Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Por Ela
Almas Gêmeas – Duologia – Livro 01
É proibida a distribuição total ou parcial dessa obra sem a prévia autorização da autora.
Essa é uma obra de ficção com elementos históricos. Qualquer semelhança com
nomes ou situações informadas é mera coincidência.
ISBN: 9781521012406
“O verdadeiro amor espera uma vez mais”
Ivo Pessoa
Sinopse
Foi Therron, um jovem pintor francês libertino, que virou seu mundo
do avesso, fazendo-a tornar-se uma pária para a família, mas uma mulher
extremamente feliz com o homem que sempre estaria em seu coração.
Nota da Autora:
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Um autor costuma ter muitos livros na mente, escondidos até de si mesmo. Essa obra era uma das
minhas histórias secretas. Assim como Kinshi na Karada, estou ciente que não é um livro para todos.
Mesmo assim, é um livro que precisava escrever. Eu devia isso a mim mesma.
Depois que lancei Esmeralda, percebi que ainda havia muito fragmentos de minha alma para
entregar a literatura nacional. Alguns projetos antigos, jamais comentados, começaram a tomar forma, e
Therron e Esther enfim saíram da mente e se transportaram para as linhas.
Não vou mentir. Não sei se você vai ler esse livro até o final. Não sei se você vai ter estômago.
Não sei se você vai se encorajar a acreditar na intenção da obra e ler o segundo livro, que será lançado
tão logo esse. Mas, prometo que, se conseguir, vai ser entregue, principalmente no segundo livro, uma
finalização carregada de esperança.
Um adendo muito importante: diferente de Kinshi na Karada, que tinha o teor histórico bastante
detalhado, esse livro não tem a finalidade de incrementar qualquer estudo sobre a guerra. Ele é a visão de
alguém que sofre durante os dias que se passam. Apenas isso. Não me amarrei a datas, etc, apesar de
que, alguns dos momentos mais fortes do livro, como o que ocorre no velódromo de Paris, os fatos foram
narrados com extrema verossimilhança.
Outra coisa: Quem acompanha minha carreira há mais tempo sabe do meu apreço pelo
detalhamento dos relacionamentos. Contudo, nos últimos anos, sou mais rápida, criando obras que tenham
profundidade sem se estender demasiadamente. Alguns leitores não gostaram, mas é nítido pela minha
liderança ininterrupta na categoria Medieval da Amazon de que a maioria prefere meus livros assim. Estou
escrevendo, nesse momento, pela maioria.
Enfim, muito obrigada por tudo, obrigada por sempre acompanharem minha carreira.
Muitos beijos,
Josiane Biancon da Veiga,
Março/2017
Capítulo 01
França, 1938.
Para ele, era uma noite de grande júbilo. Josef, filho de um importante
industrial e membro do templo que frequentava, havia comentado sobre os
sentimentos que passara a nutrir por Esther.
Era uma noite alegre para os Wiesel. Parecia um pesadelo latente para
Esther.
Os risos ficaram para trás. Esther caminhou até o canteiro de rosas,
enquanto a mente divagava em sonhos que jamais se concretizariam.
Mas, a moça judia também sabia que havia responsabilidades que não
se pagavam. Ela devia aquilo ao pai e a mãe, que haviam sofrido muito para
que ela tivesse tudo.
Levou a mão para trás e colocou o cabelo escuro atrás da orelha. Até
mesmo as madeixas bem cuidadas custavam caro.
Não que a família cobrasse algo dela, mas sempre ficou subentendido
que todos os gastos consigo eram focados na perspectiva de que ela realizasse
um bom casamento que traria felicidade a todos.
Por sorte, o Deus que governava o universo lhe deu um dom: a arte de
transparecer com cores e pinceis momentos únicos, serviu também para lhe
pagar as contas.
Juntos, o trio trocava o dia pela noite, bebia mais do que o corpo
aguentava, aproveitava os prazeres mundanos que estavam à disposição, e
flertavam com as mais bonitas francesas que apareciam.
A negativa de Therron quase fê-lo cair no chão. Estava tão bêbado que
qualquer esforço o desequilibrava.
Porque ali estava ela. Ali... Há poucos passos de si... Bastaria apenas
cruzar a pequena distância que os separava e ele estaria junto dela...
Novamente.
Sabia disso. Ela também. Percebia pelo olhar assustado que aquela
sensação não era exclusiva sua.
Aqueles olhos azuis ela levaria para sempre. Eram como um lago
profundo, que lhe remetia a profundezas inimagináveis, a momentos únicos,
que ela vivera, mas não se recordava.
Um Déjà vu.
Arrepiou-se.
Esther nunca lhe dava intimidade, e ele não a tomava, tampouco. Era
sempre um cavalheiro, e, por alguns segundos, ela apiedou-se do jovem,
desejando que ele pudesse encontrar alguém que o amasse como merecia,
porque ela jamais o faria.
Mesmo sendo essas as suas flores favoritas, era um elogio sem nenhum
cabimento. Ela tentou sorrir.
Silêncio.
Assentindo, Josef a deixou. Foi um alívio tão imenso que ela sentiu os
olhos enchendo-se de lágrimas diante do que se seguiria.
Como conviver com um homem que ela não suportava sequer fazer
companhia por alguns instantes? Como permiti-lo beijá-la, fazer-lhe amor?
Ali estava ele... O loiro que a havia marcado tão profundamente com
um simples olhar.
Ele era bonito. Alto, magro, cabelos bem alinhados num corte moderno
e curto, e o olhar... Por Deus... O olhar...
Ela riu.
— Está bêbado.
Assim, ela correu em direção aos pais. O coração aos saltos, uma
emoção tremenda, algo que a mudaria para todo sempre.
Capítulo 02
— Mas...
— Minha filha está noiva. Irá se casar em poucos dias. Por favor, não
volte mais.
A literatura era seu refúgio. Ela amava as letras, e até mesmo arriscava
alguns versos datilografados com esmero. Contudo, ainda não se sentia segura
para mostrá-los a alguém. Quem sabe um dia poderia realizar seu sonho e ser
uma escritora?
O homem assentiu.
— Um pintor?
A indagação de retorno denotava que ela não fazia ideia de quem o pai
estava falando.
Ela assentiu.
Ela sorriu.
O coração batia tão forte no peito, que um sorriso mal conseguia ser
contido.
— Por quê?
— Queria lhe mostrar algo que fiz — estendeu a ela a pintura que
expressava a noite anterior, quando se conheceram.
— E você o ama?
— Quis dizer nós dois! Nós mal nos conhecemos para que venha com
perguntas descabidas!
— Sabe que mente — murmurou. — Sabe que nós dois temos mais
histórias do que pudemos nos lembrar.
— Está louco.
— Estou — concordou. — Como nunca estive antes. — Segurou seu
braço. — Dei-me uma única chance, uma única noite. À meia noite estarei
embaixo de sua janela. Iremos passear pela cidade, conversar, estarmos
juntos. Se, no final da noite, você não tiver certeza de que pertencemos um ao
outro, prometo nunca mais importuná-la.
Ainda não era meia noite, mas a figura coberta por um capuz já se
encontrava abaixo de sua janela.
Uma vez sua falecida avó lhe dissera que o pior pensamento que uma
pessoa poderia ter na velhice era o arrependimento pelo que não viveu. De
alguma maneira, a jovem sabia que, caso não fosse até ele, ela viveria aquela
experiência nos seus dias finais.
Após ele dizer algo e ela franzir a testa, em dúvida, a boca dele
aproximou-se de suas orelhas.
Dançaram assim por cerca de meia hora, até o ar lhe faltar e o cansaço
a tomar. Depois, Therron a puxou em direção a uma mesa e lhe serviu uma
caneca de cerveja.
Era a primeira vez que bebia álcool, mas não se importou. Estava
completamente entregue às mãos dele. E ele cuidaria dela.
— Onde mora?
— Porém?
A palavra a assustou.
— Esposa?
— Sim, você.
— Você não?
— E você já sabe que trocará tudo que tem, tudo que foi condicionada,
por esses poucos momentos.
Enquanto a banda tocava uma melodia animada, neles, tudo era lento e
avassalador. Os lábios a se tocar, o beijo a se traçar, a intensidade das
emoções tão fortemente angariadas em suas almas jovens.
Contudo, haveria perdão para tão grave delito? Aceitar o jovem Josef
enquanto nutria algo tão intenso por alguém mundano como Therron?
— Tem misericórdia de mim, ó Deus, por teu amor; por tua grande
compaixão apaga as minhas transgressões — recitou o salmo 51. — Pois eu
mesmo reconheço as minhas transgressões, e o meu pecado sempre me
persegue.
Aliás, não seria essa a solução perfeita? Evitaria uma vida ao lado de
Josef e não envergonharia os pais.
— Não vou deixar que estrague a sua vida porque sua família não
entenderia tudo que se passa entre nós — afirmou. — Eu posso ser apenas um
pintor, mas vou batalhar para que nunca te falte nada. Posso não te dar luxo,
mas te respeitarei e serei o melhor homem que puder. — Seu tom amenizou. —
Você sabe que é minha, Esther... Você sabe.
A mão dele erguida, num convite óbvio, era irrecusável. Esther podia
recuar, mas não o quis. Enfim, chegou-se a ele, e deixou que ele a puxasse
para um abraço.
Do templo, partiram para a Igreja. Ela não voltou para os pais, porque
sabia que não haveria perdão. Não imediatamente ao menos, pois a decepção
de Frederic e Margareth devia estar sendo descomedida.
Sofria por isso. Mas, havia algo tão forte que a puxava em direção à
Therron. Era o inevitável. Do instante que se viram diante das rosas, até
aquele que foram declarados marido e mulher pelo padre, ela soube que era
dele.
Claramente ele morava sozinho naquele local, mas acreditou que a mãe
devia ir até lá para deixar tudo organizado.
— Meu pai fugiu com uma mulher quando eu era uma criança —
contou. — Minha mãe morreu algum tempo depois.
— Sim.
— Parece que vivi muitas vidas até conseguir chegar a você. E isso
não é romântico — denotou. — É algo doloroso. Transforma-me em um
covarde.
— Um covarde?
Therron havia dito que não havia pressa entre eles, que nada seria
forçado, e de fato não o foi. Porque foi Esther que tomou à dianteira, segurou o
rosto do marido e afundou-se em seus lábios bonitos.
Enquanto ele a guiava até o quarto, peças do vestido branco que lhe
serviu durante à tarde ficavam espalhadas pelo chão, como um tapete que
levava a um propósito específico de paixão.
Esther nunca havia ficado nua diante de ninguém. Mas, não teve
vergonha. Até porque havia adoração no olhar azul que passeou pelos seus
seios eriçados e chegou até seu centro de pelos encaracolados e escuros.
— Podemos esperar.
Remexeu-se dentro dela, assim que percebeu que ela pareceu mais
tranquila. Levantou o quadril, e o baixou, num ritmo que saía e entrava. O
olhar deles, direto e unido, não se desviava. Ela precisava contemplá-lo para
não temer, e ele não iria deixá-la decepcionada.
Logo, o gemido dela tornou-se mais alto, mais frequente, mais intenso.
E então, o ápice fez as pernas dela tremerem, e Therron molhá-la com seu
corpo.
Estava feito. Não eram mais apenas duas almas unidas pela paixão, e
sim duas carnes elevadas ao mais alto nível de intimidade do sexo.
Ela riu.
— É tão pura, Esther. E crê tanto em coisas que estão acima de nossas
forças.
— Não sou seu pai — bramou contra ela. Therron ficou na frente da
mulher, em defesa. — Você traiu sua família, nos envergonhou perante nossa
comunidade. E tudo por quê? Por um artista de rua?
O medo
França, 1940.
Não se sabia ao certo o que faziam aos judeus, mas os boatos eram
muitos. Diziam-se, as bocas pequenas, que quando entravam em trens que iam
para o leste, jamais eram vistos novamente.
Agora, era tarde demais. Para sair da zona ocupada da França ele
precisaria de documentos. Esther tinha um nome declaradamente judeu.
Mesmo que se professasse Esme, haveria uma investigação referente aos
antepassados da esposa.
Estava tão abatido que mal percebeu a aproximação de Pierre, que o
segurou nos braços.
— Existem guerrilhas...
Pierre negou.
Ela negou.
— Começaram as evacuações?
— Não sei ainda — murmurou. — Tudo que ouvimos são boatos, mas
prefiro ser precavido. Vamos tentar rumar em direção ao Canal da Mancha, e
conseguir uma passagem para a América, de navio.
— Therron!
— O quê?
Therron negou.
— Não posso ficar com seu dinheiro, senhor Frederic. Eu jurei a mim
mesmo que jamais o aceitaria, e sustentaria sua filha da forma mais digna que
pudesse. Até então, apesar de todas as dificuldades, nada faltou a Esther.
O homem assentiu.
O rapaz assentiu.
Depois disso, o mais velho desapareceu na ruela. Era a última vez que
o via.
Therron deslizou a palma das mãos por suas costas, num carinho
confortador, enquanto aceitava que seu desespero fosse expresso pelas
lágrimas que se derramavam em abundância no rosto.
— Entre — mandou.
Esther logo surgiu na sala. Nem deu-se conta de que vestia apenas a
camisola de linho, o rosto transbordava pavor.
— Enviamos por carro uma família judia até Dieppe. A intenção era
pegar um barco clandestino para atravessar o canal da mancha e chegar à
Inglaterra.
Esther assentiu.
Mais que isso, era uma amizade que ia além da relação carnal que
compartilhavam.
Therron também se privava de viver. Para passar seu tempo livre com
a esposa, ele abandonou as pequenas alegrias da vida, como passear pelas
praças ou tomar café nas bonitas confeitarias.
Era nas mãos de Therron que ela se segurava, era no calor do corpo
masculino que ela buscava paz, em suas palavras, o conforto que parecia
apenas um pequeno alento diante de tanto desespero.
O Velódromo
Mais de dez mil judeus marcharam, presos, naquela que seria a maior
deportação judaica no país, sob os olhares em misto do povo francês. Alguns
riam, enquanto outros se apiedavam. Alguns gritavam “Vão para Jerusalém, é
lá seu lugar”, enquanto outros arriscavam a vida para dar-lhes esconderijo em
suas casas.
Sequer tentou se defender, seu pavor era tão claro quando o dia.
Qualquer nazista saberia que aquela jovem de documentos falsos era uma
porca judia que merecia a prisão.
O bebê chorou.
Dois passos seguintes e um som seco quase a fez cair. Uma jovem
acabava de pular de um prédio, preferindo suicidar-se a entregar-se às mãos
covardes da polícia parisiense.
Esther observou o cadáver com lágrimas nos olhos. Era o juízo final.
A gritaria na rua estava intensa. Therron logo viu um vendedor judeu
andando acuado sobre a mira de um revólver.
— O que importa?
Contudo, como nada na vida era definido por certezas, ali estava ela,
sentada no chão frio, sentindo as vistas nublarem pela sede, pela fome, pelo
frio.
Muitos desfaleceram naqueles dias após sua prisão. Mais de treze mil
judeus amontoados sem comida, bebida ou cuidados, tendo nada além da
roupa do corpo para protegê-los do frio noturno.
Sentiu uma dor aguda no baixo ventre. Não ia ao banheiro desde que
saíra de casa, e não tinha coragem de levantar as saias como faziam as outras
mulheres, e urinar no chão.
— O quê?
O vagão que transportava gado parou nos trilhos com um som grotesco.
Voltou-se para trás. Seu olhar encontrou-se com Therron. Ele estava
com as duas mãos na cerca de arame que os separava. A multidão ao redor
dele parecia prestes a esmagá-lo. Era muita gente a se despedir de quem
amava, ou a rir do desespero dos que partiam.
A Resistência.
Ele não havia voltado para o local desde a prisão de Esther. Em muito
porque Pierre achava perigoso, em muito porque temia perder o controle
assim que visse o lugar onde ele perdeu-se no amor da mulher.
— Guarde sua raiva para os nazistas. Ela será mais útil lá que aqui —
sugeriu.
Therron assentiu.
— Em breve.
A conversa estava finalizada.
Capítulo 06
Auschwitz
Ela não tinha forças. Estava fraca, desde os dias do velódromo. Havia
bebido a água dada pelo bombeiro, e depois comido metade do pão que o
homem lhe entregou. Era tudo que tinha no corpo, desde que saíra de Paris.
O frio logo os atingiu. Aquilo fê-la entender que estava sendo levada
para o leste. Sentada sobre sua mala, com dificuldade conseguiu pegar um
xale. Comprimida contra os demais ocupantes, ela mal conseguia respirar.
Assentiu.
— Esther.
— Querer o ouro?
— Como?
— Sabe alemão?
— Era professora do idioma — ela sorriu. — Trabalhei na Alemanha,
até Hitler assumir o poder. Quando começaram a nos restringir, meu marido e
eu soubemos que a França era o paraíso para os judeus, e decidimos ir para lá.
Não sei dizer se foi nosso maior erro.
Esther percebeu o olhar abatido, e apertou suas mãos, tentando lhe dar
forças.
— Nome?
Ela tentava não pensar, enquanto via as madeixas negras que Therron
tanto amava caindo no chão, como uma oficial despedida da mulher que era
ela.
Tossiu quando jogaram nela um pó contra piolhos, e depois foi
entregue em suas mãos um lenço para cobrir a cabeça.
Kraus Fritz
Aos dezenove passou a beber, aos vinte, já fumava, aos vinte e cinco já
era conhecido por sua vida imprópria e sem regras — vida essa tão parecida
com a da mãe — amante de mulheres de vida fácil, sedutor, devasso e imoral.
Provavelmente, não chegaria aos trinta não fosse à presença da gestapo
em sua porta, certo domingo de manhã.
O jovem assentiu.
Achou nos homens com quem dividia o uniforme, uma família. Dos
olhares de repúdio dos familiares biológicos, ele passou a ser seguido com
respeito pelos confraternos unidos pela política.
Até porque queria saber de onde ele tirara a inspiração. Quem era a
mulher retratada no quadro?
Não esperava, é claro, que ela surgisse diante dele, com roupas de
prisioneira, o olhar abatido e o desespero exalando pelos poros.
Guardou-a no bolso.
Ódio
Agora, tudo que se abria diante dela era um futuro sinistro, banhado em
sangue e dor.
Ela assentiu.
Voltou a confirmar.
Obviamente houve alívio em sua alma, mas ela lutou para nada
transparecer. Até porque, aquele homem era um alemão, um nazista. O que ele
realmente planejava para ela era totalmente desconhecido.
A mulher negou.
Acanhada, ela pegou uma pequena poção e levou a boca. Fazia tanto
tempo que não comia algo que não fosse a sopa de serragem, ou os pães
velhos dados no trem, que o alimento pareceu estufá-la imediatamente.
— Sim, entendo.
O homem sorriu.
— Ótimo.
Por que diabos tinham que comemorar o Natal e por que diabos os
comandantes o haviam designado a buscar mais vinho sobre aquela friagem?
Sabe o que faltava ali? Um bom e velho judeu inútil, para cumprir
aquele tipo de obrigação que ninguém queria.
Sina
Com o passar dos dias, Esther notou que eles sequer tinham um
alojamento. Viviam em barracões, sem qualquer tipo de higiene, com seus
excrementos espalhados pelo chão, quase à altura do tornozelo, vítimas de
toda sorte de doenças, aquém até mesmo dos homossexuais.
Esther sentia tanta pena que sua ânsia era roubar aquela comida e dar
as pessoas, mas sabia que era só prolongar o sofrimento.
A noite indagava a Deus porque não morriam logo. A cada dia, além da
fome e da tortura, havia a extensa humilhação.
Mesmo assim, descobriu naquele povo uma fortaleza.
O que um nazista da S.S iria querer dela? Sabia que eles não tocavam
nas mulheres, especialmente numa judia, a fim de estupro, mas... Por que
aquele homem havia tirado ela dos campos e a mantinha para si, trancada no
apartamento?
— Obrigada — murmurou.
A mulher fez menção de sair, mas voltou-se. Seus olhos focaram-se em
Esther e, por alguns segundos, a judia creu que a cigana lia sua alma.
Sabia que não devia indagar aquilo. Deus proibia especulações com
feiticeiros, mas ela precisava de um alento.
Com o passar das semanas, enfim, Esther teve autorização para sair do
apartamento. Eram poucos minutos, apenas para lavar as roupas de cama, os
uniformes, e o que precisava nos tanques que ficavam perto dos alojamentos.
Foi numa das suas andanças que ela descobriu que havia um canto em
Auschwitz que parecia um tabu até mesmo para as vítimas da brutalidade
nazista.
— O que melhor trabalhar hoje terá quinze minutos com uma das
moças — prometeu um dos guardas, aos berros, fazendo Esther tremer.
Das janelas, era possível ver o rosto sofrido das moças usadas como
um simples buraco onde os homens enfiavam seus paus, desmerecidas por
conta de algo que elas sequer eram culpadas.
Era um caminho sem volta. Ele não mais conseguia desviar o olhar
dela, e aquilo poderia ser sua perdição.
O pão.
Mas, ali... Ali, perto de Kraus, ela sentia-se segura. Mesmo assim, não
conseguia esquecer o olhar do pai, do outro lado da cerca, como se o encontro
fosse tortuoso para ele, como se esperasse que sua rebenta estivesse a salvo, e
não vivenciando o inferno.
Soube no instante que o olhar de Kraus voltou-se para ela, que ele
havia reparado em seu gesto, mas o homem não disse nada, simplesmente
voltou a beber o café.
— Pai — ela queria abraçá-lo e dizer que tudo ficaria bem. Mas, tudo
que conseguia, além de chorar, foi entregar a ele um pedaço do pão que
roubara.
— Pai, e a mãe?
Ou... Quem sabe... Teria o marido a abandonado quando foi presa. Isso
era provável, muitos judeus foram deixados pelos cônjuges quando a gestapo
bateu em suas portas.
Esther sabia que, no momento que se defendeu, Kraus iria puni-la. Ele
era um membro da S.S e ela era apenas uma judia. Seu ato impensado,
provavelmente, a condenaria a morte.
Porém, dando dois passos para trás, ele simplesmente recuou. Depois,
deixou-a sozinha.
Destruição
— Não quero.
— Não estou pedindo.
— Sua mãe?
Não pediu, nem falou. Sua voz soou aos berros, como se ela fosse
surda, como se fosse louca, como se não merecesse a mínima consideração.
— Não.
— Não...
Bauer riu do pedido. O nazista não considerou, contudo, que não era
dirigido a ele. Esther falava com o Deus que regia os céus. Apenas não sabia
mais se esse Deus ainda inclinava seus ouvidos aos judeus.
Jean encarou o jovem francês com o olhar carregado de simbolismos.
Naquele local isolado, uma fazenda perto de Paris, Jean notou que as
coisas poderiam facilmente sair do controle.
— Therron, seu trabalho é admirável...
— E também lhe avisei que nossa missão é mais importante que seu
amor por uma judia.
“Rolf Maik.”
Pensou em Therron e no amor que nutria pelo marido. Era nele que
seus pensamentos se firmavam quando abria os olhos de manhã, ou quando os
fechava, à noite, para dormir. Therron estava sendo sua força; nos poucos
momentos em que queria sobreviver, era por ele, mesmo não sabendo mais se
o encontraria quando voltasse... Se voltasse.
— Judeus não tem autorização para vir aqui, mas como sou líder do
meu alojamento, Bauer me abriu uma exceção.
— Josef...
— Não vou me desculpar por seguir meu coração, mas peço desculpas
por tê-lo magoado — ela disse, convicta. — Contudo, de que adianta remoer o
passado, Josef? Nosso destino estava traçado para esse campo. Qualquer que
fosse nosso pecado, aqui nós pagamos.
— Está enganado.
Para ele, Esther não passava de uma vadia e, como tal, merecia ser
fodida.
Contudo, não foi por solidão que ela deu conversa a um jovem loiro de
olhos intensamente azuis que a observou atentamente durante toda a noite,
naquele bar no Sul da Polônia.
O homem era muito bonito. Bonito ao ponto de tirar dela o ar. Tinha
sotaque, havia dito que nasceu na França, mas seu pai era alemão. Depois que
Hitler assumiu o poder, percebera que era hora de voltar para o Reich.
— Eu sou um pintor.
— Um artista?
Rolf ou, como era seu nome real, Therron, não havia se aproximado
daquela mulher ao acaso. Na cidade há alguns dias, descobriu que ela fora
amante de um comandante de Auschwitz. Muito provavelmente conseguiria
informações preciosas de como se aproximar daqueles homens através da
mulher.
— Meu amante me largou depois que se encantou por uma judia — ela
apontou, sem constrangimento, enquanto erguia os braços, levantando os seios.
— Você crê nisso? Deixou-me por causa de uma porca judia, uma cadela sem
formas, magra, uma peste que Hitler faz muito bem em limpar do mundo.
— Meu pai morreu — ela contou. — Mataram meu pai porque ele
estava fraco demais para trabalhar.
Olhar
E estavam conseguindo.
Era ela... Era Esther! Ali, há uns duzentos metros dele... A mulher que
ele amava mais que tudo, a mulher que o fez tornar-se o inverso do homem que
outrora foi.
Por ela... Por ela estava ali. Tudo que fazia, era por ela.
— Eu não sabia que seu pai seria morto — lhe disse, certa vez. —
Nem sua mãe. Eu peço desculpas.
Mais uma verdade. Mais silêncio. Depois, ele saiu, deixando-a com
seus próprios demônios. O homem também tinha os seus.
Mas, a marca na alma era pior. Um dia uma cigana dissera que o
campo jamais sairia dela. Era verdade. Enquanto cruzava pelos homens, ela
sentiu nojo deles. Não mais se comoveu com suas mortes. Ao contrário, queria
que todos morressem.
De repente, adiante, atrás das cercas de arame farpado, ela notou uma
figura loira, a observá-la.
Não importava mais seus sentimentos e sua dor. Therron estava ali. Ela
teria aquela última imagem a confortá-la antes do fim.
Kraus Fritz ordenou aos guardas que tirassem seus uniformes e fossem
fazer uma corrida pelo campo. Era uma punição a todos, por sua viagem não
planejada e pelo que havia ocorrido a Esther.
Assentiu, erguendo-se.
— Siga-me.
Becker cruzou por eles e os seguiu com os olhos, até vê-los subindo
em um automóvel Volkswagen Kübelwagen camuflado.
Therron ficou. Não sabia o que esperar dos vermelhos, mas não iria
fugir. Estava há poucos quilômetros de sua esposa, e estaria ao lado dela
quando conseguissem invadir Auschwitz.
Capítulo 13
Morte
Desde então, tudo que ela se perguntava era quando Auschwitz também
cairia.
Agora, tudo que restavam eram poucos guardas e montar uma estratégia
de defesa, para que o campo não fosse tomado.
— Lembra-se de Esther?
Therron assentiu.
— Nunca mais o vi, desde que Esther foi presa. Mas, sei que ele luta
na Resistência.
Vermelho
O extremismo pelo qual viveu até então tirou tudo dela. Seus pais, sua
liberdade, possivelmente um esposo (apesar de ela nunca falar sobre isso), e
também sua dignidade feminina. Ali, nas mãos dos nazistas, ela fora vítima de
muitas brutalidades. Porém, aquela última... Aquela não ocorreria!
Percebeu no olhar escuro que ela havia reconhecido a joia, mas que
não tinha mais esperanças de vê-la novamente. As lágrimas caíram quando
Esther a colocou no próprio dedo.
Esther recusou.
— Vi meu marido próximo do campo, dias antes. Sei que Therron está
à espreita, na tentativa de me salvar. Imploro que não me mate. Deixe-me
tentar voltar para ele.
Kraus acreditou piamente que ela havia tido uma alucinação. Mesmo
assim, não levou para esse lado ao aconselhar.
Kraus então a enlaçou nos braços. O que viveram, era um mistério para
ele, mas a proximidade de seu fim e a certeza da punição por suas más
escolhas fizeram-no perceber que não haveria tempo para meditar sobre isso.
Ela era uma simples mulher que cruzou seu caminho. E ele a amou.
Ponto. Apenas isso. Não o amor comum, mas algo bem mais significativo que
isso.
Teve por ela o mais sublime dos sentimentos. Ao menos teria algo para
levar consigo para a morte.
— Fuja em direção à mata, e tente não ficar à vista dos soviéticos. Não
confie em ninguém — entregou-lhe algumas notas em dinheiro e uma sacola.
— Se perguntarem, diga que perdeu os documentos. Troque sua roupa e
consiga uma passagem de trem para o mais longe possível daqui.
— Eu te amo — ele murmurou contra seus cabelos, tão baixo que ela
mal escutou. — Não sei se vai conseguir, mas quando os soviéticos me
matarem, tudo que terei em minha mente é meu pedido a Deus para que você
escape.
Ali... Sua liberdade. Todo o horror que vivera, agora, teria um fim.
O fim.
Ninguém soube disso. Nem mesmo Kraus que rastejou até seu corpo e
a abraçou, afundando o rosto em seu pescoço, despejando urros de raiva e dor.
— Você matou meu amigo Bauer por essa puta judia? — A pergunta
era mais uma acusação. — E agora iria libertá-la?
Vladimir assentiu.
— E se foi transferida?
O outro negou.
— Mantenha a calma.
Seus sentimentos eram apenas para a esposa. Era apenas em Esther que
ele centrava seus pensamentos.
No fundo, ele não queria seguir Vladimir porque não queria ver os
cadáveres. Provavelmente, já entendia o que havia acontecido.
Eloise a seguiu. Em muito porque andar por entre obras que nada lhe
diziam estava lhe aborrecendo, em muito porque devia aquilo a Amanda.
A mulher loira era uma das poucas amigas que lhe restaram, desde a
infância.
Subitamente, estancaram.
— Mórbido — murmurou.
— E foram felizes?
Era uma questão de tempo – pouco tempo – para que, enfim, aquela
triste história tivesse o final que merecia.
~Fim~
“Mas você partiu sem mim
E sei que estás em algum jardim
entre as flores...”
Uma Vez Mais
Ivo Pessoa
Tudo por Ele
Adquira já - http://amzn.to/2pDTRhe
Eloise Hopp é uma famosa escritora que se vê diante de um fato enigmático. Quanto mais
estuda sobre eventos ocorridos durante a Segunda Guerra, mais ela se convence de que fez
parte de tudo aquilo.
Após uma entrevista em que narra sua determinação em falar sobre os campos de
concentração, recebe ameaças de um grupo neonazista que jura vingança. Contra os vilões,
existe apenas um obstáculo: Théo Garcia, um detetive linha dura que mexe completamente
com seu mundo.
Porém, não é apenas a guerra que Eloise sente viver. Théo parece fazer parte de sua
alma, sua existência... De alguma maneira, ela sabe que é um amor que ela trouxe de outra vida.
DEMAIS LIVROS DA AUTORA
Aos doze anos, lançou o primeiro livro “A caminho do céu”, e até então já escreveu mais de vinte livros,
dos quais, vários destacaram-se em vendas na Amazon Brasileira.
[1]
conjunto de movimentos e redes que durante a Segunda Guerra Mundial prosseguiu a luta contra o Eixo
e os seus delegados colaboracionistas desde do armistício do 22 de Junho de 1940 até à Liberação em
1944.
Table of Contents
Dedicatória:
Nota da Autora:
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
DEMAIS LIVROS DA AUTORA