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186 0 MA RY E .

B RADDO N

O Abraço
Gélido T RA D UÇÃO DE
CAMILA
FERNANDES

1
DAS

BY E D ITO R A WIS H

Tradução:
Camila Fernandes

Preparação:
Karine Ribeiro
Revisão:
João Rodrigues
Capa e projeto gráfico:
Marina Avila

Ilustração de capa:
Cecília Reis

2022 ISBN
Copyright 2022 Editora Wish. Este material possui direitos
de tradução e publicação e, ao não divulgá-lo sem prévia
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UMA RELÍQUIA DE

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Sinopse
Um anel com uma serpente de
ouro, um abraço gélido e um
retorno macabro

Um jovem artista secretamente


pede a mão de Gertrude em
casamento e parte para a Itália.
No entanto, ele não está disposto
a honrar com seu compromisso
e terá que lidar com as
consequências.

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O Abraço Gélido é uma história
que desafia os estereótipos de
gênero da época ao trazer, ao
mesmo tempo, uma mocinha
apaixonada e inocente e uma vilã
implacável.

Escrito por Mary Elizabeth


Braddon, rainha do romance
de sensação e uma das maiores
autoras do período vitoriano,
O Abraço Gélido chega com
exclusividade na Sociedade das
Relíquias Literárias.

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O Abraço
Gélido
Mary E. Braddon, 1860

E
le era artista — o que
lhe aconteceu, às vezes,
acontece com artistas.
Era alemão — o que lhe aconte-
ceu, às vezes, acontece com alemães.
Era jovem, bonito, estudioso, en-
tusiasmado, metafísico, imprudente,
incrédulo e desalmado.
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E, sendo jovem, bonito e elo-
quente, foi amado.
Era órfão, vivendo sob a tutela
do irmão de seu falecido pai, o tio
Wilhelm, em cuja casa fora criado
desde a primeira infância, e aquela
que o amou foi sua prima — a prima
Gertrude, a quem jurou amar tam-
bém.
E amou-a de fato? Quando ju-
rou amá-la, sim. Logo desgastou-se,
porém, esse amor apaixonado; que
sentimento mais puído e infeliz tor-
nou-se, por fim, no coração egoísta
do estudante! Mas, em seu alvorecer
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dourado, quando ele tinha apenas
dezenove anos e acabara de voltar
de seu período como aprendiz de um
grande pintor em Antuérpia, e os dois
perambulavam juntos nas cercanias
mais românticas da cidade ao pôr
do sol rosado, sob o luar santo ou na
manhã luminosa e alegre, que sonho
lindo era!
Guardam segredo, pois Wilhelm
tem a ambição paterna de encontrar
um pretendente rico para sua única
filha — uma visão fria e lúgubre,
comparada ao sonho do namorado.
Assim, ficam noivos; e lado a lado,
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quando o sol moribundo e a pálida
lua crescente dividem os céus, ele põe
o anel de noivado no dedo da moça,
o dedo branco e afilado cuja forma
esbelta conhece tão bem. Esse anel
é peculiar: uma enorme serpente de
ouro com a cauda na boca, o símbolo
da eternidade; pertenceu à mãe dele,
e ele o reconheceria entre outros mil.
Se amanhã perdesse a visão, seria
capaz de encontrá-lo entre mil anéis
apenas pelo tato.
Assim, ele o põe no dedo dela, e
os dois juram ser fiéis um ao outro
para todo o sempre — na aflição e no
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perigo, na tristeza e na mudança, na
riqueza ou na pobreza. Depois, será
preciso convencer o pai dela a apro-
var a união, pois agora estão noivos,
e somente a morte poderá separá-los.
Mas o jovem estudante, que escar-
nece da revelação mas adora o mís-
tico com entusiasmo, pergunta:
— Será que a morte pode nos se-
parar? Eu voltaria dos mortos por
você, Gertrude. Minha alma regres-
saria para ficar junto do meu amor.
E você… Você, se morresse antes de
mim… a terra fria não poderia afas-
tar-nos. Se você me amasse, voltaria,
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e esses belos braços voltariam a se
fechar em torno do meu pescoço, tal
como agora.
Mas ela, com uma luz nos olhos
azul-escuros mais santa do que ja-
mais havia brilhado nos olhos dele,
disse que os mortos que morrem em
paz com Deus são felizes no céu e não
podem voltar à terra conturbada, e
que é somente dos suicidas — os po-
bres perdidos a quem os anjos dolen-
tes fecham as portas do Paraíso — o
espírito profano que assombra o ca-
minhar dos vivos.
Passou-se o primeiro ano do
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noivado, e ela está sozinha, pois ele
foi para a Itália, contratado por um
homem rico para copiar pinturas de
Rafael, Ticiano e Guido numa galeria
em Florença. Talvez tenha partido à
procura da fama, mas o fato ainda é
amargo: ele partiu!
É claro que o pai dela tem saudades
do jovem sobrinho, que é como um
filho para ele; assim, acha que a
tristeza da filha é apenas a que a
prima deve sentir pela ausência do
primo.
Nesse ínterim, as semanas e os
meses se passam. O namorado manda
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cartas — muitas no começo, depois
raras e, por fim, nenhuma.

Quantos pretextos ela inventa


para ele! Quantas vezes vai até o pe-
queno e distante correio ao qual ele
deveria enviar as cartas! Quantas
vezes tem esperança, apenas para se
decepcionar! Quantas vezes se deses-
pera, apenas para voltar a ter espe-
rança!

Mas então o verdadeiro desespero


chega e não poderá mais ser adiado.
O pretendente rico entra em cena e
o pai de Gertrude decide: ela deve se
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casar o quanto antes. Determina-se o
dia do casamento — 15 de junho.
A data parece gravar-se a fogo na
mente da jovem.
Ardendo em chamas, dança para
sempre diante de seus olhos.
Gritada pelas Fúrias, soa em seus
ouvidos sem jamais cessar.
Mas ainda há tempo — são meados
de maio —, há tempo para uma carta
alcançá-lo em Florença; há tempo
para ele vir a Brunsvique, levá-la em-
bora e se casar com ela, a despeito de
seu pai — a despeito do mundo in-
teiro.
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Mas os dias e as semanas voam,
e ele não responde à carta; não apa-
rece. É desespero, de fato, o que toma
posse do coração dela, e é impossível
ignorá-lo.
É o dia 14 de junho. Pela última
vez, ela vai até o pequeno correio; pela
última vez, faz a mesma pergunta
e, pela última vez, ouve a triste res-
posta:
— Não, não chegou nenhuma
carta.
Pela última vez, pois amanhã é o
dia de suas núpcias. O pai não aceita
as súplicas; o rico pretendente não
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ouve as preces dela. Não aceitam
adiar a data nem um dia — nem uma
hora. Só resta a ela uma noite — só
esta noite, que pode empregar como
quiser.
Ela toma um caminho que não
leva para casa, correndo por vielas da
cidade até uma ponte isolada, onde
ele e ela ficaram tantas vezes ao pôr
do sol, vendo a luz rosada cintilar,
esmaecer e morrer nas águas do rio.
Ele volta de Florença. Recebeu a
carta dela. Aquela carta, manchada
de lágrimas, suplicante, desesperada
— ele a recebeu, mas já não a amava.
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Uma jovem florentina, que havia po-
sado para ele como modelo, cativou
seus caprichos — os caprichos que
nele ocupam o lugar do coração — e
Gertrude quase foi esquecida. Se ti-
nha um pretendente rico, ótimo; pois
que se casasse. Era melhor para ela e
muito melhor para ele. Ele não queria
se prender a uma esposa. Não teria
sempre sua arte, sua noiva eterna,
sua amada imutável?

Assim, considerou mais sensato


adiar a viagem para Brunsvique, de
modo a chegar quando o casamento
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estivesse concluído — a tempo de
saudar a recém-casada.
E as juras, as fantasias místicas,
a crença no retorno dele, até mesmo
após a morte, ao abraço de sua amada?
Ah, já não fazem parte de sua vida;
esvaíram-se para sempre aqueles so-
nhos tolos de sua meninice.
Então, no dia 15 de junho, ele en-
tra em Brunsvique pela mesma ponte
em que ela esteve na noite anterior,
sob as estrelas. Cruza a ponte e desce
até a margem do rio. Um cão grande
e felpudo o acompanha e a fumaça
de seu cachimbo curto de sepiolita
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se enrola em fantásticas guirlandas
azuis no ar puro da manhã. O jovem
carrega seu caderno de esboços de-
baixo do braço, e, atraído de vez em
quando por algum objeto que provoca
seus olhos de artista, para e começa a
desenhar: algumas plantas e pedras
à beira do rio, um penhasco na outra
margem, um grupo de salgueiros po-
dados ao longe. Ao terminar, admira
o desenho, fecha o caderno, esvazia
as cinzas do cachimbo, recarrega-o
com sua bolsa de tabaco, canta o re-
frão alegre de uma canção báquica,
chama o cachorro, fuma outra vez e
segue em frente.
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De repente, volta a abrir o caderno;
desta vez, o que o atrai é um grupo
de pessoas, mas do que se trata? Não
é um enterro, pois ninguém está de
luto.
Não é um enterro, mas há um ca-
dáver deitado numa carreta fúnebre
rústica, coberto com a lona de uma
vela velha, levado por dois carrega-
dores.
Não é um enterro, pois os carrega-
dores são pescadores — com os trajes
que usam todos os dias.
A cerca de cem metros dele, os ho-
mens pousam o fardo num declive;
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um deles fica de pé à frente da car-
reta, o outro senta-se no chão atrás
dela, e assim formam uma composi-
ção perfeita.
Ele recua dois ou três passos, es-
colhe o ponto de vista e começa a es-
boçar contornos apressados. Antes
que os carregadores se mexam, já
terminou; ouve a voz deles, embora
não possa distinguir as palavras, e
tenta imaginar do que podem estar
falando. Em seguida, vai ao encontro
deles.
— Estão com um cadáver aí, ami-
gos? — pergunta.
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— Sim, um cadáver que a água
trouxe à terra uma hora atrás.
— Afogamento?
— Sim, afogamento. Uma jovem
muito bonita.
— Os suicidas são sempre bonitos
— diz o pintor.
Fica ali por um tempo, à toa, fu-
mando e meditando, a olhar para o
contorno marcante do cadáver e para
as dobras rígidas do áspero tecido.
Para ele — jovem, ambicioso e inteli-
gente — a vida é um feriado de sol; é
como se o sofrimento e a morte não
pudessem fazer parte de seu destino.
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Por fim, ele diz que, já que essa po-
bre suicida é tão bonita, gostaria de
esboçar um retrato dela.
Dá algum dinheiro aos pescado-
res, e estes se oferecem para remover
a lona que cobre as feições dela. Não;
ele mesmo fará isso.
Assim, levanta o tecido áspero,
grosso e molhada do rosto dela. Que
rosto?
O rosto que brilhou nos sonhos de
sua tola meninice, que já foi a luz da
casa de seu tio. Sua prima Gertrude
— sua prometida!
Arfando, vê de uma só vez as
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feições rígidas, os braços de már-
more, as mãos cruzadas no colo frio e,
no terceiro dedo da mão esquerda, o
anel que foi de sua mãe — a serpente
de ouro; o anel que, se ele perdesse a
visão, conseguiria encontrar entre
outros mil apenas pelo tato.
Mas ele é gênio e metafísico; a tris-
teza, a verdadeira tristeza, não é para
alguém tal como ele. Seu primeiro im-
pulso é fugir, ir para qualquer lugar
fora daquela maldita cidade, longe da
margem daquele rio horrendo, longe
do remorso — qualquer lugar onde
possa esquecer.
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Já percorreu quilômetros da es-
trada que sai de Brunsvique antes
mesmo de perceber que deu um passo.
É somente quando o cão se deita
a seus pés, ofegando, que ele entende
o quanto também está exausto, e
senta-se num declive para descan-
sar. Como a paisagem gira diante de
seus olhos turvos, enquanto o esboço
que fez pela manhã dos pescadores e
da carreta coberta com lona fulgura
vermelho no crepúsculo, sem cessar!
Por fim, depois de passar muito
tempo sentado à beira da estrada, en-
tregue à indolência, brincando com
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o cão, fumando, descansando, como
qualquer estudante jovial e indolente
poderia fazer — mas repassando o
tempo todo em sua mente febril, cem
vezes por minuto, a cena daquela
manhã —, ele se recompõe um tanto
e procura pensar em si mesmo da
maneira como é, à parte o suicídio da
prima.

Hoje, a não ser por esse


acontecimento, não está em situação
pior do que ontem. Sua genialidade
persiste; o dinheiro que ganhou em
Florença ainda recheia a carteira em
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seu bolso; é senhor de si, livre para ir
aonde quiser.

E, enquanto está assim, à beira da


estrada, tentando se apartar da cena
daquela manhã, afugentar a imagem
do cadáver coberto com a lona úmida,
pensar no que fazer a seguir e para
onde deve ir de modo a ficar o mais
longe possível de Brunsvique e do re-
morso, a velha diligência chega pela
estrada, estrondeando e retinindo.
Ele se lembra dela; vai de Brunsvique
a Aix-la-Chapelle.

O jovem assobia para o cachorro,


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grita ao cocheiro que pare e entra na
carruagem.
Durante toda a noite, a longa
noite, embora não feche os olhos
nem uma única vez, ele não diz uma
única palavra; mas, quando o dia
amanhece, e os outros passageiros
acordam e começam a conversar, ele
se junta à conversa. Conta a eles que
é artista, que está indo para Colônia
e Antuérpia para copiar quadros de
Rubens e o grande painel de Quentin
Matsys, no museu. Lembra-se depois
de ter falado e gargalhado escan-
dalosamente, e que, quando estava
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falando e rindo mais alto, um passa-
geiro, mais velho e mais sério do que
os outros, abriu a janela ao lado dele
e mandou que pusesse a cabeça para
fora. Lembra-se do ar fresco soprando
em seu rosto, do canto dos pássaros
em seus ouvidos, dos campos planos
e da beira da estrada passando diante
de seus olhos. Lembra-se disso e de,
em seguida, cair como que sem vida
no piso da diligência.
É uma febre que o mantém por
seis longas semanas na cama de um
hotel em Aix-la-Chapelle.
Ele se sente melhor e, acompanhado
31
de seu cachorro, segue a pé para
Colônia. A essa altura, já se recom-
pôs por completo. Mais uma vez, a
fumaça azul do cachimbo sobe pelo
ar da manhã; mais uma vez, ele canta
uma velha canção báquica da univer-
sidade; mais uma vez, para aqui e ali,
meditando e esboçando.
Está feliz e esqueceu a prima — e
é assim que chega a Colônia.
É diante da grande catedral que
ele se põe, com o cão ao seu lado.
Anoitece, os sinos acabam de anun-
ciar as horas e os relógios marcam
as onze; a lua brilha cheia acima do
32
magnífico edifício, sobre o qual va-
gueia o olhar do artista, absorto na
beleza das formas.
Ele não está pensando na prima
afogada, pois a esqueceu e está feliz.
De repente, alguém, algo por de-
trás dele, põe dois braços frios em
volta de seu pescoço e fecha as mãos
em seu peito.
No entanto, não há ninguém atrás
dele, pois nas pedras banhadas pelo
vasto luar veem-se apenas duas som-
bras, a dele e a de seu cachorro. Ele se
vira rapidamente; não há ninguém
nem nada para ver na praça ampla
33
a não ser ele mesmo e o cão. Embora
sinta, não consegue ver os braços
frios presos em volta de seu pescoço.
Não é fantasmagórico, esse abraço,
pois é palpável ao toque — mas não
pode ser real, pois é invisível.
Ele tenta se desvencilhar da carí-
cia fria, agarrando aquelas mãos para
separá-las e arrancá-las de seu pes-
coço. Ao tocar os dedos longos e deli-
cados, sente-os frios e molhados, e no
terceiro dedo da mão esquerda tateia
o anel que foi de sua mãe — a ser-
pente de ouro, o anel que ele sempre
disse que reconheceria entre outros
34
mil somente pelo tato. Naquele mo-
mento o reconhece!
Os braços frios da prima morta
estão em volta de seu pescoço… As
mãos molhadas da prima morta es-
tão fechadas em seu peito. Ele ima-
gina se está louco.
— Vem, Leo! — grita. — Vem, ra-
paz!
E o cão terra-nova pula para os
ombros dele; as patas do animal to-
cam as mãos mortas, ele solta um
uivo apavorante e recua com um
salto, afastando-se do mestre.
O estudante fica parado ao luar, os
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braços mortos ao redor do pescoço e
o cão ganindo lastimoso à curta dis-
tância.
É quando um vigia, alarmado
com o uivo do cachorro, chega à praça
para ver o que está acontecendo.
Num instante, os braços frios de-
saparecem.
O jovem volta ao hotel com o vigia
e lhe oferece dinheiro; sua gratidão é
tanta que poderia dar a esse homem
metade de sua pequena fortuna.
Será que voltará a sentir aquele
abraço da morte?
Ele tenta nunca ficar sozinho;
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faz dezenas de amizades e divide o
quarto com outro estudante. Fica
assustado quando o deixam sozinho
na sala comum da estalagem em que
está hospedado e foge para a rua. As
pessoas notam suas atitudes estra-
nhas e começam a achar que ele en-
louqueceu.
Mas, apesar de tudo, ele se vê so-
zinho outra vez. Uma noite, a sala
comum fica vazia por um momento;
e quando, por um pretexto qualquer,
ele vai para a rua, esta também está
vazia, e pela segunda vez ele sente
os braços frios em volta do pescoço,
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e pela segunda vez, quando chama
pelo cachorro, o animal se afasta com
um uivo lastimoso.
Depois disso, ele deixa Colônia,
ainda viajando a pé — agora, por ne-
cessidade, pois o dinheiro está aca-
bando. Junta-se a caixeiros-viajantes,
caminha lado a lado com operários,
fala com cada pedestre que encon-
tra e tenta, de manhã até a noite, ter
companhia na estrada.
À noite, dorme junto ao fogo na
cozinha da estalagem onde para;
mas não importa o que faça, fica
sozinho com frequência, e agora é um
38
acontecimento corriqueiro sentir os
braços frios ao redor do pescoço.

Muitos meses se passaram desde


a morte da prima — outono, inverno,
começo da primavera. Seu dinheiro
está quase esgotado, sua saúde está
totalmente arruinada, ele é uma
sombra de quem foi e está se aproxi-
mando de Paris. Chegará à cidade na
época do Carnaval. Por isso ele anseia.
Em Paris, no Carnaval, não precisará
ficar sozinho, não sentirá aquela ca-
rícia mortal; pode até recuperar a
alegria e a saúde perdidas, retomar
39
sua profissão, voltar a ganhar fama
e dinheiro com sua arte.
Como ele se esforça para vencer a
distância que o separa de Paris, en-
quanto, dia após dia, fica mais fraco
e seu passo, mais lento e pesado!
Mas, finalmente, chega ao termo;
as estradas longas e sombrias acaba-
ram. Aqui é Paris, onde ele entra pela
primeira vez — a Paris com que tanto
sonhou, a cidade cujos milhares de
vozes hão de exorcizar seu fantasma.
Para ele, esta noite, Paris é um
vasto caos de luzes, música e confu-
são — luzes que dançam diante de
40
seus olhos e nunca se detêm, música
que retumba em seus ouvidos e o en-
surdece, confusão que faz sua cabeça
girar sem parar.
Mas, apesar de tudo, ele encontra
a ópera da cidade, onde há um baile
de máscaras. Tem dinheiro suficiente
para comprar um ingresso e alugar
um dominó, a fantasia de carnaval
composta por uma túnica longa com
capuz e mangas, para cobrir seu traje
gasto. Parece ter-se passado apenas
um momento desde que entrou pelos
portões de Paris e já está no meio do
júbilo desvairado do baile da ópera.
41
Não há mais escuridão, não há
mais solidão, mas uma multidão en-
sandecida, gritando e dançando, e
ele vai de braço dado com uma linda
jovem de camisa e calças justas
A alegria ruidosa que sente com
certeza é sua antiga jovialidade recu-
perada. Ouve as pessoas ao seu redor
falando do comportamento ultra-
jante de algum estudante bêbado, e
é para ele que apontam ao dizer isso;
para ele, que não levou nem uma gota
de bebida aos lábios desde o dia ante-
rior ao meio-dia, pois mesmo agora
não quer beber; embora seus lábios
42
estejam ressecados e a garganta arda,
não consegue beber.
Sua voz está rouca e embargada;
sua pronúncia, indistinta. Ainda
assim, deve ser a antiga jovialidade
recuperada que o deixa tão desvaira-
damente alegre.
A pequena Débardeuse está exau-
rida — seu braço está apoiado no om-
bro dele, mais pesado que chumbo —,
e os outros dançarinos, um por um,
se retiram.
As luzes nos candelabros, uma
por uma, se apagam.
A decoração pa rece pá lida e
43
sombria à luz fraca, que não é noite
nem dia.
Um vago vislumbre das lâmpadas
mortiças, um pálido facho de luz cin-
zenta e fria da manhã recém-nascida
se esgueira pelas janelas entreaber-
tas.
E, a essa luz, a Débardeuse de olhos
brilhantes esmorece tristemente. Ele
fita o rosto dela: como o brilho dos
olhos se esvai! Uma vez mais, fita o
rosto dela: como está pálida!
Mais uma vez — e agora é apenas
a sombra de um rosto que olha para
ele.
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Mais uma vez — e desapareceram
os olhos brilhantes, o rosto, a sombra
do rosto. Ele está sozinho; sozinho no
vasto salão.
Sozinho, e, no silêncio terrível,
ouve o eco dos próprios passos na
dança funesta que prossegue sem
música.
Não há música, só há as batidas de
seu coração, pois os braços frios estão
em volta de seu pescoço, fazendo-o
girar. É impossível afastá-los, não
há a possibilidade de livrar-se deles.
O jovem não pode escapar de suas
garras geladas, assim como não pode
45
escapar da morte. Ele olha para trás:
não há nada além dele no salão vazio,
mas consegue sentir — frios, como os
de um cadáver, porém, ah, tão palpá-
veis! — os dedos longos e delgados, e
o anel que foi de sua mãe.

Tenta gritar, mas a garganta dolo-


rida não tem voz. O silêncio do lugar
só é rompido pelo eco de seus passos
na dança da qual não consegue se
libertar.

Quem disse que não tem parceira?


As mãos frias estão fechadas em
seu peito, e agora ele não evita sua
46
carícia. Não! Mais uma polca, nem
que ele caia morto.
As luzes estão todas apagadas e,
meia hora depois, os gendarmes en-
tram com uma lamparina para ver
que a casa está vazia; são seguidos
por um grande cachorro que encon-
traram sentado uivando na entrada
do teatro. Poucos passos adentro, de-
param-se com um corpo — o cadáver
de um estudante, que morreu de ina-
nição, de exaustão e do rompimento
de um vaso sanguíneo.

TH E E N D

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E X TR A: BIOGR AFIA

Mary E. Braddon
Autora de um dos maiores best-sel-
lers do século XIX, Mary Elizabeth
Braddon v iveu a era v itor ia na
49
praticamente inteira e se tornou
um retrato da literatura da época.
Décadas depois de sua morte, ela con-
tinua uma referência, não apenas pe-
las histórias que escreveu, mas pelo
legado que deixou para os romancis-
tas que vieram em seguida.
Braddon nasceu na Londres de
1835, terceira filha de Henry Braddon,
um advogado de reputação questio-
nável, e de Fanny White, que seria
uma de suas maiores inf luências
femininas. Mãe e filha nutriram
uma relação muito próxima e Mary
Elizabeth Braddon credita grande
50
parte de sua formação à mãe. Foi
muito influenciada pelo trabalho de
grandes autores da literatura inglesa
como Shakespeare e Charles Dickens.
Nutrida por muitas influências lite-
rárias, Braddon começou a escrever
ficção com apenas 8 anos de idade,
mas foi no teatro, e não na literatura,
que sua carreira começou de fato.
Quando começou sua carreira
artística, encontrou espaço primeiro
nos palcos. Entretanto, a era vito-
riana, em meio às suas diversas con-
tradições, estigmatizava as mulheres
ligadas ao teatro e seu passado nos
51
palcos seria motivo de escrutínio ao
longo de sua vida.
Em 1857 começou a publicar seus
poemas e, em 1860 começou a publi-
car histórias seriadas na revista The
Welcome Guest, que pertencia a John
Maxwell, com quem viria a se casar
em 1874. Foi na publicação em série,
muito comum à época, que Braddon
publicou os primeiros capítulos de
Lady Audley's Secret, que faria de
Mary Elizabeth Braddon um fenô-
meno editorial e se transformaria
em uma das histórias mais vendidas
da era vitoriana. Foi Lady Audley's
52
Secret que marcou Braddon para
sempre como uma das rainhas do
romance de sensação.
Segundo Lyn Pykett, pesquisa-
dora e autora de livros sobre roman-
ces de sensação, "de muitas maneiras,
o romance de sensação era tanto um
fenômeno editorial quanto um gê-
nero ficcional. Estava associado a um
estilo de editor ousado e empreende-
dor que buscava novas maneiras de
maximizar a publicidade, os lucros
e o que hoje chamaríamos de 'pe-
netração no mercado'." O romance
de sensação foi um gênero também
53
bastante estigmatizado durante seu
auge editorial, sendo visto como por-
tador de histórias "menores" e "me-
nos sofisticadas".
O sucesso de Lady Audley's Secret
criou uma demanda que Braddon pre-
cisava suprir para se sustentar como
escritora. Além de escrever para o
público de classe baixa com as penny
bloods que escrevia de forma anônima,
também atendeu à demanda de um
público diferente, escrevendo contos.
Braddon se tornou conhecida também
por suas histórias com personagens
femininas complexas e por trazer
54
elementos de outros gêneros para o
romance de sensação, como aspectos
provincianos e elementos góticos. Em
suas histórias ela também desafiava
estereótipos de gênero e questionava
costumes vitorianos. Segundo Pykett
"a carreira de Braddon é, em muitos
aspectos, tanto um modelo do padrão
de carreira da escritora profissional
de sucesso em meados do século XIX
quanto um guia para as mudanças
nos gostos literários e as práticas de
publicação no período".
Ela também tornou-se editora de
uma revista literária, a Belgravia,
55
voltada para um público leitor de
classe média. Foi ali que ela continuou
publicando alguns de seus trabalhos
autorais, alguns até mesmo com
pseudônimos ou de forma anônima.
Mesmo trabalhando atendendo à de-
manda de seus editores, do mercado
e dos próprios leitores, Braddon foi
alvo de duras críticas por conta não
apenas pelo fato de ser mulher e pelo
principal gênero literário dentro do
qual escrevia, mas pela velocidade
e volume de sua produção em série.
Sua vida pessoal também foi alvo
de escrutínio por conta de possíveis
amantes e seu passado no teatro,
56
como mencionado anteriormente, e
sua relação com uma literatura con-
sumida pelas classes mais baixas.
Anos mais tarde, Braddon se tor-
naria uma referência entre críticas
feministas como um exemplo de es-
critora esquecida e/ou desvalorizada.
Recentemente ela vem sendo redes-
coberta por novas gerações de leitores
que encontram em suas histórias pa-
ralelos interessantes com o presente.
E, ainda segundo Lyn Pykett, "talvez
ainda mais importante, as releituras
da ficção de Braddon também figura-
ram com destaque nas tentativas de
57
repensar as relações entre a cultura po-
pular e a alta cultura e de redesenhar
o mapa do romance do século XIX".
Mary Elizabeth Braddon assistiu
ao fim da era vitoriana e morreu em
1915. Era uma artista extremamente
atenta ao mercado, com um olhar ím-
par para as demandas da época e foi
um exemplo de autora que sabia exa-
tamente o que estava fazendo e para
quem estava fazendo. O Abraço Frio
é uma pílula da grande autora que
Braddon foi e chega com exclusivi-
dade para os assinantes da Sociedade
das Relíquias Literárias.

58
Profissionais
que trabalharam
neste conto

Camila Fernandes
TR A DUÇÃO

Autora de Reino das Névoas e A noite não


me deixa dormir, é também tradutora,
preparadora e revisora de textos, tendo
trabalhado para editoras como Wish,
Arqueiro, DarkSide e LeYa. @milaf.autora

59
Karine Ribeiro
PRE PA R AÇÃO

Escritora premiada,
tradutora e revisora,
graduanda em Tradução
pela UFMG. @karineescreve

João Rodrigues
RE V ISÃO

Bacharel em Tradução
e especialista em
Produção e Revisão
Textual.
@jojsrodrigues

60
Cecília Reis
ILUSTR AÇÃO

Cecília Reis é pintora e


ilustradora com foco em
retratar a sensibilidade e
a força da alma feminina
e neuro atípica diante do
mundo hostil, com foco
em cor e espiritualidade.
Conheça mais em
ceciliareis.com.br

Marina Avila
PROJE TO G R Á FICO

Produtora editorial e
fundadora da Wish. Mãe
de gatos e de livros.
@casatipografica
e @marinalivros
Valquíria Vlad
COMUNICAÇÃO E
COMUNIDA DE

Escritora, pesquisadora
e publicitária formada
pela Universidade
Federal do Ceará (UFC).
@valquiriavlad

Laura Brand
ME DIAÇÃO E
PA R ATE X TOS

Editora, coordenadora
editorial, jornalista e
criadora de conteúdo.
Formada pela PUC-MG
e Columbia Journalism
School. @nostalgiacinza
62
Muito obrigada
por apoiar este
financiamento
coletivo!
Neste mês foi possível viabilizar a cura-
doria, tradução, revisão e ilustração do
conto The Cold Embrace! A cada mês de
assinatura, a Wish continuará resgatando
os tesouros do passado em novas edições
para os caçadores das Relíquias Literárias.

Vamos resgatar estes contos raros juntos?

Relíquia 032/Nov 2022

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N O P R ÓX I M O M Ê S

Tá sentindo um
clima de Natal?
Dois contos de L.M.
Montgomery com temática
natalina e ilustração lindinha!

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