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CRATEÚS-CEARÁ
2018
MARCELA BRUNA DE OLIVEIRA
CRATEÚS-CEARÁ
2018
Às resistências LGBTI+ do Sertão dos
Inhamuns.
Permaneceremos juntas.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho busca, a partir de uma breve análise sobre as estruturas dos discursos que formam
a discussão contemporânea a respeito do gênero e da sexualidade, expor tais categorias como
construídas, reproduzidas e mantidas através de mecanismos de poder. Neste sentido foram
fundamentais as leituras sobre as performatividades normativas do gênero e da sexualidade e
seus efeitos sobre os corpos queer e da heterossexualidade como padrão que margeia as
sexualidades e as existências femininas e lésbicas. Ressalta-se a relevância do estudo sobre as
violências de gênero e LGBTfóbicas que marcam a formação da identidade da educação
brasileira e do cotidiano escolar contemporâneo; assim como as análises sobre os mecanismos
de poder que atuam sobre a construção humana do gênero e sexualidade. A fim de realizar a
pesquisa foram ouvidos três relatos de pessoas LGBTI+ com o objetivo de expor e demonstrar
seu cotidiano marcadamente violento e as consequências dessas marginalizações para as suas
subjetividades. Neste sentido, esta pesquisa parte da perspectiva de que as identidades sexuais
e de gênero são fatores que se inscrevem a partir das experiências e vivências individuais e
coletivas. Concluí-se, pois, que as situações de LGBTfobia ocorridas no ambiente escolar, ou
externamente mas que fazem parte das vivências dos diversos sujeitos presentes na escola,
apontam para a necessidade de estudos sobre gênero e sexualidade nos currículos dos diferentes
níveis de ensino e na formação continuada de educadoras e educadores.
This academic job seeks, from a brief analysis of the discourses that form the contemporary
discussion on gender and sexuality, expose the categories as constructed, reproduced and
maintained through mechanisms of power. Were fundamental reading of the normative
performativity of gender and sexuality and its effects on queer bodies and reflections on
heterosexuality as a pattern marring sexuality and female and lesbian life. It emphasizes the
importance of the study on the gender and LGBTI+ violence that marks the formation of the
identity of brazilian education and the current school daily life; as well as) analyzes of the
mechanisms of power that act on the human constructions of gender and sexuality. With the
intention of conduct the research, three people from the LGBTI + community were heard, with
the aim of showing their daily lives marked by violence and the consequences of these
marginalizations for their subjectivities. In this sense, this research starts from the perspective
that the sexual and gender identities are factors that are inscribed from the individual and
collective experiences. It concludes that LGTI + violence situations occurring in the school
environment, or in other environments but who are part of the experiences of various subjects
present in school, point to the need for studies on gender and sexuality in the curricula of
different levels of education and in the continuing education of educators.
1 INTRODUÇÃO 10
2 Erro! Indicador não definido. VIVÊNCIAS INDIVIDUAL E COLETIVA 14
2.1 PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO/DESCONSTRUÇÃO DAS INDENTIDADES
LGBTI+............................................................................................................................18
2.2 LÉSBICAS E A LESBOFOBIA 22
2.3 GAYS E A HOMOFOBIA 25
2.4 BISSEXUAIS E A BIFOBIA 28
2.5 TRANSEXUAIS E A TRANSFOBIA 29
3 Erro! Indicador não definido. AS LGBTI+ 32
3.1 CONTRIBUIÇÕES DO AMBIENTE ESCOLAR PARA A FORMAÇÃO DAS
IDENTIDADES SEXUAL E DE GÊNERO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA 34
3.2 LGBTFOBIA E DISPARIDADES ENTRE OS GÊNEROS NO CONTEXTO
ESCOLAR 37
4 RELATOS DE LGBTFOBIA NO CONTEXTO ESCOLAR DE CRATEÚS 40
4.1 MIKA 40
4.2 FÁBIO 52
4.3 BEATRIZ VITÓRIA 58
5 Erro! Indicador não definido. LIDADE NO CONTEXTO EDUCACIONAL DO
MUNINÍPIO DE CRATEÚS E
SEUS DESDOBRAMENTOS NAS VIVÊNCIAS LGBTI+ 65
6 CONCLUSÃOErro! Indicador não definido.
REFERÊNCIASErro! Indicador não definido.
10
1 INTRODUÇÃO
Deste modo, falar das expressões das sexualidades e dos gêneros requer a
compreensão das construções de suas representações pelos diferentes discursos e nos mais
distintos ambientes e contextos (compreendendo que estes processos são perpassados ainda por
aspectos locais de etnia, classe, etc.).
Assume-se, neste trabalho, que parte das situações de LGBTfobia são vividas ainda
na infância, e dentro do ambiente educacional por meio da violência moral, psicológica e física
vinda de outros estudantes, funcionários e professores.
A escola também pode ser apontada como reprodutora da permanência de interesses
e recortes relacionados ao gênero e a sexualidade ao negligenciar as relações produzidas dentro
do ambiente educacional como espaço pertinente de conhecimento e formação das identidades
das e dos estudantes.
Os currículos oficial e oculto, assim como os planos e leis que regulam o ensino,
permitem a omissão de termos ou estudos referentes ao gênero e a sexualidade na escola ou
para a formação de professores, expressando, assim, a atuação de um mecanismo para
reprodução de saberes regulados pelos discursos oficiais nesta área.
Assim, toma-se como perspectiva neste trabalho que a escola é uma das
responsáveis pela construção do modelo compulsório heteronormativo imposto em nossa
1
Relatórios anuais do Grupo Gay da Bahia. Disponível em<https://homofobiamata.wordpress.com/>.Acesso em
novembro de 2018.
11
sociedade, que marginaliza e expõe à violência, ao mesmo tempo em que torna invisível, a
realidade da comunidade LGBTI+.
Ao compreender a escola como um dos primeiros espaços de efetivas possibilidades
de desenvolvimento intelectual e de socialização das crianças e adolescentes, pretendeu-se
analisar como as situações vividas e as relações estabelecidas no contexto escolar têm
contribuído para a formação das identidades LGBTI+ a partir das situações de exclusão,
violência, assujeitamento e resistência experimentadas neste espaço.
Buscou-se, deste modo, analisar as situações de lesbofobia, homofobia, bifobia e
transfobia – manifestas no cotidiano, no currículo, nas normas e disciplinas impostas – e suas
consequências nas subjetividades e expressividades de lésbicas, gays, bissexuais, travestis,
transexuais, transgêneros, intersexuais e outras identidades e subjetividades (pansexuais, não-
binárias, gêneros-fluidos, etc) construídas nas relações de gênero e sexualidade que hoje se
encontram referenciadas no termo Queer2.
A fim de refletir sobre situações de LGBTfobia no ambiente escolar e como elas
participam da construção das identidades desses sujeitos, buscou-se descrever as diferentes
violências sofridas historicamente pelos indivíduos e como elas fazem parte de um percurso
histórico que marca o desempenho escolar, emocional, psicológico, capacidade de socialização
e perspectiva de desenvolvimento profissional dos sujeitos participantes da comunidade LGBT.
Neste intuito, conhecemos e analisamos os relatos de pessoas LGBTI+ no intuito
de compreender a situação da comunidade dentro do ambiente escolar e seus desdobramentos
nas vidas dessas pessoas.
O trabalho busca apontar a situação de marginalização a que está exposta a
comunidade LGBTI+ da comunidade escolar de Crateús e da região do Sertão dos Inhamuns e
registrar, com intuito de evitar a reprodução da normalidade às expressões homotransfóbica no
cotidiano escolar e na sociedade em geral.
Compreende-se que a exposição das violências, assim como as chamar por seus
devidos nomes, fazem parte do processo de construção da expressão, representatividade e
visibilidade para a comunidade LGBTI+.
2
Preciado (2002,p.87 ) fala da Práxis-Queer como a transformação das técnicas de dominação em técnicas do
“eu”, de construção da identidade. Assim, o termo queer utilizado como injúria, assédio e perseguição para tratar
gay afeminados, lésbicas machudas, travestis, andróginos, assexuados, drag queens e outros foi resignificado
pela comunidade LGBTI+ e contemporaneamente refere-se a uma diversidade de identidades e práticas que
ultrapassam os limites das identidades cisgêneras.
12
Os estudos da corrente pós-feminista3 têm se voltado cada vez mais para análise das
identidades, a partir da compreensão de que estas são formadas por fatores como gênero e
sexualidade que perpassam as construções dos indivíduos nas esferas individual e coletiva.
Concluiu-se neste sentido que mais do que uma construção da sexualidade
alicerçada na proibição ou interdição – ideia sempre discutida e explicitada através das
dificuldades de se falar e compreender a sexualidade humana – encontram-se mecanismos
utilizados no sentido de sua produção.
As chamadas “tecnologias sexuais” (PRECIADO, 2002) operariam no intuito de
uma produção da sexualidade e se constituiriam a partir:
[...] dos diferentes elementos do sistema de sexo/gênero denominados “homem”,
“mulher”, “homossexual”, “heterossexual”, “transexual”, assim como suas práticas e
identidades sexuais são máquinas, produtos, instrumentos, aparatos, truques, próteses,
redes, aplicativos, programas, conexões, fluxos de energia e de leis de circulação,
fronteiras, constrangimentos, desenhos, lógicas, equipes, formatos, acidentes,
detritos, mecanismos, usos, desvios... (PRECIADO, 2002, p. 19).
3
Marie-Hélène Bourcier, no prefácio do Manifesto contra-sexual. caracteriza a corrente pós-feminista como uma
crítica à tradição teórica e metafísica ocidental ao contestar os discursos e as epistemologias que têm embasado as
reflexões sobre as políticas dos corpos, das sexualidades e dos gêneros ao questionar os fundamentos da política e
da identidade, promovendo opções de resistência não totalizantes, onde os sujeitos são compreendidos como
agentes políticos com posições instáveis que são compreendidas como “efeito de constantes re-negociações
estratégias da identidade”. Os estudos pós-feministas são influenciados pelos estudos de Derrida, Deleuze, Lacan
e pela noção de censura produtiva e biopolítica de Foucault. (PRECIADO, 2002, p.9-10),
15
Assim, por exemplo, existe um discurso que apela ao coletivo, como as campanhas
de natalidade ou de controle de natalidade, mas que na realidade opera direta e especificamente
nas relações entre os indivíduos, produzindo e condicionando suas relações.
É neste sentido, por exemplo, que Foucault (2017) ressalta que a pastoral cristã, há
pelo menos três séculos, produz efeitos específicos sobre os desejos e consequente sobre o
comportamento ocidental.
4
Ao longo do texto serão desenvolvidas e apresentadas as especificidades e conceitos das categorias abrigadas
na sigla LGBTI+ e nas diferentes siglas utilizadas pela comunidade.
16
indivíduo se reconhece ou se compreende com o sexo biológico que foi designado ao nascer e
estabelece relações sexuais e afetivas com indivíduos de sexo e gênero opostos ao seu.
Neste sentido, Butler (2003) afirma que o binarismo dos gêneros é um contrato
social heterocentrado que tem inserido como “verdades biológicas” o que são a produção e
inscrição de “performatividades normativas” referentes ao gênero e a sexualidade.
Exemplificando com a performance drag, em que o “gênero é uma espécie de imitação
persistente, que passa como real” (BUTLER, 2003, p. 8).
Acentua ainda o gênero como categoria a ser refletida como fator de produção a
partir da reflexão sobre as identidades, corpos e expressões, salientando que:
e transgênero têm colocado sobre a mesa não são tanto performances teatrais ou de
cenário através dos gêneros (cross-gender), mas transformações físicas, sexuais,
sociais e políticas dos corpos fora da cena [...] (PRECIADO, 2002, p. 75, tradução
nossa).
Com base nos estudos feitos é possível compreender que o processo de construção
de cada identidade é único, e que as características que as constituem são várias e se ligam a
fatores emocionais, psicológicos, sociais, econômicos e históricos.
Interessa neste trabalho compreender como os sujeitos das identidades LGBTI+ têm
suas identidades inscritas através desses processos – por meio de um discurso oficial (médico,
biológico, psicológico, político) que não é de sua voz – e das resistências necessárias implicadas
nestas vivências.
Pode-se concluir deste modo, que a aplicação das técnicas que se inserem nas
produções dos gêneros e sexualidades está intrinsecamente ligada ao campo das relações de
poder que constroem as identidades e seus significados.
Ao longo da história e nos seus textos oficiais, por exemplo, o corpo feminino nunca
é descrito como o que fabrica ou desenvolve instrumentos e tecnologias, o que no discurso
colonizador enquadra mulheres e indígenas como “parte da natureza”, pois não produzem ou
possuem tecnologias ou técnicas e, portanto podem ser tomados e explorados. Preciado ressalta
que, para Foucault:
[...] a técnica é uma espécie de micro-poder artificial e produtivo que não opera de
cima para baixo, mas que circula em cada nível da sociedade (desde o nível abstrato
5
Foucault precisou biopolítica como a fase da sociedade caracterizada pela produção e controle da própria vida;
como a produção dos corpos e das estruturas sociais. Ressalta que com o avanço das tecnologias nas sociedades
contemporâneas não é possível estabelecer o que são “corpos naturais” frente ao avanço dos usos de hormônios,
próteses, transplantes de órgãos, usos da internet, etc. (PRECIADO, 2002).
19
É necessário ressaltar, como lembra Preciado, que técnica e tecnologia não devem
ser compreendidas como instrumentos que surgem para modificar uma natureza que se
considera dada ou possuidora de um estado zero de concepção ou nascimento, mas como
instrumentos que surgem na produção do desenvolvimento do que se chama de natureza
humana.
Concluí-se então que a heterossexualidade não pode ser reverenciada em nenhuma
teoria como a “sexualidade natural humana”, assim como não há nada que disponha sobre a
obrigatoriedade da construção das identidades de mulheres e homens estarem sempre dispostas
em corpos nascidos ou não com vaginas e pênis, respectivamente. As chamadas “tecnologias
sexuais” operam no sentido da construção da objetificação da sexualidade hétero e do corpo
que abriga o gênero cis.
No entanto, vale ressaltar que esta identidade nunca se restringe à sexualidade ou
às relações sexuais entre os indivíduos. A identidade sexual e de gênero se manifesta nos
comportamentos, afetividades, relações e consumos que são incentivados e perpassados como
naturais por meio de discursos e publicidades, presentes desde o ambiente escolar até os
discursos médicos, jurídicos, etc.
Operam ainda a partir da reprodução da heteronormatividade, da sexualização dos
corpos femininos e da fixação de padrões de beleza; relações estas que naturalizam o conjunto
de fatores que constituem a identidade hétero-cis como norma.
Neste sentido é possível exemplificar que as relações hétero são sempre
representadas na mídia, na história, na educação, nas leis, etc.; bem como os indivíduos sejam
eles históricos, públicos ou físicos são sempre presumivelmente heterossexuais e cisgênero
desde o nascimento até sua morte.
A um só tempo, a imposição da heterocisnormatividade cria os sujeitos por ela
almejados (muito embora, como já salientado, longe de uma unidade mesmo dentro do
binarismo feminino/masculino) e justifica toda a negação e marginalização aos que se
encontram fora da margem da norma, criando uma variedade de estereótipos embasados, na
maioria das vezes, na banalização das feminilidades (misoginia), na orientação da consideração
de comportamentos sexuais distantes da norma hétero como perversos, pecaminosos, fora da
lei, etc.
20
Por exemplo, no que se refere então a letra Q, referente ao termo queer, que foi
ressignificado pelo movimento e hoje a designação de “estranho”, “transviado” é referente
justamente “aquele que se narra ou é narrado fora das normas”, processo histórico que faz com
que a palavra seja incluída muitas vezes ao se denominar a comunidade LGBTQ.
6
Percurso histórico da organização política do movimento LGBTT no Brasil escrita por Pedrosa (2009) no
artigo “Movimento LGBTT e suas práticas educativas no âmbito da sexualidade e da luta contra a AIDS”.
7
. Teoria queer, o que é isso?. Disponível em <https://www.revistaforum.com.br/osentendidos/2015/06/07/teoria-
queer-o-que-e-isso-tensoes-entre-vivencias-e-universidade/>. Acesso em novembro de 2017.
21
É neste sentido que os estudos até aqui salientam que os discursos, as normas, os
comportamentos constroem as identidades materiais dos sujeitos. Assim, Butler (2003) reflete
sobre a construção da identidade:
Nas próximas seções desta pesquisa, traçaram-se percursos que fazem parte da
construção histórica contemporânea das identidades, das existências, das expressões, das
violências e das resistências de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.
8
Vide, A trajetória e as conquistas do movimento LGBT brasileiro. Disponível em
<https://www.nexojornal.com.br/explicado/2017/06/17/A-trajet%C3%B3ria-e-as-conquistas-do-movimento-
LGBT-brasileiro>. Acesso em novembro de 2017.
22
Ressalta, ainda, que uma análise fenomenológica desses instrumentos (ex: cintos de
castidade) evidencia o surgimento da mão como órgão sexual, que ameaça a autonomia dos
órgãos genitais como órgãos sexuais, das relações heterossexuais e a naturalização da
necessidade do pênis nas relações ditas sexuais.
Preciado (2002) atenta mais uma vez para o fato de os mecanismos que operam
para a construção da sexualidade e do gênero serem mais variados e diversos do que se poderia
chamar de “determinação da natureza”, que incluem a interdição ou liberação de determinados
comportamentos e expressividades do desejo e do prazer.
Salienta, assim, que os contextos econômico, político e social são determinantes
para a compreensão das expressividades lésbicas na contemporaneidade.
Preciado contextualiza o “surgimento” das lésbicas masculinizadas com a
necessidade econômica da inserção dessas mulheres nos ambientes das fábricas durante a
expansão da produção em massa de objetos de consumo (principalmente de plástico), dos novos
corpos com implantes mecânicos daqueles que retornaram das guerras, da popularização das
cirurgias plásticas, etc.:
Em meio às casas pré-fabricadas e robôs de cozinha, a butch aparece como um corpo
de desenho, tecnicamente simples e que pode ser alcançado, sofisticado e custoso em
termos sociais e políticos. Como se tivesse sido submetida à mesma transformação
que o capitalismo tecno-patriarcal, o corpo lésbico retro dos anos cinquenta muda ao
ritmo da máquina [...]. Cresceu na fábrica. Triplamente oprimida, a causa de sua
classe, de seu gênero e de seu desejo sexual, a butch está mais próxima da objetivação
das máquinas do que da suposta subjetividade dos seres humanos. É proletária e
guerrilheira. Não tem medo de por seu corpo em jogo. Conhece bem o trabalho manual
(PRECIADO, 2002, p. 165, tradução nossa).
23
9
Assassinatos de LGBTs no Brasil de 2000 a 2016. Disponível em:< https://homofobiamata.wordpress.com/#jp-
carousel-25766>. Acesso em outubro de 2018.
10
. Foucault (2017) fala da “Histerização do corpo da mulher” através de um processo que o toma “sob efeito de
uma patologia que lhe seria intrínseca” e o comunica com o corpo social (através da necessidade de fecundidade),
familiar (onde é “elemento substancial e funcional”) e com as crianças (que produz e deve assegurar que cheguem
à fase adulta); segundo o autor, essas relações constituem o papel mais visível de histerização da mulher: a mãe,
mulher nervosa.
11
Para Cisne (2013), a relação capitalista patriarcal implica a apropriação do corpo, do tempo, da obrigação sexual,
do confinamento nos espaços, do arsenal jurídico, das possibilidades no mercado de trabalho para as mulheres,
etc., relações estas naturalizadas como expressões do sexismo que se materializa nas relações civis e privadas, na
ideia perpassada de que os homens têm direitos sexuais sobre as mulheres, representação de uma estrutura de poder
que é baseada tanto na violência quanto na ideologia, como salienta Saffioti (2004).
25
prazer para si e construção dele como fonte de prazer do outro/homem. É vivida também nas
perseguições sofridas por outras crianças e adultos no ambiente familiar e escolar, acontece
através de perseguições na rua ou mesmo no ambiente de trabalho, assédios morais e físicos,
estupros corretivos, mortes.
Sobre as diferentes manifestações que a lesbofobia assume pode-se ressaltar,
antecipadamente, seu caráter misógino, de poder e controle sobre as mulheres. Neste sentido,
Rich (1993) ressalta:
Assume, então, como uma das formas de tentativa de negar ou forçar à sexualidade
hétero para mulheres lésbicas o estupro corretivo. A prática, contemporaneamente, é fomentada
pelo avanço do tipo de discurso citado pela autora e através de fóruns de debate em ambientes
online de grupos assumidamente neonazistas, LGBTfóbicos, antifeministas e outros12.
12
Sobre estupro corretivo. Disponível em:< https://escrevalolaescreva.blogspot.com/2016/01/quem-fala-em-
falta-de-rola-defende.html>. Acesso em outubro de 2018.
26
13
Tradução nossa.
27
Preciado (2002) ressalta, ainda, que seria o ânus o centro contra-sexual universal.
Seguindo a análise de Foucault, Preciado compreende que a forma mais eficaz de resistência é
a “produção de formas de prazer/saber alternativas a sexualidade moderna” (PRECIADO,
p.19), e o corpo é esse espaço de construção, lugar de opressão, mas também de resistência.
Foucault (2017) ressalta que o homossexual torna-se, desde o século XIX, uma
personagem:
[...] um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também
é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada
daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele
todo: subjacente a todas as suas condutas, já que ela é princípio insidioso e
infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem pudor na face e no seu corpo, uma vez
que é um segredo que se trai sempre. É-lhes consubstancial, não tanto como pecado
habitual, porém como natureza singular (FOUCALT, 2017, p.47-48).
14
Relatório 2016 – Assassinatos de LGBT no Brasil. Disponível em
< https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/01/relatc3b3rio-2016-ps.pdf>. Acesso em novembro de 2017.
28
A bissexualidade é ainda mais difícil de ser entendida porque parece ser uma mistura
de homo e heterossexualidade, comprovando a teoria maior de que a orientação sexual
pode se manifestar por vários caminhos e que existe mais de uma possibilidade de
relacionamentos afetivo-sexuais (GIDDENS, 1993, p. 203).
15
A trajetória e as conquistas do movimento LGBT brasileiro. Disponível em
<https://www.nexojornal.com.br/explicado/2017/06/17/A-trajet%C3%B3ria-e-as-conquistas-do-movimento-
LGBT-brasileiro>. Acesso em novembro de 2017.
29
Assim, é possível outra vez perceber os efeitos que os binarismos são capazes de
produzir nas vivências, nos saberes e nos prazeres das pessoas.
É neste sentido que Seffner (2004) ressalta que a nossa cultura demarca muito bem
os polos hétero e homossexual, produzindo, inclusive, identidades “bem definidas”; resultando,
então, para bissexuais, uma invisibilidade no sentido da representação e significação da
bissexualidade dentro de um sistema binário rigidamente polarizado.
Segundo Cavalcanti (2007):
De modo geral, na literatura existente, o que se refere à bissexualidade são relatos de
promiscuidade, alusivos a sujeitos “sem identidade própria”, quando não
caracterizados por sua invisibilidade. O que impede o reconhecimento de suas
práticas, podendo isso ser visto de maneira positiva, já que lhes faltam elementos para
a denominação de estereótipos, mas ao mesmo tempo impossibilita a construção de
uma identidade coletiva que lute pelo reconhecimento, confiança e respeito
(CAVALCANTI, 2007, p. 17).
Quando uma pessoa se identifica com o sexo com o qual ela foi designada ao nascer,
ela é uma pessoa cisgênero; quando, no entanto, o sexo biológico não está em conformidade
com a identidade de gênero com o qual ela se identifica, e com a norma em que o sexo deve
determinar o gênero, essa pessoa é reconhecida como transgênero.
É importante reiterar mais uma vez que, embora o gênero seja designado no
nascimento, ele é, na realidade, o resultado das experiências que os indivíduos vivem coletiva
e individualmente e que inscrevem características em seus corpos e subjetividades. É neste
30
sentido que Preciado (2002) afirma que o gênero é prostético, ou seja, se dá na materialidade
dos corpos.
No caso das travestis e transexuais há, mais do que nunca, a renúncia (seja ela
consciente ou não) da norma totalizante do binarismo dos gêneros feminino e masculino, e o
corpo como centro de mudança, como espaço de opressão, mas, sobretudo de resistência e
construção de si mesmo.
Sobre a modificação dos corpos é importante quando Preciado (2002) enfatiza que
os hormônios sexuais, considerados substâncias naturais pelo discurso médico-farmacêutico,
devem ser compreendidos como drogas político-sociais que atuam sobre todos os indivíduos,
mesmo nos hétero-cis, produzindo modificações em seus corpos, humores, comportamentos,
libidos, etc.
O autor ressalta que, para as pessoas transexuais, existe uma angústia que parte da
própria percepção de si como alguém em não conformidade com o corpo – sentimento
“ensinado” pela norma cis, que discursa sobre a obrigatoriedade de que homem e mulher sejam
31
identificados a partir da genitália – e da percepção dos outros, que são “ensinados” pela mesma
norma cis e para os quais a não conformidade de um corpo neste padrão é ensinada exatamente
como desviante, errada, patológica, pecaminosa.
Torna-se recorrente, deste modo, o abandono/expulsão da escola, que faz com que
elas não tenham qualificação profissional, impulsionando-as, muitas vezes, à prostituição e/ou
trabalhos não regulares. Nesta posição, muitas travestis e transexuais têm construído suas
identidades, a partir das vivências, na rua:
Essa margem tem posto transexuais e travestis como o segundo grupo com menor
expectativa de vida da comunidade LGBTI+, sendo a média de vida das vítimas menos de 28
anos de idade. Em 2016, foram 144 mortes registradas16.
Pode-se afirmar então que a negação das identidades dessas pessoas nos âmbitos
pessoal, jurídico e político tem participação relevante pelo ciclo de violência que hoje dá às
travestis e mulheres trans uma expectativa de vida de apenas 35 anos17.
16
Relatório 2016 – Assassinatos de LGBT no Brasil. Disponível em: <
https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/01/relatc3b3rio-2016-ps.pdf>. Acesso em novembro de 2017.
17
Expectativa de vida de transexuais é de 35 anos, metade da média nacional. Disponível em:
<https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/expectativa-de-vida-de-transexuais-e-de-35-
32
anos-metade-da-media-nacional/expectativa-de-vida-de-transexuais-e-de-35-anos-metade-da-media-nacional>.
Acesso em outubro de 2018.
33
São os efeitos específicos deste e de outros discursos que sustentam o que Foucault
chama de “regime de poder-saber-prazer” que sustentam entre nós o discurso sobre a
sexualidade humana e faz com que, como ressalta Preciado (2002, p. 21), as tecnologias sexuais
sejam apresentadas como fixas, verdades universais ou como “natureza”. Neste sentido, as
tentativas de modificação da norma são julgadas “como uma forma de ‘psicose coletiva’ o como
um ‘Apocalipse da Humanidade’”.
Foucault salienta, deste modo, que os Estados crescem em razão “de sua indústria,
de suas produções e das diferentes instituições”, ou seja, crescem em torno de objetivos e metas
mais ou menos estipulados e estimulados por eles mesmos. Logo, os efeitos dos discursos sobre
sexo são efetivados na economia, educação, saúde publica, infraestrutura, etc.
Agora como assunto de “interesse público” é necessário que se institua o que o
autor chama de “polícia do sexo”, ou seja, a necessidade de regulação do sexo através dos
discursos “úteis e públicos”. Neste sentido, Foucault (2017) ressalta que é instaurado um
conflito entre o sujeito e o Estado, pois sobre o sexo está investida “uma teia de discursos, de
saberes, de análises e de injunções”. Tem-se, então, que ao se falar de sexo há um objetivo, pois
como ressalta o autor:
Não se fala menos de sexo, pelo contrário. Fala-se dele de outra maneira; são outras
pessoas que falam, a partir de outros pontos de vista e para obter outros efeitos. O
próprio mutismo, aquilo que se recusa dizer ou que se proíbe mencionar, a discrição
exigida entre certos locutores não constitui propriamente o limite absoluto do discurso
[...]. Não se deve fazer divisão binária entre o que se diz e o que não se diz; é preciso
tentar determinar as diferentes maneiras de não dizer, como são distribuídos os que
podem e os que não podem falar, que tipo de discurso é autorizado ou que forma de
34
discrição é exigida a uns e outros. Não existe um só, mas muitos silêncios e são partes
integrante das estratégias que apoiam e atravessam os discursos (FOUCAULT, 2017,
p. 30-31).
Assim, como assinala Louro (1997), no Brasil, na segunda metade do século XIX,
como lembra a autora, o processo de urbanização do país, bem como a entrada de imigrantes
para a formação da mão de obra necessária a esse processo modificam as condições sociais e
políticas e criam uma abertura, ainda que limitada18 para as mulheres nas escolas.
No Brasil, esse processo é marcado pela importância dos estudos e ações de Nísia
Floresta. Educadora e feminista criou uma escola para moças e criticava abertamente a
educação dada às meninas da corte (aprendizagem de regras de etiqueta ou como portar-se em
salões e reuniões). No prefácio de Opúsculo Humanitário fala da “emancipação do seu sexo,
batendo-se pela extinção da tirania masculina” (FLORESTA, 1989).
No que diz respeito aos discursos, Foucault (2017) aponta o quanto a religião é
responsável pela construção das linguagens e saberes, também, sobre o sexo e sob a sustentação
do imperativo de “não somente confessar os atos contrários à lei, mas procurar fazer de seu
desejo, de todo o seu desejo, um discurso” (p. 23). Assim:
A pastoral cristã inscreveu, como dever fundamental, a tarefa de fazer passar tudo o
que se relaciona com o sexo pelo crivo interminável da palavra. A interdição de certas
palavras, a decência das expressões, todas as censuras do vocabulário poderiam muito
bem ser apenas dispositivos secundários com relação a essa grande sujeição: maneiras
de torná-la moralmente aceitável e tecnicamente útil (FOUCAULT, 2017, p 23).
18
A entrada das mulheres nos ambientes de ensino transforma esses espaços a partir dos discursos de ordem e
progresso, modernização da sociedade, higienização da família e formação das novas gerações que ensejam a
necessidade de educação para as mulheres: as mães. Outra característica marcante é o fato de que as profissões
que passam a ser exercidas por mulheres serem sempre marcadas pelo modelo religioso e maternal da dedicação-
disponibilidade, humildade-submissão, abnegação-sacrifício (DAUPHIN, 1993). Louro (1997) ressalta que a
educação tem se preocupado, de modo especial, com a formação da professora mulher; cita que, ao longo da
história, ‘marcas’ distintivas de feminilidade (trajes e modos) deviam se expressar assexuadamente, a vida pessoal
deveria ser impecável (de acordo com os preceitos da sociedade na qual estivesse inserida) e não era “dignificante’,
segundo Lei de 1917, do Estado de Santa Catarina, por exemplo, que uma professora grávida ministrasse aulas”.
36
Segundo o autor, essa interferência faz com que toda linguagem utilizada para falar
de sexo seja depurada “de modo a não mencioná-lo diretamente” e de prendê-lo em um discurso
que não permite “obscuridade nem sossego”, falando dele sempre e “valorizando-o como o
segredo”.
Enfatiza que a instituição pedagógica, bem como toda a sociedade, não tem
silenciado completamente o sexo para as crianças e os adolescentes, mas que, desde o século
XVIII, ela concentrou:
[...] as formas do discurso neste tema; estabeleceu pontos de implantação diferentes;
codificou os conteúdos e qualificou os locutores. Falar do sexo das crianças, fazer
com que falem dele os educadores, os médicos, os administradores e os pais. Ou então
falar de sexo com as crianças, fazer falarem elas mesmas, encerrá-las numa teia de
discurso que ora se dirigem a elas, ora falam delas, impondo-lhes conhecimentos
canônicos ou formando, a partir dela, um saber que lhes escapa – tudo isso permite
vincular a intensificação dos poderes à multiplicação do discurso (FOUCAULT,
2017, p. 33).
Nesse contexto, o ambiente escolar, como salientado na seção anterior, está incluído
nos ambientes e instituições que produzem e reproduzem as relações desiguais de poder que
fazem parte da construção das identidades sexual e de gênero dos sujeitos que nela estão
inseridos.
Tem-se que, neste espaço, ao longo da história das diversas comunidades e
sociedades, as crianças têm apreendido lições, informações e limites sobre elas mesmas (a partir
dos estudos sobre o corpo, relações sociais estabelecidas, etc) direta ou indiretamente, através
do currículo oficial.
Como exemplo pode-se citar as aulas de português, em que o artigo masculino é
sempre determinante e as aulas de biologia, em que o corpo é a origem e a explicação do sexo
voltado para a reprodução.
Ainda, as aulas de história, em que os fatos são narrados não apenas a partir da
perspectiva colonialista-escravagista-hétero-branca, mas também onde apenas os homens
aparecem como protagonistas. Sem esquecer do currículo oculto, manifesto em todas as ações
e relações que se desdobram fora dos contextos expressos pelo currículo oficial.
No que diz respeito a não visibilidade e falta de representatividade tanto de
estudantes, funcionários e professores LGBTI+, mas também de personalidades históricas e
públicas como tais, Britzman (1996) salienta que esse silêncio tem efeitos múltiplos em
diferentes sujeitos; parece querer garantir que os estudantes “prefiram” a possibilidade hétero.
Para tanto, em todos os discursos ela é apontada como a natural e qualquer outra
possibilidade, um desvio; esta imposição formativa, que dificulta o autorreconhecimento das
identidades para os sujeitos LGBTI+, também silencia a trajetória de violência, resistência,
retrocesso e conquistas que fazem parte da construção dessas identidades nas esferas particular
e coletiva.
Segundo a autora, gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais,
desde a infância, quando seus trejeitos, gostos e afetos passam a ser apontadas como
“inapropriadas para o gênero”, aprendem nas situações de violência sofridas e silenciadas a não
visibilidade e a dissimulação, o ocultamento, assim, “aprender a se esconder torna-se parte do
capital sexual da pessoa” (Britzman, 1996, p. 83).
39
19
Projeto de estudo sobre ações discriminatórias no âmbito escolar, organizada de acordo com áreas temáticas, a
saber, étnico-racial, gênero, geracional, territorial, necessidades especiais, socioeconômica e orientação sexual.
Disponível em <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relatoriofinal.pdf>. Acesso em maio de 2017.
20
Relatórios de Assassinato de LGBT no Brasil. Disponível em
<https://homofobiamata.wordpress.com/estatisticas/relatorios/>. Acesso em maio de 2017.
21
Sobre utilização do nome social e reconhecimento da identidade de gênero. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8727.htm>.Acesso em outubro de
2018.
40
Optamos por fazer entrevista com apenas três pessoas por acreditar que conhecer
as histórias das construções destas identidades seria relevante, no sentido de que pode se ter a
possibilidade de aprofundar nas camadas e etapas dos diferentes processos de LGBTfobia
sofridos por esses sujeitos e dos consequentes desdobramentos em suas subjetividades.
Todos os nomes das pessoas entrevistadas são fictícios, no intuito de protegê-las de
possíveis repercussões negativas a respeito de situações de violência cometidas por outras
pessoas ou instituições. No mesmo sentido, foram omitidos os nomes das instituições de ensino
nas quais aconteceram as situações de LGBTfobia.
Os relatos foram colhidos pessoalmente, gravados (áudio em celular) e transcritos.
4.1 MIKA
em lhe identificam como mulher lésbica, a fim de evitar que a revista seja feita por um policial
homem cis.
Na revista do dia em questão, Mika conta que um dos policiais falou que “pra
sociedade é homem. Na hora do baculejo quer ser mulher”. Outro policial lhe chamou e
perguntou seu nome completo no registro, em seguida, seu “apelido”; Mika diz que quando
respondeu, o mesmo disse que já tinha ouvido falar dela e lhe instruiu que estivesse sempre
com um documento de identidade para estas situações.
Nos documentos de registro, encontra-se Ana Micaela, sexo feminino, nascida em
outubro de 1999, na cidade de Fortaleza. Salienta, no entanto, que na foto do documento de
identificação aparece “assim mesmo: como eu sou”. Diz não se incomodar ao ser tratado por
“ele” ou “ela”, mas que muitas vezes esta situação causa confusão e constrangimentos para si
e para os outros.
Assim, Mika sempre se apresenta e é conhecido nos diversos grupos na cidade e
região por este nome e sua identidade e expressão de gênero podem ser compreendidas como a
de um jovem garoto negro. Deste modo, narra:
É confuso! Você chega assim no meio da rua – que eu já passo por isso todo dia
mesmo - e se apresenta como Mika; até que alguém solta um “ela” e as pessoas ficam
“ela?”, procurando saber. Aí eu fico assim meio constrangido pela forma que as
pessoas ficam na curiosidade. Eu prefiro “ele”. Porque aí já tá na forma (MIKA).
Seja em suas próprias reflexões sobre sua identidade, nos limites das análises dos
outros indivíduos ou instituições sobre a mesma, a leitura das identidades LGBTI+, bem como
outras identidades pertencentes a recortes politicamente minoritários, está sempre recortada
antecipadamente por esta análise pré-discursiva.
43
Sobre o momento de sua assunção, Mika diz que quanto tinha treze anos assumiu
para a mãe que era lésbica e que a primeira reação foi violenta – acontecendo mesmo agressão
física – no entanto, foram poucos dias para que a mãe aceitasse e questão de um mês para ela
se adaptasse. Diz:
O difícil foi só o resto, porque eu já tinha o apoio dela! Mas eu acho que a mãe já
sentia desde criança. Não tinha como esconder. Eu usava as roupas do meu irmão. Ela
mesma me vestia. Eu que usava as coisas do meu irmão mais novo. Coisa de mãe...
Dava pra saber já (Mika).
Foi só porque ela tava bêbada e eu cheguei no impacto: “mãe, eu gosto de mulher. Eu
sou sapatão”. E aquilo ali assustou ela. Depois ela me disse a reação dela quando
sentou e pensou “como é que eu vou conseguir aguentar o que minha filha vai passar
junto com ela?” (Mika).
Há ainda uma difícil barreira de sentido a superar: para que um/a jovem possa vir a se
reconhecer como homossexual, será preciso que ele/ela consiga desvincular gay e
lésbica dos significados a que aprendeu a associá-los, ou seja, será preciso deixar de
percebê-los como desvios, patologias, formas não-naturais e ilegais de sexualidade.
Como se reconhecer em algo que se aprendeu a rejeitar e desprezar? Como, estando
imerso nesses discursos normalizadores, é possível articular sua (homo)sexualidade
com prazer, com erotismo, como algo que pode ser exercido sem culpa? (LOURO,
1997, p. 84).
Conclui-se, com base no trecho da autora e nos relatos de Mika, que a rotina de
construção das identidades LGBTI+ é entrelaçada a diversos processos que produzem e
questionam, a todo o tempo, sobre seus efeitos nos corpos e subjetividades dos indivíduos.
Mika nasceu em Fortaleza e viveu na cidade até os oito anos de idade. Nesta época,
sua mãe trabalhava dois turnos numa pizzaria, e Mika era o irmão responsável pelos mais novos.
A família vivia em apartamentos alugados com dois cômodos, me conta.
44
Deste modo, mesmo antes de ingressar na escola como estudante Mika já conhecia
a rotina, alguns monitores, outros estudantes, os espaços e as normas da escola.
Em umas das situações de bullying lesbofóbico vividas por Mika dentro da escola,
um de seus monitores – seu professor em algumas disciplinas do currículo obrigatório – dentro
da escola, no horário de campo, enquanto Mika limpava as mesas do refeitório lhe disse:
[...] ele encarnou em mim. Disso ele começou a se intrigar comigo; tudo que eu fazia
era errado. Minhas provas: eu podia era botar certo, que ele botava errado, botava nota
baixa. Começou a colocar outros alunos para vigiarem o que eu fazia e não fazia; até
que uma colega me viu ficando com minha namorada nos alojamentos e contou para
os monitores (Mika).
Acredita que foi o pior momento, porque começou a receber tratamento diferente
dos monitores e todos os outros estudantes perceberam, o evitavam nos corredores da escola,
cochichavam quando passava. Conta que chorava todos os dias, pois tinha medo do que iria
acontecer, pois via muito na televisão e conhecia a história de seu padrinho, que foi assassinado
por espancamento, em Fortaleza, ao ser visto com seu namorado na praia.
Quando começou a se sentir perseguida na escola, Mika teve uma conversa com a
mãe sobre a situação. A mesma lhe deu apoio para sair, caso desejasse, mas Mika tomou uma
decisão e lhe comunicou: “Já que eu sou a única sapatão da escola, eu vou ficar e eu quero ver
o quê que eles vão fazer comigo!” (Mika).
Diz que sabia que ao assumir essa postura de resistência ia passar preconceito, mas
confessa que no momento encarou como brincadeira.
Conta que o núcleo gestor procurou sua mãe, avisando que sua filha corria risco de
expulsão por causa de suas notas. Mas Mika, que já estava no segundo ano do Ensino Médio,
sempre tivera boas notas, mesmo acima da média, tirando notas entre oito e nove, chegando a
receber medalha de segundo lugar como melhor aluno nesta escola.
Na conversa que a gestão teve com Jéssica, namorada de Mika na época, chamaram
atenção para suas notas e para “o que ela andava fazendo”. Enquanto para Mika foi mostrado
46
um boletim com notas vermelhas e lhe informado que não precisaria dar continuidade ao seu
projeto – que incluía uma pocilga, um aviário e uma horta, no qual já haviam sido investidos
aproximadamente quatro mil reais. Quando teve a confirmação do motivo da expulsão, Mika
destruiu o que já havia encaminhado de seus projetos.
Após a expulsão, Mika continuou tendo contato com alguns colegas da escola e
também continuou a viver, praticamente, dentro da escola, pois a mãe continuou a trabalhar na
escola e sua casa ficava nas dependências da mesma.
Foi deste modo que soube por algumas colegas, que ouviram do banheiro feminino
– onde algumas estudantes costumam estudar no período da noite (porque as luzes dos
dormitórios e alojamentos ficam desligadas), e que fica próximo da coordenação da escola –
que o motivo da expulsão era o fato de que Mika e Jéssica estavam “fazendo coisas incertas”
no alojamento. Mika nega, pois diz que sempre teve respeito pelas outras colegas com quem
dividiam o espaço.
Torna-se muito evidente, então, que Mika foi vítima de um conjunto de elementos,
que culminaram com sua expulsão: desde a lesbofobia sofrida nos corredores da escola,
principalmente quando vinha de monitores e funcionários e a violência institucional; indiferente
a estudos que poderiam ser relevantes para o combate de situações de assédio e bullying, assim
como também o comportamento moral da gestão da escola em questão.
Rich (1993) lembra, entre outras formas de poder sobre as mulheres citadas por
Kathleen Gough (1975), “a negação de sua sexualidade e o restringir de sua criatividade ou
retirá-las de amplas áreas de conhecimento e realização”. E, assim, conclui:
Este mesmo professor falou que Mika e a namorada “eram duas pessoas
irresponsáveis, de tá fazendo essas coisas numa escola muito conhecida, conhecida
internacionalmente”.
Após sua expulsão, e através das conversas que continuaram pelos corredores da
escola, e mesmo na coordenação, Mika teve certeza de que o motivo de sua expulsão da escola
era o preconceito e compareceu a uma reunião de estudantes e monitores, onde falou para os
presentes: “Eu vim me despedir de vocês e vim falar aqui, pra todos vocês ouvirem, que a escola
ainda vai pagar muito caro pelo que eles estão fazendo comigo e o que eles fizeram” (Mika).
Mika conta que seus colegas demonstraram apoio com aplausos e gritos e foi
perceptível o desconforto dos professores e do grupo gestor; mas como já não era estudante da
escola, os mesmo não puderam mais uma vez lhe penalizar.
É possível observar na situação vivida por Mika e por sua namorada a negação da
possibilidade de sua sexualidade e afetividade e também a negação para Mika de continuar com
o desenvolvimento do seu projeto, como uma negação direta ao seu direito de produção na área
de estudo em que estava na época.
Hoje acredita que resistiu mais tempo no ambiente e aguentou muita coisa calada,
porque queria saber o que poderia passar e aguentar quando fosse pro “mundo mesmo”, e
compreendeu que “do jeito que acontece na escola, acontece na rua também”.
Fora do ambiente escolar, nas ruas de Independência, relata que já teve que reagir
fisicamente a um homem que no meio da madrugada, interceptou Mika e sua namorada, dizendo
que “hoje eu vou comer teu cu pra tu virar mulher”.
O homem, que chegou a segurar e apertar com tanta força os seus braços, deixando
hematomas nos dias seguintes, foi ferido com um talher na reação de Mika e chegou a chamar
a polícia, que, no entanto, não compareceu ao chamado.
Sobre as reações de Mika às violências que costuma sofrer no cotidiano, conta que
sua mãe, às vezes, reclama de algumas de suas atitudes, mas que ela compreende que em
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situações como as relatadas acima, as reações de Mika são sua forma de resistir e passar por
elas.
No terceiro ano do Ensino Médio – estudando em uma terceira escola – Mika conta
que não foi tão difícil porque já tinha colegas que estudavam na mesma escola. No entanto,
relata que, no Dia do Estudante daquele ano, houve uma festa. Os estudantes foram avisados
por uma professora em sala de aula que poderiam ir fantasiados ou vestidos como quisessem
para comemorar, “menos a Ana, que já era toda confusa”.
Mika discutiu com a professora, foi levado à gestão e, mais uma vez, expulso. Diz:
“Fui expulso porque eu me defendi!”.
Após a terceira expulsão, Mika voltou para a segunda escola aqui citada. Conta que
a recepção foi diferente. Que agora todos o tratavam por Mika.
Mika salienta que o apoio de sua mãe foi e continua sendo essencial, mas ressalta
que ainda têm que enfrentar outros membros da família.
Conta que quando seu avô materno faleceu, no ano passado, dois tios que moram
em outra região do país, impediram que acompanhasse o funeral que aconteceu na casa do
mesmo. Mika resistiu e acompanhou o momento na igreja, ficando ao lado do caixão, temendo
que alguém o expulsasse. Relata que a tensão do momento foi tão grande que desmaiou e
recebeu atendimento de enfermagem.
Mika relata que sua avó materna distribui presentes para os outros netos e que
geralmente recebe indiferença da mesma. Por conta disso, sua mãe acaba lhe dando atenção,
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que compreende ser uma forma que ela tem para compensar o tratamento injusto e diferente
que recebe dos outros.
Seu irmão mais velho já chegou a agredir fisicamente o irmão mais novo dos dois.
Segundo Mika, seu irmão mais novo tem jeitos afeminados desde muito cedo. Diz que conversa
com ele e sente que ele tem medo, mas que também ainda é muito criança, apenas doze anos.
Conta que ele gosta muito de maquiagem, tem uma página nas redes sociais onde publica suas
makes e Mika já lhe pagou inclusive um curso na área.
Relata que Felipe, seu irmão mais novo e citado acima, sofreu bullying homofóbico
na escola este ano, por parte dos professores. Mika, então, procurou a escola:
Eu cheguei lá já tava com muita raiva mesmo. Disse que não queria tratar ninguém
com ignorância, mas que era a última vez que meu irmão e seus amigos seriam
“zoados”. Botei todo mundo na história, pra não defender só meu irmão. Porque é
uma coisa que já é difícil. Ainda mais que são crianças. Não sabem o que falar. Meu
irmão chegou a ter começo de depressão por causa dessa “brincadeira” de mau gosto
dos professores [...] Dessa vez, a escola parece que ficou com um certo medo de mim
e chamou minha mãe e a tia (que cria seu irmão). Realmente minha tia e minha mãe
chegaram lá e disseram que eu estava certo, que eles eram crianças e que os
professores deveriam estar ajudando e não rindo da forma como eles se comportam
(Mika).
A família de Mika chegou a pensar em apelar para a justiça por conta do bullying
homofóbico sofrido por seu irmão, mas a escola a procurou com desculpas, explicando que não
teria como se envolver em um processo na justiça e prometendo tomar as providências para que
a situação não voltasse a se repetir.
Sobre o cuidado com o irmão mais novo, Mika diz: “Eu sou o pai que ele não teve.
Tento fazer tudo por ele. Tudo que a mãe não fez comigo por não saber o que tava acontecendo,
porque eu também escondi muita coisa da mãe” (MIKA).
Algumas horas após nos encontrarmos, Mika me enviou mensagens onde relatou
que quando tinha 12 anos de idade, o companheiro de sua mãe, o abusou sexualmente. Nas
mensagens, disse que:” [...] nunca falei pra minha mãe pq [sic] ela gostava muito dele então nn
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[sic] arrumei conflito. Fiz errado!! Mais nn [sic] sou de contar isso pq [sic] foi uma fase muito
ruim e quando me recuperei foi ai q [sic] eu me assumi “(Mika).
É importante que este fato da história de Mika não seja compreendido, como aponta
Rich (1993, p. 42), quanto um fator que caracterize sua existência lésbica “como simples
refúgio dos abusos masculinos”. A autora compreende a união de duas mulheres como “uma
carga elétrica de empoderamento”.
Mas que seja analisado do ponto de vista exposto por Preciado (2002) ao tratar dos
cuidados em torno do tato e da pele na sociedade ocidental a partir do século XVIII e XIX e
todos os abusos impostos aos corpos destes então em um possível processo docilização, que
naturaliza as violências vividas.
Reflete, então, que foi delegada à pele burguesa europeia todo o cuidado a fim de
afastá-la do contágio sexual e da contaminação colonial, de tal modo que se constituiu o que
chama de “pornô-cartografia”, a partir da qual a história sexual do corpo burguês europeu pode
ser decodificada através de um olhar, sem necessidade de toque.
O corpo do outro aparece nas relações de poder como um território que pode ser
invadido, medido, remarcado, dividido, estudado.
Deste modo, o corpo da criança – neste caso específico o da criança LGBTI+, com
suas feminilidades e masculinidades expressas e negadas pela maioria a sua volta – aparece
completamente desprotegido. A criança não sabe como enunciar a situação pela qual está
51
passando. Como no caso citado, muitas vezes o agressor é alguém próximo, em quem os adultos
em volta depositam confiança.
Depois de algum tempo trabalhando no local, Mika descobriu que o idoso era um
abusador de menores e acredita que durante o tempo em que permaneceu no trabalho, não sofreu
nenhum tipo de abuso ou assédio, pois ele sempre acreditou que Mika era um homem cisgênero.
Assim como Mika – mulher lésbica que tem expressão de gênero marcadamente
masculina – muitos sujeitos da comunidade LGBTI+ só conseguem trabalhar em setores
informais.
Mika explica que todas as situações do antigo trabalho e mais a saúde do amigo que
ficou debilitada, por conta de uma bactéria no intestino – fazendo com que ele precisasse de
ajuda ou para que Mika ficasse na casa, quando precisa viajar – foram fatores que determinaram
para que ela viva na casa deste amigo agora.
Não está à procura de emprego. Conta, inclusive, que a vizinhança do seu antigo
emprego lhe fez boas propostas, mas que atualmente quer se dedicar a cuidar do amigo,
enquanto o mesmo e sua família necessitarem da ajuda e companhia que tem oferecido como
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pode, seja acompanhando-o ou ficando na casa com sua família, quando o mesmo tem que se
ausentar.
Pergunto à Mika sobre seus relacionamentos com as garotas; quem são essas
garotas, se os relacionamentos costumam ser assumidos ou secretos, etc. Relata, então, que nas
festas muitas garotas heterossexuais “chegam” nele, aparentemente – segundo sua impressão –
para experimentar e diz que não acha legal, se sente usado nessas situações. Muitas garotas só
querem ficar escondidas, nos banheiros, onde Mika é frequentemente barrado.
Pergunto a Mika como tem sentido sua rotina na cidade ser afetada pelo clima das
eleições22 e dos espaços que vem sendo ocupados por discursos conservadores e de ódio e ele
responde:
As pessoas ainda têm a cabeça muito fechada pra esse assunto LGBT. Um dia desses,
sentado no banco da praça, vi duas pessoas com a camisa do canditado Jair Bolsonaro,
reconhecidamente homofóbico, racista, machista e outras coisas. Essas pessoas
parecem que tão pedindo pra morrer. Cada vez fica mais difícil. E eu não tô nem aí.
Foda-se! Pode vim polícia, pode vim qualquer coisa: o peito não é de ferro, mas ele
aguenta muita coisa. Aguentou muita coisa, por que não vai aguentar hoje? (Mika).
4.2 FÁBIO
22
As eleições de 2018 elegeram deputados estaduais e federais, senadores, governadores e o presidente da
república.
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A entrevista aconteceu na minha casa, pois Fábio achou que fosse o lugar mais
confortável. Disse que em sua casa não seria viável pelo barulho, falta de espaço e também
porque não se sentiria à vontade para conversar sobre o assunto em casa.
Fábio tem vinte anos e se identifica como homem cis-gênero gay. Concluiu o
Ensino Médio no ano passado e atualmente está desempregado, e de mudança para a cidade de
Fortaleza, junto com a mãe.
Neste momento vive com a mãe, o padrasto, as duas irmãs e seus dois filhos – um
de cada uma, com quatro e dois anos – e uma cunhada.
Relata que teve contato com o pai – que era cozinheiro de um hospital – enquanto
viveu em Fortaleza – com quem suas irmãs e ele passavam os fins de semana –, mas que sempre
sentiu da parte do mesmo como o cumprimento de uma obrigação e não como afeto. Quando
passava os fins de semana com o pai, preferia ficar na casa dos padrinhos – que ficava próxima
–, com quem se sentia mais acolhido e tratado sem diferenciação.
Relata que, desde a infância, dançava, colocava panos na cabeça para fazer perucas
improvisadas e performances de cantoras e divas. Sua mãe nunca se importou, mas lembra de
que não fazia essas coisas em frente ao pai. Certa vez, quando flagrado, o pai lhe mandou dançar
como homem.
Assim, Fábio conta que as situações que mais marcaram sua identidade,
principalmente como gay, aconteceram com sua família, desde a infância.
Sobre essa leitura dos outros sobre si, que Fábio conseguia identificar, Andrade
(2012) reflete:
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Uma criança pode ser biologicamente do sexo masculino, mas, quando apresenta este
comportamento, que convencionamos chamar de feminino, nas brincadeiras e nos
gestos, ela passa a ser vítima dos professores, dos gestores, dos funcionários, dos pais
e dos alunos que condenam e tentam, a qualquer custo, corrigir essa inversão
(ANDRADE, 2012, p. 73).
Lembra que a vida escolar inteira foi solitária, mas que em alguns momentos era
mais próximo de algumas meninas. Nos intervalos preferia ficar na sala de aula. E que no ensino
médio saiu mais com pessoas de fora da escola. Nunca se sentiu bem para participar das
atividades escolares, pois não se sentia incluso.
Em relação a este isolamento que Fábio sentiu em muitos momentos na vida escolar
e também familiar Britzman (1996) reflete:
De algum modo, não saber sobre essas comunidades parece que funciona como uma
espécie de garantia de que o/a estudante irá preferir ser heterossexual. Acrescenta-se
a esse quadro a ideia de que se uma pessoa fala, de modo simpático, sobre gays e
lésbicas, ela se torna suspeita de ser homossexual (BRITZMAN, 1996, p. 79,80).
Deste modo, é possível compreender que o isolamento que Fábio sentiu era real e
o resultado prático da articulação de diversos discursos homofóbicos.
Conclui-se, pois, que ao não se falar das afetividades e das identidades sexual e de
gênero das e dos estudantes, a escola deixa vazio um espaço de diálogo essencial não só para
crianças e adolescentes LGBTI+ que sofrem bullying homofóbico dentro das escolas, mas
também de estudantes e outros sujeitos do ambiente educacional (funcionários, professores e
responsáveis) identificados no padrão cis-hétero que podem sofrer violências de gênero,
assédios e abusos.
Esse processo experienciado por Fábio reflete o que Foucault (2017) chamou de
mecânica do poder. Segundo ele, essa mecânica atribui aos corpos “uma realidade analítica,
visível e permanente”:
Assim, o momento que Fábio viveu com a família expressa como a mesma
funciona, na maioria das vezes, como uma instituição que reproduz acriticamente a maioria dos
discursos que legitimam diferenças nos comportamentos, gostos, relações, direitos, deveres,
etc. alicerçadas no binarismo masculino/feminino e suas condutas sexuais.
Neste sentido, Fábio conta que suas tias sempre foram religiosas e levavam-no para
a igreja evangélica, que na infância, chegou a apanhar de algumas delas e também de sua mãe,
“porque tinha que ser bem menininho”. Relata que isso se estende até hoje; que reclamam se
usa roupa curta, já ouviu da família que não consegue emprego porque é muito viado.
Diz que quando se assumiu para a família se compreendia como bissexual, mas que
hoje se compreende como gay e já informou isso à família. No entanto, diz que a família
continua o tratando e comunicando-o às outras pessoas como bissexual, o que o incomoda, pois
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sente que isso só ocorre porque as pessoas compreendem a bissexualidade como mais próxima
da norma. Conta que sua mãe ainda expressa a vontade de que ele constitua uma família hétero.
Fábio me conta que ficou com o primeiro menino aos 17 anos. Mas que, desde que
se lembra, sente atração por meninos e que chegou a ter contatos íntimos com dois primos na
infância.
A reação da mãe no momento em que se assumiu foi tranquila, mas essas situações
de LGBTfobia fazem parte do seu cotidiano familiar.
Compreende que certas situações fazem parte da rotina de preocupação das famílias
que são minimamente receptivas com seus familiares LGBTs. Conta, por exemplo, que no
carnaval do ano de 2018 a mãe não o deixou sair com um short curto e que após discutirem ela
só o liberou depois que ele aceitou sair de casa de mototáxi.
Relata, ainda, que a recuperação foi no início do ano; na época estava se sentindo
burro e atrasado e não sentia nenhuma motivação para tentar não reprovar de ano, assim, decidiu
viajar para uma cidade vizinha.
Atualmente, diz que se sente muito “aleatório em casa. Parece que eu não faço parte
daquelas pessoas”. Relata que nunca levou um namorado em casa porque não sente este
ambiente como um espaço confortável ou seu.
Relata da época que namorou um garoto que a sua mãe chegou a conhecer pelas
redes sociais. No entanto, a família do outro jovem não aceitava a relação dos dois, e eles
mantiveram a relação escondida. Esta família já sabia da orientação sexual do filho, mas quando
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a mãe do garoto o viu com Fábio, disse que não queria que o filho andasse com uma pessoa
como ele e que eles não deveriam ficar juntos.
Fábio hoje compreende que esta relação foi profundamente marcada por
preconceitos raciais e de classe, não só dos pais do seu namorado, mas dele mesmo, que era um
garoto branco gay de classe média.
Diz que sua mãe ressalta que as irmãs deram trabalho levando namorados para casa,
mas que ele nunca fez isso. Fábio sente que é um reforço – que chega a parecer elogio - que a
mãe lhe dá, mas que em seu cotidiano sente como mais uma restrição.
Ele me diz não interagir com a rotina de sua família. Passa o dia no quarto, com
fones de ouvido, saindo apenas para as refeições ou alguma atividade do cotidiano, como buscar
os sobrinhos nas creches, pagar contas, etc.
Sobre a situação financeira de sua família, Fábio me conta que uma de suas irmãs
– a já citada acima – atualmente vive uma relação lésbica, e sua namorada vive na casa, junto
com a família de Fábio. A família da garota era muito abusiva e ele relata que ela começou
ficando os fins de semana, até se mudar completamente para a casa.
Esta irmã tem uma filha de 4 anos. No período eleitoral esteve empregada em um
comitê eleitoral, recebe a pensão da criança – a quantia de 200 reais – e uma quantia do
programa Bolsa Família.
Sua outra irmã, atualmente desempregada, tem um filho de dois anos, e vive do
benefício do Programa Bolsa Família. As duas irmãs de Fábio cursaram apenas até o 9º ano do
Ensino Fundamental.
Como todos na residência estão desempregados, Fábio relata que eles vão cortar a
internet em casa, pois no contexto, esse é um privilégio que eles não podem mais ter. Já
espalhou currículos pelo comércio da cidade e também na agência do SINE (Sistema Nacional
de Emprego) da cidade, mas até o momento não teve retorno.
____________________________________
Disponibilizei-me para ouvir de Fábio mais algum relato que ele considerasse
relevante, caso lembrasse depois ou não tivesse se sentido a vontade para falar pessoalmente.
58
Assim, no dia seguinte à visita, Fábio procurou-me pelo whatsapp e me contou que tinha
pensado muito e decidido me contar outras coisas que tinham lhe acontecido.
Por meio das mensagens de texto, Fábio relatou que quando tinha aproximadamente
8 anos de idade, o namorado de sua mãe da época, começou a abusar dele. Relatou que a mãe
estava sempre trabalhando e deixava suas irmãs e ele com o namorado. Diz que a mãe nunca
desconfiou de nada.
Quando tinha aproximadamente 11 anos teve uma relação com um primo mais
velho, que já tinha 17 anos na época.
Ainda através das mensagens, Fábio contou que durante um tempo suas irmãs
viveram com seu pai. Nessa época, Fábio começou a passar os fins de semana em sua casa para
não perder o contato com as irmãs. Conta que o pai sempre o tratava mal, repreendia-o e também
o agredia por qualquer coisa; até que, em um dia em que ficaram sozinhos, seu pai o estuprou
durante um banho.
Assim, após contar que ainda não conseguiu concluir o Ensino Médio,
principalmente, pelo fato da escola não aceitar utilizar seu nome social, percebemos que sua
59
história seria relevante por narrar a construção da identidade de uma travesti – perpassada por
situações de LGBTfobia sofridas também dentro do ambiente escolar – na região do Sertão dos
Inhamuns.
Marcamos a entrevista para a tarde, por escolha de Beatriz, na minha casa. Antes
de sair, ela me contou que após dois meses da sua mudança para a casa atual, havia saído
pouquíssimas vezes durante o dia. Após ela chegar a minha casa, perguntei o motivo, e ela
respondeu que o assédio é muito grande, o que a deixa desconfortável.
Relata que nas ruas escuta desde “Oh lá em casa!”, até transfobias como “Se tivesse
buceta, eu pegava”; a qual ela diz responder com “Se eu sem buceta, já não fazia questão de
você; que dirá com uma. Se manque (sic), seu lixo”. Diz que esse tipo de tratamento é mais
comum aqui, em Crateús, e sente que na cidade de São Paulo, onde já morou algumas vezes, a
transfobia ocorre de modo mais velado.
Hoje tem 23 anos. Está desempregada e vive do dinheiro que consegue fazer com
programas e serviços de cabeleireira. Mas me diz que essas duas opções também estão escassas;
assim, pretende se mudar para São Paulo ou para o Rio de Janeiro em breve, onde ela diz que
fica mais fácil arranjar trabalho.
Na verdade eu sempre tive uma dificuldade pra estudar, nunca foi fácil pra mim. Não
só por ser negra, mas sim por ser uma negra travesti, uma mulher trans. E além disso,
na infância eu sempre fui uma criança muito gordinha, muito fofinha e isso era um
dos alvos. Aquela gay afeminada, muito pintosa e gorda, e ainda preta (BEATRIZ
VITÓRIA).
Conta, no entanto, que enquanto não se entendeu como mulher trans, aguentou as
homofobias sofridas. Mas a partir que conheceu os direitos e as leis que a defendiam, relata que
passou a reivindicar por eles; como a exigência de que a escola que frequentava utilizasse seu
nome social – no primeiro ano do Ensino Médio.
travestis e transexuais pela administração pública23. O decreto salienta ainda que “o nome civil
será utilizado apenas para fins administrativos internos”.
Beatriz Vitória relata que desde o primeiro ano do Ensino Médio, informou sobre
sua identidade de gênero para a escola. A partir de então algumas professoras e professores,
respeitavam-na e a chamavam por Beatriz, inclusive na chamada. No entanto, alguns que
tinham postura mais conservadora e eram católicos ou evangélicos mais tradicionais se
recusavam a fazê-lo.
Assim, no 1º ano, Beatriz procurou a escola e pediu que utilizasse seu nome social
nas frequências de todos os professores. No entanto, a professora da escola disse que não
poderia fazê-lo, pois ela não possuía a documentação e teria que procurar a CREDE 13.
Conta que não foi e que em um determinado momento o fato da própria escola
nunca chamá-la por seu nome e não tomar partido contra professores que se recusam a fazê-lo
determinaram sua desistência.
[...] a sexualidade está na escola porque ela faz parte dos sujeitos, ela não é algo que
pode ser desligado ou algo do qual pode se despir. É inaceitável, portanto, que a escola
mantenha um relacionamento com os diferentes sobre o domínio do mítico, do
inatingível, do utópico, no normalizador, do inquisitorial (ANDRADE, 2012, p. 17).
Conta que na escola e no seu cotidiano sempre lutou e foi muito sozinha; que sua
companhia e força sempre foram de outras colegas que tem a mesma faixa etária e também são
trans.
23
Sobre utilização do nome social e reconhecimento da identidade de gênero. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8727.htm>.Acesso em outubro de
2018.
61
Relata que sempre desistia do ano letivo por conta dessa rotina cansativa de ter sua
identidade negada na escola, mas no outro ano voltava e se rematriculava. Nesta escola cursou
do 7º ano do Ensino Fundamental ao 2º ano do Ensino Médio; assim, quando foi renovar sua
matrícula para o 3º ano – acompanhada de uma amiga também travesti –, disse à direção que
só o faria se seu nome social fosse colocado nas frequências.
Em casa, Beatriz diz que sempre sofreu homofia no cotidiano familiar. Quando
criança e adolescente sempre ouvia “para não dar pinta”. Conta:
Eu fui criada pelos meus avós paternos, que já é uma mente mais atrasada ainda. Eu
procurei na rua conhecimento, porque se eu tivesse ouvido eles, nunca seria essa
pessoa. Então eu tive que sair da casa deles e sentir a independência na pele pra
finalmente saber que eu realmente estou no corpo certo, não tem nada anormal. Está
tudo certo. (BEATRIZ VITÓRIA).
[...] tal compulsão claramente não vem do “sexo”. Não há nada em sua explicação que
garanta que o “ser” que se torna mulher seja necessariamente fêmea. Se, como afirma
ela, “o corpo é uma situação”; não há como recorrer a um corpo que já tenha sido
sempre interpretado por meio de significados culturais (BUTLER, 2003, p. 27).
Cabe nesta reflexão acrescentar ainda que a família “é um dos elementos mais
preciosos” para a fixação do que Foucault (2017) chamou de dispositivo da sexualidade.
Baseada na inovação e invenção de formas de penetração nos corpos, de maneiras detalhadas,
com o intuito de “controlar as populações de modo cada vez mais global”.
Beatriz Vitória relata, então, que se compreendeu e assumiu trans ao quatorze anos
e ouviu de sua avó que se continuasse daquele jeito não teria emprego, as coisas seriam mais
difíceis e que “se quisesse viver nesse corpo, eu tinha que está bem certa do que queria pra
mim”.
Diz que por um lado concorda com ela; as oportunidades de emprego são mínimas
e é nessas horas que uma rede lhe acolhe, “que é a rede da prostituição”.
Narra, então, que desde que se compreendeu travesti, aos quatorze anos, a
prostituição é a alternativa para ganhar dinheiro e se manter. Ela diz que:
“Essa vibe de prostituição não é meio que uma escolha; é um destino. Ninguém ajuda,
a família não dá emprego, o mercado não dá emprego, a escola abandona. A gente se
obriga a fazer isso. Não é de ficar com fome, a gente quer um teto. Porque ficar na
casa dos pais é aquela humilhação.(BEATRIZ VITÓRIA)”.
Relata que dos quatorze aos dezoito anos – período em que viveu com os avós já
depois de assumir sua identidade trans – era complicado, “eles me engoliam, toleravam”.
Descreve os olhares de reprovação, de ouvir sua avó dizer “não sei como não tem vergonha de
sair na rua desse jeito”. Diz que seu avô, no cotidiano, costuma ser mais tolerante, no entanto,
sempre que tem algum atrito, ele traz elementos transfóbicos para o momento.
Conta que já tentou conversar com os dois, mas sente que não teve muitos avanços.
Relata que sua avó passou a ter um pouco mais de abertura para conversa após ver um programa
de TV:
Ela passou a me entender mais quando passou um babado (sic) na TV, acho que foi
no Fantástico, que falava das pessoas transgêneras, aí foi que ela foi abrir um
63
pouquinho a mente dela. Porque o bofe (sic) da TV, o médico que tava falando na
televisão. Porque as coisas que eu falava pra ela, ela não botava fé (BEATRIZ
VITÓRIA).
Sobre a relevância dos discursos oficiais para a construção dos saberes que
informam sobre os sujeitos Preciado (2002) reflete:
Percebeu, depois disso, algumas mudanças. Antes, se alguém chegasse a sua casa e
perguntasse por Beatriz, mesmo que ela estivesse, a avó respondia que não estava ou respondia
que o Fernando estava, “corrigindo” a pessoa para tratar Beatriz no masculino. Sobre isso,
Beatriz diz:
Ela dizia: não tem nenhuma Beatriz Vitória aqui. Nessas horas eu ficava cega (sic),
porque eu sentia o desrespeito comigo. Era ela dizendo que eu não existia! Aí chegou
uma hora que eu decidi que não ia mais me abalar por isso. Porque não tava mudando
nada na minha vida, porque nenhum paga meu aluguel e minhas contas. Vou só
ignorar porque não me faz bem ficar ouvindo uma coisa dessas dentro da minha
própria casa, da casa que eu fui criada (BEATRIZ VITÓRIA).
Sobre os momentos em que Beatriz e outras travestis, homens e mulheres trans têm
suas existências negadas desde a sua própria enunciação, cabe a reflexão de Foucault sobre a
lógica da censura (2017):
Supõe-se que essa interdição tome três formas: afirmar que não é permitido, impedir
que se diga, negar que exista. [...] do que é interdito não se deve falar até ser anulado
no real; o que é inexistente não tem direito a manifestação nenhuma, mesmo na ordem
da palavra que enuncia sua inexistência; e o que deve ser calado encontra-se banido
do real como o interdito por excelência (FOUCAULT, 2017, p. 92)
Relata que não justifica mais essas situações com a idade dos avós, pois compreende
que sempre é tempo de reaprender. Assim, hoje, que divide a casa com mais uma amiga, que
também é travesti e seu irmão, que é gay, prefere ter o mínimo contato possível com a família,
evitando, inclusive visitas.
64
Foi criada pelos avós paternos, pois sua mãe era humilde, separou-se cedo de seu
pai. É a filha mais velha, do pai e da mãe, que depois tiveram outras filhas em outras relações.
Seu pai constituiu outra família e vive em Fortaleza. Sua mãe trabalha em casas de família e é
evangélica. Beatriz conta que apesar das dificuldades, ela já sabe lhe respeitar:
Ela já percebeu que comigo não tem vez: se ela quiser ter uma boa conversa comigo,
vai ter que me respeitar. Porque dos velhos, eu ainda tolero, mas dela, que é nova e
nunca teve influência nenhuma na minha vida, porque quem me criou foram meus
avós, se ela quiser ter um contato comigo, então que me respeite. Aí ela me trata de
boas (sic), de Beatriz (BEATRIZ VITÓRIA).
Com a volta para Rio de Janeiro ou São Paulo, acredita que vai ser mais fácil
conseguir dinheiro. Conta que dessa vez – já passou quatro temporadas na região sudeste – vai
ser mais fácil, pois não vai precisar ficar na rua. Diz que vai ser tudo através de um site. Sobre
ficar na rua conta que é complicado porque você fica exposta e tem que pagar algum dinheiro
para as travestis que já estão na área há mais tempo.
Sobre seu processo de transição conta que começou se montando com as amigas
pra ir às festas ou fazer programas nos postos de gasolina. Conta que ela e uma amiga, aos
quatorze anos, eram como se fossem transformistas. Compravam apliques, roupas e
maquiagens e deixavam na casa de uma amiga; na hora de sair, passavam lá e se montavam.
No entanto, diz que se tivesse a cabeça que tem hoje, jamais se colocaria nesse
risco; na época, fez mais por influência das amigas. Apesar de compreender que o mercado
clandestino de procedimentos estéticos é o único meio acessível para a grande maioria das
travestis, ela me diz que compreende os riscos.
Sobre o acesso aos meios para os processos de construção dos corpos de travestis
e transgêneros, Preciado reflete que as dificuldades e etapas envolvidas são formas diretas de
controle e produção de seus corpos. Atuam, assim, como negação de acesso ao corpo condizente
com uma identidade de gênero trans e reafirmação do corpo cis-hétero produzido através da
aplicação dos mais diversos controles e técnicas.
65
Beatriz, então, conta que uma conhecida colocou silicone no peito e seu corpo
rejeitou, chegando a sofrer queimaduras de 3º grau. Diz que tem vontade de colocar próteses de
silicone nas mamas quando puder fazer de modo seguro, mas atualmente está satisfeita com o
resultado apenas dos hormônios.
Em relação aos efeitos colaterais relata que sente uma mudança de humor bem forte.
Diz que dependendo de como está, psicológica e economicamente, toma medicação diária
(bloqueador de testosterona) ou quinzenal. Sob os efeitos dos hormônios se sente mais sensível,
e até mais suscetível a se envolver com outras pessoas. Diz que o acesso é fácil, sempre encontra
na farmácia do trabalhador.
Sobre o uso de hormônios vale reiterar que Preciado (2002) considera-os drogas
político-sociais, utilizadas sob controle das instituições heteronormativas do Estado.
Também sabemos hoje, que, contra as predições médicas que esperam re-conduzir à
heterossexualidade gays e lésbicas por meio de operações transexuais, muitos
transexuais F2M vivem como gays depois da operação e transexuais M2F 24 vivem sua
vida de mulher como lésbicas (PRECIADO, 2002, p. 111, tradução nossa).
Relata que não tem mais ilusões em relação aos machos. Diz que chegou ao ponto
de que só relaciona com boy (sic) se for por trabalho, pois já “sei que eles só querem me usar.
Daí já desromantizei todo o paradigma relacionado a homem”.
24
Preciado (2002, p.26) utiliza a expressão F2M para tratar pessoas que transicionaram do gênero feminino para
o masculino, e a expressão M2F para tratar de pessoas que transicionaram do masculino para o feminino.
66
nascimento para poder tirar os outros documentos em definitivo, sem necessidade de constar o
que será, então, seu antigo nome civil.
67
Por isso, pode-se concluir, é tão importante que o ambiente escolar possa conversar
diretamente sobre as diversas questões que envolvem o gênero e a sexualidade nos diferentes
níveis de ensino.
Atenta-se para o fato de que a Escola – ou pelo menos alguns de seus sujeitos – não
está completamente indiferente e, por vezes, têm demonstrado tentativas de avançar com este
debate em seus currículos.
É neste sentido que Guacira Louro (1997), ao citar Weeks (1993), reflete:
[...]não escapa aos setores conservadores o caráter político que têm as relações de
gênero e sexuais, o que leva tais setores a disputar todos os espaços em que uma
“educação sexual” possa ser desenvolvida. As políticas curriculares são, então, alvo
de sua atenção, na tentativa de regular e orientar as crianças e jovens dentro dos
padrões que consideram moralmente “sãos” (LOURO, 1997, p. 130).
25
Circular da CNBB: Disponível em:<http://www.arquidiocesedefortaleza.org.br/wp-
content/uploads/2015/06/Circular-CNBB2015.pdf>. Acesso em outubro de 2018.
26
Número 396 da Gazeta do Centro Oeste. Disponível em:< https://issuu.com/gazetaco/docs/gazeta396 >.
Acesso em outubro de 2018.
69
dos vereadores que pretendia tratar do assunto. No entanto, apesar das manifestações, a versão
final aprovada passou sem a aprovação para o ensino de gênero e sexualidade pelo município.
Todas as questões são relevantes e devem ser respondidas nos planos de educação
e também nos currículos das escolas e dos cursos de formação de professores. No entanto, como
salienta Louro (1997), elas não são empecilhos para que o debate aconteça e nem fatores que
evocarão e trarão para dentro da escola algo que lhe seja exterior pois:
Nesta perspectiva, Luís Palhano Loiola, doutor em Educação com a tese intitulada
“Diversidade Sexual: para além de uma educação sexual não escolarizada” e professor em
Crateús e na região do Sertão dos Inhamuns, atuou junto ao GRAB (Grupo de Resistência Asa
Branca) com projetos voltados para a cidadania, prevenção de DSTs.
27
Militante gay, professor da UECE é morto à facadas. Disponível em:<
https://noticias.bol.uol.com.br/brasil/2008/05/03/ult4733u15970.jhtm>. Acesso em outubro de 2018.
28
Institucionalizada a Semana da Diversidade Sexual: Disponível
em:<https://www.al.ce.gov.br/legislativo/legislacao5/leis2010/14820.htm>.Acesso em outubro de 2018.
71
jovem e o jovem do campo tem que ir embora da sua comunidade, pois a mesma não os aceita
como são.
Se existe algo que pode ser comum a essas iniciativas talvez seja a atitude de
observação e de questionamento [...]. As desigualdades só poderão ser percebidas – e
desestabilizadas e subvertidas – na medida em que estivermos atentas/os para suas
formas de produção e reprodução. Isso implica operar com base nas próprias
experiências pessoais e coletivas, mas também, necessariamente, operar com apoio
nas análises e construções teóricas que estão sendo realizadas (LOURO, 1997, p. 121).
Compreende-se, assim, que os estudos e ações empreendidos na área devem ter sua
relevância reconhecida pelo Estado e as políticas públicas, pelos currículos dos cursos de
formação dos profissionais da Educação e do Ensino Básico e também por todos os sujeitos da
comunidade escolar (estudantes, professores, funcionários, mães, pais, responsáveis e gestores).
72
6 CONCLUSÃO
Seja a justiça que não a reconhece como razão de crimes de perseguição moral,
psicológica e física, levando à centenas de mortes (não contabilizadas oficialmente por nenhum
órgão do Estado) nos documentos que a regulam e também na ausência de campos específicos
nos boletins de ocorrência da polícia civil referentes a essas agressões.
Também é preciso ressaltar que as distintas situações em que Mika foi expulso por
reagir ao bullying cotidiano, vindo principalmente de professores, coordenação e gestão e a
recusa da escola em adotar o nome social de Beatriz demonstram a urgência deste debate no
âmbito da formação dos profissionais de Educação.
diferentes situações em que foram expostos às opressões e violências, assim como às situações
de resignificação desses momentos em luta e resistência individual e coletiva em diferentes
contextos.
Conclui-se neste trabalho que o fato do Brasil ser o país que mais mata a população
LGBTI+ no mundo, bem como fato de ter uma considerável desigualdade de gênero expressa
no mercado de trabalhos, na representação política e nos altos índices de feminicídio
registrados, são fatores que expressam a emergência de discutir gênero e sexualidade em todos
os contextos.
Deste modo, finalizamos este trabalho compreendendo que o momento atual não
sinaliza abertura para conquista de mudanças ou direitos para a comunidade LGBTI+ brasileira.
Compreendemos, no entanto, que a resistência é marca da história individual e coletiva de cada
lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual, intersexual, queer e mais e que precisamente neste
momento histórico e político ela será mais do que nunca a marca da nossa luta por existência e
visibilidade “imediata e cotidiana”, pois onde há violência e opressão, há resistência.
74
REFERÊNCIAS
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Difusão Européia do Livro, 1970, v.4
BRITZMAN, Deborah P. O que é essa coisa chamada amor. Identidade homossexual,
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<http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71644/40637>. Acesso em:
dia out. 2017.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de
Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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Federal de Pernambuco, Recife, 2003. Disponível em: <
https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/9574/1/arquivo9196_1.pdf>. Acesso em: dia
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York, Routledge, 1991 (traducción al castellano, Ciencia, cyborgs e mujeres. La reinvención
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75
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C; JOCA, Alexandre M; LOIOLA, Luís P. Desatando nós: fundamentos para a práxis
educativa sobre gênero e diversidade sexual. Fortaleza: Edições UFC, 2009.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-
estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
______. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte:
Autêntica, 2004.