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Sinopse

A Chama e a Flor é acima de tudo uma história de amor. Através do relacionamento entre
Heather, a frágil e bela cinderela irlandesa, e o violento e autosuficiente Brandon, o ianque, toda
uma época se faz presente na narrativa, que deixa a nu o submundo da poderosa Londres do
século XVIII e os sonhos e as mazelas de uma sociedade em formação na "ex-colônia
Americana.
Trata-se, porém, de uma obra em que o autor, menos preocupado com o tempo e o espaço —
meros cenário e palco onde se desenrola a trama — mergulhou fundo na alma de cada
personagem, numa análise sem concessões de sentimentos, paixões e conflitos.
A Chama e a Flor é acima de tudo uma história de amor... vivida em uma época de casamentos
arranjados em função de dotes, títulos ou... de um simples pedaço de terra. Época em que o
menos importante para a união homem-mulher era justamente o que devia importar... o amor.
Que os verdadeiros amantes se possuíssem sobre montes de feno ou na intimidade cúmplice dos
bosques, desde é claro que a moral de seus lares legalmente constituídos não fosse abalada por
escândalos...
A Chama e a Flor é acima de tudo uma história de amor... em que estupros, crimes de morte e
violências sexuais se contrastam com um mundo de ternura, desprendimento e de esperança.
E é nesse clima de falsa moralidade, de paixões conflitantes, de interesses escusos que o leitor
chegará à última página certo de que há sempre um raio de luz em meio às trevas mais densas e
que nunca as nuvens são tão espessas que consigam esconder para sempre todas as estrelas e,
mais ainda, convencido de que, enquanto houver A Chama na alma humana e a Flor para ser
amada, haverá também no mundo... acima de tudo mais uma história de amor...

KATHLEEN E. WOODIWISS
A CHAMA E A FLOR
Tradução de ANA MARIA COELHO
RECORD
Título original norte-americano THE FLAME AND THE FLOWER
Copyright © 1972 by Avon Books
Direitos de publicação exclusiva em língua portuguesa em todo o mundo adquiridos pela
DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.
Av. Erasmo Braga, 255 — 8.º andar — Rio de Janeiro, RJ que se reserva a propriedade literária
desta tradução
Impresso no Brasil
Composto e impresso nos Estabelecimentos Gráficos Borsoi S.A., Indústria e Comércio, à Rua
Francisco Manuel, 51/55, Rio de Janeiro, RJ.

Capítulo Um
23 de junho, 1799.

Em algum lugar do mundo certamente o tempo passava zunindo, asas abertas. Mas aqui, no
interior da Inglaterra, arrastava-se vagarosa, penosamente, como se trilhasse com pés feridos a
estrada cheia de sulcos que se estendia através da charneca. Quente e abafado, o ar não se movia.
E suspensa no ar, acima da estrada, a poeira lembrava ainda a passagem de uma carruagem
algumas horas antes. Uma pequena fazenda encolhia-se, miserável, sob a névoa úmida que cobria
o pântano. A casa modesta, coberta de palha, ficava entre altos teixos afusados e, com as janelas
abertas e a porta meio fechada, parecia olhar fixamente, como se espantada, para uma brincadeira
imprópria. Bem perto, um celeiro em estado deplorável afundava sobre suas tábuas mal cortadas.
Mais distante, uma rala plantação de trigo lutava inutilmente, contra o solo encharcado, por
centímetro de crescimento.
No interior da casa, Heather descascava batatas com uma velha faca sem corte, que mais raspava
do que cortava a casca. Vivia ali havia dois anos, dois anos tão infelizes que pareciam ter-lhe
anulado a vida. Mal podia recordar os tempos felizes que haviam precedido a hora em que fora
trazida para aquela casa — dias que corriam serenos, transformando-se em anos enquanto ela ia
passando de criança a mocinha. Dias em que seu pai, Richard, ainda vivia e ela morava com ele
numa casa confortável em Londres, usava roupas elegantes e dispunha de comida à vontade. Ah,
sim, era bem melhor naquele tempo! Mesmo as noites em que o pai a deixava só com os criados
não lhe pareciam, agora, tão assustadoras. Atualmente compreendia a agonia dele, a saudade que
sentia da esposa há muito desaparecida, a doce e bela moça irlandesa por quem se havia
apaixonado, tinha desposado e depois perdido, durante o nascimento da única filha. Agora,
Heather podia, mesmo, compreender a necessidade, que ele sentia, de jogo — o vício cruel que
lhe roubara a vida e a havia deixado sem lar e sem segurança, à mercê de seus únicos parentes:
um tio sem fibra e uma tia megera.
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Heather enxugou a testa e ficou pensando na Tia Fanny, que descansava no quarto ao lado; o
colchão de palha devia estar achatado sob seu corpo mais do que volumoso. Não era fácil
conviver com Tia Fanny. Tudo parecia desagradar-lhe. Não tinha amigos. Pessoa alguma vinha
visitá-la. Não gostava de ninguém. Achava que a moça irlandesa que o cunhado desposara era
inferior devido à sua raça — um povo que estava sempre lutando contra a coroa, porque era
belicoso por natureza. E agora Heather agüentava a carga desse ódio injusto. Não se passava um
só dia sem que a tia lhe atirasse em rosto que ela era metade estrangeira. E, além do preconceito,
havia um sentimento mais profundo que distorcia o raciocínio de Fanny, levando-a a acreditar
que, da mesma maneira que a mãe, a filha tinha algo de feiticeira. Talvez se tratasse de inveja, pois
Fanny Simmons nunca fora bonita, ao passo que Brenna tinha sido dotada de grande beleza e
muito encanto. Os homens se voltavam para olhá-la quando entrava num recinto. Heather
herdara a extraordinária beleza da mãe e, infelizmente, também as críticas da tia.
As casas de jogo haviam exigido o pagamento das dívidas que Richard contraíra em suas mesas e
tomaram posse de todos os bens materiais que ele deixara, à exceção de algumas roupas e objetos
pessoais. Fanny apressou-se em ir a Londres reclamar os direitos de parentesco do marido, e
voltou trazendo com ela a sobrinha órfã e sua magra herança antes que qualquer protesto
pudesse ser feito. Queixava-se de Richard por este não haver repartido sua riqueza em vida, nem
tê-la deixado para eles. Vendeu tudo que sobrou — menos um vestido rosa que Heather não
tinha permissão para usar — e guardou avaramente o dinheiro.
Heather esticou as costas doloridas e suspirou.
— Heather Simmons! — As palavras vibraram no quarto ao lado e a cama rangeu quando a tia se
levantou. — Sua preguiçosa! Pare de sonhar com os olhos abertos e trate de trabalhar! Pensa que
o serviço vai aparecer pronto enquanto você se fica movendo às tontas por aí? Era de esperar que
a escola para moças que você freqüentou, lhe tivesse ensinado alguma coisa de útil. Em vez disso,
ensinou-a a ler e deu-lhe todas essas ideias superiores que enchem sua cabeça. — A mulher
imensa veio caminhando pelo chão sujo, entrou na sala e Heather procurou reunir suas forças:
sabia o que a esperava. — E o que foi que você ganhou com isso? Não tem de viver à custa de
seus únicos parentes? Seu pai era um idiota. Isso mesmo. Jogou fora a fortuna sem pensar em
ninguém a não ser nele próprio. Tudo por causa daquela desmiolada com quem se casou, aquela
moça irlandesa. — Soltou as últimas palavras com nojo, como se não encontrasse coisa pior para
dizer. — Nós o aconselhamos a não se casar com ela, mas não quis ouvir. Brenna tinha de ser
dele.
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Cansada, Heather ergueu os olhos da nesga de sol que se filtrava pela porta aberta e fixou-os na
figura volumosa da tia. Tantas vezes ouvira a mesma arenga que já a sabia de cor. Mas, aquilo não
conseguia prejudicar as boas recordações que tinha do pai.
— Ele era um bom pai — disse simplesmente.
— Isso é uma questão de opinião, mocinha — a mulher comentou com ironia. — Veja em que
situação ele deixou você. Vai fazer 18 anos no mês que vem e nem um dote tem. Os homens não
se casam com moças sem dote, mas vão querer você para encher suas camas. Tenho tido um
trabalhão para que seja uma moça decente e não quero que despeje nenhum bastardo em minha
casa. O povo daqui só está esperando por isso. Todos sabem que espécie de vadia era a sua mãe.
Heather estremeceu, mas a tia continuou o bombardeio de palavras, apertando os olhos e
sacudindo um dedo ameaçador:
— Foi por obra do demónio que você saiu igualzinha a ela. Uma feiticeira. Não foi por acaso,
não. Você tem o mesmo olhar. Ela arruinou a vida de seu pai, e você fará o mesmo com todo
homem que lhe botar os olhos em cima. Foi a vontade do Senhor que a trouxe aqui para casa.
Ele sabia que eu podia salvá-la do fogo e das caldeiras a que você se destinava. E era meu dever
vender aqueles vestidos elegantes que você tinha. Sua vaidade só lhe traria desgraça. Meus
vestidos velhos servem bem em você.
Heather poderia rir se tudo aquilo não fosse tão triste. As roupas da tia lhe pendiam dos ombros
mais largos que sacos, pois a mulher tinha o dobro do seu peso. Isso era tudo que lhe permitiam
usar: trapos que eram uma zombaria a qualquer estilo ou modelo. Fanny a proibia até de apertar
os vestidos para que se ajustassem melhor. Só podia subir-lhes a bainha, para não tropeçar.
A tia percebeu que a menina contemplava sua própria roupa e falou, com ironia:
— Mendiga ingrata! Quer dizer-me onde estaria agora se seu tio e eu não a tivéssemos acolhido?
Se seu pai tivesse juízo, lhe teria dado um belo dote e arranjado um bom casamento para você.
Mas não! Ele a guardava junto a si, achando que era muito jovem para se casar. Bem, agora é
tarde demais. Você vai morrer solteirona. E virgem também, pois dessa parte eu me encarrego.
Fanny voltou para o outro cómodo da casa, previnindo a moça de que não demorasse com sua
tarefa se não quisesse levar umas varadas. Os dedos de Heather passaram a trabalhar mais
rapidamente: já havia sentido a dor daquelas varadas. Depois de uma surra, geralmente suas
costas ficavam marcadas, durante dias, por vergões vermelhos. Fanny parecia sentir um prazer
especial em deixar marcas na pele da sobrinha.
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Heather não ousou suspirar de cansaço novamente. Temia chamar outra vez a atenção da tia; mas
sentia-se fatigada de tanto trabalhar. Levantara-se antes do amanhecer a fim de preparar uma
festa para o irmão de Fanny, ansiosamente esperado; mas agora duvidava de que pudesse
agüentar muito mais tempo. Alguns dias antes, a tia recebera uma carta informando que o irmão
chegaria naquela noite, e dera ordens para que Heather começasse os preparativos logo depois. A
tia chegara mesmo a dar-se ao trabalho de fingir que ajudava um pouquinho. Heather sabia que o
homem era alguém que Fanny realmente estimava. Ouvira muitas histórias em que ela o punha
nas alturas e achava que o irmão era o único ser, humano ou não, de quem a tia gostava. Tio John
confirmou isso, dizendo não haver nada que Fanny não fizesse pelo irmão. Eram apenas os dois
e, como Fanny fosse 10 anos mais velha, cuidara dele desde pequenino. Todavia, atualmente era
bem raro que viesse visitá-la.
Antes que tudo estivesse pronto o sol já baixara — como uma bola vermelha incandescendo o
horizonte. Fanny apareceu para dar sua aprovação final e ordenou a Heather que apanhasse mais
velas para acender mais tarde.
— Já se passaram cinco verões desde que meus pobres olhos viram meu irmão e desejo que tudo
fique agradável para ele. Meu Willy está acostumado com o que há de melhor em Londres: não
quero que encontre defeitos aqui. Willy não é igual a seu tio, nem a seu pai. Meu irmão tem muito
dinheiro porque sabe usar a cabeça! — Apontou para a sua cabeçorra, para reforçar o argumento.
— Não é visto em casas de jogo dissipando a fortuna, nem vive conversando fiado como seu tio.
É um homem que cria suas próprias oportunidades. Não existe em Londres loja de tecidos
melhor que a dele. Willy tem até um homem trabalhando para ele.
Finalmente a tia deu a abençoada permissão para Heather tomar banho:
— E ponha aquele vestido que seu pai lhe deu. Ficará bem em você. Quero que a visita de meu
irmão seja um acontecimento feliz, que não pode ser enfeiado por trapos iguais a esses que você
está usando.
Heather voltou-se, olhos arregalados de surpresa. Durante dois anos seu vestido rosa ficara
guardado, intocado, sem uso. Agora ela recebia permissão para usá-lo. Mesmo sendo em
homenagem ao irmão da tia, isso a deixava contente. Parecia-lhe uma eternidade desde que usara
uma coisa bonita, e agora sorria antecipadamente de prazer.
— É, vejo que está satisfeita. Sempre pensando em como fica bonita quando usa roupas finas...
— Fanny aproximou-se e sacudiu um dedo embaixo do nariz da sobrinha: — Satã está tentando
você novamente. Lembre-se de que o Senhor sabe o trabalho que você me dá. — Suspirou com
força, como se aquela carga a deixasse cansada.
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— Seria melhor que você estivesse casada e eu livre dessa responsabilidade. Mas eu teria pena do
homem que desposasse você... se bem que, sem dote, não há possibilidade de casamento. Você
precisa de um homem forte, que a traga sob rédea curta e a deixe pesadona, carregando um filho
por ano. Isso acabaria com a feiticeira que existe em sua alma maléfica.
Heather deu de ombros e continuou a sorrir. Como desejaria ter a coragem de assustar a tia,
fazendo-a crer que era realmente feiticeira! Um ato digno de um herege. A tentação seria
irresistível para uma pessoa mais corajosa. Ela, porém, tirou logo a ideia da cabeça: as
conseqüências não seriam agradáveis.
— E outra coisa, mocinha. Enrole os cabelos em volta da cabeça. Ficará muito bem.
Tia Fanny sorriu maliciosamente, pois sabia que a sobrinha não gostava que lhe ordenassem
como arrumar os cabelos.
O sorriso desapareceu imediatamente dos lábios de Heather, mas a moça afastou-se murmurando
uma resposta afirmativa. Quaisquer reações às ordens da tia tinham de ser as mais leves: ela fazia
questão de impor disciplina por métodos rígidos.
Heather atravessou a sala e foi para trás da cortina que separa o seu cantinho do resto do
cómodo. Ouviu quando a tia saiu da casa: só então ousou dar vazão à sua raiva. Estava furiosa.
Mais furiosa consigo mesma do que com a tia. Era uma covarde e, pelo jeito em que as coisas
iam, nunca seria capaz de mudar.
Seu mísero cubículo tinha apenas o estritamente necessário, mas. ali é que a moça encontrava
proteção contra a brutalidade da tia. Suspirou e abaixou-se para acender um toco de vela na mesa
tosca ao lado da caminha estreita.
”Se ao menos eu fosse mais forte, mais corajosa”, pensou, ”poderia dar-lhe uma lição. Se uma
vez ao menos eu reagisse à altura”.. Heather pôs o braço magro em posição de ataque, enquanto
entortava a boca num sorriso estranho. ”Mas eu teria de ser um Sansão para lutar contra ela.”
Pouco antes, Heather pusera em seu quarto um jarrão de água quente e a tina. Espreguiçou-se,
antecipando o prazer do banho. Com uma careta de nojo arrancou do corpo a roupa detestada.
Despida, deixou correr a mão pelo corpo esbelto, estremecendo ao tocar numa contusão. Tia
Fanny tivera um acesso de fúria na véspera, quando a sobrinha acidentalmente derrubara uma
xícara de chá. E antes que Heather conseguisse escapar a mulher bateu-lhe fortemente com a
vassoura nas nádegas.
Carinhosamente e com cuidado, Heather tirou o vestido rosa do embrulho e pendurou-o em
lugar onde podia contemplá-lo enquanto se banhava. A água estava refrescante e ela se esfregou
com vontade,
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até sua pele tornar-se rosada e com o brilho próprio da juventude. Esfregou um pedaço de pano
num restinho de sabonete perfumado que conseguiu salvar e passou-o generosamente pelo
corpo, libertando a fragrância penetrante.
Terminado o banho, envergou cuidadosamente o vestido rosa sobre a modesta roupa de baixo. O
corpete do vestido fora feito para uma garota mais nova: a fazenda estava esticada no busto.
Ficou observando o crescimento dos seios e o ousado volume que fazia acima do decote baixo.
Com um dar de ombros resolveu esquecer o problema. Aquele era seu único vestido e estava
demasiado tarde para pensar em modificá-lo.
Foi com prazer que ficou escovando os cabelos que brilhavam à luz da vela. Seus cabelos tinham
sido o orgulho do pai, algo precioso que ele costumava acariciar enquanto ficava mergulhado em
seus pensamentos. Heather imaginava que faria o mesmo com os cabelos da esposa. Mais de uma
vez ele ficara olhando para a filha como se sonhasse e, tomado de saudade, murmurara o nome
da esposa — antes que voltasse à realidade e se afastasse, de olhos úmidos.
Em obediência à tia, Heather prendeu os cabelos, porém, numa rara atitude de desafio, deixou
alguns anéis soltos sobre os ombros, em aparente desalinho, e um em cada têmpora. Examinou
sua figura no pedaço de vidro partido que lhe servia de espelho e aprovou o que viu. Com os
modestos recursos de que dispunha conseguira resultado melhor do que esperara.
Através da cortina, ouviu alguém entrar na casa e andar pela sala, bem como uma tosse grave e
seca. Heather saiu de trás da cortina, pois sabia ser o tio: acendia o cachimbo com uma lasca de
madeira tirada do fogo; tossiu novamente quando o cachimbo acendeu. Espirais de fumaça
encheram a sala.
John Simmons era um homem vencido. Possuía pouco na vida: apenas o dinheiro avaramente
guardado e a companhia desagradável da Tia Fanny. Há muito deixara de preocupar-se com a
própria aparência. Sua camisa tinha manchas de gordura e a sujeira acumulava-se embaixo de suas
unhas. Perdera a bela aparência dos tempos de juventude: estava agora curvado e envelhecido,
parecendo ter muito mais que os seus 50 anos. Os olhos inexpressivos contavam uma história de
sonhos perdidos, esperanças mortas, dias de frustração sob a apoquentação da esposa. Suas mãos
eram ásperas e cheias de marcas, devido a anos de trabalho estafante para conseguir arrancar da
terra pantanosa a magra subsistência do casal. A pele, grossa pela ação do clima, guardava os
sofrimentos dos anos que se sucediam nas rugas profundas que lhe sulcavam o rosto.
Ergueu os olhos, viu a suave beleza da sobrinha e algo como uma nova dor pareceu passar em
sua face. Sentou-se e sorriu.
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— Você está linda esta noite, menina! É por causa da visita de William — perguntou.
— Tia Fanny deu permissão, tio — ela respondeu.
Com os dentes apertando o cachimbo, ele aspirou a fumaça por alguns instantes. Falou,
suspirando:
— Não duvido.. Ela não se poupa para ser agradável ao irmão, embora ele seja insensível. Certa
vez, Fanny viajou até Londres só para vê-lo e ele se recusou a falar com ela. Agora Fanny não
mais se atreve a ir visitá-lo, com medo de que ele se zangue. E ele está satisfeito com isso.
William tem amigos ricos e detesta admitir que ela é sua parenta.
Versão um pouco modificada da irmã, tinha William Court a mesma altura que ela — o que
correspondia a uma cabeça acima de Heather. Talvez não fosse tão obeso, porém Heather
calculava que essa diferença diminuiria em poucos anos. Seu rosto carnudo era vermelho, com
maxilares fortes e o lábio inferior protuberante e constantemente molhado de saliva. William o
enxugava a todo momento, tocando-o de leve com um lenço de renda, e fungando ao mesmo
tempo como se, em vez do lábio, estivesse limpando o nariz. Quando se cumprimentaram,
Heather achou a mão dele nojenta de tão mole e, quando ele se curvou para beijar-lhe a mão, a
moça sentiu-se levemente nauseada.
As roupas que usava davam prova de gosto apurado, mas suas maneiras afetadas em nada
ajudavam a produzir uma aparência máscula. A roupa de um cinza-claro fartamente enfeitada de
fios de prata, a camisa e a gola brancas acentuavam o avermelhado das mãos e do rosto. William
Court podia ser rico, contudo Heather pouco encontrava nele que a atraísse. As calças eram
extremamente apertadas, quase a ponto de causar desconforto: era de imaginar que tivessem sido
feitas assim deliberadamente, para exibir a quem o observasse uma masculinidade que no resto de
seu aspecto parecia duvidosa.
Havia chegado numa carruagem alugada, conduzida por um cocheiro vestido adequadamente, o
qual recebeu ordens de dormir no celeiro com seus dois cavalos cinzentos. Heather percebeu que
o cocheiro ficou aborrecido por causa das acomodações humildes, já que estava mais bem vestido
que os moradores da casa. O celeiro não era apropriado nem mesmo para os cavalos. Mas, se
ficou contrariado, nada disse: continuou silenciosamente a fazer o seu trabalho, cuidando dos
cavalos e da carruagem.
Tia Fanny, com os cabelos grisalhos presos bem apertados na cabeça enorme, parecia uma
fortaleza, metida num vestido e avental duros de tanta goma. Apesar de todos os discursos e
sermões que costumava fazer, dizendo que roupas elegantes eram uma tentação do demónio, não
escondia seu contentamento ao ver o irmão luxuosamente
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vestido, e se movimentava ruidosamente em volta dele — como uma galinha cuidando de um
pintinho novo. Heather nunca vira a tia mostrar-se tão afetuosa com alguém, e William Court
recebia as atenções com agrado, obviamente satisfeito por estar sendo servido com tanta cortesia.
Heather resolveu ignorar as melosas amabilidades da tia pelo irmão e deu pouca atenção à
conversa deles até que, no decorrer do jantar, começaram a comentar as novas que corriam em
Londres. Passou então a escutar atentamente, com esperanças de ouvir notícias de velhos amigos.
— Napoleão fugiu e agora todos pensam que está de volta à França após sua derrota no Egito.
Nelson lhe deu uma boa lição. Há de pensar bem antes de se meter outra vez com os nossos
marujos — comentou William Court.
Heather observou que ele falava muito melhor que a irmã e ficou imaginando se teria
freqüentado uma escola.
Tia Fanny limpou a boca com as costas da mão e rosnou:
— Pitt não sabia o que falava quando disse que deixassem os franceses em paz. Agora está com
eles até o pescoço e com os irlandeses também. Por mim, eu diria: matem todos eles!
Heather mordeu os lábios.
— Irlandeses! Ora! Um bando de animais é o que são, se querem saber o que penso. Não sabem
quanto estão felizes e livres de preocupações! -— continuou Tia Fanny.
E o Tio John falou
— Pitt está tentando formar uma aliança com eles agora. Talvez o consiga no próximo ano.
— Talvez também tenhamos nossos pescoços cortados por aqueles malditos!
Hesitante, Heather olhou para o tio, apreensiva como sempre com os preconceitos de sua tia.
John baixou os olhos e sorveu sua cerveja de um só fôlego. Suspirou e relanceou um olhar para o
jarro que Fanny vigiava; depois colocou a caneca na lareira e silenciosamente voltou ao cachimbo.
— Os ianques são a mesma coisa! Cortarão seu pescoço antes de lhe darem um olhar. Ainda
teremos de voltar a lutar com eles, tome nota das minhas palavras! — continuava a tia.
William reprimiu o riso, as bochechas estremecendo de regozijo.
— Então não lhe faria bem ir a Londres, querida irmã — disse ele — pois desembarcaram no
porto como se o lugar lhes pertencesse. Formam um grupo sui generis e permanecem unidos.
Quando se aventuram até a cidade vão em magotes. Não gostam da ideia de navegar em navios
britânicos. São cautelosos e alguns têm a audácia de jugarse ”cavalheiros”. Veja esse camarada
Washington, por exemplo. E agora têm esse outro idiota, Adams, a quem elegeram como seu rei.
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É ultrajante! Mas isso não vai durar. Voltarão, lamurientos como cães que são!
Heather não conhecia nenhum ianque. Estava contente simplesmente porque a tia e o Sr. Court
falavam deles e não dos irlandeses.
Deixou sua atenção fugir da conversa. Desde que não falavam da sociedade londrina ou de seus
ancestrais, já não estava interessada. Se ousasse falar, declarar sua lealdade a eles ou perguntar por
alguma notícia social de Londres, sabia que a tia a atacaria rancorosamente. Assim, deixou que
seu pensamento vagueasse enquanto estava ali sentada pelo que lhe parecia uma eternidade.
Tia Fanny tirou Heather de sua concha: inclinou-se através da mesa e beliscou-lhe o braço. A
moça pulou. Esfregou o braço, onde se ia formando um vergão vermelho, e olhou para a tia,
pestanejando para disfarçar lágrimas de dor.
— Perguntei se você quer lecionar na escola de Lady Cabot. Meu irmão acha que pode arranjar
trabalho para você — falou Tia Fanny asperamente.
Heather não podia acreditar no que ouvia.
— Quê? — perguntou. William Court riu e explicou:
— Tenho boas ligações com a escola e sei que procuram uma jovem de fino trato... e você tem
excelentes maneiras e fala bem. Creio que seria perfeita para o lugar, e pelo que sei também,
freqüentou uma boa escola em Londres, o que será de grande ajuda. — Enxugou os grossos
lábios antes de continuar: — Talvez futuramente eu possa arranjar-lhe um casamento decente em
alguma família importante da cidade. Seria uma vergonha desperdiçar tanta graça e distinção
numa fazendola rústica aqui. Naturalmente, se eu arranjar um contrato assim, isso significaria
fornecer-lhe um dote substancial de que espero ser reembolsado quando você tiver agarrado o
seu homem. É um pequeno trato, mas poderá ser proveitoso para ambos. Você precisa de um
dote, que posso proporcionar, e eu favorecerei o interesse no empréstimo que você proverá mais
tarde. Ninguém precisa saber desse arranjo, e você é bastante sabida para obter o dinheiro depois
de casada. Esse lugar em casa de Lady Cabot lhe parece aceitável?
Heather não estava certa quanto ao plano de casamento de William Court, porém fugir desta
fazenda, de Tia Fanny, de sua existência miserável, estar, mais uma vez, perto da sociedade de
Londres. seria maravilhoso! Não fosse pela ferroada em seu braço julgaria estar sonhando!
— Fale, menina! Qual é sua resposta? — insistiu William. Com dificuldade em dominar sua
alegria, ela não hesitou mais:
— Muito generosa sua oferta, senhor, e ficarei feliz em aceitar. William tornou a rir:
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- Bem! Muito bem! Você não se arrependerá: — Esfregou as mãos. Viajaremos para Londres
amanhã. Já estive afastado dos meus negócios por muito tempo e devo voltar para aliviar meu
assistente. Acha que poderá estar pronta, menina?
Balançava o lencinho de rendas sob o nariz, dando pancadinhas nos lábios grossos.
— Sim, senhor! Quando o senhor resolver sair, estarei pronta — respondeu ela, alegremente.
— Bem! Muito bem! Então, está tudo combinado.
Heather tirou a mesa, e o fez com um novo sentimento, pois sabia ser aquela a última refeição
que servia na casa. Estava muito presa à sua felicidade para preocupar-se em conversar com a tia,
que a observava. Quando se viu sozinha por trás de sua cortina pensou em todas as delícias de
estar livre da Tia Fanny. Qualquer emprego em Londres seria melhor que viver sob as garras
dessa mulher, suportando seus maus tratos. Estaria livre de palavras ásperas, da raiva violenta e
talvez, em algum lugar, houvesse alguém que se importasse com ela.
Foram necessários muito poucos preparativos para a viagem do dia seguinte, pois o que possuía
era o que usara nessa noite e tornaria a usar amanhã. Despida, escorregou para baixo do cobertor
em sua caminha. Era áspero contra sua carne e não a agasalhava o suficiente quando o vento
trazia o frio do inverno. Deu uma risadinha ao pensar que não teria de lutar mais contra ele. Daí a
poucos meses seria um novo século: ficou a imaginar o que os anos vindouros lhe trariam,
juntamente com essa nova possibilidade de viver e ser feliz.
Na tarde seguinte, partiram para Londres na carruagem de William Court: Heather achou a
viagem agradabilíssima. A região campestre ao longo do caminho era verde e luxuriante em
junho. Ela não notara os mesmos pântanos quando viera para casa do tio, dois anos antes, mas
agora que ia para o sul, para Londres, achou-os de beleza incomparável.
O Sr. Court demonstrou ser um atento e amável anfitrião. Ela pôde conversar com ele pelo
menos a respeito dos acontecimentos correntes da sociedade de Londres, e ria alegremente ao
ouvi-lo contar casos na Corte. Uma vez que o olhou, surpreendeu-o a mirá-la com uma
intensidade que não pôde compreender, mas ele rapidamente desviou o olhar. Por momentos ela
teve leves escrúpulos em ir só com ele para Londres, pois afinal de contas, não era seu guardião
legal, e sim um parente distante. O mal-estar logo desapareceu e ela meditou que ele a estudava
tendo em vista o futuro contrato de casamento que lhe arranjaria.
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Estava escuro quando chegaram aos subúrbios de Londres. A viagem deixara Heather
inconfortavelmente dolorida e fatigada pelos solavancos do carro na estrada. Sentiu-se
grandemente aliviada ao chegarem à loja.
Dentro dela, sedas, musselinas, cambraias, veludos e cetins de todas as cores e texturas
empilhavam-se em mesas e prateleiras. Havia de tudo que uma mulher pudesse desejar para a
confecção de um vestido elegante. Heather estava espantada ante a grande variedade e, excitada,
pegava e examinava um e outro tecido — sem notar um homem sentado ao fundo da loja.
William Court riu ao vê-la naquela movimentação pela loja.
— Terá mais tempo para examinar tudo mais tarde, querida, mas agora deve conhecer meu
assistente, Thomas Hint — disse ele.
Heather voltou-se e viu um estranho homenzinho que — decidiu instantaneamente — era a
criatura mais horrenda que já vira. Enormes olhos esbugalhados, num rosto redondo onde o
nariz era algo de muito curto e achatado, com narinas dilatadas. A língua passava continuamente
sobre os lábios grossos e escalavrados: lembrava os lagartos que ela via na fazenda. Sua silhueta
encurvada, grotesca, vestia uma rica seda escarlate — tão manchada de comida como sua camisa.
Quando sorriu para ela, foi um sorriso torto, um lado do rosto contraído numa careta horrível.
Ela pensou que seria melhor que não tentasse sorrir. Na verdade, não podia compreender por
que William o tinha na loja: devia mais apavorar que atrair os fregueses e, se conseguisse atrair
alguém, não haveria de ser gente muito normal.
Como que em resposta a seus pensamentos, William falou:
— As pessoas estão acostumadas com Thomas. Temos uma boa freguesia porque sabem que
somos muito capazes. Não é, Thomas?
Um grunhido como resposta.
— Agora, minha querida, quero mostrar-lhe minhas acomodações lá em cima. Garanto que vai
gostar — continuou William.
Levou-a até os fundos da loja, atravessando uma porta coberta de cortinas que dava para uma
saleta onde uma janela estreita proporcionava a única claridade. Aí havia uma escada que os levou
a um pequeno e escuro vestíbulo com uma só porta. Era uma porta de madeira maciça, bonita
demais se comparada ao lúgubre vestíbulo. William sorriu e a abriu para ela: Heather ficou sem
fôlego, de surpresa, ante o que estava por trás dela! O apartamento estava luxuosamente
mobiliado com peças de Hepplewhite e Chippendale. Um sofá de veludo vermelho fazia
conjunto com duas poltronas sobre um esplêndido tapete persa. Das paredes claras pendiam
quadros a óleo e ricas tapeçarias, um candelabro refletindo prismas de luz nas cortinas de veludo
vermelho e seus ornamentos e borlas dourados.
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Nas mesas, frágeis estatuetas de porcelana juntamente com castiçais de estanho, e no fim da sala
havia um cantinho para jantar. Cada peça fora cuidadosamente escolhida e, obviamente, não se
pensara em economizar..
William abriu outra porta que dava para a sala e deu um passo atrás para permitir que Heather
entrasse. Dentro, ela descobriu um leito de quatro colunas encortinado de veludo azul-imperial.
Ao lado, pequena cómoda com um candelabro e uma bandeja com frutas frescas. Perto, uma
faquinha curva de cabo de prata.
— Oh! Como é elegante, senhor — ela suspirou.
Ele tomou uma pitada de rapé e sorriu ao vê-la dirigir-se ao espelho junto da cama.
— Gosto de mimar a mim mesmo, querida — comentou ele. Se ela se tivesse voltado nesse exato
momento, teria visto o que ele tivera o cuidado de ocultar até então: seu desejo por ela estava
claramente visível em seus olhos que lhe percorriam o corpo esbelto. Ele se virou para que a
menina não descobrisse a luxúria em seu olhar.
— Deve estar faminta, Heather.
Foi até o guarda-roupa e abriu-o. Vivo e amplo sortimento de vestidos ali estava: procurou entre
eles até achar um vestido de renda bege bordado com pequeninas contas brilhantes e guarnecido
com um material cor da pele. Era de alto custo e rara beleza.
— Pode usar este para o jantar, minha querida. Foi feito para uma jovem com suas medidas,
porém ela nunca voltou para buscá-lo. Muitas vezes me perguntei por que, visto ser um dos mais
bonitos que já desenhei, mas supondo que a moça achou que não podia pagar por ele, afinal de
contas. — Relanceou-lhe um olhar. — Perda de um, ganho de outra. É meu presente para você.
Use-o esta noite e me dará grande prazer. — Caminhou para a porta e daí se voltou para ela. —
Mandei Thomas dizer à cozinheira que nos preparasse um bom jantar. Não deverá demorar, de
modo que lhe peço não me privar por muito tempo da sua agradável companhia. Se precisar de
outros artigos de vestuário, o guarda-roupa está à sua disposição.
Heather sorriu, timidamente, segurando o precioso vestido como se não pudesse acreditar que
agora era seu. Quando William fechou a porta, ela se virou lentamente para sua imagem no
espelho, ainda apertando o vestido contra si.
Durante os anos em que vivera com a tia, Heather nunca vira a sua imagem, a não ser breves
vislumbres no pedaço de vidro e em ocasionais poças dágua. Quase esquecera de todo a sua
aparência. Estava agora como vira a mãe no retrato: sua verdadeira imagem. Até agora, quando as
pessoas se lembravam de Brenna, era como sendo uma beleza. As belezas louras, altas e pálidas,
que visitavam a Corte e a cujo respeito lera nos dias de sua adolescência, sempre lhe pareceram
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a própria essência da graça e do encanto — não as mulheres de cabelos escuros, pequeninas, que
se pareciam com ela.
Heather lavou a poeira da viagem e, depois desse bom banho, achou no guarda-roupa uma
combinação limpa. Ao vesti-la, corou ante a indecente exibição de seu corpo, e se sentiu
pecaminosa usando aquilo. Era de cambraia macia, transparente, e revelava completamente o seu
corpo. O corpete baixo escassamente lhe cobria o peito. Estava demasiado acostumada às roupas
infantis de seus anos mais jovens para que se sentisse à vontade nessa combinação; contudo não
suportaria sequer pensar em usar suas próprias roupas de baixo, esfarrapadas, sob um vestido tão
lindo.
Sorriu, divertida.
Quem a veria? Só seus próprios olhos, ninguém mais.
Riu-se ante tanta tolice e alegremente dispôs-se a cuidar do cabelo. Torceu, enrolou, ondulou e
prendeu com grampos as lustrosas madeixas negras num penteado elegante, erguendo-as e
afastando-as do rosto. Ao invés de um simples coque, preferiu arrumá-lo numa porção de cachos
macios que lhe cascateavam pelas costas. Concentrando-se um momento em seu trabalho
artístico, pegou a faquinha curva da mesinha de cabeceira e começou a cortar pequenos tufos de
cabelo em frente às orelhas até que conseguisse um cachinho macio a balançar em frente de cada
uma delas. Com um sorriso de satisfação, pensou em como a tia guincharia de raiva e lhe diria
nomes feios se pudesse vê-la.
Com cuidado tocou a faquinha com o dedo para testar-lhe o corte: imediatamente uma gota de
sangue manchou a lâmina. Careteando e levando o dedo à boca, largou o instrumento, pensando
que, no futuro, seria bem cuidadosa quando quisesse descascar ou cortar uma fruta.
O vestido bege surpreendeu-a tanto quanto as roupas que usava por baixo. Com ele, já não
parecia uma jovenzinha, mas uma mulher adulta. Na realidade, os 18 anos que completaria no
mês seguinte provariam isso. Contudo havia algo mais a respeito do vestido que a fazia parecer
estranhamente diferente. Como a combinação, ele mal lhe cobria o peito, e o forro deu a ilusão
de que estava até mesmo sem a discutível peça de lingerie. Parecia sedutora, cheia de tentação,
uma mulher sabendo seu caminho entre os homens — ao invés da donzela ainda intocada que
era.
William a esperava. Gastara algum tempo melhorando sua aparência: trocara o traje de viagem
por roupas mais elegantes e caras,
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e com cachinhos em volta do rosto gordo — o que o fazia parecer mais redondo.
— Minha cara e doce Heather, seu encanto faz meu coração aspirar pela juventude! Já ouvi falar
a respeito de belezas deslumbrantes como a sua, porém nunca, nunca havia visto isso com meus
próprios olhos!
Heather murmurou um gracioso agradecimento antes que sua atenção se voltasse para a comida
que haviam trazido. Aspirava os aromas torturantes que enchiam o ar. A mesa fora posta com
cristais, porcelanas e pratarias, e um festim exibia-se no aparador. Ali, ela encontrou um assado
de perdiz, arroz de forno, camarões ao molho de manteiga, sobremesas e frutas. Numa garrafa de
cristal, convenientemente colocado à cabeceira da mesa, um vinho suave.
No momento, William enchia os olhos com outros prazeres, já que se permitia passear o olhar
lentamente sobre Heather, não mais tentando disfarçar seu desejo. O olhar devorador
permaneceu momentaneamente no decote onde as curvas dos seios túrgidos ultrapassavam o
decote. Passava a língua nos lábios grossos como se antecipando o sabor daquela carne jovem.
Segurou a cadeira para ela perto da cabeceira da mesa e sorriu:
— Sente-se aqui, minha querida, e deixe-me servi-la.
Heather aquiesceu e observou enquanto ele enchia os pratos de ambos, comentando:
— A cozinheira é muito acanhada — falou, servindo generosas colheradas de arroz em seu prato.
— Entrega meu alimento prontamente, assim que ordeno, depois se apressa em desaparecer
antes que eu possa olhá-la sequer. Tudo com a mesma silenciosa eficiência, e mal me dou conta
de quando ela chega. Mas você logo descobrirá que ela é uma excelente chefe de cuisine.
Começaram a refeição; Heather estava espantada ante a quantidade de comida que aquele homem
consumia. E ficou pensando se ele seria capaz de mover-se dali ao terminar. Suas mandíbulas
protuberantes trabalhavam continuamente; devorando as deliciosas perdizes e tortas, ele lambia
os dedos engordurados, e quase incessantemente estalava os beiços. Por várias vezes arrotou alto,
surpreendendo-a.
— Quando começar a trabalhar na casa de Lady Cabot terá grandes oportunidades de conhecer
alguns dos homens das classes mais ricas; com sua beleza não demorará em tornar-se uma das
moças mais procuradas que já pertenceram ao estabelecimento.
Riu, espiando-a por cima do copo.
— O senhor é extremamente bondoso, senhor — ela respondeu, polidamente, embora pensasse
que o vinho o abalara um pouco. — Poucos homens visitam escolas para senhoritas e os que o
fazem estão,
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habitualmente, muito além da idade de casamento, e apenas têm negócios a tratar por lá.
Ele fez uma careta como um bêbado e disse:
— Sim, porém espero ser bem pago por meus esforços. Olhou para Heather, já agora
desabridamente; contudo ela não percebeu, com a atenção voltada para o copo de vinho que ele
segurava sem firmeza. Derramou um pouco da bebida no colete e umas gotas lhe escorreram
pelo queixo ao tomar um gole maior. Murmurou:
— Você achará a casa de Lady Cabot um lugar diferente de tudo que já conheceu até agora.
Somos sócios e cuidamos para que apenas as donzelas mais finas vivam atrás de suas portas.
Devemos ser muito escrupulosos, pois a casa é freqüentada só por gente muito fina e queremos
manter esses elevados padrões. Mas com você creio que se poderá fazer uma fortuna.
Heather decidiu que o pobre homem estava embriagado demais para saber o que falava.
Disfarçou um bocejo — ela própria sentindo os efeitos do vinho — e suspirou pela cama.
William, rindo, comentou:
— Receio havê-la cansado demais com a minha conversa, minha querida. Havia esperado que a
exaustão da jornada ainda nos permitisse um longo e amigável diálogo, mas vejo que devemos
continuar amanhã. — Ergueu a mão quando ela tentou, graciosamente, protestar. — Nada de
protestos. Deve ir para a cama. Na verdade, também eu sinto necessidade de um descanso nesse
agradável lugar. E me agradaria muito sabê-la reclinada naqueles fofos travesseiros.
Heather mais ou menos deslizou para o seu quarto, o calor do vinho a relaxar-lhe cada nervo,
cada membro. Ouviu William rindo baixinho quando ela fechou a porta. Recostou-se nela e
também riu, sabendo que tudo estava mudando em sua vida. Foi dançando até o espelho,
sentindo-se um pouco estonteada, inclinou-se diante dele e falou:
— Diga-me, Lady Cabot, gosta de minhas roupas? Se este lhe agrada, deveria ver os outros
vestidos que minha tia me deu.
Rindo, rodopiou e escancarou as portas do guarda-roupa, para inspecionar o sortimento de
vestidos que continha, decidindo que William não se importaria se ela deleitasse os olhos
contemplando-os. Sempre gostara de roupas bonitas: tinha sido odioso ter de usar aqueles
vestidos velhos da tia. Escolheu alguns vestidos para admirar mais a gosto, levou-os para
experimentá-los diante do espelho, sonhando possuir vestuário tão fino.
Não ouviu a porta abrir-se por trás dela, mas, como foi escancarada, virou-se num sobressalto e
viu William no limiar, vestido num roupão. Sua confiança foi rapidamente abalada. Suspeitou do
motivo dele estar ali — o que foi uma grande surpresa, pois o associara à Tia Fanny e a seus
rígidos pontos de vista morais. Ficou a olhá-lo,
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espantada, sentindo o peso da armadilha que lhe fora preparada. Caíra nela como um cordeirinho
sendo levado para o matadouro. Os olhos dele queimavam no rosto vermelho, um sorriso
repulsivo lhe contorcia os lábios grossos. Voltou-se e trancou a porta, lentamente segurando a
chave antes de deixá-la cair no bolso — para tormento dela. Seu olhar a percorreu toda: parecia
gozar o pavor que se refletia no rosto da menina.
— O que quer? — ela arquejou. Ele a olhou de soslaio e respondeu:
— Vim cobrar o que me é devido por tirá-la daquela vida no campo. Você é uma coisinha tão
tentadora que não pude resistir. É tão confiante que foi fácil arrancá-la de minha pobre irmã.
Quando estiver cansado de você, permitirei que vá para casa de Lady Cabot, juntar-se ao seu
adorável grupo. Não se aborrecerá lá. E no devido tempo talvez eu até a deixe desposar algum
ricaço que se agrade de você. — Chegou mais perto. — Não precisa preocupar-se, menina. Seu
marido ficará um pouquinho desapontado quando a levar para a cama, porém não fará nenhum
escândalo...
Adiantou-se mais e Heather recuou medrosamente de encontro à mesinha de cabeceira.
— Já planejei possuí-la, minha querida — disse, convencido e complacentemente. — Assim, não
há razão para que lute comigo. Sou muito forte. Gosto de tomar as coisas pela força, se assim é
que tem de ser, mas prefiro a espontaneidade.
Ela sacudiu a cabeça e falou, meio sufocada pelo medo:
— Não, não! Você nunca me terá! Nunca!
William riu de modo aterrorizante e Heather preparou-se para fugir. Ele estava muito
avermelhado pela grande quantidade de vinho que consumira e pelo fogo que lhe percorria as
veias. Seu olhar libertino a despia, ela levou uma das mãos ao peito como para repeli-lo.
Arremessou-se para passar por ele, porém o homem era bastante rápido, a despeito de seu corpo
volumoso: apanhou-a pela cintura. Forçou-a de costas contra a mesinha, envolvendo-a num
aperto de quebrar ossos. Os lábios, úmidos e viscosos pelo vinho, desceram para seu pescoço, e
ela foi tomada por uma tremenda náusea. Lutou com ele, mas sua força não se comparava à dele.
Como os lábios fossem subindo, ela afastou o rosto do dele e tentou fugir, porém o peso dele
aumentou, prendendo-lhe as pernas de encontro à mesa. Ela estava presa num abraço de ferro,
que a deixava sem fôlego, e imaginando se suas costelas agüentariam intactas a pressão. Em
pânico, lembrou-se do candelabro na mesa por trás dela e tratou de pegá-lo, para defender-se. Já
quase o tinha ao seu alcance. mas estava por demais ansiosa e ele caiu ao chão. Então sua mão
esbarrou na faquinha e ela a agarrou, desesperada.
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William só se preocupava em espalhar seus beijos quentes e pegajosos no pescoço e no peito da
moça, não dando atenção ao que ela fazia... até sentir algo de agudo de encontro ao flanco.
Relanceando um olhar, viu a faca. Com uma praga assustada agarrou-lhe o braço. Ela estremeceu
de dor quando os dedos dele lhe apertaram cruelmente o pulso, porém continuou, desesperada.
A raiva dele aumentou, vendo aquele pedacinho de gente, aquela mocinha frágil ousando
ameaçar-lhe o corpo. Heather lutou com todas as forças que pôde reunir. A obesidade dele a
forçava para trás até sentir que suas costas se quebrariam. A mão dela ficou entorpecida: soube
que logo, logo lhe cederia a lâmina. Pressionando seu peso contra ela, William liberou sua outra
mão e, torcendo-a, arrancou-lhe a faquinha. Temendo o pior, Heather parou de lutar e caiu ao
chão aos pés -dele; privado do seu apoio, William Court cambaleou para a frente e caiu de
comprido no chão. Com o impacto soltou uma espécie de rugido. Heather já se erguera e estava
indecisa para fugir quando William vagarosamente se virou: o cabo da faquinha para frutas
projetava-se de uma larga mancha vermelha em seu roupão.
— Puxe. isso. — arquejou.
Ela se inclinou e pôs a mão, cautelosa, na faca, mas estremeceu e recuou, cobrindo a boca com as
mãos, num medo cego.
— Por favor, ajude-me... — ele pediu, roucamente.
Ela fincou os dentes na mão, em pânico, olhando selvagemente em torno do quarto. Ele
gorgolejava, cada vez mais indistintamente; ela estava confusa, amedrontada, uma estranha
sensação tomando conta de seu corpo. Se ele estivesse morrendo...
— Heather, ajude-me.
A voz dele ia enfraquecendo e o queixo lhe tremia como se pelo esforço de respirar ainda.
De alguma fonte profunda, a força e a calma lhe voltaram. Ela se inclinou e, respirando fundo,
pegou a faca com a maior determinação. Apoiou a outra mão no peito dele e puxou: a lâmina
resistiu um momento, depois foi saindo lentamente. O sangue brotou e, com um soluço, William
perdeu os sentidos. Heather apanhou uma toalha na mesa, abriu-lhe o roupão e apertou a toalha
de encontro ao ferimento. Colocou a mão no peito dele e não sentiu palpitação. Passou a
procurar por algum sinal de vida. Pondo a mão sob suas narinas não sentiu respiração, assim
como nenhum batimento cardíaco ao encostar o ouvido no peito dele. O coração de Heather lhe
martelava os ouvidos. Sentiu o pânico a crescer novamente, e agora não conseguiu achar razão
para combatê-lo.
— Meu Deus! que foi que eu fiz?! — murmurou. — Devo procurar ajuda!
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O pensamento lhe relampagueou pela mente. Mas quem lhe daria crédito, uma estranha nesta
cidade? Newgate estava cheia de mulheres que afirmavam que homens haviam tentado atacá-las...
E afinal o sujeito também fizera a sua parte.
Em sua mente surgiu o quadro de um juiz rigoroso com sua peruca branca e longa, a olhá-la
sarcasticamente do alto do seu assento. e depois o rosto por baixo da cabeleira branca era o da
Tia Fanny, severamente dando a sentença.
— ”e na aurora do dia seguinte deverá ser levada para a Praça de Newgate e ali”...
Sua mente não ia além, embora o eco da voz estentória agitasse as chamas do terror até que elas
queimassem sua própria alma. Seu corpo tremia: se não estivesse ajoelhada teria caído. Durante
muito tempo ali ficou, sem sequer pensar; por fim, ergueu os olhos e lhe acudiu um pensamento:
”Tenho de fugir daqui”.
Não havia outra saída. Tinha de fugir. Não deveria estar ali quando descobrissem o corpo de
William. Tinha de fugir.
Em pânico, forçou-se a procurar a chave nos bolsos dele. Tremia, mas tinha de fazê-lo. O
próprio medo lhe dava forças.
Embrulhou suas roupas num lenço grande que encontrou e apertando a trouxinha de encontro
ao peito, correu para a porta. Ali parou por um momento sem abri-la, pensando na cena às suas
costas. Novamente o medo a dominou. Escancarou a porta e começou a correr o mais depressa
que suas pernas conseguiam, através da sala, do vestíbulo, escadas abaixo, e pela porta
encortinada para a loja. Ao estender a mão para entreabrir as cortinas seu pânico aumentou.
Havia alguém ali atrás da cortina! Seu passo já apressado, apertou mais, devido ao terror. Alguém
a perseguia. Corria e corria, não ousando voltar-se para ver quem era, o coração batendo forte e
descompassado.
Continuava a corrida rua abaixo, com medo de olhar para trás. Não tinha a menor ideia de para
onde estava indo. Talvez, se se perdesse, pudesse também despistar quem a perseguia. Mas, por
que não podia ouvir quem corria atrás dela? Seria o bater do próprio coração o que ouvia, tão alto
que não podia ouvir nada mais?
Pelas ruas de Londres lá ia ela em disparada, passando por lojas de negócios, grandes casas que
avultavam enormes e ameaçadoras na escuridão, prédios de menor importância. Não dava a
mínima atenção às pessoas que paravam para olhá-la.
Logo se sentiu exausta; a despeito do medo, deteve-se para apoiar-se a um muro de pedra tosca.
Os pulmões lhe ardiam no esforço para cada golfada de ar que respirava. Gradualmente se deu
conta do cheiro de sal a penetrar-lhe as narinas e do odor fétido da praia. Ergueu a cabeça e abriu
bem os olhos. Denso fog cobria toda a
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rua empedrada, e a escuridão a oprimia de tal forma que mal podia respirar. Uma tocha ardia
numa esquina distante: ela procurou sua luz e não podia convencer a si mesma a deixar o
pequeno círculo e penetrar novamente na noite densa e escura que a rodeava. Mesmo que tivesse
a coragem, não sabia para onde fugir. Faltava-lhe o sentido de direção. Podia ouvir o marulho das
ondinhas contra o cais e o estalar dos mastros, bem como alguma ocasional voz abafada, porém
os sons lhe chegavam não sabia de onde, não via o menor vislumbre de luz em lugar algum.
— Ora viva! Lá está ela! É aquela mesmo! É ela! Vamos lá, George, vamos agarra ela!
Heather se voltou e viu o que lhe pareceu serem dois marinheiros vindo em sua direção. Sabiam a
seu respeito e vinham buscá-la. Eram os que a tinham seguido. Por alguma razão ela pensava ser
o Sr. Hint. Suas pernas não se podiam mover. Não podia fugir. Tinha de esperar que viessem
pegá-la.
— Olá, senhorita! — disse o mais velho, e sorriu para o companheiro. — Dessa aí, claro que o
capitão vai gostá, hein, Dickie?
O outro lambia os lábios e contemplava o decote de Heather.
— Ai! Essa é papa-fina!
Heather tremia sob o exame dos homens, mas a partir desse momento soube que não poderia
escapar. Só lhe restava ser corajosa.
— Para onde me estão levando? — perguntou. Dickie riu e, cutucando o outro nas costelas,
comentou:
— Parece boazinha, não? Ele vai gostá dela, sim! Quem me dera podê tê uma bonequinha assim.
-— Aqui pertinho, senhorita — respondeu o mais velho. — A bordo do navio mercante
Fleetwood. Vamos.
Acompanhou o homem; o mais moço ia atrás — o que não lhe daria oportunidade de escapar.
Ela cogitava por que a levariam para bordo de um navio. Lá deveria haver um magistrado. Não
importava. Agora sua vida nada era. Humildemente subiu a prancha de embarque depois do
marujo e aceitou sua mão para ajudá-la a descer. Seguiram pelo convés até uma porta que lhe
abriu: ela foi conduzida por uma escada em meia-laranja e, após baterem, entraram numa porta
ao fim da escada.
Ao entrarem na cabina do comandante, um homem se ergueu da escrivaninha diante da qual
estivera sentado e, não fosse por sua confusão mental, Heather teria notado sua alta estatura, que
era musculoso, com penetrantes olhos verdes. Calções castanhos se ajustavam a seus quadris
estreitos; uma camisa pregueada aberta ao peito revelava um físico largo e bastante musculoso
sob um manto de pelos encaracolados, pretos. Tinha uma aparência de pirata, ou do próprio
Satanás — de cabelo curto e crespo, bem como longas suíças que lhe acentuavam as feições
magras. Nariz fino e ligeiramente adunco.
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Cabelos negros, pele bem morena. Dentes muito alvos contrastavam com o sorriso quando ele se
adiantou, envolvendo-a num olhar atrevido da cabeça aos pés.
Ora, ora! Fez um belíssimo trabalho esta noite com esta pequena, George! Deve ter procurado
muito...
— Qual nada, comandante! Achamos ela batendo as calçadas do cais. Veio de muito boa
vontade, comandante.
O homem acenou e, deliberadamente, deu uma volta completa em torno de Heather, enquanto
ela permanecia enraizada ao chão, não a tocando senão com aqueles olhos cor de esmeralda — o
que era o suficiente! — rude e grosseiramente avaliando cada ângulo dos seus encantos visíveis.
Heather sentiu subir por todo seu corpo uma onda de frio e apertou contra o peito a sua
trouxinha de roupas. Via-se nua naquele vestido fino e gostaria de um saco preto bem grosso que
a cobrisse toda. Ele parou perto dela por um momento, sorrindo, porém os olhos dela não
fitavam os dele: mantinha-os abaixados e ficou humildemente à espera de alguma indicação sobre
o seu destino. Por trás dela os dois homens careteavam, extremamente satisfeitos consigo
mesmos.
O homem alto reuniu-se a um lado da sala com eles e o tal George lhe falou em voz baixa. Os
olhos de Heather percorreram a cabina, mas nada viram. Exteriormente ela parecia calma, porém
a tensão emocional desencadeada em seu íntimo lhe roubava as forças. Estava exausta, confusa.
Achava difícil conciliar um magistrado dentro de um navio, mas, pouco conhecedora dos
processos da justiça, raciocinou que provavelmente seria enviada para alguma colónia penal —
pois em sua própria mente julgava-se culpada de assassinato. E pensava:
”Oh! Deus! Erguida de um chiqueiro pela tentação de uma vida mais fácil. e por meu pecado ter
de mergulhar na prisão! Matei um homem e fui apanhada. agora devo aceitar seja o que for que o
destino me reserve!”
Sua mente se deteve nesses fatos finais. Era culpada. Fora apanhada. Justiça fora feita com ela e
ela nada tinha a dizer. Não ouviu a porta fechar-se às suas costas quando os dois marujos saíram,
porém palavras do homem perto dela afastaram-na de seus pensamentos. Ele riu gentilmente e
fez uma reverência:
— Seja bem-vinda, e qual o seu nome?
— Heather — ela murmurou, suavemente. — Heather Simmons, senhor.
— Ah, uma pequena e tentadora flor dos pântanos! E um nome adorável e lhe cai muito bem,
senhora. Brandon Birmingham é o meu. A maioria dos meus amigos me chamam de Bran. Já
jantou?
Ela acenou que sim.
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— Então, talvez um pouco de vinho, um fino Madeira. – Ele comentou, tirando uma de entre
várias garrafas de cristal de uma mesinha.
Ela balançou a cabeça lentamente, de olhos no chão. Ele sorriu maciamente e se adiantou até
ficar bem perto dela. Pegou o pacote que ela segurava e o atirou numa cadeira próxima enquanto
a fitava, admirado por sua jovem beleza e pelo vestido que parecia apenas um véu brilhante sobre
seu corpo. Sua pele de marfim brilhava suavemente à luz dos candelabros e, aos reflexos
dourados, ele viu diante de si uma moça pequenina, graciosamente esbelta, seios túrgidos,
generosa e tentadoramente sobressaindo no decote do vestido. Subiam e desciam, ritmadamente,
com sua respiração.
Ele chegou mais perto e, num movimento rápido, deslizou o braço em torno da cintura estreita,
quase a erguendo do chão. Em seguida, cobriu-lhe a boca com a sua, envolvendo Heather num
cheiro forte, não diferente do de conhaque pelo qual seu pai era apaixonado. Ela ficou demasiado
surpresa para resistir e permaneceu suspensa em seus braços. Via-se como se estivesse fora do
seu corpo e sentiu-se divertida quando ele lhe afastou os lábios com a língua, introduzindo-a em
sua boca. De muito longe, na consciência, surgiu um vago sentimento de prazer e, fossem
diferentes as circunstâncias, ela poderia ter apreciado aquele contato masculino. Ele deu um
passo atrás, ainda sorrindo, mas havia um novo fogo em seus olhos. Como tirasse as mãos de
cima dela, a moça ficou sem respiração, numa surpresa aturdida, pois seu vestido caiu num monte
em torno de seus quadris. Fitou-o por um segundo antes de apressadamente curvar-se para puxar
o vestido — porém aquelas mãos lhe agarraram os ombros e a apertaram. e lá estava ela
novamente engolfada em seus braços. Dessa vez lutou, pois uma súbita claridade a elucidou
sobre o que ele tinha em mente. Deu-se conta de sua desvantagem enquanto seu corpo exausto
francamente lutava contra ele. Se as garras de William Court tinham sido de ferro, todo o ser
deste homem era do aço mais temperado. Não conseguiu livrar-se, em vão suas mãos lhe
empurravam o peito. Os esforços dela arrancaram-lhe a camisa e então seu peito cabeludo ficou a
nu de encontro a ela — só a finíssima combinação a separá-los. Ela ficava sem fôlego a cada vez
que suas bocas se tocavam e beijos apaixonados lhe cobriam, também, o rosto e o colo. Sentiu as
mãos dele a subir-lhe pelas costas: com um puxão arrancou-lhe a combinação. Seus seios nus
estavam esmagados de encontro ao peito dele e, num terror pânico, ela o empurrou
desesperadamente: por um momento ficou livre. Ele deu uma gargalhada sonora e usou o
intervalo para libertar-se das botas, da camisa e das calças.
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- Um jogo bem planejado, senhora, mas não há dúvidas quanto ao vencedor.
Seus olhos reluziam de paixão enquanto apreciava os encantos dela agora a descoberto — muito
mais adoráveis do que ele imaginara ou pudera esperar; e ela estava horrorizada: era a primeira
vez que via um homem nu. Olhava o chão fixamente até que ele se adiantou. Com um grito
aterrorizado ela se virou para fugir, mas teve o braço seguro por uma garra que, embora gentil,
era inflexível como uma cinta de aço. Ela mergulhou sob o braço dele e cravou-lhe os dentes no
pulso. Ele grunhiu de dor e ela pulou fora, mas, na precipitação, tropeçou e caiu no beliche.
Quase imediatamente ele estava em cima dela, prendendo seu corpo retezado, e parecia que todo
movimento que ela fazia apenas estimulava o seu intento. O cabelo dela desprendeu-se e a
sufocava.
— Não! — arquejou — Deixe-me! Deixe-me! Ele riu e murmurou em seu pescoço:
— Oh, não! Agora não, minha garota sangüinária! Agora não! Então ele se ergueu um pouco e
ela ficou um pouco aliviada daquele grande peso, mas só temporariamente. Ela sentiu seu
membro duro procurando, sondando entre suas coxas, depois encontrando e entrando a
princípio só um pouquinho. Em seu pânico por fugir ela teve um impulso para cima. Um meio-
grito lhe escapou e uma dor dilacerante pareceu espalhar-se por seus quadris. Brandou recuou,
atónito, e fitou-a. Ela jazia flácida nos travesseiros, batendo a cabeça para lá e para cá. Ele lhe
tocou o rosto, ternamente, murmurando algo baixinho, de modo inaudível, mas ela conservava os
olhos fechados e não quis olhar para ele. Encostou-se nela, gentilmente, beijando-lhe os cabelos e
as pálpebras e lhe acariciando o corpo. A moça permanecia inerte, porém a paixão dele,
esfaimada, cresceu e logo ele se arremeteu fundo dentro dela, já não podendo conter-se. Agora, a
cada movimento parecia que ela ia romper-se em pedaços. e as lágrimas começaram a correr.
Ao fim da tempestade, passou-se um longo momento de quietude, enquanto ele descansava ao
lado dela, ainda mais gentilmente. Mas quando ele por fim se afastou, ela, virando-se para a
parede, ficou soluçando baixinho, com a ponta do cobertor cobrindo a cabeça, e seu corpo, agora
usado, nu diante dos olhos dele.
Brandon Birmingham ergueu-se espantado: por um momento ficou a contemplar as manchas de
sangue no lençol de seu beliche. Seus olhos percorreram lentamente a silhueta de Heather, depois
dela se afastaram. Não podia deixar de admirar os quadris bem torneados e as coxas graciosas —
que, um momento antes, lhe haviam pertencido. Quase voltou a acariciar a curva gentil das
costas, mas sua mente estava confusa pelo desenrolar dos acontecimentos — sua calma, a tácita
aceitação da situação ao entrar na cabina, sua leve resistência
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, e depois a esporádica e inexperiente assistência que lhe dera na cama... e agora esse choro sem
fim e o sangue no lençol. Seria alguma pequena obrigada pela miséria a adotar essa profissão?
Suas roupas e maneiras não indicavam isso, embora suas mãos, apesar de finas e brancas, não
serem macias como as de uma dama ociosa.
Balançou a cabeça e meteu-se no roupão, indo servir-se de um copo de conhaque. Tomou um
grande gole e, pensativamente, ficou a olhar pelas vigias através das quais já vira tantas coisas no
mundo. Era um estrangeiro nesta terra que seus pais já haviam considerado um lar, outrora.
Deixara de ser deles pouco após seu casamento, quando o pai — um aristocrata, mas aventureiro
de coração — olhara para a América com interesse. Agora, havia já 10 anos estavam ambos
mortos: a mãe de uma febre palustre, o pai alguns meses depois, pescoço quebrado ao ser atirado
fora por um dos cavalos selvagens que tanto amava. Deixaram dois filhos e uma fortuna
considerável — uma plantação com a respectiva casa da fazenda para o mais velho (ele mesmo), e
para o mais moço, Jeff, uma parte em dinheiro e um próspero estabelecimento comercial em
Charleston, uma cidade que todos amaram e a que chamaram ”lar” como ele fazia agora. Nascido
de tais pais — um pai que fora muitas vezes obstinado e mais do que voluntarioso, e a mãe cuja
calma e gentileza fora a espinha dorsal da família — ele, Brandou Birmingham, conhecera uma
vida aventurosa e severa. Tivera algum estudo, porém, em rapazola, e por insistência do pai,
empregara-se como taifeiro de um velho comandante. Aprendera os caminhos do mar, conhecera
navios e o mundo — o que o capacitara a uma posição de comando quando achara isso útil.
Porém não velejara todo esse tempo. Antes o ensinaram a trabalhar na plantação, do solo ao
mercado, e nunca interrompeu esse agradável trabalho através de seus anos de desenvolvimento.
Era seu principal interesse agora, aos 35 anos, estabelecer-se nessa terra para sempre e gozar
todas as alegrias que ela pudesse dar. Antes de sair de Charleston tomara a decisão de que esta
seria sua última viagem. Com a França instável como estava, seria arriscado continuar. Assim,
chamaria a si as responsabilidades de uma plantação e começaria a formar uma família. Seria feliz
— esperava.
Sorriu para si mesmo, pensativamente. Estranho como a loucura por uma terra podia obrigar um
homem a fazer coisas que não se ajustavam bem, dentro de sua mente. Ia casar-se com Louisa
Wells — embora não a amasse e soubesse que sua moral não era a de uma lady autêntica —, pela
simples razão de querer de volta a propriedade que ela possuía e que outrora pertencera à família
Birmingham. Do Rei George seu pai recebera as terras que agora compunham as propriedades
Wells e Birmingham, e para dar início à plantação vendera uma pequena parte àquela família. O
pai de Brandom tivera
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fortes vínculos com a Inglaterra antes da guerra, mas, por causa de seus serviços como oficial nas
lutas contra a Coroa, pudera conservar suas propriedades. Agora, desde que Louisa ficara só pela
morte dos pais alguns anos antes, sua terra fora negligenciada e ficara em mau estado. Louisa
estava muito endividada. Gastara a fortuna que o pai lhe deixara e vendera tudo, exceto uns
poucos escravos, para manter seu alto padrão de vida que, agora, não passava de uma fachada.
Há muito tempo os negociantes em Charleston lhe haviam cortado o crédito. De modo que
estava muito satisfeita consigo mesma por haver apanhado um dos mais ricos e cobiçados
solteiros da cidade. Porém o havia apanhado sabendo que as terras eram a isca. Muitas vezes ele
tentara aliviá-la delas por uma soma polpuda — de que ela precisava demais — mas ela recusara e
representara com perfeição seu papel de mulher. Fingira-se de virgem quando o atraíra para sua
cama, porém ele não era nenhum idiota, e corria na cidade muito falatório a respeito dessa
mulher com quem ele e o irmão haviam crescido juntos. Entretanto, o desempenho dela na cama
foi divertido e não lhe desagradou.
Franziu a testa. Parecia-lhe esquisito provir de uma família onde o ciúme e o sentimento de posse
por uma companheira eram uma realidade e ele, que tanto se parecia com o pai que possuíra
essas características, não era ciumento sequer dos homens que haviam freqüentado o leito de sua
noiva. Seria ele demasiado frio e indiferente para amar ou ser possessivo a respeito da mulher
com quem se ia casar? Não era sequer confortador saber que se preocupava mais com ela do que
com outra qualquer mulher em sua vida. Mas não era amor. Se houvesse a mais leve pontada de
ciúme quando ela olhava para outro homem, ele se sentiria diferente agora — pelo menos com
um pouco de esperança de aprender a amá-la. Mas como a conhecera toda a vida — uns 32 anos
— estava cético quanto a quaisquer mudanças radicais após o casamento.
Jeff o declarara louco ante a notícia do noivado. Talvez fosse, mas tinha sua própria maneira de
pensar e, se não herdara o temperamento ciumento do pai, herdara sua obstinação. A
determinação e disposição voluntariosa do pai — sempre as tivera. Mesmo quando lhe morreram
os pais, deixando-o com uma próspera plantação e os meios para cuidar dela, não se sentara e
colhera a safra. Ao invés disso, pedira a Jeff para encarregar-se da plantação e comprara esse
navio mercante, começando a velejar e trazendo ainda mais riquezas para si e para o irmão.
Olhou para o beliche, depois chegou mais perto. Os soluços haviam finalmente cessado e o sono
ocupara seu lugar, mas não era um sono tranqüilo. Parecia-lhe mais de exaustão. Aproximou-se e
gentilmente cobriu o lindo corpo de Heather, retirando o cobertor de sua cabeça.
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A última coisa que esperara que passasse pela porta de sua cabina aquela noite era uma virgem.
Sabedor de que sempre acarretavam um montão de encrencas, o evitá-las se tornara um hábito
para ele. Gastava seu tempo livre com aquelas criaturas sabidas, de vida livre e alegre, dentro e
fora de bordéis, dispendiosas e encantadoras. Esta noite, sua primeira noite num porto após uma
longa viagem através do oceano, liberara seus homens para que buscassem seus prazeres,
mantendo apenas o criado George e Dickie a bordo. Mas o desejo fora forte dentro dele e
mandou que George lhe encontrasse alguma prostituta para a noite, enfatizando a limpeza e a
classe. Não, não esperava uma virgem, e ainda por cima tão adorável — nunca! Era estranho vê-
la ali. Jovens inocentes assim habitualmente tinham o casamento em mente, tratando
reservadamente de atrair um homem para a ratoeira, com os seus encantos. Como teria ele
conseguido permanecer solteiro todos esses anos de virilidade se não lhes conhecesse os métodos
e não os evitasse? Contudo, agora que o seu celibato estava a ponto de terminar às portas de um
casamento com uma mulher bem conhecida por outros homens, ele tivera essa coisinha jovem e
pura para seu prazer, e as razões dela ainda eram um mistério...
Lentamente balançou a cabeça. Depois, deixando o roupão numa cadeira, apagou as velas e
deitou-se ao lado dela. A última coisa em que pensou antes de adormecer foi na suave fragrância
do perfume dela e no seu calor a seu lado...
As primeiras estrias de luz da aurora haviam riscado o céu quando Heather abriu os olhos e logo
depois estava completamente acordada, cônscia do que a rodeava. Mexeu-se e procurou mover a
cabeça, mas descobriu que seus cabelos estavam presos embaixo do braço de Brandon, que
estava dobrado sob a cabeça escura. O outro braço dele lhe atravessava o peito, e o joelho dele
ficara, casualmente, entre os dela. Cautelosamente tentou livrar-se, mas só conseguiu acordá-lo.
Antes que ele despertasse completamente, ela se deitou de novo e temerosamente fechou os
olhos, respirando fundo como se ainda estivesse dormindo.
Brandon abriu os olhos e calmamente observou o rosto ao lado do seu, encantado de ver tanta
beleza. As pestanas longas e escuras lhe sombreavam a face, e as delicadas pálpebras lhe
ocultavam olhos claros e profundos, cor de safira. Lembrava-se bem deles. Eram extremamente
cativantes, sob as curvas suaves das sobrancelhas. Os lábios eram rosados e tentadoramente
macios, nariz afilado, de traços delicados. Louisa ficaria roxa de inveja se as duas algum dia se
encontrassem — o que era bastante improvável. Sorriu ao pensar nisso. Sua noiva orgulhava-se
de sua aparência e não gostaria de ficar
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em segundo lugar para essa ninfa. Havia mesmo quem achasse Louisa a mulher mais bonita de
Charleston, embora o lugar estivesse cheio de beldades. Ele não pensava muito nisso, mas
supunha que fosse verdade. Os dourados cabelos de Louisa e seus bonitos olhos castanhos eram
agradáveis de ver, bem como sua silhueta alta e esguia. Ainda assim, essa pequena Heather, com
sua delicada beleza, não deixaria dúvidas na cidade sobre quem era a mais linda.
Aproximou-se mais para beijar-lhe a orelha e mordiscar-lhe o lóbulo. A esse toque, e antes que
pudesse pensar, Heather abriu os olhos.
— Bom dia, amor! — murmurou o homem, beijando-lhe os lábios.
Ela ficou imóvel, temendo que qualquer movimento lhe despertasse a paixão. Mas ele não
precisava de incentivos. O fogo que lhe ardia no íntimo ia aumentando a cada momento. Seus
beijos passaram dos lábios para o pescoço e os ombros, onde a mordiscou — o que lhe enviou
estremecimentos através da espinha. Ela o fitou, horrorizada, enquanto ele pressionava com a
boca o rosado bico do seio e de leve lhe passava a língua.
— Não! — soluçou Heather. — Não faça isso! Ele ergueu o olhar intenso, sorrindo:
— Tem de acostumar-se com minhas carícias, ma petite... Ela, tentando fugir daqueles olhos
zombeteiros, lutou para virar-se, enquanto implorava:
— Não! Por favor, não! Não outra vez. Não me machuque mais. Deixe-me em paz!
-— Desta vez não a machucarei, doçura! — E lhe beijava a orelha.
O peso do seu corpo fê-la cair de costas no beliche, e então Heather começou realmente a lutar.
Mantinha as pernas bem apertadas enquanto procurava arranhá-lo onde pudesse — mas sempre
havia a mão ou o cotovelo dele a refrear-lhe os esforços. Ele ria como se apreciasse a luta.
— Querida, esta manhã seu espírito de luta está bem maior. Depois, os braços dela foram
lentamente erguidos a cada lado da cabeça e ali seguros, facilmente, por uma só mão do homem.
Sua outra mão, em concha, segurava-lhe um seio e brincava com ele à vontade enquanto ela se
retorcia e lutava contra sua força dominadora. Lentamente o joelho dele forçava suas coxas e as
separava... e novamente ela sentiu sua masculinidade a penetrá-la profundamente. Desta vez não
houve lágrimas, porém o ódio e o medo começaram a avolumar-se em sua mente. Quando ele
saiu de cima, ela escapuliu e se encolheu no canto do beliche, olhos escancarados e cheios de
terror como os de uma corça ferida. Ele a observou com espantado franzir de sobrancelhas e
sentou-se bem perto dela. Tentou
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acariciar-lhe o rosto, sentindo necessidade de confortá-la mas ela se encolheu, evitando sua mão
como se fosse um ferro em brasa e ele se deu conta, surpreso, de que ele é que a aterrorizava. A
ruga na testa se aprofundou e seus dedos lhe acariciaram os cabelos, penteando-lhe docemente os
fios de seda que agora pareciam apenas uma selvagem massa confusa e embaraçada.
— Você despertou minha curiosidade, Heather — murmurou gentilmente. — Poderia ter obtido
o resgate de um rei pelo que perdeu para mim há poucas horas, mas vagava pelas ruas como uma
prostituta comum e, pelo que ouvi dizer, veio de boa vontade, sem sequer tentar negociar o preço
do seu trabalho, nem me deu, a noite passada, a menor pista de que ainda era virgem, nem tentou
imporme um preço. O vestido que usava é caro, vale mais do que o que muitas mulheres da rua
ganham em um ano, embora você, garanto, seja de qualidade inteiramente diferente... — tão
diferente que nem posso imaginar por que expôs à venda sua virgindade do modo como o fez,
arriscando-se a ser violentada e a perdê-la por nada.
Heather o fitou, sem fala, incapaz de compreender plenamente o impacto de suas palavras. Ele
continuou:
— Você parece de boa família e não do tipo que vagueia pelas ruas ou se mete em tal profissão.
Sua beleza é fora do comum, poucas mulheres a possuem, usa roupas caras, mas... — murmurou,
tomando uma de suas mãos nas dele e voltando-lhe a palma para cima — suas mãos mostram
marcas de trabalho pesado. — De leve, correulhe um dedo sobre a palma da mão, e a beijou.
Ainda a olhá-la, falou de novo, maciamente: — Ao chegar, a noite passada, você estava calma e
reservada, mas há pouco lutou com unhas e dentes e não me permitiu ser gentil...
Enquanto ele falava a mente da moça voava! Então ele não era a lei? Meu Deus, que preço teve
de pagar por seu medo e pânico! Teria sido melhor se permanecesse onde estava e enfrentasse a
polícia do que estar ali, deflorada e envergonhada até os ossos... ou, melhor ainda, ter ficado no
interior do que haver procurado a cidade.
— Mas não precisa ter medo, Heather. Eu a protegerei e você viverá com conforto. Cheguei
ontem das Carolinas e ficarei muito tempo no porto. Ficará comigo enquanto eu estiver aqui.
Providenciarei para que se estabeleça em sua própria casa antes que eu...
Foi interrompido por uma gargalhada aguda, histérica, quando Heather cedeu ao choque da
situação. Foi passando gradualmente aos soluços enquanto lágrimas lhe escorriam pelas faces. Sua
cabeça se curvou e os cabelos, caídos nos ombros, lhe cobriram o corpo. As lágrimas caíam nas
mãos dobradas no colo enquanto soluços sacudiam convulsivamente sua frágil silhueta.
Finalmente, ergueu a cabeça e o fitou, de olhos avermelhados.
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Eu não estava oferecendo minha mercadoria pelas ruas.., estava simplesmente perdida, não
conseguia achar o caminho.
Ele a fitou longamente, num silêncio de espanto, antes de franzir a testa na maior confusão:
— Mas você veio com meus homens.
Ela sacudiu a cabeça, em agonia. Ele não sabia. Não sabia nada a seu respeito. Era apenas um
marujo de um país estrangeiro. Ela reprimiu as lágrimas, fazendo votos para que ele nunca
descobrisse o seu grande pecado:
— Pensei que me procuravam. Fiquei separada de meu primo e perdi-me. Julguei que seus
homens vinham da parte de meu primo.
Sua cabeça caiu de encontro à parede e lágrimas traçarem um sulco por seu rosto, chegando-lhe
ao peito nu que estremecia com o pranto silencioso. Ele observava os seios redondos e a ruga se
aprofundava em sua testa, enquanto cogitava que repercussões teria sua façanha. Talvez ela fosse
parente de alguma alta personalidade. Quase podia sentir o aço frio do machado em seu pescoço.
Levantou-se e ficou de pé, de costas para ela. Perguntou, roucamente:
— Quem são seus pais? Alguém tão bela e educada como você deve ter muitos amigos na Corte
ou provir de família muito influente.
A cabeça da moça rolava, para lá e para cá, de encontro à parede:
— Meus pais morreram e nunca estive na Corte.
Ele foi até onde estava o vestido dela e o segurou, voltando-se para ela:
— Você deve ser rica. Este vestido é caríssimo. Ela o olhou e riu:
— Não tenho um níquel, senhor — disse — meu primo deume o vestido. Trabalho apenas pela
minha subsistência.
Ele contemplou as contas brilhantes no vestido e perguntou:
— Esse primo não estará preocupado procurando encontrá-la? Heather ficou silenciosa,
enquanto olhava sua nudez, e em seguida murmurou:
— Duvido.. Ele não é de se preocupar muito com as coisas.
Brandon sorriu, aliviado, e colocou o vestido nas costas da cadeira. Caminhou para o lavatório,
onde começou a lavar-se. Voltou alguns momentos depois para ver a moça levantar-se do
beliche, e seus olhos a percorreram lentamente, apreciando cada detalhe das curvas sedutoras. Ela
sentiu o olhar e apertou os braços para ocultar sua feminilidade. Ele, rindo suavemente, se voltou
para o espelho, preparando-se para barbear-se enquanto ela apressadamente tirou sua velha
combinação da trouxinha.
— Então não há razão, Heather, para que não fique comigo e seja minha amante. Encontrei uma
casa na cidade onde poderá viver confortavelmente e onde a procurarei. Eu lhe darei uma quantia
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considerável de modo que não terá de procurar outros homens nem permitirei que faça isso.
Futuramente, haverá vezes em que voltarei aqui e precisarei de companhia feminina. Gostaria de
dar este assunto como resolvido.
Por um momento Heather foi quase dominada pelo ódio. A emoção foi além de tudo que já
sentira por alguém algum dia. Sua atitude para com ela e toda a história a enfureciam tanto que
sua vontade era gritar de raiva e voar nele para fazer-lhe em tiras o belo rosto. Porém pensou
melhor, agora que ele estava de costas para ela e para a porta, e viu sua oportunidade de escapar.
Usando apenas a combinação, mordeu o lábio para impedi-lo de tremer, e pegou o vestido que
estava na cadeira. Apertou a trouxa de roupas de encontro ao peito. Foi andando pé ante pé em
direção à porta, o coração a sair-lhe pela boca...
— Heather! — falou o rapaz agudamente, agarrando-a e mandando às favas suas esperanças de
fugir.
Ela se virou medrosamente e encontrou aqueles penetrantes olhos verdes a fitá-la enquanto,
distraidamente, ele afiava a navalha. e conheceu o terror — horrível terror, de causar
estremecimentos até a alma.
— Pensa que vou deixá-la fugir de mim? Você é muito barata para ser substituída, e não tenho
intenção de deixá-la escorregar por entre os meus dedos.
A calma mortal em sua voz profunda era mais atemorizante que os violentos e agudos gritos da
Tia Fanny. Ela tremia diante dele e a cor lhe fugia do rosto totalmente. Ele pegou o afiador e as
batidas de seu coração quase abafaram o ruído da tira de couro enquanto ele amolava a navalha.
Seus olhos verdes se arregalaram e ela se encolheu de medo. Um rápido e satânico sorriso
curvou-lhe os lábios: Estalou os dedos e apontou para o beliche:
— Volte para ali — ordenou.
Acostumada à obediência, ela assim fez, aterrorizada ante o que ele poderia fazer se não
obedecesse. Ainda apertando contra o peito o embrulho e o vestido, sentou-se no beliche e o
fitou como se esperasse ser açoitada. Ele deixou a tira de couro na mesa e, enxugando o rosto
numa toalha, veio até o beliche e ficou por um momento a olhá-la. Depois, atirou a toalha numa
cadeira e tomou-lhe os objetos. Apontou para a sua combinação e novamente ordenou:
— Tire isso.
Heather engoliu em seco. Seus olhos baixaram para o corpo dele e se arregalaram ainda mais:
estava perdendo depressa sua inocência-
— Por favor... — arquejou.
— Não sou um homem paciente, Heather — e a voz dele era ameaçadora.
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Os dedos da moça tremiam enquanto desatava as fitas e desabotoava os pequeninos botões entre
os seios. Segurou a barra e a tirou pela cabeça. Seus olhos se ergueram envergonhadamente para
os dele ao sentir-lhe o olhar ardente a percorrê-la.
— Agora deite-se — continuou ele.
Ela se estirou no beliche e todo seu corpo tremia de medo dele e do que estava por vir. Tentou
proteger-se com as mãos, sentindo a terrível humilhação de estar nua e ser covarde.
— Não faça isso — ele disse e deitou-se a seu lado, puxando suas trémulas pernas para as dele.
— Por favor! — murmurou a pequena. — Ainda não está satisfeito por me haver tomado a única
coisa que eu é que deveria dar.. deve continuar a torturar-me, outra e outra vez?
— Você poderia muito bem aceitar sua sorte como amante, doçura, e tornar-se conhecedora da
arte mais fina da profissão. A primeira coisa que lhe vou mostrar é que isso não tem,
necessariamente, de doer. Você lutou contra mim por duas vezes, o que lhe causou todo o
sofrimento. Desta vez vai relaxar e deixar-me agir como quero, sem luta, e embora possa não
apreciar ainda a coisa verá que é verdade o que digo.
— Não! Não! — gritou Heather, tentando lutar, porém ele apertou a mão pesadamente em seu
peito:
— Fique quieta!
Novamente ele ordenava, ela outra vez obedecia. Odiava-o, porém o medo superava o ódio, de
longe! Tremia violentamente. Perguntou angustiada:
— É assim que trata sua mulher?
— Não sou casado, doçurinha! — ele sorriu, curvando-se sobre seus lábios.
Ela não teve mais o que dizer quando o beijo terminou, mas ficou ali tensa, à espera. Ele não fez
qualquer movimento para montála. Ao invés, brincou gentilmente com ela, acariciando,
excitando-a docemente, beijando-a por todo o corpo.
— Relaxe. — murmurou de encontro a seu pescoço. — Apenas fique aí quietinha e não lute
comigo. Mais tarde aprenderá o que agrada a um homem, mas por enquanto apenas fique aí
quietinha.
Sua mente retorcia-se sobre si mesma e não lhe acudiam palavras, em sua angústia. Enquanto aí
estava, submetendo-se a seu manuseio, sua vida lhe passava diante dos olhos como se estivesse a
findar-se, e cogitava que grande pecado cometera para que o seu passado se virasse tão
cruelmente contra ela. Mesmo o infindável tormento da Tia Fanny seria melhor do que ter de
estar ali sob as mãos desse homem enquanto se divertia com ela. Presa! Apanhada numa
armadilha! Como um pássaro numa arapuca e agora, gordo e assado, devia esperar, no prato, que
ele afiasse a faca para trinchá-la. E depois da festa?.
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A mesma mesa?... O mesmo jantar?.. Outra e outra vez? Certamente nenhuma estúpida galinha
sofrera seu destino mais de uma vez...
Suas coxas foram separadas e não pôde evitar um soluço enquanto ele se encaminhava para onde
queria.
— Acalme-se, doçurinha! — ele arquejou.
Ela cerrou os olhos com força e silenciou seus medos. Nada havia a fazer agora. Quando acabou,
ele sussurrou em seus cabelos:
— Nada mais de barulhos, minha senhora?
Ela manteve os olhos fechados e virou a cabeça para o lado. Repugnava-a até o pensamento dele,
que se encostou nela, querendo uma resposta.
— Machuquei-a desta vez? — perguntou.
— Não — respondeu, sufocada.
Ele riu maciamente e, liberando-a de seu abraço, sentou-se no beliche ao lado dela, puxando o
lençol para cobri-la.
— Você não parece frígida, ma petite — falou, passando a mão na curva dos quadris e do peito
— só um tanto relutante, por enquanto. Logo aprenderá a gostar disto. Por agora apenas aprenda
a aceitá-lo.
— Nunca! — Estava quase em prantos. — Odeio você! Tenho verdadeira repugnância por você!
Desprezo-o! Nem num milhão de anos!
Ele riu, enquanto se levantava e dizia:
— Você mudará de ideia. Algum dia há de implorar por isso.
Ela se voltou, num acesso de ira, ficando de costas para ele, e atirou o lençol por cima do ombro.
— É só esperar, Heather, e veremos qual de nós está com a razão. — Ele tornou a rir e,
inclinando-se, acariciou-lhe o traseiro.
Ela tremia de raiva: ele tinha tanta confiança em si mesmo, nela, no futuro. Já tinha tudo
planejado. E o que podia ela fazer? Só implorar piedade — e isso iria cair em ouvidos surdos.
Mas, aparecesse a oportunidade e ela fugiria.
Sorriu intimamente ao pensar nisso e seu ânimo melhorou um pouco. A oportunidadde surgiria
mais cedo ou mais tarde e ela não hesitaria. O mero pensamento de fugir aliviou-lhe os nervos
esgotados e ela descansou nos travesseiros, ouvindo Brandon a mover-se pela cabina atrás dela.
Suas pálpebras pesaram e o sono foi empurrando mesmo os pensamentos mais indesejáveis.
Ao acordar, Heather abriu os olhos sem mover-se. O quarto ainda estava calmo e silencioso:
julgou-se a sós, finalmente, porém logo avistou Brandon à sua secretária, de caneta na mão,
trabalhando
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em seus livros de escrituração. Estava vestido e parecia havê-la esquecido absorto como estava
em seu trabalho. Ela poderia ser uma peça do mobiliário pela atenção que ele lhe dava.
Quietamente, observou-o. Não havia como negar: era belo, fisicamente magnífico. Outrora ela
bem podia haver sonhado com um homem assim. Porém nunca, em seus sonhos inocentes e
românticos, poderia imaginar que seu amor voaria para ela nas asas da violência, ou que seria
mantida prisioneira contra a sua vontade para satisfazer desejos menos dignos.
— Sente-se melhor? — perguntou o homem, levantando o olhar e encontrando os olhos dela
fixos nele. Sorriu e ergueu-se de sua escrivaninha. — Faço votos de que esteja com fome. Esperei
para tomar café com você.
Ela se sentou no canto do beliche, apertando o lençol contra o peito, e os cabelos lhe caíam em
lindo desarranjo pelos ombros. Murmurou:
— Gostaria de vestir-me... — e o observava medrosamente, enquanto ele se apoiava numa viga
acima do beliche.
— Se quiser, meu amor. — Os olhos a percorriam toda. — Precisa de ajuda?
Heather quase subiu pela parede para fugir-lhe.
— Não me toque! — gritou.
— Ah, vejo que a minha gatinha está com as garras de fora! Devo fazê-la ronronar, minha
doçura?
— Eu gritarei! — choramingou. — Pode estar certo disso! Os alvos dentes dele brilharam
quando a segurou pelos pulsos e a puxou para si. Os olhos dele mantinham prisioneiros os dela.
Perguntou, divertido:
— Pensa que conseguiria alguma coisa com isso? A menos que os chame, os meus homens se
mantêm afastados desta cabina quando estou aqui me divertindo. Além disso, minha cara, posso
facilmente abafar-lhe os gritos... com os meus beijos.
Ela se retraiu com um arrepio quando o olhar dele percorreu seu corpo, mas ele apenas riu.
Prendendo-a pela cintura, levantou-a.
— É muito tentadora, querida, mas ainda não é hora da sua segunda lição. Meu criado está
esperando para servir-nos a refeição.
Deixou-a e abriu um baú ao pé do leito, de onde tirou um roupão de homem que lhe entregou.
— É larguíssimo, mas o melhor que posso oferecer no momento. — Sorriu: — Vou levá-la esta
tarde para comprar algumas roupas. Se é como a maioria das mulheres, isso a reanimará.
Rapidamente ela se enrolou no roupão. e achou-se perdida nele. Não havia dúvida de que era dele
e demasiado grande para ela. As mangas se penduravam muito além das mãos e a barra se
arrastava pelo chão, de modo que teve de dobrar-lhe um bom pedaço para poder andar.
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Um sorriso brincava nos lábios de Brandon, cujos olhos brilhavam enquanto a observava.
Ajudou-a a enrolar as mangas.
— Se é possível ter ciúmes de uma simples peça de vestuário, então estou com ciúmes dessa aí, e
se ela tivesse vida estaria agora palpitante com sua sorte... — comentou ele.
Ela lhe relanceou o olhar e nervosamente lhe pediu:
— Poderia ficar só para lavar-me, senhor? Por favor? Ele fez uma reverência e, sorrindo,
respondeu:
— Seu mais leve desejo é uma ordem para mim, senhora. Há alguns assuntos a que devo dar
atenção, de modo que disporá de algum tempo.
Ela o olhou disfarçadamente enquanto ele se encaminhava para a porta; antes de abri-la ele olhou
para trás e teve um sorriso malicioso, depois saiu com uma risada.
Heather deu um suspiro de alívio e foi para o lavatório, onde encheu a bacia. Esfregou cada
centímetro do corpo até a pele brilhar e tornar-se rosada. Suspirava por um bom banho quente,
onde pudesse mergulhar o corpo e dele remover qualquer traço e lembrança dele, do suor que lhe
umidecera o corpo, passando depois para o dela, a sensação das mãos a agarrá-la, a lembrança de
seus beijos sufocantes. Tudo. Até as mínimas partículas de evidência de que lhe pertencera-
A água muito fria ajudou-a a levantar o moral oprimido, e ela vestiu sua combinação velha e o
vestido cor de rosa, sentindo-se muito melhor. Meteu os dedos pelos cabelos, penteando-os
assim o melhor que pôde; depois guardou o roupão no baú, observando, ao fazê-lo, as roupas
bem escolhidas e bastante caras. Irritante pensar que não podia secretamente zombar de sua
escolha de vestuário.
Já arrumada, seus nervos se distenderam e, precisando de algo que lhe ocupasse o pensamento,
começou a pôr em ordem a cabina, cheia de roupas espalhadas. As dele estavam atiradas nas
costas de uma cadeira, o vestido bege dela em outra. A combinação rasgada permanecia onde ele
a deixara cair depois de arrancá-la dela. Pegou-a e viu que não tinha conserto.
”Suas mãos destróem bem”, pensou.
Com raiva renovada caminhou para o beliche e começou a alisar os lençóis até que seu olhar caiu
nas manchas de sangue e se deu conta de que era seu sangue, a prova de sua virgindade. Num
tremendo furor, arrancou os lençóis da cama e os atirou ao chão.
Seus olhos fulguravam, as faces estavam incendiadas, quando se virou, ao som de um riso
divertido às suas costas, para dar de frente com Brandon, de pé no limiar da porta. Voltara
silenciosamente e sem que ela percebesse. Seus olhos foram do rostinho zangado até os lençóis
atrás dela, depois ele ergueu de novo os olhos enquanto fechava a porta e se encostava nela.
Sorriu-lhe zombeteiramente: com um
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grunhido furioso Heather virou-lhe as costas. Ouviu-o rir. Ria-se dela... e ela o odiava! Ele era
detestável!
Ele chegou bem perto dela, deslizou os braços em sua cintura e puxou-a para si:
— Julga que poderia permanecer virgem por muito tempo com o rosto e o corpo que tem, minha
doçurinha? — murmurou, em seus cabelos. — Você foi feita para o amor, e não me entristece o
haver-me apoderado de você antes que outros homens o tentassem, nem me sinto culpado pelo
prazer que me proporcionou. Não me censure por me haver encantado com sua beleza e desejá-
la só para mim. Nenhum homem resistiria. Vê, na verdade, senhora, sou seu prisioneiro,
apanhado em seu encanto.
Ela tremeu quando ele premiu os lábios em seu pescoço: o coração começou a palpitar acelerado.
— Você não tem consciência? Não tem a menor importância que eu não queira estar aqui? Não
sou uma das suas prostitutas, nem tenho desejo de ser.
— Não deseja isso agora, meu amor, mais tarde porém vai desejar. Se eu lhe permitisse ir embora
agora, nunca mais a veria devido ao que se passou entre nós. Se nos tivéssemos encontrado de
outra maneira, eu a cortejaria gentilmente e a persuadiria, com ternas palavras, a vir para a minha
cama. Mas começamos errado e eu a terrorizei... e assim como um pássaro foge de seu captor
você gostaria de fugir de mim. Para guardá-la devo mostrar-lhe que não é assim tão mau ser
minha amante. Você terá tudo que quiser.
— Já ouvi histórias a respeito de ianques, mas nunca pensei que todas aquelas asneiras pudessem
ser verdadeiras até que o encontrei!
Ele, jogando a cabeça para trás, riu gostosamente e disse:
— Falando como uma verdadeira inglesa, minha senhora! Ela se afastou zangada e o encarou,
perguntando:
— Diga-me: por que me quer? Por Deus, diga-me por que devo sofrer sua preferência quando
você pode achar muitas moças mais dispostas do que eu em qualquer lugar que procure! Suas
orgias na cama não seriam muito mais divertidas com uma mulher que apreciasse os seus avanços
do que com alguém a quem repugna a sua simples visão?
Ele riu ante a sua zanga e comentou:
— Tem a língua afiada, minha cara. E me fere até a medula. Mas as razões são muito simples. Dê
uma olhada em si mesma e terá uma excelente visão. Você é como uma golfada de puro ar
primaveril depois de uma noite numa taverna completamente cheia. — Sentou-se à sua
escrivaninha, descansando na cadeira enquanto a olhava: — Acho-a muito desejável, Heather, de
grande valor... uma jóia entre calhaus. O desafio de vencê-la me excita. Nunca fui rejeitado antes.
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- Deveria ter sido — ela sibilou vingativamente. — Talvez então tivesse aprendido a ser um
cavalheiro.
— Com você descobri, querida, que se a desejo profundamente posso passar por cima dessa
coisa de ser ”um cavalheiro”. — Os olhos dele faiscavam.
Frustrada, ela lhe virou as costas. Não havia argumentos com aquele pomposo e arrogante patife.
Ele fazia suas próprias regras adaptarem-se a seus próprios jogos.. Não podia pensar em
bastantes palavras feias, xingações que bastassem para dizer o que sentia a seu respeito. Tudo que
sabia é que havia de deixá-lo e aquela miserável cabina ainda que fosse a última coisa que fizesse
no mundo!
Poucos momentos depois, George entrou, carregando uma grande bandeja com a refeição da
manhã. O criado sorriu acanhadamente para ela, enquanto colocava a bandeja sobre a mesa, mas
ela o fulminou com o olhar e virou-lhe as costas, o que o fez voltar-se para o seu comandante,
completamente confuso. Um breve sorriso curvou os lábios de Brandon que, com um
movimento de cabeça, ordenou que continuasse o serviço. Pronta a mesa, Brandon aproximou
uma cadeira para ela:
— Faça o favor, Heather... — sorria-lhe zombeteiramente. — Mal poderei comer, se você ficar aí
de pé a olhar-me com essa carranca. Agora sente-se e seja uma boa menina, para variar.
George olhou de um para o outro, ainda mais perplexo, e apressadamente serviu o café nas
canecas. Relutantemente Heather tomou seu lugar e, irritada, pôs o guardanapo no colo. Dispôs-
se a tomar o café, embora preferisse chá, mas logo fez uma careta, por achá-lo muito forte, e
empurrou a caneca. Erguendo os olhos, viu que Brandon a observava com um sorriso divertido.
Nada foi dito e ela atacou o bife como se o boi precisasse ainda ser abatido, embora, na verdade,
estivesse bem macio. Achou-o preparado de modo estranho, nem aferventado nem cortado em
pedacinhos como para um ensopado, mas simplesmente cozido em seu próprio molho e deixado
malpassado. Provou um pedacinho e achou-o saboroso, mas, como não tinha muito apetite,
também o deixou de lado.
Indeciso, George a observou por um momento, querendo agradar mas sem saber como.
Finalmente, voltou-se para sair; vendo os lençóis no chão, curvou-se para apanhá-los. Seus olhos
se arregalaram ante as manchas de sangue e relanceou depressa para o patrão, que o observava,
depois para Heather, que estava de costas para ele, e outra vez para Brandon que encontrou seu
olhar e balançou a cabeça diante de suas perguntas não formuladas. Os olhos do criado se
arregalaram ainda mais: apressadamente juntou os lençóis e foi saindo.
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Brandon observou a exibição de mau humor de Heather e, casualmente, cortou uma fatia do bife,
dizendo com calma:
Não tolerarei seu humor rancoroso à minha mesa, menina, nem que trate indelicadamente o meu
criado. Na presença dele, porte-se como uma dama.
O medo cresceu dentro de Heather e cada músculo de seu corpo enfraqueceu, deixando-a
trêmula na cadeira. Empalideceu e mesmo seu pequeno desejo de comer desapareceu. Cruzou as
mãos no colo e ficou a olhá-las, incapaz de sustentar o olhar dele.
Brandon engoliu um pouco do café quente enquanto continuava a estudá-la, desta vez
concentrando-se no vestido. Era uma peça que poderia ser usada por uma pequena de menos
idade e, mesmo bonito como era, ele não gostou de sua linha juvenil: fazia-o sentir-se mal, como
se tivesse roubado uma criancinha de seu berço. A única coisa nele que lhe agradava era o
corpete, que apertava o busto de Heather e o erguia, reafirmando-lhe que ela não era uma criança.
Mas não era do tipo de vestido que desejava para sua amante, e a combinação meio esfarrapada
que vira nela teria de sumir. Era bonita demais para usar trapos.
Terminada a refeição, voltou à sua escrivaninha para trabalhar em seus papéis enquanto Heather,
não sabendo o que fazer, ficou a caminhar pela cabina ou a remexer-se no assento junto à janela.
Ele saiu da cabina por algum tempo, o bastante para que ela ganhasse coragem para experimentar
a porta, mas sua ideia de fugir gorou, pois o avistou fora, na escada, dando ordens a um dos
tripulantes. Furiosa bateu a porta quando ele ergueu os olhos e lhe sorriu zombeteiramente.
Quando George veio com a refeição do meio-dia ela se mostrou delicada, mas não amável. Em
silêncio amaldiçoava o homem.
Brandon afastou a cadeira de perto da mesa, algum tempo depois, satisfeito o apetite, e Heather
sentiu-lhe os olhos a percorrê-la. Tudo estava em silêncio, e ela engoliu com dificuldade,
mantendo o olhar afastado dele. Sabia que os ardores dele haviam despertado novamente e seu
coração se recusava a bater normalmente. Quando ele falou, sua voz estava abafada e cheia de
paixão:
— Heather, venha cá.
Ela gelou! Não queria ir e sim ficar onde estava. Não poderia maltratá-la. Sacudiu negativamente
a cabeça e conseguiu arquejar um fraco ”não”.
Ele baixou as pálpebras e sorriu lentamente:
— Admiro sua coragem, ma chérie, mas acha que pode enfrentarme? Sabe tão bem como eu que
não tem forças para impedir-me de tomar o que quero. Não seria melhor admitir a derrota e vir
dócilmente?
Heather tremia. Era visível o seu terror. A coragem fracassara. Pernas trémulas, levantou-se
vagarosamente e foi postar-se diante
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dele, que lhe sorriu descansadamente e, deslizando a mão em seu braço, puxou-a para os seus
joelhos, onde ela se sentou rígida, enquanto ele lhe beijava o pescoço, murmurando:
— Não tenha medo. não a machucarei.
Sua boca moveu-se pelos trémulos lábios da moça e os separou enquanto ele lhe passava os
braços em volta, aconchegando-a a si, uma das mãos a acariciar-lhe as costas ao passo que a outra
lhe buscava os quadris. Soluçante, Heather amoleceu-se de encontro a seu peito, tremendo
violentamente. Os beijos dele continuaram e lhe pareciam não ter fim. Quando a mão dele
escorregou do seu quadril para entre as coxas e foi subindo, a acariciá-la, ela se contorceu contra
o peito dele, tentando livrar-se. Mas o abraço não pôde ser rompido. Os lábios dele deixaram os
dela para beijar-lhe os cantos da boca, o queixo, a orelha, murmurando:
— Não lute contra mim. trate de gozar.
— Não posso.
— Pode sim.
Os lábios dele, ao viajar do pescoço para as curvas acima do decote, estavam úmidos, absorvendo
a doçura da sua carne. Acaricioulhe os seios lentamente, movendo-se do vale entre eles para os
bicos que se erguiam do decote. A respiração dele se tornara arquejante, rápida, enquanto lhe
tocava a pele como um ferro em brasa. Excitado, desabotoou-lhe o corpete e deu beijos
apaixonados em sua carne nua.
Veio da porta um batido hesitante e Brandon ficou carrancudo. Freneticamente Heather apertou
as roupas para cobrir o peito, envergonhada, e tentou sair do colo dele quando ele afrouxou um
pouco o abraço, mas o homem a estreitou de novo, forçando-a a permanecer onde estava.
Quando falou ao intruso não podia haver dúvidas quanto à sua irritação:
— Maldito! Entre!
George abriu a porta e ficou vermelho ao vê-los, arrastando os pés, embaraçado:
— Perdão, comandante, mas chegou aí o mensageiro de um mercador que qué falá com o sinhô
sobre o cargueiro. Diz que o patrão dele tá interessado em comprá toda a carga de arroz e de
índigo se vocês dois se encontrarem e ficarem de acordo.
— Ele quer que eu vá até ele?! — perguntou Brandon, incrédulo. — Por que, em nome do diabo,
ele não vem aqui ao Fleetwood como os outros fazem?
— O homem é aleijado, comandante. Se o sinhô concorda, esse mensageiro vai olhá a carga pra
vê seu valô e leva o recado pra ele.
Brandon murmurou uma praga e a carranca aumentou:
— Diga ao Boniface para levá-lo a dar uma volta pelo navio, está bem, George? Depois mande o
homem aqui, quando acabar — ordenou.
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George deslizou para fora, fechando a porta, e Brandon, relutante soltou Heather. Ela correu
para o assento da janela e apressadamente juntou suas roupas enquanto ele se dirigia à
escrivaninha onde ocupou sua cadeira. Ela sentia os olhos dele a segui-la e estava ruborizada
Pouco depois o mensageiro entrou e ela deu as costas aos ocupantes da cabina. Que alguém a
encontrasse na cabina do comandante Birmingham a envergonhava até a alma. O rosto lhe ardia,
desejava morrer. Pelas vigias via a água a bater nos costados do navio mercante ancorado
próximo dali e imaginava que, se tivesse coragem, a água poderia pôr fim a seus problemas.
Pensou que receberia com satisfação seus dedos líquidos a apagar-lhe a vida. Inclinou-se para a
frente para contemplar mais intensamente o escuro torvelino do rio, sem se dar conta de que o
mensageiro saíra e que Brandon estava atrás dela: deixou cair a mão em seu ombro e ela pulou,
num sobressalto. Ele riu e sentou-se nas almofadas a seu lado, tocando um racho de cabelos que
estava em seu peito. Disse:
— Acho que vou ter de sair por algumas horas, Heather, mas voltarei o mais cedo que puder. Já
dei a George instruções para vigiála, mas peço-lhe que não torne isso difícil para ele: é uma alma
gentil no que se refere a senhoras, a despeito do que você possa haver pensado na noite de
ontem. Disse-lhe que, ao voltar, quero ver você aqui, assim não tente fugir. Eu o esfolaria se você
o conseguisse, e eu a encontraria de novo, ainda que tivesse de revirar toda Londres.
— Não me importa a mínima se você esfolar seu criado — replicou atrevidamente a pequena —
porque, se aparecer uma oportunidade para fugir, vou aproveitá-la.
Brandon ergueu uma sobrancelha e ameaçou:
— Neste caso, Heather, terei de levá-la comigo. Ela gritou, quase em pânico:
— Oh! Não! Por favor! Imploro-lhe! Morreria de vergonha se o fizesse.. Por favor, não o faça! Se
quiser, ficarei lendo enquanto você estiver fora, juro!
Brandon examinou-a, com grande interesse.
— Então, sabe ler? perguntou.
— Sim — respondeu a moça, suavemente.
Ele lhe sorriu. Poucas mulheres sabiam ler, e ele sentiu novo respeito pela garota.
— Muito bem — disse, finalmente. — Eu a deixarei aqui, e comprarei algumas roupas, quando
voltar, para que você pareça uma mulher. Agora levante-se e deixe-me avaliar suas medidas.
Constrangida, Heather obedeceu e se foi virando vagarosamente diante dele, cujos olhos a
percorriam apreciativamente:
— Você é pouco maior que uma formiguinha.
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— Algumas pessoas dizem que sou magrinha — ela comentou, relembrando algumas das
insultuosas observações da tia.
Brandon riu e comentou:
— Posso imaginar as velhas invejosas encarquilhadas que disseram isso. Provavelmente estavam
chafurdadas em sua própria gordura.
Um sorriso fugidio perpassou pelas feições de Heather, pois que ele parecia estar descrevendo
sua tia; mas logo desapareceu, quase tão depressa como surgiu.. mas não passou despercebido a
Brandon.
— Ah! Eu sabia que poderia fazê-la sorrir, mais cedo ou mais tarde... — disse ele.
— Por sua causa, tenho bem pouco para sentir-me feliz... — Heather afastou-se e ergueu o
narizinho.
— Outra vez, é? Seu humor é muito mutável, senhora. — Levantou-se e ficou de pé atrás dela:
— Agora, vamos ver se um pouco daquele gelo já derreteu de seus lábios. Desejo sentir um
pouco de calor, para variar. Venha, beije-me como deve fazê-lo uma amante. Não tenho tempo
para mais.
Heather deu um trémulo suspiro de alívio por não ter de repetir toda aquela ginástica de amor.
Deduziu que um pequeno esforço de sua parte — como se não resistindo aos protestos dele —
faria muito para tranqüilizar quaisquer temores ou suspeitas que ele pudesse abrigar quanto a
deixá-la ficar. Voltou-se e, com determinação, passou os braços pelo pescoço dele e lhe puxou a
cabeça para a dela. As sobrancelhas dele se ergueram de surpresa, considerando essa nova
mudança nela; e Heather, não querendo que ele tivesse tempo para raciocinar muito, pressionou
nos deles os seus lábios úmidos, quentes, e, baseando-se em sua pouca experiência, beijou-o
longa e amorosamente, arqueando seu corpo contra o dele.
Brandon saboreou a doçura de seus lábios e a inebriante proximidade de seu corpo. e todo
pensamento lógico lhe voou da mente. Passou-lhe os braços em torno da cintura e apertou-a de
encontro a si, enquanto apreciava o inesperado calor de sua reação. Seu próprio corpo pedia-lhe
mais do que isso. Ela era por demais tentadora, aquele pedacinho de gente! Seus lábios eram
cálidos e o corpo demasiado desejável. Estava tornando-se extremamente difícil para ele o pensar
em deixá-la.
Com esforço, afastou-se dela, falando roucamente:
— Acho que não poderei ir a parte alguma se você me beijar desta maneira..
Heather ficou rubra! O beijo lhe trouxera algumas surpresas também, pois não achara a tarefa
assim tão repugnante.
— E agora, de qualquer modo, terei de adiar minha partida. Essas calças apertadas não deixam
nada à imaginação. — E sorriu.
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Inocentemente ela baixou os olhos até as calças dele. Instantaneamente se arrependeu: o sangue
lhe subiu ao rosto e ela se voltou, constrangida.
Brandon riu e, foi cuidar da troca de vestuário, resmugando:
Ah! se eu tivesse tempo, madame...
Perturbada, Heather começou a empilhar os pratos sujos na mesa, pensando o que havia de pior
a respeito do homem atrás dela. Decidiu que ele era mais do que detestável.
Brandon fazia os últimos ajustes em sua roupa quando Heather se voltou para ele novamente, o
mau humor um tanto moderado. Apesar de todo o ódio que sentia por ele, não podia negar que
era um belo espécime de homem. Suas roupas eram imaculadas e bem escolhidas, no rigor da
moda, e assentavam bem à sua alta estatura e ombros largos. Os calções eram tão bem talhados e
costurados que se ajustavam, aderiam como a própria pele. E nada faziam para disfarçar o
volume de sua masculinidade.
”É tão bonito que provavelmente terá de lutar para livrar-se das mulheres”. ela pensou,
amargamente.
Ele se adiantou e, de modo casual porém íntimo e possessivo, beijou-a nos lábios e deu-lhe um
afetuoso tapinha no traseiro.
Voltarei cedo, doçurinha! — disse sorridente.
Com dificuldade Heather conteve a língua, querendo gritar de raiva. Viu-o sair, demasiado
confiante, pensava ela, e depois ouviu o dique da chave na porta. Com a raiva frustrada a crescer-
lhe nas veias, varreu a mesa com o braço atirando longe toda a louça.
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Capítulo Dois
Heather não perdeu tempo em sua determinação de fugir do navio. Se o Comandante
Birmingham voltasse antes que ela saísse, sua oportunidade estaria grandemente diminuída.
Pensou em meios para tapear George e ficou a imaginar se poderia ser subornado por dinheiro.
Mas, o que poderia usar como dinheiro? Seu vestido creme era a única coisa de valor que possuía
e ponderou se seria tentação suficiente para trazê-lo para o seu lado. Depois, pensou no homem
que usara seu corpo para o próprio prazer... e as ideias de suborno desvaneceram. O servente ou
seria demasiado leal a esse pomposo grosseirão do mar ou teria bastante medo dele para não
correr o risco de cair em alguma tentação de suborno. Não, isso não servia. Teria de pensar em
algo melhor.
Muitos planos passaram por sua mente, mas nenhum chegou a tomar forma definitiva. Não
poderia suborná-lo, de modo que teria de usar a força. Mas o que poderia fazer uma simples
moça contra um homem que, sem dúvida, era muito mais forte do que ela? Seus músculos
resistentes facilmente a guardariam para o seu comandante.
Começou a vasculhar a cabina em busca de qualquer coisa que ajudasse a convencer o homem a
entregar-lhe as chaves da porta da cabina, escancarando gavetas, remexendo freneticamente
papéis e livros, mesmo o baú de Brandon. Só achou uma bolsa cheia de moedas. Cansada,
sentou-se na cadeira atrás da escrivaninha. Seus olhos vagaram pela cabina, vasculhando cada
canto, cada sombra..
— Ele deve ter por aqui alguma arma — resmungou. O tempo estava contra ela.
Seus olhos deram com o armário. Pulando da cadeira, atravessou o quarto e lhe escancarou as
portas. Procurou desesperadamente em todas as roupas, mas nada encontrou. Com um soluço
histérico, começou a puxar tudo de dentro, até dar com uma caixa enrolada em pano, no fundo
do armário.
”Provavelmente, suas jóias”, pensou.
Retirou a caixa de seu invólucro protetor. Não estava interessada em jóias, se isso fosse o que a
caixa continha: interessava-a a própria
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caixa. Era de fino couro, muito bem trabalhado e, embutido a ouro, um grande ”B” em cima.
Não era muito profunda ou larga, mas estava certa de que continha algo de valor. A curiosidade
principiou a tomar conta dela, e não pôde deixar de abri-la.
Heather quase teve um colapso de espanto e fez uma silenciosa prece de agradecimento: ali, no
fundo de veludo vermelho, estavam duas das pistolas mais lindamente trabalhadas em desenho
francês que jamais vira. Conhecia pouco a respeito de armas de fogo, mas seu pai possuíra uma
desse tipo, só que não de tão fina qualidade. As coronhas eram de carvalho inglês polido,
envernizadas até obter um raro brilho e ligadas com pesados aros de bronze e canos de aço
azulado. Os anteparos dos gatilhos e as incrustações eram de bronze finamente trabalhado, e
batidas a mão as travas de ferro — bem azeitadas contra os estragos do tempo.
Examinou as pistolas, sem compreender-lhes o mecanismo: o pai nunca lhe mostrara como lidar
com elas. Sabia que se devia puxar a trava para trás para armar o percussor — embora como
carregar uma arma lhe fosse um completo mistério. Silenciosamente amaldiçoou sua ignorância e
fechou a tampa sobre aquelas belas armas, tentando pensar em outro meio de regularizar suas
diferenças com George. Lançava olhares à procura de algo. talvez alguma coisa com que pudesse
bater-lhe na cabeça. Mas, enquanto procurava, dava-se conta de que o máximo que poderia
pretender seria estonteá-lo. A menos que fosse contido de algum modo, ela não teria tempo de
fugir.
Abrindo novamente a caixa, tirou uma das pesadas pistolas e a examinou. Será que ele saberia que
ela não tinha a mínima ideia de como usar uma pistola? Mas poderia assustá-lo o bastante para
fazê-lo entregar a chave da porta.
Começou a animar-se e um sorriso lhe iluminou o rosto. Dirigindo-se à escrivaninha, sentou-se,
pegou papel e pena e principiou a rabiscar uma nota para o Comandante Birmingham. Precisaria
de dinheiro, mas nunca se permitiria o ser acusada de vender seu corpo. Tiraria uma libra da
bolsa de dinheiro que encontrara e, em seu lugar, deixaria seu vestido bege: excelente negócio.
Dobrou a nota e a deixou em cima do vestido; depois cuidadosamente escondeu uma das pistolas
embaixo da pilha de mapas e papéis onde lhe seria facilmente acessível quando George voltasse
com o chá, que ela pedira quando ele foi limpar do chão a louça quebrada. Parecera ansioso por
agradar, a despeito da mixórdia no quarto, e disse que apenas demoraria um pouquinho enquanto
mandava um tripulante comprar o chá. Isso foi ótimo, pois lhe deu tempo de vasculhar a cabina.
Agora, escondeu a caixa com monograma numa gaveta da cómoda e arrumou a cabina, de modo
a que o criado não ficasse desconfiado ao entrar, percebendo que fora tudo revirado. Sentou-se
em seguida e pôs-se a ler um livro que encontrara na escrivaninha.
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Era o menos que podia fazer, já que o havia prometido. Mostraria ao Comandante Birmingham
que não era uma pessoa que ficasse detida contra a sua vontade. Riu, imaginando a raiva que seria
descarregada em George, por quem o menos que sentia era ódio. Afinal de contas, ele é que a
trouxera para esta desgraça. Digna recompensa, pensou. O Hamlet de Shakespeare não era lá
muito calmante para seus nervos já desgastados. Começou a sentir-se apreensiva ante a demora
de George; por vezes punha o livro de lado e caminhava pela cabina. Depois de alguns
momentos, pegava novamente o livro e se forçava a ler. Quando ele finalmente destrancou a
porta, ela largou o livro e pulou da cadeira, de puro nervosismo. Tornou a sentar-se e a acalmarse,
mandando-o entrar. Ele abriu a porta, entrou e se virou para passar a chave. Na mão trazia uma
bandeja com o chá.
— Trouxe o seu chá, senhorita. Tá bom e quentinho. — Sorriu e encaminhou-se para ela.
Agora era a hora. Ela ergueu a pistola da escrivaninha e puxou o cão:
— Não se mova, George, ou terei de atirar — disse. Sua voz lhe parecia estranha.
George ergueu os olhos da bandeja e encontrou o enorme buraco a contemplá-lo. Não era dos
que pensavam que uma arma em mãos de mulher fosse motivo para riso. Sabia que corria perigo.
Ficou extremamente pálido.
— Por favor, ponha as chaves na mesa, George — falou. Observava-o enquanto o fazia, apoiada
à escrivaninha para sustentar as pernas trêmulas. — Agora, com muito cuidado caminhe até o
assento da janela — ia comandando. Sem tirar os olhos de cima dele, enquanto ia obedecendo.
George se movia bem devagar, deliberadamente e com muita precaução, através do quarto: sabia
quando ser cuidadoso. Quando parou em frente à janela, Heather deu um longo suspiro.
— Sente-se, por favor — ordenou, sentindo voltar-lhe um pouco de confiança.
Ela foi até a mesa, pegou as chaves, sem tirar os olhos de cima do velho, que a encarava, e foi de
costas para a porta. Sem se virar, tateou a fechadura, introduziu a chave e a torceu: a sensação de
prisão foi-se com o trinco.
— Por favor, George, para o armário, para dentro dele. E não tente nada, pois estou bastante
nervosa e a pistola é realmente muito delicada.
« George desistiu da ideia de um ataque inesperado. Era verdade:
ela estava nervosa. Tinha dificuldade em segurar firme a arma e seu lábio tremia entre os dentes.
Ela atiraria se ele fizesse o menor movimento para detê-la, concluiu. Avaliou se a dor que lhe
causaria a raiva de seu capitão seria menor que a do tiro da pistola que a moça
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segurava. Sabia que a raiva do homem podia subir até grandes alturas quando provocada: estava
com ele havia muito tempo... Era louco pelo comandante e o admirava muito; por vezes, também
tinha medo dele. Mas duvidava de que o Comandante Birmingham o matasse, ao passo que
estava certo de que a pistola poderia facilmente mandálo para o túmulo se tentasse tomá-la da
aterrorizada garota. Caminhou para o armário, entrou no exíguo espaço e puxou a porta,
fechando-o atrás de si.
Heather estivera observando o criado, pronta para correr ao menor movimento que ele fizesse
em sua direção. Deu um suspiro de alívio quando ele ficou fechado e arrastou-se até a porta do
armário: empurrou-o até ouvir o clíque da fechadura. Não havia trinco por dentro, de modo que
ela teria tempo de ir embora antes que fosse acionado algum alarma. Foi até a escrivaninha, abriu
a gaveta onde encontrara a bolsa de dinheiro e tirou a sua libra, deixando a pistola vazia sobre a
mesa.
Não lhe custou alcançar a porta. Abriu-a silenciosamente. Ninguém na escada. Apressou-se para
a porta lá no fim. Não sabia como iria sair do convés e, quando a porta estalou um pouquinho, a
fuga lhe pareceu impossível. Havia muitas pessoas a bordo, e ela não passaria despercebida.
Deviam ser mercadores inspecionando o cargueiro, deduziu, pois alguns cavalheiros de aparência
próspera passeavam por ali.
Fechando a porta, descansou a cabeça contra a madeira do navio, sentindo-se desesperada.
O que aconteceria quando tentasse sair do navio? Só o comandante e uns dois tripulantes tinham
conhecimento de que ela estava a bordo. Que saberiam esses homens a seu respeito? Por que não
ser corajosa, para variar, argumentou consigo mesma. É só ir caminhando no meio deles.
Voltou-lhe a esperança. Desta vez sem hesitação, abriu a porta. O coração palpitava loucamente,
parecia queimar-lhe o peito. Forçando um sorriso, ela passou por entre os que ali se achavam
com um arzinho gracioso. Cabeça alta, acenava levemente para os homens que se voltavam para
vê-la. Eles lhe sorriam e chamavam a atenção dos companheiros para ela. Houve uma paralisação
no convés enquanto os homens a seguiam abertamente, com olhares admirativos. Estavam
interessados, mas nenhum deles fez um só movimento para detè-la. Quando ela ergueu um
pouquinho as saias, os olhos deles iam dos lindos quadris aos delicados pezinhos. Um cavalheiro
alto, de meiaidade, de pele escura, cabeleira e cavanhaque brancos ofereceu-lhe a mão. Ela lhe
sorriu docemente enquanto ia descendo a prancha à frente dele, sentindo seus olhos sobre ela.
Antes de sair da prancha, voltou-se e lhe sorriu de novo. Ele lhe devolveu o sorriso e curvou-se
graciosamente, com o chapéu sobre o coração.
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Sabia que estava flertando abertamente, mas o pensamento de que sua partida do navio seria
contada ao Comandante Birmingham com detalhes a enchia de prazer. Fora muito mais esperta
que ele!
Muitos estavam a esperá-la quando chegou ao fim da rampa. Movimentavam-se em torno dela, a
ver quem lhe ofereceria a mão. Escolheu o mais bonitão, vestido com roupas caríssimas, e pôs a
mão na dele. Perguntou-lhe docemente se poderia arranjar-lhe uma carruagem: ficou espantada
quando ele foi procurar uma. Logo voltou, perguntando se poderia acompanhá-la. Recusou
polidamente e ele relutante, ajudou-a a subir à carruagem que a aguardava. Agradeceulhe
graciosamente a assistência. Ele lhe perguntou onde morava mas ela não respondeu e ele não teve
coragem de insistir. Ela continuou polida mas calada, enquanto ele com um suspiro, soltou-lhe a
mão e fechou a portinhola. Quando a carruagem começou a mover-se, ela sorriu para ele, mas
abanou a cabeça quando ele aparentemente pensou que seu sorriso era um encorajamento e pôs-
se a correr atrás dela.
Quando a carruagem dobrou a esquina, Heather encostou-se no assento e sorriu. Sentia subir-lhe
um riso histérico, tamanho era o seu alívio. Relaxou e fechou os olhos; pouco depois saltou na
estação de diligências nos subúrbios de Londres. Foi imediatamente reservar lugar numa
diligência que a levaria de volta à casa da tia.
Resolvera voltar. Não havia outro lugar para onde ir. Tia Fanny e Tio John não podiam saber
ainda, provavelmente jamais saberiam, o que acontecera a William. Duvidava de que algum dos
amigos de William em Londres soubesse da existência de uma irmã numa pequena fazenda como
aquela. Era um pensamento esperançoso de sua parte: após ver William viver com tanta
grandeza, não acreditava que jamais houvesse mencionado a irmã. E ela tinha de ficar afastada de
Londres enquanto o Comandante Birmingham continuasse no porto. A fazenda do tio era o
lugar mais seguro.
Ficaria com a tia o tempo suficiente para encontrar um emprego em algum lugar. Queria tornar-
se independente da mulher cujo irmão estava morto por causa dela. Difícil voltar, mas impossível
permanecer em Londres.
Na diligência em que voltava, sua mente estava torturada pelos acontecimentos do dia anterior.
Tentava afastar os pensamentos que a atormentavam, porém eles persistiam. Tentava convencer-
se de que nada do acontecido fora sua culpa, o que não abrandava a dor de tudo que lhe ocorrera.
Já não era a mesma pessoa do dia anterior, uma inocente que viajara para Londres sonhando que
lhe aconteceriam grandes coisas. Agora era uma mulher, não ignorando as carícias de um homem,
não mais uma mocinha...
Com determinação, jurou que isso não a mudaria. Casamento agora só lhe traria desgraça. Mas, se
tinha de ficar solteirona, queria ao
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menos ser independente. Acima de tudo: não queria depender de ninguém. Mais tarde, acharia
um bom emprego em algum lugar.
O problema agora era o que dizer aos tios. Precisava de uma razão para essa volta. Não estando
nos melhores termos de relacionamento com os parentes, não lhes podia dizer que sentira tanta
falta deles que não pudera suportar... Isso na certa despertaria suspeitas na tia. Não, teria de ser
uma mentira aceitável
Quando a diligência chegou à encruzilhada da aldeia perto da fazenda do tio, parou apenas o
tempo suficiente para que ela saltasse. Desceu sem um olhar para trás, sem lembrar a fisionomia
de nenhum dos companheiros de viagem.
Pegou o caminho na direção leste à saída da aldeia, o sol agora desenhando longas sombras
diante dela. Inconscientemente, quanto mais perto da fazendola, tanto mais lentos os seus passos.
Quando, afinal, chegou, o céu estava completamente escuro e há muito passara a hora da
refeição. Caminhou lentamente para a casa e bateu à porta bem de leve:
— Tio John, é Heather. Posso entrar?
Ouviu passos e logo a porta foi escancarada. Esperava ver o tio primeiro, mas não foi assim: sua
tia estava no umbral, surpresa-.
— Que está fazendo aqui? — perguntou a mulher, atónita.
— Ao chegar a Londres, seu irmão descobriu que tinha de ir a Liverpool, para inspecionar umas
sedas que desejava comprar. Achou que não seria apropriado para mim ficar na cidade
desacompanhada. — Quase sufocou com as palavras, pois a mentira lhe amargava a boca.
— Muito bem, um pouquinho desapontada, não? — Tia Fanny sorriu maliciosamente. — Fazer
toda essa viagem até Londres esperando ganhar o mundo. Bem feito, pra não ser uma mendiga
metida a besta... Sempre se julgando uma rainha. E numa pose que se poderia pensar que era
mesmo. Agora suponho que vai retomar suas tarefas como antes da viagem.
— Se quiser assim, tia — respondeu Heather brandamente, sabendo que a vida agora seria mais
dura. Mas tudo seria preferível ao que o Comandante Birmingham tinha em mente para ela.
— Quero sim, senhorita, e você vai gostar de estar em casa, se vai! — rosnou a Tia Fanny,
significando justo o posto.
Heather compreendeu, mas não deu resposta. Aceitaria sem queixas o tratamento que a mulher
lhe dispensasse: provavelmente era o que merecia por ser tão fútil a ponto de pensar que uma
vida de riqueza em Londres era algo para que fora criada. A única coisa certa, agora, era ser
humilde e tratar de fazer-se desculpar.
50
— Bem, já para a cama, pois quando amanhecer o dia você tem de estar de pé e trabalhando. Seu
tio já foi dormir.
Heather não ousou falar em comida, mas seu estômago roncava e estava certa de que a tia ouvira.
A mulher não tocou no assunto e Heather soube que não o faria. Havia comido pouco, com o
Comandante Birmingham sentado à sua frente. Ficou com a boca cheia dágua ao lembrar como
estaria gostosa a comida se aquele demónio maluco não estivesse lá.
Sem uma palavra, foi para o seu cantinho atrás da cortina, onde se despiu. O cobertor continuava
tão áspero como sempre fora e tão incapaz de agasalhá-la como antes, a menos... — a menos que
pudesse arranjar um emprego em algum lugar. O que significava que teria de ir à aldeia e
examinar cuidadosamente os anúncios que habitualmente pediam moças para criadas,
professoras, e coisas assim. Não seria difícil achar alguma coisa, estava certa.
A despeito da fome que lhe roía o estômago, caiu num sono sem sonhos. A manhã lhe chegou
através de ásperos movimentos e palavras duras quando a tia afastou a cortina e atirou-lhe aquele
vestido velho no rostinho cheio de sono. A mulher se curvou e sacudiu-a rudemente.
— Levante-se, preguiçosa! Trate de correr para as tarefas não executadas nesses dois dias em que
esteve fora. Vá caindo fora da cama! — bufou.
Mal desperta, Heather sentou-se no catre, piscando para afastar o sono. Alarmada, viu que a tia
parecia ainda mais bruxa do que ela se lembrava. Trêmula, enfiou pela cabeça o vestido velho sob
os olhos vigilantes da tia.
Mal teve tempo de passar a mão num pedaço de pão dormido antes que a Tia Fanny a mandasse
buscar lenha. Ao sair para fazê-lo, encontrou o Tio John ocupado com seus próprios
pensamentos e sem o menor interesse em falar-lhe. Estava cortando a lenha e, quando a viu,
mergulhou a cabeça em seu trabalho. Ela não se podia enganar quanto ao esforço que ele fez para
não lhe falar, e isso a magoou fundo. Ficou a imaginar por que tentou ignorá-la: é como se ela
tivesse duas cabeças e ele não quisesse olhá-la. De súbito um mal-estar tomou conta dela e
imaginou se ele suspeitaria de alguma coisa. Mas como poderia?
Durante o dia foi ficando certa de que alguma coisa o perturbava. Embora não lhe falasse,
observava-a bem de perto, como se tentando ler em sua mente. Sentindo-se pouco à vontade sob
esses olhares, tudo que queria era estar fora do seu campo de visão. Não podia compreender o
que o aborrecia e não ousava perguntar.
À hora de dormir, sentia-se completamente exausta e caiu na cama, demasiado cansada para
mover-se. Entretanto, seus pensamentos não estavam inativos. Viu o corpo prostrado de William
Court
51
tão claramente como se ainda estivesse de pé na porta, olhando para ele. Mas essa visão logo se
apagou quando o rosto do Comandante Birmingham lhe apareceu na escuridão. Viu seu sorriso
zombeteiro, as fortes mãos morenas querendo alcançá-la. Ouviu sua risada divertida e, com um
grito estrangulado, rolou na cama e enterrou o rosto no travesseiro para amortecer os soluços que
a sacudiam, recordando bem demais a sensação das mãos dele em seu corpo.
A aurora ia surgindo e já ela estava de pé e trabalhando antes que a tia se levantasse. Após aquelas
horas insones, jurara trabalhar incessantemente até que não restasse sequer uma lembrança a
atormentá-la. Encontraria a paz do sono através da fadiga extrema.
Quando Tia Fanny veio do outro quarto, amarrando o vestido de tecido grosseiro, Heather
estava ajoelhada limpando as cinzas do borralho. A mulher chegou até o fogão, pegou um bolo
de aveia e franziu a testa para Heather.
— Você está pálida esta manhã, menina... Será por não se sentir feliz aqui? — rosnou.
Heather puxou o resto das cinzas para o balde de madeira e se ergueu, afastando do rosto uma
mecha de cabelo. A fuligem lhe manchava o rosto, e o vestido enorme que usava lhe pendia
frouxamente dos ombros. Limpou as mãos na saia, deixando-a suja de fuligem.
— Estou satisfeita aqui — murmurou, olhando para outro lado. Tia Fanny curvou-se e virou o
rosto de Heather, seus dedos gordos machucando a carne macia da sobrinha. Falou:
— Seus olhos estão inchados. Pensei que ouvi você chorar no travesseiro esta noite e vejo que
estava certa. Está sofrendo porque não está em Londres, suponho...
— Não... — murmurou Heather — Estou contente.
— Você mente! Odeia isto aqui! Quer viver em Londres, na grandeza que pensa que lhe é devida!
Heather sacudiu a cabeça, negando. Não queria voltar. De qualquer maneira, não agora, enquanto
o Comandante Birmingham ainda estivesse lá e provavelmente executando a ameaça de revirar a
cidade para achá-la. Ficaria lá por uns três ou quatro meses ainda, livrando-se da sua carga e
comprando mais. Não podia voltar.
Tia Fanny beliscou-lhe maldosamente o braço.
— Não minta pra mim, garota!
— Por favor... — gemeu Heather.
— Deixe a menina em paz, Fanny — disse o Tio John, de pé no umbral da porta do seu quarto
de dormir.
Tia Fanny virou-se para ele, rosnando:
— Ora vejam quem está dando ordens tão cedo esta manhã! Você não é melhor do que ela,
sempre resmungando e choramingando pelo que não tem, mas teve e perdeu!
52
— Por favor, Fanny, não recomece! — ele suspirou, sacudindo a cabeça, desesperado.
— Não recomece, diz você... Mas continua a viver com a lembrança daquela mulher todos os
dias da sua vida. A única razão por que me fez sua mulher é porque não pôde ter a outra! Ela
amava outro além de você.
Ele vacilou sob a crueldade das palavras de Fanny e se afastou, os ombros ainda mais curvados
com essa derrota.
Tia Fanny voltou-se para Heather e deu-lhe um empurrão:
— Trate do seu trabalho, pare de vadiar! — ordenou.
Com um rápido olhar de pena para o tio, Heather apanhou o balde do chão e atravessou o quarto
às pressas. Não podia agüentar a visão dos ombros curvados do tio.
Passou-se uma semana, depois a segunda, parecendo ainda mais comprida que a primeira. Por
mais duramente que trabalhasse, Heather não podia afastar suas lembranças perturbadoras.
Atormentava-se dia e noite. Muitas vezes acordava na escuridão da noite com um suor frio a
umedecer-lhe a testa, sonhando que o Comandante Birmingham estava com ela, apertando-a
num abraço apaixonado. Em outros sonhos ele aparecia como o demónio, a rir cruelmente
enquanto ela tremia — e acordava com as mãos apertando os ouvidos. Sonhos com William
Court eram igualmente aterrorizantes. Via-se de pé acima dele, segurando a faca para frutas, e de
seus dedos pingava sangue...
Mais duas semanas se foram sem alívio, e isso começava a afetála. Seu apetite flutuava: da mais
completa ausência de fome à ânsia mais voraz. Sentia preguiça — pecado imperdoável aos olhos
da tia. Recebera injúrias suficientes para estar cônscia disso. E fazia coisas esquisitas, tais como
descuidadamente deixar cair a louça, ou queimar os dedos em chaleiras quentes. Era o bastante
para enlouquecer. Isso levou a tia ao paroxismo, principalmente depois que ela quebrou uma
tigela de estimação:
— O que imagina estar fazendo à minha casa, sua cadelinha, quebrando tudo que pode desse
jeito? Está querendo umas varadas? — berrou, dando-lhe um bofetão.
Heather caiu de joelhos, tremendo violentamente, o rosto ardendo pelo tapa, e começou a catar
os cacos:
— Desculpe, Tia Fanny — falou baixinho, as lágrimas a queimarlhe as faces. — Não sei o que há
comigo. Parece que não sei fazer nada direito...
— Como se algum dia tivesse sabido... — fungou a mulher, desdenhosamente.
— Vou vender meu vestido cor-de-rosa e lhe comprarei outra.
— E o que vai vender para pagar o resto das coisas quebradas? — perguntou Tia Fanny,
sarcástica, sabendo muito bem que o vestido valia mais que todos os objetos quebrados, juntos.
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- Não tenho mais nada. — murmurou Heather tristemente, levantando-se. — Só minha
combinação.
Não vale um vintém, e não quero você por aí com as tetas a pular desses velhos vestidos meus
quando for à aldeia.
Corando violentamente, Heather puxou o decote do vestido para cima pela centésima vez nesse
dia. O vestido estava tão grande que o que seria modesto para a tia era justo o oposto para ela.
Quando se curvava, o monstruoso decote revelava tudo. E, se não fosse pelo cordão amarrado na
cintura, mostraria tudo, mesmo, até os joelhos, especialmente porque ela nada tinha para usar por
baixo. Em nome da modéstia, tinha de economizar a combinação para usar quando fosse ao
povoado.
Menos de um mês depois recebeu, finalmente, permissão para ir à aldeia, com o tio. Embora
tivesse esperado ansiosamente semanas pela autorização da tia, estava meio assustada porque o
tio continuava a observá-la. Temia que, fora das vistas da Tia Fanny, ele lhe fizesse perguntas,
querendo saber a respeito de William Court... e ela ficava imaginando se, indo à aldeia, iriam
descobrir que o homem estava morto; por muito acidentalmente que tivesse acontecido, ela ainda
mereceria censura. Porém tinha de ir. Era o único meio de ler o jornal da cidade colocado na
pracinha. Quanto mais cedo encontrasse emprego, tanto melhor. Além disso, sua tia estava
esperando um lindo presente pelo vestido negociado.
Brancos cottages de telhados de colmo se aninhavam junto aolago da aldeia, e uma hospedaria
perto da encruzilhada convidava os estrangeiros a deter-se e gozar a pacífica serenidade do
vilarejo. No verão, flores adornavam as jardineiras das janelas e os canteiros, e sebes floridas
serviam de cercas entre os cottages. Era, de longe, melhor lugar para viver do que Londres, onde
sujeira, mendigos e pecados predominavam.
Quando chegaram à aldeia, Heather e o tio foram imediatamente à pracinha, no centro da qual
havia uma banca de notícias. O Tio John fizera disso um hábito: ir lá em primeiro lugar. Era seu
único contato com o mundo além dos limites do povoado e de sua fazenda. Ali Heather
discretamente examinou os anúncios. Precisavam de uma lavadora de pratos, leu, mas encolheu-
se a esse pensamento. Alguém desejava uma governanta — o que fez seu coração pular
doidamente, mas. leu um pouco mais para diante, e encontrou que desejavam alguém de mais
idade, não menos de 40 anos. Seus olhos percorreram os anúncios outra vez, enquanto rezava
desesperadamente para encontrar alguma que lhe houvesse escapado e que fosse mais adequada.
Estava disposta a trabalhar como. criada, mas, se aparecesse algo melhor, ficaria bem feliz. Porém
não havia nada mais. Suas esperanças
54
murcharam e, quando o tio voltou, seguiu-o, olhos cheios de lágrimas.
Ele a levou a uma loja onde poderia escolher algo para substituir o prato quebrado da Tia Fanny.
Ela fez isso desatentamente sentindo-se deprimida. Quando o tio estacionou a pequena carroça
perto da praça, ela ficara maravilhosamente contente, porque não lhe havia feito perguntas.
Agora, embora ainda agradecida por seu silêncio desejava ir a algum lugar sozinha para chorar.
Repreendeu-se por ser tão impaciente. Mais tarde talvez aparecesse um anúncio que lhe pareceria
conveniente. Contudo a tia a deixava tão raramente vir com Tio John que poderiam passar-se
anos antes que voltasse ali — e isso queria dizer ter de ficar com a tia todo esse tempo.
Ô Sr. Peeves, o lojista, pegou o prato que ela lhe entregou, perguntando:
— Alguma coisa mais, Srta. Heather? Um vestido, talvez?. Ela corou. Não era a primeira vez que
ele mencionava um vestido novo. Ela sabia como todos disfarçadamente a olhavam com pena, e
como as moças se divertiam com suas roupas enormes. Tinha demasiado orgulho para não ficar
constrangida. Enquanto lhe restasse um sopro de vida manteria a cabeça erguida, fingindo que
isso não tinha importância:
— Não. Só quero a tigela.
— Lindo prato, vale o seu preço! São seis shillings, senhorita. Ela tirou do bolso um lenço cheio
de nós e o desatou. Contou o dinheiro cuidadosamente e o entregou a ele. Isso a deixava com
sete shillings de que sua tia com certeza iria apropriar-se. Olhou cobiçosamente para algumas fitas
coloridas na mesa próxima.
— A azul ficará muito bem em seus cabelos, senhorita — sugeriu o Sr. Peeves, que era dotado de
olhos bem espertos. Pegou a fita e a entregou a ela: — Experimente, quer?
Relanceando o olhar para o tio, Heather deixou que o lojista lhe pusesse a fita nas mãos. Voltou-
se lentamente para o espelho — o único na aldeia — e ergueu os olhos. Era a primeira vez que se
via vestida assim. O cabelo achava-se cuidadosamente trançado, ela e sua roupa estavam limpos
— o que não importava nada no absurdo de sua vestimenta. O vestido da tia lhe assentava pior
que qualquer saco, fazendo sua figurinha parecer ainda menor.
”Não é de admirar que as pessoas me olhem e riam”, pensou aborrecida.
Abriu-se a porta da loja e ela tirou os olhos de sua imagem refletida no espelho: era Henry
Whitesmith, rapaz alto e esbelto de uns 21 anos há muito apaixonado pela sobrinha de John
Simmons. Embora Heather nunca o tivesse encorajado, ele estava sempre por perto, a mirá-la
com adoração, pegando-lhe a mão quando possível.
55
Ela gostava dele, mas só como amigo. Veio imediatamente para perto dela e, sorrindo, lhe disse:
Vi a carroça de seu tio lá fora. Tive esperança de que estivesse com ele.
Ela lhe retribuiu o sorriso amigavelmente.
- É agradável vê-lo, Henry — falou. O rapaz corou de prazer.
— Por onde tem andado? Tenho sentido sua falta.
— Em lugar nenhum, Henry. — Ela deu de ombros. — Tenho estado em casa, com Tia Fanny.
Não quis falar da viagem a Londres. Sentiu os olhos do tio a vigiá-la, mas não se importou.
Tornou a abrir-se a porta e Heather pressentiu a identidade da pessoa antes de vê-la, sabendo que
Henry nunca andava sem aquele apêndice. A recém-chegada encaminhou-se para ele mas parou
de súbito ao dar com Heather. Sua expressão mudou, e Heather estremeceu sob aquele olhar
malévolo.
Não era a primeira vez que Sarah olhava Heather daquele jeito, ciumenta como era das atenções
de Henry para com outra moça. Daria tudo que pudesse para trazer Henry de joelhos a seus pés.
Suas famílias já haviam discutido o dote que traria para ele, ao se casarem, porém ele
teimosamente se opunha ao casamento — e Sarah sabia que a razão era a paixão dele por
Heather. Não importava que zombasse das roupas velhas de Heather, como o faziam as outras
moças da aldeia: tinha perfeita consciência — e elas também — de que, junto de Heather, mesmo
vestida assim, todas elas desapareciam. Seu próprio pai freqüentemente comentava a beleza fora
do comum da garota Simmons. Todos os homens, jovens e velhos, se apaixonavam pela moça
irlandesa.
Henry olhou zangado para Sarah antes de voltar a Heather:
— Tenho de falar com você — sussurrou com urgência, tocando-lhe o braço. — Poderia
encontrar-me perto do lago, mais tarde?
— Não sei, Henry. Tenho de ficar com meu tio. Tia Fanny não gosta que ande à toa sozinha.
— Se ele puder ficar de olho em você, poderá conversar comigo? — perguntou Henry,
esperançosamente.
Ela franziu a testa, confusa, e respondeu:
— Acho que sim, mas não por muito tempo.
— Faça com que ele traga você até o lago antes de irem embora. Estarei esperando.
Deixou-a sem nada mais dizer e esbarrou em Sarah ao sair da loja. Não demorou muito e a moça
saiu atrás dele.
Mais tarde, quando Tio John parou a carroça perto do lago, Heather desceu e foi até Henry, de
pé junto de uma árvore. Por um momento o rapaz nem pôde falar, olhando-a com adoração,
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acompanhando todos os traços do rosto perfeito. Quando o fez a voz estava insegura, trêmula de
emoção:
— Heather, acha que sua tia não me favoreceria, quero dizer não me acharia bastante bom para
cortejar você?
Surpresa, Heather o olhou e disse:
— Mas, Henry, eu não tenho dote!
— Ora, Heather, lá me estou importando com isso! Gosto de você, não do que pode trazer-me.
Ela nem acreditava! Aqui estava, realmente, o pretendente que julgou que nunca conseguiria por
não ter dote. Mas chegou tarde demais! Já não era virgem. não mais poderia desposar um homem
decente, maculada como estava.
— Henry, sabe tão bem quanto eu que sua família nunca o deixaria casar-se comigo sem um
dote. Nunca se fez isso.
— Não me casarei, Heather, se não puder ser com você, e minha família quer os meus filhos.
Eles virão logo atrás de nós,..
— Henry, não posso casar-me com você... — Heather torcia as mãos.
O rapaz franziu a testa e perguntou:
— Por que, Heather? Tem medo de um homem em sua cama? Se é isso, pode ficar tranqüila. Eu
não a tocarei até que se sinta pronta para mim.
Ela sorriu tristemente. Aqui estavam paciência e amor que lhe eram oferecidos e ela não podia
aceitar: o Comandante Birmingham providenciara isso. Que diferença entre os dois homens! Ela
nem podia imaginar o barbado comandante do Fleetwood sendo tão paciente com uma mulher.
Pena que não pudesse desposar Henry e levar uma vida normal e pacífica na aldeia e criar filhos a
quem ambos amariam. Mas agora nem era bom pensar nisso.
Murmurou com ternura:
— Henry, deveria importar-se com a Sarah. Ela o ama de verdade e seria uma boa esposa para
você.
— Sarah não sabe a quem ama — retrucou Henry, com aspereza. — Está sempre caçando algum
rapaz. acontece que agora sou eu.
Ela o repreendeu gentilmente:
— Não é assim, Henry. Ela não quer saber de mais ninguém, só de você. Quer muito casar-se
com você.
Henry não queria saber de nada e insistiu:
— Mas eu quero você para minha mulher, Heather, não uma garota como a Sarah, que só tem
um objetivo em vista.
— Não deveria dizer coisas que não são verdadeiras, Henry. Sarah seria uma esposa muito
melhor do que eu.
— Por favor! Não me fale mais dela! — gritou Henry. Estava com uma expressão atormentada,
não muito diferente da de Sarah.
57Só quero olhar para você, pensar em você. Por favor, Heather,
tenho de conseguir de seu tio permissão para namorar você. Não posso esperar muito mais para
torná-la minha esposa.
Aí estava: um pedido de casamento. Sua tia talvez ficasse surpresa. Mas era tarde demais. Agora
tinha de convencer esse gentil cavalheiro de que não podia casar-se com ele. Porém ele não
queria saber de razões. Que deveria fazer? Dizer-lhe o que lhe acontecera? Então ele sentiria
repulsa, nojo, e ela ficaria envergonhada.
— Henry, não perguntarei a minha tia se permitiria isso. Não posso casar-me com você. Não
seria justo para você. Eu nunca seria feliz aqui. Pois não vê, Henry? Fui criada de modo muito
diferente. Estou acostumada a que façam tudo por mim e a usar as roupas mais finas e caras. Não
ficaria contente como apenas uma esposa remendona...
O olhar dele causou-lhe uma dor aguda, embora Heather soubesse ser aquele o melhor meio.
Logo ele lamberia suas feridas e se daria conta de ter uma vida para viver sem ela. Agoniada, via-o
a fitá-la, cego pelas lágrimas.
— Oh, meu Deus! Amei-a no momento em que a vi! Não pensei em nada mais senão em você
nesses dois anos. e agora me diz que não sou bastante bom para você! Você tem um coração de
pedra, Heather Simmons! Que Deus a perdoe!
Heather estendeu-lhe a mão, implorativa, mas ele já se havia ido, sem ver por onde corria,
cambaleando, tropeçando, tornando a levantar-se. As lágrimas lhe subiam aos olhos e rolavam
pelas faces enquanto o via fugir desesperado. E pensou:
”Eu sou cruel! Feri-o fundo, e agora ele me desprezará!” Encaminhou-se para a carroça, a passos
lentos. O tio a observava. Agora, estava sempre a observá-la. Nunca iria parar com isso?
— Que aconteceu ao jovem Henry? — quis saber, quando apeou para ajudá-la a subir, seus
dedos lhe segurando o antebraço. Ergueu-a enquanto ela se apoiava a seu ombro.
— Pediu para cortejar-me — ela murmurou, tomando lugar ao lado dele no banco estreito.
Gostaria de não discutir o assunto. Sentia-se mal.
— E você lhe disse que não? — perguntou ele.
Ela acenou com a cabeça, vagarosamente, como se um movimento descuidado pudesse fazê-la
vomitar. Deu de ombros e ficou silenciosa, e ele, agradecidamente, ficou mirando a distância
sobre a cabeça do velho cavalo que os transportava, perdido em pensamentos.
Passou o primeiro de outubro e o tempo esfriou muito. Aqui e ali uma folha perdida caía ao chão
sobre o gramado ainda verde. Viam-se
58
esquilos em correrias ao longo da orla das árvores em busca de alimento para armazenar para o
inverno. Em breve seria tempo da matança — e Heather tinha pavor até de pensar nisso. Não
precisava de maiores encorajamentos para sentir-se doente. A cada manhã levantava-se da cama
com esforço, sentindo-se mal e indiferente a tudo, e imaginando se algum dia voltaria a sentir-se
bem. Com a carga extra de tarefas que a tia lhe atribuía, estava achando difícil esconder seu mal-
estar. Havia jurado nunca deixar a tia perceber que sofria, mas estava tornando-se difícil. Por
vezes, sentia-se tão fraca que esperava desmaiar a qualquer momento. Havia esperado que aquelas
lembranças tormentosas que a faziam doente a deixariam em paz. Mas continuavam com ela —
assim como seu estômago perturbado e os nervos desgastados.
— Pare de andar estonteada e acabe de lavar esses pratos, mocinha!
Heather sacudiu o torpor que a invadia e apressadamente esfregou outra tigela de madeira. Só
mais um pouquinho e poderia relaxar num banho quente e confortar seu corpo dolorido. Estava
cansada e fraca, com dores nas costas. Lavara muita roupa bem cedo, e toda a sua força fora
solapada com todo o serviço pesado da casa. Mais tarde, quase desmaiara ao transportar uma
carga de lenha.
Pôs os pratos de lado e arrastou a tina de madeira para o seu banho. Observando-a, a Tia Fanny
tirou da mesa outra tortinha e meteu-a quase inteira em sua enorme boca. Heather estremeceu
cogitando como a mulher podia comer tanto: parecia o passatempo favorito da tia.
Gostaria que a mulher fosse para a cama como o Tio John: preferia banhar-se em paz. Mas a tia
nem se mexia do lugar, de modo que Heather encheu a tina e experimentou a temperatura da
água. Estava agradavelmente quente. Desatou o vestido e deixou-o escorregar para o chão.
Ficou de pé diante da lareira, totalmente despida, a pele macia brilhando à luz do fogo, o corpo
esbelto claramente desenhado em seu brilho. Os seios se erguiam um pouco mais pesados, agora,
e estavam tesos, e havia uma leve curva arredondada em seu abdómen.
De súbito Tia Fanny engasgou com a torta que engolia. Com um grito estrangulado pulou da
cadeira, assustando a sobrinha que se voltou para olhá-la. Os olhos da mulher estavam
arregalados mirando-a com horror, e o rosto passara da cor de beterraba ao cinza escuro. Tia
Fanny atravessou o quarto em sua direção e Heather se encolheu, julgando-a louca. Foi agarrada
furiosamente pelos braços:
— Por quem foi engravidada? Que chacal conseguiu fisgar para isso? — guinchou a mulher.
Um choque tremendo se apoderou de cada nervo de Heather. Os olhos se arregalaram, ficou
muito pálida. Em sua inocência não
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havia pensado nisso. Enquanto estivera sob o domínio do Comandante Birmingham e lutara com
ele, não considerara as conseqüências dos atos dele. Pensara que o deixar de ficar menstruada na
época normal se devia a ter ficado tão transtornada com tudo que lhe acontecera. Mas agora sabia
que a coisa era diferente. Ia ter um filho... um filho daquele cafajeste.. grosseirão.. maluco! Oh!
Deus! Por quê? Por quê?
Lívida de raiva, Tia Fanny sacudiu Heather até que a cabeça da moça quase se rompeu.
— Quem é ele? Quem foi o sapo nojento? — gritou. Suas mãos arrocharam os braços de
Heather até arrancar um grito da moça. — Diga-me ou, por Deus, eu o espremerei de você!
Heather achou impossível pensar. Estava apalermada, insensibilizada pelo choque.
— Por favor... por favor..., me deixe... — murmurou, confusa.
Um olhar de entendimento cruzou o rosto de Tia Fanny, que empurrou Heather para uma
cadeira próxima e gritou:
— Henry.. foi ele, não foi? Seu tio disse que ele é muito amável com você, e agora sei a razão. Ele
é o pai. Se ele pensa que vai arruinar o meu bom nome na aldeia e sair flanando por aí, está muito
enganado. Eu lhe disse que, se você algum dia pecasse, teria de pagar por isso. e agora você vai
casar-se com Henry. Aquele sujo, imprestável! Ele pagará, vai ver só!
— Lentamente, algum senso se infiltrava no trauma de Heather. Ia dando-se conta do que a tia
estava dizendo a respeito de Henry. Trêmula e atrapalhada, obrigou-se a estar atenta. Não podia
deixar Henry levar a culpa. Não poderia feri-lo desse jeito e deixar que a desprezasse. Tremendo,
apanhou o vestido do chão e o colocou de jeito a encobrir sua nudez. E falou, baixinho:
— Não foi Henry. A tia deu uma volta:
— Que foi que disse?
Heather sentou-se imóvel, fitando o fogo, e repetiu:
— Não foi Henry.
— E quem então, se não foi aquele tratante? — perguntou a mulher, ferozmente.
— Foi um comandante de um navio, que veio das colónias — Heather suspirou
indiferentemente, encostando a cabeça contra a cadeira em que se sentava. As chamas lhe
iluminavam o rosto. — Seus homens me encontraram e me levaram a ele e ele me violentou. Esta
é a verdade, por Deus.
Que importava agora se ela falasse sobre o defloramento que sofrera nas mãos daquele homem?
Dentro de alguns meses todo mundo saberia da sua gravidez a menos que a tia a prendesse em
casa, não
60
lhe permitindo ir à aldeia. Mesmo então, como explicariam a presença da criança após seu
nascimento?
As sobrancelhas da tia se franziram, em confusão.
— Que é que você está dizendo? Encontraram você quando? Onde foi isso? — perguntou.
Heather não podia dizer à mulher a respeito da morte de William.
— Perdi-me de seu irmão e os homens do ianque me encontraram — ela murmurou ainda
fitando o fogo. — Eles me levaram a seu comandante para seu prazer, e ele não me deixou ir. Só
ameaçando balear o seu criado é que eu recuperei a liberdade. E vim direto para aqui.
— Como é que você se perdeu de William? Heather fechou os olhos:
— Fomos.. a uma feira... e de alguma forma nos separamos. Eu não contei a você antes porque
não vi necessidade disso. É o filho do ianque que eu carrego, não de Henry. Mas o homem não
se casará comigo. Ele é desses que só fazem o que querem e não vai querer casar-se comigo.
A carranca se desmanchou do rosto de Tia Fanny e um lento e ameaçador sorriso a substituiu,
enquanto ela falava:
— Veremos isso! Agora, diga-me, seu pai não tinha um amigo que era juiz em Londres? Lord
Hampton era o nome dele, não era? E ele não controlava a investigação de todos os navios
suspeitos de contrabandear?
Heather sentiu-se confusa. Seus pensamentos estavam muito desordenados para lhe permitirem
qualquer compreensão para as perguntas da tia. Respondeu hesitante:
— Sim, Lord Hampton ainda é juiz, ao que eu saiba. Mas por que...
— Não se incomode com as razões. — O sorriso aumentou. — Quero saber mais a respeito de
Lord Hampton. Ele conhece você e era bom amigo, de seu pai?
Heather franziu a testa e respondeu:
— Lord Hampton era um dos amigos mais chegados de meu pai. Vinha à nossa casa com
freqüência. Conheceu-me quando eu ainda era um bebê.
— Bem, tudo que você precisa saber agora, senhorita, é que ele vai ajudar você a casar-se —
disse Tia Fanny com uma expressão fria e calculista. — Agora tome o seu banho é vá para a
cama. Vamos para Londres amanhã e teremos de acordar cedo para não perder a diligência que
passa pela aldeia. Não fica bem ir numa carroça qualquer para falar com Lord Hampton. Agora
apresse-se.
Heather levantou-se com esforço, completamente aturdida pelas palavras de sua tia. Por que a
mulher queria saber a respeito de Lord
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Hampton, ela pensava, porém Tia Fanny era uma idealizadora de planos tortuosos e não
adiantava fazer-lhe perguntas. Obediente, Heather entrou no banho, sentindo uma opressão no
baixo-ventre como se estivesse grávida somente agora, e incólume todo o tempo antes.
De qualquer forma não havia dúvidas de que ela estava grávida. Ela devia ter esperado isso
daquele touro ianque. Forte, potente, vigoroso, ele havia cumprido seu dever de homem com
uma facilidade que ela achava extraordinária. Era estranho como tantos homens suavam em cima
de suas companheiras mês após mês, sem nada conseguir, e ela teve a infelicidade de ser levada
para a cama por um macho tão viril.
”Ele é abominável!”, ela gritou interiormente, e acrescentou, tremendo: ”Ele é um demónio!”
Um grito abafado e ela estremeceu mais violentamente, dando-se conta do que significaria para
ela ser forçada a casar-se com ele. Sua alma e sua vida estariam perdidas, casada com o covarde.
Estaria condenada.
Porém pelo menos a criança teria um nome e talvez algum bem resultasse de tudo isso.
Seus pensamentos se desviaram para a criança ainda não nascida. Devia ser de cabelos escuros,
visto que ambos os pais eram assim, e seria bonitão se parecesse com o pai. Pobre criança, seria
melhor se nascesse feia do que ser um bonito patife como seu pai.
Mas. e se em vez de um menino fosse uma menina? Seria um grande logro para a confiança do
homem se isso acontecesse, um bruto varonil. Se se casasse com ele, Heather pensou
venenosamente, rezaria para que viesse uma menina.
Antes que terminasse o banho, Heather ouviu o tio a mover-se no outro quarto para onde tinha
ido a Tia Fanny quando a deixara. Suas vozes abafadas lhe chegavam enquanto ela se banhava. A
mulher nunca poderia ter esperado até de manhã para contar-lhe a respeito do estado de Heather.
Heather levantou-se da tina e enrolou a toalha no corpo quando o tio entrou no quartinho:
pareceu-lhe que ele envelhecera 10 anos.
— Heather, minha filha, preciso falar com você, por favor.
Ela corou levantando a toalha para cobrir sua nudez. Ele pareceu não notar que ela estava sem
roupa.
— Heather, você está dizendo a verdade? Foi esse tal ianque que plantou a sua semente em você?
— Por que pergunta? — Ela disse medrosamente.
John Simmons esfregou a testa com a mão trêmula e perguntou:
— Heather... Heather, William não tocou em você? Ele não a machucou de alguma forma,
menina?
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Agora Heather soube por que seu tio a observava tão atentamente desde que ela voltara de
Londres. Ele conhecia William e se preocupara por causa dela. Ela agora poderia tranqüilizá-lo.
— Não, tio, ele não me machucou. Nós nos separamos na feira, Sabe, havia uma feira, e eu
queria ir, e ele foi muito bom para levarme. Mas eu me perdi, não conseguia encontrá-lo. Foi
quando aqueles homens me acharam e me levaram a seu comandante. O ianque é o pai.
Um suspiro de alívio escapou do homem e um trêmulo sorriso lhe atravessou o rosto.
— Pensei. pode deixar — falou ele. — Digamos que eu me preocupei a seu respeito, mas agora
devemos encontrar o homem que é o pai e dessa vez eu não lhe falharei. A filha de meu irmão,
não posso falhar de novo.
Heather tentou um sorriso para o tio. Não poderia dizer-lhe que não adiantava ir a Londres falar
com o Comandante Birmingham, porque o homem não se casaria com ela. Ficou calada.
Quando chegaram a Londres, alojaram-se numa hospedaria. Tio John imediatamente enviou
mensagem a Lord Hampton pedindo-lhe uma entrevista e no dia seguinte foi recebido pelo
homem em sua casa. Heather e a tia ficaram na hospedaria para esperar o resultado da entrevista.
Heather não ousou perguntar sobre o que falaram, mas estava mais do que curiosa. Quando Tio
John voltou, foi diretamente conferenciar com a esposa. Pareceu a Heather que, fosse o que fosse
que planejassem, as coisas iam bem, porque o tio estava de melhor humor do que quando saíra.
Disseram-lhe que fosse para a cama cedo nessa noite depois que o tio a tranqüilizou. Lord
Hampton iria resolver seus problemas.
— Ele só quer saber se você está dizendo mesmo a verdade e ele fará o que deve. E seu ianque
não poderá recusar casar-se a menos que queira perder tudo que tem e ser atirado numa prisão.
Heather não entendia nada. Eles não podiam pôr um homem numa prisão por ter se recusado a
casar-se com uma mulher a quem havia engravidado. Havia bastardos demais andando pela
cidade sem que alguém fizesse alguma coisa, e ela apenas podia pensar nas conseqüências para si
mesma se fosse forçada ao casamento. Sua vida seria um verdadeiro inferno e nenhuma outra
palavra a descreveria tão bem. Mas ela não tinha voto no caso. Estava fora do seu controle. E
não podia pensar no que seria pior: ser casada com o demónio ou ter de dar à luz um filho
bastardo.
Era quase meia-noite, nessa mesma noite, quando ela foi acordada rudemente do seu sono pelas
mãos brutas da Tia Fanny a sacudi-la.
— Levante-se, danadinha. Seu tio quer falar com você. — Heather sentou-se estonteada e olhou
para a tia de pé junto à sua cama,
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segurando uma vela acesa acima de sua cabeça. — Ande, depressa. Não temos a noite inteira.
A tia recuou para as sombras, saindo do quarto, e Heather ficou olhando para ela por um
momento, piscando. Relutantemente empurrou as cobertas. Seu corpo alvo brilhava na escuridão
e o cabelo solto misturava-se ao negrume. Pela primeira vez em muitas semanas dormira sem
sonhar. O tamborilar da chuva nas janelas havia ninado seus pensamentos perturbados numa
pacífica quietude e ela caíra num doce esquecimento. Sua má vontade em levantar-se da cama,
agora, era compreensível. Porém devia obedecer à tia ou sofrer as conseqüências
Sonolentamente saiu do leito quente, pegou o velho vestido da tia e enfiou-se nele. Não se
preocupou em amarrá-lo. Logo depois ela teria mesmo de tirá-lo novamente. Tinha uma ideia de
por que queriam falar com ela. Estava bem preparada para ouvi-los dizer que o Comandante
Birmingham se recusara a ser coagido ao casamento. Não seria surpresa. Eles poderiam ter-se
poupado a viagem a Londres se lhe tivessem perguntado a respeito do homem. Não levaria muito
tempo para dizer-lhe o que ele havia falado.
À sua primeira tímida batida, a porta foi escancarada pela tia. A mulher puxou-a para dentro com
uma carranca odiosa. Ao entrar no quarto só se deu conta da escuridão que ali reinava. Havia um
pequeno fogo na lareira e só uma vela queimava na mesa onde seu tio e outro homem estavam
sentados, bebendo cerveja em canecas de estanho. O resto do quarto estava obscuro e as
sombras eram profundas. Ela se aproximou cautelosamente para ver quem era o visitante: não
era um estranho, mas um grande amigo da família, Lord Hampton.
Com um grito de alívio, Heather atirou-se aos braços que ele estendia para ela:
— Heather! Minha pequena Heather!
Ela se abraçou com ele, aos soluços. Depois de seu pai, esse homem era quem ela mais amara em
sua infância. Fora extraordinariamente bom para ela e era mais do que um tio. Ele e a esposa
haviam querido que ela morasse com eles após a morte do pai, mas Tia Fanny insistira para que
ela fosse viver com seus únicos parentes.
— Há muito tempo eu não via você, minha filha... — murmurou, afastando-a um pouco para
poder olhá-la melhor. Seus bondosos olhos azuis piscaram para ela. — Lembro-me de quando
você não passava de um tiquinho de gente e subia em meus joelhos, procurando balas. E agora,
vejam só, um retrato da própria beleza! Nunca vi tamanha beleza antes. Você ainda é mais bonita
que sua mãe! Uma pena que eu não tenha algum filho para casar-se com você.. Gostaria muito de
tê-la na família: já que não tenho filhas, talvez você pudesse ser minha filha...
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— Seria uma grande honra ser sua filha — respondeu docemente encostando o rosto no dele.
Lord Hampton sorriu com prazer e pegou uma cadeira para que ela se sentasse. porém a Tia
Fanny empurrou Heather, sentando-se ela mesma, desafiadoramente.
— Deixe-a ficar de pé: isso vai lhe fazer bem — e a cadeira rangiu em protesto quando colocou
seu vulto monstruoso nela.
Apanhado de surpresa pela dureza da mulher, Lord Hampton ficou por um momento de olhos
arregalados. Depois acomodou-se numa cadeira ao fim da mesa:
— Talvez ficasse mais confortável aqui, minha querida — disse a Heather, puxando uma cadeira
de junto da mesa.
— Não! — grunhiu Tia Fanny. Fez um gesto para o fundo da sala: — Essa cadeira é para ele.
Heather olhou, surpresa. Não sabia que havia mais alguém na sala. O homem estava sentado no
escuro, e seu silêncio não indicava sua identidade.
— Venha e junte-se a nós, Comandante Birmingham — grunhiu Tia Fanny. — É um lugar
adequado para um ianque.
— Não, obrigado, madame — uma voz baixa e confiante respondeu. — Estou satisfeito onde
me encontro.
Com a voz familiar a queimar-lhe o cérebro, os joelhos de Heather tremeram e ela quase
desmaiou. Com um grito, Lord Hampton correu para ampará-la.
— Ela teve um choque! — declarou segurando-a nos braços. Com muita gentileza colocou-a na
cadeira oferecida pelo Comandante Birmingham e nervosamente pegou um lencinho, umedeceu-
o e apertou-o no pálido rosto da moça, inclinando-se sobre ela. Perguntou ansiosamente quando
os olhos dela se abriram:
— Está melhor?
— Não estrague a moça, Lord Hampton — sugeriu Tia Fanny com uma fungadela. — Ela vai
abusar do senhor.
— Estou certo de que ela merece um descanso depois de ter vivido com você — ele replicou
bruscamente, zangado com a indiferença da mulher.
— Por favor — suspirou Heather. — Estou bem.
Ele afastou os cabelos dela da testa com dedos trêmulos, rindo agitadamente.
— Você assustou meu velho coração.
— Desculpe — murmurou — eu não queria isso. Estou melhor agora.
Mas ainda tremia, cônscia daqueles olhos fitos nela. Com dedos trémulos fechou bem o vestido
no peito, lembrando aquele olhar penetrante que parecia despi-la.
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— Vamos com isso — disse a Tia Fanny. — Vamos ouvir o que essa pequena tem para dizer.
Lord Hampton olhou para Heather, temendo que desmaiasse outra vez. Os lábios dela deram um
trêmulo sorriso, e ele voltou ao seu lugar do outro lado da mesa.
— Agora, agindo da forma como vai, senhorita — começou Tia Fanny — Lord Hampton quer
assegurar-se de não cometer nenhuma injustiça fazendo que ele assuma a paternidade de um filho
que é de outro.
Os olhos de Heather iam vagarosamente de sua tia para o homem idoso. Sentia-se muito confusa
para compreender inteiramente o que estavam dizendo. Lord Hampton falou para sua tia:
— Senhora, talvez não saiba, mas eu tenho uma língua, e mais eloqüente do que a senhora pode
pensar. Se não se importa, falarei por mim mesmo.
Melindrosamente, Tia Fanny fechou a boca e sentou-se.
-— Muito obrigado -— disse Lord Hampton brevemente, antes de voltar-se e olhar novamente
para Heather.
— Minha querida — começou, descansadamente. — Como sou um homem de honra, não posso
obrigar o Comandante Birmingham a assumir uma paternidade a menos de que esteja certo de
que ele é o pai. Se você esteve com algum outro...
— Não houve ninguém mais — ela lhe garantiu calmamente, olhando para as próprias mãos.
Relatou os detalhes como se os tivesse decorado. — Depois que fugi dele, tomei a diligência para
a casa do meu tio. Havia apenas uma diligência, durante o dia, que passava pela aldeia. Chegou à
aldeia ao escurecer e andei o resto do caminho até a casa. Não encontrei ninguém no caminho
nem haveria tempo para demorar-me. Minha tia é testemunha da hora em que cheguei a casa.
— E desde então ela não saiu de baixo das minhas vistas um só momento! — afirmou a mulher
triunfantemente.
Lord Hampton relanceou um olhar para o Tio John: recebeu um aceno de assentimento. Em
seguida, voltou-se.
— E antes, Heather? — perguntou.
Ela corou fortemente e não respondeu. Das sombras veio a mesma voz forte:
— A criança é minha — Brandon afirmou friamente.
Uma risadinha irônica veio de Tia Fanny, e ela se virou para Lord Hampton com um sorriso
vitorioso.
— Então, o que é que o senhor diz agora? Vai tomar providência? — perguntou ela.
— Sim — ele suspirou. — Devo fazê-lo para desmanchar a grande injustiça infligida a Heather,
mulher. Lamento o dia em que lhe permiti tomá-la sob o seu teto. Você deveria ter guardado
mais
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cuidadosamente essa gema preciosa. — Seu olhar zangado voltou-se para Tio John que se
sentava quietamente, envergonhado. E você que é do mesmo sangue, não tem valor aos meus
olhos. Você me enoja.
— É, e quanto a ela? — gritou Tia Fanny. Foi ela que fez isso. Foi ela que rastejou para o leito
com o sujeito.
— Não! — Heather gemeu.
A negativa involutária escapou-lhe antes que ela se desse conta de que estava falando. Com um
rugido, Tia Fanny se voltou e maldosamente esbofeteou-a, batendo tão forte que o lábio sangrou
e a face ficou marcada.
Na escuridão por trás de Heather a caneca de cerveja foi batida na mesa com raiva. À sua frente,
através das lágrimas de dor, Heather viu que Lord Hampton dera um salto. Inclinou-se para a
frente e plantou as mãos firmemente na mesa, falando ameaçadoramente para sua tia:
— Madame, suas ações são da natureza mais baixa! Você tem maneiras de bárbara e, se fosse um
homem, eu lhe pediria satisfações pelo que acabou de fazer. Agora eu penso que é melhor que
Heather vá para a cama. Claro que ela está transtornada com tudo isso.
Julgando-se dispensada, Heather levantou-se da cadeira e encaminhou-se para a porta, mas a tia
pegou-a pela frente do vestido e rosnou:
— Não, por uma vez, ela vai permanecer e levar o que lhe é devido. Nenhuma moça decente se
mete em trapalhadas com um homem. Tentei fazer o melhor para inculcar-lhe o temor a Deus,
mas ela é a própria filha do diabo. Vejam só o que ele fez a ela.
Brutalmente Fanny rasgou-lhe o velho vestido deixando que todos vissem a beleza do seu corpo.
Nas sombras uma cadeira foi virada quando o Comandante Birmingham se pôs de pé, zangado.
Atravessou a sala em largas passadas, e Fanny recuou, vendo aquela alta silhueta e o rosto
zangado, avermelhado pelo brilho do fogo. Os olhos dela se arregalaram e seus pés ficaram
pregados no chão. Ela se lembrou de acusar Ehather de ter nascido uma feiticeira e estava certa
de que esse homem diante dela era a encarnação de Satanás. Pôs as mãos para diante para se
defender, mas o ianque foi passando por ela e colocou o seu casaco nos ombros de Heather,
enquanto ela tentava desesperadamente ocultar sua nudez. Ele a envolveu no casaco, fazendo
Heather tremer mais violentamente de medo. A proximidade do corpo dele por si mesma era
terror.
Acima da cabeça escura da moça, um músculo tremia furiosamente na face de Brandon,
enquanto seu olhar frio abarcava as três pessoas que o olhavam.
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- Chega de tanto falatório — disse friamente. — Desde que a moça está carregando o meu filho,
sua manutenção fica sob minha responsabilidade. Adiarei minha viagem para casa com o objetivo
de ver Heather confortavelmente estabelecida numa casa própria, com serviçais para cuidar dela.
— Olhou para Lord Hampton. — Dou-lhe minha garantia de que ela e a criança serão
sustentadas de maneira adequada à sua criação. Sem dúvida ela não mais deverá viver com seus
parentes, e nem eu permitiria que meu filho se submetesse à maldade desta mulher que se diz tia.
Eu havia planejado fazer desta a minha última viagem até aqui, porém, sob tais circunstâncias,
continuarei a vir todo ano para que possa providenciar o bem-estar dos dois. Amanhã de manhã
tratarei de achar acomodações apropriadas para a moça, e então, posteriormente, voltarei aqui
para buscá-la e levá-la a um negociante de roupas a fim de que se vista de modo mais
conveniente. Agora, senhor, desejo regressar ao meu navio. Se tem mais o que dizer a estas
pessoas, aguardarei na sua carruagem até que tenha concluído as negociações. — Virou o olhar
fixo diretamente para Tia Fanny e falou ameaçadoramente, de forma lenta e precisa: — Sugiro,
madame, que use as mãos para si mesma enquanto esta moça estiver aos seus cuidados, senão se
arrependerá muito de não o ter feito.
Dizendo isso, afastou-se deles em direção à porta, e Heather captou um instante de seu perfil
zangado, aristocrático, e seu corpo, alto e elegantemente esguio, vestido com um veludo
vermelho-escuro; em seguida retirou-se, deixando apenas um voto de sustentar seu filho bastardo
e a mãe. Ninguém sequer lhe apresentara o assunto casamento. Ele ia torná-la uma amante.
— Ele não estará mais tão altivo depois que cuidarmos dele — resmungou Tia Fanny.
Lord Hampton olhou-a com olhos frios.
— É com imensa repugnância que devo agir para satisfazer seu ímpeto vingativo — declarou
bruscamente. — Não fosse por Heather, eu consideraria o assunto como encerrado. Mas devo,
pelo bem dela, levar este homem até o altar. Porém devo avisá-la, madame, de que o homem é
genioso. Seria aconselhável que a senhora se preocupasse com as palavras dele.
— Ele não tem o direito de me dizer como tratar a moça.
— Está enganada, madame — replicou o juiz, lentamente. — Ele é o pai do filho dela e, dentro
de poucas horas, será seu marido.
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Capítulo Três
O sol chegava em raios cintilantes através das janelas salpicadas de água e tocou no rosto de
Heather, acordando-a. Ela espreguiçou-se meio desperta, em êxtase, bem aconchegada no leito
fofo, enquanto abraçava um travesseiro. Sonhara que continuava na casa do seu pai. Agora uma
brisa macia se filtrava pelas cortinas entreabertas e chegava ao leito para acariciar-lhe o rosto.
Heather respirou profundamente e soltou o fôlego com um suspiro agradecido. O habitual enjoo
da manhã tinha desaparecido, deixando-a gozar o perfume do outono no ar. Abriu os olhos e
sentou-se sobressaltada.
O manto do Comandante Birmingham estava nas costas de uma cadeira junto da cama,
evocando-lhe pensamentos que corriam com uma rapidez que só o medo poderia provocar.
”O louco arrogante!”, ela sibilou venenosamente. ”Será que ele pensa que pode pôr-me numa
casa e tornar-me sua amante? Antes darei à luz na sarjeta do que aceitarei sua proposta!”
Mesmo agora, ela pensou mal-humoradamente, ele está provavelmente pensando como será
romântico quando me levar para casa e carregar-me para o quarto de dormir. Há de julgar-me
grata por sua generosidade, e que eu me submeterei a ele de boa vontade. Eu não seria melhor do
que uma prostituta! Não! Melhor cortar minha garganta de orelha a orelha do que deixar que ele
faça de mim sua amante. Ele não pode tocar minha barriga com suas mãos vis e saber que seu
filho bastardo cresce dentro de mim! Não! Nunca me submeterei a ele desta maneira!
Mas o que lhe aconteceria se a obrigassem a casar-se com ele, ela imaginava freneticamente. Teria
de submeter-se a ele e obedecer-lhe. E ele não era muito gentil quando estava enraivecido.
— Oh! Que ele não me machuque muito — murmurou, trêmula de medo.
Um momento depois bateram à porta e, em vez de usar aquele odiado casaco dele outra vez,
arrancou o lençol da cama e o enrolou em torno de si, jogando sua ponta em cima do ombro.
Assim vestida, abriu a porta e encontrou uma mulher de cabelos grisalhos e, por trás
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dela, duas moças não mais velhas do que ela própria, carregando uma quantidade de caixas.
— Senhorita Heather — a mulher mais velha disse com um sorriso. — Sou a Sra. Todd e essas
duas moças são minhas ajudantes. Viemos a mando de Lord Hampton, e estamos aqui para
prepará-la para o seu casamento.
Algo de glacial apertou o coração de Heather e lhe enviou um espasmo de medo por todo o
corpo. Apoiou-se à cadeira mais próxima, receando que seus joelhos não a agüentassem. A Sra.
Todd não observou nada demais em sua palidez ou em suas mãos trêmulas. Ela estava demasiado
ocupada auxiliando as duas moças com todas aquelas caixas.
— Fez uma refeição esta manhã, querida? — perguntou, virando-se afinal para Heather.
Heather murmurou, balançando a cabeça:
— Não.

— Oh! Bem, não se aborreça com coisa alguma, querida. Mandarei uma das moças lá embaixo
para preparar-lhe o desjejum. Não queremos que você desmaie de fome durante a cerimônia, não
é mesmo? E temos muito que fazer até então. Você tem de poupar suas forças, franzina como é.
— Quando será o casamento? — Heather conseguiu perguntar. A mulher não mostrou surpresa
ante a estranha pergunta feita pela jovem noiva.
— Esta tarde, querida.
Heather escorregou na cadeira com um fraco "oh!".
— Alguém deveria ter-lhe dito, querida, mas com tudo tão apressado compreendo que tenham
esquecido de fazê-lo. Diz o lorde que o noivo está ansioso para se casar e não admite adiamentos.
Certamente posso ver a razão dele para tal impaciência: você é tão linda, querida!
Heather porém não estava ouvindo. Sua imaginação já a levava para a noite vindoura quando
estivesse deitada ao lado do Comandante Birmingham, sentindo sua respiração arquejante contra
sua boca e suas mãos fortes e rudes em seu corpo. A esse pensamento as faces lhe ardiam. Ele
não se importaria em deixá-la marcada, e ela se perguntava se seria capaz de parar de tremer e não
o deixar ainda mais zangado por estar lutando.
Pulou da cadeira num movimento nervoso e foi até a janela, temendo não ser capaz de controlar-
se. Mordia o lábio inferior enquanto sentia a tensão aumentando. Esperou que tivesse mais
tempo. Não sonhara sequer que a obrigassem a casar-se tão depressa. Como poderia ela ir para
ele agora calmamente e deixar que ele fizesse com ela o que quisesse?
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Para seu susto, seus momentos de liberdade desapareciam com uma rapidez aterrorizante. Como
numa névoa, encontrou-se alimentada banhada, perfumada e preparada, completamente
estonteada. Nenhum momento dessa manhã lhe pertenceu. Enquanto a puxavam, arrastavam,
aguilhoavam, ela pensava que poderia gritar de raiva para que a deixassem. A refeição do meio-
dia chegou e, embora não tivesse fome, fingiu comer só para que a deixasse descansar, jogando a
comida pela janela para um vira-lata esfomeado quando não estavam olhando para ela. Mas, logo
que a bandeja foi levada embora, tudo recomeçou. Nenhuma parte do seu corpo ficou intocada,
não importa que vergonha isso lhe causasse e, quando tentou protestar, as três argumentaram:
— Mas, mocinha, um toque de perfume aqui ou ali fará de um tímido, um homem confiante e
forte.
Heather pensou desvairadamente que justo o oposto era necessário para o homem com quem se
ia casar.
Finalmente foi dada como pronta e pela primeira vez lhe permitiram que se contemplasse. O que
ela viu era ela mesma, embora nunca a Heather, que ela sempre conhecera. Jamais se vira daquela
maneira. Por um momento aterrorizante percebeu a beleza que os outros viam e achavam rara.
Seu cabelo escovado até brilhar como seda foi enrolado no topo da cabeça lembrando o
penteado de uma deusa grega. Uma tiara de grampos dourados e pérolas a coroava, e abaixo dela
felinos olhos azuis a miravam, alarmados. O amendoado de seus olhos era orlado pelos negros
cílios e ainda mais dignos de atenção devido ao estilo do penteado. As maçãs do rosto, frágeis e
altas, permitindo um ligeiro encovado abaixo delas, haviam sido massageadas e já não estavam
pálidas. A boca rosada e macia se entreabria levemente, de medo.
— Não deve haver moça mais bonita do que você, Srta. Heather. O momento passou para
Heather e ela tornou a examinar suas vestes. Carinhosamente, Lady Hampton enviara como
presente seu próprio vestido de núpcias — linda peça no estilo de um hábito de monge,
completo e até com capuz. Era de um azul cor de gelo e feito de cetim, rico e pesado cetim,
cortado em linhas simples e elegantes. As mangas chegavam aos pulsos e, como a blusa, eram
bem folgadas. Bordados dourados e inúmeras pérolas enfeitavam o capuz e as mangas, e na altura
dos quadris havia um cinturão de grande beleza e valor. Era de couro dourado e bordado com
pérolas e rubis. Uma cauda bem longa esperava para ser presa com cadeias douradas e seu pesado
cetim era ricamente bordado a ouro e pérolas.
”Um traje digno de uma rainha”, pensou Heather melancolicamente
Franziu a testa subitamente e tornou a caminhar para a janela. Aproximava-se a hora de sua
condenação. O tempo corria rápido e ela tremia.
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”Por uma vez na minha vida”, ela orou silenciosamente, ”por favor, oh! por favor, que eu seja
corajosa”.
Por trás dela escancarou-se a porta e a Tia Fanny entrou.
— Muito bem, vejo que está vestida com que há de melhor — a mulher escarneceu. — E
suponho que se está achando muito bonita, não está? Mas não tem melhor aparência do que a
que tinha nos meus velhos vestidos.
A Sra. Todd retesou-se como se um insulto lhe fosse dirigido.
— Queira desculpar, senhora! — disse.
— Cale a boca — Tia Fanny falou com impertinência.
— Por favor, Tia Fanny — pediu Heather suavemente. — A Sra. Todd trabalhou muito.
— Claro, estou certa de que sim. Com você!.
— Madame — disse a Sra. Todd friamente — a moça não merece nenhuma crítica. Ela é, de
longe, a moça mais linda e graciosa a quem jamais tive o prazer de servir ou apenas de ver.
— Ela é filha de Satanás! — Tia Fanny silvou. — Sua beleza provém dele, e por causa dela
nenhum homem encontrará paz depois de a ter visto. É o modo empregado pelo diabo para
fazer um homem perder-se por uma feiticeira, e para mim ela é feia. Esse homem com quem ela
vai casar-se combina bem com ela. Os dois são produto do demónio!
— Que tolice! — exclamou a Sra. Todd. — A moça é um anjo!
— Anjo, é? Suponho que não lhe tenha contado por que vai casar-se com tanta pressa, não é?
Do vão da porta pelo qual se aproximara para parar e escutar, Tio John falou com voz lenta mas
firme:
— É porque o Comandante Birmingham deseja-a sem mais delongas, não é mesmo, Fanny?
A obesa mulher virou-se, insultada, pronta para rosnar-lhe uma negativa, mas alguma coisa, talvez
seu medo do comandante ianque, fez com que omitisse as palavras que lhe afloraram aos lábios,
antes de pronunciá-las. Ao invés disso, dirigiu-se para a sobrinha como se fosse beliscá-la, mas
Heather rapidamente saiu do seu caminho, raciocinando que, quanto menos dor sofresse agora,
mais bem preparada estaria para ela mais tarde.
— Posso dizer que ficarei feliz em me ver livre de você — vociferou Tia Fanny. — Não é um
prazer vê-la por aqui.
Heather vacilou diante da crítica mordaz. Lágrimas vieram-lhe aos olhos quando se virou de
novo para a janela. Por toda a vida sentira falta do amor dos seus parentes. O que o seu pai lhe
dera fora marcado pela infelicidade, e agora ela estava destinada a passar a existência sem
conhecer outro amor. Mesmo o filho, se ia ser um
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garoto, que ela carregava, seria provavelmente encorajado a odiar a mãe por um pai que seria
forçado a sê-lo. Jamais haveria outra oportunidade para o amor em sua vida.
Uma hora depois, tesa e sem sorrir, Heather desceu os degraus da carruagem alugada, com a
ajuda de Tio John. A imensa catedral agigantava-se para o alto, esmagadora em sua grandiosidade,
e ela, pequena e insignificante à sua frente, subiu a escadaria apoiada no braço do tio. Ignorava o
mundo em sua volta. Fazia as coisas mecanicamente. Punha um pé na frente do outro como se
fosse empurrada pelo tio. A Sra. Todd, que viera com intenção de prestar assistência de última
hora, caminhava ao seu lado, mexendo com a cauda do vestido da noiva, que ela segurava. A
mulher desmaiaria se alguma coisa acontecesse a ele. Ela se preocupava e reclamava como uma
galinha-mãe junto à ninhada, mas Heather mal notava sua presença. Apenas olhava fixo para a
frente, na direção do alto portal principal da catedral, que se aproximava a cada passo que ela
dava. Ele se abria escuro e sinistro, aguardando com paciência enlouquecedora para tragar sua
vida. Em seguida ela se viu sob sua moldura em arco, caminhando para a sacristia, e parou
porque o tio parou. A música do órgão retumbava em seu coração, e soava alto nos ouvidos. A
Sra. Todd saltitava à sua volta, endireitando o véu por sobre a cabeça, ajustando a longa cauda
nos ombros com as correntes douradas e espalhando-a em toda a sua extensão. Alguém
entregou-lhe uma pequena Bíblia branca com uma cruz dourada estampada no couro macio, e ela
a pegou sem pensar.
— Belisque suas faces, Heather — repreendia severamente Tia Fanny perto dela, em algum lugar.
— E pare de ficar com essa cara tão assustada, senão eu mesma a belisco.
A Sra. Todd observou a mulher, depois cumpriu seu dever, trazendo alguma vida às faces de
Heather por conta própria.
— Você é a rainha do dia, amor — sussurrou para Heather, e fez um ajuste final na tiara e no
véu.
A música mudou junto com as pancadas do coração de Heather. O choque tirou-a do
entorpecimento.
— Está na hora, querida — disse tranqüilamente a Sra. Todd.
— Ele. ele está lá? — murmurou Heather para a mulher, ansiando que ele finalmente se tivesse
recusado a aparecer.
— Quem, meu bem? — perguntou a mulher.
— Ela quer dizer o ianque — envenenou Tia Fanny.
— Sim, coração — replicou a Sra. Todd. — Ele está diante do altar, aguardando por você. E é
alto e bonitão, pelo que vejo daqui.
Heather inclinou-se fracamente contra a Sra. Todd, e a mulher mais velha deu-lhe firmeza,
ajudando-a com um braço e um sorriso, encaminhando-a para a porta.
73-
- Daqui a pouquinho tudo estará resolvido, querida — disse, dando um encorajamento final antes
de a porta abrir-se inteiramente.
Logo após Lord Hampton lhe oferecia o braço, que ela pegou mecanicamente, caminhando com
pernas trêmulas ao lado dele, pela nave. Ouvia as batidas de seu próprio coração e sentia o peso
da Bíblia na mão. A cauda do vestido — que se prendia a seus ombros — também era um peso
que a incomodava, parecendo retardá-la; contudo, ela andava, enquanto o grande órgão abafava
todos os outros sons — inclusive as pulsações do seu coração.
As velas do altar ardiam por trás do grupo que ali aguardava, transformando-o em sombras na
igreja meio escura. Mas, pela altura, ela sabia qual era o seu futuro marido. Ninguém no mundo
parecia tão alto como ele...
Ela se aproximou, e a luz das velas iluminou a face do homem, fazendo com que Heather se
detivesse por um segundo, por causa das feições frias e severas. Ela sentia um desejo dominador
de fugir. Seu lábio inferior tremeu, mas ela o mordeu nervosamente para deter aquele covarde
tremor, enquanto Lord Hampton se afastava, deixando-a sozinha. Os olhos verdes à sua frente a
percorreram insultantemente da cabeça aos pés, despindo-a do vestido de noiva de maneira cruel
e impiedosa, e Heather tremeu com mais violência. O ianque esticou a mão forte e morena,
oferecendo-a a ela, enquanto seu olhar lúbrico lhe provocava profundo avermelhado no rosto
pálido. Relutantemente ela ergueu a mão, fria como gelo, e colocou-a naquela outra muito maior,
muito mais quente, e ele a guiou pelo restante dos degraus do altar.
Lá estava ele, alto e forte, ricamente vestido de veludo preto e branco, impecável. Para ela, era
Satã. Bonitão. Impiedoso. Mau. Ele poderia arrancar-lhe a alma do corpo e jamais sentir remorso.
Se ela era corajosa, deveria recuar agora, antes de fazerem os votos, e fugir, voando, da loucura
que lhe estavam fazendo. Todos os dias mulheres davam à luz a bastardos, e criavam-nos nas
ruas. Por que ela não era tão corajosa? Certamente esmolar por comida e ser indigente era mal
menor que ser atirada no fogo do inferno.
No entanto, mesmo discutindo consigo mesma, ela ajoelhou ao lado daquele homem, e curvou a
cabeça para implorar as bênçãos de Deus.
O tempo parou enquanto eram envolvidos pelas cerimónias nupciais, e durante todo esse
período, todo sentido que ela possuía berrava por causa daquela presença ao seu lado. As mãos
esguias, bem tratadas, tapavam seu olhar, e a proximidade do corpo dele levava às suas narinas o
odor da sua água de colónia, não ativo como vários perfumes fortes feitos para disfarçar o fedor
de corpos não lavados, mas leve e discreto — um cheiro limpo, másculo.
— Pelo menos ele está bem lavado — divertiu-se ela.
74
E ouviu-o responder ao chamado do sacerdote com uma voz firme:
— Eu, Brandon Clayton Birmingham, aceito você Heather Bríanna Simmons, como minha
legítima esposa...
Agradecidamente, parecendo não titubear, ela repetiu aquelas palavras, jurando dar-se a este
homem em tons suaves de voz. Um instante depois ele colocava uma aliança de ouro no seu
dedo, e novamente o casal inclinava as cabeças diante do padre.
Finalmente ela se ergueu com as pernas cambaleantes, enquanto o agora seu marido se levantava
com firmeza. Ele olhou para baixo, na direção dela, sem delicadeza, com os verdes olhos
congelados diante do olhar hesitante de Heather.
— Acredito haver o costume de o noivo beijar a noiva — ele comentou.
E ela replicou numa voz nervosa e falseando:
— Sim.
Temia desmaiar ante o olhar fixo dele. Seu coração batia tão turbulentamente que o vestido
ondulava, no peito. Os dedos compridos e morenos dele percorreram os delicados ossos do
maxilar da mulher e ele lhe segurou o rosto com firmeza para que não pudesse afastá-lo,
enquanto o outro braço deslizava por trás dela, pela cauda solta e esvoaçante do vestido. De
repente ele a apertou de encontro a si num abraço feroz, possessivo, e os olhos de Heather se
arregalaram, enquanto seu rosto perdia a cor: sentia os olhares dos espectadores em cima dos
dois, mas ele não se importava. Ao contrário: parecia gostar daqueles olhares. Seu braço era como
uma cinta de ferro em torno dela, abafando a vida no seu pequeno corpo, apertando-a com mais
força de encontro ao seu. Inclinou a cabeça e cobriu os lábios, dela com os seus, num beijo
apaixonado. A boca entreaberta estava: úmida e ressecada ao mesmo tempo, dominadora e
insultante, deixando a Heather pouca dignidade. A mão dela se ergueu, lutando contra ele,
constrangida.
De um ponto próximo ela ouviu Lord Hampton tossir, num indisfarçável mal-estar, e seu tio
murmurar algo ininteligível. Finalmente o padre tocou o braço de Brandon e falou, embaraçado:
— Terá tempo para isso mais tarde, meu filho. Os outros estão aguardando para cumprimentar o
casal.
Enfim o aperto afrouxou e ela pôde respirar. Sua boca trémula queimava por causa daqueles
lábios ardentes, enquanto a marca dos dedos dele aparecia claramente em sua pele. Ela se virou,
pernas vacilantes, e sorriu trêmula quando Lord e Lady Hampton se aproximaram. O bondoso
homem deu-lhe um beijo paternal na testa.
Disse-lhe, inseguro, olhando de esguelha o Comandante Birmingham que permanecia rígido e
inflexível ao lado dela:
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— Era minha intenção que cuidassem bem de você. Espero não lhe ter causado mal, Heather..
Por favor! — ela murmurou, esticando o braço para fecharlhe os lábios com os dedos trêmulos.
Não podia deixar que ele terminasse. Se escutasse os próprios medos transformados em palavras,
fugiria de todos eles gritando histericamente, rasgando o vestido, desmanchando o cabelo, num
acesso de loucura.
Lady Hampton lançou um olhar medroso ao comandante ianque, o qual olhava friamente para a
frente, as poderosas pernas de homem do mar plantadas firmemente e as mãos entrelaçadas às
costas. Dava a impressão de estar no convés de um navio observando o oceano. As mãos de
Lady Hampton tremiam incontrolavelmente quando abraçou Heather, e lágrimas lhe umedeciam
os olhos. As duas mulheres, ambas pequeninas e esguias, agarravam-se uma à outra, na sua
infelicidade.
Como se a idéia tivesse acabado de ocorrer-lhe, Lord Hampton rapidamente fez a proposta:
— Vocês passarão a noite em Hampshire Hall. Lá haverá mais espaço para o casal do que na
cabina do comandante.
E não acrescentou que qualquer quarto do local lhe seria facilmente acessível caso Heather
gritasse quando estivesse nas mãos do agora marido.
Brandon voltou o frígido olhar para o homem de estatura mais baixa que a dele.
— E certamente o senhor insiste nisso também... — rosnou. O lorde encarou-o, imperturbável.
— Sim, insisto — afirmou, calmamente.
Um músculo se retorceu zangadamente na face de Brandon, mas ele nada disse, nem mesmo
quando o outro sugeriu estar na hora de partirem para a festa de casamento em Hampshire Hall.
Apenas segurou solidamente o braço da noiva e deixou que os outros saíssem da igreja à sua
frente.
Heather, nervosa e trémula, com a mão dele no seu cotovelo, teria preferido ser amparada pelo
braço de Lord Hampton, mas Brandon visivelmente não tinha intenção de deixá-la fazer isto. Já
começara seu domínio sobre ela, que percebeu que jamais pertenceria a si mesma. A posse dela
era completa — exceto, talvez, quanto à sua alma, porém ele não se deteria até que isso também
lhe pertencesse.
Para surpresa sua, ela foi detida pela súbita recusa de a cauda do vestido em sair da nave. Aflita,
olhou por cima do ombro para ver o que a prendia, e Brandon virou para ela sua sombria
carranca.
— Por favor! — começou ela, em voz incerta, erguendo uma das mãos para explicar sua aparente
relutância em prosseguir.
Os olhos dele passaram por ela, dirigindo-se à roupa presa num banco lascado da igreja e ele
sorriu para ela com ironia, recuando
76
para soltá-la. Ieather observou-o nervosamente, agarrando com as duas mãos a Bíblia. As palmas
estavam molhadas e os dedos crispados. Olhou para o anel de ouro que a anunciava como sendo
dele. Estava bastante frouxo, rodava no dedo com facilidade. Só de olhar para ele o medo a
invadia, sabendo o que significava.
Brandon soltou os enfeites dourados da farpa do banco e atirou a ponta da cauda do vestido por
cima do braço de maneira descuidada, voltando para a noiva. De novo sua mão a segurou pelo
braço.
— Não precisa ficar preocupada, meu amor — falou zombeteiramente. — O vestido está
intacto.
— Obrigada... — murmurou a moça, erguendo os olhos para ele de forma insegura.
Seu sorriso sarcástico a queimava e lhe fez subir ao rosto um fluxo de sangue. Ele zombava dela
cruelmente, o seu orgulho ferido não admitia isso. Ergueu o queixo desafiadoramente. Olhou-o
através das lágrimas que lhe inundavam os olhos.
— Se eu fosse homem, você não agiria dessa maneira — ela fungou, odiando-o.
Ele ergueu uma sobrancelha finalmente arqueada e riu dela impiedosamente.
— Fosse você um homem, minha cara, não estaria nesta situação. — ele falou.
O rubor dela aumentou. Furiosa e revoltada de raiva e humilhação, tentou livrar-se dos dedos
compridos dele, mas o homem apenas apertou-os em torno do seu braço.
-— Não pode escapar de mim novamente, beleza — disse ele calmamente, parecendo desfrutar
de sua angústia. — Você agora é minha para todo o sempre. Casar-se comigo era o que desejava,
e é isso o que terá até o resto da sua vida. a menos que, por acaso, fique viúva. Mas não tema,
amor, não tenciono abandoná-la tão cedo.
O rosto de Heather ficou pálido diante de tamanho cinismo, e ela cambaleou sobre as pernas,
sentindo que poderia desmaiar. Ele a firmou, puxando-a para mais perto de si, e levantou-lhe o
queixo para poder olhar fundo nos seus olhos. Seu próprio olhar cintilava como brasal.
— Nem mesmo o seu Lord Hampton será capaz de salvá-la de mim agora, embora eu já saiba
que ele vai tentar. Mas, o que é uma noite dentre tantas outras?
As palavras lançaram um espasmo de tremor apavorante que percorreu todo o corpo de Heather,
e sua cabeça pendeu para trás fracamente, de encontro ao braço dele.
— Como você é bela, minha doçura! — ele disse brutalmente. — Não deverei cansar-me de você
tão cedo.
Lord Hampton, tenso e nervoso com a demora do casal em sair da igreja, não conseguiu esperar
um momento mais. Correu de volta,
77
e encontrou Heather aninhada nos braços do marido, com a cabeça jogada para trás, os olhos
fechados, e o rosto muito pálido.
Ela desmaiou? — perguntou com ansiedade, aproximando-se dos dois.
A chama nos olhos de Brandon apagou-se, ele lançou um breve olhar para o homem idoso à sua
frente.
— Não — replicou, e tornou a olhar para a esposa. — Ela estará boa daqui a pouco.
— Então venham — disse o lorde, irritado. — A carruagem está aguardando.
Virou-se e deixou-os, e o braço de Brandon apertou mais ainda o corpo da moça.
— Devo carregá-la, meu amor? — perguntou zombeteiramente, com um sorriso maldoso na
boca bonita.
Os olhos de Heather arregalaram-se.
— Não! — gritou, afastando-se dele numa súbita explosão de orgulho e energia. A gargalhada
dele retesou-lhe a espinha mais ainda. Com um gesto decidido, afastou-se dele que, porém,
continuava com a cauda do vestido no braço; ela, então, mal deu dois passos, porque a distância
permitida pela extensão da cauda era pequena. Olhou para trás audaciosamente, encarando-o por
não querer soltar a cauda do vestido. O canto da boca de Brandon subiu debochadamente
quando ele se aproximou dela de novo.
— Sua fuga é impossível, meu amor. Sou de natureza extremamente possessiva.
— Então deite-se comigo aqui, se quiser — ela exclamou, e o ódio emprestava rancor à sua voz.
— Mas ande logo, porque os outros estão esperando.
O maxilar do comandante apertou-se, e os olhos tornaram-se frios.
— Não — falou, pegando no braço dela. — Terei prazer com você lentamente, e quando me
aprouver. Agora venha, pois, como você mesma disse, os outros aguardam.
Do lado de fora da igreja foram surpreendidos por uma chuva de trigo. Embora em pouca
quantidade, dada a pequena assistência presente ao casamento, mesmo assim Lady Hampton não
poderia deixar de obedecer ao velho costume. Em seguida encaminharam-se para a carruagem
que esperava. Tia Fanny estava em silêncio, com o ianque tão próximo. Hesitante e inseguro, Tio
John ajudou Lady Hampton a descer os degraus da escadaria da catedral, enquanto o marido,
Lord Hampton, que vinha atrás, observava o Comandante Birmingham auxiliar sua jovem
esposa.
Tio John ajudou Tia Fanny e Lady Hampton a entrar na carruagem, e seguiu-as. Quando Heather
chegou, encontrou os três apertados em um dos lados do veículo — Lady Hampton mal
acomodada no meio. Entretanto, por delicadeza não se queixava.
78
Permitindo-se um leve sorriso depois de tudo por que havia passado, Heather erguèu as saias
para subir também. Ficou enormemente surpresa ao se Ver levantada pelos braços do marido.
Embaraçada, afundou no assento vago e lançou-lhe um olhar fulminante que ele não chegou a
perceber. Brandon também entrou, jogando seu peso ao lado dela — que ficou impiedosamente
espremida quando Lord Hampton os acompanhou no banco. Para conseguir mais espaço para si
mesma, tentou sentar-se na beirada do assento, mas não conseguiu mover-se porque o marido se
sentara em sua saia. Ergueu o olhar para ele — que olhava para fora, pela janela, enquanto os
músculos da face mostravam-se tensos de raiva. Um murmúrio ininteligível, fraco, escapou dos
seus lábios quando se arrumou de novo no assento: o medo invadia-lhe o coração. Seus corpos
estavam tão próximos que o ombro dele ficava por cima do dela, e as costas do seu braço
esfregavam-lhe o seio. Toda a coxa de Heather comprimia-se de encontro aos músculos do
marido, rígidos como granito.
Enquanto a carruagem percorria as ruas de pedras arredondadas, ela fez uma fraca tentativa de
travar conversa com Lord e Lady Hampton, embora estivessem tão constrangidos quanto ela. O
tom de sua voz era quase inaudível e dissonante por causa do nervosismo. Para evitar uma
humilhação, logo calou a boca, não mais confiando na voz.
A viagem parecia interminável. Eles eram sacudidos, balançados, e Heather perguntava-se em
desespero se algum osso de seu corpo chegaria intato. Embora Lord Hampton não fosse homem
de grande estatura, ainda assim era maior que ela, e, entre o marido — cuja compleição
exagerada, com ombros largos, não dava espaço — e o lord, ela, sendo muito menor que os dois,
sofria bastante. Só a pressão do braço de (Brandon contra seu peito já lhe machucava bastante.
Finalmente pararam diante de Hampshire Hall. Brandon desceu primeiro e, com mãos firmes,
pegou-a por baixo dos braços, girando-a até ficar ao seu lado, no chão. Ela endireitou o vestido, e
passou a cauda por cima do braço com um gesto arrogante. Dentro da mansão deteve-se para
tirar a pesada capa no que, para seu desprazer, foi auxiliada pelo marido, que soltou as correntes
douradas de seus ombros. Os dedos compridos trabalharam com enorme destreza.
O banquete já estava pronto e servido quando o grupo entrou no salão de jantar. Lord e Lady
Hampton tomaram seus lugares nas extremidades da mesa grande, e fizeram sinal para que
Heather e Brandon se sentassem de um lado, e Tio John e Tia Fanny no outro. Ergueram as taças
num brinde ao jovem casal.
— A um casamento muito feliz e gratificante, a despeito daquilo que aconteceu antes — disse o
lorde. E depois acrescentou, num segundo pensamento: — E que a criança seja um bonito
menino.
79
Um brilho ruborizado percorreu as feições de Heather enquanto levava a taça aos lábios. Mas não
bebeu. Não desejava um menino, nem emprestar àquele homem mais autoconfiança. Ela reparou,
no entanto, que ele sorvia o champanha com toda tranqüilidade, e ela o observou com nojo.
A refeição transcorreu depressa demais para o estado de espírito de Heather, conquanto
houvessem abandonado a mesa depois das 11 horas. Os homens tomaram seus brandies na sala
de fumar, enquanto Lady Hampton despachava Tia Fanny para seu quarto de dormir, e Heather
para o quarto nupcial, preparado para ela e o ianque. Duas risonhas empregadinhas aguardavam a
jovem noiva, e uma camisola de tecido leve, azul-transparente, estava em cima da cama. Heather
empalideceu à vista dele, todavia Lady Hampton guiou-a até um banquinho diante de um imenso
espelho, e a convenceu a vesti-lo.
— Voltarei com um pouco de vinho assim que estiver pronta — a mulher murmurou, beijando a
testa de Heather. — Talvez facilite as coisas.
À medida que a criada retirava seu vestido nupcial e soltava-lhe os cabelos, Heather sentia que
nada a protegeria do seu medo. Teria de ficar inconsciente para não tremer de pavor.
”Parece até que sou virgem”, pensou, com certa surpresa, ”de tanto que tremo.”
Escovada uma centena de vezes, a cabeleira ficou solta e esvoaçante, chegando-lhe aos quadris.
Suas roupas foram levadas — nem mesmo um robe foi deixado — e Heather, sentada sobre as
pernas no meio da cama e usando apenas um traje fino e diáfano para disfarçar a nudez, tentou
firmar seu corpo trémulo e acalmar-se para o drama que teria de enfrentar.
Do lado de fora do quarto de dormir, passos provocaram estalidos no piso de mármore, mas ela
deu um suspiro de alívio — eram de mulher.
Lady Hampton abriu a porta e entrou, carregando uma bandeja com uma garrafa de vinho e dois
copos. Colocou o conjunto na mesa, ao lado da cama, e serviu uma dose para Heather enquanto
inspecionava o trabalho feito pelas serviçais. Deu um aceno de aprovação com a cabeça.
— Você ficou mais linda agora, minha querida, do que usando o vestido de noiva, mesmo que
isso lhe pareça impossível. Você estava deslumbrante. Senti-me tão orgulhosa. Eu só queria ter
mais tempo para convidar mais gente. Você precisava ser mostrada. Eu poderia ter dito a eles que
você era minha própria criação. Que pena sua mãe ter morrido tão cedo, sem ter visto você.
Ficaria muito orgulhosa por sua causa.
80

— Orgulhosa por minha causa? — perguntou Heather desalentadamente, olhando para a barriga.
— Eu trouxe infelicidade para vocês todos — disse quase chorando.
Lady Hampton sorriu docemente para ela e a consolou:
— Tolice, minha cara. Às vezes uma moça não pode evitar certas coisas que lhe acontecem.
Simplesmente é vítima das circunstâncias.
— Ou de ianques — murmurou Heather. A outra sorriu delicadamente.
— Sim, ou de ianques, mas pelo menos ele é jovem, bonito e limpo. Quando meu marido me
contou pela primeira vez acerca do seu problema, dizendo-me que o culpado era um marujo
ianque, fiquei doente de preocupação. Pensei que seria velho e devasso. Até sua tia confessou-me
que achava que o homem seria assim. Provavelmente foi decepcionante para ela ver o contrário,
sabendo-se do que você sofreu nas mãos dela. Mas -ele é magnífico. Realmente, os seus bebês
serão saudáveis, bonitos, e suponho que vão ter muitos.
A voz de Lady Hampton definhou até um mero sussurro quando se lembrou do apaixonado
abraço que o Comandante Birmingham dera na jovem noiva, e na dura expressão que lhe
assomou ao rosto em seguida.
— Sim — Heather respirou silenciosamente. Engoliu em seco e disse em voz alta: — Sim,
suponho que vamos ter muitos.
Ela pensava na facilidade com que Brandon plantara sua semente nela. Não duvidava de que
traria vários bebês ao mundo.
Lady Hampton levantou-se para sair, mas Heather implorou:
— A senhora precisa ir agora? — perguntou com voz suplicante, A mulher balançou a cabeça
lentamente e explicou:
— Sim, minha flor. Já o mantivemos à distância tempo bastante. Não podemos adiar mais. Mas,
se precisar de nós, estaremos por perto.
As palavras daquela mulher não tiveram efeito inútil sobre Heather — ela sabia que, se pedisse
socorro, eles viriam, a despeito do fato de não terem o direito de interferir.
Novamente ficou sozinha e assustada. Entretanto, depois de provar amargamente a zombaria do
marido, decidira não se abaixar e se humilhar para ele.
— Ele vai ver como estou disposta — pensou manhosamente. — Então ele preferirá não me
machucar.
Sua espera chegou a um fim abrupto, espantando-a quando o ruído das suas pisadas começaram a
vir do saguão. O rosto de Heather esquentou quando viu a porta abrir, e no instante seguinte ela
se surpreendeu observando seus olhos verdes na outra extremidade do quarto. O olhar do
comandante baixou, e nele nasceu um fogo quando despiu o corpo da esposa com os olhos.
81
Heather sentou-se desajeitada, com o coração batendo furioso. As cobertas haviam sido afastadas
para a ponta da cama, fora de seu alcance, e ela ansiava por poder puxá-las de encontro ao corpo.
O traje que usava era como um véu azul e macio sobre a pele, mais sedutor e revelador que a
carne nua. Era amarrado com fitas macias a cada lado da cintura, porém acima e abaixo dela
ficava aberto, sem nada a prendê-lo. Assim, os lados dos seios ficavam expostos, e os braços
esguios se revelavam inteiramente ao olhar do comandante. O mais difícil de sua vida foi
permanecer calmamente sentada diante dele e deixá-lo observá-la daquela maneira.
— Você é realmente linda, meu amor! — disse o homem roucamente, aproximando-se da cama.
Os olhos pareciam labaredas a causticá-la. Esticou os braços e puxou-a para seus joelhos. —
Você ainda é mais adorável do que eu me lembrava!
Ainda sentada em seus joelhos ela se aconchegou relutantemente, enquanto ele a apertava nos
braços. As mãos de Brandon deslizavam por baixo da roupa da esposa, pelas nádegas, enquanto
lentamente inclinava a cabeça para ela, trêmulo. Heather esperava pelo beijo. No entanto, antes
que os lábios dele comprimissem os seus, ele se afastou um pouco e riu baixo, à sua maneira
zombeteira:
— Agora, meu amor, você está mais acessível que antes. Será que o casamento torna as coisas
diferentes? Foi esse o preço pelo qual vendeu seu corpo? E eu pensando que, afinal, encontrara
uma mulher de coração puro, disposta a não entregar seu corpo a um homem a nenhum preço.
só por amor!..
— Canalha, monstro! — ela reclamou furiosamente, tentando libertar-se. — Que posso dizer
numa hora destas? Você me vai violentar como fez antes, eu lutando ou não.
— Cale-se! — falou o homem rapidamente, apertando-a mais e forçando-a a ficar quieta. —
Quer que os outros escutem e arrombem a porta? Lord Hampton está só esperando pelo
convite...
— E qual a diferença para você? É mais forte que ele. Qual a diferença se tiver de expulsá-lo
antes de terminar o que vai fazer comigo?
Um músculo retesou-se no rosto de Brandon: Heather já sabia que esse leve movimento
significava perigo. Ele a encarou de cima, os verdes olhos violentos e frios:
— Eu não cumpriria meu dever de marido com você esta noite nem que fosse a última mulher
no mundo! — rosnou.
Imediatamente Heather parou de lutar e ergueu os olhos, surpresa, perguntando-se se ouvira
direito. As pálpebras do comandante baixaram e seu sorriso irónico reapareceu, mostrando
dentes espantosamente alvos em confronto com a pele e a barba.
— Você ouviu direito, minha cara. Não tenho intenção de fazer amor com você nesta casa hoje.
— E ignorou a expressão de alívio
82
no rosto dela, prosseguindo: — Quando tiver meu prazer com você, coração, será à minha moda,
na minha própria casa ou no meu próprio navio, e não onde outro homem aguarda ansiosamente
para irromper no quarto e nos separar... e mais certamente ainda quando tal homem segura um
machado acima da minha cabeça.
— Machado?! — ela repetiu inocentemente, descontraindo-se.
— Não me diga que não sabe. Certamente estava a par dos planos deles. Não posso acreditar que
não esteja metida nisso também.
— Nem sei do que está falando! — ela respondeu cautelosamente.
— Sempre inocente, não é, doçura? — Ele riu amargamente e seus olhos desceram até o busto
de Heather; correu os dedos pelo lado de um dos seios, que o tecido fino não escondia.
Esfregou-lhe o bico do seio, por baixo do pano. — Sempre inocente.. — falou docemente —
Sempre linda! Sempre fria!
Ela deixou que suas mãos a acariciassem. Eram suaves e, já que nada mais viria a seguir e ele era
seu marido, não iria arriscar-se a provocar-lhe a cólera recusando tão pouco. Mas insistia com as
perguntas:
— Que tipo de pressão usaram... o machado, como disse, para obrigá-lo a casar-se comigo? —
indagou docemente.
Os lábios dele tocaram-lhe os cabelos e deslocaram-se para o pescoço, e Heather estremeceu
involuntariamente sob sua ardente intensidade. A mão grande pegou-lhe um seio e parecia não
querer largá-lo. Ela se afastou nervosamente, temendo que ele não mantivesse a palavra. Esticou
os braços, puxou as cobertas para cima de si, e afundou no meio da cama. Sussurrou,
observando-o:
— Vai contar?
Brandon estava de novo zombeteiro, cruel, zangado:
— Por que deveria? Você já deve saber de tudo. Mas, se lhe faz tanta diferença ouvir dos meus
próprios lábios, eu lhe contarei. Seu querido tio ia me processar por contrabandear e vender
armas aos franceses, embora eu esteja completamente inocente. Seria mandado para a prisão,
tomariam meu navio de mim, e só Deus sabe o que aconteceria à minha plantação. Muito
engenhoso por parte do seu amigo, devo confessar! — Arrancou o casaco e atirou-o numa
cadeira, começando a desprender as meias. — Você sabia que eu sou. ou devo dizer era
comprometido para casar-me quando voltasse para casa? O que deverei dizer a ela. à minha
noiva? Que eu vi você e não pude resistir? — Interrompeu-se por um instante, puxando a camisa
pelos ombros morenos. Olhou para ela irado: — Não gosto de ser forçado, minha querida. É
contra a minha índole. Se me tivesse procurado assim que percebeu estar grávida, eu lhe teria
dado assistência.
83
Talvez até me casasse com você, caso agisse como se me desejasse para marido, mas mandar seu
poderoso amigo me ameaçar foi um ato nada aconselhável para uma moça.
Amedrontada, de olhos espantados, Heather escudou-se no lençol como se ele pudesse dar-lhe
proteção contra aquelas mãos selvagens se ele resolvesse abordá-la. Brandon caminhou pelo
quarto apagando velas, e ela o observava cautelosamente. Ele se despira até a cintura e não
parecia estar com vontade de ficar por aí. Contudo no momento sentou-se numa cadeira ao lado
da cama.
— Você sabe que é muito linda, não é? — perguntou, elogiando-a friamente. — Podia ter
escolhido qualquer homem que preferisse, mas acabou tendo a mim. Eu gostaria de saber a
verdade, se não se importa. Por acaso soube que eu possuo fortuna?
Ela o observou espantada, não vendo necessidade daquela pergunta.
— Nada sei a respeito da sua situação financeira — explicou suavemente. — Você é apenas o
homem que.. que tirou minha virgindade. Eu não poderia recorrer a outro homem do jeito que
estava: desonrada e com seu filho na barriga. Eu teria dado um bastardo à luz antes de me
rebaixar tanto.
— Sua natureza honrada merece aplausos, madame — ele replicou num tom de voz leve,
zombeteiro, e esse cinismo deixou-a furiosa.
— Por que você deveria seguir alegremente seu caminho e não endireitar o mal que fez? — ela
gritou.
Imediatamente ele se pôs ao seu lado.
— Por favor, minha querida — falou nervoso. — Evite elevar a voz acima de um sussurro, ou
receberemos visitas. Não tenho intenção de ser atirado à cadeira pelo seu Lord Hampton por ele
pensar que a estou maltratando.. especialmente agora que a tornei minha esposa.
A ansiedade de Brandon deixou-a satisfeita, mas prosseguiu num sussurro bem baixo:
— Você diz que não gosta de violência. Bem, eu o odeio, mas nada pude fazer para evitar que
você se satisfizesse comigo como fez. E agora está zangado porque tem de pagar seu preço, e
mesmo assim nem pensa na criança que carrego, no que ela poderia ter sofrido, nascida sem pai.
— A criança teria sido bem cuidada, e você também.
— Como o seu bastardo e sua amante? Não, obrigada. Eu mandaria cortar minha garganta antes
de consentir em tal proposta.
A contração muscular retornou ao rosto do comandante, e ele ficou olhando fixo para ela
durante tanto tempo que ela se sentou, petrificada como um pássaro diante da serpente; então as
pálpebras dele baixaram por sobre os olhos zombeteiros.
84
— Mulher que é mantida por um homem normalmente recebe mais atenções que a própria
esposa. Eu teria sido gentil e mais que generoso com você.
— Isso quer dizer que agora não será — ela retrucou sarcástica.
— Exatamente — ele respondeu tranqüila e friamente, aterrorizando-a. Levantou-se da cama e
olhou de cima para ela. — Como já falei, não gosto de ser chantageado, e por sua causa escolhi
um castigo adequado. Você queria segurança e um nome para seu filho. Vai ter ambos, minha
cara, mas vai ganhar uma coisa a mais. Dificilmente será mais bem tratada que uma serviçal na
minha casa. Terá o nome que desejou, mas também vai ter de implorar, rogar para que eu
satisfaça a sua mínima vontade. Não receberá dinheiro algum, nem sua vida será normal, embora
eu vá ter o cuidado de poupá-la do vexame de outras pessoas saberem de sua situação. Em outras
palavras, minha querida, a posição que você achou tão honrada não será mais que sua prisão
particular especial. Nem mesmo partilhará comigo os mais ternos momentos da vida conjugal.
Não passará de mais uma criada aos meus olhos. Como amante, seria tratada como uma rainha,
mas agora me conhecerá apenas como seu dono, e nada mais.
— Está dizendo-me que não teremos. intimidades? — ela perguntou, muito surpresa.
— Você entende depressa as coisas, minha querida. Não precisa preocupar-se comigo a esse
respeito. Não cortarei minha própria cabeça para depois cuspir na minha cara. Você não passa de
mais uma mulher dentre milhares, e é fácil para um homem encontrar alívio para suas
necessidades básicas.
Heather suspirou diante da alegria do fardo alijado e sorriu, exultando com sua sorte.
— Senhor, nada me agradaria mais, eu lhe asseguro. Ele sorriu friamente por entre os dentes.
— Sim, posso ver que agora ficou contente. Mas seu inferno está apenas começando. Não sou
exatamente pessoa fácil de se conviver. Tenho um péssimo gênio que pode esmagar uma
mulherzinha igual a você num estalar de dedos. Por isso eu aviso, minha beleza: não o provoque.
Comporte-se obedientemente e talvez sobreviva. Está compreendendo?
Ela acenou com a cabeça, concordando, e não mais festejando sua vitória.
— Agora vá dormir. Coisa que só farei bem mais tarde.
Obedecendo rapidamente, pois assim ele não começaria imediatamente a encontrar defeitos nela,
Heather enfiou-se logo na cama e puxou as cobertas até o queixo, observando-o preocupada
enquanto ele atravessava o quarto rumo às portas do varandão. Abriu-as e caminhou para o luar
lá fora. Sem tirar os olhos dele, Heather virou-se
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de lado cautelosamente para não atrair de novo sua atenção. Novamente ele assumira a postura
de um homem do mar olhando para as águas, enquanto a lua tocava no seu rosto bonito e nos
ombros largos. A pele macia, morena cintilava sob aquela luz, e ela caiu no sono olhando para
ele.
Heather acordou abruptamente quando Brandon deitou pesadamente a cabeça no travesseiro ao
seu lado e, tonta de sono, imaginou que ele lhe faria algum mal. Sentou-se, dando um grito de
pavor, e ergueu um braço como se para espantá-lo. Ele porém o agarrou num só golpe, e atirou-a
de volta ao seu travesseiro.
— Fique quieta, sua pequena idiota! — ele rosnou, inclinando-se sobre ela. — Eu simplesmente
não tinha a intenção de passar a noite numa cadeira, enquanto você a passaria na cama.
Um tremor de medo percorreu o corpo de Heather quando ele a soltou. Ele estava exatamente
em cima dela, na escuridão, e seu hálito atingiu-a. O luar, esticando-se desde a varanda, desenhava
o contorno do seu perfil irado.
— Eu não tinha intenção de gritar — ela murmurou atemorizada. — Apenas tomei um susto.
— Pelo amor de Deus, assuste-se em outra hora qualquer! — ele respondeu imediatamente. —
Tenho aversão a prisões.
— Lord Hampton não... — ela iniciou num murmúrio.
— O diabo que não! Agora que você usa meu nome, sua honra foi restaurada, mas, se ele achar
que agiu erradamente entregando-a a mim, cumpriria sua ameaça e me jogaria na prisão só para
me afastar de você. Portanto, a despeito de quanto me odeia, se quer que seu filho tenha um pai,
por favor não lhe apresente qualquer oportunidade.
— Eu não pretendia fazer isso — ela replicou em sussurros.
— Não poderia provar isso perto de mim — ele retrucou.
— Ah, você! — ela resmungou, tentando livrar-se do seu apertão. — Por que tive tanto azar de
ser violentada logo por você! Você... é nojento!
Ele riu brandamente enquanto a soltava.
— Algumas mulheres não concordam com você, minha cara.

— Ora, seu patife! — ela arquejou, quase sem fôlego. — Violentador vil, grosseiro e asqueroso...
profanador de mulheres! Eu tenho nojo de você e o detesto!
Ele a trouxe para junto de si, e o corpo comprido e rijo ameaçava com suas dimensões a
compleição frágil dela, dando-lhe um rápido e silenciador apertão.
— Tenha cuidado, minha lindeza, ou terá um bocado de preocupações. Posso deter seus gritos
com toda facilidade. Não me desagradará nem um pouco fazer o papel de marido.
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Ela engasgou de dor quando o aperto se renovou, e pensou que seria esmagada por aqueles
braços brutais. Sentiu as coxas dele contra as suas, que tremiam covardemente, e descobriu que
ela era a única pessoa ali vestida mesmo parcialmente. Mas o traje servia de pequeno conforto.
Arriara até a cintura, deixando nu um peito que se amassava na sua plenitude de encontro ao dele.
Não havia dúvidas quanto aos desejos do comandante.
— Por favor — ela choramingou à medida que o abraço se apertava mais. — Eu farei sua
vontade. Mas não me machuque tanto.
Seu riso profundo fez com que um calafrio de temor percorresse o corpo de Heather enquanto
ele continuava a abraçá-la, mas então de repente ele a soltou e jogou-a de volta ao travesseiro.
— Vá dormir. Não vou incomodá-la.
Ela puxou as cobertas até o queixo, com as mãos trêmulas, e deitou-se de lado, virada para ele,
tremendo incontrolavelmente. O luar clareou o quarto, e ela percebeu os olhos dele abertos,
enquanto deitava de costas com as grandes mãos por trás da cabeça, olhando fixo para o teto.
Mesmo na semi-escuridão do quarto ela pensou ter visto naquele rosto uma expressão de ódio.
— Onde fica a sua casa? — ela perguntou docemente, muito tempo depois.
Ele suspirou pesadamente:
— Charleston of the Carolinas.
— É muito bonito lá? — arriscou de novo.
— Para mim, é. Você talvez não vá gostar... — acrescentou rispidamente.
Ela não mais ousou tentar saber como seria seu lar. Já se arriscara bastante.
Uma brisa fria, que entrou pelas portas abertas da varanda, despertou ao romper do dia. Assim
que acordou ficou semi-inconsciente, não conseguindo reconhecer aquele ambiente. No entanto
logo sentiu a presença do homem a quem se aconchegara em busca de calor. Sua mão direita
encimava-lhe o peito forte, de encontro aos pelos crespos e escuros que o encobriam, enquanto o
rosto descansava no ombro firme. Ele dormia profundamente, com o rosto ligeiramente virado
para ela, descontraído no repouso.
Sem mexer-se, com medo de acordá-lo, estudou-o à vontade. Os olhos dela seguiram o contorno
daquela boca firme, reta, agora descontraída por causa do sono, os cílios compridos e escuros e
faces morenas.
— Ele é um homem atraente — pensou. — Talvez não seja tão ruim ter um filho dele.
Ele se mexeu ligeiramente e virou-se para o outro lado, deixando-a olhar sua cabeça com a
cabeleira amarfanhada e o amplo tórax onde sua mão descansava. Observou o dedo médio e
maravilhou-se diante do
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brilho do ouro. Ficava esquisito na sua mão, e mais estranho ainda foi como se sentiu
subitamente. A ideia de ser esposa deste homem surgiu com nova percepção. Fora alguma coisa
dita por ele na véspera: que ela seria dele para sempre. E agora ela se divertia: até na eternidade
pertencerei a ele...
Muito lenta e cuidadosamente, para não acordá-lo, cobriu-lhe o peito com as cobertas, mas logo
descobriu seu erro em pensar que ele sentia frio. Instantes depois ele chutava tudo, afastando-as
completamente, o que a fez ruborizar.
O corpo do comandante ali estava nu, mas ela não virou o rosto, embora ele ardesse com a
própria temeridade. Ao invés disso, deixou os olhos vagarem por ele lentamente, com muito
interesse, satisfazendo-lhe a curiosidade. Não havia necessidade de que outras pessoas lhe
contassem o que podia ver por conta própria... que ele era magnificamente bem formado, como
qualquer fera selvagem e grande da floresta. Músculos longos, flexíveis, soberbamente agrupados,
a barriga reta e rija, quadris estreitos. A mão dela, fina e alva, parecia deslocada em cima do peito
moreno e cabeludo.
Perturbada pela inusitada agitação em seu íntimo, tirou a mão daquele local e passou para o seu
lado da cama. Virou-se, tentando não imaginar por que seu olhar se demorara por aquele corpo, e
então viu uma folha cair no chão da varanda. Escondeu-se debaixo das cobertas, desejando ter
sangue tão quente como aquele homem ao seu lado.
O relógio em cima do consolo da lareira há muito batera 9 horas quando as duas criadas risonhas
voltaram para vesti-la. Bateram suavemente na porta, e Heather escutou suas risadinhas. Isso a
enfureceu e trouxe-lhe um leve colorido ao rosto quando deslizou para fora da cama. Olhou por
cima do ombro, e viu o marido dormindo sem roupa. Muito cautelosamente, deu a volta pela
cama e puxou o lençol cuidadosamente sobre ele, que acordou instantaneamente, assustando-a a
ponto de dar um pulo. Retirou as mãos como se tivesse acabado de queimar-se, e ruborizou-se
mais ainda quando o olhar dele a percorreu de cima a baixo, tornando-a extremamente
consciente do tecido transparente que vestia e das suas aberturas ainda mais reveladoras. Um
sorriso lento e debochado aflorou-lhe aos lábios, e ela estremeceu, virando-se insegura e
dirigindo-se para a porta, cônscia de que seu olhar a seguia.
As duas criadinhas risonhas e bisbilhoteiras entraram juntas, uma carregando uma bandeja de
comida. Varreram todo o quarto com o olhar curioso, como se esperassem encontrar alguns
segredos da noite anterior revelados diante de seus olhos. Vendo Brandon apoiarse nos
travesseiros com um simples lençol suspenso até a cintura, renovaram as risadinhas. Ele sorriu
por entre os dentes diante do nervosismo das duas, mas Heather desejou muito dar um beliscão
em
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cada uma, especialmente quando resolveram olhar famintamente para seu marido, fazendo-a
imaginar se ambas seriam tão castas como seu comportamento tímido indicava. Caminharam até
perto da cama a fim de mostrar ao comandante o grande sortimento de comida na bandeja, e
Heather esperou impacientemente enquanto arrulhavam por cima dele, abrindo-lhe um
guardanapo sobre o colo com lentidão enlouquecedora, para depois lhe servirem chá. No meio
de toda a confusão, ele ergueu os olhos e percebeu o rosto vivo e zangado da esposa e riu disso.
Heather então virou-se e saiu furiosa.
Finalmente as serviçais lembraram-se de suas funções e voltaram-se para atendê-la, preparando-
lhe um banho com essência de rosas e de novo arrumando seu vestido de noiva, já que era o
único que possuía. Sob o olhar interessado e observador do marido, elas lhe retiraram o véu azul
de cima do corpo e ajudaram-na a entrar na banheira. Suas risadinhas não cessaram enquanto lhe
esfregavam costas e braços, mas, quando começaram a lavar-lhe os ombros e os seios, ela não
mais agüentou: arrancou a esponja e o sabonete de suas mãos impacientemente, estalando os
dedos em sinal de que a deixassem em paz. Imediatamente arrependeu-se de não ter sido mais
tolerante, pois Brandon riu dela com vontade, atirando a cabeça para trás. Ela o observou,
sentindo um intenso ódio subir mais uma vez por dentro do seu ser. Mas não ousou lançar-lhe as
palavras que desejava, sentindo que ele a silenciaria novamente com suas mãos rudes,
implacáveis. Além disso, não daria às duas empregadinhas magricelas o prazer de saber que ela e a
fera atraente eram qualquer coisa aquém de duas pessoas recém-casadas e apaixonadas.
Erguendo-se da banheira num trêmulo esplendor do corpo molhado, permitiu mais uma vez que
os três a admirassem, ficando de pé imóvel enquanto as duas secavam-lhe o corpo aos tapinhas
de toalha sob o incansável olhar de Brandon. Ele a examinava com tamanha lentidão que a pele
de Heather queimou diante de tal intensidade. Ela estava mais do que disposta a vestir sua roupa,
embora a transparência e o decote nada tivessem de confortáveis. Enquanto as criadas
escovavam e penteavam seus cabelos, viu-se tão irrequieta como as duas jovens, e amaldiçoou-se
em silêncio por deixar que a crítica de Brandon a tornasse tão nervosa. Era quase mais do que
podia suportar, deixá-lo confortavelmente encostado nos travesseiros de cetim, observando-a e às
duas criadas que pareciam levar uma eternidade para arrumar-lhe o cabelo. Quando recuaram
para um cumprimento recíproco baseado na sua arte, ela deu um suspiro de alívio. Entretanto,
seu breve bem-estar teve um fim brusco quando Brandon passou as compridas pernas pelo lado
da cama e levantou-se, arrastando o lençol com ele. Conseguiu agilmente enrolá-lo no corpo sem
revelar mais dele para as duas meninas, e então se aproximou dela, segurando o
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pano em volta dos estreitos quadris. Deu um beijo em um dos seios, logo acima da renda da
camisola.
Experiência gratificante, meu amor — murmurou com calma. Devo confessar que nunca tive a
honra de presenciar o espetáculo de uma dama se arrumando.
Por um instante seus olhos encontraram-se no espelho, os dele quentes e possessivos; os dela,
nervosos e inseguros. Todavia, diante do olhar confessamente admirador, ela se ruborizou e
deixou o seu baixar para o colo, ainda sentindo o roçar dos lábios no seu seio e o estranho tremor
que ambos haviam experimentado. Ela ouviu seu riso suave, e então ele se virou e fez uma
exibição ao beijar as mãos das duas criadas; bem poderia estar inteiramente vestido para agir
daquela maneira. Mostrava-se completamente à vontade e autoconfiante.
— As senhoras trabalharam maravilhosamente — ronronou para elas. — Minha esposa agradece
de coração.
As empregadas quase desmaiaram, pois jamais aquilo lhes havia acontecido antes, e muito menos
vindo de tão belo espécime de homem. Uma encostou-se na outra aos risinhos incessantes e
correram para aprontar-lhe o banho. Quando finalmente saíram do quarto, Heather levantou-se
rapidamente do banquinho e caminhou zangada para a cama com o objetivo de vestir-se.
— Qual a necessidade de fazer aquilo? — perguntou. — Elas deveriam ter sido severamente
repreendidas pela forma com que agiram, mas você apenas as encorajou a ficarem pior.
Ele sorriu devagar, enquanto o olhar percorria lentamente as costas da esposa.
— Desculpe, meu amor. Eu não sabia que você era tão ciumenta. Com os olhos azuis faiscando,
Heather voltou-se repentinamente num acesso de ira, pronta para lançar-lhe um turbilhão de
insultos na cara, mas Brandon limitou-se a sorrir e deixar cair o lençol.
— Ajude-me no meu banho, sim, meu doce? Não consigo alcançar as costas.
Ela nada pôde fazer além de quase explodir de raiva e ficar mais vermelha no rosto. Suas
maneiras enervantes esquentavam-lhe o sangue a ponto de ferver. Contudo, do jeito que ele
estava — em pé e nu, e desafiando-a com divertida paciência a reagir — ela teve de conter-se.
Não podia amaldiçoá-lo pelo canalha que era, quando ambos estavam cônscios, em primeiro
lugar, de sua nudez. Ele aguardou uma resposta numa posição descontraída: mãos nas cadeiras,
um joelho dobrado e ligeiramente inclinado para frente. Ela odiava aquela frieza, o olhar
zombeteiro, mas não ia xingá-lo.
Mantendo a boca fechada, passou correndo por ele, apanhou a esponja e o sabonete e esperou
que entrasse na banheira, sem perder a pose. Escutou aquela risadinha por entre os dentes, e
apertou os
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lábios um contra o outro mais ainda. Em seguida ele entrou na banheira com água quente na
frente dela.
Heather hesitou por um instante quanto às costas dele, mas então com fria determinação,
inclinou-se sobre ele e começou a passar sabonete nelas. Esfregou bem, descarregando a raiva
nos golpes que usava. No entanto, assim que acabou sua tarefa, ele simplesmente sorriu e disse:
— Você não acabou, meu amor. Quero que me lave tudo.
— Todo o corpo? — ela murmurou fraca, incredulamente.
— Claro, doçura. Sou muito comodista.
Ela o amaldiçoou com palavras não pronunciadas, sabendo que ele a obrigava a banhá-lo porque
isso satisfazia sua necessidade de vingança. A desculpa de ser comodista era simples motivo para
impor sua posse sobre ela. Sabia muito bem que, para ela, tocá-lo de qualquer forma era uma
agonia, e escolhera o ato íntimo de banhá-lo como castigo. Ela preferiria muito mais um
espancamento a isso, ele estava perfeitamente a par.
Enjoada, Heather ergueu de novo a esponja e inclinou-se para retomar o trabalho enquanto ele se
encostava na banheira. Ela correu o sabão pelos cabelos do peito e pelos ombros largos,
enquanto as faces ardiam por causa de certa observação minuciosa do comandante. Seu
inabalável olhar acariciava-lhe os braços alvos, o pescoço esguio e elegante, e finalmente os seios,
cuja beleza se revelava ainda mais enquanto ela trabalhava em seu corpo, expondo parte de um
dos seios redondos.
— Você gostava de alguém lá na aldeia do seu tio? — ele perguntou subitamente, erguendo a
sobrancelha.
— Não! — ela respondeu asperamente, mas censurou-se por não ser mais sutil.
A sobrancelha voltou ao normal. Ele correu um dedo molhado por entre os seios, sorriu e
continuou:
— Tenho certeza de que havia muitos apaixonados por você. Zangada, ela puxou a camisola para
cima, até a altura do busto, e esfregou-se onde a água fazia cócegas, descendo pelo meio dos
seios. Assim que a soltou, a roupa voltou ao lugar, agora bastante úmida.
— Havia alguns, mas não se preocupe. Não eram iguais a você. Eram cavalheiros.
— Não estou nem um pouco preocupado, doçura — respondeulhe tranqüilamente. — Você
vivia bem guardada.
— É — ela retrucou sarcasticamente. — A não ser de você. Ele deu um risinho e despiu-a de
novo com o olhar.
— Foi um prazer, querida. Ela ficou lívida de raiva.
— Suponho que também agrade ao seu ego masculino ter-me engravidado. Certamente você está
bastante orgulhoso!
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Seu sorriso foi de zombaria:
Não estou descontente. Acontece que gosto de crianças.
Oh! você, você!... — ela explodiu em revolta.
O sorriso zombeteiro desapareceu com velocidade assustadora.
— Termine de dar banho no seu marido, minha querida — disse com sarcasmo.
Ela sufocou um soluço e espremeu a esponja sobre o joelho dele. Não havia outra parte do corpo
para lavar a não ser a inferior, mas não podia permitir-se tanta intimidade com ele. Lágrimas
cintilaram nos seus longos cílios e caíram-lhe pelas faces.
— Não consigo — murmurou.
Ele pegou no seu queixo e ergueu-o gentilmente. Seu olhar penetrou profundo no dela.
— Se eu quiser, você sabe que terá de fazer, não é? — perguntou com tranqüilidade.
Ela fechou os olhos, angustiada, e fez que sim com a cabeça.
— Sim —sussurrou com infelicidade. Agora as lágrimas caíam em profusão.
As mãos de Brandon acariciaram sua face delicada.
— Pegue minha roupa, está bem, doçura? Tenho certeza de que todo mundo está esperando para
ver como você se saiu.
Alegremente ela recolheu as peças de roupa espalhadas pelo quarto; mais do que agradecida
porque ele fora compassivo com ela. Passaria muito tempo antes que tivesse a audácia de xingá-lo
de novo, ou exaltar-se de raiva dele. Ela teria de lembrar-se de que ele não gostava de insolência,
e não a suportaria. Ela fora eficazmente domesticada e obedeceria à vontade dele como esposa
disciplinada. Era covarde e não tinha coragem de fazer outra coisa.
Quando saíram do quarto de dormir, ela caminhou ao seu lado em silêncio, completamente dócil.
Até conseguiu dar um leve sorriso quando ele deixou a mão escorregar pelas suas costas até a
cintura, acompanhando o gesto com o olhar de cima para baixo.
Na sala de visitas, os dois casais mais velhos aguardavam ansiosamente, embora Tia Fanny o
fizesse por motivo inteiramente diferente. Ela esperava o pior, mas franziu a sobrancelha
irritadamente quando viu a sobrinha entrar com tranqüilidade ao lado daquele homem. O lorde
apressou-se em dirigir-se para Heather imediatamente e abraçá-la.
— Você está deslumbrante como sempre, minha criança — falou, com alívio.
— O senhor esperava outra coisa, my lord? — Brandon perguntou friamente.
Lord Hampton sorriu ligeiramente e respondeu:
— Não guarde rancor de mim, meu filho. Para mim, a felicidade de Heather vem em primeiro
lugar.
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— Sim, o senhor tornou isso exageradamente claro. Então, terei permissão de levá-la para meu
navio hoje, ou teremos sua hospitalidade novamente forçada contra nós?
De bom humor, o lorde não se abatia facilmente:
— Por favor, leve-a com minha bênção. Mas, primeiro, teria alguma objeção em fazer a refeição
do meio-dia conosco? Não é uma ordem, mas um convite. Se não estiver muito inclinado,
entenderemos. É que detestamos ter de ver Heather partir. É como se fosse nossa própria filha.
— Creio que não fará mal se eu ficar — Brandon respondeu asperamente. — Mas devo regressar
ao meu navio logo depois. Estou afastado dele faz muito tempo.
— Claro. Lógico. Compreendemos. Mas eu gostaria de conversar a respeito do dote de Heather.
Estamos prontos para resolver a questão nós mesmos... e generosamente.
— Nada quero do senhor.
Sua resposta causou impacto, principalmente em Heather. O lorde observou fixamente o
comandante ianque durante certo tempo, inteiramente atónito.
— Eu escutei direito, senhor?
— Sim — replicou Brandon formalmente. — Não tenho intenção de aceitar pagamento por me
casar com minha esposa!
— Mas é de praxe! Isto é, a mulher sempre traz uma espécie de dote para o marido. Estou mais
do que disposto a...
— O dote que ela trouxe é a criança que carrega, nada mais. Sou perfeitamente capaz de cuidar
dos meus sem ganhar presentes. Mesmo assim, obrigado pela oferta.
Heather fechou a boca e foi sentar-se, sentindo-se mais do que assombrada.
— Ianque maluco — resmungou Tia Fanny.
Brandon bateu os calcanhares e fez para ela a mesura formal.
— Vindo da senhora, madame, considero isso um verdadeiro elogio.
Ela o olhava como se fosse rosnar e insultar, mas achou melhor mudar de ideia para seu próprio
bem. Em vez disso, calou a boca e virou o rosto bruscamente, fugindo daquele olhar.
— Como sabe muito bem, madame — ele acrescentou às suas costas — o que digo é verdade.
Eu realmente tomo conta dos meus. e suas dívidas.
O significado dessas palavras não tinha valor para Heather, mas Fanny Simmons ficou totalmente
pálida e muito nervosa. Recusou-se a encará-lo. E continuava em silêncio quando um criado veio
anunciar que a refeição estava servida.
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Capítulo Quatro
Uma fria tempestade de outubro levara o ar de outono e deixara o dia com rajadas ocasionais,
que sucediam sobre Londres. As rodas corriam ruidosamente pelas pedras arredondadas, e
batiam nos buracos com lama à medida que a carruagem jogava e se sacudia rumo às docas.
Heather sentava-se calada no assento traseiro, ao lado de Lady Hampton. A mulher falava-lhe
docemente e de vez em quando alisava um lustroso cacho negro de cabelo, com carinho, ou
tocava de leve sua mão. Era o único vestígio visível de nervosismo, a despeito da tristeza causada
pelo momento que se aproximava. E freqüentemente os olhos de Heather desviavam-se
hesitantemente para a expressão inflexível do marido, que se sentara ao lado de Lord Hampton e
à sua frente. Ele se apoiara no canto, para proteger-se dos solavancos, enquanto o olhar se
deslocava lenta e impassivelmente pela carruagem, esbarrando nela por instantes e depois se
desviando com a mesma calma com que a havia observado. Lord Hampton fazia tentativas
esporádicas para incluí-lo na conversa, mas era presenteado com respostas curtas e vagas,
emitidas somente em nome da boa educação.
A carruagem fez uma curva fechada e atravessou uma estreita rua do cais do porto, passou por
um pátio aberto enlameado, e parou ao abrigo de um prédio. Um pequeno cartaz balançava
acima de uma porta, dando nome à estrutura: Charleston Enterprises Warehousc
Brandon saiu rapidamente da carruagem e virou-se para Heather:
— Você terá muito tempo para se despedir. Tenho de mandar o agente do depósito enviar sinal
para que meu navio providencie uma barcaça.
Dizendo isso afastou-se, com o vento revolvendo seu cabelo cortado curto e a renda dos punhos.
Heather seguiu-o com o olhar até que entrasse no prédio, depois se virou lentamente e viu
lágrimas nos olhos de Lady Hampton. As tristezas da despedida não mais poderiam ser contidas.
Ela se deixou cair nos braços da senhora e, através das lágrimas, seus corações comungaram —
uma garota sem mãe, uma mulher sem filha. Lord Hampton pigarreou ostensivamente.
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Passou-se um momento antes de Heather sentar-se direito novamente e ele tomar sua mão entre
as dele.
— Fique descansada, criança — ele a consolou. — A vida diz que poucas despedidas são eternas.
Quem sabe quando nossos caminhos se cruzarão de novo e então teremos outros bons
momentos? Cuide-se bem, minha filha. Cuide-se muito bem.
Impulsivamente Heather abraçou-o pelo pescoço e tocou sua face áspera com os lábios.
— Por favor, venham me ver mais uma vez antes de partirmos? — ela rogou.
— Não, não devemos, Heather. A ira do seu marido já foi testada o suficiente. É melhor nos
despedirmos de vez agora. Talvez mais tarde ele nos perdoe, mas por enquanto, em nome de
Deus, façamos assim.
Novamente ela atirou os braços em torno de Lady Hampton.
— Vou sentir falta dos dois — soluçou, com lágrimas rolando abertamente.
A dama apertou a garota firmemente.
— Você terá seu marido, meu amor, e em breve um filho. Haverá pouco tempo para lembrar-se
de nós. Mas alguma coisa me diz que será mais feliz com ele do que quando estava aqui. Agora
vá,, minha querida. Vá atrás do seu homem zangado. E, Heather. lembre-se de que ódio e amor
vivem separados por um fio.
Relutantemente Heather desfez o abraço de Lady Hampton e moveu-se para a porta. Ouviu a
voz do marido lá fora, falando asperamente com um marujo ocioso, e percebeu que ele havia
voltado e esperava por ela perto dos cavalos. Limpando as lágrimas da face, abriu a porta e
ergueu as saias para descer da carruagem. Brandon correu para ajudá-la. Escorregou as mãos até
sua cintura. Seus olhos se encontraram e, por uma só vez, felizmente, ele não zombou de
suaslágrimas. Amparou-a gentilmente, depois esticou o braço para dentro da carruagem, de onde
Lord Hampton estendia-lhe as capas e o pequeno volume de presentes dados por Lady
Hampton. Heather afastou-se quando Brandon falou em voz sussurrante com os Hampton.
O Pleetwood estava fundeado na baía, a várias centenas de metros do cais, aguardando a vez para
carregar. Passando em torno da proa, uma baleeira veio em direção do casal, com quatro marujos
remando. Um homem pequeno, idoso, e um tanto irrequieto vinha na popa apressando-os, sem
dúvida com palavreado colorido.
Ali em volta, as docas cheias de vida agitavam-se num caos de ruídos, cenários e odores. Marujos
ociosos vagavam, com o fedor das orgias da noite anterior ainda em seus trajes, enquanto
prostitutas pouco atraentes exibiam sua mercadoria, na esperança de alguns chillings, ou de uma
refeição e uma cama para passar a noite. Ratos guinchavam estridentemente no lixo de um esgoto
aberto, mas saíram
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correndo quando uma pedra, atirada por um moleque, caiu no meio deles. Gargalhadas
escandalosas soavam à passagem de diversos maltrapilhos, espalhados pelo cais, que pularam por
sobre o esgoto e sumiram por um beco.
Heather estremeceu, recordando como pensara em dar à luz um filho sem pai e deixá-lo criar-se
conhecendo esta vida nas ruas. Pelo menos agora a criança teria uma vida acima disto. Que
importava se ela não era amada nem desejada como esposa? Seu filho teria pai e uma espécie de
lar, a despeito de que o pai era homem que vivia navegando.
Era esta a vida de um comandante de navio mercante: este cenário pobre, imundo, à sua volta, e
aquele pequeno navio além. Qual o papel que teria na vida do marido ela ainda não sabia — só
tinha a certeza de que ia ser a mãe do seu filho. Se ele ia levá-la, em outras viagens futuramente,
ou deixá-la convenientemente atrás era problema dele, sobre o qual ela pouco ou nada teria a
dizer. No entanto, assim como enfrentava o vento que trazia o cheiro de mar às suas narinas,
assim deveria encarar a vida: de cabeça erguida, aceitando qualquer mínimo prazer, que o marido
lhe permitisse, e ficando satisfeita. Com o tempo, talvez, ela nem mais se importasse que o amor
tivesse passado ao largo, esquecendo-se dela.
Com o toque da mão do marido em suas costas, os pensamentos de Heather desfizeram-se
velozmente. Ele chegara em passadas barulhentas, assustando-a. Sentindo seu pequeno corpo
estremecer, Brandon colocou-lhe sua capa sobre os ombros.
— Temos de ir pegar o bote — murmurou.
Segurando seu braço, ele a guiou pelos fardos de carga, cordas enroladas e redes, enquanto a
baleeira se aproximava da extremidade do cais. Assim que a embarcação tocou no píer, o homem
pequeno pulou para terra e correu ao encontro deles. Tirou rapidamente o boné da cabeça, e
Heather verificou com espanto que se tratava de George, criado do comandante, e também seu
servente a bordo. O homem inclinou-se, numa mesura grotesca, e dirigiu-se ao seu chefe:
— Pensávamos que o sinhô vinha ontem, comandante. Quase consideramos o sinhô perdido. Eu
estava a ponto de formá um grupo e percorrê a cidade, pensando que tinha sido vítima das
quadrilhas de assaltantes. O sinhô deu um susto tremendo na gente, comandante. — E, com
outra mesura, e mal parando de falar: — Olá, madame!
— Demoramos um pouco na residência de Lord Hampton — replicou Brandon.
Acenando com a cabeça e repetindo a ridícula mesura, George recolocou o boné na cabeça,
aliviou seu comandante dos embrulhos e veio caminhando atrás, enquanto se dirigiam ao bote.
Brandon desceu primeiro, depois trouxe nos braços a jovem esposa e instalou-a na
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proa. George jogou-lhe os pacotes, desceu a escadinha, tomou seu lugar na popa e pegou no
leme.
— Vamos trabalhar, pessoal! — ordenou. — Estamos a caminho, agora. Vamos remar... Remar a
bombordo! Nada de moleza: e dá força nisso, rapaziada! Vai ser uma jornada muito fria, mas a
gente vamos aguentar firme! Vamos lá, meninos! Remem direitinho!
O pequenino barco passou sob a popa de um navio cargueiro atracado e rumou para mar aberto,
onde se achava o Flettvood. Houve um leve balanço e um borrifo de água gelada salpicou o rosto
de Heather, tirando-lhe o fôlego e provocando-lhe um calafrio. Envolveu-se mais na capa de
Brandon, afundando em suas dobras quentes. Contudo, qualquer bem-estar era breve, pois os
elementos se misturavam num constante esforço para produzir renovado desconforto.
A proa da baleeira chocava-se com as ondas, subia alto e caía no vácuo: o movimento incomum
embrulhou o estômago de Heather, e cada mergulho a mais parecia aumentar-lhe o enjoo. Então
lançou um olhar contrafeito para o marido, sentado de frente para o vento, dando a impressão de
apreciar o gosto dos salpicos salgados... e levou a mão à boca.
”Se eu vomitar agora, me odiarei pelo resto da vida”, ela pensou ferozmente.
Suas faces ficaram pálidas e o rosto todo gradualmente assumiu o tom esverdeado do mar. Sua
batalha estava quase vencida; entretanto, à medida que se aproximavam do navio, ela ergueu o
olhar para os mastros altos, inclinando-se para frente e para trás, acima dela e na direção oposta
ao movimento que sofria. Um gemido de angústia escapou-lhe dos lábios diante da confusão de
balanços, chamando imediatamente a atenção de Brandon. Ele observou por um rápido
momento o rosto pálido, angustiado e a mão esguia lutando pelo autocontrole, e agiu depressa —
passando o braço em torno dela, baixou-lhe a cabeça cuidadosamente por cima da amurada do
barco e deixou a natureza curar-se no próprio oceano.
Poucos instantes depois Heather estremeceu pela última vez e endireitou-se, detestando-se.
Envergonhada e humilhada, não ousou erguer os olhos. Ao seu lado, Brandon molhou um lenço
e apertou-o contra a sua fronte.
— Está passando bem agora? — perguntou atenciosamente. Os sacolejos haviam cessado, e
agora o barco estava à sombra do navio. Ela conseguiu fazer um ligeiro sinal com a cabeça
quando George encostou a embarcação no navio.
Enquanto Brandon firmava o cabo da proa nas correntes, o outro homem mais velho fazia o
mesmo na popa. Então o comandante firmou o pé na escada e virou-se, gesticulando para
Heather.
— Venha, ma petite. Vou ajudá-la a subir a bordo.
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Ela se moveu com cautela, e colocou o pé na escadinha, ao lado do dele. O braço dele envolveu-a
e, encostando-se ao seu corpo, subiu para o convés do navio. Deixou-a durante uns instantes
enquanto vigiava a baleeira, e Heather aproveitou para dar uma espiada no navio. Encontrou-se
em um verdadeiro labirinto de cordas, cabos e vergas, e no meio disso tudo os grandes mastros
subiam aos céus, agora balançando em ritmo suave e tranqüilo em confronto com as nuvens. Das
entranhas do navio vinha um rangido quase musical, junto com estalos e gemidos. Os tempos
dos ruídos e dos movimentos combinavam-se e quase transformavam o navio debaixo dela numa
coisa viva, respirando. Ele tinha um cheiro limpo, salgado, e, à medida que observava, ela via que
cada detalhe se encaixava com precisão nos seus lugares; cordas enroladas a mão, baldes e
cavilhas acondicionados. Existia um senso de ordem na embarcação.
Brandon voltou para o seu lado.
— Vai ter de mudar a roupa, Heather. Comprei algumas coisas para você antes de descobrir que
havia desaparecido. Estão no meu camarote. — E, com um sorriso zombeteiro, acrescentou: —
Acredito que conheça o caminho...
Ela enrubesceu intensamente e olhou com hesitação para uma das portas abaixo do convés dos
alojamentos.
— Sim, vejo que conhece — ele murmurou, observando-a. — Vai encontrar as roupas no meu
baú. Daqui a pouco estarei lá.
Dispensada, ela se afastou rumo à porta. Antes de abri-la, contudo, deu uma olhada para trás, e
viu o marido numa conversa séria com George. Parecia que ele já a esquecera.
A cabina estava como em sua lembrança: compacta, ocupando tão pouco do precioso espaço
para carga quanto possível. A melancolia do dia formava lá dentro um profundo crepúsculo, pois
apenas uma luz difusa vinha das vigias à ré. Antes de encaminhar-se para o baú, ela acendeu uma
vela em cima da mesa e pendurou o casaco do marido num cabide perto da porta. Depois,
ajoelhou-se diante do baú e os dedos tocaram no fecho e suspenderam o tampo.
Um arquejo de espanto escapou-lhe quando viu o vestido bege cuidadosamente dobrado em
cima. As lembranças começaram a afluir, fazendo-a lembrar-se de William Court e da noite
passada na mesma cabina.
Seus olhos voltaram-se com relutância para o beliche no qual perdera a virgindade e nele fixou o
olhar por uns instantes, recordando-se da luta que ali tivera lugar, dos lábios apaixonados e
frementes em sua carne e, enfim, da derrota. A mão escorregou até a barriga voluntariamente, e
seu rosto enrubesceu.
Mas começou a agir quando a porta atrás abriu-se e Brandon entrou na cabina. Rapidamente ela
pôs o vestido bege de lado e puxou um de veludo vermelho-escuro logo abaixo. Tinha decote
baixo, mangass
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era justo e longo, e enfeitado com renda branca nos punhos. Era roupa feita para a mulher sem
afetações infantis, para realçar-lhe a simplicidade e a beleza.
Quando Brandon tirou o casaco e atirou-o no baú, ela se levantou e começou a tirar o vestido
com dedos trêmulos. Quando ele caiu, ela deu um passo à frente, livrando-se dele com cuidado, e
o colocou também no baú.
— Há uma estalagem aqui perto — disse o marido atrás dela. — Será mais confortável lá para
você do que aqui.
Um ligeiro franzido formou-se na testa de Heather quando se virou e olhou para ele. Ele
desabotoara a camisa e já se achava absorto em sua escrituração mercantil, à sua mesa. Tão
facilmente como a estava expulsando do seu navio, assim também conseguia tirá-la de sua mente.
Talvez até a deixasse para trás quando navegasse. Não havia garantia do contrário, e então ela
ficaria sem recursos.
— Não estou desacostumada ao desconforto — ela replicou num tom de voz baixo. — Ficarei
satisfeita em alojar-me aqui. Não há necessidade de levar-me para uma hospedaria.
Ele a observou.
— Você concorda facilmente, minha cara — ele exclamou com uma risada curta, escarnecedora.
— Mas sou eu quem toma as decisões aqui. A estalagem estará mais adequada às suas
necessidades.
Ela não pensara nisso: que ele a deixaria para trás tão cruelmente. Sentiu um frio crescer aos
poucos e ir tomando conta de seu corpo.
”Será este verdadeiramente o meu destino?”, perguntou-se desconsoladamente. — ”Ser deixada à
beira do cais para sobreviver como puder, grávida, nas mãos de parteiras que nada conhecem
além de imundície e miséria? Terá meu filho de receber um nome, mas passar a vida como um
moleque na sarjeta?” Ela se virou e uma onda de apreensão percorreu-a.
Não haveria compaixão neste homem? Se queria que ela implorasse, de bom grado se ajoelharia
na sua frente e imploraria pela vida do bebê. Contudo, ele não parecia desejar isso. Tomara uma
resolução friamente e sem emoções. Ela iria para a estalagem.
Tentando aplacar seu medo, enfiou o vestido vermelho e foi até onde ele estava sentado. Sua
atenção desviou-se para ela, e uma estranha expressão assomou-lhe ao rosto. O colorido rico e
profundo daquela roupa escurecera-lhe os olhos a ponto de parecerem de um azul-noturno,
enquanto a pele imaculada brilhava surpreendentemente em contraste com o vermelho. O busto
estava generosa e lindamente apresentado, e o vestido mal cobria a cor de rosa dos bicos.
Terrivelmente apavorada, e incerta de como ele reagiria ao pedirlhe um pequeno serviço em seu
favor, Heather virou-se de costas para ele.
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— Não consigo abotoá-lo — argumentou docemente, enquanto o estômago perturbava-se e sua
angústia crescia. — Faz-me o favor?
Ela sentiu seus dedos nas costas do vestido, e inclinou a cabeça para a frente, aguardando, mal
respirando, até ele terminar. Depois, então, afastou-se ao mesmo tempo que lhe lançava um olhar
por cima do ombro. Ele examinava de novo a escrituração, mas agora com uma carranca severa.
Enquanto ela circulava em silêncio pelo aposento, guardando o vestido de noiva, reunindo as
roupas de que precisaria na hospedaria, e pendurando o casaco do marido num cabide no
armário dele, continuava a observá-lo sorrateiramente, temendo fazer alguma pequenina coisa
que o irritasse. Ele porém parecia absorto nos livros e esquecido dela.
O tempo arrastava-se em silêncio. Houve apenas um momento de trégua quando George trouxe
café e chá. Ele serviu seu comandante com um leve murmúrio, e trouxe o chá para ela onde
estava sentada, na divisão que ficava atrás da cadeira do marido. Em seguida o criado retirou-se,
deixando-a escutar o suave suspiro do navio e as batidas monótonas de seu coração.
Já eram quase 10 horas quando Brandon afastou a cadeira da mesa e olhou para ela mais uma
vez. Seus olhos desceram até os seios, e ele franziu a sobrancelha de novo.
— Acho melhor usar minha capa para ir até a estalagem — afirmou bruscamente. — Não tenho
desejo de ser atocaiado em terra, por algum malandro devasso que poderá pensar em você como
um lucro certo.
A cor subiu ao rosto de Heather, e seu olhar desviou-se do dele. Murmurou uma resposta
obediente, levantou-se das almofadas e passou veloz por ele para pegar a capa.
Poucos instantes depois já estavam no barco, esperando que George descesse. O criado arriou as
coisas de Heather junto com sua sacola de pano grosso para o barco, depois ele mesmo entrou e
deu ordens aos marujos para se afastarem com a embarcação. Em terra, caminhava atrás do casal,
vigiando cautelosamente por cima dos ombros em busca de supostos assaltantes ou outros tipos
perigosos.
Chegaram à estalagem sem incidentes, e entraram sob os acordes de uma canção melancólica
cantada por um marujo. O sujeito era pequenino e magro, mas tinha a voz cheia e suave de um
barítono. Perto dele alguns homens bebericavam cerveja e escutavam, hipnotizados pela magia da
sua voz. Um fogo crepitava na lareira, e o aroma de porco assado pairava no ar, dando água na
boca de Heather. Ela fechou os olhos e tentou não pensar na fome que atacava seu estômago.
Brandon murmurou alguma coisa para George, e o serviçal saiu rapidamente para falar com o
estalajadeiro enquanto Heather acompanhava o marido até uma mesa no canto. Ela se sentou na
cadeira que
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ele puxou e logo depois eram servidos de comida e bebida que Heather aceitou agradecidamente,
pois seu estômago já roncava de fome
Ela, entretanto, não reparou nos olhares que atraía dos homens nem na capa que escorregara dos
ombros, nem especialmente nos dois homens com aparência lasciva, sentados do outro lado do
salão que conversavam aos sussurros. Sua atenção dividiu-se entre a comida e a canção
Greensleeves que o marinheiro entoava. Assustou-se quando sentiu o marido inclinar-se sobre
ela. Ele lhe pôs novamente a capa sobre os ombros, o que fez seu rosto arder quando ergueu os
olhos para ele.
— Eu comprei o vestido para meu prazer particular, meu amor — falou suavemente. — Não
tinha a intenção de ver você dar satisfação a outros homens com a visão do seu adorável busto. E
também não é aconselhável fazê-lo. Você está causando grande confusão entre este pessoal.
Heather fechou a capa e, olhando em volta vagarosamente, verificou que era verdade o que
Brandon dissera. Ela parecia o centro das atenções. Até o marujo parara de cantar um momento
para admirá-la. Logo após recomeçou:
”Negra é a cor dos cabelos do meu grande amor.
Sua beleza é uma coisa de imenso valor.
Os olhos mais puros, e as mãos mais macias.
Adoro a relva em que pisa todos os dias.
Amo meu amor e ela sabe bem.
Amo a relva que seus passos retém.
Se não mais na Terra ela pudesse ficar,
Minha vida depressa se iria esgotar.”
Heather deu uma olhada no marido e viu que ele se irritara com a canção do marinheiro. Suas
pálpebras se semicerraram enquanto comia, mas no rosto um pequeno músculo se mexeu. Como
já fizera antes, ela ficou em silêncio, amedrontada quando percebia sua ira.
Após o jantar, o estalajadeiro mostrou-lhes o quarto que George reservara. O criado trouxe os
pertences, depois se retirou junto com o proprietário. Durante alguns minutos Heather aguardou
que Brandon também saísse, para jamais ser visto de novo, mas ele se espreguiçava numa cadeira,
sem demonstrar disposição de partir; assim, ela foi até onde estava e pediu que a ajudasse a tirar o
vestido, começando a despir-se como se esperasse pela sua permanência. Ela soltou os cabelos e
correu os dedos por eles para alisar os cachos, já que não possuía escova nem pente. Cônscia do
olhar do marido, tirou o vestido e a roupa de baixo, colocando-os numa cadeira, e depois vestiu
uma camisola, presente de Lady Hampton.
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A camisola era de uma fina cambraia branca, com inserções de renda no busto, e um decote
redondo e muito cavado. Abaixo dos seios uma fita estreita passava pela renda terminando num
laço. As mangas eram fofas e compridas, e um pregueado com bordas de renda caía por sobre as
mãos. Conquanto menos diáfano que a roupa da noite de núpcias, esta, como a outra, era
destinada a dar prazer a um homem; todavia, quando Heather se deslocou para a frente da luz de
uma vela, isso provocou uma imprecação furiosa de Brandon. Heather olhou-o com sobressalto e
surpreendeu-o caminhando a passos largos até a porta.
— Voltarei daqui a umas duas horas — rosnou, abrindo-a. Em seguida sumiu, e Heather caiu
lentamente ao chão enquanto soluços apavorados a sufocavam.
— Ele nem consegue dizer a verdade — falou com voz entrecortada. — Jamais voltará...
Então, cada momento que passava era mais longo do que o anterior. Ela caminhava pelo quarto,
perguntando-se como agiria e para onde iria. Não poderia regressar à casa da tia e permitir que o
filho fosse criado pela sua mão odiosa, nem tampouco recorrer a Lord Hampton e pedir-lhe
auxílio. Era orgulhosa demais para descarregar seus problemas em cima deles novamente. Talvez,
se a vida lhe fosse amiga, arrumasse emprego como criada aqui mesmo, na estalagem. Amanhã
ela perguntaria, mas por esta noite dormiria, se pudesse.
A noite passava e, por mais que Heather tentasse aplacar seus medos e pôr de lado as dúvidas, o
sono não veio. Parecia que uma eternidade se passara quando escutou o sino dobrar, tocando
hora. Com uma exclamação de raiva pulou da cama e correu até a janela, fechando-a com uma
pancada. Encostou a cabeça no vidro, enquanto os ombros esguios sacudiam-se aos soluços. Do
lado da porta ouviu uma voz masculina.. outra respondeu. Seu pavor aumentou e, quando a porta
se abriu, a cor fugiu de seu rosto. Mas a luz do saguão iluminou a cara de George e a silhueta alta,
de ombros largos, do seu marido.
— Você voltou! — ela desabafou.
O rosto do comandante voltou-se para ela antes de fechar a porta, e de novo se acharam na
escuridão.
— Por que não está deitada? — ele perguntou, movendo-se pela escuridão na direção da cama.
Ouviu-se o atrito de uma pederneira com o aço. A faísca pegou, e Brandon acendeu uma vela em
cima da mesa, e depois a observou. — Está passando mal?
Ela veio em sua direção, saindo das sombras, e a luz da vela fez as lágrimas em seus olhos
cintilarem.
— Pensei que me havia abandonado -— murmurou. — Pensei que jamais o veria novamente.
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Por um instante ele a observou com certa surpresa, depois sorriu atenciosamente e puxou-a para
perto de si.
— E você ficou assustada?
Ela indicou que sim com a cabeça tristemente, e tentou sufocar um soluço, mas isso acabou
parecendo um grasnado esquisito. Ele afastou carinhosamente o cabelo do rosto dela e tocou-lhe
a testa com os lábios a fim de cessar o tremor.
— Você não ficou sozinha um só instante, ma petite. George estava do lado de fora do quarto,
protegendo-a. Agora ele acaba de ir dormir um pouco; mas achou que eu seria tão canalha a
ponto de deixá-la aqui sem me assegurar da sua segurança?
— Eu não sabia em que acreditar — ela murmurou. — Temi que você nunca mais regressasse.
— Meu Deus! Você não é muito lisonjeira quanto a mim. nem quanto a você mesma. Eu não
deixaria uma dama à própria sorte num lugar como este, e muito mais sendo minha esposa, e
com um filho meu. No entanto, se isso serve para acalmar-lhe os nervos, não mais a deixarei
enquanto estivermos aqui.
Ela ergueu os olhos para os dele e percebeu calor.
— Que bom — murmurou. — Não mais ficarei com medo. Ele lhe pegou o queixo com a palma
da mão.
— Então vamos para a cama. O dia foi longo e estou cansado. Limpando as lágrimas das faces,
ela subiu para a cama pelo lado mais próximo à porta, e observou-o em silêncio enquanto ele
abria o volume que George trouxera junto com suas coisas. Os olhos de Heather arregalaram-se
quando retirou o estojo com as pistolas Flintlock com as quais ela certa vez ameaçara o criado.
Ele as trouxe para a cama e, largando o estojo ao lado dela, começou a carregar as pistolas.
— Acha que vai haver problemas? — ela perguntou docemente, sentando-se.
Ele olhou para ela, sorriu e explicou:
— É apenas uma precaução que tomo quando me sinto inseguro com as coisas que me cercam.
Não precisa preocupar-se, meu bem.
Ela observou curiosa enquanto ele carregava uma delas, lembrando-se do perigo que ela mesma
correra quando tentara fazer aquilo e não conseguira. Percebendo seu interesse, Brandon riu
carinhosamente.
— Quer aprender agora como carregá-las? — perguntou-lhe sorrindo. — Você trabalha muito
bem com elas assim vazias. George ficou extremamente envergonhado quando descobriu que
você o enganara. O fato de um mero truque feminino fazê-lo tremer diante de uma arma vazia
feriu-lhe o orgulho. Ele ficou muito agitado durante bastante tempo. E eu também, diga-se de
passagem — acrescentou rudemente, recordando a maneira com que despejara uma torrente de
ofensas no lacaio quando retornara ao Fleetwood e descobrira que a
103
garota sumira. Seu humor não melhorara nada quando também percebeu que ela desaparecera
sem deixar vestígio.
Pegou no braço dela e puxou-a até a beirada da cama, onde estava.
— Mas agora não faz diferença. Se deseja aprender como se carrega uma pistola, eu lhe
mostrarei. — Depois olhou-a bem dentro dos olhos e avisou: — Porém jamais cometa o erro de
pensar que pode virá-las contra mim e depois não usá-las. Não sou o George e teria de matar-me
antes de conseguir escapar. — Outra vez ele sorriu docemente. — Mas, quanto a isso, duvido de
que tenha índole para matar um homem, portanto acho que estaria bem seguro arrancando-as de
suas mãos.
Heather engoliu em seco. Olhou fixo para ele em silêncio, e com olhos redondos como a Lua.
Acreditou em cada palavra do que ele falou. Não era homem de fazer ameaças vãs.
Sentaram-se muito próximos um do outro, na beira da cama; tão perto que seus corpos se
tocavam: as coxas dela contra as dele, seu braço comprimindo-se no lado do corpo do marido. O
braço dele rodeava as costas dela, e a mão descansava na cama, bem perto das nádegas. A postura
de Heather era dolorosamente retesada. Nervosamente ela baixou o olhar e empurrou a bainha
do vestido recatadamente por sobre coxas e joelhos, percebendo que ele havia subido quase até a
altura dos quadris quando ele a puxou para si.
— Posso tentar carregar esta aqui? — perguntou-lhe, tocando com hesitação na arma que ele
portava na outra mão.
— Se quiser — replicou, entregando-a.
A Flintlock era pesada e adequada para a força de um homem. Ela a achou difícil de manejar.
Deitando-a sobre seus joelhos, pegou o polvorinho e ergueu a boca da arma para derramar ali
dentro a pólvora.
— Não aponte a pistola para o seu rosto — aconselhou Brandon. Ela obedeceu e despejou
pequena quantidade da pólvora cinzenta na boca da arma. Depois, imitando-o, enfiou um pedaço
de papel e, com a vareta, empurrou-o pelo cano; em seguida, envolveu uma bala de chumbo num
pedacinho de pano oleado e também o empurrou cano abaixo. Estava feito.
— Você aprende muito depressa — murmurou Brandon enquanto tirava a pistola da mão dela e
a deixava em cima da mesa, ao lado da outra. — Talvez você vá ser outra Molly Pitcher.
Olhando para ele, Heather enrugou ligeiramente a testa:
— Quem é ela, Brandon? — perguntou descontraidamente, sem perceber que só agora o havia
chamado pelo primeiro nome.
Ele sorriu e esticou a mão para pegar num dos seus cachos espessos.
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— É um nome que davam às mulheres que ajudavam a levar água para os soldados norte-
americanos em combate, e a uma mulher em especial, que ajudou a manter a linha de batalha
contra os ingleses, em Monmouth.
— Mas você também é inglês, Brandon, não é? — perguntou-lhe, observando-o com olhar
curioso.
— Na verdade não — ele respondeu, rindo. — Sou norte-americano. Minha família é daqui,
certo, mas bem antes de falecerem consideraram-se leais americanos. Meu pai ajudou no combate
aos ingleses, o que também fiz quando menino. Você vai ter de se acostumar com a ideia de que
a sua amada Inglaterra não é tão amada no lugar para onde vamos.
— Mas você faz comércio conosco — ela afirmou, totalmente aturdida. — Seu navio navega
estes mares, e faz negócios com a gente que uma vez combateu.
— Sou um comerciante. — Ele encolheu os ombros. — Vendo meu algodão e mercadorias para
os ingleses visando ao lucro. Eles me vendem o que o meu pessoal comprará para eu ter lucro do
outro lado. Jamais guardo rancor quando acho que isso vai interferir no fato de eu ganhar
dinheiro. Além disso, presto um serviço ao meu país trazendo de volta as coisas de que todos
necessitam e ainda não são disponíveis.
— Então você vem aqui todo ano?
— É o que tenho feito nos últimos 10 anos, mas esta vez será a última. Tenho de administrar
minha plantação. Não posso negligenciá-la mais tempo. E agora tenho outras responsabilidades
em vista. Vou vender o Fleetiwood quando chegar em casa.
Alguma coisa soou estranha a Heather. Seria possível ele estar falando em nunca mais velejar,
estabelecer-se e ser o pai de sua criança? Talvez mesmo lhe permitissem uma posição
insignificante nos domínios dele. O pensamento em si invadiu-lhe o ser com calor, e ela quase se
encostou nele, descontraída. Todavia, a fria realidade e a dúvida esfriaram o sonho.
— Eu também vou viver na sua plantação? — perguntou, quase temendo a resposta.
— Claro! — ele replicou, muito espantado com a pergunta. — Onde pensou que iria viver?
Ela encolheu os ombros nervosamente.
— Eu... eu sei lá. Você não falou. Ele sorriu por entre os dentes:
— Mas agora já sabe. Seja boazinha e vá deitar-se para dormir. Sua conversa ininterrupta me
cansou.
Ela subiu de novo para a cama enquanto ele se levantava e começava a despir-se. Assim que
terminou, fez sinal para que Heather mudasse de lugar.
105
— É melhor que eu durma mais perto da porta — avisou. Rapidamente ela passou para o outro
lado e nem perguntou por quê. Era evidente que ele esperava por algum problema.
Brandon apagou a vela e deitou-se ao seu lado. Uma pequenina lanterna ficava pendurada, com
sua luz ténue, no pátio abaixo e, com a tempestuosa brisa da noite, lançava sombras, que se
moviam devagar para dentro do quarto. A contragosto, Heather descobriu que seu cabelo se
enfiara por baixo do travesseiro de Brandon e ali ficou preso. Ela esperou que ele o soltasse, mas
se passou muito tempo, e ele não o fez; foi quando Heather verificou que nem o faria, pois caíra
no sono com a face apertando seus cachos macios. Com um suspiro de resignação, dispôs-se a
passar a noite em submissão, porém, com a presença do marido ao seu lado, sentiu-se segura, e
mergulhou nas profundezas do sono.
Do fundo dos domínios do sono ela lutou aterrorizada com esporões que a aguilhoavam até que
acordasse inteiramente. A mão apertava forte sua boca, abafando gritos produzidos pelo pavor.
Seus olhos arregalaram-se e, numa reação frenética, agarrou-se àquela mão. Então o rosto do
marido agigantou-se por cima do dela, na escuridão e, com os sentidos vindo à consciência de
novo, seus temores passaram e ela afundou de volta no travesseiro. Olhou para cima, encarando-
o confusa, enquanto os olhos perscrutavam.
— Fique quieta — ele sussurrou suavemente. — Não se mexa. Não faça barulho. Finja que está
dormindo!
Ela fez sinal que sim com a cabeça para que ele soubesse que ia obedecer, A mão do comandante
afastou-se, e ele se deitou novamente ao lado dela. Sua respiração era lenta e uniforme, como se
estivesse dormindo. Do lado de fora ela escutou uma voz abafada e estranhos ruídos de bater e
arranhar na porta do quarto. A tranca começou a erguer-se, e Heather lutou para controlar a
própria respiração. Com as batidas estremecendo dentro do peito não era tarefa fácil.
Um tênue feixe de luz surgiu e se ampliou à medida que a porta era aberta. Com olhos
semicerrados ela observou, e viu uma cabeça aparecer. Ouviu um sussurro:
— Estão dormindo. Venha.
Duas silhuetas escuras penetraram no quarto, e a porta foi fechada. Heather trincou os dentes
quando os homens caminharam para a frente, e quase saltou quando o piso estalou debaixo dos
seus passos. Ouviu um cochicho zangado:
— Não acorda essa gente, seu idiota, senão a gente não pegamos a garota. Ele não é burro, não.
106
— Ela tá do outro lado da cama — o outro sussurrou um pouco mais alto.
— Sshhh!... — o primeiro rosnou. — Não precisa dizê, eu tô vendo com meus olho.
Aproximaram-se quase até o pé da cama quando Brandon sacou as pistolas de baixo das cobertas
e sentou-se.
— Vamos com calma, rapazes — ordenou. — Estão sob minha mira. E fiquem realmente
parados porque essas duas valiosas peças têm duas balas de chumbo para esburacá-los.
Os dois ficaram congelados no meio da ação, um virado como se para fugir, e o outro segurando-
lhe o braço.
— Heather, acenda a vela para que possamos ver as caras dos nossos visitantes da meia-noite —
Brandon mandou.
Ela se arrastou por trás dele rapidamente e acendeu a vela sobre a cómoda. O brilho da chama
espalhou-se suavemente pelo quarto e tocou no rosto dos dois assaltantes, mostrando serem os
mesmos que se haviam escondido do casal no outro lado do salão, durante a refeição.
— A gente não queria fazer mal — um explicou. — Nós não ia machucá a garota.
O outro era mais ousado:
— Nós podemo lhe garantir um bom dinheiro pela dona, comandante. Ela pode dar mais do que
seu peso em ouro se a gente vendermos ela prum certo duque que a gente conhecemos. Nem faz
diferença se ela num fô mais virgem! — Seus olhos desviaram-se para Heather, e ele sorriu por
entre os dentes, mostrando que eram bem estragados. — Ela vale um bom preço, comandante. A
gente dividimos por três.
Tremendo, Heather chegou mais para perto do marido e puxou as cobertas até o queixo. Não
estava gostando da forma pela qual os homens a admiravam. Sabia que se tivessem conseguido
raptá-la seria usada muitas vezes pelos dois antes mesmo de ser vendida ao duque. Eram cópias
de William Court: tencionavam satisfazer, antes, seus próprios instintos.
Brandon riu ameaçadoramente quando se levantou e encarou os dois. Nem se preocupou por
estar nu e empunhava as pistolas com ar despretensioso, o que não diminuiu o nervosismo dos
ladrões.
Heather sentiu calor subindo-lhe ao rosto. Uma coisa era ficar com Brandon quando ele estava
nu, mas com outros presentes. era outra, inteiramente diversa. Sua máscula nudez parecia-lhe
ainda mais espantosamente crua com aqueles dois homens ali.
— Devo decepcionar os bons cavalheiros — afirmou debochadamente. — A moça carrega meu
filho e eu sou um homem egoísta.
— Isso num faz mal, comandante — interrompeu o tímido. — O duque fica cum ela até o nono
mês, e, quando ver que ela tá de
107
barriga, não vai ser difícil pra ele dá um jeito. A gente damos um castigo pra ela que vai durá
umas hora, depois que ela se arruma a gente pegamos ela de novo e leva. Ele vai paga bem por
ela agora, e a gente dá metade pró senhô, já que vai precisá de outra mulher pra esquentá a sua
cama...
Os olhos de Brandon cintilaram friamente e os dedos que seguravam as pistolas foram perdendo
a cor. Um pequeno cacoete começou a aparecer-lhe na face.
— Há um fedor insuportável neste quarto que quase me faz vomitar — vociferou, com um
sorriso forçado nos lábios. — Caminhem até as janelas, os dois, e abram-na para mim. E vão
com todo cuidado, pois minhas mãos começam a incomodar-me!
Os dois apressaram-se em obedecer, depois se viraram de novo para o ianque, sorrindo.
— E agora, belezocas, devo mais uma vez explicar antes de vocês partirem — começou Brandon
de forma lenta, precisa, quase gentil. Depois, sua voz foi tornando-se ameaçadora e ferina, e a
raiva aumentava em cada palavra: — Essa moça é minha esposa, e traz o meu bebê! Ela pertence
a mim, e tudo que é meu eu mantenho assim!
As últimas palavras deram a impressão de explodir todos os pensamentos esperançosos dos
malandros. Seus queixos penderam, os olhos se arregalaram de pavor e pequenas gotas de suor
apareceram em suas testas. Neste instante mostravam-se profundamente preocupados com a
continuidade de suas existências.
— Mas, comandante, ela... nós... — ambos gaguejavam, tentando acalmá-lo. O ousado
finalmente conseguiu explicar-se com clareza: — Mas, comandante, a gente não sabíamos.
Nenhuma esposa que a gente vemos por aí parece boa de cama. Quer dizer, senhor...
— Vão andando! — rosnou Brandon. — Saiam daqui antes que eu acabe com ambos!
Os dois começaram a caminhar para a porta, mas foram detidos por Brandon, que sorriu
maldosamente por entre os dentes.
— Oh! não, pessoal! A janela serve muito bem para isso. Os bandidos olharam embasbacados
para ele, e gaguejaram:
— Mas, comandante, e se a gente quebrá o pescoço nas pedra lá embaixo?
— Fora!
As pistolas ameaçaram e os dois correram para obedecer. Deram uma rápida parada, e o mais
ousado mergulhou pela janela — se foi ajudado ou não, não deu para perceber. Uma forte
pancada seca, e em seguida imprecações e gemidos abafados eram ouvidos do pátio embaixo.
— Acho que quebrei as minhas duas perna, seu bastardo miserável! — foi o berro do homem.
108
O mais acanhado olhou para trás, mas Brandon gesticulou e o sujeito partiu relutantemente. À
sua chegada lá embaixo, seguiu-se uma enxurrada de gritos, blasfémias e gemidos. No entanto
aqueles gritos histéricos só arrancaram um sorriso divertido que veio da janela do segundo andar,
quando o comandante a fechou. Passou a tranca na porta novamente e de uma forma que não
poderia ser erguida pelo lado de fora outra vez. Os ruídos exteriores morreram à medida que os
dois assaltantes se afastavam.
Ainda sorrindo, Brandon acomodou-se ao lado de Heather — agora sentada no meio da cama, a
observá-lo silenciosamente, mas de olhos um pouco amedrontados.
— Imagino o que teria acontecido com aquele último.. Ele gritou bem mais alto, não concorda,
meu bem? — Sorriu para ela.
Ela trocou olhares com ele; depois, ante um sinal seu com a cabeça, um leve riso musical
escapou-lhe dos lábios.
— Oh, se concordo! E suponho que deva sentir-me honrada por terem mentido sobre quanto eu
daria de lucro: nenhum homem pagaria tal preço por uma mulher...
Ele a observou por instantes, de maneira estranha, escutando o som de sua voz, e admirando o
riso cintilante e feliz. Depois, seu olhar desceu para os seios macios e deliciosos que apareciam,
atormentadores, naquele espaço acima do vestido, e para a sua transparência do vestido — que
escondia bem pouco do corpo. Leve transpiração surgiu-lhe na fronte enquanto ele sentia mais
um conhecido repuxão. Um músculo da face retorceu-se quando se virou, e um súbito impulso
de feri-la o invadiu.
Levando-se em consideração o que você pesa, realmente não teria sido muito — ele afirmou
asperamente antes de apagar a vela e, na escuridão, acrescentou friamente: — Tivessem eles
oferecido mais, eu me teria sentido tentado.
Espantada com essa súbita mudança de humor, Heather enfiou-se no travesseiro e ficou quieta.
Não sabia o que fizera ou dissera para que ele desejasse magoá-la tão cruelmente. Ele era tão
imprevisível! Como poderia entendê-lo? Por vezes era delicado e carinhoso como antes, de outras
deixava-a muda por causa do seu temperamento irascível...
A manhã chegou, com Brandon ausente, e Heather pulou rapidamente da cama. Lavou-se e
enfiou as roupas, deixando o vestido vermelho sem fechar porque não alcançava os ganchinhos.
Muito bravamente vasculhou os objetos de Brandon até encontrar uma escova. Perguntando-se
qual seria seu castigo se ousasse usá-la, mordeu o lábio e quase a devolveu ao seu lugar. Porém
não havia uma outra, e seus cabelos estavam horríveis. Havia a probabilidade de que ele
109
jamais viesse a notar que a escova fora usada — caso Heather agisse depressa. Num esforço para
efetuar a tarefa antes de ser descoberta, começou a escová-los vigorosamente. No entanto, para
sua angústia, ele entrou de volta quando ela dava os últimos retoques: virou-se imediatamente
para encará-lo, parecendo muito culpada com a escova na mão. Na mesma hora percebeu que ele
estava furioso. e que ela escolhera um péssimo momento para mostrar-se corajosa.
— Desculpe-me — falou. — Não tenho escova. Minha tia ficou com as poucas coisas que me
pertenciam.
— Já que tomou a iniciativa de usá-la sem a minha permissão — ele rosnou lentamente — tenha
logo de uma vez o prazer de continuar.
Ela soltou a escova imediatamente, enquanto ele se encaminhava para a janela, e desviou-se dele
por precaução. Depois, deu uma espiada furtiva por cima do ombro quando principiou a trançar
os cabelos, a fim de certificar-se de que ele continuava perto da janela. Mas seu olhar passou
depressa para outro ponto assim que descobriu o marido a observá-la. Começou a tremer e, com
os dedos inseguros, era difícil entrelaçar direito os cabelos. Teve de reiniciar tudo várias vezes
antes de ficar satisfeita com os resultados, mas sempre cônscia dos olhos verdes sobre seu corpo.
De certa forma, contudo, conseguiu dobrar as grossas tranças e amarrá-las acima de cada orelha
de modo que os anéis caíssem soltos, e roçassem seus ombros quando se mexia.
— Vou levá-la a um comerciante de fazendas hoje de tarde — disse Brandon friamente, virando-
se para olhar pela janela. — Vai precisar de roupas mais discretas do que as que anda usando.
Mantendo o vestido no lugar, Heather encarou-o aborrecidamente. Estava vestido de maneira
displicente, sem ter posto ainda o paletó. As calças eram em castanho claro e bem justas, e ele
usava um colete do mesmo tom. A camisa era branca, bem como as meias, e de mangas
compridas, com um babado terminando em renda que caía sobre as mãos morenas. Como
sempre, a roupa era imaculada, e de muito bom gosto. Ela reparou que, uma vez vestindo-se a
ponto de satisfazer seus próprios altos padrões, ele não exigia mais nem se preocupava com os
adereços. Não era um almofadinha afetado.
Sua atenção parecia agora voltada para o mundo lá fora do quarto, e ela percebeu, pelo seu perfil,
que suas sobrancelhas estavam arriadas numa pesada carranca. Os barulhos de carroças e
carruagens rolando pelas pedras arredondadas das ruas chegavam-lhes de vez em quando lá de
baixo, mas praticamente só os gritos dos mendigos e dos moleques penetravam no ambiente.
Ela foi até a cama para arrumá-la, movimentando-se pelo quarto tão silenciosamente como podia.
Terminada essa função, sentou-se na beirada e aguardou que o tempo passasse ou o marido
fizesse alguma coisa, ou ainda lhe desse alguma ordem. Esperou uma eternidade.
110
Suas costas começaram a doer, encostou a cabeça na coluna da cama. Fechou os olhos, mas eles
se abriram de novo devido ao nervosismo. O estômago roncou. Finalmente Brandon mexeu-se e
ela endireitou a postura, puxando o vestido até os ombros. Os olhos dele varreram-na
desinteressadamente.
— Você tenciona ficar assim desse jeito até de noite ou vai chegar até aqui e me deixar ajeitar-lhe
a roupa? Se quer comer, acho bom vir depressa.
Ela se ergueu rapidamente da cama, sem ousar contrariá-lo, e foi em sua direção, com os dentes
mordendo o lábio inferior. O coração batia forte quando levantou os olhos para ele.
— Eu não queria irritá-lo com aquela escova — explicou nervosamente. — Meu cabelo estava
embaraçado demais porque não o escovei ontem de noite. Não estava conseguindo dar jeito nele.
Ele a observou por alguns instantes, com o rosto desprovido de qualquer expressão, quando de
repente a carranca reapareceu.
— Não me incomodou — falou brevemente. — Apenas vire para que eu feche o vestido.
Ela obedeceu, enquanto a palidez lhe invadia o rosto e os olhos se enchiam de dúvidas.
Ignorando seu descontentamento por haver usado a escova, ela sentiu que ele ainda se achava
perturbado por causa dela desde a noite anterior, embora ela não atinasse de forma alguma com o
motivo por que estava assim.
Quando desceram para comer, George fez-lhe uma curta reverência, disse um ”olá, madame”, e
puxou-lhe a cadeira. Em seguida, trocou algumas palavras com o comandante e saiu apressado.
Os olhos de Heather seguiram-no até a porta. Enrugando ligeiramente a testa, perguntou-se a
quantos dos homens da tripulação ele já teria falado a respeito de sua presença anterior a bordo
do Fleelwood e de tudo que se seguira: parecia conhecer bem os segredos do seu comandante.
Porém, por muito breve que fosse a sua expressão, não passou despercebida a Brandon, que lhe
disse:
— Não precisa preocupar-se quanto a George, meu amor, ele é muito discreto. Basta dizer que
sabe que você não era prostituta, e lamenta muito todos os danos que lhe causou. E, embora
você possa não concordar, ele não é nenhum estúpido: viu as marcas de sua virgindade quando
carregou os lençóis de minha cabina aquele dia. de onde deduziu que você fora deflorada.
Heather quase morreu de vergonha! Nada havia a fazer: não poderia voltar a encarar o criado,
sabendo disso. Escapou-lhe um gemido, enquanto escondia nas mãos o rosto enrubescido.
— Por favor, não se aflija, querida! — Um sorriso lhe encurvava a boca. — Não há de que
envergonhar-se. Muitas, muitas mulheres gostariam de poder oferecer tal prova de castidade a
seus maridos
111
quando, pela primeira vez, as levam para a cama. Agrada a um homem o saber que não houve
outros antes dele...
E você ficou agradado? — perguntou a moça, rispidamente.
Ele estava novamente rindo dela, e isso a aborrecia.
— Sou como os demais homens, doçurinha. — Seu sorriso alargou-se: — Isso me agradou, sim.
Mas eu não precisava de provas de sua virgindade. Você sabe que, quando me dei conta da coisa,
foi um choque para mim, para dizer o mínimo. Poderia ter-me afastado e pedido perdão se
houvesse tido a menor indicação de que você não estava no negócio por sua livre vontade. — E
acrescentou, à guisa de desculpas: — Mas você torna impossível qualquer pensamento lógico.
— Qual a necessidade, então? — perguntou, amarga. — Você já causara o dano.
Ele riu disparçadamente e seu olhar a devorava, como na véspera:
— Ainda não completamente, meu amor: não lhe dera, então, a parte de mim que está
carregando agora... Se me tivesse retirado de você naquela hora, não teria havido gravidez.. Mas,
como a coisa aconteceu, você tem agora uma vida crescendo dentro de você, e eu sou merecedor
de censura. Seus tios tornaram fácil para mim ter certeza de que o filho é meu.
— Entretanto, eu podia estar mentindo a respeito do meu estado — ela replicou,
desafiadoramente, querendo abalar sua firme convicção nem que fosse por um momento. Ergueu
o lindo narizinho e ousou enfrentar-lhe o olhar.
— Mas não estava — ele falou decididamente, esmagando-lhe os esforços sem um momento de
hesitação.
— Você não tem provas... — ela replicou.
— Não?... — falou ele pachorrentamente, erguendo a sobrancelha de modo zombeteiro.
Ela então percebeu haver-se atirado de cabeça na sua própria derrota.
— Esquece, ma belle — continuou o rapaz despreocupadamente — que a vi ao natural e,
embora ainda não esteja muito aparente, está com uma linda barriguinha crescendo. Dentro de
alguns meses será absolutamente óbvio.
Ela ficou silenciosa, pois a copeira vinha em direção à mesa. De qualquer maneira, nada havia,
mesmo, a dizer. Como poderia discutir contra a verdade?
Depois da refeição, George voltou:
— Qué que eu chame uma carruagem agora, comandante? Brandon relanceou um olhar para
Heather:
— Se está pronta, querida...
— Desculpe-me um momento — respondeu a moça, suavemente, sem olhar para ele.
Certamente ele já se teria dado conta de que as
112
necessidades dela surgiam com mais freqüência que as dele. Com sua quase constante companhia
desde as núpcias, seus muitos pedidos de desculpas para ir ao banheiro já deviam ter-lhe
chamado a atenção. Ele se voltou para George e falou baixinho:
— Estaremos lá num momento.
Quando o criado se foi, Brandon pôs-se de pé e a ajudou a levantar-se, enquanto murmurava
sorrindo:
— Desculpe-me, amor, pensava em outras coisas e não em seu estado delicado. Por favor,
perdoe-me!
De modo que ele notara a freqüência de suas idas, afinal de contas, e as relacionaria com a
gravidez, como era certo. Não haveria nada que lhe escapasse? Nada que não conhecesse a
respeito de mulheres?
Com um olhar de relance, notou o sorriso do marido. Por um rápido momento seus olhos
encontraram os dele. Porém, sob seu olhar cálido, as faces da moça ficaram rosadas e ela se
sentiu perturbada. Ele riu maciamente, quando ela desviou o olhar, e seu braço deslizoulhe pela
cintura, apertando-a suavemente, antes de afastar a mão.
Ela se encaminhava de volta à porta de encontro à qual Brandon a esperava quando ouviu seu
nome pronunciado por uma voz familiar. Voltou-se e viu Henry Whitesmith correndo para ela,
na mão um canecão de cerveja, vestido num traje de marinheiro mercante. Aparentemente
entrara com um grupo de marujos enquanto ela estava fora da sala. Surpresa ao vê-lo, por um
momento ficou incapaz de falar enquanto ele corria a depositar o canecão e tomava suas mãos
entre as dele:
— Heather, meu amor! — gritou, feliz. — Pensei que não a veria antes de ir embora! Mas o que
está fazendo aqui e onde está sua tia? Veio para ver-me embarcar?
— Embarcar? — perguntou ela totalmente sem saber o que ele queria dizer. Franziu o cenho. —
Henry, que está fazendo aqui? Onde está Sarah? Por que você está com essas roupas?
— Você não sabe, Heather? Engajei-me no Merriweather da Companhia Britânica de Chá. Daqui
a 15 dias partiremos para o Oriente. Ficarei por lá dois anos.
— Por quê, Henry? — indagou ela, atónita. — que aconteceu a Sarah?
— Eu não podia casar-me com ela, Heather. Amo você e não me casarei com ninguém que não
seja você. Por isso vim aqui a Londres em busca de fortuna e ficar rico, conforme você disse que
queria um homem. Agora tenho uma oportunidade de conseguir isso. Quando voltar do Oriente,
terei recebido grande número de ações. Sabe, Heather, voltarei um homem rico. Talvez até com
500 libras no bolso.
113
- Oh, Henry! — suspirou ela tristemente, tirando suas mãos das dele.
Uma vez mais ele a contemplou com adoração. Seu sorriso estava luminoso e seus olhos reluziam
de alegria. Não reparou no sofrimento dela.
— Você está com ótima aparência, Heather. Nunca a vi tão bem. — Estendeu a mão e tocou
suavemente o rosto dela; a mão tremeu-lhe. — Você esperará por mim, Heather? Reconhecerá
que é minha? Você se casaria comigo agora para que eu parta como um homem feliz?
O olhar fixo dele deteve-se nos seios dela. Sua voz vacilou e as palavras pareceram agarrar-se à
garganta enquanto ele falava:
— Eu a quero, Heather. Eu a amo e a desejo intensamente.
— Por favor... — ela arquejou. Olhou para a frente e viu Brandon dirigindo-se para eles, com o
cenho franzido. Ela nervosa olhou novamente para Henry, e então Brandon os alcançou.
— Se você estiver pronta, meu amor, devemos partir — disse Brandon, atirando-lhe o manto
sobre os ombros para ocultar-lhe o busto do olhar de Henry. — A carruagem está esperando.
Henry fixou Brandon incredulamente e viu quando ele passou o braço pelos ombros de Heather.
Sentiu-se subitamente enfurecido ao ver outro homem tocar a sua bem-amada.
— Heather, quem é esse homem, esse... esse ianque? — indagou. Que é que você está fazendo
aqui com ele? Onde está sua tia? Por que permite que esse homem ponha as mãos em você
assim?
— Henry, você me precisa ouvir — implorou ela. Não queria dar-lhe a notícia assim, nesse lugar
público, de forma cruel. Suas entranhas estavam geladas de pavor. — Eu não queria que isto
acontecesse, Henry. Por favor, acredite em mim. Você deveria ter acreditado quando eu lhe disse
que era impossível você se casar comigo.
Seus olhos fixaram os do marido e neles havia um apelo à compreensão. Era preciso impedir que
esse rapaz sofresse se Brandon resolvesse falar-lhe duramente.
— Henry, este é meu marido, o Comandante Birmingham, do navio americano Fleetwood.
— Seu marido? — exclamou Henry, olhando horrorizado para Brandon. — Meu Deus, não é
verdade, Heather! Diga que você está zombando de mim: Você não se casaria com um ianque.
Decepcionado, fixou o requintado traje do outro homem. Sua própria vestimenta rude não valia
mais que as meias do outro.
— Um ianque não, Heather!
— Eu não seria cruel a ponto de zombar de você, Henry — ela respondeu suavemente. — Ele é
meu marido.
114
— Quando. quando é que você se casou? — perguntou ele, sufocado, lágrimas apontando-lhe
nos olhos.
— Há dois dias — sussurrou Heather, baixando o olhar. Não podia suportar as lágrimas dele. Se
ela tivesse de ficar mais tempo ali, conversando com Henry, perderia o autocontrole e fugiria dos
dois, soluçando. Todo o seu corpo estava rígido devido ao esforço para não o fazer, e nem o
braço de Brandon ao seu redor adiantava. Só lhe lembrava que ele era o responsável. O silêncio
dele, porém, era abençoado.
— Você me pode dizer por que se casou com ele... um ianque. e não comigo, Heather? — ele
perguntou tristemente.
Ela ergueu os olhos para ele.
— Qual a necessidade destas perguntas, Henry? Estou casada e isto não pode ser desfeito. Deixe-
nos despedir e ir embora. Você logo me esquecerá.
— Você não me quer dizer? — ele perguntou.
Ela sacudiu a cabeça e lágrimas lhe toldaram a visão:
— Não, não posso. Agora preciso ir.
— Não a esquecerei, Heather, você sabe disso. Eu a amo e nenhuma outra mulher servirá para
mim.
Apesar da presença de Brandon, ela se ergueu nas pontas dos pés e beijou o rosto de Henry.
— Adeus — murmurou: Em seguida, virou-se e deixou que Brandon a conduzisse para fora.
Na carruagem, olhou soturnamente pela janela e não se importou no momento em que Brandon
reparou nela e se aborreceu:
— Quando esse guri a pediu em casamento? — perguntou abruptamente, quando a carruagem
estava rodando.
Ela desviou o olhar da janela e respondeu:
— Depois que eu conheci você.
O rosto dele se fechou sombriamente e ele se calou um instante. Quando falou novamente, a voz
tinha uma rispidez que evidenciava sua irritação:
— Você se teria casado com ele se ainda fosse virgem? Ela o olhou e cautelosamente disse a
verdade:
— Eu não tinha dote. Os pais dele não me teriam aprovado por este motivo. Eu não me teria
casado com ele.
— Você não mencionou o amor — insistiu ele lentamente.
— Não há lugar para o amor no casamento — disse ela, amargamente. — Os casamentos são
combinados para se ter lucro ou alguma outra vantagem. Os apaixonados desfrutam seu prazer
em montes de feno ou em prados. Para se terem, dois apaixonados desprezam totalmente a
prudência. Está além do meu alcance saber as razões deles.
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Brandom a estudou calmamente e disse:
Sei que você nunca se apaixonou, nem esteve tentada pelo amor e sei também que ainda está
inocente das alegrias do amor, virgem a bem dizer.
Ela o olhou:
— Não compreendo o que você está dizendo — disse ela agressivamente. — Não sou virgem.
Você está falando por enigmas.
Ele riu mansamente.
— Você quase me tenta a lhe mostrar o que quero dizer. Mas isso lhe daria prazer, e você ainda
precisa pagar pela sua participação na chantagem contra mim.
Ela o olhou com raiva.
— Você continua a falar por enigmas — retrucou. — E inverdades. Sou inocente do plano de
chantageá-lo. Devo repetir-lhe isso?
— Por favor, tenha dó! — respondeu ele, suspirando pesadamente. — Não aprecio a mentira.
— Mentira! — guinchou ela. — Quem é você para me acusar de mentirosa, seu... seu...
Ele a sacudiu com certa violência:
— Calma, Heather — preveniu. — Seu gênio irlandês está aparecendo.
Ela engoliu em seco ao ver-lhe os olhos frios e verdes. Não demoraria muito para desprezar o
bom senso e ter um ataque de nervos. Devia aprender a controlar melhor os sentimentos.
— Desculpe — disse, em voz débil. Odiou-se por desculpar-se e por ser covarde. Outra mulher
talvez o insultasse ou chegasse até a esbofetear-lhe o belo rosto. Ela, porém, não conseguia
visualizar-se fazendo isso e odiava pensar no que ele lhe faria se ela o tentasse. Mesmo agora,
estar presa nas mãos dele a enchia de um pavor que a deixava trêmula. E o olhar feroz e
penetrante dele lhe tirava o restinho de coragem. Era uma fêmea covarde que tremia só de ele
olhar para ela.
Ele a soltou e riu debochadamente e avisou:
— Você deve tomar cuidado especial para morder a língua antes, minha cara. Vai cansar-se de
tanto implorar meu perdão, se não o fizer.
— É difícil ficar calada quando você me provoca e insulta tanto — murmurou ela constrangida,
olhando fixamente as mãos cruzadas no colo. — Você não me deixa muito orgulho.
— Eu nunca disse que deixaria — falou ele rispidamente, virando-se para olhar pela janela. — Eu
lhe disse o que esperar. Achava que eu estava mentindo?
Ela sacudiu a cabeça lentamente. Uma lágrima caiu-lhe na mão e em seguida outra, e ela as
limpou.
116
Sem olhar em volta, Brandon tirou impacientemente um lenço de dentro do paletó e entregou-o
a ela.
— Tome — falou breve. — Vai precisar dele. E, se pretende ficar chorando o tempo todo, me
dará prazer inacreditável se você se lembrar de trazer o seu próprio lenço. Aborrece-me muito
não encontrar o meu quando dele necessito.
— Está bem, Brandon — ela murmurou, sem ousar lembrar-lhe que não possuía lenço.
Até o resto da jornada, Brandon continuou virado friamente para a janela, deixando um silêncio
pesado encher a carruagem, enquanto uma grande apreensão tomava conta de Heather.
Madame Fontaineau recebeu-os à porta de sua loja com um sorriso encantador. O Comandante
Birmingham era freguês costumeiro sempre que ia ao porto. Ela gostava do alto ianque. O patife
bonitão tinha um jeito especial de lidar com mulheres, e ela era jovem o suficiente para dar valor
a isso.
Ele retirou a capa dos ombros da jovem, e ela examinou o vestido vermelho de alto a baixo.
Sorriu satisfeita, verificando que nenhuma outra moça poderia usá-lo tão adequadamente. Sua
curiosidade fora alimentada quando ele comprou o vestido e outras roupas para uma garota tão
graciosa. Ela presumira que ele encontrara uma nova amante. Os vestidos que ele comprara nos
dois anos precedentes eram adequados para mulher mais alta, mais corpulenta. Essa flor de
menina, ainda no limiar da idade adulta, jamais poderia ter preenchido dimensões tão amplas.
Havia um toque um pouco esnobe, mas ingênuo, nos modos da moça; quase inocente,
estimulantemente singular. E bastante para deixá-la intrigada. Muitas das mais bem sucedidas
cortesãs freqüentavam sua loja e, nas suas línguas frívolas, o Comandante Birmingham tinha seu
nome incluído nas frases mais lisojeiras. Logo, ela sabia consideravelmente mais da vida íntima do
homem do que ele imaginava. No entanto ali estava alguma coisa nova e muito diferente — uma
pequena e linda moça, daquelas que alguém escolhe para se casar. Santo Deus!
Ela mesma era francesa, não muito idosa, e ainda admirava muito um homem com agá
maiúsculo. Muitas vezes encarara o Comandante Birmingham com olhos não apenas de
comerciante, conquanto fosse cautelosa o bastante para manter as coisas nesse pé. Tinha
sabedoria suficiente para reconhecer que ele desapareceria do seu mundo para sempre caso ela
sequer sugerisse que se tornassem mais do que amigos. À parte o carinho por um coração velho e
sensível, a falta de interesse por mulher de mais idade faria com que a rejeitasse, e nunca mais
seria visto de novo.
Foi só então que seu olhar recaiu na aliança de ouro que a moça estava usando.
— Madame Fontaineau, quero apresentar-lhe minha esposa!
117
Seu queixo caiu de surpresa, mas respondeu rapidamente para disfarçar o espanto:
Muito prazer em conhecê-la, Madame Birmingham. Seu marido é um dos meus clientes favoritos
há muito tempo. É perito em mulheres. E você é lindíssima.
Brandon franziu as sobrancelhas.
— Minha esposa deverá adquirir um guarda-roupa completo. Madame Fontaineau, por favor.
— Oui, monsieur, farei o melhor possível — ela retrucou depressa, cônscia de sua gafe. Os
homens não gostam que suas atividades amorosas se tornem assunto de domínio público,
especialmente de suas esposas. Porém o choque fora demais para ela. Esqueceu-se até de si
mesma quando percebeu a aliança.
Madame Fontaineau percorreu o corpo da moça com o olhar enquanto esta se afastava, rumo aos
materiais empilhados nos balcões, para examiná-los. A jovem senhora tinha um corpo esguio
como cama, porém tenro e convidativo. A mão de um homem ansiaria tocá-lo. Era fácil imaginar
por que o comandante ianque a desposara. Era dotada de uma beleza, e os dois formavam um
casal perfeito. Seriam invejados.
Resignada, olhou para ele:
— Elle est perfecte, eh, monsieur?
Os olhos de Brandon ergueram-se lentamente para fitar as costas de Heather.
— Oui, madame. Magnifique — respondeu.
Heather não compreendeu a conversa, nem tentou. Reparou, contudo, que Brandon respondera
na mesma hora. Ele era cheio de surpresas. Agora os dois conversavam em francês, deixando-a
vagar pelo salão à vontade. Caminhava despreocupadamente por entre as mesas, dando, de vez
em quando, uma espiada no marido e na mulher. Davam a impressão de se conhecerem bem. Ele
ria durante a conversa, e a costureira ocasionalmente tocava-lhe o braço, gesto que ela, sua
esposa, não se podia dar ao luxo de fazer. Franziu as sobrancelhas, lembrando-se com clareza do
que a costureira dissera. Parecia que Heather era apenas uma dentre várias mulheres para quem
ele comprava roupas.
Virou-se rapidamente, revoltada porque Brandon a trouxera ali. Ele poderia ter-lhe poupado a
situação constrangedora.
Ergueu um esboço de um cavalete próximo e começou a analisar o desenho, esforçando-se para
se concentrar nele, em vez de no homem e na mulher lá atrás. Mas seu interesse não se prendeu
por muito tempo. Era o modelo de um vestido da moda, com cintura alta e amplamente
enfeitado com laços e detalhes espalhafatosos; um daqueles próprios para mulheres não muito
virtuosas. Ela não gostou dele.
Levantando os olhos do modelo, ela se viu sendo admirada por um jovem que aparentemente
surgira por detrás da cortina, na parte traseira da loja, um segundo antes. Seus olhos percorriam
avidamente a frente do vestido como se pudesse enxergar através dele. Lambeu os lábios e
caminhou na direção dela. Heather ficou imobilizada durante um momento, confusa. O rapaz,
confundindo aquela pausa, animou-se. Abriu um amplo sorriso, mas, para sua completa
infelicidade, Brandon ergueu o olhar que mantinha na conversa e o viu aproximar-se da esposa
com aquela atitude mais do que óbvia.
Aquilo era apenas um gesto, mas para Brandon foi a gota dágua que faltava para transbordar.
Primeiro, ladrões; depois, uma velha chama; agora, um garoto. A mulher era dele e não uma peça
pública para ser acariciada e observada com volúpia. Sua paciência chegava ao fim. Não podia
suportar que outro homem pastasse com os olhos a sua Heather.
Tomado de uma raiva quase incontrolável, atravessou o salão num piscar de olhos. Heather viu-o
aproximando-se e, com um gemido assustado, pulou para sair de sua frente. Brandon agarrou o
rapaz pelo casaco e, erguendo-o acima do chão, sacudiu-o como um cachorro sacode um rato.
— Seu vagabundo lambedor de esgotos! Vai aprender depressa a manter distância de minha
esposa. Vou espalhar seus pedaços de um canto a outro desta loja!
Os olhos do pobre garoto quase pularam das órbitas, e ele ganiu indefeso. Heather ficou
petrificada, com todos os sentidos embotados, e Madame Fontaineau, voando até Brandon,
segurou-lhe o braço.
— Monsieur! Monsieur! — implorou. — Monsieur Birmingham. Ele não passa de uma criança!
Por favor! Ele não pretendia insultá-lo, monsieur. Por tavor, solte-o. Eu lhe imploro.
Brandon acedeu lentamente, mas seu maxilar ainda se mexia com raiva. Suas mãos largaram o
rapaz, e Madame Fontaineau, por sua vez, segurando-o não muito gentilmente, expulsou-o para
os fundos da loja, enquanto reclamava em francês zangado. Pouco antes de jogar a cortina para o
lado, abrindo-a, ela foi vista com um punho feroz contra a orelha do jovem infeliz. Nem Brandon
nem Heather se haviam mexido quando um momento depois a mulher regressou.
— Peço-lhe perdão, Monsieur Birmingham — disse humildemente Madame Fontaineau a
Brandon. Passou rapidamente por ele e caminhou até Heather, pegando as mãos trêmulas da
moça. — Madame Birmingham, ele é meu sobrinho, e às vezes faz tolices de criança. Mas, ah,
madame — acrescentou, encolhendo os ombros — Ele é indiscutivelmente francês, não é?
Novamente Heather ergueu o olhar para o rosto do marido. Ele estava ali perto, encostado numa
das mesas com os braços cruzados. Sua expressão não mudou, quando ela o encarou, e temeu
que estivesse
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zangado com ela. Seu olhar baixou nervosamente, e virou-se para a mulher de novo.
Não faz diferença — murmurou baixo. — Escolha a senhora o que achar melhor.
Madame Fontaineau lançou um olhar para Brandon a fim de receber seu sinal de aprovação, e
então sorriu por entre os dentes, recordando o cuidado com o qual ele escolhera roupas íntimas
para esta menina. As blusas tinham de ser do tecido mais fino, macias e transparentes, para que
ele as aprovasse. Não esqueceria isso quando fosse costurar estas novas.
”Ele é muito possessivo com sua jovem esposa”, ela pensou, lembrando-se da sua repentina
explosão. ”E terá de lutar com muitos homens para mantê-los afastados dela. A moça tem a
expressão de suave inocência estampada no rosto, mas é uma tentação. Teria sido melhor se ele
se apaixonasse por mim.”
— Comandante Birmingham, se trouxer a madame à sala de provas, poderemos começar a
selecionar as roupas. Tenho lindos desenhos dos estilos mais recentes.
Fez a volta subitamente e guiou o casal para os fundos da loja, passando pelas cortinas em
direção a um corredor, e finalmente entrando numa sala pequena repleta de materiais e costumes.
Trouxe uma cadeira e indicou-a para Brandon sentar-se, o que ele fez virando-se para Heather.
— Madame, se me permite, vou abrir seu vestido para podermos começar a tomar as medidas,
está bem?
Virando as costas para Madame Fontaineau, Heather aguardou em silêncio que a mulher
desapertasse o seu vestido para ela. A sala inteira era pouco maior que uma cama, e tão entulhada
de costuras que mal havia espaço para os três. Nesse aposento exíguo suas saias roçaram os
joelhos de Brandon quando ela se mexeu, e não havia outro local para ficar a não ser em frente a
ele. Bastaria esticar o braço para tocá-la.
A costureira era por demais precisa na tomada das medidas, usando a fita com perícia. Heather
viu-se levantando os braços, aprumando a coluna, erguendo a blusa, e tudo ao comando da
mulher.
— A madame poderia agora encolher o estômago? — continuou a costureira, passando a fita em
torno dos quadris de Heather.
Heather ergueu o olhar e viu um riso silencioso sacudir os ombros de Brandon. Observou-o por
cima da cabeça da costureira, não mais se importando que ele se houvesse irritado com ela. De
mau-humor, replicou para a mulher:
— É impossível.
Madame Fontaineau sentou-se nos calcanhares no local onde se ajoelhara, diante de Heather, e
pensou no problema — como a petite
120
madame poderia ter esse ligeiro problema. Finalmente levantou os olhos e um sorriso de
reconhecimento curvou-lhe os lábios.
— A madame está esperando um pequenino, sim? — perguntou.
— Sim — confessou Heather com má vontade, enquanto corava, encabulada.
— Ah, isso é maravilhoso! — murmurou Madame Fontaineau. E deu uma longa espiada em
Brandon. — O senhor é um papai orgulhoso, hem?
— Não tenha dúvida, Madame Fontaineau.
A costureira riu baixo. E pensou: ”Então ele não tem dúvida de que a criança é dele. Respondeu
com facilidade e sem delongas. Talvez a moça seja tão inocente como parece.”
E, em voz alta:
— Ah, monseur, o senhor traz um bem ao meu coração! Não corou nem gaguejou de vergonha
ao admitir que vai ser papai. Isso é bom. Não é vergonha um homem anunciar o que fez. — Deu
à Heather uma olhada rápida e aprovadora antes de virar-se de novo para o comandante. — E
sua esposa vai ser uma encantadora mãe, hem, monseur?
Os olhos de Brandon percorreram o corpo da esposa lentamente, e brilharam com uma luz
estranha.
— Muito encantadora — concordou carinhosamente.
”Ah, olhem para ele!”, pensou Madame Fontaineau com um suspiro. — ”Ele já está impaciente
para levá-la de novo para a cama.”
A petite madame jamais passaria sem um filho na barriga feito por ele. Vai usá-la muito bem. Ah,
quem me dera ser ela!.
— A madame fica deslumbrante na blusa que eu fiz, hem? — perguntou, percebendo que os
olhos dele quase devoravam a menina.
— Ela tem o corpo de uma deusa: seios perfeitos, cintura fina o bastante para encaixar-se nas
mãos de um homem e, quanto aos quadris e às pernas. u-la-lal
Heather fechou os olhos, constrangida até o âmago da alma. Sentiu-se como a escrava que é
vendida a um homem — este homem com o propósito de dar-lhe prazer. Podia esperar ser
beliscada e examinada a qualquer momento. Mas era o seu corpo que Madame Fontaineau
descrevia com tanta liberdade, não o de uma escrava. A mulher não tinha o direito de degradá-la
dessa maneira. Um corpo feminino era uma coisa sagrada, íntima, que merecia respeito, e não a
desonra por parte daqueles que agiam assim. Ele não era designado para um lote de escravos, a
fim de ser vendido ou trocado.
Trincou os dentes zangada e abriu os olhos, apenas para se notar observada por Brandon através
do espelho. O tempo parou quando ele captou seu olhar e prendeu-o sem trégua. Mesmo quando
seu olhar baixou pelo corpo dela, tornando-a evidentemente consciente da
121
transparência da sua roupa íntima, ela não conseguiu desviar o olhar do rosto dele. Então, mais
uma vez os olhos de Brandon encontraram os dela e um ligeiro tremor sacudiu o corpo da
esposa, fazendo-a sentir-se fraca, aturdida e terrivelmente esquisita.
Sem comentários do ianque que a encorajassem a continuar seus elogios a respeito da garota,
Madame Fontaineau ergueu-se, mais uma vez a negociante.
— Vou pegar os esboços. Se a madame desejar botar o vestido agora, eu o ajustarei assim que
voltar.
Saiu rapidamente da saleta, e Heather desviou o olhar do espelho, pegando o vestido. Como se
atordoada, pulou para dentro dele e puxou-o para cima. Passou os braços pelas mangas e cruzou-
os para manter a roupa suspensa até a volta de Madame Fontaineau, mas ergueu o olhar
espantado quando Brandon esticou o braço e puxou-a pela saia para o vão de suas pernas. Ela o
encarou estonteada, com olhos arregalados, e a boca ligeiramente aberta. O coração batia
violentamente de emoção. Essa movimentação não escapou ao olhar observador de Brandon, e
ele riu ligeiramente quando viu seus seios tremerem.
— Por que está tão assustada, minha coelhinha? — sorriu. — Minha única intenção era fechar
seu vestido.
Numa reação nervosa ela tentou esconder os seios do olhar dele, espalmando as mãos cruzadas
por cima deles e acima da gola do vestido, mas ele as afastou e sorriu zombeteiramente.
— Não há necessidade de proteger-se, meu amor. Não há outro olhar aqui, a não ser o meu, para
observá-la.
— Por favor! — ela sussurrou quase sem fôlego. — Madame Fontaineau está voltando.
Ele riu baixo:
— Se você me facilitar as coisas, virando-se de costas, tudo o que ela verá será um homem
ajeitando a roupa de sua esposa. Senão.
Ela se voltou rápida e escutou sua risadinha divertida enquanto levantava as mãos na direção de
sua roupa. Ele ainda a ajeitava quando Madame Fontaineau regressou.
— Eu trouxe todos os figurinos que tenho. Há muita coisa aqui para escolher, como a senhora
verá.
A mulher esvaziou uma pequena mesa e jogou a pilha de modelos ali, depois puxou a mesa para
eles, aprisionando Heather no meio dos joelhos de Brandon. Quando ele acabou de ajustar-lhe a
roupa, ela se abaixou ao lado da mesa e começou a examinar os desenhos. Estes eram mais a seu
gosto, mas teve dúvidas de que o marido quisesse gastar com ela a quantia que tais vestidos
custariam. Olhou para eles esperançosamente, depois suspirou.
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— A senhora não tem figurinos de roupas mais simples, menos caras que estas? — perguntou à
mulher.
Madame Fontaineau gaguejou, surpresa, e Brandon rapidamente inclinando-se para a frente, na
sua cadeira, debruçou-se sobre a esposa, descansando uma das mãos no seu ombro nu.
— Meu amor, sou perfeitamente capaz de comprar estas coisas para você — afirmou ele, dando
uma espiada nos figurinos.
Madame Fontaineau deu um suspiro de alívio: o comandante tinha ótimo gosto — e dispendioso
— para roupas. Não ia deixar sua esposa pensar em ninharias numa ocasião como esta. E já que
tinha capacidade para pagar por um vestuário mais caro, qual seria o objetivo da garota? Caso as
posições fossem invertidas, ela escolheria as roupas mais finas que pudesse..
— Já que parece tímida para gastar meu dinheiro — continuou Brandon suavemente para a
esposa — vou ajudá-la a escolher o guarda-roupa, se não fizer objeção.
Heather sacudiu a cabeça rapidamente, sentindo-se trêmula com aquela mão em cima dela. Seus
dedos compridos pareciam labaredas na sua carne despida. No entanto descansavam sobre ela
despreocupadamente, acima da clavícula e do começo do volume dos seios, parecendo não saber
o que provocavam nela, parecendo não sentir a respiração ofegante sob seu aperto.
”Mas ele deve estar a par disso e está apenas me atormentando. Sabe que tenho medo dele”,
pensou Heather.
Ela se achava cercada por ele, e sua coxa parecia uma rocha sólida de encontro aos ombros da
mulher; a mão era como chumbo mantendo-a aos seus pés — a cabeça e os ombros agigantando-
se acima dela para impedir que se levantasse. Ela estava prisioneira na armadilha do marido, igual
à mosca na teia da aranha, mas, para todos os efeitos, ela se achava simplesmente sentada
carinhosamente aos seus pés, e feliz.
Brandon apontou um dos modelos.
— Este ficaria bem numa seda azul, exatamente a cor dos olhos da minha esposa. Deve
combinar. A senhora tem essa cor?
Madame Fontaineau estudou primeiro os olhos de Heather quando se ergueram para encará-la, e
depois sorriu largamente.
— Oui, monsieur, eles são da cor da safira. Conseguirei o que o senhor deseja.
— Excelente! — replicou ele, e então fez sinal na direção de outro modelo. — Tire isso daqui.
Ela se perderia no meio de tantos enfeites.
— Oui, monsieur — concordou Madame Fontaineau. Como sempre, ele estava escolhendo
finamente. Contudo, quando não o fizera? O homem sabia como vestir bem uma mulher.
123
Outro modelo passou pela reprovação de que era muito vistoso. Outros cinco foram escolhidos.
Mais dois afastados.
Heather aguardava, fascinada, incapaz de falar. Tudo o que ele selecionara estava mais do que
dentro do seu gosto, e os que não aceitara ela rezara para que não fossem escolhidos. Seu gosto
para cores a estonteava. O homem era privilegiado. Ela era forçada a admitir que escolhia melhor
do que ela.
Muitos outros vestidos foram separados para ela, num ritmo acelerado, e amostras de material
eram espetadas neles. Nada ficou por fazer. Sedas, lãs, veludos foram escolhidos; brocados,
musselinas, voiles. Heather perdeu a conta. Fitas, contas, peles eram incluídas como acessórios,
enfeites. As rendas eram cuidadosamente examinadas. Heather estava estupefata com a
quantidade de roupas que ele lhe comprara, certamente muito maior do que esperava. Ela jamais
teria selecionado tanta coisa para si mesma, se tivesse a oportunidade, e mal pôde acreditar que
ele chegasse a ser tão generoso com ela. No entanto, os vestidos foram encomendados.
— Tudo isso é de seu agrado, meu coração? — ele perguntou suavemente, embora ela soubesse
que pouco lhe importaria se não fosse. Ele adquirira aquelas roupas para seu próprio prazer; para
vesti-la do modo como ele gostava. Todavia, tudo estava de acordo com seu gosto. Como
poderia ser ao contrário, se fora tão bem escolhido?
Ela balançou a cabeça:
— Você foi mais do que generoso — murmurou.
Brandon olhou-a de cima. Sua posição mais alta permitia-lhe a irrestrita imagem do seu busto
quando o vestido se afastava do corpo. A mão dele ansiava por descer por dentro daquele vestido
e acariciar a carne macia.
— Minha esposa necessita de outro vestido que possa usar no momento — ele falou, desviando
dela o olhar. — A senhora tem alguma coisa mais discreta do que este que ela está usando?
Madame Fontaineau fez sinal com a cabeça:
— Oui, monsieur. Tenho um vestidinho que acabei outro dia mesmo. Vou pegá-lo
imediatamente. Pode ser aquilo que o senhor deseja.
Saiu apressada da sala e voltou logo após com um vestido de veludo azul. Tinha longas mangas
folgadas e um decote muito recatado de cetim branco, que subia quase até o pescoço. Bainhas de
cetim branco davam o arremate aos punhos.
— Era isso que o senhor tinha em mente? — ela perguntou, segurando-o.
— Sim — replicou Brandon. — Embrulhe-o porque vamos levá-lo conosco. Agora devemos
providenciar mais acessórios. Claro que a senhora terá tudo isso pronto em 10 dias.
124
A boca da costureira abriu-se de surpresa.
— Mas, monsieur, é impossível! Pelo menos um mês, por favor.
— Sinto muito, madame. Dentro de uma quinzena vou fazer-me ao largo. Depois de cinco dias
regressarei com minha esposa para as provas, e depois de 10 quero tudo acabado e entregue a
mim a bordo de meu navio. Haverá um pagamento extra para a senhora caso as roupas estejam
prontas e bem feitas. Caso contrário a perda será sua. Concorda?
Madame Fontaineau não poderia perder tal encomenda. Mesmo se tivesse de dividir o lucro com
outras costureiras, ainda assim ganharia uma boa quantia. Ela faria com que todas as suas amigas
e sua família costurassem a partir daquela data, mas aprontaria tudo em dia. O homem lhe
apresentara um acordo difícil de cumprir, mas era porque estava acostumado a dar ordens e vê-
las obedecidas. E deveria ser admirado, pois não aceitava nada que não fosse um trabalho
perfeito.
— Será conforme deseja, monsieur — ela retrucou.
— Então estamos combinados — disse Brandon. Deu um ligeiro apertão no ombro de Heather.
— Temos de ir agora, minha querida, e providenciar os acabamentos do seu vestuário.
Ajudou-a a levantar-se e colocou-lhe a capa nos ombros novamente. Poucos minutos depois
saíam. Madame Fontaineau ficou em pé, junto à porta da loja, observando o casal que se afastava.
”A petite madame é mais esperta do que eu”, concluiu silenciosamente. — ”Pedindo primeiro
por menos ela obteve mais. E ele ficou todo feliz por lhe haver adquirido o que há de melhor.
Todas as mulheres deviam ser assim tão espertas.”
Em seguida, virou-se e bateu palmas com força.
— Claudette, Michèle, Roaul, Marie. Venham rápido. Temos muito trabalho pela frente!
125
Capítulo Cinco
Damas bem vestidas e finos cavalheiros lotavam as lojas de Londres, empurrando e
acotovelando-se para conseguir chegar aonde queriam. Recordando sua infância, quando gostava
de ir com o pai a estas mesmas lojas, Heather sentiu-se mais animada. Conversou efusivamente
com os comerciantes, experimentou alguns gorros engraçados, fez caretas para si mesma diante
de espelhos, dançou e encantou completamente as pessoas com quem podia descontrair-se
Brandon andava recuado, observando-a em silêncio. Simplesmente fazia sinal com a cabeça para
os comerciantes, quando ela experimentava alguma coisa que ele aprovava, e pagava a quantia
necessária. Mesmo quando, sem pensar, ela ousou puxá-lo pela mão para que entrasse junto com
ela numa loja, ele o permitiu sem protestos. Mas ela nada pedia nem esperava ganhar. Divertia-se
simplesmente olhando. Não pudera fazer isso havia muito tempo. Observava quando senhoras
altas desfilavam à sua frente, e ria ao ver maridos baixotes e gordos tentando acompanhá-las.
Seus olhos brilhavam e o sorriso era rápido e fácil. Ela girava alegremente, e virava a cabeça com
um ar feliz, fazendo suas tranças voarem e os homens a acompanharem com o olhar.
Foi só ao anoitecer, quando seus olhos perceberam um berço de madeira numa das lojas, que ela
subitamente ficou muito calma e pensativa. Tocou no pequenino berço com dedos trêmulos e
passou a mão na madeira lisa. Enquanto mordia o lábio inferior, os olhos ergueram-se lentamente
à procura dos dele. Novamente sentia-se insegura.
Brandon aproximou-se e examinou o berço como se pretendesse comprá-lo. Testou sua
resistência.
— Há um melhor na minha casa — declarou finalmente, ainda inspecionando-o. — Foi o meu,
porém ainda é resistente e capaz de agüentar o peso de uma criança. Hatti deseja há muito tempo
vê-lo usado
— Hatti? — perguntou a esposa.
— É a negra que toma conta da minha casa — ele explicou. — Vive lá desde antes de eu haver
nascido.
126
Virou-se e foi se afastando vagarosamente da loja. Heather o seguiu e ficou ao seu lado quando
ele fez sinal para um coche. A voz de Brandon estava áspera quando voltou a falar:
— Hatti aguarda impacientemente há pelo menos 15 anos para me ver casado e pai de filhos. —
E observou-a enviezado. — Tenho certeza de que ficará exultante assim que a enxergar, levando-
se em consideração que você estará bem redonda quando chegarmos a casa.
Um tanto automaticamente, Heather pôs a capa na sua frente.
— Você deveria casar-se quando regressasse. Que vai acontecer? Hatti sem dúvida me desprezará
por haver tomado o lugar de sua noiva.
— Não, nada disso — ele replicou bruscamente, e observou o coche que se aproximava.
Seu comportamento não deu oportunidade para mais indagações, e Heather foi deixada
perguntando-se por que ele fora tão decisivo ao afirmar que a negra não a odiaria. Afinal, não
parecia correto.
O coche parou diante deles, e Brandon disse ao cocheiro o nome da estalagem onde estavam,
depois atirou os embrulhos lá dentro e ajudou-a a subir. Heather afundou preocupada no assento,
subitamente muito cansada. O percorrer das lojas solapara suas forças e agora ela ansiava por
enfiar-se numa cama e cair num sono reparador.
Brandon examinou a pequena e escura cabeça no seu ombro durante muito tempo antes de
passar o braço em torno da esposa e baixar-lhe a cabeça para o peito. Ela suspirou de satisfação
no seu sono enquanto a mão descia para o colo do marido. A respiração de Brandon ficou presa
na garganta! Ele ficou pálido e subitamente começou a tremer. Amaldiçoou-se por deixar que
uma simples menina o afetasse desta maneira. Ela devastava suas entranhas! Ele se sentia como
se de novo fosse virgem, na iminência de deitar-se com a primeira mulher. Sentia suor e calor ao
mesmo tempo por um instante, depois frio e estremecimentos em outro, e isso não era sensação
normal para ele, homem que sempre desfrutara das mulheres quando lhe aprazia, fazendo-as
obedecer-lhe, usando-as ao seu bel-prazer. Agora, esta precisava aprender uma lição e ele mal
podia manter as mãos afastadas dela. Onde estava seu temperamento frio, lógico, seu
autocontrole imediato? Teria tudo ido por água abaixo depois de haver-lhe jurado que jamais a
trataria como esposa, e depois, sabendo que não deveria tocá-la, subitamente ela se tornou aquilo
que ele mais queria ter? Na verdade, ele a desejara o tempo todo, mesmo quando pensou que
nunca mais a veria.
O que estaria acontecendo com ele, céus?! Ela mal poderia ser classificada como mulher; mal
tinha idade para carregar seu filho. Deveria estar segura em algum outro lugar, com alguém
cuidando
127
dela, ao invés de estar aqui junto a ele e de em breve se tornar mãe ela mesma.
No entanto, um fato era inegável: ele queria fazer amor com ela. Desejava possuí-la
imediatamente e não se manter refreado um só momento mais. Quanto tempo ainda ele
agüentaria tendo-a ao seu lado, e vendo-a nas diversas fases de quem se despe sem jogá-la numa
cama e satisfazer-se com ela?
Contudo, ele não podia se dar ao luxo de fazer amor com ela, não importa quanto o desejasse.
Não deixaria suas ameaças esmorecerem. Jurou que ela pagaria por havê-lo intimidado e, com os
diabos, assim seria. Ninguém iria chantageá-lo e depois ficar feliz e contente por tê-lo
conseguido. Era o demónio dentro de Brandon que não o deixaria ser enganado, e orgulho era o
nome dele.
Ela não passava de uma mulher... e elas são todas iguais. Podia ser expulsa de sua mente. Ele
jamais conhecera uma que não fosse.
Porém Heather era diferente e não seria justo que ele o negasse. As outras todas haviam sido
parceiras voluntárias e ansiosas dos jogos do amor, sabendo muito bem aonde queriam chegar.
Esta menina era uma inocente, cuja virgindade ele tirara à força, e que nada sabia a respeito de
homens e de romances. E hoje ela era sua esposa, e grávida do seu filho. Só isso bastava para
torná-la diferente. Como poderia ele se esquecer da própria esposa? Pois se não conseguira fazer
isso quando ela o deixou. Se ela fosse horrível, talvez chegasse a apagá-la de sua mente, porém
como era possível sendo tão linda, tão inteiramente desejável, e agora sempre tão ao seu alcance?
Antes que pudesse responder às próprias perguntas, a carruagem parou diante da estalagem. Já
era noite, e lá dentro ouvia-se o riso alegre e o canto, mas nos seus braços a esposa ainda dormia.
— Heather — ele murmurou, encostando os lábios em seus cabelos. — Prefere que eu a
carregue até nosso quarto?
A cabeça dela mexeu-se sobre o peito de Brandon.
— O quê? — perguntou, sonolenta.
— Deseja ser carregada pelo meio da estalagem?
As pálpebras de Heather ergueram-se lentamente, mas ela continuava embriagada de sono.
— Não — replicou sonolenta. E não fez qualquer esforço para se levantar.
Ele riu baixo enquanto cobria a mão dela com a sua.
— Se insiste, meu bem, podemos dar outra volta pela cidade. Com um gemido estrangulado,
Heather acordou instantaneamente e puxou sua mão da dele, sentando-se de um só golpe. O
sorriso malicioso de Brandon aumentou a cor em suas faces, e fez com que «ela desejasse morrer.
Tropeçou por cima dele para poder sair da carruagem
128
e quase caiu de cabeça quando abriu a porta de repente. Foi a ação rápida do marido que a
salvou, assim que começou a vê-la tropeçando. Com um grito ele a amparou e passou
rapidamente o braço à sua frente, puxando-a de volta para dentro da carruagem e para seu colo.
— O que está querendo fazer? — explodiu. — Matar-se? Brandon segurou-a com firmeza.
— Solte-me! — ela gritou. — Me solte! Eu o odeio! Eu o odeio!
A expressão de Brandon tornou-se fria.
— Tenho certeza de que sim, minha cara — ele zombou. — Afinal, se não me tivesse conhecido,
ainda estaria morando com aquela sua tia imensa, submetendo-se a ela, tentando esconder sua
nudez com vestidos muitas vezes o tamanho do seu corpo, lavando e esfregando até partir as
costas, comendo qualquer migalha que ela lhe atirasse, satisfeita em viver num canto para
envelhecer com a virgindade ainda intata, jamais sabendo o que é ser mãe! Sim, eu fui cruel em
tirá-la dessa vida agradável. Lá você era feliz. Eu devia ser amaldiçoado por haver forçado sua
saída. — Interrompeu-se apenas um segundo, para depois prosseguir mais brutalmente: — Você
não sabe como me arrependo seriamente de ter sido tentado pelo seu corpo de mulher sem
primeiro entender que você ainda era uma criança. Agora, vai ficar pendurada no meu pescoço
por toda a eternidade e não posso dizer que fico alegre quando penso nisso. Ah, quem me dera
ter sido castrado há muito tempo para poder viver em paz para sempre!
Os ombros de Heather subitamente penderam para a frente, e ela começou a chorar como se
todas as desgraças do mundo estivessem contidas nela. O corpo inteiro sacudia-se com o choro
convulsivo, e ela soluçava no seu braço como qualquer criança perdida e desamparada. Ela não
queria bancar a coleira no pescoço de ninguém. Ela não desejava ser um peso morto permanente,
odiado e indesejável. Não era essa a sua intenção.
Observando seu corpo elegante estremecer com os soluços, Brandon perdeu toda a vontade de
magoá-la mais. Seu rosto era uma sombra, e a boca descera nos cantos, amarga. Um grande peso
oprimia-lhe o peito, enquanto procurava inutilmente no paletó o seu lenço.
— Onde você pôs o lenço? — perguntou com um suspiro pesado. — Não o estou achando.
Ela balançou a cabeça, tirando-a do braço, e recuperou o fôlego enquanto se sentava ereta no
colo do marido.
— Não sei — resmungou infeliz, sem conseguir pensar com clareza.
129
Depois limpou as lágrimas na bainha do vestido ao mesmo tempo em que ele procurava bolsos
no mesmo. Nesse momento o cocheiro desceu cautelosamente da boleia e enfiou a cabeça pela
porta:
— Posso fazer alguma coisa pela senhora? — ofereceu, inseguro. — Escutei quando ela chorou e
me dói o coração quando ouço uma mulher chorar!
Brandon franziu a sobrancelha ligeiramente enquanto olhava para o homem e continuava a
procurar pelo lenço.
— Não há necessidade do seu auxílio, senhor — replicou educadamente. — Minha esposa está
apenas um pouco aborrecida comigo porque não quero deixar sua mãe vir morar conosco. Mas
vai recuperar-se assim que souber que suas lágrimas não mudarão minha decisão.
O cocheiro sorriu por entre os dentes.
— Nesse caso, senhor, vou deixá-lo sozinho com ela. Sei como é deixar a sogra morar com a
gente. Eu deveria ter sido tão forte como o senhor assim que me casei. Hoje, a velha bruxa não
estaria na minha casa.
E, dizendo isso, voltou para os seus cavalos enquanto Brandon finalmente achava o lenço entre
os seios de Heather. Retirou-o e enxugou-lhe as lágrimas, segurando-o enquanto ela assoava o
nariz.
— Está melhor agora? — perguntou-lhe. — Podemos ir para nosso quarto, então?
Um suspiro escapou de Heather enquanto ela dizia que sim, acenando com a cabeça, e ele enfiou
o lenço de volta no seu vestido, dando-lhe um tapinha no traseiro.
— Deixe levantar-me, então, que a ajudarei a saltar da carruagem
A estalagem estava barulhenta e animada, com marujos bêbados e mulheres desclassificadas, cujas
gargalhadas estridentes sobressaíam ao humor grosseiro e obsceno dos marinheiros. Segurando a
mão de Heather logo atrás dele, e caminhando na frente para esconder-lhe o rosto, marcado pelas
lágrimas, dos olhares curiosos, Brandon guiou-a para o quarto. George estava sentado perto do
fogo, mas deu um pulo quando os viu, e seguiu-os até o quarto de dormir. Enquanto Brandon
abria a porta para Heather e fazia sinal para que ela entrasse, o criado ouvia atentamente suas
ordens, e partiu para cumprir o que lhe fora recomendado quando seu comandante penetrava no
aposento. Brandon fechou a porta às suas costas e olhou para a esposa, que agora se inclinava
sobre a bacia e salpicava água no rosto.
— George foi providenciar uma bandeja de comida. Não vou ficar para a refeição. E prefiro que
você não saia do quarto enquanto eu estiver ausente. Não seria seguro, sem minha proteção. Se
desejar qualquer coisa, George estará ao lado da porta. Peça a ele.
Ela deu uma olhada insegura por sobre o ombro para o marido.
— Obrigada... — murmurou.
130
Sem mais palavra ele se retirou, deixando-a a olhar desanima damente para a porta fechada.
A vibração foi como o movimento das asas de uma borboleta, parecendo irreal devido à sua
pequena intensidade. Ela permaneceu imóvel sob o edredom, com medo de mexer-se, pensando
que Brandon fosse embora e não mais voltasse naquela noite. E, no escuro, sorriu um pouco para
si mesma. Mais uma vez veio o movimento, desta vez mais insistente. Sua mão se encostou na
barriga, como se houvesse recebido um sinal, e subitamente seus pensamentos clarearam.
”Saber que ele está com a razão não facilita as coisas. Teria sido impossível sair da casa de Tia
Fanny, não importa quão desesperadamente eu tivesse planejado e ansiado. Eles me vigiavam
muito de perto. eu passaria uma eternidade lá, se ele não me tivesse tomado para si e me dado seu
filho.”
O estremecimento foi sentido debaixo de sua mão.
”Agora vou ser mãe, e ele deverá ser odiado e amaldiçoado porque me obrigou a isso? Mas as
coisas têm de ser assim? É difícil demais demonstrar-lhe bondade e gratidão, embora eu saiba que
ele detesta o chão em que piso e que preferiria nem ser homem a ter-me amarrada ao pescoço...
Ele tem sido bondoso, a despeito do seu ódio por mim. Agora devo mostrar-lhe que não sou
criança... e que estou agradecida... Só que não vai ser fácil... Ele me assusta demais. ”.
Os ruídos de sua volta surgiram das profundezas da noite. Movia-se em silêncio através do
quarto, enquanto se despia, e somente a lanterna lá de fora, no pátio, mostrava-lhe o caminho.
Deitou-se cuidadosamente na cama, ao lado da mulher, virando-se de lado para encarar a porta. E
novamente o quarto ficou em silêncio. Só o som de sua respiração chegava aos ouvidos dela.
Antes de abrir os olhos na manhã seguinte, Heather ouviu a chuva; chuva pesada, forte, que
afastava as pessoas da rua e os pássaros do ar. Uma chuva limpa, contínua, que lavava tudo,
renovando. Era temporada de chuvas e às vezes pensava-se que jamais acabaria.
O homem ao seu lado mexeu-se e ela abriu os olhos quando ele afastou as cobertas e se sentou.
Ela o imitou e saiu da cama, chamando a atenção do marido, que fez uma carranca feia:
— Não precisa sair da cama agora — reclamou, irritado. — Tenho de providenciar os últimos
detalhes da carga, e não vou poder levá-la comigo.
— Você vai sair já? — ela perguntou incerta, temendo a carranca
— Não. Imediatamente, não. Vou tomar banho e fazer o desjejum, antes.
131
Então, se não o aborrece — ela falou docemente — prefiro levantar-me.
— Faça como quiser — ele rosnou baixo. — Não faz diferença para mim.
Trouxeram água quente para o banho dele, que se sentou na banheira de bronze assim que os
dois ficaram sozinhos de novo no quarto. Ele estava num humor sombrio, calado. Quando
Heather hesitantemente se aproximou da banheira, fez isso com medo de oferecerlhe os seus
préstimos. Ficou tão nervosa que não conseguia falar, e as mãos tremiam quando esticou o braço
para tirar-lhe a esponja da mão. Ele olhou um tanto surpreso para cima quando ela o fez.
— O que você quer? — perguntou impacientemente. — Tem uma língua por acaso?
Ela respirou fundo e acenou com a cabeça.
— Eu. eu quero ajudá-lo a banhar-se — conseguiu gaguejar. A cara feia piorou.
— Não é necessário — vociferou. — Vá vestir-se e, se desejar, fará o desjejum comigo lá
embaixo.
Ela se afastou nervosamente da banheira. Esta manhã ele nada queria com ela, isso era evidente.
A fim de não incomodá-lo mais, ela deveria sair de sua frente e não mais irritá-lo com sua
presença.
Andando sem barulho pelo quarto, reuniu a roupa íntima que lavara após o banho, na noite
anterior, e dobrou-a para guardá-la, ainda um pouco úmida. Tirou a camisola de dormir num
canto atrás dele e vestiu-se, botando o novo vestido azul que ele lhe comprara. No entanto, igual
ao vermelho, era de fechar nas costas e, embora tentasse, não conseguiu prender mais que alguns
ganchos.
”Vou ter de usá-lo assim mesmo”, resolveu teimosamente. ”Eu não vou apelar para ele. Não
serei causa de aborrecimento.”
Tentava pentear o emaranhado dos cabelos com os dedos quando Brandon terminou o banho e
saiu da banheira. Enxugou-se rapidamente, sem um só olhar na direção dela, e começou a se
vestir. E só se virou para a esposa quando foi em busca de uma camisa limpa que estava na mesa
atrás dela. Com o coração na garganta, Heather afastou-se do seu caminho cautelosamente,
receando que reparasse nela. O movimento, contudo, não somente lhe atraiu a atenção, como
também provocou sua ira.
— Por que não pára quieta? — ele perguntou na mesma hora. — Não vou tocá-la.
Heather parou, tremendo diante daquele olhar.
— Me... me desculpe — murmurou atemorizada. — É que eu não queria ficar na sua frente,
atrapalhando.
Brandon praguejava enquanto pegava a camisa.
— Tanto faz vê-la ficar no meu caminho como vê-la sair correndo dele. Asseguro-lhe que não
usarei minha mão contra você, como sua
132
tia gostava tanto de fazer. Ainda está para nascer o dia em que eu baterei numa mulher.
Heather olhou para ele incerta, sem saber, agora, se deveria andar ou ficar onde estava. Ele
arrumava a gravata, remexendo nela sem jeito, devido à raiva, e ajustando-a de modo errado,
evidentemente por causa do mau humor daquele dia. Num impulso, ela se chegou para perto dele
e empurrou-lhe as mãos para o lado. Ele a encarou espantado, porém ela não trocou olhares.
Com dedos nervosos, Heather ajeitou a gravata, conforme fizera tantas vezes para o pai. Assim
que ficou bem arrumada, e no lugar, ela pegou o colete na cadeira e manteve-o no alto enquanto
Brandon, ainda carrancudo, enfiou os braços por dentro. Corajosamente, ela foi mais adiante
ainda e abotoou-o para ele, embora o sentisse levemente irritado, preferindo fazer aquilo ele
mesmo. Quando a esposa começou a pegar seu paletó, ele fez sinal para que se afastasse.
— Pode deixar — falou ríspido. — Sei vesti-lo sozinho. Pegue a escova e dê um jeito no seu
cabelo!
Ela obedeceu e, quando o fazia, ele veio por trás e prendeu-lhe o vestido direito. Terminando, ela
lhe agradeceu, sorrindo timidamente quando ele a observava de cima, e então tanto aquele dia
quanto seu coração se tornaram consideravelmente mais leves.
Nos dias seguintes, ela passou a maior parte do tempo no quarto, sabendo que George estava ali
por perto. Via o marido de manhã, quando ele se levantava para tomar banho e vestir-se, e depois
desciam para fazer o desjejum. Em seguida ele saía e só voltava tarde da noite, muito tempo
depois que ela se deitara. Sempre entrava em silêncio, e se despia no escuro, com cuidado para
não acordá-la.
Toda vez, porém, ela despertava durante alguns instantes e sentia-se segura por saber que ele
regressara.
Era a quinta manhã que estavam ali, e a rotina diária perdera a rigidez; ficara em segundo plano.
Seu obstinado temperamento irritadiço fora aplacado pelos banhos quentes de toda manhã, e ele
ainda ficava sentado quieto durante longos momentos enquanto ela esfregava suas costas,
realmente uma grata concessão. Esses primeiros interlúdios foram carinhosos e pacíficos para
Heather. Ela gostava do companheirismo quase silencioso que compartilhavam. Uma palavra
ocasionalmente trocada e esses pequenos serviços prestados um ao outro faziam-lhe o dia
começar alegremente, tornando-os suportáveis. Até Brandon mostrava-se acessível, pois, ao sair
depois do desjejum lá embaixo, dava um beijo marital na testa da esposa antes de partir para
negócios.
Esta manhã do final de outubro começou da mesma forma e, com a mão apoiada no braço do
marido, desceram para o salão comum com o intuito de fazerem a refeição. Ele a fez sentar-se na
costumeira mesa do canto e colocou-se ao seu lado. Como de hábito, a bovina
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proprietária da estalagem trouxe-lhes, aos bocejos, café para tomar antes da refeição em si.
Brandon tomou o seu bem forte, enquanto Heather preferiu com bastante creme, e encheu de
açúcar a mistura ordinária. Logo a comida matutina foi colocada diante deles: uma grande tigela
de pudim frio de carne de porco, dois pratos fartos de batatas picadas, com ovos e presunto.
Serviam também pão macio e quente com manteiga recentemente batida, mel e geléia para
espalhar em cima.
Heather observou o pudim e o restante, e estremeceu enquanto os empurrava para longe.
Preferiu um pequeno pedaço de pão para partir em pedaços e mordiscar. O café serviu para
enganar o estômago irrequieto, embora não gostasse dessa bebida, mas tomou-o lentamente
— As provas estão marcadas para esta tarde — avisou Brandon, partindo o pão. — Estarei aqui
às 2 horas para levá-la. Mande o George providenciar uma carruagem para nós.
Ela murmurou uma resposta obediente, enquanto era observada pelo marido, e inclinou a cabeça
para a xícara de café quando o olhar dele acariciou-a sem querer. Sua serenidade sempre se
abalava um pouco quando o olhar de Brandon, deixando-a meio febril e diferente, observava
descuídadamente. Quando ele se encontrava por perto, ela geralmente ficava com a língua presa e
não conseguia dar respostas inteligentes.
Sentava-se em silêncio enquanto ele comia, observando-o díssimuladamente. Ele viera de azul-
escuro, e a gola alta e dura do paletó era ornada com fios de ouro. A camisa e a gravata, sempre
exageradamente brancas, e há pouco vestidas, rescendiam a um leve toque de colónia. Ele se
mostrava impecavelmente trajado, como de hábito, e tão bonito que fazia uma mulher sentir-se
fraca só de olhar para ele. Heather descobriu que até mesmo ela, para surpresa sua, não deixava
de ser afetada.
— Ontem eu arranquei o punho da camisa que usei — ele falou, empurrando o prato à sua frente
e limpando os lábios. — Eu gostaria que você a costurasse. George não é muito talentoso com
uma agulha. — E virou-se para ela com uma sobrancelha erguida. — Suponho que você seja.
Ela sorriu e enrubesceu, satisfeita porque ele precisaria dos seus serviços.
— Costura é uma das primeiras coisas que toda garota inglesa aprende.
— Tudo muito formal — ele murmurou, meio para si mesmo.
— O quê? — ela perguntou com hesitação. Receou que estivesse fingindo para ela novamente e
perguntou-se por que deveria impacientar-se com ela após tantos dias de tranqüilidade.
134
Mas ele sorriu ligeiramente e esticou o braço para alisar um dos cachos sobre o ombro da esposa.
Ela lavara o cabelo, na véspera, e hoje arrumara-o para trás, prendendo-o com uma fita, o que
deixava alguns cachos caírem pelas costas. E eles eram tentação grande demais para que
permanecessem sem o seu toque.
— Não foi nada, minha doçura. Eu só estava pensando em como você foi bem educada para ser
mulher prendada.
Ela sentiu que ele estava debochando, mas não tinha certeza, nem havia meios de sabê-lo.
Abriu-se a porta da frente da hospedaria e entrou um jovem alto, de chapéu tricorne guarnecido e
casaco azul. Seu olhar se deteve em Brandon. Cruzou o salão principal, retirando o chapéu.
Quando se aproximou, Brandon olhou para cima, depois se levantou.
— Bom-dia, senhor — cumprimentou o jovem. E inclinou a cabeça ligeiramente ante Heather:
— Bom dia, senhora.
Brandon apresentou-o como sendo James Boniface, o comissário de bordo do Fleetwood.
Enquanto ele a apresentava, Heather reparou que o Sr. Boniface não demonstrou uma sombra
sequer de surpresa quando foi identificada como esposa do comandante. Não havia dúvida de
que já lhe haviam contado acerca do súbito casamento. Com que tipo de detalhes ela não sabia,
porém esperava que ele fosse ignorante da maior parte dos fatos e certamente mais ainda da data
em que a cerimónia se realizara — embora isso fosse a mesma coisa que pedir um milagre. Assim
que a gravidez começasse a aparecer, haveria muita contagem nos dedos, e a tripulação do
Fleetwood se perguntaria se o seu comandante e ela haviam sido amantes antes do casamento.
O Sr. Boniface sorriu abertamente:
— É um prazer conhecê-la, senhora.
Ela respondeu ao cumprimento, e Brandon fez sinal para que ele se sentasse.
— Seria demais esperar que o senhor trouxesse boas notícias das docas a esta hora da manhã,”
ou é algum assunto que exige minha atenção urgente?
O Sr. Boniface sacudiu a cabeça e sorriu, sentando-se do lado oposto a eles da mesa, enquanto
aceitava o café oferecido. Brandon retomou seu lugar e inclinou-se para trás, descansando um
braço na cadeira de Heather.
— Pode ficar descansado, senhor — assegurou-lhe o Sr. Boniface. — Tudo vai bem. Daqui a
dois dias a rampa dos Armazéns Charleston estará aberta para nós, e poderemos ancorar e
carregar. O gerente disse que, visto haver um inverno pesado já quase no Mar do Norte,
levaremos seis dias entre levantar ferros e lançar-nos ao mar. É o melhor que podemos esperar,
com uma escassez daquelas de pessoal especializado nas docas.
Brandon deu um suspiro de alívio.
Quase perdi as esperanças de que algum dia deixaríamos este ponto. O pessoal deve ser
providenciado para conseguirmos trabalhar no navio. Estamos aqui há muito tempo, já. Os
homens devem estar ansiosos para voltarem para casa.
— Sim, senhor — concordou o Sr. Boniface, entusiasmado.
Heather não podia compartilhar o entusiasmo daquele jovem. Ao invés disso, sentiu medo e
insegurança. Não mais se preocupou com o que ele poderia saber. Aquele era o seu país. Não
seria fácil deixá-lo e ir para uma terra estranha. Entretanto, na voz do marido, percebeu um tom
mais alegre e quente do que em qualquer momento antes, e entendeu que ele estava mais do que
disposto a voltar para casa.
Os dois homens partiram, e ela voltou mais uma vez para o quarto, onde permaneceria durante o
tempo de afastamento do marido. A pedido seu, George arranjou agulha, linha e tesoura de
costura, e então ela se pôs a consertar a camisa de Brandon, tarefa que achou estranhamente
confortadora. Com ela no colo e o bebé se mexendo na barriga, sentiu uma alegria renovadora e,
durante alguns instantes, achou-se uma verdadeira esposa. Interrompeu o trabalho, pensativa,
mas logo sua paz de espírito se desvaneceu: em breve, deveria embrulhar seus bens e partir,
deixando o que fora sua casa, para uma perigosa viagem até uma nova terra. Ela ia enfrentar o
desconhecido e com um homem que jurara vingar-se dela. Seu filho seria criado no meio de gente
estranha, que bem poderia ressentir-se de sua presença. Faria o papel de um carvalho arrancado
da floresta e replantado em outro local. Ela não poderia prever se iria crescer e florescer, ou
murchar e morrer entre desconhecidos.
Lágrimas ameaçaram derramar-se, porém ela as enxugou e ergueu o olhar para a janela.
Levantou-se e foi ficar de pé diante dela, observando a cidade que conhecera. Lembrou-se da
vergonha e da dor que deixaria para trás, o que tornou seu coração mais aliviado. Havia tanto
tempo já que cada dia a presenteava com desafios quase insuperáveis, os quais pareciam
estraçalhar sua autoconfiança. Pelo menos este seria um desconhecido sem mácula e, se Deus lhe
desse coragem, da qual precisava desesperadamente, junto com força, ela poderia moldá-lo num
destino melhor. Ela devia aceitar cada dia como viesse, e confiar em que o futuro seria generoso.
Voltou para a costura, não mais alegre, mas com renovada força formando-se no seu íntimo,
assim como a criança.
Heather terminou a camisa e colocou-a impecavelmente dobrada em cima da cómoda. George
trouxera-lhe uma refeição leve mais cedo, e posteriormente ela se arrumou para a partida. Agora
aguardava a chegada do marido. George apareceu rapidamente para avisar que a carruagem estava
a espera no pátio. Em algum ponto da cidade um
136
sino tocou as 2 horas e, enquanto seu dobrar sumia ao longe, Heather escutou a voz de Brandon
vindo da rua lá embaixo. Logo ouviu os passos dele na escada, e a porta abriu-se. Ela sorriu
quando o comandante entrou, e recebeu-o efusivamente.
— Vejo que está pronta — ele falou rispidamente, franzindo ligeiramente a sobrancelha
enquanto lhe dava uma espiada de viés. Carregava uma capa de veludo cinza no braço, e
aproximou-se dela segurando a capa.
Ela deu de ombros.
— Não havia muita coisa que me atrasasse, Brandon — murmurou
— Então tome — ele disse, entregando-lhe a capa. — O ar hoje está meio frio, e você vai
precisar dela. Pensei que lhe caísse melhor do que a minha.
Ela pegou a capa nas mãos do marido, pensando ser roupa dele. Contudo, quando a abriu pelos
ombros, verificou que era feminina e muito cara. Jamais possuíra uma tão fina antes, nem mesmo
quando o pai era vivo. Ela tocou na peça, encantada, e acariciou o tecido sobre a saia.
— Oh, Brandon! — enfim ela falou, arquejante. — É tão bonita!
Ainda carrancudo, ele esticou os braços para amarrar os cordões de seda na altura do pescoço,
porém Heather estava extasiada com a capa, e não conseguia ficar parada com tanta emoção.
Inclinava-se de um lado para outro, tentando admirá-la, e finalmente arrancou um sorriso
divertido de Brandon.
— Fique quieta, sua formiguinha, e deixe-me arrumar isto — ele sorriu por entre os dentes. — É
mais difícil prender estas coisas do que arrear uma abelha.
Ela deu uma risadinha de felicidade e inclinou a cabeça para admirar suas mãos em cima da fina
peça. O topo da cabeça esfregou-se no peito do comandante, que sentiu a suave fragrância de
seus cabelos.
— E agora nem posso ver o que estou fazendo. — ele implicou com doçura.
Um riso leve saiu de Heather quando suspendeu rapidamente a cabeça. Seu regozijo se mostrava
presente em todo o semblante, e um sorriso desanuviou o rosto do marido, que se satisfez ao ver
aquela óbvia felicidade diante do inesperado presente. Seus olhos ficaram sombrios. Heather
colocara uma das mãos sobre seu peito e o contato foi igual-a um choque. Seus olhares
encontraram-se e então os sorrisos desapareceram. As mãos de Brandon davam a impressão de
estarem terminando a tarefa automaticamente e, como se impelidas por alguma outra força,
deslizaram dos ombros para as costas dela, quase apertando Heather de encontro ao marido.
Subitamente Heather tornou-se muito fraca — as pernas começaram a tremer, e a respiração
ficou
137
quase impossível. Mesmo assim os olhos verdes mantinham-na prisioneira e, no quarto, o tempo
parou. Então um relincho e um berro, vindos do pátio, quebraram o encanto. Brandon retirou as
mãos e recuperou-se mentalmente. Sorriu de novo e, pegando na mão dela, colocou-a sobre seu
braço dobrado.
— Venha, doçura — avisou suavemente. — Temos de ir depressa.
Virando na direção da porta, ele a guiou para fora do quarto e pelas escadas, saindo os dois rumo
à carruagem, que os aguardava. Era um coche pequeno, puxado por um único cavalo e, quando
se aproximaram, George se desculpou por não haver encontrado veículo mais amplo e
confortável.
— Parece que os maiores foram alugados, comandante — explicou
Brandon dispensou as desculpas e ajudou Heather a subir.
— Não há necessidade de coche maior, George. Esse dá para nós. Vamos ausentar-nos por
várias horas, creio, portanto mandei arrumarem a mesa em nosso quarto para a hora do jantar.
Além disso, há alguns problemas a serem resolvidos. Minha esposa está precisando de um baú de
viagem. Veja se acha um bem grande, e mande entregar lá em cima. — E retirou uma pequena
bolsa do paletó, atirando-a para o criado. — Um bem bonito, George.
O homem deu um sorriso e mexeu com a cabeça:
— Certo, comandante!
Brandon subiu e tomou seu lugar enquanto Heather cuidadosamente punha sua capa de lado.
Com um pulo e um solavanco o coche deu a partida, e o veículo de molas rijas ia saltando através
das ruas apinhadas de gente. Não desejando ser atirada de um lado para outro, entre Brandon e a
coluna do coche, Heather preferiu encostar-se no marido e, percebendo que sua lapela
normalmente impecável estava virada para cima, esticou o braço, amanciou-a e devolveu-a ao
lugar. Brandon aceitou aquela atenção passivamente e, até o resto da jornada, permaneceu
silencioso e pensativo. Estava perfeitamente a par da presença da jovem ao seu lado, com as
curvas macias daquele corpo apertadas fortemente contra o seu. O perfume suave de sabonete e
água de rosas inerentes à pele de Heather invadia seus sentidos e fazia sua mente girar.
Madame Fontaineau recebeu-os à porta da loja, com uma alegre explosão de tagarelice, e
imediatamente os guiou até a sala de provas.
— Tudo está indo direito, Comandante Birmingham — ela lhe assegurou. — Muito melhor do
que eu esperava. Não haverá problemas quanto à data de entrega das roupas.
— Isso é muito bom, madame — declarou Brandon, sentando-se na cadeira a ele oferecida. —
Daqui a uma semana partiremos.
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A mulher deu uma gargalhada:
— Não se preocupe, monsieur. Não tenciono vê-lo partir sem o guarda-roupa de madame.
Quando a mulher principiou a mexer nos vestidos escolhidos, Heather aproximou-se de Brandon
e ficou de costas, tirando o cabelo da frente para que ele pudesse abrir-lhe o vestido. Uma
estranha expressão dominou o rosto do marido quando ergueu as mãos na direção da roupa, e
seus dedos se mostraram um tanto mais desajeitados do que de hábito. Ela saiu do vestido
arriado no chão, e Madame Fontaineau ajudou-a a entrar no primeiro dos selecionados e
ajustados.
— É uma felicidade — a mulher chilreou — que a moda esteja assim. A senhora não terá
dificuldade em usar estes vestidos durante muitos meses com as cinturas altas deste jeito, e nós
deixamos bastante pano em alguns, pensando nos seus últimos meses de gravidez.
As sobrancelhas de Brandon desceram repentinamente, e os olhos observaram o abdómen da
esposa. Por alguns instantes hoje ele esquecera do estado dela e das circunstâncias em que
contraíram matrimónio.
— Acha que este contará com sua aprovação, monsieur? — perguntou Madame Fontaineu
acerca do próximo vestido. — A cor é muito atraente, não?
Brandon percorreu o corpo elegante da esposa com o olhar de alto a baixo, mal notando a roupa
cor de rosa que o cobria. Murmurou alguma resposta agradável, e olhou para o outro lado.
O vestido foi tirado pouco tempo depois, e Heather conversou tranqüilamente com a mulher a
respeito dos ajustes enquanto Brandon a vigiava furtivamente. A presilha de sua blusa caíra-lhe
por sobre o ombro, porém, ela parecia não ter notado. Carrancudo, ele olhou fixo para a curva
perfeita do seio e a pele macia do ombro, e então se mexeu na cadeira, percebendo que se estava
tornando fisicamente afetado pela imagem.
— Oh, este preto é o meu favorito, monsieur! — exclamou a costureira, vários minutos depois,
quando Heather se viu adornada por outro vestido. — Quem, além do senhor, poderia saber que
o preto é tão elegante, monsieur? Madame ficará maravilhosa, não é mesmo, monsieur?
Brandon grunhiu uma resposta e mexeu-se na cadeira, começando a transpirar. Poucos minutos
antes, na estalagem, ele estivera precariamente perto de romper suas promessas, sem sequer
pensar nelas. Mais uma pitada de encorajamento e teria esquecido seu orgulho, sua honra, e teria
transformado sua palavra num nada. Teria pegado Heather no colo e carregado para a cama, e
nada nem ninguém poderia interferir, evitar que ele fizesse amor com ela. Agora, sensivelmente
exasperado ao vê-la vestir-se e despir-se, ele chegara ao seu limite. Não poderia
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agüentar muito mais. Seu orgulho e suas paixões travavam uma luta terrível e o final era
totalmente incerto.
Carrancudo, tirou um fio de linha do casaco e deu uma olhada pela sala. Não percebeu quando o
outro vestido também foi tirado.
Se aquelas duas não terminassem logo, ele ia demonstrar que não passava de um animal. Não
precisaria de mais que a intimidade parcial da carruagem para provar isso a Heather. E nada
adiantaria a ela protestar, pela forma com que ele se sentia agora — tão maltratado por dentro
que era como se suas entranhas estivessem sendo arrancadas, E ela então iria odiá-lo mais ainda.
A esposa parecia tão contente com a situação atual que provavelmente lutaria como uma gata se
ele sequer sugerisse que teria de fazer amor com ela. Após a primeira experiência, quem poderia
culpá-la? Mas ele também não queria que aquela cena se repetisse. Teria de ser delicado com a
esposa, mostrando-lhe que igualmente lhe poderia dar prazer.
Diversos outros vestidos foram provados, muito para seu desagrado, que se amaldiçoou por
haver comprado tantos. Sua carranca acentuou-se e suas respostas à Madame Fontaineau
encurtaram-se. Heather e a costureira lançavam ambos olhares preocupados em sua direção.
— Talvez monsieur não esteja satisfeito com o vestido? — a mulher perguntou hesitante.
— O trabalho é perfeitamente aceitável — replicou friamente. — São os eternos consertos que
acabam com meus nervos.
Madame Fontaineau deu um pequeno suspiro de alívio. Ele estava simplesmente ficando cansado
das monótonas provas, como qualquer homem ficaria.
Brandon afastou o olhar mais uma vez e mudou de posição na cadeira. Pelo menos o vestido que
Heather usava agora cobria-lhe o busto, o que o deixava seguro por algum tempo, caso resolvesse
observá-la de novo. Lá estava ela, tão inocente, perguntando-se por que o marido se achava tão
agitado. Então ela não sabia o efeito que causava num homem? Não adivinhava? Só porque ele
dera a palavra de que jamais a tocaria, não queria dizer que não ficaria afetado pela sua imagem
numa blusa que nenhum trabalho dava à imaginação e que caía para a frente toda vez que se
debruçava.
Madame ajudou Heather a entrar em mais um vestido, e imediatamente iniciou uma torrente de
francês veloz. O corpete deste era tão apertado que os seios de Heather sobressaíam mais do que
generosamente pelo decote baixo, e pareciam ansiosos para saltar dali. Em sua cadeira, Brandon
gemia e praguejava em silêncio. Um suor frio irrompeu pela sua testa, e o músculo do maxilar
começou a mostrar o cacoete.
—- Ah, aquela Marie! — explodiu Madame Fontaineau, zangada. — Ela jamais vai aprender a
costurar! Ou talvez pense que
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todas as mulheres são gordas, não? Ou então que a petite madame é uma criança, em vez de uma
mulher totalmente desenvolvida. Ela deve ver o seu erro. Vou mostrar-lhe.
A mulher precipitou-se para fora da salinha, deixando Heather mal podendo respirar no vestido
crivado de alfinetes. Moveu o braço e o retraiu de dor.
— Oh! Brandon, está vendo? — implorou, dirigindo-se a ele — Sinto-me como uma
almofadinha de alfinetes... A ajudante deve ter deixado todos os seus alfinetes no vestido: não
posso respirar sem que algum me espete.
Tirou o braço fora: Brandon empalideceu quando, inocentemente, ela se moveu entre seus
joelhos. Havia um feio arranhão na pele alva do braço: um longo alfinete sobressaía da fazenda
ao lado do peito, porém a cabeça do alfinete estava por dentro do vestido e não poderia ser
retirado. Relutantemente ele deslizou dois dedos por dentro do corpete dela, de encontro à sua
carne quente e macia, enquanto a moça permanecia obedientemente quietinha, a observá-lo. O
olhar dele parou por um segundo e, surpreendentemente, ele corou.
”Que diabo!” —, pensou, zangado — ”ela me fez corar como uma virgem imaculada!”
De um puxão retirou a mão como se a tivessem queimado, resmungando:
— Terá que esperar a volta de Madame Fontaineau. Não consigo alcançá-lo.
Heather ficou perplexa ante aqueles modos bruscos. Era óbvio o mal-estar do homem, ali
sentado desajeitadamente, evitando olhá-la. Ela se afastou hesitante, grandemente aliviada quando
Madame Fontaineau voltou com Marie — garota magricela, acanhada, de uns 15 anos.
— Veja! Veja o que fez! — a mulher gritava para a mocinha.
— Madame, por favor! — rogou Heather desesperadamente. — preciso sair deste vestido. está
cheio de alfinetes.
— Bon Dieu! — gemeu a costureira — Ah! Madame Birmingham, perdoe-me! Essa Marie ainda
é uma criança. — Voltou-se para a garota e enxotou-a: — Xô! Xô! Conversaremos depois. Agora
tenho de atender à madame.
Por fim o vestido foi solto e Heather deu graças a Deus. Era o último vestido em prova. Para
imenso alívio de Brandon, em poucos momentos estavam fora da salinha e prontos para deixar a
loja.
Na carruagem, ao voltarem, Brandon permaneceu completamente mudo. Sobrolho carregado, de
vez em quando havia em sua face um tremor espasmódico. Ao chegarem à hospedaria estava
quase escuro, e ele ajudou Heather a descer de modo um tanto brusco, esticando o braço em
seguida para pegar a bagagem que haviam reunido. Abriu a porta para a esposa e entraram na
estalagem, barulhenta como sempre,
141
com seus marujos, sedentos de entretenimento, e prostitutas. Quando Heather passou no meio
desse pessoal, segurando a capa bem firme em torno do corpo, um sujeito corajoso, mas bêbado,
fez uma tentativa de abordá-la — na mesma hora, contudo, recuou quando viu Brandon e a
expressão no seu rosto. Em seguida o casal prosseguiu sem mais incidentes para o quarto, onde
Brandon atirou os pacotes em cima da cama e encaminhou-se para a janela. Um baú grande, com
alças de latão brilhante, foi empurrado até o pé da cama. Ele franziu a sobrancelha para o baú,
enquanto o removia, e depois armou uma carranca por cima do ombro, olhando para a esposa e
indicando a peça:
— Isto é seu — falou grosseiramente. — Acho melhor botar suas coisas nele agora. De qualquer
forma, terá de arrumar tudo para viajar dentro de alguns dias.
E caminhou até a janela enquanto Heather tirava a capa. Ela acendeu uma vela em cima da
cómoda, e reparou que haviam posto a mesa com toalha branca e serviço para dois. Fora uma
tarde tão movimentada que ela nem percebera a fome que sentia. E agora o simples pensamento
de comida dava-lhe água na boca, e aguardava ansiosa pela refeição. O estômago roncou quando
pendurou a capa ao lado da de Brandon, num cabide perto da porta. Ela endireitava as coisas na
cama quando se ouviu uma batida leve na porta e, um áspero ”sim!”, de Brandon, esta se abriu
para deixar George entrar. Dois garotos o seguiam, com travessas de comida e uma garrafa de
vinho. Colocaram tudo sobre a mesa e saíram quando George acendeu as velas. Chegando à
porta, o criado lançou um último olhar interrogador às costas do seu comandante e outro para
Heather, e logo após se retirou, franzindo a sobrancelha, intrigado. Depois que a porta foi
fechada, Heather foi até a mesa e começou a servir — o macio rosbife e os vegetais cozidos. Sem
perceber que Brandon a observava por cima do ombro, lutou durante alguns momentos com a
garrafa de vinho, tentando abri-la. Finalmente ele a pegou em suas mãos e arrancou a rolha com
um movimento exasperado. Devolveu-lhe a garrafa, e Heather murmurou seu agradecimento
enquanto enchia os copos. Quando, porém, ele não fez menção de encaminhar-se para a mesa,
mas, ao invés disso, ficou olhando-a fixo, ela ergueu um olhar de dúvida para o marido.
— Podemos comer agora, Brandon? — pediu com meiguice — Infelizmente estou morta de
fome.
Ele fez uma breve mesura e afastou a cadeira para ela sentar-se. Quando Heather começou a se
sentar, seu olhar desceu pelas costas dela, e a curva suave foi uma tentação para sua mão, por
pouco estendida para tocá-la. Então ela se sentou e durante um instante ele agarrou a cadeira
tensamente. Enfim Brandon também se sentou, tomando um gole grande do vinho; depois
provou a carne. Heather,
142
sentindo uma fome exagerada, começou a comer com delicada precisão. Várias vezes sentiu os
olhares de Brandon; no entanto, quando fazia o mesmo, surpreendía-o olhando para outro
ponto. O comandante comia pouco e com preocupação, conquanto repetisse sempre o inebriante
vinho.
O jantar acabou sem uma palavra trocada, embora Brandon ainda lutasse contra seu opressivo
problema. Sem desejar provocar alguma resposta cruel, Heather levantou-se e foi até a cama,
onde começou a abrir os embrulhos e separar o conteúdo a fim de guardá-lo no baú.
Desembrulhou um valioso regalo de raposa, e não resistiu à tentação de enfiar as mãos nele.
Soprou o pelo e esfregou o nariz naquela coisa macia, sem saber que Brandon se aproximara e a
observava. Ele esticou um braço e ergueu delicadamente um cacho do ombro dela, que olhou
para cima, descobrindo-o ali tão perto. Havia uma expressão estranha nos olhos do marido, entre
dor e prazer. Ele deu a impressão de que ia falar, mas as palavras ficaram presas na garganta.
Trincou os dentes e uma carranca enfeiou-lhe o rosto. Largando o cacho, girou nos calcanhares e
sua raiva o fez cruzar o quarto. Começou a caminhar por ali como um felino enjaulado, e
Heather o vigiava cada vez mais intrigada. E sua voz a assustou quando falou, fazendo-a dar um
pulo:
— Maldição, Heather, existem algumas coisas a respeito de um homem que você precisa
aprender. Não posso...
Seu maxilar parou e o pequeno cacoete apareceu quando se virou contra a luz. Interrompeu a
caminhada nervosa diante da janela e mais uma vez ficou olhando para a escuridão.
Após aguardar longo tempo que ele falasse, Heather juntou as coisas que estavam em cima da
cama e arrumou-as cuidadosamente nos tabuleiros do baú. Depois ficou andando pelo quarto
durante certo tempo, lançando ocasionais olhares apreensivos ao marido. Finalmente, sentou-se
numa cadeira grande e começou a trabalhar num tecido que Madame Fontaineau lhe dera aquela
tarde. Brandon afastou-se da janela, virando-se, e foi até a mesa. Pegou seu copo e rogou uma
praga, quando encontrou a garrafa vazia, e então bateu o copo de volta na mesa, assustando
Heather, que enfiou a agulha no dedo. O comandante ficou por algum tempo ao lado da mesa e
finalmente chegou perto dela arrastando uma cadeira. Sentou-se diante da esposa, que pôs o
tecido no colo e olhou para ele atonitamente. Durante uns instantes Brandon lutou com as
palavras que desejava proferir. Suas mãos avançaram até os joelhos de Heather e acariciaram o
veludo que os cobria.
— Heather — murmurou enfim. — É uma longa viagem até a América. Estaremos juntos a
maior parte do tempo num aposento bem menor do que este e dormiremos lado a lado numa
cama com metade do tamanho da que temos aqui. Será miseravelmente frio e
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desconfortável, e nada agradável para você, especialmente já que Vai ser a única mulher a bordo.
Você não poderá passear livremente pelo convés do navio, ou sair do meu lado quando
estivermos fora do camarote. Seria perigoso fazê-lo. Deve compreender, Heather: marinheiros há
muito tempo longe de terra não conseguem olhar para uma mulher sem ficar... excitados. Se a
cena se repete constantemente eles se tornam desesperados. — Ele a estudou de perto para ver
se entendia o que queria dizer. Ela o observava atentamente, escutando cada palavra, mas ele
duvidava de que estivesse associando tudo aquilo a ele. Suspirou profundamente e reiniciou: —
Heather, se um homem admira uma linda mulher e passa um longo período perto dela sem
interrupções, ele sente uma extrema necessidade de ir para a cama com ela. Quando não
consegue, sente-se mal. Ele precisa...
Parece que não conseguia completar a frase. Com as faces coradas, Heather pegou o tecido no
colo nervosamente.
— Permanecerei na cabina o máximo possível, Brandon — retrucou delicadamente, sem olhar
para o marido. Tentarei não ficar no caminho de ninguém.
Brandon praguejou, em silêncio, e o músculo retesou-se em seu rosto.
— Pelo amor de Deus, Heather! — falou grosseiramente, levantando-se. — O que estou
tentando dizer é que... vai ser uma longa jornada sem... sem... maldição, você vai ter de me
deixar...
Não terminou. Seu orgulho venceu e, com uma forte imprecação, atirou a cadeira para um canto
e irrompeu através do quarto, chegando até a porta.
— Não vá lá para baixo, nem saia do quarto — avisou por cima do ombro. — George ficará aqui
fora cuidando de você.
Abriu a porta violentamente e saiu praguejando. Por algum tempo Heather ali ficou sentada com
espanto, incapaz de entender exatamente o que ocorrera. Ele explodira com ela tão
repentinamente, quando tudo o que queria fazer era compreender. Ela o ouviu rosnar ordens
para George e, num instante depois, o serviçal aproximou-se da porta, tão confuso como ela.
Entrou, com a permissão dela, e começou a limpar a mesa. Com um leve suspiro Heather
levantou-se e foi até a janela. O chapéu tricorne de Brandon continuava no peitoril, e então ela
apanhou-o e alisou-o carinhosamente, quase com amor. Virou-se ainda acariciando-o.
— Ele esqueceu o chapéu, George — murmurou melancolica-mente, passando os dedos pela
guarnição. — Disse-lhe quando voltaria?
O criado ergueu os olhos dos pratos e observou-a:
— Não, madame — respondeu quase contritamente. — Não disse uma palavra. — Então,
lentamente, como se as palavras lhe viessem com grande dificuldade, acrescentou: — Madame,
geralmente
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o comandante tem umas ideia meio esquisita, mas, se a senhora espera um pouco, ele acaba se
endireitando. Tem um pouquinho de paciência com ele, senhora. É um homem duro, mas é bom
sujeito. Acabrunhado, como se com vergonha pela própria verborragia, George continuou
empilhando pratos na bandeja e Heather sorriu levemente, mantendo o tricorne de Brandon
junto ao corpo.
— Obrigada, George — murmurou.
Chegando à porta, ele olhou para Heather por cima do ombro e perguntou:
— A senhora vai querê água quente pró banho como sempre? Ela acenou com a cabeça
afirmativamente, devagar, e ainda sorrindo respondeu:
— Sim, George, como sempre.
Heather acordou lentamente. Brandon estava no quarto de novo e ela se agitou debaixo da colcha
fofa, sorrindo um pouco para si mesma. Piscou os olhos sonolentamente, tentando alcançar o
travesseiro dele, depois se sentou de repente. Estava amanhecendo. O céu se mostrava claro e as
estrelas haviam sumido. Seu olhar voou para a porta, e viu Brandon encostado com todo o seu
peso na soleira, olhando-a fixo. Seus olhos estavam avermelhados e lacrimosos, a gravata, solta, e
o paletó enviesado. Um sorriso ébrio torcia-lhe os lábios como se estivesse achando graça de si
mesmo.
— Brandon? — ela perguntou em sobressalto. — Você está bem?
Esta era uma faceta dele que Heather jamais analisara. Ele estava bêbado, cambaleando e
cheirando a álcool. Lançou-se para a frente e o bafo de rum e perfume barato atingiram-na como
se fossem coisa sólida. Heather recuou, observando-o preocupada.
— Sua bruxa esquiva — ele ofendeu. — Com esse busto redondo e esse traseiro rosado, você
tenta um homem até quando ele está dormindo!
Seu braço ergueu-se subitamente para varrer o topo da mesinha de cabeceira num golpe de raiva,
e Heather afastou-se cautelosamente, começando a sentir medo.
— Ah, danem-se vocês, preciosas virgens! — rosnou. — São todas iguais, cada uma das
desgraçadas! Vocês castram um homem dentro de sua própria mente e o deixam incapaz de se
deitar com outras. Vocês arrancam seu orgulho do coração com as garras afiadas, depois saltitam,
cacarejam e gritam como uma galinha diante do galo, e desfilam sua inocência para o mundo com
os elegantes narizes virados para o alto! — E tropeçou para frente, cambaleante, passando o
braço pela coluna da cama. Fez um gesto exagerado, como se a apresentasse para os outros. — E
aqui, diante de mim, a rainha das
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virgens, sentada no seu trono de gelo e cercada pelo fosso da pureza! E quanto a mim? Entrei no
jogo e ganhei o prêmio, e agora que o tenho dentro de casa não posso tocar nele!
Agarrou a coluna com as duas mãos e esfregou a testa nela como se estivesse sentindo alguma
dor. Em seguida, prosseguiu:
— Oh, virgem esposa! Por que você não nasceu magra e feia para que eu pudesse ignorá-la,
conforme desejo? De todas as mulheres na cidade de Londres, o meu fraco ego escolheu você, o
mais fino pedaço de jóia que jamais tentou os olhos de um homem. E ainda me trata não como a
um homem, mas como a um velho cervo, cansado demais para procurar a corça. Você passa
diante dos meus olhos, exuberante, e espera que meu ânimo não se altere! Fica me tentando e
provocando, e depois me nega os direitos de marido! Meu Deus, sua feiticeira! Acredita que sou
algum eunuco que lhe serve de garantia? Um shilling compra mais bondades do que a que recebo
de você!
E inclinou-se na direção dela, perscrutando intensamente seu rosto.
— Mas eu lhe ensino, minha saudável megera! — ameaçou, sacudindo o dedo na frente de
Heather. — Eu a possuirei quando e onde eu desejar! — Seu olhar despiu-a, e a voz saiu mais
profunda: — Maldição, vou possuí-la agora!
E lançou-se por cima da cama, estendendo as mãos, tencionando agarrá-la pela cintura. Heather
gritou de medo e fugiu, apavorada, erguendo-se com a camisola emaranhada. Ouviu-se um
barulho de rasgão, e Brandon ficou deitado, atravessado na cama, olhando estupidamente para
um punhado de tecido firmemente preso na sua mão. Ergueu-se com um dos cotovelos e
levantou os olhos para ela, estupefato, admirando sua nudez, com a carne clara brilhando à luz do
alvorecer. Então afundou-se lentamente na cama, como se o estupor alcoólico o tivesse vencido.
Abriu a mão e a camisola caiu ao chão.
Heather observou-o cautelosamente durante alguns instantes, não sabendo se iria levantar-se de
novo e partir em seu encalço. Vendo que ele não o fazia, aproximou-se um passo e olhou
furtivamente por sobre o braço dele para o rosto meio submerso na colcha. Estava de olhos
fechados e a respiração regular.
— Brandon? — falou, sem confiar ainda.
Ele não se mexeu. Os olhos permaneceram fechados. Ela esticou o braço cautelosamente e
tocou-lhe a mão, pronta para recuar depressa caso ele ameaçasse agarrá-la. Mas seu movimento
foi em ritmo lento, pois o braço dele pendeu da cama. Ela se aproximou mais ainda e observou-
o, puxando-lhe o braço para cima da cama, concluindo estar completamente segura, agora.
Inclinou-se e pegou a camisola no chão, colocando-a na extremidade da cama, depois virou-se de
novo para o marido e tentou tirar-lhe o casaco. Não era tão simples como parecia
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— ele era pesado demais para que ela o conseguisse sozinha. Só havia uma coisa a fazer, chamar
George. Vestiu o roupão e atirou a capa por cima dos ombros; saiu do quarto e desceu um
pequeno trecho que ia dar no saguão, à procura do criado. Quando bateu na porta escutou
resmungos terríveis lá de dentro, seguidos de um tropeção. A porta abriu-se de um só golpe e
George apareceu, esfregando os olhos. Sua camisola grande quase escondia as pernas arqueadas
lá embaixo. Os dedos dos pés curvaram-se, defendendo-se do piso frio, e da cabeça pendia um
longo gorro de malha. Seus olhos arregalaram-se quando ele a viu ainda tonto de sono, e
escondeu rapidamente a metade inferior do corpo atrás da porta. Deu uma olhada furtiva para a
janela, percebendo o dia que nascia, e depois observou-a novamente.
— Madame! Que que tá fazendo aqui a essa hora?!
— Quer me acompanhar, George? — ela pediu suavemente. — O comandante está passando
mal e preciso de seu auxílio para removê-lo.
Ele franziu a sobrancelha, mostrando-lhe sua estranheza, e replicou:
— Sim, madame. Só um momentinho.
Heather voltou ao quarto e George apareceu pouco depois, com as calças no devido lugar. Viu
Brandon estatelado na cama, e seus olhos se arregalaram de surpresa.
— Ih, o comandante dessa vez exagerou mesmo! — falou nervoso. Deu uma olhada de viéis na
mulher de seu chefe. — Num é coisa normal, madame, isso eu garanto.
Ela não respondeu e virou-se para Brandon, começando a tirarlhe um dos sapatos. O olhar de
George passou por Heather e foi localizar-se na camisola atirada no pé da cama e, sem nada mais
dizer, correu para socorrer seu comandante. Endireitou-lhe o corpo e em seguida os dois
retiraram-lhe paletó, gravata e colete. Com a exceção de um gemido ou suspiro ocasional,
Brandon não acordou dos seus sonhos inebriantes. Só as calças permaneceram, quando Heather
esbarrou o olhar no de George e, indecisos, ambos concordaram silenciosamente em deixá-lo
assim. Puxaram o lençol por cima dele e antes de sair, George colocou o balde ao lado da cama,
perto da cabeça de Brandon. Parou perto da porta.
— Será quase meio-dia antes dele acordá, madame. Eu lhe trago uma coisa pra aliviá a cabeça do
comandante antes disso. — E, dando uma rápida espiada pela janela para o dia que rompia,
murmurou: — Passe bem madame.
Heather fechou a porta quando George saiu e pendurou a capa no cabide. Retirando uma colcha
da cama foi até a cadeira grande que havia no quarto e se enroscou dentro dela, sentando em
cima dos pés, para então começar a cuidar das suas roupas. Lentamente o impacto inicial da volta
de Brandon bêbado ao quarto desgastou-se e
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no seu lugar surgiu uma raiva crescente. O tecido não era mais costurado com movimentos
vagarosos, calmos. A agulha era enfiada asperamente e atravessava o pano como se buscasse
vingar-se dele.
— Ele vasculha as ruas e não encontra amante paga, boa o bastante para satisfazê-lo! — sibilou
para si mesma. — E depois entra aqui aos tropeções e tenta fazer de mím sua cadela de novo!
Olhou fixo para Brandon, que ainda dormia profundamente em seu travesseiro com uma
expressão igual a de um bebê inocente, e enfiou a agulha novamente no pano.
— Seu nojento! — E deu um puxão no tecido. — Foi só depois que andou pela cidade toda que
veio a mim! E depois diz que eu sou a bruxa que tentou sua alma!
A falta de resposta da parte de Brandon encorajou-a a prosseguir. Era realmente raro ter a
oportunidade de extravasar a raiva e o sarcasmo sem medo de um contra-ataque. Novamente
furou o tecido com a agulha.
— Você amaldiçoa todas as virgens agora, mas há algum tempo sentiu prazer em me violentar!
Levantou subitamente da cadeira, jogando o pano no chão e, altamente agitada, começou a
caminhar pelo quarto.
— Quem ele acha que eu sou? Acha que vou aguardar humildemente que estale os dedos para
que eu caia na cama igual a uma prostituta bem treinada?
Seus olhos perceberam o casaco pendurado nas costas da cadeira, com os ombros largos e a
cintura estreita.
— Acha que eu o idolatro e que vou passar o resto da vida satisfazendo seus caprichos?
Girou e foi até a beira da cama para examiná-lo, e ele continuava incomunicável nos seus sonhos.
— Seu imbecil desprezível! Sou uma mulher. O que eu tinha estava guardando para o homem
que escolheria, e você me privou até mesmo disso! Sou um ser humano vivo, que respira, e
também tenho algum amor próprio!
Com um gemido de fúria ela fez a volta e caminhou pesadamente para a cadeira, de novo,
jogando a colcha em sua volta quando se sentou. Um pequeno sorriso malicioso torceu-lhe os
lábios quando observou o rosto bonito do marido. Ah, mas era realmente um homem
magnífico!...
Eram mais de 10 da manhã quando Heather acordou do sono que tirara na cadeira. Brandon
ainda dormia profundamente e, quando ela se levantou, lançou-lhe um sorriso de escárnio antes
de começar a se vestir. George trouxe-lhe uma chávena de chá e bolo. Após comer, ela arrumou
o quarto e voltou à costura para aguardar que o marido
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acordasse. O meio-dia havia passado há muito quando se ouviu o primeiro gemido vindo da
cama, mas Heather continuou seu trabalho calmamente, observando-o ao sentar-se
cuidadosamente na beira da cama. Brandon pôs a cabeça desgrenhada entre as mãos, como se um
peso muito grande lhe pressionasse os ombros, e então grunhiu. Depois deu uma espiada na
esposa com o canto dos olhos, endireitando o corpo dolorosamente.
— Dê-me o roupão — rosnou.
Heather pôs de lado a costura e foi até o guarda-roupa. Ele a acompanhou com o olhar e quando
se aproximou, ele tirou-o de suas mãos. Recusando ajuda, vestiu-o e se levantou lentamente. Com
péssima aparência, caminhou rumo à porta e abriu-a.
— Quero meu banho pronto para quando voltar — vociferou. — E é bom que esteja quente,
senão vou mastigar o seu traseirinho!
Após vê-lo fechar a porta, Heather deu-se ao luxo de um sorriso de satisfação diante do
sofrimento do marido, mas tratou de prepararlhe apressadamente o banho, sabendo ser mais
seguro obedecer-lhe. Quando Brandon regressou estava ainda mais pálido, no entanto andava
com mais desenvoltura, como se pensasse que assim a cabeça permaneceria no corpo. Tirou as
calças, entregou-as à esposa, sem sequer olhar para ela, e entrou cautelosamente no banho
fumegante. Prendeu a respiração quando penetrou na água quente e soltou um prolongado
suspiro quando se encostou confortavelmente na banheira. Ficou assim durante bastante tempo,
de olhos fechados, e a cabeça descansando na beirada, até ouvir-se uma batida na porta, quando
abriu os olhos zangado.
— Maldição! Pare com esse barulho! — berrou, e depois, falando mais baixo e franzindo a testa,
continuou: — Entre de uma vez!
Carregando uma pequena bandeja com uma garrafa, que continha uma porção liberal de
conhaque, George entrou desengonçadamente nas pontas dos pés, com a cabeça afundada nos
ombros. Trocou um rápido olhar com Heather, para ver como ela se estava saindo, e verificou
que tinha tudo sob controle. Entregou a bebida ao seu comandante e retirou-se estrategicamente.
Brandon tomou metade do conteúdo do copo de um só gole e novamente encostou a cabeça na
beira da banheira, sentindo o lento efeito da bebida. Heather preparou-lhe a toalha e as roupas,
indo em seguida para perto da banheira a fim de ajudá-lo. Durante uns instantes ficou a observá-
lo do alto, segurando a esponja e o sabonete. O suor escorria pelo seu rosto e peito, sentado ali
na água que exalava vapor, levando com ele o veneno da noite anterior. Mantinha olhos fechados
e, com os braços descansando na borda da banheira, parecia quase alegre. Alegre demais.
Sentindo um forte desejo de interromper esse nirvana, ela esticou os braços e largou o sabonete e
a esponja
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dentro da banheira. Brandon assustou-se um pouco, aos respingos de água em seu rosto, e abriu
um olho para observá-la. A água escorreulhe pela cara e penetrou na barba, mas ele nem se
mexeu para enxugá-la. O olho penetrou na esposa como se contemplasse o seu lento
desmembramento, e Heather perdeu a coragem quando ele abriu o outro. Rapidamente se
afastou para uma distância segura e começou a ocupar-se com pequenas tarefas enquanto ele a
olhava fixo.
Ela voltou, embora um tanto cautelosa, para ajudá-lo quando finalmente se sentou para esfregar-
se. Ele a viu tentando alcançar o sabonete e aí perdeu a paciência:
— Vá dando o fora daqui, sua bruxa maldita! — gritou. — Não quero nem vê-la! Sei tomar
banho sozinho. Além do mais, nunca suportei uma gata arranhando as minhas costas!
Heather largou o sabonete em sobressalto e saiu correndo espavorida. Foi até a porta e abriu-a
quando Brandon perguntou hipocritamente:
— E aonde você pensa que vai nessas condições?
A mão de Heather escorregou dos seus ombros para as costas — ela esquecera de que estava
meio vestida apenas. Mas ergueu o nariz:
— Vou descer ao saguão para mandar George fechar meu vestido — replicou numa pose
majestosa.
E rapidamente fechou a porta antes que ele pudesse criticá-la, mas concluiu, pela explosão de
imprecações e pragas que atravessaram a porta, que ele ficou nada satisfeito com ela. Ao mesmo
tempo passava uma camareira, e Heather, descendo para o saguão, pediu-lhe ajuda para fechar o
vestido.
Era sábado e a estalagem estava calma, com o salão principal praticamente vazio. Heather pediu
chá quando se sentou na mesa de sempre do casal, falando ocasionalmente com a esposa do
estalajadeiro. Não precisou esperar muito pela companhia de Brandon. Ele chegou carrancudo e
sentou-se sem dizer palavra. Foi somente depois que a dona da hospedaria serviu-lhes a refeição
e regressou às suas tarefas que ele rosnou para ela em voz baixa:
— A menos que deseje que eu a deite de bruços sobre meus )oelhos, madame, levante suas saias
e dê umas palmadas no seu traseiro nu, sugiro que tome mais cuidado com o que faz!
Ela virou os olhos redondos, inocentes e azuis para ele, fingindo completa inocência em relação à
causa de sua ira.
— Qual o motivo, meu amor, para desejar espancar sua esposa, que carrega seu filho?
O maxilar do comandante apertou-se.
— Heather! — exclamou. — Não fique brincando de inocente comigo. Deve ter notado que não
estou de bom humor!
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Heather engoliu em seco e concentrou a atenção em seu prato. Aquele simples movimento no
rosto do marido foi suficiente para dissuadi-la. Novamente ficou intimidada por completo.
Foi somente quando o casal se preparava para deitar-se, naquela noite, que Brandon reparou na
camisola rasgada dentro do guarda-roupa. Tocou nela levemente e franziu a sobrancelha, depois
observou a mulher ir para a cama metida em um camisolão. Soprou a vela e despiu-se no escuro.
Em seguida, durante longo tempo, ficou olhando para o teto, deitado de costas com as mãos na
nuca. Sentiu ligeiro movimento do lado e deu uma espiada na direção de Heather. Estava de
costas para ele, mas de lado, o mais longe que conseguiu sem cair da cama. Puxara a colcha até os
ombros, como se isso a protegesse contra ele. Praguejando silenciosamente ele lhe virou as costas
também, concluindo que afinal nada acontecera, porque ela parecia satisfeita demais consigo
mesma e ele não sentia alívio físico.
Na manhã seguinte, Brandon mandou a esposa sair da cama correndo antes do romper do dia,
não lhe dando tempo de reclamar.
— Depressa, mocinha, não tenho tempo a perder. Vamos atracar o Fleetwood esta manhã e
tenho de ir até lá!
E ajudou-a a vestir-se, enquanto punha as próprias roupas, depois levou-a para o salão, onde
fizeram uma refeição rápida em que Heather tomava chá tentando não bocejar. Logo após, ele a
escoltou para fora, no escuro, até as instalações sanitárias na parte traseira da estalagem, e esperou
até que ela terminasse. Em seguida deixou-a em segurança no quarto e deu suas ordens a George.
Então saiu e só retornou nas primeiras horas da manhã e, como sempre, despiu-se no escuro e
deitou-se silenciosamente na cama, ao lado dela, tendo cuidado para não acordá-la. Nos dias que
se seguiram, a rotina foi idêntica, a não ser pelos momentos da manhã em que Heather não falava
com Brandon. Ficava no quarto até seu regresso e passava o tempo da melhor forma que
descobria. Ali fazia suas refeições ou, se houvesse apenas alguns marujos, na sala comum sob a
guarda de George.
Era a quarta noite da semana quando Brandon voltou cedo. Ela estava no banho, não o
esperando a essa hora da tarde, e quando a porta se abriu levou um susto.
Brandon hesitou um momento, à porta, contemplando com prazer essa encantadora cena
doméstica. Ela se sentou, braços cruzados à sua frente, com os olhos arregalados, e só então se
recobrando da surpresa. A pele molhada brilhava à luz das velas e, com os cabelos enrolados no
alto da cabeça, alguns cachos a escapar por sobre os ombros, ela era uma visão atraente — de
longe a coisa mais linda que ele vira naquele dia.
Havia um banquinho perto da banheira — para ajudar a entrar nela — e sobre ele um frasco de
óleo para banho e um grande pedaço de sabonete perfumado. Ele sorriu ternamente e se virou
para a porta,
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fechando-a. A passsos lentos foi até a banheira e colocou uma das mãos num de seus cantos,
inclinando-se como se fosse beijá-la.
— Boa tarde, amor. — murmurou suavemente.
Confusa por suas maneiras gentis e sentindo-se presa, Heather deixou-se afundar lentamente na
banheira até que a água lhe chegasse aos ombros. Fez uma tentativa para sorrir, mas seus lábios
estavam hesitantes. Ele riu baixinho ante seus esforços, aprumou o corpo e seu rosto foi
substituído pela mão que segurava a barra de sabonete. O sabonete bateu na água em frente ao
rosto dela e o borrifo deixou-a gaguejante e com dificuldade para respirar. Abriu os olhos e
encontrou uma toalha segura bem perto dela:
— Enxugue o rosto, querida. está bem molhado... Furiosa, ela arrebatou a toalha e a esfregou nos
olhos, falando meio sufocada:
— Oh! você. você.
Ele riu suavemente e se afastou; quando ela tornou a olhá-lo, já se havia sentado e esticado as
pernas, observando-a com um sorriso de contentamento. Ela lhe relanceou um olhar de revolta
— o que fez com que mais se intensificasse o seu sorriso.
— Aproveite bem o seu banho, meu amor — disse, e inclinou-se para diante como se fosse
levantar-se: — Gostaria que lhe esfregasse as costas?
Ela trincou os dentes, frustrada, e começou a levantar-se da banheira, mas ele voltou a sentar-se e
acenou-lhe para que continuasse.
— Relaxe, Heather, e aproveite o máximo — avisou mais seriamente. — Provável que seja o
último bom banho que tenha durante algum tempo.
Ela se sentou de novo e se voltou para ele com um olhar espantado, pensando que ele havia
descoberto um novo meio de castigá-la:
— Brandon. peço-lhe! São tão pequenos os meus prazeres e a este eu quero particularmente! —
Olhou-o implorativamente: — Suplico-lhe seja bondoso, Brandon, não o tire de mim! Por favor,
aprecio isso tanto, tanto!
Mordeu o lábio inferior, que tremia, e baixou o olhar. Apagou-se o sorriso de Brandon e ele se
levantou, encaminhando-se para junto da banheira. Encostou nela as mãos e ficou a olhar a
moça, ali sentada de olhos baixos, humilhada, abatida, como uma criança à espera do castigo.
Quando falou, ele o fez gentilmente:
— Está cometendo contra mim uma grave injustiça, Heather ao pensar que eu, por maldade, lhe
negaria esse prazer. Apenas quis dizer que amanhã estaremos a bordo, pois o navio deverá partir
dentro de uns três dias.
Ela ergueu a cabeça para olhá-lo e seus seios se iluminaram com o brilho das velas.
152
— Oh! Brandon, desculpe-me! — murmurou humildemente. Foi impertinência minha julgá-lo
tão mal.
Deteve-se, notando que o olhar dele já não encontrava o dela, mas se dirigia mais para baixo. Os
lábios do rapaz estavam brancos e o tique lhe voltara à face enquanto ela o observava. Ela corou
fortemente e, com um murmúrio de desculpas, puxou a grande esponja para o peito. Brandon
virou-se abruptamente e foi pôr-se de pé diante da janela.
— Se quiser sair da banheira, madame — falou, asperamente, por cima do ombro — poderemos
jantar em circunstâncias mais civilizadas. E é melhor que se apresse. Mandei George buscar o
jantar.
Heather concordou e apressou-se mesmo..
Parecia haver adormecido havia momentos apenas quando Brandon a sacudiu para despertá-la.
Fora ainda estava escuro, mas ele já se vestira. Puxou-a da cama e entregou-lhe suas roupas. Ela
se meteu no vestido e ele a ajudou a pô-lo no lugar, começando a abotoá-lo enquanto ela
escovava os cabelos. Embrulhou-a no casaco e ficou de pé à porta, enquanto ela, com uma toalha
úmida, apagava do rosto os últimos vestígios do sono. Depois desceram para uma rápida refeição
e em seguida caminharam os poucos quarteirões até o navio.
A tripulação já estava em movimento, preparando o navio para o carregamento do dia: os
homens pararam a fim de ver embarcar o comandante e sua mulher, e seus olhos os seguiram até
desaparecerem pela porta sob o tombadilho.
Assim que chegou à cabina do comandante, Heather livrou-se do casaco, enroscou-se em seu
beliche e voltou a dormir, não acordando nem quando Brandon puxou um edredom para
agasalhá-la. Terminada a ligeira refeição que ele lhe trouxe ao meio-dia, ela subiu ao convés e
ficou de pé junto ao parapeito para observar a atividade dos marinheiros e o porto. Vendedores
enxameavam no cais, vendendo frutas e verduras frescas a marujos ávidos de uma mudança em
sua monótona dieta de carne de porco salgada, feijão e bolachas. Comerciantes ricos,
elegantemente vestidos com suas melhores roupas, andavam ombro a ombro com mendigos e
ladrões que tentavam diminuir o volume de suas bolsas. Marinheiros desfilavam com prostitutas,
acariciando-as abertamente, e carruagens com seus cocheiros uniformizados disputavam os
eventuais passageiros. Cores fortes se mesclavam a outras mais sombrias, dando ao porto
marítimo seu colorido peculiar de sempre. Navios eram descarregados e recebiam novas cargas.
As blasfémias dos marinheiros se misturavam aos gritos dos vendedores de bugigangas e às vozes
pechincheiras dos mercadores. Dois homens da tripulação do Fleetwood liberaram a área onde
os vagões pararam para descarregar seus suprimentos. Heather nunca vira um lugar tão cheio
153
de atividade e o observava um tanto sem fôlego, inclinando-se sobre a amurada do navio para ver
melhor o que se passava embaixo. Podia ouvir, vez por outra e vinda de diferentes partes do
barco, a voz grave e autoritária de Brandon, dando ordens aos homens à medida que iam
transferindo a carga para bordo. A intervalos podia vê-lo dirigindo-se ao Sr. Boniface ou ao
contramestre ou ao imediato. Em outras ocasiões, descia ao cais para conversar com
comerciantes.
Já a tarde ia adiantada quando ela viu George passar em uma carroça, puxada por um só cavalo e
onde estavam o seu baú, a mochila de Brandon e, para sua surpresa, a banheira de bronze da
estalagem. Confusa, viu-o descarregar os objetos e trazê-los para bordo. Ao depositar a banheira,
virou-se para sorrir-lhe, e então ela percebeu que Brandon a comprara para ela. Seus olhos
passaram por George e procuraram o marido, um pouco atrás dele com o Sr. Boniface. Ele
observara o criado a transportar a banheira para bordo, e agora seus olhos se voltaram para ela.
Seus olhares se voltaram... e de súbito Heather se sentiu feliz e animada. Nenhum presente de
maior preço ou beleza lhe teria agradado tanto quanto aquela velha banheira. Os cantos de sua
boca se ergueram e o sorriso foi suave, cálido e lindo: contemplando-a por um momento,
Brandon sentou-se preso a seu apelo. depois James Boniface pigarreou e repetiu a pergunta.
Já anoitecera antes que Madame Fontaineau e duas de suas ajudantes trouxessem as roupas de
Heather. Depois de conferir e achar tudo satisfatório, Brandon trouxe de seu baú uma caixa de
ferro e começou a contar a quantia necessária. A modista aproximou-se para olhar por cima da
tampa da caixa e ver o que continha: ficou ofegante ante a grande quantidade de dinheiro que lá
estava. Brandon ergueu uma sobrancelha ao olhá-la, mandando-a de volta ao seu lugar do outro
lado da escrivaninha; depois continuou a contar o dinheiro.
Madame Fontaineau deu uma olhada em Heather, ajoelhada ao lado do seu baú, guardando os
vestidos e outros artigos; depois tornou a voltar-se para Brandon, sorrindo com um brilho
calculista nos olhos: a visão de dinheiro sempre a tornava um tanto temerária -
— Madame voltará com o senhor no próximo ano, senhor?
— Não.
Madame Fontaineau sorriu amplamente e alisou os cabelos:
— Quando voltar, o senhor, naturalmente, irá à minha loja comprar novos vestidos para ela, não
é mesmo, senhor? Aguardarei isso com grande satisfação. — E arrulhou: — Minhas habilidades
estarão à sua disposição, senhor.
A observação passou despercebida aos ouvidos inocentes de Heather, mas Brandon
compreendeu claramente a intenção da mulher.
154
Seus olhos a percorreram lentamente: por alguns momentos a observou passivo, depois
glacialmente, como se lhe calculasse o valor detendo-se momentaneamente no peito matronal e
nos largos quadris. Baixou os olhos novamente para o dinheiro:
— A senhora me compreendeu mal, madame. Quero dizer que não voltarei à Inglaterra: esta é
minha última viagem aqui.
Com o choque, a mulher deu um passo atrás. Um momento depois Brandon estendeu a mão e
lhe entregou o dinheiro devido em uma bolsa; Madame Fontaineau não se demorou para contá-
lo: virou-se rapidamente e se foi, sem nada mais dizer.
Durante a refeição da noite Brandon estava preocupado com outras coisas, de modo que mal
houve uma ou outra palavra trocada entre eles, e muito depois que Heather já se recolhera ao
beliche ele ainda estava, na escrivaninha, às voltas com seu livro Razão, recibos e contas. Passava
da meia-noite quando apagou as velas, despiu-se no escuro e se deitou o lado dela. Ainda
desperta, Heather rolou para dar-lhe lugar, mas não havia muito espaço. Brandon procurou
afastarse dela e ela dele e, por diferentes razões, ambos tentavam não pensar no que acontecera
na última vez em que ocuparam juntos o beliche..
Passaram rápidos os dois dias seguintes. Havia terminado o carregamento e o aprovisionamento
estava completo, ajustada a derradeira escotilha e feitas as despedidas. Chegaram as chalupas para
rebocar o Fleetwood para fora do porto, para onde pudesse desfraldar as velas e aproveitar a
brisa que sopra da praia. Tudo a bordo tranqüilo, embora o navio parecesse esperar com
impaciência por esse fresco zéfiro que o poria no caminho de casa.
A tarde estava calma, a água espelhante. O navio descansava com suas velas de joanete e
mataréus desfraldados porém pendurados, frouxos, à espera do primeiro sopro de vento. O sol ia
a meia altura atrás dos telhados de Londres quando uma das velas se agitou ruidosamente naquela
calmaria. Imediatamente todos olharam para cima, para o topo dos mastros. Já agora o sol se fora
e uma brisa cortante fustigou o rosto de Heather, ali de pé no tombadilho ao lado de Brandon.
As velas tornaram a agitar-se e então se enfunaram quando a brisa se tornou mais forte. Ressoou
a voz de Brandon:
— Levantar âncora! Apressem-se, marujos, estamos indo para casa!
Começou a retinir o cabrestante da âncora do castelo de proa e a voz de Brandon adquiriu um
tom alegre:
— Soltem essas escotas a bombordo.
A âncora surgiu das águas do Tâmisa, e o vento começou a ganhar velocidade. Heather viu as
luzes desaparecerem na escuridão e sentiu um aperto na garganta.
155
Só ao amanhecer é que Brandon chegou à cabina para dormir; ao café disse-lhe o que esperava
dela durante a viagem:
— É bom que saiba, Heather, que o convés pertence aos homens até uma hora razoável da
manhã. Se você se aventurar cedo demais por lá, poderá ficar encabulada. Previno-a de que
melhor será permanecer na cabina até um pouco mais tarde.
Ela murmurou uma resposta obediente, mantendo os olhos no prato, e enrubesceu. Ele
continuou:
— E abaixo do convés está absolutamente fora de cogitação para você. É onde ficam os
alojamentos dos homens, e você é uma tentação para um homem numa viagem longa. Não
gostaria de ter de matar algum dos meus homens por perder a cabeça.. Portanto, fique longe de lá
e do caminho deles.
Olhou-a por cima da sua xícara de café enquanto ela pegava a sua, de chá, de olhos baixos e ainda
ruborizada. Suas mãos delgadas estavam rodeando a xícara, e a aliança de ouro brilhou à luz do
sol matutino. Ele cerrou o sobrolho levemente e baixou o olhar.
Bem adiantada a tarde, pouco depois das 4, Heather ouviu o brado do gajeiro:
— Fim de terra, pessoal!
O dia estava de um cinzento hibernal com nuvens baixas deslizando pelo céu. O vento soprava
vivificante do nordeste ao chegar ao tombadilho. Brandon estava de pé junto à roda do leme
olhando o sul da Inglaterra a passar velozmente e, quando a terra desapareceu de vista, voltou-se
para o homem ao leme:
— Helmsman, firme! Mantenha-o na rota para oeste. — E gritou para os altos: — Cuidado com
esse equipamento, rapazes, e rizem a vela grande!
Ali ficou por algum tempo, mãos cruzadas nas costas e pés separados, sentindo o mar sob o
navio e observando cordame, mastros e velas, o navio equilibrado no rumo certo com o vento a
empurrá-lo de perto. No horizonte o Sol se punha baixo e rubro, pintando as nuvens de dourado
e o mar de vermelho. Agora a terra já ficara para trás, tudo negro e ouro além da névoa. Sentindo
o coração dolorido, Heather viu a Inglaterra desaparecer de vista e da sua vida.
156
Capítulo Seis
O Sol se ergueu frio e desanimador no quarto dia de viagem; e os ventos de leste começaram a
atormentar. Os primeiros dois dias tinham sido relativamente calmos: a cada polegada de velame
desfraldado o Fleetwood sulcara para a frente, ondulando sobre as ondas. Agora o cordame
cantava ao vento e o navio se esforçava enquanto abria seu caminho através das ondas de crista
espumante. Estava pesadamente carregado e navegava baixo na água, embora fosse fácil de
manobrar e reagisse bem ao leme.
Brandon dirigiu o olhar para frente, para um baixo amontoado de nuvens no horizonte, guardou
seu sextante e dobrou os mapas. O vento fustigava pra valer nessa fria manhã e pressagiava mau
tempo para mais tarde, mas ainda assim ele sorria para si mesmo enquantodescia, pois a viagem
corria muito bem — faziam quase 40 léguas por dia. Entrou na cabina, livrou-se dos mapas e do
sextante e apanhou o bule de café no pequeno fogão, servindo-se em uma caneca. Enquanto
sorvia a bebida quente, olhou para Heather, ainda adormecida em seu beliche. A mãozinha,
parcialmente encoberta pela renda da camisola, jazia no travesseiro, o macio cabelo encaracolado
preso sob ela. Ele pensou em seu calor e maciez de encontro a ele, e imaginou brevemente o
quanto a moça lutaria se quisesse possuí-la agora. Ela se moveu levemente, como se consciente
de estar sendo observada, e ele se obrigou a pensar em outra coisa. A garota espreguiçou-se
demoradamente sob o edredom. seus olhos se abriram vagarosamente viu-o e lhe sorriu um
tímido cumprimento matinal.
Nesse momento George bateu levemente na porta: ela pulou do beliche, proporcionando a
Brandon a rápida visão de uma linda coxa antes de arrancar fora a camisola e apressadamente
embrulhar-se no roupão. À ordem de Brandon, o criado entrou com uma bandeja onde vinha a
refeição deles. Do bolso George retirou uma laranja que passou a Heather, que lhe agradeceu
graciosamente. Vendo a cena, por cima do ombro, Brandon ergueu uma sobrancelha, imaginando
se o criado estaria a enamorar-se da sedutora inocência de sua esposa.
157
- Hoje à noite teremos hóspedes para o jantar, George — falou, abruptamente, voltando-se.
Sentiu a surpresa de Heather, mas não a olhou. — Pedi ao Sr. Boniface e ao imediato, Tory
MacTavish, que se juntassem a nós. Por favor, cuide disso.
— Pois não, meu comandante! — respondeu o criado, dando uma olhadela em Heather. Ela já se
havia voltado e tentava aquecer as mãos acima do fogão. Mas não havia como enganar-se: ela
estava transtornada, e George balançou a cabeça, constrangido ante os modos grosseiros do
patrão. O comandante não podia continuar teimosamente a manter, depois de casado, sua
independência de solteiro.
A noite estava mais fria e Heather usava um dos seus novos vestidos, mas de costas para o
fogãozinho, esperava que Brandon acabasse de vestir-se. Ela escolhera o vestido tendo em mente
agasalhar-se. Era de um veludo cor de vinho, mangas compridas e gola alta, com o corpete
liberalmente enfeitado de minúsculas contas brilhantes. Suspendera os cabelos num penteado
elegante e apresentava o mais encantador contraste com o ambiente totalmente masculino. Ao
fazerlhe uma apreciação crítica, Brandon decidiu que ela era uma agradável esposa de
comandante. Sorriu, divertido, quando ela se instalou bem junto ao fogão e levantou um pouco
as saias para deixar que o calorzinho penetrasse sob elas.
— Da maneira como está abraçando esse fogão, não creio que vá apreciar muito o temporal que
vem aí.
Ele relanceou o olhar para os quadris que surgiam abaixo das saias meio erguidas e pensou nos
ventos gelados que lhe poriam as roupas em desordem e a deixariam tremendo em busca de
calor. Suas delicadas combinações feitas sob medida seriam de bem pouca proteção quando o
vento as atravessasse e tocasse sua pele. Mentalmente anotou que teria de fazer algo a esse
respeito, mais tarde.
— Será muito mais frio, Brandon? — ela perguntou, desconsoladamente. Ele riu:
— De fato, madame! Estamos tomando a rota do norte, justo ao sul da Terra Nova, para ganhar
tempo... o tempo perdido com o atraso ao sair da Inglaterra. Como as coisas estão, não espero
estar em casa antes do Ano Novo, embora tenha razões para esperar chegar antes desta data.
O imediato e o comissário de bordo pareciam apreciar a noitada e em particular a presença da
moça a bordo. Se sabiam do que lhe havia acontecido, não deram a menor indicação. Logo que
entraram na cabina a presentearam com uma pequena cópia do Fleetwood e graciosamente lhe
agradeceram pelo convite. De alguma forma Brandon foi apanhado de surpresa pela suposição de
que o convite partira dela; e ficou de lado, meio zombeteiro, quando ela aceitou o presente,
dizendo que o guardaria com muito carinho.
158
A noite se ia passando agradavelmente, enquanto eles a entretinham com histórias divertidas da
Corte inglesa. Pareciam ansiosos por alegrar a reunião e empenhavam-se em pequenas disputas
— como quando travaram uma batalha fingida para reaver um guardanapo que ela deixara cair,
ou ao colocar em posição a cadeira para ela, à mesa. Ocasionalmente ela sentia o olhar
carrancudo de Brandon, quando ria delicada com o bom humor deles — e sentia a estranha
possessividade dele. Sob o disfarce da refeição, de quando em quando ela lhe relanceava um olhar
e meditava sobre suas maneiras, seu mau humor: a raiva dele contra o rapazinho na loja da
costureira, a fria raiva com os dois assaltantes que a queriam roubar dele, e com ela mesma
quando precisou que uma criada lhe abotoasse o vestido. Mesmo assim, a troco de nada ele não
deixava dúvidas de que não sentia nenhum grande amor por ela... De fato, ele temia
violentamente era a possibilidade de ir para a cadeia. Então, qual a razão? Avareza? Dificilmente!
Ela já tivera amplas demonstrações de sua generosidade. O pródigo guarda-roupa, as refeições
que faziam. Os melhores vinhos enfeitavam a mesa, os charutos mais caros ali estavam à espera
de ser fumados... Não. Não era avareza. Porém alguma raiva estranha surgia quando outros
homens apreciavam seu alegre companheirismo e respostas graciosas. Com que tipo de homem
se havia casado? A vida com ele algum dia viria a normalizar-se ou sempre seria um jogo de
adivinhação — ela sempre do lado errado?
Terminada a refeição o criado tirou a mesa. Agora, os charutos foram acesos, com mil pedidos de
desculpas a ela, e a conversa se voltou para os negócios. Perguntou o Sr. Boniface se a rota do sul
seria mais segura. Brandon bebericou o seu vinho pensativamente por um momento e depois
respondeu:
— Uma semana antes de levantarmos âncora, dois navios mercantes partiram para Charleston
com os porões abarrotados. Tomaram o caminho sul. Se chegarem ao porto antes de nós, nossa
carga valerá, apenas a metade do que valerá se lhes passarmos à frente. Tenho esperança de
chegarmos ao destino antes deles: esta é minha última viagem e planejo tirar dela um bom lucro.
— Bem pensado, comandante! — Tory MacTavish sorriu, já que era louco por dinheiro.
Jame Boniface acenou de cabeça a sua concordância. Brandon continuou:
— Jeff e eu investimos com vontade neste carregamento: gostaria de ver nosso dinheiro
duplicado. Se chegarmos a tempo, ele o será.
MacTavish afagou o bigodão fulvo:
— É, comandante, o jogo é válido! Minha própria parte será muito melhorada se chegarmos a
tempo.
— O mesmo quanto a mim — confessou o imediato, sorrindo.
159
MacTavish perguntou, um brilho de malícia nos olhos azuis: Jeffie tomará coragem para
estabelecer-se, agora que o senhor se casou, capitão?
Rapidamente Brandon relanceou um olhar a Heather, antes de sorrir e balançar a cabeça.
— Tanto quanto sei, MacTavish — falou — ele prefere levar vida de celibatário, apesar da
constante importunação de Hatti para que mude isso.
— Ao ver que o senhor se arranjou tão bem, comandante — replicou MacTavish, com um
sorriso cálido e amigável para Heather — ele pode ser tentado a mudar de ideia.
Corando, Heather retribuiu o sorriso: sentia o olhar de Brandon fixar-se nela, como se
considerando essa declaração e querendo estudá-la. As mãos dela começaram a tremer e afinal
ergueu os olhos para ele: seus olhares se encontraram através da mesa...
Boniface e MacTavish trocaram sorrisos entendidos. Silenciosamente os dois homens
concordaram em não se demorarem mais. Poirém, ao fechar-se a porta atrás deles, Brandon mais
uma vez voltou a sua secretaria e seus livros e Heather a seu bordado, sentada tão perto do calor
quanto possível. O pequeno fogão de ferro era insuficiente, e ela mudava de posição com
freqüência, num esforço para manter todas as partes do corpo em temperatura razoável. Seus
movimentos acabaram por distrair Brandon: pondo de lado a pena de escrever, afastou-se do
trabalho. Por algum tempo ficou a olhá-la fixamente, um cotovelo na secretária e a outra mão no
joelho. Finalmente ergueu-se e veio até junto dela e, mãos cruzadas nas costas e pés separados, ali
ficou de pé durante algum tempo enquanto Heather ia ficando apreensiva quanto a essa indevida
atenção. Pôs de lado o bordado e o olhou:
— Algo de errado, Brandon? — perguntou, incapaz de suportar o exame por mais tempo.
Ele pareceu não a ouvir. Virou-se nos calcanhares, foi até seu baú e levantou a tampa. Começou a
tirar coisas de lá, pondo-as no chão de qualquer maneira, até chegar a um pequeno pacote que
entregou a ela:
— A princípio poderá achar isso desconfortável, madame, porém penso que logo irá gostar do
que está aí dentro.
Ela abriu o pacote cuidadosamente e ficou totalmente confusa ante o que viu. Sorrindo para ela,
Brandon abaixou-se e ergueu uma das pecinhas acolchoadas para que ela a examinasse.
Totalmente desconcertada, ela perguntou:
— Senhor, duvida de minha honestidade? Vai prender-me nisso? Ele sacudia os ombros de tanto
riso e explicou:
— São como um par de ceroulas de homem, mas devem ser usadas por baixo de suas saias para
mantê-la aquecida.
160
Só o que ela fez foi fitá-lo. Ele continuou, sorrindo:
— Nem imagina a dificuldade que tive para conseguir que lhe fizessem isso! Todo alfaiate me
julgava louco quando eu descrevia o que queria, e nenhum deles acreditou que eu desejava vesti-
las numa mulher. Tive de pagar uma boa quantia para que as fizessem.
— Você diz que tenho de usar isso debaixo do vestido? — ela indagou, incrédula.
Ele acenou afirmativamente, divertido com sua consternação:
— A menos que prefira sentir o vento frio sob as suas saias, madame. Garanto-lhe que mandei
fazer isso com as melhores intenções do mundo. Não precisa temer que eu queira divertir-me à
sua custa. Apenas desejo vê-la aquecida.
Ela pegou a peça, espantada; finalmente um tímido sorriso lhe aflorou aos lábios e murmurou:
— Muito obrigada!
Passaram-se mais cinco dias, e o frio aumentava cada vez mais. Heather já não duvidava do
conforto que lhe traria a estranha peça de roupa que Brandon lhe dera: agora lhe estava gratíssima
por isso. No primeiro dia em que usou as tais ”ceroulas” riu a não poder mais de si mesma, pois
nunca vira algo tão estranho. Elas lhe chegavam aos quadris e eram presas e ajustadas à cintura
por um cadarço. Pareciam-lhe ridículas. Ainda ria quando Brandon chegou para almoçar e ela
levantou as saias para mostrar-lhe. enquanto ele admirava o panorama com olhos brilhantes.
Agora, só quando estava na cama é que não usava a peça: ali não precisava devido à proximidade
de Brandon. O calor do corpo dele era como um imã, atraindo-a para perto quando adormecia:
muitas vezes, acordando durante a noite, ela se surpreendeu aconchegada contra as costas dele.
Várias vezes ela acordara e o vira a dormir de costas e ela com a cabeça no ombro dele ou o seu
próprio joelho entre as pernas dele. Isso lhe causara choque e consternação: que pudesse
abandonar-se tão completamente durante o sono. Ele estava de costas, agora, porém ambos
estavam despertos. Haviam-se recolhido cedo para defender-se do frio na cabina, achando o
beliche um refúgio confortável que podiam compartilhar quando o pequeno fogão não era
suficiente para aquecê-los. Nessa noite ela lhe contara sua vida antes que se conheceram —
embora ela suspeitasse de que ele já sabia muita coisa a seu respeito por intermédio de Lord
Hampton; porém ele ouvira com interesse, fazendo perguntas de vez em quando para tornar a
história mais completa em sua própria mente.
— Mas como é que estava em Londres na noite em que nos conhecemos? — indagou quando ela
concluiu sua história. Virou a cabeça no travesseiro para olhá-la e ergueu um cacho de cabelos,
que lhe caía sobre os ombros, para brincar com ele.
161
Heather engoliu em seco e evitou seu olhar, murmurando:
- Cheguei com o irmão de minha tia. Ele me ia ajudar a conseguir um emprego numa escola para
moças, porém me perdi dele quando me levou para ver uma feira na noite em que chegamos a
Londres.
— Que tipo de homem era esse a quem seu tio a confiou? — ele perguntou abruptamente.
Ela deu de ombros, nervosamente, e respondeu:
— Ele era rico, Brandon.
— Maldição! Não é o que pergunto, Heather. Seu tio seria tão cretino a ponto de deixar esse
homem trazê-la com ele apenas pela promessa de lhe arranjar trabalho? Não sabe que ele poderia
tê-la vendido a outros homens, ou mesmo poderia tê-la usado? Talvez tenha sido melhor que a
perdesse.
Heather ali ficou, rígida, ao lado dele, ouvindo suas imprecações. Começou a imaginar que ele
poderia ser a pessoa capaz de compreender tudo a respeito de William Court. Agora, ela estava a
salvo da Inglaterra e da prisão. Porém aceitaria bem a ideia de que sua mulher era uma assassina?
O medo afastou o pensamento de confiar nele, e a verdade sobre aquela terrível noite
permaneceu fechada nela. Que mais se poderia esperar de uma covarde?
— Exatamente naquela manhã havíamos chegado ao porto — ele murmurou com voz suave,
enrolando um dedo num cacho de cabelo. — Eu poderia ter pensado mais claramente se tudo
tivesse acontecido de outro jeito. Mas eu me estava sentindo irrequieto, e mandei George me
descobrir um pouco de diversão. A escolha dele foi cheia de surpresas. uma viagem muito fértil,
com amigos influentes
Heather corou e virou o rosto. Os olhos de Brandon pousaram em sua nuca, onde a alvura da
pele brilhava em meio aos cabelos escuros. Era uma tentação, pedindo beijos... Por vezes era bem
difícil pensar friamente e esquecer que ela lhe pertencia. Ele possuía essa coisinha macia, delicada,
que tanto desejava acariciar...
— Agora, terei de explicar você a meu irmão — disse, calmamente o rapaz.
Ela se voltou para ele, com a surpresa de saber que tinha um cunhado.
— Não sabia que você tinha um irmão...
Brandon ergueu uma sobrancelha e a olhou, impassível, por alguns momentos:
— Estou ciente disso, madame. Ainda há muita coisa que terá de aprender a meu respeito. Não
gosto de andar espalhando a história da minha vida como você parece doida para fazer...
162
Heather não aceitou impassível o insulto. Com um resmungo furioso, puxou seu cabelo das mãos
dele e rolou o mais que pôde para longe dele. Estava fervendo, enquanto ele ria, e lágrimas de
raiva lhe enchiam os olhos. Amaldiçoou-o silenciosamente.
Brandon começou a acordar lentamente, como se viesse nadando do fundo de um lago. Sua
mente estava impregnada com a sensação do calor e da suavidade de Heather de encontro a ele.
Os seios da moça pareciam perfurar buracos em suas costas. E as coxas se abrigavam sob seu
próprio traseiro. as pernas sedosas nuas junto das dele. Seu membro endureceu ao pensar em
possuí-la, não pela força, mas com ternura. O rosto da moça flutuava numa visão diante dele,
olhos escuros e ardentes, a pequena língua percorrendo lábios úmidos. No seu meio-sonho os
cabelos dela pareciam convidá-lo para mais perto, acariciando-o enquanto a beijava. Os braços de
Heather estavam abertos e receptivos, e os dedos o acariciavam à medida que suas mãos
encontravam os seios sensuais, excitando-os ao máximo. Brandon fez pressão, penetrando, e a
esposa curvou as costas, mexendo-se em êxtase enquanto os dois intensificavam a excitação um
do outro.
Seu membro e sua mente se combinavam para traí-lo. Honra, orgulho, vingança tornaram-se um
nada diante do redemoinho da paixão. Começou a rolar para o lado, decidido a aliviar sua pressão
masculina. O quadril fez pressão de encontro à pequena e redonda barriga, e um leve movimento
dentro dela chamou-lhe a atenção. Passou a mão pelo abdómen da esposa e sentiu-o de novo,
desta vez mais forte. Seu bebê chutava lá dentro, como se reclamando quanto aos pensamentos
do pai. O sangue fervendo acalmou-se e foi substituído por uma fria consciência. Brandon
recuou, sentindo-se mal por ter quase perdido o autocontrole.
Levantou-se da cama, tomando cuidado para não incomodar Heather, e vestiu o roupão. A lua
estava brilhando, não havendo necessidade de acender vela para mostrar-lhe o ambiente. Serviu-
se de um conhaque e começou a passear pelo quarto, agora totalmente desperto e bastante
perturbado. O corpo comandava onde a mente não o fazia; ultimamente tais sonhos apareciam
com maior e menor freqüência. Se não tomasse cuidado, uma daquelas noites ia acordar depois
de praticar o ato..
Então, viu-se ao lado da cama, com o cotovelo escorado numa viga acima de sua cabeça e,
olhando para baixo, observou-a inocente e suave, ainda em sono profundo. Lembrou-se da
crueldade e da violência que haviam gerado tal suavidade, como o ferro que, quando submetido a
graus extremos, funde-se e emerge com aço de fina têmpera. Ela suportara o pior que ele podia
oferecer em sua ira, mais a intolerância da Tia Fanny, mas parecia haver nela a meiguice inata.
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Louisa surgiu-lhe no pensamento, a mulher amadurecida que aguardava seu regresso. Era de um
tipo diferente dessa garota que ocupava sua cama, e não somente em relação ao físico. Tendo
recebido tudo que pedira como dote aos pais, jamais conhecera crueldade ou violência. Sua
personalidade era aberta, acessível e praticamente nada a constrangia. Era quase ousada, no que
dizia respeito a homens, e gozava intensamente dos prazeres encontrados numa cama, ao passo
que Heather expressara sua completa alegria por não efetuar os mais íntimos deveres de uma
esposa. E parecia estranho, agora que pensava nisto, que fora tantas vezes para a cama com
Louisa e ela jamais engravidara. Aqui acontecia diretamente o oposto. A primeira vez que ele
pusera as mãos nessa criatura não disposta à sua frente a semente encontrou solo fértil.
E agora aqui estava ele. Toda a sua experiência mundana e sua autoconsideração foram postas de
lado, e ele se vira preso a uma ingénua virgem, igual a um rapazinho de fazenda com idade
suficiente apenas para ir sozinho do estábulo para o depósito. E cada dia o domínio involuntário
que ela exercia sobre os pensamentos dele aumentava e, dentro em breve, ele sofreria forte
pressão ao conter suas atenções mais amorosas.
Na cama, Heather mexeu-se e começou a tremer, sem o calor daquele corpo para aquecê-la.
Encolheu-se e afundou mais ainda debaixo do edredom.
Brandon sorriu de esguelha e tirou o roupão. Tendo cuidado para não acordá-la, deslizou para
baixo das cobertas de novo e abraçou-a para aquecê-la. Neste curto espaço de tempo esqueceria
suas paixões, vinganças, e só pensaria nela como a garotinha necessitada de alguém que cuidasse
dela.
Ele já havia saído do camarote quando Heather acordou, na manhã seguinte. Outra coberta fora
colocada em cima dela e, notando isso, sorriu para si mesma, pensando como ele sabia ser
carinhoso, às vezes. O comandante desceu para almoçar com temperamento calmo e pensativo, e
mal trocaram palavras enquanto comiam. Seu rosto avermelhara-se por causa do vento frio, e
usava um grosso suéter de marinheiro com gola alta, calças pretas e botas polidas. Entrando,
tirou um gorro de tricô e um pesado casaco de lã. Estava grosseiramente vestido e Heather
verificou subitamente que roupas nada tinham a ver com sua boa aparência. Ele ficava bonito
dentro de qualquer vestimenta que usasse, fosse fina ou não e, ao contrário, essas roupas rudes
pareciam dar ênfase à sua masculinidade.
No fim daquela tarde, Heather saiu da cabina, vestida numa capa grossa bem enrolada no corpo,
e subiu para o tombadilho. Brandon não estava à vista. Ela caminhou ao longo do corrimão da
popa, ao lado do timoneiro, rapaz robusto com vestígios de barba no rosto jovem.
Discretamente, ele manteve os olhos na bússola e fingiu que
164
ela não estava ali. Heather quase teve de berrar para ser ouvida acima do barulho do vento:
— Pensei que o comandante estava de vigília!
O timoneiro ergueu o braço, apontou para outro lado e, seguindo essa direção, Heather viu o
marido trepado no topo do mastro principal, inspecionando de perto as cordas que mantinham o
velame no lugar. Ela respirou arquejando e recuou, assustada com a estonteante altura daquele
poleiro. Para ela, o grande mastro surgia longo e fino, mal conseguindo suportar o peso do
marido. Seu coração pareceu subir à boca enquanto ali permanecia, hipnotizada por súbito medo.
Mas observava-o, incapaz de afastar o olhar. Um golpe de vento pegou as velas e fez com que
batessem ruidosamente. O navio adernou ligeiramente, e Brandon, apanhado de surpresa,
agarrou-se num ponto de apoio. Heather apertou as costas da mão na boca, abafando um grito, e
mordeu um nó do dedo.
Brandon, olhando carrancudo para o timoneiro, percebeu a presença da mulher e interrompeu
imediatamente seu trabalho. Escorregou mastro abaixo até o vau real, onde procurou dois estais
traseiros e, trançando as pernas em torno deles, deslizou vagarosamente até a balaustrada para
depois pular suavemente para o convés principal. Indo até a popa, subiu para o tombadilho onde
falou asperamente com o jovem marujo ao leme.
— Vamos vigiar esses pés-de-vento, homem! Dentro em breve poremos este navio no meio de
um teste duro o bastante. Não é preciso rebentá-lo agora!
— Sim, senhor! — resmungou o marinheiro, a um só tempo envergonhado e humilhado.
Brandon puxou o casaco do corrimão e vestiu-o enquanto Heather procurava recuperar o fôlego.
— Oh, Brandon, o que você estava fazendo lá em cima?! — ela perguntou, quase zangada. O
susto quase a levara às lágrimas.
Brandon surpreendeu-se, com aquele tom de voz, e reparou em sua expressão angustiada.
Observou-a fixamente por alguns instantes, intrigado com tanta emoção, mas então riu por entre
os dentes:
— Poupe seu medo, madame. Eu não sofri perigo real. Estava simplesmente inspecionando o
encordoamento.
Ela franziu a sobrancelha, confusa.
— Inspecionando o encordoamento?
— Sim, madame — ele replicou. Erguendo a cabeça, olhou de revés para o horizonte. — Antes
de se passarem três dias estaremos enfrentando uma grande tempestade, e prefiro não ser
surpreendido por um cabo se partindo na ocasião.
— Mas uma outra pessoa não poderia fazer isso? — ela perguntou preocupada.
165
Seu olhar caiu sobre ela de novo e ele sorriu enquanto ajeitava a capa da esposa até a altura do
queixo.
Isso é problema do comandante, doçura, portanto tarefa dele, também.
Heather não ficou satisfeita com a resposta, mas, de qualquer forma, não poderia implorar-lhe
que se afastasse daquele local.
— Você vai tomar cuidado, não é, Brandon?
Os olhos do marido brilharam quando olhou para baixo:
— É o que pretendo fazer, madame. A senhora é linda demais para ficar viúva.
O dia seguinte amanheceu com um sol rubro, presságio de tempestade iminente. O vento
soprava forte, porém instável, e os homens eram mandados repetidas vezes ao encordoamento
para reajustar as velas — recolher esta e soltar aquela. O mar corria encapelado e em sentido
contrário, e o navio pesadamente carregado adernava e empinava-se. Nuvens baixas passavam
velozes. O sol brilhava em jorros irregulares, iluminando o mar acinzentado com raios de um
verde translúcido. A noite veio negra, e a única luz no convés vinha de uma lanterna que ficava
acima do timoneiro.
Heather aventurou-se a sair uma vez, indo até o convés principal. Estava uma escuridão total e
mal pôde ver a mão adiante do rosto. Tropeçou nas pranchas de lançamento enquanto
caminhava até o mastro principal, onde se segurou. Olhou para o tombadilho atrás e presenciou
uma cena insólita: o imediato e o timoneiro estavam abaixo da lanterna perto do leme e, à medida
que o Fleetwood jogava, parecia que eles flutuavam no escuro, como se separados do chão do
navio. Ela engoliu em seco, convulsivamente, e voltou correndo para o camarote, disposta a não
mais se arriscar até a tempestade passar.
Antes de amanhecer os ventos amainaram, e o novo dia surgiu com apenas uma iluminação
gradativa. O negrume denso deu lugar aos matizes do cinza. As velas batiam levemente com o
vento suave, e o mar corria macio e vítreo, como se uma pesada brilhantina flutuasse na sua
superfície. Não se enxergava o horizonte, pois o oceano fundia-se com as nuvens, e ocasionais
camadas mais baixas escureciam as velas do topo. A embarcação mal se adiantava e era sacudida
com movimentos enjoativos devido às ondas pequenas. A noite se aproximou furtiva, enquanto
um ar tenso invadia o Fleetwood, e os homens descansavam para a batalha à frente.
O vento aumentava aos poucos e a noite avançava. Parecia um período longo e sem descanso,
pois diversas vezes, quando o vento se intensificava, a tripulação recebia ordens de levantar-se e
subir para ajeitar o velame. O navio era tratado minuciosamente para manter-se na melhor forma
possível enquanto a tempestade se formava em sua volta. Quando o vigia matutino subiu ao
convés, o mar batia alto e a embarcação corria elegantemente diante das rajadas cada vez mais
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fortes, escalando a crista de cada onda para depois escorregar, penetrando no entresseio das
ondas. Para Heather o navio tornou-se um mundo por si mesmo; pequeno posto avançado à
deriva no meio de elementos agitados de um caos destruidor, encapelado. As velas restantes
foram colocadas e presas firmemente nos lugares; estenderam-se cabos pelos conveses a fim de
fornecerem apoio para os que se iam aventurar acima deles. A gávea foi a única a ser aberta
inteiramente, enquanto os joanetes eram amarrados com os rizes, e uma única espicha era
mantida para a frente a fim de manter o barco de costas para o vento, fazendo assim com que
fugisse da tormenta. Desse ponto em diante, até o temporal, nenhum homem ousaria escalar o
encordoamento.
O dia passava, enquanto o mar se encapelava mais ainda e o vento feria cruelmente tudo o que
conseguia tocar. Dentro do navio o madeirame rangia e gemia, enquanto o Fleetwood sacolejava
em meio a essa massa fervilhante que ficava entre mar e nuvem.
Heather desistiu de entender onde começava ou terminava o dia. Parecia que cada pedaço de
pano a bordo estava umedecido e frio. Ela raramente via Brandon, a não ser quando ele entrava
tropeçando e tremendo de frio até a medula dos ossos. Dormindo pouco, comia e tomava café
como se em transe. Quando penetrava no camarote, ela o ajudava a retirar as roupas ensopadas e
o enrolava num cobertor que o mantinha aquecido diante da estufa. Os olhos do comandante
ficavam avermelhados, pela tensão, e seu gênio instável. Ela fazia o que podia silenciosamente
para amenizar-lhe os problemas e, quando ele dormia, Heather deixava-se descansar.
Normalmente ele em breve acordava sozinho, vestia-se e voltava para o convés, dirigindo o navio
por entre as pancadas violentas do mar agressivo.
Vários dias passaram-se dessa forma quando, levantando-se para enfrentar outra madrugada
hostil, ela encontrou o convés espesso, com uma camada meio líquida e escorregadia. O vento
soprava neve e granizo pelo navio, que lutava, e compridas grinaldas de gelo encimavam o
encordoamento. Brandon desceu com as sobrancelhas cheias de flocos de neve. As faces estavam
brancas e rijas, e levaram muito tempo descongelando. Ele se sentou próximo à estufa, enrolado
no cobertor e com as mãos apertando um caneco fumegante de café com rum. A mistura acabou
antes de suas juntas começarem a amaciar-se.
Heather virava as roupas ao avesso para secarem diante da estufa quando foi assustada por uma
forte pancada seca e virou-se para ver a caneca rolando suavemente de um lado para outro, no
chão, e Brandon sentado curvado, num sono de exaustão. Com muita cautela ela colocou outra
coberta por cima dele e, quando MacTavish entrou para falar com seu comandante, ela fez sinal
de silêncio para o homem e mandou-o embora. Apenas os estalidos no madeirame do navio eram
escutados na cabina, e ela se sentava ali, costurando e velando ciumentamente
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o sono do marido. Passaram-se horas antes de ele mexer-se devagar o olhar pela cabina,
finalmente acordando de todo. E dispôs-se a voltar às suas obrigações e à embarcação, sentindo-
se renovado, deixando Heather satisfeita em saber que ele havia descansado.
A escuridão já descera quando George veio dizer-lhe que enfim a tempestade estava começando a
descer e eles esperavam o pior. Brandon entrou na cabina muito após a meia-noite para um sono
extremamente necessário, e Heather acordou, ameaçando levantar-se para ajudá-lo a se despir,
porém ele mandou asperamente que permanecesse onde estava. Um momento depois enfiou-se
trêmulo por baixo das cobertas e ela se chegou para bem perto com o intuito de aquecê-lo.
Grato, ele aceitou seus esforços, puxando-a para mais perto ainda, enquanto tiritava de frio.
Gradualmente foi parando de tremer e caiu no sono, cansado demais até para virar-se de lado e
fugir dela.
Ao romper do dia acordou e, enquanto Heather ainda dormia, vestiu-se e mais uma vez voltou ao
trabalho. Mesmo com o temporal intenso naquela tarde, Brandon desceu para o camarote e não
se apressou em regressar lá para cima. Sentou-se diante da estufa, de pernas abertas, casaco
desabotoado, aproveitando o calor, enquanto Heather se aproximava disfarçadamente da estufa e
agora ficava em sua posição favorita: com parte de trás das saias bem levantada, expondo as
calças compridas ao calor. Brandon observava-a casualmente com olhos semicerrados, sentindo-
se ligeiramente arrependido por lhe haver comprado aquela roupa íntima. Ao ouvir uma batida na
porta ela soltou a roupa e virou-se para a estufa. Brandon mandou que entrassem e George
chegou com uma bandeja com café fresco e vários canecos. Serviu ao seu comandante e virou-se
para Heather:
— Vou servi chá pra sinhora agora mesmo, madame. Brandon fez uma carranca para o criado,
vendo como a mimava, e dirigiu a mesma expressão para a esposa. Ela entendeu sua tácita
reprovação e apressou-se em acalmar-lhe o gênio:
— Desta vez vou querer só café, George.
O criado serviu-lhe uma xícara observando-a intrigado — sabia que ela não gostava de café.
Cônscia dos olhares dos dois homens dirigidos a ela, Heather jogou açúcar no café e mexeu-o,
engolindo bravamente um grande gole, e depois lutou contra o estremecimento que a ameaçou.
Sem pensar, olhou para George com um sorriso amargo e perguntou:
— Quer me dar creme, George?
Brandon sufocou-se e cuspiu uma bocada de café de volta no caneco enquanto se erguia da
cadeira.
— O que foi, madame?! — rosnou. — Acha que vamos achar uma manada de vacas no meio do
Atlântico Norte?
Ela olhou fixo diante de tanta estupidez e, virando-se para se afastar, baixou a cabeça na direção
da caneca para esconder as lágrimas
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que ameaçavam explodir no seu íntimo. Ele não tinha o direito de falar assim com ela,
especialmente diante de um serviçal.
Brandon sorveu seu café de um só gole, enquanto George transferia o olhar confuso de um para
outro, desejando consolar sua patroa, sem contudo fazê-lo. Resolveu que era hora de empreender
uma retirada estratégica, pegou a bandeja e se foi. Brandon levantou-se e bateu com a caneca na
mesa e, enquanto seguia seu tripulante ao sair da cabina, abotoou o casaco, resmungando alguma
coisa sobre mulheres.
Quando Heather ouviu a porta bater às costas do marido, fungou e observou a porta batida
ofensivamente, depois agarrou sua costura e começou a trabalhar, descarregando sua raiva contra
o pobre tecido.
— Ele me trata como a uma criança! — resmungou, amuada. — O estúpido grosseirão espera
que eu saiba tudo a respeito de seus navios e mares! Berra e esbraveja comigo na presença de
todo mundo como se esperasse que eu não sentisse vergonha.
Atirou o bordado para o lado, vendo que o estava danificando, e ficou de pé raivosamente, as
lágrimas quase a cegá-la. Lutou por controlar-se, imaginando que ele não devia encontrá-la assim.
Devia aprender a pensar apenas em seu filho e a suportar quaisquer sofrimentos que tivesse de
enfrentar.
Mas não era fácil representar a esposa dócil quando suas emoções ferviam tão turbulentamente
como a tempestade lá fora. Quando ele voltou à cabina, já tarde, ela ainda amargava suas palavras
cáusticas. Ele se desfez das roupas ensopadas pela tempestade e envergou um roupão, estirando-
se em uma cadeira diante do fogão para aquecer-se, enquanto às suas costas Heather o fitava.
Diante dele suas maneiras eram frias, inamistosas. Não lhe falaria, a não ser para responder, se ele
lhe fizesse alguma pergunta direta.
A refeição da noite veio e se foi sem um murmúrio por parte dela, e George, vendo seu prato
intato, pela primeira vez em todo o tempo em que estava a serviço de seu comandante, duvidou
da sabedoria do homem a quem tão lealmente vinha servindo. Tirou a mesa, e a moça voltou a
sentar-se ao lado do fogão desfazendo os estragos que acumulara no bordado. Brandon
contemplava a tarefa, com um olhar enviesado, observando os dedos finos a pegar as linhas da
peça e imaginando o que teria ocasionado o mau humor dela.
Um pouco mais tarde, ela se levantou e foi até seu baú — quando viu que ele não se mexia para
vestir-se e voltar ao convés, mas, ao contrário, sentara-se diante do fogão lendo um livro. Dando-
lhe as costas, ela despiu o vestido e a combinação. Os olhos de Brandon se ergueram do livro e
observaram-na a despir-se cuidadosamente, bem devagar. Suas costas bonitas ficaram nuas, até a
cintura, e houve um ligeiro vislumbre de um seio bem feito quando se inclinou para pegar a
camisola. Foi
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então que a chama nos olhos do comandante brilhou mais intensa ainda. Nesse momento,
Heather vestiu rapidamente a camisola e o roupão, deixando as calças de baixo caírem ao chão.
Os olhos do marido voltaram-se para as páginas do livro.
Heather voltou para perto do calor, tencionando escovar os cabelos após arrumar as cobertas da
cama para a noite, e Brandon, perdendo interesse na leitura, fechou o livro e o pôs de lado.
Passou a observá-la abertamente, gozando o momento em que ela soltou os cabelos e o deixou
cair em cachos pelos ombros e pelas costas. As velas por trás dela iluminavam de cima da mesa
sua silhueta esbelta enquanto estava virada de perfil para o marido, que teve a atenção chamada
para o abdómen, descobrindo pela primeira vez que a mulher começava a mostrar a gravidez.
Quando chegassem ao lar, não haveria dúvidas quanto ao seu estado, e surgiriam perguntas nas
mentes das pessoas, vendo-a em adiantado estado de gravidez. Logo concluiriam que ele não
perdera tempo em fazer aquilo após atingir o porto de Londres. Ele podia imaginar suas caras
quando a apresentasse a eles. No entanto, os amigos e conhecidos não ousariam interrogá-lo a
respeito dela com medo de irritá-lo. Apenas a família e a noiva fariam perguntas, mas o que ele
lhes contaria, levando-se em consideração que ela concebera o filho num espaço de 24 horas
desde que haviam chegado ao porto?
Ele sorriu diante desses pensamentos, levantou-se e foi até perto dela, assustando-a. Ela parou de
escovar os cabelos e virou os olhos arregalados para o marido. Ele sorriu para ela e encostou a
mão em sua barriga, deixando-a ali.
— A senhora está ficando bem redonda, madame. — implicou. — Charleston saberá que não
perdi tempo em possuí-la. Será extremamente difícil explicar isso à minha noiva.
Heather deu um resmungo curto e furioso, obviamente de raiva por aquelas palavras, e afastou
grosseiramente sua mão da barriga.
— Ora, seu animal! — explodiu ela. — Como ousa falar de explicar a coisa para sua noiva! Você
deveria ter coragem de explicar para mim a existência dela! Sou sua esposa, mãe do seu filho, e
você me trata como a poeira em que pisa! — E passou veloz por ele, mas se virou para encará-lo,
com os olhos azuis faiscando. — Pouco me importa o que vai dizer a ela. Sem dúvida suas
palavras serão macias e doces quando lhe contar como o forcei a se casar comigo, já esperando
neném. Vai se fazer de inocente, declarar-se vítima de uma mulher calculista e afirmar que não se
importa com a criança. Não esqueça de dizer também, meu amor, que me arrastou da sarjeta e
me deu nome apenas porque foi chantageado, sendo forçado a fazê-lo. Suas palavras serão muito
convincentes, não tenho dúvidas, e antes de terminar terá conquistado a virgindade dela,
igualmente!
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Ele formou uma carranca e avançou na direção de Heather, que rapidamente escapou, pondo
uma cadeira estrategicamente entre ambos.
— Não ponha sua mão em cima de mim! — gritou. — Se puser, juro que me atiro pela amurada!
Brandon esticou o braço e jogou a cadeira para o lado, fazendo Heather recuar amedrontada
enquanto avançava. Ela só parou quando não mais podia recuar porque esbarrara na parede.
— Por favor — implorou quando ele a pegou pelos braços. — Por favor, não me machuque,
Brandon. Pense na criança.
— Não tenho a intenção de feri-la, madame — grunhiu o comandante. — Mas sua língua ferina
consegue me transformar de raiva. Fique avisada, esposa: tenho outras formas de magoá-la.
Heather passou um mau pedaço. Os olhos estavam arregalados e a boca tremendo. Ao notar
tanto medo nela, Brandon soltou-a, praguejando, e retornou à cama.
— Agora venha para a cama, madame. Tenho ficado sem dormir durante muitas noites e
pretendo descansar hoje.
A cabeça de Heather estalou quando a raiva substituiu o pavor. Como ousara ele sugerir que se
deitasse ao seu lado depois de tudo que lhe havia dito naquele dia. Ela possuía seu orgulho.
Mesmo com lágrimas nos olhos, Heather manteve a cabeça erguida e aproximou-se da cama ao
lado do marido, puxando seu travesseiro e a coberta de perto dele. Brandon virou-se, franzindo a
sobrancelha enquanto a observava, por cima do ombro, ajeitando as coisas no assento diante da
janela.
— Tenciona dormir aí, madame? — perguntou, descrente.
— Sim — ela murmurou, tirando o roupão. Depois, instalou-se nas almofadas e puxou as
cobertas para se proteger.
— Não é lugar apropriado para passar a noite — informou-a rapidamente. — A tempestade
ainda não acabou. A janela está úmida e fria. Não se sentirá confortável aí.
— Darei um jeito — ela respondeu.
Brandon soltou uma praga e tirou rudemente o roupão, atirando-o numa cadeira. Sentou-se na
beira da cama, observando a esposa. Ela tentava achar uma posição confortável, quando um
súbito balanço do navio quase a atirou no chão. Brandon deu uma risadinha, a despeito de sua
raiva, e ela percebeu isso, aninhando-se mais nas cobertas. Agarrou-se às vigas, com força, a fim
de manter seu precário equilíbrio. Conseguiu certa segurança, mas a posição era tudo, menos
confortável.
Brandon ficou sentado durante bastante tempo olhando para ela antes de finalmente virar-se e
deitar. Foi quando reparou no espaço vazio, em que ela dormia desde o início da viagem para
casa, e subitamente percebeu que ia sentir a falta dela ao seu lado. Exatamente na noite anterior
ela partilhara o calor do seu corpo para aquecer o dele.
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Virou-se mais uma vez para observá-la e sua voz saiu roufenha:
- Madame, há pouco e precioso calor para ser gasto nesta embarcação. Sugiro que unamos os
nossos dois aqui debaixo das cobertas. Heather ergueu o nariz e ajeitou os ombros no canto.
— Eu sou tão burra, senhor, que acredito haver vacas no meio do Atlântico, e meu pobre e
simples cérebro não ordena que me levante deste assento de janela para passar a noite na cama
com o senhor.
Brandon atirou as cobertas para trás, zangado.
— Então, minha jovenzinha — ele retorquiu — tenho certeza de que você e o mar congelante se
farão companhia neste peitoril de carvalho. Não vou implorar-lhe de novo que se junte a mim.
Apenas me avise quando estiver farta de fazer brincadeiras e eu lhe arranjarei espaço aqui. Você
não resistirá por muito tempo aí.
Heather ficou revoltada. Iria congelar-se até a morte antes de voltar rastejando para a cama e
deixar que ele zombasse dela.
A noite avançou, e o cobertor em cima de Heather ensopou-se lentamente com a umidade que
penetrava pela janela. Ela começou a sentir o frio e afundou-se mais na coberta molhada,
procurando abrigo. Trincava os dentes, para evitar que batessem, e cada músculo em seu corpo
retesava-se para deter seus estremecimentos. Heather ansiava pelo calor da cama, mas seu
orgulho trazia à tona as lembranças da crueldade de Brandon, não a deixando ir em busca do seu
conforto. A camisola não dava proteção contra o frio solapador e logo colocou-se no seu corpo.
Ao alvorecer ela finalmente cochilou um pouco, mas só porque estava à beira da exaustão.
Ergueu-se num estremecimento quando a porta da cabina bateu e, através de olhos adormecidos,
viu a cama deserta e o marido ausente. Lutou para levantar-se, mas a cabina balançava e jogava
mais violentamente do que poderia ser explicado pelo mar bravio lá fora. Ela não sentia frio; na
verdade, um calor seco parecia envolvê-la. Tentou afastar a colcha molhada, mas esta ficou presa
embaixo dela, que ficou com os braços tremendo devido ao esforço. Inteligentemente, porém,
mudou a tática e escorregou com os pés até eles tocarem o chão, para depois sentar-se enquanto
a cabina jogava e sacudia, diminuindo finalmente a agitação até um ritmo suave. Então Heather
pensou que poderia arranjar-se. Lutou para levantar-se, desvencilhar-se da coberta, porém ela se
mantinha presa, como se tivesse vida própria, e Heather escorregou até ficar debaixo daquele
peso, no chão. Respirando com dificuldade por causa da luta, ficou deitada imóvel para recuperar
as forças. Um frio irrompeu do convés inferior e da coberta acima. Ela começou a tremer
violentamente. Levantou a cabeça, preocupada, e deu uma espiada no fogão, lembrando-se do
seu calor. Havia uma cadeira ali perto. Se pelo menos conseguisse ficar ereta, esse peso
congelante se soltaria. E ela se arrastou pelo chão pesado. A cadeira parecia balançar num
nevoeiro e recuar diante dela. A luta roubava-lhe energia; ela continuava a se
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esforçar, com a coberta ainda agarrada nas suas costas como se fosse um manto de gelo.
Alcançou a cadeira, agarrou suas pernas e dolorosamente puxou-se até conseguir descansar a
cabeça no assento, e ali ficou arfando de exaustão. O quarto girava em volta dela, que o
enxergava como se por meio de um longo e escuro túnel. Teve a impressão de cair por esse túnel
até restar somente um minúsculo ponto de luz, que depois sumia, também, num surpreendente
movimento abrupto.
Brandon desceu do tombadilho, um tanto melhor de gênio. Sua sorte se mantivera e o risco
compensara. A tempestade empurrara-os para o sul, mas lhes dera vários dias de vantagem. Após
descarregar sua fúria no navio, passou ao largo, deixando o tempo frio e os mares encapelados,
porém soprando seus ventos nas velas da embarcação, acelerando sua velocidade. No entanto,
com toda essa felicidade, Brandon recordou-se da noite anterior e seu bom humor se
transformou. Sorriu sombriamente para si mesmo. Não permitiria que aquela teimosia
censuradora descarregasse sua cólera nele e ficasse por isso mesmo. Ela ainda tinha uma lição a
aprender, se quisesse ser esposa de um Birmingham.
Estalou os dedos, quando passou pela galeria, fazendo sinal a George para que apressasse a
refeição, e parou diante da porta da cabina, disposto a botar a esposa no seu devido lugar e
explicar-lhe como seriam as coisas. Abriu a porta repentinamente, com o rosto escurecido de
raiva, mas logo se deteve e sua ira esvaiu-se quando viu Heather agachada no chão com a cabeça
no braço e apoiada no assento de uma cadeira, tendo a coberta enrolada na altura dos quadris e a
outra mão com as costas encostadas no chão.
Ela abriu os olhos quando ele falou seu nome, arquejante, e o viu correr em sua direção. Ergueu a
cabeça e tentou falar, mas tremia tanto que suas palavras saíam incoerentes. Ele lhe arrancou as
cobertas pesadas e pegou-a nos braços. A cabeça de Heather rolou inerte antes de bater em seu
ombro. Ela o ouviu berrar por George para depois deitá-la na cama e cobri-la com as colchas
secas. O criado veio correndo e Brandon virou-se para gritar-lhe ordens, contudo a mente de
Heather escutava apenas uma mistura de palavras. De novo ele se inclinava sobre ela, desta vez
afastando as cobertas. Ainda tremendo violentamente, ela se encolheu e lutou para mantê-las em
cima do corpo, pensando que aquilo significava um castigo. Ele a estava sempre punindo.
— Deixe-me fazer isso, Heather — ele falou bruscamente. — Seu vestido ficou úmido. Ficará
mais aquecida sem ele.
Os dedos de Heather soltaram as cobertas e ela ficou deitada ali, sem resistência, enquanto o
marido soltava-lhe a roupa, afrouxando-a nos ombros e retirando-a depois por baixo. Então mais
uma vez ela foi envolta pelas cobertas.
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Heather sentiu a mão em sua testa, e seu frescor lhe fazia muito bem. Abriu lentamente os olhos
e viu Brandon, mas não era ele quem estava com a mão nela e sim seu pai.
« Heather Brianna — ele disse carinhosamente. — Termine seu caldo, que nem uma boa menina,
senão seu papai não ficará contente.
— Mas eu não quero tomá-lo, papai.
— Como você acha que vai crescer e se tornar uma moça bonita se não comer direito, Heather
Brianna? Você é magrinha demais para uma criança com seis anos de idade.
A visão enevoou-se e clareou de novo.
— O senhor tem de partir novamente, papai? Ele sorriu para ela.
— Você ficará bem atendida aqui, com a criadagem. Está fazendo 10 anos. Nenhuma criança
dessa idade tem medo de ficar sozinha, menina.
Ela o observou, quando recuou, e seu lábio inferior tremeu enquanto os olhos se enchiam de
lágrimas.
— Mas eu sim, papai. Eu tenho. Volte, papai. Por favor.
— Seu pai morreu, criança. Faleceu numa mesa de jogo. Não se recorda?
— Não levem o retrato de minha mãe. É a única lembrança que tenho dela.
— Ele tem de ir para ajudar a pagar as dívidas. O retrato do seu pai também. Temos de levar
tudo!
— Viemos buscá-la, Heather. Vai morar comigo e sua tia.
— Então, você é a menina. Não estou achando que você vai trabalhar direito, fraquinha desse
jeito. Meus vestidos vão lhe servir direitinho. E não vai dar bastardos à luz na minha casa, não!
Não vou deixá-la sair das minhas vistas! Você é bruxinha, Heather Simmons!
— Não. Não sou uma bruxa!
— Este é meu irmão, William. Ele vai levá-la para Londres.
— Como você parece boazinha, criança. Este é meu assistente, Thomas Hint. Não é exatamente
do tipo que tenta uma mulher pela sua beleza.
— Por favor, afaste-se de mim. Não me toque!
— Tenciono possuí-la, minha cara, portanto não há motivo para lutar comigo.
— Ele caiu em cima da faca. Foi um acidente. Ele tentou violentar-me. Tem alguém me
perseguindo. Ele não sabe que matei um homem. Acha que sou prostituta.
— Acha que vou deixar você fugir de mim sorrateiramente?
— Foi o ianque quem me estuprou. É o filho dele que carrego. Ninguém mais pôs as mãos em
mim. Ele deseja tornar-me sua amante
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e me deixar carregar sua criança enquanto se casa com outra na terra dele. É tão arrogante!
Espero que seja uma menina. Eu não tencionava! berrar. Você me assustou. Por favor, não me
machuque. Ele esqueceu o chapéu, George. Ele voltará cedo? — O comandante é um homem
bom.
Oh, Brandon, o que você estava fazendo lá em cima? Ele me trata como a uma criança. Dá
tapinhas na minha barriga, depois fala a respeito de sua noiva!”
O calor estava insuportável. Heather debatia-se para escapar dele. Alguma coisa molhada e fresca
escorregou pelo seu corpo de novo e de novo, num movimento vagaroso, sem pressa. Foi virada
por mãos fortes, delicadas, e as costas ficaram expostas ao carinho refrescante.
— Engula — escutou. — Engula.
Viu de novo o pai levando-lhe uma xícara aos lábios enquanto a mantinha erguida e, sempre
obedecendo ao seu menor desejo, ela bebeu o caldo quente.
Tia Fanny surgiu na sua frente e ela gritou quando viu a mulher carregando seu irmão morto com
uma faca firmemente enfiada no peito. Ela tentou explicar que fora um acidente e não tencionara
matá-lo; ele caíra sobre a faca. Thomas Hint aproximou-se da tia e balançou a cabeça, apontando
para Heather acusadoramente. Viu o machado do carrasco e sua cabeça encapuzada acima do
peito nu. Ele apertou sua cabeça contra o cepo e afastou-lhe o cabelo do pescoço. Os
movimentos refrescantes repetiram-se e seu pai lhe escovava os cabelos desde o pescoço até em
cima.
— Tome, beba.
— Ela está melhor, comandante?
Heather estava possuída pelos tremores. E fria. Colocaram alguma coisa quente em sua volta e
mais uma vez ela afundou um pouco com o peso das cobertas grossas.
”— Papai! Não me deixe, papai. Henry, não posso casar-me com você. Por favor, não me
pergunte por quê. Tem tanto sangue! Foi só uma pequena ferida.
William Court riu e inclinou-se na direção dela. O sr. Hint estava ao seu lado e ambos vinham à
sua procura. Suas patas esticaram-se tentando alcançá-la, mas Heather virou-se e saiu correndo,
indo cair direto nos braços do ianque.
— Salve-me, por favor! Não permita que eles me levem! Sou sua esposa!
— Para mim você não é!”
Heather debateu-se no calor sufocante, e os movimentos refrescantes reiniciaram. Ela percebeu
Brandon acima, que tocou em seu corpo com um pano fresco, molhado.
— Não deixe meu bebê morrer, Brandon!
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A mão grande do comandante alisou-lhe a barriga e ele olhou para ela.
— Está vivo, meu amor.
Tia Fanny gargalhou por trás dele.
— Escutou isso, mocinha? Seu bastardo ainda está vivo!
Os rostos de William Court, Thomas Hint, Tia Fanny Tio John inclinaram-se sobre ela, todos
rindo às gargalhadas com as bocas arreganhadas.
— Assassina, assassina, assassina!
Heather levou as mãos aos ouvidos e debateu-se selvagemente, aos gritos:
— Não sou, não sou, não sou!
— Beba isso. É preciso.
— Não me abandone, papai — implorou ela.
Os campos estavam verdes com a relva da primavera e ela ria enquanto fugia da pessoa que vinha
atrás. Foi alcançada e balançada acima do chão por braços firmes e, rindo alegremente, passou os
braços pelo pescoço daquele homem, entregando-se inteiramente, com o rosto bem apertado ao
dele quando se inclinou para beijá-la. Mas um grito lhe veio da garganta quando reconheceu
Thomas Hint. Lutou contra os braços que envolviam sua cintura e, virando-se, viu a silhueta de
um homem retirando-se pelo topo de uma colina distante.
— Não me deixe! Não me abandone aqui com ele! Não me deixe!
Ela estava sendo arrastada para a escuridão — escuridão pacífica, pacífica. Flutuava, planava,
oscilava, e uma névoa subiu, envolvendo-a e consumindo-a.”
Heather abriu os olhos e percebeu o madeirame da cama acima dela, verificando estar tudo calmo
e em paz, ouvindo apenas o ligeiro estralar do navio. Permaneceu imóvel por instantes, tentando
recordar o que acontecera. Estivera tentando alcançar o beliche, mas deve ter caído. Mexeu-se
ligeiramente e estremeceu. Sentiu-se dolorida, como se cada centímetro do corpo houvesse
levado uma surra, e também muito fraca. Virou a cabeça no travesseiro e viu Brandon. Ele
dormia numa rede pendurada em vigas do tombadilho.
Uma rede? Aqui? na cabina? E ele parecia tão magro. Tinha olheiras e o cabelo estava todo
emaranhado. Estranho — normalmente cuidava muito dele.
Sua testa enrugou-se mais ainda quando seus olhos percorreram o quarto. Estava em completa
desordem. Havia roupa atirada pelas cadeiras e botas caídas no chão. Também viu uma panela
com água perto do beliche, e trapos sobre o fogão. Perguntou-se vagamente que
176
desastre teria arrasado o aposento, e por que George não arrumara as coisas.
Num doloroso esforço ergueu-se num dos cotovelos e instantaneamente os olhos de Brandon se
arregalaram. Na mesma hora pulou da rede e correu na direção do beliche, mas diminuiu a
velocidade quando ela o olhava não de forma doentia. Brandon sorriu de satisfação e veio sentar-
se na beira da cama. Esticou o braço para tocarlhe a testa.
— A febre passou — disse, como se aliviado.
— O que aconteceu? — ela perguntou com voz fraca. — Sinto-me muito cansada e toda
dolorida. Levei algum tombo?
Ele lhe afastou os cabelos do rosto.
— Você esteve doente, querida, por vários dias. Estamos no sexto.
— Sexto dia! — suspirou. Tudo era confusão nela e para ela. Seis dias se haviam passado.
pareciam apenas seis horas...
De súbito seus olhos se arregalaram de terror e ela agarrou o edredom sobre sua barriga:
— O bebê! Perdi o bebê, não perdi? — gritou. Lágrimas de temor lhe saltaram dos olhos e o
pânico invadiu-lhe a alma: — Oh! Brandon, diga-me a verdade, Brandon!
Ele sorriu com ternura e colocou as mãos sobre as dela, murmurando pacientemente:
— Não, a criança ainda está conosco. Mexe-se com freqüência. Ela sufocava em lágrimas e o
teria abraçado pela resposta se não se contivesse. Enxugou o rosto molhado e lhe sorriu,
enquanto relaxava e voltava a recostar-se no beliche, sentindo-se aliviada, mas exausta.
Ele sorriu:
— Nunca a perdoaria, madame, se perdesse meu filho depois de tudo que passei com a senhora
— implicou. — Tenho grandes planos para ele.
Ela buscou ver-lhe a expressão, custando a acreditar no que ouvira. Perguntou:
— Tem planos para ele? Terá orgulho dele. de meu filho?
— De nosso filho, minha cara — ele corrigiu prontamente. — E pensou que não. que não me
orgulhasse de meu próprio filho? Vergonha, mas que vergonha, senhora, por pensar que seria
diferente. Disse-lhe certa vez que era louco por crianças... e pelas minhas o serei duplamente!
Ela continuava a fitá-lo, olhos arregalados e inseguros; depois, pela primeira vez, seus lábios
falaram de uma questão que há muito a preocupava.
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— Brandon, sou eu a primeira... — começou hesitante você.. é o primeiro.. quero dizer, você já
teve filhos antes, com outra mulher?
Ele se sentou e ergueu o sobrolho, fazendo-a ficar vermelha. Depressa ela baixou os olhos e
murmurou:
Desculpe-me, Brandon, não queria intrometer-me. Não sei por que perguntei... realmente não
sei... Por favor, perdoe-me.
Súbito ele riu de lado e seus olhos se encontraram quando ele lhe ergueu o queixinho e disse:
— Como um homem de 35 anos não posso dizer que nunca me deitei com outra mulher, não é
mesmo? Porém, com razoável certeza, posso assegurar-lhe que jamais mulher alguma deu à luz
um filho meu. Não pago a manutenção de nenhum filho bastardo. Satisfeita, minha doçurinha?
Agrada-lhe isso?
Ela teve um largo sorriso. Por alguma estranha razão isso lhe agradava demais!
— Sim! — respondeu, feliz.
Sentindo-se muito melhor agora, lutou por sentar-se: ele rapidamente deslizou as mãos por suas
costas para ajudá-la e ela se agarrou nele enquanto a suspendia e lhe afofava os travesseiros.
Está com fome? — perguntou suavemente, ainda segurando-a. O edredom escorregara,
deixando-a nua até a cintura, com os Cabelos selvagemente espalhados sobre os ombros e seios.
Ele estava Custando a largá-la. — Deveria tentar comer: emagreceu um pouco.
Os olhos dela percorreram o rosto do marido.
— Você também... — murmurou.
Então ele deu um risinho e deitou-a nos travesseiros enquanto ela puxava as cobertas até o peito.
Direi a George que nos prepare uma refeição. Ficará contente ao ver que você melhorou.
Tornou-se muito apegado a você, e acho que a preocupação com você lhe tirou uns 10 anos de
vida. — Os olhos dele brilharam. — Desnecessário afirmar, meu docinho, que não tornará a
dormir sob a janela...
Ela deu uma risadinha:
— Nunca passei uma noite mais horrível — confessou.
— Tem uma natureza teimosa, madame — ele sorriu — porém da próxima vez terá pouca
oportunidade de prová-lo. — Tornou a ficar sério: — De agora em diante só atenderei ao meu
próprio julgamento e o reforçarei de acordo com as necessidades...
Ela sorriu, meio insegura, sabendo que ele não estava gracejando. Outra ideia lhe cruzou a mente
quando ele se levantou para sair. A meio caminho para a porta ela o deteve:
— Brandon?
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Ele se voltou e esperou que a moça continuasse. Confusa, ela enrolava a coberta nas mãos, não
querendo tocar no assunto, pois temia sua reação, mas desejando saber. Murmurou;
— Brandon... eu... — Reuniu toda a sua coragem e olhou-o direto: — Você vai dizer à sua
família que foi obrigado a casar-se comigo?
Por vários segundos ele a fitou, atónito; depois, sem uma palavra ou aceno, girou nos calcanhares
e se foi. Heather virou a cabeça para a parede, embaraçada por ter feito a pergunta. Ele nada
dissera, mas a resposta estava agora muito clara. Ela imaginou se poderia suportar a vergonha por
que iria passar.
Quando Brandon voltou, ela já se recobrara e se prometera jamais voltar ao assunto. Ele tirou
uma de suas camisolas de dormir do baú e a levou até a cama:
— Heather, se me permitir, eu a ajudarei a vestir isso.
Deixou que ele a vestisse pela sua cabeça e, quando ele a esticava no busto, os olhos dela fitaram-
lhe o rosto: parecia tão cansado. o cabelo, sempre bem cuidado, já não era o mesmo, e havia
olheiras fundas em torno de seus olhos. Ele não se cuidara em absoluto e agora ela ansiava por
tocar-lhe a face e acariciar-lhe os sinais da fadiga.
— George não tomou bem conta de você. — ela murmurou docemente. — Vou falar com ele a
esse respeito.
Ele afastou a cabeça de sua mão, encabulado por sua aparência pouco apresentável, e saiu de
perto do beliche. Virou-lhe as costas, porém sua atenção voltou quando a moça se mexeu no
beliche, tentando colocar-se de maneira mais confortável. Viu-a estremecer.
— Puxa! — Ela fez uma careta. — Esta caminha está judiando comigo! Posso sentar-me,
Brandon, por favor?
Ele pegou o edredom da cama e com ele forrou uma cadeira junto do fogão, trazendo-lhe as
chinelinhas que colocou junto dela. Pegou-a e, desta vez, Heather não resistiu: passou-lhe os
braços em volta do pescoço. Só lamentava fosse tão curta a distância até a cadeira. Ele estava
arrumando o edredom em torno dela quando George bateu à porta: entrou, carregando uma
bandeja de alimentos e sorrindo largamente:
— Eh, madame, a sinhora esteve bem ruinzinha, isso esteve! A gente pensamos que era o seu
fim, e o pobre comandante nunca saiu do seu lado, não senhora! — Nem deixô ninguém tocá na
senhora.
Brandon olhou meio enviesado para o criado:
— Tens mesmo a língua solta, hein, George? — resmungou. O homem sorriu para ele.
— Oi, comandante! — ele replicou, nem um pouco intimidado, e placidamente colocou a
refeição diante deles.
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Heather não sentia pressa em comer, embora a sopa à sua frente estivesse tentadora; porém, por
educação, tomou uma colherada, depois outra. O apetite apareceu, e com gosto. Parou um pouco
ela se alimentou com crescente vontade e encontrou os olhos dos dois homens quietamente a
contemplá-la: sentiu-se pouco inclinada a essa exibição de sua fome. Baixou a colher e achou que
devia dizer alguma coisa, o que fez franzindo as sobrancelhas para o criado:
— Pelo que posso ver, George — falou, acenando para o quarto na maior desordem — você não
tomou bem conta do seu comandante!
Brandon bufou e se afastou. George esfregou os pés e as mãos, meio atrapalhado:
— Madame, foi um tempo terrível! Ele não me deixava nem passá da porta. — E, balançando a
cabeça rapidamente, para enfatizar: ainda acrescentou: — Só ele, sozinho, é que atendia a sinhora
e cuidava de tudo, madame.
Um rugido baixo veio de Brandon, que deu um passo à frente como se fosse agarrar o sorridente
criado que, papagueando, retirouse rapidamente com um comentário de saída:
— É bom vê a sinhora boa e esperta, madame, e mais tarde vô lhe trazê umas comidinha mais
forte.
Heather continuou a refeição, porém manteve os olhos risonhos em seu inquieto marido.
À noite, enquanto ele se despia para deitar-se, ela se moveu no beliche e puxou as cobertas para
um lado para desocupar-lhe o lugar. Ele, com um rápido olhar, observou o espaço convidativo e
desviou os olhos:
— Melhor que eu não continue a dormir no beliche — falou. Relanceou-lhe um olhar, viu-a
confusa e pigarreou: — Está um pouco mais quente agora e não sentiremos frio, dormindo
separados, e eu... ah!. me tenho preocupado, pensando que, sem querer. posso rolar para cima de
você e machucá-la ou ao bebê. Sobra mais espaço para você sem mim.
E apressadamente se meteu na rede, instalando-se para o descanso de que muito necessitava.
Com um gesto amuado e petulante, Heather afofou as cobertas, lançou-lhe um último olhar,
virou-lhe as costas e cobriu-se até o pescoço.
Os dias se transformaram em semanas e, depois de aportar em Grand Banks, o tempo começou a
melhorar enquanto velejavam mais para o sul, com as fortes brisas setentrionais atrás deles a
acelerarlhes a viagem. Sob o sol sempre quente, a cor natural voltou às faces de Heather e todos
os sinais de doença desapareceram. Ela parecia mais bela ainda: ao olhá-la, via-se logo que a
maternidade lhe assentava muito bem. Sempre que estava no tombadilho, bem junto de Brandon,
os olhos de todos os homens da tripulação eram atraídos para ela: com o vento a açoitar-lhe o
manto e a revolver uma mecha
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solta dos seus cabelos, ela era algo digno de ser visto. Porém jamais foi dito ou feito algo que
sugerisse que pensavam nela de outro jeito a não ser como uma dama de fina classe e seu estado
delicado fazia surgir muitas mãos para ajudá-la quando subia ao convés.
A nova combinação quanto ao dormir pareceu benéfica a Brandon: seus olhos perderam os sinais
de tensão, as faces já não estavam envocadas e as olheiras desapareceram de seus olhos. Sua pele
tornou-se bronzeada, sob o sol e o vento, e Heather, muito feminina, pilhava-se a olhá-lo cada
vez com maior freqüência.
Aproximavam-se das Bermudas e esperavam poder, em breve, descer à terra, na ilha, quando um
temporal os encharcou, e Brandon, indo ao convés, viu que George amarrara um barril vazio a
um canto da amurada e estava armando como funil um grande pedaço de vela para captar água.
— George, está maluco, homem? — perguntou Brandon, elevando a voz acima do martelar da
chuva. — Que diabo está fazendo com isso aí?
O marinheiro ficou em posição de sentido e o olhou de soslaio através do aguaceiro:
— Sua sinhora, comandante. Acho que ela gostaria de um banho que pudesse apreciar. Água da
chuva será um alívio em vez da água salgada, sinhô.
Brandon olhou o barril de modo crítico e George trocava de pés agoniado, esperando que o
comandante não o despachasse para fora do convés. Brandon passou o olhar pelo criado, depois
lentamente pelo barril e outra vez pelo marujo. Seus olhos frios se demoraram sobre o homem
por vários segundos, depois ergueu uma sobrancelha e um sorriso lhe abrandou as feições:
— Por vezes, George, você me espanta.. — disse e saiu do convés a passos largos.
George deu um suspiro de alívio e, assobiando, voltou ao seu trabalho.
Heather mergulhou na água quente, sentindo-se deliciada quando ela lhe formigou pelo corpo.
Brandon estava sentado à escrivaninha, completamente surpreso pela pressa com que ela se
despiu para entrar na banheira fumegante. George preparara tudo discretamente enquanto ela, no
tombadilho, tomava a fresca da tarde. Ao descobrir, ela gritara de pura delícia e deu um beijo na
testa do velho marinheiro, que fugira da cabina corando de embaraço e de prazer.
Com um grande suspiro, ela encostou a cabeça na borda da banheira. Mergulhou os braços na
água e os levantou, deixando o líquido escorrer sobre seus ombros. Brandon praguejou baixinho
ao errar pela oitava vez a soma de uma coluna de algarismos. A esposa
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estava completamente absorta em seu banho delicioso e não ouvia o resmungo do marido. Ele
meteu a caneta no tinteiro, como se isso pudesse acalmar sua agitação, e fechou o livro Razão.
Levantou-se da escrivaninha e caminhou pelo quarto, olhando através das vigias o mar iluminado
pelo luar — num esforço por dirigir a atenção para algo mais agradável que números. Falhou
miseravelmente e achou-se a contemplar a esposa na banheira. Passou um dedo, de leve, pela sua
orelha e lhe roçou a nuca com os nós dos dedos. Ela voltou os olhos, para ele, sorriu e esfregou o
rosto em sua mão. Brandon resmungou e rangeu os dentes, retirando-se para um local mais
seguro da cabina. Já acostumada com seus modos, Heather não deu atenção a seu gesto e
continuou a banhar-se, despreocupada.
— Brandon — pediu, docemente, às costas dele — quer passarme aquele balde de água que está
no fogão?
Ele se voltou rapidamente, aliviado por ter alguma tarefa em que se ocupar. Despejou a água na
banheira e ali ficou de pé, segurando desajeitadamente o balde, enquanto a observava a deliciar-se
com o calor renovado. Ela mergulhou os ombros, depois tornou a levantar-se, deixando à vista
os seios ainda mais rosados pelo contato da água quente.
Brandon se voltou abruptamente, resmungou algo a respeito de buscar mais água e se retirou
daquela câmara de torturas.
Heather deixou-se ficar na banheira, quase ronronando de contentamento. Ensopou a esponja e a
espremeu sobre o rosto. A água parecia cetim na sua pele, e ela se regalava ao senti-la, pois já
estava cansada dos banhos de água salgada.
Chamou-lhe a atenção um som continuado vindo de cima: por um bom momento ouviu o som
de passos de um lado para o outro a cruzar o tombadilho. Reconheceu-os como sendo de
Brandon. Cada vez que via sua sombra através da pequena clarabóia acima, quando ele passava
em frente à lanterna acesa no convés, ela imaginava se estaria impaciente por sair do navio e estar
em sua casa.
Terminado o banho e esvaziada a banheira, ela agora se achava sentada diante do fogão, de
camisola, pois a coberta que enrolara em volta do corpo havia escorregado enquanto escovava os
cabelos. Ainda se dedicava a essa tarefa quando o marido voltou. Ela lhe sorriu calidamente ao
entrar na cabina.
Vendo-a assim, Brandon parou na porta, indeciso. A delicada camisola era como uma nuvem
vaporosa: pouco escondia. Os seios redondos surgiam generosamente do decote. Notando
aqueles bicos macios, pouco velados, ele ficou outra vez em luta consigo mesmo, não sabendo
como desviar o olhar. Começou a andar pela cabina, achando o pequeno espaço ainda mais
limitado que de costume. Cessou o caminhar agitado perto do baú da moça e notou seu vestido
em cima dele. Por um momento ficou a olhar seu colorido de um vermelho vivo
182
e tocou o veludo macio — os dedos acariciando-o como se ela estivesse dentro dele. Súbito, deu-
se conta do que fazia e e parou, murmurando uma praga. Pegou o vestido, caminhou até ela e o
colocou em seus ombros. Ela tornou a sorrir-lhe, murmurando um agradecimento, porém não
fez um movimento para meter os braços nas mangas ou aconchegá-lo mais ao corpo. Ele
esperou, irritando-se ante sua demora; finalmente, curvou-se e ele mesmo fez isso.
— Heather, em nome de Deus! — rosnou. — Não sou um bebezinho de colo para não pensar
nada de sua pouca roupa! Sou um homem e não posso suportar vê-la tão exposta.
Obedientemente ela vestiu o roupão e o fechou até o pescoço — sem qualquer emoção aparente
em seu rosto, mas intimamente ela sorria.
Quando se aproximavam das Bermudas, Brandon foi ficando inquieto e constantemente voltava
a verificar os instrumentos de navegação. Ele e MacTavish comparavam anotações e sabiam
aproximadamente quando chegariam, mas não diziam uma palavra com receio de errar. Estava-se
na primeira semana de dezembro e os homens discutiam se chegariam ao porto antes do Natal.
Os dois navios que haviam partido antes deles eram esperados nas docas por volta do Ano
Novo. Se o Fleetwood chegasse a Charleston antes deles, seria o primeiro navio a aportar vindo
da Inglaterra em vários meses e sua carga traria um alto lucro. A tripulação sabia que as Bermudas
estavam apenas a uns 12 dias de distância de casa; assim as ilhas seriam o sinal do quase fim da
viagem. No dia seguinte, 8 de dezembro, perto do meio-dia uma voz bradou do topo do mastro
principal:
— Terra à vista! A bombordo!
Do convés nada se avistava. Brandon deu uma olhada ao relógio e lançou o fato no diário de
bordo, mantendo porém o curso até que as ilhas estivessem completamente à vista; depois, deu a
ordem longamente esperada de orçar o navio para a última etapa para casa.
O Fleetwood pulou e carcaveou para o novo rumo, parecendo esforçar-se para diante enquanto
os homens se lançavam ao cordame e desfraldavam até sua última polegada de vela para captar as
brisas do sul.
Uma semana antes do Natal, após mais de um mês e meio no mar, entraram na baía de
Charleston. À vista de terra eles içaram flâmulas, sinalizando que o Fleetwood estava chegando
ao porto; Heather enrolou-se num capote e subiu, para sua primeira olhada à nova pátria. A
primeira visão que teve do continente foi uma neblina azulada no horizonte e teve de entrecerrar
os olhos para identificar isso como terra. Ao chegarem mais perto e, finalmente, conseguirem
perceber o lineamento da costa, ficou bem claro que haviam chegado a algumas milhas ao norte
da baía de Charleston. Brandon trouxe o
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navio vários pontos a bombordo para corrigir a direção, o que os levou a formar um ângulo com
o litoral, para o canal principal... e Heather teve uma ampla visão panorâmica do que viria a ser a
sua nova pátria. Pelos livros que lera e as pessoas que ouvira, formara uma imagem mental de
uma sombria colónia, achaparrada em meio a um pântano costeiro coberto de vapor. Ficou
espantada ante a água límpida e azul, que ondulava abaixo da proa do navio e as praias de areias
brancas que se alongavam por quilómetros. Por trás delas, grandes florestas de mangues e
ciprestes, choupos e carvalhos, estendendo-se por léguas infindáveis na distância. Quando
finalmente entraram na baía, ela perdeu o fôlego ante a opressiva beleza da cidade caiada de
branco que se expandia à sua frente como um punhado de pérolas brancas na praia iluminada
pelo sol. Um fortim de troncos numa pequena ilha arenosa erguia-se a estibordo do porto. As
velas foram recolhidas e outros preparativos foram feitos para levar o navio a seu ancoradouro.
Quando o Fleetwood venceu a derradeira milha para casa, Heather viu um grande ajuntamento
que se formara no cais: quase assustada, deu-se conta de que entre a multidão deveriam estar o
irmão de Brandon, seus amigos e. sua noiva. Sentiu seu coração gelar ao pensamento de enfrentá-
los e ela voou para baixo para fazerse tão apresentável como pensou que convinha à esposa de
um comandante. Vestiu-se cuidadosamente, envergando um vestido de lã cor de rosa e um
casaco à moda dos hussardos, enfeitado com fitas e alamares de seda. Sua apreensão aumentou
enquanto se preocupava com os cabelos: finalmente, ergueu-se, cobrindo-os com um chapéu de
mink escuro. Afinal, estava pronta; sem nada mais a fazer, sentouse na familiar cadeira junto do
fogão agora frio, fitando o ambiente escuro da cabina, as mãos apertadas dentro do regalo de
peles. O medo a percorria, agitando-lhe os nervos, e sua compostura tornou-se uma simples
questão de pura decisão. Sentiu o navio ranger de encontro ao cais e alguns momentos depois se
sobressaltou quando Brandon abriu a porta e entrou na cabina. Seus olhos deslizaram sobre ela, e
impassível caminhou até a escrivaninha. Retirou os livros de bordo, amarrou-os com uma fita, e
depois, mexendo na gaveta, de lá tirou uma garrafa de brandy. Mordendo o lábio nervosamente,
ela se levantou e foi pôr-se de pé ao lado dele, que se servia de uma generosa dose. Olhou-a de
relance, serviu-se de outra dose que engoliu antes de depositar o copo na escrivaninha. Sentindo a
necessidade de fortalecer-se contra o que a aguardava, ela pegou o copo e o estendeu para ele. O
rapaz ergueu o sobrolho, em dúvida, porém ela ficou a fitá-lo até que afinal ele lhe serviu uma
boa dose. Imitando seus modos casuais, Heather levou o copo aos lábios e o despejou de uma só
vez. Seus olhos se arregalaram de surpresa e ela ficou ofegante, tentando respirar direito contra
aquele fogo asfixiante, que queimava
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seu estômago. Respirou com dificuldade e tossiu, pensando que nunca voltaria ao normal. Por
fim sentiu-se capaz de respirar fundo, à medida que o fogo ia diminuindo. Ergueu para Brandon
os olhos cheios dágua e acenou valentemente, pronta agora — a expressão dele era divertida —
para enfrentar o que viesse. mesmo a multidão que esperava no cais.
Brandon colocou os livros debaixo do braço, repôs no lugar a garrafa e, pondo-lhe a mão nas
costas, guiou-a, pelo convés, para onde os aguardava o grupo de pessoas. Amparando-a, subiu à
prancha ao seu lado. Os olhos deles se encontraram brevemente, antes que ele lhe oferecesse o
braço, e Heather, com uma respiração funda, deixou que a dirigisse. Quando desceram, um casal
se separou da multidão e apressou-se ao seu encontro. O homem era tão alto quanto Brandon,
porém mais magro. Não havia como enganar-se: era enorme a semelhança com o irmão. E a
mulher — alta, saudável, lindamente loura — era sem dúvida a noiva. Seus olhos castanhos
pareciam cheios de felicidade. Ao chegarem mais perto, ela correu para pendurar-se em Brandon
e beijá-lo mais longa e amorosamente do que seria apropriado para casais, mesmo noivos. Ele
suportou suas demonstrações de braços caídos, visivelmente determinado a não fazer concessões
a seus avanços, e lançou um olhar de esguelha à esposa — que observava a cena, já bem irritada.
Louisa olhou-o no rosto, por um momento, um tanto perplexa por sua frieza; depois, pegando-
lhe um braço, apertou-o de encontro ao peito. Finalmente, voltou-se e, com um olhar glacial de
avaliação, varreu Heather.
As duas mulheres se fitaram por um momento com mútua e imediata hostilidade. Heather via
dentro de si a mulher segura, educada, experiente, à vontade com os homens e determinada em
seus objetivos, ao passo que Louisa via uma jovem linda, mal entrada no pleno desabrochar da
mocidade, a qual ela própria, em breve, diria adeus. Cada mulher viu na outra as coisas que mais
temia e, no primeiro momento do encontro, se tornaram inimigas.
Louisa completou sua calculada avaliação e tornou a virar-se para Brandon:
— E o que é isso que você trouxe, meu querido? — perguntou. — Alguma pobrezinha das ruas
de Londres? — Seu tom de voz estava cheio de insinuações.
Com olho apurado, Jeff chegara a suas próprias conclusões e abafou um risinho quando Brandon
deu a resposta:
— Não, Louisa — disse, com voz firme. — Esta é Heather, minha esposa.
Louisa ficou sem ar, de olhos arregalados, e teria caído se não estivesse ainda agarrada ao braço
de Brandon. A cor fugiu de suas faces e ela o fitou, boquiaberta.
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Brandon apressou-se, esperando evitar a tormenta:
— Heather, este é meu irmão Jeffrey. Jeff, minha esposa.
— Sua esposa? — Louisa gritou, furiosa, recuperando a voz. Você quer dizer que se casou com
essa cadelinha?
Ignorando sua explosão, Jeff sorriu largamente e tomou a mão de Heather nas dele. Curvando-se
e estreitando-as, falou:
— Tenho o maior prazer em conhecê-la, Sra. Birmingham. Heather lhe devolveu o sorriso e, já o
tomando como futuro aliado, murmurou:
— Estava ansiosa por conhecê-lo, Jeff. Brandon falou-me muito de você.
Jeff lançou um olhar de dúvida ao irmão:
— Bem, conhecendo-o como conheço, eu...
— Você, seu desgraçado! — Louisa estava sufocada! — Deixoume ficar aqui à toa, confiando em
suas falsas promessas, enquanto você, o grande machão, vagabundeava pelas ruas de Londres! —
O punho cerrado fez brilhar um anel de pedras preciosas em frente dos olhos dele: — Deixou-
me à espera, enquanto velejava pela última vez, para depois voltar e... presentear-me com sua
esposa! Você apresenta essa sujeita para ocupar meu lugar depois de brincar com meus
sentimentos! Maldito, maldito! E agradou muito a seu irmão... Ali está ele, tagarelando e rindo
com cinismo, como se ele próprio tivesse planejado tudo isso.
Deu um passo em direção a Heather, olhando-a friamente. Sua voz parecia um miado:
— Você, também, sua prostituta, em que bordel ele a encontrou? Ou melhor, em que berço?
Você roubou o noivo de outra! — Avançou outro passo, enquanto Heather a olhava: — E vejam
só, tão jovem, tão gentil. espertalhona é o que você é! Deve ter-se deitado na cama dele com
alegria, sua prostituta pretensiosa!
Louisa ergueu o braço para bater, porém viu-o agarrado pela mão de Brandon. Ele a fez virar-se e
segurou-a pelos ombros, quase a erguendo do chão:
— Fique avisada, Louisa — declarou, lentamente. — Ela é minha esposa e carrega meu filho.
Procedi mal com você, é verdade, assim descarregue sua vingança em mim, mas nunca... jamais
toque nela!
A palidez de Louisa aumentou e era evidente o medo em seus olhos. Brandon a soltou e se pôs
entre as duas, mas não havia necessidade: Louisa agora estava amedrontada.
— Seu filho? — ela respirou com dificuldade. Seus olhos passaram por ele e pousaram em
Heather e na sua barriga arredondada, como se o notasse pela primeira vez. Ela se afastou um
pouco, silenciosamente jurando vingar-se da rival.
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— Agora que nos tornamos o centro das atenções aqui no cais — sorriu Jeff — podemos ir para
a carruagem? — Olhou para a loura: — Louisa, minha velha, quer ir conosco até Harthaven ou
devo dizer a James que a deixe em Oakley?
Ela lhe lançou um olhar nada agradável, depois se voltou para Brandon e sorriu docemente:
— Tem de parar em Oakley, querido! Planejei um chá gostoso para nós. — Ergueu para ele uns
olhos mormacentos: — Naturalmente, você não me desapontará. Eu insisto!
Jeff relanceou um olhar entre eles e viu Brandon franzir as sobrancelhas para a mulher. Sorrindo
maliciosamente, o irmão mais jovem puxou Heather de trás de Brandon e piscou para ela
enquanto falava com Louisa:
— Diga-me, Loui, o convite inclui o resto dos Birmingham ou é um assunto particular? Tenho
certeza de que minha cunhada não está ansiosa por ficar muito tempo separada do marido...
O olhar de Louisa para ele era cheio de fúria.
— Mas claro, querido! — ela arrulhou docemente. — Estão todos convidados. Tenho certeza de
que a menina apreciará um pouco de leite quente, em seu estado.
O sorriso de Jeff se aprofundou, enquanto se inclinava para tocar com o dedo o regalo de peles
de Heather:
— Gosta de leite quente, Sra. Birmingham?
— Sim — ela replicou com suavidade, a sorrir-lhe. O encanto dele já a conquistara. — mas, na
verdade, prefiro chá.
Jeff virou-se para Louisa e seus olhos brilhavam:
— Creio que chá será mais apropriado após tão longa viagem, não acha, minha cara?
Louisa o fitava com um brilho venenoso no olhar.
— Claro, naturalmente, querido! Devemos fazer tudo para agradar a nova hóspede de sua casa —
respondeu, enfatizando o que considerava um arranjo temporário. — A garota pode ter tudo que
deseje.
Jeff riu agradavelmente e disse:
— Ora, querida Louisa, parece-me que ela já tem tudo que possa desejar.
Louisa afastou-se dele, num acesso de ira, e Brandon lançou um olhar de advertência a Jeff que,
sorrindo de alegria, deu-lhes as costas e galantemente ofereceu o braço a Heather, dizendo:
— Venha, Sra. Birmingham. Devemos ter cuidado com o seu estado e estou certo de que se
sentirá muito mais confortável na carruagem, verá.
Enquanto ia abrindo passagem para ela através da multidão, enchia-a de perguntas, usando
sempre e sempre a mesma forma, de se dirigir a ela, que tanto enfurecia Louisa:
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— Sra. Birmingham, fez uma boa viagem? O Mar do Norte costuma ser muito tempestuoso
nesta época do ano, não é mesmo, Sra. Birmingham?
Louisa os seguia, pendurada ao braço de Brandon. Seus olhos se haviam estreitado e a raiva fervia
de novo, pois, quando atravessavam a massa de povo, o ar zumbia de comentários cochichados
— e ela sabia que a notícia se espalharia como fogo sobre o casamento de Brandon e, portanto, o
fim de seu noivado.
Brandon, que outrora andara empertigado de braço dado com Louisa pelas ruas da cidade, agora
achava dura de suportar a familiaridade pegajosa da mulher e também não provava a aberta
homenagem de Jeff à sua esposa. Sabia que o irmão havia desaprovado calorosamente Louisa
como cunhada e agora se divertiria até o fim. Concentrou-se na pequena e esbelta silhueta de sua
mulher, observando suas saias a ondular airosamente à sua frente, e seus olhos brilharam.
Com grande aprumo Jeff encaminhou Heather até a carruagem e, ao sentar-se propositadamente
ao seu lado, o olhar irritado do irmão cruzou com o seu calmo e determinado. Brandon ajudou
Louisa a sentar-se e ocupou o único lugar restante, ao lado dela. Ela imediatamente se pôs bem
junto dele e, como por acaso, descansou o braço em sua coxa, claramente querendo demonstrar
sua intimidade com ele. Com os lábios rígidos, constrangido, Brandon cruzou os braços e ficou
sentado ali duro e formal, olhando par à sua frente, desejando ajuda do irmão.
Heather olhou de soslaio para o colo do marido e a mão possessiva que o ocupara e em seguida
ergueu os olhos para o rosto dele para ver sua reação. Seu olhar foi captado por Louisa e um
sorriso torceu os lábios da mulher:
— Diga-me, querida — perguntou recatadamente — Brandon lhe falou a nosso respeito?
— Falou sim — murmurou Heather.
E antes que ela pudesse ampliar a declaração Louisa a interrompeu, erguendo uma sobrancelha
zombeteiramente.
— Mas naturalmente ele não lhe contou tudo a nosso respeito... — Voltou-se para Brandon,
sorrindo afetadamente e pestanejando. — Certamente você não lhe disse tudo, querido! Espero
que não tenha ido tão longe!
Uma bofetada não teria machucado tanto! Um peso súbito caiu sobre o coração de Heather ante
essa crua insinuação, deixando-a confusa. Baixou os olhos e mil pensamentos lhe cruzaram o
cérebro. Absolutamente não havia pensado nisso: que Brandon e a mulher tivessem sido
amantes. E, embora ela carregasse seu nome e seu filho, era ela a intrusa, não Louisa. Ele não
dissera, antes, que a seus olhos ela não passaria de uma criada?
188
Mordeu o lábio trêmulo e alisou a pele do regalo com a mão que tremia. Sua reação foi observada
pelos dois homens. Tremeram os músculos da face de Brandon. Jeff inclinou-se para a frente
com um sorriso forçado e raiva nos olhos:
— Apesar do que você disse, minha cara Louisa, nossa Heather ostenta a prova do amor de
Brandon...
Olhou firmemente nos olhos da mulher, que se afastou um pouco de Brandon, ligeiramente
envergonhada por ter sido tão rebaixada. Brandon permaneceu calado, satisfeito por ter o irmão
posto Louisa no devido lugar.
Pondo sua mão sobre a de Heather, deu-lhe Jeff um leve aperto de solidariedade, porém ela
olhou para longe, pela janela da carruagem, lutando contra as lágrimas que teimavam em
aparecer. Viu George aproximar-se da carruagem e conseguiu dar-lhe um trêmulo sorriso quando
ele chegou à portinhola. Ele arrancou o boné e lhe devolveu o sorriso:
— Ora, por Deus, madame, estão uma beleza assim todos arrumado! Até parece que vocês fazem
o sol brilhá mais!
Ela acenou seus agradecimentos e o abençoou com um carinhoso olhar. Louisa os observava
ironicamente. Não podia enganar-se com a forma com que o criado olhou para sua senhora e
sentiu uma punhalada de amargura e inveja de que esse homem, tão valorizado por Brandon e em
quem ele tanto confiava, mostrasse por Heather o que nunca lhe dera. Agora, ele até a ignorou
por completo, enquanto se voltava para Jeff:
— E o sinhô, Sr. Jeff! Parece preparado pra luta com um par de gatos selvagens!
Jeff riu e lhe devolveu na mesma moeda:
— Seu velho e sarnento lobo-do-mar, sabe que você me perturba com sua brilhante sapiência?
Apertou vigorosamente a mão do velho e, trocados os gracejos, o criado falou a Brandon:
— Temos as bagagens na carroça, comandante, e Luke e Ethan querem botá essas mula pra
caminha antes que caiam dormindo. Com sua permissão, a gente gostaria de começá.
Brandon acenou que sim:
— Diga a James que venha para seguirmos imediatamente. Vamos deixar Miss Wells em Oakley e
possivelmente gastaremos lá alguns minutos. Se sentir falta de nós, continue para casa.
— Tá bem, comandante — replicou George. Lançou a Louisa um simples olhar antes de pôr-se a
caminho.
Um negro idoso retrocedeu um momento depois para levantar a trava dos estribos. Subiu para
seu assento e, dando estalos com a língua, despertou os cavalos de seu cochilo ao sol quente e os
sacudiu num trote vigoroso, afastando-se das docas.
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Estava silencioso o grupo dentro da carruagem. Comentários ocasionais eram feitos quando
alguma coisa interessante era apontada a Heather; e ela, tentando não pensar, mantinha a mente
ocupada observando a cidade à medida que a atravessavam. Estava admirada ante a elegância das
grades de ferro e das construções de alvenaria, e pelas propriedades retiradas que pareciam em
abundância por trás de altos muros.
Adiantaram-se para Oakley sem mais disputas entre os passageiros. Quando a carruagem chegou
em frente da casa da fazenda, Jeff fez menção de erguer-se para continuar seus cuidados para
com Heather,. mas encontrou pela frente um robusto cotovelo que o enviou de volta a seu
assento. Brandon levantou-se e, tomando a mão de sua mulher, desceu e a ajudou a sair da
carruagem. Os olhares se encontraram brevemente antes que ela desviasse o seu e, ainda
segurando-lhe a mão, ele a colocou firmemente em seu braço e a levou para a casa — deixando
Jeff a resmungar com a tarefa de ajudar Louisa: relutantemente segurou-lhe o cotovelo enquanto
os seguiam.
Ao entrar viram que o mordomo já recebera o casaco e o regalo de Heather e que ela estava
sendo levada para o salão por seu marido, que lhe colocara na cintura a mão possessiva. Com um
sorriso, Jeff se juntou a eles, deixando que Louisa fosse ajudada pelo criado. Olhando fixamente
para suas costas, a mulher deu ordem para que fossem servidos chá e alguns salgadinhos, depois
os seguiu. Brandon acomodara Heather num canto do sofá e sentou-se, com o braço por trás
dela nas costas do sofá, não deixando espaço para o irmão. Jeff não estava em absoluto
aborrecido com a situação, pois fora bem sucedido em aguilhoar Brandon para que desse
proteção à esposa, e ficou de pé diante deles conversando a respeito da viagem.
Enquanto se dirigia ao bar, Louisa fez uma pergunta a Brandon:
— O de costume, querido? Sei exatamente como prefere — disse, afetadamente.
Heather cruzou as mãos no colo e baixou os olhos para elas, não se sentindo particularmente à
vontade no momento.
Louisa procurou ferir mais fundo enquanto preparava a bebida:
— Tem muito que aprender a respeito de seu marido, minha querida. É muito sensível em seus
gostos. — Olhou intencionalmente para Heather. — Prefere que suas bebidas sejam misturadas
suavemente... o que requer alguma experiência. Eu poderia ensinarlhe muito a respeito de suas
aversões. — sorriu maliciosamente — e de seus prazeres...
Sem ser convidado, Jeff juntou-se à conversa:
— Você deve mesmo ter muito a ensinar, Louisa querida, mas nada que eu julgue apropriado
para uma jovem esposa.
Ela o fixou e foi entregar a bebida a Brandon, ficando de pé por trás do par sentado, onde
poderia contemplar Heather de cima para
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baixo sem ter de enfrentar-lhe os olhos. Jeff a substituiu no bar e serviu-se de uma liberal dose de
bourbon.
— Necessitará de muita experiência para fazer feliz seu marido — ronronou Louisa. — Sei disso
muito bem. É uma pena que seja tão jovem e inexperiente...
As mãos de Brandon se moveram para os ombros de Heather e com o polegar ele de leve lhe
acompanhou a linha do queixo, e gentil» mente lhe acariciou a orelha. Admirada por sua atenção
para com ela na presença da mulher, Heather ergueu os olhos para seu rosto. Os macios pelos de
seu chapéu roçaram a mão dele e ele os acaricioude leve. Do ponto de vista de Louisa isso parecia
uma troca amorosa. Olhou-os carrancuda, atacada de inveja, e desejou separá-los. Ao erguer os
olhos viu Jeff a mirá-la fixamente. Ele sorriu, zombeteiro, e acenou saudando-a enquanto erguia o
copo, depois bebeu-o lentamente.
Entrou uma jovem negra a quem Brandon cumprimentou chamando-a de Lulu. Ela serviu a
ligeira refeição. Louisa sentou-se em frente a eles para continuar a atormentá-los e ergueu uma
sobrancelha ao ver Heather mexer o seu chá.
— Diga-me, querida, há quanto tempo conhece Brandon?
A xícara bateu no pires, traindo sua perturbação, e Heather Ioga a depositou na mesa ao lado,
cruzando no colo as mãos trêmulas. Brandon estendeu sua mão grande sobre as dela e as apertou
de leve, tranqüilizadoramente. Ela ergueu os olhos para a mulher:
— Conheci-o na primeira noite em que chegou a Londres, Miss Wells — murmurou.
Louisa a estudou, baixando as pálpebras indolentemente sobre os olhos castanhos. Teve a
sombra de um sorriso:
— Tão cedo? Mas, claro, deve ter sido. De que outro modo já estaria com a gravidez tão
adiantada? Há quanto tempo está casada?
Brandon sorriu ligeiramente para sua ex-noiva, enquanto suas mãos aconchegavam mais Heather
de encontro a ele.
— O tempo suficiente, Louisa — respondeu em lugar da esposa. A mulher relanceou os olhos de
um para o outro e achou que Heather estava pálida. Continuou, dirigindo a ela suas perguntas:
— Mas de que modo o conheceu, querida? Penso que seria extremamente difícil para uma moça
inglesa de boa família conhecer um americano, comandante de um navio! — Erguera uma
sobrancelha ao acentuar as palavras ”de boa família” como se na realidade duvidasse do fato.
Por um momento Brandon a olhou friamente; depois um pequeno sorriso apareceu e ele
respondeu calmamente:
— Heather e eu nos encontramos através dos esforços de Lord Hampton, Louisa, um grande
amigo de minha mulher. Ele queria que
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nos conhecêssemos e ameaçou-me com terríveis conseqüências se eu recusasse. Ele é o que você
chamaria um casamenteiro de sorte. Um velho cavalheiro muito teimoso.
Heather virou-se para Brandon: não dissera mentira e fizera tudo parecer absolutamente natural...
livrando-a do constrangimento de todos virem a saber dos fatos mais embaraçosos. Sorriu para
ele, satisfeita com sua resposta e, como se o bebê se desse conta de seu prazer, moveu-se de
repente. Os olhos dela se arregalaram de surpresa e notou que Brandon também sentira o mesmo
quando o sorriso dele se alargou por todo o rosto. Curvou-se para ela e seus lábios lhe roçaram a
orelha, fazendo com que todos os seus nervos formigassem..
— É mesmo levado, não é, querida? — ele murmurou carinhosamente.
Louisa estava transtornada com esse exibicionismo de Brandon com a esposa.
— Que foi que disse, Brandon? — perguntou em tom imperativo.
— Parece, Louisa — e Jeff piscou — que não é da nossa conta. Mas acho que o bebê aprova o
jogo.
A observação não teve sentido para Louisa. Confusa, olhava entre os dois homens, que trocavam
olhares divertidos em fraternal entendimento. Não era a primeira vez que eles se comunicavam
entre si sem que ela nada entendesse — e ser posta à margem a deixava furiosa, especialmente
agora, quando aquele pedacinho de garota parecia saber o que o cunhado queria dizer. Porém ela
saberia manejá-la.
— Brandon, querido, gostaria de outro drinque? Ele recusou e a mulher então olhou para
Heather:
— Espero que não se importe se trato seu marido pelo nome de batismo, querida. Afinal de
contas, conheço-o há tanto tempo que nem pareceria direito chamá-lo de outra forma, e nós
íamos casar-nos
Heather virou para Louisa o seu sorriso, sentindo-se confiante agora.
— Não vejo razão por que não devesse permanecer amiga da família, Miss Wells — replicou
suavemente. — E, por favor, esteja à vontade para visitar-nos sempre que deseje.
Jeff deu uma risadinha, deliciado!
— Bem, Louisa, creio que a garota pode ensinar-lhe algo das boas maneiras de uma perfeita
anfitriã. Pena se não pode apreciar as lições.
Louisa ergueu-se de um pulo e o fitou, raivosa.
— Quer, por favor, manter fechada essa boca suja e evitar mostrar o quanto é estúpido! — falou
com desprezo.
Brandon riu enquanto acariciava o ombro da esposa.
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— Meu caro irmão, terá de lutar por sua vida se continuar com essa implicância. Já esqueceu o
temperamento de Louisa? — comentou ele.
— Não, Brandon, mas aparentemente você esqueceu: se continuar a mimar sua mulher na
presença de Louisa, você é que será arranhado!
O irmão mais velho riu baixinho, bem-humorado, e quase pesarosamente retirou o braço que
rodeava Heather; depois levantou-se e disse:
— Na verdade devemos ir-nos, Louisa. A viagem foi muito cansativa para Heather, e ela está
ansiosa por instalar-se. Eu também estou ansioso por chegar a casa.
Agradeceu-lhe pela rápida refeição e então, dando a mão a Heather, ajudou-a a erguer-se do sofá
enquanto Jeff esvaziava seu copo. No vestíbulo, ajudou-a a colocar o casaco e segurou-lhe o
regalo enquanto ela abotoava o casaco. Louisa observava essas atenções sentindo-se mal: sabia
que fora preterida. Seguiu-os, embaraçada em achar palavras para continuar a atormentar a
jovem.
Brandon ajudou Heather a subir à carruagem que esperava e fez uma despedida polida enquanto
Jeff subia e se sentava em frente à cunhada, deixando para Brandon o espaço ao lado dela.
Quando a carruagem se afastou, Louisa ficou de pé na varanda, nas sombras da tarde que
terminava, enquanto os via se distanciarem...
Na estrada, Jeff e Brandon conversavam com real espontaneidade e logo se via que os dois
irmãos se entendiam de uma forma não encontrada em amizades comuns. Enquanto os cavalos
os levavam na tarde calma, eles renovavam o companheirismo de toda a vida. Brandon mostrou a
Heather um largo marco quadrado de pedra que indicava o limite de sua propriedade e ela se
esticou na esperança de avistar a casa pelas janelas da carruagem. Nada vendo a não ser florestas
sem fim, olhou, admirada, para Jeff que a observava sorrindo.
— Falta ainda algum tempo para chegarmos — informou. — Temos ainda perto de dois
quilómetros pela frente.
De olhos arregalados, ela se voltou para Brandon:
— Quer dizer que você é dono disso tudo? — seu gesto abarcava tudo o que via.
Brandon acenou lentamente e Jeff sorriu:
— Você nem sabia no que se metia ao casar-se com um Birmingham, irmãzinha!
De repente Brandon apontou:
— Lá está Harthaven!
Ela olhou para onde ele apontava, mas apenas teve um vislumbre de uma névoa de fumaça acima
dos topos das árvores a alguma distância da estrada. Acima do ruído das rodas e dos cascos ela
podia ouvir o som de vozes alegres. Aproximavam-se de uma alameda demarcada
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por enormes carvalhos. A carruagem fez a curva na alameda e ela ficou quase sem fôlego pois, ao
fim dela, havia um casarão como jamais vira igual. Imensas colunas dóricas sustentavam um
telhado ao nível do topo dos carvalhos e serviam de suporte para uma ampla varanda do segundo
andar. Do centro dessa varanda pendiam enormes galhadas de grandes antílopes das florestas.
Ambos os irmãos sorriam do seu espanto.. e ela se dava conta de que ali era o lugar onde criaria o
filho que trazia dentro de si, com grandes esperanças... Recostou-se, cheia agora de um calmo
contentamento e de nova confiança no futuro.
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Capítulo Sete
Duas criancinhas negras brincavam na terra em frente à casa quando a carruagem parou de
repente. Ao primeiro sinal do rosto de Brandon, saíram correndo, provocando alguns instantes
de um silêncio de noite. Apenas um sim ocasional de voz, ao longo, quebra a quietude. O risinho
de uma criança foi ouvido do canto da casa, seguido de outro que veio da extremidade do
varandão. Depois, um ”shhh!” forte, e em seguida um coro de risadinhas. Dos fundos da casa, a
voz estridente de uma jovem:
— O Sr. Brandon chegou! Ele veio pra casa! Logo após, da garganta de mulher mais velha:
— Deus meu! Enfim esse minino veio pra casa!
E passadas ressoavam pela residência, rumo à frente. Começaram a surgir crianças de tudo
quanto era canto e arbusto até mais de 20 ficarem paradas em frente à carruagem, olhos
arregalados. A porta da frente abriu-se num só golpe e uma negra mais do que grande atravessou
o varandão, enxugando as mãos num avental. E enfiou a cabeça na carruagem.
— Deus meu, seu Jeff! Pra que teve o trabalho de trazê esse lixo das docas cum o sinhô?
Brandon abriu a porta bem para trás e pulou, sorrindo largamente.
— Hatti, sua velha raposa, qualquer dia desses eu lhe torço a cauda!
A mulher cacarejava exultante e correu ao seu encontro, com os braços abertos ao máximo.
Brandon envolveu-a num forte abraço, apertando-a ligeiramente enquanto ria. Quando a soltou,
ela exalou uma exclamação, já sem fôlego:
— Puxa, seu Brandon, sinhô num tá ficando fraco, não! Qualqué dia desses vai me arrancá as
costela! — E deu uma espiada para a carruagem. — Quem é aquela com o sinhô, seu Brandon?
Tá querendo escondê gente da velha Hatti? Acho bom trazê ela até aqui pra eu dá uma olhada
nela e ver o que seu Bran arranjou pra ele dessa vez. Da última ele trouxe aquele velho touro do
Bartolomeu pra
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casa com ele. Mas dessa vez num parece touro mesmo, não, e tô vendo que num é a Srta. Louisa.
Brandon, então, principiou a ajudar Heather a sair da carruagem. Mal se detendo, Hatti continuou
o tagarelar:
— Depressa, seu Jeff! — mandou impacientemente. — Faz ela descer aqui pra eu vê ela. E sai do
caminho, garoto. Você sempre foi desajeitado pra sua idade.
Jeff ficou de lado, com um alegre brilho nos olhos, deixando-a dar a primeira espiada em
Heather. Os olhos de Hatti examinaram bem o rosto da moça, e a negra sorriu de satisfação.
— Ora, ela num passa de uma criança! Onde foi que o sinhô achou esse doce, seu Bran?
Mas ficou séria, quando percebeu a barriga de Heather, e virou-se preocupada para Brandon, não
tendo dúvida de quem era a culpa. Não mais usando seu primeiro nome, interrogou-o com a
sobrancelha erguida:
— Sr. Birmingham, o sinhô vai casá com essa menina? Ela precisa mais do sinhô do que a Srta.
Louisa. Sua pobre mãe ia dá um pulo na cova se o sinhô não agisse direito cum essa moça!
Brandon sorriu para a velhota.
— Já cuidei disso em Londres, Hatti. Esta é minha esposa, Heather.
Seu sorriso largo, exagerado e escandaloso reapareceu, e seus olhos se acenderam.
— Ah, Deus meu, seu Bran! — gritou de felicidade. — O sinhô parô de brincá por aí e
conseguiu uma nova Sra. Birmingham pra Harthaven, e agora a gente vamos ter bebé nesta casa
um montão de bebê! Já tava na hora! É, o sinhô não perdeu seu tempo, mas assustou a gente um
bucado cum aquela outra mulhé. Deu um trabalhão danado pra esse meu coração velho. Quase
que eu abandono essa família.
E virou-se para Heather, contente, pondo as mãos nos largos quadris:
— Sra. Birmingham — sorriu. — O nome combina direitinho. Não tem ninguém mais bonito
que os Birmingham. Você é linda que nem um pêssego, criança, e é igualzinha a uma flor.
Não deu tempo para respostas, pegando sua sorridente patroa pela mão.
— Venha comigo, meu favo de mel. — continuou. — Não deixa esses homi te deixá plantada aí
fora, na poeira, e nesse estado em que tá. — E deu uma olhada de reprovação em Brandon. —
Viajando o tempo todo naquele barco com um montão de homi pra tomar conta de ti, você deve
tá cansada à beça. Mas num se preocupe, Dona
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Heather. Você tá aqui com a velha Hatti agora e eu vou tomar conta de você direitinho. Vamos
tirar você dessas roupas de viage, pra fica bem confortável. Foi uma viage muito comprida pra
você e o bebê, desde Charleston. Vai precisá descansá antes do jantá.
Heather olhou para Brandon por cima do ombro, completamente indefesa enquanto a mulher a
levava passando por ele alegremente.
Hatti deu rápidas instruções a duas meninas por quem passaram:
— Vão dá um pulinho até lá atrás e pegá água pró banho da moça, e vê se não demora, viu,
queridinhas?
jeff gargalhou, encostando-se na carruagem de tanto rir. Brandon balançou a cabeça e deu uma
risadinha.
— Aquela velhota! — murmurou. — Ela não mudou nada!
— Diz pró George e pró Luke, levar as malas da madame lá pra cima depressa quando eles chegá
aqui — ordenou Hatti, gritando por cima do ombro. — Aquelas mula demoram que nem o
diabo.
A porta da frente bateu por trás dela, e Heather encontrou-se num enorme saguão com cheiro
gostoso de cera de abelhas, e onde o piso brilhava aveludadamente sob seus pés, sem que se visse
o menor vestígio de poeira. Ocupavam o aposento uma escada em curva que levava ao segundo
andar e algumas peças de mobília, elegantes, estilo rococó, lustrosas e de colorido vivo. Veludos
amarelos e azulreal, e brocados multicoloridos eram usados nas cortinas. As paredes em azul-
claro se mostravam limpas e sem manchas.
Heather admirava tudo em sua volta com olhar estonteado, e Hatti, percebendo seu interesse pela
residência, desviou-a para o escritório através de portas duplas, não parando de tagarelar.
Apontou para um quadro, acima da lareira, de um homem bastante parecido com Brandon e Jeff,
porém com olhos escuros e traços fisionómicos muito mais severos.
— Esse é o velho patrão. Ele e a esposa fizeram este casarão. Neste cómodo as paredes eram
cobertas de fibra de mostarda
com fundo creme, e as cortinas de veludo enrugado, num tom mais escuro, com uma barra de
seda macia atravessada na parte inferior. Portas de divisão do tipo janelão levavam à varanda,
onde o madeiramento era de magnólia cinza-cálido. Seda verde nova cobria o canapé e também
havia cadeiras Louis XV nos tons azul-claro e mostarda. Um luxuoso tapete Aubusson em creme
e ouro-pálido cobria o chão. Uma cómoda Louis XV tinha seu lugar de honra entre um par de
cadeiras com encostos de rotim da mesma época. Um espelho Chippendale dourado, acima da
cómoda, completava a beleza do móvel. Uma secretária francesa alta e elegante ficava entre
portas duplas, que davam para o salão de jantar e por onde passaram. Como nos aposentos
anteriores, este era decorado no estilo rococó. Uma comprida mesa de refeições dominava o
salão, de cujo teto pendia um cintilante lustre de cristal.
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— De onde você é, Dona Heather? — continuou a mulher, embora não desse à patroa a
oportunidade de responder. — A sinhora deve ser daquele lugar chamado Londres. Foi lá que o
seu Bran te conheceu? Ele anda um bucado por aí, esse minino. A gente tem um fogo bem
gostoso aqui pra assustá o frio, e daqui a pouco o seu banho vai ficá pronto. Num vai demorá, e a
sinhora vai se senti com todo o conforto.
A negra virou ao chegar ao topo da escadaria e mostrou o caminho para o quarto de dormir
principal, grande e ocupado por uma cama enorme protegida por um dossel de quatro colunas,
com o brasão da família gravado na cabeceira e metros de rede contra mosquitos amarrados nas
colunas. Era um quarto aconchegante: Heather imediatamente se sentiu satisfeita. Teve a
impressão de que pertencia ao local e, assim que se colocou ao lado da cama, seu coração bateu
um pouco mais acelerado quando imaginou a noite próxima. em que ela e o marido de novo
compartilhariam uma cama. Então passou-lhe pela cabeça que ali é que daria à luz seu filho, na
época devida, e onde outros seriam gerados... se é que isso ia acontecer.
O banho ficou pronto. Enquanto Hatti a ajudava a despir-se, os olhos de Heather deram com um
pequenino retrato de uma mulher, emoldurado a ouro, sobre o toucador. Pegou-o curiosa e o
observou. Os olhos verdes revelavam, inegavelmente, seu parentesco com Brandon e o sorriso
tinha traços da perpétua alegria de Jeff. Nem o cabelo castanho claro nem o rosto pequeno lhe
lembravam alguém. Mas os olhos... ah!, os olhos.
— Essa é a Dona Catherine — exclamou Hatti com orgulho — a mamãe do patrão. Era uma
coisinha doce como a sinhora, mas, meu Deus, era ela qui dava as órdi desta casa. Ela tinha um
jeito de fazê as coisa que os dois garoto filho dela e o pai deles fazia tudo que ela mandava. E se
os minino fazia arguma coisa que não tava certa, ela só falava macio com eles, e eles iam se
arrastando pelo chão até a varanda da frente. Mas eles não entendia que ela mandava nesta casa e
neles. Pelo menos, se eles sabia, porque nunca vi eles reclamando. Ela era doce que nem mel. E
amava o velho patrão e os minino cumo si num tivesse ninguém mais no mundo que não eles.
Mas o patrão era outra coisa, tão teimoso e reberde que podia tê lutado a guerra sozinho e
ganhado ela. O seu Bran é iguarzinho a ele: é tão teimoso que pode cuspir nele mesmo! E
orgulhoso, meu Deus! Não tem ninguém como ele. Eu tinha pensado que a Dona Louisa tinha
agarrado ele, dessa vez. Mas isso ia dá uma confusão danada. Ele ia acabá matando ela, e num ia
demora muito.
Heather olhou para a mulher, surpresa:
— Por que diz isso, Hatti? A negra enrugou os lábios.
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— O patrão diz que eu falo demais — replicou, desviando o olhar e indo às pressas providenciar
óleo perfumado para colocar na água do banho. Heather sentou-se, perplexa. Sua curiosidade
fora agora aguçada, porém a negra parecia — pelo menos no momento — haver esgotado seu
estoque de palavras.
Um berro e um relincho zangado atraíram a atenção de Heather: ela se aproximou da janela e viu
Brandon cavalgando um animal que se empinava e bufava, não demonstrando prazer algum em
ser montado. Jeff estava ao lado, observando o irmão lutar pelo controle do cavalo, e Hatti veio
ficar ao lado de Heather para apreciar a cena lá embaixo. Irritado com o bridão e as esporas o
animal recuava e corcoveava, atirando para o alto montes de terra, mas Brandon trazia um pesado
chicote com o cabo para a frente e, cada vez que o cavalo tentava refugar, ele o tocava
inteligentemente entre as orelhas com a pesada extremidade. Finalmente o fogoso animal
começou a desistir. Brandon afrouxou as rédeas e chegou mesmo a forçá-lo a obedecer suas
ordens, fazendo com que corresse pelo pasto até que restasse esbaforido e suado, aceitando ficar,
trêmulo e submisso, perto da porteira.
Hatti balançou a cabeça:
— Aquele cavalo velho. só seu Brandon consegue amuntá nele. O bicho tá sentindo o efeito do
tempo frio e de todo o milho que andou cumendo. O patrão tem que amansá ele de novo toda
vez que vorta pra casa.
Quando Jeff abriu a porteira para deixar saírem cavalo e cavaleiro, Heather aproximou-se mais da
janela, afastando a cortina, a fim de observá-lo cavalgando. Homem e animal ficaram de frente
para a casa, durante alguns momentos, e Brandon olhou para cima, percebendo o olhar da esposa
para ele. A montaria cavoucava a terra com a pata e mordia as rédeas, agora impaciente para
galopar, porém o dono a mantinha firme, distraído com a imagem à janela. Quando Brandon não
fez menção de mover-se para cruzar o portão, Jeff virou-se e acompanhou seu olhar. Heather
recuou, tímida, e largou a cortina, fazendo com que Brandon desviasse mais uma vez a atenção
para o cavalo. Numa agitação de cascos, o animal disparou pela porteira aberta, estirando a
poderosa musculatura — num magnífico acesso de fogosidade. Brandon afrouxou as rédeas e
deixou-o galopar, comprazendo-se com o movimento rítmico do grande corcel embaixo dele.
— Venha, meu doce! — pediu Hatti. — Seu banho tá pronto, mas vai esfriá se você ficá aqui
muito tempo. O patrão sabe amuntá no véio Leopold, por isso num percisa ficá nervosa.
Heather mergulhou no banho enquanto Hatti apressava George e Luke para que subissem as
escadas e entrassem no quarto ao lado com as malas e começassem a desfazê-las, arrumando as
roupás
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mais longe, no quarto principal. Da coleção de vestidos ela escolheu um de veludo lilás para a
patroa vestir, e abriu-o cuidadosamente na imensa cama.
— Esse vestido tá bom, Dona Heather? É bonito à beça! O seu Bran vai gostá desse. Ele comprô
essas rôpa toda pra você? Ele sabe tomá conta das coisa dele, aquele home.
Heather sorriu e deixou Hatti continuar suas divagações. Já descobrira que a mulher não parava
de conjeturar e, na maioria dos casos, respondia-lhe com espantosa precisão.
A negra aproximou-se da banheira com uma grande toalha aberta para envolver toda a sua jovem
patroa.
— Fica com esse corpinho de pé aqui e deixa a velha Hatti te secá, minina — ordenou. —
Despois vô te dá uma boa esfregada com óleo de rosas, e aí você pode discansá um bucado antes
da janta. O patrão vai querê o banhu dele quando voltá.
Logo depois Hatti fechou a porta silenciosamente às suas costas, deixando uma sonolenta
Heather deitada na cama, com um lençol macio, fofo, aberto em cima do corpo. Já estava escuro
quando acordou e espreguiçou-se, e a negra, de certa forma sentindo isso, veio ajudá-la a vestir-se
para o jantar.
— Você tem um cabelo bunito, criança — ela disse, sorrindo abertamente enquanto escovava
seus lustrosos fios compridos lentamente. — Disconfio que o patrão fica muito orgulhoso com
ele. — E sem parar acrescentou: —Ah, o daquela Dona Louisa nem chega aos pés desse aqui
Um instante depois Heather ouviu os passos de Brandon no saguão, e as mãos de Hatti
trabalharam em furiosa pressa para acabar a tarefa em tempo.
— Deus meu! o patrão tá em casa, e a sinhora nem tá pronta ainda!
A porta abriu-se e Brandon entrou, com o casaco pendurado no ombro. O rosto ainda estava
avermelhado da cavalgada, a respiração difícil.
— Sim, sinhô! Vou deixa ela pronta daqui a um minuto — Hatti apressadamente assegurou-lhe.
Brandon sorriu ligeiramente quando seus olhos encontraram os de Heather, sentada diante do
espelho vestida somente de combinação.
— Não precisa desesperar-se, Hatti. Vai acabar tendo um desmaio.
— Sim, sinhô. Sim, sinhô. Gente ruim não tem descanso — ela disse sorrindo.
Brandon largou o casaco numa cadeira e começou a desabotoar o colete enquanto Hatti
arrumava os cabelos de Heather no alto da cabeça, amarrando-os firme com uma fita. Ele a
admirava com um olhar carinhoso, aprovador, à medida que ela auxiliava Heather a entrar
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no vestido, mas quando a velha negra fez menção de ajustá-lo nas costas ele se adiantou.
— Deixe que eu faço isso, Hatti. Vá preparar meu banho.
— Sim, sinhô, seu Brand — ela respondeu com um risinho, e saiu rápida.
Brandon pegou as costas do vestido e, deliberadamente apertouas, tendo cuidado excepcional
com cada gancho que fechava. Com sua proximidade Heather sentia o odor másculo de cavalos e
de couro suado. No alto da roupa as mãos do marido pareciam prender-se, e ele baixou a cabeça
até o rosto esfregar-se nos cabelos da mulher, quando então aspirou sua fragrância doce. Heather
ficou com os olhos semicerrados, escutando-o, cheirando-o, sentindo-o, e com medo de mexer-
se e estragar aquele momento, porém a voz de Hatti veio do vão da escada:
— Agora vão levá essa água lá pra cima. O patrão tá esperando pelo banho dele!
Heather virou-se para chamar a atenção do marido, mas este já recuara e abotoava sua camisa.
Hatti abriu a porta, deixando entrar diversos meninos carregando baldes dágua fumegante. Eles
encheram a banheira e em seguida foram expulsos do quarto pela ativa velha. A negra parou ao
lado da porta e virou-se para perguntar:
— Isso é tudo qui o sinhô quê agora?
— É — ele replicou, começando a tirar as calças, e Hatti saiu voando, fechando a porta às suas
costas.
Heather aprontou-lhe a toalha e as roupas e, com um olhar discreto, observou-o quando
terminava de despir-se, admirando com olhos excitados os músculos longos e rijos, os quadris
estreitos e os ombros largos. Subitamente encheu-se de orgulho possessivo, sabendo que ele lhe
pertencia e nenhuma outra mulher podia reclamá-lo; nem mesmo Louisa.
Foi até a cama e sentou-se na beirada para calçar as meias e sapatos enquanto o marido entrava
na banheira. Assim que ergueu as saias acima dos joelhos, Brandon desviou a atenção para ela e
começou a passar sabonete no peito vagarosamente enquanto admirava aquelas belas pernas.
— Hatti já lhe mostrou a casa? — perguntou-lhe; percebendo que a esposa ajustava uma liga
enfeitada na coxa.
Heather sacudiu a cabeça:
— Não — replicou alegremente. — Somente o salão de visitas e o de jantar. Mas estou ansiosa
para conhecer o resto. Nunca pensei que a casa fosse tão grande nem tão linda. — E, com uma
risadinha de deleite, acrescentou: — Imaginei que fôssemos viver numa cabana. Você não me
disse que morava numa mansão.
Brandon sorriu, mostrando os dentes, quando ela se levantou e deixou cair as saias, que
escorregaram.
202
— Você não me perguntou, doçura..
Ela riu ao passar pela banheira e abaixou-se para mexer na água, salpicando-a no peito do marido.
— Vamos logo, Brandon, por favor. Estou morta de fome. Brandon estava retorcendo-se para
vestir o colete quando um ruído no quarto ao lado lhe chamou a atenção.
— Deus meu! Que é isso aqui? — era a voz de Hatti filtrada através da porta. — Nunca vi um
negoço assim na minha vida!
Brandon abriu a porta, e Heather veio postar-se ao seu lado para espiar o que ocorria, vendo
Hatti segurando as cerolas enfeitadas. Ela olhou para o patrão quando o casal entrou no quarto, e
ergueu uma sobrancelha.
— Seu Bran, essa coisa é sua?! — perguntou. — Tem um bucado de renda nesse negoço.
Heather tapou a boca, tentando reprimir uma explosão de risos.
— Ela é muito piquena pró sinhô, patrão. Pra que é que foi comprá isso E seus olhos se
arregalaram mais quando, subitamente, experimentou-as diante do corpo de Heather. — É da
sinhora, Dona Heather? — perguntou, incrédula.
— É bom que saiba, Hatti, que mandei fazer esse tipo de roupa especialmente para minha
esposa, a fim de mantê-la aquecida — informou-lhe Brandon, sorrindo. — O Atlântico Norte
durante o inverno não é lugar para uma mulher ficar passeando sem proteção alguma por baixo
das saias.
— Sim, sinhô; sim, sinhô! — concordou a negra, dando uma risadinha.
Brandon sacudiu a cabeça, alegre.
— Hatti, dê o fora daqui. Vá ver se o jantar já está pronto. Sua patroa está quase caindo de fome.
A mulher deu um amplo sorriso:
— Sim, sinhô, seu Bran.
E saiu velozmente, deixando Heather vagando pelo quarto, tocando curiosa na cama e passando
os dedos levemente por uma cadeira. Brandon observava-a atentamente enquanto abotoava o
colete.
— Aqui era uma sala de estar, porém minha mãe mandou instalarem a cama depois que nasci. Ela
não gostava de incomodar meu pai nas poucas vezes em que Jeff e eu ficávamos doentes, e estava
sempre presente quando precisávamos dela. O berçário fica ao lado.
E seus olhos acompanharam o corpo bem feito da esposa, que caminhava pelo quarto para
familiarizar-se com todos os detalhes, e uma excitação foi tomando vulto dentro de si — uma
vontade intensa de tomá-la nos braços, de acariciar aqueles cachos brilhantes. A atenção de
Heather foi desviada para a cama, com as cobertas feitas a mão, e o marido foi colocar-se bem
perto, quase abraçando-a, contudo se deteve.
202
E se ela resistisse ao seu assédio aqui, novamente, e lutasse contra ele? Caso Brandon fosse
repelido e encontrasse violência, provavelmente poderia ferir a criança ou a mulher.
Sua mente girava por causa da íntima proximidade, do cheiro de Heather, dos cachos sedosos à
sua frente. Ele não poderia forçála de novo. Ele não lutaria com ela, nem a obrigaria a render-se à
sua vontade. Heather teria de procurá-lo espontaneamente.
”Uma escolha”, pensou ele. ”Este quarto ou o meu. Esta cama solitária ou compartilhar o meu
afeto. Vou deixar que faça a escolha.”
E pigarreou.
— Esta cama. — começou. — Este quarto. será seu, se quiser assim, Heather.
E parou, procurando mais palavras na sua confusão, e Heather sentiu-se congelada. Uma dor
atravessou-lhe o peito como se uma adaga houvesse sido enfiada por entre suas costelas.
”Meu Deus!”, pensou. ”Ele está tão perto e me odeia tanto! Não suporta a ideia de deixar-me
compartilhar sua cama! Agora que está em casa e pode recomeçar a vida com Louisa, vai me
deixar de lado e esquecer que sequer existo!”
Lágrimas vieram-lhe aos olhos quando se lembrou das esperanças de uma existência feliz e
normal ao lado de Brandon. Inclinou-se para a frente, triste, e acariciou as cobertas.
— É uma cama gostosa — murmurou. — E o quarto é adequado para um berço. Suponho seja o
melhor local para mim.
Os ombros de Brandon tombaram de tristeza.
— Vou mandar Hatti trazer suas roupas de novo para cá. — Suspirando, virou-se e retornou ao
seu próprio quarto. Fechou a porta e encostou-se nela sentindo a mais forte frustração,
conquanto zangado consigo mesmo por haver provocado o assunto. E amaldiçoou-se:
”Seu estúpido! Grande paspalhão! Idiota sem par! Poderia terlhe mostrado a casa e sua cama, e
dado ênfase ao fato de querer um lar, se não tivesse aberto a boca!”
Caminhou irado até a mesa com a garrafa de conhaque, servindo-se generosamente; depois ficou
olhando fixo para o copo na mão.
”Você tinha de bancar o galante e deixar que ela escolhesse!” E bebeu o forte conhaque de um só
gole, sem saborear seu gosto. ”Já que é assim, então agüente sozinho o frio do inverno, grande
imbecil! ”
Bateu com o copo na mesa e, após pegar o casaco, saiu depressa e zangado do quarto. Encontrou
Hatti no vestíbulo e rosnou para ela:
— A Sra. Birmingham resolveu que prefere o outro quarto. Providencie para que suas roupas
sejam retiradas do meu antes do meu regresso.
203
Espantada com tal mudança de humor, a negra olhou-o fixamente de boca aberta. Resmungou
uma resposta obediente quando ele irrompeu através do saguão, passando por ela, e observou-o
quando descia a escadaria. Sacudindo a cabeça diante do mau gênio, abriu a porta do salão de
estar e encontrou Heather empoleirada na beira da cama, com lágrimas correndo-lhe pelas faces.
Rapidamente a menina virou-lhe as costas e limpou o rosto.
— Você é um bucado bunita mesmo, minha criança — assegurou Hatti gentilmente à sua patroa.
— O patrão Jeff tá mordendo as unha, esperando a sinhora descê. Ele disse que se o irmão dele
não se cuida, que ele rouba a sinhora debaixo do nariz dele.
Conseguindo dar um sorriso forçado, Heather normalizou a postura e virou-se para a velha. Por
um instante os olhos castanhos de Hatti perscrutaram o rosto da jovem patroa e refletiram a dor
presente, e ela se apressou em falar num tom animado, procurando aliviar a tristeza:
— Agora vai lavá esse rostinho bonito pra depois ir comê alguma coisa. Esse bebê vai passá
fome, se você não corrê.
O tagarelar de Hatti amenizou a angústia de Heather até certo ponto, pois sentiu a alma reagir ao
interminável dom de loquacidade da velha mulher. Poucos momentos depois entrava na sala de
visitas. Jeff levantou-se imediatamente da cadeira e recebeu-a com uma torrente de elogios.
Quando ela apoiou sua mão na dele, deu uma olhada incerta para Brandon, porém ele estava de
costas e parecia inospitavelmente inabordável. Jeff inclinou-se ligeiramente quando lhe ofereceu a
mão, como se ela usasse a coroa real. Heather afastou o olhar do marido e sorriu, decidida a
parecer alegre. Não daria a Brandon o prazer de vê-la perturbada com a expulsão do seu quarto.
— Ah, minha Lady Heather, sua beleza explode sobre minhalma como a primeira se abrindo na
floresta! — suspirou Jeff, ardente nos elogios após haver consumido diversos conhaques durante
sua espera um tanto prolongada. — A senhora é tão agradável à minha visão e ao meu gosto
como a primeira framboesa grande do verão!
Ela fez a mesura e respondeu ao fútil comentário:
— Ora, senhor, seu apetite está visível. Talvez o atraso do jantar o tenha deixado doente. Claro
que pensa na refeição e encobre minha feiúra com suas gentis palavras.
Jeff recuou como se fortemente insultado.
— Oh, minha mais querida irmã, você me magoa profundamente, pois nesta rude vastidão do
celibato a simples visão de sua imagem desfaz qualquer pensamento meu sobre comida!
— Galante cavalheiro — ela suspirou, como se consolando-o — suas simples palavras de
bondade me são gratas aos ouvidos. — Apontou para Brandon. — No entanto, ali está o mais
negro de todos
204
os dragões e temo que o devoraria como a uma guloseima. Oh, não, gentil senhor! — E estendeu
a mão como se para detê-lo. — Temo em escolher entre os objetos sobre os quais jantaremos ou
aquela fera cruel que digeriria nós dois!
E riu alegremente com aquela brincadeira sem objetivo, enquanto Jeff gargalhava e, em seguida,
como se fosse um bufão, serviu um copo de vinho leve e trouxe-o para ela.
— Imploro que nos faça companhia, Lady Heather. Ambos progredimos demais em nossa
alegria sóbria.
Brandon virou-se, de humor ainda pior por se ter transformado no alvo da chacota do casal, e
comentou grosseiramente para que todos ouvissem:
— Como se não fossem suficientes minhas preocupações particulares, ainda sou presenteado por
um irmão idiota que estaria melhor no papel de bufão num teatro ambulante e uma esposa
simplória cuja temeridade só é superada pela sua capacidade de zombar de mim. Assim que vocês
dois terminarem sua participação nesses jogos infantis eu gostaria que pudéssemos começar a
refeição. Minha fome angustia-me ainda mais do que minha necessidade por entretenimento tão
espirituoso.
Jeff riu por entre os dentes e ofereceu o braço à Heather.
— Creio que meu irritadiço irmão está seriamente aborrecido conosco, My Lady. Precisa
melhorar o humor, não acha?
Heather olhou por cima do ombro para o marido, que a vigiava, e ergueu a cabeça.
— Oh, deveras, caro irmão! Ele precisa divertir-se muito. Como vê, ele jamais será de novo o
contente solteirão e, ao invés disso, recebeu o fardo de uma esposa. e ela com uma criança.
Muitos homens se sentem oprimidos ao se verem presos assim.
Brandon fez-lhe uma carranca, porém Heather voltou-se para Jeff com um sorriso cintilante,
sedutor, com um movimento coquete de cabeça, fazendo os cachos soltos dançarem.
— Agora devemos, doce irmão, achar-lhe uma esposa para que você venha a tornar-se tão sério
como ele e sentar-se e entediar-se sem o menor vestígio de alegria. Não gostaria de testar seu
próprio bom humor, tentando fazê-lo?
Jeff jogou a cabeça para trás, rindo com vontade.
— Com qualquer uma menos você, querida irmã, eu aceitaria — ele sorriu. — Portanto, deverei
aguardar até fazerem uma réplica, mantendo assim minha encantadora posição.
Riram juntos e Jeff irrompeu com ela pelas portas envidraçadas que levavam ao salão de jantar.
Lá, a mesa estava posta de maneira formal, com o lugar de Brandon à cabeceira, o de Heather na
outra ponta, depois candelabros de cristal entre os dois, e o de Jeff no meio. O irmão folgazão
ajudou Heather a sentar-se e depois se colocou ao
205
seu lado, franzindo a sobrancelha diante da distância exagerada entre seus dois assentos. Brandon
aguardou perto de sua cadeira que o irmão tomasse o lugar, mas Jeff permaneceu imóvel, de cara
fechada e cabeça erguida.
— Caro irmão, você deve ter alguma tendência para a solidão, mas eu sou muito sociável e não
suporto ver minha doce irmã jantar a sós.
Sorrindo alegremente pegou seu serviço, prato e copo, e mudou-se para a esquerda de Heather.
Brandon encarou-o por uns momentos, depois suspirou pesadamente e, compadecendo-se de
tanta futilidade, uniu-se ao grupo principal. A refeição transcorreu mais informalmente, e o
tagarelar descontraído e constante amenizou de certa forma seu gênio. Os serviçais retiraram os
últimos pratos e serviram bebidas suaves para cada comensal agora saciado. Heather encostou-se
na cadeira e suspirou, pois, tendo feito inteira justiça à comida, neste momento sentia-lhe o peso
no estômago. Uma sonolência começou a embotar seus sentidos, e ela sentiu vontade de
caminhar e exercitar-se um pouco. Brandon veio afastar-lhe a cadeira da mesa e foram para a sala
de visitas onde ele e Jeff começou a saborear compridos charutos verdes; no entanto ela se sentiu
mal no canapé, ansiando por ar fresco.
— Brandon — murmurou — infelizmente aquela comida maravilhosa enrijeceu-me esta região
aqui. Se me for permitido, eu gostaria de caminhar lá fora.
Ele replicou afirmativamente, dando uma espiada na barriga redonda da esposa, e depois foi até a
porta, onde chamou por um criado e mandou que fosse buscar um agasalho para a patroa. Assim
que o garoto voltou, Brandon pôs o xale bem arrumado nos ombros dela e acompanhou-a até a
porta da frente. Abriu-a e fez menção de ir junto, porém Heather virou-se e encostou
delicadamente uma das mãos em seu peito.
— Não — murmurou. — Sei que você e o Jeff têm muito que discutir. Não vou demorar. Quero
apenas respirar um pouco.
O marido pareceu relutante em deixá-la ir sozinha, mas finalmente concordou:
— Não se afaste demais de casa.
Acenando afirmativamente com a cabeça, Heather virou-se e caminhou até a ponta da varanda,
enquanto Brandon fechava a porta e regressava à sala de visitas.
Era uma noite linda, fresca e reanimadora, com pequenos tufos de nuvens brancas cruzando um
brilhante céu estrelado. Sob a luz do luar os grandes carvalhos, com o musgo pendente, pareciam
sentinelas cinzentas. O ar estava parado, calmo, sem sequer uma brisa, e leves sons no turnos
vinham da floresta. Poucas luzes brilhavam nos alojamentos da criadagem, e uma ou outra voz
rompia o silêncio. Heater
206
desceu os degraus e pôs os pés na relva fresca e úmida, principalmente seu lento passeio por
entre as grandes árvores, vendo seus galhos atravessarem a lua..
”Minha primeira noite aqui, mas sinto uma estranha e deliciosa identidade com esta terra. É tão
imensa, tão vasta e além dos meus sonhos mais ousados — um enorme espaço para deixar meu
coração disparar livre e jamais conhecer de novo a condição cruel de uma criada.
Virou-se e olhou em direção à casa. Tinha a impressão de que esta a observava em silêncio,
contemplava-a, mas não ameaçadoramente, e sim como se para adivinhar que tipo de patroa ela
seria. Sua imagem era tão suave e, nos pensamentos de Heather, tornou-se ”um lar para criar
meus filhos; um local confortador, um porto seguro.”
— Oh, grande casa branca! — murmurou. — Por favor, deixeme encontrar a paz aqui. Deixe-me
dar à luz meu filho dentro de suas paredes. Faça meu marido orgulhoso de mim e que eu não
traga sombras que caiam diante de suas portas.
E um grande alívio invadiu-a, como se um fardo houvesse sido afastado, e ela começou a correr
de volta para seu calor, sentindo agora sua familiaridade e um estranho companheirismo. Entrou
por ela novamente, abrindo a porta e fechando-a por trás de si, sem desejar incomodar os
homens. Quando tirou o xale, ouviu a voz de Jeff, vindo da sala de visitas, que irritado falava
com o irmão:
— Por que, diabo, você voltou lá hoje à tarde? Maldição, você viu como a cadela tratou Heather!
Ela não perdeu tempo em revelar como foi entre vocês dois antes de sua partida. Estava sedenta
de sangue, sangue de Heather, e cravou as garras o mais fundo que pôde!
— É tão inconcebível para você, caro irmão — rosnou Brandon — acreditar que Louisa possa
ter sofrido um choque considerável esta tarde quando, esperando receber-me como seu noivo de
volta, foi apresentada à minha esposa? Ela não recebeu a notícia facilmente e nós não fomos
exatamente os cavalheiros mais delicados. A novidade sobre meu casamento podia ter sido
transmitida a ela de forma um pouco mais gentil. Não estou muito contente comigo mesmo por
tê-la tratado daquela forma. Eu agi de maneira muito errada.
Heather ficou indecisa, sem saber se voava de volta lá para fora ou atravessava correndo o saguão
para subir a escadaria. E sentiu um aperto no coração ao pensar em Brandon sozinho com
Louisa.
— Diabo, Bran, você acha que ela permaneceu fiel e pura enquanto você viajava? Louisa rodou
de mão em mão como se estivesse em seus últimos dias na face da Terra, e seus amigos são
testemunhas disso..
O silêncio respondeu-lhe, Jeff riu e continuou:
— Não fique tão surpreso, Bran. Acha que ela ficaria tanto tempo sem homem? Claro, ela
considera você o melhor garanhão das
207
redondezas, mas, enquanto este se ausenta, acredita que a égua ficaria sem seus prazeres? E é
bom saber de outra coisa agora, já que vai ter de pagar de qualquer maneira: ela contraiu bom
número de dívidas na cidade usando o nome da futura Sra. Birmingham. Os negociantes
procuraram-me com as contas nas mãos para confirmar se você ia desposá-la. Vai descobrir que
ela gastou mais de 500 libras em seu nome.
— Quinhentas libras! — gritou Brandon. — Que diabos ela andou fazendo?!
Jeff riu, parecendo divertir-se.
— Ela adquiriu jóias, roupas, tudo que possa imaginar. Aposto que ela foi o mais dispendioso
pedaço de mulher que já passou pela sua vida. A moça não é nem um pouco moderada, sabe? Se
fosse, teria uma vida fácil, com o dinheiro que o pai lhe deixou. No entanto, ela o gastou em
menos tempo do que o necessário para se esfolar um coelho e também deixou sua plantação
apodrecer enquanto contraía dívidas. Ela estava lambendo os beiços em antecipação por causa do
seu dinheiro.
Tendo assim falado, Jeff cruzou o salão para reabastecer o copo e, passando pela porta, viu
Heather parada lá fora, agora segurando acanhadamente o xale. Ele parou e observou-a,
deixando-a enrubescida como se estivesse olhando por um buraco de fechadura. Heather
encolheu os ombros nervosamente.
— Me. me desculpe — gaguejou. — É que estava frio lá fora e eu... só queria ir para meu quarto.
Brandon postou-se perto do irmão, e ela se ruborizou mais ainda e, em completa confusão,
apertou o xale de encontro ao corpo e atravessou correndo o vestíbulo para subir a escadaria a
toda pressa. Brandon avançou para o saguão e observou sua corrida lá para cima. Quando se
virou mostrava uma carranca e Jeff ergueu uma sobrancelha indagando-se sobre aquela mudança
de humor. Brandon sorveu o resto de sua bebida, caminhou até o bar, serviu-se de novo e repetiu
o gesto anterior. Jeff observava essa movimentação nervosa com olhar inquisidor, atónito por vê-
lo exagerar no uso de conhaque tão fino. Brandon derramou mais bebida no copo e, apoderando-
se dele com requintes de vingança, virou-se enquanto Jeff o observava com preocupação
crescente. Normalmente o irmão tinha o bom gosto de saborear a bebida, mas agora ele parecia
completamente fora de si, tratando o conhaque como a um forte bálsamo que expulsasse os maus
espíritos.
— Com franqueza, eu diria que a vida de casado não combina com você, Bran — comentou
cautelosamente. — Já vi você menos preocupado com uma prostituta relutante, e não consigo
descobrir qual o seu problema. Fica observando sua esposa como um garanhão
208
que fareja a égua no cio, e entra em desatino a cada movimento dela. Entretanto, quando ela se
vira e o encara, você age como marido desprezado ou fortemente ofendido. Dá a impressão de
ter medo de tocá-la, contudo já o vi espancar as melhores. E, diabo, que negócio é esse de
quartos separados que me contaram?! — E viu o irmão estremecer, sorvendo rapidamente o
conteúdo do copo de uma só vez. — Você perdeu a cabeça? Ela agrada à primeira vista: aliás, é
bonita como não sei o quê, fala macio, é gentil, é tudo o que um homem deseja e você é o dono.
Contudo, por algum motivo estranho que não consigo entender, você a repele como se ela
sofresse de sífilis. Por que exagera tanto nesse auto-sofrimento? Descanse. Sinta prazer com ela.
É sua.
— Deixe-me em paz, Jeff — retrucou Brandon. — Não é da sua conta.
Jeff sacudiu a cabeça, exasperado.
— Brandon, por algum misterioso golpe do destino, você ganhou uma mulher que vale a pena
ser conservada. Como você encontrou uma fruta tão doce é coisa que ainda me intriga, embora
duvide de que o responsável tenha sido qualquer grande talento seu na escolha de companhia
feminina. Seu gosto sempre o levou a prostitutas e mulheres interesseiras, em vez de criaturas
inocentes como Heather. Mas uma coisa eu lhe digo, Brandon: se der um jeito de perdê-la, vai
perder muito mais do que imagina.
Brandon virou-se e rosnou para ele:
— Irmão, você consegue irritar-me além dos limites. Rogo-lhe que cale a boca. Conheço muito
bem o volume de minha sorte e não preciso de que seus instintos maternais me fiquem
recordando isso.
Jeff deu de ombros.
— Na minha opinião você precisa, sim, de alguém que lhe diga o que fazer, porque se está
esforçando ao máximo para arruinar essa sua vida tola.
Brandon ergueu a mão impacientemente.
— Pode deixar, o problema é meu!
O irmão mais novo terminou seu conhaque, descansou o copo e encarou o olhar do outro.
— Estarei por perto para ver como você resolve o seu problema. E agora boa noite, irmão, e
desejo-lhe bons sonhos na sua cama solitária...
Brandon olhou fixo para ele, no entanto Jeff já se virara de costas e agora saía do salão. O irmão
mais velho foi deixado sozinho, segurando um copo vazio, para o qual olhou demoradamente, já
sentindo a solidão que o receberia no seu quarto. bem como a cama, ressentindo-se daquela
pequena presença ao seu lado e sob as cobertas. Praguejando, atirou o copo, que voou contra a
lareira, e também saiu do salão.
209
O sol nasceu brilhante e claro na manhã seguinte e Hatti bateu suavemente à porta da patroa a
fim de apressar a entrada de uma jovem que apresentou como sendo Mary, sua neta. A menina
seria nomeada para um cargo de honra, isto é, criada pessoal de Heather. A velha negra apressou-
se em assegurar a Heather que sua neta era bem treinada nas especialidades exigidas.
— Ela aprendeu o milho, Dona Heather — exclamou orgulhosa — pra podê tomá conta da nova
Sra. Birmingham direitinho, quando a gente recebesse ela. Ela sabe arrumá um cabelo muito bem,
e todo o restu!
Heather sorriu para a magricela.
— Tenho certeza de que, se você diz que ela é boa, Hatti, é porque é mesmo. Muito obrigada.
A velhota abriu um sorriso de orelha à orelha.
— Não tem de quê, Dona Heather — replicou. — E, Dona Heather, o seu Bran disse qui vai
passa alguns dia em Charleston. Tem que tomá conta do navio dele.
Heather inclinou a cabeça sobre a xícara de chá, lembrando-se do que escutara na noite anterior.
Sem dúvida Louisa recebera Brandon de braços abertos e amorosos e, quando regressou, o
comandante recolocara a outra em seu devido lugar, sacudindo-a fora de sua vida como se tira
uma capa dos ombros. E agora ele ia e vinha a seu bel-prazer, nem se importando sequer em
despedir-se dela quando ia viajar.
Suspirou e espalhou manteiga num bolinho quente. Pelo menos fora bem recebida na casa dele e
podia sentir-se agradecida por se ncontrar no meio de gente bondosa e fina.
Enquanto fazia o desjejum, seu banho era preparado no quarto principal e, quando terminou o
chá e descansava a xícara, Mary já se achava ali com escova e pente para arrumar-lhe os cabelos
num grande coque no topo da cabeça. Dentro em pouco Heather gozava de um banho a vapor.
Os preparativos foram terminados e Hatti voltou para inspecionar a mão-de-obra de Mary, que
lhe pareceu impecável. Balançou a cabeça quando viu o penteado:
— Trabalhô muito bem, criança — afirmou, contudo apanhou o pente e ajeitou um cacho. —
Mas, pra Dona Heather, a coisa tem que sê perfeita! — acrescentou, admoestando ligeiramente a
garota.
A rotina diária começava com o convite de Hatti para que determinasse o cardápio do dia.
Heather seguiu-a para o andar de baixo até a cozinha, separada em um anexo, onde conheceu Tia
Ruth, rainha suprema do território e da preparação das comidas para Harthaven. O interior era
espaçoso e limpo, dominado por uma ampla mesa
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de corte bem no centro e dois imensos fogões em volta. Quatro jovens negras, vestidas em
limpos aventais brancos, cortavam os vegetais, preparavam carne e vigiavam diversas infusões no
fogo. Heather viu-se perplexa com a limpeza e a irreprimível rotina de trabalho imposta por Hatti
e Tia Ruth. As duas eram peritas nas suas respectivas tarefas.
Hatti levou-a de volta a casa, em meio a uma torrente de detalhes e explicações. À medida que
passavam por cada arbusto, árvore ou construção havia algum comentário a respeito. Entraram
na mansão e a velha afobou-se pelos aposentos, inspecionando incansavelmente as minúcias
imaculadas que a criadagem arrumara em cada cómodo, enquanto a patroa se esforçava em
acompanhá-la. Foi só um pouco mais tarde que pararam na sala de visitas, e Heather, dando uma
gargalhada, afundou-se numa cadeira.
— Oh, Hatti, eu tenho de descansar! Infelizmente a longa viagem não me preparou para tal
atividade.
Hatti gesticulou para Mary, que estava sempre por perto, e a menina saiu para voltar logo com
um longo e fresco jarro de limonada. Serviu à patroa um copo, que foi gratamente recebido.
Heather insistiu que as suas companhias também bebessem.
— E, Hatti, por favor sente-se.
Murmurando agradecimentos, a velha aceitou o copo servido por Mary e sentou-se
cautelosamente na beirada de uma cadeira. Heather inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos
por um momento, suspirando.
— Hatti, quando conheci Brandon jamais sonhei que por causa dele eu viria morar num casarão
como este. — Abriu os olhos e ergueu a cabeça para olhar a criada com um sorriso simpático e
atencioso nos lábios. — E quando nos casamos eu sabia apenas que era comandante de um
navio, calculando que passaria o resto de minha existência em quartos imundos nos cais dos
portos, e nunca isto, nunca uma coisa igual a esta!
Hatti deu uma risadinha.
— Sim, sinhora, é o jeitão do seu Bran — ele sempre gosta de caçoá das pessoas que ele gosta.
Heather ficou inquieta após o almoço e resolveu explorar a casa por conta própria. Intrigada com
a beleza do salão de festas, retornou a ele e caminhou uma vez mais sobre o cintilante piso de
carvalho, e acariciou o branco tafetá sedoso que cobria as paredes. Admirou as bordas douradas e
postou-se debaixo de um dos candelabros
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de cristal, examinando-o atordoada com a miríade dos arco-íris flamejantes. Quando abriu as
portas revestidas de cristal que davam para os jardins, a brisa de inverno fez os candelabros
retinirem uma música suave e doce. Ali permaneceu por longo período, escutando a melodia,
perdida em pensamentos. Suspirando levemente, fechou as portas e deixou atrás o salão dos
suaves carrilhões. Procurando a presença de Brandon, foi ao seu escritório e achou-a na figura da
pesada cadeira que ficava diante da mesa de nogueira maciça. Experimentando-a, viu que era dura
e desconfortável, como se estivesse ressentida de sua imposição a uma estatura masculina.
Levantou-se e vagou pelo aposento e, a despeito da falta de organização, sentiu que ali era onde
os homens da família Birmingham procuravam tranqüilidade. O cómodo estava limpo, contudo
as imensas cadeiras pareciam permanecer onde haviam estado em uso ultimamente e onde
deveriam continuar a fim de servir aos temperamentos masculinos. Livros lotavam grandes
prateleiras de estantes em ordem não aparente, tendo sido recolocados simplesmente à medida
que iam sendo lidos. Uma prateleira mais alta guardava uma coleção de armas, cujo brilho
evidente mostrava seu freqüente uso, e um grande corço pairava silenciosamente acima da lareira.
O único vestígio de toque feminino no cómodo era um retrato grande de Catherine Birmingham,
pendurado onde a luz do sol o tocava, dando a impressão de deixar o quadro em brasa.
Seu sonho foi interrompido por uma voz infantil, que gritava da frente:
— O caixeiro-viajante chegou! O vendedor está aqui! Ele deseja falar com a dona da casa!
Heather ficou indecisa por instantes, sem saber se deveria ou não receber o ambulante, mas,
quando Hatti atravessou a casa vindo dos fundos, ela seguiu a mulher até a varanda. O ambulante
cumprimentou a negra com intimidade e ela respondeu à altura antes de virar-se para apresentar-
lhe a patroa:
— Seu Bates, esta é a nova patroa de Harthaven, a esposa do seu Bran
O homem retirou o chapéu e fez uma galante mesura.
— Oh, Madame Birmingham, é um imenso prazer e honra! Ouvi notícias a respeito da nova
esposa da família, e permita dizer, madame, a senhora confirma esplendidamente o que dizem.
Heather reagiu ao delicado cumprimento com um sorriso.
— Com sua permissão, Madame Birmingham, eu gostaria de mostrar-lhe meus artigos. Tenho
muitos de necessidade doméstica, em geral, e talvez a senhora encontre alguns de seu agrado. —
Diante do aceno de aprovação de Heather, ele se apressou em recolher a lona na lateral da
carroça, baixando em seguida uma prateleira. — Antes
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de mais nada, madame, peço licença para mostrar-lhe utensílios para •cozinha. E tenho,
naturalmente, muitas especiarias.
Dizendo isso, baixou com uma pancada uma tampa com dobras que deixou à mostra uma vasta
coleção dos referidos produtos. Rapidamente fez uma demonstração da robustez de seus vidros,
panelas e outros utensílios. Por esses objetos do cotidiano Heather demonstrou pouco interesse,
porém Haiti examinava a prateleira minuciosamente. O vendedor passou para as ferragens,
mostrando-lhes também essências, supostamente vindas do oriente, e sabonetes cheirosos dentre
os quais Hatti recatadamente selecionou alguns, perguntando à patroa se desejava alguma das
inebriantes substâncias. Heather recusou educadamente, não querendo demonstrar sua falta de
dinheiro à negra. Logo após, o Sr. Bates começou a apresentar seus tecidos, e Hatti escolheu para
si mesma um bom pedaço para usar nos domingos, enquanto Heather a observava, sorrindo. Foi
então que o homem ergueu um corte de veludo verde-escuro e seu interesse cresceu, imaginando
como Brandon ficaria bonitão usando aquela cor. Ficou admirando-o por longo tempo até que
um pensamento súbito lhe veio à mente. Pediu que lhe perdoassem um instante de ausência e
correu até a casa, subindo as escadas até o quarto, onde começou a vasculhar seu guarda-roupa à
procura do vestido que iria permutar. Encontrou-o, enfim, e puxou-o para fora, observando-o
durante uns instantes, recordando-se vivamente da história daquele vestido bege que usara na
noite em que conhecera o marido. Muitas outras lembranças associavam-se a ele e elas em nada a
deixavam arrependida por tentar trocá-lo. Afastando os pensamentos desagradáveis, agarrou o
vestido de encontro ao corpo e saiu correndo do quarto, descendo a escadaria até o varandão.
— O senhor aceita barganhas, Sr. Bates? — ela perguntou ao caixeiro-viajante.
Ele fez sinal que sim com a cabeça.
— Se a peça vale a pena, senhora, é lógico.
E ela estendeu o vestido diante dele, cujos olhos se arregalaram e depois brilharam, antevendo a
troca. Ela apontou para o veludo verde e pediu para ver um conjunto de linhas de coser, fitas e
um pouco de seda leve que combinasse com o tom do pano, para o forro. Quando o homem
subiu na carroça para buscar os referidos produtos, Hatti esgueirou-se para perto da patroa e
sussurrou:
— Dona Heather, num vá trocá esse vestido tão bonito — implorou. — O patrão deixa dinheiro
em casa para esse tipo de coisa. Eu mostro onde.
— Obrigada, Hatti — sorriu Heather. — Mas isso é uma surpresa minha para ele, e além do mais
prefiro não usar seu dinheiro, a não ser que ele me autorize.
213
A velha recuou, franzindo a sobrancelha em desaprovação, porém não mais opinou. Heather
voltou sua atenção para o ambulante quando este se aproximou trazendo os objetos que
requisitara.
— O veludo verde é peça cara, madame — falou sério. — Tenho-o carregado como se fosse
ouro e, como pode ver, é da mais alta qualidade.
Ela concordou graciosamente com um sinal de cabeça, e passou a também elogiar seu artigo:
— O vestido vale muito mais, senhor, do que seu material. — E pôs a mão dentro da roupa,
puxando o trabalho feito a mão em torno do corpete, fazendo o bordado cintilar ao sol da tarde.
— Não é todo dia que o senhor tem a boa sorte de encontrar um vestido igual a este, no seu
trabalho. É a última palavra, como pode ver, e muitas mulheres gostariam de possuí-lo.
O vendedor mais uma vez enalteceu as virtudes do seu produto, mas Heather não se deixava
vencer e logo a troca foi completada, com ambos os negociantes satisfeitos. O caixeiro-viajante
deu seu material à Heather, pegou o vestido cuidadosamente, dobrou-o e embrulhou-o com toda
a delicadeza. Colocou-o de lado com carinho, depois se virou, novamente tirou o chapéu e, como
comerciante tarimbado, declarou amargamente:
— Minha idiotice e sua boa conversa, Madame Birmingham, sem dúvida arruinaram meu lucro
do dia inteiro.
Heather ergueu uma sobrancelha e deu uma risadinha, como se sentisse simpatia pela angústia do
homem.
— Bom senhor, sabe perfeitamente bem o valor de peça tão delicada e realmente soube
trapacear, convencendo-me a aceitar esses simples molambos em troca.
E ambos riram, respeitando-se mutuamente; o ambulante abaixou-se numa exagerada mesura
diante dela.
— Madame, sua beleza tem tamanho encanto que deverei voltar em breve para permitir que me
despoje de meus produtos em troca de outro objeto tão simples.
Hatti resmungou forte, reclamando abertamente, enquanto Heather advertia-o com delicadeza:
— Caso o faça, senhor, imploro-lhe que aguce sua esperteza, pois eu jamais serei tão passiva em
permitir que meus grandes tesouros saiam tão facilmente de minhas mãos.
Ele riu, despedindo-se, e a dona da casa acenou-lhe, para depois começar a reunir as mercadorias
enquanto Hatti sacudia a cabeça e resmungava:
— Num sei o que que deu na sinhora, Dona Heather, pra trocá suas roupas linda com aquele
ambulante. O mestre tem dinheiro. Não é um pobretão quarqué.
214
— Hatti, não se atreva a dizer alguma coisa a ele quando voltar para casa! — ela avisou
carinhosamente. — Vou transformar isto num presente de Natal para ele e quero que seja uma
surpresa.
— Sim, sinhora — resmungou a negra, e veio arrastando pés atrás da patroa para dentro da casa,
completamente mal-humorada.
Brandon regressou de Charleston perto da meia-noite do dia seguinte. A casa estava em silêncio e
todos dormiam, com exceção do mordomo Joseph, que o recebeu junto com George. Os três
acordaram primeiro Jeff, depois Heather, carregando malas e baús para cima, até seu quarto.
Ouvindo vozes vindas do outro quarto e percebendo que o marido chegara, Heather levantou-se
e, de roupão e chinelas, entrou no quarto dele, vendo o irmão e os dois criados servindo-se de
bebida. Ela sorriu sonolenta, quando Brandon se aproximou dela, e inclinou-se ligeiramente de
encontro a ele quando a beijou respeitosamente na testa.
— Não era nossa intenção acordá-la, doçura — murmurou carinhosamente, passando um braço
em volta da esposa.
— Hum. — ela suspirou, adormecida. — Eu teria esperado acordada, se soubesse que ia voltar
para casa esta noite. Conseguiu o que desejava no navio?
— Tenho de tentar até depois do Natal, querida, porque em seguida teremos de preparar o
Fleetwood para ficar em seu melhor estado devido aos compradores. Vou levá-lo para Nova
York, quando estiver pronto, e vendê-lo lá.
Heather ergueu a cabeça e observou-lhe o olhar com espanto.
— Você vai até Nova York? — perguntou lentamente. — Vai ficar fora por muito tempo?
Brandon sorriu para ela, acariciando-lhe os cabelos e tirando-os do seu rosto.
— Não por muito tempo, meu bem. Um mês, talvez; um pouco menos, um pouco mais. Não
tenho certeza. Agora acho bom você voltar para a cama. Vamos levantar-nos cedo para ir à igreja.
Beijou-lhe a fronte mais uma vez, observando-a enquanto se afastava para subir ao quarto e, com
uma ligeira carranca, virou-se para os outros homens, deparando com George e Jeff que o
observavam fixamente. O lacaio evitou logo o olhar do patrão, entretanto Jeff sacudiu a cabeça
vagarosamente, como se desesperado. Ignorando-o, Brandon serviu-se de outro conhaque,
sorvendo-o sem pressa.
Heather acordou no dia seguinte para ver Mary remexendo no fogo da lareira do quarto.
Levantou-se tremendo para ir encolher-se diante dele. O vento castigava as árvores perto de sua
janela e um frio dominava o quarto nesta manhã de dezembro.
Heather preparou-se com todo cuidado para ir à igreja, vestindo-se com seda azul-safira. Fora o
que Brandon escolhera especialmente para combinar com a cor dos seus olhos. Quando se pôs
diante
215
do espelho para ver como ficara, a criada pessoal quase perdeu o fôlego:
— Ih, Sra. Birmingham, eu nunca vi ninguém tão bonita como a sinhora! Nunca mesmo!
Heather sorriu para ela e depois observou seu próprio reflexo analiticamente. Estava
exageradamente ansiosa por assumir o melhor de sua aparência esta manhã, já que iria conhecer
muitos dos amigos de Brandon e desejava firmemente causar ótima impressão. Com medo de
falhar, mordia o lábio nervosamente e saiu do quarto muito relutante levando um abrigo azul,
combinando, e um regalo prateado de pele de raposa. Um chapéu da mesma pele fora o
escolhido e ela se preocupava com ele enquanto descia rapidamente a escadaria, pensando
mesmo em voltar e trocá-lo por um gorro, mas o tempo não mais permitia.
Os homens aguardavam na sala de visitas — um par atraente em seus finos trajes de domingo.
Assim que Heather chegou, a conversa foi interrompida no meio. Ambos admiravam sua beleza
estonteante a ponto de ela ficar constrangida devido aos olhares fixos. Percebendo seu mal-estar,
os irmãos adiantaram-se ao mesmo tempo, esbarrando um no outro abruptamente. Dando uma
risada, Jeff pôs-se de lado e permitiu que o outro prosseguisse.
— Estou vestida adequadamente? — ela perguntou preocupadamente a Brandon, esperando que
sua imagem lhe rendesse elogios da parte dos amigos e aprovação da sua própria.
Ele sorriu e ajudou-a a vestir o abrigo.
— Minha doçura, não precisa preocupar-se. Garanto-lhe que será a mais linda a enfeitar nossa
igreja hoje. — E inclinou a cabeça até perto da orelha de Heather, pondo-se atrás dela e deixando
as mãos descansarem ligeiramente sobre seus ombros. — Sem dúvida você porá os homens em
agitação, bem como as línguas das mulheres...
Ela sorriu de prazer e agora não mais temia encontrar-se com os amigos dele.
Quando a carruagem leve parou dando um tranco diante da igreja, as pessoas que se achavam do
lado de fora se viraram para observar os Birmingham saltarem. Jeff foi o primeiro, depois
Brandon e, quando este se virou para auxiliar a jovem esposa, todos os olhos se viraram, colados
na porta da carruagem à espera. Heather surgiu e um murmúrio se fez ouvir entre os presentes.
Umas poucas zombarias e comentários depreciativos partiram de solteironas e respectivas mães;
no entanto, dos homens, um silêncio lisonjeador. Cabeças protegidas com gorros despontaram
apressadamente juntas, diante dos sussurros das mulheres, e sorrisos apareceram amplos nas
caras dos homens.
Jeff sorriu, divertindo-se.
216
— Acredito que nossa linda dama atraiu a atenção de todo mundo — comentou para o irmão.
Brandon olhou em volta e reparou que, ao fazê-lo, diversas pessoas viraram-se rapidamente,
envergonhadas por terem sido apanhadas em flagrante. O canto da boca do comandante ergueu-
se, enquanto oferecia o braço a Heather, e as pessoas por quem passavam dirigindo-se ao interior
do templo ele cumprimentava com a cabeça e um toque no chapéu.
Assim que entraram, uma matrona continuava a cacarejar grosseiramente enquanto a filha espiava
por cima do seu ombro o casal. A atenção de ambas concentrou-se em Heather, pois a
examinavam dos pés à cabeça de um modo que revelava tudo menos interesse amistoso. A mãe
de quadris largos e pesadões, ombros estreitos, a não ser pelo vestido e os cabelos compridos,
não tinha semelhança alguma com o sexo frágil. A filha era mais alta que ela e muito bem
proporcionada, embora seu rosto anguloso e os dentes protuberantes comprometessem o efeito.
Além disso, a pele era muito alva, sardenta, e o cabelo castanho, sem brilho, ficava quase
escondido por um gorro um tanto ridículo. Olhos azuis frágeis e pardacentos, emoldurados por
óculos com armação de aço, vigiavam Heather. Os olhares das duas desceram até a barriga
redonda e nos da filha se podia dizer que surgiu um brilho invejoso. Brandon tirou o chapéu e
cumprimentou a mulher mais velha e depois a filha.
— Sra. Scott. Srta. Sybil. Dia bastante frio, não?
A mãe deu um sorriso gelado. A filha enrubesceu e, com uma risadinha gaguejou uma resposta:
— É. Sim, é mesmo.
Brandon passou por elas e levou Heather pela nave, rumo ao local reservado da família, na frente.
As pessoas já sentadas viravam-se para olhar e cumprimentavam-nos com um sorriso. Brandon
ficou de lado, Heather já entrara no compartimento, deixou Jeff passar primeiro, para depois
então todos tomarem seus lugares. Os dois homens altos e de ombros largos flanqueavam a
esbelta figura e, quando Brandon ajudou-a a tirar o abrigo, Jeff inclinou-se perto dela e sussurrou:
— Você acaba de ter o prazer de conhecer a Sra. Scott, o búfalo da índia, e sua tímida cria, Sybil
— falou sorrindo. — A moça andou perseguindo seu marido por algum tempo, e a mãe,
pressentindo as vantagens de um genro milionário, fez de tudo em seu poder para que os dois se
unissem, contudo sempre se sentiu perturbada porque Bran sempre ignorou sua queridinha.
Neste exato momento aposto que as duas estão imaginando como matá-la. E há muitas outras
solteiras jovens fazendo a mesma coisa. Acho bom afiar suas garras para a batalha de deparar-se
com as rejeitadas após o culto. Não formam um grupo feliz, mas numeroso.
217
Ela sorriu, agradecendo o aviso, e virou-se para olhar Brandon. Ele inclinou a cabeça para
aproximar-se quando ela chegou para perto.
— Você não me disse que tinha mais de uma noiva — confidenciou, achando enlouquecedor
imaginar que poderia ter havido outras mulheres além de Louisa. — Qual destas finas senhoritas
presentes devo evitar? A Sybil poderia perder seu autocontrole? Ela parece forte. Eu detestaria
ser atacada por ela, ou mesmo por alguma das outras moças aqui.
Os olhos de Brandon, estreitando-se, depararam com seu irmão, no entanto Jeff apenas sorriu e
deu de ombros.
— Asseguro-lhe, madame — sussurrou irritado — que jamais me arrastei para a cama com
qualquer uma destas damas. Não tenho desejo por elas. Quanto à Sybil, dificilmente você poderia
chamá-la de moça, já que é 10 anos mais velha!
Sentadas diversos compartimentos atrás, Sybil e a mãe vigiavam o casal Birmingham e não
ficaram nada contentes quando a jovem sorriu para o marido e tirou um pequeno pedaço de linha
do casaco e depois o alisou com intimidade. Por todos os motivos pareciam formar um casal
muito amoroso.
Terminando os serviços religiosos, os Birmingham passaram pela porta e cumprimentaram o
pastor, parando por um instante para que Brandon lhe apresentasse Heather, e depois
continuaram, descendo os degraus. Jeff ficou detido por um grupo de jovens casais,
aparentemente amigos seus, e pediu desculpas porque se iria reunir a eles. Logo após vários
homens aproximaram-se de Brandon quando oferecia o braço à esposa.
— Você é bom conhecedor de cavalos, Brandon — disse um deles, com um sorriso. — Que tal
vir com a gente e discutir o assunto?
Dois deles pegaram um em cada braço seu e arrastaram-no de perto da esposa e, não tendo
escolha, Brandon riu por cima do ombro:
— Volto daqui a pouquinho, meu bem.
Os homens levaram-no para um lado e, assim que se viram fora do alcance do olhar do pastor,
Heather percebeu um deles tirar uma pequena garrafa de dentro do casaco. Ela sorriu, para si
mesma quando a passaram para Brandon, dando-lhe tapinhas amigáveis nas costas. Agora ela
duvidava de que houvesse qualquer problema sério para ser resolvido.
Por alguns instantes ficou indecisa, observando grupos femininos reunindo-se no adro, sentindo-
se deslocada por não haver um rosto conhecido à vista. Sua atenção foi desviada para uma
senhora idosa, bem vestida, que procurava um local aquecido e protegido ao lado da igreja. A
mulher trazia uma sombrinha que usava mais como bengala do que como proteção contra o sol.
O criado de sua carruagem
218
trouxe-lhe uma cadeira e logo a senhora acomodou-se. Olhando Heather, gesticulou
vigorosamente para que a jovem viesse até ela. Quando Heather se aproximou, a anciã bateu no
solo bem à sua frente com a ponta da sombrinha.
— Fique aqui, criança, e deixe-me dar uma olhada em você — falou resolutamente.
Heather acedeu nervosamente e foi submetida a um demorado exame.
— Ora, você é uma coisinha muito linda! Quase sinto ciúme — brincou a senhora. — E sem
dúvida você ofereceu muito assunto aos círculos das sirigaitas para as próximas semanas. Caso
não saiba ainda, sou Abegail Clark. E qual é seu nome, minha querida?
O criado da senhora trouxe um cobertor e arrumou-o sobre a perna da patroa enquanto Heather
respondia:
— Heather, Madame Clark. Heather Birmingham. A mulher fungou alto.
— Já fui madame outrora, mas, desde que meu marido morreu, prefiro ser chamada de Abegail.
— E continuou sem dar à jovem a oportunidade de argumentar: — Claro que já sabe que
destruiu as esperanças de todas as jovens disponíveis daqui. Brandon foi o rapaz mais perseguido
que já conheci. Mas estou satisfeita por ver que ele fez uma ótima escolha. Por algum tempo
deixou-me preocupada.
Considerável grupo de damas reunira-se perto das duas e escutava a conversa. Jeff abriu caminho
entre elas até perto de Heather e, passando um braço reconfortante em sua cintura, sorriu para a
senhora sentada, que prosseguiu em seus comentários, ignorando-lhe a presença.
— E provavelmente agora Jeff é quem herdará a atenção de todas essas moças com as cabeças
emplumadas.
E deu uma risadinha para si mesma por causa da própria brincadeira. Jeff riu e olhou para a
cunhada.
— Você vai ter de tomar cuidado com essa velha viúva, Heather. Tem a língua tão afiada como
um sabre e o gênio de um velho crocodilo. Aliás, creio que é conhecida por haver arrancado uma
perna aqui e outra ali.
— Seu jovem presunçoso! Se eu fosse 40 anos mais moça, você ficaria de joelhos na minha
frente, implorando por uma palavra gentil — declarou a Sra. Clark.
Jeff riu.
— Ora, Abegail, amor, eu imploro por essa palavra agora! A anciã dispensou essas palavras
encantadoras:
— Não preciso que um moço almofadinha e tagarela me venha com essa conversa fútil.
Jeff sorriu.
219
— É fácil perceber, Abegail, que este sol fulgurante não aqueceu seu amor por mim nem
tampouco abateu seu espírito.
— Ah! — exclamou a velha, — É esta coisa inspiradora e jovem que está ao seu lado que me fez
ganhar o dia. Seu irmão fez um bem a si mesmo, além de ter estado ocupado... — E olhou para
Heather. — Está esperando o bebé de Brandon para quando, meu bem?
Sentindo o interesse agudo de cada mulher no assunto agora, Heather replicou tranqüilamente:
— Por volta do fim de março, Sra. Clark.
— Ham! — A exclamação veio da Sra. Scott, que aderira ao grupo. — Ele não perdeu muito
tempo com ela, isto é certo! — Zombou de Heather. — Seu marido é famoso pela preferência
que tem pela cama de jovens, porém você mal parece ter idade para estar grávida.
A Sra. Clark bateu com a sombrinha no chão.
— Tenha cuidado, Maranda! Seu despeito está à vista! Só porque não pode armar-lhe uma
armadilha em nome de Sybil, não fique abusando desta inocente!
— Claro, era apenas uma questão de tempo alguém agarrá-lo — falou a Sra. Scott com sorriso
afetado, dando uma olhada geral para as outras senhoras. — Do jeito que ele anda por aí, foi um
milagre alguma garota não o ter apanhado antes.
Heather começou a ruborizar-se; no entanto Jeff replicou com facilidade, em meio a um sorriso
irônico:
— Mas isso tudo foi antes de ele conhecer a esposa, Sra. Scott. Um olhar hipócrita surgiu na
mulher quando se dirigiu à jovem em voz alta, clara e crivada de insinuações:
— Quando exatamente foi que se casou, minha queridinha?
A sombrinha da Sra. Clark, a essa altura, cavou um buraco aos seus pés.
— Não é da sua conta, Maranda! — ela interrompeu, decidida. — E detesto esse tipo de
tagarelice!
A Sra. Scott ignorou a velha e prosseguiu em tom zombeteiro:
— E como foi que conseguiu levá-lo até sua cama, minha cara? Deve ter usado algum truque
simples. Aqui ele certamente não demonstrava muita hesitação.
— Maranda, você perdeu o controle? — ganiu Abegail, agarrando a sombrinha como se fosse um
taco. Onde estão seus bons modos?!
Brandon atingira a esquina da igreja a tempo de escutar o último diálogo e, agora, pisando forte,
veio para o lado de Heather, dirigindo um olhar gelado para sua inquisidora. O malévolo
comportamento da Sra. Scott tornou-se mais cauteloso, e ela recuou um passo.
— Existem certas jovens contra as quais tenho certa prevenção, madame, como a senhora
mesma sabe muito bem! — exclamou Brandon friamente.
220
A Sra. Scott empertigou-se, enquanto risadinhas abafadas percorriam o grupo de mulheres, e
Brandon virou as costas, dispensando-a ao mesmo tempo que sorria para a Sra. Clark e punha a
mão de Heather na curva do seu braço.
— É, Abegail, como sempre você está no centro da briga. Ela riu.
— Você perturbou a cidade, trazendo uma forasteira como esposa, Brandon. Entretanto
restaurou minha fé no seu bom senso. Jamais apoiei sua outra escolha. — E seu olhar dirigiu-se à
Heather. — Mas esta aqui... desta acho que sua mãe teria orgulho.
Ele sorriu e replicou delicadamente:
— Obrigado, Abegail. Fiquei com medo de que você sentisse ciúme.
— Quer sentar-se um pouco e conversar com uma velha? — ela lhe perguntou e depois deu uma
risadinha um pouco maliciosa. — Eu gostaria que me contasse como capturou essa encantadora
criatura.
— Talvez em outra ocasião, Abegail — ele declinou do convite. — A viagem até a casa é longa e
temos de voltar agora mesmo.
Ela sorriu e concordou balançando a cabeça, enquanto dava uma olhada na direção da Sra. Scott.
— Compreendo muito bem, Brandon. O dia está barbaramente frio.
— Você não tem enfeitado Harthaven com sua presença faz bastante tempo, Abegail —
comentou Jeff.
Ela deu uma risada.
— O quê? E arruinar minha reputação também? Mas agora que vocês dois têm uma mulher em
casa para manter os dois quietinhos — continuou carinhosamente — sinto-me mais à vontade
para ir lá.
Jeff curvou-se sobre sua mão e deu um leve beijo.
— Apareça para visitar-nos breve, amor. A casa está muito diferente depois que Brandon a
trouxe para casa. A própria Hatti gostou da mudança.
Após os Birmingham fazerem suas despedidas, Brandon abriu caminho para Heather por entre o
pessoal, e Jeff os seguiu. Quando iam passando, a Sra. Scott ergueu a cabeça em sinal de
desprezo.
— Com tantas jovens bonitas aqui ele tinha de ir até a Inglaterra e trazer de lá uma tory () como
esposa — zombou.
Jeff riu por entre os dentes e tocou a ponta do chapéu:
— O pedaço mais desgraçado de linho de tory irlandesa que já vi — comentou ao passar por ela.
Nota de rodapé:
() Tory: membro do Partido Conservador da Inglaterra. Outro significado (pejorativo) denominação que se
dava na Irlanda, no século XVII, aos assaltantes de estrada e guerrilheiros. (N. do T.)
Fim da nota de rodapé.
221
Quando os três se aproximaram da carruagem, Heather olhou para os lados e viu Sybil Scott
sentada na carruagem de sua família, observando-os desoladamente enquanto se aprontavam para
partir. Ela parecia tão desanimada que Heather não pôde deixar de sentir pena dela e até de sua
mãe, que agora os observava fixamente após ter perdido no jogo fútil que armara. Ganhara
pouco e perdera a reputação junto a muitos. Se ela tencionara alcançar vingança informando a
Heather sobre o passado de Brandon, fora esforço inútil, porque esta sabia consideravelmente
mais a respeito do marido do que a velha jamais sonhara em saber. Desde seu primeiro encontro,
Heather percebera que não se tratava de um santo, portanto as palavras daquela mulher pouco
efeito fizeram.
Brandon estendeu a mão para que subisse à carruagem enquanto as duas Scott continuavam a
vigiar. Heather afundou-se no assento traseiro e desdobrou uma manta por cima das pernas e
joelhos, mantendo a metade do pano convidativamente para cima, enquanto o marido subia para
ficar ao seu lado. Brandon observou bem seus olhos, interrogando-se sobre seu humor, porém
ela sorriu docemente e foi para mais perto dele, procurando aconchegar-se. O marido olhou
demoradamente para aquela mão enluvada em cima de seu braço antes de desviar o olhar para
algum ponto distante além da janela.
Um vento norte frio tocava melodia aflitiva nos topos dos altos pinheiros da Carolina,
provocando arrepios nos ocupantes da carruagem que se sacudia na estrada seca e poeirenta além
dos limites da cidade. Heather encolheu-se de encontro a Brandon, debaixo da coberta, enquanto
Jeff, sentado sozinho diante deles, esforçava-se para manter o corpo aquecido. Ela o observava,
achando graça porque Jeff tentava arrumar uma parte do cobertor no assento frio onde se
encontrava, outra em cima das compridas pernas e mais um tanto para aquecer os pés. Encolheu-
se no canto, com o sobretudo puxado até os ombros, mas a cada solavanco uma ponta se soltava
e tinha de ser recolocada. Finalmente Heather aconchegou-se mais ainda a Brandon, deixando
espaço para Jeff poder sentar-se ao seu lado.
— Dizem que três é demais, Jeff — ela falou sorrindo. — Mas que tal sentar-se ao meu lado e
formar um trio aquecido?
Sem delongas ele aceitou o convite e espalhou seu cobertor pelas coxas dos três. Heather
agasalhou-se no meio dos dois, debaixo do braço de Brandon, e Jeff sorriu para ela, contente.
— Que vergonha, madame! — Ele fingiu ofensa. — Não era meu conforto que a preocupava. a
senhora pensava apenas em também ficar aquecida deste lado.
Heather olhou para ele e deu uma risadinha. Brandon sorriu.
— Tenha cuidado, Jeffrey. Esta pequenina tory pode atrair por feitiço todo o calor do seu corpo.
— E deu um olhar contemplativo
222
para ela. — Nem consigo imaginar por que lado ela lutaria, sendo meio irlandesa, meio tory, e
casada com um ianque.
Jeff entrou na conversa com um tom irónico na voz:
— Creio que seu sotaque inglês é que faz as pessoas se perguntarem a respeito dela. Falando
desse jeito ela em breve fará com que o país todo pegue em armas contra nós. O pobre pai daria
um pulo na sua cova se soubesse que temos uma tory entre nós. — Olhou para baixo e, num tom
afetado: — Minha cara tory, você simplesmente precisa aprender como falar arrastado igual a
uma ianque..
Heather fez sinal com a cabeça que entendera, e brincou, arrastando a voz o melhor que podia:
— Ora, sim sinhô, seu Jeeeff.
Os dois irmãos explodiram em gargalhadas e ela ficou olhando surpresa para eles, um pouco
confusa com tal reação. Depois percebeu que usara a expressão e a forma de falar de uma criada,
bem diferente das vozes macias, preguiçosas das mulheres que escutara naquela manhã, e, então
se uniu à alegria dos irmãos, rindo de si mesma.
Os serviçais haviam recebido seus presentes na noite anterior, quando todos se reuniram, unidos
pelo espírito do Natal, e desfrutaram da generosidade do patrão com bebidas e comidas,
comemorando a festividade à sua própria maneira. Heather guardara seu presente para Brandon
até esta manhã natalina para entregá-lo quando estivesse a sós com ele. Acordara cedo com o
intuito de ouvir os ruídos de quem acorda no quarto do marido até finalmente perceber, pelo
chapinhar da água quando se lavou e em seguida o bater de portas do guarda-roupa, que ele se
arrumava. Foi então que Heather se levantou e, pegando o presente lindamente embrulhado,
empurrou a porta de ligação. Brandon não notou sua entrada no quarto. Estava ocupado,
remexendo no guarda-roupa à procura de uma camisa, e tinha só metade da roupa no corpo —
calças e meias. Ela depositou o presente na cama e caminhou sorrateiramente até uma cadeira
perto da lareira, sentando-se e encolhendo as pernas para baixo do corpo. O marido encontrou a
camisa e se virou, vestindo-a, quando viu a porta aberta. Seu olhar percorreu o quarto até ver a
esposa empoleirada na cadeira com um sorriso amplo e irreverente cintilando no rosto.
— Bom-dia, Brandon — falou alegremente. — Feliz Natal. Sua atitude foi muito parecida com a
de um duende endiabrado
e Brandon não pôde resistir a dar um sorriso.
— Bom-dia, doçura, e que o seu também seja feliz.
— Eu lhe trouxe um presente — ela disse, apontando para a cama. — Não vai abri-lo?
Ele sorriu, enquanto enfiava a fralda da camisa nas calças, e acedeu ao pedido da esposa. Um
tanto surpreso ergueu casaco e admirou-o,
223
reparando em especial no brasão da família que ela pregara no lado esquerdo.
— Gostou, Brandon? — ela perguntou na mesma hora. — Experimente para eu ver.
Ele o vestiu — estava perfeito. Sorrindo de contentamento com seu presente, amarrou o cinto e
examinou o trabalho do brasão mais minuciosamente.
— É uma peça linda, Heather. Eu não sabia que você era tão habilidosa. — E olhou-a com um
brilho malicioso nos olhos. — Mas, agora que sei, você terá de fazer todas as minhas camisas. E
não sou pessoa fácil de agradar. Até minha mãe me achava cansativo no tocante a fazer minhas
camisas. — Sua voz era suave e os olhos mostravam alguma coisa muito estranha enquanto a
devoravam. — É uma alegria descobrir que a esposa tem capacidade para me agradar.
Heather riu, muito alegre, e pulou da cadeira para aproximar-se dele e admirar o homem e a
roupa.
— Realmente caiu muito bem — afirmou orgulhosamente, acariciando o tecido que cobria
aqueles ombros largos. — E você fica muito bonito nele. — Deu um passo para trás e sorriu
amplamente. — De qualquer modo, eu já sabia que ficaria.
Ele sorriu enquanto se encaminhava para o baú, do qual retirou uma pequenina caixa preta que
entregou a Heather.
— Infelizmente este simples presente será suplantado pelo seu rostinho radiante e parecerá
ínfimo em relação ao que me deu.
E ficou ao lado dela, que o abria. A grande esmeralda com seus diamantes circundantes cintilaram
com a luz da manhã, quando Heather levantou a tampa, e ela encarou o broche de boca aberta,
descrente do que via, e depois ergueu lentamente os olhos para os dele, assombrada.
— Isto é para mim? — perguntou-lhe.
Brandon riu levemente, pegou-o em suas mãos e abriu o fecho, atirando a caixa na cama.
— E para quem, madame, a não ser a senhora, eu compraria tal presente? Asseguro-lhe que é
seu.
E passou os dedos por dentro do roupão da mulher para pregar o broche no veludo cor de
vinho, mas eles tremeram com o calor da carne macia, o que o fez demorar além do tempo
normal.
— Vai conseguir prendê-lo? — perguntou a Brandon, observando-lhe as mãos esguias e
morenas. O brilho malicioso no seu olhar sumira, deixando outro, suave, quente, que o toque
masculino provocara. Um velho tremor se apossou dela.
— Sim — ele replicou, finalmente prendendo o fecho. Heather inclinou-se de encontro a ele,
sem querer afastar-se, e acariciou a jóia.
224
— Obrigada, Brandon — murmurou. — Nunca me deram uma coisa tão bonita.
O braço do marido envolveu-a e o coração de Heather começou a bater aceleradamente quando
ele lhe ergueu o queixo, porém uma batida veio da porta e Brandon se afastou. Logo após puxou
uma cadeira da mesa do desjejum para que a esposa se sentasse, enquanto Hatti entrava com a
bandeja de comida. Brandon sentou-se e implicou com a negra:
— Onde está a sombrinha que eu lhe dei, Hatti? Pensei que iria bater com ela pelo chão da casa
esta manhã para chamar a atenção dos outros. A Sra. Clark poderá ficar com ciúme..
— Sim, sinhô, seu Bran — a mulher disse sorrindo. — Ela ficô mesmo. Ela nunca teve uma
bunita igual àquela. E o sinhô também tá usando um casaco bunito à beça.
A velha negra serviu-os com lábios franzidos e depois dirigiu seu corpanzil para a porta. Antes de
sair, virou-se e admirou mais uma vez o casaco do patrão.
— Sim, sinhô, esse casaco é um bucado bunito! — Parou, depois continuou com certa ironia na
voz: — Mas foi uma pena a patroa tê de trocá a roupa dela pra consegui ele.
Brandon largou o garfo abruptamente e olhou para a criada, contudo ela virou o olhar para outro
lado, com um sorriso de satisfação, e começou a sair do quarto. Lentamente Brandon desviou a
atenção para a esposa, encostando os cotovelos na mesa e juntando as mãos à sua frente. Heather
desviara o olhar para a janela e parecia observar pensativamente alguma coisa distante. Brandon
descansou o queixo nas mãos e falou com lentidão proposital:
— Trocando vestidos por presentes, Heather? Que história é essa?
Ela se virou com uma expressão inocente no rosto e encolheu os ombros.
— Eu não tinha dinheiro e queria fazer-lhe uma surpresa com este presente. Depois, era apenas
um vestido velho.
Ele fez uma carranca e disse:
— Você não tinha vestido velho. Heather sorriu e replicou rapidamente:
— Tinha, sim.
Brandon observou-a imóvel durante alguns instantes, vasculhando a memória, mas não
conseguiu recordar-se de nenhum vestido velho de Heather. A não ser pelo de noiva, ela o
conhecera praticamente nua. Ele ergueu uma sobrancelha para ela.
— E qual vestido você considerava velho, minha querida? — perguntou.
225
Ela o encarou e inclinou-se para trás, passando a mão pela barriga redonda, e respondeu:
— Aquele em que você me conheceu, lembra-se?
— Ah!... — ele grunhiu. Ergueu o garfo, pegou um pedaço de presunto e mastigou-o bastante
irritado durante alguns momentos para depois engoli-lo. Sentia-se reprovação no tom de voz
quando falou: — Eu preferia que não tivesse feito isso, Heather. Detesto a ideia de ver minha
esposa trocando objetos com um vendedor ambulante. — Mais alguns pedaços de panquecas, e a
voz saía num tom de severa admoestação: — Geralmente há dinheiro na mesa lá de baixo. Mais
tarde eu lhe mostro onde. Deverá ser usado quando você precisar.
Heather tomou seu chá, saboreando-o, e ergueu o queixo com ar ligeiramente ofendido.
— Senhor, compreendi muito bem! — disse para irritar. — Seu dinheiro não deveria ser gasto
por mim.
Brandon largou o garfo, agarrou a mesa e olhou fixo para a mulher.
— A senhora transacionou um objeto que era meu, madame, meu! — ele rosnou com dentes
semicerrados. — Antes de nos casarmos a senhora pegou algum dinheiro meu e deixou aquele
vestido como pagamento. Para mim era um troféu de batalha; uma lembrança de uma graciosa
mocinha que conheci, e que guardei para ter a recordação dela e da noite que passamos juntos.
Heather franziu a testa, confusa, e observou-o. Lágrimas vieram-lhe aos olhos enquanto percebia
a tristeza que causara a ele.
— Desculpe, Brandon — murmurou carinhosamente. — Eu não sabia que você prezava tanto o
vestido.
E baixou o olhar até o colo, inconscientemente mexendo no broche, agora em total abandono.
Brandon olhou para ela e, lembrando-se de que era Natal, enterneceu-se e sentiu-se arrependido
por haver apagado a alegria do presente dela. Apressando-se em animá-la, levantou-se e foi
ajoelhar ao lado de sua cadeira.
— Minha doçura — murmurou, pegando sua mão ternamente. — Gostei muito da túnica e vou
usá-la orgulhoso de sua perícia em fazê-la com tanta perfeição, porém não sou homem avarento e
não quero minha esposa trocando roupas com ambulantes, igual a essas megeras casadas com
fazendeiros. Tenho dinheiro e ele também é seu. Agora venha. — Levantando-se, ajudou-a a
erguer-se e passou-lhe os braços pela cintura, mantendo-se assim por alguns momentos. —
Vamos ter um Natal feliz e alegre, e chega de lágrimas. Vai estragar essa carinha linda.
O dia estava chuvoso, a casa em silêncio, e havia poucos serviçais por ali. Jeff fora até Charleston
para distribuir seus presentes e só voltaria à noite para juntar-se ao casal na ceia festiva. Brandon
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acendeu o fogo na lareira da sala de visitas e sentou-se no chão, ao lado da cadeira da esposa,
encostando nela com as pernas estendidas e o braço descansando no colo da mulher, quando
começou a ler para ela Sonho de Uma Noite de Verão, de Shakespeare. Heather escutava feliz,
fazendo roupinha para o bebé, e ria ligeiramente quando ele imitava as falas dos personagens.
Diante da lareira estava uma imensa acha de Natal de vidoeiro com a qual Jeff e Ethan haviam
lutado na noite anterior. Estava alegremente decorada com galhos de pinho, visco e azevinho,
presos em volta com fitas vermelhas, e havia duas enormes velas acesas em cada extremidade.
Findando a estória, Brandon trouxe um tabuleiro de xadrez que armou para ensinar o jogo à
esposa, embora ela ficasse um tanto confusa com o movimento das peças enquanto ele
prosseguia na explanação. Mas ria muito dos seus inúmeros erros, provocando risadas do marido
por causa de sua inépcia. A noite aproximava-se e ela pediu licença ao marido para ir mudar a
roupa, descendo depois a escadaria com um vestido de veludo verde-escuro para combinar com
o broche. O busto balançava desafiadoramente acima do decote e, quando fez a mesura, Brandon
beijou-lhe a mão e devorou-a com o olhar.
— O broche não tem nem a décima parte da beleza de quem o usa, madame — murmurou com
o sorriso.
E serviu-lhe um copo de vinho Madeira, que ela tomou sorrindo.
— Penso que esteja sendo apenas gentil comigo, depois de eu haver jogado xadrez tão mal.
Ele deu um leve riso.
— Você é muito desconfiada, minha querida. Como pode dizer isso, quando o que procuro é
tão-somente comentar sobre sua beleza?
Heather sorriu e dirigiu-se para a janela, de onde observou a noite chuvosa. O vento uivava pelos
cantos da casa e carregava a chuva por entre as árvores e contra a grande mansão, como se
quisesse vingar-se. Dentro da sala de visitas, no entanto, um fogo animador crepitava e os
corações também estavam quentes. Fora um dia delicioso para Heather e para alguém que ela
sempre adoraria. Enquanto ela permanecia ali, sonhando acordada, Brandon veio para seu lado e
perscrutou a escuridão por cima do ombro dela.
— Adoro chuva — ela murmurou. — Especialmente quando fica assim. tempestuosa, e eu num
ambiente aconchegante. Meu pai sempre ficava comigo quando ventava muito forte. Suponho
que por isso eu goste tanto. Nunca tive medo de chuva.
— Você deve ter amado muito seu pai. Ela balançou a cabeça lentamente.
— Amei, sim. Era um bom pai e eu o amava demais e sempre ficava com medo quando ele
viajava e eu ficava sozinha. — E deu
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uma risada. — Não sou muito corajosa. Papai vivia dizendo-me que eu não era. Fui uma criança
medrosa.
Brandon sorriu carinhosamente e pegou-lhe a mão com ternura.
— Menininhas não costumam ser corajosas, doçura. Espera-se que sejam mimadas, protegidas e
sempre mantidas a salvo de seus temores.
Heather encarou-o, espantada com a resposta, depois baixou o olhar e riu estranhamente
enquanto o rosto se ruborizava.
— Já comecei a incomodá-lo com a história da minha vida. Desculpe. Não foi por querer.
— Eu nunca disse que fiquei aborrecido, meu bem — ele murmurou. E levou-a com ele para o
canapé e lá estavam quando passos ecoaram pelo varandão e Jeff irrompeu pela porta da frente,
acompanhado por uma lufada de vento e de chuva. Joseph veio correndo dos fundos da mansão
para segurar-lhe o chapéu e capa ensopados e oferecer-lhe um par de sapatos caseiros. Jeff
postou-se na descalçadeira ao lado da porta para arrancar as altas botas. Calçou os sapatos baixos
e enxugando o rosto, uniu-se ao casal.
— Meu Deus, mas que dia horrível! — comentou, servindo-se de um reforçado conhaque no
bar. Em seguida foi aquecer as costas diante da lareira e lá retirou um estojo comprido e estreito
do casaco, oferecendo-o à Heather.
— Minha graciosíssima pequena tory, eu lhe trouxe um presente, embora eu declare que sua
utilidade possa ser questionada no dia de hoje.
— Ora, Jeff, não devia ter feito isso! — ela murmurou, mas assim mesmo sorriu de felicidade. —
Você me deixa sem graça, pois nada tenho para lhe dar.
Ele sorriu.
— Aproveite o presente, Heather. Mais tarde eu escolho o meu. Ela se apressou em abrir o
estojo, de onde tirou um lindo leque, com o cabo de marfim trabalhado e uma rica renda
espanhola branca e delicada. Abriu-o e piscou timidamente seus longos cílios acima dele.
— Ora, Sr. Jeff — falou arrastado, imitando perfeitamente as refinadas damas da sociedade local.
— O senhor conhece muitíssimo bem o coração de uma moça.
Ele sorriu.
— É verdade, Heather, mas creio que o presente do meu irmão faz com que o meu pareça o de
um mendigo.
— É lindo, não é? — murmurou Heather, tocando orgulhosa no broche. Ergueu os olhos e
sorriu para o marido, que a observava com olhar carinhoso.
Jeff reconheceu a reação do irmão.
— Meu irmão sempre escolhe bem. Quanto a isso não tenho dúvidas.
228
Hatti abriu as portas duplas que davam para o salão de jantar e anunciou:
— Acho bom vir logo inquanto tá quente.
Heather levantou-se do canapé e alisou o vestido balançando precariamente na borda do corpete.
Esse movimento surpreendeu Jeff de boca aberta e seus olhos arregalaram-se com o gesto
inocente. Brandon ficou de pé e, colocando o dedo indicador debaixo do queixo do irmão,
fechou-lhe gentilmente a boca e avisou-
— Calma, Jeffrey. Ela é comprometida. Mas não se desespere. Talvez algum dia encontre uma
moça por quem você vá babar
Virou-se e, colocando a mão na parte mais delgada das costas da esposa, guiou-a até sua cadeira, à
mesa de jantar. Agora os assentos ficavam juntos, e Brandon parou ao lado do seu, na cabeceira,
esperando por Jeff. Quando o irmão se aproximou de sua cadeira, encolheu os ombros, quase
como pedindo desculpas.
— Ora, Louisa não seria capaz de encantar-me tanto...
Brandon ergueu uma sobrancelha para o irmão, e Heather observou-os intrigada, perguntando-se
que parte da conversa teria perdido, mas, sem outros comentários, os irmãos sentaram-se e a
primeira mostra das festividades natalinas foi disposta à sua frente.
A refeição era uma obra-prima de arte culinária, atestando a delicada perícia de Tia Ruth no
tocante à comida e, durante ela, a conversa masculina girava em torno de negócios. Com a testa
franzida totalmente, Brandon cortou um pedaço de ganso assado para a esposa e colocou-o no
seu prato.
— Você descobriu mais alguma coisa a respeito da serraria, ou de Bartlett? — perguntou ao
irmão mais novo.
— Não muita — replicou Jeff. — Sei que usa escravos no trabalho da serraria e pede preços
muito altos pelas suas mercadorias. Atualmente anda tendo prejuízo.
— Então o negócio poderia ser transformado num empreendimento relativamente seguro —
comentou Brandon, mais para si mesmo. Olhou para o irmão. — Se os escravos fossem
afastados e se pegassem salários a bons trabalhadores, a serraria seria compensadora. Há um
excelente mercado para madeira em Delaware e, do jeito que as coisas correm em Charleston,
creio não haveria problemas em vender madeira em acabamento aqui mesmo. A gente podia
examinar isso melhor e depois discutir o assunto após certas verificações. Dentro de duas ou três
semanas partirei, levando o Fleetwood para Nova York. Teremos de tomar uma decisão a
respeito da serraria, definindo a situação antes de minha partida.
— E a Louisa? — perguntou Jeff, sem tirar os olhos do prato. Hoje ela estava na cidade e me
imprensou para saber se você havia estudado as dívidas dela e resolvido o que fazer. Eu lhe disse
que nada sabia a respeito.
229
Heather estivera ouvindo a conversa calada até mencionarem ”Louisa. Brandon notou sua
atenção redobrada e respondeu com tranqüilidade.
— Outro dia ela foi até o Fleettwood para me falar sobre sua situação financeira. Ofereci-lhe
pagar suas dívidas e ainda lhe dar uma boa soma em troca das terras, mas continua intratável
como sempre foi e assim resolvi pagar as contas pequenas que contraiu quando na expectativa de
tornar-se minha esposa. As dívidas maiores que ela contraiu antes não serão tocadas por mim, a
não ser que me garanta que as terras serão minhas. Ela gostaria que eu a livrasse dos
compromissos para poder barganhar com as terras, mas nessa ela não vai me pegar. Vou
informá-la de minha decisão e acertar tudo com aqueles credores que lhe fizeram concessões por
minha causa antes de viajar. Portanto, parece que estarei ocupado de agora em diante,
especialmente se a serraria parecer tentadora. Por falar nisso, você estaria interessado em investir
uma pequena soma, se ela valer a pena?
Jeff sorriu.
— Pensei que jamais me perguntaria..
A conversa focalizou verdadeira miríade de detalhes e, quando o jantar se encerrou, Jeff
apressou-se em circundar a mesa para ajudar Heather a levantar-se antes de Brandon sair do
lugar. Depois, conduziu-a para o salão de recepção, a despeito da carranca do irmão, e a fez parar
abaixo do candelabro, quando olhou para cima e murmurou docemente:
— Pobrezinho! Está lá em cima o dia todo, e parece que não foi nem um pouco aproveitado...
Os olhos de Heather seguiram os dele e viram lá em cima, no centro do candelabro, um solitário
galhinho de visco pendurado. Jeff pigarreou e sorriu.
— E agora, madame, a respeito daquele presente que a senhora mencionou mais cedo.
E pegou-a nos braços, ignorando sua expressão de assombro, inclinou-se sobre ela e beijou-a de
modo prolongado e nem um pouco fraternal. Heather ficou passiva diante do ato apaixonado.
Brandon porém deixou transparecer seu desagrado pela atitude liberal do irmão, olhando
severamente para os dois. Jeff recuou, porém deixou um braço passado pela cintura de Heather e,
vendo a carranca do irmão, riu por entre os dentes.
— Calma, Brandon. Afinal, eu nunca cheguei a beijar a noiva.
— Você me faz indagar a mim mesmo se é seguro deixá-la a sós com você quando eu for viajar
— retorquiu Brandon. — Se o comportamento dela não tivesse sido perfeito até agora, eu
começaria a imaginar coisas.
Jeff riu e ergueu uma sobrancelha zombeteira.
230
— Ora, Brandon, será aquele monstro do ciúme que vejo atuando em você? Pensei que há muito
tempo se havia declarado livre desse demónio..
As semanas passaram rapidamente e agora faltavam apenas alguns dias para a viagem de
Brandon. Ele estivera ocupado durante esse tempo, cuidando do navio, das dívidas de Louisa e
da serraria, que eles afinal resolveram comprar, e pouco tempo passava em casa. Por várias vezes
dormira no Fleetwood, ficando sem voltar três ou quatro dias. Quando em casa, era no escritório
que podia ser encontrado praticamente a qualquer hora, trabalhando com os livros e com a
contabilidade, papéis e recibos. Ficava junto com Heather apenas nos sábados. Normalmente iam
à igreja, onde Heather era agora cumprimentada com respeito e amizade consideráveis.
Neste dia, logo após o almoço, Brandon levara Leopold para um último e puxado passeio antes
de embarcar. A tarde findava quando o cavalo regressou, causando enorme preocupação, pois
voltara sem seu cavaleiro. Heather por pouco ficou histérica quando um dos criados lhe chamou
a atenção, apontando para a pastagem, mas, da orla da floresta, surgiu Brandon. Assim que se
aproximou, todos puderam ver que se achava coberto de poeira e o suor fazia riscos no rosto
sujo. Mancava ligeiramente e sacudiu irritadamente seu chicote quando viu o grupo aguardando.
Leopold deu uma olhada para ele, parecendo de bom humor enquanto sacudia a cabeça e
relinchava ironicamente como se reprovando as habilidades hípicas do patrão. Brandon
praguejou, atirando o chicote no estábulo, e deixou-se cair exausto num banco.
Hatti deu uma risadinha e perguntou.
— Aquele cavalo velho maltratô o sinhô de novo, seu Bran? Ele blasfemou de novo e atirou o
chapéu na velha negra, mas esta se esquivou, zurrou com todo fôlego e bateu em rápida retirada.
Jeff riu às escâncaras.
— Uma coisa, é certa, Brandon: nesse ritmo você vai gastar as costas da jaqueta antes de gastar o
fundilho das calças!
George virou o rosto e tossiu forte, como se num acesso de sufoco, e depois lutou para manter
uma expressão impassível no rosto por causa da ira do patrão.
Heather continuava com a testa franzida.
— O que aconteceu, Brandon? Você chegou mancando!
— Aquele bicho desgraçado me pegou desprevenido e passou por um galho baixo de árvore! —
ele rosnou zangado. — Quanto à manqueira, é uma bolha. Essas botas não foram feitas para
caminhar.
Dizendo isso, mostrou as costas enlameadas e em seguida dirigiu-se a passos largos para a casa.
Quando saiu, o cavalo negro balançou
231
a cabeça de novo, depois relinchou e empinou-se. Brandon virou-se com o punho cerrado,
sacudindo-o várias vezes, e berrou:
— Qualquer dia desses eu vou te matar, sua mula dos infernos. E mais uma vez virou-lhe as
costas e irrompeu casa adentro. George exclamou, ainda com ironia na voz:
— Acho melhor ir prepará o banho. Ele está com cara de quem precisa de um.
Naquela noite o jantar transcorreu no maior silêncio, já que as curtas respostas de Brandon não
davam margem à mais leve conversação. Não foi difícil perceber que seu orgulho doía mais que
os ferimentos e as bolhas. No dia seguinte sua disposição não mudou muito e, quando Heather
bateu na porta do escritório, foi de forma bem tímida. Assim que o marido mandou que entrasse,
ela o encontrou sentado à mesa de trabalho, debruçado em livro-caixa e balanços.
— Tem um minuto, Brandon? — ela perguntou, indecisa. Jamais o incomodara antes no seu
trabalho e agora estava mais do que hesitante.
Ele respondeu com um balanço da cabeça.
— Creio que sim.
E encostou-se na cadeira, observando-a enquanto atravessava o aposento, e fez sinal para que se
sentasse numa cadeira ao lado da mesa. E esperou que ela se arrumasse nervosamente na beirada
da cadeira. Heather ficou irrequieta, tentando reunir coragem para iniciar conversação e quase
pulou e saiu correndo quando o marido perguntou:
— A senhora quer discutir alguma coisa, madame?
— Sim. é que. você tenciona ficar longe muito tempo? Quero dizer.. vai voltar antes do
nascimento do bebê?
Brandon franziu ligeiramente a testa.
— Sim, tenciono afastar-me somente por um mês — declarou um pouco bruscamente, irritado
por ter sido interrompido por tal trivialidade. — Pensei que já lhe havia dito isso antes. — E
voltou ao seu trabalho.
— Brandon — ela continuou. — Ah. eu queria saber se poderia reformar o quarto do bebê
durante a sua viagem.
— Claro — ele replicou brevemente. — Mande Ethan providenciar tudo o de que você precisar.
Pensando que Heather encerrara a conversa, virou-se novamente para a mesa. Entretanto ela o
interrompeu mais uma vez:
— Também há coisas que precisam ser feitas no salão de visitas. Ele a observou.
— Minha cara esposa, você pode reconstruir a casa toda, se deseja — retrucou sarcasticamente.
Heather baixou o olhar para as mãos cruzadas desde o início em cima dos joelhos. Brandon ficou
olhando para ela durante instantes
232
e depois retornou aos escritos. O escritório ficou em silêncio, entretanto Heather não fez menção
de retirar-se. Passado algum tempo, Brandon ergueu o olhar para a esposa. Enfiou a pena no
tinteiro e recostou-se.
— Deseja mais alguma coisa, madame? — perguntou rudemente.
Olhos de um azul-claro encontraram outros, verdes e zangados. Heather ergueu a cabeça e falou,
dessa vez rapidamente:
— Sim, senhor. Enquanto o salão de visitas estiver sendo reformado, eu gostaria de ter sua
permissão para usar seu quarto enquanto estiver ausente.
Brandon bateu a mão na mesa, levantou-se e começou a caminhar pelo escritório muito irritado,
achando ridículo que sua própria esposa pedisse permissão para usar uma cama que era para os
dois.
— Maldição, mulher, não precisa me aborrecer, pedindo licença para usar alguma coisa desta casa
na minha ausência. Já estou farto desse tipo de brincadeira que você faz. O que existe nesta casa é
para você usar e não tenho tempo nem disposição para ficar aprovando cada desejo seu. Rogo-
lhe que exerça o seu gênio irreverente começando a preencher seu papel de dona da casa. Sei que
não almeja freqüentar minha cama, no entanto lhe concedo alegremente permissão para usar
qualquer outra coisa que desejar. E agora tenho coisas a fazer, madame, como pode bem ver.
Procuro paz em alguns momentos do dia e, dentro desse espírito, imploro-lhe que saia do
escritório.
A última frase foi quase gritada. O rosto de Heather ficou pálido e contraído quando o marido
terminou a invectiva. Ela se levantou e quase saiu correndo do aposento, contudo parou logo na
saída porque Jeff e George estavam bem na entrada da frente, e Hatti imóvel, na escada. Os olhos
arregalados do grupo declaravam abertamente que haviam escutado todas as sílabas. As lágrimas
escorreram pela face de Heather e, com um soluço, subiu a escadaria correndo para seu quarto,
onde se agarrou à cama, chorando em completo desespero.
Brandon saiu a passos largos do escritório, agora desejando seguir a esposa para consolá-la e
afastar a angústia que sua explosão provocara. Ao invés disso, deparou com o olhar zangado de
Jeff e parou, sentindo a reprovação dos três. Hatti deu um bufo de escarninho, e falou como se
por Jeff também.
— Alguns hômi num têm cabeça, mesmo!— E, assim falando, virou abruptamente as costas e foi
embora.
George deu um passo para aproximar-se do seu comandante, pela primeira vez zangado. Abriu a
boca diversas vezes, tentando falar, mas acabou enfiando o boné na cabeça e saiu como se não
mais pudesse permanecer naquele ambiente.
Jeff continuou olhando fixo para o rosto vermelho do irmão, com um meio-sorriso irónico nos
lábios.
233
- Há ocasiões, irmão, em que você envergonha os nossos antepassados. Já que prefere bancar o
imbecil, então pelo menos não arraste os outros na sua idiotice!
Então virou-se também e saiu.
Agora Brandon estava sozinho, sentindo todo o peso de sua própria língua ferina. Como se não
fosse suficiente que seus dois criados mais fiéis, aliás, amigos fiéis, se virassem contra ele para que
sentisse a mágoa de haver ferido profundamente Heather, cujos soluços eram ouvidos no silêncio
da mansão, o seu próprio irmão se unira aos outros para acusá-lo completamente!
Voltou para o escritório e sentou-se para meditar profundamente diante da mesa. Até a mansão
parecia fazer pressão sobre ele, como se fechando a casa diante do seu comportamento. Brandon
sentiu-se realmente um proscrito dentro de sua própria residência e não encontrava meios de
aliviar o problema.
O jantar transcorreu em silêncio embaraçoso. A cadeira de Heather permaneceu naturalmente
vazia. Hatti serviu os dois homens e parecia sentir prazer em arrumar a refeição de Brandon o
mais longe possível que ousava. Jeff terminou o jantar jogando garfo e faca sobre a mesa, depois
se levantou e saiu sem outro gesto que uma espiada no irmão. Assim que parou no vestíbulo,
Hatti aproximou-se e falou numa altura de voz que dava para Brandon ouvir:
— Seu Jeff, a Dona Heather.. ela tá sentada lá em cima, perto da janela, e num qué comê nada
mesmo. Cumo é que eu faço pra ela comê, seu Jeff? Ela e aquele bebê vão passá fome!
Ele replicou compreensivamente:
— Pode deixar, Hatti. Acho que o melhor é a deixarmos sozinha por algum tempo. Ela vai bem,
e amanhã ele vai viajar..
Hatti afastou-se, balançando a cabeça e resmungando sozinha, e Jeff, sem sentir vontade ainda de
retirar-se, foi para fora e sentou-se um pouco nos degraus, contemplando a vereda com
pensamentos profundos, perguntando-se como seu irmão podia ser tão tolo. Suspirando
pesadamente, levantou-se e foi vagar pela noite fria e quieta rumo aos estábulos. Quando se
encostou na porta, ouviu o bater de cascos e o relincho de leopold lá dentro. Entrou e foi
acariciar o focinho do cavalo, fazendo-o relinchar de alegria. Uma voz murmurante chamou sua
atenção, e viu uma luz fraca vindo da oficina onde George dormia. Perguntando-se com quem o
velho estaria conversando àquela hora, aproximou-se. A metade superior da porta estava meio
aberta, e ele pôde ver George sentado na cabeceira do beliche, com as pernas dobradas à sua
frente. Entre as pernas, uma garrafa esvaziada até o meio, e um gato sonolento, cochilando aos
pés da cama, parecia ser o objeto do seu monólogo.
— É, Webby, eu agi errado, entregando a mamãezinha pra ele, sabe? Agora vê como é que ele
trata ela, mesmo carregando o peso
234
do filho dele! — Encolheu os ombros lentamente. — Mas cumo é que a gente íamos sabê que ela
era só uma pobre minina assustada, Webby? Quase todas as donas que anda sozinha pelas ruas de
Londres de noite pode se dá mal, e o comandante abriu suas vela pró vento na sua primeira noite
no porto. Ele queria uma mulhé pra esquentá sua cama. Mas por quê, Senhor, a gente tivemos de
iscolhê ela pra ele? Ela, uma pobre minina, longe da família, sem sabê onde estava? Ele deve tê
tratado ela mau aquela noite, ela sendo virge e tudo. O pió foi isso, Webby! Ela, uma pobre
minina inocente sendo possuída daquele jeito. Ah, mas que vergonha! Oh, Webby, que vergonha
Encostou a garrafa nos lábios e deu um gole longo, depois riu enquanto esfregava a manga da
camisa na boca.
— Mas aquele Lord Hampton deu um jeito no comandante. Fez ele aparecê pra casá com a
madame quando viu que ela tava carregando o pequenino! — Deu uma risadinha e olhou para o
gato com olhos vidrados. -— O comandante ficô zangado, mesmo, Webby. Não é muita gente
que pode fazê aquele homi fazê alguma coisa contra sua vontade.
O velho serviçal caiu em silêncio e cambaleou para trás, observando pensativamente a garrafa.
— Mas — resmungou um pouco — o comandante deve tê uma queda pela garota, do jeito que
ele vasculhô Londres depois que ela fugiu dele na noite que ficaram juntos e eu nunca vi ele tão
furioso quando descobriu que a moça tinha fugido. A gente ainda estaria lá, procurando ela, se
não fosse aquele velho cavalheiro trazê ela de volta para ele direitinha pra se casá.
Endireitou a postura e deu outro longo gole, depois bateu no peito com o polegar.
— Mas fui eu que peguei ela primeiro pra ele, Webby! Eu! Eu é que fiz a coisa maldita. Botei ela
nas mão dele! E o que ela num teve de fazê pra agrada ele, hem? A pobre criança..
A voz se foi apagando e a cabeça pendeu cansadamente sobre um dos ombros. Quase
imediatamente seus roncos de ébrio encheram o aposento. Pensando com muita concentração,
Jeff caminhou de volta até a porteira do estábulo e inclinou-se de encontro a ela. Um leve sorriso
apareceu-lhe no rosto.
— Então foi assim que ele a conheceu — murmurou para si mêsmo. E subitamente deu uma
risadinha. — Pobre Bran, dessa vez ele se deu mal. Diabo. o que estou dizendo?! Pobre tory!
E deixou os estábulos assoviando, com o bom humor restaurado, e rumou para a mansão. A
porta do escritório estava fechada e, quando passou por ela, saudou-a descontraidamente, e em
seguida sorriu.
Na manhã seguinte desceu com o mesmo humor alegre e, conquanto o lugar de Heather
continuasse vazio, não poupou o irmão.
235
Aguardou até que Brandon enchesse a boca e então falou como se casualmente:
— Você sabia, Brandon, que leva cerca de 270 dias para uma mulher ter um bebê? Será
interessante ver quanto tempo o seu gastará para nascer. Teria ficado estranho se você fosse
forçado a se casar com a tory enquanto viajavam. Claro, sendo comandante de um navio, a coisa
seria um problema, não é mesmo? Fazer o próprio casamento?! Ora, ora!..
E continuou o desjejum pensativamente, como se analisando essa circunstância, enquanto
Brandon o examinava intrigado. Jeff terminou a refeição e limpou a boca com o guardanapo,
recostando-se depois para falar à meia-voz:
— Vou ter de conferir isso...
E antes que Brandon fizesse qualquer comentário, levantou-se e saiu, deixando o irmão em total
confusão.
As malas foram postas na carruagem e George sentou-se ao lado de James, no banco de cocheiro,
apertando os olhos lacrimejantes para defendê-los do sol brilhante da manhã. Os dois irmãos
estavam ao lado da porta do veículo quando Heather apareceu no varandão. Ali ficou
observando-os, segurando firmemente um xale que lhe protegia os ombros.
— Espero que faça uma boa viagem, Brandon — falou suavemente. — Tente voltar pra casa o
mais cedo possível.
Ele deu alguns passos na direção dela, com o rosto sério, depois se deteve e olhou fixo para a
esposa. Murmurando uma praga, virouse e entrou na carruagem.
Jeff observou a carruagem percorrer a alameda, com seu ruído característico, e depois subiu à
varanda e ficou ao lado de Heather.
— Tenha paciência, tory — murmurou. — Ele não é tão arrogante como às vezes parece
Ela deu um sorriso rápido, mostrando que entendera, virou-se, de coração apertado, e entrou em
casa.
Nos dias que se seguiram não perdeu tempo pensando — ficou ocupada com tarefas de maior ou
menor importância, fazendo preparativos para as reformas tanto no quarto do bebê quanto no
salão de visitas, escolhendo material para cortinas novas e papel de parede que combinassem com
a decoração dos cômodos. Quando se sentava, geralmente os dedos estavam ocupados com a
feitura de roupinhas para bebê, bem como pequenos cobertores. Somente à noite, quando se
deitava na cama de Brandon e corria os dedos levemente pela madeira trabalhada da cabeceira, é
que pensava em como Harthaven parecia solitária sem ele.
236
Capítulo Oito
Brandom entrou na estalagem, tirou o sobretudo, o chapéu e depositou-os numa cadeira em
frente à mesa que escolheu, sem reparar que George estava sentado perto do bar tomando um
caneco de cerveja clara. Pediu comida e vinho, e estava sorvendo um Madeira tranqüilamente,
distraído com os próprios pensamentos, quando a porta da estalagem se abriu e uma família
numerosa entrou, todos exageradamente magros e escassamente vestidos para aquele tempo frio.
Brandon observou a procissão de jovens louros, a mãe deles a arrastar os pés até a lareira e
sentar-se na soleira alta para se aquecerem diante do fogo, enquanto o homem ia falar com o
estalajadeiro. Brandon calculou a idade da mulher em não mais do que a sua própria, mas seu
rosto tinha rugas muito marcadas e profundas, e as mãos avermelhadas e nodosas eram sinais de
uma vida árdua. O vestido que usava era de remendos, puído, e somente um botão o mantinha
no lugar, logo acima dos seios protuberantes. Contudo, como as crianças, estava limpa — essa
era sua aparência. Carregava um bebê com não mais de oito meses no colo e outro pequenino
agarrava-lhe firme a bainha da saia. Um garoto, parecendo o mais velho do grupo, talvez com uns
12 anos de idade, segurava a mão de uma irmã mais nova enquanto as outras crianças ficavam
sentadas, muito quietas, observando uma criada andar pelo salão com uma bandeja cheia. Seus
olhos redondos e azuis estavam abertos como luas diante da visão de tanta comida.
O pai aproximou-se da mesa de Brandon, segurando um surrado chapéu, e o comandante voltou
sua atenção para ele.
— Desculpe-me, senhor — disse o homem. — O senhor não é o Comandante Birmingham? O
estalajadeiro falou que é a pessoa que estou procurando.
Brandon concordou com ligeiro sinal de cabeça.
— Sim, sou o Comandante Birmingham. Em que posso servi-lo. O desconhecido agarrou o
chapéu com força.
— Sou Jeremiah Webster, senhor. Disseram-me que está procurando gente que saiba trabalhar
com madeira. Eu gostaria de me oferecer, senhor.
237
Brandon gesticulou para que pegasse uma cadeira.
Sente-se, Sr. Webster. — E, assim que o homem obedeceu, ele perguntou: — E quais as suas
referências para esse tipo de trabalho, Sr. Webster?
— Bem, senhor — começou Webster nervosamente, amarrotando o chapéu nas mãos. — Venho
trabalhando com madeira pesada desde menino e isso faz uns 25 anos, agora. Nos últimos oito
anos fui capataz, e nos dois últimos, então, chefe de turma. Conheço esse ramo de negócio de
trás pra frente, senhor.
Brandon começou a falar, mas foi interrompido pela criada, que trazia sua refeição.
— Incomoda-se se eu comer enquanto conversamos, Sr. Webster? — perguntou ao homem. —
Detesto desperdiçar boa comida.
— Não, senhor! — replicou rapidamente Webster.
Brandon agradeceu, fazendo um sinal com a cabeça, e voltou ao assunto enquanto comia:
— Por que não está empregado atualmente, Sr. Webster? O homem engoliu em seco e
respondeu:
— Tive emprego até o último verão, senhor. Fui ferido num bloqueio de toros, tendo meu braço
e ombro esquerdos sido atingidos. Fiquei numa cama até o começo do inverno e desde então só
tenho conseguido arranjar empregos comuns, como qualquer ajudante de madeireiro. Todos os
cargos melhores estavam ocupados e o frio e a umidade lá em cima no Norte provocam dor nos
meus ossos. Não é nada fácil manter uma família com o pagamento de um simples ajudante.
Brandon concordou, balançando a cabeça enquanto mastigava sua comida. Recostou-se e cruzou
as mãos, olhando o homem minuciosamente.
— Para dizer a verdade, Sr. Webster, estou procurando um administrador para minha serraria. —
Fez uma pausa, enquanto o pobre homem parecia dar um salto na sua cadeira. — Seu nome não
me é desconhecido — prosseguiu. — Confesso, aliás, que me foi recomendado pelo Sr. Brísban,
que comprou meu navio. Disse-me ele que o senhor é um bom trabalhador e tem tanta
experiência quanto qualquer outro por aí. Estou iniciando uma serraria e preciso de alguém que
conheça todos os segredos do ramo. Creio que o senhor preenche os requisitos e, se quiser o
cargo, ele é seu.
Webster ficou sentado imóvel por alguns instantes, depois abriu um sorriso
— Ora, obrigado, senhor. Não vai arrepender-se nem por um momento, senhor, eu prometo.
Posso ir dar a boa notícia para a patroa, se não se incomoda?
— É claro, Sr. Webster. Por favor, faça isso. Mas há alguns outros itens que precisamos discutir.
238
O homem afastou-se e, enquanto falava com a esposa Brandon observou as crianças, muito mais
interessadas nos pratos em sua volta do que nas notícias do pai. E lembrou-se dos olhos do
homem constantemente dirigidos para o seu prato, enquanto comia. Olhando para a família
agora, percebeu que realmente seu destino não andava muito favorável. O pai voltou à sua mesa,
e Brandon franziu a testa ligeiramente.
— Peço-lhes humildes desculpas, Sr. Webster, mas já comeram? O homem riu nervoso e
assegurou-lhe rapidamente:
— Não, senhor, viemos diretamente para cá, mas conseguimos alguma coisa na carroça e mais
tarde a gente come mais.
Um sorriso aflorou aos lábios de Brandon.
— Sr. Webster, acaba de ser convidado por mim para preencher um cargo de imensa
responsabilidade e acredito que isso merece uma comemoração. Por favor, queira convidar sua
família em meu nome para jantar comigo. Seria uma honra para mim.
Boquiaberto, Webster balançou lentamente a cabeça.
— Ora. sim, senhor, obrigado, senhor!
E correu para o grupo enquanto Brandon fazia sinal para uma criada que servia, dando-lhe as
devidas ordens. Ela se apressou em arranjar cadeiras altas em torno de uma mesa grande ali perto
e, com gestos moderados, a família Webster reuniu-se em volta dela e sentou-se. Brandon
levantara-se quando o Sr. Webster conduzia a esposa para uma das cadeiras.
— Comandante Birmingham, esta é minha mulher, Leah. Brandon fez uma pequena mesura e
comentou delicadamente:
— É um prazer conhecê-la, madame. Espero que o casal e suas crianças achem nosso país
agradável.
A mulher sorriu acanhadamente e baixou o olhar para o bebê, em seu colo, quando ele escondeu
o rosto de encontro ao seu peito. Brandon sentou-se de novo e aguardou até servirem a refeição
e todos saciarem a fome inicial, antes de reiniciar conversações profissionais.
— Ainda não discutimos seus vencimentos, Sr. Webster. — começou — e minha proposta é a
seguinte: o salário será de 20 libras por mês, mais alojamentos perto da serraria. Se o negócio
tiver êxito, o senhor entrará como interessado na empresa.
Novamente o homem perdeu o fôlego e só conseguiu acenar com a cabeça.
Brandon continuou, retirando um papel do casaco:
— Eis uma carta de crédito emitida pelo meu banco de Charleston. Dará para pagar suas
despesas e, se souber de bons homens que quiserem trabalhar na serraria, poderá trazê-los
mediante esta carta. O senhor tem alguma dívida que precise ser saldada antes de partir?
O Sr. Webster sacudiu a cabeça e sorriu ironicamente.
— Não, senhor, eles não dão crédito a um pobre.
239
- Muito bem, então — replicou Brandon, e pegou sua bolsa no colete, tirando 10 moedas.
Tome 100 libras para despesas de viagem. Espero o senhor uma semana depois de minha
chegada. Alguma pergunta?
O homem ficou um tanto hesitante, mas então arriscou:
— Tem uma coisa, senhor, não gosto de trabalhar com escravos ou condenados.
Brandon sorriu.
— O senhor pensa como eu, Sr. Webster. Para se ter um bom trabalho profissional, nada melhor
que homens assalariados.
Os pratos foram retirados, e as crianças mais velhas sussurravam entre si enquanto as mais novas
piscavam os olhos de sono. Observando o silencioso grupo, Brandon perguntou-se sobre o
próprio filho.
— O senhor tem uma esplêndida família, Sr. Webster — comentou. — Minha esposa está
esperando nosso primeiro filho. Ele deverá nascer em março, por isso estou ansioso por chegar a
casa.
A mulher sorriu timidamente, envergonhada demais para responder.
As negociações encerraram-se e os dois homens se levantaram e apertaram as mãos. Enquanto a
família saía, Brandon ali ficou, pensativamente, e depois afundou na cadeira novamente,
servindo-se de outro copo de Madeira.
Uma atraente mulher, com o vestido ousadamente decotado, cabelos exageradamente ruivos e
lábios escandalosamente pintados levantou-se de sua cadeira, de onde andara observando
Brandon com audaciosa admiração. A visão de sua gorda bolsa de dinheiro não lhe havia
empanado a coragem, e ela se adiantou, agora com andar sensual, e parou ao lado de uma cadeira
vazia em frente à mesa dele, deixando a manga do vestido cair no ombro do comandante.
— Olá, chefe — ronronou. — Que tal pagar uma bebida para uma garota solitária?
Brandon ergueu um olhar gelado para ela.
— Infelizmente estarei ocupado pelo resto da noite, madame — replicou. — Me dê licença, por
favor.
E gesticulou rudemente para que ela se afastasse: a mulher virou-se repentinamente e saiu
bufando. George, tendo percebido anteriormente o interesse da mulher, sorriu consigo mesmo e
deu um suspiro de alívio. Desde o desembarque do Fleetwood há um mês, ele observava seu
comandante recusar uma prostituta atrás da outra e voltar sozinho para seus aposentos. Amanhã,
eles partiriam para o lar e o comandante voltaria para a esposa afastada demais para resolverlhe o
problema fisiológico. Mesmo assim, ele não levara para a cama nem tocara em mulher alguma
desde sua chegada ali. Tendo descoberto novo motivo para respeitar seu comandante, George
balançou a cabeça.
240
”É, o comandante tá sendo direito, e muito. A pequena madame entrou mesmo no coração dele
e ficou lá dentro e ele fica sonhandoacordado com ela enquanto essa dona tenta ele o dia inteiro.
Ah, pobre comandante! Nunca mais vai sê o mesmo.”
George ergueu o caneco na direção do comandante como se fizesse um brinde a ele e em seguida
empreendeu um demorado gole. Brandon levantou-se do lugar, inconsciente da presença do
ajudante e, quando este o viu pela última vez, subia a escada para seu quarto.
Brandon fechou a porta e começou lentamente a despir-se para se deitar, com os pensamentos
agora concentrando-se em apenas uma coisa. Tirou a camisa e largou-a no encosto de uma
cadeira, mirando-se num comprido espelho que ficava num canto do quarto. E viu um homem
muito bonito retesando músculos bem desenvolvidos. A imagem inspirou profundamente e
Brandon admirou com satisfação a alta e elegante silhueta de ombros largos e cintura estreita,
porém virou-se, exasperado.
”Maldição!”, pensou. ”Não sou tão feio assim para uma menina bonitinha recusar-se a ficar na
minha cama! Como posso aproximar-me daquela megera quando despreza a própria imagem do
meu rosto e nem aceita de longe a ideia de me ver deitado em sua cama?!”
E foi caminhar a passos pesados pelo quarto, pensativamente.
”Tenho conhecido mulheres aqui e no exterior. Por que essa pequenina anula a capacidade do
meu cérebro e faz de mim um tolo vacilante? Já consegui que as mais espertas abrissem as pernas,
no que concordaram alegremente, como se eu lhes estivesse fazendo um grande favor. No
entanto, quando estou diante de Heather, as palavras fogem de minha língua e me deixam
gaguejando, em busca dos termos certos.”
Foi até a janela e ficou olhando para fora, sabendo que no mesmo quarteirão muitas camas
quentes o aguardavam e seu apetite cresceu, só que não em relação àquelas que o esperavam lá
fora. Em parte devido à lembrança e em parte a um sonho doce que trazia consigo E seus
pensamentos se tornavam mais ternos à medida que se lembrava de uma dourada luz de vela
iluminando uma carne macia, sedosa, ainda úmida por causa do banho da noite, e cabelos
gostosos e encacheados largados no travesseiro enquanto ela dormia. Suas recordações
trouxeram-lhe sonhos sobre como aqueles doces e carinhosos braços lhe envolveriam o pescoço
e como aqueles lábios cheios e rosados se apertariam de encontro aos seus, e também como o
corpo quente e jovem se curvaria contra o dele, enquanto dentes pequenos e alvos mordiscariam
a sua orelha a fim de intensificar sua paixão.
Afastou-se da janela e bateu na mão com o punho cerrado, numa frustração muda.
24 1
”Meu Deus!”, pensou. ”Aquela virgem passiva me recusa e minha alma estremece! Que desgraça
me persegue para que isso aconteça?”
Procurou um copo e serviu-se de bebida, afundando após numa cadeira para melhor raciocinar
sobre o problema.
”Não me deitei com outra mulher desde aquela noite em que a arrastaram pela minha cabina
adentro. Esta Heather; esta minúscula flor das charnecas plantou-se no meu coração e agora se
vinga e eu não mais tenho coração para compartilhar. Entretanto, ele, que tão profundamente me
traiu, é meu coração. Ele fechou todas as portas, com exceção de uma, que bati com raiva. Meu
Deus, como a amo tanto! Pensei que emoção tão comum não me atingiria. Acreditava que havia
vencido isso que os outros homens afirmam. Sentia-me acima do comum dos cavalheiros; acima
da opinião dos homens, exclamando que eventualmente aceitaria uma esposa com amplos
conhecimentos da vida. Agora, entretanto, acho-me tão aturdido pela inocência desta que não
mais consigo me animar a buscar alívio na cama de outra!”
Inclinou-se para a frente, com os cotovelos nos joelhos e a cabeça pendida.
”E mesmo quando forcei sua virgindade ela satisfez o meu prazer e mais do que qualquer outra
mulher até então. Levou minha semente consigo e não me traiu com outro, e desde esse
momento deixei-a agarrada a mim, dona tão absoluta dos meus pensamentos que mesmo em
meu sono com nada mais sonho que não ela, e com sua boa vontade consagrada a mim.”
Ergueu a cabeça e recostou-se. Bebeu lentamente e formou outra deliberação:
”A hora dela aproxima-se”, refletiu. — ”Enfrentarei meu momento cautelosamente. Bancarei o
suplicante, cortejando-a com carinho, e talvez ela venha para mim.”
E terminou a bebida, levantou-se e foi para a cama. Reconhecendo seu amor e a nova resolução,
pela primeira vez em muitos meses caiu em sono profundo.
A chuva batia forte sobre Harthaven e as nuvens passavam logo acima das árvores. A noite
estava negra e silenciosa, como se o resto do mundo já se houvesse ausentado e se enroscado em
algum ninho aconchegante para se proteger da tempestade.
Heather olhou em volta, pelo quarto, e percebeu que havia retirado todos os vestígios de sua
presença ali. Passara aquelas muitas noites naquele grande cômodo e acabara conhecendo-o e se
tornando parte dele. E ficou olhando para a imensa cama que parecia dar-lhe boas-vindas, mas
sentia uma súbita agonia que lhe sugeria regressar
.242
ao quarto menor na sala de estar. Suspirou pensativamente e, devagar,, encaminhou-se para o
outro quarto. A porta do quarto do bebê estava aberta e, pegando uma vela, foi inspecioná-lo
uma vez mais. Passou os dedos de leve por um cavalo de madeira que fora de Brandon, quando
criança, e parou ao lado do berço, alisando o cobertor nele.
”Gozado — todo mundo acha que vai ser um menino.” Ajeitoua renda no dossel. ”Claro que
meu marido declarou isso e quem irá negar seu direito de desejar um filho homem?” Sorriu para
si mesma, lembrando-se de como, no passado, sonhara com uma menina. ”Pobre filha, se você
está crescendo dentro da minha barriga: vá tratando de se divertir agora, pois o azul será sua cor
de donzela.”
Virou-se e, dando uma última e lenta espiada pelo quarto, saiu. Através do salão de estar, mais
uma vez regressou ao quarto de dormir principal, onde um fogo crepitava convidativamente na
lareira. Sentou-se para descansar diante daquele calor numa grande cadeira estufada e ficou
olhando fixa e pensativamente para as chamas. Suspirou e pensou na volta de Brandon nos
próximos dias. A carta resumida que ele lhe mandara, havia algumas semanas, mencionava
somente a data aproximada do regresso.
Qual seria seu comportamento? Voltaria mais delicado, ou talvez mais temperamental? Teria
encontrado alguma mulher nortista com quem se tenha desabafado? Ele dera a ela, sua esposa,
outra cama em outro quarto.
”Antes, ele não agüentava nem olhar para mim”, ela pensou com tristeza. ”E agora estou
barriguda, com a silhueta deformada e tão desajeitada para andar que tenho mais aparência de
uma pata do que mesmo de uma mulher atraente. Não o culparei se ficar frio quando vir minha
silhueta inchada.”
Encostou a cabeça para trás e fechou os olhos.
”Oh, Brandon, tivesse eu sido mais carinhosa quando tive a oportunidade, talvez hoje
compartilhasse sua cama e em breve estaria sentindo seu calor de novo ao meu lado. Assim teria
certeza de que não procuraria outra cama.”
Olhou de novo para o fogo e de repente sentiu uma súbita onda de raiva.
”Qual a vagabunda que teria escolhido para passar o tempo? Seria uma coisinha doce, de sorriso
afetado que ele convenceu com sua lábia para mantê-lo aquecido lá no Norte?”
Mas sua ira aplacou-se um pouco:
”Eu jamais teria conhecido esta terra, esta mansão, estas almas boas e carinhosas, não tivesse o
destino decretado que minha virgindade fosse o preço! Tenho é de aproveitar as circunstâncias e,
assim
243
que esta criança nascer e eu recuperar o melhor de minha forma física, usarei todos os meus
recursos e truques femininos para conquistar meu marido.”
Abraçou-se e se aprofundou em lembranças: aquele momento, na estalagem, quando ele fora tão
carinhoso, quase amoroso, e no navio, com sua cuidadosa atenção com ela. E mesmo quanto à
Louisa, quando ele demonstrou reações cruéis ao extremo, fazendo o papel de amante caloroso.
”Será possível”, ela se perguntou — ”que debaixo daquela carranca ele guarde pensamentos de
amor em relação a mim? Se eu fosse uma esposa gentil, devotada, será que algum dia ele
começaria a me amar? Oh, amor querido, eu o amo de verdade! Você poderia ser meu marido de
verdade, amando-me acima de todas as outras? Gostaria de pegar-me nos braços e me acariciar
como faria qualquer amante? Oh, Deus, tremo diante do pensamento de que em mim ele poderia
encontrar tudo aquilo que sempre desejou!”
O fogo enfraquecera. Ela se levantou e, com aquele brilho suave, postou-se ao lado da grande e
tentadora cama novamente.
”E você, adorável local de descanso, em breve sentirá meu peso de novo, garanto! Não parecerá
tão solitário por muito tempo, pois eu o tentarei de todas as formas possíveis, que são as mesmas
que as suas, a fim de ser amada, cortejada gentilmente como se ainda fosse virgem. Ah, ele se
curvará e o tempo será meu amigo! Deixarei minha paciência fechar as feridas sangrentas que
compartilhamos até não mais existirem, e ele terá meu conforto, meu amor eterno.”
Suspirou e voltou à sala de estar. Agora pensava nela como o salão de estar, apenas
temporariamente seu até instalar-se em seu lugar devido. Enfiou-se na cama e corajosamente caiu
no sono.
Leopold, uma carroça e uma parelha haviam sido levados para a cidade vários dias antes para
serem deixados com amigos a fim de aguardarem o retorno de Brandon. O dia era um dos
poucos ensolarados que haviam presenciado até então e Heather aproveitara a oportunidade para
ir até a casa da cozinheira conversar com Tia Ruth e aprender mais sobre as estranhas comidas
ianques e os pratos que, sabia serem os favoritos de Brandon. Sentou-se no banquinho, tomando
chá, que a velhota lhe preparara, e escutou atentamente enquanto a negra descrevia alguns dos
seus métodos de preparação de alimentos, ficando impressionada com o fato de que, com Tia
Ruth, era mais uma questão de talento e arte do que na realidade de conhecimento. Ela parecia
saber por instinto quais alimentos e temperos combinavam, quando misturados, e podia
transformar até um prato simples numa verdadeira obra-prima de sabor.
244
Os agradáveis momentos foram interrompidos por gritos ao longe e logo Hatti irrompeu pelo
cómodo exclamando sem fôlego:
— Patrão Bran... o seu Bran tá vindo correndo à beça pela estrada de trás! Ele.. ele.. — gaguejou.
— Ele tá cum tanta pressa que vai acaba jogando aquele cavalo preto no chão!
Os olhos de Heather arregalaram-se quando, ele, ofegante se levantou do banquinho.. Suas mãos
voaram para os cabelos e depois até o vestido, o que a tornou horrorizada.
— Oh, Deus, eu devo estar horrível! — gritou. — Tenho de. Virou-se sem terminar e saiu
correndo para a mansão e, quando subia a escadaria, chamou Mary. A garota veio às pressas e
alcançou-a no momento em que escancarou a porta da sala de visitas. Sem fôlego, Heather
mandou que a menina lhe arranjasse um vestido limpo, e apressou-se em apertar contra o rosto
um pano frio, úmido, e deu beliscões nas faces para provocar o colorido. Tirou a roupa
rapidamente e, enquanto Mary escolhia correndo outro vestido, o de musselina amarelo, Heather
fazia com que se apressasse mais ainda:
— Anda logo, Mary! Depressa! Brandon está chegando! Daqui a pouco vai entrar em casa!
Alisou o cabelo, vestiu-se e desceu a escada correndo para se pôr do lado de fora, ficando
despreocupadamente na varanda, de onde viu o marido aproximar-se lentamente pela alameda
com Leopold. Os flancos arquejantes do cavalo e a intensa espuma no pelo brilhante
desfiguravam o trotar lento, pois Brandon exigira o máximo do animal em sua ânsia de voltar
depressa para a jovem esposa. Agora ele se aproximava do varandão e desmontou com lentidão
estudada. Entregou as rédeas a um garoto, dando-lhe instruções para que esfregasse bem o
cavalo, caminhasse com ele e cuidasse de dar-lhe água. Tendo feito isso, virou-se para a mulher e
um leve sorriso nasceu-lhe no rosto. Seu olhar percorreu-a toda enquanto subia os degraus, não
deixando passar detalhe algum, e, passando o braço pela cintura dela, cumprimentou-a com um
beijo leve nos lábios. Heather sorrindo docemente em resposta e encostou-se nele ligeiramente
enquanto entravam na mansão.
— Fez boa viagem? — ela perguntou carinhosamente na hora em que ele passava o chapéu para
Joseph. — Aqui o tempo ficou tão feio que cheguei a preocupar-me com você.
O braço do marido apertou-a mais.
— Não precisava ter-se assustado, doçura. Vencemos o pior da tempestade entrando em Nova
York e não tivemos problema algum na volta. Como foram as coisas aqui? Reformou o quarto do
bebê, afinal?
Ela sinalizou com a cabeça, em afirmação, e os olhos brilharam.
— Você quer vê-lo?
— Claro que sim, meu bem — ele replicou.
245
Sorrindo intensamente ela o pegou pelo braço e subiu a escadaria amparada no marido.
Enquanto subiam ele contemplava sua barriga.
— Você tem passado bem? — quis saber.
— Ah, sim! — ela se apressou em garantir. — Tenho estado com ótima saúde. Hatti diz que
nunca viu uma futura mamãe tão bem disposta e é assim que me sinto mesmo — olhou um
pouco pesarosa para a barriga quando chegaram ao patamar da escadaria, rindo como se se
desculpasse — embora minha aparência não seja das mais elegantes e nem eu me sinta muito
leve.
Brandon deu um risinho e passou o braço em torno dela novamente, erguendo-lhe o queixo para
seus olhares se encontrarem.
— Dificilmente eu poderia esperar que você ficasse igual a uma virgem inocente enquanto
carregasse meu filho, amor. Porém, mesmo com tanto peso, faria qualquer moça esguia morrer
de inveja com sua beleza.
Heather sorriu timidamente e apertou o rosto contra seu peito, mais do que alegre com aquela
resposta. No quarto do bebé ele caminhou pelo aposento enquanto Heather ficava de mãos nas
costas, aguardando ansiosamente sua reação. Pondo de lado o novo mosquiteiro, Brandon
abaixou-se para examinar o berço escondido pelo dossel franzido. Em seguida balançou
suavemente o berço com a bota, à medida que um sorriso lhe surgia nos lábios, e então
inspecionou lentamente as paredes em azul-claro e as cortinas brancas. Cautelosamente caminhou
pelos tapetes de coloridos vivos em cima do cintilante piso de carvalho e abriu a gaveta de uma
cómoda com curiosidade, encontrando-a cheia de roupinhas de bebê cuidadosamente arrumadas,
algumas das quais vira a esposa fazendo antes de viajar.
Heather andou até perto do cavalo de pau, com a sela vermelha, e deu-lhe um suave impulso com
os dedos, fazendo-o balançar.
— Achamos isto no sótão — ela explicou, chamando-lhe a atenção. — Hatti disse que era seu,
portanto mandei Ethan pegá-lo e trazê-lo cá para baixo. Quando nosso filho tiver idade bastante
para cavalgar eu lhe direi que o pai já brincou com ele.
Brandon sorriu e aproximou-se para ver melhor.
— Espero que pelo menos ele não passe por baixo de um galho com meu filho.
Uma risadinha escapou da esposa antes de virar-se apressadamente e apontar para uma cadeira de
balanço bem cara.
— Jeff me deu esta. Não é linda? Com a cabeça ele aprovou, e disse:
— Deixe que ele a use, sempre gostou de ser embalado antes de dormir.
Heather começou a mostrar outro detalhe de interesse, contudo parou, horrorizada.
246
— Meu Deus, Brandon! Você ainda não comeu! Deve estar morto de fome e eu aqui falando
pelos cotovelos!
Rapidamente chamou Mary e deu ordens para que mandassem uma bandeja com comida e
esquentassem água para um banho. Brandon fora para seu quarto, onde tirava o casaco e meias, e
agora puxava as botas quando ela entrou.
— Não sou mais comandante de navio, minha querida — comentou ele, dando-lhe uma
demorada espiada enquanto Heather pegava seu casaco e o pendurava. — Vendi o Fleeíwood
por uma quantia considerável. Agora, pode esperar ver-me em casa todo dia.
Heather sorriu para si mesma, aprovando totalmente essa nova situação.
Uma criada trouxe uma refeição, e Heather sentou-se em frente a Brandon, observando-o
enquanto comia. Ela estava feliz com a intimidade do momento e sentia-se protegida com a nova
descoberta do seu amor por ele. A água foi trazida, enquanto se levava embora a bandeja, e
Heather testou sua temperatura antes de fazer sinal com a cabeça, dispensando a criadagem, e
depois se ocupou apanhando roupa limpa enquanto o marido se despia.
Brandon afundou-se na água aquecida e ficou alguns momentos recostado, descontraindo-se.
Quando finalmente se sentou e começou a esfregar-se, Heather chegou perto e pegou a esponja:
depois mergulhou-a na água e ficou segurando-a na expectativa da aprovação do marido. Ele
olhou para cima, contemplando a cena, durante longo tempo, e em seguida se inclinou para a
frente, apresentando-lhe as costas.
— Esfregue com força, está bem, doçura? Estou sentindo-me como se encoberto por uma
camada de sujeira.
Alegremente a esposa curvou-se para cumprir aquela tarefa e ensaboou a esponja, passando-a
depois nos ombros musculosos do marido, bem como pelas suas costas. Maliciosamente
desenhou um grande ”B” na espuma branca nessa região, dando uma leve risadinha quando
desenhou um ”H” na frente. Brandon deu uma espiada por cima do ombro, com uma
sobrancelha erguida e um sorriso de canto de boca.
— O que está fazendo, mocinha? — perguntou.
Ela riu e espremeu a esponja por cima da cabeça do marido.
— Estou marcando o senhor, my Lord!
Ele sacudiu a cabeça vigorosamente, salpicando água em Heather, que riu expansivamente.
Recuando até uma distância segura, ela atirou a esponja contra ele e depois arquejou de surpresa
quando Brandon ficou de pé, saiu da banheira e correu atrás dela, ainda ensaboado e molhado.
— Ih, Brandon, o que você está fazendo?! — ela gritou de alegria. — Volte já para aquela
banheira!
247
E virou-se para fugir, porém ele a envolveu com os braços e levantou-a, balançando-a por cima
da banheira. Ela ria junto com o marido, gostando da brincadeira até que ele ameaçou jogá-la
dentro da banheira. Então ela deu gritinhos, agarrando-se firmemente em torno do pescoço de
Brandon.
— Brandon, não tenha a ousadia! Nunca mais o perdoarei! E ele sorriu para ela, olhando-a bem
de perto.
— Mas, querida, você me pareceu tão interessada no meu banho que eu pensei que gostaria de
tomar um.
— Ponha-me no chão — ela ordenou e depois curvou a boca docemente — por favor..
Os olhos do marido cintilaram.
— Ah, enfim a verdade vence, madame! Quer dizer que a senhora tem uma queda por esfregar
costas masculinas, não é isso?
E soltou-a gentilmente. Heather, de pé, sorriu quando levantou o braço e se virou para ver a saia
molhada.
— Oh, Brandon, você é impossível! Veja o que você me fez! Ele riu com vontade e puxou-a de
novo para perto, envolvendo-a mais uma vez no seu abraço molhado. As risadinhas de Heather
misturavam-se com a alegria dele enquanto a abraçava logo acima da barriga avantajada, fazendo
pressão de leve no seu busto. Depois passou a mão no abdómen da esposa.
— Não estou negando nada, doçura, mas você precisa ficar tão insultada com meu gesto
impensado? — ele implicou. — A coisa se passou lá vão oito meses.
— Eu estava falando sobre meu vestido! — ela o corrigiu indignada. — Você me molhou toda e
agora vou ter de trocar de roupa! Seja bonzinho e me abra este. Não quero pedir à Mary para me
ajudar a me vestir novamente.
— Novamente? — ele repetiu.
— Esqueça — replicou Heather rapidamente. — Apenas me ajude aqui, por favor.
Brandon concordou e voltou para a banheira antes de ela virarse para ele, segurando o vestido
somente com os ombros e falando:
— Obrigada. — Sorriu, inclinando-se para dar-lhe um beijo no rosto. Em seguida virou-se e foi
para seu quarto.
O ponto em que seus lábios haviam tocado pegava fogo quando Brandon se recostou, mas ele
achou impossível descontrair-se e gozar do calor da água. Um movimento chamou-lhe a atenção
pelo canto dos olhos, e ele pôde ver o reflexo da esposa pelo seu alto espelho do armário no
momento em que ela saía do vestido. Um súbito e poderoso impulso mandou que perguntassem
a ela se, ali e agora, ela gostaria de partilhar esse grande quarto com ele; deitar-se ao seu lado
naquela noite e deixá-lo abraçá-la, não com paixão ardente, mas com amor e carinho, como
deveria um marido fazer com a esposa grávida.
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Entretanto a cautela provocou novos pensamentos — ela agira de maneira doce e espontânea
antes, embora não desejando participar do seu leito. Heather parecia tão contente e feliz com a
situação atual. Sim, mais tarde, raciocinou. Então ela não terá desculpa e não poderá invocar
timidez. Na ocasião a abordarei e aquela cama irá sentir o peso dos dois.
E fechou os olhos, pensando na acolhida que recebera na sua chegada. Não gostava de deixá-la,
mas voltar para seus braços ora, isso era outra coisa inteiramente diferente. E descansou,
recostando a cabeça na banheira. O calor da água começava a eliminar-lhe as dores no corpo
quando se ouviu uma batida seca e forte na porta, que foi escancarada para revelar o rosto
irreverente de Jeff.
— Está decente, meu irmão mais velho? — perguntou com interesse retardado.
— Muito mais que você — grunhiu Brandon, aborrecido com a interrupção. — Agora feche a
porta. De preferência pelo lado de fora...
Imperturbável, Jeff empurrou-a mais ainda e depois bateu-a usando o calcanhar.
— Ora, meu caro Brandon — brincou. — Minha única preocupação é a de lhe proporcionar
alegrias e... — o seguinte foi dito em voz alta e dirigido ao outro quarto: — salvar minha cunhada
do seu temperamento normalmente irascível!
Ouviu-se uma risadinha abafada vinda da sala ao lado e Jeff, divertindo-se com a própria atitude,
colocou um copo cheio de conhaque e uma recém-aberta caixa de charutos na banca ao lado da
banheira.
Brandon fez sinal com a cabeça, agradecendo, e provou o conhaque, para depois brincar com o
charuto, rolando-o pelos dedos. Com uma cara feia, dirigiu-se ao irmão:
— Acho que vou deixá-lo ficar por aqui. Parece que afinal existe alguma esperança para você.
Heather entrou no quarto, sorrindo francamente, e cumprimentou Jeff, dando pouca atenção à
conversa dos dois ao mesmo tempo que prestava assistência conjugal à tarefa de providenciar
roupas limpas para o marido. Foi somente quando Brandon começou a relatar seu encontro com
os Webster que ela foi ficar ao seu lado para ouvir a história. Um tanto automaticamente,
Brandon pegou-lhe a mão de onde estava, nas bordas da banheira, e a esfregou suavemente na
orelha ao mesmo tempo em que falava com Jeff. Essa atitude não foi ignorada de todo pelo
irmão mais novo, porém só mais tarde é que ele se perguntou a respeito dessa esquisita mudança
de comportamento entre o irmão e a cunhada.
Quando Brandon terminou seu relato, Heather descobriu como conhecia pouco o marido. Ficou
emocionada com o estado dos Webster,
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no entanto sentiu também estranho orgulho pela reação do esposo em relação ao problema
daquela família. Seus olhos ficaram enternecidos e úmidos quando se deslocaram para o rosto de
Jeff, que a surpreendeu. Ele sorriu e voltou a atenção para o irmão que ainda falava.
— Bem, de qualquer forma eles devem chegar com o grupo da semana que vem.
Jeff serviu-se de um dos charutos que trouxera e acendeu-o enquanto comentava:
— Vamos ter de providenciar acomodação para a família.
— Há muitas casas perto da serraria — replicou Brandon. — Eles poderão ficar naquela velha
casa grande que o Sr. Barlett usava como escritório.
Jeff teve um riso desdenhoso.
— Pensei que sua intenção era permitir que permanecessem aqui. Mas eles vão olhar para aquela
casa e voltar para o Norte correndo. O Bartlett era um rato de esgoto, para dizer o mínimo, e
aquela casa está pior que um chiqueiro. Ele usava suas escravas naquelas camas e as pobres
criaturas viviam cobertas de bichos. A casa não serve para porcos e você quer botar os Webster lá
dentro? Seu estômago ficaria embrulhado se visse a imundície daquilo.
— Eu já vi — replicou Brandon, dando um sorriso leve. — É por isso que amanhã vamos até lá,
com ajudantes, para dar um jeito nas coisas.
— Eu devia ter ficado de boca fechada — reclamou Jeff de brincadeira.
Brandon deu um risinho.
— O dia em que isso acontecer vou ter de chamar o reverendo. Ignorando a ironia, Heather fez
uma declaração com voz firme:
— Eu também vou. Não acredito que vocês dois possam arrumar uma casa direito para uma
família morar. — Olhou para ambos e percebeu pouca aceitação, apressando-se então a
acrescentar com voz suave: — Tentarei não atrapalhar ninguém e não causar problemas.
Os olhares dos homens baixaram até aquela barriga protuberante e a dúvida comum nos seus
olhos não foi afastada pelos sinais de aprovação que deram com as cabeças.
O grupo que parou em frente à casa abandonada e cheia de vegetação rasteira saltou e ficou
olhando a estrutura com muita apreensão.
Hatti ironizou, bufando:
— Nossa! Foi por isso que aquele home teve que vendê ela! Nunca vi uma casa se rebentá tanto e
ficá toda estragada assim. Acho que deixaram os porco solto por aí.
Jeff sorriu enquanto tirava o paletó e o deixava na carruagem.
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— Parece que a gente vai ter de trabalhar um bocado, não é Hatti?
O casaco de Brandon foi parar ao lado do de Jeff e, dando uma risadinha irreverente, ele
exclamou:
— Ao trabalho! Não há necessidade de perdermos mais tempo. E mandou dois garotos fazerem
a limpeza do jardim, entrando para ver o que faltava. Hatti e Heather caminharam atrás dele,
fazendo os próprios estudos femininos de avaliação. Heather franziu o nariz de desgosto ao ver o
que a guardava. Havia alimentos podres espalhados pelo chão e em cima da mobília. Sujeira e lixo
acumulavam-se sob seus pés e um odor terrível empestiava o ar.
— Vejo que você tinha razão, Hatti. Sem dúvida havia porcos por aqui..
Logo os criados carregavam os objetos, e tudo removível era levado para fora a fim de ser limpo.
Jeff dispôs-se a examinar os outros aposentos em busca de mobília usável. Hatti dava ordens às
mulheres e em breve enfrentavam a tarefa de limpar a casa de alto a baixo. O marido e o neto de
Hatti, Ethan e Luke, encarregaram-se do terreno e da pintura. Brandon deixou as mulheres em
suas tarefas e foi com George inspecionar as instalações externas, que encontraram em péssimo
estado, exigindo consertos gerais. Ninguém ficou à toa.
No vaivém do momento, Heather foi esquecida e deixada à própria sorte. Amarrou um lenço
grande na cabeça, enrolou as mangas e, com uma longa vassoura, começou a limpar a lareira da
sala de visitas. Estava sentada ali perto, absorta no seu trabalho, quando foi rudemente
interrompida por uma voz atrás:
— Dona Heather! Meu Deus, criança! A sinhora vai estragá o seu corpo e a criança! — Hatti foi
correndo para o lado da patroa e, pegando-lhe o braço, ajudou-a a levantar-se. — Dona Heather,
a sinhora num divia tá trabalhando. A sinhora só veio pra dá uns conselho pra gente. Se o seu
Bran ver a sinhora fazendo assim ele vai tê um ataque! Deixa essas minina fazê as coisa, porque
elas num têm bebê na barriga. Fica sentadinha e vai cum calma!
Heather olhou em volta, examinando o cômodo, e riu.
— Mas onde é que eu vou sentar-me, Hatti? Eles levaram todas as cadeiras lá para fora.
— Pois a gente vai achar uma, e a sinhora vai ficá bem confortávi.
Logo Heather ficou instalada numa cadeira de balanço muito usada, diante das encardidas janelas
da frente e com um livro no colo. Hatti saiu correndo, para continuar na labuta, e mais uma vez a
patroa ficou sozinha. Tentou ler um pouco sob a ténue luz filtrada pelas cortinas imundas, mas,
de pura curiosidade, molhou o dedo e, afastando os panos, correu-o por um dos vidros, deixando
um traço desenhado na sujeira. Fechou o livro, levantou-se firmemente e logo
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havia rasgado as cortinas apodrecidas e, equipando-se com balde e pano, começou a esfregar as
janelas. Subiu numa cadeira, que havia trazido para dentro, e já lavava os vidros de cima quando
Brandon chegou pela porta da frente. Deu uma olhada para ela, trepada na cadeira, e nem perdeu
tempo com palavras — foi rápido até atrás dela e a agarrou, assustando-a quando deu um berro
de aviso:
— E o que você pensa que está fazendo?! — gritou.
— Oh, Brandon, você me deu um susto!... Ele a deixou de pé.
— Se eu a vir de novo trepada numa cadeira, mocinha, vou dar-lhe motivos para se assustar! Não
veio aqui para trabalhar — admoestou-a. — Só a trouxemos para nos fazer companhia.
Ela sacudiu a cabeça, aflita.
— Mas, Brandon, eu.
— Sem discussões, Heather. Fique sentadinha e tome conta do meu filho.
A esposa suspirou, rendendo-se, e afundou na cadeira de balanço novamente, balançando-se
resignada.
— Companhia!? Vocês todos trabalhando e eu sentada aqui sozinha.
Brandon acariciou um cacho solto dos cabelos dela e beijou-a suavemente na testa.
— Você é muito mais importante para mim sentada e quietinha do que toda esta maldita casa.
Ela estendeu o lábio inferior, fazendo uma tromba, pegou o livro e recomeçou a balançar a
cadeira.
— Já estou sendo tratada como uma velha. Brandon riu docemente.
— Nunca, meu amor. Só quando eu estiver muito, muito velho.
E deixou-a com sua leitura, mas não demorou muito e ela se levantou e foi passear pela casa.
Passou por um quarto de cima onde as meninas estavam ocupadas, esfregando e limpando, e por
outro onde os dois garotos colocavam novo papel de parede, mas depois desceu novamente até a
cozinha. Aqui a sujeira não fora ainda removida e Heather estremeceu diante daquela visão.
Localizando um depósito, começou a varrer o lixo, poeira, ossos descarnados e muita comida
estragada. Tossiu e sufocou-se com a poeira que levantava, ao mesmo tempo que lançava olhares
ocasionais para a porta, prestando atenção a passos que poderiam surgir, mas tudo em vão — a
velha negra veio com passos silenciosos.
A patroa deu um pulo e largou a vassoura, pondo as mãos envergonhadamente atrás do corpo.
Hatti bloqueou a porta com os braços abertos, e a boca se franziu numa carranca.
— Isso num faz bem pra sinhora, respirá toda essa poeira! E a sinhora acaba tendo esse bebê
aqui mesmo, nesse lugá velho e podre,
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se num ficá quietinha agora mesmo! — avisou. — Eu vô chamá o seu Bran agora, viu? Ele vai
obrigá a senhora a discansá.
E dizendo isso virou-se e saiu. Heather mordeu o lábio, resmungando qualquer coisa parecida
com ser menos saudável para uma pessoa ser assustada até a alma com um grito, e olhou para
baixo enquanto remexia com o pezinho um montículo de sujeira no chão. Os dois regressaram
logo após e ficaram num silêncio reprovador olhando para ela.
— A senhora, madame — suspirou Brandon — é a mulher mais teimosa que já vi. É óbvio que
teremos de descobrir alguma tarefa mais leve para distrair-lhe.
Mas ficou sem saber o que encontrar até Jeff gritar por sua presença lá do jardim dos fundos. Os
três saíram, e lá fora os meninos arrumavam diversos barris grandes. Jeff tirou as tampas para
mostrar-lhes como estavam repletos de um estranho sortimento de pratos, panelas, chaleiras e
outros utensílios.
— Cheguei à conclusão de que a Sra. Bartlett separava estes aqui para uso dos escravos —
resumiu Jeff. — Estavam armazenados na serraria, mas eu duvido de que o Sr. Bartlett tenha
deixado os pobresdiabos sequer olhado para o material.
— O Sr. Bartlett é casado? — perguntou Heather ao marido, recordando as palavras de Jeff na
véspera.
Brandon sinalizou com a cabeça.
— E com uma ótima pessoa, segundo me disseram. Mas ela deve ser cega ao modo de ele agir.
Parece que todo mundo em Charleston sabe que tipo de homem ele é.
— Lixo de branco, é o que ele é! — resmungou Hatti. Mordeu o lábio e voltou para dentro da
casa, falando sozinha. — Esse home já divia ter sido inforcado há muito tempo!
Brandon examinou alguns dos objetos nos barris e depois piscou um olho para Heather,
pensando ter descoberto a função certa para ela.
— Bem, meu querido e irrequieto ratinho, talvez você possa ficar sem se meter em confusões
cuidando disso. Escolha o melhor e separe-o para os Webster. Não adiantaria devolver tudo à
Sra. Bartlett para que descobrisse o marido que tem.
Enquanto ele a ajudava a descer os vacilantes degraus, ela abriu um largo sorriso para ele: um
pequeno flerte que derreteu o coração do marido, correndo-lhe pelas veias como vinho e
deixando-o um pouco intoxicado. Ele mal se concentrou no que Jeff dizia enquanto Heather
remexia nos barris, e finalmente teve de virar de costas para ela, senão jamais daria atenção ao
irmão. Após instantes, Jeff olhou para além de Brandon e parou no meio de uma frase que
pronunciava, sorrindo, e Brandon se virou a tempo de ver Heather enfiar a cabeça num
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dos barris maiores, lutando para trazer uma grande panela do fundo.
— Maldição! — sua voz explodiu.
A panela soltou-se e Heather ficou ereta, tirando os cabelos da frente dos olhos. O lenço se
desprendera e havia uma grande mancha gordurosa no seu queixo. Jeff irrompeu em gargalhadas
enquanto Brandon sacudia a cabeça em desespero.
— Jeff, mande os meninos desembrulharem as coisas todas e colocarem-nas no varandão —
falou e, pegando um prato de porcelana branca num dos barris, segurou-o diante de Heather para
que ela visse seu estado. — E a senhora, Dona Cara Preta, não levante coisa alguma mais pesada
do que isto aqui. Entendeu?
Ela concordou, acenando vigorosamente com a cabeça e fazendo esforço para limpar o rosto
com o avental. Brandon suspirou.
— Tome, senão vai piorar. Deixe que eu faço. — Pegou a ponta do avental da esposa e
gentilmente retirou a gordura do queixo. — Agora fique boazinha — brincou. — Senão vou ter
de mandá-la para casa a fim de que não mais se meta em encrencas.
— Sim, senhor — ela murmurou obedientemente, e os olhos de Brandon a acariciaram com
ternura.
Agora que Heather tinha alguma coisa com que se ocupar, não mais atrapalharia os outros,
Brandon e George passaram o resto da manhã fazendo limpeza e consertos no poço. Jeff
prosseguiu em sua busca pelos cómodos e encontrou uma boa quantidade de mobília usável. O
jardim fronteiro ficou entulhado com o produto de sua pesquisa. Pouco antes do almoço, Hatti
declarou as escadas limpas e adequadas para uma moradia, bem como a frente da casa brilhando
com uma camada fresca de cal. Todos pararam e pegaram cestas grandes na carroça, e um lanche
descontraído e alegre foi partilhado pelo grupo. A refeição terminou e cada um procurou
descansar numa réstia de sol ou de sombra, conforme o gosto. Um travesseiro de penas foi
colocado debaixo de um majestoso pinheiro para Heather, e Brandon juntou-se a ela enquanto
Jeff se sentava perto, encostado numa antiga arca, e observava-os com olhar contente.
— Eu estava começando a perguntar-me se vocês dois tinham aversão a usar determinadas coisas
— comentou sorrindo. — Embora eu não tivesse conseguido calcular como Heather chegou ao
seu estado atual sem que vocês o fizessem. Claro, só é preciso uma noite para que a coisa seja
realizada, não é? Aí a mulher não tem saída.
Seguiu-se um silêncio e Heather trocou olhares com o marido. Brandon encolheu os ombros
ligeiramente em resposta ao olhar inquiridor da esposa, depois ergueu uma sobrancelha para o
irmão e encarou-o. Jeff, porém sorriu e encostou-se de novo, fechando os olhos.
A tarde mostrou-se tão movimentada como a manhã. O andar de baixo ficou em plena forma,
embora no início parecesse impossível
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atingir-se essa meta. Agora um cheiro de sabão de pinho inundava os aposentos e tudo brilhava
com o manto de impecável limpeza.
Heather ficou aliviada porque os trabalhos daquele dia chegavam ao fim. Estava extenuada, suja,
pegajosa de suor, e mal parecia a dona de uma mansão. Longos anéis de cabelo preto pendiam-
lhe pelas costas, saindo pelo lenço em volta da cabeça, e por entre os seios havia umidade que se
via no local onde abrira o corpete para permitir que a brisa fresca tocasse sua pele.
Nenhum outro homem além de Brandon entrara na casa desde que a mobília fora trazida para
dentro, e todas as tarefas restantes que dependiam do toque feminino ali se achavam à espera.
Fronhas foram mudadas em novos travesseiros de pena, e pratos foram lavados e colocados em
armários de louças. Portanto, enquanto Heather discutia com Hatti, diante da lareira agora limpa,
os detalhes a serem completados para tornar a casa um local ainda mais confortável para os
Webster, e ao mesmo tempo recebendo da velha negra uma lista de objetos guardados lá em
Harthaven e que podiam ser usados ali, não ficou a par daquela presença masculina. Estava de
costas para a porta do vestíbulo, e Hatti de lado, seguindo atentamente suas instruções. Com o
próprio vestido cheio de sujeira e um avental amarrado abaixo do busto, ela não ficava diferente
das outras serviçais. Um desconhecido que chegava por trás pensaria tratar-se de uma pequenina
e bem arrumada negrinha.
E foi essa a gafe cometida pelo Sr. Bartlett quando a viu ao lado de Hatti, entrando pelo cómodo
silenciosamente para forçar sua presença às duas mulheres. Heather ficou a par de sua
intromissão ali somente quando sentiu a mão dele batendo grosseiramente em suas nádegas e
ouviu uma voz eclodir em seu ouvido:
— Oh! Mas que pedaço bonito encontrei pra mim. Velhota, vá dizer ao seu patrão que o Sr.
Bartlett está aqui para falar com ele, mas não tenha pressa. Estou a fim de provar este petisco
tentador enquanto você estiver ausente!
Heather girou o corpo, chocada com o ultraje, e Hatti fez a volta rápido, arfando de surpresa e
olhando aterrorizada para o intruso. Bartlett mal demonstrou seu espanto diante da cor da pele e
dos olhos daquela pequena mulher. Seu pensamento inicial foi o de que estava em companhia de
uma serva — nem sonhava que acabara de insultar uma Birmingham. Sua língua lambeu os lábios
quandoviu a abertura no corpete e seu sorriso aumentou para uma careta no momento em que
lhe pegou o braço.
— Bem, minha querida, parece que alguém trepou em cima de você antes de mim. Seu patrão,
talvez? Sem dúvida ele tem bom gosto, isso eu garanto. — Fez um gesto para que Hatti se
afastasse logo. — Vá, velhota. Isso é negócio pra branco. Seu patrão vai dividir essa aqui mesmo
que não queira. — E seus olhos se apertaram quando olhou para a negra. — E não vá sair por aí
contando isso, senão eu arranco a língua dessa sua boca!
Hatti e Heather recuperaram a voz ao mesmo tempo. Heather deu um grito histérico de
indignação enquanto tentava livrar-se dele.
— Como ousa você!? Como ousa?
E Hatti agarrou um pano que estava perto e brandia-o enquanto gritava:
— O sinhô sorta ela! Deixa ela, branco vagabundo! O seu Bran vai acabá cuntigo!
Bartlett deu um passo adiante e ergueu o braço para bater na negra, mas foi Heather quem lhe
deu um violento tapa na cara.
— Solte-a! — ordenou.
A mão do homem tocou o rosto no mesmo instante e ele desviou a atenção para a mulher que o
atingira.
— Ora, sua pequenina fera!
Ela o encarou furiosa, com o peito arfando, e apontou para a porta.
— Saia já daqui! — vociferou. — E nunca mais volte aqui! Mas ele a puxou para si.
— Você fala grosso demais para uma simples criada, meu bem. Zangada, Heather socou-lhe o
peito, exigindo sua soltura. Ele se limitava a rir, com gargalhadas estrondosas, e passou o braço
grosseiramente pelos ombros dela, amenizando seus golpes com um abraço suarento.
— Você está mesmo ansiosa para salvar a pele desta velha negra, não é? — zombou ele. — Mas
você está fazendo a coisa do jeito errado. precisa apenas ser boazinha comigo. O que o seu
patrão tem que eu não tenho?
Hatti balançava o pano ao mesmo tempo que o salto afiado de Heather se enfiava no dorso do pé
do Bartlett, cujo uivo de dor foi abruptamente misturado com uma mixórdia de panos molhados
e, tanto ferido quanto desequilibrado, foi recuando aos tropeções até o saguão. Agora encarava a
imensa negra que, com sangue no olhar, brandia panos molhados, e uma pequena fera que
empunhava uma barra de sabão como se fosse uma adaga, e então se virou e saiu voando do
alcance da dupla vingadora. Quando seu pé atingiu o degrau mais alto do varandão uma enorme
barra de sabão atingiu-o bem na nuca, fazendo um barulho estranho; a barra saiu escorregando
pelo pátio e foi seguida logo após pelo próprio Sr. Bartlett, que deu um lindo salto mortal e
aterrou em cheio de costas na poeira. Ergueu-se, arquejando e sem fôlego, irado por ter sido tão
insultado por duas simples escravas, e o que é pior, sendo escravas. eram mulheres. A pequenina
encarava-o da varanda com um brilho feroz nos olhos.
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- Agora tire sua figura imunda e pegajosa desse local e não demore em fazê-lo — rosnou. E
ergueu uma sobrancelha audaciosamente. Ou meu patrão vai ensinar-lhe uma lição!
Ora sua pequena prostituta! — ele reclamou. — Vou lhe ensinar como tratar seus superiores!
E avançou ameaçadoramente, mas o pano passou assobiando a milímetros do seu rosto,
deixando pequenos pingos de água suja. Hattí puxou Heather para detrás dela e sua voz roncava
de raiva quando falou lentamente, mas com dolorosa clareza:
— Olha aqui, seu Bartlett: se o sinhô toca de novo nessa Birmingham daqui eu vô inrolá esse
pano na sua cabeça tão forte que eles vão tê que raspa o sinhô qui nem um carneiro.
O próximo comentário do homem foi entrecortado por causa do susto que levou ao escutar
passos pesados e súbitos atrás de si, e então se virou e viu o dono de Harthaven vindo em sua
direção com uma carranca fechada deformando-lhe o rosto avermelhado. Naquele breve
momento Bartlett descobriu o que era ver a morte de perto. Ele insultara a esposa de um
Birmingham e não apenas uma qualquer, mas a de Brandon Birmingham, muito conhecido pelo
péssimo gênio.
Empalidecendo consideravelmente dentro de sua pele suada, ele ficou paralisado onde estava,
incapaz de mover-se e com o pavor atravessando cada poro do seu corpo. Brandon escutara o
suficiente para quase explodir de raiva e agora via somente aquele homem à sua frente enquanto
tudo mais se transformava em uma mancha rubra. Ansiava por sentir os ossos daquele sujeito se
quebrando sob sua mão e, quando chegou bem perto, lançou o punho fechado com um gesto de
vingança sangrenta. Os nós dos dedos acertaram no homem, pegando no rosto e sobrancelha do
lado direito, abrindo a pele e fazendo Bartlett girar em torno de si mesmo. Brandon recuou, com
o punho pronto para bater de novo, contudo Bartlett saiu voando na direção de sua carruagem
com espantosa agilidade para sua idade e tamanho. Brandon não estava disposto a deixá-lo fugir e
já ia atrás do intruso quando Jeff entrou na contenda. Percebendo a sede de sangue do irmão,
atirou-se de corpo inteiro contra ele, caindo os dois no chão. Tentou segurá-lo ali mesmo,
entretanto Brandon se safou e Jeff olhou para cima e viu o irmão de pé, pernas abertas, dentro de
uma nuvem de poeira e praguejando contra a carruagem veloz. O Sr. Bartlett levantou-se do
assento e sacudiu o punho cerrado, depois se sentou novamente e prosseguiu em sua tarefa de
fugir estrategicamente.
Brandon acalmou-se quando viu a alameda agora vazia. Bateu na roupa, tirando a poeira, e correu
os dedos pelos cabelos. Então virou-se e deu a mão para ajudar Jeff a levantar-se. Olhou em
direção da casa e sua raiva selvagem cedeu lugar depressa à preocupação em
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relação a Heather. A testa franziu-se no instante em que pisou no primeiro degrau e se deteve
diante da esposa, que caiu em seus braços rindo quase histericamente de alívio enquanto
espalhava beijos lacrimosos no seu pescoço e no peito, e também usava a ponta do avental para
limpar a sujeira no marido e as lágrimas nos próprios olhos. Acreditando na verdadeira angústia
da esposa e incapaz de descobrir outra explicação para aquele comportamento, Brandon
empurrou-a carinhosamente para uma cadeira a fim de tentar acalmá-la.
Um momento depois interrogou Hatti, e Jeff se viu novamente na contingência de usar força
para detê-lo quando o relato acabou. Brandon levantou-se, com o rosto contraindo-se
violentamente, jurando matar Bartlett, e o coração de Heather pulsava na garganta.
— Por favor — arquejou, segurando-lhe a mão. E arrastou-o para baixo de novo, diante dela, e
apertou-lhe a mão de encontro ao abdómen. O marido sentiu o bebé mexendo-se vigorosament
lá dentro. Ela o olhou profundamente, e os olhos de Brandon sorriram suavemente quando a
esposa tocou seu rosto. Já me agitei bastante para um dia. Vamos acabar o serviço aqui e voltar
para casa.
Quando Jeremiah Webster deu a primeira olhada na casa preparada para ele e sua família, pensou
tratar-se da residência dos Birmingham e comentou que era um lindo lugar. Os três Birmingham
olharam-no com surpresa, e Brandon se apressou em corrigi-lo. O queixo do homem caiu de
espanto, e só momentos depois se recuperou e correu para a esposa.
— Você ouviu, Leah? Escutou só? Esta casa aqui vai ser a nossa! — exclamou ele.
Pela primeira vez, desde que se encontraram, a mulher falou, e com lágrimas chegando-lhe aos
olhos esqueceu sua timidez por instantes.
— É bom demais para ser verdade! — E virou-se para Heather como se para confirmar o que
seu marido dissera. — Nós vamos morar aqui? Numa casa de verdade? — perguntou atónita,
insegura.
Heather balançou a cabeça afirmativamente e deu um sorriso carinhoso para Brandon, pela
bondade que tivera com aquela gente, enquanto segurava o braço da mulher.
— Venha — murmurou gentilmente. — Vou mostrar-lhe o interior.
Quando as duas mulheres entravam na casa seguidas pelo Sr. Webster logo atrás, Jeff deu uma
leve cotovelada amigável no irmão, que admirava a esposa.
— Mais algumas façanhas dessas, Brandon, e você se transformará para ela num daqueles
cavaleiros de armadura...
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À medida que o mês de março chegava aos seus meados, os dias passavam quentes e ensolarados.
Brandon descobriu que preparar a serraria para funcionar lhe exigia a maior parte de seu tempo e
pouco via a esposa ou o lar. Tanto ele quanto Webster faziam muitas viagens entre a serraria e os
campos madeireiros rio acima. Grandes balsas de madeira vinham flutuando até descansarem nas
águas traseiras da serraria, aguardando os primeiros gritos famintos das serras gananciosas. A
maior parte da madeira estocada no depósito da serraria serviu para consertar e reconstruir as
choças arruinadas que antes abrigavam escravos. Duas famílias e meia dúzia de homens solteiros
vieram de Nova York a pedido de Webster a fim de transmitir sua experiência ao pessoal.
Os dias quentes, poeirentos, e as noites frias e úmidas formavam um quadro triste para Heather,
com Brandon e Jeff ausentes da casa. Ela combatia a aflição da monotonia encontrando breves
momentos de alívio em pequeninas coisas. Um chuvisco interrompeu o calor sufocado daquele
mês e abriu caminho para a pesada chuva que perdurou à noite. Os próximos dias provocaram
agradável metamorfose na terra, e Heather ficou assombrada com a súbita mudança causada
pelas chuvas. Quase da noite para o dia os castanhos opacos do inverno foram substituídos pelos
verdes cintilantes da primavera. As magnólias espalhavam seu forte aroma pela pradaria, e
cascatas purpúreas de glicínias despencavam das árvores. Adálias, loendros, lírios de vários tipos
exibiam seus coloridos luxuriantes pelo campo, enquanto cornisos vivos enfeitavam os vales.
Patos e gansos grasnavam estridentemente, e a floresta se tornou viva com a abundante presença
dos animais.
Em meio à tanta grandeza Heather sentiu a hora aproximar-se. Sua carga desceu mais na barriga
e, quando andava o volume ia bem à frente. A despeito da beleza do panorama raramente ela se
aventurava a sair. Sentia-se lenta e desajeitada, mas sempre que desejava se mover encontrava
alguém disposto a assisti-la. Quando Brandon se ausentava, fosse para a serraria ou para os
campos madeireiros rio acima, havia Jeff, ou Hatti, ou Mary, ou qualquer outra pessoa por perto.
Um bando de amigos da família apareceu para apresentar-lhes seus respeitos e dar as boas-vindas
a Brandon em seu regresso. Foi numa tarde de sexta-feira que as visitas começaram a chegar aos
grupos...
As covas haviam sido preparadas para assar desde cedo, naquela manhã, e os meninos se
encarregavam de virar as carnes. Canecos de cerveja eram resfriados nas águas frescas do córrego,
e preparava-se comida em abundância.
O Reverendo Fairchild, esposa e seus sete filhos faziam parte do primeiro grupo a chegar, e logo
após a enorme carruagem negra
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de Abegail Clark subiu ligeira a alameda sem parar diante da mansão. A festa crescia em animação
à medida que o dia transcorria, e o Reverendo Fairchild teve de impedir que alguns homens
exagerassem na bebida e afastar os casais jovens de dentro da mata, onde haviam ido para deitar-
se e trocar frases românticas. Brandon mandou que colocassem diversos barris de cerveja debaixo
das árvores, e Jeff, agindo por conta própria, trouxe um barril do seu conhaque envelhecido. Os
ânimos se elevavam, e barris particulares eram trazidos e consumidos, em comparação ostensiva
com os dos Birmingham. Crianças corriam e brincavam pelos extensos jardins e consumiam
muitos jarros de limonada. As mulheres formavam grupos, mostrando suas costuras, enquanto os
homens admiravam cavalos. As mulheres não conseguiam definir qual a cerveja mais suave.
Foi Sybil Scott quem chamou a atenção de quase todos durante algum tempo, naquela tarde.
Usava um vestido com decote ousado, um tanto caro, e foi perseguida insistentemente por um
comerciante barrigudo, meio envelhecido, cujas intenções eram óbvias para todo mundo, menos
para ela. Evitava suas garras pegajosas com risadinhas nervosas, de certa forma lisonjeada por tal
atenção incomum vinda de um homem, e animada pela ausência da mão limitadora da mãe.
Os olhos de Heather arregalaram-se ao deparar com a moça antigamente tão recatada, que agora
ria e flertava com seu perseguidor, opondo como único obstáculo às suas ousadas mãos uma leve
resistência. Sentada ao lado dela, a Sra. Clark mostrava sua ira fungando alto e batendo a
sombrinha no chão.
— Maranda Scott vai arrepender-se do dia em que der liberdade à filha. Aquela pobre moça vai
acabar de coração partido. Aquele sujeito compra-lhe roupas caras e presentes, e não faz
promessa alguma de futuro, e a menina sempre foi protegida demais para saber lidar com um
homem qualquer, especialmente aquele ali. Pobrezinha, precisa de alguém que lhe abra os olhos.
— Sempre achei que era uma moça tímida — murmurou Heather, bastante confusa com a
transformação.
— Sybil, minha cara, não é mais jovem — comentou a Sra. Fairchild. — E certamente parece ter
perdido a timidez.
A Sra. Clark sacudiu a cabeça, triste.
— Era de se esperar, depois que ela não conseguiu pegar um Birmingham. Maranda desistiu de
protegê-la.
E deu uma olhada para Heather que, com toda barriga redonda, estava fulgurantemente bela,
cercada daquela misteriosa aura das mulheres que esperam bebê. Usava um vestido de organdi
azul-claro, com babados no pescoço e nos punhos, e os cabelos estavam presos, formando um
grupo de cachos macios amarrados com estreitas fitas azuis e caindo iguais a uma cascata. Mesmo
tão evidentemente grávida despertava inveja em muitas.
260
A dama continuou, agora dirigindo-se diretamente a Heather:
— A essa altura você já sabe que Sybil tentou agarrar seu marido, embora eu não consiga ver
como ela, pobrezinha, pensou em ter essa oportunidade. Ele raramente dava sequer uma segunda
olhada para qualquer de nossas moças mais bonitas até que, lógico, surgiu a Louisa, cuja beleza
todos nós reconhecemos. Mesmo então Sybil manteve esperanças, contudo, no dia em que viu
você, finalmente reconheceu que seus sonhos haviam terminado. Foi uma pena o modo pelo qual
Maranda a encorajou a acreditar que Brandon notou a presença dela. Ele mal sabia que a pobre
moça existia. — E, acenando com a cabeça na direção de Sybil, acrescentou: — A culpa é de
Maranda pelo que ocorre neste momento, mas ela só pensa em ficar sentada em casa,
amaldiçoando Brandon, e nem se importa mais com a filha.
A voz da mulher encerrou a frase cheia de cólera, e ela bateu forte com a sombrinha no solo
como se para dar ênfase às palavras. Na alameda principal Brandon e Jeff caminhavam em
direção às senhoras quando Sybil, tentando fugir de seu perseguidor de mão pesada, surgiu veloz
de trás de uma árvore, quase colidindo com os irmãos. Brandon afastou-se para o lado,
cumprimentou-a e prosseguiu em seu caminho sem dar-lhe sequer uma segunda espiada. Os
olhos da pobre moça arregalaram-se, quando o reconheceram, e ela ficou pálida. Ficou ali,
olhando abandonadamente para as costas dele, e toda a alegria daquele dia fugiu diante da
presença de Brandon. Depois Sybil viu-o sentar-se ao lado da esposa.
E sua visão escureceu quando uma carruagem de passeio se deteve diante do grupo sentado.
Assim que Louisa, ricamente vestida, apeou da carruagem, deixando seu príncipe encantado
muito surpreso pelo afastamento tão súbito, Heather pôs a costura de lado, no colo, e aguardou
sua chegada. Louisa sorriu vivamente enquanto caminhava, e a cumprimentou alegremente. Seu
novo parceiro apeou e seguiu-a, porém ela o ignorou, dando toda a atenção ao ex-noivo. Fez uma
carranca, entretanto, quando Brandon se levantou e foi parar atrás da cadeira da esposa, e então
se virou para examinar Heather.
— Meu Deus, criança! — zombou, dirigindo o olhar para a volumosa barriga. — Isso
provavelmente arruinará sua silhueta para o resto da vida.
— E o que você entende disso, Louisa? — perguntou Jeff sarcasticamente.
Ela desprezou essas palavras e fez uma pirueta, mostrando a roupa e a imagem voluptuosa.
— Que tal o meu novo vestido? Descobri um costureiro talentosíssimo. Ele faz maravilhas com
um pedaço de pano e um pouco de linha. — E enrugou o nariz, como se não gostasse de alguma
coisa.
261
Ele é um homenzinho tão esquisito... Você precisava vê-lo. Dá vontade de rir. — E olhou
acintosamente para a mulher mais jovem. — Por acaso, ele é conterrâneo seu, querida.
E foi caminhando esvoaçante para um grupo de jovens casais ali perto, enquanto seu par chegava
para falar com Brandon:
— Eu soube que você se casou, Bran — rosnou Matthew Bishop.
Brandon descansou as mãos nos ombros de Heather enquanto a apresentava ao homem.
— Matt e Jeff cursaram juntos a escola — explicou à esposa.
— É um prazer conhecê-lo, Sr. Bishop — ela murmurou sorrindo.
Primeiro o homem olhou para a barriga de Heather e sorriu, depois ergueu o olhar para o rosto e
pareceu surpreso com o que viu.
— Esta é sua esposa? — perguntou, quase incredulamente. — Mas a Louisa disse que...
E deteve-se, percebendo o que por pouco não revelara. Achara estranho quando Louisa xingara e
descrevera para ele a pequenina mendiga miserável que usara de bruxaria para roubar seu noivo.
No entanto achara difícil acreditar que Brandon ficasse ansioso para ser agarrado, ou que fosse o
tipo de homem que levaria uma garota feia para a cama, muito menos se casasse com ela. Deveria
ter calculado que aquele sujeito escolheria o melhor para aquecer-lhe a cama.
— Acredito que brincaram comigo — sorriu. — Você tem uma esposa linda, Brand
Louisa voltara correndo a tempo de ouvir esses últimos comentários e franziu a testa para ele
enquanto pegava seu braço, porém se virou para sorrir para Brandon.
— Querido, você dá festas fabulosas — comentou ironicamente. — Mesmo quando só havia nós
dois, suas festas jamais foram entediantes...
Brandon pareceu ignorá-la quando se inclinou para perguntar à sua esposa como estava
passando, entretanto Abegail não se conteve:
— Parece que você vive freqüentando festinhas, Louisa. Quanto aos homens. não é sempre que
você demonstra vontade de limitar suas afeições a um só!
Jeff deu uma risada sincera e piscou o olho para a velha. Louisa observou os dois. E desviou sua
atenção para Heather a tempo de ver a jovem passar o rosto carinhosamente nas costas da mão
do marido e murmurar alguma coisa quando ele se inclinou em sua direção. O ciúme eclodiu
dentro dela. Seu olhar baixou para o lenço que Heather costurava com o monograma do marido,
e os olhos estreitaram-se maliciosamente.
262
- Que é isso que tem aí, querida? Gasta seu tempo com essa costura vulgar? Pensei que teria
coisas mais importantes com que ocupar-se, casada com Brandon. — E deu uma olhada na
direção dele.
, No entanto, reconheço que poucos prazeres lhe pode oferecer com o bebê em estado tão
adiantado de crescimento. Quanto a mim, eu...
— Costurar é uma fina arte, Louisa. — interrompeu a Sra. Fairchild, dando muita atenção ao seu
próprio trabalho. — Arte essa que seria interessante se aprendesse. Ocupa as mãos e mantém o
cérebro longe de objetivos menos elogiáveis...
Percebendo que não conseguiria estragar a alegria de Heather sem que surgisse alguém bufando
para proteger a pobre indefesa, Louisa afastou-se a passos largos, derrotada apenas naquele
momento. Haveria outras oportunidades para despedaçar a segurança daquela moça, e ela sabia
esperar. Sorriu para seu novo acompanhante e esfregou os seios no braço dele para provocá-lo.
Não era tão bonito como Brandon, nem metade tão rico, mas serviria até que ela conseguisse
arrastar de novo para sua cama aquele garanhão arrogante e inteligente.
Eterno celibatário por interesse, Matt puxou-a para trás de um arbusto grande e tomou-a
apaixonadamente nos braços. Por sua vez, provocou-a com o próprio corpo, e seus lábios
entreabertos buscaram os dela ao mesmo tempo em que sua mão deslizava para dentro do
corpete, acariciando aquela carne quente e abundante.
— Aqui não — Louisa murmurou, recusando suavemente. — Conheço um local no estábulo.
Hatti apareceu na porta da frente com uma bandeja de limonada para as damas, e a Sra. Clark
cumprimentou-a calorosamente enquanto as servia:
— Já está pronta para abandonar este antro de iniqüidades e vir morar conosco, Hatti? —
perguntou. — Nós, mais velhas, devemos ficar juntas, sabia?
— Não, sinhora — discordou Hatti, dando uma risadinha. — Eu vou tê que criá um novo
Birmingham dentro em breve e o patrão, junto com a Dona Heather, ia tê que me chutá pra fora
antes deu saí sozinha. Uma parelha das mula do seu Bran num ia tê força pra me tirá daqui.
Com tais palavras, arrancou gargalhadas de todos os presentes e, num olhar interrogador para
Heather, dirigiu sua atenção para o bem-estar da patroa:
— Cumo tá se sentindo, filhinha? Num fica cansada se sentando muito tempo, não, viu? Esse
bebê vai chegá daqui a pouco, sem ninguém precisá se apressá. Seu Bran, num deixa ela se cansá
demais, ouviu?
— Ouvi sim, Hatti — disse sorrindo.
263
Já havia escurecido quando avisaram que a carne ficara pronta. Criados trouxeram tochas. Várias
entradas, com muita variedade, foram dispostas lado a lado em uma longa mesa e os convidados
entregaram-se avidamente à refeição. A carne bovina e de porco era cortada diretamente acima
das covas onde eram assadas e colocadas em pratos enquanto as pessoas formavam filas,
ansiosas. Heather e Brandon deslocaram-se em torno da mesa, servindo-se com a seleção de
alimentos que mais lhe apeteciam. Ele indicava para ela os pratos que ela ainda não conhecia,
pensando que seriam do seu agrado. E quando se afastaram da mesa rumo aos fossos Heather
olhou um tanto espantada para seu prato.
— Estou tão grande que nem consigo enxergar meus pés, no entanto enchi o prato desta
maneira! — E ergueu uma broa de milho, sorrindo alegremente quando ele se serviu de um
pedacinho. — Você vai ter de me ajudar a comer isso tudo, Brandon. Queira ou não.
Ele, com um risinho, lhe deu um beijo quente e carinhoso enquanto ela o encarava com um riso
aberto.
— Faço qualquer coisa para lhe agradar, doçura. Qualquer coisa mesmo.
Quando voltaram para suas cadeiras, Heather observou o marido instalar o prato em cima dos
joelhos e cortar um suculento pedaço de excelente carne com a maior das facilidades, ao passo
que ela mesma, indecisa, não sabia onde colocar o seu. Contemplou-lhe as compridas pernas e
em seguida sua própria falta de apoio. Brandon percebeu quando ela olhava desconsolada para
sua barriga e deu uma risada. Levantando-se, entregou-lhe seu prato e foi pegar uma mesa
pequenina para o casal.
— Acredito que agora a senhora poderá acomodar-se, madame — ele afirmou sorrindo enquanto
armava a mesinha diante dos dois.
Assim que se sentaram, Brandon percebeu George mal-humorado, sentado na extremidade do
varandão e cortando uma vareta com a cara zangada. Intrigado com tal disposição do homem,
Brandon fez sinal para que se aproximasse.
— Por que está aborrecido? — perguntou quando o serviçal se pôs ao seu lado.
George olhou hesitante para Heather e respondeu lentamente:
— Descobri uns vermes no estábulo, patrão... Brandon ergueu uma sobrancelha.
— Vermes?!
O criado esfregou os pés um no outro e olhou para Heather novamente.
— É, comandante, rastejantes...
Brandon raciocinou por instantes e depois acenou com a cabeça mostrando que entendera.
264
— Pode deixar, George. Arrume um prato de comida e concentre seus pensamentos numa fatia
de carne; depois esqueça o que viu ou ouviu.
— Sim, comandante — replicou o homem.
Assim que se retirou, Heather olhou para Brandon com uma expressão intrigada:
— O George encontrou ratos no estábulo? Brandon deu uma boa gargalhada.
— Pode-se dizer que sim, meu bem!
A festa entrou pela noite. Brandon foi passear com Heather no meio dos convidados, e mais uma
vez foram parar no grupo feminino. O marido foi afastado por um bando de homens e só uma
hora depois conseguiu livrar-se e retornar para o lado da esposa. Lá estava ela sentada
calmamente, ouvindo diversas mulheres de meia-idade dissertarem a respeito de suas idades e
preocupações femininas. A Sra. Clark não mais se achava presente. Retirara-se pouco antes para
um dos quartos no andar superior. A Sra. Fairchild voltara para casa com o marido e os filhos.
Brandon pegou a mão de Heather e puxou-a da cadeira.
— Senhoras, rogo que perdoem minha esposa agora. Ela teve um dia longo e cansativo, e precisa
repousar. Espero que não se importem.
Todas se apressaram em afirmar-lhe que tudo estava bem, e sorriram entre si enquanto
observavam sua ajuda carinhosa à esposa que subia os degraus para entrar na casa. Lá dentro,
Heather soltou um suspiro de alívio.
— Obrigada por me salvar — murmurou. — Infelizmente acho que me acharam muito enjoada.
Não tive oportunidade de dizer algo que as impressionasse pela minha inteligência e, além disso,
a cadeira estava muito incômoda.
— Desculpe, querida. Eu teria vindo mais cedo, caso soubesse da situação.
Heather descansou a cabeça em seu braço e sorriu.
— Creio que terá de arrastar-me até lá em cima. Estou tão cansada que não acredito que possa
subir sozinha.
Imediatamente ele a pegou nos braços, em meio aos seus protestos.
— Ponha-me no chão, Brandon! — implorou ela. — Estou muito pesada. Vai fazer-lhe mal.
Ele apenas deu um risinho.
— Dificilmente, madame. Você continua pesando a mesma coisa que um bichinho.
— Ora, ora, ora! Mas o que é isso? — perguntou uma mulher atrás deles, e era a inconfundível
voz macia e acariciante de Louisa.
265
Brandon virou-se devagar, com a esposa nos braços, e deparou com aquele olhar de zombaria em
sua direção.
— Você faz isto toda noite, Brandon? — ela perguntou ironicamente, erguendo uma
sobrancelha. — Suas costas devem estar doloridas, querido. Você devia tomar mais cuidado
consigo mesmo. E se sofresse algum problema nas costas? Certamente não serviria mais para ela.
O rosto de Brandon parecia uma máscara quando respondeu:
— Já levantei mulheres mais pesadas em minha vida, Louisa, inclusive você, e eu diria que minha
esposa ainda terá de engordar muito para se igualar em peso a você...
O sorriso irónico foi substituído por uma boca amargurada e ela olhou fixo para Brandon, que se
virou e, sem olhar para trás, ainda acrescentou:
— Por falar nisso, Louisa, acho bom ir pentear os cabelos... estão cheios de palha...
Por cima do ombro do marido Heather permitiu-se um pequeno sorriso triunfante, que lhe
surgiu nos lábios quando encarou a outra mulher, e apertou os braços em torno do pescoço dela.
Ao invés de dirigir-se diretamente para a sala de visitas, já que Louisa continuava a observá-los,
Brandon levou a esposa até o próprio quarto. Lá arranjou uma cadeira para descansar enquanto
Mary ajudava Heather a despir-se atrás de um biombo. Heather preferia esconder sua nudez de
Brandon enquanto estivesse naquele estado disforme. Esperaria até ficar elegante de novo e então
o tentaria com uma cintura fina, quando alegremente exporia o corpo ao seu olhar perscrutador.
e ao que mais surgisse na ocasião.
Quando uma suave brisa soprou as cortinas perto de sua cama na manhã seguinte, Heather
acordou. A dor enjoada nas costas permanecia e ela se sentiu estranhamente cansada, conquanto
houvesse dormido umas oito horas ou mais. Quando se levantou, sentiu o peso da criança
fazendo pressão para baixo.
O dia demorava a passar. Ela viu o último dos convidados que ali haviam passado a noite partir
no fim da tarde, com a exceção da Sra. Clark, que ficaria mais alguns dias. Veio a noite e o jantar
foi servido. Família e hóspede degustaram uma deliciosa bouillabaisse artisticamente preparada
pela Tia Ruth e, após os últimos pratos serem retirados da mesa, o grupo instalou-se no salão de
visitas, porém Heather logo descobriu haver ali pouco mais conforto do que nas cadeiras do salão
de jantar. Foi para a cama mais cedo e, depois de Brandon acompanhá-la escada acima e deixá-la
na sala de estar, dispensou Mary e despiu-se.
Na escuridão do quarto, esqueceu-se do tempo. Ouviu Brandon subir a escadaria novamente e
entrar no seu quarto, depois o siléncio
266
voltou assim que ele se deitou. Finalmente chegou o sono, mas, não demorou muito, acordou
lentamente quando os movimentos em seu ventre se tornaram dolorosos, e não mais eram
sonhos. Quando cessaram, ela ficou acordada e passou a mão na barriga, sabendo que a hora
chegara.
As dores começaram a dominá-la, então, até darem impressão de que cada músculo em seu corpo
ficava dolorido com a tensão. Finalmente conseguiu sair da cama, tencionando mandar Mary
chamar Hatti, e acendeu uma vela ao seu lado. Com o brilho viu que sua camisola estava
manchada e, à procura de outra, caminhou cautelosamente rumo à cómoda. Estava no meio do
caminho quando seus olhos se arregalaram e ela começou a arfar. A caminhada deixou sua
camisola ensopada — um líquido morno corria-lhe por entre as pernas sem parar. Parada ali,
confusa e indefesa, olhava em volta quando a porta do quarto de Brandon se abriu.
— Heather, você está bem? — perguntou. — Pensei ter ouvido...
Interrompeu-se bruscamente quando o olhar percebeu a camisola toda molhada e correu para ela.
— Meu Deus, é o bebê!
— Brandon — ela disse, espantada. — Estou toda molhada. Aconteceu de repente. Eu não sabia
que estava na hora.
E ficou olhando para ele, como se estar molhada fosse a sua única preocupação, e depois
começou a tirar a camisola.
— Por favor, me dê outra. Não posso voltar para a cama com a roupa molhada.
Brandon correu até a cómoda e abriu todas as gavetas apressadamente, remexendo nelas como
um louco, deixando-as abertas e despejando roupa de baixo por todos os lados. Finalmente
localizou as camisolas minuciosamente arrumadas na última gaveta, e correu de volta para a
esposa com a primeira delas nas mãos, porém Heather o recusou:
— Não, Brandon, esta é cor-de-rosa. Eu vou ter um menino, homem não usa rosa. Vá pegar uma
azul, por favor.
Brandon observou-a espantado durante instantes, mas depois recuperou a irreverência:
— Madame, pelo amor de Deus, não me importa se é menina ou menino! — exclamou.- — Vá
vestindo esta, que vou levá-la de volta para a cama.
— Não — ela teimou. — Vai ser um garoto e não quero usar esta!
— Mas, madame, ele vai nascer usando nada, portanto não faz diferença — ele gritou. — Agora,
quer botar logo isto?
Ela o encarou e, mordendo o lábio, vagarosamente balançou a cabeça em negativa.
267
Brandon atirou as mãos para o alto, exasperado, e a camisola caiu ao chão enquanto ele corria de
volta à cómoda, onde começou a atirar roupas para os lados, desarrumando tudo. Finalmente
encontrou uma azul e voltou rápido. Heather observou-o com atenção enquanto a pegava, no
entanto o marido é quem estava mais confuso, e agora simplesmente olhava para baixo, perdido.
— Quer virar de costas, por favor? — ela pediu, percebendo seu assombro.
— O quê?! — perguntou Brandon idiotamente.
— Quer ficar de costas, por favor? — repetiu a esposa.
— Madame, já a vi nua quando.
Parou e virou as costas, reconhecendo que de nada adiantaria discutir com ela, pois se mostrava
disposta a agir ao seu modo, assim ele apenas retardaria os acontecimentos tentando explicar-lhe
alguma coisa.
A esposa atirou a camisola azul em cima do ombro dele, pois não encontrara outro local para
colocá-la, visto que o casal estava no meio do aposento.
— Madame, quer andar depressa? — apressou ele. — Vai dar à luz aí mesmo, se não se apressar,
e nosso filho será o único bebê que terá nascido em pé.
Heather deu uma risadinha, deixou a camisola molhada cair ao chão e em seguida estendeu o
braço para pegar a seca.
— Duvido, meu querido...
— Heather, pelo amor de Deus! — ele implorou. — Quer parar de tagarelar e botar logo essa
camisola?
— Mas, Brandon, eu não estava tagarelando. Apenas respondi a você. — Arrumou direito a
camisola e começou a atar a fita. — Agora pode virar-se de frente, se quiser.
Brandon girou o corpo velozmente e inclinou-se para apanhá-la.
— Mas, Brandon — ela protestou. — Eu tenho de limpar o chão!
— O chão que vá pró inferno! — ele exclamou, e erguendo-a. Durante instantes ficou indeciso,
com ela no colo, trocando olhar da cama dela para a porta do seu quarto, e rapidamente tomou
uma decisão. Correu para seu próprio quarto.
— Aonde me está levando? — ela quis saber. — Hatti jamais me achará. Vai ter de correr a
mansão inteira até me descobrir!
O marido colocou-a com toda cautela no meio de sua imensa cama.
— Pronto! Sua pergunta foi respondida, sua faladeira? É onde desejo que meu filho... ou minha
filha nasça. Nesta cama.
— Não vai ser menina. Vai ser.
Mas de novo foi assaltada pela dor, quando nova contração surgiu, e ela mordeu o lábio superior
em agonia.
268
— Vou acordar Hatti — ele comentou, e saiu voando do quarto. Entretanto, a velha negra, tendo
visto de seu alojamento o quarto de Heather iluminado, pressentiu o problema e já se achava
preparada no vestíbulo quando ele chegou esbaforido.
— Ela vai ter o bebê! — ele exclamou quando a viu. — Depressa!
A negra sacudiu a cabeça e saiu correndo com o patrão para o quarto principal.
— Inda vai demorá à beça pró bebê nascê, seu Bran. É as primeiras água e a natureza faz tudo na
hora certa. Ainda vai levá umas hora.
— Mas ela está sentindo dores agora. Faça alguma coisa para ajudá-la.
— Seu Bran, disculpe, mas num tem nada que eu posso fazê pra ela agora — ela replicou.
Franzindo a testa negra, preocupada, inclinou-se sobre a angustiada Heather e alisou-lhe os
cabelos, retirando-os da testa da patroa.
— Não luta contra, filha. Fica respirando fundo assim enquanto as dor vem, depois tenha calma
quando elas se for. Vai pricisá das suas força pra mais tarde.
Sob as instruções de Hatti, Heather respirou profundamente. Logo a dor cessou e ela foi capaz
de sorrir para Brandon quando ele se aproximou da cama. Ele se sentou na beirada e estendeu-
lhe a mão. Ela percebeu que seu rosto estava sério e parecia subitamente enrugado.
— Disseram-me que toda mãe passa por isso — ela murmurou consoladoramente. — Faz parte
da vida de uma mulher.
Hatti botou o pessoal da casa para trabalhar, e logo foi aceso o fogão e foram postas enormes
chaleiras com água para ferver. Trouxeram roupa de cama limpa e, com a ajuda de Brandon, uma
parte dela foi colocada debaixo de Heather. A camisola azul foi retirada e cobriram-na com um
lençol limpo. O tempo passava lentamente para alguns, velozmente para outros. Hatti balançava-
se numa cadeira ao lado da cama toda vez que não fazia alguma coisa diretamente pela patroa, e
Brandon, a cada contração, ficava mais tenso.
— Hatti, quanto tempo você acha que ainda vai demorar? — perguntou-lhe ansiosamente,
enxugando a fronte.
— Isso ninguém num sabe, seu Bran. — replicou a velha. — Mas num tem dúvida que a Dona
Heather tá agüentando o problema bem melhó que o sinhô. Pur que é que o sinhô num vai tomá
um gole daquela coisa que o sinhô gosta de bebé? Num vai doê nada, e só pode fazê bem.
Brandon estava sentindo necessidade de um bom conhaque, porém declinou, preferindo ficar
para atender a esposa no que fosse necessário. Ela apertava sua mão com força, parecendo pedir-
lhe que ficasse
269
ali ao seu lado, e ele não podia abandoná-la quando se mostrava tão torturada diante do
nascimento do primeiro filho.
Novamente a agonia apareceu e se foi. Brandon enxugava a testa da esposa com um pano úmido
e retirava-lhe o cabelo do pescoço, dando a impressão de estar mais abatido do que antes. Hatti
aproximou-se da beira da cama e, segurando-lhe o braço, tratou do seu problema:
— Seu Bran, deixa o seu Jeff lhe dá alguma coisa forte pra bebé. Sua cara num tá boa. — E
guiou-o até a porta, abriu-a e gentilmente empurrou-o para fora. — Vá ficá bêbado, seu Bran. Vá
bebé à vontade, e num vorte aqui antes de eu chamá. Num quero vê o sinhô desmaiando
enquanto eu atendo a patroa.
A porta fechou-se e Brandon foi deixado ali, encarando-a sozinho, sentindo-se perdido e
desolado. Deu uma olhada em volta, mas finalmente desceu e foi até o escritório, onde George e
seu irmão aguardavam. Jeff deu uma só espiada nele e enfiou-lhe um copo com bebida forte na
mão.
— Tome — está com cara de quem vai precisar de um destes. Brandon sorveu o líquido, mal
reparando nos dois homens que o observavam, e Jeff fez sinal para que George rapidamente
pegasse o copo na mão do comandante e servisse uma dose pequena de conhaque completada
por bastante água. Brandon não notou a diferença enquanto caminhava pelo aposento.
Ficando no meio dos dois — Jeff e George — eles conseguiram manter sua bebida
permanentemente aguada. Jeff prestava atenção ao irmão, que acendia um cigarro após outro,
apagando-os assim que dava uma ou duas tragadas. Deslocava-se pelo aposento numa espécie de
transe, sem estar consciente ou preocupado com o que se passava à sua volta, ignorando os
companheiros e não prestando atenção ao que fazia. Foi a passos largos até o vestíbulo muitas
vezes e olhava para o segundo andar, depois regressava e se servia de outro copo. De vez em
quando uma criada, descendo ou subindo a escadaria, fazia com que corresse até a porta do
escritório, mas sem motivo. Quando chegou ao ponto de servir-se de conhaque e sorver um
terço do conteúdo sem notar a diferença, Jeff percebeu que ele estava em outro mundo
totalmente diferente.
— Brandon, você está ficando velho demais para esse tipo de coisas ou aquela garota lá em cima
tem mais importância para você do que deseja confessar. Já o vi perseguir um urso ferido sem ter
medo e sabendo exatamente o que estava fazendo. Agora está tão tonto que bebe do meu
conhaque e nem está agüentando.
Brandon sacudiu o copo na direção dele.
— Então por que diabos me deu isso, sabendo que não gosto? Jeff virou-se com uma expressão
alegre para George, e o homem sorriu, em resposta, e deu de ombros. O irmão mais jovem foi
até a
270
mesa, balançando a cabeça reprovadamente, e recostou-se na cadeira em frente. Após alguns
instantes pegou pena e papel e começou a esboçar alguns cálculos. Quando se virou para
Brandon de novo seu rosto apresentava um sorriso maior do que a porteira de um curral E isso
não poderia ter funcionado melhor do que se interferisse no destino do irmão:
— Você sabia, Brandon, que de acordo com meus cálculos você teve de casar-se com a tory no
primeiro dia em que chegou ao porto de Londres?
George cuspiu um bocado de cerveja, tossiu e engasgou, fazendo a bebida descer pelo lugar
errado, enquanto Brandon arriava a cabeça por entre os ombros e fazia uma carranca para o
irmão.
No quarto principal Heather sofria em agonia silenciosa enquanto fazia força para que a criança
saísse. Respirava fundo quando a dor cedia, porém o alívio era cada vez mais curto, e era
torturada. Agarrava na mão da negra e trincava os dentes, e Hatti dava-lhe ânimo.
— A cabeça já vai aparecê, Dona Heather. Agora num vai mais demorá. Faz força pra baixo!
Assim. Grita, se tive vontade. Você ficô em silêncio muito tempo, filha.
Um gemido escapou da garganta de Heather quando seu corpo se viu consumido por nova dor.
Ela combateu a vontade de gritar, mas, à medida que a cabeça da criança emergiu, um grito
escapou-lhe, e lá embaixo, no escritório, Brandon desabou lentamente numa cadeira ao escutá-lo.
Ficou olhando estupefato para ponto nenhum, e George pegou seu copo, que pendia. Tanto o
criado quanto o irmão mais jovem trocaram olhares nervosos e indecisos, verificando que o grito
de Heather os afetara também.
Algum tempo depois, com um largo sorriso no rosto preto, Hatti abriu a porta do escritório
trazendo o pequenino Birmingham em seus braços. Encaminhou-se para Brandon
primeiramente, enquanto os dois outros olhavam espantados para o fardo, e afastou o cobertor
para que o pai visse o recém-nascido.
— É um menino, patrão. Um garoto fortão, bunito, sadio. Já tava gritando antes de abrirem a
escotilha.
— Meu Deus! — exclamou Brandon, saindo do transe para ver o rostinho enrugado e
avermelhado do filho à sua frente. Agarrou o copo, sorveu-o de um só gole e olhou em volta
como se precisasse urgente de outro.
Jeff e George aproximaram-se vagarosamente para observar a criança, orgulhosos como se
fossem os responsáveis pela sua presença ali, esquecendo-se inteiramente de Brandon. Jeff
brincou com a mãozinha do garoto.
— Não parece com o Brandon — comentou.
271
Rapidamente George desviou o olhar do pai para o filho. Hatti porém discordou:
— O seu Bran tinha essa cara mesmo quando nasceu. E também tinha o mesmo cumprimento.
Esse bebê vai sê tão grande cumo o pai dele, isso eu garanto. O começo pra isso ele já tem.
Brandon levantou-se e olhou de soslaio por cima do ombro de George para seu filho. Afastou-se
do grupo enquanto ainda admiravam a criança e saiu correndo do escritório rumo à escadaria que
levava ao quarto. Heather sorriu estonteada quando ele se aproximou da cama e pegou-lhe a mão.
— Você viu o bebê? — ela perguntou ao ver o marido sentar-se ali. — Não é lindo?
Ele concordou, fazendo sinal com a cabeça, à primeira pergunta, mas se manteve reservado
quanto à segunda.
— Como se está sentindo? — perguntou carinhosamente.
— Sonolenta — ela suspirou. — Mas muito bem! Brandon beijou-a na testa.
— Obrigado pelo filho — murmurou.
Ela sorriu e fechou os olhos, mantendo a mão do marido apertada contra o peito.
— Da próxima vez a gente ganhará uma filha, que você queria — ele sussurrou.
Heather, no entanto, já mergulhara no sono.
Gentilmente Brandon retirou a mão e saiu do quarto nas pontas dos pés, indo até a sala de estar e
deixando Mary fazendo companhia à esposa. Parou perto de uma janela e viu que a madrugada
surgia. Sorriu para si mesmo, sentindo-se com ânimo para lutar com um urso, apesar de ter
estado acordado a noite inteira. Trouxe uma cadeira para perto da janela, abriu esta e sentou-se,
descansando os pés no peitoril. Um instante depois Hatti entrou e encontrou-o com a cabeça
pendendo no peito e os olhos fechados.
Sacudiu a cabeça lentamente e sorriu:
— Pobre patrão, ele teve uma noite dura!
O sol descia em raios fortes de luz sobre Harthaven quando Brandon acordou com o barulho de
zangados vagidos e percebeu que seu filho fazia as primeiras exigências. Levantou-se, lavou a
boca para tirar o gosto ruim da bebida da véspera; em seguida abriu a porta, que dava para o
quarto do bebé, e viu Hatti inclinada sobre o pequenino. Ela cacarejava, arrulhava e falava com
voz macia, e Brandon entrou assim mesmo.
— A gente vamos te dá comida a pouquinho, piqueno Birmingham. Num é o fim do mundo.
272
Sentindo agora interesse paternal e orgulho por seu filho, Brandon aproximou-se mais e ficou
com as mãos nas costas enquanto observava a velha lutar para tirar a roupa molhada do bebé. Ele
dobrava os joelhos e gritava mais alto, ficando avermelhado de raiva.
— Puxa, o minino num é brincadeira! Tá querendo uma coisa pra comê e qué que todo mundo
saiba disso.
Assim que ficou seco, porém, o jovem Birmingham aquietou-se um pouco. Estalava os lábios,
abrindo a boca igual a um passarinho cada vez que seu punho esbarrava na face, emitia
pequeninos gargarejos de choramingo e de vez em quando um uivo de descontentamento.
Hatti deu uma risadinha.
— Olha lá, patrão, ele tá tentando me convencê a dá alguma coisa pra ele comê.
Brandon sorriu e o bebé gorgolejou, implorando.
— Você é um sujeitinho impaciente — arrulhou Hatti, pegando-o do berço e aconchegando-o
no busto grande. — Mas sua mamãe tá acordada, e a gente vai te levá pra ela agora mesmo.
Passando os dedos pelos cabelos desalinhados, Brandon seguiu a criada rumo ao quarto principal.
Lá viu Heather sentada na cama, com os cabelos penteados e amarrados com fita, reanimada em
um vestido todo enfeitado, e irresistivelmente linda. Assim que o viu, entregou rapidamente um
espelho de mão a Mary, dispensando-a em seguida, e depois se virou para dar-lhe um radiante
sorriso ao mesmo tempo que estendia anciosamente os braços para o filho. Brandon
acompanhou Hatti até perto da cama, sentando-se ao lado de Heather enquanto ela pegava
gentilmente o filho nos braços. E percebeu um leve rubor surgir no rosto da esposa quando abriu
o vestido, sentindo-a nervosa diante dessa nova e desconhecida tarefa maternal, contudo ela
arrulhava docemente para o bebé, tentando guiá-lo enquanto ele procurava ansiosamente. O bico
do seio roçou-lhe o rostinho e ele virou a cabeça apressadamente naquela direção, atirando-se
para ele com a voracidade de um porquinho faminto, fazendo Hatti assustar-se ao ver sua boca
agarrar-se ao seio. Brandon sorriu e Hatti deu uma risadinha quando viu a cena do bebê
mamando.
— Meu Deus! O jovem patrão tá vazio da cabeça aos pé. Tô achando que a gente vamos tê que
dá uma mamadeira de açúcra pra esse minino até a mãe dele tê leite.
A minúscula e sugadora boca emitia estranhos fluxos de deliciosa pulsação através do corpo da
mãe, enquanto ela admirava orgulhosamente o filho. E já achava que ele se parecia muito com o
pai. Cabelos macios e negros cobriam a pequenina cabeça, e sobrancelhas magníficas já se
delineavam com a curva das do pai e não com a inclinação das de sua mãe. Com orgulho
maternal, ela o achava um bebê maravilhoso.
273
- Ele é lindo, não é, Brandon? — ela murmurou, observando-o ternamente, e Hatti expulsou
Mary do quarto, acompanhando-a. Brandon replicou:
— Não tenha dúvida, madame. — Esticou o braço e tocou o punho delicado que apertava os
seios da esposa. Seu dedo foi imediatamente aceito e firmemente seguro, e Brandon abriu um
sorriso de prazer.
Devolveu o olhar em direção à esposa e perdeu-se no olhar macio que o traía. Mal estava
consciente de suas ações quando se inclinou para a frente, quase hipnotizado pelos olhos de um
azul profundo. Sua mão livre deslizou dos cabelos de Heather para o pescoço, ela continuava a
olhá-lo fixamente, e então sua boca encontrou a dela, fundindo-se num beijo de olhos fechados.
Brandon sentiu os lábios da mulher afrouxarem-se, depois começarem a tremer e em seguida se
abrirem enquanto sua boca ia em direção à dela. E sentiu a reação doce e quente e aconchegante,
percebendo logo o disparar daquele coração abaixo dos dedos que descansavam no seio.
Heather lutou para respirar debaixo daquele beijo apaixonado, sentindo-se muito sensível àquelas
mãos que a apertavam e à boca ansiosa que dominava a sua. Com medo de desmaiar, libertou-se
e riu nervosamente.
— Você me fez esquecer o bebê. Ela suspirou enquanto os lábios do marido desciam para seu
pescoço. Heather tentou interromper a tontura que a invadia: — Qual vai ser o nome dele?
Brandon afastou-se e olhou para a esposa. Após instantes murmurou:
— Se você não tiver objeções, eu gostaria de dar-lhe o nome de um falecido amigo meu. Foi
morto há alguns anos, quando tentava debelar um incêndio que destruiu sua igreja. Eu o
admirava demais, porém aviso que era francês. um huguenote francês. Saberei entender se sua
ascendência desaprovar que nosso filho tenha o nome dele.
— O senhor se esquece, my Lord — ela sorriu — de que, para todos os efeitos, o senhor é mais
inglês do que eu? Qual era o nome do seu amigo?
— Beauregard. Beauregard Grant. — ele respondeu imediatamemnte.
Heather repetiu o nome, e depois aprovou com um sinal de cabeça.
— É bonito, esse nome. Gostei. Beauregard Grant Birmingham será o nome do nosso filho.
Soltando o dedo do apertão do bebé, Brandon abriu uma gaveta na mesinha de cabeceira e
retirou uma caixa comprida que deu para a esposa.
— Com minha gratidão, madame, por me dar um filho.
274
E levantou a tampa para ela, que olhou assombrada para o colar lá dentro. As duas longas voltas
de grandes pérolas cuidadosamente selecionadas eram unidas por um grande rubi engastado num
fecho de ouro.
— Oh, Brandon, é maravilhoso!
Os olhos do marido percorreram de longe seu pescoço e o busto, e a voz saiu roufenha.
— Pensei que pérolas combinariam melhor com a beleza de sua pele do que diamantes.
Ela quase podia sentir o olhar do marido acariciando-a. Uma sensação de calor invadiu-a e sua
pulsação disparou. Brandon desviou o olhar.
— Vou vestir-me — ele disse rápido enquanto se levantava da cama. — Calculo que Abegail
esteja ansiosa para ver a criança.
Escolheu as roupas que usaria e, virando-se novamente, dirigiulhe um longo olhar perscrutador
antes de encaminhar-se ao salão de estar para vestir-se.
Pouco tempo depois Abegail chegou com Jeff para visitar o bebê, que agora dormia na cama ao
lado da mãe. Abegail ergueu o lornhão e examinou o recém-nascido, e depois levantou uma
sobrancelha enquanto sorria para o pai.
— Bem, prevejo que haverá outra geração de meninas à cata de outro Birmingham. Mas espero
sinceramente que você planeje fazer muitos iguais a este a fim de tornar felizes um montão dessas
coisinhas que usam saias. Elas não gostariam se nascesse apenas este varão aqui.
Jeff abriu um sorriso.
— Provavelmente estes dois terão uma dúzia, mas duvido de que todos vão ser homens.
A idosa senhora olhou com evidente alegria para Brandon.
— Acho que isso seria a própria justiça. um de vocês dois defendendo a honra de uma senhorita.
— E deu uma risadinha por causa da própria idéia. — Seu sangue ferveria até explodir se você
tivesse de obrigar um sujeito solteiro a se casar com uma filha sua.
Heather olhou rapidamente para o marido e ficou assombrada ao ver pela primeira vez que ele
ficou ruborizado. Jeff sorriu para si mesmo, percebendo o constrangimento do irmão, porém a
Sra. Clark admirava de novo a criança e perdeu a troca de olhares, não tendo ideia de como havia
tornado o ambiente mais acolhedor.
— Você deu ao mundo uma criança magnífica, minha filha — ela comentou com Heather. —
Deve estar muito orgulhosa dela.
Heather sorriu para a amiga e deu uma olhada carinhosamente no marido.
— Obrigada, Sra. Clark. Estou, sim.
275
Passada a novidade do nascimento do filho, Brandon mais uma vez devotou tempo e energia
preparando a serraria para entrar em funcionamento. Heather permanecia no quarto grande e
convenceu-se do fato de que ali continuaria. Seria necessária força física para retirála novamente,
e a cada dia sua intenção se tornava mais clara. Primeiro Brandon notou sua escova e pente em
cima da penteadeira, e depois o pó e os perfumes. Mais e mais as roupas dela apareciam
penduradas no guarda-roupa, ao lado das dele, assim como sua roupa íntima achara o caminho da
cómoda, unindo-se às peças do seu vestuário. A coisa aumentou de tal forma que em breve ele
precisava rebuscar no meio de camisolas macias e cheias de renda, bem como de vestidos de
noite, a fim de localizar suas coisas, e mais de uma vez ele acabou puxando para fora lencinhos
enfeitados, pensando tratar-se de um dos seus.
Em deferência ao seu estado delicado, ele estabelecera o que esperava ser uma residência
temporária no salão de estar, e dava muitas olhadas demoradas para a enorme cama, pois a
pequenina que havia no aposento não comportava todo seu comprimento, quando deitado. Ou
batia com a cabeça, ou os pés saíam da cama, e ele amaldiçoava enfaticamente aquela porcaria.
Entretanto, jamais encontrou o momento exato para estabelecer seus domínios e direitos, e
retomar seu lugar na cama ao lado da esposa. Observando os movimentos lentos da mesma pela
casa, percebeu que demoraria ainda algum tempo antes de ter alívio para suas necessidades
fisiológicas junto à mulher, conquanto reconhecesse a renovada elegância de seu corpo como
bastante consoladora. Ela, contudo, não fazia menção em sair de sua cama ou para que ele se
deitasse nela. Assim, dando muitos suspiros profundos, ele dobrava as pernas e esforçava-se para
aproveitar o pequeno conforto de que dispunha.
Embora a maior parte do tempo fosse consumida na serraria, os momentos de ócio, que
conseguia, passava-os com esposa e filho. Levantava-se bem cedo, mas já encontrava Heather de
pé, cuidando do bebê — dando-lhe banho ou sua refeição matinal. Desfrutando de ambas as
imagens, isso tornou-se para ele uma rotina, unindo-se à esposa antes de iniciar seu dia de
trabalho. Um elo novo e mais forte, embora silencioso, começou a surgir entre os dois naqueles
momentos tranqüilos das manhãs, quando passavam o tempo junto com o filho.
276
Capítulo Nove
O mês de maio trouxe um verão causticante e, após as chuvas cessarem, cada dia parecia mais
quente que o anterior. O algodão fora plantado, e o trabalho de primavera estava concluído. A
serraria agora operava com toda capacidade e o depósito de madeira se enchia. Assim que as
tábuas recentemente serradas e a madeira de modo geral secassem ao ar livre, com permanência
de algumas semanas ao sol, os primeiros carregamentos seriam feitos. Já havia diversas
encomendas, que preencheriam o tempo útil da serraria durante muitos meses. Os talentos do Sr.
Webster funcionavam realmente e ele mantinha as serras zumbindo e os reservatórios repletos de
madeira tratada. Tudo indicava que esta primeira temporada daria um lucro razoável. Brandon
estava contente com o progresso.
E agora, diante dos dias longos e quentes que provocavam cansaço, a vida alegre dos plantadores
começava. A primeira festa do movimento social de verão seria montada em Harthaven na
semana seguinte. Grande parte da atenção de Brandon foi desviada para os preparativos desse
divertido lazer. Convites foram remetidos, champanha comprado, comida preparada. Heather
discutiu com Hatti sobre novos uniformes para a criadagem e sobre a aparência em geral da
mansão, enquanto jardineiros vinham pedir sua aprovação após retocarem as cercanias com
perfeição.
Enquanto o tempo de Heather era tomado com o planejamento da festa e a assistência a Beau,
Brandon via-se mais e mais dispensável na serraria, tendo oportunidade de ficar com o esposa e
filho e de planejar sua própria estratégia para ganhar um lugar ao lado dela naquela cama imensa.
Assim, foi com grande e premeditada malícia que ele escolheu este dia para gentilmente suborná-
la. No início da semana ele comprara uma égua, pequena e linda, de pelo castanho, com as patas
de um branco imaculado na parte superior e uma original malha branca acima do focinho. Era
uma potranca viva, porém mansa, e ele pensava que seria facilmente dominada pela esposa.
Sorriu sozinho, enquanto ajustava a sela lateral no animal, e acariciou o couro onde se sentaria
sua esposa, imaginando até onde aquele presente
277
o levaria. Seria extremamente carinhoso com Heather quando a ensinasse a lidar com o bicho, e
nesse dia talvez ganhasse alguns beijos mais quentes.
Sorrindo diante de tais pensamentos, levou Leopold e a égua para a frente da casa e, depois de ali
amarrá-los, subiu a escadinha da varanda. Heather estava na sala de recepção, costurando
cuidadosamente uma das camisas dele, e achava-se tão absorta na tarefa que não reparou na
entrada do marido. Brandon encostou-se na soleira da porta e ficou observando-a por longo
tempo, enquanto ela continuava ignorando sua presença. Seu filho mergulhara num sono leve da
tarde, num berço de vime ao lado da mãe, pois se alimentara havia pouco tempo, e isso também
se transformara em vantagem. Brandon achou engraçado quando ela franziu a testa por causa de
um ponto difícil.
— Não franza a testa, meu amor — ele implicou. — Senão vai ficar parecida com aquela Sra.
Scott, que tem cara de passa.
Heather deu um pulo quando ele começou a falar.
— Brandon, você me deu um susto! Ele deu um sorriso velhaco.
— Foi mesmo? — perguntou carinhosamente. — Então me desculpe, doçura. Foi sem querer.
Heather riu e pôs a costura de lado quando ele se aproximou, mais bonito do que qualquer outro
homem que jamais vira. O sol tostara-lhe a pele até formar um forte bronzeado e seus olhos
verdes pareciam brilhar com mais força. Ele ficava mais másculo com roupas comuns de
cavalgar, e o coração de Heather acelerou as batidas com aquela presença.
Brandon parou diante dela e, pegando-lhe a mão, forçou-a a ficar de pé, sentindo nesse momento
o aroma suave e doce do perfume da mulher. Quando entrou com ela pelo saguão, mandou
Joseph fazer com que Mary ficasse ao lado do bebé, e depois se virou para a esposa, que o
observava perplexa.
— Aonde nós vamos? — quis saber.
Brandon sorriu e passou-lhe a mão pelas costas, convidando-a a andar.
— Aqui fora, apenas — ele replicou cautelosamente. Heather caminhou até o varandão e deu
uma espiada em volta, vendo os dois animais amarrados, aguardando cavaleiros, sendo que o
menor trazia uma sela para mulher. Ela ergueu um olhar interrogador para o marido, que ele
devolveu com um sorriso.
— Não gostou dela? Nunca lhe perguntei se gostava de cavalos, ou se sabia cavalgar, mas para
mim será facílimo. Se sua saúde permitir, madame.
Ela riu, descontraída, enquanto descia a escadinha rumo aos cavalos.
— Minha saúde é perfeita — ela afirmou por cima do ombro,
278
O sorriso de Brandon alargou-se e ele imediatamente a seguiu. Arrebatada com a potranca forte e
elegante, Heather acariciou o focinho macio e alisou a crina castanha, mal contendo a emoção.
— Oh, Brandon, ela é linda! Como se chama?
— Lady Fair — ele respondeu.
— Muito apropriado. Ela é uma bonita dama. — Virou-se para ele sorrindo. — Quer me levantar
para montar?
Brandon ergueu uma sobrancelha e olhou significativamente para o vestido leve e muito
decotado de verão que ela usava.
— Não acha melhor trocar de roupa, meu bem? Este vestido não serve para..
— Não — ela interrompeu, projetando o lábio inferior, fazendo beicinho. — Quero cavalgá-la
agora, e trocar de roupa demora muito. E sua boca se curvou num sorriso cativante enquanto ela
corria os dedos pelos botões do casaco do marido. — Por favor, Brandon, por favor.
Ele sorriu diante daquele pedido coquete e nada pôde fazer a não ser concordar. Inclinou-se e
cruzou as mãos para apoiar o pezinho da esposa, e logo depois suspendeu-a. Após sentar-se e
colocar um joelho perto do arção, Heather abaixou-se para encaixar firmemente o pé no estribo.
O decote baixo do vestido afastou-se mais ainda do busto e mostrou para Brandon cada detalhe
daqueles lindos seios perfeitamente redondos que ele deveria cobrir. Ele ficou paralisado,
segurando as rédeas, e os olhos fixos naquele espetáculo. Engoliu em seco e um som muito
parecido com um gemido escapou-lhe. Heather olhou para o marido e seus lábios curvaram-se
suavemente para cima quando deparou com aquele exame excitante. O coração de Brandon batia
forte e sua mão estava a meio caminho da dela quando Heather corrigiu a posição, deixando-o
um tanto estupefato. Dificilmente, reconheça-se, alguém poderia fazer amor com a esposa nos
degraus da varanda de sua casa. Lamentando, entregou as rédeas à esposa.
Heather pegou-as com mãos peritas, para surpresa de Brandon, e afastou a égua dali, calcando-
lhe o flanco com o calcanhar bem colocado e fazendo o animal disparar pela alameda em direção
aos campos. Brandon montou apressadamente em Leopold e, com grande preocupação, forçou o
enorme cavalo negro atrás dela. Uma corrida teve início, e Heather, alegre e descuidadamente,
desviou a égua da alameda e fez com que passasse esquivando-se por entre as árvores. Os
imensos cascos de Leopold provocavam nuvens de terra enquanto ele se esforçava em seguir
aquela trilha serpenteante, mas foi forçado a diminuir a velocidade, para consternação de
Brandon. Assim a égua manteve a liderança até atingirem campo aberto, quando o grande
279
cavalo negro conseguiu trabalhar com seus poderosos tendões e réduzir a vantagem.
Rapidamente alcançou Lady Fair, e Heather manteve a égua em passo lento até Brandon ficar ao
seu lado, e riu com a preocupação estampada em sua carranca.
— A senhora enganou-me, madame — finalmente ele disse num risínho, quando percebeu a
brincadeira daquele gesto. — Mas sua perícia é excedida tão somente pela sua falta de juízo.
— Ah! — ela reagiu impertinentemente. — Eu teria cavalgado junto com os cães de caça e feito
uma corrida tão veloz que você ainda estaria arfando nos meus calcanhares!
Riu novamente e incitou o animal a cruzar a pradaria em galope tranqüilo. Leopold, animado pela
disputa, e sensível à presença da égua, empinou-se bem alto, sacudiu as rédeas e começou a andar
ao lado dos calcanhares da companheira. O passeio prosseguiu até atingirem um outeiro
densamente relvado e batido pelo vento. Heather parou para deixar Lady Fair recuperar o fôlego
e refrescar-se com a brisa suave.
Dando um olhar reprovador para Leopold enquanto acabava de amarrar as rédeas a um arbusto,
Brandon veio ajudar Heather a apear. Esticando os braços, pegou-a delicadamente abaixo do
busto, e ela riu expansivamente quando apoiou as mãos naqueles ombros fortes, apreciando
imensamente o presente e o passeio. O marido ficou bem ao lado da égua e, quando a esposa
escorregou para o solo, a coxa esfregou-se nos quadris de Brandon, o contato pegando os dois
desprevenidos. Heather afastou-se, com a perna queimando depois daquele contato. Brandon
encostou a mão na égua, por trás da esposa, fechou os olhos, torturado pelo intenso desejo
provocado pela esposa, e estremeceu. O contato inesperado tornara-o intensamente cônscio da
vida celibatária que levava desde que acariciara pela primeira vez aquele corpo suave e jovem,
meses antes. Seu instinto traía a necessidade, incitando-o contra a vontade. Ele sentia fome de
Heather e mal se continha para retê-la nos braços após encontrar a relva mais suave e macia onde
se pudesse deitar com ela. Imaginou a pressa que teria de livrá-la da roupa, possivelmente até
rasgando-a, caso resistisse aos seus dedos, e também se lembrou dos olhos que se arregalariam.
Amaldiçoou a falta de intimidade do local, relembrando as muitas ocasiões frustantes em que fora
interrompido exatamente quando pensara estar ganhando terreno. Entretanto, não estava
planejando uma simples cena na relva, mas uma vida inteira de momentos de prazer. Sabia que
tinha primeiro de preocupar-se com seu objetivo de cortejá-la cavalheirescamente, e não com a
satisfação de desejos passageiros.
Lutou para controlar-se, conseguindo-o com esforço, e finalmente foi para o lado da mulher, de
onde admiraria as colinas brumosas e
280
densas. Passou os braços em torno dela, fechando-os à sua frente e ela se encostou em seu corpo,
deixando Brandon tocar seus cabelos com a boca e inalar a fragrância que fazia parte dela. Os
dois ali ficaram naquela união ainda inédita e, com a proximidade, Heather fitou seus olhos azuis
e bonitos para o marido e foi sorrindo lentamente, com os lábios umedecidos e separados.
Brandon não precisava de outro convite para provar aquela doçura. Inclinou a cabeça, e sua boca
adiantou-se faminta para a dela. Como que por mágica, Heather virou-se em seus braços e
aconchegou-se mais ainda, passando as mãos para as costas de Brandon. Um braço dele
envolveu-a pela cintura e o outro pelos ombros, apertando-a de encontro a si, Heather cedeu,
desejando que aquele instante nunca terminasse. O beijo de Brandon encheu-a de desejo,
tornando cada músculo em seu corpo fraco e dócil. Ela lhe sentia as coxas fazendo pressão
contra as suas e descobriu que a paixão daquele homem se igualava à sua própria. Abriu os lábios
diante daquele fervor ascendente e ergueu-se nas pontas dos pés para encaixar-se mais
intimamente com o corpo do marido.
De um só golpe o vento mudou e passou a castigar a relva, aos pés do casal, e os primeiros
pingos de uma tempestade de verão caíram em suas cabeças. Separaram-se e olharam para cima,
vendo a tempestade que começava a cair. Brandon ficou tão frustrado que quase ergueu um
punho fechado na direção do céu escurecido, porém Heather já corria para os cavalos. Ele a
seguiu e ajudou-a a montar Lady Fair, e rapidamente se dirigiu para sua montaria. O temporal
arriou com toda força e, muito antes de atingir o abrigo de Harthaven, já estavam ensopados,
com os cabelos escorrendo. Chegando à margem da floresta de pinheiros o casal disparou pela
grama até alcançar o varandão, Leopold bem à frente. Ainda debaixo daquele banho, Brandon
ergueu Heather da sela e carregou-a para a varanda, e em seguida voltou correndo para amarrar
os animais. Enquanto isso Heather, olhando para baixo, viu que o vestido era agora apenas um
pedaço transparente por cima do corpo, colado em cada curva sua. Com o frio do tecido
molhado os bicos dos seios se eriçaram e ficaram enrijecidos de encontro ao corpete. Ela pegou a
roupa e começou a afastá-la do corpo, não desejando encontrar Jeff ou Joseph nessas condições.
Brandon subiu correndo os degraus, fugindo da água, e ao vê-la compreendeu sua preocupação.
Rapidamente tirou o colete e passou-o em volta dela, e depois a abraçou forte para sussurrar em
seu ouvido:
— Não desejo brigar com ninguém hoje por sua causa.
Ela deu uma risadinha e juntos entraram na mansão, rindo descontraidamente. Sua alegria acabou
quando depararam com o rosto franzido de Hatti. Estava de mãos nas cadeiras e sacudia a cabeça
para os dois enquanto fazia uma careta para o patrão.
281
— Seu Bran, às vez eu juro que o sinhô num tem o menó juízo! Pra que que o sinhô foi levá essa
minina lá pra fora, na chuva, e agora que ela acabô de tê o patrão Beau! Meu Deus, ela vai acabá
morrendo de frio. — E resmungou desaprovadoramente. — Agora, Dona Heather, vá subindo
as escada e tirando essas roupas molhadas.
E agarrou Heather pelo cotovelo, não lhe dando outra escolha, enquanto Brandon ria ao ver a
esposa subir a escadaria empurrada que nem uma criança pela velha negra. No intervalo da
escada, Hatti virou-se e brandiu o dedo na direção dele:
— Vai ficando aí e rindo, que qualqué dia desse o sinhô vai deixá o patrão Beau sem mãe!
Virou-se de novo e caminhou zangada para o quarto, arrastando a patroa muito espantada.
Heather sorriu para o marido por cima do ombro e mandou-lhe um beijo antes de sair de vista.
Brandon ficou olhando para cima por um instante, refletindo sobre aquele gesto. E sorriu para si
mesmo, sentindo-se muito satisfeito com aquele dia. Tirou as botas e correu de meias para a
escadaria que levava ao salão de estar, onde achou roupas secas e uma toalha em cima da cama.
Despiu-se e estava enxugando-se com a toalha quando ouviu um barulho de água batendo, uma
porta fechando-se e os passos de Hatti descendo a escadaria. Encaminhou-se silenciosamente
para a porta que dividia os dois quartos e abriu-a cautelosamente para ver Heather de costas para
ele e sentada na banheira. Logo depois ela se inclinava para trás, pegava uma esponja e a espremia
em cima do corpo, fazendo uma torrente de espuma descer pelos braços e os seios bem feitos.
Daí a pouco começou a cantarolar certa melodia conhecida, e logo as palavras lhe saíam da boca:
”Negra é a cor dos cabelos do meu grande amor.
Sua beleza é uma coisa de imenso valor.
Os olhos mais puros e as mãos mais macias.
Adoro a relva em que pisa todos os dias...”
Brandon permaneceu observando sua pele sedosa. Heather ergueu uma perna linda para ensaboá-
la direito, e depois a outra; enquanto isso o marido escutava o alegre e animado som de sua voz.
Após alguns momentos, a excitação começou a dominá-lo e ele fechou silenciosamente a porta.
Virando-se, encostou as costas na soleira e mentalmente esfregou as mãos, contente com o êxito
de seus planos.
Lembrou-se com clareza dos ardentes sorrisos, da exitante mostra dos seios, do beijo apaixonado
e do momento imediato ao princípio da tempestade, quando ela encaixara o corpo no seu da
maneira mais provocante.
282
”Tinha de ser amor e espontaneidade o que eu vi nos olhos dela e o que senti de encontro ao
meu corpo esta tarde”, ele pensou. ”E, com um simples apelo, sem dúvida ela se entregará a mim
esta noite.”
Riu baixinho.
”E do jeito que somos, faremos aquela velha cama estremecer como nunca antes. Ah, esta noite!.
Esta noite farei amor com Heather novamente, e minha vida de abstenção terminará, pois eu
farei uma linda melodia por entre as suas coxas e sentirei de novo a doçura de ficar dentro dela.”
Com renovação e vigor, vestiu-se e surpreendeu-se cantarolando trechos da canção que a esposa
andara repetindo. Saiu do quarto sentindo-se leve e manteve-se ocupado com pequenas tarefas
enquanto aguardava a aproximação do momento feliz daquela noite.
Heather acordou de uma soneca, sentindo-se totalmente recuperada, mas ali ficou deitada ainda
por instantes, escutando os sons da mansão na penumbra repousante. Quando se lembrou
daquela tarde, podia ainda sentir os braços de Brandon em sua volta e seus lábios quentes nos
dela, bem como toda a extensão de seus corpos pressionada uma contra a outra. Sua pulsação
acelerou-se e percebeu que em breve estariam compartilhando aquela grande cama.
Esticou-se nela, mas quase gritou de dor, pois parecia que todo músculo do corpo estava rijo e
insuportavelmente dolorido. Ela não percebera que o incomum exercício da equitação a afetara
tanto. Mal conseguia mexer-se. Deslizou cautelosamente para a beirada da cama e então se
levantou, esfregando as mal usadas nádegas com tristeza. Sua lenta movimentação pelo quarto
provocou a chegada de Mary trazendo Beau. Assim que o bebê dormiu novamente no berço, a
menina atendeu a patroa, esfregando um bálsamo analgésico em sua dolorida musculatura e no
traseiro maltratado. Ajudou-a a vestir-se para o jantar, escolhendo um vestido branco bem fresco
e o colar de pérolas que agora Heather usava com freqüência. Estreitas fitas vermelhas
balouçavam por sobre o amontoado macio de cachos e, a despeito de como se sentia, Heather
estava deslumbrante e tentadora, com as pérolas penduradas maliciosamente entre os seios que
sobressaíam generosamente pelo decote da roupa.
Com passos lentos e cautelosos, conseguiu descer a escadaria e chegar ao salão de visitas. Jeff
parou no meio de uma frase quando percebeu seu andar claudicante, enquanto Brandon se virava
rapidamente para recebê-la com um sorriso. Sua expressão alegre desvaneceu-se assim que a
esposa se deteve à sua frente e devolveu as boasvindas com um murmúrio apologético:
— Acho que exagerei esta tarde, Brandon...
283
Ele riu suavemente e ofereceu-lhe compreensão, ainda não consciente de toda a importância
daquela declaração. À medida que a noite avançava sua decepção atingia as raias extremas. Ele a
estudou nos seus movimentos lentos, indecisos, e de vez em quando a via estremecer. Heather
afundou-se numa cadeira perto da mesa e fez um trejeito, encolhendo-se desconfortavelmente até
Hatti trazer-lhe um pequeno travesseiro para ajudá-la a se sentar. Após terminar a refeição nessa
posição, ela estava rija e quase incapaz de levantar-se. Brandon pegou seu braço e ajudou-a a sair
da cadeira, e nesse momento pérolas luminescentes, balançando entre os seios, agravaram mais
ainda seu ânimo fortemente deprimido.
A noite mal estava no começo quando ela atraiu a atenção de Jeff ao lutar para erguer-se do
assento. Virou um rosto quase lacrimoso para o cunhado.
— Jeff, por favor me desculpe — implorou. — Sei que não estou sendo grande companhia esta
noite e imploro que me perdoe retirar-me agora.
Ele fez uma rápida mesura, batendo calcanhares.
— Sua beleza é sempre uma companhia reanimadora, madame, e sinto que me deixe agora,
porém entendo perfeitamente. Até amanhã então, querida irmã.
Ela agradeceu com um sinal de cabeça e levantou a mão e o olhar para o marido, rogando
silenciosamente por seu auxílio. Brandon ajudou-a a se levantar, segurando firmemente seu braço
e foi com ela até a base da escada. Heather subiu os primeiros degraus, mas seus movimentos
eram tão dolorosos e forçados que Brandon se abaixou para levá-la no colo. Heather passou os
braços em volta do pescoço dele e, suspirando, descansou a cabeça em seu ombro.
Lá embaixo, Mary fez menção de subir para dar assistência à patroa, mas seu braço foi agarrado
pela avó.
— Deixa eles sozinho, filha — mandou Hatti sabiamente. — A patroa num pricisa da tua ajuda
agora de noite...
Brandon empurrou com força a porta do quarto principal e entrou com a esposa nos braços.
Sentou-a gentilmente na beira da cama e ajoelhou-se para tirar-lhe meias, sapatos, mas as mãos
hesitaram um pouco diante das ligas rendadas. Engoliu em seco e tocou aquela pele quente da
coxa com dedos inseguros, enquanto mantinha as meias nas mãos, e Heather saiu com esforço da
cama e se pôs de pé. Virou-se de costas para ele.
— Quer abrir meu vestido? — pediu. — Parece que a Mary não vai subir.
Ele obedeceu e, quando a esposa deixou a roupa cair ao chão, ele se inclinou e apanhou-o
enquanto ela esfregava angustiada as nádegas.
284
— Infelizmente certas partes macias do meu corpo foram massacradas. Eu devia ter sido mais
inteligente e não abusado tanto. Arrependo-me de não ter sido.
Brandon deu uma breve resposta, concordando, e foi arranjarlhe um vestido no local onde pela
última vez vira a coleção quando procurava suas próprias roupas. Escolheu um e virou-se para
trazê-lo até a mulher, mas logo parou quando a viu parada à luz da vela, com a blusa aos pés e o
jovem corpo nu, dourado sob a ténue iluminação. Seus olhos percorreram lentamente aquela
imagem, acariciando-a prolongadamente. A gravidez não lhe afetara a silhueta nem estragara sua
pele. Na verdade, ela agora demonstrava um corpo maduro, bem feminino, que naquela hora ele
achou terrivelmente desconcertante. A boca de Brandon ficou seca, as mãos tremiam e todos os
seus sentidos se tornaram inteiramente concentrados na esposa. Engoliu em seco e trouxe-lhe o
vestido. Enquanto ela o vestia, seu olhar a devorava inutilmente. Quando Heather se inclinou
ligeiramente, deixando o vestido escorregar-lhe pela cabeça, ele percebeu marcas escuras e azuis,
bem como manchas avermelhadas naquelas nádegas até então imaculadas. Suspirou suavemente e
conformou-se em enfrentar diversas outras noites de castidade.
Escutando esse suspiro, Heather acabou de amarrar a fita abaixo do busto e virou-se para ele.
Passou os braços em seu pescoço, em seguida.
— Peço que me desculpe, Brandon — murmurou. — Parece que o bom senso está realmente
incluído nas minhas virtudes menos notáveis.
E puxou a cabeça do marido para junto da sua, dando-lhe um beijo rápido nos lábios, e depois se
virou e arrastou-se para as profundezas da imensa cama.
Brandon ficou trincando os dentes, convencendo-se de que não era cavalheiresco fazer amor
com uma mulher naquelas condições, especialmente sendo a própria esposa. Seus instintos mais
racionais venceram a batalha, muito para decepção do seu alter ego. Soprou as velas e foi até o
salão de estar, onde retirou o casaco e colete e ficou olhando para a minúscula cama,
amaldiçoando-a. Sentia aversão por ter de deitar-se nela para passar mais uma noite, e praguejou
incansavelmente. Desesperado, pegou uma toalha e saiu rapidamente do quarto para descer a
escadaria. Jeff saía do escritório quando ele passou, e o irmão parou, apontando para a toalha.
— Para onde é que você está indo?!
— Vou tomar banho no córrego — explicou breve Brandon.
— Está congelante! — avisou o irmão.
— Eu sei — rosnou Brandon, e prosseguiu em seu caminho com as gargalhadas do outro
ressoando em seus ouvidos.
285
O dia seguinte foi de atividades preparatórias para o baile. Vários hóspedes da mansão, incluindo
Abegail Clark, chegaram no fim da tarde. Embora o bálsamo de Hatti tivesse operado milagres
em seu corpo, Heather desempenhava o papel de anfitriã com uma rigidez muscular que não era
brincadeira. Sofreu outra massagem antes de deitar-se, porém, e de manhã estava sentindo-se feliz
e renovada como nunca. Passou o dia numa correria febril, certificando-se de que todos os
preparativos necessários fossem afetados.
Brandon partira para Charleston bem cedo a fim de cuidar de seus negócios. Os primeiros
carregamentos de madeira haviam sido realizados, os pagamentos recebidos, e agora havia
questões financeiras a serem resolvidas, como o dinheiro começando a entrar. A manhã fora
dedicada a um sem-fim de detalhes, percorrendo a cidade de uma ponta a outra, e só um
intervalo ocorreu na intensa programação, para o almoço.
Brandon regressava aos negócios quando passou por um pequeno armarinho e quase foi
achatado por uma carregada Srta. Sybil.
Como sempre, ela ficou ruborizada e insegura, diante apenas do olhar de Brandon, e lutou
intensamente contra tal sensação enquanto ele a ajudava a juntar os embrulhos derrubados. Ela
estava enfeitada pelas mais caras roupas e bastante atraente. Possuía agora uma grande
autoconfiança que seus amigos masculinos lhe haviam emprestado desde que abandonara o
comportamento de mocinha tímida, e achava-os arfando nos degraus de sua casa em busca dos
seus encantos. Ficava tão estonteada com seus elogios enganadores que nem calculava estarem
atrás de somente uma coisa..
— Imagine só.. esbarrar no senhor exatamente quando precisava de um homem forte e bonitão
para me ajudar, Sr. Birmingham — ela flertou, piscando os cílios pesadamente pintados. Mesmo
debaixo de tantas camadas de cosméticos, incorretamente aplicados, sua falta de graça era óbvia.
Ela endireitou o lornhão, enquanto ele tocava a aba do chapéu educadamente, e empurrou os
pacotes para cima do homem, ignorando a sobrancelha erguida enquanto prosseguia:
— Esses embrulhos são pesados demais para mim, pobrezinha. Agora, se me acompanhar, eu lhe
mostrarei o caminho até minha pequena carruagem.
Brandon obedeceu ao mesmo tempo que escutava gentilmente o tagarelar incessante.
— Estou tão agitada por causa do baile desta noite! Mandei fazer um vestido lindo, mas
infelizmente fico ruborizada toda vez que o experimento. Nunca usei uma roupa tão audaciosa na
vida. O costureiro, contudo, diz que eu fico maravilhosa nele. Ele conhece tanto sobre roupa
feminina, sabe? Veio da Inglaterra e me disse que algumas das mulheres mais bonitas do mundo
usam suas criações.
286
Mas o senhor nem diz, pela cara dele. É feio demais. Eu quase sinto pena dele, mas o homem me
olha de uma forma. Tive de dar um tapa na mão dele hoje de manhã, sabe? Depois ele ficou tão
chocado que minha única reação foi rir do sujeito. Imagine, um homem daqueles pensar que eu
lhe daria atenção!
Parou antes de atravessar a rua, aguardando a passagem de uma carruagem, e olhou para ele
timidamente.
— Ele não é mesmo o tipo de homem que me agrada. Brandon tossiu, perturbado, e olhou em
volta, procurando a carruagem dela.
— Sabe de uma coisa, Sr. Birming... Brandon?... — conseguiu falar, um tanto nervosa. Eu... eu
tenho tantos admiradores hoje em dia que simplesmente perco a conta quando tento lembrar-me
de todos. — ergueu o olhar para ele. — No entanto, não considero nenhum deles com meu
amor. Só há um homem que considero isso, mas ele nunca me vem procurar.
— Sua carruagem está perto daqui? — perguntou Brandon, irrequieto.
— Você me acha atraente, Brandon? — ela perguntou de repente.
— Ora. sim, sim, Srta. Sybil — ele mentiu delicadamente. Ela deu uma risadinha, tomou fôlego e
olhou para ele de novo.
— Tão atraente como a sua esposa?
Mais uma vez Brandon procurou a carruagem, pensando na sua Heather terna e linda, e
perguntou-se como Sybil podia sequer fazer uma pergunta daquelas.
— Oh, mas que injustiça a minha, não foi? — ela murmurou. — Naturalmente, sendo casado
com ela, teria de dizer que ela é mais bonita que eu, senão iria parecer um vilão, não é?
— Minha esposa é uma mulher muito bonita, Srta. Sybil — ele disse, tentando disfarçar seu
descontentamento.
— Oh, sim, não tenha dúvida de que é! — replicou Sybil na mesma hora. E deu outro risinho —
Disseram-me que sou linda.
Brandon observou-a, espantado. O cabelo na sua nuca eriçou-se com a simples menção daquele
nome.
— O Sr. Bartlett é unf dos seus admiradores?
— É, sim — ela disse sorrindo. — Você o conhece?
— Sim — murmurou Brandon. — Conheço-o. — E olhou para ela, suspirando. — Diga-me,
Srta. Sybil, o que sua mãe diz a respeito dos seus admiradores?
A testa da moça franziu-se, confusa.
— Ela nada comenta. Não sei por quê. Sempre desejou que eu tivesse montões de rapazes atrás
de mim e agora que eu tenho ela nem põe os pés na sala de visitas quando um deles está lá.
— Talvez ela ache que não são companhia adequada para você, Srta. Sybil.
287
Ela deu uma risadinha e piscou as finas pestanas.
Ora, Brandon. Acho realmente que está com ciúmes...
Ele suspirou, exasperado, e ficou muito aliviado quando ela parou perto de uma pequena
carruagem coberta. Colocou os embrulhos no assento para ela e, quando se virou para tocar a
ponta do chapéu em despedida, viu Sybíl sorrindo e esticando o braço para recolher um
imaginário fiapo de pano do seu casaco, exatamente como vira Heather fazer na igreja.
— Aguardarei ansiosa para dançar com você esta noite, Brandon — ela murmurou. — Espero
que não me vá decepcionar.
— Ora, Srta. Sybil, você provavelmente estará tão ocupada com seus admiradores que nem
conseguirei me aproximar — ele replicou, retirando-se depois apressadamente. Quando se virou
viu um grupo de senhoras cacarejando a respeito dos dois, mas tocou a aba do chapéu,
cumprimentando, e continuou seu caminho.
Brandon procurava pelos guarda-roupas e cómodas do quarto maior pelas suas roupas, e de vez
em quando dava uma olhada de esguelha para Heather, que estava sentada diante do espelho
usando uma combinação leve, enquanto Mary lhe fazia um elegante penteado, amarrando
estreitas fitas cor turquesa por entre os fios cintilantes. Brandon pegou uma caixa que havia
enfiado numa das gavetas de baixo e descansou-a na frente da esposa.
— Minha mãe adorava jóias — falou um tanto asperamente ao ver aquele enervante busto quase
de fora. — Deixou parte delas para mim e parte para Jeff, para que as déssemos às respectivas
esposas. Minha parte é esta. Talvez você encontre alguma coisa aí que queira usar.
Levantou a tampa, e Heather sufocou-se diante do conteúdo: era um vasto sortimento de jóias
com abundantes tipos diferentes de pedras.
— Oh, Brandon, nunca, jamais sonhei que possuiria sequer uma só peça de jóia, e você me
presenteia com tantas ao mesmo tempo. O que posso dizer? Você me mima tanto!
Ele riu e deu-lhe um beijo ardoroso no ombro; sua barba espetou-lhe a carne macia e seus
olhares se encontraram no espelho.
— Não sou mais aquele miserável, minha querida? — ele perguntou docemente ao seu ouvido.
Ela sacudiu a cabeça, e a cor dos olhos se aprofundou quando uma agradável sensação percorreu-
lhe o corpo.
— Não, meu amor, de jeito nenhum.
Brandon deixou-a cuidando de sua beleza e sentindo-se segura. Ele tomou banho e começou a se
vestir, pensando na mudança dos
288
olhos da esposa quando ele a beijou. Esticou a meia com bainha de renda e vestiu o casaco verde-
esmeralda por cima do colete branco. Com exceção do seu casaco de seda e os sapatos pretos
com fivelas douradas, ele usava branco imaculado, e sua pele morena parecia mais escura ainda
em contraste com a alvura de sua camisa. Assim que terminou, admirou-se criticamente no
espelho, perguntando-se se ela o acharia bonito.
Quando Heather veio descendo a escadaria, as longas dobras do seu vestido turquesa-forte
balouçavam em redor do corpo, parecendo abrir-se e fechar-se, ondulando estranhamente
enquanto caminhava. O vestido estava bem justo ao seu corpo bonito e rodeando as pernas bem
feitas, e o corpete fino apertava seu busto para cima a ponto de quase forçá-lo a traspassar os
limites da roupa. Quando os homens depararam com essa imagem, teve-se a impressão de que
prenderam a respiração, antecipando o incidente. Brandon foi o primeiro a demonstrar essa forte
reação. Heather estava parada diante das janelas da frente, olhando para fora, quando ele desceu
as escadas, assoviando alegremente, com imensa disposição. Ela o examinou e gostou muito da
esplêndida silhueta masculina que ele apresentava. Assim que a viu, sorriu e veio ficar ao seu lado.
Esticou o braço para brincar com um dos brincos de diamante que pendiam graciosamente da
esposa. Eram as únicas jóias que Heather usava.
— Está nervosa, doçura?
— Só um pouco — ela replicou.
Ela se virou toda para encará-lo e percebeu seu olhar cair para os seios e se arregalarem. O fôlego
do marido pareceu ficar preso na garganta. Sabendo que Louisa viria, ela pusera aquele vestido
com o propósito de chamar atenção para si mesma, não permitindo assim que olhassem para
outra mulher com admiração. Finalmente Brandon tossiu de leve e recuperou a respiração.
— Talvez devesse usar alguma coisa menos reveladora, madame. Materializando-se de algum
ponto por detrás deles, Jeff riu e veio ficar ao lado do irmão. Heather estava muito cônscia dos
olhares dos dois.
— Deixe-a usar este, Brandon. Você nunca deixou nós outros termos prazer algum — ele disse
sorrindo. — Claro que entendo como se sente. Se ela fosse minha eu a manteria presa com
cadeado! — E virou-se um pouco para o irmão, sussurrando alto: — Sabia que ela é muito mais
bonita que Louisa?
Heather botou as mãos nos quadris e estendeu o dedo mínimo como se estivesse furiosa, e
Brandon empalideceu, esperando vê-la saltar do vestido.
— Olhe aqui, Jeff, se você quer estragar minha noite é só mencionar essa mulher de novo! —
declarou.
Jeff deu um risinho e um tapinha no ombro do irmão.
289
- Vamos, Bran. Não banque o quacre esta noite. Deixe-a usar a roupa. Ela ficou tão maravilhosa!
Não a mande trocar o vestido, e prometo não olhar apaixonadamente para ela hoje.
Brandon fechou uma carranca para o irmão e ia dizer alguma coisa quando mudou de idéia. Ao
invés disso, voltou-se para a esposa:
— Use o que bem entender, madame — falou, e não estava alegre.
Jeff riu e esfregou as mãos.
— Ah, eu acho que essa festa vai ser um acontecimento! — E pegou a mão de Heather e
colocou-a na dobra do seu braço. — Venha, doce irmã, deixe-me levá-la para ser admirada pelos
hóspedes.
Heather sorriu por cima do ombro para Brandon enquanto saía levada pelo cunhado, porém o
marido enrugou a testa e ficou olhando em volta como se não soubesse o que fazer consigo
mesmo. Assim que a esposa entrou no salão de visitas, olhou para trás e viu-o encaminhar-se
para o escritório. Alguns instantes depois, uniu-se aos dois, trazendo um copo de conhaque
generosamente cheio.
Brandon foi o primeiro a chegar para receber os convidados, certificando-se de que todos os
solteiros passassem rapidamente por Jeff, não dando assim oportunidade para que devorassem
sua esposa com os olhares. Louisa entrou chamando atenção, dando um grande sorriso e
trazendo novo acompanhante. Seu olhar pousou rapidamente no decote de Heather antes de
cumprimentá-la fracamente, e o sorriso desapareceu na hora. Seu próprio vestido era de seda
amarela, tão decotado também e ligeiramente transparente, contudo sua autoconfiança ficou
bastante abalada quando teve prova visível de que Heather não precisava de enchimentos na
roupa.
— Ora, minha cara Heather, você está encantadora esta noite — ela disse, recuperando-se
levemente do impacto. — Parece que a maternidade lhe cai bem.
— Muita bondade sua, Louisa — replicou mansamente Heather. — Mas tenho certeza de que
pareço deselegante ao seu lado. O seu vestido é uma beleza.
Louisa sorriu, sem graça, e suas pálpebras baixaram um pouco sobre os olhos castanhos. Em
seguida passou a mão levemente sobre o busto, como se desejando chamar a atenção para a
transparência da roupa.
— É mesmo. Thomas criou-o especialmente para mim. Ele é um génio com a agulha, não acha?
Heather teve apenas oportunidade de sorrir como resposta antes de a mulher prosseguir.
290
- Mandou fazer seu vestido aqui mesmo, querida? Nunca a vi em nenhuma daquelas lojas de
Charleston. Não me diga que Brandon se tornou um sovina depois que se casou com você. Ele
sempre foi tão generoso, antes.
— Ele mandou fazer esse vestido para mim em Londres — replicou Heather bastante irritada.
— Mas é claro — afirmou Louisa, sorrindo. — Deve ter sido na mesma loja em que comprou
alguns para mim.
Heather preferiu ignorar os comentários rudes daquela mulher. Foi Brandon quem ficou irritado
e zangado porque sua antiga amante não reconhecia seu casamento e não tratava sua esposa pelo
menos com um mínimo de respeito.
— Você também usa brincos de Londres? — perguntou Louisa. — Por algum motivo eles me
são familiares..
— Pertenceram à mãe de Brandon — respondeu Heather. Louisa empertigou-se.
— Sim, agora os reconheço — disse e, sem mais palavra, saiu a passos pesados.
Jeff deu um risinho quando se abaixou para perto do ouvido de Heather.
— Você arrasou logo com ela, tory. Ela já se havia nomeado proprietária de tudo que pertence ao
Brandon.
Foi somente algum tempo mais tarde que chegou Matthew Bishop sozinho e livre para oferecer
sua atenção a qualquer moça que por acaso lhe caísse no agrado. Seu traje era composto da mais
fina seda cinza-claro, com um colete cor de ameixa para dar ênfase às cores. A gravata era tão alta
que dava a impressão de engolir-lhe o queixo, com grandes camadas de renda descendo pelo
peito e também nos punhos, quase cobrindo-lhe as mãos. Tirou o chapéu emplumado e,
ignorado o anfitrião, adiantou-se para pegar a mão de Heather. Brandon resmungou uma rápida
apresentação e tentou apressar o homem, contudo ele se manteve no lugar e respondeu:
— Brandon, sempre admirei seu gosto por cavalos, porém jamais sonhei que o estenderia aos
limites da pulcritude feminina em tamanho nível de sucesso! — Virou-se para Heather com um
sorriso confiante: — Madame, a senhora é muito encantadora. — E, baixando o olhar para o
busto da anfitriã, prosseguiu: — Sua beleza faz meu pobre coração estremecer, e seu encanto
quase traz a gagueira à minha língua!
E inclinou a cabeça para beijar-lhe a mão, demorando o que pareceu ao marido um tempo
demasiadamente prolongado. Brandon irritou-se um pouco e fechou os punhos. Quando Matt se
ergueu de novo foi Jeff quem lhe pegou o braço e levou-o apressadamente para o salão de baile,
onde estaria fora do alcance da violência.
291
A música era um ritmo animado quando começou outra dança, e Brandon pegou a esposa pela
mão e apresentou-a ao salão. Duas fileiras formaram-se, com casais alegres — uma de damas,
outra com seus acompanhantes, e Heather se viu passando por entre o grupo feliz. Seguiu-se um
minueto e Brandon fez a mesura inicial; Heather, por sua vez, inclinou-se no gesto característico.
Durante a canção eles deram todos os passos típicos: deram-se as mãos, cruzaram-se, dançaram
nas pontas dos pés, trocaram mesuras e etc., enquanto ele, com freqüência, lançava olhares no
decote da esposa. Assim que a dança terminou ele a puxou para o lado e disse baixo:
— Madame, a senhora está estragando minha noitada com este vestido! Imploro que me
respeite...
Ela ergueu olhos inocentes para ele:
— Mas, Brandon, o de Louisa é muito mais atrevido; além disso há aqui outras mulheres assim.
— Quero que se dane o que as outras estão usando! — ele vociferou. — O seu é que me
preocupa. Fico esperando que seus seios pulem para fora dele a qualquer momento. E isso me
deixa nervoso.
— Estou muito segura, Brandon — ela replicou com doçura. — Não creio que haja qualquer
coisa com que se preocupar.
— Brandon, bom sujeito! — interrompeu uma voz masculina, e a eles se juntou Matt. — Você
me permitiria dançar com sua encantadora esposa? Não a prenderei por muito tempo.
Brandon não encontrou saída e entregou a mulher de má vontade, e ficou observando com
infelicidade — para não dizer outra coisa — enquanto o intruso a levava para o salão.
À medida que dançavam, Heather sentia o olhar devorador do homenzinho, que tirou vantagens
dos passos do minueto. Quando ela se inclinava para fazer a mesura ele não perdia oportunidade;
quando se cruzavam ele segurava suas mãos possessivamente; e, por toda a dança, ela sentiu
aquele olhar penetrando-a.
Agora, conforme pedido de Matt, a música mudara para um ritmo chamado valsa, e ele puxou a
relutante Heather para seu forte abraço, com a desculpa de ensinar-lhe o novo passo.
— É muito simples, Heather, minha doçura. Fique calma e siga meu passo.
Não era possível descontrair-se com aqueles braços em volta dela de forma tão íntima, e ela lutou
para que seu par mantivesse as mãos no devido lugar. Ele estava a ponto de deixar Brandon
furioso com essa valsa, e Heather estava a ponto de implorar-lhe que a soltasse, quando olhou
para onde o marido estava e viu-o nas garras de Louisa. A loura ria e se encostava nele, dando-lhe
todas as oportunidades de olhar para dentro do seu decote exagerado, que Heather pensava sem
dúvida deixava entrever o chão do salão. Brandon
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não ameaçava afastar-se, e Heather empertigou-se quando um ciúme inexplicável a dominou. E
errou o passo que Matt tentava ensinar-lhe, terminando por pisar-lhe no pé. Ficou avermelhada
de vergonha.
— Oh, eu sinto muitíssimo, Sr. Bishop! Receio ser muito desajeitada para esse tipo de dança.
Matt riu.
— Ao contrário, Heather, você é por demais graciosa. Contudo precisa descontrair-se mais. — E
sua mão lhe apertou a cintura. — Vamos, não fique nervosa. Não vou mordê-la.
Novamente ela tentou segui-lo, porém não podia evitar ficar vigiando o marido e, como
resultado, o pé de Matt sofreu mais outra vez.
Ele riu.
— Talvez, se tomássemos um pouco de vinho... — ele afirmou, observando o rosto contraído da
acompanhante.
— Sim, talvez... — ela sussurrou, e deixou-se levar para a mesa de bebidas.
Foi uma atitude nascida do ciúme que a fez rir expansivamente enquanto rodopiavam outra valsa.
O champanha nada tinha a ver com isso. Rapidamente ela aprendeu a dança e, após algumas
voltas pelo salão, Heather achou-a deliciosa.
Conquanto não fosse o melhor dos dançarinos, Matt era persistente e, quando Jeff surgiu para
reclamar a dançarina após várias outras valsas, ele a entregou quase tão relutantemente como
Brandon.
— Parece que você conquistou outro coração masculino, tory — disse Jeff sorrindo, enquanto
dançavam.
Mal escutando, ela deu de ombros enquanto procurava por Brandon no salão. Achou-o junto a
um grupo de homens, mas nada de Louisa. No entanto, onde ele estivera quando ela examinou o
salão alguns momentos antes? Não conseguira encontrá-lo, nem a Louisa, e seu desaparecimento
a perturbou. E se ele tivesse descoberto a imagem do generoso busto farto de Louisa, e o mesmo
se houvesse transformado numa tentação além de suas forças e ela a tivesse levado para fora,
onde pudessem trocar carinhos? Heather mordeu o lábio pensando em. Brandon acariciando
Louisa, e seu coração sentiu um aperto dolorido.
— Qual é o seu problema, tory — perguntou docemente Jeff. — Parece que não se está
divertindo.
Ela conseguiu dar um sorriso para o cunhado.
— Tenho a impressão de que fui passada para trás por aquela amiga sua, o monstro de verde.
Descobri que não consigo ignorar Louisa como pensei que faria.
Ele riu suavemente enquanto os olhos brilhavam.
— Então, você o ama mesmo?
293
- É lógico — ela replicou. — Ainda havia alguma dúvida?
— Oh, alguma!... — brincou Jeff. — Eu pensei que você o havia odiado, algum dia.
Heather espantou-se.
— Mas por que pensou isso?
A boca do cunhado se torceu com um riso.
— Ah, sei lá! Apenas um pensamento passageiro, suponho. Ao desaparecerem as últimas notas
da melodia, Jeff levou-a de volta a Brandon, que fechou uma feia carranca para ela quando o
irmão se retirou a fim de encontrar uma parceira para a próxima dança. Seu maxilar estava
apertado e um músculo se mexeu no rosto.
— Gostou de ter aprendido a valsa, madame? — ele perguntou sarcasticamente. — Tenho
certeza de que recebeu um instrutor muito capaz. Eu mesmo não lhe poderia ter ensinado tão
bem nem pela metade.
Ela ergueu o nariz para o ar.
— Eu não sabia que você dança valsa, Brandon — ela replicou ironicamente, embora não
estivesse com intenção disso.
— É?! E me teria permitido ensinar-lhe, caso soubesse? — E riu zombeteiramente. — Sem
dúvida ficar nos braços do marido não é tão excitante como ser apertada por um homem
estranho.
Heather omitiu uma resposta ferina, acerca de Louisa, e ficou teimosamente em silêncio.
— Talvez se interesse em mostrar o que aprendeu. — E fez sinal aos músicos para que
reiniciassem outra valsa. — Venha; vejamos o que ele lhe ensinou.
Pegou-a pelo braço de forma não muito delicada e guiou-a até a pista de danças enquanto os
primeiros acordes enchiam o salão. Começaram a dançar lentamente, no princípio, quase
parando, até que o ritmo da música esfriou as tensões e o casal se foi tornando afável. Os acordes
apaixonantes pareciam entrelaçá-los até um sentir totalmente a presença do outro, esquecendo
tudo mais. Moviam-se com os compassos da música, deslocando-se em passos e rodopios pelo
salão à medida que a melodia enfeitiçante se tornava parte dos dois. Heather sabia apenas que o
braço do marido estava em sua volta e seu rosto moreno e bonito acima dela. Ele, por sua vez,
estava consciente apenas daquele corpo tenro dentro de seus braços, dos profundos olhos azuis à
sua frente e do ritmo fantástico que parecia levá-los pelo salão como se nada mais fossem que
marionetes dirigidos por cordões.
Gradualmente os dois sentiram que o salão ficara silencioso, a não ser pela música, e que
dançavam sozinhos. Pararam, deram uma olhadela no ambiente como quem houvesse acabado
de acordar, e foram surpreendidos por uma longa explosão de aplausos dos convidados,
294
que haviam recuado para a margem do salão e os vinham observando no seu voo de
encantamento, em respeitoso silêncio.
Dando um sorriso, Brandon curvou-se agradecendo, e Heather fez uma profunda mesura em
reconhecimento à delicada admiração dos convidados; em seguida Brandon fez sinal com a
cabeça para os músicos, que escolheram mais uma valsa. Pegou Heather nos braços de novo e
começaram a dançar ao mesmo tempo que outros casais os imitavam. Do lado da pista Louisa
observava Heather pelas costas, com a taça de champanha na mão.
Tendo restabelecido o ritmo da festa, Brandon e a esposa saíram da pista de danças e se
encaminharam para a mesa de bebidas. Heather aceitou uma taça de champanha, que o marido
lhe ofereceu, e viu que para si mesmo ele escolhera uma bebida mais forte. Depois foram fazer as
honras da casa em meio aos convidados, conversando com todos forma alegre e descontraída.
Nessa hora, entretanto, teve início um rigodoon e um cavalheiro idoso roubou Heather. Depois,
um homem atrás do outro — e entre eles o esperto e alegre Matthew — surgia no salão para
experimentar sua perícia na pista de danças com ela. Brandon, por sua vez, aceitou poucos
convites das senhoras, e passou a maior parte do tempo bebendo.
Finalmente Heather rogou por um descanso junto aos seus ansiosos parceiros, e encontrou
Brandon contemplando o líquido amarelo em seu copo e Louisa pendurada no seu pescoço,
sussurrando-lhe como ele fora abandonado e tentando consolá-lo. Ao mesmo tempo salientava
que a esposa passava o tempo todo dançando com outros homens. Heather incendiou-se
lentamente quando Louisa ergueu uma sobrancelha triunfante e sorriu zombeteiramente para ela.
Brandon levantou os olhos para a esposa e sua revolta foi escondida com êxito por uma forte
carranca. Matt aproveitou esse inoportuno momento para surgir por detrás de Heather e aplicar
um trôpego beijo em seu ombro. Os olhos de Brandon encheram-se de raiva e, desculpando-se
por ele e pela esposa, pegou-a pelo braço, acompanhou-a para fora do salão de baile, atravessou
com ela o vestíbulo e entrou no escritório, fechando a porta e rosnando para ela.
— Parece que a senhora se está divertindo intensamente, madame. Aparentemente gosta em
especial de ser agarrada e manuseada.
Heather empertigou-se, e seus olhos flamejaram de ira.
— Como ousa! — arquejou. — Como ousa dizer-me isso! Descansando o copo num móvel,
Brandon adiantou-se, mas ela se manteve no lugar e devolveu-lhe o olhar reprovador.
— Sua mente suja o engana, senhor — ela explodiu. — Eu simplesmente banquei a anfitriã
educada e diverti os seus convidados enquanto o senhor fazia o papel de um trêmulo garanhão
no cio, ao
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mesmo tempo que aquela vaca cabeluda sacudia a cauda e os úberes, baixando para sussurrar tão
docemente no seu ouvido!
— Que engraçado! — ele gritou, jogando as mãos para o alto. — Você me acusa, quando
durante a noite toda eu tive de ficar firme e observar você sendo puxada, acariciada e esfregada
por aquele sapo ridículo que tenta provar para si mesmo que é macho indo pra cama com toda
garota simplória que atravesse seu caminho.
— Simplória... oh! — Heather não encontrava as palavras para replicar e virou-se zangada,
ficando de costas para ele.
O raciocínio de Brandon, embotado pelo uísque, traiu-o e a auto-satisfação dominou-lhe a voz:
— Então, não consegue encarar-me. Sabe que estou com a razão.
E chegou até bem perto dela, mas o cheiro gostoso nos seus cabelos desequilibrou seus
estonteados sentidos e transformou sua ira num ato de autocompaixão.
— Por que faz assim comigo? Por que se afasta de mim e procura as carícias de outro homem?
Fico em silencioso afastamento, sempre desejando, mas nunca tocando, e você deixa aquele
almofadinha imbecil, que mal conhece, alegrar seu corpo com sua proximidade.
Seu desejo intenso sobrepôs-se ao bom senso e ele a agarrou grosseiramente por trás, enquanto
uma das mãos esmangava um seio tentador e a outra deslizava rumo à barriga até descansar entre
suas coxas, e os lábios procuravam o alvo ombro nu. Heather arfou, também zangada e surpresa
com a mudança das paixões do marido, mas em seguida se virou e, com toda força, repeliu-o,
caminhando tropegamente para trás até encostar-se na mesa sem fôlego. Seu rosto ardia com a
indignação da vergonha diante da rudeza imatura daquela trama.
Brandon ficou de braços abertos, espantado com aquela reação. Quase implorando falou:
— O que você tem contra mim? Deus, por que me obriga a levar uma existência monástica, mas
depois permite que outro homem a deseje?
— Seu idiota! — ela falou, sufocada. — Seu grande imbecil incompreensível! — E apontou
trêmula para a porta: — Você acha que eu desejo. oh!
Não mais podia prosseguir e, em desalentada frustração, passou correndo por ele em direção ao
portal mas, antes de abri-lo, virou-se e exclamou numa tristeza devastadora:
— Vá em frente! Vá encontrar-se com sua bovínea amante e partilhar seu temperamento ébrio
com ela. Um merece o outro.
Dizendo isso saiu às pressas do aposento, deixando Brandon em dolorosa confusão, e correu em
direção à porta do salão de baile.
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Lembrando-se, de repente, de seu estado de agitação, parou por instantes a fim de recompor-se.
Ali perto, Jeff estava conversando com duas jovens e, quando olhou para cima, percebendo sua
expressão e a hesitação, calculou que alguma confusão havia acontecido. Pediu desculpas
imediatamente e foi até perto dela.
— Que foi que houve, tory? Parece que você andou mordendo a cauda do diabo.
— O diabo que vi é uma vagabunda loura! — ela disse amargurada. — Como pode um homem
ser tão cego?!
Olhando além dela, para a porta do escritório, ele riu carinhosamente.
— Posso calcular que meu irmão está sendo o encantador idiota de sempre. Mas deixe para lá,
princesa; não fique triste esta noite. — E pegou-lhe a mão. — Quer beber alguma coisa?
Ela acenou com a cabeça, concordando, e logo se viu com uma taça de champanha da qual
sorveu um longo gole, erguendo-a aos lábios com mãos trêmulas.
— Você sempre está por perto quando preciso de alguém para consolar-me, Jeff — ela
murmurou quando a bebida aparentemente a acalmou.
Ele riu.
— Sim. O pessoal daqui me chama de São Jeffrey, quando não estou presente.
Heather sorriu, sentindo o ânimo voltar-lhe um pouco em reação às brincadeiras do cunhado, e
ele a levou para um canto mais sossegado.
— Há umas coisas a respeito de Brandon que preciso explicar-lhe — ele falou. — Talvez então
você consiga entendê-lo melhor. Acontece que papai não podia ver as mãos de outro homem em
cima da mamãe, mesmo inocentemente, e Brandon está descobrindo que sofre da mesma doença
em relação a você. Antes de conhecê-la acreditava poder controlar todas as próprias emoções e
sentia-se muito confiante de si mesmo. Jamais tendo sentido amor de verdade, agora ele
obviamente se depara com uma possível perda, e não sabe como combater as emoções que você
lhe inspira. Acredite ou não, Heather, ele é homem de fortes convicções, e junto a você é
obrigado a trair algumas dessas convicções. Você abre a sua alma toda para Brandon e ele se vê
homem completamente diferente daquilo que supostamente deveria ser. É um tanto assustador
para um sujeito da idade dele acordar e descobrir que uma simples garota pode eliminar uma
forma de comportamento de modo tão radical.
— É isso que eu provoco, Jeff? — ela perguntou, calma. Ele sorriu.
— Meu bem, pode apostar que ele nunca se preocupou em olhar uma segunda vez quando a
Louisa dançou com outros homens.
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Antes de Jeff poder prosseguir com o intuito de devolver-lhe a confiança, Matt uniu-se a eles, e
de maneira festiva, esfuziante, provocada em grande parte por uma liberal ingestão de espírito do
álcool.
— Ah, vamos lá, vocês dois! Estão sérios demais para uma noite tão festiva! — avisou. —
Heather, minha cara, é óbvio que seu ânimo precisa ser reativado.
E fez um monóculo com o polegar e o indicador, observando-a através dele e permitindo-se
admirar desde seu rosto até os lindos sapatos de seda, e voltando para cima, fazendo uma pausa
breve, porém agradável diante dos seios.
— Além disso, o Doutor Bishop receita mais exercícios para quem está no seu estado. E para
isso um rápido passeio pelo salão de bailes é recomendado. — Apresentando seu braço de
maneira bastante formal, sorriu encantadoramente. — Gostaria de acompanhar-me, adorável
Madame Birmingham?
Com o canto dos olhos Heather viu Louisa aproximando-se e, não querendo suportar o impacto
de suas tiradas ciumentas, aceitou o braço.
Jeff também percebeu a chegada de Louisa, e entendeu por que Heather aceitou dançar. A
mulher parou para ver o casal saindo pelo salão, e Jeff observou seus olhos estreitando-se e a
boca se fechando enquanto os acompanhava em torno da pista. Obviamente não aceitou com
agrado ter deixado de ser o centro das atenções, passando a ser ignorada quase completamente,
enquanto Heather era praticamente disputada para as rodadas de dança por homens
entusiasmados, empolgados com sua beleza.
Jeff desviou o olhar dela para sua cunhada. Matt ocupava-se em tentar acariciá-la ao mesmo
tempo que as mãos de Heather não paravam de mexer-se, evitando que ele formasse qualquer
contato mais sério. Ficou observando os dois durante algum tempo, perguntando-se se deveria
interceder, mas depois olhou para a porta e viu Brandon parado ali, com um olhar
completamente vazio enquanto observava a esposa nos braços de Matt. Jeff percebeu o esforço
que o irmão fazia para aparentar calma, e que estava caminhando precariamente na mais frágil
orla da violência.
Não perdeu mais um só momento em apressar-se a entrar no salão. Heather olhou para cima,
aliviada, quando ele se aproximou, porém Matt não ficou nem um pouco alegre com a
interrupção.
— Ora, francamente, Jeff, amigo velho, de novo não! Já se tornou um tédio pavoroso não
conseguir completar uma dança com ela! Sempre aparece alguém para nos separar...
De braços estendidos, o solteirão exasperado observou enquanto Jeff lhe tirava a companheira e
saía pelo salão afora dançando com
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ela. Assim que chegaram perto das portas abertas que davam para o jardim, Heather olhou para
seu cunhado, implorando:
— O ar fresco parece convidativo. Você ficaria zangado comigo se eu lhe rogasse por um passeio
no jardim? Infelizmente estou cansada demais para ficar dançando a noite toda.
Ele riu.
— Seu menor desejo é uma ordem, princesa..
E escaparam para o roseiral, começando a caminhar por uma trilha que se afastava da mansão;
depois passaram por uma sebe alta, indo até um ponto onde doces arbustos perfumavam o ar, e
um grande carvalho espalhava seus braços para esconder o céu escuro. Já estavam fora do alcance
visual das pessoas na mansão e somente os acordes de uma valsa ecoavam suavemente em seus
ouvidos. Ela se sentou debaixo da árvore, num canapé de ferro batido, e espalhou as saias para o
lado, num convite para que Jeff ficasse ao seu lado.
— Eu ficaria aqui fora a noite inteira — ela ameaçou. — Sem dúvida é muito mais tranqüilo do
que lá dentro.
Ele riu.
— O que você precisa, tory, é beber mais e acredito que eu a acompanharia. Você se incomoda
de ficar aqui enquanto eu vou pegar um champanha para nós?
— Claro que não — ela replicou, dando uma gargalhada. — Já sou grandinha. Não tenho medo
do escuro.
— A esta altura, tory — ele disse sorrindo — você deveria saber que meninas grandinhas têm de
ser mais cautelosas no escuro do que as pequeninas.
— Oh, Jeff, e aqui estou eu, que já começava a confiar em você! — ela implicou.
— Menina, se você não fosse de Brandon — ele retorquiu com um brilho nos olhos — estaria
mais ocupada agora comigo do que ficou com o Matt.
E sua gargalhada ressoava ainda para Heather quando sua silhueta alta e escura desapareceu na
noite. Ela sorriu e recostou-se, suspirando, abrindo e fechando preguiçosamente o leque de
rendas que pendia de seu pulso. Mas de repente parou, quando ouviu um farfalhar ali perto, e
perguntou-se por que Jeff estaria voltando tão rápido. E olhou para cima quando uma sombra
atravessou os arbustos, e então verificou não se tratar de Jeff, mas de um homem mais baixo,
com roupas mais alegres e coloridas. Ele aproximou-se e ela reconheceu Matt. Imediatamente
levantou-se e rodeou de costas o canapé.
— Jeff acaba de sair daqui, Sr. Bishop, se desejava falar com ele — ela falou nervosamente.
Ele riu suavemente e seguiu-a em volta do banco do jardim.
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— Mas por que eu teria motivo para falar com ele, minha adorável Heather, quando aqui está
você, e sua imagem me deixa a mente em total confusão? Não há ninguém aqui para interromper
nossa dança, portanto que tal terminarmos nossa valsa agora? Juro que será apenas isso que
iremos fazer.
— Não, obrigada, Sr. Bishop. Infelizmente estou bastante cansada.
E recuou de novo para o tronco da árvore, mas ele se inclinou para a frente enquanto se
aproximava e passava os braços em torno de seu corpo.
— Então, quem sabe — ele sussurrou ao seu ouvido — você prefira ficar sentada durante esta
valsa.
E apertou os lábios de encontro ao pescoço de Heather enquanto fazia pressão com o peso do
corpo, mas ela lutava o quanto podia para desvencilhar-se.
— Sr. Bishop, por favor! — protestou, indignada. — Brandon vai...
— Ele não precisa saber — ele sussurrou, beijando-lhe o ombro. — Você não vai contar-lhe, não
é? Brandon tem um gênio muito ruim...
Heather continuou combatendo-o, tentando afastá-lo, mas ele não se mostrava desencorajado.
— Não lute contra mim, Heather — murmurou. — Tenho de possuí-la. Não consigo controlar-
me. Você me deixa louco.
— Solte-me! — ela exigiu. — Deixe-me em paz, senão vou gritar, e meu marido o matará.
— Sshhh... — ele sussurrou. — Não me repila.
E cobriu-lhe os lábios com um beijo faminto ao mesmo tempo que suas mãos subiam para a
cintura dela, tencionando atingir seus doces e jovens seios. Heather enroscava-se e gemia sob
seus lábios, e empurrava-o pelo peito, mas isso apenas o incentivava, aumentando seu peso
contra ela. Subitamente foi agarrado por detrás por duas mãos fortes e potentes, que o
arrancaram de perto dela, que gemia de medo. O rosto de Brandon estava distorcido de raiva
quando atirou o homenzinho nos arbustos. Quando Matt lutou temerosamente para levantar-se,
Brandon plantou firmemente um pé nas suas nádegas, mandando-o de gatinhas novamente para
o mato. Matt lutou para ficar de pé e saiu voando do cenário com as abas do casaco voando, e
Heather encostou na árvore em busca de apoio, notando com satisfação que o homem fugia.
Quando o marido veio para seu lado, ela conseguiu dar-lhe um trêmulo sorriso compensador,
que rapidamente se desvaneceu quando ele também a agarrou e imprensou-a na mesma árvore.
300
— Aquele rato miserável teve trabalho para achar o caminho da falta de vergonha, madame, mas,
como deve se recordar, eu não sofro de tal problema.
E sua boca desceu forte e grosseiramente sobre a dela, forçando seus lábios a separarem-se
quando sua língua os entreabriu. Os lábios de Heather estavam machucados quando ele a beijou
faminto, apaixonado, agora sem limitações. Heather não lhe opôs resistência. Embora se tivesse
considerado livre da violência, agora temia estar caminhando para o mesmo destino novamente.
Não tinha força de vontade para evitar que Brandon tomasse o que desejava e lhe pertencia por
direito e, considerando-se que ficara friamente insensível às atenções não desejadas de Matt, viu-
se deliciosamente estonteada e subitamente fraca nas mãos do marido. As mãos dele passavam-
lhe pelos seios, e seus dedos encontravam-se no fundo vale entre os dois, permanecendo ali por
instantes deliciosos antes de se enfiarem por baixo do vestido. Heather gemeu gostosamente e
começou a estremecer embora sentisse o vento forte que batia em suas saias e desmanchava-lhe o
penteado. Ela jamais soubera o quanto podia ser excitada pelos fogos da paixão e o carinho do
amor, e a sensação aumentava dentro dela, contudo não seria preenchida, pois um final estranho
a ameaçava. Brandon resmungava palavras ininteligíveis enquanto sua boca se deslocava para o
canto dos lábios da esposa, aplicando-lhe fervorosos beijos ali e ao longo do pescoço, ao mesmo
tempo que o calor perfumado de Heather adicionava lenha à fogueira dentro dele. Suas mãos
libertaram aqueles seios sensuais do vestido, e seu alvo formato cintilava estonteantemente
dentro da noite. Ele os envolveu com beijos ardentes, com o hálito quente e pesado fazendo-se
sentir pela carne da esposa, Heather fechou os olhos em êxtase, inclinando a cabeça para trás,
tocando a árvore e regozijando-se com a nova experiência. A mão do marido, escorregando pela
coxa, achou seu caminho por baixo do vestido, alisando-lhe as nádegas enquanto o joelho
forçava suas pernas a se separarem. Ele a puxou forte de encontro ao corpo. Depois seu rosto
ficou mais uma vez acima do de Heather, e sua voz roufenha enquanto ele sussurrava junto
àqueles lábios entreabertos; o hálito dos dois estava quente.
— Você é minha, Heather. Ninguém vai possuí-la a não ser eu. Somente eu provarei das alegrias
vindas do seu corpo. E quando eu estalar meus dedos você me procurará.
Seus braços largaram-na e Heather observou, assombrada, quando ele virou e foi embora,
deixando-a fraca e trêmula, com o corpo ansiando famintamente por seus beijos e pelo seu toque.
Ela estremeceu em dolorosa frustração, desejando que ele voltasse e quase gritando para que o
fizesse, no entanto só ouviu Jeff, que a chamava
301
em tom de voz preocupado, e ela rapidamente se virou de costas para ajeitar a roupa e cobrir os
seios.
Jeff surgiu pelos arbustos, carregando taças agora pelo meio de champanha, que se derramava
sobre suas mãos, e olhando para trás.
— O que estava acontecendo aqui? Vi Matt fugindo desabalado, e o Brandon quase me
derrubou.i— E foi então que examinou a aparência desfeita de Heather com olhos arregalados.
— tory, você está bem? Meu Deus, se o Matt.iy se algum dos dois machucou você...
Ela sacudiu a cabeça enquanto pegava uma das taças nas mãos do cunhado, e agarrou-a com as
duas mãos, tentando não derramar o conteúdo, e em seguida ergueu-a aos lábios para beber de
uma só vez.
— Você tinha razão, Jeff — ela comentou, insegura. — Meninas crescidinhas têm preocupações
muito maiores no escuro.
— O Matt veio até aqui para incomodá-la? Que Deus me ajude, mas eu vou quebrar o pescoço
deste vagabundo!
— Ele veio até aqui, sim — ela conseguiu dizer — mas o Brandon o expulsou.
Jeff deu uma risadinha.
— Deve ter sido uma cena inesquecível. Bran estava mais doido do que um velho marimbondo
vendo vocês dois dançarem juntinhos. Eu quase estrangulei Louisa por imprensar-me no balcão,
fazendo-me perder a brincadeira. Mas, se a conheço bem, ela provavelmente sabia o que estava
ocorrendo e não queria que eu interferisse, pensando que Brandon culparia você. — E olhou
para ela sério. — Ele não fez isso, fez?
Heather riu, um tanto histericamente, e deu de ombros.
— Nem tenho idéia do que ele pensou. Jeff contemplou-a durante momentos.
— Heather, tem certeza de que está passando bem? Estou achando-a diferente.
— Oh, Jeff! — ela falou meio sufocada. — Neste exato momento não tenho certeza quanto a
nada, muito menos quanto a mim mesma. Eu realmente devo tentar controlar-me, não é mesmo?
Como posso encarar alguém nestas condições? Acho melhor recolher-me ao meu quarto e
descansar um pouco.
Jeff colocou-lhe a mão na curva de seu braço.
— Então venha, querida. Eu vou levá-la de volta.
— Não atravessando o salão de festa — ela rogou. — Eu iria chamar demais a atenção dos
outros.
Ele deu um risinho.
— Muito bem. Vamos dar a volta pela frente.
Heather deixou-o levá-la até a porta e dali prosseguiu sozinha, depois que entraram. Esperando
que ninguém reparasse na sua imagem
302
desleixada, correu para passar pelo escritório, cuja porta estava aberta. Lá dentro alguns dos
homens se haviam reunido e riam e conversavam de modo jovial enquanto degustavam a bebida
do anfitrião. Ela reconheceu a voz do marido no meio das outras, bem como sua risadinha
sonora, a primeira que dava naquela noite, e também a resposta amável a alguma brincadeira. O
coração de Heather bateu um pouco mais acelerado quando ela passou apressadamente pela
frente da porta.
De onde estava, Brandon percebeu a rápida passagem da esposa pelo vestíbulo e, com um
sorriso, pediu licença aos convidados e foi postar-se exatamente à porta do escritório. Lá
começou a fumar lentamente seu charuto, perscrutando através da fumaça enquanto a esposa
subia a escadaria, admirando o balanço gracioso de seus quadris bem feitos e a forma pela qual o
vestido se ajustava a seu corpo.
No cume da escada Heather parou, desconfiada, sentindo um olhar na suas costas, e olhou para
trás, por cima do ombro, surpreendendo-o no seu posto de observação, com uma expressão
impersrrutável no bonito rosto barbado. Ela se ruborizou, recordando o que se passara entre eles,
e já estava a ponto de entrar voando em seu quarto quando Mary saiu do quarto do bebé,
tentando acalmar Beau. Heather estendeu os braços para ele, e Brandon viu a esposa pegar o
filho e aconchegá-lo antes de dar uma última olhada em sua direção e voltar-se para ir correndo
para seu quarto. Então Brandon puxou seu relógio e observou a hora.
Trinta minutos se passaram quando Mary desceu, depois de colocar o menino de novo na cama.
Brandon afastou-se da porta do escritório, onde estivera aguardando, enquanto conversava
futilmente com outros homens e mantinha um olho nas escadas. Deteve a criada e disse-lhe que
não mais precisariam dela naquela noite. A testa da menina enrugou-se, mas ela acenou com a
cabeça, acatando a ordem obedientemente, e desapareceu rumo aos fundos da mansão.
Brandon escalou a escadaria com passos medidos e vagarosos. Olhou rapidamente por cima do
ombro e descobriu o saguão vazio — os convidados divertiam-se no salão de baile e dentro do
escritório.
Sem bater, abriu a porta do quarto principal e entrou, fechando-a às costas. Dentro, encostou-se
na parede e olhou fixo para Heather. Sentada à penteadeira, ela se ocupava em restaurar o
penteado e agora observava o marido com o canto dos olhos sem interromper sua tarefa. Usava
apenas combinação leve com a qual ele a vira mais cedo e os seios redondos polpudos não
podiam mostrar-se mais tentadores se estivessem desnudos. Seu corpo brilhava suavemente à luz
de vela, e os cabelos negros refulgiam ricamente. Os olhos do marido examinaram-na da cabeça
aos pés, pousando um pouco nos macios ombros alvos e nos rosados bicos de seios que
apareciam empinados por trás do tecido sem revestimento, e finalmente
303
voltaram a examinar-lhe o rosto. Brandon parecia completamente à vontade, mais uma vez com
autoconfiança — o Brandon seguro de si. Ele sorriu preguiçosamente enquanto se aproximava da
penteadeira, em cima da qual depositou o charuto.
— Cheguei a algumas conclusões esta noite, Heather, e há várias coisas que desejo dizer-lhe.
E caminhou até a cama da esposa, onde encostou um ombro na maciça coluna ao seu pé. Depois
a encarou através do espelho.
— De início quero deixar uma coisa bem clara. A esta altura você já me conhece bem e sabe o
que teria acontecido caso eu me houvesse recusado a casar-me com você. Se realmente pensa que
algum homem na face da Terra poderia me haver forçado inteiramente contra a minha vontade,
então devo assegurar-lhe, madame, que se enganou. Eu teria apodrecido na cadeia não fosse
exclusivamente você.
Os olhos de Heather arregalaram-se um pouco e ela se sentou agora escutando silenciosamente,
mas em alerta.
— Certa vez, faz muito tempo — ele continuou — falei zangado com você e neguei a mim
mesmo o que eu mais desejava. Chame isso de orgulho condenável, pois foi na verdade esse
monstro em mim que tentou feri-la e esmagá-la como vingança devido a muitas coisas que até
para mim eram um mistério. Mas fui eu quem sofreu; eu que retinha o fôlego na minha
frustração, enquanto você brincava alegremente com meu coração e jurava-me seu ódio na
linguagem mais baixa. A vingança não foi minha, afinal, doçura, mas sua. Portanto parei de fazer
brincadeiras nas quais saí perdedor. Estou cansado de ser um estranho dentro de minha própria
casa, minha própria cama. Cheguei a um ponto em que não mais tenho escolha. Posso ir para a
cama com você ou sair e buscar alívio com outra mulher. Porém não penso em nenhuma outra,
Heather. Não desejo nenhuma. Quero você! — E começou a afrouxar a gravata com um tímido
sorriso nos lábios. — Logo, acabou a brincadeira, o assunto está resolvido e sou um homem que
vai cumprir com seu dever. Faz quase um ano sinto a falta de uma mulher que satisfaça minhas
necessidades. Em nenhuma outra toquei desde que conheci seu corpo virgem naquela noite, há
muitas e muitas noites. Digo-lhe que não é fácil manter minhas mãos longe de você. Porém não
mais bancarei o monge. Não era minha intenção tomá-la de novo pela força. Esse tipo de
relacionamento não é o que me agrada. Mas, se for preciso, é o que farei, porque não posso mais
continuar vivendo sob o mesmo teto com você e não sentir prazer com o seu corpo. Por isso já
resolvi: vou possuí-la, e não será apenas esta noite. Pode conformar-se com o fato de que vamos
compartilhar a mesma cama, de agora em diante, e que nosso relacionamento vai ser muito...
íntimo.
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Tirou o casaco e pendurou-o no braço.


— Vou deixá-la a sós por alguns momentos. Quando eu voltar esteja em cima desta cama, seja
espontaneamente ou contra a vontade. E lembre-se, minha cara, agora não está na casa de Lord
Hampton, mas na minha, e você também é minha e ninguém ousará atravessar aquela porta para
socorrê-la!
Heather estava sentada, atónita, e, quando a porta se fechou por trás do marido, uma onda de
raiva invadiu-a. Com um golpe do braço mandou o cinzeiro voando para o chão.
”Por que ele pensa que pode entrar aqui quando a casa está repleta dos seus amigos, e entre eles
aquela puta loura, e mandar que eu abra as pernas para ele?! Será que não sente necessidade de de
conversar antes ou trocar uns carinhos para preparar meu corpo? Serei realmente alguma coisa
que ele possui, e não uma esposa, apenas uma puta que lhe dá prazer? Ah, sim, certa vez ele fez o
que quis com uma garota assustada. Pois não sou mais isso. Sou uma mulher e ele vai conhecer
minha vingança, pois vou lutar, arranhar, chutar, e manter as coxas fechadas até minhas forças se
exaurirem. Só aí é que terei de submeter-me e não mais oferecer resistência. Ele não tem o
direito”...
Sentou-se em silêncio, durante um momento, ainda pensando muito.
”Mas, tem sim”, contra-argumentou seu ego mais pacífico. ”É meu marido e pai do meu filho. É
meu dono e eu é que não tenho o direito de manter-me afastada dele.”
Seus olhos ergueram-se para examinar a imagem no espelho à sua frente e seu corpo estremeceu
quando se lembrou da boca de Brandon nos seus seios e a mão na pele nua.
”Por que fico adiando?, perguntou-se subitamente ”É por isso que tenho esperado e ansiado. Foi
para ter isso que planejei, trabalhei. Terá meu orgulho de separar-nos odiosamente assim?”
Levantou-se da cadeira, enquanto uma negativa lhe escapava dos lábios, e começou a escancarar
as gavetas da cómoda até encontrar o que procurava — a camisola azul da sua noite de núpcias.
Tirou-a com carinho do móvel e alísou-a delicadamente, pondo-a em cima da cama, e então, com
pressa febril foi para a penteadeira a fim de preparar-se para a volta do marido.
Brandon fechou a porta depois que passou e ficou parado um instante, com a mente cheia de
pensamentos rápidos sobre os minutos que haviam passado e os que vinham a seguir. Escutou o
barulho do cinzeiro sendo atirado ao chão e isso foi como se lhe houvesse tirado o ar de dentro.
Deu um soco na parede.
305
— Então é assim que vai ser! Desta vez ela está pedindo mesmo! Atirou o casaco na cama,
realmente irado, e dirigiu-se para o odiado local de descanso, arrancando também o colete.
— Maldição, a coisa está transformando-se em estupro! Já tive diversas oportunidades de possuí-
la, caso tivesse ficado de boca fechada ou feito o papel de cavalheiro. Até no jardim, hoje, eu
poderia ter feito o que quisesse com ela. Diabos, de nada adianta olhar para trás! tomei uma
decisão e, a despeito do que se possa passar esta noite, pelo menos essa angustiante espera
acabou. Ela me combaterá de novo, isso é certo, e terei de possuí-la por livre vontade ou não,
refreando meu corpo o máximo possível para conseguir tratá-la com carinho no início, embora
ao toque daquela carne sedosa eu jure que ficarei fora de mim. — E suspirou fundo. — E tive
tantos pensamentos de juras carinhosas trocadas entre nós.. Mas agora devo deitar-me na minha
cama de espinhos, ou em nenhuma outra mais, e não permitir que qualquer de suas reações me
espante mais do que a batalha que está por vir. No entanto pode ser que esse momento nos leve
a solo mais fértil, fazendo com que daí em diante possamos compartilhar terna paixão, mais cheia
de amor.
E ficou nu diante do espelho.
— Bem, veremos enquanto ela estiver me aturando.
Olhou para a porta e, pensando melhor, pegou o roupão e vestiu-o para que a imagem súbita de
sua nudez não a perturbasse mais ainda.
”Diabos!”, pensou. ”Já demorei demais. Estabeleci uma tarefa, e ela deve ser cumprida.”
Caminhou decididamente até a porta e parou diante dela. Com todo seu autocontrole o fôlego
recuperou-se rapidamente, mas o coração batia como se fosse sair pela boca. Engoliu em seco e
endireitou os ombros, respirando fundo, antes de abrir a porta. As cortinas do dossel estavam
semi-abertas em volta da cama, e Heather estava fora de vista.
— ”Meu Deus, castiguei-a demais!”, ele pensou, com medo. — -— ”Ela sumiu! Abandonou-
me!”
Deu dois largos passos para dentro do quarto, mas um movimento ligeiro vindo da cama
chamou-lhe a atenção. Aliviado, virou-se e fechou a porta, largando o roupão numa cadeira
próxima, e em seguida moveu-se com suavidade na direção do pé da cama, e fez a volta rumo às
cortinas entreabertas.
O fôlego ficou retido em sua garganta, quando a viu, e seu sangue correu as veias num fluxo
violento, e ao mesmo tempo os sentidos se tomavam plenos da presença dela. O olhar percorreu-
a num prolongado ato de carinho. Seus cabelos caíram livremente sobre os ombros, pois ela se
deitara meio reclinada entre os cobertores, com as cobertas recolhidas no pé da cama, fora do
caminho. A camisola provocava-o
306
com suas camadas de azul puro, deixando um lindo quadril e uma linda perna de fora, pois caía
aberto desde a estreita cintura, pendendo maliciosamente por entre as coxas. Os seios faziam
pressão contra aquela transparência e enganavam-no com sua ansiedade de pulsarem para fora,
tornando a respiração de Brandon pesada e difícil. Heather sorriu docemente e os olhos traíam
uma sedutora promessa enquanto ela erguia um braço para ele. Quase temendo estar num sonho,
inclinou-se acima da beira da cama, e a esposa passou a mão pela sua nuca, puxando-o para ela.
Estava com a pele quente e sedosa, esfregando-se nele, e sua fragrância intoxicante o envolvia
junto com o braços. As mãos de Brandon procuravam as fitas que prendiam a camisola ao
mesmo tempo que Heather lhe sussurrava ao ouvido:
— Como você demorou, meu querido.
O mundo de Brandon girou e ele a agarrou firmemente, murmurando palavras ternas enquanto
seus lábios buscavam sofregamente a carne tentadora do pescoço.
— Heather... oh, Heather! — Murmurou. — Eu a desejo há tanto tempo! Tenho sonhado com
você. Eu não agüentava mais.
E sua boca colou-se à dela avidamente, e os dois corpos se entrelaçaram, famintos — o de
Brandon, quase louco pelo ato de amor, e o de Heather, apenas começando a prová-lo. Ela
gemeu suavemente ao contato de suas experientes mãos exploradoras e seus beijos fortes e febris,
e agarrou-se a ele enquanto se entregava totalmente àquela paixão, tornando-se tão entrosada
nessa intensidade, que se surpreendeu, devolvendo-a numa selvagem espontaneidade, semelhante
à dele. Sentiu aquele membro viril de encontro a seu corpo e o sondando delicadamente,
tentando não ser grosseiro com sua ansiedade, e desceu a mão para ajudá-lo. Assim que o tocou
quase retrocedeu, surpresa com o calor e a paixão que demonstrava, mas encorajada por palavras
roucas, levou-o ao seu ninho, sentíndo-o então fazer pressão dentro de si. Seus olhos
arregalaram-se com o que a sensação inspirava e, à luz ténue, viu o rosto do marido acima, com
expressão diferente, modificada pela excitação. Ele parecia regalar-se com o momento tão íntimo,
tão terno entre os dois. Para ela, dava a impressão de ser alguém esplêndido, feito de ouro.
Murmurando seu amor para Brandon, passou os braços pelo seu pescoço e, apertando os seios
macios nos cabelos que lhe cobriam o peito, puxou-lhe a cabeça para si. Seu beijo foi total e
convidativo, sem reservas, queimando sob os lábios dele enquanto sua pequena língua penetrava
entre eles. Brandon estremeceu por cima dela, mantendo-a bem apertada, e começou a mexer,
primeiro suavemente, com cautela, até que a violência daquela paixão consumiu os dois e ambos
se largaram na tempestade progressiva. Um murmúrio inesperado explodiu dos lábios de Heather
quando enfim encontrou o que a aguardava:
307
— Brandon!
E ele se glorificou no seu triunfo enquanto o casal se dissolvia num fogo mútuo, que depois foi
aos poucos se extinguindo, deixando cinzas no altar do amor.
A chama da vela tremulava com a brisa suave que estremecia as cortinas das janelas, lançando
estranhas sombras no teto enquanto iluminava as silhuetas em cima da cama. Heather estava
deitada nos travesseiros, envolvida pelos braços de Brandon, com as pernas entrelaçadas nas dele,
e sentindo-se estranhamente separada do corpo, como se flutuasse numa nuvem em algum ponto
acima do mundo em volta. Os olhos estavam fechados, e um sorriso sonhador, de satisfação,
aflorava-lhe aos lábios enquanto o marido passava o dedo carinhosamente pelo seu rosto,
acariciando-lhe a boca, os olhos e as sobrancelhas.
— Sempre pensei que era necessária uma grande experiência para que a arte do amor fosse
perfeita, e agora descubro que também nisso eu estava errado. Jamais senti um prazer assim tão
maravilhoso.
— Oh, meu querido, e você não está sozinho! — ela disse sorrindo, e abrindo os olhos para
observá-lo com amor. — Se eu soubesse antes como era, teria exigido meus direitos. — E deu
um risinho, passando os braços pelo pescoço de Brandon. — Que pena perdermos tanto tempo
para nos conhecermos.
Os lábios do marido substituíram os dedos, e de novo ele murmurou de encontro aos lábios dela,
dando-lhe ao mesmo tempo beijos cheios de ternura:
— Você me odiava, lembra-se?
— Hummmm.. talvez sim, no começo — ela replicou, devolvendo os beijos. — Mas, ao mesmo
tempo, talvez não. Eu só sei que você me assustava mais do que eu podia agüentar.
Ele riu e rolou para cima dela, afundando a boca na carne morna do seu pescoço, deleitando-se
com a maciez nua de sua pele.
— Também me assustei. Fiquei com medo de perdê-la completamente.
Ela fez pressão contra o peito dele e projetou o lábio inferior teimosamente:
— Você foi tão ruim como um urso selvagem, Brandon Birmingham, e sabe disso.
Ele sorriu enquanto preguiçosamente corria um dedo desde o ombro da mulher, passando pelo
busto e indo até o bico rosado que permanecia empinado.
— Ser forçado a casar-me deixou-me enfurecido — ele murmurou. E ver sua tia me tratando
como se eu fosse um camponês das colónias não melhorou a situação em nada. E, depois, ter de
passar minha noite de núpcias debaixo da vigilância de Lord Hampton provocou
308
ainda mais meu gênio. E então, quando você disse que me odiava, minha raiva explodiu e, já que
você era a única em quem eu poderia descarregá-la, joguei-a toda em cima de você. No entanto,
minha querida, vingança não é uma faca de dois gumes. tem um só fio. Eu me vi sentado na
lâmina e, sempre que você a brandia, eu sentia a facada.
Os olhos de Heather abriram-se mais, inocentemente:
— O que eu fiz para ofendê-lo?
Brandon deixou cair a cabeça no travesseiro e, descansando a mão na testa, fechou os olhos e riu,
depois suspirando.
— Oh, diga-me o que você não fez, meu amor! Seria realmente mais simples. Você bancou a
mulher como se fosse a única, e eu tive de ficar por perto, o macho indefeso, e observar
enquanto você se banqueteava com meus sentimentos. Você desnudava os seios na minha frente
e balançava-os em sua plenitude na minha cara, arrancando meus olhos. Era tão tentadora que
por pouco a peguei à força pelo menos mil vezes diferentes.
Heather deu uma risadinha e encostou o rosto no ombro de Brandon, correndo os dedos
carinhosamente pelos cabelos do seu peito enquanto pensava profundamente.
— Sabe que eu quase tive pena da Tia Fanny, Brandon? Ela nunca soube o que é ser amada, ou
mesmo ter amigos.
Ele sorriu e abriu os olhos.
— Não sinta muito por ela, meu bem. Provavelmente está vivendo bem contente com o dinheiro
que lhe dei.
Heather quase pulou, com o espanto estampado no rosto!
— Você deu dinheiro à Tia Fanny! Ele confirmou num sinal de cabeça.
E uma senhora quantia. Foi para pagar a dívida que eu tinha com ela, segundo me afirmou, por
ela haver tomado conta de você durante os dois anos que morou com eles.
— E você pagou mesmo! — ela gritou, indignada. — Oh, Brandon, ela recebeu uma quantia
enorme quando vendeu todos os meus pertences! Além disso, eu trabalhei para ganhar a vida
nesses dois anos. Ela não tinha o direito de exigir coisa alguma de você. Estou tão envergonhada!
Você deve ter pensado que éramos todos caçadores de dinheiro.
— Eu paguei a ela por mais de um motivo, coração. Ela poderia tentar reclamar sua posse e a
posse do nosso filho, calculando que eu teria riqueza para cuidar dela de modo exuberante, e eu
jamais desejei a presença dela em torno de mim ou de você. Uma coisa é ter uma esposa relutante
e outra bem diferente ter uma parenta complicando sua vida. Outra vez em que ela pusesse as
mãos em você provavelmente eu mataria a bruxa velha, de qualquer modo. Portanto,
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não querendo cometer lesões corporais naquela fera, dei-lhe dinheiro sem discussão. Aliás, dei
com tanta rapidez que ela deve ter ficado chocada.
— Oh! Brandon! — ela riu, satisfeita. — Você é tão maravilhosamente impossível!
Brandon sorriu enquanto sua mão explorava o corpo da mulher.
— Bem, ficamos livres dela, não é?
O sorriso de Heather desapareceu subitamente quando se lembrou de repente do corpo sem vida
de William Court, caído no chão, e atirou os braços em volta do marido, apertando-o forte.
— Espero que sim, Brandon. Espero que sim.
O marido, afastando-lhe o cabelo do rosto, falou muito delicadamente:
— Quer dizer-me por que está com medo, meu amor? Quer medeixar ajudá-la?
Ela rolou para o lado e fechou os olhos, apavorada com o que lhes poderia acontecer se ele
descobrisse que havia matado um homem. Sacudiu a cabeça, conseguindo rir.
— De nada, meu amor. Realmente, não precisa ajudar-me. Heather abriu os olhos e viu-o em
cima dela, aguardando, com os olhos perscrutadores, na tentativa de saber o que se passava em
sua mente. Depois, inclinando-se lentamente em direção à sua boca, apertou-lhe as costas contra
os travesseiros.
— Eu te amo, Heather. Mais do que à minha própria vida, e é um amor forte. Confie em mim,
minha querida.
Sua boca partiu rumo à da esposa e novamente Heather fundiu-se em seus braços. Muito tempo
depois era o hálito quente dela que falava ao ouvido de Brandon.
— E eu te amo, Brandon, meu marido muito querido.
Brandon saiu do sono, com a voz de Hatti no saguão, e, à medida que os passos dela se
aproximavam, ele se sentou e subitamente percebeu onde estava. Seus movimentos acordaram
Heather, que chegou para mais perto dele, com os olhos entreabertos e um sorriso sonolento nos
lábios. Ela estendeu o braço para tocar em suas costelas esguias e musculosas, e ele reclinou-se,
puxando relutantemente a colcha sobre o casal. Foi quando Hatti abriu a porta. A negra velha
estacou no meio do caminho quando viu os dois juntos na cama imensa, logo um amplo sorriso
provocou pequeninas rugas em torno dos seus olhos e ela penetrou no quarto como se aquilo
fosse uma ocorrência rotineira. Ignorando a carranca de Brandon, foi até as janelas, abriu as
cortinas para deixar o sol brilhante penetrar no quarto. E ficou de braços abertos, rindo para si
mesma.
310
— Sim, sinhô, tá um dia lindo mesmo. Eu até acho que num vejo um assim tem uns 20 ano,
desde que sua mamãe istava nessa casa, seu Bran.
Heather afofou os travesseiros e recostou-se neles, meio sentada, puxando a colcha até o busto, e
Brandon acompanhou-a, retirando uma das mãos da coxa dela enquanto continuava fazendo cara
feia para a negra. Os olhos de Heather cintilavam com alegria reprimida a observar Hatti pelo
quarto, pendurando roupas no braço e arrumando coisas aqui e ali.
— Se eu num mi ingano, todo mundo vai querê o desjejum daqui a pouco — avisou a velhota.
— Nunca vi o sinhô levantá tarde antes, seu Bran. Acho que o seu Jeff tá maluco da cabeça,
querendo sabê onde o sinhô tá. Ih, ih, ih...
Riu incapaz de controlar sua felicidade, mas ficou séria, em seguida, quando apanhou a camisola
azul de Heather no chão, ao lado da cama, e arrumou-a cuidadosamente numa cadeira mais
próxima. E prosseguiu, rumo ao guarda-roupa, onde achou um roupão da patroa que colocou ao
lado da camisola.
— Acho que ele vai subi até daqui a pouco. Tava comendo faz algum tempo, e disse que queria
vê o sinhô. — E o largo sorriso malicioso surgiu de novo quando olhou para os dois na cama. —
— Aquele patrãozinho Beau vai querê também entra nesse quarto num demora muito. Nunca vi
ele dormi até tarde assim, também. A sinhora treinô ele direito, Dona Heather.
— Ele tem mais educação do que algumas pessoas que eu conheço. — retorquiu Brandon
asperamente, provocando uma risadinha da mulher.
Ela caminhou até a porta e abriu-a para depois virar-se e dar uma última espiada maliciosa em
Brandon, antes de sair.
— Sim, sinhô, é um dia lindo de verdade.
Mas, antes de ir embora, a voz de Jeff soou do outro quarto:
— Onde está a raposa velha? Sai da festa mais cedo, esquece os convidados e fica na cama até o
meio-dia. — E enfiou a cabeça pela porta.
Tomando um susto, Heather meteu-se depressa nas cobertas, puxando a colcha até o queixo.
Houve um momento de silêncio enquanto Jeff admirava a cena.
— Bem, você não está exatamente decente, mas vou entrar de qualquer jeito — ele disse
sorrindo.
Passou por Hatti enquanto a velhota se retirava e entrou no quarto, vindo parar ao pé da cama,
de onde ficou olhando para o casal. Seus lábios torceram-se num sorriso lateral, ao passo que o
olhar observava mais o irmão que a Heather, e seu companheiro se retorcia sob aquele olhar
pensativo. Em seguida Jeff caminhou até as janelas, percebendo a camisola de Heather na cadeira
quando passou. Dêscansou
311
uma das mãos no peitoril e abriu o paletó para o lado com a outra, olhando divertido para os
jardins ensolarados lá embaixo.
— Sim, senhor! — exclamou, pensando profundamente. — Vai ser exatamente um belo dia...
Dizendo isso, atirou a cabeça para trás e deuuma boa gargalhada, lembrando-se de alguma piada.
Brandon resmungou e virou os olhos para cima, trincando os dentes.
— Pois acho que é um maldito dia e triste quando o próprio quarto de dormir de um homem se
torna tão público como uma casa de leilão em dia de venda. Vou mandar Ethan botar trancas
naquela porta!
Jeff virou-se com um sorriso zombeteiro e fez uma mesura.
— Peço-lhe perdão, senhor. Tivesse eu ficado a par da sua mudança de cenário, teria sido mais
discreto. Contudo, devo lembrar-lhe, caro irmão, que alguns hóspedes permanecem na casa e
estão preocupados com sua ausência. Deverei dizer-lhes que ficou doente? — Com o rosnado de
Brandon como resposta, ele riu e continuou: — Muito bem, simplesmente direi a eles que você é
molenga, mas descerá em breve.
Virou-se como se para ir embora, mas dirigiu-se aos dois novamente:
— Tenho de lembrar-me de parabenizar George. Ficará feliz ao saber que não é um total
fracassado em provocar casamentos.
E observou-os, divertindo-se em silêncio, até que o impacto de suas palavras atingiu o alvo, e o
casal olhou para cima quase em uníssono, encarando-o com enorme surpresa.
— Não se incomodem. Estou a par dos detalhes já faz bastante tempo, mas não culpem George
demais. Ele estava bêbado como um gambá — e acho que não havia ninguém por perto. —
Dando mais uma forte risada, aproximou-se da porta, de onde olhou para Heather de novo, e
sorriu para Brandon. — Você teve muito mais força de vontade do que eu teria, caro irmão.
Piscou o olho para Heather e, rindo sozinho, virou-se e partiu, fechando a porta.
Brandon resmungou alguma coisa nada agradável sobre não poder ter segredo, ou intimidade, e
passou as compridas pernas por cima da beira da cama, sentando-se em seguida. Heather riu
bastante e, levantando-se depressa, abraçou-o animadamente por detrás.
— Oh, mas é um dia lindo, não é, Brandon?
Ele sorriu enquanto fechava os olhos e roçava as costas nos seios nus, deliciando-se com esse
contato.
— Sem dúvida que é, amor — ele afirmou. — Sem dúvida. Subitamente se ergueu e, rindo,
puxou-a da cama e deu-lhe uma boa palmada no traseiro nu.
312
— Se a senhora não for logo olhar nosso filho, madame, ele terá de esperar mais outro dia para
fazer seu desjejum.
Ela deu um risinho e aconchegou-se a ele, ficando nas pontas dos pés para beijá-lo, passando os
braços em torno de seu pescoço.
— Não vá agora. Tenciono deixá-lo sob minhas vistas a maior parte do dia.
Ele respondeu com um longo beijo, mantendo-se apertada junto a si, e depois falou sussurrando
ao seu ouvido:
— Vai ter muito trabalho para se livrar de mim, my Lady...
Beau, dando a impressão de participar do bom humor e a alegria dos pais, mostrou-se disposto a
brincar, depois que a barriguinha foi devidamente enchida. Batia as pernas alegremente na hora
do banho, salpicando água em sua mãe, e riu de contentamento quando o pai ralhou com ele por
causa dos seus maus modos. Quando Heather o carregou para o salão de recepção, ele estava
mais do que satisfeito com a atenção que ali recebeu dos hóspedes, que brincavam e faziam
gracinhas para ele.
A Sra. Clark percebeu o brilho nos olhos do pai e sentou-se, segurando sua bengala. Balançando
a cabeça lentamente, disse:
— É, Brandon, você parece muito melhor de gênio hoje do que ontem à noite. Seu descanso
noturno operou maravilhas no seu temperamento.
Jeff deu uma risada, mas recebeu um olhar de aviso do irmão, que se virou e falou bem-
humorado com a mulher:
— Obrigado, Abegail. É verdade. Sinto-me consideravelmente melhor esta manhã.
E esbarrou nos olhos sorridentes da esposa, que o observava por cima do bebê; correspondeu
calorosamente àquele olhar.
O dia vinha raiando quando o último dos convidados subiu à sua carruagem. Fora servida uma
refeição e trocavam-se agora efusivas despedidas. A maioria dos homens beberam uma última
prova do uísque de Brandon, aquecendo os estômagos, enquanto as mulheres tomavam água
fresca ou um gole de vinho resfriado com o intuito de encurtar um pouquinho a viagem.
Assim que a mansão ficou mais uma vez entregue somente aos Birmingham, eles se reuniram no
salão de recepção a fim de passar a tarde ociosamente. Heather sentou-se com Beau num
acolchoado estendido sobre o tapete, onde ele sacudia os braços agitadamente, resmungava e,
com olhos brilhantes, observava as partículas de poeira que fervilhavam num raio de sol próximo.
A criança provocava risos
313
carinhosos dos homens sentados ali perto — Brandon no canapé, ao alcance da esposa, e Jeff
estirado em frente a eles, numa confortável cadeira, e cada um degustando a bebida de sua
preferência.
O ruído de uma carruagem e o som de cascos romperam a quietude e cessaram antes de Louisa
apear. A mulher desceu com uma ansiedade e uma rapidez tais que desvirtuavam a seriedade que
trazia no rosto. Subiu os degraus do varandão e forçou Joseph a anunciar sua presença diante da
pequena família sem pré-aviso. Antes de dizer palavra, pegou o copo da mão de Brandon e quase
o esvaziou, abusando do ótimo conhaque. Depois, franziu o nariz, como se não tivesse gostado.
Logo que devolveu o copo, Brandon depositou na mesa, e Jeff sorriu ligeiramente com o sutil
insulto, que passou despercebido a ela.
— Então, Brandon — ela explodiu, — você mais uma vez deu motivo para fazerem tantos
mexericos em Charleston...
Brandon ergueu a sobrancelha, indagando sobre aquela declaração, e Louisa explicou, quase sem
fôlego.
— Sybil foi encontrada morta esta manhã. — E sorriu um pouco diante do susto que Heather
levou. — E você foi visto em sua companhia ontem, na Rua Meeting. Aliás, parece que foi a
última pessoa que falou com ela.
Uma sensação fria e horrenda começou a nascer dentro de Heather. Agarrou uma coxa de
Brandon, e a mão dele cobriu a sua, transmitindo-lhe segurança. Um silêncio sepulcral encheu o
salão e parecia que todos haviam prendido a respiração. Louisa empertigou-se e quase franziu a
testa ao ver as mãos entrelaçadas, mas depois continuou incontidamente:
— Encontraram seu corpo na mata perto da cidade, com o pescoço quebrado. E foi
violentamente estuprada. Pobre moça, ninguém sequer sentiu sua falta no baile ontem à noite,
não foi? Arrancaram-lhe a roupa, e o médico confirmou o estupro. — Ergueu uma sobrancelha
maldosa na direção de Heather e depois sorriu para Brandon. — Claro que eu sei que você jamais
trataria uma mulher dessa forma, querido, no entanto o xerife tem algumas dúvidas. Aliás, daqui a
pouco ele deverá estar chegando aqui. Parece que a Sra. Scot tem certas idéias bem definidas
acerca de quem possa ser o monstro.
Jeff deu uma risada fria naquele silêncio.
— A língua de Maranda Scott normalmente supera seu cérebro em funcionamento.
Louisa quase rosnou quando sorriu para ele.
— Têm havido diversas outras ocorrências estranhas que tenho certeza o delegado vai querer
fazer perguntas a respeito. Mas, é claro — e lançou um olhar para Heather — Brandon pode
explicar todas. — E virou-se para ele, perguntando: — Para onde foi mesmo que você
desapareceu ontem de noite, Brandon?
314
Heather não agüentou mais e partiu em defesa do marido:
—- Ele ficou comigo a noite inteira, Louisa, e durante o dia todo hoje, até agora, e jurarei isso.
.— Oh! — Os olhos de Louisa arregalaram-se, mas depois se estreitaram quando olhou para
Beau. — E suponho que terão outro rebento para provar isso. Porém... — E virou-se para
Brandon. - Acho que mantê-la grávida é a melhor maneira de ter certeza, não é, querido?
Heather arquejou com o insulto grosseiro e tanto Jeff quanto Brandon pularam de onde estavam
sentados. Os olhos de Brandon tornaram-se graves e a face retorceu-se de raiva. Adiantou-se
com as mãos meio erguidas como se fosse atingi-la e Louisa demonstrou medo no rosto. Mas
então ele se controlou e ela sorriu sem graça.
— Ora, ora! Precisa dominar esse seu gênio violento, querido. O que diria o delegado? — Deu
meia-volta, rodando as saias. — Agora eu devo ir embora, de qualquer forma. Ele não gostará de
eu o haver avisado. — E enquanto saía riu suavemente por sobre o ombro. — Sairei pelos
fundos para ele não saber que estive aqui. Adeusinho, querido...
Um momento depois sua carruagem dava a volta pela mansão e parava na alameda dos fundos.
Heather segurava o filho, que choramingava, e os três adultos se encararam com dúvida e
consternação.
— Quem acreditar que você teve qualquer coisa a ver com a morte de Sybil é maluco, Bran! —
explodiu Jeff, batendo com o copo na mesa. Resmungou uma praga e começou a caminhar pelo
salão. — Aquela tola tinha todos os vagabundos sem-vergonha da cidade batendo na sua porta.
Pode ter sido qualquer um deles. E que motivo razoável alguém daria para culpar você? Meu
Deus, você mal a olhava! E tenho certeza de que, se o tivesse feito, ela o teria estuprado!
Heather olhou preocupada para o marido e esforçou-se para acalmar Beau, que deitado em seu
peito, quando não conseguiu encontrar o que desejava por causa do vestido, mexia-se
impacientemente, de vez em quando soltando um gritinho.
Foi Brandon quem falou calmamente:
— A Sra. Scott tem razão em estar perturbada e é dever do Townsend, como delegado, investigar
todas as possibilidades, mesmo pressionado por uma mulher histérica. Realmente eu ajudei Sybil
a levar seus embrulhos para a carruagem dela ontem e tenho certeza de que algumas pessoas nos
viram juntos. Mas creio que isso não prova que a assassinei. Townsend não é um imbecil. Saberá
fazer justiça. Heather fez menção de levantar-se para cuidar do filho, e Brandon inclinou-se para
ajudá-la a se erguer. Enquanto o fazia, seus olhares se encontraram e, se havia alguma dúvida na
mente de Heather, dissipou-se na mesma hora. Não era possível que ele a olhasse com tanto
315
carinho e amor sendo culpado de ato tão horrível. Os olhos dela espelharam tal emoção e ela
ergueu o rosto para que seus lábios pudessem encontrar os dele num beijo suave, sem pressa.
— Não vou demorar — ela falou sussurrando quando se separaram, depois se virou para sair do
salão e subiu as escadas, aconchegando o filho.
Quando Heather descia após cuidar de Beau e botá-lo na cama, ouviu uma voz masculina que
não conhecia. A resposta irada do marido a fez deter-se na escada.
— Maldição, Townsend, que pergunta imbecil a sua! Não, jamais fiz amor com ela. Sempre a
achei totalmente sem graça, sem atrativo, e me teria sido inteiramente impossível ficar excitado
com ela.
— A Sra. Scott acha o contrário, Bran. E declara que você mantinha um caso amoroso secreto
com a filha fazia anos, e que, quando ela começou a sair com outros cavalheiros após o seu
casamento, você ficou com ciúme e com raiva, e num acesso de raiva forçou-a e depois a matou.
— Mentiras deslavadas! — declarou Brandon, irado. — Maranda deve estar pensando que
conseguirá alguma espécie de compensação pela sua língua de víbora. Durante anos tentou jogar
sua filha em cima de mim, mas eu juro, Townsend, pelo túmulo de minha mãe, que nunca toquei
naquela moça!
— Eu soube que você deu uma grande festa aqui ontem à noite — exclamou o delegado. — E
também soube, através de alguns convidados seus, que estava com um mau humor terrível.
— Nossa querida cooperadora Louisa, sem dúvida — murmurou Jeff com desprezo.
— Asseguro-lhe, Townsend — afirmou Brandon — que minhas ações da véspera nada tiveram a
ver com Sybil. Nem mesmo soube da presença dela aqui, a não ser há alguns minutos, quando
Louisa me contou o acontecido.
— Então qual a razão daquele seu comportamento? Jeff deu um risinho.
— Ele estava tentando manter todos os homens longe da esposa, pois queriam manuseá-la.
— Então você é vítima de ataques de ciúme? — interrogou o delegado.
— No que diz respeito à minha mulher, sim — confessou Brandon.
— Por que somente ela? Podia sentir a mesma coisa por Sybil. já que possui tal temperamento.
Agora Brandon riu.
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— Indubitavelmente, Townsend, você nunca viu minha esposa, senão veria logo a verdade dos
fatos. Ao lado da Sra. Birmingham, Sybil morria de vergonha.
Townsend pigarreou e falou como se estivesse relutante em fazê-lo:
— Corre um boato entre os seus amigos que você não dorme com a esposa, Bran. Isso é
verdade?
Com o sangue fervendo, Heather irrompeu pelo salão e encontrou os três homens ali. Quando
encarou o desconhecido, ele a olhou espantado durante segundos, depois se ruborizou
profundamente e baixou a cabeça. Townsend era tão alto como os Birmingham, porém muito
mais pesado. Se o peso de Brandon era o dobro do de Heather, o deste homem era o triplo, e
parecia esquisito ver um homenzarrão como ele encolher-se e ficar num silêncio envergonhado.
Heather foi para perto do marido e, passando um braço pela sua cintura, falou com voz
moderada:
— O que lhe disseram não é verdade, senhor. É verdade, sim, que enquanto eu estava grávida
nós usamos quartos separados, mas não vejo nada de estranho nisso quando a mulher tem um
marido tão atencioso como o meu. Ele tinha medo de, no seu sono, machucar a criança ou a mim
mesma. — E ergueu uma sobrancelha maliciosamente: — O senhor dispensa tais atenções à sua
esposa, senhor?...
Com mal-estar, Townsend resmungou uma resposta negativa, depois pigarreou e esclareceu,
ficando mais ruborizado ainda:
— Eu não sou casado, madame.
Jeff deu um risinho e Heather levantou mais ainda a cabeça.
— Ah. — ela suspirou. — Então pouco sabe a respeito de mulheres grávidas. Mas voltemos à
sua pergunta: se dormimos juntos? Sim, senhor, dormimos! — E seus olhos cintilavam de raiva.
— E sou esposa tão exigente, senhor, que não vejo possibilidade de meu marido sequer desejar
olhar para outra mulher, quanto menos atacá-la!
Terminou de maneira furiosa e Jeff riu quase inaudivelmente antes de dar um tapinha nas costas
de Townsend.
— Acho bom avisá-lo, Townsend: nossa dama tem um pouco de temperamento irlandês e,
quando a coisa se agita, ela mostra logo as garras.
O homem olhou em sua volta, não se sentindo bem, e pigarreou de novo, amassando o chapéu
nas mãos.
— Bem, vejo que aquilo que você disse é verdade, Brandon, mas espero que entenda minha
obrigação de verificar cada detalhe, num assunto tão grave como este.
Depois, virou-se hesitante e emitiu outra gaguejante desculpa antes de sair. Os três ficaram
escutando seu cavalo afastar-se da mansão, como se perseguido por demónios, e eles soltaram
um suspiro de alívio.
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Jeff riu.
— Nunca vi o Townsend tão envergonhado de si mesmo. Acredito que, no que diz respeito a ele,
Bran, você é tão inocente como um recém-nascido.
A boca de Brandon torceu-se de alegria.
— Graças à minha exigente esposa.
Heather afastou-se do marido e se virou para encará-lo com a cabeça erguida:
— Ele foi indiscreto demais para que eu pudesse gostar dele - falou. — Precisava de alguém que
o pusesse no seu lugar.
O cunhado sorriu.
— Meu bem, você fez isso no momento em que cruzou aquela porta!
Pouco tempo depois Brandon fechou a porta do quarto e foi para o lado da esposa, sentada à
frente da penteadeira, e começou a abrir-lhe a parte de trás do vestido. Ela sorriu para ele pelo
espelho e esfregou a face na mão que acariciava seu ombro.
— Brandon, eu o amo tanto! Eu morreria se você se cansasse de mim e fosse procurar outra.
Brandon ajoelhou-se e passou-lhe os braços em volta, puxando suas costas contra o corpo com
força, e beijando-lhe os cabelos cheirosos.
— Nunca fiz nada pela metade e meu amor por você não é exceção, Heather. Quando digo que
uma pessoa é chegada a mim, eu me envolvo inteiramente, logo, quando digo que é meu amor,
você é dona do meu corpo e da minha alma!
Ela sorriu carinhosamente e suspirou.
— Deve ser óbvio que tenho medo por causa da Louisa e suponho que sentia o mesmo ante a
presença de Sybil. A pobre menina desejava tanto você que mesmo um só momento ao seu lado
a deixava contente. Mas eu sou mais egoísta. Quero você o tempo todo, sem ter de compartilhá-
lo.
— E acha que sinto de outra forma em relação a você, minha querida? — ele falou suspirando.
— Deus, eu mataria qualquer homem que tentasse afastá-la de mim! E mulher nenhuma me
poderá atrair. Quanto à Sybil, era uma garota simples, que teria trocado o mundo por mim, mas
acabou ela própria eliminando o dela.
— Tem alguma ideia de quem possa tê-la matado, Brandon? Ele suspirou, afastou-se e começou
a tirar a roupa.
— Não sei, meu bem. Muitos homens a cortejavam... até alguns casados.
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— Casados? — perguntou Heather, assombrada. E levantou-se para tirar o vestido aberto,
deixando-o cair. — Sem dúvida, Brandon, a mãe dela...
Ele rosnou:
— Aquela puta asquerosa: Enquanto a filha não conseguisse arranjar um marido rico, ela pouco
se importava com o que a moça fazia. Sam Bartlett era um dos conquistadores da moça.
— Sam Bartlett! — exclamou Heather, afoita. E lembrou-se vividamente da experiência com ele.
— Ele mesmo — retrucou asperamente Brandon. A raiva invadiu Heather.
— E o delegado Townsend veio até aqui para interrogar você, enquanto deixa esse sujeito andar
por aí à vontade?! Ah, só de pensar nisso...
Brandon riu e se aproximou dela.
— Calma, coração. Ele pode ser um galo de briga safado, mas nada prova que é um assassino.
— Qualquer homem que força as suas escravas...
— Sshhh... — sussurrou Brandon, beijando-lhe o ombro. Suas mãos envolveram-lhe os seios por
dentro da roupa. — Não vamos falar nele. Há coisas muito mais interessantes que prefiro
discutir... como por exemplo o jeito que você fica linda quando tira a roupa.
E suas mãos agarraram o tecido macio da combinação de Heather, e separaram a sua frente com
um só rasgão.
— Melhorou. — ele disse sorrindo por entre os dentes. — Inclinou-se e ergueu-a nos braços. —
Vai ter de aprender a despir-se mais depressa, se quiser salvar suas combinações, madame.
— E antes de seus lábios taparem os dela, escutou-se Heather dizer:
— Pouco me importa uma velha combinação...
319
Capítulo Dez
Os longos dias do verão se transformaram em semanas e julho logo ficou para trás quando o
décimo nono aniversário de Heater chegou e se foi. O assassinato de Sybil deixara de ser tópico
obrigatório das conversas quando a busca do criminoso não deu resultado. Seus pretendentes
conhecidos pareciam, todos ter álibis convincentes e o caso passou gradualmente para o segundo
plano — embora a maioria das mulheres continuasse a evitar becos, entradas escuras e matagais,
à noite.
Com o passar do tempo, Heather viu sua vida mudar enquanto se estabelecia seguramente em
seu lugar, como esposa de Brandon, desempenhando essa função com um desembaraço que a
deixava radiante. Gostava de partilhar com ele o quarto de dormir e de ter sua presença a seu
lado no enorme leito à noite. Deliciava-se ao sentir as mãos dele em seu corpo — que ele
conhecia melhor do que ela mesma, e ele usava esse conhecimento para aumentar-lhe o prazer.
Ele praticava o amor como uma arte e nisso era um mestre nato. Sua técnica era tão imprevisível
como sofisticada. Por vezes a galanteava, bajulava, seduzia como se não houvesse laços de
casamento entre eles, como se ela ainda fosse solteira, falando docemente, ronronando,
mordiscando-a até que arrepios de delícia lhe percorressem todos os nervos. Em outras noites,
quando ela inocentemente fazia alguma coisa que o excitava, arrancava-lhe as roupas com uma
risada vigorosa, arremessava-a na cama e a possuía com uma violência que quase a enlouquecia de
prazer e deixava a ambos arquejantes e exaustos, mas extremamente satisfeitos. Ele brincava com
ela, mimava-a, implicava e atormentava a moça — e ela adorava cada momento disso. E a
ensinou a ronronar e pedir — como um dia lhe dissera que o faria... Encorajava-a a ser não
apenas esposa mas também amante, dando-se livremente e provocando os desejos dele assim
como os satisfazendo — o que na verdade era tarefa bem simples.
— Os outros homens são tão românticos? — perguntou-lhe uma noite, quando ele a apertava de
encontro aos travesseiros. — Todas as esposas são abençoadas com maridos tão amorosos?
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Ele sorriu e afastou-lhe os cabelos do rosto:
Serão todos os maridos abençoados com mulheres tão sedutoras como esposas? — respondeu
em contrapartida. — São outras mulheres tão bonitas e tão dispostas a agradar a seus homens?
Agosto faz sua estreia com um sol quente e brilhante, forçando a ida apressada da maioria das
famílias para a cidade, para refrescarse com as brisas oceânicas. Os Birmingham passaram vários
dias como hóspedes da Sra. Clark em sua mansão à beira-mar, e a velha senhora tinha o maior
prazer em deixar que suas amizades soubessem que Brandon e a jovem esposa realmente
dormiam juntos e eram, de fato, um casal muito amoroso.
Pouco depois Brandon teve de ir à serraria para pôr os livros em dia, e os Webster estenderam
um convite para que Heather viesse com o marido e trouxesse o filho, para jantar com eles.
Quando Heather avistou Leah, ficou espantada com a mudança, pois Leah era agora uma mulher
de alguma beleza. Engordara um pouco e a pele bronzeara enquanto os cabelos estavam louros
cor de linho. Os brilhantes olhos azuis haviam perdido aquele ar vazio, e ela parecia anos mais
jovem do que ao chegar.
— Que aparência maravilhosa ela tem, Brandon! — Heather comentou enquanto ele a ajudava a
descer da caleche. — Parece outra mulher!
Ele assentiu, de cabeça, pois Jeremiah já descia apressadamente os degraus da grande casa branca
para recebê-los. Leah ajudou os filhos menores a descer a escadaria, seguindo-os de perto já que
o bebê ia cai-não-cai atrás do pai. A mulher deu a Brandon uma acolhida amigável, pois já se
acostumara com sua presença, e sorriu timidamente para Heather, que não pôde conter um
comentário sobre aparência de sua hospedeira:
— Oh, Leah, não há dúvida de que a Carolina lhe fez muito bem! — disse, alegremente. — Você
está tão bonita!
A mulher corou de prazer; Jeremiah pôs o braço em volta dos ombros da esposa e deu-lhe um
ligeiro aperto:
— Tentei dizer à patroa isso mesmo, porém ela pensa que eu falo só pelo prazer de lhe ser
agradável.
— Nunca me senti tão bem! — confessou Leah, acanhada. — com outra criança a caminho mal
me dou conta de que estou esperando.
Heather e Brandon sorriram pela surpresa da participação e a cumprimentaram.
— Minha mulher levará alguns anos mais até emparelhar com você. Mas tenho razões para
suspeitar de que o fará. Desta vez, pouco mais fiz do que olhá-la.. e ela engravidou!
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Da segurança dos braços do pai, Beau contemplava os estranhos atentamente e não ligava a
mínima ao fato de estar sendo discutido. Heather lançou ao marido um olhar envergonhado,
fazendo-o rir, e corou um pouco.
— Ninguém pode negar a quem ele pertence, Sr. Birmingham — e Leah sorria. — Ele é a sua
imagem, e com esses olhos verdes não há como enganar-se.
Brandon sorriu orgulhosamente e murmurou maciamente um carinho ao filho, fazendo o
garotinho também sorrir. Com os rostos juntos não podia haver dúvidas de que eram pai e filho.
Os olhos do bebê eram o espelho dos de Brandon — verde-esmeralda e com pestanas escuras.
Heather sabia agora que, se não tivesse voltado a ver Brandon depois de fugir do Fleetwood,
sempre se lembraria dele revendo-o no filho.
— Será que ele vem comigo? — Perguntou Leah, estendendo os braços.
Beau recusou definitivamente, dando um pequeno resmungo de protesto enquanto se virava para
deitar a cabecinha no ombro do pai.
— Não se incomode, Leah — desculpou-se Heather. — Ele não larga o pai por ninguém. Está
ficando agarrado demais com ele. — Voltou a cabeça para um lado como se estudasse
cuidadosamente o marido e depois continuou, com um brilho malicioso nos olhos: — deve ser a
barba...
Essa observação fez rir todas as crianças que vinham correndo da entrada para olhar mais de
perto o filho dos Birmingham. Logo a menina mais velha conquistou Beau de seu pai e pôs-se a
passear orgulhosamente pelo gramado com ele. Pouco depois Jeremiah se desculpou por ter de
atender suas obrigações na serraria e Brandon foi com ele. As mulheres ficaram descansando em
cadeiras de balanço, à sombra do pórtico, a Sra. Webster de vez em quando indo ver como ia a
refeição.
— Sinto-me mais animada a respeito deste bebê que está para chegar do que jamais me senti
quanto aos outros filhos — confessou Leah timidamente. — Sempre tivemos de enfrentar muitas
dificuldades devido à falta de dinheiro. Por vezes tínhamos sorte, mas quase sempre era muito
azar. Agora, é como se estivéssemos no paraíso, e em nossas preces damos graças por seu
marido. Ele nos tirou do nada e nos deu tudo.
Heather parou de bebericar o seu chá, seus olhos ficaram enevoados:
— É estranho, Leah, mas foi isso exatamente o que ele fez por mim. Tirou-me de um pesadelo e
me deu alegria. Minha vida não era nada até ele aparecer.
Leah a olhou por um momento, e perguntou docemente:
— A senhora o ama muito, não é?
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— Sim — confessou Heather prontamente, depois suspirou. — Amo-o tanto que por vezes
chego a ter medo! Nossa vida parece tão perfeita que me aterroriza pensar que pode acontecer
algo que a interrompa e se eu o perder ou ao seu amor, morrerei.
Leah sorriu:
— Quando vi seu marido pela primeira vez, Sra. Birmingham, ele estava sentado sozinho numa
hospedaria lá no Norte. Havia mulheres pintadas admirando-o de longe, pois não lhes dava um
olhar: apenas contemplava seu copo de vinho e podia-se ver que seu olhar era triste. Mais tarde,
falou algumas palavras a respeito de a senhora o estar esperando aqui e carregando o filho dele, e
sua expressão mudou: pensei então que ele devia amá-la muito. Desde aquele tempo aprendi a
conhecê-lo e descobri que eram verdadeiras as minhas primeiras impressões. Nunca vi um
homem amar a esposa tanto como ele a ama.
Heather limpou uma lágrima do rosto e riu, desculpando-se:
— Ora já se viu, chorando a troco de nada! Não pense mal a meu respeito, Leah. Não costumo
fazer isso.
Leah sorriu gentilmente:
— Ao contrário, Sra. Birmingham, se pensar algo, será muito bem da senhora! A mulher que
chora por amor do seu homem deve ser muito sensível à vida.
Mais tarde Leah preparou limonada para servir às visitas, às crianças e aos trabalhadores da
serraria, e perguntou a Heather se se importaria de levar um copo do refresco para cada um dos
homens. Ao levar a bandeja cuidadosamente para a serraria, Heather a viu em ação pela primeira
vez. Altos pinheiros se elevavam acima das construções e o cheiro de resina, proveniente das
grandes cubas em ebulição no pátio, tornava o ar pesado. Os toros boiavam na azenha e, além, a
gigantesca roda de água ronronava ao girar. As serras trabalhando zumbiam e rosnavam e davam
a tónica para um caos de sons enquanto uma parelha de mulas lutava para puxar os toros para
aquela barriga faminta. Vários homens estavam de pé formando uma moldura em volta da cuba
fervente, escumando polpa da superfície de uma caldeira de perto de dois metros de largura.
Ela encontrou o Sr. Webster do lado de fora da serraria discutindo um problema com alguns dos
seus auxiliares. Deu-lhe um sorriso amigável quando a viu, e ofereceu-se para ajudá-la com a
bandeja, porém ela não aceitou e ela mesma serviu o refresco aos homens enquanto ele a
apresentava a todos como a Sra. Birmingham. Eles a cumprimentaram respeitosamente, com
grande admiração por sua beleza, e a observaram enquanto ela se dirigia para um dos prédios
menores, onde Jeremiah dissera que encontraria seu marido. Então o capataz deu uma rápida
ordem para que fechassem a boca.
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e eles continuaram a trabalhar, lançando um derradeiro e furtivo olhar à moça, por cima dos
ombros.
Por um momento Heather ficou de pé no umbral da porta do escuro escritório. A peça continha
apenas o estritamente indispensável em matéria de móveis, e as paredes de madeira bruta nunca
haviam visto sinais de forração de papel ou de caiação. Seu marido estava sentado num
banquinho alto, à escrivaninha, de costas para ela. O dia estava quente e ele havia tirado a camisa
para aproveitar até o mínimo sopro de brisa que pudesse entrar pelas janelas. Ela observava com
prazer o jogo dos músculos em seu dorso e sorriu ao pensar neles sob seus dedos. Mudou de
mãos sua carga e uma tábua rangeu sob seus pés. Brandon virou-se: vendo sua silhueta recortada
contra a porta, levantou-se com visível alívio — salvo do tédio dos livros de escrituração.
Sorrindo, fê-la entrar, fechando a porta em seguida; depois, pegou a bandeja, que depositou na
mesa rústica, e serviu-se de um copo de limonada — que bebeu todo de uma só vez.
— Ah! — suspirou. — Era disso mesmo que eu estava precisando, para matar esta sede
tremenda! — Puxou-a para si, num abraço: — E de uma linda moça para alegrar-me os olhos!
Ela riu e esfregou o nariz em seu peito cabeludo:
— Lembro-me de uma vez em que brigou comigo por distraí-lo de seu trabalho. Seu trabalho
agora é menos desejável ou eu o sou mais?
Ele lhe deu um beijo na testa e ficou sério:
— Perdoe-me, meu amor! Naquele dia eu estava num dos meus piores momentos. Sua recusa em
partilhar a minha cama insultoume, o que prova que grande asno posso ser...
— Minha recusa! — ela protestou. — Mas, Brandon, nunca fiz nada para negar-lhe os seus
direitos! Você é que se recusou a dormir comigo no Fleetwood, depois que fiquei doente, e me
rejeitou na primeira noite em Harthaven! A cada vez eu teria alegremente obedecido a seus
desejos de marido, porém você se afastava de mim para dormir em sua cama solitária.
— Vejo que nosso casamento esteve cheio de desentendimentos. Você tinha a ideia errónea de
que, devido a nosso casamento, meu desejo por você havia diminuído desde aquela noite de
verão em que a possuí pela primeira vez, e eu estava certo de que você não suportaria que eu a
tocasse, que lutaria comigo se eu tentasse possuíla. Estranho como nossas mentes jogaram contra
nós. Devíamos ter seguido nossos instintos. — Curvou-se e pousou os lábios em seu alvo
pescoço. — Teríamos encontrado o amor muito mais cedo...
Heather estremeceu deliciada e soube que, enquanto houvesse em seu corpo um sopro de vida,
ela vibraria quando ele a tocasse. Não poderia apresentar-lhe resistência quando a acariciasse. Sua
própria alma parecia pertencer-lhe e seu corpo reagia mais à vontade dele
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do que à dela mesma. Ele tinha o poder de fazer sua vida parecer um sonho encantado ou, como
no passado, fazer o inferno parecer um agradável jardim. Ela lhe pertencia sem a menor reserva.
Os lábios dele lhe desceram pelo pescoço até ficarem indecisos acima da concavidade, na base,
onde uma espuma de brancos babadinhos franzidos dificultava descida mais profunda.
Casualmente sua mão começou a brincar com os botõezinhos do vestido dela, enquanto lhe
cochichava palavras gostosas ao ouvido, e abriu o primeiro, o segundo, o terceiro, o sétimo.. e o
último. Um sorriso lhe surgiu nos lábios: com um simples gesto que a deixou anelante, ergueu
ambas as mãos e desnudou-lhe os ombros e os seios. Beijou a carne macia, que assim lhe era
revelada, e ela estremeceu sob o calor de cada beijo.
— Pode entrar alguém, Brandon. — ela murmurou, sem fôlego.
— Matarei o primeiro que ousar tocar naquela porta! — ele respondeu, sem cessar as carícias.
— Mas e se alguém for entrando? — ela protestou fracamente, achando difícil resistir.
As mãos dele escorregaram por dentro da sua roupa e a puxaram bem para junto, até que os seus
seios se guardaram em seu peito.
— Precisa haver uma fechadura nessa porta — ele murmurou aborrecido, beijando-lhe a testa. —
E uma cama aqui cairia muito bem. Estas cadeiras não são nada cómodas.. Muito bem, madame,
cedo a seus rogos!
Ainda perturbada, Heather endireitou sua combinação. Tentava abotoá-la, mas os dedos não lhe
obedeciam. Brandon voltara à sua escrivaninha e agora a observava com aquele olhar morno de
desejo. Ela ergueu os olhos e encontrou os olhos verdes a fitá-la: corou intensamente, toda
confusa com os muitos botões e colchetes. Brandon riu e veio até ela, afastando-lhe as mãos:
— Meu amor, você tentaria até um santo! Assim, antes que eu perca a cabeça agora mesmo é
melhor que se vista...
Ao deixar o prédio ainda havia um brilho rosado em suas faces e ela estava tão inconsciente do
que fazia que quase se chocou com Alice, uma das filhas mais novas dos Webster, empenhada em
inspecionar um cogumelo:
— Sra. Birmingham, veja o que achei! — Heather se inclinou para a menina. — A senhora acha
que é de algum duende que mora na mata? — perguntou, sorrindo. A garota a olhava, olhos
escancarados, ávidos:
— Pensa mesmo? Talvez ele o tenha perdido.
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— Bem provável... — replicou Heather, divertindo-se com a excitação da garotinha.
— Podemos ir lá na mata e procurá ele?
— Claro! Talvez encontremos até uma porção de fadas.
— É mesmo! Vamos! — gritou Alice, pendurando-se em seu braço.
Rindo, Heather deixou a menina dirigi-la para a floresta. Era tão densa que só um ocasional raio
de sol lhe penetrava a luxuriante folhagem verde. Logo penetraram numa pequena clareira,
quando um pássaro em algum lugar acima delas chamava sua companheira, e um esquilo se
sentava, brigando com elas, na borda de uma árvore. Um carvalho se elevava majestosamente
acima da clareira, algumas flores silvestres espreitavam, saindo da terra onde a matéria vegetal não
era demasiado espessa e proibitiva. Os pinheiros desprendiam um perfume tão doce como a
floresta brilhantemente colorida.
— Aqui é que eu havia de morar, se fosse um duende — informou Alice, abrindo completamente
os bracinhos e pondo-se a rodar.
Heather sorriu:
— Já esteve aqui antes, Alice?
— Sim, senhora. Muitas vezes.
— É um lugar encantado! Gosto dele.
Sra. Birmingham, eu sabia que gostaria! — gritou Alice, cheia de felicidade.
Heather riu e alisou para trás o louro cabelo da menina que lhe caía sobre os olhos; depois olhou
em volta:
— Não vejo nenhum sinal de duendes, você vê? A garota franziu a testa
— Não, senhora. Depois, sorriu de novo. — Mas acho que um deles está me vigiando! Posso
sentir isso!
Heather sorriu, gozando o caso tanto quanto a criança:
— Ainda é melhor do que descobrir onde eles moram, não é? Nem todo mundo tem a sorte de
saber que duende o está vigiando. Talvez devêssemos fingir não saber disso.
A garota fez covinhas ao sorrir e seus olhos brilharam:
— Que devemos fazer?
— Vamos colher flores e fingir que nem sabemos que ele anda por perto. Talvez assim ele se
mostre.
— Tá bem, vamos fazer isso.
Heather observou Alice afastar-se e sabia que a menina estava tentando agir
despreocupadamente, como se mais interessada nas flores do que no duende que, tinha certeza,
estava a vigiá-la. Sem tanto interesse no que não via, mas atraída pelo que via, Heather começou a
juntar flores para compor um ramo para a mesa da Sra. Webster. Depressa Alice esqueceu o
duende e as flores para aventurar-se atrás de uma borboleta, e finalmente foi correndo de volta
até a serraria;
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porém Heather permaneceu, apanhando tantas margaridas e açucenas quanto podia.
Ocupada em sua tarefa na pequena clareira, passou-se bastante tempo antes que ela, também,
começasse a ter a estranha sensação de estar sendo observada. Os cabelinhos curtos da nuca se
arrepiaram e sentiu um frio na espinha. Ao começar a virar-se lentamente, para verificar se eram
corretas suas suspeitas, quase esperava ver o duende de Alice, pois agora tinha certeza de que a
garota não se enganara a respeito de estar sendo observada. Seus olhos atravessaram a escuridão
das árvores e então, viu-o! Não era nenhum duende, mas um homem a cavalo, a uns 70 metros
de distância. Seu aspecto era sombrio e sinistro, pois a despeito do calor ele usava um manto
negro que lhe envolvia todo o corpo. A gola alta do manto lhe encobria a metade do rosto, e o
tricórnio preto estava puxado tão baixo sobre o rosto que mal se percebiam seus olhos.
Principiou a adiantar-se lentamente, ameaçadoramente, a cabeça metida na gola do manto e, por
um segundo, Heather ficou gelada, incapaz de virar-se e fugir; depois começou a recuar com
cautela. Instigou o cavalo a apressar o passo... ela girou com um grito aterrorizado e correu pela
clareira para o caminho que levava à serraria. Cavalo e cavaleiro ganharam terreno e estavam
quase em cima dela, o bater dos cascos parecendo malhar como ferro contra metal em seus
ouvidos. Ela gritou, deixando cair as flores, e ziguezagueou por entre as árvores. Olhou
medrosamente por sobre o ombro, mas tudo que pôde ver foi o amplo volume do cavalo e do
cavaleiro — que pareciam formar um todo inseparável. Uma mão estendeu-se para ela, saindo do
negrume da capa. Então, de algum lugar à sua frente, ela ouviu o marido gritar seu nome. O
cavaleiro se deteve, aparentemente para ouvir. Um som de malhar veio da frente, e Heather voou
naquela direção, soluçando o nome de Brandon. Olhando para trás, ela viu o cavalo estacar e
depois, como o homem lhe puxasse as rédeas, o animal se voltou e penetrou de volta na floresta.
Ela teve um vislumbre de suas costas antes que ele desaparecesse nas sombras. Havia algo de
estranhamente familiar nessa figura, algo que não sabia pôr em palavras.
Brandon veio em disparada pelo meio das árvores: ela lhe caiu nos braços, soluçando.
— Oh, Brandon, foi horrível! — chorava. — Horrível!
— Meu Deus! Mas o que aconteceu?! Vinha buscá-la para o jantar e a ouvi gritar! — Seus braços
se estreitaram em torno dela: — Você está tremendo como uma folha..
— Havia um homem. a cavalo — ela conseguiu articular entre lágrimas. — Veio atrás de mim.
quase me pegou.
Brandon a afastou um pouco para olhá-la de frente:
— Quem era? — Você já o havia visto antes? Ela sacudiu negativamente a cabeça:
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— Não... não... Usava um tricórnio e um manto e não consegui vê-lo claramente. Estava
colhendo flores e senti que alguém me observava. Quando o vi, veio em minha direção e, quando
corri, perseguiu-me. — Um tremor a percorreu: — Parecia um demônio, Brandon!
Ele a puxou para mais perto e a apertou ternamente, buscando estacar-lhe as lágrimas e os
temores o melhor que podia:
— Já passou, minha querida. Agora está a salvo em meus braços e não deixarei que nada de mau
lhe aconteça.
— Mas quem poderia ser, Brandon? Que estaria fazendo aqui?
— Não tenho a menor idéia, meu amor, o assassino de Sybil ainda não foi agarrado. Será melhor
que não ande vagueando sozinha... Também devemos avisar os Webster. Se o homem voltar, eu
não gostaria de saber de nenhuma mulher ou criança em seu caminho. Colocarei alguns vigias:
isso evitará que ele possa causar algum dano.
— Fez-se deixar cair as minhas flores — ela fungou, chorosa, como se só agora se desse conta.
— Colhi um grande ramo para a mesa de Leah, porém ele me amedrontou e deixei-as cair...
Brandon deu uma risadinha:
— Está bem, doçurinha, voltaremos para pegá-las. — Levantou-lhe a barra do vestido para
enxugar-lhe as lágrimas. — Agora pare de chorar antes que fique de narizinho vermelho. —
Beijou. — Não tem mais medo, tem?
Ela se encostou nele:
— Não com você aqui.
Os temores de Heather reapareceram sob nova forma ao chegar à entrada de Harthaven, quando
Joseph avisou que Miss Louisa Wells viera visitá-los e esperava no salão. Ela relanceou um olhar
para o marido e viu-o ficar de expressão carregada, e um músculo em sua face começar a tremer.
Ela o seguiu ao entrar no salão, carregando nos braços o filho adormecido.
Louisa repousava graciosamente na poltrona favorita de Brandon: usava um vestido de musselina
de rara beleza, e tomou um gole do drinque que havia preparado com o bourbon de Jeff e um
galhinho de hortelã. Sorriu preguiçosamente por cima do copo para Brandon e recostou a cabeça
no encosto da poltrona:
— Está com ótima aparência... — comentou lentamente. — querido, você está sempre assim, —
E seus olhos o devoravam, antes que se virasse para Heather — Pobre querida! Deve achar o
calor em Carolina muitíssimo desagradável, depois da sua Inglaterra... A delicada florzinha parece
um tanto murcha...
Constrangida, Heather sentou-se, procurando arranjar um pouco os cabelos. Expressão
impassível, Brandon foi até o bar preparar bebida para si mesmo.
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A que devemos este inesperado... prazer, Louisa? — perguntou, com uma pontinha de sarcasmo.
Veio pôr-se de pé atrás da poltrona de Heather, com seu drinque. — Não mais a vimos desde
que nos trouxe a notícia da morte de Sybil e estou cogitando o que poderá trazer-nos agora. Não
outro assassinato, espero.
Ela riu:
- Claro que não, querido! Estive de visita a minha tia em Wilmington, acabo de voltar, e quis vê-
los a todos. Estou desapontada: não sentiu a minha ausência! — Suspirou e se levantou da sua
poltrona. — Mas tenho certeza de que não teve muito tempo livre para você mesmo... — Deu a
Heather uma rápida olhada por entre as pestanas abaixadas, depois lhe entregou um pequeno
pacote muito bem embrulhado. — Isso é para Beau, querida, uma coisinha que comprei em
Wilmington. — Sorriu afetadamente. — Eu ainda não havia colaborado para a causa.
Heather baixou o olhar e murmurou um agradecimento, tropeçando nas palavras. Sua confiança
estava caindo a zero! O susto que levara naquela tarde lhe desgastara os nervos e agora, diante de
Louisa, estava tensa e insegura. Desembrulhou o presente e apareceu um copinho de prata: Beau
e o ano 1800 tinham sido gravados no metal.
— Obrigada, Louisa — disse suavemente. — É lindo! Louisa sentiu sua vantagem no mesmo
instante e não quis deixá-la escorregar:
— Eu não me sentiria bem se não desse um presente ao filho de Brandon. — Olhou o menino
que se espreguiçava nos braços da mãe, finalmente abrindo os olhos. — Afinal de contas, íntimos
como somos... fomos — ela sorriu — seria de muito mau gosto ignorar o filho dele. Não está
contente, Heather, por que o menino se parece tanto com o pai? Quero dizer... seria uma pena se
saísse a você, embora eu esperasse isso... Eu pensava que o queridinho seria o retrato da mãe.
Talvez porque ela mesma ainda pareça um bebê.
Faltaram palavras a Heather. Era difícil ficar ali sentada calmamente enquanto a mulher
deliberadamente tentava diminuí-la... Brandon não foi tão amável:
— Mas que diabo está querendo fazer, Louisa?
A mulher o ignorou e se curvou sobre Beau, exibindo cada centímetro do peito amplo a Heather
e a Brandon. Cacarejou para o bebê, segurando-lhe o queixinho, porém Beau não estava para ser
tocado por estranhos no minuto em que acordou. O beicinho inferior pôs-se a tremer e começou
a berrar, pendurando-se ao decote de Heather.
Louisa enrijeceu e, por um momento, sua expressão foi venenosa ao contemplar Heather
tentando acalmar o filho. Um breve sorriso brilhou no rosto de Brandon ao olhar Louisa, por
cima do seu copo. Porém Beau não queria ser consolado, e Heather, relanceando um olhar para
Louisa, afinal desabotoou o vestido e pôs Beau ao seio.
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O bebê se aquietou imediatamente, mas ficou de olho atento em Louisa. Brandon deu uma
risadinha, batendo de leve na bundinha do filho antes de acomodar-se numa poltrona ao lado da
esposa.
Erguendo os olhos de Beau para Louisa, percebeu uma expressão esquisita em seus olhos,
expressão tão rápida que se pôs a cogitar se teria imaginado apenas. Estaria a mulher, por fim, se
dando conta do que significava ser a mãe do filho de Brandon? Eis um laço que não seria
rompido facilmente. Brandon amava o filho, era fácil de ver. Ninguém acreditaria que se
descartasse da mãe da criança prontamente por outra.
Louisa sentiu que perdia terreno e tentou recuperá-lo, porém ineptamente, de modo errado:
— Acho perfeitamente adorável o modo por que você mesma o amamenta, Heather, ao invés de
empregar uma ama de leite. A maioria das mulheres o fariam, você sabe disso. Mas vejo que é do
tipo doméstico e que aprecia fazer coisas assim. Naturalmente, é preciso ser um bocado mulher!
Creio que eu jamais me prenderia deste jeito.
— Não, suponho que você não poderia — replicou Brandon. — — Por isso é que jamais nos
daríamos bem, Louisa.
A mulher recuou, como se fosse golpeada, e depois procurou disfarçar suas palavras:
— O que quis dizer é que.. não poderia dar toda a minha atenção a um bebê e ignorar meu
marido.
Brandon riu asperamente:
— Julga que sou ignorado, Louisa? Se é assim, permita-me assegurar-lhe que está redondamente
errada. Heather tem a maravilhosa capacidade de fazer com que o filho e o marido se sintam
amados.
Louisa voltou-se e foi até sua poltrona, mas não fez menção de sentar-se. Por cima do ombro,
falou a Brandon:
— Vim aqui para falar de negócios. Você pode estar interessado no fato de que decidi vender
minhas terras. Pensei que deveria vir aqui em primeiro lugar, para ver que preço estaria disposto a
pagar por elas.
— Ah, sim?
— Bem, não me ficaria bem vendê-las a qualquer um, sabendo que você as quer: andou atrás de
mim por muito tempo para que as vendesse.
— Foi — respondeu Brandon, ainda não parecendo ansioso.
— Ora bolas! Se não está interessado eu as venderei para quem estiver! — ela explodiu.
Brandon a fixou zombeteiramente, sobrancelha erguida:
— Quem?
— Ora, há. há muitas pessoas esperando para comprá-las. Posso vendê-las num momento!
A despeito de suas palavras, não parecia lá muito segura.
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— Louisa — ele suspirou — vamos parar com esse fingimento, Eu sou o único interessado em
comprar suas terras. Talvez algum pobre fazendeiro gostasse de tê-las, mas não agüentaria o seu
preço.
— Isso não é verdade! Posso vender para qualquer um!
— Acalme-se, Louisa! Sei perfeitamente o que está tentando fazer, mas não adianta. Dou-lhe um
par de razões pelas quais eu sou o único interessado. Ninguém, em qualquer posição de fortuna,
teria uso para os seus terrenos insignificantes. Nossas plantações aqui estão quase desertas, e
ninguém vai percorrer todo esse caminho para se incomodar com aquele pedacinho de terra.
especialmente quando você não tem vontade de vender Oakley. Sou o único que pode dar-se ao
luxo de ser um pouco generoso. Mas não me venha com os seus planos, esperando que eu entre
em pânico e dobre minha oferta. Não sou assim tão idiota. Agora, podemos discutir os detalhes,
mas daqui a momentos. Primeiro, vou sentar-me aqui e descansar.. e acabar a minha bebida.
— Brandon, seu implicante! — Louisa riu. — Por que preocupar-me? Sempre teve a intenção de
me comprar as terras quando eu disse que as venderia.
— Em negócios eu discuto, Louisa, nunca ”implico” — comentou ele, secamente.
Quando Louisa passou para o escritório, deixando atrás de si aquela esteira de perfume forte e
pesado, Brandon curvou-se sobre Heather e aspirou sua delicada fragrância:
— Tentarei não demorar demais, meu amor. Se quiser ir para a cama quando terminar com Beau,
apresentarei alguma desculpa a Louisa depois de terminarmos de assentar nossa transação e a
mandarei direto para casa.
— Por favor! — murmurou Heather. — Receio não me haver portado muito bem esta tarde.
Prefiro não voltar a vê-la esta noite. — Mordeu o lábio inferior: — Oh! Brandon, ela está tão
determinada a separar-nos. eu a odeio! — Olhou para Beau que lhe apertava o seio com a
mãozinha, e riu.
Ele teve um risinho:
— Direi aos rapazes que levem para cima a água quente. Mais alguma coisa, meu bem?
— Sim — respondeu a moça, suavemente. — Beije-me de modo a que eu saiba que essa mulher
não tem a menor chance com você.
Ele sorriu, fez-lhe a vontade, e já não poderia haver dúvidas
Agora as terras eram dele, ruminava Brandon enquanto subia as escadas; e estava infinitamente
satisfeito por haver poupado Heather àquela regateação que encerrara o negócio.
Suspirou pesadamente.
Uma coisa ele sempre creditara a Louisa: a audácia e uma grande coragem. Ela iniciara a conversa
com uma espalhafatosa proposta
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de que renovassem seu relacionamento, fazendo-lhe avanços ousados e vulgares que não
despertaram emoção: apenas nojo. Finalmente ofereceu as terras a um preço exorbitante: fazê-la
baixar para algo mais razoável exigira exaustiva argumentação. Ela suplicara sem o menor
orgulho, ameaçara não vender, fizera-lhe propostas de prostituta. A reunião o deixara sentindo-se
sujo, para dizer o menos, e cogitando a quão baixo ela desceria em busca de fortuna. Sabia-se que
ela estava em precário estado de finanças e precisando de dinheiro, porém outrora Heather
estivera em aperturas ainda maiores e não sucumbira a negociar o próprio corpo ou abertamente
suplicar que a sustentassem.
Heather. sua amada! Om só pensamento dela o lavava de toda a imundice que Louisa deixara
com ele. Lembrou-se do momento, na serraria, quando ela ficara meio despida bem junto dele e
seu pulso se acelerara. Tinha de providenciar ferrolhos internos para aquelas portas para que,
numa próxima vez, ela não ficasse tão nervosa. Riu para si mesmo. Em sua companhia ele ficava
pior que qualquer macho no cio, sempre pensando em tê-la nos braços, seu corpo quentinho e
macio, suas lindas pernas a cingi-lo. O sangue quente ferveu-lhe nas veias. seus pensamentos
voaram para vários dias antes quando, cavalgando com ela, convencera-a a nadar com ele no
riacho. Ela ficara intimidada ao pensar em tirar as roupas em plena luz do dia, temendo que
alguém os visse; porém, depois que ele lhe garantiu que o local era absolutamente privado,
mostrando a abundância de árvores e arbustos, ela concordara que poderia ser bom.
Casualmente, observando-a desnudar-se e ficar de pé nua em pêlo, como ele estava, seus desejos
se tornaram tão evidentes que, vendo-o, ela ficou sabendo como ia acabar aquela natação.
Alegremente ela lhe fugiu e lançou-se à água, que estava bem fria, depois tentou distanciar-se dele
em rápidas braçadas. Ele rira de seus esforços enquanto facilmente a alcançava, ficando a seu lado
e depois em baixo dágua, pegando-a pelos quadris e agarrando-a num estreito abraço. Ele sorriu a
essa evocação. Tinha sido uma tarde agradabilíssima.
Abriu a porta do quarto e parou, apreciando a cena: Heather estava sentada na banheira,
parecendo muito com o que era em Londres, doce, desejável, irresistivelmente bela, a luz das
velas a brilhar na pele molhada, cabelo suspenso, alguns cachinhos soltos. Ela sorriu quando ele
fechou a porta e se adiantou para apoiar as mãos na banheira e se curvar para ela.
— Boa noite, amor! — murmurou.
— Ela passou um dedo molhado nos lábios dele.
— Boa noite, meu senhor! — retrucou carinhosamente, e pôslhe as mãos na nuca enquanto ele a
puxava para si.
Começou a colheita de setembro e, à medida que a produção era levada para o mercado, as ruas
de Charleston ficavam abarrotadas de
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gente. Havia compradores e vendedores, bem como uma turba nem de uns nem de outros que
buscava, contudo, obter algum proveito das grandes quantias que trocavam de mãos durante o
dia. Havia ricos e pobres, mendigos e ladrões, comandantes de navios e escravos. Grande
número de pessoas vinham simplesmente para sentar-se nas carruagens, nos cafés, nas
hospedarias, a fim de observar o populacho alvoroçado e trocar comentários sobre a infindável
torrente de tipos que viam. Durante o dia era a cidade um fervilhante centro comercial, porém à
noite as atividades mudavam e ela se transformava num mundo diferente com entretenimento
para satisfazer todas as fantasias.
Quando Brandon ofereceu a Heather entradas para uma nova peça que era apresentada no Dock
Street Theatre, ela quase o deixou chocado com sua excitação, cobrindo-lhe o rosto de beijos.
Quando diminuiu um pouco a animação e ela se sentou em seu colo examinando os bilhetes,
confessou que jamais havia estado num lugar assim.
Sempre que apareciam em público, despertavam a atenção geral. A estatura alta e esbelta e a
beleza máscula de Brandon, assim como a delicada beleza de Heather os tornavam únicos:
naquela noite, ao entrarem no foyer do teatro, aconteceu mais uma vez. Brandon vestia-se todo
de branco — calções, camisa, colete. Havia babados de renda na frente da camisa e nos punhos, e
seu casaco escarlate era artisticamente bordado de dourado nas lapelas e na gola alta. Heather
estava fascinante num vestido de renda negra francesa, literalmente recoberto de minúsculos
azeviches que tremeluziam à luz dos candelabros. Uma pluma de avestruz fora entrelaçada em
seu penteado e usava os brincos de diamantes de Catherine Birmingham.
Houve os habituais olhares invejosos a recebê-los, bem como calorosos cumprimentos dos
amigos. Brandon vigiava possessivamente sua mulher quando os homens se curvavam para
beijar-lhe a mão. Muitos jovens ficaram por ali a rodeá-los, em meio à multidão, na esperança de
que aquela beldade radiosa fosse alguma parenta de Birmingham, sem ligação com ele.
Aproximaram-se o mais possível — vendo que, de perto, era ainda mais bela que de longe.
Ficaram desapontados quando Brandon, de bom humor, lhes apresentou sua esposa.
Matthew Bishop foi visto a certa distância e parecia preferir assim. Não deixou que seu olhar se
demorasse demais em Heather e entretinha outra mulher com zelosa consideração.
A velha Sra. Clark os cumprimentou com olhar crítico porém aprovador:
— Heather, minha linda criança, esta noite você está deliciosamente perigosa! Põe no chinelo
todas essas moças em seus virginais
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rosa e brancos. — Voltou-se para Brandon, com um olhar divertido, enquanto se apoiava em sua
bengala: — E vejo que a está vigiando cuidadosamente, como sempre, senhor.
Ele sorriu.
Tendo conhecido meu pai, Abegail, é possível que me julgue pior que ele? „,.,,,
A Sra Clark riu e deu-lhe uma pancadinha com o leque:
Foi preciso muito tempo e um pedacinho de moça para fazer com que se desse conta disso,
senhor. Você era despreocupado demais em solteiro. Lembro-me de quando não se importava a
mínima se lhe era roubada a afeição de alguma pequena. Mas você andava atrás de uma porção
delas, naquele tempo e, imagino, deve ter provado um bom número dessas pequenas. Mas agora,
veja só, tão afetado por essa potranca que até parece um macho no cio. — Virou-se para Heather
e sorriu lentamente: — Estou contente por que tenha aparecido, menina. Os Birmingham são
alguns dos meus amigos favoritos e gosto de vê-los conseguir o melhor
Heather beijou-a na face e respondeu:
Obrigada, Abegail. Vindo de você, isto é um elogio.
Ora, deixe de conversa fiada! — protestou Abegail. — Apenas declarei um fato conhecido, e
você não precisa encher este pobre coração velho com seus disparates irlandeses. Não sou assim
tão fácil de encantar! — E sorria, para amaciar a descortês reprimenda; deu um tapinha na mão
da jovem: — Não desperdice comigo tão lindas palavras, garota. Seu homem é mais suscetível.
Mais tarde, em seu camarote, Brandon olhava mais para Heather que para o palco. Sua óbvia
excitação pela produção o deliciava. Enquanto os atores representavam,- ela ficava quieta,
absorvendo cada palavra. Estava mais do que encantada e ele achava quase impossível despregar
dela os olhos. Quando se achavam de novo no vestíbulo tomando um pouco de vinho, ele ouviu,
divertido, os seus gorjeios à respeito da peça:
Nunca esquecerei isso, Brandon! Papai nunca me levou a lugar algum como este. É tão
maravilhosamente belo. como um conto de fadas tornando-se real!
Ele se inclinou para ela e riu suavemente em seu ouvido:
Talvez eu esteja sendo má influência sobre você, querida!
Os olhos dela brilharam calidamente ao encontrar os dele:
Se é assim, é tarde demais para falar nisso, pois não quero as coisas de outro jeito. Estou perdida,
pois não posso mais satisfazer-me em simplesmente existir. Preciso amar e ser amada, possuir e
ser possuída. Tenho de ser sua, meu querido, como você tem de ser meu. Está vendo, ensinou-
me bem demais. Tudo que disse que faria no princípio, você realizou e muito mais. Tenho de
viver com você, ser parte de você e, se não estivéssemos ligados pelos laços do
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casamento e você continuasse no mar, eu o seguiria em volta do mundo como sua amante. e para
mim nosso amor seria nosso voto sagrado. E se confessar isso faz de mim uma ousada, uma
libertina, então na verdade eu sou e bem feliz.
Sustentando-lhe o olhar, Brandon ergueu-lhe a mão e a levou aos lábios:
— Se você fosse minha amante, teria de guardá-la debaixo de chave para nenhum outro homem
surrupiá-la de mim. Você também é uma excelente professora. O alegre solteirão prefere agora a
segurança do casamento. Gosto de cada momento em que estou casado com você, especialmente
aquela parte em que digo que você é minha.
Ela sorriu docemente, olhos cheios de amor.
— Não devia me olhar desse jeito — murmurou ela.
— Que jeito? — ele respirou fundo, continuando a fazê-lo.
— O mesmo jeito com que me olha quando acabamos de fazer amor, como se o mundo pudesse
passar por nós e você não se importaria — ela replicou, no mesmo tom abafado.
Ele sorriu:
— Olhe que eu dificilmente continuarei aqui para ver o fim da peça se a senhora continuar,
madame: é um panorama muito atraente para que mesmo este velho homem casado e você
testem meu controle masculino.
Ela riu de coração leve, mas sua alegria cessou quando viu Brandon deter-se, olhar fixo acima do
seu ombro, com uma expressão de espanto. Ela se voltou para ver o que o surpreendera: Louisa
vinha em direção a eles. Ela ficou a cogitar na reação de Brandon até que seus olhos deram com
o vestido bege que a mulher usava. Era exatamente como aquele que ela trocara com o vendedor
ambulante — o mesmo que ela vestia quando conheceu Brandon em Londres. Louisa, não
querendo ser ultrapassada por ninguém, quisera mudar um pouco para o estilo das parisienses. A
transparência do vestido teria sido chocante para uma mulher mais modesta, porém Louisa,
nunca se incomodando com coisas tão triviais como modéstia, havia passado carmim nos bicos
dos seios.
— Alô, Brandon! — ronronou em sua voz de seda, quando chegou à frente deles, e riu
suavemente ao sentir o olhar dos dois em seu vestido. — Estou vendo que vocês notaram meu
vestido. Lindo, não é? Thomas o fez especialmente para mim depois que vi o original em sua loja,
e só para mim: pôs o outro de lado de modo que nenhuma outra mulher possa ter vestido igual
ao meu.
Brandon pigarreou e perguntou:
— Havia algum defeito no original? para ter de fazer um segundo para você..
Louisa se regalava com o interesse que Brandon demonstrava por seu vestido:
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— Não, não havia nada de errado com ele, querido, mas, mas era tão pequeno que ninguém
poderia tê-lo usado. Olhe nem mesmo Heather, com esse tipo de menina, teria entrado nele.
Teria sido muito, muito pequenino para ela.
Brandon trocou um olhar com Heather:
— Deve, mesmo, ser muito pequeno..
— Bem, eu soube que teria de ter um igualzinho, no momento em que pus os olhos nele —
continuou a mulher, alegremente. — E estou satisfeita por haver insistido para que Thomas o
reproduzisse para mim. Fiz isso para agradar-lhe, querido, e estou vendo que consegui. — Fingiu
estar embaraçada: — Claro, você esteve olhando para mim de um modo que fiquei pensando se
foi mesmo o vestido... e logo na presença de sua mulher, querido.
Brandon a olhou passivamente:
— O vestido me lembra o que Heather usava quando a conheci, Louisa — retrucou secamente.
— Para mim valia um tesouro, pelas lembranças ligadas a ele.
O rosto de Louisa endureceu e ela olhou ameaçadoramente para Heather, depois sorriu
banalmente:
— Onde conseguiu o dinheiro para comprar um vestido como aquele? Deve ter trabalhado
demais para obtê-lo.. Mas se seu marido está tão interessado em vê-la exibir-se num vestido
assim, minha cara, devia conhecer o meu costureiro. Ele está aqui esta noite. Poderá fazer
maravilhas por sua pele e seus ossos. Gostaria dele, estou certa.
— Creio que não agradaria a mim, Louisa. Prefiro que sejam mulheres a costurar os vestidos de
Heather.
Louisa riu asperamente:
— Ei, Brandon, você está se tornando um puritano em sua idolatria.
Brandon pôs a mão nos ombros nus da esposa e a acariciou lentamente:
— No que se refere a Heather, Louisa, sempre fui um pouco puritano.
Louisa sentiu um espasmo de ciúme a mordê-la enquanto observava os dedos dele a mover-se
gentilmente na pele de Heather — recordando-lhe a sensação deles em sua própria carne,
despertando-lhe uma sensualidade nunca satisfeita por nenhum outro homem. Lançou a outra
mulher um olhar cheio de maldade:
— Você deve, mesmo, conhecer Thomas, minha cara. Talvez lhe dê algumas sugestões sobre o
que usar de modo a parecer que você tem um pouco de carne em cima dos ossos. Já o vi fazer
maravilhas como figuras com você... Espere aqui, minha cara, vou procurá-lo para você.
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Heather olhou, insegura, para o marido quando a mulher se afastou, tendo reconhecido o desejo
nos olhos de Louisa.. e sabendo em que emoção torturante podia ser, por experiência própria.
Descobbriu um sorriso divertido no rosto dele:
— Se ela soubesse a respeito daquele vestido, torceria o pescoço do pobre sujeito. — Riu. —
Não há dúvida de que o que ele tem é o seu.
— Ela ficou muito bonita nele, não é mesmo? — murmurou Heather.
Brandon lhe sorriu e pôs a mão em sua cintura, apertando-a carinhosamente
— Nem a metade tão adorável como a visão que tive de você quando o usava, ou como é todos
os dias o dia inteiro.
Heather sorriu, tranqüilizada, e viu Louisa desaparecer na multidão dos freqüentadores do teatro.
Esqueceu a mulher por alguns momentos, pois Brandon lhe chamou a atenção para coisas mais
agradáveis. Porém mais tarde, um sentimento de inquietação a dominou — a mesma sensação
estranha, sinistra, que caíra sobre ela não havia muito tempo, na serraria. Estava sendo observada,
porém com uma intensidade que nada tinha de normal. Voltou-se lentamente e o viu. Fugiu-lhe a
cor do rosto. O homem estava de pé ao lado de Louisa, porém seus olhos se fixavam nela. E não
parecia absolutamente surpreso ao vê-la. Até a cumprimentou, inclinando a cabeça de leve, e
sorrindo. Era horrível o sorriso! Ela teve a certeza: ninguém mais, no mundo, tinha um sorriso
torto como o sr. Thomas Hint.
Encostou-se em Brandon, sentindo-se desmaiar, e a mão que levou ao rosto tremia
incontrolavelmente. Puxou o casaco do marido para fazê-lo inclinar-se para ela, pois duvidava de
que pudesse emitir algum som, mesmo de tão pertinho.
Brandon franziu o sobrolho, preocupado:
— Que há?
Louisa e o Sr. Hint agora se encaminhavam para eles: não podia ficar ali, tentando falar, mas
tinha de falar:
— Brandon — sussurrou — não me sinto bem. Deve ser a multidão”... Por favor leve-me para o
nosso camarote.
Então ouviu a voz de Louisa:
— Aqui está ele, Heather. Quero que conheça o meu costureiro, o Sr. Thomas Hint.
Tarde demais! O pânico a dominava. Tinha um grande desejo de fugir dali tão rápido quanto as
pernas pudessem levá-la, porém elas não se moviam! Estava gelada, paralisada de medo!
Brandon não perdeu tempo com palavras desnecessárias ou polidas:
— Por favor, desculpe-nos, Louisa. Acho que Heather não está se sentindo bem. Foi um prazer
conhecê-lo, Sr. Hint. Boa noite.
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Não se passara muito tempo antes que ele a pusesse numa cadeira no camarote deles. Pegou-lhe
ambas as mãos, que tremiam:
— Quer ir para casa? Está tremendo e até parece que viu um fantasma.
Ela quase riu histericamente: ele estava com a razão! Vira um fantasma ou algo saído do passado
e que era tão aterrorizador quanto qualquer fantasma. Estava cheia de medo de tornar a vê-lo ou
de que ele viesse falar com Brandon. Era um homem tão horrível. ou seria um monstro?
Encolheu-se de encontro ao marido quando ele se sentou junto dela para acalmá-la. A cortina
tornou a levantar-se mas nenhum deles olhou mais para o palco. Poucos momentos depois ele se
curvou para ela:
— Vamos embora. Não quero vê-la desmaiar aqui.
Levou-a do camarote até o vestíbulo e procurou por James, para que trouxesse a caleche.
Quando parou diante deles, suspendeu Heather, fê-la entrar a manteve-se abraçada
apertadamente enquanto iam para casa.
Heather estava aterrorizada agora, mais do que jamais estivera. Agora tinha algo que amava
demais e de que não quereria separar-se — o marido, o filho. Se fosse acusada de assassinato, eles
seriam arrancados de seus braços sem piedade e ela apodreceria na prisão. Pouco importaria que
tivesse sido atacada. Não lhe dariam crédito, não com o Sr. Hint para afirmar que ela fora de livre
e espontânea vontade com William Court. E Brandon seria tão ferido! Oh, meu Deus; tem
piedade!, ela implorava.
Ao chegarem a casa, Brandon a levou nos braços até o quarto e a pôs na cama. Virou-a de lado
para desabotoar o vestido e o tirou dela juntamente com as demais peças de vestuário. Quando já
estava despida embaixo do lençol, ele serviu um pouco de conhaque num copo e sentou-se na
cama ao lado dela.
— Beba isto, meu bem. Isto porá alguma cor em suas faces. Obedientemente, sentou-se, tomou
o copo das mãos dele e bebeu um grande gole — pelo que instantaneamente se arrependeu.
Ficou sufocada com o líquido e tossiu, tentando recuperar o fôlego.
Ele riu baixinho e pegou de volta o copo, depositando-o na cómoda ao lado.
— Devia tê-la avisado a respeito da bebida, mas pensei que você se recordasse..
Ele começou a tirar os grampos do cabelo dela e logo os cachos sedosos cascatearam em seus
ombros. Ele os alisou carinhosamente:
— Antes, quando estávamos em Londres e no Fleetwood, eu costumava vê-la pentear-se. Era-me
difícil manter as mãos longe dos seus cabelos: eles me tentavam muito. Lembra-se de quando
esteve doente?
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Ela acenou afirmativamente, observando-o enquanto brincava com cacho. Ele prosseguiu:
— Esteve muito doente, minha querida, mas tomei conta de você. Ninguém tocou em você a
não ser eu, e, quando sua febre chegou ao extremo, eu era a única pessoa ao seu lado. Nem por
um instante saí da cabina. Você era minha e eu precisava de você. Não deixei que mal nenhum a
alcançasse.
As sobrancelhas dela se juntaram, interrogativas, enquanto imaginava por que estaria ele falando
tão lenta e deliberadamente.
— Você pensa que agora — continuou ele — que você é a minha própria vida, eu deixaria que
algo lhe acontecesse? Por você, Heather, eu lutaria contra homens e animais. Confie em mim e
deixe-me ajudá-la, como quero. Sei que está aterrorizada, amor, e acredito poder ajudar mas é
preciso que confie em mim. — Inclinou-se sobre ela: — Sou muito forte, ma petite..
Os olhos de Heather estavam arregalados: ele sabia de algo! De alguma forma, ele descobrira!
Mas. como?. e o quê? Que sabia ele e quem lhe dissera?
O medo lhe fazia tremer as mãos e ela as apertava, uma contra a outra, para evitar que
transmitissem sua fraqueza para o resto do corpo. Mergulhou mais na cama, pois a bebida não
lhe infundia uma falsa coragem. Que podia dizer? Que podia contar-lhe? Se o ferisse, nunca se
perdoaria. e se ele se afastasse dela, chocado com o que fizera, e não mais voltasse, ela morreria.
Brandon sorriu ternamente e puxou o lençol até seu queixo.
— Quando quiser contar-me, meu amor, estarei sempre por perto— Despiu-se e se meteu na
cama ao seu lado. Puxando-a para si, beijou-lhe a testa franzida: — Durma, meu amor.
Na segurança de seus braços, ela por fim encontrou conforto e pôde dormir, mas não houve paz
em seus sonhos. Viu o Sr. Hint, seu corpo disforme acima dela, suas mãos feito garras segurando
Beau. Depois ela estava correndo. correndo atrás do Sr. Hint.. atrás de Beau. Tinha de salvar
Beau! Acordou gritando e lutando nos braços de Brandon que tentava despertá-la.
— Ele tem Beau! Ele tem Beau! Vai matar meu filho! — soluçava.
— Heather, acorda! É apenas um pesadelo, minha querida! Beau está a salvo!
Os olhos dela perderam um pouco de sua veemência quando focalizou o rosto acima dela, o
rosto moreno e belo de seu marido. Era como uma rocha firme em meio à areia movediça. Com
um grito de alívio, ela lhe passou os braços no pescoço:
— Oh! Brandon, foi horrível! Ele pegou Beau e eu não podia alcançá-lo, e corria... corria... Foi
horrível!!
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Tremeu nos braços que a sustentavam. Ele lhe estava beijando os cabelos, as faces molhadas e as
longas pestanas, salgadas de lágrimas. Ela se aquietou nesse abraço e se sentiu segura de novo,
sabendo que Brandon estava ali. Quando vários momentos mais tarde os lábios dele desceram de
seu pescoço para seus seios, ela foi dominada por outro tipo de emoção. Ela gemeu de prazer
enquanto as mãos dele passeavam em seu corpo, deslizando em suas coxas tão suavemente como
o toque de uma borboleta e escorregando entre elas maciamente como o voo daqueles fantasmas
alados. Ele era lento e deliberado em suas carícias, fazendo-a esquecer tudo menos a eles dois, até
que ela se retorceu em seus braços, suplicando-lhe que a possuísse sem mais demoras. Porém ele
continuou a passos medidos, sentindo-lhe as emoções, inflamadas e agudas, espiralando-se até o
paroxismo. A paixão dela aumentou até que ela se tornou selvagem, tremendo, mordendo,
cravando-lhe as unhas. Porém ele apenas ria, o som esvoaçando sobre suas cabeças e misturando-
se aos suspiros dela, mordiscando-a no pescoço, na carne sedosa entre os seios, o ventre chato, as
coxas bem formadas. Ela estremeceu com a paixão que ele demonstrou quando sua mão baixou e
se fechou sobre o membro. Ele tremeu e a possuiu ferozmente, levando-a com ele até o êxtase, a
excitação chegando ao clímax que finalmente explodiu em torno deles, deixando-os exaustos e
satisfeitos.
Na tarde seguinte Heather podia ser encontrada no quarto de vestir, ajudando Hatti a polir os
móveis e parecendo uma criadinha de lenço na cabeça e avental. George estava sentado no chão
distraindo Beau, que se metera em seu colo e ria dos esforços do velho. Brandon e Jeff tinham
ido a Charleston a negócios, e a maioria da criadagem se achava ocupada em suas tarefas.
Durante o dia inteiro Heather só pensara em Thomas Hint e no que lhe aconteceria se ele falasse
do crime dela. Quando ouviu o galope de um cavalo soube, sem sombra de dúvida, que era ele —
e o medo decuplicou!
— Faça-o entrar, Joseph — ordenou ao criado, nervosamente,, quando este veio avisar que um
homem queria falar à dona da casa.
Levantou-se do chão, onde estivera ajoelhada em sua tarefa, mas deixou no lugar o lenço e o
avental. Um brilho de surpresa apareceu nos olhos do Sr. Hint quando a viu assim vestida.
— Podem ir, George, Hatti — ela ordenou.
Ambos franziram a testa para o visitante e pareceram relutantes em deixá-la com um sujeito tão
mal-encarado, mas obedeceram e saíram do quarto.
340

Que deseja? — perguntou Heather, quando se assegurou que ambos os empregados estavam
onde não podiam ouvir.
Deu-se muito bem desde a última vez que nos vimos, não é? Apesar do avental, assustou-me.
Pensei que as senhoras ricas nunca sujavam as brancas mãozinhas.
Heather se pôs ereta:
Muitas vezes ajudo a limpar a casa, senhor. É de meu marido e gosto de vê-la bem cuidada para
ele.
— Ha! Vejo que se apaixonou pelo sujeito. Esse bebê é dele ou de meu finado patrão
Heather apanhou Beau do chão e o segurou bem junto a si:
- É filho de meu marido: William nunca tocou em mim!
— Bem posso acreditar nisso. Você matou ”William antes que pudesse avançar em você. Mas o
bebê parece com muita idade para que você o tenha guardado tanto tempo.. — Seus olhos
examinaram Beau: — Mas posso ver agora que o homem com quem você estava na noite passada
deve ser o pai dessa criança. Não há engano quanto à fidalguia nem quanto à beleza de seu
esposo. Imagino que o encontrou em Londres logo depois que despachou o pobre Willy.
— Você não veio aqui para discutir meu bebê nem meu marido, Sr. Hint, assim tenha a bondade
de dizer ao que veio. Meu marido não gosta em absoluto de me ver conversando com homens
estranhos na sua ausência.
O homem deu o seu grotesco substituto de sorriso:
— Acha que seu marido ficaria com ciúme de mim, Sra. Birmingham? Não, nem pensaria nisso,
mas poderia suspeitar do motivo por que estaria recebendo um tipo como eu... — Deu-lhe um
olhar de esguelha: — Eu soube que a senhora é que tinha assassinado o pobre Willy, mas nada
disse a ninguém. Isso deve valer um dinheirinho, não?
Heather tremeu ante seu olhar frio, calculista:
— Que quer?
— Apenas algumas libras de vez em quando para manter-me confortável e contente. Agora
tenho uma bonita lojinha em Charleston, mas sou um homem ambicioso, gostaria de ter fortuna.
Algumas de suas jóias me satisfariam, ou talvez uma bonita quantia em dinheiro. Ouvi dizer que
o seu homem é rico. Ele pode agüentar isso.
— Meu marido não sabe nada disso — ela falou rapidamente. — E eu não matei William: ele
caiu em cima da faca.
Hint abanou a cabeça, tristemente, fingindo simpatia, compreensão:
— Sinto muito, Sra. Birmingham, mas por acaso, alguém, além da senhora, viu quando ele caiu?
— Não, não havia ninguém ali para ver, só eu. Não tenho prova.
341
Ele chegou mais perto e ela se tornou cônscia de um forte odor de água de colónia que lhe
parecia estranhamente familiar. Ela não podia localizar quando ou onde, mas esse odor deixara
uma impressão associada a um medo esmagador de que se lembrava e que sentia agora. Recuou,
apertando Beau contra o peito. O bebê gritou, em protesto por estar sendo tão espremido.
Thomas Hint riu, cobrindo a boca com a mão que mais parecia uma garra. O que deu a Heather a
oportunidade de ver suas mãos: não eram diferentes das que vira no sonho.
— Não tenho dinheiro! — murmurou roucamente. — Nunca precisei dele. Meu marido sempre
provê todas as minhas necessidades.
— Seu homem toma bem conta da senhora, não? Ele pagaria para evitar que fosse enforcada por
assassinato? — rosnou o homem.
Heather vacilou: não podia deixá-lo contar a Brandon o que ela havia feito:
— Tenho algumas jóias. Posso dá-las ao senhor. O Sr. Hint suspirou de prazer.
— Melhorou muito! O que tem? Noite passada a senhora usava algumas lindas. Traga essas e o
mais que tenha, e eu lhe direi se bastam ou não.
— O senhor as quer agora? — ela perguntou, insegura.
— Claro, não irei daqui sem elas.
Ela se afastou dele cautelosamente e saiu correndo da sala para subir rapidamente a escada.
Deixou Beau chorando de desapontamento no berço, aos cuidados de Mary, e correu ao quarto
do casal, onde abriu o estojo de jóias de onde retirou o broche de esmeraldas e o colar de pérolas
que Brandon lhe dera, e os brincos de diamantes que haviam pertencido à antiga senhora de
Harthaven. Deixou intocada a parte principal das jóias, sentindo-se culpada por pegar os brincos.
Não se podia permitir desviar nada mais do que pertencera à mãe de Brandon, sabendo o quão
afeiçoado ele lhe fora. Era profundo o sofrimento por separar-se de suas próprias jóias.
Lembrava-se muito bem de quando Brandon a presenteara com elas. Não era provável que
esquecesse isso mesmo quando já não as tivesse para lembrá-la, e Brandon certamente notaria
quando ela não mais usasse as pérolas. Eram as favoritas dela, que as usava com freqüência.
Enxugou as lágrimas enquanto colocava os artigos no bolso do avental e, dando um suspiro
fundo, abriu a porta.
O Sr. Hint estava pacientemente à sua espera, parecendo perfeitamente à vontade em seu
esquema de chantagem e, quando ela lhe entregou as peças, ele sorriu e as agarrou avidamente.
— Ora, isso serve bem. por agora. Está certa de que é tudo que tem?
Ela acenou afirmativamente.
— Não tanto quanto pensei que vocês, ricos, tivessem...
342
— É tudo que tenho — ela gritou, as lágrimas brotando outra vez.
— Ora, madame, não fique tão transtornada! E não se preocupe que eu esteja falando tão
abertamente de suas façanhas. Irei precisar de mais algumas coisinhas.
— Mas não tenho mais nada!
— É melhor que arranje antes que eu precise delas — ele ameaçou.
— Por favor, agora vá embora — ela implorou, em lágrimas — antes que meu marido volte. Não
é homem de quem eu possa ocultar coisas e, se o vir, há de querer saber por que veio.
— Ora, meu rosto não é adequado para salas de senhoras. — E ele sorriu amargamente.
Fez uma mesura meio torta, depois saiu sem olhar para trás, e Heather desabou numa cadeira,
soluçando.
Ele levaria tudo que ela possuía — exceto o que valorizava acima de tudo: Brandon e Beau.
Porém, quando ela já não pudesse satisfazer suas exigências, que faria ele? Ir a Brandon contar
tudo? Ela estremeceu à medida que o medo crescia de novo. Não podia deixar que isso
acontecesse. Devia mantê-lo satisfeito acima de tudo, para que ela pudesse continuar a viver. e a
amar.
O Sr. Hint apeou do cavalo e amarrou-lhe as rédeas no poste à frente de sua loja. Deu uma
palmadinha no bolso cheio de jóias, sentindo-se extremamente satisfeito consigo mesmo.
Conseguira nesse dia uma quantia importante sem o menor trabalho.
Limpando a baba da boca na manga do casaco, abriu a porta da loja, entrou e virou-se para fechá-
la. Teve um sobressalto quando Brandon Birmingham tirou o chapéu e o cumprimentou do lado
de fora do umbral da loja.
— Sr. Hint, tivemos um rápido encontro a noite passada no Dock Street Theatre, creio que se
recorda.
— Sim. — respondeu Thomas, nervosamente apertando o bolso do casaco, onde estavam as
jóias.
— Posso entrar? — perguntou Brandon. — Há uma coisa de que desejo falar-lhe.
— Falar comigo, senhor?
Brandon passou por ele e entrou na loja, cabeça e ombros muito acima do homem. O Sr. Hint
engoliu em seco e fechou a porta atrás dele.
— Chegou ao meu conhecimento que o senhor possui o original do vestido que Miss Wells usou
a noite passada. Gostaria de vê-lo, senhor.
Hint quase suspirou de alívio:
343
— Ah! Sim, senhor, um momento! — Foi coxeando para os fundos da loja. Voltou logo, pondo
o vestido nas mãos de Brandon.
— Comprei-o de um caixeiro-viajante há alguns meses, senhor — tratou de explicar.
— Sei — replicou Brandon. — Quanto?
— Quanto o quê, senhor? — espantou-se Hint.
— Quanto está pedindo pelo vestido? Desejo tê-lo.
— Mas, chefe.
— Diga seu preço — Brandon era direito.
Hint não ousou hesitar e disse o primeiro algarismo que lhe veio à cabeça:
— Três libras e seis pences, senhor.
Brandon ergueu uma sobrancelha interrogativamente, enquanto vasculhava o bolso em busca das
moedas necessárias:
— Difícil de acreditar que conseguiu isso tão barato do vendedor, Sr. Hint.
O capenga se deu conta de seu engano e gaguejou uma réplica:
— É por sua senhora, chefe. Com sua beleza ela é a única que pode fazer justiça à peça. É como
um presente que faço a ela, uma conterrânea, senhor.
Brandon fez-lhe um exame minucioso:
— O senhor não chegou aqui muito antes de minha esposa, não é, Sr. Hint? Um mês, talvez
dois?
— Quase quatro, senhor — retrucou o aleijado, depois mordeu os lábios.
Brandon deu atenção ao bordado do corpete do vestido.
— Então o senhor sabe quando minha mulher chegou... O Sr. Hint enxugou a testa molhada de
suor:
— Louisa, Miss Wells, mencionou isso noite passada, senhor.
— O senhor deve ter saído de Londres mais ou menos na ocasião em que conheci minha mulher
— ponderou Brandon.
— Pode ser, senhor — o Sr. Hint estava sufocado.
— Por que saiu de Londres, Sr. Hint? O homem ficou pálido:
— Meu empregador morreu, senhor, e perdi meu emprego, de modo que peguei um dinheirinho
que havia economizado e vim para aqui.
— O senhor parece muito capacitado em sua profissão, Sr. Hint. Miss Luisa comentou isso.
— Eu me esforço, senhor.
— Tenho certeza de que sim — replicou Brandon, que lhe entregou o vestido. — Poderia
embrulhar isto para mim?
— Com todo o prazer, chefe.
344
Brandon entrou na sala de estar de Harthaven e encontrou Heather ajoelhada polindo as pernas
de uma mesa. No chão ao lado dela brincava Beau com uma bola brilhantemente colorida,
balbuciando sons cujo sentido só ele saberia... Brandon pigarreou, Heather voltou-se e, com um
grito alegre, pôs-se de pé e voou para os braços dele. Ele riu de prazer enquanto ela o abraçava
impetuosamente. Deixando-a com os pés acima do chão, fê-la voltear em alegre entrega. Quando
ele a pôs de novo no chão, ela lhe sorriu, olhos brilhantes, alisando o lenço e o avental.
— Meu Deus! — declarou ele, mãos nos quadris. — Você não parece ter idade para partilhar
meu leito! Uns 14 anos, eu apostaria... Não pode ser a mesma mulher que ameaçou despertar a
casa toda, a noite passada, enquanto sentia o prazer. Poderia ter sido alguma feiticeira que se
meteu secretamente em minha cama e me arranhou e mordeu?
Ela corou e olhou para ele, meio insegura:
— Você não acha que Jeff ouviu, acha? Eu nunca mais poderia olhar para ele se pensasse que
sim.
Os cantos da boca de Brandon se curvaram para cima, maliciosamente:
— Se ouviu, estou certo de que o som lhe era significativo, de modo que ele não falará nisso,
sendo o cavalheiro que é. Mas tem pouco o que temer, minha querida: o que escapou aos meus
beijos dificilmente teria sido mais do que ronronados de contentamento.
Ela riu de alívio e voltou a seus braços:
— Você me faz esquecer de mim mesma, Brandon. E depois de uma noite como aquela é difícil
para mim voltar à terra.
Ele lhe beijou a testa:
-— Queixando-se, doçurinha?
— Nunca! — ela suspirou. Após um momento, ergueu a cabeça de seu peito e lhe acariciou a
barba com dedos gentis. — Ir para a cama com você é sempre uma aventura...
Ele riu baixinho e se afastou dela um pouco, indo ao vestíbulo. Voltou com um embrulho que
colocou nas mãos dela:
— Isto lhe pertence e, se quiser livrar-se dele outra vez, queime-o ou corte-o em tiras, mas nunca
o troque. para que ninguém como Louisa, que tem a faculdade de irritar-me além da razão, possa
tomá-lo e copiá-lo. Lembro-me muito bem de sua aparência dentro dele, e não quero cadela
alguma estragando o que era para mim uma lembrança doce e gloriosa.
A cor fugiu das faces de Heather:
— Você comprou meu vestido ao Sr. Hint?
— Claro! Não podia suportar a ideia de outra mulher saracoteando dentro dele.
345
Ela sorriu suavemente, aliviada: ele falara com o Sr. Hint e o homem mantivera a palavra. Pondo-
se nas pontas dos pés, beijou-o carinhosamente.
— Obrigada, meu querido. Eu o entesourarei como o faço com meu vestido de casamento, e em
ocasiões especiais o usarei só para você.
Quase uma semana se passara quando uma tarde Louisa chegou inesperadamente. Jeff saíra para
visitar amigos e ainda não voltara, e os Birmingham restantes estavam tendo uma tarde calma na
sala de estar. Heather se olhava sentada no chão, aos pés de Brandon, e acabara de amamentar
Beau que, no momento, estava no colo do pai gozando das atenções dos dois. O braço de
Heather descansava intimamente nas coxas de Brandon enquanto brincava com o filho, e ainda
não abotoara o vestido, sentindo-se segura atrás das portas fechadas — mas cujos portais não
detiveram a entrada de Louisa quando empurrou Joseph na porta de entrada e irrompeu pela sala.
Heather se voltou, num sobressalto, olhando em volta, e Brandon ergueu o olhar. À vista de
Louisa, ficou carrancudo e pensou que prazer teria em torcer-lhe o pescoço... Antes queria danar-
se no inferno do que mostrar-lhe a cortesia comum de levantar-se à sua entrada.
— Você parece gostar de estourar em cima das pessoas, Louisa — ele murmurou.
Louisa apreciou a cena com um sorriso falso e olhou intencionalmente o braço de Heather e o
vestido ainda aberto. Brandon observou o exame atento que ela fez de sua esposa e lembrou —
pensando em uma das últimas vezes em que vira Louisa atravessar o quarto nua — que ela
começara a perder a firmeza de carnes que desaparece de todas as mulheres quando amadurecem.
Em Louisa isso se estava tornando aparente nos quadris mais largos e nos seios que começavam
a cair. Se ela tivesse um tiquinho de senso, teria corado de vergonha ao invés de olhar
zombeteiramente para sua mulher.
Teimosamente, Heather se recusou a mover o braço ou abotoar o vestido sob o sorriso superior
da mulher. A expressão maligna de Louisa a punha furiosa, e ela ficou descontente pelo fato de
que a loura estava excepcionalmente bem vestida de musselina amarela — sem dúvida uma das
criações do Sr. Hint. Parecia que o homem era um artesão bem dotado, embora fosse difícil
imaginar alguém tão medonho criando coisas tão lindas. Ela ficou a imaginar se o homem criara
aqueles outros vestidos que William Court proclamara serem seus. Era algo em que pensar.
Louisa parou por um momento, de pé acima deles, com os pés espalhados, mãos nos quadris.
Sorriu:
346
— Fantástico círculo de família! Quanto mais o vejo, Brandon. mais acho que o casamento lhe
assenta muito bem! Você parece um perfeito marido e pai!
Brandon ergueu o sobrolho, porém ela se voltou, tirando o chapéu e as luvas, descuidadosamente
atirando os objetos empoeirados numa mesa bem polida; sentou-se de frente para ele. Com uma
aspereza casual falou a Heather:
— Quer dar-me uma bebida, menina? Um pouco de Madeira, se estiver bem frio.
Vermelha de raiva, Heather ergueu-se e foi ao bar, enquanto abotoava o vestido.
Louisa continuou, dirigindo-se a Brandon:
— Fiquei com esta sede nesse caminho empoeirado de Charleston até aqui, e fiz isso para beber
dos seus bons vinhos, querido. É bem difícil consegui-los na cidade, ultimamente, e quase acabei
com o suprimento que você me deu.
Brandon continuava a brincar com Beau, que aparentemente perdera toda a alegria desde a
chegada de Louisa, lançando-lhe olhares cautelosos; ele cogitava o que a teria trazido, desta vez.
Heather voltou e pôs um copo nas mãos de Louisa. Novamente o tom áspero, impessoal, na voz
da mulher quando lhe falou:
— Obrigada. E deixe-nos a sós por um momento. Há certos negócios que desejo discutir com
seu marido.
A última palavra parecia forçada: Heather apressou-se até Brandon, mordendo o lábio que tremia,
e tomou Beau ao colo. A raiva flamejava no rosto de seu marido: ele lhe agarrou o braço e, por
cima dela, olhou a outra mulher. Tremia-lhe a mandíbula e ele abriu a boca para responder,
porém lágrimas borbulhavam dos olhos de Heather e ela sacudiu a cabeça furiosamente, ergueu
Beau e, escondendo o rosto contra ele, saiu da sala correndo. Foi para o escritório, aquietar seu
filho, que começara a choramingar quando foi tirado dos braços do pai, e limpou suas próprias
lágrimas.
Então Brandon olhou glacialmente para Louisa, sabendo que os modos rudes dela haviam ferido
sua mulher:
— E agora, Louisa, o que te traz aqui?
Sua boca se curvou num sorriso lento e confiante:
— Encontrei em Charleston um velho amigo seu esta tarde, Brandon.
Ele ergueu o sobrolho, desinteressado:
— Quem?
— Bem — ela riu — não é realmente um velho amigo. apenas um antigo auxiliar. Eu o reconheci
logo como um de seus homens no Fleetwood quando minha carruagem passou por ele. Pobre
alma! Estava completamente fora de si de tanta bebida, mas me reconheceu como sendo uma sua
amiga íntima. Ele foi de muita ajuda!
347
— Ajuda? de que modo?
Ela atirou a cabeça para trás e riu alegremente:
— Realmente, Brandon, eu nunca sonharia que, entre todas as pessoas do mundo, justamente
você fosse apanhado assim... e por uma prostitutazinha conivente, ainda por cima! Juro que teria-
tentado isso há séculos se tivesse pensado que daria resultado...
Com mil diabos, de que está falando, Louisa?
— Ora... você sabe, querido! Heather, a sua doce, inocente pequena Heather, uma prostituta!
Dickie me contou tudo... como ele e George a encontraram, batendo calçada, vendendo seus
encantos, como você foi obrigado a casar-se com ela, tudo!
— Obviamente, nem tudo — rosnou Brandon. Ergueu-se e se serviu de uma bebida forte.
Louisa continuou, feliz da vida:
— Sei que não se importa com Heather, querido. Já houve muitos boatos a respeito de quartos
separados... Eu não precisava que ninguém me dissesse algo a respeito de como você se sente
quanto a ela. Só não posso entender por que se casou com ela... Porém esta tarde... esta tarde,
quando Dickie me disse, eu soube com certeza que seu casamento era apenas uma fachada.
Agora você pode mandá-la embora, para a Inglaterra. Posso perdoar-lhe essa pequena aventura
em Londres e aceitá-lo de volta. Podemos ser felizes. Sei que podemos. Tomarei conta de seu
filho, pois não há dúvida de que ele é seu. felizmente! Eu o amarei e serei boa para ele. Todos
compreenderão quando lhes contarmos como você foi forçado a casar-se com ela.
Brandon a fitou espantado, um momento, e depois começou a falar lenta porém cuidadosamente:
— Louisa, ouça atentamente o que vou dizer, pois se não me acreditar será uma louca. Se pensa
que alguém pode forçar-me contra a minha vontade a casar-me ou a cumprir qualquer outro
contrato é porque não me conhece absolutamente. Agora acredite nisto — e ele falava
cuidadosamente — como se sua vida dependesse disso, porque depende. Minha mulher não foi
prostituta nem andava batendo calçadas. Era uma virgem na primeira noite em que a possuí e
George poderá garantir-lhe isto. O menino é meu. Ela é minha esposa por meu consentimento e
não tornarei a tolerar sua grosseria para com ela nesta casa. A partir deste momento você a tratará
com todo o respeito devido à senhora de Harthaven. Você não tem direito a qualquer
reivindicação sobre mim, esta casa, ou minha propriedade.
Louisa se levantou de sua cadeira e serviu-se de outro copo de vinho. Ficou de pé diante dele
enquanto o sorvia, contemplando-o por cima da borda do copo:
— Então prefere essa criança a mim — rosnou. Brandon sorriu, tolerante:
348
— A escolha já foi feita há muito tempo, Louisa. Estou apenas a reafirmá-la.
Os olhos dela se estreitaram e, por um momento, voltou-se para olhar para fora, pela janela.
Súbito, virou-se novamente para ele e continuou:
— Estranho, Brandon, que fale de respeito e propriedade no mesmo fôlego. — Sorveu o vinho e
atravessou a sala, colocando o sofá entre eles. Descansou a mão livre em seu espaldar e ergueu o
copo a meio, como em um brinde: — Para falar-lhe sobre isso é que realmente vim aqui.
Reconsiderei e acho que minha propriedade vale o dobro do que pagou por ela.
Deteve-se e o observou, à espera de sua reação. Ele franziu o sobrolho, mas deu de ombros:
— Fizemos um acordo comercial, Louisa, e ele está completo... assinado, selado e entregue. Você
não tem propriedade, a não ser Oakley e os poucos acres em que está construído. Está acabado!
— Acabado, na verdade! — ela fungou. — Então falemos de respeito. Quanto respeito pensa
que você e sua esposa-criança merecerão quando eu espalhar que você foi apanhado numa
armadilha para se casar, por uma vagabunda comum da rua?
A voz de Brandon trovejou pela casa toda!
— Cale-se, sua cadela! Não suportarei que difame minha mulher em sua própria casa! — Sua voz
baixou para um rosnado raivoso: — Não me importa o que faça fora desta casa. Diga o que
quiser. Nenhum homem ou mulher terá a audácia de vir repetir-me o que você tiver espalhado.
Você é uma cadela, Louisa, física e mentalmente.
— Então agora sou cadela, hem? — Com um movimento rápido atirou o vinho no rosto dele e
esmagou o copo no chão. — Cadela, sim senhor! Era eu virgem quando você me possuiu,
implorando que me casasse com você e me prometendo o mundo e todas as suas pompas se eu
lhe concedesse meu mais caro tesouro. Então velejou e se casou com a primeira vagabunda que
pescou na rua e a trouxe para cá como sua esposa. Jurou-me fidelidade, apoderou-se de minha
virgindade e depois de minhas terras por uma ninharia. Bem, quero mais. — Começou a sorrir
afetadamente e sua voz tornou-se cariciosa: — Preciso de mais, Brandon. Tenho de pagar minhas
contas e só me foi deixada a casa, que não posso vender. Acabarei passando fome se nào
conseguir ganhar um pouco de dinheiro. Ninguém me fornece crédito desde que você acabou
comigo.
Brandon enfureceu-se: lutou consigo mesmo para evitar bater-lhe. Passou as mãos pelo rosto:
— Virgem! Deus Todo Poderoso! Você não era mais virgem do que aquela vaca velha no pasto
que se vê daqui da janela. Julga-me um idiota? Pensa que sou cego e mudo para ter acreditado na
comédia meio estúpida que representou naquela noite? Levaria mais
349-
de 15 dias para nomear todos os homens que sei que foram para a cama com você antes e depois
desse chamado ”compromisso sagrado”! — Sua voz fez as paredes estremecerem: — Que
simples estupidez a faz sonhar que eu ficarei aqui e tolerarei a difamação de minha própria
mulher?
— Você me amava antigamente! — ela gritou. — E não dorme com ela. Até nas ruas se
murmura isso, todo mundo sabe. Por que ela e não eu? Eu compartilharia sua cama e o faria
esquecer até da experiência dela. Experimente-me. Possua-me. Meu Deus, você me amava tanto!
— Amava! — A risada dele era alta. — Não! Eu apenas a tolerava e, como um rapazinho,
pensava saber tudo que a minha mente desejava, até que enfrentei a verdade e encontrei uma
beldade nunca vista. e então soube o que realmente desejava. Beleza? Certo. Paixão? Certo. —
Ele se inclinou até junto de seu rosto, enfatizando cada palavra: — Mas também adorável
ternura, bondade, devoção, lealdade incondicional e uma simples e honesta dignidade por meu
nome muito além de sua capacidade, Louisa. — Sua voz tornou a elevar-se- — Eu a amo a cada
momento de minha vida. Dou-lhe minha proteção contra as vagabundas de baixa categoria que
gostariam de estraçalhá-la e deturpar sua virtude. Com a graça de Deus teremos muitos filhos e
filhas. Assim, não baseie suas esperanças em tal mentira e não volte a falar-me do que faria para
arrastá-la para baixo com você. — Parou ao lado da mesa, pegou o chapéu e as luvas de Louisa e
os atirou em seu rosto: — Agora tire sua presença bolorenta deste lar e mantenha longe de nossa
porta o fedor de seu desaparecimento, e que eu nunca mais ouça uma mentira que possa atribuir
a você ou terei grande prazer em torcer esse pescoço que você tanto preza. Agora, fora daqui, sua
cadela! Você abusou das atenções aqui recebidas e já não é bemvinda a esta casa.
Louisa tremia diante dos olhos flamejantes de Brandon e não achou palavras com que replicar.
Pegando o chapéu e as luvas, empregou suas energias na partida indicada e saiu silenciosamente
da sala, lábios brancos e olhos baixos, passando apressadamente por Jeff que havia parado um
momento ouvindo, admirado ante essa rara exibição de violência de seu irmão dirigida a uma
mulher.
Ela caminhou pela varanda, desceu a escada e, erguendo bem alto as saias, sumiu sem cerimónias
na carruagem, sem ajuda — não vendo George que estava encostado a uma pilastra e calmamente
cuspiu na poeira atrás dela.
Quando a carruagem de Louisa se afastou, Heather chegou à porta do escritório e, através do
vestíbulo, olhou para o marido. Ele ainda estava de pé, punhos cerrados, faces trémulas, porém
quando sentiu o olhar dela sua expressão abrandou e ele lhe estendeu os braços. Levando Beau,
ela correu a aninhar-se neles...
350

Enxugando as mãos no avental, Heather veio da cozinha: havia tido uma hora deliciosa ajudando
Cora a fazer pão. Ficou olhando um cavalo que entrou disparado pelo amplo portão e sorriu ao
ver Jeff atirar-se do cavalo abaixo e correr para ela. A expressão dele logo silenciou o
cumprimento que ela ia fazer e o substituiu por uma fria apreensão.
— Onde está Brandon? — perguntou abruptamente.
— Ora, pensei que estivesse nos campos com você.
Ele apontou para o estábulo onde um rapaz estava escovando Leopold: o garanhão não estava
em melhor estado que o cavalo coberto de espuma de Jeff. Ambos haviam galopado loucamente.
— Não o ouvi chegar... — ela tentou explicar, confusa, porém ele já estava correndo para a casa.
Ela segurou as saias e correu atrás dele:
— Jeff! o que há? que aconteceu?
Ele se voltou e uma estranha mescla de emoção estampava-se em seu rosto, perturbando-a mais
do que o fariam palavras. Ela lhe segurou os braços:
— Jeff, quer dizer-me o que aconteceu? — gritou. Em seu estado de terror cravou-lhe as unhas
no braço, porém ele nem percebeu, insensível à dor, e ela o sacudiu tão fortemente quanto
poderia sacudir um homem cabeça e ombro mais alto que ela. — Jeff, diga-me!
Por um momento ele pareceu incapaz de falar, depois lhe disse:
— Louisa está morta, Heather. Alguém a matou. — Ela recuou, apertando a boca com as costas
da mão. Abanou a cabeça incredulamente. — É verdade! Alguém a estrangulou, quebrou-lhe o
pescoço.
— Por que você quer saber onde está Brandon? — Ele pareceu relutante para responder. — Jeff!
— Vi Brandon sair correndo de Oakley. Ele não me viu cavalgando e, quando entrei para ver
Louisa, acheia-a morta.
Heather quase ficou sufocada numa negativa:
— Não! — Havia um brilho acusador em seus olhos: — Ele não fez isso. Ele não poderia! Ele
não o fez, Jeff, ele não o fez! Como pode você ao menos pensar nisso?
— Pensa que desejo acreditar nisso? Eu o vi, Heather, e ambos o ouvimos ameaçá-la ontem.
— Mas por que ele estaria lá? Ele olhou para o outro lado.
— Jeff, responda-me — ela pediu. — Tenho direito de saber. Ele soltou um suspiro cansado:
— Louisa lhe enviou um bilhete quando estávamos nos campos. Dizia saber algo a teu respeito
que ele devia conhecer. Tentei detê-lo, porém deu-me um soco e jurou que fecharia de uma vez
por todas aquela boca imunda. Lulu lhe trouxe o bilhete e ele a encheu de medo. Ela se mandou
que nem um cão escorraçado, embora eu pudesse jurar
que, antes de entregar-lhe a maldita coisa, ela já tremia que nem varas verdes. Quando cheguei à
casa de Louisa, a coisa estava feita. Ele saiu daquela casa como se tivesse o diabo nos calcanhares,
e o empregado de estábulo de Louisa, Jacob, também o viu e agora aquele bom homem foi
buscar o delegado. Você já está vendo, não é?
A mente de Heather rodopiava, confusa. Um bilhete? Um bilhete a respeito dela, Heather? Que
mais poderia Louisa ter-lhe dito?
Ela suspirou alto ao pensar no Sr. Hint e em sua associação com a mulher. Se tivesse falado a
Louisa a respeito de William Court, ela teria tentado contar a Brandon. Possivelmente, numa fúria
cega, ele podia tê-la assassinado: ele a ameaçara noite passada...
Não! Não podia julgá-lo capaz de tal crime.
— Não! Ele não fez isso! Sei que não fez! — ela afirmou teimosamente, sacundindo a cabeça
furiosamente. — Ele é meu marido! Então eu não saberia se ele é capaz ou não disso?
— Por Deus, Heather! — resmungou Jeff, atormentado por ser o único a acusar o irmão. Puxou-
a para si, apertando-a nos braços: Filhinha, não vê que eu queria estar errado? Eu também o amo!
Ele é minha carne e meu sangue. meu irmão!
A firme determinação dela o atormentava ainda mais. Abruptamente, ele se virou e correu para a
casa, e ela o seguiu. Continuaram a discutir, Jeff a tentar freneticamente convencer-se de que
estava enganado, Heather determinada a fazê-lo sentir que estava mesmo, até chegarem à porta
do quarto do casal e a abrirem. Quando ele não fez menção de entrar, ela veio para o lado dele e
viu Brandon olhando fixo, pela janela, para o pátio onde eles estiveram momentos antes. Com
um grito, ela correu para ele, que se voltou e a abraçou apertadamente
— Diga-lhe, Brandon! — ordenou, segurando-se a ele desesperadamente. — Diga-lhe que você
não fez aquilo!
— Minha querida! — ele murmurou suavemente.
Jeff adiantou-se, temeroso de perguntar e ter a confirmação. Brandon o olhou e sorriu
tristemente:
— Pensa que eu a matei, Jeff?
— Por Deus, Bran! — Jeff se controlou, sacudindo a cabeça. Era profundo o seu tormento. —
Não quero acreditar nisso, mas vi você sair da casa e, quando entrei, encontrei-a morta. Em que
devo acreditar?
Brandon alisou os cabelos de Heather:
— Você me acreditaria, Jeff, se lhe dissesse que nada tenho a ver com o assassinato dela.. que ela
já estava morta quando cheguei?
— Bran, sabe que acreditarei seja em que for que me diga. Mas se não a matou, quem o fez?
O irmão mais velho suspirou:
— Por que alguém teria violentado Louisa, Jeff?
352
Heather teve um sobressalto.
— Violentado? — espantou-se o irmão mais novo.
— Não notou? — e Brandon sorriu.
— Ela foi violentada! — falou Jeff, incrédulo. — Mas quem faria uma coisa dessas? Ela se
entregava de graça!...
— Exatamente.
— Meu Deus! Realmente, não pensei nisso... — confessou Jeff. Escorregou em uma cadeira
olhando para nada em especial e refletindo sobre o que vira. Após um bom momento, levantou-
se de novo e caminhou até a janela, perto deles, a olhar as árvores distantes a sacudir-se a uma
brisa forte.
— Deve ter sido como você diz — murmurou pensativamente.
— Logo que a vi... o quarto em completa confusão, suas roupas rasgadas e arrancadas dela...
Apenas pensei que você havia lutado com ela. Estupro nem me passou pela cabeça. Você não
teria... — Ele corou e relanceou o olhar para Heather, que ouvia calmamente.
— Você não poderia tê-la incomodado daquela maneira — continuou, voltando atrás. — E,
pensando de novo no assunto, concordo com você: ela foi forçada ao ato. Do jeito em que
estava, parecia que o homem acabara de deixá-la. Indubitavelmente, ela foi morta enquanto ainda
estavam ocupados. Mas a quem ela se recusaria tão violentamente?
O olhar de Brandon voltou à janela:
— Jeff, quero falar com Lulu. Pode trazê-la para mim? O irmão mais moço acenou de cabeça
afirmativamente:
— Então você sabe de algo? Brandon deu de ombros:
— Pode ser. Não estou certo. Devo falar com a pequena antes de poder afirmar alguma coisa.
Jeff sorriu, já sem qualquer dúvida sobre a inocência do irmão, e disse:
— Vou procurá-la. Melhor que você tenha alguns fatos antes que Townsend chegue aqui.
Quando ele se foi, Brandon ergueu o queixo de Heather e a olhou bem dentro dos olhos:
— Obrigado por acreditar em mim — murmurou.
— Eu nada valeria como esposa se não acreditasse em você... — respondeu suavemente,
acariciando-lhe o rosto.
Ele se afastou dela e lhe voltou as costas:
— Não tenho muita certeza de que não a teria assassinado, Heather, se a tivesse alcançado antes.
Eu estava tão furioso que esmurrei Jeff quando ele tentou deter-me. Quis matá-la quando li o
bilhete que me enviou. Quando a vi estirada no chão, as roupas estraçalhadas e arrancadas
daquele corpo que ela tanto valorizava, é que vi o quão perto estivera de tirar-lhe a vida! Isso me
aterrorizou como o diabo!
353
Quando pensei no que poderia ter feito a nós... — Virou-se para ela:
Sabe, não me importa que ela tenha sido assassinada. Não me causa nenhum pesar. Sinto é alívio
por ver-me livre dela sem ter de ser enforcado pelo ato. Mas, Heather, eu poderia tê-la
assassinado se...
— Oh! meu querido — ela estava sufocada, e lançou-lhe os braços ao pescoço — talvez você
estivesse zangado, mas nada neste mundo pode fazer-me acreditar que você teria cometido tal
ação. Isso não está em você.
Ele a puxou para si, braços em volta da cintura fina, e encontrou conforto em sua fé imutável.
— Oh! Heather, Heather! — murmurou — Eu a amo tanto, preciso tanto de você! Quero-a para
sempre!
Lágrimas de alegria lhe iluminavam os olhos enquanto ela se abraçava a ele. Era tão bom ser
amada por ele...
Brandon aspirou seu aroma refrescante e a fragrância de seus cabelos, e seus olhos baixaram para
a mão que ele havia cerrado atrás das costas dela. Lentamente os dedos relaxaram e ali, em sua
palma, estava um dos brincos de diamante de Catherine Birmingham.
Naquela noite, o delegado Townsend veio prender Brandon. Não houve conversa a respeito do
homem: ele estava convencido de que já o tinha e não perdeu tempo discutindo a questão com
eles. Falou a Brandon que estava preso assim que entrou na casa, e 15 minutos depois estavam a
caminho de Charleston, acompanhados por dois agentes.
Heather ficou em prantos. Brandon não conseguira falar com Lulu. Na verdade, a pequena não
pudera ser encontrada: desapareceu. Ninguém se lembrava de tê-la visto depois que fugira dos
campos. Os poucos escravos em Oakley se mantinham bem longe da casa grande e a salvo em
suas cabanas, preferindo nada saber das idas e vindas que aconteciam por lá enquanto o corpo de
Louisa era preparado para a jornada para Charleston na manhã seguinte — de modo que não
podiam dizer se Lulu voltara. Jeff enviara vários homens a vasculhar a zona rural enquanto ele e
George seguiam a cavalo para a cidade — mas não descobriram o menor traço da moça em lugar
algum.
Já em horas tardias, Heather caminhava pelo quarto, sentindo a solidão desse quarto sem
Brandon, e ficou a imaginar a respeito do conforto dele. O delegado Townsend fora tão
obstinadamente cabeçudo, não dando ouvidos a seus rogos ou aos raciocínios de Brandon, que
poderia até estar tratando seu marido como se já fosse um condenado. Estremeceu a tal
pensamento, e foi até a janela, onde colou o rosto contra a vidraça. Fora estava negro como piche
e o vento uivava em torno da casa, deixando agitadas as árvores. Começara a chover, porém
Heather não encontrou conforto nisso, só desespero. Cansada,
354
meteu-se na cama, entre os lençóis, contemplando na escuridão o branco fulgor do dossel acima
dela — perfeitamente cônscia do espaço vazio a seu lado.
Levantou-se pela manhã ao som do vento uivante. Nuvens pesadas e plúmbeas corriam pelo céu
empurradas pelas rajadas furiosas. Uma luz amarelada parecia amortalhar a terra. A chuva estava
moderada, porém as gotas batiam barulhentamente contra as vidraças, levadas pela força da
ventania. Formava-se um temporal.
O dia se esgotava, a chuva devastava os nervos de Heather. Jeff voltou a casa uma ou duas vezes,
de sua busca por Lulu, ensopado até os ossos, e, quando ela o olhava interrogativamente, ele
meneava a cabeça, em negativa. Embora ninguém expressasse isso, estavam começando a temer
que também a Lulu houvesse acontecido algo.
Já a tarde ia adiantada quando Heather, incapaz de agüentar por mais tempo ficar em Harthaven
sem ajudar o marido de alguma forma, vestiu seu costume de cavalgar, um pesado casacão, e
cautelosamente desceu as escadas. Receava que Hatti a visse. Já ia ser bastante difícil conseguir
que James lhe selasse Lady Fair sem discussões, mas deixar que Hatti a visse sair numa
tempestade daquelas certamente significaria ter o caminho bloqueado pela teimosa negra.
Sua fugida foi bem sucedida: encontrou James ocupado colocando feno fresco na baia do
estábulo. Ele a olhou, sobressaltado, quando ela abriu a porta, surpresa enquanto ela lutava com o
pesado painel e o vento ameaçava fazê-la voar se o enfrentasse por muito tempo. Deixando cair o
forcado, veio correndo em seu auxílio:
— Que está fazendo aqui fora com um tempo assim, Sra. Birmingham? Deveria estar em casa,
longe de todo este vento.
— Quero sair com Lady Fair, James. Quer selá-la para mim? Já tenho cavalgado com chuva, de
modo que não precisa preocupar-se.
— Mas, Sra. Birmingham, vem por aí uma tempestade medonha. Quando isso acontece, são
arrancados os postigos das janelas e caem as árvores! Não é seguro. O patrão me esfolará vivo se
souber que selei um cavalo para a senhora com este tempo.
— Por mim ele não saberá, James. Se descobrir, direi que eu o obriguei. Agora, apresse-se e sele
Lady Fair. Lulu tem de ser encontrada para poder dizer ao xerife Townsend que seu patrão não
matou Miss Louisa.
Os olhos escuros e apavorados dele a fitaram, como se quisesse acrescentar algo, porém ela lhe
franziu a testa.
— Se você não selar a égua, James, eu o farei.
Ele se afastou, abanando a cabeça, e parecia haverem passado horas antes que Lady Fair estivesse
selada e pronta para sair. James verificou a cilha pela quinta vez:
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— Sra. Birmingham, ela pode ficar nervosa, neste temporal... — Ele estava profundamente
preocupado. — Madame... Sra. Birmingham, a senhora não pode...
— Ora, pare com isso, James! Eu tenho de ir.
Ele aquiesceu com relutância, mas ajudou-a a montar. Ela acomodou-se e baixou os olhos sobre
ele, que continuava a segurar-lhe as rédeas, olhos vazios pelo medo. O mesmo medo lhe fazia
tremer os lábios e, por um momento, ela pensou que ele poderia ainda mantê-la ali. Finalmente a
mão dele largou as rédeas e ele se virou para abrir a porta do estábulo. Ela esporeou a égua e a fez
enfrentar a tempestade. Era como se penetrasse num mundo diferente. Vento, chuva e relâmpago
se misturavam numa fúria confusa. O animal estacou e resfolegou, mas o salto da sua bota o
impeliu para a frente. Os dedos pontudos do vento lhe revolveram o casaco, a chuva logo a
ensopou. A claridade cegante dos raios parecia abrir fendas nos céus e era extinta ante o
ribombar dos trovões.
Heather olhou por cima do ombro e viu James lutando com a tempestade, a observá-la enquanto
ela se distanciava. Por um breve segundo sentiu-se tentada a voltar e acalmar os temores dele... e
os próprios. Não havia como negar: estava amedrontada. Porém passou rápido o pensamento de
voltar. Se não sentisse que sua ida era necessária teria ficado, mas a vida de Brandon dependia de
Lulu ser encontrada. E que melhor lugar para esconder-se numa tempestade que na casa, agora
deserta, de sua patroa?
Cavalo e cavaleira penetraram na floresta agora selvagem. Galhos soltos açoitavam e feriam e
vergastavam e arranhavam. As árvores se inclinavam e oscilavam no que parecia uma frenética
determinação de arrancá-la da sela, e, fracassando, gemiam ao vento a sua frustração. A égua
escorregou e cambaleou de um lado a outro na trilha enlameada, ora cortando as pernas nas
afiadas folhas das palmeiras, ora afastando-se de uma moita de mato. Foi preciso toda a
concentração de Heather para agarrar-se à sela escorregadia. Em desespero, enrolou as rédeas em
torno do pulso e enterrou o rosto na crina de Lady. A cavalgada se tornou uma cansativa luta
para cavalo e cavaleira enquanto batalhavam com o vento e a chuva, a floresta e a lama.
O vento pareceu diminuir e a chuva já não lhe martelava os ombros. Heather sentiu que o animal
agora estava parado, tremendo de cansaço. Ergueu o rosto e viu que estavam ao abrigo da casa da
plantação Oakley. A fachada do solar assomava acima dela, na tempestade, palidamente
iluminada pelo dia escuro. Escorregou da sela e sentiu que as pernas mal a sustentavam.
Encostou-se ao animal que fumegava, quentinho, e suas forças gradualmente lhe voltaram.
Com suas esperanças e temores a dirigi-la, atravessou o pórtico e entrou no prédio agourento.
Fechou a porta, para proteger-se contra a tempestade, e olhou em torno, livrando-se das botas
enlameadas e do
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casacão ensopado. O casarão parecia inclinar-se ao vento, do qual alguns bocados peneravam
através de cada fresta nas venezianas e agitavam as cortinas e os reposteiros, e matraqueavam os
caixilhos das vidraças, parecendo pôr a casa em movimento. Os assoalhos rangiam e estalavam
com a tensão, gemiam as paredes, e as telhas agitavam seus temores no telhado. Sombras
rastejavam em cada sala e, ocasionalmente, de algum lugar bem fundo nas entranhas da casa
batida pela tempestade, uma porta rangia ou batia. A mansão parecia ressentir-se de sua intrusão
e pranteava seu descontentamento; porém seu propósito sobrepujava sua apreensão. Tinha de
assegurar-se de que Lulu não estava escondida em algum recanto.
Chamou, mas não obteve resposta. Procurou em cada peça da casa com uma eficácia nascida do
desespero. Estavam escuros os quartos do primeiro andar. Foi puxando as cortinas de todas as
janelas, mas havia pouca luz, fora, para penetrar. Aqui e ali achou uma janela deixada escancarada.
Continuou em sua tarefa, não deixando passar nenhum espaço onde uma pessoa pudesse ocultar-
se. Reposteiros eram puxados para os lados, nenhuma porta foi deixada fechada. Seu trabalho a
aqueceu e o frio da viagem saiu de seus ossos.
Correu escadas acima de modo nada próprio para uma senhora — as saias suspensas acima dos
joelhos — e apressou a busca no segundo andar. Aqui a tempestade parecia mais próxima. A
lareira estava fria e a chuva martelava pesadamente o telhado. Galhos batiam contra as venezianas
e as faziam estremecer. Ela escancarou todas as portas e procurou debaixo de todas as camas.
Deteve-se um momento à beira do leito de Louisa e se deu conta de que aqui é que Brandon
provavelmente mais teria exercido a sua masculidade sobre os encantos daquela mulher. Numa
raiva súbita, rasgou a colcha de cetim da cama e passou por cima dela para continuar a busca.
A casa não correspondeu a seus esforços. A entrada para o sótão era do tipo alçapão, inatingível
sem degraus ou ajuda. Retornou ao primeiro andar e, dando-se conta de não haver ainda
procurado ali, entrou no quarto de vestir.
Heather aspirou fundo e o ar pareceu congelar-se em seu peito. Cortinas e reposteiros haviam
sido arrancados das janelas, uma cadeira estava quebrada na confusão de suas dobras. Uma
pequena mesa oscilava precariamente sobre três pernas em frente à lareira: faltava-lhe a quarta
perna. Havia uma escrivaninha sem nada em cima: papéis, canetas e tinteiro estavam espalhados
sobre o tapete. Vários livros tinham caído da estante, com exceção de poucos em completa
desordem. A peça evidenciava que a haviam revistado furiosamente, como se houvessem perdido
algum objeto de grande importância. Não havia razão para acreditar que o objeto não fora
encontrado, porém Heather começou a vasculhar o quarto como só uma mulher curiosa o faz.
Não fazia a menor ideia sobre o que buscava. Apenas que devia haver algo. Seus
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olhos varreram o tapete e o topo de cada móvel. Suas mãos rearrumaram quinquilharias e
bugingangas, endireitaram os ornatos nas paredes, e seus dedos verificaram cada fenda — pelo
que pudesse conter... O anteparo da lareira estava ligeiramente entreaberto e seu senso feminino
de arrumação queria vê-lo arrumado. Quando ela moveu o anteparo, chamou-lhe a atenção um
faiscar em sua base. O objeto se alojava numa fenda entre dois tijolos no chão da lareira. Ela se
curvou e quase perdeu o fôlego: era um dos brincos de diamantes de Catherine Birminham, seu
próprio brinco, que fazia parte do par que ela dera ao Sr. Hint. Pegando-o, ficou a olhá-lo,
incrédula.
Em seu bilhete a Brandon, Louisa aludira a seu conhecimento de alguma informação interessante.
E que outro segredo poderia a mulher haver sabido, a não ser o que se referia a William Court?
Não existia outro. Mas que lhe teria dito o Sr. Hint? Tinha plena certeza de que Brandon não lhe
permitiria continuar submetendo-se à chantagem, para mantê-lo calado, e se Louisa soubesse da
morte de William faria o possível para que Brandon também o soubesse, por despeito, se não por
qualquer outra razão. Então por que teria o Sr. Hint contado a Louisa? Por que teria dado a ela os
brincos? Por que motivo teria arriscado uma fortuna por um ato tão estúpido? Ter-se-ia
apaixonado pela mulher e pensado em seduzi-la com essas jóias? Aquele sujeito horroroso?
Louisa deve ter-lhe rido na cara...
Mas seria mesmo isso? Ele a teria assassinado por rir. ou para garantir o silêncio dela? Teria ele
forças para quebrar-lhe o pescoço com as mãos nuas? Brandon poderia, ela sabia, mas poderia
um homem da metade do tamanho de Brandon possuir força bastante para isso?
— Ora se não é a minha boa amiga Sra. Birmingham!
Heather virou-se, alarmada. Não havia dúvidas sobre a quem pertencia essa voz aguda e
desafinada. O terror apossou-se dela, paralisando. O Sr. Hint lhe sorriu e exibiu um rosto
arranhado e machucado:
— Ah, vejo que encontrou o brinco!
Ela acenou afirmativamente, com precaução.
— E na lareira — ele riu. — Não pensei nisso. Seja abençoada por encontrar isso para mim.
Pensei que estivesse perdido para sempre.
— O senhor. — ela engoliu e recomeçou — o senhor deu meus brincos para Louisa?
— Bem. não exatamente. Foi assim, veja bem: eu os mostrei a ela e lhe prometi uma vida de luxo
comigo. — Sua boca se torceu sinistramente. — Então, depois de vê-los, ela disse que sabia que
eram seus. Não descansou enquanto não descobriu por que eu os tinha. Depois havia um brilho
esquisito nos olhos dela quando contei a respeito do pobre Willy e ela se apoderou dos brincos e
jurou que teria sua vingança. Ficou louca. Passei um mau pedaço tentando compreendê-la. Estava
mesmo feito louca, num minuto rindo, chorando
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no momento seguinte, todo o tempo gritando que vingança tiraria da senhora. Jurava que havia
de vê-la enforcada. Tive de esbofeteá-la para que ela voltasse ao normal. Ficou com um olhar
gelado e me disse o que ia fazer. Tentei convencê-la de que estava sendo uma tola, que poderia
vingar-se pelo dinheiro que tomaríamos da senhora. Eu sabia que, assim que seu homem
descobrisse tudo a seu respeito, não haveria mais jóias para mim, sabe, e que ele poderia matar-
me para fechar-me a boca. Porém ela se recusava a ouvir. Queria ver a senhora enforcada, mas
primeiro queria contar ao seu homem e vê-lo implorar pela vida da senhora. Enviou Lulu para
atraí-lo com aquele bilhete. A pequena viu que eu estava furioso e tratou de se mandar bem
depressinha com o bilhete enquanto Louisa e eu discutíamos. Tentei argumentar com Louisa e
dizer-lhe que poderíamos fazer fortuna, porém ela só dizia que queria ver a senhora enforcada.
Estava preparada para contar ao seu homem a seu respeito e mostrar-lhe os brincos como prova,
e riu de mim e chamou-me de ”sapo horroroso”... disse que andara seduzindo-me pelo que eu lhe
podia dar. Fiz todos os vestidos que ela quis e os dei a ela sem nada cobrar, e ela me chamou de
porco, de asquerosa caricatura de homem. Eu a amava, sim, e ela me disse essas coisas... — Não
podia conter as lágrimas e começou a soluçar. — Bateu-me, também, quando lhe disse que era
seu o vestido que eu havia copiado para ela, e me xingou nomes que nunca ouvi nem ditos por
nenhum homem, palavras loucas que me faziam em pedaços, por dentro. Não pude evitar:
minhas mãos lhe apertaram o pescoço sem saber o que estavam fazendo. Ela entrou em pânico,
fugiu de mim apegando-se aos reposteiros, mas eu a agarrei lá e a arrastei para baixo. Não sabia
que ela tinha tanta força! Deu-me pontapés, e uma surra como um homem o faria. Ela me fez
desmaiar, sim senhora! Jamais conheci uma mulher tão forte! Tivemos uma luta bem feia, como a
senhora pode ver pelo estado desta sala. Entretanto, tive meu prazer com ela, e ela também teve.
Tenho certeza, por seus gemidos e movimentos embaixo de mim. Fiquei pensando que talvez
pudéssemos ser felizes juntos, mas vi os olhos dela se estreitarem quando acabou comigo.
Cuspiu-me no rosto, chamou-me de aleijão, disse que eu ia ver o que era um homem de verdade
quando seu esposo chegasse. Minhas mãos lhe rodearam a garganta e espremeram-lhe a vida.
Não pude detê-las. Eu acabava de tirar as mãos do pescoço dela quando seu homem chegou a
cavalo. Estava furioso. Nem sequer bateu à porta. Mal me deu tempo de sair de cima dela e
esconder-me.
— Quer dizer que o senhor estava aqui quando meu marido chegou?
— Se estava! Chegou enfurecido como o próprio demónio. Sendo tão grande, ele me apavorou, e
lá estava eu escondido atrás da porta. Talvez o choque de ver seu trabalho já feito é que me
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tenha salvado dele. Um homem bem parecido com o seu homem chegou aqui logo depois que
ele saiu e também não me viu.
— Por que me está contando tudo isso, Sr. Hint? — ela perguntou, já temerosa da resposta.
— Por que não deveria fazê-lo agora? Quando pegou esse brinco, a senhora ficou sabendo que
tinha sido eu quem matara Louisa. Vou guardá-lo agora antes que se perca de novo. —
Arrancou-lhe o brinco da mão e por muito tempo ficou olhando a peça. — Quando lhe fiz os
vestidos, Louisa me disse que a seus olhos eu não era um aleijado. Chamou-me de seu amor e
deixou-me tocar aqueles seios brancos e beijá-los. Amei-a de verdade, e ela me chamou de sapo.
— Seu rosto medonho estava coberto de lágrimas. Olhou para ela, os olhos se estreitando
perigosamente: — Ela não foi a primeira mulher que matei por rir de mim. O vestido que a
senhora usava quando fugiu da loja de William pertencia a outra que também riu. Willy, o
bestalhão, pensou que ela nunca voltara por não poder pagar o vestido. — Riu selvagemente: —
Ela não podia voltar, sabe, estava morta! Quebrei-lhe o pescoço como fiz com Louisa. E também
dei um jeito em Miss Scott, porque riu de mim.
Ele se adiantou ameaçadoramente para Heather, e de novo ela teve consciência daquele forte
odor de colónia. Deu-se conta do que ele acabara de dizer e, com um sobressalto, lembrou-se de
onde sentira esse cheiro pela primeira vez. Seus olhos se arregalaram:
— O senhor estava lá, atrás daquelas cortinas na loja de William Court! E me viu fugir usando
aquele vestido!
Ele sorriu aquela sua horrível careta:
— Exato! A senhora nem olhou para trás! Eu devia ser-lhe grato. Facilitou a minha tarefa.
— Sua tarefa?...
— Isso mesmo, minha tarefa. Na verdade, não pensa que matou Willy, não é mesmo, com a
feridinha que fez nele?... Nada disso! Ele apenas desmaiou, mais devido ao vinho que bebeu do
que ao que a senhora lhe fez.
— Quer dizer que está vivo?
Thomas Hint riu enquanto balançava a cabeça negativamente:
— Não, madame, cortei-lhe a garganta. E foi fácil. Todos aqueles anos fiz os vestidos que o
espertalhão dizia serem feitos por ele. Ora, não sabia sequer enfiar uma agulha. Foi muito fácil.
Só uma coisa: a cozinheira me viu matar Willy. Quando voltou para tirar os pratos da mesa viu-
me puxando a faca que usara nele. Tive de sair da Inglaterra por causa dela: não pude botar as
mãos em seu pescoço. Fugiu como Lulu, apavorada de morte, e não pude encontrá-la.
Heather encostou-se à lareira, estupefata! Todo esse tempo pensara haver assassinado um
homem!
360
- Não vai ser tão fácil matar a senhora, madame. A senhora realmente nunca me fez mal, nunca
riu de mim como essas outras mulheres. De certo modo, foi até boa para mim. E é uma moça tão
bonita! Disse a Sybil, certa vez, que algumas das mulheres mais bonitas do mundo usaram meus
vestidos. Ao dizer isso eu pensava na senhora. Realmente, foi a senhora a única a fazer justiça a
meus vestidos. Mas agora vai dizer a eles que matei Louisa, para salvar o seu homem.
Encaminhava-se agora para ela, bloqueando-lhe a fuga. Com as costas na lareira, o pescoço da
moça estava ao seu alcance. Vendo aquelas mãos em feitio de garras, do seu sonho, avançando
contra ela, Heather foi possuída por uma súbita coragem de lutar com ele, não importando como.
Num movimento rápido, passou por ele como um raio. Ele conseguiu agarrar a parte de trás do
vestido dela que se rasgou quando ela lhe fugiu. Ele foi rápido, a despeito do aleijão, e conseguiu
agarrar-lhe a saia enquanto ela voava para a porta. O vestido rasgou mais um pouco, mas não o
suficiente para deixá-la livre. Puxou-a para ele com força aterradora e virou-se. Seus olhos deram
com os brancos ombros a emergir do vestido esfarrapado, e ele passou a língua nos beiços:
— Sua pele parece cetim. Tenho loucura pela suavidade da carne feminina. Talvez se possa adiar
sua.. partida... por alguns momentos — murmurou. Os dedos de garras arrancaram a roupa do
peito dela. O vestido caiu, deixando-a somente de combinação. Os olhos dele pareciam queimar
através do pano transparente e sua respiração se tornou ofegante. Parecia mais um cão faminto
em cima de um osso. Acabou de rasgar a peça de roupa até não restar sequer um fio de linha a
cobri-la.
Heather gritou e lutou contra ele, empurrando-o pelo peito,, porém ele era forte apesar do seu
tamanho e apenas ria ante seus inúteis empenhos.
— Não tem a metade da força de Louisa... Esmagou-a de encontro a ele, fazendo-a arquear-se de
repugnância, e cobriu-lhe o pescoço e os seios de beijos asquerosos. Depois, malignamente como
se fosse um cão danado, cravou-se os dentes no ombro. Um grito o afastou do pescoço de
Heather. A cabeça dela rolou molemente em agonia. Soluçando, ela sentiu que ele movia a boca
para baixo, em direção a seu seio e se deu conta de que ia mordê-la novamente. Ele a curvara
tanto para trás que ela estava certa de ser a única coisa a apoiá-lo. Subitamente lembrou-se
quando certa vez, outrora, fora assim curvada contra a sua vontade: ela fizera William Court
esparramar-se porque ela caíra ao chão. Não tinha tempo de raciocinar se a coisa tornaria a
funcionar: sem o menor aviso, ergueu os pés. Imediatamente sentiu que ambos caíam. Ele a
soltou, num
361
esforço para evitar a própria queda. Ela chegou ao chão primeiro e rolou para longe dele: no
instante seguinte estava de pé e movendo-se. Ele esticou um braço comprido para agarrá-la mas
só conseguiu roçar sua coxa. Agora ela corria doidamente, para as escadas, sem olhar para trás.
Sabia que ele estava já de pé, mas tinha esperanças de que as escadas o retardassem. Respirava aos
arrancos e forçava até o menor resquício de força que possuía nas pernas para chegar até as
escadas. No topo, ela deu uma olhada em volta. Ele estava nos últimos degraus, aproximando-se
depressa, e agora tinha uma pistola em cada mão.
Com um grito, ela se virou e meteu-se pelo primeiro quarto a que chegou. Atravessou-o correndo
até o quarto pegado, fechando as portas sem ruído atrás dela. Só ao chegar ao último quarto
daquele lado do vestíbulo é que parou. Não poderia ir adiante sem penetrar no vestíbulo,
justamente onde os passos dele podiam ser ouvidos, macios e hesitantes: ele estava imaginando
onde ela poderia estar.
Heather fechou os olhos e tratou de acalmar as batidas aceleradas de seu coração. Parecia um
tambor em seus ouvidos, tornando quase impossível ouvir que direção ele tomava ao procurá-la.
Era duplamente difícil, com o barulho da tempestade lá fora. Tremendo, apoiou-se à parede e
tocou o ombro, onde os dentes dele lhe haviam marcado a pele. Se a apanhasse, ele não cessaria
até rasgar-lhe o corpo todo com aqueles dentes cruéis — e ela imaginou se Sybil e Louisa teriam
enfrentado tal tortura. Ele violentara ambas as mulheres e agora estava atrás dela. Um súbito flash
de memória fez surgir diante dela uma sombria figura a cavalo, vindo.. vindo em sua direção,
embrulhado num manto preto. Mas desta vez seu rosto estava visível: Era o Sr. Hint.
Heather cobriu o rosto com o braço para espantar a aberração. Era demasiado horrível. Ele era
horrível demais. Que Deus permitisse a sua morte antes de ser usada para o prazer do monstro!
Tremeu enquanto se aconchegava à parede. Sem suas roupas, as correntes de ar, através das
venezianas, pareciam duplamente cortantes. Esgazeou o olhar para sua nudez e mordeu os lábios.
Desejava procurar algumas roupas no armário bem a seu lado, mas não queria correr o risco de
produzir o mais leve ruído.
De algum lugar nos quartos embaixo, no vestíbulo, ela o ouvia batendo portas de armários e
arremessando móveis em todas as direções. Esperaria até que ele chegasse ao quarto ao lado
daquele em que ela estava, antes de fazer qualquer movimento. Se pudesse passar pela porta sem
ser percebida, conseguiria chegar à escada sem muito esforço e fugir. Seu próprio casacão estava
no vestíbulo. Se pudesse agarrá-lo antes que ele se desse conta de que ela estava fugindo. Mas sua
vida era mais valiosa que sua modéstia. Oh, céus, se pudesse escapar-lhe!...
362
Com um sobressalto, percebeu que ele chegara ao quarto ao lado. Quietamente, de modo a não
fazer o menor ruído, ela girou a maçaneta da porta que dava para o vestíbulo, mantendo um olho
atento para a porta entre os dois quartos. Sem sequer relancear os olhos pelo vestíbulo, ela
deslizou para fora e fechou a porta sem barulho. Recuou alguns passos, depois se virou para
passar correndo pelo quarto em que ele estava.
Gritou e morreu de mil mortes quando sentiu um braço de homem fechar-se em torno dela.
— Heather! — gritou Brandon, alarmado. Seus olhos percorreram seu corpo nu.
Com um soluço meio sufocado, ela se apoiou em seu peito, nem perguntando que milagre o
trouxera da cadeia até ela. Ele estava ensopado pela tempestade, porém era uma umidade segura,
agradável. Então ela ouviu som de passos correndo e soube que Thomas Hint estava novamente
em sua busca. Com o coração na boca, puxou pelo marido:
— Oh! Brandon! depressa! ele tem pistolas. Brandon estava pálido:
— Ele a machucou, Heather?
Ela não teve tempo de responder. Ela sabia sua intenção, mas não pôde parar para tranqüilizá-lo:
empurrou-o para um quarto do outro lado do vestíbulo e estava acabando de fechar a porta
quando o Sr. Hint abriu a dele e olhou para fora. Ele a viu imediatamente e levantou a pistola.
Por um segundo ela ficou petrificada e logo o tiro explodiu. A bala lhe passou perto da orelha,
depois de atravessar a porta e lascar a pesada madeira; trêmula, ela bateu a porta.
Brandon não se deteve a fazer perguntas. A bala passara perto demais de sua esposa. Empurrou
Heather para trás dele, enquanto se achatava de encontro à parede, perto da porta. A maçaneta
girou enquanto ele ali estava, tenso. A porta foi escancarada e o Sr. Hint entrou, caminhando
com dificuldade. De sopetão, Brandon deu-lhe um golpe no pulso que fez a pistola cair. O Sr.
Hint se virou, completamente espantado. Pela surpresa que demonstrava estava claro que
desconhecia a presença de Brandon antes de entrar no quarto. Isso foi um choque para ele:
descobrir que não estava perseguindo apenas uma mulher indefesa, mas também seu marido —
marido que estava longe de ser indefeso. O Sr. Hint viu o punho vindo e rolou para o lado, mas
não completamente fora de sua trajetória. O punho pegoulhe a face, com menos de sua força
total, porém mesmo assim o mandou de costas contra a parede. Estonteado, conseguiu erguer a
pistola que ainda segurava na outra mão até ser apontada para Brandon. Ele ouviu a mulher
gritar.
— Você arrancou da minha mão a arma errada, Sr. Birmingham. Que pena, não é?
363
Brandon fez um movimento para a frente, com expressão assassina. Heather tornou a gritar e
agarrou-lhe o braço, puxando-o para trás com todo o seu peso para detê-lo. Não pôde.
— Ele não me feriu, Brandon! Fugi a tempo!
Brandon parou. Olhou para ela e um pouco da violência pareceu acalmar-se.
— Ele matou Louisa — ela disse.
— Ora, se matei! — confessou Hint, sorrindo para Brandon. — E não pensarei duas vezes antes
de balear vocês. Mas tenho uma ideia de que sabe do que realmente fiz, não sabe?
— Talvez — replicou Brandon. Recuou alguns passos, puxando Heather com ele.
— Ora, tenho isso como certo. Ouvi que estava indagando a meu respeito, na cidade. Começou a
fuçar naquele dia em que foi à minha loja, querendo saber quando vim da Inglaterra e que tipo de
sujeito eu era. O que desejo saber é por quê.
Brandon sorriu descansadamente, enquanto puxava a camisa dos ombros:
— Minha esposa mencionou o seu nome várias vezes. Espantada, Heather virou a cabeça para
olhá-lo atentamente. Ele lhe sorriu tranqüilamente, pondo a própria camisa em torno dela, porém
seu olhar endureceu quando ele deu com as marcas deixadas pelos dentes de Hint. Sua boca se
tornou rígida quando ele tocou o local e o músculo em sua face tremeu violentamente.
— Ah, vejo que notou minha marca em sua mulher. Ela é uma coisinha especial, não é? Sem
roupa é realmente encantadora. É duro de admitir, para um camarada em minha profissão. Mas é
verdade. Nunca vi ninguém que se compare com ela em beleza. E é uma coisinha mais cheia de
recursos do que a maioria. Fugiu de mim antes que eu pudesse provar os seus encantos.
Escorregadia como uma enguia, a danadinha.
— Você já estaria morto se tivesse tocado nela — resmungou Brandon.
O Sr. Hint careteou o seu horrível sorriso malicioso:
— Então ela lhe falou a meu respeito, hem? Não imaginava isto. Quando ela fugiu da loja de
Willy naquela noite pensei que estaria aterrorizada demais para dizer meu nome, pensando que
havia assassinado o cara e tudo. Não imaginei que ela falaria. Mas então por que pareceu tão
apavorada quando eu lhe disse que contaria tudo ao senhor se ela não comprasse meu silêncio?
— Creio que minha mulher nada sabia do que me disse. O Sr. Hint franziu o sobrolho:
— Que é que está dizendo? Isso não faz sentido!
— Não importa, Sr. Hint. Agora, se quiser ter a bondade de dizer-me o que lhe deu minha
mulher, eu lhe agradeceria.
364
— O senhor sabe o que ela me deu, ou pelo menos parte disso: eu o vi apanhar aquele brinco de
diamantes quando ficou perto do cadáver de Louisa. — O Sr. Hint sorriu enquanto Heather
suspirava fundo, e mergulhou a mão no bolso do paletó. Tirou de lá um punhado de jóias que
mostrou a Brandon: — Para satisfazer sua curiosidade, chefe. — Sorriu afetadamente: — Bonito
lote, não? Exatamente como sua esposa. Linda coisinha que ela é, com sua pele de seda e seus
cabelos negros. Tem umas tetas que eu aposto que qualquer homem desejaria tocar, lindas, e...
— Também violentou e matou Sybil Scott? — interrompeu Brandon.
O Sr. Hint piscou para ele:
— Fui eu, sim. Ela riu de mim, como Louisa. Segui-a desde Charleston naquele dia e tive meu
prazer com ela no meio do mato. Mas nem de longe era bonita como sua mulher.
— Também estava na mata perto da minha serraria?
— Ah! Naquele dia custei a me conter! Senti algo por ela que me deixou sofrendo por uma
semana.. Quando o ambulante me vendeu aquele vestido, soube que ela estava aqui. Tentei
arrancar dele onde o havia conseguido, mas não soube dizer. Na mata eu a reconheci
imediatamente como a mesma mocinha que Willy tentara levar para cama. Ela o enganou
também e meteu uma faca nele.
— Não! — gritou Heather. — Ele caiu em cima da faca quando estávamos lutando!
— Bem, ela pensou que ele estivesse morto, mas não estava. isto é, até que eu lhe cortei a
garganta.
— Assassinou todas essas pessoas, Sr. Hint, sem que ninguém suspeitasse do senhor? —
perguntou Brandon.
— Ora, e mais uma porção delas! Aproveitei minha vida até quando tive de fugir da Inglaterra,
mas ninguém me apanhou, e aqui ninguém suspeitou de mim.
— Deve julgar-se muito esperto.
— Esperto bastante para acrescentar mais alguns à minha lista. — Sacudiu a pistola
perigosamente. — Mas tenho vontade de satisfazer-me com sua esposa diante dos seus olhos,
com você ainda vivo. Nunca fiz a coisa deste jeito.
Brandon bufou:
— Você estará morto se puser um dedo nela.
O Sr. Hint riu alto. Havia em seus olhos um brilho doentio:
— Será um prazer enorme! Já posso vê-lo — todo amarrado, incapaz de mover-se, enquanto eu
terei sua mulher esparramada na cama. Vai ficar louco ao me ver metendo nela... Até vou fazer
com que ela chame por você a cada mordida minha.
Heather grudou-se a Brandon, escondendo o rosto em seu peito.
365
— Eu mesmo a matarei antes de permitir que ponha nela suas mãos imundas! — jurou Brandon.
— Não vai chegar nem perto dela. Melhor mirar cuidadosamente com essa pistola, pois, se não
me matar com esse único tiro de que dispõe, não viverá muito, depois de disparar esse gatilho.
Ia encaminhando-se para o homem, empurrando Heather para trás dele.
— Sua morte pode ser arranjada bem facilmente — preveniu o Sr. Hint, encostando-se à parede.
Ergueu a pistola até mirar o coração de Brandon.
Com um grito, Heather pôs-se em frente de Brandon. Tentou empurrá-lo para trás dele, porém
ela se agarrou a ele selvagemente e, em seu temor por ele, sua força ultrapassou os limites
normais.
— Em nome de Deus, Heather, saia da frente! — ele gritou.
— Não! — teimou a moça. — Ele só tem uma bala. Só pode matar um de nós. — Sua voz
tornou-se suplicante: — Deixe que seja eu, Brandon! Prefiro morrer agora do que deixá-lo tocar-
me... não poderia suportar.
— Sua esposa tem sua opinião, chefe. Dificilmente eu poderia matar os dois com uma só pistola.
Seria interessante ver qual dos dois vou pegar. Estão ambos tão ansiosos para morrer um pelo
outro.. — Escarneceu de Brandon: — Agora o senhor, chefe, é um homem galante. Diz que
mataria sua esposa antes que eu pusesse as mãos nela. Que cavalheirismo! Podia-se apostar que
pensa que não presto pra ir pra cama com ela!
— Você não presta nem para que ela pise em você — rosnou Brandon. — Então você
honestamente acha que vou permitir que toque nela? Não deixo que homem nenhum use o que é
meu, e você, que rasteja de barriga na lama e no lodo, pensa que eu não lutaria contra o céu e o
inferno para mantê-la livre de sua depravação?!
— Não tem escolha, chefe. — Hint sorriu maliciosamente. Seus olhos percorreram as costas de
Heather. Mantendo a pistola apontada para a cabeça de Brandon, alcançou a camisa que cobria a
moça e a arrancou. Recuou rapidamente, a sorrir enquanto seus olhos a percorriam avidamente:
— Gosto mais dela assim.
Com um som semelhante a um rugido, Brandon avançou, mas imediatamente a atenção de Hint
estava sobre ele:
— Para trás ou estourarei a cabeça de sua mulher! — ameaçou. Um galho bateu na janela com a
força da tempestade, quebrando uma vidraça e assustando o Sr. Hint. Ele olhou em volta,
surpreso, e Brandon aproveitou o momento; deu um bote para a frente, pegando o Sr. Hint
desprevenido, mas não tanto que o homem esquecesse a pistola que tinha na mão: disparou.
Heather gritou enquanto Brandon cambaleava para trás, mas sem chegar a cair. Ele apertou o
ombro,
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de onde o sangue esguichava sobre seu braço e peito, e sorriu dolorosamente.
O Sr. Hint se deu conta de seu erro: o homem não morrera, e ele tinha certeza de que Brandon
manteria sua promessa e poria fim à sua vida. Agora era ele o caçado. Aterrorizado, pulou para a
porta e estava fora do quarto num abrir e fechar de olhos apesar de ser coxo.
Sem um segundo de hesitação Brandon foi atrás dele. Heather parou por um momento, confusa
e sentindo-se mal. O choque de ver Brandon cambalear com a descarga da pistola foi demasiado
violento. Ela também saiu, ainda tremendo, a tempo de ver o marido precipitar-se pela escada em
perseguição do Sr. Hint. O aleijado meio caía, meio escorregava pelos degraus. Ele olhou para
trás, por cima do ombro, medrosamente, e ela viu espuma a gotejar-lhe da boca. Sua língua
passou vigorosamente sobre os grossos lábios, os olhos estavam arregalados em um terror
pânico. Ao chegar embaixo, ele rodou em círculos, sem saber o que fazer. Olhou a pistola, que
ainda tinha na mão, dando-se conta de que era inútil. Ergueu-se acima da cabeça e atirou-a no
homem que o perseguia. Brandon abaixou-se e a pistola caiu atrás dele, sem ferir ninguém. O Sr.
Hint girou rapidamente a fim de correr para a porta, porém Brandon era ligeiro demais para ele:
pulou da escada e atirou-se em cima do corcunda. Ambos caíram ao chão, mas Brandon
instantaneamente estava de pé, puxando o homem com ele. Com um sorriso cruel, mandou um
punho contra o rosto de Hint. O homem vacilou para trás, o sangue a escorrer-lhe do rosto.
Brandon tornou a pegá-lo e bateu com ele na parede com força bastante para quebrar-lhe as
costas. O Sr. Hint gritou. Brandon apenas olhou o desprezível sujeito e enterrou o punho na
barriga dele. Quando o capenga tornou a dobrar-se, Brandon o fez endireitar-se com um soco
por baixo do queixo. O assassino guinchou e soluçou e implorou, enquanto tentava
desesperadamente libertar-se, porém Brandon não tinha intenção nenhuma de deixá-lo.
— Não terá outra oportunidade de cravar os dentes em minha mulher, filho da puta nojento!
Heather estava amedrontada. Nunca vira Brandon agir tão violentamente. Não se mostrava
enfraquecido pelo ferimento no ombro. Parecia até havê-lo esquecido. Ambos os homens
estavam cobertos de sangue, e era impossível dizer de quem era a maior quantidade. Misturavam-
se enquanto Brandon continuava a castigar Hint com os punhos. As pernas dela tremiam
enquanto ela descia as escadas em direção a eles, apertando um braço contrato o peito, a outra
mão tentando tapar o corpo. O homem se estava transformando numa massa sangrenta, incapaz
de compreender o que lhe estava acontecendo. Ele choramingou quando Brandon lhe mandou
outro murro.
367
Heather não podia agüentar mais. Correu para Brandon, segurou-lhe o braço e implorou:
— Pare, Brandon! Você o está matando! Pelo amor de Deus, pare!
Brandon, estonteado, soltou o homem e viu-o escorregar para o chão. O Sr. Hint gemeu e
agarrou-se à sua cintura, porém Brandon já não estava interessado nele, e Heather não queria
mais presenciar quão violento seu marido podia ser quando perdia o controle. Afastaram-se dele
sem sequer um olhar de piedade em sua direção. Ela começou imediatamente a examinar o
ferimento do marido. Ele estremeceu ligeiramente quando seus dedos gentis tocaram a carne
rasgada.
— Temos de ir para casa, Brandon. Essa bala precisa ser extraída de seu ombro.
Ele conseguiu sorrir ao responder-lhe:
— Receio estar fora de cogitação isso de ir para casa agora... Teremos de ficar por aqui para
passar a noite. A tempestade torna perigosa a viagem para casa. Ela piorou desde que cheguei e
provavelmente redobrará se nos aventurarmos lá fora.
— Mas seu ombro precisa de cuidados. E quanto a Beau? Quem o amamentará?
Ele riu e a puxou para si, sem se importar com o sangue que espalhava nos seios dela.
— Você terá de cuidar do meu ferimento, doçura, e quanto a Beau, encarreguei James de
providenciar uma ama de leite para ele no caso de não podermos voltar. Um trabalhinho perfeito
para James, desde que foi ele que a deixou vir. Foi imprudente você ter saído de casa numa
tempestade assim, Heather, e duplamente por ter ido em busca de Lulu.
— Mas, Brandon, eu não podia ficar sentada e nada fazer para ajudar. — ela protestou.
Eles não estavam cônscios da figura por trás deles a rastejar para a porta. Quando uma pancada
de vento e chuva os atingiu, ambos se viraram com um sobressalto e viram o Sr. Hint saindo. Ele
se estava arrastando tentando avançar contra o vento, que estava agora com uma intensidade
demoníaca. Brandon teve de lutar contra sua violência para chegar à porta. A esse tempo o Sr.
Hint corria pela varanda para o lado da casa onde os cavalos estavam amarrados. Brandon não
chegou a tempo de detê-lo e evitar que alçasse o seu corpo aleijado no lombo de Leopold Ainda
gritou um aviso para o homem, mas sua voz se perdeu em meio à ventania.
O Sr. Hint movimentou o cavalo, lutando por manter-se montado. Ele estava rindo, apesar de
sentado tão precariamente, pensando em como havia enganado aquele homem gigantesco que o
perseguia. Em sua juventude havia apanhado bastante de seu pai, o que lhe
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enrijeceu o corpo contra o que qualquer homem mortal lhe pudesse fazer. Ainda sentia a dor das
pancadas, mas não estava incapacitado a ponto de não se poder mover. Com uma gargalhada
estrepitosa meteu os calcanhares nos flancos do cavalo, e o animal arremeteu enraivecido.
Heather estava na varanda da frente lutando com o vento e a chuva quando ele passou por ela e
lá se foi pela alameda lamacenta, com os ramos dos enormes carvalhos a vergastar perigosamente
acima dele. Ela ouviu o estalar de um galho acima do estrondo do vento. Uma torrente de chuva
a encharcou quando lutou para chegar aos primeiros degraus do pórtico. Deu-se conta de
Brandon a passar por ela, correndo, os cabelos colados à cabeça, as calças ensopadas e grudadas
ao corpo, e o sangue do ferimento a correr. Ele se virou para olhá-la e sua boca se mexeu, mas
nenhum som podia ser ouvido acima da tempestade. Fez-lhe sinal para que entrasse na casa.
Muito perto deles relampagueou um raio e um trovão explodiu. Outra luz brilhante abriu o céu
quando Heather se virou e viu Leopold empinar-se, aterrorizado. Hint, incapaz de manter-se na
sela escorregadia, caiu quando um grande galho acima dele quebrou suas últimas amarras, com a
árvore sob a pressão do vento enlouquecido, e caiu ao chão, esmagando-o. Houve um relâmpago
ali por perto deles, e o grito de Heather foi abafado pelo trovão que o seguiu. Ela correu para
Brandon, porém ele já estava a caminho. Olhou por cima do ombro e fez-lhe sinal para recuar.
Ela se deteve e observou, enquanto ele corria para o Sr. Hint, sempre lutando contra o vento. Ela
o viu alcançar o aleijado e tentar levantar o galho que o abatera, e, quando ele não fez o menor
movimento, ajoelhar-se ao lado do homem. Ele olhou para trás, viu-a observando a cena, e
sacudiu a cabeça — e por esse simples gesto Heather soube que já não havia razão para retirar o
galho de cima do Sr. Hint: ele não mais podia senti-lo. Estava morto. Fora feita justiça.
Brandon deixou o vulto grotesco do homem sob o galho e correu para Heather. Houve outro
relâmpago bem perto enquanto ele a pegava e puxava para a casa.
— Fique aí dentro. Tenho de recolher ao estábulo Lady e o cavalo do Sr. Hint.
— Deixe-me ajudá-lo. Você não está em condições de fazer isso sozinho.
— Não. Agora entre e fique lá. Isso não demorará. Procure o que precisa para cuidar do meu
ombro e deixarei que você o faça, assim que eu voltar.
Empurrou-a para dentro e fechou a porta atrás dela. Ela se apressou em buscar o necessário para
o curativo — inclusive uísque e lençóis limpos. Deixou essas coisas junto da cama que preparou,
e achou vários candelabros para colocar perto da cama. Caíra a noite e, a não ser pela luz dos
relâmpagos, a casa estava na maior escuridão.
369
Encontrou a camisa de Brandon no quarto do outro lado do vestíbulo e a vestiu — não
querendo tocar num só artigo do guarda-roupa de Louisa.
Quando Brandon entrou, ela o esperava ansiosamente na porta da frente. Os candelabros que ela
colocara por ali mostraram-lhe o rosto dele muito pálido. Quando ele estremeceu e. quase caiu de
encontro à porta, ela apressadamente o embrulhou num cobertor. O tiro deixara um orifício nada
pequeno e agora ele parecia estar sofrendo muito. Ela o ajudou a subir a escada e a atravessar o
vestíbulo até o quarto que ela havia preparado. Ao passarem pelo quarto de Louisa olharam
silenciosamente para a cama de quatro colunas, claramente iluminada pelas velas que Heather ali
deixara ao procurar uma tesoura. Apesar das dores que sentia, Brandon sorriu ao ver a colcha de
cetim rasgada no chão, e Heather baixou a cabeça, como culpada, e continuou seu caminho com
ele. Quando, finalmente, o teve junto à cama, pegou a tesoura para tentar tirar-lhe as calças
molhadas.
— O que planeja que eu use amanhã quando a levar para casa, minha querida? — perguntou,
divertido. — Garanto-lhe que não deixei calças aqui ao tempo em que namorava Louisa, Apenas
ajud-me a tirar estas.
Ele pôs uma bolsa de couro na mesa ao pé do leito antes de procurar ajudá-la. As calças justas
não saíam facilmente, quando molhadas. Ela deu um profundo suspiro de alívio quando ele se viu
livre delas, e apressadamente o fez subir na cama. Depois de limpar o ferimento e examiná-lo
cuidadosamente, deu-lhe um copo generosamente cheio de uísque.
— Não preciso de outra distração que a que você me apresenta metida em minha camisa, meu
amor — ele implicou. — Você é um médico encantador e, se eu beber uísque demais e olhar para
você, posso esquecer de mim mesmo e usar esta cama para outra coisa que não dormir..
Ela riu e observou aprovadoramente enquanto ele ingeria o conteúdo. Havia adoração nos olhos
dela enquanto o contemplava e gentilmente afastava os cabelos molhados de sua testa, os dedos a
acariciá-lo suavemente. Ele a olhou, pegou-lhe a mão e a beijou numa ardente mostra de afeição.
— Brandon — disse a moça, preocupada — não tenho forças para segurá-lo e, se tenho de
retirar a bala, você precisa ser mantido imóvel. Jeff devia estar aqui.
— Faça o que precisa ser feito, Heather. Eu ficarei imóvel para você. Jeff teria atrapalhações
comigo se eu me movesse, mas para você ficarei tão imóvel quanto um carvalho.
Manteve sua palavra. O suor lhe brotava da fronte, a boca ficou rígida, porém não fez qualquer
movimento enquanto ela experimentava retirar a bala de chumbo. Heather demonstrava sofrer
mais do que ele.
370
Apertava o lábio entre os dentes, franziu as sobrancelhas e parecia que iria rebentar em lágrimas
se ele gemesse.
Afinal localizou a bala e conseguiu segurá-la com a tesoura. Com as palmas das mãos suadas
extraiu-a. Houve um esguicho de sangue que ensopou os chumaços que ela apertava no
ferimento. Exceto pela testa úmida, não houve sinal de dor no rosto de Brandon: ela se
maravilhou ante o domínio que ele tinha sobre o próprio corpo. Depois, quando o ferimento já
fora enfaixado, ela se sentou na cama ao lado dele e lhe enxugou a fronte.
— Quer dormir agora? — ela perguntou suavemente. Ele lhe acariciou a coxa:
— Sua visão afasta todas as dores e o pensamento de dormir da minha mente, meu amor, e até
me tenta a exercer meus direitos conjugais. Senti falta de você na noite passada, querida.
— Nem a metade do que eu senti de você — ela murmurou, beijando-o ardentemente.
Ele lhe deu uma olhada que lhe arrancou a camisa do corpo quando ela recuou.
— Não machucaria o meu ombro se viesse para a cama comigo agora. Posso até segurá-la, se
deitar do meu lado bom — disse ele.
Ela apagou as velas, à exceção de uma, e, deixando a camisa no espaldar de uma cadeira, meteu-se
entre os lençóis e se aconchegou contra ele, achando a cama um confortável paraíso com a
tempestade devastando lá fora. Permaneceu quietinha por alguns momentos, porém a curiosidade
levou a melhor e ela o chamou:
— Brandon.
Ele lhe beijou a testa e perguntou:
— Sim, amor?
— Por que suspeitou do Sr. Hint tão depressa? Ele disse que você andou fazendo perguntas a
respeito no dia seguinte ao daquele em que nos encontramos no teatro. Esteve mesmo?
— Sim.
— Mas por quê?
— Quando você esteve doente na viagem da Inglaterra para cá, dizia coisas em seu delírio. Uma
dessas coisas era o nome do Sr. Hint. Obviamente, você tinha medo dele, mas, quando vi no
teatro o terror que você realmente tinha dele, quis saber mais a respeito do homem.
Ela o mirou, pensativamente:
— Que mais disse eu? — perguntou. Ele sorriu lentamente antes de responder:
— Falou muito sobre seu pai, me tomando por ele, e sobre um homem chamado William Court.
O que consegui deduzir de seus delírios é que você pensava haver assassinado esse homem
quando ele tentara violentá-la. Sempre falava o nome dele junto com o do Sr. Hint, e expressava
medo de que o último a acusasse de assassinato.
371
— Você sabia de tudo isso e nunca me falou?
— Queria que você viesse a mim primeiro e confiasse em que eu poderia ajudá-la.
Heather engoliu com dificuldade, pestanejando para espantar as lágrimas.
— Receava magoá-lo ou mesmo perdê-lo, e queria tanto fazê-lo feliz... e que você não se
envergonhasse de mim... — conseguiu falar.
Ele sorriu ternamente ao dizer-lhe:
— Você pensa que eu não teria sido feliz, e que não teria conhecido seu segredo por muito
tempo? Você não tem nenhum para mim.
— Nenhum? — perguntou ela, cautelosamente.
— Nenhum — ele respondeu positivamente. — Sei até que você desejava uma menina para
enraivecer-me.
Ela riu e corou.
— Oh, que horrível, Brandon! E você foi tão fechado que nunca suspeitei de nada. Mas sabia que
o Sr. Hint matou Sybil e Louisa?
— Depois que o conheci, soube que fora costureiro de Sybil, mas não havia provas de que fora
ele quem a assassinava. Quando Louisa foi morta, eu já não tive dúvidas, mas precisava de
provas. Confiava em que Lulu pudesse dizer-me que ele estivera com Louisa, mas Townsend
chegou e me prendeu antes que eu pudesse falar com ela. Townsend descobriu que Louisa
estivera pagando suas dívidas com dinheiro dado por mim, e suspeitou de que ela estivesse me
chantageando por algum propósito que ele julgou fosse referente à morte de Sybil. Eis por que
estava tão certo. E ainda com uma testemunha que me viu sair correndo do local.
— Você lhe falou de suas suspeitas?
— Sim, e quando Lulu foi procurá-lo espontaneamente e lhe falou da visita do Sr. Hint a Louisa,
ele começou a dar-me crédito.
— Lulu foi procurar Townsend?
— Sim. Ela escapuliu da casa depois que viu o Sr. Hint sair, tendo antes encontrado o corpo de
Louisa. Não perdeu tempo em esconder-se até poder estar com o xerife em segurança.
— Por isso é que você disse que foi tão temerário eu ir procurá-la. Ela já havia contado sua
história a Townsend... Suponho que agora você me julga uma criança sem juízo.
— Bem... sei que você não é uma criança — ele implicou, e então houve em sua voz um tom de
admoestação — mas estou zangado porque você entregou àquele cachorro as jóias que lhe dei.
Ela manteve os olhos baixos.
— Tinha medo de que ele lhe contasse o que eu havia feito — explicou. — E não teria sido
correto entregar as jóias de sua mãe: sei
372
o quanto você a adorava. Feriu-me profundamente ter de separar-me das minhas, mas era tudo
que eu tinha para dar-lhe.
Se você matasse William Court pensa que eu a censuraria? Meu Deus! O homem merecia isso!
Eu não teria sido tão crédula a ponto de acreditar que ele me conseguiria um lugar no
estabelecimento de Lady Cabot se não estivesse tão ansiosa para sair.
Você disse Lady Cabot?...
Ela acenou afirmativamente:
— Eu ia ser professora auxiliar. Ele dobrou as gargalhadas:
— Para ensinar o quê, madame? — perguntou. — Como ir para a cama com um homem? Minha
querida esposa, a casa de Lady Cabot é a nata dos bordéis de Londres. Confesso ter estado lá
uma ou duas vezes. Ora, na verdade, poderia ter conhecido você lá se as coisas tivessem sido
diferentes. — E com certeza a você é que eu teria escolhido para ir para a cama comigo.
— Brandon Birmingham! — ela gritou, indignada. — Quer dizer que teria preferido desse modo?
— Sentou-se, num acesso de ira, e ameaçou sair da cama, porém ele a puxou de volta com seu
abraço de um só braço.
— Não, querida, eu estava só implicando com você. — E sorriu. — Deve conhecer-me melhor
do que isso.
Ela fez beicinho de amuada:
— Não fazia a menor ideia de que era esse tipo de lugar — comentou.
— Sei disso e estou contente de que aquele canalha que pensou em pôr você ali tenha
encontrado o seu fim. Ou eu seria tentado a voltar atrás e torcer-lhe o maldito pescoço. Recebeu
o que merecia por tentar violentá-la.
Ela o olhou maliciosamente e disse:
— Você foi quem me violentou. O que é que merece? Ele sorriu vagarosamente e respondeu:
— Recebi minha justa recompensa quando tive de me casar com uma garota arrogante e
convencida como você. — Alcançou a bolsa de couro que estava na mesa e deixou-a cair em sua
barriga. — Não as deixe extraviar-se novamente, madame. De outra vez não serei tão
compreensivo.
Ela agarrou a bolsa e a abriu: ao virá-la, suas jóias caíram.
— Como conseguiu arrancar isto do bolso do Sr. Hint, com aquele galho em cima dele? — ela
perguntou, surpresa.
— Elas caíram quando ele escorregou do Leopold. Lavei a lama lá nos estábulos. Não sei por que
ele preferiu montar Leopold quando seu cavalo estava ao lado. Penso que talvez estivesse
planejando sair
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de Charleston antes que Lulu tivesse oportunidade de falar. Mas é estranho que tivesse pegado
Leopold.
— Talvez pensasse que Leopold era o mais veloz.
— Bem, assim como William Court recebeu o que merecia, o mesmo aconteceu ao Sr. Hint.
Agora esqueçamos os dois. Tenho uma ideia para retribuir a arrogância de certa garota.
Heather riu alegremente, sentindo-se agora livre de todas as dúvidas e temores atormentadores, e
enrolou-se como uma bola de encontro a eles.
— Então, você recorre a artimanhas quando sabe que estou com o ombro e um braço
defeituoso, não? Não esteja tão certa de que não posso manejá-la por implicar comigo, menina.
Virarei para cima essa sua bundinha e lhe darei uma surra que não esquecerá tão cedo.
Insegura quanto à coisa — se era brincadeira ou não — ela se desenroscou e olhou para ele,
cautelosamente, porém ele sorria abertamente.
— Madame, a senhora me espanta! Jamais ergui a mão para a senhora e ainda age como se
esperasse que eu o fizesse. Pensa que me arriscaria a machucar o meu play-ground? Agora venha
cá, minha coisinha, e deixe-me usá-lo.
— Mas e o seu ombro? — ela falou, preocupada.
Ele sorriu confiantemente, puxando-a bem para si, e disse:
— Madame, esta noite a senhora cavalgará.
Havia passado o pior da tormenta quando se puseram a caminho, na manhã seguinte, montando
Lady Fair. Ainda havia nuvens pesadas no céu, porém a chuva cessara e o vento era um pálido
fantasma do gigante da última noite anterior. O casacão que Heather usara na véspera estava
úmido e sufocante ao calor da manhã alta, e ela ansiava por livrar-se dele, mas achou que à camisa
de Brandon faltava algo da moda popular.
— Jeff não se importará se você se descartar dessa coisa, e Hatti está cansada de vê-la pelada —
implicou Brandon.
Heather lançou-lhe um olhar travesso e disse simulando desabotoar o casacão:
— Se você está certo de que Jeff não se importará. Ele segurou-lhe a mão e sorriu:
— Ele não se importará, mas eu sim. Você ouviu o que eu disse ao Sr. Hint a respeito. Odiaria
ter de virar-me contra meu próprio irmão.
De modo que o casacão permaneceu onde estava e eles chegaram a casa poucos minutos depois
— Heather literalmente fumegando. Todos da casa vieram correndo a recebê-los, Jeff com
aparência de quem não conseguira dormir, Hatti chorando em seu avental.
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-— Oh! Deus! sinhô Bran, pensamo que havia acontecido uma coisa ruim procês! Leopold
chegou muito nervoso.. pensamo que tinha derrubado o sinhô e lhe quebrado o pescoço. —
Virou-se para a patroa, sacudindo a cabeça grisalha: — E a sinhora, Dona Heather, me assustou
que até fiquei verde! Quase matei o James por deixá a sinhora saí. Fiquei doente de preocupação
por sua causa, minína!
Uma lambada de vento pegou a aba do casacão de Heather e a levantou. Brandon o repôs no
lugar, mas não antes que Jeff e Hatti percebessem a coxa nua.
— Dona Heather! Que aconteceu com suas ropa?
— O assassino de Louisa tentou dar fim a ela também — respondeu Brandon, escorregando de
Lady Fair. Careteou de dor e agarrou o curativo do ombro, ficando pálido.
Heather deslizou do cavalo e ansiosamente inspecionou o curativo:
— Oh! Brandon, está recomeçando a sangrar! Você deve subir e deixar-me ver isso outra vez. —
Voltou-se para Hatti: — Vou precisar de ataduras limpas e água, e diga a Mary para trazer-me
Beau, por favor. Imagino que, a essa altura, esteja faminto! Preciso livrar-me de um pouco de
leite. James, leve Lady e dê-lhe uma boa escovadela. Luke, por favor, vá até Charleston e diga ao
xerife Townsend que precisam dele na plantação Oakley, com alguns agentes. Jeff, venha
conosco, Brandon quer contar-lhe o que aconteceu na noite passada.
Cada qual apressou-se em cumprir a tarefa de que fora incumbido.
— A cada dia que passa ela vai ficando mais parecida com a Dona Catherine. — Hatti ria
disfarçadamente.
No vestíbulo Heather deu com George, que abaixou a cabeça e arrastou os pés, embaraçado. Ela
parou, voltou-se e ergueu uma sobrancelha indagadoramente:
— George?
— Sim, sinhora? — ele atendeu, levantando a cabeça: um dos olhos estava completamente negro.
— Que aconteceu ao seu olho, George? Está todo preto!
— Tá sim, madame — ele concordou.
— E então?
Ele olhou para o comandante e pigarreou:
— Foi um assunto que tive de acertá em Charleston, madame.
— Que assunto?
Ele olhou em volta, incomodado, deu um risinho para Jeff e explicou:
— Foi Dickie, madame. Lembra dele?
— Claro, George. E quantos olhos pretos Dickie está usando?
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