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RESSURREIÇÃO DE SOFIA

os símbolos da iniciação

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“O tempo de regeneração intelectual e de transformação social chegará, estamos certos disto.
Vários presságios já o anunciam. Quando a Ciência souber e a Religião puder, o Homem agirá
com nova energia. A Arte da vida e todas as artes só poderão renascer por meio de sua
harmonia. ” (Édouard Schuré)

INTRODUÇÃO

PROLOGO.

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Ao se deparar com o conteúdo da Ressurreição de Sofia algumas perguntas podem
surgir na consciência do leitor. Qual é a verdadeira intenção deste livro? Quando as histórias se
passam? Por que ler isto? Existe algum significado mais profundo no que foi escrito? Muitos
vão dizer que ela não passa de devaneios e fantasias e carecem de uma lógica racional.
Poderão dizer que a história em si é uma tentativa de alegoria, assim como faziam os velhos
alquimistas. Outros ainda poderão dizer que ela está para acontecer. Mas afinal, qual a
importância disso? Pelas imagens ou pela poesia em si? Ou pelo desejo imperativo de um eco
errante e porque as histórias do passado se fazem presentes no futuro. Pois, bem verdade,
onde CONTOS PPERDIDOS a Ressurreição de Sofia não ocorre?

O fato é, em 1903, a Companhia de Jesus, precisando de fundos, decidiu,


discretamente, vender parte de uma extensa coleção de livros e manuscritos que possuíam; as
oferecendo para a Biblioteca do Vaticano. Porém, 30 volumes dessa coleção jesuíta foram
misteriosamente vendidos para um polaco-lituano chamado Wilfrid Michael Voynich. Voynich
era conhecido pelo seu envolvimento em uma organização revolucionária polonesa. Em 1887,
foi preso e sentenciado a cumprir trabalho forçado após uma falha tentativa de salvar
companheiros da forca. Em 1890, ele escapou da prisão, na Sibéria, e conseguiu se refugiar em
Londres. Continuou atuando como revolucionário anti czarista durante mais cinco anos, até se
aposentar. Em 1898, Voynich decidiu abrir uma livraria de livros antigos e raros. Neste meio
ficou famoso por ter muita sorte para encontrar raridades. Eis que, em 1912, ele consegue
comprar esses 30 volumes. O que mais lhe chamou a atenção, dentro da recente aquisição, era
um diferente manuscrito, cheio de estranhas gravuras medievais de plantas, corpos celestes
desconhecidos, anatomia humana, e escrito numa língua que nunca vira ou ouvira falar antes.
Vou me referir a esse manuscrito como o Livro.

Voynich passou três anos fazendo pesquisa sobre o Livro. Teve frustrantes jornadas
para decifra-lo. Em 1915, levou o Livro ao público, atraindo muitos curiosos, estudiosos de
criptografia, simbolismo e línguas arcaicas, que ficaram extremamente intrigados em
desvendar o real conteúdo do livro. Meu tataravô era um desses. Ele saiu de sua terra natal,
então Reino Austro-húngaro, e apesar da guerra, teve força de vontade suficiente para
encontrar raras e propicias condições que o fizessem conseguir chegar até Londres e se
encontrar com Voynich. No encontro, simpatizaram um com o outro, a ponto de passarem a se
encontrar regularmente durante um período de três anos. Voynich o deixou fotografar o Livro
todo, para que pudesse voltar ao seu lar e continuar com seus estudos e pesquisas. Quando
meu tataravô retornou em sua casa, em 1918, descobriu que toda as dispensas e custos da
viagem e a triste situação pós-guerra arruinaram as finanças da família. Devido essa
dificuldade financeira, todos eles embarcam, um ano depois, para São Paulo buscando
melhores oportunidades. Durante a viagem, no meio do Atlântico, ele teve um sonho ou uma
espécie de visão: teria uma filha no Brasil, e ela teria três filhos, o filho do meio teria três filhos
também, e o seu bisneto do meio também teria três filhos e o filho do meio seria capaz de
compreender o Livro. Assim, ele guardou, muito bem guardado, as fotografias, as deixando de
herança, que passou dele para minha bisa, para meu avô, para meu pai, que as me deu quando
fiz vinte e um anos, em 2015. E foi assim que eu tive contato com o Livro.

Depois de 1915, Voynich percebeu que pessoas mais capacitadas do que ele em
criptologia e outras áreas estavam se ocupando com sua interpretação, então passou a
pesquisar sobre a origem do Livro. Voynich descobriu duas coisas importantes. O nome de
Jacobus Horcicky de Tepenecz, revelado por luz ultravioleta em uma das primeiras páginas e
uma carta de Jan Marek Marci endereçada para Athanasius Kircher que dizia:

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“Reverendo e Distinto Senhor, Pai em Cristo:

Este livro, legado a mim por um amigo íntimo, eu lhe destino, meu querido Athanasius. Assim
que ele chegou a minha posse estava convencido de que não poderia ser lido por ninguém,
exceto você. O ex-proprietário deste livro pediu sua opinião por carta, copiando e enviando
uma parte do livro a partir da qual ele acreditava que você seria capaz de ler o restante, mas
na época ele se recusou a enviar o livro em si. Para sua decifração, ele dedicou um trabalho
inabalável, como é evidente nas tentativas dele, que lhe envio com o livro, e ele renunciou à
esperança apenas com a vida. Mas seu trabalho foi em vão, pois esfinges como essa obedecem
a ninguém, a não ser seu mestre, Kricher. Aceite agora esse sinal, como é e há muito tempo,
da minha afeição por você, e arrebente suas barras, se houver alguma, com seu sucesso
habitual.

O dr. Raphael, um professor de língua boêmia de Fernando III, então rei da Boemia, me disse
que o referido livro pertencia ao Imperador Rodolfo II e que ele pagou cerca de 600 ducados
pelo livro. Pois acreditava seu autor ser Roger Bacon, o Inglês. Neste ponto, suspendo
julgamento; cabe a você definir para nós que opinião devemos adotar sobre isso, a cujo favor e
bondade eu sem reservas me comprometo e permaneço.

Ao comando de sua reverencia, Joannes Marcus Marci de Cronland

Praga, 19 de agosto de 1666”

É a partir destas descobertas de Voynich que tomei como ponto de partida da minha
própria pesquisa. Não cabe, neste prologo, discutir métodos cognitivos ou métodos de
pesquisa, nem entrar em debate sobre os valores e dogmas das verdades que circulam
atualmente entre o conhecimento acadêmico, artístico e religioso. A minha intenção é
somente apresentar os resultados sobre a origem e o conteúdo do Livro sob o ponto de vista
das minhas vivencias com a pesquisa.

Em geral, não imaginamos o quão diferente era o modo de pensar dos detentores de
conhecimento ao longo da humanidade ocidental comparado com os de hoje. Entre 800 e
1000 d.C, as concepções sobre o ser humano eram exclusivamente espirituais, de uma maneira
inegável. Ainda no século X era possível encontrar sábios que falavam de seres espirituais
como se fala de pessoas possíveis de se encontrar e conversar. Para muitos sacerdotes não
havia dúvida que em determinado momento da missa era possível vislumbrar a realidade
manifesta dos anjos, arcanjos, arqueus. Esses sábios sabiam que tal conhecimento estava
desaparecendo da consciência comum dos humanos e poderia se perder quase
completamente a relação direta com essas entidades espirituais. Na Idade Média, haviam
despretensiosas pessoas vivendo isoladas em simplicidade, que não se reuniam oficialmente
com grupos de discípulos à sua volta, nem tinham locais especiais para se encontrarem, e sim
permitiam as circunstâncias do destino guiar o encontro com seus discípulos.

Por volta do século XII, muitos jovens sentiam um impulso por um novo conhecimento
sagrado, capaz de conecta-los com os mundos espirituais, com Deus e suas obras divinas.
Devido as condições da época, um jovem com tais aspirações encontrava com seu mestre
aparentemente devido a um acaso. É preciso salientar que devido as circunstancias
existenciais daquele tempo, esse tipo de aprendizado ainda não podia acontecer através de
livros, só através de uma pessoa para outra.

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Já no final do século, em algum lugar pela Europa Central, um jovem de vinte e cinco
anos, nobre, estudioso sobre as origens do Universo e investigador da verdade, enquanto
caminhava pelas florestas, atormentado com suas questões, encontrou um eremita peculiar,
mais velho, coletando ervas entre as arvores. Conversaram e filosofaram sobre o sentido das
coisas até o Sol raiar e se despedirem. No dia seguinte se encontraram novamente e a mesma
coisa aconteceu. No dia seguinte, também. O velho sentiu que poderia ajudá-lo na jornada que
aspirava, tornando-se seu mestre e instrutor. O jovem, agora discípulo, confessou as ânsias de
sua alma. De como desejava que conseguisse fazer seu olhar penetrar o mundo espiritual.
Disse que deveria perceber as divinas entidades espirituais, os criadores do Universo, atuando
por trás de suas magnificas obras, os processos da natureza. Sentia que não podia avançar
esses obstáculos. Então o Mestre respondeu:

- Como tens olhos e ouvidos, use-os para observar a Natureza, veja a cor e ouça os
sons com seu coração aberto, assim sentirá o espiritual desabrochar.

- Mas quando a cor chega em meus olhos sinto-a empalecida. E quando o som chega
aos meus ouvidos sinto-os congelados. Penso que meus sentidos me impedem de ver e ouvir o
verdadeiro espiritual da Natureza.

- Portanto, sinta que aí há, também, uma revelação religiosa. Pois nela se manifesta
como Deus e seus agentes vem formando o mundo. Se manifesta a vinda do Cristo a um corpo
humano e suas consequências com a evolução dos tempos. Lhe pergunto, o que a Natureza
não pode te dar que não pode ser dado pela revelação?

- Eu sinto que é impossível religar, em mim, o que existe na Natureza, se ela nada me
revela. Até sinto a força do meu coração dialogar com a revelação, por mais que eu não
entenda seu caráter religioso puro (não no sentido constitucional).

- Vivemos em um corpo caído no pecado, que não foi concebido no ambiente


terrestre, foi adaptado a ele. Estamos presos numa gaiola, e suas grades são os sentidos e
sentimentos que não conseguem penetrar nem na Natureza, nem na Revelação, apenas
perceber a matéria. Porém, se for de teu agrado, lhe darei a oportunidade de se desprender
dessas amaras e ter a chance de observar, por si só, a Natureza e a Revelação sob a luz que
vem dos altos divinos. No solstício de inverno iremos até o cume daquela montanha – Disse o
mestre apontando para o horizonte.

No dia combinado, no topo da montanha, eles só enxergavam um mar de nuvens,


nada da superfície terrestre. Estavam desvinculados das distrações e agitações que ocorriam lá
em baixo. Cobertos por uma atmosfera matinal o mestre falou sobre as amplidões cósmicas,
das distancias do universo enquanto o discípulo olhava para céu e se questionava o sentido de
ficar entregue as alturas da Natureza.

Ficaram lá por muito tempo, até que, o estado de alma do discípulo começou a mudar.
Sentia-se como se tudo o que já tinha vivenciado na existência terrestre não passava de um
sonho. Estava rodeado pela nevoa flutuante e pelas nuvens que estendiam a amplidão
celestial. Era como se lá em cima ele estivesse desperto. Tão desperto que passou a reparar
em fendas e rochas que não havia notado antes. Eram belas e cintilantes mesmo tendo um
aspecto milenar, cheias de texturas, camadas e buracos, causados pela erosão. Numa destas
fendas recém descobertas ele se assustou com uma estranha impressão ao ver uma criança de
dez anos. Reconheceu a si mesmo na infância. Se julgava diante do espirito de sua juventude. E
com a condução do mestre, realizou-se uma conversa. Nela, o discípulo sentia seu raciocínio

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maduro se transformando em representações mentais infantis. Sentia o espirito lhe doando
um certo frescor. Conversaram sobre o Genesis e a encarnação do Cristo. A experiência foi
marcante, inesquecível. O espirito, então, desapareceu. E algo muito fecundo surgiu no íntimo
do discípulo, que disse ao seu mestre:

- Sinto que agora percebo que o espirito da juventude impera na Revelação. Quando
retirado, longe da Terra, às alturas, se manifesta a verdade de Revelação, com o auxílio da
força da infância, que ressurge. Na situação que estamos não podemos vislumbrar as obras
dos deuses através da perfeição da Natureza, por isso Deus deu ao homem a Revelação!

No dia do Solstício de Verão, o mestre e seu discípulo partiram em uma nova jornada.
Desta vez estavam caminhando rumo a uma caverna, cujas fendas estreitas iam até profundas
minas subterrâneas. A consciência do discípulo despertava e aconteceu um drama parecido
com o que teve quando esteva nas alturas. Sentia que tudo o que vivenciara na Terra passava
em sua frente como um sonho. Ainda que estivesse acabado de entrar, podia sentir uma vida
pulsante vindo das profundezas da Terra. À medida em que começaram a conversar, o
discípulo sentiu uma ligação com essa vida submersa da superfície. Então, de uma estalagmite,
apareceu um ancião. O discípulo demorou algum tempo para compreender que o ancião era
sua própria velhice futura. Houve mais uma conversa entre o mestre, o discípulo, e seu espirito
do futuro. Porém, da conversa, algo diferente surgiu na consciência do discípulo, ele passou a
se sentir mais presente, sentir sua própria organização física, a vitalidade circulando no seu
sangue, atravessando as veias e artérias, podia sentir os diferentes órgãos cumprindo
diferentes funções atuando como um todo em seu corpo. Pensou em como o mundo externo
era contido e reproduzido em menor escala no corpo humano. Os minerais do solo, as raízes,
as folhas, as flores, os frutos, os animais, os astros, o Universo estava contido nele. Sentia o
mundo material, que sua existência estava inserida, criando e destruindo, transformando e
formando substancias. Sentia seu Eu em seu corpo. Após o ancião desaparecer, no caminho de
volta, o discípulo pôde concluir:

- Agora me sinto pertencente a Terra e a essa encarnação. A essência invisível contida


na Natureza manifesta a obra Divina nos mais diversos processos.

- Mas, tenha certeza, – respondeu o mestre – a Terra atual e o humano dos tempos de
hoje não são compatíveis. Por isso precisamos ir acima da Terra para ter a Revelação através
do espirito da juventude. E para os abismos abaixo da superfície, no fundo da Terra para ter a
revelação da Natureza. E a sabedoria consiste em conseguir iluminar as profundezas com a luz
que cultivou no alto. Não deixe de perceber, no seu interior, o que se encontra acima e abaixo
do humano terrestre. No equilíbrio é que se tem a possibilidade de encontrar, dentro de si,
com a mesma força criadora de Deus, o Cristo.

O mesmo impulso do conhecimento transmitido neste, aparentemente, simples


encontro, perdurou por séculos. A partir dele, as buscas do conhecimento religioso-teológico-
filosófico e espiritual passaram a ter uma tendência para a autoconsciência, de encontrar em
si, sua própria trajetória equilibrada para o divino. Tal acontecimento sujeitou, as pessoas,
depois do século XIII a encontrar o conhecimento através do pensar humano. Em
contrapartida, nesta mesma época, o charlatonismo e o verdadeiro conhecimento espiritual
andavam numa linha tênue. Ao mesmo passo que surgiam novidades e descobertas através do
pensar, também através dele, surgiu novos truques e artimanhas, das mais sensacionalistas e
imorais. Os ávidos pelos conhecimentos divinos travavam muitas batalhas internas para
descobrir como encontrar os caminhos corretos. Eles não buscavam mais os Centros de

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Mistérios, Antigos Templos, Santuários ou qualquer outra instituição, que estava em
decadência, e sim locais aquecidos pela devoção de pessoas que compartilhavam a busca do
verdadeiro conhecimento do humano e do Cosmo.

Um desses locais era uma simples casa, onde se encontravam sete pessoas. Eles
formavam uma comunidade do conhecimento, uma fraternidade de alma rumo ao espiritual
universal. E essa comunidade conservava o impulso da autoconsciência e aplicavam o valor
real da fraternidade. Sentiam que a meta da evolução da humanidade estava relacionada com
a liberdade, por isso o laço entre os humanos e Deus iria se romper por completo se não
vivessem em uma vida de irmandade, onde um realmente dependesse do outro. Eles
buscaram ajustar e exercitar suas almas para que pudessem conhecer as verdades espirituais.
Em um dos encontros, estavam fazendo um exercício de meditação guiada por uma oração.
Durante a atividade, suas consciências e todo o intelecto eram entregues a um novo estado
psíquico-devocional, proporcionado pela atmosfera anímica coletiva de devoção e fé que o
pequeno círculo reunido cultivava. Então, diante deles um ser apareceu. Não era um ser de
carne e osso e ele se comunicava diretamente através de suas almas e espíritos. Ele não havia
sido conjurado ou chamado por forças mediúnicas (o que teria sido considerado pecaminoso),
só foi possível a aparição mediante o forte estado anímico gerado pela comunhão das almas.
Este ser espiritual humano havia se maravilhado, tendo se atraído perante o poder meditativo-
devocional, se manifestando em sua livre vontade. Ele se revelou sendo o mesmo mestre que
havia guiado o discípulo no final do século XII.

- Sei que ainda não estão preparados, mas aqui estou, entre vocês. É chegado o tempo
em que os verdadeiros iniciados das antigas ordens não andarão mais entre os humanos por
um período da existência terrestre. Só retornarão quando emergir o tempo da luz do Arcanjo
Micael. Revelo a vocês que o interior do ser humano se modificou e pode encontrar o caminho
para a existência divina se a alma se comportar de forma correta. Como estão se esforçando.
Mas, esse entendimento será fortemente reprimido na Terra para que o espirito possa
verbalizar com a alma humana dos novos tempos. Portanto, permaneçam cultivando a força
da Imaginação Verdadeira conjunta que assim poderei lhes conduzir aos Segredos dos Grandes
Mistérios.

Três dos presentes estavam realmente destinados a estabelecer dali em diante uma
ligação com o mundo espiritual através do esforço em atingir o estado de alma devocional
meditativo. Em encontros posteriores, passou a ocorrer, recorrentemente, algo inusitado. Por
um período de tempo, eles reluziam um semblante luminoso magnifico, como se seus olhos
fossem estrelas brilhantes. Durante esses períodos eles anotavam revelações simbólicas,
imagens que continham o que eles deviam saber sobre o mundo espiritual. E, depois da
experiência eles diziam:

- Nós andamos entre as Hierarquias Sagradas e os espíritos além dos sete planetas e o
zodíaco. Lá encontramos os antigos mestres do saber espiritual. Mas nós mesmos não
conseguimos traduzir as imagens que desenhamos.

Em contraponto, os outros quatros presentes eram os que conseguiam reproduzir os


símbolos na linguagem comum através do que vivenciavam na luminosidade solar do brilho no
semblante de seus irmãos. Eles o fizeram e assim se desenvolveu uma espécie de filosofia, de
teologia e cosmogonia, uma espécie de medicina alquímica baseada nas forças zodiacais e uma
agricultura sagrada. Os sete irmãos da vida viviam em colaboração e dependência reciproca,

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os três obtinham as imagens e os quatro conseguiam lê-las. Eles registraram todo esse
conhecimento e a compartilhavam com a fraternidade que passou a expandir em novos ramos.

O impulso da fraternidade fluiu pela vida espiritual da Europa em diversos grupos


como uma nova tradição de valores. Experiências como essas eram possíveis em inúmeros
círculos pequenos entre os séculos XIII e XV. Dessas experiências, da obtenção e leitura dos
símbolos do mundo espiritual, se originou muito do que surgiu na literatura médica e teológica
que temos acesso. Muita coisa de espécie semelhante foi revelada aos humanos neste
período.

Porém, em alguns lugares, aqueles que deveriam traduzir o que foi revelado não
possuía o esforço e disciplina de alma, o que prejudicava a fidelidade das traduções. Certas
coisas redigidas naquela época, até hoje, possuem um caráter sombrio, obscuro e
charlatonesco. Algo parecido também acontecia com aqueles que recebiam as imagens. Elas se
tornavam cada vez mais inquietos, pois a consciência comum não atingia o mundo de onde os
mistérios vinham. O que abria, ainda mais, a margem para fraudes e charlatanismo. Se tornou
difícil discernir entre o verdadeiro conhecimento espiritual trazido pelas fraternidades e o falso
conhecimento dos charlatões. Como não se chegava as fontes das revelações simbólicas, não
se sabia da qualidade delas. Além de que alguns tinham medo do estado psíquico daqueles
que mergulhavam nos mundos superiores e do conhecimento que traziam os tradutores. E isso
foi o bastante para esse tipo de conhecimento e prática serem rejeitadas e perseguidas pela
Santa Inquisição.

Apesar dos perigos, a fraternidade resistia secretamente em muitos lugares,


principalmente na Alemanha. Na metade do século XV, em um castelo, perto da estrada que
termina em Colônia, acontecia um encontro da fraternidade. Naquela nova espécie de culto,
diante de um altar estavam seis pessoas que diziam:

- Chegou a hora, este é o momento em que o conhecimento das estrelas será


sacrificado! Seremos responsáveis pelas terras férteis e inférteis, pelos rios e oceanos, pelas
nuvens e pela luz, pelo fogo que habita em mim e em meus irmãos. Seremos responsáveis
pelas montanhas e florestas, pelas plantas e suas flores, pelas nossas bebidas e alimentos, por
todo o reino animal. Pela nossa comunidade, pelos humanos presentes! Agora, sentiremos
responsáveis por todos os humanos da história da humanidade. É a hora do abandono,
descemos profundamente na matéria, extrapolamos o pecado original. O conhecimento
superior se recolherá até sua ressureição no final do século IXX para que a humanidade possa
usar seu livre arbítrio para encontrar o que os deuses destinaram com ela e para ela no
passado!

A sétima pessoa, que observava toda a cena, se chamava Raul Giaveta Croy. Raul havia
nascido no noroeste do Reino da Normandia em 1426, mas logo que nasceu, seus pais fugiram
da guerra para Colônia, na Alemanha, onde seu pai tinha família. Seu pai era um grande
comerciante e desejava que seu filho trilhasse o mesmo caminho. Porém, Raul se mostrou
mais propenso aos estudos e dos quinze aos dezoito estudou na Universidade de Colônia.
Tinha a intensão de estudar direito e filosofia, mas tomou gosto pela literatura, e se descobriu
escritor. Era um erudito apaixonado pelo conhecido. Dizia buscar a verdade verdadeira que se
escondia por trás das tradições e valores da época. Inspirado nesta situação escreveu dois
livros de sátiras cômicas que no fundo questionavam os valores feudais e quase apresentava
um caráter humanista do Renascimento. Em 1447, ganhou um pouco de notoriedade depois
de escrever uma prosa sobre um padre preso em um castelo misterioso durante a Peste. No

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mesmo ano passou a frequentar os encontros da fraternidade na Alemanha Central. Por sorte,
seus irmãos de vida tinham alguns desenhos originais dos primeiros encontros já descritos e
muitos manuscritos em alemão sobre as traduções dos símbolos. Dedicou seu tempo integral a
fraternidade, estudando e pesquisando, até seu último encontro em 1450. Aquele discurso
diante do altar fora muito poderoso. As palavras haviam causado muitas marcas em sua alma e
lhe inspirado todo um novo Universo. Ele entrou em um conflito interno, pois não sabia o quão
responsável era por suas ações, quanto mais ser responsável pela humanidade toda. Sentia
uma forte pressão ao pensar aquilo. Então, no final de 1450, tomou uma decisão para se
encontrar, embarcou numa viagem, financiada pelo seu rico avô paterno, com quem
compartilhava seus interesses em conhecimentos do espirito, durante 4 longos anos.
Caminhou durante dois meses, de Colônia até Veneza. De Veneza navegou até Corfu, de onde
partiu para conhecer o Templo de Apolo em Delfos. Voltou para Corfu e foi até Antioquia, para
poder visitar Chipre. Depois da visita foi até Alexandria, e no Egito, foi até a antiga cidade de
Mênfis. De lá, ele seguiu a rota marítima mulçumana parando em Trípoli, Líbia e Mádia,
Tunísia, até chegar em Palermo. De Palermo foi até Crotona. Depois de um tempo foi rumo ao
norte e navegou até Nápoles e enfim desembarcou em Genova, onde ficou um mês até ir para
Lyon, encerrando sua viagem. Se apaixonou por Lyon e por Isabel Laurent Moreau, com quem
se casou e teve 3 filhos e 3 filhas. Como Lyon que era um dos centros europeus de atividade
literária, se sentia maravilhado e no lugar certo. Depois da viagem, não publicou mais nada e
passou a trabalhar como editor. Não publicou mais, mas ainda escrevia. Sentia uma missão
existencial dentro de si. Precisava escrever uma história contendo tudo o que tinha aprendido
com a fraternidade e com suas viagens. Projeto que só terminou em 1486, quando tinha
sessenta anos. Porém, como alguns de seus poemas cômicos já haviam sido confiscados e
censurados em alguns lugares da França, decidiu esconder a prosa recém escrita, chamada
Ressureição de Sofia. Temendo o pior da Inquisição e não querendo ser queimado e caçado
como os valdenses decidiu fazer o caminho inverso da fraternidade. Ele transformou
Ressureição de Sofia, que continha a linguagem usual numa linguagem imagética alquímica,
inspirada nos símbolos anímico-espirituais que tanto havia estudado. Ou seja, da codificação
da Ressureição de Sofia em símbolos nasceu o Livro. Raul Giaveta Croy morreu três anos
depois, em 1489. Mas antes, em seu leito, fez um pedido a sua amada esposa:

- Isabel, a minha hora de desencarnar deste corpo se aproxima. Eu posso sentir a


morte se aproximando gentilmente. Mas ainda me resta uma missão na Terra, e temo que não
poderei realiza-la, por isso preciso contar contigo. Alguns dias depois de eu morrer, um jovem
a caminho da Espanha, usará a senha da fraternidade procurando por mim. A ele, somente a
ele, entregue o Livro. Ele não estará esperando por isso, acredito que nem saberá o que fazer,
mas insista que ele leve o Livro para a sua jornada. Não chore, meu amor. A morte vem para
todos. Nós ainda nos encontraremos.

Isabel, no fundo, se questionava da sanidade de Raul em seus últimos momentos de


vida, mas no final aconteceu o que previra e ela fez exatamente o que foi pedido. O jovem
guerreiro estava indo lutar guerra da Reconquista e passou em Lyon no caminho, pois teve um
sonho com Arcanjo Miguel dizendo que precisava conhecer um escritor que já frequentava a
fraternidade. Infelizmente o jovem foi morto em combate em Granada. O paradeiro do Livro,
entre a morte do guerreiro até 1499, é desconhecido.

Após a vitória dos católicos, o Cardial Jimenez de Cisnero deu a infeliz ordem de
queimar certa de cinco mil manuscritos e uma biblioteca que ficava em Granada. Antes da
queima, um frade encontrou um manuscrito que tinha uma aparência europeia e acreditava

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que era um livro importante. Alegou ao seu superior que era um livro alquímico sobre
medicina e que seria facilmente decifrado por ele. Assim o Cardial deixou o frade ficar com o
Livro. Sete anos depois, em 1506, o frade morreu e deixou secretamente o livro de herança
para seu afilhado, que o havia tentado ajudar nas interpretações. O afilhado tinha 14 anos
quando isso aconteceu, mas já nessa idade não se importava tanto com os enigmas do Livro e
percorreu sua carreira de ourives. Depois de anos, enquanto trabalhava com o auxílio de seu
neto mais novo, viu como ele, apesar de muito jovem, se dedicava e se interessava pelo oficio,
aquilo lhe encheu de um sentimento de que o garoto faria coisas extraordinárias. Quando
morreu em 1555, deixou toda sua herança para o seu admirado neto, incluindo o Livro. O neto,
ficou completamente intrigado com ele, dedicando muito da sua vida naquele mistério. Apesar
de não o decifrar, as horas frustradas de investigação lhe rederam muitas ideias ao longo dos
anos. Em 1567, o neto, então já adulto, alquimista e artista, começou sua obra sobre como a
consciência humana se modificou após a vinda do Cristo. Obra que só ficou completa em 1576.
Querendo divulga-la e buscar patrocínio ele partiu rumo ao leste, mais precisamente para
onde hoje é Praga. Em 1579, o neto conseguiu se encontrar com Rodolfo II, recém imperador
do Santo Império Romano, um entusiasta em artes e nas ciências dos mundos invisíveis. Lá o
Imperador questiona sobre as inspirações de seus escritos e o neto cita a história do Livro.
Rodolfo ficou desesperado ao ouvir a resposta e ficou muito ansioso para vê-lo, pois acreditava
que o Livro só poderia ter sido escrito pelo célebre Roger Bacon. Assim ordenou que o neto o
visitasse no dia seguinte, e que o trouxesse. Porém, ao chegar na estalagem, onde estava
hospedado, foi confundido por um traidor foragido e acabou sendo brutalmente morto a
pauladas e facadas. O Imperador, ao descobrir o ocorrido, pediu que seus súditos o
trouxessem o Livro e enviasse 2 kg de ouro para a família do neto alquimista, assassinado aos
33 anos.

Rodolfo II só morreu em 1612, porém em 1607 ficou seriamente doente, sendo salvo e
curado pelo farmacêutico e químico Jacobs Horcicky. Assim, em agradecimento lhe entregou o
titulo “de Tepenec”, referente ao castelo Tepenec. Jacobs também participava na educação de
teologia, botânica e estudos da Natureza do Sacro Império. Durante o reinado, Rodolfo pediu a
Jacobs que o emprestasse dinheiro e em troca receberia as terras de Melník. Quando o
Imperador morreu, Jacobs exigiu como restante do pagamento do seu empréstimo a Rodolfo,
o Livro, cujo acreditava conter um grande conhecimento sobre botânica. Jacobs, durante as
guerras religiosas, defendeu o lado católico, sendo administrador do Castelo de Melnik, mas
foi preso em 1620 quando protestantes conquistaram a cidade. Foi trocado com um
prisioneiro protestante (Jessenius), e então viveu exilado até voltar a Melnik após a Revolta de
Boêmia. Em 1621, durante um passeio a cavalo, deixava sua mente viajar sobre qual seria a
origem e o conteúdo do Livro, e distraído com seus próprios pensamentos se acidentou,
caindo do cavalo e ficando muito ferido. Devido ao grave ferimento, no ano seguinte, mudou-
se, aos cuidados dos Jesuitas, para o Colégio Clementinum, em Praga. Logo no dia em que
chegou conheceu George Baresch, alquimista e colecionador de antiguidades. O checo George
estava lá, durante aquela semana, para resgatar suas memorias de formação, pois já faziam 20
anos que havia se formado ali. George e Jacobs compartilhavam muitos interesses em comum,
e a simpatia entre os dois fez Jacobs lhe contar sobre o Livro. Horas após a separação dos dois,
Jacob morreu, deixando suas terras de Melnik e 50mil moedas de ouro ao Colégio Jesuita. Para
George Baresch, surpreendentemente, lhe confiou o Livro.

George dedicou sua vida tentando decifrar o Livro, buscou incessantemente


conhecimentos gerais que pudessem ajuda-lo neste mistério. Em 1636, leu Podromus
Coptussive Aegyptacus, livro do Jesuita Athanasius Kircher decifrando hieróglifos egípcios. No

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ano seguinte, George escreveu uma carta para Athanasius com a cópia de alguns fragmentos
do livro, e suas conclusões baseado no que entendeu do seu Podromus Coptus. A carta foi
enviada através do matemático Theodorus Moretus, porém ela foi perdida e nunca entregue.
Dois anos depois Theodorus a encontrou, e George o deixou ler. Os mistérios na carta
inspiraram o matemático a finalizar sua obra “Tratados Matemáticos”.

Em 1639, George escreve novamente para Kircher. Nesta carta ele apresenta uma
visão de que o livro representa a Sciencia Egipicia e suas ligações com botânica. A segunda
carta só é entregue e lida por Kircher em 1641. Este lhe respondeu pedindo o livro todo, mas
George, ao ler a resposta, nem se preocupou em responder, pois não iria empresta-lo. Kircher,
por sua vez, ao se confrontar com aqueles fragmentos de enigma sente um forte impulso para
retomar seus estudos sobre Egiptologia.

Alguns anos depois que George conheceu Jacobs, ele fez uma outra forte amizade com
Johannes Marcus Marci, com quem também continha longas discussões filosóficas. Em um dos
encontros George contou a Johannes sobre o Livro e seus longos esforços e estudos para
entende-lo. Os encontros influenciaram um a obra do outro. Então, quando George morreu,
em 1662, deixou o livro a Marcus Marci, no ano em que se tornou o Reitor da Universidade de
Praga. Apesar do estudo do Livro lhe render insights para os primeiros rascunhos de
Othosophia seu filosofia impulsus universalis, achou que não podia tirar mais proveito dele.
Por isso, em 1666, ele envia o Livro para Kircher junto com aquela carta já apresentada.

Kircher, o jesuíta alemão, era um verdadeiro homem da Renascença, talentoso


estudioso em diversas áreas, publicando dezenas de livros. O próprio disse que falhou em
decifra-lo, porém as investigações do Livro e suas meditações sobre ele, lhe renderam muitas
ideias para suas obras de 1666 até sua última. Athanasius, durante muitos anos de sua vida
trabalhou na Biblioteca do Vaticano. Então, após sua morte em 1680, deixou toda sua
correspondência e coleção de livros pessoais para o Colégio Romano. E por lá o Livro
permaneceu esquecido.

Até que em 1870 as tropas de Victor Emmanuel II da Itália tomaram a cidade de Roma.
O novo Reino da Itália confiscou as posses da Igreja, incluindo suas bibliotecas. Os jesuítas,
para preservar os livros e manuscritos, os transferiu-os às pressas para bibliotecas pessoais,
sendo isentas de confisco. E numa das remessas foi ao jesuíta belga General Superior Peter Jan
Beckx e logo em seguida foi encaminhada, para a vila de Mondragone, situada sobre uma
colina rodeada por castelos e vilas, perto de Roma. Lugar comprado pelos jesuítas em 1866
para abrigar o QG do Colégio de Glisliere. Onde o livro permaneceu até 1912, quando os 30
volumes da biblioteca foram vendidos para Voynich.

A continuação da história do Livro já foi contada. O que resta, agora, é contar a


Ressureição de Sofia.

Porém, antes, devo ressaltar alguns pontos. O livro foi escrito por um Raul Croy que
sofreu influência de diversas culturas e línguas, e hoje, não temos como saber exatamente
quais foram as palavras escolhidas pelo autor. Temos apenas acesso aos símbolos que ele fez,
no Livro, para criptografar a Ressurreição de Sofia. A partir dos conceitos destes símbolos, eu
traduzi a obra para Português brasileiro. Portanto, a linguagem usada por mim, um brasileiro
do litoral paulista, carrega termos relacionados a comportamentos de comunicação exclusivos
de um brasileiro contemporâneo do litoral paulista. Ou seja, a maneira em que você está
prestes a ler a Ressurreição, por mais que eu tenha me afastado da obra, carregará vícios
linguísticos e culturais do seu tradutor e não do seu autor.

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Yuri Galvão Cetra

O Nascimento da Nova Sofia

No nascimento de Sofia o Céu celebrava assim como o Inferno.

Seu anjo plantou em sua alma a força, pois ela teria que agir com perseverança. A ciranda de
arcanjos lhe doou a coragem, pois ela teria que agir mesmo cercada de medo e angustias. E
vindo das distancias mais distantes, dos confins dos tempos, os arqueus, junto com Arcanjo
Micael, lhe doaram a luz da sabedoria, pois o novo conhecimento está alicerçado na
autoconsciência.

A Sofia foi concedida o Destino, e com ele, seu espirito foi a Terra.

Na dimensão inferior, na esfera do submundo, que encobre parte do sistema solar. O mundo
em que os humanos não podem ver com os sentidos comuns, e sim através de sinais e sonhos;
pode senti-la em ações e palavras, ideias e pensamentos, imagens, inspirações e intuições. Lá,
Mefistófeles e Lúcifer festejavam, pois acreditavam que a Profecia estava a se realizar.

CAPITULO 1.

- Sente-se Sofia, temos que falar com você, dizer a verdade com o tempo que nos
resta... – A voz vinha de um dos dois corpos esqueléticos que estavam deitados no chão, um
homem e uma mulher, enrolados em um cobertor.

Sofia não entendeu o que ele quis dizer, talvez a febre já estivesse causando
alucinações ou estivesse com medo de morrer.

- Pare, você não sabe o que está falando. Vocês vão melhorar, eu sei que vão! – Falou
Sofia lacrimejando.

- Ouça seu pai! Ou digo... seu padrinho! – Disse a outra voz, feminina, que pareceu
exausta depois do esforço de falar. Sofia estava em choque com aquelas palavras. Eles só
podiam estar alucinando.

- Como assim? O que que vocês estão falando? – Respondeu Sofia inconformada.

- Sofia, somos seus padrinhos, seus pais biológicos foram assassinados logo após você
nascer. Eram nossos melhores amigos, nossos irmãos, trabalhávamos juntos na Grande Cidade.
Eles já temiam o pior e nos fizeram prometer que se algo acontecesse com eles, nós
tomaríamos conta de você, como se fosse nossa própria filha. Tentamos o nosso máximo, com
o maior amor possível. – Pelo menos a última frase era verdadeira, pensou Sofia enquanto
lembrava como, de fato, eles foram bons com ela, como trabalharam com amor, relembrou de
suas brincadeiras e como eles a embalavam, abraçavam apertado e a balançavam para que
conseguisse dormir quando bem pequena. Reviveu os dias da sua infância, correndo livre e
sozinha para realizar o que lhe desse na telha e como eles elogiavam seus feitos. Até a
memória de suas broncas tinham uma atmosfera de bondade. Sempre se sentira segura, sentia

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como se estivessem sempre presentes e alertas. Suas lembranças se assemelhavam, de alguma
maneira, com o jeito que eles agiam, com calma interior e paciência, mas não era isso que
Sofia podia sentir naquele exato momento. – A trouxemos para cá temendo sua segurança,
achamos que aqui seria melhor para a seus primeiros anos de desenvolvimento, e acredito que
realmente tenha sido nesses catorze anos. Tivemos ajuda de alguns Sábios, sabe? Mas os
tempos já parecem tão incertos... – ele terminou de falar e ficou encarando o teto.

- QUE HISTÓRIA É ESSA, PAI? – Gritou Sofia indo aos prantos. Cada fala dele tinha a
assustado mais. Só podiam estarem alucinando, falando sobre os Sábios dos antigos contos. De
repente, foi atingida por uma ideia e tentando se controlar falou. – Chegou a hora, eu vou
buscar a curandeira na aldeia agora!

- Sofia, espere! Cuidado! Esquecemos do mais importante! – Rebateu o homem após


tossir profundamente, mas já era tarde, ela nem escutara, já havia saído correndo do simples
barraco de madeira em que estavam.

Conforme corria, a paisagem lhe despertava a nostalgia das lembranças de sua


infância, brincando por essas árvores, na época em que começou a descobrir, explorar e
conhecer a floresta. Aquele tempo parecia maravilhoso, principalmente se comparado com a
situação em que se encontrava. Nas lembranças Sofia ainda se sentia imersa na Natureza, em
imensa alegria com o Universo. Sentimentos que contrastavam com o que sentia nos últimos
tempos. Estava estagnada em um labirinto de medo e desespero, sendo perseguida pelo
pressentimento de que o chão podia se abrir qualquer momento sob seus pés. Lembrou como
até os doze anos sentia que a floresta e todos seus seres compartilhavam suas maravilhas com
ela, sussurrando os segredos misteriosos da terra e dos céus, indicando os caminhos que
deveria seguir, sabia quais sons indicavam perigo, alimento ou água potável. Lembrou das
horas que ela e seu pai ficavam na floresta, jogando e discutindo sobre xadrez. O caminho
despertara lembranças de como havia o costume de se deitar nas sombras daquelas árvores
melancólicas, olhando para as nuvens e sonhando com as histórias dos deuses e deusas,
heroínas e heróis, vilões e monstros que tanto ouvia seus pais contarem. Refletiu em como
isso mudara tanto nesses últimos dois anos com todo os novos tipos aflorações. Achou que no
passado ainda tinha um feitio mais angelical e possuía uma bondade em seu coração que
agora parecia estar encoberta por uma neblina espessa.

Corria o mais rápido que conseguia pela trilha que dava na aldeia. Sua mente estava
confusa, intoxicada. A floresta não mais aparentava um ar nostálgico, e sim inóspito e hostil. Se
concentrava em cada passo para se desviar de seus pensamentos maliciosos, em vão, pois as
palavras ditas pelo seu pai não paravam de ressoar em sua cabeça. Percebeu a situação de
deles. Queria acreditar que eles estivessem alucinando, mesmo se isso significasse que a
doença os deixassem mais próximo da morte. Só de pensar em perde-los sentia seu coração
rasgado pelo medo, mas essa era a situação. Ou eles estavam lúcidos e vivera uma grande
ilusão a vida toda ou estavam delirando, de qualquer jeito estavam cada vez mais doentes. Se
ao menos a curandeira pudesse fazer algo.

Mesmo com seu máximo esforço, Sofia só conseguiu encurtar o longo trajeto em uma
hora. De sua casa, no fundo da floresta, até a aldeia a distância. Era uma pequena vila bem
hostil a forasteiros, pelo menos essa era a impressão que Sofia tinha de lá. Não queria
encontrar o grupo de meninos que sempre implicava com ela, queria encontrar a curandeira o
mais rápido possível e voltar logo para sua casa, não podia desperdiçar um minuto sequer.

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Entrou na aldeia junto com o cair da noite e logo ao atravessar as primeiras ocas ouviu vozes
indesejáveis vindo de suas costas:

- Olha só se não é ela! – Seguido por muitas risadas, algumas maldosas.

- Vão embora! Não tenho tempo! – Falou Sofia se virando ferozmente e vendo o grupo
de sete garotos, que temia, lhe rodear.

- Você não me parece tão apressada - voltou a dizer o que aparentava ser o líder da
vez.

- SAIAM AGORA!

- Ui! Como ela é brava. – Caçoou um dos meninos, provocando mais risos dos outros. -
O que é que uma magrela como você pode fazer? - Sofia sentiu uma intensa vergonha,
misturada com toda a confusão de sentimentos que lhe perturbava e simplesmente explodiu.

- VOCÊS NÃO ESTÃO ENTENDENDO, VÃO EMBORA AGORA, PRECISO ME ENCONTRAR


COM A CURANDEIRA E SE VOCÊS FICAREM NO MEU CAMINHO, EU JURO QUE VOU ARRANCAR
UM OLHO DE CADA UM DE VOCÊS E DAR DE OFERENDA PARA OS ESPIRITOS DA FLORESTA! –
Esbravejou parecendo uma felina acuada, pronta para atacar a qualquer movimento suspeito.
A zombaria acabou e Sofia percebeu que de alguma forma a ameaça tinha os atingidos. Todos
da aldeia tinham um profundo respeito e um profundo medo quando se tratava de suas
crenças sobre os espíritos da floresta. – EU NÃO ESTOU BRINCANDO! AONDE ESTÁ A
CURANDEIRA?

- Vá chama-la! - Ordenou o líder. Levemente o clima parecia se e Sofia pôde perceber


que o líder provavelmente tinha a mesma idade que a sua. Eles ficaram parados se encarando.
Se analisavam sem trocar uma palavra, até que um dos mais novos voltou com a velha e
pequena curandeira, que interrompeu o silêncio:

- O que foi minha filha? – Ela perguntou, fazendo um gesto dispensando os garotos,
que foram embora desconfiados, olhando para trás.

- Eu... - Sofia começou a pensar se conseguiria convencê-la a ir até sua casa – Bem,
meus pais te conhecem e eles estão muito doentes, eles precisam da sua ajuda, estão tendo
alucinações de febre!

- Conheço muitos pais e não costumo sair de casa à noite, como pode ver já não estou
na flor da minha idade... Só me levantei por que meu neto disse que era urgente e seu olho
dependia disso. – Disse a curandeira sorrindo. Seu corpo realmente parecia idoso, mas ela
tinha algo dentro de si, além dele, invisível e inconsciente, que Sofia simpatizava, apesar de um
desespero também voltar a aflorar em sua alma.

- Eu sei, desculpa, é urgente, não posso perder mais tempo, eles estão mal, te pago o
que quiser quando chegarmos lá.

- Desculpe minha filha, não estou te reconhecendo. - Nisso lembrou que seus pais, às
vezes, diziam uma frase para alguns locais e o comportamento deles ficava mais amigável.
Decidiu arriscar:

- Meus pais costumam dizer “somos todos nós”.

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- Você é a Sofia? – Perguntou a curandeira, cujas as expressões haviam mudado na
hora em que ouviu aquela espécie de senha.

- Sou.

- Com o que eles estão alucinando que fez você correr e atravessar a floresta até aqui
as essas horas? – Sofia ficou chocada, sentindo um frio percorrer sua espinha e lhe arrepiar
toda. Lagrimas surgiram em seus olhos, e um vazio dominou seu estomago. A curandeira sabia
quem ela era, aonde morava e como havia chegado ali. Não esperava por isso. Muito menos a
intensão dessa pergunta.

- Que diferença isso faz? Você vai nos ajudar? – Respondeu Sofia, mas a curandeira
ficou em silêncio, como se esperasse primeiro que Sofia respondesse sua pergunta. – Tenho
vergonha de te contar.

- Porque teria?

- Eles me disseram que... que eu sou órfã, eu acho... e eles seriam meus padrinhos.

- Você falou para mais alguém isso? – Perguntou a curandeira de imediato, num tom
de imposição e preocupação.

- Não, vim direto pedir sua ajuda.

- Nem para meu neto e seus amigos?

- Não, só disse que ia... – decidiu não contar sobre seu descontrole e a ameaças.

- Escute Sofia, é sério! Você falou algo do que ouviu para alguém? – Disse a senhora se
aproximando, olhando para ao redor e abaixando o volume de sua voz. - Você viu alguém no
caminho? Ninguém te seguiu? O que mais eles falaram? - Sofia começou a ficar assustada sem
entender para onde a conversa estava caminhando.

- Eles não disseram mais nada e não, acho que não, quem iria me seguir? – Perguntou
Sofia confusa. Depois, voltou a sua consciência o motivo da visita. - Você vai voltar comigo ou
não?

- Vou. Vamos! Não temos tempo para perder. Só vou pegar a minha fiel lamparina
para nos guiar nesta noite sombria.

As duas voltaram caminhando, bem mais devagar do que Sofia gostaria. Elas não
conversaram em nenhum momento. Sofia estava imersa em seus próprios pensamentos,
procurando entender o que estava acontecendo. Em questão de poucas horas recebera tanta
informação que não conseguia processar todas. Acreditava que a curandeira percebia o que
estava acontecendo e por isso não falava além do necessário.

Chegaram nas primeiras horas da madrugada. Ouviam um silêncio anormal dominando


o local. Ao se aproximarem, perceberam que tinha algo errado. A porta estava arrombada.
Vendo essa cena Sofia se entregou ao desespero que tentou controlar ao longo do dia. Entrou
descontrolada em casa e tudo parecia igual quando saíra, apenas seus pais não estavam mais
lá. Começou a gritar e chorar, revirar a casa procurando por eles. Sentia-se como se o ar não
conseguisse entrar em seus pulmões. Então tudo a sua volta pareceu desmoronar, desfocar e
escurecer.

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Sofia voltou a si sentindo um cheiro familiar de um preparado de álcool com plantas
locais que a curandeira passava em sua têmpora. Havia desmaiado. Se levantou com certa
facilidade, agora um pouco mais calma, e depois de beber água e comer algo amargo e
salgado, que a curandeira lhe oferecera, começou a respirar melhor e disse:

- Aonde eles estão? Eles morreram?

- Minha pobre filha, não posso lhe responder com toda certeza, não sei onde estão,
mas acredito que estejam mortos ou próximos a isso. Meu palpite é que alguém da Grande
Cidade veio aqui rapta-los.

- Quem poderia fazer isso com eles? Cadê eles? – Falou Sofia, lacrimejando. - Eles
nunca causaram mal algum, para nenhuma pessoa.

- Sinto lhe dizer que isso não é verdade, na Cidade eles tem inimigos poderosos, os
mesmos que mataram seus pais. Por que você acha que eles se escondiam aqui?

- Você não sabe de nada!

- Seus padrinhos não estavam delirando, conheço eles e você melhor do que imagina.
– Sofia sabia que eles se conheciam, mas não que tinham alguma espécie de relacionamento
especial cheio de segredos. Aquilo a irritou demais, sentia sozinha e desamparada,
abandonada, impotente, não entendia como em questão de dias tudo mudara. Como aquela
senhora poderia saber mais sobre essas coisas do que ela própria? Desde que seus pais
contraíram a doença tudo passara a desmoronar aos poucos, tudo se transformara
completamente. Há um dia tinha família e conforto. Agora tinha padrastos desaparecidos,
provavelmente mortos, e mais dúvidas traiçoeiras do que respostas agradáveis. Enquanto a
curandeira secava uma lágrima que lhe surgira nos olhos ao ver Sofia aflita, continuou falando,
mas agora de maneira tão inspirada que parecia crescer de tamanho aos olhos de Sofia. –
Coragem! Por mais que vejamos as sombras, nossas lagrimas hão de secar! Por pior que possa
lhe parecer o destino, atrevo me dizer que ainda há de considerar as maiores desgraças como
mensageira de um proposito maior, digo até que um dia poderá encontrar uma beleza mais
profunda nela. E, bem verdade, todos neste mundo carregam seus pesares. Enfim, o momento
chegou e você corre grande perigo, vamos voltar para vila que eu lhe contarei tudo que sei,
farei o que puder para te ajudar.

Sofia não sabia em o que acreditar, só queria ficar sozinha com seu luto, a ideia de
andar novamente para aldeia e ficar lá, vivendo como uma órfã ou serva da curandeira e
conviver diariamente com aquele grupo de meninos lhe dava náuseas. Uma tremedeira tomou
conta de seu corpo, estava acabada, fisicamente e emocionalmente, porém, reuniu forças para
gritar e sair correndo para as profundezas da floresta, deixando a curandeira sozinha em seu
antigo lar. Por que isso tinha acontecido com eles? O que eles fizeram para merecer esse fim
trágico? Por que isso estava acontecendo justamente com ela? Uma raiva confusa e triste
borbulhava dentro de si.

16
.

Sofia corria chorando, desesperada, pela escuridão noturna da floresta. Suas pernas
tremulas se guiavam sozinhas através de uma ação inconsciente. Enxergando muito pouco,
esbarava em galhos e troncos, tropeçava em raízes e pedras. Sua mente transtornada,
repassava todos os acontecimentos anteriores à procura de algum detalhe que deixara passar,
alguma resposta que explicaria tudo ou então apenas para acreditar e poder encarar o que
estava acontecendo. Porém, as recordações só exalavam dor e sofrimento. Então, não estavam
alucinando, eles realmente eram seus padrinhos, como a curandeira poderia saber de uma
alucinação? Sofia sentiu muito grata pelo que fizeram com ela e, em contraponto, sentiu um
arrependimento amargo por ter saído correndo e os deixados sozinhos, mas como podia saber
o que era verdade e que iriam sumir? Como poderia saber que estavam correndo perigo?
Como poderia saber se estava, realmente, em perigo? As perguntas não amenizavam a culpa
que sentia e apesar dos fatos terem se desenrolado em apenas um dia, se sentia, há uma
eternidade, imersa naquele terrível pesadelo. Antes que se desse conta do que estava
ocorrendo, seus músculos e ossos cederam ao cansaço e seu corpo se desligou, entrando
numa dimensão de sono profundo, mas a consciência, estranhamente, continuou em vigília,
talvez presa na paranoia de reviver o que tinha passado.

Estava em casa novamente, junto aos seus pais, cobertos e deitados, pálidos e
doentes. Mas o lar parecia levemente diferente do que se recordava. A luz não entrava pelas
janelas. As plantas e flores não exalavam seus perfumes. Os sons dos animais e da floresta não
atravessavam as paredes de madeira.

- Sente-se Sofia, temos que falar com você, dizer a verdade com o tempo que nos
resta...

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- Como sabem que vão morrer? Vou ficar aqui, me diga toda a verdade! Eu amo vocês
demais independentemente de serem ou não meus pais biológicos, vocês são tudo para mim!
Eu sou muito...– respondeu ela, desta vez. Porém, no momento, em que ia terminar a frase,
Sofia sentiu algo a arrastando para baixo com toda a força. Parecia que seus pés e tudo ao seu
redor eram sugados por um imenso buraco negro para uma outra dimensão. Perdeu a noção
do que estava acontecendo. Não conseguiu combater a força e mesmo resistindo foi tomada
por ela. Um medo a afligiu, não tinha o menor controle da situação. Um barulho distorcido e
constante, no mesmo tom continuo e incômodo, começou a ressoar em seus tímpanos. A
escuridão a havia engolido. Sentiu como se estivesse sido cuspida num local nojento, denso,
hostil e sinistro. Apenas uma luz brilhava ao fundo, e Sofia a tomou como guia e foi em sua
direção.

Naquele estranho local, precisava fazer muito mais esforço do que o normal para
conseguir dar um passo e sair do lugar. Cada passo causava um enorme dor em Sofia, sentia
forte agulhadas nos joelhos e na coluna quase impedindo seus movimentos. Só a partir de uma
tremenda força de vontade que conseguiu atravessar aquelas terras sombrias até alcançar a
luz que seguia. Ela vinha dos reflexos dos portões de um luxuoso palácio. Ali, a dor e a
densidade pareciam afetar bem menos Sofia. Ele tinha a dimensão de um monumento
monolítico, construído com imensas pedras cinza escuro. De sua base surgiam grandes pilares,
eram inteiramente decoradas com pequenos metais redondos, que exalavam um dourado
opaco. De repente, se viu diante de uma das mais elegantes salas do palácio, cheia de grandes
decorações esplêndidas e magníficos quadros gigantescos. No meio da sala havia uma longa
mesa e Sofia podia ver um vulto em cada extremidade. Sofia não conseguia enxergá-los, mas
pôde ouvir a conversa.

- Por que me convidou? – Disse rapidamente uma voz aguda, fria e seca, vinda da
esquerda, que causou antipatia em Sofia.

- Boa noite meu bom e velho amigo, fico alegre que tenha me prestado esta visita. Seja
bem-vindo ao meu lar. Quanto tempo que não vinha até aqui, hein? – Disse a outra voz, da
direita, de forma elaborada e cordial. Essa voz soava mais quente e continha uma beleza
insuportável e inexplicavelmente terrível. Sofia podia sentir uma certa animosidade, tensão e
intimidade não explicita entre os dois.

- Diga logo o que quer, sei que por de traz desse palavreado ludibriante tem intenções
escondidas. Tenho mais o que fazer! - Exclamou a voz fria.

- Sim, sim, mas acho que isso vai lhe interessar. Estava sobrevoando as nuvens
cobertas pelas belas cores do entardecer, sobre o Mar Cintilante que resplandece a dança do
ar e da luz, admirando as belezas que ainda sobrevivem...

- Conte o que me interessa!

- E encontrei um povo cheio de maravilhas e sabedorias, eles possuem um poder ainda


bruto, mas com condições favoráveis ao berço da Nova Aurora. – Continuou a voz mais
agradável, como se não tivesse sido interrompido. - Eles gozam do livre arbítrio, que o resto da
Ordem dos Sábios lhe presentearam, é verdade, sim... mas desconhecem a verdadeira
liberdade. São perfeitos para a Profecia se realizar... É... Sinto que os tempos estão mudando...
– disse a última frase de maneira triste. Porém a outra voz deixou escapar um suspiro de
entusiasmo e emendou, tentando disfarçar:

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- Agora entendo por que me chamou. Já havia esquecido em como você pode me ser
útil. Os Sábios ainda vivem entre o povo? – Finalmente a voz da esquerda demonstrou algum
sentimento, mas aquilo soou horripilante. Sofia sentiu, ao ouvir a fala, um sentimento de
ganância, capaz de sobrepor tudo e todos para conquista-la. Despertando em Sofia um medo
incontrolável que nunca sentira antes.

- Não, querido príncipe.

- Guarde para ti, este título que lhe pertence, junto com esta coroa. – Resmungou com
tons de menosprezo e indiferença.

- Os Sábios se estabeleceram mais ao Sul e deixaram uma Comunidade, na antiga ilha


da Ponte Brilhante, é ali onde os fatos se consumarão. – Completou a voz da direita, não
parecendo ofendido com o tom do comentário e sim orgulhoso.

- Te agradeço. Agora devo me adiantar, estarei mais ocupado do que nunca. A minha
hora é agora, não posso mais esperar, o futuro finalmente acaba de chegar!

- Já sabe o que irá fazer?

- Sei! Venham meus queridos servos! Eu os convoco! Fiquem diante de mim que lhes
concederei um poder a cada, para que me sirvam, dominem e governem em meu nome até eu
chegar. – Sofia ouviu sete fortes batidas e mais sete vultos apareceram, respondendo o
chamado. O medo continuava atormentando Sofia, lhe dando arrepios sinistros e a
paralisando. - A ti, dou os poderes da ganância. A ti, os poderes da mentira. A ti, os poderes do
materialismo. A ti, os poderes do esquecimento. A ti, os poderes da unilateralidade. A ti, os
poderes do medo. E a ti, por fim, lhe entrego o maior dos poderes, da inteligência cega! Agora
vão e encontrem meu futuro Assessor no meio da Comunidade! Vocês o ajudarão a recrutar
meu futuro exército de corpos ocos de espírito. Mas, se alertem! Muitos não poderão vê-los,
pois só confiam em seus sentidos comuns, porém, outros poucos poderão percebe-los em seus
sonhos e através de sinais. Com esses, tomem cuidado. Vocês deverão inspirar palavras e
ideias nas mentes e corações daqueles tomados pelas sombras. Vocês serão criadores e
criaturas de seus pecados. De vocês, meus serviçais, eles tirarão as forças para ignorar os
reinos invisíveis.

Sofia despertou. A fraca luz da lua recém-nascida atravessava os galhos das árvores e
iluminava sua fragilidade enquanto deitada em posição fetal. Suas pernas e braços doíam,
sentia os músculos do trapézio travados. A fome e a sede provocavam uma intensa dor de
cabeça. Além de ainda sentir, de maneira conservada, o sentimento ruim e estranho que tivera
ouvindo a conversa em seu pesadelo. Relembrou de sua situação e foi atacada por uma
desesperança avassaladora. Nisso, viu luzes de tochas se aproximando e um calafrio percorreu
sua espinha. Quem seria?

- É ELA, ENCONTREI! - Sofia tentou se levantar, mas já era tarde. Chegou um grupo de
guerreiro das tribos da aldeia. A desesperança e o medo continuaram. Eles possuíam a fama de
serem bem violentos – Ei! Não se mexa! Aonde está a curandeira? – Ordenou o comandante
do grupo.

- Eu não sei – respondeu Sofia sem pensar, não saberia nem dizer quanto tempo havia
se passado desde que a abandonara.

- Mentira! A última vez que foi vista foi contigo! O que você fez com ela?

19
- Nada, nós só fomos até minha casa, para ajudar meus pais – ou padrinhos – que
estavam passando mal, eles estavam muito doentes. Mas quando chegamos lá, a casa tinha
sido invadida e eles estavam desaparecidos. No desespero sai correndo até meus músculos
não aguentarem. Dormi até agora, acordei com vocês me encontrando. Por que? O que houve
com ela? – Disse Sofia tentando se explicar, o que pareceu irritar o comandante.

- Você espera que eu acredite nisso?

- Essa é a verdade! O que houve com a curandeira?

- Cale-se, você sabe muito bem o que aconteceu com aquela pobre senhora. Mesmo
que não esteja mentindo, você já merece ser acusada por deixar uma importante anciã, que
estava disposta a te ajudar, sozinha. E então, me explique por que ela partiu sem avisar
ninguém? – Sofia respondeu com uma expressão de dúvida. - Já se passaram uma noite e dois
dias e ninguém a encontra. Você está presa pelo desaparecimento da curandeira. – Chocada e
antes que pudesse se defender das acusações levou uma porrada na nuca e apagou
novamente, desta vez, como uma rocha.

Sofia voltou a si, sentindo seu corpo ainda mais dolorido e acabado. Podia sentir, no
lugar onde havia levado a pancada, o ferimento inchado e sujo de sangue. A escuridão ao seu
redor lhe cegava. Não conseguia saber onde estava. Ao olhar para cima, viu barras bloqueando
as luzes celestes da noite e outra onda de desesperança lhe atacou. Tateou sua volta e
percebeu que estava presa em um buraco alto e estreito. A fraqueza ia lhe dominando, não
era possível nem se deitar. Só conseguia esticar as pernas se ficasse sentada. Encontrou, pelo
menos, água e uma espécie de mingau de banana. Comia e bebia enquanto se lembrava da
conversa com o comandante. A quantidade era longe de ser suficiente para acabar com sua
fome e sede, mas aliviou a dor de cabeça que lhe consumia. Então começou a se questionar.
Estava sendo acusada pelo sumiço da curandeira? O que teria acontecido com ela depois que
fugira? Não podia estar morta, se não teriam encontrado o corpo. Um arrepio, já familiar,
percorreu a sua espinha. Ela sumira assim como seus padrinhos? A curandeira lhe alertara
sobre o perigo, mas será que estava se referindo aos guerreiros? Ou será que algum outro
perigo arquitetou essa situação? O que iria acontecer, iam lhe sentenciar? Ela já tinha ouvido
sobre os antigos rituais sádicos de execução e talvez seria a última coisa que conhecesse, na
pele. Talvez morreria sem respostas, ou será que depois da morte podia encontrá-las?
Enquanto se embolava em pensamentos angustiantes e revoltantes, se sentia frustrada,
entregue, arrasada, acorrentada em uma condição irreversível, além do seu controle.

A luz da manhã passou ameaçar as sombras da noite. Então, algumas horas antes do
amanhecer ouviu um ruído vindo de cima. Estremeceu, como se tivesse acordado de um
transe que envolvia seu espirito pensante.

- Ei! Ei Sofia! – Ela ergueu a cabeça e demorou algum tempo para reconhecer a
silhueta de dois jovens, o líder do grupo de garotos e o neto da curandeira.

- Não fui eu, eu não fiz nada! – Disse rapidamente, pressentindo o pior.

- Nós desconfiamos, por isso viemos. – Respondeu o neto.

- O que? Vocês não vieram para me humilhar?

- Não. – Falou o líder. – O que aconteceu? – Sofia não sabia se podia confiar neles,
seria essa mais alguma armadilha? O que tinha a perder além de sua vida, que já aparentava

20
estar no fim? Acabou contou-lhes tudo como havia ocorrido, sem omitir nada, desde a fuga de
casa até o pesadelo que ainda lhe atormentava nas profundezas da subconsciência. Os dois
ficaram em silêncio, ouvindo. Após a narração de Sofia, o líder disse – Espere em silencio e
fique pronta! – Desaparecendo junto com o neto da curandeira.

A espera foi uma angustia. Passados alguns minutos desde que sumiram, Sofia escutou
um grito de alerta e vários em resposta. Passou a ouvir uma barulheira, a aldeia despertava,
aos berros, do silencio da madrugada. Ouviu também estalos que Sofia julgava ser de chamas.
Começou a imaginar que o plano dos garotos, seja qual fosse, tivesse dado errado e estavam
sendo castigados ou perseguidos por isso. Beirando uma crise de ansiedade, se surpreendeu
quando voltaram. Rapidamente arrancaram as barras do topo do buraco e jogaram uma
escada de cordas entrelaçadas para dentro. O líder voltou a falar:

– Não temos muito tempo, logo irão descobrir que o fogo não passa de uma distração
e quando perceberam que fugiu voltarão a te caçar. E desta vez eles não vão para captura-la.
Vamos! – Do mesmo jeito que o Sol doa seu calor para a Terra, Sofia recebia uma esperança,
finalmente, pelas ações daqueles garotos.

Os dois rapazes ajudaram Sofia a sair do buraco. Juntos atravessaram o aglomerado de


ocas e vielas sem chamar a atenção dos guardas distraídos com vários pequenos incêndios. O
líder ia na frente, usando toda sua experiência sorrateira. Sofia vinha no meio seguida pelo
neto na retaguarda. Avançavam na maior velocidade possível sem que seus pés fizessem
barulho. Não tiveram nenhum obstáculo o que fez Sofia pensar que a sorte realmente estava
virando ao seu favor. Ao chegarem nas fronteiras da vila com a floresta o líder se pôs a falar
em ar de despedida:

- Você não é mais bem-vinda aqui. Depois de sua visita nossa aldeia nunca mais foi e
nunca mais será a mesma, disso eu tenho certeza. Assim que amanheceu e a curandeira não
estava em casa a aldeia toda se alarmou. Pessoas ouviram você dizer que faria um sacrifício
com nossos olhos e viram você partindo com ela. Rapidamente surgiu um boato dizendo que
você possui fortes poderes malignos, capazes de enfeitiçar a experiente curandeira. Depois de
engana-la, você teria feito um ritual de sacrifício e a comendo, como uma canibal, o corpo da
curandeira para obter a sua sabedoria. O boato que se espalhou ainda mais depois de não
encontrarem qualquer vestígio dela. Nisso, decretaram sua morte, começando a sua caçada.
Antes mesmo de encontrá-la já iniciaram a preparar cerimonia de execução. Quando ouvimos
os boatos não podíamos acreditar, pois vimos a curandeira confiar em você e sabemos que ela
não cairia em nenhum truque seu. Sua sorte foi que decidimos agir por conta própria e
também saímos em sua busca para descobrir o que tinha acontecido. Você deixou muitos
rastros confusos, mas seguindo eles que ouvimos o comandante te encontrando. Seguimos,
então, os guerreiros enquanto estava desacordada e vimos em qual buraco te prenderam,
existem muitos outros pela aldeia. Assim que falamos com você soubemos que era inocente, e
tínhamos que te salvar, pois iriam te matar em algumas horas, agora vá e fuja! Não sei o que
está acontecendo, mas algo não está certo. Concordamos com a curandeira, você corre perigo.

- Por que? – perguntou Sofia sem entender – por que me salvaram?

- É o que minha vó teria nos aconselhado a fazer! – disse sorrindo.

21
.

O povo da aldeia chamava a mata local de Floresta dos Antepassados. Sofia a conhecia
muito bem, mas a chamava de Floresta Vermelha, mas não sabia e nem se questionava sobre a
origem desse nome. A Floresta Vermelha ou dos Antepassados era extensa, densa e bem
fechada, a copa das arvores, altas e grossas, se ligavam e se envolviam como um grande manto
verde. Percorria todo o litoral do continente, encobria ilhas, morros e montanhas com
formatos de pirâmides que formavam uma serra, e seu limiar ia até a Grande Cordilheira.
Possuía plantas com grandes folhas em formato de elipse, com flores majestosas que mais
pareciam pedras preciosas esculpidas em traços que aparentavam o movimento de uma
elegante harmonia atraente, única e colorida. Era rica na flora, não era difícil achar saborosas
frutas e folhas.

Nas manhãs de fim de verão, como aquela, a fina neblina sobrevoava as arvores e os
rios que se diluíam na mata. Sofia sabia que o frescor úmido do começo do dia logo acabaria, o
intenso calor do Sol desperto já estava começando. Sentia que seu corpo estava novamente
chegando no seu limite, o que ainda a sustentava era a esperança que havia despertado. A
esperança alimentava uma força de vontade em viver que nem sabia que tinha. Sabia que não
tinha tempo a perder, só que comer era uma necessidade. Coletou algumas frutas e bebeu
água em uma nascente escondida até se saciar. Para onde ir? Teria que sobreviver na floresta,
indo de um lugar a outro evitando deixar rastros. Conhecia ela tão bem quanto os guerreiros.
Então, essa seria sua vida dali em diante? Sobreviver como uma fugitiva? A ideia não lhe
agradava, porém parecia ser a única disponível no momento. Como poderia tudo ter mudado
tão rapidamente? Tentou resgatar suas memorias boas, porém elas estavam se esvaecendo,

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como a fumaça no vendaval. Queria passar, pelo menos uma última vez, no seu antigo lar para
se despedir, mas será que era seguro? Achava que os guerreiros não conseguiriam chegar
antes dela. E se os mesmos raptadores dos seus padrinhos e da curandeira estivessem
esperando que voltasse para lá? Estava disposta a arriscar, era o que sentia que devia fazer.

Á medida em que ficava mais próxima da casa, mais se questionava se o que estava
fazendo era certo. Aquele silêncio estranho continuava, os sons da floresta pareciam muito
distantes. Quando viu o barraco de madeira seus sentidos se alertaram. Era como se Sofia
pudesse sentir no ar todo o mal que havia ocorrido ali nos últimos dias. Uma tensão pairava.
Então um estralo de galho ecoou nas suas costas. Seu coração disparou, e ela se agachou atrás
de uma arvore rapidamente. O que era aquilo? Podia ser alguma cotia ou anta perdida
rondando aquela região, o que era normal. Mas, Sofia não estava tranquila e sua imaginação
vagava por áreas macabras. Esperou ali escondida por um tempo, até reunir coragem e correr
direto para a casa. Ao entrar, se deparou com tudo revirado. Ver aquilo a chocou demais.
Quem teria feito isso? Como a casa era pequena, Sofia encontrou tudo o que julgava
necessário para sua sobrevivência espalhados e jogados no chão com certa facilidade. Sofia se
sentia desanimada, a nostalgia lhe contaminava e não encontrara nenhuma pista valiosa. Já
começava a se despedir da casa quando Sofia ouviu um alerta comum entre os animais que
moram na região.

Ela se escondeu dentro da casa e ficou espiando pela fresta da janela da cozinha. Não
via nada fora do normal. Estava arrepiada e com os sentidos aguçados, em total estado de
alerta. De repente, foi tomada por uma forte tristeza. Junto a tristeza, foi chegando um som de
chuva que caia sobre o telhado que lhe protegia. Então, seu coração estremeceu. De canto de
olhos, em meio as gotas, Sofia percebeu um vulto. Andava de um jeito robótico, que ela nunca
havia visto antes. Conforme ele foi ficando mais visível, ela percebeu que vinha em sua
direção. O medo lhe paralisou. O que fazer? O que podia fazer? De mais perto, o vulto se
revelou com a aparência de um humano comum, porém seus movimentos mecânicos e seus
olhos não pareciam conter vida. Ele se aproximava e a chuva de verão aumentava sua
intensidade e volume. Sofia não o reconhecia, mas seu coração exclamava perigo, mais do que
nunca. Porém, não tinha o que fazer, já não dava mais para fugir, nem para se esconder. Só
podia ser seu fim.

Os segundos pareceram eternidades. No momento em que ele pisou na casa, se ouviu


um forte chamado, um alerta. Sofia congelou, era o grito dos guerreiros da aldeia. O homem
assustador também ficou estagnado ao ouvir o barulho. Sofia podia vê-lo, mas ele não podia
ver ela. Aquele rosto sem vida gerava um mal-estar em Sofia. Ele olhava para o vazio, parecia
fazer contabilizar suas alternativas. De repente, saiu correndo para fora da casa. Nisso os
guerreiros soltaram gritos e saíram em sua perseguição. Sofia ficou mais uma vez sem
entender o que havia acontecido. Sentia que o homem mecânico estava lá para lhe caçar,
tinha a intuição que ele estava envolvido nos desaparecimentos, mas não lhe vinha ideias de
como isso poderia ser possível. Será que eles iriam voltar? Quem sabe com reforços. Ali não
era mais um local seguro e Sofia sabia disso. A floresta ainda era sua aliada, mas sentia que um
mal ainda rondava à sua espreita, esperando que vacilasse de algum modo para lhe
despedaçar.

No dia seguinte, acordou de um agradável cochilo, no aconchego das raízes e da


sombra de uma grande árvore centenária. Porém, assim que despertou, foi sugada para sua
triste realidade. Não se sentia segura, todo lugar parecia perigoso. Não poderia deixar rastros,

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precisava encontrar vários esconderijos pela floresta e nunca dormir mais de um dia no
mesmo lugar.

Sofia viveu os próximos sete anos se virando sozinha, isolada e ninguém soube dela
neste período. Só tinha a companhia das admiráveis rochas, pedras e morros, das raízes,
folhas, flores e frutos, que tanto conhecia e cultivava às escondidas, e dos animais da floresta,
que sempre interagiam com ela. Sentia que o isolamento era ruim e bom ao mesmo tempo, e
essa contradição a atormentava. Ela se sentia mais autoconsciente e sonhadora do que nunca,
tinha orgulho de como conseguia sobreviver sem a ajuda de outro humano, mas a solidão,
também, era melancólica e tediosa, perversa e maléfica. Conforme foi amadurecendo, uma
inquietude foi aumentando violentamente em seu coração, durante seus momentos de crise,
podia sentir, fisicamente, a pressão que essa inquietude causava em seu peito. A vida de
fugitiva não fazia mais sentido para ela. Algo indecifrável berrava e se exclamava em seus
sentimentos mais profundos. Se sentia uma vítima do seu próprio destino, sentia que forças
além da sua vontade tinham o domínio de sua própria vida. Em meio tanta sombra e solidão
sentia raiva de pessoas que nem sabia quem eram. Mas, apesar de toda confusão e a
perturbação mental niilista que a consumia, ela ainda conseguia acreditar, em alguns raros
momentos, lá no fundo, que o espirito humano fazia parte de algo muito maior que sua
vontade e desejos, e que se conseguisse se conectar com a luz de seu espirito enxergaria os
alicerces dos motivos de sua existência. Desta maneira que encontrou as dolorosas perguntas
eternas: “De onde vim? O que sou? Para onde vou? O que eu posso me tornar? ” Passava o dia
esperando que algo grandioso acontecesse enquanto nada fazia e depois se sentia mal por não
ter produzido nada. As noites passaram a ser mais longas e agonizantes. Nada parecia lhe
preencher, estava cansada de sobreviver, tinha perdido o controle da situação há muito
tempo. Não conseguia conciliar o belo canto dos pássaros, o reluzente brilho do Sol, a fluidez
das águas com o vazio sofrimento que contaminava sua alma e com o sentimento
ensurdecedor de não pertencer a nenhum lugar conhecido.

Até que, na noite da véspera de seu aniversário de vinte e um anos, ela teve um
sonho:

Sofia destrancou a porta, entrou em casa e trancou a fechadura. Olhou a sua volta e
viu um envelope posto sobre uma mesa. Não havia nada escrito, então o abriu. Como havia
aparecido ali, era um enigma. Foi atingida por uma sensação de invasão e insegurança. Retirou
o pedaço de papel que estava dentro do envelope e nele leu um endereço. O endereço da
mansão que ficava no fim da estrada. Um tormento psicótico lhe dominou e procurou pela
casa inteira por alguma pista, mas tudo estava exatamente do jeito que havia deixado. O
tormento se transformou em inquietação, que dominou seu corpo, a fazendo ir ao endereço
escrito. Durante o caminho não parava de pensar em sons esquisitos e macabros. Ao chegar
nos limites da propriedade se deparou com um portão de barras ferro, um emblema de dois
dragões mordendo uma lua que mais parecia uma maçã se destacava reluzindo sua prata
opaca. O portão estava aberto e Sofia entrou. Uma estranha floresta rodeava e cercava a
mansão. Ela seguiu por uma trilha entre as arvores hostis que roubavam a luz da Lua, deixando
a escuridão dominar o chão e o medo afligi-la. Caminhou até encontrar uma carruagem
abandonada, puxada por dois cavalos. Quando foi conduzir a carruagem percebeu que um dos

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cavalos era manso e dócil, mas o outro era bravo e rebelde. O cavalo bravo aproveitava
qualquer obstáculo no caminho para incomodar o outro e desafiar Sofia. Com muito esforço,
pouco progrediu, mas conseguiu avistar a mansão aparecendo ao fundo. Nisso o cavalo bravo
ficou mais difícil de ser controlado, e a carruagem não conseguia seguir em linha reta, o cavalo
fazia com que ela ficasse dando voltas em si mesmo. Conseguiu avançar mais alguns metros,
quando fazia com que o cavalo bom permanecesse em controle, mas isso durava pouco. Toda
a dificuldade com o cavalo a irritou tanto que pulou da carruagem e continuou com as próprias
pernas. No caminho, podia jurar que entre todas as arvores haviam pessoas escondidas e em
alguns relances acreditava reconhecer alguns rostos. Ao passo que chegava mais perto da
mansão podia ouvir um canto macabro que pedia poder e riqueza em oferta a sacrifícios.

Uma tempestade explodiu no céu quando Sofia finalmente alcançou a porta de


entrada da mansão. Entrou e pelos corredores seguiu o som do canto nefasto. Nos corredores
haviam milhares de retratos de homens que atravessavam o início da humanidade até os dias
atuais. O canto a levou até uma espécie de anfiteatro, onde o frio dominava o espaço. No
palco estava um trono, que emanava uma fumaça densa e fétida. Na frente do trono estava o
que Sofia julgava ser o Mestre, usando trajes pretos, com o emblema dos dragões em
vermelho. Ao redor dele tinham vinte e quatro cadeiras, nos quais estavam sentados vinte e
quatro líderes, vestidos com trajes vermelhos, com o emblema bordado em preto. Todos
usavam coroas e mascaras de sangue. Sofia ficou parada olhando para essa cena em choque
enquanto o ritual acontecia e ninguém percebia sua presença. Diante do trono haviam seis
tochas acessas e em sua volta, em cada um dos seus lados quatro lados estavam os quatro
sacrifícios deitados, vivos, presos e inofensivos com suas bocas e membros amarrados. O
primeiro era um leão, o segundo era um touro, o terceiro era uma jovem e o quarto era um
águia. Sofia estava paralisada, seu corpo não reagia, a angustia escravizava qualquer
sentimento e o desespero tomava seus pensamentos. Ao fundo, os vinte e quatro começaram
a entoar um novo cântico, suas vozes preenchiam toda a sala:

- Ó Nosso Senhor, Todo Poderoso, que és e que eras! Nós te damos graça porque tu
tens usado o teu grande poder e começaste a reinar! – O Mestre colocou sua capa e estendeu
um fino tapete redondo, gravado com símbolos geométricos e com palavras desenhadas em
uma escrita indecifrável. Depois ele se aproximou dos sacrifícios, agachando. Sacou uma
espada. Sofia podia ver que recitava algo, mas não conseguia decifrar o que. Então em um
movimento rápido, sacou uma pequena espada e deu um golpe certeiro cortando o pescoço
do leão. Sofia estava incrédula. Ele fez o mesmo processo com os outros. Só a jovem que
tentou reagir, se debatendo em vão. E as vozes continuavam a cantar:

- Os pagãos estão muito furiosos porque já chegou o momento de mostrares a tua ira
e a hora de os vivos serem julgados! – Enquanto isso o Mestre desenhou, com o sangue dos
sacrifícios, algo no chão, símbolos parecidos com as letras daquele estranho alfabeto. Com
todo o cuidado do mundo, abriu um antigo livro, e começou a chicotear os símbolos de
sangue.

- Chegou o momento de recompensar os teus servos, os mais importantes, e o povo


que lhe te teme em medo e ignorância! – Dizia o canto, que se mesclava com o som de gritos
agoniantes que vinham dos estalos do chicote. Conforme o Mestre batia com mais força, mais
intenso ficava o canto os gritos.

- CHEGOU O MOMENTO DE DESTRUÍRES OS QUE DIZEM QUE SALVAM AS PESSOAS NA


TERRA! - Então, no ápice da intensidade, as tochas se apagaram, tomadas por uma forte rajada

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de vento, vinda das janelas que se debatiam. Fora da mansão, trovões rugiam e o Sol havia se
tornado escuro. Sofia podia sentir a tensão no ar. No meio da sala, em cima do desenho, um
tenebroso abismo, das profundezas da terra, havia se aberto. Todos se afastaram, apenas O
Mestre que ficou e fez os sinais da conjuração com sua espada ensanguentada, pronunciando:

- O poder para governar o mundo pertence agora a nós! Que somos seus servos, seus
escolhidos! Reinaremos contigo para todo o sempre! Grão-Mestre, se torne visível, se
manifeste! Eu lhe invoco! BIBIT RAPATON PESSANOS KALDONAI, CONJURO VOS PER OMNE
DEOS, QUI VOS CACODEAMONS SITIS, ADESTE MALES SPIRITUS, HEIJUS, MAGNO MAGISTER
MALES* VOS CITÍSSIME CITAT!

Nisso, o silêncio tomou conta da sala. As tochas se acenderam e tudo tinha voltado ao
normal, apenas os sacrifícios, que desapareceram. Aos poucos se desfez a nuvem de fumaça,
que envolvia o trono, e dela surgiu uma criatura com suas poderosas armaduras e armas sujas
de terra. Tinha dois chifres e falava como um dragão. Sofia percebeu que ele possuía uma
autoridade maior do que o antigo monstro que havia surgido do mar nas lendas dos tempos
Antigos. Ao vê-lo, Sofia teve uma visão: Este, forçaria a Terra e todos nela a adorar o antigo
monstro. Faria coisas espantosas, faria cair fogo do céu sobre a Terra. Ele enganaria todos os
povos da Terra, criaria falsos ídolos, e daria a vida a eles, para que pudessem matar os que não
o adorassem. Quando voltou a si, sentiu seu espirito lhe dando forças para sair correndo da
mansão. Sua mente estava um turbilhão, não acreditava no que havia vivenciado. Não
entendia como aquilo era possível, não podia acreditar no que havia testemunhado. Tinha que
fazer algo, avisar alguém que pudesse combate-los. Ao sair da mansão, desesperada, uma
grande multidão já estava lá fora, olhando fixamente para ela. Sofia pôde sentir a atenção e os
olhos daquela massa gigantesca cravarem nela. Então gritou o mais alto que pode sobre a
Verdade, gritou sobre todo o ocorrido que tinha acabado de testemunhas. Poucas pessoas
puderam ouvi-la, pois, a Besta estendia um véu de influência sobre o discernimento da massa.
Aquelas pessoas não conseguiam pensar por conta própria e entender o que estava sendo
dito. Sofia olhou para a massa que a rodeava e agora eles a encararam com ódio. Suas testas
estavam marcadas, assim como as mãos direitas. A massa, enraivecida, começou a avançar,
pronta para despedaça-la. E, de repente, como é possível no mundo dos sonhos, Sofia se viu
em um novo cenário, no topo de um morro rodeado pela vastidão do mar.

A tempestade continuava e rugia para o oceano. O vento criava as ondas gigantescas e


carregava os estrondos dos trovões. A chuva molhava seu corpo e o medo encharcava seus
ossos. Se sentia presa, sendo castigado pelo seu destino. A escuridão era quebrada pelos raios
que caiam dos céus, e assim podia ver seu desespero iluminado. Apesar da vertigem causada
pela altura, que alimentava sua paranoia de cair, iniciou a escalada de descida. Ao chegar na
base do morro, Sofia avistou uma caverna e lá se abrigou. Em meio a escuridão, percebeu uma
chama no fundo, brilhando como uma estrela, lhe atraindo. Era uma pequena fogueira,
ardendo e iluminando o que as sombras escondiam. Numa das paredes da caverna, entre a
oscilação da luz, ela viu seus medos e preocupações, sua raiva e seu ódio escancarados.
Pensamentos apareceram golpeando o controle de sua mente, nem parecendo ser elaborados
por ela, mas que de maneira estranha se identificava. “Qual é minha verdadeira missão na
Terra? Como agir pelo amor de Cristo com os ditadores do Demônio, que fabricam mentiras,
idolatram a dor e roubam nossas riquezas, exploram e matam as individualidades? Uma
revolução é necessária, mas o extremismo vale milhares de mortes inocentes, o povo tem de
ser novamente manipulado? Como dar a liberdade para aqueles que querem ser a pior versão
de si, que espalham o ódio, que lavam as mãos numa torneira de sangue, que impõem a nova

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escravidão e constroem um novo império, que oprime e separa a humanidade? Qual é a
verdadeira justiça que dá forças para superar as minhas antipatias? O que podia fazer no meio
do caos, da podridão, de tanta hipocrisia, tanto orgulho, tanta arrogância, tanta presunção,
tanta cólera, tanta rudeza, tanta ignorância, tanta ira, tanta preguiça, tanto egoísmo, tanta
vaidade, tanto preconceitos, tanto rancor e tanta morte? ” Sentia sua alma pesada como uma
doença cheia de sofrimentos, mas não queria sucumbir a ela. Sentia saudades, tinha medo de
morrer e não os ver nunca mais. Seu peito estava pesado, sua cabeça latejava, sua respiração
ficou ofegante e na fogueira só restava brasas. Então, as assoprou e após algumas tentativas,
as chamas explodiram em sua testa, nariz e maxilar, sentindo o calor arder e queimar sua pele.
No fogo, Sofia viu que o amor é um fruto com semente, o que faz bem para o mundo é cada
um encontrar, em si, uma moral cheia de dedicação, entrega, carinho, respeito e união, que só
a ação ideal, guiada pelo sentimento de comunhão, é capaz de transformar. O calor alimentou
sua fé e num ato de coragem saiu da caverna. Não enxergava nada, mas pressentia um longo
caminho em sua frente. Sem sentir segurança alguma na existência começou a caminhar.
Andou pelas sombras até chegar num portal. Ao atravessa-lo viu o Sol nascendo no horizonte e
iluminando uma fonte de diamante. Ela jorrava a água mais cristalina que Sofia já tinha visto.
Ela bebeu daquela água e conseguiu senti-la expulsando todo seu temor e incerteza. Sentia
uma calma em suas emoções e pensamentos, se sentiu banhada por uma sabedoria que lhe
dava forças para encarar o futuro. “Nada terá valor se nos faltar coragem”.

Sofia acordou um pouco assustada e desnorteada, mas, acreditando que aquele sonho
era revelador de alguma forma obscura. Se levantou com um sentimento renovado,
conservado, em menor dose, o que havia sentido na fonte. Ainda sentia medo, mas também
sentia que as coisas iriam mudar e isso lhe agradava. Esse sentimento percorreu seus membros
e se transformou em força de ação. Imaginou a cabana em que morou até seus catorze anos
em chamas. Esse pensamento foi interrompido por uma voz que disse:

- Você conhece a história dos seus antepassados? – Aquelas suaves palavras vinham de
um ser que estava diante dela. Apesar da curta distância, Sofia não conseguia identificar suas
feições, elas eram delicadas e grosseiras ao mesmo tempo, masculinas e femininas. Os traços
de seu rosto não estavam nítidos. Mas Sofia conseguia enxergar o longo manto marrom,
batido pelo tempo, e coberto por um capuz que o ser vestia. Ele também carregava uma
lamparina que continha uma chama modesta.

- Quem é você? Isso é real?

- Não vem ao caso. Você conhece a história dos seus antepassados?

- Como eu posso confiar em você?

- Você terá que encontrar uma razão. Você conhece a história dos seus antepassados?

- Não cheguei a conhecer meus pais. – Respondeu Sofia.

- E eles não tem antepassados?

Sofia se lembrou dos contos que seus padrastos lhe apresentaram e disse:

- Quando o mundo ainda não existia e as trevas cobriam tudo, uma mulher brotou de
si mesma, a Tataravó do Universo, a não criada. Aconteceu coisas misteriosas para que ela
pudesse nascer e criar o Cosmo. Ela gerou cinco trovões, ordenando-os que imaginassem um
modo de fazer luz, rios e os futuros ser humanos. Eles responderam que assim fariam, mas

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nada fizeram, pois só queriam sossego e eram amantes da preguiça. A tataravó, para se
acalmar diante da ineficiência da sua criação, fez uma grande oferenda de frutos e chá
mágicos. Os trovões, que nada sabiam da oferenda, comeram os frutos e ao beberem o chá
tiveram visões proféticas enquanto vomitavam. Depois dessa experiência eles partiram rumo
ao oeste. Eles endureceram e viraram a Cordilheira da Muralha Sagrada, que ia do céu a terra.
A tataravó ficou muito triste e decidiu criar um outro ser, um que lhe obedecesse. Assim
nasceu o Senhor do Trovão, o criador da luz, que enfrentou o Terrível Morcego em seu covil de
sombras, no alto da Cordilheira. De sua vitória surgiu o Sol. Para criar a primeira mulher e
primeiro homem, ele fez estatuas de barro e água. Depois de queimar as estatuas, no fogo, ele
soprou a vida dentro deles. Assim, atraindo os espíritos do bem e do mal. Com o que sobrou
da argila, o Senhor criou os animais, as plantas e as rochas. O primeiro casal, então, viveu em
harmonia, até que um dia o primeiro homem não conseguindo caçar e ao ver que a chuva
havia destruído sua oca, ficou bravo por seus fracassos, e desconta sua raiva numa briga
domestica com a primeira mulher. Na briga ele ameaça destruir o mundo construído pelo
Senhor do Trovão. Nisso a mulher corre para a floresta e retorna com um caule oco,
preenchido com semente. Ela havia criado o instrumento sagrado. Batia o instrumento no
chão e o barulho das sementes se chocando criava um ritmo que encantou o inteiro. Então, ela
começou a cantar um hino sagrado sobre o amor deles e o lamento de seus futuros filhos.
Maravilhado com o que presenciava, o homem, caiu em lágrimas pedindo desculpas,
prometendo que não iria mais destruir o mundo e sim se dedicar a ele com seu trabalho
regado pelo amor dos deuses e mesmo que ficasse frustrado com seus fracassos nunca mais
descontaria nela. E assim, em amor e harmonia, povoaram o mundo.

- Estes são os ancestrais comuns de todos os humanos, os que ficaram. Apesar de cada
povo contar a sua versão...- rebateu o ser misterioso, que continuou – essa versão contada por
você vem das tribos da quarta geração, acho que você as chama de Vermelhos, sabia?

- Fazia ideia, mas pouco sei sobre a verdadeira história deles – respondeu Sofia,
percebendo estar num vale entre duas montanhas gigantescas e magnificas, diferente de
todas outras que já haviam visto em toda sua vida. Parecia terem sido construídas da base ao
topo. Sofia achou que as montanhas se pareciam com seres híbridos, com características
humanas e animalescas. Na montanha da direita, via um ser sem pés, tinha asas de aves e
possuía uma glamorosa coroa em sua cabeça. Na da esquerda via um ser com pernas e chifres
parecidos com de um bode ou de uma vaca. O ser da direita acenava com as mãos para cima,
já o da esquerda, para baixo. Sofia não acreditando na dimensão da suposta obra, perguntou –
se meus olhos não me enganam, há dois seres esculpidos nessas montanhas, o que significa
isso? Foram as tribos da quarta geração que as fizeram?

- Seus olhos estão certos, porém eles não conseguiram ver que há três seres
representados aqui. O caminho do meio, a passagem entre essas duas criaturas gigantescas,
representa um outro deus, que ainda não havia se manifestado na Terra em sua plenitude
naquela época, mesmo assim, poderoso, simples e belo, o deus do poder da justiça e equilíbrio
espiritual. Mas agora não é hora de falarmos deles.... Aqui era a entrada de um antigo Império
desse povo remoto. Nas eras em que os deuses ainda andavam entre os humanos. Poucos
registros deles ainda sobrevivem às provas do tempo e da memória terrestre. Eles eram um
dos quatro descendentes diretos dos Primeiros Humanos. São seus remotos ancestrais.

- Logo nos primórdios da existência terrena dos humanos, no antigo continente, – o ser
continuou a falar – há milênios de anos, esse povo se destacou perante a selvageria comum
que acontecia na Terra naquela época. Desenvolveram sentimentos até então desconhecidos

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para a humanidade geral. Ainda possuíam fortes traços de uma alma coletiva. O líder das
tribos sempre era posto à prova, tendo que saber se impor, nos momentos precisos, de
maneira, cada vez mais, forte e criativa. Desde o início esse povo cultuou os animais, primeiro
foram as vacas e touros, depois os felinos e então as águias. Possuíam uma relação muito
intima com a Natureza, numa espécie de consciência onírica. O mundo ainda compartilhava
sua memória com eles, e assim se tornaram extremamente poderosos. Foram os verdadeiros
Guardiões dos Segredos das Vontades do Mundo, uma força que hoje seria chamada de
mágica. Porém, logo, descobriram o orgulho, pois herdavam e cultivavam lembranças de
antigas disputas de seus antepassados, isso era possível através da herança sanguínea. Com
isso, os Segredos se tornaram perigosos, muito perigosos. Edificaram, talvez, o primeiro
Império que a humanidade viu na Terra. Educavam os filhos do Império segundo as mesmas
tradições, desenvolviam neles os dons mais ligados ao instinto, não procuravam tornar a
inteligência desperta e sim apresentar aspectos da vida em imagens. Nessas condições, a
experiência pessoal foi, cada vez mais, ganhando maior importância. Nesta era, os primeiros
Sábios, que recebiam, das alturas, a iluminação e sabedoria das leis eternas da evolução,
foram obrigados a ensinar seus conhecimentos para o Imperador, para seus generais e sua
corte. O Império, a partir daí, tinha em suas mãos um poder imenso, colossal. O povo se
dedicava e se entregava completamente ao Imperador, que possuía a mais alta veneração. A
personalidade dele e de seus mais próximos cresceram junto com o poder, e cada vez mais
queriam provar o seu valor, sentir que valiam algo. Começaram a usar as suas forças para
serviço próprio. O orgulho havia florido e seus frutos eram um puro egoísmo de abuso do
poder. Eles manipulavam os domínios das forças vitais, criavam florestas como seus jardins,
remodelavam os relevos apenas para agradar suas vistas e necessidades. Usurparam um
grande poder da Natureza para colocar à serviço pessoal. Assim seguiu, os séculos passaram, e
seus descendentes continuaram com o mesmo comportamento, abusavam das forças de seus
domínios, para satisfazer desejos e instintos. Até que um dia a Natureza, não aguentando mais
ser abusada, se vingou daquela pretensão, arrogância, altivez, presunção, orgulho, vaidade e
egoísmo humano. Enormes catástrofes abateram esse povo, os levando a quase completa
aniquilação. Milhões morreram. Choveu por anos, sem cessar. A água trouxe a ruína de
construções que haviam resistido por milênios. Devastaram e inundaram o glorioso Império.
Montanhas viraram ilhas, planícies foram cobertas pelo oceano expandido, os rios
aumentaram, remodelaram toda a região e engoliram o antigo continente. Essa ação
destruidora só pôde ser contida quando alguns dos remanescentes desenvolveram, dentro de
si próprios, uma força superior, a força mental. Aprenderam a usar o pensamento lógico para
refrear desejos egoístas. Foram além da simples recordação do passado e da comparação das
diferentes experiências, como antes. Desenvolveram o raciocínio, criando leis morais capazes
renunciar de determinados prazeres. Passaram a ouvir uma voz interior capaz de combater o
desejo de se entregar a selvageria da satisfação de seus instintos, mas ainda não capaz de
destruir as exigências da personalidade. Ao adquirir a força mental perdeu-se o domínio dos
Segredos das Vontades do Mundo e ganhou-se a capacidade de manuseio das forças minerais.
Os que dominaram a força mental, partiram para o Oeste e fundaram o Reino do Extremo
Oeste e para as Terras Desconhecidas das Tradições. Os que ainda tentaram viver segundo a
antiga cultura decadente ficaram destinados a fraqueza e a nostalgia, hoje sendo tratados
como rudes ou selvagens. Alguns desses remanescentes podem ser encontrados em esparsas
aldeias no litoral sul, no coração da Grande Floresta Ancestral e nas ilhas além da península.

- No ponto de partida se pode perceber o fim e no fim se pode ver o ponto de partida.
A história é escrita em estradas que se cruzam e se repetem. E agora, chegou o momento de

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você trilhar seu próprio caminho Sofia! Através da escuridão do futuro o passado se estende. A
magia espera para despertar novamente, de uma nova maneira. Em uma balada entre
mundos, caminhe e atravesse o fogo. - Quando Sofia foi começar a segui-lo, o ser se virou e
voltou a dizer:

- Espere, - acenando com a mão - este é o futuro ou o passado? Isto é um sonho? Um


sonho dentro de um sonho? Isto é real? Ou a realidade é um sonho? - Perguntou e deu uma
longa risada sinistra. Sofia ficou assustada, não sabia o que responder, não sabia o que
significava a interação com esse estranho ser. - Eu quero dizer exatamente o que disse. Eu
também já fui tocado pelo Maldito. Mas quando vi a face de Deus... ah... eu mudei! Eu
reconheço a sua história.

CAPITULO 2.

O Sol raiou, iluminando os prédios exuberantes da Grande Cidade, esquentando suas


ruas, que exalavam a fedentina particular dali; uma mistura de cheiro de gente com temperos
exóticos. A luz acordava os pedreiros, os comerciantes, os vigias e dava boa noite para os
boêmios, os trabalhadores noturnos, os suicidas subversivos. A agitação nascia novamente.
Podia ser ouvido o barulho dos transportes, dos mendigos, dos ricos, dos sevandijas, dos
estudantes se intensificar. Todo dia a Cidade atraia mais pessoas, que chegavam de diferentes
lugares, alguns procurando ganhar dinheiro e outros para gasta-lo. No centro da Cidade é onde
acontecia as atividades comerciais, no Mercado Central. O mercado era distribuído em uma
rua que iniciava desde a base da cadeia de morros, que cortava a Grande Cidade, e
desembocava na orla da Praia. Ao longo dela, centenas, quem sabe até milhares, de barracas
vendendo os mais distintos produtos, desde industriais, a caseiros manufaturados. No meio de
toda a gritaria dos vendedores e dos ambulantes, um garoto e uma garota conversavam no
começo da rua:

- Eu não acredito que você está aqui! Você anda me espiando? – Perguntou a menina,
desconfiada.

- Eu estou tão surpreso quanto você. Mas mentiria se dissesse que não to com
saudades. – Ele respondeu envergonhado.

- Como você é... Você anda me espionando?

- Claro que não P. Isto é uma mera coincidência.

- Nós moramos na mesma ilha, há centenas de quilômetros e se encontramos


justamente aqui na Grande Cidade. Me parece muito suspeito.

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- Eu não tenho culpa P, juro para você. – Insistiu o garoto.

- Então me explique direito o que você está fazendo aqui. Não acredito em você!

- Você deveria ter mais consideração por mim!

- Se me contar a verdade, talvez eu demonstre minha consideração. – O garoto sorriu


largamente com essa resposta e disse:

- A Sra. Rá me enviou aqui.

- Por qual motivo Q?

- Não posso falar.

- Por que?

- Porque ela me ordenou.

- Ordenou o que?

- A não falar o que eu vim fazer aqui

- Meu deus, tenha dó!

- E quem disse que você que não é você que está me espionando? Vai dizer que você
não gosta mais de mim e não tem saudades?

- Como você se atreve a sugerir isso? Eu espiando você... Até parece, vim aqui cumprir
uma tarefa que o Sr. Hak me deu! Saudades? Posso até sentir...digo, saudades de saber de
você.

- Viu! Saiba que eu também... – continuou, envergonhado – mas qual tarefa ele te
delegou?

- Algo mais importante do que você e sua mestra estranha devem estar aprontando.
Aposto que está aqui para comprar algum ingrediente raro e provavelmente ilegal para algum
experimento.

- Isto não é da sua conta. E se o que você disse é verdade é porque você que está me
espionando!

- Não foi difícil deduzir a lógica e pela sua reação estou certa.

- Sim – disse rindo. - E você o que está realmente fazendo aqui?

- Eu vim para observar o que está acontecendo na Cidade, mas, para ser sincera, nem
sei o que devo observar.

- Como assim? Você acha que a Sra. Rá e o Sr. Hak armaram para gente se encontrar
aqui?

- Acho difícil, me parece uma obra do acaso mesmo. O sr. Hak anda tendo sonhos
estranhos, acho que tem algo a ver com a profecia.

- A PROFECIA?

- Fale baixo! Você é muito impulsivo Q!

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- Me fale! Por favor!

- Aqui não é hora, nem lugar para falarmos disso! Agora vá fazer suas tarefas que eu
tenho as minhas para fazer. Apesar de tudo, foi bom te encon...

- Espere, o que está acontecendo ali? – Disse Q. Eles se aproximaram do pequeno


aglomerado, de onde vinham os gritos desesperados, no meio de multidão:

- QUEM SÃO VOCÊS? O QUE SÃO VOCÊS? QUAIS DE VOCÊS RAPTARAM MINHA
FAMILIA E AMIGOS? QUEM DE VOCÊS SE ATREVEU A ME CAÇAR NA MINHA PRÓPRIA CASA?
ME SOLTEM! PAREM, ESTÃO ME MACHUCANDO! EU NÃO FIZ NADA!

- Mais alguém deve estar sendo preso por discordar da política atual – disse P – Mas
sinto que algo está estranho, esses gritos... Me parecem familiar, mesmo não reconhecendo
de quem a voz é. – Quando terminou de falar, os dois haviam penetrado a roda que
aglomerava em torno da confusão e viram três homens-maquinas batendo covardemente em
uma jovem mulher indefesa, que resistia ser levada por eles – Será que devemos fazer algo? –
Perguntou P. Q nem respondeu, pois, no final da pergunta já estava avançando contra os
homens maquinas. Então tudo aconteceu numa fração de segundos.

Q empurrou um dos homens-maquina gritando:

- Solta ela seu sem espirito!

No momento em que os dois se embolaram no chão, os olhos de P e Q se


encontraram, e pareceu que naquele momento seus pensamentos eram compartilhados e que
bolaram um plano juntos instantaneamente. P foi para cima dos outros dois homens-maquina
num grito estridente:

- Ele é um discípulo da Ordem dos Sábios, vocês não têm ideia com o que vocês estão
lidando! - Quando os homens-máquina ouviram aquilo ficaram paralisados. Seus olhos frios e
mortos fitavam o nada. Então tomaram uma decisão. Um deles foi em busca de reforços e o
outro foi acompanhar seu parceiro na briga que aumentava de intensidade. No momento em
que o homem-máquina soltou a menina, P falou:

- Vamos embora!

- Que? Quem são vocês? – Respondeu a jovem assustada.

- Rápido, enquanto eles estão distraídos.

- Posso confiar em você? – Perguntou a garota, dando sinais de exaustão. P a olhou


nos olhos e as duas sentiram uma espécie de atmosfera de confidentes e cumplices, como se
elas já se conhecessem.

- Pode! – Respondeu P dando a mão para ela.

Assim que elas dispararam sentido a praia, os homens-máquina, que lutavam com Q,
se realizaram da falha que cometeram, dando tempo suficiente para Q também sair correndo.
Elas fugiam em meio à confusão rotineira do Mercado Central. Passavam entre as barras, os
produtos, os comerciantes, os ambulantes, os clientes. Alguns a ajudavam na fuga, já outros
sinalizavam aos guardas e aos homens-maquina recém-chegados por onde elas haviam
passado. Quando elas finalmente atingiram o final da rua, se encontraram com Q, que disse:

- E agora?

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- Precisamos fugir. Eles sabem de quem somos discípulos.

- Graças a você.

- Não tinha o que fazer, precisava distrai-los. Não tempos tempo para isso, e ela?

- E você? – Disse Q, se virando para a mulher.

- E eu? – Ela respondeu.

- Sim, você. Temos que fugir! – Falou P, olhando para trás e vendo um grupo de 12
homens-maquina se aproximando.

- Eu não tenho para onde ir, cheguei hoje aqui!

- O que que aconteceu? – Perguntou Q

- Não dá tempo, eles estão chegando. Não temos escolha, temos que a levar conosco.
Quer ir com a gente?

- Sim!

Então, os três, logo, se camuflaram entre os milhares de pessoas que transitavam pela
Estrada da Barriga. Eles seguiram sentido o Porto do Fim da Enseada, com a praia e o mar azul
esverdeado cristalino a suas direitas em contraste com o caos estético da sujeira, vielas mal
construídas e construções cinzas as suas esquerdas. Q ia na frente tomando todas as decisões.

- Muito estranho, – ele disse – achei que enfrentaríamos vários bloqueios, mas a
estrada está livre de guardas e homens-maquina.

- Pode ser alguma armadilha. – Complementou P, como se tivesse pensado alto.

Caminharam durante algumas horas e chegaram no Porto do Fim da Enseada sem


problemas. O porto ficava em um morro que abraçava o final da Estrada da Barriga. Do lado
morro seguro do mar saia infinitas docas, nas quais estavam atracados diversos barcos de
passeios, navios de turismo e de importação (já que o porto de exportação ficava ao norte da
ilha, na Região da Asa). Do lado oeste do morro ficavam uma grande zona residencial, cheio de
hotéis, bares, bordeis e estalagem. Entraram escondidos na área de embarque da doca e quase
deram de cara com os doze homens-maquinas em uma barricada.

- Então é por isso! – Exclamou Q puxando as duas para trás.

- Eles sabem como chegamos por aqui, e é impossível chegar nos nossos barcos sem
passar pela área de embarque. Temos que pensar no que fazer, se os homens-máquinas nos
pegarem a noite, vai ser bem pior.

- O que são eles? – Disse a garota depois de muito tempo calada.

- Como assim?

- O que são esses sem espirito, esses homens mecânicos? – Quando a garota
perguntou novamente os doze homens-maquina se alertaram, como se estivessem
procurando a sua voz. P e Q perceberam essa movimentação e ficaram sem saber o que pensar
e fazer. Eles achavam que era atrás deles que eles estavam, não atrás dela. Quem seria essa
garota? – Eles estão vindo! – Ela alertou.

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- Não consigo enfrenta-los. O que vamos fazer P?

- Acho melhor buscarmos refúgio no Morro do Casamento dos Mares e contar com a
sorte!

- Vamos pela mata, me sigam! Por aqui!

-Uau! Como aqui é lindo. Olha, aquela pedra parece um monumento esculpido! - Disse
a garota

-É maravilhoso! – Concordou Q contemplando a paisagem.

- Aqui é mesmo maravilhoso, mas vamos! Precisamos chegar antes da maré encher. –
Apontou P. Os tons do final de tarde já tomavam o céu e a Lua já começava a reluzir seu brilho.
O morro ficava entre duas praias, na maré baixa, um corredor de areia dava passagem até ele,
porém, na maré alta, os mares se encontravam e se abraçavam, se mesclando, completando o
contorno, o transformando numa ilha protegida. Apressados, os três conseguiram chegar
antes da passarela de areia sumir. Ainda estavam tensos e escalaram até o topo do morro para
ter uma visão melhor. Lá enxergaram os doze homens máquina, que os caçavam, na areia,
esperando que a passarela surgisse novamente. - Temos algumas horas até a maré abaixar.
Estamos protegidos por enquanto. Aqui é um solo sagrado, as tradições a consideravam um
lugar mágico, lar de espíritos guardiões e refúgio de espíritos que ainda não estão prontos para
a travessia dos mares da inconsciência. Eles nunca se atreveriam a invadir aqui!

- Deve ser a proteção os antigos Sábios Andarilhos que moraram por aqui antes de
irem para a ilha ao Sul. – Disse Q.

- Primeiro eu gostaria de agradecer vocês por terem me salvado e ajudado, mas estou
cheia de perguntas. Quem são vocês? A Ordem dos Sábios? Ela realmente ainda existe e vocês
fazem parte dela? Quem são os sem espirito? Não estou entendendo nada. O que que está
acontecendo? – Perguntou a mulher.

- Desculpa, esquecemos de nos apresentar. Eu sou o Q e ela é a P. Nós somos ainda


aprendizes, mas um dia pertenceremos oficialmente a Ordem. Ela já não tem a glória, nem a
força, nem o número dos tempos antigos, sabe? Mas na ilha dos Sábios ela ainda está viva e
ativa.

- Os sem espirito é como chamamos os Homens-Maquina. – Continuou P.

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- E o que são eles? – Perguntou a garota, de novo.

- Eles são soldados do Grande Cidade. Não são nem humanos nem máquina. Foram
criados recentemente, para manter a ordem na Cidade. Mas não sei a verdadeira origem
deles. E você? Qual seu nome? O que que aconteceu no Mercado Central? Você não é daqui,
né? Nós também estamos sem entender.

- Meu nome é Sofia, um prazer conhece-los. Agradeço novamente por terem me


salvado, ainda estou confusa e não lembro exatamente tudo que aconteceu. Eu estava em
êxtase, maravilhada com as construções altas e imponentes. Porém, algo já me incomodava
desde meus primeiros passos depois da magnifica Ponte Brilhante. Me senti sendo perseguida
por olhares vorazes e mesmo assim continuei. Quando cheguei no Mercado ouvi uma voz fria,
aguda e estranhamente familiar dizendo que eu era o alvo. Depois de ouvir isso fiquei
paralisada de medo e quando me dei conta já estava sendo atacada pelos homens-máquina.
Fiquei desesperada, pois quando eu tinha catorze anos um deles me caçou e por pouco não
me capturou. E eu ainda desconfio que outros deles raptaram meus padrinhos e a velha
curandeira da aldeia ao Sul. – Então Sofia contou os acontecimentos daquela época. A cada
fala de Sofia, P parecia ficar mais intrigada, e Q ficava mais intrigado por não entender como a
história da vida de Sofia lhe impactava tanto. – Então eu vim para Cidade que eu nasci, tentar
entender um pouco mais da minha história e dos meus pais. – Encerrou Sofia.

- A profecia! – P pareceu desabafar.

- Ela está ligada com a profecia? – Indagou Q.

- Que profecia? – Perguntou Sofia.

- Não sei ao certo Q, talvez. Dificilmente os caminhos se cruzam desta maneira. Acho
que este nosso encontro há algo mais que o acaso, apesar do que disse mais cedo, mas tudo
ainda não está claro para mim. Não sei o real proposito e temo falar mais do que realmente
sei. O sr. Hak estava perturbado com seus sonhos e não conseguia tocar sua harpa. Ele me
disse que algo aconteceria em breve na Grande Cidade e antigas profecias iriam ressurgir. Por
isso deveria ir na Cidade observar se algo incomum estava acontecendo. A ordem dos Sábios
existe há muito tempo, como diz as antigas lendas. – Disse P se dirigindo a Sofia - Cada Sábio é
um professor e tem um discípulo. Sou discípula do Sr. Hak, já Q é discípulo da Sra. Rá. O Sr. Hak
domina a arte da música e canta hinos e profecias que surgem em sua alma.

- E a Sra. Rá é uma excelente alquimista e artista!

- Há algum tempo ele vem tendo pesadelos com uma balança que nunca consegue
entrar em equilíbrio. Ontem, ficou frustrado por errar algumas notas e parou de tocar. Então,
começou a recitar um antigo cântico, não entendi direito, mas era mais ou menos sobre a
primeira deusa, a pura sabedoria, filha do silêncio e da profundidade. Ela, um dia, se
apaixonou pela própria luz o que fez com que caísse em seus abismos, cheio de caos e
desespero. Lá, de seus pensamentos e sentimentos nasceram os mais variados seres,
demônios, seres da natureza e seres celestiais, que povoaram o Cosmo e construíram a Terra.
Isolada, vendo o seu destino e o mundo imperfeito que criara se sentiu envergonhada e
chorou aos prantos, lamentando e desejando ser resgatada pelo poderoso espírito Solar. Até
que um dia Cristo, lhe presenteia com os tesouros da humanidade, a coroa de espinhos, os
pregos que haviam sido pregadas na cruz e o cálice da última ceia para ressureição dela.

- E o que isso tem a ver com a profecia? Essa é a profecia? – Perguntou Q.

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- E o que eu tenho a ver com isso? – Perguntou Sofia na mesma hora.

- Quando ele terminou, eu perguntei que canto maravilhoso era aquele. Ele me
respondeu que a antiga profecia o havia inspirado a canta-la, e que talvez seus sonhos fossem
sobre ela. Imediatamente ele me enviou para cá. Sem mais explicações. – Disse P respondendo
Q e se virando para Sofia, perguntou - A profecia é inspirada na Deusa da Sabedoria, você sabe
o significado do seu nome, não é?

- Sei, mas isso não quer dizer que eu sou uma deusa ou qualquer coisa do tipo! Eu nem
sei se me acho sábia. – No fundo ela se achava.

- Não foi o que eu quis dizer. É um palpite da minha intuição e acredito que estou
certa. Eu não sei o que diz exatamente a profecia. Só acredito que você esteja envolvida, assim
como eu e Q agora também estamos. Há muito tempo que os Sábios estão incomodados, não
é verdade? E vê-los assim sem saber o porquê, também estava me incomodando. Me dediquei
a entender a situação e paguei os preços sozinha. Cheguei a conclusões, existe uma guerra nos
Mundos Invisíveis, e a batalha mais importante será travada aqui na Terra. Desconfio que o
mal já se materializou e ronda por aqui, vocês já tiveram essa sensação? Acredito que foi esse
suposto mal que você ouviu, Sofia, dizendo que você era o alvo. Você é o alvo, assim como as
trevas queriam a Deusa pra sempre nos abismos. Eu sei que é estranho, mas tenho dedicado
minha vida para entender essa história, para mim ela faz todo o sentido e falar assim soa vazio
e superficial. Mas me ouçam, lá no fundo de seus corações esta verdade lhe será revelada.

- Então foi por isso? – Perguntou Q.

- Este é o propósito de nós termos se encontrado aqui. Viemos por estradas distintas,
mas fomos destinados a nos encontrar aqui, imersos por circunstancias externas. Nos
encontramos na Cidade, por acaso, como pode parecer, levados por missões aparentemente
diversas. Porém acredito que isso já foi traçado por tramas superiores além da nossa
compreensão neste momento. Quantas pessoas circulam pela Cidade? Quais as chances de eu
encontrar meu ex-namorado lá, mesmo morando na mesma ilha que ele há centenas de
quilômetros? Quais as chances de justo nós, discípulos dos Sábios estarmos presentes em seu
rapto? Quais as chances de o discípulo mais impulsivo estar ali para agir perante aquela
injustiça? Quais as chances da minha intuição ter ligado o que ouvi do meu Professor com seu
nome? É estranho, mas digo que nós três que estamos aqui encontremos uma solução para o
perigo que percorre o mundo contemporâneo. Vou compartilhar minhas descobertas:

- Há cerca de 1965 anos os Andarilhos, que eram formados pelos Sábios e por doze
famílias, viram de longe a luz resplandecer nos arcos majestosos da Ponte Brilhante, edificados
nas pedras vermelhas e verdes, amarelas e douradas, com esmeraldas cintilantes. “Esta ilha já
foi chamada de Passagem Estreita e de Lar dos Caranguejos, mas nós chamaremos de Ilha do
Nascer do Sol, pois é o ponto mais ao leste que conseguiremos atingir! ” Disseram os Sábios ao
atravessarem a ponte. A ilha, além de ser coberta pela Floresta dos Ancestrais, era repleta de
rios e mangues. Como ela tinha formato de uma espécie de criatura, com asa, boca, membro
inferior e superior e calda, foi fácil batizarem as regiões, que permanece até hoje. Os doze
casais, se estabeleceram no centro, na região do coração. Já os Sábios foram em busca de um
morro, na região dos membros inferiores, lar de antigos anciões da Quarta Raça. Este morro
em que estamos.

- Durante sete anos, os Sábios, iam ao centro, ajudar a estruturam uma comunidade
com os doze casais. Eles aprendiam imitando os movimentos dos Sábios, eram influenciados e

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englobados pelos seus sentimentos e pensamentos. Construíram abrigos, aprenderam
trabalhos manuais, transformando a natureza em roupa, ferramentas, utensílios. Aprenderam
como cultivar, harmoniosamente, os reinos mineral, animal e vegetal locais, segundo as leis
dos astros celestes, das estacoes, e das forças espirituais. E assim, durante sete anos, gozaram
da bondade do mundo. Depois os Sábios passaram a ensinar-lhes através de vivencias, os
faziam observar e comtemplar, com o coração, a Natureza e em seguida relatar os fenômenos
observados, no dia seguinte, discutiam sobre como aquilo poderia ser explicado e aprendido.
Passaram a venerar a história da Tradição Humana e as ciências do mundo, como a
matemática, o direto e as leis, a ginastica, a história, a química, as línguas, a física, a partir da
autoridade dos Sábios, que compartilhavam e doavam seus conhecimentos e sabedoria
através da arte. E assim, durante sete anos, gozaram da beleza do mundo. Então, finalmente,
os Sábios puderam ensinar através do amor universal que reina na essência da Natureza
externa e interna dos humanos, explicaram o porquê da ciência da vida deve conter arte e a
arte da vida deve conter ciência. Relevaram que a humanidade é uma grande irmandade e que
em cada individualidade há uma missão especifica, que se relaciona com a meta coletiva
daquela época e da humanidade como um todo, mas que isso ainda estava despertando na
consciência comum dos humanos. E assim, durante sete anos, gozaram da verdade do mundo.

- Após os vinte e um anos passados de ensinamento e estabelecimentos os Sábios, por


terem cumprido seus objetivos, deixaram a Comunidade da Ilha do Nascer do Sol e se exilaram
ao Sul, aonde moramos, numa ilha redonda entre a foz de um rio, chamado de Rio Divisório, e
o mar do Leste. Quando os Sábios partiram, a Comunidade já tinha cento e quarenta e quatro
habitantes, que conviviam em paz. Cada família se firmou em uma região da ilha, uma nas
mandíbulas, outras na asa, outra no pescoço, nos membros, na calda. A região do coração e a
Praia Central era um local comum, o Centro da Comunidade, onde as famílias se encontravam
para discutir questões coletivas, fazer comercio, consumir arte ou apenas para encontrar bons
amigos, hoje, o que restou dela se transformou no Mercado Central. Todos trabalhavam, cada
qual com suas faculdades e virtudes, se entregavam ao trabalho, pois este era escolhido pela
aptidão, amor e dedicação, visando o bem comunitário e uma satisfação existencial. Alguns
produziam mercadorias e as comercializavam, outros dispunham de seus serviços. A riqueza
não parava de circular, não se concentrava, e os lucros excedentes era doado para manter os
professores, os curandeiros e médicos e os produtores de cultura, os cientistas, artistas e
religiosos, não no sentido atual, mas com uma conotação sacerdotal pura. Todos eram iguais
perante a lei dos Sábios e do senso geral, todos tinham as mesmas oportunidades, direitos e
deveres de se desenvolverem segundo suas personalidades. Portanto eram livres para serem
quem quisessem, cada qual cultuando Deus à sua maneira e ideias, com rituais próprios. Vivam
em verdadeira fraternidade, igualdade e liberdade.

- Então algum desequilíbrio aconteceu. Talvez aí que Mefistófeles tenha iniciado sua
nova manifestação na Terra. Ainda não sei dizer o que realmente aconteceu. O organismo
social da Ilha do Nascer do Sol passou a adoecer, as individualidades tornaram-se cada vez
mais egoísta, mais inclinadas ao medo e ao prazer instantâneo. Dentre toda a população
acredito que havia vinte e cinco pessoas que se destacavam pelo egoísmo. Eram sensíveis a
esse desequilíbrio, que os inspirava no mais profundo subconsciente. Até que um deles, o
futuro Mestre, emergiu essas forças às luzes de sua consciência de vigília e descobriu a origem
da ciência Mefistofélica e decidiu compartilha-la com os outros vinte e quatro simpatizantes.
Se comunicam por códigos e se cumprimentam por sinais. Sempre vestem mascaras nos
encontros organizados pelo Mestre, ninguém além dele sabe a verdadeira identidade dos
outros. Se chamaram de Assessores, ou pelo menos é assim que eu os chamo. Acreditam que

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Mefisto e seus vassalos lhe presenteavam com a liberdade de dominarem a Terra. Iniciaram
dominando a Comunidade. Os Assessores se infiltraram, as escondidas, nas mais diversas
estruturas sociais. A meta deles era prender as pessoas no próprio egoísmo, distancia-las do
fogo espiritual interior, dos seus semelhantes, da Natureza, do mundo, e assim reinar segundo
as leis do Grão-Mestre Mefistófeles.

- Durante as reuniões, foram aprendendo as ciências que vinha dele. A que mais lhe
chamaram a atenção e deram mais importância era a ciência de manipular outro humano,
plantando pensamentos e desejos em seu subconsciente.

- Descobriram que fenômenos inconscientes desempenham um grande papel na vida


orgânica, nas funções emocionais e intelectuais, e que a vida consciente representa apenas
uma pequena parcela se comparada com a vida psíquica inconsciente, lar dos verdadeiros
motivos da maioria das ações cotidianas e que é fortemente influenciada pelo meio e pela
hereditariedade. Nesta ciência, aprenderam sobre a influência que um grupo de pessoas
exerce sobre uma individualidade, seja qual for a ligação e intenção que as torne um grupo.
Um indivíduo, sob determinadas condições, é capaz de abrir mão da sua autoconsciência para
se adequar as vontades, por mais conflitantes e contraditórias que sejam, de uma consciência
coletiva. Mesmo essa estrutura psíquica se desenvolvendo de maneira diversa em cada
pessoa, ela tem um ponto em comum, inibir as personalidades individuais e um fundamento
inconsciente, semelhantes a todos, se ativa e lhes direciona, dando lhes novas qualidades e
defeitos, envolvendo suas consciências em um só estado semelhante à de hipnose ou de
sonho, em que o sentimento se torna ação de imediato, sem qualquer ponderação pessoal de
ética ou moral. Instintos que seriam refreados, se estando sozinho, afloram através do caráter
anônimo e irresponsável do grupo, dando-lhes uma sensação de poder invencível e de
onipotência. Os Assessores aprenderam sobre as qualidades psíquicas grupais da humanidade,
confirmaram que nela a individualidade e o discernimento consciente desaparecem, que
impera, exclusivamente, uma nova personalidade inconsciente e coletiva, que segue a
orientação de pensar, sentir e querer por meio de sugestões, ordens ou pelo contagio, agindo
imediatamente, não seguindo ideias próprias, mas externas. O grupo de pessoas, ou a massa, é
impulsiva, instável, irritável e imprevisível, deseja apaixonadamente e não suporta qualquer
obstáculo à realização de suas vontades. Ela pensa por imagens, seus sentimentos são sempre
simples e muito exagerados, não conhecem a dúvida nem a incerteza, só a antipatia,
crueldade, brutalidade, destruição, ódio e instintos, que dormiam como restos dos tempos
mais selvagens, são despertos e livres. Sabiam que a massa está sempre sujeita ao poder das
palavras ditas com devoção, seja para provocar terríveis tempestades ou imensas calmarias, a
massa recua da realidade diante dessa magia. Estavam certos que basta um grupo de animais
ou de humanos estarem reunidos para procurarem, instintivamente, entre eles, uma
autoridade, um chefe, que se nomeie seu senhor, para se subordinarem. A massa por possuir
espontaneidade, ferocidade, entusiasmo e violência, se atrai por líderes com essas mesmas
qualidades, pois, inconscientemente, necessita teme-los, ser dominada e reprimida. No
entanto, este líder tem que, por suas qualidades pessoais, estar intensamente fascinado por
sua própria fé e possuir uma vontade forte e imponente para despertar a massa desprovida de
vontade e fé, tem que agir sobre ela pintando imagens forte e exageradas, repetir sempre o
mesmo tipo de discurso. A massa exige a imagem de força e violência de seus heróis. Esses
líderes se tornaram as marionetes dos Assessores.

- Os primeiros foram os Senhores de Negócios. Os Assessores se infiltraram nesse meio


e foram os contaminando aos poucos, incitando-os à cobiça. Os Senhores passaram a se sentir

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mais poderosos e importantes que o resto da população. Ganharam um novo sentimento de
autoridade, deixando-os capazes de tomar o que queriam pelas próprias mãos, embasados na
lei da natureza, na lei do mais forte. Passaram a desviar e concentrar o dinheiro que circulava
tão organicamente, e consequentemente, ganharam mais poder de ação. Instalaram uma zona
industrial no coração da ilha, defendida pela cadeia de morros. Usando a recente ciência física
de Mefisto, construíram novas tecnologias, fabricas e máquinas. Começaram a produzir em
largas escalas. A fabricação era efetuada pelas novas máquinas e o humano passou a ser seu
servo, pois sua função era apenas mantê-la operando. Não precisavam de uma mão de obra
qualificada, podiam substituir qualquer operário sem problema. Uma nova época de
prosperidade econômica havia iniciado, surgiram novas industrias e empresas, a concorrência,
então, as incentivava a produzir ao menor custo possível. Como os preços das matérias primas,
das instalações, das maquinas e das despesas gerais serem geralmente fixas, o jeito de
diminuir os custos foi abaixar o valor da mão de obra e do trabalho, o transformando num
produto a ser negociado, muitas vezes muito inferior ao valor das mercadorias produzidas. Os
Senhores de Negócio ficaram numa posição mais opressora ao operário, isso lhe permitia
pressiona-los e comprimir os salários à medida em que à procura de emprego no mercado de
trabalho aumentava. A vida econômica ganhou tanta importância que ditava a vida moral e
jurídica através da voz dos Senhores. A saúde, a alimentação, a educação e a cultura se
tornaram um novo negócio lucrativo. O lucro satisfazia as necessidades mais primitivas das
almas da Comunidade. O acumulo de capital passou a ser reinvestido sem qualquer conotação
ou relação humana, despersonalizando o humano em números. À busca pelo dinheiro e pela
felicidade material se tornou a meta principal da existência.

- Depois os Assessores investiram sobre o Governo, criando mais líderes marionetes. O


que era associativo passou a ser estatal. Eles dominaram os cargos públicos, e só empregavam
seus simpatizantes ou manipuláveis. Conquistaram o Governo, sem ninguém ter a mínima
noção do que realmente acontecia. Uns estavam acomodados com os novos tempos e novos
produtos, refugiados em seus medos e alegrias, outros estavam cansados demais perante o
trabalho de sustentar os novos tempos e produzir os novos produtos, para participarem das
antigas reuniões e serem ativos no novo Governo. A vida jurídica ficou à mercê dos interesses
secretos dos Assessores e dos poderosos Senhores de Negócios. O Estado passou a suprimir os
eus da população, ganhando um caráter de egotismo, criando uma consciência própria e uma
autovalorização. À medida em que o culto ao Estado crescia, nascia um novo desejo na
população, o de assumir pequenos poderes e regalias, de mandar à sua própria autoridade. O
Estado ganhou um caráter absoluto, racional e burocrático. Passou a dedicar atenção especial
as engrenagens secretas da nova economia. Os Assessores e suas marionetes abusavam do
poder para conseguir medidas e leis que lhes proporcionarem vantagens, imunes de punições.
O Estado dizia que funcionava para o bem, ordem e felicidade comum, mas na realidade, era
focado em acumular dinheiro e visar o bem-estar material daqueles que já faziam parte de seu
esquema. O direito, em vez de se inspirar em impulsos de equidade e justiça, veio a tornar-se
mero produto da máquina estatal, desumana, antissocial e distante da realidade das ruas.

- Os ensinamentos do Sábios foram caindo em esquecimento, tomadas como fantasias


e antigas lendas. As antigas Tradições pareciam conter poucos dos valores recém-nascidos. Os
sacerdotes que ainda as tinham em suas memorias, as registraram em escritas. Os Assessores
também se infiltraram nos Cultos até transforma-los em grandes bancos secretos, agiotando o
dinheiro doado que tanto recebiam. Esses sacerdotes ficaram tão poderosos que também
viraram marionetes do Assessores. Pregavam interpretações dos Escritos dos Sábios conforme
lhe agradassem e beneficiassem, se importando mais com a nova política do que com a

39
Verdade. Transformaram os Cultos em rígidas normas e dogmas e quem não as seguissem
sofreria para sempre nos mundos invisíveis depois da morte. Um medo incompreensível
começou a rondar no ar e contaminar a população, que se submeteu as ordens e ao controle
dos sacerdotes em prol de um falso sentimento de segurança e paz. A vida cultural continuou a
ser invadida. Os interesses humanos sucumbiram à pressão da vida econômica. A arte foi
padronizada em pequenos moldes e tratada como mercadoria, tinha como nova função
exclusiva entreter a massa. Os meios de comunicação eram dominados pelos Assessores e suas
marionetes. Monopolizando os conteúdos e os métodos de produção, empobreceram a
cultura, sujeitando o povo a uma passividade através de suas obras vazias, pré-digeridas e pré-
empacotadas. As marionetes, ainda, embarreiravam os mais pobres de bens culturais mais
elaborados, por discriminação e pelo custo proibitivo das novas artes. No meio dos
pensadores, instalaram a ciência mefistofélica, criaram uma nova razão, estruturaram o
mundo somente segundo a força racional, fragmentada, mecânica, fria e egocêntrica, que
muitas vezes é incapaz de chegar num consenso geral. Cegaram as antigas faculdades
humanas, só acreditando naquilo que era visto, medido, pesado e quantificado. A Educação se
tornou negacionista, exclusivamente lógica e massificadora, ela nega o corpo e as vontades
individuais; nega os sentimentos e sensações, não ensinando a lidar com as emoções
fundamentais; nega o agora, se ensinava através de prazos, visando sempre futuro; nega o
conflito, não se debatia, se ensinava apenas um ponto de vista, que diziam ser verdadeiro e
provado; nega a transformação pessoal, não se ensina as ferramentas básicas para existência,
como culinária, construção, trabalhos manuais, apenas ensina conceitos frigidos sobre as mais
diversas matérias, muitas vezes teorias não práticas. Por fim, as antigas famílias, clãs, tribos da
Comunidade passaram a se dissolver, não havia mais como viver segundo as antigas Tradições,
a maioria da população passou a migrar e se aglomerar ao redor do Centro, onde o mercado
disparou. E assim, nasceu a Grande Cidade, 125 anos após o início da Jornada dos Andarilhos.

- A Grande Cidade tornou-se segmentada. No topo, os Assessores governam às


escondidas. Abaixo deles vêm alguns Senhores de Negócios, alguns administradores públicos e
alguns poucos sacerdotes. Eles acreditam, fielmente, estarem no topo e se denominam a
Classe Alta, que não passa de 5% da população. Em seguida vem a Classe do Meio, a maioria,
feita por funcionários governamentais, prestadores de serviço, poucos aposentados e
pequenos comerciantes e empresários que se sentiam poderosos. Eles sonham e idolatram
tanto a Classe Alta, em fazer parte dela, que a defende com unhas e dentes. E por fim vem a
Classe Baixa, os pobres, que são a mão de obra em geral, quase tão populosa e sonhadora
quanto a Classe do Meio.

- As Classes inferiores, consumidas em seus próprios demônios e no domínio invisível


dos Assessores, acreditam no discurso do progresso e de mérito dito pela classe Alta. Eles
deixaram de ter pensamentos originais, fieis a suas realidades, lutam contra a empatia agindo
como selvagens, brigando entre si. A Grande Cidade funciona como uma grande indústria,
produz riqueza e privilégios para os Assessores e a classe Alta, pequenos confortos prazerosos
para a maioria e pobreza e miséria para a parte restante. O trabalho dos Assessores foi tão
bem feito que o povo é dominado por um fatalismo, aceitam as condições que a cidade
produz, sentem que é o único jeito possível de se existir.

- E depois de tudo, todos os habitantes da Ilha do Nascer do Sol parecem ter


esquecidos da Tradição dos Sábios, como se nada tivesse acontecido, mas as antigas árvores,
as montanhas, os mares e os céus lamentavam seus antigos moradores que lhe tratavam com
tremenda beleza e respeito.

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.

- A balança do sonho do Sr. Hak estava pesando para o lado esquerdo, para o lado de
Mefisto! Os sinais são claros, eu pude ver como está a cidade, completamente entregue aos
seus espíritos, destruída, corrompida e ainda assim ativa como nunca. Vocês também olharam
para a cidade, viram como ela é cheia de maravilhas e ao mesmo tempo cheia de injustiças. –
Concluiu P.

Os olhos de Sofia e de Q estavam lacrimejando. Os dois tinham os pensamentos em


confusão, devido a quantidade de informação dita, mas seus corações entendiam o
sentimento que o discurso causara. Estavam entusiasmados, parecia que P estava explicando
dúvidas que os dois tinham carregado com tanto incomodo e outras que nem sabiam que
tinham. Sofia se lembrou, enquanto P falava, dos pesadelos que tinha tido com catorze anos e
seu sonho da noite retrasada, e como eles pareciam encaixar perfeitamente nesta trama de
acontecimentos. No fundo, seus sentimentos diziam que o que P dissera era verdade.

- Eu acredito em você. Hoje é uma luta de todos contra todos! Onde há vida há
repressão! Eu vejo isso há muito tempo! Essas condições não são nem para humanos adultos,
o que dirá para crianças. E essas doenças só se espalham e proliferam.

- Confesso que fiquei maravilhada com as obras que parecem encostar o céu. Isso
durou pouco, até ouvir a voz gélida. Me senti importante e impotente e passei a perceber não
só as belezas da cidade, mas também sua impiedosa condição imposta de injustiça e
infelicidade... - Sofia tinha reparado como a Cidade parecia mais avançada e intimidadora do
que a aldeia e a floresta, porém, mais morta e indiferente, também. - A única coisa que eu
posso complementar é que eu já tive sonhos e pesadelos que se encaixam o que você disse. –
Então Sofia contou-lhes o que ainda se lembrava deles. Depois concluiu - Mas mesmo que os

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sinais apontem para Mefistófeles, o que eu tenho a ver com isso? Vocês são futuros Sábios,
como eu entro nessa história, além dos meus sonhos e essas perseguições?

- O cântico dizia que Cristo entregou a Sabedoria, a Sofia, os tesouros da Humanidade.


A ação dos Assessores hoje, ao tentar te capturar, só comprova o que eu disse. A sabedoria
espera para ser renovada, de uma nova maneira. A maneira antiga não caminha mais para a
evolução. Mefisto quer que sabedoria seja renovada através dele e isso cabe exclusivamente a
humanidade escolher, mesmo parecendo que ela não escolhe conscientemente. Ele usa isso
em sua vantagem.

- E como eu faria qualquer diferença nessa história?

- Primeiro você tem que sobreviver, temos pouco tempo até a maré esvaziar. Os
homens-máquina já começam a se aproximar, temos que fazer um barco e escaparemos pelo
mar!

- Essa não é uma má ideia. Mas não sei se vai dar tempo. Precisamos voltar para Ilha e
contar o que está acontecendo para os Sábios, mas acho muito arriscado a Sofia vir com a
gente. Se conseguíssemos chegar na Vila dos Pescadores, no extremo Norte da ilha,
conseguiríamos fugir de barco. Não sei... – P mergulhou em seus pensamentos e depois de
parecer esclarece-los voltou a falar - Sofia, o cântico dizia dos tesouros, acredito que está é a
chave para tudo o que está acontecendo.

- Eu nunca te vi falar tanto - disse Q

- E eu nunca te vi ouvir tanto. Tenho que dizer tudo o que penso, pois, o tempo está
passando e a hora é agora! Como eu ia dizendo, acredito que você é a destinada para receber
os tesouros da humanidade, por isso estão atrás de você.

- Afinal, quem é Mefisto? Por que não coloca todo o exército de homens-máquina
atrás de mim e de nós?

- Você já deve ter ouvido sobre ele talvez com outro nome, pois ele sempre rondou,
como uma sombra, as velhas lendas. Alguns o chamam de Lorde das Trevas, um dos
governantes da esfera do submundo. Ele despreza os Espíritos Criadores e quer tomar a
evolução dos humanos só para si, numa evolução em seu favor. Ele já fez algumas investidas,
mas agora, acredito, que começa a hora de seu maior ataque, de sua ascensão. Acredito que
isso também faça parte da profecia. Por isso a preocupação dos Sábios. Sabe, sempre, após
uma derrota e uma pausa, o mal toma outra forma e cresce novamente à gloria. Os sinais
indicam que a Era de Mefistófeles está se firmando. Seus planos ainda estão amadurecendo, e
ele ainda não está em sua força plena. Será muito difícil combate-lo, ainda mais se ele
permanecer nas sombras da inconsciência dos humanos, quanto menos pessoas forem
conscientes de sua presença melhor para ele. Mas você sentiu a sua presença ele que te
sussurrou gelidamente. Se ele já está encarnado e anda entre nós ainda é uma questão que
me mantem aflita. Sei que para ele ainda falta algo, algo que lhe de força e sabedoria para
derrotar todas as resistências, que surgirão, quebrar todas as defesas e para cobrir
completamente a Terra com sua nova onda de escuridão. Por isso ainda está sendo cauteloso,
ainda não se revelou e ainda não é a hora de exibir toda sua força. Ele nos subestima, acha que
você não encontrará nenhuma ajuda sincera, que qualquer um que souber do seu potencial e
poder irá tentar manipula-la à sua vontade, e isso lhe denunciaria, o avisando que é a hora
apropriada para sua investida.

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- Minha cabeça está confusa e meus membros estão paralisados e silenciados. O medo
estende uma mão enorme, como uma nuvem que me envolve. Meu coração revela a verdade
de suas palavras, mas também revela o medo que me faz tremer da cabeça aos membros! Por
que isso está acontecendo na nossa época? Sempre senti que era responsável por algo, talvez
apenas pela minha própria existência, mas não responsável por um fardo tão pesado e
perigoso. Eu não sei se eu quero a responsabilidade de receber os tesouros da humanidade.
Onde buscarei coragem para encarar e seguir meu destino?

- A coragem pode ser encontrada em lugares improváveis. Tenha esperança! Temos


que decidir o que fazer com o tempo que nos é dado. E acreditem esse tempo já está
acabando, a maré já quase secou por completo. E realmente P, não deu para construir um
barco apenas essa canoa - Q revelou o que tinha tentado fazer. Foi de boa vontade, mas a
qualidade da canoa era muito duvidosa.

- Que não servirá para nada – retrucou P.

- Foi o que eu consegui fazer – disse constrangido.

- Fez sem pensar e agora só nos resta alguns minutos antes que os homens-máquinas
cheguem!

- Agradeço pelo esforço e pelas lindas palavras que vocês me presentearam. São
muitos sinais ao mesmo tempo, os de esperança e os de desespero! Mas temo que os sinais de
esperanças são apenas uma espécie de ilusão de minha natureza, para me convencer quando
muitas desgraças me atingem, de que o melhor ainda pode estar por vir? O medo me
assombra, mas minha intuição de viver fala mais alto agora, vamos por aqui! – Falou Sofia.

- Boa! Acredito que agora estamos salvos por mais um tempo. – Disse Q.

- Não foi pela sua cesta, tentativa de canoa! – Rebateu P. E depois perguntou para
Sofia, junto com Q:

- E como foi que você descobriu esse barco?

- Desde que bati o olho naquela pedra que parecia ter sido esculpida, senti que algum
segredo permanecia ali, mas não tinha ideia que seria o barco.

- Ele tem uma aparência antiga.

- O que importa é que ele ainda funciona. Parecia que estava esperando para a gente
encontrar.

- Os Sábios já residiram no Morro do Casamento do Mares, na maré alta da Lua cheia


só é possível chegar de barco. Mas em nenhum momento passou pela minha cabeça que eles
poderiam ter deixado um para traz. Como se estivesse esperando por nós.

Os três estavam em um barco a remos, porém mal remavam, seguiam a correnteza


que ia rumo ao norte da ilha. O Sol tinha acabado de nascer no horizonte do oceano, que
espelhava o vermelho do céu. Sofia ficou encantada com o fenômeno colorido que acontecia

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no céu e no mar. Depois olhou para sua esquerda, vendo no horizonte o paredão da
cordilheira envolvendo a paisagem. Ficou contemplando a costa, cheia de pedras e morros
estranhamente com formato de pirâmide. Se lembrou do espirito misterioso do seu sonho, ele
havia falado que os antigos moradores da ilha esculpiam a paisagem como queriam e ficou
imaginando as histórias e aventuras que já haviam acontecido ali. Então disse:

- Sempre sonhei com as lendas da Tradição, com as velhas epopéias. Agora sinto que
estamos partindo numa própria, e me sinto grata de ser com vocês. É estranho, não conheço
vocês há muito tempo, mas sinto uma conexão que vai além do meu entendimento e
compreensão.

Os dois abriram um largo sorriso sincero, mas antes que pudessem responder
mudaram de expressão, como se estivessem desesperados. O clima pareceu mudar do nada.
Uma tempestade estranha e incomum parecia cerca-los. Nuvens carregadas desciam da
cordilheira, do horizonte um vento violento agitava o mar e trazia mais nuvens que encobriam
o Sol.

- Isso não me parece normal. Acho que não conseguiremos chegar a lugar nenhum
antes de sermos atingidos pelas sombras da tempestade. – Disse P.

A chuva gelada caia com força. Raios e trovoes explodiam no céu. As ondas crespas
cresciam rapidamente até que uma, realmente grande, engoliu o barco. Os três foram jogados
contra as pedras. As pequenas correntezas feitas pelo formato das pedras, produzia pequenos
redemoinhos. Q foi o único que conseguiu se prender numa pedra e chegar em um local salvo.
Porém a cada segundo, ficava mais perturbado, não conseguia encontra-las. P e Sofia
apareciam rapidamente buscando ar e tão rápido quanto subiam, sumiam na espuma branca
das ondas quebradas nas pedras. Q estava atormentado ouvindo o barulho oco das ondas,
quem ele salvaria? Sua amada ou sua recém companheira, talvez a destinada a salvar a
humanidade. Então, como que num milagre, as duas submergiram perto uma da outra. Q
instintivamente pulou de volta no mar. Sentiu sua perna colidindo com as pedras escondidas
pela agua. E num movimento brusco, conseguiu puxar as duas, que se debatiam, para um lugar
que dava pé. As duas estavam ofegantes, tossiam e cuspiam a agua salgada, estavam tão
cansadas que nem pareciam perceber que foram salvas, mesmo com alguns ralados.

- Ali tem uma caverna, vamos! – Disse Q. Apontando para uma entrada entre as pedras
da costa. Eles ficaram encolhidos e trêmulos e as duas já tinham se acalmado um pouco do
susto do afogamento. A chuva apertava e talvez fosse apenas o vento passando pelas
rachaduras da entrada da caverna, mas o som se parecia com gritos agudos, seguidos por
gargalhadas alucinantes, que alimentavam o incomodo que os três já sentiam. Então Q voltou
a falar – Sabe... tem muitos seres que podemos julgar como malignos e hostis, julgar que não
possuem amor pelos humanos e lutam contra nossas vontades. Pareceu que as nuvens, o
vento e o mar estavam se aliando as forças adversas, mas eles seguem seus próprios
propósitos. Estão além da luta que definirá o futuro da humanidade.

- Eu senti muito medo, confesso que ainda estou. – Contou Sofia.

- Precisamos planejar o que fazer, para onde ir. Não sabemos o dia de amanhã. – P
voltou falar, mas foi interrompida por Sofia:

- Se não formos capturados hoje.

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- Acho difícil. A cidade e seus habitantes tem o costume em diminuir muito o ritmo em
dias como este. Acredito que estaremos parcialmente seguros enquanto o tempo continuar
assim. – Respondeu Q e P continuar a falar:

- Eu estava pensando, acho que teremos que nos separar de Sofia, acho que é o mais
seguro. Duvido que conseguiríamos chegar a salvos na Ilha dos Sábios, é para lá que os
Assessores esperam que te levemos. Tenho certeza que eles já têm vigias em todas as rotas
possível para lá.

- Me diga seu plano.

- Hoje precisamos descansar, também acho que é mais seguro ficar aqui do que
arriscar sair. Mas quando o tempo melhorar partiremos até a Vila dos Pescadores. Seguiremos
a encosta até chegarmos na Vila. Eu sei que lá vive um simpatizante dos Sábios e precisaremos
encontra-lo.

- Como vamos achar ele?

- Através das palavras-chave.

- O que é isso? – Perguntou Sofia.

- É uma frase que os Sábios usam desde a antiguidade para se identificarem entre
aliados. Como eu ia dizendo, sei, também que ele faz comercio com as Cidades Peninsulares e
com as Cidadelas do Norte. Eu penso que o mais seguro seria nós três embarcarmos com ele.
Eu e Q vamos desembarcar em alguma Cidade Peninsular e seguiremos a Rota dos Andarilhos
até a Ilha dos Sábios para informa-los como as coisas estão se revelando.

- E eu?

- Acho que o melhor seria você buscar os ensinamentos no Grande Santuário da


Cidadela do Templo. O Mestre deles é conhecido entre os Sábios e tenho certeza que ele lhe
daria ajuda e segurança. Mas Sofia, você vai ter que tomar muito cuidado quando ficar
sozinha. Não acho que seja prudente você comentar qualquer coisa com qualquer outra
pessoa. Uma das maiores artimanhas de Mefisto é a traição, motivada por uma falsa sensação
de poder, sempre foi e sempre será. E chega de discutirmos assuntos importantes por ora,
preciso do abraço de vocês, estou com muito frio. – Disse P. Os três se abraçaram e
compartilharam o calor que emanava de seus fortes espíritos. – Como eu gostaria de um conto
de dormir agora.

Sofia deu um sorriso e disse:

- E se eu te contasse que estava lembrando de um agora mesmo. Um que eu sempre


pedia para meus padrinhos contarem quando eu era pequena, mas eles só contavam com a
aproximação da primavera.

- Acho que estamos bem sintonizados, – disse Q rindo – vamos, nos conte! Merecemos
dormir com um pouco de paz! Não tem porque sobrecarregar nossos corações neste
momento. P já pensou no melhor caminho tomar e agora só nos resta esperar, por que pelo
que parece hoje é a natureza que está tomando as decisões, oras a nosso favor, oras contra. E
além do mais, pode ser que as trilhas nas quais cada um de nós deve pisar já esteja diante de
nossos pés, embora talvez não possamos enxerga-las. Vamos Sofia, diga o conto!

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- Era uma vez, um belo e triste quintal de margaridas. Belo, pois ali vivia as mais lindas
margaridas, de todas as cores imagináveis. Triste, pois nenhum inseto ia até aquelas
margaridas solitárias, acompanhadas apenas de suas maravilhosas cores e seus aromas
deliciosos. As margaridas, todas as noites, lamentavam para o vento o quanto queriam brincar
com os insetos e conhecer as famosas borboletas. Numa noite, três lagartas ouviram esse
lamento e ficaram tão comovidas com o canto das margaridas que decidiram ir até o quintal.
Juntaram toda a coragem que tinham e partiram. Assim que chegaram, escolheram um canto
seguro para entrarem em seus casulos e ali permaneceram. A primeira lagarta, toda noite que
ouvia o canto das margaridas ficava excitada e ansiosa, queria logo virar uma borboleta e se
exibir para aquelas pobres flores. Até que um dia não aguentou mais esperar e saiu do seu
casulo antes de suas asas estarem bem formadas e acabou morrendo ao tentar voar. A
segunda, toda noite que ouvia o canto das margaridas ficava com medo, queria ter todo o
tempo possível para desenvolver perfeitamente cada mínimo detalhe de suas asas, para beleza
satisfazer todas aquelas pobres flores. Ela esperou, esperou, esperou tanto que nunca
conseguiu sair do casulo e morreu lá dentro. Já a terceira lagarta, toda noite que ouvia o canto
das margaridas sentia um desejo ardente de voar entre aquelas belas flores. Esperou
pacientemente, e no momento em que sentiu que suas asas estavam prontas para voar, saiu
de seu casulo. Ela se contentou com suas belas e simples formas, voando ao encontro das
margaridas. E assim, o quintal todo transbordou de alegria e festejou até o cair do inverno.

- Você acha que o plano vai dar certo?

- Até agora deu.

- É isso que me incomoda, achei que seria mais difícil.

- Também estive pensando nisso. Se não estamos sendo perseguidos, acredito que já
saibam que Sofia não está mais conosco.

- E eles vão deixar a gente contar para os Sábios o que sabemos?

- Essa pergunta me intriga desde que desembarcamos. Talvez julguem que a força dos
Sábios é incapaz de ajudar Sofia ou julguem que nós não sabemos o que realmente está
acontecendo.

- Eu espero que seja a última opção. O que você acha?

- Sinceramente, eu não sei. Mas que eles sabem que os dados foram lançados, isso eu
tenho certeza.

- Será que eles já sabem para onde ela fugiu? Eles vão investir em persegui-la?

- Talvez saiba, mas duvido que já vá se revelar, deve estar elaborando planos mais
complexos. E o que nós iremos fazer? Eu não sei.

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- Amanha estaremos em casa, depois de tanto esforço. E já que iniciamos esta jornada,
temos que ir até o fim, eu, você e a Sofia. O destino nos escolheu. Claro que isso pode
significar que a gente, eu e você, podemos ficar juntos ou não. Podemos perder um do outro.
Pode ser o fim dos Sábios e um triste fim para a humanidade. Podemos perder nossas mentes
com tantos problemas e ameaças. Podemos ficar presos e isolados. Vai ser um teste para a
nossa força de vontade, e apesar de todas as chances contrarias nós vamos conseguir,
alcançaremos conquistas além das nossas imaginações. Eu acredito, não só por que eu tenho
que acreditar, é por que eu cultivo a esperança. Estaremos sozinhos, mas unidos. Estamos com
Deus e seus companheiros, que aquecem o fogo dos espíritos em nossas almas. Essa é a luta
que devemos lutar! A luta de Micael contra o dragão.

- Você tem razão. – Disse P. Q apagou a fogueira, deu um beijo nela. P foi dormir e Q
ficou no primeiro turno de vigia, como era de costume desde o dia da caverna.

P estava diante uma larga escadaria que era iluminada por tochas. Conforme ela subia
os degraus, via doze colunas gigantes, e nelas estavam esculpidas várias gravuras de batalhas.
As colunas sustentavam um magnifico e majestoso Santuário construído com pedras calcarias
e de areia. Ao entrar no templo principal P olhou para cima e viu que o teto possuía o céu e
estrelas de cinco pontas. Percebeu que em uma das sete capelas do Santuário estava
acontecendo uma cerimônia sepulcral. P atravessou o salão ouvindo o canto funerário da
cerimonia até chegar na parte de trás do Santuário, onde um grande buraco se revelou. P
entrou no buraco, que era muito profundo. No meio da escuridão um ponto de luz surgiu e P
foi ao seu encontro. Quando estava chegando perto, percebeu que estava em um deserto e a
luz vinha de uma lamparina carregada por um ser misterioso que ela não conseguia enxergar.
Ele trazia três camelos e disse para P:

- Atravessará o deserto com três, mas atravessar a montanha, só dois conseguirão. – E


entregou-lhe uma caveira. P soltou um grito que ecoou pela escuridão. Então, pareceu que seu
grito gerou novos sons, que começaram a surgir. P ouviu o eclodir de uma batalha raivosa
entre dois exércitos. Ouviu gritos de dor, gritos por clemencia, gritos de sofrimento. Explosões
de fogo passaram a iluminar o deserto. Nuvens com formato de seres demoníacos saiam das
chamas descontroladas e dela surgiu uma onda de sangue. P tentou fugir correndo, mas não
conseguiu e foi engolida pela onda.

P acordou ofegante. Q, que lutava com o sono, despertou.

- O que foi? Está tudo bem?

- Não sei, tive um sonho muito estranho. Estou preocupada.

- Com o que?

- Ainda não sei como explicar. – Então P contou o sonho para Q.

- Se acalme, até o anoitecer estaremos em casa e nossos professores poderão nos


ajudar.

Eles andaram da encosta da serra de montanhas até chegar no Rio Divisório, que
desembocava na Ilha dos Sábios. Desta vez Q conseguiu mostrar suas habilidades de confecção
e construir uma canoa que conseguia sustenta-los. Chegaram na Ilha ao anoitecer e Sr. Hak e
Sra. Ra estavam esperando no portão de entrada da ilha.

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- Vocês demoraram mais do que imaginávamos, o que aconteceu? – Os dois contaram
o que havia acontecido desde que saíram de lá.

- Saímos da caverna e seguimos até a Vila dos Pescadores. E quase chegando lá,
tivemos a sorte de encontrar nosso aliado coletando a última leva de mariscos antes de zarpar
para vende-los. Seguimos viagem até a Cidade Peninsular e lá nós nos separamos. Ela
continuou no barco rumo a Cidadela do Templo. Seguimos longe da estrada principal até
chegar nas montanhas esculpidas, de lá, fomos pela Rota dos Andarilhos para descer a Serra
até um pouco antes da Ponte Brilhante. Então, só viajamos nas encostas da Serra, apenas na
sobra do pôr do sol e ao anoitecer. Só hoje de manhã que alcançamos o rio.

- Achamos que era mais seguro, caso tivesse alguma emboscada ou olhares maliciosos.
A viagem demorou mais do que eu havia calculado, pois tomamos todas as medidas de
precaução possíveis.

- E mesmo assim seu rosto parece aflito.

- Eu tive um sonho ontem, e eu mesma não consigo decifra-lo. Não consigo parar de
pensar nele.

- Confie na força, sabedoria e poder que vocês possuem. As coisas simples são
extraordinárias. Foi muito importante e significante suas ações e pensamentos para o futuro
da humanidade. Mas agora é a hora de irem dormir e durmam com suas perguntas, se não
acordarem com a resposta, conversaremos mais sobre tudo isso.

- Só preciso fazer mais algumas perguntas, ela acreditou em vocês? – Perguntou o sr.
Hak

- Sim – os dois responderam de imediato.

- E vocês? Acreditaram nela?

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CAPITULO 3.

- Ainda bem que amanhã chegaremos a Cidadela. – Disse o marinheiro velho.

- Como eu amei conhecer Crotón. Tomara que conheça Cidadela do Templo seja tão
maravilhoso como lá. – Falou o outro marinheiro, o mais jovem.

- Não vá dizer isso quando desembarcarmos em Sybarimque, na volta. – Comentou o


terceiro marinheiro.

- Por que? Na Cidade vizinha de Crotón?

- Você nunca viajou antes né?

- Não.

- Você tem muito aprender.

- Então me ensine.

- Segundo as lendas, há muito tempo atrás, o maior músico e poeta de Crotón,


Arioniam, decidiu participar de uma competição artística em uma cidade peninsular Malum, a
mais rica. Para chegar lá, contratou um navio barimque, para leva-lo. Como era de se esperar
Arioniam ganhou a competição e recebeu uma enorme quantia de ouro como premiação. Na
viagem de volta, os barimquinos resolveram que era mais interessante mata-lo e rouba-lo do
que receber o pagamento acordado. Quando eles contaram para Arioniam dos seus planos, ele

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pediu para que pelo menos o deixassem cantar e tocar sua lira, e se deixassem, ele próprio se
jogaria nas aguas traiçoeiras do mar. Os barimquinos aceitaram de imediato, pois além de
conseguirem o dinheiro ainda poderiam ouvir o tão famoso canto. Arioniam entoou um hino
para o Deus Solar, o deus dos poetas, e à medida que cantava, vários golfinhos foram se
aproximando. Ao terminar, Arioniam pulou do navio, como havia combinado, mas ele não se
afogou, pois ele caiu sobre os golfinhos, que lhe conduziram até a Cidade Nova, sem que os
marinheiros percebessem que havia se salvado. De lá, A prosseguiu por terra, e para chegar
em Crotón teve que passar por Sybarimque. Ao chegar lá, foi chamado pelo rei Periander, o
senhor das abelhas, que não acreditou na história dita por Arioniam, alegando que era
invenção mandou prendê-lo. Porém, no mesmo dia, os marinheiros chegaram, e quando foram
chamados pelo rei disseram que Arioniam tinha ficado tão extasiado com Malum que
permanecerá lá. O rei, percebendo a mentira, mandou executar os marinheiros e libertar
Arioniam.

- E o que está história tem a ver com o que eu falei?

- Depois disso, a rivalidade entre as duas grandes cidades aflorou. Eles se odeiam e
disputam tudo, uma quer ser maior e melhor que a outra em qualquer área. Claro que os
barimquinos falam que a história não foi bem assim, mas se quer um conselho meu, tome
cuidado com eles. Eles sabem ser trapaceiros quando lhe convém.

- É um bom conselho, e deixo dar mais um, para nós três. É melhor descermos e irmos
dormir, amanhã teremos muito trabalho.

Os três marinheiros foram embora e deixaram Sofia sozinha. Ela estava escondida
atrás de um grande caixote. Essa era seu passatempo noturno. A tripulação achava que ela
tinha desembarcado junto com Q e P na semana passada. Só o capitão, que era o aliado dos
Sábios, sabia que ela ainda estava lá. Ele havia ordenado que ficasse em sua cabine o dia todo
e só saísse de lá ao anoitecer, e, escondida, para sua segurança. Enquanto ouvia as conversas
se distraia, mas quando ficava completamente sozinha sentia que sangrava em silencio, era
como se as feridas de sua alma a fizessem ancorar a sua força de vontade. A treva vinha e se
alimentava de seus pensamentos e sentimento de medo. Não conseguia mais resgatar as boas
lembranças. Não sabia como se encaixava em toda essa encruzilhada. Não entendia como
poderia combater Mefistófeles e seus Assessores. Sentia uma incompreensão inexplicável. Em
alguns momentos sentia raiva de si, vítima da situação que não tinha controle. Olhou para a
noite estrelada e pensou na amplidão das forças do Universo e se sentiu insignificante. Sentia
que nada fazia sentido e se questionava se a morte não poderia ser um presente. Então ela
sentiu o cheiro agradável do oceano, era como se conseguisse sentir o gosto salgado dele só
pelo olfato. Sentiu uma leve brisa refrescante deliciosa soprando seus cabelos. A lua estava
nascendo novamente e seu brilho reluzia no mar. Sofia ficou encarando o pouco reflexo da lua
enquanto deixava seus pensamentos vagarem por mares da inconsciência. Até que tomou um
susto, pois se viu na agua, mais bonita, jovial, reluzente e nobre do que imaginava que fosse,
parecia uma rainha coroada e se ouviu dizendo:

- Ó Sofia, conheça a si mesma e sinta-me! Você caiu dos mundos espirituais, vindo ao
reino livre da Terra. No meio do caos terrestre, continua procurando a própria identidade e
agora eu me apresento, como o seu prêmio e destino. Eu, que te doei a sua vontade. Sempre
foi assim, desde o começo. Através do forte senso de identidade, com a satisfação da própria
existência! – Sua voz que vinha da água era suave e melodiosa, que o só o som já promovia um
encantamento gracioso. No começo Sofia ficou tão maravilhada que não conseguia nem se

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conscientizar quais palavras eram ditas, pois estava mais atenta na sonoridade daquela voz.
Pareceu que todas as outras vozes perto dela pareciam rudes e grosseiras, e só de lembra-las
acendia um estranho ódio em seu coração.

- Eu sei o quanto seu íntimo sofre e grita numa revolta. O quanto você sente falta da
sua infância, quando as coisas eram boas e belas, e a natureza do universo era una contigo.
Tudo era mais fácil. Sei como a nostalgia lhe faz sangrar. Sei que dentro de ti existe um vazio
existencial que te faz questionar todas estas novidades. Sei que secretamente deseja os
Tesouros. Sei que não compreender, as suas razões escondidas. Isso só aumenta uma angustia
que já existe há muito tempo em sua alma. Sei que no fundo você pressente sua importância e
como está ligada a uma determinada importante função no grande Drama dos Mistérios. Mas
em contrapeso você se sente isolada, sozinha, como se o mundo inteiro lhe oprimisse e não a
entendesse. E se você realmente é a personalidade capaz de combater Mefisto? E se não for
capaz, determinando a ruina de todos? Como você irá combate-lo com tantas questões que
lhe afligem? Você tem as forças suficientes? O que P e Q quiseram dizer com aquilo tudo? Será
que a morte de seus pais tem alguma coisa haver com o que está passando?

- Você sabe, todas essas preocupações não existem, esse mundo, a matéria, tudo
morre, é tudo transitório! Esqueça a Terra, esqueça a dor e o sofrimento! Viva os prazeres
enquanto ainda há tempo! Lembre-se das maravilhas do seu passando, quando andava pela
natureza e sua alma se enchia como que sobrevoando o Cosmo. Resgate aquela felicidade que
você já sentira nos tempos passados. Deixe seu lado selvagem tomar conta de você. Esqueça
sua sobriedade. Se entregue as paixões e aos desejos, viva neles, se alimente deles e então
encontrará a luz que tanto busca para te tirar dessa solidão maldita. Compartilhe e viva a
inconsciência com outros! Se dedique aos passatempos, consuma, voe por cima de si própria.
Por que encher sua cabeça com essas questões? Sim...sinta. O sentimentalismo pode te guiar.
Você sabe do seu poder, aproveite dele, provoque o seu orgulho que ele conquistará esse
mundo de trevas, acredite na sua importância e jamais se critique. Pouco importa essa história
de Mefisto e profecias, o que importa é a história que você fizer. Olha para mim! Os outros
reinos onde está colocado a humanidade e que foram fundados pelos deuses e espíritos
antigos, esses reinos envelheceram. Você pode ajudar a fundar um novo reino, eu te darei
toda a beleza e magnificência dos reinos antigos se ingressares nos meus domínios. Mas deve
deixar Deus e me aceitar! Olhe a beleza do mundo terreno ser ampliada as maravilhas e gozos
da sua alma, de suas satisfações e conquistas. Olhe a beleza da expansão que seu coração terá
se entregando as alturas. Esses prazeres serão todos seus se se unir a mim. Por meio daquilo
que eu sou capaz de te dar, se me aceitar, não vai precisar daquilo de que agora precisas por
ter encarnado num corpo humano. Esse corpo te julga e te obriga a se acorrentar as leis
terrenas. Eu posso fazer com que se eleve. Se me aceitar vou suprir as consequências da antiga
queda e nada te acontecerá! - Sofia sentiu um caloroso prazer ao entender o que seu lindo
reflexo estava falando. Ela parecia sábia e razoável, o que despertava um desejo de parecer
sábia também, seguindo o que a voz dizia. Ficou cativada e seduzida. Mesmo depois de seu
reflexo desaparecer e se silenciar, Sofia sentia as palavras continuarem ressoando,
sussurrando em seu ouvido e incitando-a. Sofia sentia impossível recusar os pedidos e
comandos, era tentador abdicar de tudo.

.
Era uma manhã quente e ensolarada. Sofia acordou, no espaço privado dentro da
cabine do capitão, e foi ao seu encontro na parte principal.
- Bom dia Capitão.

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- Bom dia Sofia, daqui a pouco desembarcaremos. Estamos entrando agora no Rio da
Salvação, venha ver. Neste delta que a Cidade do Templo foi construída, a capital das Terras
Férteis! – Sofia olhou pela janela e viu na margem esquerda a natureza intacta, repleta de
acácias verdes, cheias de espinhos e galhos distorcido. Milhares de palmeiras e distintas
arvores, diversos tipos de ervas, tanto comestíveis como aromáticas, perfumavam o ar junto as
flores selvagens. Sofia viu plantações do que parecia ser uma espécie de trigo, assim como
diversas plantas aquáticas. Viu carneiros, gazelas, raposas, chacais, roedores compartilhando a
grama. A medida que entravam rio a dentro, milhões de insetos passaram a zumbir em seus
ouvidos. Aves voavam nos céus, outras cantavam nos galhos das arvores, outras caçavam na
beira do rio, enquanto peixes, crocodilos tartarugas nadavam naquelas aguas refrescantes e
cristalinas. Então Sofia passou a observar a outra margem, o delta, onde a cidade era edificada.
Dava para ver uma construção magnifica, esplêndida e megalítica, que se destacava das outras
construções grandiosas, no coração da cidade. – Linda, não é?
- O que? A construção?
- Sim, é o Santuário do Sol. Construído por H, um dos Sábios Andarilhos.
- O das antigas lendas?
- Com certeza, a cidade é rica em História. Aqui já foi a verdadeira fortaleza do
conhecimento. Na época após sua construção, era a maior e mais influente cidade de todas
nascidas pela Jornada dos Andarilhos. Dezenas de dinastias de imperadores já se passaram e
ela continua de pé. Ela resistiu ao clima, as eras do tempo e aos múltiplos assédios dos povos
do Noroeste. – O capitão podia ver a cara de Sofia expressando um entusiasmo no que ouvia.
Continuou: – Desde os primórdios os povos das Terras Férteis resplandecem uma cultura única
e bela. Acho que dá para reparar nisso vendo essas obras arquitetônicas. Da para sentir o
divino em suas dimensões, não é? E elas não param por aí, rio a dentro há outras obras
magnificas, como a Estrada Rumo a Foz, o Templo da Luz, o cemitério do Vale dos Primeiros
Imperadores, sem falar a floresta de obeliscos, estatuas e monólitos gigantes erguidos para
celebrar suas conquistas. Isso tudo fruto do que H aprendeu dos resquícios dos poderes
ancestrais dos Antigos Povos. – Sofia deixou seu pensamento vagar, imaginando como seriam
os lugares que o capitão falava. Só de imaginar sentia um frio na barriga. Esta excitada pelo
desconhecido. Voltou a sua atenção para a Cidadela, sua atividade era efervescente, o que a
fez se lembrar do mercado central da Grande Cidade. Mas ali tudo parecia grande e opulento
numa estética mais orgânica, mais humana, mais celeste, os templos, os santuários e os
complexos habitacionais. A cidade era repleta de grandes esculturas que exalavam um caráter
rígido, frontal, estático e geométrico. Sofia pensou “o mundo está cheio de perigos e ainda sim
está repleto de beleza”. Os dois ficaram observando a paisagem em silêncio até Sofia falar:
- Sabe, ontem eu tive um sonho ou uma visão, não sei explicar, mas pareceu que o
meu reflexo, no mar, estava falando comigo. – A cara sorridente do capitão se desfez na hora e
ele respondeu de maneira grosseira:
- Não estamos nem na hora nem no local apropriado para falar desse tipo de assunto.
– Depois voltou a sorrir e disse: – O que devemos falar agora é sobre sua estadia aqui. Tome
essa moeda de ouro. Ela tem valor suficiente para você se hospedar na estalagem do porto, no
melhor quarto. Você só vai conseguir contato com o Grande Sacerdote do Santuário, no
solstício de inverno, única data em que o Santuário abre suas portas. Isso só irá acontecer
daqui 2 luas (aproximadamente dois meses). Fique lá, fique no seu quarto. Meu conselho é
que você não fale mais do que o necessário e saia o mínimo possível.

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Quando desembarcou, Sofia se sentiu entrando em um sonho delicioso, teve a
percepção que ali o tempo corria de outra maneira, em outro ritmo. Seu coração batia devido
a adrenalina que sentia. O ar era mais pesado, e o seu olfato parecia estar mais apurado do
que o normal. Sentia um calor sufocante. Logo, sua visão ficou turva e as cores passaram a
brilhar mais do que o normal. De imediato, ficou perdidamente apaixonada pelo jeito que se
vestiam. Tudo reluzia e exalava beleza. Aquele lugar havia uma espécie de encantamento, pois
assim que chegou, já perdeu sua noção de tempo e espaço. Sofia não conseguiu se lembrar
como, mas ela já estava no seu quarto abafado. E assim foi o primeiro mês de Sofia na
Cidadela do Templo. Lembrava do fardo sentimento de vazio que consumia sua alma nos
primeiros dias sozinha, depois só flash de memória.
Lembrava que tentou fugir e camuflar esse sentimento, mas quanto mais fazia isso
mais ele se apoderava de seus pensamentos, sentimentos e ações. Durante esse um mês Sofia
se sentiu embriagada pelos seus próprios demônios, e decidiu inconscientemente se entregar
aos prazeres para não os encarar. Ela não pensava mais em sua missão e nos perigos de sua
existência. Somente se divertiu com o povo sofrido da exploração e com nobres ricos e
abastados. Apostou, jogou cartas e jogos de tabuleiros, principalmente uma espécie de xadrez,
com ambas as camadas sociais. Tomou chá de flor roxa que fazia as cores mudarem. Entrou
nas cabanas de fumaça densa e saiu risonha, cansada e faminta. Provou o vinho de flor, capaz
de afastar as lagrimas, a dor e a raiva. Participou de banquetes e festas intermináveis que
duravam dias, regadas a pães, vinho, cerveja, carne de caça, de aves e de peixes, marinada e
grelhadas, ovos, favas, lentilhas, sopas, arroz com berinjelas e pimentões verdes, figos,
tâmaras, maças, romãs, tremoços, doces de frutas, de raízes fritas, pudins, bolos. Em resumo,
o primeiro mês foi dedicado ao entretenimento, as apostas, as drogas, as distrações e as
paixões ardentes. Vivia em estase, e como um animal ia de um instinto prazeroso a outro.
Como num sonho em que se esquece das consequências e só se age pela emoção. Queria
mais, queria o excesso, queria extrapolar, ir além do extremo, se entregar apaixonadamente
ao prazer e a loucura. Sofia devorou os prazeres e continuou faminta, bebeu de ilusões e
continuou sedenta.
Se o primeiro mês de Sofia na Cidadela do Templo foi como um sonho, o segundo foi
um pesadelo. Mal conseguiu saiu da cama. Sofia sofreu de fortes inflamações, nasceu diversos
furúnculos, terçóis e feridas que expurgavam pus e sangue. Se sentia cansada, suava frio, seu
estomago estava revirado, sofria de ânsia de vomito, não conseguia nem comer. A dor e o
sofrimento atormentavam sua alma e seu corpo ficava tremulo. Estava apreensiva, não
conseguia se lembrar com quem, de fato, conversara no mês passado. Havia conhecido tantas
pessoas, era possível ter soltado alguma informação valiosa e a qualquer momento iriam lhe
capturar. As memorias que lembrava possuíam um caráter de comportamento autodestrutivo
e Sofia se questionava se elas já eram irreversíveis ou não. Sentia vergonha quando se
lembrava dos toques maliciosos que permitia, vindo de suas recentes e breves paixões de um
dia. Sentia culpa quando se lembrava de quão intoxicada e inconsequente sua consciência
estava no último mês. Era impossível descansar tranquilamente, qualquer ruído a fazia
despertar numa descarga de paranoia nas suas entranhas. Teve momentos que desejou a
morte como uma forma de escapar de seu trágico destino, não tinha fé em nenhuma outra
saída. Sentia uma forte contradição, tinha horas que sentia que nada do que havia vivido tinha
importância, porém continuava se sentindo mal e querendo fazer algo para seu bem, para sua
melhora, mas não conseguia, não encontrava forças. Sentia ondas de raiva de si, de uma
maneira estranha e nova. Não se sentia suficiente, não conquistara nada substancial sobre sua
origem desde que partira de sua terra natal. Tinha mais informações, mas ainda se sentia
perdida e sem respostas. Em alguns momentos se sentia uma idiota por acreditar na história
de dois desconhecidos, só porque sentiu que podia confiar neles, que piada, nada daquilo
podia ser real. Mas e se fosse verdade? Talvez não quisesse encarar. Não podia fugir do que

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era, do que acreditava, mesmo se não quisesse mais acreditar e desejasse ser outra pessoa.
Todos os pensamentos e sentimentos reprimidos, disfarçados, se manifestavam nos sintomas
que seu corpo sofria. Em meio as alucinações causadas pela febre, ela teve uma visão:
Permanecia sem voz e seus sentimentos eram soterrados. Só via a lembrança de seus
padrinhos doentes, incomodando sua alma assim como um grão de areia incomoda a ostra
antes de virar pérola. Estava em uma rua iluminada pelo céu azul escuro que precede a noite.
Ela caminhava com seu coração dilacerado. As luzes não iluminavam suas emoções
escondidas. Seu bem-estar e desejos entravam em contradição, criando um labirinto de
pensamentos. O único som vinha dos seus passos, que a cada segundo se tornavam mais
rápidos. Assim como sua mente. Continuou por um caminho que a levou até um corredor sujo
e caótico. Luzes oscilavam, o piso estava nojento, assim como as paredes estavam manchadas
e mofadas. Haviam frases escritas nas paredes. A que mais lhe chamou atenção foi “o ódio de
Deus”. Tentou refletir o significado daquela frase enquanto ascendia um cigarro. Quando
achou que tinha compreendido a frase seguiu até o fim do corredor. Se deparou entre duas
portas, ambas idênticas, esteticamente, porem cada uma a levaria para um lugar diferente e
Sofia sabia disso, tornando ainda mais difícil a sua escolha. Sabia que só teria coragem e força
para abrir uma delas. Terminou o cigarro e escolheu a porta da direita, que a levou a um novo
corredor, mais caótico, sujo e solitário. O niilismo lhe consumia, justificando a ausência de
coragem e de força, a tristeza e a inercia também estavam presentes nela. Continuou andando
e percebeu que havia quadros e mascaras pregadas na parede, o desgaste do tempo as
tornavam mais bonitas e interessantes. Ela pegou uma dessas mascaras e continuou pelo
corredor. Apesar da oscilação da luz, conseguia ver, nitidamente, um sorriso na máscara.
Encarou isso como um bom sinal para a nova escolha de portas. Se sentia num estado em que
não sabia o que queria encontrar nas próximas. Ela sabia que no final do corredor deveria
tomar uma nova decisão. O caminho até o fim foi angustiante, mesmo esse sentimento lhe
sendo familiar, a incomodava demais. Tentou buscar alguma lógica do porquê de ter de
escolher entre os caminhos, mas não conseguia achar. Até se encontrar de frente com as duas
portas já conhecidas e um novo portão entre elas. A chave dele lhe era concebida por meio do
sofrimento. Ela sentia a vaidade escorrendo pelos dedos a medida que o portão se abria e
revelava uma escada. Ao subi-la, se encontrou num templo nas alturas da Terra. Lá estavam
uma cobra, uma aranha e um rei de ouro.
- O que é mais maravilhoso do que o ouro? – perguntou a aranha.
- A luz – respondeu o rei.
- E o que é mais confortante do que a luz? – perguntou a cobra.
- A fala – respondeu o rei.
- Porque vem agora que já temos luz? – perguntou a cobra.
- Porque tenho que iluminar a escuridão. – respondeu o rei.
- Meu império já vai acabar? – perguntou a aranha.
- Tarde ou nunca. – respondeu o rei.
- Quantos segredos sabe? – perguntou a cobra.
- Três. – respondeu o rei.
- Qual é o mais importante? – perguntou a aranha.
- O manifesto – respondeu o rei.

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- Vai revela-lo a nós? – perguntou a cobra.
- Logo que eu souber o quarto – disse o rei.
- Eu sei o quarto – disse Sofia atraindo a atenção dos três, que até então não haviam
lhe percebido presente ali. Ela foi até o rei e cochichou algo em seu ouvido.
- A hora chegou! – gritou o rei em uma voz poderosa que ressoou por todo o templo,
fazendo a cobra fugir para o leste e a aranha para o oeste. Então ele se voltou para Sofia e
disse – Previsto nos antigos contos de mistérios, forças adversas surgiram para contribuir com
a continuação. O total declive, o juízo final são os presságios sombrios constantes no gênio
humano, são presentes desde o reconhecimento do beijo da morte. Para o amadurecimento
de minha co-criação as forças adversas se rebelaram das condições da Providencia. Mas a
humanidade, por medo e desejo egoísta ainda não entendeu o sofrimento impotente da cruz e
a alegria da ressureição. Pois no ato de sacrifício a pureza foi recuperada, vos tornando deuses
cientes da própria imagem e semelhança, dando oportunidade de salvação e redenção,
possibilitando a capacidade de aprender com monstros internos em atitudes harmoniosas. O
drama cósmico demanda por atitudes equilibradas entre impulsos excessivos que cada Eu leva
a um desfecha favorável. Assim as perguntas eternas ficam de portas abertas para respostas.

.
As ruas estavam lotadas, foi então que se deu conta que era finalmente o começo da
Festa do Sol, que o Capitão havia lhe avisado. No primeiro dia de cerimonia todos caminhavam
rumo ao Santuário, cantando um hino em homenagem ao Sol. A luz do Sol parecia lhe aquecer
mais do que o normal e parecia trazer o despertar de uma nova consciência para Sofia, que
também partiu em direção ao Santuário. Ele era rodeado por muros altos cujas sombras se
perdiam nas câmaras subterrâneas e escondidas. Sofia ficou maravilhada com o portão, que
mais parecia um portal. Ao atravessa-lo chegou no gigantesco quintal da parte exterior do
templo, onde todos se reuniam e dividiam alimentos. Os pilares da majestosa construção eram
pintados com cenas maravilhosas. Reluziam, em suas cores douradas, uma história que Sofia
não conseguia entender de imediato, mas sentia que continham os segredos do mundo d/al
´wm as estrelas e das conquistas e origem daquele povo. No cair da tarde, o banquete acabou
e parte dele era entregue aos sacerdotes, servos e discípulos do templo, como oferenda. O Sol
começou a se por exatamente atrás do Santuário. No céu parecia que as cores rosa, laranja e
vermelha duelavam com os tons azuis da noite que subiam do horizonte leste. Todos, de
repente, ficaram em silêncio, pois o Grande Sacerdote descia as centenas de degraus
entonando um canto que dizia:

- A humanidade abandonou o reino divino em seu nascimento. A nossa missão é


reencontrar o caminho de volta, mediante a força que o Deus criador colocou em nossos
corações.

Ele carregava, aparentemente com muito cuidado e esforço, um triangulo de outro do


tamanho de seu tronco. Quando desceu todos os degraus ele cavou um buraco na terra
arenosa e enterrou o triangulo, exatamente no momento em que a noite preencheu o céu.
Então todos partiram, ainda em silencio, de volta para suas casas. Parecia que todos estavam
de luto. Durante três dias ninguém saiu de casa. Todos respeitavam esse culto, os forasteiros,
os nobres, a realeza e todos os seus servos, o povo em todas as classes hierárquicas. No fim da
terceira noite, antes da aurora do solstício todos voltaram aos jardins do Santuário. Junto com
o nascer do Sol. Lá, o Grande Sacerdote desenterrou o triangulo de ouro. Comemoraram e as

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festividades continuaram. Sofia ficou encantada e intrigada com o ritual inteiro, sabia que
havia um significado mais profundo nos atos do Grande Sacerdote além do que seus olhos
puderam enxergar.

Se lembrou de um boato que ouvira em suas festanças. Que no Santuário viviam


magos e mestres da ciência divina, que estudavam o livro das instruções do espirito na
travessia dos mares celestes após a morte, que conheciam a purificação do fogo solar, sobre o
julgamento da alma.

Em meio à multidão Sofia foi ao encontro do Grande Sacerdote que conversava com o
povo. Sofia esperou impacientemente sua hora de encontra-lo em meio ao mar de gente.
Quando finalmente chegou sua vez pode olha-lo de perto. Ele tinha um porte majestoso, uma
fisionomia tranquila, olhos pretos que sentia penetrar o amago de sua essência, como se sua
alma entregasse seus segredos. No momento que ficou realmente perto dele ela cochichou em
seu ouvido:

- Somos todos nós.

- Vamos, entre rápido. – Ele respondeu, fazendo alguns gestos para os servos a
conduzirem para dentro do Santuário. Atravessaram pórticos, galerias internas, indo até uma
espécie de avenida talhada na rocha, que dava acesso a um pequeno salão. No salão havia
uma porta, e na frente dela estava erguida uma estátua de uma deusa, a Mãe da vida, de
tamanho natural. Ela tinha o rosto vendado e um livro fechado sobre os joelhos. No pedestal
da estátua Sofia leu “Nenhum mortal já levantou meu véu”. Sofia ficou sozinha esperando o
Grande Sacerdote. Ela tinha esperado quase três meses para esse encontro, e agora não sabia
o que esperar dele. Se sentia completamente perdida e sozinha. Não sabia em que acreditar e
em quem confiar. Resgatou na memória P e Q, e, de alguma maneira isso lhe deu força e
coragem. Sentir isso significava algo profundo. Sua intuição dizia que neles, se podia confiar.

O Grande Sacerdote chegou depois de muito tempo de espera, Sofia julgava já estar
de noite. Ele foi direto ao ponto e perguntou sobre sua terra natal, sua família e sua vida,
sobre sua trajetória até ali. Sofia sabia que se mentisse, ele conseguiria descobrir de alguma
maneira, então lhe respondeu a verdade, mas não mais que o necessário.

– E o que você quer? – ele perguntou

- Descobrir a verdade.

- Qual verdade? – A pergunta surpreendeu Sofia. Depois de muito pensar respondeu:

- A verdade verdadeira.

- Entendo... entendo... Percebo um sincero desejo de conhecer vindo de teu coração,


apesar de perceber também as suas sombras. Veja, está porta é o Portal Escondido do
Santuário. Vê as colunas? Uma representa a ascensão do espirito, que pode levar a vida da Luz
Cósmica. A outra significa o cativeiro da matéria, que pode levar a aniquilação espiritual. Ao vir
até aqui você também estará arriscando a sua vida. Os fracos e maus só encontram a loucura e
a morte, já os bons e fortes encontram a vida e o caminho do eterno. Muitos imprudentes
vieram até aqui e nunca mais retornaram por essa porta. Essa é a hora que você espera de
realmente se testar, além dos seus autojulgamentos. Não importa mais quem você é, para
viver e aprender conosco você deve se decidir, pois fechada a porta, não terá como desistir.

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Sofia suava, sentia como que sendo arrancada daquele sonho que deturpava e iludia
sua mente, seus sentimentos e suas ações. Era como ele dissera, era hora de se testar, além de
seus julgamentos. De certa forma não tinha nada a perder, era mais um obstáculo, que se
superado, poderia leva-la mais próxima as verdades sobre as questões de sua existência. E a
morte, apesar de não ser mais tão atraente, não sentia que seria o fim, e era melhor morrer
tentando alcançar algo do que morrer fugindo.

- Tenho certeza! – Então ele a levou ao pátio externo e lhe entregou aos servidores do
templo.

- Fique com eles até que seja convocada. – E foi embora deixando uma atmosfera de
seriedade e superioridade.

Sofia passou os dias fazendo os trabalhos braçais. Sua obrigação era varrer. Enquanto
varria, ouvia os hinos ecoarem nas paredes. Os hinos eram os únicos sons que ouvia, pois fora
ordenada a fazer todas suas obrigações em extremo silencio. Assim seguiu sua rotina por volta
de dois meses, até que um dia dois servos a conduziram até o Portal Escondido.

- O Portal não foi aberto, você ainda pode desistir. Pois se quiser mesmo atravessa-lo,
não tenha esperança de regressar. – disse um dos servos. Sofia afirmou com a cabeça que
continuaria.

O portão dava em um grande salão arrematado pela escuridão. Ao atravessa-lo Sofia


ouviu o outro servo dizendo antes de fechar a porta:

- Os que secretamente ambicionam a ciência e o poder, aqui, perdem suas mentes. –


Sofia ouviu essa frase ecoar pelas trevas por sete vezes, com intervalos, cada vez, maiores.

Seus olhos demoraram um tempo para se adaptarem a escuridão. Estava em um


grande salão escuro, só conseguia ver, bem ao fundo, uma pequena chama queimando e
emitindo um clarão. Caminhou através da escuridão e se aproximando da chama, Sofia
percebeu que ela iluminava um caminho entre várias estatuas de seres com corpo de homem
e cabeça de animais, como leões, touros, aves, serpentes. A chama vinha de uma lamparina
acesa, posicionada em uma parede, no meio de uma múmia e um esqueleto humano, que se
encaravam. Abaixo dela havia um buraco. Preciso avançar, deduziu Sofia, pegando a lamparina
e entrando no buraco. Ele dava a entrada para um longo corredor muito apertado que aos
poucos foi forçando Sofia a quase rastejar. Qual a intenção disso? Ela pensava. Então, para
piorar, o corredor passou a se inclinar para baixo até se tornar uma rampa, uma espécie de
funil. O coração de Sofia acelerou. Estava diante de um abismo. Ao ver o precipício, se
aterrorizou. A vertigem fez com que seus joelhos enfraqueceram e suas mãos, que agarravam
a lamparina firmemente, tremessem. Sofia não sabia o que fazer, só sabia que era impossível
subir a rampa de volta. Precisava continuar, mas por onde? A única fonte de luz era da
pequena lamparina. Sua mão tremia tanto que dificultava a iluminação. O desespero
ameaçava tomar conta. Num lance súbito, enxergou algo reluzindo. Sofia respirou fundo e se
controlou para clarear uma fenda a sua direita. Por dentro de uma rocha havia sido escavado
uma escada de ferro em espiral. Era sua salvação. Ao subir, os joelhos de Sofia desabaram. Foi
tomada pela sensação de alivio e exaustão após o pico de adrenalina. Enquanto sua respiração
voltava ao normal Sofia olhava ao seu redor e ficou maravilhada com o que via. A escada
terminava em uma galeria, com enormes figuras femininas esculpidas como pilares de
sustentação, na mão de cada uma havia lâmpadas de cristais iluminando as paredes, que

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irradiavam lindas pinturas em cores vivas e fortes. Sofia julgava ser representação dos deuses.
Estava tão impressionada que nem percebeu que um ancião sorridente lhe aguardava.

- Quem é você? – disse no susto.

- Parabéns jovem aspirante, você demostra coragem ao chegar até aqui.

- Obrigada.

- Me chamam de Protetor.

- Protetor? Protetor de que?

- Daqueles que procuram. – O ancião disse ainda sorrindo. A resposta satisfez a


curiosidade de Sofia. Um silencio tomou conta do ambiente, mas não incomodava nenhum dos
dois. Eles apenas observavam as pinturas magnificas. Dentro delas novas imagens surgiam, de
uma maneira orgânica e hipnótica.

- O que elas querem dizer? As acho tão lindas. Elas motivam minha alma, mas não
consigo entender o que significam.

- Elas querem dizer exatamente o que elas dizem. Qual é o problema de admira-las e
não as compreender?

- Não sei, acho que nenhum. Só me incomoda ver e não entender o que estou
enxergando.

- Veja com seu coração então.

- E como que faz isso?

- Através dos seus sentimentos mais humanos. O que você sente ao olha-las?

- Uma espécie de euforia, mas uma euforia que me mantem desperta e não vagando
por uma imaginação abstrata. O que eu sinto ao vê-las é que elas contam uma história grande,
cheia de feitos heroicos e aventuras. Sinto que é uma história que mudou o mundo.

- Muito interessante você dizer isso.

- Porque?

- As pinturas contam a epopeia do herói H, o Sábio Andarilho.

- Já ouvi falar nele. Quem ergueu este templo.

- Exato, e existem muitas versões sobre a história dele e dos Andarilhos, mas a que te
contarei é a verdadeira.

- Há muito tempo, algo havia acontecido na Terra, os Sábios podiam perceber isso. As
terras, ao extremo Norte do continente, que antigamente eram verdes, férteis e úmidas, se
encontravam secas e mortas. O deserto cada vez mais se aproximava, e um dia aniquilaria toda
a região. O mar cada vez mais avançava e antigos morros já estavam se transformavam em
ilhas. Ciente disso, os Sábios observavam os astros todas as noites, lendo seus sinais. Na
manhã em que o Sol nasceu na constelação de Peixes eles disseram “este é o sinal, é chegada a
hora”. Chamaram todos os treze chefes das tribos locais para uma reunião. Estavam numa
encruzilhada. Em pouco tempo o que restava do rio ia sumir e as árvores desaparecer, a

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maioria dos animais já haviam ido embora, era preciso achar um novo lar para sobreviverem.
Apenas um dos chefes se recusou a ouvir os Sábios, alegando que a situação não passava de
uma má fase, que a terra de seus ancestrais nunca iria ser tomada pelas areias assassinas ou
pelas águas traiçoeiras e tentar atravessa-las que era a sentença de morte, ele e sua tribo
ficariam. Os outros doze chefes escutaram os Sábios, juntaram todos os suprimentos de suas
tribos e partiram rumo ao Grande Deserto, o mesmo que haviam temido o avanço por tanto
tempo. “Hoje partimos juntos, somos um novo povo e pela Tradição seremos conhecidos
como os Andarilhos” disseram os Sábios.

- Partiram tomados pelo sentimento de desbravar o desconhecido. Uma das vistas que
adoravam era a do fim da tarde, quando o Sol dourado deixava a areia laranja e o céu azul ia se
transformando em tons avermelhados até o céu noturno aparecer, lindo e estrelado, cheio de
uma esperança que preenchia o coração daquele povo, os ajudando a combater o frio
assassino da noite e as alucinações e a sede do calor do dia. Vagaram pelas difíceis dunas, com
suas tempestades que cegavam, espalhando um medo coletivo, e com sua areia fofa que
desacelerava os passos. Passaram pelas saleiras formadas há milhares de anos, eram tão
brancas que machucavam os olhos e tão silenciosas que machucavam os ouvidos.
Atravessaram terrenos de rochas duras e pequenos pedregulhos soltos e escorregadios.
Escalaram montanhas solitárias enquanto sentiam o vento barulhento soprar do Noroeste em
suas costas, trazendo o cheiro do mar e a lembrança de seus antigos lares. Além dos
Andarilhos e seus animais, o deserto era o lar de pequenos arbustos e alguns cactos, de alguns
lagartos, cobras, escorpiões e pequenos insetos que mal eram vistos. Até que um dia os dozes
chefes tribais convocaram uma reunião com os Sábios. “Escutamos a suas palavras, pudemos
enxergar e sentir o perigo e partimos todos juntos como um povo. Quarenta ciclos solares
(anos) já se passaram desde que iniciamos nossa andada pelo Grande Deserto, muitos já
morreram e muitos já nasceram. Mas, agora, tememos os dias que virão, pois, as provisões já
estão chegando ao fim” eles disseram. Os Sábios responderam “Mantenham a fé! Sejamos
gratos, então, pela comida que ainda temos hoje. Os dias difíceis continuarão até alcançarmos
o topo do monte mais alto do deserto, e lá teremos a visão da salvação” apontando para uma
sombra no horizonte. Ao chegarem na base do monte, os chefes convocaram outra reunião
com os Sábios, e disseram “Escutamos a suas palavras, pudemos enxergar e sentir o perigo, e
partimos todos juntos como um povo. Quarenta ciclos solares já se passaram desde que
iniciamos nossa andada pelo Grande Deserto, muitos já morreram e muitos já nasceram. Mas
agora os dias nos perturbam, pois, a fome já mata nossas crianças, nossos idosos e nossos
animais”. Os Sábios responderam “Mantenham a fé! Sejamos gratos com o pouco de saúde
que ainda nos resta. Os dias difíceis continuarão até atingirmos o topo deste monte, e lá
teremos a visão da salvação”. Os doze chefes e os Sábios levaram três dias e três noites para
alcançar o topo do monte, ali, os chefes disseram “Escutamos a suas palavras, pudemos
enxergar e sentir o perigo, e partimos todos juntos como um povo. Quarenta ciclos solares já
se passaram desde que iniciamos nossa andada pelo Grande Deserto, muitos já morreram e
muitos já nasceram. Mas, agora o tempo nos desespera e queremos saber o que irá acontecer
conosco! “. O Sol estava escaldante e majestoso, brilhando no alto do céu. A paisagem
continuava a mesma, estavam cercados por um oceano árido, tão quente que era possível ver
o calor exalando do chão. “Mantenham a fé! Os dias difíceis acabaram quando atingimos esse
topo e aqui teremos a visão da salvação. Mas como dia ainda não acabou, tenhamos paciência
e vamos contemplar o fim do dia, que já nos alegrou tanto” responderam os Sábios. Aquela
resposta não agradou muito os chefes. Eles tinham muitas preocupações, sentiam que não
podiam se dar ao luxo ficar contemplando o Sol se pôr enquanto seu povo morria desesperado

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e com fome. Estavam há tanto tempo naquela jornada que a esperança já quase se apagara de
suas almas. Porém, como sempre respeitaram e acreditaram nos Sábios, sabiam que aquele
pedido continha algum significado mais profundo e fizeram o que foi pedido. Viram o Sol sumir
no horizonte com suas cores maravilhosas e quando se viraram para o Leste, viram a reluzente
Lua cheia nascer, e com ela, a visão da Salvação.

- Como num passe de mágica da luz da lua, surgiu um oásis, a direita deles e um rio
que alimentava uma vasta vegetação, a esquerda. “Aqui será conhecido como o Monte da
Visão” disseram os Sábios enquanto os chefes choravam lágrimas de alegria e comemoravam
dançando. Acácias verdes, cheias de espinhos e galhos distorcidos, que traziam sombras,
passaram a ser constantes na paisagem. O calor do dia e o frio da noite passaram a ser mais
amenos e o clima se tornou mais agradável. Grande parte da paisagem que encontraram ainda
está conservada até hoje. Ao chegaram no Rio, os Sábios e os chefes tribais se encontraram
mais uma vez. “Aqui será conhecido como o Rio da Salvação e essa região será meu lar” disse
um dos sete Sábios, o mensageiro divino, H. “Estamos encantados por este lugar, algo me diz
que também devo ficar, criar raízes e fortuna” disse um dos chefes. Logo em seguida mais
cinco chefes tribais disseram o mesmo. Os Andarilhos continuaram na sua andada deixando as
seis tribos e o Sábio H.

- Depois da despedida, H exclamou para os que haviam ficado “Aqui é o nosso novo
lar, as Terras Férteis, e aqui prosperaremos! Seremos conhecidos pela Tradição como as tribos
do Norte, e aqui imperaremos! ”. Exploraram o Rio da Salvação até a sua foz. Antes do rio
desembocar no mar ele se dividia em dois formando um delta. Aqui, H construiu a primeira
cidade das Terras Férteis, aqui, a Cidadela do Templo, onde se edificou a capital das tribos do
Norte. Iniciaram uma exploração rumo a nascente do Rio da Salvação, construindo cidades e
vilas por onde passavam. Á medida que avançavam a vegetação ficava mais densa e um
barulho, uma espécie de rosnado, ia ficando mais alto. Até descobrirem um grande paredão
com uma catarata, que alimentava o rio e rugia com a força imponente de suas águas.
Demorou muitos dias até que os batedores pudessem achar um caminho para alcançar o seu
topo. Lá em cima planalto se estendia, coberto por uma floresta de árvores gigantes de
aparência milenar. Era o lar dos povos do Extremo Nordeste. Assim, H partiu com comitiva a
fim de fazer contato com eles.

- H se encontrou com o Imperador dos povos do Extremo Nordeste. Era um homem


preto, alto e forte. Dava para sentir sua imposição só pela sua presença. Estava vestido de um
tecido bordado com ouro e muitas joias preciosas cintilantes, assim como sua coroa e seus
anéis, mais do que H tinha visto em toda sua vida. Conversaram profundamente sobre os mais
diversos temas, e acabaram forjando uma amizade entre eles e uma aliança comercial e militar
entre seus povos. H ficou lá por sete anos, com sua comitiva.

- Estudou toda a Tradição deles. Eram poderosos pela resistência física, pela energia
passional e pela capacidade de dedicação. Quando era necessário o Imperador, que também
era o Sacerdote Supremo, usava da força e do terror para governar. Possuíam uma indústria
bem adiantada, se comparada com a dos Andarilhos. Eram mestres na arte de manejar massas
de pedras colossais e de fundir metais em imensas fornalhas. Sua cultura dizia que a
humanidade havia sido criada no Céu pelos Deuses e um dragão enciumado roubou os
Primeiros Humanos dos Céu e os jogou naquela região. Depois da Queda, os, ainda muito
primitivos, Primeiros Humanos, descobriram que possuíam dentro de suas almas uma chama
alimentada pelo amor, assim como todos os humanos de todas as épocas. A partir desse amor
puderam povoar os quatro cantos do mundo, e por isso, todos os humanos são descendentes

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deles. Ensinaram a H que os Primeiros Humanos foram os primeiros a atingir a verticalidade e
se reconhecerem e se lembrarem como humanos. Foram os fundadores do princípio de
sociedade e civilização quando os gigantes e sáurios, agora extintos, ainda perseguiam os
humanos, que se reuniram e escolheram o mais inteligente e o mais forte como seu líder, e
aqueles incapazes de lutar, formaram um Conselho. Foram, também, os primeiros a descobrir
a força da Palavra e da comunicação quando dois guerreiros de duas tribos rivais discutiam e
lutavam uma mulher interveio, com seus olhos em chamas e sua voz de comando gritou, com
palavras ofegantes, que as tribos eram irmãs e não deveriam lutar entre si, assombrados por
aquela força, os guerreiros se reconciliaram. Alegavam que as suas mulheres foram as
primeiras sacerdotisas, que percebiam, entendiam e profetizavam cantos rítmicos da Natureza
e seus homens foram os primeiros caçadores e os primeiros a modificar a Natureza. H visitou o
palco das primeiras guerras, das primeiras tréguas e dos primeiros comércios da humanidade.
Aprendeu sobre os antigos Dias Gloriosos, quando conquistaram o mundo com a ciência de
suas armas de ferro e armaduras de bronze e com a suas artes de fundir metais e de fixar
ideias por meio de sinais em escrituras sagradas. Depois aprendeu sobre a Ruina, criada e
alimentada pela ganância, que trouxe a ruina aquela Era e provocou a disporá do que restará
naquela região. Então, H foi apresentado as reuniões anuais das tribos, em que elas se
encontram para discutir questões políticas, celebrar festivais religiosos e para compartilhar
invenções, conhecimento e tecnologias. Ouviu atentamente os hinos sobre um deus solar que
ao ver a Lua sem brilho desejou ilumina-la, chegando se deparou com um dragão branco, que
estava morando lá, o mesmo causador da Queda. Desde então eles lutam na Lua e vão
continuar até o fim dos tempos. Quando ela some do céu é porque o dragão está ganhando,
quando está cheia e irradiante é porque o deus solar está ganhando. E no dia em que a Lua
nascer vermelha e continuar vermelha até se pôr é o sinal que um dos dois ganhou e o
vitorioso vai liderar a humanidade rumo as Últimas Eras. H aprendeu muito sobre aquele
antigo povo, mas foi só no último ano de sua estadia em que os Anciões realmente lhe
ensinaram um segredo ancestral. Aprendeu o que restou dos Segredos das Vontades do
Mundo. Era um poder antes glorioso e agora pouco conhecido, considerado até mesmo
mágico, que era bem mais antigo, devastador e perigoso do que o diferente poder conhecido
entre os Sábios, o poder do pensar. H satisfeito e grato pelo povo do Extremo Nordeste, voltou
para sua capital aplicar seu conhecimento.

- Um dia, após ter refletido sobre a origem das coisas, adormeceu. Sentiu a gravidade,
em seu corpo, pesando para baixo e a luz, em seu espirito, fluindo para o alto. Um ser imenso
apareceu diante a sua alma e disse “Sou a inteligência soberana, o Regente Solar, e sei que
desejas contemplar a origem dos seres”. H sentiu-se inundado por um calor delicioso. Como
ondas, passavam imagens encantadoras da evolução de todos os seres e o fantástico drama
dos deuses. H viu o filho do Deus Solar sendo traído pelo seu próprio irmão, o deus do Deserto.
Desde que se casara com sua irmã, e se consolidaram como os deuses das Terras Férteis, o
invejoso Deus do Deserto passou a bolar um plano para destruí-los e conquistar o idolatrado
trono de Deus da Terras Férteis. Ordenou um caixão com as medidas do filho do Deus Solar,
feito de ouro brilhante por fora, e terra por dentro. Durante um banquete entre os Deuses, um
servo do Deus do Deserto, disfarçado, ofereceu o luxuoso caixão para quem coubesse nele.
Todos tentaram, mas obviamente, ninguém coube, até que o filho do Deus Solar, não
desconfiando de nada entrou no caixão. Assim que ele se deitou, o Deus do deserto e seus
comparsas trancaram o caixão e fugiram com ele. Ao chegarem no Rio da Salvação, eles
despedaçaram o caixão e o Deus em quatro pedaços os jogando no rio. Quando a esposa do
filho do Deus Solar, a Mãe da Vida soube da notícia, ela vasculhou toda a região em busca do

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cadáver do marido. Quando finalmente encontrou os quatro pedaços, no delta, recebe um raio
dos céus, e dele, dá à luz ao neto do Deus Solar, que enfrenta e derrota o usurpador do Deus
do Deserto, assumindo as funções terrestres de seu pai, já que este se tornou o juiz Supremo
no Reino dos mortos, o único capaz de enxergar o passado e o futuro e dar o veredicto se o
coração do falecido é tão leve quanto uma pena.

Sofia percebeu um pensamento vindo ao seu encontro, um pensamento não


elaborado por ela, mas como que recebido. “Um ser primordial foi despedaçado em múltiplas
partes. Então fica entre duas forças universais: o devir do amor e o perecer da luta. Os dois são
quando se misturam se tornam o humano e toda a gama da existência, que ora se une pelo
poder do amor, ora se divide pelo poder do ódio e da luta.”

- Porém, repentinamente, trevas assustadoras de formas irregulares desceram sobre


H. Mergulhou num caos úmido, pegajoso e destorcido, cheio de fumaça e ruídos constantes.
Quando controlou seu medo, uma voz se elevou do abismo. Era o grito da luz. Logo, um fogo o
empurrou das profundezas ganhando as alturas. Dava para ver o espaço, o caos clareava o
abismo, ouvia coros de astros ressoarem e a voz da luz preenchia o infinito. O fogo se
transformou em ar, que o levou até o meio do mar. O ar se transformou nas ondas do oceano
que o levaram até uma pedra, no cume de uma montanha. Era uma noite nua e sombria.
Sentia seus membros pesados. “Ergue os olhos e olha! ” Voltou a dizer o imenso ser. H viu o
espaço infinito, e nele, os setes céus estrelados envolvendo sete esferas luminosas. Em cada
esfera girava um planeta, uma energia, uma luz volitiva e um ser espiritual diferente. Enquanto
H, deslumbrado, contemplava aqueles majestosos movimentos, almas e espíritos transitavam,
desencarnando e encarnando pelo Tempo e pelo Espaço. Quando H despertou,
imediatamente, transformou seu Santuário no Templo do Sol do jeito que ainda é hoje.
Perguntado o porquê disso ele respondeu “nenhum de meus pensamentos poderia conceber o
que vivenciei, nem qualquer linguagem poderia defini-la. O que é invisível, sem forma,
incorporal, não pode ser apreendido pelos nossos sentidos comuns, o que é eterno não
consegue ser medido pelas regras do tempo e do espaço. Não encontro palavras para traduzir
a visão que me faz estremecer. Reformar esse templo é como tentar transforma-la em uma
imagem da vida universal. Mas o que eu vivi só vou realmente compreender quando sua causa
me for revelada após atravessar o umbral da morte”. Usou seus conhecimentos para ensinar
seus discípulos a serem grandes mestres, para educar os primeiros Imperadores do Norte e
para erguer incríveis e majestosos templos, santuários, cidades e esculturas. Aqui, no Templo
do Sol, ensinou sua sabedoria sobre as leis universais, escrevendo e pintando segredos sobre a
doutrina do Fogo e do Verbo da luz até o fim de sua vida. A Cidade do Templo foi, por muito
tempo uma verdadeira cidadela da ciência sagrada, uma escola para profetas e sábios, um
refúgio e laboratório das mais nobres tradições da humanidade.

Sofia não conseguiu assimilar toda a história e seus significados de uma só vez, mas no
seu íntimo pressentia estar finalmente, se religando com o mundo. Sentia um misto de
surpresa, de fé e de arrebatamento. Era isso que seu coração dizia que importava naquele
momento.

- Uau! As pinturas dizem tudo isso?

- Eu resumi para você o que essas formas e cores escondem.

- Sou grata por isso.

- Não há de que. Mas, agora, acredito que você deveria prosseguir.

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- Por onde?

- Pelo caminho que encontrar.

Sofia ficou observando de perto as pinturas nas paredes da galeria. Elas tinham
milhares de anos, e ainda reluziam glória e poder. Tudo era muito enigmático. As cores, as
formas, a aura do lugar. Passou horas contemplando-as e finalmente percebeu que haviam
três portas entre as pinturas. Uma na parede direita, outra na esquerda e outra na frente.

- Vou escolher a do meio.

- Sábia escolha. E se lembre, a morte só assusta os fracos. – disse o Protetor, abrindo a


porta, que dava para uma abóboda, estreita e longa, onde havia uma fornalha acesa. Sofia se
assustou, sentindo a adrenalina e o sangue voltarem a circular em suas veias.

- Prosseguir é praticamente suicídio! – respondeu Sofia se voltando para trás. O que a


deixou ainda mais assustada, pois estava sozinha. O Protetor não estava mais ali, ele havia
desaparecido. Sofia sentiu um frio na espinha. Quando foi procurar por ele, viu chamas
consumirem a escada por onde tinha vindo. O fogo avançava e entrava na galeria. Sofia olhou
para a porta que havia escolhido e ela começou a se fechar. O que fazer? Ir rumo a fornalha ou
ser consumida pelo fogo e pela fumaça que se propagava? Por um instante Sofia ficou
preocupada pelas pinturas. Enfrentado tudo o que tinha passado para estar até ali, só restou
reunir sua coragem e seguir em frente antes que a porta se fechasse por completo. E assim
que entrou, a porta se fechou. Logo nos primeiros movimentos avançando, pôde perceber que
as chamas não passavam de uma ilusão de ótica e no meio da fornalha havia uma pequena
passarela, que lhe permitiu correr até uma nova câmara.

Era uma câmara revestida de marfim, fazendo com que o piso ficasse escorregadio.
Sofia escorregou logo de cara, e caiu em uma água gelada, morta, escura, malcheirosa e
profunda, não dava pé. Sofia tentou, o mais rápido que pode, se levantar e sair dali, mas ficava
escorregando para dentro novamente. Quanto mais tentava sair, mais aflita ficava, e mais nojo
sentia. Como sair dali? Estava fixa neste pensamento. Quanto mais tempo passava, mais
enjoada e com frio Sofia ficava. Não conseguia encontrar uma maneira de sair dali. Então, de
repente, teve um insight, a pergunta não era como sair dali, e sim, como continuar avançando.
Assim, só lhe restava uma resposta: mergulhando. Respirou fundo e se afundou na água
viscosa e asquerosa. Encontrou um túnel submerso. Voltou a superfície, recuperou seu folego
e mergulhou para atravessar o túnel.

Quando Sofia alcançou uma espécie de fonte, estava quase desmaiando. Como era
bom poder respirar novamente. Sofia se encontrava na fonte no meio do pátio central e lá
estavam dois servos lhe esperando, os mesmo que haviam a levado ao Portal. Eles a
conduziram a um quarto subterrâneo. Lá, eles a limparam com líquidos aromáticos e ervas
recém colhidas e a colocaram em um leito macio, que era iluminado por uma lâmpada de
bronze pendurada no teto.

- Descanse e espere pelo Sacerdote.

Sofia começou a reparar o quão cansada estava e o quão desgastante foram aquelas
provas. Sentia seus músculos doloridos. Mas sua mente não parava de se lembrar da história
que o Protetor havia contado. O que havia acontecido com ele? Ele era real? Lembrou das
pinturas, a que mais havia lhe chamado a atenção era a de um jovem musculoso olhando para
cima, armado de uma lança, uma espada reluzente e um escudo vermelho, duelando com um

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monstro que lembrava uma mistura monstruosa de um javali, um touro e um dragão. Aquela
imagem estava impregnada em sua imaginação. Será que ilustrava o hino dos povos do
extremo norte sobre o Deus Solar lutando com o dragão na lua? Ou talvez ilustrasse o neto do
Deus Solar, nascido com o raio divino para combater o Deus do Deserto. Começou a se sentir
sonolenta e passou a ouvir um vago som. Uma música vinha do fundo do quarto. Sofia se
sentiu envolta em um calor onírico.

Ela se viu novamente, na mesma aparência de quando se viu refletida no mar.


Maravilhosa, tentadora e com uma coroa esplendida. O reflexo se aproximou em passos
lentos, trazendo uma taça. Sofia cruzou as mãos sobre seu peito quando sentiu uma forte
indecisão, não sabia se sentia medo ou alegria.

- Você está com medo de mim bela Sofia? Eu te trago o troféu da vitória, só assim
poderá esquecer de seus fardos, bebendo a taça da ventura.

Sofia hesitou. Podia se apaixonar olhando aquele olhar lindo e suplicante. Queria tocar
naquelas mãos, e aconchegar seus lábios naquela taça. Sentia um desejo ardente e atraente.
Será que ao beber se sentiria preenchida, até que enfim? Um prazer instantâneo no meio de
um poço de frustação? Porém, resgatou a imagem do jovem triunfando sobre o monstro, o
que lhe deu forças para tomar uma decisão.

- Ó! Como me tenta e eu me agrado, mas quando deixo teus prazeres me conduzirem,


eu mais me sinto tua serva, e escapa a minha liberdade. Os olhos da luz reluziram sobre minha
alma e posso sentir meu verdadeiro espirito triunfante. Sei que as sombras sempre vão me
perseguir e terei de conviver com elas. Só que eu também sei que através da dor e do
sofrimento tenho a chance de purifica-las. Nelas posso encontrar a luz, a verdadeira luz, não a
ilusória que você me oferece. Sou especial, assim como todos os humanos tem a capacidade
de ser, se se conectarem consigo mesmos. Você me faz voar pela inconsciência, num sonho
confortável, numa fantasia errônea. Agora desejo subir as alturas das artes do espirito e do
conhecimento. – Ao terminar de falar, Sofia derramou a taça e dominou a tentação.

Neste momento, acordou com doze sacerdotes, vestidos nos seus clássicos trajes
branco, em sua volta, segurando tochas acesas. Havia dormido por três dias seguidos. Eles a
levaram para o fundo do templo. Lá Sofia ficou incrédula ao ver uma estátua colossal da
mesma Deusa da frente do Portal. Mas essa era feita em um metal fundido vermelho,
carregava uma rosa de ouro no busto e usava uma tiara com doze raios, acolhendo, nos
braços, o neto do Sol. Diante da estátua estava o Grande Sacerdote. Ele recebeu Sofia com
terríveis ameaças e a fez pronunciar o juramento de submissão e de segredo. Na presença dos
sacerdotes, Sofia fez as promessas diante da Deusa. E elevada acima de si mesma, iniciada nos
mistérios da Terras Férteis, pôde ter a chance de penetrar em uma esfera da verdade.

E assim acaba o primeiro ato de Ressureição de Sofia.

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