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O HOMEM POR TRÁS DO

ESPELHO
JOSIANE VEIGA
O HOMEM POR TRÁS DO
ESPELHO
JOSIANE VEIGA

1ª Edição
2018
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou
transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou
arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem autorização escrita da autora.

Esta é uma obra de ficção. Os fatos aqui narrados são produto da imaginação. Qualquer
semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real deve ser considerado mera
coincidência.

Título:
O HOMEM POR TRÁS DO ESPELHO

Romance

ISBN - 9781728959894
Texto Copyright © 2018 por Josiane Biancon da Veiga
Sinopse:

Não há vergonha em um trabalho honesto. Mesmo que os motivos que me levaram a ele tenham sido
escusos e repulsivos.

Definitivamente, esforcei-me para sair daquele círculo onde tudo se resumia a servir os poderosos Turner.
Todavia, a vida me pôs exatamente no caminho de Oliver.

E machucava agora cuidar da filha dele... Filha que ele teve com outra mulher. Mas, o que me restava? Eu
precisava curar as feridas que ele mesmo despertara. Voltar a Ilha de Hill e me tornar a babá da pequena
Cathy fazia parte desse processo.

E quanto a Oliver Turner? Ele que fosse para o inferno! Nunca mais cairia na lábia daquele maldito...
Sumário
JOSIANE VEIGA
Nota da Autora
Dedicatória
Capítulo Um
Amelia, a fedida
Capítulo Dois
RETORNO
Capítulo Três
CATHY
Capítulo Quatro
OLIVER
Capítulo Cinco
PROTEÇÃO
Capítulo Seis
SEMPRE VOCÊ
Capítulo Sete
A REALIDADE
Capítulo Oito
LARNE
Capítulo Nove
A VERDADE
Capítulo Dez
O MAU
Capítulo Onze
MATERNIDADE
Capítulo Doze
O FIM
Epílogo
FUTURO
MAIS LIVROS DA AUTORA
Nota da Autora
Esse é meu último livro de 2018. Até janeiro, não pretendo voltar a escrever, porque foi um ano
extremamente trabalhoso, onde finalizei a saga dos Reinos e me dediquei muito a histórias novas e
diferentes, como Quem tem Medo do Lobo Mau?, com um contexto novo que foi Chicago dos anos 20,
algo que pouco me chamava a atenção até tal livro.
O Homem por Trás do Espelho foi um desafio. Quem é meu leitor, sabe que não escrevo em
primeira pessoa porque sempre me considerei o deus que não se importa nas minhas histórias, narrando
sem sentimentos; e, em primeira pessoa, eu estaria mais intimamente ligada aos personagens. Então, O
Homem por Trás do Espelho foi uma prova a mim mesma. E, felizmente, considero-me satisfeita com o
resultado final. Provavelmente é um dos meus melhores livros de 2018, mesmo tendo sido escrito em
menos de duas semanas e durante o período final das eleições.
Um adendo. O nome Amelia da protagonista é sem o acento. Por quê? Porque é assim que se
escreve ao leste do Reino Unido. Mas, a pronúncia fica abrasileirada mesmo.
Enfim, espero que gostem da história. Foi escrita com um carinho imenso.
Muitos beijos e até 2019.
Josiane Biancon da Veiga,
Outubro de 2018.
Dedicatória
A lunática Cinthia Pires Gutierrez que é um apoio mais que importante à literatura nacional. Estava
de aniversário um dia antes do lançamento do livro, e achei de bom tom agradecê-la em forma de história
por todo o apoio que seu grupo sempre me deu. Muito obrigada minha amada. E muitas felicidades.
Capítulo Um
Amelia, a fedida

Ilha de Hill, 2001

S
empre soube que aquele lugar era maldito.
Não que fosse assombrado por ameaças sobrenaturais, mas sim
condenado porque todas as minhas piores lembranças estavam ali, enterradas
entre as rochas elevadas, mergulhadas no mar de águas calmas, leves como a
areia fina e escura que cercava Hill.
A Ilha de Hill era um pequeno amontoado de terra em meio a um vasto
oceano. Alguns quilômetros que poderiam ser cruzados durante um único dia de
caminhada, cercado por uma praia de areia suja e de ondas frias, ficava a oeste
da Grã-Bretanha, próximo o suficiente da Irlanda do Norte, mas conquistada
pelos Ingleses em guerras passadas há muito tempo.
Talvez porque no passado tivesse algum valor. Era o único pedaço de
terra após Portpatrick e, provavelmente, servia de base para abastecimento de
navios que cruzavam aquele estreito.
Mas, as guerras de outrora ficaram exatamente onde deviam: no passado.
Naquele momento, Hill era apenas uma ilha com pequenas casas de pescadores,
onde seus pouco mais de três mil habitantes serviam a um único senhor:
Theodoro Turner.
Os Turners eram pessoas nobres. O primeiro deles começou um legado
de condes que sempre toou aos propósitos da monarquia.
Agora, mantinham na ilha uma fábrica de pescados e um castelo em
estilo vitoriano, e tudo girava em torno da vontade daquela família.
As manhãs começavam sempre às seis horas. Era o horário que a maioria
dos trabalhadores acordava para ir trabalhar. Alguns iam para a fábrica, outros
para os barcos. Os mais jovens - eu me incluía nisso -, iam para a pequena escola
que nos educava.
Nunca entendi porque o filho único de Theodoro foi educado ali, comigo.
Oliver era o herdeiro de uma das famílias mais ricas de todo Reino Unido, mas
sentava-se na mesma cadeira que os filhos dos empregados do pai.
Não que isso fizesse alguma diferença na vida dele. Era arrogante e
presunçoso. Gostava de vestir-se com calças largas e jaquetas de atleta. Talvez
pelo dinheiro e pela beleza, mantinha sempre o nariz empinado, como se
fossemos a escória daquele lugar e devíamos agradecer a Deus por ter sua
sagrada presença entre nós.
Tinha seus amigos, contudo. Membros da alta classe da fábrica. A filha
do administrador, Ava, estava sempre agarrada em seu braço, naquele namoro
que chegava a dar ânsia de tão grudento.
Sempre a observei com admiração e – admito – um pouco de inveja.
Afinal, até o nome dela era bonito: Ava.
Era estranho como a vida sempre dava a algumas pessoas o máximo que
elas podiam aproveitar. Ava, além do nome impactante, era uma linda loira de
corpo perfeito e de aparência impecável. Sempre vestida na última moda,
adorava dançar nos bailes de Hill como se fosse a própria Britney Spears.
Ela sabia que todos a admiravam. Não era à toa que sempre nos olhava
com um leve tom de deboche como se dissesse: “Invejem-me. Nunca terão o que
tenho!”.
E isso era fato. Para nós, o restante daquela ilha, restava saber que Oliver
e Ava eram a aristocracia, e que o nosso pouco dinheiro provinha deles.
Era por isso que eu sempre quis ir embora...
Por isso e por causa do maldito apelido que a própria Ava havia me dado,
e que grudara em mim como chiclete no calçado.
“Amelia fedida!”
Recordo-me que na primeira vez que ouvi aquela alcunha, arregalei os
olhos e pus o nariz embaixo dos braços com rapidez, tentando descobrir se
realmente fedia.
Diante da ausência de qualquer odor, a encarei com questionamento.
Mas, ela não respondeu a minha questão. Diante da gargalhada dos demais
colegas de classe, e do riso elevado de Oliver ao longe, eu passei a ser Amelia
Fedida, a perdedora da escola.
E doía ouvir aquilo, não vou negar. Sempre que alguma professora me
chamava “Amelia Jones”, eu ouvia o “fedida” murmurado ao fundo.
Céus, como machucava... Parecia uma agulha me furando a pele, dia
após dia, até que eu mesma passei a cortar os braços para esquecer a dor
psicológica.
Ninguém reparou, é claro. Além de eu usar mangas compridas o tempo
todo, meu pai, um bêbado sem valor, mal me olhava. Minha mãe foi embora
quando eu tinha sete anos. Conheceu um turista que veio de balsa à ilha, e em
três dias decidiu seguir com ele. Lembro-me de ela vir despedir-se de mim na
escola. Um adeus sem grande emoção. Quando choraminguei ela despejou um
“Não atrapalhe a minha vida!”, e percebi que, para ela, eu era apenas isso: um
estorvo.
Já meu pai nunca me disse nada do tipo. Nem sei se ele reparou que a
esposa o deixou ou que a filha perdedora vivia abatida pelos cantos. Desde que
me lembro, ele gostava de beber até cair. Assim, sempre que aparecia em casa,
era esbarrando pelos cômodos e com olhos apagados pelo torpor da embriaguez.
Foi assim que aqueles piores anos foram se cruzando. E a apenas alguns
meses de concluir o colegial que percebi de onde viera o apelido. Eu morava
num casebre ao lado do armazém onde as sardinhas eram armazenadas.
Minha casa cheirava a peixe, mas eu era tão habituada àquilo que nunca
reparei. E também nunca o senti em mim.
Mas isso não importava. Ninguém ligava se eu me cortava, ou tomava
banhos demorados todos os dias. Ninguém me via encharcando-me de perfume,
gastando o pouco que sobrava das bebedeiras de papai com colônias fortes para
tentar apagar um pouco o horror que sofria na escola.
E tudo por causa daquele casal de namorados: Ava e Oliver.
Eles tornaram minha adolescência um inferno.
Aquela mágoa eu nunca esqueceria.

Recordações dolorosas eram seguidas por um movimento que se tornou


costumas em minha vida.
Em cima do quadro negro da sala de aula, um enorme relógio de pêndulo
informava as horas.
E eu contava cada segundo que passava...
Não era exatamente porque eu odiava estudar, mas sim porque estar ali,
onde a solidão parecia uma carga pesada, onde minhas vestes velhas, meus
sapatos gastos, meus cabelos sem corte, ou minha aparência abandonada de
quem cresceu sem mãe era ainda mais destacada.
Jovens podem ser cruéis. Os meus colegas eram os piores. Ava e Oliver,
mais que todos.
Foi por isso, talvez, que quando ele surgiu diante da minha mesa numa
manhã fria, eu levei um susto.
— Oi Amelia — Oliver me cumprimentou como se nunca houvesse sido
esnobe ou cretino comigo. — Lição em dupla — apontou a tarefa passada pelo
professor. — Aceita?
Por que aquele convite? Minha nuca inteira se arrepiou. Volvi o olhar e vi
Ava conversando animadamente com uma das amigas líderes de torcida.
— Melhor não.
Ele sorriu diante da minha objeção. Não era aquele sorriso de sempre,
como se estivesse diante de um rato. O de agora era amigável.
— Ava quer fazer o trabalho com a melhor amiga, e todos os outros já
acharam dupla. Juro que não serei nenhum estorvo. Até porque sou o melhor
aluno de literatura.
Eu queria negar-me àquele pedido. Todo meu corpo e toda minha
autoproteção diziam para que eu fizesse isso. Contudo, me vi assentindo.
Aos dezessete anos eu era completamente burra. Uma idiota capaz de
acreditar que talvez Oliver Turner realmente pudesse mudar e poderia ser meu
amigo, que aquele trabalho escolar poderia ser o início de uma vida melhor.

— Conhece o significado de Amelia?


Ergui os olhos do caderno. Já se passara uma semana que Oliver e eu
trabalhávamos numa dissertação sobre a vida e obra de Shakespeare.
Oliver Turner não mentiu quando disse que era o melhor em literatura.
Eu sabia que as notas dele eram altas, mas não imaginava que ele entendesse
tanto de literatura até vê-lo explicando Shakespeare com propriedade.
— Não sei — respondi, acanhada.
— Quer dizer “trabalhadora”.
Nunca gostei do meu nome. Naquele momento, gostei menos ainda. Não
que fosse vergonha trabalhar, ao contrário, mas parecia que era só aquilo que me
restava.
— Como você sabe?
— Eu serei escritor — ele respondeu. — Saber é uma obrigação na
minha profissão. — Sorriu. Depois disso, abandonou o lápis sobre o caderno e
me encarou. — Vou te contar um segredo: estou enviando alguns textos para
editoras com pseudônimo e eles estão publicando — gargalhou. — Digo que sou
mais velho, claro. Imagino a cara deles quando souberem que estão lançando um
moleque de dezessete anos...
Se eu estava esperando aquele arrogante cheio de soberba desaparecer,
soube que Oliver voltara a ser o de sempre naquele instante. Provocar o mundo
parecia algo precioso para ele.
— Você tem namorado? — ele indagou, de supetão.
Como se alguém naquela ilha fosse capaz de olhar para a “Amelia
Fedida”.
— Não — minha resposta foi seca e curta.
Eu não queria continuar o rumo daquela conversa. Mais, descobri que
não queria nada amigável com Oliver Turner. Ele sempre foi devidamente cruel
comigo e nunca escondeu isso, e eu sabia que a amizade dele poderia me destruir
como palavras de Ava jamais foram capazes.
— É porque sempre está escondida atrás dessas roupas — retrucou. — É
verão e está de moletom — brincou. — Como sente tanto frio?
Naquele momento que pareceu parar o tempo, ele levou a mão até minha
manga e há ergueu um pouco. Seus olhos firmaram-se nos meus braços rasgados
e depois em meus próprios olhos. Puxei novamente as mangas, desejando a Deus
que ele ignorasse aquela visão.
— Gostaria que nos focássemos no trabalho — apontei os livros.
Ele assentiu.
Meu coração palpitava com força. Estava tremula. Nunca senti tanto
medo quanto naquele momento. Oliver Turner sabia um dos meus segredos.
Sentia-me como se o demônio houvesse encontrado a porta do paraíso.

— “Ela é bela demais pra ser amada e pura demais para esse mundo”
— Oliver leu. — “Até essa noite eu não conhecia a verdadeira beleza...” — Seu
olhar centralizou em mim. — O que pensa?
— Que é romântico? — dei os ombros.
Trabalhar naquelas últimas duas semanas após as aulas ao lado de Oliver
Turner me mostrou alguém completamente focado quando o assunto era
literatura. Eu sabia que ele levava a sério. Que para ele, palavras eram especiais
e mereciam a devida atenção.
— Você não se importa com os sentimentos de Romeu? — ele me
questionou.
— Ele é um personagem.
— Ele é um pouco de todos nós.
— Não de mim.
Oliver sorriu e aproximou-se lentamente. Travei na cadeira, curiosa com
o que se sucederia.
— A morte que sugou-lhe o
mel dos lábios, inda não
conquistou sua beleza.
Do que diabos ele estava falando?
— Olhe para você, Amelia. A morte não lhe sugou a essência.
— Eu não morri.
— Não mesmo? A cada dia que passa nós padecemos um pouco mais.
Talvez você já tenha morrido e nem percebeu.
Desviei o olhar e me ergui. Preparava-me para ir embora quando a voz
dele me estancou.
— Ei, tem companhia para o baile?
O baile que ocorria em julho era sempre muito disputado. Mas,
francamente, nem me passou pela mente que Oliver me indagasse tal coisa. Por
isso, assim, fiquei boquiaberta, sem reação.
— Ava me deu um chute. Você quer vir comigo? — a pergunta parecia
inocente.
Tudo parecia inocente. Naquelas últimas semanas ao lado dele, senti que
poderíamos ter nos tornado amigos. Caso isso procedesse, talvez a perseguição
na escola parasse.
— Eu...
— Eu te encontro no clube às sete da noite, certo?
Depois, ele se levantou.
Algum canto do meu coração pareceu flutuar.

Eu não tinha nada para vestir para ir ao baile. De tal modo, abri o guarda-
roupa onde o restante das vestimentas da minha mãe eram mantidas e procurei
um vestido bonito.
Meu pai entrou na casa pequena e observou a cena.
— O que está fazendo?
— Vou ao baile — contei a ele.
Não acreditava que fosse intervir. Nunca se importou comigo.
— Sabe que vão reduzi-la a pó, não?
Ele disse em voz alta o que a minha mente me alertava o tempo todo.
— Eu prometi — contrariei a ele e a minha própria razão.
O cheiro de uísque chegou as minhas narinas. Logo o observei sentando-
se diante da mesa.
— Está bem. Vou aguardar.
— Aguardar o quê?
— Aguardar você retornar chorando. Estarei aqui porque precisará de
mim — explicou. — E está tudo bem, porque sou seu pai.
Ele era só um velho bêbado que nunca pareceu se importar comigo, mas
naquele instante eu senti um profundo carinho por sua figura decaída.
Mesmo com todos os defeitos, ele não me abandonou. Mesmo que a
esposa o humilhasse perante todos, ele me criou.
— Hill nunca foi nossa casa — murmurou. — Nascemos aqui, crescemos
aqui, mas essa ilha maldita nunca foi nossa casa.
Com aquelas palavras mordazes, eu fui me arrumar para o baile.

O último álbum dos Backstreet Boys tocava no fundo. Eu adorava a voz


de Brian no refrão de “I want it that way”.
Sorri. Era estranha aquela sensação de ser adolescente pela primeira vez.
O coração descompassado, as mãos suadas, uma experiência única de ser e
existir.
— Mas somos de dois mundos separados. Não consigo alcançar seu
coração...
A voz de Oliver chegou até mim. Ele cantarolava a canção e eu sorri,
diante da cena.
— Você é um péssimo cantor — brinquei.
— Mas a letra é verdadeira — ele retrucou.
Segurou meus dedos. Não sei dizer por que permiti. Estava confusa,
despreparada para aquela demonstração de carinho.
Oliver estava me aguardando diante do salão da escola. Saber que o
rapaz mais importante daquela ilha esperava por mim trouxe-me algo
completamente novo. Fiquei irracional. Deixei que o muro de preservação que
construí depois do abandono de minha mãe desmoronasse.
— Ava não virá? — indaguei.
Ter aquele garoto à minha espera quando a garota mais linda da ilha era
completamente sua me deixava em alerta.
— Não somos mais namorados — ele explicou.
— Por quê?
Subitamente, percebi-o curvando-se para mim. Meus olhos fecharam à
medida que meu coração acelerou.
Céus, eu estava apaixonada por ele...
Foi inebriante descobrir aquela verdade.
E o tempo parou, de súbito. Parou para nós dois...
Senti o sabor dos seus lábios e aquele toque delicado encheu meu
coração de ternura. Quando, por fim, abri meus lábios para receber sua língua foi
que ouvi as gargalhadas em volta de mim e Oliver afastando-se rapidamente.
Nossos olhos se cruzaram e havia culpa neles.
— Oliver conseguiu! — Um grito masculino preencheu o ambiente. Era
de um dos amigos dele. — Beijou a fedida.
Mais risos. Cumprimentos à missão cumprida daquele nobre soldado. Vi
Ava num canto, apontando para mim, debochando de minha figura patética.
Nem tenter esconder as lágrimas. Queria gritar, chorar, bater em todos.
Por que sempre me causaram tanta dor?
Encarei Oliver novamente. E novamente vi nele culpa. Mas, a
performace agora não mais me enganava.
— Eu te odeio — disse, e então corri na direção oposta.
Aquelas gargalhadas nunca sairiam da minha mente.
Meu pai estava sentado exatamente no mesmo lugar que o deixei quando
fui ao baile.
Ele me encarou, percebendo o rastro de lágrimas em meu rosto. Eu me
envergonhava tremendamente por chorar por algo que já devia estar acostumada,
mas, além da dor do frequente bullying, agora era meu coração que parecia
partido.
— Aqui nunca foi nossa casa — repetiu, levantando-se.
Buscou um pote no armário. Abriu-o diante dos meus olhos.
— Eu nunca fui um bom pai — mostrou o montante de dinheiro. — Mas,
eu nunca bebi todo meu salário. Agora que já é praticamente uma mulher, poderá
seguir com a vida. Esse é um começo. Poderá estudar e trabalhar. E esquecer-se
de Hill.
Se ele tinha condições de sair daquele inferno, por que não fora antes?
Subitamente, percebi o homem fraco e decadente que era. Deixar Hill era
muito difícil para meu pai.
Peguei o dinheiro, e depois lhe dei um abraço.
— Irei para longe. Vou arrumar um bom emprego e refazer minha vida.
— Sim — ele murmurou. — Seja para mim um motivo de orgulho.
Sorri.
Eu nunca mais abraçaria meu pai. Ele viria a morrer de cirose um mês
depois. Não chorei sua morte. Percebi naquela noite que meu pai odiava
lágrimas.
Capítulo Dois
RETORNO

Londres, 2018

E ncarei meu chefe, espantada.


— O senhor sabe o significado do meu nome?
Ele pareceu surpreso pela pergunta.
— O quê?
— Meu nome significa trabalho! — respondi minha própria questão. —
E eu trabalho! Trabalho muito! Foram mais de dez anos nessa empresa dando
meu melhor. Eu ajudei-a a crescer. Por que motivo serei colocada na rua?
— Amelia, já lhe expliquei que precisamos cortar custos.
Cortar custos era sempre demitir funcionários. No meu setor, havia mais
uma mulher trabalhando. E ela não era nem metade competente do que eu.
Todavia, eu sabia que dormia com um dos diretores e, por isso, obviamente, o
nome dela não foi jogado na sarjeta.
Largar meu emprego numa empresa importante foi o que de pior me
aconteceu desde que deixei Hill, em 2001.
Naquela época, ainda muito jovem, aluguei um quartinho em uma pensão
em Londres, matriculei-me em um curso administrativo e consegui um emprego
de secretária. Fui subindo de cargo até ter minha própria sala e alugar meu
próprio apartamento.
Claro, boa parte do meu sucesso profissional se devia ao fato de que era
tudo a que me dedicava. Não tive relacionamentos, nem sequer amizades. Afinal
de contas, se você não se apega a ninguém, ninguém te machuca.
E era fácil, assim, construir uma carreira promissora. E tudo teria seguido
tranquilamente esse esquema se não fosse à recessão que dominou a Europa e
fechou algumas empresas.
Naquela noite após a demissão, fiquei sentada na varanda do meu
apartamento, vendo a vida transcorrer na rua abaixo.
Passava por mim casais de namorados ou pessoas sozinhas mexendo no
celular. Cada um tinha seus próprios problemas, mas também felicidades.
Dei-me conta, de tal modo, que eu não tinha nenhuma felicidade. E eu
não era mais uma menina para me esconder atrás da automutilação.
Volvi o olhar para dentro do apartamento. O pote que meu pai me deu
com suas economias, que eu usei para me formar, e onde agora eu reservava um
montante do meu salário para emergências, estava ali, num lugar de destaque,
um lembrete eterno de onde eu havia vindo e porque precisava lutar tanto.
Foi naquele instante que me dei conta...
Talvez a resposta estivesse em Hill. Agora, sem a mágoa dolorosa e as
decepções, mais forte e preparada, eu poderia voltar à ilha e me recuperar
daquelas feridas.
Peguei o pote nas mãos. Adiante, um espelho pendurado na parede me
mostrava uma mulher de mais de trinta anos, marcada por mágoas de uma
adolescente que ficou no passado.
Havia uma figura atrás do espelho. Um homem. Oliver. Havia uma dor
que nunca curou, mas que eu sempre me recusei a pensar.
Repentinamente, a visão daqueles casais caminhando na rua abaixo do
meu pequeno apartamento voltaram a minha mente.
Eu queria ser outra pessoa. Queria ser normal. Queria afastar para sempre
a Amelia Fedida, e me tornar a Amelia Jones, alguém que conseguiu conquistar
seu próprio espaço e que era respeitada por isso.
Subitamente, o porquê da minha demissão ficou claro. Apesar de eu ser
competente, eu não tinha qualquer relacionamento amigável no ambiente de
trabalho.
Mais de dez anos na mesma empresa e eu sequer conquistei um único
amigo.
E tudo por causa do que aconteceu há dezessete anos.
Suspirei.
Era tempo de voltar. Retornar a velha casa de meu pai e curar aquela
chaga. Só assim eu poderia seguir em frente. Só assim eu pararia de arrancar
pedaços de minha alma e desprezar a minha própria existência.
A balsa que seguiu para Hill partiu às nove horas da manhã. Havia sido
uma viagem longa e cansativa de Londres até Portpatrick, mas eu sentei no
convés e fiquei a observar o mar, que a muito não via.
— O mar está calmo — ouvi uma voz atrás de mim. — O dia perfeito
para navegar.
Ninguém tinha interesse em Hill naquela época do ano, então não
estranhei em embarcar apenas com a companhia de um único passageiro, além
da tripulação.
O que não esperava é que ele fosse buscar conversa. Não era acostumava
a dialogar com as pessoas, então apenas assenti, e voltei a mirar o mar.
— Mora lá?
Retornei minha atenção para o colega de viagem. Era um homem de
aproximadamente quarenta anos, bonito, atlético e parecia bem disposto.
— Eu morei — respondi, seca.
— Ah, conheceu Ava Turner?
Ava Turner... Turner! Então eles haviam se casado? Aquilo não me
surpreendeu. De alguma maneira sempre soube que Oliver e Ava ficariam juntos.
Eram duas ratazanas, mereciam apodrecer no mesmo esgoto.
— Conheci na adolescência. Por que o interesse?
Ele estendeu a mão para me cumprimentar.
— Sou Richard Clint, da Fame Magazine.
Aceitei o cumprimento por pura cortesia.
— Amelia — me apresentei. Depois, completei: — Não sabia que Ava
era famosa — comentei, apontando o fato de que o homem era jornalista.
— Sério? Onde esteve nos últimos anos? — ele riu. — Ava é muito
famosa.
Dei os ombros.
— Estive trabalhando muito.
Ele pareceu me estudar.
— Bom, ela é divorciada de Oliver Turner, mas ainda usa o sobrenome
do marido. É bem vista nos círculos sociais e trabalha como apresentadora de um
programa sobre moda. Eu a conheci em alguns eventos.
A última informação não parecia verdadeira, mas era outra coisa que
chamou minha atenção.
Divorciados? Era uma surpresa.
— Se ela se separou, o que o traz a Hill.
Richard suspirou e encarou o oceano. Depois, volveu o olhar para mim.
— Vou te contar, Amelia, porque sei que conhece Ava e, pelo seu olhar,
mesmo que não tenha a visto nos últimos anos, deve conhecer bem seu caráter e
sabe que não vale nada.
Por conta daquela frase, sorri.
— Prossiga — pedi.
— Ava posa de boa moça e boa samaritana diante do público. Mas, eu sei
que ela não presta.
— Não presta?
— Nós tivemos um breve caso enquanto ela ainda era casada. Quando
terminei a relação, ela conseguiu minha cabeça para chefia do canal no qual eu
trabalhava. Digamos que isso — apontou a si mesmo e as malas que estavam ao
lado — seja uma vingança. Vou expor o que ela é.
Não minto. Eu gostei de saber daquilo. Gostei de saber que Ava traia
Oliver e que aquele homem estava disposto a desmascará-la diante do país. Uma
parte de mim ainda carregava um profundo rancor.
— Eu te desejo boa sorte — apontei.
— Não careço de tanta sorte assim. Ava não presta, só preciso fotografar
algumas situações e entrevistar algumas pessoas. A máscara dela vai cair.
— Que pena — ironizei. — Pena não acompanhar a vida artística de Ava
para ver isso.
Richard sorriu. Percebeu imediatamente em mim uma aliada.
— Sabe que ela teve uma filha, não?
— Já disse, não sei nada sobre ela além de que é uma vaca desgraçada
que me infernizou durante o tempo que morei em Hill.
Ele buscou uma garrafa de água da mochila. Bebeu um gole.
— Catherine Turner tem seis anos. É linda. Loirinha igual à mãe.
Seria esnobe como ela, também?
— Há três anos Oliver Turner viajava de carro com a filha em Carlisle.
Eu acho que ele desconfiava do meu caso com Ava. Ela costumava deixá-lo
sozinho com a menina e ia me encontrar em Sunderland. Bem, não me orgulho
disso, mas acreditava que Ava o deixaria e se casaria comigo... — murmurou. —
Enfim, ele bateu o carro e ficou com o rosto bastante machucado. Mas, a menina
teve destino pior. Os cacos do para-brisa voaram para o banco de trás e a
atingiram nos olhos. Ficou cega.
Pela primeira vez, um sentimento de piedade surgiu no meu coração.
— Um mês depois Ava sumia da vida da menina. Disse-me que um
marido machucado e uma filha que nem podia calçar sozinha os próprios sapatos
eram demais para sua cabeça.
Aquela informação era arrebatadoramente revoltante.
— Agora anda em eventos sociais, falando em nome de imigrantes,
lutando contra o racismo e a homofobia, diz-se feminista, o protótipo perfeito da
mulher moderna e lutadora dos fracos e oprimidos — mais um gole de água.
Parecia tentar buscar calma. — Mas as pessoas nem suspeitam que fazem três
anos que não vê a própria filha porque ficou cega.
Naquele momento entendi como Richard a destruiria. Quando ele
expusesse isso no país, Ava seria massacrada pela opinião pública.
Minha mente pensou em Catherine, a menina que eu não conhecia. Carne
e sangue de Ava, e igualmente vítima daquele monstro.
— Sinto muito pela menina.
Richard assentiu. Ao longe, o sino do barco me fez volver o olhar para a
ilha que surgia no horizonte.
— Estamos chegando — o homem comentou.
Senti o cheiro. Aquele inesquecível e azedo cheiro de peixe.
“Amelia Fedida!” parecia corroer-me novamente. A imagem de Oliver
Turner surgiu em minha mente.
E então tudo veio aos borbotões. Oliver beijando-me ao som de
Backstreet Boys e a gargalhada de Ava e seus amigos pela minha estupidez de
pensar que alguém poderia sentir algo por mim.
Céus, eu havia sido abandonada pela minha própria mãe, como podia ter
sido tão idiota de imaginar que Oliver Turner poderia estar gostando de Amelia
Fedida?
Novamente, Catherine surgiu em minha mente. Sua situação era pior,
apesar de ter dinheiro. Ao menos eu podia enxergar, mesmo que fosse uma vida
cinza e sem graça.
— Espero que você reduza Ava a pó — desejei a Richard.
Depois peguei minha própria mala e me preparei para desembarcar.

A casa permanecia igual. Claro, estava suja e empoeirada, mas pela


primeira vez eu a via como era. Um quarto, sala e cozinha conjugado, e um
banheiro antigo.
Céus, como fedia. Havia esquecido aquele cheiro. A areia no chão
demonstrava que ninguém varia aquele lugar há muitos anos.
Larguei a mala no assoalho de madeira. Encarei as paredes com um
profundo sentimento de inquietação.
— Eu voltei — murmurei.
E por que havia voltado? O que esperava naquele retorno?
— Voltei para curar minhas feridas porque não sou mais uma menina —
disse em voz alta. Queria confirmar a mim mesma meus motivos.
Parecia um argumento fraco.
A imagem de Oliver novamente surgiu em minha mente. Minha paixonite
sem razão ou sentido apertou meu coração.
— Vou ajudar Richard — decidi-me, naquele instante. — Espero que ele
acabe com os dois — apontei.
Queria que Oliver sofresse também. Que todos soubessem que ele era um
homem traído. Que aquele rapaz autossuficiente não era nada além de uma farsa.
Todos deviam rir de Oliver pelas costas como riram de mim.
Era meu destino. Aquele era meu propósito. E eu iria cumpri-lo.
Capítulo Três
CATHY

P ermanecer em Hill exigia um emprego. Eu realmente não queria gastar


minhas economias apenas para me vingar de Oliver Turner.
Portanto, quando o dia amanheceu, eu me dirigi até a pequena mercearia
da ilha. Além de querer comprar produtos de limpeza e comida, gostaria de saber
se havia algum emprego na ilha com o qual eu pudesse me ocupar.
— Amelia Jones! — o senhor West parecia estarrecido por me ver. —
Nunca pensei que fosse voltar algum dia.
— Por um tempo — expliquei. — Um período sabático.
— Bom, espero que tenha um bom período sabático — ele disse,
simpático. — Mas, se procura ocupação, não achará muita coisa. A fábrica está
praticamente fechada.
Aquela informação me deixou estarrecida.
— Os Turners estão falindo?
— Oh, não... Oliver é um escritor de sucesso, seu último livro vai virar
filme nos Estados Unidos. Acontece que desde a morte de Theodoro, a fábrica
está decaindo aos poucos. O único filho não tem interesse em manter a fábrica
ativa, e não a fecha apenas porque deixaria todos sem emprego.
Quase ri. Não conseguia imaginar Oliver Turner preocupado com o
ganha-pão de alguém.
— Ah, eu sei de uma vaga disponível, mas tenho certeza que não te
interessa.
— Trabalho para mim sempre é algo digno. Do que se trata?
— Da pequena Cathy — apontou adiante, a colina onde a mansão dos
Turners se erigia quase até o céu. — A menina precisa de uma tutora.
— Uma babá? — fui mais explícita.
— Oliver paga bem, mas nenhuma mulher aguenta o trabalho muito
tempo.
— É uma criança difícil?
— Oh, não. Cathy é doce e gentil. O problema é o pai que tem um
temperamento muito forte. Além disso, cuidar de uma criança cega não é fácil.
Por algum estranho motivo, quis conhecer a filha de Ava. Queria ver seus
cachos claros, e sua indefesa postura perante um mundo que não poderia ver.
Mais que isso, gostaria de olhar para a cara de Oliver sabendo que ele fora
abandonado pela antiga namorada. Ele riu de mim, agora eu poderia rir dele.

No auge da revolução Industrial, a nova burguesia queria ostentar sua


fortuna e riqueza em suas casas rebuscadas e cheias de grandeza. O primeiro
conde Turner achava um absurdo ver aqueles novos ricos construindo casas
monumentais enquanto ele tinha um castelo simples que não chamaria a atenção
de ninguém.
Foi por isso que ele ordenou aos arquitetos da época que executassem
uma restauração ao estilo vitoriano.
Parada na estrada, observando aquela mansão ao longe, eu podia ver a
simetria e os ângulos bem calculados, os desenhos nas esculturas, e a varanda
com forma arredondada que chamava a atenção e assustava ao mesmo tempo.
Nas laterais, enormes janelas quadriculadas eram enfeitadas com uma
tinta que lembrava o ouro maciço. Os acabamentos de pedra davam um ar ainda
mais respeitoso àquele ambiente.
Eu lembro que na adolescência ouvia histórias de que a casa era mal
assombrada. Meu professor rejeitava a ideia e dizia que a culpa era do cinema
americano que deu ao mundo uma certa aversão àquela arquitetura.
Particularmente, eu jamais a temi. Ao contrário, sempre considerei a
Mansão Turner um charme com aquele enorme jardim repleto de flores e
gramado verdejante.
Naquele instante em especial, eu a sentia ainda mais indefesa diante dos
meus sentimentos carregados pela raiva.
Rumei em sua direção quando uma pequena criatura me chamou a
atenção numa das laterais da casa.
Era uma menina de cabelos loiros, andando vagarosamente com um
pequeno galho nas mãos, tocando o chão, como se buscando confiança para
andar adiante.
Não sei por que, mas a segui.
Percebi seus lábios moverem-se. Contava os passos, como se calculasse a
distância.
Ali estava Catherine. Os óculos escuros e sua completa fragilidade me
fizeram reconhecer isso. Além, é claro, de ser uma miniatura de Ava. O mesmo
cabelo claro e o rosto harmônico. Imaginei se o temperamento também era
igual...
Repentinamente, dei-me conta de que ela se encaminhava para um
pequeno desnível. Nada que pudesse feri-la, mas seria assustador, sendo que não
enxergava. Movi-me em sua direção.
— Quem está aí? — ela indagou, de súbito.
Havia ouvido meus passos. Fiquei com extrema pena daquela pequena.
— Sou Amelia — respondi. — Eu conheço seus pais.
— Nunca ouvi falar de você — retrucou imediatamente.
Volveu-se para a casa, mas não podia correr. Percebi que estava
assustada. Fiquei estancada, não querendo preocupá-la que eu a seguisse.
Imaginei o horror que enfrentava sem ter a mínima noção do que era ameaça e
do que não era.
Então, ela caiu no chão. A filha de Ava e Oliver. A junção daquelas duas
pessoas que me fizeram tão mal.
Subitamente, meus olhos encheram-se de lágrimas. Eu nem me lembrava
mais da última vez que lacrimejei. Espantei aquele sentimento de piedade
rapidamente, não querendo fraquejar. Mesmo com seis anos, Catherine ainda era
uma Turner e ainda tinha a capacidade de me ferir.
Mesmo assim, corri até ela e a ajudei a se levantar.
— Está tudo bem — reforcei. Sabia que ela me temia. — Eu vim pela
vaga de emprego.
— Vaga?
— Para cuidar de você — respondi. — Eu conheço seus pais. Nasci em
Hill e estudei com Oliver e Ava. Fui embora jovem, mas retornei recentemente.
Ela sentou-se no chão. Estava aliviada.
— Ah, tem muito tempo que não tenho alguém para me fazer companhia
— explicou.
— É mesmo?
— O Senhor Justin vem três vezes por semana para me dar aula em
braile. Mas, no geral, estou sozinha.
Eu senti uma conexão imediata com aquela menina e isso me abalou.
Estar sozinha era algo que eu me acostumei desde muito cedo. Richard havia
dito que a mãe, Ava, a havia abandonado.
As pequenas mãos esfregaram-se nos joelhos e eu segui o movimento
com os olhos. Percebi que ela os havia machucado.
— Por favor, não conte a papai — pediu-me.
— Por quê?
— Ele fica zangado — me explicou. — Está sempre zangado —
prosseguiu, me surpreendendo. — Sempre gritando. Sempre dizendo para que eu
não apareça na sua frente, que eu o deixe em paz.
Até aquele momento eu havia retornado para destruir Oliver. E, se tivesse
que passar em cima de uma criança cega, algo em mim dizia que estava tudo
bem, porque tudo que existia em minha alma era raiva e rancor.
Mas, agora, sentindo os pequenos dedos de Catherine entre os meus, eu
percebia o quanto era egoísta e o quanto aquela pequena também era vítima das
maldades daquela dupla asquerosa.
— Está tudo bem, Cathy — chamei-a pelo apelido que ouvi na cidade. —
Eu vim para proteger você — murmurei.
Percebi o sorriso enorme se formar.
Mais certa do que nunca, ajudei-a a se levantar e rumei para a mansão.
— O senhor Turner não agendou nenhuma reunião para essa manhã — o
mordomo me informou
Sorri.
— Eu sei disso. Mas, não há problema. Oliver e eu nos conhecemos. E
vim pela vaga que ele não consegue preencher. Pode chamá-lo, por favor?
Catherine buscou pela mão do mordomo. Percebi que ela o puxou de
lado, e o homem a seguiu.
— Ela ficará com a vaga, senhor James — disse ao mordomo. Eu podia
ouvir ao fundo, e sorri diante da afirmação.
— Por que acha isso? — o homem a questionou.
— Não percebe o tom de sua voz? Ela não tem medo do meu pai...
Eles cochicharam mais alguma coisa, contudo, infelizmente, não os ouvi.
Depois disso, o mordomo subiu com a menina e, quando retornou, encaminhou-
se direto para uma sala ao fundo do corredor térreo.
Eu aguardei sentada em uma poltrona no saguão.
Minhas mãos, subitamente, ficaram tremulas. Refreei aquele sentimento
de insegurança. Eu não me atrevia a temer Oliver. Disse a mim mesma que
aquele homem só podia atingir a menina que ainda morava em meu interior. A
mulher que se formou depois de anos era forte e capaz de enfrentá-lo.
Ouvi passos. Ergui os olhos.
E então o vi...
Foi como voltar no tempo. Levantei-me, porque era incapaz de ficar
numa posição inferior e abaixo dele. Ergui meu queixo. Encarei-o.
Oliver Turner me observava com espanto.
Talvez não acreditasse que um dia iria me ver novamente.
Capítulo Quatro
OLIVER

O homem que me levou até seu escritório era bem diferente do garoto que eu
me lembrava.
Claro, o tempo nos muda. Eu sabia disso. Eu vivi isso. Mas, não esperava
que o tivesse mudado tanto.
Oliver Turner agora com seus mais de trinta anos era bem diferente do
adolescente charmoso que me lembrava. Seu rosto trazia uma carranca marcada
por cicatrizes. Seus lábios finos formavam uma linha reta, como se nunca
sorrisse, e seu olhar parecia ter visto muitas mazelas no universo.
— Nunca pensei que fosse vê-la novamente — ele comentou,
convidando-me a sentar.
Estávamos no seu escritório. O mordomo James havia trazido café e
agora eu bebia o líquido enquanto tentava manter a calma e aparentar completa
apatia.
— Oh, sim. Fui morar em Londres.
— Londres? — ele pareceu surpreso.
— Sim, mas retornei porque preciso de um tempo longe da vida corrida
da cidade grande. Soube que sua filha carece de uma tutora.
— Bom... — ele murmurou. — Você viu a situação de Catherine.
Havia algo na voz dele. Um misto de dor e vergonha. Fiquei irritada com
aquilo, mas tentei não demonstrar.
— É uma menina adorável.
Seus olhos, repentinamente, tomaram os meus. Estremeci.
— Você sumiu depois do nosso beijo — ele murmurou.
Fiquei pasma com a audácia de trazer aquele assunto doloroso de volta.
— Eu era uma menina — retruquei. Segurei o tom de raiva. Quis
demonstrar o quanto aquilo não me abalava. — Ouvi seus amigos rindo e fui
choramingar em algum canto. Você sabe como somos intensos quando somos
jovens. Até o apelido que me deu... Oh, como era mesmo?
— Nunca lhe dei nenhum apelido — ele retrucou.
— Amelia fedida! — exclamei, ignorando sua recusa. — Ah, eu odiava
esse apelido. Levei um tempo para superá-lo.
— Foi Ava — ele insistiu.
— Ava? — ergui as sobrancelhas, parecendo só então me lembrar dela.
— Soube que casaram. Como ela está?
— Estamos divorciados.
— É mesmo? Sinto muito.
Houve um breve silêncio. Oliver parecia me avaliar. Senti-me
incomodada com aquele olhar. Ainda parecia ter algum poder sobre mim e eu me
recusava a aceitar tal absurdo.
— Então? Posso me considerar a babá de sua filha?
Oliver não respondeu. Seus olhos estavam cravados em mim como se
ainda não acreditassem que eu estivesse ali.
— Sim — disse, depois de um certo tempo.
Levantei-me. Estava eufórica por ter acesso a casa e a vida dele.
Esperava conseguir material para Richard. Descobrir seus podres e escancará-los
era um desejo que não conseguia esconder.

— Eu gosto das cores — Cathy comentou, pegando um dos gizes de


cera. — Mas, não posso vê-las... — disse, triste. — Mesmo assim, eu lembro que
gosto.
— Você se lembra do acidente? — indaguei.
— Eu era bem pequenininha — explicou. — Tinha três anos. Só me
lembro de sentir dor.
Estávamos no quarto de princesa dela. Era uma pena que não pudesse ver
a beleza do local. Todo rosa e repleto de bonecas, parecia ter sido planejado com
esmero.
Catherine pegou um dos lápis de cor e começou a rabiscar algo no papel.
Era um desenho abstrato, sem significado. Parecia fazer aquilo apenas para
passar o tempo.
— Você gosta daqui?
Não sei por que perguntei tal coisa a uma criança de seis anos. Talvez
porque na idade dela eu já odiasse Hill.
— Eu queria ir embora, mas não porque não gosto daqui — ela me
explicou. Estava séria. — É porque meu pai não gosta de mim.
— Claro que gosta — objetei, apesar de não ter certeza.
— Ele tem nojo — ela explicitou.
— Nojo do quê?
— Dos meus olhos. Quando mamãe foi embora, eu a ouvi dizer a papai
que se não ficasse comigo, ela me abandonaria numa casa de crianças que
ninguém quer.
Fiquei chocada com a informação.
— Por quê? — foi tudo que pude indagar.
Aquela menina era adorável. Por que nenhum dos pais a queria?
— Eu já disse, dá nojo.
— O que dá nojo?
— Meus olhos — ela pareceu irritada com minha insistência.
Eu não conseguia acreditar que Oliver Turner era tão superficial de sentir
asco da própria filha por causa dos olhos. Então, ela retirou os óculos e eu pude
ver aquela duas manchas horrendas que ela mantinha escondida.
Lágrimas se formaram nos meus olhos.
— Você também tem nojo?
Tentei recusar o choro. Porque chorar era sinal de fraqueza e eu havia
jurado a mim mesma que nunca mais seria fraca.
— Não, querida... — murmurei, enquanto a puxava pelos braços. — De
jeito nenhum.
E estava sendo absurdamente franca. Naquele instante, Catherine Turner
era um pouco Amelia Fedida. E eu sabia que a dor era imensurável. Jurei a mim
mesma não deixar Cathy senti-la.

Cuidar de Cathy não foi difícil, especialmente porque desde que me


mudei para a Mansão, mal via Oliver, sempre escondido em seu escritório. Às
vezes passava por lá e ouvia o bater do teclado, seus dedos dedilhando palavras.
Mas, nunca o percebia na casa e, por fim, acabei por me acostumar a ter Cathy
apenas para mim.
Todavia, duas semanas após minha chegada, numa noite em que deixei a
pequena dormindo em seu quarto, fui beber vinho diante da piscina bonita que
ficava nos fundos.
Ali, alheia ao resto do universo, não ouvi a chegada de alguém. Quando
me dei por conta, Oliver estava ao meu lado, também bebendo em uma taça de
cristal, parecendo ansioso para conversar.
Fiz menção de me retirar, mas senti seus dedos no meu braço.
— Fique — pediu.
Meu corpo inteiro aqueceu. Eu me odiei profundamente por isso.
— Então... — tentei esconder minhas reações ao mero toque dele. —
Tornou-se escritor como sempre quis?
— Lembrou-se desse meu desejo?
Odiei a mim mesma por recordar algo tão sem importância. Por que
naqueles anos todos nunca esqueci Oliver Turner?
— Ainda usa pseudônimo? — desconversei.
— Não. Desde que me formei em literatura, uso meu nome real. Também
assumi a autoria dos meus textos com pseudônimo.
Assenti.
— Fico feliz que tenha realizado seus sonhos. Lamento apenas pelo seu
casamento.
Ele deu os ombros.
— Não durou muito. Não chegou a ser grande coisa.
— Não durou muito? Cathy tem seis anos. E quanto tempo você e Ava
namoraram?
Os olhos dele brilharam. Deu um passo em minha direção. Recuei porque
fiquei absurdamente assustada.
— Eu te procurei na manhã seguinte da festa — contou-me.
— Para quê? Caçoar mais?
— Não fiz aquilo... Não planejei aquilo — defendeu-se.
Eu quase ri. Se não tivesse vivido aqueles momentos, juraria que dizia a
verdade.
— De fato, apostei que conseguia conquistá-la. Foi infantil. Todos os
caras da turma diziam que você era lésbica.
— O quê?
— Porque nunca ficava com ninguém.
Eles me reduziram a uma figura patética por anos e ainda me cobravam
relações? Ainda me julgavam pelas costas?
— Então apostei que eu conseguia beijá-la até o baile...
— Você é nojento — murmurei e, surpreendentemente, o vi
concordando.
— Eu era um moleque.
Dei os ombros.
— Não é desculpa.
— De fato. No entanto, a procurei arrependido. Seu pai me enxotou,
disse-me que foi embora. Senti-me um lixo.
Segurei a gargalhada. Em algum momento da existência perfeita e cheia
de grana dele, reservou alguns segundos para se arrepender por ter destruído
minha vida?
— Mas a vida me cobrou — murmurou, bebendo um último gole da taça.
— Me cobrou um alto preço.
— Fala de Cathy?
— Sim...
Senti ímpetos de lhe agredir. Como aquele desgraçado se atrevia a
desprezar assim aquela criança?
— Você é um lixo — murmurei e preparei-me para me afastar.
Repentinamente, contudo, novamente seus braços me seguraram. Senti
seu toque quente me trazendo contra seu corpo viril.
Entrei em pânico, não porque considerei que Oliver quisesse me
molestar, mas sim porque soube, naquele exato momento, que assim que me
tocasse, todas as minhas barreiras erguidas à duras penas seriam reduzidas a pó.
— Me solte — pedi.
Mas a voz saiu fraca. Fraca e feminina, como se eu não fosse mais
Amelia Jones, uma executiva importante e uma mulher batalhadora. Agora era
apenas a Amelia adolescente apaixonada pelo cara popular da escola.
— Amelia... — ele murmurou, antes de me beijar.
Em alguns momentos durante aqueles anos eu imaginei que beijar Oliver
Turner não havia sido nada demais. Que foi minha mente fantasiosa pela idade
que fez aquele beijo ser tão importante. Mas, agora, ao sentir a boca dele
forçando-se contra a minha, eu soube que tudo era real. Seu gosto doce, seu
toque sedutor, a forma como ele encaixava nossas bocas, sua língua quente
brincando com meus dentes... tudo nele era potente e me deixava em estado de
graça.
Eu o queria... Eu o queria muito.
— Desgraçado!
Empurrei-o com todas as minhas forças. Sim, Oliver Turner era sedutor e
atraente. Foi o príncipe de minha adolescência, meu sonho secreto que eu não
contava a ninguém. Foi o pesadelo que me seguiu a Londres e o pensamento que
sempre recusei a deixar.
Contudo, ao mesmo tempo, era um homem mesquinho e cruel. Um
infeliz superficial, que desprezava a própria filha.
Oliver, Ava... minha mãe. Pessoas frias e ocas. Iguais.
— Nunca mais se atreva a me tocar — ameacei.
— Não entende — ele me soltou, mas parecia ansioso para ter-me
novamente. — Eu sempre quis que voltasse... Contudo, não tinha esperanças. E,
de repente, você está aqui...
— Cale a boca!
— Eu quero você, Amelia. Desde aquele tempo... Desde que nos
tornamos amigos lendo Shakespeare.
Senti o rosto molhado. Era dor. Mas, era raiva também. A raiva superava
a dor.
— Você não presta...
— Por que me casei com Ava? Se eu te explicar tudo...
— Não quero saber — quase gritei. — A forma como fala de Cathy... Eu
te odeio...
Por fim, ele deixou as mãos caírem ao lado do corpo. Parecia derrotado.
— Não consigo olhar para ela — admitiu.
E eu fiquei chocada com aquele atrevimento. Ele não podia olhar a
própria filha? Ele? A pessoa que devia ampará-la e amá-la?
— Ela é só uma criança... — disse, e me afastei.
Agora quem não conseguia olhar para alguém era eu. E o alvo de minha
repugnância era Oliver Turner.

Catherine estava sentada no alto da escadaria. Seus ombros caídos, sua


postura frágil e sua boca parecendo mitigar palavras doloridas.
— Você vai embora? — ela me indagou.
— Claro que não. Por que iria?
— Eu a ouvi discutindo com papai.
Mais que nunca, eu não deixaria Cathy sendo desprezada e avassalada
por Oliver assim como eu fui. Aquela menina loira era filha de Ava, mas
também era um pouco da minha própria dor que precisava ser sanada.
— Eu cuido de você — aproximei-me e segurei suas mãos. Fiz ela se
erguer. — Seu pai não me dá medo. Só raiva.
— Ele não tem culpa. Ouvi senhor James dizendo às empregadas que
meus olhos são horríveis mesmo.
— Não, Cathy. Seus olhos são lindos. Você é linda. Nunca deixe
ninguém dizer o contrário. É eles que são nojentos, entendeu?
Seguimos para o quarto.
— Cathy — ajudei-a a subir na cama. — Você me acha fedida?
— Não. Eu gosto do seu perfume — ela sorriu.
— Sabia que durante toda a minha vida em Hill me chamavam de
“Amelia Fedida”? — contei a ela. Nunca pensei que fosse contar aquilo a
alguém algum dia. — Mas, sabe, descobri que eles me chamavam assim porque
era a alma deles que fediam. Então, eles achavam que o cheiro era meu.
Ela pareceu surpreendida pela minha história.
— É mesmo?
— É sim — afirmei. — Não são seus olhos que são feios. É a alma
dessas pessoas que te julgam que são. Mas, como as vistas delas estão podres,
elas acham que é você — expliquei. — Nunca mais duvide do quanto é bela.
Cathy sorriu. Subitamente, me abraçou.
Eu não queria abraçar a filha de Ava, mas me vi retribuindo aquele
carinho. Era tão sincero... Nunca havia recebido um abraço tão gentil e franco
quanto aquele.
— Eu te amo, Amelia — ela declarou.
Era a primeira vez que alguém me dizia aquilo. Nunca pensei que ouviria
as palavras. Meus olhos molharam-se, mas tentei recusar o choro.
— Eu também — murmurei, em troca. — Eu também.
Céus, e aquilo era absolutamente verdade.
Capítulo Cinco
PROTEÇÃO

A manhã havia iniciado fria. No entanto, ao longe era possível ver o sol
brilhando entre as nuvens.
Pela experiência vivida, eu sabia que logo o dia ficaria claro e
esquentaria. Por isso pus um vestido leve enquanto preparava o café da manhã
no jardim para Cathy.
Ela sempre acordava às nove horas, o que me dava tempo de preparar
coisas nutritivas e saborosas, antes de ir ajudá-la a vestir-se.
Nunca pensei que minha vida poderia se focar nas necessidades de uma
criança, mas não negava que cuidar de Catherine era uma das minhas poucas
alegrias.
Tínhamos uma ligação. Além das palavras cruéis dos demais, também
fomos deixadas por nossas mães. Eu podia me ver nela, e sabia que agora ela se
espelhava em mim.
— O nome dela foi inspirado em Catherine Earnshaw.
Aquela frase me assustou. Abandonei o preparo da mesa e volvi para
Oliver.
Ele estava particularmente bonito naquela manhã. Roupas claras e de
linho. Não parecia o mesmo homem tenso que vivia se esgueirando pela casa.
— Não conheço — repliquei.
— Catherine Earnshaw, a amada de Heathcliff. Nunca leu “O Morro dos
Ventos Uivantes”?
— Vi o filme, serve?
Sim, eu já havia lido o livro, mas queria vê-lo revirar os olhos,
angustiado.
— Eu tenho o livro na biblioteca — ele sugeriu.
— Eu já vi o filme. Por que lerei o livro?
Suspirou zangado. Uma parte de mim sentia aquele prazer culpado por
vê-lo irritado. Outra parte queria afrontá-lo porque se sentia mais inteligente
porque tinha um mínimo a mais de cultura.
— Está me provocando, não está?
Tentei esconder o sorriso.
— Enfim — ele murmurou —, realmente me importei em escolher um
nome bonito para ela.
Meu sorriso findou-se diante da justificativa. Aquele breve flertar foi
cortado pela entrada obtusa do assunto doloroso.
— Está querendo dizer que a ama?
— Eu a amo — afirmou.
— A ama, mas tem dificuldades de olhar para ela?
— Porque sou o culpado — assumiu. — Catherine nunca teria ficado
cega se não fosse por minha culpa.
Senti ímpetos de gritar que ele estava certo. Mas, vi-me a consolá-lo.
— Foi um acidente...
— Eu provoquei esse acidente. A culpa é minha.
Então Oliver volveu-se para a casa. Ao longe, podia ver seu reflexo nos
vidros das janelas. Custou-me a acreditar que estivesse chorando.

Apesar da deficiência visual, eu tratava Cathy como trataria qualquer


outra criança.
Bom, não exatamente assim, porque nunca tive uma ligação com
qualquer criança, mas, de qualquer maneira, me recusava a vê-la como uma
coitadinha, sabendo que tinha condições de conquistar todos os seus objetivos se
empenhasse-se para isso.
Era inteligente. O professor que a ensinava através do braile se assustava
com sua capacidade de entender as questões apresentadas. Eu sabia que ela só
precisava de um estímulo e ainda teria uma vida afortunada.
Foi assim que me vi procurando maneiras de estimular sua imaginação
através da internet. Descobri a importância das artes plásticas e me vi solicitando
a James, o mordomo, que comprasse argila para que nós pudéssemos criar
através do barro.
Não foi surpresa quando, logo na primeira vez que Cathy afundou os
dedos na argila, criou seu pequeno pote de cerâmica quase que impecavelmente
perfeito.
— Está bonito? — ela me perguntou, insegura.
Estávamos sentadas no jardim. Eu senti os olhos molharem através da
beleza daquela travessa.
— Está lindo...
— É seu...
Foi assustador entender que não era o pequeno pote que eu desejava. Era
aquela criança. Eu queria Cathy para mim. Queria tê-la, cuidar dela, protegê-la
de pessoas como Ava e Oliver.
Tentei afastar os pensamentos, consternada.
Aquela menina não era minha filha. Ao contrário, era da mulher que eu
mais odiava. Seria usada contra mim se eu permitisse. Por mais que eu já amasse
Cathy, precisava manter meus sentimentos protegidos para não ser arrasada
quando me tirassem ela.
Aquela dor foi cortada por um relance de luz. Era um flash de uma
máquina fotográfica. Olhei adiante e percebi Richard apontando a câmera para
nós.
— Cathy — murmurei. — Me espere aqui, está bem?
Não aguardei a resposta. Comecei a andar em sua direção.
O homem me esperou com um sorriso, mas meu íntimo estava inflamado
por algo que não podia identificar.
— Você está tirando fotos de Cathy? — indaguei, nervosa.
— Faz parte do meu trabalho — ele retrucou.
Havia percebido meu tom abrasado e tentava ser profissional. Aquilo me
irritou mais.
— Olhe — tentei respirar fundo. — Entendo e concordo com sua missão
para destruir Ava, mas não misture as coisas. A menina não tem nada a ver com
isso.
— Na verdade, creio que essa foto seria deveras importante. Uma criança
linda e delicada brincando no jardim com a babá. Que mãe horrível foi capaz de
abandoná-la?
— Não quero que Cathy sofra com isso.
— Ela já sofre...
— Mas não precisa ter o fato da mãe tê-la deixado atirado em sua face.
— bramei. — Penso em quando for maior e ler essas notícias. Como se sentirá?
Ele deu os ombros. Fazia pouco caso. Não se importava, realmente, com
o futuro de Cathy e a dor que poderia sentir diante da mãe sem sentimentos.
Contudo, para mim aquilo tinha valor. Tinha consequência. Eu não
aceitava que a menina sofresse por conta de pessoas desprovidas de caráter.
Então, algo em meu interior explodiu.
— Faça o que quiser — murmurei, ameaçadora —, mas se expor
Catherine, terá que se ver comigo. E garanto que não sou nenhuma mulher frágil.
Ele manteve o olhar.
— Sim, parece uma leoa protegendo a cria — resmungou. — Mas, já se
deu conta que não é SUA cria, não é?
Diante da réplica, recuei. Uma combustão de sentimentos explodiu em
meu íntimo. Fugi como uma covarde, vagando em direção a Cathy e exigindo
que ela subisse comigo para a casa, a fim de tomar banho e preparar-se para
descansar.
Se eu não tomasse cuidado, a pessoa mais ferida daquela história seria eu
mesma.

Planejei muito como falar com Oliver durante todo o dia. Contudo, no
cair da noite, ao me postar diante da porta do escritório dele, todas as palavras
haviam desaparecido de minha mente.
Mesmo assim, bati. Aguardei. Levou alguns segundos até ele dizer um
“entre”, e eu abrir com receio a porta.
O escritório estava um pouco escuro. As luzes apagadas, mas com o
computador ligado era possível ver o rosto de Oliver Turner a me encarar com
nítida surpresa.
— Amelia?
As palavras pareciam ter desaparecido de minha mente. Meu coração era
amaldiçoado pela paixão reprimida por aquele homem. E a constatação disso se
deu ao fato de que nunca o achei tão bonito quanto naquele instante, o rosto sério
e abatido, cansado, diante de uma tela clara, aonde provavelmente construía
alguma narrativa impactante.
— Não quero atrapalhar seu trabalho — murmurei.
— Não atrapalha. Estou concluindo um capítulo.
Suspirei.
— Nunca perguntei sobre o que escreve.
— Romances. — respondeu. — Ficção, suspense... Não tenho um
padrão.
Quase disse que algum dia leria algo dele, mas a verdade é que jamais
me atreveria a conhecer a alma daquele homem.
Sabia que escritores permitiam que os leitores os reconhecessem
verdadeiramente através de sua escrita. Temia me encantar por Oliver e me
perder para sempre dentro das letras que compunha seus textos.
— Um homem estava tirando fotos de Cathy... — comecei.
Queria explicar para Oliver que Richard poderia ser uma ameaça.
Preocupava-me com a menina. Mas, todas as minhas palavras perderam-se
diante da ação dele.
Repentinamente, Oliver se pôs de pé e avançou até mim. Fiquei em
silêncio, como se assistisse a uma cena de televisão.
Ele era meu ponto fraco...
Vergonhosamente, não me afastei quando suas mãos traçaram círculos
em minhas costas, num abraço confortador. Logo, sua boca me tomou, e todo
assunto que me levou até ali ficou esquecido.
Uma parte de mim ainda se sentia traída e humilhada pelo que ocorrera
anos atrás. Outra, estava completamente entregue a aquele momento sublime.
Por Deus, ser beijada por Oliver Turner me fez sentir mais feliz do que
nunca, cheia de esperanças de coisas boas que se anunciavam, como se depois
daquele beijo, enfim, nós dois pudéssemos construir uma vida juntos.
Eu queria parar.
Implorei a Deus que me ajudasse a parar.
Imagens de uma vida a dois, criando Catherine, tendo outros filhos,
surgiu em minha mente.
Era uma vergonha, mas naquele pequeno lapso do tempo eu deixei de ser
a mulher carregada de barreiras e me tornei apenas a mulher dele. A mulher que
ele beijava e que, pelo mastro firme contra meu ventre, a mulher que ele queria.
Uma réstia de racionalidade me tomou. Apertei a mão de Oliver,
esperando que ele parasse o beijo – pois eu era incapaz disso! —, todavia, o
homem diminuiu o espaço entre nossos corpos.
De súbito, o equilíbrio. Tudo o que acontecera pertencia ao passado, e o
futuro não apresentava o menor sinal de apreensão ou medo. O futuro era algo
novo que poderia ser construído por nós.
Eu podia, não? Podia ter o amor dele...?
— Oliver — murmurou.
— Hum? — Oliver beijou meu ombro.
— Nós... — seus dentes capturaram minha nuca e fui incapaz de
prosseguir.
— Meu amor — ele sussurrou, com os lábios colados em mim.
Ressentimento, recriminação, erros e culpas surgiram como brasa viva
em minha carne, assim, de supetão.
Ele me usou no passado. Encantou-me. Depois, fez pouco caso, riu de
mim. E mesmo que nossos corações estivessem tão próximos, batendo juntos em
total harmonia, eu não podia permitir que o engano me tomasse novamente.
— Me solte — implorei.
E ele soltou. Porque parecia querer se cavalheiro e não queria dar a
entender que poderia ser uma ameaça a mim.
— Me desculpe — pediu. — Por favor, não me deixe novamente.
Suas palavras me chocaram.
Recuei os passos e fugi de sua presença.
Richard e suas fotos ficaram esquecidas.
Tudo que eu lembrava era do quanto Oliver me aquecia e do quanto
àquilo era errado.

“Por favor, não me deixe novamente...”.


Como ele se atrevia?
Céus, e como eu fui tola em acreditar que aquele beijo podia ser sério.
Oliver Turner me fez de piada na juventude. Depois, casou-se com Ava,
teve uma filha com ela, e agora apenas me desejava porque a esposa mostrou-se
uma traidora que não pestanejou em deixá-lo quando a filha deles ficou cega.
“Não me deixe novamente...”.
A maneira como ele falou... Parecia que eu realmente o havia
abandonado. Mas, não houve nada entre nós além de um único beijo...
E foi dele a responsabilidade da minha fuga. Eu fugi de Hill porque não
conseguia viver naquele lugar sabendo ser Amelia Fedida, a idiota que se
deixara enganar por Oliver Turner.
A batida na porta me assustou. Desde que passei a morar na Mansão,
ninguém nunca vinha me procurar no meu quarto. Bem da verdade, eu pouco o
usava. Estava sempre na suíte de Cathy.
Mas, agora, a porta batia. Meu coração ficou descompassado.
— Amelia... — ouvi Oliver sussurrar.
Meu corpo pareceu ter vida própria.
— Vá embora — mandei.
E percebi o embargo em minha voz. As lágrimas que eu refreei pela vida
toda estavam ali.
Amaldiçoei-me pela fraqueza.
— Amelia, eu preciso te dizer algo...
Aproximei-me da divisa de madeira. Encostei minha testa na porta.
— Não quero ouvir nada de você.
Era mentira. Eu queria ouvir. Ouvir que ele me amava. Ouvir que casar-
se com Ava foi um erro. Que ele devia ter ido a minha procura. Que havia se
apaixonado por mim. Que me queria.
Contudo, quando a voz dele surgiu, eu mal acreditava nas palavras,
mesmo que elas fossem desejadas há muito tempo.
— Eu te amo.
Capítulo Seis
SEMPRE VOCÊ

S e um dia me questionarem porque abri a porta, ficarei sem palavras diante do


montante de explicações questionáveis que invadiram minha mente.
A verdade é que a nova Amelia, a Amelia que construí em Londres e que
agora se mostrava forte diante dos obstáculos da vida, foi completamente
sucumbida pela mulher que desejava ardentemente ser amada.
Sim, eu abri a porta. Talvez me arrependesse para sempre. Mas, eu
precisava encarar Oliver enquanto ele dizia as palavras de amor. Eu precisava
olhar para seus olhos, ouvir sua respiração. Eu precisava.
— Repita — ordenei.
— Eu te amo — ele afirmou.
E havia lágrimas no olhar masculino. Lágrimas que pareciam tão reais.
E, mesmo que não o fossem, eu desejei enganar meu próprio coração. Eu
queria ardentemente ter um único momento em minha vida no qual um homem –
não qualquer um, mas aquele que eu sempre amei – retribuísse meus
sentimentos.
O toque dos seus lábios era quente e firme, mas ao mesmo tempo suave.
Oliver se moveu lentamente contra mim, como se tivéssemos todo o tempo do
mundo para aproveitar aquele beijo. Gostei disso. Gostei de como o tempo
parou, de como as mãos dele envolveram minha cintura, da maneira como tudo
era quente e sensual e, ao mesmo tempo, sutil.
Dei um passo à frente, aproximando-me. Pousei meus dedos nos ombros
dele. Eram másculos e firmes. E eu tinha liberdade para explorar seu corpo rijo
com atrevimento. Céus, como ele era quente, vigoroso e alto. Como era tudo que
eu sempre quis.
Meu corpo inteiro se arrepiou, diante do desejo. Meu peito estava
apertado, as pernas meio trêmulas e, de repente, me ocorreu que talvez não fosse
capaz de recuperar o fôlego novamente e fugir de sua presença, quando ele me
ferisse.
Porque aconteceria.
Oliver iria me machucar. Já fizera antes, faria novamente.
Eu não mais me importava.
Afastei nossos lábios, acariciando com os dedos o contorno da bochecha,
deslizando pela mandíbula, roçando de leve a pele sensível dos lábios. Então,
mordisquei lhe o lóbulo da orelha, o que o fez estremecer.
— Amelia — ele pareceu assustado e extasiado.
— Me deixe — murmurei.
Era um momento em uma vida. Queria aproveitar.
Descendo um pouco mais, explorei sensualmente a lateral do pescoço
com a ponta da língua.
Mais arrepios eclodiram por toda parte. Ofeguei com a onda de calor que
se espalhava em meu âmago. O desejo subjugou-me até que percebi que não
poderia sobreviver a outro instante, se ele não me beijasse.
Queria sua boca contra a minha. E queria muito.
Como escritor, Oliver era capaz de ler as nuance humanas. Talvez por
isso, ele logo me tomou com sua boca, entendendo o que meu corpo clamava.
Abri meus lábios, e ele mergulhou em meu interior, como se a sua necessidade
de tomar fosse tão imperiosa quanto meu desejo de render-me.
Correspondi, saboreando aquela paixão que eclodia entre nós.
Depois, suas mãos atrevidas desceram pela lateral de meu corpo,
tocando-me nas nádegas. Quando ele puxou-me contra ele, meu corpo respondeu
com um gemido intenso.
Meus seios intumescidos e sensíveis contra seu peito másculo ficaram
completamente enrijecidos. Minha parte inferior começou a se pressionar contra
aquela forma dura que entumecia sua calça.
Oh, estava morrendo de desejo, derretendo-me diante de imagens
sensuais de Oliver tomando-me como mulher.
Uma parte de mim tentou lutar. Tentei trazer novamente Amelia Fedida à
tona. Tentei pensar em Ava. No passado. Mas, os arrepios e o arrebatamento que
aquele homem me causava impediu qualquer outro pensamento.
– Eu a desejo, Amelia. A desejo desesperadamente. Nunca desejei
ninguém nessa vida como desejo você.
Por que aquilo parecia tão sincero? Tão real?
A parte interna de minhas coxas latejou.
— Você devia ir — objetei.
— Eu sei.
— Então vá — sorri.
— Não consigo.
Quem poderia me condenar diante disso? Eu estava diante do homem
que sempre amei, e ele, nitidamente, me queria na mesma intensidade.
Senti suas mãos tocando meus seios. Suspirei.
— Você vai me machucar novamente? — indaguei.
Nem sei o porquê da questão. Não importava sua resposta, eu não
acreditaria nela.
— E você? Vai? — ele replicou.
Suas mãos estavam explorando, provocando e acariciando. Ele se
demorou no mamilo enrijecido, vibrando-o para frente e para trás, até que eu
mesma desabotoei a camisa, ansiosa para ter o contado de sua pele contra a
minha, nua.
Oliver afastou-se alguns centímetros, como se quisesse me observar. Seu
olhar obscurecido pareceu ler cada detalhe do meu corpo, como se quisesse
gravar aquela cena.
Depois se dedicou à tarefa de abrir os botões da própria camisa.
Os formigamentos, arrepios e espasmos se tornavam cada vez mais
incontroláveis à medida que ficávamos nus. A fome de prazer nos consumia.
Eu havia esperado muito tempo por aquilo.
Ofegando, ele curvou a cabeça e beijou a curva dos meus seios. Depois,
guiou-me a cama.
— Você é linda – murmurou. – Tão quente e macia, como sempre
imaginei.
Eu gemi enquanto sentia minhas costas tocando o colchão. O corpo
másculo sobre o meu, Oliver esfregando os mamilos entre os polegares enquanto
sua boca voltava a me tomar. Meu corpo inteiro enrijeceu, e o centro úmido e
intumescido de minha feminilidade clamou por além dos beijos.
Beijos não eram mais suficientes
Palavras também não.
Eu queria mais, queria tudo. Queria o peso do corpo dele sobre o meu.
Queria senti-lo por inteiro, penetrando-me várias vezes, enquanto seu corpo se
perdia dentro de mim.
Uma vez, duas... mil vezes, para sempre.
E então ele veio. Apaixonado e viril. Tão macho que me tirou o fôlego.
Entre nós havia uma fome tão intensa que praticamente não senti
nenhuma dor. Nem mesmo a lembrança desagradável de que eu era uma mulher
de mais de trinta anos sem experiências por causa de traumas que ele mesmo
provocara, incomodou-me naquele instante.
Porque o que importava era aquela carne quente, dura, afundando-se
dentro de mim.
Oliver estava por toda parte de meu corpo, em meus braços, peito contra
seios, sexo batendo um contra o outro, almas mescladas num único ser.
– Oliver... – estava desesperada.
Ele não foi vagaroso. Não parecia ter capacidade de esperar. Seu membro
excitado entrava e saia com urgência.
Estava faminto. Por mim.
Senti que algo estava acontecendo. Um prazer descomunal. Não sabia
mais o que beijar, o que agarrar, o que sugar e lamber. Tudo que conseguia era
apertá-lo contra mim, como se o mundo não mais importasse.
— Vou enlouquecer — ele gemeu.
E então explodiu, despejando contra minha sua semente molhada.
Aquela foi à experiência mais sobrenatural que já vivenciei.

O membro inchado, mas agora adormecido, descansava contra minhas


coxas. Meu corpo inteiro estava suado, mas ainda havia uma réstia de prazer na
maneira como a carne firme dele estava friccionada contra minha pele.
Levou alguns segundos para que eu conseguisse entender o que
acontecia. Meu corpo estava deslumbrado pelo ato que acabara de ocorrer.
— Você sabe... — ele murmurou. — Devia ler meu último livro.
— Por quê? — indaguei, quase adormecida.
— Porque é a historia de amor de dois jovens que se conheceram na
adolescência, mas que a vida separou. Eles se reencontram na velhice e o amor
ainda existe neles.
Eu sorri.
— Não somos velhos.
— Escrevi esse livro no ano passado, não esperava tê-la novamente em
minha vida.
Aquela frase parecia me levar aos céus.
— Soube que esse livro vai virar filme, não é? — me recordei das
palavras do dono da mercearia.
— Sim.
— Para que vou ler o livro se terá filme? — provoquei só porque adorava
ver o rosto dele zangado diante das palavras.
Logo, virou-me na cama, o corpo sobre o meu. Acariciei seu rosto diante
do bico adorável.
— Eu te procurei — ele avisou. — Na manhã seguinte, eu te procurei...
— Para quê?
— Para dizer que eu havia me apaixonado por você.
Era mentira. Eu tinha certeza disso.
— Você namorava Ava.
— Eu transava com ela, mas não tínhamos um compromisso —
desprezou.
— Não precisa mentir agora, não me importa o que aconteceu...
— Não entende? Eu aceitei aquela aposta. Eu disse que a conquistaria.
Mas, quem me conquistou foi você. Por que acha que eu passei duas semanas
inteiras lendo Shakespeare pra você?
— Por que era nosso trabalho escolar?
— Meu amor, eu teria escrito uma dissertação sobre Shakespeare em
cinco minutos. Mas, eu levei duas semanas. Foi porque fiquei louco por você...
Fechei meus olhos. Queria desesperadamente acreditar naquilo.
— Você se casou com ela — lembrei.
— Isso aconteceu muito tempo depois... Ah, Amelia... Se me permitir, eu
te explico tudo. Mas, precisa me dar algum crédito, mesmo que eu não o mereça.
Por favor, apenas me escute com o coração aberto, sem pré-julgamentos.
Remexi-me. Oliver sentou-se na cama, e eu o imitei. Queria ouvir suas
explicações.
— Quando foi embora fiquei louco. Não de raiva, mas de culpa. Eu era
tão superficial, e eu sabia disso. Fiquei pensando se eu realmente poderia ser
escritor. Eu tinha o talento, mas não tinha a sensibilidade. Decidi, assim, ir
embora também.
Ele havia partido de Hill?
— Fui estudar em Cardiff. Fiz literatura, arrumei um trabalho num
jornal... Enfim, comecei a me tornar uma pessoa da qual poderia me orgulhar.
Foi nessa época que assinei com uma editora famosa, e passei a lançar meus
livros internacionalmente.
Respirou fundo.
— Eu não voltei para Hill porque as coisas pararam de dar certo. Na
verdade, as coisas deram muito certo para mim fora daqui. Meus lançamentos
tinham boas vendas, e alguns produtores de Hollywood passaram a procurar
minha editora. Eu estava em franca ascensão quando meu pai foi diagnosticado
com câncer.
Não sabia daquilo. Apertei seus dedos, confortando-o.
— O tratamento não durou muito, ele estava num estágio muito avançado
da doença. Mas, naqueles dias em que o acompanhei no hospital, implorou-me
para que cuidasse da fábrica e vivesse em Hill. Na mesma época Ava retornou a
minha vida. O pai dela estava se aposentando e ela me deu conforto durante meu
luto.
Aquelas palavras doeram. No fundo eu queria alguma explicação
mirabolante, mas era tudo tão real que não podia ser mentira.
— Eu nunca me esqueci de ti, então nunca culpei Ava por ter me traído.
Tentei me colocar no lugar dela. Casar-se com alguém que nunca esqueceu uma
paixão da juventude. Não deve ter sido fácil para Ava.
Segurei as lágrimas enquanto o trazia para meus braços num abraço
confortador.
Era uma chance que eu estava dando a Oliver. Poderia me arrepender
tremendamente. Mas, ali, naquele núcleo de amor eu sabia que devia isso a mim
mesma. Era mais que abrir meu coração àquele homem. Era uma oportunidade a
mim de ser mulher.

Quando acordei, estava sozinha na cama. O sol já havia nascido, mas


pelo aspecto da manhã, soube que ainda era bem cedo.
Naqueles dias que passei a viver na Mansão Turner, soube que Oliver
tinha o costume de acordar cedo e dormir tarde. Passava horas em frente ao
computador, lendo, relendo, e datilografando páginas e mais páginas de seus
romances.
Desci as escadas. James, no final do corredor, sorriu para mim e me
convidou para o café.
— Mais tarde — recusei. — Vou tomá-lo com Cathy.
O homem fez um breve reverência, e se afastou.
Será que sabia o que havia ocorrido? Percebera meus olhos brilhando?
Minha alma serena? Ou aquela sensação que me amortecia era apenas algo
interno, algo único, íntimo, que ninguém poderia decifrar?
Eu não me lembro de ter estado tão feliz assim... nunca.
Meus poucos momentos alegres se deviam a alguma piada em algum
programa humorístico na televisão, ou ao algum elogio bem feito de meu antigo
chefe na empresa.
Mas, felicidade por mim mesma...? Felicidade por apenas ser mulher e
ser amada?
Meu pensamento foi cortado pelo soar da campainha. James apareceu no
fundo do corredor, mas eu fiz um aceno para ele.
— Eu atendo — avisei.
E então fui até a porta.
Ao abrir, deparei-me com uma linda mulher loira impecavelmente
vestida num vestido channel. Ela usava óculos escuros e os retirou, ao me ver.
Aqueles olhos verdes logo se tornaram risonhos, e à medida que me reconhecia à
boca dela ia se abrindo.
— Amelia? — indagou.
Eu quis fechar a porta, mas permaneci estática diante de Ava.
— Amelia Fedida? — ela riu.
Meu corpo preparou-se para o riso de Oliver atrás de mim. Era como se
meu organismo inteiro preparasse-se para o passado. Mas, diante do silêncio, eu
apenas me afastei e abri espaço.
Ava entrou na mansão e em minha vida, novamente.
Capítulo Sete
A REALIDADE
O
tempo parecia ter passado para mim. Estranhamente, não para Ava.
Eu ainda era magra e de aparência acanhada. Mas, não tinha mais a pele
tão sedosa ou os cabelos tão brilhantes. Agora, leves rugas se faziam presente
perto dos meus olhos, e havia marca de sol no meu nariz.
Já ela, ainda parecia ter dezessete anos. Era tão linda quanto o sol ao
entardecer.
— Amelia Fedida! — ela brincou, depois, balançou as mãos, como se
não fosse um insulto. — Nunca pensei que fosse vê-la novamente. O que faz
aqui?
— O que você faz aqui? — retruquei.
— Vim falar com Oliver — minha indagação parecia não fazer diferença
para ela. — Nunca pensei que fosse vê-la novamente. Lembro-me de que foi
embora quando ainda éramos colegiais.
Meu corpo inteiro tremia. Tentei ignorar isso. Queria ser forte porque não
aceitava que Ava ainda tivesse tal poder sobre mim.
— Ainda não me disse o que você faz aqui — ela inquiriu.
— Estou cuidando de Catherine.
A gargalhada machucou. Ava sempre soube como me ferir, seus
deboches me tornavam novamente a menina medrosa de antigamente.
— Babá da minha filha? — ela riu. — Bom, o que posso dizer? Você
nasceu para me servir, não? Assim como seu pai, sempre trabalhou para o meu.
A propósito, eu fui ao enterro dele. Tinha que ter visto, não havia ninguém lá
além de Oliver e do pastor.
Oliver foi ao enterro do meu pai?
— Nem a própria filha foi sepultá-lo. Você é fria, Amelia Fedida!
Eu queria ignorar aquela provocação, mas vi-me a justificar-me.
— Meu pai me queria longe de Hill. Fiz a vontade dele.
— E veja só: agora está aqui!
— Você também — rebati. — Achei que estava divorciada e que não se
preocupava em ver sua filha.
Ela concordou. Espantosamente, concordou. Fiquei chocada com
tamanha frieza.
— Mas, Oliver está me perseguindo. Culpa dele, não aceita a separação.
Colocou um jornalista para me seguir. Então, obriguei-me a vir até ele.
Quis negar aquela informação. Richard estava ali para se vingar, não
porque Oliver o tivesse contratado.
— Está enganada — objetei.
— Ah, querida — pareceu solidária. — Não conhece Oliver como eu.
Não aceita o divórcio, não me deixa em paz. Está me chantageando para que eu
volte para cá. Está usando Cathy para isso. Acredita que deixou o homem vir
tirar fotos dela?
Quis gritar com ela. Chamá-la de mentirosa. Mas, bem da verdade, o que
eu sabia sobre Oliver? Crescemos juntos, mas sua personalidade ainda era uma
incógnita para mim.
De repente, ele surgiu no corredor. Caminhou em nossa direção e meu
coração deu saltos de pavor.
Não queria que se vissem! Não queria que ele ainda a desejasse!
— Como soube de Richard? — ele indagou.
E então eu percebi que era tudo verdade. E mais uma vez, fui enganada
pela seu excelente desempenho de ator. Na minha pureza juvenil, ele me
conquistou pela sua popularidade e pelas palavras doces de Shakespeare. Agora,
através da filha, fez-me crer num futuro, em algo intenso entre nós.
Eu dormi com aquele homem... Senti-me suja e repulsiva.
Tentei me afastar quando percebi um som vindo do topo da escada. Levei
um certo tempo para perceber ser Cathy.
E apenas eu parecia perceber a criança. Ela choramingava em seu pavor.
Sofria na escuridão na qual fora condenada por aqueles dois pais irresponsáveis
e malditos.
— Cathy — murmurei, indo em sua direção.
A peguei no colo, e percebi que seu choramingo tornou-se um choro
molhado e desesperado.
— Não vá embora, Amelia... Não me deixe — ela implorou.
Diante da frieza do par abaixo diante do sofrimento daquela criança, eu
me afastei com ela para o quarto.

Que Oliver não me amasse, não era surpresa. Mas, que ele usasse a
própria filha cega para ter uma mulher que o traiu de volta, era algo inconcebível
para mim.
Deitada no meu colo, Catherine parecia tão pequena, tão encolhida, como
se houvesse um mundo inteiro sobre ela, a pesar-lhe sua pequena alma.
Por que sofria tanto? Diziam que nossa dor era recompensa por nossa
maldade, mas o que aquela pequena criatura havia feito para ser tão usada e
destruída pelos dois pais inconsequentes?
— Não quero que Ava volte para cá — ela murmurou. — Não quero...
Apesar de tê-la chamado de mamãe quando nos conhecemos, agora não
usava esse apontamento. Eu entendia. Eu mesma me recusava a pensar na minha
genitora com esse título. Minha mãe sumiu de minha vida quando eu era
pequena e nunca se preocupou em saber meu destino.
Como uma mulher podia carregar uma criança no ventre por nove meses
e depois esquecê-la como se não existisse?
Céus, eu daria tudo... tudo... cada detalhe da minha vida para poder ter
Cathy para mim.
Abracei seu pequeno corpo, apertando-a contra meu peito.
Eu a amava. Eu não conseguia mais impedir o sentimento. Poderia ser a
mãe dela, a mãe verdadeira dela. Poderia cuidar de suas necessidades, ajudá-la a
enfrentar o mundo, vê-la crescer e tornar-se mulher. Poderia estar ao seu lado
quando se casasse ou quando tivesse suas próprias crianças.
Eu queria Cathy como jamais quis algo na vida.
— Meu amor — murmurei contra seus cachos loiros. — Diga-me: se eu
pudesse levá-la embora, iria comigo?
Senti seu choro sucumbir.
— Como se você fosse minha mãe? — ela questionou.
Senti minha garganta arder pelas lágrimas que me recusava a derramar.
— Eu gostaria de ser sua mãe — disse, tão absurdamente sincera.
— Eu quero que seja minha mamãe — ela sorriu.
E então eu a trouxe novamente para meus braços.
Estava feito. Que Oliver e Ava fossem para o inferno, que o diabo os
carregasse, que queimassem para sempre. Eles fizeram Catherine, mas não a
mereciam.
Agora ela era minha.
Independente do quanto essa ideia era louca, eu lutaria por ela. E eu a
teria. Pagaria o preço que fosse por isso.

Oliver havia sumido durante todo o dia, e eu me recusei a afastar-me do


quarto de Cathy, temendo que Ava fosse lá tentar desprezar a criança com seu
humor sarcástico e cruel.
Claro, isso foi apenas minha cabeça ingênua achando que Ava fosse se
preocupar em ver Cathy. Ela sequer foi ao quarto da menina. Cathy dizia a
verdade quando comentou que a mãe se enojava dos seus olhos.
Meu desprezo por Ava aumentou consideravelmente por causa disso.
Assim, no final daquela noite, após pôr Catherine para dormir, eu me
preparei para ir ao próprio quarto. Tinha meus próprios objetivos para aquela
noite, mas fui interrompida por Oliver, que surgiu próximo da minha porta, e
parecia disposto a conversar.
— Eu preciso te explicar.
Eu nem sei como consegui manter o olhar firme contra o dele. Minha
vontade era de matá-lo naquele instante.
— Richard foi ideia sua? — questionei, porque mal conseguia acreditar
naquilo.
— Ele me comentou que te conheceu no barco que a traria para Hill.
— Você colocou um homem para tirar fotos da sua filha? Você tentou
usar uma menina cega? Que tipo de imundície é você?
— Deixe-me explicar — pediu.
— Explicar o quê? Não há nada a dizer. Você é repulsivo. Só não vou
embora agora mesmo porque não quero deixar Cathy sozinha contigo.
— Amelia...
Ele tentou segurar meu braço. Foi à gota que transbordou o balde. Eu
estava completamente enojada e não aceitava nenhum toque vindo dele.
Desviei o braço e o estapeei com força.
— Nunca mais toque em mim — disse, firme.
E então entrei no quarto e fechei a porta.

Era madrugada quando eu bati na porta do quarto de pensão. O senhor


West, que mantinha aquele local, me encarou assustado, mas deu espaço para
que eu entrasse no local.
— Preciso falar com seu hóspede — avisei. — É importante.
O homem me viu nascer e crescer em Hill. Sabia que eu não iria procurar
um homem desconhecido se não fosse importante.
Momentos depois, eu entrava no quarto do jornalista, que estava sentado
em sua cama com cara de sono.
— Você vai me arrumar um documento falso para que eu vá para a
Irlanda do Norte — avisei, sem preparação.
Ele arregalou os olhos diante da minha frase de efeito.
— O quê?
— Dois documentos, na verdade. Sei que tem contatos, pessoas da sua
profissão sempre têm. Um para mim, outro para Cathy. Vou tirá-la daquelas duas
sanguessugas.
Ele quase riu diante da minha ideia.
— E eu faria isso por quê?
— Porque você é em parte culpado do fato daquela criança nunca mais,
em toda a sua vida, ver a luz do sol. Você tem as mãos manchadas pelo sangue
dos olhos dela. Catherine é cega porque o pai foi atrás da esposa que estava com
você — despejei. — E se tem um mínimo de coração fará isso.
Ele pareceu destruído diante das minhas palavras. Soube que acertara o
alvo naquele instante.
— Eu larguei Ava tão logo soube do que aconteceu com a menina.
— Não me importa — retruquei. — O pai quer usá-la contra a mãe. Você
sabe disso, você fez as fotos!
— Sabe realmente qual é o propósito de todo esse dossiê contra Ava?
— Eu não estou interessada — resmunguei. — Para mim chega dos
Turners. Acabou. Quero sumir daqui e nunca mais voltar. Mas, eu amo Cathy e
não vou deixá-la sozinha para ser usada como mercadoria.
— Amelia...
— Você não entende, Richard? Quando Ava apareceu na casa, Catherine
ficou desesperada. Você não faz ideia do pavor que ela tem da mãe! Não sabe as
coisas que ela ouviu. Ava disse a Oliver que a deixaria num lar de crianças
abandonadas! Disse que tem nojo dos olhos da filha! Ela é um ser desprezível.
Sei que foi sua amante, talvez seja difícil acreditar que uma mulher tão bonita e
de aparência angelical seja tão má, mas...
— Eu sei que é má — ele retrucou.
— E mesmo assim está trabalhando para Oliver...? — como ele podia
dormir fazendo aquilo? Não tinha consciência?
— O cara não é mau — retorquiu.
Como podia ser tão cego?
— Eu não vou discutir contigo — rebati. — Pague sua dívida com
Catherine me dando os documentos. Depois, pode ficar tranquilo porque fez seu
melhor.
Ele concordou. Respirei profundamente com aquilo. Enfim, as coisas
pareciam estar se encaminhando para um final feliz.

Quando abri a porta do meu quarto, ele estava sentado na minha cama.
Travei.
— Aonde foi? — me indagou, como se tivesse algum direito.
— Onde está Ava? — rebati.
— Na casa do pai — informou. — Onde você estava?
— Isso importa?
— Achei que estivéssemos juntos — Oliver teve o descaramento de me
dizer. — Eu quero que estejamos juntos. Sei que está confusa e zangada, mas
deixe tudo comigo, irei resolver essa situação.
Quase ri. Ao preço da dor de Catherine?
Céus, nunca o odiei tanto quanto naquele instante!
— Não estamos juntos — lhe informei.
— Na noite passada...
— Foi só sexo — dei os ombros.
Ele sorriu. Sabia que eu mentia.
— Amelia, você nunca iria para a cama comigo apenas por sexo.
— O que sabe? Nem me conhece. Ficamos anos sem nos ver.
— E mesmo separados por anos, ainda somos estranhamente verdadeiros
quando estamos um diante do outro. Como quando éramos adolescentes.
— Pois é. Nessa época você era apaixonado por Ava. Ainda é?
— Por favor, você sabe que não é verdade. Eu te expliquei na noite
passada...
— Você contratou um jornalista para obrigá-la a voltar para você —
apontei.
— É isso que ela te disse?
— E qual outro motivo você teria para montar um dossiê contra ela? —
indaguei. Queria saber realmente a verdade. — Ava estava quieta no canto dela,
mas você a provocou.
— Essa é a sua verdade, não a minha.
— E qual é a sua?
— A minha não pode ser dita. Ainda não. Precisa confiar em mim. Estou
cuidando de tudo...
Fiquei exausta diante de tanta asneira.
— Por favor, vá embora — disse, abrindo a porta do meu quarto.
Ele se levantou e caminhou até a saída. Antes de ir, seus dedos tocaram
meu ventre. Um carinho confortador, como se quisesse explicitar que tudo
ficaria bem.
— Eu amo você — ele murmurou.
Ao sair, eu fechei a porta. Escorei-me na madeira, até escorregar até o
chão. Minhas vistas estavam nubladas pelas lágrimas, mas eu tentei secá-las
antes que caíssem.
Oliver Turner não podia mais ter nenhum poder sobre mim. Eu não podia
amá-lo. Não era mais uma criança.
Nem sequer uma vítima, pois agora era dona da minha própria razão.
Foi escolha minha entregar-se a ele.
A única vitima naquela história estava dormindo no quarto próximo. E
por ela, eu precisava ser forte.
E eu seria.
Capítulo Oito
LARNE

O documento falso entregue por Richard parecia queimar na minha mão.


— Você ficou louca — ele disse, ao me dar os papeis. — Ela não é sua
filha — lembrou-me.
— O que é ser mãe? — devolvi. — Só pôr no mundo? Fiz mais por
aquela criança em poucas semanas do que Ava, que a carregou na barriga por
nove meses.
Richard deu os ombros.
— Bom, isso não me importa — resmungou. — Eu fiz a minha parte
conforme combinamos. Então, estou livre?
Assenti. Ele havia cumprido sua palavra e eu cumpriria a minha. Não
mais o importunaria.
— Está errada, Amelia. Não é seu direito tirar a filha do pai que a cuida
desde sempre.
— Oliver nem olha para ela.
— A culpa pode destroçar um homem — me avisou. — Não devia julgá-
lo tão terrivelmente.
Ignorei aquelas palavras. Elas não me envolviam. Apenas Catherine
importava, e em breve eu estaria com ela bem longe dali.

O silêncio daquela mansão foi quebrado pelo murmurar baixo da minha


criança.
— Você precisa acordar, Cathy — a balancei levemente.
Durante o dia havia preparado uma bolsa com roupas para ela. Agora,
apenas a cobriria com uma manta e a carregaria comigo. Não tinha tempo a
perder. A balsa em direção à Larne partia às seis da manhã e eu precisava estar
nela, pois outra oportunidade como aquela só teria no mês seguinte.
— Amelia...
— Você quer que eu seja sua mamãe, não é? — indaguei a ela, que tateou
em sua escuridão para me tocar. — Então precisa confiar em mim e ficar
quietinha.
Catherine assentiu. Envolvi seu pequeno corpo com um cobertor macio e
depois a peguei no colo.
Descer as escadas sem fazer barulho pareceu custoso. Abrir a porta da
casa, vaguear pela estrada que dava até o cais, ainda mais. Mas, eu tinha um
objetivo.
— Nunca vou te abandonar — prometi.
Nunca faria a ela o que minha própria mãe fez. O que a mãe biológica
dela também fez.
— Estou com sono — ela murmurou.
— Então descanse em mim — disse.
Quando a balsa partiu, observei Hill ao longe. O lugar da minha perdição
também foi o lugar que me deu uma família. Oliver e Ava me destruíram, e eu,
por muito tempo, quis o mesmo destino para eles. Todavia, descobri que
recomeços eram muito mais significativos. Eu teria aquilo que eles desprezavam
e com aquele pequeno ser eu seria imensamente feliz.

A cidade de Larne era extremamente linda, antiga, e trazia aquele


requinte Europeu que havia se perdido com a modernidade.
Em todo canto havia turistas que vagavam atrás dos monumentos
históricos. Eu fiquei interessada por eles, mas naquelas duas semanas após
minha fuga de Hill, decidi que me hospedar em um Apart-hotel pequeno e
isolado e manter-me a margem do mundo era minha melhor escolha.
Não sabia qual teria sido a reação de Oliver e Ava a minha fuga com a
filha deles. Oliver estaria zangado por eu tirar dele sua arma contra a ex-mulher?
Ava, aliviada porque nunca mais teria notícias daquela a quem desprezava?
De qualquer maneira, passei a ter momentos importantes demais com
Cathy para me preocupar com os dois que ficaram para trás.
Ela temia os lugares, pois não conseguia identificá-los pelo som, mas
passávamos muito tempo no quarto do hotel fazendo brincadeiras e comendo
bobagens.
Quando me sentisse mais tranquila, usaria minhas economias e me
instalaria no interior. Imaginei que Cathy poderia ir à escola. Que poderia incluí-
la no mundo. Mostrar-lhe e demonstrar-lhe que ela não era inferior por ser
diferente.
Capítulo Nove
A VERDADE

N ão imaginei que aquele dia terminaria tão diferente de como começou.


Às nove horas levei Cathy para tomar café em uma pequena padaria
próxima do hotel.
Havia um parque ali, onde cisnes deslizavam pela água. Fui com ela até a
borda e a encorajei a colocar as mãos na água.
Senti na pele sua felicidade ao tatear aquele úmido gelado, enquanto ela
volvia-se para mim e me abraçava nas pernas.
Eu a amava... Céus, eu a amava muito...
De tarde, fizemos um piquenique naquele mesmo parque. Catherine ficou
encantada com os novos sons que ouvia. Os pássaros, os insetos... foi
extremamente divertido e empolgante abrir aquele leque de experiências para
ela.
À noite, estava exausta. Caiu no sono antes mesmo de chegarmos à
portaria do hotel.
Ajudei-a a tomar banho, e depois a pus na cama. Quando fechei a porta
do seu quarto, ouvi batidas na porta. Imaginei que fosse alguém do hotel, e fui
abrir despreocupadamente.
Quase perdi o chão ao dar de cara com Oliver.

— A polícia está atrás de mim? — indaguei, vendo-o entrar na sala e tirar


o paletó. Depois, ele jogou o casaco no sofá e sentou-se despreocupadamente.
— Não.
— Não acionou as autoridades? — repeti, pasma.
— Não. Quando Richard me procurou para falar do seu plano ridículo,
achei que seria bom que saísse da ilha com Catherine, para me dar tempo de
resolver as coisas.
Richard me traiu?
— Desgraçado... — murmurei.
— Quem você acha que arrumou seus documentos “falsos”? — ele riu.
— Mas, devo admitir que sua ideia foi digna de um livro, Amelia. Um livro mal
escrito e mal planejado, mas ainda assim um livro.
Vencida, sentei-me no sofá diante dele.
— Por quê? Achei que ficaria aliviado por eu livrá-lo de Cathy.
— Quem disse para você que eu desejava isso? Quem te disse que eu não
a amava?
— Você a usou — acusei. — Usou sua filha para atingir Ava. Se isso não
é paixão reprimida, não sei o que é!
Eu não queria demonstrar minha mágoa, mas era impossível controlar-
me. Estava destroçada por ter caído novamente em suas falácias.
— Eu vou perdoá-la, Amelia — ele murmurou.
— Me perdoar? — era muita audácia.
— Sim, não vou usar o fato de que roubou Catherine contra você. Sei que
o fez porque não sabe toda a verdade.
— Que verdade?
— Ava me chantageia para pagar seus luxos. Por isso eu precisava
montar um dossiê contra ela.
— Não considera mesmo que eu vou acreditar nisso.
— Não entende? Ela pode me destruir a hora que quiser.
— O que ela tem contra você?
— Catherine — ele apontou.
— A filha que ela mesma abandonou e não vê há três anos? A filha que
chora quando ela se aproxima? Nenhum tribunal no mundo tiraria sua guarda.
Subitamente, aquele homem arrogante desapareceu. Oliver pousou os
cotovelos nos joelhos e descansou a cabeça entre as mãos.
— Ava tem uma arma contra mim que pode me tirar Cathy...
Eu sabia que tudo poderia ser mais das mesmas mentiras, mas percebi as
lágrimas nos olhos masculinos. Oliver não era de chorar. Esse tipo de reação não
condizia com a postura sempre ereta e soberba dele.
— O que ela sabe?
— Que Cathy não é minha filha — ele contou, despejando tudo de uma
vez, sem a mínima preparação.
Eu abri a boca, pasma.
— O quê?
— Ava sempre teve amantes. E nossa vida conjugal não era nenhuma lua
de mel. Quando ela engravidou, eu tive dúvidas, mas quando Cathy nasceu eu
decidi que a queria. Era tão bonitinha, fofa, loirinha de olhos claros. Tão linda...
Eu assumi a paternidade sem pensar duas vezes. — Respirou fundo antes de
prosseguir. — Busquei conversar com Ava. Eu me sacrificaria por Cathy e por
aquele casamento. Assumiria a fábrica e lhe daria uma vida normal de casada.
Afundei meus sonhos, abandonei minha carreira de escritor, e passei muito
tempo em casa. Até me recusava a pensar em você — ele sorriu.
Comecei a pensar em toda aquela história. Busquei traços de Oliver em
Catherine, mas, de fato, não havia nenhum.
— Quando Cathy tinha três anos, eu descobri que as viagens frequentes
de Ava para o oeste eram para visitar um novo amante.
— Richard — murmurei.
— Sim. E aquilo me deixou louco de raiva. Cruzei com a balsa até uma
cidade em Gales, aluguei um carro e parti com Cathy atrás de Ava. Dizia a mim
mesmo que pediria o divórcio e que não queria mais a menina. — Suas palavras
pareceram corroê-lo. — Dizia a mim mesmo que iria retomar minha carreira de
escritor e que contrataria um detetive para ir até você.
— Então aconteceu o acidente? — completei.
— Se eu fechar os olhos, ainda posso ver o corpinho desfalecido de
Catherine no banco de trás. Os vidros sobre seus olhos bonitos, rasgando-os. E,
depois, no hospital, Ava me dizendo que não a queria. No tempo do divórcio,
Richard a deixou quando viu o monstro que era.
— Mas, por que agora, após três anos do acidente, você o contratou?
— A vida de Ava é muito luxuosa e ela não ganha o suficiente para pagar
isso. Ela passou a me chantagear. Disse que pediria um exame de DNA. Ela
facilmente pode tirar Cathy de mim, pois não tenho nenhum vínculo sanguíneo
com Cathy.
Fiquei aterrorizava com isso. Se Ava podia tirar Catherine de Oliver, o
que sobraria para mim?
— Richard e eu tornamo-nos amigos. Foi dele o plano para montarmos
um dossiê contra ela. Jogaríamos tudo na mídia e a deixaríamos ser massacrada
pela opinião pública. Qualquer processo que movesse contra mim teria menor
força. Eu aceitei que ele tirasse fotos de Cathy porque prefiro vê-la exposta
numa foto do que longe de mim.
Enfim, compreendi tudo. Queria confortá-lo, mas ainda tinha meus
receios.
— Por que não se aproxima mais dela?
— Você sabe por quê.
— Ela pensa que é por nojo.
— Toda vez que a olho, minha culpa é atirada contra a minha face. Eu
queria tanto que Cathy pudesse ver novamente, eu daria meus olhos para ela, se
pudesse. Mas, isso não vai acontecer. Eu sinto vontade de morrer por saber que a
machuquei...
O som na porta do quarto nos assustou. Viramo-nos naquela direção, e
vimos Catherine parada ao lado da porta.
— Está tudo bem, papai — ela murmurou.
Não sabíamos o quanto ela havia ouvido, mas percebemos que não tinha
importância quando ela caminhou em direção a sua voz e o abraçou com seus
pequenos bracinhos.
— Você vai se casar com Amelia? — ela perguntou, depois disso. —
Porque ela é minha mamãe agora, e como você é meu papai, eu acho que deviam
se casar.
Oliver riu, beijando sua bochecha.
— Se ela me quiser, amor... Se ela me quiser...
— Ela dormiu?
Assenti para Oliver. Ele bebia uísque diante da janela do apartamento.
Parecia mitigado.
— Como se sente? — indaguei a ele.
Sabia que a carga emocional daquele abraço de pai e filha havia sido
imensa.
— Eu queria te pedir em casamento em um jantar romântico, quando
tudo isso acabasse. Compraria um anel de diamantes e o colocaria em uma taça
de champanhe. Quando fosse beber, perceberia a aliança. Então, eu me
ajoelharia diante de ti e pediria para ser minha para sempre.
Eu ri daquela história.
— Isso não parece você — contrapus.
— Não mesmo — ele riu. Depois, largou o copo e segurou minhas mãos.
— Você entendeu tudo, Amelia?
— Sim, apesar de não concordar. O melhor é decidir essa questão com
Ava, chegando a um acordo e a fazendo assiná-lo.
Ele gargalhou.
— Estou falando sobre nosso casamento.
— Nosso casamento?
Meu corpo inteiro ficou tenso.
— Está falando sério?
Então ele se ajoelhou na minha frente.
— Amélia, você quer se casar comigo?
Fiquei em pânico. Verdade? Mentira? Eu sabia que ele explicara toda a
situação, mas sofri por anos por conta dela. E agora?
— Sério... Seu silêncio está começando a me deixar desesperado.
Então sorri e o puxei. Meus lábios tomaram o dele.
— Não está se precipitando?
— Bom, você não é o tipo de mulher para se ter numa única noite.
Aquele estranho elogio me fez rir.
— Não sou?
— Amelia, você pertence ao refinado grupo que se leva ao altar, com todos
os amigos e vizinhos assistindo, e à qual se faz votos sagrados de matrimônio.
Senti o desejo avassalador me provocar diante da frase.
— Eu te amo — confessei. — Quero ser sua esposa. Mas, se me magoar,
eu juro que o matarei.
Ele gargalhou. Depois disso, elevou-me no colo e fomos para o quarto.

— Chega a ser estranho... — murmurei.


Oliver arrancava a gravata naquele instante. A camisa foi logo atrás. Seu
tórax musculoso surgiu diante dos meus olhos.
— O quê?
— O tempo passou, mas meu sentimento nunca morreu, mesmo que eu
tenha me esforçado para isso.
Ele sorriu.
— Eu te esperei, querida — afirmou. — Te esperei por um longo tempo.
E você voltou para mim.
— Eu também o esperei — disse. — Não me faça esperar mais — pedi.
Ele não faria. Ele próprio não podia esperar mais. Beijou-me com paixão,
deslizando os lábios até os seios e, enquanto os sugava, tirou minha roupa.
Queria fazer comigo o ápice de nosso sexo. Eu sentia e sabia. Era
perfeito, porque agora era sem o montante de dúvidas que sempre estava entre
nós. Empurrou-me contra o colchão e pressionou seu corpo ao meu. Sabia que
precisava ser gentil, porque na nossa primeira vez tudo foi extremamente
urgente, rápido e angustiante. Por mais excitados que estivéssemos Oliver
entendia que, por conta do pedido momentos antes, eu esperava que fosse
especial.
Algumas mulheres gostavam de palavras sujas, de sexo selvagem. Eu só
queria me sentir unida a ele. Não apenas a penetração e a ejaculação certeira.
Precisava ser bom, óbvio, mas também precisava explicitar o sentimento que
existia entre nós.
As mãos dele me tocaram na parte interna das coxas e me contorci.
Aquele carinho era tão gostoso que quando, quando seus dedos acariciaram
meus pelos, fiquei pronta para recebê-lo de imediato.
Segurou-me pelas coxas de modo que elas lhe abraçassem os quadris,
invadiu-me ao mesmo tempo em que se apoderava da minha boca em um beijo
de tirar o fôlego.
— Devagar — pedi. — Assim... devagar...
O pênis dele saiu de meu ninho úmido. Quase até a ponta. Depois, voltou
a afundar-se, generosamente.
Dei um pequeno grito no momento que ele entrou novamente no meu
corpo. O abracei por dentro com meu calor, com minha umidade. E, então, ele
perdeu o controle e arremeteu até o fundo.
— Como é gostoso — murmurei aos seus ouvidos.
Eu poderia me perder para sempre, ali. Eu amava aquele instante onde eu
era Amelia Jones e tinha o domínio sobre o homem que era o fruto de todos os
meus desejos.
Oliver voltou a se mover. Alguns instantes depois, ele se retirou e se pôs
a beijar-me no pescoço, nos ombros, nos braços. Eu sentia o sexo dele derramar
pingos sobre minha barriga, e eu mesma estava tão úmida que manchava os
lençóis.
— O que foi? Por que saiu?
Quando Oliver tornou a abocanhar meus seios, entendi que ele me queria
ainda mais entregue, que queria que o orgasmo fosse o mais inesquecível de
minha vida.
Como se pressentisse minha ansiedade, Oliver tornou a me penetrar,
roubando-me o fôlego. Por algum motivo, a excitação era maior. Sem refletir no
que fazia, movi meu corpo contra o dele e seu gemido gutural foi muito
estimulante.
— Se continuar fazendo isso, não garanto que durará muito tempo —
Oliver me avisou com um sorriso que me deixou em brasa ardente.
Tornei a mover os quadris, entregue às sensações. Em poucos instantes,
me Oliver levou ao ápice tanto com as mãos quanto com a boca. Meu corpo todo
estava inquieto, desejando mais e mais.
— Por favor — o detive ao perceber que ele me faria atingir o orgasmo
em poucos instantes. — Quero você dentro de mim. Mais. Mais.
Oliver não hesitou. Afundou-se em mim, fazendo-me sentir até seus
testículos.
— O controle agora é seu — Oliver murmurou. — Mova-se como quiser,
minha amada.
A ideia me inebriou. Oliver estava me dando o poder de tomar posse
dele, da maneira que eu queria, que eu precisava.
E eu precisava de tudo.
Lentamente, movi os quadris contra ele, em ritmo desgovernado. Senti
cada pedaço da sua carne em mim, cada detalhe, enquanto sua pele suava a
minha, seu calor me deixava em êxtase.
Oliver me segurou pelos quadris e ajudou com os movimentos que foram
aumentando de ritmo e de intensidade até que tremi e a arquejei, explodindo em
algo mágico, incompreensível, explicado apenas pelos sentimentos que
fervilhavam em meu coração.
Depois, ficamos lado a lado na cama. Ele não disse nada. Não era
preciso. Oliver apenas me olhava e sorria. Ele estava feliz por ter sido o
responsável por aquele olhar cansado e satisfeito. Aliás, ele estava adorando a
sensação de que era o único capaz de me deixar naquele estado.
Capítulo Dez
O MAU

A ideia de pagar Ava para ter o mínimo de paz não era boa nem nos alegrava.
Mas, como a loira só se importava com dinheiro, eu tentei me ater a essa
convicção.
Catherine ficaria segura conosco, e Ava que vivesse a sua vida como
quisesse. Eu não me importava em ter que lhe destinar uma parte substancial do
lucro da fábrica, se com isso ela permitisse que Oliver e eu vivêssemos em paz
em Hill.
— Vocês ficaram loucos? — Richard quase gritou quando Oliver lhe
contou o plano, no escritório da Mansão Turner.
De canto, eu observei a cena com apreensão.
— Amelia não quer expor Cathy.
— Não há outra forma. Catherine será exposta por essa mãe ordinária
mais cedo ou mais tarde — o jornalista objetou. — Estão apenas adiando isso.
No futuro, será Cathy que terá que arcar com as despesas extravagantes de Ava.
Eu sabia disso.
— Precisamos apenas de tempo — expliquei. — Tenho ciência que é um
peso para Cathy, mas enquanto pudermos evitar que ela seja sujeitada, é o
melhor.
Richard se levantou da cadeira.
— Estão apenas se enganando. Ava é muito pior do que imaginam. Se
precisar, ela mataria a própria filha para conseguir fama.
Fiquei chocada com aquela frase.
— O que quer insinuar? — Oliver disse o que minha mente gritava.
— Ela matou o bebê que esperava — Richard explicou. — Meu filho. —
explanou. — Quando soube que estava grávida, nós já havíamos terminado.
Assim, lhe pedi para não abortar, pois eu criaria a criança. Mas, ela se recusou.
Disse que se não voltasse para ela, iria a uma clínica e depois me enviaria os
pedaços do bebê.
O que era aquela mulher? Que monstro psicopata esteve ao meu lado
durante minha adolescência?
— Não me diga...
— Sim — ele afirmou. — Não recebi pedaços, mas recebi a pontinha de
um minúsculo dedo na minha caixa postal, anonimamente. Nunca procurei a
polícia, nem nada. Até porque em nada ajudaria a questão. Apenas engoli minha
raiva e prossegui, na esperança de um dia poder destruí-la. E esse momento
chegou, mas ambos se acovardam. — Seus olhos, de modo repentino, cravaram
em mim. — Você acha que as pessoas não podem seres maus, mas o mal existe
desde os primórdios e não vai mudar porque supostamente as pessoas podem
mudar. Ava é um demônio e ela vai destruir todos vocês assim que tiver a
possibilidade.
— Como ela soube que você a seguia? — fiz a questão que me
incomodava desde que Ava retornou a Hill.
— Ela deve ter juntado os pontos. Eu jurei vingança e ela soube que eu
estava na Ilha onde ela cresceu e viveu quase toda a vida.
Repentinamente, a voz de Oliver soou, firme.
— Eu sinto muito, Richard. Mas, em jogo está Catherine. E ela é o mais
importante para nós, agora.
Adorei a maneira como ele me incluiu em sua fala. Sorri em sua direção.
— Eu o ajudarei como puder, mas Cathy não poderá fazer parte disso.
Richard se levantou. Não estava raivoso, mas parecia abrandado.
— Não é uma ameaça — explicou, antes de falar —, mas irão se
arrepender. Ava sabe como ferir. Ela não descansará até ter tudo que quiser. E
nesse momento ela quer fama, dinheiro e que ninguém saiba o que se passa em
sua alma. Vocês podem lhe dar a fama e o dinheiro, mas não podem garantir que
o dossiê contra ela surja em algum lugar.
Depois disso, saiu do escritório.
Meus olhos cravaram em Oliver. Richard estava certo e isso me
desesperava.
— Por que ela está aqui?
Obviamente Ava quis me ferir ao indagar aquilo. Estávamos no escritório
de Oliver, e ela sentava-se na mesa diante dele com uma postura irretocável de
quem era a dona do lugar.
— Amelia é minha noiva — Oliver lhe contou.
A gargalhada não tinha graça. Era apenas para me ferir.
— Amelia Fedida será a senhora Turner? — a pergunta me fez fechar os
olhos. Precisava me controlar. — Como pôde ter decaído tanto?
O olhar de Oliver focou-se em mim. Era como se pedisse que eu não
retrucasse. Queríamos a colaboração dela, então aceitei o insulto. Era um preço
baixo a se pagar por paz e por Cathy.
— Eu tenho um valor a lhe oferecer — ele estendeu-lhe um papel que a
fez arregalar os olhos. — Um valor mensal e o silêncio. E, é claro, em troca
quero que aceite assinar um documento oficializando que a guarda de Cathy é
exclusiva minha e que jamais a tentará novamente.
Ela sorriu diante do papel.
— Dinheiro em troca da ceguinha? É um bom negócio — manteve o
sorriso na face enquanto meus olhos encheram-se de lágrimas. — Eu fico me
perguntando o tanto que estão desesperados para que eu não leve Catherine
comigo.
— O que mais você quer? — Oliver estava possesso.
Soube que as coisas terminariam mal depois daquela frase cruel de Ava.
Então, fui até ele e me postei ao seu lado, tentando ajudá-lo a manter o controle.
— O dobro — ela bateu com o papel na mesa.
— Sim — eu respondi por ele.
Aquilo seria terrível, talvez a fábrica falisse. Mas, precisávamos de Cathy
mais do que de qualquer dinheiro. Eu poderia assumir a administração da fábrica
e tentar cortar custos. Oliver poderia assinar alguns contratos novos sobre seus
livros.
— Gostei da sua noiva, Oliver — ela riu. — Então, tragam os novos
documentos na balsa amanhã, às nove. Irei partir, mas antes de ir vou assinar o
que desejam.
Quando ela sumiu, nós dois suspiramos aliviados.
Capítulo Onze
MATERNIDADE

E
u estava tão nervosa que não sentia as minhas mãos.
Oliver entendeu aquilo, talvez por isso, momentos depois, segurava meus dedos,
para me ajudar a suportar aquela provação.
No dia anterior, ele havia passado cada hora em contato com um
advogado pela internet. Os documentos foram preparados e bastava a assinatura
de Ava para que pudessem ser encaminhados a justiça.
Em poucas horas aquele pesadelo terminaria, disse a mim mesma. Ava
seria apenas um nome na lista de pagamentos da empresa. E ela nunca, em
hipótese nenhuma, se aproximaria de Catherine.
— Você acha que ela vai cumprir com o combinado? — indaguei a ele.
Oliver assentiu.
— Ava não é idiota. Ela sabe que se descumprir poderemos levá-la a
justiça. Ela sabe que iremos destruir sua vida deixando claro que ela vendeu a
filha por dinheiro.
O dia estava frio. A balsa balançava levemente sobre o mar. Apertei meus
braços em volta do meu corpo, olhando para a estrada.
Onde estava aquela mulher? Por que não acabava logo com aquele
tormento?
Subitamente, ouvi o som de uma música. O celular de Oliver tocava. Ele
havia recebido uma mensagem e agora a lia em silêncio.
De repente, seus olhos volveram-se para os meus.
— O que foi? — questionei.
— Richard... — murmurou. — Ele largou o dossiê na internet.
Através do próprio aparelho, ele abriu uma aba de navegação. Ao lado
dele, vi um site de fofocas sendo carregado. Uma foto de Ava com a palavra
“escândalo” surgiu em vermelho. Logo abaixo, estava a foto de Cathy e eu no
jardim.
— Meu Deus — murmurei.
Então veio uma dor absurda no coração. Algo que eu nunca havia sentido
antes, mas que eu sabia que pressentia o pior.
Deixei a balsa e corri pelo cais.
— Amelia — Oliver gritou meu nome.
— Preciso ver Catherine — o avisei.
Naquele instante eu soube que havia crianças que nasciam em ventres, e
outras que nasciam no coração. O pressentimento de mãe que tive sobre Cathy
foi tão poderoso que confirmou o que eu já sabia: aquela pequena menina loira e
cega era minha filha e eu a amava tremendamente.

— Cathy — gritei, entrando na Mansão Turner.


Silêncio. O silêncio era abrasador.
— Ela não está aqui — disse o óbvio.
— Ela deve estar lá em cima — Oliver destacou, mas eu me recusei.
— Procure-a na casa. Irei procurá-la nos arredores.
Havia uma urgência em meu coração que era inexplicável por palavras.
Oliver percebeu aquilo e entendeu. Foi sensível o suficiente para respeitar minha
decisão.
Em passos corridos, ele subiu as escadas, enquanto eu fazia o caminho
contrário.
— Catherine! — gritei, já na estrada.
Se alguém um dia me perguntasse por que fui em direção ao penhasco
que era mirante, eu não saberia explicar. Tudo que sabia é que todo meu corpo
sentia que era lá que Cathy estava.
E isso me desesperava.
De início, caminhei rápido. Logo, não era mais o suficiente, e eu corri.
E quando meus olhos enfim enxergaram Cathy eu chorei, não de alívio
mas de desespero.
Ali, próximo do penhasco, a mulher que lhe deu a luz a segurava pelo
braço, como se estivesse pronta a atirá-la de lá.
— Pelo amor de Deus, Ava — eu gritei. — O que está fazendo?
O choro baixo de Cathy chegou a mim e meu corpo quase se curvou
diante do desespero.
— Amelia — Cathy pediu por mim. — Não reconheço esse som... É o
mar?
O mar ali tinha um tom extremamente agressivo. Suas ondas intensas
chocavam-se contra rochas sólidas.
— Ava, em nome de tudo que é mais sagrado, imploro que não faça isso.
— Amelia Fedida sempre me atrapalhando, não é? Na época de escola
tirou meu namorado. Agora, pensa em roubar até minha filha...
— Ava... Por favor...
— Por que vai atirá-la do penhasco, Amelia?
A pergunta me deixou em choque. Meu corpo inteiro travou.
— O quê?
— Voltei a essa ilha para retomar meu casamento e ficar com minha
filha, mas você, despeitada, decidiu me destruir e a atirou desse penhasco.
— Você é um monstro — gritei.
— Eu sou apenas uma mãe sofrendo porque uma mulher horrível fez
tamanha maldade com minha pequena filhinha cega — gargalhou. — Imagine as
manchetes. Será que a Rainha me receberá como símbolo de minha futura luta
em defesa das crianças?
Meus pés se moveram lentamente em sua direção.
— Ava, eu juro que a mato se fizer qualquer coisa contra Cathy.
O choro baixinho da criança me movia. Eu sabia que se Cathy caísse
dali, eu me jogaria atrás. Mas, não sem antes empurrar Ava do mesmo lugar.
— Amelia Fedida me ameaçando? — ela gargalhou enquanto balançava
o corpo de Cathy.
Mais dois passos em sua direção.
— Eu só quero Catherine — expliquei.
— Você sabia que mesmo que tenha ido embora, seu fedor prosseguiu em
Hill? — ela despejou. — Oliver se casou comigo, mas em nenhum momento
deixou de olhar para aquele casebre ao lado da casa de sardinhas. Eu sempre
soube que ele queria você. Mas, o que nunca compreendi foi o porquê.
Enquanto ela falava, eu estava quase ao alcance dela. Mais três passos, e
eu conseguiria pegar Cathy.
— Amor não se explica — tentei fazê-la continuar a falar.
— De fato. Nunca foi a mais bonita. Oh, não é feia, admito, mas nunca
chegou aos meus pés. Depois, nunca foi inteligente. Nunca se vestiu bem. Era só
a filha abandonada de uma puta qualquer e de um bêbado inconveniente. Não era
inteligente, nem tinha qualquer atrativo. Por que diabos ele a quis?
— Eu não sei — minha voz estava embargada pelas lágrimas.
— Nisso, são parecidas — ela puxou o braço de Catherine. Naquele
momento, percebi que Richard estava certo, Ava era um monstro histérico. —
Por que Oliver está sacrificando tanto dinheiro por uma cega que nem é filha
dele? E você? Chorando por uma criança que não tem nenhum laço?
Eu não explicaria o amor para Ava. Ela era incapaz de entender isso.
— Se você quer vingança, solte Catherine e fique comigo — implorei. —
Mas, por favor, não a machuque.
— Mas machucá-la é a vingança perfeita! — ela gargalhou. — Serei
eternamente o símbolo de maternidade do Reino Unido. Todos me
homenagearão e me confortarão.
— A vida não é só fama — tentei convencê-la.
— Popularidade é tudo que me importa.
— Então é melhor repensar sua decisão — uma voz à esquerda nos
assustou.
Era Richard. Richard com uma câmera na mão.
Estremeci diante do que vinha.
Capítulo Doze
O FIM

A dmito que não avaliei bem a situação sobre Richard. Eu devia ter imaginado
que ele não desistiria tão fácil assim após Oliver e eu termos jogado a toalha e
aceitado a derrota para Ava.
Talvez porque a conhecesse melhor do que ninguém. Richard havia sido
seu amante, era capaz de ler suas intenções. Ele sabia que Ava era um monstro e
eu me culpei por não ter acreditado nele o suficiente para ter lutado contra ela e
evitado aquela cena deprimente.
— Além de todos saberem quem de verdade você é, Ava, será presa. É
sua punição. Matou meu filho e agora quer matar essa criança. Você é uma
psicopata.
Ava nitidamente ficou sem reação. Enquanto seus olhos estavam em
Richard e sua mente tentava processar a informação de que seus planos estavam
falhos, eu fui me aproximando novamente. Um passo de cada vez. A mão
estendida, tentando pegar Catherine.
— Ainda a tempo de evitar a prisão, Ava — Richard murmurou. — Dê a
criança para Amelia que eu não mostrarei esse vídeo para todos.
Eu percebia a loucura cruzando no olhar de Ava. Era agora ou nunca.
Avancei e puxei Catherine com força contra mim.
Ela gritou.
— Está tudo bem, amor... — eu tentei acalmá-la enquanto se debatia. —
Sou eu, sou eu...
Meu olhar cruzou com Ava. Eu amava a filha que ela renegava. Eu
desprezava o mundo de aparência que para ela era tão importante.
Nós éramos opostas. Mas, subitamente, quando a percebi balançando
para trás, nos vi iguais: humanas.
— Não faça isso! — gritei.
Era tarde demais.
Seu delicado corpo caiu sobre as rochas e, em seguida, o mar a levou.
Epílogo
FUTURO

A televisão estava ligada. Nela, o âncora Richard Clint anunciava um novo


plano econômico para o Reino Unido.
Sorri diante da visão de meu amigo.
Um ano antes, foi sua gravação que me livrou de uma investigação sobre
a morte de Ava Turner.
Por respeito à Catherine, tudo foi mantido em sigilo e a polícia encerrou
o caso como suicídio. O fato foi noticiado algumas vezes na imprensa, mas Ava
logo foi esquecida em favor do casamento de um cantor famoso.
Ela sempre quis popularidade. Agora, era completamente abandonada
pela mesma notoriedade que tanto lutou para manter.
A porta abriu. Volvi o olhar para a entrada e sorri em direção ao pai e a
filha que chegavam.
— Como foi em Carlisle?
Oliver havia saído no dia anterior com nossa filha para assinar um novo
contrato com a editora.
— Deu tudo certo — ele murmurou, curvando-se e beijando-me nos
lábios.
Logo, contudo, foi afastado por Cathy que se sentou em meu colo.
— Papai parou o carro em uma ponte antiga e eu pude sentir as pedras
nas mãos — ela me contou, muito animada.
— É mesmo? E como foi?
— É incrível, mamãe. Pude reconhecer todos os desenhos.
Catherine nunca falou sobre a situação com Ava. Nunca pronunciou ou
questionou as implicações da mulher sobre não ser filha de Oliver. E nós, da
mesma forma, enterramos o assunto.
Porque, de fato, não importava. Catherine era nossa primogênita e ponto.
Nós a amávamos e a queríamos muito.
Senti seu toque no meu ventre avantajado. Depois, James surgiu e ela
seguiu com o mordomo para lanchar.
Oliver esperou ela se afastar para voltar a beijar-me na boca.
— O médico disse o sexo? — perguntou.
Ele foi a Carlisle com nítida contrariedade. O exame do dia anterior era o
que diria se nós teríamos um menino ou uma menina engatinhando pela casa no
próximo verão.
— É uma menina — eu sorri. — Uma menina. Que nome daremos a ela?
Percebi as lágrimas nos olhos.
— Emily — respondeu. — Porque Emily Brontë criou Catherine em sua
mente. E a nossa Emily irá ajudar a cuidar da irmã.
Lutaríamos para que Cathy tivesse independência e profissão. Que fosse
dona da própria vida. Mas, também reconhecíamos que haveria dificuldades e
queríamos que aquela família fosse seu suporte.
— Eu te amo — ele murmurou, contra meus lábios.
Ao longe, ouvi Cathy nos chamando para lanchar. Meu marido ajudou-
me a me colocar de pé – a barriga já era pesada e eu sempre gostava da maneira
como ele era carinhoso em me amparar –, e fomos em sua direção.
Ao chegar à sala de jantar, observei a mesa. Oliver sentou-se ao lado de
Catherine e eu sorri diante da cena.
O reflexo dele era visível do lado oposto, onde um enorme espelho oval
adornava o ambiente.
Aquele homem por trás do espelho era o homem que eu amava.
Aquela, com certeza, era a melhor parte da minha vida.
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Josiane Biancon da Veiga nasceu no Rio Grande do Sul. Desde cedo, apaixonou-se por literatura, e teve
em Alexandre Dumas e Moacyr Scliar seus primeiros amores.
Aos doze anos, lançou o primeiro livro “A caminho do céu”, e até então já escreveu mais de vinte livros,
dos quais, vários destacaram-se em vendas na Amazon Brasileira.
Table of Contents
JOSIANE VEIGA
Nota da Autora
Dedicatória
Capítulo Um
Amelia, a fedida
Capítulo Dois
RETORNO
Capítulo Três
CATHY
Capítulo Quatro
OLIVER
Capítulo Cinco
PROTEÇÃO
Capítulo Seis
SEMPRE VOCÊ
Capítulo Sete
A REALIDADE
Capítulo Oito
LARNE
Capítulo Nove
A VERDADE
Capítulo Dez
O MAU
Capítulo Onze
MATERNIDADE
Capítulo Doze
O FIM
Epílogo
FUTURO
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