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A Primeira Alvorada

Meu corpo estava repousando sobre a rede aconchegante da varanda, enquanto meus
pensamentos insistiam em retornar ao passado. A chuva caia leve do lado de fora, ao passo que
os ventos dançavam de maneira estranha. As neblinas sempre tiveram o poder de me conduzir
para o dia da primeira alvorada, de modo que os minúsculos sons dos pingos preparavam o meu
corpo e a minha alma para que eu revivesse aquele momento.
Eu tinha apenas onze anos quando aconteceu. Meu cabelo sempre foi naturalmente
cacheado, com suas mechas fechadas e rebeldes. Ele era tão volumoso que se assemelhava a
uma árvore vívida durante a melhor das estações. Era alto, grande, escuro como o ébano e sem
sombra de dúvidas o motivo dos meus lamentos diários. Lembro-me de olhar para todas as
minhas colegas de infância e sentir um medo inexplicável que me inundava interiormente.
Todas às vezes em que eu as via, tinha o vislumbre de peles claras, cabelos lisos e bochechas
avermelhadas; eram tão lindas que nem pareciam reais. Cheguei a sentir muitas vezes comigo
que algo em mim estava fora do compasso, notadamente errado e desconcertado.
Essa insegurança me fez passar por situações muito desagradáveis, dentre elas uma se
destacava. Minha mãe me acordava cedo todos os dias, me tomava pela mão e me tirava da
cama. Lembro-me do sono que me assolava nesse momento da manhã. Ela me levava até a
cozinha, me sentava em uma cadeira velha e me deixava enrolada em um lençol que eu insistia
em trazer da cama, enquanto isso ela esquentava o pente em uma das bocas do fogão. Meus
olhos permaneciam fechados até o momento em que aquele objeto de aço se aproximava com
o seu calor assombroso. Quando aquele fogo tocava a raiz da minha cabeça e demorava na
minha pele sensível, as minhas mãos se fechavam involuntariamente, o meu sono desaparecia
definitivamente e os meus pés empurravam o chão com tanta força que ele certamente poderia
descer alguns centímetros para baixo.
Depois que o serviço era finalizado, eu me olhava no espelho e me sentia um pouco
mais normal, a cor permanecia a mesma, porém meus cachos já não estavam mais ali. Eu
colocava a farda surrada e velha e descia sozinha para a escola. Tudo acontecia da mesma forma
sempre, mas naquele dia, uma pequena neblina desfez a normalidade dos dias comuns. Ao sentir
os primeiros pingos, pensei apenas no meu cabelo e no como ele reagiria aquelas gotas
inesperadas. Corri tão depressa que não conseguia sentir o meu ar e muito menos os meus pés
cravando o chão.
Quando cheguei na escola, só consegui sentir o volume do meu cabelo, podia vê-lo só
ao movimentar os olhos. Quis chorar com aquela situação, mas decidi me conter, sabia que
seria muito pior se eu não me controlasse. Por isso, a única coisa que fiz antes de ir para a sala
foi passar as mãos pelos meus fios morenos, esfregando-os com muita força.
Assim que sentei na minha cadeira pude escutar alguns burburinhos vindo do canto da
sala, porém naquele instante eu não queria ouvir nada e muito menos ver alguma coisa. Para
evitar mais desconforto, simplesmente apoiei o meu rosto nos braços e deixei o meu corpo
descansar sobre a carteira.
Antes que eu pudesse esquecer o que havia acontecido, percebi o movimento de alguém
entrando na sala. Ergui a cabeça e fiquei paralisada com o que vi, tenho certeza que nesse
momento os meus pensamentos fugiram para outra dimensão e me deixaram sozinha com
aquela cena. Vi em minha frente uma mulher negra de cabelos cacheados e não pude deixar de
admira-lá atenciosamente. Vi não somente beleza naquela mulher, mas também luz e alvorada.
Senti um raiar penetrante e singelo. Me vi diante daqueles cabelos, em que cada fio parecia ser
o contorno perfeito das fronteiras da África, observei aqueles traços fortes e robustos e não pude
deixar de notar como a sua natureza era linda. Eu me senti acolhida por ver um pouco do que
eu era naquela mulher negra.
Decidi não baixar minha cabeça novamente, ouvi-a falar sobre os povos africanos e senti
o amor com o qual ela se expressava. Não deixei escapar a peculiaridade do seu miúdo bóton,
onde havia desenhado o perfil de uma pessoa negra, esse mero detalhe me fez pensar que ela
provavelmente estava ali para falar exatamente o que eu precisava ouvir, contudo, não me
preocupei em entender o motivo real para aquela visita, eu queria unicamente viver aquele
momento. Sempre que ela falava era como se a sua pele precisasse brilhar insistentemente, e eu
via aquilo como algo extraordinariamente belo. Ao olhá-la percebi que talvez eu nunca tivesse
visto as coisas com meus próprios olhos, talvez eu estivesse apenas me deixando levar pelos
preconceitos enraizados na mente das outras pessoas. Só naquele dia eu entendi que eu não era
feia por ter cachos e pele negra, da mesma forma que aquela mulher não era.
Eu já não sentia vergonha do meu cabelo e prometi para mim mesma que jamais iria
voltar a queimá-lo por vergonha. Senti que precisava ser eu de verdade pela primeira vez. Sei
que aquela mulher não sabe o quão importante ela foi para mim naquele momento, pois ela de
fato foi, afinal no instante em que eu precisava de uma luz, ela foi como um sol, e foi esse
nascer do sol que me devolveu o brilho, a cor, as raízes e a oportunidade de viver a minha
própria alvorada.

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