Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Condessa de Ségur
Infanto-Juvenil
Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina- se unicamente à leitura de pessoas
portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode
ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.
Para a EDITORIAL PUBLICA com sede na Avenida Poeta Mistral, 6-B -1000 Lisboa
Maio de 1986
A MEU NETO
PAULO DE PITRAY
Quando fores crescido verás, ao ler a história do Gaspar, quanto é útil estudar e trabalhar com
gosto. E saberás o que Gaspar só muito tarde aprendeu. é preciso ser bondoso, caritativo e
piedoso para aproveitar todas as vantagens do trabalho e sermos realmente felizes.
Torna-te, por conseguinte, um rapaz instruido e bom cristão. É o que te pede tua avó que te
estima e Quer a tua felicidade.
CONDESSA DE SÉG UR
O colégio
GASPAR - Qual história!... Depois, nunca se aprende de mais... e é coisa muito divertida,
aprender.
LUCAS - Sim, quando é para trabalhar ao ar livre; mas não para quebrar a cabeça.
GASPAR - Nada disso... Além de tudo o mais só nos ralham quando somos mandriões...
LUCAS - Sempre te digo que se não fosse meu pai obrigar-me a ir para o colégio, eu nunca lá
entraria.
LUCAS - Isso que importa? Não seria por esse motivo mais infeliz.
LUCAS - Porquê?
GASPAR - Porque me aborrecerias deveras; não saberás ler nem sequer escrever.
LUCAS - Mas saberei outras coisas. Saberei lavrar, gradar, ceifar, partir lenha, guiar cavalos.
GASPAR - Hás-de ver: tornar-me-ei sábio, farei máquinas, livros, ganharei muito dinheiro, terei
operários e viverei como um príncipe.
LUCAS (rindo) - Ah! ah! ah! Que belo príncipe! De blusa e de socos! Ah! ah! ah! Chegamos.
Dêem passagem a Sua Alteza!
Lucas abre a porta do colégio, rindo às gargalhadas, e faz entrar Gaspar, repetindo:
GASPAR - Já to tenho dito. Fazer como o magricela do Sr. Féréor, que era um ferrageiro e tem
milhões e fábricas em toda a parte e terra em vários pontos, e solares, e manda em milhares
de operários e é tão feliz, que não é possível ser-se mais.
LUCAS - Feliz? Por isso ele grita tanto, e corre atrás dos seus operários como o cão atrás do
gato; anda continuamente como o Judeu Errante, não descansando nem em dias santos nem
aos domingos.
GASPAR - Não digo menos disso, mas possui milhões e a Legião de Honra, solares e terras em
tal quantidade que não sabe o que há-de fazer delas; e todos o cumprimentam e temem.
LUCAS - É certo que o temem mas não gostam dele; e tu és o primeiro a chamar-lhe velho
pergaminho, velho avarento, unhas de fome e não sei que mais.
GASPAR - Porque não é bondoso, não dá nada aos pobres e é ríspido para os operários; mas
hás-de ver que não farei como ele.
LUCAS (rindo) - Nada disso verei porque ficarás o que és: operário a ajudar o pai a fazer
prosperar a fazenda.
GASPAR - Mas eu não quero trabalhar na terra; já to tenho dito, não trabalharei nela.
Gaspar e Lucas avistaram o pai que os fora esperar ao caminho, e parecia pouco satisfeito com
aquela longa ausência.
PAI (com rudeza) - E porque discutiam em vez de andar? Bem sabem que eu sozinho não posso
apanhar a erva.
LUCAS - Está bem, pai. Vou já. Gaspar quer ser uma pessoa importante e eu estava a troçar
dele.
PAI - Ah! queres ser uma pessoa importante? Ainda és muito novo, meu rapaz. Vai depressa à
erva; eu vou buscar os atilhos e daqui a pouco estou com vocês.
O pai entrou no pátio da quinta; Lucas correu para o campo; Gaspar caminhava mais
morosamente, repetindo:
- A erva, a erva! Que me importa a mim a erva? Ora é uma coisa, ora outra. Nunca se descansa
nesta malfadada quinta. É arreliante, aborrecido!... E o palerma do Lucas que gosta deste
trabalho pesado e maçador! Não percebe nada! É tapado como uma porta!
PAI (juntando-se-Lhe) - Olha lá, tens as pernas atadas? Pareces uma tartaruga a andar. Vê teu
irmão, lá em baixo, pronto para o trabalho.
PAI - Quero lá saber do teu mestre e das suas lições! O teu dever é ajudar no trabalho da
quinta; de momento não conheço outro. Vamos, anda, mexe-me essas pernas.
O pai empurrou com rudeza Gaspar, que estava maldisposto, mas foi obrigado a estugar o
passo como o pai. Quando chegaram ao campo, Lucas trabalhava com afinco e já enfeixara
parte da erva.
O pai entregava-se já ao trabalho com a sua gente e ainda Gaspar estava a pegar na forquilha.
GASPAR (em tom carrancudo) - Deixa-me em paz; se não está satisfeito, eu não o estou mais.
Todos me aborrecem.
O pai continuava a olhar e notando a manifesta má vontade de Gaspar, abeira-se dele e dá-Lhe
uma pancada com a forquilha.
- É para te dar coragem para o trabalho, mandrião! Começa, ou far- te-ei trabalhar mais
rudemente do que imaginas.
Gaspar sabia muito bem que o pai não era para graças quando se tratava de trabalho e foi
obrigado a entregar- se a sério à tarefa, mas maldisposto e de má vontade; em vez de remover
a erva com a forquilha, empurrava-a deixando metade sem lhe tocar. O pai espreitava-o
disfarçadamente.
Trabalharam assim perto de duas horas; estava calor; tinham sede. O campo encontrava-se
limpo; antes de passar para o outro lado, o pai chamou os seus trabalhadores, a quem disse:
- Está calor; bebamos alguns copos e comamos uma bucha; vamos assim receber a
recompensa do nosso trabalho.
Os trabalhadores, contentes com este quarto de hora de folga, agruparam-se junto da grande
macieira bem copada que os abrigava do Sol. Lucas acudia, vermelho, a suar. Gaspar ia
também tomar o seu lugar, mas o pai repeliu-o com rudeza, dizendo:
- Não ganhaste o teu lugar entre nós, grande preguiçoso; vai apanhar a erva, que apenas
empurraste, e quando acabares, virás refrescar-te; mas antes, não.
Gaspar, sucumbido, não se atreveu a retorquir e deixou-se ficar de pé, imóvel, prestes a
chorar. Embora não tivesse trabalhado bem nem muito, o suor escorria-lhe pela testa e sentia
grande vontade de beber. Lucas, compadecendo-se dele, disse ao pai:
- Perdoe-lhe; já estava cansado do colégio, já tinha calor; por isso é que trabalhou tão frouxa
mente.
PAI - E tu não estiveste no colégio como ele? Não tinhas também calor?
LUCAS - Sim pai, mas comigo é diferente. Trabalho menos no colégio do que Gaspar, e suporto
melhor o calor e o trabalho do campo.
PAI - Porque tens coragem e entusiasmo pelo verdadeiro trabalho, e ele não passa de um
maricas. Merece castigo. Não morrerá por causa disso e melhor trabalhará no futuro.
O tom do tio Tomás não admitia réplicas. Gaspar pegou de novo na forquilha e começou
tristemente a sua tarefa. Lucas levantou-se e foi para junto dele antes que o pai pudesse detê-
lo.
LUCAS - Não te amofines, Gaspar. Eu vou ajudar-te; daqui a pouco temos a tarefa acabada e
ainda chegas a tempo de comer uma bucha e beber um copo.
LUCAS - Ainda não; de resto, embora o estivesse, sentir- me-ia com forças para te ajudar.
GASPAR - Obrigado, Lucas... Tu sabes o que é o trabalho de uma fazenda! E queres que eu
passe a vida a suar a aborrecer-me para apenas ganhar com que viva? Tão tolo não sou eu!
Posso fazer melhor que isso e porei em prática a minha ideia quando for maior.
LUCAS - Ouve Gaspar; não há tanta diferença entre a fadiga do lavrador e a fadiga do colégio.
Simplesmente, o meu trabalho é bom para a saúde, dá-me forças, apetite e sono; e tu, com os
teus livros, cansas a cabeça, tornas- te macilento, dormes mal, sonhas uma multidão de coisas
que não se compreendem.
Assim conversando e discutindo; findaram o trabalho. Lucas ouvira várias vezes o pai chamá-
lo, mas fingira não ter ouvido, para mais depressa libertar o irmão da tarefa.
- Agora - disse Lucas, rindo - sou todo ouvidos e ouço o pai que quase enrouqueceu a chamar-
me... Aqui estamos! - gritou. - Acabámos o servicinho!
Depressa chegaram junto dos outros que se encontravam debaixo da macieira e ambos
pediram de comer e de beber. O pai apressou-se a dar a Lucas uma boa fatia de pão e um copo
de vinho. Serviu menos abundantemente Gaspar.
TRABALHADOR - Ah! ah! ah! És fidalgo! E como queres que as coisas caminhem se ninguém
quiser cansar-se, suar ou trabalhar?
TRABALHADOR - Ah! Queres ser escrivão. Bonito emprego! Pois eu antes prefiro tornar-me
vermelho como um rabanete a trabalhar a terra, do que empalidecer como um nabo, a
espiolhar os livros.
GASPAR - Não hei-de ficar pálido de todo. O velho Sr. Féréor é pálido?
TRABALHADOR - Nem por isso. É de um tom violáceo, atirando para preto, à força de queimar
o sangue a percorrer as estradas dia e noite para experimentar os fornos. Imaginas que é cor
bonita para um cristão?
GASPAR - Não é a cor do Sr. Féréor que quero atingir: é a sua situação.
PAI - E supões, meu pateta, que conseguirás arranjar os milhões que ele tem ganho?
PAI - Lá nisso tens razão, depois de morto; mas durante a vida é melhor.
GASPAR - Como?
PAI - Porque vivo como activo lavrador que sou; não queimo os miolos a estudar nos livros; só
me contento com o que Deus me dá e não atormento o coração a desejar os milhões que Deus
não quis conceder-me, visto ter-me feito nascer camponês.
Gaspar não se atreveu a responder, porque nada de bom tinha a replicar. Acabou-se a meia
hora de descanso e todos se levantaram.
TOMÁS - Agora, rapazes, guardemos a erva que foi enfeixada esta manhã. Tu, Guilherme, vai
buscar a carroça grande. Tu, Lucas, ajuda a recolher o gado. Tu, Gaspar, apanha os ancinhos e
as forquilhas e vai levá-los para junto dos feixes. E vocês, mulheres e rapazes, vão fazer atilhos
ali para debaixo da macieira e apanhar a erva seca para ser ligada.
Todos se dirigiram a executar o trabalho indicado, rindo, cantando e apressando-se. Gaspar
suspirava e enraivecia-se contra os trabalhos do campo.
Contudo, era preciso que trabalhasse e que, como dizia o pai, ganhasse o seu pão.
Amanhã - pensava - procederei de outro modo e hei-de ter uma boa hora de descanso,
enquanto o pateta do Lucas se derreterá a trabalhar no campo.
No dia seguinte, de manhãzinha, o rendeiro chamou toda a sua gente; o tempo estava
magnífico.
TOMÁS - Vamos, rapazes, venham todos; toca a trabalhar; as mulheres ficam na quinta para
cuidar dos animais e fazer atilhos; é preciso que hoje todos aqui fiquem. Tu, Lucas, vens
connosco, e tu, Gaspar, vai ajudar a mãe e às oito horas levarás o nosso pequeno- almoço ao
campo.
TOMÁS - Ora, deixa-me em paz com o teu mestre. Preciso de ti e por isso ficas.
O rendeiro foi juntar-se aos outros enquanto Gaspar permanecia imóvel e consternado.
- Não há colégio! Não há colégio! - repetia. E, contudo, preciso de lá ir; tenho de falar ao Sr.
Tapefort.
- É Isso mesmo!
E correu à quinta, pegou num livro e foi ter com a mãe que batia manteiga.
GASPAR - Mãezinha: o pai disse-me que ficasse na quinta; eu vou restituir ao mestre o livro
que me emprestou e volto já.
MÃE - Sim, filho, vai; mas não te demores, pois preciso de ti para me ajudares a bater a
manteiga; sinto os braços cansados e não tenho quem me substitua. Foram todos para o
campo.
Gaspar hesitou, por momentos. A pobre mãe suava tanto, que causava dó; ele via que a mãe
precisava realmente de alguns instantes de descanso; que a enganava sob o pretexto de levar
o livro ao professor e que faria bem em renunciar a tal nessa ocasião, mas o amor pelo estudo
foi superior a tudo e saiu a correr.
Pobre rapaz! - pensou a mãe. - Como corre para voltar mais depressa! Estou tão fatigada, meu
Deus! Sinto os braços entorpecidos.
MÃE - É singular! Há mais de uma hora que bato a manteiga e ela não coalha! Gaspar não deve
demorar-se; daqui à escola a distância não é grande.
Gaspar, porém, não aparecia, e os braços da mãe cada vez estavam mais cansados. Enquanto
ela se atormentava, Gaspar, tranquilamente sentado na aula, escrevia, lia, fazia contas. A aula
ainda não estava aberta, mas pedira licença para lá se instalar.
- Porque - disse ao mestre - mais tarde não posso; precisam de mim na quinta; meu pai deseja
que eu vá tratar da erva e não quero ficar atrás dos meus condiscípulos.
MESTRE - Mas teu pai vai ralhar-te quando te souber aqui, pois tens que fazer na quinta.
GASPAR - Ah, se lhe desse ouvidos, nunca viria à escola. Diz que são tolices e que não preciso
de me mirrar por causa dos livros, que já sei bastante...
GASPAR - Bem sei e é por isso que quero tornar-me sábio como o Sr. Féréor. Ora aqui está uma
pessoa que fez fortuna.
O mestre saiu, deixando Gaspar continuar o seu trabalho e repetindo-lhe que não
desobedecesse ao pai e que só aparecesse na escola quando tivesse licença. Gaspar estudou
com tanto entusiasmo que se esqueceu da hora, continuando a trabalhar com os outros que
chegaram às oito e meia; davam nove horas quando a porta do colégio se abriu e Lucas entrou
açodado.
LUCAS - Gaspar, Gaspar, o pai manda-me procurar-te. Anda depressa; está todo zangado e diz
que se não lhe obedeces imediatamente, virá ele mesmo buscar-te e te levará daqui, à
chicotada.
Toda a aula se movimentou; o mestre mandou Lucas sair, pois alvoraçava a aula.
LUCAS - Mas eu preciso de levar o meu irmão daqui. O pai ordenou-me que o levasse e que, se
o senhor aqui o conservasse sem consentimento dele, faria queixa ao inspector.
MESTRE - Vai, vai, meu pobre rapaz; tens de obedecer a teu pai; vai depressa com o Lucas.
Gaspar levantou-se, a suspirar, e seguiu morosamente Lucas, que, impaciente, batia os pés.
- Anda, despacha-te, Gaspar. Se soubesses como o pai está irritado! Estávamos à espera do
pequeno- almoço que já tardava! Não sabia porque demoravas e parecia pouco satisfeito.
Quando viu, porém, que não tinhas ajudado a mãe a bater a manteiga, que foras para a escola,
que a pobre mãe estava extenuadíssima, que não podia virar a vasilha e que a manteiga não
coalhara, ficou tão fulo, que nós todos trememos. Foi cortar uma vergasta à mata e receio bem
que seja para te dar com ela.
- Meu Deus, meu Deus! Que vai ser de mim! Quando está irritado não atende a coisa alguma,
bate às cegas.
E continuava a correr; Lucas corria mais depressa ainda, esperando acalmar o pai antes que
Gaspar lhe aparecesse. Gaspar, porém, perdera tempo em se resolver a sair da aula;
caminhava devagar até sair da aldeia. A cólera do pai aumentava em vez de diminuir. Quando
os avistou, dirigiu-se-lhes e, sem ouvir as súplicas de Lucas, sem olhar ao terror de Gaspar, sem
dizer palavra, agarrou-o pelos cabelos e, com a vergasta que empunhava, deu-lhe tanta
pancada, que Gaspar começou por pedir perdão e depois passou a soltar lamentosos gritos
que fizeram acudir a mãe e a gente da quinta.
A mãe agarrou os braços do marido e tirou-Lhe a vergasta que tão rudemente fora aplicada.
MÃE - Bateste-Lhe forte de mais. Quando estás zangado nem sabes o que fazes.
PAI - Sim, cheguei-lhe para que o sinta, e, se torna a fazer outra, ainda apanha mais.
Gaspar chorava, Lucas chorava igualmente, a mãe estava pouco satisfeita e as raparigas da
quinta agruparam-se em volta de Gaspar e de Lucas para os consolar.
OUTRA RAPARIGA - Isso não. Não eras tu que fugirias para o colégio com receio ao trabalho.
RAPAZ - Ora, vamos, Gaspar, não é preciso chorar. O caso está arrumado e ele não repetirá a
dose.
OUTRO RAPAZ - Não foste o único a apanhar; eu também apanhei e não estou pior por isso.
RAPARIGA - Sem contar que não tinhas razão para correr para o colégio e deixar-nos em jejum.
OUTRA RAPARIGA - E deixares a tua mãe cansar-se com a manteiga, sem lhe dares uma ajuda!
PAI - Já acabaram? O trabalho atrasou-se por causa deste mandrião. Vamos! Agarrem nas
forqui lhas e nos ancinhos e voltemos para o campo! Adiante de mim, seu doutor; acabarei por
te ensinar o que me parece não saberes e por te convencer de que é bom não me fazeres
zangar.
Gaspar caminhava com o mesmo passo do pai; um pontapé fê-lo espertar. Lucas abeirou-se do
pai, a quem pediu:
PAI - Bati-lhe e ainda lhe hei-de bater mais, se essa for a minha vontade. E tu nada tens a dizer;
isto não é contigo.
LUCAS - É comigo é, pois Gaspar é meu irmão e não gosto de o ver sofrer.
Lucas não ripostou; chegaram ao campo; todos se entregaram à tarefa, mas sem entusiasmo e
sem alegria. Tomás amedrontara toda a gente.
Ninguém respondeu; tinham visto muito bem Gaspar meter-se por uma pequena mata que
ladeava o caminho, mas não quiseram dizer-lho.
PAI - Almoçaremos bem sem a sua companhia e, se voltar tarde de mais, pior para ele.
Comeram em silêncio; ninguém falava, ninguém ria. Tomás estava contrafeito; compreendia
que se excedera e que dera pancada de mais no filho. Findava o almoço quando, pálido e
triste, apareceu Gaspar.
Gaspar não respondeu; ia para se afastar, quando Lucas correu para ele.
LUCAS - Toma, meu pobre Gaspar: o pão que me sobrou e um ovo; guardei-o para ti.
Tomás lançou-lhe terrível olhar e arrancou-lhe o pão que ele oferecia ao irmão.
LUCAS - Parece-me que não procedo mal em dar-lhe a minha parte e, nesse caso, não receio
que me castigue.
PAI - Bem sabes que não quero que cada um seja servido à parte, e quando chega atrasado
pior um pouco; tem de esperar pela noite.
MÃE - Mas tu não sabes o que atrasou Gaspar. Ora repara como está pálido.
Gaspar continuou mudo; a palidez aumentou e caiu sobre um banco. A mãe e Lucas acudiram.
O tio Tomás começou a assustar-se, mas não se atreveu a dar a percebê-lo: tinha medo de que
o desmaio fosse causado pelo castigo da manhã.
GASPAR (com voz fraca) - Tenho fome; desde ontem que nada como.
MÃE - Deus do Céu! Porque não comeste? Depressa, Lucas, dá-lhe um prato de sopa; parece-
me que ainda está quente.
MÃE - Mas diz-me, Gaspar, como fizeste para ainda não teres comido até esta hora, três da
tarde?
GASPAR - Esta manhã fui para o colégio; depois, fui vergastado; o pai, ainda por cima, obrigou-
me a trabalhar; já não podia ter-me nas pernas quando voltei do campo; sentei-me um bocado
à sombra, na mata; mas a fome espicaçava-me; levantei-me e pus-me a andar como pude.
PAI - Olha a grande coisa! Não lhe causou grande mal. Dêem-lhe de comer e acabem lá com
isso!
MÃE - E ralhares tu com Lucas quando este oferecia de comer ao irmão! É mais caritativo do
que tu, e tu, que és o pai do rapaz, tens obrigação de o alimentar.
PAI - E quem te disse que lhe recuso o sustento? Ele não passa de um pateta; eu sabia lá que
tinha ido para o colégio em completo jejum! Mas, basta! O tempo urge e o trabalho não luz.
Fica com o teu mandrião; eu vou com os outros.
Na manhã seguinte, Lucas pediu licença, ao pai, para ir à escola com Gaspar.
PAI - Perdeste a cabeça, rapaz? Também me vais fazer aborrecer com a escola?
LUCAS - Não, pai; mas o mais importante do trabalho já está feito; só nos resta guardar a erva.
O nosso professor não gosta de nos ver faltar; está a aproximar- se a época dos prémios e, se
faltássemos muitos dias a seguir, nada teríamos: nem eu nem o Gaspar.
PAI - Visto isso, vai, mas a minha vontade era deter Gaspar; o mestre gosta muito dele e por
isso não há perigo de lhe recusar os prémios.
LUCAS - Seja como for. Não leva a bem que os bons discípulos faltem, porque o inspector pode
aparecer e querer interrogá-los e que se os que sabem mais não estão, o colégio fica mal
colocado.
PAI - Tu bem fazes para me convencer. Ontem não te importavas tanto com o colégio como
hoje; tu queres ir ao colégio para que o Gaspar vá também.
LUCAS (rindo) - É isso mesmo, pai. Adivinhou. Mas note que Gaspar sente muito desgosto
quando não vai ao colégio; nem pregou olho em toda a noite! E depois, como havia de dormir?
Doía-lhe o corpo todo.
PAI (aborrecido) - Está bem, está bem! Que vá! E tu ficas porque conseguiste os teus fins.
Lucas agradeceu e correu a anunciar a boa notícia a Gaspar, que deixara triste, a queixar-se
das dores.
LUCAS - Gaspar, Gaspar! Podes ir para o colégio! o pai consente! vai depressa diz ao mestre
que eu fico para ajudar na recolha da erva.
O rosto de Gaspar tornou- se radiante; agradeceu a Lucas, comeu à pressa e saiu logo,
esquecendo as dores e correndo tanto como na véspera.
Desde então, o tio Tomás nunca mais aludiu ao colégio. Gaspar frequentava-o com
regularidade; Lucas faltava todas as vezes que havia trabalho urgente.
Fazia grande arranjo na quinta. Com Gaspar não se podia contar, de maneira que ele
aproveitava- se desse desprezo para ler e escrever durante quase todo o dia.
armado no pátio. Algumas árvores abrigavam diversas cabeças do ardor do Sol. Na primeira
fila de cadeiras e bancos figuravam a autoridade local, o adjunto e as famílias. Os pais
chegavam em chusma. Lucas já se instalara num banco com os seus pais. Tendo chegado cedo,
haviam escolhido um bom lugar à sombra de uma árvore. Gaspar fora nomeado mestre de
cerimónias, para ajudar o professor a manter a ordem, a colocar toda a gente e, finda a
comédia, a apresentar os prémios que se iam distribuir. O pátio estava repleto. Chegou a hora:
um rufar de tambor anunciou o começo do espectáculo, sendo o pano lentamente descerrado
por Gaspar e por outro rapaz, deixando ver uma floresta onde dormia um viajante.
Um ladrão surgiu no horizonte e preparava-se para roubar o viajante, quando um rapaz, que
atravessava a floresta e empunhava nodoso cacete, se aproximou com rapidez e, sem fazer
bulha, assentou tão forte cacetada na cabeça do gatuno, que este rolou, desfalecido. O
viajante, acordando com o ruído julgou a princípio que os dois homens quisessem assassiná-
lo; o rapaz, porém, explicou-lhe o caso; o viajante exprimiu o seu reconhecimento, quis dar ao
seu salvador um rolo de moedas de ouro, que o rapaz, possuidor de alma generosa, recusou; o
viajante leva-o consigo, chega a casa, conserva na sua companhia o rapaz, que é pobre e órfão,
e ao qual dá cuidada educação. O rapazito torna-se sábio; amealha fortuna e todos ficam
satisfeitos.
Aplausos e bravos se fizeram ouvir mais de uma vez; no fim, chamavam o autor; o mestre
apareceu, trazido por seis dos melhores discípulos; uma coroa
desceuentamente sobre a cabeça dele; cumprimentou para a esquerda, para a direita e para o
centro, enquanto os entusiásticos aplausos continuavam. A coroa tornou a subir; o mestre
cumprimentou pela última vez e saiu, dando lugar aos pequenos que iam receber o prémio
pelo seu trabalho.
Prémio literário: GASPAR TOMÁS. Prémio de aplicação: GASPAR TOmÁs. Prémio de bom
comportamento: GASPAR TOMÁS.
E assim, consecutivamente, até os prémios serem todos distribuídos. Os primeiros foram todos
ganhos
por Gaspar; Lucas não mereceu um único, mas foi preciso arranjar-lhe também um, porque,
nos campos normandos, um professor que não desse algum
prémio mesmo aos piores, concitaria contra si os pais e as famílias, que se tornariam
seus encarniçados inimigos. A Lucas, pois, foi concedido o prémio de boa disposição, que
deveras o satisfez. A cada prémio descia a coroa sobre a cabeça do discípulo e tornava a subir
para voltar a descer em segui da. Quando Lucas, último de todos, descia a recebê-lo a corda
partiu-se e a coroa caiu-lhe em cima do nariz. Soaram grandes gargalhadas. Lucas justificou o
prémio recebido, rindo de boa vontade com o
acidente. Gaspar vergava ao peso dos livros e das coroas com que fora contemplado. Lucas
veio ajudá-lo.
LUCAS - Dá cá, dá cá. A minha carga é leve; posso muito bem ajudar a levar a tua.
LUCAS - Seja como for, gosto do meu prémio; quanto ao prémio de trabalho, sei muito bem
que não o mereço.
LUCAS - Ora! Hei-de saber o que for possível para dirigir a quinta; é o que faz falta ao pai.
- Tens razão, Lucas - disse o pai. - Aproveitarás mais com a quinta do que com os livros. Os que
Gaspar ganhou são bonitos, não digo o contrário, mas não dão tanto proveito como cem feixes
de erva.
GASPAR - Servir-me-ão para apanhar duzentos feixes de erva onde vocês só apanham cem, e
isto já é alguma coisa.
Muitas pessoas vieram cumprimentar Tomás por todas as coroas de Gaspar e riram um pouco
do insignificante prémio de Lucas.
- Por Deus! - volveu o pai. - Prefiro, embora não seja melhor, o prémio de boa disposição, de
Lucas, a todos os prémios de ciência, de Gaspar.
Por seu lado, Gaspar não estava completamente satisfeito; não podia evitar certas
inquietações a respeito do seu futuro. A ambição penetrava-lhe pouco a pouco no peito e
tornava-o silencioso e taciturno. Os primeiros êxitos pareciam entristecê-lo em vez de lhe
darem felicidade.
Enquanto o tio Tomás conversava com os amigos, um sujeito muito alto, muito rubicundo,
muito loiro, abeirou-se de Gaspar.
FRÕLICHEIN - Ser bonita tal coisa! Três prémias! Seu pai, como chamar- se?
FRÕLICHEIN - Bela! Bons tardes mein herr Que faz você de seu filha?
TIO TOMÁS - Ora, ora! Eu rio-me dos seus contramestres. Entre os do Sr. Féréor não há um
único que vá à missa. Gastam o dinheiro no café e maltratam os subalternos. Não, não! Não
cedo os meus filhos para se tornarem vadios, fumadores, frequentadores de cafés.
FRÕLICHEIN - Ser pena, pois eu dar bela posição para seu filha.
TIO TOMÁS - AgradeÇo-Lhe, mas preciso dele, conservo-o comigo.
mais nisso.
afastou-se, descontente.
à saída do colégio?
de ti contramestre.
saúde?
bons.
TIO TOMÁS - Bons para arrastar os outros a maus caminhos. Que se te não meta isso na
cabeça. Não quero e não cedo.
O tom seco e positivo do pai inibiu Gaspar de responder, mas disse de si para si que tornaria a
ver o tal sujeito e o incitaria a insistir, a despeito da recusa do pai. Após alguns momentos de
silêncio, Lucas desatou a rir.
- Pelo que vejo, Gaspar, os teus prémios não te alegram; em vez de te mostrares satisfeito,
aparentas um ar grave, descontente, que entristece. Não dás palavra.
LUCAS - Sei lá! Mas quando se está contente não se mostra essa cara.
LUCAS - Nada disso. Quando, por exemplo, Mateus e Julião desceram do estrado, parecia ler-
se-Lhes nos olhos a felicidade, embora só obtivessem os segundos prémios, e no fim da
distribuição foram beijar os pais. Tu nada disseste nem ao pai nem à mãe; não lhes deste prova
alguma de amizade e até, para dizer tudo, tens um aspecto de aborrecido.
GASPAR - Porque me contrariam, porque não me deixam seguir o meu caminho como
entendo.
LUCAS (rindo) - Do caminho do colégio, pai. Gaspar não gosta do caminho que levamos.
LUCAS - Não sei lá muito bem. Bem sabe que ele tem ideias diferentes das de toda a gente.
Chegámos e vamo-nos regalar com uma torta que a mãe fez esta manhã.
O jantar foi apurado: coelho salteado guisado de legumes com toucinho e a famosa torta
acompa nhada de creme; a boa disposição de Lucas fez voltar a alegria, que a taciturnidade de
Gaspar fizera desaparecer. Depois de bem comidos e de bons risos, saíram para tomar ar.
Gaspar ficou para examinar os seus livros.
- Venho visitá-lo, Tio Tomás, da parte do Sr. Féréor. É para lhe pedir o seu rapaz, aquele que
obteve todos os prémios.
TOMÁS - Para que o quer Féréor? Já lá está tanta gente! Que utilidade tem o meu rapaz?
TOMÁS - Não quero metê-lo entre esses mariolas da fábrica; os filhos são meus. Ficarão onde
o bondoso Deus os fez nascer.
SECRETÁRIO - Faz mal, tio Tomás, faz mal. Seu filho fugirá contra a sua vontade. Tem ambições
e isto não pode retê-lo.
- Está lá fora esse homenzarrão ruivo que se exprime de maneira esquisita e quer falar consigo;
esteve muito tempo a conversar com o Gaspar e insistiu em falar-lhe.
FRLICHEIN (entrando) - Bom dia, mein herr. Venho buscar seu filha.
TOMÁS - Estou farto disto! Repito o que lhe disse já: não quero ceder- lhe Gaspar. Conservo
comigo meus filhos até terem idade de me deixar.
FRLICHEIN - Tomo-as à minha conta e educo-as. Mas isso não é com você.
SECRETÁRIO - É comigo, é, sim senhor, porque o meu patrão, o Sr. Féréor, quer ter Gaspar e
há-de tê-lo.
FRLICHEIN - Estar enganada. Não o terá. Herr Tomás, dar-lhe trezentas francos por ano quando
estiver apto.
A vaca malhada
Passados alguns dias, ao fim da tarde, Gaspar estava a ler ao pé de uma árvore, enquanto
Lucas fazia um cesto. Divertia-se de quando em quando a fazer cócegas no nariz e nas orelhas
de Gaspar com as tiras, e ria ao vê- lo tão atento que nem dava pela brincadeira; imaginava
que eram as moscas que lhe passavam pela cara e que ele afugentava maquinalmente,
continuando a sua tarefa. As cócegas repetiam- se tantas vezes, que acabaram por impacientá-
lo.
LUCAS - Não são as moscas, sou eu que te faço cócegas com as tiras do cesto.
Gaspar retomou a leitura e Lucas o cesto; tinha na mão uma grande tira com que foi acariciar o
rosto de Gaspar.
- Outra vez! Já estou aborrecido. Não quero que me toques. Ouviste? Não quero.
Lucas estava muito perto do irmão, tão perto, que uma ponta da tira aflorou ainda a cara de
Gaspar, o qual se virou para Lucas e lhe deu um murro.
Lucas arrancou o livro das mãos do irmão e arremessou-o para longe; Gaspar pegou no cesto
de Lucas, partiu-o, fazendo o mesmo às tiras.
LUCAS - Andaste mal, Gaspar; o pai mandara-me fazer este cesto, de que precisava para
amanhã, e tu despedaçaste-o.
LUCAS - Não, porque eu tinha de deslocar as tiras, a ferramenta, o cordel e depois porque o
teu trabalho não me incomodava; o incomodado eras tu. E agora, que irá dizer o pai?
Gaspar não respondeu: estava inquieto, porque sentia ter feito asneira. Lucas apanhou os
destroços do cesto e voltou para a quinta, afim de fazer outro. Gaspar retomou a leitura, mas
não dava grande atenção ao livro.
Lucas não contara o desastre acontecido ao cesto; recomeçara outro e apressava-se em acabá-
lo para não se dar pelo ataque de mau humor de Gaspar. Enquanto trabalhava com ânsia,
Guilherme veio sentar-se-lhe defronte.
GUILHERME - Não me vês, Lucas? Vim aqui trazer um recado para teu pai.
LUCAS - Ah! és tu? Estava tão entretido com o cesto, que não dei pela tua chegada. Que
recado vens trazer?
GUILHERME - É uma carta para teu pai. Não sei o que vem dentro. Disseram-me apenas que
era urgente.
LUCAS - Espera; vou chamá-lo; está ali a medir aveia para a criação.
TOMÁS - Eu não sou muito forte na leitura. Saberás decifrar estas garatujas, Lucas?
TOMÁS - Exactamente como eu. Corre depressa a prevenir Gaspar; como é sabichão, vai-nos
ler isso.
Lucas partiu a correr e foi chamar Gaspar, que deixara perto da quinta. Mas quando lá chegou
ti nha desaparecido. Depois de o haver procurado e chamado durante algum tempo e como
não o visse aparecer, voltou para trás.
TOMÁS - Não há perigo de que volte para tra balhar. Aborrece-me com os seus livros. Está
bem,
Guilherme. Diz a teu pai que não posso dar-Lhe resposta alguma. Dar-lha- ei mais tarde.
GUILHERME - Sim, Sr. Tomás. Vou imediatamente, pois recomendou-me que não me
demorasse no caminho. Boa tarde Sr. Tomás; até depois, Lucas.
- Que pena - volveu Tomás - não termos podido decifrar a carta! Se não estivesse tão
atarefado, eu próprio iria saber o que o pai do Guilherme me quer. Pois tu ainda não sabes ler?
LUCAS - Mas, pai, só há um ano que vou ao colégio, e falto muitas vezes.
TOMÁS - E o Gaspar, que não aparece! Onde diabo estará ele metido?
Gaspar não tinha pressa de aparecer; julgava que o chamavam por causa do cesto; as
costumadas conclusões desses assuntos eram sempre pancada. Gaspar queria deixar abrandar
a cólera do pai e resolveu voltar para casa só à hora do jantar.
Quando chegou ao anoitecer, olhou assustado para a cara assombreada do pai, que lhe
perguntou bruscamente:
TOMÁS - Quando és preciso, nunca te vêem. Tinha uma carta urgente para leres; procuraram-
te por toda a parte... mas, sempre a mesma história. Quando podes ser útil para alguma coisa,
somes-te.
A vaca malhada que querias possuir e pela qual não te decidiste, parece agradar ao vizinho
Camus; vem-ma comprar; dá-me duzentos e cin quenta francos por ela. Se te convém por este
preço, vem buscá-la; responde já; se não mandares dizer que a pretendes, não te quero mal
por isso. Camus paga- a e leva-a logo.
Guilherme
- A vaca! A vaca malhada! - bradou Tomás. Vendida, levada! E eu ficava com ela pelos duzentos
e cinquenta francos! E este negócio falhou, por não saber ler! E tu, Lucas, madraço calaceiro!
Não tens vergonha de não saberes ler? Há quinze meses que andas no colégio!
LUCAS - Pois sim, pai, mas são mais as vezes que falto do que aquelas em que lá vou!
TOMÁS - E porque faltas? Porque não fazes como o Gaspar, que nunca falta? Seja assim! Esse
sempre aproveita o tempo. Com ele, nunca se está embaraçado! Sabe o que tu nunca chegarás
a saber, meu parvo! Ao menos as mensalidades do colégio não ficam perdidas.
LUCAS - Mas é o pai que me manda ficar sempre para trabalhar na quinta! Bem sabe que não é
para mandriar ou para passear que não vou ao colégio: e que eu saiba, o pai nunca se queixou
do meu trabalho. Custa muito ser tratado e repreendido como mandrião, quando se faz o que
se pode; tanto mais que é para melhor trabalhar que não vou ao colégio.
MÃE - Não é justo, Tomás! Lucas diz a verdade. eras tu quem o impedia de ir para o colégio
como o Gaspar, a quem ralhavas e barafustavas sempre que o vias partir. Eras tu quem...
TOMÁS - Cala-te! Não me maces com os teus discursos. Não é menos verdade que fiquei sem a
vaca malhada e não encontrarei outra igual.
TOMÁS - Cala-te, já te disse. Não me atormentes os ouvidos... Vamos para a mesa; já é tarde.
Gaspar, estuda em casa o tempo que quiseres; não me zangarei por isso.
Gaspar, surpreendido e radiante, agradeceu ao pai e sentiu-se feliz como nunca o estivera
havia dois anos. O pobre Lucas continuava a chorar.
TOMÁS - Ainda não acabaste, ignorante? Não te perdoo, porque me fizeste perder a vaca
malhada.
O desventurado Lucas quis replicar, mas a mãe fez- lhe sinal para se calar, a fim de não
aumentar a injusta irritação do pai. Lucas, um pouco conformado com o amistoso sinal da mãe
e com os dos criados da quinta, enxugou os olhos e comeu como os outros. Findo o jantar,
Tomás levantou- se da mesa e foi a casa de Guilherme, a ver se ainda podia reaver a vaca
malhada.
Tomás não teve remédio senão reflectir sobre os inconvenientes de uma instrução descuidada;
e tanto reflectiu, que caiu no excesso contrário e resolveu não só animar Gaspar, mas ainda
obrigar Lucas a ir todos os dias ao colégio, até saber tanto como o irmão.
A feira
Avizinhava-se a data da feira. Lucas insinuou ao
pai que levasse lá uma novilha recentemente comprada, a fim de se desfazer dela.
um mês ?
leiteira; venda-a antes que a conheçam na terra. Dirá que veio de Trappe e isso fará com que a
venda
vaca leiteira ?
Lucas fez-lhe ver todos os defeitos e sinais pelos quais se podia reconhecer que não seria
leiteira. O pai hesitou: confiava nos bons olhos de Lucas, mas receava desfazer-se de um
animal vindo de Trappe. No entanto, sempre se resolvera na véspera, a ir à feira.
dela.
Lucas levantou-se no dia seguinte, muito cedo, e partiu com o pai. Colocaram-se no recinto da
feira, encontraram um poste, onde prenderam a novilha, à
espera de comprador.
- Uma novilha que veio de Trappe - anunciou Lucas a um homem que parecia ser feitor.
Lucas não mentia, pois a vira em Trappe. O feitor prosseguiu no exame da novilha. Lucas
Percebeu logo que o outro não conhecia nada do assunto.
LUCAS - Sim, a novilha da Trappe, este senhor conhece as boas vacas da Trappe e sabe que
esta é da mais apurada raça.
Tomás entrou em negociações com o homem, que era feitor numa propriedade perto. Após
demorado regateio, o feitor acabou por pagar mais do que ela custara. O feitor entregou o
dinheiro, chamou o criado da quinta e levou o animal, radiante por ter adquirido uma
pechincha, enquanto Tomás também estava radiante por ter feito o negócio.
Antes de deixar a feira, quis dar uma volta pelo recinto para ver se descortinava algum animal
para substituir a novilha que vendera. Ao olhar para um lado e outro, notou uma vaca que lhe
fez palpitar o coração: era muito semelhante à tão lamentada malhada.
TOMÁS - Ou outra parecida, se não é a mesma. O tio Camus não é tão estúpido, que se desfaça
de semelhante animal.
TOMÁS - Lucas, vai ver se é Camus quem a vende, mas não lhe digas nada; não quero
demonstrar que tenho empenho na vaca.
CAMUS - Bons dias, Tomás. Andas à procura de uma vaca para comprar? Vendo-te a minha.
TOMÁS - Eu também tinha um animal para vender: o negócio fez-se e agora ando a dar uma
volta pela feira com Lucas.
CAMUS - Não queres esta malhada? Formoso exemplar! Um arrátel de manteiga por dia! Um
leite magnífico, um animal que nunca seca.
LUCAS - É que nós conhecemos a vaca malhada. Meu pai não a quis há um ano.
TOMÁS - Ora, ouve. Tu que a revendes passado um ano é porque não estás contente com ela.
CAMUS - Pelo contrário, é a melhor do estábulo. Mas eu compro vacas para depois as vender e
ganhar alguma coisa.
TOMÁS - Não queres mais nada? Há um ano deste por ela menos cinquenta francos.
TOMÁS - Para te falar com franqueza, não sei. Não tenho empenho nela e, além disso, pedes
muito.
CAMUS - Mas, repara que é a melhor vaca da feira. Como é para ti, abato cinco francos e fica o
caso arrumado.
CAMUS - Acredito! Um animal tão bonito! Cedendo-to por duzentos e noventa francos, ainda
perco, verdade verdadinha, ainda perco.
TOMÁS - E eu se te der duzentos e sessenta e cinco francos pela vaca, não faço bom negócio.
Após infindas discussões, combinaram que Tomás ficaria com a malhada por duzentos e
setenta e cinco francos e que pagaria a despesa do café.
Por fim Tomás estava de posse da vaca malhada tão chorada. Quando a pagou e a segurou
pela corda, já não dissimulava a sua alegria e confessava a Camus como ficara arreliado por lhe
haver falhado havia um ano e que não a largaria por trezentos francos. Camus estava
desesperado.
- Quem o tivesse adivinhado! Obrigou-me a perder vinte e cinco francos! E o Lucas, que só
dizia mal. Isso não é bonito, Lucas! Na tua idade não se deve ser tão manhoso.
TOMÁS - Corre à minha frente, Lucas, para dizeres à mãe que a malhada é nossa. E a ti a devo;
porque, se não insistes em vender a novilha Trappe, eu não teria dinheiro para comprar
malhada.
Lucas partiu; Tomás seguiu- o de longe, puxando pela vaca. Não estava ainda a dois
quilómetros
Tomás, que sempre se excedia, ora indulgente, ora severo em demasia, estugou o passo para
alcançar Lucas e levar-lhe essa agradável notícia. Quando, porém, apareceu na quinta, Lucas já
lá chegara havia algum tempo e a mãe esperava o marido e a vaca malhada.
- Lucas, Lucas - gritava o pai, de longe -, estou ansioso por te dizer que já não voltas para o
colégio, que empregarás o tempo como quiseres, todos os dias.
LUCAS - Obrigado, pai, mas prefiro, se me dá licença ir ao colégio pelo menos meio dia. Deste
modo, poderei ser útil na quinta e saberei ler e escrever.
As coisas continuavam como de costume; Gaspar passava os dias no colégio a estudar. Lucas
trabalhava na quinta de manhã, e, depois do almoço, ia para o colégio. Gaspar tinha quinze
anos. O seu desejo de aprender e vencer mais aumentav A alegria da sua idade já
desaparecera. Mal se en tretinha com os divertimentos e jogos dos compa nheiros; silencioso e
pensativo, punha-se de parte e deixava-se levar pelas suas ideias ambiciosas. Bastantes vezes
as propostas que o pai recusara tão abertamente lhe acudiam ao espírito. Entretanto, nunca
mais ouvira falar do alto alemão nem do velho F réor. Nova distribuição de prémios se devia
realizar dentro de breves dias.
Nas vésperas, enquanto Gaspar ajudava o professor a arranjar a sala e a rotular os livros
destinados aos prémios, a porta abriu-se e viram aparecer a cabeça ruiva e o comprido
pescoço de Frlichein.
FRLICHEIN - Então minha boa amiga, haver reflectido em meus ofertas? Chegar o momento de
felicitá-la. Quantos anos ter?
- Este endemoninhado alemão não me larga a porta. Se teu pai aceitar as propostas dele,
ficarei bastante contente.
GASPAR - Eu também; o que quero é começar.
GASPAR - A terra não, se vou para a fábrica de Féréor. Quanto à casa, não me dá grande abalo.
Lucas anda sempre pelo campo; minha mãe está atarefada com os amanhos da quinta; meu
pai, ora diz que sim, ora diz que não; um dia contraria-nos injuria-nos, bate-nos; no dia
seguinte, sem se saber porquê, deixa-nos fazer o que na véspera o fizera zangar.
MESTRE - O que quer dizer que não gostas nem tens saudades de ninguém.
MESTRE - De facto, nunca mostraste ter muito coração. Além disso, Gaspar, visto havermos
chegado a este ponto, sempre te digo que há muito que te observo e, para falar com
franqueza, não estou contente contigo. Ninguém, decerto, é mais pontual do que tu à aula e
tens aproveitado bastante com as lições. Estás muito mais adiantado do que os outros e,
contudo, não estás satisfeito como eles. Pensas demasiadamente no fim que pretendes atingir
e esqueces os meios por que podes atingi-lo. Lembra-te de que não basta alcançar a riqueza; é
mister, principalmente, seguir um caminho recto. Submete-te mais a teus pais, perdoa-lhes as
censuras que te façam; respeita e sê grato aos teus superiores e a todos aqueles que se
interessam por ti, mostra-te afectuoso e bom camarada com as crianças da tua idade; lembra-
te, principalmente, de que o amor de Deus e a caridade são os teus primeiros deveres; de
contrário, embora sejas rico comó Féréor, nunca serás mais feliz do que ele; sentirás
continuamente que alguma coisa te falta; o teu coração endurecerá; ninguém te estimará se tu
não estimares pessoa alguma. Continuarás a procurar a felicidade sem nunca mais a
encontrares. Deves sentir que isto é justo; pensa bem.
Enquanto Gaspar conversava com o mestre, Frlichein corria a passos largos para se entender
com Tomás e levar-lhe o filho.
Tomás estava em casa; não acertava as contas de um negócio que realizara; faltavam-lhe dez
francos que não encontrava. Assim, estava maldisposto quando a porta se abriu e surgiu
Frlichein.
FRLICHEIN - Bons dias, herr Tomás. Que ter a dizer de seu filha?
FRLICHEIN - Mas, herr Tomás. Sua rapaz tem quinze anos. Ser boa idade. Ser bem paga; a
rapazar contenta.
FRLICHEIN - Mas, por Deus... Não valer pena zangar. Não lhe desejar mal. Pelo contrária:
desejar melhor bem possible. Verá o que eu fazer por rapaz. Será rico como o judeu daqui.
TOMÁS (irritado) - Féréor é tanto judeu como qualquer outro. Não quero que um estrangeiro
venha insultar um francês, um homem que faz viver toda a região.
FRLICHEIN - Ora, vamos, herr Tomás não zangar! Que lhe dizer eu? Desejar apenas sua rapaz.
ada mais. Dizer que seu filha ir ganhar quatrocentos francos por ano e que se a portar bem,
dentro de dois anos, ganhar quinhentas francos, ser vestida, sustentada, etc.
Tomás, abalado com tão vantajosas condições, amaciou e, após algumas dúvidas sanadas,
disse-lhe que ia pensar, que falaria a Féréor antes de se resolver.
FRLICHEIN - Diaba! Não ser preciso consultar Féréor. Prometerá muita mas nada fará.
lhe falar.
FRLICHEIN - Andar mal, andar mal, herr Tomás. Eu querer seu filha já e ele intrujar você... Verá.
Tomás, que era esperto, viu bem o partido que podia tirar desta concorrência.
Cederei Gaspar ao que me oferecer mais - pensou. - As duas fábricas equivalem-se, há bom e
mau. Preferia que ficasse connosco, como Lucas, a entrar nessas fábricas com essas mecânicas
que nos trituram com as suas rodas e engrenagens, se não há cuidado. Mas visto que
absolutamente o
querem...
A distribuição de prémios fez-se como os anos transactos, apenas com a diferença de que,
antes do começo do espectáculo, o mestre anunciou que a aptidão, a inteligência e aplicação
extraordinárias de Gaspar Tomás o punham fora do concurso e que em substituição de todos
os prémios que merecera, apenas lhe fora concedido um prémio excepcional e único, o
Dicionário das Ciências e das Artes e um belo volume de Matemáticas Especiais.
Todos ficaram satisfeitos, porque os primeiros prémios seriam ganhos por diversas crianças,
em vez de serem conferidos só a Gaspar. Este ficou radiante com as duas magníficas obras que
lhe seriam utilíssimas para os estudos que de futuro havia de fazer.
Estava, como sempre, muita gente; aplaudiu-se a comédia, coroaram-se os bons estudantes;
conversou-se.
Pouco a pouco os grupos foram-se afastando; só ficaram algumas pessoas que se felicitavam
reciprocamente.
FRLICHEIN - Eu desejar felicitar o rapazinha e dar pequena lembrança por esta belo dia.
FRLICHEIN - Recear vir demasiada tarde. Pedir entregar seu filha este lembrança.
TOMÁS (trocista) - Dê-lhe o senhor mesmo, se quer; quanto a mim, nada ganhei no colégio;
nada tenho a receber.
- Parabéns! Seu filho ultrapassou todos os outros. E que honrosos prémios não recebeu!
SECRETÁRIO - É uma bela idade! Precisamente a idade própria para começar a estudar a
temos pressa de nos separarmos dele. Minha mulher, principalmente, insiste em não o deixar
partir.
está à minha espera. Os negócios caminham lindamente! Bom fabrico; os operários bem
pagos; os
que Tomás pedisse um lugar para Gaspar; não queria, porém, depreciar a mercadoria e
esperou; por
próprio Gaspar.
dela?
SECRETÁRIO - Isso não é bom! Desconfie dele. Acautele-se com esse árabe! É um velhaco que
mete as pessoas no coração. Eu sei para que ele quer o Gaspar. Mas livre-se de lho dar,
passará uma vida miserável.
feliz.
seiscentos?
TOMÁS - Vou pensar. Preciso, antes de aceitar ou recusar, de falar com Frlichein, que ficou de
voltar.
breve aparecerei.
O secretário retirou-se e o tio Tomás ficou a rir. - Tenho-os na mão. Gaspar há-de obter boa
colocação. Quanto a Lucas, conservá-lo- ei na quinta: vale por um homem. Começa a lavrar
menos mal. Só há uma coisa que não consigo que ele faça: trabalhar ao domingo. Quanto a
isso, por mais que
TOMÁS - É teimoso! Acabei de falar com Férey, o secretário do Sr. Féréor, o qual me
apresentou tão boas ofertas, que estou na ideia de Lhe ceder
o rapaz.
FRLICHEIN - Oh! mein Gott! Bom tio Tomás, eu dar-Lhe sempre mais do que esse homem do
diaba Eu dar seiscentos francos.
TOMÁS - Não resolverei o assunto sem me avistar com Féréor ou com o seu secretário.
FRLICHEIN - Que diaba tio Tomás! Esse judeu nunca lhe dar o que eu dar E, afiançar-Lhe, já dar
de mais.
TOMÁS - Não tenha pressa. Dentro de alguns dias far-lhe-ei saber pelo mestre-escola o que
decidir.
- O secretário de Féréor vem cá hoje; é preciso resolver; por igual quantia, em qual das fábricas
queres entrar?
Prefiro entrar para casa deste, pois já tem fortuna feita; a de Frolichein ainda não está bem
consolidada... Bem vê, pai, que eu tinha razão em estudar como estudei, mesmo contra sua
vontade. Assim, vou ganhar quatro vezes mais do que o Lucas.
TOMÁS - Sim, sim; fizeste bem, mas o Lucas também fez bem, porque a quinta...
Foi interrompido pela chegada do próprio Féréor. Todos se levantaram e tiraram os chapéus.
FÉRÉOR - Tio Tomás, consta-me que hesita em entregar-me o seu rapaz. Anda mal; tem
capacidade, gosta de trabalhar, anseia subir; em minha casa estará melhor do que noutra
qualquer e subirá mais depressa.
FÉRÉOR - Não me fale em Frlichein; é um estúpido, um animal que nada vale, que será metido
na cadeia por dívidas dentro de alguns anos. Fico com o seu rapaz por quinhentos francos e
prometo-lhe aumentá-lo logo que possa. Encarrego-me da sua manutenção; não precisa de se
preocupar com coisa alguma. Bons dias, tio Tomás; bons dias a todos. Tu, Gaspar, anda
comigo; vou apresentar-te ao meu secretário Férey.
Gaspar fitou o pai, que não ousou retê-lo, e seguiu o novo patrão.
- Aqui tens - disse-lhe Féréor - uma moeda de cinco francos; é a tua gorgeta. Estás satisfeito ou
zangado por te raptar, como faço?
GASPAR - Muito satisfeito; meu pai nunca se decidiria. O senhor assusta-o; não se atreve a
resistir- lhe.
GASPAR - Parece-me que sim. Quando o esperam na fábrica, estão atentos ao trabalho; não
há perigo que se distraiam da tarefa.
Tem olhos de lince e excelentes ideias - pensou Féréor. - Pode ser- me útil.
- Soivrier, aqui está o pequeno Tomás que te trago. Cuida dele. é preciso que trabalhe com
Férey e tu lhe ensinarás o que tem a fazer na fábrica; que, sozinho, se ponha ao corrente de
tudo. Instala-o junto de ti e dá-Lhe o que for preciso para sua manutenção.
diz, e incitá-lo-ei.
FÉRÉOR - Sim, sim; há-de ser- me útil e quanto
GASPAR - O Sr. Féréor não me deu tempo de trazer fosse o que fosse; vou à quinta e trago de
lá o indispensável.
SOIVRIER - Não, não quero que saias daqui; deter-te- iam. Vou eu mesmo e trago as tuas
coisas. Enquanto me ausento vais esticar o arame.
Soivrier levou Gaspar ao esticador de arames, mandou preparar o camto e dirigiu-se à quinta
de Tomás.
Lucas aguardava o regresso de Gaspar para saber quando entrava na fábrica de Féréor; ficou
surpreendido e penalizado ao ver aparecer Soivrier sozrnho. O pai e a mãe mostraram-se
muito descontentes com o rapto do filho.
LUCAS - Sei eu, mãe; de resto, se alguns ficarem, virá buscá-los no domingo.
mulher? Esperaria, hesitaria e talvez me tivesse resolvido pelo pior. Como Féréor apareceu
pessoalmente, não pude resistir-Lhe, nem impor-lhe condições. Levou- mo! Nenhum de nós
trocou palavra antes de Gaspar haver partido.
nada.
TOMÁS - Bem sei; isso calculo eu. Mas, repare, Féréor tinha tanto empenho no pequeno, que
me resolvi a ceder-lho; quando quer qualquer coisa há-de tê-la por força.
FRLICHEIN - Mas, tio Tomás, ele não precisar ter seu pequena; bem saber que não ser certo.
Seu filha irá para a rua dentro de pouco tempa.
FRLICHEIN (ainda aterrado) - Levado? E deixá-lo levar! Pobre imbecil! E não ir buscá-lo? Não ir
detê-lo?
TOMÁS - Não, senhor. Está tudo arrumado. Um empregado veio buscar a roupa.
FRLICHEIN (irritado) - Miserável! porque não esperou por mim? Eu dar mais do que esse
gatuna, esse velhaca! E porque me fazer perder tanto tempa a pedir?
TOMÁS - Deixe-me em paz, senhor alemão. Fui eu que o chamei? Já estou farto das suas
visitas que não pedi. Sempre lhe recusei Gaspar. Tenho culpa de que se fizesse bajulador para
o conseguir? Viva, bons dias, tenho mais que fazer.
FRLICHEIN - Estúpida campónia! Já não querer teu Gaspar, mesmo que pedir-me de joelhos
para o levar. Deixar aborrecê-lo em casa do gatuna, do bandida.
TOMÁS - Por quem é, vá-se embora, vá espairecer. Peço- lhe alguma coisa para Gaspar? Quero
lá saber da sua cólera! Féréor esmagá-lo-ia como uma pulga se o importunasse.
FRLICHEIN (exasperado) - Uma pulga, uma pulga! Hás-de pagar-mas, patife, mariola.
MÃE - E pensar eu que estive inclinada a deixá-lo ir para casa deste brutamontes!
Quando Gaspar veio visitá-los no domingo seguinte, todos lhe formulavam perguntas sobre o
que fazia, sobre os companheiros, sobre os contramestres, sobre o próprio Féréor.
GASPAR - Estou bem; sinto-me feliz; os companheiros não são maus; quanto a mim, os
contramestres não são lá muito cuidadosos, isso não; deixam às vezes fazer coisas que não
deviam fazer-se. Féréor aparece muita vez, mas não se demora; vê tudo por alto e não
minuciosamente.
Em seguida a ter contado algumas coisas da fábrica, saiu com Lucas e com o pai para dar um
passeio.
Primeiras habilidades
Lucas ia ao colégio mais frequentemente desde que Gaspar deixara a quinta, pois só a ele
tinham para escrever uma carta, assentar as contas, etc. Começava a ler bem, a poder escrever
claramente. O tio Tomás nada tinha a censurar-lhe, e na quinta todos viviam sossegados e
felizes.
Na fábrica, Gaspar trabalhava com toda a energia, com toda a inteligência. Não era por
causa de
Féréor que assim se aplicava, mas, por si próprio, !;; para seu aperfeiçoamento. Contudo,
tornava-se deveras útil a Féréor, contando-lhe o que se passava e se dizia. Féréor gostava
muito de saber tudo e
- Como se porta o Urbano? - perguntou-lhe, certa vez, Féréor. - Está bem adestrado no
trabalho?
acima de tudo.
maior interesse da minha vida. E depois, o reconhecimento que Lhe devo torna-me desejoso
de me
FÉRÉOR - Muito bem, Gaspar. Não esquecerei os serviços que me tens prestado. Encontra-te
todas as quintas e segundas-feiras, à uma hora, perto da entrada da ponte; é a hora de almoço
dos operários. Quando me vires aparecer, atravessarás o bosque e irás esperar-me ao meu
chalet de azevinhos, onde ninguém tem o direito de entrar; assim poderemos conversar
sossegadamente e pôr- me-ás ao corrente do que se passar.
GASPAR - Obrigado, Sr. Féréor. Os momentos que passo consigo são os mais felizes da minha
vida; fazem-me bem ao coração.
Gaspar falava verdade; Féréor era para ele o meio mais cómodo de subir, o único para chegar
à situação e à fortuna que queria ganhar a todo o custo, e era para ele da maior importância
obter a absoluta confiança de Féréor. Podia, por meio dessas conversas bastante confidenciais,
fazer com que o favor e a confiança do patrão se concen trassem nele; era o caminho da
riqueza e do poder; só ele devia segui- lo, todos os outros deveriam ficar para trás.
As coisas seguiram regularmente durante quase dois anos. Gaspar aproveitava-se das
conversas às quintas e segundas-feiras para obter cada vez mais a confiança, quase amizade
do patrão. Por sua vez era espiado por dois contramestres, sem nada desconfiar. Estes nunca
tiveram nada a dizer dele. Nem uma falta ao serviço, nem um relaxamento no seu zelo, na sua
actividade; nunca uma palavra imprudente,
homem - que consideravam duro, orgulhoso, egoísta - ficou por fim sensibilizado com as
vantagens que lhe ofereciam a inteligência e o afecto de Gaspar. Nunca encontrara tanta
dedicação, tão verdadeiro afecto, tão sincero reconhecimento. Por toda a parte vira o
interesse pessoal ser superior ao
dever. Este egoísmo tornara-o severo até à dureza, miserável até à desumanidade,
desdenhoso até ao
de tal modo essas oficinas, que Féréor nunca encontrou um motivo de censura, nada a mudar,
nada a
Enquanto Gaspar subia vagarosa mas continuamente pelo caminho da riqueza, o tio Tomás e
Lucas prosseguiam na sua vida útil e ocupada. Gaspar raras vezes vinha visitá-los: o domingo
era o seu único dia de liberdade; Féréor ia igualmente nesse dia ao seu palacete da fábrica;
gostava de lá encontrar Gaspar, que não perdia o ensejo de se apossar do espírito de Féréor, a
quem acompanhava por toda a parte, sacrificando- lhe com prazer - afirmava - a visita a casa
dos pais. Gaspar não mentia, visto o seu fito principal ser a riqueza e a posição. Ficava
realmente mais satisfeito em estar às ordens do velho Féréor, que principiava a estimá-lo
deveras e de
quem dependia o seu futuro do que em visitar os pais a quem quase não amava e que se lhe
tinham tornado inúteis.
Certo dia, o tio Tomás recebeu uma carta tarjada de luto. Lucas andava pelo campo; precisava
de esperar pela sua volta para saber o que ela continha.
Lucas continuou a leitura da carta. Tinha perto de duzentos mil francos a receber, a maior
parte em terras, e o restante em dinheiro. O notário acrescentava que o herdeiro devia
comparecer o mais depressa possível para tomar posse de tudo e pagar os direitos de
transmissão.
TOMÁS - Como hei-de ir? Como posso abandonar a quinta, o meu conchego, para correr atrás
de uma riqueza? Tenho muita vontade de mandar dizer ao notário que arranje tudo pelo
melhor, mas sem mIm.
LUCAS - Espere, pai, não se apresse. Consulte Gaspar, que lhe dará um bom conselho.
TOMÁS - E se tu lá fosses, Lucas? Ele aparece cá tão raramente! Estaremos mais de um mês
sem o ver, se não o formos procurar.
LUCAS - Tem razão, pai; é justamente a hora de almoçar; deve estar em casa; vou lá.
LUCAS - Tinha muito que fazer, pai; a cevada é tão abundante, que nos vimos para acabar a
ceifa começada esta manhã.
TOMÁS - Já acabaram? Foi um meio dia bem empregado. Mas não comes antes de partir?
LUCAS - Vou já, de contrário passa-se a hora e, como sabe, não é possível falar-lhe quando está
nas oficinas.
TOMÁS - Bem sei isso. Féréor a quem encontrei no outro dia felicitou-me pela sua
pontualidade e disse-me que me não inquietasse com o seu futu ro, do qual se encarregava.
Lucas engoliu um pequeno prato de sopa e correu à fábrica. Gaspar comia sozinho no seu
quarto;
GASPAR - E terei tempo? Dirige-te ao mestre- escola, que ele sabe o bastante para te resolver
esse
assunto.
LUCAS - Qual história? Trata-se de uma herança de duzentos mil francos. Que queres tu que
ele resolva?
LUCAS - De uma velha prima falecida em Bordéus e que deixa tudo ao nosso pai. Não sabe
como proceder.
- Duzentos mil francos! - repetiu Gaspar, pensativo. - Ouve, deixa cá ficar a carta; vou lê-la
maçada de lá ir.
pressa.
LUCAS - Até mais ver, Gaspar. E não te demores, porque o pai ficou atarantado com essa
carta.
LUCAS - Sim, mas ele prefere não ter de lá ir, nem que para isso tenha de fazer qualquer
sacrifício.
E, sem esperar que Lucas se despedisse, Gaspar correu em direcção à fábrica a fiscalizar a hora
de entrada dos operários; os retardatários eram marcados implacavelmente: nenhuma
consideração impedia Gaspar de cumprir o seu dever.
Lucas voltou a correr para a quinta. Acabavam de almoçar quando entrou. Os operários
voltavam para o trabalho.
MÃE - Pobre rapaz! Estás vermelho e esbaforido! Tens o teu almoço quente! Senta-te, filho, e
descansa; pareces-me extenuado.
LUCAS - É verdade que estou cansado, mãe, mas depois de comer, fico bem... Gaspar estava
com pressa, não teve tempo de ler a carta do notário; não deu a sua opinião, mas ficou de nos
dar resposta amanhã ou depois o mais tardar. Conto que poderá livrar-se da viagem, pai.
TOMÁS - Se tal acontecer, faz-me grande favor e receberá boa recompensa. Foi uma sorte,
esta herança! Pensava tanto na prima como se ela nunca existisse.
No dia seguinte, Gaspar estava no seu posto, junto da ponte, à espera de Féréor.
Nada posso fazer sem lhe falar - pensava - e depois, ficará lisonjeado se Lhe pedir algum
conselho... Estou cansado, quase não dormi a noite passada. Trata-se de um caso importante
para mim; o começo do meu futuro, da minha riqueza.
Não esperou muito tempo. Féréor era a pontua lidade personificada. Assim que a carruagem
parou, Gaspar encaminhou-se para o chalet de azevinhos.
particular a dizer-me?
GASPAR - Nada teria se não o soubesse benévolo, tão bom para mim e de tão sensato
conselho.
Trata-se de uma importância de duzentos mil francos a receber, e aqui tem como...
- Duzentos mil francos é uma excelente quantia. Fala depressa; sou todo ouvidos.
FÉRÉOR - Tens medo, Gaspar?... Prefiro isso... É sinal de que percebes de negócios.
GASPAR - O patrão adivinhou. Tenho medo, mais medo da sua opinião do que de todo o
mundo.
toda a franqueza.
FÉRÉOR - Senta-te; calculo que é assunto para demora; coloca-te bem defronte de mim, para
te ver bem.
GASPAR - Quero fazer um negócio desta herança de meu pai, mas honestamente, sem o
enganar.
Féréor sorriu.
GASPAR - Um negócio para mim. Se meu pai fizesse as coisas pessoalmente, metade da
herança desapareceria em notários, advogados e papelada. Quero propor-lhe encarregar-me
de tudo, de correr com todas as despesas, que devem orçar em mais de cinquenta mil francos,
com a condição de que me ceda os direitos à herança, calculada em duzentos mil francos.
Ele guardaria cento e cinquenta mil francos, que lhe entregaria sem mais despesas. Eu ficaria
senhor da herança; se ganhar, como espero, pedia ao patrão que tivesse a bondade de
empregar esse dinheiro na sua fábrica; seria o começo da minha fortuna.
Gaspar, calou-se, fitando, inquieto, Féréor, que não o largava de vista, continuando a sorrir.
Após alguns instantes de silêncio, Féréor agarrou nas duas mãos de Gaspar e apertou-as nas
suas.
- Precisamente o que eu faria. É tudo o que há de melhor; ninguém perderá; pelo contrário,
todos ganharão.
Gaspar, deveras contente, beijou a mão de Féréor, que sorriu, mas desta feita com
benevolência.
importância?
receba.
FÉRÉOR - Está bem, Gaspar; previste tudo, arranjaste tudo: é um negócio bem pensado, muito
GASPAR - Obrigado, patrão, cem vezes obrigado e sempre obrigado. Foi o patrão quem me
reécolheu, que me fez instruir, que me educou de modo a ter uma inesperada situação, e
agora começa a minha fortuna com essa generosidade, essa bondade
nunca desmentidas.
avarento.
GASPAR (com calor) - Avarento! O mais generoso dos homens! O mais justo e o melhor dos
cara! E eu, que nunca bati em pessoa alguma, cair- lhe-ei em cima com toda a força que Deus
me deu!
- Obrigado, meu amigo - agradeceu Féréor com uma voz quase meiga que Gaspar nunca lhe
notara.
E Féréor afastou-se depois de lhe haver apertado mais uma vez a mão.
Gaspar esperou alguns minutos para dar tempo a que o patrão desaparecesse; em seguida,
entrou na floresta, saindo pelo lado oposto, e voltou para a fábrica, a fim de receber os
operários e distribuir-lhes trabalho. Féréor não tardou a entrar também; examinou o trabalho,
aprovou o que se fizera e disse a Gaspar em voz alta:
- Vai a casa de teu pai; diz-lhe o que te recomendei. Está de volta dentro de uma hora; dar-me-
ás conta do que se combinou com ele.
Gaspar, com o coração cheio de alegria, correu a casa do pai, que estava só com a mãe e Lucas.
GASPAR - Pai, venho pessoalmente trazer-lhe resposta ao assunto da carta do notário. Mas
estou com pressa, como sabe. Explico tudo em poucas palavras. Aqui tem o que proponho. É
preciso ir a Bordéus, onde terá de ficar até que a herança da prima Danet esteja nas suas
mãos. Gastará muito dinheiro e perderá tempo: algumas semanas, alguns meses talvez, mas
ficar-Lhe-ão cento e cinquenta mil francos; vale a pena deslocar-se.
GASPAR - Seria vender todos os seus direitos à herança mediante uma quantia que lhe seria
entregue ao assinar um documento.
GASPAR - Cento e cinquenta mil francos, que é quanto lhe ficaria se fosse tratar do assunto a
Bordéus, porque, desde que a herança é quase toda em terras e moradias, tinha muitas
dificuldades a aplanar, muito tempo a perder, muitos adiantamentos a fazer.
TOMÁS - Se imaginas poder consegui-lo, dou-te o meu consentimento; faz tudo pelo melhor.
GASPAR - Está combinado. Vou tratar de en contrar alguém seguro e honesto. Até breve.
A hora adiantava-se; estugou o passo, pensando que ainda teria tempo de dar uma olhadela
pelas oficinas antes de se dirigir ao escritório de Féréor.
À hora exacta, foi ter com Féréor. Quando chegou, este entrava também.
FÉRÉOR - Conta-me como as coisas se passaram. E não esqueças nada, nem as tuas palavras
nem as dos outros.
E Gaspar começou o relato da conversa havida entre ele e o pai. Quando chegou à defesa da
bondade e da generosidade do patrão, este fez um gesto de satisfação; examinou mais
atentamente a fisionomia de Gaspar. Quando acabou de falar, volveu:
FÉRÉOR - Está bem. Arranjaste bem o teu negócio. É conveniente concluí-lo depressa, para não
lhes dar tempo de consultar amigos... que os enganariam. Vens esta tarde comigo à cidade;
levarás o meu notário; redigirá o contrato na minha presença, copiá-lo-á; amanhã fá-lo-ás
assinar por teu pai e será o começo da tua fortuna.
GASPAR - O patrão terá a bondade de pôr no contrato que, depois da mórte de meu pai, o
lucro que eu tiver retirado deste negócio me será contado como herança e que meu irmão
retomará a mesma importância na fortuna de meu pai.
FÉRÉOR - Direi isso ao notário. O que fazes é generoso; é mais do que honesto. Saio daqui a
duas horas; apronta-te.
Féréor despediu Gaspar com um gesto. O patrão permaneceu alguns instantes imóvel e
pensativo.
Reflectiu durante largo tempo e depois saiu. Quando Gaspar saiu de casa dos pais, Lucas disse
ao pai que tivera muita pressa em dar o seu consentimento.
LUCAS - Gaspar vai rápido de mais. O pai devia esperar antes de se resolver.
TOMÁS - Esperar o quê? Para me arreliar e adoecer? Eu já não dormia por causa disso!
Lucas não proferiu palavra; como o pai dissera, o assunto estava resolvido.
FÉRÉOR - Não se incomode, tio, Tomás. Deixe-se estar sentado; vamos passar ao
quarto
O tio Tomás, indeciso, levantou-se, abriu a porta e introduziu Féréor e quem o acompanhava.
O notário leu o contrato, de que o tio Tomás não
- O quê? Que é? - tornou Féréor, com esse tom seco e frio que assustava toda a gente. -
Imagina que eu e Gaspar queremos enganá-lo? leram-lhe o contrato! Quer ou não receber
imediatamente cento e cinquenta mil francos e renunciar à herança de Danet?
O tio Tomás, trémulo, assinou. Gaspar assinou por sua vez e, depois, Féréor.
O notário tirou um sobrescrito lacrado que apresentou a Féréor, que o recebeu, o abriu e
contou cento e cinquenta notas de mil francos que deu a Tomás.
- Faça assinar o recibo - disse Féréor ao notário, que entregou a Tomás um papel que este
assinou, sem saber o que fazia.
Féréor levantou-se, disse a Gaspar que o acompanhasse e ao notário que ficasse e saiu, depois
de dizer adeus com a mão.
FÉRÉOR - Disseste ao notário que desse os passos necessários para te fazer entregar a
herança?
FÉRÉOR - Estás feito proprietário; resta saber de quanto. Quero estar ao corrente deste
negócio. É mister que esse dinheiro seja o começo da tua riqueza. Principiei com metade e,
sem ninguém me ajudar, consegui em poucos anos melhorar; é preciso que faças o mesmo.
Estou aqui para te amparar e quero que a tua riqueza seja feita depressa.
Gaspar sabia que Féréor não gostava de demorados agradecimentos nem de transportes de
gratidão; assim, limitou-se a tomar a mão de Féréor, a
beijá-la e a dizer:
Féréor ficou mais lisonjeado com essas três palavras do que com estiradas frases de
reconhecimento
herança da prima Danet, mediante cento e cinquenta mil francos que Gaspar lhe pagou e cujo
recibo o
NOTÁRIO - Muito bem, Lucas. Explicaste tudo perfeitamente em poucas palavras. Nada tem
com que se preocupar, tio Tomás; a não ser em colocar o dinheiro. Se isso o embaraçar, fale
comigo; colocá-lo-ei com segurança e vantagem.
TOMÁS - Faça tudo pelo melhor; tenho absoluta confiança em si. Eis-me livre desta herança;
apenas tenho que me preocupar com algumas missas por alma da minha falecida prima.
contrato e saiu.
Adopção de Gaspar
Um belo dia, Féréor trouxe a Gaspar um rapaz dos seus dezassete anos, dizendo-lhe:
- Aqui tens um rapaz para ensinar, a fim de te ajudar na tarefa; é inteligente e trabalhador;
deve ser- nos útil daqui a uns três anos. Vais instalá-lo no aposento pegado ao teu, para o
viares e ajudares no trabalho.
Quando Féréor se retirou, Gaspar mostrou a André o aposento que devia ocupar e disse-lhe
que arrumasse aí as suas coisas.
Voltou, como dissera, e encontrou-o tristemente sentado na única cadeira que Lhe mobilava o
pequeno quarto.
GASPAR - Que tolice! Se o Sr. Féréor o visse a chorar por causa disso, não ficava lá muito
contente.
ANDRÉ - Terei o cuidado de não chorar na presença dele; posso estar triste quando fico só.
Gaspar levou-o às oficinas, que pareceram distrair e interessar André. Chegou mesmo a fazer
algumas observações muito inteligentes a respeito das engrenagens e da marcha das bobinas.
Quando Féréor pediu a Gaspar notícias sobre o seu protegido, Gaspar respondeu:
- Tem aparência de ser bom rapaz e inteligente; o que é preciso é que vença o seu desgosto.
FÉRÉOR (com secura) - Desgosto por ter entrado para a minha fábrica?
GASPAR (sorrindo) - Que quer? O rapazito tem pais a quem estima extremosamente, decerto,
pois chora por os ter deixado e prometeu-me que há-de chorar sempre que esteja só.
GASPAR (sorrindo) - Que era disparate. Que dizer a um rapaz de dezassete anos que chora por
haver deixado o paizinho e a mãezinha?
FÉRÉOR - Foste tu que fizeste isso? Por Deus que a tua ideia é magnífica e havemos de a pôr
em prática. Vem à oficina pensar a coisa como deve ser.
GASPAR - Não dê a entender que a ideia é minha. Se convivesse com os operários, como eu, e
os ouvisse falar à vontade, veria como é importante deixá-los na crença de que tudo quanto é
bom, útil, provém apenas do senhor, e que, onde outros não vêem possibilidade de
aperfeiçoamento, o patrão vê-a e encontra-a. Perdoe o meu atrevimento e queira tomar conta
do desenho da engrenagem.
FÉRÉOR - Aceito-o, meu amigo, e não esquecerei a tua opinião. Está bem assim e ficarei mais à
vontade para conversar contigo acerca das minhas ideias e aproveitar as tuas.
E fazendo crer que estava grato a Féréor, Gaspar lisonjeava o amor- próprio do patrão e
ganhava terreno na sua estima e na sua confiança. Acompanhou-o à oficina. Féréor examinou
os maquinismos das bobinas, achou útil e inteligente a engrenagem proposta por Gaspar.
Conversou a tal respeito com os contramestres e ordenou a Gaspar que fizesse a experiência.
- O Sr. Féréor ficar-lhes-á grato - disse-lhes ele - , pois não há inventor que não goste de ser
apreciado por peritos no assunto.
De maneira que os contramestres não deixaram de felicitar o patrão pelo seu engenho de
mecânica.
Decorreram assim três anos; Féréor e Gaspar cada vez se afeiçoavam mais um ao outro.
Gaspar aproveitava-se das ideias inteligentes mas incompletas, de André, e apresentava-as a
Féréor, depois de as haver trabalhado e aperfeiçoado; André não dava por nada; não pensava
mais nisso depois de haver conversado com Gaspar, que fingia não lhes ligar importância.
Certo dia em que André fora chamado à oficina e Gaspar trabalhava no escritório, o correio
trouxe uma carta para André; Gaspar recebeu-a e pô- la em cima da mesa; deu-a a André
quando este voltou da oficina.
ANDRÉ (depois de ler) - Singular pedido me faz um negociante de telha da minha terra! Diz-me
que, sabendo que o Sr. Féréor fabrica chapas de cobre, deseja que lhe mande meia dúzia, de
tamanhos diferentes, como amostra, para telhados.
ANDRÉ - Admira-me que o Sr. Féréor, que fabrica tantas chapas de cobre, ainda não faça
chapas para telhados.
GASPAR - Não é trabalho para as nossas oficinas; não se trabalha o cobre como a tela
alcatroada.
GASPAR - Como queres que o cobre, que é um metal tão duro, se possa enrolar como o pano?
Gaspar e André ainda gracejaram durante muito tempo a respeito dessa ideia; Gaspar, porém,
compreendendo que podia tirar daí alguma coisa boa, incitou André a desenvolver o seu
pensamento, sempre com ar galhofeiro. Depois Gaspar, querendo fazê-lo esquecer-se, falou-
lhe dos pais, da familia, de maneira que André nunca mais se lembrou daquelas coberturas de
telhados senão como um disparate impossível.
Gaspar pensou tanto no caso, que, passados dois meses, tinha um plano para fabrico de cobre
mais maleável e podendo ser enrolado como um pano.
Féréor chegou, deu a volta costumada, aprovou, como sempre, o que se fizera nas oficinas e
meteu-se no escritório; não tardou a chamar Gaspar. Começou por interrogá-lo e ficou
satisfeito com as
Gaspar respondeu:
- Há qualquer coisa; aproveitei algumas ideias antigas do patrão e aqui tem o resultado.
Gaspar colocou diante de Féréor um plano de fabrico, depois um plano de maquinismos que
inventara e, finalmente, um esquema dos seus resultados obtidos. Por meio de um processo
químico dava ao cobre e ao zinco grande flexibilidade, podendo fabricar-se diariamente
milhares de metros de tela de zinco ou cobre.
FÉRÉOR - Que é?
GASPAR - Novo invento, uma fonte de glória e de fama para o patrão; tela de cobre e zinco; e o
patrão produzirá tela para cobrir telhados, sem despesa e sem trabalho, pois milhares de
metros diários custam pouco.
Féréor não pôde dissimular a sua surpresa e admiração. Quanto mais examinava, mais
satisfação demonstrava ainda. Contudo, nada disse. Depois de examinar muito Gaspar,
levantou-se, apertou-o nos braços e disse-Lhe em tom comovido:
- Meu filho!
- Desde hoje és meu filho. Há muito que penso nisso; a tua bela descoberta resolve-me; os
nossos interesses serão comuns e estimar-te-ei sem receio de te perder. Queres ser meu filho,
herdeiro da minha riqueza, perante a lei?
- Meu pai - redarguiu Gaspar, dobrando o joelho diante de Fédéor. - Continuarei a obedecer-
lhe como fiel servidor, a servi-lo como homem feito, instruído por si, pois, se não fosse o
senhor, nada seria.
- Levanta-te, meu filho, e vem esta tarde ao cartório do notário; tudo combinaremos.
Gaspar, no auge da alegria, beijou a mão sempre generosa para ele, que acabava de
compensá-lo tão magnificamente pelo seu serviço fiel e dedicado de oito anos. Entrara aos
dezasseis anos na fábrica; tinha agora vinte e quatro.
FÉRÉOR - Vai visitar teus pais, meu amigo. Vai falar-lhes no assunto e volta logo; não esqueças
as oficinas.
GASPAR - Pode ficar sossegado. Todo o meu tempo será, como até aqui, dedicado a si.
Féréor sorriu benevolamente e continuou o seu trabalho interrompido pelo invento de Gaspar.
Gaspar correu a casa do pai, que andava pelo campo; a mãe estava na quinta.
GASPAR - Mãe, venho participar-Lhe uma grande e agradável notícia: Féréor quer adoptar-me
e venho, por sua ordem, contar-lhe o sucedido.
A tia Tomás ficou tão surpreendida que não pôde articular palavra. Gaspar olhava-a a sorrir e
esperava pela resposta.
MÃE - Adoptar-te?! Tornares-te filho de Féréor? Renegares teus pais? Eu não quero. És
suficientemente rico por ti próprio para viveres honestamente sem possuires os milhões de
Féréor.
GASPAR - Mas, minha mãe, continuarei a ser vosso filho; é para ter o direito de lhe tratar dos
negócios em casa dele, que me adopta.
Gaspar esteve quase a arrebatar- se; habituado, porém, a dominar-se, conteve a sua irritação e
volveu com frieza.
Gaspar encolheu os ombros e saiu, um pouco assustado com a recepção que o pai podia fazer-
lhe. Encontrou-o pelo caminho, de volta a casa.
TOMÁS - Até que apareces! Há mais de um mês que não te ponho a vista em cima.
GASPAR - Venho trazer-Lhe uma boa nova pai. Féréor, sempre bom e indulgente para mim,
deseja adoptar-me.
TOMÁS - Muito bem; estás na idade de proceder como entenderes. Ficar-me-á Lucas que foi
sempre bom filho. Quanto a ti, nunca foste o que eu queria. Tens a tua fortuna garantida; tens
os milhões que ambicionavas. Adeus, Gaspar. Já não precisas de mim como eu não preciso de
ti; vai-te para casa do teu Féréor e eu vou preparar- me para deixar toda a minha fortuna a
Lucas.
GASPAR - Proceda como quiser, pai. De boa vontade cedo a Lucas os meus direitos sobre a sua
fortuna, e estou radiante, porque aproveito assim as intenções generosas do Sr. Féréor.
O tio Tomás humanizou-se ante aquelas palavras de Gaspar. Contava com resistência, ira e
apenas encontrara serenidade e respeito.
TOMÁS - Sim, Gaspar; não me oponho a que te deixes adoptar por Féréor. Considera-lo como
teu protector: sê seu filho. Eu tenho-o na conta de um ladrão que me roubou o filho que Deus
me deu e não gosto dele; e só quero vê- lo quando não possa deixar de ser. Vai, pois, ter com o
teu novo pai e abandona, por causa dele, teus velhos pais que já não te servem para coisa
alguma. Adeus, Gaspar, vai-te embora: a tua presença desagrada-me e até me encoleriza.
TOMÁS - De boa vontade ta dou. Vive muito tempo, sê feliz. Acumula milhões sobre milhões e
deixa-nos em paz como bons camponeses, sem te inquietares connosco. Vai ver tua mãe.
GASPAR - Já a vi, pai; recusa falar no assunto.
TOMÁS - Recusa? Pois já vais ver como a faço consentir. Acompanha-me e não fales, diga eu o
que disser.
TOMÁS - Perdeste o juízo, mulher. Porque recusas a Gaspar a licença de nos deixar para
sempre, de viver a seu gosto, de se afogar em ouro até ao pescoço, de nos desprezar, de
renunciar a nós? É indigno de que se tenha pena dele. Expulsou-nos do
seu afecto. Pois bem: expulsa-o também para longe do coração e da lembrança.
TOMÁS - O teu verdadeiro filho, o teu único filho é Lucas; Gaspar trabalhou sempre para nos
deixar. Concorda depressa e que se vá embora.
- Já te disse: dá-Lhe o teu acordo e avia-te... Depressa. Diz que sim, a ver se isto acaba por uma
vez!
- Pois sim - tornou a mãe, a chorar. - Vai, meu pobre filho, e sê feliz.
- Virei visitá-los mais vezes do que dantes - volveu Gaspar, beijando-a. - Adeus, mãe; bem sabe
que a amo. Adeus pai.
TOMÁS - Tua mãe é uma tola em chorar e eu não passo de um parvo em estar contrariado.
Que nos importa que o Gaspar nos renegue? Já não nos tem dado tantos desgostos?
TOMÁS - Veio, sim, a correr, todo satisfeito para nos dizer... vê se adivinhas!
TOMÁS - Escolheu outro pai. Achou que eu era muito bruto, muito campónio, muito vadio.
LUCAS - Percebo agora. O Sr. Féréor adopta-o.
LUCAS - Ainda bem para ele. É o que pode acontecer- lhe de melhor.
LUCAS - Decerto, pai. Desde menino, Gaspar gostou de estudas; desejou consagrar-se à
mecânica; bem sabe que, apesar dos seus esforços, pai, ele apenas tinha amor ao estudo, ao
colégio.
LUCAS - Aos dezasseis anos teve a sorte de entrar para a fábrica de Féréor. Fez carreira graças
à sua aplicação, à sua extraordinária inteligência, ao seu zelo, à sua pontualidade. olhe o fruto
do seu trabalho, da sua perseverança. E querem-Lhe mal por isso? E zangam-se por esse
motivo? Meu pai e minha mãe, consintam que lhes diga que não é justo, não está certo.
MÃE - Parece-me que tens razão, Lucas. Tomás foste mau para Gaspar e para mim.
LUCAS - O pobre Gaspar devia ter ficado bastante triste por ser tão mal recebido quando corria
a trazer- lhes uma boa notícia, que julgava regozijá-los.
TOMÁS - Mas isso em nada Lhe altera a sua situação para connosco.
LUCAS - E garante-lhe uma situação soberba e que ninguém pode tirar- lhe.
TOMÁS - E, contudo, é verdade... mas que animal eu sou! Pobre Gaspar! E quando me pediu a
bênção, que bênção não lhe dei! Cada palavra era uma injúria. Que fazer, Lucas? Tu, que és
ajuizado, aconselha-nos.
LUCAS - Querem que vá felicitá-lo e dizer-lhe que nem o pai nem a mãe pensaram que isso
mudasse de qualquer forma a sua situação para connosco e que me encarregaram de levar-lhe
a sua bênção, mas verdadeira, boa bênção, bem paternal, bem maternal? O pobre Gaspar
ficaria contente com isso, tenho a certeza.
TOMÁS - Sim, Lucas. Vai depressa e acrescenta que lhe peço desculpa, que me portei como um
miserável e que tem muita razão em preferir o bom Féréor a um bruto como eu. Vai depressa,
meu rapaz; ficarei mais satisfeito quando obtiver o seu perdão.
MÃE - Beija-o por mim, Lucas: diz-lhe que o amo muito, que me sinto satisfeita com a sua
felicidade.
Lucas virou-se e viu Féréor, que pareceu admirado com aquela brusca entrada.
LUCAS - Perdão, Sr. Féréor. Venho apenas abraçar o meu irmão e dar-Lhe o recado de meu pai
e de minha mãe. Permite-me que lho dê na sua presença, com a maior franqueza?
Lucas agradeceu e deu amplamente o recado dos pais, sem omitir as injúrias que proferira o
tio Tomás e as bênçãos do pai e da mãe.
GASPAR - Diz a nossos pais que lhes agradeço, que os amo e que continuarei a ser sempre o
seu filho respeitoso; mas que nada no mundo me fará esquecer o generoso benfeitor que teve
a bondade de coroar os seus beneficios e a minha felicidade, concedendo-me o direito de lhe
consagrar a minha vida e a minha inteligência; os seus desejos serão a minha lei. Vai, meu bom
Lucas, a quem muito quero. Beija por mim nossos pais e diz-lhes que do coração os perdoo.
FÉRÉOR - Parece-me bom rapaz, o teu irmão; agrada-me a sua fisionomia. Vamos, meu amigo;
continuemos o nosso assunto; é preciso executar a tua ideia o mais cedo possível.
A nova oficina que Féréor mandou fazer para os cobres e zincos maleáveis de Gaspar era
modesta, mas bonita.
Gaspar foi encarregado de dirigir tudo no novo empreendimento; pediu a Féréor para ter
como auxiliar André, ao qual Gaspar reconhecera uma inteligência muito especial para tudo
quanto dizia respeito a mecânica. Já não Lhe receava a concorrência, desde que Féréor tão
magnificamente lhe recompensara o zelo e a dedicação.
Reaparecimento de Frlichein
FÉRÉOR - Vai dizer-lhes que é na terça-feira próxima e convida- os para jantar nesse dia.
GASPAR - Não sou eu quem convida; é o patrão.
FÉRÉOR - És tu, meu amigo; tudo se torna comum entre ambos; és o meu único herdeiro; tens
toda a minha confiança, toda a minha amizade e festejamos o primeiro dia da tua autoridade.
Enquanto vou dar uma olhadela aos resultados do nosso último invento, vai a casa de teu pai.
FÉRÉOR - Sim, faz-te substituir sempre que sejas obrigado a ausentar- te. Se ele dirigir bem a
oficina, talvez não seja mau confiar-lhe a sua completa direcção, como fiz contigo.
Gaspar saiu logo a avisar os pais. Féréor não dissera que se apressasse; mas, sempre pontual e
ligeiro, só gastou o tempo estritamente necessário para dar conta da sua missão.
GASPAR - Vim precisamente para lhe falar no assunto, por ordem do Sr. Féréor. Deve ser na
próxima terça-feira, na fábrica; haverá um jantar depois da primeira experiência; está
convidado, assim como Lucas. Nesse dia há feriado na fábrica. Vai, pai, com a mãe e o Lucas?
TOMÁS - Sim, meu rapaz, iremos todos. Ah esquecia-me de te dizer que recebi ontem a visita
de Frolichein. Tem qualquer coisa de importante a comunicar-te.
GASPAR - Que poderá ter para me dizer? A sua fábrica é concorrente da nossa. Se quer falar-
me, que vá ter comigo à fábrica. Não quero falar- lhe fora das oficinas, como que às escondidas
do Sr. Féréor.
Mal proferia aquelas palavras, a porta descerrou-se e surgiu a cabeça de Frlichein. Gaspar
levantou-se para sair.
FRLICHEIN - Não ir embora, meu amiga; ter bom coisa para oferecer.
FRLICHEIN - Saber muito bem. Agora você ter fama. Antes gostar ser meu casa!
FRLICHEIN - Saber bem; apenas em seu casa ser melhor que no casa de herr Féréor. Estar mais
contenta.
FRLICHEIN - Preferir perder o que eu dar e ficar no fábrica desse velha patifa de Féréor.
GASPAR (irritado) - Vá-se embora, seu insolente! Eu o ensinarei a não injuriar o Sr. Féréor: fora
daqui e não torne a pôr cá os pés.
Frolichein, estupefacto, quis responder, mas Gaspar não lhe deu tempo; agarrou-o pelos
ombros e pô-lo fora.
Frlichein ficou à porta, não sabendo o que havia de fazer. Queria a todo o custo falar com
Gaspar, a quem todos se referiam como sendo o principal director da fábrica de Féréor. Após
alguns momentos de incerteza pensou:
- O rapaza ter feito bem; defender sua patrão. Proceder bem; defender também mim. Querer
tê-lo e terei - o.
- Minha boa amiga, propor coisa sobervo; dar meu filha Mina em casamento; ser bonito, gentil
raparigo.
A proposta era tão ridícula, que Gaspar não pôde deixar de rir. FrÓlichein voltou a entrar, rindo
também.
- Você querer, ser verdade? Mein Goa, ser tão gentil! Ser bom par!
GASPAR - Se me quer falar, peço-lhe que vá ter comigo à fábrica. Preciso de conversar com
meu pai.
E Gaspar, fazendo sinal aos pais, entrou num aposento contíguo, aonde o seguiram. Tudo ficou
combinado para terça-feira.
MÃE - Há uma coisa que me desgosta em tudo isto, Gaspar. É que nesse dia tão solene para ti,
não se tivessem lembrado de rezar a Deus. Queria que houvesse uma missa a que todos
assistíssemos, logo depois da adopção.
GASPAR - Tem razão, mãe; vou falar nisso ao Sr. Féréor. Participar- lhe-ei tudo quanto se
combinou; mande-me lá o Lucas: vejo-o tão poucas vezes!
Gaspar voltou para a fábrica; chegando, porém, a meio do caminho, ouviu passos precipitados
que pareciam seguirem-no. Voltou-se e viu o alemão, que dava enormes passadas e tentava
apanhá-lo. Gaspar estugou o passo; Frólichein acelerou o seu; Gaspar desatou a correr e, a
despeito da encarniçada perseguição de Frólichein, chegou ao gradea mento da fábrica antes
dele; entrou com presteza e fechou o portão.
Mas o alemão, que continuava a dizer que queria aquele rapaz, não desanimou; tocou; abriu-
se o portão e apareceu o porteiro.
- Ah, mein Goa! Que ir ser de mim Mein Gon! Tentou abrir o portão; já estava fechado Féréor
aproximava-se e já o reconhecera.
- Este mariola em minha casa? Que quererá ele?
- Mein Gon! Mein Lieber Gott - repetia o alemão, correndo de um lado para o outro, a ver se
encontrava um buraco por onde pudesse escapulir-se daquele dédalo de oficinas.
Féréor fitava o seu concorrente com olhos coruscantes, divertindo-se com a sua atrapalhação.
FÉRÉOR (em tom seco) - Que vem o senhor cá fazer? Como se atreveu a entrar aqui?
FRLICHEIN - Respeitável herr, entrar para falar sua respeitável amiga Gaspar.
FRLICHEIN - Venerável herr, eu vir. . vir. . para oferecer meu filha Mina em casamenta, um
menina muita gentil.
FÉRÉOR - Endoideceu? Imagina que eu consentiria no casamento de sua filha com Gaspar?
FRLICHEIN - Perdoar, perdoar, estimável herr Féréor. Eu querer paz consigo e os suas.
FRLICHEIN - Respeitável herr, eu querer sair, mas não poder A portão está fechada; não poder
abrir.
Féréor chamou o porteiro, que acorreu depois de haver prevenido Gaspar de que um alemão o
procurava. Gaspar, adivinhando que esse alemão era o seu perseguidor, proibiu o porteiro de
o deixar entrar. Quando este apareceu, encontrou Féréor a discutir com Frólichein.
FÉRÉOR - Porque deixou entrar este homem? Bem sabe que eu próíbo a entrada de estranhos.
PORTEIRO - Este senhor pediu para falar ao Sr. Gaspar; imaginei que o podia deixar entrar.
Frlichein tremia. O ruído do diálogo atraúa Gaspar, que julgava conhecer a voz de Féréor.
Aproximou- se.
FÉRÉOR - Pelo contrário; expulso-o. O porteiro deixou-o entrar, pois tinha perguntado por ti.
GASPAR - Sr. FrÓlichein, como se atreveu a perseguir-me até aqui? Eu tinha-o proibido de
continuar as suas ignóbeis propostas.
GASPAR - Em casa de meu pai, onde me encontrou e donde o pusera na rua, agarrando-o pelos
ombros, porque me falou de si com uma falta de respeito que não admito seja a quem for.
FRLICHEIN - Mein Gott! Não querer fazer mal; apenas dar Mina a herr Gaspar. Vista não querer
e tratar-me mal, ir empregar sua segredo para cobres e zincos e se fabricar ficar vocês
arruinadas!
Frlichein já tinha passado para o lado de fora da grade, pois não se sentia em segurança, e foi-
se embora, enterrando o chapéu na cabeça.
FÉRÉOR - Gaspar, meu filho, escreve os bilhetes de convite para todos os arredores, solares,
administrações e fábricas. Escreve hoje mesmo, para abreviar o caso da patente de invenção.
De seguida manda preparar um grande banquete nos armazéns, para todos os convidados.
Que tudo caminhe bem. Que pare o trabalho das oficinas; leva contigo todas as pessoas de
que precisares.
- A partir de terça-feira, desaparece o patrão, meu amigo... Só teu pai! Sê-lo-ei de direito,
como já o sou pelo coração.
Gaspar executou fielmente as ordens de Féréor. Os cartões de convite ficaram prontos daí a
duas horas, mercê da tipografia. Gaspar e André escreveram os endereços; os cartões foram
distribuídos por homens inteligentes, que partiram a cavalo em várias direcções para entregar
os convites num raio de vinte e cinco quilómetros. O correio levou os cartões com destino mais
afastado. O banquete foi encomendado em Paris, a um grande restaurante, que se
comprometeu a fornecer tudo e a mandar pessoal para o serviço da mesa.
Féréor vigiara e dirigira o arranjo e as inscrições das oficinas, que só deveriam ser abertas à
hora do banquete.
No dia da cerimónia, estava um tempo magnífico: era em fins de Maio. Antes da chegada dos
convidados para a experiência das telas de cobre e zinco, todos os operários e fornecedores da
fábrica se juntaram no prado, em frente das oficinas. Um tiro de peça anunciou a chegada de
Féréor, acompanhado por Gaspar. A carruagem parou a meio do prado. Féréor desceu lesto,
apesar dos seus setenta anos; Gaspar colocou-se-lhe à direita. Os gritos e os vivas dos
operários foram interrompidos por um gesto de Féréor, anunciando que ia falar.
-Meus amigos, meus filhos, meus senhores: agradeço- lhes os testemunhos de afecto que me
prodigalizam. Se lhes tenho sido útil na minha vida para que me considerem benfeitor, assiste-
me o direito de pedir-lhes que concedam uma parte desse reconhecimento a este rapaz que se
mantém modestamente a meu lado e que tão bem me tem servido; recebe hoje a recompensa
do seu zelo, da sua dedicação e da sua inteligência. Tornou-se meu filho, o herdeiro da minha
fortuna e da minha glória. É tanto filho do meu coração, como do meu espírito. Participará, de
futuro, da minha autoridade e todos Lhe devem respeito e obediência.
Féréor abriu os braços; Gaspar caiu neles, onde permaneceu longo tempo retido pelo pai
adoptivo. Após este abraço, Féréor pegou-lhe na mão e levou-o a todas as filas de operários,
que aplaudiam, davam palmas e riam da teatral exibição, em clara manifestação de regozijo.
Percorridas todas as fileiras, quando o contrato de adopção apresentado pelo notário foi
assinado, Féréor, dando o braço a Gaspar, encaminhou-se para a estrada, seguido de todos os
operários, e dirigiu-se para a igreja, onde o aguardavam o prior e o clero dos arredores e
grandes cantores, que entoaram vibrante Te Deum, durante o qual o cura, escoltado pelos
clérigos, levou Féréor, pai e filho, ao coro, onde lhes havia preparado um genuflexório e
cadeiras de veludo e ouro.
A multidão já invadira a igreja; na primeira fila haviam colocado o pai, a mãe e Lucas.
Principiou a missa, que foi participada com respeito e recolhimento por todos os assistentes.
Gaspar, em presença de Deus, bom e misericordioso, que o protegera e o conduzira à glória
que ambicionava, ficou deveras sensibilizado. Orou e sentiu a alma comovida de
reconhecimento e de júbilo.
Finda a missa, o abade da freguesia abriu uma subscrição para os pobres, a fim, disse ele, de
que pudessem também participar do regozijo geral. Féréor meteu no saco uma nota de mil
francos; o abade quase desmaiou ao notar tal generosidade, tão inesperada. Gaspar deu cem
francos. Os pobres lucraram assim com a adopção de Gaspar e, pela primeira vez, gabavam a
generosidade de Féréor.
Depois da missa, foram para a fábrica; o notário sentou-se diante da grande mesa que se havia
preparado no prado e todos puderam assinar como testemunhas o contrato de adopção já
assinado por Féréor e Gaspar.
Um primeiro almoço foi servido nas mesas que tinham sido postas ao longo do prado; havia aí
iguarias em abundância e para todos os paladares.
Às onze horas, tendo chegado os convidados dos arredores, Féréor dirigiu-se para a nova
fábrica, a fim de assistirem à experiência do cobre e do zinco tornados maleáveis.
Num momento de tumulto, ocasionado pela presteza dos que queriam ver e apalpar, Féréor
apertou a mão de Gaspar e disse-lhe, baixinho:
Gaspar respondeu:
O pai e a mãe Tomás choravam de alegria e de orgulho; todos os felicitaram pelo filho.
Ouviu-se então uma música, que precedia todos os contramestres, que marchavam a par.
Chegando
em frente de Féréor, pai e filho, apresentaram-lhe duas taças de prata dourada, artisticamente
cinzeladas, que tinham as usuais inscrições:
André leu, em nome dos contramestres e dos operários, um pequeno discurso, bem feito e
bem pronunciado. Féréor aceitou as taças, e entregou a que pertencia a Gaspar, dizendo:
- Meus amigos, confesso estar muito sensibilizado pela homenagem prestada e aceito-a para
mim e para meu filho. De futuro, obedecer-lhe- ão como se obedecessem a mim próprio; é
digno de os dirigir. Vamos agora para a sala do banquete e o primeiro brinde será para os
nossos bons e laboriosos operários.
Primeiro enternecimento
À tarde, Féréor parecia cansado e, por isso, Gaspar propôs-lhe retirar-se, ao que Féréor
acedeu.
FÉRÉOR - Que fazes, Gaspar? Vai-te distrair; vão deitar um soberbo fogo de artifício.
GASPAR - Permita-me que o acompanhe, pai. Bem sabe que me sinto mais feliz junto de si, do
que em qualquer outra parte.
FÉRÉOR - Então, anda daí, filho. Gosto muito de ti; eu, que nunca me afeiçoei a pessoa alguma,
sinto o coração tomado pela tua ternura e pelos teus cuidados. Sinto-me feliz com a tua
felicidade; gosto de te ter ao pé de mim. Resumindo: quero-te muito.
Féréor, ao proferir tais palavras, sentiu os olhos marejados de lágrimas. Ele, que nunca vertera
nenhuma, sentia-se comovido. O seu enternecimento sensibilizou Gaspar; viu que outro
sentimento, além da ambição e do interesse individual, lhe penetrava o coração. O seu
reconhecimento transformara-se em verdadeira e profunda afeição. Cedendo a essa comoção,
tomou a mão de Féréor e, caindo-lhe nos braços, beijou-o várias vezes; ambos choraram
abraçados.
FÉRÉOR - E a ti a devo. Reconheço-o com orgulho; em tempos passados, ficaria invejoso da tua
descoberta; hoje, envaideces-me com ela. Felicito-me por te haver escolhido para filho. Eis-nos
chegados; vem tomar posse dos aposentos que te mandei preparar; completarás o que tiver
sido esquecido.
Pai e filho instalaram-se nos respectivos aposentos, que eram pegados. Os de Gaspar eram
bons e não lhe faltava móvel algum essencial; de resto, ele não era exigente; o luxo era coisa
desconhecida em casa de Féréor; uma cama sofrível, uma cómoda, uma mesa, uma poltrona e
duas cadeiras constituíam todo o mobiliário, quer de um quer do outro; Féréor tinha a mais
uma grande secretária e um móvel com gavetas para guardar papelada.
Depois de haver recapitulado todos os acontecimentos daquele ditoso dia, imaginou que tinha
conseguido o seu fim; os milhões que desejava desde menino estavam-lhe garantidos; a sua
situação na fábrica ultrapassava as suas esperanças; os negócios tomavam-lhe o tempo e não
lhe davam margem ao tédio; gostava realmente do pai adoptivo, mas sentia com desgosto que
esse afecto não era ainda a felicidade, que alguma coisa faltava para sua completa satisfação.
Não sei porquê - pensava -, afigura-se-me que a vida ainda não está completa.
E, contudo, cheguei ao alvo dos meus porfiados esforços, sou senhor do meu futuro. Meu
novo pai estima- me realmente; só de mim depende a solidez e até o aumento da amizade que
me dedica. Como reconhecer todas as suas bondades?
Nestes momentos, que devem ser os mais felizes da minha vida, porque é que o meu coração
ainda não está satisfeito? Onde encontrarei a completa satisfação que me falta? Onde está a
tranquilidade que dê a perfeita felicidade? O reconhecimento ao meu benfeitor proporciona-
me alguns instantes de calma. Até agora, a minha vida só tem sido ocupada pelo trabalho; a
ambição, que me levou continuadamente para o fim que atingi, apenas me proporciona uma
incompleta felicidade. Preciso de mais ainda! Os gostos, as ideias e os hábitos de minha família
são opostos aos meus; torna-se-me cada vez mais estranha. E podia ser de outro modo? Se ao
menos possuísse um amigo que tivesse toda a minha confiança, a quem pudesse pedir
conforto e conselhos! Mas desconheço a amizade. A missa desta manhã causou-me uma
impressão singular que não posso definir. Parece-me ter empregado mal o tempo até agora.
No entanto, tenho sido sempre honrado; a minha assiduidade ao trabalho e os meus seriços
deram-me a situação em que estou. Que mais poderei fazer além do que já fiz?
Por fim, o cansaço acabou por dominar-Lhe a agitação e dormiu até de manhã. Para ir aos
aposentos de Féréor esperou que lá entrasse alguém. Ao primeiro ruído que se fez ouvir,
Gaspar entrou devagarinho e encontrou Féréor acordado.
FÉRÉOR - Logo que estejamos prontos e almoçados, meu filho, vamos às oficinas; não será má
essa visita para pôr tudo em ordem e recomeçar o trabalho. André e Bernardo têm com que se
entreter.
Enquanto esperavam pelo momento de sair, Gaspar, consoante as ordens do pai, tratou da
correspondência, isto é, abriu todas as cartas, pôs de lado as que diziam respeito à fábrica e a
negócios, e entregou a Féréor as cartas particulares.
- Meu pai, leremos tudo isso na carruagem; se assim o entender, ganha-se tempo.
FÉRÉOR - Muito bem, amigo; é o que costumo fazer. Vejo com prazer que tens as mesmas
ideias que eu.
GASPAR - É que são as melhores, meu pai, e à força de conviver consigo vou tomando um
pouco de si.
Féréor sorriu; não era insensível à lisonja. Quando se meteram na carruagem, ambos se
entregaram à sua tarefa. A carta que Gaspar guardava para o fim, fê-lo indignar.
Leio-Iha ou será melhor não Lhe falar nela?, perguntava de si para si.
Féréor concluíra a leitura da sua correspondência; fitou Gaspar e, com o seu olhar perspicaz,
notou logo que qualquer coisa o atormentava.
FÉRÉOR - Outra vez? Mas esse homem tem o Diabo no corpo! Atreve-se a escrever-te depois
de ter sido despedido, expulso como um cão?
Gaspar leu:
Mim ver você no bonito cerimónia de hoje; achá- lo a sua gosta. Propor mais uma vez dar Mina
em casamenta. Dizer sua pai que se repelir meu pessoa outro vez, eu arruinar seu indústria.
Achar melhor que você para o cobre e zinca; ganhar metade em mão-de- obra. Se quiser Mina,
o nosso indústria caminhar bem juntos e desaparecer a rivalidade. Sermos sempre juntos e
como amigas. Se recusar, fazer guerra de morte. Responder depressa e bem; então ir falar,
daqui dois dias. Bom noite, meu jovem amiga. Mandar-lhe amostra do meu tecida de cobre e
zinca.
Frlichein
Gaspar calou-se. Féréor estava lívido. Depois de haver examinado a amostra e após demorado
silêncio, pediu a Gaspar que relesse a carta.
FÉRÉOR - É claro, aperfeiçoou o nosso invento e introduzi-lo-á. O triunfo obtido ontem será
destruído por esse miserável. Como parar o golpe?
FÉRÉOR - Mas esse meio é impossível. Casar com a filha de um mariola a quem desprezas, a
quem expulsaste da tua casa, a quem eu pus fora, o qual não podemos ver sem repulsa.
FÉRÉOR - Ouve, Gaspar. Há dois ou três anos, talvez não só tivesse aceitado como te pediria
até que fizesses tal sacrifício; agora, tornar-se-me-ia bastante duro porque, como ontem te
disse, soubeste despertar-me o coração. Estimo-te e serei infeliz com a tua infelicidade.
Esta ideia, exposta assim despreocupadamente, decidiu Gaspar a fazer o sacrifício da sua
felicidade íntima, para livrar o pai da desgraça que o ameaçava. Não hesitou.
doido!
GASPAR - Nada disso, meu pai. Estou em meu perfeito juízo. Prevejo para si uma série de
inquietações, desgostos e tormentos, talvez mesmo de desgraças. Os seus interesses são os
meus; deu-me o direito de me sacrificar por si; fá-lo-ei com prazer, com alegria, porque eu
também, que nunca gostei de ninguém, quero-lhe muito e sinto-me desgraçado e perturbado
com a ideia do mal que pode causar-Lhe esse malvado. Acredite, pai, sentir-me-ei mais feliz
por lhe dar essa prova de afecto para enfrentar os males que nos ameaçam, do que se
estivesse livre e independente, mas testemunha contínua das suas inquietações e dos seus
desgostos.
- Meu filho, meu querido, excelente filhoexclamou. - Meu Deus, como é bom amar e sentirmo-
nos amados! Nunca fizera ideia alguma desta felicidade! Na verdade, meu querido filho, não
sei se deva aceitar o teu generoso sacrificio. Lembra-te do desprezo que votamos a esse
homem, da repugnância que teremos em nos encontrarmos continuamente na sua presença,
em contacto de negócios com esse patifório!
GASPAR - Bem sei, pai; poupá- lo-ei o mais possível a esse custoso e odioso contacto. Dar-me-á
a conhecer as suas intenções e transmitir-lhas-ei.
FÉRÉOR - Gaspar, meu pobre Gaspar, faço a tua infelicidade ao querer tornar-te feliz.
GASPAR (sorrindo) - Não, pai; dei-lhe tudo o que tenho de sensibilidade em meu coração e
ficarei mais contrariado do que infeliz. Quando me sentir deveras irritado, virei consolar-me
perto de si.
- Vou responder hoje mesmo. E, começando o assunto, depressa ficará concluído. Há-de
terminar antes do fim do mês.
Féréor não respondeu; estava preocupado. Ao chegarem à fábrica, ficaram surpreendidos com
a ordem que reinava nas oficinas. Haviam desaparecido todos os vestígios do banquete e da
festa; o prado estava liberto das mesas, das peças de artifício, das barracas, da sala do baile.
Os únicos restos da festa eram inúmeros lampiões, globos e vidros de cor presos às árvores e
que ainda não se tinham tirado por falta de tempo.
ANDRÉ - Ninguém. Depois do fogo de artifício voltaram a dançar e a comer até às duas da
madrugada. Vendo que ficava pouca gente, lembrei-me de nos entregarmos à tarefa de pôr
tudo em ordem; a gente da aldeia também nos ajudou; trabalhou- se o melhor que se pôde: os
nossos operários, nas oficinas, onde não se permitiu a entrada de estranhos logo que as
máquinas e engrenagens foram montadas; os trabalhadores e os estranhos cá fora.
- Pai - disse Gaspar, permite-me que lhes anuncie a concessão de um dia de folga que será
pago como se trabalhassem?
- Muito bem, meu amigo; ia dizer-te o mesmo. É extraordinário como as nossas ideias se
encontram!
Gaspar sorriu e encarregou André de espalhar essa agradável notícia entre os operários.
GASPAR - Sou todo ouvidos, pai, e, por minha vez, far-lhe-ei um pedido.
FÉRÉOR - Creio ser conveniente, meu filho, irmos ambos visitar teus pais. Ontem quase não
nos importámos com eles e mal tiveste tempo de os beijar. A nossa visita deve agradar-lhes.
GASPAR (rindo e beijando a mão de Féréor)É incrível como as nossas ideias coincidem; era
justamente o que ia pedir-lhe!
Subiram para o trem que em poucos minutos os pôs à porta do tio Tomás. Lucas andava pelos
campos, mas o pai e a mãe estavam em casa.
Ao rodar da carruagem, o tio Tomás saltou da cadeira e correu a abrir a porta. Féréor e Gaspar
apearam-se.
- Trouxe seu filho e meu filho... meu querido filho, que deseja vê-lo e falar-lhe. Deixo-os em
plena liberdade. Gaspar, mando-te a carruagem, quando precisar de ti; aí por volta das quatro
ou cinco horas; almoça com teus pais, meu amigo. Há muitos anos que não almoças com eles;
é bom que também tenhas um feriado.
Féréor voltou para a carruagem ajudado por Gaspar, que Lhe apertou a mão e o viu seguir.
- Excelente pessoa! - disse, ao voltar.
GASPAR - Pai, este homenzinho, como lhe chama, é o meu benfeitor. Nunca a sua bondade foi
desmentida com respeito a mim; nunca me dirigiu uma censura, nunca demonstrou o mais
pequeno descontentamento. Há nove anos que vivo sob as suas ordens; sempre me tratou
bem, me animou; tem-me pago mais largamente do que o que prome teu, mais
generosamente do que eu merecia. E, enfim, afeiçoou-se-me, estimou-me, amou-me, sim, quis
tornar-se meu pai. Veja se não devo amá- lo também e ser-lhe sinceramente dedicado.
TOMÁS - Caspité! Falas dele com um entusiasmo! Defender-me-ias com tanto calor?
Gaspar sorriu e Quis responder. Mas enquanto hesitava, apareceu Lucas, que se atirou ao
pescoço do irmão, bradando:
- Gaspar! És tu, Gaspar? Que belo dia para ti o de ontem! Sinto-me satisfeito por te ver e
conversar contigo um pouco à vontade.
GASPAR (em seguida a tê-lo abraçado) - Almoço com vocês. Estou de folga, hoje.
LUCAS - A primeira há nove anos; é uma grande alegria para nós. Onde está a mãe?
TOMÁS - Não deve tardar; foi preparar um frango, buscar ovos, manteiga, legumes, fruta,
enfim, tudo o que é preciso para receber bem Gaspar. Estás habituado a boa cozinha e a nossa
vai parecer-te mesquinha. Não é como o teu banquete de ontem.
GASPAR - Almoçarei muito melhor e com mais abundância do que como em minha casa onde
estou constantemente a ser incomodado, apertado com trabalho.
Lucas convidou o irmão a ir dar com ele uma volta pelos campos; Gaspar admirou os
progressos e os melhoramentos da cultura de Lucas.
- Há muito tempo - disse - que não passeio contigo e não tornei a ver estes campos que o pai
me obrigava a cultivar!
GASPAR - Tudo é agradável quando se chega ao fim que há em vista; é verdade que tenho
passado muitas noites sem me deitar, muitos dias sem ter tempo para comer; tenho
suportado fadigas, aborrecimentos, discussões constantemente repetidas, por que tinha o
extremo desejo de vencer. Ultrapassei o meu fito mercê da amizade de Féréor. Avalia, pois,
quanta gratidão lhe não devo e vê os cuidados que preciso ainda de ter para não perder o que
com tanto custo consegui.
LUCAS - Que cuidados? Ninguém pode impedir-te de continuar a ser filho adoptivo de Féréor.
GASPAR - Sem dúvida, mas pode fazer de mim um filho deserdado e devo, para evitar tal
fatalidade, continuar a condescender em tudo, e tornar- me necessário, indispensável para
manter viva a afeição muito sincera que concebeu por mim e que ontem, de facto,
agradavelmente me impressionou, quando ma confessou finalmente. Pobre homem! Disse-me
que era a sua primeira afeição e viu-o chorar nos meus braços. Esse triunfo foi para mim tão
agradável como inesperado.
LUCAS - E a verdade é que ele não passa por ser uma pessoa muito sensível.
GASPAR - Não, não é, e foi por isso que me comovi ao vê-lo chorar, ao abraçar-me e a
confessar que me estimava. A alegria, a surpresa, o reconhecimento e até uma afeição sincera
enterneceram-me por minha vez e chorei com ele... e devo dizer que tais lágrimas, as
primeiras que chorei desde a infância, me pareceram doces; e é bem verdade que amo esse
xcelente homem que tanto tem feito por mim e que possui, não o esqueço, o poder de
destruir em parte o que fez.
LUCAS - Pobre Gaspar! Percebo a tua vida; não ta queria nem por um império.
GASPAR - Tu é que não percebes: compara o que teria sido com o que sou. Ainda me vejo a
sair daqui em blusa, de socos, tímido, desajeitado, ignorante.
GASPAR - Pobre ciência! Nada sabia comparado com o que sei agora. E eis-me filho de um
milionário, mandando em milhares de indivíduos, saudado, obedecido e respeitado em toda a
região, rodando em soberba carruagem; esperado e desejado em minha casa (porque eu agora
tenho a minha casa), recebido com um sorriso amistoso e benévolo que me anuncia a solidez
do meu poder: tudo isto, vê tu, é o meu paraíso neste mundo.
LUCAS - Um adventício inteligente pode estragar tudo isso e suplantar-te junto de teu novo
pai.
GASPAR - Não, vigio continuamente e não deixarei de vigiar enquanto Féréor viver.
GASPAR - Completamente, não; além do receio de tudo perder se a afeição de Féréor viesse a
diminuir ou até a extinguir- se, sinto como que um vácuo que não posso preencher. Pergunto
de mim para mim qual será o meu futuro? Para quê e para quem devo continuar a trabalhar, a
extenuar-me, a agitar-me? Falta-me qualquer coisa, mas não sei o que seja... Mas -
acrescentou após alguns momentos de silêncio - não achas já tempo de voltar? Agora, fala-me
de ti; até agora só temos falado de mim.
LUCAS - De mim, pouco há a dizer; é sempre a mesma vida; meu pai prejudica-a de certo modo
com as suas zangas; não me bate, mas quando bebe demais, o que, como sabes, lhe acontece
frequentemente, ralha algumas vezes com a mãe. Quanto ao mais, deixa-se levar com
facilidade.
Os dois irmãos entraram na hora própria; a mãe ia pôr a mesa; Lucas correu a ajudá-la.
Já não nos pertence; já não é um irmão para mim, nem um filho para meus pais.
Que estúpida vida levam aqui! Quanto não seria infeliz, se me visse obrigado a viver com eles!
Como isto é diferente da minha fábrica! Que vida! Que actividade! Que animação! E quanto
não prefiro Féréor a meus pais! Em casa deles, sinto-me mais incomodado, mais aborrecido! E,
depois, a lembrança da minha infância, da dureza de meu pai, da indiferença da minha mãe,
indispõe-me. Em tudo isto, Lucas é o único que me prende um pouco o coração, mas passo
bem sem ele; não penso em tal, mas se a fábrica me faltasse, seria como um corpo sem alma.
E se meu pai adoptivo viesse a desaparecer, sentir-me-ia como que abandonado, como um
corpo sem cabeça. De tudo isto, sinto por vezes alguns remorsos. Mas, na verdade, sempre
desejei deixar o campo e foi para isso que estudei.
MÃE - Então, Gaspar, em que estás a pensar, de braços cruzados e cabeça pendida?
GASPAR - Em nada, minha mãe, estava a recordar. a minha vida de casa há uns anos e o
caminho percorrido.
MÃE - Andaste depressa, meu filho, e foste longe. Bem, sentemo-nos à mesa.
O almoço foi bom, mas decorreu triste. Gaspar desacostumara-se de rir; Lucas sentia-se pouco
à vontade; os pais estavam descontentes com a atitude altiva de Gaspar, que os dominava pela
sua invulgar inteligência e por toda a sua posição de senhor e de milionário, enquanto eles
permaneciam simples lavradores agarrados à terra, como sempre o tinham sido.
Depois do almoço, Gaspar quis tornar a sair com Lucas, mas a carruagem veio buscá-lo. Deu-se
pressa em despedir-se dos pais e do irmão e meteu- se no trem com alegria e presteza.
- No escritório, patrão.
Subiu a escada a quatro e quatro e saltou, mais do que entrou, no escritório de Féréor, cuja
mão beijou e apertou nas suas.
FÉRÉOR - Não queria estragar o teu feriado, o primeiro há nove anos, e quis que gozasses na
companhia de teus pais.
GASPAR - Quanto a isso... Os meus pais são o i senhor. A minha alegria, a minha ventura, é o
senhor. A nossa fábrica é a minha mulher; as nossas
máquinas, os meus filhos, e o conjunto de tudo isto, a minha vida. Como vê, pai, é
desnecessário conceder-me feriados.
Féréor ouviu-o com um sorriso tão satisfeito e fitou-o com ar tão afectuoso, que Gaspar ficou
radiante por haver falado tão bem.
FÉREOR - Gaspar, pensei demoradamente no caso. Digo-te mais: não pensei noutra coisa
desde que te deixei. Acho o projecto irrealizável. Tens vinte e cinco anos, com um largo futuro
diante de ti. Essa mulher e esse sogro pesarão sobre o teu coração, no teu espírito, na tua
felicidade. É impossível, repito; seria para mim uma inquietação que me poria doente. Não
pensemos mais nisso, estudemos o assunto e tentemos dar-Lhe outra solução, que certamente
encontraremos.
GASPAR - Pai, essa gente não me pesará sobre o coração, pois que ele não é deles, mas seu;
não pesará no meu espírito, porque só me ocuparei do pai e dos assuntos da fábrica; não
pesará na minha felicidade, porque conto com a sua bondade e a súa generosidade habitual
para dar a minha mulher o bastante para que me deixe tranquilo: nada terá a pedir-me e não
terá contacto comigo. O pai será para nós um tratante como qualquer outro; pouco lhe
falaremos; mandá-lo-emos o mais depressa possível para os escritórios. Este casamento dá-
nos a segurança deque nos arriscamos a perder. É um sacrifício que lhe farei com verdadeira
alegria e do qual, de resto, me aproveitarei como o pai para termos o descanso que doutro
modo se nos afigura muito difícil.
FÉRÉOR - Meu filho, meu querido filho, pensa bem; quando uma pessoa casa é para sempre.
Nem sequer conheces essa mulher; nunca a vimos; pode ser feia, estúpida, má, desajeitada,
corcunda talvez! Sabe-se lá!
GASPAR - Nada disso me apavora, pai; se for feia, não olharemos para ela; se for estúpida, não
lhe falaremos; se for má ou desajeitada pô-la- emos de lado e não nos importaremos com ela.
O pai substituirá os filhos com que não conto. Como vê, continuaremos a viver muito felizes os
dois.
FÉRÉOR - Bem! Visto que queres, aceito o teu sacrifício, meu querido filho, e não te dissimulo
que faço os melhores votos ao aceitar este casamento, no interesse do nosso invento e do
nosso sossego. Recebes de dote metade do que possuo, impondo-te como única condição que
não me deixarás e que os
FÉRÉOR - Escreve, meu filho, escreve e diz-lhe que venha depressa para cumprir o assunto com
brevidade, a fim de nos libertarmos de todos esse velhacos e retomarmos a nossa vida
tranquila. Eu vou escrever ao notário para redigir com urgência o meu documento de doação,
para que saibas o que tens. Mas podes anunciar cinco milhões, pelo menos, sendo dois em
terras, florestas e ouro; o resto nas oficinas e rendendo pelo menos vinte por cento: isto é,
seiscentos mil francos por ano.
- Sim, meu rapaz, tens para ti cinco milhões para mim outros tantos.
generosidade, Demasiada riqueza para mim. Que farei com tanto dinheiro?
FÉRÉOR - Meu amigo: sacrificas a tua vida eu apenas metade da minha fortuna: qual de nós
tem melhor vantagem?
Gaspar, dominado pela alegria, pelo deslumbramento, pela felicidade, ajoelhou diante do pai
adoptivo e, encostando- lhe a cabeça aos joelhos, chorou lágrimas que alegraram aquele que
as fazia correr.
e escreve a carta.
Gaspar enxugou os olhos, tornou a beijar a generosa mão que lhe consolidava a fortuna e,
colocando- se em frente do seu benfeitor, redigiu a seguinte carta:
Senhor
Meu pai e eu aceitamos a sua proposta; casarei com sua filha. Não peço para a ver nem a
conhecer; caso com ela; sabe como e porquê. Será nosso sócio em vez de ser nosso rival.
Mercê da generosidade de meu pai, levo como dote cinco milhões que rendem quinhentos a
seiscentos mil francos. Esperamo-lo para regularizar tudo e marcar o dia do casamento!
Quanto mais depressa, melhor.
Gaspar fechou-a; a mão tremia-lhe; Féréor fitava-o; quando lhe viu tremer a mão, perturbou-
se e disse a meia voz:
- Pobre rapaz!
Mas deixou seguir a carta que condenava Gaspar a um não desejado casamento.
- Vai tomar ar e dar uma volta pelas oficinas, meu filho; vê se está tudo em ordem.
Gaspar saiu; encontrava-se tudo pronto para receber os operários. Passeou pela floresta;
depois de haver caminhado durante algum tempo, sentou-se no chalet de azevinhos que tão
bem lhe servira para atingir os seus fins.
Pago caro - disse de si para si -, mas tenho-o na mão! Cinco milhões e ele outro tanto! Pobre
pai! Que Deus mo conserve; amo-o realmente cada vez mais e é o único ente no mundo que
posso amar. Essa criatura com quem vou casar é decerto feia, estúpida e desajeitada. O meu
sacrifício é grande e cruel. Mas devia-o a meu pai, cem vezes mais paternal para mim do que
meu próprio pai!... Aos vinte e cinco anos ser acorrentado para sempre e ai! só tendo para
amar um pai bastante idoso. O lado mais custoso deste casamento é o pai! Um miserável a
quem pus na rua e que, depois disso, teve o desplante de me oferecer a filha... Mais uma
ilusão, perdida, menos um apoio para o futuro. A felicidade que não encontrava completa na
fortuna, contava encontrá-la por fim nas alegrias do lar e da família. A satisfação de um grande
dever cumprido só por si pode trazer um alívio à minha tristeza; faz nascer em mim, pela
primeira vez, emoções a que não falta certo encanto, apesar da amargura dos meus outros
pensamentos.
Cinco milhões compensam grandemente o seu acto de dedicação - pensava. - Deve ser
bastante feliz agora que sabe qual é a minha fortuna. É bom rapaz, amo-o de todo o coração. E
como se me afeiçoou! É a primeira vez na minha vida que me vejo amado, mas realmente
amado, sem cálculo, com inteira dedicação... Quereria que este casamento já estivesse feito.
Esse patife do Frlichein já não poderá prejudicar-me quando a sua filha for minha nora. Pobre
Gaspar!
No dia seguinte à carta, Frõlichein compareceu em casa de Féréor, que estava a almoçar com
Gaspar. Este levantou-se, mandou-o entrar e fechou a porta.
GASPAR (com frieza) - Aqui tem meu pai é em casa dele que se encontra.
FÉRÉOR - Já sabemos porque vem aqui. É um assunto a liquidar com presteza. Meu filho casa
com sua filha para evitar a concorrência que o senhor poderia fazer ao nosso invento. As
condições serão: um dote de cinco milhões, pelo menos.
filha ficará instalada em minha casa. Pelo casamento, o senhor compromete-se a que não nos
fará
concorrência alguma à nossa indústria; a coisa alguma estabelecer ou empreender sem nosso
consentimento, a não fazer qualquer uso do roubo que nos
depressa, melhor.
FRLICHEIN - Ser impossível. Ser preciso conhecimenta e que ver seu futura.
GASPAR (rindo) - Ouviu o que ele disse, pai? Mina parece-se com ele.
FÉRÉOR (sorrindo) - Que queres, meu rapaz? A sorte virou-se contra nós. Deixá-la-emos ficar
no seu canto sem olhar para ela, como dizias. E agora, meu filho, é preciso tratar da instalação.
Mandarás
chamar o meu estofador de Paris e fá-lo-ás preparar e mobilar os aposentos para ela na ala
oposta à que utilizamos.
GASPAR - Conserve-me o quarto que ocupo junto do seu. Continuarei, assim, a estar ao seu
alcance, tanto de dia como de noite. Se estiver doente, tratá-lo-ei, e enfim, continuaremos
juntos a nossa bela vida.
FÉRÉOR - Meu querido filho: agradeço-te e concedo-te com júbilo o que me pedes. Nunca
quereria reter-te longe da tua mulher, mas visto que o queres...
FÉRÉOR - E, quando acabares, não será mau ires falar a teu pai e a tua mãe.
FÉRÉOR - Enquanto estiver nas oficinas a redigir com o notário o contrato que levaremos
connosco irás a casa de teu pai. Virás ter comigo quando quiseres; partiremos às cinco horas.
FÉRÉOR - É, sim, meu amigo; manda preparar a carruagem para daqui a uma hora.
Decorridas duas horas, Gaspar estava em casa do pai. Achou-o indisposto e sem ter podido
sair.
TOMÁS - Tu, outra vez? Andas em liberdade, desde que és Féréor Júnior?
GASPAR - Não, pai. Estou mais preso do que nunca; tenho um assunto a falar-lhe. Venho pedir
a sua benção para. me casar.
TOMÁS - Isso não é possível! A filha desse alemão que puseste na rua há pouco?
GASPAR - Precisamente. Sua filha chama-se Mina.
TOMÁS - É rica?
TOMÁS - Mas não é possível? Como? Pois casas com uma mulher que nunca viste?
GASPAR - Não conto tê-los, mas, se os tiver e se se parecerem com minha mulher, não olharei
para eles.
MÃE - Misericórdia! Que vais fazer de tanto dinheiro? Visto que és tão rico, dá a teu pai uma
moeda de dez francos para a pobre Maturina, a mãe de Henrique. Tem estado doente. O filho
está na quinta de Millard. Deve a renda de casa e ameaçam pô-lo fora.
- Aqui tem, mãe. Não faça cerimónia em pedir-me dinheiro para os pobres: dar-lho-ei sempre
que quiser.
MÃE - Obrigada, meu filho: é um bom sentimento que tens e estou certa de que a tua caridade
há-de valer-te a benção de Deus para o teu casamento.
Gaspar voltou-se para o pai ao proferir estas palavras e não pôde evitar um grito. O pai caíra
com a cabeça inclinada na cadeira, de olhos esgazeados, o rosto violáceo, as mãos crispadas.
A mãe repetiu o grito de Gaspar e correu para o marido; tirou-lhe a gravata e pediu água.
Gaspar trouxe- lha. Molharam-lhe a testa, a nuca, as fontes, mas ele não voltava a si.
Gaspar para aíi se encaminhou com toda a presteza. Enquanto Lucas correu para a quinta,
Gaspar foi em busca do médico, que estava em casa, e o acompanhou a casa do tio Tomás,
que continuava no mesmo estado. Depois de haver empregado, inutilmente, todos os meios
possíveis durante mais de uma hora, o médico tomou-lhe o pulso: já não batia, escutou a
respiração que cessara. Teve de render- se à evidência.
Gaspar estava consternado. Fora a alegria dos cinco milhões que matara o tio Tomás. Lucas
abraçou-se ao corpo do pai, a soluçar. A mãe soltou lamentosos gritos. Após uma hora de
lágrimas e de soluços, chamou a criada da quinta e deram-se à tarefa de arranjar,
convenientemente, o inanimado
GASPAR - Fica junto da mãe, Lucas. Vou mandar prevenir a administração para verificar o
óbito. Volto depois.
Lucas apertou a mão de Gaspar, sem proferir palavra. Antes de se dirigir à administração,
Gaspar foi à fábrica; encontrou Féréor no escritório.
- Meu pai - bradou ao entrar -, meu pobre pai, aquele que o era por parte de Deus, acaba de
morrer.
FÉRÉOR - Morreu? Morreu? Mas ninguém te disse que ele estava doente.
GASPAR - Estava bem quando entrei, pai; passados instantes, foi fulminado por uma apoplexia.
GASPAR - Os cinco milhões que possuo graças à sua generosa bondade, pai. Ficou tão
assombrado, que mal pôde repetir três vezes: cinco milhões! E depois, ficou aniquilado na
cadeira e não disse mais nada, nem sequer se mexeu.
FÉRÉOR - E o luto?
GASPAR - O luto nada impede, desde que não façamos convites e não dêmos grande aparato à
cerimónia. Este luto vai até ser-nos útil para não se fazerem as visitas obrigatórias e efectuar-
se o casamento discretamente.
FÉRÉOR - E o contrato?
GASPAR - Será levado a casa deles para assinar; darão baile se quiserem, mas nós não vamos
lá.
FÉRÉOR - Muito bem pensado, meu querido filho. Abrevia tudo; escreve ao alemão a
participar-lhe a fatalidade e tenta dirigir algumas palavras amáveis à rapariga.
GASPAR - Obedeço, meu pai... Antes de escrever, preciso de ir à administração para fazer
verificar o óbito e passar a certidão.
FÉRÉOR - Manda alguém. Não te falta gente para se encarregar dos teus recados. Meu filho
deve ser obedecido e servido como eu próprio.
FÉRÉOR - Bem. Dá as tuas ordens, escreve as cartas e volta para casa de tua mãe. Está muito
desgostosa?
GASPAR - Creio que sim, no primeiro momento; mas tem Lucas e o pai não a fazia muito feliz.
Nunca a poupava; ficará mais tranquila só com o Lucas.
FÉRÉOR - Então, tanto melhor. E tu? Fala francamente: é um desgosto para ti?
GASPAR - É sempre doloroso perder um pai, mas o meu nunca me estimou; não posso ter
muitas saudades; só a si o confessarei, porque é a única pessoa que amo lealmente no mundo
e só a si digo o que penso.
outra pessoa que não fosse eu? É por isso que gosto
de ti como nunca gostei de ninguém. Vai, meu filho, e que Deus te abençoe.
Casamento de Gaspar
Gaspar escrevera a Frólichein uma carta muito hábil, delicada, embora fria, a fim de não
apresentar mudança demasiado súbita entre a impertinência anterior e a linguagem própria
de um futuro genro para um futuro sogro. Terminou por uma frase atenciosa para a noiva e
pelo pedido instante de abreviar o casamento como desculpa da forçada ausência, que o
condenava a morte de seu pobre pai. Afirmava que Féréor e ele estariam prontos dentro de
um mês. Escreveu depois ao estofador e recomendou-lhe que nada poupasse e que fizesse a
decoração com a máxima urgência. Tudo devia estar
Antes de mandar seguir a correspondência, fê-la ler a Féréor, que a aprovou e lhe pediu que o
auxiliasse nas contas para a partilha da sua riqueza com ele.
Gaspar adiantou a tarefa; a sua prontidão em calcular e classificar facilitou muito o trabalho
que Féréor pretendia fazer. Deram juntos uma volta pelas oficinas; Féréor quis acompanhar o
filho adoptivo na sua visita à quinta; foram de carruagem, para se dirigirem juntos à cidade.
A tia Tomás refizera-se do temvel choque da morte do marido; estava calma e conversava com
Lucas a respeito das mudanças que traria na sua existência o falecimento do marido. A visita
de Féréor lisonjeou-os muito; Féréor e Gaspar deram-lhe bons conselhos sobre a regularização
da herança.
- Tu e a nossa mãe - disse Gaspar - são os seus únicos herdeiros. Eu cedo todos os meus
direitos e acrescento-lhes os cento e quarenta mil francos que retirei da venda das terras da
herança Danet. Graças à generosidade do meu pai adoptivo, esta cedência não é sacrificio e o
bem-estar de vocês ficará aumentado.
A mãe agradeceu, beijando Gaspar; Lucas fez o mesmo. Regulou-se o que dizia respeito ao
enterro, que devia realizar-se no dia seguinte às nove horas da manhã. Féréor disse querer
assistir. Após esta visita, que demorou mais de uma hora, Gaspar e o pai adoptivo retiraram-
se. O trajecto foi silencioso. Féréor pensou que a sua vez depressa chegaria; perguntava de si
para si, pela primeira vez, o que fizera
pelos outros e quase se acusou de egoísmo e dureza. Entretanto os seus olhos fitaram com
agrado Gaspar: a ideia do reconhecimento que lhe manifestava o filho adoptivo sacrificando-
lhe a sua felicidade, deu-lhe um sentimento de calma e de ventura. Vendo todas as alegrias e
todas as consolações que proporciona uma boa acção, lembrou-se do bem que poderia ter
feito à sua volta, de todas as bençãos que atrairia sobre a sua cabeça, da veneração e do
respeito que poderia ter inspirado. A sua resolução foi tomada; a sua alma, tocada pela graça
divina, compreendeu que só na prática do bem devia encontrar a felicidade entre as suas
riquezas.
Gaspar pensava na diferença dos seus sentimentos pelo pai que perdera e pelo outro, cuja
conservação pedia a Deus; do primeiro só recebera durezas, reprimendas e pancada; do
segundo apenas afeição, confiança e a sua magnífica situação. De quando em quando, em
pensamentos mais vivos, apertava maquinalmente a mão de Féréor, que, sem dar por isso,
conservava presa. Féréor, de início sur preendido, adivinhava os sentimentos que agitavam
Gaspar, e deixou-se levar suavemente pela felicidade, nova para ele, de uma verdadeira
simpatia.
O dia seguinte ainda foi bastante penoso para Gaspar, fatigante para Féréor e cruel para Lucas
e para a mãe. Esta absoluta separação de um pai e de um marido impressionou-os fortemente.
A assistência era grande. Todos os operários da fábrica tinham tido licença para assistir ao
funeral do pai do seu novo patrão, e nenhum faltara. A família e os amigos eram também em
grande número. Gaspar reconduziu na carruagem a mãe e o irmão e passou com eles parte da
tarde. De volta ao escritório, notou que Féréor mostrava o semblante fatigado.
- Pai, não trabalhe; está cansado; permita que o leve a casa. Jantaremos, deitar-se-á e
conversaremos dos nossos negócios.
Gaspar arrastou Féréor, meio por vontade, meio à força. Féréor, opondo certa resistência,
deixou-se levar com visível satisfação. Jantou com apetite, deitou-se com prazer e adormeceu
com calma, depois de ter visto e ouvido Gaspar, que o julgava adormecido, aproximar-se-lhe
da cama, ajoelhar, beijando-lhe meigamente a mão e dizer em voz baixa:
- Dorme, querido e excelente pai. Dorme sossegadamente. Que Deus te conserve por largo
tempo e com boa saúde! Que seria da minha felicidade se te perdesse? Esta detestável mulher
que devo aceitar para assegurar a tua tranquilidade, nunca será nada para mim. Adeus, meu
pai e meu amigo. Descansa das tuas fadigas.
Gaspar ainda orou durante certo tempo, levantou-se suavemente e deixou o quarto sem fazer
bulha. Trabalhou grande parte da noite para acabar as contas do pai e deitou-se, exausto.
Os dias seguintes depressa se passaram; Gaspar esforçou-se por pensar o menos possível no
seu casamento. Frlichein prevenira-o de que estaria pronto e de que salvo ordem em
contrário, chegaria à cidade de... um mês depois da sua carta; pedia a Gaspar que lhe
mandasse reservar um pequeno aposento para ele, para a filha e para as duas testemunhas,
mas apenas durante dois dias, porque os negócios o obrigavam a voltar para casa.
Gaspar deu conta desta carta a Féréor, que mandou guardar num hotel os aposentos pedidos.
O contrato de casamento estava pronto no dia marcado; foi o próprio notário quem o levou a
assinar aos Frlichein, pai e filha, na véspera do casamento. Na volta, Féréor e Gaspar
interrogaram-no a respeito da noiva; mas ele apenas pôde dizer que era considerada boa e
piedosa.
- Ainda bem - disse Gaspar. - Distrair-se-á a praticar a caridade, a visitar pobres, a frequentar
igrejas e não nos importunará.
- De resto - acrescentou o notário -, não a deixam ver pessoa alguma; os criados da casa nunca
a vêem; vive sozinha com uma ama que a educou; só sai para ir à igreja e visitar os pobres e as
irmãs de caridade.
No dia do casamento, Frlichein e a filha chegaram apenas à hora. Uma das testemunhas veio
prevenir Féréor e Gaspar de que seguiriam directamente para a administração, depois para a
igreja, e que era desnecessário ocuparem-se deles, que não se incomodassem para a ver,
porque Mina estaria no toucador e não receberia ninguém. Esta advertência não passou
despercebida a Féréor. Gaspar mandou perguntar a que horas a menina queria a carruagem,
pois devia estar na administração às onze e meia.
Mandou pedir a Féréor que desse licença à sua ama, que a tinha criado e lhe servia de criada
particular, para levar as suas coisas para os aposentos que devia ocupar.
- Nada mais justo - volveu Féréor. - Fez muito bem. É delicada e correcta a sua forma de
proceder. Não achas, Gaspar?
Às onze e um quarto, Gaspar mandou à noiva a carruagem que devia ficar a pertencer-lhe; ele
e Féréor meteram-se na sua e dirigiram-se para a conservatória.
GASPAR - A sua carruagem continuará a ser a minha, pai; a outra fica para a minha mulher...
Pai, é muito duro ter que dizer: a minha mulher e ter essa estranha para sempre entre nós, a
todas as refeições.
FÉRÉOR - Não será importuna, suponho; entretanto, se for exigente ou aborrecida, pô-la-ás na
ordem.
GASPAR - Seja como for, sempre é desagradável ter connosco mulheres que se intrometerão
em tudo, que quererão mandar na casa, que aborrecerão a nossa velha despenseira, a Sr.a
Bonjean.
FÉRÉOR - Não, não, meu rapaz; vês tudo com cores muito negras. Essa rapariga não deve ter
vontades; lembra-te de que tem apenas dezasseis anos. Habituá-la-ás como quiseres.
Gaspar ajudou o pai a descer: mal a carruagem se afastou chegou a da noiva; Féréor e Gaspar
viram-se obrigados a esperar Frõlichein e a filha. Gaspar cumprimentou o pai, que foi o
primeiro a descer, e apresentou a mão à filha para a ajudar a apear. Vinha envolta num véu;
apenas se via um pequeno pé bem calçado e uma pequena mão, que ele sentiu tremer na sua;
o pai deu-lhe o braço.
Quando a fez entrar na conservatória e Gaspar a pôde ver, recuou estupefacto. Tinha na sua
frente o mais bonito e o mais gracioso semblante que seria possível imaginar-se. Estatura
acima de mediana, aspecto elegante, encantador e distinto; cabeça deslumbrante, cabeleira
farta, de louro acinzentado, rosto oval, feições finas e regulares, grandes olhos azuis, meigos,
inteligentes e que deviam ser risonhos quando não estivessem, como agora, avermelhados por
lágrimas recentes. A finura da pele, a brancura e a frescura da tez completavam a notável
beleza de Mina. Esta largou o braço do pai, aproximou-se de Féréor, inclinou-se ante ele e quis
beijar-lhe a mão; mas a beleza da futura nora, o seu ar triste e cândido, a humildade do seu
gesto sensibilizaram Féréor; fugiu-lhe com a mão, e beijou Mina nas duas faces frescas e
róseas.
- Obrigada, pai - agradeceu Mina, em voz baixa. - Tenha dó de mim e perdoe-me entrar à força
na sua família.
Gaspar não podia refazer-se do deslumbramento. Essa mulher que se lhe tinha afigurado feia,
vulgar, autoritária, mostrava-se uma rapariga de dezasseis anos, bonita, simpática, graciosa,
modesta, tímida. E devia ser inteligente, consoante o indicava o seu rosto.
A surpresa de Gaspar foi tão evidente, que Féréor não pôde deixar de sorrir. O administrador
tinha chegado: estava no seu lugar, esperava; Gaspar deu alguns passos para se colocar ao
lado de Mina. Quando o administrador perguntou a Gaspar se consentia em aceitar por esposa
a menina Mina Frlichein, respondeu um sim com voz mal segura; e quando Mina teve de dar
também o seu consentimento, as lágrimas cortaram-lhe as palavras; levou alguns momentos a
refazer-se para proferir o sim que devia acorrentá-la a um homem que ela não conhecia, que
não lhe testemunhara desejo algum de vê-la, de falar- Lhe, não julgava poder vir a amá-lo.
Dissera pois o sim, porque o terror que o pai lhe inspirava não Lhe permitia tomar outra
atitude.
Finda a cerimónia, Mina retirou-se sem sequer levantar os olhos para Gaspar, mas depois de
ter cumprimentado Féréor. Ninguém falava; Féréor e Gaspar voltaram para a carruagem em
direcção à igreja, para receber aí a noiva.
FÉRÉOR - E que voz tão meiga e suplicante quando me pediu que tivesse dó dela!
Gaspar não respondeu. A sua consciência começava a agitar-se; também tinha dó dela!
O casamento, a missa e a assinatura duraram uns três quartos de hora. Féréor fez subir Mina
para a sua carruagem, em que ia com Gaspar. Mina continuava a chorar. O trajecto foi curto.
Féréor conduziu Mina aos aposentos que lhe estavam destinados; a ama esperava-a.
FlÉR OR - Está em sua casa, minha filha; espero que se dará bem nela.
MINA - Obrigada pela sua bondade, meu pai; estou certa de me dar bem, visto ficar junto de si.
Ao concluir, Mina desfez-se em pranto. FÉRÉOR - Porque chora, minha filha? Todos se
esforçarão por lhe tornar a vida serena e feliz.
MINA - Para mim não há felicidade neste mundo; o futuro há-de ser como o passado. Mas, pai,
conceda-me um favor: não me separe da minha ama, da minha pobre ama que me educou, do
único ente a quem amo e que me conforta.
FÉRÉOR - Minha pobre filha, ninguém lhe tirará a sua ama; é única senhora de tudo o que Lhe
diz respeito. Não se inquiete e descanse das suas fadigas.
FÉRÉOR - Não só perdura, mas ainda aumentou. A pobre rapariga causa dó. Afianço-te que me
enterneceu.
GASPAR - Mas, meu pai, nada tenho a dizer-lhe. Não posso entrar sem motivo.
porta.
- Entre - respondeu uma voz meiga e fresca.
perguntar-lhe...
- Menina - tornou com a sua voz meiga -, venho perguntar-lhe se não deseja tomar qualquer
dizer-lhe que tem fome; não comeu nada; desde que chegou não fez outra coisa senão chorar.
MINA - Ama, minha boa ama, para que lhe dizes isso?
Gaspar saiu, deu ordens e voltou para junto do pai, a quem contou o pouco que tinha dito.
Féréor não respondeu e Gaspar retirou-se. Voltou para o seu quarto, meditativo e pouco à
vontade.
Os seus sentimentos de piedade por Mina e o receio do seu próprio procedimento cada vez o
dominavam mais. Sentia-se mais tocado pela meiguice e pela reserva da pobre Mina à medida
que reflectia na injustiça das prevenções que tivera contra ela.
Lastimo ter sido duro, grosseiro até, para esta pobre pequena. Afigura-se-me evidente que o
pai a obrigou a casar comigo, que ela não tinha vontade nenhuma; é certo que era infeliz em
sua casa, consoante, pelo menos, o que disse a meu pai. A pobre menina parecia aterrada;
amedrontei-a, e deve ter medo, depois do meu modo de proceder a seu respeito... E agora
que fazer? Amanhã consultarei meu pai.
Mina cada vez causa mais dó a Gaspar
No dia seguinte, muito cedo, Gaspar abriu a porta do quarto do pai e viu que ele estava
acordado.
FÉRÉOR - Já por aqui, meu amigo? Tens alguma coisa de especial a dizer-me, para te
levantares tão cedo?
GASPAR - Há, meu pai, que não sei que procedimento adoptar depois da grosseira indiferença
com que tratei esta pobre rapariga.
FÉRÉOR - Por Deus, meu amigo, eu também comparticipei da tua falta; participo também do
teu arrependimento e estou resolvido a ser deveras amável com ela. Faz o mesmo.
GASPAR - Mas a minha situação perante ela é diferente da sua, meu pai. Tem a aparência de
me temer muito; quanto a si, afigura-se-me que simpatiza consigo e que confia em si.
GASPAR - Tenho a certeza, pai. E é aí que está o meu enleio. É tão diferente do que
receávamos, que se me torna impossível tratá-la como projectámos antes de a conhecer.
FÉRÉOR - Tens muitíssima razão, meu filho; é mister que a trates como encantadora e amável
mulher que o é.
FÉRÉOR (sorridente) - Ora, isso há-de passar. Sê delicado e amável com ela; todas as manhãs
vai saber notícias, conversa, solicita-lhe a sua amizade, a sua confiança e todas as coisas se
harmonizarão.
GASPAR - Decerto não tem os nossos hábitos, levanta- se muito tarde; teremos tempo de dar
uma volta pela fábrica antes de estar pronta para almoçar; não fomos lá ontem.
FÉRlÉOR - Tens razão; manda vir a carruagem e informa-te do que ela quer para o pequeno-
almoço.
Gaspar vestiu-se; eram sete horas quando foi executar as ordens do pai.
Ao abrir a porta do quarto, que dava para a escada do vestíbulo, viu Mina que descia com
presteza; parou no vestíbulo; levava capa e chapéu.
- Vens, ama? - perguntou, voltando-se. Em vez da ama, avistou Gaspar, que também descia, e
ficou indecisa.
Quando Gaspar se lhe juntou, estava vermelha como uma cereja, imóvel, de olhos baixos.
GASPAR - Permite que lhe poupe o trabalho de procurar e lhe ofereça o braço?
Gaspar pegou no chapéu e abeirou-se de Mina que, assustada e trémula, enfiou o braço no
que lhe
GASPAR - Tranquilize-se, minha senhora. Porque treme assim? Acredita que eu queira torná-la
infeliz?
GASPAR - Ora, vamos; olhe para mim e diga-me se tenho aparência de mau.
Mina olhou, mas sem ver, porque as lágrimas lhe enevoavam a vista.
GASPAR - Porquê?
GASPAR - É o que me apoquenta, minha pobre menina, o que me não deixou dormir durante
toda a noite é pensar que estava aterrada na minha presença como se eu fosse um monstro,
um celerado.
MINA - Porque meu pai me disse o motivo por que me desprezava; deu-me a ler as suas cartas.
Disse que não me queria ver. Como compreende, tudo isso não é nada animador.
GASPAR (com vivacidade) - Mas é uma abominação de seu pai. Não a conhecia; dizia-me que a
menina era o seu retrato em mulher; ora veja se a alusão era tentadora.
prosseguiu:
GASPAR - Achou-a também encantadora e está deveras resolvido a amá-la como se fosse sua
filha.
nosso pequeno passeio é o primeiro prazer que tenho desde que fui forçada a consentir em
impor- lhe
a minha presença... para sempre Mas perdoe-me; suplico-lhe que me perdoe; tenho medo de
meu pai; ameaçou-me com coisas tão terríveis se resistisse! Ocuparei o menor lugar possível
em sua casa; não pedirei seja o que for; viverei com a minha ama. O senhor só me verá quando
quiser. E se desejar nem dos meus aposentos sairei.
Gaspar escutava-a com dolorosa surpresa. Ia para responder quando chegaram à porta da
igreja. Só
às oficinas; Mina não devia ficar sozinha numa cidade que lhe era desconhecida. Resolveu
esperar por
- Obrigada.
O rapaz fê-la entrar no banco de Féréor e colocou-se a seu lado. A missa ia principiar. Mina
ouviu-a sempre ajoelhada, e Gaspar notou com pena que ela chorara durante todo esse
tempo. Quando se levantou, tinha o rosto banhado em lágrimas. Não se atrevera a levantar os
olhos para Gaspar, cujo braço aceitou, retomando o caminho da casa de Féréor.
- Mina - disse-lhe Gaspar (Mina estremeceu) -, entristece-me com a sua demasiada humildade
e resignação; está em sua casa, estando na de meu pai; a sua presença há-de ser-nos sempre
agradável. E entre nós ambos, se há alguém a perdoar, não sou eu, mas a menina. É, pois, a si
que peço perdão, do fundo da alma, por lhe haver demonstrado tanta frieza e indiferença. De
futuro, não terá razão de queixa nem de meu pai, nem de mim, e dou-lhe plena autoridade
para fazer cumprir todas as suas vontades. Os meus criados serão os seus, assim como os
cavalos e carruagens.
- Obrigada - agradeceu Mina. - Conto não abusar da gentileza que me concede; de resto não
estou acostumada a mandar.
Nada mais disseram até ao regresso ao palacete. Separaram-se no topo da escada. Gaspar
apertou-lhe a mão ao deixá-la.
Gaspar não andou, correu ao escritório do pai e contou-lhe como passara a manhã. Nada
omitiu: Féréor pareceu contente e apertou-Lhe as mãos.
- Está bem, meu filho. Principiaste bem e daqui a alguns dias já não terão medo um do outro.
Foram visitar as oficinas e voltaram às onze horas para almoçar. Gaspar, seguindo o conselho
do pai, foi pessoalmente buscar Mina.
GASPAR - Obrigado, minha boa Mina, por me haver tratado por Gaspar.
E Gaspar, tomando o braço da mulher, enfiou-o no seu. Entraram assim na sala de jantar, onde
Féréor os aguardava e se adiantou para Mina, beijando-a na testa, enquanto dizia:
- Bom dia, Mina... Que vejo? Os seus bonitos olhos todos vermelhos? Ah! Mina, isso não está
bem. É assim tão infeliz connosco, minha filha?
- Não hoje, meu pai - respondeu, beijando-o duas ou três vezes. - Gaspar foi muito bom para
mim; teve a bondade de indicar-me o caminho da igreja e depois tratou-me por Mina, o que
me causou grande prazer.
- De si, não, meu pai - volveu Mina beijando-lhe a mão. - De Gaspar ainda um pouco -
acrescentou fitando-o com gracioso sorriso.
FÉRÉOR - Bom! Há progressos desde ontem. Vamos para a mesa, meus filhos. Gaspar e eu
temos muito que fazer e não dispomos de tempo bastante para nos entregarmos ao prazer.
Findo o almoço, Mina voltou para os seus aposentos e Gaspar acompanhou Féréor à fábrica.
Quando voltaram, Gaspar foi prevenir Mina de que o jantar estava na mesa. Ela agradeceu-lhe
e aceitou-lhe o braço sem tremer. Começava a habituar-se à sua nova situação. À noite, Mina
retirou-se para os seus aposentos com a ama, enquanto Gaspar acabava, com Féréor, o
trabalho da manhã. Falaram muitas vezes de Mina e do encanto que ela espalhava à sua volta.
- É certo - redarguiu Féréor - que parece modificar- nos completamente. Como tu, sinto-me
melhor ao pé dela.
Mina, por seu turno, sentia- se feliz; saía de dia com a ama, lia, costurava, esperava impaciente
o regresso de Féréor e de Gaspar.
GASPAR - Estava a pensar nisso, meu pai. Mina, quer ir? Minha pobre mãe e Lucas ficarão
muito satisfeitos em vê-la.
Mina na quinta
Mina foi vestir-se para o passeio. Gaspar deu o braço ao pai a fim de subirem a escada e todos
três se encontraram no vestíbulo, prontos para sair.
Mina estava radiante; já não tinha os olhos vermelhos e brilhavam bastante; estava mais
encantadora ainda do que nos dias anteriores; Gaspar não se cansava de fitá-la.
Mina ia alegre; familiarizara-se com o sogro e até com Gaspar; sorria para Féréor e dizia
amiudamente:
Olhara para Gaspar com ar um pouco malicioso, mas não acrescentara: e de Gaspar.
- Que bonita terra! - bradou. - Que encantador vale! Ah, lá vejo a fábrica! Como é magnífica!
Que esplêndidos edifícios! Que felicidade não será viver aqui!
Féréor sorria e regozijava-se com a admiração de Mina; Gaspar tinha um aspecto feliz e meigo
que nunca tivera. Mina entusiasmava-se cada vez mais, à medida que se aproximavam das
magníficas oficinas instaladas no encantador vale; ia contemplando a paisagem, ora para a
esquerda ora para a direita. Por fim, chegaram; saltou da carruagem, sem dar a Gaspar tempo
para lhe apresentar a mão. Pediu ao marido que a deixasse sozinha ajudar o pai, que tropeçou
ao pôr o pé no chão e quase caiu nos braços de Mina; ela amparou- o muito destramente e
deu- lhe o braço.
Gaspar estava deslumbrado e não deixava de contemplá-la; Féréor, que lhe dava o braço, não
estava menos encantado do que o filho adoptivo. Quando tudo foi visitado e ela examinou
particularmente o fabrico das telas de cobre e zinco, ergueu os olhos tristes para Gaspar, que
estava junto dela, e disse-lhe, baixinho:
GASPAR - Diga antes, a causa da minha felicidade, querida Mina; o passado e o presente não
se parecem.
encontrar-me-ás no escritório.
Separaram-se. Gaspar e Mina tomaram o caminho da quinta. Gaspar estava pensativo; Mina
retomara a sua timidez.
MINA - Foi o fabrico de telas de cobre e de zinco que me deu ideias tristes.
mostrar quem tem razão... Que bonito caminho este que seguimos! Estes bosquezinhos são
frescos e encantadores.
A conversa prosseguiu. Gaspar pô-la ao corrente da sua família, dos principais acontecimentos
da sua mocidade; de seguida, emudeceu. Mina falava de quando em quando; mas a seriedade
de Gaspar assustou-a e também se calou.
MÃE - Meu Deus! É que... receio... nunca poder tratá-la por filha.
senhora, que a mulher de Gaspar não seja aqui recebida com solicitude?
- Então, beije-me, minha mãe - pediu Mina, abraçando a mãe de Gaspar - e não me
torne a chamar minha senhora.
encantadora filha?
- E agora, minha mãe - volveu Mina, agarrando num dos ferros -, vou ajudá-la.
cima de uma cadeira, pôs-se a engomar com tal habilidade, que provou estar habituada a essa
tarefa.
continuava a engomar.
MINA - Como vê, mãe, posso ser-lhe útil; minha ama ensinou-me todas as coisas precisas nos
amanhos caseiros; em casa de meu pai, não era servida como o sou na de Gaspar. Vivíamos no
nosso cantinho minha ama e eu, e servia-me a mim própria. E conhece bem que, quando nos
sabemos servir a nós mesmos, também sabemos servir os outros.
- Que está a fazer, minha filha? - inquiriu a sogra, querendo tirar- Lhe o ferro.
Mina não queria largá-lo, mas a mãe teimava. Mina ria e perdia as forças.
elegante nora.
GASPAR - Como contra si? Eu apenas a amparei para evitar que escorregasse.
ferro, vou dobrar esta pilha de guardanapos. Gaspar, peço-lhe que me dê essa rima que está
a secar ao
lume...
MINA - A minha situação é ser sua filha, ajudá-la em tudo, tornar-me útil e agradável. Peço-lhe,
querido Gaspar, que me dê esse monte maior para mim.
GASPAR - Não resisto a tão encantador apelo, querida Mina; aqui tem a roupa. E, contudo, eu
não
devia obedecer-lhe.
tenho de si.
que mais...
a Gaspar.
Lucas entrava no momento em que Mina comeÇava a falar; Gaspar fizera-lhe sinal para se
calar, mas
irmão.
chamo Mina?
MINA - Pelo que vejo, nunca me ligou importância. Mas tem razão, meu irmão: hei-de ser uma
súbito; a sua expressiva fisionomia mudou completamente. Com toda a mobilidade própria da
sua mocidade e cândida inocência, passava com facilidade do riso às lágrimas e das lágrimas ao
sorriso, ao mais pequeno pretexto.
Gaspar respondeu, beijando-lhe a mão. Mina pareceu satisfeita com a resposta e voltou à
tarefa, com
- Veja, senhor! Lucas inveja sua mulher - volveu Mina, rindo e dirigindo-se a Gaspar. -
Sossegue, Lucas quando se casar, chame-me; educarei minha cunhada de maneira a trabalhar
depressa e bem.
seus lugares.
e meu pai.
água quente.
MINA - Obrigada, Lucas. Veja como Lucas é
GASPAR - Querida Mina, precisamos de ir embora. Estamos aqui há duas horas e meu pai...
MINA - Duas horas já? Como o tempo corre! Adeus, minha boa mãe - despediu-se, pondo a
capa e o chapéu. - Breve voltarei e muitas vezes se Gaspar tiver a bondade de me conceder
licençaacrescentou, lançando ao marido um olhar malicioso e risonho. - Gaspar é quem manda
e eu obedeço.
Mina beijou a sogra, que lhe pagou na mesma moeda, e depois Lucas.
Quando se foram embora, Lucas e a mãe não esgotaram os elogios a respeito da encantadora
e amável Mina.
- Que sorte a de Gaspar! - observou Lucas. Casa no interesse na fábrica e de Féréor; espera
uma mulher feia, má, estúpida e eis que lhe surge a mais encantadora rapariga que se pode
imaginar.
Entretanto, Gaspar e Mina estugaram o passo e quase correram para chegar o mais depressa
possível a casa de Féréor; Gaspar dava o braço a Mina para a fazer andar mais depressa ou
para correr, e ambos riam com o desafio mútuo. Chegaram esbaforidos à fábrica, entrando
pelo escritório de Féréor, precipitadamente.
GASPAR - Ainda bem! Estava com medo de me deixar levar por Mina.
MINA - Estive a passar roupa a ferro, meu pai. FÉRÉOR (surpreendido) - Passou roupa a ferro?
Como foi isso, Gaspar?
- Oh, meu pai, não lhe ralhe; a culpa foi minha
- tornou Mina, rodeando com os braços o pescoço de Féréor, e beijando-o. - Sei muito bem de
trabalhos caseiros e ajudei minha mãe, para a aliviar. E depois, não foi isso mais conveniente e
mais amável do que deixá- la sozinha a tratar de tudo dela e do Lucas sem a auxiliar?
- Querida filha, és uma pequena feiticeira - respondeu Féréor, com um sorriso satisfeito.
- Obrigada, obrigada querido pai - agradeceu Mina. - Tratou- me por tu e isso saiu-lhe do
coração! Oh, vejo bem, que há- de amar-me!
MINA (rindo) - Ouve o que diz o nosso pai? É mais sensível do que o senhor. Não é verdade,
meu pai?
FÉRÉOR - Quero dizer o mesmo que tu, querida filha. Mas Gaspar não se atreve! sabe que tens
medo dele e.
Féréor sorriu, apertou a mão de Gaspar e beijou as pequeninas mãos que estavam ao seu
alcance.
FÉRÉOR - Repito: és uma verdadeira feiticeira. E agora, minha filha, vai-te embora. Gaspar vai
mandar vir a tua carruagem; voltarás para tua casa e Gaspar virá trabalhar comigo.
MINA - Não posso ficar, meu pai? Sentava-me aqui num cantinho e não me mexeria.
MINA - Contemplá-los-ia.
GASPAR (rindo) - Não há perigo? É precisamente o perigo que meu pai previu.
MINA - Então adeus, Gaspar. Até breve. Não se demore muito tempo.
Mais algumas semanas decorreram assim; Mina cada vez se tranquilizava mais a respeito do
seu futuro; Gaspar cada vez se afeiçoava mais à mulher; começava a achar neste afecto e no
que dedicava ao pai a calma que por tanto tempo procurara; tinha menos dessas agitações,
dessas inquietações que noutros tempos o entristeciam e, no entanto, sentia que ainda lhe
faltava qualquer coisa para atingir o almejado fim.
Féréor tornava-se cada vez mais diferente, do que fora; a reserva e a frieza que lhe eram
habituais tinham sido substituídas pela afeição e pela indulgência. Mina dava por essas
modificações e contava cada vez mais fazer-se amada pelo marido.
Certo dia em que voltava do chalet de azevinhos, onde Féréor e Gaspar passavam a tarde,
como de costume, reflectiu nos progressos que fizera no coração de ambos.
cCreio - pensou - que hei- de ser muito feliz. Meu pai já me estima, como é fácil de ver; minha
mãe também e Lucas igualmente. Eu também os
amo deveras; são tão bons! Gaspar... esse, sim, inquieta- me; é verdade que é muito bom para
mim. Quer reparar o que fez antes de casarmos. Diz- me coisas muito amáveis; parece estar
contente comigo, mas não sei se gosta de mim como meu pai... Não, não me estima tanto; não
é como os maridos das mulheres que eu conheço. Para mais, tratam- se por tu e eu e Gaspar
não; depois, dão os bons-dias e as boas-noites, beijando-se, e Gaspar não me beija. Em
resumo: permanecem juntos e Gaspar pôs-me no outro extremo da casa, o mais longe possível
dele. Assim, terei de pedir licença a Gaspar para colocar uma cama no meu quarto para a
minha ama, porque tenho medo de ficar sozinha no meu excelente aposento... E é magnífico
tal aposento. E Gaspar que o tinha preparado para uma mulher feia, má... e corcunda talvez!
Ah! ah! ah! Como deviam ter ficado pasmados quando me viram, pois sei que sou bonita!
Gosto muito do meu rosto e da minha estatura! Se tiver filhas, desejo bastante que se
pareçam comigo. E os rapazes devem parecer-se com Gaspar... pois é elegante. Gosto muito
da sua figura; possui um ar distinto. E depois, é de boa estatura e bela presença. Se pudesse
amar-me um bocadinho!... Muito, seria melhor... E se teima em não me querer, serei muito
infeliz. Di-lo-ei a meu pai; talvez me conforte, pois gosta muito de mim. E ficarei sempre com
ele e não com Gaspar. É mau para Gaspar. Que lhe fiz eu? Foi minha a culpa se me forçaram a
casar com ele? Porque consentiu? Para me tornar infeliz? Não é bonito! É uma péssima acção,
e contudo, tinha pena de não o amar. Eu também fui obrigada a casar, ejá comeÇo a gostar
dele.
O resultado das suas reflexões foi um dilúvio de lágrimas. Desceu a carruagem, chorando
como uma Madalena; os criados que a receberam, ficaram muito admirados e acusaram os
patrões de crueldade para com a sua encantadora patroa, pela qual já se interessavam. Foram
prevenir a ama e a despenseira; esta veio saber o que acontecera, se a senhora estava doente.
MINA - Não, senhora; agradeço a sua bondade. Estou muito bem; simplesmente...
SR. A BONJEAN - Perdoe, minha senhora, mas sinto-me apoquentada por ver a patroa tão
desgostosa. Há muito tempo que estou cá em casa; é, pois, muito natural que me comece a
interessar pela minha nova patroa.
MINA - Obrigada, querida senhora. Estou bastante satisfeita por me demonstrar amizade.
Sinto-me reconhecida por me estimar. Meu Deus, meu Deus, como sou infeliz!
A despenseira, sensibilizada com as lágrúnas de Mina, não sabia como consolá-la; preveniu a
ama, a Sr. a Gauroy, que foi para junto de Mina inquirindo:
- Que tens, minha filha? Minha querida menina, porque choras tão amargamente?
MINA - Minha ama, minha querida ama. Sou muito infeliz, pois Gaspar não me tem amor.
Como a ama não sabia o que se havia passado, nada pôde dizer para a persuadir do contrário;
imaginou que Gaspar tivesse sido duro e malcriado para a sua querida menina e detestou-o
mais um pouco do que anteriormente.
As horas passaram. Mina, fatigada de muitas noites agitadas e da recente dor, adormeceu na
poltrona. Ainda dormia quando Gaspar entrou precipitadamente. Soubera pela Sr. a Bonjean
tudo quanto se passara e o estado de desolação de Mina ao voltar. Gaspar e Féréor ficaram
consternados com tão grande desgosto de que não percebiam bem a razão.
- Vai, meu filho - disse Féréor -, corre para junto dela; tenta captar-lhe a confiança e que ela te
confesse o que a pôs nesse estado.
Assim, Gaspar entrou nos aposentos de Mina, que dormia. Parou defronte dela e contemplou
por largo tempo essa atitude graciosa, esse encantador semblante que tinha ainda vestígios
das lágrimas choradas. Gaspar ajoelhou junto dela e beijou-lhe meigamente a mão que lhe
amparava a cabeça, lamentando:
- Pobre pequena!
Tais palavras, embora proferidas em tom baixo, acordaram Mina. Soltou um grito ao ver
Gaspar, que a reteve na poltrona, indagando:
GASPAR - Eu não lhe tenho amor! Que pode permitir- lhe tal ideia?
À medida que Mina lhe descrevia os agravos dele recebidos, o rosto de Gaspar iluminava-se;
confessou-lhe os seus verdadeiros sentimentos, a
querida mulherzinha; tratar-te-ei por tu, permanecerei junto de ti; dar-te-ei os bons-dias e as
boas-noites, beijando-te; farei tudo quanto quiseres; terás a minha confiança, dar-me-ás a tua
e hás-de prometer nunca mais duvidar da minha ternura.
GASPAR - E tratar-me-ás por tu, visto quereres que te trate também por tu?
Gaspar, agarrando e apertando as mãos da ama -, minha mulher chama-a; está muito contente
comigo; acredita, finalmente, em que eu a amo de todo o meu coração.
A Sr. a Gauroy apertou também as mãos de Gaspar, com lágrimas nos olhos, e acompanhou-o
aos
aposentos de Mina.
Mina, correndo para ela e lançando-se-lhe nos braços-, ama-me, trata-me por tu: ficará junto
de
A Sr. a Gauroy chorava de alegria; também apertou nos braços o marido da sua menina.
Gaspar deixou-as, anunciando que ia sossegar o pai, que estava inquieto com o desgosto de
Mina.
GASPAR - Pronto, meu pai. Está tudo harmonizado; a fonte das lágrimas de Mina estancou.
Confessei-Lhe a minha ternura, a minha ventura: imagine que julgava que eu não a amava.
Gaspar contou minuciosamente ao pai os tristes pensamentos de Mina, a conversa que com
ela tivera e o resultado obtido.
-As três provas de uma afeição sincera são, pois, tratá-la por tu, permanecer junto dela e beijá-
la de momento a momento.
FÉRÉOR - A que vais ter vale bem a que perdes. Pensa bem que isso não podia durar sempre.
Era grosseiro e insultuoso para ela. Tens agora a tua felicidade completa.
GASPAR - Sim, meu pai, e sempre graças a si. Não receie, querido, excelente pai, que esta
ternura, nascida ontem, diminua em nada a que lhe dedico e que nasceu da gratidão; cresceu
comigo, é a minha primeira afeição; não pode extinguir-se nem enfraquecer. O meu novo
sentimento por Mina só pode desenvolver o primeiro, o primeiro que me fez sentir que eu
possuía um coração!
-Compreendo-te perfeitamente, meu filho, e não tenho medo; Mina, tanto para ti, como para
mim, acaba a nossa educação nesse sentido. E agora, Gaspar, vai tratar da tua mudança; não
tens muito tempo antes do jantar.
O rapaz deixou o pai e foi procurar a Sr.a Bonjean para vir ajudá-lo na muda; ficou
surpreendido ao encontrar lá Mina.
MINA - Sim, Gaspar. Vim visitar a Sr. a Bonjean, que teve a bondade de se interessar pelo meu
desgosto. Era justo que viesse anunciar-lhe a minha felicidade. Já lhe contei tudo; achou que
eu tinha razão e que tu procederas mal; não é assim, Sr.a Bonjean?
MINA - Ah ah ah Vais ser repreendido! É bem feito, por me haveres feito chorar tanto!
Gaspar contemplava-a e sorriia, dizendo:
SR.a BONJEAN - Bem sei, bem sei; a senhora preveniu- me. Deixe isso a meu cargo e a cargo da
Sr.a Gauroy: arranjaremos tudo.
MINA - E eu? Imagina que vou ficar de braços cruzados enquanto vocês se vão cansar a levar
livros e roupas?
GASPAR - Mina, querida pequena, vais-te fatigar; não estás habituada a este género de
trabalho.
MINA - Não estou habituada? Mas eu tratava dos arranjos da casa com a minha ama: não
éramos ricos; apenas tínhamos para nos ajudar uma jornaleira, uma viúva desagradável como
eu.
E prosseguiu:
- Íamos ao fim do mundo, a minha ama e eu: cozinhávamos, tratávamos do serviço caseiro,
lavávamos e engomávamos as nossas roupas. E apenas tinhamos seis mil francos por ano para
todas as despesas.
GASPAR - Oh! Mina, Mina! Pobre criança! Se eu conhecesse a tua desgraçada situação!
- Já não serei infeliz, querido Gaspar, porque me amas e teu pai também.
- Oh! Gaspar, meu bom Gaspar! Não chores a minha vida passada; de contrário, vou chorar
também.
MINA - E agora vou ter com a Sr.a Bonjean por causa da tua mudança. Porque se foi embora
sem mim?
GASPAR - Porque é muito discreta; notou que ias falar-me em coisas íntimas.
GASPAR - Não, querida filha. Tudo quanto disseste, devias dizê-lo só a mim.
MINA - Serás o meu amigo perfeito. Poderei dizer-te tudo o que penso, tudo o que fiz, tudo o
que desejo.
MINA - Então, vou dizer-to depressa... Não me ralharás? Não te zangarás se te pedir de mais?
MINA - Nesse caso eu tinha vontade de possuir um piano e músicas; gosto tanto de tocar! Tive
algumas, mas poucas. A minha pobre ama comprava-mas com as suas economias, que não
eram grandes, como podes calcular.
GASPAR - Como? É isso que hesitas em pedir-me? Amanhã encomendarei um piano de Pleyel.
MINA - E outra coisa, meu amigo. Queria ter algum dinheiro para distribuir pelos pobres.
GASPAR - Tanto quanto queiras, minha boa e excelente mulherzinha. Quanto queres?
MINA - Podes dar-me... vinte francos? É muito? - acrescentou, ao notar a surpresa do marido.
GASPAR - Muito? Mas, minha filha, isso nada é. Que queres fazer com vinte francos?
MINA - É muito, Gaspar. Eu e a minha ama faziamos fatos para os pobres; comprávamos- lhes
pão, manteiga, lenha; adquire-se muita coisa com vinte francos! E ficavam tão contentes
quando lhes levávamos tudo isso!
GASPAR - És um anjo. Depois de feita a minha mudança, dar-te-ei mil francos que renovarei
quando esses se acabarem.
MINA - Mil francos?! Como és bondoso, Gaspar! Devem durar-me um ano ou mais, pelo menos
assim o espero.
GASPAR - Não, Mina; sou demasiado rico para dar tão pouco. Dá sempre e quando haja
necessidade; não me poupes a bolsa, que é a tua.
GASPAR - Não dez mil, mas cem mil, duzentos mil e até mais. Para quê aumentar a nossa
riqueza já demasiado considerável?
MINA - Meu bom, meu querido Gaspar! Deus te abençoará e recompensará. Amo-te,
Gaspar!acrescentou, lançando-se-lhe nos braços. - Quantos pobres deixarão de sofrer, graças a
ti, à tua caridade! Vou depressa dizê-lo à minha ama.
Mina partiu, a correr. Gaspar ficou pensativo. Foi um anjo que Deus me deu! Será o meu bom
anjo; conceder- me-á o que faltou até agora: a caridade. À medida que mais a amo, sinto-me
melhor, mais disposto a praticar o bem, mais indulgente, mais meigo. Meu Deus! Quantas
censuras não mereço! Quantas acções más na minha existência! Que ambição! Que egoísmo!
O meu primeiro prazer data da minha ternura pelo meu pai adoptivo. Senti-me outro quando
amei alguém. E agora sinto o meu coração expandir-se, encher-se de bons sentimentos;
compreendo os desgostos, os pesares do coração; compreendo até a piedade, a oração, desde
que acompanhei Mina à missa; levá-la-ei lá muita vez; a oração faz bem; deixa em nós
qualquer coisa de suave, de agradável, que eu desconhecia até agora, E, acabando estes
pensamentos, Gaspar orou a Deus intimamente para que lhe perdoasse a indiferença passada
e o tornasse melhor para o futuro. Olhou em volta do quarto e não viu nem um Crucifixo, nem
uma imagem da Virgem; no entanto, avistou a um canto do quarto uma almofada colocada aí
para ajoelhar diante da pequena mesa. Em cima dessa mesa estava uma caixa de forma
estranha. Abriu-a e deparou-se-Lhe um modesto Crucifixo de madeira, uma estatueta da
Virgem, um rosário de luxo, um livro de missa e um retrato em miniatura, que lhe pareceu o da
própria Mina, mas envelhe cida.
Gaspar adivinhou que era o da mãe dela; ajoelhou; beijou umas poucas de vezes essa
encantadora imagem; osculou também os pés do crucifixo e ia a colocá-lo no seu lugar,
quando Mina surgiu. Soltou um pequeno grito alegre e, correndo para Gaspar
- Sê bendito, meu Gaspar; bendito por mim Mi pelo meu coração, por minha mãe e pelo
bondoso Deus. Sinto- me feliz, meu amigo, por te ver rezar; se quiseres, rezaremos juntos a
nossa oração da tarde; a da manhã é impossível, porque me levanto cedinho, enquanto tu
ainda dormes provavelmente, mas nada nos impede de rezar a da tarde.
GASPAR - Desde hoje, meu bom anjo da guarda, desde esta tarde orarei a teu lado... E
mandarei instalar aqui um oratório mais conveniente e mais cómodo para as nossas orações
da tarde... e da manhã, pois não sou tão preguiçoso como imaginas.
MINA - Ainda bem! A tua mudança vai muito adiantada, meu amigo; restam apenas os teus
papéis, em que não quis que tocassem.
Mina, muito orgulhosa por ser chamada para coisas desta importância, acompanhou Gaspar e
começou a arrumar. Quando acabaram, perguntou-lhe se podia dar uma olhadela ao quarto
do sogro.
MINA - Queria formar uma ideia sobre o quarto dele e saber se está bem instalado.
GASPAR - Entra, minha filha, entra; nunca está aqui a esta hora. Vou levar a minha última
papelada.
Piano e música
E, ajoelhando-se aos pés da cama de Féréor, orou com fervor para que o seu bom pai amasse
Deus acima de todas as coisas.
Enquanto rezava, Féréor entrou nos aposentos e ficou estupefacto ao ver Mina de joelhos
junto da cama.
- Mina - indagou, acercando-se e tentando meigamente levantá-la. - Mina, minha filha, que
estás aqui a fazer? Que acaso te trouxe a este quarto?
Mina ergueu-se; tinha os olhos húmidos, a fisionomia grave; tomou a mão de Féréor nas suas e
respondeu:
peço-lhe, meu pai, o benfeitor de meu querido marido, que me abençoe; ainda não recebi a
sua bênção. Gaspar ama-me agora, e a sua ternura fez de mim sua verdadeira filha.
Mina ajoelhou diante de Féréor, beijou ternamente a mão paternal que devia abençoá-la e
recebeu essa bênção de cabeça inclinada, de lágrimas nos olhos e com o júbilo no coração.
sim, abençoo-te do fundo do coração, onde conquistaste o teu lugar perto do meu
querido Gaspar.
quarto por mim. A tua benéfica influência me dará, espero-o, o coração cristão que me pedes
e o espírito de caridade que me faltou até agora, devo confessá-lo.
cingiu-a ao coração.
Gaspar, inquieto.
MINA - Pelo contrário, agradeceu-me, abençoou-me. Foi tão indulgente para mim! Os seus
olhos fitavam-me com ar bondoso! Quase chorava quando me beijou, depois de me haver
abençoado. Mas vai depressa, Gaspar. Teu pai está à tua espera ansiosamente.
- Não é apenas ternura que sinto por esta amável menina, é também estima; e quando a
conhecermos melhor, já não me admirarei se ambos tivermos um sentimento de respeito por
esta criança tão boa e tão crente.
Gaspar ficou satisfeito ao ouvir falar assim o pai; o trabalho também se ressentiu. Féréor nada
disse, porque também por várias vezes fora distraído pela lembrança dessa bondosa menina
que orava por ele.
Na manhã seguinte, Mina foi à missa, na companhia do marido. O dia passou-se como o
anterior; apenas Mina os não acompanhou à fábrica. Correu ao portão a esperá-los quando
voltaram, e já não deixou Gaspar, mesmo quando trabalhava. Observou o género de ocupação
a que se entregava e que ele lhe explicou. Nada disse, mas no dia seguinte, quando Gaspar
quis pegar nas últimas páginas, encontrou as contas feitas.
- Fui eu que vim em teu auxílio, meu amigo. Antes de casar, o pai mandava-me muitas vezes
fazer as contas das oficinas e as verificações dos livros; e nunca me enganava; se meu pai
encontrasse algum erro, ralhar-me-ia sem contemplação alguma. Assim, podes confiar-me
todo esse trabalho; dar-me-ás grande prazer em proporcionar-me os meios de prestar serviço
ao meu pai e a ti. E quando digo meu pai, refiro-me ao teu e não ao meu.
Alguns dias depois de Mina haver pedido um piano, avistou um, encantador, de pau-rosa
incrustado de nácar e marfim e uma bonita estante do mesmo gosto cheia de livros de música
que Mina tanto desejava e Gaspar mandara instalar na sala de visitas da mulher.
MINA - Piano! Música! Como te agradeço, meu amigo! Que belo piano! Que bonitos
embutidos! Vou experimentá-lo depressa para ver se é tão bom como bonito.
MINA - Primeiro: ser exigente; querer possuir todo o teu coração, todos os teus pensamentos,
todo o teu tempo e eu sei ser isso impossível.
GASPAR - Salvo o tempo, que só me pertence em parte, tens tudo o que querias, minha
encantadora mulherzinha.
Logo às primeiras notas, Gaspar reconheceu-lhe superior talento; executou diversos trechos,
que Gaspar ouviu com desvanecimento. Depois, pôs-se a cantar; a sua voz cheia, sonora tinha
um timbre doce e suave. Gaspar ouvia-a sem se cansar; por fim, Mina parou.
GASPAR - Fá-lo-ei esta tarde, esta noite, seja quando for; peço-te que continues a cantar.
MINA - Acedo porque o teu trabalho está feito. Estive no teu escritório; encontrei os teus livros
e, enquanto andavas pelas oficinas com meu pai, dei conta de tudo.
GASPAR - Assim, és a minha providência! Sabes tudo, fazes tudo, ajudas-me em tudo.
MINA (rindo) - É para te fazer aceitar a fatalidade de teres sido obrigado a casares comigo...
Nada respondas, Gaspar, nada digas; vou cantar.
E Mina entoou a famosa ária: Di tanti palpiti, etc. Apenas acabou, aplausos e bravos se faziam
ouvir na rua; Mina correu à janela que ficara aberta por causa do calor, e viu muita gente
aglomerada no pátio do palacete. À vista de Mina, os aplausos redobraram; distinguiam-se
algumas palavras soltas: encantadora, deslumbrante. Mina, pasmada e não pensando de modo
algum que tais elogios lhe eram dirigidos, procurava descobrir o que poderia ter provocado tal
entusiasmo; Gaspar também se abeirou da janela e reconheceu muitos rapazes da cidade que
o cumprimentaram. Gaspar retribuiu o cumprimento e tirou Mina da janela, dizendo:
-Era a ti que aplaudiam, Mina. De futuro, querida Mina, fecha a janela quando quiseres cantar.
Não gosto que toda esta gente se permita aplaudir-te e fazer-te repetir.
MINA - Por Deus, Gaspar, acalma-te! Se soubesses como tens um ar mau... e, contudo, amo-te
assim mesmo, querido Gaspar.
- Que vão passear - retorquiu Gaspar, enco lerizado. - Diz-lhes que a senhora não recebe e
O criado retirou-se. Mina aproximou-se o mais possível do canapé em que Gaspar se sentara;
deixou-se cair de joelhos junto dele e tomou-lhe a mão. Com voz tímida, inquiriu:
-Meu amigo, porque ficaste zangado? Causaste-me medo; julgava-te tão bom!
- Perdão, mil vezes perdão, minha querida Mina. Não passo de um doido e não sei que mosca
me mordeu! Não tenhas medo de mim, suplico-te; não voltarei a ser ciumento por te ver
aplaudida por estranhos.
Não tardaram a fazer as pazes, e Gaspar cumpriu. Habituara-se a resistir aos impulsos íntimos
e dominou o seu ciúme. Depois de jantar, confessou-se ao pai na presença de Mina, que
atenuou as injustiças de Gaspar e, a si própria, se acusou de imprudente. Féréor troçou um
pouco de Mina, muito de Gaspar e acabou por pedir a Mina que cantasse.
Sentou-se ao piano, cantou admiravelmente e aguardou a opinião do sogro, que não dizia
palavra; levantou-se, abeirou-se de Féréor e viu que dormia como um justo.
- Está sempre tão cansado, o pobre pai! À noite não pode mais.
E Mina sentou-se no canapé junto do marido e começou com ele uma animada conversa.
Às dez horas era o momento de Féréor se deitar. Gaspar, que nunca esquecia os hábitos do pai
adoptivo, levantou-se ao ouvir soar o relógio e olhou
meigamente Féréor. Quando este abriu os olhos, viuGaspar à direita e Mina à esquerda.
-Como lhe pareceu que eu tivesse cantado, meu pai? - inquiriu Mina, rindo.
Esta pequena malícia acabou de despertar Féréor. Tomou o braço de Gaspar; Mina acom
panhou-os. Os filhos beijaram o pai e retiraram-se para os seus aposentos.
Cruel separação
Decorridos alguns dias, Mina teve um desgosto. Féréor anunciou-lhe que levava Gaspar para
uma digressão de oito dias, a fim de tomar posse das
terras que constituíam parte do seu dote. Mina ficou consternada, chorou até; mas Féréor
permaneceu inflexível e o próprio Gaspar lhe mostrou a necessidade de tal viagem.
- Meu pai - pediu Mina -, visto ficar sem o pai e sem o marido, dê-me licença de ir passar estes
dias na casa da fábrica e na de minha mãe. Estarei sob a protecção dos seus bons espíritos ou,
então, sob a da mãe e do irmão de Gaspar. Aqui, teria medo; não me atreveria a sair; recearia
que meu marido... Enfim, ficarei melhor junto da minha ama e da minha sogra.
- É boa ideia, minha filha. Agrada-me e vejo que dá prazer a Gaspar. Partiremos depois de
amanhã, cada qual para o seu destino. Tomarás a carruagem a fim de te dirigires à fábrica,
enquanto nós tomaremos o comboio.
FÉRÉOR - E fica sabendo, minha filha, que durante a nossa ausência serás a soberana do
palacete e da fábrica e que poderás dispor de tudo e ordenar o que te apetecer.
MINA - Obrigado, meu bom pai. Não usarei muito da minha autoridade: todos aqui adivinham
os meus desejos; são demasiado bons para mim, que não tenho utilidade alguma.
O dia da separação foi triste para Mina. Em primeiro lugar, o marido não pôde acompanhá-la à
missa, porque tinha muito que fazer antes dessa ausência de oito dias. No resto da manhã mal
o viu, pelo mesmo motivo. Durante a última refeição em comum, Mina não deixou de chorar.
Féréor e Gaspar bastante se esforçaram por animá-la, mas nada conseguiram.
FÉRÉOR - Mas repara, minha pobre filha, que a demora é apenas de oito dias, e oito dias bem
depressa passam.
MINA - Sim, meu pai, quando passaram, mas quando estão para vir?
FÉRÉOR - E depois, olha para a cara de Gaspar e vê quanto o entristeces com esse
despropositado desgosto.
MINA - Perdoa, meu bom Gaspar. Tens razão: é uma tolice; ficarei muito bem, verás, e o pai
ficará
contente comigo. Primeiro vou visitar a minha sogra, a quem ajudarei nos amanhos da casa, e
irei passear com minha ama e Lucas. Irei visitar o Sr. Abade, que me levará a casa dos pobres...
Ai, meu Deus! Já não tenho dinheiro! A minha ama emprestou-me ontem dez francos e dei-os
à mulher
de um pobre homem que morreu afogado há oito dias e a casa de quem me acompanhou o Sr.
Abade. Chorava que causa dó, essa pobre mulher. Chorei com ela; só pude dar- lhe dez
francos. Tem dois filhos tão bonitos!
GASPAR - Minha querida, porque me não pediste dinheiro? É mister que nunca te falte. Meu
pai, permite que diga na caixa para darem a Mina tudo quanto ela pedir?
MINA - Obrigada, pai; obrigada, querido Gaspar. Praticarei a caridade em nome de ambos e
farei com que todos orem por si e por meu marido. Uma coisa que me vai faltar é o piano,
especialmente na ausência de Gaspar. Tocaria e cantaria todas as noites os trechos de que ele
tanto gosta. Pensarei em ti, meu Gaspar, e contarei as horas que ainda nos separam.
MINA - Não, não; vai sossegado; compreendo que oito dias depressa passam.
Terminara o almoço. Foi preciso tratarem dos preparativos da viagem. Gaspar subiu com Mina,
enquanto Féréor dava as suas últimas ordens. Mina desatou a soluçar, quando deu o último
beijo a Gaspar; não podia resolver-se a deixá-lo.
GASPAR - Minha boa Mina, prometeste ter coragem e apoquentas-me com a tua aflição. Que
há-de ser de mim longe de ti, sabendo-te apoquentada como se nunca mais nos tornássemos a
ver?
MINA - Gaspar, meu querido Gaspar, terei juízo, prometo; em primeiro lugar, deixo-te ir...
(desprendeu os braços do pescoço do marido) e depois, ponho o chapéu e parto. Minha ama,
partamos.
Mina ainda apertou o marido nos braços e desceu, amparada por ele. Beijou Féréor, que
também descia; este fê-la subir para a carruagem, depois de a haver deixado beijar mais uma
vez o marido; a ama subiu atrás dela, a carruagem rodou e Mina pôs- se a chorar; a ama,
porém, soube animá-la, encorajá-la, distraí-la e Mina chegou à fábrica menos chorosa. Foi
recebida amavelmente por André e pelos primeiros empregados; instalou-se no quarto
ocupado por Gaspar quando lá ia; tinha recusado o de Féréor, que André lhe oferecia. Depois
de haver ajudado a ama a arrumar tudo, pediu-lhe que a acompanhasse a casa da sogra.
Chegaram no momento em que Lucas ia seguir para o campo. Mina correu para ele.
- Sou eu, Lucas - disse, beijando-o. - Oh! Lucas, se soubesse como sou infeliz!
MINA - Está a rir-se, Lucas? Isso não está certo, porque sou realmente infeliz! Gaspar partiu...
com meu sogro...
LUCAS - E depois?
irmãzinha! Ah ah ah Querida cunhada, está indignada por me ver rir, mas afianço-lhe que isso
não tem senso nenhum. Que são oito dias? Isso há-de acontecer-lhe frequentes vezes. Quem
tem negócios, como Gaspar, há-de ausentar-se de quando em
quando.
também?
MINA - Decerto; é minha ama, a Sr. Gauroy, i que me educou, que me estima como
filha; não é verdade, minha ama?
Encaminharam-se todos para o jardim, onde encontraram a tia Tomás colhendo ervilhas para o
jantar.
MINA - Boa tarde, minha mãe; vimos ajudá-la, minha ama e eu. Vou passar alguns dias na
fábrica, na ausência de Gaspar, que me deixou sozinha durante oito dias, e estou bem triste,
minha mãe.
filha.
Mina sentiu que esta repetição do raciocínio de Lucas representava a verdade da sua situação
e arrependeu-se de haver inquietado e desgostado o marido por não ter sabido ser razoável.
Resolveu de futuro ser mais animosa.
As ervilhas depressa foram apanhadas. Lucas voltara ao seu trabalho. Mina passou a tarde a
ajudar em diversos trabalhos da quinta; voltou à fábrica para jantar; as primeiras coisas que
viu foram o piano e as músicas. Soltou um grito de alegria e perguntou:
ANDRÉ - Foi o patrão que me deu ordem para os mandar buscar, a fim de a senhora os ter aqui
antes de jantar.
ANDRÉ - Os operários. Foram buscá-lo, minha senhora, e trouxeram-no com grande cuidado,
segundo as ordens do patrão.
MINA - Agradeça-lhes por mim, meu bom André, e dê- lhes esta moeda de vinte francos.
Parece-lhe bem? Meu marido diz-me sempre que não dou bastante.
ANDRÉ - É boa paga, minha senhora. Vão ficar muito satisfeitos. Não deixarão de receber o seu
dia. É tudo ganho para eles.
MINA - Obrigada, André! Fizeram jantar para mim? Estou com fome.
ANDRÉ - Sim, minha senhora; o cozinheiro está aqui. E para a servir, é Félix, aquele que serve
o patrão, que ficará às ordens da senhora e a quem eu auxiliarei se a senhora quiser.
Mina comeu pouco; estava triste; à noite tocou piano, cantou, escreveu uma carta a Gaspar,
orou, chorou, deitou-se e adormeceu para só acordar às sete da manhã.
Levantou-se à pressa, vestiu-se e saiu com a ama para ouvir missa. Depois foi ter com o abade,
falou-lhe dos pobres, soube com pesar que havia muitas familias verdadeiramente
necessitadas, fez-lhas indicar e pediu ao abade que fosse almoçar com ela, a fim de a
acompanhar nessas visitas.
MINA - Será uma vantagem tanto para si como para mim, Sr. Abade: aproveitar-me-ei da sua
companhia e o Sr. Abade ganhará o coração dessa pobre gente, que saberá ser a si que devem
certo bem-estar.
ABADE - Mas, menina, não sei a que devo este gracioso convite e aonde tenho de me dirigir
para o aceitar.
MINA - À fábrica, a casa de meu sogro e de meu marido, que estão ausentes. Já não sou
menina; sou a mulher de Gaspar Féréor.
ABADE - A senhora? Mas é mais do que sua mulher; afigura-se-me ser o seu anjo bom! Tinha
ouvido falar, pelos operários da fábrica, da sua bondade e da sua piedade, mas ignorava que
fosse a Sr. a Féréor a quem tenho a honra de conhecer pessoalmente e estar a falar.
O prior foi pontual e respondeu às inúmeras perguntas que Mina lhe formulou; a mulher de
Gaspar soube com pena que nem o sogro nem o marido se importavam com os pobres da
região e arredores.
MINA - E, contudo, Gaspar é bondoso; deu-me mil francos para os pobres logo nos primeiros
dias após o meu casamento e disse-me que eu podia dar quanto quisesse, cem, duzentos mil
francos.
ABADE - É que antes da senhora, não pensara nisso, e a sua caridade acordou a dele.
MINA - Não a deixarei adormecer, Sr. Abade esteja certo. Iremos socorrer todos os pobres;
dar-Lhes-emos trabalho, roupa, casa, lenha, pão. Exigiremos que os filhos vão à escola e ao
catecismo. Estabeleceremos irmãs de caridade, sala de asilo e muitas outras casas; será o meu
primeiro ministro e peça sem cerimónia: verá como meu marido é bom e generoso para mim.
E o Sr. Abade pagar-lhe-há tudo isso, orando muito por ele; não será assim Sr. Abade? Peço-lhe
muitas orações para ele e para meu pobre sogro, que também é bom, mas que pensa tanto
nos seus negócios, que esquece Deus e os que sofrem. E gosta bem de mim, esse bondoso pai.
Foi ele o primeiro a ser bom para mim, que me chamou sua filha, que me tratou por tu. E isso
tudo é muito bom; não lhe parece, Sr. Abade?
- É porque o senhor não sabe tudo; ignora que, quando casei com Gaspar, ele imaginava que
eu era ruiva, estúpida e enfadonha. Ah ah ah Rio-me sempre ao lembrar-me dessa esquisita
ideia que ele e o meu pobre pai tiveram.
ABADE - Perdoe, minha senhora, uma pergunta indiscreta. Que idade tem?
ABADE - Sim, é isso - volveu, rindo. - Dezasseis anos! É muito nova para ser casada.
Sr. Abade, e está chegado o momento de irmos visitar os nossos pobres. é favor esperar-me
um pouco;
Que boa e encantadora rapariga! - elogiou intimamente o padre. - Mas não passa de uma
criança.
As visitas de Mina foram produtivas para os pobres. A tarde do dia seguinte passou-a ela em
casa da sogra. Ao voltar, ficou agradavelmente surpreendida ao ver uma carta de Gaspar. Após
algumas palavras ternas, escrevia- lhe ele:
As tuas orações e o teu exemplo já nos fizeram algum bem, minha mulherzinha bem amada.
Pensámos nos pobres a socorrer e nas igrejas a reparar. Contamos instalar irmãs de caridade,
salas de asilo, colégios; entender-nos-emos com o Sr. Abade para fazer reinar o bem- estar e a
religião em todas as nossas propriedades. A tuu oração no quarto de meu pai sensibilizou-nos
mais do que podes imaginar; levaste-me a fazer reflexões que nunca havia feito. O espirito de
caridade, que pediste para nós, começa a frutificar em nossos corações; o meu, pleno de amor
por ti, estará também dentro em breve, espero, cheio do amor do bondoso Deus, que me
doou a minha querida Mina; continuarás a tua obra e farás de mim um verdadeiro cristão. O
indiferente, o egoista, o ambicioso Gaspar far-se-á substituir por um cristão arrependido...
Adeus, minha bem amada; nunca poderei dizer-te quanto te amo e
quanto reconhecimento sinto por Deus e por ti! O que é casár, por dedicação ao seu
benfeitor, com uma noiva estúpida e enfadonha! Daqui a seis dias já estarei junto de ti: com
que ventura não cingirei ao coração a querida feiticeirazinha que nele reina sem partilha!
cidade.
teve pena dela e chorou, tanto se lhe afeiçoara devido às suas excelentes qualidades. O abade
pediu-lhe instantemente que voltasse muitas vezes. Prometeu e tornou para a cidade
momentos antes da chegada de Féréor e de Gaspar, esperando-os à janela.
marido. O sogro, mais vagaroso nos seus movimentos, só se lhe juntou depois de ela haver
sido abraçada por Gaspar várias vezes. Tinha tanta coisa a contar-lhe, que o pobre Féréor
pediu licença e foi descansar no escritório, onde o aguardava uma porção de trabalho; era o
seu repouso e a sua ocupação
lágrimas tinham alterado levemente. Féréor felicitou-a por isso. Mina referiu todas as suas
generosidades, o seu emprego do tempo; falou-lhe com
tanto entusiasmo dos bons resultados da sua caridade, que Féréor ficou sensibilizado e pediu-
lhe que
continuasse assim em seu nome. Beijou-a, louvou muito os cuidados e atenções que haviam
tido para com ela o pessoal da fábrica e a gente da aldeia e em especial André. Gaspar não a
desfitava; estava extasiado. Quando, à noite, Mina subiu para o quarto e se dirigiu com o
marido para a pequena mesa onde faziam as suas orações, soltou um grito ao notar um
pequeno móvel formando oratório, com um magnífico Crucifixo, uma encantadora estatueta
da Virgem, uma pia de água benta e velas. Todo o móvel era esculpido, representando cenas
da vida de Cristo.
- Oh, Gaspar! - bradou Mina, beijando-o com ternura. - Como és bom e amável!
Gaspar não faltou às promessas que fizera à mulher: tornou-se cada vez mais crente e mais
caritativo. Procurou reparar todo o mal que noutros tempos fizera a alguns operários
inteligentes. Protegeu particularmente André, que obteve de Féréor o posto de confiança,
muito vantajoso, que anteriormente fora ocupado por Gaspar. Féréor, tornado melhor pelo
exemplo e ternura do filho e da nora, fez-se a providência da região, de que fora o opressor.
Toda a região mudou de aspecto; a igreja tornou-se pequena de mais para a população que
nela se comprimia. Na aldeia não havia um único indivíduo que não festejasse a Páscoa e não
soubesse ler. Gaspar criou, a conselho de Mina, para a fábrica e para a aldeia, uma
considerável biblioteca, composta de livros instrutivos, interessantes e recreativos. As outras
propriedades de Gaspar gozaram dos mesmos melhoramentos; a miséria era quase
desconhecida. O próprio Gaspar tornou-se tão
dois rapazes; o primeiro tem quatro anos e o segundo dois; Féréor ama-os com ternura; é o
melhor dos
realmente feliz desde que compreendeu o amor a Deus e ao próximo. Repete muitas vezes
que deve a Gaspar a sua primeira afeição e a Mina o desenvolvimento dos sentimentos do seu
coração. Mina e Gaspar amam-se como nos primeiros dias do seu
enlace. Os negócios de Féréor e de Gaspar prosperam mais do que nunca; Gaspar goza agora
da sua ventura sem reserva alguma; os seus pensamentos de ambição já não vêm, como em
anos passados, lançar- lhe a amargura entre as suas alegrias e êxitos.
Lucas casou há dois anos; a mulher é uma bondosa rapariga, forte, crente, activa, de constante
alegria; formam excelente casal e já têm um rapagão, do qual Mina pediu para ser madrinha.
Tomás, que reivindicava os seus direitos. - Dêem-me o primeiro filho de Lucas. Não é verdade
que
- Minha mãe, permite que lhe dê o meu consentimento? - perguntou Lucas à mãe, rindo.
-Querida mãe, como é bondosa! - volveu Mina, beijando-a muitas vezes. - Obrigada, meu
excelente irmão - acrescentou, beijando Lucas. Assim, serei a madrinha do meu pequeno
Jorge, que é o nome do meu sogro e do meu filho mais velho e será também o do meu
afilhado.
-Porque para mim só existe um Gaspar no mundo e não quero que haja segundo.
Frlichein já morreu há muito tempo. Meses depois do casamento da filha, foi vítima de uma
explosão ao fazer experiências químicas absurdas. Ninguém da fábrica o lamentara; Mina
rezou bastante por ele, mandou rezar muitas missas para a salvação da sua alma, pela qual
conservava certas inquietações, porque morreu como vivera: sempre um mau rico.
FIM