouvido,
aproveitando para aspirar o perfume suave que emanava dela, antes de rumar
para os degraus.
— Sou grande demais para ser carregada! — Sarah protestou.
— A senhorita pode ser alta, mas é esguia como uma gazela.
— Vai dar um mau jeito nas costas, isso sim, e pôr fim nos nossos planos!
— Sossegue, srta. Cresswell, minhas costas estão muito bem — ele garantiu,
ainda que aquela proximidade estivesse começando a provocar outro tipo de
perigo. — Por que não se concentra em seu papel de dama aflita?
Ela comprimiu os lábios.
— É bom que saiba que esse é o papel que menos gosto de desempenhar!
Oliver riu.
— Disso eu já suspeitava.
A resposta que Sarah trazia na ponta da língua foi refreada quando a porta da
frente foi aberta, revelando um elegante mordomo de indecifrável expressão.
Sem nenhum sinal de surpresa em vista da situação, ele simplesmente recuou
um passo permitindo que Chance entrasse com Sarah no amplo hall.
— Tivemos um pequeno acidente, Franklin.
— Por aqui, senhor.
O mordomo os conduziu um degrau acima, até a sala particular de lady Chance.
Após entrar no cômodo de paredes de mármore, decorado com móveis de

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

ébano com filetes dourados e uma linda coleção de porcelanas, Chance passou
pela mãe para depositar Sarah num sofá marfim.
Lady Chance ergueu as sobrancelhas, surpresa.
— Meu Deus, o que aconteceu?
Esticando os braços com um suspiro, ele se voltou para fitar a pequena senhora
de cabelos muito brancos.
— Eu vinha visitá-la quando avistei a srta. Cresswell torcendo o tornozelo.
— Que tolice a minha — desculpou-se Sarah, as faces muito coradas. — Perdoe-
me pelo incômodo.
Como Chance já esperava, o coração da velha senhora amoleceu no mesmo
instante.
— Bobagem. É a coisa mais fácil do mundo torcer o tornozelo. Aconteceu
comigo ano passado e fui obrigada a ficar na cama por uma semana! Franklin,
peça à sra. Bross para trazer uma bacia de água quente. E, por favor, traga
também conhaque.
O mordomo fez uma reverência exagerada.
— Num instante, milady.
— Vamos dar um jeito nesse tornozelo. — A senhora sorriu, simpática. — Água
quente é um santo remédio.
— É muita gentileza sua — devolveu Sarah, genuinamente constrangida.
— Estou pronto para fazer a massagem — provocou Chance com um sorriso.
— Não vai fazer nada! — exclamou sua mãe, assumindo o comando da situação.
— Aliás, acho bom nos deixar a sós.
— Mas...
— Agora.
Tentando ignorar os olhos arregalados de Sarah, o conde fez uma mesura.
— Como quiser, mamãe. Então, por favor, peça para mandarem o conhaque
para a biblioteca.
— Vou mandar uma xícara de chá.
— E só vocês duas poderão usufruir a adega do papai? Não é justo.
— O conhaque é para propósitos medicinais — informou lady Chance.

Projeto Revisoras 44
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Ah... claro. — Oliver fez que não viu o discreto sinal de Sarah para que ele
permanecesse no local. Mas ainda que fosse adorável poder observar o
tornozelo da srta. Cresswell, ele tinha outros planos. Com um sorriso malicioso,
deixou a sala.
Uma vez no hall, aguardou a afobada sra. Bross passar, com duas outras criadas
a reboque, carregando uma bacia de água quente e uma garrafa de conhaque.
Atrás delas, o mordomo, com sua habitual altivez.
— Franklin — Chance o segurou. — Podemos trocar algumas palavras?
Adentrando a biblioteca de imediato, o homem aguardou a entrada do conde e
fechou a porta. Era o lugar preferido de Chance em Primrose, o único cômodo
da casa que escapara ao gosto requintado da mãe dele e permanecia
charmosamente masculino.
— Quero conversar com você a respeito dos criados — disse Oliver, escolhendo
as palavras.
Um silêncio constrangedor se fez por um momento.
— Como assim, senhor?
— Notou algo estranho ultimamente?
— Receio não compreender o que deseja, milorde.
Tentando parecer o mais casual possível, Chance serviu-se de um dos
conhaques favoritos do pai.
— Alguém pediu demissão de repente ou teve a sorte mudada da noite para o
dia?
— Com certeza, não, senhor. Os criados estão há anos com lady Chance —
declarou o mordomo, sem hesitação. — Aconteceu alguma coisa?
O conde estava preparado para a pergunta.
— Tem havido rumores na vizinhança a respeito de seguidos roubos.
O mordomo comprimiu os lábios de leve.
— Posso assegurar que nossa equipe está acima de qualquer suspeita, milorde.
Chance bebericou o conhaque, pensativo.
— Estou certo que sim. Entretanto eu agradeceria se mantivesse os olhos bem
abertos e me contasse sobre qualquer coisa que lhe parecer estranha. Não
podemos colocar a segurança de lady Chance em risco.

Projeto Revisoras 45
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Certamente, senhor. Mais alguma coisa?


Oliver pousou o cálice.
— Conhaque.
— Imediatamente, milorde. — Com uma mesura, o mordomo desapareceu.
Chance fitou as brasas vivas na lareira. Já esperava não obter muito de Franklin.
Na verdade, pretendera mais manter o astuto empregado ocupado, enquanto
Lucky vasculhava os aposentos dos criados. Contudo algo lhe dizia que não
havia nenhum suspeito sob o teto de sua mãe.
Chance cedeu à própria impaciência e retornou à sala. Sua chegada não poderia
ter sido em melhor momento. Embora a bacia de água já houvesse sido posta
de lado, as criadas ainda se empenhavam em ajudar a srta. Cresswell a calçar as
meias nas pernas delgadas.
E que pernas!, notou, antes que a mãe soltasse uma exclamação de protesto e
as pesadas saias de Sarah lhe impedissem a adorável visão.
— Francamente, Oliver, deixou a pobre srta. Cresswell envergonhada!
O conde fitou os olhos incrivelmente azuis de Sarah.
— Está aí uma coisa que eu gostaria de ver — ele murmurou quase para si
mesmo.
Determinada a parecer indiferente, Sarah cruzou as mãos sobre o colo.
— Sua mãe estava me contando sobre a festa de Natal.
— Não imagina, Oliver! — disse a idosa senhora. — Lady Loland agendou a festa
dela para um dia antes da minha! Sempre teve inveja do meu sucesso. Aposto
que não hesitaria em gastar toda a sua fortuna apenas para nos ofuscar.
Com perfeita compostura, o conde serviu-se de um pouco de rapé que retirou
de uma caixinha de ouro.
— Tenho certeza que de nada valerão os esforços dela diante da sua
experiência como anfitriã.
Lady Chance fez um muxoxo.
— Estou vendo que não tem o menor interesse no assunto.
— Como não?
— A srta. Cresswell foi muito mais atenciosa. Até me deu algumas idéias!

Projeto Revisoras 46
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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Uma ponta de alarme fez saltar o coração dele.


— É mesmo?
Embora não tivesse vacilado em apresentar a filha do Malvado Dândi à mãe,
tinha lá seus escrúpulos, graças ao meio em que ela fora criada. Afinal, a
própria Sarah comentara a respeito de sua educação nada comum.
— Ótimas idéias! — cantarolou a mãe dele, excitada. — Depois que lady Loland
tiver dado seu enfadonho baile, entreteremos nossos convidados com charadas,
um coral de Natal e jogos. O que mais mesmo? — Voltou-se para Sarah com
animação.
— Ponche à vontade — lembrou Sarah, a expressão indicando claramente que o
mal-estar do conde não lhe passara despercebido.
— Isso! — Lady Chance sorriu, os olhos brilhando ao imaginar os convidados
totalmente entretidos com o espírito da festa. — E brincadeiras, muitas
brincadeiras. Vai ser uma maravilha!
— Que sorte a srta. Cresswell ter torcido o tornozelo bem em frente à sua porta
— ironizou Oliver, sem deixar de fitá-la um só instante.
— Nem me diga! — concordou sua mãe, voltando-se para quem imaginava ser
um anjo caído do Céu. — Será minha convidada de honra, querida.
Sarah sorriu, negando com um gesto de cabeça.
— E muita gentileza sua, mas, infelizmente, isso não será possível.
— Precisa convencê-la, Oliver — choramingou lady Chance com um sorriso,
como se o filho soubesse como fazê-lo.
Nem de longe o conde sentia a mesma confiança, pois, até o momento, a srta.
Cresswell se mostrara indiferente aos seus encantos.
— Farei o que puder — murmurou, com um misto de expectativa e insegurança.
A presença de Sarah na festa seria um alívio diante da costumeira insipidez das
donzelas locais. — Mas, por enquanto, só posso me oferecer para levá-la de
volta para casa.
Avançando um passo, fez menção de erguê-la outra vez nos braços. Sarah,
porém, tratou de levantar-se e desviar-se dele com destreza.
— Meu tornozelo está ótimo.
— Tem certeza, srta. Cresswell? Melhor não arriscar.

Projeto Revisoras 47
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Certeza absoluta.
— Que pena — ele acrescentou em seu ouvido.
— Grata por tudo, lady Chance — Sarah tentou ignorar o comentário.
— Não foi nada, querida. Espero vê-la em breve!
Tomando-a pelo braço, o conde começava a conduzi-la para a saída quando foi
detido pela mãe.
— Oliver, querido, por que veio aqui, afinal?
— Hã... Nada muito importante. Voltarei durante a semana.
— Vai conversar com a srta. Cresswell a respeito da festa?
— Claro. Ela terá toda a minha atenção — respondeu com um sorriso.
O tempo lá fora não era dos melhores. Tão logo desceram as escadas e
entraram na carruagem, Chance estendeu uma manta de lã na direção de Sarah
e deu ordem ao cavalariço para seguir viagem.
Assim que os cavalos se puseram em movimento, fitou-a, atento.
— O que achou de minha mãe?
— Surpreendentemente gentil e encantadora.
Ele reprimiu um sorriso. Ao contrário do senhor, ela queria ter dito.
— Ela é surpreendente, sem dúvida. Tanto quanto as pernas da senhorita —
completou Oliver, o olhar cintilando de malícia. — Achei que, como a maioria
das mulheres da sua altura, seria apenas pele e osso. Mas depois da cena de
hoje à tarde, nunca mais vou poder olhá-la com os mesmos olhos.
Como ele já esperava, Sarah não reagiu com um gritinho ou ameaça de
desmaio. Em vez disso, ergueu os olhos azuis no mesmo nível dos dele.
— Diga-me, milorde, é sempre assim tão desagradável ou está se obrigando a
agir dessa forma por minha causa?
Oliver jogou a cabeça para trás com uma gargalhada.
— Ora, não é todo dia que encontro alguém que valha o esforço.
— Estou lisonjeada — ela devolveu a ironia, ao mesmo tempo em que a
carruagem parava. Olhou pela janela. — Aí está Lucky.
Tão logo a porta foi aberta, o menino saltou para dentro. Ajeitando-se no banco
ao lado de Sarah, suspirou, num gesto teatral.

Projeto Revisoras 48
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Fracasso total. O máximo que encontrei escondido foi uma moeda. A


governanta deve ser uma megera com os criados.
Chance riu diante de tanta indignação.
— A sra. Bross é muito eficiente.
— Deve ser daquelas que mete o bedelho em tudo.
— Sem dúvida.
— Credo! — exclamou Lucky, fazendo uma careta.
Balançando a cabeça de leve, Sarah mudou o rumo da conversa.
— Então, nada feito com os criados de seu irmão e de sua mãe.
— Ah, eu já ia me esquecendo... — Chance remexeu o bolso do sobretudo e
retirou um pedaço de papel dobrado. — Meu irmão mandou me entregar ontem.
Ela correu os olhos pela lista de nomes.
— Ótimo.
— E isto. — Ele retirou também um pequeno embrulho. — A criada que veio
trazer a lista pediu que entregassem a "Samuel".
Sarah sentiu o rosto pegar fogo.
— Que divertido — rosnou, diante do brilho nos olhos escuros.
— De modo algum! — O conde suprimiu um sorriso. — Não é nada lisonjeiro
descobrir que sua breve investida como homem resultou numa conquista,
enquanto nós, cavalheiros de verdade, levamos dias ou até semanas para
receber um simples sorriso...
Os olhos dela faiscaram de ódio.
— Lorde Chance...
— Em minha humilde opinião, devia enviar uma carta à moça demovendo-a de
suas intenções.
— Não vou fazer isso!
— Pense bem — insistiu Oliver, com falsa preocupação. — Não vai ser nada
agradável ver a pobre se esgueirando pela minha casa à espera de uma só visão
do esquivo Samuel.
Antes que Sarah pudesse devolver a provocação, o delicioso aroma de torta de
maçã, vindo do pacote, entusiasmou Lucky.

Projeto Revisoras 49
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Vai comer? — perguntou o menino, esperançoso.


— Tome!
— É impressão minha ou está vermelha, srta. Cresswell? — continuou Chance,
rindo.
— Por causa do frio — desconversou ela, com raiva.
— Então, permita-me...
Sem rodeios, ele projetou o corpo para a frente e cobriu os ombros delicados
com a manta. Ao se aproximar, fitou-a nos olhos.
— Tem cheiro de flor, sabia?
Por um momento que pareceu infindável, Chance se permitiu examinar a maciez
dos lábios rosados. Que gosto teriam? Como seria tê-los de encontro aos seus?
Tremeriam de ansiedade e medo ou se renderiam à paixão?
Uma vontade insana e incontrolável de ter as respostas para as suas perguntas
o fez curvar a cabeça na direção da de Sarah, mas uma exclamação abafada em
sua própria mente o obrigou a despertar de seu devaneio e acomodar-se de
volta ao banco.
Santo Deus! O que estava pensando? Não era nenhum adolescente disposto a
fazer amor dentro da carruagem... ainda mais com Lucky por testemunha.
Talvez já fosse hora de encontrar uma nova amante. Ou várias.
— Não quer conversar sobre os nomes desta lista? — ouviu-a indagar,
levemente abalada.
O conde respirou fundo, recompondo-se de imediato.
— Sem dúvida.
Sarah baixou os cílios longos e endireitou os ombros.
— Quem é Flora? Chance suspirou.
— Uma amiga de Ben.
— Amante, o senhor quer dizer.
Ele piscou, surpreso. A frieza dela era impressionante. Sarah não esperou pela
confirmação.
— Vamos investigá-la primeiro. Na certa, tem conhecidas entre as prostitutas.
O leve desconforto de Chance foi logo substituído por puro assombro.

Projeto Revisoras 50
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Não vai querer se infiltrar nesse meio...


— Não só quero como vou, milorde — retorquiu ela com firmeza, os olhos
muito azuis brilhando num desafio. — E entenderei perfeitamente se preferir se
manter fora da tarefa.
Ele apertou os lábios. Por mais insano que houvesse sido o momento em que a
desejara, tinha consciência de que a srta. Cresswell, apesar de tudo, era uma
dama. Não podia permitir que perambulasse pelo submundo desacompanhada.
Malditos fossem os hábitos de Ben!, praguejou para si próprio. Ele é quem
deveria estar naquela carruagem resolvendo o assunto!
Descartou a idéia tão logo ela se formou em sua mente. Se havia alguém que
devia acompanhar a srta. Cresswell naquela missão, esse alguém era ele
mesmo.
— Virei apanhá-la amanhã cedo.
No dia seguinte, ignorando o guarda-roupa repleto de vestidos de cetim e
algodão da Índia, Sarah escolheu um pesado modelo de lã e prendeu os cabelos
num coque. Era uma solteirona, lembrou a si mesma pela enésima vez desde
que saltara da carruagem de lorde Chance; madura demais para ansiar pelo
beijo de um homem, como acontecera na tarde anterior.
Verdade que, naquela noite, seu sono fora povoado por sonhos com um rosto
moreno de olhos escuros e hipnóticos...
Naquela manhã, porém, ela estava de novo no comando da situação. Até porque
lorde Chance nem sequer podia suspeitar de seus momentos de fraqueza!
E jamais suspeitaria, garantiu a si própria, enquanto saía do quarto e descia as
escadas para o salão. Dali em diante, voltaria a ser calma, racional e sensata
como sempre fora. Não agiria mais como uma adolescente apaixonada.
Entrou na sala decidida a se preparar para a chegada do conde. Mal havia dado
dois passos, estacou. Diante do espelho, ocupado em arrumar a gravata,
encontrou o pai. Trajava uma casaca carmim, listrada, e calças escuras
terminando logo abaixo do joelho. Mais uma vez, usava o ridículo tapa-olho.
Ao vê-la, ele se voltou com um sorriso.
— Olá, querida, que tal? — Abriu os braços, oferecendo a completa visão de seu
estranho disfarce. — Talvez meio espalhafatoso, mas sem dúvida o que vestiria
um bon vivant francês.

Projeto Revisoras 51
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Sarah fez uma careta de desgosto.


— Não acha que está exagerando?
— Nada melhor para combater esse tempo deprimente — discordou o Malvado
Dândi.
Ela caminhou pela sala e o encarou com firmeza.
— Posso saber por onde andou, ontem?
— Mas é claro! Como prometi, fui investigar umas coisas para você.
Sarah fechou os olhos, combatendo uma onda de apreensão. Não queria o pai
metido naquela história.
— O que fez, afinal?
— Fiz umas perguntinhas inocentes por aí. — Solomon terminou de ajeitar os
babados das mangas. — Só para tentar descobrir por onde andam os brilhantes
dos Chance.
Ela suspirou. Seu pai parecia não ter noção do perigo que corria em Londres.
Não duvidava nem mesmo que ele fosse capaz de tentar falar com o príncipe, se
achasse necessário.
— E então? — indagou, certa de que, se havia alguém capaz de descobrir a
verdade sobre o caso, era o Malvado Dândi.
— Nada. Tudo o que ouvi foram fofocas.
— Parece que quem os roubou ainda não tentou vendê-los.
— Não em Londres, pelo menos. Que tal estes sapatos?
— Medonhos.
— Tem razão. Mas combinam com as meias brancas.
Sarah revirou os olhos.
— Ninguém mais usa esse tipo de traje.
— Mas eu sou um francês excêntrico que prefere a moda antiga. Sem dizer que
as meias destacam minhas canelas — Riu, bem-humorado.
À simples lembrança de outro par de pernas, Sarah sentiu uma onda de calor
subir pelo corpo. Ficou irritada consigo mesma.
— Por favor, papai, já tive problemas demais com pernas nas últimas horas.
— Verdade? Pensei que estivesse com lorde Chance.

Projeto Revisoras 52
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— E estava.
— E ele falou das suas pernas?! — indignou-se Solomon. — Talvez eu deva ter
uma conversa com esse cavalheiro. Quem ele pensa que você é? Alguma vadia?
— Não vai fazer nada! — retrucou Sarah, nervosa. — Lorde Chance não está
interessado em nada mais do que recuperar as jóias da mãe.
— Andando por aí com você? Não pode ser tão imbecil.
— Ele não é nenhum imbecil. Apenas arrogante, intrometido e desagradável.
Tarde demais, percebeu que revelara mais do que devia a respeito da própria
perturbação.
De imediato, Solomon a circundou, erguendo o tapa-olho e fitando-a com
perspicácia.
— Ora, ora...
— Não me olhe assim, papai!
— Tio Pierre — ele a corrigiu.
— Acha mesmo que consegue enganar alguém com esse sotaque horrível?
— Tenho algumas cartas na manga.
Sabendo que o pai era um mestre com a espada e com a pistola, relaxou um
pouco.
— Vai jantar aqui esta noite?
— Recebi um convite da sra. Surton para jantar com mais meia dúzia de amigos
dela.
— Não!
— Não se preocupe, querida. Já enviei um buquê de flores com as minhas
desculpas por ter outro compromisso. É uma dama adorável.
— Ela é horrível, isso sim! Mas eu preciso da sra. Surton por causa da escola. É
bom mesmo que se mantenha afastado.
— Ela doa uma ninharia e só por isso a mantém sob um cabresto? Eu lhe
garanto que a faço colaborar com uma quantia muito maior e ainda a mantenho
ocupada, bem longe daqui.

Projeto Revisoras 53
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Era uma idéia atraente, admitiu Sarah. Ao mesmo tempo, não devia permitir que
o pai brincasse com os sentimentos da mulher. Não podia se arriscar a perder a
melhor fonte de renda da escola.
— Fico muito grata, mas prefiro que não se intrometa nesse assunto.
— Mas, Sarah, sou seu pai! — protestou o Malvado Dândi. — É meu dever
intervir de alguma forma.
— Papai, não vá me aprontar...
— Agora, não, querida. — Ele ajeitou a gravata uma vez mais e rumou para a
saída. — Estou muito atrasado.
— Para quê?
Solomon voltou-se para fitá-la com um ar inocente.
— Não lhe falei? Estou indo ao encontro de lorde Maxwell. Au revoir, mon
amour.

O elegante bordel era discretamente recuado e ficava quase oculto por uma
cerca viva alta. Um lugar que Sarah, não sem constrangimento, freqüentara
inúmeras vezes graças a seu trabalho com crianças, que incluía filhos de
prostitutas.
Na verdade, havia se surpreendido favoravelmente por madame Vallenway, a
famosa proprietária. Não apenas por sua admirável inteligência, mas também
por sua genuína preocupação com as mulheres que ali residiam. Embora Sarah
jamais pudesse compactuar com aquele tipo de vida, era sábia o bastante para
perceber que a caftina, apesar de tudo, poderia se tornar uma valiosa aliada. A
partir desse dia, passara a visitar o lugar vez ou outra, levando algumas
lembranças e estimulando-a a fazer com que qualquer criança em idade escolar
tivesse aulas.
Via de regra, Watts a acompanhava na tarefa. A situação não era tão confortável
tendo lorde Chance como companhia, pensou, lançando um olhar na direção do
homem sentado à sua frente, na carruagem.
Recriminando-se por aquele ridículo estado de nervos, Sarah puxou para o colo
a cesta que havia trazido. Malditos fossem aqueles sonhos que tivera. Agora
sentia-se como uma colegial ao lado do conde.

Projeto Revisoras 54
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Ainda bem que lorde Chance pareceu não notar seu constrangimento. Desde
que chegara para apanhá-la, mantivera-se estranhamente reservado, como
nunca acontecera desde o dia em que haviam se conhecido. Sarah podia apenas
presumir que ele começava a se inquietar com o aparente fracasso em suas
investigações sobre o desaparecimento dos brilhantes.
No entanto, mesmo com toda a auto-recriminação a que vinha se submetendo,
era impossível negar o efeito daquela colônia masculina impregnando o ar da
carruagem e o leve roçar da perna máscula na dela.
Ao preparar-se para saltar tão logo a carruagem parou, Sarah foi segura pelo
braço.
— Não está pensando em entrar, está?
— Claro que sim.
— Sarah... — Oliver limpou a garganta, pouco à vontade. — Srta. Cresswell... —
corrigiu-se, com uma sombra incomum nos olhos escuros. — Não posso
permitir que se exponha num lugar desses só para investigar o sumiço dos
brilhantes.
Abalada com a óbvia preocupação dele, ela ensaiou um sorriso.
— Não precisa se preocupar, milorde.
Sem dar ao conde nova chance de protestar, agradeceu ao cavalariço, deslizou
porta afora e percorreu rapidamente a trilha em direção aos degraus da entrada.
Mal Chance a alcançou, a porta foi aberta, revelando uma figura enorme e
musculosa que posava de mordomo. À simples visão de Sarah, as feições rudes
se transformaram num sorriso.
— Srta. Cresswell... Seja bem-vinda.
— Obrigada, Dodwell. Madame Vallenway está?
Desconfiado, Dodwell lançou um olhar para o conde, antes de fazer um sinal
com a cabeça.
— Claro. Por aqui.
O homem os conduziu pelo vestíbulo e através de um amplo salão, em direção
aos fundos da casa. Como sempre, Sarah não fixou o olhar nas estátuas e
quadros indecorosos ao longo das paredes. Dodwell destrancou uma pesada
porta e os guiou pelos aposentos particulares de madame Vallenway.

Projeto Revisoras 55
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Conhece madame Vallenway? — Chance sussurrou no ouvido de Sarah, como


se não acreditasse no que ouvira.
Ela ergueu o olhar para o dele, sem hesitação.
— Conheço muita gente em Londres, sir.
O conde não teve como retrucar, pois uma mulher vistosa ergueu-se de trás da
escrivaninha ampla e caminhou na direção deles. Embora não mais na flor da
idade, madame Vallenway ainda era impressionantemente bonita. Era um erro,
porém, imaginar que vivia apenas de sua beleza. Sob a imagem impecável, havia
uma personalidade única e uma força inabalável.
— Sarah, querida... — Ela sorriu alegremente, para em seguida lançar um olhar
melindroso para o elegante cavalheiro. — Lorde Chance!
Uma absurda pontada de ciúme fez doer o coração de Sarah ao se dar conta de
que os dois não eram estranhos. O infeliz... Por isso ele ficara tão constrangido
quando ela sugerira a ida até o bordel.
— Parece que dispensam apresentações — Sarah ironizou, combatendo a
própria irritação.
Como se percebesse a tensão dela, madame Vallenway tentou distraí-la:
— A que devo a honra da sua visita?
— Trouxe isto. — Sarah entregou-lhe a cesta.
A mulher pareceu ficar sem-graça.
— Eu já disse para não se preocupar.
— São apenas umas coisinhas para as crianças.
— Crianças? — lorde Chance falou pela primeira vez, confuso.
Madame Vallenway deu um longo suspiro.
— Um problema para quem tem a nossa profissão.
Ele franziu o cenho, e Sarah tratou de explicar:
— Madame Vallenway permite que as moças daqui criem os próprios filhos e até
contratou uma professora para os mais velhos.
— Espero que, assim, eles tenham mais oportunidades do que nós; embora a
minha iniciativa não chegue aos pés da escola de Sarah.

Projeto Revisoras 56
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Imagine. — Ela sorriu, tímida e absurdamente pouco à vontade sob o olhar


atento do conde. — Desta vez não vim apenas por causa das crianças —
apressou-se em dizer, ansiosa para pôr um fim na visita.
— É mesmo? No que posso ajudá-la?
— Conhece Flora Snow?
— Claro. — O olhar da mulher desviou-se para Chance. — Não é ela a protegida
de seu irmão?
— Isso mesmo — admitiu ele, a contragosto.
— O que deseja saber, querida?
Sarah não vacilou um só segundo.
— Que tipo de pessoa ela é?
— Uma mulher linda — respondeu madame, de pronto. — Mas um pouco
esquisita.
— Desonesta ou trapaceira? A prostituta piscou, surpresa.
— Deus meu, ela é ingênua demais para isso. Por que está perguntando?
Sarah tentou escolher melhor as palavras. A última coisa de que precisava era
provocar um falatório, não apenas para evitar que chegasse aos ouvidos de lady
Chance, como também para não afugentar qualquer suspeito.
— É que sumiram umas... coisas da residência do sr. Coltran.
— Ah, não. Não Flora.
— Como pode ter tanta certeza?
A mulher suspirou e deslocou-se pela sala com elegância.
— No meu negócio se aprende rápido a conhecer as pessoas. Flora poderia até
mentir ou enganar se fosse necessário, mas não teria coragem de roubar. Só
mesmo alguém muito atrevida ousaria deitar-se com um cavalheiro depois de
roubá-lo. Ela não é do tipo.
Madame Vallenway soou tão certa do que dizia que Sarah não insistiu naquele
ponto.
— Se ela ficasse sabendo da existência desses pertences, partilharia a
informação com mais alguém?
Dessa vez a mulher franziu as sobrancelhas, pensativa.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Flora está na cidade há apenas dois meses e não tem muitos conhecidos.
Nunca a ouvi comentar nada, a não ser sobre roupas.
— Ela passa muito tempo aqui, ou na companhia de outra colega?
— Desde que chegou, Flora mal sai do quarto — explicou madame Vallenway. —
Na verdade, é um pouco preguiçosa. Cheguei até a admoestá-la por isso.
— E nenhuma das outras moças a convida para sair?
— Não que eu saiba. Seria até uma surpresa se a convidassem. Nenhuma delas
parece muito à vontade com Flora. Acho até que têm um pouco de inveja por
ela ser a protegida de um rapaz tão distinto como Ben.
Certa de que madame Vallenway teria aberto o jogo se soubesse de algo, Sarah
se deu por vencida. A menos que a garota fosse muito mais esperta do que
imaginavam, não parecia envolvida no caso.
— Se ouvir qualquer coisa das moças, ou se Flora estiver agindo de modo
estranho, poderia me informar?
Embora curiosa, a mulher abriu os braços, conformada.
— Claro.
— Obrigada. Agora precisamos ir. — Sem esperar pelo mordomo, Sarah virou-se
para deixar a sala.
Após fazer um leve cumprimento de cabeça, o conde a acompanhou em silêncio
pelo longo caminho de volta até a saída.
Perdida em pensamentos, Sarah se assustou quando lorde Chance a deteve pelo
braço.
— O que foi?
O olhar profundo moveu-se pelas feições delicadas, detendo-se, perturbador,
nos lábios carnudos.
— Eu lhe disse uma vez que é uma mulher extraordinária. Mas até agora não
compreendia exatamente o quanto.
Emudecida, tanto pelo inesperado elogio quanto pelo modo como sentiu as
pernas fraquejarem, Sarah tentou reencontrar a voz.
— Imagine. Sou comum até demais. — Riu, nervosa. — A menos que considere
o fato de eu ser filha do Malvado Dândi.
— Para mim, é Sarah Cresswell, e jamais conheci uma mulher como a senhorita.

Projeto Revisoras 58
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Sem aviso, as mãos dele a seguraram pelo rosto, e o coração dela pareceu
parar. Sempre fora a sensatez em pessoa. Então, por que seu corpo buscava o
calor do corpo do conde?
O rosto moreno inclinou-se, e lábios quentes tomaram os de Sarah num beijo
exigente. Ela fechou os olhos, deixando-se capturar pela magia.
O mundo parou para que uma onda de sensações invadisse seu corpo. Não era
seu primeiro beijo, mas o encontro de lábios que experimentara outrora não
passava de um ledo engano frente à maestria daquela boca. Estremeceu, o
ventre parecendo dissolver-se contra o corpo másculo.
Chance deixou escapar um gemido quando os lábios de Sarah se abriram.
Permitiu-se acariciar o rosto macio e percorrer a linha suave do pescoço de
Sarah, deliciando-se com a doçura da diminuta boca. Para ela, foi como se tudo
ao redor não mais existisse. Só conseguia sentir o calor da língua exigente de
encontro à sua, o traçado de fogo que os dedos dele provocavam. Nada mais
importava, a não ser descobrir aonde aquelas sensações poderiam levá-la.
Sem dúvida, aquilo precisava ter um fim. Apenas o ruído de passos se
aproximando, porém, foi capaz de separá-los e desfazer a magia.
Sarah levou a mão ao peito, buscando ar. Que loucura era aquela?, indagou-se,
aturdida. Devia estar fora de si.
Relutante, ergueu o olhar para o do conde, surpreendendo-se ao ver o rosto
moreno levemente corado. Era possível que ele estivesse tão abalado quanto ela
pela paixão que os acometera? Ou apenas constrangido por haver desejado por
um momento a filha de um ladrão de jóias?
Não havia como perguntar agora, mesmo que tivesse coragem. Uma jovem em
trajes sumários descia a escada, os olhos verdes se arregalando ao divisar o
homem alto ao lado de Sarah.
— Lorde Chance... — ronronou, com um sorriso. — Veio me ver, por acaso?
Uma pontada rasgou o peito de Sarah. Havia alguma mulher em Londres que
não conhecia o "impecável conde"?
Como era imbecil!, recriminou-se. Como permitira que ele tomasse tantas
liberdades? Não... não permitira. Convidara-o a tomar liberdades! Tinha colado
o corpo ao dele e se comportado com mais descaramento do que qualquer uma
das moças que trabalhavam ali!

Projeto Revisoras 59
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Transtornada consigo própria e com o homem que despertara nela sensações


que jamais imaginara, Sarah voltou-se para o conde, o rosto bonito
transformado numa máscara.
— Podemos ir? Ou prefere que eu mande a carruagem vir buscá-lo mais tarde?
Comprimindo os lábios, ele a apanhou pelo braço e a guiou em direção à porta.
Sarah deixou-se conduzir até os degraus, onde libertou o próprio braço com
violência.
— Posso caminhar sozinha.
— Não conheço aquela mulher — garantiu Oliver, aborrecido.
Ela o encarou, combatendo um ridículo fio de esperança diante do comentário.
E daí que ele não usufruíra os favores da linda prostituta? O fato não diminuía a
maneira condenável como ela própria se comportara.
— Isso não é da minha conta, lorde Chance.
Brilhando perigosamente, os olhos dele capturaram os de Sarah.
— Se não estivéssemos em público, eu lhe provaria que é, sim, da sua conta —
disse com voz rouca, provocando-lhe um arrepio na espinha.
Mas, por enquanto, refletiu o conde, iria apenas acompanhá-la até em casa;
depois seguiria para o clube e beberia até esquecer aquela história de
brilhantes, gatunos, bordéis... e uma certa mulher que possuía o dom de
enlouquecê-lo.

Capítulo IV

Cumprindo a própria palavra, Chance passou a maior parte da noite no clube,


consumindo uma generosa quantidade de conhaque, a fim de esquecer o que se
passara naquele dia. Como já esperava, a bebida não fez mais do que deixá-lo
tonto e com a cabeça ainda repleta de pensamentos perturbadores pelo resto
da madrugada. Recordava-se em detalhes do prazer de ter a srta. Cresswell nos
braços, do calor que emanava do corpo esguio, do cheiro da pele macia, da
doçura de seus lábios e do desejo quase incontrolável que o acometera com o
beijo. E que beijo!

Projeto Revisoras 60
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Não era nenhum garoto. Já havia usufruído os mais variados prazeres com as
mais diferentes e experientes mulheres. No entanto nenhuma delas continuara
a lhe povoar a mente daquela maneira e nem feito seu corpo reagir com tanta
paixão.
Aquilo era absurdo, concluiu, levantando-se da cama para vestir-se. A srta.
Cresswell podia ser bonita, mas não era o tipo delicado que sempre o atraíra.
Ainda que sua inteligência e natureza generosa pudessem inspirar sua
admiração, não possuía mais nenhuma das qualidades necessárias a um homem
da sua posição social.
Então, por que continuava desejando tomá-la novamente nos braços e beijá-la
até fazê-la desfalecer?
Devia estar enlouquecendo. Era a única explicação.
Sarah podia não ser socialmente muito aceitável, mas não deixava de ser uma
dama. Uma dama que certamente lhe daria um soco se propusesse a ela que se
tornasse sua amante... Portanto tinha mais que abafar aquele desejo insano.
Ou talvez não, disse uma voz dentro de Oliver.
Roubar-lhe um beijo ou dois não seria um escândalo. Afinal de contas, o
relacionamento deles estava fadado a ter um fim até o Natal. Seria um
desperdício não ceder a uma eventual tentação.
Ignorando pela primeira vez, em muito tempo, a caixa que o aguardava na
biblioteca, Chance fez um breve desjejum e pediu a carruagem. Queria ter uma
conversa com Sarah, antes que o bom senso a convencesse de que ele era carta
fora do baralho.
Mal o conde pisou fora de casa, um menino se aproximou correndo e depositou
um papel dobrado na mão dele. De cenho franzido, Oliver o desdobrou e leu as
palavras rabiscadas. Eram de Sarah. Dizia não estar disponível naquele dia
devido a afazeres na escola.
O conde hesitou por menos de um segundo. Entrou na carruagem e orientou o
cavalariço a tocar a parelha na direção da casa da srta. Cresswell, onde daria um
jeito de descobrir o endereço da escola.
Levou uma hora até o velho edifício situado em meio a uma horrível vizinhança.
Franziu a testa ao ver o lixo acumulado nas ruas e ouvir as gargalhadas ásperas
vindas de uma taverna próxima. Só mesmo Sarah para ter coragem de se

Projeto Revisoras 61
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

estabelecer numa das piores regiões da cidade, pensou, contrariado. Tomara ela
tivesse o bom senso de sempre trazer Watts quando vinha até ali.
Após abrir a porta de entrada sem rodeios, avançou um passo e parou,
surpreso. Contrastando com os arredores, a escola era impecavelmente clara e
limpa, e as poucas salas que podia avistar estavam repletas de crianças imersas
em atividades. Até mesmo o odor fétido das ruas desapareceu, substituído por
um delicioso aroma de pão recém-assado, o que devia ser um manjar dos
deuses para os pequenos acostumados com a fome e a miséria.
A maior parte da sociedade não hesitaria em condenar Sarah por se expor
sobremaneira àquele ambiente. Sua inicial reprovação pelo fato de ela ter
organizado o estabelecimento justamente naquele lugar, entretanto, deu lugar a
um sentimento de profundo respeito pelo trabalho que realizava.
Extraordinário. Não conseguia encontrar outra palavra para defini-lo.
Um rostinho familiar chamou a atenção do conde, dispersando-o de seus
devaneios.
— Milorde! — saudou Lucky, com a naturalidade de quem não se encontrava
diante de um nobre.
— Lucky.
O menino sorriu, parecendo divertir-se a valer.
— Veio visitar os pobres ou está com saudade da srta. Cresswell?
— Olhe como fala, pirralho! — admoestou-o, refreando um sorriso. — Onde ela
está?
— Por aqui, venha.
Sem delongas, Lucky correu pelo salão e Chance foi obrigado a segui-lo a
passos largos. Passaram por uma classe onde os alunos recitavam o alfabeto,
para em seguida entrarem numa outra.
Acomodada numa cadeira, Sarah tinha várias crianças sentadas a seus pés.
Contava-lhes a história da rainha Elizabeth, e Chance teve a oportunidade de
observá-la, em silêncio. Embora ela trajasse um vestido simples, e apenas a
safira no pescoço como um toque de classe, pareceu-lhe maravilhosa.
Contrariado, sentiu o coração bater mais forte dentro do peito.
Como se só então se desse conta da presença dele, Sarah ergueu a cabeça e
enrijeceu. Ela não parecia feliz em vê-lo.

Projeto Revisoras 62
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Milorde...
O conde fez uma mesura.
— Srta. Cresswell.
— O que veio fazer aqui?
— Vim vê-la.
— Não recebeu o meu recado?
— Recebi. Mas não me convenci.
Sarah se pôs em pé, o rosto tingindo-se de vermelho.
— Melhor conversarmos no meu escritório.
— Como quiser.
Ignorando o olhar atento de Lucky, Chance a seguiu até uma saleta estreita,
quase totalmente tomada por uma pesada escrivaninha. Ele fechou a porta atrás
de si e virou-se para encará-la, vendo que Sarah fazia o máximo para manter
uma distância segura entre eles, apesar do pouco espaço.
— O que quer?
O conde sorriu, aspirando o perfume suave que emanava dela.
— As crianças parecem gostar muito da senhorita.
Sarah piscou, surpresa.
— Gostam de qualquer pessoa disposta a lhes oferecer um pouco de atenção.
— Pois eu acho que oferece a elas muito mais do que isso.
Sarah sentiu o coração bater ainda mais forte.
— Não apenas eu. Há muita gente envolvida neste projeto.
— Mas não tenho dúvidas de que a senhorita é a maior responsável por seu
sucesso.
Totalmente sem-graça diante do elogio, ela tentou mudar de assunto.
— Por que veio até aqui, afinal?
Chance baixou os olhos de leve, consciente de que os momentos seguintes não
seriam fáceis. A paixão que brotara entre eles a assustava. Agora precisava
encontrar um modo de convencê-la de que não lhe faria mal algum.

Projeto Revisoras 63
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Sabe que me surpreendeu com a sua inteligência — começou, com cuidado.


— Tenho certeza de que imagina o motivo de eu estar aqui.
Os olhos azuis cintilaram, porém Sarah o encarou com admirável segurança.
— Se está se referindo ao que aconteceu ontem, não tenho a menor intenção de
falar sobre o nosso... sobre aquele...
— ...maravilhoso beijo?
— Sim... Isto é, não!
Oliver estreitou o olhar, tomado outra vez por uma onda de desejo.
— Não podemos fingir que não aconteceu, Sarah.
Ela umedeceu os lábios inconscientemente, fazendo o corpo dele reagir como
nunca.
— Não vejo por que não — Sarah murmurou por fim, sem muita convicção.
— Para começar, porque não vou esquecer o beijo tão fácil. Ela arregalou os
olhos, empalidecendo diante daquela confissão.
— Milorde... — Engoliu em seco. — Como disse, considero-me uma mulher
razoavelmente inteligente. O suficiente para não me deixar iludir por um
homem... calejado como o senhor.
Calejado. Foi a vez de ele se abalar. Podia ter aceitado os carinhos de algumas
mulheres em busca de prazer, mas não era nenhum devasso. Na verdade,
sempre evitara companhias suspeitas.
— Acha mesmo que estou querendo me divertir com a senhorita?
— E não? — Sarah sustentou-lhe o olhar, num desafio. Chance não tinha muita
certeza do que queria. Mas não desejava feri-la.
— Não vou insultá-la com inverdades — informou, avançando um passo e
chegando perto o suficiente para perceber que ela estremecia. — Considero-a
extremamente atraente e, dada a oportunidade, não hesitaria em beijá-la outra
vez.
— Senhor... eu...
Ele a silenciou com um dedo.
— Oliver. E estou certo de que não achou nosso beijo assim tão repulsivo.
Sarah segurou a respiração por um segundo, antes de virar o rosto e
reencontrar a voz.

Projeto Revisoras 64
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Foi um erro.
O conde baixou a mão e sorriu sem vontade. Queria poder tomá-la nos braços e
provar o quanto certo podia ser.
— Só posso afirmar que não sou nenhum libertino que tenta seduzir toda
mulher pelo caminho. Aquele beijo me pegou de surpresa tanto quanto a você.
— Eu não me tornaria amante de homem algum—ela afirmou, determinada.
— Tenho certeza disso. Apesar de já tê-la visto vestida como um cavalariço,
interagindo com prostitutas e furtando meu alfinete como a mais habilidosa das
ladras, nunca duvidei que fosse uma dama.
Sarah estudou os olhos escuros por um longo momento, a expressão
suavizando-se aos poucos.
— Obrigada.
Não havia como ignorar a sinceridade do gesto e, por um momento, Chance viu
sua porção menos nobre desejando que ela não fosse assim tão respeitável.
Afastou o pensamento com um suspiro.
— Eu a beijei, Sarah, não porque pretendia convidá-la a se tornar minha amante,
mas porque não pude resistir à tentação.
Ela tornou a prender o ar por um instante.
— É melhor que não aconteça de novo.
— Não me faça prometer isso.
— Milorde, eu... — Um silêncio carregado de emoções se interpôs entre eles. —
Só pode estar brincando comigo. — Tentou rir, sem sucesso.
— Eu bem que gostaria de estar brincando — devolveu Chance, com voz rouca.
— De qualquer maneira, acho que já nos dissemos tudo. — Respirou fundo,
recompondo-se. — Já decidiu nosso próximo passo em relação aos brilhantes?
Pega de surpresa pela súbita mudança de assunto, Sarah piscou, confusa.
— Receio que não — murmurou, por fim.
— Então, vou até o clube de Ben conversar com alguns dos amigos dele.
Perturbadores, os olhos de Oliver tornaram a percorrer o rosto de Sarah.
Quando ele tocou um cacho dos cabelos castanhos, ela estremeceu.
— Não se preocupe, Sarah. Tudo acabará bem.

Projeto Revisoras 65
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Embora ainda fosse cedo, Chance encontrou o clube do irmão já repleto de


homens elegantemente trajados. A maioria encontrava-se sentada ao redor das
mesas de carteado, mas um só olhar bastou para ele divisar os dois cavalheiros
que almejava encontrar sentados ao lado da janela e bebendo de uma garrafa
de conhaque.
Mal pisou no local, um sujeito baixinho, vestido de preto, correu para saudá-lo.
— Bem-vindo, milorde.
— Obrigado — agradeceu, permitindo que o homem o livrasse da casaca e do
chapéu.
— Posso lhe oferecer um drinque?
— Mais tarde.
— É uma honra. — O sujeito fez uma mesura, visivelmente satisfeito em ter um
nobre em seu estabelecimento.
Chance caminhou sob olhares admirados até alcançar a mesa de Fritz e
Moreland. Assim como o irmão dele, ambos encontravam-se na casa dos vinte
anos.
Tão logo notaram a presença dele, os dois se puseram em pé, ensaiando um
cumprimento.
— Posso? — perguntou o conde, indicando uma cadeira vazia.
— Claro... — Moreland apressou-se em dizer.
Oliver sentou-se e olhou para os rapazes com indiferença.
— Meu irmão já foi?
— Na verdade, não o temos visto esses dias — contou Fritz. — Sujeito
esquisito... Não está doente, está?
— Não que eu saiba.
— Também não temos visto Goldie — lembrou Moreland, com estranheza.
— Novidade — ironizou o outro. — Na certa está sem dinheiro.
— E quem não está?
— Isso é verdade. — Fritz bebericou o conhaque, parecendo totalmente alheio à
presença de Chance enquanto continuavam a discutir suas precárias condições
financeiras. — Precisei falar com minha avó ontem. Não imagina o escândalo, só
por causa de uns trocados!

Projeto Revisoras 66
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Moreland concordou com um gesto de cabeça, em solidariedade ao amigo,


enquanto o conde observava a cena com atenção.
— Melhor encarar um agiota do que uma avó miserável — concluiu Moreland.
— Ou ficar noivo da filha de algum figurão.
Dessa vez, Moreland enrubesceu, lançando um olhar preocupado na direção de
Oliver.
— Devo lhe dar os parabéns? — indagou Chance, arguto.
Moreland corou ainda mais, tossindo, sem-graça.
— Fiquei noivo da srta. Sindall esta semana.
— O espertalhão! — riu Fritz.
— Que bom para você — contemporizou Chance. Não pareciam estar envolvidos
com o roubo. Do contrário, Fritz não teria se arriscado a pedir dinheiro à avó, e
nem Moreland se envolveria com a filha de um dos homens mais ricos da
cidade. Sem contar que nenhum dos dois parecia inteligente o bastante para tal
feito. Se houvessem surrupiado os brilhantes, não estariam tão à vontade na
presença dele.
— Chance?
Ao ouvir o chamado, ele girou o corpo. Ao deparar com lorde Scott olhando-o
através do monóculo, ergueu-se com um sorriso. Alto e distinto, de cabelos
grisalhos e feições clássicas, Scott fora um grande amigo do pai de Oliver, e sua
amizade com a família Chance não se desfizera com a morte do conde.
— Lorde Scott.
— O que veio fazer aqui, filho? — indagou o homem, sabendo da preferência de
Chance pelo White's.
Ciente de que os dois rapazes aguardavam a resposta com o mesmo interesse,
deu de ombros.
— Vim atrás de Ben, mas não dei sorte.
— Toma um drinque comigo?
Certo de que já havia conseguido de Fritz e Moreland o máximo que podia,
despediu-se dos jovens com um cumprimento de cabeça. Não entendia como o
irmão tolerava aqueles dois cabeças-ocas.

Projeto Revisoras 67
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Seguiu lorde Scott até uma mesa próxima e acomodou-se diante do velho
amigo, que se curvou para a frente com uma expressão sombria.
— Como vão as coisas?
Certificando-se de que não estavam sendo ouvidos, Chance suspirou.
— Nada ainda.
— Pode confiar na srta. Cresswell — aconselhou o homem, com segurança. —
Se existe alguém que pode achar esses brilhantes, esse alguém é ela.
Chance não pôde deixar de notar o tom de afeição na voz dele e sentiu,
contrariado, uma pontada de ciúme. Embora suspeitasse que os dois eram mais
do que bons amigos, havia tentado ignorar o fato. Não gostava de pensar que
Sarah pudesse se envolver com homem algum, muito menos com alguém com o
dobro da idade dela. Agora se perguntava se a aparente inocência de Sarah não
passava de outra simulação. Afinal, era filha de um mestre no assunto. Também
não tinha idéia de como ela podia ter uma casa própria e o estilo de vida que
levava.
Desgostoso, não perdeu a oportunidade de tentar descobrir a verdade.
— Conhece a srta. Cresswell há muito tempo? — indagou, com falsa
casualidade.
— Há muitos anos. É, sem dúvida, uma das pessoas que eu mais admiro.
Oliver correu a mão pelo queixo.
— Como a conheceu?
Lorde Scott recostou-se no espaldar, hesitante.
— Isso importa?
Chance não estava preparado para assumir o quanto importava.
— Acho estranho se relacionar com a filha do Malvado Dândi. Sábio demais para
se deixar enganar — o homem sorriu.
— Admiro muito o trabalho que ela desenvolve com as crianças.
— Isso é tudo?
— Está tentando descobrir meu grau de intimidade com a srta. Cresswell?
Chance sabia que deveria negar qualquer interesse pela vida pessoal de Sarah,
já que isso não era da sua conta. Mas algo dentro dele o impediu de fazê-lo.

Projeto Revisoras 68
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Por que não?


Lorde Scott comprimiu os lábios.
— Porque esse é um assunto que não lhe diz respeito.
— E delicado, pelo visto.
Scott curvou-se para a frente e apoiou as mãos na mesa. O brilho em seus olhos
já dizia tudo.
— Considero a srta. Cresswell uma filha — disse, devagar. — Portanto jamais
permitirei que alguém a insulte.
Um misto de emoções tomou conta de Chance: alívio pela certeza de que o
homem dizia a verdade; vergonha por haver julgado Sarah erroneamente, ainda
que por alguns minutos; e, o mais surpreendente, uma ponta de raiva por Scott
permitir, já que a considerava uma filha, que ela se envolvesse em questões tão
perigosas como aquela com que estavam lidando.
— Eu também não agiria de outra forma — Oliver defendeu-se honestamente. —
Entretanto creio que esteja falhando em seu afeto por ela.
O homem ergueu uma sobrancelha, surpreso com a ofensiva.
— Posso saber no quê?
— Sabia que a srta. Cresswell mantém em casa um garoto que o pai dela
"ganhou" num jogo? E também que se relaciona freqüentemente com madame
Vallenway?
Scott o observou por um instante, taciturno.
— Se conhecesse bem a srta. Cresswell, saberia que nada do que eu possa dizer
a ela teria a menor influência sobre suas atitudes.
— Sei muito bem o quanto ela é obstinada — concedeu Chance com um
suspiro.
— Mas não sabe o quanto ela é do bem.
Chance não se satisfez com a resposta. Esperava mais bom senso do amigo.
— O fato de ser do bem não a protege dos perigos que a srta. Cresswell
deliberadamente corteja e nem a poupa das maledicências.
— Watts garante-lhe a proteção. Quanto às maledicências... O próprio pai é o
primeiro a garantir que a srta. Cresswell nunca se livre delas.

Projeto Revisoras 69
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Scott não dizia nada além da verdade, mas foi como se Chance levasse um tapa.
Não importava quanto era injusto. Não podia negar que o legado do Malvado
Dândi assombraria Sarah pelo resto da vida. Um legado que manteria as portas
da sociedade eternamente fechadas para ela.
Respirou fundo, mal notando que lorde Scott se levantara e circundara a mesa.
— Se precisarem de mim, sabem que podem contar com a minha ajuda — disse,
tocando-o no ombro.
— Sim... obrigado — Oliver agradeceu, ainda mergulhado em pensamentos.
— E lembre-se de não julgar a srta. Cresswell com tanta rigidez. O maior
objetivo dela é tornar a vida dos necessitados mais digna.
— E quem vai tornar a vida dela mais digna? — devolveu Chance, encarando o
amigo.
Lorde Scott tornou a erguer as sobrancelhas grisalhas.
— Isso eu já não sei dizer.
Com um último tapinha no ombro dele, afastou-se.
O conde engoliu em seco, perturbado. Não entendia por que o incomodava
tanto que Sarah continuasse vivendo daquela forma; muito menos a perspectiva
de vê-la casada com algum trabalhador, como uma mulher comum. Afinal, ela
logo estaria fora de sua vida. O que o futuro reservava para a srta. Cresswell
não lhe dizia respeito.
Apesar de tal conclusão, seu semblante continuou carregado por muito tempo.
Foi com visível relutância que o dono do estabelecimento se aproximou da
mesa.
— Milorde... Posso lhe oferecer mais um cálice de conhaque?
— Não — o conde respondeu.
A última coisa de que precisava agora era ficar embriagado.

Sarah devia ter terminado as contas da escola havia horas. Por mais que
somasse as colunas do livro-caixa, porém, não conseguia fazê-las bater.
Culpa de lorde Chance, sem dúvida. Embora ele tivesse saído de Londres fazia
mais de uma semana, sua ausência não pusera fim àquela inquietação.
Por que o conde a havia beijado?

Projeto Revisoras 70
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Até o momento, ela estivera mais do que feliz com sua existência. Tinha até se
convencido de que era uma daquelas raras mulheres que não precisavam de um
homem para se sentir completas.
Mas as sensações que o conde lhe provocara haviam lhe abalado as certezas.
Por que ninguém a alertara contra os poderes de um simples beijo?
Sarah sabia distinguir uma obra de arte falsa de uma genuína, barganhar como
uma administradora competente, comportar-se como uma verdadeira dama.
Sabia até mesmo como identificar quem roubava num jogo de cartas! Seu pai a
ensinara a defender-se de todo tipo de cilada a que uma moça solteira estava
sujeita em Londres. Mas jamais lhe abrira os olhos para as armadilhas do
coração.
Droga! Já tinha perdido tempo demais ruminando os próprios sentimentos e
insatisfações. Não podia ansiar pelos beijos de um homem que estava muito
além de seu alcance. Melhor era esquecer aquelas fantasias ridículas e se
concentrar apenas em descobrir os brilhantes dos Chance. Tão logo o fizesse, o
conde seria carta fora do baralho, e ela poderia retornar à sua vida agradável,
segura e sem sobressaltos.
Determinada, Sarah voltou a lidar com as contas.
Mal acabara de somar os números, dessa vez com precisão, ouviu um ruído.
Ergueu a cabeça e sentiu o coração estacar dentro do peito. Vestindo uma
casaca bege e calça num tom mais escuro, o conde aproximou-se da
escrivaninha.
Não foram o traje distinto e o andar seguro, todavia, que mais a abalaram, e
sim o brilho nos olhos escuros e o sorriso nos lábios perfeitos que o tornavam
absurdamente bonito.
Por uma fração de segundo, ela teve vontade de...
Não. Com um movimento contido, pôs-se em pé. Não era nenhuma adolescente,
mas uma mulher madura, apesar daquele tremor que teimava em desestabilizar
seu corpo toda vez que Oliver Chance estava por perto.
— Sarah Cresswell — ele a saudou e fez uma mesura.
— Milorde — ela respondeu, surpresa por ter conseguido impostar a voz com
segurança. — Pensei que se encontrasse fora de Londres.
— E estava, mas retornei tão logo me foi possível.

Projeto Revisoras 71
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Aceita uma bebida?


— Não, obrigado. Prefiro me manter sóbrio.
O comentário, sem dúvida, dizia respeito ao dia em que Sarah o enganara com
o truque do alfinete.
— Só fiz aquilo porque estava se comportando de uma maneira insuportável —
ela se defendeu com objetividade.
Chance assumiu o ar indiferente que Sarah tanto detestava.
— Eu não sei me comportar de outro modo.
Ela teve de morder a língua para não lembrá-lo de como ele se comportara da
última vez. Em vez disso, ergueu o rosto para encará-lo.
— A que devo a honra da sua visita?
— Eu só queria que soubesse que conversei com os amigos de Ben e que,
agora, posso afirmar com certeza que eles não têm nada a ver com o sumiço
das jóias.
Sarah apertou os lábios numa linha fina. Não gostava de ser passada para trás.
— Estamos falhando numa coisa — contrapôs, após vacilar por apenas um
segundo. Também não gostava de admitir que deixara escapar um detalhe
importante. — Uma coisa a respeito da qual eu gostaria de conversar com seu
irmão.
Lorde Chance bufou diante do pedido.
— Pensei que ele tivesse ido para Brighton, onde estive, mas me enganei.
Conhecendo Ben, todavia, sei que logo ele vai superar o sentimento de culpa e
voltar para aos prazeres de Londres.
— É uma pena — disse Sarah.
— Sem dúvida.
— Talvez seja melhor contatar a polícia — sugeriu ela, obrigando-se a engolir o
próprio orgulho.
— Prefiro manter isso em segredo por mais alguns dias.
— Sinceramente, acho que superestimei minhas habilidades neste caso.
Pronta para suportar o sarcasmo que certamente viria, Sarah surpreendeu-se
quando Oliver lhe tocou o queixo com delicadeza.

Projeto Revisoras 72
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Bobagem. Eu não perdi a confiança na sua capacidade — ele afirmou com voz
rouca, o olhar dirigido aos seus lábios. — Que linda boca... — murmurou. —
Não a esqueci um só instante.
O prazer que ela lutava por sufocar retornou de uma só vez, comprimindo-lhe o
estômago e enfraquecendo-lhe os joelhos.
— Milorde... — tentou protestar, ainda que seu rosto seguisse em direção ao
dele, como se tivesse vida própria.
— Mon Dieu!
Lorde Chance recuou como se atingido por um raio. Sarah sentiu o sangue
abandonar-lhe a face diante da visão de seu pai parado à porta. Viu-o erguer o
tapa-olho para ter certeza da cena que quase presenciara. Embora nada em sua
expressão indicasse que ele a desaprovava, Sarah não se deixou enganar.
Solomon podia não ser um pai tradicional, mas puniria quem ousasse mexer
com qualquer uma de suas filhas. E, sem dúvida, com a espada.
Avançou um passo, determinada a impedir qualquer incidente.
— Tio Pierre...
O tapa-olho voltou ao lugar enquanto ele se aproximava. Mais uma vez, havia
escolhido uma horrorosa casaca listrada e calça abaixo dos joelhos, os cabelos
grisalhos presos na nuca por uma fita de veludo.
— Parece que cheguei no momento certo.
Sarah tentou desempenhar seu papel de anfitriã.
— Tio Pierre, apresento-lhe lorde Chance. Lorde Chance, meu tio, monsieur
Valmere.
Os olhos do conde se estreitaram.
— Monsieur Valmere — saudou-o com um cumprimento de cabeça.
— Tio Pierre acaba de chegar de Paris — acrescentou ela, ocultando o
nervosismo.
— Que maravilha.
— Oui, oui... — Deliberadamente, Solomon observou o conde dos pés à cabeça.
— Pelo que sei, tem freqüentado bastante a casa nos últimos dias.
Oliver ignorou o comentário.
— Espero que esteja apreciando sua estada em Londres.

Projeto Revisoras 73
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— De certa forma.
Na esperança de pôr um fim no diálogo o mais rápido possível, Sarah lançou um
olhar enviesado ao pai. Lorde Chance era astuto demais para se deixar enganar
por muito tempo.
— Está precisando de alguma coisa, titio?
A tensão se dissipou de leve quando um sorriso brincou nos lábios de Solomon.
— Imaginei que gostaria de saber do meu sucesso no carteado, na noite
passada, mon chérie. Na verdade, foi uma noite extremamente lucrativa.
Sarah sentiu-se enrijecer. Seria possível que o pai houvesse voltado aos velhos
tempos?
— Que bom... Meus parabéns.
— No, no. — Ele riu. — Não precisa me congratular. Não ganhei devido ao meu
talento, e sim graças ao conhaque dos ingleses. Inacreditável como a bebida os
deixa com o cérebro embotado.
A piada de mau gosto e o ridículo sotaque francês não pareceram abalar o
conde nem por um segundo.
— É uma pena que tenha tido uma noite tão pouco... esportiva.
— Não posso me queixar. — Solomon apanhou um pouco de rapé da caixinha
que levava no bolso. — Se lorde Maxwell não se importa em desperdiçar sua
fortuna, por que eu me importaria em ficar com algumas notas?
Sarah prendeu a respiração diante da velha lábia do Malvado Dândi. Pôde até
mesmo sentir a tensão que tomou conta de Chance.
— Lorde Maxwell? — repetiu o conde.
— Sim. Como dizem vocês, ingleses, um patife profissional. — Tornou a
guardar a caixinha. — No final, ele até me pareceu chocado com a quantia que
perdeu. Disse-me, inclusive, que só poderá pagar a dívida na semana que vem.
Embora consciente do olhar perscrutador do conde, Sarah tentou se manter
atenta às palavras do pai. Tinha sido muita esperteza dele levar lorde Maxwell
àquela situação.
— O que significa que, em breve, ele vai precisar de uma boa quantia em
dinheiro vivo — ela murmurou.
— Sem dúvida. — O Malvado Dândi sorriu.

Projeto Revisoras 74
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Parece-me que agora estou em débito com o senhor — anunciou Chance de


súbito, provando que acompanhara melhor do que ninguém o raciocínio de
Sarah.
Solomon o brindou com um olhar penetrante.
— Talvez.
Frente à tensão quase palpável, Sarah tossiu de leve.
— Creio que tio Pierre esteja querendo apenas uma explicação para as suas
visitas, milorde — desconversou, nervosa.
Os homens se entreolharam tal qual dois lutadores se enfrentando num ringue.
— Depois que o pai de Sarah se foi, tomei para mim a responsabilidade de
cuidar dela — explicou Solomon, com um falso sorriso.
Lorde Chance não se alterou com o alerta. Em vez disso, um brilho de
divertimento iluminou os olhos escuros.
— Engraçado, lorde Scott me disse a mesma coisa.
— Scott... — bufou Solomon, desgostoso. Não sem motivos, os dois se
detestavam. — Um cavalheiro de muito boas intenções. Mas não é páreo para
Sarah.
— Com certeza — concordou Chance, virando-se para fitá-la.
— Somente um homem de pulso poderia lhe dar rédea curta.
Solomon teve a audácia de soltar uma gargalhada, apreciando o bizarro
comentário.
— É muito perspicaz, meu caro. Sarah comprimiu os lábios.
— Para seu governo, não gosto de ser tratada como um animal irracional que
precisa ser domado! — ralhou, voltando-se em seguida para o pai: — Acha
mesmo que lorde Maxwell vai lhe pagar o que deve, titio?
— Ah, vai. Não se livrará de mim tão facilmente. Agora vou dormir. — Fez uma
pausa, olhando de um para outro significativamente. — Mas Watts estará do
lado de fora da porta para qualquer eventualidade.
Dado o recado nada sutil, o Malvado Dândi deixou a sala.
Sarah suspirou, aliviada, ainda que aquilo significasse estar sozinha outra vez
com lorde Chance. Quanto menos aqueles dois ficassem juntos, melhor.

Projeto Revisoras 75
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Uma pessoa fora do comum — comentou Oliver, tão logo se viram a sós, o
olhar penetrante mirando o dela.
Sarah se obrigou a permanecer inabalável.
— Tio Pierre adora ser incomum.
— Você se parece muito com ele.
— Um pouco. Afinal, somos parentes.
— Exceto pela boca — brincou Chance, sorrindo. — Essa ninguém tem igual.
Ela prendeu a respiração, perguntando-se como um dia pudera se considerar
uma mulher experiente e segura de si. Sentiu-se tão imatura como a irmã mais
nova, Rachel.
— Milorde, por favor — tentou neutralizar o comentário com ironia, mas acabou
soando ofegante.
Ele se aproximou.
— Prefere que eu comente o quanto suas pernas são lindas? — Ergueu a mão
para tocá-la no rosto.
— Não!
Chance deixou cair o braço.
— Talvez seja bom mesmo que seu... tio esteja em casa — murmurou, com um
breve sorriso. — E eu que pensei ser imune a essas coisas.
— Que coisas?
Oliver dispensou a pergunta com um gesto, recusando-se a explicar a
enigmática expressão.
— É melhor que eu vá embora. Ah... — Deteve-se ao se lembrar de algo. —
Quase me esqueci. Minha mãe quer que você vá visitá-la amanhã.
— O quê? — Sarah ergueu as sobrancelhas, assustada.
— Ela disse algo sobre escreverem as charadas para a festa de Natal.
— Não posso visitar sua mãe outra vez!
— Está bem. — Ele deu de ombros, um sorriso brincando nos lábios bem-feitos.
— Mas esteja preparada para ela bater nesta porta. Lady Chance costuma ser
muito obstinada quando põe uma coisa na cabeça, e está convencida de que o
sucesso da reunião depende muito da sua contribuição.

Projeto Revisoras 76
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Lady Chance ali, na casa dela? Deparando com o Malvado Dândi em pessoa?
— Precisa fazer alguma coisa!
— Não sou páreo para ela. — O conde abriu os braços, demonstrando
impotência.
Sarah não entendia que graça ele via na situação, a menos que não
compreendesse de todo as conseqüências de tal visita.
— Já pensou no que podem dizer se souberem que estive outra vez na casa de
sua mãe?
— E quem vai saber?
— Os criados, para começar! — Ela entreabriu os lábios, aturdida. Ele não se
importava com a reputação da mãe?
— Uma visita breve não causará nenhuma comoção entre eles, pode estar certa.
Não imagino outra saída.
— Imaginaria se quisesse.
— Mas você acabou de dizer que não é nenhum animal irracional que precisa
ser domado... Eu não ousaria intervir nesse assunto.
Sarah não estava habituada a ter respostas tão rápidas e certeiras. Lorde Chance
podia ser o homem mais estonteante que já conhecera em toda a sua vida, mas
era também o mais desagradável.
— Muito bem. Vou visitar sua mãe. Mas se começar o falatório, a culpa será
toda sua!
Ele riu, tranqüilo.
— Sobreviveremos ao escândalo.
Às onze em ponto, antes que qualquer outra visita pudesse se apresentar, Sarah
subiu os degraus da mansão de lady Chance. Tinha sofrido ao longo do
percurso. Não apenas por causa do vento cortante pelas ruas de Londres, mas
também pelas poças que lhe encharcaram os sapatos. Podia ter alugado uma
carruagem, claro. Mas chegara à conclusão de que um veículo de aluguel
chamaria mais a atenção naquela parte da cidade do que qualquer outro.
Não que lorde Chance não merecesse. A indiferença do conde quanto à
reputação da mãe era reprovável!

Projeto Revisoras 77
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Bateu os pés na tentativa de sentir as pontas regeladas dos dedos, e endireitou


o corpo tão logo a porta foi aberta pelo mordomo.
— Srta. Cresswell...
Após tomar-lhe o casaco e o chapéu, o criado a conduziu pela mansão até uma
sala particular. Sarah tentou não se deixar impressionar mais uma vez pela
opulência do local.
Lorde Chance não era arrogante à toa, pensou. Quem não se deixava afetar por
tanto luxo?
Adentrando a sala decorada em verde e marfim, divisou lady Chance sentada no
sofá.
— Entre, querida! — a mulher a saudou com um genuíno sorriso. — Pensei que
não viesse mais.
Sarah aproximou-se, hesitante, sentindo-se uma verdadeira fraude.
— Lorde Chance me falou que a senhora precisa de ajuda com as charadas.
— Só isso? Preciso de muito mais! — Bateu no estofado ao lado dela,
alegremente. — Sente-se aqui e tomaremos um chá enquanto conversamos.
Sarah obedeceu, tensa. Lady Chance parecia tão feliz em vê-la que tornava a
situação ainda mais delicada. Seu sentimento de culpa diminuiu à medida que a
idosa senhora passou a descrever os preparativos para a festa. Precisava da
ajuda dela para escolher as charadas, as músicas e os melhores locais para
pendurar o pequeno arranjo de visgo sob o qual, rezava a tradição, as pessoas
eram obrigadas a se beijar na noite de Natal. Também pediu que Sarah lhe
escrevesse a receita para o ponche.
Duas horas depois, recostava-se no sofá acetinado, rindo de orelha a orelha.
— Como é criativa! — elogiou-a, satisfeita. — Essa festa vai ser um sucesso, e
graças a você.
Sarah não pôde deixar de sorrir diante do elogio. Ainda assim, continuava
preocupada. Embora jamais houvesse circulado pelas altas-rodas de Londres,
sabia que o êxito de uma reunião dependia mais de quem era convidado do que
de qualquer preparativo.
— Meus esforços terão pouca influência no sucesso da sua festa, lady Chance.
Estou certa de que nada é mais importante do que a sua competência como
anfitriã.

Projeto Revisoras 78
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Ora, você é modesta demais, minha querida! Fico muito feliz que Oliver a
tenha encontrado.
Sabendo que a velha senhora não ficaria tão feliz se soubesse de toda a
verdade, Sarah ensaiou um sorriso. Já era hora de bater em retirada. Antes que
ela pudesse exprimir sua intenção, contudo, uma voz grave se fez ouvir da
porta:
— Não mais do que eu.
A despeito de si mesma, Sarah correu os olhos pela figura máscula e
absurdamente atraente. Em nenhum outro homem a casaca justa e o par de
calças camurça cairiam tão bem. Como uma segunda pele, o tecido colava-se às
pernas musculosas, que se moviam com segurança na direção dela.
Sarah sentiu o sangue subir-lhe à face e o coração disparar como de costume.
— Oliver! — exclamou lady Chance. Ele as saudou com uma mesura.
— Mamãe, srta. Cresswell...
— Não esperava vê-lo hoje, meu filho.
— Achei que gostaria de saber que estive em Brighton.
— Que estranho Ben visitar Brighton nesta época do ano! — comentou lady
Chance.
Sarah engoliu em seco, aguardando a resposta dele.
— Deve estar em busca de um pouco de sossego.
A mulher aceitou a hipótese sem objeção.
— Pobrezinho. Bem que me pareceu abatido da última vez em que esteve aqui.
Acho que não aprecia muito o ritmo de Londres.
Uma expressão sarcástica transformou o semblante de Oliver.
— Pois é. É sempre bom quando ele retorna a Kent.
Para lady Chance, foi como se o conde houvesse sugerido que o irmão viajasse
para as colônias além-mar.
— Santo Deus, o que Ben faz que o incomoda tanto?
— O que ele não faz é que me incomoda mais, mamãe.
— Ben é novo demais para o tipo de responsabilidade que deseja fazê-lo
assumir, meu querido — protestou a mulher, aborrecida.

Projeto Revisoras 79
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Sarah mordeu o lábio, obrigando-se a não intervir. Como lady Chance podia
achar justo que o rapaz vivesse só para os prazeres?
— Um pouco de responsabilidade não lhe faria mal algum — insistiu o conde,
sem nenhuma emoção na voz profunda.
A velha senhora levou a mão ao coração, os olhos claros tristonhos.
— Ele já sofreu demais, meu filho. Precisa ter paciência.
Pela primeira vez, Sarah viu uma ponta de irritação nas feições do conde.
Chance, todavia, limitou-se a concordar com um gesto de cabeça.
— Como quiser, mamãe.
Um silêncio constrangedor se fez entre os três. Sentindo-se mais do que um
peixe fora d'água, Sarah pôs-se em pé.
— É melhor eu voltar para casa.
Lorde Chance ergueu-se de imediato.
— Eu a levo.
— Não é preciso, obrigada.
— Eu insisto...
Consciente de que a velha senhora observava a cena com extrema atenção,
Sarah foi obrigada a ceder ao inevitável.
— Está bem, então. — Ensaiou um sorriso, aceitando o braço que Oliver lhe
oferecia.
— Vai ver se está tudo certo com seu irmão, filho?
— Como sempre. — Chance fitou o semblante preocupado de Sarah. — Vamos,
srta. Cresswell.

Capítulo V

Chacoalhando na carruagem, Chance deixou escapar um longo suspiro. O dia


amanhecera cinzento e uma garoa fina cobria a cidade. Aquecido na cama,
havia demorado mais do que o normal para se levantar, se arrumar e descer

Projeto Revisoras 80
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

para o café. Apenas enquanto comia foi que lhe ocorreu: será que Sarah
Cresswell seria tão tola a ponto de ir a pé até a casa da mãe dele?
Demorara menos de um segundo para chegar a uma conclusão. Sarah
freqüentava bordéis e havia fundado uma escola numa região em que nem
mesmo Watts ficaria à vontade. Que mal ela veria em atravessar meia Londres
sozinha?
Preocupado, Oliver pedira a carruagem. Jamais se perdoaria se Sarah ficasse
doente. Como podia ter se esquecido daquilo, quando dificilmente conseguia se
desligar do que acontecia com ela? Quantas vezes não perdera a concentração
no que fazia, lembrando-se daquela pele macia e dos lábios cheios?
Tentava dizer a si mesmo que sua atração por Sarah era apenas por ela ser
diferente das mulheres às quais estava habituado. Era como um garoto
desejando um brinquedo que não possuía.
Não como um garoto, refletiu, olhando para Sarah sentada agora à sua frente,
no banco da carruagem. Não havia nada de infantil na reação de seu corpo à
proximidade dela.
Aspirando o ar perfumado por uma essência de lilás, estudou as feições
delicadas e a boca tentadora. Sarah era inebriante, pensou, atordoado.
Observou a testa levemente franzida e sorriu.
— Por que essa cara? Minha mãe foi tão horrível assim? Ela piscou, surpresa.
— Claro que não. Lady Chance é um amor.
— Então, sou eu o responsável pelo seu humor. Perdoe-me, mas eu só quis
poupá-la de caminhar nesse tempo.
Esperando uma resposta ácida, Oliver admirou-se quando Sarah deu de ombros.
— Não tem problema.
Intrigado, ele se curvou para a frente.
— Vamos... Costumo dividir meus problemas com você.
Por um instante, achou que ela não fosse se abrir. Mas, de repente, Sarah
cruzou as mãos sobre o colo e o fitou nos olhos.
— Não acho justo que seja obrigado a tomar conta da família, enquanto seu
irmão é encorajado a viver como bem entende.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

O conde engoliu em seco, pego de surpresa por aquelas palavras. Era a primeira
vez que alguém demonstrava preocupação pelas responsabilidades que ele
assumira. Com certeza, nem a mãe dele nem o irmão costumavam considerar o
volume de trabalho que os inúmeros bens dos Chance acarretava. Era o filho
mais velho e, portanto, nascera com esse dever. Até o momento, jamais
questionara as próprias obrigações ou esperara por reconhecimento. No
entanto não pôde deixar de se comover com o genuíno aborrecimento de Sarah.
— Parece ser essa a sorte dos primogênitos — disse. — Aposto que acontece o
mesmo com você.
— Talvez.
Chance sorriu, depois suspirou longamente.
— Não acho que Ben deva ser encorajado a continuar vivendo assim. Temo que
as más influências lhe corrompam o caráter. Precisaria de algo que necessitasse
da sua atenção e o mantivesse ocupado.
— Tarefa difícil — declarou Sarah, pensando nas próprias irmãs.
Oliver mudou de assunto de propósito.
— Conte-me... O que decidiram sobre a festa?
— Não pode estar interessado! — Ela riu.
—Claro que estou. Já que vou participar das atividades, melhor estar preparado.
Teve a intenção de fazê-la sorrir outra vez, porém Sarah baixou os olhos, o
semblante sombrio.
— Fique tranqüilo. Não planejamos nada ultrajante.
Sentindo-se péssimo por ela ter interpretado mal as palavras, passou a mão
pelos cabelos.
— Nunca pensei isso.
— Nem mesmo sendo eu filha do Malvado Dândi?
À menção do pai dela, o conde sentiu um leve desgosto. Suportar aquele tio
esquisito já era ruim o bastante... se é que era tio de Sarah realmente. Na
verdade, incomodava-o lembrar que ela estaria eternamente ligada a um famoso
ladrão de jóias.
— Por que você faz isso?
— O quê? — Sarah arregalou os olhos.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Por que se menospreza tanto?


— Não é questão de se menosprezar — protestou ela, amarga. — É a verdade
nua e crua. Sou filha do Malvado Dândi, assim como milorde é filho do conde de
Chance.
— Ninguém prestaria tanta atenção a esse fato se não se esforçasse tanto para
ressaltá-lo o tempo todo.
Uma expressão séria transformou o rosto bonito.
— Acha que eu deveria dissimular minha condição?
— Talvez isso tornasse sua vida mais fácil.
Uma ponta de tristeza escureceu os olhos de Sarah.
— Não posso fingir que o comportamento de meu pai não me atinge, mas ele é
meu pai e eu o amo — murmurou, com um resto de dignidade. — Não vou
mentir para mim mesma nem para ninguém.
A simplicidade das palavras dela fez cair em si. Não costumava ser tão
insensível. Como podia ter sugerido que Sarah ignorasse os próprios laços? Pará
que ele próprio pudesse se relacionar com ela em paz? Tinha agido como um
idiota.
— Tem razão. Perdoe-me, Sarah — pediu, verdadeiramente arrependido. — Falei
sem pensar.
Ela desviou os olhos marejados.
— Não tem importância. Não deve ser fácil entender.
— Será? — Chance riu. — Pelo que sei, também tenho um parente envolvido
num roubo de jóias...
Sarah tornou a encará-lo, os lábios curvando-se num breve sorriso.
— Não é a mesma coisa.
— Mas é o suficiente para experimentar a dificuldade de aceitar os defeitos de
uma pessoa que amamos.
Ela ergueu uma sobrancelha.
— Uma admissão e tanto para o "impecável conde"...
Ele ficou satisfeito em ver que o brilho retornara aos olhos azuis.
— Por favor, nunca mais use esse título ridículo.

Projeto Revisoras 83
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Não tem orgulho da sua reputação?


— Essa reputação é absurda — Oliver retrucou, perguntando-se onde Sarah teria
ouvido aquilo. — Como você mesma já pôde constatar, estou longe de ser
perfeito.
— Verdade.
Chance soltou uma gargalhada.
— Acabou de estraçalhar minha auto-estima!
— Ah, sim... — Ela torceu o nariz, incrédula.
— Não estou habituado a ser tratado com tão pouco-caso, sabia?
— Então já está na hora de aprender — Sarah retrucou.
Chance pensou em todas as mulheres que viviam para adulá-lo e tentar seduzi-
lo. Nenhuma, jamais, questionara sua perfeição. Talvez por isso considerasse
Sarah Cresswell tão interessante.
— Pode ser — respondeu, por fim.
Os olhares se encontraram. Por um interminável momento, os pensamentos do
conde se voltaram novamente para aquela pele de seda e os lábios rosados.
Então, como se pressentisse que ele estava prestes a vencer os centímetros que
os separavam e tomá-la nos braços, Sarah voltou a falar:
— Meu... tio tem observado lorde Maxwell bem de perto.
Oliver sorriu, desejando que monsieur Valmere e lorde Maxwell fossem para o
inferno.
— É mesmo?
— Infelizmente, até agora não relatou nada de suspeito.
— Então vamos ter que continuar esperando.
— Receio que sim.
Chance não pareceu nem um pouco desapontado com a situação.
— Portanto é exatamente isso o que vamos fazer.

Sarah permaneceu sentada a um canto da sala, enquanto a garotinha esforçava-


se para ler um trecho da lição. Embora Fanny tivesse vindo para a escola havia

Projeto Revisoras 84
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

mais de um ano, levara meses para convencê-la até mesmo a falar. Vê-la ficar
em pé diante da classe e ler em voz alta a enchia de orgulho.
Tão logo a menina chegou ao fim, Sarah correu para abraçá-la.
— Foi maravilhoso, Fanny!
— Partiquei bastante, como me mandou.
— Pratiquei — corrigiu-a, sorrindo. — Isso mesmo.
Nesse momento, alguém abriu a porta.
— Senhorita, acho melhor vir aqui! — Lucky surgiu no batente.
— O que foi?
— Venha!
Sem dar a ela a oportunidade de protestar, o garoto sorriu, maroto, e
desapareceu. Após orientar as crianças a permanecerem em seus lugares, Sarah
correu atrás dele. O que poderia ter deixado o menino tão excitado?
Na porta de entrada, agora totalmente aberta, ela avistou duas enormes
carroças.
— Meu Deus...
Um homem alto, vestindo um sobretudo acinzentado, saltou de uma delas. O
choque de Sarah foi ainda maior ao perceber que se tratava de lorde Chance.
— Bom dia, Sarah Cresswell — ele a saudou com um sorriso.
— Mas... o que é isso?
— Na primeira carroça há carvão, para manter o fogo da escola aceso no
inverno. E na segunda, vai encontrar livros, escrivaninhas, casacos, botas,
cachecóis...
— E-estou vendo, mas... Por quê?
Oliver deu de ombros.
— Com a proximidade do Natal, andei pensando no que iria lhe dar de presente.
Considerei dezenas de coisas que uma moça adoraria ganhar, mas, depois,
achei que você ficaria mais feliz com isso do que com um colar de pérolas. —
Fez uma pausa, olhando-a no fundo dos olhos. — Acertei?
Confusa pela inesperada demonstração de solidariedade e pelo prazer de saber
que ele tencionava agradá-la, Sarah se viu tremendo dos pés à cabeça.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Mas, não devia... Isto é, eu não estava esperando e...


O conde sorriu.
— E o que eu mais admiro em você. Não espera nada de ninguém.
Ela olhou para as carroças abarrotadas, tentando reencontrar a voz.
— Mas é muita coisa!
— É um presente — garantiu ele.
Ela sabia que devia protestar. Aceitar a ajuda a deixaria em débito com lorde
Chance pelo resto da vida. Mas pensar em como as crianças iriam aproveitar
aquilo tudo a fez abrir mão de qualquer escrúpulo. Sentiu a garganta apertada e
ergueu os olhos marejados para os do conde.
— Muito obrigada!
Ele a tocou no rosto.
— Está feliz?
— Muito mais do que eu poderia expressar.
— Que bom — Oliver sussurrou, o olhar preso ao dela, os lábios curvando-se
num leve sorriso.
Por um instante, só havia os dois ali na rua, e Sarah pensou que poderia
permanecer presa àquele olhar para sempre.
Mas um assobio rompeu a magia, e Lucky se aproximou deles.
— Puxa... Você é bom, hein? — elogiou, sincero. — Quando o conheci, todo
arrumadinho, achei que fosse um sujeito insuportável.
Chance jogou a cabeça para trás com uma risada.
— Ainda bem que subi no seu conceito.
O menino sorriu, os olhos escuros cintilando.
— Quer saber? Acho até que ia dar um bom marido para a srta. Cresswell.
Sarah deixou escapar uma exclamação, mas, antes que pudesse dizer qualquer
coisa, Lucky piscou para o conde e bateu em retirada, ansioso para anunciar a
chegada dos presentes. Ela sentiu o rosto pegar fogo e relutou em erguer o
olhar.
— Peço desculpas por Lucky. Ele vive esquecendo de como deve se comportar.
— Franziu a testa de leve ao notar a expressão no rosto moreno.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— ...é um bom garoto — ouviu-o murmurar, por fim. — Fez um excelente


trabalho.
Um silêncio constrangedor desceu sobre ambos. E, ao dar-se conta que saíra da
escola sem nem mesmo apanhar um xale, Sarah estremeceu.
— Preciso pensar num lugar para armazenar as coisas.
— Meus homens podem ajudar — garantiu Chance.
Ela sorriu e se afastou rapidamente.
Em pouco tempo, as carroças foram esvaziadas e a doação devidamente
organizada pelos cômodos da escola. Sarah escapou para o pequeno escritório
e pendurou uma chaleira de água sobre o fogo da lareira. Depois, assegurando
a si mesma que fazia a coisa certa, saiu da saleta e fez um sinal para que lorde
Chance viesse até ali.
Ele não perdeu tempo. Logo em seguida fechava a porta atrás de si.
Ela engoliu em seco, apoiando-se na mesa, de costas para Oliver. Havia
esquecido de como o espaço era exíguo para acomodar os dois. Girou o corpo e
tentou se concentrar no chá que havia preparado. E daí que sentia o perfume de
colônia que emanava dele e até mesmo o calor do corpo másculo? Era madura o
suficiente para agir como uma dama.
Ou não era?
Determinada a assumir o comando da situação, entregou-lhe uma xícara.
— Depois de tudo, é o mínimo que posso lhe oferecer.
— Por que está me olhando assim? — o conde indagou.
Pega de surpresa, respondeu a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
— Estava pensando que deve ter coisas bem mais interessantes para fazer do
que vir para estes lados.
Aparentemente, ele tomou a observação como verdadeira.
— Se está se referindo às assembléias e reuniões, está muito equivocada.
— Por que não aprecia os eventos da sua classe?
Chance ergueu as sobrancelhas, como se considerasse a resposta.
— Na verdade, prefiro mil vezes devotar meu tempo à minha coleção de
relíquias gregas — confessou.

Projeto Revisoras 87
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Sarah arregalou os olhos, incapaz de conter a própria surpresa.


— É especialista no assunto?
— Não. Um completo amador. — Fitou-a por cima da xícara. — Gostaria de ver
minha coleção?
O inesperado convite fez o coração dela disparar. Antes que pudesse pensar
duas vezes, já havia dado a resposta.
— Eu adoraria!
Chance a fitou, o semblante moreno se iluminando quase imperceptível.
Os olhares se encontraram uma vez mais e Sarah sentiu as pernas fraquejarem.
De repente, a porta do escritório foi aberta. Ao deparar com a sra. Surton, lorde
Chance curvou-se numa mesura e foi obrigado a postar-se ao lado de Sarah para
não ser atropelado pela mulher.
— Sra. Surton... — disse Sarah, plenamente consciente do corpo forte junto ao
seu e da respiração quente tocando-lhe os cabelos. Por que fora escolher
justamente o escritório? Reunindo a maior dignidade possível, tentou se
concentrar na indesejável visita. — Sra. Surton, quero que conheça lorde
Chance. Lorde Chance, a sra. Surton, nossa patrona.
Quase apostando que estava prestes a receber um sermão por se encontrar a
sós com um cavalheiro, Sarah mal disfarçou um suspiro de alívio quando o
rosto encovado da mulher se iluminou de imediato.
— Milorde!
— Lo... Lorde Chance acabou de fazer uma maravilhosa doação para a escola —
Sarah apressou-se em dizer.
— Verdade? Quanta generosidade!
— Queria falar comigo?
— Não. Só passei para ver como iam as crianças.
— Muito bem, obrigada.
A sra. Surton limpou a garganta, parecendo levemente constrangida.
— Seu tio não está com você, hoje?
Então era isso. Incrível como o Malvado Dândi podia fazer a mais insensível das
mulheres agir como uma pateta!

Projeto Revisoras 88
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Infelizmente, não. Ele mencionou algo sobre uma visita ao alfaiate.


— Ah, sim. — A sra. Surton deixou escapar um longo suspiro. — Um homem tão
elegante...
Foi com um esforço sobre-humano que Sarah conteve um sorriso.
Percebendo que revelara mais do que devia, sua patrona endireitou o corpo,
afetada.
— Bem, não posso me demorar. Quando o vir, por favor, mande lembranças
minhas.
— Sem dúvida.
Com um falso sorriso, a sra. Surton deixou o escritório. Chance quase não
esperou a porta ser fechada para explodir numa gargalhada.
— Essa é muito boa! Se eu fosse você, aconselharia seu tio a voltar correndo
para Paris.
Sarah riu com ele.
— Quisera eu ter esse poder...

Dezembro chegou com uma nevasca. Chance levantou-se bem cedo e espiou
pela janela, sentindo-se um pouco ansioso. Gostava daquela época do ano.
Talvez fosse um sentimento infantil, mas havia algo mágico no branco intenso
que transformava tudo numa paisagem de conto de fadas.
Não se permitindo sonhar mais, vestiu-se rapidamente e pediu a carruagem.
Queria partilhar com alguém aquela manhã e não imaginava ninguém melhor do
que Sarah Cresswell.
Tocando ele próprio os dois cavalos, atravessou a cidade em pouco tempo,
parou à frente da pequena casa e saltou do veículo.
Nem por um segundo se lembrou que talvez fosse cedo demais para visitar
alguém. Só sabia que precisava vê-la.
Foi obrigado a esperar um pouco até que a porta se abriu. Watts franziu o
cenho, surpreso.
— Bom dia, Watts. A srta. Cresswell, por favor.
— Ah, sim... Por aqui.

Projeto Revisoras 89
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Chance acompanhou o mordomo escadaria acima até a pequena sala nos


fundos da casa. Ao entrar, deparou com Sarah sentada no sofá, lendo o jornal
da manhã. Sorriu ao notar o vestido de lã azul muito simples e o modo como
prendera os cachos castanhos num coque solto. Ela não fazia questão de
chamar a atenção e, no entanto, sua elegância e graça natural a tornavam muito
mais atraente do que qualquer artifício usado pelas moças da alta sociedade.
Fitou o perfil delicado contra o fogo da lareira. Tinha personalidade nos traços,
concluiu, e uma força que a tornava tão intrigante quanto admirável.
Como se pressentisse que não mais se encontrava só, Sarah virou a cabeça e
deixou escapar uma exclamação:
— Milorde!
Com uma elegante mesura, Chance abriu seu mais sedutor sorriso.
— Perdoe-me por incomodá-la numa hora tão imprópria.
— Aconteceu alguma coisa?
— Na verdade, o dia está tão perfeito que pensei em levá-la para um passeio.
— Perfeito? — Ela olhou para a janela, confusa. — Mas está nevando!
— Pois então. Um dia perfeito para um passeio no parque — insistiu ele. — E
não precisa ter medo. É cedo demais para que a maioria das pessoas esteja
acordada.
Sarah negou com um gesto de cabeça.
— Não acho que seja uma boa idéia.
— Por que não?
— Estão me esperando na escola.
— Podem sobreviver uma manhã sem você — protestou Chance.
— Talvez, mas acho melhor...
— Venha, por favor — ele a interrompeu, sem nem mesmo saber ao certo
porque parecia tão importante que ela o acompanhasse. — Prometo que não
vou tomar muito do seu tempo.
Por um instante, Sarah se debateu entre atender ao pedido do conde e as
próprias obrigações. Por fim, acabou cedendo à tentação.
— Está bem. Vou apanhar minha capa.

Projeto Revisoras 90
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Levou apenas alguns minutos para se preparar. Logo estavam confortavelmente


instalados no banco externo da carruagem e Chance guiava os cavalos em
direção ao parque.
Rodaram por um tempo em silêncio, até que ele se voltou para ela.
— Não é bom? — indagou com um sorriso.
— Frio, com certeza — devolveu Sarah, tremendo.
— Não gosta de neve?
— Nunca pensei muito no assunto.
— Quando eu era criança, corria para a janela todas as manhãs, torcendo para
que estivesse nevando. A neve fazia tudo ficar diferente, como se eu tivesse um
novo lugar para explorar. Parece loucura?
Um sorriso brincou nos lábios dela.
— Não. Posso até imaginar milorde brincando com os flocos.
O conde prendeu a respiração. Ela era linda, assim, com o rosto corado pelo
frio, sob o capuz, e os flocos de neve colando-se aos cílios longos. Obrigou-se a
se concentrar no caminho.
— O que a fazia correr para a janela quando criança? — perguntou, rindo.
— Geralmente eu tentava me certificar de onde estava — Sarah respondeu, com
uma certa tristeza. — Não costumávamos ficar muito tempo no mesmo lugar.
O sorriso dele desvaneceu. Maldito Dândi! Como podia ter exposto as filhas a
uma vida tão instável e perigosa? Aquilo passava de todos os limites.
— Merecia uma vida melhor — comentou, sério, enquanto fazia a curva para o
parque.
— Podia ter sido pior. Apesar de tudo, meu pai sempre foi muito bom para nós,
e sempre tive minhas irmãs por perto.
Chance combateu uma onda de exasperação diante da calma com que ela
aceitava sua condição.
— Você é muito boa, Sarah. Talvez boa até demais.
— Não — protestou ela, baixinho. — Apenas aceito que não posso mudar o
passado. Prefiro me concentrar no futuro.
Com o pouco movimento no parque, o conde arriscou-se a fitar os olhos azuis.

Projeto Revisoras 91
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— E o que vê no futuro?
Uma sombra passou pelo rosto bonito. Então, ela suspirou, recompondo-se.
— Provavelmente continuarei com a escola.
— E quanto a uma família? — Chance viu-se indagando, sem saber ao certo por
quê.
Sarah virou o rosto.
— Sabe que é um sonho impossível.
Talvez, pensou Oliver. Nenhum cavalheiro em sã consciência gostaria de se unir
à filha de um ex-ladrão de jóias. Não importava o quanto Sarah fosse tentadora.
Ele mesmo tinha um nome a zelar e uma família cuja reputação não podia ser
colocada em risco.
— Não é justo.
Surpresa com a irritação na voz profunda, ela o fitou.
— Tenho minhas irmãs, milorde... e meu tio Pierre. É o bastante.
— Não deveria ser.
— Temos de aceitar o que o destino nos reserva. — Fez uma pausa, pensativa.
— E quanto aos seus planos?
Chance alarmou-se com a pergunta. Seu futuro incluía o casamento com alguma
dama da sociedade londrina, que se limitaria a cumprir com seu papel de
esposa de um conde e encher a casa dele de herdeiros. Até o momento, o
assunto não o incomodara. Agora, só de pensar, sentia um frio no estômago.
— O dia está bonito demais para falarmos nessas coisas — respondeu,
melancólico. — Por que não me conta sobre suas irmãs?
Sarah soltou uma risada.
— Não pode estar interessado.
— Interesso-me por tudo que vem de você.
Ela o fitou por um segundo, aturdida, depois virou o rosto.
— Como eu já disse, Emma é governanta e Rachel mora com amigas.
— Mas como elas são?
— Emma é gentil e educada. E muito independente.
— Assim como você. Sarah ignorou o comentário.

Projeto Revisoras 92
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Infelizmente, sofre muito por causa de meu pai. Vivo tentando fazer com que
se abra mais para a vida, mas Emma foge das pessoas.
— E quanto a Rachel?

:
— Charmosa, linda e concentrada demais em si própria.
— Perfeita para Ben, então.
Um sorriso triste brincou nos lábios dela.
— Deus nos livre e guarde!
Chance riu. Depois, percebendo que Sarah abraçava a si própria, indagou:
— Está com frio?
— Um pouquinho.
Ele saiu do parque e dirigiu-se a um bairro próximo, bastante luxuoso.
Rodavam já havia algum tempo quando Sarah franziu a testa.
— Para onde estamos indo?
— Não queria ver a minha coleção? — Chance sorriu, não querendo admitir que
temia pelo momento em que o passeio chegaria ao fim.
— Mas... eu não posso ir à sua casa!
— Pode visitar bordéis e não quer ir à minha casa?
— Estou preocupada com a sua reputação, e não com a minha!
— Ser visto na companhia de uma linda mulher não vai sequer arranhar a minha
reputação.
— E se pensarem que sou sua concubina? — protestou ela, apreensiva.
— Ninguém imaginaria que é menos do que uma dama.
— Sempre faz o que lhe dá na cabeça? — riu Sarah, nervosa.
— Não. — O conde puxou as rédeas de repente. Depois, sem dizer mais nada,
saltou e deu a volta para ajudá-la a descer.
Ela observou o palacete à sua frente. Não encontraria palavras para definir a
opulência do lugar. Não havia como negar que pertencia ao "impecável conde".
Segurando-a pelo cotovelo, pois temia vê-la escorregar nos degraus de mármore
forrados de gelo, Chance a guiou até a entrada suntuosa de um espaçoso
vestíbulo. Lançou um olhar significativo para o mordomo, que os recebeu com

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uma rara expressão de surpresa, e este se apressou em ajudar Sarah a se livrar


da capa.
— Peça que levem uma bandeja de chá para a biblioteca, Pate, por gentileza.
— Imediatamente, sir.
Sem soltar o braço dela, Chance guiou-a até seu santuário particular, sorrindo
ao ver o assombro no rosto bonito a cada cômodo, quadro ou escultura por que
passavam.
Sem dúvida aquela visita iria escandalizar a criadagem, pensou. Jamais havia
trazido qualquer mulher até ali, exceto sua mãe. No momento, porém, não o
incomodavam os mexericos que já de-, viam estar correndo soltos pela casa.
Naquela manhã, havia acordado com a intenção de aproveitar o dia ao lado de
Sarah, e era exatamente isso que pretendia fazer.
Recusando-se a pensar que não estava agindo de acordo com a conduta
esperada de um conde de seu gabarito, Oliver abriu a porta da biblioteca.
Guiava Sarah para o cômodo, ansioso, quando ela estacou, chocada.
— Santo Deus! — murmurou, o olhar percorrendo as imensas prateleiras
recheadas de livros de todas as cores e tamanhos. — Que maravilha!
Ele sorriu, satisfeito.
— Gosta de ler?
— Muito! Estou até com inveja da sua coleção.
— Aposto que, como a maioria das mulheres, anda encantada com as obras de
lorde Byron.
— Na verdade, prefiro Shakespeare.
— Ah, gosta dos clássicos — Oliver disse, removendo com cuidado os flocos de
neve que ainda pendiam dos cachos castanhos.
Então, seus dedos moveram-se para tocar a pele perfeita e os lábios rosados.
Pôde ouvi-la prender a respiração antes de recuar um passo.
— Ia me mostrar a sua coleção...
Chance deixou cair o braço. Tinha até se esquecido do motivo pelo qual a
trouxera até ali.
— Por aqui. — Abriu uma porta no fundo da biblioteca e se pôs de lado, para
que Sarah pudesse entrar.

Projeto Revisoras 94
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O lugar estava repleto de pequenas vitrines contendo numerosas relíquias.


Sarah andou de uma para outra, curiosa, estudando também os esboços
emoldurados nas paredes. Os desenhos, que o próprio conde fizera, eram
recriações de cenas da antiga sociedade grega, e que incluíam os artefatos
expostos, como deviam ter sido usados na época.
Por quase meia hora, Sarah perambulou pela sala, enquanto Chance, atento,
observava a reação dela a cada um de seus tesouros. Era a primeira vez que
exibia a coleção, embora muitos soubessem de sua existência, e sentia-se
estranhamente vulnerável. Por alguma razão, era importante que Sarah
Cresswell não tomasse sua fascinação pelas peças como uma simples
excentricidade. Não se decepcionou.
Virando-se, enfim, para encará-lo, ela sorriu, extasiada.
— Desenhou estes? — indagou, com um sorriso.
— Sim.
— São maravilhosos!
Chance foi tomado por um misto de alívio e orgulho. Não podia pensar em
ninguém mais cuja opinião lhe fosse tão importante.
— Acho-os um pouco toscos — confessou, um tanto sem graça.
— O "impecável conde" com vergonha?
Sorrindo diante da expressão divertida de Sarah, ele a levou até um dos cantos
da sala.
— Venha ver as jóias.
Com cuidado, tocou as contas e os arabescos dourados, explicando sua origem.
Ficou surpreso com as questões pertinentes e o interesse demonstrado por ela.
Via de regra, apenas especialistas, colegas seus, o encorajavam a partilhar seu
profundo conhecimento da época em questão. Surpreendeu-se ainda mais
quando Sarah o encarou, determinada.
— Devia fazer uma exposição aberta.
— Como Elgin? — Oliver ergueu as sobrancelhas, lembrando-se da recente
mostra de esculturas de mármore.
— Por que não?
Ele franziu o cenho.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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— Nunca me ocorreu que isso tudo poderia interessar a mais alguém por aqui.
— Mas é uma coleção incrível! — exclamou ela, sem acreditar no que ouvia. —
Precisa compartilhá-la com as outras pessoas.
— Vou pensar no assunto — Oliver prometeu, embora consciente de que já
dividira seus tesouros com quem mais lhe interessava. Talvez, um dia,
considerasse torná-los públicos, mas, por enquanto, estava mais do que
satisfeito. — Pronta para o chá?
— Claro.
De volta à biblioteca, ele indicou um sofá próximo à enorme bandeja de prata,
sobre a mesa de centro, e acomodou-se ao lado de Sarah.
— Pode servir?
Com sua habitual graça, ela encheu duas xícaras e dois pratos com biscoitos e
confeitos dos mais variados.
Para sua surpresa, porém, Chance deixou os dele de lado e a fitou.
— E-espero que sua mãe esteja passado bem — Sarah murmurou,
incoerentemente, e bebericou o chá quente, nervosa.
— Muito bem. E deixando a criadagem louca com os preparativos para a festa
de Natal.
— E seu irmão?
— Não tenho falado com ele, mas sei que deve retornar a Londres ainda esta
semana.
— Que bom. Já estamos ficando sem tempo.
— Tem razão.
Tensa, Sarah pousou a xícara e apanhou um petit-four.
— O que vai fazer se não encontrarmos os brilhantes?
O conde deu de ombros, sentindo o sangue correr mais rápido em suas veias
quando ela recolheu com a língua um resto de biscoito que ficara grudado em
seus lábios.
— Contar a verdade à minha mãe e entregar o problema nas mãos das
autoridades.
— Deve haver algo que possamos fazer — murmurou Sarah, quase para si
mesma.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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— Sim! — Chance curvou-se mais na direção dela. — Podemos devorar todos os


biscoitos que meu chef tem tanto orgulho em preparar.
Ela esboçou um sorriso, nervosa ao notar a proximidade dele.
— Estão deliciosos — disse, engolindo um último pedaço.
Oliver estreitou o olhar, fitando os lábios úmidos. Quando a convidara para vir
até ali, planejara comportar-se como um gentleman. Jamais pensara em seduzir
uma mulher em sua própria casa. Só mesmo um devasso agiria de forma tão
indigna. Mas, a despeito de todas as suas nobres intenções, percebeu que os
encantos de Sarah Cresswell eram muito maiores do que as defesas de qualquer
homem.
Incapaz de resistir, retirou uma migalha ainda presa ao lábio cheio.
— Pronto — falou.
— Milorde... — ela ofegou, surpresa.
Chance continuou a traçar os contornos da boca perfeita, inebriado.
— Quero beijá-la, Sarah.
— Não devia — ela protestou, trêmula.
— Eu sei que não — concordou ele, com pesar. — Mas nada impede que você
me beije — contrapôs, com um leve sorriso. — Ou poderíamos nos beijar ao
mesmo tempo...
— Lorde Chance... — Sarah protestou com voz rouca. Chance vibrou ao vê-la se
aproximar inconscientemente.
— Só um beijo — sussurrou ao envolvê-la nos braços.
As bocas se tocaram e ele sentiu o coração quase estacar dentro do peito.
Como eram dóceis aqueles lábios em contato com os seus! Macios como uma
pétala. Saboreou-os por um instante e gemeu, exultante, ao sentir que eles se
repartiam.
Até então, um beijo trocado com uma mulher não passara de um prelúdio de
atividades mais sedutoras. Porém nunca na vida sentira o corpo inteiro tremer
de prazer daquela maneira. Daria toda a sua fortuna para que aquele momento
não tivesse fim.
Mas era impossível. Mesmo ao perceber que Sarah se entregara à carícia, sua
consciência tornou a se manifestar. Com um suspiro, obrigou-se a se afastar e
fitar a confusão nos olhos claros com uma expressão pesarosa.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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— Prometi a mim mesmo que agiria como um cavalheiro... Não imaginei que
pudesse ser tão difícil.
Sarah baixou os cílios longos, o rosto ainda afogueado pelo beijo.
— Melhor eu voltar para casa.
Ele abriu a boca, mas não teve como contestar a sabedoria das palavras dela.
Por mais que desejasse permanecer com Sarah em seus braços, havia rompido
com todos os limites do bom senso, ainda que não pudesse se arrepender do
que fizera.
Ao se dar conta do constrangimento de Sarah, ergueu-se, relutante.
— Acho que tem razão.
Ela se pôs em pé, ainda olhando para o chão. Chance a acompanhou até a saída,
mantendo-se a uma discreta distância enquanto apanhavam as capas.
Permaneceram em silêncio no caminho de volta, embora Oliver se perguntasse
o que a deixara mais deprimida. Sentia-se ultrajada por seu comportamento ou
tão intrigada quanto ele pela atração que os unia? Sarah recusou-se até mesmo
a olhar em sua direção, deixando claro que não estava disposta a discutir o
assunto.
Talvez fosse melhor assim, concluiu o conde com um suspiro. Não tinha
intenção de ver seu dia arruinado por um merecido sermão.
Com isso em mente, deteve a carruagem e desceu para acompanhá-la até a
porta. Sarah levou a mão delicada aos lábios.
— Obrigado por ter atendido ao meu pedido — apenas agradeceu.
Chance imaginou ver um brilho de satisfação nos olhos muito azuis, mas antes
que pudesse definir a emoção no bonito semblante, ela virou-se e desapareceu
vestíbulo adentro.
Ele soltou um suspiro, conformado, e retornou à carruagem. Para quem
imaginava saber tudo sobre o sexo frágil, estava numa encruzilhada e tanto.
Tinha arriscado a própria reputação, surpreendido a criadagem e a si próprio;
tudo para passar uma só manhã na companhia de Sarah Cresswell.
Mal pôs os pés na carruagem, ainda pensando sobre o que haviam feito, avistou
uma figura familiar usando um tapa-olho e descendo a rua a passos apressados.
Erguendo uma bengala de marfim na direção dele, Pierre Valmere aproximou-se
rapidamente.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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— Um momento, milorde!
Chance atendeu o homem com uma ponta de apreensão. Tio Pierre era
despachado demais para seu gosto. Não exatamente inconveniente, verdade,
mas também não era um sujeito em que podia confiar. E quanto a ser da
França... podia jurar que o homem era tão francês quanto ele próprio.
De qualquer modo, parecia ser mesmo parente de Sarah e não havia como agir
a não ser com educação.
— Monsieur Valmere...
— Tenho algo do seu interesse — Solomon disse, enquanto retirava um
saquinho de veludo do bolso. Com destreza, soltou os cordões e despejou um
colar de pérolas na mão enluvada.
— Pérolas? — indagou Chance, perguntando-se se o homem estaria tentando
vender-lhe a jóia.
Como se percebesse suas suspeitas, Solomon abriu um sorriso de escárnio.
— Não são pérolas comuns. São pérolas dos Maxwell. Vendidas a um conhecido
meu por uma quantia irrisória.
— Lorde Maxwell — repetiu Chance, compreendendo, por fim. — Pérolas, e não
brilhantes.
— Exatamente.
O conde respirou fundo. Queria muito que lorde Maxwell fosse o responsável
pelo sumiço dos brilhantes. Desprezava o sujeito, porém tinha consciência de
que o homem zelava pela própria reputação tanto quanto ele. Suas esperanças
tinham sido em vão. Maxwell não se livraria das jóias da família se estivesse de
posse dos brilhantes dos Chance.
— Quer dizer, então, que Maxwell não tem nada a ver com o roubo.
— A menos que seja esperto o bastante para ter desconfiado de uma
armadilha... o que não acredito.
Chance concordou com um gesto de cabeça, conformado.
— Parece que continuo em débito com o senhor.
Solomon estreitou o olhar para fitá-lo.
— Estava com minha sobrinha, non?
Pego de surpresa pela pergunta, Oliver não mentiu.

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— Sim.
— Não está se esquecendo de que ela é uma dama, está? — exigiu o homem,
alisando a bengala num gesto significativo.
Chance olhou para o objeto, sabendo tratar-se de uma espada disfarçada. Ele
próprio possuía uma daquelas. Sorriu. Nunca se imaginara sendo ameaçado
pelo guardião de uma donzela.
— Nem por um momento — garantiu, com frieza.
Solomon curvou-se para a frente.
— Posso ser velho e ter um só olho... mas ainda enxergo bem — ameaçou. — É
melhor tratar a srta. Cresswell com respeito.
Sem saber se reagia com embaraço ou fúria, Chance estalou as rédeas e pôs os
cavalos em movimento.
Sarah Cresswell era mesmo um problema, pensou.

Capítulo VI

A neve cessou apenas de madrugada. Sarah sabia dizer, pois tinha passado
grande parte da noite olhando pela janela. Uma perda de tempo, dissera a si
mesma, mas nem assim o sono viera.
Exasperada, havia se levantado e colocado um vestido quente. Precisava de
alguma coisa com que pudesse se ocupar. Talvez, assim, não ficasse ruminando
a bobagem que fizera se entregando ao beijo de lorde Chance.
Não entendia por que perdia a cabeça daquela maneira nos braços dele: a falta
de ar, o coração disparado, o fogo que seu simples toque provocava... Só sabia
que eram sensações que não conseguia controlar.
Só mais algumas semanas, lembrou a si própria. Mais algumas semanas e seu
relacionamento teria fim.
Deixava o quarto, a caminho da escola, quando foi informada de que Emma a
aguardava na sala. Apressada, foi ao encontro da irmã. Abraçou-a, feliz, e a fez
acomodar-se num dos sofás.
— Que surpresa boa!

Projeto Revisoras 100


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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— Espero não estar sendo inconveniente.


— Não seja boba. Quando é inconveniente rever minha irmã? — protestou
Sarah, rindo.
Mas Emma não devolveu o sorriso.
— Queria vê-la antes que fosse para a escola.
Por um momento, Sarah esqueceu-se dos próprios problemas e se concentrou
em Emma. Sua irmã não a teria procurado se algo não a incomodasse.
Servindo a ambas uma estimulante xícara de chá, acomodou-se ao lado de
Emma e estudou o rosto pálido e as sombras sob os olhos tristonhos.
— Está com uma aparência péssima.
Emma esboçou um sorriso.
— Admito que a convivência com os Farewell não é das mais agradáveis.
— Não é das mais agradáveis? Eles são horríveis, isso sim, e a tratam mais como
uma escrava do que como governanta — retrucou Sarah, irritada. Já havia tido a
oportunidade de visitá-la algumas vezes e, embora Emma jamais se queixasse,
percebera o sacrifício que era obrigada a fazer. Na verdade, precisara se conter
para não arrancar a irmã do pernicioso convívio com aquela gente. — Não sei
por que não volta para cá.
Emma sacudiu a cabeça.
— Não posso. Além do mais, já disse que escrevi para lady Hartshore, de Kent,
não disse? Ela precisa de companhia.
Sarah sentiu o peito se apertar. Embora quisesse desesperadamente que sua
irmã se livrasse dos Farewell, jamais lhe ocorrera que ela pudesse partir para
tão longe.
— Pretende mesmo deixar Londres?
— Se lady Hartshore quiser.
— Mas, assim, não a veremos nunca! — protestou, angustiada.
Uma expressão de desconforto tomou as bonitas feições de Emma.
— Acho que eu iria apreciar a vida no campo. Ao contrário de você e de Rachel,
nunca me senti à vontade na cidade.
Sarah sabia que o constrangimento da irmã não se devia a Londres, e sim ao pai
delas. Fugindo para o campo, Emma pretendia fugir do próprio passado.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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Uma bobagem, concluiu. Porém era compreensiva o bastante para aceitar que a
irmã agisse como bem entendesse.
— Sentirei sua falta.
— Eu sei. — Emma tocou a mão dela e sorriu tristemente. — Mas ainda não está
nada certo. Talvez lady Hartshore não goste de mim.
Sarah bufou. Emma era uma pessoa doce e querida. Não havia ninguém que
pudesse pensar o contrário!
— Bobagem! Só mesmo uma bruxa não iria querê-la como dama de companhia.
— Veremos...
Sarah fitou a irmã. Havia algo além da iminente entrevista com lady Hartshore.
— Há mais alguma coisa que queira me contar? — indagou, perspicaz.
Para sua surpresa, o rosto bonito enrubesceu. Emma pousou a xícara, e Sarah
aguardou, ansiosa, que ela se abrisse.
— Sim, eu... — Emma torceu as mãos, nervosa. — Ouvi umas coisas.
Sarah engoliu em seco. Alguém mais sabia que o Malvado Dândi estava de volta
a Londres?
— Sobre papai? — indagou, tensa.
— Não. Sobre você.
Sarah piscou, confusa. Então, antes que pudesse evitar, viu-se sacudida por uma
risada.
— Meu Deus, deve haver uma falta de assunto generalizada na cidade para
estarem falando de mim... O que foi que você ouviu?
— Que lorde Chance é visto com freqüência na companhia de uma mulher de
cabelos castanhos cacheados e olhos azuis... e com uma safira pendurada no
pescoço.
Sarah balançou a cabeça, incrédula. Devia saber que qualquer movimento dele
seria imediatamente observado. Até o conde entrar em sua vida, a sociedade
nem. sequer notava sua presença em Londres.
— E você imaginou que fosse eu.
Visivelmente incomodada, Emma comprimiu os lábios.
— E não é?

Projeto Revisoras 102


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Estou tentando ajudá-lo com um problema de família — contou Sarah, com


um suspiro.
— Pois estão dizendo que é a atual amante dele.
Sarah sentiu-se enrijecer com a súbita revelação. Embora não costumasse dar
ouvidos a falatórios, não queria que a irmã questionasse sua moral.
— Veio saber se o que dizem é verdade? — exigiu, séria. Os olhos de Emma se
arregalaram diante da ofensiva.
— Não, eu... eu jamais acreditaria nisso!
O coração de Sarah se aquietou.
— Obrigada pela confiança.
— Só fiquei preocupada — garantiu a irmã. — Ninguém sabe que é com você
que ele está saindo, mas acho que é apenas uma questão de tempo.
— Eu sabia que acabaria acontecendo. Lorde Chance é proeminente na
sociedade e uma constante fonte de interesse para essa gente.
Emma curvou-se na direção de Sarah com uma expressão sombria.
— Melhor não vê-lo mais.
Embora fosse uma idéia sensata, Sarah logo descartou a hipótese.
— Prometi que o ajudaria.
— Mas não vai reconsiderar nem mesmo com toda essa fofoca?
— Nunca me preocupei com o que as pessoas dizem ou deixam de dizer.
Emma piscou, aturdida, diante da resposta.
— Não pode permitir que falem de você dessa maneira.
Sarah esboçou um sorriso. Quisera fosse tão simples assim.
Seria bem mais fácil do que admitir que lorde Chance começava a se tornar
indispensável em sua vida.
— Não — concordou. — Mas também não posso impedir as pessoas de falar.
Emma recostou-se no sofá, estarrecida.
— Você não é a única que está sendo afetada — informou, tensa.
Sarah respirou fundo. Jamais magoaria a irmã por vontade própria.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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— Sinto muito, Emma. Só estou seguindo meu coração. Não posso dar as costas
a quem precisa de mim; seja uma criança, seja madame Vallenway ou lorde
Chance. É assim que eu sou.
Uma expressão de pura agonia transformou o bonito rosto de Emma.
— Perdoe-me, Sarah! — pediu, segurando-a pelas mãos.
— Não há o que perdoar. Não me sinto indiferente ao seu constrangimento.
— Eu não tinha o direito de vir até aqui criticá-la. Você sempre foi uma pessoa
tão boa...
— Conversa fiada. Sou turrona, autoritária e ajo sem pensar muito nas
conseqüências.
— É a pessoa mais maravilhosa que conheço — argumentou Emma, sincera.
Então fez uma pausa, olhando a irmã de soslaio. — E quanto a lorde Chance?
Sarah umedeceu os lábios, pega de surpresa.
— Como assim?
— Como ele é?
— Teimoso e impulsivo — desabafou.
— Tanto quanto você? — Emma sorriu.
— Pior.
— Mas é muito lindo.
Sarah torceu o nariz. Sim, era lindo. E inteligente, e charmoso o bastante para
roubar o coração da mais resistente das mulheres. Eram seus inesperados
gestos de delicadeza, no entanto, que mais a intrigavam. Como poderia se
manter indiferente ao que ele doara à escola? Ou ao modo quase infantil com
que partilhara sua coleção de relíquias com ela?
Quanto aos beijos que haviam trocado... Melhor era nem pensar.
Por que o conde não era um libertino ou mesmo um "almofadinha" como a
maioria dos homens da alta sociedade?, pensou tristemente. Aquilo tornaria sua
vida bem mais fácil.
Bem lá no fundo, não lamentava tanto assim tê-lo conhecido.
Do contrário, continuaria naquela vida sem graça que sempre tivera.
— Tem razão — Sarah suspirou, por fim. — Ele é mesmo muito bonito.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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Percebendo a relutância da irmã em falar do conde, Emma estreitou o olhar.


— Gosta dele, não gosta?
Sarah mordeu o lábio, sabendo que havia sido apanhada.
— Às vezes até demais.
Emma soltou uma exclamação.
— Ah, Sarah!
— Não se preocupe — ela a tranqüilizou, endireitando o corpo. — Não sou
nenhuma idiota. Sei que o conde está bem longe do meu alcance.
— E ainda assim acha bom continuar a vê-lo?
— É só até o Natal — explicou, aproveitando para lembrar a si mesma. —
Depois disso não voltarei a encontrá-lo.
Nunca mais.
Engoliu em seco, tentando não prestar atenção na dor aguda que lhe tomou o
peito.
Com alívio, Sarah ouviu o sinal para o almoço. Numa alegre balbúrdia, as
crianças saíram correndo da classe, lavaram as mãos e tomaram seus lugares
no refeitório.
Uma vez sozinha, ela fitou a sala agora vazia, adornada por ornamentos que os
próprios alunos haviam confeccionado. Quando acordara naquela manhã, o dia
lhe parecera tão cinza e sem graça que decidira fazer alguma coisa diferente
com as crianças.
Fazê-las preparar a escola para o Natal tinha sido uma ótima idéia. Ainda assim,
era bom ter um pouco de sossego antes de terminarem o resto dos enfeites que
pendurariam nas paredes e sobre a lareira.
De repente, ouviu a porta sendo aberta. Prendeu o ar à visão de lorde Chance.
Não o via fazia mais de uma semana, e havia dias temia aquele momento. Tinha
certeza de que, depois de seu último encontro, não seria fácil encará-lo. Agora
que o tinha diante de si, entretanto, tudo o que sentia era um enorme e absurdo
prazer.
Permaneceu em silêncio enquanto o olhar de Oliver lhe percorria o vestido
simples e os cabelos presos displicentemente. O breve arrependimento por não
ter se arrumado melhor naquela manhã logo desvaneceu diante do sorriso nos
lábios perfeitos do conde.

Projeto Revisoras 105


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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— Sarah — ele a saudou fazendo uma mesura.


— Milorde.
— A escola está muito bonita—elogiou, aproximando-se mais.
— Ainda é um pouco cedo para a decoração de Natal, mas o dia amanheceu tão
triste que resolvi tentar alegrar as crianças.
— Acho que fez muito bem — incentivou ele, lançando um olhar para a pilha de
enfeites inacabados.
— Obrigada.
— Tem o dom de tornar a vida melhor para os outros — o conde emendou, com
voz rouca. — Um dom raro, aliás.
O coração de Sarah deu um salto. Era a coisa mais bonita que já lhe haviam
dito.
— Posso ajudá-lo em alguma coisa? — perguntou, na tentativa de distraí-lo.
Oliver demorou a responder.
— Não tenho muita certeza.
Ela piscou, aturdida. Lorde Chance inseguro? Era mais fácil o céu cair do que
aquele homem demonstrar insegurança diante de alguma coisa!
— Não entendi.
Ele cruzou os braços diante do peito.
— Levantei-me esta manhã com o firme propósito de estudar minha última
relíquia vinda da Grécia, depois almoçar com lorde Grayson e passar a tarde
cuidando dos negócios. À noite pretendia ir a dois saraus e a um baile.
Sarah ergueu as sobrancelhas.
— Parece que está um tanto ocupado.
— Pois é. Mesmo assim me vesti e, sem nem mesmo tomar café, chamei minha
carruagem para vir até aqui.
Ela segurou o ar numa tentativa vã de desacelerar o próprio coração.
— Por quê?
O conde avançou um passo, os dedos tocando os cachos que emolduravam o
rosto delicado.
— E isso o que estou tentando saber.

Projeto Revisoras 106


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Sarah sabia que devia recuar, mas suas pernas recusavam-se a obedecer. Na
verdade, precisou se conter para não encostar o corpo ao dele.
Por sorte, sua fraqueza não foi revelada graças à entrada repentina de uma
mulher gorda, de cabelos grisalhos. Sarah voltou-se, constrangida, observando-
a colocar uma braçada de folhagens sobre a mesa.
— Aqui está, querida.
— Obrigada, sra. Sparks — murmurou, prestes a sugerir a lorde Chance que ele
retomasse seus afazeres.
Oliver, porém, não lhe deu tal oportunidade.
— Ora, ora, o que temos aqui? — indagou, apanhando um dos galhos.
— Visgo, milorde — respondeu a mulher. Um sorriso travesso brincou nos
lábios dele.
— Uma planta muito interessante, não acha, srta. Cresswell?
Sarah combateu o frio no estômago à simples menção da folhagem sob a qual
esperava-se que as pessoas trocassem beijos no Natal.
— Tão interessante quanto qualquer outra planta — respondeu.
— Acha também, sra. Sparks? — perguntou o conde.
A mulher soltou uma gargalhada.
— Já me diverti muito sob esses galhos quando era moça, milorde... Agora
estou velha demais para essas coisas.
— Nunca se é velho para essas coisas — contrapôs ele. Então, ergueu um dos
ramos acima da cabeça deles três e depositou um beijo na bochecha da mulher.
Completamente derretida pelo charme do conde, a sra. Sparks corou de prazer
e surpresa.
— Que maroto o senhor é — permitiu-se dizer, com uma piscadela, antes de
lançar um olhar significativo para Sarah. — Melhor eu voltar para a cozinha, ou
as crianças vão esvaziar a despensa.
Com um sorriso satisfeito, saiu da sala a passos largos, deixando-os a sós.
Sarah engoliu em seco. Não confiava em lorde Chance quando ele se mostrava
de tão bom humor. Pior do que isso: não confiava em si mesma.
— Sua vez — ouviu-o anunciar com voz rouca, ainda com o visgo acima deles.

Projeto Revisoras 107


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Ela recuou um passo. Já passara muitas noites sem dormir por causa dos beijos
dele.
— De jeito nenhum.
— Mas é tradição... — protestou Chance, aproximando-se a ponto de deixá-la
inebriada com o perfume másculo que emanava dele.
— Por que não leva um ramo de visgo para os seus saraus ou para o baile? —
sugeriu, ácida. — Aposto que vai encontrar várias mulheres dispostas a levar a
tradição adiante.
— Eu também aposto — concordou Oliver, sem rodeios. — O problema é que
não estou interessado nelas.
— Pois talvez devesse, sir.
— Está parecendo minha mãe — Chance fez uma careta. — Não entendo como
ela espera que eu me sinta atraído por moças cuja maioria só sabe abrir a boca
para passar batom.
Sarah ficou exasperada só de pensar nas inúmeras mocinhas e debutantes que
dariam tudo para obter um só olhar do "impecável conde". Que absurdo. Jamais
se sujeitaria a se casar em troca de um título de nobreza.
Mas, por algum motivo, imaginá-lo cercado de beldades e escolhendo uma
esposa em meio a mulheres tão fúteis provocava-lhe um gosto amargo na boca.
— Elas não podem ser assim tão ruins — obrigou-se a contemporizar.
— Nem todas são — concedeu o conde, para seu desgosto. — Mas por mais
atraentes, educadas e cultas que possam ser, nenhuma me interessou até hoje.
Sarah umedeceu os lábios, nervosa. Gostaria que ele não a fitasse daquela
maneira, pensou, com a pulsação acelerada. Como se não houvesse mais
ninguém no mundo a não ser ela.
— Um dia vai se interessar por alguém.
— Como é possível se não consigo esquecer você? Uma onda de calor se
espalhou pelo corpo de Sarah.
— Muito lisonjeiro da sua parte, milorde — conseguiu dizer, com voz sumida.
— Acha que estou apenas flertando com você? — Ele franziu o cenho.
— E não está?
Houve uma longa pausa antes da resposta.

Projeto Revisoras 108


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Quisera eu fosse apenas isso.


Sarah não exultou em saber que o conde se sentia tão desconcertado quanto ela
diante da atração que viviam. O que importava se ele a desejava como mulher?
Seu tempo juntos logo teria fim e lorde Chance estaria de novo às voltas com
suas debutantes.
— Preciso voltar ao trabalho — desconversou, seca. Ele a segurou pelo queixo.
— E o meu beijo?
Sarah estremeceu.
— Não acho conveniente.
— Sarah... — protestou Oliver, com voz suave. — Quando é que vamos deixar
de ser convenientes?
Nunca, alertou uma voz dentro dela, mas acabou perdendo para o calor intenso
que se espalhou por seu corpo.
— Eu não...
Devagar, o rosto moreno se aproximou do de Sarah. Ela se preparou para mais
um arroubo de paixão, porém os lábios dele roçaram os seus de leve e ela se
recostou ao corpo forte, como atraída por um ímã. Então, a boca de Chance
tocou-lhe os olhos, a testa e depois a curva do pescoço.
— Você me enfeitiçou, só pode ser isso — ele sussurrou contra a pele macia.
Embriagada, Sarah aspirou o ar, um misto do sempre-verde e da colônia que
emanava do conde. Como na primeira vez que experimentara o conhaque do
pai, quando menina, pensou, incoerentemente.
E, como daquela vez, estava fadada a se arrepender de seus atos.
— Por favor... — conseguiu protestar, por fim. — Precisa ir embora.
Sentiu que ele enrijecia ao se afastar dela e fitá-la com uma expressão sombria.
— Eu vou. Mas nós dois sabemos que voltarei. Não posso evitar, Sarah. —
Beijou-a de leve outra vez. — Até breve, minha querida.
Quando lorde Chance despertou, na manhã seguinte, foi sábio o bastante para
resistir à tentação de ir ao encontro de Sarah. Tinha sido um imbecil em pensar
que uma semana sem vê-la poria fim ao intenso desejo que sentia.
Em sua própria defesa, elaborou que jamais conhecera uma mulher assim,
capaz de capturar sua total atenção. Recordava-se da linda condessa do ano

Projeto Revisoras 109


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

anterior, da atriz com quem flertara no verão, da bonita viúva que o entretivera
no começo do outono. Mas nenhuma delas o entusiasmara além de uns poucos
dias.
No entanto, um momento apenas na companhia de Sarah Cresswell fora o
suficiente para ele passar a desejá-la intensa e irremediavelmente. Era como um
feitiço, uma praga, um vício do qual não conseguia se livrar. Nada mais parecia
importar além de tê-la nos braços.
Mesmo que quisesse dar continuidade a seu relacionamento com Sarah, não
poderia. Ela não era "respeitável" o bastante para ser a condessa de Chance,
tampouco indecorosa o suficiente para se tornar sua amante. Por isso ali estava,
debatendo-se entre um desejo que não podia ser satisfeito e a frustração de não
haver descoberto absolutamente nada acerca do roubo dos brilhantes.
Inquieto demais para prosseguir com os estudos de sempre, Chance pediu a
carruagem e, pouco depois, rumava para a casa da mãe. Logo adentrava a sala
íntima, nos fundos da mansão, feliz em ver que lady Chance se encontrava em
Primrose.
Como já esperava, a velha senhora ficou surpresa com a inesperada visita.
Oliver costumava avisá-la com antecedência.
— Bom dia, mamãe — saudou, beijando a face que lhe era oferecida.
— Que surpresa agradável! — Ela sorriu, batendo no assento a seu lado, num
convite. — Quer um chá?
— Não, obrigado. — O conde acomodou-se com um suspiro.
— Tem notícias de Ben?
Ele concordou com um gesto de cabeça. Recebera uma mensagem do irmão, de
manhã. A mãe deles sempre ficava nervosa quando não tinha o filho mais novo
sob suas asas. Não que isso o impedisse de se meter em problemas... Mas se
acompanhá-lo todo o tempo, mesmo que de longe, deixava lady Chance mais
tranqüila, que fosse.
— Ben deve retornar a Londres no final de semana.
Ela bateu palmas, feliz.
— Que bom, então vai estar aqui para a festa!
— Quem ousaria perder o maior evento da temporada? — Ele sorriu, carinhoso.

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(Julia Históricos 1414)

— Vai ser muito divertido — envaideceu-se a mulher, para em seguida franzir a


testa de leve. — Precisa convencer a srta. Cresswell a vir! Uma moça tão
encantadora...
Oliver sentiu-se enrijecer. Tinha vindo até ali na tentativa de esquecer Sarah,
nem que fosse por algumas horas. E a última coisa que queria era ficar
discutindo suas qualidades.
— Ela me pareceu irredutível — comentou, em tom neutro.
Lady Chance fez um biquinho.
— Pois acho que você nem tratou do assunto com ela.
— Por que chegou a tal conclusão?
— Ora, é óbvio que a srta. Cresswell está apaixonada por você — disse a mãe,
sem rodeios. — Se tivesse insistido, ela aceitaria!
Ele se pôs em pé, consternado. Sentia-se como se houvesse levado um soco no
estômago.
— Está errada, mamãe. A srta. Cresswell não está apaixonada por mim.
— Então, por que foram vistos passeando no parque?
Oliver ficou irritado. Malditos fofoqueiros! Por que não cuidavam da própria
vida? Sarah estava acima de toda censura. Vivia com mais dignidade do que
qualquer dama da sociedade londrina. Pensar que fosse mal-falada deixava-o
fora de si.
—Não devia dar ouvidos a esses mexericos — ralhou, nervoso.
— Então ela não estava com você?
— Estava, mas... — O conde bufou, exasperado. Não tinha como explicar o
relacionamento deles para a mãe quando ele próprio mal o compreendia.
Um misto de curiosidade e compreensão formou-se no rosto da velha senhora.
— Nunca o vi tão abalado, Oliver.
— Por favor, mamãe, não pense que a srta. Cresswell é candidata a se tornar a
próxima lady Chance.
— E por que não? Ela é linda, charmosa e não se deixa intimidar por você.
— Eu sei!

Projeto Revisoras 111


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— E não pense que estou tão velha a ponto de não notar o jeito que olha para
ela...
Chance fechou os olhos por um segundo. Podia olhar para Sarah assim o resto
da vida.
— Impossível.
— Por que, criatura?
— Porque ela... ela...
— Oliver, pelo amor de Deus, o que está acontecendo? — insistiu lady Chance,
impaciente.
Mortificado, ele percebeu que não teria mais como esconder a verdade. Não
quando sua própria mãe parecia determinada a fazer de Sarah Cresswell sua
nora. Era melhor cortar o mal pela raiz.
— Ela é filha do Malvado Dândi, mamãe.
Um silêncio pesado desceu sobre eles.
— Do ladrão de jóias?
— Ele mesmo.
Lady Chance entreabriu os lábios, o rosto enrugado empalidecendo levemente.
— Deus meu... Ela parece uma dama.
Revelando a verdade, a intenção de Chance de abortar qualquer plano que a
mãe pudesse ter teve o efeito contrário ao ouvir as próprias palavras.
— Ela é uma dama — viu-se defendendo Sarah com veemência. — Não importa
o que o pai tenha feito.
Lady Chance balançou a cabeça, pesarosa.
— Ninguém vai aceitar isso. Em nosso meio, uma moça não é julgada apenas
por sua aparência e qualidades, mas também pela própria reputação e a de sua
família, meu querido. Eu sinto muito.
A verdade nua e crua só serviu para exasperá-lo ainda mais.
— Isso é um absurdo! Sarah é mais respeitável do que todas aquelas donzelas
juntas!
Lady Chance ergueu as sobrancelhas diante da explosão do filho. Por mais que
desejasse vê-lo no altar, perdera as esperanças ao saber que a srta. Cresswell

Projeto Revisoras 112


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

tinha ligação com o Malvado Dândi. Oliver, no entanto, parecia mais abalado
pela jovem do que ela pudera imaginar.
— Sabe que não seria bom para você ter a companhia dela, meu querido —
disse com cautela. — Tem uma reputação a zelar. Graças a Deus essa moça teve
o bom senso de declinar do meu convite.
— A srta. Cresswell tem consciência da sua posição.
— Talvez mais do que você — emendou a mãe.
O conde deixou escapar uma risada amarga.
— Eu lhe asseguro, mamãe, que não poderia estar mais ciente da minha
posição. Mas isso não me impede de querer estar com ela.
— Oh, Oliver! — lamentou a velha senhora, consternada.
— Sou um tolo, não é? — ele ironizou a si mesmo. — E pensar que sempre me
gabei de ser o mais inteligente dos homens.
Do tipo que tentava evitar a todo custo qualquer conflito na família, lady Chance
pensou. Respirando fundo, recostou-se no sofá.
— Vai passar — afirmou. — Ela é um encanto, concordo, mas logo haverá outra
que o faça esquecer a srta. Cresswell.
— É o que tenho dito a mim mesmo.
— Tem que passar — repetiu a mãe, deixando escapar uma nota de
preocupação.
O conde não se deixou enganar pela falsa convicção de lady Chance. Ruminava
o problema havia dias e não chegara a nenhuma conclusão.
— Eu sei.
— Talvez devesse ficar em Kent até o Natal.
Ele concordou com um gesto de cabeça. Não era má idéia. Com sorte, cercado
pelos velhos membros da dinastia Chance e a quilômetros de Londres, poderia
tirar Sarah da cabeça de uma vez por todas.
Um segundo depois, a decisão já não lhe parecia tão acertada. A distância já se
mostrara inútil uma vez.
— Não vou fugir dos meus problemas — declarou.
— Por favor, meu filho. Não pense que não gosto da srta. Cresswell, mas...

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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— Eu sei, mamãe — ele a interrompeu, sério. — Melhor eu ir embora agora.


Lady Chance fitou o primogênito com pesar.
— Cuide-se, meu querido.
Encolhida a um canto da carruagem, Sarah tentou não olhar na direção do
homem sentado à sua frente. Não via lorde Chance havia quase uma semana e
era difícil não se deixar encantar pela figura máscula. Quem poderia imaginar
que uma mulher tão sensata como ela pudesse devotar horas lembrando do
gosto daqueles lábios, do cheiro daquela pele, do modo como os olhos escuros
percorriam cada traço seu? Ou então que perderia noites em claro imaginando
por que ele não havia mais aparecido? Era angustiante, pensou, dividida entre
lágrimas de autopiedade e raiva pela própria fraqueza.
Ao menos aquilo logo teria fim. Naquela manhã, lorde Chance viera até sua casa
avisá-la de que Ben já se encontrava em Londres.
Ansiosa por colocar um ponto final no assunto, Sarah pedira para vê-lo o mais
breve possível. Assim, convenceria a si mesma de que fizera de tudo para
localizar os brilhantes. Depois disso, o conde estaria fora de sua vida.
O que era exatamente o que ela queria... ou não?
Apertando o tecido da saia marrom num gesto inconsciente, ouviu o roçar de
couro quando lorde Chance curvou-se para a frente.
— Está quieta demais.
Com extrema relutância, Sarah ergueu o olhar para ele.
— Estou preocupada — mentiu, tentando evitar que Oliver lhe adivinhasse os
pensamentos.
— Com o encontro com Ben? Eu lhe garanto: meu irmão é inofensivo. Na
verdade, vai gostar mais dele do que de mim.
Impossível, respondeu ela em pensamento, enquanto negava com um gesto de
cabeça.
— Pode estar perdendo seu tempo à toa. Essa conversa com Ben pode sair do
nada para chegar a coisa nenhuma.
— Não vamos saber se não tentarmos.
— Tem razão — Sarah suspirou, aborrecida.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

O olhar dele percorreu à palidez do rosto bonito e as sombras sob os olhos


azuis. Desde que fora ao encontro dela, naquela manhã, mantivera-se educado,
porém distante. Nem por um momento tentara tirar vantagem da
vulnerabilidade que Sarah demonstrara em seu último encontro.
Ela, por sua vez, suspeitava que o conde estava determinado a suprimir
qualquer intimidade entre eles, o que lhe causava mais constrangimento ainda.
Agora, contudo, a expressão dele era mais branda.
— Tem certeza que é só isso? — ouviu-o questionar.
Por um segundo, perguntou-se o que o conde faria se ela dissesse a verdade.
Que vivia atormentada com o modo como seu corpo reagia ao toque dele, que
quase não se sentia viva quando ele não estava por perto, e que acordava no
meio da noite temendo jamais vê-lo de novo.
Mas claro, não faria algo tão tolo. Em vez disso, forçou-se a sorrir, indiferente.
— O que mais poderia estar me incomodando?
— Eu gostaria muito de saber.
Quando a carruagem parou, Sarah suspirou de alívio.
— Chegamos.
Oliver considerou se devia insistir ou não. Então, saiu da carruagem e a ajudou
a descer.
A neve tinha cedido para uma chuva fina, e os dois correram pelo atalho que
levava à casa modesta. Em poucos momentos, um mordomo os convidava a
adentrar o vestíbulo e os ajudava com as capas. Dali, foram levados a uma
pequena sala onde um rapaz alto e muito bonito caminhava de um lado para
outro, distraído.
À primeira vista, não havia muito em comum entre os dois irmãos. Ben possuía
traços mais suaves, cabelos mais claros e uma postura que não lembrava em
nada a de lorde Chance. Apenas quando ele sorriu, Sarah se deu conta de que
possuía o mesmo charme do irmão.
— Elegante como sempre, conde — Ben elogiou, tocando de leve o nó bem-feito
da gravata e a casaca verde-escura.
— Você também. — Chance tocou Sarah no braço. — Srta. Cresswell, meu
irmão, sr. Coltran.
Ben curvou-se numa mesura.

Projeto Revisoras 115


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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— Seu criado.
— Encantada.
— Chance me falou sobre o quanto tem se esforçado no caso dos brilhantes.
E nem assim obtive sucesso, sentiu-se compelida a confessar. De súbito,
entendia a preocupação de lorde Chance em proteger o irmão mais novo. Havia
um quê de vulnerabilidade nos olhos castanhos.
— Por isso mesmo quis conversar com o senhor.
Ben comprimiu os lábios de leve enquanto se servia de uma generosa dose de
uísque.
— Não sei no que mais posso ajudar. Não tenho a menor idéia do que possa ter
acontecido com esses mald... benditos brilhantes.
Sarah ignorou a quase explosão. O pobre rapaz parecia à beira de uma crise de
nervos. Obviamente encontrava-se assustado com a possibilidade de ter
revelados alguns de seus prováveis deslizes.
— Talvez saiba mais do que pensa — ela o encorajou.
— Como assim?
— Gostaria que me contasse com detalhes tudo o que aconteceu na noite em
que as jóias desapareceram.
— Mas já contei a Oliver, eu...
— Ben — seu irmão o interrompeu, enérgico. — Faça como diz a srta. Cresswell.
Imediatamente acuado pelo tom de Chance, o rapaz suspirou pesadamente.
— Muito bem. Como eu já disse, fui até a casa de mamãe com Goldie e peguei
os brilhantes. Em seguida voltamos para cá.
Pensativa, Sarah tentou reconstituir a cena na própria cabeça.
— Quando retornaram, foram direto para o cofre? — ela indagou.
— Sim. — Ele franziu a testa.
— Onde fica?
— Ali. — Ben apontou na direção de um quadro de gosto duvidoso, na parede.
— Posso?

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Tão logo ele a autorizou, Sarah atravessou a sala e retirou a tela da parede,
revelando um cofre simples, cujo segredo poderia ser descoberto pelo mais
inexperiente dos ladrões.
— O senhor abriu o cofre e colocou as jóias dentro — prosseguiu, num
raciocínio lógico.
— Eu... isso — murmurou Ben. — Não... espere...
— O quê? — O conde franziu o cenho.
Estreitando o olhar como se tentasse se lembrar de alguma coisa, o rapaz
pousou o copo lentamente.
— Maxwell veio até aqui e disse que Moreland e Fritz estavam à minha espera.
— E o que fez com os brilhantes? — perguntou Sarah, atenta.
— Devo tê-los guardado no cofre.
— Tem certeza?
Ben fez uma longa pausa, pensativo. Então sacudiu a cabeça em negativa.
— Não... lembro-me agora. Dei as jóias a Goldie e pedi que ele as colocasse no
cofre.
Sarah sentiu uma onda de excitação percorrê-la. Tinham uma pista, enfim.
Ainda assim, precisava ter cuidado para não tirar conclusões precipitadas.
— O senhor saiu da sala? — ela perguntou.
— Sim, fui tentar me livrar das visitas. Sarah caminhou até ele, devagar.
— Pense, sr. Coltran. Quando voltou, checou se as jóias estavam no cofre?
— Não — admitiu ele, com pesar. — Goldie já o havia trancado.
— Chegou a vê-las naquela noite?
— Não! — Ben suspirou, exasperado.
Ao lado dele, contudo, lorde Chance continuou inabalável. Olhando de Sarah
para o cofre, estreitou o olhar, o semblante moreno iluminando-se subitamente.
— Santo Deus...
— O que foi? — Ben voltou-se para o irmão, ansioso.
— Goldie — concluiu, o olhar fixo no de Sarah.
Ela concordou com um gesto de cabeça.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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— Isso mesmo.

Capítulo VII

Chance observou o rosto de Sarah, ensimesmado. Conhecia mulheres bonitas,


outras cultas, outras generosas. Mas nenhuma reunira todas essas qualidades e
as aliara também a uma inteligência nata, que jamais deixava de surpreendê-lo.
Ela era fascinante.
Com algumas poucas perguntas, chegara à verdade dos fatos. Nem mesmo a
ele ocorrera indagar se os brilhantes haviam seguido direto para o cofre; muito
menos apontar o mais óbvio dos suspeitos.
Perdido nos olhos azuis, quase se esqueceu da presença do irmão. No fundo,
queria mesmo esquecer do resto do mundo.
Ben, todavia, parecia alheio ao silêncio que se fizera, enquanto se esforçava
para compreender o que havia acontecido.
— O que tem Goldie? — indagou, por fim.
Oliver respirou fundo. Ben não era o mais inteligente dos homens nem o mais
responsável; mas era de uma fidelidade canina àqueles que chamava de amigos.
Não aceitaria as suspeitas deles tão fácil.
— Foi ele, Ben.
O rapaz soltou uma exclamação abafada.
— Isso é ridículo! Goldie não é nenhum ladrão! — retorquiu, contrariado. —
Além do mais, colocou as jóias no cofre.
Chance cruzou os braços diante do peito largo.
— Você mesmo disse que não o viu fazer isso. Que dificuldade ele teria em
guardar os brilhantes no bolso, trancar o cofre e esperar você voltar?
A incredulidade transformou as bonitas feições do rapaz.
— Goldie é um cavalheiro e meu amigo. Jamais faria isso comigo.
O conde não confiava tanto no jovem. Já soubera, pelos outros amigos do
irmão, que Goldie estava nas mãos de credores, e também que andava sumido.

Projeto Revisoras 118


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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— Nega que ele estivesse precisando de dinheiro? — exigiu, sem rodeios.


Os lábios de Ben se apertaram numa linha fina.
— Quem não está, além do "impecável conde"?
Oliver cerrou o maxilar. Já tinha ido longe demais tentando salvar o irmão de
seu último arroubo de idiotice. Ben deveria agradecer sua ajuda, e não insultá-lo
daquela maneira infantil!
— Eu e a srta. Cresswell viemos aqui para ajudá-lo, Ben, o que não é nada
conveniente para nenhum de nós dois — rosnou por entre os dentes.
Ben sentiu-se enrijecer.
— Não gostei de ter meu amigo chamado de ladrão.
— Não há outra explicação.
— Qualquer um pode ter entrado aqui e roubado essas jóias!
Chance avançou um passo, um brilho de exasperação nos olhos escuros. A mãe
deles não ajudara o caçula em nada transformando-o numa criança mimada.
Mas a vida se encarregaria de consertar a situação.
— Ninguém sabia que você estava com elas — insistiu, controlado. — Que
ladrão escolheria a casa de um rapaz solteiro, cuja situação financeira precária é
de conhecimento de todos, quando a duas quadras mora o maior colecionador
de Londres?
Incapaz de negar a lógica do argumento, Ben tentou outra opção.
— Pode ter sido um dos criados.
Oliver negou com um gesto de cabeça.
— Já foi dada uma busca nos aposentos deles.
Ben o encarou, atônito.
— Não é possível.
— Admiro a sua lealdade, sr. Coltran — interveio Sarah, com delicadeza. — Mas
todas as evidências levam a Goldie.
— É um equívoco, só pode ser!
— Diga-me... — O conde suspirou, reunindo um resto de paciência. — Viu
Goldie depois que as jóias sumiram?

Projeto Revisoras 119


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Bem, eu... — O irmão franziu a testa, depois se deu por vencido. — Não. Não
vi.
— Não acha estranho que ele não tenha vindo procurá-lo?
— Estive fora, esqueceu?
— Goldie não veio até aqui durante a sua ausência e nem depois que você
voltou.
— Isso não quer dizer que tenha roubado os brilhantes.
— Use a cabeça — disse Chance, devagar. — Goldie precisava de dinheiro, teve
a oportunidade ideal para surrupiar as jóias e agora está desaparecido.
Teimoso demais para se deixar convencer, Ben esmurrou uma mesa.
— Não acredito até ver as jóias nas mãos dele!
Chance abriu a boca para retrucar, mas se deteve ao ver que Sarah intervinha
novamente.
— E isso o que pretendemos fazer agora.
— Tem algum plano?
Ela hesitou apenas um segundo.
— Precisamos forçar Goldie a revelar onde escondeu os brilhantes.
— Se é que estão com eles — argumentou Ben.
— Claro... — Sarah esboçou um leve sorriso.
Chance caminhou pelo tapete, considerando as hipóteses de reaverem as jóias.
Apenas pensar que podiam estar nas mãos daquele irresponsável já era um
desgosto.
— Eu poderia arrancar com a espada a verdade daquele infeliz — confessou,
num raro arroubo de impaciência.
— Não era bem isso que eu tinha em mente — declarou Sarah. Estacou, com um
brilho no olhar.
— Lucky!
Ela mordeu o lábio, pensativa.
— Acho que precisamos ser mais diretos. — Voltou-se para Ben. — Devia fazer
uma visita ao seu amigo.
— Com certeza! Estou ansioso para provar que isso tudo é um pesadelo.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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— Claro — contemporizou Sarah, ainda que os olhos azuis estivessem cheios de


determinação. — Quero apenas que diga a ele que o senhor recuperou as jóias.
Ben piscou, confuso, e, dessa vez, Chance não pôde culpá-lo. Ele próprio não
estava conseguindo acompanhar o raciocínio de Sarah Cresswell.
— Como assim?
Sarah se postou à frente do jovem.
— Diga a Goldie que um homem se aproximou de você e pediu dinheiro pelas
jóias. Conte-lhe que o senhor acabou pagando por elas e as obteve de volta.
— Mas isso é absurdo! — protestou Ben. — Não estou com os brilhantes!
— Goldie não vai saber se está ou não — ela explicou.
— Não entendo como essa história vai fazer Goldie revelar alguma coisa —
cedeu o rapaz, angustiado.
— Vai deixá-lo na dúvida se está ou não com as jóias... E teremos uma chance
de que ele nos leve até elas.
O conde sorriu. Graças aos Céus, Sarah não havia puxado o caráter do pai, ou a
cidade estaria em maus lençóis...
— Perfeito.
— Ainda não entendi — Ben olhou para o irmão, aturdido.
— Ben, se você estivesse com as jóias, isso significaria que alguém as teria
roubado de Goldie! — Oliver explicou, entusiasmado. — Se ele for o culpado,
sem dúvida tentará certificar-se de que elas continuam em seu poder.
— E estaremos lá para conferir — completou Sarah.
Resistindo à tentação de tomá-la nos braços, Chance limitou-se a curvar-se
numa mesura.
— Brilhante como sempre, srta. Cresswell.
Ela baixou os cílios longos por um segundo.
— Ainda não sabemos se mereço o elogio.

Para a agonia de Chance, que ansiava por ver as jóias da mãe de volta ao lugar a
que pertenciam, ficou decidido que a armação para Goldie se daria somente na

Projeto Revisoras 121


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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manhã seguinte. Não queria perder nem um segundo sequer, agora que os
brilhantes se encontravam ao alcance deles.
Todavia concordava com Sarah. Ben precisava tomar parte no plano. Por isso ela
pedira a ele que revelasse cada detalhe da residência do amigo e que fornecesse
uma lista completa dos criados que o serviam. Havia ainda um obstáculo a
transpor: descobrir como ele, Chance, e Sarah poderiam entrar na casa sem ser
notados.
Lucky foi a solução. Com certeza o garoto poderia lhes abrir caminho, já que
era tão ou mais esperto do que Sarah.
Decididos os detalhes, o conde acompanhou Sarah até a casa dela. Embora
estranhasse o silêncio dela, dessa vez não ousou incomodá-la com sua
curiosidade. O que mais tinham a dizer, afinal? Ambos estavam conscientes de
que, se os brilhantes fossem descobertos, seu relacionamento chegaria ao fim.
Depois do dia seguinte, talvez jamais tornassem a se ver.
A idéia era deprimente, ele percebeu, com pesar. E o assombrara pelo resto do
dia e da noite.
Somente quando lembrou a si mesmo que a própria segurança de Sarah
dependia de sua concentração na iminente tarefa, foi capaz de se esquecer do
que viria depois. Primeiro, os brilhantes. Depois pensaria no que o destino lhe
reservava.
Com isso ainda em mente, apanhou Sarah e Lucky na manhã seguinte, antes de
fazer a carruagem rumar para uma velha estrebaria, bem atrás da residência de
Goldie. Aguardaram no frio até ter certeza de que Ben também havia chegado.
Então, após mandar Lucky seguir na frente deles, Chance e Sarah esgueiraram-
se até uma porta lateral que levava diretamente à biblioteca. Era o lugar mais
óbvio para um cofre. Melhor do que isso, estariam apenas a uma parede da sala
e, portanto, poderiam ouvir toda a conversa entre Goldie e Ben.
Escondido atrás da porta, o conde fez o melhor que pôde para proteger Sarah
do vento cortante. Chegara a cogitar a possibilidade de ela permanecer em
casa, pois não queria expô-la a nenhum perigo. Mas logo desistira da idéia. Não
apenas porque Sarah dispensara grande parte de sua energia e tempo para
recuperar as jóias, mas também porque ela jamais iria perdoá-lo caso ele a
fizesse perder a parte mais importante da história.

Projeto Revisoras 122


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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Gritos abafados, seguidos por passos apressados, fizeram Oliver aguçar os


sentidos. Foi como se a casa toda resolvesse sair para a rua. Lançou um olhar
para Sarah e, ao vê-la rir, relaxou.
— Nunca ouvi tanta comoção. O que Lucky pode ter aprontado? — ele indagou.
— Disse aos criados que uma carruagem derrubou um baú de moedas na
esquina de trás.
Chance riu, incrédulo.
— Idéia sua?
— De tio Pierre.
— Família esperta essa.
Sarah torceu o nariz graciosamente.
— Espero que sirva aos nossos propósitos.
Ele capturou com a mão o queixo delicado, os olhos escuros buscando os dela.
— Sarah...
— O quê? — Sarah o fitou, apreensiva.
— Sei que gostaria de presenciar tudo, mas prefiro que fique aqui.
— Teme pela sua reputação?
— Não, pela sua segurança. Se Goldie foi capaz de roubar os brilhantes, sabe lá
Deus o que pode fazer ao se ver desmascarado.
— E quanto a você?
Ele a soltou e afastou a própria capa, de leve, revelando uma pistola.
— Eu vim preparado.
Para sua surpresa, ela não arregalou os olhos ou se afligiu ao ver a arma. Em
vez disso, exibiu a parte de dentro da própria capa, onde brilhou uma pequena
pistola.
— Eu também.
Os olhos do conde cintilaram por um segundo. Suprimiu uma risada. Aquela
mulher era surpreendente. Balançou a cabeça, chocado.
— Mesmo assim, prometa que vai ficar aqui.
— Vou tentar — prometeu Sarah.

Projeto Revisoras 123


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Era o melhor que poderia obter dela, sem dúvida, refletiu Chance.
— Está na hora.
Em silêncio, empurrou a porta estreita e deslizou para dentro da biblioteca.
Olhou ao redor, antes de fazer um sinal para que Sarah entrasse e fechasse a
porta atrás de si. Moveram-se juntos até ouvir vozes no corredor. Puxando-a
pelo braço, Oliver a ocultou entre duas estantes paralelas à parede.
Sentir o corpo esguio pressionado tão intimamente ao seu o fez fechar os olhos
de puro prazer. Era tão bom ter as curvas suaves amoldando-se a ele, o perfume
dela preenchendo seus sentidos... Como podia se imaginar longe de Sarah?
Abriu os olhos e tentou desesperadamente se concentrar no que fazia.
— Acho que não entendi — ouviu Goldie dizer. — Você disse que está com as
jóias?
Chance sentiu que Sarah enrijecia, aguardando a resposta ensaiada de Ben.
Tudo dependia da habilidade do rapaz em convencer o outro de que estava de
posse dos brilhantes.
— Pois, então... — respondeu Ben, devagar. — Um homem apareceu na minha
porta afirmando que estava com elas e exigiu dinheiro. Paguei, claro, apesar da
minha situação. Não podia deixar uma herança de família nas mãos do infeliz.
— E tem certeza de que são os brilhantes verdadeiros? — Goldie pareceu
preocupado.
— Então não conheço as jóias da minha mãe?
— Claro.
— Mesmo assim, é muito estranho — prosseguiu Ben, exatamente como Sarah o
instruíra.
— O quê?
— Não entendo como ele as conseguiu. Jurou que as comprou de outro sujeito.
Mas acho que é balela.
O silêncio se estendeu por alguns instantes.
— Então, você ainda não sabe quem as roubou.
— Foi algum patife, na certa.
A resposta de Goldie foi inaudível.

Projeto Revisoras 124


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Tendo testado ao máximo a própria habilidade de fingir, Ben limpou a garganta


com exagero. Chance fez uma careta ao ouvir o aviso desajeitado do irmão de
que estava prestes a ir embora.
— Estou indo para o clube. Vamos?
O conde prendeu a respiração. Se Goldie se mostrasse disposto a acompanhar
Ben, suas suspeitas teriam sido em vão. Ninguém de posse de jóias tão valiosas,
que poderiam ter sido roubadas, sairia para a noite com a consciência tranqüila.
Por sorte, seu breve momento de incerteza se dissolveu com a resposta do
rapaz.
— Não, eu... Preciso conversar com o meu contador.
— Que pena — lamentou Ben, a voz soando mais estranha do que nunca. —
Pensei que pudéssemos comemorar.
Chance sentiu uma pontada de dó do irmão. Não seria fácil para Ben encarar a
traição de seu melhor amigo.
— Amanhã, talvez.
— Está bem.
— Desculpe, mas estou de saída.
Um silêncio constrangedor se fez por um instante.
— Perdão. Não sabia que estava com tanta pressa.
As vozes soaram mais altas quando Goldie acompanhou Ben até a porta.
— Não quero chegar atrasado. Podemos nos encontrar amanhã?
— Não muito cedo.
— Claro.
Chance olhou para Sarah. Tinha o semblante pálido, porém determinado, e ele
sorriu. Que outra mulher ficaria a seu lado numa situação daquelas?
Reprimiu a tentação de roubar-lhe um beijo tão logo ouviu passos. Precisava
estar preparado caso fosse necessário seguir Goldie a alguma outra parte da
casa.
Pela primeira vez em semanas, pensou estar com sorte. Em pouco tempo, a
figura baixa e meio roliça do rapaz surgiu na biblioteca e a atravessou até o
outro lado.

Projeto Revisoras 125


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Oliver encobriu Sarah enquanto Goldie, de costas para eles, retirava um quadro
da parede e revelava um pequeno cofre. Com mãos trêmulas, conseguiu acertar
o segredo e abriu a porta. Seu suspiro de alívio soou através do cômodo, ao
mesmo tempo em que erguia um colar e uma tiara de brilhantes.
Por um segundo, Chance prendeu a respiração. Sarah estava certa.
Ergueu a pistola lentamente, fez um sinal para ela e moveu-se para o centro da
biblioteca.
— Lindas jóias, Goldie...
O rapaz virou-se, o horror estampado na face.
— O senhor! Como?!
— Não importa como. — Chance estendeu a mão. — Eu fico com isso.
Por um instante, Goldie agarrou-se à pequena fortuna. Depois, percebendo a
expressão inabalável do homem à sua frente e a pistola apontada para ele,
estremeceu. Lentamente, avançou na direção do conde e depositou os
brilhantes na mão dele.
— E-Eu não quis roubá-las — gaguejou, o rosto redondo banhado de suor. —
Ben pediu que eu as colocasse no cofre, mas... eu precisava tanto de dinheiro
e... e... não pude resistir.
Chance não chegou a sentir pena do rapaz. Goldie surrupiara uma herança de
família. Pior do que isso, roubara de seu melhor amigo. Era um fraco e um
imoral.
— Ben confiava em você.
— Eu sei — murmurou Goldie. Por isso demorei a vender as jóias. — Engoliu em
seco. — O que vai fazer comigo?
O primeiro impulso de Chance foi carregá-lo até as autoridades e permitir que a
Justiça seguisse seu curso. Era, na verdade, o que Goldie merecia. Mas a
perspectiva de ver a mãe tomar conhecimento da traição do próprio filho caçula
o fez hesitar. Tinha ido longe demais para proteger a família, para depois jogar
tudo fora por pura vingança.
— Pelo bem do meu irmão, eu lhe darei a oportunidade de voltar para a sua
casa, em York — decidiu, frio, um brilho perigoso nos olhos escuros. — Não
regresse a Londres, ou toda a cidade vai saber que tipo de ladrão você é.
Goldie ergueu as mãos trêmulas para o alto.

Projeto Revisoras 126


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Eu não queria roubá-las, lorde Chance, eu juro!


— Melhor jurar que não vai mais aparecer na minha frente.
Um pouco penalizada, Sarah observou Ben, enquanto ele andava de um lado
para outro na sala. Estava arrasado com a traição do amigo. Não era fácil ter a
confiança em alguém rompida de modo tão vil.
O pesar dela, todavia, não era apenas pela desilusão do rapaz. Embora Ben
estivesse ocupado demais em alimentar a própria raiva para se dar conta da
presença do irmão mais velho, Sarah continuava consciente de cada movimento
do conde.
Era óbvio que, após o alívio por ter descoberto os brilhantes, lorde Chance se
concentrava agora no papel que Ben desempenhara no roubo. Sua expressão
dizia tudo.
Suspirou, ciente das circunstâncias. Seu irmão era mimado demais para aceitar
uma punição. Na certa haveria mais problemas.
De repente, o rapaz esmurrou a palma da mão.
— Não se pode nem mesmo confiar nos amigos! — explodiu. O conde avançou
um passo, uma expressão gelada no rosto.
— Não concordo. Goldie é como a maioria dos jovens da sua idade: fútil,
egoísta e fraco para enfrentar os menores dissabores. Ele viu um meio de pôr
fim aos próprios problemas e não resistiu à tentação. Acho, inclusive, que deve
estar arrependido dos seus atos.
Ben bufou.
— Pois é bom que esteja mesmo. Sabe quantas noites de sono perdi por causa
dessa história?
— Não mais do que merecia — retrucou Oliver, frio.
Ben enrubesceu, mas se recusou a manifestar verbalmente qualquer remorso.
— Nada disso teria acontecido se Goldie não houvesse agido como um ladrão
barato.
— Não agiu melhor do que você.
Sarah mordeu o lábio ao ver o rapaz empalidecer.
— Eu não roubei os brilhantes! Só os tomei emprestados!
Chance não se deixou impressionar.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Você os roubou, exatamente como Goldie fez depois, e pelos mesmos


motivos egoístas.
O silêncio que se seguiu era quase palpável.
— Está tudo resolvido agora — Ben desconversou, baixando os olhos.
— Graças à srta. Cresswell.
Acompanhando a clara sugestão do irmão, o jovem se voltou para ela e curvou-
se numa mesura.
— Fico-lhe muito grato, srta. Cresswell.
— E eu, feliz que tenham recuperado as jóias.
Ele concordou com um gesto de cabeça, antes de voltar a encarar o conde.
— Acho que vou levá-las de volta para a casa de mamãe.
— Pode deixar. Eu mesmo faço isso.
Ben empalideceu de novo.
— Vai contar tudo a ela?
— Só não farei isso porque pretendo poupá-la da sua traição.
— Não precisa fazer tempestade em um copo d'água, Oliver!
O conde estreitou o olhar e Sarah imaginou que estava prestes a se esquecer de
sua habitual paciência. Ben se parecia muito com Rachel. Sua beleza e charme,
exaltados por todos que os cercavam, os faziam exigir a própria satisfação
antes da de qualquer outra pessoa; tal qual crianças mimadas, certas de que o
mundo devia girar apenas em torno delas. Mais de uma vez Rachel a tirara do
sério com suas infantilidades.
— Acha mesmo que não tem nenhuma parcela de culpa nisso tudo? —
questionou o conde, um tom perigoso na voz profunda.
Ben deu de ombros.
— Que outra opção eu tinha?
— Você mesmo se meteu nessa situação, Ben!
— Fácil para você dizer...
Foi a vez de Chance empalidecer.
— Não... não é fácil para eu dizer e, por isso mesmo, me mantive calado por
tanto tempo. Não é mais nenhuma criança, sr. Coltran. Não pode passar o resto

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

dos seus dias brincando de viver, e já passou da hora de parar de me pedir


socorro cada vez que se mete em encrencas.
Ben cerrou os punhos diante da reprimenda, uma expressão chocada no rosto
bonito. Não estava habituado com aquilo.
— Espera que eu siga os passos do "impecável conde"?
Sarah prendeu a respiração. Jamais vira lorde Chance tão transfigurado.
— Só espero que se torne um homem! — devolveu ele, ameaçador. — E que
assuma as responsabilidades do adulto que é.
Os olhos do rapaz se arregalaram.
— Que... que responsabilidades?
Chance se recompôs em poucos segundos. Respirou fundo, sem nunca tirar os
olhos escuros do irmão.
— Para começar, vai viver apenas da sua própria renda. Quero que assuma um
dos negócios da família.
— Vou ter de sair de Londres? — indagou Ben, aturdido.
— Por alguns meses. Caso se comporte de maneira mais responsável, poderá
retornar.
O jovem fulminou o irmão com o olhar.
— Isso é uma ordem?
— Entenda como quiser.
Percebendo que não era páreo para a força de Chance, respirou fundo.
— Muito bem... Você venceu.
— Estou fazendo isso para o seu bem.
— Assim você diz... — Sem olhar para trás, Ben bateu em retirada.
Por um segundo, Chance fez menção de ir atrás do irmão, mas logo se conteve.
Sem se dar conta do que fazia, Sarah atravessou a sala e se postou ao lado do
conde. Sabia exatamente o que ele sentia: frustração, culpa e o medo de que
houvesse destruído para sempre o relacionamento com alguém a quem amava.
Esfregando a nunca rígida, Oliver a fitou, pesaroso.
— Acha que agi certo?

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Ela esboçou um sorriso.


— Fez o seu melhor. É tudo o que podemos fazer nessas horas.
— Assim espero.
— Ao menos recuperamos os brilhantes — Sarah lembrou, tentando confortá-lo.
A expressão dele suavizou-se de imediato, o que o tornou ainda mais bonito.
— Verdade. Como posso lhe agradecer?
— Eu não fiz quase nada — minimizou, repentinamente constrangida.
A mão de Oliver tocou-a no rosto, fazendo-lhe disparar o coração.
— Salvou minha família de um escândalo, garantiu a paz de espírito de minha
mãe e recuperou uma herança de valor inestimável. Quase nada, realmente...
Sarah se viu perdida no olhar dele. Sentiu um calor gostoso se espalhar pelo
corpo. Faria tudo outra vez só para agradar àquele homem, percebeu, aturdida.
Vasculharia Londres de ponta a ponta, enfrentaria qualquer clima ou perigo, se
entregaria de corpo e alma...
Engoliu em seco ao perceber o rumo dos próprios pensamentos. Era uma tola.
O conde jamais cogitaria ficar com ela. Ficaria horrorizado, isso sim, ao
perceber até onde estava disposta a chegar para dar vazão aos próprios
sentimentos. Sem dizer que, agora que os brilhantes tinham sido recuperados,
lorde Chance sairia de sua vida sem pestanejar.
Uma dor aguda rasgou seu coração enquanto lutava para esconder seu segredo.
— Estou aliviada por tudo ter terminado bem — ofegou, nervosa.
— Sarah, eu... — Ele se deteve, o braço caindo ao lado do corpo. — Você merece
uma recompensa — disse apenas.
Recompensa? Sarah recuou um passo, como se tivesse levado um tapa. Chance
imaginara que ela havia feito tudo em troca de dinheiro? Achava mesmo que era
tão mesquinha? Ou estava apenas tentando aliviar a dor que obviamente sentia
por ter que se afastar dela?
— Nunca pedi recompensa alguma — Sarah protestou, a voz saindo estranha.
Oliver franziu o cenho.
— Mas... como eu poderia pedir sua ajuda se não pretendesse recompensá-la
por isso?
— Já foi generoso o bastante com a escola.

Projeto Revisoras 130


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Não estou me referindo à escola. Estou me referindo a você. Quero lhe dar
um presente.
— Não preciso de nada.
— Bobagem — ele riu, incrédulo. — Que mulher não aprecia um agrado? O que
gostaria de ganhar?
Sarah combateu um impulso histérico de cair na risada. O que ela gostaria de
ganhar era a única coisa que o conde jamais poderia lhe proporcionar.
— Nada — disse, não sem uma ponta de amargura.
— Por que está sendo tão dura?
— Não costumo aceitar presentes dos homens.
Ele enrijeceu diante da resposta, os olhos tomados por uma sombra que Sarah
não saberia definir.
— Não estou tentando seduzi-la, Sarah Cresswell. Acho apenas que merece uma
recompensa pelos seus esforços.
— Eu já disse que não precisa se preocupar com isso.
— Por que não?
Não podia confessar que o amor que sentia por ele tornava a simples idéia de
uma recompensa material sórdida e inaceitável.
Dessa forma, disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
— Lorde Scott me ajuda em tudo que necessito.
Percebeu seu erro tão logo articulou as palavras. Surpreendentemente, o sangue
pareceu sumir do rosto de Chance.
Droga, pensou. A última coisa de que precisava agora é vê-lo questionar seu
relacionamento com o homem!
— Lorde Scott... — repetiu ele, lívido.
Sarah deu de ombros, fingindo uma calma que estava longe de sentir.
— Ele é meu amigo.
Aturdida, notou que o conde cerrou o maxilar.
— Pensei que eu fosse seu amigo...
Ela virou o rosto, incapaz de enfrentar o olhar dele por mais tempo.

Projeto Revisoras 131


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Agora que recuperou os brilhantes, não imaginei que fôssemos continuar a


nos ver.
— É isso o que deseja? — indagou Chance, estranhamente ofegante.
Sarah fechou os olhos, combatendo o impulso de se jogar nos braços dele. Para
quê?, lembrou a si mesma. Lorde Chance continuaria longe de seu alcance, a
menos que estivesse disposta a se tornar sua amante, o que ia contra todos os
seus princípios. Por que prolongar aquele sofrimento?
Deu-lhe as costas e se afastou a passos largos.
— É o destino — ela murmurou, por fim. — Vivemos em mundos diferentes...
que não têm absolutamente nada em comum.
Embora não o ouvisse se mover, pôde sentir o calor do corpo másculo quando
ele parou a centímetros de suas costas. Sarah estremeceu, desejando
desesperadamente neutralizar as emoções que sua mera proximidade
despertava. Nenhum homem jamais lhe provocara tais sensações.
— Nossos mundos tiveram algo em comum por um tempo — ouviu-o dizer com
voz rouca e sentiu um arrepio na espinha.
— Esse tempo já passou.
— Mas lorde Scott continua a fazer parte da sua vida...
Céus, por que ele não a deixava em paz? Não podiam levar aquele
relacionamento adiante. Era possível que estivesse com peso na consciência por
deixá-la depois do que haviam passado juntos?
A simples idéia a fez se aprumar. Não suportava que tivessem piedade dela. Já
sobrevivera muitos anos sem a companhia de lorde Chance.
— Com lorde Scott é diferente — Sarah afirmou.
— Mas ele é um amigo tão querido...
A ironia a fez girar o corpo e encará-lo com raiva.
— O que quer de mim, afinal?
— Eu... — Chance se interrompeu diante da expressão dela. — Nada. Nada
mesmo.
Sarah sabia que precisava fugir daquele homem cuja presença a atormentava
tanto.
— Então me leve até a minha casa, por favor.

Projeto Revisoras 132


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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— Claro.
Em silêncio, deixaram a residência de Ben e entraram na carruagem. Sarah
permaneceu olhando pela janela, como se jamais houvesse notado a fileira de
casas e os raros transeuntes que se arriscavam a enfrentar a chuva fria.
Dentro do veículo, a atmosfera parecia ainda mais gelada. Podia sentir o olhar
do conde fixo nela, porém manteve um silêncio estóico. Não havia nada a dizer.
Nada, além de adeus.
O caminho até a casa de Sarah pareceu durar uma eternidade, mas, por fim, a
carruagem parou. A tensão nos movimentos de Chance, enquanto ele a
acompanhava até a porta, não lhe passou despercebida.
Enquanto aguardavam por Watts, Oliver disse:
— Obrigado por tudo.
— Não foi nada, milorde — Sarah respondeu com voz sumida, os olhos fixos no
chão molhado.
— Tenha um feliz Natal.
Ela estremeceu, certa de que seu Natal seria tão frio quanto o tempo naquele
dia.
— Também para você.
Quando a porta foi aberta, Sarah suspirou, trêmula.
— Adeus.
Não esperou para ver se ele ainda tinha alguma coisa a dizer. Na verdade,
praticamente voou casa adentro. Precisava ficar longe de lorde Chance. Não
podia permitir que ele notasse as lágrimas que já lhe escorriam pela face.
Subiu a escadaria, e corria em direção ao quarto quando deparou com o pai
saindo da biblioteca.
— Aí está a minha princesa — ele a saudou com um sorriso. — Toma um chá
comigo?
Sarah queria apenas a solidão do próprio quarto e poder dar vazão às lágrimas
em paz! Não era pedir muito.
— Não, obrigada — disse, virando o rosto de leve na tentativa de ocultar os
sentimentos.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

O Malvado Dândi, contudo, era astuto demais para se deixar enganar. Segurou-a
pelo queixo e obrigou-a a encará-lo.
— O que aconteceu?
Sabendo que seria uma perda de tempo mentir, ela ergueu os olhos, relutante.
— Recuperamos os brilhantes. Solomon a soltou.
— E?
— O amigo do sr. Coltran era o culpado.
Seu pai estudou os olhos vermelhos.
— Lorde Chance deve ter ficado satisfeito... ou não?
— Muito.
— E você?
Sarah deu de ombros.
— Aliviada.
Solomon apertou os lábios, incrédulo.
— Pois não parece.
Ela sentiu o estômago se contrair. Seu pai estava certo. Sentia-se vazia. Não
teria mais a companhia de lorde Chance. Não tornaria a sentir-se uma mulher
desejada; não provaria mais o calor que se espalhava por seu corpo a cada
toque ou olhar dele.
E não era apenas isso. Não teria mais o prazer de simplesmente estar ao lado
do conde, ouvindo suas histórias, vendo os olhos escuros a observarem,
atentos, enquanto ela falava; enfim, de vê-lo se revelar por trás da imagem fria
do "impecável conde".
Não saberia dizer do que sentiria mais falta.
Entretanto não estava preparada para dividir com ninguém suas tristes
emoções. Nem mesmo com seu pai.
— Estou bem, papai.
Solomon a fitou de soslaio.
— Vai voltar a ver lorde Chance?
— Não! — Sarah respondeu, rápido demais. — Por que deveria?

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Porque o ama.
Ela recuou um passo, chocada.
— Imagine.
— Sarah. — Solomon removeu o tapa-olho para fitá-la direto nos olhos. — Não
pense que pode me enganar. Está apaixonada por lorde Chance.
Os lábios dela tremeram, embora tentasse manter a compostura.
— E o que adiantaria se eu estivesse? — indagou, com voz embargada.
Ele a segurou pelo rosto, carinhoso.
— Por quê?
Sarah ergueu o olhar para o dele, relutante. Havia momentos em que se
perguntava como teria sido sua vida se seu pai tivesse sido uma pessoa normal
dentro da sociedade; como teria sido ser criada sem viver às voltas com
escândalos, desfrutando seus dias como qualquer outra jovem. Mas tais
pensamentos sempre desvaneciam.
Ainda assim, amava o pai e, o mais importante, jamais duvidara de seu amor
por ela.
— Quem melhor do que você para saber? — devolveu a pergunta em meio a um
soluço.
Uma sombra de arrependimento transformou o rosto magro de Solomon.
— Porque você é minha filha... — concluiu ele, por fim.
Sarah afastou as mãos de seu pai. O dia fora marcado por confrontos. Não se
sentia em condições de iniciar outro naquele momento.
— Perdoe-me, papai. Preciso descansar.
Dirigiu-se aos seus aposentos.
— Eu sinto muito, Sarah... — ouviu Solomon dizer.
— Eu sei — respondeu, sem olhar para trás.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Capítulo VIII

A ânfora grega era primorosa. Delicadamente moldada, com traços da pintura


original ainda intactos. Uma de suas melhores aquisições até o momento. Ainda
assim, enquanto desenhava o objeto de inestimável valor, lorde Chance sentia-
se frustrado.
Com um gesto irritado, atirou longe o carvão.
E pensar que despertara naquela manhã decidido a tirar Sarah Cresswell da
cabeça de uma vez por todas e retomar a vida tranqüila de sempre. Tinha
acordado mais disposto. Havia dois dias deixara Sarah na porta da casa dela. E
havia dois dias perambulava pela mansão sem conseguir fazer nada mais útil do
que esvaziar meia dúzia de garrafas de conhaque.
Afinal, Sarah deixara bem claro que o relacionamento deles era impossível,
refletiu, amargo. Ela nem sequer aceitara uma lembrança pelo tempo que
passaram juntos.
Ele próprio sempre tivera consciência disso. Até mesmo quando a tinha nos
braços, sabia que o desejo que o assolava jamais seria satisfeito.
Então, por que não conseguia retomar a vida que desfrutava antes de conhecê-
la?
Pressionou as têmporas numa tentativa vã de abrandar uma forte dor de
cabeça. Ao menos os brilhantes haviam sido recuperados, consolou-se. Era
véspera de Natal e, naquela noite, quando a mãe dele estivesse se preparando
para a festa, nem sequer desconfiaria que correra o risco de não usar suas jóias
de estimação. Seu único desgosto seria lembrar que o filho mais novo não
estaria presente, pois viajara para a propriedade deles, em Kent.
Era uma vitória vazia, foi obrigado a admitir. Recuperara os brilhantes, mas, no
processo, perdera a mulher mais maravilhosa que conhecera na vida. Pior que
isso seria tolerar as inúmeras debutantes, e suas respectivas mães, fazendo de
tudo para atrair a atenção dele. Como poderia não compará-las a Sarah?
Daria uma fortuna para não comparecer àquela festa. Talvez pudesse inventar
uma desculpa qualquer...
A lembrança de já ter privado a mãe da companhia de Ben na véspera de Natal,
todavia, o fez desistir da idéia. Lady Chance jamais o perdoaria se ele não

Projeto Revisoras 136


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

estivesse presente. Tinha obrigação de permanecer na reunião por um tempo e


participar da ceia.
Fechou os olhos por um instante. Obrigação. Já estava farto daquela palavra.
O ruído da porta da biblioteca sendo aberta o fez erguer a cabeça. A visão do
mordomo não diminuiu em nada sua irritação. Da última vez que Pate o
interrompera, descobrira a mais recente peripécia do irmão caçula...
— Perdoe-me, milorde.
Chance recostou-se no espaldar alto da cadeira com um suspiro.
— O que foi desta vez, Pate?
— Monsieur Valmere deseja vê-lo.
— Droga! — Oliver exclamou, exasperado. Passara muito tempo matutando
sobre a estranha figura de tio Pierre. Embora não houvesse chegado a nenhuma
conclusão, tinha certeza de que o homem não era quem fingia ser. Também
suspeitava de que era mais próximo de Sarah do que admitia.
Que diabo estaria querendo, vindo até ali? Cobrar a recompensa que Sarah se
recusara a receber? Se era mesmo o Malvado Dândi, não seria de admirar...
— Devo dizer que não está disponível no momento?
Chance bufou, sarcástico, duvidando de que ele próprio fosse conseguir se
livrar do homem.
— Não se aflija. Tenho a impressão que desta vez não teremos escapatória.
O mordomo piscou, aturdido.
— Mande-o entrar — ordenou. — E traga o meu melhor conhaque. Vou precisar
dele — completou, quando o mordomo já se dirigia para a saída.
Oliver ergueu-se e olhou o próprio reflexo no espelho oval, sobre o aparador.
Apesar da elegante casaca cor de ameixa, da camisa branca e da gravata
impecável, tinha uma sombra sob os olhos que, sem dúvida, era o motivo pelo
qual a criadagem vinha caminhando na ponta dos pés pela casa; como se
alguém houvesse morrido. No período em que estivera na companhia de Sarah,
ao contrário, todos tinham se comportado de maneira estranha... quase com
alegria, constatou, pensativo.
Correu os dedos pelos cabelos escuros, depois voltou-se para cumprimentar o
homem que adentrava a biblioteca.

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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Milorde — saudou monsieur Valmere com uma mesura exagerada.


— Monsieur Valmere.
— Muita gentileza sua em me receber.
Chance ergueu as sobrancelhas.
— Eu tinha alguma escolha? — indagou, sincero.
"Tio Pierre" abriu um surpreendente sorriso.
— Não.
O conde observou o rosto magro, sentindo-se enrijecer ao notar a inconfundível
semelhança com o de Sarah.
— O que deseja, monsieur?
Solomon cruzou os braços diante do peito com um suspiro.
— Obviamente, deve imaginar que venho lhe falar a respeito de Sarah.
Oliver franziu a testa. O motivo da visita não lhe parecera assim tão óbvio.
— Ela está bem? — indagou, repentinamente preocupado.
— Non. Non está nada bem.
Chance comprimiu os lábios diante do ridículo sotaque.
— Qual é o problema? — indagou, sentindo o peito apertado ao imaginar se ela
estaria doente ou ferida.
— O senhor.
— O quê? — Oliver franziu o cenho.
— Está apaixonada pelo senhor — declarou Solomon.
Chance prendeu a respiração.
— Não tenho tanta certeza.
— Foi exatamente o que eu disse a ela, mas em vão. Sarah está convencida de
que jamais mereceria o seu coração.
— E por isso pediu que eu jamais a procurasse de novo? — Oliver riu, amargo.
Solomon deu de ombros.
— O que esperava? Ela acredita, não sem razão, que não pode haver futuro para
o relacionamento entre os dois.

Projeto Revisoras 138


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

Sarah o amava de verdade? Seria possível?, questionou-se Chance, aturdido.


Contra sua vontade, a lembrança dos beijos que haviam trocado irrompeu em
sua mente. Sabia que ela se sentia fisicamente atraída por ele e que seus olhos
azuis pareciam brilhar ainda mais quando o fitavam.
Mas amor?
Uma saudade absurda o invadiu antes que pudesse controlar mais aquela
fraqueza. Saber que Sarah retribuía seus sentimentos, no entanto, não ajudou a
aplacar seu conflito interior. Na verdade, ficara ainda mais agoniado em
imaginar que ela podia estar passando pelo mesmo que ele.
— E não pode mesmo — Oliver obrigou-se a dizer, sério.
Solomon tirou calmamente sua caixinha de prata do bolso e aspirou o rapé.
— O senhor não a ama?
— Claro que sim! — o conde respondeu, antes que pudesse conter a própria
língua.
Uma expressão estranha tomou conta das feições do homem.
— E mesmo assim acha fácil dar-lhe as costas e mantê-la fora da sua vida.
Sentindo-se enrijecer diante da fria acusação, Chance avançou um passo.
— Não acho nada fácil, mas tenho um dever com a minha família. É uma
questão de honra.
— Que atitude nobre... — ironizou Solomon, sem se deixar impressionar pelo
sacrifício que o conde alegava. — Só me explique por que uma jovem que
passou a vida se devotando aos menos favorecidos e a amar incondicionalmente
pode desonrar sua família.
Chance o encarou.
— Ela é filha de um criminoso procurado.
Solomon concordou com um gesto de cabeça, o dedo percorrendo a
sobrancelha sob o tapa-olho.
— E se eu prometer que o Malvado Dândi jamais irá retornar e, portanto, ficará
fora do caminho dos dois?
— Pode prometer isso?
Admitindo claramente ser o famoso ladrão, Solomon concordou de pronto.

Projeto Revisoras 139


Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)

— Posso.
Oliver não pôde deixar de admirar a coragem dele. Um só gesto seu e seria o
fim do Malvado Dândi. No entanto Cresswell arriscava o próprio pescoço em
nome do bem-estar da filha.
Lógico que não iria denunciá-lo às autoridades. Jamais faria algo que pudesse
ferir Sarah, pensou, enquanto Pate se aproximava com o conhaque.
Tão logo o mordomo deixou a biblioteca, Chance serviu dois cálices, entregou
um deles ao Malvado Dândi e caminhou até a lareira acesa.
— Tudo isso não muda o fato de que qualquer ligação minha com Sarah
Cresswell só nos traria dissabores.
— Bah! — exclamou Solomon. — O que é pior: suportar o falatório por um
tempo, ou passar o resto da vida longe da mulher que o senhor ama?
Chance o fitou, os lábios apertados. Solomon Cresswell não deixava de ter
razão.
— Mas... e quanto à minha mãe e a meu irmão? Teriam de passar pela mesma
provação sem ter culpa de nada.
— Quer saber? Não acho que esteja tão preocupado assim com a sua família. No
fundo, está é com medo.
Oliver fulminou com os olhos a indesejável visita. Não admitia que o
chamassem de covarde.
— Como é?
Indiferente ao tom ameaçador, Solomon devolveu o olhar.
— E simples trilhar o caminho que lhe traçaram, meu amigo. Mais complicado é
seguir o que manda seu próprio coração. — Ergueu a mão quando Chance fez
menção de replicar. — É com muita coragem que Sarah atravessa esta cidade
todos os dias para ir àquela escola, ou freqüenta lugares em que nenhuma
moça "direita" deveria ser vista. A mesma coragem que teve a mãe dela ao
abandonar a própria família e enfrentar os dissabores de ser casada com o
Malvado Dândi. Na época, com exceção do tio de Sarah, lorde Scott, todos lhe
deram as costas.
Oliver piscou à menção do outro homem.
— Tio de Sarah? — repetiu, incrédulo.

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— Poucos sabem disso — declarou Solomon. — Foi mais um sacrifício que ela
fez por amor aos seus.
O conde balançou a cabeça devagar, entendendo enfim porque Sarah e Scott
pareciam tão íntimos.
Santo Deus! Sarah tinha ligação com uma das mais respeitadas famílias de
Londres e, ainda assim, não renegara a posição que o pai havia reservado para
ela na sociedade.
— E que acabou favorecendo também o trabalho com as crianças... — Oliver
concluiu, com o coração apertado.
— Isso mesmo. Apesar dos meus erros, ainda tenho muito do que me orgulhar
— continuou Solomon Cresswell. — Possuo três filhas adoráveis, cujo caráter e
generosidade estão acima de qualquer suspeita.
Chance não podia negar. Sarah era maravilhosa, solidária e abençoada com uma
bondade que ele jamais vira.
— Faz tudo parecer tão simples — murmurou.
— Não se trata disso. Eu já disse que é preciso coragem para seguir as próprias
convicções. Seria fácil continuar agindo como o "impecável conde" e desposar
uma jovem da elite para ser a mãe de seus filhos. O mais difícil é arriscar tudo
por amor.
Arriscar tudo por amor...
As palavras ecoaram na mente do conde.
Santo Deus, conseguiria seguir o que mandava seu coração? Possuía tanta
coragem assim?
A resposta ficou clara quando um par de olhos azuis lhe veio à mente.
Por mais árdua que pudesse ser, poderiam enfrentar aquela situação juntos,
concluiu, decidido.
— Preciso sair do país por alguns dias — o Malvado Dândi interrompeu seus
devaneios. — Espero que cuide de Sarah por mim.
Com isso, Solomon Cresswell simplesmente deixou a biblioteca.
Sozinho, Chance permitiu que um sorriso lhe curvasse os lábios. Cuidaria de
Sarah pelo resto da vida.

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Do outro lado da cidade, Sarah fazia o possível para alimentar o próprio espírito
natalino. Não era justo deixar que sua péssima disposição contaminasse todos à
sua volta. Além do que, não podia permanecer trancada no quarto para sempre,
censurou a si mesma. Era melhor retomar a rotina e esquecer as últimas sema-
nas. Já bastava de sentimentalismos, pensou, enquanto pendurava mais um
ramo de azevinho sobre o consolo da lareira.
Mas seu coração recusava-se a colaborar. Piscando com força para combater
uma nova onda de lágrimas, ensaiou um sorriso para Lucky.
— O que acha?
O menino observou a sala já toda enfeitada para o Natal.
— Esqueceu de pendurar o visgo!
Sarah comprimiu os lábios, tentando não pensar a que aquela história de visgo
a levara da última vez. Maldita tradição!
— Não precisamos dessa bobagem.
— Mas... e se o conde aparecer? — sorriu o menino, maroto. Ela sentiu o peito
se apertar.
— Se está se referindo a lorde Chance, pode esquecer. Já encontramos as jóias,
portanto ele não precisa mais de nós.
— Eu não teria tanta certeza assim, Sarah Cresswell — falou uma voz profunda,
vinda da porta.
O coração dela deu um salto enquanto girava o corpo e deparava com Oliver a
poucos passos.
— Milorde!
Ignorando o constrangimento de Sarah, Lucky abriu um largo sorriso.
— Eu sabia que você ia voltar! — disse, antes de bater em retirada com um olhar
significativo na direção dela.
Uma vez a sós com o homem que lhe ocupara os pensamentos por cada minuto
dos dois últimos dias, Sarah lutou para respirar normalmente. Deus do Céu,
batalhara tanto para convencer a si própria de que era melhor nunca mais pôr
os olhos nele... Agora, toda sua convicção tinha ido por água abaixo.
— O que veio fazer aqui? — indagou, trêmula. Oliver ergueu um pacote.
— Trouxe-lhe um presente de Natal.

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Sarah se rebelou no mesmo instante.


— Eu já disse que não quero nada.
— Disse, sim — concordou ele, inabalável. — Mas acontece que sou tão teimoso
quanto você e não vou deixá-la recusar. — Caminhou na direção dela e,
pegando-a pelo braço, depositou a caixa em sua mão. — Abra, pelo menos.
Nervosa com o calor e o perfume que emanavam do conde, Sarah achou por
bem desembrulhar o pacote.
Esperando uma jóia cara ou mesmo algumas cédulas, foi pega de surpresa pela
coletânea de sonetos de Shakespeare finamente encadernada. Um presente
simples, porém de alguém extremamente sensível.
— Que maravilha! — exclamou, a despeito de si mesma, encantada.
Os olhos de Oliver não deixaram os dela nem por um segundo.
— Mencionou uma vez que preferia Shakespeare a qualquer outro poeta.
Sarah ergueu o olhar, surpresa.
— E se lembrou disso?
— Eu me lembro de tudo — sussurrou Chance, a voz soando estranha. — De
cada palavra, de cada olhar, de cada beijo.
Uma vez mais, ela se viu transportada pela magia dos olhos escuros e agarrou-
se desesperadamente a um último fio de dignidade.
— Não devia estar aqui.
— Não — concordou Chance com um sorriso triste. — A esta altura, minha mãe
deve querer servir minha cabeça numa bandeja.
Sarah prendeu a respiração. Em seguida exclamou:
— A festa de Natal!
— Pois é.
— Por que não está lá? Ele a segurou pelo rosto.
— Porque não vou a essa festa sem você.
— O-o quê? — Um tremor a sacudiu dos pés à cabeça.
— Eu a amo, Sarah Cresswell.
Foi como se um raio a tivesse atingido e a impedisse de raciocinar. Ele a amava?
Mas não era possível... Chance só desposaria uma jovem nobre e rica que

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pudesse desempenhar à altura o papel de condessa de Chance, e não a filha de


um notório ladrão, a qual devotara a vida aos pobres e marginalizados.
— Não sabe o que está dizendo.
— Sei exatamente o que estou dizendo — contestou ele, envolvendo-a pela
cintura. — Eu a amo. Amo seu sorriso, como seus olhos brilham quando está
feliz, como enche o mundo de alegria, como estremece nos meus braços...
As lágrimas encheram os olhos azuis.
— Mas... é impossível.
— A única coisa impossível é viver minha vida sem você. Sarah permitiu-se
mergulhar nos olhos escuros.
— O que quer de mim?
Oliver percorreu os lábios cheios com a ponta dos dedos.
— Quero que seja minha esposa. Case-se comigo, Sarah.
Ela engoliu em seco. Seu coração dizia "sim, sim!". Era tudo o que Sarah mais
desejava na vida. Mas o bom senso e a razão, tão enraizados em sua
personalidade, a alertaram de que não era tão simples assim.
— Sua família jamais vai me aceitar — murmurou com voz trêmula.
— Eles têm essa opção, naturalmente — admitiu Chance, sério. — Mas não
duvido que a amarão tanto quanto eu a amo. — Um brilho iluminou os olhos
castanhos. — Principalmente quando enchermos a mansão com muitos
herdeiros.
O sangue coloriu a face lívida de Sarah.
— Só vou causar problemas na sua vida.
— Não — ele negou com veemência. — Já trouxe mais beleza, mais alegria e
generosidade para a minha vida, srta. Cresswell.
Ela fechou os olhos por um instante. As mãos de Oliver acariciando suas costas
mal a deixavam raciocinar. Começavam a provocar uma sensação tão intensa
que Sarah sentia os joelhos fracos. Melhor do que isso, a faziam esquecer de
qualquer motivo pelo qual não devesse se tornar a condessa de Chance.
— Eu não sei, eu...
— Só me diga uma coisa, Sarah — pediu o conde. — Você me ama?
— Amo, mas...

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Os dedos dele a silenciaram.


— Então, nada mais importa. Partilhe sua vida comigo. Seja minha esposa.
Sarah hesitou, dividida entre o medo de prejudicá-lo e o amor sincero que via
no rosto moreno. Sempre tentara fazer o que era melhor para os outros, colocar
as próprias necessidades em segundo plano. Pela primeira vez, todavia, queria
agarrar aquela promessa de felicidade com ambas as mãos. Pela primeira vez na
vida, queria satisfazer a si mesma e a ele. O resto do mundo podia ir para o
inferno.
— Sim, Oliver — sussurrou, ensaiando um sorriso.
O conde soltou um gemido de satisfação antes de cobrir a boca pequena com
um estonteante beijo. Sarah recostou-se nele, exultando ao sentir o corpo
másculo colado ao seu. Seria tão bom ser beijada assim para o resto da vida,
pensou, sonhadora. Era mais do que qualquer mulher poderia desejar.
Após depositar dezenas de pequenos beijos no rosto macio, Oliver finalmente
se deteve para fitá-la nos olhos.
— Lucky estava certo — sorriu. — Você esqueceu o visgo.
O sorriso de Sarah rivalizava com a estrela de Natal cintilando logo acima deles,
na árvore.
— Pois você se saiu muito bem, mesmo sem ele... — ela comentou.
— Devo ter sido tomado pelo espírito natalino. De repente, Sarah arregalou os
olhos.
— Não lhe comprei nenhum presente! — lembrou, consternada.
Os olhos escuros brilharam, envolvendo os dela.
— Está enganada. Já me deu o presente que eu mais esperava: a coragem para
seguir meu coração. Feliz Natal, meu amor.
— É o Natal mais feliz de toda a minha vida — murmurou Sarah, oferecendo os
lábios mais uma vez.

Nenhum dos dois notou a presença discreta do Malvado Dândi, antes que ele se
retirasse em silêncio e começasse a subir as escadas, disposto a fazer as malas.

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Uma de suas filhas já estava bem encaminhada, concluiu com um sorriso. Ainda
havia mais duas com que se preocupar antes que pudesse se aposentar de uma
vez em sua confortável casa, na Itália.
A adorável Emma seria a próxima. Precisava encontrar para ela um rapaz muito
especial. Alguém que pudesse derreter o gelo que tomara seu coraçãozinho e a
fizesse sorrir novamente.
Assobiando uma canção de Natal, Solomon terminou de subir as escadas,
satisfeito.
O Malvado Dândi nunca falhava.

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