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Sinopse

. Cansada de ser a moeda de troca dos seus pais e com saudades da casa de sua tia, Anny
Yong foge e se perde numa floresta. O que ela não esperava era que ali haveria um
encontro incomum com alguém especial, em um lindo e estranho lago que a transformaria
por completo.

Anny Yong e o lago espelhado

Corri o mais rápido que pude pra sair daquela casa, o mais longe possível. Longe de
obrigações, longe de casamentos arranjados, sonhos destruídos, longe daquela família, da
jaula enfeitada e pintada de branco que diziam ser meu lar. Correndo sem rumo floresta
adentro. Precisava ir o mais longe possível dali, um lugar de paz, sem ninguém para me
cobrar mais e mais a perfeição que eu não queria e nunca alcançaria.

Fugir, preciso fugir. Repetia em pensamento.

Quando finalmente parei de correr, estava ofegante, meus pulmões ardiam e minha boca
estava seca, mas não ligava. Me sentei no chão e abracei meus joelhos, encostando
minhas costas na enorme árvore atrás de mim. Meus pés doíam e sangravam, perdi meus
sapatos em algum momento da minha trajetória até aquele lugar. Mas aquilo também
parecia uma dor bem vinda, se pudesse ofuscar minimamente a dor da minha alma.

Eu só queria chorar, gritar, berrar. Queria minha tia, sim, minha tia saberia o que fazer, ela
sim me amava, queria meu bem e entendia meu sonho. Papai e mamãe apenas queriam
fama, reputação, poder social, e eu era a moeda de troca para eles terem isso. Eu era
apenas uma boneca importada, que devia ser prendada, calada, simpática, gentil, educada,
sábia, inteligente, bonita e alegre.

Eu não devia ter vindo visitar eles em Good Writers, devia ter ouvido titia e comemorar
meu aniversário com ela na Inglaterra, junto com todos do teatro. Queria minha normalidade
de volta, minha vida com titia. Chorei, as lágrimas quentes e salgadas que eu tentava
inutilmente enxugar com as mangas do vestido azul rasgado e sujo pela corrida
desenfreada na floresta.

Eu não quero mais viver se for pra viver assim, somente três meses se passaram desde
que cheguei e já sei que o resto da minha vida será o mesmo inferno, ou até pior. Era o que
passava na minha cabeça.

— Curioso — ouvi uma voz suave e tranquila, levantei a cabeça assustada — você, que é
exatamente igual a Rouxinol que conheci dez anos atrás — A voz masculina era diferente
de tudo o que ouvira antes, parecia de alguém jovem, ao mesmo tempo de uma sábia. Era
uma voz tranquila mas não arrastada, suave porém firme — é completamente diferente por
dentro.
— Quem está aí? — falei olhando para os lados, procurando encontrar a quem pertencia
aquela voz.

— O que a fez se perder no caminho? — Dessa vez consegui identificar de onde vinha a
voz. Meu coração acelerou mais ainda, a voz me causou um misto de paz e fervor, euforia e
êxtase me tomaram o coração. Esqueci até mesmo as lágrimas que rolavam pelo meu
rosto.

Olhei para o arbusto à minha frente, de onde a voz vinha, e vi um gato. O maior que já
havia visto em toda a minha vida, com uma cartola preta sobre a cabeça, olhos azuis
cintilantes e profundos, serenos e belos. Seu pelo era de um branco mais alvo que a neve,
parecia mais macio do que a lã das ovelhas mais fofas, a quantidade de pelo que se
concentrava ao redor do pescoço era maior do que no resto do corpo, formando uma
espécie de juba. Aquele gato para mim era inconfundível, já o havia visto várias vezes ao
lado de titia, por mais que ela insistisse que o felino não a pertencia.

— Spiorad Naomh… o que faz aqui? — sussurrei sem entender como havia chegado tão
longe de casa. A pessoa da voz o trouxe até aqui?

— Estou em todos os lugares — completou inclinando a cabeça para o lado e sentando-se


sobre as patas traseiras — ao seu lado e ao lado de sua tia, sempre quando precisam de
mim. Mesmo quando não notam minha presença — ele falou. Sim, falou.

O gato que sempre aparecia quando minha tia precisava se acalmar ou tomar decisões
estava ali, falando!

Surpresa, apenas consegui olhar estupefata para o gato impecavelmente branco. Ficamos
ali nos olhando durante o que pareceu muito tempo, o felino sereno, com um olhar tão
profundo, e eu, sem mover um músculo e assustada. Até que saí de meu torpor e consegui
mexer meus braços e pernas. Porém antes que eu me aproximasse, ele veio até mim, com
passos lentos e elegantes, se aproximou da minha mão e parou ainda me olhando nos
olhos. Eu nunca havia tentado acariciar seu pelo, sempre que pensava em fazê-lo,
lembrava de minha alergia a gatos, o que eu menos queria era estragar uma apresentação
por estar com alergia e não conseguir parar de espirrar.

— O que é você… — murmurei e estendi a mão para o tocar.

Seu pelo era macio, nunca havia sentido uma textura tão suave e macia, nem nos tecidos
mais caros da Inglaterra, ele estendeu uma das patas dianteiras e eu a segurei, seu toque
era suave e quentinho, sem um grão de areia sequer. Antes de eu conseguir me perguntar
como poderia estar tão limpo naquela floresta, ele soltou um miado forte e correu.

— Espera! Espera Naomh! — gritei o chamando mas ele não parou.

Corri apressada atrás do enorme felino branco, ele era ágil e pulava de árvore em árvore,
pulava sobre arbustos, mas não parecia querer fugir da minha vista. Sempre parando
quando se distanciava demais e olhando para trás. O persegui por caminhos estreitos e
cheios de espinhos e arbustos que rasgaram mais ainda meu vestido azul, até que
tropessei em uma pedra, caindo com tudo numa poça de lama e perdendo o Naomh de
vista.

O cheiro da estranha lama era horrível, não sabia identificar de que era feita a poça, fedia
mais do que a urina de um animal, ou água da chuva que empossou e criou musgo, fedia
mais do que os subúrbios ou as casas de pescaria nas docas da Inglaterra, algo pútrido. A
lama fedorenta me causava ânsia e cobria toda a parte da frente do que restou das minhas
vestes, além da minha bochecha e minhas mãos.

— Ah não… — fiz uma careta e sacudi as mãos para tirar o excesso de lama — eca…

Aquilo me fazia sentir arrepios, sentia agonia por não ter onde lavar as mãos. Sempre tive
mania de lavar as mãos quando estava nervosa, ou quando me preocupava e ficava
ansiosa, era algo que carregava comigo desde a infância. Minhas mãos estavam cheias de
feridinhas por causa dessa mania terrível. Mas ali não tinha banheiro ou uma fonte de água.
Preciso me lavar urgentemente!

Enquanto tentava descobrir como limpar aquilo de mim, ouvi o som de algo caindo na
água, parecido o "splash" que se faz quando alguém joga um balde num poço ou numa
banheira cheia de água. Segui procurando ao redor, desejando desesperadamente que
pudesse usar a água para lavar as mãos e acabar com a agonia que já me desesperava.
Achei uma trilha quase apagada, com pedras cobertas de musgo a rodeando, como se
fizesse bastante tempo desde que alguém andou por aquela trilha, caminhando mais alguns
metros, avistei um lago.

Cercado de árvores e uma vegetação rasteira, borboletas e mais alguns insetos voavam
por cima dele e em seu entorno, vi ainda uma raposa bebendo água, mas assim que
percebeu minha presença ela correu para se abrigar na floresta. Os raios do sol passavam
por entre os galhos e folhas das árvores que rodeavam o lugar e recaiam perfeitamente
sobre o lago, como se as árvores tivessem sido posicionadas propositalmente por alguém,
apenas para causar aquele efeito.

Aquele lugar me parecia muito familiar, mas estava apressada e com nojo demais para
pensar em algo além das mãos e roupas sujas, me apressei e ajoelhei na beira do lago,
mas assim que olhei para a água me surpreendi. A superfície do lago era como um enorme
espelho azulado.

Refletia perfeitamente tudo em volta, só tinha certeza que era mesmo água por causa dos
peixes que eu conseguia ver minimamente através do reflexo da vegetação ao redor do
lago, e pelas pequenas ondinhas que os peixes causavam quando comiam os insetos que
pousavam na superfície. Olhei-me no reflexo da água, era tão lindo, tão real, e logo me
recordei que estava coberta de lama fedorenta. Estendi as mãos em concha e comecei a
esfregá-las, em seguida lavei meu rosto.

Estranhamente a água tinha um cheiro doce, como de rosas ou flores muito cheirosas e
frescas, um aroma suave e agradável. Adentrei mais no lago, até a água atingir meus
joelhos e continuei me lavando até parar para olhar outra vez meu rosto. Analisei meu rosto
que todos diziam ser parecido com o da minha tia, exceto pelos olhos mais puxados e
levemente arredondados, e as bochechas mais gordinhas.

Estava satisfeita com a limpeza da minha bochecha, que foi atingida pelos respingos da
lama, mas ao fitar minhas roupas, percebi que as do reflexo eram diferentes das que eu
usava. No estranho espelho de água, minha roupa era como as roupas que eu usava na
casa de titia, cheias de fitas e babados, como eu amava usar. Com cores alegres e flores
bordadas na gola e nas mangas da camisa, uma saia mais armada e florida. Desviei meus
olhos do reflexo e olhei para meu vestido azul sem graça, sem adornos, sem enfeites ou
laços, precisava parecer uma dama séria, moderada e respeitosa.

Toquei a imagem refletida na água e senti uma pontada no peito, nunca mais infância,
nem alegria, nem poderia ser eu mesma. Em poucos dias seria uma mulher casada, e não a
sobrinha do rouxinol australiano. Não seria paparicada pelas moças do teatro, nem poderia
passar minhas horas tocando violino livremente como amava fazer na casa de titia.

Não seria mais o prodígio que tocava perfeitamente todo tipo de música que pedissem e
alegrava as festas que participava. Não poderia acompanhar titia em seus espetáculos, ela
nos holofotes e eu misturada entre os músicos, escondida, uma entre muitos, apenas
tocando e deixando todos leves e felizes com as melodias do meu violino.

Estamos em 1900 e músicos e artistas ainda não são reconhecidos, será que um dia
seremos? Um dia poderemos ser reconhecidos por nós talentos? Eu esperava que sim,
mas até lá eu já não poderia tocar com meu amado violino.

Teria que ser a dona de casa que faz tudo pelo marido, gerar filhos e cuidar deles até
morrer. Eu só queria ser uma garota normal que amava tocar, voltar a morar com minha tia
na Inglaterra, fazendo o que eu amava. Viajar o mundo todo tocando para as pessoas de
diversas classes sociais, de todo tipo de lugar e os mais variados gostos musicais.

Sonhos… agora são apenas sonhos tolos. Destruídos pela ambição de meus pais. Nunca
poderei viver como quero, como sempre sonhei. Nunca vou poder ser feliz… acho que não
nasci mesmo para ser feliz…

Antes que eu percebesse, já estava submersa em uma água fria com peixes me rodeando,
sabia que precisava voltar para a superfície ou então não poderia respirar, mas não tinha
forças, não tinha o desejo de voltar para um mundo tão cruel comigo e com meus sonhos.
Era confortável ficar ali, no frio, apenas flutuando. Vi uma bolha de ar subir até a superfície,
era luminoso lá, parecia quente, mas eu apenas afundava mais na água.

Como se minhas dores, mágoas e tristezas fossem mais pesadas do que eu mesma, me
puxavam. Para baixo como chumbo e ferro, uma âncora fazendo o navio afundar, um jugo
pesado demais para meus ombros, o fardo que todos a minha volta colocavam todos os
dias sobre mim. A preciosa moeda dos meus pais estava afundando no lago gélido com
cheiro de flores.

Mais uma bolha passou perto de mim, mas essa era como a água do lago, parecia um
espelho e dentro dela podia ver a mim mesma. Eu estava chorando amargamente, e
abraçava meu violino destruído por minha mãe. Mais uma bolha chegou perto de mim,
dessa vez com a lembrança de mim mesma trancada no quarto, enquanto abraçava um
travesseiro e segurava as lágrimas, naquela noite meu corpo doía pela surra que levei ao
falar fora de hora.

Vi também minha professora me cobrando a etiqueta e educação perfeitas, leveza nos


pés, beleza alucinante, gentileza mesmo que fingida. Os gritos e xingamentos quando não
conseguia ser perfeita, quando deixava, sem querer, que outros vissem uma das
rachaduras que eles mesmos causaram na preciosa boneca de porcelana, na moeda de
troca perfeita da mais nova família em ascensão na sociedade australiana.

Mais e mais bolhas que refletiam minhas memórias me cercaram. As bolhas estavam cada
vez maiores, já não conseguia ver a superfície luminosa do lago espelhado, apenas as
piores memórias que eu tinha. As memórias começaram a ganhar voz, podia ouvir a voz de
mamãe claramente.

— Você precisa crescer! — ela gritava enquanto estraçalhada meu lindo violino branco,
apenas um mês depois de completar dezenove anos — isso aqui não traz futuro! Nunca
terá prestígio social com essa perda de tempo! Nem se casará! Só faz barulho!

Agarrei minha cabeça e me encolhi mais ainda naquela água gelada, mas não conseguia
tirar os olhos daquelas memórias dolorosas.

— Vai ficar sem jantar hoje — avisou depois de me dar um tapa no rosto por dizer que não
me casaria e protestar contra a decisão deles — quem sabe assim aprende o que é sentir
fome, e o que vai acontecer se continuar seguindo essa idéias tolas de sua tia.

Podia sentir minha barriga roncando, já faziam dois dias que eu só comia um pedaço de
pão com água pela manhã, e um pedaço de queijo, junto a bolachas e leite antes de dormir,
minha mãe estava tentando me ensinar uma lição, era o que ela dizia. A água ao meu redor
pressionava ainda mais meu estômago, em meio a todas aquelas dores e memórias
refletidas nem percebi quando solucei e a água não entrou em meus pulmões, um choro
amargurado, que vinha do âmago de minha alma, rasgava seu caminho de dentro de mim e
era abafado pelo lago gélido.

— Já disse para não me abraçar! — meu pai me repreendeu em outra lembrança, quando
eu era mais jovem e tentei o abraçar durante meu aniversário de oito anos — vai amassar
minha roupa! E me sujar com suas mãos imundas — Seu rosto se retorceu de nojo e
reprovação ao me olhar de baixo para cima, com seus olhos tão puxados e redondos
quanto os meus. Me vi correndo para lavar as mãos, as lavei até sangrar, para as deixar
limpas e poder abraçar papai.

— Menina barulhenta! — minha babá colocou um pedaço de pano na minha boca — pare
de chorar! Você mereceu essa queda! Eu avisei para não correr! — eu apenas chorava
ainda mais com seus gritos, pela dor dos meus joelhos ralados. Foi assim, ainda criança,
que aprendi a não chorar alto demais. As pessoas se incomodavam facilmente.
Ali, afundando ainda mais na escuridão, nas lembranças amargas da minha infância, dos
terríveis três meses que eram uma amostra do que seria o resto da minha vida, eu desisti.
Não precisava viver, não tinha motivos para viver, seria mais fácil não existir. Nunca ter
nascido. Por que eu nasci? Não tenho razão para continuar nesse mundo.

Abracei meus ombros, ouvindo os gritos dos meus pais, da minha babá e das crianças que
eu via nas festas. Tinha inveja das meninas que não precisavam trazer status e prestígio
para sua família, que casavam por amor, que podiam seguir seus desejos, pintar, tocar e
fazer o que desejassem.

Senti as leves ondas causadas pelos movimentos dos peixes ao redor, senti algo puxar
minhas roupas e beliscar minhas pernas. Sim, podem comer se quiserem, não me importo,
já estou morta por dentro. O frio daquela água não se comparava ao frio dentro de mim, a
solidão que sentia e o vazio que parecia me engolir a cada instante do meu dia.

Se existe um Deus, ele me odeia. Por que me dar uma vida como essa? Me deixar nascer?
Ou deixar que minha tia me levasse para morar com ela e experimentar a liberdade e a
companhia das pessoas, só para perder tudo ao completar dezenove anos. Descobri como
é ter amigos e amar realmente alguém da família. Pra que me dar tudo isso se vai tirar tudo
depois?

Então vi uma luz, ao longe, uma luz branca, por trás das terríveis bolhas com memórias
dolorosas. A pequena luz se aproximou mais, estava ficando maior, e cada centímetro que
se aproximava as vozes das lembranças pareciam menos barulhentas, por onde passava
as bolhas se transformavam. Aquela luz estranha, uma bola de luz branca, estava
transformando cada uma das lembranças amargas por onde passava, ela me rodeava e
rodeava, passando através das bolhas e as transformando.

— Eu amo você Anny — escutei a voz de titia atrás de mim e me virei, era a lembrança do
meu primeiro aniversário morando com ela, depois de ela me tirar da casa dos meus pais
para "estudar" na Inglaterra — feliz aniversário minha pequena Anny Yong — eu sorria e
chorava de alegria enquanto abraçava titia, feliz por ter ganhado meu lindo e tão sonhado
violino branco.

— Você é incrível Anny! — virei-me mais uma vez para ver Jeffrey me elogiando ao me
ouvir tocar uma de suas músicas favoritas — como pôde aprender uma peça tão difícil em
tão pouco tempo?!

— Só podia ser sobrinha do rouxinol australiano! — Cris, uma das atrizes do teatro elogiou
— assim como sua tia é a maior cantora de ópera da Inglaterra, você será a maior violinista!
Ser prodígio deve ser de família.

Cada bolha que era transformada passava uma lembrança querida, e ganhava uma luz
amarelada como sol, a água ao meu redor estava ficando cada vez mais quentinha e
aconchegante. Os peixes haviam fugido. Vi então uma lembrança que me fez sorrir e chorar
de felicidade.
— Anny, minha querida, nunca deixe ninguém dizer que você não consegue ou não pode
fazer algo — ela sorria comigo em seu colo — gosto da frase "tudo posso se tenho quem
me fortalece".

— Quem te fortalece, tia? — perguntei admirada por alguém dizer que eu podia fazer tudo
que sonhasse, sempre ouvia que sonhos eram para tolos e pobres que precisavam de
esperança para viver.

— Aqueles ali — apontou para o quadro que ela mesma pintou e que ficava em seu quarto
— e você minha pequena violinista. — ela tocou meu nariz com o dedo e em seguida beijou
minha testa.

Sim! Eu reconhecia aquele quadro! E aquele lago! Olhei ao meu redor, as lembranças
mais felizes da minha vida estavam aparecendo, algumas aconteceram logo depois das
mais tristes, como a caixa de bombons que papai me deu para que eu não chorasse com o
joelho ralado. Titia entrando no meu quarto para me levar embora daquela casa quando
tentava segurar o choro no quarto depois de levar uma surra.

E aquele lago… era o lago de titia! Do quadro dela, onde estava sentada com Spiorad
Naomh e um senhor todo de branco tomando chá. O lindo lago que admirei com ela
inúmeras vezes. Eu estava no fundo daquele lago!

— Vinde a mim todos que estão cansados e sobrecarregados e eu vos aliviarei — ouvi
claramente Spiorad Naomh, procurei ao redor mas não o vi.

Mais lembranças queridas com titia e os outros apareceram e percebi que em todas elas
Spiorad estava lá, no fundo, nós olhando ou dormindo numa cadeira, ou brincando com
uma bolinha de lã. Ele… ele estava lá…

— Peça e receberá — ouvi uma voz diferente, suave, carregada de amor, forte e carinhosa.
Uma certeza cresceu dentro de mim, a certeza de que o que eu pedisse naquele momento,
se realizaria.

Quero titia! Quero voltar pra casa… nossa casa. Perto do teatro, com nossos amigos. Não
quero morrer, quero tocar, quero alegrar todos com minhas canções, quero acompanhar tia
Musa em suas apresentações e disputar baralho com Jeffrey! Fazer carinho em Spiorad e
poder ser uma menina normal, com minhas falhas e imperfeições. Sem me preocupar com
o que os outros vão pensar ou julgar.

A luz branca parou em frente aos meus olhos, mas sua luminosidade não os machucou,
apenas encantava, trazia paz e calor aconchegante. Ela se aproximou da minha bochecha e
a tocou, como um beijo suave, macio e quentinho, como o beijo de boa noite que titia me
dava antes de dormir quando era pequena. Depois, a luz desceu e tocou as solas de meus
pés, um calor os envolveu e já não os sentia arder com os cortes e feridas que fiz no
caminho. A luz circulou meu corpo todo, devagar, e por onde passava sentia o calor que
transmitia, os arranhões não ardiam mais e não me sentia mais suja.
Até que ela parou e encostou em meu peito. O mesmo sentimento de paz e euforia que a
voz de Naomh me causou, pude sentir ainda mais intenso, um sorriso incontrolável se
formou em meus lábios e abracei aquela pequena luz, do tamanho da minha mão. Era
como abraçar alguém amado, de quem tinha saudade, uma nostalgia estranha que se
misturou com a paz e a euforia. Antes que percebesse estava sendo levada para a margem
do lago.

Assim que saí da água um vento veemente e impetuoso me cercou, fechei os olhos e
tentei me manter de pé. Porém, tão rápido quanto veio, o vento cessou. Olhei para mim
mesma e vi que minhas vestes foram transformadas, o vestido azul sujo e rasgado foi
substituído por uma saia branca com bordados de flores e pássaros, uma blusa com
mangas longas e babados e um laço no pescoço. Meus pés estavam calçados com sapatos
confortáveis e lindos. Não precisava pensar de onde tinham vindo aquelas roupas, eu já
sabia.

Vi de relance uma cauda felpuda, branca e longa passar entre as árvores, sabia que
precisava segui-lo, mas antes, olhei para o lago, calmo e sereno, assim como o encontrei.
Depois de admirar mais um pouco aquele lugar tão mágico e misterioso, segui por onde
havia visto a cauda do enorme felino Naomh.

Caminhei pacífica e calmamente por uma trilha que antes não havia visto, olhando ao
redor e apreciando o lugar pela primeira vez.

— Anny! — ouvi uma voz conhecida gritar — Anny onde está!?

— Aqui! — respondi apressando a caminhada.

Não demorou para avistar titia, correndo até mim com os olhos cheios de lágrimas. Ela me
abraçou e agradecendo inúmeras vezes a Deus. Disse estar me procurando horas a fio, até
que ela viu o Spiorad Naomh entrando na floresta, ele a havia guiado até aquela trilha.

— Estou bem titia. Eu vi o lago! — as sobrancelhas de titia se ergueram — e ouvi Spiorad


Naomh falar!

— Ah querida! Que maravilha! Fico tão feliz por vocês terem tido esse encontro finalmente!
— titia me abraçou mais uma vez — agora vamos para casa — ela segurou meu rosto em
suas mãos e sorriu docemente — nossa casa. Querida Anny Yong.

Sorri e caminhei de braços dados com titia. Desde aquele dia, também tenho feito como
minha tia e seguido os conselhos de Naomh. Eles eram sutis, tinha que prestar atenção
para os perceber, também precisava de coragem para segui-los. Por causa desses
conselhos foi que titia conseguiu que meu suposto noivo cancelasse o casamento. Também
conseguiu provas de que meus pais me maltratavam e mais uma vez pude ir morar com titia
perto do teatro, e seguir meus sonhos, sob os cuidados dos meus amados e queridos
amigos, titia e Spiorad Naomh. Minha verdadeira família.

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