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Tudo

Por Ela
Almas Gêmeas – Duologia – Livro 01
É proibida a distribuição total ou parcial dessa obra sem a prévia autorização da autora.

Essa é uma obra de ficção com elementos históricos. Qualquer semelhança com
nomes ou situações informadas é mera coincidência.

Todos os direitos pertencem a Josiane Biancon da Veiga.

ISBN: 9781521012406
“O verdadeiro amor espera uma vez mais”

Ivo Pessoa
Sinopse

“Quantas vidas vou viver até encontrá-la?”

França, II Guerra Mundial

Esther Wiesel sempre aceitou seu papel passivo de filha de um


comerciante abastado. Contudo, naquele verão de 1938, viu-se acuada por um
casamento arranjado, fruto do desejo paterno em manter os traços judaícos de
sua família bem encaminhados.

Foi Therron, um jovem pintor francês libertino, que virou seu mundo
do avesso, fazendo-a tornar-se uma pária para a família, mas uma mulher
extremamente feliz com o homem que sempre estaria em seu coração.

Porém, quando a Guerra explode e a Gestapo a tira dos braços de seu


amor, é em suas promessas de eternidade que ela se agarra para sobreviver ao
terror que se torna sua vida.
Sumário
Dedicatória:

Nota da Autora:

Capítulo 01

Capítulo 02

Capítulo 03

Capítulo 04

Capítulo 05

Capítulo 06

Capítulo 07

Capítulo 08

Capítulo 09

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

DEMAIS LIVROS DA AUTORA


Dedicatória:

Ao livro Kinshi na Karada, ao qual nunca consegui me


desvencilhar, e que me fez retornar ao universo terrível da guerra...
Nota da Autora:

Um autor costuma ter muitos livros na mente, escondidos até de si mesmo. Essa obra era uma das
minhas histórias secretas. Assim como Kinshi na Karada, estou ciente que não é um livro para todos.
Mesmo assim, é um livro que precisava escrever. Eu devia isso a mim mesma.

Depois que lancei Esmeralda, percebi que ainda havia muito fragmentos de minha alma para
entregar a literatura nacional. Alguns projetos antigos, jamais comentados, começaram a tomar forma, e
Therron e Esther enfim saíram da mente e se transportaram para as linhas.

Não vou mentir. Não sei se você vai ler esse livro até o final. Não sei se você vai ter estômago.
Não sei se você vai se encorajar a acreditar na intenção da obra e ler o segundo livro, que será lançado
tão logo esse. Mas, prometo que, se conseguir, vai ser entregue, principalmente no segundo livro, uma
finalização carregada de esperança.

Um adendo muito importante: diferente de Kinshi na Karada, que tinha o teor histórico bastante
detalhado, esse livro não tem a finalidade de incrementar qualquer estudo sobre a guerra. Ele é a visão de
alguém que sofre durante os dias que se passam. Apenas isso. Não me amarrei a datas, etc, apesar de
que, alguns dos momentos mais fortes do livro, como o que ocorre no velódromo de Paris, os fatos foram
narrados com extrema verossimilhança.

Outra coisa: Quem acompanha minha carreira há mais tempo sabe do meu apreço pelo
detalhamento dos relacionamentos. Contudo, nos últimos anos, sou mais rápida, criando obras que tenham
profundidade sem se estender demasiadamente. Alguns leitores não gostaram, mas é nítido pela minha
liderança ininterrupta na categoria Medieval da Amazon de que a maioria prefere meus livros assim. Estou
escrevendo, nesse momento, pela maioria.

Enfim, muito obrigada por tudo, obrigada por sempre acompanharem minha carreira.

Muitos beijos,
Josiane Biancon da Veiga,
Março/2017
Capítulo 01

O amor não existe

França, 1938.

O sol já havia se posto, e agora uma leve brisa primaveril tomava


conta do ambiente externo do restaurante.

Sentados em uma fileira de cadeiras de madeira, enquanto desfrutava


um excelente jantar, a família Wiesel comemorava a ventura de uma vida farta.
Porque, bem da verdade, naqueles dias imprecisos, ter dinheiro o suficiente
para comemorar um noivado num dos restaurantes mais caros de Paris não era
para qualquer um.

Proveniente da Alemanha, Frederic Wiesel, o patriarca, chegou com a


esposa Margareth em meados da Grande Guerra, que deixou o povo alemão
em ruínas. Buscando um lugar para recomeçar, ele inaugurou uma sapataria
perto do Louvre e, em pouco tempo, conseguiu boa freguesia e lucro.

No ano de 1918, uma filha, a primeira e única, lhe trouxe grande


felicidade ao nascer, coroando seus esforços, uma recompensa divina pela
qual ele era muito grato.
A vida seguia bem. Deus estava com eles.

Judeus fervorosos, deram a menina o nome de Esther, em homenagem a


antiga Rainha das Escrituras que tocou o coração de um Rei pagão através de
sua oração.

Naquele dia, enquanto admirava o lindo Jardim de Bagatelle, Frederic


não se atentou ao semblante antagônico da filha, que em nada lembrava aquela
monarca vitoriosa.

Para ele, era uma noite de grande júbilo. Josef, filho de um importante
industrial e membro do templo que frequentava, havia comentado sobre os
sentimentos que passara a nutrir por Esther.

Em poucas semanas, com o apoio do rabino, o casamento estava


marcado. Naquela noite tranquila, a alegria tomava conta da família enquanto
o jovem Josef colocava um anel no dedo de uma Esther sem reação.

Os risos acompanhavam o sorriso alegre do noivo. Todavia, ninguém


parecia notar o olhar sério de Esther para a joia, enquanto sua alma
transparecia dor.

Era uma noite alegre para os Wiesel. Parecia um pesadelo latente para
Esther.
Os risos ficaram para trás. Esther caminhou até o canteiro de rosas,
enquanto a mente divagava em sonhos que jamais se concretizariam.

Josef não era um homem desagradável, e ela reconhecia que o pai


havia escolhido, à sua maneira, o melhor para ela. Contudo, em seus tolos
devaneios de menina, acreditou que um dia iria se apaixonar e se casar por
amor. O amor, porém, naquele instante, parecia tão longínquo e inatingível.

Esther tinha o sonho de liberdade. Conhecer o mundo, estudar, divertir-


se, fazer qualquer coisa que a sua alma indomável desejasse.

Mas, a moça judia também sabia que havia responsabilidades que não
se pagavam. Ela devia aquilo ao pai e a mãe, que haviam sofrido muito para
que ela tivesse tudo.

Olhou para si mesma. O vestido de boa qualidade, os calçados de


última moda, cada peça que a cobria tinha um preço.

Levou a mão para trás e colocou o cabelo escuro atrás da orelha. Até
mesmo as madeixas bem cuidadas custavam caro.

Não que a família cobrasse algo dela, mas sempre ficou subentendido
que todos os gastos consigo eram focados na perspectiva de que ela realizasse
um bom casamento que traria felicidade a todos.

Subitamente, seu luto foi quebrado. Ao longe, risos masculinos


chegaram a ela. Três homens aproximavam-se, trazendo consigo garrafas de
bebida, e cantigas românticas clichês.

Mais risos. Esther preparou-se para afastar-se quando seu olhar


encontrou outro.

Naquele instante, a vida dela mudou.


Therron Esme cresceu num lar desfeito. O pai, um bêbado mundano,
fugiu com a amante, deixando-o na miséria com uma mãe doente.

Aos doze anos, ele passou a sustentar o pequeno apartamento que


viviam no subúrbio de Paris, limpando lareiras ou fazendo qualquer coisa que
aparecesse; e, aos catorze, passou a viver sozinho após a tuberculose levar sua
genitora.

Por sorte, o Deus que governava o universo lhe deu um dom: a arte de
transparecer com cores e pinceis momentos únicos, serviu também para lhe
pagar as contas.

Therron era prolífero. Realizava muitos quadros em pouco tempo, e os


vendia a um preço justo nas praças que frequentava. Não ganhava muito, mas
tinha o suficiente para aproveitar a vida libertina e boêmia ao lado dos
amigos.

E havia dois, em especial. Pierre, um jovem estudante de medicina e


Vladimir, um rapaz russo que havia vindo à França para aperfeiçoar o idioma.

Juntos, o trio trocava o dia pela noite, bebia mais do que o corpo
aguentava, aproveitava os prazeres mundanos que estavam à disposição, e
flertavam com as mais bonitas francesas que apareciam.

Parecia uma vida perfeita. E o era. Em nada, Therron mudaria aqueles


dias.
Mesmo assim, era temente a Deus. Católico, ia à missa, respeitava o
padre, rezava todas às noites antes de dormir. Agarrava-se em algo que não
via, mas sentia, para crer que havia um futuro além da vida desgarrada.

Naquela noite, depois de dançarem em uma festa, o trio esgueirou-se


para o jardim de Bagatelli, onde o conde Artois construiu a mais bela estrutura
que os olhos podiam ver, numa flora impecável, repleta das mais diversas
cores.

— Eu vi — Pierre gritou em sua direção, após uma piada mal contada


os fazerem gargalhar. — Vi como Marie olhou para você na festa.

Therron deu os ombros, afastando-se do amigo.

— Marie é uma jovem respeitável — apontou. — Não vou me


aproveitar de sua inocência apenas porque ela encantou-se com meus lindos
olhos azuis e meu belíssimo cabelo loiro — brincou. — Confundiu-me com
um anjo, coitada.

— Mal sabe ela que está diante do demônio, em pessoa — Vladimir


completou, as gargalhadas inundando sua garganta. — Pobre jovem...
Apaixonou-se pelo pior dos canalhas.

— Não sou um canalha.

A negativa de Therron quase fê-lo cair no chão. Estava tão bêbado que
qualquer esforço o desequilibrava.

— Apenas, não acredito no amor — prosseguiu. — E não escondo isso


de ninguém.

— Um dia — Pierre profetizou —, vai apaixonar-se perdidamente por


uma mulher e esquecerá cada uma dessas palavras tristes.

— O amor não existe — apontou, recusando.

O amor, ou o que quer que fosse que representava aquele sentimento


que tomava o coração dos desafortunados, havia feito seu pai fugir de casa e
sua mãe se deixar levar pela doença e tristeza.

Ele não precisava de amor.

Volveu então para frente, a fim de prosseguir sua caminhada quando se


deparou com uma jovem ao lado de um canteiro de rosas.

Ela era linda. Os cabelos negros estavam soltos, caindo sobre os


ombros em cachos definidos. Vestia um bonito vestido de tom pastel, e o olhar
escuro parecia esconder muitos mistérios.

— Ei — Pierre se aproximou, puxando-o.


O olhar de Therron não a deixou.

— Idiota! — o amigo o xingou. — Vamos! Ainda temos que...

As palavras prosseguiam, mas Therron não o ouvia.

Porque ali estava ela. Ali... Há poucos passos de si... Bastaria apenas
cruzar a pequena distância que os separava e ele estaria junto dela...

Novamente.

Sim, não era um encontro casual. Era um reencontro programado pelo


destino. Ele havia localizado alguém que lhe pertencia. Alguém a quem estava
vinculado desde o início dos tempos.

Sabia disso. Ela também. Percebia pelo olhar assustado que aquela
sensação não era exclusiva sua.

Fez menção de ir à sua direção, quando uma voz a distância quebrou a


mágica. A mulher pareceu assustada por alguns segundos, e então lhe deu as
costas, correndo em direção ao som.

Ele a havia encontrado.


Nunca mais a deixaria partir.

Aqueles olhos azuis ela levaria para sempre. Eram como um lago
profundo, que lhe remetia a profundezas inimagináveis, a momentos únicos,
que ela vivera, mas não se recordava.

Um Déjà vu.

Sim, ela já o havia encontrado antes. Em que momento, não sabia.


Porém, ela o conhecia. Sentia seu tato, seu cheiro, como se fossem feitos do
mesmo barro, destinados a estarem juntos desde que o tempo passou a existir.

Arrepiou-se.

Parou sua caminhada quando trombou em alguém. Josef havia vindo


atrás dela, e aquela repentina necessidade de aproximação do homem a
sufocou. Tentou desviar-se, mas ele a conteve.
O noivo sorriu.

Esther nunca lhe dava intimidade, e ele não a tomava, tampouco. Era
sempre um cavalheiro, e, por alguns segundos, ela apiedou-se do jovem,
desejando que ele pudesse encontrar alguém que o amasse como merecia,
porque ela jamais o faria.

— Você sabe — ele comentou, atraindo sua atenção. — Você me


lembra rosas.

Mesmo sendo essas as suas flores favoritas, era um elogio sem nenhum
cabimento. Ela tentou sorrir.

— É mesmo? Por quê?

Silêncio.

— Gostaria de voltar para junto de nossa família? — a indagação


masculina era claramente desconfortável.

— Tomarei um pouco mais de ar — ela comentou. — A massa estava


um tanto pesada.

Assentindo, Josef a deixou. Foi um alívio tão imenso que ela sentiu os
olhos enchendo-se de lágrimas diante do que se seguiria.

Como conviver com um homem que ela não suportava sequer fazer
companhia por alguns instantes? Como permiti-lo beijá-la, fazer-lhe amor?

— Você me lembra rosas — um tom masculino surgiu atrás dela,


fazendo-a volver-se imediatamente.

Ali estava ele... O loiro que a havia marcado tão profundamente com
um simples olhar.

Ele era bonito. Alto, magro, cabelos bem alinhados num corte moderno
e curto, e o olhar... Por Deus... O olhar...

— Por quê? — a pergunta dela era direta.

— Porque as rosas são camadas que se completam — apontou, a voz


um tanto arrastada. — Se você consegue captar a beleza de uma pétala, acaba
descobrindo a importância de todas as pétalas juntas. E você é assim. A
junção de muitas coisas que formam um encanto único. Palavra nenhuma é
capaz de expressar tamanha beleza.

Ela riu.
— Está bêbado.

— Estou bêbado — ele concordou. — Mas, não cego.

Aproximou-se, estendendo a mão.

— Therron — se apresentou. — Therron Esme — completou,


adicionando o sobrenome. — E sua graça?

— Sou Esther Wiesel — ela respondeu, aceitando o cumprimento.

O toque teve um efeito imediato em ambos. Assustados, separaram os


dedos com nítida rapidez.

— Vai parecer um flerte — ele murmurou. — Mas, acredite-me, não o


é. — Respirou fundo. — De onde eu a conheço?

Visualizar a pergunta que ela se fazia saindo dos lábios masculinos


trouxe-lhe estranhamento.

— Não faço ideia.

De repente, vozes ao longe. O olhar de Esther tornou-se nuvem


escurecida.

— Perdão, preciso ir.

— Espere — segurou-a pelo braço. — Não posso ficar sem vê-la —


murmurou, e ela entendeu que aquilo era essencialmente real. — Onde você
mora?

Não devia dizer. Ou simplesmente devia mentir. Contudo, a verdade


escapou dos lábios.

— Em cima de uma sapataria, perto do Louvre. É a única sapataria


daquele lugar.

Assim, ela correu em direção aos pais. O coração aos saltos, uma
emoção tremenda, algo que a mudaria para todo sempre.
Capítulo 02

O amor que existe

Therron Esme não havia pregado o olho desde o encontro noturno.


Enquanto o efeito do álcool o deixava, ele buscava os pinceis para captar a
imagem daquela mulher, temendo perdê-la nas lacunas da mente.

Contudo, ainda podia vê-la, os cabelos escuros, os olhos profundos, a


pele pálida, o corpo bonito... Até o tom da voz, ele reconheceria. E, enquanto
os dedos traçavam linhas numa figura bem talhada ao lado de um canteiro de
rosas, ele sentia a emoção tomar conta de sua alma, a transparecer por sua
arte.

Quando o dia amanheceu, postou-se em direção ao centro, próximo do


sena, a buscar por uma sapataria, único indício de que a visão da noite
anterior não era fruto de sua mente arrebatada.

Logo encontrou, num sobrado em uma esquina movimentada, a Wiesel


Sapataria. O lugar já estava aberto, e o movimento era intenso.
Nas vitrines, ele podia ver os calçados bem feitos, e um senhor bem
ajeitado a atender os clientes.

O desenho que trabalhara durante a madrugada estava em suas mãos.


Imaginou se era uma boa ideia entrar, falar com o homem; por fim, seu coração
decidiu por ele.

Afinal, não havia escolhas. Therron Esme, o pintor que dizia


claramente que o amor não existia, agora estava completamente apaixonado
por alguém com quem trocou meia dúzia de palavras e que havia visto uma
única vez.

Entrou. O homem o encarou com um sorriso simpático e se aproximou.

— No que posso ajudar, meu jovem?

Estendeu a ele a pintura. Imediatamente o comerciante e sapateiro


reconheceu a moça desenhada.

— Procuro por Esther — anunciou.

— É minha filha — o homem contou, o tom sério.

Therron não esmoreceu.


— Sou amigo de sua filha e gostaria de...

— Deixe-me explicar algo. — Interrompeu, um tanto obtuso. — Uma


jovem judia não tem amigos homens que não fazem parte de sua congregação.
Especialmente um artista, alguém sem eira, sem beira, claramente sem
princípios religiosos. Não vejo vantagem nesse tipo de amizade, portanto,
passar bem — apontou a porta.

— Mas...

— Minha filha está noiva. Irá se casar em poucos dias. Por favor, não
volte mais.

Diante das palavras, Therron simplesmente recuou.

Pela primeira vez, sua vida desgarrada lhe trouxe consequências. E


eram as mais desastrosas possíveis.
Esther vestiu o casaco de veludo. Apesar da primavera, as manhãs
ainda eram geladas próximo do sena.

O pai surgiu à porta e ela lhe sorriu.

— Estou indo até a biblioteca — comentou. — Terminei uma das obras


de Dumas, e quero ler outra.

A literatura era seu refúgio. Ela amava as letras, e até mesmo arriscava
alguns versos datilografados com esmero. Contudo, ainda não se sentia segura
para mostrá-los a alguém. Quem sabe um dia poderia realizar seu sonho e ser
uma escritora?

O homem assentiu.

— Conhece um pintor, Esther?

— Um pintor?

A indagação de retorno denotava que ela não fazia ideia de quem o pai
estava falando.

— Um jovem loiro esteve nessa manhã na sapataria. Disse conhecê-la


e queria lhe entregar uma pintura.
Silêncio. A mente de Esther parecia em conflito. Logo o pai entendeu
que ela reconhecia a figura descrita em suas palavras.

— O dia de seu casamento se aproxima, Esther. E será com um rapaz


formidável que te dará uma boa vida, com conforto e respeito. Sei que é
jovem, e que sonha com coisas a mais, mas, acredite em mim, todo o resto é
ilusão.

Ela assentiu.

— Um artista pode ser algo tentador quando se é jovem. Contudo,


igualmente, costumam ser pobres, e qualquer sentimento que nutrisse por ele
seria recompensado com miséria. — Aproximou-se, apertando seus ombros.
— O amor acaba quando o pão falta, minha pequena.

Ela sorriu.

— Amor, papa? Mal trocamos algumas palavras ontem à noite.

A resposta, claramente, satisfez Frederic. Logo ele a deixava.

— Vá à biblioteca, filha — disse. — Cultura e conhecimento nunca


são demais.
As ruas estavam repletas de gente indo e vindo, em suas próprias
tarefas. O vento bateu contra o rosto, e ela logo apertou o casaco, protegendo-
se de coisas além da aragem fria.

As palavras paternas tocaram-na profundamente. Porém, pelos motivos


errados. O fato de que Therron a havia procurado parecia corroê-la e a animá-
la de maneira inexplicável.

O coração batia tão forte no peito, que um sorriso mal conseguia ser
contido.

O que era aquela sensação potente?

Repentinamente, a figura loira surgiu diante dela, como um fantasma


conjurado. O sorriso dele logo a cativou. Viu-se a retribuir, sem conseguir
controlar a ansiedade em estar próxima dele.

— Fui procurá-la — ele disse. — Seu pai não me deixou vê-la.

Ela ignorou o tom abatido.

— Por quê?

— Queria lhe mostrar algo que fiz — estendeu a ela a pintura que
expressava a noite anterior, quando se conheceram.

A mão feminina não se moveu.


— Não posso aceitar.

— Não pode ou não quer?

Aquela mágoa nítida fê-la lacrimejar.

— Sou noiva — contou, as palavras dolorosas.

— E você o ama?

A questão lhe tirou o ar.

— Que tipo de pergunta é essa? Mal nos conhecemos!

— Mal se conhecem... — repetiu as palavras. — Quis dizer, você e


seu noivo?

O sorriso irônico dele a inflamou.

— Quis dizer nós dois! Nós mal nos conhecemos para que venha com
perguntas descabidas!

A gargalhada não mais se conteve. O riso dele a fez sorrir também.

— Sabe que mente — murmurou. — Sabe que nós dois temos mais
histórias do que pudemos nos lembrar.

Aquela afirmação a assustou, e Esther viu-se a caminhar para longe


dele. Logo, percebeu ser seguida.

— Você não respondeu. Ama seu noivo?

— Vou amar — afirmou. — Amor se conquista com o tempo.

— Amor é imediato — ele retrucou. — Eu te amei no instante que a vi


parada ao lado das flores, e sei que é recíproco.

— Está louco.
— Estou — concordou. — Como nunca estive antes. — Segurou seu
braço. — Dei-me uma única chance, uma única noite. À meia noite estarei
embaixo de sua janela. Iremos passear pela cidade, conversar, estarmos
juntos. Se, no final da noite, você não tiver certeza de que pertencemos um ao
outro, prometo nunca mais importuná-la.

Enquanto a figura masculina afastou-se, ela permaneceu a encarar o


horizonte, como se a escolha diante dela pudesse mudar a sua vida.

Ainda não era meia noite, mas a figura coberta por um capuz já se
encontrava abaixo de sua janela.

A noite fria parecia não acovardá-lo, e Esther segurou a cortina com


força, tentando decidir o que fazer.

Uma vez sua falecida avó lhe dissera que o pior pensamento que uma
pessoa poderia ter na velhice era o arrependimento pelo que não viveu. De
alguma maneira, a jovem sabia que, caso não fosse até ele, ela viveria aquela
experiência nos seus dias finais.

Provavelmente, naquela noite decidisse sua vida. O pai estava certo, e


um artista costuma ser por demais encantador. Tão logo lhe visse os defeitos,
ela entenderia que era em Josef que devia firmar seus pensamentos e suas
emoções.

Abriu a janela. A escuridão reinante do lado externo a tocou. A família


costumava dormir cedo, e ela sabia que ninguém lhe daria por falta até de
manhã.

Era um risco. Mas, a urgência em seu âmago a impelia a cometer


aquela loucura.

Esgueirou-se pela sacada, até que sentiu as mãos de Therron a


auxiliando. Ele havia escalado as paredes e a protegia, para que ela
alcançasse o chão.

Tão logo estavam em terra firme, encararam-se. Havia um misto de


euforia e culpa no rosto de Esther, mas logo foi substituído pela certeza de que
tomara a melhor decisão.

Ao lado dele, ela sentia-se tão feliz como nunca.

— Aonde iremos? — inquiriu.

— A uma festa — murmurou. — Uma noite para dançar e conversar —


explicou. — Somos jovens e devemos isso a nós mesmos.

Enquanto a gaita tocava num ritmo frenético, e pares bailavam


animadamente no centro daquele ambiente, Esther encarava as faces com
nítido interesse.

Jamais estivera em um lugar assim. Era uma espécie de salão de festas,


mas muito mais escuro e com muita mais bebida dos que ela frequentava com a
família. E a música era tão alta que mal conseguia ouvir Therron falar.

Após ele dizer algo e ela franzir a testa, em dúvida, a boca dele
aproximou-se de suas orelhas.

— Estou levando-a para o mau caminho — ele murmurou, rindo.

O olhar dela não o desmentia.

— Não se preocupe — prosseguiu, o tom masculino não escondia a


felicidade. — Não importa o caminho, estarei ao seu lado, e vou protegê-la.

Assim, ela foi levada ao centro do baile. Sentiu as mãos de Therron em


sua cintura, apertando-a, trazendo-a contra ele, e então ele deslizava com ela
pelo salão, fazendo-a gargalhar como nunca, num galope musical, canções tão
alegres que invadiam sua alma e latejavam seu coração.

Dançaram assim por cerca de meia hora, até o ar lhe faltar e o cansaço
a tomar. Depois, Therron a puxou em direção a uma mesa e lhe serviu uma
caneca de cerveja.

Era a primeira vez que bebia álcool, mas não se importou. Estava
completamente entregue às mãos dele. E ele cuidaria dela.

— Então você é pintor? — ela começou, puxando assunto.

— E você não aceitou meu presente — apontou, assentindo. —


Pintarei muitos quadros com seu rosto.

— Meu rosto? Não devo ser uma boa modelo.

— Creio que será a melhor.

Ela sorriu, embevecida.

— Onde mora?

— No subúrbio, ao norte. Em Sarcelles.


— E você vive do que pinta?

— Parece surpresa. Não passo fome, lhe garanto.

— Não me entenda mal. Vi uma única obra sua, e a achei fantástica,


porém...

— Porém?

— Meu pai sempre disse que artistas são sem futuro.

A afirmação não o ofendeu.

— Seu pai deve estar certo — concordou. — Mas, eu pretendo


conseguir emprego em uma fábrica, entende? Para sustentar minha esposa.

A palavra a assustou.

— Esposa?

— Sim, você.

Ela não resistiu e riu da frase.

— Parece tão certo do que quer.

— Você não?

— Eu sou uma jovem judia com um destino já traçado — contrapôs. —


Essa noite é apenas um lampejo de felicidade, algo a me apegar...

— Enquanto os dias passam sem que saiba o que é emoção? Enquanto


o marasmo destrua sua sanidade? — completou. — Diga-me, Esther: uma vida
difícil, mas ao meu lado, é tão pior que a vida compartilhada com quem não se
ama?

Aquela pergunta a calou. Porque, bem da verdade, as últimas vinte e


quatro horas haviam sido tão idílicas que eram quase inacreditáveis.
Subitamente, deu-se conta do tempo.

— Vinte e quatro horas... — murmurou. — Talvez um pouco mais de


horas, mas... definitivamente, é o tempo que nos conhecemos.

— E você já sabe que trocará tudo que tem, tudo que foi condicionada,
por esses poucos momentos.

— Não trocarei — negou, mas não havia convicção na sua voz.

— Trocará — aproximou-se dela. — Porque vinte e quatro horas já


mudaram sua forma de ver sua própria existência. Além disso, está focada no
agora, e isso é um erro. Afinal, quantas vidas já tivemos juntos? Você sabe.
Você me reconhece. E é tão forte, tão intenso que não consegue fugir.

Então, o dedo polegar dele deslizou pelo queixo feminino. Os olhos


azuis cravaram-se na boca delicada, e logo a boca dele teve o mesmo destino.

Enquanto a banda tocava uma melodia animada, neles, tudo era lento e
avassalador. Os lábios a se tocar, o beijo a se traçar, a intensidade das
emoções tão fortemente angariadas em suas almas jovens.

Esther desfez o beijo.

Não porque quisesse, mas porque era errado.

Tudo ali era errado.

Ela era noiva, filha de um membro importante de um templo judaico. E


ele era um pintor de rua, sem nada a lhe oferecer além das boas intenções.

— Eu não posso — negou, e então se levantou. — Irei embora, não me


procure mais.

Enquanto ela corria para a saída, as lágrimas que brotavam em seu


olhar também surgiram nos olhos azuis do homem que ficara para trás.
O espelho refletia uma noiva lindíssima. Esther tinha dificuldade de
reconhecer que a imagem era ela.

Havia passado pela purificação momentos antes de vestir aquele


bonito vestido branco. Estava em jejum e oração desde a manhã, ouvindo a
mensagem na voz delicada e emocionada da mãe que, naquele instante, Deus
perdoava todos os seus pecados, e estava expurgada para receber seu marido.

Contudo, haveria perdão para tão grave delito? Aceitar o jovem Josef
enquanto nutria algo tão intenso por alguém mundano como Therron?

— Tem misericórdia de mim, ó Deus, por teu amor; por tua grande
compaixão apaga as minhas transgressões — recitou o salmo 51. — Pois eu
mesmo reconheço as minhas transgressões, e o meu pecado sempre me
persegue.

O barulho no templo era intenso. Em breve, assinariam o contrato de


casamento que antecedia a cerimônia.

Na sala onde aguardava, solitária com seus pensamentos, sentiu a


garganta sufocar, enquanto desejava a morte.

Aliás, não seria essa a solução perfeita? Evitaria uma vida ao lado de
Josef e não envergonharia os pais.

Um barulho na janela vê-la voltar-se naquela direção. Pasma, encarou


Therron, metade do corpo para dentro da sala, metade para fora, a mão
estendida em sua direção.
— Li no jornal que hoje seria o seu casamento — ele murmurou. — E
eu nunca me perdoaria se permitisse que cometesse esse erro.

— Não posso fugir — ela murmurou. — Vá embora.

Contudo, ele sequer se mexeu.

— Não vou deixar que estrague a sua vida porque sua família não
entenderia tudo que se passa entre nós — afirmou. — Eu posso ser apenas um
pintor, mas vou batalhar para que nunca te falte nada. Posso não te dar luxo,
mas te respeitarei e serei o melhor homem que puder. — Seu tom amenizou. —
Você sabe que é minha, Esther... Você sabe.

A mão dele erguida, num convite óbvio, era irrecusável. Esther podia
recuar, mas não o quis. Enfim, chegou-se a ele, e deixou que ele a puxasse
para um abraço.

Enquanto eles fugiam pela janela, as estrelas se alinhavam no universo.

Na direção de um carro arista velho e enferrujado, um jovem de


cabelos escuros aguardava a dupla, sorridente.

No carona, outro rapaz também parecia muito satisfeito pelo desfecho.

— Esther — apontou Therron, empurrando a noiva para dentro do


automóvel. — Esse é Pierre — apontou o motorista. — E Vladimir. — O
homem ao lado lhe estendeu a mão.

Esther sorriu para eles, especialmente para o motorista, pelo qual


nutriu imediata simpatia. No coração, uma felicidade inexplicável pela
coragem em tomar as rédeas da própria vida.

— Para onde vamos? — Pierre indagou ao amigo.

— Para uma igreja.

— Uma igreja? Vamos rezar?

— Temos uma noiva pronta, meu caro — Therron apontou. — Falta


apenas um padre e Esther será completamente minha.

O apartamento pequeno e humilde era extremamente limpo. Essa foi à


primeira sensação que Esther teve ao entrar e encarar as madeiras que
revestiam o ambiente interno. Não que fosse uma surpresa, ela reparou como
as roupas (um tanto gastas) de Therron eram sempre impecáveis, mas ficou
agradavelmente surpresa em saber que seu – agora – marido era uma pessoa
que priorizava por algo que, para os judeus, era de muita importância.

Casaram-se em uma igreja católica no bairro que Therron morava.


Nada sabia sobre ele além daquilo. Ele era católico, e devoto de Maria, a mãe
do messias para os cristãos.

Era como um universo novo, arrepiante e desafiador. Ela havia


cometido uma loucura, sabia disso, mas não conseguia ter arrependimento.
Havia deixado à casa dos pais, o luxo provido por eles, e a sua congregação –
base de sua experiência espiritual – por um homem que só conhecia o nome, a
religião que seguia e a profissão.

Voltou-se para ele. Apesar de tudo, era como se reconhecesse seu


olhar. Não sabia nada dele, é verdade, mas conhecia cada pedaço de sua alma.

— Eu quero que saiba que não te forçarei a nada — ele avisou, um


sorriso casto no rosto. — Temos tempo — assinalou. — Uma vida inteira.

Ela retribuiu o sorriso. Voltou-se novamente para frente, e caminhou


até a janela.

Abaixo, as ruelas de uma Paris até então desconhecida para ela


pareciam intimidá-la, mas Esther estava pronta para enfrentar aquela nova
vida.

Do templo, partiram para a Igreja. Ela não voltou para os pais, porque
sabia que não haveria perdão. Não imediatamente ao menos, pois a decepção
de Frederic e Margareth devia estar sendo descomedida.

Sofria por isso. Mas, havia algo tão forte que a puxava em direção à
Therron. Era o inevitável. Do instante que se viram diante das rosas, até
aquele que foram declarados marido e mulher pelo padre, ela soube que era
dele.

— E seus pais? — indagou.

Claramente ele morava sozinho naquele local, mas acreditou que a mãe
devia ir até lá para deixar tudo organizado.

— Meu pai fugiu com uma mulher quando eu era uma criança —
contou. — Minha mãe morreu algum tempo depois.

— Oh — ela murmurou, enrubescida. — Sinto muito.


— Já tem algum tempo. — deu os ombros.

— E você vive sozinho, desde então?

— Sim.

— Sem ninguém para amar e ninguém que lhe dê amor?

Aquele sorriso tímido que sempre despontava nos lábios masculinos


pareceu expressar muito.

— Eu nunca senti falta — foi franco. — Era como se...

Pareceu pensar. Lá fora, o barulho noturno criava um fundo tenso.


Esther aguardou ansiosamente pela resposta.

— Era como se eu sempre estivesse esperando você.

Ela riu. De alguma maneira, tinha a mesma sensação.

— Parece uma maldição — brincou. — Destinados a esperarmos um


ao outro?

— Parece que vivi muitas vidas até conseguir chegar a você. E isso
não é romântico — denotou. — É algo doloroso. Transforma-me em um
covarde.

— Um covarde?

— Tenho a sensação que é só uma questão de tempo para eu perdê-la.


— Suspirou alto. —De novo — completou.

— De novo? — ela sentia-se estranha em repetir cada palavra dele.


Contudo, eram tão carregadas de simbolismos que a estremeciam. — O que
quer dizer?

— É como me sinto — murmurou. — Um covarde porque esse medo


me aterroriza desde o instante que a vi pela primeira vez. Foi esse medo que
me fez interromper seu casamento. Esse medo que me levou a te forçar a se
casar comigo. Esse medo que me faz sufocá-la, porque, para mim, esse
momento juntos é tão frágil como um cristal que pode ser quebrado pelo toque
do vento.

Lágrimas surgiram no olhar feminino, enquanto ela cruzava pelo


apartamento, chegando-se a ele, destruindo a distância física que, naquele
instante, os separava.

— Não vai acontecer — prometeu. — Não vai acontecer — inteirou,


firme.

Uma promessa que poderia ser cumprida?

— Eu te amo — ele murmurou. — Eu mal te conheço, e eu te amo ao


ponto de morrer por ti.

Os lábios deles se tocaram, num gentil beijo que resplandecia o amor.

Therron havia dito que não havia pressa entre eles, que nada seria
forçado, e de fato não o foi. Porque foi Esther que tomou à dianteira, segurou o
rosto do marido e afundou-se em seus lábios bonitos.

Enquanto ele a guiava até o quarto, peças do vestido branco que lhe
serviu durante à tarde ficavam espalhadas pelo chão, como um tapete que
levava a um propósito específico de paixão.

— Eu senti tanto a sua falta — a frase completou aquele momento


mágico. — Tanto... tanto...

Esther nunca havia ficado nua diante de ninguém. Mas, não teve
vergonha. Até porque havia adoração no olhar azul que passeou pelos seus
seios eriçados e chegou até seu centro de pelos encaracolados e escuros.

— Céus, me diga, como vou conseguir pintar algo decente depois de


vê-la assim?

Ela riu, enquanto ele arrancava a camisa, a calça e os calções.


Ambos eram jovens e tinham um corpo bonito, mas Esther soube
imediatamente que Therron superava a tudo.

Na juventude, observava com discreta curiosidade as estátuas nuas que


adornavam a cidade, sabendo que os homens retratados nelas eram o que mais
de belo representava a masculinidade. Mesmo assim, aquele homem perante
ela, agora, parecia algo além de qualquer expectativa.

Therron tinha ombros largos, num corpo delgado, magro, com


músculos salientes do esforço de pintar e carregar seus quadros pela cidade. A
barriga era definida, as coxas grossas, cercadas por ralos pelos incolores. O
olhar dela se perdeu no pênis semiereto, bonito, de veias salientes e generosa
proporção.

Suspirou, afastando o olhar, subitamente nervosa.

Therron sentiu aquilo e se aproximou, segurando-a nos braços,


abraçando-a forte, beijando o topo da sua cabeça.

— Podemos esperar.

— Sou sua esposa diante de Deus e dos homens, e o quero ser de


forma completa — ela murmurou. — Penso que, nessa noite, estaria diante de
Josef, não fosse por ti — murmurou, as lágrimas voltando. — Obrigada... Você
salvou-me... Salvou-me...

— Prometo que nunca irá se arrepender.

Os lábios voltaram a se unir, dessa vez com mais intensidade, mais


agonia. Havia uma necessidade urgente em Esther, um anseio de mulher que
jamais a tomou antes, mas que agora a arrebatava de forma avassaladora.

A mão masculina apertou as nádegas femininas e logo Therron a


comprimia contra ele, aumentando de forma incontrolável aquela sensação
mágica.

O olhar masculino encontrou-a, e Esther gemeu, diante daquela firmeza


com que era puxada, com que era arrebatada.
Era como se estivesse num jogo ao qual ela perdia e ganhava ao
mesmo tempo.

O fogo, o desejo, a magia declarada dos sentimentos os guiou à cama.


Therron deixou Esther abaixo dele, beijando seus lábios, sentindo as mãos
delicadas dela apertando seus ombros, como se confiasse inteiramente que ele
lhe daria o melhor dos presentes.

O sexo nem sempre trazia satisfação a uma mulher, principalmente


quando se era a primeira vez, mas Therron jurou a si mesmo que faria com que
Esther gostasse da sensação.

A alma deles estava unida, queria que os corpos também


resplandecessem isso.

Baixou a face, buscando os seios bonitos, empinados. Abocanhou o


seio direito, enquanto deslizava a mão no esquerdo, num carinho gentil e
delicado. Esther estremeceu, e tentou controlar os sons que pareciam escapar
de seus lábios, mas logo ela não mais se impediu de gemer.

Therron chupou o bico, deslizando a língua naquela extremidade,


balançando o quadril contra o baixo ventre, fazendo-a agoniar de paixão.

A boca de Therron desceu mais. A língua dançou pelo ventre bonito,


feminino, e então encontrou sua cerne, deixando-a mais molhada, mais ansiosa,
mais desesperada.

Beijou-a lá, diante do olhar arregalado da esposa. Sorriu para ela,


enquanto afundava-se em sua carne, fazendo-a agoniar de prazer, as pernas
abrirem, um gozo inexplicável tomando-a pela primeira vez.

Depois, voltou até seus lábios bonitos. Beijou-a profundamente,


puxando sua coxa para cima, ajeitando-se entre elas e embalando-se até
penetrá-la inteiramente.

Ele percebeu os olhos arregalados, o susto que pareceu tomá-la, e, na


mesma medida, a maneira como ela aquietou-se e pareceu confiar inteiramente
nele. Havia dor, era claro, mas havia também a intensa sensação de
pertencimento.

Remexeu-se dentro dela, assim que percebeu que ela pareceu mais
tranquila. Levantou o quadril, e o baixou, num ritmo que saía e entrava. O
olhar deles, direto e unido, não se desviava. Ela precisava contemplá-lo para
não temer, e ele não iria deixá-la decepcionada.

Então, uma sensação estranha tomou o corpo da mulher. Era como


subir ao pico mais alto do mundo e cair de lá, numa adrenalina somada a uma
paixão fervente.

Logo, o gemido dela tornou-se mais alto, mais frequente, mais intenso.
E então, o ápice fez as pernas dela tremerem, e Therron molhá-la com seu
corpo.

Estava feito. Não eram mais apenas duas almas unidas pela paixão, e
sim duas carnes elevadas ao mais alto nível de intimidade do sexo.

Esther aproximou-se do marido sentado em um banco ao lado do sena.


Ele lia um jornal com interesse, as sobrancelhas arqueadas, como se o assunto
nas linhas fosse deveras interessante.

O vento frio do inverno que chegava fê-la estremecer perante ele.


Logo, o olhar pacífico a encontrou e Therron sorriu.

— Quer o meu casaco? — ofereceu.

— Não. Estou apenas nervosa.


Após alguns meses, ela se preparava psicologicamente para ir à
sapataria do pai pedir seu perdão e tentar fazer as pazes.

Quando fugiu do templo, soube que estava cortando os vínculos


familiares. Contudo, não se arrependia. Trocar o conforto de sua casa e a
perspectiva de riqueza com Josef pelo amor de Therron foi a coisa mais certa
que já fizera.

Contudo, queria novamente ver os pais. Os amava, ansiava para que


aceitassem Therron na família.

Ao saber-lhe o desejo, o marido apenas sorriu, como se entendesse sua


vontade, mas como se não acreditasse em seu sucesso na empreitada. Agora,
ele a acompanhava até a sapataria. Estavam próximos do rio, e ela havia ido a
uma confeitaria pegar um copo de chá, enquanto ele permanecia sentado em
um banco, a aguardá-la com o semblante sério.

— O que aconteceu? — perguntou, preocupada.

— Nada — fechou o jornal, tentando transmitir paz.

— É um péssimo mentiroso, Therron.

Um suspiro triste fê-la sentar-se ao seu lado.

— Um menino judeu... — murmurou. — Um rapaz inconsequente... —


prosseguiu. — Matou um diplomata da embaixada alemã.

Ela assentiu, compreensiva.

— Você parece assustado.

— Uma sensação ruim — murmurou. — E se vendêssemos tudo que


temos e fôssemos para a América?

Ela riu.

— De que jeito? Não conhecemos ninguém lá. Além disso, estamos


seguros aqui. Não percebe que muitos judeus estão vindo para a França, a fim
de escapar da Alemanha?

Therron respirou fundo.

— Eu tenho medo. Você agora é uma Esme, mas... E se descobrirem


que é judia?

— Estamos na França, Therron! — insistiu.

— Muita gente odeia os judeus. E não é apenas na Alemanha. O jornal


fala de ataques à comunidade judaica nos arredores de Paris. — Suspirou
longamente. — As ideias de Hitler estão ganhando adeptos em todo canto.

Ela sabia ser verdade.

— Não vou fugir do meu país — murmurou. — E não me afastarei dos


meus pais, mesmo que eles demorem a me perdoar. Um dia vai acontecer. Um
dia eles vão aceitá-lo, e então seremos uma família feliz.

Ele tocou seu rosto, com delicadeza.

— É tão pura, Esther. E crê tanto em coisas que estão acima de nossas
forças.

Puxando-a levemente, trouxe-a para um beijo.


O pai batia na sola de um sapato com força. Logo, seu olhar volveu
para a entrada, para o casal que aparecia diante deles.

— Saía — ordenou, sem dar-lhes tempo de conversa.

— Pai, tudo que quero...

— Não sou seu pai — bramou contra ela. Therron ficou na frente da
mulher, em defesa. — Você traiu sua família, nos envergonhou perante nossa
comunidade. E tudo por quê? Por um artista de rua?

— Meu marido, pai... — defendeu.

— Um pobretão que vai te fazer viver o inferno. Um dia vai se


arrepender de tudo, Esther. Um dia voltará para mim, admitindo seu erro e
implorando por perdão.

Ela negou as palavras.

— Viverei mil anos e não me arrependerei de ter casado com Therron,


pai. Mas, me arrependerei de tê-lo procurado.

Voltando-se, então, para a saída, ela deixou o local.

O artista loiro encarou o sapateiro por alguns segundos, quando, por


fim, seguiu sua mulher.
Capítulo 03

O medo
França, 1940.

“É com o coração pesado que eu digo a vocês, hoje, que devemos


parar de lutar.”

Therron Esme era um pacifista. Um artista, de alma sensível que


acreditava piamente no poder e na beleza da arte. Era assim que, a seu ver, o
mundo devia evoluir. Não com guerra, mas com amor.

Apesar disso, sempre foi um admirador convicto do Marechal Petain,


um líder e herói francês, que protegeu seu povo desde a Grande Guerra.

Ouvir suas palavras de derrota na rádio, naquela manhã, destruiu sua


esperança.

Se Petain não acreditava que a França poderia prosseguir, era porque a


derrota estava certa.

Enquanto milhares de franceses buscavam fuga, e um novo governo se


formava sobre a mão nazista, Esme traçou rotas para tirar Esther da cidade.

Não se sabia ao certo o que faziam aos judeus, mas os boatos eram
muitos. Diziam-se, as bocas pequenas, que quando entravam em trens que iam
para o leste, jamais eram vistos novamente.

Porém, ao explicar seus planos a esposa, ouviu dela que a mãe,


Margareth, estava doente. Mesmo não sendo mais bem quista pelos familiares,
a esperança do perdão a fazia recuar diante da fuga, e a buscar sempre por
informações sobre a vida dos pais.
E assim eles decidiram ficar. Ao menos temporariamente.

Havia uma postura de dignidade trágica nos olhares em volta de


Therron. Alguns permitiam que as lágrimas escorressem pelo semblante
impassível, numa estranha postura de dor e resignação, como se o inevitável
fosse apenas mais um capítulo de um livro triste.

Existia muita gente ao redor da avenida onde a infantaria do Exército


da Alemanha realizava o Desfile da Vitória. Em um cavalo escuro, era
possível assistir o General Briesen, comandante do 30ª Divisão de Infantaria,
os saudando com nítido orgulho.

Para os alemães, era o paraíso, a vingança ante a vergonha na derrota


da guerra anterior. Para os franceses, era o abatimento de verem suas vidas
sendo destruídas por gestos simbólicos tão firmemente declarados em cada
saudação nazista.

Therron fechou os olhos, afastando-se da multidão.

Agora, era tarde demais. Para sair da zona ocupada da França ele
precisaria de documentos. Esther tinha um nome declaradamente judeu.
Mesmo que se professasse Esme, haveria uma investigação referente aos
antepassados da esposa.
Estava tão abatido que mal percebeu a aproximação de Pierre, que o
segurou nos braços.

— Precisamos lutar — o amigo murmurou, baixo, com fogo nos olhos.

Lutar? Contra todo o exército alemão?

— Você ficou louco. — Murmurou.

— Existem guerrilhas...

— Guerrilhas? Eles são um dos exércitos mais bem armados do mundo


— contrapôs.

Pierre negou.

— Então cairemos batalhando.

— Já caímos. Além disso, não sou um homem sozinho, tenho esposa.


Devo proteger Esther. Preciso tirar minha mulher da cidade.

— Ninguém entra nos trens sem documentos.

— Ela é uma Esme — tentou manter acesa a esperança. — Vamos


conseguir.

Pierre negou. Mas, por fim, seu olhar pareceu abrandar.

— Meu amigo — murmurou. — Não acredito que terá sucesso em sua


missão, mas tentarei conseguir um meio seguro para que saía da França. Só te
peço, por favor, não vá para os trens. Estão prendendo judeus que tentam
embarcar.

Therron assentiu. Subitamente, o pesadelo daquele dia tornou-se


extremamente palpável.

— Ficarei em teu aguardo.

Pierre fez menção de se retirar, quando sentiu a mão firme de Therron


a segurá-lo.

— Você é um médico — argumentou. — Não um soldado. Por favor,


imploro que pense bem antes de desafiar o poder nazista.

— Eu não tenho o seu sangue covarde — insultou-o, mas logo se


arrependeu das palavras amargas. — Perdão. Você é uma alma boa, um artista,
um romântico, Therron. Mas, o momento agora é de guerra, é de ódio. Eu não
sei se esse homem gentil que você é será capaz de proteger Esther.

Diante de tais palavras, afastaram-se.

A vida tinha que prosseguir. Mesmo diante do medo, os remanescentes


de Paris ainda levantavam de manhã e iam trabalhar. Os únicos que pareciam
mais acanhados eram os judeus, mas, até mesmo eles, permaneciam em
silêncio perante as decisões nazistas.

Os poucos que se submetiam a enfrentar as ruas ostentavam uma estrela


judaica amarela cravada em suas roupas. Era uma exigência do ministro
Goebbels e do próprio Hitler, que causou imediata preocupação em Therron.

Um dia ele chegou em casa, e viu a esposa costurando no casaco a


estrela de Davi. Tomou de suas mãos as vestes, e esmoreceu perante seu olhar
desolado.
— Ninguém sabe que é uma Wiesel. Sua família te renegou. Para o
bem ou para o mal, é uma Esme, Esther.

Ela negou.

O homem ajoelhou-se diante dela. Segurou suas mãos, tentando


transmitir uma crença que nem mesmo ele sentia.

— Pierre tentará uma forma de nos tirar de Paris.

— Mas, meus pais...

— Esther — ele tentou trazê-la a razão. — Acabou, Esther. Não há


mais chance alguma, nenhuma possibilidade. Ou fugimos, ou você será
mandada para o leste.

As palavras causaram alvoroço.

— Começaram as evacuações?

— Não sei ainda — murmurou. — Tudo que ouvimos são boatos, mas
prefiro ser precavido. Vamos tentar rumar em direção ao Canal da Mancha, e
conseguir uma passagem para a América, de navio.

O soluço desesperado escapou da garganta feminina, e Therron a


abraçou, tentando mantê-la firme, tentando ser a força que ambos precisavam
naqueles momentos de agonia.

— Eu te amo — ele sussurrou. — Eu vou te proteger...

No sábado que se seguiu, como de costume, Therron arrumou suas


sacolas de pinceis, quadros e telas e foi em direção à praça. Pouco tempo
depois, já estava a vender suas obras.

O movimento caiu bastante. Não era apenas por medo, as pessoas


estavam sem dinheiro. Therron entendeu que, numa crise, o primeiro ato a se
praticar é livrar-se dos luxos. Os quadros dele se encaixavam nesse perfil.

Contudo, logo um nazista de vestes pretas aproximou-se. Seu olhar


focado no quadro bonito, um desenho de Esther que ele havia feito durante um
piquenique, havia chamado sua atenção.

— Ela é linda... — murmurou, num francês carregado e de má


pronúncia.

Therron respirou fundo, tomado por uma sensação desconhecida. As


mãos tremiam, mas não era de medo. Ele odiou a maneira como aquele nazista
encarava a beleza da esposa, com nítido interesse, como se sua musa pudesse
ser compartilhada.

Havia uma raiva latente em seu coração por aqueles homens.


Especialmente os membros da S.S. Para Therron, eram os seres humanos mais
desgraçados que já pisaram na terra.

Contudo, havia algo além por aquele, em especial.

Repentinamente, o homem volveu para ele. Era jovem, no máximo


trinta anos. Cabelos negros, olhos igualmente escuros e uma postura reta e
direta.

— Você parece um ariano — murmurou, perante o cabelo loiro e o


olhar azul celeste de Therron.

— E você não — o outro devolveu.

Um sorriso amistoso surgiu nos lábios do inimigo.

— Quanto custa? — apontou o quadro.

Therron precisava de dinheiro, mas não queria macular a imagem de


Esther nas mãos de um nefasto como aquele.

— Eu não negocio com nazistas — disse.

Aquele tom corajoso fez o sorriso do outro se alargar mais.

— Kraus! — um grito ao longe fez o membro da S.S volver-se para


trás.
Alguém o chamava, e ele pareceu pronto a ir. Therron suspirou de
alívio. Pelo menos naquele dia não seria retalhado por suas palavras
mordazes.

— Tem sorte por eu admirar a coragem — o outro disse, antes de


caminhar.

Ao longe um trovão ecoou, anunciando que a chuva se aproximava.


Therron recolheu suas coisas e foi embora.

— Therron!

O chamado fê-lo volver-se para um canto escuro da ruela daquele


bairro pobre.

Imediatamente reconheceu o sogro, apesar do olhar profundo, as


olheiras negras denotando a exaustão, e a magreza que deixava claro que o
homem não estava bem.

A despeito dos problemas entre eles, aproximou-se. Devia a Esther


qualquer possibilidade de redenção. Queria que fossem novamente uma
família. Se Frederic conseguisse engolir seu orgulho, poderia partir com eles
tão logo Pierre lhe arrumasse uma condução.
— Tome — o mais velho lhe estendeu um envelope.

Therron o segurou nas mãos, abrindo imediatamente. Lá, notas diversas


em dólar lhe assustaram.

— O quê?

— Fique com isso.

Therron negou.

— Não posso ficar com seu dinheiro, senhor Frederic. Eu jurei a mim
mesmo que jamais o aceitaria, e sustentaria sua filha da forma mais digna que
pudesse. Até então, apesar de todas as dificuldades, nada faltou a Esther.

O homem assentiu.

— É, eu sei. — Suspirou. — Therron, eu estava enganado sobre você,


mas não é por esse motivo que estou lhe dando esse valor. É uma ajuda, para
que tire Esther daqui.

— Estou tentando conseguir uma forma de sair...

— Não basta. — Foi ríspido. — Precisa sair rápido. Ontem à noite


levaram a família de Josef, e fui informado que Margareth e eu seremos
enviados para o leste hoje à tarde.

— Hoje? Precisa ver sua filha, despedir-se dela...

— Não. E não é por orgulho. A polícia esteve em minha casa e eu


disse que minha filha, Esther Wiesel, faleceu há dois anos. Contudo, é questão
de tempo até alguém delatá-la. Esther não pode me ver, nem a mãe. Ela precisa
esquecer que é uma judia e você precisa fugir com ela daqui o quanto antes.

Os olhos de Therron encheram-se de lágrimas diante do amor paterno


que ele jamais vivenciou.

— Eu sinto muito — foi sincero. — Eu espero que...


— Não deseje nada, Therron, porque eu sei que meu fim e o de
Margareth está próximo. Apenas, tente cuidar de Esther, salvá-la dos malditos
nazistas.

O rapaz assentiu.

Depois disso, o mais velho desapareceu na ruela. Era a última vez que
o via.

Esther encolheu-se na dor pungente das notícias trazidas pelo marido.

Therron deslizou a palma das mãos por suas costas, num carinho
confortador, enquanto aceitava que seu desespero fosse expresso pelas
lágrimas que se derramavam em abundância no rosto.

— Nunca mais verei meus pais? Nunca me despedirei de minha mãe?


— ela murmurou ao marido que a apertou contra os braços.

Estavam deitados na cama, compartilhando aquela dor que refletia


mais do que agonia. Era medo. Era a sensação terrível que tudo acabaria em
pouco tempo, num final funesto.
Batidas fortes na porta assustaram a ambos. Esther sentou-se
rapidamente, olhando para o marido, como se buscasse ajuda.

Therron pediu calma, e a levou até o roupeiro, onde ela buscou


esconderijo. Então, foi atender a porta, o coração aos saltos, e quase suspirou
de alívio ao ver o amigo Pierre do outro lado.

— Entre — mandou.

Fechou a porta, olhando para os dois lados do corredor antes. Estava


vazio.

Esther logo surgiu na sala. Nem deu-se conta de que vestia apenas a
camisola de linho, o rosto transbordava pavor.

— Enviamos por carro uma família judia até Dieppe. A intenção era
pegar um barco clandestino para atravessar o canal da mancha e chegar à
Inglaterra.

— Mas? — Esther indagou, antevendo a má notícia.

— Foram descobertos por nazistas — contou. Depois, aproximou-se


da mulher, apertando seus ombros. — Minha querida amiga, não é seguro tirá-
la de Paris, nesse momento. — Levou a mão ao casaco, e deu a ela um
documento. — Antonieta Esme é seu nome agora. Precisa usar esse
documento, e precisa evitar as ruas, pois existem muitos delatores.

Esther assentiu.

— Quando for seguro, daremos um jeito, eu prometo.

Após, afastou-se dela e preparou-se para ir embora. Na porta, trocou


um abraço com Therron.

— Muito obrigado — o loiro disse.

Naquele momento de agonia, a única coisa real e sincera era a


amizade. Foi nisso que o casal se firmou.
1942.

A vida se tornava cada vez mais difícil nas ruas de Paris. O


antissemitismo era gritante. Os poucos judeus que ainda viviam na cidade luz
eram constantemente agredidos e humilhados em público.

O pequeno apartamento de Therron acaba por se tornar a prisão de


Esther. Ainda que tenha documentos falsos, ela não sai à rua, e mesmo suas
menores necessidades, precisam ser sanadas pelo esposo.

Se alguma vez, naqueles quatro anos de casamento, Esther duvidou dos


sentimentos de Therron, agora ela tinha certeza do amor que o marido nutria
para consigo.

Mais que isso, era uma amizade que ia além da relação carnal que
compartilhavam.
Therron também se privava de viver. Para passar seu tempo livre com
a esposa, ele abandonou as pequenas alegrias da vida, como passear pelas
praças ou tomar café nas bonitas confeitarias.

Agora, tudo se resumia ao apartamento, e ao medo crescente que nunca


cessava.

Cada barulho de carro na rua fazia os dentes dela baterem de medo,


quase ao ponto de trincarem-se. Cada grito ou pisada forte no prédio, deixava-
a ao ponto de desfalecer.

Era nas mãos de Therron que ela se segurava, era no calor do corpo
masculino que ela buscava paz, em suas palavras, o conforto que parecia
apenas um pequeno alento diante de tanto desespero.

Numa noite fria, sentados próximos do rádio e bebendo chá, eles


ouviram as palavras confortadoras do general Gaulle, que agora era a
esperança da resistência e que mantinha o apoio à Inglaterra, no enorme sonho
francês de liberdade:

“A chama da resistência francesa não deve se apagar, nem se


apagará"...

Esther olhou para o marido, um sorriso tímido nos lábios, e ele


retribuiu com um afago nos dedos.
— O governo no exílio e os movimentos de resistência nos salvarão —
ela murmurou, beijando os lábios masculinos. — Eu tenho fé.

Ele também tinha.

Enquanto aconchegava a esposa nos lábios, não deu-se conta de que a


fé de ambos seria testada com terrível intensidade.
Capítulo 04

O Velódromo

O dia 16 de julho de 1942 ficaria marcado para sempre na memória


francesa como uma vergonha, um dia em que seus heróis se tornaram de barro,
e seu governo os traiu.

Mais de dez mil judeus marcharam, presos, naquela que seria a maior
deportação judaica no país, sob os olhares em misto do povo francês. Alguns
riam, enquanto outros se apiedavam. Alguns gritavam “Vão para Jerusalém, é
lá seu lugar”, enquanto outros arriscavam a vida para dar-lhes esconderijo em
suas casas.

O evento foi cuidadosamente planejado pelos nazistas. Reuniram


documentos a fim de conseguir capturar todos os judeus que permaneciam em
Paris e arredores, e usaram e abusaram da boa vontade de uma parte da
população local, que não se privou em denunciar a identidade dos odiosos
judeus, para ganhar lucro ou simpatia dos invasores.

Esther jamais soube quem a delatou. Tampouco aquilo importou.


Naquela manhã, ela acordara cedo, preparara o café do marido e lhe dera um
beijo gentil de despedida, ao vê-lo sair para trabalhar.

Depois passou a limpar o apartamento, a costurar roupas velhas e, por


fim, a preparar o almoço.

O dia típico de uma dona de casa, interrompido por um forte chute na


porta, fê-la gritar.

Sequer tentou se defender, seu pavor era tão claro quando o dia.
Qualquer nazista saberia que aquela jovem de documentos falsos era uma
porca judia que merecia a prisão.

Havia, contudo, um porém: era a polícia francesa que agora invadia


seu lar, exigia seus documentos e a observava com nítido deboche.

Um dos policiais amassou seus documentos, entregando a outro homem


que entrava, armado, como se ela fosse uma temível criminosa. Depois disso
leu, em um papel, um texto sem emoção:

— Pode pegar um par de sapatos, dois pares de meia, duas camisas,


dois pares de roupas íntimas, um suéter, um conjunto de lenços, uma tigela, um
copo, um cobertor e alimento para dois dias. Coloque tudo numa mala, rápido,
ou sairá daqui sem isso.

Empurram-lhe em direção ao corredor, sem qualquer constrangimento,


rudes com aquela mulher de corpo frágil a carregar uma mala.
Não lutou. Mesmo assim, recebeu alguns safanões no rosto,
machucando-a. Marchou sobre a mira de um fuzil até a parte externa do
prédio. Lá fora, cidadãos que outrora eram simpáticos vizinhos lhe xingavam
de puta, e cuspiam nela.

Adiante, uma família judia formada por um jovem casal e um bebê


caminhava em passos trôpegos, assustados.

O bebê chorou.

O som de um tiro cortou o ar.

Enquanto a mãe berrava com a criança a sangrar no colo, Esther soube


que não haveria piedade dos seus captores.

Dois passos seguintes e um som seco quase a fez cair. Uma jovem
acabava de pular de um prédio, preferindo suicidar-se a entregar-se às mãos
covardes da polícia parisiense.

Esther observou o cadáver com lágrimas nos olhos. Era o juízo final.
A gritaria na rua estava intensa. Therron logo viu um vendedor judeu
andando acuado sobre a mira de um revólver.

Estranhou aquilo, pois não haviam nazistas à vista. Então, tentou


manter a calma, dizendo a si mesmo que era apenas uma prisão isolada. Ou,
simplesmente, estavam a buscar os homens. Mulheres e crianças costumavam
ser deixadas para trás, quando havia prisões.

Tudo em vão, poucos passos depois, percebeu mais judeus caminhando


pela ruela, com suas estrelas amarelas costuradas na roupa e lágrimas a
escorrer pelos rostos sofridos. Famílias inteiras, incluindo crianças de colos e
idosos sendo empurrados em cadeiras de rodas. Não havia respeito por
ninguém, não importava a idade.

O choro incontido das vítimas contrastava com o riso e júbilo na


população que acompanhava o cerco aos judeus.
Apavorou-se. Largou a sacola com os pinceis no chão e correu em
direção à rua onde morava. Antes de conseguir virar a esquina, dois braços
fortes o contiveram e ele caiu no chão.

Lutou contra seu captor, quando percebeu ser Pierre.

— Eles a levaram! — O amigo contou. — Eles a levaram, Therron —


viu lágrimas nos olhos do outro. — Eu não cheguei a tempo.

Therron tentou se desvencilhar, mas Pierre o manteve mais firme.

— Me deixe! — gritou. — Ela é minha esposa.

— Vão te prender! Irão te acusar de proteção a um judeu!

— O que importa?

Só então a garganta deu deixa de que a mente havia perdido o controle.


Therron caiu de joelhos, chorando.

— Se você for preso, quem poderá salvá-la?

A explicação parecia coerente, e Therron assentiu, tentando manter o


controle.

— Para onde a levaram?

— Não sei. A moça que trabalha no departamento de polícia, mas que


também é um membro da resistência, me avisou há duas horas sobre a prisão
de Esther. Parece que alguém do templo dela delatou-a, mediante tortura. —
Diante do olhar mais centrado, trouxe esperança. — Iremos descobrir onde ela
está sendo levada, está bem? Por favor, precisa manter o controle!

Therron concordou. Esther o precisava mais forte do que nunca.

Esther se lembrava do pai, certa vez, a impedi-la de ver uma corrida


no Velódromo de Inverno em Paris.

Vários amigos da escola iriam ir, e ela amaldiçoou a família tão


religiosa que a privava de viver sua mocidade sem medo ou limites.
Não sabia ela, claro, que o lugar era ponto de encontro de putas,
apostadores e bêbados. Local destacado para os prazeres mundanos, onde uma
moça de boa reputação jamais devia pôr os pés.

Contudo, como nada na vida era definido por certezas, ali estava ela,
sentada no chão frio, sentindo as vistas nublarem pela sede, pela fome, pelo
frio.

Muitos desfaleceram naqueles dias após sua prisão. Mais de treze mil
judeus amontoados sem comida, bebida ou cuidados, tendo nada além da
roupa do corpo para protegê-los do frio noturno.

Definitivamente, aquele lugar parecia o inferno, mas Esther mal sabia


que o seu inferno pessoal estava apenas começando.

Cobriu o nariz com o blusão, tentando manter o cheiro de fezes longe


de si. O fedor era tão forte, que ela vomitaria, caso tivesse algo no estômago.

Perto dela, um homem urinou no chão, como se a sua dignidade já


tivesse sido arrancada e seus pudores levados ao léu.

Esther tentou se levantar, afastar-se. Percebeu que os demais estavam


com suas famílias, mas ela não tinha ninguém. Sequer alguém para falar.
Qualquer passo, em qualquer direção, poderia fazê-la perder o canto que
arrumara para descansar as pernas.
Preocupados, os judeus mantinham-se em seus bandos ligados ao
sangue, tentando proteger-se entre si, imaginando quando aquela agonia teria
fim.

As noites frias tornam-se calor durante o dia. As portas fechadas, as


muitas respirações e os corpos aproximados, deixavam o ambiente ainda mais
sufocante.

Depois disso, as horas perderam sua importância, a fome deixou de


doer, e as vistas passaram a fechar-se com mais frequência.

Iria morrer, não fosse alguém a derramar água em seus lábios.

Abriu os olhos e deu de cara com um bombeiro.

— Moça, aguente — ele murmurou, colocando as mãos dela um


pedaço de pão.

Seu salvador desapareceu, logo depois, em meio à multidão que


implorava por ajuda. Jamais soube, mas aquele ato de misericórdia faria os
bombeiros de Paris se tornarem alvos dos nazistas.

— Vão levar alguns de nós para Drancy.


O anúncio foi feito por um judeu de olhos assustados que parecia ter
ouvido tal coisa dos policiais.

Drancy ficava ao norte de Paris, e falava-se em um campo de trabalho


forçado por lá. Esther suspirou de alívio, qualquer coisa para sair daquele
ambiente e respirar ar puro.

Sentiu uma dor aguda no baixo ventre. Não ia ao banheiro desde que
saíra de casa, e não tinha coragem de levantar as saias como faziam as outras
mulheres, e urinar no chão.

Lágrimas surgiram nos olhos quando ela sentiu o líquido quente


descendo por suas pernas.

Sua degradação parecia completa.

No apartamento no centro de Paris, Therron encarou o amigo com


preocupação. A porta havia recebido três batidas com força, e o médico
correu até ela, abrindo-a sem pestanejar.
Uma jovem de cabelos castanhos claros entrou no ambiente, e passou
para Pierre uma cópia do que parecia uma lista realizada pelos nazistas.

— Esther está no velódromo — a recém-chegada relatou.

— Mas, por quê? Ela não tem filhos!

Naqueles dias que passaram, a resistência tentou ajudar Therron como


pôde. Até tentaram sabotar um trem que partiu de Paris com solteiros e casais
sem filhos. Mas, Esther não estava em nenhum vagão.

— Ela apresentou documentos falsos e a levaram para lá, até que


averiguassem — a mulher explicou.

Chamava-se Úrsula e trabalhava dentro do departamento de polícia.


Arriscava a vida para tentar sabotar os planos nazistas. No dia 16 de julho, foi
graças a sua coragem que muitos judeus conseguiram escapar e esconder-se da
polícia.

— O bombeiro chefe é da resistência, e informou que as pessoas no


velódromo estavam sem água desde que chegaram. Ele enfrentou o chefe de
polícia para conseguir abrir as mangueiras e dar de beber ao povo.

— Provavelmente será preso por isso — apontou Pierre. — Temos um


membro da resistência lá. É encanador. Precisamos falar com ele — apontou.
— Ele conseguirá tirar Esther do velódromo.
— Tarde demais — a jovem se compadeceu. — Estão transferindo as
pessoas hoje — e apontou o relatório.

Pierre o abriu imediatamente.

— Drancy? Irão levar todos para Drancy?

— Não Esther — ela murmurou. — Precisam apenas saber o que fazer


com as famílias que tem crianças.

— Crianças? Por quê? — questionou Therron.

A jovem, Úrsula, encarou o pintor com legítimo horror.

— Ouvi boatos, não sei se é verdade...

— O quê?

— Construíram câmaras de gás, onde irão sufocar...

Sua voz sumiu. Ela não precisava terminar.


Diante do silêncio, Pierre começou a procurar pelo nome de Esther
entre as folhas.

— Ela não vai para Drancy — confirmou. Depois, voltou-se para o


amigo. — Vão enviá-la para a Polônia. Um lugar chamado Auschwitz.

O vagão que transportava gado parou nos trilhos com um som grotesco.

O amontoado de pessoas empurradas pela polícia era levado até as


portas e puxados para dentro.

O destino incerto aterrorizava Esther.

Depois de cinco dias presa no velódromo, ela não conseguia mais


raciocinar direito. Apenas, cumpria as ordens, como uma ovelha ao
matadouro.
— Esther!

O grito ao longe deu ares de um último presente de Deus, o tom amável


que tanto a aquecia.

Voltou-se para trás. Seu olhar encontrou-se com Therron. Ele estava
com as duas mãos na cerca de arame que os separava. A multidão ao redor
dele parecia prestes a esmagá-lo. Era muita gente a se despedir de quem
amava, ou a rir do desespero dos que partiam.

— Eu te amo, Esther — ele gritou.

Ela foi empurrada para dentro do vagão. As lágrimas em ambos


despencavam sem controle.

— Eu vou te achar, Esther! — Prometeu. — Vou te salvar, mesmo que


isso custe minha vida.

E então a porta do vagão se fechou.

Como anteviu Therron quando a conheceu, a dor de perdê-la beirou a


morte.
Capítulo 05

A Resistência.

Therron entrou no apartamento de portas quebradas. Lá dentro, a


bagunça denotava a agressividade com que a esposa havia sido levada.

Ele não havia voltado para o local desde a prisão de Esther. Em muito
porque Pierre achava perigoso, em muito porque temia perder o controle
assim que visse o lugar onde ele perdeu-se no amor da mulher.

Ergueu os olhos dos trapos rasgados ao chão e encarou os quadros


pendurados nos tripés de madeira, ainda inacabados.

Lembrou-se de seus princípios ao ver as obras.

Em tudo, estava errado. A bondade e o amor, a beleza e a docilidade,


não venciam o mal. O mal se combatia com o mal. Sempre foi um bom homem,
respeitador e generoso, e tinha sua esposa arrancada de si, jogada em um trem
como lixo, talvez sem comer e beber nada por dias, com destino incerto.
A culpa o fez aproximar-se dos quadros. Logo, ele chutou-os,
quebrando, gritando, expurgando de si a raiva.

Se tivesse deixado a arte de lado e se unido aos movimentos que


lutavam contra os nazistas, talvez Esther estivesse ao seu lado. Mas, não... ele
deixou-se levar pelo lado sonhador que só lhe trouxe desgraça.

O artista doce estava morto. Os nazistas haviam matado aquela faceta.


Restava agora um homem que só queria recuperar sua mulher e vingar-se
daqueles porcos.

Correu até o armário. Numa madeira solta, encontrou o envelope que o


sogro havia lhe dado e que ele havia guardado com responsabilidade, a fim de
começar uma nova vida num país onde conseguisse abrigo para Esther.

Agora, aquele dinheiro teria outro propósito. Um destino sinistro que


mancharia para sempre sua alma.

La Résistance costumava não ter local fixo de encontro, mas Pierre


[1]
havia descoberto que Jean, um dos líderes da facção que lutava contra o eixo,
estaria em reunião numa fazenda ao leste de Paris.

Pierre havia se unido ao grupo em 1940. Costumava levar informações


que conseguia coletar no hospital até a liderança. Cada detalhe podia ser útil e
ele não esquecia nada.

Agora, trazia consigo uma poderosa arma: um homem sedento pela


sede de vingança.

Jean, cujo sobrenome ninguém sabia, tinha cerca de quarenta anos, os


olhos desconfiados e o tom ameaçador. Olhou para Therron medindo-o, como
se quisesse descobrir suas fraquezas e enfrentá-lo por elas.

— Pierre já tinha me falado sobre você — sorriu, apontando uma


cadeira para o loiro, num convite a se sentar. — Um pintor, um artista muito
sensível — comentou. — Alguém que nunca pegaria em armas, nunca mataria
ninguém. — Riu, depois, com deboche. — Um católico que vai a missa todos
os domingos e que professa o perdão aos inimigos. O que alguém como você
faz aqui?

— Mudei de opinião — disse, simplesmente, entregando ao homem o


envelope cheio de notas.

O olhar de Jean arregalou-se diante da ajuda inesperada.


— O que quer em troca?

— Uma arma e treinamento. Depois, ajuda para ir à Polônia.


Documentos para que eu consiga me infiltrar.

— Para buscar sua esposa... — Completou o líder, negando com a


face. — Entende que a nossa luta é muito maior do que a simples paixonite por
uma mulher?

Em segundos Therron estava de pé, segurando o colarinho de Jean, o


ódio dominando sua face.

— Ela não é uma paixonite — murmurou.

O homem então tocou suas mãos, tentando acalmá-lo.

— Guarde sua raiva para os nazistas. Ela será mais útil lá que aqui —
sugeriu.

Therron o soltou, tentando controlar a respiração.

— Peço desculpas — murmurou. — Eu irei fazer o que me mandarem,


não importa quais serão as ordens, a única coisa que preciso é ser infiltrado
na Polônia.
— Conseguirei te mandar para a Alemanha, fácil. Posso conseguir sua
transferência assim que um esquema que estamos aguardando virar lei. Não
seria difícil conseguir uma identidade falsa informando que seu pai era
alemão. Por sorte, você parece um alemão, até.

Therron assentiu.

— De que lei fala?

— Há burburinhos que irão mandar franceses para a Alemanha, a fim


de trabalharem. Parece que, com o envio dos homens alemães aos campos de
batalha, falta mão de obra no país. Então...

— Se eu chegar à Alemanha com documentos que me declaram como


descendente alemão, não seria difícil cruzar a fronteira com a Polônia.

— Com os contatos certos, te coloco até da S.S — brincou.

O olhar de Therron brilhou.

— Quando começo meu treinamento?

— Em breve.
A conversa estava finalizada.
Capítulo 06

Auschwitz

Os vagões não tinham sanitário, nem balde. Apenas palhas no piso


pareciam ter sido postas ali como lembrete do que representava os judeus para
os alemães: o gado imundo, que estava destinado ao abatedouro.

Estavam em setenta pessoas naquele cubículo apertado que fedia tanto


ao ponto de Esther comparar o velódromo a um jardim.

Ela não tinha forças. Estava fraca, desde os dias do velódromo. Havia
bebido a água dada pelo bombeiro, e depois comido metade do pão que o
homem lhe entregou. Era tudo que tinha no corpo, desde que saíra de Paris.

A quantidade de dias, ela não mais contava. O trem parava às vezes,


dois ou três homens judeus desciam sob o olhar atento dos guardas, e
conseguiam um pouco de ração. Ela chegou a pegar um pedaço de pão com
geleia num dos dias, mas cercada de fezes e urina, o alimento não desceu em
sua garganta.
Numa das paradas, alguns companheiros de vagão foram retirados do
comboio e atirados próximos da ferrovia. Estavam mortos. Não aguentaram a
desnutrição. Esther os invejou.

O frio logo os atingiu. Aquilo fê-la entender que estava sendo levada
para o leste. Sentada sobre sua mala, com dificuldade conseguiu pegar um
xale. Comprimida contra os demais ocupantes, ela mal conseguia respirar.

— Você é casada? — uma das companheiras de clausura, certa vez,


apontou para sua aliança.

Assentiu.

— Sou Sarah — ela se apresentou, estendendo a mão esquelética.

Aqueles poucos dias de prisão estavam transformando os judeus em


ossos.

— Esther.

— Seu marido está no vagão?

— Meu marido não é judeu.


A sobrancelha negra de Sarah ergueu-se, surpresa. Não era comum uma
judia casar com um ímpio.

— Sou casada — contou, mesmo que Esther não houvesse perguntado,


porque queria dialogar desesperadamente. — Mas, retirei minha aliança e a
joguei na merda. Se os alemães quiserem meu ouro, terão que enfiar a mão na
bosta e pegar.

— Querer o ouro?

— Eles estão retirando tudo que temos. Os rumores se espalham.


Ficam até com nossos velhos relógios ou sapatos.

Esther encarou a aliança simples, mas de grande significado. Não! Não


podia deixar seus captores ficarem com o símbolo de seu amor por Therron.

— Obrigada pelo aviso — murmurou.

O som cessou entre elas com o apito forte do trem.

Haviam chegado ao destino final de suas vidas.


“Arbeit Macht Frei”.

Aquelas letras em ferro, desconhecidas para Esther, fizeram-na arquear


as sobrancelhas. Ao seu lado, Sarah, que parecia mais forte, ajudou-a a
caminhar.

— O trabalho liberta — a mulher murmurou, fazendo com que o rosto


de Esther se volvesse para ela.

— Como?

— É o que diz — apontou.

— Sabe alemão?
— Era professora do idioma — ela sorriu. — Trabalhei na Alemanha,
até Hitler assumir o poder. Quando começaram a nos restringir, meu marido e
eu soubemos que a França era o paraíso para os judeus, e decidimos ir para lá.
Não sei dizer se foi nosso maior erro.

Esther percebeu o olhar abatido, e apertou suas mãos, tentando lhe dar
forças.

— Se eles querem nosso trabalho, faremos isso — afirmou. — Quem


sabe, depois da guerra, não nos libertem?

Aquela esperança parecia infantil, mas o que mais poderia restar as


duas mulheres?

A conversa foi interrompida pela voz irritada de um soldado da


Schutzstaffel. Um deles, falando francês, explanou aos prisioneiros.

— Iremos dividi-los conforme suas ocupações. Como os mais velhos e


os doentes não tem condições de trabalhar, irão tomar um banho e descansar,
os demais, serão conduzidos ao alojamento.

Tomar um banho e descansar era tudo que Esther queria, mas a


urgência na voz de Sarah a preparou para algo além do previsto.

— Se eles perguntarem, diga que está bem. Se questionarem o que sabe


fazer, diga que costura, que cozinha, que faz qualquer coisa. Se falarem algo
específico, aceite. — Depois, sussurrou. — Não negue nada a eles, irão te
matar.

Aquele alerta a desesperou. Ao ser chamada, tinha lágrimas nos olhos,


mas forçou o corpo a caminhar com rapidez. As vistas nublaram pela fome e
sede, mas seguiu os instintos.

— Nome?

— Esther — disse, um tanto fraca. Pigarreou, e completou, mais firme.


— Esther Esme.

— O que fazia na França?

— Eu trabalhava com meu pai em sua sapataria. Também administrava


o negócio, entendo de números. Depois de me casar, aprendi a cozinhar,
costurar e a fazer diversos afazeres.

Um visto foi feito em sua ficha. Suas mãos tremiam. O que


representava?

— Vá com o grupo para a triagem.

Triagem? Triagem de quê?


Olhou para trás, e viu o olhar em lágrimas de Sarah. Entendeu que ela
era a próxima, e também não estava em melhores condições.

Enquanto andava na direção indicada, olhou para baixo, vendo a terra


barrenta. Subitamente, lembrou-se das palavras da companheira de viagem, e
retirou a aliança. Com o pé, cavoucou rapidamente um buraco no barro,
olhando para trás, tentando perceber se algum oficial vira seu ato.

Jogou a aliança no pequeno buraco, e voltou a puxar o barro com os


pés. Escondia ali, diante da sala de triagem, o lembrete de que sua vida era
real.

Ao contrário do que pensavam os alemães, ela não era um animal e sim


uma mulher que outrora fora feliz. Mais que isso, era o amor da vida do
homem mais maravilhoso que ela já conhecera.

Caminhou em direção à um prédio de tijolos marrões, onde várias


mulheres alemães gritavam e batiam nos rostos das prisioneiras, enquanto lhes
mandavam tirar a roupa.

Esther tentou passar despercebida. Arrancou as vestes com rapidez,


aceitando um vestido em tom cinza. Tão logo vestiu-se, foi puxada para uma
cadeira, onde outra alemã, com uma navalha, começou a cortar seu cabelo.

Ela tentava não pensar, enquanto via as madeixas negras que Therron
tanto amava caindo no chão, como uma oficial despedida da mulher que era
ela.
Tossiu quando jogaram nela um pó contra piolhos, e depois foi
entregue em suas mãos um lenço para cobrir a cabeça.

— Siga para o alojamento indicado pelo guarda — uma mulher avisou,


em sua língua natal.

Ao longe, o sol começava a se pôr. Nem se deu conta, era o início do


Sabbath.

A porta do carro negro abriu, saindo de lá um homem de vestes negras


que ostentava um medalhão com a cruz de ferro.

— Minha honra chama-se lealdade — outro homem de vestes iguais o


saudou.
— Heil Hitler — devolveu, com o semblante fechado.

O outro homem logo lhe entregou alguns documentos, os quais o jovem


oficial da S.S observou com atenção.

— Mais uma leva de judeus da França — apontou. — Um pouco mais


de treze mil.

— Treze? Esperávamos vinte e quatro — o recém-chegado reclamou.

Começou a caminhar para o prédio de administração quando seu olhar


cruzou com uma judia que apertava o pé contra o chão.

Logo, notou algo brilhoso a cair no solo. O objeto foi escondido em


seguida e ela rumou em direção à sala de triagem.

O comandante Kraus Fritz a seguiu com o olhar, até vê-la sumir e,


então, aproximou-se do amontoado de terra.

Naquele instante, a roda do acaso começou a girar.

Não importavam-se as circunstâncias, o destino sempre se cumpria.


Capítulo 07

Kraus Fritz

A vida de delinquente de Kraus Fritz não se iniciou por eventualidade.

Na verdade, ela foi o conjunto de muitos fatores que começaram com a


morte do pai, durante a Primeira Grande Guerra, a completa depravação da
mãe, mulher de muitos amantes que não se importava em esconder do filho sua
vida desgarrada, e o abandono, aos dez anos, entregue aos tios, a fim de que a
genitora pudesse “aproveitar a vida”.

Sempre se sentiu um estorvo em casa, mas na casa dos tios, sua


rejeição beirava a crueldade. Ouvia seguidamente que não passava de uma
boca a mais para alimentar, e de que seu nascimento havia sido um erro.

Aos dezesseis anos saiu de casa, indo morar em cortiços, pagando o


aluguel através de bicos na área da construção civil.

Aos dezenove passou a beber, aos vinte, já fumava, aos vinte e cinco já
era conhecido por sua vida imprópria e sem regras — vida essa tão parecida
com a da mãe — amante de mulheres de vida fácil, sedutor, devasso e imoral.
Provavelmente, não chegaria aos trinta não fosse à presença da gestapo
em sua porta, certo domingo de manhã.

Sem delongas, levaram-no para a Chancelaria do Reich, causando


imediato desconforto no jovem.

A vida política da Alemanha não importava para Kraus. Ele sequer


ouvia a rádio, ou os discursos do Führer. Portanto, não entendia o porquê de
estar ali.

Seus pensamentos foram logo respondidos pela entrada de Adolf


Hitler. Ficou tão nervoso pela presença que sequer o saudou, como era de
costume ao povo.

— Você é filho de Hans Fritz? — o líder indagou. — Fritz do 16º


Regimento de Infantaria de Reserva Bávaro? — completou, dando mais
informações.

O jovem assentiu.

— Seu pai foi um grande homem, um grande alemão, um nacionalista


convicto, alguém que me salvou muitas vezes na guerra. — Hitler explicou. —
Não fosse por ele, talvez eu não tivesse sobrevivido... — murmurou. — Eu
soube que você estava sozinho, vivendo de forma imprópria, e disse a mim
mesmo que não poderia deixar o filho de um grande amigo em tal situação.
Adolf Hitler chamou alguém, à direita.

— Himmler — dirigiu-se a um homem de meia idade, de porte


intelectual. — Leve o jovem, treine-o, faça-o útil ao Terceiro Reich.
Transforme o jovem Kraus num orgulho a memória de seu pai.

Para qualquer pessoa, sair de uma vida de liberdade e ingressar num


serviço como a tropa de proteção, cheia de regras e imposições, devia ser
claustrofóbico. Para Kraus, foi a descoberta de um mundo novo, onde ele era
respeitado, admirado, e amado.

Achou nos homens com quem dividia o uniforme, uma família. Dos
olhares de repúdio dos familiares biológicos, ele passou a ser seguido com
respeito pelos confraternos unidos pela política.

Não se levou muito tempo, e tornou-se um comandante.

Esteve na França, durante os festejos de ocupação. E foi lá que a vida


deu-lhe outra guinada que acabou-lhe por roubar sua paz.

Numa pintura de um quadro feito por um artista de rua ele encontrou o


olhar mais profundo e a beleza mais encantadora que já vira.

Incapaz de desviar seus olhos da obra de arte, caminhou em direção à


imagem que lhe sugava, como se sua alma estivesse atrás de algo, e agora
estava ali, diante dele, um lembrete de que a vida era mais que a guerra, e que
ele era mais do que um nazista.

— Ela é linda... — murmurou, em francês, língua que havia aprendido


na S.S, com má dicção, mas numa tentativa de simpatia ao artista.

Até porque queria saber de onde ele tirara a inspiração. Quem era a
mulher retratada no quadro?

— Não negocio com nazistas.

Foi a resposta crua que recebeu.

Não se ofendeu. Os franceses eram um povo dominado e, como tais,


reagiam. Logo, um soldado de seu regimento o chamou e ele deixou o jovem
loiro pintor para trás.

Não esqueceu-se do quadro, contudo, mas quando retornou mais tarde,


não mais encontrou o artista.

E, assim, quando em 1942 foi designado para Auschwitz I, já havia


perdido as esperanças de um dia conhecer aquela personagem que ansiava.

Não esperava, é claro, que ela surgisse diante dele, com roupas de
prisioneira, o olhar abatido e o desespero exalando pelos poros.

Rumou até ela, mas a mulher andava em direção ao alojamento. Não a


seguiu, ali. Agachou-se diante do amontoado que ela fizera, e tirou de lá uma
aliança de ouro.

Guardou-a no bolso.

As nuances da vida nunca paravam de surpreender.


Capítulo 08

Ódio

Esther adentrou um dos blocos, e encarou o amontoado de rostos que


pareciam não vê-la. Era como se ela fosse parte de um sonho ruim, um
fantasma a deslizar entre os “castelos”, beliches de três andares onde várias
mulheres se amontoavam, tentando dividir um espaço para descansar do dia
duro.

Sentou-se em um canto livre. As lágrimas que até então estavam


controladas, derramaram-se pelo seu rosto. Em seguida, sentiu um abraço
confortador, e percebeu ser Sarah, a estar no mesmo lugar que ela.

— Vamos sobreviver — a nova amiga afirmou.

Um risinho baixo surgiu do andar de cima, e logo um rosto cansado e


esquelético as encarava.

— Primeiro dia? — indagou a outra.

— Sim — Sarah respondeu. — Primeiro dia.

— Então se preparem. Nem calçados confortáveis temos. O solado de


madeira até parece bom para o frio, mas a verdade é que depois de uma
caminhada, vão sentir a sola dos pés descolando-se e a dor será insuportável.
Vocês não vão sobreviver. Nenhuma de nós irá. Torçam para que o fim de
vocês chegue logo.

Esther encolheu-se mais contra a amiga, buscando amparo.

A detenta volveu para seu catre, deixando Sarah e Esther


completamente aterrorizadas. Não era acostumada àquele sofrimento. O pai a
preparou para uma vida de conforto, e Therron, apesar de pobre, cuidava de
suas necessidades e lhe tratava com muito carinho.

Agora, tudo que se abria diante dela era um futuro sinistro, banhado em
sangue e dor.

Repentinamente, o som de vozes se silenciou. Adiante, um oficial da


S.S entrou no alojamento, seguido de um membro feminino dos guardas.
Rumaram até ela, fazendo-a encolher-se de medo.

Será que haviam encontrado sua aliança?

— Pegue suas coisas — o homem disse, frio.

Temerosa, Esther o obedeceu. Pouco depois, carregando a mala,


seguiu-o até a parte frontal da unidade. Entrou em um prédio, indo até o que
seria uma residência. Entrou com o homem no apartamento quente que
contrastava com as suas mãos geladas, o medo transparecendo em seu
semblante.

— Você sabe cozinhar? — ele questionou, tão logo a guarda feminina


sumiu.

Ela assentiu.

— E cuidar de uma casa?

Voltou a confirmar.

— Coloque suas coisas no porão, você será minha criada, a partir de


agora.

Obviamente houve alívio em sua alma, mas ela lutou para nada
transparecer. Até porque, aquele homem era um alemão, um nazista. O que ele
realmente planejava para ela era totalmente desconhecido.

— Sou Kraus — ele se apresentou, ela nem entendia o motivo. Os


alemães não costumavam achar que um judeu valeria um cumprimento. —
Qual seu nome?
— Esther...

Ergueu os olhos, de repente, querendo desvendar o que havia por trás


do olhar escuro do outro.

— Vá para o porão, Esther. Antes de o sol nascer, quero meu café


pronto. Encontrará tudo na cozinha.

A mulher quase correu naquela direção. Fechou a porta atrás de si,


observando um velho colchão no chão e um cobertor, luxo que nenhum outro
prisioneiro tinha.

Como a muito não fazia, ajoelhou-se no chão, agradecendo a Deus por


protegê-la e pedindo perdão por seu egoísmo, já que sabia que os demais
judeus não tiveram a mesma sorte.

Por respeito a ela, Therron baniu a carne de porco do pequeno


apartamento que dividiam. Assim sendo, mesmo desviada dos princípios que
seguia, e da religião que amava, ela manteve seu regime alimentar conforme
orientação do rabino.

Contudo, naquela cozinha, não havia escolhas. O wurst quase branco,


feito com carne de porco e defumado com banha, era frito com cebolas,
enquanto o cheiro invadia suas narinas, incomodando seu estômago ao ponto
de um vômito formar-se em sua garganta.
Porém, ela manteve-se firme. Vivenciara tanta coisa desde que fora
presa, que aquele alimento nem devia enojá-la.

Kraus, como havia se apresentado, surgiu, impecável em seu uniforme,


e sentou-se à mesa.

Esther retirou a frigideira do fogão e foi com ela até o homem,


colocando o alimento em seu prato.

O brezel quente, recém-saído do forno, estava ao lado, e ele o mordeu


com vontade. Houve um pequeno gemido de satisfação, o que fez com que
Esther suspirasse de alívio.

— Você já comeu hoje? — ele perguntou, o francês bastante carregado,


enquanto observava o olhar dela para o prato.

A mulher negou.

— Você fala? — brincou, diante da mudez.

— Sim... Sim, senhor.

— Então me responda com palavras, por favor.

Era tão gentil que sequer parecia um membro da S.S.

— Sirva-se — apontou o refogado com a carne suína.

Esther sentiu a ânsia voltando fortemente.

— Obrigada, senhor, mas não é necessário.

Kraus encarou o prato, e depois voltou a ela. Então pareceu


compreender.

— Judeus não comem porco — murmurou para si mesmo. — Esqueci-


me completamente disso. — Apontou o pão. — Pegue um brezel.

Acanhada, ela pegou uma pequena poção e levou a boca. Fazia tanto
tempo que não comia algo que não fosse a sopa de serragem, ou os pães
velhos dados no trem, que o alimento pareceu estufá-la imediatamente.

— Você pode comer o que achar aqui — ele murmurou, levantando-se.


— Apenas, nunca se retire do apartamento sem minha autorização. Entende
isso?

Ela assentiu, mas logo falou:

— Sim, entendo.

O homem sorriu.

— Ótimo.

Mordeu mais um pedaço do pão, e depois rumou a saída.

O sargento da unidade ao sul de Paris blasfemou contra Jesus Cristo


que resolvera nascer num dia tão frio, enquanto dirigia um Horch naquela
estrada enlameada.

Por que diabos tinham que comemorar o Natal e por que diabos os
comandantes o haviam designado a buscar mais vinho sobre aquela friagem?

Sabe o que faltava ali? Um bom e velho judeu inútil, para cumprir
aquele tipo de obrigação que ninguém queria.

Um amigo de infância contara que as coisas estavam boas na Polônia,


onde aqueles sub-humanos faziam o trabalho que ninguém queria.
Eram os judeus que arrumavam os esgotos, consertavam as estradas,
lavravam o campo, e toda sorte de serviços pesados que os alemães
conseguissem arrumar.

Escondendo um riso, lembrou-se das anedotas narradas pelo outro.


Duas vezes na semana, depois do trabalho, eles eram levados para os banhos,
onde um sabonete de areia era entregue para que limpassem a pele escamosa.
Depois, sem toalhas, eram obrigados a correrem nus até o alojamento, onde as
roupas os aguardavam.

Gargalhou ao imaginar um pênis circuncidado, encolhido de frio, a


balançar contra o vento enquanto seu dono tremia perante a neve.

Os filhos da puta da gestapo deviam estar se divertindo pra caralho!

Subitamente, um solavanco. Não precisava ser um gênio para saber


que o pneu estourara.

Parou o carro no acostamento, e saiu do veículo. Mesmo agasalhado,


aquele vento gelado e úmido lhe fez doer os ossos.

Aproximou-se do pneu, quando notou uma série de pregos enrolados


no mesmo, unidos por uma corda. Levou a mão à cinta, a procura da arma,
quando sentiu um cano na nuca.

— Nem pense nisso — uma voz em francês lhe interrompeu.

Em seguida, foi empurrado contra o veículo. De soslaio, percebeu ser


um homem loiro a lhe ameaçar. Uma mulher ruiva surgiu em seguida.

Ela aproximou-se e lhe retirou a arma. Depois, procurou por mais


objetos nos seus bolsos. Seu dinheiro foi saqueado junto com um canivete e
alguns documentos.

— Quero informação — o francês avisou, o tom calmo.

O sargento não era um homem corajoso, e definitivamente, não


arriscaria a própria pele para manter qualquer segredo do Reich.
— De que tipo?

— Quando sairá o próximo comboio para a Polônia?

O alemão logo percebeu que a intenção do homem era sabotar uma


leva de judeus. A maldita resistência estava, desde a ocupação, atrapalhando o
árduo trabalho alemão de limpeza racial.

— Em janeiro — murmurou. — Dia 15.

A mulher aproximou-se do homem.

— Já temos a arma, dinheiro e informação. Vamos embora antes que


alguém apareça na estrada.

O sargento suspirou de alívio quando viu o homem assentindo,


contudo, em seguida, o som forte e estrondoso, curvou sua cabeça.

— Therron! — a mulher exclamou. — O que você fez?

O tiro havia sido na testa. Ironicamente, com o passar dos meses em


treinamento, o antigo artista percebeu que seu dom não se resumia a pinceis.

— Vou tirar a roupa dele — avisou à Theresa.

A companheira de guerrilha pareceu nervosa, mas não o impediu.


Visualizou o loiro arrancar o uniforme e deixar o homem nu. Em seguida, ele
levou o corpo para cima do automóvel.

— O que planeja? — inquiriu.

— Alcance o canivete, por favor?

O olhar assombrado feminino não se desviou enquanto Therron Esme


castrava o nazista e marcava a testa do homem com a suástica.

Quando tudo se resumia a sangue e bestialidade, ele limpou as mãos


numa poça de água e se afastou. A mulher seguiu com ele.
Theresa Burnier alcançou um copo com uísque para o jovem
companheiro de guerrilha. Sentado no chão, Therron observava o mapa da
ferrovia, tentando traçar a melhor forma de sabotar as ordens nazistas.

— Precisaremos de meia dúzia de homens — murmurou a ela. —


Talvez mais.

A mulher aproximou-se, o corpo próximo do dele.

— Jean acha que suas táticas são muito arriscadas.

— Jean tem medo de matá-los. Eu não.

— Nosso líder pensa em te mandar para a Alemanha na próxima leva


de trabalhadores franceses — murmurou, havia tristeza em seu tom.

A boca bonita dela aproximou-se do homem, mas ele desviou-se e logo


se pôs de pé.

— Não me deixará nem mesmo uma lembrança?

— Eu sou um homem casado — ele devolveu, irritado com a ladainha


feminina.

Estavam em guerra! Em guerra! Não havia espaço para nenhum desejo


carnal.

— Pode ser um homem viúvo, nesse momento — ela murmurou, não


para irritá-lo, mas sim porque aquilo era a verdade.
— Mais um motivo para eu matar quantos nazistas conseguir.

Bebeu o uísque num único gole e largou o copo sobre a mesinha.


Depois, afastou-se. A mente focada em destruir mais um plano nazista. Os
meses que se seguiram a captura de Esther o transformaram em um monstro,
despertando nele um ódio avassalador.
Capítulo 09

Sina

As crianças ciganas eram reconhecidas de longe, afinal de contas,


ninguém sofria mais nos campos que os ciganos. E, nenhum dos ciganos era tão
vítima quanto os pequenos.

Com o passar dos dias, Esther notou que eles sequer tinham um
alojamento. Viviam em barracões, sem qualquer tipo de higiene, com seus
excrementos espalhados pelo chão, quase à altura do tornozelo, vítimas de
toda sorte de doenças, aquém até mesmo dos homossexuais.

Eram as crianças, com seus corpinhos em putrefação, mortos-vivos


como personagens de livros góticos que Esther lia escondida, que apareciam
próximo do horário de almoço, junto com as mulheres, uma vez na semana,
para trazer sacos com mantimentos e reabastecer o estoque de Kraus.

Esther sentia tanta pena que sua ânsia era roubar aquela comida e dar
as pessoas, mas sabia que era só prolongar o sofrimento.

A noite indagava a Deus porque não morriam logo. A cada dia, além da
fome e da tortura, havia a extensa humilhação.
Mesmo assim, descobriu naquele povo uma fortaleza.

Era um contraste. Sua fraqueza diante da coragem cigana. Enquanto ela


chorava pelos cantos, eles cantavam perante seus barracões, incentivando suas
crianças famintas a dançar, a não esmorecer, a continuar a batalha pela vida.

E havia mais histórias: muitos deles, ao serem presos, enfrentavam


pelotões intensamente armados munidos apenas com uma simples faca.

O mundo tinha tanto a aprender com os ciganos... Havia honra e


bravura naquele povo.

Para ela, todavia, além do medo, existia um complemento. Kraus a


tratava com uma estranha cordialidade, que a tornava a cada dia mais
desconfiada e temerosa.

O que um nazista da S.S iria querer dela? Sabia que eles não tocavam
nas mulheres, especialmente numa judia, a fim de estupro, mas... Por que
aquele homem havia tirado ela dos campos e a mantinha para si, trancada no
apartamento?

— Moça — uma das ciganas a arrancou do devaneio. — Os sacos de


farinha estão na despensa.

— Obrigada — murmurou.
A mulher fez menção de sair, mas voltou-se. Seus olhos focaram-se em
Esther e, por alguns segundos, a judia creu que a cigana lia sua alma.

— Que triste a sua sina... — a mulher murmurou. — Que triste cada


uma das suas vidas... Em todas elas, viveu para encontrar quem ama, e depois
o perdeu, afogando-se em dor.

As palavras remetiam muito aos medos de Therron e o olhar de Esther


encheu-se de lágrimas.

— Ele vai morrer?

Sabia que não devia indagar aquilo. Deus proibia especulações com
feiticeiros, mas ela precisava de um alento.

— Seu amor vai sobreviver à guerra, mas vai arruinar-se em sua


própria alma. Morrer tem muitos significados. Às vezes é melhor morrer no
corpo físico, que perder a compaixão e a misericórdia, sentimentos que nos
torna humano. Às vezes é melhor morrer, mas ter a alma salva. Pior é respirar
e estar vivo, mas morto por dentro.

O que aquilo expressava?

— Você vai sair do campo — a cigana afirmou, em seguida. — Mas, o


campo nunca sairá de você. Seu futuro é tão triste que me faz chorar. Porém,
tem sorte em uma coisa. Sempre terá seu irmão perto de ti.
— Sou filha única — Esther apontou para a mulher.

— Em carne? Sim, provavelmente. Mas, em alma, tem um gêmeo.


Vocês já se conhecem. Se perderam, mas irão se reencontrar. Não agora, não
ainda. Mas, quando tudo parecer escuro, ele irá surgir. E vai te ajudar a
reencontrar seu amor. Poucas têm tanta ventura.

E depois afastou, deixando a mulher em prantos. Havia tantos motivos


para chorar, mas ela nem mesmo sabia por que derramava aquelas lágrimas.

Com o passar das semanas, enfim, Esther teve autorização para sair do
apartamento. Eram poucos minutos, apenas para lavar as roupas de cama, os
uniformes, e o que precisava nos tanques que ficavam perto dos alojamentos.

Aqueles momentos, contudo, tornaram-se joias preciosas nos dias que


vivia no campo de concentração.
Via Sarah ao longe, cada dia mais magra. Quando se cruzavam,
discretamente, dava a ela um pedaço de pão que roubava e guardava embaixo
das saias. Também sempre surrupiava um cigarro de Kraus, para dar as
crianças, já que cigarro era uma preciosa moeda de troca no campo, incluindo
comida extra.

Foi numa das suas andanças que ela descobriu que havia um canto em
Auschwitz que parecia um tabu até mesmo para as vítimas da brutalidade
nazista.

Jovens de diversas nacionalidades, quase sempre comunistas, eram


enviadas a uma casa, onde permaneciam como incentivo para os homens que
trabalhavam, escravas sexuais dos desejos perniciosos de quem já havia
perdido tudo, inclusive seu senso moral.

— O que melhor trabalhar hoje terá quinze minutos com uma das
moças — prometeu um dos guardas, aos berros, fazendo Esther tremer.

Das janelas, era possível ver o rosto sofrido das moças usadas como
um simples buraco onde os homens enfiavam seus paus, desmerecidas por
conta de algo que elas sequer eram culpadas.

Ah, se Esther tivesse algum poder. Mas, ser uma prisioneira em


Auschwitz era acima de qualquer coisa a certeza de uma vida efêmera.

Ao se distanciar da casa, ela manteve o semblante impassível. Aquela


dor, não poderia compartilhar.
Subitamente, contudo, estancou. Do outro lado de uma cerca, uns vinte
quilos mais magro, de roupas sujas e de olhar derrotado ela viu Frederic
Wiesel, seu pai.

Os membros da S.S, Bauer e Becker, podiam ser considerados irmãos.

Parecidos, ambos tinham a pele pálida, os olhos verdes, a mesma


imagem rígida e o mesmo vínculo nacionalista.

Nascidos na mesma cidade, alistaram-se juntos na juventude Hitlerista,


onde passavam os dias primaveris quebrando vidraças das lojas de judeus e
fazendo pequenos afazeres aos bons alemães.

Mantiveram ardente o sonho de entrar para a Schutzstaffel, mas como


toda tropa de elite, a enorme lista de exigências fazia com que a cada ano que
passava seus desejos mais se distanciarem.

Foi o avanço da guerra que conseguiu a façanha, porém. As muitas


requisições de ingresso foram abandonadas e, enfim, a dupla conseguiu ir para
Auschwitz.

Agora, sentados diante do comandante Kraus Fritz, eles não escondiam


a satisfação de enfim trabalhar pelo avanço do Reich.

Subitamente, uma prisioneira ingressou na sala. Trazia nas mãos uma


bandeja de chá, e aproximou-se, a servir os alemães.

— Uma porca judia tocando em nossas xícaras? — Bauer comentou,


em voz alta, sem constrangimento.

Ao contrário do amigo, Becker era mais discreto. Volveu o olhar para


o comandante Kraus e permaneceu em silêncio, enquanto via o homem fuzilar
Bauer com o olhar.

— Saía, Esther — Kraus ordenou a mulher, que rapidamente sumiu da


sala. Depois, encarou os jovens. — Antigamente havia uma série de
reivindicações para se ingressar na Schutzstaffel. A importância disso era ter
homens realmente preparados e superiores na elite da polícia do nosso amado
líder. Agora, pelo jeito, aceitam qualquer um.

Bauer não escondeu a raiva de Kraus perante as palavras. Jamais


haviam se visto antes daquele momento, mas bastou aquele curto espaço no
tempo para torná-los inimigos.

— Devia ter uma alemã a lhe servir.


— Devia saber que não se dá conselhos a um comandante — devolveu.
— Pegue seus papeis e vão para os alojamentos. Vocês começam seu trabalho
amanhã.

Tão logo os homens saíram do apartamento, Kraus foi à cozinha, onde


uma sempre calada Esther fazia seu trabalho abstendo-se de qualquer palavra.

Aproximou-se por trás dela, percebendo o corpo feminino ficando


rígido pelo medo.

Contra a vontade, esmoreceu diante da fragilidade.

Era um caminho sem volta. Ele não mais conseguia desviar o olhar
dela, e aquilo poderia ser sua perdição.

Repentinamente, não se importou.


Capítulo 10

O pão.

O comandante Kraus era responsável pela área administrativa do


campo. Esther sabia que, adiante, logo após os prédios que compunham a
administração e os alojamentos onde os prisioneiros em melhores condições
de saúde trabalhavam, havia dois campos complementares, onde a maldade
era apenas um dos pontos a destruir as pessoas.

Falava-se em banhos dos quais ninguém voltava. Em prisões tão


estreitas que a pessoa morria de pé, pois sequer conseguia se sentar. Diziam-
se que o tifo e a disenteria estava destruindo as vidas, que um médico
chamado de anjo da morte ministrava as mais temíveis experiências e que
algumas guardas usavam crianças para alimentar seus cães.

Mas, ali... Ali, perto de Kraus, ela sentia-se segura. Mesmo assim, não
conseguia esquecer o olhar do pai, do outro lado da cerca, como se o encontro
fosse tortuoso para ele, como se esperasse que sua rebenta estivesse a salvo, e
não vivenciando o inferno.

A magreza dele trouxe-lhe lágrimas nos olhos. Frederic Wiesel era o


tipo de homem que levantava cedo e dormia tarde a fim de sempre manter a
família. Nunca faltou comida em sua casa, nem conforto entre suas paredes.
Como devia estar a mãe? A sempre tão frágil Margareth aguentaria
aquela vida desgraçada?

Naquela manhã, Esther lavaria as roupas de cama de Kraus. Tão logo o


comandante saiu do quarto e foi para a cozinha, ela entrou nos aposentos,
retirando os lençóis de linho e os colocando em grandes cestos.

Voltou à cozinha a fim de avisar que estaria indo lavar as roupas.


Enquanto Kraus volvia seu olhar para o jornal, ela levou a mão num dos pães
e o colocou no cesto de roupa.

Soube no instante que o olhar de Kraus voltou-se para ela, que ele
havia reparado em seu gesto, mas o homem não disse nada, simplesmente
voltou a beber o café.

Então, Esther saiu.

O coração aos saltos, o medo irracional que quase a fazia desfalecer,


por fim acalmou. Caminhou em direção aos tanques de concreto, e colocou as
roupas dentro da água com sabão.

Aguardou o quanto pôde. Estava prestes a finalizar a tarefa, quando


percebeu um grupo de homens caminhando em direção à estrada.

Seguiam pelo corredor cercado de arame. As roupas sujas e o olhar


abatido tornava-os muito parecidos, mas ela reconheceu o pai.
Mesmo diante do medo, ela caminhou naquela direção. Ao longe, no
início da fila, um dos guardas armados guiava os prisioneiros, mas Frederic
ficou para trás, e conseguiu se aproximar da cerca.

— Pai — ela queria abraçá-lo e dizer que tudo ficaria bem. Mas, tudo
que conseguia, além de chorar, foi entregar a ele um pedaço do pão que
roubara.

Ele aceitou o alimento e o guardou rapidamente dentro das calças.

— Pai, e a mãe?

O olhar de desespero tornou-se paternal. Era como se somar a dor da


filha pela prisão a morte da mãe fosse algo que ele não quisesse fazer.

— Ela já chegou doente, Esther.

— Eles a levaram as câmaras?

O homem assentiu. Foi naquele momento que Esther soube que os


boatos eram reais.

— E seu marido? Por que ele não fugiu contigo?


— Therron tentou, mas falhou. Não foi culpa dele...

O pai parecia entender.

— Os quatro anos que vivemos longe mesmo estando tão perto,


Esther... Jamais me perdoarei por não ter aproveitado meus dias de liberdade
ao seu lado, filha...

Um dos guardas percebeu que conversavam e gritou. Eles se


distanciaram.

— Pai, trarei comida, eu...

O homem se afastou, não mais ouvindo suas palavras.

Esther voltou ao tanque de roupas. As águas cobertas de espuma


juntaram-se as lágrimas femininas que cascateavam pelo rosto e derramavam-
se nos tecidos nos quais o comandante Kraus dormia.
Esther havia dado o pão a um homem velho.

Kraus, escondido entre os prédios, imaginou que vínculo tinham.


Conheciam-se de onde? Seria ele um parente? Talvez o pai dela?

Apertou a aliança no bolso, pensando no dono do coração da mulher.


Onde estava o homem que a fez arriscar a vida para esconder seu vínculo
amoroso? Também no campo, ou já morto?

Ou... Quem sabe... Teria o marido a abandonado quando foi presa. Isso
era provável, muitos judeus foram deixados pelos cônjuges quando a gestapo
bateu em suas portas.

Aliás, sabia ele, muitos prisioneiros dali haviam sido delatados


exatamente por aqueles que lhes juraram amor eterno.

Deixou a aliança no bolso e voltou para o apartamento. Na sua mesa de


escritório, começou a analisar a papelada sobre as execuções e a quantidade
de gás usado num dos últimos banhos.
Números e mais números, quantidades que não lhe causavam nenhuma
comoção ou sentimento. Era simplesmente trabalho. E um trabalho que ele
faria com toda honra e dignidade, em nome de um mundo melhor, onde Adolf
Hitler seria o porta-voz de esperança.

Ouviu o som de passos e soube que Esther havia retornado. Ergueu-se


e caminhou até a cozinha, vendo-a a lavar a louça de seu café.

Um leve tremor nos ombros denunciou o choro, e ele se aproximou.


Puxou seu braço e encarou seu semblante em desespero. Guiou a mão até sua
face, querendo limpar as lágrimas, quando ela o empurrou, esbofeteando-o.

Naquele instante o tempo parou.

Esther sabia que, no momento que se defendeu, Kraus iria puni-la. Ele
era um membro da S.S e ela era apenas uma judia. Seu ato impensado,
provavelmente, a condenaria a morte.

Porém, dando dois passos para trás, ele simplesmente recuou. Depois,
deixou-a sozinha.

A mulher caiu de joelhos no chão.


Capítulo 11

Destruição

O comandante voltou ao seu apartamento quando a noite já se fazia há


muitas horas. Trazia nas mãos uma garrafa de rum, e nos lábios um cigarro
aceso, como se aquela regalia fosse sanar qualquer ato de represaria.

Esther o aguardou na sala. Até porque não havia aonde se esconder.


Estava presa ali, e quanto antes acabasse sua agonia, melhor. Preferia a morte,
a eterna espera.

Contudo, Kraus a observou com o semblante impassível. Bebeu um


gole da garrafa e depois estendeu a ela.

A judia o encarava sem saber exatamente o que aquilo significava.

— Eu quero que beba — ele explicou, naquele francês forçado que só


ele tinha.

— Não quero.
— Não estou pedindo.

Ela segurou a garrafa. Depois, bebeu um gole, sentindo o líquido


queimar sua garganta.

— Você sabe o que eu faria com qualquer prisioneiro que erguesse a


mão para mim, Esther? — indagou, aproximando-se como uma fera ferida,
causando um frenesi intenso na mulher. — Eu poderia facilmente quebrar seu
crânio com minhas mãos. — Levou a mão até sua face, contudo, não para
agressão e sim para um carinho.

— Então me mate — o sussurro feminino o arrepiou. — Me mate como


matou minha mãe...

— Sua mãe?

— Nas câmaras — explicou-se. — Minha mãe morreu sufocada pelos


atos dos homens que comanda.

Até aquele instante, o amontoado de corpos retirados dos banheiros e


queimados nos poços eram apenas números a serem contabilizados pelo
Reich. Todavia, agora, era uma mãe, uma pessoa real, alguém que havia
colocado a mulher diante dele no mundo, a mesma mulher que ele não
conseguia machucar, nem se afastar.

— Você está me enlouquecendo, Esther — o murmuro foi dito baixo,


contra os lábios, mas sem contato. — E por quê? Sequer tenho vontade de
fodê-la. Não é paixão, nem desejo. O que diabos me guia até você, me
enfeitiça ao ponto de eu mantê-la aqui, protegida, a salvo, e me culpar por
cumprir meu dever civil de limpeza racial?

A boca dele desviou-se de seus lábios e beijou sua bochecha. Depois


disso Kraus afastou-se. Naquela semana, evitaram falar um com o outro.

O ofício designado de Berlim ardeu em seus dedos. A solicitação para


comparecer até Rudolf Höss, o comandante chefe do campo, tinha um motivo,
apesar de não estar explícito nas linhas.

Alguém do campo havia denunciado sua fervorosa devoção à judia


para a liderança da S.S. Quem? Kraus poderia jurar ser Bauer!

De qualquer maneira, o maldito iria pagar caro quando retornasse.


Conhecia Höss o suficiente para ter a confiança do homem. Ele não havia
chegado ao posto de comandante por privilégios, e sim por trabalho duro e
princípios angariados em sua alma.
Kraus Fritz havia provado sua lealdade a Hitler muitas vezes. Chegava
a hora de o Reich demonstrar que confiava nele.

A ordem dada a Esther era de que não saísse do apartamento de Kraus


para nada, nem mesmo para lavar a roupa. Simplesmente, devia ficar ali, a
limpar e cuidar de suas coisas, enquanto o comandante estivesse ausente.

Contudo, quatro dias após a partida de Kraus, a porta abriu-se de


forma obtusa e Bauer, o soldado que a encarou com nítido nojo no dia de sua
chegada, surgiu perante ela, possesso, como se fosse um dever punir aquela
vadia judia por existir.

— Você vem comigo — ele gritou.

Não pediu, nem falou. Sua voz soou aos berros, como se ela fosse
surda, como se fosse louca, como se não merecesse a mínima consideração.

Começou a tremer, antevendo o que seria. A câmara? Talvez voltar ao


alojamento? Quem sabe, enviada a outro campo?
Já se fazia tanto tempo que ela estava em Auschwitz que havia perdido
a noção dos dias. Como não tinha contato com os demais prisioneiros, não
sabia nada sobre transferências, e aquilo a alarmou.

Ali, podia ver o pai, ao menos uma vez na semana. Se a transferissem,


quando poderia vê-lo novamente?

— Devo levar minhas coisas? — perguntou, baixo.

— Não.

A resposta crua fê-la estremecer.

Se não era uma transferência, era a câmara. A morte agoniante, o


amontoado de gente dividindo um cubículo enquanto o oxigênio faltava,
corpos um sobre outros, no desespero de sobreviver ao inferno.

“Livra-me na tua justiça, e faze-me escapar; inclina os teus ouvidos


para mim, e salva-me”.

Com o salmo 71 na mente, ela seguiu Bauer. A terra barrenta parecia


cravar em seus pés de sapatos gastos e velhos. A garganta secou, as mãos
tremeram, o coração em tal agonia mal conseguia mantê-la em dignidade.
Subitamente, pararam. Só então Esther voltou o olhar para o lado.

— Não...

Não era a câmara. Era pior. O prostíbulo de Auschwitz erguia-se


diante dela, como se, subitamente, seu maior medo desde a prisão, fosse
declarado.

— Entre, sua puta — Bauer a estapeou, puxando-a pelos cabelos, até o


local.

— Senhor! — ela exclamou. — Senhor, mate-me, por favor... Mate-me


— implorou.

Bauer riu do pedido. O nazista não considerou, contudo, que não era
dirigido a ele. Esther falava com o Deus que regia os céus. Apenas não sabia
mais se esse Deus ainda inclinava seus ouvidos aos judeus.
Jean encarou o jovem francês com o olhar carregado de simbolismos.

— Therron — o chamou. — Eu sei que você está zangado...

— Zangado? Você me prometeu! Faz mais de um ano que estou na


Resistência, matei mais nazistas que o fronte inteiro da resistência juntos, e
você irá enviar Peter a Alemanha?

— Exatamente por isso — Jean afirmou. — Nós temos um documento


para colocar um informante dentro de um grupo fechado de nazistas,
admiradores e amantes de membros da S.S. Queremos alguém frio, que
consiga nos passar informações sem perder a cabeça.

— Eu aceitei ajudar a Resistência por causa dessas passagens! —


Therron gritou.

Naquele local isolado, uma fazenda perto de Paris, Jean notou que as
coisas poderiam facilmente sair do controle.
— Therron, seu trabalho é admirável...

— Você me fez lutar aqui, enquanto minha esposa foi mandada a


Polônia. Fez-me crer que eu conseguiria resgatá-la.

— E também lhe avisei que nossa missão é mais importante que seu
amor por uma judia.

Silêncio. Therron parecia remoer as palavras, como se elas


repassassem em sua mente, fazendo-o captar a essência de cada letra. A
Resistência era uma luta política, não por pessoas. Claramente, pouco
importava o que ocorriam aos judeus.

— Onde estão os documentos?

— Estão guardados comigo — respondeu, calmo, tentando ser


amigável. — Os próximos documentos que conseguirmos serão seus, eu
prometo.

Um estrondo ecoou pela casa isolada. A cabeça de Jean pendeu para


trás, enquanto a fumaça saia da arma de Therron.

Ele mirou na testa e acertou exatamente onde queria. Depois,


aproximou-se do corpo do líder, e passou a buscar por papeis em seus bolsos.
Nada.

Começou a procurar nas gavetas, quando achou um envelope.

“Rolf Maik.”

Aquele nome alemão escrito sobre um envelope pardo fê-lo sorrir.


Abriu-o e encontrou a identidade, as passagens e toda sorte de documentação
que precisava. Até mesmo as chaves de um pequeno apartamento de Berlim, e
sua localização.

Durante seu treinamento, aprendeu um pouco de alemão, Esforçou-se


mais que os outros para conseguir se infiltrar na região ocupada nazista.
Agora, estava a um passo de recuperar a esposa.

Voltou-se para o cadáver de Jean e o observou atentamente.

Qualquer um que se colocasse em seu caminho em direção à Esther


teria o mesmo fim.
O quarto tinha cheiro de sabão. Um cubículo de menos de dois metros,
com uma janela ao fundo, uma cama de solteiro com um colchão gasto por
cima, lençóis floreados dando ares de feminilidade, e um pequeno vaso de
flores murchas que não conseguiam deixar o ambiente menos claustrofóbico.

Esther sentou-se na cama, as pernas bambas, antecedendo o que viria.


A noite já havia caído há algum tempo e ela ouvia os passos dos homens e o
choro baixo feminino vindo de alguns quartos.

Cada passo que se aproximava de sua porta a deixava mais apreensiva.


Contudo, até aquele momento, ninguém viera até ela.

Pensou em Therron e no amor que nutria pelo marido. Era nele que
seus pensamentos se firmavam quando abria os olhos de manhã, ou quando os
fechava, à noite, para dormir. Therron estava sendo sua força; nos poucos
momentos em que queria sobreviver, era por ele, mesmo não sabendo mais se
o encontraria quando voltasse... Se voltasse.

Como a guerra estaria indo? A França conseguira aliados? Ou Hitler


expandia seu poder além de qualquer limite?
Viver sem a esperança do amanhã era pior que a certeza do fim. E a
cada dia que passava naquele lugar, Esther sentia-se mais fraca.

Encolheu-se na cama, as costas escoradas na parede, orando a Deus


que nenhum homem viesse e que guarda Bauer só quisesse amedrontá-la.
Porém, tão logo terminou essas orações, um homem abriu a porta.

— Você tem vinte minutos — uma das guardas anunciou, fechando a


porta atrás dele.

O olhar de Esther arregalou-se diante do rosto conhecido. Era Josef,


seu antigo noivo. O que ele fazia ali?

— Josef... — murmurou. — Você...

— Judeus não tem autorização para vir aqui, mas como sou líder do
meu alojamento, Bauer me abriu uma exceção.

A voz dele trazia um rancor palpável.

— Josef...

— Você me abandonou no altar, humilhou-me perante todos os meus...


Mesquinha, egoísta, destruiu sua própria família, trouxe vergonha a seu pai, e
tudo a troco de quê? De um pintor de bosta, de rua, um ninguém, um pobretão?
Eu te ofereci os céus, e você aceitou a miséria vinda dele.

O olhar de Esther esmoreceu. Ela levantou-se, ficando de fronte ao


homem.

— Não vou me desculpar por seguir meu coração, mas peço desculpas
por tê-lo magoado — ela disse, convicta. — Contudo, de que adianta remoer o
passado, Josef? Nosso destino estava traçado para esse campo. Qualquer que
fosse nosso pecado, aqui nós pagamos.

Ele assentiu, como se concordasse. Repentinamente, contudo, retirou o


casaco. O olhar dela voltou a ficar temeroso, conforme as roupas masculinas
iam sendo arrancadas.

— O que está fazendo? — questionou.

— Tenho vinte minutos — ele a lembrou. — Você me deixou para se


deitar com um pobretão, e agora se acosta com um comandante nazista, que
deve ter enjoado de ti, e te enfiado aqui depois de tê-la usado bastante.

— Está enganado.

— Pouco importa — A empurrou contra a cama. Esther deu um grito


mudo, enquanto sentia o corpo do homem se pressionando contra o seu. —
Você me deve isso.
Ela berrou por socorro. Sua boca foi coberta pelas mãos calejadas. Em
seguida, sua saia erguida a altura dos quadris. As lágrimas femininas caíram
sobre as mãos de Josef, mas ele não a soltou.

Para ele, Esther não passava de uma vadia e, como tal, merecia ser
fodida.

Enfiou-se nela com brutalidade, arrancando um gemido de dor. Ela


tentava lutar desesperadamente, e aquilo o irritou.

Um soco. Dois. O sangue começou a sair em abundância do nariz


arrebitado, mas ela ainda tinha forças para reagir.

Dessa forma, o homem há soltou um pouco, apenas o suficiente para


bater a cabeça dela contra a parede.

Quando a percebeu desacordada, fez o que quis.

E o que queria não manchou apenas a mulher. Acabou por destruir o


resto de hombridade que havia em si.
Frau Herna era uma formosa alemã que adorava uniformes. Havia sido
amante de vários homens da S.S, mas agora, já tendo passado pelas mãos de
muitos deles, ficara marcada pelo desinteresse masculino.

Os homens eram assim. Não gostavam muito do fácil.

Contudo, não foi por solidão que ela deu conversa a um jovem loiro de
olhos intensamente azuis que a observou atentamente durante toda a noite,
naquele bar no Sul da Polônia.

O homem era muito bonito. Bonito ao ponto de tirar dela o ar. Tinha
sotaque, havia dito que nasceu na França, mas seu pai era alemão. Depois que
Hitler assumiu o poder, percebera que era hora de voltar para o Reich.

— E o que você faz? — ela inquiriu, interessada.


Ele levou uma caneca de cerveja preta aos lábios. Bebeu um longo
gole, antes de devolvê-la ao balcão.

— Eu sou um pintor.

— Um artista?

— Rolf Maik — apresentou-se. — A seu dispor.

— Um artista... — ela repetiu, num tom sedutor. — Pinta paisagens?

— Prefiro mulheres nuas.

O riso feminino invadiu o ambiente.

— Me pintaria? — indagou, fazendo uma pose sedutora.

— Seria uma grande honra.

Duas horas depois, eles estavam em um quarto vagabundo de hotel.


Herna nem pestanejou em tirar a roupa para um homem que havia conhecido há
poucas horas.
O pintor trazia consigo um papel grande e um lápis, e sentou-se perto
da cama, admirando as formas generosas.

— Seu namorado ou marido não ficará zangado por tal informalidade?


— inquiriu, antevendo a resposta.

Rolf ou, como era seu nome real, Therron, não havia se aproximado
daquela mulher ao acaso. Na cidade há alguns dias, descobriu que ela fora
amante de um comandante de Auschwitz. Muito provavelmente conseguiria
informações preciosas de como se aproximar daqueles homens através da
mulher.

— Meu amante me largou depois que se encantou por uma judia — ela
apontou, sem constrangimento, enquanto erguia os braços, levantando os seios.
— Você crê nisso? Deixou-me por causa de uma porca judia, uma cadela sem
formas, magra, uma peste que Hitler faz muito bem em limpar do mundo.

O homem permaneceu em silêncio. Apenas sorriu para ela, como se a


incentivasse a continuar.

— Qual o nome dele?

— Fritz. Kraus Fritz.

Bingo! Era o comandante de Auschwitz I. Era exatamente o homem que


ele precisava se aproximar.
— Quem sabe vocês ainda não possam voltar...

— Voltar? Ele chamou o nome dela enquanto dormia na minha cama —


disse, desaforada. — Esther, uma francesa — apontou. — Jamais me
esquecerei de tamanha afronta. Depois disso, nunca mais o vi.

Os papeis caíram da mão de Therron. Algo em seu âmago explodiu.


Havia uma dubiedade de sentimentos. A Esther citada seria a sua mulher? Ela
estava viva? Mas, viva para ser de um nazista?

Outro homem a tocava? Afundava-se no corpo que era dele?

Levantou-se, quase sem sentir as pernas.

— Aonde você vai? — ela questionou.

Não houve retorno.

Therron a cada dia submergia mais no ódio. Agora, outro sentimento


fazia companhia à raiva. Era o ciúme.
Foi relativamente fácil livrar-se das indagações de Rudolf Höss.
Conhecia o homem desde que entrara para a S.S, e sabia que havia mais
segredos entre eles do que supunham um novato como Bauer.

“Lembra-se de como estávamos juntos quando descobrimos que


alguns membros da S.S seguiam os passos de Röhm?”, sua pergunta remetia a
vivência ao lado do outro. “Nós percebemos que alguns arianos, alguns
puros, praticavam coito como animais, seguindo ideias imorais, homens com
homens, e nós livramos o mundo de tais aberrações sem levar nada a
público. Compartilhamos uma amizade e um segredo, e você me ofende
quando questiona minha decisão de manter uma judia como empregada.
Sabe muito bem que eu jamais misturaria meu sangue com uma sub-
humana”.

O comandante chefe assentiu, diante dele. Em seguida veio um pedido


de desculpas e a dispensa.

Naquela manhã, ao retornar para Auschwitz, Kraus trazia consigo a


certeza de que ele não deixaria Bauer viver mais que alguns dias.
Claro, seria discreto. Mas, daria um jeito de livrar-se do homem antes
que ele colocasse sua preferência por Esther em perigo.

Entrou no apartamento e encontrou o silêncio. O pânico tomou conta de


si, antevendo a desgraça.

Se a tivessem levado as câmaras... Se a tivessem matado...

Desceu as escadas com relativa calma. O semblante frio tentando não


demonstrar nada. Interpretar um homem calculista era o que salvaria a sua
pele, e a da judia, se ainda estivesse viva.

— Ei, guarda! — chamou um dos homens. — Onde está minha criada?

Era quase impossível reconhecê-la. O rosto inchado pelas agressões,


as manchas roxas, a boca machucada... Ela sequer conseguiu ficar em pé
diante dele.
Resvalou no chão, mas Kraus não a ajudou. Atrás dele, uma das
guardas lhe bateu com uma vara, fazendo-a se erguer, apesar da dificuldade.

Kraus apertou o pulso, contendo uma gana tremenda.

Ele sabia quem havia sido responsável pela ida de Esther ao


prostíbulo. Nitidamente, a raiva de Bauer pelos judeus ultrapassava todos os
limites. Vendo que aquela judia, em especial, era protegida pelo comandante,
ele não pestanejou em fazê-lo sair do campo para poder atacá-la.

— Você voltará para meu apartamento — disse, frio, como se não se


doesse pelo sofrimento diante dele. — Quero que tome um banho e arrume
meu café da manhã.

Enquanto ela o seguia silenciosa pelo campo, caminhando em passos


lentos, arrastados, emitindo pequenos gemidos de dor pelo tempo que fora
abusada e estuprada, ele tentou manter a calma.

Vingança, bem sabia, era algo a se praticar com discreta neutralidade.


Não podia colocar nada a perder.

Momentos depois, viu Esther olhar em direção a um grupo de homens.


Apesar de saber que não podia permiti-la ir até eles, ele não a conteve. Ficou
apenas a aguardá-la.

Logo, ela retornava, o choro escapando pela garganta, um sofrimento


tão expressado em seu semblante que o condoeu.

— Meu pai morreu — ela contou. — Mataram meu pai porque ele
estava fraco demais para trabalhar.

Depois, ela seguiu em direção ao apartamento. Kraus ficou para trás.

Pela primeira vez na vida, questionava seus princípios e o que o fizera


a se tornar um nazista.
Capítulo 12

Olhar

A cidade de Oswiecim estava relativamente gelada naquele dia de


outono, final de 1944.

A Europa estava em guerra, a Alemanha as vésperas de uma derrota


vergonhosa, mas ali, aos arredores de Auschwitz, os trens continuavam a
trazer trabalhadores sem parar, a queimar humanos em seus fornos, e a agir
como se a limpeza racial fosse mais importante que a própria luta armada, em
si.

Próximo de uma mata fechada, Therron encarou o complexo. Era uma


estrutura gigantesca, com a única finalidade de explorar e matar. Arrepiou-se
ao pensar em Esther, ali... Talvez em quê estado.

Ao longe era possível ver alguns prisioneiros com seus uniformes


sujos e de listas a cavar buracos. Houveram tiros, e alguns corpos caíram no
chão. Contudo, os homens nem se mexeram diante dos assassinatos. Parecia
lugar comum. Therron abriu a boca, pasmo, percebendo que a grande
finalidade nazista era tirar a humanidade daquelas pessoas.

E estavam conseguindo.

O cheiro de carne assada era intenso, e ele cobriu o nariz.

Como faria para se aproximar do campo? Talvez conseguisse se tornar


amigo de algum guarda? Oferecer seus serviços ao Reich? Se chegasse
próximo, poderia tentar resgatar Esther.

Repentinamente, viu uma figura ao longe, caminhando com um cesto de


roupas. Tudo nela era cinza e apagado, o vestido listrado caindo como um
lençol sobre o corpo raquítico, a cabeça coberta com um lenço... Contudo, o
que seus olhos não conseguiam decifrar, seu coração e sua alma reconheceram.

Era ela... Era Esther! Ali, há uns duzentos metros dele... A mulher que
ele amava mais que tudo, a mulher que o fez tornar-se o inverso do homem que
outrora foi.

Por ela... Por ela estava ali. Tudo que fazia, era por ela.

— Eu vou te salvar, meu amor... eu darei um jeito — prometeu.

As manchas roxas estavam sumindo rapidamente. À noite, quando


todos iam dormir e as luzes do prédio dos guardas se apagavam, Kraus surgia
em seu quarto, com um unguento nas mãos e uma generosidade latente nas
ações.

— Eu não sabia que seu pai seria morto — lhe disse, certa vez. —
Nem sua mãe. Eu peço desculpas.

— Por que se importa?


A questão dela o calou. Ele sinceramente não sabia o que havia entre
eles, mas reconhecia que era mais forte do que tudo, até mesmo que a razão
que o nacionalismo havia trazido para a sua existência.

— O partido me salvou de uma vida terrível. Antes de entrar para a


S.S, eu era um homem de vícios e sem futuro. Hoje...

— Hoje é um assassino — ela devolveu.

Mais uma verdade. Mais silêncio. Depois, ele saiu, deixando-a com
seus próprios demônios. O homem também tinha os seus.

Agora, enquanto carregava o cesto, Esther não encarava os


companheiros de prisão. Alguns dos homens, especialmente os não judeus, a
forçaram. Ela nem sabia quantos. O tempo dos prisioneiros com ela fora
dividido entre vários.

Um saía de cima, e outro subia. Normalmente, apagavam-na assim que


ela tentasse lutar. Depois, no dia seguinte, acordava com sangue nas pernas,
escorrendo, e o rosto completamente destruído pelas agressões.

Mas, a marca na alma era pior. Um dia uma cigana dissera que o
campo jamais sairia dela. Era verdade. Enquanto cruzava pelos homens, ela
sentiu nojo deles. Não mais se comoveu com suas mortes. Ao contrário, queria
que todos morressem.

Subitamente, estancou. Não sabia quantos homens haviam-na estuprado


depois de Josef, mas com certeza não tinha sido todos. A maioria ali mal se
aguentava em pé. Portanto, aquele ódio era infundado, e ela notou que
abominar seus próprios companheiros de fé seria o ponto final de sua vida.

Mais que isso, seria cumprir o propósito nazista de jogá-los um contra


o outro.

Largou o cesto ao lado do tanque, e voltou os olhos para os demais


prisioneiros.

Disse a si mesma para ter piedade. Implorou que Deus a ajudasse a


perdoar, numa oração muda. Ela sabia que sua carne estava condenada naquele
lugar, mas ainda haveria esperança para sua alma.

De repente, adiante, atrás das cercas de arame farpado, ela notou uma
figura loira, a observá-la.

Lágrimas deslizaram pelo rosto cansado e sofrido. Lágrimas que


pareciam mais que dor. Era um agradecimento.

Não importava mais seus sentimentos e sua dor. Therron estava ali. Ela
teria aquela última imagem a confortá-la antes do fim.

Kraus Fritz ordenou aos guardas que tirassem seus uniformes e fossem
fazer uma corrida pelo campo. Era uma punição a todos, por sua viagem não
planejada e pelo que havia ocorrido a Esther.

Todos sabiam, mas ninguém teceu comentários.

Enquanto Bauer e os demais marchavam apenas de camisas de baixo,


ele chegou-se ao coldre do soldado, que estava perto do uniforme. Tirou as
balas de seu revólver e depois devolveu a arma ao seu lugar.

Mais tarde, voltou ao escritório e começou a ler informações sobre o


prostíbulo. Uniu dados preciosos e sorriu quando Bauer entrou no seu
escritório, já uniformizado, após cumprir a punição.

— O senhor mandou me chamar, comandante?

Assentiu, erguendo-se.

— Siga-me.

A ordem foi respeitada sem nenhum adicional.

Becker cruzou por eles e os seguiu com os olhos, até vê-los subindo
em um automóvel Volkswagen Kübelwagen camuflado.

Desapareceram em direção a Auschwitz II. Aquela visão o arrepiou.

— Osman Tabor — Kraus leu o papel diante de um homem destruído


pela dor. — Turco comunista — murmurou. — Um lixo.

O sorriso de Bauer denotava que concordava com o comandante pela


primeira vez.

— Pegue uma pá — ordenou ao prisioneiro. — Iremos cavar um


buraco.

Normalmente quando acontecia isso, era um jogo cruel entre os


guardas. Bauer imaginou que o homem iria cavar sua própria sepultura antes
de ser o alvo de uma competição de tiro.

Entendeu aquilo como uma tentativa de aproximação de Kraus. O


comandante devia ter percebido que fora ele que o delatara, e tentava agora
firmar paz entre eles.

Aceitou aquilo de bom grado. Até porque, matar aqueles turcos


doentes não lhe faria mal nenhum.

Seguiram com o homem até um campo fechado, a caminho do terceiro


complexo. O lugar estava isolado, muitas árvores a cercá-los. O ambiente
perfeito para se divertir.

Kraus desceu primeiro do veículo. Depois, tirou a arma da cintura e


apontou para o homem. Bauer veio em seguida, um sorriso mal contido.

— Osman Tabor — Kraus o chamou. — Irmão de Samia Tabor, não é?


Sua irmã e você foram presos tentando ajudar alemães comunistas dentro do
solo sagrado da Alemanha. Apesar da boa relação entre nossos países, é um
crime imperdoável.

O silêncio do homem tinha muitos significados. Mas, de todos eles, em


nada representava arrependimento.

— Você será enviado à câmara de gás amanhã — contou, e só então


percebeu o olhar do homem se arregalar. — Triste destino, não? Pior de tudo é
saber que sua irmã serve ao prostíbulo de Auschwitz desde que foram presos.
Não faz ideia do estado dela. Já foi submetida há vários abortos, e
provavelmente será morta em breve porque há suspeita de peste.

Ele percebia o olhar do homem se condoer, enquanto Bauer riu.

— Deixe-me contar uma coisa que, no entanto, desconhece: Foi feita


uma sugestão por uma das guardas para transferência da sua irmã para uma
fábrica. Sabe quem negou? — apontou a arma para o guarda, ao lado. — O
guarda Bauer — delatou. — Ele disse, segundo o relatório que li, que Samia é
uma puta desejada demais para se desfazerem.
O sorriso de Bauer sumiu.

— Vou te contar outro segredo, Osman. O guarda Bauer está armado,


mas a arma não têm balas. Eu mesmo tirei as balas antes de trazê-lo para cá. E
você tem uma pá. Claro, está fraco, mas tem ódio e a vingança a alimentá-lo.
Sabe que irá morrer amanhã, então me pergunto: que melhor maneira de
morrer que essa? Sabendo que está limpando a honra de sua irmã mediante o
assassinato de seu carrasco.

Osmar segurou a pá com força, e rumou em direção a Bauer. O guarda


até retirou seu revólver do coldre, mas ao apertar o gatilho, nenhum som
emergiu.

Depois, era derrubado pela força do turco. Enquanto seu crânio


amassava pela intensidade que a pá batia em sua cabeça, Kraus puxou um
cigarro do bolso e o acendeu.

Assistiu o comunista bater até as forças acabarem, chorando de puro


ódio, enquanto visualizava sua pobre irmã a ser abusada por crápulas como
aquele.

Quando, enfim, tudo acabou, o turco o encarou. O sangue escorria pela


pá, respingos em seu rosto. Era a imagem da completa desconstrução humana.

— Você vai me matar agora?

— Ainda tem vinte e quatro horas — Kraus retrucou.

— Vinte e quatro horas a mais nesse inferno — negou. — Me mate


agora, eu te peço.

Kraus o observou atentamente. Depois, ergueu a arma contra o homem


e disparou.
Therron descobriu que o exército vermelho estava chegando pelo
desespero nos rostos femininos daquela cidade polonesa.

Todos sabiam como agiam os comunistas. Era estupro e escalpo.


Então, conforme a notícia do avanço soviético chegava, famílias inteiras
colocavam tudo que tinham em cima de carros ou carroças e rumavam em
direção à Alemanha, numa fuga desesperada.

Therron ficou. Não sabia o que esperar dos vermelhos, mas não iria
fugir. Estava há poucos quilômetros de sua esposa, e estaria ao lado dela
quando conseguissem invadir Auschwitz.
Capítulo 13

Morte

A apreensão se tornava a cada dia mais palpável. E não era apenas


fruto das mortes que haviam se intensificado, mas principalmente dentro do
pequeno apartamento, onde Kraus andava de um lado para o outro, nervoso,
como se as coisas andassem muito ruins para ele.

À noite, em suas orações, Esther orava pelos aliados. Agora, tanto


tempo ali, presa, ela sentia que Deus enfim a ouvia.

— Que ano estamos? — indagou ao comandante, certo dia, enquanto


lhe servia o almoço.

Kraus a encarou como se não a reconhecesse. Devia ser estranho para


ele que alguém perdesse completamente a noção do tempo.

— Quarenta e cinco — respondeu, contudo. — Janeiro — completou,


com mais exatidão.
O telefone tocava constantemente. Num dos dias do ano anterior,
Esther ouviu Kraus comentar com alguém do outro lado da linha que o campo
de Majdanek havia caído.

Desde então, tudo que ela se perguntava era quando Auschwitz também
cairia.

As câmaras eram usadas noite e dia. O forno não parava um segundo


de queimar. Com o aumento dos mortos, os nazistas já não davam conta de
queimar tantos cadáveres, então vários deles eram jogados nos corredores, em
amontoados que apodreciam sobre o sol, exalando um odor forte que parecia
arder o nariz.

Havia também as mulheres que se jogavam contra a cerca elétrica. Aos


montes. Jovens ou velhas preferiam a eletricidade ao gás. Esther começou a
imaginar qual seria seu fim, qual seria sua escolha.

Depois da primeira quinzena de janeiro, começaram a sair comboios


de evacuação. Os prisioneiros que sobreviviam eram transportados em
caminhões para continuar sua jornada de sofrimento.

Isso, claro, se tivessem sorte. Porque também ocorreram as tais


marchas da morte, onde as evacuações aconteciam a pé, onde prisioneiros
desnutridos e maltratados por anos e anos de maldade eram forçados a
caminhar por lugares íngremes cobertos de gelo, sem comida, água, abrigo, em
direção a um destino incerto.
Depois disso, ficaram apenas os mais famintos, exaustos e destroçados
encarcerados. Os soldados remanescentes não davam conta de matarem tanto
e, aos poucos, as mortes foram rareando. Até porque, para que se dariam ao
trabalho? A maioria deles não aguentaria mais alguns dias tamanha
desnutrição.

Agora, tudo que restavam eram poucos guardas e montar uma estratégia
de defesa, para que o campo não fosse tomado.

Kraus estava à frente deles. Organizou vários postos de observação,


armados, com as ordens de matarem o quanto puderem.

Numa noite, uma mensagem da cidade comunicou que as tropas


vermelhas haviam chegado e se aproximavam cada vez mais do campo.

Com a notícia veio às histórias. Mulheres e crianças, até bebês de


colo, sendo estupradas e mortas por homens completamente drogados por
pervitin, já sem honra, com qualquer dignidade anterior perdida durante os
anos de batalha.

Foi assim que se deu conta do perigo que passava Esther. Se os


vermelhos não poupavam nem um bebê de colo, por que poupariam uma
mulher judia?
— Alto lá! — o grito em russo fez o jovem loiro erguer as mãos.

Therron aproximou-se de um acampamento, e respondeu, no pouco


russo que havia aprendido com o amigo de juventude, anos antes da guerra:

— Sou francês. Sou da resistência. Meus documentos com nome


alemão são falsos.

O soldado se aproximou, desconfiado, e buscou por armas. Não havia


nenhuma. Então, empurrou Therron até um grupo de homens, onde um dos
líderes apontava um mapa.

Therron imaginou como se explicaria e pediria ajuda, quando seu olhar


cruzou com um dos soldados, sentado e bebendo, rindo como uma criança,
trazendo no semblante uma inocência que ainda permanecia, apesar da dureza
da guerra.

— Vladimir — gritou, chamando-o, e então o viu olhando em sua


direção.
O reconhecimento do homem foi imediato, e ele correu até o loiro,
abraçando-o, num saudoso conforto de irmãos.

— O que faz aqui, seu filho da puta? — o russo indagou, brincando,


rindo, feliz demais por aquele encontro.

Ao ver que o loiro não mentia, o soldado baixou a arma, e a guarda em


volta pareceu aliviar.

— Lembra-se de Esther?

— A judia que roubamos no dia do casamento?

Seu olhar então tornou-se pura compreensão.

— Há um campo de concentração por aqui?

Therron assentiu.

— Esther ainda está viva, eu há vi esses dias, andando pelo campo.


Preciso de ajuda...

— Nós iremos te ajudar — o russo prometeu. — Eu juro... Nós iremos.


Mais um abraço. Diante de tanto sofrimento, ainda restava à amizade
verdadeira como um alento de alma.

— Você tem notícias de Pierre? — Vladimir indagou.

— Nunca mais o vi, desde que Esther foi presa. Mas, sei que ele luta
na Resistência.

O outro assentiu. Era a última notícia que receberia do amigo médico.


Capítulo 14

Vermelho

Os tiros começaram a ser ouvidos ao longe. Um som comum, já que


disparos eram corriqueiros no campo. Contudo, dessa vez, vinham de fora,
numa tentativa de invasão.

Havia chegado à hora. Os soviéticos estavam às portas de Auschwitz,


e a apreensão de Kraus era muito mais do que pela simples derrota.

Ele podia ter ido embora, refugiar-se em Berlim. Muitos comandantes


o fizeram. Porém, aquele ato seria deixar Esther a própria sorte, e isso ele não
faria.

O extremismo pelo qual viveu até então tirou tudo dela. Seus pais, sua
liberdade, possivelmente um esposo (apesar de ela nunca falar sobre isso), e
também sua dignidade feminina. Ali, nas mãos dos nazistas, ela fora vítima de
muitas brutalidades. Porém, aquela última... Aquela não ocorreria!

Ele preferiria matá-la antes.


Porém, era uma decisão que não podia tomar sozinho. Sabia o que
estavam ocorrendo às mulheres, e deixar Esther a mercê de muitos homens
para fazerem dela um jogo de poder e brutalidade, era pior que dar-lhe uma
morte rápida.

— Nós precisamos conversar — disse, numa noite gelada.

Era madrugada, e os tiros em volta do campo não paravam. Ela estava


deitada em seu colchão, e logo sentou-se.

O homem ficou aos seus pés.

— Tome — entregou-lhe a aliança que havia roubado.

Percebeu no olhar escuro que ela havia reconhecido a joia, mas que
não tinha mais esperanças de vê-la novamente. As lágrimas caíram quando
Esther a colocou no próprio dedo.

— Ele se chamava Therron — ela contou. — Sempre será o amor da


minha vida...

O homem assentiu, compreensível.

— Os russos vão invadir o campo. Questão de horas, até que matem os


guardas que estão resistindo. Então, não serei mais capaz de protegê-la.

Silêncio. Era como se cada palavra fosse mastigada com parcimônia.

— Eles estão estuprando as mulheres até a morte. Não sou capaz de


responder se você irá escapar de suas mãos. Então, te ofereço um fim rápido.
Mas, essa decisão precisa ser sua.

Esther recusou.

— Vi meu marido próximo do campo, dias antes. Sei que Therron está
à espreita, na tentativa de me salvar. Imploro que não me mate. Deixe-me
tentar voltar para ele.

Kraus acreditou piamente que ela havia tido uma alucinação. Mesmo
assim, não levou para esse lado ao aconselhar.

— Se os russos te pegarem antes, o que você viveu no prostíbulo será


apenas um leve degustar do horror que experimentará nas mãos do exército
vermelho.

— Eu preciso arriscar — ela afirmou. — Meu marido era um homem


bom e gentil, incapaz de praticar o mal. Eu sei que, para estar aqui, ele deve
ter feito coisas ruins. Ninguém se aproxima das áreas ocupadas através da
bondade. Devo isso a ele. Se foi corajoso o suficiente para vir até mim, devo
ser igualmente para ir ao seu encontro.
Kraus assentiu. Se aquela era a decisão de Esther, ele a respeitaria.

— Vista algo quente, então. Tentarei retirá-la através de uma das


cercas. Logo o sol vai nascer, e os soviéticos vão matar a todos. Se você
sobreviver, poderia levar de mim uma boa lembrança? — pediu. — Sei que
não mereço seu perdão...

— Você me salvou — ela afirmou, colocando o casaco por cima do


vestido velho. — Você me salvou de muitas maneiras, e eu sou muito grata.

Kraus então a enlaçou nos braços. O que viveram, era um mistério para
ele, mas a proximidade de seu fim e a certeza da punição por suas más
escolhas fizeram-no perceber que não haveria tempo para meditar sobre isso.

Ela era uma simples mulher que cruzou seu caminho. E ele a amou.
Ponto. Apenas isso. Não o amor comum, mas algo bem mais significativo que
isso.

Teve por ela o mais sublime dos sentimentos. Ao menos teria algo para
levar consigo para a morte.

Cruzaram correndo por entre os corredores de arame farpado. Vestindo


negro, camuflaram-se dos tiros russos, sem notar alguém atrás deles, a ver-
lhes os atos.

Kraus havia desligado a eletricidade de uma das cercas. Naquele


instante, cortava-a com um alicate.

— Fuja em direção à mata, e tente não ficar à vista dos soviéticos. Não
confie em ninguém — entregou-lhe algumas notas em dinheiro e uma sacola.
— Se perguntarem, diga que perdeu os documentos. Troque sua roupa e
consiga uma passagem de trem para o mais longe possível daqui.

Esther assentiu, abraçando-o fortemente.

— Eu te amo — ele murmurou contra seus cabelos, tão baixo que ela
mal escutou. — Não sei se vai conseguir, mas quando os soviéticos me
matarem, tudo que terei em minha mente é meu pedido a Deus para que você
escape.

A mulher recuou. Depois, deu alguns passos em direção à cerca.

Ali... Sua liberdade. Todo o horror que vivera, agora, teria um fim.

O vento soprou, balançando seus cabelos negros. Caminhou, quase sem


acreditar em sua ventura. Sentiu as lágrimas correndo pelo seu rosto, frutos de
seu grito de alvedrio.

Perdeu o pai, a mãe, e a dignidade naquele lugar. Agora, novamente,


tomaria as próprias decisões.
Agora, novamente, livre.

Repentinamente, dois disparos.

O som fez Kraus ficar brevemente surdo.

O olhar masculino assombrado viu-a cair, despencando no chão.

Vê-la morrer foi pior que experimentar a própria morte.


Capítulo 15

O fim.

A primeira daquelas três almas interligadas perdeu a vida exatamente


no dia vinte e sete de janeiro de mil novecentos e quarenta e cinco, dia que, no
futuro, seria conhecido como Dia Internacional em Memória do Holocausto.

E era até cômico que fosse exatamente Esther a primeira a morrer,


deles. Ora, ela havia sido a maior das vítimas. Therron não fora preso, e
Kraus havia sido um comandante. Mas, ela não... Ela perdeu tudo...

Então, quando enfim a liberdade estava a alguns passos, um queimar na


nuca e a escuridão. Antes de apagar, Esther pensou em Deus e, pela primeira
vez, perdeu a fé.

Ninguém soube disso. Nem mesmo Kraus que rastejou até seu corpo e
a abraçou, afundando o rosto em seu pescoço, despejando urros de raiva e dor.

O olhar masculino, então, voltou-se para o assassino.


Becker ainda mantinha a pistola estendida, dessa vez na direção do
comandante.

— Você matou meu amigo Bauer por essa puta judia? — A pergunta
era mais uma acusação. — E agora iria libertá-la?

Não adiantaria justificativas, e Kraus não perderia seus últimos


segundos de vida explicando-se àquele homem.

Apertou Esther nos braços. Esperou pelas balas.

Morreu com ela e, com ela, ele renasceria.

Das milhares de vida que chegaram, saíram e morreram em Auschwitz,


apenas em torno de sete mil estavam ali para recepcionar os vitoriosos
soviéticos.
O exército vermelho planejava adentrar o complexo como guerreiros,
mas o tamanho do horror que encontraram calaram, por fim, seus ímpetos.

A visão jamais poderia ser descrita em palavras, até porque palavras


não expressariam os sentimentos que tomaram os homens e as mulheres que
compunham a frota armada a adentrar no campo.

As enfermeiras logo se aproximaram dos doentes, moribundos


deixados para trás para não atrasarem as marchas. Mesmo os que ainda
estavam de pé, estavam tão esqueléticos que elas entendiam que não durariam
muitos dias.

Therron observou o horror com sentimento dubio. Alívio por enfim


estar ali, perto da esposa, e desespero pelas vidas perdidas e massacradas,
pessoas que jamais conseguiriam deixar aquele lugar maldito para trás, mesmo
que fossem embora.

— Onde ela estava? — Vladimir aproximou-se dele.

— Ela caminhava em direção ao prédio em que os membros da S.S


atiravam. Acredito que era a administração.

Vladimir assentiu.

Lá, encontraram mais corpos. Dessa vez, dos remanescentes da tropa


de Hitler. Haviam se suicidado quando a derrota se tornou inevitável.
Andaram pelos andares, olhando em cada canto, chamando pelo nome
da mulher. Silêncio.

Voltaram onde os recém-libertos prisioneiros estavam em atendimento.


Indagaram sobre Esther, mas ninguém sabia dela.

— É muita gente por aqui — Vladimir lhe comentou, percebendo o


desespero tomando conta de Therron. — Com certeza vamos encontrá-la. Ela
pode ter se escondido em algum lugar e teme sair...

— E se foi transferida?

O outro negou.

— Mantenha a calma.

Duas horas depois, começaram a trazer corpos que estavam afastados,


atirados pelos campos próximos. Therron observava nitidamente a cada um,
mas em seu íntimo não havia nenhuma comoção.

Seus sentimentos eram apenas para a esposa. Era apenas em Esther que
ele centrava seus pensamentos.

— Não vai acreditar — um russo aproximou-se de Vladimir. — O


comandante não fugiu. Está morto, ao lado de uma mulher com roupas de
prisioneiro...

Foi um baque, como se o chão desaparecesse de seus pés.

No fundo, ele não queria seguir Vladimir porque não queria ver os
cadáveres. Provavelmente, já entendia o que havia acontecido.

Mas, devia a si mesmo a verdade. Então a viu, dois tiros na nuca,


deitada no colo de um homem que havia levado uma bala na testa.

O desgraçado nazista a matou, e depois se suicidou?

Puxou a mulher do colo do bárbaro, aos prantos, odiando-o, querendo


matá-lo, mesmo que ele já estivesse morto.

Houve silêncio enquanto Therron ninava o corpo da esposa no colo,


beijando sua testa, jurando-lhe amor eterno.

— Eu a perdi, Vladimir — murmurou ao amigo, que tinha lágrimas nos


olhos. — No instante que eu a vi pela primeira vez, eu já sabia que a perderia.
Só não esperava que me perdesse junto com ela.

No dia sete de maio, a Alemanha rende-se incondicionalmente aos


Aliados. Esther perdeu-se no tempo e nos números, montantes de vítimas que
não paravam, mesmo com a rendição.

Um evento que jamais se apagaria.


Capítulo 16

A morte não é o fim.

Brasil, tempo atual.

A mulher de cabelos longos e negros acendeu o cigarro mentolado e


ficou a degustar o sabor da fumaça sobre a língua, antes de soltá-la, atraindo a
atenção de outra jovem, à sua direita.

— Eloise! — o tom recriminatório de Amanda, antiga amiga de escola,


não deixava dúvidas de que ela era contra o vício. — Isso vai acabar te
matando.

— Assim espero — retrucou.

O cigarro saiu de seus dedos e foi apagado contra uma bituqueira


próxima, fazendo com que a fumante soltasse um longo suspiro de raiva.
— Por que não me deixa em paz?

— Você não pode fumar aqui! — a mulher ralhou. — Quer que eu


perca meu emprego?

O local? Uma bonita galeria no centro velho de Porto Alegre. Eloise


Hopp representava a editora de sua família, para a qual também trabalhava,
num evento beneficente, onde diversos quadros famosos eram apresentados a
ricos e poderosos da cidade.

Contudo, nenhum tão rico ou poderoso quanto ela. Desde que o


primeiro de seus muitos livros havia sido adaptado para o cinema, ela passara
a ver o saldo bancário aumentar demasiadamente.

Não que isso lhe trouxesse qualquer felicidade. Eloise nunca


expressava nenhum sentimento além da completa apatia pela vida.

— Não entendo porque Caio pediu para que viesse — Amanda


mencionou o irmão gêmeo de Eloise. — Ele sabe que você nunca se comporta.

— Metade das pessoas daqui veio por minha presença — retrucou.


Depois, vendo o olhar culpado da amiga, apaziguou. — Quanto custa? —
apontou para uma pintura em carreteis.

— Os quadros de Iberê Camargo não estão à venda. Mas, existem


alguns quadros que, acredito, te interessariam.
— É mesmo? Nunca gostei muito das artes plásticas.

— Tem um quadro que trouxemos da Suíça que me fez pensar em ti tão


logo o vi — a outra comentou.

Eloise a seguiu. Em muito porque andar por entre obras que nada lhe
diziam estava lhe aborrecendo, em muito porque devia aquilo a Amanda.

A mulher loira era uma das poucas amigas que lhe restaram, desde a
infância.

Subitamente, estancaram.

— Olhe. Esse é um Esme.

Os olhos da mulher se arregalaram. Um quadro de forma abstrata, mas


que podia ser definido como um lugar qualquer, uma figura oculta por tinta
preta, e a terrível sensação de terror e tristeza exalando das cores.

— Mórbido — murmurou.

— Incrível como enfim você conseguiu captar algo de uma tela — a


outra riu. — É de um dos pintores mais famosos do século passado. E,
acredite se quiser, antes de fazer essas pinturas perturbadoras, ele costumava
expressar sua arte através da beleza das cores pastel. Mas, durante a guerra
tudo mudou. Assim sendo, o “Perdida” que vê agora é a expressão do
sofrimento de Esme. Ele passou a usar muito o preto, o vermelho e o laranja,
depois de perder a esposa.

A mulher ergueu os dedos a fim de tocar na tela. Foi impedida pela


outra.

— Não pode tocar, Eloise. Esse quadro vale uma fortuna.

— Vou comprá-lo — afirmou. — Reserve-o para mim.

— É sério? — Amanda não escondia a surpresa.

A amiga escritora não costumava gastar os milhões que ganhara com


literatura, vivendo uma vida até simples por demais.

— Diga-me, Amanda — Eloise murmurou. — Qual é a história desse


homem? Do pintor?

Havia algo no tom de Eloise que arrepiou Amanda.

— Quer mesmo saber?


— Não é sua função me vender à obra?

— Achei que já a havia comprado.

— Sim, mas quero saber o que há por trás de tanta dor.

Enfim, a loira voltou o olhar para a pintura.

— Therron Esme era um jovem pintor de rua quando a Guerra chegou à


França. Ele não fazia muito sucesso, e seus quadros eram vendidos a um preço
irrisório, comparado a hoje. Mas, sabe... Quando penso nele... Quando o
estudo, entendo que ele era feliz. Possui uma história de amor linda, ele
roubou uma noiva na porta do templo, e casou-se com ela. Uma mulher que
abandonou uma família rica para viver ao lado de um pintor pobre.

— E foram felizes?

— Quando a guerra chegou, a esposa de Therron foi deportada para a


Polônia. Ele abandonou a arte e se infiltrou na Resistência, tentando salvá-la.
Falam que enlouqueceu, que chegou a matar o líder do grupo ao qual
pertencia, mas nada foi provado. Infelizmente, ele não conseguiu encontrá-la
com vida.

Uma longa pausa.


— Depois da guerra, ele voltou a pintar, mas dessa vez, expressando
sua dor. Assim, foi descoberto por uma galeria na Suíça e, em pouco tempo,
era um dos pintores mais abastados e aclamados da Europa. Contudo,
suicidou-se em cinquenta e cinco.

Um sentimento de dor potente tomou Eloise ao saber da morte. Por


quê? Ela não sabia.

— Entregue o quadro em minha casa, por favor — pediu.

Enquanto caminhava em direção à saída da galeria, sentiu uma


explosão em seu âmago, que a tomou de dor.

No céu, as estrelas voltaram a se alinhar, como a muito não acontecia.

Era uma questão de tempo – pouco tempo – para que, enfim, aquela
triste história tivesse o final que merecia.

~Fim~
“Mas você partiu sem mim
E sei que estás em algum jardim
entre as flores...”
Uma Vez Mais

Ivo Pessoa
Tudo por Ele

Almas Gêmeas – Duologia – Livro 02

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“Nem a morte nos separará”

Eloise Hopp é uma famosa escritora que se vê diante de um fato enigmático. Quanto mais
estuda sobre eventos ocorridos durante a Segunda Guerra, mais ela se convence de que fez
parte de tudo aquilo.

Após uma entrevista em que narra sua determinação em falar sobre os campos de
concentração, recebe ameaças de um grupo neonazista que jura vingança. Contra os vilões,
existe apenas um obstáculo: Théo Garcia, um detetive linha dura que mexe completamente
com seu mundo.

Porém, não é apenas a guerra que Eloise sente viver. Théo parece fazer parte de sua
alma, sua existência... De alguma maneira, ela sabe que é um amor que ela trouxe de outra vida.
DEMAIS LIVROS DA AUTORA

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https://www.facebook.com/JosianeVeigaOficial
Josiane Biancon da Veiga nasceu no Rio Grande do Sul. Desde cedo, apaixonou-se por literatura, e teve
em Alexandre Dumas e Moacyr Scliar seus primeiros amores.

Aos doze anos, lançou o primeiro livro “A caminho do céu”, e até então já escreveu mais de vinte livros,
dos quais, vários destacaram-se em vendas na Amazon Brasileira.

[1]
conjunto de movimentos e redes que durante a Segunda Guerra Mundial prosseguiu a luta contra o Eixo
e os seus delegados colaboracionistas desde do armistício do 22 de Junho de 1940 até à Liberação em
1944.
Table of Contents
Dedicatória:
Nota da Autora:
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
DEMAIS LIVROS DA AUTORA

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