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Debbie Raleigh
Um amor impossível
Sarah Cresswell levava uma vida tranqüila, dedicando seu tempo aos menos
afortunados... Até ser chamada para ajudar na investigação do roubo de um
valioso tesouro da família de Oliver Spense, o conde Chance. O ar de
superioridade e a arrogância do conde levam Sarah à determinação de provar
sua capacidade, encontrando o ladrão e as jóias. No entanto, ao conduzir lorde
Chance pelo submundo de Londres, Sarah percebe que a hostilidade pouco a
pouco dá lugar a outro sentimento; inteiramente oposto. Na verdade, Sarah
descobre que está apaixonada por Oliver! Mas é um amor impossível, sendo ela
filha de quem é... A menos que o mais improvável e inesperado dos milagres
aconteça...
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)
Debbie Raleigh
Suas histórias se caracterizam pelos cenários históricos vívidos,
personagens marcantes e um senso de humor, transportando o leitor a
um tempo remoto, quando galantes cavalheiros e jovens donzelas
escapavam dos salões de baile para um beijo roubado à luz do luar.
Querida leitora,
Os personagens interessantes, a atmosfera sensual entre os protagonistas e a trama inteligente
são responsáveis pelo carisma deste delicioso romance. As fãs de Debbie Raleigh vão adorar
esta história!
Projeto Revisoras 2
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)
© 2006 Editora Nova Cultural Ltda. Rua Paes Leme, 524 – 10° andar –
CEP 05424-010 - São Paulo - SP
www.novacultural.com.br
Impressão e acabamento: RR Donnelley Moore
Tel.: (55 11) 2148-3500
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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)
Capítulo I
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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)
— Creio que não, milorde. São precisamente dez e meia. Foi muito específico
quando disse que não deveria ser interrompido no período das oito às onze.
Chance respirou fundo. Gostava de ver certas excentricidades suas respeitadas
pela criadagem, tais como não comer pudins na hora das refeições, ver os cães
sabujos devidamente cuidados e ter as manhãs livres para se dedicar às
antiguidades. Nada muito difícil de ser atendido, ponderou, considerando-se os
hábitos extravagantes de tantos outros nobres.
— E, ainda assim, aqui está você... às dez e meia.
O semblante do mordomo não se alterou diante da repreensão.
— Sim, milorde.
— A casa está pegando fogo? Os franceses estão invadindo a Inglaterra?
Uma ponta de divertimento brilhou nos olhos azuis de Pate.
— Não que eu saiba, senhor.
— Então, imagino que o príncipe regente esteja à minha espera.
— Não o príncipe, mas o sr. Coltran.
Uma ponta de surpresa se fez notar nas feições másculas. Embora seu irmão
mais novo sempre o visitasse na elegante mansão da cidade, com mais
freqüência quando estava às voltas com cobradores, jamais se arriscara a
interromper seus estudos.
— Santo Deus! Ele está embriagado?
— Não creio, senhor. Disse apenas ser um assunto da máxima urgência.
Chance disfarçou um sorriso. Não lhe incomodava que Pate tentasse abrandar a
inconveniência do rapaz. Ben podia ser impetuoso, desajuizado, inconseqüente,
mas não duvidava de seu charme e carisma. Poucos não se deixavam encantar
por seu espírito alegre; ele inclusive. Ainda que nos últimos meses sua afeição
tivesse sido testada até o limite.
— Tudo é da máxima urgência para meu irmão — Oliver suspirou.
— Sim, milorde.
Chance tamborilou os dedos no braço da cadeira.
— Aparentemente, você também pensa que devo recebê-lo. Estou certo?
— Sim, senhor. Ele me parece um tanto incomodado.
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A carreira do ladrão, contudo, chegara ao fim havia alguns meses, quando fora
desmascarado por um concorrente. Ele tinha sido, então, levado para Newgate
e, por um tempo, aguardara sua sentença na cadeia; até que escapara bem
debaixo do nariz dos guardas. Dizia-se que fugira para a Índia, a fim de se livrar
da forca imposta pela Coroa. Deixara para trás três filhas, uma das quais,
prometera lorde Scott, seria a solução para o problema com Ben.
Chance comprimiu os lábios. Já não tinha tanta certeza disso.
Embora houvesse depositado toda a confiança em seu bom amigo, não havia
como sentir o mesmo pela filha de um marginal. Não estaria fazendo um papel
mais ridículo do que o irmão dele?
Agora, três dias após saber do roubo das jóias da família, via-se diante daquela
casa. E isso porque não tinha sequer idéia de onde começar sua busca.
Com um suspiro, aproximou-se da porta. Não podia ficar na rua o dia inteiro.
Ainda assim, foi com relutância que ergueu a alça de ferro e a bateu contra a
madeira.
Foi logo atendido por um sujeito baixo e atarracado, cujo rosto trazia diversas
marcas. Chance ergueu as sobrancelhas ao reconhecer um antigo boxeador que
se aposentara alguns anos antes. Já o vira em ação por uma ou duas vezes,
portanto não havia como confundir o nariz largo e achatado, os frios olhos
azuis e o vão entre os dentes.
— Sim? — O inesperado mordomo o fitou com desconfiança.
— Gostaria de falar com a srta. Cresswell. — Oliver estendeu o cartão com
borda dourada.
O homem o estudou por um segundo antes de recuar um passo.
— Ela está à sua espera.
Conforme adentrou o hall apertado, o ex-lutador ofereceu-se para apanhar-lhe o
chapéu e a casaca. Em seguida subiu uma escadaria, fazendo um sinal para que
o conde o seguisse. Chance foi obrigado a se apressar e quase trombou com o
homem quando este estacou para abrir uma porta.
— O cavalheiro chegou — anunciou, colocando a cabeça para dentro.
— Obrigada, Watts — respondeu uma mulher lá de dentro. Abrindo espaço para
ele, Watts fez um gesto displicente.
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— Talvez tenha sido apenas uma infeliz coincidência. O desgraçado pode ter
arrombado o cofre sem nada de especial em vista.
Sarah negou com a cabeça. Anos vivendo às voltas com os ladrões mais
audaciosos e inteligentes lhe permitiam analisar qualquer roubo sob o ponto de
vista deles, e não da vítima.
— Se fosse assim, teria levado também a prata da casa ou as economias de seu
irmão. Não perderia tempo abrindo o cofre. Só o fato de ter conseguido se
esquivar dos criados e fazer o serviço sem ser notado implica um plano bem
elaborado e uma certa habilidade. Alguém teria motivos para imaginar que seu
irmão possuía algo de muito valor?
— Não. — Chance esfregou a testa, parecendo repentinamente cansado. — Na
verdade, meu irmão é famoso por nunca ter um tostão.
Era do que Sarah suspeitava.
— Então, só mesmo um tolo escolheria entrar na casa dele. A menos que
soubesse que seu irmão estava com os brilhantes.
— Sim — concordou Chance, a contragosto, seguindo a lógica do raciocínio.
— Quem poderia saber que seu irmão os havia pegado?
— Maxwell — respondeu Oliver, sem hesitação.
Sarah não pôde evitar um leve sorriso. Era óbvio que o conde desejava que o
notório lorde Maxwell fosse o culpado. Já tinha ouvido falar no homem. Sem
dúvida, ele poderia achacar um jovem inexperiente ou fazer chantagem com
uma vítima desavisada; mas dificilmente se esgueiraria noite adentro
arrombando cofres.
— E quanto aos criados de seu irmão?
— É improvável que Ben tenha comentado seu plano sórdido com a criadagem.
— Não deveria subestimar a criadagem. Costumam saber tudo o que se passa
dentro de uma casa.
— Sua perspicácia é impressionante.
— Ele costuma fazer confidências aos amigos? — indagou Sarah.
— Isso eu não sei.
— Então, precisamos descobrir. — Curvando-se sobre a mesa de centro, ela
apanhou os papéis e a pena que preparara com antecedência. Com caligrafia
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Virou-se para a escadaria que levava a seus aposentos, mas parou, de repente,
ao ouvir um assobio vindo da pequena biblioteca. Mais curiosa do que
assustada, atravessou o hall e entrou no cômodo estreito, ladeado por estantes,
no fim do qual havia uma elegante escrivaninha em estilo Luís XIV.
— Watts? — Sarah chamou, esperando que o mordomo, sempre atento,
estivesse por perto caso precisasse de seu potente soco para se defender.
Mas não foi Watts quem saiu de trás da cortina de veludo azul.
Sarah estacou, em choque. Ele havia mudado desde a última vez em que o
encontrara. Sua figura alta parecia mais magra, os cabelos castanhos pincelados
de branco estavam mais compridos e amarrados na nuca com uma fita. Sem
falar no bigode cheio e no tapa-olho.
Para ela, contudo, o Malvado Dândi era inconfundível.
— Papai!
— Bom dia, minha querida — ele a saudou fazendo uma reverência.
— O que faz aqui?
Embora não fosse exatamente um homem bonito, Solomon Cresswell era dono
de um ar elegante e jovial que sempre o fizera bem-vindo nos altos círculos de
Londres. Trajando uma casaca listrada, camisa branca de punhos com babados
e calçando sapatos de fivela, parecia mais um autêntico dândi do que um
criminoso fugitivo.
— Você acha que eu abandonaria minhas amadas filhas? — comentou, com um
brilho divertido no olho verde que ela conseguia enxergar.
Sarah relaxou de leve, para em seguida ser tomada por uma onda de
indignação. Para um adulto daquela idade, às vezes o pai dela agia como um
moleque!
— Perdeu o juízo de vez? Se for capturado, como vamos...
— Relaxe! — Solomon abriu uma caixinha incrustada com esmeraldas e cheirou
uma pitada de rapé. — Esses imbecis não são páreo para o Malvado Dândi.
— Não precisam ser páreo para ninguém se você vai até eles! Pensei que
estivesse na Índia.
— Francamente... Tudo que fiz foi deixar algumas pistas falsas para poder
circular em paz por aqui mesmo. Melhor permanecer em Newgate do que ir
para a Índia!
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Capítulo II
A sra. Surton era uma mulher alta, magra e com uma maneira rude de se
expressar. Diziam que seu marido, muito tímido, morrera precocemente devido
ao veneno que ela destilava; e Sarah não duvidava disso.
Por outro lado, apesar de todos os defeitos da mulher, não podia negar que a
escola progredira graças à sua generosidade. De um exíguo celeiro com cinco
alunos, haviam se mudado para um armazém reformado que abrigava agora
trinta estudantes e três professoras, assim como uma cozinha na qual eram
servidas refeições básicas às crianças carentes. Somente por isso, Sarah se
dispusera a suportar os comentários ácidos e a infindável grosseria da patrona,
o que não facilitava de todo a obrigação de recebê-la quase diariamente.
Ao entrar no vestíbulo, viu-a bufar com impaciência. Como de costume, a sra.
Surton vestia-se de negro e trazia os cabelos escuros presos num coque.
— Sra. Surton...
Os lábios finos da mulher praticamente desapareceram de tão apertados.
— Sabia que aquele rufião do seu mordomo tentou me dispensar?
Sarah reprimiu um sorriso. Watts já havia nocauteado mais de cinqüenta
desafiantes. Salvara seu pai em inúmeras ocasiões e agora atuava como um
verdadeiro anjo da guarda para ela. Mas nem mesmo ele era páreo para a sra.
Surton.
— Perdão. Eu estava com enxaqueca e disse a Watts que não receberia ninguém.
Mas, no que posso ajudá-la? — perguntou Sarah, querendo se livrar logo da
visita. Já era difícil receber a mulher normalmente. Com o pai dela na casa,
então, era um martírio.
— Vim apenas para informá-la que lady Milhouse concordou em apadrinhar a
escola.
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Dessa vez Sarah não precisou camuflar as próprias emoções. Lady Milhouse não
era apenas extremamente rica, como também respeitada o bastante nos
círculos sociais para ser considerada um exemplo. O fato de patrocinar a
instituição logo traria outras doações.
— Isso é muito bom!
— Sim. E significa que poderemos aceitar pelo menos mais cinco alunos.
— Estarão conosco até o fim desta semana — prometeu Sarah, entusiasmada.
— Também poderemos providenciar mais alguns casacos e botinas para as
crianças. Se soubermos economizar, claro.
— Claro.
— Sendo assim, amanhã eu...
Ao ver o olhar da mulher desviar-se além dela, Sarah voltou-se devagar e sentiu
um aperto no estômago ao avistar o pai descendo as escadas com aquele
sorriso que conhecia tão bem. O Malvado Dândi atacava outra vez, e não havia
nada que ela pudesse fazer.
— Ma petite... — disse Solomon com voz arrastada e com um forte sotaque
francês. — Por que estão aí, paradas no vestíbulo? Com certeza a senhora ficaria
mais à vontade na sala.
Sarah lançou-lhe um olhar fulminante.
— A sra. Surton já está de saída.
— Antes de sermos apresentados? — protestou Solomon, cortês. — Mon Dieu...
— Voltou-se para a mulher e se curvou com um floreio. — Seu criado, monsieur
Valmere, tio da srta. Cresswell e recém-chegado de Paris.
Sarah prendeu a respiração, esperando que, a qualquer momento, a outra fosse
soltar um grito ao reconhecer o Malvado Dândi, ou, no mínimo, manifestar seu
desgosto por estar sendo obrigada interagir com mais um membro da família
Cresswell. Ao contrário, o rosto anguloso da viúva iluminou-se como o de uma
colegial diante das atenções do desconhecido francês.
— Ora, eu não sabia que a senhorita possuía parentes na França — comentou
com simpatia.
— Somente porque fui casado com a irmã do pai dela.
— Compreendo. — A mulher parecia totalmente esquecida da presença de
Sarah.
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Após deixar a residência da srta. Cresswell, lorde Chance teve um dia cheio.
Mesmo em meio a uma palestra sobre artefatos egípcios, contudo, a imagem da
filha do Malvado Dândi não lhe saía da cabeça.
Não era de admirar, pensou. A moça era mesmo a mulher mais incomum que já
conhecera. Em nenhum momento havia corado ou ficado desconcertada com
seus olhares, além de argumentar e opinar com segurança sobre cada ponto. Na
verdade, nem por um segundo ele tivera o domínio da conversa... o que não era
normal.
Na manhã seguinte, Oliver levantou-se tomado por uma estranha ansiedade.
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Ainda era cedo quando galgou os degraus até a porta da casa modesta,
surpreendendo-se ao encontrá-la aberta.
— Bom dia, Watts — saudou, entregando-lhe a casaca e o chapéu.
— Bom dia, milorde. A srta. Cresswell o aguarda no salão.
— Obrigado.
Subiu a escadaria, bateu de leve na porta e entrou, esperando encontrá-la outra
vez no sofá. Em vez disso, deparou-se com um jovem vestido com o uniforme
de cavalariço dos Chance.
O conde franziu o cenho sem entender nada. Então, com uma exclamação de
surpresa, notou que, por debaixo da roupa e peruca pesadas, estava nada mais,
nada menos do que a própria Sarah Cresswell.
— Santo Deus!
Uma ponta de divertimento cintilou nos olhos azuis.
— Bem-vindo, milorde.
— Onde conseguiu esse uniforme?
— Nada de perguntas, por favor.
Chance piscou, completamente desconcertado. Que a srta. Cresswell não fosse
lá muito convencional, isso ele já esperava. Mas jamais por aquilo. Não sabia se
ficava furioso ou lhe admirava a audácia.
No fim, foi incapaz de reprimir um sorriso.
— Posso ao menos indagar por que está vestida como o meu cavalariço?
— Só preciso que nos leve até a casa de seu irmão, para que possamos montar
uma lista completa de todos os que sabiam da existência dos brilhantes.
— O que não exige que se vista assim — ele insistiu, certo de que havia algo
mais por trás do disfarce.
Com um suspiro, Sarah se moveu com o andar largado de um rapazola. Chance
a observou, abismado. Se não soubesse que por debaixo daquelas roupas havia
uma linda mulher, ele próprio teria se deixado enganar pelos trejeitos.
— Na hora em que o senhor estiver distraindo seu irmão e os criados
particulares dele, irei até a cozinha para checar o resto da criadagem. Enquanto
isso, Lucky vai revistar os aposentos deles para procurar os brilhantes.
— Lucky?
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Sem aviso, um garoto magricela, com seus catorze ou quinze anos, de cabelos
negros e olhos escuros, surgiu na sala e se postou ao lado dela.
Chance o fitou, surpreso. Nem sequer notara a presença do menino!
— Meu pai o ganhou numa aposta — contou Sarah, rindo. — Não fique tão
chocado. O antigo patrão de Lucky era um bruto, e o garoto ficou mais do que
feliz em vir trabalhar para nós.
Chance perguntou-se se ela não era meio maluca.
— Está imaginando que um menino seria capaz dar uma busca na casa de meu
irmão?
Sarah passou um braço pelos ombros do garoto.
— Claro que é. Lucky é extremamente hábil em passar despercebido, como
pôde notar.
Chance observou o garoto com atenção. Não podia negar que havia um ar de
inteligência nas feições infantis. Isso, contudo, não diminuía sua preocupação
por envolver um menor num plano tão arriscado.
— E se ele for apanhado?
— Perdoe-me, sir, mas ninguém me vê, a menos que eu queira — retrucou
Lucky.
— É verdade — corroborou Sarah, com um sorriso. — De que outra forma eu
teria conseguido este uniforme?
Oliver sentiu-se enrijecer. A srta. Cresswell ousara enviar o moleque até a sua
casa? Aquilo era o cúmulo da impertinência, concluiu, para depois perceber que
seu senso de humor sobrepunha-se à sua irritação inicial. Não gostava de ser
passado para trás, mas tinha de admitir: aqueles dois eram mais espertos do
que imaginara.
— Espero que ele não tenha se apossado de mais nenhum pertence meu.
— Não, senhor! — protestou Lucky, indignado.
— Isso não foi muito delicado, milorde. — Sarah lançou-lhe um olhar de
reprovação. — Lucky é um rapaz de bem e apenas seguiu minhas instruções.
— Não lhe ocorreu que bastava ter me pedido o uniforme?
Um brilho de divertimento voltou a iluminar os olhos azuis.
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Chance recordava-se vagamente de ter sido apresentado aos dois rapazes. Pelo
pouco que sabia, ambos eram do mesmo estilo de lorde Goldmar, ou Goldie,
como Ben o chamava. Todos, sem exceção, faziam o tipo estouvado e de
inteligência duvidosa. Também eram famosos por viver muito além das próprias
posses.
— Eles também viram os brilhantes?
— Não. Fui distraí-los enquanto Goldie trancava o cofre... que também chequei
antes de dormir e continuava trancado.
Chance comprimiu os lábios. O melhor que podia fazer era ficar de olho
naqueles amigos do irmão.
— E não contou a mais ninguém que estava de posse das jóias? — insistiu com
certa irritação.
Um leve desconforto transformou o semblante bonito do rapaz.
— Devo ter comentado alguma coisa com Flora.
— Sua namorada?
— Ela não roubou nada, se é o que está tentando dizer! — retorquiu Ben, na
defensiva. — Não ouse dizer uma palavra contra Flora!
Chance estreitou o olhar. Sem dúvida, precisava incluir o nome da moça na
crescente lista de suspeitos.
— E quanto a Goldie? Será que ele não contou para ninguém?
Ben refutou a questão com desgosto.
— Meu Bom Deus, claro que não!
— Alguém roubou essas jóias, Ben — lembrou o conde com rispidez.
— Com certeza foi um maldito ladrão que entrou aqui enquanto eu dormia!
— Um ladrão que sabia que os brilhantes estavam com você.
Ben encarou o irmão, confuso. Depois negou com a cabeça.
— Nenhum amigo meu pode estar envolvido.
— Não tenho tanta certeza assim.
— Diz isso porque nunca gostou deles!
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— Não gosto nem desgosto de ninguém — retrucou Chance, seco. — Mas não
pode negar que não passam de moleques fúteis, de moral duvidosa, e que não
hesitariam em se rebaixar ainda mais ao se verem numa situação difícil.
Ben empalideceu. Antes que pudesse dar voz à sua indignação, todavia, o
mordomo entrou na sala.
— Perdoe-me, sir, mas o cavalariço de lorde Chance pediu que eu o lembrasse
sobre seu compromisso daqui a meia hora.
Oliver se pôs em pé no mesmo instante. Pelo visto, Lucky concluíra sua tarefa e,
de alguma forma, avisara a srta. Cresswell.
— Obrigado — o conde agradeceu ao homem e aguardou sua retirada antes de
se voltar para o irmão: — Quero que faça uma lista de todos que podem ser
suspeitos de estar com os brilhantes. E, Ben... não se deixe enganar por gestos
de lealdade. Quero todos os nomes, entendeu?
O rosto do rapaz empalideceu ainda mais, mas ele parecia plenamente
consciente de sua delicada situação. No momento, tudo o que podia fazer era
obedecer às ordens de Oliver.
— Está bem.
Com um último olhar significativo para o irmão, Chance deixou a sala e se
dirigiu à saída. Apanhou a casaca e o chapéu com o mordomo e saiu.
Mas antes que pudesse descer os degraus, deteve-se ao avistar uma criada
aproximar-se da carruagem. Observou o andar furtivo, perguntando-se o que
ela pretendia ao parar ao lado da srta. Cresswell, que o aguardava com a porta
já aberta, como se exigia de um fiel cavalariço. Somente ao notar o olhar da
moça, deu-se conta do que ocorria. Ela havia se interessado pelo "criado" dele!
— Só um instante, Samuel! — a criada disse com voz macia. — Eu lhe trouxe um
pedaço de bolo.
Sarah corou visivelmente.
— Oh, não... obrigado — recusou, engrossando a voz, tensa.
— Ora, aceite, por favor! Por mim.
— Está bem — concedeu, apanhando o pequeno embrulho, constrangida.
— Quem sabe não nos encontramos de novo? Tenho a tarde livre na última
quarta-feira de cada mês.
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— O que é isso, Sarah... — A mais jovem riu, por fim. — A troco de que está
vestida desse jeito?
Não querendo discutir a busca pelos brilhantes dos Chance e muito menos seus
últimos contatos com o conde, ela dispensou a pergunta com um gesto.
— Melhor nem saber.
Rachel pendeu o rosto bonito para um lado, divertida.
— Se eu não soubesse que é minha irmã, juro que iria jogar meu charme.
— Engraçadinha... — Sarah fez uma careta, lembrando-se de imediato da reação
do conde ao assédio da criada. Olhou o vestido de musselina indiana ricamente
estampado da irmã e o decote que deixava entrever mais do que o suficiente do
colo alvo. — E escandalosa como sempre!
Sem se abalar com a crítica, Rachel empurrou para trás um cacho dourado.
— Pelo menos não estou vestida como um criado.
Emma se interpôs na discussão:
— Por que nos chamou aqui, Sarah?
Ela suspirou profundamente. Sabia que estava prestes a provocar uma
comoção... Especialidade do Malvado Dândi.
— Achei que deviam saber que papai voltou a Londres.
Um silêncio pesado desceu na sala, antes que Emma se pusesse em pé.
— Ele está aqui?
Rachel ergueu-se do mesmo modo, porém com um sorriso iluminando-lhe o
rosto.
— Eu sabia que papai não iria para a Índia! Onde ele está? Posso vê-lo?
Outra pergunta à qual Sarah preferia não responder.
— Não o vejo desde o café da manhã.
— O que ele veio fazer aqui? — indagou Emma.
— No momento, está se fazendo passar por um tal tio Pierre, de Paris.
— Só pode estar brincando... Que coisa ridícula!
— Ridícula por quê? — rebateu Rachel, zangada. — Deixe de ser covarde,
Emma. É maravilhoso ver papai outra vez!
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— Serei sempre feliz enquanto tiver você. — Após beijá-la no rosto, a moça
bateu em retirada.
Sarah observou-a partir, voltando-se apenas quando a irmã mais nova soltou
uma risada seca.
— Que boboca.
Cruzou os braços, zangada.
— Emma ainda não se acostumou com as circunstâncias menos do que
respeitáveis da família.
— É uma tola, isso sim.
— Emma é muito responsável — Sarah defendeu, contrariada.
— Ao contrário de certas pessoas que conheço... Aliás, chegaram umas contas a
respeito das quais precisamos conversar.
Rachel parecia não perceber o quanto as irmãs se sacrificavam para manter o
alto padrão a que ela se acostumara.
Por um instante, Sarah viu-se solidária a lorde Chance. Nenhum dos dois
pretendera desempenhar o papel de feitor dos irmãos mais novos, porém
ambos haviam sido levados pelo destino a cumprir tal tarefa. Não era uma
situação fácil.
Rachel fez uma careta. Bem ao estilo Cresswell, a moça detestava assuntos
"mundanos" como economizar dinheiro.
— Agora não, Sarah — dispensou a conversa com um gesto.
— Prometo que vou pagar tudo direitinho, mas recebi um convite para jantar
com os Montford e estou atrasada.
— Sempre arranja um compromisso quando quero falar com você.
— Minha vida social é muito intensa — explicou a outra, com um sorriso
maroto.
— Ah, é mesmo. Muito. — Sarah suspirou, escolhendo as palavras. — Espero
que saiba o que está fazendo.
— Por que isso agora?
Uma sombra passou pelos olhos azuis. Apesar de tudo, sabia que, no fundo,
Rachel tinha bom coração e uma alma generosa. Somente aquele seu gosto
exagerado por festas e aventura a tirava do bom caminho.
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Projeto Revisoras 40
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(Julia Históricos 1414)
— E?
O mordomo balançou a cabeça.
— Nada. E isso porque sabem que trabalho para o Malvado Dândi. Não
perderiam a oportunidade de revelar que alguém superou o mestre.
Sarah não pôde evitar um sorriso. Watts tinha verdadeiro horror de que o pai
dela perdesse o posto de ladrão mais conhecido de Londres.
— Obrigada.
— Há mais alguns colecionadores com quem seu pai costumava negociar. Vou
vê-los amanhã.
— O que eu faria sem você? — Sarah sorriu. — Viu meu pai hoje?
— Não o vejo desde o café da manhã, senhorita.
— Seria muita ingenuidade imaginar que não está se metendo em outra
encrenca.
As feições rudes iluminaram-se com um raro sorriso.
— Isso eu já não sei.
Capítulo III
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desafio. Por isso ela vivia agora em seus pensamentos. E apenas por essa razão
acordara ansioso naquela manhã. Quando se encontrava na companhia de
Sarah, nunca sabia o que estava por vir... o que lhe parecia extremamente esti-
mulante.
Conforme corria os olhos pela pele perfeita, o conde sorriu de leve. Ela era
realmente linda.
A carruagem parou e Chance observou-a olhar, admirada, a casa da mãe dele.
— É enorme!
E era mesmo. Construída em estilo italiano, Primrose tinha uma fachada
imponente com arabescos em gesso e balaustradas de bronze. O interior era
ainda mais luxuoso, com uma escadaria de carvalho em curva e mobília de pau-
cetim. Poucos não se impressionariam com o lugar.
— Não se preocupe — Oliver a tranqüilizou. — Minha mãe é uma pessoa
acessível, que adora conhecer gente nova.
Como Chance já esperava, a breve tensão que detectara na srta. Cresswell foi
logo substituída pela ironia.
— Ao contrário do filho.
O sorriso dele se alargou.
— Receio ter puxado a meu pai. Foi Ben quem herdou o jeito alegre de minha
mãe. Talvez por isso ela se derreta tanto por ele.
— E isso o incomoda?
— De certa maneira, sim. Adoro os dois, embora, no momento, esteja com
vontade de torcer o pescoço de meu irmão. E quanto à senhorita, tem irmãos?
Havia uma ponta de tristeza no sorriso de Sarah.
— Tenho. Emma, que trabalha como governanta dos Farewell, e Rachel que, à
esta hora, deve estar na casa de alguma amiga. Assim como o senhor, às vezes,
tenho vontade de esganar Rachel.
Chance esfregou o queixo, pensativo.
— A senhorita é a mais velha?
— Sim.
— Então, temos mesmo muita coisa em comum.
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ébano com filetes dourados e uma linda coleção de porcelanas, Chance passou
pela mãe para depositar Sarah num sofá marfim.
Lady Chance ergueu as sobrancelhas, surpresa.
— Meu Deus, o que aconteceu?
Esticando os braços com um suspiro, ele se voltou para fitar a pequena senhora
de cabelos muito brancos.
— Eu vinha visitá-la quando avistei a srta. Cresswell torcendo o tornozelo.
— Que tolice a minha — desculpou-se Sarah, as faces muito coradas. — Perdoe-
me pelo incômodo.
Como Chance já esperava, o coração da velha senhora amoleceu no mesmo
instante.
— Bobagem. É a coisa mais fácil do mundo torcer o tornozelo. Aconteceu
comigo ano passado e fui obrigada a ficar na cama por uma semana! Franklin,
peça à sra. Bross para trazer uma bacia de água quente. E, por favor, traga
também conhaque.
O mordomo fez uma reverência exagerada.
— Num instante, milady.
— Vamos dar um jeito nesse tornozelo. — A senhora sorriu, simpática. — Água
quente é um santo remédio.
— É muita gentileza sua — devolveu Sarah, genuinamente constrangida.
— Estou pronto para fazer a massagem — provocou Chance com um sorriso.
— Não vai fazer nada! — exclamou sua mãe, assumindo o comando da situação.
— Aliás, acho bom nos deixar a sós.
— Mas...
— Agora.
Tentando ignorar os olhos arregalados de Sarah, o conde fez uma mesura.
— Como quiser, mamãe. Então, por favor, peça para mandarem o conhaque
para a biblioteca.
— Vou mandar uma xícara de chá.
— E só vocês duas poderão usufruir a adega do papai? Não é justo.
— O conhaque é para propósitos medicinais — informou lady Chance.
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— Ah... claro. — Oliver fez que não viu o discreto sinal de Sarah para que ele
permanecesse no local. Mas ainda que fosse adorável poder observar o
tornozelo da srta. Cresswell, ele tinha outros planos. Com um sorriso malicioso,
deixou a sala.
Uma vez no hall, aguardou a afobada sra. Bross passar, com duas outras criadas
a reboque, carregando uma bacia de água quente e uma garrafa de conhaque.
Atrás delas, o mordomo, com sua habitual altivez.
— Franklin — Chance o segurou. — Podemos trocar algumas palavras?
Adentrando a biblioteca de imediato, o homem aguardou a entrada do conde e
fechou a porta. Era o lugar preferido de Chance em Primrose, o único cômodo
da casa que escapara ao gosto requintado da mãe dele e permanecia
charmosamente masculino.
— Quero conversar com você a respeito dos criados — disse Oliver, escolhendo
as palavras.
Um silêncio constrangedor se fez por um momento.
— Como assim, senhor?
— Notou algo estranho ultimamente?
— Receio não compreender o que deseja, milorde.
Tentando parecer o mais casual possível, Chance serviu-se de um dos
conhaques favoritos do pai.
— Alguém pediu demissão de repente ou teve a sorte mudada da noite para o
dia?
— Com certeza, não, senhor. Os criados estão há anos com lady Chance —
declarou o mordomo, sem hesitação. — Aconteceu alguma coisa?
O conde estava preparado para a pergunta.
— Tem havido rumores na vizinhança a respeito de seguidos roubos.
O mordomo comprimiu os lábios de leve.
— Posso assegurar que nossa equipe está acima de qualquer suspeita, milorde.
Chance bebericou o conhaque, pensativo.
— Estou certo que sim. Entretanto eu agradeceria se mantivesse os olhos bem
abertos e me contasse sobre qualquer coisa que lhe parecer estranha. Não
podemos colocar a segurança de lady Chance em risco.
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— Certeza absoluta.
— Que pena — ele acrescentou em seu ouvido.
— Grata por tudo, lady Chance — Sarah tentou ignorar o comentário.
— Não foi nada, querida. Espero vê-la em breve!
Tomando-a pelo braço, o conde começava a conduzi-la para a saída quando foi
detido pela mãe.
— Oliver, querido, por que veio aqui, afinal?
— Hã... Nada muito importante. Voltarei durante a semana.
— Vai conversar com a srta. Cresswell a respeito da festa?
— Claro. Ela terá toda a minha atenção — respondeu com um sorriso.
O tempo lá fora não era dos melhores. Tão logo desceram as escadas e
entraram na carruagem, Chance estendeu uma manta de lã na direção de Sarah
e deu ordem ao cavalariço para seguir viagem.
Assim que os cavalos se puseram em movimento, fitou-a, atento.
— O que achou de minha mãe?
— Surpreendentemente gentil e encantadora.
Ele reprimiu um sorriso. Ao contrário do senhor, ela queria ter dito.
— Ela é surpreendente, sem dúvida. Tanto quanto as pernas da senhorita —
completou Oliver, o olhar cintilando de malícia. — Achei que, como a maioria
das mulheres da sua altura, seria apenas pele e osso. Mas depois da cena de
hoje à tarde, nunca mais vou poder olhá-la com os mesmos olhos.
Como ele já esperava, Sarah não reagiu com um gritinho ou ameaça de
desmaio. Em vez disso, ergueu os olhos azuis no mesmo nível dos dele.
— Diga-me, milorde, é sempre assim tão desagradável ou está se obrigando a
agir dessa forma por minha causa?
Oliver jogou a cabeça para trás com uma gargalhada.
— Ora, não é todo dia que encontro alguém que valha o esforço.
— Estou lisonjeada — ela devolveu a ironia, ao mesmo tempo em que a
carruagem parava. Olhou pela janela. — Aí está Lucky.
Tão logo a porta foi aberta, o menino saltou para dentro. Ajeitando-se no banco
ao lado de Sarah, suspirou, num gesto teatral.
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— E estava.
— E ele falou das suas pernas?! — indignou-se Solomon. — Talvez eu deva ter
uma conversa com esse cavalheiro. Quem ele pensa que você é? Alguma vadia?
— Não vai fazer nada! — retrucou Sarah, nervosa. — Lorde Chance não está
interessado em nada mais do que recuperar as jóias da mãe.
— Andando por aí com você? Não pode ser tão imbecil.
— Ele não é nenhum imbecil. Apenas arrogante, intrometido e desagradável.
Tarde demais, percebeu que revelara mais do que devia a respeito da própria
perturbação.
De imediato, Solomon a circundou, erguendo o tapa-olho e fitando-a com
perspicácia.
— Ora, ora...
— Não me olhe assim, papai!
— Tio Pierre — ele a corrigiu.
— Acha mesmo que consegue enganar alguém com esse sotaque horrível?
— Tenho algumas cartas na manga.
Sabendo que o pai era um mestre com a espada e com a pistola, relaxou um
pouco.
— Vai jantar aqui esta noite?
— Recebi um convite da sra. Surton para jantar com mais meia dúzia de amigos
dela.
— Não!
— Não se preocupe, querida. Já enviei um buquê de flores com as minhas
desculpas por ter outro compromisso. É uma dama adorável.
— Ela é horrível, isso sim! Mas eu preciso da sra. Surton por causa da escola. É
bom mesmo que se mantenha afastado.
— Ela doa uma ninharia e só por isso a mantém sob um cabresto? Eu lhe
garanto que a faço colaborar com uma quantia muito maior e ainda a mantenho
ocupada, bem longe daqui.
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Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
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Era uma idéia atraente, admitiu Sarah. Ao mesmo tempo, não devia permitir que
o pai brincasse com os sentimentos da mulher. Não podia se arriscar a perder a
melhor fonte de renda da escola.
— Fico muito grata, mas prefiro que não se intrometa nesse assunto.
— Mas, Sarah, sou seu pai! — protestou o Malvado Dândi. — É meu dever
intervir de alguma forma.
— Papai, não vá me aprontar...
— Agora, não, querida. — Ele ajeitou a gravata uma vez mais e rumou para a
saída. — Estou muito atrasado.
— Para quê?
Solomon voltou-se para fitá-la com um ar inocente.
— Não lhe falei? Estou indo ao encontro de lorde Maxwell. Au revoir, mon
amour.
O elegante bordel era discretamente recuado e ficava quase oculto por uma
cerca viva alta. Um lugar que Sarah, não sem constrangimento, freqüentara
inúmeras vezes graças a seu trabalho com crianças, que incluía filhos de
prostitutas.
Na verdade, havia se surpreendido favoravelmente por madame Vallenway, a
famosa proprietária. Não apenas por sua admirável inteligência, mas também
por sua genuína preocupação com as mulheres que ali residiam. Embora Sarah
jamais pudesse compactuar com aquele tipo de vida, era sábia o bastante para
perceber que a caftina, apesar de tudo, poderia se tornar uma valiosa aliada. A
partir desse dia, passara a visitar o lugar vez ou outra, levando algumas
lembranças e estimulando-a a fazer com que qualquer criança em idade escolar
tivesse aulas.
Via de regra, Watts a acompanhava na tarefa. A situação não era tão confortável
tendo lorde Chance como companhia, pensou, lançando um olhar na direção do
homem sentado à sua frente, na carruagem.
Recriminando-se por aquele ridículo estado de nervos, Sarah puxou para o colo
a cesta que havia trazido. Malditos fossem aqueles sonhos que tivera. Agora
sentia-se como uma colegial ao lado do conde.
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Ainda bem que lorde Chance pareceu não notar seu constrangimento. Desde
que chegara para apanhá-la, mantivera-se estranhamente reservado, como
nunca acontecera desde o dia em que haviam se conhecido. Sarah podia apenas
presumir que ele começava a se inquietar com o aparente fracasso em suas
investigações sobre o desaparecimento dos brilhantes.
No entanto, mesmo com toda a auto-recriminação a que vinha se submetendo,
era impossível negar o efeito daquela colônia masculina impregnando o ar da
carruagem e o leve roçar da perna máscula na dela.
Ao preparar-se para saltar tão logo a carruagem parou, Sarah foi segura pelo
braço.
— Não está pensando em entrar, está?
— Claro que sim.
— Sarah... — Oliver limpou a garganta, pouco à vontade. — Srta. Cresswell... —
corrigiu-se, com uma sombra incomum nos olhos escuros. — Não posso
permitir que se exponha num lugar desses só para investigar o sumiço dos
brilhantes.
Abalada com a óbvia preocupação dele, ela ensaiou um sorriso.
— Não precisa se preocupar, milorde.
Sem dar ao conde nova chance de protestar, agradeceu ao cavalariço, deslizou
porta afora e percorreu rapidamente a trilha em direção aos degraus da entrada.
Mal Chance a alcançou, a porta foi aberta, revelando uma figura enorme e
musculosa que posava de mordomo. À simples visão de Sarah, as feições rudes
se transformaram num sorriso.
— Srta. Cresswell... Seja bem-vinda.
— Obrigada, Dodwell. Madame Vallenway está?
Desconfiado, Dodwell lançou um olhar para o conde, antes de fazer um sinal
com a cabeça.
— Claro. Por aqui.
O homem os conduziu pelo vestíbulo e através de um amplo salão, em direção
aos fundos da casa. Como sempre, Sarah não fixou o olhar nas estátuas e
quadros indecorosos ao longo das paredes. Dodwell destrancou uma pesada
porta e os guiou pelos aposentos particulares de madame Vallenway.
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— Flora está na cidade há apenas dois meses e não tem muitos conhecidos.
Nunca a ouvi comentar nada, a não ser sobre roupas.
— Ela passa muito tempo aqui, ou na companhia de outra colega?
— Desde que chegou, Flora mal sai do quarto — explicou madame Vallenway. —
Na verdade, é um pouco preguiçosa. Cheguei até a admoestá-la por isso.
— E nenhuma das outras moças a convida para sair?
— Não que eu saiba. Seria até uma surpresa se a convidassem. Nenhuma delas
parece muito à vontade com Flora. Acho até que têm um pouco de inveja por
ela ser a protegida de um rapaz tão distinto como Ben.
Certa de que madame Vallenway teria aberto o jogo se soubesse de algo, Sarah
se deu por vencida. A menos que a garota fosse muito mais esperta do que
imaginavam, não parecia envolvida no caso.
— Se ouvir qualquer coisa das moças, ou se Flora estiver agindo de modo
estranho, poderia me informar?
Embora curiosa, a mulher abriu os braços, conformada.
— Claro.
— Obrigada. Agora precisamos ir. — Sem esperar pelo mordomo, Sarah virou-se
para deixar a sala.
Após fazer um leve cumprimento de cabeça, o conde a acompanhou em silêncio
pelo longo caminho de volta até a saída.
Perdida em pensamentos, Sarah se assustou quando lorde Chance a deteve pelo
braço.
— O que foi?
O olhar profundo moveu-se pelas feições delicadas, detendo-se, perturbador,
nos lábios carnudos.
— Eu lhe disse uma vez que é uma mulher extraordinária. Mas até agora não
compreendia exatamente o quanto.
Emudecida, tanto pelo inesperado elogio quanto pelo modo como sentiu as
pernas fraquejarem, Sarah tentou reencontrar a voz.
— Imagine. Sou comum até demais. — Riu, nervosa. — A menos que considere
o fato de eu ser filha do Malvado Dândi.
— Para mim, é Sarah Cresswell, e jamais conheci uma mulher como a senhorita.
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Sem aviso, as mãos dele a seguraram pelo rosto, e o coração dela pareceu
parar. Sempre fora a sensatez em pessoa. Então, por que seu corpo buscava o
calor do corpo do conde?
O rosto moreno inclinou-se, e lábios quentes tomaram os de Sarah num beijo
exigente. Ela fechou os olhos, deixando-se capturar pela magia.
O mundo parou para que uma onda de sensações invadisse seu corpo. Não era
seu primeiro beijo, mas o encontro de lábios que experimentara outrora não
passava de um ledo engano frente à maestria daquela boca. Estremeceu, o
ventre parecendo dissolver-se contra o corpo másculo.
Chance deixou escapar um gemido quando os lábios de Sarah se abriram.
Permitiu-se acariciar o rosto macio e percorrer a linha suave do pescoço de
Sarah, deliciando-se com a doçura da diminuta boca. Para ela, foi como se tudo
ao redor não mais existisse. Só conseguia sentir o calor da língua exigente de
encontro à sua, o traçado de fogo que os dedos dele provocavam. Nada mais
importava, a não ser descobrir aonde aquelas sensações poderiam levá-la.
Sem dúvida, aquilo precisava ter um fim. Apenas o ruído de passos se
aproximando, porém, foi capaz de separá-los e desfazer a magia.
Sarah levou a mão ao peito, buscando ar. Que loucura era aquela?, indagou-se,
aturdida. Devia estar fora de si.
Relutante, ergueu o olhar para o do conde, surpreendendo-se ao ver o rosto
moreno levemente corado. Era possível que ele estivesse tão abalado quanto ela
pela paixão que os acometera? Ou apenas constrangido por haver desejado por
um momento a filha de um ladrão de jóias?
Não havia como perguntar agora, mesmo que tivesse coragem. Uma jovem em
trajes sumários descia a escada, os olhos verdes se arregalando ao divisar o
homem alto ao lado de Sarah.
— Lorde Chance... — ronronou, com um sorriso. — Veio me ver, por acaso?
Uma pontada rasgou o peito de Sarah. Havia alguma mulher em Londres que
não conhecia o "impecável conde"?
Como era imbecil!, recriminou-se. Como permitira que ele tomasse tantas
liberdades? Não... não permitira. Convidara-o a tomar liberdades! Tinha colado
o corpo ao dele e se comportado com mais descaramento do que qualquer uma
das moças que trabalhavam ali!
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Capítulo IV
Projeto Revisoras 60
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Não era nenhum garoto. Já havia usufruído os mais variados prazeres com as
mais diferentes e experientes mulheres. No entanto nenhuma delas continuara
a lhe povoar a mente daquela maneira e nem feito seu corpo reagir com tanta
paixão.
Aquilo era absurdo, concluiu, levantando-se da cama para vestir-se. A srta.
Cresswell podia ser bonita, mas não era o tipo delicado que sempre o atraíra.
Ainda que sua inteligência e natureza generosa pudessem inspirar sua
admiração, não possuía mais nenhuma das qualidades necessárias a um homem
da sua posição social.
Então, por que continuava desejando tomá-la novamente nos braços e beijá-la
até fazê-la desfalecer?
Devia estar enlouquecendo. Era a única explicação.
Sarah podia não ser socialmente muito aceitável, mas não deixava de ser uma
dama. Uma dama que certamente lhe daria um soco se propusesse a ela que se
tornasse sua amante... Portanto tinha mais que abafar aquele desejo insano.
Ou talvez não, disse uma voz dentro de Oliver.
Roubar-lhe um beijo ou dois não seria um escândalo. Afinal de contas, o
relacionamento deles estava fadado a ter um fim até o Natal. Seria um
desperdício não ceder a uma eventual tentação.
Ignorando pela primeira vez, em muito tempo, a caixa que o aguardava na
biblioteca, Chance fez um breve desjejum e pediu a carruagem. Queria ter uma
conversa com Sarah, antes que o bom senso a convencesse de que ele era carta
fora do baralho.
Mal o conde pisou fora de casa, um menino se aproximou correndo e depositou
um papel dobrado na mão dele. De cenho franzido, Oliver o desdobrou e leu as
palavras rabiscadas. Eram de Sarah. Dizia não estar disponível naquele dia
devido a afazeres na escola.
O conde hesitou por menos de um segundo. Entrou na carruagem e orientou o
cavalariço a tocar a parelha na direção da casa da srta. Cresswell, onde daria um
jeito de descobrir o endereço da escola.
Levou uma hora até o velho edifício situado em meio a uma horrível vizinhança.
Franziu a testa ao ver o lixo acumulado nas ruas e ouvir as gargalhadas ásperas
vindas de uma taverna próxima. Só mesmo Sarah para ter coragem de se
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estabelecer numa das piores regiões da cidade, pensou, contrariado. Tomara ela
tivesse o bom senso de sempre trazer Watts quando vinha até ali.
Após abrir a porta de entrada sem rodeios, avançou um passo e parou,
surpreso. Contrastando com os arredores, a escola era impecavelmente clara e
limpa, e as poucas salas que podia avistar estavam repletas de crianças imersas
em atividades. Até mesmo o odor fétido das ruas desapareceu, substituído por
um delicioso aroma de pão recém-assado, o que devia ser um manjar dos
deuses para os pequenos acostumados com a fome e a miséria.
A maior parte da sociedade não hesitaria em condenar Sarah por se expor
sobremaneira àquele ambiente. Sua inicial reprovação pelo fato de ela ter
organizado o estabelecimento justamente naquele lugar, entretanto, deu lugar a
um sentimento de profundo respeito pelo trabalho que realizava.
Extraordinário. Não conseguia encontrar outra palavra para defini-lo.
Um rostinho familiar chamou a atenção do conde, dispersando-o de seus
devaneios.
— Milorde! — saudou Lucky, com a naturalidade de quem não se encontrava
diante de um nobre.
— Lucky.
O menino sorriu, parecendo divertir-se a valer.
— Veio visitar os pobres ou está com saudade da srta. Cresswell?
— Olhe como fala, pirralho! — admoestou-o, refreando um sorriso. — Onde ela
está?
— Por aqui, venha.
Sem delongas, Lucky correu pelo salão e Chance foi obrigado a segui-lo a
passos largos. Passaram por uma classe onde os alunos recitavam o alfabeto,
para em seguida entrarem numa outra.
Acomodada numa cadeira, Sarah tinha várias crianças sentadas a seus pés.
Contava-lhes a história da rainha Elizabeth, e Chance teve a oportunidade de
observá-la, em silêncio. Embora ela trajasse um vestido simples, e apenas a
safira no pescoço como um toque de classe, pareceu-lhe maravilhosa.
Contrariado, sentiu o coração bater mais forte dentro do peito.
Como se só então se desse conta da presença dele, Sarah ergueu a cabeça e
enrijeceu. Ela não parecia feliz em vê-lo.
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— Milorde...
O conde fez uma mesura.
— Srta. Cresswell.
— O que veio fazer aqui?
— Vim vê-la.
— Não recebeu o meu recado?
— Recebi. Mas não me convenci.
Sarah se pôs em pé, o rosto tingindo-se de vermelho.
— Melhor conversarmos no meu escritório.
— Como quiser.
Ignorando o olhar atento de Lucky, Chance a seguiu até uma saleta estreita,
quase totalmente tomada por uma pesada escrivaninha. Ele fechou a porta atrás
de si e virou-se para encará-la, vendo que Sarah fazia o máximo para manter
uma distância segura entre eles, apesar do pouco espaço.
— O que quer?
O conde sorriu, aspirando o perfume suave que emanava dela.
— As crianças parecem gostar muito da senhorita.
Sarah piscou, surpresa.
— Gostam de qualquer pessoa disposta a lhes oferecer um pouco de atenção.
— Pois eu acho que oferece a elas muito mais do que isso.
Sarah sentiu o coração bater ainda mais forte.
— Não apenas eu. Há muita gente envolvida neste projeto.
— Mas não tenho dúvidas de que a senhorita é a maior responsável por seu
sucesso.
Totalmente sem-graça diante do elogio, ela tentou mudar de assunto.
— Por que veio até aqui, afinal?
Chance baixou os olhos de leve, consciente de que os momentos seguintes não
seriam fáceis. A paixão que brotara entre eles a assustava. Agora precisava
encontrar um modo de convencê-la de que não lhe faria mal algum.
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Projeto Revisoras 64
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(Julia Históricos 1414)
— Foi um erro.
O conde baixou a mão e sorriu sem vontade. Queria poder tomá-la nos braços e
provar o quanto certo podia ser.
— Só posso afirmar que não sou nenhum libertino que tenta seduzir toda
mulher pelo caminho. Aquele beijo me pegou de surpresa tanto quanto a você.
— Eu não me tornaria amante de homem algum—ela afirmou, determinada.
— Tenho certeza disso. Apesar de já tê-la visto vestida como um cavalariço,
interagindo com prostitutas e furtando meu alfinete como a mais habilidosa das
ladras, nunca duvidei que fosse uma dama.
Sarah estudou os olhos escuros por um longo momento, a expressão
suavizando-se aos poucos.
— Obrigada.
Não havia como ignorar a sinceridade do gesto e, por um momento, Chance viu
sua porção menos nobre desejando que ela não fosse assim tão respeitável.
Afastou o pensamento com um suspiro.
— Eu a beijei, Sarah, não porque pretendia convidá-la a se tornar minha amante,
mas porque não pude resistir à tentação.
Ela tornou a prender o ar por um instante.
— É melhor que não aconteça de novo.
— Não me faça prometer isso.
— Milorde, eu... — Um silêncio carregado de emoções se interpôs entre eles. —
Só pode estar brincando comigo. — Tentou rir, sem sucesso.
— Eu bem que gostaria de estar brincando — devolveu Chance, com voz rouca.
— De qualquer maneira, acho que já nos dissemos tudo. — Respirou fundo,
recompondo-se. — Já decidiu nosso próximo passo em relação aos brilhantes?
Pega de surpresa pela súbita mudança de assunto, Sarah piscou, confusa.
— Receio que não — murmurou, por fim.
— Então, vou até o clube de Ben conversar com alguns dos amigos dele.
Perturbadores, os olhos de Oliver tornaram a percorrer o rosto de Sarah.
Quando ele tocou um cacho dos cabelos castanhos, ela estremeceu.
— Não se preocupe, Sarah. Tudo acabará bem.
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Seguiu lorde Scott até uma mesa próxima e acomodou-se diante do velho
amigo, que se curvou para a frente com uma expressão sombria.
— Como vão as coisas?
Certificando-se de que não estavam sendo ouvidos, Chance suspirou.
— Nada ainda.
— Pode confiar na srta. Cresswell — aconselhou o homem, com segurança. —
Se existe alguém que pode achar esses brilhantes, esse alguém é ela.
Chance não pôde deixar de notar o tom de afeição na voz dele e sentiu,
contrariado, uma pontada de ciúme. Embora suspeitasse que os dois eram mais
do que bons amigos, havia tentado ignorar o fato. Não gostava de pensar que
Sarah pudesse se envolver com homem algum, muito menos com alguém com o
dobro da idade dela. Agora se perguntava se a aparente inocência de Sarah não
passava de outra simulação. Afinal, era filha de um mestre no assunto. Também
não tinha idéia de como ela podia ter uma casa própria e o estilo de vida que
levava.
Desgostoso, não perdeu a oportunidade de tentar descobrir a verdade.
— Conhece a srta. Cresswell há muito tempo? — indagou, com falsa
casualidade.
— Há muitos anos. É, sem dúvida, uma das pessoas que eu mais admiro.
Oliver correu a mão pelo queixo.
— Como a conheceu?
Lorde Scott recostou-se no espaldar, hesitante.
— Isso importa?
Chance não estava preparado para assumir o quanto importava.
— Acho estranho se relacionar com a filha do Malvado Dândi. Sábio demais para
se deixar enganar — o homem sorriu.
— Admiro muito o trabalho que ela desenvolve com as crianças.
— Isso é tudo?
— Está tentando descobrir meu grau de intimidade com a srta. Cresswell?
Chance sabia que deveria negar qualquer interesse pela vida pessoal de Sarah,
já que isso não era da sua conta. Mas algo dentro dele o impediu de fazê-lo.
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Projeto Revisoras 69
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(Julia Históricos 1414)
Scott não dizia nada além da verdade, mas foi como se Chance levasse um tapa.
Não importava quanto era injusto. Não podia negar que o legado do Malvado
Dândi assombraria Sarah pelo resto da vida. Um legado que manteria as portas
da sociedade eternamente fechadas para ela.
Respirou fundo, mal notando que lorde Scott se levantara e circundara a mesa.
— Se precisarem de mim, sabem que podem contar com a minha ajuda — disse,
tocando-o no ombro.
— Sim... obrigado — Oliver agradeceu, ainda mergulhado em pensamentos.
— E lembre-se de não julgar a srta. Cresswell com tanta rigidez. O maior
objetivo dela é tornar a vida dos necessitados mais digna.
— E quem vai tornar a vida dela mais digna? — devolveu Chance, encarando o
amigo.
Lorde Scott tornou a erguer as sobrancelhas grisalhas.
— Isso eu já não sei dizer.
Com um último tapinha no ombro dele, afastou-se.
O conde engoliu em seco, perturbado. Não entendia por que o incomodava
tanto que Sarah continuasse vivendo daquela forma; muito menos a perspectiva
de vê-la casada com algum trabalhador, como uma mulher comum. Afinal, ela
logo estaria fora de sua vida. O que o futuro reservava para a srta. Cresswell
não lhe dizia respeito.
Apesar de tal conclusão, seu semblante continuou carregado por muito tempo.
Foi com visível relutância que o dono do estabelecimento se aproximou da
mesa.
— Milorde... Posso lhe oferecer mais um cálice de conhaque?
— Não — o conde respondeu.
A última coisa de que precisava agora era ficar embriagado.
Sarah devia ter terminado as contas da escola havia horas. Por mais que
somasse as colunas do livro-caixa, porém, não conseguia fazê-las bater.
Culpa de lorde Chance, sem dúvida. Embora ele tivesse saído de Londres fazia
mais de uma semana, sua ausência não pusera fim àquela inquietação.
Por que o conde a havia beijado?
Projeto Revisoras 70
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)
Até o momento, ela estivera mais do que feliz com sua existência. Tinha até se
convencido de que era uma daquelas raras mulheres que não precisavam de um
homem para se sentir completas.
Mas as sensações que o conde lhe provocara haviam lhe abalado as certezas.
Por que ninguém a alertara contra os poderes de um simples beijo?
Sarah sabia distinguir uma obra de arte falsa de uma genuína, barganhar como
uma administradora competente, comportar-se como uma verdadeira dama.
Sabia até mesmo como identificar quem roubava num jogo de cartas! Seu pai a
ensinara a defender-se de todo tipo de cilada a que uma moça solteira estava
sujeita em Londres. Mas jamais lhe abrira os olhos para as armadilhas do
coração.
Droga! Já tinha perdido tempo demais ruminando os próprios sentimentos e
insatisfações. Não podia ansiar pelos beijos de um homem que estava muito
além de seu alcance. Melhor era esquecer aquelas fantasias ridículas e se
concentrar apenas em descobrir os brilhantes dos Chance. Tão logo o fizesse, o
conde seria carta fora do baralho, e ela poderia retornar à sua vida agradável,
segura e sem sobressaltos.
Determinada, Sarah voltou a lidar com as contas.
Mal acabara de somar os números, dessa vez com precisão, ouviu um ruído.
Ergueu a cabeça e sentiu o coração estacar dentro do peito. Vestindo uma
casaca bege e calça num tom mais escuro, o conde aproximou-se da
escrivaninha.
Não foram o traje distinto e o andar seguro, todavia, que mais a abalaram, e
sim o brilho nos olhos escuros e o sorriso nos lábios perfeitos que o tornavam
absurdamente bonito.
Por uma fração de segundo, ela teve vontade de...
Não. Com um movimento contido, pôs-se em pé. Não era nenhuma adolescente,
mas uma mulher madura, apesar daquele tremor que teimava em desestabilizar
seu corpo toda vez que Oliver Chance estava por perto.
— Sarah Cresswell — ele a saudou e fez uma mesura.
— Milorde — ela respondeu, surpresa por ter conseguido impostar a voz com
segurança. — Pensei que se encontrasse fora de Londres.
— E estava, mas retornei tão logo me foi possível.
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— Bobagem. Eu não perdi a confiança na sua capacidade — ele afirmou com voz
rouca, o olhar dirigido aos seus lábios. — Que linda boca... — murmurou. —
Não a esqueci um só instante.
O prazer que ela lutava por sufocar retornou de uma só vez, comprimindo-lhe o
estômago e enfraquecendo-lhe os joelhos.
— Milorde... — tentou protestar, ainda que seu rosto seguisse em direção ao
dele, como se tivesse vida própria.
— Mon Dieu!
Lorde Chance recuou como se atingido por um raio. Sarah sentiu o sangue
abandonar-lhe a face diante da visão de seu pai parado à porta. Viu-o erguer o
tapa-olho para ter certeza da cena que quase presenciara. Embora nada em sua
expressão indicasse que ele a desaprovava, Sarah não se deixou enganar.
Solomon podia não ser um pai tradicional, mas puniria quem ousasse mexer
com qualquer uma de suas filhas. E, sem dúvida, com a espada.
Avançou um passo, determinada a impedir qualquer incidente.
— Tio Pierre...
O tapa-olho voltou ao lugar enquanto ele se aproximava. Mais uma vez, havia
escolhido uma horrorosa casaca listrada e calça abaixo dos joelhos, os cabelos
grisalhos presos na nuca por uma fita de veludo.
— Parece que cheguei no momento certo.
Sarah tentou desempenhar seu papel de anfitriã.
— Tio Pierre, apresento-lhe lorde Chance. Lorde Chance, meu tio, monsieur
Valmere.
Os olhos do conde se estreitaram.
— Monsieur Valmere — saudou-o com um cumprimento de cabeça.
— Tio Pierre acaba de chegar de Paris — acrescentou ela, ocultando o
nervosismo.
— Que maravilha.
— Oui, oui... — Deliberadamente, Solomon observou o conde dos pés à cabeça.
— Pelo que sei, tem freqüentado bastante a casa nos últimos dias.
Oliver ignorou o comentário.
— Espero que esteja apreciando sua estada em Londres.
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— De certa forma.
Na esperança de pôr um fim no diálogo o mais rápido possível, Sarah lançou um
olhar enviesado ao pai. Lorde Chance era astuto demais para se deixar enganar
por muito tempo.
— Está precisando de alguma coisa, titio?
A tensão se dissipou de leve quando um sorriso brincou nos lábios de Solomon.
— Imaginei que gostaria de saber do meu sucesso no carteado, na noite
passada, mon chérie. Na verdade, foi uma noite extremamente lucrativa.
Sarah sentiu-se enrijecer. Seria possível que o pai houvesse voltado aos velhos
tempos?
— Que bom... Meus parabéns.
— No, no. — Ele riu. — Não precisa me congratular. Não ganhei devido ao meu
talento, e sim graças ao conhaque dos ingleses. Inacreditável como a bebida os
deixa com o cérebro embotado.
A piada de mau gosto e o ridículo sotaque francês não pareceram abalar o
conde nem por um segundo.
— É uma pena que tenha tido uma noite tão pouco... esportiva.
— Não posso me queixar. — Solomon apanhou um pouco de rapé da caixinha
que levava no bolso. — Se lorde Maxwell não se importa em desperdiçar sua
fortuna, por que eu me importaria em ficar com algumas notas?
Sarah prendeu a respiração diante da velha lábia do Malvado Dândi. Pôde até
mesmo sentir a tensão que tomou conta de Chance.
— Lorde Maxwell? — repetiu o conde.
— Sim. Como dizem vocês, ingleses, um patife profissional. — Tornou a
guardar a caixinha. — No final, ele até me pareceu chocado com a quantia que
perdeu. Disse-me, inclusive, que só poderá pagar a dívida na semana que vem.
Embora consciente do olhar perscrutador do conde, Sarah tentou se manter
atenta às palavras do pai. Tinha sido muita esperteza dele levar lorde Maxwell
àquela situação.
— O que significa que, em breve, ele vai precisar de uma boa quantia em
dinheiro vivo — ela murmurou.
— Sem dúvida. — O Malvado Dândi sorriu.
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— Uma pessoa fora do comum — comentou Oliver, tão logo se viram a sós, o
olhar penetrante mirando o dela.
Sarah se obrigou a permanecer inabalável.
— Tio Pierre adora ser incomum.
— Você se parece muito com ele.
— Um pouco. Afinal, somos parentes.
— Exceto pela boca — brincou Chance, sorrindo. — Essa ninguém tem igual.
Ela prendeu a respiração, perguntando-se como um dia pudera se considerar
uma mulher experiente e segura de si. Sentiu-se tão imatura como a irmã mais
nova, Rachel.
— Milorde, por favor — tentou neutralizar o comentário com ironia, mas acabou
soando ofegante.
Ele se aproximou.
— Prefere que eu comente o quanto suas pernas são lindas? — Ergueu a mão
para tocá-la no rosto.
— Não!
Chance deixou cair o braço.
— Talvez seja bom mesmo que seu... tio esteja em casa — murmurou, com um
breve sorriso. — E eu que pensei ser imune a essas coisas.
— Que coisas?
Oliver dispensou a pergunta com um gesto, recusando-se a explicar a
enigmática expressão.
— É melhor que eu vá embora. Ah... — Deteve-se ao se lembrar de algo. —
Quase me esqueci. Minha mãe quer que você vá visitá-la amanhã.
— O quê? — Sarah ergueu as sobrancelhas, assustada.
— Ela disse algo sobre escreverem as charadas para a festa de Natal.
— Não posso visitar sua mãe outra vez!
— Está bem. — Ele deu de ombros, um sorriso brincando nos lábios bem-feitos.
— Mas esteja preparada para ela bater nesta porta. Lady Chance costuma ser
muito obstinada quando põe uma coisa na cabeça, e está convencida de que o
sucesso da reunião depende muito da sua contribuição.
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Lady Chance ali, na casa dela? Deparando com o Malvado Dândi em pessoa?
— Precisa fazer alguma coisa!
— Não sou páreo para ela. — O conde abriu os braços, demonstrando
impotência.
Sarah não entendia que graça ele via na situação, a menos que não
compreendesse de todo as conseqüências de tal visita.
— Já pensou no que podem dizer se souberem que estive outra vez na casa de
sua mãe?
— E quem vai saber?
— Os criados, para começar! — Ela entreabriu os lábios, aturdida. Ele não se
importava com a reputação da mãe?
— Uma visita breve não causará nenhuma comoção entre eles, pode estar certa.
Não imagino outra saída.
— Imaginaria se quisesse.
— Mas você acabou de dizer que não é nenhum animal irracional que precisa
ser domado... Eu não ousaria intervir nesse assunto.
Sarah não estava habituada a ter respostas tão rápidas e certeiras. Lorde Chance
podia ser o homem mais estonteante que já conhecera em toda a sua vida, mas
era também o mais desagradável.
— Muito bem. Vou visitar sua mãe. Mas se começar o falatório, a culpa será
toda sua!
Ele riu, tranqüilo.
— Sobreviveremos ao escândalo.
Às onze em ponto, antes que qualquer outra visita pudesse se apresentar, Sarah
subiu os degraus da mansão de lady Chance. Tinha sofrido ao longo do
percurso. Não apenas por causa do vento cortante pelas ruas de Londres, mas
também pelas poças que lhe encharcaram os sapatos. Podia ter alugado uma
carruagem, claro. Mas chegara à conclusão de que um veículo de aluguel
chamaria mais a atenção naquela parte da cidade do que qualquer outro.
Não que lorde Chance não merecesse. A indiferença do conde quanto à
reputação da mãe era reprovável!
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— Ora, você é modesta demais, minha querida! Fico muito feliz que Oliver a
tenha encontrado.
Sabendo que a velha senhora não ficaria tão feliz se soubesse de toda a
verdade, Sarah ensaiou um sorriso. Já era hora de bater em retirada. Antes que
ela pudesse exprimir sua intenção, contudo, uma voz grave se fez ouvir da
porta:
— Não mais do que eu.
A despeito de si mesma, Sarah correu os olhos pela figura máscula e
absurdamente atraente. Em nenhum outro homem a casaca justa e o par de
calças camurça cairiam tão bem. Como uma segunda pele, o tecido colava-se às
pernas musculosas, que se moviam com segurança na direção dela.
Sarah sentiu o sangue subir-lhe à face e o coração disparar como de costume.
— Oliver! — exclamou lady Chance. Ele as saudou com uma mesura.
— Mamãe, srta. Cresswell...
— Não esperava vê-lo hoje, meu filho.
— Achei que gostaria de saber que estive em Brighton.
— Que estranho Ben visitar Brighton nesta época do ano! — comentou lady
Chance.
Sarah engoliu em seco, aguardando a resposta dele.
— Deve estar em busca de um pouco de sossego.
A mulher aceitou a hipótese sem objeção.
— Pobrezinho. Bem que me pareceu abatido da última vez em que esteve aqui.
Acho que não aprecia muito o ritmo de Londres.
Uma expressão sarcástica transformou o semblante de Oliver.
— Pois é. É sempre bom quando ele retorna a Kent.
Para lady Chance, foi como se o conde houvesse sugerido que o irmão viajasse
para as colônias além-mar.
— Santo Deus, o que Ben faz que o incomoda tanto?
— O que ele não faz é que me incomoda mais, mamãe.
— Ben é novo demais para o tipo de responsabilidade que deseja fazê-lo
assumir, meu querido — protestou a mulher, aborrecida.
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Sarah mordeu o lábio, obrigando-se a não intervir. Como lady Chance podia
achar justo que o rapaz vivesse só para os prazeres?
— Um pouco de responsabilidade não lhe faria mal algum — insistiu o conde,
sem nenhuma emoção na voz profunda.
A velha senhora levou a mão ao coração, os olhos claros tristonhos.
— Ele já sofreu demais, meu filho. Precisa ter paciência.
Pela primeira vez, Sarah viu uma ponta de irritação nas feições do conde.
Chance, todavia, limitou-se a concordar com um gesto de cabeça.
— Como quiser, mamãe.
Um silêncio constrangedor se fez entre os três. Sentindo-se mais do que um
peixe fora d'água, Sarah pôs-se em pé.
— É melhor eu voltar para casa.
Lorde Chance ergueu-se de imediato.
— Eu a levo.
— Não é preciso, obrigada.
— Eu insisto...
Consciente de que a velha senhora observava a cena com extrema atenção,
Sarah foi obrigada a ceder ao inevitável.
— Está bem, então. — Ensaiou um sorriso, aceitando o braço que Oliver lhe
oferecia.
— Vai ver se está tudo certo com seu irmão, filho?
— Como sempre. — Chance fitou o semblante preocupado de Sarah. — Vamos,
srta. Cresswell.
Capítulo V
Projeto Revisoras 80
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)
para o café. Apenas enquanto comia foi que lhe ocorreu: será que Sarah
Cresswell seria tão tola a ponto de ir a pé até a casa da mãe dele?
Demorara menos de um segundo para chegar a uma conclusão. Sarah
freqüentava bordéis e havia fundado uma escola numa região em que nem
mesmo Watts ficaria à vontade. Que mal ela veria em atravessar meia Londres
sozinha?
Preocupado, Oliver pedira a carruagem. Jamais se perdoaria se Sarah ficasse
doente. Como podia ter se esquecido daquilo, quando dificilmente conseguia se
desligar do que acontecia com ela? Quantas vezes não perdera a concentração
no que fazia, lembrando-se daquela pele macia e dos lábios cheios?
Tentava dizer a si mesmo que sua atração por Sarah era apenas por ela ser
diferente das mulheres às quais estava habituado. Era como um garoto
desejando um brinquedo que não possuía.
Não como um garoto, refletiu, olhando para Sarah sentada agora à sua frente,
no banco da carruagem. Não havia nada de infantil na reação de seu corpo à
proximidade dela.
Aspirando o ar perfumado por uma essência de lilás, estudou as feições
delicadas e a boca tentadora. Sarah era inebriante, pensou, atordoado.
Observou a testa levemente franzida e sorriu.
— Por que essa cara? Minha mãe foi tão horrível assim? Ela piscou, surpresa.
— Claro que não. Lady Chance é um amor.
— Então, sou eu o responsável pelo seu humor. Perdoe-me, mas eu só quis
poupá-la de caminhar nesse tempo.
Esperando uma resposta ácida, Oliver admirou-se quando Sarah deu de ombros.
— Não tem problema.
Intrigado, ele se curvou para a frente.
— Vamos... Costumo dividir meus problemas com você.
Por um instante, achou que ela não fosse se abrir. Mas, de repente, Sarah
cruzou as mãos sobre o colo e o fitou nos olhos.
— Não acho justo que seja obrigado a tomar conta da família, enquanto seu
irmão é encorajado a viver como bem entende.
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O conde engoliu em seco, pego de surpresa por aquelas palavras. Era a primeira
vez que alguém demonstrava preocupação pelas responsabilidades que ele
assumira. Com certeza, nem a mãe dele nem o irmão costumavam considerar o
volume de trabalho que os inúmeros bens dos Chance acarretava. Era o filho
mais velho e, portanto, nascera com esse dever. Até o momento, jamais
questionara as próprias obrigações ou esperara por reconhecimento. No
entanto não pôde deixar de se comover com o genuíno aborrecimento de Sarah.
— Parece ser essa a sorte dos primogênitos — disse. — Aposto que acontece o
mesmo com você.
— Talvez.
Chance sorriu, depois suspirou longamente.
— Não acho que Ben deva ser encorajado a continuar vivendo assim. Temo que
as más influências lhe corrompam o caráter. Precisaria de algo que necessitasse
da sua atenção e o mantivesse ocupado.
— Tarefa difícil — declarou Sarah, pensando nas próprias irmãs.
Oliver mudou de assunto de propósito.
— Conte-me... O que decidiram sobre a festa?
— Não pode estar interessado! — Ela riu.
—Claro que estou. Já que vou participar das atividades, melhor estar preparado.
Teve a intenção de fazê-la sorrir outra vez, porém Sarah baixou os olhos, o
semblante sombrio.
— Fique tranqüilo. Não planejamos nada ultrajante.
Sentindo-se péssimo por ela ter interpretado mal as palavras, passou a mão
pelos cabelos.
— Nunca pensei isso.
— Nem mesmo sendo eu filha do Malvado Dândi?
À menção do pai dela, o conde sentiu um leve desgosto. Suportar aquele tio
esquisito já era ruim o bastante... se é que era tio de Sarah realmente. Na
verdade, incomodava-o lembrar que ela estaria eternamente ligada a um famoso
ladrão de jóias.
— Por que você faz isso?
— O quê? — Sarah arregalou os olhos.
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mais de um ano, levara meses para convencê-la até mesmo a falar. Vê-la ficar
em pé diante da classe e ler em voz alta a enchia de orgulho.
Tão logo a menina chegou ao fim, Sarah correu para abraçá-la.
— Foi maravilhoso, Fanny!
— Partiquei bastante, como me mandou.
— Pratiquei — corrigiu-a, sorrindo. — Isso mesmo.
Nesse momento, alguém abriu a porta.
— Senhorita, acho melhor vir aqui! — Lucky surgiu no batente.
— O que foi?
— Venha!
Sem dar a ela a oportunidade de protestar, o garoto sorriu, maroto, e
desapareceu. Após orientar as crianças a permanecerem em seus lugares, Sarah
correu atrás dele. O que poderia ter deixado o menino tão excitado?
Na porta de entrada, agora totalmente aberta, ela avistou duas enormes
carroças.
— Meu Deus...
Um homem alto, vestindo um sobretudo acinzentado, saltou de uma delas. O
choque de Sarah foi ainda maior ao perceber que se tratava de lorde Chance.
— Bom dia, Sarah Cresswell — ele a saudou com um sorriso.
— Mas... o que é isso?
— Na primeira carroça há carvão, para manter o fogo da escola aceso no
inverno. E na segunda, vai encontrar livros, escrivaninhas, casacos, botas,
cachecóis...
— E-estou vendo, mas... Por quê?
Oliver deu de ombros.
— Com a proximidade do Natal, andei pensando no que iria lhe dar de presente.
Considerei dezenas de coisas que uma moça adoraria ganhar, mas, depois,
achei que você ficaria mais feliz com isso do que com um colar de pérolas. —
Fez uma pausa, olhando-a no fundo dos olhos. — Acertei?
Confusa pela inesperada demonstração de solidariedade e pelo prazer de saber
que ele tencionava agradá-la, Sarah se viu tremendo dos pés à cabeça.
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Dezembro chegou com uma nevasca. Chance levantou-se bem cedo e espiou
pela janela, sentindo-se um pouco ansioso. Gostava daquela época do ano.
Talvez fosse um sentimento infantil, mas havia algo mágico no branco intenso
que transformava tudo numa paisagem de conto de fadas.
Não se permitindo sonhar mais, vestiu-se rapidamente e pediu a carruagem.
Queria partilhar com alguém aquela manhã e não imaginava ninguém melhor do
que Sarah Cresswell.
Tocando ele próprio os dois cavalos, atravessou a cidade em pouco tempo,
parou à frente da pequena casa e saltou do veículo.
Nem por um segundo se lembrou que talvez fosse cedo demais para visitar
alguém. Só sabia que precisava vê-la.
Foi obrigado a esperar um pouco até que a porta se abriu. Watts franziu o
cenho, surpreso.
— Bom dia, Watts. A srta. Cresswell, por favor.
— Ah, sim... Por aqui.
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— E o que vê no futuro?
Uma sombra passou pelo rosto bonito. Então, ela suspirou, recompondo-se.
— Provavelmente continuarei com a escola.
— E quanto a uma família? — Chance viu-se indagando, sem saber ao certo por
quê.
Sarah virou o rosto.
— Sabe que é um sonho impossível.
Talvez, pensou Oliver. Nenhum cavalheiro em sã consciência gostaria de se unir
à filha de um ex-ladrão de jóias. Não importava o quanto Sarah fosse tentadora.
Ele mesmo tinha um nome a zelar e uma família cuja reputação não podia ser
colocada em risco.
— Não é justo.
Surpresa com a irritação na voz profunda, ela o fitou.
— Tenho minhas irmãs, milorde... e meu tio Pierre. É o bastante.
— Não deveria ser.
— Temos de aceitar o que o destino nos reserva. — Fez uma pausa, pensativa.
— E quanto aos seus planos?
Chance alarmou-se com a pergunta. Seu futuro incluía o casamento com alguma
dama da sociedade londrina, que se limitaria a cumprir com seu papel de
esposa de um conde e encher a casa dele de herdeiros. Até o momento, o
assunto não o incomodara. Agora, só de pensar, sentia um frio no estômago.
— O dia está bonito demais para falarmos nessas coisas — respondeu,
melancólico. — Por que não me conta sobre suas irmãs?
Sarah soltou uma risada.
— Não pode estar interessado.
— Interesso-me por tudo que vem de você.
Ela o fitou por um segundo, aturdida, depois virou o rosto.
— Como eu já disse, Emma é governanta e Rachel mora com amigas.
— Mas como elas são?
— Emma é gentil e educada. E muito independente.
— Assim como você. Sarah ignorou o comentário.
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— Infelizmente, sofre muito por causa de meu pai. Vivo tentando fazer com que
se abra mais para a vida, mas Emma foge das pessoas.
— E quanto a Rachel?
:
— Charmosa, linda e concentrada demais em si própria.
— Perfeita para Ben, então.
Um sorriso triste brincou nos lábios dela.
— Deus nos livre e guarde!
Chance riu. Depois, percebendo que Sarah abraçava a si própria, indagou:
— Está com frio?
— Um pouquinho.
Ele saiu do parque e dirigiu-se a um bairro próximo, bastante luxuoso.
Rodavam já havia algum tempo quando Sarah franziu a testa.
— Para onde estamos indo?
— Não queria ver a minha coleção? — Chance sorriu, não querendo admitir que
temia pelo momento em que o passeio chegaria ao fim.
— Mas... eu não posso ir à sua casa!
— Pode visitar bordéis e não quer ir à minha casa?
— Estou preocupada com a sua reputação, e não com a minha!
— Ser visto na companhia de uma linda mulher não vai sequer arranhar a minha
reputação.
— E se pensarem que sou sua concubina? — protestou ela, apreensiva.
— Ninguém imaginaria que é menos do que uma dama.
— Sempre faz o que lhe dá na cabeça? — riu Sarah, nervosa.
— Não. — O conde puxou as rédeas de repente. Depois, sem dizer mais nada,
saltou e deu a volta para ajudá-la a descer.
Ela observou o palacete à sua frente. Não encontraria palavras para definir a
opulência do lugar. Não havia como negar que pertencia ao "impecável conde".
Segurando-a pelo cotovelo, pois temia vê-la escorregar nos degraus de mármore
forrados de gelo, Chance a guiou até a entrada suntuosa de um espaçoso
vestíbulo. Lançou um olhar significativo para o mordomo, que os recebeu com
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— Nunca me ocorreu que isso tudo poderia interessar a mais alguém por aqui.
— Mas é uma coleção incrível! — exclamou ela, sem acreditar no que ouvia. —
Precisa compartilhá-la com as outras pessoas.
— Vou pensar no assunto — Oliver prometeu, embora consciente de que já
dividira seus tesouros com quem mais lhe interessava. Talvez, um dia,
considerasse torná-los públicos, mas, por enquanto, estava mais do que
satisfeito. — Pronta para o chá?
— Claro.
De volta à biblioteca, ele indicou um sofá próximo à enorme bandeja de prata,
sobre a mesa de centro, e acomodou-se ao lado de Sarah.
— Pode servir?
Com sua habitual graça, ela encheu duas xícaras e dois pratos com biscoitos e
confeitos dos mais variados.
Para sua surpresa, porém, Chance deixou os dele de lado e a fitou.
— E-espero que sua mãe esteja passado bem — Sarah murmurou,
incoerentemente, e bebericou o chá quente, nervosa.
— Muito bem. E deixando a criadagem louca com os preparativos para a festa
de Natal.
— E seu irmão?
— Não tenho falado com ele, mas sei que deve retornar a Londres ainda esta
semana.
— Que bom. Já estamos ficando sem tempo.
— Tem razão.
Tensa, Sarah pousou a xícara e apanhou um petit-four.
— O que vai fazer se não encontrarmos os brilhantes?
O conde deu de ombros, sentindo o sangue correr mais rápido em suas veias
quando ela recolheu com a língua um resto de biscoito que ficara grudado em
seus lábios.
— Contar a verdade à minha mãe e entregar o problema nas mãos das
autoridades.
— Deve haver algo que possamos fazer — murmurou Sarah, quase para si
mesma.
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— Prometi a mim mesmo que agiria como um cavalheiro... Não imaginei que
pudesse ser tão difícil.
Sarah baixou os cílios longos, o rosto ainda afogueado pelo beijo.
— Melhor eu voltar para casa.
Ele abriu a boca, mas não teve como contestar a sabedoria das palavras dela.
Por mais que desejasse permanecer com Sarah em seus braços, havia rompido
com todos os limites do bom senso, ainda que não pudesse se arrepender do
que fizera.
Ao se dar conta do constrangimento de Sarah, ergueu-se, relutante.
— Acho que tem razão.
Ela se pôs em pé, ainda olhando para o chão. Chance a acompanhou até a saída,
mantendo-se a uma discreta distância enquanto apanhavam as capas.
Permaneceram em silêncio no caminho de volta, embora Oliver se perguntasse
o que a deixara mais deprimida. Sentia-se ultrajada por seu comportamento ou
tão intrigada quanto ele pela atração que os unia? Sarah recusou-se até mesmo
a olhar em sua direção, deixando claro que não estava disposta a discutir o
assunto.
Talvez fosse melhor assim, concluiu o conde com um suspiro. Não tinha
intenção de ver seu dia arruinado por um merecido sermão.
Com isso em mente, deteve a carruagem e desceu para acompanhá-la até a
porta. Sarah levou a mão delicada aos lábios.
— Obrigado por ter atendido ao meu pedido — apenas agradeceu.
Chance imaginou ver um brilho de satisfação nos olhos muito azuis, mas antes
que pudesse definir a emoção no bonito semblante, ela virou-se e desapareceu
vestíbulo adentro.
Ele soltou um suspiro, conformado, e retornou à carruagem. Para quem
imaginava saber tudo sobre o sexo frágil, estava numa encruzilhada e tanto.
Tinha arriscado a própria reputação, surpreendido a criadagem e a si próprio;
tudo para passar uma só manhã na companhia de Sarah Cresswell.
Mal pôs os pés na carruagem, ainda pensando sobre o que haviam feito, avistou
uma figura familiar usando um tapa-olho e descendo a rua a passos apressados.
Erguendo uma bengala de marfim na direção dele, Pierre Valmere aproximou-se
rapidamente.
Projeto Revisoras 98
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)
— Um momento, milorde!
Chance atendeu o homem com uma ponta de apreensão. Tio Pierre era
despachado demais para seu gosto. Não exatamente inconveniente, verdade,
mas também não era um sujeito em que podia confiar. E quanto a ser da
França... podia jurar que o homem era tão francês quanto ele próprio.
De qualquer modo, parecia ser mesmo parente de Sarah e não havia como agir
a não ser com educação.
— Monsieur Valmere...
— Tenho algo do seu interesse — Solomon disse, enquanto retirava um
saquinho de veludo do bolso. Com destreza, soltou os cordões e despejou um
colar de pérolas na mão enluvada.
— Pérolas? — indagou Chance, perguntando-se se o homem estaria tentando
vender-lhe a jóia.
Como se percebesse suas suspeitas, Solomon abriu um sorriso de escárnio.
— Não são pérolas comuns. São pérolas dos Maxwell. Vendidas a um conhecido
meu por uma quantia irrisória.
— Lorde Maxwell — repetiu Chance, compreendendo, por fim. — Pérolas, e não
brilhantes.
— Exatamente.
O conde respirou fundo. Queria muito que lorde Maxwell fosse o responsável
pelo sumiço dos brilhantes. Desprezava o sujeito, porém tinha consciência de
que o homem zelava pela própria reputação tanto quanto ele. Suas esperanças
tinham sido em vão. Maxwell não se livraria das jóias da família se estivesse de
posse dos brilhantes dos Chance.
— Quer dizer, então, que Maxwell não tem nada a ver com o roubo.
— A menos que seja esperto o bastante para ter desconfiado de uma
armadilha... o que não acredito.
Chance concordou com um gesto de cabeça, conformado.
— Parece que continuo em débito com o senhor.
Solomon estreitou o olhar para fitá-lo.
— Estava com minha sobrinha, non?
Pego de surpresa pela pergunta, Oliver não mentiu.
Projeto Revisoras 99
Debbie Raleigh – Caprichos do Coração
(Julia Históricos 1414)
— Sim.
— Não está se esquecendo de que ela é uma dama, está? — exigiu o homem,
alisando a bengala num gesto significativo.
Chance olhou para o objeto, sabendo tratar-se de uma espada disfarçada. Ele
próprio possuía uma daquelas. Sorriu. Nunca se imaginara sendo ameaçado
pelo guardião de uma donzela.
— Nem por um momento — garantiu, com frieza.
Solomon curvou-se para a frente.
— Posso ser velho e ter um só olho... mas ainda enxergo bem — ameaçou. — É
melhor tratar a srta. Cresswell com respeito.
Sem saber se reagia com embaraço ou fúria, Chance estalou as rédeas e pôs os
cavalos em movimento.
Sarah Cresswell era mesmo um problema, pensou.
Capítulo VI
A neve cessou apenas de madrugada. Sarah sabia dizer, pois tinha passado
grande parte da noite olhando pela janela. Uma perda de tempo, dissera a si
mesma, mas nem assim o sono viera.
Exasperada, havia se levantado e colocado um vestido quente. Precisava de
alguma coisa com que pudesse se ocupar. Talvez, assim, não ficasse ruminando
a bobagem que fizera se entregando ao beijo de lorde Chance.
Não entendia por que perdia a cabeça daquela maneira nos braços dele: a falta
de ar, o coração disparado, o fogo que seu simples toque provocava... Só sabia
que eram sensações que não conseguia controlar.
Só mais algumas semanas, lembrou a si própria. Mais algumas semanas e seu
relacionamento teria fim.
Deixava o quarto, a caminho da escola, quando foi informada de que Emma a
aguardava na sala. Apressada, foi ao encontro da irmã. Abraçou-a, feliz, e a fez
acomodar-se num dos sofás.
— Que surpresa boa!
Uma bobagem, concluiu. Porém era compreensiva o bastante para aceitar que a
irmã agisse como bem entendesse.
— Sentirei sua falta.
— Eu sei. — Emma tocou a mão dela e sorriu tristemente. — Mas ainda não está
nada certo. Talvez lady Hartshore não goste de mim.
Sarah bufou. Emma era uma pessoa doce e querida. Não havia ninguém que
pudesse pensar o contrário!
— Bobagem! Só mesmo uma bruxa não iria querê-la como dama de companhia.
— Veremos...
Sarah fitou a irmã. Havia algo além da iminente entrevista com lady Hartshore.
— Há mais alguma coisa que queira me contar? — indagou, perspicaz.
Para sua surpresa, o rosto bonito enrubesceu. Emma pousou a xícara, e Sarah
aguardou, ansiosa, que ela se abrisse.
— Sim, eu... — Emma torceu as mãos, nervosa. — Ouvi umas coisas.
Sarah engoliu em seco. Alguém mais sabia que o Malvado Dândi estava de volta
a Londres?
— Sobre papai? — indagou, tensa.
— Não. Sobre você.
Sarah piscou, confusa. Então, antes que pudesse evitar, viu-se sacudida por uma
risada.
— Meu Deus, deve haver uma falta de assunto generalizada na cidade para
estarem falando de mim... O que foi que você ouviu?
— Que lorde Chance é visto com freqüência na companhia de uma mulher de
cabelos castanhos cacheados e olhos azuis... e com uma safira pendurada no
pescoço.
Sarah balançou a cabeça, incrédula. Devia saber que qualquer movimento dele
seria imediatamente observado. Até o conde entrar em sua vida, a sociedade
nem. sequer notava sua presença em Londres.
— E você imaginou que fosse eu.
Visivelmente incomodada, Emma comprimiu os lábios.
— E não é?
— Sinto muito, Emma. Só estou seguindo meu coração. Não posso dar as costas
a quem precisa de mim; seja uma criança, seja madame Vallenway ou lorde
Chance. É assim que eu sou.
Uma expressão de pura agonia transformou o bonito rosto de Emma.
— Perdoe-me, Sarah! — pediu, segurando-a pelas mãos.
— Não há o que perdoar. Não me sinto indiferente ao seu constrangimento.
— Eu não tinha o direito de vir até aqui criticá-la. Você sempre foi uma pessoa
tão boa...
— Conversa fiada. Sou turrona, autoritária e ajo sem pensar muito nas
conseqüências.
— É a pessoa mais maravilhosa que conheço — argumentou Emma, sincera.
Então fez uma pausa, olhando a irmã de soslaio. — E quanto a lorde Chance?
Sarah umedeceu os lábios, pega de surpresa.
— Como assim?
— Como ele é?
— Teimoso e impulsivo — desabafou.
— Tanto quanto você? — Emma sorriu.
— Pior.
— Mas é muito lindo.
Sarah torceu o nariz. Sim, era lindo. E inteligente, e charmoso o bastante para
roubar o coração da mais resistente das mulheres. Eram seus inesperados
gestos de delicadeza, no entanto, que mais a intrigavam. Como poderia se
manter indiferente ao que ele doara à escola? Ou ao modo quase infantil com
que partilhara sua coleção de relíquias com ela?
Quanto aos beijos que haviam trocado... Melhor era nem pensar.
Por que o conde não era um libertino ou mesmo um "almofadinha" como a
maioria dos homens da alta sociedade?, pensou tristemente. Aquilo tornaria sua
vida bem mais fácil.
Bem lá no fundo, não lamentava tanto assim tê-lo conhecido.
Do contrário, continuaria naquela vida sem graça que sempre tivera.
— Tem razão — Sarah suspirou, por fim. — Ele é mesmo muito bonito.
Sarah sabia que devia recuar, mas suas pernas recusavam-se a obedecer. Na
verdade, precisou se conter para não encostar o corpo ao dele.
Por sorte, sua fraqueza não foi revelada graças à entrada repentina de uma
mulher gorda, de cabelos grisalhos. Sarah voltou-se, constrangida, observando-
a colocar uma braçada de folhagens sobre a mesa.
— Aqui está, querida.
— Obrigada, sra. Sparks — murmurou, prestes a sugerir a lorde Chance que ele
retomasse seus afazeres.
Oliver, porém, não lhe deu tal oportunidade.
— Ora, ora, o que temos aqui? — indagou, apanhando um dos galhos.
— Visgo, milorde — respondeu a mulher. Um sorriso travesso brincou nos
lábios dele.
— Uma planta muito interessante, não acha, srta. Cresswell?
Sarah combateu o frio no estômago à simples menção da folhagem sob a qual
esperava-se que as pessoas trocassem beijos no Natal.
— Tão interessante quanto qualquer outra planta — respondeu.
— Acha também, sra. Sparks? — perguntou o conde.
A mulher soltou uma gargalhada.
— Já me diverti muito sob esses galhos quando era moça, milorde... Agora
estou velha demais para essas coisas.
— Nunca se é velho para essas coisas — contrapôs ele. Então, ergueu um dos
ramos acima da cabeça deles três e depositou um beijo na bochecha da mulher.
Completamente derretida pelo charme do conde, a sra. Sparks corou de prazer
e surpresa.
— Que maroto o senhor é — permitiu-se dizer, com uma piscadela, antes de
lançar um olhar significativo para Sarah. — Melhor eu voltar para a cozinha, ou
as crianças vão esvaziar a despensa.
Com um sorriso satisfeito, saiu da sala a passos largos, deixando-os a sós.
Sarah engoliu em seco. Não confiava em lorde Chance quando ele se mostrava
de tão bom humor. Pior do que isso: não confiava em si mesma.
— Sua vez — ouviu-o anunciar com voz rouca, ainda com o visgo acima deles.
Ela recuou um passo. Já passara muitas noites sem dormir por causa dos beijos
dele.
— De jeito nenhum.
— Mas é tradição... — protestou Chance, aproximando-se a ponto de deixá-la
inebriada com o perfume másculo que emanava dele.
— Por que não leva um ramo de visgo para os seus saraus ou para o baile? —
sugeriu, ácida. — Aposto que vai encontrar várias mulheres dispostas a levar a
tradição adiante.
— Eu também aposto — concordou Oliver, sem rodeios. — O problema é que
não estou interessado nelas.
— Pois talvez devesse, sir.
— Está parecendo minha mãe — Chance fez uma careta. — Não entendo como
ela espera que eu me sinta atraído por moças cuja maioria só sabe abrir a boca
para passar batom.
Sarah ficou exasperada só de pensar nas inúmeras mocinhas e debutantes que
dariam tudo para obter um só olhar do "impecável conde". Que absurdo. Jamais
se sujeitaria a se casar em troca de um título de nobreza.
Mas, por algum motivo, imaginá-lo cercado de beldades e escolhendo uma
esposa em meio a mulheres tão fúteis provocava-lhe um gosto amargo na boca.
— Elas não podem ser assim tão ruins — obrigou-se a contemporizar.
— Nem todas são — concedeu o conde, para seu desgosto. — Mas por mais
atraentes, educadas e cultas que possam ser, nenhuma me interessou até hoje.
Sarah umedeceu os lábios, nervosa. Gostaria que ele não a fitasse daquela
maneira, pensou, com a pulsação acelerada. Como se não houvesse mais
ninguém no mundo a não ser ela.
— Um dia vai se interessar por alguém.
— Como é possível se não consigo esquecer você? Uma onda de calor se
espalhou pelo corpo de Sarah.
— Muito lisonjeiro da sua parte, milorde — conseguiu dizer, com voz sumida.
— Acha que estou apenas flertando com você? — Ele franziu o cenho.
— E não está?
Houve uma longa pausa antes da resposta.
anterior, da atriz com quem flertara no verão, da bonita viúva que o entretivera
no começo do outono. Mas nenhuma delas o entusiasmara além de uns poucos
dias.
No entanto, um momento apenas na companhia de Sarah Cresswell fora o
suficiente para ele passar a desejá-la intensa e irremediavelmente. Era como um
feitiço, uma praga, um vício do qual não conseguia se livrar. Nada mais parecia
importar além de tê-la nos braços.
Mesmo que quisesse dar continuidade a seu relacionamento com Sarah, não
poderia. Ela não era "respeitável" o bastante para ser a condessa de Chance,
tampouco indecorosa o suficiente para se tornar sua amante. Por isso ali estava,
debatendo-se entre um desejo que não podia ser satisfeito e a frustração de não
haver descoberto absolutamente nada acerca do roubo dos brilhantes.
Inquieto demais para prosseguir com os estudos de sempre, Chance pediu a
carruagem e, pouco depois, rumava para a casa da mãe. Logo adentrava a sala
íntima, nos fundos da mansão, feliz em ver que lady Chance se encontrava em
Primrose.
Como já esperava, a velha senhora ficou surpresa com a inesperada visita.
Oliver costumava avisá-la com antecedência.
— Bom dia, mamãe — saudou, beijando a face que lhe era oferecida.
— Que surpresa agradável! — Ela sorriu, batendo no assento a seu lado, num
convite. — Quer um chá?
— Não, obrigado. — O conde acomodou-se com um suspiro.
— Tem notícias de Ben?
Ele concordou com um gesto de cabeça. Recebera uma mensagem do irmão, de
manhã. A mãe deles sempre ficava nervosa quando não tinha o filho mais novo
sob suas asas. Não que isso o impedisse de se meter em problemas... Mas se
acompanhá-lo todo o tempo, mesmo que de longe, deixava lady Chance mais
tranqüila, que fosse.
— Ben deve retornar a Londres no final de semana.
Ela bateu palmas, feliz.
— Que bom, então vai estar aqui para a festa!
— Quem ousaria perder o maior evento da temporada? — Ele sorriu, carinhoso.
— E não pense que estou tão velha a ponto de não notar o jeito que olha para
ela...
Chance fechou os olhos por um segundo. Podia olhar para Sarah assim o resto
da vida.
— Impossível.
— Por que, criatura?
— Porque ela... ela...
— Oliver, pelo amor de Deus, o que está acontecendo? — insistiu lady Chance,
impaciente.
Mortificado, ele percebeu que não teria mais como esconder a verdade. Não
quando sua própria mãe parecia determinada a fazer de Sarah Cresswell sua
nora. Era melhor cortar o mal pela raiz.
— Ela é filha do Malvado Dândi, mamãe.
Um silêncio pesado desceu sobre eles.
— Do ladrão de jóias?
— Ele mesmo.
Lady Chance entreabriu os lábios, o rosto enrugado empalidecendo levemente.
— Deus meu... Ela parece uma dama.
Revelando a verdade, a intenção de Chance de abortar qualquer plano que a
mãe pudesse ter teve o efeito contrário ao ouvir as próprias palavras.
— Ela é uma dama — viu-se defendendo Sarah com veemência. — Não importa
o que o pai tenha feito.
Lady Chance balançou a cabeça, pesarosa.
— Ninguém vai aceitar isso. Em nosso meio, uma moça não é julgada apenas
por sua aparência e qualidades, mas também pela própria reputação e a de sua
família, meu querido. Eu sinto muito.
A verdade nua e crua só serviu para exasperá-lo ainda mais.
— Isso é um absurdo! Sarah é mais respeitável do que todas aquelas donzelas
juntas!
Lady Chance ergueu as sobrancelhas diante da explosão do filho. Por mais que
desejasse vê-lo no altar, perdera as esperanças ao saber que a srta. Cresswell
tinha ligação com o Malvado Dândi. Oliver, no entanto, parecia mais abalado
pela jovem do que ela pudera imaginar.
— Sabe que não seria bom para você ter a companhia dela, meu querido —
disse com cautela. — Tem uma reputação a zelar. Graças a Deus essa moça teve
o bom senso de declinar do meu convite.
— A srta. Cresswell tem consciência da sua posição.
— Talvez mais do que você — emendou a mãe.
O conde deixou escapar uma risada amarga.
— Eu lhe asseguro, mamãe, que não poderia estar mais ciente da minha
posição. Mas isso não me impede de querer estar com ela.
— Oh, Oliver! — lamentou a velha senhora, consternada.
— Sou um tolo, não é? — ele ironizou a si mesmo. — E pensar que sempre me
gabei de ser o mais inteligente dos homens.
Do tipo que tentava evitar a todo custo qualquer conflito na família, lady Chance
pensou. Respirando fundo, recostou-se no sofá.
— Vai passar — afirmou. — Ela é um encanto, concordo, mas logo haverá outra
que o faça esquecer a srta. Cresswell.
— É o que tenho dito a mim mesmo.
— Tem que passar — repetiu a mãe, deixando escapar uma nota de
preocupação.
O conde não se deixou enganar pela falsa convicção de lady Chance. Ruminava
o problema havia dias e não chegara a nenhuma conclusão.
— Eu sei.
— Talvez devesse ficar em Kent até o Natal.
Ele concordou com um gesto de cabeça. Não era má idéia. Com sorte, cercado
pelos velhos membros da dinastia Chance e a quilômetros de Londres, poderia
tirar Sarah da cabeça de uma vez por todas.
Um segundo depois, a decisão já não lhe parecia tão acertada. A distância já se
mostrara inútil uma vez.
— Não vou fugir dos meus problemas — declarou.
— Por favor, meu filho. Não pense que não gosto da srta. Cresswell, mas...
— Seu criado.
— Encantada.
— Chance me falou sobre o quanto tem se esforçado no caso dos brilhantes.
E nem assim obtive sucesso, sentiu-se compelida a confessar. De súbito,
entendia a preocupação de lorde Chance em proteger o irmão mais novo. Havia
um quê de vulnerabilidade nos olhos castanhos.
— Por isso mesmo quis conversar com o senhor.
Ben comprimiu os lábios de leve enquanto se servia de uma generosa dose de
uísque.
— Não sei no que mais posso ajudar. Não tenho a menor idéia do que possa ter
acontecido com esses mald... benditos brilhantes.
Sarah ignorou a quase explosão. O pobre rapaz parecia à beira de uma crise de
nervos. Obviamente encontrava-se assustado com a possibilidade de ter
revelados alguns de seus prováveis deslizes.
— Talvez saiba mais do que pensa — ela o encorajou.
— Como assim?
— Gostaria que me contasse com detalhes tudo o que aconteceu na noite em
que as jóias desapareceram.
— Mas já contei a Oliver, eu...
— Ben — seu irmão o interrompeu, enérgico. — Faça como diz a srta. Cresswell.
Imediatamente acuado pelo tom de Chance, o rapaz suspirou pesadamente.
— Muito bem. Como eu já disse, fui até a casa de mamãe com Goldie e peguei
os brilhantes. Em seguida voltamos para cá.
Pensativa, Sarah tentou reconstituir a cena na própria cabeça.
— Quando retornaram, foram direto para o cofre? — ela indagou.
— Sim. — Ele franziu a testa.
— Onde fica?
— Ali. — Ben apontou na direção de um quadro de gosto duvidoso, na parede.
— Posso?
Tão logo ele a autorizou, Sarah atravessou a sala e retirou a tela da parede,
revelando um cofre simples, cujo segredo poderia ser descoberto pelo mais
inexperiente dos ladrões.
— O senhor abriu o cofre e colocou as jóias dentro — prosseguiu, num
raciocínio lógico.
— Eu... isso — murmurou Ben. — Não... espere...
— O quê? — O conde franziu o cenho.
Estreitando o olhar como se tentasse se lembrar de alguma coisa, o rapaz
pousou o copo lentamente.
— Maxwell veio até aqui e disse que Moreland e Fritz estavam à minha espera.
— E o que fez com os brilhantes? — perguntou Sarah, atenta.
— Devo tê-los guardado no cofre.
— Tem certeza?
Ben fez uma longa pausa, pensativo. Então sacudiu a cabeça em negativa.
— Não... lembro-me agora. Dei as jóias a Goldie e pedi que ele as colocasse no
cofre.
Sarah sentiu uma onda de excitação percorrê-la. Tinham uma pista, enfim.
Ainda assim, precisava ter cuidado para não tirar conclusões precipitadas.
— O senhor saiu da sala? — ela perguntou.
— Sim, fui tentar me livrar das visitas. Sarah caminhou até ele, devagar.
— Pense, sr. Coltran. Quando voltou, checou se as jóias estavam no cofre?
— Não — admitiu ele, com pesar. — Goldie já o havia trancado.
— Chegou a vê-las naquela noite?
— Não! — Ben suspirou, exasperado.
Ao lado dele, contudo, lorde Chance continuou inabalável. Olhando de Sarah
para o cofre, estreitou o olhar, o semblante moreno iluminando-se subitamente.
— Santo Deus...
— O que foi? — Ben voltou-se para o irmão, ansioso.
— Goldie — concluiu, o olhar fixo no de Sarah.
Ela concordou com um gesto de cabeça.
— Isso mesmo.
Capítulo VII
— Bem, eu... — O irmão franziu a testa, depois se deu por vencido. — Não. Não
vi.
— Não acha estranho que ele não tenha vindo procurá-lo?
— Estive fora, esqueceu?
— Goldie não veio até aqui durante a sua ausência e nem depois que você
voltou.
— Isso não quer dizer que tenha roubado os brilhantes.
— Use a cabeça — disse Chance, devagar. — Goldie precisava de dinheiro, teve
a oportunidade ideal para surrupiar as jóias e agora está desaparecido.
Teimoso demais para se deixar convencer, Ben esmurrou uma mesa.
— Não acredito até ver as jóias nas mãos dele!
Chance abriu a boca para retrucar, mas se deteve ao ver que Sarah intervinha
novamente.
— E isso o que pretendemos fazer agora.
— Tem algum plano?
Ela hesitou apenas um segundo.
— Precisamos forçar Goldie a revelar onde escondeu os brilhantes.
— Se é que estão com eles — argumentou Ben.
— Claro... — Sarah esboçou um leve sorriso.
Chance caminhou pelo tapete, considerando as hipóteses de reaverem as jóias.
Apenas pensar que podiam estar nas mãos daquele irresponsável já era um
desgosto.
— Eu poderia arrancar com a espada a verdade daquele infeliz — confessou,
num raro arroubo de impaciência.
— Não era bem isso que eu tinha em mente — declarou Sarah. Estacou, com um
brilho no olhar.
— Lucky!
Ela mordeu o lábio, pensativa.
— Acho que precisamos ser mais diretos. — Voltou-se para Ben. — Devia fazer
uma visita ao seu amigo.
— Com certeza! Estou ansioso para provar que isso tudo é um pesadelo.
Para a agonia de Chance, que ansiava por ver as jóias da mãe de volta ao lugar a
que pertenciam, ficou decidido que a armação para Goldie se daria somente na
manhã seguinte. Não queria perder nem um segundo sequer, agora que os
brilhantes se encontravam ao alcance deles.
Todavia concordava com Sarah. Ben precisava tomar parte no plano. Por isso ela
pedira a ele que revelasse cada detalhe da residência do amigo e que fornecesse
uma lista completa dos criados que o serviam. Havia ainda um obstáculo a
transpor: descobrir como ele, Chance, e Sarah poderiam entrar na casa sem ser
notados.
Lucky foi a solução. Com certeza o garoto poderia lhes abrir caminho, já que
era tão ou mais esperto do que Sarah.
Decididos os detalhes, o conde acompanhou Sarah até a casa dela. Embora
estranhasse o silêncio dela, dessa vez não ousou incomodá-la com sua
curiosidade. O que mais tinham a dizer, afinal? Ambos estavam conscientes de
que, se os brilhantes fossem descobertos, seu relacionamento chegaria ao fim.
Depois do dia seguinte, talvez jamais tornassem a se ver.
A idéia era deprimente, ele percebeu, com pesar. E o assombrara pelo resto do
dia e da noite.
Somente quando lembrou a si mesmo que a própria segurança de Sarah
dependia de sua concentração na iminente tarefa, foi capaz de se esquecer do
que viria depois. Primeiro, os brilhantes. Depois pensaria no que o destino lhe
reservava.
Com isso ainda em mente, apanhou Sarah e Lucky na manhã seguinte, antes de
fazer a carruagem rumar para uma velha estrebaria, bem atrás da residência de
Goldie. Aguardaram no frio até ter certeza de que Ben também havia chegado.
Então, após mandar Lucky seguir na frente deles, Chance e Sarah esgueiraram-
se até uma porta lateral que levava diretamente à biblioteca. Era o lugar mais
óbvio para um cofre. Melhor do que isso, estariam apenas a uma parede da sala
e, portanto, poderiam ouvir toda a conversa entre Goldie e Ben.
Escondido atrás da porta, o conde fez o melhor que pôde para proteger Sarah
do vento cortante. Chegara a cogitar a possibilidade de ela permanecer em
casa, pois não queria expô-la a nenhum perigo. Mas logo desistira da idéia. Não
apenas porque Sarah dispensara grande parte de sua energia e tempo para
recuperar as jóias, mas também porque ela jamais iria perdoá-lo caso ele a
fizesse perder a parte mais importante da história.
Era o melhor que poderia obter dela, sem dúvida, refletiu Chance.
— Está na hora.
Em silêncio, empurrou a porta estreita e deslizou para dentro da biblioteca.
Olhou ao redor, antes de fazer um sinal para que Sarah entrasse e fechasse a
porta atrás de si. Moveram-se juntos até ouvir vozes no corredor. Puxando-a
pelo braço, Oliver a ocultou entre duas estantes paralelas à parede.
Sentir o corpo esguio pressionado tão intimamente ao seu o fez fechar os olhos
de puro prazer. Era tão bom ter as curvas suaves amoldando-se a ele, o perfume
dela preenchendo seus sentidos... Como podia se imaginar longe de Sarah?
Abriu os olhos e tentou desesperadamente se concentrar no que fazia.
— Acho que não entendi — ouviu Goldie dizer. — Você disse que está com as
jóias?
Chance sentiu que Sarah enrijecia, aguardando a resposta ensaiada de Ben.
Tudo dependia da habilidade do rapaz em convencer o outro de que estava de
posse dos brilhantes.
— Pois, então... — respondeu Ben, devagar. — Um homem apareceu na minha
porta afirmando que estava com elas e exigiu dinheiro. Paguei, claro, apesar da
minha situação. Não podia deixar uma herança de família nas mãos do infeliz.
— E tem certeza de que são os brilhantes verdadeiros? — Goldie pareceu
preocupado.
— Então não conheço as jóias da minha mãe?
— Claro.
— Mesmo assim, é muito estranho — prosseguiu Ben, exatamente como Sarah o
instruíra.
— O quê?
— Não entendo como ele as conseguiu. Jurou que as comprou de outro sujeito.
Mas acho que é balela.
O silêncio se estendeu por alguns instantes.
— Então, você ainda não sabe quem as roubou.
— Foi algum patife, na certa.
A resposta de Goldie foi inaudível.
Oliver encobriu Sarah enquanto Goldie, de costas para eles, retirava um quadro
da parede e revelava um pequeno cofre. Com mãos trêmulas, conseguiu acertar
o segredo e abriu a porta. Seu suspiro de alívio soou através do cômodo, ao
mesmo tempo em que erguia um colar e uma tiara de brilhantes.
Por um segundo, Chance prendeu a respiração. Sarah estava certa.
Ergueu a pistola lentamente, fez um sinal para ela e moveu-se para o centro da
biblioteca.
— Lindas jóias, Goldie...
O rapaz virou-se, o horror estampado na face.
— O senhor! Como?!
— Não importa como. — Chance estendeu a mão. — Eu fico com isso.
Por um instante, Goldie agarrou-se à pequena fortuna. Depois, percebendo a
expressão inabalável do homem à sua frente e a pistola apontada para ele,
estremeceu. Lentamente, avançou na direção do conde e depositou os
brilhantes na mão dele.
— E-Eu não quis roubá-las — gaguejou, o rosto redondo banhado de suor. —
Ben pediu que eu as colocasse no cofre, mas... eu precisava tanto de dinheiro
e... e... não pude resistir.
Chance não chegou a sentir pena do rapaz. Goldie surrupiara uma herança de
família. Pior do que isso, roubara de seu melhor amigo. Era um fraco e um
imoral.
— Ben confiava em você.
— Eu sei — murmurou Goldie. Por isso demorei a vender as jóias. — Engoliu em
seco. — O que vai fazer comigo?
O primeiro impulso de Chance foi carregá-lo até as autoridades e permitir que a
Justiça seguisse seu curso. Era, na verdade, o que Goldie merecia. Mas a
perspectiva de ver a mãe tomar conhecimento da traição do próprio filho caçula
o fez hesitar. Tinha ido longe demais para proteger a família, para depois jogar
tudo fora por pura vingança.
— Pelo bem do meu irmão, eu lhe darei a oportunidade de voltar para a sua
casa, em York — decidiu, frio, um brilho perigoso nos olhos escuros. — Não
regresse a Londres, ou toda a cidade vai saber que tipo de ladrão você é.
Goldie ergueu as mãos trêmulas para o alto.
— Não estou me referindo à escola. Estou me referindo a você. Quero lhe dar
um presente.
— Não preciso de nada.
— Bobagem — ele riu, incrédulo. — Que mulher não aprecia um agrado? O que
gostaria de ganhar?
Sarah combateu um impulso histérico de cair na risada. O que ela gostaria de
ganhar era a única coisa que o conde jamais poderia lhe proporcionar.
— Nada — disse, não sem uma ponta de amargura.
— Por que está sendo tão dura?
— Não costumo aceitar presentes dos homens.
Ele enrijeceu diante da resposta, os olhos tomados por uma sombra que Sarah
não saberia definir.
— Não estou tentando seduzi-la, Sarah Cresswell. Acho apenas que merece uma
recompensa pelos seus esforços.
— Eu já disse que não precisa se preocupar com isso.
— Por que não?
Não podia confessar que o amor que sentia por ele tornava a simples idéia de
uma recompensa material sórdida e inaceitável.
Dessa forma, disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
— Lorde Scott me ajuda em tudo que necessito.
Percebeu seu erro tão logo articulou as palavras. Surpreendentemente, o sangue
pareceu sumir do rosto de Chance.
Droga, pensou. A última coisa de que precisava agora é vê-lo questionar seu
relacionamento com o homem!
— Lorde Scott... — repetiu ele, lívido.
Sarah deu de ombros, fingindo uma calma que estava longe de sentir.
— Ele é meu amigo.
Aturdida, notou que o conde cerrou o maxilar.
— Pensei que eu fosse seu amigo...
Ela virou o rosto, incapaz de enfrentar o olhar dele por mais tempo.
— Claro.
Em silêncio, deixaram a residência de Ben e entraram na carruagem. Sarah
permaneceu olhando pela janela, como se jamais houvesse notado a fileira de
casas e os raros transeuntes que se arriscavam a enfrentar a chuva fria.
Dentro do veículo, a atmosfera parecia ainda mais gelada. Podia sentir o olhar
do conde fixo nela, porém manteve um silêncio estóico. Não havia nada a dizer.
Nada, além de adeus.
O caminho até a casa de Sarah pareceu durar uma eternidade, mas, por fim, a
carruagem parou. A tensão nos movimentos de Chance, enquanto ele a
acompanhava até a porta, não lhe passou despercebida.
Enquanto aguardavam por Watts, Oliver disse:
— Obrigado por tudo.
— Não foi nada, milorde — Sarah respondeu com voz sumida, os olhos fixos no
chão molhado.
— Tenha um feliz Natal.
Ela estremeceu, certa de que seu Natal seria tão frio quanto o tempo naquele
dia.
— Também para você.
Quando a porta foi aberta, Sarah suspirou, trêmula.
— Adeus.
Não esperou para ver se ele ainda tinha alguma coisa a dizer. Na verdade,
praticamente voou casa adentro. Precisava ficar longe de lorde Chance. Não
podia permitir que ele notasse as lágrimas que já lhe escorriam pela face.
Subiu a escadaria, e corria em direção ao quarto quando deparou com o pai
saindo da biblioteca.
— Aí está a minha princesa — ele a saudou com um sorriso. — Toma um chá
comigo?
Sarah queria apenas a solidão do próprio quarto e poder dar vazão às lágrimas
em paz! Não era pedir muito.
— Não, obrigada — disse, virando o rosto de leve na tentativa de ocultar os
sentimentos.
O Malvado Dândi, contudo, era astuto demais para se deixar enganar. Segurou-a
pelo queixo e obrigou-a a encará-lo.
— O que aconteceu?
Sabendo que seria uma perda de tempo mentir, ela ergueu os olhos, relutante.
— Recuperamos os brilhantes. Solomon a soltou.
— E?
— O amigo do sr. Coltran era o culpado.
Seu pai estudou os olhos vermelhos.
— Lorde Chance deve ter ficado satisfeito... ou não?
— Muito.
— E você?
Sarah deu de ombros.
— Aliviada.
Solomon apertou os lábios, incrédulo.
— Pois não parece.
Ela sentiu o estômago se contrair. Seu pai estava certo. Sentia-se vazia. Não
teria mais a companhia de lorde Chance. Não tornaria a sentir-se uma mulher
desejada; não provaria mais o calor que se espalhava por seu corpo a cada
toque ou olhar dele.
E não era apenas isso. Não teria mais o prazer de simplesmente estar ao lado
do conde, ouvindo suas histórias, vendo os olhos escuros a observarem,
atentos, enquanto ela falava; enfim, de vê-lo se revelar por trás da imagem fria
do "impecável conde".
Não saberia dizer do que sentiria mais falta.
Entretanto não estava preparada para dividir com ninguém suas tristes
emoções. Nem mesmo com seu pai.
— Estou bem, papai.
Solomon a fitou de soslaio.
— Vai voltar a ver lorde Chance?
— Não! — Sarah respondeu, rápido demais. — Por que deveria?
— Porque o ama.
Ela recuou um passo, chocada.
— Imagine.
— Sarah. — Solomon removeu o tapa-olho para fitá-la direto nos olhos. — Não
pense que pode me enganar. Está apaixonada por lorde Chance.
Os lábios dela tremeram, embora tentasse manter a compostura.
— E o que adiantaria se eu estivesse? — indagou, com voz embargada.
Ele a segurou pelo rosto, carinhoso.
— Por quê?
Sarah ergueu o olhar para o dele, relutante. Havia momentos em que se
perguntava como teria sido sua vida se seu pai tivesse sido uma pessoa normal
dentro da sociedade; como teria sido ser criada sem viver às voltas com
escândalos, desfrutando seus dias como qualquer outra jovem. Mas tais
pensamentos sempre desvaneciam.
Ainda assim, amava o pai e, o mais importante, jamais duvidara de seu amor
por ela.
— Quem melhor do que você para saber? — devolveu a pergunta em meio a um
soluço.
Uma sombra de arrependimento transformou o rosto magro de Solomon.
— Porque você é minha filha... — concluiu ele, por fim.
Sarah afastou as mãos de seu pai. O dia fora marcado por confrontos. Não se
sentia em condições de iniciar outro naquele momento.
— Perdoe-me, papai. Preciso descansar.
Dirigiu-se aos seus aposentos.
— Eu sinto muito, Sarah... — ouviu Solomon dizer.
— Eu sei — respondeu, sem olhar para trás.
Capítulo VIII
— Posso.
Oliver não pôde deixar de admirar a coragem dele. Um só gesto seu e seria o
fim do Malvado Dândi. No entanto Cresswell arriscava o próprio pescoço em
nome do bem-estar da filha.
Lógico que não iria denunciá-lo às autoridades. Jamais faria algo que pudesse
ferir Sarah, pensou, enquanto Pate se aproximava com o conhaque.
Tão logo o mordomo deixou a biblioteca, Chance serviu dois cálices, entregou
um deles ao Malvado Dândi e caminhou até a lareira acesa.
— Tudo isso não muda o fato de que qualquer ligação minha com Sarah
Cresswell só nos traria dissabores.
— Bah! — exclamou Solomon. — O que é pior: suportar o falatório por um
tempo, ou passar o resto da vida longe da mulher que o senhor ama?
Chance o fitou, os lábios apertados. Solomon Cresswell não deixava de ter
razão.
— Mas... e quanto à minha mãe e a meu irmão? Teriam de passar pela mesma
provação sem ter culpa de nada.
— Quer saber? Não acho que esteja tão preocupado assim com a sua família. No
fundo, está é com medo.
Oliver fulminou com os olhos a indesejável visita. Não admitia que o
chamassem de covarde.
— Como é?
Indiferente ao tom ameaçador, Solomon devolveu o olhar.
— E simples trilhar o caminho que lhe traçaram, meu amigo. Mais complicado é
seguir o que manda seu próprio coração. — Ergueu a mão quando Chance fez
menção de replicar. — É com muita coragem que Sarah atravessa esta cidade
todos os dias para ir àquela escola, ou freqüenta lugares em que nenhuma
moça "direita" deveria ser vista. A mesma coragem que teve a mãe dela ao
abandonar a própria família e enfrentar os dissabores de ser casada com o
Malvado Dândi. Na época, com exceção do tio de Sarah, lorde Scott, todos lhe
deram as costas.
Oliver piscou à menção do outro homem.
— Tio de Sarah? — repetiu, incrédulo.
— Poucos sabem disso — declarou Solomon. — Foi mais um sacrifício que ela
fez por amor aos seus.
O conde balançou a cabeça devagar, entendendo enfim porque Sarah e Scott
pareciam tão íntimos.
Santo Deus! Sarah tinha ligação com uma das mais respeitadas famílias de
Londres e, ainda assim, não renegara a posição que o pai havia reservado para
ela na sociedade.
— E que acabou favorecendo também o trabalho com as crianças... — Oliver
concluiu, com o coração apertado.
— Isso mesmo. Apesar dos meus erros, ainda tenho muito do que me orgulhar
— continuou Solomon Cresswell. — Possuo três filhas adoráveis, cujo caráter e
generosidade estão acima de qualquer suspeita.
Chance não podia negar. Sarah era maravilhosa, solidária e abençoada com uma
bondade que ele jamais vira.
— Faz tudo parecer tão simples — murmurou.
— Não se trata disso. Eu já disse que é preciso coragem para seguir as próprias
convicções. Seria fácil continuar agindo como o "impecável conde" e desposar
uma jovem da elite para ser a mãe de seus filhos. O mais difícil é arriscar tudo
por amor.
Arriscar tudo por amor...
As palavras ecoaram na mente do conde.
Santo Deus, conseguiria seguir o que mandava seu coração? Possuía tanta
coragem assim?
A resposta ficou clara quando um par de olhos azuis lhe veio à mente.
Por mais árdua que pudesse ser, poderiam enfrentar aquela situação juntos,
concluiu, decidido.
— Preciso sair do país por alguns dias — o Malvado Dândi interrompeu seus
devaneios. — Espero que cuide de Sarah por mim.
Com isso, Solomon Cresswell simplesmente deixou a biblioteca.
Sozinho, Chance permitiu que um sorriso lhe curvasse os lábios. Cuidaria de
Sarah pelo resto da vida.
Do outro lado da cidade, Sarah fazia o possível para alimentar o próprio espírito
natalino. Não era justo deixar que sua péssima disposição contaminasse todos à
sua volta. Além do que, não podia permanecer trancada no quarto para sempre,
censurou a si mesma. Era melhor retomar a rotina e esquecer as últimas sema-
nas. Já bastava de sentimentalismos, pensou, enquanto pendurava mais um
ramo de azevinho sobre o consolo da lareira.
Mas seu coração recusava-se a colaborar. Piscando com força para combater
uma nova onda de lágrimas, ensaiou um sorriso para Lucky.
— O que acha?
O menino observou a sala já toda enfeitada para o Natal.
— Esqueceu de pendurar o visgo!
Sarah comprimiu os lábios, tentando não pensar a que aquela história de visgo
a levara da última vez. Maldita tradição!
— Não precisamos dessa bobagem.
— Mas... e se o conde aparecer? — sorriu o menino, maroto. Ela sentiu o peito
se apertar.
— Se está se referindo a lorde Chance, pode esquecer. Já encontramos as jóias,
portanto ele não precisa mais de nós.
— Eu não teria tanta certeza assim, Sarah Cresswell — falou uma voz profunda,
vinda da porta.
O coração dela deu um salto enquanto girava o corpo e deparava com Oliver a
poucos passos.
— Milorde!
Ignorando o constrangimento de Sarah, Lucky abriu um largo sorriso.
— Eu sabia que você ia voltar! — disse, antes de bater em retirada com um olhar
significativo na direção dela.
Uma vez a sós com o homem que lhe ocupara os pensamentos por cada minuto
dos dois últimos dias, Sarah lutou para respirar normalmente. Deus do Céu,
batalhara tanto para convencer a si própria de que era melhor nunca mais pôr
os olhos nele... Agora, toda sua convicção tinha ido por água abaixo.
— O que veio fazer aqui? — indagou, trêmula. Oliver ergueu um pacote.
— Trouxe-lhe um presente de Natal.
Nenhum dos dois notou a presença discreta do Malvado Dândi, antes que ele se
retirasse em silêncio e começasse a subir as escadas, disposto a fazer as malas.
Uma de suas filhas já estava bem encaminhada, concluiu com um sorriso. Ainda
havia mais duas com que se preocupar antes que pudesse se aposentar de uma
vez em sua confortável casa, na Itália.
A adorável Emma seria a próxima. Precisava encontrar para ela um rapaz muito
especial. Alguém que pudesse derreter o gelo que tomara seu coraçãozinho e a
fizesse sorrir novamente.
Assobiando uma canção de Natal, Solomon terminou de subir as escadas,
satisfeito.
O Malvado Dândi nunca falhava.