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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais


lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir
a um novo nível."

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Apresentação

O Selo “Damas do Romance” é um projeto único e audacioso que reúne três


das mais talentosas autoras do romance de época brasileiro para contar
histórias de amor que se entrelaçam, onde cada uma delas irá trazer o
brilhantismo de sua narrativa.

As Irmãs Winter nos apresenta a história de três irmãs que foram vendidas
pelo pai para diferentes homens que buscam por esposas de uma maneira
pouco convencional. Cada uma das irmãs é entregue a um homem diferente
e, por diferentes motivos, partem em busca de seus destinos sem saber ao
certo como se portarem ou o que devem esperar de seus maridos.

Assim cada irmã traz uma história diferente e cada história é contada por
uma autora:

Flávia Padula e sua narrativa impecável e intensa narra a trajetória de Sarah,


a mais velha das irmãs, cujo temperamento centrado e religioso se choca
com a audácia destemperada do marido, um fazendeiro americano que lhe é
uma completa incógnita, mas que a faz questionar suas próprias crenças.

Silvana Barbosa, por sua vez, com um enredo muito romântico e preciso,
nos apresenta a doce e meiga Delilah, a irmã do meio, cujo casamento
forçado com um indiano a faz descobrir uma nova cultura e um homem com
valores e princípios diferentes do que estava acostumada.

Por fim, Diane Bergher e seu texto delicado e sensual conta a história de
Barbarah, a protegida caçula dos Winter, que é enviada para a Cornualha
com o objetivo de ser esposa de um nobre de vida reclusa e atitudes
suspeitas e que a levam a investigar os segredos que o castelo esconde.

Romances que prometem divertir, emocionar e encantar as mais românticas


leitoras.

Sinopse

Ao ficar viúvo John Winter decide se livrar das filhas e as vende em Londres
para cavalheiros que não se importam em comprar uma esposa.
Solteiras e em idade para casar, as três senhoritas veem seus caminhos
mudados para sempre. Sarah é vendida a um fazendeiro americano. Delilah é
comprada por um mercador indiano. E Barbarah parte ao encontro do dono
de uma misteriosa propriedade na Cornualha.

Delilah, a irmã do meio, foi surpreendida quando seu pai a entregou em


casamento a um estrangeiro e viu seu mundo virar do avesso. Tímida e
sensível, escondeu-se atrás de suas irmãs, a quem sempre julgou mais
charmosas, como uma forma de se proteger das mazelas do mundo,
acreditando que jamais poderia receber as atenções de um homem de bom
coração.

Zamir Maddala apenas precisava de uma esposa para ser aceito pelos
ingleses e assim prosperar nos negócios e viu na jovem Winter a
possibilidade perfeita de resolver seus problemas, acreditando que o respeito
mútuo seria suficiente para um casamento dar certo. Mas a convivência os
aproxima e o amor talvez faça Delilah se mostrar de uma forma única,
transformando-a na mulher dos seus sonhos.

O Acaso de Delilah

SÉRIE AS IRMÃS WINTER

LIVRO II

Silvana Barbosa

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, o armazenamento ou a


transmissão, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.

Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com


pessoas vivas ou mortas é mera coincidência.

Capa Layce Design

Revisão: João Carlos Ferreira

Prólogo
Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Epílogo

Prólogo

Londres,

17 de setembro de 1790

18:30 horas

O som dos passos ecoava pela Rathcliff Street. A noite começava a abraçar
um dos lados mais pobres de Londres, enquanto bêbados e prostitutas se
misturavam nas sombras dos arcos de bronze que sobrepunha os prédios de
paredes descascadas e mal construídos. O frio aumentava a cada segundo, e
a névoa seca avançava sobre a lama que se misturava ao lixo e ao perigo
disfarçado de penúria.

John Winter tentou fechar o casaco, mas a barriga protuberante não permitia.
Sua aparência desleixada, bem como o rosto rude e feio, refletia o mais
profundo de sua alma. O cabelo branco crescia apenas dos dois lados da
cabeça, como duas faixas que se encontravam na nuca e formavam um
pequeno rabo de cavalo que de tão sujo, não necessitava tira de couro para
prendê-lo. As prostitutas lhe torciam o nariz. Preferiam dormir com os
bêbados imundos do que com o miserável Winter.

Enquanto caminhava apressadamente, ele pensou que necessitava de roupas


novas, assim, aquelas mulheres lhe tratariam com mais respeito e
implorariam por sua companhia. Ele estava em uma maré de azar. O pouco
dinheiro que ganhara nas mesas de jogos naquele último mês, gastara no
enterro de sua esposa. Edith sempre lhe dera custos, bem como suas três

filhas: Sarah, Barbarah e Delilah. A vida lhe fora tão ingrata, que não lhe
dera um filho varão para ajudar nas despesas e sim três insuportáveis
mulheres que não se esforçavam sequer para encontrar um marido decente.

Edith lavava roupa para sustentar a casa, contudo, com sua morte, não
acreditava que as filhas seguiriam o mesmo caminho em ajudá-lo a pagar as
dívidas de jogo. Sua esposa entendia a importância de ser submissa à
autoridade dele, enquanto suas filhas eram mal-agradecidas e o viam como
um homem desagradável que não conseguia sustentar a própria casa,
vivendo bêbado na companhia das meretrizes e perdendo até mesmo o
dinheiro que não possuía. Por isso, não ia sustentá-las mais um dia. Sua
obrigação terminara há muito tempo, quando se tornaram mulheres e
poderiam ter encontrado um bom casamento, se não fosse a ideia infame de
amor e destino.

Estava desesperado. Naquela semana, perdera muito mais do que esperava e


precisava colocar um fim em sua angústia. Então, depois de muito pensar,
encontrou a solução para salvar-se de tudo que o atrapalhava.

Entrou em uma porta aberta entre os prédios, parecia a cova da felicidade de


muitos desgraçados. Desceu as escadas escuras, quase caindo de um dos
degraus, tamanha sua ansiedade e nervosismo, até chegar ao salão ainda
vazio. Ali funcionava um dos prostíbulos administrados por Roger Klain, o
parceiro de John em sua vida de esbórnia e mentiras.

— Chegou cedo, John. — Klain comentou já servindo um copo de uísque


para os dois e dispensando a prostituta que estava em sua companhia.

— Trouxe meu dinheiro?

— Não — respondeu pegando o copo de uísque e tomando. — Mas tenho


uma solução para pagá-lo e ganhar mais dinheiro.

Klain gostou do que ouviu. Com um sorriso malicioso, imaginou que

diante de qualquer ideia que viesse do velho John, ele poderia tirar algum
proveito. Era magro demais, e durante a infância tornou-se um dos melhores
ladrões de East End por causa de sua agilidade e a facilidade em fugir da
polícia. Os cabelos escuros pendiam oleosos sobre o rosto cavado, olhos
grandes e azuis e dentes muito amarelados. De ladrão tornara-se um
importante gigolô daquele lado da cidade. A prostituta que não trabalhasse
para ele, bem como os garotos que roubavam nos portos e pelo centro da
cidade que não lhe dessem lucros, não podiam morar daquele lado do bairro.

E Klain matava sem piedade. Não lhe custava tirar a vida de quem quer que
fosse.

Quanto mais daquele verme parado a sua frente. Estava se cansando das
desculpas de John que apenas lhe trazia problemas.

— Espero que seja algo inteligente, John. Não quero ter que jogá-lo em uma
vala. — Seria um alívio fazê-lo, Roger refletiu com honestidade.

John forçou um sorriso, nervoso.

— Claro que não — assegurou. — Tenho uma ideia que fará de nós dois
homens muito ricos.

— E o que seria? — Klain perguntou, interessado. Ele adorava ganhar


dinheiro, ainda mais quando o acesso era fácil e indolor.
John o encarou com um sorriso, maldoso.

— O que acha de leiloar minhas três filhas e virgens? — propôs.

Klain deu uma gargalhada, satisfeito. Havia um pouco de sensatez naquela


loucura de John. Já podia ver diante de seus olhos todo o dinheiro que
ganharia com aquela proposta. Não precisaria explorar aquelas prostitutas
imundas por um longo tempo com três lindas virgens à disposição.

— Tem certeza que quer fazer isso, John?

— Não tenho dinheiro para sustentá-las e nunca conseguiram um

casamento bom — culpou-as. — Preciso de sua ajuda, Klain. Para


conseguirmos o máximo de dinheiro que pudermos.

— E o que vai dizer a elas, John? Não posso fazer um leilão e depois suas
filhas se recusarem a vir.

— Elas virão, prometo — garantiu, autoritário. — Elas irão me obedecer.

— Como quiser. — Seus olhos brilharam sagazes. — No domingo, teremos


um leilão de virgens que ficará na história de East End. Talvez até
consigamos mais dinheiro se a vendêssemos como esposas aos homens ricos

— propôs pensativo.

— Acha mesmo? Homens nobres não se casam com mulheres sem origem
— duvidou.

Roger balançou a cabeça, desolado.

— Às vezes, lhe falta um pouco de inteligência, meu amigo. Estou falando


de homens ricos em ascendência, aqueles que querem esposas submissas
para apresentá-las à sociedade sem qualquer nódoa. Homens que precisam
de esposas idôneas para representarem seus sobrenomes. Isso vale muito
dinheiro nos dias de hoje, já que muitas mulheres não se dão ao devido
respeito. A peso de ouro.
Os olhos de John brilharam fascinados com a fortuna que fariam em um
futuro próximo.

— E onde encontraremos estes homens ricos?

— Deixe isso comigo, John. Cuide apenas para que suas filhas não
desconfiem de nada. Atentarei para que nosso negócio dê certo. — E sorriu
feliz por saber que se tornaria um dos homens mais ricos em East End em
poucos dias.

A pessoa que vem é a pessoa certa.

Lei espiritual indiana.

Capítulo 1

— Pegou suas coisas, Delilah?

— Sim, peguei, papai, mas... — Delilah estava andando atrás do pai,


abraçada à bolsa onde estavam seus poucos pertences, seus olhos
lacrimejavam sem parar.

— Mas o que, Delilah? — John estacou, virando-se para encarar a filha. —


Eu não lhe dei tempo de pegar suas coisas? Eu não lhe dei tempo de
despedir-se de suas irmãs?

— Sim, papai, mas eu...

— Eu sou um pai muito bom! E agora, depois de tantos anos, você decidiu
ser questionadora?

Delilah baixou os olhos. John continuou:

— Sabe como é difícil uma moça pobre conseguir um marido? E sabe como
foi difícil para mim conseguir um marido para você?

Oh, ela sabia que devia ser difícil. Nunca tivera um pretendente! Não
conseguia entender como o pai conseguira um tão de repente, e embora fosse
a mais calada entre as três irmãs, gostaria de perguntar como ele havia
realizado a proeza. Mas, com ele falando tão alto diante dela, após jogar a
informação brutal que ia embora para viver com o marido que ele lhe
arranjara, sua voz estava presa na garganta.

— Você e suas irmãs não serão mais minha responsabilidade. Todas terão
maridos. E ai de alguma de vocês tentar me causar qualquer tipo de
problema! Se você ou elas se atreverem a voltar, terão que procurar emprego

num bordel!

— Papai! — O rosto de Delilah ficou rubro.

— Esteja avisada, Delilah, eu não quero que tente voltar para casa, entendeu
bem?

Ela assentiu, apertando ainda mais a bolsa junto ao peito. O crucifixo do


terço que Sarah, sua irmã mais velha, lhe dera, estava tão preso entre seus
dedos que sentia a ponta da cruz afundando na pele. Não importava, um
pouco de dor fazia ver que o que estava acontecendo era real, que não fazia
parte de um pesadelo ruim.

— Agora, vamos. Seu futuro marido a está esperando dentro da carruagem


dele, na porta da nossa casa.

Delilah engoliu em seco.

— A carruagem dele?

John sorriu. Não um sorriso muito simpático.

— Sim. A carruagem DELE. Tem posses o seu homem. — Então John


inclinou-se levemente, aproximando o rosto da filha. — Apesar de tudo.

Delilah não compreendeu. Apesar de tudo? O que significaria isso?

Seu pai chegou até a porta, e colocou a mão no trinco, enquanto esperava
que a filha do meio se aproximasse. A garota nunca foi de falar muito com
ele, mas parecia querer criar caso justamente agora! Estava pronto para dar
mais um grito para fazer com que o obedecesse, mas então ela se mexeu.
Ainda bem!

Diante da porta aberta, Delilah encarou a carruagem negra, muito elegante,


com a porta aberta. O cocheiro usando libré aguardava ao lado.

— Dê um beijo no seu pai, garota — exigiu John Winter.

Delilah depositou um suave beijo na face do pai, e por um instante a

expressão severa dele desanuviou-se. Um segundo apenas, e voltou a fechar


o cenho.

— Agora vá. E lembre-se do que eu disse.

Delilah balançou a cabeça, e encaminhou-se até a carruagem. O

cocheiro ajudou-a a entrar, e fechou a porta. Pouco depois o veículo estava


em movimento.

Delilah sentou-se, sem largar sua bolsa. Não conseguia olhar para nada em
volta, a princípio. Mas não poderia evitar a realidade por muito tempo, por
mais que assim quisesse.

Ela sabia que dentro do veículo, sentado diante dela, estava o homem que
seu pai escolhera para ser seu marido. Sem consultá-la, sem dar-lhe a chance
de vê-lo antes. E pelo comentário do pai, o “apesar de tudo” imaginou que
tivera seu destino selado junto a um homem muito velho, assustador, ou
algum tipo horrendo de pessoa que escolhia uma noiva sem sequer cortejá-la
antes. Não que ela entendesse alguma coisa de cortejo. Mas as amigas
comentavam, e Delilah as ouvia, como quem escuta histórias de fadas.

Depois comentava com Sarah e Barbarah.

Tão cedo não poderia trocar ideias com as irmãs novamente, abraçá-

las, ouvir os conselhos de Sarah, acarinhar os cabelos de Barbarah, como


gostava de fazer. Como fariam para reencontrar-se? Sim, porque elas se
reencontrariam, claro. Delilah não poderia sequer aventar a possibilidade do
contrário, já que só tinham umas às outras após a morte da mãe.

Delilah voltou a concentrar-se no momento. Não adiantava adiar o que era


inevitável, e precisaria encarar seu noivo.

Ergueu o rosto, bem devagar, enquanto seus olhos assimilavam as


características da pessoa na sua frente.

Não havia nada de monstruoso nele. Também não era velho, nem

apavorante. Não era sequer feio.

Entendeu que seu pai achara engraçado o fato dele ser estrangeiro, o que era
bem óbvio, apesar de estar vestido ao estilo europeu, impecável. Ele usava
paletó, gravata muito bem amarrada, colete. Havia um chapéu ao seu lado no
banco, e ele tinha as duas mãos apoiadas numa bengala que certamente
servia-lhe apenas de complemento para assegurar total elegância.

Nos dedos, reluziam valiosos anéis.

O cabelos dele, negros, estavam presos num rabicho com fita, como ditava a
moda. A luz que rescendia no interior da carruagem não permitia ter a
certeza da cor dos seus olhos, mas sendo ele indiano, como parecia ser, o
tom deveria ser o mesmo do cabelo, totalmente escuro. A pele era morena.

E ele era bonito. Não a beleza tradicional a que as pessoas apegavam-se, mas
a uma menos óbvia. Ele tinha sobrancelhas grossas demais, o maxilar era
muito marcado, e o nariz parecia um pouco mais longo do que deveria.

Seus olhos eram profundos, e sua boca, larga. Mas todo o conjunto
harmonizava de forma a dar-lhe uma aparência tão masculina que beirava o
rude. Em poucos segundos ela percebeu que emanava dele uma força
poderosa, atraente, e remexeu-se, inquieta, enquanto a perplexidade dava
lugar à curiosidade.

O homem mantinha-se impassível diante do escrutínio, e Delilah


subitamente sentiu-se constrangida. Ela o estava encarando! Que falta de
modos! Ao mesmo tempo em que ela baixava os olhos, ele ergueu a voz:
— Olá. Meu nome é Zamir Maddala.

Delilah voltou a olhá-lo.

— Seu pai conversou com você?

Delilah assentiu, devagar.

— Então sabe que serei seu marido?

Novamente ela assentiu.

— Bom — ele respondeu.

Zamir olhou rapidamente pela janelinha e voltou a concentrar sua atenção na


moça diante dele:

— Eu tenho uma licença especial para nos casarmos, e iremos até uma igreja
fazer nossos votos, hoje mesmo.

Delilah engoliu a saliva com dificuldade.

— Sei que isso é muito novo para você, e para mim, acredite, também é.
Nunca fui casado.

Ele sorriu, e Delilah teve uma sensação estranha ao ver o sorriso dele, com
dentes muito claros e alinhados.

— Casar com uma pessoa de origem diferente será uma aventura para nós
dois.

Delilah queria fazer-lhe perguntas. Perguntas que poderiam esclarecer


porque estava ali, como seu pai conhecera o senhor Maddala, por qual razão,
entre as irmãs mais bonitas, ela fora a escolhida, e tantas outras questões que
pareciam-lhe pertinentes, mas nem sabia por onde começar. Ela sabia se
expressar, sim, embora muitas vezes simplesmente não quisesse falar, nem
se sentisse tão à vontade diante de algumas pessoas. Mas, muitas vezes,
simplesmente as palavras não saíam! Porém uma coisa ela precisava
perguntar. Uma coisa pequenina. Esforçando-se para não gaguejar, soltou:
— Por que, senhor Maddala?

Ele franziu levemente as sobrancelhas.

— Por que o que? Por que nos casarmos? Por que um casamento entre
estrangeiros?

Ela assentiu. O que ele quisesse responder lhe serviria.

— Façamos assim, Delilah...

Delilah reprimiu um sorriso ao ouvir seu nome ser dito. Todas as vezes que
ele falava, com seu inglês sem erros, pronunciado numa voz levemente
cantante, soava interessante, agradável aos ouvidos. Devia ser o suave
sotaque que fazia o nome “Delilah” parecer mais bonito...

Zamir, alheio aos pensamentos da noiva, continuou a falar:

— Está na hora do almoço, e pararemos para comer antes de seguirmos para


a igreja. Então conversaremos.

***

Zamir escolheu um restaurante simples, numa das ruas menos movimentadas


em torno da Piccadilly. Delilah ficou grata. Seus trajes modestos não
permitiriam que ficasse à vontade em locais mais elegantes.

Depois que foram levados à uma mesa, e sentaram-se, Zamir voltou a falar:

— Sou um mercador. Negocio com os ingleses faz muito tempo, e venho a


Londres regularmente. Além de manter lojas na Índia, decidi, faz algum
tempo, abrir uma loja aqui, expandindo meus negócios.

Delilah balançou a cabeça, aguardando que ele continuasse, e assim ele fez:

— No entanto, por mais que eu seja conhecido aqui, por mais que eu tenha
clientes em potencial, sou um estrangeiro. Nenhum estrangeiro chega a outro
país e consegue angariar simpatia imediata, mesmo sendo rico. E eu sou.
Isso confundiu ainda mais Delilah. Sua expressão devia ter ficado

bem óbvia, pois Zamir explicou:

— Delilah, se desejo me estabelecer por aqui, mesmo que apenas por um


período específico, algo deve me ligar à Inglaterra, e me aproximar um
pouco mais dos ingleses. Qual a melhor forma de aproximar-me dos ingleses
do que fazer parte do seu círculo através de uma esposa inglesa?

Oh... Agora as coisas começavam a ficar mais claras...

— Seu pai queria casar a filha. Eu queria uma noiva. — Zamir abriu as duas
mãos diante dela, mostrando assim como tudo lhe parecia bem simples.

— E estamos aqui — Delilah murmurou.

— E estamos aqui. — Zamir repetiu, com um sorriso.

Delilah continuou olhando para ele. Aguardando, pois tinha certeza que a
conversa não acabara.

— Eu sou um comerciante, Delilah, e costumo reconhecer os sinais nos


rostos das pessoas, quando elas não tentam ocultá-los. E você é bastante
clara em suas expressões.

Certamente aquilo não era um elogio, pensou ela. Depois de tantas emoções
desagradáveis, algo dentro dela enfim explodiu:

— Eu não sou versada na arte de dissimular, por maior fama que os ingleses
tenham de conseguir manter seus pensamentos distantes do que seus rostos
dizem.

— Ora, ora, se não temos aqui uma frase longa, com verbos e pronomes!

Delilah não sabia se devia rir. Ele estava troçando dela?

— Veja bem, Delilah, não pretendi insultá-la quando disse que suas
expressões são claras. Não é isso. O que me preocupa é o que você pensa
sobre essa situação, e como poderá agir em relação à ela. Preciso de uma
esposa colaborativa.

Delilah ruborizou.

A sombra de um sorriso surgiu no rosto de Zamir:

— Novamente você está pressupondo... Imagino onde esteja pensando que


deve ser colaborativa, e embora eu espere que seja colaborativa em amplos
sentidos, preciso especificamente que colabore comigo para que a minha loja
seja um sucesso. Compreenda, o sucesso dos meus negócios é o sucesso para
você também, sendo minha esposa.

Zamir respirou fundo.

— Farei uma festa de inauguração, e você deverá estar ao meu lado nessa
festa. Durante a primeira semana de funcionamento estará presente comigo
na recepção aos clientes. É uma loja destinada a um público distinto, e tenho
feito tudo para que receba pessoas muito especiais e se torne o local favorito
da boa sociedade londrina. Para isso preciso de uma esposa que aparente
estar feliz ao meu lado, não uma que tenha intenções de sair correndo à
primeira oportunidade.

— Eu não planejo sair correndo.

— Creio que você me entendeu.

— Senhor Maddala, eu não tenho muita escolha.

— As pessoas sempre têm escolha.

Delilah ficou pensativa. Sim, ela tinha escolha, mas era péssima.

— Que tal me ouvir com atenção, Delilah? Eu tenho uma proposta para
você.

— Uma proposta?

Ele voltou a sorrir.


— Sim. Eu gosto de negociar, e podemos chegar a um acordo benéfico para
ambos.

Delilah sabia que ele não precisava negociar nada. Que seu pai já havia
acertado o que era necessário, sendo seu responsável e tutor. E que um
marido passaria a ter direitos totais sobre ela. O que Zamir começava a
demonstrar era uma generosidade inesperada, e isso fez com que ela se
sentisse grata, pela primeira vez naquele dia, com a escolha do homem que
seria seu marido.

— Estou ouvindo o senhor.

— Pois bem. Darei a você tudo o que o dinheiro pode comprar para uma
esposa: joias, roupas, sapatos, chapéus, um cavalo, uma carruagem à sua
disposição, um animalzinho de estimação. Terá criados que a sirvam. Viverá
numa ótima casa. Em troca você será uma boa esposa, de verdade. Se
esforçará para ser cordial com os clientes, com meus parceiros comerciais, e
com todos à nossa volta. Demonstrará, por expressões e ações, que está
satisfeita em ter se casado comigo. De forma alguma dirá a alguém, ou
insinuará, que esse casamento aconteceu à sua revelia. Perceba, Delilah, que
se eu fosse inglês ninguém se incomodaria por eu conseguir uma esposa sem
antes cortejá-la. Mas sendo eu nascido na Índia, serei julgado de forma
diferente. Com muita rapidez poderei parecer um tirano que obrigou uma
mocinha a um casamento ruim, e serei apontado como um cruel vilão. E

garanto-lhe que não sou.

Delilah assentiu. Também não acreditava que ele fosse um vilão.

— Eu apenas temo... — Ela gaguejou levemente, e fechou os olhos um


instante, buscando fôlego.

— O que teme?

— Eu... Não sou adequada.

— E por que não?

— Não tenho... traquejo, nem cultura. Talvez eu o decepcione.


— Que bobagem. Assim que a vi achei adequada.

Delilah sentiu como se o estômago revirasse.

— Eu?

— Sim, você. Não me decepcionará, se dedicar-se verdadeiramente, pois


temos semanas pela frente até a inauguração. E é uma coisa que terá que
fazer sozinha.

Delilah pesou as palavras dele, mas antes que falasse qualquer coisa, ele
continuou:

— Ser adequada ou não, para qualquer coisa, é decisão sua.

O que ele disse tocou fundo a Delilah. Havia não somente uma obrigação a
cumprir diante dela, mas também uma oportunidade! Zamir sabia mesmo
como provocar uma reação.

— E como eu, uma ninguém, poderia ajudar alguém a ter sucesso em


qualquer coisa que fosse?

— Ora, talvez não tenha compreendido. Sou um estrangeiro, um indiano, e


um mercador. Não almejo um título de nobreza inglês, mas ser aceito,
expandir meus negócios e aumentar o valor que há nos meus cofres.

— Oh... — Do jeito que ele falava, parecia simples.

— Oh. Se pensar bem verá que não há complicação. — Zamir sorriu.

Delilah agora compreendia o que Zamir Maddala tinha em mente. E

juntando todos os fatores que ele apresentara, e sua situação atual, não tinha
mais dúvida de qual deveria ser sua resposta.

— Eu a tratarei bem, Delilah. E exijo o mesmo. Essa, em suma, é minha


proposta.

— Eu aceito.
A voz que respondera era mesmo dela? Parecera vir bem de longe,
enrouquecida, mas firme. Delilah estava pasma consigo mesma.

— Ótimo! — O sorriso que Zamir devolveu-lhe era maior que os anteriores,


e ainda mais bonito. — Então temos um acordo.

Ele esticou sua mão sobre a mesa, para que ela apertasse, do modo que se
fazia entre cavalheiros. Delilah levou alguns segundos antes de estirar sua
mão, e apertar a dele.

— Temos um acordo!

Zamir recolheu a mão, e assentiu, já sem sorrir:

— Agora vamos escolher nosso almoço.

Delilah fez um pedido, sem olhar muito as opções. Estava ainda tão abalada
com a virada que sua vida dera, que mal conseguia pensar em comer.

Quando a comida chegou ela mastigou tudo com calma, permitindo que se
assentasse devagar, temendo que voltasse em ânsias constrangedoras. No
final, se alguém lhe perguntasse o que comera, não saberia dizer. Seus
pensamentos iam longe, perdidos e emaranhados, sopesando sua nova
situação.

Zamir pagou a conta e ofereceu a mão à ela, ajudando-a a se levantar.

Olhando os dedos presos uns aos outros, o contraste de pele, cor e tamanho,
Delilah deu-se conta definitivamente da mudança radical que estava
vivendo. E que não havia volta, nem mudança que pudesse deter os novos
rumos que se abriam.

O caráter de um homem é seu destino.

Provérbio indiano.

Capítulo 2

Era uma mulher casada!


A cerimônia de casamento foi ligeira, papéis foram assinados, ela recebeu
um rápido beijo de Zamir, e as congratulações do religioso que os abençoara.

O que lhe chamara mais atenção foi o momento em que um anel foi posto
em seu dedo.

Um anel!

De ouro, com uma pedra muito bonita no meio. Bem grande.

Aquilo seria um diamante? De verdade?

Que pergunta! Claro que era. O senhor Zamir Maddala não mediria esforços
para garantir que todos vissem que era casado com uma inglesa, e uma das
formas de ostentar isso era que ela exibisse um anel de casamento muito
vistoso e valioso.

O anel não era apenas para os outros, mas um sinal indelével para ela:
pertencia à Zamir.

Não apenas porque seu pai decidira, mas porque ela assim também quisera.
Um pensamento estranho a tomou: o que ele responderia se ela negasse o
acordo? Teria a colocado na carruagem outra vez, e parado diante da porta
dos Winter, para devolvê-la?

A pergunta era tola, posto que nunca teria coragem de fazê-la. Ela havia
decidido tomar parte daquele casamento, fosse farsa ou fosse real, e estava
ligada para sempre ao senhor Maddala. Levava seu nome, seu anel, e em
breve teria que entregar-lhe também seu corpo.

Um tremor sacudiu-lhe ante esse pensamento.

***

Zamir era ciente que sua esposa estava apavorada. Era uma moça muito
jovem, totalmente inexperiente, e o pai só contara para ela que teria que se
casar quando o noivo já estava à porta. Ele compreendia que tudo podia
parecer muito assustador para uma jovem inocente. E ela era muito inocente.
Essa havia sido uma das razões para que comparecesse àquele estranho
leilão, do qual ouvira por acaso, entre conversas na mesa do lado quando
jantava num restaurante. Um leilão de virgens, adequadas ao casamento!
Atento à troca de informações entre os outros homens, sobre endereço e
local, dirigiu-se a local e fez um lance.

A praticidade do leilão o atraiu. Não precisaria perder tempo procurando


uma jovem solteira que lhe aceitasse a corte, muito menos se preocupar com
pais que tivessem preconceito contra estrangeiros, e tampouco dar satisfação
de porque desejava uma esposa tão apressadamente.

E ele tinha pressa!

Depois de ver a noiva que comprara, ficou ainda mais satisfeito com a
decisão que tomara. Delilah possuía formosura discreta, e mesmo em seu
estado bruto transmitia meiguice e sobriedade. Foi esse jeito meigo, seu
semblante tristonho, que o levou a propor um acordo para ela, algo que a
ajudaria a ter confiança nele, e a sentir-se mais à vontade em sua presença. A
intimidade entre eles viria com o convívio, mas era preciso começar com
alguma coisa, e ele acreditava que o caminho tomado era o certo. Até a
inauguração teriam se ajustado adequadamente, e os ingleses o aceitariam

bem, sem que desse a impressão de um intruso numa terra estrangeira.

Tomando o braço de Delilah, ao deixarem a igreja, subiram na carruagem.

Sentados diante um do outro, fitaram-se em silêncio, enquanto o veículo


tomava embalo, ziguezagueando pelas ruas irregulares.

— Senhor Maddala.

Ele inclinou-se levemente entre os bancos, e alcançou a mão de Delilah. Um


leve frisson correu-lhe quando Zamir virou sua palma, e passeou com os
dedos sobre ela, espalmando-as até que as juntas abrissem, dando espaço
para um encaixe e ajuste perfeito. Então ele finalizou o movimento
estreitando dedos contra dedos, num entrelaçar quente.

Delilah não sabia muito sobre como eram as coisas entre um homem e uma
mulher, mas aquilo... Aquilo lhe pareceu tão... Íntimo e tão cheio de
promessas...

— Zamir. Vamos, fale Zamir. Não é um nome complicado.

Delilah sorriu:

— Zamir. Eu gostaria de saber...

A pergunta foi interrompida por um grito do cocheiro, um sacolejar violento


da carruagem, e uma derrapada estranha, que fez o veículo subitamente
pular, tirando os ocupantes do assento, e fazendo-os voar um sobre o outro,
emaranhados entre tecidos, braços, e pernas, e uma bengala, que aterrissou
com força na cabeça de Delilah, quando todo o mundo pareceu girar.

***

A última coisa de que Zamir lembrava-se era de ver Delilah sorrindo.

Era o primeiro sorriso que ela dava para ele, e tocou-lhe de forma estranha,
mais agradável do que poderia imaginar ser receber um mero sorriso da sua
mulher. Ela ia dizer-lhe algo... Perguntar alguma coisa... Mas então...

Zamir olhou em volta, aturdido. A carruagem virara e estava de cabeça para


baixo! Procurou mexer-se, devagar, cuidando de testar se o veículo estava
em falso, e se poderia rolar, provocando outro acidente.

— Delilah?

Sem obter resposta, tateou com a mão entre as almofadas dos bancos, que
haviam saído do lugar. A esposa estava abaixo delas, meio encoberta pelas
saias do vestido, que haviam ficado como tudo ali, de pernas para o ar.

Desesperado Zamir puxou-a, trazendo-a para seus braços. Entre seus cabelos
escuros um corte sangrava.

O sangue dele gelou.

O cocheiro abriu a porta, desgrenhado como seus patrões deviam estar.


— Estão bem? Mil perdões, meu senhor! Um cachorro surgiu à nossa frente,
e meteu-se entre as rodas, não pude parar...

— Ajude-me aqui!

Zamir passou seu corpo pela porta, e içou Delilah com cuidado para fora,
sendo ajudado pelo cocheiro.

Sentando-se no chão, com a esposa desmaiada em seus braços, Zamir


verificou que respirava. Balançou-a levemente.

— Delilah... Vamos, Delilah, acorde...

Ela abriu os olhos, piscando algumas vezes.

O cocheiro soltou um ofego alegre, levando a mão ao peito.

A visão dos olhos castanhos fitando-o foram um alívio, e Zamir fez uma
prece silenciosa. Que tremendo susto!

Um gemido estranho elevou-se, e os três viraram os rostos, procurando ver


de onde provinha.

— Um cachorro... — Delilah murmurou.

— Oh, o maldito! — O cocheiro estalou o chicote no chão, caminhando na


direção do som.

— Zamir! Não deixe que ele...

Delilah tentou se mexer, mas Zamir a manteve parada. No entanto, entendeu


o que ela pedia.

— Oscar, não bata no cachorro!

O cocheiro parou, súbito. Fitou o patrão. Ele ia dizer algo, mas, como um
bom empregado, não estava habituado a discutir com seus superiores. E o
senhor Maddala o pagava muito bem para que arriscasse uma discussão tola
tendo um cachorro vadio como tema.
— Apenas traga o animal aqui, Oscar.

O cocheiro assentiu, e seguiu até onde estava o cachorro. Ao ver o animal,


constatou que estava machucado.

— Ele está ferido, senhor. Talvez seja melhor sacrificá-lo.

— Não! — Delilah deu um grito, e voltando o rosto para Zamir, falou com
ele — Disse que me daria um animalzinho.

— Sim, eu disse.

— Quero esse cachorro.

Zamir soltou um bufo.

— Delilah! Um cachorro de rua, ferido ainda por cima?

— Por favor, você disse...

Mas que coisa! Ele tinha uma esposa ferida, com a cabeça sangrando, e ao
invés de preocupar-se com ela mesma, estava pedindo por um cachorro!

Esperava não ter casado com uma pessoa emotiva demais.

Ou destrambelhada.

— Está bem, minha esposa. O cachorro vira-lata, vadio, ferido e certamente


muito sujo, será seu.

Ela teve fôlego para rir.

Não sorrir, mas dar uma risada.

Tão musical e delicada que o corpo de Zamir não resistiu.

E junto com ela, soltou uma gargalhada.

Mas assim que o riso cessou, Delilah fez algo que surpreendeu a Zamir ainda
mais que o pedido de ficar com um cachorro de rua. Ela tocou seu rosto, e
seu olhar o esquadrinhou.

— Você machucou-se?

— Não. Não, minha esposa. Eu estou bem. Obrigado.

Ficou olhando para ela mais um pouco, com o rosto tão próximo ao seu,
percebendo a delicadeza de seus traços, e como seu nariz arrebitava
levemente na ponta.

O cocheiro gritou:

— O que faço, patrão?

Zamir desviou seu olhar para o cocheiro.

— Espere um instante.

Delilah começou a erguer-se, com o apoio do marido, e esperou

enquanto Zamir pegava sua capa dentro da carruagem e a envolvia nela. Em


seguida puxou um cobertor de dentro do veículo, uma peça de boa qualidade
que deveria estar lá para cobrir as pernas e protegê-las em dias frios.

— Oscar, enrole o cachorro no cobertor para que não o morda. Depois


vamos virar a carruagem e ver se ela consegue andar.

O cocheiro o obedeceu sem questionar.

A tarefa de virar a carruagem não foi simples e nem muito fácil, mas
felizmente alguns homens que passavam dispuseram-se a ajudar, e depois de
algum empurra daqui e puxa de lá, o veículo voltou a ter suas rodas no chão.

Mas dois aros estavam quebrados, e seu eixo talvez não estivesse também
muito confiável

Zamir soltou uma imprecação. Começava a escurecer e ele estava na rua


com uma carruagem quebrada e uma mulher precisando de cuidados
médicos. Por sorte ela estava consciente, mas uma pancada na cabeça não
era algo que devesse ser tratado com leviandade.

Durante todo o tempo em que estava lutando com a carruagem, com as


mangas arregaçadas e derrapando no chão de terra, seus olhos voltavam-se
para a esposa, preocupados.

E ela estava abraçada ao cachorro. E conversando com ele! Do que se tratava


a tal conversa ele não imaginava, mas via seus movimentos labiais.

Então, pelo jeito aparentemente doce com que ela movia o rosto, ele
entendeu.

Ela devia estar consolando o cachorro! O mesmo cachorro que quase a


havia matado. E a ele e ao cocheiro juntos! Vá tentar se entender as
mulheres! Zamir ergueu as mãos para os céus. Elas eram um mistério fossem
de qualquer nacionalidade.

O sorriso que dás volta a si mesmo.

Provérbio indiano

Capítulo 3

Tomaram uma carruagem de aluguel para voltar para casa enquanto o


cocheiro tratava de providenciar conserto para o coche avariado.

Zamir saltou do veículo antes, dando a mão à esposa para que descesse em
segurança. Ela carregava a velha bolsa e o animal ferido, ainda enrolado no
cobertor, mas o esposo tomou-lhe as duas coisas para que ele mesmo as
carregasse, e ainda conseguiu dar-lhe o braço como apoio, com toda a
cortesia que um cavalheiro perfeito deveria apresentar.

Era engraçado ver a preocupação e a consideração de Zamir. E

surpreendente também, já que haviam se conhecido apenas algumas horas


antes. Apenas algumas horas... E tanta coisa tinha acontecido que não
parecia ter sido tudo num dia só! Ela foi separada das irmãs, deu adeus ao
pai, foi posta para fora de casa, conheceu o noivo, casou-se, e sofreu um
acidente de carruagem. E agora tinha uma casa! Era uma loucura, sentia
como se estivesse dentro de uma roda que girava sem parar. Não sabia como
ainda não tivera náuseas devido a isso.

Mas, de tudo que sucedera, o cuidado com que estava sendo tratada era mais
do que podia esperar de alguém a quem não conhecia. Seu marido.

Ele não era mais um estranho, e Delilah precisava colocar isso


definitivamente na cabeça. Precisaria aprender a se comunicar com ele, até
porque ela se dispusera a isso, fechando um acordo de que seria uma esposa
colaborativa. Isso incluía, como Zamir bem dissera, falar com as pessoas. E

ela não deveria esperar ter intimidade com alguém para então falar com ela.

Precisava se esforçar, e colocaria isso em prática. Logo que a cabeça parasse


de doer.

Delilah sentia a cabeça latejar, mas pode apreciar a visão de sua nova casa
quando chegaram. Seu velho lar devia caber várias vezes ali dentro! Era uma
residência semelhante a tantas outras naquela parte boa da cidade, com
fachada cor de creme, dois andares, e pilastras romanas ladeando a porta
principal. Na frente da casa havia grade e portão, com ampla visão de um
jardim gramado repleto de flores coloridas, que serviam como alegres
recepcionistas na entrada.

Seu coração enterneceu-se. Quando era menina, e muitas vezes


acompanhava a mãe até as casas distintas onde iria buscar as trouxas para
lavar, ela sonhava um dia também morar numa casa bela e grande. Então não
tinha real noção da sua situação, mas com o tempo ela descobriria, e à
medida que crescia, ao voltar às mesmas casas, apenas admirava de modo
distante a tudo, sem alimentar desejos tolos, que jamais poderiam
concretizar-se.

Mas lá estava a casa dos sonhos! Os olhos voltaram a umedecer, como havia
acontecido algumas vezes mais cedo. O que estava acontecendo?

Era sua vida a que estava vivendo?


Abrindo o portão e logo subindo os degraus que davam acesso à casa, foram
recebidos por um mordomo com o tradicional traje inglês destinado aos
empregados que serviam aos ricos. Por alguma razão Delilah esperava que à
porta um homem de turbante e traje colorido os recebesse. Boba! Claro que
se Zamir pretendia integrar-se à sociedade londrina não daria um susto em
suas visitas à partir da entrada.

Os criados foram convocados rapidamente para conhecerem a nova senhora,


estando, como Delilah imaginou, aguardando desde cedo que esse momento
chegasse. Aparentemente só quem não sabia sobre o casamento que
aconteceria era ela mesma!

Uma criada de quarto foi designada para atendê-la. Ela se chamava

Lydia, e era uma moça agradável, que devia ter a mesma idade de Delilah, e
rapidamente pegou a bolsa com os pertences da nova patroa, aliviando-a do
peso e mostrando-se muito alegre por ajudar. Também a acompanhou até o
seu quarto.

Ela tinha uma criada! Esperava que sua expressão de aparvalhamento não
fosse tão óbvia. Realmente precisava treinar suas emoções.

Enquanto isso o mordomo foi orientado a providenciar um médico para


examinar a senhora Maddala, o que fez de pronto, exortando um criado a
partir para rua e não voltar sem a companhia de um doutor distinto e
eficiente.

Para Delilah tudo continuava a soar como irreal.

Delilah foi colocada numa cama confortável, num quarto grande e bonito, e
não demorou muito para um criado batesse à porta, e introduzisse um
médico no recinto. Zamir acompanhava a tudo, silencioso.

O médico examinou Delilah, limpou o corte, verificou que alguns arranhões


nos braços eram superficiais, prescreveu um elixir para aliviar as dores e
recomendou que a senhora não saísse de casa nos próximos dois dias.

Ela não deveria fazer esforço. O doutor também deixou algumas outras
instruções, em voz baixa, para o marido de sua paciente. Pegando sua valise,
estava pronto para sair, quando Delilah pigarreou.

— Doutor... Eu poderia... Pedir-lhe um favor?

— Sim, claro, senhora.

— Bem... Eu sei que não é sua especialidade, mas poderia dar uma olhada na
minha cadela?

— Cadela? — Zamir e o doutor perguntaram ao mesmo tempo, a surpresa


estava presente em cada voz, em entonações diferentes.

— Sim. — Delilah primeiro voltou-se para o marido — Descobri que

ela era fêmea enquanto estavam desvirando a carruagem.

Depois ela voltou-se ao médico, esforçando-se para que sua voz soasse
firme:

— Por favor, não deve tomar muito do seu tempo. Ela se feriu no mesmo
acidente que eu.

O médico tinha os olhos arregalados por trás das lentes dos óculos que
usava, e via-se que fora apanhado de surpresa com o pedido tão inusitado.
Zamir decidiu intervir.

— Sabemos que o senhor não é um médico de animais, mas se puder nos


fazer esse pequeno favor eu o pagarei generosamente, doutor.

Isso fez o outro homem se mexer.

— Deixem-me ver o animal.

Lydia correu para atender ao pedido, e em pouco tempo a cadela ferida, que
repousava num cesto da cozinha, foi trazida para o quarto. Não estava tão
suja como Zamir esperava, e nem cheirava mal. De fato após um bom banho
deveria ficar apresentável.
O médico pôs de lado sua surpresa inicial, e como possuía um bom coração,
afinal de contas, decidiu examinar cuidadosamente a cachorrinha
machucada. Verificou que uma de suas patas necessitava cuidado especial.

Pedindo um pedaço de madeira fina, das que poderia ser usada como lenha,
improvisou uma tala e amarrou-a, para que a cadela pudesse firmar-se nas
quatro pernas.

— Pronto! — O homem anunciou, parecendo satisfeito. — Espero que o


acidente não tenha prejudicado os filhotes, mas creio que só saberemos isso
quando chegar a hora de dar cria.

— O que? — Zamir franziu as sobrancelhas.

— A cadela está prenha. — O médico afirmou.

Zamir voltou o olhar para a esposa.

— Delilah!

Ela encolheu-se ligeiramente na cama.

— Isso eu não sabia.

— Bem, se não houver mais nenhum paciente, humano ou canino, creio que
terminamos por hoje. — O médico fechou sua valise.

Zamir acompanhou o médico até a porta, sumindo da visão de Delilah.

— Qual o nome dela, senhora? — Lydia estava inclinada sobre a cadela,


acariciando-a.

Delilah sorriu. Gostara de Lydia. E como percebia nela a simplicidade na


qual também fora criada, sentia-se bastante à vontade em sua presença.

— Pensei em Estrela. O que acha?

Os olhos alaranjados de Estrela observavam a tudo em volta com muita


atenção. Era bastante peluda, num tom castanho, que estava agora sujo e
maltratado. E era pouco maior que um pequinês.

— Oh, acho lindo! Amanhã poderemos providenciar um banho para a


Estrela.

— Agradecerei muito se fizer isso.

— Posso levar Estrela agora? Ela deve estar com fome, já que come por... —
Lydia balançou a cabeça, incerta — vários.

— Oh, sim, sim. Deixe uma vasilha com água ao lado dela também.

A criada fez uma reverência antes de pegar a cesta com a cadela e sair.

Zamir retornou ao aposento em seguida.

Puxando uma cadeira que estava num canto, aproximou-a da cama onde
Delilah continuava, e sentou-se.

— E então, como está se sentindo?

— A cabeça dói um pouco, e também sinto sono.

— O médico disse que não deve dormir nas próximas horas.

— Não devo?

Delilah fez um pequeno bico, que Zamir achou bastante atraente.

Aquela mocinha a quem ele levara para casa e dera seu sobrenome estava
lhe causando sensações das mais estranhas. Também muito daquele dia
havia saído do caminho que ele planejara. Um acordo, um acidente, e uma
cadela prenha... Se alguém lhe contasse tudo que havia acontecido ele
acharia graça.

E agora ele teria que ficar ao lado da esposa cuidando para que não
adormecesse. Claro, poderia relegar essa função à uma criada, mas algo
dentro dele era contrário a tomar essa atitude.
— Não. E também não deve fazer esforço por dois dias inteiros. E

duas noites. — Zamir ergueu as sobrancelhas, encarando Delilah. — Sabe o


que isso significa?

Delilah achava que havia entendido bem:

— Que preciso descansar?

— Sim, mas significa também que não cobrarei de você seus deveres como
esposa essa noite, e nem na próxima.

Delilah continuava a olhá-lo, sem responder. Então algo ocorreu a Zamir.


Sua esposa tinha entendido que precisaria dormir com ele, mas ela tinha
algum entendimento do que acontecia entre um casal, ou ela pensaria que
para fazer bebês bastava que rolassem de lá para cá entre os lençóis?

— Sua mamãe explicou o que os maridos e esposas fazem no quarto, depois


que as portas se fecham?

O rosto de Delilah ficou rosado.

— Minha falecida mãe não me explicou, mas uma amiga, sim. —

Daisy havia lhe explicado tudo o que ocorria, com conhecimento de causa. E

Daisy nem sequer era casada! Algumas moças levavam uma vida bastante...

moderna, por assim dizer. A amiga tinha um namorado com o qual planejava
casar-se, mas enquanto o dinheiro não permitia, eles entregavam-se ao
prazer, escondidos dos pais dela. Talvez Delilah, agora numa posição
melhor, pudesse oferecer para Daisy um lugar na cozinha de sua casa. Um
emprego fixo, e a garantia de pagamento regular poderia ajudar muito.
Como ambas gostavam de aventurar-se junto ao fogão, essa poderia ser uma
forma de ajudar a amiga a conseguir dinheiro para casar-se e ainda
proporcionar para ela um trabalho do qual se agradaria. Pensaria melhor
nisso, depois.
— Ah, que bom. — Zamir juntou as mãos, enquanto seus dedos batiam
devagar um no outro.

— Zamir...

— Sim?

— Sobre Estrela...

— Estrela? — Zamir interrompeu, confuso.

— Estrela, a cadela.

— O nome da cadela é Estrela?

— Sim.

— Ah...

— Bem, sobre Estrela...

— Ela vai ter filhotes! — Zamir cortou Delilah.

— Então, sobre isso...

— Delilah, embora pareça ter passado muito tempo desde nosso acordo, foi
há apenas algumas horas. E recordo-me bem de ter oferecido a você UM
animalzinho.

Delilah podia não ser uma pessoa de muito falar, mas nunca lhe agradara
assistir uma injustiça sem fazer nada. Portanto defendeu seu ponto:

— Zamir, coitadinha da Estrela... Não podemos colocá-la para fora apenas


porque está prenha.

— Provavelmente foi o que o antigo dono dela fez! — Zamir cruzou os


braços.

— Mas não está certo fazer isso. Por favor deixe-me ficar com ela.
— Quanto a isto não se preocupe, já está decidido e não voltarei com minha
palavra. Ela é sua.

— Mas ela terá filhotes, e não posso abandoná-los. A maioria das pessoas
não quer cachorrinhos vira-latas...

— Só a senhora Maddala — Zamir resmungou.

Delilah sorriu, mesmo diante do semblante sério de seu marido.

— Serão apenas dois ou três, tenho certeza que não passarão disso.

Zamir a encarou, sem descruzar os braços.

— Três filhotes mais a mãe. Quatro animais.

— A casa é grande...

Zamir parecia irredutível, e Delilah lembrou-se que ele havia dito que
gostava de negociar. Respirando fundo, juntou coragem para nova tentativa:

— Podemos fazer um acordo.

— E do que se trataria esse novo acordo?

— Bem... Eu ficaria com quatro animais de estimação.

— E?

— Como “e”?

— Ora, senhora negociante, não sabe como funciona um acordo?

Você pede alguma coisa que deseja e apresenta outra em troca.

Delilah compreendeu. Mas não tinha absolutamente nada para trocar.

Não lhe ocorreu também nenhuma ideia prática. O que sabia fazer, como
bordados ou pães seriam inúteis para alguém como Zamir. Talvez contar-lhe
uma história? Ela sabia algumas boas de cor... Sacudindo a cabeça afastou
também essa opção.

— Estou aguardando o final de sua proposta.

— Eu... Eu não tenho nada para negociar.

Um sorriso surgiu no rosto de Zamir.

— Hum... Podemos pensar em algo.

Zamir estava gostando do fato de Delilah começar a soltar-se com ele, e até
poderia deixar que ela ficasse com os cachorros, afinal Estrela era de
pequeno porte, e seus filhotes não deveriam crescer demais também, o que
tornaria menos complicado mantê-los. Mas não poderia furtar-se a provocar
a esposa para que continuasse falando. Além disso, era sua função mantê-la
acordada e alerta, não era?

Delilah aguardou.

Zamir colocou a mão no queixo, pensativo. E ficou assim por bastante


tempo, até Delilah começar a impacientar-se.

— Alguma ideia?

— E você? Alguma ideia?

— Oh... pensei... Não, é bobagem.

— Fale.

— Bem... Eu sei fazer pão. Posso fazer pães gostosos para você.

Zamir sorriu.

— Eu gostaria de experimentar seu pão, no futuro. Mas não creio que seja o
bastante para que compense os latidos e inconveniências a mais que a sua
proposta trará.
Ela suspirou, e ele percebeu que o suspiro soou um pouco cansado.

Chamou a atenção dela outra vez:

— Fale-me sobre você.

— Sobre mim?

— Sim, Delilah. Você não deve dormir. Então vamos conversar para que
fique acordada.

— Está bem.

— Fale algo. Conte-me do que você gosta.

Ela piscou, começando a sentir que ficar de olhos abertos estava um pouco
mais difícil. Após um dia inteiro de emoções extremas naturalmente seu
corpo cobrava o preço, rendendo-se ao cansaço.

— Eu gosto de cachorros.

— Ah, não me diga!

Ela sorriu, endireitando-se melhor no colchão, para manter-se acordada.

— E gosto de ler.

Zamir ficou satisfeito porque ela sabia ler. Muitas pessoas não sabiam, e a
falta de estudo era maior entre as mulheres.

— Algum autor favorito?

Ela deu de ombros.

— Não. Infelizmente eu não conheço muitos.

— Compreendo. Aqui nós temos uma biblioteca, pode ser bastante agradável
para você, e você terá acesso a vários autores.
O comentário dele a animou, e seus olhos brilharam. Olhos castanhos com
rajadas mais escuras, protegidos por cílios negros e longos. Não havia
prestado muita atenção ao tom dos olhos da esposa antes, mas agora Zamir
admirou-os com interesse. Então voltou a atiçar a conversa:

— E o que mais?

— Bem, gosto de bordar. Não sou exímia bordadeira, mas faço flores lindas.

— E você tem algum passatempo?

— Nenhum. Você tem?

— Gosto de cavalgar.

— Eu nãos sei cavalgar.

— Pensei que todos soubessem cavalgar.

— Só quem tem um cavalo.

— Ah, espirituosa...

Ela deu um sorriso débil, e suas pálpebras começaram a fechar-se.

— Não durma, Delilah! Considerarei uma afronta pessoal que durma e me


deixe falando sozinho.

— Desculpe. — Delilah arregalou os olhos.

— Não estou falando sério.

Mas agora ela estava mais alerta, e seus olhos não se fechariam tão
rapidamente.

— Ainda bem...

O marido sorriu e retomou a palavra:

— Vou ensiná-la a cavalgar um dia.


— Eu vou adorar! É algo que sempre quis.

— Prometi-lhe um cavalo, lembra?

Ela assentiu, sorrindo. Zamir tamborilou os dedos no braço da cadeira em


que estava sentado, procurando pensar em algo que pudesse deixar a esposa
desperta.

— Do que gosta de comer?

Ela gostava de tudo. Mas havia uma coisa a qual tinha predileção:

— Gosto de doces.

— Temos algo em comum, então. Também gosto.

— Gosta de torta de limão?

— Minha favorita.

— Também a minha!

— Pedirei que o cozinheiro faça uma para nós essa semana, mas só se
mantiver-se acordada por mais algumas horas, Delilah.

— Estou com tanto sono... — ela admitiu.

— Mas não pode dormir, minha querida.

Delilah balançou a cabeça, concordando com ele. Precisava esforçar-se para


não cair no sono. Decidiu aproveitar e saber um pouco mais sobre Zamir:

— Fale de você também.

— Sobre o que?

— Você tem irmãos?

— Sim, tenho dois. Arun e Radesh. Radesh é casado com Yasmeen.


Arun também é casado. Com Margret, uma inglesa como você.

— E onde moram?

— Radesh mora na Índia. Arun mora aqui, no Reino Unido.

— Em Londres?

— Não. Moram no campo. Mas tem planos de vir para Londres em breve.
Vai gostar deles.

— Eles sabiam que planejava casar-se?

— Não.

Ela ergueu as sobrancelhas.

— Vão estranhar que tenha se casado. Ou assustar-se.

— Não quando conhecerem minha adorável esposa.

Delilah ficou rubra. Adorável, ela? Oh, ele era muito gentil...

— E vão gostar de saber que é uma moça esperta.

— Não sou.

— Oh, sim, é. Demonstrou hoje.

Ela deu um sorriso irônico:

— Ao ter aceitado seu acordo?

— Também, mas por ter me feito aceitar Estrela e seus filhotes.

— Então já aceitou todos? Mesmo sem que eu tenha uma boa proposta em
mente?

Zamir balançou a cabeça em negativa.


— Você terá que pensar em algo. — Ele endereçou à esposa um sorriso
charmoso, fazendo que ela apertasse as mãos uma na outra, subitamente
consciente da masculinidade atraente do esposo. E o que ele

estava fazendo por ela... Poderia ter ido dormir, dando ordens à criada para
tomar conta dela, mas estava ali, pessoalmente, comportando-se como um
marido de verdade.

Bem, ele era um marido de verdade!

Não com todo o significado da palavra, mas diante de Deus e dos homens
era. Só faltava a consumação. Recordou-se do que Daisy lhe contara.

Dos beijos molhados, da nudez, da intimidade, da dor da primeira vez, e da


alegria de todas as outras. Delilah não acreditava antes que teria essas coisas,
mas afinal ela teria. Teria tudo!

Tinha um pouco de medo, mas também tinha muita curiosidade.

Como seria? Os pensamentos dela começaram a afastar-se da conversa


simples e inocente que estavam tendo, e enveredaram por um terreno
perigoso...

Inquieta Delilah ajeitou-se melhor na cama, procurando colocar os


travesseiros empilhados às suas costas. Imediatamente Zamir debruçou-se
sobre ela, para ajudar. Ele exalava um suave perfume, que, não por acaso,
lembrava terras distantes e exóticas. O perfume usado devia vir também da
Índia, e Delilah não duvidou que fosse um dos produtos que seriam
apresentados aos clientes de sua loja.

Enquanto arrumavam os travesseiros — quatro deles, um exagero que


Delilah achou simplesmente delicioso — seus rostos pairaram muito
próximos.

— Ocorreu-me uma ideia — murmurou Zamir.

— Sim? — Delilah tinha seus olhos sobre os lábios de Zamir.

— Beijos.
— Beijos?

— Sim. Não teremos a noite de núpcias hoje, mas teremos beijos. E

amanhã também. Beijos não demandam esforço, só dedicação.

Delilah sentiu-se exultar. Zamir não precisava colocar isso num acordo.
Como marido ele teria direito aos beijos que quisesse, como tudo o mais. O
fato de apresentá-los como se fossem algo que ela pudesse escolher fazer era
maravilhoso. Como poderia negar-lhe o que pedia?

E como poderia negar-se se apenas um instante antes que ele fizesse tal
proposta, era exatamente sobre beijos que ela pensava?

E ele a desejava beijar!

Delilah nunca havia sido beijada. Nunca recebera atenções de um rapaz


desejoso de roubar-lhe um beijo que fosse.

Mas agora ela havia sido escolhida para ser uma esposa, escolhida para ser
beijada, e desejada para ambas as coisas.

Então, diante de uma boca bonita, e do seu marido, ainda por cima, não
poderia sentir nada mais do que desejo de lhe dizer sim. E sim, e sim.

Ela sorriu para Zamir.

— Temos um acordo. — E estendeu a mão, na posição certa para receber um


aperto, igual ao que trocaram mais cedo, diante do rosto dele.

Zamir pegou a mão de Delilah apenas para baixá-la.

— Não, para esse tipo de acordo ser selado, o cumprimento é outro.

Inclinando-se sobre a esposa, Zamir tocou seus lábios.

Na igreja, mais cedo, ele havia beijado a esposa. Um toque leve, adequado a
um templo religioso e inadequado para os desejos de um homem.
E ele desejava a esposa. Claro, isso era de se esperar, mas ele realmente a
desejava!

Mais do que previsto.

E imprevistos eram a ordem do dia, pelo que percebera.

As surpresas deveriam ser apenas para a senhorita Delilah Winter, e ele


deveria ser a pessoa que a esclareceria, e a conduziria de forma a conseguir
os resultados almejados de forma simples e fácil, já que ela não teria escolha
a não ser voltar-se para ele. Mas as coisas saíram do seu controle, e Zamir
havia sido pego em sua própria armadilha.

Aprendera havia muito a lidar com diferentes tipos de pessoas, a fazer as


coisas de modo tranquilo, e conseguir que os seus negócios resultassem em
sucesso. Ser bem-sucedido para Zamir não se resumia apenas em ter lucro,
mas obtê-lo de forma agradável. Do mesmo jeito passara a conduzir outros
aspectos de sua vida, contornando situações ruins, resolvendo problemas, e
seguindo incólume por todos eles.

Mas não hoje.

Talvez tudo se resumisse a experiência que tivera devido ao acidente de


carruagem. Afinal não era sempre que você casava e quase ficava viúvo
menos de meia hora depois. Passar por um susto dessa grandeza mexia com
uma pessoa!

E no momento ele só queria beijar a esposa, e ter a certeza que ambos


estavam muito vivos. Beijá-la sem restrição, sem queixa, sem inibição. Sem
que fosse por temer a brutalidade de um marido imposto pelo pai.

Com o tempo ela aprenderia que não precisavam de acordos, mas ainda era
cedo, e antes de tudo Zamir fazia questão que a esposa se sentisse segura em
sua presença, confortável perante o marido. Estavam só começando.

Ele contornou seu lábio inferior com a língua, e através de mordidas suaves,
fez com que a boca de Delilah abrisse. Sua língua entrou devagar, tateando
até encontrar a dela, e provocando-a até conseguir resposta.
E que resposta!

Delilah tinha sabor doce, a maciez de seus lábios, e o contato de sua língua o
encantaram. Como supunha tornou-se maravilhoso ensinar-lhe como era um
beijo de verdade. O ritmo que ele imprimia, provocativo e lento, não custou
muito a ser imitado por Delilah.

Zamir tinha uma boa aluna, aplicada, e que ele incentivaria a dedicar-se
integralmente a cada tipo de beijo que ousasse mostrar. Delilah não poderia
adormecer nas próximas horas e ele estava empolgado com a perspectiva de
distraí-la o bastante para que ficasse muito desperta. E foi o que fez,
arrancando as botas e deitando-se com ela sobre o grande e macio colchão.

A única maneira de ver o arco-íris é olhando-o

através da chuva.

Provérbio indiano

Capítulo 4

Delilah despertou no dia seguinte sentindo um agradável torpor.

Espreguiçou-se devagar, testando o corpo, verificando se tudo estava em


ordem. A cabeça ainda doía um pouco, mas nada que incomodasse demais.

Ela abraçou um dos travesseiros, suspirando. Na noite anterior estivera aos


beijos, aos muitos beijos, com o marido. Um calor tomou-lhe o rosto.

Enquanto passavam as horas em que deveria manter-se acordada, a pedido


do doutor, teve a companhia de Zamir. E quando o sono ameaçava fechar-lhe
os olhos ela recebia um beijo de tirar o fôlego e logo despertava. Algumas
vezes chegou a rir. Tinha vontade de rir nesse mesmo instante!

O riso subiu-lhe a garganta, livre e despreocupado. Essa então era a vida de


casada? Por que a temia mesmo?

Enquanto tinha seu olhar perdido entre as cortinas de dossel da grande cama
que ocupava, percebeu que estava sozinha.
Em algum momento durante as primeiras horas do dia, Zamir, que estivera
deitado ao seu lado, partira. Certamente ele tinha muitos afazeres, e não
poderia pajear-lhe todo o tempo. Era compreensível.

Estirando o olhar em volta percebeu uma porta que a qual não reparara na
noite anterior. Movendo-se com cuidado afastou os cobertores e levantou.
Caminhou até a tal porta, girando a maçaneta.

A porta levava a um cômodo semelhante ao seu. Havia uma cama larga


também, cômoda, uma mesinha no canto com uma cadeira, e um

guarda-roupa. Os móveis eram de estilo mais pesado, adequados a um


homem, e o aposento estava vazio. Delilah não precisava ser muito
inteligente para perceber que aquele era o quarto de Zamir. Ela sentiu-se
subitamente desconfortável.

Encostando a porta, voltou para sua cama sem fazer qualquer ruído.

Ela não dividiria o leito com o esposo, como acontecia nas casas simples do
lugar de onde viera. Bem, e por que isso deveria causar qualquer espanto?
Desde o princípio foi informada que Zamir Maddala era rico, e os ricos
tinham o hábito de manter quartos separados do cônjuge, coligados por uma
portinha — como a que acabara de abrir — que poderia permitir visitas
noturnas. Todos sabiam disso, até ela.

Não deveria sentir-se decepcionada com isso. Mas se sentiu.

Em algum momento entre o ontem e o hoje se iludira com a atenção do


marido e a riqueza em volta e esquecera o que era seu casamento realmente.

Um acordo.

Ela seria boazinha, e receberia bom tratamento como paga.

Céus... Se aquilo não soava agora como... Delilah fechou os olhos, e


balançou a cabeça. Não. Era um casamento como tantos outros dos quais
ouvira falar, de interesse. Só.
Era apenas... irônico! Tudo, toda a situação. Não existiam muitos
casamentos por interesse entre as pessoas que ela conhecia. Interesse em
quê?

Se cada parte era pobre, a união seria, no máximo, para unir forças. Então
acreditava que os casamentos eram por amor. E o amor muitas vezes
acabava mal. Ela vira isso na própria casa. A mãe até o fim da vida amou o
pai, mesmo quando ele dava mostras que de sua parte não havia o mesmo
sentimento. Então por que, tendo ciência de todas essas coisas, seu peito

agora se afligia ante a realidade de sua própria união?

Não havia aceitado tudo o que era oferecido no dia anterior, apresentado
como antepasto numa mesa de restaurante? Não havia concordado, e selado
tudo com um aperto de mãos? Que bobagem era essa agora de ficar triste
porque não teria o marido agarrado com ela na cama durante a noite, como
se fossem um casal apaixonado?

Em momento algum a palavra amor havia sido dita. Nem entre as conversas
à mesa, nem entre os beijos à cama.

Ela não deveria ser tonta e imaginar que estava vivendo algum conto de
fadas, pois não estava. Sua função era ajudar ao marido, que a escolhera para
essa finalidade, a mostrar-se como um cidadão íntegro que tinha a melhor
loja de produtos indianos do país.

Mas e se existisse amor? — uma vozinha perguntou dentro da sua cabeça.


Se existisse amor, e se ele surgisse tão rapidamente, era porque Delilah era
mesmo uma boba.

Não, claro que não era nada disso! Não era. Estava apenas confusa.

Tudo o que antes conhecia mudara. Levara uma pancada na cabeça. Se essas
duas coisas não fossem o suficiente para deixar uma pessoa fora de si, não
sabia mais o que pudesse ser. Quando conseguiu controlar melhor seus
sentimentos, Delilah puxou a corda para chamar Lydia.

Em pouco tempo sua criada entrou, carregando uma bandeja com o


desjejum, e colocando-a sobre uma mesinha para abrir as cortinas, antes de
servir sua patroa.

— Bom dia, senhora! — Lydia também abriu uma fresta da janela, e o ar do


quarto começou a ser renovado. Então pôs-se a servir Delilah.

— Bom dia, Lydia.

— A senhora se sente melhor, hoje?

— Sim, obrigada.

— O senhor Maddala deixou ordens para que não a incomodássemos e que a


deixássemos dormir quanto quisesse. Felizmente as principais horas após o
acidente passaram sem problemas, e a senhora tem uma aparência melhor!
Todos ficamos preocupados.

— Agradeço a preocupação. — Delilah tomou um pouco do seu chá.

Estava saboroso.

— O senhor Maddala também pediu que a avisássemos que uma costureira


virá tomar suas medidas mais tarde. — Lydia sorria, parecendo mais
empolgada que Delilah.

— Obrigada. E Estrela, comportou-se ou roeu o pé de alguma mesa?

— Oh, ela comportou-se bem, é muito boazinha. E eu já lhe dei banho e


escovei. Precisei tirar a tala, mas havia prestado atenção enquanto o doutor
fazia o curativo, e consegui colocá-la exatamente do mesmo jeito que estava
antes. Gostaria que a trouxesse depois?

— Oh, sim, eu adoraria.

Após ajudar Delilah a vestir-se, ainda com um dos velhos trajes que trouxera
de casa, Lydia tratou de levar a bandeja com os restos de desjejum para a
cozinha, e trouxe Estrela para a inspeção.

Estrela estava limpa, cheirosa e alimentada, e mostrou-se uma cachorrinha


dócil e bem-comportada. A pobrezinha devia ter se perdido do dono anterior,
mas Delilah iria cuidar bem dela, pelo resto da vida.

Abraçando-a com muito afeto e cuidado, pensou que ambas tiveram sorte
por estarem bem, aquecidas, e protegidas das maldades que haviam do lado
de fora. Essa certeza devia ser o bastante para elas. Pegando Estrela no colo,
roçou seu nariz no focinho dela, fazendo com que o animal balançasse o
rabo, alegremente.

— Eu também estive pensando, senhora, em sugerir-lhe algo que poderia


ajudar a entretê-la enquanto recupera-se de seu ferimento.

Delilah largou Estrela no chão, e voltou sua atenção à criada. A moça havia
colocado os braços para trás das costas, numa postura humilde.

— Pode falar, Lydia.

— Eu trabalhei numa casa em que a senhora gostava muito de escrever. Ela


passava boa parte do seu tempo fazendo longas cartas, e me confidenciou
que nem sempre o que escrevia era realmente para ser enviadas a alguém.

Delilah franziu as sobrancelhas. Cartas escritas que não deviam ser enviadas
a alguém?

— As cartas eram... Uma fonte de distração. Compreende? Relatos do dia,


coisas que ela achava interessante, mas não tinha para quem contar, ou
simplesmente considerações pessoais, que não valiam a pena ser divididas
com outras pessoas.

— Desabafos. — Delilah compreendeu o que a outra dizia.

— Isso mesmo. — Lydia sorriu.

— Oh, que interessante.

— Sim. Pensei então se a senhora gostaria que lhe trouxesse papel e tinta,
para distrair-se de modo semelhante.

— Sim, eu adoraria!
Lydia ficou satisfeita, e buscou o material necessário para que Delilah
pudesse escrever quando quisesse, colocando tudo na primeira gaveta da
cômoda.

O restante do dia transcorreu bem. Delilah almoçou, recebeu a costureira e


suas ajudantes, experimentou algumas sapatilhas que

combinariam com os tecidos mais indicados para seus novos vestidos, e até
recebeu o adiantamento de três trajes, para eventuais emergências. Eram
peças simples e práticas, mas guardavam suave elegância.

Por fim Delilah decidiu passear pela casa. A sala de jantar era um cômodo
espaçoso, com uma mesa grande, feita de madeira que brilhava graças ao
capricho dos criados. Toda a casa reluzia, apresentando um refinamento
austero, e uma dignidade que não poderia deixar de orgulhar ao seu dono.
Também havia nas peças que compunham o primeiro andar uma
impessoalidade fria, resultado óbvio da falta de uso. Um lugar que não era
usado por pessoas não era somente vazio, mas pouco aconchegante, pensou
Delilah, colocando as mãos na cintura e olhando atentamente os móveis e as
tapeçarias. Zamir vivia sozinho ali com criados, ela não sabia há quanto
tempo, mas não restava dúvidas que pouco usufruía do seu lar. Devia fazer
as refeições rapidamente, talvez até em seu quarto, ocupado demais com
planos e cálculos para perder tempo num longo jantar, ou para tomar chá
despreocupadamente no confortável sofá de uma de suas salas de visitas.

Era uma pena que ele não valorizasse tudo o que tinha ao seu dispor.

Quem estava habituado a ter tudo não poderia dar a real importância a ter o
que vestir, o que calçar, o que comer. Nem mesmo entender o quanto era
maravilhoso ter um teto sobre sua cabeça. Supunha que Zamir nascera rico,
quase certamente vindo de uma linhagem de mercadores indianos, como ele.

Mesmo que tivesse adquirido fortuna com o tempo, talvez já tivesse


esquecido das dificuldades do seu passado. Bem, Delilah não esqueceria. E
se viveria ali, faria do lugar um lar de verdade.

Continuando sua inspeção, acompanhada de Estrela, que claudicava atrás


dela, abriu uma porta e deparou-se com a biblioteca da qual Zamir falara.
Seus olhos abriram-se mais, enquanto corriam de um lado para o

outro, encantados. O aposento não era muito grande, mas bastou para que
lhe parecesse um refúgio paradisíaco.

Diferente das outras dependências daquele piso, a biblioteca era uma


confusão alegre de cores e odores. Cheirava a papel, couro, e — Delilah
sorriu por isso — coisas velhas. Passeando os dedos entre os volumes,
percebia capas desgastadas misturadas às modernas, e edições muito antigas
dividindo espaço com livros novos.

Zamir devia ter trazido alguma coisa da Índia. Teve a certeza disso ao
descobrir alguns exemplares escritos em outra língua sob belas
encadernações com arabescos.

A variedade de títulos também a impressionou. Tratados, filosofia, drama,


leis... Até mesmo alguns livros de poesia espalhavam-se em prateleiras e na
mesa de madeira maciça que dominava o ambiente. E havia um livro sobre
etiqueta, escrito por uma dama da sociedade. Aquilo a interessou. O marido
deveria ter adquirido o exemplar para conhecer melhor os modos e manias
dos ingleses, e agora o conteúdo seria útil para ela.

Delilah sentou-se na convidativa poltrona ao lado da janela, beneficiando-se


da luz que ainda refletia sobre Londres. Ao pôr do Sol pediria que
acendessem a lareira ou se recolheria ao próprio quarto.

Leu e releu cada tópico, interessada. Depois rebuscou mais informação,


buscando os títulos ingleses. Separou dois que lhe pareceram proveitosos, e
levou-os consigo.

***

Zamir tivera um dia longo, mas proveitoso. O irmão Arun havia garantido
que o pai de sua esposa, um barão, usasse de influência para

beneficiar a loja Maddala. Sendo Arun sócio, ainda que minoritário, dos
empreendimentos de seu irmão, levaria vantagem no sucesso do novo
negócio.
A esposa de Arun era bastarda, mas o barão seu pai a tratava com carinho e
zelava pelo seu conforto, e a deferência dedicada a ela se expandia aos
familiares que ela adquirira através do matrimônio. Ainda bem!

Zamir estava contente com os rumos que as coisas estavam tomando, no


sentido financeiro. Mas não somente esse ponto o deixava animado.

Regozijava-o que tivesse em sua casa, o aguardando, uma esposa solícita,


que agradava-se de suas atenções e respondia muito bem a elas.

Passar a noite nos braços de Delilah, mesmo que totalmente vestido, havia
sido um imenso prazer. Hoje teria mais, e na noite do próximo dia teria sua
satisfação completa, dando enfim vazão aos seus desejos. Pensar nisso fazia
sacudir seu membro, do mesmo modo que acontecera muitas vezes na noite
anterior, e até algumas vezes durante o dia, mediante as recentes lembranças
acumuladas. Ah, que boas lembranças...

Entrou em casa sentindo-se mais empolgado do que estivera na últimas


semanas, entregou seu chapéu e sua casaca para o mordomo, e foi direto
para o quarto de Delilah.

Ela estava sentada numa cadeira perto da lareira, e sorriu quando o viu.

Zamir achou que havia subido as escadas rápido demais. O coração estava
acelerado. Abrindo os braços, foi até a esposa.

Delilah não o decepcionou. Jogando-se entre eles, ela ergueu o rosto,


esperando um beijo. As bocas se encontraram, ávidas, trocando carícias
úmidas e ansiosas.

— Como foi seu dia?

— Ótimo, e o seu? — Não a soltou, deleitado por sentir o corpo quente junto
ao dele.

— Foi tudo bem.

Zamir voltou a beijar sua esposa.


— E sua cabeça?

— Quase não dói.

Deu-lhe outro beijo, e, ainda agarrado a Delilah, deu um passo. A esposa o


acompanhou.

— Conte-me mais.

— A modista esteve aqui.

E mais um beijo, assim como outro passo.

— Como foi?

— Ela tirou minhas medidas. E deixou três vestidos. Estou usando um deles.

Zamir afastou-se apenas o bastante para admirar a roupa nova que Delilah
usava, e tornou a puxá-la para seu abraço.

— É muito bonito. Gostei, minha formosa esposa.

Ele a havia chamado de formosa!

Um homem nunca a havia elogiado como Zamir fazia! Não um que valesse a
pena. Claro que ela havia ouvido uma ou duas bobagens dos vadios e
bêbados que circulavam pelo East End, mas nunca poderia levar isso em
conta.

Zamir então beijou-lhe o ouvido, e mordeu de leve seu lóbulo, quase fazendo
Delilah flutuar.

— A modista disse...

— Sim? — Zamir deu mais um passo, e as pernas de Delilah esbarraram na


madeira da cama. Com delicadeza ele a empurrou para que se estendesse no
colchão, e se deitou também, sem parar de depositar beijos sobre toda a face
da esposa.
Ela engoliu em seco, procurando concentrar-se:

— A modista disse que poderíamos fazer uma parceria.

Zamir parou de beijar a esposa por um instante e sorriu, com seu rosto
pairando sobre o dela.

— Ah, uma parceria?

— Sim. Ela me garantiria modelos exclusivos, e eu concederia descontos


para ela nas sedas indianas. Em todos os tecidos, na verdade.

— Que esperta...

Ele continuava sorrindo, e Delilah percebeu quando ele colocou uma perna
entre as suas, separando-as. O ar parecia estar faltando no quarto, e a
garganta subitamente ressecou quando tentou engolir saliva. Sua voz soou
ligeiramente desafinada ao continuar a conversa:

— Ela disse que você tem os melhores tecidos do mundo.

— E é verdade. — Zamir voltou a inclinar o rosto, para alcançar o pescoço


da esposa, colocando pequenos e leves beijos aqui e ali, chegando até os
ombros — Você aceitou a proposta?

— Eu... — Delilah fechou os olhos. — Não sabia se poderia.

Zamir empurrou um pouco mais para que suas duas coxas ficassem entre as
pernas de Delilah.

— Sim, pode. Quando ela vier trazer o restante dos vestidos, diga-lhe que
sim.

Delilah não recordava-se exatamente o que dizia... Pigarreou

levemente antes de prosseguir:

— Ela deve pedir que alguém entregue... — Sentindo a pele dos ombros ser
mordiscada pelo marido, contorceu-se — Não é o habitual?
Uma risadinha travessa foi a primeira resposta de Zamir, antes que ele
voltasse a falar:

— Tenha certeza que ela virá pessoalmente entregar os vestidos, para poder
encontrar você novamente. Provavelmente fará questão de pedir-lhe que
experimente um ou outro para certificar-se que o caimento está perfeito.

Enquanto falava, a mão de Zamir baixava com cuidado uma das mangas do
vestido de Delilah. E sua boca descia, regando cada pedacinho desnudo com
seus beijos.

— Per-fei-to... — Zamir repetiu, numa entonação bem diferente da anterior.

Delilah ofegava. Já não ouvia nada, mal sentia as pernas. Toda sua atenção
se concentrava em Zamir, em sua boca, e em sua mão. Quando ele surgira à
porta ela esquecera tudo o mais que pensara durante o dia, sobre noivados
arranjados, casamentos por conveniência, e relacionamentos sem amor. A
única coisa que importou foi atirar-se nos braços que se abriam para ela. E
agora...

Agora entregava-se aos beijos do marido como se não houvesse amanhã, e


como se nada mais existisse. Quando ele finalmente encontrou seu seio, e
seus lábios o tocaram, ela sentiu todo o corpo ondular-se numa resposta
imediata impossível de ser contida. E apenas um minuto depois o outro seio
exibia-se, para receber as carícias provocantes da mão do esposo.

— Preciosa...

A boca quente de Zamir já não conseguia ser tão gentil. O mamilo rosadinho
diante dele clamava atenção e ele não pode deixar de sugá-lo com

vontade, ao mesmo tempo que arrastava seu membro endurecido entre as


partes macias de Delilah. Ele ergueu-lhe as saias, sentindo a esposa
contorcer-se agitadamente sob seu peso. A mão tateou mais embaixo,
buscando tocar a intimidade feminina, atiçar-lhe com os dedos
primeiramente. Ele precisava...

Ela não podia fazer esforço!


Quase esquecera. Zamir abandonou a boca de Delilah, e rolou para o lado,
engolindo um xingamento e apertando os maxilares com força.

Em um minuto Delilah tinha um corpo febril sobre ela, enlouquecendo-a


sem piedade, e no outro sentia o vazio da distância. Seus seios expostos,
ainda levemente úmidos pela língua de Zamir, retesaram-se.

Com um suspiro triste ela cobriu-se.

— Perdoe-me, preciosa. Meu desejo por você me fez esquecer as ordens de


seu médico.

— Eu estou bem!—Delilah garantiu, virando-se de lado e colocando a mão


sobre o peito do marido. Por debaixo da roupa o coração dele batia rápido.

Zamir conseguiu sorrir.

— Não me tente novamente, minha esposa. Nós vamos esperar até amanhã.

Delilah fez um muxoxo.

— Não imagina a intensidade que é fazer o amor, doce Delilah, senão não
me incitaria a prosseguir.

A fera dentro dele queria rugir, como um tigre que salta sobre a presa.

Ele quase fizera isso. Delilah não podia supor o quão perto esteve de ser
tomada ali mesmo, sem preparo ou cuidado, por um homem movido pelo

desejo.

Ele ergueu-se, e sentou.

— Mas gostei muito da nossa... conversa.

Delilah levou uma mão ao rosto, cobrindo-o, enquanto dava um sorriso


envergonhado.

Zamir colocou sua mão sobre a dela, e descobriu-lhe a face.


— Um pouco de atrevimento é sempre bem-vindo no quarto de um casal, e o
que fazemos aqui não deve nos envergonhar. Agora vou me lavar e trocar de
roupa. Boa noite — Beijando a esposa Zamir levantou-se e saiu do quarto.

Enquanto o olhar de Delilah acompanhava a saída do esposo, ela perguntou-


se o que estava acontecendo para que agisse de modo tão diverso de sua
natureza.

Não desejando dar atenção à pergunta, e muito menos saber sua resposta,
levantou-se da cama, e voltou ao seu lugar junto à lareira, para concentrar-se,
ou ao menos tentar, na leitura de um manual de boa conduta nos salões
europeus. Ao perceber que sua atenção ao livro havia sido comprometida,
levantou-se, indócil.

Então lembrou-se dos papéis de Lydia trouxera um dia antes. Escrever podia
ser o que lhe ajudaria a distrair-se. Indo até a cômoda olhou mais
atentamente o que a criada guardara. Não eram folhas soltas, mas
encadernadas, tal qual um livro, porém com folhas brancas, como um diário.

Delilah correu os dedos pela capa, sentindo a textura do couro. Nunca tivera
um diário. Nem sabia como escrever um. Achou um pouco tolo escrever
algo como "Querido diário" antes de qualquer coisa. Talvez devesse mesmo
seguir a sugestão dada, e criar cartas. Mas cartas para si mesma? Seria tão...

Ridículo. Ela suspirou, pensativa. Para quem escreveria cartas que nunca iria

mandar? Não para as irmãs, por certo. Quando escrevesse para elas seria
para valer. Pensando melhor, decidiu para quem direcionaria as cartas que
jamais enviaria. Pegando a pena molhou na tinta e começou:

"Caro Zamir..."

As coisas boas vêm quando estamos distraídos.

Provérbio indiano

Capítulo 5
Delilah estava agitada demais para manter-se parada. A criada Lydia corria
para todos os cantos atrás dela, preocupada.

— Senhora, por favor, senhora, faz apenas três dias que se acidentou...

— Estou bem, Lydia. — Ela olhou para a mesa de canto da sala de jantar e
apontou. — Acho que aqui iriam bem umas flores amarelas.

Delilah refletiu mais um pouco, e torceu os lábios, pensativa.

— Não, pensando melhor flores vermelhas trarão mais calor ao ambiente.


Rosas, das grandes! — Ela havia lido sobre flores num dos livros achados na
biblioteca e apreciara as sugestões.

Lydia não entendia nada de decoração, todas as flores para ela eram lindas,
mas fez um sinal para um dos criados que aguardava na porta. O rapaz saiu
rapidamente para atender ao pedido da senhora Maddala.

Janelas haviam sido abertas, jarros com flores distribuídos em alguns


ambientes, tapetes mudados de lugar e cortinas trocadas. Estrela, nervosa
com tanto barulho, já havia desistido de acompanhar o movimento e
escondera-se debaixo de uma mesa decorativa no corredor principal, de onde
apenas

observava

os

humanos

apressados

desdobrarem-se

para

acompanharem sua líder.

Algumas vezes a própria Delilah puxou móveis e tapetes, gastando


energia e envolvendo-se no trabalho que os criados deveriam fazer, para
horror de sua criada pessoal. Alheia à tensão que provocava, prosseguia em
sua empreitada de transformar a mansão num lar, desejando conseguir que
uma mudança de tão grande porte se desse em poucas horas. Era um trabalho
hercúleo! Até o mordomo havia ficado de boca aberta e tentado dissuadir sua
senhora de fazer tanto esforço de uma vez só.

Mas ela precisava ocupar-se, distrair-se ou qualquer outra coisa que valesse,
e não se importaria de fazer a maior parte da nova arrumação sozinha se lhe
servisse para a tranquilizar.

Àquela noite seria sua noite de núpcias e ao despertar, sentindo o estômago


agitar-se de antecipação, correu para o terço sobre a cômoda e fez suas
orações. Em seguida veio-lhe à mente a ideia de arrumar a casa. Talvez fosse
mesmo uma boa resposta às suas preces usar seu tempo de maneira útil!

Então pusera mãos à obra!

Foi frustrante perceber que todo o esforço da tarde só lhe deixara cansada,
mas não apaziguara seu nervosismo.

Deu-se conta então dos criados à volta, aguardando novas ordens.

Durante todo tempo em que procurara entreter-se tivera a companhia deles,


desesperados para ajudar, e recebendo da parte de Delilah pouco mais que
ordens grunhidas. Envergonhou-se de seus modos. Aquelas pessoas haviam
acabado de conhecê-la e deviam estar com uma péssima impressão, supondo
que a patroa era uma megera, ou uma doida. Bem, quanto à segunda opção
poderia ser atribuída à pancada na cabeça. Ela suspirou pesadamente. Era a
patroa agora, mas abusar de sua posição era algo que nunca faria de modo
consciente.

Não era justo de sua parte agir de modo grosseiro com pessoas que

estavam à sua disposição, portanto precisava tentar ao menos compensá-los


pelo esforço incrível que haviam feito, atendendo-a com uma rapidez,
eficiência e boa-vontade pouco comuns.
Engoliu em seco, juntou as mãos à frente do corpo e forçou-se a falar,
inicialmente sem olhar para ninguém em especial, mas logo conseguindo
que tanto sua voz quando seu olhar se erguessem, encarando cada um de
seus interlocutores:

— Eu agradeço muito a colaboração de todos hoje. Aviso-lhes que não farei


mudanças na casa a cada semana, então podem ficar tranquilos quanto a isso
e nem precisam procurar novos empregos.

Alguns dos criados sorriram discretamente.

Delilah também sorriu. De algum modo não achou muito difícil falar com o
grupo que a servia. Que engraçado isso!

Respirando fundo, prosseguiu:

— Como mostraram-se tão eficientes e esforçados o próximo pagamento de


vocês será acrescido de uma libra, como prêmio e agradecimento.

Dessa vez os sorrisos foram abertos, enquanto o pequeno grupo se


entreolhava, satisfeito, e agradecia a generosidade da patroa.

Delilah afastou-se, aceitando o banho quente oferecido por Lydia e


perguntando-se como explicaria a Zamir que ele deveria pagar uma libra a
mais para cada funcionário que a ajudara na arrumação da casa. Subiu as
escadas pensando qual tipo de acordo precisaria ser feito para isso.

***

Zamir estranhou um pouco ao entrar em casa e ser avisado que a esposa


estava na sala de estar da frente. Andando pelos corredores percebeu algo
diferente no ambiente, e não pode precisar o que realmente era, mas ao botar
o rosto na entrada da principal sala de visitas de seu lar, e deparar-se com
Delilah, confortavelmente sentada em um dos elegantes sofás, esqueceu-se
de tudo o mais. Inclusive do cansaço do dia, e da expectativa da noite. Ela
estava tão bonita trajando um vestido cor de pêssego, perfeitamente
adequada ao local! Sua esposa. E, mais tarde, ainda hoje, sua esposa de
modo completo e total.
— Boa noite.

Ela ergueu o rosto do livro que tinha em mãos. Ela sempre parecia ter um
livro em mãos, constatou o esposo.

— Boa noite, Zamir! Como foi seu dia?

— Bom, e o seu? Agradável e tranquilo, espero.

Ele beijou o rosto da esposa, mesmo desejando um pouco a mais. O

fato dela estar num cômodo aberto, acessível demais aos criados, inibiu-o.

— Sim, bastante agradável e tranquilo — não, não, e não mesmo.

— Alguma dor na cabeça?

— Não. — Até esquecera-se da dor.

— Muito bem — ele pareceu genuinamente satisfeito. — Vou tomar banho e


trocar de roupa.

Enquanto Zamir afastava-se, Delilah avisou:

— Pedirei que o jantar seja servido em uma hora.

— Ótimo. — Zamir parou à porta.

— Na sala de jantar.

Zamir franziu as sobrancelhas. Na noite anterior haviam jantado no quarto


da esposa, e todas as outras vezes ele jantara em seu próprio quarto,
comendo rápido e voltando a seus planejamentos, contas e livros. Na ocasião
em que fora morar naquela casa experimentara fazer a refeição na sala de
jantar, mas comer sozinho num espaço tão amplo pareceu-lhe opressor e
solitário demais. Bem, agora tinha companhia, e devia começar novos
hábitos. Assentiu.

— Em uma hora.
***

Zamir viu a bela louça sobre a mesa, a refeição caprichada disposta em cada
travessa, as flores a um canto e as velas acesas iluminando o ambiente e a
surpresa o atingiu. Parecia estar chegando pela primeira vez ao cômodo. Em
sua própria casa! Delilah e os criados haviam feito alguma magia... Voltou à
porta, de súbito, estalando a língua. Deveria buscar a esposa e acompanhá-la
até a sala de jantar, como um marido cortês faria. Que falha!

Mas ela já estava entrando, e sua presença pareceu aquecer ainda mais a
sala.

Com um menear bem-educado, ela aceitou que ele lhe puxasse uma cadeira,
e sentou-se, ao lado da cabeceira, como o esperado da esposa do anfitrião.

Zamir tomou seu assento, e um criado solícito começou a servi-los.

As primeiras garfadas dadas ainda levavam a tensão do casal que comia, mas
à medida que o alimento começava a assentar-se, e uma troca suave de
impressões acontecia, eles começaram a relaxar e fazer do jantar um

momento agradável.

— As obras da loja ainda vão se estender por mais algumas semanas

— explicava Zamir — encontrar um espaço adequado num bom ponto


comercial não havia sido muito fácil, e acabei investindo num prédio antigo,
fechado há muito tempo, e parcialmente destruído por um incêndio.

— Gostaria de conhecer o lugar. — Delilah Sorriu.

— Eu a levarei até lá um dia desses. — Zamir não sabia porque dissera isso.
Uma área de obras não era o lugar para uma esposa. Mas, por alguma razão
o agradara a perspectiva de dividir com Delilah seu ambicioso projeto. E ele
estava tão comprometido que literalmente arregaçava as mangas e trabalhava
junto com os operários, vendo a evolução de seu empreendimento acontecer
diante de seus olhos, fruto de seus ideais e de suas mãos.

— Eu vou adorar!
Zamir ergueu sua taça em direção à esposa, num brinde mudo.

— E Estrela? — Zamir indagou, querendo que a conversa continuasse a


fluir.

— Ela está andando bem com a tala. E me seguindo por todos os cômodos.
— Delilah sorriu — Mas como ainda não aprendeu a comportar-se muito
bem na presença de qualquer tipo de comida, a sala de jantar é um lugar
proibido para ela.

Zamir deu uma risada. Delilah estava se mostrando divertida! Quantas


surpresas ela ainda lhe guardaria? Acertara em cheio em apostar naquele
casamento, e mais ainda a partir do momento em que incitara a esposa a
colaborar. Era a melhor coisa que fizera, e o esforço dela para honrar o
acordo feito era assombroso!

Delilah foi assolada por um pequeno tremor.

A risada de Zamir era cheia, num timbre alto e grosso, tão masculina e
perturbadora que pareceu reverberar e lançar borbulhas quentes no ventre de
Delilah, que subiam em seu peito e seguiam acima, atingindo o pescoço e
queimando no caminho, sem dúvida deixando marcas rubras em sua face. O

que eram as sensações que acumulavam-se dentro dela quando na presença


de Zamir? Gostava de falar com ele, e perceber que a ouvia com atenção,
respondendo com cortesia, interessado verdadeiramente em suas respostas,
incentivava-a a abrir a boca. Toda essa atenção a enchia de orgulho, muito
pela novidade que representava.

Delilah jamais havia se destacado em nada. Sempre fora apenas uma garota
simples, nunca muito interessante, e com certeza a menos atraente entre suas
irmãs. Descobrir que havia sido escolhida para tornar-se esposa de um
homem inteligente e próspero havia sido a única coisa digna de nota que lhe
acontecera.

E ela decidira, enquanto estivera pensando incessantemente nas maneiras de


cumprir sua parte no acordo firmado, folheando livros e andando pela casa,
que também poderia se tornar alguém melhor. Estava pondo em prática sua
decisão, aprendendo não só como agir, mas a expor suas opiniões,
começando por quem a queria ouvir, como Zamir.

Se ele a incentivava a conversar, por que não responder como queria?

Os pensamentos estavam lá, as respostas prontas na ponta da língua,


esperando para serem empurradas para fora. Com um pouco de esforço elas
saíam, uma a uma, transformando o que podiam ser momentos de silêncio
em intimidade que quebrava as tensões. Ou ao menos as diminuíam.

Assim o restante do jantar transcorreu com uma conversa amena e bem-


humorada, até que o casal percebeu que a refeição chegava ao fim. À

medida que os criados levavam as travessas da refeição principal, trocando


pratos e distribuindo as baixelas com as sobremesas coloridas sobre a toalha

de linho, Zamir e Delilah davam-se conta da proximidade da hora de


recolherem-se aos seus quartos. Ou a um quarto só, melhor dizendo.

O relaxamento anterior começou a dar lugar a uma tensa ansiedade, que não
lhes era nova. Ambos haviam sido atingidos por ela, em diferentes graus,
mais cedo, e sabiam que em algum momento ela os cercaria outra vez.

Encerrada a apreciação da sobremesa, não cabia mais tentar manter uma


conversa trivial à mesa. Erguendo-se Zamir ofereceu a mão à esposa,
acompanhando-a para fora do aposento e tomando o corredor adiante.
Algum tempo na sala de estar onde haviam se encontrado mais cedo e
pronto, subiriam para o quarto e se preparariam para consumar sua união.

Cada passo os aproximava do instante mais aguardado daquele dia.

O bem que fizermos no dia anterior é aquele que nos

trará felicidade pela manhã.

Provérbio hindu

Capítulo 6
Zamir deu duas pequenas batidas na porta antes de entrar.

Delilah o aguardava em pé, perto da janela. Ela havia pedido que Lydia fosse
buscar junto à Madame Louisa, a modista interessada em agradá-

la em troca de descontos futuros, uma camisola elegante e agora a usava,


temerosa de que a peça fosse provocante demais. Ela voltou-se
imediatamente ao som das batidas.

O marido entrou silenciosamente, os pés descalços afundando no tapete


aveludado. Seus movimentos lembravam um tigre, não fosse seu negro e
intenso olhar a garantir que ali estava nada mais que um homem, tomado por
primitivos instintos.

Zamir parou diante da esposa, e suas mãos elevaram-se para segurar o rosto
feminino e aproximá-la do seu para um suave beijo, o primeiro de muitos a
partir de então, cada vez mais longos, e calorosos. Delilah cerrou os olhos,
permitindo que ele tomasse sua boca, e aprofundasse os beijos na carícia
sensual que havia ensinado a ela tão cuidadosamente, fazendo-a acender-se
devagar, até arder de paixão.

O robe fino que Delilah usava escorregou pelos seus braços a um toque de
Zamir, seguida pela camisola, que desabou no chão deixando-a exposta e
acalorada a despeito da nudez total em que se encontrava. As pernas
enfraqueceram ante os beijos que desciam tomando colo, seios, ventre, e um
deslizar de mãos que acompanhava o insinuante percurso, fazendo-a

retorcer-se a ponto de pensar que cederia sob seu peso, entre suspiros e
ofegos.

Percebendo que a esposa amolecia, Zamir pegou-a no colo, carregando-a


para o leito, e depositando-a cuidadosamente entre lençóis de cetim e
travesseiros macios, com a admiração e reverência devida a uma pedra
preciosa, rara e de inestimável valor.

Zamir desfez-se de sua camisa, ficando apenas com as calças.

Debruçando-se sobre Delilah, com uma mão a cada lado do corpo dela para
servir de apoio, voltou a explorar-lhe a boca, entorpecendo a ambos com a
força do desejo que os consumia.

Entre os beijos a mão de Zamir deslizou, buscando o ponto vulnerável e


úmido da esposa. O primeiro toque foi recebido com um movimento brusco,
mas ele sussurrou-lhe palavras tranquilizadoras, entrecortadas por beijos
sedutores responsáveis por fazê-la perder-se num mar de sensações
inesperadas e tentadoras, que revelavam-se e abriam-se, enquanto
derrubavam os últimos resquícios de inibição feminina.

Conforme Delilah mergulhava completamente em devastadoras sensações,


os dedos masculinos buscavam traçar o caminho que intensificaria ainda
mais o seu prazer, preparando-a para o contato ainda mais forte e intenso que
ligaria seus corpos na maior das explosões dos sentidos.

Delilah arqueou-se, tragando saliva com força, enquanto a boca e as mãos do


marido a enlouqueciam, lançando-a cada vez mais longe de tudo o que
conhecia, afastando-a do que era certo e seguro para soltá-la num universo
incandescente e atordoante, que começou a engolfar também a Zamir. Ele
sabia que a esposa estava pronta para recebê-lo inteiramente quando os
quadris femininos começaram a dançar insinuantemente sob o corpo dele.

Retirando suas calças posicionou seu membro onde antes estavam seus
dedos e pressionou, afundando-se devagar no interior convidativo de sua tão
doce Delilah.

— Venha ao meu encontro, formosa — ele pediu, numa voz baixa e


enrouquecida.

Ela ondulou levemente em direção ao esposo, enquanto ele investia lenta e


firmemente até o encaixe total e perfeito de pele e carne. Um gemido marcou
o movimento, e suspiraram ao mesmo tempo quando a inocência de Delilah
cedeu, dando passagem a profunda estocada de Zamir.

Zamir ocultou o rosto entre os cabelos femininos que espalhavam-se sobre o


travesseiro e respirou profundamente antes de voltar a mexer-se, começando
a investir contra o corpo da esposa, em movimentos que iam e vinham,
provocando novas ondas de sensações prazerosas. Roçou o pescoço de
Delilah com a boca, e sussurrou-lhe ao ouvido palavras em tom gentil, que
ela não conseguia entender, mas que adivinhava o significado graças à
intensidade com que eram ditas, acompanhando os golpes cada vez mais
febris que ele dava.

Então, sem perceber exatamente como, ela começou também a mover-se


seguindo os passos da dança que sacudia ambos, tornando-os ferozes
bailarinos sobre a cama, num bailado próprio que culminou num grito de
Delilah, e num intenso ofego de Zamir. Tremularam juntos, rendendo-se ao
gozo maravilhoso que resultara de sua paixão.

***

Zamir virou-se, recostando-se nos travesseiros e trazendo Delilah para


apoiar-se em seu ombro. Um braço a envolveu parcialmente, enquanto a mão

repousou em sua nuca.

— Você está bem?

Ela balançou levemente a cabeça, assentindo.

— Apenas... Hum... Ardeu um pouco.

— De outras vezes não tornará a arder. — Zamir começou a acarinhá-

la, deslizando a mão desde os cabelos até as costas.

Delilah balançou a cabeça outra vez.

— Repousar pelo resto da noite vai aliviá-la do desconforto — Zamir


garantiu.

A mão de Delilah pousou sobre o peito de Zamir. Ele tinha poucos pelos
sobre o peitoral largo e forte, e ela gostou disso, embaralhando os dedos
entre os pequenos cachos que se formavam em volta dos mamilos escuros.

— Quer dizer que não ficará para dormir comigo?

A mão de Zamir parou.


— Você quer que eu fique?

— Sim.

— Então eu ficarei.

Zamir voltou a acariciar a esposa, sentindo-a relaxar junto a ele.

***

Um pouco antes do amanhecer, quando o céu estava começando a mesclar-se


em escalas de cinza, um facho de claridade incidiu entre as cortinas que não
estavam completamente cerradas. Delilah abriu os olhos, enxergando entre a
parca luminosidade os contornos do marido. Ela apoiou-

se sobre um braço, admirando-o enquanto dormia e aproximando o rosto


para enxergá-lo melhor. Ele estava de bruços, com o cabelo negro, liberto da
fita que o domava, espalhado sobre os ombros. As costas, nuas e sem a
proteção de um lençol, exibiam-se por completo, e não se percebia nelas
nenhuma mancha ou cicatriz. Mas abaixo a curva da nádega estava
parcialmente visível. Diferente dela ele dormira nu.

Horas antes Zamir levantara-se, buscara uma toalha e a embebera com água
limpa, trazendo-a para limpar a esposa. Delilah tomou-lhe a toalha das mãos,
impedindo-o de limpá-la de modo tão íntimo. Ele havia rido, dizendo que
seria um grande prazer ajudar. Delilah sorriu, mas o rosto aqueceu de
constrangimento, enquanto o esposo a observava lavar-se, retirando os
resquícios do prazer que haviam lhe custado a virgindade.

Em seguida Delilah voltou a colocar a camisola e deitou-se, aninhando-se


mais uma vez a Zamir.

Adormeceram logo, e só agora ela despertava, apenas para deparar-se com


uma perfeição dourada ao seu lado.

Recordando-se dos momentos intensos nos braços do esposo, nova onda de


calor a tomou. Havia sido maravilhoso, muito melhor do que podia esperar.
Tivera sorte de conseguir um homem bom, gentil e cuidadoso, que se
importava com ela.
Passou a mão entre as madeixas negras dele, encantando-se ao sentir que
apesar de muito espessas guardavam a maciez da seda. Correndo a ponta dos
dedos com leveza sobre a coluna masculina parou um pouco abaixo da
cintura, constatando que a pele estava fria. Puxou o cobertor sobre ambos,
abraçando-o para o aquecer com mais rapidez. Zamir, mesmo no sono,
mexeu-se, virando na direção da esposa e envolvendo-a com o braço livre
para colar-se a ele. Ficaram entrelaçados, frente a frente, e Delilah continuou

a examinar o homem diante dela, ouvindo sua respiração cadenciada e


sentindo-a como se marcasse o compasso de uma doce canção de ninar, até
que seus olhos foram se fechando, vencidos pelo sono.

Tudo na Terra tem um propósito.

Sabedoria indiana

Capítulo 7

— Terei que pagar uma libra a mais para cada criado no próximo
pagamento, porque colocaram flores coloridas dentro de vasos? — Os olhos
de Zamir estavam arregalados, e havia parado o processo de vestir-se,
estando ainda com as calças na mão.

— Não! — Homens! Não entendiam nada que as mulheres diziam!

— Ah, ainda bem! — Zamir começou a vestir as calças.

— Vai pagar uma libra a mais para cada um porque eles transformaram uma
casa fria num lar aconchegante!

Zamir ergueu a cabeça para encarar sua mulher e perdeu o equilíbrio ao


esticar uma das pernas dentro da calça, quase caindo. Soltou um resmungo.

— Está falando mesmo sério?

Delilah desanimou, e seus ombros caíram:

— Não reparou na casa ontem?


Percebendo que a esposa murchara, Zamir contemporizou:

— A única coisa em que reparei ontem, minha formosa esposa, foi em você.

Delilah manteve uma expressão modesta, mas sentiu-se regozijar.

— Antes de sair para o trabalho, por favor, olhe para sua casa.

— Nossa casa.

— Nossa casa — ela repetiu, com uma ponta de orgulho.

— Bem, talvez a casa fique ainda mais aconchegante com a chegada de


alguns quadros que adquiri semana passada.

— É mesmo? — Delilah uniu as mãos, feliz.

— Sim, espero que se agrade deles.

Uma sombra abateu-se sobre a face de Delilah:

— Eu... Não entendo nada de quadros.

— Não teremos nenhum Botticelli ou Caravaggio, apenas algumas aquarelas


de novos artistas. — Zamir deu um sorriso.

Delilah continuava com a mesma expressão.

— Eu... Realmente não entendo nada sobre esse assunto. Nunca fui sequer a
uma exposição.

— Nunca? — Zamir surpreendeu-se. Embora tivesse nascido rico, passado


pelo melhor ensino e viajado pelo mundo para adquirir tanto conhecimento
como vivência, não esquecia que a maioria das pessoas não tinha o mesmo
acesso à erudição. No entanto Londres sempre lhe pareceu uma capital rica
culturalmente, e ampla o bastante para aceitar que todas as classes se
beneficiassem dela. Engano seu. Tal qual acontecia na Índia, ali também
poderiam haver contrastes gritantes.
Delilah fez um sinal negativo.

— Nunquinha.

Zamir terminou de colocar sua roupa e depositou um beijo nos lábios da


esposa.

— Preciso me apressar para cumprir meus compromissos, mas voltarei logo


após o almoço. Esteja pronta, me esperando, pois vamos passear.

— Passear? — Delilah franziu as sobrancelhas.

— Sim. Acredito que deve haver alguma exposição interessante no Museu


britânico ou na Royal Academy.

Delilah soltou uma exclamação alegre e bateu palmas.

O marido sorriu.

— Tomara que continue feliz após a visita, e não entediada.

— Certamente não ficarei entediada!

Zamir já estava abrindo a porta de ligação dos quartos quando a esposa o


chamou. Voltou-se para olhá-la.

— Sim?

— Quanto às libras prometidas aos criados... Pensarei em algo para


compensá-lo, está bem? Um acordo satisfatório.

Zamir abriu um sorriso malicioso, e Delilah ergueu um dedo.

— E inocente.

O marido riu:

— Se continuar fazendo acordos até para cobrir despesas, cara esposa, ficará
melhor em negociações do que eu. E se conseguir de algum modo que
compense libras e xelins, a levarei comigo em minha próxima visita ao
alfaiate, para que trate com ele a conta dos meus trajes novos.

Acenando e deixando o quarto, Zamir partiu. Voltou tão rapidamente que a


esposa assustou-se:

— Não perguntei-lhe... Está dolorida ainda?

— Oh... Não, não.

— Não... Arde mais?

Zamir pareceu por um instante um pouco constrangido, e a expressão

enterneceu Delilah.

— Não arde mais.

— Isso é muito bom.

Ele parecia genuinamente satisfeito e Delilah logo adivinhou o porquê. O


marido desejava voltar ao seu quarto àquela noite. E ela também já ansiava
muito por isso.

***

A visita ao museu foi incrível, e como tudo era tão absolutamente novo para
Delilah, ela quis observar cada detalhe demoradamente. A paciência de
Zamir era enorme, e ele em nenhum momento apressou-a para que
seguissem adiante. Ao contrário, compartilhou com ela todos os minutos de
descoberta, divertindo-se com suas expressões, e respondendo ao que podia
diante da curiosidade despertada por antigos manuscritos, quadros e outros
objetos expostos. Combinaram que a visita à Royal Academy ficaria para
outro dia.

— Não quero atrapalhar seus negócios — Delilah comentou, preocupada,


quando ele fez a proposta de conhecerem a Academia de Artes outro dia.
— Não atrapalhará em nada, preciosa. — Zamir colocou o braço da esposa
no seu, dando uma pancadinha tranquilizadora em sua mão.

Na verdade Zamir estava extremamente atarefado, mas a animação de


Delilah havia sido tão contagiante que ele não pode negar-se a mais uma
tarde ao seu lado. Antes da esposa entrar em sua vida seus dias consistiam

apenas em trabalho. Saía de casa pela manhã, voltava tarde, e dormia, para
repetir o mesmo ciclo ao amanhecer seguinte, e assim sucessivamente.

Quando recebia algum convite para festa, jantar ou sarau, proveniente dos
parceiros comerciais, novos amigos ou do barão que era sogro de seu irmão,
nunca recusava. Comparecia, mostrava-se simpático, mas quase sempre
encarava as reuniões apenas como mais um caminho para se chegar a um
fim, e este era a inauguração de sua grande loja.

Não havia diversão em nada que fazia.

Mas agora as coisas haviam mudado.

A esposa, aparentemente tão tensa e calada no início, estava aprendendo a


confiar nele e em si mesma, e era encantador vê-la desabrochar ante o
estímulo adequado, vencendo o desafio que impingira a si mesma, dando sua
palavra num acordo que antes devia parecer a ela não mais que um sinônimo
para pesadelo.

Ao decidir casar-se, e com uma mulher de outra nacionalidade, ainda por


cima, Zamir sabia que estava dando um grande passo. Como nunca se
comprometera com alguma moça do seu país, julgou que tomar uma inglesa
podia ser útil em vários aspectos. Ele percebera, em algumas das viagens que
fizera pelo mundo, que os ingleses se adaptavam bem a qualquer ambiente,
eram inteligentes e perspicazes. Essas qualidades, numa mulher, a fariam
perfeita para ele. Afinal era um homem que não se mantinha tempo demais
em um lugar, e tinha o desejo de continuar expandindo seus negócios em
outras partes da Europa. Uma companheira determinada e agradável não
permitiria que se sentisse solitário, e ainda o auxiliaria a manter uma boa
imagem.
Delilah mostrara que possuía os atributos certos. E mais. Era uma lufada de
ar fresco que o atingira, alegrando seu espírito e o atraindo cada vez

mais para perto.

Como poderia imaginar que seu casamento seria assim?

Conduziu a esposa para casa, dessa vez sentado ao seu lado na carruagem,
após deixar instruções expressas ao cocheiro para que ficasse atento a
qualquer cachorro que pudesse cruzar-lhes o caminho.

***

Após o jantar recolheram-se na sala de estar dos fundos da casa. Era menor
que a da frente, e as paredes pintadas em tom de rosa deixavam-na bastante
feminina. Quando alugou a casa foi informado que aquele aposento era o
preferido da lady que vivia ali anteriormente, e que qualquer dama faria
daquele seu espaço pessoal. Ali foi plantada a ideia de conseguir uma
esposa.

Delilah olhava para o marido com insistência, enquanto ele folheava


despreocupadamente um semanário.

Aos seus pés Estrela ressonava baixinho.

— Eu... Pensei sobre aquelas libras e qual acordo deveria...

Zamir parou de ler e interrompeu a esposa:

— Eu vi a casa, Delilah. Percebi as mudanças, e hoje observei a sala de


jantar mais detidamente. Fez um bom trabalho, e suas ordens foram bem-
atendidas, então para mim basta. Vou premiar a todos, sem exceção, com
uma libra a mais em seu próximo pagamento.

Ah, o coração de Delilah saltitou de alegria! Zamir valorizou o que ela fez!

— Tem certeza?

— Sim, não se preocupe mais com isso. — Zamir voltou a abrir o


semanário, mas algo lhe ocorreu e interrompeu outra vez sua leitura — Mas
agradecerei se não oferecer outras bonificações desse tipo quando as pinturas
chegarem e os criados tiverem que colocar cada uma delas no lugar.

Delilah sorriu.

— Está bem. — Ela continuou olhando para Zamir fixamente, e ele,


percebendo a insistência do olhar, desistiu de saber as notícias.

— O que mais tem, Delilah?

— Você não está curioso sobre o que eu iria propor?

— Bem, eu não estava até você tocar no assunto. O que iria propor?

— Ensinar-lhe um hábito inglês.

Aquilo chamou a atenção de Zamir. Exatamente como Delilah imaginava.

— Um hábito inglês?

— Sim. Mas precisamente um jogo inglês.

Ele a olhou com desconfiança.

— Um jogo?

— Sim, um jogo divertido.

— Mostre-me.

***

A castanha passou de raspão, sem esbarrar na de Zamir, e Delilah soltou um


resmungo pouco elegante. Ela costumava ser boa no Conkers! Mas nas duas
primeiras tentativas apenas havia batido na castanha do adversário, e na
terceira sequer esbarrou.

Eles ainda estavam na pequena sala rosa, entretidos numa brincadeira com
dois jogadores que consistia em bater com força uma castanha assada em
outra(perfuradas e transpassadas por uma corda) até que uma das peças
quebrasse.

Então era a vez de Zamir, já que ela errara.

Zamir olhou fixamente para a castanha que precisava acertar e balançou a


sua. E bateu.

Sorte de principiante, pensou Delilah.

— Você tem uma boa mira, Zamir.

Havia uma sombra de sorriso no rosto dele. Como quem acertava tinha
direito a continuar tentando quebrar a castanha do adversário até parti-la ou
até errar, Zamir fez outro movimento com a castanha dependurada pela
corda.

A pancada forte reverberou no braço de Delilah e a castanha, dura como uma


pedra, quase quicou nos seus dedos. Ela encarou Zamir, desconfiada.

Agora o sorriso dele já não era tão discreto.

Ele mirou e balançou a corda de sua castanha.

Delilah moveu a sua quase imperceptivelmente.

E a castanha de Zamir apenas resvalou na outra. Ele franziu as sobrancelhas


e ergueu o olhar para Delilah, incrédulo:

— Trapaça!

— Da sua parte, não é? Já conhecia a brincadeira!

— Você não perguntou se eu conhecia a brincadeira.

— Isso foi um truque muito feio.

Zamir arregalou os olhos, se fazendo de ofendido:

— Fala isso a respeito do seu marido?


— Sim!

— E quem pretendia trocar uma brincadeira de criança por um punhado de


libras?

Ela abaixou a mão com a castanha.

— Oh! Você disse que eu não precisava negociar mais nada a esse respeito!

— Mas você tinha a intenção de fazê-lo, isso basta para eu questionar a


honestidade da sua proposta e suas reais intenções para com um inocente
indiano como eu.

Ela procurou abafar uma risadinha.

— E seu riso, senhora Maddala, confirma minha teoria.

— Eu pensei apenas que poderia apresentar ao meu marido indiano alguma


coisa do meu país.

— Conversa! E trate de erguer a mão com a castanha de novo. Ainda é


minha vez.

Ela soltou um resmungo mais alto que o anterior.

Zamir bateu a castanha com força, mas o golpe não foi certeiro, e as cordas
das duas peças se enrolaram.

— Corda! — Delilah gritou a plenos pulmões, antes de Zamir, e sorriu —


Ganhei essa jogada.

— Ou ganhava o ponto ou furava meus tímpanos, de todo modo eu sairia


perdendo.

Delilah riu alto, e Zamir torceu os lábios.

— Então, senhora Maddala, é sua vez. Tente a sorte...


Delilah golpeou a castanha com toda a força, e a peça de Zamir partiu-se em
dois pedaços. A parte dependurada balançou na corda num ângulo estranho e
subiu, batendo com um estalo nos dedos dele.

Soltando a corda rapidamente, Zamir balançou os dedos doloridos, fazendo


uma careta. Delilah não se preocupou em disfarçar uma gargalhada.

O marido olhou-a e franziu as sobrancelhas:

— Revanche!

— Não.

— Sim. Revanche.

— Não! Você não joga limpo!

— Quem fala! Você deliberadamente balançou sua castanha antes, para eu


perder!

— Era a única atitude a tomar!

— Você não sabe brincar.

— Você não sabe perder.

— Amanhã voltaremos a jogar.

— Nunca.

— Vamos, sim.

— Você é muito insistente!

— Ah! E você é uma teimosa! Não sei se é ciente de que uma esposa deve
acatar as ordens de seu marido. — Zamir ergueu uma sobrancelha, e cruzou
os braços.

Delilah uniu as mãos diante do corpo, e sua expressão era consternada.


— Oh, meu senhor... Não no Conkers.

— Não no Conkers?

— Na Cabra-cega também não, nem em jogos com bola, ou com tacos, ou


de adivinhação. Ou Xadrez.

Ele descruzou os braços e abriu a boca, parecendo surpreso:

— Em jogo algum?

Ela deu de ombros:

— Temo que sou muito competitiva nesse aspecto.

Zamir abriu seu melhor sorriso:

— Surpreende-me cada vez mais, Delilah.

Então ele abriu a porta, colocou Estrela para fora do aposento, e passou o
trinco na porta.

Em seguida tomou a esposa nos braços, beijando-a apaixonadamente.

Os beijos de Zamir ficavam cada vez melhores, e Delilah entregou-se a eles


totalmente. E perdeu o controle de si mesma.

Ela não notou que seus dedos buscavam encontrar a pele do marido, que
puxavam sua camisa de dentro das calças, que procuravam abrir os botões de
seu colete. Não notou até que ele já estivesse meio desnudo sobre ela,
deitando-a no sofá que parecia pequeno demais até mesmo para uma só
pessoa. Não soube como seu vestido sumiu, como seus cabelos soltaram-se
dos grampos, ou porque estava calçando apenas um sapato.

Mas sabia que Zamir sugava-lhe os seios maravilhosamente.

Tinha ciência que ele beijava e mordiscava seu ventre de uma forma que a
estava levando ao delírio.
E que a língua do esposo, atingindo o ponto mais sensível e oculto que ela
possuía, era devastadoramente sensual!

Tudo era intenso demais.

Delilah soltou um gritinho, e murmurou uma súplica ininteligível, mesmo


assim Zamir prosseguiu, ajoelhando-se diante da esposa e segurando-lhe as
pernas para aprofundar mais as estocadas de sua língua, entremeando com
pequenas sucções, que faziam-na refém de sua perícia em dar prazer.

Quando ela já estava totalmente rendida, Zamir ergueu-se, tirou as calças,


libertando seu membro rígido, e a penetrou. Com força.

O sofá moveu-se, arranhando o chão. Zamir tornou a investir, arremetendo


com toda a intensidade, procurando ir o mais fundo que podia, angustiado
porque queria mais e mais, num crescente desesperado por libertação. O
gozo deu-lhe alívio, levando Delilah ao ápice junto com ele, abalando-os por
inteiro.

Zamir tragou o ar com dificuldade, apoiando o rosto nos seios fartos da


esposa. Estava um pouco atordoado, abismado consigo mesmo. Em um
momento estava conversando e troçando da esposa, e no outro praticamente
a devorava, sem poder esperar que chegassem à cama. Que desejo
avassalador era esse que sentia? Por quê?

Estava por cima, e precisou levantar-se primeiro, para então ajudar Delilah a
recompor-se. Agachando-se pegou um sapato que havia ido parar longe, e
calçou no pezinho delicado dela. Percebeu o rosto feminino muito
afogueado, os cabelos castanhos descendo em ondas livres, e os olhos
escuros ainda pesados pela paixão, e foi atingido pelo desejo outra vez.

Auxiliou a esposa a vestir-se apenas para que pudesse agilizar a partida


daquela sala, e seguir para o quarto, onde o leito os esperava, permitindo que
dessem mais vazão aos seus instintos, e usufruíssem de novos e ardorosos
prazeres.

***
No meio da noite Delilah voltou a despertar e admirar o esposo deitado ao
seu lado. Estava se tornando um hábito fazer isso. Acordar e ficar olhando
Zamir, sem que ele pudesse imaginar o teor da avaliação a qual estava sendo
submetido.

Havia uma pergunta que voejava sobre ela, como uma mariposa em torno da
luz, batendo e voltando, insistindo mesmo que aquilo lhe incomodasse a até
ferisse: Apaixonara-se pelo marido?

Ela desejava muito que não, mas dentro do seu coração já sabia que não
adiantava nada desejar que o amor não chegasse, sendo o sentimento
intrometido e fortuito que era.

A árvore não nega sua sombra nem ao lenhador.

Provérbio hindu.

Capítulo 8

Zamir estava curioso para saber qual a reação de sua esposa diante da
surpresa que ele havia preparado. Outra semana se iniciava, e ele havia
descoberto uma forma de responder a uma das várias perguntas que Delilah
andara lhe fazendo sobre a Índia nos últimos dias.

Agradar à esposa havia se tornado para ele um grande prazer. Achava isso
engraçado agora. Mas se lhe perguntassem alguns dias antes, quando
descobrira a força do seu desejo por ela, perceberiam que ele não estava
achando a situação nada divertida. Pensar em Delilah o tempo todo o
atrapalhava. Desejar correr para casa e ficar com ela, ao invés de cuidando
de seus negócios, era um tormento. Planejar formas novas de fazer amor
enquanto deveria estar concentrado no que seus clientes diziam tornava seus
dias de trabalho bastante complicados. E lutar contra todas essas sensações e
vontades, mais ainda.

Até que desistiu.

Foi a melhor coisa que fez. Já não se incomodava se era o rosto delicado de
Delilah que via ao lidar com as costureiras que lhe encomendavam sedas
lisas ou brocados, e nem se aborrecia se enquanto um operário fazia-lhe
queixas sobre a obra em andamento seu pensamento viajava para os
momentos agradáveis ao lado da esposa.

A atração que sentia era nada mais que uma coisa que qualquer homem
saudável, recém-casado, sentiria. E durante muito tempo havia

colocado de lado suas necessidades sexuais. Estivera sem uma mulher por
meses!

Era claro que ao ter uma acessível, sob o mesmo teto, e ávida para retribuir
suas atenções, ele reagiria daquele modo!

Que tolo fora preocupando-se com suas reações.

***

Quando Zamir conduziu a esposa até a sala de jantar àquela noite, não se
decepcionou com a expressão dela diante da mesa farta, cheia de pratos
típicos da Índia.

— Zamir! — Delilah gritou, com um sorriso enorme na face.

As porções nas travessas não eram muito grandes, e a visão de tantas opções
coloridas era um regalo para os olhos. Com calma e cuidado experimentou
um pouco de tudo que havia na mesa.

Cada bocado era uma experiência surpreendente. E, à medida que escolhia


uma das iguarias, o marido dizia-lhe o nome, e apenas quando ela mordia o
alimento Zamir detalhava seu conteúdo.

Escolheu antes de tudo um pequeno triângulo de massa dourada, frita e


convidativa. Chamava-se Samosa. O gosto de ervas, vegetais e grãos bateu
no céu de sua boca, numa mistura inigualável.

Em seguida ela experimentou um pedaço de frango na manteiga.

Levava pimenta e condimentos dos quais nunca ouvira falar. Sua língua
ardeu e ela deu uma risada.
Zamir ofereceu-lhe um copo de limonada.

Após agradecer-lhe e tomar um gole, Delilah esticou-se, escolhendo um


pouco de arroz colorido e colocando-o em seu prato. Ao levá-lo aos lábios,
fechou os olhos. O Pullao era um arroz feito de forma exótica, com temperos
mistos e um resultado que combinava de modo primoroso o adocicado e o
picante.

E assim seguiu, degustando um pouco de tudo que compunha o jantar,


deliciando-se a cada nova mordida, arregalando os olhos, fazendo pequenas
caretas, ou murmurando elogios.

Sorrindo perante as reações da esposa, Zamir quase esqueceu-se de comer.

Após a refeição ele pediu que um criado trouxesse Gulab Jamun.

— Se o que esta pedindo é de comer, Zamir, saiba que não conseguirei


comer mais nada! — Ela tocou o estômago, para enfatizar o que dizia.

Mas ele sabia o quanto Delilah gostava de doces, e estava ansioso para saber
o que ela acharia daquele. Sem pensar duas vezes levou uma das bolinhas de
cor alaranjada à boca de sua esposa.

Delilah não podia recusar a oferta. Não quando servida daquele modo.

Entreabriu os lábios, sentindo a doçura tocar em seus dentes, e escorrer pela


língua.

O doce em calda era servido quente, moldado em pequenas esferas. O

sabor do cardamomo se destacava num primeiro momento e depois se fundia


aos outros ingredientes, desfazendo na boca.

Ela gemeu de prazer.

Zamir remexeu-se ao seu lado, sentindo-se inquieto.

Ele estava muito atento aos movimentos de Delilah. Cada gesto e


cada resposta ao que estava provando acabava causando uma reação nele. Os
sentidos dela pareciam ter aguçado os dele, como se estivessem ambos tendo
o primeiro contato com a culinária indiana. Pelos olhos da esposa tudo
parecia novo, divertido e saboroso. E excitante. Ah, como o leilão do qual
participara havia sido benéfico para ele!

Se tivesse escolhido uma esposa de verdade, jamais teria acertado tanto


quanto a sorte que tivera ao receber Delilah! Havia sido a casualidade mais
maravilhosa, desde o início.

— E então?

— Estou encantada!

Zamir sorriu.

— Iremos para a Índia quando a loja de Londres não precisar tanto de minha
atenção.

— Eu vou adorar conhecer.

— E morar.

Delilah sentiu congelar.

— Morar?

Zamir sorriu para a esposa.

— Sim, morar. Não esperava que ficássemos aqui para sempre, não é?

Meus negócios principais estão na Índia. Claro, viremos aqui de vez em


quando ao longo dos anos, e pretendo expandir ainda mais meus domínios.

Tenho pensando em futuramente viajar para Paris, onde tenho também


clientes e verificar se vale a pena colocar uma loja Maddala por lá.

Delilah tentava manter um sorriso no rosto, mas sentia que o rosto doía. Ir
para a Índia!
Por Deus... Já estava sendo difícil conquistar o amor de Zamir ali em

Londres, imagine na Índia!

Desde que descobrira-se apaixonada pelo marido ela lutava para seu amor
ser retribuído. Alguns dias parecia que estava tendo resultado, em outros
parecia ter falhado de forma miserável. Acreditava que acabaria ganhando a
batalha pelo coração do esposo, pois tinha muito a seu favor. Ali, onde
estavam.

Ela não se iludia. O marido a havia escolhido, sim, mas só se decidira a


procurar uma esposa porque queria uma esposa inglesa. Não fora o que ele
dissera? Portanto uma coisa era brigar pelo amor do marido dentro do seu
território, onde podia mostrar seu valor, onde ser inglesa era útil. Outra coisa
era seguir com ele para um lugar onde não conhecia nada, e onde ser
estrangeira era não somente inútil como uma desvantagem.

Zamir levantou-se e puxou a cadeira para a esposa, dando-lhe o braço para,


como de costume, seguirem para a sala de estar.

Delilah parecia fora do seu corpo enquanto andava. A coisa que mais queria
era voltar-se para Zamir e expor-lhe seus temores, e contar para ele, de uma
vez por todas, que o amava. Mas a língua travou, como há muito não
acontecia.

Então ao invés de falar ao esposo o que sentia, Delilah apenas calou-se.

Aceitou-lhe a companhia, aceitou fazer amor, e fez tudo com a mesma


paixão de sempre, acrescida de uma porçãozinha de desespero. Se fossem
embora para a Índia sem que conseguisse alcançar o afeto do marido, sabia
que nunca mais teria uma oportunidade igual de consegui-lo.

***

Todos os vestidos novos de Delilah haviam chegado. Ela tinha um armário


cheio, e como se não bastasse Zamir decidira que ela também devia receber
joias. Era tudo lindo. Tudo maravilhoso.

Mas faltava uma coisa. Um pedaço.


Não deveria reclamar, nem tinha de quê. Jamais em sua vida ganhara tanto
em bens materiais e em atenção masculina. Zamir enchia-lhe de agrados
durante o dia, enchia-lhe de paixão de noite. E em algumas madrugadas, e
até em alguns finais de tarde. Ele estava sempre bem-disposto, chamando-a
de preciosa e dizendo palavras desconhecidas e melodiosas que ela já estava
começando a reconhecer. As semanas se passavam, alegres e harmoniosas, e
ela não se dava por satisfeita. Era uma gulosa! Um bom marido não lhe
bastava? Um casamento baseado em honestidade e respeito não lhe era
suficiente?

Por que era tão importante que tivesse mais?

Por quê?

Porque amava Zamir.

E mesmo que o tempo para a partida da Índia estivesse distante, a assustava.

Ela mudara.

Primeiro por ele, depois por si própria.

Delilah voltou a olhar para seu armário, sabendo que o que faltava não
estava ali, nem era palpável.

Será que o que Zamir via não o encantava a ponto de fazê-lo amá-la só um
pouquinho?

Ela desejava ser daquelas pessoas boas e generosas que se dão por

completo e tem tanto amor que não fazem questão de ser amadas, tão
magnânimas que só o amor pelos outros já as faz feliz. Mas não era.

E só de pensar na vida solitária de uma pessoa que não era amada, ela sentia
calafrios.

Lembrou-se da mãe, tão abnegada, e teve vontade de chorar.


Para complicar havia a ansiedade para que chegasse logo a data da
inauguração da loja, pois só após sua abertura, e quando estivesse
funcionando com sucesso, poderia dedicar-se à busca de suas irmãs. Ela
acreditava que Sarah e Barbarah estavam bem, protegidas por Deus, e por
seus respectivos maridos. Precisava acreditar nisso para manter-se firme.

Mantivera-se até agora, não?

Deixou de olhar aos vestidos, e deixou de pensar numa viagem para a Índia
que estava longe de acontecer. Iria se concentrar no agora.

Era uma mulher adulta!

Forte!

O tempo de ter medo, de ser choramingas, havia passado.

Tomando da pena, pôs-se a escrever.

Se você remover pedra por pedra até mesmo

uma montanha será demolida.

Provérbio indiano.

Capítulo 9

Conseguira empregar Daisy como ajudante de cozinha na casa de um casal


de amigos de Zamir, e ficou feliz em saber que agora a velha amiga poderia
realizar o sonho de casar-se com o namorado que amava.

Estava feliz por poder ajudar alguém. Reencontrando Daisy tentara obter
notícias das irmãs, mas ela nada sabia.

— Gostaria de notícias do seu pai?

Delilah negou. A amiga foi compreensiva:


— Eu no seu lugar também não gostaria de receber notícias dele, depois do
que fez a você e suas irmãs.

— Ah, Daisy, ele nos separou de forma terrível, mas no final sou grata por
ele ter permitido que Zamir casasse comigo. Ele fez bem.

Daisy ficou observando Delilah, com a boca ligeiramente entreaberta.

— Seu pai... fez bem?

— Sim, ele aceitou o pedido de casamento de Zamir no meu lugar.

Sei que as coisas podem parecer meio estranhas, mas garanto que o modo
como ficamos noivos é muito usual.

— Muito usual? — Os olhos de Daisy estavam arregalados, e suas


sobrancelhas pareciam que iam colar no início dos fios de cabelos dela.

— Vamos, Daisy, vamos. — Delilah deu uma palmadinha na mão da amiga


— Fique tranquila. Nem todo mundo tem a mesma sorte que você, de

casar por amor.

Daisy engoliu seco.

— Eu sei que não. Talvez... Talvez eu tenha entendido tudo errado, afinal.

Delilah não compreendeu.

— Entendeu o que errado?

— Nada. Não importa. Coisas que as pessoas falam por aí...

— Ah. Não se fie em fofocas.

— Não, claro que não. Estou feliz por você, por ver que está bem, e que veio
parar bem longe de East End.

— E você também estará longe, em breve.


Daisy se animou:

— Oh, nosso sonho é Covent Garden, como sabe. Sei que não é como
Mayfair, mas...

— É melhor que onde está agora.

— Exatamente!

A conversa desviou-se para o futuro de Daisy e só depois que ela foi embora
Delilah pensou melhor sobre o que falaram. A outra parecia tão espantada
com tudo que Delilah dizia! Que história sobre ela e as irmãs teriam
inventado? Algo escabroso, decerto. Bem, não adiantaria pensar sobre isso
agora, e nem valeria a pena. Não pretendia voltar ao local onde vivera, não
tinha outros amigos lá além de Daisy, e pouco lhe importava o que
pensassem dela. Ademais havia um jantar para comparecer com o marido, e
ela deveria banhar-se agora para que Lydia pudesse fazer o pequeno milagre
de sempre em seus cabelos.

Delilah olhou-se no espelho que ficava em seu quarto. A mulher que

olhava para ela tinha olhos escuros e lábios rosados, e uma pele clara, com
pouquíssimas sardas. Seu nariz era pequeno, e levantava bem levemente na
ponta. Os cabelos castanho-escuros não eram exatamente lisos, mas tinham
um certo volume que ajudava na hora de fazer os cachos tão em moda
ultimamente.

Ela não costumava gostar de olhar-se no espelho. Só via traços comuns e


defeitos, por mais que as irmãs tentassem dissuadi-las a esse respeito. Mas
hoje... Hoje o que via parecia diferente.

A mulher do espelho parecia inesperadamente corajosa, e forte em seu


desejo de fazer o melhor que podia. Ela também era alguém que conseguia
falar, e dar opiniões.

A mulher do espelho era apaixonada, e não tinha medo de entregar-se.

E ela faria sacrifícios por quem ela amasse. A mulher do espelho tinha um
pouco de sua mãe, mas tinha esperança que pudesse ganhar o amor do
homem que a havia escolhido um dia, e escapar do futuro frio que era amar
sem ser amada.

E a mulher do espelho era bonita, e Delilah gostava muito dela!

***

Os produtos que os Maddala forneciam haviam assumido certo status na


Europa quando Zamir assumiu a liderança nos negócios da família, e
transformou o nome de sua fornecedora em sinônimo de qualidade. Por
consequência quando ele passou a viver em Londres muitas pessoas ligadas
ao comércio se aproximaram dele. O mesmo se deu com os norte-
americanos que estavam se instalando na Europa, os industriais que
começavam a se destacar trazendo o progresso para a capital, os artistas,
modistas e mais um

sem-número de pessoas que formava o que a aristocracia chamava de


"novos-ricos" e que queria expandir suas amizades. Frequentar os eventos
organizados por essas pessoas muitas vezes era necessário, mesmo que não
fosse muito divertido nem para Zamir e nem para Delilah.

Certa vez Zamir dissera a Delilah que não temesse ser indagada sobre seu
casamento pelos clientes ricos que teriam. As pessoas de posses geralmente
não gostavam de conversas que incluíssem detalhes íntimos ou pessoais, e se
interessavam muito mais por fofocas picantes do que algo tão tradicional
como um matrimônio. Ele estava certo.

O máximo que perguntavam era sobre há quanto tempo estavam casados, e


sempre sorriam quando recebiam a resposta de que a união era recente.
Depois, mudavam de assunto. Ainda bem. Nenhum livro da biblioteca de
Zamir, ou mesmo nas livrarias onde ela andara pesquisando explicavam
como proceder diante de questões indiscretas. Os manuais se resumiam a
questões práticas como o uso de talheres, posicionamento de convidados à
mesa, mesuras e o modo certo de se cumprimentar a nobreza, fosse através
de missivas ou pessoalmente. Ela havia encontrado um livro que divergia um
pouco mais dos outros a respeito de etiqueta, e abordava também o
comportamento correto de uma esposa, que deveria ser sempre dócil e
submisso. Frisava também que uma boa esposa deveria abolir toda e
qualquer exigência de seu vocabulário. Delilah revirara os olhos algumas
vezes durante a leitura de escrita pedante e insultuosa. E conquanto estivesse
assinado como "lady" ela tinha certeza que aquelas coisas só podiam ter sido
escritas por um homem! E do tipo antiquado.

Mas naquela noite, na casa de um bem-sucedido dono de tecelagens, havia


uma moça à mesa, não muito mais jovem que Delilah, e ela estava exultante
por ter ficado noiva. Em dado momento, comentou:

— Quando vi sir William pela primeira vez eu tive a certeza que era o

cavalheiro certo para mim!

A mesa toda ficou em silêncio, absorvendo aquela informação.

Algumas pessoas fizeram comentários em concordância com a noiva, sem se


alongar. Mas logo depois alguém falou sobre o tempo, outra pessoa sobre
viagens, e pronto, a conversa tomou outros rumos. No entanto Delilah ficou
pensando sobre isso, sobre encontrar a pessoa certa pela primeira vez. Teria
sido o que Zamir pensara sobre ela? Afinal, entre tantas solteiras em
Londres, ela havia sido a escolhida. Devia haver uma boa razão para tal
coisa.

Após o jantar, depois de deixarem a casa de seus anfitriões, Zamir achou que
seria uma boa ideia levar Delilah para ver a loja, que estava quase pronta
para receber os clientes. Àquela hora não haveria mais operários
trabalhando, e poderiam circular sem o risco de atrapalhar. Ela aceitou de
bom grado. Havia mais de um mês que aguardava a oportunidade de
conhecer o estabelecimento.

O endereço da Bond Street ainda não apresentava nome na fachada, mas seu
interior já estava concluído, faltando apenas alguns mínimos detalhes, aqui e
ali. A maioria dos produtos que seriam vendidos já estava no depósito,
aguardando a hora de ocuparem seus lugares junto ao salão e às prateleiras.
Era um amplo espaço, e certamente tinha tudo para ser bem-sucedido.

Era impossível não se deixar contagiar pela empolgação de Zamir enquanto


explicava onde ficaria cada coisa, como funcionaria o negócio, quais as
novidades que ele traria, e até o que ele planejava fazer para a inauguração.
Quando apresentou para Delilah o depósito onde estavam guardados um
grande volume de tecidos, a atenção dela foi atraída para alguns trajes
coloridos.

Zamir explicou que aqueles eram os trajes femininos mais usuais na Índia. O
nome daquele tipo de vestimenta era sári. Alguns modelos eram simples,
outros bordados, muitos com extremo requinte, com fios dourados, prata ou
pedrarias. Tradicionalmente os sáris totalmente brancos eram usados pelas
viúvas, e os completamente vermelhos usados pelas noivas. Ele continuava
falando sobre as roupas de seu país enquanto caminhava: dhotis, kurtas,
sherwanis, mas Delilah ainda estava parada diante dos sáris.

O marido finalmente a compreendeu. Ela não estava apenas curiosa sobre as


roupas, estava encantada por elas.

— Escolha um para você.

Delilah o olhou, espantada.

— Mas... São para seus clientes.

Ele sorriu.

— Os clientes que comprarão essas peças não as valorizarão tanto quanto


você as está valorizando nesse mesmo instante. Faço questão que fique com
um dos sáris.

Delilah pegou um deles, em tom alaranjado e tramas requintadas com fios de


ouro.

— Tem tanto tecido...

— Cerca de seis metros.

Os olhos dela arregalaram.

— Isso tudo? Parece um pouco complicado de usar...


— Nem tanto. Existe mais de uma forma de usá-lo, mas no geral o tecido
contorna você: passa pela cintura, sobe por um dos ombros e desce pelas
costas.

Ela soltou uma risadinha:

— Oh, é muito fácil!

— Se quiser posso ajudá-la a vesti-lo, preciosa, mas a mim agradará mais


ainda ajudá-la a despir-se... Agora mesmo, se quiser.

Delilah abraçou a roupa:

— Não vou fazer isso aqui.

Zamir estalou a língua.

— Decepciona-me, minha esposa. Venha, escolha um calçado para combinar


com seu traje.

Ele levou-a até onde estavam belas e coloridas sapatilhas bordadas.

Delilah escolheu um par e experimentou. Perfeito!

Bem, se ela ia morar na Índia, nada mais natural que começar a conhecer os
hábitos do lugar, vestimentas e tudo o mais. Soltou um suspiro resignado.

Zamir pareceu notar que algo estava estranho.

— O que houve?

— Nada. Não houve nada. Estou muita grata apenas, admirada pela beleza
do traje.

— Que bom.

Mas Zamir não acreditou totalmente naquela resposta. Já notava, havia


alguns dias, que o riso da esposa havia diminuído. Talvez a saudade das
irmãs esteja mais forte ultimamente, ele pensou, abraçando a esposa e
aconchegando-a junto ao seu peito. Mas não insistiria no assunto, para que
ela não ficasse ainda mais saudosa.

— Vamos para casa.

Delilah assentiu, dando-lhe o braço e deixando-se levar.

Estrela recebeu-os à porta. Estava bem pesada, com o ventre estufado,

e Zamir abaixou-se para fazer-lhe carinho, sendo imitado por Delilah.

— Quanto tempo faltará para que cheguem os filhotes?

— Não sei, mas pelo tamanho dela, parece faltar pouco.

Zamir sorriu. Uma casa com cachorros, uma boa esposa, flores em cada
cômodo. Só faltava um bebê em casa.

Ele ergueu-se rápido.

Quando optou por casar-se para tornar-se mais aceitável aos ingleses e se
integrar melhor ao local onde iria residir por algum tempo, não dera-se conta
da extensão e do desdobramento que sua ação causaria. Por mais que
imaginasse tudo que viria atrelado a uma união, não estava preparado para o
que o que aconteceria dentro dele, do seu peito, de sua alma.

Não planejava gostar de ficar em casa.

Não planejava achar divertido brincar com um cachorro.

Não planejava apreciar uma refeição tranquila em sua sala de jantar.

Não planejava estimar conversas triviais no final do dia na comodidade de


seu lar.

Não planejava sentir-se confortável e deleitar-se com a mera presença de


alguém enquanto lia um jornal na tranquilidade de uma manhã.

Não planejava amar cada uma dessas coisas.


Não planejava amar.

Àquela noite, na penumbra do quarto, fazer amor foi diferente. Com lentidão
e cuidado Zamir possuiu a esposa. Em sua língua nativa abriu-se, colocando
todo seu sentimento em palavras que os deuses podiam ouvir e abençoar,
grato à boa sorte que o destino lhe reservara, tornando-o um homem melhor,
completo, para quem o trabalho e a riqueza não ocupavam mais a posição de
mais importantes. Abraçando-a depois do ato, beijou-a com

carinho, vendo que os olhos da esposa pareciam um pouco surpresos, e que


ela talvez houvesse percebido que algo havia sido diferente daquela vez. No
entanto, ele nada disse sobre o que sentia. Ainda não. Havia um tempo para
tudo, e o tempo de falar de amor para a companheira ainda não era agora.

Não quando ele mesmo havia acabado de descobrir o que sentia.

Aconteceu a única coisa que poderia

ter acontecido.

Lei espiritual indiana.

Capítulo 10

— Vamos cavalgar no Hyde Park hoje, mais tarde.

Delilah ergueu os olhos para o marido. O criado ajeitava-lhe a gravata,


dando um nó bastante complicado, que ela já desistira tentar aprender como
fazia.

— Terá tempo?

Zamir havia começado a ensinar a esposa a montar, mas com a proximidade


do dia da inauguração da loja seu tempo parecia ficar cada vez mais escasso,
e as aulas haviam ficado para segundo plano. Embora sentisse falta da
companhia do marido, Delilah não se queixava. Obrigava-se a lembrar que
desde o início ele havia sido honesto ao dizer que tudo que fazia era visando
o sucesso de seus negócios. Apostara alto na loja que abriria e havia muito
dinheiro investido, além do nome Maddala.
— Terei. Preciso disso. — Ele andava tenso com a correria dos últimos dias.
E havia um carregamento atrasado. Não gostaria de abrir a loja sem que ela
estivesse com cem por cento de sua capacidade à disposição dos clientes.

Relaxar um pouco ao ar livre, e em boa companhia, poderia ser uma boa


pedida.

— Estarei pronta quando chegar. — Delilah compreendia que a pressão que


Zamir estava sofrendo havia mexido um pouco com o humor dele, deixando-
o mais calado e ligeiramente sombrio, mas tinha certeza que

seria vitorioso em seu projeto. E se ele queria cavalgar, o acompanharia de


bom grado.

— Muito bem. — Zamir terminou de vestir-se, e aguardou enquanto o criado


conferia se sua roupa estava sem pelos, e se seu cabelo estava
adequadamente preso.

Delilah mais uma vez admirou o marido. Algumas vezes, quando saíam
juntos, ela flagrava sobre ele os olhares de outras mulheres. Com sua altura e
aparência exótica Zamir chamava atenção, e sempre seria um tipo que se
destacaria entre os ingleses.

A mesma coisa aconteceria com ela quando estivesse em território indiano,


uma figura diferente entre a multidão. Seria ela observada com um pouco de
curiosidade quando vivesse na Índia? Seria bem aceita? Se habituaria em
viver numa cultura diversa da sua?

Mais tarde, naquele dia, fez novas perguntas ao marido sobre o lugar onde
um dia deveria viver, enquanto seus animais trotavam calmamente.

— O clima na Índia é tão quente quanto dizem?

— Sim, é. Mas também temos frio, e chuva, graças às monções.

Quando o vento empurra as águas sobre as plantações é o melhor momento


para quem depende da agricultura.

— E esfria tanto quanto aqui?


Zamir balançou a cabeça, em negativa.

— Em alguns lugares esfria bastante a partir de Dezembro, mas não tanto


como aqui. Quem não aprecia muito o frio se sentirá mais confortável no
inverno de Calcutá do que no de Londres.

Algo bom, pensou Delilah, recordando-se de quanto sofria na estação mais


fria do ano quando vivia na casa dos pais. Aquecer-se era complicado sem a
fartura de lenha necessária para aquecer uma casa, e com os casacos

velhos que usavam, remendados incessantemente para suportar mais um ano


de privações. E embora ela fosse quem era agora graças a tudo que havia
vivido, as lembranças das dificuldades passadas não eram coisa que gostasse
de reviver. Talvez deixar tudo para trás fosse de fato o melhor. Afinal sempre
poderia alcançar suas irmãs através de cartas, não era o lugar que as unia.

Indagava-se um dia alcançaria Zamir do mesmo modo, mesmo ele estando


tão perto.

Indiferente às angústias da esposa, Zamir tocou os cavalos para um trote


mais ligeiro.

— Mexa-se, esposa. Até um idoso apoiado numa bengala é mais célere que
nós.

Delilah soltou uma risada e o marido sorriu ao ouvi-la, sentindo que enfim a
expressão dela se desanuviava. Já bastava que ele não estivesse no melhor
dos humores, e acumulasse preocupações. Não queria que sua mulher
também padecesse desse mal com a proximidade da abertura da loja, ou com
a dificuldade de ter notícias sobre a família. E estavam ali para relaxar, não
pensar no futuro ou no passado.

Enquanto seus animais aceleravam o trote, passaram por um casal que


conversava.

— Ah, veja, é a senhorita que conhecemos no jantar do seu amigo que tem
as tecelagens!

Zamir olhou rapidamente.


— Hum... Sim, a moça que se encantou logo no primeiro encontro...

A voz dele soou indiferente, com uma ponta de desdém até. Delilah
estranhou. Imaginava que Zamir acharia interessante e até se solidarizasse
com a impressão que a jovem tivera, não que se mostrasse esnobe.

— Não achou a declaração dela no mínimo interessante? — Delilah

insistiu.

— Achei tola. Vamos conduzir os cavalos para casa, se exigir demais de si


mesma quando está aprendendo a cavalgar ficará dolorida ao final do dia. —
Zamir puxou as rédeas de seu corcel, aguardando que Delilah o imitasse, o
que ela fez. Seguiram o resto do percurso em silêncio.

Mas Delilah estava incomodada com a atitude do esposo. Ele dissera, tempo
atrás, que quando a vira a achara adequada para ser sua esposa. Mas não
acreditava no julgamento dos outros para que também se sentissem assim em
relação aos seus parceiros? Estava confusa com isso. E como havia muito
que represava seus pensamentos e falas a respeito do relacionamento que
tinham, assim que puseram os pés dentro de casa não se conteve mais:

— Por que aquela pobre senhorita apaixonada é uma tola? Ela não tem
direito de achar que encontrou a pessoa certa?

Zamir virou-se para olhar à esposa, com estranheza. E respondeu, com


timbre que soou à Delilah demasiado macio:

— Ela tem todo o direito de achar a pessoa certa.

— Mas não acredita que achou!

O mordomo estava no hall, recolhendo chapéus, capas e luvas, e Zamir falou


com ele antes de responder Delilah:

— Peça que providenciem um banho para mim, Devon.

— Sim, meu senhor.


Depois que o mordomo se afastou, Zamir respondeu à esposa:

— Não, não acredito. Mas qual a importância disso? Nem sequer recorda-se
do nome da moça, por que parece querer discutir por ela? E por algo tão
fútil?

— Fútil?

— Delilah, não compreendo por que parece desejar que nossa primeira briga
de casados seja por uma desconhecida.

— Não quero brigar. Apenas entender porque você pode avaliar tão bem
alguém que vê uma vez, e ninguém mais pode.

Zamir franziu as sobrancelhas.

— Não compreendo o que diz.

— Quando você me viu pela primeira vez e depois decidiu falar com meu
pai sobre mim... — Ela respirou fundo, organizando seus pensamentos e
palavras — Diga-me o que pensou.

— Eu... —Zamir balançou a cabeça, continuando sem compreender

— Isso nunca aconteceu.

— Como não? — Ela deu um sorriso leve, e depois franziu a testa —

Você disse que me viu e me achou adequada e depois então veio pedir minha
mão.

— Nunca disse isso.

— Disse.

— Quando?

Ela pensou um pouco mais, e então respondeu:

— No dia que casamos, durante o almoço que compartilhamos antes.


— Eu jamais diria isso, pois não foi o que aconteceu. Agora, se me der
licença, eu apreciaria trocar de roupa antes de jantar.

Fazendo uma mesura cortês para a esposa, Zamir começou a subir as


escadas. Delilah seguiu-o.

— Recordo-me que disse que eu era adequada para ser sua esposa!

— Sim, está correta quanto a isso. — Zamir começava a sentir-se cansado.


Viera mais cedo para casa para passar algum tempo em seu

passatempo favorito, ao lado da esposa, mas agora ela queria enveredar por
uma conversa a qual ele não desejava nem um pouco manter. Farejava
confusão ali, que poderia facilmente sair do controle para quem, como ele,
andava passando por dias de apreensão e fácil irritabilidade.

Ele voltou-se para a esposa quando chegou à porta do seu quarto.

— Não se amofine mais com isso. Se lhe perturbei ao não dar fé suficiente
ao romance vivido pela senhorita Kristen, peço-lhe desculpas.

Esqueci-me que as mulheres podem ser muito unidas quanto se trata de


sentimentos.

— Senhorita Kristeen? Oh, agora lembrei seu nome...

Zamir entrou em seu quarto, e ia fechar a porta, mas a esposa entrou atrás
dele.

— Mas não insisti nesse ponto por alguma suposta afinidade entre as pessoas
do sexo feminino, mas por uma questão de justiça.

O criado pessoal de Zamir entrou no quarto após uma leve batida na porta,
mas ficou constrangido ao perceber a presença da senhora da casa.

Mesmo assim deu um passo adiante e começou a ajudar o patrão a despir-se.

Delilah prosseguiu, sem importar-se que Zamir mantivera-se calado.


— Eu insisti porque sua descrença na primeira impressão de alguém põe em
xeque a que teve de mim!

Zamir fez um sinal para que o criado deixasse o quarto, e ele o obedeceu.
Em seguida respondeu à esposa.

— Estávamos em uma mesa de negociação, se bem me recordo, e eu disse a


você o que precisava ouvir.

— Então não era verdade?

— Era verdade que parecia adequada, e provou que eu estava certo

durante todo esse tempo em que temos de casados. Quanto à senhorita que a
motivou a uma defesa tão passional sobre primeiras impressões, lamento
dizer-lhe que é um engodo.

— Um engodo?

— Sim. Uma farsa. Na temporada passada incentivou os avanços do irmão


caçula do anfitrião daquele mesmo jantar ao qual comparecemos. E

meses antes, quando eu era ainda um homem solteiro, flertou comigo


descaradamente.

— Oh...

— Exato. Ela é uma mulher volúvel.

Delilah pensou um pouco. A jovem era bonita, educada, e parecia vir de boa
família. Se havia flertado antes com Zamir ele poderia muito bem tê-la
escolhido como esposa. Mas não o fizera.

— Desfaça minha curiosidade e me diga porque não a pediu em casamento


se admitiu que desejava uma esposa inglesa, antes de mais nada?

— Desejava uma esposa inglesa que fosse devotada a mim, não uma com a
qual não pudesse contar. Além do mais sou um homem antiquado em muitos
aspectos, e não admitiria ter como companheira uma desfrutável. —
Zamir deu-lhe as costas, voltando-se para o espelho e desfazendo sozinho o
intrincado nó de sua gravata.

Delilah sentiu-se um pouco ofendida com aquela resposta.

— E o que lhe garantiria que eu seria devotada, e que não poderia me tornar,
como você mesmo diz, uma desfrutável?

Zamir virou-se, encarando-a. O olhar dele foi tão significativo que Delilah
pode traduzi-lo rapidamente:

— O dever que tinha com você.

A paciência de Zamir começava a deteriorar-se:

— De que adianta apregoar aos sete ventos que encontrou a pessoa certa se
essa certeza só vai durar até a próxima temporada? O que temos é mais real
que muitas uniões iniciadas por um suposto amor à primeira vista.

Delilah desabou sobre uma poltrona de canto.

Zamir não gostou da perspectiva de deixar a esposa magoada com ele, e


tocou-lhe a mão:

— Por favor, preciosa, vamos mudar o rumo dessa conversa. Não quero
problemas.

— Eu também não queria. Mas já que começamos, Zamir, vamos até o fim
dessa conversa.

— Delilah, se pretende continuar falando sobre pessoas que acreditam que o


amor muda a cada estação, insistirei que pare. Ando com preocupações
demais para incomodar-me com coisas tão pequenas. Preferia tomar banho e
concentrar-me em fazer amor com você, minha formosura... — Zamir tentou
abraçar a esposa e beijá-la.

Geralmente a sedução daria certo, mas não dessa vez. Delilah levantou-se,
escapulindo do abraço.
— E se o que eu quiser falar nada tiver com outras pessoas?

O coração dela estava disparado, não podia mais calar-se agora que havia
começado. Precisava por à limpo tudo o que parecia-lhe obscuro e que não
se interessara antes em averiguar, talvez temendo, bem lá no fundo, que
quando a verdade surgisse, seria por demais feia.

Zamir suspirou.

— Muito bem. Se quiser falar sobre nós, fale.

— E me responderá com franqueza?

Ele franziu as sobrancelhas.

— Não deveria sequer questionar-me quanto a isso. Jamais lhe faltei com
franqueza.

Isso ela sabia, ainda que instintivamente.

— Diz que nunca me viu antes de me pedir a mão.

— Nunca.

— Então como chegou a mim? Através do meu pai?

— De um certo modo, sim.

— Explique-me.

Zamir amaldiçoou o pai de Delilah. John Winter não contara à filha o que
havia feito, como um homem viera parar à sua porta para buscar-lhe tão de
repente. Ele deixara a informação sórdida para ser dada por Zamir,
provavelmente achando que seria divertido jogar esse tempero a mais numa
união que estava começando. E agora não havia como contornar o assunto,
nem tentar enfeitá-lo para que parecesse menos pérfido. Então contou tudo
sobre o leilão, como foi apresentado aos clientes, e aonde aconteceu.
Quando o relato terminou, Delilah havia tornado a sentar-se, estava muito
pálida, com os lábios entreabertos e olhos que não piscavam.

— Meu pai... Leiloou as filhas? — Ela não estava perguntando realmente,


mas repetindo o fato para si mesma, como se ao dizê-lo pudesse tornar-se
mais tragável.

O criado pessoal de Zamir voltou a bater na porta e entrar, agora


acompanhado de outros, que traziam a banheira e água quente para o banho
outrora pedido por Zamir. Pior hora para a chegada de um pequeno exército
de serviçais, impossível.

Delilah pareceu sair de seu torpor quando os criados entraram.

Erguendo-se da poltrona, caminhou em passos ligeiros até a porta de ligação.

— Desculpe, não vou mais atrapalhar.

— Não atrapalha nada. Delilah! — Zamir tentou pegar a mão da esposa, mas
ela fugiu do seu toque como se ele pudesse queimá-la.

***

Delilah entrou em seu quarto, fechando a porta de ligação com cuidado.


Parou no meio do aposento, levando a mão à boca, esperando que a sensação
de desnorteio passasse antes de qualquer coisa.

John Winter leiloara as filhas. Apregoando que eram virgens, e sabe-se-


mais-o-que. Ele não casou as filhas, não conseguiu maridos para elas. Ele
apenas se livrou de um fardo. Ou três. Pouco importava para ele se fossem
parar em Mayfair ou em St Giles contanto que para seu bolso viesse a
compensação de sua negociata. Era aterrador o quanto um homem podia
descer. Se havia um fundo do poço, era onde estava John.

Saber do leilão havia sido um baque.

Mas perceber que apegara-se a uma fantasia para tomar uma atitude e forçar-
se a crer que tudo que estava lhe acontecendo era uma maravilhosa e
imperdível oportunidade de ser feliz, era ainda pior. Como pudera,
conscientemente, crer que Zamir algum dia a escolhera por ser ELA?

Acreditara que Zamir vira numa garota do East End algum atributo
miraculosamente mágico que a tornava diferente de todas as outras? Tão
irresistível que ele precisasse bater à porta dos Winter implorando que a ele
fosse dada a honra de receber a mão da filha do meio do senhor John?

Francamente!

Eles eram nada! Agora via as coisas de forma bastante clara: Havia sido
escolhida, sim, apenas porque era prático, rápido e fácil conseguir daquele
modo uma noiva inglesa necessária aos planos de Zamir Maddala.

Com a compra da noiva excluía-se a necessidade de cortejo e as chateações


acarretadas por ele, que tomavam muito do tempo de um homem atarefado e
com coisas mais importantes a fazer que acompanhar uma pretendente à
passeios ou jantares de família. E, claro, como o fator tempo era urgente,
uma corte tradicional precisaria ser descartada. E nenhuma boa família
inglesa aceitaria casar sua filha apressadamente, despertando desse modo os
mexericos que podiam fazer estragos profundos e lançar ao ostracismo
pessoas influentes e atrapalhar quaisquer intentos de casar bem irmãs mais
jovens, por exemplo. Só mesmo uma família pobre, desesperada, se prestaria
a algo assim.

E o fato de ser virgem era uma bonificação que devia ter agradado a um
homem que admitira ser "antiquado em muitos aspectos". Quanto ao resto
ele mesmo se encarregaria de resolver, usando as palavras adequadas, e
puxando os fios certos para mover e moldar a marionete que traria para casa,
para interpretar o papel de esposa bem-educada, grata e bem-comportada.

No entanto, a despeito de como se sentia, não podia culpar a Zamir por nada.
Seu destino havia sido traçado pelo pai e ela seguira o caminho indicado por
ele, saltitando de bom grado pela rota apontada e abraçando o que lhe era
oferecido como uma tábua de salvação.

Talvez fosse mesmo, se pudesse ser humilde o bastante para admitir.


Tornara-se uma pessoa muito melhor após o surgimento de Zamir e o leque
de possibilidades e oportunidades que se abriu para ela, de aprender sobre
coisas que nunca vira e aprofundar seu conhecimento no que já sabia existir.

Não deveria ficar com raiva, nem sentir rancor. E não era o esposo a quem
devia direcionar sentimentos tão ruins. Na verdade não queria guardar

rancor de ninguém, pois isso matava aos poucos um ser humano, comendo
por dentro e destruindo seu espírito. Não era de sua natureza remoer-se, e,
portanto não alimentaria esses sentimentos. Não mesmo.

Mas a mágoa, a tristeza, sobre essas, não tinha poder.

E havia mais. Havia o buraco no peito. Se antes parecia difícil fazer-se amar,
agora via mesmo que era impossível. Uma coisa era lutar pelo amor de um
marido que a admirava, fosse por qual razão. Outra bem diferente era tentar
lutar pelo amor diante de um marido que a via com os olhos de um mercador
que visava apenas lucro, para quem era uma peça útil, com a vantagem de
proporcionar-lhe algum prazer à cama. Oh, ela não tinha dúvida que ele
gostava do que faziam sobre o colchão, mas ela também não era tão ingênua
a ponto de não saber que para animar um homem viril bastava vestir saias e
erguê-las de vez em quando.

Aproximando-se da janela viu o escurecer abater-se sobre Londres, sabendo


que as sombras lá fora também a cobriam por dentro.

Não há árvore que o vento não tenha balançado.

Provérbio hindu.

Capítulo 11

Zamir entrou silenciosamente no quarto da esposa. Nunca tomara um banho


tão rápido, e seus cabelos ainda pingavam água. Por um minuto, quando a
vira sair do quarto, parecendo tão perdida, desejou segui-la. Mas sabia que
se fizesse tal coisa não estaria ajudando em nada. Delilah precisava de um
tempo sozinha, para digerir a informação que recebera.
O pai dela era um homem abominável, mas, felizmente, ela se libertara de
seu julgo. E felizmente havia sido Zamir o homem que dera o lance mais
alto no dia do leilão. Felizmente para ela e felizmente para ele também, não
tinha dúvida. Recebera um presente maravilhoso ao erguer a mão e garantir,
ao toque de um martelo, que Delilah Winter seria dele. Então não sabia o
que o esperava, e nunca poderia prever os sentimentos que surgiriam
conforme a convivência trazia mais intimidade ao relacionamento que
crescia à medida que descobriam semelhanças entre si, e enquanto o desejo
aumentava. Não se arrependera, nem por um minuto, de comparecer à venda
que acontecera numa casa de má fama situada em uma das ruas mais mal
frequentadas de Londres.

Delilah foi a coisa mais importante que acontecera em sua vida!

— Delilah?

Ela deu um pulo. Não havia percebido a chegada de Zamir.

— Sim?

— Está se sentindo bem?

Ela continuava bastante pálida, e seus olhos pareciam ter perdido um pouco
do brilho.

— Estou.

—Lamento se apresentei a questão do leilão de forma tão crua, mas não


havia como suavizar o acontecido.

— Como sempre sua franqueza foi valiosa. Não precisa lamentar nada, e
nem se preocupar que eu aja diferente após saber a verdade. Temos um
entendimento e vou cumpri-lo.

— Um entendimento?

Delilah balançou a mão, e voltou a olhar através da janela:

— Ou um acordo, se preferir. Dá no mesmo.


— Delilah, está aborrecida comigo? — Zamir perguntou, incrédulo.

— Não, não estou. E já disse que não precisa se preocupar. Não gaste seu
tempo incomodando-se com coisas pequenas, Zamir. Temos uma meta e não
serei eu a fazer nos desviarmos dela.

Zamir respirou fundo. Delilah estava aborrecida com o pai e como ele havia
sido o portador das más notícias, a irritação da esposa respingara nele.

Seria paciente e não insistiria no assunto, por mais que estivesse se sentindo
injustiçado, apenas em consideração ao amor que sentia.

Pensou em insistir em tomá-la nos braços, aconchegando-a e a acarinhando


até que a raiva passasse, mas como Delilah havia evitado contato ainda há
pouco, talvez não fosse bom persistir. Além de não querer que seu orgulho
sofresse outro abalo ao ser rechaçado mais uma vez, obviamente.

— Talvez prefira ficar sozinha?

— Sim, eu preferia e ficarei grata, se puder. Claro, contanto que isso não seja
um problema.

Ela sequer voltou-se na direção de Zamir para respondê-lo, e o marido


deixou o quarto, mesmo desejando ficar.

***

Mais tarde, à hora do jantar, Zamir foi notificado por um criado que a
senhora Maddala havia se recolhido mais cedo.

Pois bem. Se Delilah precisava de mais tempo para lamber suas feridas, ele
lhe daria a noite toda. Esperava que a mágoa diminuísse pela manhã, e ela
pudesse voltar a ser a esposa amorosa de sempre.

Jantou sozinho, pela primeira vez em muito tempo, e a comida pareceu-lhe


sem nenhum sabor. O vinho travou na garganta, e a água tinha gosto ruim.

Sem ter com quem conversar, apenas a companhia de Estrela, seguindo-o


pela casa como se dessa forma pudesse dar-lhe apoio, Zamir também acabou
recolhendo-se mais cedo. Faltava aproximadamente uma semana para a
inauguração da loja e ele deveria concentrar toda sua atenção no novo
empreendimento, mas ao invés disso todos os seus pensamentos estavam
numa jovem de sorriso suave que roubara-lhe o coração bem de mansinho, e
que agora preferia sofrer sozinha do que deixá-lo aproximar-se para consolá-
la.

***

Logo ao amanhecer um emissário chegou à casa dos Maddala trazendo


notícias sobre o carregamento de mercadorias que estava atrasado, e

que preocupava Zamir. Havia acontecido algum problema alfandegário, e o


material esperado estava retido em Poole. Apenas o proprietário dos itens
poderia resolver a questão e retirar pessoalmente seus pertences.

Mas que dor de cabeça! Precisaria trazer as caixas por terra, mas esse não
era o maior dos problemas. Ir e voltar a Poole levaria pelo menos três dias,
se fosse ágil e não precisasse pernoitar mais de uma vez no local. Era uma
hora ruim para afastar-se de Londres, não somente porque estava
desembaraçando vários detalhes importantes na loja, mas também porque
Delilah estava sofrendo e não queria deixá-la sozinha.

Estava num grande impasse!

Delilah havia comparecido à mesa do desjejum e o cumprimentara com sem


o entusiasmo de sempre, mas Zamir creditou o comportamento à descoberta
da noite passada. Sabia que as mulheres podiam ser muito sensíveis. E ela, à
despeito de ainda sentir-se triste, percebeu a aflição do esposo diante da
mensagem que tinha nas mãos.

— Aconteceu alguma coisa?

Ele relatou o problema rapidamente.

— Não há escolha, você deve ir à Poole imediatamente.

— Tem certeza? — Zamir fitou Delilah com atenção.


— Sem dúvida!

— Então está certo. Irei agora pela manhã.

— Vou pedir que os criados arrumem nossas coisas — Delilah começou a


erguer-se da cadeira.

—Não, Delilah, você não deve ir.

— Não? — Ela estacou.

— Não. Levá-la atrasaria nossa viagem. Só o uso da carruagem já

demandaria mais tempo de locomoção, e ainda haveria problemas com


pernoite. Não poderia abrigar-me com você num lugar qualquer durante o
percurso... Ao passo que cavalgando com os homens aos meus serviços
ganharemos as estradas com rapidez e poderemos nos abrigar em qualquer
lugar, sem a preocupação com sua segurança ou bem estar.

— Eu posso cavalgar.

— Você ainda não está treinada o suficiente e não a obrigarei a passar horas
sobre o lombo de um cavalo sem a menor necessidade.

— Compreendo. — Delilah estava rígida.

Percebendo o desagrado da esposa, Zamir procurou chamá-la à razão:

— Delilah, eu realmente preciso ir e voltar bem rapidamente.

— Eu entendi. Você explicou tudo com bastante precisão, senhor meu


marido.

Quando ela não era útil, sua companhia era dispensável.

— Não estou gostando do tom de sua voz, Delilah.

— Desculpe. O tom da minha voz foi incluído no acordo que fizemos? Não
me recordo. — Delilah não resistiu a replicar.
O rosto de Zamir endureceu.

— Penso que nem tudo precise ser acordado para que se compreenda o
quanto é óbvio dentro de um casamento.

Ela balançou a cabeça, e tomou um gole de seu chá antes de responder:

— Com certeza a amplitude de nosso acordo não é o suficiente para abarcar


tudo que é necessário no casamento que idealizou. Talvez você devesse fazer
uma lista com cada item para eu que eu possa consultar sempre que precisar.

Os olhos de Zamir, se é que era possível, estavam mais negros que de


costume:

—Por que isso agora?

— Porque falou sobre o tom da minha voz e eu pensei que...

Ele a interrompeu bruscamente:

— Não se faça de boba. Estou perguntando porque está falando essas coisas
para mim. Deseja atacar-me?

— Apenas não desejo que haja dúvidas sobre nós.

— Sobre nós?

— Sim, sobre nossa parceria.

— Até ontem tínhamos um casamento, e hoje temos uma parceria?

Ela desviou os olhos.

— Delilah, o que seu pai fez afetou tanto você assim, que se volte até
mesmo contra seu marido?

— Não me voltei contra você. Continuarei sendo a esposa que esperava,


cumprindo todas as partes do nosso acordo.

— Pare de falar sobre parcerias e acordos!


O grito dele fez Delilah assustar-se. Ele jamais havia gritado com ela antes.
Ainda mais ferida, ergueu-se da cadeira e afastou-se alguns passos.

— Mas não foi para isso que e trouxe para dentro de sua casa? Eu vou
honrar todo o gasto que teve!

Ele também levantou-se, e controlou sua voz com dificuldade, ainda irritado
consigo mesmo por ter gritado antes:

— Então é isso que somos? Quando estamos na cama eu represento para


você apenas um acordo?

— Se pensa que meu comportamento com você na cama é somente a


resposta ao nosso acordo não somente é um tolo como um cego!

Delilah saiu correndo da sala, abalada demais para continuar confrontando-


se com o marido.

Zamir estava chocado com os rumos que a conversa tomara, e


principalmente com a reação de sua esposa. Levou alguns segundos para
recompor-se e só então correu ao seu encalço.

Viu quando ela entrou na sala de estar feminina, batendo a porta e passando
o trinco de forma barulhenta.

Mais essa!

— Delilah, vamos conversar. — Zamir pediu, à porta.

A voz de Delilah elevou-se do outro lado:

— Vá viajar e resolver seus negócios, Zamir. Conversaremos quando


retornar.

— Não irei enquanto não puder falar com você frente a frente.

— Acabaremos por discutir mais.


Talvez ela estivesse certa, mas Zamir não partiria sem olhar no rosto da
esposa antes.

— Não quero portas entre nós. Abra.

As barreiras entre eles eram muito maiores que as visíveis, pensou Delilah,
desconsolada.

Ergueu os ombros e abriu a porta, deparando-se com o semblante soturno de


seu marido.

— Não acho que estejamos no nosso melhor momento e talvez passar uns
dias separados seja o melhor para ambos agora.

Delilah assentiu, e Zamir prosseguiu:

— Sua revolta tem que passar durante esse tempo. Não sou culpado das
atitudes do vosso pai.

Ele não entendia nada! Delilah apertou os lábios não força. Não discutiria
mais. Iria acabar revelando mais do que gostaria, e gritar para Zamir que sua
angústia provinha muito mais do amor que sentia e que estava sufocado em
seu peito, do que pelas atitudes de um velho sem moral ou afeto por suas
filhas.

Era claro para Zamir o ressentimento, a dor e a angústia nos olhos da esposa.
Ele desejava tranquilizá-la, estreitá-la em seus braços murmurando palavras
carinhosas, declarar-lhe seu amor.

Porém não queria correr o risco de pronunciar palavras tão importantes e ser
mal compreendido. Se Delilah achasse que sua declaração era apenas um
consolo às suas tristezas, ficaria seriamente ofendido.

— Não mereço o tratamento que tem destinado a mim. Enquanto eu estiver


fora, reflita sobre isso.

Ela deu um suspiro.

— Está certo. — Delilah baixou a cabeça.


Zamir levantou o queixo da esposa, e pousou sobre seus lábios um breve e
suave beijo.

— Isso vai passar, preciosa.

Estando perigosamente perto de chorar, Delilah apenas concordou, e


murmurou um "com licença" antes de deixar a saleta, rumando para seu
quarto, antes que as lágrimas caíssem diante do esposo.

Zamir deixou-a ir, percebendo que ela estava perto demais de sufocar.

Ele mesmo estava sentindo-se mal. Jamais haviam brigado, e ele jamais
elevara a voz para Delilah, fazendo-a assustar-se e temê-lo. Não era isso que
desejava: medo, briga, choro, nada disso. Circulando pelo aposento onde

apenas dois dias antes reuniam-se para os mais agradáveis momentos de


harmonia conjugal, ele decidiu que o quanto antes seguisse para Poole,
melhor. Em sua volta tudo estaria outra vez nos eixos. Avistando um
pequeno livro de capa de couro sobre o canapé próximo à janela, pegou-o.
Talvez a leitura o distraísse se perdesse o sono nos dias em que estaria fora,
sem a companhia quente do corpo da esposa junto ao dele. A noite passada
havia sido desagradável, na solidão do seu quarto, e certamente as próximas
noites seriam ainda piores.

Deus também está oculto no oceano

e em uma gota d’água.

Provérbio hindu

Capítulo 12

Zamir conseguira resolver o problema com as mercadorias de forma rápida e


eficiente, providenciando que o envio dos produtos para a loja fosse feito ao
amanhecer, com a escolta de três homens de sua total confiança.

Esticando as costas sobre o colchão do catre que ocupava, Percebeu que


estava agitado demais para dormir.
Pudera! Durante todo o tempo em que procurava resolver questões práticas
seus pensamentos eram invadidos pela presença da esposa. Ela estaria mais
tranquila? O ressentimento teria amainado?

Lembrou-se então que pegara um livro e o havia colocado entre suas coisas
antes de partir, e achou que poderia ser boa ideia fazer uso dele agora, para
desanuviar um pouco suas preocupações.

Quando o abriu, surpreendeu-se. Não era um livro de fato.

As palavras que surgiam na primeira folha haviam sido escritas numa


caligrafia feminina, e estavam endereçadas para... ele!

"Caro Zamir" começava o texto. Zamir fechou o caderno, sentindo o coração


ribombar. Embora estivesse destinado a ele, tinha por certo que não era para
seus olhos. Se fosse Delilah já teria lhe mostrado o conteúdo. Ou talvez...
Talvez fosse, sim, para ele. Talvez Delilah estivesse escrevendo um livro! E
se ele apenas desse uma espiadinha nas páginas, e o devolvesse ao seu lugar
sem comentar nada? Teria algum mal? Normalmente não era um homem
muito curioso, mas, afinal, era seu nome citado na primeira página!

Reabrindo o livro, começou a ler.

E seu coração saltou.

Cada página era escrita em formato de missiva, e em cada uma delas Delilah
conversava com ele sobre seus sentimentos. Na primeira delas havia vários
questionamentos sobre a própria pessoa que escrevia, e suas considerações
sobre tudo o que estava acontecendo, seus sentimentos perante às novidades,
e suas impressões.

A carta seguinte falava mais sobre as apreensões e dúvidas a respeito do


papel que ela exerceria em seu casamento, e toda a expectativa que ela criara
em função de ser escolhida por Zamir para ser sua esposa.

Alguns escritos continham humor, e a descrição de algumas pequenas


vitórias, humildes aos olhos dela, mas valiosas aos olhos dele. Entre as
palavras também estavam contidas as saudades das irmãs, a falta que a mãe
fazia em sua vida, a incompreensão pelo modo de agir do pai, a ausência de
perspectiva que percebia na união de seus progenitores e o quanto ela temia
um dia estar presa à uma união similar.

À medida que as linhas eram lidas, Zamir aprofundava-se mais e mais na


intimidade da esposa, vendo sua alma abrir-se de forma total, expondo seus
medos e frustrações.

Ele compreendeu assim porque ela estava tão aborrecida. Imaginara uma
situação, e vivia outra. E se apaixonara pelo marido.

A última página escrita transmitia a angústia que ela sentia por não avistar
reciprocidade em seus sentimentos:

Ah, Zamir, como eu o amo!

E anseio tanto pelo seu amor que fere-me a alma não conseguir alcançá-lo.

Envergonha-me que meu desejo pelo teu amor suplante tudo o mais

que eu sinto, a despeito de minha necessidade de seguir em frente, exigindo


sempre mais de mim, tornando-se alguém melhor, e mantendo a esperança
que durante a jornada pela minha mudança, eu possa obter também o seu
integral afeto. A esperança não me permite desanimar em meus intentos.

Se eu tivesse um pouco do seu amor, poderia sorvê-lo em gotas,


alimentando-me dele dia a dia.

Mas se eu recebesse o todo, o frasco inteiro desse bálsamo, guardaria seu


conteúdo com cuidado, usando pequenas porções e borrifos, para manter-
me viva. É por ti que vivo, Zamir.

É por ti que me sinto viva.

Queria dizer-lhe que o amo tanto que posso dividir para nós dois esse
sentimento, e mesmo assim ainda teria de sobra. Por tantas vezes estive a
ponto de abrir-me e colocar em suas mãos meu coração...

Mas eu não precisaria ter que dar algo que já lhe pertence.
Tudo que é meu é teu.

E como tenho apenas meu corpo, a mim mesma, me dou.

Por amor, não por gratidão. Por amor, não por obrigação.

O amo incondicionalmente, meu príncipe indiano.

Tua, sempre tua, Delilah.

Ele fechou o livro, atordoado.

Era amado de uma forma que jamais poderia supor.

A alegria então o tomou por inteiro, e seu amor por Delilah cresceu

ainda mais. Assim que chegasse à Londres diria para a esposa o quanto
estava apaixonado por ela, e há quanto tempo. A felicidade de ambos estava
garantida!

***

Adiantando-se aos seus homens e ao carregamento de seus produtos, Zamir


disparou à frente, rumando para casa. Faltavam três dias para a abertura da
loja, e tinha muito o que fazer, mas rever a esposa tornara-se sua prioridade
maior.

Quando entrou, jogando a capa e o chapéu sobre o mordomo, e o assustando


com sua pressa e maus modos, correu para o interior da casa. Ao ouvir vozes
da sala de estar da frente, entrou agitadamente.

Seu irmão Arun e a esposa Margret conversavam animadamente com


Delilah. Embora desejasse falar à esposa, a alegria de rever seus parentes foi
imensa. Depois de cumprimentar a todos, ele sentou-se, para colocar a
conversa em dia. E acabou por combinar com Arun a visita até a loja. O

irmão também o ajudaria no que fosse preciso para alocar as mercadorias


que estavam chegando. Pouco depois estava pronto para sair novamente,
mas antes de partir, pegou a mão de sua mulher entre as suas.
— Como você está?

— Bem melhor, obrigada.

Os olhos dela já não estavam mais tão opacos, e o sorriso que endereçou a
ele pareceu sincero. Zamir sentiu o alívio tomar-lhe.

— Conversaremos mais tarde, está bem?

— Sim, claro.

Com um beijo rápido como despedida, ele deixou a sala.

***

Zamir e Arun estavam exaustos demais quando regressaram.

Banhando-se rapidamente e mal conseguindo alimentar-se antes que os


olhos fechassem por completo, dirigiu-se ao quarto da esposa apenas para
aconchegar-se à ela entre os lençóis. Descansaria um pouco e logo teria com
ela a conversa que planejara durante a viagem de volta à Londres. Delilah
recebeu-o com carinho, aninhando-se entre seus braços.

***

Zamir despertou apenas no dia seguinte. Praguejou baixinho quando


percebeu que estava no leito sozinho. Tendo visitas em casa, pela primeira
vez, Delilah com certeza levantara-se cedo para conferir se tudo estava a
contento para o desjejum e bem estar dos novos parentes.

E com isso a conversa que deveria ter com ela foi novamente adiada.

***

— Não vi Estrela hoje.

No dia anterior, quando chegara, Estrela o recebera com um abanar de rabo


animado, mas logo desaparecera bamboleando pelo corredor. Parecia
enorme!
— Ela não parece querer muita conversa essa manhã.

— Talvez esteja muito próxima de dar cria. — Sugeriu Margret. —

Nesse caso ela deve estar procurando um local tranquilo para ficar, onde os
filhotes possam nascer sem problemas.

— Acredito que seja bem possível. Então, Arun, vamos? — Zamir ergueu-se
da mesa após tomar um pouco de café.

— Sim, vamos.

Os dois irmãos saíram para a loja, deixando as mulheres terminando seu


desjejum. Elas haviam se entendido bem desde a primeira vez que se
encontraram, e Delilah estava grata pela companhia bem-humorada que sua
concunhada representava. Seus sentimentos também estavam mais calmos, e
sua ira se aplacara.

O amado estava certo quando disse que alguns dias separados podiam fazer-
lhes bem. Para ela haviam sido. Foram bons para que ela refletisse o quanto
sentia falta de Zamir e como seria triste para sua existência nunca tê-

lo conhecido. Felizmente havia sido ele que a arrematara naquele leilão,


sempre mostrando-se cuidadoso e carinhoso com ela, diferente de muitos
maridos que vira.

Não daria mais poder ao pai, permitindo que ele lhe causasse maiores danos.
Decidira pensar em John Winter apenas como um homem com o qual
precisara conviver por um tempo, mas que agora se tornara parte do seu
passado. E quanto à Zamir, continuaria mantendo sua postura de esposa
dedicada. Era o que era! O amava, desejava seu amor, e não mais se
torturaria com o engano que cometera. A vida seguia, e ela faria o mesmo,
sem se apegar às fantasias que criara, mas traçando novos caminhos para o
coração de um certo indiano. E quando ele entrara na sala do dia anterior,
ainda agitado pela viagem, o coração dela transbordara, enchendo-se ainda
mais pelo esposo. E foi tão bom!

***
À tarde Lydia foi ter com a patroa.

— Senhora, temos um problema...

— Temos?

— Sim. Gostaria que visse algo.

— O que foi?

— Estrela vai dar a luz...

— Oh, meu Deus!

Largando o bordado que tinha nas mãos, e levando consigo o caderno com
seus escritos, que finalmente reencontrara, fez sinal para Margret para que
também seguisse Lydia. As três mulheres subiram até o quarto de Delilah.

Estrela estava dentro do guarda-roupa de Zamir, embolada entre um casaco


que deveria ter puxado do cabide.

— Céus... — murmurou Margret.

— Acho que vou levá-la para meu quarto — Delilah começou a abaixar-se
para pegar a cadela.

— Não deve fazer isso — avisou Margret.

— Por que não?

— Sempre ouvi falar que não devemos trocar um animal do lugar quando
está dando cria. Pode comprometer os filhotes.

— Oh! — Delilah ergueu-se depressa. Não arriscaria que sua cadelinha


perdesse seus filhotes.

Lydia assentiu. Também ouvira o mesmo, portanto não havia retirado a


cachorrinha do lugar onde estava. Ela havia ouvido seus lamentos enquanto
arrumava as gavetas de sua senhora e ao abrir a porta de ligação dos quartos
descobrira Estrela já se preparando para parir. Como a pobrezinha
conseguira subir a escada com aquele peso todo que carregava na barriga
consistia um mistério.

— E o que fazemos agora?

— A natureza se encarregará, senhora.

— Bem, acho que ficarei com Estrela nesse momento difícil.

— Também ficarei! — Margret balançou a cabeça com veemência.

— Será que um parto canino demora muito?

— Esperemos que não.

***

Quando os homens retornaram foram procurar suas esposas. Elas estavam


ainda no quarto de Zamir.

— Mas tinha que ser no meu quarto? — indagou Zamir, quando percebeu o
que estava acontecendo. Então arregalou ainda mais os olhos quando sua
atenção se deteve sobre o que era o leito de Estrela e seus filhotes

— E tinha que ser o meu casaco?

Arun soltou uma risada alta.

— Não vejo a graça, Arun.

— Estrela deve gostar muito de você, portanto escolheu aconchegar-se


aonde poderia pressentir sua presença e seu cheiro.

— Continuo sem achar engraçado. — Zamir fez cara feia, mas

agachou-se diante do guarda-roupa, apreciando os filhotes de cores


diferentes, em volta da mãe.

— Não são umas belezinhas?


Zamir sorriu quando a esposa abaixou-se ao seu lado, observando também a
ninhada.

— São, sim.

— Quem diria que uma coisinha pequena como Estrela poderia ter tantos
filhotes?

Zamir franziu as sobrancelhas, só então reparando no número de filhotes.


Contou-os.

— Oito? — Ele quase engasgou.

— Sim, mas ficaremos apenas com sete. Margret pediu um.

— Ficaremos com sete??

— Zamir, sei que combinamos que seriam 4 animais ao todo, mas...

— Serão oito animais ao todo dentro de casa!

— Zamir sabe contar! — Arun tripudiou do irmão, divertindo-se com a


situação.

Margret pegou o braço do marido, sorrindo.

— Vamos, meu esposo, deixemos Zamir conversar com Delilah.

O outro casal saiu do quarto, mas Delilah e Zamir mal perceberam.

Olhando um para o outro, começaram a perceber como sua proximidade era


agradável após dias de afastamento, e quanto a intimidade do momento os
unira outra vez.

— Eles podem ficar, Delilah. Faço tudo pela a esposa que amo.

Delilah piscou.

— O que você disse?


— Que todos os cães podem ficar.

Ele ergueu-se, e Delilah o imitou.

— Sim, mas depois você disse...

— Que faço tudo pela esposa que amo. Eu te amo, Delilah. — Ele sorriu. —
Não era assim que eu planejava me declarar a você.

Delilah lançou-se a seus braços, apertando-o com força.

— Repita!

— Certo. Eu amo você. Eu amo você. Eu amo você.

— E eu amo você!

O sorriso dele se ampliou.

— Mostre-me.

E ela o beijou com todo o amor que sentia. E foi um longo beijo...

Faz da tua conduta, a tua religião.

Provérbio hindu.

Capítulo 13

A inauguração da loja foi um sucesso. Delilah circulou entre os clientes e


parceiros comerciais de Zamir com desenvoltura, usando um traje
confeccionado com a melhor seda que a Maddala fornecia. Muitas mulheres
a admiraram naquela roupa, e encantaram-se também com as joias que
exibia.

Brincando com os adereços que tinha à disposição, a esposa de Zamir


Maddala usou produtos indianos para enfeitar-se, garantindo desse modo que
todos vissem que podiam ser usados combinando com mesmo com o estilo
inglês.
Em contraponto ao vestido à moda inglesa, Zamir vestiu-se como um
verdadeiro indiano, usando um traje que ostentava a pompa de um homem
rico e muito bem-sucedido. Estava magnífico!

Para a abertura da loja, inovando e fazendo daquele dia inesquecível,


fizeram circular, entre taças de champanhe, diversos pratos da culinária
indiana, servidos por criados uniformizados. A mistura encantou os
compradores, e alavancou a loja a um dos locais da moda, procurado por
pessoas de posse, interessadas em produtos de qualidade e atendimento
diferenciado.

Assim que entraram em casa, após a inauguração, Zamir abraçou a esposa:

— Não tenho palavras para agradecer-lhe, preciosa. — A ideia de servir


pratos indianos havia sido de Delilah.

— Pensarei em alguma coisa. — Delilah provocou, alegre pelo simples fato


de ver a felicidade estampada no rosto do marido.

Ele riu e baixou seu rosto para que suas bocas se encontrassem.

Depois murmurou:

— Sem você nada seria possível. Nem minha existência.

— Oh, Zamir...

— É verdade. Antes eu vivia apenas para meu trabalho, e agora eu sei que
existe muito mais. Eu quero tudo o que você puder me dar, eu quero tudo
junto com você.

— Tenha certeza que tudo o que mais quero no mundo é compartilhar minha
vida com você.

Ele libertou-a de seu abraço e fitou, divertido, as pinturas em mehndi¹

nas mãos dela, feitas exclusivamente para a inauguração.


— Margret viveu tanto tempo na Índia que aprendeu a arte da tatuagem
feminina tanto quanto uma indiana!

— Ficaram lindas, não é? Ela me disse que saem com o tempo. —

Olhou para o esposo com certo receio. — Elas saem, correto?

— Sim, elas saem. — Zamir deu uma risada.

— Margret ama a Índia, e me contou muitas coisas sobre lá. Uma coisa
interessante que ela me disse é que é habitual pintarem a noiva
especialmente para seu casamento e colocar uma pintura numa parte do
corpo dela onde só o noivo pode ver...

— Hum... Não me diga que oculta em você está uma tatuagem só para meus
olhos.

— Bem... Digamos que há um "Z" perdido em algum lugar por aí...

— Ah, minha preciosidade... Sabia que minha brincadeira favorita

sempre foi a "Caça ao tesouro"?

Levando a esposa pela mão Zamir subiu as escadas, disposto a brincar com
Delilah em seu quarto, até que a exaustão os fizesse adormecer nos braços
um do outro.

***

Três anos depois

Delilah circulou pela casa onde vivera nos últimos anos, procurando
apreender na memória seus pontos principais. Ela não voltaria para lá. A
construção em breve seria alugada para outra pessoa, já que Arun e Margret
tinham montado sua própria residência, há apenas alguns metros daquela,
levando vários dos criados que antes serviam a Zamir, inclusive a querida
Lydia.
Delilah passou os dedos por uma das paredes. Naquele local havia sido
muito feliz.

Por aqueles corredores Estrela, que havia se tornado uma estrelinha no céu
na primavera anterior, corria para fazer-lhe festa quando chegava da rua,
acompanhada por seus filhotes, que cresceram muito mais que o esperado
por todos.

Ela sorriu ao recordar-se de Zamir sendo derrubado por eles uma vez, e suas
gargalhadas diante da enxurrada de lambidas alegres que recebera.

Os animais ficariam todos com Arun, que era proprietário também de uma
casa de campo, e ficou satisfeito de levar os cachorros para um lugar onde
poderiam usufruir de bastante liberdade ao ar livre.

E também Arun se tornaria responsável por dirigir a bem-sucedida

loja Maddala da Bond Street. Se um dia Zamir assim desejasse, ele


devolveria à direção às mãos do irmão mais velho.

Ali, naquelas salas, ela e o marido receberam vários amigos que surgiram ao
longo do tempo, e foi na sala de estar da frente que comemorou com alegria
o noivado da velha amiga Dayse, agora casada, vivendo bem ao lado do
marido.

Sob aquele teto descobriu o amor pelo esposo, conheceu o verdadeiro


significado de doar-se a quem se ama, e percebeu que para amar alguém
deveria amar-se também.

No quarto que dividia com o marido, depois que o quarto dele foi
definitivamente desativado e transformado num quarto de banhos, fortificara
seu casamento e gerara seu primeiro herdeiro.

Cyril havia nascido à noite, após algumas horas de esforço que valeram
muito a pena. Seu menino tinha os olhos e os cabelos de Zamir, era amoroso,
sorridente, e enchia seus pais de orgulho. Com o terço de Sarah preso em
suas mãos, ela agradeceu mais uma vez a maravilhosa dádiva recebida.
Por causa de Cyril haviam acabado por ficar em Londres mais tempo que o
previsto, mas agora era hora de retornar à Índia e só depois de algum tempo
pensariam quais novos rumos tomar, e quais locais iriam desbravar, juntos,
evidentemente.

O lugar não era tão importante quanto a companhia, e, portanto não havia
muito pesar em seu coração quando deu a mão ao filho, e o braço ao marido,
e deixou Londres para trás.

***

Calcutá era toda cor, luz e som.

Uma profusão de aromas chegou-lhe as narinas, intensificando a surpresa


com a qual se deparava. Especiarias, perfumes, suor, alguma coisa no
próprio ar... Até o cheiro que a poeira exalava divergia do que lhe era
familiar. De muito longe se ouviam cânticos, convites a adorações religiosas
das práticas locais, atraentes como a flauta que fazia uma cobra erguer-se do
cesto diante de um nativo magro, de roupas claras e amarfanhadas,
arrebanhando moedas de curiosos passantes. O conjunto entontecia,
inebriava e fazia sentir a vida pulsando com mais força e rapidez pelas veias.

Delilah piscou, e deu uma volta, impressionada demais com tudo o que via,
aturdida e deslumbrada com toda a diferença que aquele lugar apresentava,
num contraste absurdo com Londres e sua austeridade acinzentada.

Próximo a eles os mercadores apregoavam seus produtos, pessoas passavam


aceleradas de um lado para outro, numa confusão encantadora de trajes e
estilos, da pompa das damas inglesas e portuguesas até os trajes exóticos das
indianas, das faces pálidas até as bronzeadas, muitas delas ocultas sob um
véu, deixando à mostra olhos escuros, pintados de preto, com testas ornadas
com pequeninas pedras ou apenas um risco de tinta colorida.

Entre os homens as diferenças nas vestimentas eram ainda mais gritantes.

Enquanto muitos usavam os tradicionais paletós e calças justas, boa parte da


população masculina desfilava dhotis e kurtas bordadas, turbantes e cartolas
misturavam-se na mesma profusão, o mesmo se dando com botas elegantes e
chinelos rasteiros.
Delilah sorriu, estava absolutamente encantada.

Permitindo que Delilah se encantasse um pouco mais com a visão que se


abria como um leque mágico, Zamir esperou sua bagagem ser

descarregada pelos marinheiros através da prancha ladeada de cordas. Fez


sinal para um dos muitos homens que trabalhavam como carregadores na
área portuária, e por fim ofereceu o braço livre à esposa. No outro carregava
o filho, que observava a tudo com o mesmo olhar surpreso da mãe.

— Hora de irmos para casa, senhora Maddala.

Assim seguiram até onde estavam as carruagens de aluguel e os jinriquixás².

***

Enquanto seguiam pelas ruas, observando através da janela da carruagem os


belos templos, altos minaretes, e as suntuosas residências semelhantes a
palacetes, com decoração de estátuas de arenito, Delilah perguntava-se se
conseguiria reconhecer sua casa através da descrição que Zamir lhe dera,
mais de uma vez.

E quando o veículo que os transportava parou, ela reconheceu


imediatamente seu novo lar.

O casarão que se erguia de forma grandiosa e elegante tinha dois andares,


telhado íngreme para resistir à estação das monções, janelas em arco com
ranhuras entalhadas e telas com placas de madeira e mármore perfuradas
para permitir a circulação de ar e ao mesmo tempo conter a invasão
excessiva do Sol, além de resguardar o interior dos olhares indiscretos. Em
ambos os lados da casa havia varandas.

O amor por aquela construção harmoniosa e encantadora foi imediato.

— Espero que tenham doce de carambola pronto — Zamir comentou,


atraindo a atenção de Delilah e do filho deles. Ambos eram loucos por
doces.

O menino remexeu-se em seus braços, e o pai o colocou no chão, vendo-o


subir os degraus de mármore e avançar até o pórtico em arco, com detalhes
de arenito vermelho em entalhes simples e discretos.

Oferecendo a mão à sua esposa, Zamir mais uma vez entrelaçou seus dedos.

— Quero propor-lhe um acordo...

Dando uma risada satisfeita, Delilah acompanhou o marido na nova jornada


que ele propunha.

¹ mehndi é a tintura conhecida por nós como henna. Não é definitiva, e sai
em aproximadamente dez dias, ou mais rápido, dependendo também do
contato com a água. É

usada principalmente em festas e casamentos, mas as mulheres indianas


também usam em seu dia-a-dia.

²Jinriquixá é um veículo de duas rodas, que pode carregar uma ou duas


pessoas, e é puxado por um homem.

Epílogo

Querida irmã:

Dessa vez escrevo cartas iguais tanto para você como para Barbarah.

É que o amor que sinto pelas duas é igual, e o desejo de lhes dar a mesma
notícia, ao mesmo tempo, também.

Estou esperando mais um filho, e esse nascerá aqui na Índia.

Enquanto percebo meu ventre crescendo, me aperta a saudade de vocês,


fazendo-me viajar pelo passado, quando estávamos juntas, e dividíamos
sonhos e também tristezas, nos consolando uma às outras, fazendo nossa
existência mais fácil, e fortalecendo a semente de esperança que
carregávamos no peito. Gostaria que vissem como estou, e gostaria, claro,
de vê-las também. Me agradaria ter a mão de vocês sobre minha barriga, e
ver sua reação ante as estripulias de seu sobrinho Cyril.
Mas compreendo que cada coisa tem seu tempo, e que a distância entre nós
é aplacada através das cartas que trocamos. Desde que conseguimos voltar
a nos comunicar, tudo ficou mais fácil para mim.

Gostaria de frisar também que diante dessa nova gravidez qualquer plano
de viagem para breve está descartada, e ficaremos por aqui ainda um bom
tempo. Posso, portanto, sonhar com sua visita.

Seria possível?

A mim agradaria muito receber você, Sarah, em meu lar, junto com seu
marido. Evidentemente, se as cartas que escrevi são iguais, estendi meu
convite também à Barbarah e o esposo.

Venham conhecer meu pequeno paraíso, e meu príncipe encantado.

Ele não segue os padrões aos quais estamos habituadas, mas garanto-lhe
que Zamir tem mais nobreza do que se ostentasse uma coroa.

E sinto-me uma princesa ao seu lado.

Mas eu já lhes disse isso antes, e não quero repetir-me.

Assim me despeço, desejando que Deus as abençoe enormemente.

Aguardo notícias. E como já disse antes:

Eu as amo, e sempre amarei, mesmo que a distância nos separe.

Sempre com saudades, Delilah.

Fim

Os outros dois volumes da trilogia As Irmãs Winter, do selo Damas dos


Romances, são:

O destino de Sarah: Sarah Winter sempre quis ser freira. Depois de ver a
mãe apaixonada sofrer na mão do pai indiferente, ela decidiu que jamais
seria esposa de alguém.
Cega em seu objetivo, ela nunca desejou um casamento, mesmo quando seu
coração encontrou o amor. O americano Hayden Hard Castle vai à Inglaterra
para tratar de negócios, quando tem a vida salva pela jovem Sarah por quem
ele se sente imensamente atraído. Quando John Winter decide leiloar as
filhas, tudo pode mudar na vida de Sarah e Hayden e a paixão que se revelou
como uma brisa fresca pode se tornar um amor em meio a mais fria das
tempestades.

A aventura de Barbarah: Barbarah é a caçula das três irmãs Winter e a que


o pai esperava casar com mais facilidade por ser a mais graciosa delas, não
fosse o fato de se esconder atrás das grossas lentes de seus óculos. Cresceu
protegida pelas mais velhas e assim se tornou um espírito vivaz e curioso,
cuja inteligência a coloca em situações inusitadas. Não esperava ser dada em
casamento a um nobre da Cornualha e viaja para lá com o coração cheio de
dúvidas.

George Hosken, o misterioso Conde de Carrick, precisa se casar o mais


rápido possível para garantir o nascimento do varão capaz de herdar o título
e a propriedade e assim evitar que seu primo e desafeto seja o próximo
Conde. Porém, ele não quer qualquer envolvimento sentimental com a
esposa, o que o fez comprar uma. Amargurado e envolto em um grande
segredo de seu passado, não contava ter que lidar com o espírito aventureiro
de Barbarah, que não mede esforços para desvendar os mistérios que rondam
a propriedade e o passado do Conde.
Conheça também a trilogia inaugural do projeto Damas do Romance: Os
Irmãos Gallagher
Burke Gallagher é um irlandês que partiu rumo aos Estados Unidos com
apenas dez dólares no bolso e se tornou o dono da maior cervejaria do país, a
Cervejaria Gallagher, ficando conhecido no mundo todo pelo excelente
produto e por sua perspicácia nos negócios.

Preocupado com o futuro de seus três filhos, decide dar um basta nas suas
vidas boas e lhes dá uma ordem: cada um teria que partir para o Oeste com
apenas dez dólares no bolso e quem conseguisse ser mais bem-sucedido, no
prazo de um ano, ficaria com a fábrica de cerveja. Os irmãos então partem
dispostos a vencer o desafio e viverem suas próprias aventuras.

Silvana Barbosa também é autora das séries

Libertinos e Cavaleiros das Terras Altas, da coleção

Sonhando com Romances, e dos livros Uma noite não é o

bastante e Olhos de mel, lábios de fogo.

Encontre a autora nas Redes Sociais:


Document Outline
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Epílogo

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