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Table of Contents

TRATADO DO INFERNO

Santa Francisca Romana

TRATADO DO INFERNO

Santa Francisca Romana, Viúva Fundadora das oblatas

Visões de Santa Francisca Romana

Tratado do Inferno Capítulo I

Capítulo II Tormentos particulares infligidos a nove tipos de culpáveis

Capítulo III Como os pecados capitais são punidos no inferno inferior

Capítulo IV Suplícios particulares para sete espécies de pecadores

Capítulo V Blasfêmias dos réprobos

Capítulo VI Número dos demônios, seus nomes e tarefas

Capítulo VII Os Limbos

Capítulo VIII O Purgatório

Capítulo IX Da glória dos santos no céu


TRATADO DO INFERNO
Santa Francisca Romana
TRATADO DO INFERNO

TRATADO DO INFERNO EDITORA SANTA CRUZ ISBN: 978-85-


5932-015-2

“Para que os santos possam desfrutar de sua beatitude e da graça de Deus mais
abundantemente, lhes é permitido ver o sofrimento dos condenados no inferno”.

Santo Tomás de Aquino

Santa Francisca Romana, Viúva Fundadora das oblatas


1384-1440
Papa Clemente VII; Eugenio IV – Imperador Venceslau; Frederico III

”Por ter nascida na opulência, uma mulher do mundo não é menos obrigada a seguir as
máximas do Evangelho”. Santa Francisca

Na vida desta ilustre viúva veremos o retrato da mulher forte de que fala o livro da
Sabedoria fazendo grande elogio. Nasceu no ano da graça de 1384. Seu pai chamava-se
Paulo Bussa, e sua mãe Jacquelina Roffredeschi, um e outra originários das primeiras
famílias de Roma. Deixou aparecer, desde o berço, uma tal aversão a tudo o que era
contrário à pureza, tanto que não suportava de nenhum homem, até mesmo de seu próprio
pai, alguma carícia ou outras liberdades consideradas legítimas pela natureza. Na idade de
doze anos ela queria tanto se encerrar em um claustro para servir no restante da sua vida o
único Esposo das virgens; fez para isso todos os esforços; mas seus pais sem consultar suas
inclinações, apesar das suas repugnâncias, obrigaram-na a se casar em 1396 com Lourenço
Ponziani, jovem nobre de Roma, cuja fortuna vinha desde o seu nascimento; houve poucos
casamentos tão felizes como este, porque houve poucos tão santos como este; a estima, o
respeito e o amor foram mútuos, a paz e a união inabaláveis; estes esposos viveram juntos
40 anos sem o menor desentendimento, sem sombra de frieza.

No entanto, Francisca mal mudou de estado de vida e já caiu gravemente doente, o que foi a
revelação do desgosto que ela teve entrando no compromisso do casamento. Mas a doença
não durou muito; porque Santo Aleixo lhe apareceu à noite e a restabeleceu em perfeita
saúde. A sua casa era uma verdadeira escola de virtudes: considerava seus domésticos não
como servos e servas, mas como irmãos e irmãs em Jesus Cristo, sem, porém, deixar que
esta doçura lhe fizesse negligenciar o zelo e a justiça, quando se tratava de ofensa a Deus;
porque não podia suportar que se fizesse qualquer coisa contra os interesses de Sua glória.
Seu primeiro cuidado foi estudar o temperamento de seu marido a fim de evitar
escrupulosamente tudo o que o poderia aborrecer. Considerava-o como seu mestre e como
quem para ela ocupava o lugar de Deus na terra; era-lhe tão submissa e obediente que,
mesmo quando estava ocupada na oração ou nas práticas de piedade, deixava tudo para lhe
dar satisfação ou para cumprir os deveres de seu estado: o que deve ser o principal objeto
da devoção de uma mulher casada. Assim, Deus lhe revelou por um milagre como esta
obediência Lhe era agradável. Um dia rezando o ofício de Nossa Senhora, foi tão apressada
em interrompê-lo, para realizar alguns afazeres de casa, que até abandonou por quatro
vezes a leitura do mesmo versículo; mas, terminada a tarefa e voltando-se à sua devoção,
encontrou este versículo escrito em letras de ouro, ainda que antes fosse escrito em letras
comum. Algum tempo depois, São Paulo lhe aparecendo em êxtase, lhe explicou que seu
anjo da guarda tinha escrito estes novos caracteres para lhe mostrar o mérito da
obediência.

Tendo o sacramento do matrimônio sido estabelecido por Deus para povoar o céu pelo
nascimento das crianças na terra, esta fiel esposa pediu a Nosso Senhor para lhe conceder
filhos. Teve entre outros um filho que por feliz presságio teve por patrono São João
Evangelista, diferentemente de seu irmão mais velho que se chamava João Batista. Viveu
apenas nove anos; mas neste pouco tempo, mostrou-se ter nascido mais para o céu do que
para a terra, porque era dotado do dom da profecia, e predisse que seu pai iria ser ferido
gravemente em uma parte do corpo que ele indicou, e também anunciou a um religioso
mendigo que muito breve mudaria de vestes; estas profecias se verificaram: Lourenço
Ponziani foi ferido em uma guerra eclodida em 1406 entre romanos e napolitanos, e o
religioso se tornou bispo. Este santo menino foi atingido pela peste que desolava a cidade
de Roma no início do século XV. Anunciando a sua morte, suplicou a sua mãe que lhe
enviasse um confessor, porque via Santo Antônio e Santo Onofre, aos quais tinha particular
devoção, lhe aparecer para conduzi-lo ao céu: o que aconteceu no mesmo dia; foi enterrado
na igreja de Santa Cecília, além Tibre. Um ano depois, a santa, rezando em seu oratório, viu
o seu pequeno João todo radiante de luz e assistido por outro ainda mais radiante que ele;
ele revelou-lhe a sua glória no céu: estava no segundo coro da primeira hierarquia e o anjo
que o acompanhava parecia mais belo porque estava em um grau mais alto de glória. Dizia
que vinha buscar a sua irmãzinha Inês de apenas 5 anos para ser colocada entre os anjos.
Por fim, indo embora, deixou-lhe por guardião esse arcanjo que permanecerá sempre com
ela; disse ela a seu confessor que, quando lançava o olhar a esse espírito celeste, parecia ser
a mesma coisa quando uma pessoa olha o sol e não consegue suportar o brilho de sua luz.

O céu difundia sobre ela doçuras do outro mundo, que são o antegozo das alegrias divinas;
mas uma cruz lhe foi reservada, uma terrível cruz. Tendo Roma sido tomada pelo rei de
Nápoles, Ladislas, Francisca viu a sua casa pilhada, os seus bens confiscados, o seu marido
exilado: suportou tudo com uma constância admirável. A tempestade agitava-a
exteriormente, mas a tranquilidade estava em sua alma e em seu rosto, a serenidade. A
tormenta passou, o seu marido voltou do exílio, os seus bens foram restituídos, a paz
entrou em sua família. A virtuosa mulher aproveitou dessas desgraças para persuadir seu
marido a levar uma vida de perfeita continência. O esposo, santificado pelas virtudes
celestes de sua esposa muito querida, concordou com tudo o que ela queria. Desde então,
ela comia apenas uma vez por dia, alimentando-se apenas com pão e água e também alguns
legumes sem sal que comia uma vez por dia. Ela jamais se permitia durante toda a sua vida,
vestir roupas finas e trazia de baixo dos vestidos de sarja um áspero silício e uma cinta feita
de crina de cavalo; além disso, trazia um círculo de ferro que feria sua pele. Não contente
com esse instrumento de penitência, que conservava dia e noite, tomava várias vezes a
disciplina feita de corrente de ferro com pontas agudas. Só a obediência, que ela preferia a
todos esses atos, lhe fez moderar estes rigores, quando seu confessor se viu obrigado a lhe
mandar usar de moderação. Acrescentava a esta austeridade as obras de misericórdia,
assistindo os pobres, que ela considerava como imagens do seu Salvador crucificado. Para
fazer isso com mais vantagem e mais liberdade, se fez acompanhar por sua cunhada
Vannosa, alma muito virtuosa. Iam juntas de porta em porta pelas ruas de Roma, pedindo
esmola em favor dos necessitados. Deus agradouse tanto desta conduta que realizou vários
milagres em favor delas, multiplicando o pão e o vinho que distribuíam por Seu amor.

Confessava ordinariamente toda quarta-feira e todo sábado e comungava ao menos uma


vez na semana; frequentava muito a igreja de São Pedro, no Vaticano; a de São Paulo, fora
da cidade; a de Santa Maria em Aracœli; a de Santa Maria Nova1 e a de Santa Maria em
Trastevere, sempre acompanhada de sua cunhada. Narra-se que, um dia, foram à igreja de
Santa Cecília para fazer suas devoções, e um padre, que não aprovava que mulheres
casadas comungassem tão frequentemente, deu a elas hóstias não consagradas, mas
Francisca logo percebeu, não sentindo a presença do seu divino Esposo, como era de
costume quando recebia a sagrada comunhão; queixou-se ao Padre Antônio de Mont-
Sabellio, seu confessor, que foi falar com o padre; este lhe confessou a verdade do fato e fez
penitência de sua falta. O demônio, que via com raiva a virtude de nossa santa, decidiu
combatê-la. Empregando todos os seus esforços para perdê-la, apresentou-se a ela com
aspectos pavorosos, com gestos ridículos e imodestos. Atacava-a muitas vezes durante a
oração, precipitava-a com o rosto por terra, arrastava-a pelos cabelos, batia nela e açoitava-
a cruelmente. Uma noite, como ela resolveu descansar um pouco, depois de um rude
combate, o demônio transportou para o seu quarto o corpo de um homem morto e a
manteve sobre o cadáver durante muito tempo. Ela ficou tão impressionada que, depois do
ocorrido, parecia que este cadáver estava sempre próximo dela sem que pudesse se livrar
do cheiro que exalava; tanto que só à vista dos homens eralhe um suplício, sentindo em
todos os seus membros um tremor. Impossível contar aqui todas as perseguições que o
demônio lhe fez e as vitórias que ela obteve sobre ele. Triunfou da malícia dele não só
quando a empregava contra ela, mas também quando a empregava contra os outros: ora
convertia as mulheres abandonadas ao vício, ora as expulsava de Roma, ou dos outros
asilos onde se abrigavam, para impedilas de perverter a inocência.

1 Que no século XVI foi rededicada a ela.

Obteve, por suas orações, que seu confessor ficasse livre do espírito maligno que o levava à
ira. Previa as tentações de muitas almas e preservava-as de nelas cair por seus bons avisos.
Uma vez, o demônio precipitou Vannosa do alto de um monte e lhe quebrou quase todo o
corpo, mas Francisca, por suas orações, logo a restabeleceu em perfeita saúde. Assim o
demônio ficou derrotado por todos os lados.

Desde que se associou à piedosa Vannosa, sua cunhada, não fazia nada senão junto com ela.
Um dia, Deus mostrou-lhe por um milagre como esta santa união Lhe era agradável:
estavam elas em um lugar retirado de um jardim, à sombra de uma árvore, para deliberar
juntas sobre os meios de deixar o mundo, caíram aos pés delas peras extremamente lindas
e de muito bom sabor, embora estivessem na primavera. As duas mulheres trouxeram as
peras cada uma ao seu marido para, por este prodígio, fortalecê-los na vontade de servir a
Deus, e dar a elas liberdade de fazer o mesmo.

Em 1425, nossa santa empreendeu em erigir uma congregação de moças e viúvas, que se
dedicassem perfeitamente à piedade e à devoção, sob a regra de São Bento. Ela ficou
assegurada neste piedoso projeto por várias visões celestes, onde lhe apareceram São
Pedro e São Paulo, São Bento e Santa Madalena, que lhe prescreveram regras para as suas
religiosas. Um dia, parecia ver que São Pedro, depois de lhe ter dado um véu e de tê-la
abençoado, a oferecia a Nossa Senhora para ser recebida sob sua especial proteção e
salvaguarda; foi então que, voltando a si, redigiu as regras que, desde então, foram
observadas em seu mosteiro, tais como lhe foram reveladas nas admiráveis visões e,
comunicando-as ao seu confessor, foram aprovadas pelo Papa Eugênio IV.
A Bem-aventurada Francisca tinha então cerca de quarenta e três anos, dos quais vinte e
oito anos casada. Ao longo dos doze anos que depois ainda viveu, Deus fez brilhar a sua
santidade por meio de vários prodígios e curas milagrosas, mas a sua humildade fazia tudo
para esconder tais milagres, aplicando remédios nas partes feridas dos enfermos, mesmo
que fossem contrários à saúde. Nada ainda dissemos da particular assistência dos anjos que
ela recebia. Já vimos que além de seu anjo da guarda, Deus lhe ofereceu um segundo, que a
acompanhava visivelmente: se acontecia de o demônio usar a figura de um anjo de luz para
enganá-la, este fiel guardião não deixava de lhe desvendar o artifício do seu inimigo e sua
alma logo ficava cheia de um perfume tão agradável que admiravelmente a consolava. Se
acompanhada pelo anjo, lhe escapasse uma ação ou uma palavra menos necessária, ou, se
deixava levar por pensamentos supérfluos, divagando sobre a lida da casa ou outros
assuntos, este espírito celeste, testemunha contínua de sua vida, se ocultava e, pela sua
ausência, a obrigava a se recolher e a reconhecer sua falta. Daí vem que a santa é
representada ao lado de um anjo que lhe serve de guia e de governante.

A morte, que não poupa ninguém, tendo levado seu marido em 1436, ajeitou as coisas em
pouco tempo; e, desfazendo de seus bens em favor de seus filhos que ainda estavam vivos,
se retirou para o mosteiro que havia fundado. Ali, prostrando-se por terra, com uma corda
ao pescoço e com lágrimas nos olhos, suplicou com humildade às religiosas, de quem era
mãe espiritual em Jesus Cristo, que a recebessem no mosteiro na qualidade de pequena
serva; o que elas atenderam com toda a alegria que se pode imaginar. Pouco depois, foi
eleita superior, apesar de toda a repugnância.

Estas religiosas são chamadas oblatas porque, se consagrando a Deus, usam da palavra
oblação e não da de profissão. Ao invés de dizer como o restante das religiosas: “eu faço
profissão”, dizem: “eu me ofereço”. Não fazem voto, somente prometem obedecer à mãe
presidente. Recebem pensão, herdam bens e podem sair com a permissão de sua superiora.
Há no convento que elas têm em Roma, damas da mais alta classe.

Eis aí então Santa Francisca, mãe inconteste da piedosa congregação que ela mesma
fundou. Levou a comunidade a uma perfeição tal que podemos dizer que imprimiu ali a
ideia mais perfeita da vida religiosa. Primeiro, elas não estavam muito bem instaladas. Por
isso, fizeram aquisição de outra casa mais apropriada e melhor situada, ao pé do Capitólio,
onde todas elas se dirigiram solenemente após receberem a comunhão. Esta casa passou a
chamar Torre do Espelho, por causa de uma torre que se encontra no mesmo lugar, que foi
ornada de algum relevo parecido com espelhos.

Deus continuou e até aumentou os favores que concedia à santa e fez por intermédio dela
muitos milagres que constam na bula de canonização. Curou uma criança de cinco anos do
mal epiléptico, impondolhe a mão sobre a cabeça. Do mesmo modo, curou outra de uma
fratura; curou vários outros doentes somente pela imposição das mãos. Uma mulher,
chamada Ângela, que tinha um braço paralisado pela gota, tendo encontrado a santa pelo
caminho, implorou a sua ajuda e na mesma hora recobrou a saúde. Certo dia, deu de comer
com fartura a quinze religiosas com apenas alguns pedaços de pão que mal dava para
alimentar três pessoas e, no entanto, ainda sobrou um cesto cheio de pão. Uma vez,
algumas religiosas acompanharam-na para buscar lenha fora da cidade e como ficaram com
sede, Deus fez brotar numa vinha tantos cachos de uvas, apesar de ter acontecido isso no
mês de janeiro2. Mas silenciemos quanto ao resto dos milagres para falar de suas virtudes,
em particular, da sua humildade, pela qual foi elevada à sua verdadeira grandeza.

Nunca suportou, nem no claustro nem na casa de seu marido, que fosse servida, apesar de
ser a dona da casa e a superiora do convento; mas, praticando ao pé da letra a palavra de
Nosso Senhor, gostava mais de servir os demais e de ser tratada como serva. Gostava
especialmente de ser tida como a menor de todas, e, se fosse tratada como ela queria não
lhe teria dado outro título honorífico senão o de “pecadora, vaso de impureza, mulher vil e
miserável”. Esta humildade apareceu mais em suas ações do que em suas palavras. Certa
vez, foi encontrada voltando da vinha que ficava fora da periferia, com um feixe de
sarmento sobre a cabeça e conduzindo diante dela um burro carregado, que empregava ao
serviço dos pobres; mostrava-se por aí que nada é difícil para a caridade; quando esta
virtude nos faz agir, somos capazes de pisar aos pés o respeito humano, mesmo o que
parece mais razoável. No sofrimento, sua paciência era invencível: quando seu marido foi
exilado, seus bens confiscados e sua casa arruinada (durante as perturbações que
sucederam à invasão de Roma por Ladislas, rei de Nápoles, e durante o grande cisma que
dilacerou a Igreja, durante o pontificado de João XXII, em 1413), nunca disse outra coisa
senão as belas palavras de Jó: “O Senhor o deu, o Senhor o tirou; bendito seja o nome do
Senhor!”. Tinha uma grande devoção para com o Santíssimo Sacramento do Altar, em sua
presença, elevava-se a Deus com tanto fervor que permanecia muito tempo imóvel,
completamente arrebatada em espírito. Quanto à paixão de Nosso Senhor, meditava-a com
tanta ternura, que derramava abundantes lágrimas e até sofria realmente nas partes do seu
corpo que correspondiam às chagas de Jesus, como diz expressamente a bula de sua
canonização. Enfim, Deus quis encerrar uma vida tão santa com uma morte feliz.

2 Em pleno inverno.

Tendo João Batista, seu filho mais velho, caído em uma doença muito grave, Francisca
sentiu-se obrigada a cuidar dele, visto que ela não negava isso aos estranhos. Seu confessor
mandou-lhe que passasse a noite ali, porque o caminho de volta ao mosteiro era demasiado
longo além do Tibre; mas ela foi acometida por uma ardente febre, tão forte que, não
podendo sequer sair do lugar, se sentiu obrigada a se dispor à morte com a recepção dos
sacramentos. Tendo Deus lhe revelado que o sétimo dia da sua doença seria o último da sua
vida, ela avisou quatro dias antes, dizendo: “Deus seja bendito, o mais tardar na quinta-feira
passarei desta vida para uma melhor”. O evento verificou esta profecia; de fato, na quarta-
feira seguinte, 9 de março de 1440, entregou o seu espírito ao seu Criador, com uma
tranquilidade admirável, e sem sinal de dor. Estava com 56 anos de idade; passou doze
anos na casa de seu pai, quarenta no casamento e quatro em religião.

O seu corpo foi levado para igreja de Santa Maria Nova, onde permaneceu três dias exposto
à visitação de todo o povo, que acorreu numeroso para admirar as maravilhas de Deus.
Deste precioso corpo exalava um perfume tão agradável que parecia que toda a igreja
estivesse cheia de jasmins, de cravos e rosas. Numerosos milagres realizaram-se em sua
sepultura com o simples toque dos objetos que lhe tinham pertencido; sobretudo milagres
para as pessoas acometidas pela peste. Um fabricante de perfume, chamado Jerônimo,
estando no fim da vida, foi curado depois de ter tocado uma roupa da Santa. Uma mulher,
chamada Madalena de Clarelle, foi preservada da morte pela simples invocação do nome da
Santa. Multidão de doentes foi curada pelo mérito da sua intercessão. Um turco, chamado
Béli, era tão endurecido que ninguém conseguia convertê-lo, a única coisa obtida dele foi
dizer: “Francisca, serva de Deus, lembrai-vos de mim”. E ele se converteu.

Todas estas maravilhas incitaram muito os Sumos Pontífices a proceder à canonização


desta ilustre romana. Eugenio IV, Nicolau V e Clemente VIII trabalharam nisso; Paulo V
encerrou este santo assunto em 29 de maio de 1608. Inocente X mandou celebrar a festa,
com ofício duplo: o que se faz no dia 9 de maio. O corpo da Santa permaneceu enterrado
por mais de duzentos anos. Foi exumado em 1638 e encerrado num belo relicário de cobre
dourado.

A festa de Santa Francisca é feriado em Roma, como o era em Paris a de São Roque antes da
Revolução, isto é, sem ser de preceito; ela é ocasião de grande solenidade.
Visões de Santa Francisca Romana
Santa Francisca deixou 93 visões que ela mesma ditou ao seu confessor. O Tratado do
Inferno, em particular é muito notável.

Na décima terceira visão, viu a Virgem Maria ornada com três coroas: a da virgindade, a da
humildade e a da glória.

Na décima quarta, descreve o céu: ele é dividido em céu estrelado, céu cristalino e céu
empíreo. O céu estrelado é muito luminoso; o cristalino é ainda mais, mas estas luzes não
são nada em comparação com o céu empíreo: são as chagas de Jesus que iluminam o
terceiro céu.

Na décima sétima visão, Deus lhe mostra a sua divindade: ela viu como que um grande
círculo que não tinha outro apoio senão ele próprio e irradiava uma luz tão intensa que a
santa não podia olhar de frente. Leu no meio dele as seguintes palavras: “Princípio sem
princípio, e fim sem fim”. Viu depois como foram criados os anjos: todos foram criados de
uma só vez, e a potência de Deus deixou-os cair como flocos de neve que as nuvens
derramam sobre a montanha durante o inverno. Os que perderam a glória do céu para
sempre formam um terço da imensa multidão destes espíritos.

No dia 13 de fevereiro de 1432, ocorre a vigésima primeira visão, o coro das virgens,
conduzido por Santa Madalena e Santa Inês, fez-lhe ouvir este cântico:

“Se alguém quer entrar no coração de Jesus, deve se despojar de todos os bens tanto
exteriores quanto interiores; se desprezar e se julgar digno de todos os desprezos eternos;
agir com toda simplicidade, não amar nada que não seja conforme Seus sentimentos, não
tentar parecer melhor do que é aos olhos de Deus; nunca se arrepender dos seus
sacrifícios; renunciar-se a si mesmo e reconhecer sua miséria a ponto de sequer ousar
levantar os olhos para o seu Deus; odiar a si mesmo a ponto de pedir vingança contra si ao
Senhor; oferecer ao Altíssimo os dons recebidos: memória, entendimento e vontade;
considerar os louvores recebidos como um suplício e um castigo; se acontecer de alguém
mostrar aversão contra si, considerar esta pena como um banho de água de rosa em que se
deve mergulhar com verdadeira humildade; as injúrias devem ressoar aos ouvidos da alma
que busca a perfeição como sons agradáveis; é preciso receber as injúrias, os maus tratos
como carícias: mais do que isso, é preciso dar graças a Deus e agradecer aqueles que assim
lhe tratam; o homem perfeito deve se fazer tão pequeno que não se deve considerar senão
como um grão de milho lançado em um profundo rio”.

Foi-lhe dito em seguida que somente uma alma foi encontrada no mundo ornada com todas
as virtudes em um grau supremo: a de Maria.

Na quadragésima terceira visão, ela estava com o menino Jesus no colo: Ele tinha a forma
de cordeiro. Viu em seguida um altar magnificamente ornado em que estava um cordeiro
com os estigmas das cinco chagas. Ao pé do altar estava um grande número de magníficos
castiçais arrumados em perfeita ordem. Na primeira linha que era a mais afastada, havia
sete que significavam as virtudes principais; na segunda linha, havia doze que significavam
os doze artigos do credo; na terceira, havia sete que significavam os dons do Espírito Santo;
na quarta, havia sete outros que significavam os sete sacramentos da Igreja.

Esta visão, que ocorreu na festa de todos os santos, durou treze horas. Ela viu ainda as
principais ordens de santos que avançavam sob os seus estandartes. Os patriarcas eram
conduzidos por São João Batista; os Apóstolos, por São Pedro e São Paulo; os Evangelistas,
por São João e São Marcos; os mártires, por São Lourenço e Santo Estêvão; os doutores, por
São Gregório e São Jerônimo; os religiosos, por São Bento, São Bernardo, São Domingos e
São Francisco; os eremitas, por São Paulo e Santo Antão; as Virgens por Santa Madalena e
Santa Inês; as viúvas por Santa Ana e Santa Sabina; as mulheres casadas por Santa Cecília.

Tratado do Inferno Capítulo I


Do lugar do inferno, seu príncipe, a entrada das almas neste lugar de horror, e as
penas que lhes são comuns

O Tratado do Inferno, já o dissemos, é o mais notável dos escritos que ditou Santa Francisca.

Um dia que a Serva de Deus estava muito doente, encerrou-se em sua cela para se entregar
ao exercício da vida contemplativa, onde encontrava a sua consolação e as suas delícias. Era
por volta das quatro horas da tarde. Logo foi arrebatada em êxtase, e o arcanjo Rafael, que
então não o via, veio tomá-la e conduzi-la para a visão do inferno. Chegada à porta deste
reino assustador leu escrito na porta com letras de fogo “este lugar é o inferno; inferno sem
esperança, inferno sem intervalo nos tormentos, inferno sem descanso”. A porta se abriu,
ela olhou e viu um abismo tão profundo e tão apavorante, que desde então não conseguia
falar sem que o seu sangue gelasse em suas veias. Deste abismo saiam gritos medonhos e
exalavam odores insuportáveis; então foi tomada de um horror extremo; mas ouviu a voz
do seu guia invisível que lhe dizia para ter coragem, porque não lhe iria acontecer nada de
mal. Um pouco tranquilizada com esta voz amiga, olhou mais atentamente esta porta, e viu-
a já bastante larga na entrada, mas ia se alargando sempre mais na sua espessura; mas
neste horroroso corredor reinava trevas inimagináveis; no entanto, foi feito para ela uma
luz, e viu que o inferno era dividido em três regiões: uma superior, uma intermediária e
uma inferior. Na região superior eram anunciados graves tormentos; na intermediária, os
instrumentos de tortura eram ainda mais assustadores; mas na região baixa, os
sofrimentos eram incompreensíveis. Estas três regiões eram separadas por longos espaços,
onde as trevas eram espessas, e os instrumentos eram incrivelmente numerosos e
extraordinariamente variados.

Neste abismo medonho, vivia um imenso dragão que ocupava todo o comprimento: tinha a
sua cauda no inferno inferior, o seu corpo no inferno intermediário, a sua cabeça no inferno
superior. A sua goela estava escancarada na abertura da porta que a ocupava inteiramente;
a sua língua estendia-se com comprimento desmedido; os seus olhos e as orelhas lançavam
chamas sem claridade, mas com calor insuportável; a sua garganta vomitava lava ardente e
com odor empestado. Francisca ouviu neste abismo um barulho assustador: eram gritos,
uivos, blasfêmias, lamentações aflitivas, e tudo isso, misturado com calor sufocante e odor
insuportável, causava-lhe tanto mal que pensava que a sua vida ia se aniquilar; mas o seu
guia invisível a assegurava com as suas inspirações e lhe dava um pouco da coragem que
ela precisava para suportar a visão de que vamos falar.

Viu Satanás na forma mais terrível que se possa imaginar. Estava sentado em um assento
que parecia uma longa viga no inferno do meio, mas, no entanto, a sua cabeça atingia o alto
do abismo e os seus pés desciam até ao fundo: tinha as pernas e os braços estendidos, mas
não em forma de cruz. Uma das suas mãos ameaçava o céu e a outra indicava o fundo do
abismo. Dois imensos chifres de cervo coroavam a sua fronte; eram muito frondosos e os
inumeráveis pequenos chifres que deles brotavam como ramos, formavam quantidades de
chaminés pelos quais saiam colunas de fumo e chama. O seu rosto era de uma fealdade
repelente e de um aspecto terrível. A sua boca, como a do dragão, vomitava um rio de fogo
muito ardente, mas sem claridade e com um odor horrível. Trazia ao pescoço uma argola de
ferro abrasado. Uma corrente ardente aprisionava-o pelo meio do corpo e os seus pés
estavam também acorrentados. As correntes das suas mãos estavam solidamente
enganchadas na abóboda do abismo e as dos pés estavam ligadas a um anel fixado no fundo
do abismo e a corrente que circundava a cintura aprisionava também o dragão de que já
falamos.

Depois desta visão, seguiu outra. A Serva de Deus notou por todos os lados almas que os
espíritos as haviam tentado serem conduzidas para este horrível lugar: traziam os seus
pecados escritos na fronte com letras tão inteligíveis que a santa entendia por quais crimes
elas foram condenadas. Tais letras eram somente para ela, porque estas almas desgraçadas
conheciam reciprocamente os seus pecados só pelo pensamento. Os demônios que as
conduziam, afligiam-nas com zombarias, exprobrações cruéis e maus tratos, que seria
difícil narrar, tão inventiva era a raiva desses monstros. À medida que as almas chegavam à
entrada do abismo, os demônios derrubavam-nas e precipitavamnas, de ponta-cabeça, na
goela sempre aberta do dragão. Assim engolidas, deslizavam rapidamente pelas entranhas
dele e, chegando à abertura inferior, eram interceptadas por outros demônios que as
levavam ao seu príncipe, o monstro acorrentado, de que já falamos. Eram logo julgadas e
depois de ver indicado o lugar que deviam ocupar segundo os seus crimes, eram entregues
a algozes diabólicos que as conduziam. A santa notava que esta translação não se dava da
mesma maneira que a das almas que passam do purgatório para o céu. Apesar da distância
que estas últimas devem percorrer seja incomparavelmente maior do que a de um inferno
a outro, pois que é preciso atravessar a terra, o céu dos astros, o do cristalino, para chegar
ao do empíreo; no entanto esta viagem se faz em um abrir e fechar de olhos. O caminhar
das almas, que Francisca via serem levadas pelos algozes do tirano infernal, era ao
contrário muito lento, tanto por causa das espessas trevas que precisava atravessar com
uma espécie de violência, quanto por causa das torturas infligidas nesses espaços
intermediários (cheios de instrumentos de suplícios) de que já falamos. Isso, pois, após um
certo tempo é que os demônios acabavam por lançá-las no fundo do abismo.

Francisca viu também chegar outras almas menos culpáveis que as primeiras, mas, no
entanto, reprovadas; as quais eram precipitadas na goela do dragão, apresentadas a
Lúcifer, julgadas e transferidas pelos demônios, tal como as demais; mas, em vez de descer
ao fundo do abismo, subiam para o inferno superior, todavia com a mesma lentidão, e
sofrendo tormentos proporcionais aos seus pecados. Chegando à sua prisão encontravam
uma multidão de demônios em forma de serpentes e bestas ferozes, que só de ver causava
terror. O olhar de Satanás apavorava-as ainda mais, sem falar do fogo geral em que eram
mergulhadas, o fogo que saia do príncipe das trevas lhe fazia cruelmente sentir o seu ardor
devorador. Ao redor delas reinava uma noite eterna; de tal maneira nada podia distraílas
das penas que sofriam. Ali, tal como nas outras partes do inferno, cada alma condenada era
entregue a dois demônios principais, executores da sentença da justiça divina. A função do
primeiro era de espancála, dilacerá-la e atormentá-la sem cessar; a função do segundo era
de zombar da sua desgraça, reprovando-a por estar ali por culpa própria; de fazê-la
lembrar continuamente dos seus pecados, mas de maneira mais opressiva, perguntando-
lhe como podia ter cedido às tentações, e de ter consentido em ofender seu Criador; de
mostrar-lhe, enfim, todos os meios que teve para se salvar e todas as ocasiões de fazer o
bem, que perdeu por sua falta. Daí remorsos dilacerantes, que, juntados aos tormentos que
o outro demônio lhe fazia sofrer, colocava-a em um estado de raiva e desespero, que
exprimia por uivos e blasfêmias. A tarefa confiada a estes demônios não era, porém,
exclusiva deles: todos os outros tinham também direito de insultá-la e atormentá-la, e eles
não o deixavam de fazer. Desejando a Serva de Deus saber qual a diferença entre os
habitantes das três regiões desse reino assustador, foi-lhe dito que, na região inferior, eram
colocados os grandes criminosos; na intermédia, os criminosos medianos e, na superior, os
menos culpáveis dos réprobos. As almas que vedes na região superior, acrescentou a voz
que a instruía, são as dos judeus que, fora da sua obstinação, levaram uma vida isenta de
grandes crimes, as dos cristãos que negligenciaram a confissão durante a vida, e foram
privados dela na hora da morte, etc. Tudo o que a Bem-aventurada via e ouvia enchia-a de
pavor; mas o seu guia tinha muito cuidado em tranquilizá-la e fortalecê-la.

Capítulo II Tormentos particulares infligidos a nove tipos de culpáveis


1º Suplícios daqueles que ultrajaram a natureza pelas impurezas

Francisca viu na parte mais baixa e mais horrível do inferno, homens e mulheres que
sofriam torturas assustadoras. Os demônios que lhes serviam de algozes, os obrigavam a se
sentar sobre barras de ferro abrasadas que penetravam o corpo todo e saiam pelo alto da
cabeça, e, enquanto um deles retirava a barra e a enfiava novamente, os outros, com
alicates ardentes, dilaceravam a carne da cabeça aos pés. Os tormentos eram contínuos e
isso sem excluir as penas gerais, isto é, as penas do fogo, do frio glacial, das espessas trevas,
dos gritos de blasfêmias e do ranger de dentes.

2º Suplícios dos usurários

Não longe do cárcere dos primeiros, Francisca viu outro onde os criminosos eram
torturados de maneira diferente e lhe foi dito que eram os usurários. Estes infelizes eram
pregados sobre mesas incandescentes de fogo, com os braços estendidos, mas não em
forma de cruz, e o guia explicou a Francisca que todo sinal da cruz era banido das moradas
infernais. Cada um tinha um círculo de ferro incandescente sobre a cabeça. Os demônios
pegavam caldeirões com ouro e prata derretidos e derramavam na boca deles e também no
buraco que faziam no lugar do coração, dizendo: lembrai-vos, almas miseráveis, do apego
que tivestes a estes metais durante a vossa vida; este apego que vos conduziu para onde
agora estais. Eram depois mergulhados em tanques repletos de ouro e prata derretidos; de
maneira que passava de um tormento a outro, sem obter um momento de descanso. Além
disso, sofriam também as penas comuns a todas as demais almas condenadas; o que os
levava a um medonho desespero: assim não cessavam de blasfemar o nome sagradod’A-
quele que exercia sobre elas as justas vinganças.

3º Suplícios dos blasfemadores


Francisca viu na mesma região os profanadores obstinados de Deus, da Santíssima Virgem
Maria e dos santos. Eram submetidos a sofrimentos medonhos. Os demônios, armados de
alicates em brasa, tiravamlhe a língua fora e colocavam-na sobre carvões incandescentes,
ou enchiam a boca deles de carvão ardente; em seguida, mergulhavam-nos em caldeirões
cheios de óleo fervente, ou lhes obrigavam a bebê-lo, dizendo: “como ousastes blasfemar
contra A- quele que os céus veneram, almas malditas e desesperadas?”. Não longe dali,
estavam os covardes que renunciaram a Jesus Cristo por medo dos suplícios; mas os
tormentos deles não eram tão rigorosos, Deus considerava a fraqueza humana que os fez
sucumbir.

4ºSuplícios dos traidores

Na mesma quadra, Francisca viu as torturas que os implacáveis demônios exerciam sobre
os homens infiéis aos seus mestres e, sobretudo, os cristãos que fizeram as promessas do
batismo somente para profanálas. Os cruéis algozes arrancavam-lhes o coração com
alicates incandescentes e o recolocavam no lugar para novamente o arrancar. De vez em
quando os mergulhavam em tanques cheios de pez ardente, e lhes diziam mantendo-os
submersos: “almas falsas e pérfidas, sem coração e sem fidelidade, não contente de trair
vossos mestres temporais, ousastes trair até o vosso Deus; porque fizestes no batismo a
promessa solene de renunciar a Satanás, às suas pompas, às suas obras, e fizestes tudo ao
contrário. Não vos esqueçais destas promessas e recebei agora o castigo merecido pela
violação delas”. A essas amargas repreensões, seguiam os uivos das vítimas; blasfemavam
também contra os sacramentos e, sobretudo, contra o batismo e amaldiçoavam o seu divino
Autor.

5º Suplícios dos homicidas

Um pouco mais longe viu homens com rosto feroz, mergulhados em imensos caldeirões
repletos de sangue fervente. Ora, os demônios vinham e tiravam-nos deste caldeirão
ardente e os lançavam em um outro cheio de água gelada; depois os retiravam deste para
novamente mergulhá-los no primeiro. Mas isso não era o único tormento deles, outros
demônios armados de punhal flamejante trespassavam-lhes o coração e, mal retirava a
lâmina do punhal, já a enfiava de novo no coração. Perto destes homens sanguinários,
estavam as mães que se desnaturaram a ponto de tirar a vida dos seus filhos, e as suas
torturas eram quase as mesmas.

6º Suplícios dos apóstatas que abandonaram a fé católica não por fraqueza, mas por
corrupção

Os demônios serravam-nos pelo meio do corpo, com serras incandescentes, mergulhadas


em chumbo derretido. Ora, a cicatrização da carne ocorria logo depois da cisão, o que
permitia aos algozes refazê-lo sem cessar.

7º Suplícios dos incestuosos


Houve em todo tempo homens e mulheres que, levados pela paixão cega, cometeram
impurezas com pessoas do mesmo sangue ou com parentesco espiritual. Ora, a Serva de
Deus viu em um cárcere vizinho os habitantes de Sodoma. Os demônios mergulhavam-nos
em uma fossa cheia de lixo infecto e fervente; e depois de terem sido retirados, eram
cortados em pedaço e, quando os pedaços se juntavam, o que era instantaneamente, eram
novamente mergulhados na cloaca ardente e fétida.

8º Suplícios dos feiticeiros

No inferno do meio, a Bem-aventurada viu aqueles que, durante a sua vida, tinham
comércio com o demônio, e aqueles que os consultavam e lhes davam crédito. Estavam
envolvidos em trevas medonhas, e os algozes apedrejavam-nos com paralelepípedos de
ferro incandescente. Havia ali uma grelha quadrada, por cima de um fogo terrível. Ora, de
tempo em tempo, os demônios deitavam as suas vítimas sobre esta grelha e as mantinham
firmemente acorrentadas; depois, as retiravam dali para apedrejá-las novamente.

9º Suplícios dos excomungados

A Serva de Deus reparou que todas as almas precipitadas na goela do demônio não saiam
do seu corpo. Desejando saber quais eram as almas que ela não via reaparecer, lhe foi dito
que eram as almas que morreram excomungadas. Elas descem, acrescentou a voz que a
instruía, pela cauda do dragão, que vai até o fundo do abismo, e é um vasto salão onde arde
um fogo devorador. Estavam, pois, encerradas nesta horrível prisão, e os demônios que as
rodeavam, lhes gritavam com voz insultante: “Então sóis vós que, cegos pelas paixões e
embrutecidos pela sensualidade, desprezaram as excomunhões? Pois bem, ardei agora na
cauda do dragão”. “Ai de nós! Ai de nós! Respondiam, lá de dentro, vozes lamentosas, que
desgraça é a nossa, que mal medonho sofremos!”.

Capítulo III Como os pecados capitais são punidos no inferno inferior


1º Tormento dos orgulhosos

A Bem-aventurada viu uma vasta prisão cujos habitantes eram muito numerosos, e lhe foi
dito que eram os soberbos. Este cárcere era dividido em vários lugares, onde as vítimas
eram classificadas segundo as diversas espécies deste pecado. Os ambiciosos eram aqueles
que os demônios mais desprezavam. Quanto mais estes miseráveis tinham sido ávidos de
honras durante a sua vida, tanto mais eram saciados de opróbrios e de confusão. Ao punir
estes, eles não se esqueciam, porém, dos outros. Cada família de orgulhosos, se é que posso
falar assim, tinha a sua própria pena particular, mas ainda havia um castigo horrível
comum a todos.

No meio desta prisão especial estava posto um enorme leão de bronze incandescente. Sua
goela estava voltada para cima e largamente aberta com mandíbulas armadas com várias
navalhas afiadas. Seu ventre era um antro de serpentes e outros bichos venenosos e o
orifício de saída era como a entrada deste monstro, armado de navalhas ardentes
horrivelmente afiadas. Ora, os demônios encarregados de atormentar estas tristes vítimas,
lançavam-nas ao ar de maneira a fazê-las cair na goela do leão. Todas dilaceradas e quase
divididas ao meio, elas passavam pela garganta deste monstro e caiam nas largas
entranhas, no meio das serpentes que pululavam neste lugar infecto e exerciam sobre elas
a sua raiva infernal. Deslizavam depois para a parte traseira, onde os demônios pegavam-
nas com alicates ardentes e tiravam-nas para fora violentamente, através das navalhas
afiadas que guarneciam a abertura, e este jogo cruel os algozes recomeçavam-no sem
cessar. Estas almas, irritadas e enraivecidas por estes tão horríveis tormentos, uivavam de
maneira medonha e proferiam blasfêmias assustadoras. “Uivai, diziam-lhes os espíritos
infernais, uivai soberbos malditos, que durante muito tempo na terra travastes guerra ao
vosso Criador. Tendes agora muita razão de vos desesperar, porque a vossa infelicidade
nunca acabará”.

2º Tormentos dos condenados por causa da ira

Francisca notava que estes eram castigados segundo os diversos graus de sua
culpabilidade; mas eis que uma pena lhes era comum. Havia no cárcere deles uma serpente
de bronze que o fogo do inferno mantinha continuamente abrasada. Seu tórax era largo,
seu pescoço levantado tal como uma coluna e sua goela escancarada. Nesta horrível
garganta estavam fixadas em forma de arco longas e resistentes agulhas, cujas pontas
estavam direcionadas para a garganta do animal. Ora, os demônios pegavam as tais almas e
lançavam-nas por esta abertura para dentro do corpo do monstro; depois, com alicates
ardentes, retiravam-nas todas dilaceradas pelas pontas das agulhas fixadas na saída.
Sofriam continuamente este suplício, que as levava a um desespero medonho e que
arrancava delas as mais medonhas blasfêmias.

3º Tormentos dos avarentos

Viu depois a Bem-aventurada os avarentos em uma fossa cheia de grandes serpentes com
braços. Cada um destes hediondos répteis agarrava-se a um dos condenados, que a justiça
divina lhes tinha abandonado. Batia-lhes na boca com sua cauda, dilacerava-lhes o coração
com seus dentes, e apertava-os com seus braços de modo a sufocá-los, se isso fosse
possível; mas outros demônios vinham arrancá-los dos seus horríveis braços, com alicates
de ferro, que os dilaceravam horrivelmente para mergulhálos em uma segunda fossa
repleta de ouro e prata derretidos, afligindo com sarcasmos.

4º Tormentos dos invejosos

Todos estes infelizes eram cobertos com manto de chama, tinha um verme venenoso que
lhe roía o coração, penetrava no peito, e subia até a garganta para aparecer na boca que a
forçava a abrir convulsivamente; mas um demônio o impedia de sair, apertando com sua
mão o pescoço da vítima, o que causava insuportáveis asfixias; enquanto o sufocava assim
com uma mão, com a outra tinha uma espada com que lhe trespassava o coração. Um
segundo, vinha depois para lhe arrancar o coração do peito, mergulhava-o na imundície e
lho recolocava para depois novamente arrancá-lo, e assim sem fim; e estes tratamentos
bárbaros eram acompanhados de escárnios e repreensões, que levavam estes infelizes à
raiva e ao desespero.
5º Tormentos dos preguiçosos

Francisca viu-os sentados no meio de um grande fogo, com braços cruzados e a cabeça
inclinada sobre os joelhos. Os assentos eram de pedra; estas pedras eram profundamente
onduladas e as cavidades estavam cheias de carvão em brasa. Os bancos estavam também
incandescentes e as chamas que saiam da labareda envolviam as tristes vítimas e cobriam-
nas tal como um vestido. Ora, os demônios pegavam-nas com alicates ardentes,
derrubavam-nas violentamente sobre estes leitos medonhos, arrastavam-nas virando-as e
tornando a virá-las de todas as maneiras; isso era para castigá-las por ter perdido o tempo.
Ao lado de cada uma delas havia um demônio que com um canivete lhes abria o peito e
derramava dentro óleo fervente; isso era o castigo por terem presumido da misericórdia
divina. Colocava ainda vermes nas feridas em punição aos maus pensamentos que a
ociosidade delas tinha permitido.

6º Tormentos dos gulosos

Francisca pôde contemplar também o castigo da gula. Cada infeliz condenado por vício
tinha um demônio que o arrastava pela cabeça nos carvões em chama, ao passo que outro
demônio, em cima dele, o pisoteava com violência. Atava-lhe em seguida as mãos e os pés, e
o precipitava em um caldeirão cheio de pez derretido; depois, retirando-o dali, o jogava em
outro cheio de água quase congelada. Depois, derramava vinho fervente na boca, para
castigá-lo pelos excessos cometidos durante a vida. Durante este tempo, seus algozes lhe
diziam com ironia: “A pena dos gulosos, nesta morada, é o excedente do calor e do frio. Eis,
portanto, para onde vos conduziram as vossas intemperanças, diziam-lhes os espíritos
infernais. Doravante tereis por comida serpentes, e por bebida fogo”.

7º Tormentos dos luxuriosos

Francisca buscava com o olhar os escravos desta vergonhosa paixão; foi-lhe mostrado. Eles
estavam atados a postes de ferro incandescentes, e os algozes, com línguas de fogo lambiam
todas as partes do corpo, o que era um suplício insuportável. Outros demônios com alicates
de fogo arrancavamlhes pedaços de carne, em punição aos festins que fizeram na terra para
favorecer a funesta paixão da luxúria. Sob os postes de ferro havia grelhas em chama com
pontas de ferro junto das quais estavam deitadas horríveis serpentes. Os demônios, de
repente, lançavam suas vítimas, derrubando-as, fazendo-as cair para traz sobre estes leitos
medonhos, e as serpentes se lançavam sobre eles, mordiam-nos com raiva inconcebível.
Este suplício era reservado particularmente aos adúlteros.

Capítulo IV Suplícios particulares para sete espécies de pecadores


1º Tormentos dos ladrões

A Serva de Deus viu homens que estavam amarrados com cordas pretas, pelas quais os
demônios os levantavam e depois os deixavam cair no fogo. Em seguida, mergulhavam-nos
em um poço de água gelada, e daí, os faziam atravessar um lago de chumbo derretido, onde
eram forçados a beber uma horrível mistura de fel, pez e enxofre; por fim, eram jogados em
uma toca de feras. Foi explicado à Santa que estas tristes vítimas eram os ladrões.

2º Tormentos dos filhos desnaturados

Sempre houve na terra filhos detestáveis que, em vez de honrar seus pais, só tiveram por
eles indiferença e desprezo, tornando-os excessivamente infelizes, por causa da
insubordinação, do mau caráter e da violência deles. Francisca viu-os em um imenso tonel
cheio de navalhas, onde havia serpentes ferozes. Os demônios rolavam esta máquina
assustadora, e as pobres vítimas dentro do tonel eram mordidas pelas serpentes e
dilaceradas pelas navalhas. Foi mostrado à Santa que estes condenados e os demais não
permaneciam sempre no inferno destinado a eles. Do inferno inferior, passavam algumas
vezes para o superior ou para o intermediário e a partir dali novamente eram reconduzidos
ao inferior. Desejando saber o porquê, lhe foi explicado que era para sofrer o suplemento
da pena devido às circunstâncias mais ou menos agravantes dos seus pecados.

3º Tormentos daqueles que foram infiéis ao seu voto de castidade

A posição destes desgraçados era medonha. Os demônios mergulhavam-nos tanto em um


fogo ardente, onde fluía uma mistura de pez e enxofre, quanto em uma água gelada; outras
vezes, apertavam-nos entre duas chapas de ferro com pregos agudos fixados, e lhes
perfuravam ambos os lados com um forcado. Enfim, para acrescentar insulto aos seus
suplícios, não cessavam de lhes repreender os crimes que cometeram: “Lembrai-vos,
diziam eles, das vossas impurezas sacrílegas, estes prazeres passageiros vos custam caros
agora. Lembrai-vos dos vários sacramentos que profanastes e que apenas serviram para
tornar a vossa condenação mais terrível”.

4º Tormento dos perjúrios

Tinham capacetes de fogo sobre a cabeça, as suas línguas eram arrancadas, e as mãos
cortadas.

5º Tormentos dos detratores

Cada um deles era entregue a uma víbora de sete cabeças. Falo da forma tomada pelo
demônio encarregado de atormentálo. Eis, pois, como ele usava das sete bocas. Com a
primeira, ele arrancava a língua do paciente; com a segunda, a comia; com a terceira, a
vomitava no fogo; com a quarta, a recolocava na boca do condenado; com a quinta,
arrancava-lhe os olhos; com a sexta arrancava-lhe o cérebro por uma das orelhas, e com a
sétima, por fim, devorava-lhe o nariz. Além disso, com as unhas das mãos dilacerava-lhe
todo o corpo.

6º Tormentos das virgens loucas


Francisca viu estas almas que, muito ciosas em conservar a virgindade do corpo, pouco
cuidado tinham com a pureza do coração. Os demônios flagelavam-nas cruelmente com
correntes de ferro em brasa.

7º Tormento das viúvas viciosas

Eram atadas a galhos de uma imensa macieira, a cabeça torcida para trás e os demônios
lhes faziam comer maçãs cheias de vermes. Além disso, dragões terríveis abraçavam-nas,
dilacerando-lhes o coração e as entranhas, enquanto que a turba dos demônios não cessava
de repreender-lhes a má vida.

8º Tormentos das mulheres idólatras da sua beleza

Tinham como cabelo serpentes que lhes mordiam cruelmente o rosto, enquanto que outros
demônios espetavam agulhas em brasa em todas as partes do corpo, e para aguçar o
remorso de consciência, não cessavam de lhes dizer: “Fizestes o nosso trabalho na terra,
agora é justo que sejais associadas a nós durante a eternidade. Fazei agora o vosso
embelezamento com estas chamas”. Tais almas respondiam aos insultos dos seus inimigos
com blasfêmias horríveis.

Capítulo V Blasfêmias dos réprobos


Por todo este lugar ressoavam horríveis blasfêmias. Seus infelizes habitantes
amaldiçoavam a Deus, como se Ele lhes tivesse feito todo o mal e jamais nenhum bem; e
amaldiçoavam a humanidade sagrada de Nosso Senhor Jesus Cristo; amaldiçoavam todos
os Seus mistérios, cuja lembrança lhes recordava todas as criminosas ingratidões delas;
amaldiçoavam todas as graças que tinham obtido pelos Seus méritos, e cujo abuso tinha
causado tão horríveis castigos. Toda a santa vida do Deus Salvador levava-as às blasfêmias;
mas cada uma se esforçava em profanar de uma maneira especial a circunstância de que
mais lhes desgostava. Essa amaldiçoava a Encarnação; aquela, o Nascimento; essa outra, a
Circuncisão; aquela outra, o Seu Batismo; uma, a Sua Penitência; outra, a Sua Paixão; outra
acolá, a Sua Ressurreição; mais outra, a Sua Ascensão gloriosa. Nada do que fez o Nosso
amável Salvador para a salvação das almas era respeitado, porque todos estes benefícios
não foram para eles senão objeto de ingratidão. Amaldiçoavam e blasfemavam o doce nome
de Maria, as suas prerrogativas, as suas virtudes, mas, sobretudo, a sua maternidade divina;
porque se ela não tivesse dado a luz ao Filho de Deus, elas teriam menos culpas e não
seriam entregues a tão horríveis tormentos. Assim toda a eternidade delas é empregada em
blasfemar e amaldiçoar e, com tal raiva e tão profundo desespero, que, se não houvesse
outros suplícios, isso seria suficiente para torná-las infinitamente infelizes. Mas sofrem
ainda as outras penas comuns a todos os réprobos, e, além disso, sofrem ainda as penas que
lhes são particulares, conforme acabei de descrever.

Capítulo VI Número dos demônios, seus nomes e tarefas


Na décima sétima visão, onde a criação dos anjos e sua classificação foram manifestadas à
Serva de Deus, fez-lhe Deus discernir aqueles que deviam pecar daqueles que deviam ficar
fiéis. Foi depois, testemunha da revolta deles e da merecida horrível queda. No entanto, a
queda não foi tão profunda para uns quanto para outros: um terço destes desgraçados
permaneceu nos ares, outro terço parou na terra e a última terça parte caiu no inferno. Esta
diferença nos castigos corresponde àquelas que Deus distinguiu nas circunstâncias do
pecado cometido em comum. Dentre os espíritos rebeldes, houve os que abraçaram com
alegria a causa de Lúcifer, se é que posso falar assim; outros que consideraram com
indiferença este levante contra o Criador e ficaram neutros. Os primeiros foram
precipitados logo no inferno, de onde não saem jamais, exceto quando Deus os solta para
castigar a terra com alguma grande calamidade por causa dos pecados dos homens. Os
segundos foram lançados parte no ar e parte na terra, e são estes últimos que nos tentam
como falarei mais abaixo.

Lúcifer, que quis ser igual a Deus no céu, é o monarca do inferno, mas é um monarca
acorrentado e o mais infeliz de todos os demais. Há abaixo dele três príncipes aos quais
todos os demônios, divididos em três coros, estão submissos por vontade divina; da mesma
maneira que no céu, os anjos bons formam três hierarquias presididas por três espíritos de
glória superior. Estes três príncipes da milícia celeste foram retirados dos três primeiros
coros, onde eram os mais nobres e os mais excelentes; assim os três príncipes da milícia
infernal foram escolhidos dentre os piores dos espíritos dos mesmos coros que
empunharam o estandarte da revolta.

Lúcifer era no céu o anjo mais nobre de todos que se revoltaram, e o seu orgulho fez dele o
pior de todos os demônios. É por isso que a justiça divina o constituiu rei de todos os seus
companheiros e de todos os réprobos, com poder de governá-los e castigalos segundo os
seus caprichos; o que faz ser ele chamado de tirano dos infernos. Além desta presidência
geral, está estabelecido sobre o vício do orgulho. O primeiro dos três príncipes que
governam sob suas ordens, se chama Asmodeus: era no céu um Querubim, agora é o
espírito impuro que preside a todos os pecados desonestos. O segundo príncipe se chama
Mamon: era outrora um espírito que pertencia ao coro dos Tronos, e agora preside aos
pecados de ganância que inspira o amor ao dinheiro. O terceiro se chama Belzebu;
pertencia na origem ao coro das Dominações, e agora está estabelecido sobre todos os
crimes que gera a idolatria e preside às trevas infernais. Dele vêm as trevas que cegam o
espírito dos homens. Estes três chefes bem como o monarca deles não saem nunca das suas
prisões infernais; quando a justiça divina quer exercer alguma espantosa vingança, estes
malditos príncipes enviam para este fim um número suficiente dos seus demônios
subordinados, porque às vezes acontece que os flagelos com que Deus quer afligir as
pessoas exigem mais forças ou mais malícias do que têm os maus espíritos espalhados na
terra ou pelos ares. Então os espíritos infernais piores e mais raivosos se tornam auxiliares
indispensáveis. Mas, fora esses raros casos, os grandes condenados não podem sair das
prisões onde estão encerrados.

Todos estes espíritos desgraçados são classificados no abismo segundo sua ordem
hierárquica. A primeira hierarquia composta de serafins, querubim e tronos, habita a
região mais baixa do inferno; sofrem os tormentos mais cruéis que os demais e realizam as
vinganças celestes sobre os maiores pecadores. Lúcifer, que foi um serafim, exerce sobre
eles uma autoridade especial, em virtude do orgulho que ele patrocina. Os demônios desta
hierarquia somente são enviados à terra, quando a ira de Deus permite que o orgulho
prevaleça para castigar as nações.

A segunda hierarquia formada de Dominações, Principados e Potestades, habita o inferno


do meio. Tem por príncipe Asmodeus que, como eu já disse, patrocina os pecados de
luxúria. Pode-se supor que, os demônios desta hierarquia estão na terra, quando as pessoas
se entregam ao vício infame da impureza.

A terceira hierarquia, que se compõe de virtudes, arcanjos e anjos, tem por chefe Mamon e
habita o inferno superior. Quando estes demônios são lançados na terra, a sede das
riquezas prevalece por todos os lados, e aí o que vale é somente o ouro ou dinheiro. Quanto
a Belzebu, é o príncipe das trevas e as difunde quando Deus o permite, nas inteligências
para obstruir a luz da consciência e a da verdadeira lei. Tal é a ordem que reina entre os
demônios nos infernos; quanto ao número deles é inumerável.

Encontra-se a mesma hierarquia entre os demônios que estão nos ares e na terra, mas não
têm chefes e, por conseguinte, vivem na independência e em uma espécie de igualdade. São
os demônios aéreos que, na maioria dos casos, desencadeiam os ventos, suscitam
tempestades, produzem ventanias, inundações e granizos. A intenção deles é de fazer mal
aos homens e diminuir a confiança na providência divina, levando-os a murmurar contra a
vontade divina.

Os demônios que vivem na terra, da primeira hierarquia, não deixam de aproveitar também
destas ocasiões favoráveis à sua malícia; encontrando os homens irritados por causa das
calamidades e muito enfraquecidos na sua submissão e confiança, levam-nos a cair muito
facilmente no vício do orgulho. Os da segunda hierarquia, por sua vez, não deixam de
precipitá-los do alto da soberba na cloaca da impureza, o que dá toda a facilidade aos
demônios da terceira hierarquia de levá-los a cair nos pecados que o amor ao dinheiro
inspira.

Então os anjos que presidem às trevas cegam-nos e levam-nos a deixar o caminho da


verdade, e tornam a sua conversão extremamente difícil. É assim que todos os demônios,
apesar da diferença das suas tarefas, trabalham juntos e se ajudam para perder as almas.
Uns enfraquecem a fé, outros os levam ao orgulho, estes à impureza, aqueles ao amor das
riquezas, outros enfim, lhes lançam um véu sobre os olhos e os afastam tão eficazmente da
via da salvação que a mai oria já a não reencontra. O único meio de escapar deste complot
infernal seria se levantar prontamente da primeira queda, e é precisamente o que as almas
não fazem. Daí, esta sequência de tentações, que de queda em queda as leva até ao fundo do
precipício.

Quando falei que os demônios que estão no ar e na terra não têm chefes, só queria dizer
que não têm oficiais subalternos, mas todos são submissos a Lúcifer e obedecem aos seus
mandos, porque tal é a vontade da justiça divina. Apesar do ódio que possui pelos homens,
nenhum deles se atreveria tentá-los sem ordem de Lúcifer, e o próprio Lúcifer somente
pode ordenar o que permite o Senhor pleno de bondade e compaixão para conosco.
Lúcifer vê todos os seus demônios, não só aqueles que o rodeiam no inferno, mas os que
também estão no ar e na terra. Todos eles também o veem sem obstáculo, e entendem
perfeitamente todas as vontades dele, veem-se também e se entendem mutuamente muito
bem.

Os espíritos malignos, espalhados pelos ares e na terra, não são atingidos pelo fogo do
inferno; no entanto, não são menos excessivamente infelizes, tanto porque se maltratam e
sem cessar se atormentam uns aos outros, quanto porque as obras na terra dos anjos bons
neste mundo lhes causam um dissabor que os atormentam cruelmente. As penas daqueles
que pertencem à primeira hierarquia são mais agudas do que as dos espíritos da segunda e
aqueles são mais infelizes do que os espíritos da terceira. A mesma justiça distributiva
preside aos tormentos dos espíritos infernais, mas os infernais são todos vítimas do ardor
das chamas infernais.

Os demônios que ficam no meio de nós e que receberam o poder de nos tentar, são todos
espíritos caídos do último coro. Os anjos encarregados de nos guardar são simples anjos.
Estes espíritos tentadores estão incessantemente ocupados em preparar a nossa perda. Os
meios empregados para isso são tão sutis e variados que uma alma que lhes escapa é muito
feliz, e não conseguiria suficientemente testemunhar ao Senhor a sua gratidão, se ela
tivesse consciência. Não há um instante do dia e da noite em que estes cruéis inimigos não
tentem um tipo de tentação ou um outro, para cansar aqueles que não conseguem vencer
pela astúcia ou pela violência. A paciência é, portanto, a arma defensiva por excelência. Ai
de quem se deixa cair nas mãos deles! Quando estes tentadores ordinários encontram
almas pacientes e fortes, que não conseguem vencer, chamam em seu auxílio outros mais
astutos e mais malignos não para ser substituídos por eles ou para combater com eles,
porque Deus não permite isso; mas para sugerir estratagemas mais eficazes. Francisca
sabia de tudo isso por experiência: era raro quando ela era tentada por seu demônio
somente. Ordinariamente, outros se associavam a ele e ainda assim, demais fracos,
recorriam à malícia de espíritos superiores que ficavam no ar. Ela tornou-se tão hábil nesta
guerra que, ao suportar um ataque, sabia a que coro pertencia aquele demônio que dirigia
este ataque e quem ele era.

Quando os demônios querem organizar um assalto a uma alma habilidosa e forte, uns
atacam de frente, outros se colocam por de trás. É desta maneira que eles combatiam
ordinariamente contra a nossa Bem-aventurada, e ela via os sinais entre eles ajustando os
meios.
Quando uma alma, vencida pelas tentações, morre em pecado, o seu tentador habitual leva-
a prontamente seguido de muitos outros que lhe lançam muitos ultrajes, e não param de
atormentá-la até que seja precipitada no inferno. Estes detestáveis espíritos entregam-se
depois a uma alegria feroz. O anjo da guarda, após segui-la até a entrada do abismo, retira-
se logo que a alma desaparece, e volta para o céu.

Pelo contrário, quando uma alma é condenada ao purgatório, o seu tentador é cruelmente
espancado por ordem de Lúcifer por ter deixado escapar sua vítima. No entanto, fica lá do
lado de fora do purgatório, mas bem perto para que a alma o veja e ouça as reprimendas
que ele lhe faz sobre as causas dos seus tormentos. Quando deixa o Purgatório para subir
ao céu, este demônio volta à terra para se juntar aos que nos tentam; mas ele é por eles um
objeto de zombaria, por ter realizado mal a sua missão de que era encarregado.

Todos aqueles que deixaram assim escapar as almas não vão poder mais desempenhar o
ofício de tentador. Eles vagueiam aqui e ali, reduzido a prestar outros maus serviços aos
homens, quando conseguem. Às vezes, Lúcifer, para castigá-los, os coloca vergonhosamente
em corpos de animais, ou se serve deles, com a permissão de Deus, para exercer
possessões, que acarretam para eles novos castigos e novas vergonhas. Os demônios que,
pelo contrário, conseguiram perder as almas que Lúcifer lhes tinha encarregado, depois de
arrastá-las para o inferno, reaparecem na terra, cobertos de glória pelos seus semelhantes,
e desempenham um papel maior do que nunca na guerra que travam contra os filhos de
Deus. São aqueles que os demais chamam para ajudá-los, por serem mais experientes e
mais hábeis, quando têm de enfrentar almas mais fortes e generosas que se riem de seus
inúteis esforços.

Todo demônio encarregado da missão de perder uma alma não se ocupa das outras; apenas
desta e emprega todos os meios para induzi-la a pecar ou para lhe perturbar a paz. No
entanto, quando ele a vence, compele-a, tanto quanto pode, a tentar, molestar ou
escandalizar outras almas.

Há outros demônios do mesmo coro que aqueles que nos tentam, que vivem no meio de nós
sem nos atacar. A missão deles é de vigiar sobre aqueles que nos tentam e de castigá-los
cada vez que não conseguem nos fazer pecar.

Cada vez que ouvem pronunciar devotamente o santo nome de Jesus, espiritualmente se
prostram por terra, não de bom gra do, mas forçosamente. Francisca viu vários em forma
humana, que ao pronunciar este sagrado nome conversando com o seu confessor,
inclinavam com respeito profundo a cabeça até o chão. Este nome sagrado é por eles um
novo suplício, que os faz sofrer tanto mais cruelmente, que a pessoa que o pronuncia
avança cada vez mais no amor e na perfeição. Quando os ímpios profanam este nome
adorável, os espíritos condenados não se entristecem, mas são forçados a se inclinar, como
que para reparar a injúria que Lhe é feita. Agem da mesma maneira quando é pronunciado
em vão. Sem esta adoração forçada, estariam muitos contentes de ouvir blasfemar este
Santo Nome. Os anjos bons, pelo contrário, em semelhante ocasião, O adoram
profundamente, O louvam e O bendizem com um amor incomparável. E quando é
pronunciado com um verdadeiro sentimento de devoção, prestam a mesma homenagem,
mas com um vivo sentimento de alegria. Cada vez que a Bem-aventurada proferia este
Santo Nome, via o seu arcanjo tomar um ar de extrema alegria, e se inclinava de maneira
tão graciosa, que ela ficava toda abrasada de amor.

Quando a alma vive habitualmente no pecado mortal, os demônios entram nela e a domina
de várias maneiras, que variam segundo a qualidade e a quantidade dos seus crimes; mas
quando recebem a absolvição com um coração contrito, perdem a sua dominação, fogem o
mais depressa possível, e se recoloca perto dela para novamente tentála, mas os seus
ataques são menos intensos, porque a confissão diminui as suas forças.

Capítulo VII Os Limbos


Quando a Serva de Deus foi transportada para a entrada do inferno, viu perto um anjo de pé
na entrada de outra porta: era a porta dos Limbos, da prisão onde todas as almas justas da
terra esperaram por longo tempo a vinda do Libertador. Este lugar apesar de contígua ao
inferno, não tem nenhuma comunicação com ele. A sua elevação em relação ao inferno é
comparável a uma casa em relação às adegas de uma casa vizinha; isto é, que a sua parte
mais baixa é superior à parte mais elevada do inferno. Não há neste lugar nem fogo, nem
gelo, nem serpente, nem demônios, nem odor empestado; não se ouve nem uivo, nem
blasfêmias; não se sofre nenhuma outra pena a não ser a da privação da luz, porque faz
sempre noite. Ali é que se encontra o lugar eterno das crianças mortas sem batismo. A sua
distribuição é a mesma que a do inferno. Há uma parte superior, uma inferior e uma
intermediária. Na parte superior está a morada das crianças nascidas e concebidas de pais
cristãos. A parte intermediária é a morada das crianças dos judeus mortas antes de ter
pecado. A situação delas é a mesma que a das primeiras, só que a prisão é mais tenebrosa.
Na parte inferior, estão as crianças nascidas ou concebidas pelo efeito de crimes contra os
votos solenes de castidade ou de afinidade espiritual. Neste último lugar reina uma noite
muito mais profunda do que nas partes mais elevadas.

Capítulo VIII O Purgatório


Depois das visões acima, a Serva de Deus foi conduzida ao Purgatório, cuja distribuição é a
mesma que a do inferno. Aproximando-se deste triste lugar, leu estas palavras escritas na
porta: “Aqui é o purgatório, lugar de esperança, onde as almas esperam a realização do seu
desejo”. O anjo Rafael lhe mostrou as três partes desta morada; e eis o que ela viu:

Na parte mais baixa, arde um fogo que ilumina, nisso distinto daquele do inferno, que é
preto e sem nenhuma clareza. Este fogo é muito ardente e de cor vermelho. É aí que são
punidas as almas em dívida com a justiça divina de penas temporais merecidas por causa
de grandes pecados e o fogo as atormenta mais ou menos rigorosamente, segundo a
qualidade e a quantidade das dívidas. O anjo lhe diz que, sete anos de sofrimentos nesta
parte inferior, correspondem a uma pena temporal merecida por um só pecado mortal.
Do lado esquerdo destas almas, mas fora do purgatório, Francisca viu os demônios, que
durante a vida na terra as tentavam, e reparou que estas almas sofriam muito com a visão
deles e das reprimendas que não cessavam de lhes lançar: “Achastes melhor se- guir nossas
ilusões e nossas persuasões do que os preceitos do Evangelho. Tu tivestes a loucura de
ofender Aquele de quem sois devedores da vossa criação e redenção. Ficai aqui agora para
expiar as vossas ingratidões”. Além disso, o poder dos demônios sobre estas almas limita-se
a duas coisas: afligi-las com suas repreensões e amedrontá-las com seu horrível aspecto.

As almas colocadas no fogo do purgatório inferior aceitam humildemende a justiça divina;


no entanto, o rigor das penas que sofrem lhes arranca gemidos que ninguém na terra
consegueria suportar. São resignadas à vontade do seu Juiz, porque entendem
perfeitamente a equidade dos tormentos que sofrem. Ora, esta resignação faz com que
Deus dê ouvidos às suas queixas, que Se comove e lhes dá algumas consolações. Não as
retira por isso das chamas que as queimam, mas lhes faz encontrar em sua própria
submissão uma espécie de refrigério, colocando em seu pensamento que em breve
chegarão à glória eterna. Conhecem não só os seus próprios pecados, mas também os das
outras almas que sofrem com elas, e todas estão contentes da justiça punitiva de Deus, que
se realiza com tanta equidade.

Quando um anjo da guarda conduz para este purgatório inferior a alma que lhe é confiada,
ele se coloca do lado direito da porta, enquanto que o anjo mau fica do lado esquerdo; e
permanece lá até que a alma, inteiramente purificada se torne livre para subir ao céu. É ele
que recolhe os sufrágios oferecidos a ela na terra, e os apresenta à justiça divina, que lhas
devolve, para que ele as aplique a esta pobre alma, como um remédio que alivia as suas
dores. Apresenta também à justiça divina todas as boas obras realizadas durante a sua vida
mortal, enquanto que o anjo mau mostra sem cessar à justiça divina os pecados que ela
cometeu. Quando uma alma faz doações antes da sua morte, Deus, em Sua bondade, logo as
aceita e as recompensa, mesmo quando os encarregados de concretizar essas doações na
terra por negligência não o fazem. No entanto, se ela colocou em testamento tais doações
para serem concretizadas depois da sua morte, por apego às riquezas, Deus somente a
recompensará após o prazo estipulado por ela para a sua execução.

Este purgatório inferior divide-se em três prisões separadas, onde o fogo não tem igual
ardor, queima mais na primeira do que na segunda e esta, mais do que na terceira. Ora, a
primeira é reservada aos sacerdotes e religiosos, mesmo se cometeram pecados menores
do que os leigos, porque tiveram mais luzes e não honraram a sua dignidade como era
devido. Francisca viu nesta prisão um padre muito piedoso, mas que satisfez demais o seu
apetite no uso dos alimentos. A segunda prisão é a morada dos religiosos e dos clérigos que
não honraram o sacerdócio. Na terceira, habitam as almas dos leigos que cometeram
pecados mortais e não os expiaram durante a vida na terra. Os tormentos portanto não são
iguais em cada uma dessas prisões, são mais ou menos cruéis segundo as dívidas e a
qualidade das pessoas. Os superiores sofrem muito mais do que os inferiores, conforme
uma alma é menos ou mais culpável, os suplícios são mais ou menos cruéis, e a duração
deles mais ou menos longa.

Depois de ter considerado o purgatório inferior, Francisca foi conduzida a ver o Purgatório
intermediário. Ora, tal como o outro se divide em três partes, cuja primeira é um lago de
água gelada, a segunda um lago de pez derretido misturado com óleo fervente e a terceira
um lago de metais liquefato. É neste purgatório que são colocadas as almas que não
cometeram pecados graves suficientes para serem colocadas no purgatório inferior. São os
pecados veniais que conduzem a este purgatório intermediário. Nesta prisão há 38 anjos
que sem cessar são ocupados a transvasar estas pobres almas de um lago para o outro, o
que fazem de maneira muito graciosa e com grande caridade. Estes anjos não são
escolhidos dentre os anjos da guarda; são outros anjos que a bondade divina encarregou
deste ministério. Atribuo sua missão à bondade divina, porque a presença deles é um
grande alívio para estas almas.

A Serva de Deus recebeu nesta visão várias luzes sobre a aplicação dos sufrágios que os
vivos oferecem pelos mortos que merecem muito serem comunicadas. Conheceu 1º: que as
missas, indulgências concedidas e boas obras oferecidas por certas almas, pelos parentes e
amigos, não são integralmente aplicadas; elas recebem sim a melhor parte, mas o restante é
repartido entre todas as almas do purgatório. Francisca conheceu 2°: que estas ofertas,
feitas por erro a almas que já estão no céu, são primeiro em proveito das que as fizeram, e
depois das almas do purgatório. Conheceu 3°: que estes mesmos auxílios dirigidos pelos
vivos às almas que eles pensam estar em via de salvação, mas que de fato estão
condenadas, entram integralmente no tesouro dos seus próprios autores porque nem os
condenados podem deles aproveitar, nem Deus permite que sejam aplicados às almas do
Purgatório. E é de se notar que Francisca, ao sair de uma dessas visões, que havia durado
cerca de duas horas, pensou ter passado um tempo bastante considerável. Resulta daí,
portanto, que o tempo que parece passar rapidamente na terra, parece muito longo na
eternidade.

Capítulo IX Da glória dos santos no céu


Quando as almas bem-aventuradas fazem a sua entrada no céu, elas são conduzidas aos
lugares que lhes foram atribuídos segundo os méritos. Para chegar é preciso atravessar
alguns coros angélicos, os espíritos que os compõem lhes fazem um acolhimento
extremamente alegre; mas nada se compara com a recepção que se faz no coro em que elas
devem tomar lugar. Não são somente, da parte dos anjos aos quais elas são associadas,
demonstrações de alegria e amizade para com elas, cânticos de louvor e de bênçãos para
agradecer a Deus pela sua felicidade, mas que este regozijo dura muito mais tempo nestes
coros do que nos outros. Todas as vezes que a nossa Bem-aventurada, interrogada pelo seu
confessor, falava desta alegria angélica causada pela chegada de algumas almas associadas
à sua glória, a lembrança da sua multidão, da suavidade inexprimível, dos seus cânticos, das
suas manifestações, dos seus êxtases, colocava-a fora de si; o rosto ficava todo fulgurante, e
o seu coração se derretia como cera aos raios de sol. O padre perguntou-lhe um dia quais
eram os mais perfeitos: os espíritos humanos ou angélicos colocados na mesma glória; ela
respondeu que os espíritos humanos têm uma perfeição superior, por causa do tempo
maior que lhes foi concedido para merecer, mas que os anjos são mais puros e mais belos,
que penetram mais na compreensão divina e os seus cânticos são muito mais melodiosos. É
preciso, no entanto, excetuar a augusta Maria desta regra geral.

Cada vez, acrescentou a Serva de Deus, que sou elevada à visão beatífica, sinto várias
admirações.

Fico admirada pela minha falta de penetração na compreensão divina, causada pela união
da minha alma com o meu corpo mortal e esta incapacidade me envergonha muito e me dá
um grande desprezo de mim mesma.
Fico admirada e toda estupefata, cada vez que considero no espelho divino a sutileza
penetrante dos serafins na compreensão da grande imensidão.
Fico admirada bem mais ainda, considerando a profundidade da divindade criadora e
diretiva destas sutis inteligências.

Eis, dizia ainda a Bem-aventurada, algumas observações que fiz relativas aos espíritos
gloriosos:

Observou primeiro que na ordem dos serafins, uns penetram mais além do que os outros
na compreensão divina. Há entre eles uma graduação de inteligência, que existe também
em todos os outros coros. O que eu digo dos anjos, digo também dos espíritos humanos que
lhes são associados. Todos os espíritos de um mesmo coro não são igualmente próximos da
divindade. Pois, quanto mais uma inteligência vê de perto esta imensidão, tanto melhor
consegue penetrá-La.

Segundo, que todos os espíritos humanos postos na glória não possuem a inteligência no
mesmo grau. Alguns, quando viviam em sua carne mortal, receberam uma inteligência mais
sutil, e com as suas atividades intelectuais e com a sua capacidade penetraram mais fundo
na imensidão da divindade, olhando pelo espelho divino, cuja visão constitui a beatitude.
Portanto, levaram para o céu um espírito mais penetrante e capaz. Quanto mais uma alma
tem sutileza e capacidade no entendimento, tanto mais será saciada na visão beatifica. É
verdade que no céu todas as almas estão plenamente saciadas, mas cada uma está segundo
a medida da sua capacidade e da sua sutileza com que penetra na compreensão da vontade
divina. Quando os apóstolos receberam o Espírito Santo, não receberam todos a mesma
medida de graça. Aqueles que tinham mais capacidade e mais sutileza no entendimento a
receberam com grau mais elevado. Aquele que se dispõe a uma graça maior, se dispõe
também a uma glória maior. Francisca via tudo isso, durante os seus êxtases, no espelho
divino. Além disso, declarou muitas vezes que ela submetia todas as suas palavras ao
julgamento da Igreja Católica, em cujo seio queria viver e morrer.

Louvado seja Deus. Amém.

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