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Anjo Rebelde

Debbie Raleigh

Romance Histórico — Julia nº 1380

Copyright © 2002 by Debbie Raleigh


Originalmente publicado em 2001 pela Kensington Publishing Corp.
TÍTULO ORIGINAL: The Wedding Wish
EDITORA Leonice Pomponio
ASSISTENTE EDITORIAL Patrícia Chaves
EDIÇÃO/TEXTO
Tradução: Eugênio Barros
Copidesque: Maiza Bernardello
Revisão: Claudia Morato
ARTE: Mônica Maldonado
ILUSTRAÇÃO Hankins + Tegenborg, Ltd.
MARKETING/COMERCIAL Daniella Tucci
PRODUÇÃO GRÁFICA: Sônia Sassi
PAGINAÇÃO: Dany Editora Ltda.
© 2006 Editora Nova Cultural Ltda.
Impressão e acabamento: RR Donnelley Moore

PROJETO REVISORAS

Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos.


Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida.
Cultura: um bem universal.

Disponibilização do livro: MARISA NISHIMURA


Digitalização: Palas Atenéia

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Revisão: Jucilene

Londres, século XIX


Sorriso encantador... e gênio indomável...

Rachel sabe que a sociedade não aceitará de braços abertos a filha de um


notório ladrão, e que nenhum dos cavalheiros que flertam com ela ousará
pedi-la em casamento. Rachel resolve, então, fazer os jovens e emproados
lordes provar do próprio remédio, deixando que se apaixonem e depois
dispensando-os. Mas isso muda quando ela conhece Anthony Clarke, um
homem bonito, inteligente e bem-humorado, que não se preocupa com o que
as pessoas pensam ou esperam dele. Isso será suficiente para que ele e Rachel
possam ter esperança de encontrar juntos a felicidade? Somente o tempo dirá,
porque além das pressões da sociedade, Anthony terá de ser muito persistente
para domar a personalidade daquela linda dama, um verdadeiro anjo rebelde!

Debbie Raleigh
começou a escrever romances de época depois de uma viagem à Inglaterra, Suas
histórias se caracterizam pelos cenários vividos, personagens marcantes e senso de

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humor refinado, transportando o leitor a um tempo em que galantes cavalheiros e jovens
donzelas escapavam dos salões de baile para um beijo roubado à luz do luar.

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Capítulo I

A magnífica opulência do Teatro da Ópera, em todo seu esplendor,


tanto interno como externo, era pouco apreciada pela grande multidão que se
movimentava pelos corredores e ocupava platéia, frisas e camarotes.
Aquelas pessoas não freqüentavam a ópera para se maravilharem com
a beleza da casa de espetáculo, nem para apreciar as performances encenadas
no palco. A grande maioria ia à ópera para ver e ser vista.
Parada perto da grande escadaria de mármore que levava ao foyer, a
srta. Rachel Cresswell observava a multidão com vivo interesse. Embora ainda
fosse fevereiro, as pessoas abandonavam o recolhimento causado pelo
exaustivo inverno e dedicavam-se aos prazeres que Londres oferecia nas
noites ainda frias.
A primeira vista, ela era uma linda donzela. A estatura era pequena,
mas bem proporcionada, os cabelos eram loiros e os olhos cor de avelã. Na
verdade, ela era mais do que apenas bonita, era uma mulher impressionante.
Bastava olhá-la para nunca mais esquecê-la.
Mas não eram as delicadas feições ou a pele de porcelana que
asseguravam o fato de ser considerada "a incomparável" por todos os
cavalheiros que freqüentavam os exclusivos salões de Londres.
Era sim a vibrante energia que emanava dela. Não se tratava de uma
insípida debutante, concordavam os cavalheiros em sua totalidade. Rachel era
audaz, incansável e ousadamente vivaz. Era também ardilosa.
Uma mistura perfeita para atrair a atenção de qualquer homem que
tivesse sangue nas veias.
Consciente de seu encanto natural, Rachel aceitava os admiradores com
satisfação. E por que não? Como filha de um ex-assaltante e golpista
conhecido como o Malvado Dândi, sabia que as portas da sociedade estavam
firmemente fechadas para ela. Portanto, que mal havia em usar seu charme
para receber convites de festas feitos por pessoas que a admiravam?
Usando um bonito vestido de seda em tom de vinho, Rachel abanava-se
com o leque para proteger-se do calor do ambiente apinhado. A seu lado, um
cavalheiro alto e atraente olhava com insistência para o decote de seu vestido.
— Você é maravilhosa — ele estava sussurrando num tom malicioso. —
Resplandecente como um raio de sol, tentadora como...
— Sr. Mondale, está se tornando repetitivo — disse Rachel, indiferente
ao fato de que aquele cavalheiro era considerado irresistível pela maioria das
mulheres. — Comparou-me a um raio de sol na noite passada.
Os olhos azuis brilharam de prazer.
— É porque palavras não revelam a profundidade de meu desejo por
você, minha querida. Há métodos mais agradáveis de provar tão doces
emoções.
— Sem dúvida.— Ela levou a mão à boca para espantar um bocejo. O
sr. Mondale deu uma gargalhada e acercou-se dela para sentir o perfume de
rosas que emanava da pele macia.

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— Quanto tempo pretende atormentar-me? — perguntou ele.
— Pelo tempo que o senhor divertir-me.
— Mulher perversa. Rachel suspirou.
— Como? Momentos atrás eu era um anjo caído do céu e agora sou
uma mulher perversa?
— Vamos sair deste lugar. Preciso ficar sozinho com você.
— Não seja ridículo. — Rachel prestou pouca atenção às tentativas de
sedução do sr. Mondale. Em vez disso, seu olhar incansável pousou sobre um
homem de cabelos escuros que se encontrava no corredor.
Era muito bonito, de uma maneira quase poética. Os cabelos negros
eram mais compridos que o usual e as feições finamente esculpidas. Porém, a
roupa escura não continha adorno e sua presença era despretensiosa. Os olhos
eram profundos e negros como carvão. Ele era muito diferente dos outros
cavalheiros que compunham o ambiente.
— Quem é aquele homem?
Tentando disfarçar á impaciência pelo inusitado interesse de Rachel, o
sr. Mondale virou-se para sondar a multidão.
— Onde?
— O cavalheiro vestido de preto.
— Ah, Anthony Clarke.
— Acredito que nunca o vi por aqui. Mondale deu de ombros.
— Eu ficaria surpreso se tivesse visto. Ele é um inventor e não se
preocupa muito com a sociedade. Prefere entreter-se com seus apetrechos
esquisitos e não sei mais o quê.
— Ele deve ser muito estranho.
— Peculiar, talvez, mas um homem de bom caráter.
O olhar de Rachel estudou a figura morena. Embora soubesse que
alguém que queria se excluir da sociedade devia ser um pouco maluco, não
podia negar uma ponta de curiosidade em relação a Anthony Clarke.
— Ele tem olhos realmente bonitos — murmurou Rachel. — E ombros
largos e fortes.
— Não desperdice seu talento, minha princesa — zombou Mondale.
— Não entendi.
— Clarke nunca se interessará por uma mulher, mesmo uma tão
encantadora como você.
— Por que diz isso?
— É um dos cavalheiros mais ricos da Inglaterra. Ele tem todas as
debutantes, viúvas e cortesãs a seus pés desde a adolescência.
Independentemente do quão bonitas ou desejáveis sejam, elas nunca
conseguem despertar-lhe o mínimo interesse. Somente a maravilhosa Pandora
conseguiu penetrar em uma pequena parte da vida de Clarke, e apenas porque
ela é tão sangue-frio quanto ele.
Rachel ergueu a sobrancelha de uma maneira predatória. Era uma
mulher acostumada a conquistas fáceis. Saber que havia um cavalheiro
indiferente a seu charme só fez aumentar-lhe o interesse.
— Um desafio.
— O homem tem gelo nas veias. Não pode apreciar uma mulher
vibrante, impetuosa e ardente como a senhorita. Eu, por outro lado, sou capaz
de total apreciação. Desejaria que lhe demonstrasse?

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— Já demonstrou o suficiente, meu caro senhor.
— Apenas comecei — murmurou Mondale. Então, notando um
cavalheiro aproximando-se rapidamente, ele empertigou-se. — Parece que um
de seus colegas e admiradores de escola está chegando.
Rachel sorriu. Mondale não sabia que lorde Newell não era apenas outro
admirador. Ela tomara especial cuidado de preparar uma armadilha para o
jovem cavalheiro no momento que ele chegara a Londres.
— Srta. Cresswell. — O jovem Newell beijou-lhe a mão. — Temi não
encontrá-la no meio dessa multidão.
— Certamente não esteve procurando por mim, milorde.
— E claro que estive. Nunca viria a um lugar tão maçante se não
houvesse a mínima esperança de encontrá-la.
— Meu Deus, o rapaz ainda nem saiu dos cueiros — sussurrou Mondale
no ouvido de Rachel. — Vamos embora daqui.
Rachel ignorou-o e direcionou todo seu charme para o infeliz lorde
Newell.
— Que enfadonho para você, milorde.
— Todavia, eu mal podia esperar para vê-la.
— Muita delicadeza sua dizer isso.
— Nada mais do que a verdade. A senhorita precisa saber como me
sinto.
— Preciso?
No momento em que lorde Newell ia jurar-lhe sua eterna devoção, foi
interrompido por uma rotunda matrona num horrendo traje amarelo.
— George— chamou-o a senhora roliça, a expressão raivosa diante do
jovem lorde que, obviamente, cortejava Rachel. Lorde Newell praguejou,
embaraçado.
— Algum problema, milorde? — perguntou Rachel, divertida.
— Minha madrinha. Está determinada a me empurrar para a filha dela.
O olhar de Rachel moveu-se para as duas donzelas que vinham pouco
atrás da sra. Broswell. Pobrezinhas. Elas tinham grande semelhança com a
mãe.
— Realmente, é uma infelicidade a sua — disse Rachel, contendo o riso.
— Um estorvo, para ser mais explícito.
— George — voltou a chamá-lo a sra. Broswell, aproximando-se agora.
— Como ousa falar com uma marafona comum?
— Minha senhora! — protestou o jovem lorde, chocado.
— Marafona!?! — exclamou Rachel.
— Sim, marafona, ou prefere meretriz? O que se pode esperar da filha
de um notório ladrão? — esbravejou a sra. Broswell, chamando a atenção dos
que por ali passavam. — Todo mundo sabe que seu pai é um criminoso,
mocinha.
— Pelo menos, meu pai me ensinou boas maneiras — respondeu
Rachel. — Justamente o que parece faltar em alguns membros da sociedade.
— Você é a obra do demônio e só posso agradecer a Deus por estarmos
partindo para Surrey amanhã, onde mulheres de sua espécie não são bem-
vindas.
— Estou certa de que Londres festejará sua ausência, senhora. Uma
risadinha divertida ecoou do meio da multidão. Era óbvio que alguém se

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deliciava com o comentário espirituoso de Rachel.
— Você é mal-educada também. Suponho que não poderia esperar
outra coisa de uma mocinha com sua origem.
— Verdade? E por quê? — perguntou Rachel com ironia.
— Ninguém nega seu sangue — replicou a sra. Broswell de modo
arrogante.
— Ah, você quer falar de linhagem e parentesco? — Rachel sorriu com
ar irônico.
O medo transfigurou o semblante da velha senhora quando ela
percebeu, tarde demais, seu erro. No geral, era muito cautelosa em suas
tentativas de barrar Rachel da sociedade. Preferia rumores maliciosos à
confrontação direta. Afinal, haveria sempre a possibilidade de provocar a
garota a ponto de fazê-la revelar uma verdade que lutava por esconder. Por
isso, procurou um meio de fugir sem parecer covarde.
— George, estamos partindo. Não deixarei minhas filhas expostas a
essa mulher.
— Mas, minha senhora... — gaguejou lorde Newell
— Agora, George. Ela passou por Rachel e desceu a escada, apressada.
— Perdoe-me — murmurou lorde Newell, embaraçado. — Eu a
procurarei tão logo volte de Surrey.
Rachel virou-se para o sr. Mondale enquanto o rapaz corria atrás da
madrinha. Estava furiosa. Como aquela megera ousara insultá-la em público,
chamando-a de marafona e insinuando que as preciosas filhas poderiam
contaminar-se com sua mera presença?
Gostaria de ir atrás dela e forçá-la a admitir que as duas tinham muito
mais em comum do que ela gostaria de admitir.
Em vez disso, abanou-se com o leque e brincou com o imenso rubi
pendurado no pescoço. Estava bem ciente da multidão que se juntara para
testemunhar a cena desagradável. E não queria atender os ávidos fofoqueiros
de plantão. A única maneira de superar uma humilhação pública era fingir que
nada ocorrera.
— Que mulher grosseira — comentou o sr. Mondale. — Parece que ela
não lhe quer muito bem, minha querida.
— Desta vez ela foi longe demais — murmurou Rachel por entre os
dentes.
— Não estou gostando de sua expressão. O que está tramando? Rachel
surpreendeu-se ao notar que seu acompanhante era tão perceptivo. Ela
precisava de privacidade para completar os detalhes de seu desejo de
vingança.
— Nada mais escandaloso do que uma visita a Surrey.
— Surrey? Você deve estar brincando.
— Não posso pensar em nada mais divertido no momento — assegurou-
lhe ela. — Agora, se me der licença, preciso ir embora.
Com a cabeça erguida, Rachel passou pela multidão e desceu a escada.
Com um movimento gracioso, pegou sua capa e pediu pela carruagem dos
Amberly, que a levara à ópera juntamente com a sra. Amberly e a filha,
Serena. Provavelmente a sra. Amberly não desejaria partir tão cedo, pensou
Rachel. Havia tempo suficiente de chegar à pequena casa que compartilhava
com o pai e então a carruagem poderia voltar para apanhar sua anfitriã. Ela

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pediria a um criado para informar a sra. Amberly que tivera uma forte dor de
cabeça e fora forçada a retirar-se mais cedo.
Perdida em seus pensamentos, Rachel atravessou o foyer com passos
rápidos. A sra. Broswell queria guerra. Pois bem, ela ficaria satisfeita em
providenciar-lhe uma. Rachel Cresswell nunca fugira de um desafio na vida.
Nunca!
Estava tão imersa em seus devaneios que, de súbito, colidiu com uma
figura masculina.
— Oh!
— Cuidado, senhorita — murmurou uma voz profunda enquanto braços
fortes a seguraram pela cintura.
Um tremor percorreu o corpo de Rachel quando percebeu que estava
diante do misterioso sr. Clarke. Por um ínfimo momento, permitiu que a mão
pequenina tocasse o peito largo e sentiu o calor do corpo dele envolvê-la.
Estava incerta sobre o que acabara de acontecer.
Nos últimos anos, conhecera um incontável número de cavalheiros.
Alguns charmosos, alguns espirituosos e outros perigosos. Mas nenhum
conseguira realmente tocar-lhe o coração como agora. Não querendo parecer
ridícula, esboçou um leve sorriso.
— Desculpe-me, creio que não estava prestando atenção para onde ia.
— Perfeitamente compreensível sob as circunstâncias. Ela sorriu,
envergonhada.
— O senhor testemunhou a cena horrível?
— Difícil não testemunhar.
— Sim, suponho que seja. Tenho um temperamento terrível.
— Creio que a senhorita foi devidamente provocada. Provocada? A sra.
Broswell a desafiara.
— Aquela megera — murmurou ela. — Eu a farei arrepender-se do que
disse.
— Posso lhe dar um conselho, sita. Cresswell? Rachel ficou alarmada
pelo fato de ele saber quem era.
— Sim, claro.
— O caminho da vingança raramente é satisfatório. Seria melhor que
esquecesse os insultos da velha senhora.
— Não nesta ocasião. Já é hora de aquela mulher aprender uma lição de
boas maneiras.
Dedos longos tocaram-lhe a face corada.
— Uma jovem ta...tão bo...bonita deveria estar aproveitando a vida,
não se importando em se vingar de um comentário infeliz.
Deliciada com a sensação do toque gentil, Rachel fitou-o surpresa.
— Você gagueja levemente.
— Sim — aquiesceu ele.
— Oh, sinto muito.
— Por quê? Você apenas foi franca.
— Acho que é charmoso — disse sinceramente. Clarke deu uma
gargalhada.
— A senhorita é uma moça linda e muito consciente de seus poderes. —
A mão viril novamente ergueu-se para lhe delinear os lábios. O coração de
Rachel disparou diante do breve contato. — Mas tem de ter cuidado. Não

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gostaria de vê-la ferida pelas chamas de suas próprias paixões.
Rachel perdeu o fôlego.
Ainda estava aturdida quando foram interrompidos por um lacaio,
informando que a carruagem chegara. De repente, Rachel percebeu que não
queria que aquele momento terminasse. E se nunca mais o visse?
— Sr. Clarke.
— Sim?
— Gostaria de ver suas invenções algum dia. Ele sorriu, mas a
expressão era inescrutável.
— Talvez.
Rachel mordiscou o lábio, não satisfeita com a resposta vaga. Seria
possível que ele não sentisse a mesma excitação? Talvez não. Quem poderia
saber? De qualquer forma, não era hora de distrair-se com um par de olhos
misteriosos e uma voz grave que gaguejava levemente, mesmo que Anthony
Clarke a tivesse impressionado mais do que gostaria de admitir.
Anthony permaneceu nas sombras do foyer quando a charmosa srta.
Cresswell partiu.
Um sorriso aflorou nos lábios carnudos.
Ele não quisera ir à ópera naquela noite. Na verdade, acatara uma
ordem de sua tia-avó, que insistira que fizesse uma aparição em público para
amenizar o que as más línguas vinham dizendo de sua reclusão. Agora, porém,
percebia que devia agradecer à velha senhora.
Fazia muito tempo desde que experimentara a emoção do desejo,
admitiu. Nos últimos anos, vinha dedicando sua atenção quase que
exclusivamente às várias invenções em que trabalhava.
Além disso, a reclusão da sociedade o mantinha afastado das inúmeras
caçadoras de fortuna que o perseguiam sem descanso.
Embora tivesse ouvido rumores sobre a espirituosa e elegante srta.
Cresswell e, é claro, sobre o pai dela, nunca esperara que a jovem fosse tão
intrigante.
Certamente, era uma garota atrevida muito segura de seu charme. Mas
havia também uma ponta de vulnerabilidade na profundeza dos magníficos
olhos. E uma paixão selvagem que tentaria até um santo.
Sim, ele teria de deixar de lado as invenções por algum tempo.
— Aí está você, Anthony — uma voz impaciente interrompeu-lhe os
pensamentos. — O que está fazendo aqui, escondido nas sombras?
Voltando a cabeça, Anthony avistou seu primo, lorde Varnwell, com um
sorriso nos lábios.
— Você ficaria ad...admirado pelo o que se pode descobrir nas sombras.
— Imagino que seja a encantadora srta. Cresswell.
— Sim, ela é muito encantadora.
— Não me diga que finalmente você encontrou a mulher que mexeu
com seu coração frio? — provocou lorde Varnwell.
— Somente porque procuro guiar-me pela lógica, e não pela luxúria,
não significa que possuo um coração frio.
— Não acredito que você estivesse se atendo à lógica enquanto flertava
com a srta. Cresswell.
Anthony recordou-se do calor selvagem que o inflamara quando os dois
tinham colidido.

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— N...não inteiramente.
— Talvez você tenha mais sorte do que o resto de nós em ir para a
cama com ela. Rachel Cresswell tem sido muito esquiva, mas duvido que
resista a sua escandalosa fortuna.
— Precisa ser tão rude, primo? — protestou Anthony, incerto se estava
indignado pelo insulto a srta. Cresswell ou pela implicação de que seu único
atrativo estava depositado num banco próximo.
— Desculpe-me. Apenas deduzi que estivesse procurando uma nova
amante. Rompeu com Pandora, certo?
A raiva de Anthony transformou-se em resignação. Por mais que
evitasse a sociedade, todos pareciam saber de seus movimentos. É claro que o
primo soubera quando ele decidira terminar o longo envolvimento com a bela
viúva.
Na verdade, Anthony simplesmente se entediara. Embora a princípio a
atitude fria e a aversão por emoções excessivas de Pandora o tivessem
atraído, com o tempo, a relação acabara se transformando num tédio
crescente. De repente, ele começara a ansiar por mais emoção, mais ardor nos
relacionamentos.
Talvez o tipo de ardor que emanava da bela srta. Cresswell.
— Você possui um interesse extraordinário por meus casos pessoais e
minha vida privada, Varnwell.
— A culpa é inteiramente sua — queixou-se o primo. — Se não fosse
tão reservado sobre seus casos, o restante de nós não sofreria de tanta
curiosidade.
— Preferiria que eu alardeasse minhas c...conquistas no clube?
— E uma prática usual da maioria dos cavalheiros.
— Raramente me preocupo com o que é prática aceitável e usual.
— Isso é verdade — concordou Varnwell. — Todavia, a srta. Cresswell é
maravilhosa. Se não está interessado, continuarei tentando conquistá-la.
Os olhos escuros estreitaram-se.
— Acredita que ela possa estar aberta a uma relação?
— Por que mais freqüentaria a alta sociedade? Ela não pode esperar por
uma proposta de casamento. Nenhum nobre ousaria se casar com a filha de
um ladrão.
— Por que não?
— Meu Deus, ela é filha do Malvado Dândi, o mais notório criminoso da
Inglaterra!
— Sei disso. Mas também sei que tem duas irmãs que conseguiram
propostas bem vantajosas — apontou Anthony.
— É verdade. Uma delas fisgou o Conde Flawless.
— E, a outra, lorde Hartshore.
— Acha que Rachel Cresswell estaria propensa a aceitar uma proposta?
— Não tenho a mínima idéia. Varnwell deu um profundo suspiro.
— Eu sabia que ela era boa demais para ser verdade. Anthony olhou
para a porta através da qual a srta. Cresswell acabara de desaparecer.
Seria mesmo boa demais para ser verdade?
Bonita, apaixonante, astuta e, acima de tudo, inocente por baixo da
pretensa sofisticação.
E, por alguma estranha razão, de repente Anthony Clarke estava

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determinado a descobrir a resposta para aquela pergunta custasse o que
custasse.

Rachel bocejava enquanto a carruagem percorria a estrada estreita.


Não gostava de viajar. Depois de horas de estrada, seu elegante vestido
estava amarrotado e os pés doíam. E, o pior, estava entediada. Somente o
fato de saber que estava prestes a colocar seus planos de vingança em ação a
impedia de mandar o cocheiro voltar imediatamente ao conforto de sua casa
em Londres.
Com esforço, tentou aliviar-se do enfado da viagem, pensando no
choque e horror da sra. Broswell quando descobrisse que Rachel Cresswell
seria sua vizinha pelas próximas semanas.
Junto com ninguém mais ninguém menos que o Malvado Dândi, é claro!
Na verdade, ela nunca pretendera aceitar o convite da srta. Carlfield
para seu baile de noivado. Embora fosse muito afeiçoada à querida Violet,
tinha aversão a festas em casas de campo, onde as pessoas eram forçadas a
suportar os mesmos convidados por dias sem fim. Sem mencionar as tediosas
reuniões musicais íntimas e chás que eram inevitáveis. Mas saber que Broswell
Park ficava a menos de um quilômetro da casa da srta. Carlfield rapidamente a
fez mudar de idéia. Estava prestes a provar à sra. Broswell que era muito mais
bem-vinda entre a sociedade de Surrey do que ela e suas filhas sonsas
imaginavam.
A seu lado na carruagem, um cavalheiro alto e musculoso, vestido com
um casaco azul e colete prata, Salomon Cresswell, parecia ter domesticado
aquele lado de sua personalidade que já fora conhecido como Malvado Dândi.
Somente os brilhantes olhos verdes faiscavam com familiar diversão.
Rachel não requisitara o pai para acompanhá-la a Surrey. Desgostava-
lhe a idéia de expô-lo daquela maneira.
Livre da prisão, por anos ele conservara sua verdadeira identidade em
segredo. Embora toda a Inglaterra e a Europa já tivessem ouvido falar do
ousado e romântico Malvado Dândi, sua verdadeira identidade era
desconhecida para muitas pessoas.
Infelizmente, tudo mudara quando um assassino comum apontara
Salomon como o notório ladrão. Sem aviso, o pai fora enviado para Newgate a
espera do nó do carrasco. Tinha sido um milagre que tivesse conseguido
escapar incólume.
As autoridades haviam mantido Salomon segregado da multidão curiosa
que circundava a cadeia, à espera de olhadela no escandaloso ladrão. No
entanto, o fato de toda a Inglaterra saber que Salomon Cresswell era o
Malvado Dândi aumentava o medo de Rachel de que ele fosse reconhecido.
Mas seu pai fora inflexível. Jovens solteiras não viajavam pelo campo
por conta própria, insistira. E Rachel sabia que ele se preocupava com o desejo
dela por vingança.
— Bem, minha querida, quase chegamos a nosso destino — comentou
Salomon. — Está certa que quer continuar com isso? Rachel ergueu o queixo
determinada.
— Claro. Já tolerei demais os insultos e tentativas da sra. Broswell de
envergonhar-me perante a sociedade.
— Você já imaginou, Rachel, que lady Broswell está meramente

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tentando punir-me por ter tido a audácia de apaixonar-me pela irmã dela?
Chegaram a dizer que Rosalind morrera, em vez de admitir que ela casara-se
com um cavalheiro que não tinha fortuna de família e muito menos um título
de nobreza.
Rachel não gostava de lembrar-se de que era, de certa maneira,
parente da sra. Broswell. Este era o fato pelo qual eles tinham levado seu pai
para fora do país, e que o forçara a tornar-se um ladrão para sustentar a
esposa e a família crescente. E, depois de todos aqueles anos, somente o
irmão de sua mãe, lorde Scott, revelava um pouco de remorso.
— Então você concorda que ela tem de ser punida? — exigiu Rachel.
— Sempre acreditei que o ciúme dela e natureza amarga eram punição
suficiente.
— Não desta vez. Salomon gargalhou.
— Ah, minha pequena agitadora. Sempre tão apaixonada e impulsiva.
Parecida demais com seu velho pai.
— Aceito isso como um elogio.
— Então, o que pretende fazer?
— Nada ultrajante. Asseguro-lhe.
— Gostaria de acreditar. Você é sempre ultrajante.
— Fui informada de que faz parte do meu charme — provocou-o Rachel.
— Sim. Junto com seu grande coração. Ela fez uma careta.
— E quanto a você?
— O que quer dizer?
— Se for reconhecido?— Seus olhos demonstravam preocupação.
— Como poderia ser? — Salomon sorriu. — É sabido que o Malvado
Dândi seguiu para a índia. Além disso, estarão todos ansiosos por conhecer o
sr. Foxworth, o mais novo alfaiate e ícone da moda que veste o príncipe, aqui
presente.
Rachel era a única na Inglaterra que sabia do último disfarce do pai
como o cavalheiro de língua afiada que capturara o interesse do príncipe. Nem
mesmo as irmãs, Sarah e Emma, tinham percebido que ele não estava
obedecendo a ordem delas de permanecer escondido da sociedade.
— Você sabe que Sarah não o perdoará se descobrir que está em
Surrey?
— Eu não disse nada a ela sobre o sr. Foxworth. Portanto, não corro
perigo
— Esqueceu-se de que lady Broswell certamente o reconhecerá? Como
pode ter certeza que ela não revelará a verdade?
— Ela está bem ciente de que eu não hesitaria em revelar o
relacionamento íntimo dela com o Malvado Dândi.
— Espero que esteja certo.
— Não tema. — Salomon suspirou aliviado quando a carruagem parou.
— Ah, creio que chegamos. Já percebeu que isto promete ser um caso
enfadonho? Quando noivados são anunciados, a conversa invariavelmente é
sobre casamento.
Rachel olhou pela janela para observar o solar de pedras que
claramente já vira dias melhores.
— Você poderá retornar a Londres se preferir — disse ela.
— E deixar você aqui sozinha? Ah, não, minha querida. Um Cresswell

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nas mãos da polícia já é o suficiente.
— Não pretendo nada mais do que um pouco de diversão inofensiva.
Ao chegar à porta da casa, Rachel foi recebida por uma roliça donzela
com cachos escuros e beleza infantil.
— Rachel! — exclamou ela. — Estou tão feliz por você ter vindo. Rachel
sorriu. Gostara instantaneamente da doce e tímida srta. Carlfield desde que ela
debutara, dois anos antes.
— Violet. Como você ousa ficar noiva sem me consultar?
— Foi tudo muito de repente — retrucou Violet com um sorriso.
— Deve ter sido, realmente. Não me contou nada sobre este misterioso
pretendente nas cartas. Não me diga que foi um namoro relâmpago?
— Por Deus, Rachel, não questione a pobre criança na soleira da porta
— murmurou Salomon.
— Perdoe-me, Violet. Permita-me apresentar-lhe meu tio, sr. Foxworth.
— Encantado. — Salomon beijou a mão da jovem donzela.
— Violet, o que você faz aí, mantendo nossos convidados em pé no frio?
— irrompeu uma áspera voz masculina.
— Papai. Deixe-me apresentar-lhe a srta. Cresswell.
O venerável sr. Carlfield assentiu com um movimento de cabeça,
claramente menos satisfeito com a presença de Rachel do que a filha.
— Sr. Carlfield — murmurou Rachel de modo frio. Sempre desgostara
do hábito daquele cavalheiro intimidar a única filha.
— E seu tio, o sr. Foxworth — acrescentou Violet.
— Foxworth? — A expressão do sr. Carlfield era atônita. — Não Fox?
Salomon ergueu os óculos para encarar o homem.
— Somente o príncipe recebeu minha permissão para chamar-me pelo
diminutivo.
Totalmente encantado pela idéia de que sua festa seria agraciada pelo
atual favorito do príncipe, o sr. Carlfield mudou de atitude.
— Oh, sim, sim, claro. É uma honra conhecê-lo, senhor.
Eles entraram finalmente, enquanto o sr. Carlfield chamava pelo
mordomo.
— George, peça à sra. Fields que prepare a suíte dourada para o sr.
Foxworth.
— A suíte dourada? — o criado exclamou surpreso.
— Você me ouviu.
— Sim, senhor.
Apressando-se para tomar lugar ao lado de Salomon, o sr. Carlfield
ofereceu-lhe um sorriso polido.
— Gostaria de juntar-se a mim na biblioteca, sr. Foxworth? Tenho uma
garrafa de vinho especial para seu gosto refinado.
— Desculpe-me — desdenhou Salomon. — Meu gosto é
extraordinariamente seletivo.
— Oh, sim. Talvez prefira um bom conhaque? Salomon suspirou.
— Se você insiste. Rachel, nos veremos mais tarde.
Com ar de realeza, Salomon deixou-se conduzir em direção à biblioteca,
enquanto Rachel voltava-se para a amiga:
— Agora, Violet, quero saber por que não me contou nada sobre seu
noivado enquanto esteve em Londres. Não posso crer que manteve tal segredo

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de sua querida amiga.
— Talvez seja melhor falarmos mais tarde.
— Se prefere assim.
— Vou verificar se seu aposento está preparado. Com licença. Era óbvio
que havia algo de errado com o súbito noivado. Todavia, ela teria de esperar
até que Violet estivesse disposta a lhe contar seus problemas.
Rachel entrou na sala de visitas do solar, notando a negligência nos
tapetes gastos e cortinas desbotadas. Estava tornando-se claro que o sr.
Carlfield não tinha uma situação financeira tão sólida quanto a que alardeara
em Londres.
Imaginando que aquela não era a razão do abrupto noivado de Violet,
Rachel espantou-se de repente pelo som de uma voz profunda e máscula que
ouvira há cinco dias.
— Bem-vinda, srta. Cresswell.
Virando-se, visualizou a figura elegante de Anthony Clarke. Como no
primeiro encontro, Clarke estava vestido quase que inteiramente de preto, com
colete de listas pretas e brancas. E também, como na primeira ocasião, uma
onda de calor a percorreu de alto a baixo.
— Sr. Clarke, não esperava encontrá-lo aqui.
— Às vezes, também recebo convites.
— Não foi o que eu quis dizer. Pensei que preferisse suas invenções a
festas em sociedade.
— Eu ta...também — gaguejou ele, aproximando-se tanto que era
possível sentir-lhe o aroma da loção de barba — , sempre gostei do campo.
— Não acredito — revidou Rachel, percebendo que ele a provocara.
— Não? Bem, Violet é minha prima. Não seria educado de minha parte
faltar ao baile de noivado dela.
— Continuo não acreditando. Os olhos negros brilharam com
divertimento.
— Ta...talvez eu tenha ficado intrigado com a lista de convidados.
— Algum convidado em particular? — perguntou ela, excitada. Ele
sorriu e, para decepção de Rachel, mudou o rumo da conversa: — O que a
trouxe aqui, srta. Cresswell? Ou permita-me adivinhar?
— Se quiser...
— Você não ac.aceitou minha sugestão de esquecer o que se passou no
Teatro da Ópera. Procura vingança.
— Alguém poderia chamar isso de justiça.
— Ah, srta. Cresswell. — Ele riu e ergueu a mão para traçar-lhe uma
linha no pescoço delgado. — Por que desejaria desperdiçar tamanha paixão por
vingança?
A respiração de Rachel ficou presa por causa da sensação dos dedos
quentes contra sua pele nua.
— Sr. Clarke, está flertando comigo? — perguntou sem rodeios.
— Certamente que não. Nunca flerto.
— Nunca?
— Nunca.
— Que estranho!
— Bem, sou um sujeito estranho — admitiu, deslizando os dedos para
base da garganta dela.

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Rachel sentia-se hipnotizada pelo olhar sedutor daquele homem.
— Acho isso fascinante — confessou ela.
— E eu acho que você é uma garota muito ousada.
— E isso é ruim?
— Depende.
— De quê?
— Se é realmente sua natureza ou somente uma maneira de disfarçar.
Rachel franziu o cenho.
— Disfarçar?
— Creio, srta. Cresswell, que você gosta de chocar a sociedade e
deslumbrar pobres cavalheiros susceptíveis até que eles fiquem cegos demais
para notar a verdadeira mulher por baixo de sua sofisticação.
Rachel afastou-se dos toques sedutores. De súbito, estava muito
consciente de que aquele cavalheiro era muito mais perigoso do que seus
flertes usuais.
— E eu acho, senhor, que gosta de falar por meio de charadas.
— Quem era o cavalheiro com quem a vi chegar?
— Meu tio, o sr. Foxworth.
— Ele me p...parece familiar.
— Realmente deve parecer. Ele é o atual conselheiro do príncipe, você
sabe.
A sobrancelha negra e espessa ergueu-se.
— Verdade?
— Não me parece muito impressionado.
— Provavelmente porque não estou. Rachel deu uma risadinha coquete.
— E claro, o evasivo sr. Clarke — tentou gracejar. — Indiferente às
banalidades da sociedade.
— Você se parece muito com seu tio.
— Oh, sim, puxei muito a titio.
— Nesse caso, terei de achá-lo irresistível — brincou Clarke. — Agora,
se me der licença, trouxe um projeto que preciso examinar.
Os olhos dela arregalaram-se.
— Você está me deixando por um projeto?
— Não se preocupe. Há muitos outros cavalheiros por aqui que, sem
dúvida, estão ansiosos em serem enfeitiçados pela charmosa srta. Cresswell.
— Sem dúvida — empertigou-se ela. Em sua experiência, os homens
não a abandonavam com tal indiferença. Ele a seguira até Surrey ou era
apenas uma coincidência? Viu-o caminhar para a porta com movimentos
felinos e sentiu o coração bater mais rápido dentro do peito. — Sr. Clarke?
— Sim?
— Talvez me permitisse ver seu projeto algum dia?
— Lamento, mas não é de seu interesse, minha querida. Ela fez um
beicinho gracioso.
— Tenho interesse em muitas coisas.
— Conservarei isso em mente — Anthony murmurou, desaparecendo da
sala com uma reverência.
Rachel não sabia se ria ou chorava.
Anthony Clarke parecia determinado a fazer um pequeno jogo entre os
dois, e o pior era que neste jogo era ele quem ditava as regras. De qualquer

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forma, seria interessante ver quem seria o vencedor.
Ela dirigiu-se para o hall.
Não podia permitir-se ficar distraída por Anthony Clarke. Um flerte
inofensivo era bom, mas tinha ido a Surrey com outro propósito.
Minutos depois, Rachel estava procurando um criado que a conduzisse a
seu quarto quando viu Violet descer a escada correndo, com a mão
pressionada contra a boca.
No mesmo momento, Salomon Cresswell, ou melhor, o sr. Foxworth,
saiu da biblioteca e a colisão foi inevitável.
— Desculpe-me — exclamou Violet, esforçando-se para se livrar
daquele que conhecia como Foxworth.
— Não há o que desculpar. Você está chorando?
— Não, há apenas um cisco em meu olho.
— Deve ser um cisco muito terrível para causar tantas lágrimas —
Salomon retirou um lenço do bolso e estendeu-o a ela.
— O senhor é muito bondoso.
— Não, raramente sou bondoso — admitiu ele. — Mas não gosto de ver
uma jovem donzela exprimir tamanho desgosto.
Rachel mordiscou o lábio, perguntando-se o que o pai pretendia. Violet
parecia perturbada e muito vulnerável no momento. Certamente, Salomon não
seria tão inconseqüente a ponto de usar a fraqueza dela em proveito próprio,
não?
— Creio que ninguém pode ajudar-me — disse Violet. — Com licença. —
Sem mais uma palavra, a pobre moça desapareceu no hall.
Rachel aproximou-se do pai.
— Ora, ora, sr. Fox. Não está velho demais para tamanha falta de juízo?
— provocou-o.
Ele fez uma careta e riu.
— Sim. Velho demais.

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Capítulo II

Apesar dos raios de sol da manhã iluminada, o ar estava frio. Puxando a


gola do sobretudo preto junto ao pescoço, Anthony inclinou-se contra a
pequena gruta do jardim.
Não tinham sido os canteiros de flores negligenciados ou fontes
desligadas que o haviam levado para fora da casa. Não fora também a vontade
de seguir os outros cavalheiros na futil tentativa de matar um pássaro em
algum lugar do bosque.
Oh, não, Anthony Clarke buscava algo muito mais belo e interessante.
Uma garota atrevida de cabelos claros e olhos cor de avelã.
Um sorriso aflorou na boca carnuda de Anthony. Em sua chegada a
Surrey, perguntara-se que bizarro impulso o fizera deixar Londres para ir até
lá. Embora Thomas Carlfield fosse o irmão mais velho de sua mãe, ele nunca
se importara em passar algum tempo na companhia do tio. Achava-o
superficial e pomposo, sem muitas responsabilidades.
Durante toda a noite anterior, evitara a srta. Cresswell de propósito.
Estivera seguindo-a com um leve aborrecimento. Naturalmente, a bela Rachel
esperava que a perseguisse como os outros cavalheiros, enfeitiçados por seus
dotes físicos faziam. Mais ainda, queria que a mimasse com elogios. Ela ficara
com o orgulho ferido em pensar que lhe era indiferente.
Não duvidava que Rachel Cresswell dedicara muito tempo engendrando
uma forma de fazê-lo ajoelhar-se a seus pés.
E ele não precisou esperar muito para comprovar que sua teoria estava
certa, pois o som de passos quebrou o silêncio. Escondido junto à gruta,
Anthony observava Rachel Cresswell andar pelos caminhos sinuosos.
Usando um vestido amarelo com um casaco verde-musgo, ela parecia
até uma debutante. Estava sem maquiagem e tudo nela era vivaz, desde a
escolha do traje aos passos largos e determinados que dava. Anthony apenas
desejaria que os adoráveis cachos dourados não estivessem escondidos por
baixo do capuz verde. Gostaria de ver as sedosas madeixas caindo-lhe sobre
os ombros delgados.
— Bom dia, srta. Cresswell.
Ela parou surpresa, antes de sorrir-lhe docemente.
— Sr. Clarke, você possui o espantoso hábito de aparecer nos lugares
mais inesperados.
— Inesperados não — discordou ele. — Apenas lógicos, minha
q...querida.
— Lógicos?
— Perguntei a mim mesmo o que uma jovem senhora à procura de
vingança faria primeiro, e concluí que iria atrás do inimigo antes do jogo
começar.
— Talvez eu apenas quisesse dar um passeio numa manhã tão
encantadora — respondeu ela.
— Se este for o caso, importa-se de que eu a acompanhe?

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— Se assim o desejar...
Dando um passo à frente, Anthony colocou a mão delicada sobre o
próprio braço e começou a conduzi-la pelo jardim.
— Suponho que deveria dizer que a senhorita está encantadora nesta
manhã gloriosa, não?
Como se o elogio de repente a lembrasse de que estava determinada a
enfeitiçá-lo, a expressão de Rachel mudou para a de uma doce e recatada
donzela.
— Obrigada, senhor, mas tenho de admitir que este tom de amarelo
não me favorece muito — falou Rachel, olhando para as próprias roupas.
— Discordo. Nada seria capaz de desfavorecer tão grande beleza.
— Quanta gentileza! — exclamou ela, ao mesmo tempo em que lançava
um olhar demorado para o corpo másculo. — Sempre usa preto, sr. Clarke?
— T...tenho pouco interesse em moda. Para mim, moda é pura tolice.
— É assim que pensa?
— É claro. Veja estes ridículos almofadinhas enfeitando-se diante do
espelho na esperança de chamar sua atenção, enquanto eu consegui capturá-
la inteiramente para mim mesmo. Ela deu uma gargalhada.
— Muito lógico.
— P...precisamente.
— Mas acredito que há um erro em sua lógica. Anthony arqueou as
sobrancelhas.
— Que tipo de erro?
— Não acredito que os homens devotem horas melhorando a aparência
num esforço para chamar minha atenção ou de qualquer outra mulher.
— Não?
— Não. Creio que é apenas uma maneira de se exibirem. Como fazem
os pavões em seus desfiles vaidosos.
Anthony apreciou o comentário sagaz. Havia uma inteligência ágil por
trás das feições encantadoras.
— Por toda sua maneira frívola, você é muito perspicaz, minha querida.
— Isso o surpreende?
— De modo algum. Como já lhe disse — ele a fitou com intensidade — ,
creio que gosta de disfarçar seu verdadeiro eu.
Anthony examinou o delicado perfil enquanto atravessavam uma
pequena ponte e enveredavam por um bosque repleto de árvores, que
demarcavam o fim da propriedade de Carlfield. Rachel Cresswell estava
claramente determinada a manter parte de si mesma escondida do mundo.
Anthony apenas não sabia o que ela temia revelar. Ainda pensava nisso
quando escolheu um caminho estreito que os obrigava a caminharem bem
próximos um do outro. O perfume de rosas que emanava da pele alva o estava
inebriando, e ele resistiu à forte tentação de puxá-la para seus braços. Com
certeza, era o que Rachel esperava de um cavalheiro que a conduzira para um
local isolado. Mas Anthony estava determinado a resistir a seus encantos. A
bela srta. Cresswell não o faria escravo de seus próprios desejos.
— O que foi isso? — Ela interrompeu-lhe os pensamentos.
— O quê?
— Vi um brilho estranho ali na frente.
Sem aviso, a impulsiva donzela correu para o caminho no meio das

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árvores, sem se importar com o elegante vestido que usava. Pego de surpresa
por tal gesto, Anthony a viu desaparecer em meio às árvores, e então, com
uma repentina gargalhada, correu atrás dela.
Uma coisa ele precisava reconhecer: era impossível ficar aborrecido na
companhia de Rachel Cresswell.
Minutos depois, ele a alcançou perto de um portão de ferro incrustado
num muro de pedra.
— Srta. Cresswell, não está tentando atrair-me para um local isolado a
fim de ap...aproveitar-se de mim, está? — provocou-a.
— É claro que não, meu bom senhor — negou ela com um olhar
zombeteiro.
— Uma pena.
Rachel empurrou o portão e irritou-se ao vê-lo trancado.
— Parece que visitantes não são bem-vindos aqui — murmurou ele,
franzindo o cenho quando a viu puxar o pesado ferrolho com força. — O que
está fazendo?
— Quero descobrir o que estes portões escondem. Anthony espantou-se
com tamanha audácia.
— Esta propriedade pertence aos Broswell, certo?
— Sim.
— Você não acha que é impróprio ultrapassar limites alheios?
— Claro. — Ela deu de ombros. — Não precisa vir comigo se não quiser.
Estou acostumada a ter atitudes escandalosas e inadequadas sozinha. Além do
mais, não quero manchar sua reputação.
Anthony deu um passo à frente, prendendo-a numa armadilha entre
seu corpo e o portão.
— Está tentando me insultar, srta. Cresswell?
— Perdoe-me. Apenas não desejo envolvê-lo em minhas façanhas
escandalosas.
— Não tenho desejo algum de ser envolvido.
— Isto parece um desafio, sr. Clarke. Ele deu de ombros.
— É somente a verdade.
— Sabe, não creio já ter conhecido um cavalheiro igual ao senhor.
— P...por que diz isso?
— Por muitas razões. — Com um movimento ousado, Rachel tirou-lhe
uma folha da lapela do sobretudo. — Uma delas é o fato de que nunca tentou
me beijar.
Uma onda de desejo o percorreu. Um cavalheiro podia facilmente ser
perdoado por perder o juízo quando deparava-se com tamanha tentação.
— Você deseja me beijar, minha querida?
— Não disse isso, mas deve admitir que é o que se espera da maioria
dos homens.
— Nunca desejei ser considerado previsível — replicou ele.
Um lampejo de frustração cruzou os olhos de Rachel que virou-se para
o portão.
— Então, vamos?
Anthony sorriu. Era óbvio que não estava acostumada a ter seus
convites ignorados. Com uma ação deliberada, ele inclinou a cabeça e roçou os
lábios na nuca delicada.

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— Oh! — ofegou ela, tremendo de leve. — Sr. Clarke!
— Sim, srta. Cresswell — sussurrou Anthony, continuando a explorar-
lhe a curva do pescoço delicado.
— O que está fazendo? O leve tremor na voz feminina inflamou o desejo
de Anthony.
— Tentando descobrir se sua pele tem a suavidade da seda, como
parece.
Rachel agarrou-se ao portão porque os joelhos tremiam demais para
sustentar-lhe o frágil corpo.
— E?
— Oh, sim! E tem o mais delicioso aroma de rosas que já inalei. Os
braços de Anthony ansiavam por envolvê-la. Em vez disso, ele forçou o
ferrolho de ferro do portão.
— Consegui.
— O quê?
— Abrir o portão.
— Que bom!
Rachel adiantou-se a ele, desejando estabelecer uma distância segura
entre os dois.
Anthony a seguiu pensativo, sob todo aquele flerte havia uma inegável
inocência na dama de atitudes atrevidas.
Durante alguns minutos, caminharam por uma trilha de relva crescida,
até que Rachel, abruptamente, apontou para uma estrutura coberta de hera.
— Olhe lá, parece ser uma casa.
— A primeira vista, diria que é uma casa deixada de herança para
alguém.
— Será que está abandonada? — perguntou ela com curiosidade.
— Não.
— Como sabe?
— Tem fumaça saindo da chaminé. — Ainda tentou convencê-la de que
estavam invadindo a propriedade, mas Rachel Cresswell estava determinada a
seguir em frente.
Pouco depois, Rachel tocou o sino da enorme porta de madeira, e,
quando não houve resposta, empurrou a porta aberta que cedeu no mesmo
instante.
— Olá! — falou bem alto, observada por um incrédulo Anthony, que
esperava encontrar um furioso fazendeiro armado.
— Srta. Cresswell, sabe que está invadindo uma residência particular?
— Eu ouvi alguma coisa — disse ela, ignorando o aviso. — Oh, olá, você
aí.
Aliviado por não ouvir o eco imediato de um tiro ou coisa parecida,
Anthony entrou na sala e parou atônito ao avistar uma jovem ao lado da
janela, sentada numa cadeira de rodas. Seu olhar pousou sobre as feições
pálidas da garota frágil. Os cabelos loiros estavam puxados num coque severo
e o vestido desbotado era claramente maior que o corpo magro. Mas havia um
visível brilho de inteligência nos olhos azuis.
— Quem são vocês? — perguntou a garota, que não devia ter mais que
dezessete anos.
— Sou Rachel Cresswell e este é o sr. Anthony Clarke. E você, quem é?

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A garota os encarou com expressão assustada.
— Não deveriam estar aqui.
— Estávamos passando, vi um clarão por entre as árvores e quis me
certificar de que não havia nada errado.
— Não há nada errado.
Anthony aproximou-se, notando o objeto que a jovem tentava esconder
nas dobras da saia.
— Talvez o clarão fosse o reflexo do sol em sua luneta — sugeriu ele.
A garota mordiscou o lábio inferior.
— Vocês não deveriam estar aqui — repetiu.
— Pode, pelo menos, dizer-nos seu nome? — pediu Rachel. Houve uma
pausa antes que a garota girasse a cadeira de rodas para vê-los melhor.
— Estão hospedados em Broswell Park?
— Não. Somos convidados do sr. Carlfield. A filha dele ficará noiva do
sr. Wingrove no fim do mês.
— Eu não gosto dele — murmurou ela.
Intrigado pela estranha jovem morando naquele lugar aparentemente
abandonado, Anthony perguntou:
— Conhece o sr. Wingrove?
— Não, mas ele bate no cachorro de chicote. Não creio que um homem
bondoso faria isso.
— E claro que não! — concordou Anthony.
— Todavia, a srta. Carlfield parece ser uma boa pessoa. Ela canta
enquanto anda pelo jardim da casa.
Anthony sentiu uma pontada no coração. Obviamente, o único contato
da garota com o mundo exterior era feito por meio de uma luneta. Ele
conhecia melhor do que ninguém a terrível solidão de ser segregado do
mundo.
— Sim, Violet Carlfield é muito, muito boa — murmurou ele. — Você
está aqui sozinha?
A moça fez uma careta.
— Não. A sra. Greene está lá em cima, dormindo. Ela sempre dorme à
tarde. Graças a Deus.
— Verdade?
— Sim. — Ela deu um sorriso tímido. — Quando a sra. Greene sobe a
escada, posso abrir as cortinas, e, às vezes, posso ir lá fora, embora não
devesse.
— Nunca? — Rachel estava chocada.
— Oh, não. Faz mal para os meus pulmões.
Anthony franziu o cenho. A idéia de aquela pobre criatura passar seus
dias trancada numa sala escura o deixou furioso. Não acreditava, nem por um
minuto, que os pulmões dela estivessem em perigo. Certamente estava sendo
escondida e ele pretendia descobrir o porquê.
— V...você ainda não nos disse s...seu nome — lembrou-a. Os olhos
azuis estreitaram-se com a súbita curiosidade.
— Por que fala desse jeito, senhor?
Anthony sorriu. Estava acostumado com aqueles que fingiam ignorar
sua gagueira, ou com aqueles que zombavam dela, como se fosse símbolo de
estupidez. Somente a srta. Cresswell e aquela pobre menina reagiram com

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sincero interesse, e ele preferia a honestidade de ambas.
— Minha mãe me disse que fui beijado por um anjo quando eu era
bebê.
A ridícula história que a mãe lhe contara depois que fora provocado
pelas crianças da vizinhança pareceu agradar à garota.
— Deve ter sido muito bom.
— Nem sempre. Ser diferente dos outros pode ser muito triste e
solitário.
— Sim. — Eles se entreolharam em silêncio, e, então, um barulho no
andar de cima a fez agarrar os braços da cadeira de rodas. — Oh! É a sra.
Greene. Vocês precisam ir embora. Ela ficará terrivelmente zangada se os
descobrir aqui.
— Por quê?
— Porque ninguém deve estar aqui.— Nervosa, olhou para a porta. —
Por favor, vão embora.
Na opinião de Anthony, a sra. Greene não somente mantinha a garota
como prisioneira naquela casa velha e isolada, como também a intimidava.
Embora quisesse confrontar a mulher, não quis causar nenhum
problema à garota.
— Muito bem — concordou ele. — Foi um prazer conhecê-la. Rachel lhe
dirigiu um olhar contrariado.
— Mas...
— Vamos embora, srta. Cresswell. — Ele segurou-lhe o braço com
firmeza e a conduziu para fora. Então, continuou guiando-a pelo jardim e de
volta ao portão.
Tentando livrar-se das garras de aço, Rachel olhou para o perfil
determinado dele.
— Sr. Clarke, por acaso quer ganhar uma corrida ou coisa assim?
— Temo que a misteriosa sra. Greene possa descarregar seu mau
humor na garota se descobrir nossa visita.
— Ah, entendi.
— A...acredito que estamos fora de vista agora.
— Pobre menina. Detestei deixá-la naquela casa. Ela parece ter medo
da governanta, e não acredito que não a deixam sair de casa por causa dos
pulmões. Está sendo escondida — concluiu Rachel, sabiamente.
Anthony assentiu.
— O que não é uma ocorrência incomum, lamento. A sociedade não
perdoa a imperfeição. Há muitas famílias que preferem manter uma criança
segregada a passar pela vergonha de exibir uma deficiência na família.
A voz de Anthony era repleta de amargura. Embora tivesse conseguido
superar as ocasionais crueldades que encontrara ao longo dos anos, nunca fora
capaz de curar completamente as feridas provocadas por seu próprio pai.
Charles Clarke era um homem frio e distante, com mais orgulho do que
afeição. Ele nunca conseguira perdoar Anthony por ser gago. Fora somente a
determinação da esposa que impedira Charles de abandonar o filho aos
cuidados de parentes distantes.
— Mas trancá-la numa casa escura e isolada sem a companhia de
ninguém, exceto uma velha senhora carrancuda, é imperdoável! — observou
Rachel.

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— Pelo menos, ela está segura, bem alimentada e provida de suas
necessidades básicas.
— Sim — concordou ela com tristeza. — Deus me perdoe!
— Do quê?
— Aquela casa...deve pertencer à sra. Broswell.
Anthony empertigou-se, percebendo que ela estava mais do que correta
em sua dedução. A casa era propriedade dos Broswell. O que significava que a
garota, de algum modo, era ligada à poderosa família. Ele sentiu um calafrio
percorrê-lo de alto a baixo.
— N...não tire conclusões precipitadas, srta. Cresswell.
— Que tolice a minha não reconhecer a semelhança com as duas
senhoritas Broswell. Os mesmos cabelos claros, os mesmos olhos azuis. Se a
menina estivesse bem vestida, eu não teria dúvida de que eram irmãs.
— E se ela for filha de lady Broswell?
Rachel franziu o cenho, intrigada pela súbita acidez na voz dele.
— O quê?
— Se a garota provar ser filha de lady Broswell, o que a senhorita fará
com tal informação?
— Não entendo o que está querendo saber.
Anthony suspirou. Podia estar fascinado pela encantadora Rachel e seu
atrevimento incomum para uma dama da época, mas não suportaria observá-
la usar uma criança infeliz em sua ânsia de vingança.
— Então, irei esclarecer — disse ele. — A senhorita veio a Surrey com a
intenção de punir lady Broswell por humilhá-la na ópera. Esta manhã, por
acaso, deparou-se com o que pode ser um meio perfeito de implementar sua
vingança.
Ele observou as emoções cruzarem o rosto bonito: confusão, descrença
e, por fim, raiva e indignação.
— Sr. Clarke, eu posso ser impetuosa e até mesmo frívola algumas
vezes, mas não sou um monstro. Jamais faria qualquer coisa para prejudicar
aquela pobre criança.
Anthony ficou aliviado. A empertigada srta. Cresswell não era tão
calculista quanto ele temia.
— N...nunca pensei que fosse um monstro, minha cara — murmurou ele
em tom carinhoso. — Mas isso seria uma tentação. Expor tal escândalo poderia
arruinar lady Broswell.
— Não tenho necessidade de usar uma criança aleijada para ganhar
uma batalha, senhor.
Ela seguiu a trilha entre as árvores em direção à casa dos Carlfield.
Anthony sorriu. Era ainda mais magnífica quando estava com raiva.
Uma criatura selvagem, impetuosa e apaixonante.
O desafio de conquistá-la era irresistível.
Vagarosamente, ele virou-se para segui-la.
O jogo da conquista tinha começado finalmente.
Embora se esforçasse para representar o papel de cavalheiro enfadado,
o sr. Carlfield quase não continha sua satisfação em ter o favorito do príncipe
sob seu teto. Ansioso para que os vizinhos apreciassem sua boa sorte, convites
para o jantar foram entregues às pressas em todas as melhores casas.
Sabendo que os Broswell seriam incluídos nos convites, Rachel vestiu-

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se com cuidado.
O vestido de seda rosa tinha uma sobre-saia de renda branca com
aplicações de rosas em tom mais escuro. O corpete possuía um decote
avantajado para realçar os seios, e o grande pingente de rubi conferia à pele
alva um fulgor de tentação. Ela puxou os cabelos num coque simples, deixando
alguns cachos soltos sobre as têmporas.
Olhando-se no espelho, ficou satisfeita com a aparência. Então desceu
para o salão formal e colocou-se em posição de evidência, a fim de que
pudesse apreciar a expressão da sra. Broswell quando notasse sua presença
ali.
Foi obrigada a esperar quase meia hora pela chegada da velha senhora,
mas não ficou desapontada quando a altiva mulher a viu e pareceu congelar de
pavor. Os olhos azuis estreitaram-se e o sorriso sumiu dos lábios murchos. Seu
horror apenas aprofundou-se à vista do cavalheiro alto, usando um paletó
cinza e calça preta, que estava distraído encostado na lareira.
— Você?!? — exclamou ela com desgosto. — Como ousa vir a Surrey?
— Boa noite, lady Broswell. Uma festa encantadora, não é? — disse
Rachel com sorriso falso.
O cumprimento tranqüilo apenas aumentou a raiva que se apossava do
rosto pálido.
— Eu lhe pergunto por que me seguiu.
— Segui-la? — Rachel riu, abertamente. — Não seja absurda. Estou
aqui a convite da srta. Carlfield. Ela é uma amiga muito querida.
— Não acredito nisso nem por um instante.
— A senhora pode, é claro, acreditar no que melhor lhe convier.
— Você está aqui para tentar constranger-me— acusou ela, olhando
para onde o pai de Rachel sorvia seu uísque. — Você e aquele salafrário.
Rachel enraiveceu-se. A mulher não servia nem para engraxar as botas
de seu pai. Ela voltara as costas para a própria irmã, recusara-se a reconhecer
as sobrinhas, e estava tentando intimidar um pobre cavalheiro a casar-se com
a filha, e, o pior de tudo, escondia uma criança aleijada numa casa isolada. Ah,
sim, lady Broswell não passava de uma bruxa malvada.
— Sugiro que pense duas vezes antes de se referir assim a meu pai,
lady Broswell — preveniu-a Rachel.
Perplexa, a mulher vociferou:
— Quero que vá embora.
— Infelizmente não posso, pois prometi a srta. Carlfield ficar para o
baile de noivado. Além do mais, o sr. Carlfield encantou-se com meu tio
Foxworth.
O semblante da mulher mais velha enfureceu-se quando tomou ciência
que fora jantar em honra de um homem que era, na verdade, Salomon
Cresswell.
— Não tenho dúvida de que a ridícula fascinação de Carlfield pelo sr.
Foxworth acabaria no instante que descobrisse que ele não passa de um ladrão
refinado.
— Mas ele não descobrirá tal coisa.
— Você não pode ter plena certeza.
— Oh, posso sim. Porque se houver a mínima desconfiança de que meu
pai não é o sr. Foxworth, então farei todo mundo em Surrey tomar

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conhecimento de nossa íntima relação familiar, querida tia.
— Você não ousaria! — vociferou a megera.
— Claro que ousaria, e com imenso prazer.
— Vai se arrepender disso, sua insolente. Rachel meneou a cabeça.
— Não. Você é quem se arrependerá da maneira como me tratou.
Percebendo o brilho ameaçador nos olhos de Rachel, lady Broswell perguntou:
— O que quer dizer com isso?
— Ouvi rumores de que suas filhas falharam mais uma vez em receber
uma proposta de casamento.
Não era segredo nenhum na corte que lady Broswell ficara
terrivelmente desapontada quando nenhuma das filhas conseguira arranjar um
bom partido. Ou melhor, um partido respeitável para seus padrões. O fato de
as donzelas pertencerem a uma família respeitável e ainda possuírem grandes
dotes apenas piorava a humilhação.
— Minhas filhas são muito especiais. Não têm interesse em cavalheiros
que perseguem membros vulgares da sociedade.
Ela não deixou dúvida de que Rachel estava entre tais membros
vulgares.
— Verdade? — Rachel sorriu. — Então você não está mais tentando
trazer lorde Newell para a disputa?
— Lorde Newell é muito devotado a Mary.
— Não, ele é devotado à mesada que teme perder se a senhora
queixar-se à mãe dele. É sabido que a senhora e lady Newell tentaram
intimidá-lo a casar-se desde que chegou à idade adulta.
— Você não sabe nada sobre este assunto — protestou lady Broswell,
irritada. — Mulheres de sua laia não podem ter noção de deveres familiares.
Como ela ousava dizer aquilo? Rachel jamais voltaria as costas para as
irmãs. Ou trataria uma pobre criança como um ser indesejável. Prometera a si
mesma jamais se afastar de seu objetivo. Era imperativo que se mantivesse no
comando do confronto.
— Talvez não, mas sei quando um cordeiro está sendo conduzido para o
abate — respondeu com ar zombeteiro. — Chego a sentir pena de Mary. Não
deve ser agradável perceber que seu noivo prometido preferiria arrancar um
dente a casar-se com ela.
Claramente indiferente à idéia de condenar a filha a um casamento
inócuo, lady Broswell lançou a Rachel um olhar superior.
— Mary aceita a responsabilidade, ao contrário de sua mãe. Os olhos
cor de avelã exibiram um brilho ameaçador.
— Minha mãe aceitou que seguir o coração era mais importante do que
um casamento sem amor. Ela teve mais felicidade em sua curta existência do
que você jamais terá em sua vida inteira.
Antes que lady Broswell pudesse se recuperar das palavras ferinas de
Rachel, a figura esguia do sr. Clarke se interpôs entre as duas.
Rachel fitou os adoráveis olhos azuis. Anthony Clarke exalava força e
masculinidade, e a ternura que divisou no rosto anguloso fez o coração dela
bater mais rápido e os joelhos enfraquecerem.
— Srta. Cresswell, creio que Violet está lhe procurando.
— Obrigada, sr. Clarke.
— Eu a levarei até ela.

25
Vendo a sra. Broswell ranger os dentes pelo óbvio interesse do sr.
Clarke nela, Rachel prontamente colocou uma mão no braço oferecido.
Anthony a conduziu para a biblioteca e fechou a porta atrás deles. — Violet
deseja que eu a encontre aqui?— perguntou ela, surpresa. Sorrindo, ele
respondeu:
— Não, apenas achei que era hora de intervir. O brilho nos seus olhos
encantadores era perigoso, enquanto lady Broswell enrubescia cada vez mais.
— Ela ficou muito desgostosa ao descobrir que sou convidada do sr.
Carlfield.
— O que já era esperado — disse Anthony.
— A bruxa ainda tentou mandar-me embora, mas não aceito ordens de
ninguém.
Ele deu uma gargalhada.
— Não precisa me contar isso,
— Então, s...seu jogo começou.
— Sim. E não precisa temer que eu use aquela pobre garotinha em
minha tática de guerra.
— Vejo que ainda não fui perdoado. Minha única defesa é minha
preocupação com a criança.
— Parece ter uma opinião terrível a meu respeito, sr. Clarke.
— Ao contrário, srta Cresswell. Minha opinião a seu respeito melhora a
cada momento.
Rachel ofegou, lembrando-se dos lábios quentes roçando a pele sensível
de seu pescoço. Nunca experimentara uma sensação tão inebriante.
A percepção de que aquele homem conseguira excitá-la com tanta
facilidade a aterrorizava.
— Realmente pensa assim?
— Sim — disse ele. — E talvez a considere um pouco perigosa.
— Perigosa?
— Diga-me, minha cara, é sempre tão rápida em decretar justiça sobre
aqueles que a julgam erradamente? *
Rachel percebeu que o sr. Clarke não entendia seu comportamento. Não
podia saber que a vingança que ela pretendia engendrar era muito mais pela
mãe do que por si mesma. De qualquer forma, isso era algo que jamais
confessaria.
— A noite na ópera não foi a primeira vez que lady Broswell tentou
envergonhar-me em frente de toda a sociedade londrina — explicou. — Já
espalhou boatos horríveis e mentiras deslavadas. Acha mesmo que eu deveria
ignorá-la?
Uma mão máscula tocou-lhe o queixo e gentilmente virou-lhe o rosto
para encarar o olhar límpido. Rachel tremeu.
— Infelizmente, lady Broswell não é a única língua afiada de nossa
sociedade. Creio que outras pessoas a insultaram.
— Porque sou filha do Malvado Dândi?
— Porque você é uma linda donzela que coleciona cavalheiros com a
mesma facilidade que a maioria das mulheres coleciona jóias. É normal causar
ciúme. Portanto, por que você quer se vingar especificamente de lady
Broswell?
Rachel deu-se conta de que deveria tomar cuidado. Aquele cavalheiro

26
não era facilmente enganado.
— Ela aborreceu-me.
— Você não fez uma viagem a Surrey porque ficou aborrecida — insistiu
ele.
Com um movimento rápido, afastou-se do toque sensual.
— Estou dizendo a verdade. Anthony a estudou por longo tempo.
— Há muito mais sobre isso do que está querendo revelar, mas eu
n...não a pressionarei. Na hora certa, a senhorita confiará em mim.
Para sua surpresa, Rachel percebeu que gostaria de confiar naquele
homem. Mas o segredo não era somente seu. Não estava em posição de
revelar a verdade.
— É muito seguro de seu charme, não? — provocou-o.
— Mas é claro. Ele é irresistível.
— Será mesmo?
— Oh, sim — murmurou Anthony e então, com um movimento sensual,
baixou a cabeça e pressionou os lábios sobre o ombro desnudo dela.
Rachel ofegou, sentindo como se tivesse sido marcada a ferro quente,
mas não moveu um único músculo.
Os lábios de Anthony acariciavam o ombro delicado, enviando frenéticas
ondas de calor através de todo seu corpo
Rachel não sabia o que havia naquele homem que a deixava em
chamas. Mas naquele momento não se importou. Tudo que queria era fechar
os olhos e deixar-se levar pelas ondas da paixão.
Os lábios másculos passaram a percorrer a delicada linha do pescoço
delgado. Anthony emitiu um gemido rouco ao notar a óbvia resposta dela ao
seu toque.
— Estou desenvolvendo uma profunda apreciação pelo perfume de
rosas — murmurou ele. — Estou ficando viciado, sabia?
— Sr. Clarke, não deveria fazer isso. Ele riu.
— Quer que eu pare?
— Não.
— Nem eu. — Os lábios carnudos passaram a percorrer-lhe a face e ela
abriu a boca, antecipando o beijo esperado, mas que acabou não acontecendo.
— É melhor voltarmos para junto dos outros — Anthony disse com um sorriso
zombeteiro.
Rachel queria protestar, mas seu orgulho a impediu de fazê-lo.
— Sim.
Anthony sorriu. Antes que pudesse dizer algo, a porta da biblioteca foi
aberta e o pai dela entrou.
— Rachel — murmurou ele. — Eu estava procurando por você.
— Estávamos retornando agora.
Salomon Cresswell olhou para o silencioso sr. Clarke antes de oferecer o
braço à filha.
— Talvez seja melhor que eu a acompanhe de volta ao salão. Não
gostaria de comentários desagradáveis sobre vocês dois.
Rachel hesitou um momento antes de aceitar o braço do pai, e não
ousou olhar para o sr. Clarke.
Em silêncio, Salomon a conduziu de volta ao salão.
— Você me parece muito íntima do sr. Clarke — observou ele.

27
— Sim, Anthony Clarke é um cavalheiro distinto e especial.
— Muitas mulheres na Inglaterra parecem pensar assim.
— Não me referi à fortuna dele. Muitos homens são ricos. Mas ele é um
mistério.
— Pode ser, mas também é inteligente, excêntrico e indiferente às
regras da sociedade. — Os olhos verdes de Cresswell estreitaram-se. — Não é
do tipo bajulador.
— Não — concordou Rachel.
Houve um pequeno silêncio antes que o pai sorrisse para ela.
— Você terá cuidado, não terá, minha querida?
— O que quer dizer?
— Aprendi, ao longo dos anos, que existem alguns homens especiais
que jamais serão enganados, manipulados ou seduzidos. Esses homens não
podem ser controlados, o que é sempre perigoso.
Rachel não precisava dos conselhos do pai para saber que Anthony
Clarke era perigoso. Sentia isso em cada olhar e em cada toque.
— Vou me lembrar de seu conselho.
— Faça isso ou poderá se descobrir presa às rédeas do sr. Clarke e
fazendo-lhe todas as vontades.
— Nunca — disse ela, arregalando os olhos ultrajada.
— Veremos.
Naquele exato momento, o anfitrião aproximou-se, acompanhado de
um cavalheiro magro de cabelos grisalhos.
— Sr. Foxworth, finalmente o encontro— exclamou Carlfield. — Queria
apresentar-lhe o sr. Wingrove, meu futuro genro. Sr. Wingrove, este é o sr.
Foxworth, íntimo conhecido de nosso príncipe.
Rachel empertigou-se, chocada. Aquele alquebrado cavalheiro estava
noivo de Violet? Ele tinha idade suficiente para ser pai da menina. Para piorar,
ainda havia um aspecto desagradável nas feições dele. Certamente, sua
querida amiga não poderia ter escolhido um pretendente mais repulsivo.
Wingrove cumprimentou o convidado de honra do jantar com evidente
desaprovação:
— O príncipe? Não sinto nada além de desgosto por aquele janota. Um
caráter obsceno, bem diferente do pai.
O sr. Carlfield parecia desconsolado com a atitude do futuro genro em
relação ao príncipe da Inglaterra.
— Realmente — disse Salomon com sarcasmo — O príncipe não precisa
ser trancado no quarto devido à loucura, nem espuma pela boca quando não
fazem sua vontade.
— Como ousa, senhor? — exclamou o sr. Wingrove com seus olhos de
sapo.
— É a pura verdade.
— Nosso rei demonstra a mais fina sensibilidade inglesa. Ele é um
cavalheiro honrado e direito. Nada semelhante ao seu filho esbanjador.
— Ele é um tolo enfadonho e incompetente que conseguiu perder a
maior parte de nossas colônias.
Por um momento, Rachel achou que o sr. Wingrove pudesse pular no
pescoço do pai. Então, ansioso para evitar uma cena desagradável, Carlfield
pigarreou.

28
— Bem, cavalheiros, isto é uma festa. Não deveriam discutir política em
frente de senhoras.
Os dois homens o ignoraram.
— Sem dúvida, o sr. Foxworth prefere discutir a última fofoca de
Londres ou talvez as novidades da moda londrina.
— Sou certamente um especialista em moda.
— Um desperdício de intelecto para um cavalheiro.
— O senhor deveria pensar de modo diferente.
— E o que precisamente eu deveria pensar? — questionou o sr.
Wingrove.
— Nenhum cavalheiro que emprega um criado incapaz de dar um nó
decente na gravata deve ser indiferente ao bom gosto. Eu o enforcaria ao raiar
da aurora se fosse você.
O rosto magro de Wingrove enrubesceu.
— Não desejo parecer um ridículo almofadinha.
— Sábia escolha — zombou Salomon. — Um cavalheiro deve possuir
elegância e estilo. — Ignorando a fúria do homem, pegou o cotovelo de Rachel.
— Vamos, minha querida. Deve haver alguém mais interessante nesta
multidão, com quem eu possa conversar.
Rachel conteve uma risada.
— Você se saiu muito bem, papai — elogiou ela quando se afastaram.
— Aquele idiota não passa de um palerma pomposo.
— Sim, é verdade.
— Por que o sr. Carlfield quer unir a filha a um sujeito tão repugnante e
mal-humorado?
— Não acredito que o sr. Carlfield esteja interessado na personalidade
do futuro genro. Obviamente tem outras preocupações.
— Sim, ele está vendendo a filha a quem pagar o lance mais alto.
— Uma ocorrência comum. Poucas mulheres são tão afortunadas como
eu em ter um pai que é esperto o bastante para criar a própria fortuna sem
usar as filhas.
Ela esperou que suas palavras fizessem o pai sorrir, mas ele apenas
franziu o cenho.
— Isso seria um crime.
Rachel não entendia exatamente o que ocorrera entre o pai e a srta.
Carlfield, mas sabia que o charme dele podia ser letal para uma moça
inocente.
— O senhor me ofereceu um conselho momentos atrás — disse ela. —
Agora, eu lhe devolverei o favor.
— Verdade?
— A srta. Carlfield está muito amedrontada e vulnerável no momento.
Poderia ser facilmente ferida.
Salomon pareceu espantado pelas palavras de Rachel.
— Eu jamais a magoaria.
— Bom saber disso. — Rachel voltou o olhar para a garota pálida e
triste que tentava esconder-se nas sombras. — Creio que ela já foi magoada o
suficiente.

29
Capítulo III

Anthony ponderou sobre a escolha de presentes que queria levar para a


jovem na casa abandonada. Ele tinha um bom número de quinquilharias que
construíra, as quais poderiam ser interessantes para uma garota inteligente.
Entretanto, queria alguma coisa que ajudasse a ocupá-la nos longos dias de
enfado. Algo que amenizasse sua solidão.
Finalmente, decidiu-se por caixas de laça pintada com motivos chineses
na tampa que continham quebra-cabeças de madeira esculpidos em várias
formas diferentes.
E a reação da garota ao presente não o decepcionou. Sentada
novamente na cadeira de rodas junto à janela, o rosto tristonho iluminara-se
com visível prazer. Até mesmo a persuadira a revelar que seu nome era Júlia e
que ela tinha dezesseis anos.
Anthony sabia que sua gagueira o ajudaria a aproximar-se da menina
doente. Como ela, ele era diferente das outras pessoas.
Os dois estavam discutindo a melhor maneira de esconder os quebra-
cabeças da sra. Greene, que encontrava-se em seus aposentos, quando um
discreto barulho fez com que se virassem para descobrir a srta. Cresswell
parada na soleira da porta da sala, segurando uma grande cesta de vime.
A encantadora visão o atingiu em cheio. Usando um vestido lilás com
uma capa preta, ela era uma beleza esplendorosa na sala escura.
Não era de se admirar que Anthony tivesse acordado diversas vezes
durante a noite, pensando na pele quente e acetinada dos ombros delicados
sob seus lábios. A mulher mexia com sua libido de maneira impressionante.
Ele precisava se controlar, pois era um homem adulto e não um colegial
com os hormônios em ebulição.
— Bom dia, srta. Cresswell — murmurou com um sorriso. Ela o fitou
com visível confusão e constrangimento.
— Não pensei que estivesse aqui, sr. Clarke.
— Eu trouxe um presente para Júlia.
— Júlia! Que nome bonito — disse Rachel, aproximando-se da jovem.
Tão admirada pelo extraordinário charme de Rachel como todo mundo,
a garota a cumprimentou, timidamente.
— Obrigada.
— O que foi que o sr. Clarke lhe trouxe? Júlia mostrou-lhe as peças de
madeira.
— Quebra-cabeças.
— Na verdade, são dez quebra-cabeças — explicou Anthony. — Isso
entreterá Júlia. Ela poderá misturar todas as peças e descobrir quais
pertencem a cada um dos dez quebra-cabeças. — Os olhos escuros brilharam
com entusiasmo. — Será muito divertido.
— Sim.
— Eles não são maravilhosos? — perguntou Júlia.
— Muito, muito lindos — concordou Rachel. — Temo que meu presente

30
será vexatório em comparação a isso. Contudo, o aroma é mais apetitoso.
Rachel sorriu.
— Achei que seria uma manhã encantadora para um piquenique.
— Uma idéia maravilhosa — aprovou Anthony. Os olhos de Júlia
arregalaram-se.
— Você quer dizer, lá fora?
— O sol está quente e agradável — assegurou-lhe Rachel.
— Não acho que a sra. Greene aprovaria.
— Então, precisamos nos certificar de não acordá-la. Anthony olhou
para a garrafa de uísque aberta sobre a mesa.
— Duvido que ela acorde tão cedo.
Rachel sorriu e tirou uma capa de dentro do cesto.
— Eu trouxe isso para agasalhá-la. — Ela pôs a capa sobre os ombros
de Júlia.
— Tem certeza de que não seremos descobertas em flagrante? —
indagou a garota, insegura.
— Confie em mim.
A um olhar de Rachel, Anthony moveu-se para pegar Júlia nos braços e
carregá-la para fora da sala escura. Ficou de coração apertado ao sentir junto
ao peito a fragilidade do corpo da jovem. O que Júlia precisava era de ar fresco
e boa comida, pensou, desgostoso com a família dela. E de alguém que a
amasse de verdade.
Eles foram para fora da casa em direção a um local ensolarado no
gramado.
Rachel esticou um cobertor no chão e Anthony, gentilmente, colocou a
jovem sobre ele. Enquanto isso, Rachel começou a descarregar pratos, purê de
batatas, truta com amêndoas, ervilhas, morangos e pudim de leite.
Anthony compartilhou um sorriso com ela quando os olhos de Júlia
arregalaram-se, não acreditando no que via. Com óbvio deleite, a garota
pegava as iguarias, inconsciente de que deveria fingir uma delicadeza
feminina. A srta. Cresswell também revelou voraz apetite. Anthony
acompanhou-as, saboreando as delícias.
Finalmente satisfeita, Júlia deu um suspiro feliz.
— Nunca provei nada tão maravilhoso. Vocês sempre comem assim tão
lautamente?
— Não é tão lauto como alguns jantares — assegurou-lhe Rachel. —
Dizem que o príncipe tem cerca de vinte e cinco pratos durante um só jantar.
— Tanto assim? — Júlia parecia descrente. Anthony assentiu.
— E...exatamente assim.
— Você já freqüentou algum jantar com o príncipe? — perguntou-lhe
Rachel.
— Sim, já — confessou ele. — Mas posso lhes dizer que, esta agradável
refeição com duas moças bonitas, agrada-me muito mais.
— Muito charmoso de sua parte, sr. Clarke — murmurou Rachel.
— Bem, há aqueles que dizem que meu charme é irresistível.
— Estranho, mas só ouvi este comentário partindo de você mesmo.
— Então não conversou com as pessoas certas.
— Realmente?
Atenta aos gracejos trocados entre os dois, nada mais que um flerte

31
sutil, Júlia sorriu de maneira sonhadora.
— Eu adoraria freqüentar um jantar com o príncipe. Todas aquelas
mulheres adoráveis com vestidos bonitos, sendo conduzidas ao salão de dança
por cavalheiros.
— C....creio que você tenha muitas ilusões, minha querida — murmurou
Anthony. — O entretenimento geralmente consiste nas mulheres fofocando
sobre a vida alheia, enquanto os homens procuram salas privadas para jogar
cartas.
— Oh! — exclamou Júlia. Anthony sorriu para Rachel.
— Não preste atenção ao sr. Clarke, Júlia, ele está apenas provocando-
a.
— Sim — concordou ele. — Por favor, perdoe-me.
— E algum dia você freqüentará tais festas — prometeu Rachel.
— Oh, não. — A garota meneou a cabeça. — Isso nunca será possível.
— Tudo é possível, não é, sr. Clarke?
— Absolutamente. Você apenas tem de desejar com determinação.
Querer é poder.
— Vocês acreditam mesmo nisso?
— Sim — respondeu ele sem hesitar.
— O que você desejaria, Júlia? — perguntou Rachel. A menina sorriu
timidamente.
— Um vestido novo azul com aplicações em renda. E freqüentar um
baile. E... — ela corou e interrompeu as palavras.
— Sim? — insistiu Anthony, gentilmente.
— Você acharia que sou boba.
— Impossível. O que você deseja?
— Voar como um pássaro — confessou ela. — Eu lhe avisei que era
tolice.
— De modo algum. É um desejo maravilhoso— discordou Rachel, então
olhou para Anthony com olhar provocante. — E quanto a você, sr. Clarke, o
que desejaria?
Ele levou um instante para considerar a resposta.
— Ver as maravilhas da China. Tocar as estrelas. Descobrir uma mulher
apaixonante e ardorosa para preencher minha vida.
Ela arregalou os olhos.
— Meu Deus!
Ele deu uma gargalhada.
— E agora acho que é a sua vez, srta. Cresswell.
— Bem, eu desejaria uma linda casa num bairro elegante da cidade. O
prazer da companhia de minhas irmãs — parou e deu um estranho sorriso — ,
meu pai livre de perigo.
Anthony a examinou por um longo momento, considerando os óbvios
laços amorosos dela com a família. E sentiu uma ponta de inveja. A despeito
da vida escandalosa e pouco convencional dos Cresswell, possuíam um vínculo
mais forte do que ele sentia em relação à própria família.
— Você não deseja um m...marido e família? Ela espantou-se com a
pergunta.
— Por Deus, não. Estou aproveitando minha independência. Por que eu
a sacrificaria por algum homem?

32
Anthony franziu o cenho.
— Com certeza, haveria alguns benefícios.
— Não o suficiente para me sentir tentada.
— Talvez você ainda não tenha experimentado a verdadeira tentação.
Eles se entreolharam e Anthony sentiu uma incontrolável vontade de
beijá-la. A mulher o enfeitiçara. Seu corpo tremia de desejo quando um prato
surgiu diante de seu nariz.
— Posso comer mais morangos? — perguntou Júlia.
Rachel colocou mais morangos no prato dela e ocupou-se em embrulhar
o resto da comida em guardanapos de papel.
— Aqui. Vamos cobri-los adequadamente e você pode guardá-los para
uma investida noturna.
Os olhos azuis de Júlia iluminaram-se de prazer.
— Oh. Quanta felicidade estou sentindo! Anthony se levantou.
— É melhor eu levar Júlia para dentro da casa. Não queremos que a
sra. Greene descubra nosso segredo.
Novamente erguendo a garota nos braços, ele recolocou-a na cadeira
de rodas e ficou satisfeito em notar que as faces dela estavam com uma
coloração rósea.
— Não se esqueça de manter a comida e os quebra-cabeças escondidos
— avisou. — Adeus, minha querida.
Deixando a sala, teve o cuidado de não fazer barulho. Descobriu a srta.
Cresswell esperando-o do lado de fora do portão.
— Seu piquenique foi uma idéia formidável.
— Estava um dia encantador demais para permanecer dentro de casa.
Enquanto caminhavam entre as árvores, de volta à casa dos Carlfield,
Anthony, de súbito, perguntou:
— O que é isso?
— O quê?
Ele apontou uma delicada peça de joalheria cravejada com diamantes e
pérolas que vira no solo.
— É um broche— disse Rachel, curvando-se e pegando-o do chão. —
Um broche muito caro— observou Anthony, franzindo o cenho.
— O que isso estaria fazendo aqui? Anthony sorriu.
— Deve ter caído do vestido de alguma mulher.
— Aqui?
— Você não é a única mulher capaz de andar num dia ensolarado.
— Acho difícil imaginar lady Broswell ou suas filhas caminhando por
entre o bosque, sr. Clarke. Elas ficariam muito preocupadas que um pouco de
sujeira possa arruinar as bainhas de seus vestidos.
Por mais que quisesse negar, tinha de admitir que aquilo fazia sentido.
— Então talvez este broche pertença a srta. Carlfield — sugeriu.
— Sim, perguntarei a Violet.
Em silêncio, caminharam em direção à casa, mas, quando entraram no
pátio, Anthony parou.
— Vou deixá-la aqui, minha querida. Rachel ficou surpresa.
— Não vai entrar na casa?
— Não, quero começar um projeto muito especial — confidenciou-lhe
ele.

33
Como esperado, a expressão de Rachel tornou-se aborrecida por ser tão
sumariamente dispensada.
— Outro projeto?
— Sim.
— Espero que você nunca se case, sr. Clarke. Sua esposa acharia um
tanto tedioso o seu hábito de sempre desaparecer por causa de seus projetos.
Ele sorriu, depois deu de ombros.
— Talvez eu escolha uma mulher que valha a pena ser incluída nos
meus projetos.
— Sem dúvida, ela se sentirá honrada.
— Sem d...dúvida.
Por um momento, Rachel lutou para fingir desinteresse nos movimentos
dele. Não costumava perseguir os homens. Eles é que deveriam persegui-la.
— Pode, pelo menos, me dizer do que se trata este projeto?
— Claro. Vou realizar o desejo de uma certa jovem.
— O quê?
— De algum modo, vou ver se consigo fazer com que Júlia possa voar
como um pássaro.
Houve um silêncio constrangedor, e então, quase sem avisar, Rachel
segurou-lhe o rosto e beijou-o com ternura.
Foi o primeiro beijo verdadeiro dos dois, e Anthony estava ansioso em
corresponder. Ele a envolveu nos braços, indiferente ao fato de estarem em pé
no meio do pátio. Sabia que nada fora planejado. Tudo que importava era que
ela finalmente estava em seus braços.
A boca de Rachel era doce e quente, fazendo sua cabeça zunir e as
coxas comprimirem-se. Ele inalou o perfume de rosas, experimentando a
inocência feminina. Então, aprofundou o beijo, fazendo-a gemer baixinho.
Quando se afastou, Anthony sorriu e acariciou-lhe o rosto.
— Diga-me, minha querida, o que fiz para merecer tão deleitável
tratamento?
Ela dirigiu-lhe um olhar atrevido, embora o rosto permanecesse corado
e os olhos resplandecentes de prazer.
— Há momentos em que você é maravilhoso, senhor. Anthony tentou
puxá-la para junto de si novamente, mas, com um rápido movimento, ela
desvencilhou-se e correu em direção à casa.
O beijo podia não ter sido planejado, mas fora muito sedutor.
Resistindo à vontade de correr atrás dela, Anthony virou-se e caminhou para
os estábulos distantes.
Estava passando em frente à casa quando ouviu o som de passos vindo
em sua direção. Ninguém menos do que lady Broswell.
Com um gemido de desprazer, observou as plumas do chapéu da velha
senhora e decidiu que era melhor ouvir o que ela tinha a dizer e dispensá-la
em seguida.
— Sr. Clarke — chamou-o ela.
— Lady Broswell — Anthony saudou-a com uma reverência.
— Está um dia encantador, não acha?
— M...muito encantador.
— Eu esperava vê-lo hoje. — O tom de voz dela era ansioso, e Anthony
não duvidou que o esperara a manhã inteira. Estava acostumado a "mães

34
casamenteiras" e suas manobras sutis. — Estou planejando uma pequena
reunião para sexta-feira à noite. Bastante informal, é claro. Ficaríamos muito
honradas se o senhor comparecesse.
— Muita gentileza sua, lady Broswell, mas lamento pois estou muito
ocupado com assuntos pessoais.
— Minhas filhas ficarão desapontadas.
— Por favor, peça-lhes que me desculpem. Agora, se me der licença...
Preparando-se para ir embora, Anthony foi impedido pela mão da
senhora idosa em seu braço.
— Sr. Clarke.
— Sim?
Ela hesitou, fingindo nervosismo.
— Talvez não caiba a mim dizer, mas sinto que alguém deveria preveni-
lo sobre a srta. Cresswell.
— Verdade? — perguntou ele, fingindo estar interessado no que ela
tinha a dizer.
— Uma garota encantadora, é claro, e muito cativante, mas há rumores
de que o sr. Mondale é seu atual amante.
— Tem razão, senhora, Rachel Cresswell é uma garota encantadora —
disse Anthony, friamente. — E, portanto, não merece uma mentira tão vil e
maliciosa. Se eu ouvisse tais r...rumores circulando em Surrey, asseguro-lhe
que mostraria minha indignação. Será que fui bem claro, lady Broswell?
O rosto da velha senhora enrubesceu.
— Perfeitamente, sr. Clarke. Bom dia — disse ela e se afastou. Anthony
a observou partindo. A mulher era realmente malvada.
Não era de se admirar que Rachel estivesse determinada a vingar-se.
Ainda pensando no assunto, seguiu seu caminho para os estábulos. Tinha
ainda um milagre a criar.
Dois dias depois, Rachel saiu para a manhã quente de primavera, à
procura da amiga Violet. Levou algum tempo para localizar uma pequena
estufa.
Entrando na sala de vidro e ferro com algumas plantas tenazes que
haviam sobrevivido ao descuido dos proprietários da casa, sentou-se junto à
amiga no banco ao lado da fonte.
Imediatamente, percebeu que Violet estivera chorando. Com um gesto
rápido, Violet escondeu o lenço e pegou um pedaço de linho no qual estivera
bordando.
— Violet, procurei-a pela casa toda.
— Bom dia — cumprimentou-a a garota com o olhar fixo no trabalho
manual.
— É um lindo bordado — murmurou Rachel, deliberadamente
conduzindo a conversa para a direção que a amiga desejava.
— Obrigada.
— Um presente de casamento para seu noivo? Ela sentiu Violet tremer
a seu lado.
— Não. O sr. Wingrove acha que o trabalho manual é uma atividade
frívola e fútil. Espera que a esposa poupe as energias para agradar o marido e
leia livros para se informar melhor.
Rachel não tentou esconder seu desgosto.

35
— Por Deus, que esnobe fatigante!
— Rachel! — A amiga parecia surpresa.
— Bem, ele é pedante. Perdoe-me se a ofendo, Violet, mas não consigo
imaginar que ele a fará feliz.
— Casamento raramente tem algo a ver com felicidade. Rachel pensou
nas numerosas conhecidas que haviam se casado em busca de posição e
riqueza, em vez de por amor. A maioria já se envolvera em casos
extraconjugais.
— Verdade. É um meio muito freqüente de recuperar uma fortuna
perdida, não é?
Violet pareceu perplexa.
— Como você soube? Rachel sorriu.
— É obvio que seu pai está atravessando tempos difíceis. E é
igualmente óbvio que você não sente nada além de medo e repugnância por
seu pretendente.
— É verdade — sussurrou Violet. — Papai sempre foi um jogador e,
depois que mamãe morreu, ele tornou-se pior. Pedi-lhe que parasse, mas ele
sempre riu e disse que sua sorte estava para mudar.
— Creio que é uma desculpa comum à maioria dos jogadores.
— Sim, mas a sorte dele não mudou, então ele faliu e percebeu que
estava prestes a perder a propriedade.
— E, como qualquer homem fraco, procurou sacrificar outra pessoa
para superar sua derrota, em vez de aceitar as responsabilidades — afirmou
Rachel, indignada. — Então, ele teve a idéia de negociar você com o sr.
Wingrove.
— Sim.
— Não deve aceitar isso, Violet. Será infeliz com aquele homem
horroroso.
— Não há nada que eu possa fazer.
— É tolice. Minha própria mãe foi prometida a um cavalheiro que não
amava, pelo título dele. Mas foi sábia o suficiente para fugir de casa com meu
pai.
A moça arqueou a sobrancelha, atônita.
— Mas não tenho ninguém que deseje fugir comigo.
Violet possuía o mais delicado e equilibrado dos espíritos. Sempre faria
o que esperavam dela. Nunca lhe ocorreria desafiar as ordens do pai. Nem
mesmo se isso significasse unir-se ao patife do sr. Wingrove.
— O que quis dizer é que minha mãe não permitiu ser induzida a um
casamento indesejável. Diga a seu pai que você se recusa a ser sacrificada
para pagar as dívidas dele.
Violet suspirou, chocada.
— Oh, não. Eu não conseguiria fazer isso. Ele ficaria muito zangado.
— O que são algumas palavras zangadas em comparação a uma vida
inteira com o sr. Wingrove?
— Não seriam apenas palavras raivosas. Meu pai já ameaçou me
mandar embora se eu não concordar com o casamento.
Foi a vez de Rachel ficar zangada. O sr. Carlfield ameaçara jogar a única
filha na rua se ela não se casasse com um homem velho o bastante para ser
pai dela? Aquilo era uma coisa bárbara.

36
— Isto é imperdoável! — exclamou ela.
— Ele está aterrorizado com a possibilidade de perder tudo — justificou
Violet.
— Então deveria ter pensado nisso antes de perder a fortuna no
carteado.
— É tarde demais para lamentações — Violet murmurou. Rachel
mordiscou o lábio, enquanto pensava no que poderia ser feito. Certamente,
não ia ficar de braços cruzados e permitir que a pobre garota fosse forçada ao
casamento. Todavia, sabia que era uma perda de tempo falar com o pai da
menina. E nada podia induzi-la a pedir a piedade do sr. Wingrove. Ele puniria
Violet pela presunção de Rachel.
— Não. Não é tarde demais — decidiu ela. — Minha irmã, Sarah, tem
uma casa em Londres, a qual me deu. Você pode viver lá comigo.
Os olhos castanhos arregalaram-se.
— Está falando sério? Rachel deu uma gargalhada.
— É claro que sim! Nós nos divertiremos muito. Apenas por um
momento, um brilho de esperança surgiu nas feições na garota, mas, então,
desapareceu.
— Parece uma idéia encantadora, mas papai iria atrás de mim. Rachel
não estava amedrontada pela ameaça. A lei poderia estar ao lado do sr.
Carlfield, mas ela poderia contar com a astúcia do Malvado Dândi. E,
lembrando-se do interesse do pai por Violet, não tinha dúvida de que ele a
ajudaria.
— Não precisa temer que ele nos incomode em Londres. Tio Foxworth
mora comigo. Posso assegurar-lhe que ele é mais do que capaz de lidar com
seu pai.
A menção do nome Foxworth, Violet abaixou o olhar. Rachel ficou
intrigada ao notar um leve tremor no corpo da moça. Parecia que seu pai não
era o único que estava fascinado.
— Sim, ele é um cavalheiro muito forte.
Um silêncio reinou, enquanto Violet lutava entre o dever para com o pai
e o profundo desejo de fugir do controle proibitivo do sr. Wingrove.
— Não sei — sussurrou ela, finalmente. — Se eu não me casar, o que
acontecerá com meu pai?
— É dever de seu pai procurar um meio de se salvar da situação que ele
mesmo provocou.
— Não é tão simples assim.
— Muito bem. — Rachel levantou-se. — Pelo menos, pense na minha
oferta. Eu ficaria muito feliz de tê-la comigo.
— Pensarei. E muitíssimo obrigada. Nunca conheci alguém que fosse tão
bondosa comigo.
— Bobagem! — murmurou Rachel, saindo da sala.
Sentia muita pena de Violet. Não havia dúvidas de que a garota estava
intimidada pelo pai, e aterrorizada pelo noivo.
Graças a Deus, seu próprio pai a criara com um forte senso de
independência. Ela nunca seria fantoche de homem algum.
Ainda estava pensando nisso quando entrou na sala e se deparou com a
figura elegante do sr. Clarke, que descia a escada. O coração disparou em seu
peito.

37
— Bom dia, sr. Clarke.
Ele sorriu, parando à sua frente.
— Creio que já progredimos o bastante para que me chame de Anthony
e eu a chame de Rachel. Concorda, minha cara?
O bom senso a prevenia de que aquele era um jogo arriscado, mas não
teve forças para recuar e aquiesceu.
— Sim.
Anthony aproveitou o breve silêncio e se aproximou ainda mais.
— Esperava que você estivesse aqui embaixo esta manhã.
— Há algo que deseja?
— Sim. Pensei que poderia visitar uma vila da região e gostaria que
você me acompanhasse.
Rachel sorriu, satisfeita. Queria mesmo encontrar um meio de visitar a
vila e a proposta veio a calhar.
— Eu adoraria.
— Ótimo. Eu a encontrarei no pátio dentro de quinze minutos.
— Certo.— Apressadamente, ela correu para seu quarto e chamou a
criada. — Nelly, precisarei de meu novo traje de passeio.
Rapidamente, a criada de meia-idade removeu o vestido de musselina e
substituiu-o por um de casimira leve, com fitas de cetim branco. Completou a
elegante imagem com um chapéu de veludo e botinhas de couro.
— A senhorita está muito bonita — elogiou-a a criada.
— Obrigada, Nelly. Espero que o sr. Clarke aprove.
— Ele seria insensato se não aprovasse!
— Não, ele não é insensato. Mas é muito, muito ardiloso, e tenho de ser
mais esperta do que ele.
Pegando a bolsa, Rachel virou-se e deixou o quarto, descendo a escada
em direção ao pátio. Encontrou Anthony esperando-a ao lado de um elegante
coche puxado por uma parelha de alazões.
— Espero que não o tenha feito esperar muito.
— De modo algum.— Ele a olhou de cima a baixo.— Está pronta?
— Sim. — Ela permitiu que ele a ajudasse a subir no coche e sentou-se
confortavelmente. — Que magnífico par de alazões.
— Eu os c...comprei recentemente. Estou feliz porque provaram ser
uma excelente aquisição. Rachel examinou o perfil aristocrático.
— Não posso imaginá-lo sendo ludibriado.
— Realmente não. Nunca vejo somente a beleza superficial. Baseio
minha decisão em algo que valha a pena.
— Muito sábio de sua parte.
— Sem dúvida.— Com uma gargalhada, Anthony voltou sua atenção
para a estrada.
— Como vai seu projeto? — perguntou, tentando entabular conversa.
— Faltam ainda alguns detalhes.
— Posso vê-lo?
— Não — retrucou Anthony sem se desculpar.
— Não?
— É uma su...surpresa.
Ela comprimiu os lábios.
— Você é muito mal-educado, dependendo da ocasião.

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— E eu pensei que havia progredido e me tornado um cavalheiro. A
vivida imagem do beijo que haviam partilhado e do elogio que lhe fizera voltou
à memória de Rachel.
— Acho que uma mulher tem todo o direito de mudar de idéia —
argumentou ela.
— É claro que sim.
Rachel desejava ardentemente investigar o que havia por trás das
maneiras enigmáticas de Anthony. Afinal de contas, sabia pouco sobre ele.
— Conte-me sobre sua família — pediu, movida por um impulso. Ele
pareceu admirado pela súbita pergunta.
— O que quer saber?
— Tem irmãos ou irmãs?
— Não. — A expressão dele ficou séria. — Acho que meu pai ficou tão
desapontado comigo que não quis mais colaborar com a perpetuação da
espécie humana.
— Desapontado? Isto é ridículo. Anthony deu de ombros.
— Meu pai procura a perfeição em mim. Considera minha gagueira algo
ofensivo.
Uma ponta de raiva assolou Rachel.
— Que homem arrogante e desagradável ele deve ser. Anthony deu
uma risada divertida.
— Ah, Rachel, você nunca deixa de me surpreender.
— Não sei como pode rir — protestou ela. — É impensável que seu pai
não tenha orgulho de você.
— Obrigado.
— É a mais pura verdade. E, se eu encontrar seu pai um dia, direi isso a
ele.
— Não duvido que você o faria, mas não há necessidade. Aprendi a
aceitar a decepção de meu p.. .pai. A vida é muito breve para lutarmos contra
coisas que não podemos mudar.
— Você é muito mais generoso do que eu. Ele deu de ombros.
— Mas nem sempre fui assim. Passei anos tentando provar a meu pai
que eu merecia a admiração dele. Fui brilhante na escola, investi minha
mesada até adquirir uma fortuna, e comprei a melhor propriedade do condado.
Nada disso foi suficiente. Aos olhos dele, sempre serei um deficiente. Depois
de muito tempo, percebi que desejava a admiração dele porque eu não
admirava a mim mesmo. Uma vez que aceitei que eu valia alguma coisa, não
mais precisei da aprovação de meu pai.
A imagem de lady Broswell surgiu na mente de Rachel. Não podia negar
que parte do desejo de vingança devia-se ao conhecimento de que sua tia a
considerava inferior. Contudo, diferentemente de Anthony, Rachel não
desejava ignorar os insultos que suportara durante anos. Queria forçar lady
Broswell a admitir que ela era tão respeitável e tão bem educada quanto suas
próprias filhas.
— É dever de seu pai amar e apreciar você. Para que mais temos uma
família? — perguntou ela.
— As famílias nos são impostas, quer queiramos ou não. Ela fez uma
careta.
— Sim. Enquanto falavam, chegaram à periferia da pequena vila.

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— Acho que chegamos — comentou Anthony.
Rachel deu uma olhada ao redor com interesse. Não que houvesse
muito para ver. Algumas casas rústicas de madeira estendiam-se ao longo da
estrada estreita, e havia uma hospedaria com uma tabuleta, onde se lia A
Raposa e as Uvas. Ela detectou também, mais ao longe, o que supôs ser uma
serralharia, uma pequena igreja em estilo gótico e a casa do vigário. Nem
mesmo os habitantes locais, que se afastavam para admirar a passagem do
elegante coche, conseguiam destruir a paz bucólica do lugar.
— Não há muito a escolher — murmurou Anthony. — Está procurando
alguma coisa em particular?
— Sim. Um costureiro.
Os olhos castanhos arregalaram-se, examinando o vestido bem-feito
que ela estava usando.
— Não seria mais sábio de sua parte esperar por um vestido novo até
que voltasse para Londres? As costureiras locais dificilmente terão a habilidade
a qual você está acostumada.
— Lamento, mas não posso esperar. Preciso ter o vestido até o final da
próxima semana.
— Para o baile? — perguntou ele, incrédulo. — O que você está
armando, Rachel?
Ela sorriu, fingindo inocência.
— Não sei o que quer dizer.
— Ora, não deveria entregar uma coisa tão importante quanto um
vestido de baile a um costureiro provinciano.
— Eu não disse que o vestido era para mim.
Anthony ficou boquiaberto e, então, uma súbita percepção o atingiu
com prazer.
— Por acaso, este vestido será azul com aplicações em renda? Com um
esforço deliberado, ela foi evasiva:
— Isso, senhor, é um segredo. Ele deu uma risada calorosa.
— Sabe, Rachel, há momentos em que você é maravilhosa.
Rachel ficou surpresa com a costureira local. Embora intimidada por
uma mulher refinada estar em sua modesta oficina de costura, a boa mulher
estava ansiosa por agradar e atenta à descrição de Rachel sobre o vestido
adequado para Júlia.
Juntas, elas escolheram um tecido de seda num tom de azul que
combinava com a cor dos olhos da garota, e uma delicada renda de Bruxelas
para as aplicações.
Satisfeita em imaginar que Júlia ficaria radiante com seu novo vestido,
Rachel passeou pela vila e sentou-se num banco de jardim a espera de
Anthony.
Embora a brisa ainda fosse um resquício do inverno que se fora, estava
uma tarde agradável. Ela inalou o perfume de pão assado e grama molhada.
Era estranho.
Sempre achara estas cenas bucólicas tediosamente maçantes. Que
mulher sofisticada poderia descobrir qualquer diversão nos campos arados e
vacas pastando?
Hoje, contudo, parecia haver um senso de contentamento em tudo o
que via.

40
Naquele exato momento, não sentia saudade da usual multidão de
admiradores que a rodeavam. Londres parecia distante e ela estava feliz por
isso.
Passou-se uma hora antes que a elegante silhueta de Anthony pudesse
ser vista caminhando pela alameda principal, com um pesado saco debaixo dos
braços. Rachel levantou-se em estado de excitação.
O que havia naquele homem que mexia tanto com suas emoções?,
perguntou-se.
Sabia que ele era dono de um charme inegável, mas já conhecera
homens muito mais bonitos na vida. E flertara com os cavalheiros mais
charmosos de toda Inglaterra e Europa.
Entretanto, fora somente Anthony Clarice que conseguira ensiná-la a
perigosa tentação do desejo.
Dando de ombros ao mistério, Rachel caminhou ao encontro dele, que
colocava o saco no coche.
— Sua vinda aqui valeu a pena? — perguntou-lhe ele.
Rachel imaginou o prazer de Júlia quando recebesse o vestido de
presente.
— Acredito que sim. E quanto a você?
— Fiz progresso.
— Continua determinado a manter seu projeto em segredo?
— Sim.
Rachel ignorou a vontade de insistir. Já descobrira que Anthony Clarke
não podia ser facilmente manipulado. Ele faria o que bem entendesse,
independentemente de quanto charme ela jogasse.
— Você demorou muito — reclamou um pouco aborrecida.
— Perdoe-me. O curtidor local é uma pessoa muito falante, e estava
determinado a me relatar a gloriosa história de Surrey.
— Deve ser fascinante.
— Realmente é. Por exemplo, ele me informou que Eduardo II
freqüentemente visitava as terras arrendadas para ceder à sua fascinação por
combates. Infelizmente, suas visitas terminaram quando o dono das terras foi
decapitado.
Ela fez uma careta.
— Encantador.
Anthony deu uma gargalhada.
— O que você acha ofensivo? O combate ou a decapitação?
— Ambos são bárbaros, selvagens e incivilizados.
— Oh, eu na...não sei. Há algo muito romântico sobre cavalheiros
nobres lançando-se em competições, todos para ganhar o coração de belas
donzelas.
— Meu coração seria mais prontamente ganho pelo cavalheiro com
bastante espírito para não arriscar o pescoço de maneira tão tola — disse ela.
— Não acho nada romântico armaduras amassadas e traseiros machucados.
— E você alega ser uma pessoa muito lógica? — provocou-a. Ela deu de
ombros.
— Não posso imaginá-lo sendo compelido a provar sua vaidade,
derrubando outro cavalheiro de seu cavalo.
— Talvez não. Embora isso poderia valer a pena, se você tivesse

41
intenção de inclinar-se sobre meu traseiro machucado.
— Senhor! Ele riu.
— Muito bem, talvez prefira ouvir a história de um vilarejo perto daqui
chamado Merstham, que também ouvi do curtidor. Diz a lenda que, em 1851,
um exército dinamarquês retirou-se de uma batalha perdida porque as
mulheres locais rebelaram-se contra os invasores, atacando-os com pedaços
de pau e o que mais podiam ter nas mãos, incluindo panelas de ferro. Os
pobres dinamarqueses não eram bons adversários para as mulheres
enfurecidas.
— Realmente gostei desta história.
— Sabia que gostaria. Você tem sangue quente, minha querida.
— Não é bem assim.
— Será?
Um sorriso aflorou nos lábios de Rachel.
— Sempre soube do que as mulheres são capazes quando aparece a
oportunidade — rebateu ela. — Apenas os homens persistem em acreditar que
são, de algum modo, incapazes de arcar com a responsabilidade.
Ele diminuiu o ritmo da parelha de alazões, a fim de examinar-lhe a
expressão de desafio.
— E que tipo de responsabilidades seriam essas? Ela não hesitou:
— Controlar nossas próprias fortunas, comprar propriedades, escolher
nossos futuros.
— Puxa vida! — Anthony gargalhou. — Não consigo imaginá-la
submetendo-se aos caprichos de um cavalheiro, minha querida.
— Você está certo. Sou afortunada em possuir um pai que valoriza
minha independência — concordou ela. — Outras mulheres não têm a mesma
sorte. Violet, por exemplo, está sendo forçada a um casamento com um
homem que detesta, para salvar o pai da ruína que ele mesmo causou.
— Tenho de admitir que é mesmo falta de sorte.
— Isso deveria ser um crime — afirmou ela, desejando poder,
pessoalmente, mandar o sr. Carlfield e o sr. Wingrove para a forca.
— Você me parece um tanto radical.
— É uma coisa muito injusta.
— Não apenas as mulheres são f. ..forçadas a se casarem por razões
diferentes do amor.
Ela não podia negar a lógica de tais palavras. Tinha de pensar em lorde
Newell e a detestável pressão que o jovem sofria para casar-se com Mary.
Embora a situação não fosse totalmente igual.
— Talvez, mas, pelo menos, um homem possui meios de sustentar-se,
se escolhe desrespeitar as ordens da família.
— Você realmente acredita que Violet seria capaz de sustentar-se se a
oportunidade lhe fosse dada?
Parecia uma idéia impossível, pensou Rachel. Violet era tímida e
insegura demais para enfrentar uma vida sem a proteção da riqueza.
Entretanto, a garota não seria menos amedrontada e infeliz sendo atirada nos
braços do sr. Wingrove.
— Desespero força as pessoas a fazerem coisas que jamais sonharam
ser possíveis — disse ela.
— Violet estaria perdida sem alguém para cuidar dela, como você bem

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sabe. Ela não possui seu espírito corajoso.
Rachel aborreceu-se.
— Não acredito que deseje que ela se case com aquele homem
detestável.
— Não, mas teria de ser V...Violet quem escolhesse terminar o noivado.
Eu a estaria intimidando tanto quanto o pai se a persuadisse a romper com o
sr. Wingrove.
Rachel suspirou, relutante.
— Tem de ser sempre tão sensato? Os olhos escuros faiscaram,
divertidos.
— Lamento, mas sim. É um grande defeito, admito.
— Um defeito, realmente. Mas sou generosa o bastante para entender e
aceitar tão terrível falha de caráter.
— Muita gentileza sua, minha querida. — Anthony riu e então, de
súbito, mudou o rumo da conversa:— Eu lhe falei sobre minha família e você
falou muito pouco da sua.
Rachel surpreendeu-se pelo interesse dele. Poucas pessoas na
sociedade ousavam perguntar-lhe diretamente sobre o Malvado Dândi.
— O que você quer saber?
— Como foi sua infância? Ela fez uma careta.
— Excitante, imprevisível e, algumas vezes, amedrontadora quando eu
temia que papai estava prestes a ser descoberto — ela pegou-se respondendo.
— E foi também bastante solitária, porque nunca tivemos um verdadeiro lar.
Dou graças a Deus por ter tido Sarah e Emma.
— Suas irmãs?
— Sim.
— Elas são tão bonitas e destemidas quanto você? Rachel sorriu ao
pensar nas irmãs.
— Elas são certamente bonitas e suponho que ousadas, à maneira
delas. Sarah criou tanto Emma quanto eu depois que mamãe morreu, e então
desafiou convenções, abrindo uma escola no pior bairro de Londres. Não tenho
dúvidas de que ela continuará com a escola apesar de que será, em breve,
lady Chance. Quanto a Emma— Rachel parou ao lembrar-se da tempestuosa
relação das duas — , ela recusou-se a aceitar ajuda de qualquer pessoa e
tornou-se a dama de companhia de lady Hartshore. Eu costumava provocá-la
sobre sua enfadonha natureza e a recusa em aproveitar a vida. Ela detestava
ser filha do Malvado Dândi. Agora simplesmente transpira felicidade.
— Você me parece um pouquinho invejosa.
Rachel pestanejou. Até aquele momento não havia considerado que
podia sentir uma ponta de ciúme da boa sorte da irmã.
— Talvez eu seja um pouco — confessou. — Tanto Sarah quanto Emma
encontraram cavalheiros que as respeitam e as adoram. Tenho certeza de que
elas serão extremamente felizes.
— E assim mesmo você alardeia não ter interesse em ter um marido ou
família.
— Minhas irmãs descobriram uma estirpe rara de cavalheiros. Não
serão obrigadas a curvar-se às ordens dos maridos ou ser condenadas a uma
infindável linha de amantes.
— Você acredita que somente dois homens em toda a Inglaterra

43
possuem tais qualidades?
— Bem, talvez haja mais um ou dois. E quanto a você? Pretende casar-
se?
Ele conduziu o coche para um caminho que levava a um prado
verdejante.
— Como você mesma disse, eu seria um marido terrível. Não gosto
muito de freqüentar a sociedade, costumo desaparecer por horas na minha
oficina de trabalho e prefiro um bom livro a dançar uma valsa.
Ela estudou-lhe o elegante perfil.
— Mas certamente precisará de um herdeiro.
— Graças a Deus, o irmão de meu pai produziu diversos filhos, livrando-
me assim do dever de dar continuidade à linhagem familiar.
— Então você pretende continuar solteiro?
— Suponho que a mulher certa me fará render-me a seus encantos. Ela
terá de ser muito fora do comum, é claro.
— Fora do comum?
— Sim. Deverá ser bonita, charmosa, graciosa e independente o
bastante para não exigir minha constante atenção.
— Há outras exigências?
Ele fingiu considerar o assunto.
— Sim, essa dama deverá ter temperamento dócil, ser inteligente,
abençoada com senso de humor e possuir um coração bondoso.
Rachel riu dos ridículos requisitos.
— Acho que é melhor você tentar produzir este modelo de virtude em
sua oficina de trabalho.
Anthony ficou imperturbável diante do comentário.
— Não acho que seja algo tão impossível. Minha ma...mãe é uma
mulher assim.
Rachel lembrou-se das palavras dele para Júlia, de como a mãe
explicara a razão de sua gagueira.
— Beijado por um anjo, hã? Bem, ela deve ser mesmo uma mulher
formidável — reconheceu Rachel. — Ainda é muito íntimo dela?
— Muito.
— Gostaria de ter conhecido minha mãe — admitiu ela com um suspiro.
— Papai diz que ela era muito gentil e pronta para amar quem quer que
conhecesse. Ele também conta que a risada dela podia encher uma sala inteira
de alegria.
Anthony estendeu a mão para acariciar-lhe o rosto antes de retomar as
rédeas.
— Você certamente herdou a risada dela.
Aquele era talvez o maior elogio que Rachel já recebera.
— Obrigada.
— Seu pai nunca se casou novamente?
Ela arregalou os olhos diante da pergunta inusitada.
— Não acredito que muitas mulheres desejariam unir-se ao Malvado
Dândi. Além disso, ele ainda ama minha mãe.
— Você sente falta dele?
— É claro — respondeu Rachel com cautela. Anthony era muito
inteligente para ser enganado com facilidade. — Mas creio que ele nunca

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poderá retornar à Inglaterra. Seria muito arriscado.
— Deve ser difícil para você. Ela deu de ombros.
— Tenho minhas irmãs e tio Foxworth.
— Ah, tio Foxworth. Um cavalheiro muito incomum.
— Sim. — Por um instante, imaginou se ele já suspeitava de algo. —
Gosta dele?
— Ele é intrigante. Todavia, nunca compraria um cavalo dele.
— Uma sábia decisão — congratulou-o Rachel.
— Sabe de uma coisa, você me f...fascina, minha querida. Aliviada com
a súbita mudança de assunto, ela perguntou:
— Por quê?
— A maioria das moças ficaria horrorizada de ter um pai que é um
ladrão e um tio que convive com um príncipe rodeado de fofocas.
— Eu os amo — replicou ela sem hesitar. — Não os trocaria por uma
centena de, assim chamados, cavalheiros respeitáveis.
— São afortunados em ter ganho sua lealdade.
— Não precisaram ganhar minha lealdade. Eles são minha família.
Naquele instante, Anthony entrou na propriedade dos Carlfield e eles
pararam no pátio.
Um criado correu para pegar as rédeas e Anthony ajudou Rachel a
saltar do coche. Apenas por um momento, suas mãos seguraram a delgada
cintura, e então, com um relutante suspiro, ele deu um passo atrás.
— Quero agradecer-lhe por me acompanhar hoje.
— Foi um prazer. Confesso que me diverti muito — disse Rachel,
honestamente.
— Eu também.
— Desejo-lhe sorte em seu projeto. Talvez eu o veja durante o jantar —
falou, antes de girar nos calcanhares e começar a se afastar. Afinal, queria sair
dali o mais rápido possível para que ele não percebesse o brilho de interesse
que havia em seus olhos.
Pegando debaixo do assento o saco que recebera do curtidor, Anthony
caminhou em direção aos estábulos. Sorria levemente pelo desafio que brilhara
nos olhos de Rachel quando ela partira.
Nunca conhecera uma jovem tão espirituosa e bonita. Uma excelente
combinação. Mas havia mais do que curvas encantadoras e língua afiada na
bela srta. Cresswell. Já descobrira que Rachel possuía um coração bondoso,
considerando sua atitude em relação a Júlia, e também ficara tocado pela
corajosa declaração de lealdade que ela fizera ao pai.
Uma coisa era certa, Rachel Cresswell era uma mulher que amava sem
julgar. Doava seu coração sem condenar as pessoas por suas fraquezas e
deslizes.
Talvez, para a maioria dos cavalheiros da sociedade, o fato de ela ser
filha de um ladrão causaria um grande desgosto. Contudo, para Anthony, o
fato de Rachel não se importar com o que diziam do pai e amá-lo
incondicionalmente era uma qualidade admirável.
Entrando nos estábulos, ele parou quando um vulto alto deu um passo
à frente. Surpreendeu-se ao encontrar brilhantes olhos verdes.
— Sr. Foxworth.
Salomon Cresswell assentiu com um gesto de cabeça.

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— Sr. Clarke.
— Vai galopar hoje?
— Não. Na verdade, eu estava esperando por você.
— Verdade?
— Sim. Desejo falar-lhe em particular.
— Sobre o quê? — indagou Anthony, curioso. Foxworth esfregou uma
leve cicatriz no rosto.
— Acredito que você esteve viajando com minha sobrinha? Onde o
astuto homem quereria chegar?, perguntou-se Anthony.
— Sim, visitamos o vilarejo local.
— Ela é uma garota encantadora, não é?
— Muito.
— Também obstinada e perigosamente impulsiva — continuou o sr.
Foxworth.— Raramente considera as conseqüências antes de mergulhar numa
situação perigosa.
— Sim, eu n...notei tais tendências.
— Então entenderá minha atitude de proteção. Anthony arqueou as
sobrancelhas.
— Você está inquirindo se pretendo ser um cavalheiro honrado?
Foxworth sorriu.
— Eu não pretendia ser tão direto, mas sim.
Não era freqüente Anthony ter sua honra questionada, mas não se
preocupou.
— Considero a srta. Cresswell uma moça extraordinária que merece
todo o respeito. Eu jamais comprometeria a inocência e integridade dela.
— Não perdoaria ninguém que a ferisse, senhor — declarou o homem
mais velho.
— M...manterei isso em mente.
— Sim, espero que o faça — disse Foxworth, afastando-se dos
estábulos.
Anthony deu de ombros. Não se importava em ser prevenido como se
fosse um homem sem valores morais.
O pior era que não podia assegurar ao sr. Foxworth que só tinha boas
intenções em relação a Rachel, uma vez que nem ele mesmo sabia quais eram
suas intenções em relação à moça de olhos sagazes.
Certamente, queria seduzir Rachel. Sempre que ela estava por perto, a
vontade de tomá-la nos braços era enorme.
Porém, não mentira para o sr. Foxworth quando lhe assegurara que
sempre trataria Rachel com respeito.
Então, como isso o deixava?
Frustrado, claro.
Intrigado.
Hipnotizado.
E, todavia, naquele momento, não queria estar em lugar algum no
mundo, a não ser ali, intimamente próximo da mulher mais encantadora que já
conhecera.

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Capítulo IV

Parado nas sombras do salão, Anthony observava os numerosos


convidados conversando e flertando à vontade. Esta era uma cena que se
repetia todas as noites durante a última semana.
O sr. Carlfield estava claramente determinado a comemorar num estilo
pródigo sua boa sorte em ganhar um genro rico. Eram raros os momentos em
que a casa não estava repleta de visitantes aproveitando os lanches, jantares,
saraus musicais e jogos de cartas. Em condições normais, Anthony já teria
partido, há muito, para a tranqüilidade de sua casa em Londres. Abominava a
constante necessidade de conversas educadas e convencionais com um grupo
aqui e outro acolá. Contudo, continuava adiando seu retorno.
Recostado na parede com papel desbotado, visualizou a beleza de
cabelos claros que fora, misteriosamente, o chamariz de sua ida a Surrey.
O coração acelerou e ele admirou o elegante perfil, então o olhar
desceu para as deliciosas curvas reveladas pelo vestido de seda verde-
esmeralda. Ele a seguira até Surrey porque não conseguira evitar. O único
mistério, agora, era o que pretendia fazer, uma vez que estava ali.
Suspirando, sorriu quando observou o objeto de sua fascinação dar um
bocejo entediado. No momento, ela estava cercada por diversas matronas
idosas que discutiam as tradições que envolviam uma cerimônia de casamento
perfeita.
Anthony não se surpreendeu quando ela se afastou das venerandas
senhoras e sentou-se num sofá distante.
Ele atravessou o salão e sentou-se a seu lado.
— Você parece entediada, minha querida — provocou-a.
— Tanto rebuliço por um mero casamento.
— Há certos costumes a serem observados. Tradicionais, com centenas
de anos.
— Você é um especialista em núpcias, por acaso?
— Apenas li sobre o assunto — retrucou ele, ignorando o tom cínico,
enquanto pegava-lhe a mão esquerda. — Por exemplo, sabia que colocamos a
aliança no dedo anelar porque os gregos acreditavam que este dedo estava
diretamente ligado ao coração pela veia do amor? — Ele traçou um leve
caminho da palma da delicada mão até o cotovelo. — Ou que muitos anéis
romanos eram gravados com duas mãos unidas para representar amor e
compromisso?
— Isso é muito romântico.
— Também acredita-se que a tradição do padrinho do noivo vem dos
dias que os homens costumavam roubar uma noiva na cidade vizinha e
levavam seus melhores amigos junto por segurança. Esta era também a razão
de noiva ser colocada no altar do lado esquerdo. Afinal, o noivo nunca podia
ter certeza quando precisaria da mão livre para pegar a espada num possível
ataque de parentes raivosos.
— Agora, isto não é tão romântico.

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— Gostaria que eu lhe explicasse as tradições da lua-de-mel?
— Não, creio que já tive informações suficientes sobre bodas para uma
noite.
— Uma p...pena. É muito fascinante.
— Sim. Suponho que seja. — Rachel respirou fundo. — Sabe, está
ficando muito quente aqui.
Ele era perspicaz o bastante para entender a dica, e um calor intenso
tomou conta de seu baixo-ventre. Não queria nada mais do que levá-la para
longe da multidão. Observando o sr. Foxworth à distancia, falou:
— Poderia oferecer-me para levá-la lá fora e respirar ar puro, mas fui
educadamente alertado para comportar-me de modo apropriado em sua
presença.
Rachel franziu o cenho, intrigada.
— Explique-se melhor.
— Seu tio preveniu-me para não partir seu coração, minha querida.
— Ah. — Um sorriso curvou os lábios carnudos. — Ele é muito protetor.
— Sim. Não percebe o quão resistente é seu coração.
— Você deseja partir meu coração?
— É claro que não! Jamais a magoaria. Porém, pergunto-me se este
órgão específico pode ser alcançado no caso de uma dama que tem tanta
determinação.
— Só alguém muito especial poderia fazê-lo, meu caro— replicou
Rachel.
— Ah. — Anthony observou os cílios longos, o nariz afilado e os lábios
rosados. — E quais são seus requisitos? Quero dizer, o que considera ser
alguém especial?
Rachel ficou pensativa durante algum tempo, antes de responder.
— Ele teria de ser bonito, é claro.
— Claro.
— E romântico.
— Isso é tudo?
— Certamente que não. Teria de ser inteligente e forte, mas não
poderia tratar-me como uma criança tola. E teria de me adorar.
O forte aroma de rosas o atingiu em cheio.
— Quem não a adoraria?
— E ele não poderia esquecer-se da minha presença constantemente,
em favor de sua oficina de trabalho — concluiu ela com ar maroto.
Anthony não pôde evitar sorrir.
— Espera que um cavalheiro que lhe dê constante atenção mesmo
depois de anos de casados?
— Apenas não desejo ser ignorada.
Anthony sabia que as palavras tinham o propósito de atormentá-lo.
— Há uma g...grande diferença entre ser ignorada e deixar de dar a
devida atenção a alguém. Não acredito que gostaria de um homem que exigiria
estar sempre a seu lado ou reclamaria se não soubesse onde você está todos
os momentos do dia. Uma mulher independente se cansaria de tal situação
bem rápido.
— Não é verdade. Atenção é sempre bem-vinda.
— Vamos, sabe que estou certo.

48
— Acha que me conhece muito bem, não? Ele sorriu levemente.
— Muito pelo contrário. Você continua sendo um enigma tentador,
minha cara. Mas é óbvio que uma donzela como você não gostaria de ser
enclausurada por qualquer homem.
— E quanto a você? Acha que gostaria de uma mocinha enfadonha que
preferia vê-lo em sua oficina de trabalho em vez de na companhia dela?
Então suas últimas palavras tinham mexido com ela!, pensou Anthony
com satisfação. Era uma descoberta intrigante.
— Talvez.
Rachel sentiu o coração apertar quando Anthony inclinou-se devagar
em sua direção. Nos últimos dias, sentira falta daqueles encontros
provocantes. Com tantos convidados, era quase impossível achar um momento
para estar sozinha com ele. E, é claro, ele continuava sendo ardiloso,
desaparecendo nos estábulos ou seguindo para o vilarejo mais próximo sem
avisar ninguém.
Nunca um homem havia conseguido ocupar seus pensamentos com
tanta insistência.
A respiração dela ficou ofegante quando após trocarem algumas
palavras os olhos escuros se fixaram em seus lábios.
Então, a voz fanhosa do mordomo ecoou através da sala, anunciando a
chegada de novos convidados.
— Parece que temos visita — disse ele.
Rachel olhou em direção à porta, onde lady Broswell estava com suas
duas filhas e lorde Newell. Era precisamente o que ela desejara em sua ida a
Surrey. Soubera que lorde Newell estava prestes a aparecer com sua madrinha
e futura noiva. Era a oportunidade perfeita para provar quão facilmente
poderia atrair o jovem cavalheiro para seu lado.
— A velha megera Broswell — murmurou ela.
— E também seu devotado admirador da ópera.
— Sim. Lorde Newell.
— Agrada-lhe que ele prefira seu charme ao da pobre senhorita?
— Sim, dá-me certa satisfação — admitiu ela. Anthony comprimiu os
lábios.
— Então eu a deixarei para dar início a seu jogo, minha cara. Vá em
frente, a arena está livre.
Rachel abriu a boca para pedir-lhe que ficasse. Não queria ficar sozinha.
Mas, por Deus, era a srta. Rachel Cresswell, lembrou-se. Não tinha
necessidade de implorar pela atenção de um homem. De homem algum, aliás.
Forçando um sorriso indiferente, observou-o afastar-se.
O sorriso falso permaneceu intacto quando notou lorde Newell vindo em
sua direção. Esta era a razão pela qual fora a Surrey, não para ser enfeitiçada
por Anthony Clarke e seus comentários sagazes.
— Srta. Cresswell — murmurou o jovem lorde, parecendo um tanto
ridículo num casaco de listras cor de vinho e uma gravata espalhafatosa. Nada
parecido com Anthony, que preferia uma elegância simples e sóbria. E claro,
lorde Newell era muito magro e certamente precisava de enchimentos e
babados.
— Não acreditei em minha sorte quando soube que era uma hóspede
aqui, minha cara srta. Cresswell.

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— Lorde Newell, que prazer em vê-lo.
Ele a fitou de cima a baixo, antes de capturar os belos olhos.
— Você está linda. Como um anjo que caiu do céu.
— Muita bondade sua— murmurou ela com esforço, imaginando se os
cavalheiros aprendiam tão mundanos elogios juntamente com latim e grego na
escola. Como eles podiam ser tão repetitivos e sem graça! ?— E é claro você
está tão elegante como sempre. É um casaco novo?
O rapaz ficou visivelmente encantado.
— Gostou?
— É um colírio para os olhos — exagerou Rachel.
— Custou uma fortuna, mas valeu a pena.
— Isso significa que sua mãe parou com as ameaças de cortar-lhe a
mesada?
— Por Deus, não. — Ele sorriu levemente. — Minha abominável mãe
está determinada a me deixar acorrentado a ela até o fim do ano.
Rachel olhou para o local de onde lady Broswell e as filhas lançavam-lhe
olhares beligerantes.
— Então, o que o senhor fará?
— Que posso fazer? Terei de me casar com a filha de minha madrinha.
— Sempre é tempo de recusar.
— Recusar? — Ele pareceu chocado com tal sugestão. — A senhorita
não conhece minha mãe. Ela acabaria imediatamente com minha mesada. E
ainda faltam três anos antes que eu possa tomar posse de minha herança.
— Então, você se casará com a pobre moça, mesmo que não goste
dela?
Newell deu de ombros.
— Isso é esperado e programado, e preciso me casar algum dia. Uma
donzela é tão boa quanto outra qualquer. Para ser franco, para mim não faz
muita diferença.
Até aquele momento, Rachel simpatizara com lorde Newell,
considerando-o um jovem bom e sensível. Agora, o fato de saber que ele seria
induzido a um casamento por lady Broswell, e que ainda por cima achava que
todas as mulheres seriam iguais, o tornava repulsivo. De repente, sentia muita
pena de Mary. A pobre garota logo estaria unida àquele cavalheiro de caráter
duvidoso.
Rachel reprimiu o sentimento de piedade. Não se permitiria desistir de
sua vingança.
— Pensei que o senhor acreditasse que eu era muito especial —
provocou-o.
— Por Deus! Não estava me referindo à senhorita. Qualquer um em sã
consciência sabe que é uma estrela cintilante. Uma visão que me tira o fôlego
e faz com que sonhe de olhos abertos.
— Milorde, o senhor tem o poder de me virar a cabeça.
— Quem me dera tivesse mesmo tal poder! — exclamou ele. — Posso
visitá-la amanhã?
Era precisamente o que Rachel esperava ouvir.
Todavia, embora uma parte dela quisesse concordar com o pedido, não
pôde evitar procurar a figura máscula parada num dos cantos da sala. De
súbito, não queria perder seu dia por conta de um rapaz medíocre. Mesmo que

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isso significasse enfurecer sua tia. Haveria muitas oportunidades para provocar
lady Broswell.
— Não creio que sua madrinha gostaria da idéia — murmurou,
finalmente.
— Ela não precisa saber.
— Não estamos em Londres, milorde. As fofocas se espalham
rapidamente por aqui.
— Acho que você tem razão. Mas gostaria tanto de falar-lhe a sós.
— Há algo em particular que deseje me dizer? Newell pegou-lhe a mão
num aperto quase doloroso.
— Muitas coisas, na verdade. Coisas que não posso dizer em público.
Rachel quis livrar-se da mão do jovem ansioso.
— Milorde, precisa pensar em sua pobre noiva.
— Desde que eu me case com ela, Mary não se preocupará com meus
interesses.
Percebendo que só havia um meio de livrar-se da presença de Newell,
ela deliberadamente olhou para Mary ao lado de lady Broswell, cujo semblante
estava rubro de indignação.
— Ela não parece desinteressada no momento. Diria até que está muito
aborrecida.
Lorde Newell deu uma olhada em direção à futura noiva. Pareceu
encolher-se quando encontrou o olhar de Mary. Sabia que teria de suportar
uma descompostura por seu gesto.
— Creio que devo voltar para o lado dela. Falarei com você mais tarde,
minha querida.
Distraída, observando lady Broswell furiosamente sussurrando no
ouvido de lorde Newell, Rachel não percebeu que Anthony se colocara bem
atrás dela. Foi somente quando sentiu um dedo másculo fazendo uma leve
carícia em seu pescoço, que notou que seu charmoso amigo retornara.
Ela tremeu enquanto o corpo reagia à tal proximidade.
— B...bem, minha querida, se esperava enfurecer lady Broswell, creio
que atingiu seu objetivo.
Sabendo que tinha sido muito mais bondosa do que pretendera ser, e
que a culpa era inteiramente do jovem lorde, ela recusou-se a se desculpar.
— Não sou responsável pelo comportamento de lorde Newell.
— Você é totalmente responsável, como bem sabe. Afinal, enfeitiçou o
pobre rapaz.
— Fui educada. Ele riu alto.
— Não sou um de seus tolos admiradores, Rachel. Sei quando uma
mulher está encorajando um jovem.
— Você tem liberdade para acreditar no que quiser.
— Ah, não quero discutir — murmurou ele. — Ainda acha que o salão
está quente demais?
Queria muito estar sozinha com Anthony Clarke.
— E quanto a meu tio?
— Foxworth parece ter desaparecido — respondeu Anthony. — Vamos
para a varanda?
— Muito bem.
Ela levantou-se, esperando que ele lhe oferecesse o braço.

51
Era maravilhoso estar longe dos hóspedes falastrões e dos olhares
perniciosos de lady Broswell. E, é claro, muito mais adorável estar bem
próxima de Anthony para sentir o calor que emanava do corpo dele. Um
tremor familiar percorreu-lhe o corpo, e Anthony fitou-a com preocupação.
— Você está com frio.
— Não — negou ela de modo apressado. — A temperatura está amena.
— Acho que a primavera está tentando anunciar sua presença.
— Sim.
Sem avisar, Anthony parou, estendendo as mãos para segurar-lhe os
ombros e virá-la para si.
— Sempre pensei em você como uma espécie de raio de sol, tão
brilhante e quente como a vida, mas parece muito provocante ao luar.
— Qual a razão desse elogio, Anthony?
— M...meramente uma observação. Deixo elogios para velhacos e
escolares.
— Tem alguma outra observação?
Ele sorriu enquanto as mãos moviam-se dos ombros dela para a linha
delicada do pescoço.
— Sua pele possui a pureza de uma pérola rara e seus olhos parecem
ter sido pulverizados com ouro em pó. Seus lábios foram desenhados para se
moldarem aos meus e seu corpo é tão docemente curvilíneo que tenho ânsia
de senti-lo sob o meu.
Rachel estava tremendo da cabeça aos pés quando aqueles dedos
ousados mergulhavam sob a seda de seu corpete para acariciar a curva suave
dos seios.
— Oh! Sentindo a paixão crescente dela, Anthony a beijou com ardor.
Ele gemeu quando deu-se conta do desejo que os envolvia como uma
onda imensa, enquanto continuava acariciando-lhe os seios.
Rachel apoiou-se no peito largo, temendo que seus joelhos
enfraquecessem e ela caísse no chão. Nunca sonhara que tal sensação pudesse
existir.
— Não sabia que um beijo poderia ser assim — sussurrou ela.
— E bom ou ruim?
— Não estou bem certa.
Ele continuou roçando os lábios sobre o ombro delicado.
— Não acha nossos beijos prazerosos?
Rachel fechou os olhos porque sentia-se levemente zonza diante de tais
carícias.
— Prazerosos demais.
— Então aproveite-os — ordenou ele, voltando a se apossar da boca
rosada.
Então, depois de um momento, Anthony afastou-se um pouco, olhando
em direção às sombras que se moviam no jardim.
— Que foi esse barulho? _ perguntou ela, também ciente de que não
estavam sozinhos ali.
— Venha para cá— falou Anthony, conduzindo-a para a escuridão do
jardim até que Rachel finalmente vislumbrou o vago contorno de duas formas
a distância.
— Alguém está no jardim — sussurrou ela. — Lá, perto da fonte.

52
— Parece ser seu tio.
Rachel sentiu uma ponta de inquietação quando reconheceu a figura do
pai junto a uma silhueta feminina.
— Sim, e a srta. Carlfield.
Ela deu alguns passos em direção a eles antes que Anthony a segurasse
pelo braço.
— Aonde pensa que vai?
— Falar com eles.
— Não creio que queiram ser interrompidos.
— Mas não deveriam estar aqui fora sozinhos! Anthony sorriu de modo
travesso.
— Tam...tampouco nós deveríamos, minha querida
— E se o sr. Carlfield ou o sr. Wingrove aparecer aqui e os pegar?
— É um risco que terão de assumir, Rachel. Não devemos interferir.
— Ah, você é sempre tão lógico, tão racional que chega a me irritar —
murmurou ela.
Ele esboçou uma risada divertida.
— Não, nem sempre. Rachel o fitou.
— Não?
— Se eu fosse ra...racional, tivesse os pés na terra, faria minhas malas
e partiria para Londres, antes de ficar completamente enfeitiçado por você.
O coração dela quase parou de bater.
— Mas você não fará isso?
— Não. — Anthony ergueu a mão e acariciou-lhe o queixo, gentilmente.
— Como uma mariposa, eu voarei bem perto da chama, tomando cuidado para
não me queimar. Parece que não posso resistir.
Broswell Park era uma casa suntuosa feita de tijolos aparentes com
duas longas alas incorporadas ao corpo da construção. Atrás da imponente
estrutura havia um jardim bem cuidado com seus canteiros de flores e
algumas fontes.
Como uma rainha presidindo sua corte, lady Broswell estava sentada na
longa mesa central, repleta de comida e garrafas de champanhe. Perto dela, os
convidados conversavam animadamente como se não tivessem visto um ao
outro durante os últimos quinze dias.
Rachel permaneceu com o pai no fim do jardim, observando a elegante
cena com olhar de desdém. Embora estivera ansiosa para ver a casa da tia e
primas, chegou à conclusão de que a propriedade era tão fria e impessoal
quanto as pessoas que a herdaram.
— Bem, o que acha, minha querida? — indagou o pai.
— É precisamente como eu esperava — respondeu ela com uma careta.
— Sólida, respeitável e terrivelmente maçante.
Os olhos verdes de Salomon brilharam divertidos.
— Lady Broswell nunca teve muita imaginação.
— Não, ela é uma mulher entediante. Além do mais, isso é muito
depressivo.
— O quê? A vista?
— Tudo. A casa, o jardim e até mesmo as pessoas. É muito perfeito,
mas não há vida atrás da imagem que essas pessoas teimam em construir
para si mesmas.

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Salomon assentiu levemente.
— Você tem razão. Lady Broswell sempre considerou sua imagem de
suma importância.
— E o senhor acha que isso a faz feliz? Ele negou com um menear de
cabeça.
— Não, mas satisfaz-lhe o ego. Ela é muito orgulhosa.
— Eu preferiria ser feliz.
— Isto é o que desejo para você, filha. Amor e uma família linda.
— Sim.
— Estou muito feliz que tanto Sarah quanto Emma tenham encontrado
tal felicidade.
Rachel sorriu ao pensar nas irmãs. Perdera a companhia delas, mas
sabia que ambas estavam satisfeitas com suas escolhas de maridos em
perspectiva. E quem poderia culpá-las? Embora lorde Chance fosse um pouco
arrogante, combinava bem com a determinada Sarah e ninguém que
conhecesse lorde Hartshore poderia negar que ele era apaixonado pela gentil
Emma.
— Eu também — concordou Rachel.
— Agora preciso apenas ver você devidamente estabelecida e terei
cumprido meu dever.
— Não volte seus esforços casamenteiros para mim, papai — avisou ela.
— Não tenho interesse em ficar subordinada a homem algum.
— Você acha que Sarah e Emma estão subordinadas aos maridos?
Ela deu de ombros.
— O que sei é que não tenho vocação para me transformar em uma
esposa ou mãe tradicional. Porém, acho que elas tiveram sorte em suas
escolhas.
— Com certeza, você será igualmente afortunada, querida— murmurou
o pai. — E claro que um cavalheiro teria de possuir muita coragem e firmeza
para tomá-la como noiva.
Os olhos cor de avelã eram provocantes.
— Acha isso, realmente?
— Bem, não pode negar que é muito teimosa. E foi também muito
mimada por seus numerosos admiradores.
— Talvez eu nunca encontre um homem que deseje uma mulher tão
teimosa quanto eu — zombou ela.
— Oh, creio que descobriremos um cavalheiro que possua coragem
bastante para enfrentar o desafio.
Rachel sorriu.
— Isso me alivia muito, papai.
— Ah, Rachel, você é uma criatura rara e independente, mas seu
coração exigirá que procure alguém para amar. Como suas irmãs, precisará de
um homem que seja honrado e forte o suficiente para domá-la.
— Papai! Não sou um touro selvagem, e não tenho a menor vontade de
ser domada — replicou ela, sem, contudo, deixar de pensar no semblante
bonito de Anthony.
De qualquer forma, sabia que seu pai estava errado. Não era como as
irmãs. Era muito mais parecia com o Malvado Dândi. Um espírito livre que
buscava a felicidade mesmo se tivesse de dar as costas às convenções daquela

54
sociedade hipócrita.
Ele sorriu com complacência.
— Sinto que você logo mudará de opinião.
— O que o faz pensar assim?
Em lugar de responder, o pai ergueu os óculos para olhar o cavalheiro
que se aproximava, usando um detestável casaco roxo.
— Olhe que atrocidade de casaco! Já é péssimo ter de agüentar as
maneiras grosseiras do homem, e ainda somos obrigados a digerir a falta de
gosto total.
Rachel olhou para o sr. Carlfield com evidente desgosto. O tempo que
passara sob o teto do sr. Carlfield não melhorara sua péssima impressão do
pai de Violet.
Para ser franca, ela o desprezava profundamente. Não apenas pela
determinação em casar a filha para salvar sua fortuna, mas pela absoluta falta
de inteligência, cultura, e seu único interesse em carteado e amantes.
— Sr. Foxworth— murmurou sr. Carlfield.— Uma festa adorável, não é?
— Tediosa, eu diria.
— Oh, bem, reuniões campestres são um pouco enfadonhas quando
comparadas às que temos em Londres — concordou o homem enfadonho. —
Todavia, lady Broswell oferece excelente comida. O cozinheiro dela é francês,
sabiam?
Salomon fitou-o com ar de desdém.
— Qualquer bobo com uma receita e sotaque burlesco passa por chefe
de cozinha.
— Oh, sim, isso é verdade — desconversou sr. Carlfield. — Ah, tenho
alguns cavalheiros que estão muito ansiosos para conhecê-lo, Foxworth.
— Espero que não sejam relacionados ao sr. Wingrove. Hoje em
especial não suportaria asneiras e burrice.
O sr. Carlfield obviamente não percebeu que estava sendo zombado
pelo elegante cavalheiro, mas Rachel teve que esconder uma risadinha.
— Não, não. Ótimos camaradas, asseguro-lhe.
— Pena que não acredito em milagres. — Salomon voltou-se para a
filha: — Bem, minha querida, parece que tenho que deixá-la por algum tempo.
Não tente quebrar muitos corações enquanto eu estiver ausente.
— Vá tranqüilo. Saberei comportar-me — disse ela, sorrindo, enquanto
seu pai se afastava com o ansioso sr. Carlfield.
Rachel já decidira o que pretendia realizar naquela tarde. Por enquanto,
era mais importante do que sua conspiração de vingança.
Olhando ao redor para ter certeza de não estar sendo observada,
entrou na casa rapidamente.
Achou-se num grande hall de entrada cuja decoração era tão formal
quanto o jardim. Percorrendo o corredor, finalmente descobriu o que
procurava. Uma mulher robusta com um molho de chaves pendurado no sóbrio
vestido que era, evidentemente, a governanta.
Rachel já descobrira que a mulher trabalhava em Broswell Park há mais
de vinte anos. Certamente tempo suficiente para saber a verdade sobre a
pobre Júlia escondida na pequena casa ao lado da mansão dos Carlfield,
deixada de herança para lady Broswell.
Ocupada arrumando um vaso de flores, a mulher não notou a

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aproximação de Rachel.
— Oh! — exclamou quando a viu.
— Desculpe-me, eu não pretendia assustá-la — disse Rachel.
— Em que posso ajudá-la, senhorita?
— Nada, apenas desejei um lugar longe do sol por um momento.
— É claro — murmurou a mulher, puxando uma poltrona de veludo para
que Rachel se sentasse. — Eu a deixarei descansar à vontade.
— Obrigada, é muita gentileza sua.
Rachel sabia que tinha de ser extremamente cuidadosa para não
levantar suspeitas. Não cometeria o erro da maioria dos aristocratas que
achavam que os criados eram criaturas tolas e sem cérebro.
— Você é a governanta?
— Sim. Sou a sra. Stalton.
— Está com lady Broswell há muito tempo?
— Quase vinte anos.
— Ah! — Rachel sorriu novamente. — Esta é uma casa encantadora.
Você deve orgulhar-se.
— Faço o possível.
— Isto é óbvio. Não que eu esteja surpresa. Minha mãe sempre disse
que lady Broswell era muito especial.
Uma careta foi rapidamente disfarçada à menção da altiva matrona.
— Sua mãe era conhecida de minha patroa?
— Sim, embora já se tenha se passado muitos anos desde que elas se
viram pela última vez. Você sabe, e a coisa mais estranha é que... — parou de
propósito.
— O quê?
— Estou certa que minha mãe comentou que lady Broswell tinha três
filhas e, todavia, há apenas duas.
Nervosa, a governanta enfiou as mãos no bolso do avental.
— Sim, bem, a caçula morreu quando era ainda um bebê. Rachel
alegrou-se. Então, sua suspeita tinha fundamento. Havia uma terceira filha, e
ela apostava que não morrera quando bebê.
— Oh, que tristeza — murmurou Rachel. — Eu não sabia.
— Foi uma tragédia — disse a sra. Stalton.
— Acredito que o nome dela era Júlia, não era? Visivelmente
perturbada, a governanta olhou por sobre os ombros como se temesse que
lady Broswell aparecesse de repente.
— Creio que sim. Agora, desculpe-me. Estou muito ocupada hoje.
Desta vez, Rachel não impediu a governanta de partir. Descobrira a
verdade do que estivera procurando.
Júlia era realmente filha de lady Broswell. E a megera deliberadamente
a escondera do mundo, fingindo que ela morrera.
Rachel levantou-se e voltou ao jardim.
Descobrira a resposta que desejara, mas não sabia ainda o que faria
com a informação.
Estava ponderando sobre o dilema e não notou um cavalheiro se
aproximando.
— Srta. Cresswell, aí está você — disse lorde Newell, com um sorriso
aliviado. — Tive receio de que você partira.

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— Boa tarde, milorde.
— Por favor, poderia me chamar de George?
Ela ignorou o pedido, querendo apenas livrar-se da persistência dele.
— Não deveria estar ao lado de sua noiva? Lorde Newell deu de ombros.
— Não desejo arruinar tão bela tarde falando de Mary. Prefiro muito
mais conversar com você.
— Um assunto muito entediante, tenha certeza.
— Entediante? — Ele deu um passo à frente, quase a sufocando com o
cheiro forte da colônia que usava. — Como alguém ficaria entediado em falar
de sua beleza ou do charme de seu sorriso?
— Verdade?
— Gostaria de dar uma volta ao redor do lago? Ou talvez pudéssemos
aproveitar a sombra da gruta?
Rachel meneou a cabeça com firmeza.
— Não acho que seria apropriado ou sábio.
— Ora, mas não quero ser sábio. Apenas desejo ficar sozinho com você.
— Acho que é melhor voltar para junto dos outros convidados.
— Mas por quê? Por acaso eu a ofendi?
Rachel suspirou. O que faria para livrar-se daquele homem?
— Claro que não!
— Então, por que está me evitando?
— Apenas não desejo dar margem a comentários maldosos.
— Você nunca se incomodou com fofocas
— Minha preocupação é com você — respondeu Rachel, de repente
inspirada — Meu tio pode ficar com raiva e querer usar suas pistolas de duelo
para proteger minha honra e o orgulho da família.
O semblante juvenil enrubesceu diante da ameaça velada.
— Deus meu!
— Acho que é melhor tomarmos cuidado até que voltemos a Londres.
Ele lançou um olhar furtivo em direção ao homem que conhecia como
Foxworth, obviamente não achando agradável a idéia de um duelo ao raiar da
aurora, conforme o costume.
Mesmo se Rachel fosse um anjo caído do céu, não estava preparado
para morrer.
— Sim, talvez você esteja certa. Eu a procurarei quando voltarmos à
cidade.
— Uma idéia muito sensata — concordou ela com um sorriso maroto.
Anthony não tinha intenção de comparecer à festa ao ar livre. Não
queria testemunhar Rachel continuando seu jogo de vingança. Não que
temesse que ela possuísse uma natureza malévola. O amor dela pela família e
bondade para com Júlia eram provas de um coração bondoso. Porém, havia
algo mais profundo por trás daquela disputa com lady Broswell. Algo que até
agora ele não pudera descobrir.
Convencendo-se de que a urgência em estar ao lado de Rachel era mais
uma questão de dever do que um mero desejo de vê-la sorrir, ele banhou-se e
trocou de roupa. Então, decidindo que era mais rápido andar do que mandar
arrear o coche, pegou um atalho no bosque e dirigiu-se aos jardins da mansão
dos Broswell.
Chegou exatamente na hora em que Rachel e lorde Newell estavam

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conversando, e aborreceu-se. Absurdo, pensou, considerando que nunca
experimentara uma ponta de ciúme na vida.
Vendo lorde Newell afastar-se, aproximou-se daquela que vinha
ocupando grande parte de seus pensamentos desde o dia em que a conhecera.
— Bem, devo admitir estar enfeitiçado por tamanha beleza, minha cara
— sussurrou ele. — Hoje você está ainda mais bonita.
Rachel surpreendeu-se diante da súbita aparição.
— Anthony, eu não achei que você viria.
— Fiquei entediado com minha própria companhia. Pensei que me
d...divertiria observando-a vingar-se de lady Broswell. Mas, ao que parece,
minha caminhada foi em vão.
— Não sei o que você quer dizer.
— Oh, convenhamos, Rachel, você obviamente atraiu o jovem Newell
para sua teia com o único propósito de irritar a megera.
— Talvez eu o ache charmoso. Anthony deu uma sonora gargalhada.
— N...não, ele é muito fraco para atraí-la.
Os olhos de Rachel cintilaram num deliberado desafio.
— Certamente, uma mulher de juízo preferiria um cavalheiro mais
maleável — disse ela.
— Ficaria entediada com incrível rapidez. Somente um desafio
combinaria com sua natureza apaixonada.
— Você é muito seguro de que me conhece — observou ela.
— Não tanto quanto desejaria. — Anthony recordou-se de quando a
segurara nos braços e acariciara-a com tanta intimidade que fizera ambos
tremerem de desejo. Por Deus, nunca quisera uma mulher com tanto
desespero como queria Rachel Cresswell. — Você tentaria um santo, minha
cara. E nu...nunca fui santo.
— Acho melhor voltar para junto de meu tio.
— Num minuto. — Ele a deteve. — Primeiro desejo saber por que
mandou aquele rapazote ansioso de volta para lady Broswell, em vez de
continuar sua vingança.
Ela deu de ombros.
— Isso importa?
— Sim. Muito.
— Na verdade, não estou certa. Acho que apenas não estava disposta a
suportar a companhia enfadonha dele.
Anthony sorriu, satisfeito.
— Talvez esteja começando a perceber que vingança é um triunfo
banal.
— Acho que comi algo que não me fez bem — murmurou Rachel,
procurando por uma desculpa para afastar-se do corpo másculo e atraente. —
Vamos nos juntar aos outros?
Anthony deu uma gargalhada com a presença de espírito de Rachel,
enquanto colocava-lhe a mão sobre o braço musculoso.
— Perfeitamente, minha querida. Poderemos nos servir de um bom
champanhe para melhorar este seu mal-estar.

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Capítulo V

Amanhã surgira com uma funesta promessa de chuva. Nuvens pesadas


acumulavam-se no céu, fazendo a maioria dos hóspedes demorarem-se na
cama e tomarem seus chocolates quentes nos quartos, em vez de enfrentarem
as frias salas do andar térreo.
Anthony, contudo, ignorou a iminente chuva e, agasalhando-se com um
casaco preto, desceu a escada e participou de um generoso café-da-manhã.
Quando terminou, escreveu um bilhete que pediu para ser entregue à srta.
Cresswell depois do almoço e dirigiu-se aos estábulos.
Aproximadamente três horas mais tarde, ficou muito satisfeito que seu
projeto estivesse finalmente concluído. Montando um dos cavalos que trouxera
consigo de Londres, dirigiu-se à casa em que Júlia se encontrava. Sorriu
porque, naquele exato momento, o sol fazia uma promissora aparição, perfeita
para seus planos.
Para sua felicidade, conseguiu tirar Júlia da casa com facilidade,
empurrando a cadeira de rodas para fora do pátio cercado até o gramado ao
lado. Calmamente, colocou-a sobre o lombo da égua mansa que levara consigo
e prendeu-a com cuidado sobre a sela que passara a última quinzena
construindo.
Era engenhosa no design. O encosto alto suportava a coluna, enquanto
diversas tiras eram anexadas à sela junto com as fivelas, de modo que Júlia
ficaria firmemente presa a ela.
Desta forma, a jovem não correria perigo.
Olhando para o animado semblante de Júlia, percebeu que ela estava
muito diferente da garota que ele e Rachel haviam descoberto sentada
languidamente ao lado da janela.
Aquela garota se resignara a uma vida de solidão. Não havia esperança
dentro dos pálidos olhos azuis. Agora, eles brilhavam com inegável excitação.
O coração de Anthony regozijava-se pela percepção de que ele e Rachel
haviam feito uma diferença na vida de Júlia. Seu plácido mundo fora
temporariamente modificado. O que aconteceria quando eles partissem e ela
ficasse mais uma vez sozinha?
— Creio que estamos preparados — disse ele, finalmente.— Agora
temos apenas de esperar pela srta. Cresswell, que está para chegar.
— Estou ansiosa que ela me veja aqui montada nesse animal.
— Você tem certeza de que está bem segura aí na sela?
— Não poderia cair mesmo que quisesse — respondeu Júlia, rindo.
Sabendo que ela estava realmente segura, Anthony pegou as rédeas da
égua na mão antes de montar seu próprio cavalo.
Num silêncio conspirador, escutaram Rachel atravessar o pátio. Ele
pedira no bilhete que ela o encontrasse atrás da velha casa. Não revelara,
todavia, que uma surpresa a aguardava.
— Olá — gritou Rachel, intrigada. — Júlia?
— Ela está aqui.

59
— Estou pronta — sussurrou Júlia.
— Vamos dar uma volta — murmurou Anthony, puxando a égua com
cuidado, observando a menina que sorria com evidente deleite. Juntos, eles
circularam o campo gramado por cerca de doze vezes e a risada da jovem
preenchia o ar.
— Olhe, srta. Cresswell, estou voando — exclamou Júlia em estado de
pura felicidade.
— Você certamente está — aplaudiu Rachel. — É maravilhoso.
— Mais rápido, sr. Clarke — pediu a menina.
Com um sorriso indulgente, Anthony acelerou os passos da égua.
— Acho que é o suficiente por agora — disse ele. — Você não vai querer
ficar dolorida.
— Certo — concordou ela.
Num instante, Anthony a ajudou a desmontar e, carregando-a nos
braços, colocou-a na cadeira de rodas, cobrindo-a com uma manta de lã.
— Bem, parece, minha querida, que você realizou um dos seus desejos
— - comentou Rachel.
— Foi maravilhoso — disse Júlia. — Senti-me como se estivesse
realmente voando.
Rachel presenteou Anthony com um sorriso cativante.
— Foi muita esperteza do sr. Clarke.
— Estou satisfeito que tenha aprovado — murmurou ele.
— E muita bondade sua também — acrescentou ela.
— Oh, sim — concordou Júlia, prontamente. Anthony deu uma
gargalhada.
— Chega de elogios. Assim vão me deixar sem graça.
— Mas não sei como poderei agradecer-lhe um dia. — A garota estava
emocionada.
— Não há necessidade de agradecimentos entre amigos. E somos
amigos, não so...somos?
— Claro que somos.
Anthony tirou do bolso um pequeno cavalo alado que entalhara em um
pedaço de mogno. Embora não fosse uma obra-prima, a peça era
delicadamente esculpida.
— Tome aqui. Fiz isso para que você possa sempre lembrar-se do dia
que voou.
A menina pegou o cavalo, acariciando a madeira polida com os dedos.
— Oh, é muito bonito. Veja, srta. Cresswell, o cavalo tem asas.
— É perfeito. — Rachel observou o entalhe.
Júlia levou o cavalo alado à face e irrompeu em lágrimas. Apanhado de
surpresa, Anthony curvou-se ao lado da cadeira de rodas.
— Vamos, vamos. Fiz isso para você sorrir, não para chorar.
— É que nunca tive um amigo verdadeiro antes. Acho que é tão
maravilhoso quanto voar.
— Sim, tem toda razão — respondeu ele. — Agora, por mais que
lamente terminar nossa tarde juntos, é hora de você retornar à casa.
— Tão rápido assim?
Anthony abominava a idéia de pensar no retorno de Júlia à casa escura.
Mas era sensato o bastante para perceber que estavam correndo perigo.

60
— Não queremos ser pegos. Seria o fim de nossas tardes juntos.
— Suponho que tenha razão.
— Nós a veremos dentro em breve, minha querida — murmurou Rachel
num tom carinhoso.
— Estou feliz que tenha vindo me ver voar. Rachel sorriu.
— Eu também. Anthony voltou-se para Rachel:
— Voltarei num momento. — Ele empurrou a cadeira de rodas em
direção ao portão da casa.
Depois, levou alguns momentos para colocar Júlia ao lado da janela,
seu novo cavalo alado de madeira escondido na pequena gaveta, antes que
pudesse retornar para o lado de Rachel.
Seguiram pelo imenso gramado e depois pelo bosque que separava as
duas propriedades. A certa altura, Anthony virou a cabeça para encontrar o
olhar indagador de Rachel.
— Sim?
Ela sorriu, vagarosamente.
— Você é um cavalheiro surpreendente, sr. Clarke.
— Nem tanto, minha querida.
— É, sim — insistiu ela. — Não conheço nenhum outro homem que
daria um segundo de atenção a Júlia, sem contar sua devoção a fim de realizar
o desejo da garota.
O sorriso dele foi complacente ao pensar na criança vulnerável.
— Bem, tenho uma peculiar em...empatia por aqueles que não são tão
perfeitos quanto a sociedade exige.
Os olhos de Rachel brilharam de emoção.
— Acho que você é quase perfeito, sr. Clarke.
De repente, ele percebeu que quando estava com Rachel sentia-se
perfeito. Gloriosamente perfeito, sem necessidade de permanecer nas sombras
ou desaparecer em sua oficina de trabalho.
— Acha mesmo?
— Sim.
Então, de repente, ele permitiu que seu olhar baixasse para a promessa
silenciosa de felicidade que divisava nos lábios rosados.
— E eu acho que é a criatura mais fascinante que já conheci. Anthony
tentava manter o controle dos cavalos quando ouviram o som distinto de
passos correndo pelo bosque. Rachel espantou-se.
— Anthony, você ouviu?
— Ouvi.
— Vê alguém? — perguntou ela.
— Eles desapareceram.
Prestes a voltar-se para Rachel, ele foi surpreendido pelo brilho de um
objeto dourado no solo. Curvando-se, pegou um pequeno botão do chão de
terra.
— O que é isso? — Rachel quis saber. Anthony estudou o pequeno
objeto.
— Um botão de um uniforme, eu suponho.
— Meu Deus! Parece que encontramos estranhos objetos nestes
bosques. Primeiro um broche e agora um botão. Talvez este lugar seja mal-
assombrado.

61
— Eu i...imagino que os espectros que assombram estes bosques ainda
não viram o interior de uma sepultura.
— Um lugar de encontro de amantes, então?
— Sim.
— É um lugar muito romântico, você tem de admitir.
— Por Deus, não coloque pensamentos tão perigosos em minha mente
— murmurou Anthony.
— Quer dizer que eles já não estão aí?
Ele riu. Nunca se sentira tão vivo como se sentia ao lado daquela
mulher.
— Garota ousada — brincou, tomando as rédeas das mãos dela. —
Vamos embora enquanto ainda sou capaz de manter um pouco de bom senso.
Nos minutos que seguiram, cruzaram o bosque inteiro e, assim que
entraram no pátio, Anthony ergueu uma das mãos para chamar um criado,
que curvou-se levemente.
— Senhor.
— Leve os cavalos para os estábulos — pediu ele, entregando as rédeas
ao rapaz.
— Imediatamente.
Virando-se, deparou-se com o olhar provocante de Rachel.
— Não está prestes a desaparecer outra vez, está? — indagou ela.
— Não, a menos que você queira que eu o faça, minha cara.
— Claro que não. Na verdade, tem uma coisa que gostaria de lhe
mostrar.
— Estou à sua disposição.
Com um sorriso misterioso, Rachel dirigiu-se à casa, acompanhada de
perto por Anthony.
Eles entraram na casa por uma porta lateral e, conduzindo-o por uma
escada estreita usada pelos criados, ela começou a subir até o terceiro andar.
Alcançando o terceiro piso, passou pelo grande salão de baile e
finalmente parou numa pequena alcova escura.
— Por que, Rachel, você está me conduzindo mais uma vez para um
lugar isolado? Pretende seduzir-me? Precisa pensar na minha r...reputação.
— Está vendo isso?
Ele olhou na direção da delicada mão estendida.
— Parece uma porta comum — replicou.
— Isso é porque ainda não sabe o que há atrás dela. — Rachel retirou
do bolso uma pequena chave e a inseriu na fechadura.
— Onde conseguiu isso?
— Minha criada bondosamente tomou emprestado da governanta.
— Tomou emprestado ou roubou? Ela não respondeu.
Sem hesitar, cruzou a porta e começou a subir um pequeno lance de
escadas. Anthony a seguiu, esbarrando nas inúmeras teias de aranha que
aderiam a seu casaco.
— Não acredito que alguém tenha passado por aqui no último século.
— Precisamos ficar quietos — avisou-o quando entrou na sala.
Esperando até que ele se juntasse a ela, Rachel puxou para o lado uma pesada
cortina que revelou um imenso salão abaixo deles. Surpreso, Anthony
percebeu que estavam em pé num estreito camarote.

62
— O salão de baile — disse ele, vendo um criado esfregando o assoalho.
— Certamente este camarote é muito pequeno para ser destinado à orquestra.
— Minha criada descobriu que este camarote foi construído para que os
visitantes da realeza apreciassem os vários bailes.
— E um grande número de visitas reais visitam a mansão dos Carlfield?
— zombou ele.
Ela deu uma gargalhada enquanto tirava o pó do seu vestido de seda.
— Não, mas o simples fato de possuir um camarote de realeza faz com
que o dono deste local pareça muito superior.
Anthony meneou a cabeça à vista das desgastadas cortinas de veludo.
— Não acho que o príncipe ficaria encantado em descobrir o triste
estado negligenciado de seu camarote real. Além do mais, não entendo seu
interesse por este lugar.
— Você não percebe? E perfeito.
— Perdoe-me por minha pouca perspicácia — disse ele — , mas
realmente não percebo nada. Para que um local tão arruinado seria perfeito?
— Para esconder Júlia, é claro — murmurou ela. — Assim, ela poderá
freqüentar seu primeiro baile.
Anthony não tentou esconder sua surpresa.
— Meu Deus!
— Ela já me informou de que a sra. Greene a põe na cama logo após às
nove horas, e, então, volta ao andar de cima para jantar no próprio aposento.
Ela não retorna para olhar a menina até a manhã seguinte, a menos que Júlia
toque a campainha.
Anthony supôs que não deveria estar surpreso com o audacioso plano
de Rachel. Ela não pensara em nada que chocasse a sociedade ou ostentasse
sua íntima conexão com o Malvado Dândi. Em vez disso, parecia sugerir
seqüestrar a menina da segurança de sua cama, a fim de que Júlia pudesse
desfrutar de seu primeiro baile.
— Está sugerindo que seqüestremos Júlia e a coloquemos no camarote?
— Sim. — Ela sorriu, confiante. — Puxaremos a cortina até que haja
apenas uma pequena fresta para ela ver. Ela assistirá o baile e usará o vestido
novo, como desejou.
— E o que você propõe para que façamos tão espantosa proeza? Sem
se fazer de rogada, Rachel o fitou com ar de superioridade.
— Tenho todos os detalhes elaborados. Anthony sentiu-se perdido.
— Deus me ajude.
Rachel estivera despreparada para o grande esforço necessário para
representar o papel de fada-madrinha.
Aparentemente, seu plano de deixar Júlia assistir o baile parecera muito
simples. Fora somente quando Anthony exigira saber detalhes que percebeu o
quão difícil seria alcançar seu objetivo.
O camarote tivera de ser totalmente limpo sem atrair a atenção dos
criados ou hóspedes, o vestido de baile fora retirado da costureira e levado em
segredo para Júlia. Como se não bastasse, Rachel também foi forçada a vestir-
se para o baile várias horas mais cedo, a fim de que sua criada pudesse ir com
Anthony preparar a menina para a noite especial. Ele traria Júlia para a
mansão dos Carlfield no seu coche e a carregaria para cima pela escada dos
criados até o camarote.

63
Era exaustivo, mas finalmente não lhe restava nada a fazer, a não ser
deixar o quarto e juntar-se à multidão dos hóspedes e convidados que lotavam
o salão de baile.
Com pretendera, sua aparição causara um frisson no salão.
Diferentemente das demais donzelas, Rachel usava um vestido cor de rubi que
combinava com a jóia em volta do pescoço. O decote era generoso, com
arminho branco que expunha grande parte da pele alva.
Era um vestido ousado e vibrante que escolhera com o propósito de
enfurecer lady Broswell. Rachel, contudo, nem sequer olhou para onde a tia
permanecia altiva ao lado das filhas insípidas. Em vez disso, seu olhar
vasculhava o camarote do lado oposto.
A despeito de sua confiante determinação em fazer com que Júlia
pudesse divertir-se assistindo o baile, estava ciente do risco que corriam. Nada
poderia dar errado.
A sra. Greene poderia descobrir a ausência de Júlia e dar o alarme.
Anthony poderia ser visto carregando a menina pela escada até o fim do
corredor.
Júlia poderia ficar demasiado excitada e revelar sua posição no
camarote.
Ou um criado curioso poderia decidir subir até o camarote para ver os
hóspedes, e então descobrir a garota escondida.
Pelo menos, Júlia teria uma excelente vista dos dançarinos. Os quatro
imensos lustres de cristal continham suficientes velas para iluminar o salão
inteiro. Ela pensou ter notado um pequeno movimento em uma das cortinas
quando, de repente, foi interrompida pela visão de Violet se aproximando.
Como apropriado, a jovem noiva estava usando um vestido branco com
um decote modesto. Uma profusão de fitas cor-de-rosa decoravam o traje de
mangas bufantes. Havia uma evidente infelicidade nos olhos escuros da futura
noiva.
— Oh, Rachel, como você está bonita. Ela sorriu.
— Obrigada, Violet. E você, é claro, está encantadora.
A outra jovem fez uma careta, claramente consciente das limitações de
seu vestido.
— Muita bondade sua, mas sempre pareço insípida de branco. Como
gostaria de possuir sua coragem para usar o que desejo.
— Este é um dos privilégios de ter nascido em meio ao escândalo —
argumentou Rachel. — Os velhos tablóides são ávidos por fofocas sobre a
minha pessoa, portanto, tenho de lhes dar algo audacioso para comentar.
Violet parecia considerar as palavras dela, as mãos distraidamente
abrindo e fechando o leque, também branco.
— O escândalo a incomoda muito?
Rachel ficou surpresa com a pergunta. Apesar de serem amigas, Violet
sempre tivera cuidado em evitar qualquer menção da conexão de Rachel com o
ladrão conhecido como Malvado Dândi.
— De modo algum. Meus amigos verdadeiros estão além das fofocas.
Os outros não me preocupam.
Rachel franziu o cenho. Por que Violet estaria de repente interessada
numa vida de escândalo? Certamente, a doce criança não estava considerando
alguma coisa drástica.

64
— Há algo errado, querida? — perguntou Rachel. O olhar de Violet
voltou-se para o leque.
— Eu estava apenas pensando que o escândalo não interferiu em sua
vida. Na verdade, parece muito feliz com a liberdade de fazer o que quer.
— Violet, por acaso está pensando em fazer alguma coisa escandalosa?
— Eu? Não sou tão corajosa quanto você.
Longe de convencer-se, Rachel pegou o braço da amiga, a expressão
sóbria no momento. Apesar do escândalo na sua própria vida nunca a ter
perturbado, vira como machucara sua sensível irmã Emma, e até mesmo
Sarah. E não queria que Violet fosse levada por alguma noção romântica de
que um escândalo não tinha preço.
— Minha querida, admito que não desejo vê-la casada com o sr.
Wingrove, mas não há necessidade de fazer nada precipitado. Se quiser ir
comigo para Londres, então poderá pensar no seu futuro. Basta me dizer.
— Sim, muito obrigada.
— Violet?
— Perdoe-me, preciso juntar-me a papai.
Antes que Rachel pudesse protestar, Violet partiu.
Rachel resistiu à tentação de ir atrás dela. O ambiente de um salão de
baile não era o lugar certo para incitar uma confissão. Mesmo supondo que
Violet desejava confessar o que estava conspirando.
Diversos instantes se passaram até que ela finalmente viu Anthony
aproximando-se, vestindo smoking e camisa branca.
Sim, estava certa quando o vira pela primeira vez na ópera e fora
tomada por uma estranha excitação. Anthony Clarke possuía um par de
ombros largos, peito viril e pernas musculosas, e era irremediavelmente sexy.
Apesar de sentir-se como uma colegial perdida de amor, sabia que tinha uma
reputação a zelar.
— Anthony, finalmente. Temi que tivesse sido pego. Ele deu de ombros.
— Fomos forçados a nos esconder algumas vezes.
— E como ela está? Confortavelmente sentada?
— Absolutamente encantada.
— Você certificou-se de que ela pode ver bem e alcançar os pratos de
comida que deixei no camarote?
— Tudo está em ordem, minha pequena g...general. Não teria deixado
nossa protegida se não estivesse seguro disso.
— Somente desejo que a noite seja muito especial para Júlia.
— Duvido que ela se esquecerá desta noite. Os olhinhos azuis brilhavam
como diamantes.
— E você a avisou para não se debruçar muito perto das cortinas? Ele
sorriu.
— Sabe, você parece uma galinha superprotegendo seus pintos.
— Tolice.
— Por que seria uma t...tolice? Você algum dia será uma mãe
maravilhosa.
— Não — disse ela, suavemente.
— O quê?
— Nunca terei filhos.
— Claro que terá filhos — discordou Anthony. Por que se preocupava se

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ela teria filhos? — Não aceito isso, Rachel. Bem no fundo deseja encontrar o
mesmo que suas irmãs descobriram.
— Não sou como minhas irmãs.
— Por quê?
— Elas saíram à minha mãe. São leais e sempre virtuosas.
Ele meneou a cabeça.
— Por que está dizendo isso? Rachel perguntou-se se ele estava sendo
obtuso.
— E óbvio que herdei o temperamento do meu pai. Anthony fez uma
pausa quando um criado uniformizado parou perto deles com uma bandeja de
champanhe.
— Você é uma garota impetuosa e impulsiva, admito. Mas isto não é
uma falha de caráter.
— Não entende o que quero dizer.
— Então, faça-me en...entender. Ela suspirou. Nunca discutira seus
medos interiores com ninguém. Nem mesmo com Sarah ou Emma.
— Amo meu pai. E nunca duvidei do amor dele por mim — começou ela.
— Você é muito afortunada.
— Sim, sou, mas isso não me deixa cega ao fato de que os próprios
desejos de meu pai e caprichos impulsivos governaram minha vida. Meu pai
sempre fará o que é melhor para o Malvado Dândi. Às vezes, tal
comportamento é muito doloroso para aqueles que o rodeiam.
— Você não é seu pai — declarou Anthony.
— Mas sou muito parecida com ele. Posso ser egoísta e determinada
para seguir meu próprio caminho.
— Como também pode ser generosa e boa. Não conheço outra mulher
que se preocuparia tanto com uma garotinha desconhecida.
— Qualquer um pode sentir empatia pela condição de Júlia.
— Empatia, talvez, mas poucos se esforçariam como você.
— Fiz muito pouco — protestou ela.
— Bom Deus, basta, Rachel — murmurou Anthony, pegando-lhe a mão.
— Não deixarei que duvide de sua bondade essencial. Independentemente de
quais as falhas de seu pai, elas não são suas.
Rachel hesitou. Em quantas ocasiões suas irmãs queixaram-se de sua
natureza rude e compararam-na ao pai? Mesmo pessoas da sociedade a
rotulavam. Com o passar do tempo, aceitara a comparação como inegável.
Mas seria possível que tivesse um mínimo da natureza doce da mãe também?
— Como pode estar tão certo? — perguntou ela.
— Porque eu a conheço. Consegui enxergar dentro do seu coração.
Apenas por um momento, Rachel se perdeu na ternura daquele olhar.
Então, a percepção do quanto seu coração estava se tornando vulnerável, a fez
afastar-se abruptamente da sedutora promessa de Anthony. Não, disse a si
mesma com medo. Ainda não estava preparada para absorver tais
pensamentos.
— Isto é um absurdo.
— Hei de convencê-la, meu anjo teimoso. Mas, por enquanto, ficarei
contente de dançar uma valsa. Vamos?
Aliviada de que ele estivesse disposto a abandonar o assunto
perturbador, Rachel assentiu. No momento, a ousada valsa parecia mais

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segura do que continuar a fútil conversa.

A escuridão envolveu Rachel de modo abrasador. Por baixo da quentura


de sua capa de veludo, tremia por causa do ar frio da noite.
Fora mais um ato impulsivo do que pensamento racional que a tirara do
conforto de seu quarto para os bosques escuros que circundavam a velha casa
herdada por lady Broswell.
Precisava assegurar-se de que Anthony levara Júlia para cama sem
percalços. Ela não aprovara inteiramente a decisão dele de levar a garota no
colo, em vez de usar o coche. Embora soubesse que um coche atrairia mais
atenção, não pôde deixar de temer que um hóspede errante pudesse encontrá-
los no caminho.
Ela não conseguira dormir nada.
Fazendo uma careta para a umidade que ensopava seus chinelos,
Rachel apertou mais a gola da capa em volta do pescoço, tentando aquecer-se.
— Anthony? — gritou ela. — É você? — Um silêncio respondeu a seus
gritos e, de repente, uma grande sombra surgiu na sua frente. — Oh!
— Rachel. — A voz familiar a deixou aliviada. — O que você está
fazendo aqui?
— Queria me certificar de que você levou Júlia de volta em segurança.
— Sim, a ela está sendo colocada na cama pela sua criada.
— E ela gostou da noite?
— Ficarei surpreso se a pobre menina conseguir fechar os olhos esta
noite, por pensar na grande aventura que vivenciou.
— Você lembrou-se de avisá-la para esconder o vestido de baile?
— Tudo foi feito com muito cuidado. Agora, minha querida, discutiremos
sua tolice em vir até aqui sozinha.
Desacostumada a ter suas ações interpeladas por qualquer pessoa,
Rachel franziu o cenho.
— Você também está aqui sozinho — disse.
— Não é a mesma coisa e sabe disso.
— Anthony, está tentando repreender-me?
— Certamente estou — replicou ele, sem nem ao menos tentar
expressar uma desculpa. — E se algum homem aparecesse? Você ficaria
completamente à mercê dele.
— Sou capaz de cuidar de mim mesma. Na verdade, tenho feito isso por
bastante tempo.
Anthony não pareceu ficar impressionado.
— Esta é a razão pela qual você ainda não entrou em minha vida. De
agora em diante, tomará mais cuidado consigo mesma. Começando por não
vagar pelo campo no meio da noite.
Ela sentiu uma ponta de prazer pelas palavras possessivas.
— Senhor, acredito que esteja passando dos limites com tais
comentários.
— Verdade? — Sem aviso, Anthony segurou-lhe os ombros e a puxou
para mais junto de si. Rachel abriu a boca para protestar no mesmo momento
que ele a beijou com urgência. Foi um beijo apaixonado e possessivo. —
Agora, ultrapassei meus limites.
Mais do que um pouco atordoada pela própria reação ao inesperado

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beijo, Rachel livrou-se dos braços fortes.
— Acho que deveríamos retornar à casa.
— Você tem toda razão — concordou Anthony, pegando-a pelos
cotovelos e conduzindo-a através do bosque. — Gostou do baile?
Rachel deu de ombros, lembrando-se da noite que tinha sido repleta de
emoções inúteis.
— Creio que foi tão bom quanto podia se esperar deste tipo de evento.
— Só por ter sido um simples baile campestre? — provocou-a ele.
— Porque a futura noiva pareceu muito infeliz e o futuro noivo estava
tão cheio de si que nem notou o estado dela.
— Sim — concordou Anthony. — Devo admitir que é um casal
deprimente.
— Lamento por Violet — confessou Rachel. — Mas devo reconhecer que
minha amiga é tão fraca e vulnerável que temo que possa fazer algo
desesperador.
— Acredita que ela possa recuar?
Rachel hesitou, incerta do que temia. Na verdade, se Violet decidisse
desistir do noivado, seria um alívio. Fugir de um casamento indesejável
poderia criar comentários maldosos, mas não causaria prejuízo algum à
reputação da garota.
— Não sei. Ela falou comigo esta noite sobre uma vida de escândalo.
Mencionou que invejava a liberdade que o escândalo trouxe à minha vida.
De súbito, Anthony pressionou-lhe o cotovelo.
— Você lhe disse que, mais do que liberdade, o escândalo a fez ter
medo de confiar em si mesma e no amor?
— Confio em mim mesma — retrucou ela, retesando-se diante da
acusação.
— Não, não confia. Acredita que porque seu pai é volúvel e
independente, você será igual.
— É uma crença muito racional — disse ela. — Somos parecidos.
Anthony praguejou baixinho.
— Isso é uma grande bobagem. Seu pai foi livre para fazer as escolhas
que quis na vida, assim como você é livre para fazer suas próprias escolhas.
Rachel suspirou, impaciente. Era muito fácil para ele destituir os medos
dela como tolices. Ele não fora criado pelo Malvado Dândi. Não levara uma vida
de caos imprevisível que tinha deixado as irmãs e ela em constante revolta.
— Você não acredita no destino? — questionou Rachel.
— É claro que não. Acredito sim que o futuro está em nossas próprias
mãos.
— Não pode estar tão certo disso.
— Sim, posso. Seu amor por seu pai nunca vacilou, a despeito dos
defeitos e fraquezas dele. E ninguém pode duvidar de seu envolvimento com
suas irmãs.
— Eu as amo, mas isso não me impede de fazer coisas que elas
desaprovam.
Anthony riu.
— Por Deus, Rachel, você não su...supõe que minha mãe desaprova
minha fascinação por invenções e meu desprazer pela sociedade?
Ela perguntou-se se Anthony estava tentando interpretar mal as

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palavras dela de propósito. Certamente, não podia entender como se sentia.
— Não abri uma escola para ajudar os pobres, como Sarah fez, nem
tentei sustentar-me, como Emma. Dediquei-me a preocupações frívolas e
mundanas.
— Nunca encontrei uma mulher mais determinada a me provar que não
vale nada — comentou Anthony meneando a cabeça.
— Estou apenas tentando ser sincera. Ele acariciou-lhe o queixo.
— Conheço a verdade, minha querida. Nada do que disser vai me
convencer do contrário.
Os joelhos de Rachel tremeram levemente quando ela olhou para as
feições determinadas.
— O que quer de mim?
Houve um longo silêncio, como se Anthony estivesse incerto do que
desejava realmente. Então, para grande alívio de Rachel, ele a brindou com
um sorriso e virou-se para continuar o caminho em direção à mansão dos
Carlfield.
— Por esta noite, quero apenas assegurar-me de que voltará em
segurança para a cama. Amanhã será outro dia.
A noite para Anthony foi longa e insone. Repetidas vezes pensara
naquele momento em que olhara para o semblante de Rachel ao beijá-la sob a
luz do luar.
— O que você quer de mim? — questionara ela.
O que realmente?
Ele estivera incerto sobre a razão de tê-la seguido até Surrey. Sabia
apenas que estava fascinado e atormentado e precisava desesperadamente
beijar aqueles lábios sedutores, pelo menos uma vez na vida.
No entanto, na noite anterior fora atingido por uma verdade
incontestável.
Podia ter seguido Rachel por alguma misteriosa compulsão, mas
permanecera ao lado dela porque estava perdidamente apaixonado pela jovem
impetuosa. A simples percepção de que estava amando o deixava atônito.
Afinal, em raríssimas ocasiões pensara em ter uma esposa.
Como contara a Rachel, possuía um grande número de primos que
poderiam dar continuidade à família Clarke. Além do que, ele não podia
conceber uma mulher que não o enfadasse depois de certo tempo.
Obviamente, nenhuma de suas amantes havia conseguido despertar-lhe mais
do que um vago interesse.
De qualquer forma, a verdade era que ele subestimara o forte poder de
atração de Rachel Cresswell.
Ali estava uma mulher que jamais o enfadaria.
Anthony a desejava mais do que já desejara outra mulher. Na verdade,
a intensidade de seus sentimentos chegava a ser quase dolorosa. Ainda assim,
não era um desejo meramente físico. Almejava ver-lhe o sorriso, observar a
bondosa ternura que exalava dela, como nos momentos em que estava com
Júlia; vê-la proferir comentários sagazes e também apreciar-lhe a habilidade
de encantar uma sala inteira com seu charme e beleza.
Sim, e, de repente, não tinha mais dúvida de que a queria em sua
vida... Agora e sempre.
Só faltava convencê-la que ela não estava predestinada a cometer os

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mesmos erros do pai.
Andando distraidamente pela biblioteca, Anthony meneou a cabeça. De
um certo modo, lidar com Rachel não era simples. Ela era um mistério
complexo.
Olhando pela janela, admirou a forte chuva que caía lá fora. A
primavera chegara e trouxera tempestades ocasionais.
Considerando as nuvens pesadas, foi interrompido pelo som da porta da
biblioteca sendo aberta.
Anthony virou-se e viu Foxworth entrando na sala.
— Boa noite, sr. Clarke — cumprimentou o homem mais velho com um
sorriso.
— Sr. Foxworth.
— Posso lhe falar um momento? Anthony assentiu, intrigado.
— É claro. Calculo que a conversa seja de natureza particular.
— Sim.
Anthony sorriu, olhando as feições que eram tão similares às de Rachel.
Durante a semana anterior, passara mais do que alguns minutos observando
aquele cavalheiro e sua óbvia preocupação e afeição pela sobrinha.
— Eu e...espero que não seja desafiado para um duelo. Há rumores que
o Malvado Dândi é imortal no campo de batalha.
Foxworth assumiu uma expressão surpresa.
— Lamento dizer que o senhor ouviu a pura verdade. Foi Rachel quem
lhe contou?
— Não. É simplesmente a óbvia intimidade entre vocês dois que me fez
perceber a verdade. Uma intimidade muito maior do que a de um mero tio e
sobrinha. Além disso, ela possui muitos de seus maneirismos.
Salomon Cresswell deu um longo suspiro e esqueceu-se de que estava
representando Foxworth.
— Graças a Deus poucos são tão perspicazes quanto o senhor, sr.
Clarke.
— Por que está em Surrey, meu caro? Não é perigoso demais?
— Sim, mas temia que minha filha impetuosa e teimosa se envolvesse
em confusão sem minha presença. Rachel pode ser muito irresponsável
quando o coração está envolvido.
— Refere-se à determinação dela em vingar-se de lady Broswell?
— Sim.
Anthony estreitou os olhos escuros, esperando descobrir a resposta às
inúmeras perguntas que o atormentavam. ,.
— Tenho de admitir que o comportamento de Rachel é um pouco
atípico. Ela não é uma garota m...malvada. O que a faz sentir tal antagonismo
em relação à lady Broswell?
O pai da garota fez uma longa pausa antes de revelar:
— Porque lady Broswell é tia dela.
— O quê?
— Minha esposa era irmã de lady Broswell — continuou ele, os olhos
verdes faiscando diante do óbvio choque de Anthony. — Desnecessário dizer
que não fui aceito na família. Na verdade, fomos forçados a sair da Inglaterra e
a família espalhou a notícia de que Rosalind morrera, em vez de admitir que
ela se casara.

70
— Bom Deus! — exclamou Anthony, de repente, percebendo o quão
pessoal era a relação de Rachel com lady Broswell. Aquilo explicava por que
ela tomara os insultos vingativos da mulher de maneira tão drástica. Explicava
também o ódio irracional de lady Broswell pela filha do Malvado Dândi. A
megera sempre veria Rachel como uma ameaça à sua posição social.
— Rachel sempre se ressentiu de como a mãe foi tratada e, de certa
forma, como ela mesma fora tratada. Creio que está determinada a provar que
vale tanto quanto lady Broswell e as filhas.
— Entendo — murmurou Anthony.
Salomon observou as feições de Anthony contraírem-se de raiva,
somente em pensar na família de Rachel dando-lhe as costas.
— O senhor realmente gosta de Rachel, estou certo? — perguntou ele.
Anthony não estava preparado para revelar a intensidade de seus
sentimentos.
— Por acaso tem dúvida quanto as minhas intenções?
Uma expressão zombeteira apareceu no semblante do homem mais
velho.
— Conheço suas intenções.
— Verdade?
Anthony surpreendeu-se com o tom assertivo do pai de Rachel. Afinal,
ele mesmo chegara à conclusão de que a amava há poucas horas. Como
aquele homem podia conhecer tão bem seu coração?
— Parece muito certo disso, senhor.
— Se não estivesse tão certo, meu jovem, teria posto fim em sua
intimidade com minha filha há algum tempo.
— Muito bem, tenho todas as intenções de pedir Rachel em casamento
— confessou Anthony. — Infelizmente, não tenho certeza da resposta de sua
filha.
Foi a vez do outro homem ficar perplexo.
— Certamente você não duvida do amor dela por você? Anthony pensou
na doce resposta de Rachel a seus toques, na maneira que seus olhos o
procuravam quando ele entrava na sala, e o prazer evidente quando estava em
sua companhia.
— Acredito que ela se apegou a mim. Mas parece convencida de que
tem um temperamento instável e é incapaz de ser uma boa esposa e mãe.
— Temperamento instável? Isso é um absurdo.
— Rachel acredita que é muito parecida com o senhor, sr. Cresswell —
disse Anthony.
Surpreendentemente, Salomon vacilou.
— Suponho que mereço ouvir isso. Fui um pai desastroso. Não apenas
falhei em dar as minhas filhas um lar apropriado, mas raramente ponderei o
quanto meu comportamento pouco respeitável refletiria nelas. Foi somente
quando fui obrigado a passar dias e dias olhando para o carrasco próximo de
mim, que percebi o quanto fui egoísta. Jurei que se fosse libertado devotaria
minha vida para assegurar que elas encontrariam a felicidade que não lhes dei.
— Fez uma pausa para fitar Anthony nos olhos. — Acredito que o senhor pode
oferecer a Rachel esta felicidade.
— Também acredito. E só uma questão de convencer sua filha.
— Não tenho dúvida de que, se alguém pode convencê-la, este alguém

71
é você.
Rachel podia ser terrivelmente teimosa, mas não era tola.
— Mas, afinal, para que me procurou? — Anthony quis saber, franzindo
o cenho.
— Como eu lhe disse, fiz uma promessa para mim mesmo quando
estava na prisão de Newgate. Que devotaria minha vida à felicidade de minhas
filhas — murmurou ele. — Um tanto tarde, admito, porém minhas intenções
são sinceras. Vejo que Sarah e Emma conseguiram maridos adequados. Tenho
apenas que me certificar de que Rachel estará bem estabelecida antes que eu
possa viver minha vida em obscuro retiro, numa pequena casa de campo que
possuo na Itália.
Anthony arqueou as sobrancelhas escuras.
— Então você apenas queria certificar-se de que eu proporia casamento
a Rachel?
Ele sorriu.
— Não exatamente. Embora minha intenção ao vir para Surrey fosse
apenas impedir que Rachel cometesse desatinos, acabei me descobrindo
confuso e perturbado.
Não era preciso ser muito perspicaz para imaginar o tipo de perturbação
a que o homem se referia.
— A srta. Carlfield? — sugeriu Anthony.
— Sim.— Ele deu uma risadinha maliciosa.— Para um cavalheiro de
idade avançada, transformei-me num grande tolo apaixonado.
— Suponho que é minha vez de perguntar-lhe sobre suas intenções em
relação à minha prima.
— Minha intenção era somente oferecer-lhe um modo de escapar de sua
insustentável posição. Eu não podia ficar de braços cruzados e observá-la unir-
se a um homem que poderia destruir-lhe o espírito delicado.
— Um se...sentimento admirável — murmurou Anthony.
— Mas Violet recusou minha oferta de dinheiro e mesmo a promessa de
liquidar as dívidas do pai. Disse que havia apenas uma maneira de ajuda que
aceitaria.
— E qual era?
— Casamento.
— Está insinuando que pretende fugir para se casar com Violet?!?
— Sim. — Os olhos verdes exibiram um brilho determinado. — Antes de
você começar a protestar, permita-me assegurar-lhe de que já confessei
minha verdadeira identidade e apontei nossa grande diferença de idade.
Também a preveni de que jovens donzelas freqüentemente imaginam-se
apaixonadas pelo primeiro cavalheiro conveniente quando estão sendo
compelidas a um casamento indesejável.
— Mas ela recusou-se ouvir a voz da razão? Salomon suspirou.
— Ela assegura que seu amor é genuíno e inabalável. Embora Anthony
não fosse muito íntimo da prima, não acreditava que ela fosse uma mocinha
desajuizada.
— E quais são os seus sentimentos? — questionou Anthony.
— Eu a amo. Quero levá-la para a Itália.
Havia determinação na voz dele e, mesmo que Anthony protestasse,
nada deteria as intenções do homem.

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— Uma vez que você não precisa de minha bênção, calculo que há algo
mais que queira de mim.
— Sim. Pretendo partir na quarta-feira com o pretexto de visitar
conhecidos na vizinhança. Gostaria que você acompanhasse Rachel em sua
volta para Londres na quinta-feira.
— Será um prazer acompanhar Rachel — concordou Anthony. — Estou
curioso em saber, todavia, como você pretende tirar Violet desta casa.
— Voltarei para Londres e providenciarei nossa viagem para a Itália. Na
próxima semana, Violet deverá viajar para encontrar a prima. Ao longo do
caminho, ficará numa hospedaria. Eu a encontrarei lá e partiremos à noite.
Quando o sr. Carlfíeld perceber que ela desapareceu, será tarde demais.
— Um plano s...simples, mas eficiente — congratulou-o Anthony.
— Posso contar com sua ajuda?
Embora Anthony não estivesse inteiramente convencido de que Malvado
Dândi, ou melhor, Salomon Cresswell, fosse um marido apropriado para sua
jovem prima, sabia que ele era muito preferível ao sr. Wingrove.
— Quero sua promessa de que tratará Violet com respeito e
consideração.
A expressão do sr. Cresswell era de pura ternura.
— Ela é mais preciosa para mim do que minha própria vida. Farei tudo
que estiver ao meu alcance para fazê-la feliz. E, para ter certeza de que não é
obrigada a ficar comigo se mudar de idéia, farei provisões de uma mesada
razoável, a qual Violet continuará recebendo mesmo que escolha deixar a
Itália.
Anthony sabia que não podia pedir por mais. Cabia a Violet transformar
aquele homem num bom marido. E ele tinha o estranho pressentimento de que
Violet era a mulher adequada para realizar tal tarefa.
— Suponho que isso não possa ser pior do que o sr. Wingrove — disse
Anthony, sorrindo.
— Obrigado.
Ele caminhou para a porta e a destrancou, olhando por sobre os
ombros.
— Você me avisará quando o casamento for acertado? Casamento?
Anthony sentiu o coração disparar por antecipação.
— Mas é claro.
— Cuide bem de Rachel. Ela não é tão invencível quanto pensa.
— Ela será mimada como o maior tesouro que jamais tive a fortuna de
descobrir.
Cresswell assentiu com um breve gesto de cabeça e desapareceu no
corredor.
Deixado sozinho, Anthony suspirou. Embora não estivesse
particularmente desgostoso de ter o Malvado Dândi como sogro, era bom
saber que o homem mais velho estaria em breve a caminho da Itália. Ter uma
volátil e imprevisível Cresswell na sua vida já era mais do que suficiente.
Poucos minutos depois, ouviu passos e Rachel apareceu à porta.
Como sempre, Anthony sentiu uma onda de prazer ante à mera visão
de sua adorada. Essa noite, ela parecia ainda mais encantadora num vestido
de seda azul-turquesa.
— Boa noite, Rachel.

73
Ela entrou na sala, sorrindo, e perguntou:
— Era meu tio quem acabou de sair?
Sabendo que Salomon não pretendia revelar seu iminente casamento
para a filha, Anthony percebeu que teria que tomar cuidado com o que diria.
— Sim.
— Sobre o que vocês estavam conversando?
— Ele decidiu partir na quarta-feira para visitar alguns conhecidos da
vizinhança e pediu-me que a acompanhasse de volta a Londres no dia
seguinte.
— Conhecidos? Que conhecidos?
— Ele não entrou em detalhes nem citou nomes, e eu não quis ser
indiscreto em perguntar.
— Mas ele não conhece ninguém em Surrey! — exclamou Rachel. — O
que estará planejando?
Anthony sorriu e procurou distraí-la.
— Talvez esteja procurando uma desculpa para partir mais cedo sem
ofender o sr. Carlfield. Seu tio é do tipo que não aprecia a vida campestre.
— Pode até ser, mas nem por isso pode ofender outras pessoas — disse
ela.
— Isso importa verdadeiramente?
— Sim. É muito preocupante.
— O que é muito p...preocupante? Pensar que você tem de compartilhar
o coche comigo em sua volta a Londres?
— Claro que não — negou ela. — Estava me referindo ao meu tio.
— Tenho certeza de que seu tio é capaz de cuidar de si mesmo.
— Não estou tão segura disso — murmurou ela.
— Diga-me, você visitou Júlia esta tarde?
A manobra foi bem-sucedida, pois a preocupação afastou-se do
encantador rosto de Rachel.
— Sim. Ela não falou em outra coisa, exceto do baile.
— Nenhum efeito maléfico depois que ela voltou?
— Nenhum. Acredito que ela nunca foi tão feliz. Uma vaga preocupação
franziu a testa de Anthony.
— Todavia, isso é um pouco perturbador.
— O que quer dizer, meu caro?
— Em poucos dias, estaremos partindo de Surrey. Começo a questionar
se fizemos a Júlia algum bem, ensinando-lhe a esperar mais dos seus dias do
que ficar sentada ao lado da janela olhando os outros através da luneta.
Uma ponta de incerteza enfraqueceu o sorriso de Rachel quando
percebeu a lógica por trás de tais palavras.
— Certamente é melhor ter conhecido poucos dias de liberdade do que
nenhum. As lembranças lhe trarão alegria por algum tempo.
— Ou descontentamento quando ela ansiar pelo que agora conhece, e
sentir que está fora do alcance das mãos. Fico imaginando se fizemos mais mal
do que bem.
— Você está certo — concluiu Rachel com tristeza.
Por mais que lhe doesse, Anthony sabia que o destino de Júlia pertencia
à família dela. Nenhuma corte judicial permitiria que interferissem.
— O que podemos fazer, minha querida?

74
— Temos de nos confrontar com lady Broswell e exigir que ela cuide
melhor da filha. Agora tenho prova de que Júlia realmente é filha dela.
Anthony não questionou como ela obtivera tal prova.
— Rachel, é muito provável que tal confrontação aterrorize a mulher a
ponto de fazer Júlia desaparecer completamente. Pelo menos aqui, ela é bem
alimentada e mantida segura. Se a menina for levada a um orfanato será
muito pior.
— Então, o que podemos fazer?
De imediato, Anthony não tinha uma resposta. Contudo, era um homem
acostumado a enfrentar dificuldades e não desistia facilmente.
— Sinto, mas não sei no momento. Levarei algum tempo para resolver
o problema.
Os lábios dela comprimiram-se de maneira já familiar.
— Pensarei em alguma coisa também. Não permitirei que lady Broswell
faça essa criança sofrer. Ela já causou muita dor para uma vida inteira.
Anthony suspirou.
Ah, o destino sem dúvida achara muito divertido que um cavalheiro
acostumado a viver uma existência calma e plácida tombara perdido de amor
por uma donzela impetuosa e adorável.

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Capítulo VI

Parada nas sombras de uma pequena alcova, Rachel seguiu os


movimentos do pai no longo corredor e, finalmente, entrou numa pequena sala
de estar. Depois de dois dias tentando falar com o pai em particular, desistira
do contato e resolvera usar um método mais sutil. Ela levara quase duas horas
na espreita no corredor frio, mas seus esforços tinham sido recompensados. O
pai tinha muitas respostas a lhe dar. Desta vez, ele não conseguiria escapar.
Em silêncio, Rachel entrou na saleta e fechou a porta atrás de si.
Distraído enquanto servia-se de um cálice de licor, Salomon não percebeu sua
presença até que ela falou:
— Olá, papai. Surpreso, ele voltou-se para encará-la.
— Ah, bom dia, Rachel.
— Posso falar com você um minuto?
— Lamento, mas estou muito ocupado esta tarde.
Rachel colocou as mãos nos quadris, não aceitando ser dispensada
depois de longa espera.
— Estranho, mas parece estar ocupado todas as tardes — empertigou-
se.
— Sim, bem, assim é a vida ética de um laureado líder da sociedade.
Diga-me, querida, você acha que estou mais gordo na cintura?
Ela meneou a cabeça diante da deliberada tentativa de distraí-la.
— Você está igualzinho. Papai, não serei enganada por suas tolices.
— Tolices? Minha querida, asseguro-lhe de que quando um cavalheiro
chega a minha idade, o tamanho da cintura é de grande importância. Você não
iria querer que eu andasse por aí como o pobre príncipe regente.
— O que quero é descobrir por que está tentando me evitar.
— Não seja ingrata. Sabe muito bem que adoro estar com você.
— Verdade? Então por que sempre desaparece no momento em que
entro numa sala?
— Não desapareço.
— Sim, tem feito isso ultimamente.
— Estou apenas ocupado em supervisionar a arrumação das minhas
malas, e assegurar-me de que a carruagem estará preparada para a minha
partida amanhã.
Rachel não precisaria ser muito esperta para saber que o pai estava
mentindo.
— Ah, entendo... — zombou ela. — Vai visitar seus conhecidos, não vai?
— Sim.
— Acho que nunca ouvi falar desses misteriosos conhecidos. Os olhos
dele brilhavam com desconfiança.
— Creio que não há nada de misterioso a respeito de lorde e lady
Halford. Eles são tediosos e chatos. Não têm assunto e não são espirituosos. E
quanto à cozinheira deles, — Salomon deu de ombros de modo dramático — ,
bem, só posso dizer que ela ainda não descobriu que um pedaço de carne ou

76
peixe, depois de cozido, não é sola de sapato.
Rachel não duvidava que os Halford eram tão verdadeiros quanto Papai
Noel.
— Se eles são tão desagradáveis quanto descreveu, por que deseja
visitá-los?
Ele ergueu as sobrancelhas como que surpreso pela pergunta racional.
— Minha querida, não seria nada educado estar na vizinhança e nem ao
menos lhes apresentar meus respeitos.
— Você nunca se preocupou em ser educado com alguém. Na verdade,
é notório pelas descortesias. Por que se importaria com o que eles pensam a
seu respeito?
— Rachel, você está começando a parecer um juiz da corte — queixou-
se ele. — Há alguma razão especial para que me atormente com perguntas
infindáveis?
— Acho que está mentindo para mim.
Ele pôs a mão sobre o coração num gesto teatral.
— Estou ferido.
— Mas não sangrando. O que você está tramando, papai? O Malvado
Dândi deu uma súbita risada.
— Você me conhece muito bem, minha querida.
— Sim, conheço. E sei quando está prestes a embarcar em algo
perigoso.
— Prometo que isso não tem nada a ver com você.
— Tem a ver com Violet?
— O que a faz pensar assim?
— Papai, é óbvio que você está interessado por ela — afirmou Rachel
com firmeza. — Eu jamais o vi tão empolgado com uma jovem.
— Entendo. Diga-me, você gosta da srta. Carlfield?
— Claro que gosto. Fiquei muito apegada a ela em Londres.
— Ela é uma jovem notável.
Raquel ficou surpresa com as palavras do pai. Sabia que ele era muito
bem-sucedido na arte da sedução. Mas nunca antes comentara sequer uma de
suas conquistas.
— Notável demais para o gosto do sr. Wingrove.
— Sim — murmurou ele.
— Você pretende salvá-la? — questionou Rachel.
— Se eu for capaz...
Rachel de repente entendeu o interesse de Violet em uma vida
escandalosa.
A intenção do pai de salvar a jovem seria desastrosa para o sr.
Carlfield, que perderia a única chance de se salvar das enormes dívidas, e ele
logo descobriria que sua única filha se juntara ao famoso Malvado Dândi. O sr.
Carlfield, com certeza, daria as costas a Violet e insistiria que todos os outros
fizessem o mesmo.
— O que você fará?
— Não posso discutir meus planos. Pelo menos, não ainda. Pode estar
certa de que eu a avisarei quando tudo estiver estabelecido.
Ela tocou o braço do pai com carinho.
— Papai, tenha cuidado.

77
— Sim, minha querida. Ele apertou-lhe a mão de leve.
— Agora, realmente preciso ver meu criado.
Ela sentiu que o pai precisaria de toda a sua legendária habilidade e
muita sorte para efetuar o maior e mais importante de seus roubos.

Virando a esquina da casa, Anthony viu a figura delgada e familiar


sentada num banco do jardim.
Nos últimos dois dias, Rachel conseguira evitá-lo. Com toda certeza,
sentira a maneira possessiva dele e estava ciente que ele tinha a intenção de
fazer-lhe a grande proposta.
De alguma maneira, Anthony sabia que teria de convencer Rachel a
confiar em si mesma. Esperara por um longo tempo, mas, hoje, ela aceitaria
ser sua esposa, ou a atiraria sobre os ombros e a carregaria para a Escócia.
Anthony sorriu diante da sua iminente loucura. Que cavalheiro em sã
consciência desejaria unir-se à filha do Malvado Dândi?
Bem, em sã consciência ou não, fizera sua escolha: Rachel seria sua.
— Está pensativa, minha querida — sussurrou a seu lado.
— Anthony!
— Alguma coisa a está preocupando?
— Tenho a mais estranha premonição.
— E qual é?
— De que tudo está para mudar.
O tom melancólico na voz melodiosa o atingiu como uma flecha, mas
ele não mudaria sua determinação. Podia fazê-la feliz. Devotaria sua vida
inteira àquele propósito.
— E por que isso é tão terrível?
— Não estou certa que eu goste da idéia de mudar.
— Certamente uma mudança pode ser desgastante, mas, pode também
ser muito d...deliciosa.
— Deliciosa em que sentido?
— Rachel! — Ele a puxou gentilmente, fazendo-a ficar em pé. Por um
momento, ficou em dúvida se deveria pedi-la em casamento antes e a beijar
depois, ou se deveria beijá-la primeiro. Então, o som de passos se
aproximando destruiu a paz do jardim. — Preciso falar com você. Quer dar um
passeio comigo?
— Se quiser... — Em silêncio, cruzaram o pátio e seguiram por entre as
árvores do bosque. — Vamos visitar Júlia?
— Não. Não hoje. Eu acho — murmurou ele.
— Está muito quieto e estranho. Alguma coisa o está afligindo?
— Não fique tão surpresa, meu anjo. — As mãos másculas a seguraram
pelos ombros. — Sabe muito bem que desde algum tempo estamos jogando o
jogo da conquista. Foi apenas questão de tempo antes de eu ser cruelmente
vencido.
— Acho que você está me provocando — reclamou ela.
— N...não. Nunca falei tão sério em toda a minha vida.
— Creio que talvez fosse melhor voltarmos para casa. As mãos fortes
apertaram-lhe os ombros.
— Jamais pensei que fosse covarde, Rachel.
— Não sou covarde, apenas quero voltar para casa.

78
— Você quer evitar discutir nosso futuro. Não quer admitir que algo
mágico está acontecendo entre nós — afirmou ele.
— Mágico? Esse é o nome que dá ao desejo de me seduzir para termos
um affairl
— Se eu quisesse um affair, você seria agora minha amante, e eu não
estaria passando todas as noites acordado, pensando em como seria bom tê-la
em meus braços.
— É muito seguro de suas habilidades, senhor — replicou ela, fuzilando-
o com o olhar.
— Pode ser. Mas pode negar que, se eu quisesse seduzi-la, seríamos
amantes já algum tempo?
Rachel corou enquanto lutava para esconder a verdade.
— Muitos cavalheiros tentaram me seduzir.
— Mas algum já conquistou sua paixão? — indagou Anthony. — Basta
eu tocá-la para sentir que seu corpo reage ao meu. Algum outro homem já a
fez sentir-se dessa maneira?
— Por favor, não posso pensar quando você faz isso.
— Admita a verdade, Rachel. Você me deseja.
Por um momento, Anthony temeu que ela pudesse negar a paixão que
os consumia.
— Muito bem — sussurrou Rachel. — Admito que nunca antes senti o
que sinto quando você me beija.
— E seu eu quisesse seduzi-la, acha que seria bem-sucedido?
— Talvez. Os dedos longos tocaram-lhe os lábios.
— Mas eu não desejo uma amante, Rachel. Desde o início, sempre
soube que isso não seria uma fantasia passageira. Não é uma chama de
loucura que logo se apagará.
Ela praticamente entrou em pânico.
— Você não sabe o que está dizendo. É claro que a chama se apagará.
— Não sou um adolescente governado pela paixão — declarou ele. — É
claro que eu a quero na minha cama, mas também quero tê-la à minha mesa
enquanto faço as refeições, e a meu lado quando dirijo meu coche. E ver sua
barriga crescendo com um filho meu.
— Você precisa parar com isso.
— Por quê?
— Já lhe disse que jamais me casarei.
— Está sendo irracional.
— Não. Não estou.
— Sim, está! Você é muito inteligente para permitir que medos
infundados destruam sua vida. — Ele pegou-lhe a mão e levou-a ao próprio
coração. — Diga-me o que você teme, Rachel. Sou eu?
Ela parecia espantada.
— Claro que não.
— Então, do que tem medo?
— Tenho medo de magoar você — respondeu ela.
Anthony fechou os olhos e resignou-se. Não forçaria Rachel a aceitar
seu pedido. Ela tinha de concordar com a proposta por livre e espontânea
vontade.
— Não há dúvida de que você poderá me ferir algumas vezes —

79
começou ele. — Assim como, haverá o...ocasiões nas quais poderei magoá-la,
sem querer. Provavelmente, eu a magoarei, afinal, tenho o hábito de
desaparecer na minha oficina de trabalho, e não sou tão romântico quanto
algumas donzelas desejariam. Todavia, sou também fiel e extraordinariamente
leal àqueles que amo. Como minha esposa, você terá tudo de mim.
— Esposa?
— Sim. Eu precisaria de um anel de noivado para demonstrar minha
intenção?
— Anthony!
A delicada mão ergueu-se para tocar-lhe o rosto. Uma onda de alívio
tomou conta de Anthony. Era o sinal de rendição que estivera esperando.
Um gemido saiu da garganta dele e seus braços estenderam-se para
abraçá-la, de tal modo que pudesse finalmente reclamar o beijo que ansiava
saborear, mas um som de risadinhas quebrou o silêncio reinante e Rachel
afastou-se.
— O que foi isso?
Anthony deu um suspiro frustrado. Será que nunca conseguiria beijá-la?
— Acho que nossos fantasmas misteriosos voltaram — murmurou ele.
Então, no momento em que ia sugerir que voltassem para casa,
percebeu que Rachel não estava mais lhe dando atenção. Com curiosidade, ela
entrou na vegetação rasteira com a intenção de descobrir o dono da risadinha
inoportuna. Anthony praguejou, já suspeitando o que Rachel estava prestes a
descobrir.
— Rachel, não.
— Quero descobrir quem é — disse ela baixinho, entre as grossas
árvores.
— Espere — chamou Anthony, correndo atrás dela.
Quando circulou um grande arbusto, descobriu Rachel parada,
totalmente chocada.
— Por Deus! — exclamou ele, dando apenas uma rápida olhada no casal
enlaçado num abraço apaixonado sobre um cobertor, antes de afastar Rachel
de lá.
Ela tropeçou em silêncio a seu lado, até que ele a forçou a sentar-se
numa árvore tombada no meio do caminho.
— Rachel, olhe para mim.
Ela vagarosamente ergueu o olhar para o pálido semblante de Anthony.
— Aquele homem. Era um criado?
— Sim — confirmou ele, lembrando-se do casaco de uniforme que fora
atirado no chão.
— Quer saber? Comecei a sentir simpatia por Mary — declarou ela,
provando a Anthony que reconhecera a jovem que estava com o criado. —
Lorde Newell é um homem fraco e egoísta, e não a ama.
— Rachel, isso não é assunto nosso. — Anthony praguejou contra o
destino que levara os indiscretos amantes para o bosque naquela tarde.
— Claro que é. Lorde Newell acredita que Mary é uma donzela virtuosa.
Por tudo que sei, ela já poderia estar carregando uma criança daquele homem.
— Isto é entre lorde Newell e a noiva — insistiu ele. — Está me ouvindo,
Rachel? É um assunto particular entre os dois.
De súbito, ela se levantou, como que num desafio.

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— Não mais.
— Rachel, o que você está tramando? Ela sorriu com doce inocência.
— Acabo de ser inspirada por uma idéia fantástica. Uma idéia que
resolverá tudo.
Anthony deu um passo para trás.
— Deus abençoado, salve-me dos conluios dos Cresswell.
Rachel arrumou-se com esmero na manhã seguinte, preparando-se
para a batalha.
Ignorou os vestidos vistosos e escolheu um rosa pálido. Colocando um
chapéu pequeno e elegante, pegou o broche que achara no bosque e colocou-o
na bolsa. Uma vez segura de que parecia uma mulher determinada, saiu da
casa e embrenhou-se pelo jardim afora.
Ela tinha, na verdade, passado a noite inteira ensaiando com precisão o
que diria quando chegasse a Broswell Park.
Bem, talvez não a noite inteira, admitiu com uma ponta de excitação.
Pelo menos parte da longa noite, passara lembrando-se da adorável proposta
de Anthony.
Quem pensaria que um cavalheiro tão inteligente, charmoso e cobiçado
iria se apaixonar por ela?
Por muito tempo, Rachel vivia apenas o momento presente, sem
considerar o futuro temerário de total solidão que a esperava. Mas Anthony
mudara tudo isso. Ele a forçara a considerar um futuro a seu lado. Um futuro
que incluía um marido e filhos. Um futuro cheio de amor.
Seus passos ficaram mais leves quando cruzou o pátio da mansão e
pensou no homem que mudara sua vida para sempre.
Anthony era maravilhoso. Era tudo que uma mulher poderia desejar de
um homem, reconheceu. Sim, era bom, gentil, inteligente, possuía um espírito
alegre e a fazia sentir as mais divinas sensações quando estava ao seu lado.
Entretanto, naquela manhã, precisava concentrar-se na iminente confrontação
com lady Broswell. Não era tola para subestimar a velha senhora astuta.
Já quase perto da casa de sua tia e inimiga, Rachel abriu a bolsa para
certificar-se de que levara o broche. Sabia que ter uma prova tão evidente da
infidelidade de Mary seria vital.
De súbito, um farfalhar de folhas a seu lado, deixou-a atenta. O coração
bateu descompassado quando uma sombra apareceu no caminho e então um
grande vulto surgiu detrás de uma árvore.
Ela deu um passo para trás assustada, mas então viu o familiar casaco
preto.
— Anthony, você me assustou.
Não havia desculpas no rosto bonito quando ele a fitou.
— Achei que você poderia passar por aqui esta manhã.
Ela sorriu no momento que imaginou que teria de se lembrar dessa
tenaz tendência dele no futuro. Definitivamente, Anthony Clarke não seria um
marido fácil de enganar.
— Por que estava se escondendo neste bosque, meu querido? Ele
cruzou os braços na frente do peito.
— Porque queria falar com você.
Rachel fingiu não perceber a espécie de aviso no tom sério.
Não queria discutir seus planos com Anthony. Pelo menos não antes de

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estar certa de que fora bem-sucedida. Aquela era a última coisa que tinha
intenção de fazer sozinha. Devia isso à mãe. Pela memória dela, Rachel estaria
certa de que outra pobre garota não teria seu destino.
— Sinto muito, mas você tem de esperar — disse ela. — Tenho um
compromisso esta manhã.
— Não, o que tenho de dizer não pode esperar.
— Acredite-me, Anthony, não levarei mais que uma hora. O que quer
que tenha a me dizer, pode certamente esperar.
— Não.
Havia determinação na voz dele e Rachel resignou-se com a idéia que
teria de ouvi-lo.
— Muito bem — concedeu ela. — O que é?
— Acho que você deveria saber que falei com seu pai.
Não era, em absoluto, o que ela estivera esperando ouvir e
instintivamente empertigou-se, alarmada.
— Meu pai?
— Sim. Sei que seu tio Foxworth é, na verdade, o Malvado Dândi.
— Entendo.
— Não se preocupe. Não pretendo revelar a identidade dele. Afinal de
contas, não desejo ter meu sogro hospedado em Newgate.
Nem por um minuto, Rachel temera que Anthony revelaria o segredo do
pai.
— Sobre o que vocês conversaram?
— Sua estranha obsessão em vingar-se de lady Broswell.
— Já expliquei minhas razões.
Ele aproximou-se, os olhos escuros procurando a expressão contida
dela.
— Você esquivou-se de mencionar que lady Broswell é sua tia. Rachel
não pôde disfarçar o choque.
— Meu pai lhe contou isso?
— Acredito que ele queria que eu entendesse sua raiva. E realmente
entendo, Rachel. Não é a...agradável ser considerada um estorvo para a
própria família.
— Não, não é — concordou ela, embora estivesse surpresa em descobrir
que não sentia a dor que normalmente experimentava quando pensava na tia
e na fria distância dela em relação à família da mãe.
— Também entendo seu desejo de se vingar daqueles que a trataram
com menos respeito do que merece. Mas asseguro-lhe, minha querida, esta
vingança é uma vitória vazia.
— Não é uma vingança — negou ela. — E apenas justiça.
— Você pretende revelar a indiscrição de Mary à mãe dela?
— Sim — admitiu Rachel, recusando-se a mentir.
— E você chama isso de justiça?
— Será.
— Não, não será. Justiça é reparar um erro, e não ferir outra pessoa
porque feriram você.
Ela o fitou com intensidade.
— Eu pretendo corrigir um erro.
— Rachel — murmurou ele, impaciente, segurando-lhe os braços.

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Inclinando-se para frente, Rachel colocou as mãos contra o peito largo,
inalando profundamente o delicioso aroma másculo.
— Diga-me, Anthony, você realmente estava falando sério ontem? Os
olhos escuros brilharam de satisfação.
— Quando disse que queria que você fosse minha esposa?
— Sim.
— Claro que falei s...sério. Quero que esteja na minha vida por toda a
eternidade.
Rachel sorriu.
— Isto é o que eu quero também.
Ele suspirou aliviado, enquanto os braços a envolviam e a apertavam
com força.
— Deus abençoado, você não imagina o quanto me faz feliz.
— Não mais feliz do que me sinto — confessou ela, repousando a
cabeça no peito largo. — Por muito tempo, acreditei que sempre ficaria
sozinha. Agora não posso conceber um futuro sem você.
— Isso jamais aconteceria. Desde o momento em que a vi na ópera,
senti que você me pertencia.
— Não tenho dúvida de que o deixei louco desde aquela ocasião —
brincou ela.
— Com certeza.
— E não permitirei que desapareça em sua oficina de trabalho sem
mim.
— Bem, confesso que eu tampouco faria isso. — Anthony acariciou a
delicada nuca de sua amada. — Há um sofá muito confortável lá, que acredito
que será perfeito para o projeto ao qual pretendo devotar minha atenção nos
próximos anos.
Ela estremeceu.
— Anthony!
— Eu a choquei?
— Nada choca a filha de Malvado Dândi. Você sabe que sou uma mulher
sem preconceitos — assegurou-lhe ela.
— Acho que não suportarei esperar pelos proclamas do casamento.
Todavia, creio que você desejará um casamento apropriado.
— Apropriado? Por Deus, não. Tenho uma reputação a preservar.
Prefiro fugir de casa para me casar.
Ele deu uma gargalhada.
— Acredito que uma licença especial é tão ousada quanto quero que
seja.
— Sabia que você seria extremamente respeitoso.
— Isso a desaponta?
Ela o fitou demoradamente.
— Não, conquanto que você me ame.
— Para sempre. — Ele a liberou do abraço, apenas o bastante para
acariciar-lhe o rosto. — Vamos voltar para casa? Tenho muita coisa a
providenciar, se vamos nos casar em breve.
Rachel sorriu quando ele deu um passo atrás. Não queria brigar com
seu noivo, mas estava determinada a terminar seu assunto com lady Broswell.
— Vou visitar Broswell Park antes. Há uma coisa que preciso fazer.

83
— Esqueça-se disso tudo, Rachel — resmungou ele. — Pensei que você
desistira dessa idéia tola.
— Anthony, você disse que me amava. Confia em mim? Pego numa teia
que ele mesmo criara, Anthony sorriu-lhe.
— Claro que sim.
— Então, espere-me aqui. Votarei logo.
— Um momento. — Ele ergueu a mão. — Se está determinada a
prosseguir com essa idéia, então vou com você.
— Não. Tenho de fazer isso sozinha.
— Rachel.
— Confie em mim.
Ele suspirou e fechou os olhos por um breve momento.
— Com toda certeza, lamentarei isso. Você é uma má influência para
mim.
— Tentarei.
Ela beijou-o rapidamente e seguiu seu caminho.
Sentindo-se como um leão enjaulado no zoológico, Anthony
permaneceu na pequena clareira do bosque com impaciência crescente.
Que coisa! Nunca deveria ter permitido que ela fosse sem ele.
Não que temesse pela integridade de Rachel. Lady Broswell podia ser
uma feiticeira sem coração, mas não era uma mulher violenta. E não tinha
preocupação alguma pelo choque e constrangimento que a família Broswell
passaria. Eles mereciam qualquer vingança que Rachel estava prestes a
impetrar.
Anthony deu um suspiro de alívio quando ouviu movimentos de passos
se aproximando.
— Rachel, por que levou tanto tempo?
Parecendo muito mais satisfeita do que ele esperara, ela sorriu.
— Perdoe-me, mas houve algumas delicadas negociações a serem
feitas.
— Negociações?
— Sim.
Ela estendeu-lhe uma folha de papel dobrada.
— O que é isso? — perguntou ele.
— É uma permissão escrita e assinada por lady Broswell, concedendo-
me a custódia de Júlia.
— O quê?
— Eu lhe disse que estava indo a Broswell Park atrás de justiça —
comentou ela com tom de voz triunfante. — Usei meu conhecimento da relação
de Mary com o criado para forçar minha tia a me dar a custódia de Júlia.
— Deus seja abençoado!
— Você está zangado? Sei que eu não lhe contei nada sobre meus
planos quando você me pediu em casamento. Sua vida sofrerá uma grande
mudança com uma esposa e uma garota.
— Ficarei muito feliz em ter Júlia conosco — murmurou ele,
tranqüilizando-a. — Mas, minha querida, isto não é um documento legal.
Ela sorriu.
— Eu o tornarei legal tão logo volte a Londres.
— Lady Broswell pode facilmente mudar de idéia. — Anthony a

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preveniu.
— Não enquanto desejar que a indiscrição de Mary permaneça um
segredo para lorde Newell.
— Isto, minha querida, é chantagem.
— Repreensível, eu sei. Mas não poderia sair daqui sabendo que Júlia
estava trancada naquele lugar horrível. Ela é minha prima, Anthony. E merece
uma vida melhor.
Anthony sentiu orgulho de sua bela e sagaz noiva. Rachel prometera
que queria justiça, não vingança. Ela salvara Júlia do controle e descaso de
lady Broswell.
— Como a megera reagiu às suas exigências?
— Ficou furiosa por eu ter descoberto a verdade sobre Júlia, é claro.
Surpreendentemente, todavia, ficou menos chocada quando revelei o caso de
Mary. Acho que ela já suspeitava do fato.
— O que, sem dúvida, é a razão pela qual estava tão ansiosa que o
casamento da filha com lorde Newell se realizasse logo.
— Sim. Depois de minha revelação, precisei de pouco esforço para
convencê-la de que Júlia estaria melhor sob meus cuidados.
O coração de Anthony disparou de felicidade.
— Sob nossos cuidados — corrigiu-a ele, apertando-a nos braços. —
Você tem muito do Malvado Dândi.
— Está zangado comigo? — perguntou ela.
— Não. — Ele sorriu enquanto o corpo delicado moldava-se ao seu com
total perfeição. Cercados pela paz do bosque, com o perfume das rosas e os
raios de sol infiltrando-se por entre as árvores, Anthony estava certo de que
poderia ficar ali naquele pequeno paraíso para sempre.
— Sem mais conspirações e vinganças? — gracejou ele
— Na verdade, esqueci-me de minha vingança já há algum tempo.
— Mesmo?
— Sim. Um cavalheiro alto e bonito, que beija maravilhosamente bem,
fez-me esquecer do passado e de todas as coisas ruins que aconteceram em
minha vida.
— Esse cavalheiro parece fascinante — murmurou ele.
— Muitíssimo fascinante. — Rachel suspirou, o coração repleto de amor
e felicidade.
— Precisamente o tipo de homem que você deveria desposar o mais
rápido possível.
— Oh, eu pretendo fazer isso.

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Capítulo VII

A grande casa em Londres, que ficava numa elegante praça, era famosa
tanto por suas divertidas peculiaridades como pela notável vista para o parque.
Ninguém podia jamais imaginar que tipo de invenção estaria sendo fabricada
no escritório ou mesmo bloqueando o hall de entrada. Havia objetos esculpidos
em forma de mordomos, um espelho emoldurado por velas e um pássaro
mecânico que pousava na cornija da lareira e cantava a canção favorita de
Rachel.
E, é claro, havia deliciosos boatos que a bela Júlia era filha ilegítima do
Malvado Dândi, e que ele podia ser visto com freqüência pela vizinhança no
meio da noite, quando ia visitar as filhas.
Depois de um ano de boatos e especulações, Rachel não dava mais
importância às histórias absurdas. Certamente, tais rumores não prejudicavam
a presença dela e de Anthony na sociedade. Na verdade, era considerado uma
honra receber um raro convite para a casa dos Clarke. E Rachel sentia-se
irrevogavelmente feliz.
No momento, estava junto à janela, procurando sinais do retorno de
Júlia para a casa.
Anthony provara ser tudo o que ela esperava de um marido: era
atencioso, bem-humorado e um amante terno e apaixonado. Mas o mais
importante era que ele provara ser um pai maravilhoso para Júlia.
Longe da severa sra. Greene e encorajada a descobrir as delícias de
Londres, Júlia desabrochara e se transformara em uma donzela bonita e
charmosa. Nem mesmo o desapontamento em descobrir que os médicos
londrinos não podiam fazer nada para ajudá-la a andar tinha diminuído seu
entusiasmo em experimentar tudo que a vida tinha a oferecer.
Rachel olhou para a rua movimentada pela centésima vez. Soubera
desde o princípio que fora uma má idéia permitir que Júlia saísse de casa sem
a sua companhia. Alguma coisa poderia ter acontecido. Quem tomaria conta da
pobre garota se ela não estivesse por perto?
Estava tão imersa em seus pensamentos que não ouviu a porta da sala
abrir-se e, em seguida, fechar-se suavemente.
— Por Deus, Rachel, você está parada aí, olhando a janela por mais de
uma hora.
Ela instintivamente inclinou-se para trás e apoiou a cabeça no peito
largo do marido.
— E continuarei aqui até que Júlia retorne. Anthony riu e depositou um
beijo nos cachos dourados.
— Ela está perfeitamente segura nas mãos do sr. Eastgate. O que
poderia acontecer no meio do Hyde Park?
Rachel preocupava-se com a prima na companhia do jovem cavalheiro
que chegara à sua porta bem cedo naquele dia.
O rapaz era gentil e bem-educado. Vestia-se com elegância, porém,
com simplicidade, e o carinho dele por Júlia parecia sincero. Mas Rachel estava

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longe de convencer-se de que ele era o jovem certo para sua prima querida.
Havia alguma coisa maliciosa nos olhos estreitos do rapaz que Rachel
não podia admirar.
— Sabemos muito pouco sobre o sr. Eastgate — argumentou ela. Os
braços de Anthony a apertaram.
— Conversei seriamente com o jovem antes de eles partirem. Asseguro-
lhe que ele estava apenas amedrontado diante da opulência desta casa.
— Espero que você o tenha avisado de que Júlia é uma dama.
— É claro, meu amor. Exatamente como você mandou — respondeu
ele, rindo.
— Posso saber o que é tão divertido?
— Para uma mulher que temia ser uma boa esposa e mãe, você tem
provado ser notavelmente devotada a Júlia.
Ela fez uma careta. Era verdade que se transformara numa mãe
protetora. Não podia sequer pensar em Júlia sendo ferida ou desapontada.
— Ela é muito novinha ainda — murmurou Rachel.
— Sim, mas tem idade suficiente para aproveitar um pequeno flerte.
Providenciarei para que isso não vá adiante. Pelo menos, não até que ela se
apaixone loucamente pelo homem certo.
Sabendo que Anthony mais uma vez tinha razão, e que ela estava
exagerando na preocupação por um simples passeio no parque, Rachel deu um
sorriso provocante.
— Até lá, certamente teremos outra criança para nos afligir. Os olhos
escuros brilharam com paixão.
— Pretendo dar tudo de mim para transformar tal hipótese em
realidade. Pode contar com minha contribuição.
As mãos grandes seguraram os quadris femininos e os puxaram para si.
Ela riu.
— Sr. Clarke, você é um desavergonhado.
— Somente com minha linda esposa. Rachel tremeu por antecipação.
— Creio que você quer convencer-me de que tem algum projeto que
precisa muito de nossa atenção na oficina de trabalho.
No último ano, a pequena oficina transformara-se no santuário deles.
Era uma regra tácita que, toda vez que o sr. e sra. Clarke desaparecessem
para trabalhar num projeto, não deviam ser interrompidos. Nem mesmo um
incêndio ou a visita de Sua Alteza real em pessoa induziria os criados a
baterem à porta da oficina.
— Bem, o pensamento passou pela minha mente.
Os braços de Rachel o envolveram, mas quando os lábios másculos
percorreram a linha do pescoço delicado, ambos ouviram o som da campainha.
Rachel mostrou-se surpresa.
— Quem poderá ser?
Anthony fez uma careta enquanto, relutantemente, acertava o nó da
gravata.
— Alguém sem o menor senso de horário de visita.
Dentro de momentos, um mordomo carrancudo entrou na sala e
formalmente anunciou:
— Lady Chance e lady Hartshore estão aqui e desejam ver a sra.
Clarke.

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Uma onda de prazer tomou conta de Rachel. Ela sabia que as irmãs
estariam, em breve, viajando para suas propriedades rurais, onde aguardariam
a chegada de seus bebês. Rachel apreciava todas as oportunidades de estar
com elas enquanto permaneciam em Londres.
— Faça-as entrarem, Fisher. E peça à sra. Center para preparar o chá.
— Imediatamente, senhora. Anthony suspirou.
— Vejo que terei que visitar a oficina de trabalho sozinho. Rachel lhe
dirigiu um sorriso provocante.
— Você poderia ficar para o chá.
— Por mais que eu adore suas irmãs, três Cresswell de uma vez, é
demais para meus nervos.
— Covarde.
— Sensato — corrigiu-a ele, depositando um leve beijo no nariz dela. —
Você será bem-vinda a juntar-se a mim quando suas convidadas se forem.
Com um olhar que prometia todos os tipos de delícias perversas,
Anthony desapareceu da sala.
O som de passos se aproximando a fez voltar-se para a porta principal
e ela observou, com prazer, quando as irmãs entraram na sala. Ambas
estavam grávidas e o parto não deveria tardar.
Sarah suavizara e amadurecera sob a influência de lorde Chance,
enquanto Emma brilhava com uma inegável felicidade que podia ser
diretamente atribuída a lorde Hartshore.
— Sarah. Emma. — Rachel abraçou as duas fortemente. — Que
maravilhoso vê-las!
— Rachel, você está bonita como sempre— elogiou Emma, olhando para
a sala vazia. — Onde está Júlia?
Como era esperado, tanto Sarah como Emma haviam se apegado muito
à menina.
— Anthony permitiu que ela fosse dar um passeio com o sr. Eastgate,
um rapaz da vizinhança — contou Rachel. — Não aprovei, mas meu marido
não me deu ouvidos.
— Tenho certeza de que Eugene Eastgate é um rapaz sóbrio e sensato
— disse Emma. — Conheço a família dele.
— Espero que sim — murmurou Rachel.
— Gostaria de levar Júlia para passar uns tempos comigo — continuou
Emma, tentando distrair a irmã de sua óbvia preocupação. — Ela, sem dúvida,
aproveitaria Hartshore Park.
Rachel colocou as mãos nos quadris e encarou a irmã.
— Você terá grande chance de ser mãe quando seu bebê nascer.
— Na verdade, eu estava pensando em você, Rachel. Ainda não teve
muito tempo sozinha com seu marido.
— Anthony concorda que temos muitas oportunidades de ficarmos a
sós.
— Eu diria que este casamento combina com você, Rachel. Nunca a vi
tão contente.
— Nunca fui mais feliz em toda minha vida — confessou ela com um
sorriso sincero. — Anthony é maravilhoso.
— Acho que todas nós fomos afortunadas em nossas escolhas —
concordou Emma.

88
Rachel deu uma risada repentina, lembrando-se dos anos que elas
viajavam de hotel para hotel, sempre com medo de serem capturadas e nunca
se sentindo como se pertencessem a algum lugar.
— Quem pensaria que as filhas do Malvado Dândi capturariam os mais
cobiçados solteirões de toda a Inglaterra?
— Eu certamente não— admitiu Emma com uma careta.— Estava muito
satisfeita em viver minha vida como dama de companhia. Foi somente a
persistência de lorde Hartshore que me forçou a mudar de opinião.
— Ah, sim — disse Sarah. — Não podemos negar que todos os três
cavalheiros foram incrivelmente persistentes.
— Você quer dizer teimosos — corrigiu-a Rachel.
— Da maneira mais charmosa possível — Emma completou. As três
irmãs riram e naquele instante a porta foi aberta e a governanta entrou com
uma grande bandeja de prata.
— Chá, sra. Clarke.
— Obrigada.
Movendo-se para onde a criada colocara a bandeja numa mesa lateral,
Rachel serviu às irmãs sanduíches, torta de maçã e chá chinês. Somente
então, perguntou:
— Agora, digam-me o que as traz aqui hoje.
— Na verdade, não tenho a menor idéia — começou Emma. — Sarah
chegou em minha casa insistindo que precisávamos visitar você esta tarde.
A curiosidade de Rachel aguçou-se.
— Bem, Sarah? Enquanto sorvia o chá, Sarah ofereceu-lhes um sorriso
amplo.
— Quis que estivéssemos juntas hoje porque recebi uma carta de papai
esta manhã.
— Meu Deus, onde ele está?— perguntou Rachel, um pouco aborrecida
porque ele não a visitara durante o último ano. Embora Salomon sempre
tivesse sido errático e predisposto a ir e vir sem avisar, nunca sumira por tanto
tempo.
— Na Itália — respondeu Sarah. Emma ficou surpresa.
— O que está fazendo lá?
— Parece que comprou uma casa de campo perto de Florença. Está
agora vivendo lá com sua nova esposa.
Emma deixou cair a xícara sobre a mesa com ruído estridente.
— Esposa?
Rachel, contudo, estava bem menos surpresa do que a irmã. Suspeitara
há tempo que Violet jamais fugiria de casa com Salomon sem estar
devidamente casada. E, é claro, a despeito dos seus hábitos escandalosos, o
Malvado Dândi jamais comprometeria uma donzela tão bem-educada.
— Violet Carlfield — murmurou Rachel. Sarah assentiu com um
movimento de cabeça.
— Sim.
— Quem, pelo amor de Deus, é Violet Carlfield? — indagou Emma,
confusa.
— Na verdade, é uma amiga minha — murmurou Rachel.
Os atônitos olhos esmeraldas de Emma arregalaram-se em estado de
choque.

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— Ele casou-se com uma jovem que tem idade para ser sua filha?
Rachel rapidamente lembrou-se da expressão do pai quando ele falara de
Violet. Não duvidava, nem por um minuto, que ele estivesse sinceramente
apaixonado.
— Violet é jovem, mas acho que será uma boa esposa para papai —
disse ela.
— Eu também acho — concordou Sarah. — Ele escreveu que será pai
novamente no final de agosto. Houve um silêncio prolongado diante do
inesperado anúncio.
— Oh, meu Deus! Rachel meneou a cabeça, e depois sorriu, deliciada.
— Bom Deus, espero que seja uma menina. Podem imaginar um novo
Malvado Dândi no mundo?
— Deus nos livre! — brincou Sarah, rindo.
— Não acredito que haja outro Malvado Dândi. Ele é o único da espécie.
As três irmãs assentiram. Salomon Cresswell era realmente original.
— Pelo menos ele não está sozinho — disse Sarah. — Com nós três
casadas, papai perderia seu posto de santo casamenteiro.
Rachel levantou-se, sentindo que o momento merecia uma
comemoração pela boa sorte delas três.
— Embora seja apenas chá, proponho um brinde às filhas do Malvado
Dândi.
As irmãs prontamente ergueram-se e brindaram juntas.
— Saúde, saúde — exclamou Emma.
— E ao pequeno Cresswell que nascerá na Itália — acrescentou Rachel
com um sorriso.
Tomando um gole do seu chá, Emma colocou a xícara na mesa e disse:
— Detesto terminar nossa tarde assim, mas prometi a meu marido que
voltaria a tempo de descansar antes do jantar. Ele tornou-se muito protetor no
que diz respeito à minha saúde.
— Sim, os homens parecem perder o pouco espírito que possuem
quando uma mulher está carregando seus herdeiros em potencial — disse
Sarah.
Rachel permitiu-se ponderar sobre sua própria suspeita de que estava
no mesmo caminho das irmãs. Não comentara nada, não querendo criar
expectativas em Anthony e Júlia. Temia que, quando Anthony descobrisse que
ela estava grávida, agisse de modo irracional, impedindo-a de fazer qualquer
coisa, exceto ficar deitada em constante repouso. Por enquanto, pretendia
guardar o segredo para si mesma.
Rachel abraçou Sarah.
— Quando você escrever para papai, envie-lhe todo meu amor.
— E claro.
Rachel virou-se para abraçar a outra irmã.
— Tome cuidado, minha querida.
— Lembre-se de pensar na possibilidade de Júlia vir comigo para
Hartshore Park — pediu Emma. — Eu ficaria encantada de ter nossa priminha
por perto e, é claro, ela me faria companhia quando lorde Hartshore estivesse
inspecionando a propriedade. Prometo tomar conta dela.
— Pensarei a respeito — replicou Rachel de forma evasiva, incapaz de
pensar no seu lar sem a presença de Júlia.

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Com certa confusão, as duas mulheres saíram da sala. No mesmo
instante, Rachel ouviu o inegável som da excitada voz de Júlia ecoando no hall
de entrada. Rachel deu um suspiro de alívio.
Não precisaria chamar a polícia, afinal de contas. Eugene Eastgate era um
cavalheiro afortunado.
Ela adorava as irmãs e Júlia, contudo, negligenciara o pobre marido por
tempo demais. Pretendia corrigir aquela omissão o mais depressa possível.
Atravessando a sala, Rachel silenciosamente abriu a porta da oficina de
trabalho e a trancou atrás de si.
— Suas irmãs já foram embora?
— Acabaram de partir — assegurou-lhe ela.
— Ah. — Anthony estendeu a mão para tocar-lhe o rosto com carinho.
— Havia uma razão especial para a inesperada visita delas?
— Sim. Parece que, em breve, terei outro irmão ou irmã. Ele franziu o
cenho.
— Deveras?
— Bastante chocante, não é?
Anthony pensou sobre o assunto por um momento, antes de sorrir.
— Considerando que estamos falando do Malvado Dândi, não é tão
chocante quanto eu temia.
De súbito, Rachel foi tomada de inspiração.
— Sabe, Anthony, temos de fazer planos para viajar à Itália. Violet irá
querer ter algum conhecido por perto quando o bebê nascer. Será também
uma oportunidade formidável para Júlia conhecer um novo lugar no mundo.
Embora Anthony tivesse assentido com um gesto de cabeça, era óbvio
que a mente não estava no pai dela, ou mesmo na viagem à Itália. Em vez
disso, as mãos fortes se moveram para retirar os grampos dos cabelos
dourados, deixando-os cair sobre os ombros delgados como uma cascata de
ouro.
— Falando de Júlia, ela já retornou?
— Sim, chegou quando minhas irmãs estavam partindo.
— Ótimo.— Inclinando a cabeça, Anthony deu-lhe diversos beijos no
rosto, pescoço e orelha. Rachel tremeu, antes de enlaçar o pescoço do marido.
— Senhor, o que está fazendo? — provocou-o.
As mãos viris agora estavam ocupadas com os laços que prendiam o
corpete do vestido.
— Agora que não está mais aflita pela ausência de Júlia, está livre para
ficar com seu marido solitário.
— Pensei que estivesse ocupado com seu projeto.
— Oh, estou — disse ele. — Na verdade, alcancei o mais delicado
estágio. Estou precisando muito de sua perícia.
— Como você sabe, estou sempre querendo compartilhar minha perícia
— brincou ela, pressionando-se mais contra o corpo sensual.
Anthony deu uma gargalhada enquanto a segurava pelos braços e a
carregava em direção ao divã, no canto da oficina.
— Ah, minha garota atrevida, eu te amo.
— Eu também te amo muito, senhor meu marido— confessou ela. —
Mais do que um dia imaginei ser possível.
Anthony sorriu, o olhar fixo nos lábios entreabertos de Rachel enquanto

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abaixava-se para beijá-la com avidez e provar, com todo seu corpo e alma, o
quanto estava sendo sincero.



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