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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

FACULDADE DE EDUCAÇÃO DE CRATEÚS


CURSO DE GRADUAÇÃO EM PEDAGOGIA

MARCELA BRUNA DE OLIVEIRA

LESBOFOBIA, HOMOFOBIA, BIFOBIA E TRANSFOBIA NO CONTEXTO


ESCOLAR DE CRATEÚS E SERTÃO DOS INHAMUNS: RELATOS DE
VIOLÊNCIA, RESISTÊNCIA E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES LGBTI+

CRATEÚS-CEARÁ
2018
MARCELA BRUNA DE OLIVEIRA

LESBOFOBIA, HOMOFOBIA, BIFOBIA E TRANSFOBIA NO CONTEXTO ESCOLAR


DE CRATEÚS: RELATOS DE VIOLÊNCIA, RESISTÊNCIAS E CONSTRUÇÃO DE
IDENTIDADES LGBTI+

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia
da Faculdade de Educação de Crateús da
Universidade Estadual do Ceará, como
requisito parcial para à obtenção do grau de
licenciado em Pedagogia.

Orientadora: Prof.ª. Drª. Lia Pinheiro Barbosa.

CRATEÚS-CEARÁ
2018
Às resistências LGBTI+ do Sertão dos
Inhamuns.

Permaneceremos juntas.
AGRADECIMENTOS

A tudo que me inquieta e me faz seguir em movimento.


Às pessoas da comunidade LGBTI+ de Crateús e da região do Sertão dos Inhamuns que
contribuíram de forma tão enriquecedora com seus relatos. A abertura e disponibilidade com
que se juntaram a mim nesta missão são contribuições que marcaram irreversivelmente a minha
identidade pessoal e acadêmica.
A Lia Pinheiro Barbosa, minha orientadora, que teve a paciência e confiança no meu empenho
para a efetivação deste trabalho; uma experiência nova para as duas e que construímos com
intuição e afinco.
Às professoras e professores do curso de Pedagogia que demonstram disposição para ouvir, e
compreenderam meu espaço de construção de conhecimento também fora de suas aulas.
À professora Helena Araújo Freres e ao professor Vicente Thiago Freire Brazil pelos períodos
de orientação na monitoria acadêmica, que me proporcionaram estudos e reflexões que foram
extremamente relevantes para a execução deste trabalho e da minha formação acadêmica.
Às minhas amigas, amigos por todos os momentos em que nos escancaramos uns frente dos
outros. A possibilidade do nosso contato foi uma energia potencializadora para a realização
desta pesquisa.
“Há palavras que existem e são usadas só para
causar efeito. Às vezes vejo-as como peças de
cristal entre objetos de cerâmica, destoando,
mas causando um efeito decorativo senão
estranho, bonito [...]”
(Cassandra Rios)
RESUMO

Este trabalho busca, a partir de uma breve análise sobre as estruturas dos discursos que formam
a discussão contemporânea a respeito do gênero e da sexualidade, expor tais categorias como
construídas, reproduzidas e mantidas através de mecanismos de poder. Neste sentido foram
fundamentais as leituras sobre as performatividades normativas do gênero e da sexualidade e
seus efeitos sobre os corpos queer e da heterossexualidade como padrão que margeia as
sexualidades e as existências femininas e lésbicas. Ressalta-se a relevância do estudo sobre as
violências de gênero e LGBTfóbicas que marcam a formação da identidade da educação
brasileira e do cotidiano escolar contemporâneo; assim como as análises sobre os mecanismos
de poder que atuam sobre a construção humana do gênero e sexualidade. A fim de realizar a
pesquisa foram ouvidos três relatos de pessoas LGBTI+ com o objetivo de expor e demonstrar
seu cotidiano marcadamente violento e as consequências dessas marginalizações para as suas
subjetividades. Neste sentido, esta pesquisa parte da perspectiva de que as identidades sexuais
e de gênero são fatores que se inscrevem a partir das experiências e vivências individuais e
coletivas. Concluí-se, pois, que as situações de LGBTfobia ocorridas no ambiente escolar, ou
externamente mas que fazem parte das vivências dos diversos sujeitos presentes na escola,
apontam para a necessidade de estudos sobre gênero e sexualidade nos currículos dos diferentes
níveis de ensino e na formação continuada de educadoras e educadores.

Palavras-chave: LGBTfobia. Educação. Gênero. Sexualidade. Mecanismos de Poder.


ABSTRACT

This academic job seeks, from a brief analysis of the discourses that form the contemporary
discussion on gender and sexuality, expose the categories as constructed, reproduced and
maintained through mechanisms of power. Were fundamental reading of the normative
performativity of gender and sexuality and its effects on queer bodies and reflections on
heterosexuality as a pattern marring sexuality and female and lesbian life. It emphasizes the
importance of the study on the gender and LGBTI+ violence that marks the formation of the
identity of brazilian education and the current school daily life; as well as) analyzes of the
mechanisms of power that act on the human constructions of gender and sexuality. With the
intention of conduct the research, three people from the LGBTI + community were heard, with
the aim of showing their daily lives marked by violence and the consequences of these
marginalizations for their subjectivities. In this sense, this research starts from the perspective
that the sexual and gender identities are factors that are inscribed from the individual and
collective experiences. It concludes that LGTI + violence situations occurring in the school
environment, or in other environments but who are part of the experiences of various subjects
present in school, point to the need for studies on gender and sexuality in the curricula of
different levels of education and in the continuing education of educators.

Key words: LGBTphobia. Education. Gender. Sexuality. Mechanisms of power.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 10
2 Erro! Indicador não definido. VIVÊNCIAS INDIVIDUAL E COLETIVA 14
2.1 PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO/DESCONSTRUÇÃO DAS INDENTIDADES
LGBTI+............................................................................................................................18
2.2 LÉSBICAS E A LESBOFOBIA 22
2.3 GAYS E A HOMOFOBIA 25
2.4 BISSEXUAIS E A BIFOBIA 28
2.5 TRANSEXUAIS E A TRANSFOBIA 29
3 Erro! Indicador não definido. AS LGBTI+ 32
3.1 CONTRIBUIÇÕES DO AMBIENTE ESCOLAR PARA A FORMAÇÃO DAS
IDENTIDADES SEXUAL E DE GÊNERO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA 34
3.2 LGBTFOBIA E DISPARIDADES ENTRE OS GÊNEROS NO CONTEXTO
ESCOLAR 37
4 RELATOS DE LGBTFOBIA NO CONTEXTO ESCOLAR DE CRATEÚS 40
4.1 MIKA 40
4.2 FÁBIO 52
4.3 BEATRIZ VITÓRIA 58
5 Erro! Indicador não definido. LIDADE NO CONTEXTO EDUCACIONAL DO
MUNINÍPIO DE CRATEÚS E
SEUS DESDOBRAMENTOS NAS VIVÊNCIAS LGBTI+ 65
6 CONCLUSÃOErro! Indicador não definido.
REFERÊNCIASErro! Indicador não definido.
10

1 INTRODUÇÃO

Em 2000, segundo o primeiro relatório anual do Grupo Gay da Bahia 1 – operante


no país desde 1980 –, foram registradas 130 mortes em razão de LGBTfobia. Anos depois, 2017
foi o ano mais violento para a população LGBTI+, registrando 445 mortes. Em 2018, até 4 de
novembro foram confirmadas 348 mortes.
Assim, a alarmante violência contra a população LGBTI+ deve ser analisada num
contexto em que têm aumentado a frequência e a proporção dos espaços e meios em que a
LGBTfobia é exposta, e onde gênero e sexualidade passam a ser debatidos como categorias
fundamentais na construção da subjetividade humana.

Deste modo, falar das expressões das sexualidades e dos gêneros requer a
compreensão das construções de suas representações pelos diferentes discursos e nos mais
distintos ambientes e contextos (compreendendo que estes processos são perpassados ainda por
aspectos locais de etnia, classe, etc.).

Assim, pode-se compreender que as situações de descoberta, renúncia, alegria,


medo, violência, encontro, abandono e resistência efetivem resultados nas identidades
subjetivas dos indivíduos e mesmo da comunidade como articulação coletiva.

Assume-se, neste trabalho, que parte das situações de LGBTfobia são vividas ainda
na infância, e dentro do ambiente educacional por meio da violência moral, psicológica e física
vinda de outros estudantes, funcionários e professores.
A escola também pode ser apontada como reprodutora da permanência de interesses
e recortes relacionados ao gênero e a sexualidade ao negligenciar as relações produzidas dentro
do ambiente educacional como espaço pertinente de conhecimento e formação das identidades
das e dos estudantes.
Os currículos oficial e oculto, assim como os planos e leis que regulam o ensino,
permitem a omissão de termos ou estudos referentes ao gênero e a sexualidade na escola ou
para a formação de professores, expressando, assim, a atuação de um mecanismo para
reprodução de saberes regulados pelos discursos oficiais nesta área.
Assim, toma-se como perspectiva neste trabalho que a escola é uma das
responsáveis pela construção do modelo compulsório heteronormativo imposto em nossa

1
Relatórios anuais do Grupo Gay da Bahia. Disponível em<https://homofobiamata.wordpress.com/>.Acesso em
novembro de 2018.
11

sociedade, que marginaliza e expõe à violência, ao mesmo tempo em que torna invisível, a
realidade da comunidade LGBTI+.
Ao compreender a escola como um dos primeiros espaços de efetivas possibilidades
de desenvolvimento intelectual e de socialização das crianças e adolescentes, pretendeu-se
analisar como as situações vividas e as relações estabelecidas no contexto escolar têm
contribuído para a formação das identidades LGBTI+ a partir das situações de exclusão,
violência, assujeitamento e resistência experimentadas neste espaço.
Buscou-se, deste modo, analisar as situações de lesbofobia, homofobia, bifobia e
transfobia – manifestas no cotidiano, no currículo, nas normas e disciplinas impostas – e suas
consequências nas subjetividades e expressividades de lésbicas, gays, bissexuais, travestis,
transexuais, transgêneros, intersexuais e outras identidades e subjetividades (pansexuais, não-
binárias, gêneros-fluidos, etc) construídas nas relações de gênero e sexualidade que hoje se
encontram referenciadas no termo Queer2.
A fim de refletir sobre situações de LGBTfobia no ambiente escolar e como elas
participam da construção das identidades desses sujeitos, buscou-se descrever as diferentes
violências sofridas historicamente pelos indivíduos e como elas fazem parte de um percurso
histórico que marca o desempenho escolar, emocional, psicológico, capacidade de socialização
e perspectiva de desenvolvimento profissional dos sujeitos participantes da comunidade LGBT.
Neste intuito, conhecemos e analisamos os relatos de pessoas LGBTI+ no intuito
de compreender a situação da comunidade dentro do ambiente escolar e seus desdobramentos
nas vidas dessas pessoas.
O trabalho busca apontar a situação de marginalização a que está exposta a
comunidade LGBTI+ da comunidade escolar de Crateús e da região do Sertão dos Inhamuns e
registrar, com intuito de evitar a reprodução da normalidade às expressões homotransfóbica no
cotidiano escolar e na sociedade em geral.
Compreende-se que a exposição das violências, assim como as chamar por seus
devidos nomes, fazem parte do processo de construção da expressão, representatividade e
visibilidade para a comunidade LGBTI+.

2
Preciado (2002,p.87 ) fala da Práxis-Queer como a transformação das técnicas de dominação em técnicas do
“eu”, de construção da identidade. Assim, o termo queer utilizado como injúria, assédio e perseguição para tratar
gay afeminados, lésbicas machudas, travestis, andróginos, assexuados, drag queens e outros foi resignificado
pela comunidade LGBTI+ e contemporaneamente refere-se a uma diversidade de identidades e práticas que
ultrapassam os limites das identidades cisgêneras.
12

A pesquisa é composta de seis capítulos, incluindo a introdução e a conclusão. O


capítulo dois, “Gênero e Sexualidade: Construção das identidades nas vivências individual e
coletiva” e seus tópicos tratam da construção histórica das pessoas da comunidade LGBTI+ e
das respectivas violências sofridas pelas mesmas. Ao longo do terceiro capítulo, intitulado
“Escola: Espaço de invisibilidade e resistência para as pessoas LGBTI+” abordam-se as
diferentes formas através das quais a instituição escolar têm marginalizado as pessoas
participantes da comunidade.
O capítulo quatro traz relatos de LGBTfobia vivenciados no contexto escolar de
Crateús e da região do Sertão dos Inhamuns. O quinto capítulo, reflete sobre a “A não inserção
dos debates sobre gênero e sexualidade no contexto educacional do município de Crateús e seus
desdobramentos nas vivências LGBTI+.
A primeira parte do trabalho é destinada a compreensão das categorias Gênero e
Sexualidade, explicando-as como marcas das experiências vividas individual e coletivamente,
a partir de sua conceituação como “tecnologias sexuais”.
Aponta o processo de construção/desconstrução das identidades sexual e de gênero,
a partir da perspectiva de que as “tecnologias sexuais” operam no intuito da produção e
reprodução da identidade hétero-cis, baseada no binarismo feminino/masculino.
Assim, a heteronormatividade cria o sujeito por ele almejado (embora mesmo os
sujeitos hétero-cis não apresentem uma unidade de comportamento, expressão, gosto, etc.) e
impõe uma margem aos que se encontram fora da norma, criando estereótipos que reafirmam e
banalizam, na maioria das vezes, o feminino e todas as suas leituras e expressões, considerando-
as como pecaminosas, erradas, anormais e fora da lei.
Salienta-se que a imposição da norma hétero-cis passa por um processo de
reapropriação e resignificação para então se efetivar como resistência e afirmação nas
identidades de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexuais, queer e mais
(LGBTTIQ+).
No capítulo “Escola: espaço de invisibilidade e resistência para as pessoas
LGBTI+”, descreveu-se o percurso histórico da manipulação dos discursos sobre a sexualidade,
principalmente na escola, através da análise de Foucault (2017) sobre a produção da sexualidade
humana por meio de diferentes técnicas e discursos.
Buscou-se, assim, investigar como a escola tem contribuído ao longo da história
para a formação da sexualidade e do gênero da espécie humana e para como, ao valorizar uma
identidade padrão, cria espaços de exclusão escolar para os indivíduos que não se reconhecem
como hétero-cis.
13

No quarto capítulo estão os relatos de três pessoas da comunidade LGBTI+,


moradoras de Crateús ou da região. A partir das entrevistas, pretendeu-se narrar os fatos
considerados relevantes pelos sujeitos entrevistados para suas identidades como lésbica, gay e
travesti, produzidas também em situações de repressão e resistência.
No quinto capítulo, pretendeu-se refletir – a partir dos relatos e com base na
pesquisa teórica empreendida até aqui – como a escola e seus diferentes sujeitos têm recebido
as crianças e adolescentes LGBTI+ e tratado das situações de violência a que os mesmo estão
expostos.
Assim como torna evidente que os estudos sobre gênero e sexualidade são
relevantes para a compreensão de fatores que envolvem o desenvolvimento da igualdade de
gênero, do combate à violência contra a mulher e ao abuso sexual infantil.
No intuito de conhecer e analisar as consequências do trajeto de violência e
repressão que constituem como fatores produtivos das identidades sexuais e de gênero de
lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais realizamos pesquisa bibliográfica sobre o
estudo das categorias gênero e sexualidade.
Foi fundamental o desenvolvimento das entrevistas feitas com três jovens LGBTI+
e seus relatos de lesbofobia, homofobia e transfobia experienciados no contexto educacional da
cidade de Crateús e do Sertão dos Inhamuns.
Acrescenta-se ainda pesquisa sobre a construção dos estereótipos e organização das
personagens desse cenário como movimento político por direitos e sobre como a escola tem, ao
longo da história, participado da construção das sexualidades e dos gêneros da humanidade.
A hipótese da pesquisa é de que as situações de lesbofobia, homofobia, bifobia e
transfobia são fatores determinantes para o afastamento desses sujeitos da escola e que a hétero-
cis-normatização é fator principal de segregação dos sujeitos que têm diferentes expressões de
gênero, afetividade e sexualidade (RICH, 1993).
Analisa-se, então, a escola como umas das instituições que participa da produção e
reprodução do padrão hétero-cis e assim invisibiliza e expõe a vivências, a maioria das vezes,
violenta e marginal aos participantes da comunidade LGBTI+.
14

2 GÊNERO E SEXUALIADADE: CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES NAS


VIVÊNCIAS INDIVIDUAIS E COLETIVAS

Os estudos da corrente pós-feminista3 têm se voltado cada vez mais para análise das
identidades, a partir da compreensão de que estas são formadas por fatores como gênero e
sexualidade que perpassam as construções dos indivíduos nas esferas individual e coletiva.
Concluiu-se neste sentido que mais do que uma construção da sexualidade
alicerçada na proibição ou interdição – ideia sempre discutida e explicitada através das
dificuldades de se falar e compreender a sexualidade humana – encontram-se mecanismos
utilizados no sentido de sua produção.
As chamadas “tecnologias sexuais” (PRECIADO, 2002) operariam no intuito de
uma produção da sexualidade e se constituiriam a partir:
[...] dos diferentes elementos do sistema de sexo/gênero denominados “homem”,
“mulher”, “homossexual”, “heterossexual”, “transexual”, assim como suas práticas e
identidades sexuais são máquinas, produtos, instrumentos, aparatos, truques, próteses,
redes, aplicativos, programas, conexões, fluxos de energia e de leis de circulação,
fronteiras, constrangimentos, desenhos, lógicas, equipes, formatos, acidentes,
detritos, mecanismos, usos, desvios... (PRECIADO, 2002, p. 19).

A compreensão para Preciado (2002) e autoras da corrente pós-feminista, como


Butler (2003) e Haraway (1995), é de que os fundamentos das categorias gênero e sexualidade
devem ser revistos a partir de uma perspectiva que os inserira como tecnologias sociais
persistentes; estas são reproduzidas de modo abrangente pela sociedade por meio de diferentes
tipos de mecanismos sociais, psicológicos, econômicos, culturais, etc., e perpassadas e inseridas
em nossas subjetividades como categoriais naturais ou biológicas através dos diferentes
discursos.

Foucault (2017) atenta para o fato de que um “esquema de transformação” – como


é o de produção das sexualidades, prazeres e saberes – precisa se firmar como aspecto global.
No entanto, esta etapa apenas pode ser atingida a partir de “relações precisas e tênues que lhe
servissem, não de aplicação e consequência, mas de suporte e ponto de fixação”, ao que o autor
chama de “duplo condicionamento” (FOUCAULT, 2017, p. 109).

3
Marie-Hélène Bourcier, no prefácio do Manifesto contra-sexual. caracteriza a corrente pós-feminista como uma
crítica à tradição teórica e metafísica ocidental ao contestar os discursos e as epistemologias que têm embasado as
reflexões sobre as políticas dos corpos, das sexualidades e dos gêneros ao questionar os fundamentos da política e
da identidade, promovendo opções de resistência não totalizantes, onde os sujeitos são compreendidos como
agentes políticos com posições instáveis que são compreendidas como “efeito de constantes re-negociações
estratégias da identidade”. Os estudos pós-feministas são influenciados pelos estudos de Derrida, Deleuze, Lacan
e pela noção de censura produtiva e biopolítica de Foucault. (PRECIADO, 2002, p.9-10),
15

Assim, por exemplo, existe um discurso que apela ao coletivo, como as campanhas
de natalidade ou de controle de natalidade, mas que na realidade opera direta e especificamente
nas relações entre os indivíduos, produzindo e condicionando suas relações.

Com base nas análises pós-feministas já citadas é possível compreender esse


esquema de produção como o resultado das relações de poder existentes e explicitar o fato de
que o objeto final do processo é a identidade hétero-cis. Esta construída com base no binarismo
feminino/masculino, que produz e reproduz uma normatização com margens extremamente
limitadas, nas quais mesmo a feminilidade e a masculinidade são tratadas como padrões iguais
e naturais em si mesmos.

É neste sentido, por exemplo, que Foucault (2017) ressalta que a pastoral cristã, há
pelo menos três séculos, produz efeitos específicos sobre os desejos e consequente sobre o
comportamento ocidental.

Assim, interessa compreender como a imposição e reprodução da identidade


normativa hétero-cis abriga também os mecanismos e processos que constituem as identidades,
as violências, as resistências e as existências LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Transexuais, Intersexuais e mais4).

Faz-se necessário ressaltar que, ao longo da história das sociedades, os gêneros


masculino e feminino têm sido designados às pessoas muitas vezes antes do momento do
nascimento. No entanto, o que está explícito desde o nascimento é o sexo biológico com o qual
nascemos.

Deste modo, é possível questionar o que dispõe a designação do gênero, que se


apresenta, sobretudo, como uma característica descritiva baseada em estereótipos de
comportamento, tipos físicos, normas, objetivos, etc. como fator referente ao sexo biológico
dos indivíduos, e como a produção e reprodução desse binarismo se inscreve nas relações entre
as pessoas, construindo também sua sexualidade.

Neste contexto, a sexualidade humana, nas relações que se estabelecem nas


subjetividades dos indivíduos e em suas relações com os outros, encontra-se como que
‘naturalmente’ alicerçada no gênero ou vice-versa, criando a identidade cis-hétero, na qual o

4
Ao longo do texto serão desenvolvidas e apresentadas as especificidades e conceitos das categorias abrigadas
na sigla LGBTI+ e nas diferentes siglas utilizadas pela comunidade.
16

indivíduo se reconhece ou se compreende com o sexo biológico que foi designado ao nascer e
estabelece relações sexuais e afetivas com indivíduos de sexo e gênero opostos ao seu.

Para Preciado (2002), na lógica de reprodução da sexualidade e gênero como


expressões uma da outra, os chamados/determinados “órgãos sexuais” são orientados como
fonte de prazer e desejo, e as identidades dos sujeitos construídas a partir destes e outros fatores
que serão reinscritos e repetidos constantemente nos códigos masculino e feminino.

Estes códigos são considerados categorias naturais e incontestáveis e o resultado


desses processos são expressividades, comportamentos, gestos e desejos que “identificam
nossos órgãos reprodutivos como órgãos sexuais, em detrimento de uma sexualização da
totalidade do corpo” (2002, p.20).

Neste sentido, Butler (2003) afirma que o binarismo dos gêneros é um contrato
social heterocentrado que tem inserido como “verdades biológicas” o que são a produção e
inscrição de “performatividades normativas” referentes ao gênero e a sexualidade.
Exemplificando com a performance drag, em que o “gênero é uma espécie de imitação
persistente, que passa como real” (BUTLER, 2003, p. 8).

É importante ressaltar, no entanto, como faz lembrar a interpretação de Preciado


(2002), que o gênero ultrapassa a barreira de uma performance ou reprodução de um estereótipo
que se pretende ou não passar por real; o gênero se materializa sobretudo nos corpos dos
sujeitos, e diz respeito a uma série de recortes que o enquadram ou o excluem de certos
discursos, espaços, normas, direitos, etc.

No intuito de explicar como o gênero é principalmente um fator produtivo, Preciado


compara-o a um vibrador, compreendido na maioria das vezes como a imitação do pênis, mas
que supera a barreira da imitação:

Porque os dois passam da imitação. Sua plasticidade carnal desestabiliza a distinção


entre o imitado e o imitador, entre a verdade e a representação da verdade, entre a
referência e o referente, entre a natureza e o artifício, entre os órgãos sexuais e as
práticas do sexo. O gênero poderia resultar uma tecnologia sofisticada que fabrica
corpos sexuais. (PRECIADO, 2002, p. 25, tradução nossa).

Acentua ainda o gênero como categoria a ser refletida como fator de produção a
partir da reflexão sobre as identidades, corpos e expressões, salientando que:

[...] os processos corporais e especialmente as transformações que acontecem nos


corpos transgêneros e transexuais, assim como as técnicas de estabilização do gênero
e do sexo que operam nos corpos heterossexuais. O que as comunidades transexuais
17

e transgênero têm colocado sobre a mesa não são tanto performances teatrais ou de
cenário através dos gêneros (cross-gender), mas transformações físicas, sexuais,
sociais e políticas dos corpos fora da cena [...] (PRECIADO, 2002, p. 75, tradução
nossa).

Assim, Preciado (2002) ressalta que a reprodução da idealidade de uma identidade


hétero, sustentada pela produção do binarismo dos gêneros feminino e masculino, denuncia que
a invocação de um real masculino ou feminino não pode ser atendida. A consequência da
aplicação desta técnica é que qualquer “aproximação imperfeita” ou “acidente sistemático”
(homossexualidade, bissexualidade, transexualidade, etc.) é compreendida e denunciada como
uma “exceção perversa”.

No discurso comum se regulariza a naturalidade da identidade hétero-cis, a qual


finda por embasar discursos de violência, marginalização, invisibilidade, perseguição e ódio
aos indivíduos cujas práticas do ser, saber e sentir não se enquadram no padrão evocado.

Seguindo a lógica de que as tecnologias sexuais produzem nossos comportamentos


e relações, e de que o objetivo deste processo é a produção do indivíduo cis-hétero, quais seriam,
então, as relações de poder, os processos e tecnologias que operariam na construção e
desconstrução das identidades que não se ajustam ou que são postas à margem do padrão? Quais
as identidades e relações resultantes desse processo?

Com base nos estudos feitos é possível compreender que o processo de construção
de cada identidade é único, e que as características que as constituem são várias e se ligam a
fatores emocionais, psicológicos, sociais, econômicos e históricos.

Interessa neste trabalho compreender como os sujeitos das identidades LGBTI+ têm
suas identidades inscritas através desses processos – por meio de um discurso oficial (médico,
biológico, psicológico, político) que não é de sua voz – e das resistências necessárias implicadas
nestas vivências.

Faz-se relevante ainda uma reflexão sobre como as situações de silenciamento,


invisibilidade e violência têm construídos novas identidades ao mesmo tempo em que
extinguem não só as possibilidades de identidade padrão para aquele sujeito, mas também sua
capacidade de socialização pela não conformidade com a norma.
18

2.1 OS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO/DESCONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES

A afirmação de Beauvoir (1970) de que “não se nasce mulher, tornar-se”, faz


emergir o gênero como construção social; construção esta que necessariamente passa por um
processo que envolve uso, aplicação e produção de técnicas e instrumentos.
Neste sentido, Rubin (1997 apud PRECIADO, 2002, p. 78) expõe que a história da
sexualidade humana não pode ser separada “da história da produção dos objetos de consumo
(motos, carros, etc), da história da transformação das matérias primas (seda, plástico, couro),
da história do urbanismo (ruas, parques, distritos)”.
Assim, toda análise da construção da sexualidade humana deve compreendê-la fora
do âmbito da história natural de necessária reprodução da espécie e como parte da história de
sua produção. Da mesma forma como o fato de que as tecnologias do sexo e do gênero fazem
parte de uma biopolítica5 mais ampla, “que reúne tecnologias coloniais de produção do corpo-
europeu-heterossexual-branco” (PRECIADO, 2002, p. 83).
Importa, então, saber quais são os instrumentos, as técnicas, os usos e os contextos
das criações das tecnologias que têm tornado possíveis a existência das diversas sexualidades e
suas expressões. Nesse sentido:
Donna Haraway ha mostrado como en el discurso antropológico y colonial la
definición de humanidad depende de la noción de tecnología: el ‘(hu)mano/human’
se define ante todo como ‘un animal que utiliza instrumentos’, por oposición de los
‘primatas’ y a las ‘mujeres’. La noción de tecnología, como ‘totalidad de los
instrumentos que los hombres fabrican y emplean para realizar cosas’, sirve de suporte
a las nociones aparentemente intocables de ‘naturaleza humana’ y ‘diferencia sexual’
(PRECIADO, 2002, p. 119, grifo do autor)

Pode-se concluir deste modo, que a aplicação das técnicas que se inserem nas
produções dos gêneros e sexualidades está intrinsecamente ligada ao campo das relações de
poder que constroem as identidades e seus significados.
Ao longo da história e nos seus textos oficiais, por exemplo, o corpo feminino nunca
é descrito como o que fabrica ou desenvolve instrumentos e tecnologias, o que no discurso
colonizador enquadra mulheres e indígenas como “parte da natureza”, pois não produzem ou
possuem tecnologias ou técnicas e, portanto podem ser tomados e explorados. Preciado ressalta
que, para Foucault:
[...] a técnica é uma espécie de micro-poder artificial e produtivo que não opera de
cima para baixo, mas que circula em cada nível da sociedade (desde o nível abstrato

5
Foucault precisou biopolítica como a fase da sociedade caracterizada pela produção e controle da própria vida;
como a produção dos corpos e das estruturas sociais. Ressalta que com o avanço das tecnologias nas sociedades
contemporâneas não é possível estabelecer o que são “corpos naturais” frente ao avanço dos usos de hormônios,
próteses, transplantes de órgãos, usos da internet, etc. (PRECIADO, 2002).
19

do Estado ao da corporalidade) [...]. A forma mais potente de controle da sexualidade


não é, pois, a proibição de determinadas práticas, mas a produção de diferentes desejos
e prazeres que parecem derivar de predisposições naturais (homem/mulher,
heterossexual/homossexual) e que serão finalmente reificadas e objetificadas como
identidade sexual (PRECIADO, 2002, p.125, tradução nossa).

É necessário ressaltar, como lembra Preciado, que técnica e tecnologia não devem
ser compreendidas como instrumentos que surgem para modificar uma natureza que se
considera dada ou possuidora de um estado zero de concepção ou nascimento, mas como
instrumentos que surgem na produção do desenvolvimento do que se chama de natureza
humana.
Concluí-se então que a heterossexualidade não pode ser reverenciada em nenhuma
teoria como a “sexualidade natural humana”, assim como não há nada que disponha sobre a
obrigatoriedade da construção das identidades de mulheres e homens estarem sempre dispostas
em corpos nascidos ou não com vaginas e pênis, respectivamente. As chamadas “tecnologias
sexuais” operam no sentido da construção da objetificação da sexualidade hétero e do corpo
que abriga o gênero cis.
No entanto, vale ressaltar que esta identidade nunca se restringe à sexualidade ou
às relações sexuais entre os indivíduos. A identidade sexual e de gênero se manifesta nos
comportamentos, afetividades, relações e consumos que são incentivados e perpassados como
naturais por meio de discursos e publicidades, presentes desde o ambiente escolar até os
discursos médicos, jurídicos, etc.
Operam ainda a partir da reprodução da heteronormatividade, da sexualização dos
corpos femininos e da fixação de padrões de beleza; relações estas que naturalizam o conjunto
de fatores que constituem a identidade hétero-cis como norma.
Neste sentido é possível exemplificar que as relações hétero são sempre
representadas na mídia, na história, na educação, nas leis, etc.; bem como os indivíduos sejam
eles históricos, públicos ou físicos são sempre presumivelmente heterossexuais e cisgênero
desde o nascimento até sua morte.
A um só tempo, a imposição da heterocisnormatividade cria os sujeitos por ela
almejados (muito embora, como já salientado, longe de uma unidade mesmo dentro do
binarismo feminino/masculino) e justifica toda a negação e marginalização aos que se
encontram fora da margem da norma, criando uma variedade de estereótipos embasados, na
maioria das vezes, na banalização das feminilidades (misoginia), na orientação da consideração
de comportamentos sexuais distantes da norma hétero como perversos, pecaminosos, fora da
lei, etc.
20

É a partir, então, do conhecimento, compreensão e expressão dos desejos e das


identidades que surgem novos sujeitos sociais e políticos. Neste sentido, Pedrosa (2009) relata
que o movimento LGBT, no Brasil, começa a se articular no final dos anos 1970. Em 1980 foi
formado o Grupo Gay da Bahia, em atividade atualmente. Segundo o autor, o encontro e a
formação da comunidade entre os sujeitos acontece, pois:
As sexualidades das pessoas das “comunidades LGBTT” suscitariam identidades
compartilhadas, enquanto categorias políticas, com aspirações comuns, relativas à
qualidade de vida, luta contra fobias e violências dirigidas a pessoas LGBTT , e seus
desdobramentos em áreas como saúde, educação, direitos humanos, justiça, cultura
(PEDROSA, 2009, p. 69, grifo do autor).

Em relação aos sujeitos abrigados pela comunidade LGBTI+ é importante


considerar a história que a caracteriza, sobretudo, como movimento político6. Em 1978, foi
criado em São Paulo o grupo SOMOS (Grupo de afirmação Homossexual), que reunia gays e
lésbicas. Em 2005, os/as bissexuais foram incluídos na sigla, no 12º Encontro Brasileiro de
Gays, Lésbicas e Transgêneros, aprovando o uso da sigla GLBT.

Em 2008, a conferência Nacional GLBT, decide após debates a respeito da


visibilidade lésbica, que o “L” seja posicionado a frente do G na sigla, passando a se chamar
LGBT. Em 1995 foi fundada a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis e em 2008
decidiu-se que o “T” na sigla designa travestis e transexuais.

Ressalta-se que os debates a respeito das identidades LGBTQ7 permanecem abertos


e recebem constantes construções das subjetividades individual e coletiva, que passam a partir
da conquista de novos espaços, a existir, sentir e resistir de outras formas.

Por exemplo, no que se refere então a letra Q, referente ao termo queer, que foi
ressignificado pelo movimento e hoje a designação de “estranho”, “transviado” é referente
justamente “aquele que se narra ou é narrado fora das normas”, processo histórico que faz com
que a palavra seja incluída muitas vezes ao se denominar a comunidade LGBTQ.

Salientam-se questões importantes como a invisibilidade de intersexuais e


assexuados, por exemplo, dentro da própria comunidade LGBTI+, que na maioria das vezes

6
Percurso histórico da organização política do movimento LGBTT no Brasil escrita por Pedrosa (2009) no
artigo “Movimento LGBTT e suas práticas educativas no âmbito da sexualidade e da luta contra a AIDS”.

7
. Teoria queer, o que é isso?. Disponível em <https://www.revistaforum.com.br/osentendidos/2015/06/07/teoria-
queer-o-que-e-isso-tensoes-entre-vivencias-e-universidade/>. Acesso em novembro de 2017.
21

não são sequer manifestos nas siglas referentes ao movimento8 ou as possibilidades de


identidades não-binárias, fluídas, neutras, andróginas, entre outras, algumas das quais
encontram referência as suas vivências no queer .

Outro fator relevante na construção das identidades LGBTI+ é o fator patológico,


alimentado pela retórica dos discursos do Estado por meio da medicina, psicologia, religião,
política, etc. Deste modo, nas décadas de 1980 e 1990 o movimento concentrou-se, sobretudo,
como salienta Pedrosa (2009), nos desdobramentos da chegada do vírus HIV (Human
Immunodeficiency Virus) ao país, especialmente para os homens gays, travestis e transexuais.

O avanço da epidemia reforçou os estigmas de repulsa, medo e ódio em relação aos


sujeitos da comunidade, fator agravado pelo fato de ainda na época a Organização Mundial de
Saúde (OMS) adotar o código 302.0 (descrição do “homossexualismo” como desvio e
transtorno sexual).

Apenas em 1990 a homossexualidade foi retirada da lista de doenças. O mesmo só


aconteceu com a transexualidade em 2018, quando a OMS a retirou da Classificação
internacional de Doenças (CID) e passou a designá-la como “incongruência de gênero”, termo
relativo à saúde sexual.

É neste sentido que os estudos até aqui salientam que os discursos, as normas, os
comportamentos constroem as identidades materiais dos sujeitos. Assim, Butler (2003) reflete
sobre a construção da identidade:

[...] procede vinculada a certos objetivos de legitimação e de exclusão, e essas


operações políticas são efetivamente ocultas e naturalizadas por uma análise política
que toma as estruturas jurídicas como seu fundamento. O poder jurídico “produz”
inevitavelmente o que alega meramente representar [...] a lei produz e depois oculta a
noção de “sujeito perante a lei”, de modo a invocar essa formação discursiva como
premissa básica natural que legitima, subsequentemente, a própria hegemonia
reguladora da lei (BUTLER, 2003, p. 19).

Esses objetivos e os mecanismos inseridos no processo para alcançá-los são


naturalizados nos papéis constituídos socialmente e criam margens de legitimação e exclusão.

Nas próximas seções desta pesquisa, traçaram-se percursos que fazem parte da
construção histórica contemporânea das identidades, das existências, das expressões, das
violências e das resistências de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.

8
Vide, A trajetória e as conquistas do movimento LGBT brasileiro. Disponível em
<https://www.nexojornal.com.br/explicado/2017/06/17/A-trajet%C3%B3ria-e-as-conquistas-do-movimento-
LGBT-brasileiro>. Acesso em novembro de 2017.
22

2.2 LÉSBICAS E A LESBOFOBIA

A respeito da construção do desejo, Preciado (2002) lembra como é essencial a


compreensão do corpo em sua totalidade como centro de construção do prazer do indivíduo e
não apenas dos centros designados como órgãos sexuais. Salienta que esta possibilidade é
negada, na modernidade, a partir da mudança do tato para a visão:
Na transição do tato à vista que marcará a emergência da modernidade filosófica, o
tato enquanto sentido menos válido, será literalmente contido e efetivamente
‘impedido’ por meio de uma série de instrumentos técnicos que mediaram a relação
entre a mão e os órgãos genitais, e que virão a regular as possibilidades inquietantes
abertas pela mão que toca a si mesma e que converte o indivíduo em seu próprio objeto
de conhecimento, de desejo e prazer (PRECIADO, 2002, p. 80, tradução nossa).

Ressalta, ainda, que uma análise fenomenológica desses instrumentos (ex: cintos de
castidade) evidencia o surgimento da mão como órgão sexual, que ameaça a autonomia dos
órgãos genitais como órgãos sexuais, das relações heterossexuais e a naturalização da
necessidade do pênis nas relações ditas sexuais.
Preciado (2002) atenta mais uma vez para o fato de os mecanismos que operam
para a construção da sexualidade e do gênero serem mais variados e diversos do que se poderia
chamar de “determinação da natureza”, que incluem a interdição ou liberação de determinados
comportamentos e expressividades do desejo e do prazer.
Salienta, assim, que os contextos econômico, político e social são determinantes
para a compreensão das expressividades lésbicas na contemporaneidade.
Preciado contextualiza o “surgimento” das lésbicas masculinizadas com a
necessidade econômica da inserção dessas mulheres nos ambientes das fábricas durante a
expansão da produção em massa de objetos de consumo (principalmente de plástico), dos novos
corpos com implantes mecânicos daqueles que retornaram das guerras, da popularização das
cirurgias plásticas, etc.:
Em meio às casas pré-fabricadas e robôs de cozinha, a butch aparece como um corpo
de desenho, tecnicamente simples e que pode ser alcançado, sofisticado e custoso em
termos sociais e políticos. Como se tivesse sido submetida à mesma transformação
que o capitalismo tecno-patriarcal, o corpo lésbico retro dos anos cinquenta muda ao
ritmo da máquina [...]. Cresceu na fábrica. Triplamente oprimida, a causa de sua
classe, de seu gênero e de seu desejo sexual, a butch está mais próxima da objetivação
das máquinas do que da suposta subjetividade dos seres humanos. É proletária e
guerrilheira. Não tem medo de por seu corpo em jogo. Conhece bem o trabalho manual
(PRECIADO, 2002, p. 165, tradução nossa).
23

A mulher lésbica, e no caso a mulher lésbica compreendida como “masculinizada”,


é como lembra o autor, triplamente oprimida, pois trabalhadora e mulher não disponível aos
desejos e práticas sexuais dos homens.
Como salientado até aqui, são processos que formam os estereótipos dos gêneros
masculinos e femininos, marginalizando todas as outras possibilidades (não-binário,
transgênero, travesti, etc.). Conforme afirma Rich (1993), no cotidiano lésbico, a opressão por
ser mulher segue a lógica de seu corpo como “parte da propriedade emocional e sexual dos
homens”.
Assim, a relação entre duas mulheres “inclui tanto a ruptura de um tabu quanto a
rejeição de um modo compulsório de vida. É também um ataque direto e indireto ao direito
masculino de ter acesso às mulheres.” (RICH, 1993, p.36). Nega, ainda, a performatividade de
uma feminilidade imposta e difícil de ser alcançada, pois alicerça processos psicológicos,
físicos, hormonais, cirúrgicos, políticos, etc.
Por ser a heterossexualidade um modelo compulsório produzido sobre as pessoas e
com efeitos construtivos e desconstrutivos que se inscrevem diretamente sobre suas
subjetividades e expressividades, existe a necessidade de que as formas de sexualidade que se
manifestam fora desse padrão sejam invisibilizadas e marginalizadas.
Deste modo, faz parte das relações que formaram e formam as diversas resistências
lésbicas “[...] o reforço da heteronormatividade para as mulheres como um meio de assegurar
o direito masculino de acesso físico, econômico e emocional a elas. Um dos meios de reforço
é, obviamente, deixar invisível a possibilidade lésbica” (RICH, 1993, p. 34).
O feminismo tentou escrever, a partir dos anos sessenta, a história política da
reapropriação tecnológica dos corpos das mulheres, assim como expôs a condição do corpo
feminino como produto histórico e político e não simplesmente natural.
Para as autoras pós-feministas, esse momento é marcado finalmente pela assunção
do prazer sexual feminino e pela assunção da possibilidade dele ocorrer fora da naturalizada
relação hétero.
Neste contexto, Preciado (2002) salienta que a utilização de um dildo vibrador, por
exemplo, é muito mais “uma prótese complexa da mão lésbica” ou um “órgão sexual sintético,
ao mesmo tempo mão enxertada no tronco e extensão plástica do clitóris” (PRECIADO, 2002,
p.98) do que a imitação de um pênis, como é geralmente identificado.
Conclui-se, pois que o que constitui essencialmente uma relação afetiva e sexual
entre duas mulheres compreende o entendimento – seja ele intelectual, físico, psicológico – da
não necessidade de um pênis para a satisfação do prazer erótico e sexual feminino.
24

É assim que o movimento feminista, ao questionar a construção da efetividade e


expressividades das mulheres, questiona, desestabiliza e produz efeitos além do discurso nas
relações entre as mulheres.
Na sociedade, de modo geral, mas também dentro da comunidade LGBT, ainda se
faz necessária a discussão sobre a visibilidade lésbica. Os números que expressam as violências
sofridas pela comunidade, as lésbicas representam a menor parcela, mas que também
representam o segundo grupo que morre mais jovem na comunidade – 28 anos, 3 meses a mais
dos que as trans9.
Rich (1993) ressalta que uma das formas de poder masculino sobre as mulheres em
sociedades arcaicas e contemporâneas é a negação da sua sexualidade, sendo esta referência
válida mesmo nas relações heterossexuais10.
No marco da sociedade capitalista patriarcal11, marcada pelo estabelecimento da
heteronormatividade, a possibilidade de uma relação entre duas mulheres, que exclui
completamente a necessidade (emocional, física, financeira) de um homem para acontecer deve
ser negada.
Dessa maneira, a destruição dos registros e memórias sobre a realidade lésbica tem
que ser compreendida como uma forma de perpetuar a heterossexualidade como única
possibilidade possível ao mesmo tempo em que tem tornado invisíveis nossa “alegria, a
sensualidade, a coragem e a comunidade, bem como a culpa, a autonegação e a dor” (RICH,
1993, p. 36).
Assim, da negação da possibilidade da mulher sentir prazer, na sociedade
heterocentrada em que o provedor do prazer é compreendido sempre na figura falocêntrica
masculina, a mulher lésbica demonstra na sua vivência seu próprio corpo como fonte e centro
de prazer.
A lesbofobia experimentada passa, então, por toda a “educação feminina” que
recusa desde a infância sua sexualidade, por meio da autonegação do corpo como fonte de

9
Assassinatos de LGBTs no Brasil de 2000 a 2016. Disponível em:< https://homofobiamata.wordpress.com/#jp-
carousel-25766>. Acesso em outubro de 2018.
10
. Foucault (2017) fala da “Histerização do corpo da mulher” através de um processo que o toma “sob efeito de
uma patologia que lhe seria intrínseca” e o comunica com o corpo social (através da necessidade de fecundidade),
familiar (onde é “elemento substancial e funcional”) e com as crianças (que produz e deve assegurar que cheguem
à fase adulta); segundo o autor, essas relações constituem o papel mais visível de histerização da mulher: a mãe,
mulher nervosa.
11
Para Cisne (2013), a relação capitalista patriarcal implica a apropriação do corpo, do tempo, da obrigação sexual,
do confinamento nos espaços, do arsenal jurídico, das possibilidades no mercado de trabalho para as mulheres,
etc., relações estas naturalizadas como expressões do sexismo que se materializa nas relações civis e privadas, na
ideia perpassada de que os homens têm direitos sexuais sobre as mulheres, representação de uma estrutura de poder
que é baseada tanto na violência quanto na ideologia, como salienta Saffioti (2004).
25

prazer para si e construção dele como fonte de prazer do outro/homem. É vivida também nas
perseguições sofridas por outras crianças e adultos no ambiente familiar e escolar, acontece
através de perseguições na rua ou mesmo no ambiente de trabalho, assédios morais e físicos,
estupros corretivos, mortes.
Sobre as diferentes manifestações que a lesbofobia assume pode-se ressaltar,
antecipadamente, seu caráter misógino, de poder e controle sobre as mulheres. Neste sentido,
Rich (1993) ressalta:

As mensagens da Nova Direita dirigidas às mulheres têm sido precisamente, as que


nós somos parte da propriedade emocional e sexual dos homens e que a autonomia e
a igualdade das mulheres ameaçam a família, a religião e o Estado. As instituições nas
quais as mulheres são tradicionalmente controladas – a maternidade em contexto
patriarcal, a exploração econômica, a família nuclear, a heterossexualidade
compulsória – têm sido fortalecidas através da legislação, como um fiat religioso,
pelas imagens midiáticas e por esforços de censura (RICH, 1993, p. 19, grifo do
autor?).

Assume, então, como uma das formas de tentativa de negar ou forçar à sexualidade
hétero para mulheres lésbicas o estupro corretivo. A prática, contemporaneamente, é fomentada
pelo avanço do tipo de discurso citado pela autora e através de fóruns de debate em ambientes
online de grupos assumidamente neonazistas, LGBTfóbicos, antifeministas e outros12.

Conforme lembra Loiola (2009), a liberdade dos corpos e das sexualidades


femininas, inclui “a luta pelos direitos das mulheres, especialmente das mulheres que se amam”
(LOIOLA, p.63). Assim, ressalta-se que “a existência lésbica sugere tanto o fato da presença
histórica de lésbicas quanto da nossa criação contínua do significado dessa mesma existência”
(RICH, 1993, p. 35).

2.3 GAYS E A HOMOFOBIA

Rich (1993) questiona a heterossexualidade como “preferência” e a aponta como


“algo que tem sido imposto, administrado, organizado, propagandeado e mantido a força”
(p.35), para que esta orientação passe como a “natural”. Segundo a autora, existe a produção de
limites das possibilidades do gênero dentro do sistema binário.
Essa relação está alicerçada na concepção de que o “gênero não só pressupõe uma
relação causal entre sexo, gênero e desejo, mas sugere igualmente que o desejo reflete ou
exprime o gênero, e que o gênero reflete ou exprime o desejo” (BUTLER, 2003, p. 45).

12
Sobre estupro corretivo. Disponível em:< https://escrevalolaescreva.blogspot.com/2016/01/quem-fala-em-
falta-de-rola-defende.html>. Acesso em outubro de 2018.
26

Qual então a posição da homossexualidade masculina numa sociedade em que o


homem é a figura de representação do poder na esmagadora maioria dos ambientes e
instituições? Representação esta fixada, como já dito, na imposição dos binarismos exercidos
nas relações de poder entre homens e mulheres. Como então podem ser compreendidas as
relações afetivas e sexuais entre dois homens? Quem são esses homens? Quais proibições e
possibilidades construíram as existências gays?
O estereótipo da masculinidade envolve características como coragem e altivez,
muitas vezes incentivadas através de expressões de violência. Assim, o menino que desde cedo
não demonstra interesse em esportes e atividades que envolvam mais movimentos e disposição
física recebe os estigma de delicado e passa a sofrer perseguições nos diferentes espaços em
que circula; violências física e moral (principalmente de outros meninos da mesma faixa etária
ou mais velhos), castigos e punições por parte de adultos, que vão desde a imposição aos
meninos a atividade e ambientes considerados mais masculinos à violência física, moral e
psicológica.
Tem-se, então, como aponta Preciado (2002), que os que fogem à regra
normatizante “renunciam não só a uma identidade sexual cerrada e determinada naturalmente,
mas também aos benefícios que poderiam obter de uma naturalização aos efeitos sociais,
econômicos e jurídicos de suas práticas significativas” (PRECIADO, 2002, p.19)13.
Loiola ressalta que:
Numa sociedade disfarçadamente tolerante como a nossa, o processo de assumir-se
gay torna-se muito complexo, podendo causar profundas sequelas psicológicas e
emocionais por toda a vida, haja vista, que as crianças desde muito cedo são ensinadas
a se comportarem dentro dos estereótipos de masculinidade e, a inferiorizarem as
demais que não se enquadram nessa perspectiva. Seguindo o percurso da vida, vai se
cristalizando uma estrutura de saber acerca da sexualidade que torna os indivíduos
confusos e frágeis diante da normalidade exigida (LOIOLA, 2009, p.59).

O processo de assumir-se inclui também a si mesmo, pois embora a identidade de


gênero ou sexual, seja mais uma característica das experiências vividas coletivas e
individualmente, ela ainda é propagada como um ideal normativo a ser alcançado (BUTLER,
2003).
O indivíduo, então, precisa antes de assumir-se externamente, passar pelo processo
doloroso de assumir para si a possibilidade de vivência de uma identidade que lhe foi ensinada
como errada, estranha, desmoralizante, etc., e construí-la também através dessas concepções e
das situações experimentadas nesse sentido, sejam elas de prazer, companhia e acolhimento, ou
de rejeição, invisibilização e violência.

13
Tradução nossa.
27

No intuito de entender as situações em que se dá o ser mulher, as discussões abertas


pelo feminismo demonstraram que os gêneros masculino e feminino são construções histórico-
sociais e que a sexualidade humana foi estabelecida essencialmente sobre um modelo que toma
o natural associado apenas à reprodução da espécie. Para que a sexualidade humana seja assim
concebida e executada é necessário que a ela esteja ligada exclusivamente aos órgãos genitais,
assim:
Os órgãos que reconhecemos como sexuais, são o produto de uma tecnologia
sofisticada que prescreve o contexto em que os órgãos adquirem seu significado e se
utilizam com propriedade, de acordo com sua natureza (relações heterossexuais). Os
contextos sexuais se estabelecem por meio de delimitações espaciais e temporais
(PRECIADO, 2002, p. 26-27).

Preciado (2002) ressalta, ainda, que seria o ânus o centro contra-sexual universal.
Seguindo a análise de Foucault, Preciado compreende que a forma mais eficaz de resistência é
a “produção de formas de prazer/saber alternativas a sexualidade moderna” (PRECIADO,
p.19), e o corpo é esse espaço de construção, lugar de opressão, mas também de resistência.
Foucault (2017) ressalta que o homossexual torna-se, desde o século XIX, uma
personagem:
[...] um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também
é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada
daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele
todo: subjacente a todas as suas condutas, já que ela é princípio insidioso e
infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem pudor na face e no seu corpo, uma vez
que é um segredo que se trai sempre. É-lhes consubstancial, não tanto como pecado
habitual, porém como natureza singular (FOUCALT, 2017, p.47-48).

Conclui-se que são muitos os fatores que contribuem para a construção da


marginalização e violência a que estão expostos os homossexuais. Para além da sexualidade
entre quatro paredes, mas também nela, se constroem as características que dão formas a esses
indivíduos; características estas que são negadas como naturais e legadas aos estigmas de ódio,
descrença, patologização.
No Brasil, em 2016, o número de gays assassinados foi 172, quantidade que
representa cinquenta por cento das mortes da comunidade LGBTI+ contabilizadas pelo Grupo
Gay da Bahia14.
Importa saber quais trajetórias têm sido cruzadas, quais são as imposições e as
resistências que gays têm sofrido e vivido em seu cotidiano, e como têm se construído como
sujeitos políticos em suas vivências.

14
Relatório 2016 – Assassinatos de LGBT no Brasil. Disponível em
< https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/01/relatc3b3rio-2016-ps.pdf>. Acesso em novembro de 2017.
28

Neste sentido, é imprescindível ressaltar a contribuição do avanço do HIV nas


décadas 1980 e 1990 do século passado para os estigmas e estereótipos que se ficcionaram e
materializaram sobre a comunidade LGBT – e principalmente sobre os homens gays, travestis
e transexuais – nesse período e atualmente.
Segundo Pedrosa (2009), inicialmente chamado de “síndrome do
comprometimento gay” pelo Centro Norte-Americano de Controle de Doenças, a Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida colocou a comunidade gay no centro dos olhares públicos e dos
discursos médicos e de ódio que os culpabilizava e apontava como “vetores de uma doença
mortífera”.
Em contrapartida, os integrantes dos movimentos reconhecem a necessidade de
assumir o discurso que os coloca no centro do problema e a luta de combate ao HIV é, desde
então, pauta fundamental de grupos como o Grupo Gay da Bahia e o Triângulo Rosa, atuantes
desde a década de 1980.15

2.4 BISSEXUAIS E A BIFOBIA

Referente às relações afetivas e sexuais das pessoas, a bissexualidade se apresenta


em sujeitos que se sentem atraídos sexual e/ou afetivamente por homens e mulheres. Para os
bissexuais não existe a necessidade de se sentir igualmente ou mais atraído por um gênero ou
outro.
O estereótipo baseia-se, sobretudo, sobre os temas de uma provável promiscuidade
e de confusão, alimentados pelas relações binárias que encarceram as possibilidades sexuais e
de gênero.

Salienta-se, ainda, que o preconceito ocorre mesmo dentro da comunidade


LGBTI+, onde indivíduos exigem de bissexuais um “momento de escolha”, acusando-os de
indecisos ou não resolvidos. Neste sentido, Giddens (1993) reflete:

A bissexualidade é ainda mais difícil de ser entendida porque parece ser uma mistura
de homo e heterossexualidade, comprovando a teoria maior de que a orientação sexual
pode se manifestar por vários caminhos e que existe mais de uma possibilidade de
relacionamentos afetivo-sexuais (GIDDENS, 1993, p. 203).

15
A trajetória e as conquistas do movimento LGBT brasileiro. Disponível em
<https://www.nexojornal.com.br/explicado/2017/06/17/A-trajet%C3%B3ria-e-as-conquistas-do-movimento-
LGBT-brasileiro>. Acesso em novembro de 2017.
29

Assim, é possível outra vez perceber os efeitos que os binarismos são capazes de
produzir nas vivências, nos saberes e nos prazeres das pessoas.
É neste sentido que Seffner (2004) ressalta que a nossa cultura demarca muito bem
os polos hétero e homossexual, produzindo, inclusive, identidades “bem definidas”; resultando,
então, para bissexuais, uma invisibilidade no sentido da representação e significação da
bissexualidade dentro de um sistema binário rigidamente polarizado.
Segundo Cavalcanti (2007):
De modo geral, na literatura existente, o que se refere à bissexualidade são relatos de
promiscuidade, alusivos a sujeitos “sem identidade própria”, quando não
caracterizados por sua invisibilidade. O que impede o reconhecimento de suas
práticas, podendo isso ser visto de maneira positiva, já que lhes faltam elementos para
a denominação de estereótipos, mas ao mesmo tempo impossibilita a construção de
uma identidade coletiva que lute pelo reconhecimento, confiança e respeito
(CAVALCANTI, 2007, p. 17).

Deste modo, as experiências bissexuais fazem emergir uma discussão sobre a


categorização do desejo e também do objeto desse desejo, assim como do sujeito desejante.
Aponta ainda, como lembra Louro (2004) que os recortes sexuais, ideológicos e políticos deste
campo trazem reflexos também para a luta dos direitos e que, “para alguns sujeitos, o desejável
é sempre viver na fronteira”.
Cavalcanti (2007) considera a possibilidade de indivíduos bissexuais que por opção
não queiram demarcar uma fronteira simbólica ou representativa sobre suas identidades,
salienta, porém, que:

Apesar do pouco conhecimento que temos da bissexualidade, como uma identidade


política, ao menos que se iguale a outros grupos minoritários, ela e suas práticas
trazem já em si as diversas possibilidades de articulação, domínio e produção em que
os sujeitos se encontram na formulação de suas posições. Também faz perceber os
limites discursivos pelo qual o imperativo heterossexual possibilita certas
identificações sexuadas e impede, ou nega, outras (CAVALCANTI, 2007, p 23-24).

2.5 TRAVESTIS, TRANSEXUAIS E A TRANSFOBIA

Quando uma pessoa se identifica com o sexo com o qual ela foi designada ao nascer,
ela é uma pessoa cisgênero; quando, no entanto, o sexo biológico não está em conformidade
com a identidade de gênero com o qual ela se identifica, e com a norma em que o sexo deve
determinar o gênero, essa pessoa é reconhecida como transgênero.

É importante reiterar mais uma vez que, embora o gênero seja designado no
nascimento, ele é, na realidade, o resultado das experiências que os indivíduos vivem coletiva
e individualmente e que inscrevem características em seus corpos e subjetividades. É neste
30

sentido que Preciado (2002) afirma que o gênero é prostético, ou seja, se dá na materialidade
dos corpos.

No caso das travestis e transexuais há, mais do que nunca, a renúncia (seja ela
consciente ou não) da norma totalizante do binarismo dos gêneros feminino e masculino, e o
corpo como centro de mudança, como espaço de opressão, mas, sobretudo de resistência e
construção de si mesmo.

Segundo Loiola (2009):

A caracterização de uma travesti apresenta formas variadas de expressão, muito


embora saibamos que a predominante é o uso de um corpo fisiologicamente masculino
e uma mente feminina, não causando nenhum desconforto o fato de possuir uma
genitália masculina. O seu processo de feminilização geralmente se inicia na
adolescência, passa, na maioria das vezes, pela ingestão de hormônios e aplicação de
silicone, sendo comum a afirmação de uma identidade feminina pela adoção de um
nome, substituindo seu registro masculino (LOIOLA, 2009, p. 64).

As diferentes existências das travestis e transexuais – pessoas que transitam de um


gênero ao outro – exalta o fato de que a construção do ser mulher e do ser homem vai muito
além de um dado natural.

Modificações físicas, psicológicas, sociais, econômicas e políticas que se operam


nas existências das pessoas trans a partir de como elas se enxergam e de como o mundo as
compreende desde seus corpos são o resultado de uma série de processos que demonstram como
as formas, os usos, os espaços e as possibilidades dos limites dos corpos são o que de fato o
significam e contextualizam.

Sobre a modificação dos corpos é importante quando Preciado (2002) enfatiza que
os hormônios sexuais, considerados substâncias naturais pelo discurso médico-farmacêutico,
devem ser compreendidos como drogas político-sociais que atuam sobre todos os indivíduos,
mesmo nos hétero-cis, produzindo modificações em seus corpos, humores, comportamentos,
libidos, etc.

Loiola (2009) caracteriza os/as transexuais a partir de uma insatisfação do gênero


biológico ao qual foi designado, muitas vezes ocorrendo a necessidade desde tratamento
terapêutico, hormonal e cirurgia de redesignação sexual.

O autor ressalta que, para as pessoas transexuais, existe uma angústia que parte da
própria percepção de si como alguém em não conformidade com o corpo – sentimento
“ensinado” pela norma cis, que discursa sobre a obrigatoriedade de que homem e mulher sejam
31

identificados a partir da genitália – e da percepção dos outros, que são “ensinados” pela mesma
norma cis e para os quais a não conformidade de um corpo neste padrão é ensinada exatamente
como desviante, errada, patológica, pecaminosa.

Loiola (2009) observa que, para as travestis, o ciclo de exclusão e silenciamento


que geralmente é iniciado pela família, com a expulsão de casa, passa pela escola, que não se
apresenta como um lugar favorável, pois é um ambiente onde sofre a perseguição de outras
crianças e que lhe cobra o seguimento de determinadas normas e regras.

Torna-se recorrente, deste modo, o abandono/expulsão da escola, que faz com que
elas não tenham qualificação profissional, impulsionando-as, muitas vezes, à prostituição e/ou
trabalhos não regulares. Nesta posição, muitas travestis e transexuais têm construído suas
identidades, a partir das vivências, na rua:

[...] tornam-se vulneráveis através da demasiada exposição do corpo e desvalorização


social, implicando diretamente na baixa autoestima. Além de receberem um
tratamento desmerecedor dos órgãos públicos, especialmente de policiais, que as
reprimem em seus locais de batalha (LOIOLA, 2009, p.65).

Com a orientação a um padrão comportamental de sexo e gênero, que, para além de


sempre se estabelecerem ligados, tratados como um só ou como um proveniente do outro
invariavelmente, “os sujeitos que não são, seja porque não podem ser associados aos atributos
desejáveis, seja porque não podem existir por não poderem ser nomeados” (LOURO, 1997, p.
67) são ocultados, invisibilizados, marginados, transformados “naquilo que não se pode/deve
ser”.

Essa margem tem posto transexuais e travestis como o segundo grupo com menor
expectativa de vida da comunidade LGBTI+, sendo a média de vida das vítimas menos de 28
anos de idade. Em 2016, foram 144 mortes registradas16.

Pode-se afirmar então que a negação das identidades dessas pessoas nos âmbitos
pessoal, jurídico e político tem participação relevante pelo ciclo de violência que hoje dá às
travestis e mulheres trans uma expectativa de vida de apenas 35 anos17.

16
Relatório 2016 – Assassinatos de LGBT no Brasil. Disponível em: <
https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/01/relatc3b3rio-2016-ps.pdf>. Acesso em novembro de 2017.

17
Expectativa de vida de transexuais é de 35 anos, metade da média nacional. Disponível em:
<https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/expectativa-de-vida-de-transexuais-e-de-35-
32

Este trabalho busca compreender a educação como um processo social ininterrupto


e que se dá em muitos espaços que vão além das instituições escolares. Deste modo, os
processos de socialização dos sujeitos, desde a infância no convívio com a família à inserção
em espaços de maior socialização como a escola, igreja, clubes e rua serão compreendidos em
seu caráter constitutivos das identidades.

No capítulo “Escola: espaço de assujeitamento e resistência para as pessoas


LGBTI+” busca-se compreender como a escola tem tratado o gênero e a sexualidade em seus
ambientes, disciplinas e regras e como escola têm contribuído para as construções das
identidades sexual e de gênero das pessoas.

3 ESCOLA: ESPAÇO DE ASSUJEITAMENTO E RESISTÊNCIA PARA PESSOAS


LGBTI+

Segundo Foucault (2017), o sexo se constitui uma “preocupação” e cria a


necessidade do uso de técnicas e aparelhagens no sentido de sua produção a partir do emergir
das populações como problema econômico e político, (questões como taxas de natalidade,
nascimentos legítimos ou ilegíveis, modos de tornar as relações sexuais fecundas ou não, o
celibato e suas interdições, etc), por volta do século XVIII.

anos-metade-da-media-nacional/expectativa-de-vida-de-transexuais-e-de-35-anos-metade-da-media-nacional>.
Acesso em outubro de 2018.
33

Ressalta, no entanto, um percurso anterior na construção dos discursos sobre o sexo


através do intermédio da Pastoral Cristã e sobre como se constitui como “regra para todos”,
sobretudo a partir do século XVII. Foucault (2017) compreende que, na contemporaneidade, a
marca da moral cristã ultrapassa a confissão das “infrações às leis do sexo” e a condiciona a um
novo tipo de discurso:
[...] da tarefa quase infinita, de dizer, de se dizer a si mesmo e de dizer a outrem, o
mais frequentemente possível, tudo o que possa relacionar com o jogo dos prazeres,
sensações e pensamentos inumeráveis que, através da alma e do corpo, tenham alguma
afinidade com o sexo (FOUCAULT, 2017, p. 23).

Conclui então que:


[...] a pastoral cristã procurava produzir efeitos específicos sobre o desejo, pelo
simples fato de colocá-lo integral e aplicadamente em discurso: efeitos de domínio e
de desinteresse, sem dúvida, mas também efeitos de reconversão espiritual, de retorno
a Deus, efeito físico de dores bem-aventuradas por sentir no seu corpo as ferroadas da
tentação e o amor que lhe resiste (FOUCAULT, 2017. p. 25).

São os efeitos específicos deste e de outros discursos que sustentam o que Foucault
chama de “regime de poder-saber-prazer” que sustentam entre nós o discurso sobre a
sexualidade humana e faz com que, como ressalta Preciado (2002, p. 21), as tecnologias sexuais
sejam apresentadas como fixas, verdades universais ou como “natureza”. Neste sentido, as
tentativas de modificação da norma são julgadas “como uma forma de ‘psicose coletiva’ o como
um ‘Apocalipse da Humanidade’”.

Foucault salienta, deste modo, que os Estados crescem em razão “de sua indústria,
de suas produções e das diferentes instituições”, ou seja, crescem em torno de objetivos e metas
mais ou menos estipulados e estimulados por eles mesmos. Logo, os efeitos dos discursos sobre
sexo são efetivados na economia, educação, saúde publica, infraestrutura, etc.
Agora como assunto de “interesse público” é necessário que se institua o que o
autor chama de “polícia do sexo”, ou seja, a necessidade de regulação do sexo através dos
discursos “úteis e públicos”. Neste sentido, Foucault (2017) ressalta que é instaurado um
conflito entre o sujeito e o Estado, pois sobre o sexo está investida “uma teia de discursos, de
saberes, de análises e de injunções”. Tem-se, então, que ao se falar de sexo há um objetivo, pois
como ressalta o autor:

Não se fala menos de sexo, pelo contrário. Fala-se dele de outra maneira; são outras
pessoas que falam, a partir de outros pontos de vista e para obter outros efeitos. O
próprio mutismo, aquilo que se recusa dizer ou que se proíbe mencionar, a discrição
exigida entre certos locutores não constitui propriamente o limite absoluto do discurso
[...]. Não se deve fazer divisão binária entre o que se diz e o que não se diz; é preciso
tentar determinar as diferentes maneiras de não dizer, como são distribuídos os que
podem e os que não podem falar, que tipo de discurso é autorizado ou que forma de
34

discrição é exigida a uns e outros. Não existe um só, mas muitos silêncios e são partes
integrante das estratégias que apoiam e atravessam os discursos (FOUCAULT, 2017,
p. 30-31).

Importante salientar a importância que as instituições religiosas, médicas e


educativas tiveram nesse processo histórico, social e político.
Este capítulo interessa-se, especialmente, em traçar um esboço de como as escolas
têm sido instituições que reproduzem e criam estereótipos baseados no binarismo feminino e
masculino e na ordem hétero-cis, produzindo também as condições materiais e subjetivas para
as marginalizações aos sujeitos que não se encaixam nesses padrões.

3.1 CONTRIBUIÇÕES DO AMBIENTE ESCOLAR PARA A FORMAÇÃO DAS


IDENTIDADES SEXUAL E DE GÊNERO DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Louro (1997) analisa a participação das escolas na produção e reprodução dos


gêneros e das sexualidades, ao ressaltar que as instituições escolares se iniciam primeiramente
como ambientes masculinos, ocupados apenas por homens. Enfatiza, então, que a escola
contemporânea é o resultado de uma instituição que nasce como espaço de construção de
diferenças, pois separa adultos e crianças, católicos e protestantes, ricos e pobres, meninos e
meninas.
Deste modo, as instituições educacionais expressam, desde o seu surgimento,
através da formação dos profissionais do ensino, dos currículos, das normas, dos espaços, etc.,
valores associados a comportamentos que criam margens de como devem ser e se comportar os
sujeitos nos ambientes escolares:

Católicos e protestantes, na disputa de fiéis para suas igrejas (e em disputa com os


nascentes estados), investirão na conquista das almas infantis e, para bem realizar essa
missão, irão se ocupar, com um cuidado até então inédito, da formação de seus
professores. Sejam eles pastores, padres ou irmãos, esses religiosos acabam por
construir uma das primeiras e fundamentais representações do magistério (LOURO,
1997, p. 92-93).

Importa dizer que a predominância feminina nos ambientes educacionais


contemporaneamente é resultado de um processo que implica mudanças nos objetivos, no
público, nos interesses e no caráter que a educação como instituição assume na sociedade
capitalista, pois as primeiras escolas eram de predominância masculina (tanto clientela, como
professores e outros funcionários).
35

Assim, como assinala Louro (1997), no Brasil, na segunda metade do século XIX,
como lembra a autora, o processo de urbanização do país, bem como a entrada de imigrantes
para a formação da mão de obra necessária a esse processo modificam as condições sociais e
políticas e criam uma abertura, ainda que limitada18 para as mulheres nas escolas.

O ensino passa então por um “processo de feminização”, que implica


necessariamente a atribuição de características tradicionalmente consideradas femininas, como
“amor, sensibilidade, cuidado, etc. para que possa ser reconhecido como uma profissão
admissível ou conveniente” (LOURO, 1997, p. 96-97).

No Brasil, esse processo é marcado pela importância dos estudos e ações de Nísia
Floresta. Educadora e feminista criou uma escola para moças e criticava abertamente a
educação dada às meninas da corte (aprendizagem de regras de etiqueta ou como portar-se em
salões e reuniões). No prefácio de Opúsculo Humanitário fala da “emancipação do seu sexo,
batendo-se pela extinção da tirania masculina” (FLORESTA, 1989).

Tem-se então um breve percurso de como as instituições educacionais têm sido


pensadas – da infraestrutura à construção dos diferentes sujeitos que nela circulam – para a
objetificação de determinados tipos de indivíduos com padrões de identidades de gênero,
sexuais, raciais, de classe, etc.

No que diz respeito aos discursos, Foucault (2017) aponta o quanto a religião é
responsável pela construção das linguagens e saberes, também, sobre o sexo e sob a sustentação
do imperativo de “não somente confessar os atos contrários à lei, mas procurar fazer de seu
desejo, de todo o seu desejo, um discurso” (p. 23). Assim:

A pastoral cristã inscreveu, como dever fundamental, a tarefa de fazer passar tudo o
que se relaciona com o sexo pelo crivo interminável da palavra. A interdição de certas
palavras, a decência das expressões, todas as censuras do vocabulário poderiam muito
bem ser apenas dispositivos secundários com relação a essa grande sujeição: maneiras
de torná-la moralmente aceitável e tecnicamente útil (FOUCAULT, 2017, p 23).

18
A entrada das mulheres nos ambientes de ensino transforma esses espaços a partir dos discursos de ordem e
progresso, modernização da sociedade, higienização da família e formação das novas gerações que ensejam a
necessidade de educação para as mulheres: as mães. Outra característica marcante é o fato de que as profissões
que passam a ser exercidas por mulheres serem sempre marcadas pelo modelo religioso e maternal da dedicação-
disponibilidade, humildade-submissão, abnegação-sacrifício (DAUPHIN, 1993). Louro (1997) ressalta que a
educação tem se preocupado, de modo especial, com a formação da professora mulher; cita que, ao longo da
história, ‘marcas’ distintivas de feminilidade (trajes e modos) deviam se expressar assexuadamente, a vida pessoal
deveria ser impecável (de acordo com os preceitos da sociedade na qual estivesse inserida) e não era “dignificante’,
segundo Lei de 1917, do Estado de Santa Catarina, por exemplo, que uma professora grávida ministrasse aulas”.
36

Segundo o autor, essa interferência faz com que toda linguagem utilizada para falar
de sexo seja depurada “de modo a não mencioná-lo diretamente” e de prendê-lo em um discurso
que não permite “obscuridade nem sossego”, falando dele sempre e “valorizando-o como o
segredo”.
Enfatiza que a instituição pedagógica, bem como toda a sociedade, não tem
silenciado completamente o sexo para as crianças e os adolescentes, mas que, desde o século
XVIII, ela concentrou:
[...] as formas do discurso neste tema; estabeleceu pontos de implantação diferentes;
codificou os conteúdos e qualificou os locutores. Falar do sexo das crianças, fazer
com que falem dele os educadores, os médicos, os administradores e os pais. Ou então
falar de sexo com as crianças, fazer falarem elas mesmas, encerrá-las numa teia de
discurso que ora se dirigem a elas, ora falam delas, impondo-lhes conhecimentos
canônicos ou formando, a partir dela, um saber que lhes escapa – tudo isso permite
vincular a intensificação dos poderes à multiplicação do discurso (FOUCAULT,
2017, p. 33).

Para além do nível do discurso e seus desdobramentos sobre as pessoas, Foucault,


ao considerar os colégios do século XVIII, ressalta que tudo nestes espaços “fala” de sexo:

[...] basta atentar para os dispositivos arquitetônicos, para os regulamentos de


disciplina e para toda a organização interior: lá se trata continuamente do sexo. Os
construtores pensaram nisso, e explicitamente. Os organizadores levaram-no em conta
de modo permanente. Todos os detentores de uma parcela de autoridade se colocam
num estado de alerta perpétuo: reafirmado sem trégua pelas disposições, pelas
precauções tomadas e pelo jogo das punições e responsabilidades. O espaço da sala
de aula, a forma das mesas, o arranjo dos pátios de recreio, a distribuição dos
dormitórios (com ou sem separações, com ou sem cortina), os regulamentos
elaborados para a vigilância do recolhimento e do sono, tudo fala da maneira mais
prolixa da sexualidade das crianças (FOUCAULT, 2017, p. 31).

Significa dizer, então, que embora aparentemente a escola se ocupe pouco da


sexualidade ou do sexo das crianças e adolescentes, toda a sua organização – desde o conteúdo
das disciplinas, organização dos espaços, disposição do tempo às políticas e leis que a regem –
preocupa-se substancialmente com o seu desenvolvimento.
É preciso observar, também, que não apenas os alunos são postos em vigilância,
mas todos os que convivem na escola. Este fato denuncia o óbvio, segundo Andrade (2012) a
sexualidade não pode ser negada no ambiente escolar, pois ela faz parte da subjetividade de
seus diferentes atores.
Ao analisar a construção do currículo escolar, Louro (1997) reafirma a importância
de se compreender que as diferenças que a escola produz se dão através de um “exercício
desigual de poder”, em que currículos, regulamentos, ordens, normas e avaliações “dividem,
hierarquizam, subordinam, legitimam ou desqualificam os sujeitos”.
37

Logo, é possível concluir que a educação é espaço de ativa construção das


identidades das crianças que passam por ela.
Na próxima sessão busca-se analisar como as normas, conteúdos e comportamentos
que institucionalizam a educação heteronormatizam o ambiente escolar, criam espaços que
legitimam a LGBTfobia e como essas experiências têm contribuído para as relações das pessoas
da comunidade LGBTI+ com a escola e a sociedade de modo geral.

3.2 LGBTFOBIA NO CONTEXTO EDUCACIONAL

Como lembra Silva (1996), o projeto educacional envolve como objetivo a


construção de identidades para os sujeitos; este processo é perpassado pelas esferas do gênero,
da sexualidade, da etnia e da classe, e as identidades objetificadas devem ser úteis e atender às
necessidades da sociedade.
No que diz respeito ao gênero e a sexualidade das pessoas compreende-se, de
acordo com as análises feitas até aqui, que seria de interesse da ordem heteronormativa a
reprodução da espécie, baseada na exploração dos corpos das mulheres pelos homens e pela
ordem compulsória do capital, que mercantiliza seus corpos e seus produtos (filhos,
sexualidade, corpos, etc.) no intuito de reprodução contínua do capitalismo e do patriarcado.
Compreende-se, então, que os sujeitos que ao longo do processo educacional não
se subordinam ou se adéquam ao conjunto de normas, valores e comportamentos expressos
estão além da margem do aceitável e são nomeados, apontados e segregados exatamente deste
modo: como aqueles que não são ou como aqueles que são o que não deveriam/poderiam ser.
A naturalização das identidades hétero e cis faz com que, de modo abrangente,
sequer se fale nas outras possibilidades relativas à sexualidade e ao gênero; presumivelmente
somos todos hétero e cis, pois todos os discursos, as representações na mídia e na vida civil, as
leis e normas nos espaços públicos e de socialização continuam aceitando apenas as identidades
mais próximas dos padrões determinados para o masculino e feminino e as manifestações de
afetividade e sexualidade heterossexuais.
É neste sentido que Louro (1997) ressalta a importância de se desconstruir a
naturalidade com que são impressas em nossas relações as características do binarismo dos
gêneros masculino e feminino também a partir da “unidade interna de cada um”, pois:

Uma das consequências mais significativas da desconstrução dessa oposição binária


reside na possibilidade que abre para que se compreendam e incluam as diferentes
formas de masculinidade e feminilidade que se constituem socialmente. A concepção
dos gêneros como se produzindo dentro de uma lógica dicotômica implica um polo
38

que se contrapõe a outro (portanto uma ideia singular de masculinidade e


feminilidade), e que isso supõe ignorar ou negar todos os sujeitos sociais que não se
“enquadram” em suas formas (LOURO, 1997, p. 34).

Nesse contexto, o ambiente escolar, como salientado na seção anterior, está incluído
nos ambientes e instituições que produzem e reproduzem as relações desiguais de poder que
fazem parte da construção das identidades sexual e de gênero dos sujeitos que nela estão
inseridos.
Tem-se que, neste espaço, ao longo da história das diversas comunidades e
sociedades, as crianças têm apreendido lições, informações e limites sobre elas mesmas (a partir
dos estudos sobre o corpo, relações sociais estabelecidas, etc) direta ou indiretamente, através
do currículo oficial.
Como exemplo pode-se citar as aulas de português, em que o artigo masculino é
sempre determinante e as aulas de biologia, em que o corpo é a origem e a explicação do sexo
voltado para a reprodução.
Ainda, as aulas de história, em que os fatos são narrados não apenas a partir da
perspectiva colonialista-escravagista-hétero-branca, mas também onde apenas os homens
aparecem como protagonistas. Sem esquecer do currículo oculto, manifesto em todas as ações
e relações que se desdobram fora dos contextos expressos pelo currículo oficial.
No que diz respeito a não visibilidade e falta de representatividade tanto de
estudantes, funcionários e professores LGBTI+, mas também de personalidades históricas e
públicas como tais, Britzman (1996) salienta que esse silêncio tem efeitos múltiplos em
diferentes sujeitos; parece querer garantir que os estudantes “prefiram” a possibilidade hétero.
Para tanto, em todos os discursos ela é apontada como a natural e qualquer outra
possibilidade, um desvio; esta imposição formativa, que dificulta o autorreconhecimento das
identidades para os sujeitos LGBTI+, também silencia a trajetória de violência, resistência,
retrocesso e conquistas que fazem parte da construção dessas identidades nas esferas particular
e coletiva.
Segundo a autora, gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais,
desde a infância, quando seus trejeitos, gostos e afetos passam a ser apontadas como
“inapropriadas para o gênero”, aprendem nas situações de violência sofridas e silenciadas a não
visibilidade e a dissimulação, o ocultamento, assim, “aprender a se esconder torna-se parte do
capital sexual da pessoa” (Britzman, 1996, p. 83).
39

Assim, é compreensível que, em 2009, uma pesquisa19 realizada pela Faculdade de


Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), tenha
que 87% da comunidade escolar (estudantes, funcionários, professores, parentes e
responsáveis) tinha algum preconceito contra LGBTI+.
No mesmo ano, 198 mortes relacionadas à lesbofobia, homofobia, bifobia e
transfobia foram registradas no relatório anual20 feito pelo Grupo Gay da Bahia.
Neste contexto meninos e meninas são perseguidos na escola durante jogos e
brincadeiras, na escolha do material escolar, na utilização dos banheiros, na não utilização do
nome social (mesmo nos casos em que o direito já está assegurado por lei)21, na violência moral
e física denunciada e silenciada pela família e/ou escola.
As situações de violência – que não se limitam ao ambiente escolar – tendem a
piorar na adolescência, culminando em situações limites em que o adolescente se sente
pressionado a deixar a escola por sofrer perseguições de outros estudantes, professores ou
funcionários, ou chega a ser expulso ao reagir a alguma violência sofrida.
Loiola (2009) ressalta os desdobramentos das situações de violência e
marginalização às quais a comunidade LGBTI+ é exposta:
O adolescente homossexual sofre uma série de castrações no convívio coletivo
cotidiano, não podendo revelar seus sentimentos, não encontrando espaços favoráveis
para o desenvolvimento de ideias positivas em relação à homossexualidade, torna-se
uma pessoa triste e amargurada em muitos casos (LOIOLA, 2009, p. 59).

O autor ressalta a importância da assunção da identidade LGBTI+, como forma de


“se livrar” da ansiedade, da tensão e da depressão de ter que se esconder. Ressalta que, embora
a trajetória da comunidade e de seus sujeitos sejam constituídas a partir das repressões e
segregações, suas reações e resistência têm produzido uma nova cultura.
De modo que o outro resultado de tudo isso são os movimentos comunitários de gays,
lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais organizados na luta pelos direitos humanos
no combate aos preconceitos a eles dirigidos. Um grande instrumento neste percurso
tem sido a visibilidade dessas categorias (LOIOLA, 2009, p. 55).

19
Projeto de estudo sobre ações discriminatórias no âmbito escolar, organizada de acordo com áreas temáticas, a
saber, étnico-racial, gênero, geracional, territorial, necessidades especiais, socioeconômica e orientação sexual.
Disponível em <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relatoriofinal.pdf>. Acesso em maio de 2017.

20
Relatórios de Assassinato de LGBT no Brasil. Disponível em
<https://homofobiamata.wordpress.com/estatisticas/relatorios/>. Acesso em maio de 2017.
21
Sobre utilização do nome social e reconhecimento da identidade de gênero. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8727.htm>.Acesso em outubro de
2018.
40

Neste sentido, Foucault (2017) aponta que as situações recorrentes de


silenciamento, repressão, invisibilização, mas também a exposição nas diferentes instituições,
discursos e meios dizem respeito de modo extremamente relevante à construção das identidades
dos homossexuais:

[...] o aparecimento, no século XIX, na psiquiatria, na jurisprudência e na própria


literatura, de toda uma série de discursos sobre as espécies e subespécies de
homossexualidades, inversão, pederastia e “hermafroditismo psíquico” permitiu,
certamente, um avanço bem marcado dos controles sociais nessa região de
“perversidade”; mas também possibilitou a constituição de um discurso “de reação”:
a homossexualidade pôs-se a falar por si mesma, a reivindicar sua legitimidade ou sua
“naturalidade”, e muitas vezes dentro do vocabulário e com as categorias pelas quais
era desqualificada do ponto de vista médico (FOUCAULT, 2017, p. 111).

É possível concluir então que embora o cotidiano de violência marque a trajetória


dos indivíduos LGBTI+ e seja uma realidade a comunidade tem se reinventado a partir desses
processos e criado individual e coletivamente formas de resistência à norma que também fazem
parte de suas identidades.
No próximo capítulo, buscar-se-á, a partir dos relatos de jovens LGBTI+ da região
do sertão dos Inhamuns, explicitar como as situações de LGBTfobia vividas no ambiente
escolar (e também fora dele) fazem parte da construção da expressividade, dos sentimentos e
das identidades desses sujeitos.

4 RELATOS DE LGBTFOBIA NO CONTEXTO ESCOLAR DE CRATEÚS


41

Optamos por fazer entrevista com apenas três pessoas por acreditar que conhecer
as histórias das construções destas identidades seria relevante, no sentido de que pode se ter a
possibilidade de aprofundar nas camadas e etapas dos diferentes processos de LGBTfobia
sofridos por esses sujeitos e dos consequentes desdobramentos em suas subjetividades.
Todos os nomes das pessoas entrevistadas são fictícios, no intuito de protegê-las de
possíveis repercussões negativas a respeito de situações de violência cometidas por outras
pessoas ou instituições. No mesmo sentido, foram omitidos os nomes das instituições de ensino
nas quais aconteceram as situações de LGBTfobia.
Os relatos foram colhidos pessoalmente, gravados (áudio em celular) e transcritos.

4.1 MIKA

Conheci a história de Mika através de colegas que desenvolviam projetos na escola


em que ele estudava. Na época, como mulher lésbica e pedagoga em formação, fiquei
extremamente incomodada com os relatos de lesbofobia ocorridos dentro de uma instituição de
ensino.
Deste modo, quando finalmente consegui delimitar o tema deste trabalho, tive
certeza de que o relato de Mika seria essencial na construção da memória da comunidade
LGBTI+ da região dos Inhamuns.
Consegui seu contato através das redes sociais. Já havíamos nos encontrado
algumas vezes, e eu havia comentado sobre o tema da pesquisa que pretendia desenvolver e
questionado sobre sua disponibilidade para participar e contribuir me contando sua história.
Seu relato mostra-se relevante por tratar a construção de uma identidade LGBTI+
no contexto rural do sertão dos Inhamuns.
Para além da necessidade de categorização ou encaixe para caber na sigla,
identifica-se como Mika, mulher lésbica, mas prefere ser tratado no masculino por compreender
que sua expressão de gênero é lida como masculina na maioria das vezes.
Marcamos a entrevista para a tarde, na casa em que Mika vive atualmente, em
Crateús. Iniciei o contato perguntando como ia seu dia até aquele momento. Mika, então,
respondeu que naquela manhã ele e um amigo passaram por um “baculejo” do raio próximo a
sua casa.
Mika me conta que foi interceptado por uma equipe do raio naquele dia, mas que
isso acontece sempre. Nas situações, Mika – ou amigos e conhecidos presentes – apressam-se
42

em lhe identificam como mulher lésbica, a fim de evitar que a revista seja feita por um policial
homem cis.
Na revista do dia em questão, Mika conta que um dos policiais falou que “pra
sociedade é homem. Na hora do baculejo quer ser mulher”. Outro policial lhe chamou e
perguntou seu nome completo no registro, em seguida, seu “apelido”; Mika diz que quando
respondeu, o mesmo disse que já tinha ouvido falar dela e lhe instruiu que estivesse sempre
com um documento de identidade para estas situações.
Nos documentos de registro, encontra-se Ana Micaela, sexo feminino, nascida em
outubro de 1999, na cidade de Fortaleza. Salienta, no entanto, que na foto do documento de
identificação aparece “assim mesmo: como eu sou”. Diz não se incomodar ao ser tratado por
“ele” ou “ela”, mas que muitas vezes esta situação causa confusão e constrangimentos para si
e para os outros.
Assim, Mika sempre se apresenta e é conhecido nos diversos grupos na cidade e
região por este nome e sua identidade e expressão de gênero podem ser compreendidas como a
de um jovem garoto negro. Deste modo, narra:
É confuso! Você chega assim no meio da rua – que eu já passo por isso todo dia
mesmo - e se apresenta como Mika; até que alguém solta um “ela” e as pessoas ficam
“ela?”, procurando saber. Aí eu fico assim meio constrangido pela forma que as
pessoas ficam na curiosidade. Eu prefiro “ele”. Porque aí já tá na forma (MIKA).

É possível observar tranquilidade em Mika ao falar sobre sua identidade ou as


formas em que prefere ser tratado, no entanto, como ele ressalta, situações como as citadas
acima fazem parte da sua rotina. Neste sentido, é possível refletir o que propõe Butler (2003):

Considerando que a articulação de uma identidade nos termos culturais disponíveis


instaura uma definição que exclui previamente o surgimento de novos conceitos de
identidade nas ações politicamente engajadas e por meio delas, a tática fundacionista
não é capaz de tomar como objetivo normativo a transformação ou expansão dos
conceitos de identidade existentes (BUTLER, 2003, p. 36).

Essa “definição” de identidade hegemônica, alicerçada sobre a determinação e


articulação entre o sexo, o gênero e o prazer, apontada por Butler (2003), e a consequente
exclusão do surgimento de novos conceitos de identidade podem ser vistas nas práticas e
vivências de Mika.

Seja em suas próprias reflexões sobre sua identidade, nos limites das análises dos
outros indivíduos ou instituições sobre a mesma, a leitura das identidades LGBTI+, bem como
outras identidades pertencentes a recortes politicamente minoritários, está sempre recortada
antecipadamente por esta análise pré-discursiva.
43

No entanto, é extremamente importante refletir, como ressalta a autora, que as


infindáveis possibilidades do gênero não foram, são ou serão sempre facultadas a partir dessas
fronteiras. O que precisa ficar evidente é que as fronteiras “sugerem limites de uma experiência
discursivamente condicionada”; objetivando, deste modo, na rotina da Mika e outros sujeitos
situações como as relatadas.

Sobre o momento de sua assunção, Mika diz que quanto tinha treze anos assumiu
para a mãe que era lésbica e que a primeira reação foi violenta – acontecendo mesmo agressão
física – no entanto, foram poucos dias para que a mãe aceitasse e questão de um mês para ela
se adaptasse. Diz:

O difícil foi só o resto, porque eu já tinha o apoio dela! Mas eu acho que a mãe já
sentia desde criança. Não tinha como esconder. Eu usava as roupas do meu irmão. Ela
mesma me vestia. Eu que usava as coisas do meu irmão mais novo. Coisa de mãe...
Dava pra saber já (Mika).

Ressalta que hoje, principalmente, compreende a reação violenta de sua mãe no


primeiro momento:

Foi só porque ela tava bêbada e eu cheguei no impacto: “mãe, eu gosto de mulher. Eu
sou sapatão”. E aquilo ali assustou ela. Depois ela me disse a reação dela quando
sentou e pensou “como é que eu vou conseguir aguentar o que minha filha vai passar
junto com ela?” (Mika).

Neste sentido, Louro reflete sobre as dificuldades de reconhecimento e


pertencimentos das identidades diversas das hétero-cis, inclusive para os indivíduos nos quais
elas vêm se constituindo individual e coletivamente:

Há ainda uma difícil barreira de sentido a superar: para que um/a jovem possa vir a se
reconhecer como homossexual, será preciso que ele/ela consiga desvincular gay e
lésbica dos significados a que aprendeu a associá-los, ou seja, será preciso deixar de
percebê-los como desvios, patologias, formas não-naturais e ilegais de sexualidade.
Como se reconhecer em algo que se aprendeu a rejeitar e desprezar? Como, estando
imerso nesses discursos normalizadores, é possível articular sua (homo)sexualidade
com prazer, com erotismo, como algo que pode ser exercido sem culpa? (LOURO,
1997, p. 84).

Conclui-se, com base no trecho da autora e nos relatos de Mika, que a rotina de
construção das identidades LGBTI+ é entrelaçada a diversos processos que produzem e
questionam, a todo o tempo, sobre seus efeitos nos corpos e subjetividades dos indivíduos.

Mika nasceu em Fortaleza e viveu na cidade até os oito anos de idade. Nesta época,
sua mãe trabalhava dois turnos numa pizzaria, e Mika era o irmão responsável pelos mais novos.
A família vivia em apartamentos alugados com dois cômodos, me conta.
44

Sua mãe é cozinheira e hoje trabalha em um restaurante da cidade de Independência.


No entanto, por quase dez anos, trabalhou como cozinheira e viveu numa casa que ficava nas
dependências de uma escola de educação contextualizada da zonal rural da região.

Deste modo, mesmo antes de ingressar na escola como estudante Mika já conhecia
a rotina, alguns monitores, outros estudantes, os espaços e as normas da escola.

Relata que ingressou na escola comunitária particular de período integral em 2012


para cursar o primeiro ano do Ensino Médio. Já conhecia tanto a escola, como os profissionais
que atuavam no espaço na época. Porém, quando entrou na escola como estudante, adotou a
postura de estudante para não ter tratamento diferente dos demais; evitando contatos ou
intimidades vindos das situações de convivência anteriores através do trabalho da mãe.

Em umas das situações de bullying lesbofóbico vividas por Mika dentro da escola,
um de seus monitores – seu professor em algumas disciplinas do currículo obrigatório – dentro
da escola, no horário de campo, enquanto Mika limpava as mesas do refeitório lhe disse:

Qualquer dia eu te pego e faço tu virar mulher totalmente (Monitor).

Na situação, Mika abaixou a cabeça e continuou a atividade. Assim que pôde,


contou para a mãe, que, com medo de sua expulsão, pediu que não contasse nada a ninguém.

A partir desse episódio, conta que:

[...] ele encarnou em mim. Disso ele começou a se intrigar comigo; tudo que eu fazia
era errado. Minhas provas: eu podia era botar certo, que ele botava errado, botava nota
baixa. Começou a colocar outros alunos para vigiarem o que eu fazia e não fazia; até
que uma colega me viu ficando com minha namorada nos alojamentos e contou para
os monitores (Mika).

Acredita que foi o pior momento, porque começou a receber tratamento diferente
dos monitores e todos os outros estudantes perceberam, o evitavam nos corredores da escola,
cochichavam quando passava. Conta que chorava todos os dias, pois tinha medo do que iria
acontecer, pois via muito na televisão e conhecia a história de seu padrinho, que foi assassinado
por espancamento, em Fortaleza, ao ser visto com seu namorado na praia.

Compreende-se neste sentido que a representação de lésbicas, gays, bissexuais,


transexuais, intersexuais é, cotidianamente, marcada por situações de violência e omissão das
mesmas em diferentes locais, graus e níveis e, deste modo, o processo de autoconstrução dessas
imagens passa pela ressignificação de situações de opressão e violência.
45

A lesbofobia sofrida por Mika dentro do ambiente escolar, praticada por um


professor, silenciada pelo medo e vergonha de uma mãe – que já tivera um amigo gay vítima
fatal de homofobia – dizem que as representações constituídas a respeitos das nossas
identidades e corpos fazem parte dos processos que os produzem. Assim:

Estamos aqui operando a partir de uma perspectiva teórica que entende a


representação não como um reflexo ou espelho da realidade, mas como sua
constituidora. Nessa perspectiva, não cabe perguntar se uma representação
“corresponde” ou não ao “real”, mas, ao invés disso, como as representações
produzem sentidos, quais seus efeitos sobre os sujeitos, como elas constroem o “real”
(LOURO, 1997, p.99).

Deste modo, nas situações acima, denuncia-se a urgência da necessidade de


inclusão dos estudos sobre gênero e sexualidade nos currículos dos cursos de formação de
professores, bem como maior abertura para que toda a comunidade possa falar dos mesmos.

Pode-se citar o fato também de que a legislação penal brasileira é completamente


omissa em relação à LGBTfobia. Assim, a morte do padrinho de Mika foi registrada como
homicídio.

No mesmo desenrolar de negligência e invisibilidade, os soldados do batalhão do


raio e as delegacias de polícia civil não têm protocolo (treinamento de pessoal, boletins de
ocorrência, estrutura física, etc.) para recepção da população LGBTI+, seja como vítima ou
praticante de ato contrário a lei.

Quando começou a se sentir perseguida na escola, Mika teve uma conversa com a
mãe sobre a situação. A mesma lhe deu apoio para sair, caso desejasse, mas Mika tomou uma
decisão e lhe comunicou: “Já que eu sou a única sapatão da escola, eu vou ficar e eu quero ver
o quê que eles vão fazer comigo!” (Mika).

Diz que sabia que ao assumir essa postura de resistência ia passar preconceito, mas
confessa que no momento encarou como brincadeira.

Conta que o núcleo gestor procurou sua mãe, avisando que sua filha corria risco de
expulsão por causa de suas notas. Mas Mika, que já estava no segundo ano do Ensino Médio,
sempre tivera boas notas, mesmo acima da média, tirando notas entre oito e nove, chegando a
receber medalha de segundo lugar como melhor aluno nesta escola.

Na conversa que a gestão teve com Jéssica, namorada de Mika na época, chamaram
atenção para suas notas e para “o que ela andava fazendo”. Enquanto para Mika foi mostrado
46

um boletim com notas vermelhas e lhe informado que não precisaria dar continuidade ao seu
projeto – que incluía uma pocilga, um aviário e uma horta, no qual já haviam sido investidos
aproximadamente quatro mil reais. Quando teve a confirmação do motivo da expulsão, Mika
destruiu o que já havia encaminhado de seus projetos.

Após a expulsão, Mika continuou tendo contato com alguns colegas da escola e
também continuou a viver, praticamente, dentro da escola, pois a mãe continuou a trabalhar na
escola e sua casa ficava nas dependências da mesma.

Foi deste modo que soube por algumas colegas, que ouviram do banheiro feminino
– onde algumas estudantes costumam estudar no período da noite (porque as luzes dos
dormitórios e alojamentos ficam desligadas), e que fica próximo da coordenação da escola –
que o motivo da expulsão era o fato de que Mika e Jéssica estavam “fazendo coisas incertas”
no alojamento. Mika nega, pois diz que sempre teve respeito pelas outras colegas com quem
dividiam o espaço.

Neste sentido Guacira Louro ressalta que:


É indispensável que reconheçamos que a escola não apenas produz ou reflete as
concepções de gênero e sexualidade que circulam na sociedade, mas ela própria as
produz, podemos estender as análises de Foucault, que demonstram o quanto as
escolas ocidentais se ocuparam de tais questões desde seus primeiros tempos, aos
cotidianos escolares atuais, nos quais podemos perceber o quanto e como se está
tratando (e constituindo) as sexualidade dos sujeitos (LOURO, 1997, p.81).

Torna-se muito evidente, então, que Mika foi vítima de um conjunto de elementos,
que culminaram com sua expulsão: desde a lesbofobia sofrida nos corredores da escola,
principalmente quando vinha de monitores e funcionários e a violência institucional; indiferente
a estudos que poderiam ser relevantes para o combate de situações de assédio e bullying, assim
como também o comportamento moral da gestão da escola em questão.

Rich (1993) lembra, entre outras formas de poder sobre as mulheres citadas por
Kathleen Gough (1975), “a negação de sua sexualidade e o restringir de sua criatividade ou
retirá-las de amplas áreas de conhecimento e realização”. E, assim, conclui:

Economicamente em desvantagem, as mulheres, sejam garçonetes, sejam professoras


titulares toleram o assédio sexual para se manter em seus empregos e aprendem a se
comportar de uma maneira heterossexual complacente e agradável porque elas
descobrem que essa é sua verdadeira qualificação para ter emprego, qualquer que seja
o tipo de emprego (RICH, 1993, p. 29).
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A coordenação da época era de responsabilidade do mesmo professor que durante


mais de um ano havia perseguido, ameaçado, diminuído as notas e assediado Mika, ameaçando-
a de estupro corretivo, como relatado acima.

Este mesmo professor falou que Mika e a namorada “eram duas pessoas
irresponsáveis, de tá fazendo essas coisas numa escola muito conhecida, conhecida
internacionalmente”.

Após sua expulsão, e através das conversas que continuaram pelos corredores da
escola, e mesmo na coordenação, Mika teve certeza de que o motivo de sua expulsão da escola
era o preconceito e compareceu a uma reunião de estudantes e monitores, onde falou para os
presentes: “Eu vim me despedir de vocês e vim falar aqui, pra todos vocês ouvirem, que a escola
ainda vai pagar muito caro pelo que eles estão fazendo comigo e o que eles fizeram” (Mika).

Mika conta que seus colegas demonstraram apoio com aplausos e gritos e foi
perceptível o desconforto dos professores e do grupo gestor; mas como já não era estudante da
escola, os mesmo não puderam mais uma vez lhe penalizar.

É possível observar na situação vivida por Mika e por sua namorada a negação da
possibilidade de sua sexualidade e afetividade e também a negação para Mika de continuar com
o desenvolvimento do seu projeto, como uma negação direta ao seu direito de produção na área
de estudo em que estava na época.

Hoje acredita que resistiu mais tempo no ambiente e aguentou muita coisa calada,
porque queria saber o que poderia passar e aguentar quando fosse pro “mundo mesmo”, e
compreendeu que “do jeito que acontece na escola, acontece na rua também”.

Fora do ambiente escolar, nas ruas de Independência, relata que já teve que reagir
fisicamente a um homem que no meio da madrugada, interceptou Mika e sua namorada, dizendo
que “hoje eu vou comer teu cu pra tu virar mulher”.

O homem, que chegou a segurar e apertar com tanta força os seus braços, deixando
hematomas nos dias seguintes, foi ferido com um talher na reação de Mika e chegou a chamar
a polícia, que, no entanto, não compareceu ao chamado.

Sobre as reações de Mika às violências que costuma sofrer no cotidiano, conta que
sua mãe, às vezes, reclama de algumas de suas atitudes, mas que ela compreende que em
48

situações como as relatadas acima, as reações de Mika são sua forma de resistir e passar por
elas.

Após a expulsão da escola de educação contextualizada, Mika entrou em uma


escola da rede estadual, na zona urbana de Independência. No primeiro dia de aula, durante o
intervalo, um estudante o provocou dizendo ter nojo de sapatão; Mika respondeu dizendo que
o mesmo saísse de perto, mas quando se virou o estudante jogou suco em suas costas; Mika,
então, reagiu e agrediu fisicamente o menino. Acabou sofrendo sendo expulsa desta escola
também.

No terceiro ano do Ensino Médio – estudando em uma terceira escola – Mika conta
que não foi tão difícil porque já tinha colegas que estudavam na mesma escola. No entanto,
relata que, no Dia do Estudante daquele ano, houve uma festa. Os estudantes foram avisados
por uma professora em sala de aula que poderiam ir fantasiados ou vestidos como quisessem
para comemorar, “menos a Ana, que já era toda confusa”.

Mika discutiu com a professora, foi levado à gestão e, mais uma vez, expulso. Diz:
“Fui expulso porque eu me defendi!”.

Após a terceira expulsão, Mika voltou para a segunda escola aqui citada. Conta que
a recepção foi diferente. Que agora todos o tratavam por Mika.

Relata que nesta época começaram a aparecer notícias de outros LGBTs se


assumindo na região; outras meninas cortando o cabelo e, em suas palavras, “Foi aparecendo
aquele colorido na cidade”. Diz que se sente, de certa maneira, especial, por ter ajudado muita
gente a se abrir, pois vários adolescentes o procuraram para conhecer sua experiência.

Mika salienta que o apoio de sua mãe foi e continua sendo essencial, mas ressalta
que ainda têm que enfrentar outros membros da família.

Conta que quando seu avô materno faleceu, no ano passado, dois tios que moram
em outra região do país, impediram que acompanhasse o funeral que aconteceu na casa do
mesmo. Mika resistiu e acompanhou o momento na igreja, ficando ao lado do caixão, temendo
que alguém o expulsasse. Relata que a tensão do momento foi tão grande que desmaiou e
recebeu atendimento de enfermagem.

Mika relata que sua avó materna distribui presentes para os outros netos e que
geralmente recebe indiferença da mesma. Por conta disso, sua mãe acaba lhe dando atenção,
49

que compreende ser uma forma que ela tem para compensar o tratamento injusto e diferente
que recebe dos outros.

Seu irmão mais velho já chegou a agredir fisicamente o irmão mais novo dos dois.
Segundo Mika, seu irmão mais novo tem jeitos afeminados desde muito cedo. Diz que conversa
com ele e sente que ele tem medo, mas que também ainda é muito criança, apenas doze anos.
Conta que ele gosta muito de maquiagem, tem uma página nas redes sociais onde publica suas
makes e Mika já lhe pagou inclusive um curso na área.

Relata que Felipe, seu irmão mais novo e citado acima, sofreu bullying homofóbico
na escola este ano, por parte dos professores. Mika, então, procurou a escola:

Eu cheguei lá já tava com muita raiva mesmo. Disse que não queria tratar ninguém
com ignorância, mas que era a última vez que meu irmão e seus amigos seriam
“zoados”. Botei todo mundo na história, pra não defender só meu irmão. Porque é
uma coisa que já é difícil. Ainda mais que são crianças. Não sabem o que falar. Meu
irmão chegou a ter começo de depressão por causa dessa “brincadeira” de mau gosto
dos professores [...] Dessa vez, a escola parece que ficou com um certo medo de mim
e chamou minha mãe e a tia (que cria seu irmão). Realmente minha tia e minha mãe
chegaram lá e disseram que eu estava certo, que eles eram crianças e que os
professores deveriam estar ajudando e não rindo da forma como eles se comportam
(Mika).

A família de Mika chegou a pensar em apelar para a justiça por conta do bullying
homofóbico sofrido por seu irmão, mas a escola a procurou com desculpas, explicando que não
teria como se envolver em um processo na justiça e prometendo tomar as providências para que
a situação não voltasse a se repetir.

Sobre o cuidado com o irmão mais novo, Mika diz: “Eu sou o pai que ele não teve.
Tento fazer tudo por ele. Tudo que a mãe não fez comigo por não saber o que tava acontecendo,
porque eu também escondi muita coisa da mãe” (MIKA).

Após escutar o relato de Mika sobre a LGBTfobia sofrida na escola de educação


contextualizada, nas outras escolas onde cursou o ensino médio, em seu cotidiano, seja com
conhecidos ou familiares ou completos estranhos, perguntei se ele gostaria de acrescentar algo
e me disponibilizei para conversar pelo whatsapp, caso lembrasse de outros fatos que achasse
importante ser acrescentados neste trabalho para a sua história.

Algumas horas após nos encontrarmos, Mika me enviou mensagens onde relatou
que quando tinha 12 anos de idade, o companheiro de sua mãe, o abusou sexualmente. Nas
mensagens, disse que:” [...] nunca falei pra minha mãe pq [sic] ela gostava muito dele então nn
50

[sic] arrumei conflito. Fiz errado!! Mais nn [sic] sou de contar isso pq [sic] foi uma fase muito
ruim e quando me recuperei foi ai q [sic] eu me assumi “(Mika).

Receber as mensagens de Mika sobre o abuso sexual sofrido na infância, seu


silêncio e o fato de acreditar ter “feito errado” ao não denunciar o padrasto à mãe foi algo
extremamente difícil de refletir. Difícil porque doloroso e por já compreender que este cenário
não é raro para as crianças LGBTI+.

É importante que este fato da história de Mika não seja compreendido, como aponta
Rich (1993, p. 42), quanto um fator que caracterize sua existência lésbica “como simples
refúgio dos abusos masculinos”. A autora compreende a união de duas mulheres como “uma
carga elétrica de empoderamento”.

Mas que seja analisado do ponto de vista exposto por Preciado (2002) ao tratar dos
cuidados em torno do tato e da pele na sociedade ocidental a partir do século XVIII e XIX e
todos os abusos impostos aos corpos destes então em um possível processo docilização, que
naturaliza as violências vividas.

Segundo Preciado (2012), em detrimento do tato e da pele, a visão passa a ser o


sentido reconhecido como apropriado para o conhecimento e ação racional, pois aqueles são os
“denominadores comuns” das formas de contaminação da época.

Reflete, então, que foi delegada à pele burguesa europeia todo o cuidado a fim de
afastá-la do contágio sexual e da contaminação colonial, de tal modo que se constituiu o que
chama de “pornô-cartografia”, a partir da qual a história sexual do corpo burguês europeu pode
ser decodificada através de um olhar, sem necessidade de toque.

Qual o trato, então, dado ao corpo do outro? O corpo do colonizado e do negro? Da


mulher e dos homossexuais? Das prostitutas e dos drogados? Dos loucos e dos doentes? Qual
tratamento despendido aos corpos medicamentados e docilizados, depois de estudados? Como
eles são estudados? Quem os estuda e por quê?

O corpo do outro aparece nas relações de poder como um território que pode ser
invadido, medido, remarcado, dividido, estudado.

Deste modo, o corpo da criança – neste caso específico o da criança LGBTI+, com
suas feminilidades e masculinidades expressas e negadas pela maioria a sua volta – aparece
completamente desprotegido. A criança não sabe como enunciar a situação pela qual está
51

passando. Como no caso citado, muitas vezes o agressor é alguém próximo, em quem os adultos
em volta depositam confiança.

O abuso sexual infantil é crime previsto na legislação brasileira.

Até o início deste ano, Mika trabalhou cuidando de um idoso na cidade de


Independência. Este emprego era irregular e pagava a Mika a quantia de duzentos e cinquenta
reais, quantia utilizada para pagar a mensalidade do curso de licenciatura em letras com
habilitação em inglês. Mika vivia no local de trabalho e tinha horários restritos para voltar para
casa, mesmo no período da noite.

Depois de algum tempo trabalhando no local, Mika descobriu que o idoso era um
abusador de menores e acredita que durante o tempo em que permaneceu no trabalho, não sofreu
nenhum tipo de abuso ou assédio, pois ele sempre acreditou que Mika era um homem cisgênero.

Assim como Mika – mulher lésbica que tem expressão de gênero marcadamente
masculina – muitos sujeitos da comunidade LGBTI+ só conseguem trabalhar em setores
informais.

Quanto mais distante a performance de uma mulher lésbica está da feminilidade


hegemônica, maiores são as situações e os graus de lesbofobia a qual a mesma está exposta.
Isso pode ser observado, inclusive, na expulsão de Mika da escola, o que não ocorreu com sua
namorada, que possuía performatividade mais marcadamente feminina. Ou com seu padrinho,
que, segundo Mika, era o mais afeminado do casal, e por isso apanhou até a morte, diferente do
seu namorado.

Atualmente, Mika vive em Crateús na casa de um amigo, com a família do mesmo,


constituída pela mãe e duas irmãs menores, e alguns amigos que sempre estão na casa.

Mika explica que todas as situações do antigo trabalho e mais a saúde do amigo que
ficou debilitada, por conta de uma bactéria no intestino – fazendo com que ele precisasse de
ajuda ou para que Mika ficasse na casa, quando precisa viajar – foram fatores que determinaram
para que ela viva na casa deste amigo agora.

Não está à procura de emprego. Conta, inclusive, que a vizinhança do seu antigo
emprego lhe fez boas propostas, mas que atualmente quer se dedicar a cuidar do amigo,
enquanto o mesmo e sua família necessitarem da ajuda e companhia que tem oferecido como
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pode, seja acompanhando-o ou ficando na casa com sua família, quando o mesmo tem que se
ausentar.

Pergunto à Mika sobre seus relacionamentos com as garotas; quem são essas
garotas, se os relacionamentos costumam ser assumidos ou secretos, etc. Relata, então, que nas
festas muitas garotas heterossexuais “chegam” nele, aparentemente – segundo sua impressão –
para experimentar e diz que não acha legal, se sente usado nessas situações. Muitas garotas só
querem ficar escondidas, nos banheiros, onde Mika é frequentemente barrado.

Conta que nos clubes o momento da portaria sempre é um constrangimento, pois os


seguranças homens cis querem revistá-lo e nessas situações tem que se identificar e insistir que
é uma mulher lésbica. Nesse contexto, já escutou das seguranças “se é mulher, veste roupa de
mulher pra não ficar confundindo nossas cabeças”.

Pergunto a Mika como tem sentido sua rotina na cidade ser afetada pelo clima das
eleições22 e dos espaços que vem sendo ocupados por discursos conservadores e de ódio e ele
responde:

As pessoas ainda têm a cabeça muito fechada pra esse assunto LGBT. Um dia desses,
sentado no banco da praça, vi duas pessoas com a camisa do canditado Jair Bolsonaro,
reconhecidamente homofóbico, racista, machista e outras coisas. Essas pessoas
parecem que tão pedindo pra morrer. Cada vez fica mais difícil. E eu não tô nem aí.
Foda-se! Pode vim polícia, pode vim qualquer coisa: o peito não é de ferro, mas ele
aguenta muita coisa. Aguentou muita coisa, por que não vai aguentar hoje? (Mika).

4.2 FÁBIO

Conheci Fábio, através de conhecidos, em um evento pelo Dia da Mulher numa


escola da rede estadual da cidade. Ainda o encontrei em alguns outros ambientes como praças
e festas. Em alguma destas ocasiões os grupos falaram sobre LGBTfobia e Fábio demonstrou
compreender o quanto esta violência marca sua identidade e também a de outros jovens gays e
negros.

Deste modo, compreendemos que os relatos de Fábio mostram-se relevante


inclusive pelo fato do mesmo já ter sido capaz de identificar possíveis marcas que estas
situações de violência deixaram em sua subjetividade.

22
As eleições de 2018 elegeram deputados estaduais e federais, senadores, governadores e o presidente da
república.
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A entrevista aconteceu na minha casa, pois Fábio achou que fosse o lugar mais
confortável. Disse que em sua casa não seria viável pelo barulho, falta de espaço e também
porque não se sentiria à vontade para conversar sobre o assunto em casa.

Fábio tem vinte anos e se identifica como homem cis-gênero gay. Concluiu o
Ensino Médio no ano passado e atualmente está desempregado, e de mudança para a cidade de
Fortaleza, junto com a mãe.

Neste momento vive com a mãe, o padrasto, as duas irmãs e seus dois filhos – um
de cada uma, com quatro e dois anos – e uma cunhada.

Relata que teve contato com o pai – que era cozinheiro de um hospital – enquanto
viveu em Fortaleza – com quem suas irmãs e ele passavam os fins de semana –, mas que sempre
sentiu da parte do mesmo como o cumprimento de uma obrigação e não como afeto. Quando
passava os fins de semana com o pai, preferia ficar na casa dos padrinhos – que ficava próxima
–, com quem se sentia mais acolhido e tratado sem diferenciação.

Nascido em Fortaleza, mudou-se com a família, para Crateús, em 2011. Na época,


com 12 anos de idade, iria cursar o 8º ano, no entanto, a gestão da escola local, matriculou-o no
6º ano, justificando ser esse o procedimento para alunos vindos de outras regiões. Ademais, no
ano de 2015, quando cursava o 2º ano do Ensino Médio, reprovou por não comparecer à
recuperação nas férias.

Relata que, desde a infância, dançava, colocava panos na cabeça para fazer perucas
improvisadas e performances de cantoras e divas. Sua mãe nunca se importou, mas lembra de
que não fazia essas coisas em frente ao pai. Certa vez, quando flagrado, o pai lhe mandou dançar
como homem.

Assim, Fábio conta que as situações que mais marcaram sua identidade,
principalmente como gay, aconteceram com sua família, desde a infância.

Relata que, principalmente a família de seu pai, sempre o ignorou, tratando-o


diferentes das irmãs que – como percebe hoje – sempre foram vistas como duas crianças
“normais”, brancas, gêmeas; enquanto ele era o menino negro, afeminado e sempre solitário.

Sobre essa leitura dos outros sobre si, que Fábio conseguia identificar, Andrade
(2012) reflete:
54

Uma criança pode ser biologicamente do sexo masculino, mas, quando apresenta este
comportamento, que convencionamos chamar de feminino, nas brincadeiras e nos
gestos, ela passa a ser vítima dos professores, dos gestores, dos funcionários, dos pais
e dos alunos que condenam e tentam, a qualquer custo, corrigir essa inversão
(ANDRADE, 2012, p. 73).

Lembra que a vida escolar inteira foi solitária, mas que em alguns momentos era
mais próximo de algumas meninas. Nos intervalos preferia ficar na sala de aula. E que no ensino
médio saiu mais com pessoas de fora da escola. Nunca se sentiu bem para participar das
atividades escolares, pois não se sentia incluso.

Conta que, na adolescência, nem os meninos nem as meninas se sentiam atraídos


por ele, e que isso contribuiu para a sensação e relação de isolamento que estabeleceu e
estabelece com os outros.

Em relação a este isolamento que Fábio sentiu em muitos momentos na vida escolar
e também familiar Britzman (1996) reflete:

De algum modo, não saber sobre essas comunidades parece que funciona como uma
espécie de garantia de que o/a estudante irá preferir ser heterossexual. Acrescenta-se
a esse quadro a ideia de que se uma pessoa fala, de modo simpático, sobre gays e
lésbicas, ela se torna suspeita de ser homossexual (BRITZMAN, 1996, p. 79,80).

Deste modo, é possível compreender que o isolamento que Fábio sentiu era real e
o resultado prático da articulação de diversos discursos homofóbicos.

Conclui-se, pois, que ao não se falar das afetividades e das identidades sexual e de
gênero das e dos estudantes, a escola deixa vazio um espaço de diálogo essencial não só para
crianças e adolescentes LGBTI+ que sofrem bullying homofóbico dentro das escolas, mas
também de estudantes e outros sujeitos do ambiente educacional (funcionários, professores e
responsáveis) identificados no padrão cis-hétero que podem sofrer violências de gênero,
assédios e abusos.

Compreende-se, ainda, que os discursos homofóbicos difundidos nos diversos


meios fazem com que muitas das crianças tratem colegas de classe LGBTI+ com violência ou
indiferença.

Pergunto se ele se recorda de ter momentos na escola que falassem sobre


sexualidade, e ele responde que, às vezes, tinha alguma palestra sobre DSTs, mas sempre
ligadas apenas à saúde, nunca às relações.
55

Esse processo experienciado por Fábio reflete o que Foucault (2017) chamou de
mecânica do poder. Segundo ele, essa mecânica atribui aos corpos “uma realidade analítica,
visível e permanente”:

Encrava-o nos corpos, introduz-lo nas condutas, torna-o princípio de classificação e


de inteligibilidade e o constitui em razão de ser e ordem natural da desordem.
Exclusão desses milhares de sexualidades aberrantes? Não, especificação,
distribuição regional de cada uma delas. Trata-se, através de sua disseminação, de
semeá-las no real e de incorporá-las ao indivíduo (FOUCAULT, 2017, p. 49).

Reflete-se, então, que as diferentes experiências de aceitação ou exclusão vividas


pelos sujeitos podem ser consideradas a aplicação dessas técnicas, bem como, já o efeito de sua
incorporação à subjetividade dos indivíduos.

Sobre os diferentes momentos e agentes implicados pelo que Foucault chamou de


mecânica do poder, Fábio me relatou que quando tinha aproximadamente dez anos, em uma
reunião com tias e primas, foi questionado se já ficava com meninas, porque fazia as coisas que
as meninas faziam, porque não se comportava como os outros meninos. – Sobre essa situação,
mostra-se relevante a observação de Louro (1997):

É necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a


forma como as características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou
pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em
uma dada sociedade e em um dado momento histórico (LOURO, 1997, p. 21).

Reflete-se, deste modo, sobre os diferentes discursos que constroem e legitimam o


binarismo expresso em todas as relações.

Assim, o momento que Fábio viveu com a família expressa como a mesma
funciona, na maioria das vezes, como uma instituição que reproduz acriticamente a maioria dos
discursos que legitimam diferenças nos comportamentos, gostos, relações, direitos, deveres,
etc. alicerçadas no binarismo masculino/feminino e suas condutas sexuais.

Neste sentido, Fábio conta que suas tias sempre foram religiosas e levavam-no para
a igreja evangélica, que na infância, chegou a apanhar de algumas delas e também de sua mãe,
“porque tinha que ser bem menininho”. Relata que isso se estende até hoje; que reclamam se
usa roupa curta, já ouviu da família que não consegue emprego porque é muito viado.

Diz que quando se assumiu para a família se compreendia como bissexual, mas que
hoje se compreende como gay e já informou isso à família. No entanto, diz que a família
continua o tratando e comunicando-o às outras pessoas como bissexual, o que o incomoda, pois
56

sente que isso só ocorre porque as pessoas compreendem a bissexualidade como mais próxima
da norma. Conta que sua mãe ainda expressa a vontade de que ele constitua uma família hétero.

Fábio me conta que ficou com o primeiro menino aos 17 anos. Mas que, desde que
se lembra, sente atração por meninos e que chegou a ter contatos íntimos com dois primos na
infância.

Sobre o processo de construção das identidades sexual e de gênero, Louro (1997)


reflete:

Não é possível fixar um momento – seja esse o nascimento, a adolescência, ou a


maturidade – que possa ser tomado como aquele em que a identidade sexual e/ou
identidade de gênero seja “assentada” ou estabelecida. As identidades estão sempre
se constituindo, elas são instáveis e, portanto, possíveis de transformação (LOURO,
1997, p. 27).

A reação da mãe no momento em que se assumiu foi tranquila, mas essas situações
de LGBTfobia fazem parte do seu cotidiano familiar.

Compreende que certas situações fazem parte da rotina de preocupação das famílias
que são minimamente receptivas com seus familiares LGBTs. Conta, por exemplo, que no
carnaval do ano de 2018 a mãe não o deixou sair com um short curto e que após discutirem ela
só o liberou depois que ele aceitou sair de casa de mototáxi.

Sobre a reprovação no 2º ano do Ensino Médio, me conta que na época começou a


namorar outro garoto e que uma de suas irmãs descobriu e passou a persegui-lo por isso, pressão
que o obrigou a se assumir. Deste modo, em julho daquele ano a irmã começou uma espécie de
chantagem, com “brincadeiras” dentro de casa cada vez mais pesadas sobre sua orientação
sexual. Relata que ficou muito mal, não se sentia bem em casa, tampouco na escola.

Relata, ainda, que a recuperação foi no início do ano; na época estava se sentindo
burro e atrasado e não sentia nenhuma motivação para tentar não reprovar de ano, assim, decidiu
viajar para uma cidade vizinha.

Atualmente, diz que se sente muito “aleatório em casa. Parece que eu não faço parte
daquelas pessoas”. Relata que nunca levou um namorado em casa porque não sente este
ambiente como um espaço confortável ou seu.

Relata da época que namorou um garoto que a sua mãe chegou a conhecer pelas
redes sociais. No entanto, a família do outro jovem não aceitava a relação dos dois, e eles
mantiveram a relação escondida. Esta família já sabia da orientação sexual do filho, mas quando
57

a mãe do garoto o viu com Fábio, disse que não queria que o filho andasse com uma pessoa
como ele e que eles não deveriam ficar juntos.

Fábio hoje compreende que esta relação foi profundamente marcada por
preconceitos raciais e de classe, não só dos pais do seu namorado, mas dele mesmo, que era um
garoto branco gay de classe média.

Diz que sua mãe ressalta que as irmãs deram trabalho levando namorados para casa,
mas que ele nunca fez isso. Fábio sente que é um reforço – que chega a parecer elogio - que a
mãe lhe dá, mas que em seu cotidiano sente como mais uma restrição.

Ele me diz não interagir com a rotina de sua família. Passa o dia no quarto, com
fones de ouvido, saindo apenas para as refeições ou alguma atividade do cotidiano, como buscar
os sobrinhos nas creches, pagar contas, etc.

Sobre a situação financeira de sua família, Fábio me conta que uma de suas irmãs
– a já citada acima – atualmente vive uma relação lésbica, e sua namorada vive na casa, junto
com a família de Fábio. A família da garota era muito abusiva e ele relata que ela começou
ficando os fins de semana, até se mudar completamente para a casa.

Esta irmã tem uma filha de 4 anos. No período eleitoral esteve empregada em um
comitê eleitoral, recebe a pensão da criança – a quantia de 200 reais – e uma quantia do
programa Bolsa Família.

Sua outra irmã, atualmente desempregada, tem um filho de dois anos, e vive do
benefício do Programa Bolsa Família. As duas irmãs de Fábio cursaram apenas até o 9º ano do
Ensino Fundamental.

Como todos na residência estão desempregados, Fábio relata que eles vão cortar a
internet em casa, pois no contexto, esse é um privilégio que eles não podem mais ter. Já
espalhou currículos pelo comércio da cidade e também na agência do SINE (Sistema Nacional
de Emprego) da cidade, mas até o momento não teve retorno.

Fábio e a mãe pretendem se mudar para Fortaleza em breve.

____________________________________

Disponibilizei-me para ouvir de Fábio mais algum relato que ele considerasse
relevante, caso lembrasse depois ou não tivesse se sentido a vontade para falar pessoalmente.
58

Assim, no dia seguinte à visita, Fábio procurou-me pelo whatsapp e me contou que tinha
pensado muito e decidido me contar outras coisas que tinham lhe acontecido.

Por meio das mensagens de texto, Fábio relatou que quando tinha aproximadamente
8 anos de idade, o namorado de sua mãe da época, começou a abusar dele. Relatou que a mãe
estava sempre trabalhando e deixava suas irmãs e ele com o namorado. Diz que a mãe nunca
desconfiou de nada.

Quando tinha aproximadamente 11 anos teve uma relação com um primo mais
velho, que já tinha 17 anos na época.

Ainda através das mensagens, Fábio contou que durante um tempo suas irmãs
viveram com seu pai. Nessa época, Fábio começou a passar os fins de semana em sua casa para
não perder o contato com as irmãs. Conta que o pai sempre o tratava mal, repreendia-o e também
o agredia por qualquer coisa; até que, em um dia em que ficaram sozinhos, seu pai o estuprou
durante um banho.

É possível refletir como situações de abuso vividas no ambiente doméstico são


nocivas para o desenvolvimento de uma criança. Certamente refletem nos momentos de não
inclusão em outros espaços ou em casa, nas dificuldades de contato e de compartilhar
experiências.

Neste caso, acrescentam-se ainda questões de etnia, classe e sexualidade. O corpo


abusado é o corpo de um menino, negro e afeminado. Compreende-se a relação de poder
estabelecida, a garantia de silenciamento.

É alarmante e doloroso, como professora em formação, saber que as crianças dentro


das escolas, em casa e nas ruas estão tão desprotegidas. É lamentável e criminoso que seus
corpos e suas vivências continuem a ser marcadas por abusos e violências.

4.3 BEATRIZ VITÓRIA

Conheci Beatriz Vitória através de conhecidos; em encontros rotineiros da


população LGBTI+ jovem da cidade. Nesses ambientes são comuns as trocas de relatos de
momentos marcantes para a nossa trajetória.

Assim, após contar que ainda não conseguiu concluir o Ensino Médio,
principalmente, pelo fato da escola não aceitar utilizar seu nome social, percebemos que sua
59

história seria relevante por narrar a construção da identidade de uma travesti – perpassada por
situações de LGBTfobia sofridas também dentro do ambiente escolar – na região do Sertão dos
Inhamuns.

Marcamos a entrevista para a tarde, por escolha de Beatriz, na minha casa. Antes
de sair, ela me contou que após dois meses da sua mudança para a casa atual, havia saído
pouquíssimas vezes durante o dia. Após ela chegar a minha casa, perguntei o motivo, e ela
respondeu que o assédio é muito grande, o que a deixa desconfortável.

Relata que nas ruas escuta desde “Oh lá em casa!”, até transfobias como “Se tivesse
buceta, eu pegava”; a qual ela diz responder com “Se eu sem buceta, já não fazia questão de
você; que dirá com uma. Se manque (sic), seu lixo”. Diz que esse tipo de tratamento é mais
comum aqui, em Crateús, e sente que na cidade de São Paulo, onde já morou algumas vezes, a
transfobia ocorre de modo mais velado.

Hoje tem 23 anos. Está desempregada e vive do dinheiro que consegue fazer com
programas e serviços de cabeleireira. Mas me diz que essas duas opções também estão escassas;
assim, pretende se mudar para São Paulo ou para o Rio de Janeiro em breve, onde ela diz que
fica mais fácil arranjar trabalho.

Sua última passagem na escola foi a tentativa de entrada do 3º do Ensino Médio, no


início do ano passado, em uma escola da rede estadual da cidade.

Sobre o fato de desistir de estudar Beatriz diz:

Na verdade eu sempre tive uma dificuldade pra estudar, nunca foi fácil pra mim. Não
só por ser negra, mas sim por ser uma negra travesti, uma mulher trans. E além disso,
na infância eu sempre fui uma criança muito gordinha, muito fofinha e isso era um
dos alvos. Aquela gay afeminada, muito pintosa e gorda, e ainda preta (BEATRIZ
VITÓRIA).

Conta, no entanto, que enquanto não se entendeu como mulher trans, aguentou as
homofobias sofridas. Mas a partir que conheceu os direitos e as leis que a defendiam, relata que
passou a reivindicar por eles; como a exigência de que a escola que frequentava utilizasse seu
nome social – no primeiro ano do Ensino Médio.

Neste sentido, é importante ressaltar que o decreto de número 8.727, de abril de


2016, aponta o uso do nome social e reconhecimento da identidade de gênero das pessoas
60

travestis e transexuais pela administração pública23. O decreto salienta ainda que “o nome civil
será utilizado apenas para fins administrativos internos”.

Beatriz Vitória relata que desde o primeiro ano do Ensino Médio, informou sobre
sua identidade de gênero para a escola. A partir de então algumas professoras e professores,
respeitavam-na e a chamavam por Beatriz, inclusive na chamada. No entanto, alguns que
tinham postura mais conservadora e eram católicos ou evangélicos mais tradicionais se
recusavam a fazê-lo.

Assim, no 1º ano, Beatriz procurou a escola e pediu que utilizasse seu nome social
nas frequências de todos os professores. No entanto, a professora da escola disse que não
poderia fazê-lo, pois ela não possuía a documentação e teria que procurar a CREDE 13.

Conta que não foi e que em um determinado momento o fato da própria escola
nunca chamá-la por seu nome e não tomar partido contra professores que se recusam a fazê-lo
determinaram sua desistência.

Compreende-se, então, desta situação, que a formação dos diferentes profissionais


presentes no ambiente educacional deve necessariamente atentar para o fato que questões
referentes ao gênero e a sexualidade fazem parte do cotidiano pedagógico, pois, segundo a
reflexão de Andrade (2012):

[...] a sexualidade está na escola porque ela faz parte dos sujeitos, ela não é algo que
pode ser desligado ou algo do qual pode se despir. É inaceitável, portanto, que a escola
mantenha um relacionamento com os diferentes sobre o domínio do mítico, do
inatingível, do utópico, no normalizador, do inquisitorial (ANDRADE, 2012, p. 17).

Beatriz relata, então, que quando a escola a desrespeitava ou aconteciam situações


de bullying transfóbico, seus colegas de aula tampouco tomavam seu partido. Mas ressalta que
por resistência sua conseguia fazer todos a tratá-la por Beatriz, pois segundo ela “eu corrigia.
Porque o outro nome não me representava mais de forma nenhuma” (BEATRIZ VITÓRIA).

Conta que na escola e no seu cotidiano sempre lutou e foi muito sozinha; que sua
companhia e força sempre foram de outras colegas que tem a mesma faixa etária e também são
trans.

23
Sobre utilização do nome social e reconhecimento da identidade de gênero. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8727.htm>.Acesso em outubro de
2018.
61

Relata que sempre desistia do ano letivo por conta dessa rotina cansativa de ter sua
identidade negada na escola, mas no outro ano voltava e se rematriculava. Nesta escola cursou
do 7º ano do Ensino Fundamental ao 2º ano do Ensino Médio; assim, quando foi renovar sua
matrícula para o 3º ano – acompanhada de uma amiga também travesti –, disse à direção que
só o faria se seu nome social fosse colocado nas frequências.

A diretora da escola se negou. Pediu sua certidão de nascimento com registro


feminino. Beatriz chegou a perguntar se ela preferia perder uma aluna e teve como resposta que
a escola estava disposta a lhe dar transferência para tentar matrícula em outra. Beatriz e a amiga
aceitaram a transferência e esse é seu último registro no sistema educacional. Diz “Eu fiquei
muito desapontada com as escolas. Aí eu não fui mais atrás”.

A respeito de atitudes como a da diretora da escola que, direta ou indiretamente,


orientam e educam as relações das pessoas LGBTI+ consigo mesmas, com as outras e com as
instituições – no caso específico com a escola – Andrade (2012) reflete:

Essa “pedagogia da violência”, utilizada por “professores do crime” e do desrespeito,


não possui um espaço específico, está em toda parte, em todos os lugares e em
diversos cargos, perpetuando o que entendem como verdade, expondo sua didática e
sua pedagogia arbitrária. Na escola, essa arte de ensinar o que (supostamente) é
normal e anormal encontra sua maior linha de atuação no “currículo oculto” ou
“currículo cotidiano”, que acaba sendo invisibilizado pelo currículo oficial
(ANDRADE, 2012, p.73-74).

Em casa, Beatriz diz que sempre sofreu homofia no cotidiano familiar. Quando
criança e adolescente sempre ouvia “para não dar pinta”. Conta:

Eu fui criada pelos meus avós paternos, que já é uma mente mais atrasada ainda. Eu
procurei na rua conhecimento, porque se eu tivesse ouvido eles, nunca seria essa
pessoa. Então eu tive que sair da casa deles e sentir a independência na pele pra
finalmente saber que eu realmente estou no corpo certo, não tem nada anormal. Está
tudo certo. (BEATRIZ VITÓRIA).

Beatriz descreve a necessidade de um espaço de independência na finalidade de


“finalmente saber” que “não tem nada anormal”. A este respeito, Butler (2003) reflete:

[...] tal compulsão claramente não vem do “sexo”. Não há nada em sua explicação que
garanta que o “ser” que se torna mulher seja necessariamente fêmea. Se, como afirma
ela, “o corpo é uma situação”; não há como recorrer a um corpo que já tenha sido
sempre interpretado por meio de significados culturais (BUTLER, 2003, p. 27).

Refletindo sobre o “tornar-se mulher” de Beauvoir, Butler aponta para a


participação dos diferentes discursos que dão formação e informação aos corpos. No relato de
Beatriz, é importante salientar a importância da ordem destes discursos presentes no ambiente
familiar.
62

Cabe nesta reflexão acrescentar ainda que a família “é um dos elementos mais
preciosos” para a fixação do que Foucault (2017) chamou de dispositivo da sexualidade.
Baseada na inovação e invenção de formas de penetração nos corpos, de maneiras detalhadas,
com o intuito de “controlar as populações de modo cada vez mais global”.

Beatriz Vitória relata, então, que se compreendeu e assumiu trans ao quatorze anos
e ouviu de sua avó que se continuasse daquele jeito não teria emprego, as coisas seriam mais
difíceis e que “se quisesse viver nesse corpo, eu tinha que está bem certa do que queria pra
mim”.

Diz que por um lado concorda com ela; as oportunidades de emprego são mínimas
e é nessas horas que uma rede lhe acolhe, “que é a rede da prostituição”.

Reflete que geralmente quando as pessoas cis-hétero não conseguem emprego


direto no mercado de trabalho, elas têm familiares fora ou com alguma influência que pode
ajudar a achar um, mas esses parentes e conhecidos dão oportunidade às primas e primos e
sobrinhas e sobrinhos hétero-cis, nunca a travesti da família. Então conta que tem que se virar,
e a prostituição é uma saída.

Narra, então, que desde que se compreendeu travesti, aos quatorze anos, a
prostituição é a alternativa para ganhar dinheiro e se manter. Ela diz que:

“Essa vibe de prostituição não é meio que uma escolha; é um destino. Ninguém ajuda,
a família não dá emprego, o mercado não dá emprego, a escola abandona. A gente se
obriga a fazer isso. Não é de ficar com fome, a gente quer um teto. Porque ficar na
casa dos pais é aquela humilhação.(BEATRIZ VITÓRIA)”.

Relata que dos quatorze aos dezoito anos – período em que viveu com os avós já
depois de assumir sua identidade trans – era complicado, “eles me engoliam, toleravam”.
Descreve os olhares de reprovação, de ouvir sua avó dizer “não sei como não tem vergonha de
sair na rua desse jeito”. Diz que seu avô, no cotidiano, costuma ser mais tolerante, no entanto,
sempre que tem algum atrito, ele traz elementos transfóbicos para o momento.

Os dois a tratam no masculino. Então ela diz que evita o contato.

Conta que já tentou conversar com os dois, mas sente que não teve muitos avanços.
Relata que sua avó passou a ter um pouco mais de abertura para conversa após ver um programa
de TV:

Ela passou a me entender mais quando passou um babado (sic) na TV, acho que foi
no Fantástico, que falava das pessoas transgêneras, aí foi que ela foi abrir um
63

pouquinho a mente dela. Porque o bofe (sic) da TV, o médico que tava falando na
televisão. Porque as coisas que eu falava pra ela, ela não botava fé (BEATRIZ
VITÓRIA).

Sobre a relevância dos discursos oficiais para a construção dos saberes que
informam sobre os sujeitos Preciado (2002) reflete:

Se os discursos das ciências naturais e das ciências humanas continuam carregados de


retóricas dualistas cartesianas de corpo/espírito, natureza/tecnologia [...] é porque
esses binarismos reforçam a estigmatização política de determinados grupos (as
mulheres, os não brancos, as queers, os descapacitados, os enfermos, etc.), e permitem
lhes impedir sistematicamente o acesso às tecnologias textuais, discursivas,
corporais... que os produzem e os objetivam (PRECIADO, 2002, p. 135, tradução
nossa).

Assim, a percepção de Beatriz de que foi preciso um veículo da mídia trazer um


discurso médico sobre sua própria identidade para que avó a reconhecesse é, segundo Preciado,
um efeito sofisticado utilizado pelas tecnologias sexuais a fim de serem reconhecidas como
“natureza”.

Percebeu, depois disso, algumas mudanças. Antes, se alguém chegasse a sua casa e
perguntasse por Beatriz, mesmo que ela estivesse, a avó respondia que não estava ou respondia
que o Fernando estava, “corrigindo” a pessoa para tratar Beatriz no masculino. Sobre isso,
Beatriz diz:

Ela dizia: não tem nenhuma Beatriz Vitória aqui. Nessas horas eu ficava cega (sic),
porque eu sentia o desrespeito comigo. Era ela dizendo que eu não existia! Aí chegou
uma hora que eu decidi que não ia mais me abalar por isso. Porque não tava mudando
nada na minha vida, porque nenhum paga meu aluguel e minhas contas. Vou só
ignorar porque não me faz bem ficar ouvindo uma coisa dessas dentro da minha
própria casa, da casa que eu fui criada (BEATRIZ VITÓRIA).

Sobre os momentos em que Beatriz e outras travestis, homens e mulheres trans têm
suas existências negadas desde a sua própria enunciação, cabe a reflexão de Foucault sobre a
lógica da censura (2017):

Supõe-se que essa interdição tome três formas: afirmar que não é permitido, impedir
que se diga, negar que exista. [...] do que é interdito não se deve falar até ser anulado
no real; o que é inexistente não tem direito a manifestação nenhuma, mesmo na ordem
da palavra que enuncia sua inexistência; e o que deve ser calado encontra-se banido
do real como o interdito por excelência (FOUCAULT, 2017, p. 92)

Relata que não justifica mais essas situações com a idade dos avós, pois compreende
que sempre é tempo de reaprender. Assim, hoje, que divide a casa com mais uma amiga, que
também é travesti e seu irmão, que é gay, prefere ter o mínimo contato possível com a família,
evitando, inclusive visitas.
64

Foi criada pelos avós paternos, pois sua mãe era humilde, separou-se cedo de seu
pai. É a filha mais velha, do pai e da mãe, que depois tiveram outras filhas em outras relações.
Seu pai constituiu outra família e vive em Fortaleza. Sua mãe trabalha em casas de família e é
evangélica. Beatriz conta que apesar das dificuldades, ela já sabe lhe respeitar:

Ela já percebeu que comigo não tem vez: se ela quiser ter uma boa conversa comigo,
vai ter que me respeitar. Porque dos velhos, eu ainda tolero, mas dela, que é nova e
nunca teve influência nenhuma na minha vida, porque quem me criou foram meus
avós, se ela quiser ter um contato comigo, então que me respeite. Aí ela me trata de
boas (sic), de Beatriz (BEATRIZ VITÓRIA).

Com a volta para Rio de Janeiro ou São Paulo, acredita que vai ser mais fácil
conseguir dinheiro. Conta que dessa vez – já passou quatro temporadas na região sudeste – vai
ser mais fácil, pois não vai precisar ficar na rua. Diz que vai ser tudo através de um site. Sobre
ficar na rua conta que é complicado porque você fica exposta e tem que pagar algum dinheiro
para as travestis que já estão na área há mais tempo.

Sobre seu processo de transição conta que começou se montando com as amigas
pra ir às festas ou fazer programas nos postos de gasolina. Conta que ela e uma amiga, aos
quatorze anos, eram como se fossem transformistas. Compravam apliques, roupas e
maquiagens e deixavam na casa de uma amiga; na hora de sair, passavam lá e se montavam.

Sobre seu corpo, conta que já colocou silicone e fez preenchimentos e


procedimentos no rosto e no corpo com ácido hialurônico. Conta que todos os procedimentos
aconteceram de modo clandestino, teve muito inchaço e precisou ficar de repouso. Diz rindo,
que teve sorte e não sentiu dor, salientando que os buracos das agulhas foram tampados com
cola-maluca.

No entanto, diz que se tivesse a cabeça que tem hoje, jamais se colocaria nesse
risco; na época, fez mais por influência das amigas. Apesar de compreender que o mercado
clandestino de procedimentos estéticos é o único meio acessível para a grande maioria das
travestis, ela me diz que compreende os riscos.

Sobre o acesso aos meios para os processos de construção dos corpos de travestis
e transgêneros, Preciado reflete que as dificuldades e etapas envolvidas são formas diretas de
controle e produção de seus corpos. Atuam, assim, como negação de acesso ao corpo condizente
com uma identidade de gênero trans e reafirmação do corpo cis-hétero produzido através da
aplicação dos mais diversos controles e técnicas.
65

O conjunto dos processos de “redesignação” não são apenas o segundo recorte, a


segunda fragmentação do corpo. Esta não é mais violenta que a primeira é
simplesmente mais gore, e, sobretudo mais cara. A interdição da mudança de sexo e
gênero, a violência presente nas entranhas dessas operações e seu elevado custo
econômico e social, devem ser compreendidos como formas políticas de censura
sexual (PRECIADO, 2002, p. 104, tradução nossa).

Beatriz, então, conta que uma conhecida colocou silicone no peito e seu corpo
rejeitou, chegando a sofrer queimaduras de 3º grau. Diz que tem vontade de colocar próteses de
silicone nas mamas quando puder fazer de modo seguro, mas atualmente está satisfeita com o
resultado apenas dos hormônios.

Em relação aos efeitos colaterais relata que sente uma mudança de humor bem forte.
Diz que dependendo de como está, psicológica e economicamente, toma medicação diária
(bloqueador de testosterona) ou quinzenal. Sob os efeitos dos hormônios se sente mais sensível,
e até mais suscetível a se envolver com outras pessoas. Diz que o acesso é fácil, sempre encontra
na farmácia do trabalhador.

Sobre o uso de hormônios vale reiterar que Preciado (2002) considera-os drogas
político-sociais, utilizadas sob controle das instituições heteronormativas do Estado.

Atualmente, Beatriz se identifica como mulher trans bissexual, e está solteira.


Assim, podem-se ressaltar, em relação a sua sexualidade e também das demais pessoas, as
colocações de Preciado (2002) que apontam decisões e eleições de tecnologias que produzem
verdades sobre o sexo e assim eliminam a possibilidade de que possa haver um “lapso de
tempo” entre o nascimento e assignação da sexualidade ou da identidade de gênero.

Ressalta Preciado (2002):

Também sabemos hoje, que, contra as predições médicas que esperam re-conduzir à
heterossexualidade gays e lésbicas por meio de operações transexuais, muitos
transexuais F2M vivem como gays depois da operação e transexuais M2F 24 vivem sua
vida de mulher como lésbicas (PRECIADO, 2002, p. 111, tradução nossa).

Relata que não tem mais ilusões em relação aos machos. Diz que chegou ao ponto
de que só relaciona com boy (sic) se for por trabalho, pois já “sei que eles só querem me usar.
Daí já desromantizei todo o paradigma relacionado a homem”.

Beatriz me conta que já conseguiu seu nome social no documento de identidade e,


em breve, quando estiver melhor financeiramente, pretende providenciar sua certidão de

24
Preciado (2002, p.26) utiliza a expressão F2M para tratar pessoas que transicionaram do gênero feminino para
o masculino, e a expressão M2F para tratar de pessoas que transicionaram do masculino para o feminino.
66

nascimento para poder tirar os outros documentos em definitivo, sem necessidade de constar o
que será, então, seu antigo nome civil.
67

5 SOBRE A (NÃO) INSERÇÃO DOS DEBATES SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE


NO CONTEXTO EDUCACIONAL DO MUNINÍPIO DE CRATEÚS E REGIÃO DO
SERTÃO DOS INHAMUNS E SEUS DESDOBRAMENTOS PARA AS VIVÊNCIAS
LGBTI+

É impossível negar que o contexto educacional abriga e reproduz diversas situações


em que as sexualidades e os gêneros tornam-se elementos determinantes para tratamentos
diferenciados, violências, etc.

Admite-se ainda que as crianças e adolescentes tragam de outros contextos


questões, e mesmo traumas, referentes a essas questões para a escola, e que a mesma não pode
negá-las ou ignorá-las, pois, como pode ser observado até aqui, essas situações são marcantes
no que dizem respeito ao desenvolvimento emocional, psicológico, educacional e social.

Neste sentido é importante que todos os sujeitos presentes no ambiente escolar


possam ter acesso ao diálogo sobre a sexualidade, compreendendo que:

A insistência de que a sexualidade deva estar confinada a esfera privada reduz


a sexualidade às nossas específicas práticas sexuais individuais, impedindo que
concebamos a sexualidade como sendo definida no espaço social mais amplo, através
de categorias e fronteiras sociais [...] esse mito torna impossível imaginar a
sexualidade como tendo qualquer coisa a ver com estética, discursos políticos, capital
cultural, direitos civis ou poder cultural (BRITZMAN, p. 80, 1996).

Por isso, pode-se concluir, é tão importante que o ambiente escolar possa conversar
diretamente sobre as diversas questões que envolvem o gênero e a sexualidade nos diferentes
níveis de ensino.

Crianças e adolescente (mas também funcionários, professores, mães, pais e


responsáveis) sofrem violências cotidianamente dentro do ambiente escolar decorrentes de
diferenças de gênero ou LGBTfobia.

Atenta-se para o fato de que a Escola – ou pelo menos alguns de seus sujeitos – não
está completamente indiferente e, por vezes, têm demonstrado tentativas de avançar com este
debate em seus currículos.

Em 2015, na cidade de Crateús – e em outras cidades –, uma versão preliminar do


Plano Municipal de Educação (Assim como Planos Estaduais, o Plano Nacional de Educação e
a Base Comum Curricular), desenvolvida a partir de fóruns que reuniram profissionais da
68

Educação, contemplava as áreas de gênero e sexualidade. A proposta incluía formação


continuada na área para professores e verba para este processo.

No entanto, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), através de


circular dos “Bispos Católicos do Estado do Ceará, reunidos no Conselho Episcopal Regional
(CONSER) em Messejana” interferiu no processo com o que chamou de “Sobre os riscos da
introdução da ‘Ideologia de Gênero’ nos planos estadual e municipal de Educação” 25.

O texto pretende “esclarecer no que se refere à ‘ideologia de gênero” nos Planos


Estaduais e Municipal do Ceará. Acreditamos que o futuro do nosso povo dependerá da
qualidade da educação que será oferecidas às nossas crianças e adolescentes”.

Toda a circular confunde errônea ou propositalmente os termos sexo e gênero –


“Está claro, portanto, que a meta dos promotores da ‘perspectiva de gênero’ [...] é de atingir
uma sociedade sem classes de sexo” –, e pedem diretamente aos governantes do Legislativo e
dos municípios assumam uma posição em favor da família, “tal como a entendem a
Constituição Federal de 1988 (artigo 226) e tradição cristã, que moldou a cultura brasileira”.

É neste sentido que Guacira Louro (1997), ao citar Weeks (1993), reflete:

[...]não escapa aos setores conservadores o caráter político que têm as relações de
gênero e sexuais, o que leva tais setores a disputar todos os espaços em que uma
“educação sexual” possa ser desenvolvida. As políticas curriculares são, então, alvo
de sua atenção, na tentativa de regular e orientar as crianças e jovens dentro dos
padrões que consideram moralmente “sãos” (LOURO, 1997, p. 130).

Em Crateús, na situação citada acima, a população da cidade e da região foram


apresentadas à “ideologia de gênero”, através de entrevistas nas rádios. Um jornal da cidade26
chegou a publicar uma matéria em que denunciava o trabalho dos profissionais de Educação
que participaram da elaboração do plano como “um ardil diabólico e irracional contra a família,
contra nossas crianças, contra a religiosidade do povo e até contra a Razão”.

Algumas pessoas da comunidade LGBTI+ da cidade e da região, professores do


município e da Faculdade de Educação de Crateús estiveram presentes em sessão da câmara

25
Circular da CNBB: Disponível em:<http://www.arquidiocesedefortaleza.org.br/wp-
content/uploads/2015/06/Circular-CNBB2015.pdf>. Acesso em outubro de 2018.

26
Número 396 da Gazeta do Centro Oeste. Disponível em:< https://issuu.com/gazetaco/docs/gazeta396 >.
Acesso em outubro de 2018.
69

dos vereadores que pretendia tratar do assunto. No entanto, apesar das manifestações, a versão
final aprovada passou sem a aprovação para o ensino de gênero e sexualidade pelo município.

Segundo Louro (1997) ao se propor a viabilidade deste debate no ambiente


educacional são diversos os fatores postos em pauta como dificuldade. Pode-se citar a relação
entre a família e a escola e a possibilidade de que ao se falar de sexualidade se incite
precocemente os jovens.

Outras questões frequentes são relacionadas a forma como o estudo se daria, na


escola, por meio disciplinar, multidisciplinar, obrigatório ou opcional? A formação de
professores e os possíveis discursos informativos, preventivos, orientadores ou moralizantes
que as aulas podem assumir.

Todas as questões são relevantes e devem ser respondidas nos planos de educação
e também nos currículos das escolas e dos cursos de formação de professores. No entanto, como
salienta Louro (1997), elas não são empecilhos para que o debate aconteça e nem fatores que
evocarão e trarão para dentro da escola algo que lhe seja exterior pois:

As questões referentes à sexualidade estão, queira-se ou não, na escola. Elas fazem


parte das conversas dos/as estudantes, elas estão nos grafites dos banheiros, nas piadas
e brincadeiras, nas aproximações afetivas, nos namoro, e não apenas aí, elas estão
também de fato nas salas de aula – assumidamente ou não – nas falas e atitudes de
professoras, dos professores e estudantes (LOURO, 1997, p. 137).

Neste sentido e em relação ao discurso contrário à inclusão dos estudos referentes


ao Gênero e a Sexualidade nos Planos de Ensino incitado pela igreja e propagado através da
mídia, precisa-se salientar o impulso destas ações para abertura do Projeto Escola Sem Partido,
marcado por perseguição e criminalização desta e de outras áreas de pesquisa.

Nesta perspectiva, Luís Palhano Loiola, doutor em Educação com a tese intitulada
“Diversidade Sexual: para além de uma educação sexual não escolarizada” e professor em
Crateús e na região do Sertão dos Inhamuns, atuou junto ao GRAB (Grupo de Resistência Asa
Branca) com projetos voltados para a cidadania, prevenção de DSTs.

O educador também foi idealizador e consultor de projetos voltados para a formação


dos docentes sobre gênero e diversidade sexual.
70

Em 1º de maio de 2008, Luís foi assassinado27.

Em 20 de dezembro de 2010, foi aprovada na assembleia legislativa, a lei 14.82028,


que, em homenagem ao educador, sua luta pelos direitos da população LGBTI+ e pela
promoção da educação de gênero e diversidade sexual, institucionaliza a Semana da
Diversidade Sexual.

A lei estabelece a última semana do mês de junho como período oficial da


diversidade sexual no Estado do Ceará, incluindo o período no calendário oficial de eventos do
estado e a intitula Semana Luis Palhano Loiola.

Assim, em 2017, a comunidade acadêmica da Faculdade de Educação de Crateús


organizou a Semana de Diálogos sobre a Diversidade Sexual e Gênero. Estudantes dos cursos
de licenciatura, professores e colaboradores realizaram uma semana de diálogos sobre os temas.

As rodas de conversas foram realizadas em escolas da rede estadual, no teatro da


cidade e em um espaço de encontro de jovens. Nestes momentos é possível observar o quanto
principalmente os adolescentes estão ansiosos por conversar sobre esses temas e o quanto eles
já compreendem os mesmos.

As estudantes e os estudantes relataram situações de descobrimento de suas


afetividades e das recusas enfrentadas interna e externamente a partir de várias situações que
não se encaixam no padrão hétero-cis. Apontaram que na escola, assim como nos outros
ambientes, os casais hétero tem maior liberdade para expressar suas relações, situações em que
professores expuseram com ofensas homolesbotransfóbicas estudantes em sala de aula ou
situações em que a escola foi procurada a respeito de violência LGBTfóbica e nada aconteceu.

Na II Semana de Diálogos sobre a Diversidade Sexual e Gênero, em um cine-debate


sobre “Construção das vivências LGBTI+ no campo e na cidade”, realizado em coparticipação
com uma feira de agricultura familiar, tivemos a oportunidade de ouvir uma jovem do campo
analisar que a educação contextualizada falhou na abordagem pedagógica acerca do gênero,
diversidade sexual e vivências LGBTI+ no campo, pois tem esquecido a juventude do campo e
as outras possibilidades de existir fora da sexualidade hétero. Desse modo, como refletiu ela, a

27
Militante gay, professor da UECE é morto à facadas. Disponível em:<
https://noticias.bol.uol.com.br/brasil/2008/05/03/ult4733u15970.jhtm>. Acesso em outubro de 2018.
28
Institucionalizada a Semana da Diversidade Sexual: Disponível
em:<https://www.al.ce.gov.br/legislativo/legislacao5/leis2010/14820.htm>.Acesso em outubro de 2018.
71

jovem e o jovem do campo tem que ir embora da sua comunidade, pois a mesma não os aceita
como são.

Ao se refletir o exposto até aqui, é possível afirmar a necessidade de se discutir


refletidamente a respeito do gênero e da sexualidade nos diferentes ambientes, mas
principalmente na escola. Os currículos das escolas do Ensino Básico e dos cursos de
licenciatura precisam estudar as questões, identificar os problemas e apontar as mediações
necessárias para os diferentes contextos.

Neste sentido, Louro (1997) reflete sobre as mudanças necessárias ao contexto


escolar para que ocorra uma inserção do debate que se efetive positivamente nas vivências
LGBTI+:

Se existe algo que pode ser comum a essas iniciativas talvez seja a atitude de
observação e de questionamento [...]. As desigualdades só poderão ser percebidas – e
desestabilizadas e subvertidas – na medida em que estivermos atentas/os para suas
formas de produção e reprodução. Isso implica operar com base nas próprias
experiências pessoais e coletivas, mas também, necessariamente, operar com apoio
nas análises e construções teóricas que estão sendo realizadas (LOURO, 1997, p. 121).

Compreende-se, assim, que os estudos e ações empreendidos na área devem ter sua
relevância reconhecida pelo Estado e as políticas públicas, pelos currículos dos cursos de
formação dos profissionais da Educação e do Ensino Básico e também por todos os sujeitos da
comunidade escolar (estudantes, professores, funcionários, mães, pais, responsáveis e gestores).
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6 CONCLUSÃO

Ao longo dos dois primeiros capítulos desenvolvidos, buscou-se compreender


como as características do gênero e da sexualidade se inscrevem nos corpos, criando
significados, expressões e comportamentos que os constituem ao longo da vida.

Aponta-se, assim, os efeitos da perpetuação da ideia de que estas características


devam se desenvolver dentro do padrão hétero-cis para a comunidade LGBTI+, a partir das
violências e interdições sofridas pela mesma, mas também a partir das ressignificações e
resistências surgidas da marginalização e do silenciamento que lhe são impostos.

Neste sentindo, foi essencial analisar como as instituições educacionais tem se


inserido no conjunto das instituições que desenvolvem e utilizam “tecnologias sexuais” ao
longo da história, através da organização da sua estrutura física, das hierarquias estabelecidas,
dos currículos oficial e oculto e do controle do comportamento de todos os sujeitos que atuam
no meio.

Assim, foi possível obervar, ao longo do desenvolvimento das pesquisas


envolvendo este trabalho, nas situações de vivência no contexto escolar e também em outros
ambientes, que a LGBTfobia é uma violência institucionalizada pelos diferentes setores do
Estado.

Seja a justiça que não a reconhece como razão de crimes de perseguição moral,
psicológica e física, levando à centenas de mortes (não contabilizadas oficialmente por nenhum
órgão do Estado) nos documentos que a regulam e também na ausência de campos específicos
nos boletins de ocorrência da polícia civil referentes a essas agressões.

Também é preciso ressaltar que as distintas situações em que Mika foi expulso por
reagir ao bullying cotidiano, vindo principalmente de professores, coordenação e gestão e a
recusa da escola em adotar o nome social de Beatriz demonstram a urgência deste debate no
âmbito da formação dos profissionais de Educação.

No terceiro capitulo, relatos de ex-estudantes de escolas de Crateús ou da região do


Sertão dos Inhamuns expõem como tem acontecido a socialização desses indivíduos e as
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diferentes situações em que foram expostos às opressões e violências, assim como às situações
de resignificação desses momentos em luta e resistência individual e coletiva em diferentes
contextos.

Pretendeu-se, pois, demonstrar como as invisibilizações, violências e resistências


têm feito parte da construção da identidade da comunidade LGBTI+ a partir de variáveis que
atuam expressivamente para seus desenvolvimento intelectual, emocional, pessoal, político,
profissional e econômico.

Conclui-se neste trabalho que o fato do Brasil ser o país que mais mata a população
LGBTI+ no mundo, bem como fato de ter uma considerável desigualdade de gênero expressa
no mercado de trabalhos, na representação política e nos altos índices de feminicídio
registrados, são fatores que expressam a emergência de discutir gênero e sexualidade em todos
os contextos.

Neste sentido, é preciso que movimentos coletivos permaneçam mobilizados em


resistência e pela conquista de políticas públicas (saúde, educação, moradia, empregabilidade,
etc) e direitos para a comunidade LGBTI+, mas como salienta Louro (1997) também
precisamos mudar nossas práticas cotidianas, pois, a partir da perspectiva assumida neste
trabalho:

Ao se conceber a sexualidade atravessada por múltiplas relações de poder, fica


absolutamente impossível atuar de cima ou de fora dessa rede. A/o novato intelectual
terá, necessariamente, de se perceber como participando das relações de poder e isso
implicará no exercício constante da auto-crítica. Atenta/o às “manobras”, às “táticas”,
às "técnicas" e aos "funcionamentos" de produção e de nomeação das desigualdades,
a/o intelectual precisará descobrir formas de interferir mais viáveis e próximas. As
lutas se tornam mais imediatas e cotidianas. Elas são, também, mais localizadas e
talvez pareçam menos ambiciosas (LOURO, 1997, p. 124).

Deste modo, finalizamos este trabalho compreendendo que o momento atual não
sinaliza abertura para conquista de mudanças ou direitos para a comunidade LGBTI+ brasileira.
Compreendemos, no entanto, que a resistência é marca da história individual e coletiva de cada
lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual, intersexual, queer e mais e que precisamente neste
momento histórico e político ela será mais do que nunca a marca da nossa luta por existência e
visibilidade “imediata e cotidiana”, pois onde há violência e opressão, há resistência.
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