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Cores da

Paixão
Vanessa Grant
A razão nem sempre manda no coração...
Alexander Kent sente uma estranhas combinação de
irritação e desejo toda vez que encontra Jamie Ferguson,a bela
artista plástica de Seattle.O que ele espera de uma mulher é
que ela seja tão segura e sensata quanto ele.
Porém ,com seus cabelos castanhos e flamejantes olhos cor
de esmeralda,Jamie é o retrato do espírito inquieto, exatamente
o tipo de mulher que Alex conhece e abomina:
moderninha,independente e volúvel.
Jamie não usaria seus melhores elogios para classificar
Alex. Para ela ,Alex é dominador e estranhamente ríspido.
Mas quando Jamie passa semanas realizando um trabalho
de pintura para ele,aos poucos descobre que sua expressão
severa esconde uma imensa ternura.
E caberá a ela provar que o amor crescente que eles
partilham não é apenas explosivo mas também belo,verdadeiro
e infinito!
Personagens: Alex & Jamie

Título original: The Colors


of Love
Disponibilização: Drika / Digitalização: Marina
Revisão: Meg / Formatação: Edina

Capítulo I

Jamila Ferguson segurou a taça com mais força. —


Será que ouvi direito? Vendemos tudo isso em uma noite?!
— Vendemos oito de suas telas. — Liz Havers ajeitou o
lenço de seda no pescoço. — Foi uma estréia sensacional,
em se tratando de uma artista desconhecida.
Atrás de Liz havia um cartaz com os dizeres: "Um
jovem e promissor talento, vindo do Northwestern".
No momento, a galeria encontrava-se vazia, embora
uma hora atrás estivesse

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lotada. Um crítico de artes, que assinava por uma coluna
em um jornal de grande circulação, dissera que, num
futuro próximo, esperava ver mais de seu trabalho.
— Já pode relaxar, Jamie — sugeriu Liz, tirando o
champanhe intocado da mão dela. — Vá para casa e tenha
uma boa noite de sono. Quero que comece a pintar amanhã
mesmo. Precisarei de no mínimo vinte e cinco telas para
sua exposição de outono.
— Liz! Belisque-me para que eu me convença de que
não estou sonhando. Pretende mesmo expor meus
trabalhos no outono?
— Claro! E quero todas as vinte e cinco telas prontas
com antecedência. Detesto correrias de última hora.
Jamila sorriu, feliz.
— Começarei a trabalhar ainda hoje. Parece mentira.
Em criança, eu costumava vir a sua galeria para admirar os
quadros dos grandes artistas. Achava que saber pintar era
uma dádiva divina.
— E agora, é um deles.
— Graças a você, que sempre me incentivou, desde a
primeira vez em que lhe mostrei meus trabalhos.
Atrás de Liz, na parede, Jamila podia ver o perfil de
uma jovem, parada em um ancoradouro, acenando para um
barco que partia. Despedida, era o nome do quadro. Sentiu
uma pontada de tristeza ao se dar conta de que talvez não
tornasse a vê-lo.
— Venha apanhar seu cheque na segunda-feira, Jamie.
— Estarei aqui na segunda, como de costume. — Liz
balançou a cabeça.
— Agora é uma artista profissional. Esqueça o trabalho
na galeria e dedique todo o tempo possível às telas para a
exposição no outono.
Lá fora, Jamila abençoou a chuva que caía em seu
rosto, o cheiro de terra molhada no ar. Do outro lado da
rua, um homem passava apressado, o chapéu puxado sobre
o rosto, os ombros recurvados para se proteger da
chuvarada. Na certa, em algum lugar, devia haver uma

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mulher calorosa a sua espera. Não dava para ver seu rosto,
podia apenas vislumbrar a figura sombria caminhando na
noite.
"Noite chuvosa...", pensou, começando a imaginar
como pintaria aquela cena. Cobriria a tela com tons
acinzentados, criaria as calçadas escuras e os edifícios
esbranquiçados.
Procurou pelas chaves dentro da bolsa. Agora, se
quisesse, poderia até adquirir um carro novo.
Não. Seria tolice investir todo aquele dinheiro num
automóvel. Seu velho carrinho verde, de onze anos, ainda
lhe servia muitíssimo bem. E, afinal, acabara de trocar os
pneus.
Mas um cavalete novo ela podia comprar, e também
saldar o empréstimo com o banco. O restante, iria investir,
para o caso de Liz, até a exposição no outono, não ter
vendido mais nenhum de seus quadros.
O motor funcionou na segunda tentativa, falhando um
pouco, antes de se estabilizar. Foi em frente e fez o retorno
na rua vazia.
Não conseguiria dormir. Oito de suas telas vendidas e
por preços escandalosos, e isso em sua primeira exposição!
Num impulso, girou o volante em direção à Magnólia
Bluff e avançou devagar pela área residencial do bairro.
À luz do dia, teria dali uma bela visão do oceano, mas
àquele horário, viam-se só os automóveis estacionados, as
luzes tremulando das janelas das casas e dos
apartamentos, difundindo um sentimento de desolação.
Ao pisar nos freios, no semáforo, teve a impressão de
que algo se movia mais adiante. Avançou sem pressa, os
olhos estreitados. Seria um pedestre, algum animal?
Nada, apenas a chuva caindo, cada vez mais forte. Não
havia ninguém nas calçadas, e tampouco dentro dos
veículos parados. Talvez o que julgou ter visto fosse apenas
uma folha de palmeira arrancada pelo vento.

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Uma rajada de água atingiu o lado de seu carro,
inundando o pára brisa. Aumentou a velocidade do
limpador e inclinou-se para a frente, tentando enxergar.
Foi então que algo se moveu a sua direita, que Jamila
não conseguiu distinguir. Diminuiu a velocidade e
continuou seu caminho. De repente, avistou uma sombra
escura, e tornou a pisar no freio, os pneus protestando no
asfalto. Sentiu um baque.
— Meu Deus!
Abriu a porta e correu para a frente, protegendo a
visão da claridade dos faróis.
Deparou com uma criança no chão, a alguns
centímetros do pára choque. Ajoelhou-se. Era uma
garotinha loira, e tinha o rosto muito pálido. Será que
respirava? Tinha de chamar uma ambulância. A menina, de
repente, abriu os olhos escuros.
— Não se mexa — Jamila pediu, pousando a mão em
seu peito. — Fique onde está e não se mova. Vou procurar
ajuda.
A garota agarrou sua mão.
— E Squiggles? Você o viu? — Sua voz soou fraca,
embora aflita. — Preciso encontrá-lo.
— Não estou mais com infeção, doutor? — perguntou o
pequeno Timothy Wesley, de nove anos.
O dr. Alexander Kent procurava tranqüilizá-lo.
— Graças a Deus nós demos um jeito nela, amiguinho.
Mesmo assim, você precisará passar a noite no hospital,
em observação. Mas garanto que poderá ir à escola na
segunda-feira.
— Eu voltarei a escutar direito? — Quando Timmy fez a
pergunta, Alexander notou a mãe dele estremecer.
— Examinei seu tímpano, Timmy. Agora está tudo bem.
— A sra. Wesley relaxou.
— Fez bem em avisar sua mãe que estava com dor de
ouvido. — Alexander levantou a cabeça, ao notar que
alguém se aproximava. — Ah! Aqui está a enfermeira

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Stanley. Vire-se de lado, Timmy. Iremos acabar com o que
resta dessa infeção.
O menino deu uma risadinha antes de obedecer.
— Obrigada, dr. Kent — a sra. Wesley agradeceu,
emocionada. — Lamento muito por ter arruinado a sua
noite.
— Não tem problema. Era apenas um jantar
beneficente. — Ele levara Diana Thurston ao evento, e ela
sorriu, compreensiva, quando ele avisou que fora chamado
ao hospital.
Alexander prometeu retornar a tempo de levá-la para
casa.
— Volte para seu jantar, doutor, e aproveite bem o
momento. — Farei isso, sra. Wesley. E não se preocupe,
Timmy está ótimo. — Enquanto Alexander os deixava, a
enfermeira murmurou:
— Poderia dar uma olhada em uma paciente, dr. Kent?
Acaba de chegar. Pedestre atingido por um carro. Uma
garota de seis ou sete anos de idade, consciente. Está
chorando, mas não há nenhuma lesão visível. Foi trazida
para cá pela motorista do carro.
— Qual o nome dela?
O que uma criança de seis anos estaria fazendo na rua
àquela hora da noite?!
— Não sabemos. Não conseguimos fazer com que
parasse de chorar.
Alexander podia ouvir os soluços da garotinha.
Ao adentrar a área do pronto atendimento, uma
explosão de cores chamou sua atenção. Junto ao leito da
paciente, encontrava-sè uma mulher jovem e atraente.
Seus cabelos castanhos e macios caíam como uma cascata
sedosa sobre a blusa absurdamente brilhante que usava.
Afastou o olhar da figura estonteante e concentrou-se na
criança, que se debatia, enquanto a enfermeira tentava
medir sua pressão arterial.
— Quero ir embora! Por favor, preciso encontrar
Squiggles!

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— Olá. — Alexander pousou a mão em seu ombro. —
Não quer me falar a respeito desse... Wiggles?
Os soluços dela diminuíram um pouco, e ela o fitou. Do
outro lado da cama, a vistosa criatura uniu as mãos no
peito.
— Sou o dr. Kent — Alexander disse à garotinha,
tentando com força desviar a atenção da figura a sua
frente.
Olhos verdes e cabelos castanhos. Mesmo sem aqueles
trajes extravagantes, pareceria imprópria naquela
enfermaria, tanto quanto uma banda de rock.
— Fale-me sobre Wiggles.
— Squiggles — corrigiu-o a menina. Alexander
assentiu, segurando seu pulso.
— Fale-me a respeito dele.
— É todo amarelo, e não pára quieto. Papai acha que
não devo chamá-lo de nada, porque ele não pode ficar
conosco.
— Squiggles é um gato? — Alexander fez um leve gesto
para a enfermeira, para que medisse a pressão sangüínea
da pequena. — Sente dor em alguma parte do corpo?
Ela fez que não.
— Ele é apenas um pobre gatinho. — Ela continuou
falando, parecendo não se dar conta do aparelho que a
enfermeira prendera em seu braço.
— Agora nós sabemos que o nome do gatinho é
Squiggles... Mas como é o seu?
— Sara. Squiggles deve estar na chuva, todo molhado,
e morrerá se pegar uma pneumonia.
— Não se preocupe, Sara, eu vou encontrá-lo.
Alexander levantou a cabeça. A presença colorida da
moça próxima ao leito dominava a enfermaria. Seus lábios
pareciam muito suaves quando ela disse:
— Prometo que o encontrarei e o colocarei a salvo.
— Jura?
— Juro.

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Alexander viu a esperança de Sara renascer. Notou os
olhos verdes e sinceros da jovem, mas ela não aparentava
ser do tipo que saía na chuva atrás de um gato.
Sinceridade fingida, promessas vazias.
— Era você que estava dirigindo o automóvel?
— Bem, eu...
— Conhece os pais de Sara?
— Não, eu nunca...
— Como foi que aconteceu?
— Eu passava pela Magnólia Bluff quando, de repente,
julguei ter visto alguma coisa correndo pela rua. Olhei,
mas não vi nada, além da chuva. Foi quando senti um
baque, mas não a vi até...
— ...sair do carro — Alexander resumiu.
— Isso mesmo. Gostaria que me dissesse se ela está
bem, doutor. —Alexander a fitou com ar desdenhoso.
— O que importa aqui não é o que você gostaria. A sala
de espera fica no final do corredor. A enfermeira lhe
mostrará o local. — Sem dizer mais nada, virou-se para a
pequena paciente e tirou uma lanterninha do bolso. —
Onde está sua mãe, Sara?
— No céu. Ela vai mesmo encontrar Squiggles?
"Pessoas que faziam promessas em vão, ainda mais
para crianças, deviam ser castigadas."
— Examinarei seus olhos, meu bem. Olhe na direção de
minha testa. Mora com seu pai, Sara?
— Hum — assentiu, obedecendo-o.
— Ótimo. Sabe se ele se encontra em casa?
Sara meneou a cabeça, antes de estremecer e parar.
Sua pupila esquerda estava boa, mas a direita se
encontrava um pouco fixa.
— Sabe onde ele está agora?
— No trabalho.
— Onde o papai trabalha?
— Na estação de força e luz. Seu nome é Wayne Miller.
— Muito bem. Vamos mandar alguém avisá-lo de que
você está aqui.

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— Papai ficará muito zangado quando souber. Estou
proibida de sair na rua quando ele não está. Ai! Isso dói!
— Foi aqui que você bateu. Mas logo vai melhorar.
Sente dor em algum outro lugar?
— Não.
— Quem cuida de você enquanto seu pai trabalha?
— A sra. Davis, que mora no primeiro andar. E se a
moça não encontrar meu gato? Está chovendo muito, e ele
vai se molhar.
— Os gatos sabem onde se abrigar. Na rua onde eu
moro havia um que costumava se esconder em nossa
garagem. Squiggles deve estar a salvo e bem protegido.
— Tomara que esteja...
— Mas agora a enfermeira a levará para tirar algumas
radiografias. Coisa simples, não precisa ter medo. —
Alexander anotou algo na ficha médica de Sara, e em
seguida se afastou um pouco para falar com a funcionária:
— Solicite raios-X do crânio, do ombro esquerdo e do
braço. Conseguiram localizar o pai?
— Sim. Trabalha na companhia de força e luz, no turno
da noite. Prometeu vir em seguida.
— Ligue para meu pager quando ele chegar. Também
vou querer saber sobre as radiografias. A polícia foi
avisada?
— Foi.
— Ótimo. A mulher que a trouxe ao hospital não me
parece muito confiável. Fale com a assistente social e peça
para que esteja aqui pela manhã.
A caminho da ala dos médicos, ele passou pela sala de
espera. Perto da máquina de café encontrava-se a jovem
colorida e de longos cabelos castanhos.
Quando ela o fitou, Alexander encarou-a com frieza.
Seus imensos olhos verdes falavam de um paixão
intranquila, algo que a faria desapontar qualquer um que
confiasse nela, incluindo Sara. A garota acreditava que ela
encontraria seu gato.
— A menina vai ficar bem, doutor?

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— Por que decidiu removê-la para o hospital? Não sabe
que não se deve tocar na vítima de um acidente? Poderia
tê-la matado!
— Sinto muito. Eu estava para chamar uma
ambulância, mas Sara ficou muito agitada. Achei ser mais
prudente trazê-la para cá, em vez de deixá-la sozinha
enquanto procurava ajuda.
O que seria aquilo nas íris dela? Puro fogo verde.
Alexander não conseguia se desviar daquela chama.
Ela segurou em seu braço, com dedos longos e firmes.
— Seu estado é grave? Sara estava zonza quando a
coloquei no automóvel.
Apesar de achar que não lhe devia explicações, ele se
viu dizendo:
— Suspeito que sofreu uma leve concussão, e deve ter
machucado o ombro e o braço. Mas só saberemos ao certo
pelas radiografias. De qualquer modo, nós a manteremos
aqui esta noite, em observação.
— Como pode uma criança estar sozinha na rua no
meio da noite?!
Boa pergunta. Os dedos dela pareciam queimar seu
braço.
— E melhor você aguardar aqui. A polícia lhe fará
algumas perguntas.
Jamila o soltou.
— Como é seu nome?
— Jamila Ferguson.
Lógico. De modo algum seria um nome comum, como
Linda ou Anne. Tinha de ser um bem exótico, para
combinar com sua figura.
— Com certeza vão querer testar o nível alcoólico em
seu sangue.
Jamila engoliu em seco, desapontada, embora
reconhecesse que não devia esperar outra coisa.
— Não estive bebendo.

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Alexander tratou de se afastar antes que fizesse algo
estúpido, como puxá-la contra o próprio corpo e enterrar a
boca naqueles lábios vermelhos e sedutores...
Aquilo devia ser exaustão, aquela inexplicável atração
pela maluca que atropelou uma criança.
Na ala dos médicos, serviu-se de uma xícara de café.
Ficara tarde para retornar ao jantar beneficente. Era
uma pena. Planejava passar a noite na companhia do maior
número possível de diretores da Fundação Thurston.
Mas fosse o que fosse que fizesse o restante da noite,
decerto não iria ficar pensando em Jamila Ferguson e
naquela vontade indômita de tomá-la nos braços e beijá-la.
Concussão. Nada animador.
Jamila estremeceu ao lembrar a terrível sensação do
impacto. Sara devia ter sido atirada ao chão e batido a
cabeça. Chegou a diminuir a velocidade, convencida de que
vira algo. Se tivesse ouvido o próprio coração e parado...
Caminhava de um lado para o outro na sala de espera,
inquieta. Onde aquele médico se metera? Será que
deixaram Sara só? Uma criança ficaria assustadíssima,
vendo-se sozinha na enfermaria de um hospital.
— Desculpe-me, senhorita...
Jamila de repente se viu diante de um policial
uniformizado.
— Você é a motorista cujo carro atropelou Sara Miller?
— Ela engoliu em seco e assentiu. O policial indicou o sofá.
— Por favor, queira sentar-se. Aceita uma xícara de
café? — Dez minutos depois, Jamila tinha fornecido ao
policial todos os detalhes do acidente.
A pedido dele, uma enfermeira veio coletar um pouco
de seu sangue para o exame de teor alcoólico. Agradeceu
aos céus por não ter tocado naquela taça de champanhe.
Após ser liberada, um homem com cerca de trinta e
cinco anos chegou apressado. Uma enfermeira o seguia.
— Sou o pai de Sara Miller. Preciso vê-la. Onde ela
está?

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— Tenha calma, senhor. Sua filha está bem. Logo
poderá vê-la. — Jamila testemunhou a enorme preocupação
em seus olhos cinzentos.
— Posso falar com o dr. Kent?
— Ele é nosso pediatra. Sara está em boas mãos,
senhor. — Quando a enfermeira se afastou, Jamila
aproximou-se do aflito pai de Sara.
— Sr. Miller? Sou Jamila Ferguson. Sou a motorista do
carro.
— O que minha filha estava fazendo sozinha na rua a
essa hora da noite, quando devia estar na cama?
— Sara tentava encontrar um gato chamado Squiggles.
Temia que ele se molhasse e pegasse uma pneumonia.
— Aquele gato miserável! — Ele afundou o corpo no
sofá. — Pneumonia... De onde Sara tirou essa idéia? Ah, a
mãe dela... pegou um resfriado, que de repente virou uma
pneumonia. Morreu aqui mesmo, neste hospital, há seis
meses.

Capítulo II

Vinte minutos tentando relaxar na ala dos médicos não


diminuiu nem um pouco a indignação de Alexander contra
Jamila Ferguson.
Foram quarenta minutos até que ele deixasse o
hospital, outros quinze, até que encontrasse a residência
de Sara Miller, uma casa antiga, de três andares,
convertida em um prédio de apartamentos. No local havia
uma riqueza de cantos escondidos, onde um gato poderia
se esconder.
Mas ali não havia sinal de derrapagens no solo ou algo
que pudesse atestar o acidente. Apesar da própria
convicção de que a mulher que dirigia o carro era uma
inconsequente, Alexander tinha de admitir que a natureza

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dos ferimentos de Sara indicavam que, no momento do
impacto, ela não estava em alta velocidade.
Três da manhã. Aquela hora, Jamila Ferguson devia
estar dormindo, esquecida da promessa que fizera a Sara.
Alexander se perguntou se havia alguma chance de ele
encontrar Squiggles. Talvez sim, talvez não, mas se o
encontrasse, pediria a Paula que ficasse com ele, por um
ou dois dia. Sua irmã não ficaria muito feliz, mas com
certeza se prontificaria a ajudar.
Teria tentado Diana, que tinha dois filhos pequenos e
nenhum animal de estimação. Isso se ela não fosse viajar
para a Europa no dia seguinte.
Admitiu, constrangido, que aquilo era um alívio. Ele e
Diana vinham passando bastante tempo juntos,
trabalhando nos números do futuro centro de tratamento
da diabetes juvenil. Costumavam almoçar e às vezes jantar
em seu luxuoso apartamento. Mas não passava disso. Foi
então que, de repente, no último sábado...
Considerava-a como uma amiga querida, e não
esperava encontrá-la em seus braços, esperando por
intimidade. Diana era uma mulher adorável, mas Alexander
não estava pronto para aquele tipo de relacionamento.
Precisava pensar melhor no que queria com ela.
Aquela providencial viagem à Europa lhe daria o
espaço de que necessitava.
Tinha plena consciência de que Diana daria uma
esposa perfeita. Era calma, calorosa, inteligente e do tipo
maternal. Quando retornasse da viagem, Alexander
pretendia dar o próximo passo e torná-la sua amante. E,
em poucos meses, acabaria por lhe propor casamento.
Enquanto isso, ele conseguiu que Dennis, seu cunhado,
preparasse as planilhas do futuro centro de tratamento, e
também finalizasse as especificações da construção do
prédio.
Mas precisava tentar encontrar aquele gato. Teria de
arrumar um lar para ele, no qual Sara pudesse visitá-lo,
pelo menos até que aceitasse o fato de seu senhorio ser

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contra animais. Ou então, que seu pai concordasse em se
mudar para outro local, onde animais eram permitidos.
Estacionou em uma vaga perto do prédio onde os
Miller moravam e procurou esquecer o cansaço. Pegou a
lanterna do porta-luvas e o guarda-chuva do banco
traseiro. A chuva não dava trégua.
— Bichano, bichano? — chamou, abaixando-se para
olhar sob os automóveis.
Em seguida, encaminhou-se até um beco atrás do
edifício. O pai da garota era quem devia estar fazendo
aquilo, mas pelo jeito ele continuava bastante abalado com
a viuvez, que se dera seis meses atrás, para pensar em
socorrer a filha.
Alexander se solidarizava com sua dor, mas o sr. Miller
tinha de entender que Sara devia ser sua principal
prioridade.
Era óbvio seu amor pela filha, Wayne Miller, porém,
pelo jeito, ele não lhe dava atenção suficiente. A sra. Davis,
do primeiro andar, devia ser mais conveniente do que
competente.
Examinou a área atrás do prédio.
— Bichano?
Tudo indicava, que o gato não queria ser encontrado.
Iluminou o pulso para verificar as horas. Nem pensar
em voltar para o jantar beneficente. Mas era até bom.
Naquela noite, se levasse Diana para casa, ela sem dúvida
o convidaria para entrar. Claro que Alexander queria aquilo
tanto quanto ela, mas não naquela noite. Não ainda.
Olhou para o portão dos fundos do prédio vizinho e
tentou se proteger com o guarda-chuva da rajada de vento
avançando em direção ao espaço entre os dois edifícios.
Pisou em cheio em um buraco.
O tranco o fez largar a lanterna. Ao se abaixar no
escuro e tentar encontrá-la, sentiu a água invadir seus
sapatos. Algo se moveu adiante.
A lanterna se apagou e não acendeu mais. Pilhas
molhadas. Guardou-a no bolso e estendeu a mão. No

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escuro, seus dedos se fecharam ao tocarem em algo suave
e úmido.
Uma mulher.
Ela se desequilibrou e colidiu com seu peito, ofegante.
Alexander logo reconheceu aquele perfume sutil, que devia
ter custado uma pequena fortuna. Um aroma designado a
abalar os sentidos de um homem.
— Sou eu, o dr. Kent, Jamila.
Naquele exato instante, alguém acendeu uma luz no
segundo andar do edifício ao lado.
— Veio procurar o gato de Sara, doutor?
— E o que mais eu estaria fazendo aqui? Você está
encharcada. Venha se proteger debaixo de meu guarda-
chuva.
Ela deu de ombros.
— A chuva não me incomoda. Vim disposta a encontrar
esse gato. Ele deve estar por aqui, em algum lugar. Eu
trouxe uma lata de atum para atraí-lo, mas você me fez
derrubá-la.
Alexander tornou a pegar a lanterna e sacudiu-a. A luz
retornou e iluminou Jamila, abaixada a seus pés.
— Aqui está — disse ela.
Seus cabelos castanhos escureceram, molhados pela
chuva, e seus cílios espessos pareciam muito longos. A
blusa vermelha, molhada, colava-se aos contornos sensuais
de seus seios fartos.
Em uma das mãos, segurava a lata de atum aberta.
— O dono da loja de conveniência a abriu para mim —
explicou. — Não carrego um abridor de latas comigo.
— Nem um guarda-chuva. — Ela não respondeu.
— Squiggles! Aqui, gatinho!
Quando Alexander fez menção de segui-la, Jamila o
impediu:
— E melhor nos separarmos. Cobriremos uma área
maior, e Squiggles não se assustará tanto diante de uma
pessoa apenas.

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Alexander não sabia se aquilo fazia sentido. Sabia
apenas que não era bom sinal o fato de incomodá-lo ver-se
indo na direção oposta da mulher da qual ele nem sequer
gostava.
— Leve o guarda-chuva.
— Não. É muita coisa para carregar. Dá para enxergar,
mesmo sem a lanterna. Basta minha visão se acostumar ao
escuro.
— Está bem. Fique atenta.
Minutos depois, Alexander a encontrou agachada,
estendendo a lata de atum.
— Ele está aqui, doutor. Fique onde está. Não quero
que o assuste. Venha comer, gatinho. Veja o que a titia
trouxe para você.
O gato se aproximou, cauteloso, e Alexander se
perguntou se a voz de Jamila causava em Squiggles o
mesmo efeito encantador que causava nele.
No entanto, fosse o que fosse, o efeito relaxante da
entonação dela ou o atum, fez com que Squiggles chegasse
perto o bastante para que Jamila, com toda a habilidade, o
pegasse no colo. Alexander viu-a erguer a barra da saia e
com ela enrolar o animalzinho.
Calculou que ela devia ter cerca de vinte e cinco anos.
Não era má pessoa, apenas um pouco irresponsável.
— É melhor sairmos da chuva. Venha. — Ele
entendendo-lhe a mão.
O gato de repente se assustou e se contorceu nos
braços dela, querendo se libertar. Alexander largou o
guarda-chuva e o agarrou. Foi quando seus braços se
entrelaçaram com os de Jamila e ele sentiu a suavidade dos
seios dela contra si.
Notou o sobressalto dela, sentiu-a cambalear. Ao
ampará-la, deixou a lanterna cair de novo.
— Você está bem?
— Estou. É melhor irmos embora, antes que ele fuja.
Foi então que Alexander recuou, meio consternado,
sem a menor vontade de soltá-la.

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— Venha. Vamos pegar meu carro. — E tentou se
ocupar recolhendo do chão a lanterna e o guarda-chuva. —
Minha irmã ficará com Squiggles.
— Prefiro eu mesma cuidar dele, se não se importa.
Este danadinho passou a ser minha responsabilidade.
Ao contornarem o prédio, as luzes da rua acabaram
com a necessidade da claridade da lanterna. Assim,
Alexander a desligou.
— Como quiser. Tem ração para gatos em casa?
— Não, mas posso comprar. Há uma loja de
conveniência em meu caminho. Fica aberta a noite toda.
Ali está meu carro. — Jamila passou o gato para o outro
braço e procurou pelas chaves dentro do bolso.
— Não vai conseguir dirigir e segurar o gato ao mesmo
tempo. Não seria seguro. Alguns animais entram em pânico
quando presos:
— Eu darei um jeito.
— Meu automóvel está estacionado aqui perto. Será
mais prático vir comigo.
— Obrigada, doutor, mas prefiro ir para minha casa.
Moro logo depois de Ballard Bridge.
— Você precisa se secar e tomar algo quente. Caso
contrário...
— Fique tranquilo, não sou mais criança e sei me
cuidar. Você, pelo visto, está acostumado a ditar ordens às
pessoas, dr. Kent, mas não permito mais que me façam
isso.
Alexander abriu a porta do lado do passageiro de seu
BMW.
— Em um instante nós teremos ar quente.
O gato, nos braços de Jamila começou a miar, e ela
decidiu aceitar a carona.
— Só mais um pouco, Squiggles... Estamos chegando,
meu bem. Você se sentirá melhor quando chegarmos e eu o
enxugar. Ah, droga! Temos de voltar. Esqueci a lata de
atum.
— Como? Voltar até lá?

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— Não demorará. Não gosto de deixar lixo nas ruas...
— disse ela. — Entre na primeira à direita para fazer o
retorno.
Alexander suspirou. Estar fechado dentro do veículo
com ela era o pior dos martírios.
Seguiu em direção à Ballard Bridge. Devia ter usado o
telefone celular para chamar um táxi para Jamila. Devia
ter...
— Você perdeu o retorno! Agora terá de ir até a Vinte e
Oito para fazer a volta.
— Esqueça a lata de atum. Vou levá-la para casa.
— Mas eu...
— Será que não é capaz de manter uma conversa sem
argumentar, Jamila?
— Jamie, por favor. Todos me chamam de Jamie.
Por algum motivo louco, Alexander sentiu vontade de
parar o carro e sacudi-la. Só podia ser química. Ela não
era, de modo algum, seu tipo ideal de mulher, mas
conseguia mexer com seus hormônios, embora fosse tudo
aquilo que Alexander repudiava numa garota:
inconsequente, independente e impulsiva.
Precisava acabar com aquilo. Era um homem feito, não
um adolescente, portanto, capaz de lidar com aquela
reação insana despertada por alguém tão inadequado.
— Não se preocupe com a lata. Mais tarde eu passarei
para recolhê-la.
— Obrigada. — Ela virou-se para a frente e afundou-se
no assento macio. — O policial para quem dei meu
depoimento falou que você planejava conversar com uma
assistente social a respeito de Sara.
— É mesmo?
Aquilo deveria ser uma informação confidencial.
Alexander avistou uma loja de conveniência adiante,
daquelas que ficavam abertas vinte e quatro horas. Se não
parasse ali para comprar ração e areia, acabaria tendo de
fazê-lo mais tarde, e seria obrigado a levar para Jamila. Na
certa então ela teria tomado banho e o receberia à porta

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usando um roupão colorido e transparente, amarrado à
cintura e com um amplo decote, deixando à mostra a curva
tentadora dos seios, só para atiçar sua imaginação, que já
era bastante fértil, sem precisar de ajuda.
Girou o volante e estacionou diante da loja.
— Vou comprar ração e areia.
— Deixe que eu compro.
— Não. Cuide dele.
No colo dela, Squiggles levantou a cabeça e miou.
— Está bem, mas eu faço questão de pagar. Onde está
minha bolsa? Não! Ficou em meu carro!
— Deixe. Será meu donativo à causa de ajuda a animais
desamparados.
Jamila sorriu, mas Alexander não correspondeu. Abriu
a porta e saiu. Tirou o paletó do lado de fora.
— Use isto. — Entregou-o a ela e se foi.
Squiggles tinha se acalmado e podia até estar
dormindo. Olhando para fora, pelo vidro do carro, Jamila
avistou o dr. Kent dentro da loja. Naquele instante ele
parava perto do balcão. Pagou a despesa com cartão de
crédito, em seguida se dirigiu à saída.
Acomodou as compras no banco traseiro, e sentou-se
ao volante.
— Obrigada pelo paletó, mas não adiantaria muito usá-
lo sobre estas roupas molhadas. Tomarei um banho quente
quando chegar.
Alexander a fitou, severo. Jamila sentiu o rosto arder.
— Use-o para enrolar o gato. Vejo que está tendo
dificuldade em mantê-lo preso.
Jamila ficou grata quando ele desviou o olhar e ligou o
motor. Momentos depois, atravessavam a Ballard Bridge, e
ela lhe indicou o caminho a tomar.
Alexander parou diante de uma casinha térrea
construída perto de um armazém e de um estaleiro.
— Obrigada. — Jamila segurou Squiggles com firmeza
antes de abrir a porta. — Pretendo ir visitar Sara pela
manhã e...

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Mas Alexander já deixara o veículo e se aproximava
para abrir-lhe a porta, o guarda-chuva aberto.
— Pode deixar. Um pouco mais de água não me fará
mal.
— Esqueça o hospital. Direi a Sara que o gato foi
encontrado, que está bem e em segurança. Ligarei quando
conseguir alguém que o adote.
Jamila abriu a boca para protestar, mas demorou para
conseguir se expressar:
— Vou ficar com ele, doutor. Sara poderá vir visitá-lo
sempre que desejar.
— Esqueça. Você logo se cansará de ambos.
— Como assim? Acredita que eu seria capaz de
abandonar Squiggles?!
— O que quer na verdade é aliviar sua consciência
pesada, mas dentro em pouco, Sara e o gato se tornarão
um fardo para você. Aquela criança não precisa de
ninguém lhe fazendo promessas que não pretende cumprir.
— Com que direito...
— As chaves. Entre antes que Squiggles escape. Irei
apanhar sua bolsa em seguida.
— Não é necessário. A bolsa está segura lá.
— Pare de argumentar.
— Pare você de tentar dizer o que eu devo fazer! Não
sei aonde quer chegar com essa atitude condescendente.
Não preciso de sua ajuda para nada. E saiba que, goste ou
não, irei visitar Sara!
Enquanto ela enfiava a chave na fechadura, Squiggles
de repente começou a se agitar, conseguindo pular para o
chão. Alexander de imediato o capturou.
— Abra logo essa porta!
Quando a porta abriu, segurando o gato com firmeza,
Alexander empurrou Jamila para dentro, e em seguida
fechou a porta atrás deles.
— Ele a arranhou?
— Não foi nada.

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— É melhor lavar isso e colocar um pouco de anti-
séptico. — Jamila estava desconcertada e com vontade de
gritar... e de fugir.
— Eu cuidarei disso.
Alexander nada disse. Apenas a olhava, como se ela
fosse uma tola.
— Estou bem, doutor. Pode soltar o gato. Aqui dentro
não há por onde ele possa escapar.
Solto, Squiggles de imediato foi se deitar na poltrona
ao lado da mesinha do telefone.
— Onde fica o banheiro? Insisto em tratar de sua mão.
Em seguida, recomendo que tome um banho quente.
Ela o deteve pela camisa quando Alexander fez menção
de se dirigir ao banheiro no corredor. Precisava impedi-lo,
senão, antes que percebesse, ele estaria assumindo o
controle de sua vida.
"Que idéia absurda!"
Mas era como Jamila se sentia, como se aquele, a
partir daquele momento, nada mais pudesse ser como
antes. Jamila sentiu um arrepio percorrê-la.
— Pode ir agora, doutor. Está tudo sob controle.
Obrigada.
— Pelo quê?
— Pela carona, pela ajuda com Squiggles... Mas agora,
vá embora, sim?
Jamila sentia o coração bater nos ouvidos. Os olhos
dele estavam escurecidos e fixos nos seus.
— Como quiser. Boa noite. — Mas Alexander não se
moveu. Jamila também não.
— Se você não me soltar, não poderei ir, srta.
Ferguson. — Jamila ainda o prendia, mas isso não o
impediria de soltar-se, se desejasse. Ela olhou para a
própria mão, que agarrava-o pela camisa.
Que tipo de loucura era aquela? Devia soltá-lo, deixá-lo
ir, mas não queria...
Foi quando Jamila sentiu a mão máscula em seu
pescoço, em suas faces, e soube que ele iria beijá-la.

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Alexander tinha os lábios frios quando se apossaram
dos dela.
Ele nunca antes beijara uma mulher num impulso de
raiva. Por que o fizera? Percebeu que a ira aos poucos se
desvanecia, levada pela súbita onda de desejo, deixando-o
trêmulo e excitado. Tentou pôr fim à carícia, mas não foi
capaz.
Desejava-a. A certeza daquilo explodiu em sua
consciência com a mesma força, a mesma intensidade com
que o instinto fazia pulsar seu baixo-ventre. Tinha de
terminar com aquele tormento, que nem deveria ter
começado.
Tomou o rosto dela entre as mãos e afastou-se,
devagar. Encarou-a por vários minutos, observando o rubor
que lhe coloria a pele, depois os cabelos, as mechas
sedosas descendo-lhe pelos ombros delicados. Jamila
estava linda, feminina e convidativa.
— Nós não podemos... — Jamila lutava para se manter
em pé. O mundo lá fora parecia ter parado. Até mesmo a
chuva dera uma trégua, à espera.
— Lamento, Jamie. Eu não pretendia fazer isso. —
Jamila nada disse.
Alexander deu-lhe as costas e se foi.
Segundos depois, ele bateu na porta. Ela engoliu em
seco.
— Jamie? A ração e a areia do gato. Vai precisar delas.
Jamila girou a maçaneta. O rosto dele voltava a ser severo
como antes, e em seus olhos não havia vestígios do beijo
que acabavam de trocar. Estendeu a mão para a sacola.
Alexander a entregou, sem tocá-la.
— Tenha uma boa noite.
— Boa noite, doutor. Por favor, avise Sara que irei vê-la
pela manhã.

Capítulo III

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Jamila encontrou Sara Miller muito bem disposta,
brincando com uma boneca e sentada no leito do quarto
312.
— Olá, Sara.
A menina de imediato largou a boneca.
— E Squiggles? Você o encontrou? A enfermeira me
disse que alguém foi apanhá-lo. Ele está bem?
— Está ótimo. Gostaria de vê-lo?
— Você o trouxe?
Jamila tirou as alças da sacola dos ombros.
— Está aqui dentro, mas precisamos ter cuidado. Não
podemos deixar que escape.
— Quero ver o gatinho. Prometo ser cuidadosa.
Jamila puxou o zíper e abriu a sacola para que a garota
espiasse dentro.
— Ei, Squiggles, fiquei com tanto medo de que você
adoecesse!
— Ele dormiu em minha cama, após ter devorado uma
vasilha inteira de ração. — Jamila ouviu o som de passos no
corredor. — Está vindo alguém. É melhor escondê-lo.
Ela fechou o zíper da sacola, deixando aberta apenas
uma brecha para a entrada de ar. Rezou para que
Squiggles ficasse quieto. Mal escondeu a sacola sob a
cama, e a porta se abriu para Wayne Miller.
— Papai! — Sara se ergueu, correndo para abraçar o
pai. — Minha amiga encontrou Squiggles! Ele não está com
pneumonia.
Wayne a abraçou.
— Sente-se bem, querida? A cabeça ainda dói muito? —
Sara pegou a mão do pai.
— Ela o trouxe! Jamie, mostre para ele. — Miller largou
sua mão.
— Sara, você sabe que o condomínio não permite a
presença de animais no prédio.
— Mas Squiggles precisa de um lar, caso contrário
ficará doente e morrerá.

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Jamila interveio:
— Sara, meu bem, Squiggles vai morar comigo. Tenho
bastante espaço. Sr. Miller, eu gostaria de poder fazer algo
por sua filha. — Sorriu. — Moro do outro lado da ponte,
cerca de dez minutos de carro de sua residência. Sara
poderá visitar Squiggles sempre que desejar.
— Por favor, papai, diga que sim!
—Tenho referências — disse Jamila. — Moro em Seattle
desde que nasci, e sou artista. Pintora. Meus trabalhos
estão sendo exibidos na galeria Northern Imagens. Poderá
verificar isso com... Um momento. Anotarei para vocês.
Ela tirou da bolsa uma caneta e um cartão de visitas
que Liz insistiu em mandar imprimir.
— Fale com Liz Havers. Ela é proprietária da galeria
onde minhas telas estão expostas. Liz me conhece desde
que eu tinha doze anos.
— Não é necessário, srta. Ferguson. Eu soube, pela
polícia, que você não teve culpa, que foi Sara que...
— Mesmo assim, insisto em ajudar.
— Por favor, papai!
O sr. Miller parecia pouco à vontade.
— Bem... eu não vou precisar de suas referências...
Jamila se perguntou se o sr. Miller contratara a baby-
sitter de Sara com a mesma falta de cuidado.
— Quando poderei ir visitar Squiggles? — Sara quis
saber.
— Na quarta-feira, após a escola, filha. Tenho uma
reunião de trabalho, e como é folga da sra. Davis...
— Posso ver Squiggles outra vez, Jamie? — Jamila
pegou a sacola e abriu o zíper.
— Squiggles, você veio me visitar! Estou tão feliz... —
Sara acariciou o animalzinho, que de imediato se pôs a
ronronar.
— Você não tem obrigação de fazer isso. É muita
gentileza da sua parte, senhorita. Mas confesso que será
de grande auxílio. Trabalho à noite, e estou em casa
quando Sara sai para a escola, e também quando ela volta.

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A sra. Davis não se dispõe a cuidar dela mais do que o que
foi combinado. Quando tenho de me ausentar fora do
horário escolar, é difícil encontrar alguém que fique com
minha menina.
— Será um prazer, sr. Miller. — Jamila tornou a escutar
passos no corredor. — É melhor escondermos o gato.
Tentou pegá-lo, mas Squiggles foi mais rápido e correu
para se esconder sob a cama ao lado.
— Sara? — disse alguém da porta. — O dr. Kent veio
vê-la. Sara estava de quatro no chão, espiando sob o leito.
Wayne aguardava, aflito.
— Olá, Sara. Sr. Miller... — Então, Alexander a
reconheceu. — Srta. Ferguson...
— Dr. Kent...
— Srta. Ferguson, por favor, aguarde lá fora enquanto
eu examino Sara.
A enfermeira puxou uma cortina e impeliu Sara para a
cama. O pai da garota foi com ela.
Onde será que Squiggles se metera? Jamila não
conseguiu vê-lo, e passou a vigiar a entrada, para o caso de
ele tentar escapar para o corredor.
— Srta. Ferguson? Saia, por favor.
— Eu preciso... encontrar o gato.
As vozes atrás da cortina silenciaram.
— Você disse "gato"? Está me dizendo que trouxe um
gato para o hospital?
— Vou encontrá-lo, não se preocupe. — E tornou a se
abaixar, localizando Squiggles escondido num canto.
Com toda a cautela, Jamila colocou a sacola de lado e
avançou sob o leito até que conseguiu pegá-lo e colocá-lo
dentro da sacola. Em seguida, pôs-se de pé.
A enfermeira se aproximou dela.
— A senhorita devia saber que não pode trazer animais
para um hospital.
— Desculpe-me, eu...
— Pode deixar, enfermeira — o dr. Kent interveio. — A
srta. Ferguson já está de saída.

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Quando ele sorriu para a enfermeira, Jamila a viu
relaxar.
— Vou deixá-lo no carro. Por favor, doutor, diga a Sara
e a seu pai que voltarei em um minuto.
— Direi a ela que você lhe deixou um beijo. —
Alexander tomou-lhe o cotovelo. — Eu a acompanharei até
a saída.
Jamila tentou se soltar, sem êxito.
— Largue-me! Quero me despedir de Sara!
Alexander a fez sair do quarto e quase a arrastou pelo
corredor. Jamila ficou livre dele apenas quando alcançaram
o hall dos elevadores. Esfregou o braço, certa de que
ganharia um hematoma.
— Peço perdão, pelo gato. Eu só queria tranquilizar
Sara.
— Você é mesmo irresponsável. Devia saber que há
crianças com alergia internadas aqui. Vá para casa, srta.
Ferguson, e tente ficar longe de encrencas. E, acima de
tudo, não me crie mais problemas! — Alexander acionou o
botão do elevador.
— Como é seu nome? — de repente ela perguntou. —
Dr. A. M. Kent... "A" de quê?
— De Alexander. Por que quer saber?
Os lábios sedutores curvaram-se em um sorriso
travesso.
— Por nada. Só que acho estranho tratá-lo por dr. Kent,
após o modo como nos beijamos.
Quando as portas do elevador se abriram, Jamila
estendeu a mão e tocou os lábios dele com a ponta dos
dedos.
— Tenha um bom dia, Alex. Foi um beijo muito
especial.
Alexander se encaminhou, junto com Diana, para o
balcão de embarque da primeira classe da American
Airlines.
— Por favor, envie aqueles papéis logo que for possível
— ela pediu.

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— Sem dúvida. Dennis prometeu entregá-los na sexta-
feira.
— Envie por fax. Quero que a diretoria tenha esses
números nas mãos o quanto antes.
Espero que já tenham uma decisão formada quando eu
chegar.
— Seria ótimo. — Alexander parou o carrinho com a
bagagem atrás do senhor que era o primeiro da fila e virou-
se para Diana. — Aproveite bem. Sei que é uma viagem de
negócios, mas tire algum tempo para descansar.
Ela sorriu.
— Estarei em Veneza, lembra? Bem, não há razão para
aguardar até que eu entre no avião, Alex. Seguirei para o
salão de embarque assim que fizer o check-in.
Ele inclinou-se para beijá-la no rosto.
— Cuide-se, Diana. — Ela pegou-lhe a mão.
— Tire uma semana de folga e vá pescar.
— E uma boa sugestão. Na verdade, estive pensando
em convidá-la para um fim de semana agradável, quando
você voltar...
Alexander dirigiu de volta do aeroporto em meio a uma
versão de domingo da hora do rush. Notou as famílias
dentro dos automóveis indo em direção a Seattle, casais
viajando no banco da frente e crianças no de trás.
Lembrou-se do condomínio onde morava, e
experimentou uma estranha aversão por voltar para casa.
Encontraria o apartamento vazio e silencioso. Naquele
instante, aquele era o último lugar no mundo onde gostaria
de estar.
Oito anos atrás, após o término da residência no
hospital e quando ele se tornou um pediatra especializado
em primeiros-socorros, escolheu com cuidado o lugar onde
morar. Pretendia comprar uma casa nos arredores da
cidade, mas acabou optando pelo apartamento. Iria viver
ali por pouco tempo, já que pretendia se casar e ter filhos.
Contudo, antes disso, Alexander queria mais alguns
anos de prática como especialista e influência suficiente

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para obter o capital necessário para criar seu centro de
tratamento de diabetes infantil.
Nenhum banco lhe emprestaria a quantia de que
precisava. O dinheiro teria de vir da caridade, particular ou
pública. Foi por isso que teve de aprender a conviver e a
tolerar aqueles infindáveis jantares, bailes e demais
eventos beneficentes de caridade.
Paula, sua irmã, se queixava sempre por ele nunca ir
visitá-la, acusando-o de aparecer em casa só quando
precisava discutir negócios com Dennis. Alexander sabia
que era verdade, mas tinha de prosseguir, agora que
estava tão perto de realizar seu sonho.
Havia alguns meses, uma grande indústria de Seattle
concordara em doar o terreno para Alexander. E teve muita
sorte quando conheceu Diana Thurston, membro mais novo
da diretoria da Fundação Thurston.
Em menina, Diana fora diagnosticada como sendo
diabética. Aquela mulher calorosa e bondosa podia
entender que, toda vez que Alexander tratava de uma
criança portadora da doença, era renovada a promessa que
fez de criar um centro de tratamento de diabetes infantil,
um lugar onde os pequenos pudessem aprender como lidar
com a própria enfermidade, e assim evitar o tipo de
negligência que levara à morte o irmão do próprio
Alexander.
Durante os últimos quatro meses, cada minuto livre
que tinha, Alexander dedicava ao cálculo dos números e
figuras que os membros da diretoria da Fundação Thurston
precisavam ter em mãos antes de qualquer decisão.
Na realidade, jamais viu Diana como mulher. Os dois
eram amigos, e Alexander valorizava a calorosa afeição
que se estabelecera entre eles.
Foi então que, uma semana atrás, ele a deixou em casa
após uma longa reunião com a diretoria da Thurston, e
Diana o convidou para entrar. Alexander aceitou. De
repente viu-se com um drinque na mão, e sendo abraçado

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por ela. "Eu gostaria que você passasse a noite aqui, Alex",
foi o que Diana lhe disse. Ele ficou atônito.
Para ser sincero, notava a afeição nos olhos dela, mas
não pensava em sexo. Não com Diana. Não que ela não
fosse atraente, pois era, mas não existia espaço em sua
vida para mais nada além do trabalho.
Seu pager soou antes que pudesse responder se
aceitava ou não o convite. Em seguida, deixou Diana
dizendo: "Sinto muito... Eu gostaria de ficar", sem saber ao
certo se aquilo era verdade. Teria de ponderar a respeito e
tentar vê-la como mulher, em vez da colega de trabalho
dedicada que partilhava seus sonhos.
Devia estar sentindo falta dela, decidiu ao deixar a
estrada e entrar na cidade. Talvez fosse a causa daquela
estranha relutância em voltar ao lar.
Estacionou na garagem e entrou no apartamento. Fez
café e serviu-se de uma xícara. Passou a saboreá-lo
enquanto ouvia as mensagens na secretária eletrônica.
Havia apenas uma, de sua mãe: "Alex, me ligue. Estou
esperando".
Discou para Nova York e ouviu uma voz mecânica
avisar que o número se encontrava fora de serviço. Fora do
gancho. Não era a primeira vez que sua mãe fazia isso. Deu
de ombros, sabendo que, quando quisesse, ela tornaria a
ligar. Nesse meio tempo, tinha muito trabalho a fazer.
Alexander estudou os papéis espalhados sobre a mesa:
estimativas, número de pacientes, custos e rendimentos.
Ligou o computador e mergulhou no trabalho.
Após três horas, notou que desenvolvera uma dor de
cabeça. No momento em que engoliu um analgésico e
pegou mais uma xícara de café, a impressora terminou seu
serviço. Juntou ao restante dos documentos, colocou
dentro de um envelope e dirigiu-se à garagem.
Entregaria tudo a Dennis ainda naquela noite. Isso lhe
daria tempo extra pela manhã para conversar com a
assistente social.

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Ao se despedir de Sara, a menina lhe confidenciou que
pretendia visitar a Jamila e Squiggles após a escola. Wayne
Miller devia pensar duas vezes antes de permitir que a
filha frequentasse a casa de estranhos.
Ao dirigir pelas ruas escuras de Seattle, Alexander
tentava se organizar. Procuraria a assistente social e
pediria que investigasse a pessoa que cuidava de Sara na
ausência do pai. Que também investigasse Jamila
Ferguson, e por fim que verificasse se o gato fora vacinado.
Encontrou a casa da irmã às escuras. Nenhum carro na
garagem. Eles poderiam estar de volta em cinco minutos
ou em cinco horas. Usou a própria chave para abrir a porta
e entrar. Colocou os documentos sobre a escrivaninha,
onde Dennis os encontraria com facilidade. Voltaria para o
apartamento em seguida, onde passaria uma noite
tranquila, lendo um bom livro.
Saiu com o automóvel para a rua e sinalizou que viraria
à esquerda. Porém, mudou de ideia e, em vez disso, virou à
direita.
Sara planejava visitar Jamila na quarta-feira à tarde.
Mas, até lá, talvez a assistente social já a tivesse
investigado. Ou não. Alexander não pretendia arriscar.

Capítulo IV

Alexander estacionou e, quando apagou os faróis, a


casa de Jamila Ferguson desapareceu entre as sombras do
armazém abandonado. Não havia luz na entrada, e
nenhuma luminosidade se infiltrava através das duas
pequenas janelas. Se não fosse pelo automóvel antigo
estacionando, qualquer um julgaria que não tinha ninguém
ali.
Ela teria ido dormir? Às oito e meia? Uma mulher tão
vibrante, tão cheia de energia quanto ela, não dormiria
cedo.

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Não encontrou a campainha. Não havia. Bateu na
porta. Nada. Tornou a bater, com mais insistência, e
pareceu-lhe ter ouvido música tocando lá dentro.
Olhou em torno. Que lugar sombrio... Por que Jamila
teria escolhido morar naquela área industrial, sem
vizinhos, sem luzes na rua, e nem na entrada da casa?
Ergueu a mão para tornar a bater, mas parou-a no ar
quando de repente a porta se abriu. Desejou dizer algo,
mas apenas engoliu em seco. Jamila usava uma espécie de
camisão branco, que alcançava o meio de suas coxas. Sob a
camisa, um legging preto. A claridade a cercava, deixando
seu rosto na sombra.
A música tocando era Chopin, Alexander notou,
romântica e melodiosa.
— Você não costuma verificar quem bate antes de
atender.
Quando Jamila se afastou para o lado, Alexander se
perguntou se aquilo seria um convite. Não tinha certeza,
não dava para ver sua expressão. No entanto, entrou.
— Eu sabia que era você.
— Mas como? Não dá para ver nada na escuridão lá
fora. Jamila se virou.
— Venha, Alex. Conversaremos enquanto trabalho. A
lâmpada da entrada deve ter queimado.
Trabalho?
Ele a seguiu através da sala. Ela caminhava com muita
graça, leve como uma bailarina. Estava ouvindo música.
Seria bailarina e estaria ensaiando para algum papel no
palco que jamais obteria?
— Devia trocá-la.
— Farei isso — prometeu Jamila, ao entrar em um
aposento amplo e bem iluminado.
O lugar era quase desprovido de mobília, e havia várias
telas nas paredes. Sobre um carrinho, viam-se tubos de
tinta, frascos com componentes desconhecidos e pincéis.
Junto à mesa, um cavalete apoiando uma tela grande.

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Alexander avistou outro cavalete perto da porta de
vidro que levava ao pátio, onde havia duas cadeiras de ratã
e uma mesinha de café. Aqueles eram os únicos móveis
convencionais no aposento.
Jamila se aproximou do cavalete ao lado do carrinho e
pegou um pincel.
— Então, você é pintora. — De perfil, ele viu seus olhos
estreitarem enquanto ela analisava algo na tela. Uma
artista. Sim, claro.
— Falando assim, você dá a impressão de acreditar que
ser artista é um crime. — Jamila tocou de leve o pincel na
mistura de tintas em sua paleta. — Tem algo contra os
artistas, Alex?
Alexander não respondeu e, absorta naquilo que fazia,
Jamila pareceu ter esquecido da própria pergunta, além do
fato de que não se encontrava sozinha.
Ali, naquela residência, Sara poderia ir para a cozinha,
e de lá sair para a rua usando a porta dos fundos. E Jamila,
a artista, nem sequer notaria.
Querendo provar aquela teoria, Alexander virou-se e
caminhou em direção a uma porta, que calculou ser a da
cozinha. Passou por ela, olhou para trás e viu Jamila
lidando com as tintas e os pincéis, concentradíssima.
Acendeu a luz da cozinha, iluminando os armários de
fórmica amarela com puxadores de madeira. Abriu a porta
do gabinete sob a pia e encontrou vários frascos contendo
limpadores instantâneos, álcool, limpa-forno e água
sanitária. Ela não o seguiu. Nem devia ter percebido
quando se afastou. Claro que Sara não tomaria nenhum
daqueles produtos, pois já passara da idade de colocar
tudo na boca. Mas a questão era: qualquer coisa que Sara
decidisse fazer naquele lugar, Jamila não se daria conta.
Fechou a porta do armário e verificou dentro das
gavetas. Em uma delas achou uma caixa com lâmpadas.
Apanhou uma.
Será que Jamila notaria se ele trocasse a lâmpada lá de
fora? Decerto que não. Meneou a cabeça. Apenas falar com

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a assistente social não adiantava. Teria de conversar com o
pai de Sara, aconselhá-lo quanto a ele estar prestes a
confiar sua filha a uma mulher tão irresponsável.
Quando retornou trazendo a lâmpada, Jamila franzia a
testa ao examinar a tela, uma das mãos no queixo, a outra
mantendo o pincel no ar. Sua incrível concentração fez
Alexander recordar a mãe, quando ela estudava algum
trecho musical. Houve uma época em que ele a observava,
absorta na própria fascinação, acreditando que de algum
modo sua dedicação irrestrita criaria algo mágico, uma
música mágica, quando soltasse a voz.
Passou por Jamila sem fazer o menor esforço para ser
silencioso.
Com a porta aberta, a luz de dentro iluminou o lado de
fora. Substituiu a lâmpada, e de repente uma claridade
repentina iluminou a frente da casa, a escada de cinco
degraus sem corrimão, algo em desacordo com a lei. Uma
criança corria o risco de se machucar caindo dali.
E quanto àquele carro velho? Quando foi a última vez
que ela verificou os freios? Será que aquela cabeça-de-
vento pretendia transportar Sara naquela sucata?
— Alex? — Ela o chamou da soleira, os cabelos
castanhos captando a luminosidade de fora, tornando-se
quase dourados. Sorria. — Podemos conversar agora...
E Jamila desapareceu dentro da residência.
Alexander a seguiu, irritado. Teria sido melhor
confrontá-la pela manhã a caminho da clínica, à luz do dia.
Algo lhe aconteceu quando ela veio abrir-lhe a porta
em meio a um transe artístico. Ele perdeu o controle da
situação e, agora, mais uma vez, a seguia, observando o
modo como a camisa larga insinuava o movimento de seus
quadris. Era uma moça esguia, quase magra, embora, ao se
mover, suas curvas sensuais...
"Pare com isso!"
Seguiu-a até a cozinha, preocupado.
— Aceita um pouco de chá?

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— Não, obrigado. Vamos direto ao assunto. — Jamila se
virou para a pia.
— Farei chá suficiente para dois, caso mude de ideia.
Ela encheu a chaleira com água e depois acendeu o
fogão. Pelo menos era um fogão elétrico. Gás seria mais um
elemento perigoso nas mãos dela.
Apanhou uma chaleira de sob a pia e colocou dois
saquinhos quando a água ferveu.
Jamila lhe lançou um sorriso cativante, que Alexander
se recusou a retribuir.
— Não quer se sentar?
Ficar sentado perto dela não seria boa ideia, concluiu.
Jamila de repente começou a desabotoar a camisa, que
em seguida foi descartada. Alexander engoliu em seco, mas
logo respirou aliviado. Sob a camisa enorme ela usava um
collant preto, que aderia aos seios fartos como se fosse
uma segunda pele.
— Costuma usar essa camisa para pintar?
— Sim, como um avental, para proteger minhas roupas.
— Alexander puxou outra cadeira e se acomodou. As coisas
não estavam acontecendo como previra.
— Precisamos conversar... a respeito de Sara.
— Só um instante. Vou servir o chá.
Jamila tirou do armário uma caneca de louça. A visão
de suas nádegas firmes e arredondadas ameaçou levá-lo à
loucura. "Cristo!"
— Vou aceitar um pouco de chá — Alexander decidiu.
Precisava ocupar as mãos, caso contrário não responderia
por si. E, mais do que tudo, precisava sair dali.
Cinco minutos, prometeu a si mesmo. Nem um segundo
a mais.
— E Sara? Como vai? — ela quis saber, após servir
duas xícaras de chá e estender-lhe uma.
— Ela me preocupa. — Alexander sentiu que ainda
mantinha a lâmpada queimada no bolso. Tirou-a e colocou
sobre a mesa.

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— Você trocou a lâmpada queimada... — Jamila
gargalhou. — Bem, estava dizendo que Sara o preocupa.
Por quê? Algo errado com ela? Está doente?
— Não. Estava muitíssimo saudável quando lhe dei
alta, esta manhã. Acontece que a menina só tem sete anos,
e seu pai não se concentra muito na seleção das pessoas
que escolhe para cuidar da filha.
— Refere-se à vizinha do primeiro andar? Também me
pergunto por que Sara estava sozinha na rua, aquela noite.
— Mas não vim aqui para falar sobre a sra. Davis.—
Alexander a viu arregalar os olhos verdes, cada vez mais
brilhantes. — Você a convidou para vir visitá-la, não foi?
— Sim. Sara está ansiosa para ver Squiggles. — Ela
tornou a rir. — Squiggles... Que nome estranho para um
gato, não acha?
— Que dia ela virá?
— Na quarta-feira, após a aula. — Alexander pigarreou.
— O sr. Miller não deveria permitir que sua filha
frequente a casa de pessoas que ele mal conhece e das
quais nada sabe. — Após ter dito aquilo, sentiu uma ponta
de arrependimento, porém, a ignorou. Afinal, não dava a
mínima para a possibilidade de estar ferindo os
sentimentos de Jamila Ferguson.
Ela recostou-se no espaldar, abraçando a si mesma.
— Veio aqui para me investigar? Para ver como vivo?
Se sou adequada?
— Mais ou menos isso.
Jamila empurrou a cadeira para trás e se levantou.
— Vai querer ver minhas referências?
Ele também se ergueu, encarando-a, a mesa entre os
dois.
— Mantém produtos químicos perigosos no armário
sob a pia, e há cinco degraus na varanda da frente, sem
corrimão, o que é contra a lei. E o estúdio onde trabalha
contém substâncias tóxicas. Onde pretende receber Sara
quando ela vier vê-la? Com o que ela se ocupará quando

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você ficar inspirada, começar a pintar e esquecer por
completo de sua existência?
— Não estou acreditando. Acha que trarei Sara para cá
para negligenciá-la? — Jamila tornou a abraçar-se, o olhar
inocente como o de uma criança.
— Você me fez entrar aqui e foi pintar, esquecendo-se
de mim. Eu poderia ter feito qualquer coisa, ter estado em
qualquer lugar, e não seria notado.
— Isso é porque não me dei conta de que tinha de ficar
de olho em você. Quer dizer que quer me proibir de ver
Sara, porque sou pintora e a escada da frente de minha
residência não tem corrimão?
— Sendo para sua segurança e bem-estar, é isso o que
farei. A enfermeira disse que você ofereceu suas
referências ao sr. Miller. Acho que ele devia aceitá-las.
— Quer que eu lhe dê referências?
— Quero.
— Mas não tem o direito de exigi-las, visto que não é o
pai de Sara, nem seu parente próximo. Se decidiu que não
sou apropriada, o problema é seu, não meu. — Jamila
ergueu a cabeça, num desafio. —A menina virá na quarta-
feira, após a escola. Eu a convidei para vir, mas não sem a
permissão do pai. Darei referências apenas a ele.
— Então terá de se entender com a assistente social. —
De repente ele sentiu algo tocar sua perna. Olhou para
baixo e viu o gato amarelo se esfregando nele. — Na certa
não lhe ocorreu levar o gato ao veterinário. É um animal de
rua, e precisa ser vacinado.
— Isso pode esperar até segunda-feira, quando as
clínicas veterinárias atendem em horário normal. A não ser
que queira que eu ligue para um dos números de
emergência no catálogo telefônico.
— Espero que seja um pouco mais responsável e leve
isso a sério.
— Se já falou tudo o que queria, pode ir agora. Ah! Se
fizer questão, envie a conta pelos serviços prestados. — Ela

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sorriu, aumentado ainda mais sua fúria. — Pela troca da
lâmpada.

Capítulo V

— Conheci uma pessoa — Jamila dizia, na manhã


seguinte, entrando no escritório de Liz. — Um homem
muito atraente.
Sentada à escrivaninha, Liz deixou de lado o talão de
cheques e levantou a cabeça para a recém-chegada.
— Diante desse seu entusiasmo, acredito que deva ser
muito atraente.
Jamila se sentia feliz como nunca. Incrível. Não havia
motivo para tanta alegria.
— Estou interessadíssima nele.
Liz assinou o cheque com um floreio.
— Todos esse anos você vem estudando, aprimorando
sua arte, ansiando pelo momento em que será reconhecida,
para poder então viver de sua arte. Justo agora, quando
esse momento chegou, vem aqui e me diz isso... —
Estendeu-lhe a folha.
Jamila a pegou, leu os números e fitou-a, intrigada.
— Você disse oito quadros vendidos, não foi? Mas isto é
muito mais...
— Consegui vender mais três.
O cheque que tinha na mão fora preenchido com uma
quantia inacreditável para Jamila.
— Quais foram esses últimos?
— Tarde de Sexta-feira, O Farol de Port Townsend e
Primavera.
— Sentirei falta deles, sobretudo do Farol.
— Sempre sente falta dos quadros que vende, Jamie.
— Tem razão. Mas não hesitarei em vender todos eles.
Sabe o quanto sonhei, o quanto tenho sonhado com isso,

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desde a primeira vez que vim a sua galeria, quando tinha
doze anos.
Liz foi abraçá-la.
— Sabe que me preocupo com você, Jamie, por isso
fiquei tão surpresa quando chegou aqui falando do homem
que conheceu. Nesses anos, eu poderia tê-la apresentado a
uma dúzia de rapazes excelentes, que tenho certeza, não
iriam desviá-la da sua arte.
— Nada me desviará. Terminei um novo quadro.
Representa um homem voltando para casa em meio a uma
tempestade.
— Ele?
— No início não era para ser, mas agora, sim, é ele.
— Preciso de um café. Trarei chá para você, em
seguida nos sentaremos e irá me falar desse ser especial.
Mas Jamila não conseguia ficar sentada. Foi para a
janela, onde podia ver o sol incandescente anunciando a
chegada da primavera. Virou-se e recostou-se no parapeito.
Liz retornou, trazendo duas xícaras.
— Ele não gosta de mim, mas a química entre nós é
poderosa. Nunca me senti desse jeito antes.
— De que jeito?
— Com a impressão de que estou febril, sentindo
tontura, calafrios... — Riu, emocionada.
— Mas vocês não...
— Eu o beijei. Ou ele me beijou, não tenho certeza.
— Pretende tornar a vê-lo?
— Sim, claro.
Alexander a desejava, estava certa disso, e estaria
certa mesmo antes do beijo ardente que trocaram.
— Mas, Jamie, você mesma confessou que o homem
não gosta de você!
— Porque ainda não me conhece. O antagonismo...
deve ser química. Bem, já vou indo. Preciso levar o gato ao
veterinário. Depois irei para casa.
Jamila alcançava a porta quando Liz acrescentou:
— Cuide-se, ouviu bem?

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— Liz, meu bem, estou com vinte e oito anos, e talvez
seja a única virgem nessa idade em toda Seattle.
Conheci alguém, um rapaz que me encantou, um que
quero ter como amante. Não é uma questão de escolha, ou
de ter cuidado. Acontecerá, eu sinto isso.
— Traga-o aqui. Quero conhecê-lo.
— Farei isso. E fique tranquila, pois não interferirá com
o meu trabalho. Você terá todos os quadros de que precisa,
e antes do programado.
Na quarta-feira, às duas da tarde, entre atender uma
garota de treze anos sofrendo de anorexia e um bebê de
seis meses com sarampo, Alexander recebeu um
telefonema de Diana.
— Conseguiu as planilhas? — ela perguntou, a voz
distorcida, um efeito da transmissão telefônica via satélite.
— Vou apanhar amanhã, com Dennis.
— Ótimo. Gostaria que você as enviasse para mim, via
fax. Tive uma conversa bastante compensadora com vovô.
Mande uma cópia para ele também. Estão perto de uma
decisão, Alex.
— Que bom!
— Nós vamos conseguir nosso centro de tratamento.
Eram sete da noite quando Alexander deixou o
hospital. Pouco depois, estacionava diante da casa de
Jamila.
A lâmpada que ele instalara no domingo à noite
iluminava o corrimão recém instalado na escada, em
ambos os lados dos cinco degraus. Entre o domingo e a
quarta-feira, ela conseguiu que alguém fizesse aquele
serviço. Para que Sara ficasse em segurança? Ou porque
não queria mais ser importunada?
Na verdade, não havia nada de errado com Jamila,
nada que a desabonasse. Em sua residência não existia
nada que pudesse representar algum perigo para Sara.
Subiu devagar os degraus, sua inquietação
aumentando. Segurou o corrimão e se perguntou o que,
afinal, estava fazendo ali.

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O risco na escada da frente deixara de existir. Na
certa, ao verificar a cozinha, descobriria que todos aqueles
produtos químicos, tão nocivos, já não se encontravam
mais sob a pia. No entanto, o perigo que Jamila
representava era mais insidioso. A garotinha, órfã de mãe e
carente de afeto, seria atraída pelo calor e a afeição da
nova amiga, por seu brilho e por sua risada suave. Sara se
sentiria segura com ela, quando na verdade não havia
segurança alguma.
A garota se tornaria dependente dela, até que, certo
dia, Jamila partiria, deixando-a mais só do que nunca.
A porta foi aberta segundos após Alexander ter batido.
Naquela noite, um macacão preto e justo a cobria do
pescoço aos tornozelos.
— Não está pintando?
— No momento, não, mas estive, até agora. — Com os
cabelos puxados para trás, ela parecia muito séria. — Quer
ver o que fiz?
Melhor não, pensou ele, mas a seguiu ao longo do
corredor, forçando-se a manter o olhar fixo em sua nuca,
afastado do balanço gracioso de seus quadris.
Quando parou meio hesitante à entrada do estúdio,
Jamila o pegou pela mão e o conduziu até o cavalete. Lá, o
soltou, recuando um passo.
O que era aquilo? Um oceano, Alexander concluiu, mas
logo viu que não. Eram apenas ondas azuis... algo de tirar o
fôlego, no modo como as linhas e cores tomavam forma.
— Que nome dará ao quadro?
— Ainda não decidi.
— É isso que você faz? Arte abstrata?
— Gosto de pintar pessoas e o mundo no qual vivem.
Mas este trabalho é diferente. Estou com fome, Alex. Não
lembro quando foi a última vez que comi algo. E quanto a
você?
Alexander não respondeu, atento ao quadro. Não sabia
dizer o que exatamente ela pintara, mas ao fitar a tela via
apenas desejo. Precisava ter aquela mulher em sua cama.

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Ou na cama dela. Desse modo, teria mais chances de ir
embora depois.
Afastou-se, parando no meio da sala.
— Fez um belo trabalho, Jamila.
— Acha mesmo?
— Não dá para definir o que ele representa, mas sem
dúvida é forte.
Por que será que o incomodava tanto descobrir que ela
era tão boa artista?
— Obrigada. E então, comeu alguma coisa antes de
vir?
— Não.
— Nesse caso, vou preparar algo para comermos.
Alexander a acompanhou até a cozinha. Um passo,
dois, e ele segurou seu braço.
— Não prepare nada, Jamie. Vamos a um restaurante.
— Qual? — quis saber, a pulsação acelerando sob o
toque dele.
— Um que conheço e do qual gosto muito.
Se Alexander não saísse logo dali, na certa a abraçaria
e provaria seus lábios, saboreando seu beijo, mergulhando
nele até obter aquilo que tanto desejava.
Soltou-a.
— Vista algo adequado e vamos embora.

Capítulo VI

Algo bem feminino, Jamila decidiu, examinando as


roupas no armário. Afinal, seria a primeira vez que ela e
Alexander sairiam juntos.
Tentou adivinhar se ele viera para lhe dar sua
aprovação quanto a Sara ou se, tal qual ela, não conseguia
esquecer aquele beijo.
Pretendia fazer-lhe perguntas durante o jantar,
absorver tudo o que pudesse de Alexander Kent.

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Embora nada tivesse acontecido entre eles, Jamila se
vestiu como uma mulher se vestia para seu amante. Ainda
bem que tomara banho pouco antes de ele chegar.
Procurou no armário até encontrar o corpete de renda
preta. Sobre ele, o vestido de seda verde com uma fenda
lateral, que lhe dava um ar muito sensual.
Colocou brincos de esmeralda e calçou sandálias de
salto alto. Recuou diante do espelho do quarto. O vestido
estava perfeito, mas os cabelos precisava de um toque.
Escovou-os até brilharem, sedosos, alcançando-lhe os
ombros. Passou batom com mãos trêmulas.
Incrível. A atração que sentia por Alexander era tão
forte que a deixava vacilante, a ponto de não conseguir
aplicar a máscara nos cílios. Será que aquela força que a
fazia tremer era a mesma que o irritava tanto? Riu de si
mesma e desistiu do rimel.
Encontrou-o no estúdio, apreciando o quadro O
Homem na Chuva, que ela apoiara contra a lareira, que
nunca era usada. Alexander se virou ao sentir sua
presença, e Jamila se perguntou se ele notou que ela o
pintara.
Como poderia? O homem no quadro, encolhendo-se na
chuva, caminhando apressado ao encontro de seu amor,
chamava-se Alexander. Mas aquele a seu lado, em sua
casa, jamais saberia disso, a menos que ela contasse.
Diria a ele, quando se tornassem amantes.
— Podemos ir? — Alexander a analisou de cima abaixo.
Jamila tentou ler sua expressão. Queria saber se ele
gostava do que via, de seu vestido verde, dos brincos de
esmeralda.
— Sim, podemos. — Ele nada comentou.
Jamila se dirigiu à saída, um sorriso no rosto. Podia
apostar como Alexander gostara. Imensamente.
Alexander a levou ao Eduardo's, onde o mattre o
saudou, tratando-o com intimidade, e sorriu para Jamila.
— Srta. Ferguson, é bom tornar a vê-la.
— Obrigada, Max.

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— Já esteve aqui antes? — Alexander quis saber, ao
serem conduzidos por Max à mesa, perto do piano.
— Costumo jantar aqui com meu pai, embora não com
muita frequência nos últimos tempos.
O maitre puxou a cadeira para que ela se sentasse, e
Alexander se acomodou no lado oposto. A iluminação era
suave o bastante para criar um clima, embora desse para
ver sua expressão, observar seus olhos.
Ele pediu champanhe.
— Por que você e seu pai não têm jantado juntos? —
indagou ele, quando ficaram a sós.
— Papai é perito contador, e todos os anos, em
fevereiro, sua vida social fica para segundo plano, de tanto
trabalho que tem. Estamos em março, e mesmo assim,
papai continua tão ocupado que só nos encontramos para
um almoço rápido. Costumamos ir a um dos restaurantes
no piso térreo do Edifício Bettner. E assim será até se
encerrar o prazo da entrega do imposto de renda.
— Ele é mesmo perito contador?
— Sim, por quê? Acha estranho? O que achou que meu
pai seria?
Alexander deu de ombros.
— Não sei... Mas você disse Edifício Bettner? Ferguson
& Co., é esse o escritório de seu pai?
— Esse mesmo.
— Ele costumava fazer meu imposto de renda.
— Não! Que coincidência! Mas não se preocupe, Alex.
Eu jamais tentaria ler as informações confidenciais em
seus arquivos.
Jamila gostaria de saber o que ele diria se soubesse
que ela havia trabalhado com o pai, que pedira demissão
dois meses após ter sido aprovada nos exames e ter obtido
o certificado de perita contadora.
De repente, ouviu um homem exclamar atrás dela.
— Alex! Eu estava falando justo de você!
Ao se virar, Jamila viu um senhor de seus sessenta e
tantos anos de idade, usando bengala para caminhar. Ele

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estendeu a mão para Alexander, que se levantou e
correspondeu com formalidade a seu cumprimento.
Negócios, Jamila concluiu. Não eram amigos.
— Conhece Jamila Ferguson? — Alexander apresentou.
— Jamie, este é Cyril Thurston.
Ela sorriu e cumprimentou-o. Sabia quem era aquele
homem. Cyril Thurston, o presidente da Fundação
Thurston.
— Espero que aproveite bem seu jantar, senhor.
— Sem dúvida, você está aproveitando o seu. —
Thurston sorriu, enigmático.
Alexander interveio:
— Estávamos discutindo uma paciente.
— Você é médica? — Thurston quis saber.
— Artista plástica.
— A srta. Ferguson se interessa muito por uma de
minhas pacientes — Alex explicou.
Ele pareceria constrangido, Jamila notou, observando-o
trocar cortesias com Thurston. Casado. Claro. Como pôde
ser tão tola? Qualquer imbecil saberia que um homem
bonito como Alexander devia ter uma esposa.
Nem sequer considerou aquela possibilidade. Mas
como poderia saber, se ele não usava aliança? Seria
daqueles que a escondiam para não revelar seu verdadeiro
estado civil?
Alexander não parecia ser tão canalha, dava a
impressão de ser um homem de bem. Jamila assumira que
era um médico sempre pronto a ajudar as crianças, alguém
que sentia a mesma “química” que ela, mas lutava contra
isso devido a sua natureza cautelosa.
— Espero poder enviar-lhe a documentação dentro de
um ou dois dias — dizia Alexander a Cyril.
— Estarei aguardando. Bom jantar... E diga alô a Diana
por mim.
Ele era casado, e o nome dela era Diana.
Jamila ficou olhando Cyril Thurston se afastar.
Alexander não gostou de ser surpreendido com ela. Aquilo

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tornou-se óbvio no modo como informou a Thurston que
estavam no local para "discutir uma paciente".
— Querem fazer os pedidos? — o garçom ofereceu.
Jamila assentiu, e Alexander deve ter feito a mesma
coisa, porque o rapaz fez uma leve reverência e se voltou
para Jamila.
— Fettucini com molho de frutos do mar — pediu ela,
mais por hábito.
— Filé à Nova York — foi a escolha de Alexander.
Quando o garçom se afastou, Jamila estava pronta para
encará-lo com uma pergunta:
— Por que me trouxe aqui? Para discutirmos Sara?
Continua achando que não sou uma companhia adequada
para ela? — Jamila então se deu conta que podia haver
outro motivo, mais intricado, para aquela atitude em
relação à menina.
— Como conseguiu alguém que colocasse o corrimão
tão rápido?
— Páginas Amarelas. Recorro sempre a elas. — O
garçom trouxe a entrada.
— Você está muito preocupado com minha amizade
com Sara. É assim tão protetor com todos os pacientes?
Alexander não respondeu.
— Como foi que se tornou uma artista, Jamie?
— Pintando.
— Quando foi que decidiu ser pintora? Não acho que
seja uma escolha muito prática.
Jamila não pretendia tornar a vê-lo, já que era casado,
mas aproveitaria aquele jantar até o fim.
Pegou um pãozinho e partiu ao meio. Sentiu que
Alexander a fitava espalhar a manteiga no pão.
— Você acha, Alex, que o fato de ser prático ou não
deve motivar a escolha de uma carreira?
— Muitos adotam a arte como um hobby, porque,
financeiramente falando, ser artista traz algumas
desvantagens. Claro que se seu pai deve ajudá-la nesse
sentido.

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— Acha que preciso disso? — Jamila lembrou-se da
batalha que teve de travar em casa com sua família quando
decidiu estudar artes plásticas. Largou o pão e inclinou-se
na direção dele. — Você não me tem em alta conta, não é?
O que você pensa de mim?
— Que é irresponsável, impulsiva, passional, bonita e
charmosa, além de imprevidente.
Jamila recostou-se no espaldar.
— Minha vez. Acho-o bonito, inteligente, convencional,
frio e metido a julgar pessoas. Veja só como lida com o pão.
Cortou-o com a faca, e com precisão, porque partir com a
mão seria por demais impulsivo. É desse modo que lida
com a vida, sempre deduzindo, raciocinando?
— Acha seu método melhor, dilacerando coisas, sem
parar para pensar no que faz?
Jamila pegou o pão do prato e olhou para a irregular
distribuição de manteiga com prazer perverso. Podia ter
dito a ele que acabara de expor seus trabalhos na Northern
Imagens, e que o lucro obtido com a venda de suas obras
no último fim de semana seria suficiente para sustentá-la
durante um ano inteiro.
— Sou uma artista porque essa é minha paixão, mas se
você acredita ser médico porque é prático, está mentindo
para si mesmo.
— Por que acha que sabe alguma coisa a meu respeito?
— E você? Por que acha que sabe alguma coisa a meu
respeito? Só porque me viu partir o pão ao meio me tornei
um perigo público? Quando foi que descobriu que queria
ser médico, Alex? Quantos anos tinha?
— Doze.
— Por que médico, e não um perito contador? Um
médico ganha um bom dinheiro, mas corre o risco de ser
processado, com tantas mortes acontecendo nas mãos
deles. Sendo um contador ficaria rico, como meu pai, e
nessa área ninguém morre. Não seria mais prático?
Quando Alexander se inclinou para a frente, por um
instante Jamila sentiu medo.

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— Não sabe o que está falando — acusou-a, rude. —
Quando eu tinha doze anos, meu irmão sofreu um choque
de insulina e morreu. Eu teria feito qualquer coisa para
salvá-lo. No entanto, sendo um perito contador, não haveria
nada que pudesse ter feito, além de cuidar das despesas
médicas.
— Oh, Alex, sinto muito... Não sabia da morte de seu
irmão.
— Ele faleceu porque as pessoas que deviam tratar
dele foram descuidadas, como você é descuidada em
relação a Sara.
Jamila estendeu a mão para a dele.
— A culpa não foi sua... era apenas uma criança. Deve
ter sido terrível perder um irmão aos doze anos. — Quis
muito tocá-lo, mas as mãos dele desapareceram sob a
mesa.
— Aqui está nossa salada — disse Alexander, quando o
garçom se aproximou.
— Por que me convidou para jantar, se não me aprova?
— Alexander apenas levantou a cabeça, o olhar distante. —
Você me acusou de ser egoísta, impulsiva... Não sabia que
isso era pecado.
Ele espetou um pedaço de alface com o garfo.
— É sempre assim tão intensa, Jamie?
— Sou. Essa deve ser mais uma característica que você
desaprova. Por que fez questão de sair comigo, Alex?
— Precisávamos conversar sobre Sara.
— Não poderíamos ter feito isso lá em casa? Já que
condena minhas atitudes, não existe nenhuma razão
prática para estarmos aqui. Devia ter aparecido lá esta
tarde, quando a garota estava comigo. Teria tido
oportunidade de nos ver juntas e de decidir se de fato sou
imprópria.
— O mundo não gira em torno de você, Jamie. Estive o
dia todo com uma criança muito doente.

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— Essa deve ser uma linha designada para me colocar
em meu lugar. — De repente ela se sentiu cansada daquele
confronto e se levantou. — Desculpe-me, Alex.
Ele também ergueu, suas maneiras impecáveis. Ela
pegou a bolsa e quase correu para o banheiro, determinada
a não olhar para trás. Se tivesse bom senso, aproveitaria a
oportunidade e iria embora.

Capítulo VII

Por que precisou dizer a Thurston que ele e Jamila


estavam discutindo uma paciente? Embora fosse verdade,
ou quase, aquilo soou como se tivesse algo a esconder,
como se aquele jantar com Jamila fosse uma coisa proibida,
como se estivesse traindo Diana. Não que ele e Diana
fossem um casal. Pelo menos, ainda não eram, embora
Thurston acreditasse que sim. E por que Jamila teve de
dizer que era uma artista?!
Será que ela pretendia ficar a noite toda naquele
toalete? Ou será que decidiu ir embora, deixando-o
plantado ali, àquela mesa, com dois jantares prestes a ser
servidos? Aquela irresponsável era bem capaz disso.
Jamila apareceu justo quando Alexander começava a
duvidar que algum dia tornaria a vê-la. Não que
importasse. Melhor seria se desaparecesse e ele nunca
mais tivesse notícias dela. Podia ficar de olho em Sara a
distancia, sem precisar sair para jantar com aquela
maluca.
Quando ela parou próxima dele, Alexander se levantou
para puxar-lhe a cadeira.
— Achei que não fosse mais voltar...
— Confesso que considerei a possibilidade.
— Então por que aceitou jantar comigo?
— Porque acreditava que nós nos tornaríamos amantes.
— Alexander quase engasgou com a água que levara aos
lábios.

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Depositou o copo no tampo, notando a pulsação na
garganta delicada e lutou contra a necessidade urgente de
tocar o local com a boca.
— Mas isso foi antes de eu descobrir que você é
casado.
— Casado? Eu? De onde você tirou essa ideia?! —
Jamila fez um gesto em direção a Thurston.
— Você me pareceu bastante culpado diante dele.
Tentou despistar, alegando que estamos aqui para discutir
uma paciente.
— E não é verdade? Viemos por causa de Sara. Saiba
que não sou casado, embora esteja meio comprometido. O
nome dela é Diana.
— Diana. O sr. Thurston pediu você que desse alô para
ela quando se falassem. Quando será isso?
— Esta noite. Onde foi que estudou artes?
— O que o faz pensar que estudei? — Seus olhos
verdes se tornaram frios. — Talvez tenha apenas comprado
alguns pincéis e começando a pintar.
— Calculei que tivesse estudado. Seu pai deve ter
insistido nisso, e na certa pagou por seus estudos.
— Muito pelo contrário. Papai achava que eu estava
destruindo meu futuro. Disse que, se eu queria ser uma
artista, teria de ser por minha conta.
— Mas ele lhe pagava almoços.
— Sim. E não pense que algum dia tentei tirar
vantagem disso. Cursei a Escola de Arte e Design com a
ajuda de uma bolsa de estudos. Trabalhei em uma galeria
de arte para ajudar nas despesas. Acredite ou não, pago
todas as contas em dia.
— Eu não disse que não.
— No entanto, me acusou de ser irresponsável. Nisso
está incluído ser negligente com as obrigações.
Alexander se perguntou o que aconteceria se a pegasse
pelos ombros, se a sacudisse... e se beijasse.
— Mas você deve ter feito outros cursos.

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— Fiz um curso de administração de negócios antes de
frequentar a escola de arte.
— É mesmo? E por quê?
— Porque meu pai esperava isso de mim e eu o amo,
embora desde os doze anos sonhasse em ser pintora. — O
sorriso dela cintilou, mas se apagou rápido.
— Estranho nós dois termos decidido o que queríamos
ser quando crescêssemos aos doze anos. Minha decisão
também foi influenciada por um caso de morte.
— O que houve?
— Minha mãe faleceu pouco antes de meu aniversário.
Foi quando uma amiga me ajudou a descobrir a arte. Eu
acreditava que, de algum modo, se me tornasse uma
grande pintora, seria como se mamãe tivesse voltado para
mim. Você pode dizer que isso é irracional, mas era no que
eu acreditava.
— E fez o curso de administração só para agradar a
seu pai. — Ele lidava com adolescentes o bastante para
entender que perder a mãe, ou o pai, aos doze anos podia
deixar marcas profundas.
— Estudei em uma excelente universidade, me formei
com louvor, mas no fim de nada adiantou.
— Sara a faz lembrar-se de si mesma quando menina?
— Talvez. Eu jamais a magoaria, Alex.
Talvez ela acreditasse que não, mas algum dia a paixão
pela garota terminaria, assim como sua paixão pela
pintura.
Do outro lado da mesa, Alexander a viu pegar o garfo e
enrolar ofettucini. Pegou a faca e se concentrou em seu
bife.
"...acreditava que nos tornaríamos amantes."
Tolice. Não iria discutir aquilo. Não naquele momento.
Uma hora depois, percorrendo as ruas tranquilas de
Seattle, rumo à casa dela, Jamila se mantinha em silêncio,
a cabeça reclinada para trás no assento de couro, o som de
Chopin a embalá-la.

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Alexander parou na entrada, desejando ser convidado
para entrar, mesmo ciente de que recusaria o convite.
Jamila o fitou e sorriu. Em seguida, abriu a porta antes que
ele tivesse a chance de fazê-lo.
Ele saiu do automóvel e pegou as chaves da mão dela.
Sobrevivera ao jantar, e agora era hora de dizer adeus.
Destrancou a porta e a manteve aberta, mas Jamila não
entrou.
— Diga-me, Alex, você e Diana têm um compromisso?
— Não.
— São amantes?
— Ainda não. Mas pretendo me casar com ela. Diana é
a mulher que quero como esposa.
— Porque seria prático? — Alexander apenas assentiu.
— E ela não é nem impetuosa, nem irresponsável?
— De forma nenhuma. — Ele desejou apontar as
inúmeras virtudes de Diana, mas Jamila, com seu frescor e
suavidade, impregnava seus sentidos.
— Quero que você me beije uma última vez antes de
voltar para Diana. Para guardar essa lembrança comigo.
Alexander não se lembrava de tê-la puxado de encontro
ao peito, embora tivesse feito isso. Encontrou sua boca
entreaberta, ávida de paixão. Arfou, abraçando-a apertado
enquanto a beijava. Ela correspondia, a língua dançando
com a dele em um ritmo enlouquecido.
Precisava senti-la mais ainda. Entrou na sala, sem
parar de beijá-la, e girou o corpo, prensando-a contra a
parede. Sentia-se rígido de excitação, e ansiou por perder-
se por completo dentro dela.
Suas mãos escorregaram e modelaram seus quadris, e
um suspiro, ou um gemido, escapou da garganta dela. Ou
da dele. A cintura de Jamila era tão frágil, os seios tão
fartos, Alexander notou ao afagá-la até encontrá-los.
O mamilo delicado endureceu contra sua palma,
arrancando dela um suspiro. Ele quase arrancou os botões
do corpete, e afastou para o lado o tecido de seda do

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vestido verde. Em seguida, curvou-se e lambeu a curva
suave de seu seio.
Jamila gemeu alto e Alexander recuou, fítando-a com
olhos semicerrados, embaçados pela paixão.
— Jamie... Isso é loucura.
Jamila se afastou dele e ajeitou o vestido, mas os
botões continuaram abertos sobre a renda negra do
corpete, o que a tornava ainda mais sensual.
— Minhas chaves, Alex.
Ele precisava arrastá-la para a luz e tentar saber o que
seu semblante revelava. Mas, se tornasse a tocá-la, sabia
que estaria perdido.
— As chaves? — Tirou-as do bolso, meio zonzo, e
colocou na mão dela, com cuidado para não tocá-la.
Jamila permanecia diante dele, com os seios meio
desnudos. "Deus, não terei forças para deixá-la!"
— Vá, Alex. E não volte, nunca mais. — Jamila abriu a
porta, sem olhar em sua direção, enquanto ele saía.
— Que nome lhe dará? — Liz quis saber, caminhando
devagar para a direita do quadro que Jamila terminara na
véspera.
— Ainda não sei.
— O jogo de cores ficou uma beleza. Está...
deslumbrante! Aquela tela era totalmente diferente das
outras, nada tinha a ver com os retratos e as paisagens que
costumava pintar.
— Não é necessário olhar duas vezes para se concluir
que é um Jamila Ferguson. O uso audacioso de tons
contrastantes, uma qualidade da emoção que desperta...
Magnífico. O que pretende fazer a seguir? Outro abstrato?
— Creio que sim.
— Uma série deles seria um sucesso. Mesmo sendo
apenas três. Podemos expor todos na parede da fonte.
Cinco seria o ideal, e sugiro um nome para toda a série.
Seria interessante. Pense nisso enquanto trabalha neles.
Onde está O Homem na Chuva?

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Jamila apontou para a parede atrás de Liz, que virou-se
para analisar a tela.
Sentia-se inquieta aquela manhã. Acordou de
madrugada e passou horas trabalhando em um novo
quadro, pintando seus sonhos, toda sua tensão sendo
transferida para as cores e emoções na tela.
As oito da manhã, viu-se ansiosa por notícias de
Alexander. Será que ele ligaria? Apareceria em sua casa?
Alexander a beijara duas vezes. O primeiro beijo foi
mágico, sedutor. O segundo...
Quantas pessoas faziam amor sem jamais ter sentido a
magnitude daquilo que lhe aconteceu nos braços dele?
Sentiu-se viva, desperta, passional e cheia de volúpia. Ao
acordar, tratou de transferir tudo aquilo para a tela.
Jamila se esforçou para voltar para o presente e para
Liz.
— Fiz as reservas para nosso almoço. Podemos ir.
Deixe-me apenas verificar se Squiggles tem água e ração
suficientes.
Minutos depois, as duas estavam de saída, quando o
telefone tocou.
Jamila sabia quem era. Alexander parecia não
conseguir ficar longe dela por muito tempo. Mas ele tinha
a mulher que queria. Era um homem que planejava todos
os passos que dava. Não tinha tempo, nem inclinação para
um romance ardente, tempestuoso com uma artista que,
embora desejasse, não aprovava.
— Não vai atender, Jamie?
— Não. Vamos embora.
— E se for ele?
— Não deve ser. Mas é melhor esquecê-lo. Está
envolvido com alguém... Uma moça com quem pretende se
casar.
Liz meneou a cabeça.
Jamila pretendia ocupar-se todas as noites. Ligaria
para o pai naquela tarde e o convidaria para jantar na
sexta-feira.

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Após o almoço, Jamila e Liz se despediram na saída do
restaurante. Jamila seguiu para o banco, pretendendo
quitar o saldo do empréstimo de estudante. Aplicou o
restante do dinheiro, ficando com apenas o suficiente para
a compra de um novo cavalete, e para as despesas dos
próximos meses. Tendo cuidado, aquela quantia poderia
durar um ano inteiro.
Ligou para o pai ao chegar em casa, ele estava com um
cliente. Jamila deixou uma mensagem e foi para o estúdio.
Squiggles dormia encolhido na cadeira perto da porta do
pátio.
Ela parou diante do cavalete, examinando o trabalho.
Olhava com crítica para o traçado irregular de linhas
verdes e vermelhas. Por demais distintas, por demais
concretas. Pegou o pincel e se concentrou.
Duas horas depois, largou o pincel e recuou. Aquela,
sem dúvida, seria sua melhor obra.
Quando o telefone tocou, ela correu para atender.
— Jamie? Lamento, meu bem, mas só tenho alguns
minutos. O que deseja, filhinha?
— Papai, você jantaria comigo amanhã? Faz quase um
mês que não nos vemos.
— Minha querida, sabe que estou atarefado até o
pescoço. Que tal deixarmos para a semana que vem?
Poderíamos almoçar juntos e colocar os assuntos em dia. —
Aquela resposta era previsível.
— Mesmo com tanto serviço, você precisa comer.
Comprarei algo e almoçaremos em sua sala. Vinte minutos
apenas. Acho que não o atrasará tanto.
— Está bem, mas terá de ser rápido.
— Amanhã, então.
— Certo.
Estava a meio caminho da cozinha quando o telefone
tocou.
— Alô?
— Onde esteve o dia inteiro?!
— Alex? Aqui mesmo, em casa.

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— Liguei três vezes!
— Saí para almoçar, voltei e pintei o restante do tempo.
Não ouvi o telefone tocar.
— Por que não compra uma secretária eletrônica? Não
tenho tempo para ficar pendurado nesse aparelho.
Jamila respirou fundo.
— O que é agora, Alex?
A pergunta o fez silenciar por um momento, até que
disse:
— Irei jantar esta noite na casa de minha irmã. Um
jantar de negócios. Meu cunhado está preparando uma
documentação para mim e preciso vê-lo. Queria que fosse
comigo. Use algo casual.
— Está me convidando para jantar com sua família?
Por quê?
— Isso importa?
Sim, importava. E muito.
— Passarei para apanhá-la às seis.

Capítulo VIII

Minha nossa, Alex, são três da tarde! Podia ter me


avisado. Programei algo simples, só para nós. Quem é essa
moça que virá com você?
— Não se estresse, Paula. Compre comida pronta, se
preferir. — Não se trata disso. Essa mulher... Vocês estão
saindo juntos?
— Não. Ela cuida de uma das minhas pacientes.
— É enfermeira?
— Também não. Precisávamos conversar, e eu também
tinha de falar com seu marido, portanto, decidi unir o útil
ao agradável. Mas agora, Paula, se não se importa, tenho
alguns telefonemas a fazer.
— Mas eu... Oh, deixe para lá. A que horas pretende
chegar?
— As seis e meia. Até lá.

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Devia saber que Paula ficaria curiosa, mas estava
envolvido demais nele mesmo, nas próprias necessidades,
para pensar em outra coisa.
Necessidades. Repudiou o termo, substituindo-o por
"objetivos". Pegou o telefone para falar com a mãe de um
de seus pacientes.
Jamila abriu a porta para Alexander e de imediato
percebeu sua expressão fechada. Será que não gostou de
sua aparência, ou já chegou zangado?
Ele disse "casual", e ela optou por calça jeans e camisa
preta de seda. E sandálias de salto alto.
— Boa noite, Alex. — Pondo-se na ponta dos pés,
beijou-o no rosto.
Alexander ficou ainda mais tenso.
— Vamos embora. — E a fez entrar em seu luxuoso
automóvel, no qual o motor zunia, suave.
— Estamos com pressa?
— Paula e Dennis nos aguardam.
Bem, pelo menos agora eles tinham um nome, sua irmã
e seu cunhado. Alexander convidou-a para jantar com sua
família, no entanto, não demonstrava prazer algum em
estar em sua companhia.
— Isto é um encontro, Alex? Porque, se for, não está
parecendo.
— Você não é artista? Eu sempre soube que eles não se
preocupam com nada. Por que não deixa o barco correr,
como seus colegas costumam fazer?
Alexander a tratava feito uma tola, que não precisava
saber aonde a levavam. Quando Jamila decidiu que eles
seriam amantes, lhe pareceu uma decisão simples,
inevitável. Mas não antecipou aquela relutância, embora
ele não tivesse demonstrado nem um pouco de má vontade
quando a beijou.
Envolvida pela música do CD, ela sentiu como se seu
próprio eu estivesse sendo esvaziado. Em defesa própria,
estendeu a mão e desligou o som.
Silêncio.

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— Não gosta de música, Jamie? — Conversar. Eles
precisavam conversar.
— Sara ficou emocionada quando esteve em casa
ontem e viu Squiggles. Brincou o tempo todo com ele, mas
o que mais gostou foi de alimentá-lo.
— Hum...
— Não sei por que motivo Sara não pode ter um gato. A
pobrezinha perdeu a mãe no ano passado e não tem irmão
com quem brincar. Fica muito sozinha naquele
apartamento, com ou sem a sra. Davis. — Jamila ouviu-se
falando rápido demais. — É verdade que o condomínio não
permite animais no prédio, mas pelo amor de Deus! Que
mal faria um gatinho?
— Você não faz muita questão de seguir as normas, não
é verdade?
Jamila se virou no assento para encará-lo, mas não
pôde ver seu rosto. Parecia concentrado na direção.
— Só quando faz sentido.
— No prédio onde Sara mora, assim como em qualquer
outro, existem normas a serem cumpridas, e no dela existe
uma que proíbe a permanência de animais dentro de suas
dependências.
— Ah, se Sara fosse minha filha... Eu não respeitaria
essa norma tão ridícula.
— Parece esquecer que, sem normas, o mundo viraria
um caos.
— Um pouquinho de caos não mata ninguém.
Claro que Alexander jamais aceitaria aquilo. E, embora
ela não fosse capaz de parar de discordar dele, naquela
noite ansiava para que eles ficassem em paz. Na véspera,
chegaram a trocar insultos, e as palavras magoaram.
— Disse que tem negócios a tratar com seu cunhado,
Alex. De que tipo?
— Dennis é meu contador.
— Ah, aquele que você preferiu ao meu pai? Fez isso
por fidelidade familiar?

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Alexander fez uma volta e Jamila o viu olhar pelo
retrovisor. À direita dela, a estátua de uma figura grega
marcava uma entrada particular de carros. Deixaram o
mundo comum lá fora e adentraram a espaçosa
propriedade em Laurelhurst.
— Rogozza? Seu cunhado é Dennis Rogozza? —
Alexander assentiu.
— Ele e meu pai já participam juntos de alguns
congressos. — Jamila sorriu. — Mas não o conheço. Há
quantos anos ele e sua irmã são casados?
— Alguns.
Ela suspirou, frustrada.
— Você é sempre assim mal-humorado, ou é só quando
estou por perto?
Sem responder, Alexander dirigiu até a entrada da
residência. Ansiando por alguma resposta dele, Jamila
insistiu:
— Sua irmã mora aqui?
— Sim.
— Bela propriedade... — Soltou o cinto de segurança
enquanto ele estacionava.
Jamila saiu do BMW antes que ele viesse abrir a porta
e olhou ao redor. Gramado bem cuidado, árvores
frondosas.
— Está parecendo que você terá assuntos fascinantes
para discutir, hoje. Por que decidiu me trazer?
De repente, a porta principal se abriu e uma mulher de
cabelos claros e curtos veio recebê-los.
— Como sempre pontual, Alex. — Desceu os quatro
degraus e estendeu a mão para Jamila. — Sou Paula. Alex
não me disse seu nome.
— Jamie. Obrigada pelo convite. Paula trocou um olhar
com o irmão.
— Espero que nos desculpe pela bagunça, Jamie.
Danny, meu filho de dois anos, é um bagunceiro.
No entanto, contrastando com o aviso de Paula, a
residência se encontrava impecável. No hall, o piso de

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madeira brilhava de tão limpo. Na sóbria e elegante sala de
estar, o carpete dava sinais de ter acabado de ser aspirado.
A única coisa que destoava do ambiente era um estoque
multicolorido de brinquedos de plástico no chão, em volta
do bebê, que com dificuldade se levantou quando eles
adentraram o recinto e correu para Alexander.
— Tio Alex!
Alexander tomou no colo, abraçando o sorridente
garotinho.
— Ei, Danny Boy! Onde está seu pai?
Danny desvencilhou-se do abraço do tio, que o colocou
de pé outra vez, e pegou-lhe a mão.
— No escritório. Vem!
E Alexander o seguiu, deixando Jamila a sós com Paula.
— Alex disse que você é artista. Pintora, não é?
— É sim. Isso mesmo. — Jamila colocou as mãos nos
bolsos da calça, pouco à vontade com a anfitriã. — Estou
expondo meus trabalhos na galeria Northern Imagens.
— Creio que já estive lá. Fica na Pioneer Square.
Jamila fez que sim, sorrindo. Não tinha uma pista
sequer do que dizer.
— Tenho algumas gravuras de McKenzie. — Paula
apontou em direção à lareira.
— Ali está uma delas. Alex trabalha com Emma, a
mulher de Gray McKenzie. Vimos essa obra quando fomos
ao casamento deles, no ano passado. Desde então, viramos
colecionadores.
— De fato é uma beleza. Precisa de ajuda, com o
jantar?
— Não se incomode. Está tudo sob controle. Mas sente-
se. Deseja tomar algo?
— Não, obrigada. — Jamila sentou-se no longo sofá
branco, porque isso era esperado, embora tivesse preferido
ir ver de perto a gravura de McKenzie, dando a si mesma
algo para fazer.
Paula preferiu a poltrona forrada com tecido brocado.
— Mora aqui em Seattle?

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— Sim, moro.
-— Como foi que conheceu Alex?
— No hospital. Não sei se ele comentou, mas houve um
acidente. Atingi uma garotinha com meu carro. Não pude
evitar. Ela atravessou a rua correndo na minha frente.
Graças a Deus não foi nada grave.
— Ela está bem agora?
— Felizmente, sim. Esteve em casa ontem.
— Que bom. Com licença. Preciso verificar algo na
cozinha. Um gato branco, macio e lustroso, passou pela
porta em arco.
Virou a cabeça aristocrática e pôs-se a estudar Jamila
de maneira bastante desdenhosa.
— Você também? Ora...
— Gato! — E Danny correu titubeando na direção do
bichano. Atrás dele vinha Alexander e um homem alto e
loiro.
— Jamila Ferguson? Sou Dennis Rogozza. É um prazer
recebê-la. — Seu sorriso era irresistível.
— Jamie, por favor. Você deve conhecer meu pai, James
Ferguson.
— Jim é seu pai?! — O sorriso se alargou. — Mas claro!
Alex me contou que você era artista plástica. Eu devia ter
adivinhado. Ele me falou a respeito de sua exposição, e li
um artigo no jornal. Seus trabalhos causaram alvoroço no
mundo das artes de Seattle. Parabéns!
— Obrigada.
Dennis se sentou na cadeira de brocado que Paula
ocupara momentos antes. A calça cinzenta combinava com
o suéter que ele usava sobre a camisa branca e gravata.
Aparentava ser o que era, um contador caro em horas de
folga.
"Use algo casual", Alexander avisara, mas todos ali se
trajavam com formalidade. Até mesmo ele, naquela camisa
de seda azul. Silencioso, permanecia junto da lareira, a
mão direita afagando a cabeça do gato branco, enquanto
examinava, absorto, a gravura de McKenzie.

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Dennis se levantou e caminhou até um aparador.
— Aceita uma bebida, Jamie? Xerez? Gim-tônica?
— Apenas água sem gás, obrigada.
O anfitrião serviu-lhe seu pedido, e uma dose de uísque
para Alexander.
— Ser artista não é nada fácil hoje em dia. Tenho
alguns clientes que trabalham com arte e vivem se
queixando das incertezas da profissão.
— Não creio que alguém pense em dinheiro e
segurança quando escolhe a arte como meio de vida,
Dennis. É uma profissão que escolhe você.
— Uma vocação. Ser pintora é tudo com que sempre
sonhou? — Jamila riu, um tanto aturdida com a acuidade
com a qual Dennis a estudava ao fazer aquelas perguntas.
— Não consigo me imaginar fazendo outra coisa além
de pintar.
— Eu a invejo, Jamie. Não são muitos os que acertam
na mosca quanto à carreira que escolhem. Alex, por
exemplo, durante toda a vida quis curar as crianças.
Alexander mudou de posição, mas continuou parado e
quieto perto da lareira, o copo intato na mão.
— E quanto a você? — perguntou Jamila.
Dennis deu de ombros, e ela soube que seu charme era
o que tornava tão popular entre seus clientes.
— Sou bom com números. É gratificante fazer disso
algo valioso para as pessoas. Mas fiquem à vontade. Irei
verificar como está indo o jantar.
Pouco depois, Paula entrou na sala chamando pelo
filho. Aproximou-se do pequeno, que continuava entretido
com seus brinquedos coloridos.
— Já brincou bastante, querido. Agora vamos guardar
tudo. — Ela olhou para Jamila. — Vou servir a refeição dele,
e em seguida nós jantaremos.
Uma bela rotina aquela. Logo, Danny colocou todos os
brinquedos no lugar de onde os tirara.
Quando Paula o pegou no colo, apoiando-o no quadril e
levando-o embora, Jamila se aproximou de Alexander,

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dando-se ao luxo de tocar o rosto dele com a ponta dos
dedos.
Então, fitou a gravura, que mostrava um leão da
montanha, com seus olhos brilhantes. Vira algumas obras
de McKenzie em uma galeria, mas nunca adornando a
parede de uma casa. Sozinho, o felino dominava a sala com
sua força e graça.
— Você o conhece?
— Quem?
— Gray McKenzie. Paula falou que trabalha com a
esposa dele.
— Oh, claro... Emma é pediatra, especializada em
ortopedia.
— Como ele é?
— Bonitão. Parece um daqueles modelos que se vê nos
outdoors. Alto, musculoso, bronzeado. É observador e
muito inteligente. E, de acordo com Emma, teimoso como
ninguém.
Jamila tocou os cabelos.
— Você parece aprová-lo, o que é uma surpresa, sendo
ele um artista.
Foi quando Dennis reapareceu.
— O jantar está servido, pessoal.
Na ampla sala de jantar dos Rogozza havia outra
gravura de McKenzie, uma fêmea de puma com seu filhote,
juntos à margem de um rio, majestosos, com as cabeças
viradas de lado.
Alexander segurou a cadeira para que Jamila sentasse.
Quando todos se acomodaram à mesa, ela se viu sentada
entre Dennis e Paula, com Alexander a sua frente.
— Se Thurston não gostar destes números — Dennis
dirigiu-se ao cunhado — podemos trabalhar em cima de um
cenário alternativo.
— Depois nós falaremos sobre isso.
Então, o negócio entre Dennis e Alexander tinha algo a
ver com a Fundação Thurston, Jamila concluiu.

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Dennis passou a conduzir a conversa, agora sobre
artes, algo que Jamila poderia ter desfrutado se não fossem
as constantes indagações de Paula. "Você não se preocupa
com a instabilidade da vida artística?" "Nunca pensou em
fazer algo mais... sério?"
— Levo a pintura muito a sério, Paula. — E respirou
aliviada quando ela perdeu o interesse por sua pessoa e se
concentrou no irmão.
— Como vai indo aquele seu centro de tratamento
infantil, Alex?
Ele fez um gesto evasivo, sem nada comentar.
A refeição seguiu-se o café preto e forte, e Jamila
estava tão afetada pela atmosfera restritiva criada por
Paula e Alexander que aceitou uma xícara. Até mesmo
fingiu tomar um gole.
Deu graças a Deus quando Alexander, por fim, dirigiu-
se aos donos da casa:
— Bem, nós vamos indo. Tenho trabalho para terminar
ainda hoje.
— Foi um jantar muito agradável. Agradeço pelo
convite.
— Daremos uma olhada em sua exposição, Jamie —
Dennis garantiu. — Irá até quando?
— Sábado, quando serei substituída por outro artista.
Mas Liz manterá alguns trabalhos meus na galeria.
— Ótimo, iremos até lá conferir.
— Obrigada. — Ela sorriu para Dennis, e tentou ser do
mesmo modo calorosa ao se despedir de Paula.
Lá fora, o ar estava fresco. Alexander abriu a porta do
carro e aguardou que ela entrasse. Então, colocou a pasta
de trabalhos no assento de trás, antes de se acomodar ao
volante.
Ele não havia trazido aquela pasta, portanto devia tê-la
recebido de Dennis. Na certa continha os papéis nos quais
pretendia trabalhar ainda aquela noite.

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Jamila esfregou os braços sobre o tecido da blusa.
Esfriara bastante, mas era a fúria que a fazia se arrepiar,
não o frio.

Capítulo IX

Quando Alexander parou o automóvel, Jamila


permaneceu sentada, olhando pelo pára-brisa. O trajeto até
ali fora feito em total quietude. Não conseguiu lembrar-se
de alguma vez em que tivesse sentido tanta raiva. Sabia
que, quando começasse a falar, nada a interromperia.
— Fique onde está! — esbravejou, quando Alexander
desatou o cinto de segurança. — Posso ir sozinha até minha
porta.
Quando ele se virou para encará-la, Jamila fez o
mesmo.
— Antes de ir, quero saber por que me levou à casa de
sua irmã. E não venha dizer que queria conversar comigo,
porque não me dirigiu uma dúzia de palavras o tempo todo.
Por quê, Alex?
— Precisa haver motivo?
Jamila reconheceu na sua voz o mesmo tom
apaziguador que ele usou para acalmar Sara no hospital.
— Evidente que sim, porque você, Alexander Kent, não
dá ponto sem nó!
Ele descansou uma das mãos no volante, a outra, no
encosto do banco de passageiro, bem perto do ombro dela.
— Eu queria que você conhecesse minha irmã.
—E por quê? — De repente, algo lhe ocorreu. — Você
planejou tudo, não foi? Paula, um modelo de mãe, Danny,
tão pequeno e tão organizado.
— Quis que visse com seus próprios olhos como se
cuida de uma criança.

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— É mesmo? Decidiu nos comparar, porque desde o
momento em que me viu assumiu que eu não devia me
aproximar de um menor de idade?
— Não há motivo para histeria, Jamie. — Jamila
gargalhou.
— Fiquei histérica, sim, e furiosa! Como ousa?! —
Balançou a cabeça. — Meu relacionamento com Sara não é
de sua conta! Ela não é sua parente, nem sequer é sua
paciente! Você não sabe nada de mim. Nada!
— Jamie...
— Para mim chega! Tive o bastante de você, Alexander
Kent. Foi um engano julgá-lo bom e justo. Mas, como
qualquer pessoa, também posso cometer erros de
julgamento. Contudo, costumo voltar atrás quando percebo
que errei. — Jamila se inclinou para a frente e encostou a
ponta do dedo no peito dele. — Você é capaz disso? Duvido!
Alexander tocou o braço dela, que o empurrou.
— Tire as mãos de mim!
Ele congelou quando ela gritou, dando-lhe tempo
suficiente para abrir a porta e sair, sem deixar de fitá-lo.
— Estou farta de tanto preconceito, estou farta de
você, dr. Kent. Não quero vê-lo nunca mais!
Jamila entrou em sua residência e esperou que a
respiração voltasse ao normal. Tentou ouvir o som do BMW
se afastando.
Fora muito ingênua ao acreditar que Alexander a
chamara para aquele jantar porque não conseguia
esquecer o sabor de seus lábios. Acreditando, contra toda e
qualquer razão, que aquele convite tão familiar tinha
algum significado.
Mas teve, sim. Significava que Alexander era um
completo idiota. Por quê? Por que a odiava tanto?
Entrou no estúdio feito um furacão. Pegou a tela com a
lavagem cinza e apoiou-a no cavalete.
A pintura fluiu em meio à ira e à frustração. Por fim,
perto do amanhecer, sentia-se exausta e vazia.

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Alexander saiu do hospital e foi para o consultório,
onde passou duas horas trabalhando na papelada
acumulada sobre a mesa. Passou mais uma hora
pesquisando nos livros de medicina, antes de terminar a
artigo para o Diário Americano de Medicina.
Chegou em casa exausto e encontrou a luz de
mensagem piscando na secretária eletrônica.
— Oi, Alex, é Paula. Ligue para mim.
Paula na certa queria fazer perguntas a respeito
Jamila, enquanto ele dava o melhor de si para não pensar
em sua reação furiosa após o jantar que tiveram. Será que
a julgara mal?
O outro recado era de Diana, pedindo também que
ligasse.
Consultou o relógio. Duas e meia da manhã. Em Veneza
seriam... Franziu a testa e calculou, decidindo que naquele
momento Diana estaria entre o desjejum e o almoço.
Discou o número da suíte de Diana no hotel e se viu
falando com uma gravação, que pedia que deixasse uma
mensagem.
— Diana? Estamos nos desencontrando... Acabo de
entrar em casa e estou indo para a cama. São duas e meia
da madrugada. Tentarei entrar em contato amanhã.
No dia seguinte, faria mais uma tentativa. Sendo sexta-
feira, significava mais um fim de semana sem uma resposta
da fundação.
Três meses atrás, quando Diana Thurston conversou
com o avô sobre a proposta que ele fez à fundação,
Alexander imaginou que teria uma resposta dentro de dias.
Devia saber que as rodas da Fundação Thurston se moviam
com a mesma lentidão de qualquer outra organização
burocrática.
A cada dia perdido, mais crianças correriam risco de
vida. Mas Alexander não conhecia nenhum modo de
agilizar o processo.
Diana chamou no meio da tarde, quando Alexander
examinava um paciente. Retornou a ligação às seis, porém,

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não a encontrou. Telefonou para casa e descobriu que ela
deixara uma nova mensagem.
— Alex, estou de partida para Roma. Não tive tempo
ainda para analisar seu fax, contudo, tive uma rápida
conversa com vovô. Ele quer que você se reúna com a
diretoria da fundação na próxima quarta-feira, às cinco da
tarde. A secretária dele entrará em contato. Tornarei a
ligar no início da semana. Até lá.
Alexander deixou o hospital. Ao pegar o carro no
estacionamento, pensava em ir jantar em algum lugar.
Sentia-se desanimado, ciente de que o aguardava um
apartamento frio e vazio.
Não queria ir para lá para se sentar e sozinho ficar
vendo a noite cair. Estaria de folga naquele fim de semana,
mas desejou não estar.
Dirigiu até o Eduardo's. Ao avistar o amontoado de
gente à entrada, lembrou-se de que não havia feito reserva.
Desistiu do restaurante. Decidiu ir à casa de Paula. Na
certa haveria as inevitáveis perguntas sobre Jamila, mas
por outro lado, ele desfrutaria algum tempo com Danny, e
conversaria com Dennis.
Não conseguiu recordar em que momento resolveu
seguir para a residência de Jamila, em vez da de sua irmã.
Não sabia como seria recebido. Ela estava brava com ele.
Bateu na porta e nada. Ninguém atendeu.
Olhou em torno. O carro dela não se encontrava na
garagem. Aonde teria ido? O que estaria fazendo? De
repente, deu-se conta da óbvia solução para a ausência
dela. Sexta-feira à noite. Jamila devia ter saído com
alguém.
Voltou para o BMW, ligou o motor e saiu.
Em seu apartamento, Alexander tentou trabalhar no
artigo para o jornal, mas não conseguia se concentrar no
que fazia. Foi para a cama e dormiu mal, despertando
várias vezes.
No sábado, às dez e meia da manhã, Alexander
localizou a Galeria Northern Imagens. Ao pisar lá dentro,

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de imediato sentiu a atmosfera silenciosa, como se tivesse
entrado em um museu ou em uma biblioteca. Vigas de
madeira esculpidas e paredes ornadas com tapeçarias
proporcionavam uma colocação sem igual para cada
pintura. Uma tabuleta de carvalho esculpido o dirigiu à
escada, à exposição dos trabalho de Jamila.
Foi quando uma mulher loira, alta e sorridente, com
cerca de quarenta anos, veio recebê-lo.
— Fique à vontade — disse ela, num tom afável. — Se
ainda não visitou a exposição, sugiro que comece por ali.
E gesticuiou à esquerda de Alexander.
— Estarei a sua disposição, caso tenha alguma
pergunta a fazer.
Queria perguntar por Jamila, mas em vez disso, virou à
esquerda. Ligara para ela há cerca de uma hora, sentiu-se
frustrado quando não a encontrou. Estaria em casa
pintando, ignorando o telefone?
Dirigira até a casa dela só para descobrir que seu
automóvel não se achava na garagem. Será que voltara
para casa tarde da noite e saíra cedo? Ou teria passado a
noite fora, com o seu amante desconhecido?
Teria um namorado? Disse que pretendia ser sua
amante, mas aquilo significava que não havia ninguém? Ou
que para ela o sexo era algo fácil e casual, e que ele seria
mais um entre muitos?
Não tinha intenção de se envolver com ela. Só que não
podia deixar as coisas como estavam. Como diriam os
conselheiros, aquele caso precisava de algum tipo de
conclusão. Teria de pôr um fim naquela história.
Por isso resolveu ia à galeria, um lugar público onde
eles não poderiam se exaltar. Mas, em vez de procurar por
Jamila, viu-se atraído por suas pinturas. Observou uma
delas, que representava uma cena antiga, uma jovem no
balanço, com ar sonhador, em um campo relvado, sob um
céu muito azul. E foi como se ele pudesse ver a jovem
sonhar com uma bonita casa, com um marido que voltava
para ela todas as noites. Então, a abraçava e beijava com

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intensa paixão. Observando-a, Alexander viu nela a mulher
que se tornaria.
Virou-se para a tela ao lado, e foi quando ouviu o som
de vozes femininas. Dirigiu-se aporta, que avistou aberta.
Era um escritório acarpetado, decerto onde as vendas
eram fechadas. Jamila se sentava na beirada da
escrivaninha, e falava com a dona da galeria, que a
observava, preocupada.
— Na verdade são três. O terceiro é um acrílico. Estão
todos secos... — Jamila virou a cabeça, como se sentisse
que havia alguém espreitando.
— Jamie...
Por um momento, ela ficou parada, então girou o corpo
para o lado e pulou para o chão.
— Deseja alguma coisa? — Liz indagou.
— O cavalheiro veio falar comigo — avisou Jamila. E foi
até ele, parando longe de seu alcance.
Alexander a queria mais perto, para poder tocar seu
rosto, mas seus pés pareciam colados no solo.
— O que deseja, dr. Kent?
Ele forçou um sorriso.
— Conversar com você.
— Não diga.
— Não quer tomar café comigo? Ou melhor, chá?
— Creio que já conversamos bastante. — Ela falava
firme, sem emoção.
Alexander não sabia o que fazer para que Jamila o
ouvisse. E tinha de ser naquele momento, pois quanto mais
demorasse, mais difícil ficaria.
Agora entendia como um homem infernizava a vida de
uma mulher quando se recusava a aceitar que estava tudo
terminado. Não que tivesse começado, nada havia
acontecido entre eles, nada que Alexander pudesse chamar
de uma relação.
Ele não queria ter nada com ela. Na realidade, não
sabia o que queria. Entendia apenas que era necessário
acabar com aquela confusão de emoções que se iniciara na

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madrugada de sábado para domingo, quando pela primeira
vez a viu no hospital.
— Quero me desculpar, Jamie.
Os olhos dela se arregalaram, porém logo se controlou.
— Liz, nós podemos usar a sua sala um minuto?

Capítulo X

— Onde esteve, Jamie? Não a encontrei em casa na


noite passada, nem esta manhã.
— Você disse que queria se desculpar. — Alexander
colocou as mãos nos bolsos.
— E quero.
Jamila sabia que ele devia estar odiando aquela
turbulência que ela via em seus olhos escuros. Tentou
adivinhar o que seus próprios olhos mostravam. Pensou no
modo como anunciara a Liz que pretendia ter aquele
homem como seu amante, acreditando que seria possível
manter um caso sem se arriscar.
Contudo, ela não imaginava que poderia se apaixonar,
nem como poderia doer. Entretanto, estava ciente de que,
se permitisse que aquela situação continuasse, o poder
daquele homem sobre seus sentimentos só aumentaria.
Não podia se dar ao luxo de ter um caso com Alexander.
— Jamie... Tenho sido muito injusto, mas... você causa
esse efeito em mim.
Ele afastou os cabelos para trás, impaciente, e Jamila
soube que o risco que corria naquele momento era bem
pior, porque Alexander ia ser honesto.
Como se fosse incapaz de ficar parado, ele começou a
caminhar de um lado para o outro.
— E você tem toda a razão quanto a Paula.
— Você me levou àquela casa porque queria que eu
aprendesse a cuidar de uma criança, e reconhecesse como
sou inadequada. Não foi isso?

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— Sim, admito. Confesso que não consigo ser muito
racional quando estou perto de você. Aquilo foi uma
grande tolice, mas queria ver se recuperava o bom senso.
Não posso me envolver sentimentalmente com você, não
devo querê-la.
Jamila sentiu desde sempre aquela sua relutância. No
começo, aceitou-a como um desafio, mas ao decidir que
Alexander seria seu amante, pensou em usar o poder que
exercia sobre ele, que sentia possuir, sempre que ele
estava próximo, fazê-lo deixar de relutar e render-se a seus
carinhos.
— Você não me conhece, Alex.
— Sei disso. Tive algumas experiências frustrantes com
pessoas do meio artístico. Lá fora... — Fez um gesto para
indicar a galeria. — ...olhando para seus quadros, percebi
que você está certa. Não a conheço. Não tenho nenhum
motivo para acreditar que você não é a pessoa certa para
lidar com Sara. Peço que me perdoe.
— Está tudo bem. Eu também disse algumas coisas que
não queria dizer.
Alexander riu então, e ela sorriu antes que percebesse.
— Acho que agora você pode ir, Alex.
— Almoce comigo, ou pelo menos, me acompanhe num
café. Chá, se preferir.
Jamila fez um gesto em direção aos papéis sobre a
mesa.
— Tenho trabalho a minha espera. Além disso, não
acho que devemos continuar a nos ver.
—Não era o que achava na noite em que a levei ao
jantar. Disse que me queria como amante...
— Mudei de ideia.
Quando ele fez menção de se aproximar, ela estendeu a
mão para impedi-lo.
— Por quê, Jamie? O que foi que mudou?
— Desculpe, Alex, mas não tenho tempo para
brincadeiras. Preciso trabalhar.

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— Mas você saiu ontem à noite, não ficou em casa
pintando. Não pode tirar nem ao menos uma hora de folga?
— Por que eu faria isso?
— Quero conhecê-la melhor. Vamos sair para um
drinque. Passe a tarde comigo, o resto do dia.
Alexander sorriu, e Jamila soube que seria loucura
deixar-se levar. Ele jamais entenderia, e ela sabia o quanto
isso importava.
— Jamais concordaremos um com o outro. Eu sou tudo
o que você desaprova, e deixou isso claro quando me levou
ao Eduardo. Quer para si uma mulher satisfatória. E seu
nome é Diana.
Ele estendeu a mão por sobre a escrivaninha e segurou
seu pulso.
— Eu deveria querer Diana, mas tudo que o vejo a
minha frente é você. Preciso descobrir o que está
acontecendo.
— Isso é problema seu, não meu. — Jamila fez força
para relaxar a mão, se concentrar nos olhos dele e ignorar
que seus dedos a tocavam.
— Do que tem medo, Jamie? — Ela deu de ombros.
— Não de você, eu garanto.
— Passe o dia comigo.
— Não o quero em minha casa, e eu não iria a sua. Não
pretendo ter um caso com você.
— Um chá apenas. Um chá pode aceitar, mesmo que
não me queira.
— Está bem. Um chá apenas.
Ele a soltou antes de notar o quanto ela começara a
tremer.
— Podemos ir?
— Tudo bem.
Jamila já descera alguns degraus quando percebeu que
Alexander ficara para trás. Retrocedeu a tempo de ouvi-lo
dizer a Liz que ficaria com o quadro A Jovem no Balanço.
Lá fora, Jamila o fez parar quando ele foi em direção ao
carro.

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— Há uma cafeteria na próxima esquina. Servem todos
os tipos de chás, e café, claro.
Alexander se deixou levar por ela.
— Ouvi você dizer a Liz que queria comprar um de
meus quadros — Jamila comentou, ao se acomodarem a
uma das mesas do estabelecimento.
— Isso mesmo. Algum problema?
Uma mulher se aproximou, usando um avental sobre a
calça jeans e a camiseta.
— Chá, Jamie?
— Sim, obrigada, Jen. Meu amigo quer café.
— Certo. Trarei em um minuto.
— Serei franca, Alex. Não posso evitar imaginar que
você está querendo me aprontar alguma.
— O quê? Acha que eu iria usar um de seus quadros
contra você? Sei que me portei feito um canalha, mas
jamais lhe faria mal. Gostei da obra, apenas isso.
Jamila confiara nele no começo, mas confiava não mais.
— Hoje é sábado. Por que não está com Diana?
— Ela está em Veneza. Devia ser por isso que ele tanto
corria atrás dela, porque sua namorada estava longe.
— E quando volta?
— Dentro de um mês.
— Café — anunciou Jen ao entregar uma caneca para
Alexander. — E seu chá, Jamie.
— Obrigada.
Jen sorriu e os deixou.
Alexander inclinou-se para a frente, a caneca nas
mãos.
— Eu e Diana não temos nenhum compromisso.
— Mas você disse que irá se casar com ela.
— Sim, pretendo me casar com ela, ou com alguém
parecido. — Jamila serviu-se de chá.
— E enquanto isso não acontece, você me quer...
— Quanto a isso, creio que não há dúvida. E você não
pode negar que o sentimento seja mútuo.

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Não, não podia. Se fosse esperta, pegaria seu material
de pintura, seu cavalete, o gato e partiria rumo ao sul, para
pintar as pedras volumosas que ameaçam a costa do
Oregon, e as curvas arenosas da costa do Pacífico. Se
partisse ainda naquele dia, poderia escapar.
— Não posso negar que também o quero.
— O dia está perfeito para a praia. Passe o dia comigo,
Jamie. Levaremos um lanche, pegaremos a balsa para
Bainbridge Island e faremos um piquenique.
— Não posso. Sara irá a minha casa.
— Ela poderá ir conosco.
— Não. — Jamila parou perto de seu carro e o encarou.
— Reservei esta tarde para ela, mas estarei livre à noite, se
você quiser.
— Sete horas, então?
— Certo, às sete.
Julgou que Alexander ia puxá-la contra si, ali no meio
da rua, talvez para dar-lhe um leve beijo de despedida, e
por isso recuou. Então, com o automóvel dela entre os dois,
sentiu-se segura para se despedir.
De algum modo, chegou a sua residência sem nenhum
acidente, mas precisara fazer força para se concentrar na
direção.
Alexander a levou para jantar em um restaurante
pequeno e elegante na beira da praia. Estivera ali uma vez,
e lembrava-se da música suave tocando, embora não
houvesse pista de dança. Do salão, avistava-se o panorama
inigualável da baía.
— Gostei daqui. Nunca estive neste lugar—murmurou
Jamila, ao se sentarem.
— Achei que iria apreciar essa bela visão do porto.
— Adoro o mar. Nele existe algo de magia que nos
hipnotiza. — Alexander tomou a mão dela.
— Eu não sabia que você gostava de poesia.
Ela achou graça, e ele sentiu a vibração em seus dedos.

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— Qualquer um pode bancar o poeta, basta um pouco
de sensibilidade. Mas me fale sobre aquele centro de
tratamento que Paula mencionou.
— É apenas um projeto no qual estou trabalhando.
— Secreto?
Alexander a soltou quando o garçom se aproximou.
Observou-a pedir vinho branco suave, e em seguida
solicitou um refrigerante. Queria se manter sóbrio. Não iria
partilhar seus sonhos com ela. No entanto, ouviu-se
dizendo:
— As crianças diabéticas vivem em condições que
restringem sobremaneira suas escolhas. Em um mundo
ideal, os próprios pais as abrigariam e cuidariam delas.
— Mas este está longe de ser um mundo ideal.
— Pois é. Alguns pais são dedicados, enquanto outros
nem se preocupam. E as crianças costumam sabotar a si
mesmas, com frequência. Tenho um paciente diabético a
quem há pouco dei alta. Está ciente de que, para ele,
cuidar da própria saúde e manter controle sobre a doença
é uma questão de vida ou morte. Só que se julga imortal. E
seus pais não podem, ou não querem, controlar nem
sequer o que o menino come.
— E o centro de tratamento mudará isso?
— Com educação, monitoramento e cuidados. Tenho
me dedicado muito a esse menino, Mark. Ele foi admitido
com choque de insulina. Mas fui forçado a lhe dar alta,
ontem. O problema é o de sempre, o garoto acha que
jamais morrerá. Com o centro de tratamento de acesso
grátis, Mark teria mais chances. Receberia todo tipo de
tratamento médico e nutricional e apoio psiquiátrico.
— E esse seu projeto só será levado adiante com a
ajuda da Fundação Thurston... Esse é o negócio que foi
tratar com Dennis, aquela noite?
— Sim. Mas eu não a trouxe aqui para conversar sobre
isso. Vamos falar sobre você. O que é mais importante em
sua vida, Jamie?

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— Tudo. A existência em si, as pessoas, a arte... — O
gesto dela pareceu cercar o restaurante e o porto inteiro.
A refeição foi servida. Jamila se pôs a comer seu
salmão em porções pequenas, ansiosas. Alexander se deu
conta de que começava a se encantar pelo modo como
aquela boca se curvava para refletir as mudanças de
humor dela. Humores, para Jamila, pareciam ser como o
tempo, fluindo por ela com tanta naturalidade quanto o
vento soprava as nuvens no céu.
— Notei que colocou a arte em último lugar em sua
lista, mas suspeito que na realidade deva vir em primeiro.
— Você avalia tudo não é, Alex?
— Acho que um homem deve ter em mente o que de
fato importa, o que é de fato sua prioridade. !
— Isso significa que tudo o mais deva ser sacrificado?
Como seria triste se o que estivesse em primeiro fosse a
única coisa que você tivesse. Suas crianças são
prioritárias, não é? Todavia, colocando-os em primeiro
lugar, a todo momento, estaria enganando a ambos: a si
mesmo e a elas.
— Quer dizer que acha que eu deveria sacrificá-los?
— Em minha opinião, seu mundo foi pintado em branco
e preto, Alexander Kent. E me faz desejar botar um pouco
de cor nele.
A atmosfera ao redor deles mudou, enquanto se
encaravam, incapazes falar, de afastar os olhos um do
outro.
Jamila pousou o garfo e afastou o prato diante de si.
O garçom devia estar esperando pelo sinal, porque de
imediato surgiu ao lado de Alexander para oferecer:
— Café, senhora? Senhor?
Cor na vida dele? Naquela noite ela era uma
verdadeira explosão de cores, toda de verde, roupas e
olhos, contrastando com o castanho intenso dos cabelos.
Não conseguia parar de apreciá-la, nem de deixar de nutrir
por sentimentos perturbadores. Era como se tivesse se

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tornando uma de suas pinturas abstratas, um verdadeiro
redemoinho de tons e de emoção.

Capítulo XI

— Vamos dançar? — Alexander convidou. Jamila


assentiu e levantou-se, caminhando à frente dele até a
pista.
A música soava de algum lugar que ele não conseguia
ver. Música lenta. Não pôde identificá-la, mas sabia que
nunca mais a ouviria sem se lembrar do modo como Jamila
se encaixava em seus braços. Desejou enterrar o rosto na
suave abundância dos seus cabelos, ver seus lábios, para
saber se estavam abertos, ou se a emoção do momento os
havia fechado.
— Olhe para mim, Jamie.
Ela recuou um pouco e fitou-o direto nos olhos. Se ele
baixasse um pouco a cabeça, seus lábios roçariam nos dela.
Era difícil se conter, não estava preparado para o calor
daqueles lábios. Jamais estaria.
— Jamie... — Alexander quis estreitá-la ainda mais
junto a si, beijá-la, beber de seu rico sabor de mel, até
esgotá-la, até que ficasse satisfeito.
Sua respiração ficou um tanto ofegante. Seus pulmões
pareciam incapazes de respirar fundo quando puxou-a para
mais perto. Os movimentos dela, seu corpo macio, pura
tortura erótica contra sua excitação irrefreável.
Quando a música terminou, Alexander continuou a
abraçá-la. Não era capaz de deixá-la ir. Não pretendia
querê-la daquele jeito. Desejá-la. Sentir tamanha
necessidade dela.
— Vamos sair daqui, Jamie.
A mão dele tocou suas costas quando Jamila virou em
direção à mesa. Alexander manteve o contato enquanto
caminhavam, deliciando-se com a suavidade morna de sua

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pele. O vestido dela tinha um amplo decote atrás, sua pele,
branca e macia.
"Seja esperto e encerre de vez esse programa." Pegou
a conta, e tentou se concentrar na transação feita com o
cartão de crédito. Assinou, deu gorjeta. Foi bem-sucedido,
tanto que, no instante em que saíram do restaurante, já
tinha a imaginação sob controle.
— Poderíamos ir para minha casa. Que tal?
Quando Jamila virou a cabeça para responder-lhe,
Alexander teve de se conter para não tocar os lábios nos
dela.
— Não. Esta noite, não. Não podemos ir mais devagar?
— Sim, lógico. Acho que devemos. Vamos pegar o
carro. — Conduziu-a pelo braço, sentindo a maciez de sua
carne sob os dedos. — Daremos um passeio de automóvel
pela orla marítima. Em seguida, levarei você embora.
Alexander procurou por um CD entre os muitos que
mantinha no BMW, rejeitando a música erudita por algo
mais leve, esperando que as notas melódicas aliviassem a
pressão que sentia no peito.
E funcionou. Mas talvez tivesse sido a beleza do pôr-
do-sol, que acontecia bem mais tarde naquela época do
ano, que os acompanhou durante todo o trajeto rumo
norte. Jamila não falou, mantendo a cabeça recostada para
trás no assento, o olhar fixo na estrada em frente.
Devia fazer isso mais vezes, concluiu Alexander. Entrar
no carro e apenas dirigir ao longo da praia, perseguindo o
pôr-do-sol.
Num impulso, Alexander sinalizou e entrou por uma
estrada lateral que conduzia à praia. Lá, o pavimento deu
lugar a um caminho de terra que bifurcou perto da
extremidade de água.
A esquerda, um passeio de pedregulho passava por
uma construção em estilo vitoriano projetada de modo a
que todos os cômodos tivessem vista para o mar. Virou à
direita, parando em seguida.

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Deixaram o automóvel e caminharam de mãos dadas
até a beira do mar. Pararam sem precisar de palavras. E
ele, ávido, tentava desesperado saciar aquela inexplicável
vontade de ficar olhando para ela, como que devorando-a
com os olhos.
E seus lábios? Deus, que lábios!
Alexander sentiu uma urgente necessidade de tocá-los,
de deliciar-se com seu sabor.
Ele ia beijá-la, Jamila tinha certeza. E que Deus a
protegesse, mas queria aquele beijo como nunca quisera
nada em sua vida.
— Vou beijar você, Jamie. Estou avisando, porque você
disse que preferia ir devagar, mas não sei o que acontecerá
quando eu beijá-la...
O que fazer enquanto os dedos dele seguiam a linha de
seu maxilar, de seu queixo, traçavam o contorno de sua
boca?
Jamila separou os lábios ante o toque insistente.
Estavam tão próximos que suas respirações se misturavam.
Alexander baixou a cabeça devagar, prolongando
aquele tormento que os assolava. Quando sentiu o calor
dos lábios dele contra os seus, Jamila de imediato se
rendeu.
Ele sentiu sua submissão no instante em que o corpo
delicado encostou-se no seu. A boca que recebeu a sua
também falava de rendimento total.
As sensações que o invadiam foram tão intensas que
Alexander temeu não se conter. Os lábios de Jamila eram
os mais doces que já provara. Começava a entender o
porquê de seu antagonismo por ela. Sabia, por intuição,
que no momento em que a tivesse nos braços estaria
perdido.
— O que quer, Jamie?
Sentia-se atordoado, desorientado, como se estivesse à
beira de um precipício, prestes a mergulhar no
desconhecido.

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— Conte-me o que você quer. — Jamila engoliu em
seco.
— Que faça amor comigo, Alex.
— Agora? — Precisava daquela certeza. Sob a
superfície de sua calma, sabia que a luxúria aguardava,
instigando-o a conquistar, encantar e possuir. Aterrorizava-
o saber que, uma vez que começasse, não seria capaz de
parar. — Onde?
— Aqui, ao luar, em Evensong House.
— Evensong House? — Sentiu um grande vazio quando
ela deixou seus braços.
— Aquela construção antiga pela qual passamos há
pouco. É um hotel. Estive lá no ano passado. Pensei que...
— Sim. — Alexander pegou-lhe a mão.
Conduziu-a em direção ao hotel, não de volta para o
carro. Sabia que seria mais sensato levá-lo para o
estacionamento, ou pelo menos, deixá-lo trancado. Mas
temia afastar-se dela e destruir a conexão.
— Tem certeza, Jamie?
Sorrindo, um tanto tímida, ela piscou.
— Vamos entrar — disse, num sussurro.
Assim que entraram no hotel, Jamila foi atraída para o
fogo que ardia na lareira de pedra. Atravessou o saguão
indo naquela direção, as mãos estendidas para seu calor.
Vinte e oito anos, e ela escolheu ficar de costas para o
balcão de recepção, o coração batendo apressado porque
temia se aproximar de lá com Alexander. Tinha medo de
que a recepcionista com quem se registrara no ano
anterior a fitasse e perguntasse por que ele desejavam um
quarto e por que não tinham bagagem.
Quando ouviu vozes, viu-se forçada a se virar e olhar. A
moça na recepção era outra, não a mesma senhora
maternal do ano anterior.
Como no mundo uma mulher se comporta em tal
situação?
Alexander decerto acreditava que ela tivera outros
amantes, que saberia o que fazer.

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Claro que Jamila lera livros e assistira a filmes. Sabia
que era provável que sentisse alguma dor, porém,
suportável. Mas será que devia se despir ou esperar que
ele a despisse? Conseguiria se desnudar com ele olhando?
Estremeceu e tornou a fitar o fogo.
— ...de casal... — de repente ouviu Alexander dizer.
Apertou as mãos com força e suspirou. Nunca imaginou
fazer amor com um homem de verdade antes.
Chegara a fantasiar estar na cama com um amante
fictício, claro, visto que os homens reais sempre lhe
pareceram menos interessantes do que os que pintava e os
que surgiam em seus sonhos. Até Alexander aparecer.
Algo tocou seu ombro, e ela estremeceu.
— Vamos subir? — Alexander a olhava com
intensidade. Jamila se viu caminhando a seu lado, o
coração batendo mais forte a cada passo. Nunca imaginou
que fosse ficar tão constrangida.
Ele, então, abriu a porta para uma das suítes e virou-se
para que ela entrasse. Jamila atravessou a soleira e
observou o aposento, enquanto passava pela cama de casal
em direção às janelas.
As pesadas cortinas encontravam-se abertas para o
luar. Abriu a porta do pátio e foi para o terraço. Voltou-se,
recostando-se no parapeito.
— Eu não sabia que ficaria tão nervosa. Você está
muito sério... Alexander chegou perto dela, e seu rosto
iluminou-se à luz da lua. Sem sorrir, pegou-lhe a mão.
— O que espera que aconteça, Jamie? O que tanto a
assusta?
— Não estou assustada, só um pouco... — Ela tentou
rir, sem sucesso. — Nunca fiz isso antes.
— Nunca esteve com um homem em um hotel?
— Não... Nunca fiz sexo.
— Está me dizendo que é virgem?
— Sempre estive tão ocupada, e... bem, não sei por
quê. Talvez por falta de oportunidade.

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— Relaxe, não é o fim do mundo. Confesso que não
esperava por isso, mas... — Roçou os lábios em sua testa.
— Iremos devagar, Jamie, tão devagar quanto você desejar.
Ela virou a cabeça e deu com os lábios dele a
milímetros dos seus.
Alexander sorriu.
— Que tal tomarmos um drinque, ouvir música e
relaxar um pouco?
Jamila assentiu, e logo o aparelho de som começou a
tocar. Ouviu Alexander atrás de si, mas não se virou para
encará-lo.
— Lembra-se, Alex, da noite em que saímos para jantar,
e você me beijou na porta de casa?
— Lembro.
— Eu queria que tivéssemos feito amor naquela
ocasião. — Ele afagou seu ombro.
— Venha dançar, Jamie.
Sem demora, ela se aninhou nos braços dele.
— Apenas dance, meu bem.
Jamila se sentiu muito envolvida e confortável colada a
ele daquele modo, olhando para a paisagem banhada pela
lua cheia. Ansiava por Alexander tocá-la, acabando com
aquela inquietação e satisfazendo aquela ânsia louca.
A cama os esperava. Jamila desejou que ele a beijasse,
que a deitasse naquela colcha azul e destruísse todas as
barreiras que ainda os separava.
— Adoro seus cabelos... — Alexander corria os dedos
através das mechas castanhas. Então roçou um beijo nos
lábios dela, puxando-a para mais perto.
Jamila sentiu os joelhos enfraquecerem. Louca de
paixão, encostou-se mais no corpo musculoso e rígido. Sem
que se desse conta, suas mãos subiram, prendendo-se
atrás do pescoço de Alexander, como se fosse a coisa mais
natural do mundo, trazendo-o para mais perto.
Um gemido de antecipação lhe escapou. Sentiu tudo
girar, vendo-se transportada para outra dimensão. Estar

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assim, colada a Alexander, era como ter chegado ao
paraíso.
Quando a intensidade da excitação dele se fez evidente
de encontro ao ventre de Jamila, a dor do desejo
intensificou-se e se espalhou por todas as fibras de seu ser.
— Faça amor comigo, Alex.
O pedido foi feito em voz baixa e abafada, uma vez que
Jamila ainda mantinha o rosto enterrado no ombro dele.
Mas Alexander ouviu bem as palavras e compreendeu a
urgência dela. Deu um passo para trás, afastando-se o
suficiente para ver Jamila. As chamas do desejo que se
refletiam nos olhos escuros e aveludados de Alexander
encontraram reflexo nas íris verdes e límpidas que o
fitavam sem hesitação.
Movido pela emoção do momento, sem dizer uma só
frase, ele a tomou nos braços. Com o maior cuidado, como
quem trata com uma joia rara, fez Jamila se deitar no
colchão amplo.
— Tem certeza de que é isso mesmo que quer, Jamie?
— Ela ergueu as mãos num convite mudo.
Alexander ainda hesitava, ao juntar-se a ela. Sentando-
se no leito, Jamila tomou a iniciativa.
Bem devagar, desabotoou o primeiro botão da camisa
dele. Depois, o próximo e o próximo. Centímetro por
tentador centímetro, o tórax largo foi se revelando para
seu perscrutar ávido.
Acariciou os pêlos encaracolados e desceu a mão um
pouco mais. Sentiu quando os músculos do abdome se
contraíram com seu toque. Sorriu ao constatar seu poder
sobre aquele homem.
Em seguida, Jamila tirou-lhe a camisa do cós da calça
jeans, jogando-a, a seguir, no chão. As palmas subiram pelo
peito moreno até o pescoço, explorando, deliciando-se com
a textura deliciosa. Deleitou-se com os ombros largos, os
braços fortes, até que Alexander não aguentou mais a
tortura.

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Com os dedos sob o queixo dela, ele forçou Jamila a
fitá-lo. Inclinando-se, deu-lhe um beijo apaixonado nos
lábios carnudos.
— Não vou machucá-la, prometo.
Beijou-a outra vez, esse agora mais profundo, cheio de
intenções, com uma fome tão insaciável quanto a dela. Sem
separar os lábios, começou a despi-la. Afastando-se por
uma fração de segundo, Alexander a livrou da blusa.
Jamila, que jamais tinha ficado nua na presença de um
homem, não estava constrangida como imaginava que
ficaria. Parecia natural ficar nua para que Alexander a
olhasse, para que conhecesse cada curva de suas formas.
Prendeu a respiração quando o olhar dele pousou em
seus seios, ansiando por ser tocada, por sentir-se arder
com os carinhos que viriam a seguir.
Alexander abaixou-se e beijou-lhe os ombros estreitos,
e Jamila se arqueou, arrepiada, querendo mais e mais.
Sem nenhum pudor, Jamila enterrou as mãos nos
cabelos dele e puxou-o para outro beijo.
As sensações eram tantas que ela chegou a
experimentar dor. Um aperto que começou no peito e
espalhou-se por todos os membros, chegando ao ponto
mais sensível de sua feminilidade. Alexander estava
roubando seus sentidos, o ar que respirava, o auto
controle.
Ele percorreu com a língua a pele suave e perfumada.
Sem pressa. Torturando. Adiando o momento do prazer
maior.
Aquele perfume era o mais doce e delicioso que já
sentira na vida. Suave. Quente. Inebriante. Alexander não
encontrava os termos certos para descrever o que sentia.
Nem o maior poeta de todos os tempos seria capaz de
traduzir em palavras um sentimento tão intenso e belo.
Seu controle, sempre tão presente, começava a
desaparecer. As mãos já não se moviam mais com tanto
vagar. Ávidas, queriam mais. Sempre mais. Precisava estar
dentro dela, tê-la por inteiro. Sentir o momento em que os

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corpos se juntariam, como um só. Tinha de ouvir o palpitar
absurdo de um coração contra o outro.
Queria-a toda nua. A próxima peça a cair foi o sutiã,
que liberou os seios perfeitos para ele.
Jamila gemeu baixinho. Os mamilos reagiram sob a
atenção predatória de Alexander. Seus batimentos
cardíacos dobraram de ritmo.
— Alex, por favor, não agüento mais!
Ele também não. Cada célula ameaçava explodir.
Separou-se dela o suficiente para se livrar do restante das
roupas, orgulhoso por poder exibir para Jamila um corpo
excitado, pronto para proporcionar o deleite que Jamila
merecia.
Ela se extasiava com a perfeição daquele homem.
Julgou-se poderosa ao constatar o efeito que tinha sobre
alguém em geral tão fleumático. Em pé, a sua frente,
Alexander esperou que o olhar despudorado dela o
percorresse.
Quando Jamila começou a abrir o zíper do próprio
jeans, ele a impediu.
— Não me roube essa oportunidade. Quero ver você
aparecendo aos poucos e saborear cada momento da
descoberta.
Aqueles dedos grossos resvalando pela pele sensível do
ventre de Jamila a fez prender a respiração para evitar
gritar. Cerrou as pálpebras para apreciar melhor suas
sensações. Sentiu quando seus sapatos foram retirados e
caíram no carpete. Em seguida, o jeans. Logo após, a
calcinha, que desceu por toda a extensão de suas pernas e
se foi.
Jamila queria o delírio que Alexander prometera com
seus beijos. Queria-o além do medo que sua falta de
experiência provocava. Mas não sabia o que dizer. Assim,
por puro instinto, pressionou-se contra o dele e ergueu os
braços para envolvê-lo.
Alexander estremeceu e gemeu contra a boca de
Jamila. Seus músculos poderosos se contraíram, e ele se

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colocou sobre ela, até fazê-la sentir a masculinidade forte e
pulsante contra o ventre, dessa vez estando nus. Ela se
moveu, tensa.
— Calma, Jamie... Não vou feri-la.
E beijou-a com incrível delicadeza, colocando-se entre
as pernas dela. Deslizou a mão por sua coxa e subiu sem
pressa até o quadril desnudo.
Tocou e beijou-lhe os seios até fazê-la gemer e querer
mordiscá-lo. Quando Alexander a penetrou, Jamila sentiu
uma dor aguda, mas ele continuou sussurrando em seu
ouvido:
— Abrace-me com força, Jamie, com força.
Então, com um movimento determinado ele a penetrou
por completo. Jamila fechou os olhos na tentativa de
aplacar a pontada tão dolorida.
Houve um pequeno momento de silêncio, preenchido
apenas pelas respirações ofegantes. Depois, Alexander
gemeu baixinho e começou a se mover de novo, em uma
dança erótica e excitante. A cada movimento, penetrava
Jamila com mais facilidade, sem deixar de beijá-la e
murmurar doces palavras, até que o prazer se tornou tão
intenso que ela gritou e estremeceu dos pés à cabeça,
descontrolada.
Alexander também teve um estremecimento fabuloso,
enquanto dizia seu nome, perdido em sensações.
Alexander sentiu o peso da mão de Jamila contra o
tórax quando ela se moveu. Virou a cabeça e olhou ela,
para seu rosto, para sua boca voltada para ele, os lábios
entreabertos.
Uma virgem, pelo amor de Deus!
Sentiu muita raiva dela por sua inocência... que ele lhe
tirou. Mas foi Jamila quem sugeriu que entrassem naquele
hotel. "Quero que faça amor comigo", pediu-lhe, com tanta
clareza que seu corpo latejou no mesmo instante diante da
perspectiva.

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"Mas eu sou um médico!" Um homem responsável que
por fim se rendeu ao inevitável, tendo um caso com uma
mulher que o levava a loucura apenas ao fitá-lo.
E o que era pior, os três preservativos que trouxera na
carteira ainda estavam lá, sem abrir.
Jamila murmurou algo no sono, e Alexander se mexeu,
deslizando o braço em torno dela, que respondeu ao toque,
aninhando-se nele.
Alexander cerrou as pálpebras e inalou o aroma do
sabonete com o qual a ensaboou, muito suave, quando
foram para a banheira juntos depois do amor e mais uma
vez se amaram.
Jamila não engravidaria, lógico que não, disse a si
mesmo. Ela seria a última mulher com quem desejaria ter
um filho. Uma vez, uma única vez na vida de sexo seguro
esquecido, e tinha de ser justo com aquela mulher!

Capítulo XII

Jamila espreguiçou-se, sentindo uma dorzinha


agradável nos quadris.
— Hum... — murmurou, o rosto aninhado entre os
travesseiros, a mão procurando por Alexander.
Os olhos dela se abriram, e ergueu o corpo, apoiando-
se nos cotovelos.
Não, Alexander não estava aqui. Para onde fora? Saiu
da cama e caminhou para a porta da sacada. Estaria ali
fora?
"Ele não voltou para a cidade. Claro que não. Alex não
faria isso comigo."
Correu para o banheiro e tomou um banho rápido. O
vestido verde não era nada adequado para se usar pela
manhã, mas Jamila não tinha opção.
Retornou ao quarto, olhando em torno. Nenhum sinal
dele. Pegou a bolsa, passou a alça pelo ombro e saiu.

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Fora do hotel, localizou Alexander perto do passeio de
pedregulho. Quando avançou naquela direção, o vento era
tão forte que parecia querer arrancar sua roupa. Tentava
lutar contra ele, sem sucesso.
Ao dar o primeiro passo na areia, seus sapatos
afundaram. Agachou-se para tirá-los.
— Espere! Irei até você, Jamie! — Alexander gritou de
onde estava.
Então de repente Jamila se encontrava colada a ele, os
lábios calorosos sobre os dela, ao sussurrar:
— Como se sente esta manhã?
— Bem, muito bem. — Ela corou e afastou-se. —
Julguei que você já poderia ter ido fazer o desjejum. Gostei
de saber que me esperou.
— Dei um passeio ao longo da praia. — Alexander
tomou-lhe o braço e a fez parar na extremidade da estrada
de pedrinhas. — Jamie, precisamos conversar.
— Sobre o quê?
— Devo-lhe desculpas por ontem. Eu devia ter sido
mais gentil com você. Pretendia ser, mas me descontrolei.
Foi imperdoável. Sinto muito.
— Eu queria aquilo, Alex.
— Essa não é a questão. Perdi a cabeça. Isto não é um
jogo. E se você ficar grávida...
— Isso não é impossível. Mas fique tranqüilo, não
exigirei que se responsabilize por nada. — Viu o brilho
previsível nas pupilas dele. — Você não gosta disso, não é?
Quer ser o responsável por tudo o que acontece.
Ele pegou-a pelos ombros, e ela pendeu a cabeça para
trás.
— Apenas uma vez, leve alguma coisa a sério. — Com
uma imprecação, Alexander a puxou com força contra si,
apossando-se, faminto, de sua boca.
— Eu te quero, Jamie. — Em seguida, tomou-a no colo e
a carregou para o hotel.
Alexander imaginou que o trajeto de volta para a
cidade seria a ocasião perfeita para falar com Jamila, mas

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na realidade seguiram todo o percurso em um confortável
silêncio.
— Tenho algum trabalho para fazer esta tarde.
— E eu preciso pintar. Gostaria de vir à noite e jantar
comigo?
— Claro. Eu virei. — Estacionou o carro e fez menção
de soltar o cinto de segurança.
— Não precisa me acompanhar até a porta. — Jamila
inclinou-se para beijá-lo no rosto. — Venha às sete. Estarei
à espera. — E se foi em direção aos degraus da entrada.
Alexander desejou ir com ela, entrar por aquela porta,
e afastá-la de suas telas, levando-a para o quarto.
Desejava-a, com uma urgência que chegava a beirar a
loucura. Era insano, impensável, querê-la tendo passado a
maior parte da noite fazendo amor.
Dez minutos depois, Alexander acionava o controle
remoto da porta da garagem de seu prédio. Ao entrar no
apartamento, o sentiu o frio vazio costumeiro. Acendeu a
luz e ligou o aquecedor central. Na próxima vez, convidaria
Jamila para vir jantar com ele.
Não, não a queria ali. Não iria ter nenhuma lembrança
dela naquele lugar. Se Jamila acordasse em sua cama,
quando tudo terminasse ele jamais se veria livre de seu
fantasma.
Era provável que ficassem juntos apenas algumas
semanas. Então, Alexander diria adeus. Ou ela diria.
Estremeceu quando o telefone tocou.
— Alô?
— Alex? Sua voz está estranha... Você está bem? —
"Diana!" Ele agarrou o receptor.
— Estou.
— Tem alguém com você?
Uma imagem perturbadora de Jamila enrascada em
seus braços surgiu em sua mente, seu rosto enterrado na
massa de cabelos castanhos, enquanto acariciava-a com
total intimidade.

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— Não. Estou sozinho. Desculpe-me se pareço
distraído.
— Deve estar precisando de férias, Alex. Está esgotado.
Tem trabalhando demais.
— Deve ser... E quanto a você, Diana? Aproveitou bem
o fim de semana?
— Bem, na realidade foi mais uma viagem de negócios.
Um antigo sócio de meu avô está considerando doar algum
dinheiro à fundação. Ele quis que eu fosse até sua villa,
para conhecer sua mulher.
Uma semana atrás, Alexander teria falado com mais
naturalidade com Diana, teria sabido o que dizer sem
precisar primeiro pensar.
— Está acontecendo alguma coisa, Alex?
— Não, está tudo em ordem. Acho que vou ficar
resfriado. — Agora estava mentindo! Ele, que sempre se
orgulhou da própria honestidade. Bastou uma noite com
Jamila para transformá-lo em um mentiroso.
— Por que não vai se deitar? Uma boa noite de sono faz
milagres. — A última coisa que ele precisava era de ir para
a cama.
— Recebeu meu fax, Diana? Enviei as planilhas e os
outros documentos que me pediu.
— Recebi. Está tudo certo. Posso ligar de volta
amanhã, às sete no horário de vocês?
— Claro. Até mais. Cuide-se bem.
Alexander se sentia como um marido infiel. Não que
tivesse feito promessas a Diana, ou ela a ele. Mas tinha
intenção de pedi-la em casamento.
Sair com Jamila foi um grande erro. Não devia ter feito
amor com ela. Virgem... Isso jamais lhe ocorreu. O fato de
Jamila ser virgem, o melhor, ter sido virgem até então, de
algum modo mudava tudo.
Não, não mudava nada.
Alexander estava com trinta e oito anos, e se tornara
um obcecado. Sim, obcecado por aquela mulher, tão
diferente de qualquer coisa com que sempre sonhou.

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Diana tinha razão, ele vinha trabalhando muito. Não se
sentia desgastado, mas devia estar. E isso o deixava
vulnerável. E justo naquele momento Jamila Ferguson
entrara em sua vida feito um furacão, com seu corpo
estonteante e aqueles olhos verdes desafiadores. Tinha de
se afastar dela, com urgência.
Mas marcara um jantar com ela naquela noite. Certo.
Compareceria e iria aproveitar a oportunidade para dizer
que estava tudo terminado.
Jamila mais uma vez se viu trabalhando em óleo. Com
tela, ela poderia estender as cores em camadas, misturar,
criar efeitos que jamais conseguiria obter com acrílico.
"Não tenha pressa, garota. Precisa aperfeiçoar aquela
linha do ombro, dos braços e do pescoço." Aproveitaria
para estudá-lo naquela noite, porque jamais se atreveria a
pedir a Alexander que posasse para ela.
Meneou a cabeça. Como nunca tivera um amante, não
sabia que o amor poderia transformar seu mundo.
Carregou a tela para a prateleira, cobriu-a e deixou-a
para secar. Guardaria-a para si. Liz jamais veria aquele
trabalho.
Suspirou. Tinha de estar bonita para Alexander,
porque, se aquela fosse ser a última noite deles, ele se
lembraria dela como uma mulher bela e sensual, mas
também recordaria o jantar. Não haveria nada, nem um
simples detalhe que não o fizesse ansiar por ela, desejar tê-
la de volta.
Foi para a cozinha, lavou os peitos de frango e os
secou. Colocou-os em sua melhor travessa de vidro. Em
seguida, preparou molho: vinho tinto, azeite de oliva extra-
virgem, alecrim, salsa, e despejou sobre a carne. Se tudo
terminasse, Alexander pelo menos ficaria sabendo que boa
cozinheira era.
Se fosse tomar banho naquele momento, sobraria
tempo para secar os cabelos enquanto preparava a
refeição. Foi para o banheiro.

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Afundou-se na banheira, deixando a água lavar sua
cabeleira, enquanto massageava o couro cabeludo,
sonhando com as mãos dele ensaboando sua pele, seus
seios...
De repente, estremeceu com o barulho que ouviu vindo
da cozinha.
— O que foi aquilo?!
Apurou a audição. Foi como algo tivesse se
espatifando. "Squiggles!"
Levantou-se e enrolou-se numa toalha, deixando a
banheira.
— O frango! Eu o coloquei na geladeira? Pretendia
colocar, mas não me lembro de ter feito isso.
Correu para a cozinha.
— Squiggles!
O gato se encontrava debaixo da mesa, um peito de
frango preso entre as garras.
— Largue isso!
Quando avançou para tirar-lhe o petisco, sentiu uma
dor aguda na planta do pé.
Foi pulando para longe da bagunça. A travessa que
fora de sua mãe ficara em cacos. Havia vinho tinto, azeite e
ervas respingados por toda parte.
Recostou-se na pia e examinou o pé. Localizou o
fragmento afiado. Mordeu o lábio, tentando tirá-lo. O
caquinho fez um som claro quando caiu no piso. Mas,
quando ela sondou a pele com o dedo, a dor que sentiu
indicou que não o retirara inteiro.
Mancou até o banheiro e a torneira da pia. Levantou a
perna e lavou o pé debaixo d'água. Como iria tirar o caco
de vidro dali? Não dava para ver nada, embora cada toque
doloroso de seu dedo indicasse que estava lá.
Deu de ombros. Talvez saísse sozinho.
E agora? O que fazer para o jantar?
No quarto, pegou um par de meias de lã da gaveta e
calçou-as, esperando isolar o doloroso porém invisível

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fragmento. Melhor calçar sapatos, decidiu, antes que
acabasse incapacitada de ambos os pés.
Encontrou o segundo pedaço de frango dentro da pia.
Resignada, jogou-o no lixo e se dedicou a colocar a cozinha
em ordem.
Squiggles se esfregava em seus tornozelos, alheio ao
caos que havia criado.
Com apenas duas horas para que Alexander chegasse,
ela teria de optar por algo simples de preparar.
"Espaguete!", decidiu, e tratou de fazer o molho.
Quando molho começou a chiar no fogão, Jamila
apagou o fogo e mancou de volta ao banheiro, onde tirou
os sapatos e as meias. Alexander chegaria em menos de
uma hora, e queria estar bem, bonita e sedutora.
No quarto, abriu a porta do armário para escolher o
que usar. Decidiu-se pela camisa colorida que pusera na
exposição, que quase lhe alcançava os joelhos, mas sem a
calça comprida, justa e elegante, deixando à mostra parte
de suas pernas nuas.
Ao fechar a porta do armário, alguém bateu na porta
da frente.
Alexander? Não tão cedo.
Descalça, foi atender. Seu pé já não doía tanto,
contanto que o apoiasse na extremidade exterior ao
caminhar. Girou a maçaneta e deparou com seu visitante.

Capítulo XIII

Ele já batia na porta antes mesmo que percebesse


como era estranho ter vindo contar a Jamila sobre seu
artigo no jornal. Ela nada sabia sobre medicina, nem se
interessava pelo assunto. E não disse a si mesmo que viria
para romper com Jamila? A porta se abriu antes que
estivesse pronto para vê-la.
— Entre, Alex.

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Percebeu que ela estava descalça, e de algum modo,
aquilo fez seu coração bater mais forte.
Ridículo. Fizera amor com Jamila na noite anterior e
duas vezes naquela manhã. Não podia estar sentindo
aquele desejo esmagador. Talvez, afinal, não tivesse
mentido para Diana. Devia ter contraído uma dessas
viroses que costumam atacam no fim das estações.
Tratou de fechar a porta atrás de si. Não devia ter
vindo. Teria sido melhor se houvesse procurado uma
conferência fora da cidade para assistir, ou voar para
Veneza e cercar-se de Diana até recordar o que queria de
fato para si.
— Esteve pintando esta tarde?
— Sim. Mas não vou lhe mostrar, não ainda. Venha
comigo. — Jamila o conduziu até o estúdio.
— O que houve? Por que manca?
— Quebrei uma travessa de vidro e pisei num caco. —
Fez careta. — Tentei tirar, mas não consegui.
— Está dizendo que tem um caco de vidro na planta do
pé?
— É, mas não está doendo tanto. Só quando piso...
— Não dá para acreditar. Nem pense em se apoiar
nessa perna, senão vai empurrá-lo mais para dentro.
— Alexander a pegou no colo. — Onde fica o quarto?
— Lá atrás.
Ele a carregou até o aposento e a fez deitar-se na
cama, forçando-se a olhar para seus olhos, não para suas
coxas.
— Onde guarda os remédios?
— No armário do banheiro.
Alexander encontrou o que precisava, além de uma
agulha em uma alfineteira. Foi para a cozinha esterilizá-la
em água fervente. No fogão, algo dentro de uma panela
cheirava muitíssimo bem enquanto fervia em fogo lento.
Desligou a chama antes que queimasse.
Retornou ao dormitório.
— Deite-se de costas.

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Jamila o fitou como se não tivesse entendido.
— De costas. Fique atravessada no colchão, para que a
luz ilumine seu pé. — Não se mexa.
Alexander notou a região inflamada e procurou, gentil,
com o polegar. Ao se aproximar do centro da área
avermelhada, Jamila contraiu a perna. Ele pôde ver o lugar
onde o caco se alojou.
— Respire fundo e procure relaxar. Vai doer um pouco.
Segurou-lhe firme o tornozelo e, com todo o cuidado,
inseriu a agulha. Jamila estremeceu quando Alexander
alcançou o fragmento de vidro e puxou para fora.
— Acabou. Doeu muito, Jamie?
— Um pouquinho... — Ela se contorceu sob as mãos
dele.
— Agora fique quietinha. — Alexander pincelou o
pequeno ferimento com anti-séptico antes de protegê-lo
com um curativo. — Pronto.
Apanhou tudo o que utilizou e depositou sobre a
mesinha-de-cabeceira. Permitiu-se então pousar a mão no
tornozelo dela, mais uma vez. Pôde sentir seu pulso. Os
olhos dela eram puro fogo verde, os lábios sedutores
entreabertos.
— Eu te quero, Jamie... Não importa o fato de termos
feito amor há poucas horas, nem de eu ter ficado
plenamente satisfeito. Não ligo se você não é a mulher
certa para mim. Quero e preciso de você agora.
Jamila estendeu-lhe as mãos, e Alexander foi a seu
encontro.
Muito tempo depois, Jamie virou a cabeça e observou
os olhos dele se abrirem devagar. Depois do amor, todas as
linhas de seu rosto pareciam mais relaxadas.
— Eu te amo, Alex.
— Não diga isso. Não quero ouvi-la dizer tal coisa
nunca mais. — Ainda unida a ele, Jamila sentiu suas
palavras nos ouvidos e no corpo, e uma tristeza profunda a
espicaçou.

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— Não acredita que te amo? — Tocou seu rosto, sentiu
a forma como Alexander estava tenso. — O que preciso
fazer para que acredite?
Ele se afastou dela.
— Você deve sentir alguma coisa por mim, acredito que
sinta. Mas não chame isso de amor.
— O fato de eu o amar o aborrece? Por causa dela? Por
causa de Diana?
Alexander se abaixou até que seus lábios
encontrassem. No princípio, o beijo dele parecia irritado,
mais para a silenciar que possuir. Então, sem aviso, mudou,
e ela se entregou.
Ele a encarou. Lá fora, o céu escurecera.
— Você me quer mais uma vez?
— Imagino que eu morreria se tentasse. — Alexander
enrascou uma das mãos nos cabelos sedosos e enterrou a
boca na dela, em um beijo lento que a deixou se sentindo
marcada como sendo dele, de um modo indefinível, e que
não tinha nada que ver com sexo.
Ele se virou e puxou-a para mais perto, dizendo a si
mesmo que em seguida iria embora, para casa, para sua
cama fria e vazia.
Acordou no escuro, sentindo um peso no ombro e outro
no quadril. Continuou deitado, imóvel, inspirando o
perfume dela, sentindo seus lábios contra o peito.
Jamila despertou quando ele se mexeu.
— Preciso ir, Jamie.
— Vou preparar algo para você comer.
— Não. Irei direto para o hospital.
Notou quando ela consultou o relógio de cabeceira.
Seis horas, cedo ainda para ir trabalhar. Mas Jamila nada
comentou.
Alexander não podia dizer que Diana ficara de ligar às
sete, que ele precisava sair dali naquele instante ou,
pensamento insano aquele, tentaria fazer amor mais uma
vez.

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Jamila deslizou para dentro de um vestido longo e
macio, e o seguiu até a porta. Quando ela o abraçou,
Alexander permitiu-se dar-lhe um beijo ávido.
— Você virá esta noite, Alex?
— Tenho uma reunião de trabalho. Não ficarei livre
antes das dez.
Jamila deu de ombros.
— Estarei aqui.
O telefone tocou poucos minutos após as sete.
— Diana... Como estão as coisas? — perguntou,
determinado a não mentir mais para ela.
— Correndo muitíssimo bem. Não vejo nada no projeto
de que Cyril possa discordar. Vamos torcer para que tudo
dê certo. — Suspirou. — Você está pronto para a reunião
da diretoria na quarta-feira?
— Há séculos.
— Ótimo! Por que não vem para cá, depois da reunião,
para passarmos o fim de semana juntos e comemorar?
— Tem certeza, Diana, de que a resposta da diretoria
será "sim"?
— Toda a certeza do mundo. — Deu risada. — Cyril faz
qualquer coisa por mim. Não que seu projeto não seja
merecedor, lógico. Mas ele fará isso.
— Por você?
Diana não podia estar falando sério.
— Seu avô fará isso, por você?
— Alex... — Ela riu nervosa, ou talvez o satélite
causasse o efeito. — É um grande projeto. Eu só disse isso
porque você sabe o quanto me importo. Com minha
interferência, ele ganhou apenas um pouco mais de peso.
— Não gostaria de pensar que obtive essa parceria
devido a algo além do mérito de meu trabalho.
— O que está havendo? Você está tão irritadiço.
— Diana, eu estou... — Não tomaria a mentir. — Não
me sinto confortável com essa conversa.
— Pelo amor de Deus, sei o quanto você é ético! Tanto
que chega a ser maçante.

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O silêncio se alongou demais para se colocar a culpa
no satélite.
— Estou saindo com outra mulher, Diana.
— Oh! Bem... só posso dizer que estou feliz por você.
— Feliz? Você não entendeu... Não é nada sério. — A
risada dela soou natural.
— Pois para mim está parecendo ser. Esteve com ela no
domingo? Notei algo diferente em você. Mas agora preciso
desligar. Tenho milhares de coisas para providenciar.
— Diana, eu sinto muito.
— Por quê? Naquela ocasião eu perguntei se você
queria ficar, mas foi por impulso. Não se tratou de uma
declaração de amor eterno. Boa sorte na quarta.
Alexander ficou constrangido. Gostava de Diana, e se
sentia mal só de imaginar que podia perder o centro de
tratamento que suas crianças tanto necessitavam. Mas não
havia nada que pudesse fazer, além de comparecer à
reunião na quarta-feira e responder às questões que lhe
seriam feitas. Se o centro dependesse da possibilidade de
seu relacionamento com Diana...
Não podia crer naquilo, esperava que não fosse
verdade, porque as crianças não podiam ficar sem aquele
centro. Mas agora era tarde. Tornou-se tarde no momento
que conheceu Jamila Ferguson.
Em seu consultório no hospital, Alexander recebeu
uma mensagem importante de Paula. Esperou um minuto
antes de discar número de sua irmã.
— Alex, até que enfim! — disse ela, em um tom de voz
que lembrava sua mãe.
— Queria falar comigo?
— Sim. Venha jantar conosco hoje. Precisamos
conversar. Ele consultou a agenda.
— Não posso. Tenho uma reunião marcada.
— Você está saindo com ela, não está?
— Como assim? Ela quem?
— Aquela mulher que você trouxe aqui. Sua artista.

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Sua artista... Alexander não queria pensar em Jamila
daquela forma. Ela não era sua artista, mas apenas uma
mulher com quem mantinha um caso.
— Lamento, Paula. Esta é a última segunda-feira do
mês e, como sempre, tenho uma reunião no hospital.
— Não pense que sou tola, Alex.
— Ouça, não é um bom momento. Estou muito
ocupado. Tenho de desligar. Irei vê-la no sábado à tarde.
— Não pode vir amanhã à noite?
— Amanhã à noite eu irei ver Jamie.
— Ah, é? Você havia falado que não existia nada entre
os dois...
— Não havia, mas agora há.
— Sendo assim, traga-a também. — Paula parecia
zangada.
— Tenho um paciente à espera. E não, não a levarei.
Você não foi muito gentil com Jamie quando estivemos aí.
— Não me diga que com ela é sério. Aquela mulher não
é para você, Alex. Sabe que não é.
— Preciso desligar, Paula. Na próxima vez, não mande
me avisar que é importante quando não for.
Bateu o telefone, praguejando. Não queria conselhos
de ninguém, menos ainda de sua irmã. Tinha trinta e oito
anos e mantinha um caso com uma mulher dez anos mais
nova. E não daria a ninguém o direito de lhe dizer que era
loucura, tolice e que ele estava errado. Era um romance
casual conduzido de forma adulta e responsável.
Responsável... não se contando a primeira vez.
Casual? Nada no impacto que Jamila lhe proporcionava
poderia ser casual. Teria de ser louco para crer que aquela
situação iria mudar.

Capítulo XIV

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O telefone tocou quando Jamila acrescentava mais um
pouco de vermelho na mistura de cores em sua paleta.
Correu para atender.
— Alô?
— Jamie?
— Sim, sou eu. Como vai, Alex? — Podia ouvir sons ao
fundo. — Está no hospital?
— Estou. Vai demorar um pouco até que eu esteja livre.
Acho que irei direto para casa.
"Não implore", ordenou a si mesma.
— O que for mais conveniente para você. — Aquilo
ficou bom, mas Jamila arruinou tudo ao completar: — Se
mudar de ideia, saiba que não pretendo dormir cedo. Estou
pintando.
Por um instante, ela pensou que ele havia desligado,
então tornou a ouvir vozes ao fundo. Em seguida,
Alexander perguntou:
— O que está pintando?
— Um pôr-do-sol.
Até pouco tempo atrás, ela estivera trabalhando no
quadro de Alexander, colocando amor em seus olhos,
suprindo as próprias necessidades. Mas ele não poderia
saber.
— Viu o pôr-do-sol hoje? Que maravilha! Aí tem janela?
— Tem, mas as persianas estão sempre fechadas. Verei
sua versão quando chegar.
— Claro — ela concordou, sorrindo, sabendo que afinal
ele viria.
— Preciso desligar.
— Certo. Ficarei à espera.
— Quer que eu leve alguma coisa? Um vinho, quem
sabe?
— Não. Quero dizer... Você teve de acordar cedo esta
manhã. Por que não traz uma muda de roupa? Tenho uma
escova de dentes nova e um aparelho de barbear. —
Prendeu a respiração, aguardando sua resposta.
— Vou ver...

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Jamila sorria quando ele desligou, esperançosa,
sabendo que Alexander passaria a noite a seu lado.
De volta ao cavalete, acrescentou base neutra às cores
na paleta, usando uma espátula para misturar. Um pouco
mais de vermelho, só um toque... sim, perfeito!
Alexander deixou a reunião pensando em ir para casa,
dizendo a si mesmo que era muito tarde para ver Jamila,
que necessitava de muitas horas de sono de qualidade e de
um tempo sozinho para avaliar suas prioridades.
Dali a dois dias seria quarta-feira, quando ele se
sentaria diante da diretoria da Fundação Thurston. Então,
aguardaria o veredicto.
Que faria se fosse recusado? Como levar avante o
projeto sem a parceria com a fundação?
Em seu apartamento, olhou para a pilha de papéis,
cópias dos documentos que enviara por fax a Diana e a
Cyril Thurston. Mas o que, afinal de contas, faria
permanecendo em casa? Ficaria se martirizando? Ansiando
por Jamila, que lhe dissera "venha, não importa a que
horas"?
A meio caminho da residência dela, pensou melhor e
decidiu não pernoitar. Seria mais seguro acordar na
própria cama, e a sós. Claro que depois ele se lembraria
dela, mas pareceria como um sonho, uma fantasia, algo
tentador, irreal, porém nada prático.
Estacionou, deixando no carro a sacola com as coisas
que trouxera. Devia ter trazido vinho e flores, em vez de
roupas para trocar na manhã seguinte.
Jamila atendeu em segundos após ele ter batido na
porta. Pouco depois, Alexander não tinha certeza se a
puxara para seus braços, ou se ela fizera isso.
Lógico que ele passou uma noite. Deveria ter sabido
disso. Como poderia deixar o calor dos braços dela para
voltar a sua cama vazia e gélida?
Na manhã seguinte, Alexander acordou diferente.
Estava frio, distraído.
— O que irá fazer hoje? — Jamila quis saber.

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— O de sempre: ver meus pacientes. À tarde
comparecerei a uma reunião.
— Na Fundação Thurston?
Jamila queria que ele confiasse nela, que partilhasse
seu nervosismo, porque, sem dúvida, Alexander estava
nervoso, preocupado com o encontro com os diretores da
fundação, dos quais dependia a realização de seu sonho.
Acompanhou-o até a saída, como o fez na manhã
anterior. E ele lhe deu um beijo longo e caloroso que lhe
garantiu que voltaria.
— Boa sorte, Alex.
Ele a olhou, assustado, mas não perguntou o que ela
queria dizer.
Jamila desejou indagar se Alexander viria naquela
noite, porém se conteve. Ele viria, sentia isso. Não queria
que pensasse que ela queria prendê-lo, embora ansiasse
por abraçá-lo e implorar para que prometesse que ficaria a
seu lado. Não para sempre, só até que Diana voltasse.
Como Alexander poderia amá-la à noite, beijá-la como
se ser separado dela o matasse, e ainda assim voltar para
os braços da mulher a quem ele alegava ser seu ideal de
uma esposa perfeita?
Fechou a porta e foi para o estúdio, para o quadro de
Alexander.
Será que devia pintá-lo em preto e vermelho? Deveria
reproduzi-lo abandonando-a? Talvez devesse pintar
Alexander partindo, para se preparar.
Começou a esboçar linhas escuras sobre a tela, que
cortavam a tela branca, ao mesmo tempo que feriam seu
coração.
Recuou.
— Por favor, meu Deus, não permita que ele parta para
sempre. Não depois do que partilhamos.
Alexander acreditava que Diana era o protótipo da
perfeição, mas poderia ser diferente agora. Tinha três
semanas para ensiná-lo a amá-la.

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Naquele momento, uma hora e meia antes da reunião,
Alexander se viu tentado a ligar para Diana em Veneza.
Mas, se a chamasse, não seria por nenhuma outra
razão além da necessidade que tinha de estar seguro de
que o encontro com os diretores seria bem-sucedido.
Porém, parecia errado, além de injusto, agora que ele
confessara que estava vendo outra mulher. Usara Diana,
seu tempo e sua energia, permitindo que ela acreditasse
que haveria uma relação. Não apreciava a ideia de tê-la
tratado assim, de sentir culpa por ter sido descuidado com
outro ser humano.
Apanhou a pasta com o projeto do centro de
tratamento e saiu da sala.
— Sua mãe ligou — avisou Vanda, sua assistente.
— Ela deixou o número?
— Está aqui. — Estendeu-lhe o pedaço de papel no qual
fizera a anotação.
Alexander o guardou no bolso.
— Se tornar a ligar, diga-lhe que ligarei de volta, à
noite. — Devia ter dito que ligaria no dia seguinte, concluiu
logo após.
Planejava ir ver Jamila depois da reunião. Se as
notícias fossem boas, ele a levaria para jantar, de
preferência em algum lugar especialmente romântico.
As notícias seriam boas. Tinham de ser!
A elegante secretária o conduziu à sala de conferências
da Fundação Thurston, e Alexander se viu frente a frente
com Cyril Thurston, que ocupava a cabeceira da mesa,
cercado por três outros cavalheiros.
Uma pasta com papeis fora colocada diante de cada um
dos diretores, decerto cópias da proposta de Alexander. Ele
mal se sentara quando o inquisição começou.
Durante a hora que se seguiu, as cinco pessoas a seu
redor continuaram questionando-o sem cessar.
Só pararam com as indagações quando não havia mais
nada a esclarecer.

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— É um excelente projeto — Alexander comentou. — E
muito necessário. Há crianças morrendo, e vocês poderiam
salvá-las.
— Muito bem. Você receberá notícias nossas — disse
Thurston, dispensando-o.
Alexander percebeu que só reduziria suas chances, se
insistisse.
— Obrigado. Estarei aguardando.
Desejou saber quando seria isso, por quanto tempo
teria de esperar, mas viu algo pessoal nos olhos de Cyril
Thurston e se conteve.
Cyril estava bravo com ele, e devia ser por causa de
Diana. Ela, na certa, contara algo ao avô. Mas o quê? Que
Alexander tinha outra garota? A possibilidade de ele
receber ajuda financeira da Fundação Thurston teria
existido tão só em função de seu relacionamento com
Diana? Teria sido tão ingênuo que não percebera a
verdade?
Não. Conhecia Diana muito bem. Ela jamais usaria a
fundação para propósitos pessoais.
Todavia, Cyril devia saber que Alexander e Diana
tinham estado à beira de uma relação mais séria, mas que
Alexander pôs fim em tudo por causa de outra mulher.
Alexander se viu na praia, olhando para um barco de
pesca se afastando do porto sob o brilhante sol de fim de
tarde e sem que soubesse como chegou ao local.
As crianças deveriam sofrer por ele não ser capaz de
se afastar de Jamila, porque seu desejo por ela era mais
forte do que tudo?
Suspirou e saiu com o carro.
Logo ao chegar e ver o automóvel de Jamila parado na
garagem da casa, sentiu uma onda de emoção invadi-lo.
Em um minuto, bateria na porta e ela viria abrir, talvez
dentro de uma daquelas camisas coloridas que usava como
avental de pintura. Receberia-o sorrindo, aceitando seu
abraço. Morrendo de saudade, ele então a beijaria.

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Morrendo de saudade... Viera até ali por ela, para ela.
Não apenas em busca de seu conforto. Estava cada vez
mais resignado da necessidade que tinha de estar com
Jamila.
Mas não queria que fosse desse modo, como se ela
fosse o único abrigo que poderia se imaginar.
Não falaria sobre a reunião, decidiu. Manteria seu
grande desapontamento só para si. Não iria se
permitir precisar tanto dela.
Bateu na porta e decidiu lhe dar uma campainha de
presente. Poderia instalá-la naquele fim de semana. E
também um olho mágico, para que Jamila pudesse ver
quem chegava, antes de atender.
Quando a porta se abriu, Alexander começou a
estender os braços para alcançá-la, antes que percebesse
que ela não estava lá. Era Sara Miller quem viera recebê-
lo.
— Dr. Kent! Você veio me ver? Eu já fiquei boa.
— Sei disso, meu bem. Jamie está?
A garota o fitou com ar intrigado, e ele se corrigiu:
— Jamila está em casa?
— Sim, lavando os pincéis. Entre. — Alexander seguiu
a garota até a cozinha.
Encontrou Jamila à pia, a cabeça abaixada, cuidando
de seus pincéis. Virou-se à entrada de Sara.
— Alex!
Ele quis cruzar o espaço entre os dois e enlaçá-la com
força, sentindo seu corpo macio lhe dar boas-vindas.
— O dr. Kent veio me ver, Jamie.
Mais tarde, os olhos dele prometeram a Jamila. Mais
tarde ele lhe tiraria aquele suéter sedutor e beijaria cada
centímetro de sua pele sedosa e perfumada.
— Quer ver Squiggles, dr. Kent?
— Quero, Sara.
E a menina se afastou, correndo.

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Alexander aproveitou para se aproximar de Jamila.
Moldou-lhe o rosto com as mãos e a beijou na boca, um
beijo ardente que os deixou sem fôlego.
— Como foi a reunião, Alex? O que decidiram? Ele deu
um passo atrás. Como Jamie soubera?
— Nada foi decidido. Ficaram de me dar notícias.
— Oh, Alex! — Ela tocou sua face com os dedos. — Se
eles se recusarem a apoiá-lo, nós encontraremos um modo.
Quando foi que ele se tornou assim tão aberto a ponto
de Jamila conseguir sentir sua decepção sem que lhe
dissesse nada? Quando foi que começou a precisar tanto
dela, até começar a achar que não havia outro lugar no
mundo para onde desejasse ir quando seu dia terminava?
"Nós encontraremos um modo." Juntos.
Sara foi ao encontro dele fora da porta da cozinha.
— E Squiggles? — Alexander indagou.
Amor. Era isso. Amava Jamila, e não podia evitar.
— Não o encontrei. Ele gosta de passear! Deve ter ido
dar uma volta. — A garota sorriu. — Mas agora tenho de ir
embora. Jamie me levará para casa.
— Você espera um pouco, querida? — perguntou
Jamila.
— Claro!
Ao vê-las, Alexander tentava imaginar como uma filha
deles seria. Ou filho. Teria cabelos loiros como ele teve em
criança, ou castanhos e cacheados, como o de Jamila?
— Pode vir conosco se quiser, Alex — convidou-o
Jamila, hesitando à entrada ao corredor.
— Obrigado. Prefiro aguardar.
Era estranho, mas Alexander não sentiu o frio vazio
quando ela se foi.
Caminhou lentamente pelos quartos. Era um imóvel tão
pequeno, uma verdadeira miniatura, e no entanto, de certo
modo, Alexander se sentia em seu lar ali, muito mais do
que em seu amplo apartamento. Tentou rememorar uma
época, um lugar onde tivesse sido surpreendido por aquela
sensação de pertencer.

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Se fossem viver ali, seria necessário ampliar a casinha,
construir mais dormitórios. Ou procurar outro lugar, com
mais espaço, em um bairro melhor para as crianças.
Afastou-se da janela, o coração batendo forte. Calma,
avisou a si mesmo. Um passo de cada vez. Era um
relacionamento novo o deles, e não tinha como saber onde
terminaria.
No entanto, não podia mais pensar no próprio futuro
sem incluí-la.
Empurrou a porta do pátio aberto e saiu. "Para
sempre" era um pulo muito grande para dar com uma
mulher que, uma semana atrás, ele acreditava ser
inadequada.
Tomou a entrar e seguiu pelo corredor. O que Jamila
acharia de morar no apartamento dele?
Não, ela necessitava do mar. Encontraria uma casa na
praia para eles morarem, com um jardim relvado e quarto
para as crianças. Talvez na ilha de Bainbridge, embora
Alexander nunca tivesse lhe falado sobre seu sonho de
possuir um imóvel lá.
"Nós encontraremos um modo." Claro que era uma
figura de linguagem, mas as palavras dela tocaram sua
sensibilidade.
Passou a mão pelos cabelos. Acreditando ser a
Fundação Thurston a única resposta a sua luta por um
centro de tratamento, ele esqueceu das opções. No dia
seguinte, tornaria a ligar para a Gordon Ali Saints. Talvez
os hospitais não pudessem doar dinheiro, mas Alexander
poderia usar sua influência.
Animou-se um pouco, abastecido por novas ideias, pela
forma embrionária de um novo plano.
Pegou uma caneta e sua agenda de compromissos e
sentou-se na cozinha. Examinou a lista de compromissos
para o dia seguinte e anotou uma serie de nomes e de
telefonemas que teria de dar até a hora do almoço.
Ao repor a agenda no bolso, de dentro dela deslizou um
pedaço de papel no qual sua assistente anotara o número

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de telefone de sua mãe. Pelo código de área, ela devia
estar em San Francisco.
Pegou telefone e digitou. Não foi nenhuma surpresa
ser atendido pela recepção de um hotel. Alisha Kent
morava em hotéis havia anos, desde que se divorciou do
segundo marido. Foi quando ela decidiu retomar sua
carreira de cantora.
Deu o nome de sua mãe à recepcionista, apenas para
descobrir que Alisha deixara o local fazia trinta minutos.
Típico de sua mãe dar um número de telefone e não estar
lá para atender. Encolheu os ombros e repôs o aparelho no
gancho. Ela tornaria a ligar.
Alexander se inquietava. Por que Jamila demorava
tanto? Devia ter levado Sara até seu apartamento. Evidente
que não a largaria na rua.
Rondado através do estúdio, olhou para o cavalete
onde estava um quadro de Sara com Squiggles. Aquela
pintura não mostrava que Jamila era diferente, que se
preocupava com as pessoas? Que a realização de seus
próprios desejos e necessidades jamais anulariam seu
senso de responsabilidade?
Ela fizera muito por Sara, levando Squiggles para casa,
apresentando o mundo da arte à garota.
Estudou o retrato de Sara. Jamila capturou algo mágico
naquele trabalho, o ar sonhador, a terna inocência dos
muito jovens, a selvageria felina adormecida nos olhos
estreitados do gato.
Lembrou-se do quadro de Jamila que comprara na
galeria, A Jovem no Balanço. O problema foi que, ao levá-lo
consigo, notou que a obra não se ajustava à sala de estar.
Ele mesmo não parecia mais se ajustar àquela sala. Até
conhecer Jamila, nunca notara o quanto sua vida e seu
apartamento eram insípidos.
Não podia chamar de lar o lugar onde morava. Aquele
lugar em que estava era um lar, aquela casa que possuía
um estúdio, e no qual em todos os cantos de sua estrutura

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minúscula se podia sentir a personalidade viva e calorosa
de uma mulher.
Sem pressa aproximou-se da parede do fundo onde três
pinturas permaneciam cobertas com pano branco. Ergueu
o primeiro e viu a si próprio sentado em uma cama... a
mesma na qual eles fizeram amor pela primeira vez.
Engoliu em seco. O homem na tela estendia a mão para
uma mulher, um homem irremediavelmente atraído pelo
feitiço da paixão, o olhar demonstrando toda sua ansiedade
e adoração.
Jamila conseguira enxergar dentro dele, alcançado o
lugar mais secreto para tirar proveito da sua
vulnerabilidade, do amor que ele próprio acabava de
descobrir. E usou isso para criar sua imagem em tela,
imortalizar sua fraqueza. Usou-o enquanto lhe ensinava a
precisar dela, apossando-se da fragilidade dele, do
sentimento dele e expondo-os em tela.
A exposição de outono. Ela colocaria aquelas telas na
galeria de Liz, exibindo para qualquer um que lá entrasse,
o desejo contra o qual Alexander não conseguia lutar. Um
poderoso talento novo. Os críticos olhariam a alma dele
naquela obra e escreveriam sobre o que viam em suas
colunas.
— Alex?—Jamila chamou-o ao chegar. — O que você...
Essas pinturas são particulares!
Ele riu com amargor.
— Jura? — Virou a cabeça e viu nos olhos dela sua
fingida inocência. — Foi para isso que fez tanta questão da
amizade de Sara?
— Como assim? Pintei Sara e você... Sou uma artista.
Esse é meu trabalho.
— Quando planejou isso? — Jamila balançou a cabeça.
— Não planejei nada, apensas fiz. Quando vi Sara
sentada com Squiggles no colo, o rosto triste, soube que
estava se lembrando da mãe, ansiando por ela, mesmo
sabendo que não a teria de volta nunca mais. Eu... — Uniu
as mãos. — ...senti necessidade de pintá-la.

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— E quanto a mim? Quando me olhou e me incluiu em
seus planos? Na certa desde o começo você quis passar
para a tela. E sugeriu, Jamie. Disse que queria ter um caso
comigo. E também escolheu o hotel. Eu devia ter
adivinhado.
— Adivinhado o quê?
— Que procurava por uma experiência artística.
Obteve o que desejava? — Aproximou-se, não pôde evitar.
— É o bastante ou quer ainda mais? Duas pinturas? Seis?
Quantas serão necessárias para que satisfaça sua luxúria?!
— Eu te amo, Alex. — Jamila tocou seu peito, e ele
continuou olhando fixo para ela.
— Claro que me ama. Ama a tudo e a todos. Ama Sara,
e a amará até ter sugado dela toda a emoção. E a mim
também. Oh, claro, ensaiou bem seu papel! Mas eu
lamento, porque não ficarei para o fim do espetáculo. Uma
coisa tenho de admitir: você é muito boa de cama.
— Está enganado, Alex.
— Não, não estou. — Desejava afastar-se, mas em vez
disso chegou mais perto, odiando a si mesmo, incapaz de
resistir. Deslizou a mão nos cabelos sedosos e puxou a
cabeça dela para alcançar-lhe os lábios.
Julgou que ela fosse lutar. Queria que ela lutasse, mas
Jamila mais parecia uma boneca de trapo entre seus
braços. Beijou-a com avidez, e em seguida soltou-a, como
se o contato o queimasse.
— Você usa todo o mundo, Jamie. Eu, Sara e aquele
pobre tolo rua abaixo. Até mesmo o gato. Olha para nós,
nos atrai, nos usa, e depois se desfaz.
— Isso não é verdade!
— Não? Pode negar que quando estamos juntos na
cama você está pensando em como aquilo ficaria em tela?
— Acha mesmo que só porque sou apaixonada por
pintura não valorizo meus sentimentos por você?
Ele gargalhou, sarcástico.
— Estou indo embora, Jamila Ferguson, e desta vez é
para sempre. Continue com suas experiências artísticas.

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Mas se colocar aquele quadro à venda, se o puser naquela
maldita exposição, eu a processarei. Tomarei até o último
centavo que ganhou com sua arte. Vou arruiná-la!
Jamila empinou o queixo, os olhos soltando faíscas. De
repente, ele sentiu a energia, a raiva ardendo nela.
— Eu a advirto, Jamie, que irei processá-la.
Ela então apontou o redemoinho vermelho e preto em
tela.
— Somos nós dois ali, Alex, fazendo amor. Quando eu
exibir essa tela, os críticos falarão sobre poder e paixão. E
você pode processar se quiser, porque não ganhará. Vou
chamá-la de Alexander.
— Irá se arrepender!
— Esse é seu objetivo? Fazer com que eu me
arrependa? Desde o início eu sabia que me arrependeria.
Como ousa ficar aí, de pé, me acusando? E quanto a você?
Antipatizou comigo mesmo antes de me conhecer. Ah, mas
você me cobiçou, não foi? E conseguiu o que queria!
— Você se ofereceu.
—Muito conveniente... E agora que me teve, procura
encontrar um modo de cair fora usando o velho subterfúgio
de me culpar. Foi o que fez desde o começo. Tentou jogar
toda a culpa da face da terra sobre mim. Quando voltar
para Diana, tentará se convencer de que deixou de me
querer? Não será fácil, Alex. Se decidir retornar para os
braços dela, se se casar com ela, passará o resto da vida
me querendo!
Pela primeira vez desde que seu irmão faleceu,
Alexander se viu prestes a fazer uso da violência física.
Cerrou os punhos com força.
— Jamie...
— Saia daqui! Saia de minha casa!
Alexander girou nos calcanhares e foi em direção à
saída, lutando contra a vontade que tinha de agarrá-la
pelos ombros e sacudi-la, enterrar a boca na dela até que a
loucura o deixasse.
De algum modo, conseguiu chegar ao carro.

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Jamila que o aguardasse, porque voltaria para pegar
aquele quadro e destruí-lo.
Colocou a marcha à ré e manobrou o BMW. Era melhor
sair dali o quanto antes, ou acabaria entrando de novo
naquela residência, e terminaria a noite, sem sombra de
dúvida, junto dela.

Capítulo X
Na galeria, Liz maravilhava-se ao ver a primeira tela
que Jamila desembrulhou.
— Ficaram incríveis! — exclamou, quando as pinturas
foram recostadas à parede. — Meus parabéns, Jamie.
Jamila analisou o próprio trabalho, dando-se conta de
que falhara. Pintaria a própria aflição, e lá estava ela, mas
pintá-la a não a livrou dela. Não sentiu nenhuma alegria
diante do entusiasmo de Liz.
—Vou falar com Enders em San Francisco. Pretendo
fazer algo grande, não só uma simples exposição aqui na
galeria. Pretendo exibi-las em Nova York também.
— Agradeço, Liz, mas agora eu preciso ir. — Liz
desviou a atenção das telas.
— Você me parece terrível, querida. Espere...
— Entrarei em contato. Adeus, Liz.
— Jamie!
Ela se foi, caminhando apressada através da elegante
galeria até alcançar a saída.
Tinha necessidade de desaparecer, se ausentar de
tudo. Pegaria material de pintura, roupas, Squiggles,
colocaria tudo dentro do carro e partiria para a praia.
Não, para algum lugar diferente, dessa vez. Talvez
subisse em direção ao norte do Canadá. Seguiria dirigindo
rumo ao norte, até alcançar ao Alasca.
Dirigia devagar, reconhecendo que não podia confiar
em seu estado mental.
Alexander não disse que ela não era confiável? Que
usava a tudo e a todos em prol de sua arte? Era verdade,

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mas isso não significava que não o amasse, ou que o
amasse menos.
Alexander nunca quis acreditar no amor que lhe
dedicava.
Estacionou diante de casa. Ao entrar, foi em direção ao
quadro que fizera de Alexander, que deixara para secar.
Quando Alex o viu foi como se tudo o que sentia por ela
fosse destruído. Por quê?
Tocou a tela. Retratou amor nos olhos dele. Se
Alexander não a amasse, por que isso o aborreceria?
Mas se ele de fato a amava...
Vanda, a assistente de Alexander, levou o pacote para o
consultório dele.
— Um mensageiro mandou entregar isto para você,
Alex. Quer que eu abra?
— Não.
Vanda se foi, aturdida com os modos bruscos que ele
assumira havia pouco tempo.
Alexander olhou para o embrulho apoiado contra a
mesa. Era do tamanho de uma das telas de Jamila.
Guardou-o no armário e fechou a porta. Pegou o
interfone e disse a Vanda que mandasse entrar o próximo
paciente.
Duas horas depois, Alexander ainda não se animara a
abrir o pacote que pusera no armário.
Alguém bateu, salvando-o da tentação de abri-lo.
Recebeu Dennis, que entrou e tirou alguns papeis da
pasta. Esqueceu de que o cunhado viria. Esqueceu-se de
muitas coisas naquelas três semanas, mas nem por um
momento conseguiu esquecer Jamila.
— Terminou o expediente, Alex? Não tem mais nenhum
paciente para atender?
— Não. Nenhum. Como foram as coisas lá no banco?
— Diga-me mais uma vez por que estamos fazendo isso
quando ainda não recebemos uma resposta de Thurston?
Não faria mais sentido aguardar?

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— Sabe que eu não sou de esperar. — Alexander sentiu
a familiar pressão no peito aumentar.
Se não tomasse alguma providência urgente quanto
àquela tensão nova, não sabia aonde iria parar.
— O que Jamie acha dessa ideia? — Dennis quis saber.
— Que ideia?
— Não se faça desentendido. Eu acho que nós ainda
poderíamos pensar em uma segunda opção. Você está
falando em dar seus próprios recursos, sua casa, seus
investimentos como garantia do empréstimo que pediu ao
banco. Eu o aconselho a não fazer isso.
— São meus ativos, Dennis.
— É verdade, mas acho que precisa ser melhor
avaliado. Com que dinheiro bancará os custos
operacionais? Jamie poderia aconselhá-lo melhor.
— Jamie não sabe nada sobre finanças.
— Evidente que sabe! Seu pai costuma dizer que ela
tem mais talento natural para lidar com números do que
ele próprio.
Alexander balançou uma cabeça.
— Não vou mostrar nada para ela. Não estamos mais
juntos.
— Talvez seja esse o problema... — Dennis repôs os
documentos na pasta. — Não posso apoiá-lo nisso, Alex. Vá
com calma, dê algum tempo a Thurston. Então, se a
fundação disser "não", procuraremos uma saída.
Alexander sentia a raiva ferver nas veias. Jamila o
traíra, e agora, Dennis.
Seu cunhado parou à soleira.
— Quer um conselho? Esqueça o centro de tratamento
por alguns dias. Procure Jamie e faça as pazes com ela.
Então, talvez você consiga avaliar melhor as coisas.
— Suma daqui, Dennis! — Alexander esbravejou.
Fazer as pazes com ela? Era tudo de que ele precisava,
conselhos do cunhado que não sabia a respeito de Jamila.
Perita contadora... Filha de James Ferguson. Era o que ela
dissera na primeira noite em que eles se encontraram.

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Jamila contou que cursou a faculdade, como seu pai
desejava, mas seu coração batia com a necessidade de
criar arte.
Uma garotinha sem mãe tentando ser o que seu pai
desejava, porque ele era a única família que lhe restava, e
ela ansiava que por sua aprovação.
Jamila teve sorte quando conheceu Liz, que
reconheceu seu talento como pintora e a incentivou a
alimentá-lo.
Devagar, Alexander se aproximou do armário e
apanhou o pacote, desembrulhando a tela. Jamila a
emoldurara, e agora, de certa forma, a nudez a seus
próprios olhos tornou-se ainda mais esmagadora.
Ouviu uma porta se abrir.
— Alex? — Era Emma McKenzie. — Tem um minuto
para falar sobre o problema com Betty Emerson?
Ele não pôde se virar, não conseguiria olhar para ela,
com a mente repleta de lembranças de acordar vendo
Jamila pelo quarto e sentindo a pulsação disparar diante da
visão...
— Desculpe-me, eu não queria interromper... Isso
parece pessoal — disse Emma, com suavidade.
Alexander engoliu em seco, ainda fitando a tela.
— De fato, é.
— Confesso que julguei que ela o tivesse deixado, mas
creio que me enganei.
— O quê? — Alexander virou a cabeça e deu com
Emma olhando para a pintura.
— Tem estado tão abatido, Alex... Essa mulher pintou
isso, mas não o abandonou. Foi você quem a largou, seu
tolo!
Alexander se concentrou em Emma, pressentindo que
estava a ponto de dizer-lhe algo muito importante.
Emma descansou a mão no ventre, como toda mulher
grávida fazia, e sorriu com tristeza.

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— Tem de abrir os olhos, Alex. A moça que pintou esse
quadro está loucamente apaixonada com você, não tenho a
menor dúvida disso.
— Como pode fazer tal afirmação apenas olhando para
o quadro?
— Quando descobri que amava Gray com loucura, se
eu pudesse tê-lo retratado num quadro, teria colocado essa
expressão nos olhos dele. Sonhava que um dia Gray me
olhasse como se eu fosse o mundo dele. Alex, seu bobo
apaixonado, encontre-a e diga-lhe que também a ama. O
que está esperando?
E Emma foi embora, deixando aquelas palavras
ecoando atrás de si.
O que pinta um pintor? ele se perguntava. Seus
sonhos, seus medos, sua dor?
Jamila pintara Sara ansiando pela mãe que nunca mais
voltaria.
Claro que Jamila sentia-se atraída pela menina. Ela
mesma perdera a mãe, entendia o sofrimento da garota e
quis aliviar sua dor.
Alexander tentara em vão agarrar-se à imagem de
Jamila como uma jovem exótica e perigosa, como se
pudesse se proteger mantendo-a distante.
Manteve distância de todos, durante toda a vida
protegendo-se de vínculos mais íntimos. Quando achou que
chegara a hora de procurar uma esposa, na verdade
buscava não se envolver, fixando-se em mulheres que eram
suas amigas, não amantes, o que o manteria a salvo de
sofrimento.
Nem mesmo com a própria irmã compartilhava a si
mesmo. Evitava a maioria de seus convites, e mudava de
assunto quando ela tentava falar sobre a mãe deles.
Quanto a Alisha, Alexander não lhe dera nenhuma chance.
Apenas frios telefonemas e um ou outro jantar quando ela
estava na cidade. Jamais a convidou para se hospedar em
sua casa.
Nunca a perdoou pela morte de Ricky, seu irmão.

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Porque ela era uma criatura de paixões, saltando de
impulso para impulso, sem jamais olhar para trás. Porque
Ricky, seu próprio filho, precisou muito de seus cuidados.
Alisha, no entanto, mantinha-se mais preocupada com as
chances de se tornar cantora da banda do que com a vida
de seu menino.
Alexander saiu do consultório carregando o quadro.
Colocou-o no carro e foi para casa. O telefone tocava
quando chegou. Correu para atender.
— Jamie...
— É Cyril Thurston falando.
Ele fechou os olhos, lutando com a própria decepção.
— Sim, sr. Thurston.
Iria vê-la logo após aquela ligação. Não sabia o que
diria, mas tinha de vê-la.
— ...deliberações concluídas — Thurston estava
dizendo. — ...nós decidimos prosseguir com o projeto.
Precisamos nos sentar e discutir.
— Discutir? — Alexander perdera algo ali. — Quer
dizer que vocês vão financiar meu centro de tratamento?
— Sim. Mas, como digo, precisamos sentar e examinar
melhor a proposta. Dadas as necessidades da área de
Seattle, poderíamos aumentar o projeto. Podemos nos
encontrar amanhã?
Momentos depois, Alexander desligou, sem acreditar
no que ouvira. A Fundação Thurston financiaria tudo e
ainda queria que o prédio fosse maior. Dessa vez, insistiria
para que Dennis estivesse presente à reunião.
Discou o número do cunhado.
— Eu não lhe disse? Só perdemos tempo com aquela
proposta que fizemos ao banco.
Quando Alexander acabou de falar com o cunhado, viu-
se outra vez sozinho com o quadro que Jamila lhe enviou.
Tornou a pegar o telefone e discou os três primeiros
números da casa dela, mas desistiu.

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Embora o automóvel estivesse estacionado na
garagem, Jamila não atendeu quando ele bateu na porta.
Tornou a bater, e nada.
Deu a volta, chegando ao terraço. Deu pancadinhas na
janela, esperando, por fim, ganhar sua atenção.
Existia algum modo de dizer a sua amada o quanto
lamentava e implorar para que o perdoasse? Devia ter
ligado antes. E trazido flores. Devia isso a ela.
As janelas estavam escuras, e não havia uma única luz
dentro da residência. Não dava para ver nada. Pulou para
dentro do terraço e tentou a porta corrediça. Trancada.
Precisava ver Jamila, falar com ela, confessar que a amava.
O coração de Jamila disparou quando dobrou a esquina
e avistou o BMW de Alexander estacionado junto à
entrada. Respirou fundo e caminhou devagar.
Notou um movimento perto do portão, uma sombra que
de repente se transformou em Alexander quando ele
alcançou a rua.
— Onde você estava? — Ele parecia calmo, calmo
demais.
— Caminhando.
— Sozinha, à noite?
— O bairro é bastante tranquilo e seguro.
— Eu me preocupo com você, Jamie. Não posso evitar
isso. — Ela nada disse.
— Por que me enviou o quadro?
Jamila não respondeu. Não pôde. Talvez em um
momento a raiva viria e ela poderia falar.
—Temos de conversar. — Alexander tocou seu braço. —
Viria comigo?
— Claro.
Dentro do carro, o silêncio tornou-se opressivo. Jamila
abraçou-se e olhou para as mãos dele no volante, enquanto
Alexander cruzava a ponte rumo a Capital Hill. Em um
bairro elegante, entrou numa garagem. Quando desligou o
motor, a porta de garagem se fechou atrás dele.
— Você mora aqui?

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— Moro.
Sem fitá-lo, Jamila saiu do veículo, dizendo a si mesma
que tinha de passar por aquilo, fingir que ele não partira
seu coração, tolerar estar perto dele sem sentir seus
braços a seu redor, sabendo que nunca mais a abraçaria.
Em instantes, chegaram ao apartamento. Adentraram a
sala de estar, decorada com mobília de couro e tapete
branco. Pararam bem no meio, olhando um para o outro,
separados pela mesinha de café.
— Não sei o que lhe dizer, Jamie.
— Então, direi eu. Eu te amo, Alex. Creio que isso
aconteceu quando estávamos diante do prédio de Sara,
procurando o gato no meio da chuva. Foi como se eu o
conhecesse desde sempre.
— Jamie... Quantas vezes eu a feri! Na primeira vez
que fizemos amor, fui tão ganancioso que não pude me
conter.
— Eu tentei fazê-lo perder controle, admito. No
princípio, disse a mim mesma que seria apenas um caso.
Nunca tinha tido um, e achava que já era hora. Fiquei
amedrontada, porque foi demais, e descobri que não
poderia ser apenas um romance fortuito.
Ela o encarou.
— Aquilo que me disse sobre eu estar usando tudo e
todos é verdade. Contudo, já sabia que te amava, e também
que não duraria, porque você iria me deixar. Portanto, falei
para mim mesma que, quando chegasse a hora, eu passaria
minha dor para a tela e a venderia. Você tinha razão.
Alexander chegou mais perto e deslizou os dedos por
entre os cabelos castanhos.
— Você é uma artista, com olhos de artista. É parte de
sua natureza, não uma falha. — Engoliu com dificuldade. —
Prometi que nunca usaria sua pintura contra sua pessoa,
Jamie, entretanto foi isso o que fiz. Vi em seu trabalho o
quanto precisava de você, e isso me aterrorizou. E, para
me proteger, usei sua arte contra você. Não sei como
poderá me perdoar.

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Ela ficou na ponta dos pés para alcançar seus lábios,
mas Alexander assumiu o controle do beijo, cobrindo os
lábios dela com os seus, uma saudade imensa a queimar
seu peito.
— Se fizer isso de novo, não poderei dizer as coisas
tenho de dizer. — Alexander respirou fundo. — Eu te amo,
Jamie. Se não te amasse tanto, não teria sido tão bruto.
Não estava pronto para amar, e não sabia disso até me
apaixonar por você. Não percebi o quanto meu mundo era
vazio até nos conhecermos.
Jamila viu os olhos dele mudarem de cor, e tocou sua
face, maravilhada.
— Eu o pintei assim... Exatamente assim. — Sorriu,
suave. — Tenho mais uma mais coisa para confessar.
— Também tenho. Há um milhão de coisas para lhe
dizer, mas primeiro... — Os lábios dele mais uma vez
encontraram os dela.
Jamila correspondeu sem reservas.
— Este lugar é frio demais para se viver. Para mim, sua
casa se parece muito mais um lar.
Jamila viu o quadro no momento em que Alexander
cruzou a sala de estar com ela no colo.
— Alex...
— Eu te quero muito, Jamie. — Deitou-a na cama. — E
não apenas aqui, em meu leito, mas em minha vida. Anseio
pelo dia em que saberei que você estará me esperando
quando voltar para casa, após um dia de trabalho, pelo dia
em que poderemos construir nossas vidas juntos.
As palavras se perderam quando ele a beijou mais uma
vez.
— Alex, naquela primeira vez, quando fizemos amor,
quando você temeu que eu tivesse engravidado, no fundo
da alma quis que fosse verdade. Queria muito um filho seu,
e chorei quando descobri que não estava grávida, que não
teria nada de seu.
— Você tinha o quadro, mas o enviou para mim.
— Existe outro. Tornei a pintá-lo.

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— Ainda bem que não se desfez de tudo o que se
relacionava a mim... — Ele riu. — Jamie, Jamie, diga, meu
amor, você se casará comigo?
Jamila não cabia em si de alegria.
— Sim, meu querido, claro que me casarei!
— Ainda bem, porque sem você eu não saberia viver.
Sem você, tudo a meu redor é preto e branco.
Transbordando de felicidade, sentindo-se dentro do
próprio arco-íris, Jamila se entregou de corpo e alma ao
homem que amava.

Fim

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