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“Caminhou pela força daquele pão”

Num primeiro momento pode causar estranheza a diocese ter escolhido


como tema do seu segundo Congresso Eucarístico um trecho do primeiro testamento, 1Rs
19,3-8. De fato, as narrativas da instituição e vivencia deste sacramento estão no segundo
testamento, porque então escolher um texto do primeiro?
Ora os primeiros cristãos interpretavam toda a escritura como preparação
e anuncio da salvação trazida por Jesus. Como exemplo podemos citar o evangelho de
Mateus que ao dar seu testemunho sobre a vida de Jesus faz questão de ressaltar diversas
vezes “Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor havia dito pelo profeta”
(Mt 1,22). Significativa é a passagem de 2Tim 3,16-17 “Toda Escritura é inspirada por
Deus e útil para instruir, para refutar, para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o
homem de Deus seja perfeito, qualificado para toda boa obra”.
Diversas vezes o judeu Jesus assumiu as tradições dos pais e mães da fé e
entende sua missão como cumprimento das promessas. A vida de Jesus dá um novo sentido
as ações salvadoras de Deus na relação com o seu povo ao longo da historia.
A interpretação da Igreja consagrou o termo “prefiguração” para designar
este exercício interpretativo. Assim, o dilúvio e a passagem do mar vermelho são vistos
como sinais (prefigurações) do batismo. Na liturgia as orações e bênçãos também seguem
está lógica.
No capítulo 6 do evangelho de João temos um discurso teológico feito
pelo próprio Jesus. Nele se deixa claro que o Maná que os israelitas comeram no deserto,
alimento dado por Deus, era um sinal que preparava a doação do seu próprio filho na
eucaristia.
Veremos então que o pão que o profeta Elias recebe das mãos do anjo está
entre os sinais salvadores que apontam para o pão da vida deixado por Cristo para alimento
da comunidade.

O PROFETA ELIAS
O termo profeta, segundo o dicionário bíblico McKenzie, é a tradução do
hebraico “nabi”, da raiz “chamar”, “clamar em alta voz”, pode significar ainda “aquele que
é chamado”.
Embora seja um fenômeno comum aos povos do oriente vizinhos a Israel,
entre os judeus a profecia assume características peculiares principalmente por sua
independência frente ao sacerdócio e demais instituições religiosas e a monarquia. O
profeta de Israel chama em nome de Deus recordando o dever de fidelidade a aliança.
Na bíblia, o símbolo maior da tradição profética é o profeta Elias, da
mesma forma que a Lei é atribuída a Moisés. Basta lembrar a cena da transfiguração de
Jesus onde estes dois personagens surgem como representantes da fé de Israel, pois o
testemunho dos antigos é resumido na Lei e nos profetas (conferir Mt 22,40 e Lc 16,27-31).
O próprio nome Elias, que significa "Javé é Deus" ou "Javé é meu Deus",
já expressa seu caráter e sua função na história bíblica. Ele foi um campeão do monoteísmo
de Javé. É ele quem mantém a fé em Javé entre o povo e quem luta com vigor pelos Seus
direitos. Sua árdua luta contra todo sincretismo religioso faz deste profeta, que "surgiu
como fogo e cuja palavra queimava como uma tocha", uma figura de primeira linha na
sucessão das duas Alianças. Enquanto o livro do Eclesiástico (48,1-11) canta suas glórias,
os livros dos Reis nos contam sua vida. Os relatos sobre sua atividade profética estão
reunidos nos capítulos 17, 18, 19 e 21 do primeiro livro dos reis e nos capítulos 1 e 2 do
segundo livro dos reis. Constituem resgate da memória popular sobre a luta de Elias contra
os profetas de Baal. Luta entre Javé e os ídolos.
Como não deixou oráculos escritos a recordação de seus feitos está na
memória popular onde se misturam fatos históricos e lendários. Se não temos registros de
seus oráculos, vale-nos a força de seu exemplo. Na tradição cristã é apontado como
inspirador do ideal monástico e dos carmelitas. A festa de Santo Elias é celebrada em 22 de
julho.A influência de Elias é tão grande que sua volta é esperada como sinal precursor da
chegada do Messias (ver Ml 3,23), daí a pergunta que os discípulos fazem a Jesus ao descer
do monte após a transfiguração1. Em Tg 5,17 Elias é apontado como modelo de oração. O
movimento monástico do séc. IV tomou a Elias como seu modelo, pondo em relevo a
continência, a pobreza, a vida no deserto, o jejum, sua oração: nosso príncipe é Elias (cf.
Cassiano, Conlatio, 14, 4 em CSEL, XIII, p. 400).
Baal era o Deus da fertilidade e os camponeses cananeus ofereciam-lhe
sacrifícios em troca de uma boa colheita. Em contato com estes costumes os camponeses do
antigo Israel também ofereciam seus sacrifícios a Baal sem achar que o culto a fertilidade
entrava em choque com a fé em Javé libertador. Por isto o rei Acab ao oficializar o culto a
Baal, estimulado pela sua mulher, a Fenícia Jezabel, encontra apoio no meio do povo.
Tornando Baal “um deus oficial” Acab tem também a intenção de uma chancela “divina”
para o seu reinado, suas guerras de conquista e suas atitudes contrárias a lei.
Na contramão da posição oficial, o ministério de Elias inicia com uma seca
mandada por Javé. Com este gesto Elias proclama que Javé é Senhor da natureza e dele
Israel recebe seu sustento. A mesma posição é defendida por todos os profetas, de modo
especial recordamos a luta do profeta Oséias para mostrar que Javé é o único Deus, esposo
do povo, e que lhe dá o sustento com abundancia de trigo e vinho. A chuva só retorna após
o duelo realizado no monte Carmelo onde Elias vence e degola os profetas de Baal diante
da população reunida, fato descrito no capítulo 18 do primeiro livro dos reis.
Um dos pontos altos de sua trajetória e de todo o primeiro testamento esta
no capítulo 19 do primeiro livro dos reis, trecho que serve de inspiração para o segundo
Congresso Eucarístico Diocesano. Vamos conferir toda a perícope, na tradução da Bíblia de
Jerusalém.
“Acab contou a Jezabel tudo o que fizera Elias e
como passara a fio de espada todos os profetas. Então Jezabel
mandou a Elias um mensageiro para lhe dizer: “Que os deuses me
façam este mal e acrescentem este outro, se amanhã a esta hora eu
não tiver feito da tua ida o que fizestes a vida deles!”. Elias teve
medo; levantou-se e partiu para salvar a vida. Chegou a Bersabéia,
que pertence a Judá, e deixou lá seu servo. Quanto a ele, fez pelo
deserto a caminhada de um dia e foi sentar-se debaixo de um
junípero. Pediu a morte dizendo: ”Agora basta, Senhor! Retira-me a
vida pois não sou melhor que meus pais.” Deitou-se e dormiu
debaixo do junípero. Mas eis que um anjo o tocou e disse-lhe:
“Levanta-te e come.” Abriu os olhos e eis que à sua cabeceira, havia
um pão cozido em pedras quentes e um jarro de água. Comeu,

1
Por que motivo os escribas dizem que é preciso que Elias venha primeiro? (Mc 9,11)
bebeu e depois tornou a deitar-se. Mas o anjo do Senhor veio pela
segunda vez, tocou-o e disse: “Levanta-te e come, pois do contrário
o caminho será longo demais”. Levantou-se, comeu e bebeu e,
depois, sustentado por aquela comida, caminhou quarenta dias e
quarenta noites até a montanha de Deus, o Horeb”.(1Rs 19,1-8)

UMA EXPERIÊNCIA DE ÊXODO E ALIANÇA


No capítulo 19 a fuga de Elias é motiva pela perseguição que Jezabel lhe
move como vingança pela morte dos profetas de Baal. O inimigo que leva Elias a desistir
de sua missão não é a força dos profetas de Baal, derrotados no capítulo anterior (capítulo
18 do primeiro livro dos reis), nem as ameaças de Jezabel, enfrentada mais adiante, mas o
seu próprio medo. No caminho acontece o encontro transformador. A jornada iniciada
como uma fuga se revela como uma peregrinação de retorno a origem autêntica do povo: a
experiência de libertação do Egito, o êxodo.
Para o povo de Deus sair do Egito, da “casa da escravidão” é o primeiro
passo para a libertação. Apesar de terem visto as maravilhas que Deus realizou, vencendo o
Faraó, seus falsos profetas, seus carros e seus cavaleiros e fazendo o povo atravessar o Mar
Vermelho, Israel duvidou. A caminhada no deserto apresenta inúmeras dificuldades, entre
elas a fome, que levam as pessoas a desanimar e a reclamar. É neste trajeto que Deus
alimenta o seu povo com o Maná (conferir Ex 16,1-35). A bíblia faz questão de registrar
que este alimento sustentou o povo no deserto enquanto caminhava para o monte Horeb
onde seria celebrada a aliança e daí para a terra prometida. Sem o Maná o povo não poderia
caminhar.
O profeta encontra-se em situação semelhante. Após uma vitória estrondo-
as sobre os profetas de Baal surgem as ameaças e ele foge, para salvar a sua vida,
esquecendo a missão e deixando o povo abandonado. O profeta faz o caminho contrário do
êxodo, saí da terra prometida, atravessa Judá e vai para o deserto. Ironicamente, após um
único dia de caminhada, ele sente-se tão mal que pede a morte e reconhece não ser melhor
que os pais. Na tradição bíblica os pais pecaram no deserto (conferir Sl. 95,8; Sl. 78,8-37).
Na tradição bíblica o deserto é o local do silêncio e do aprendizado, do
encontro profundo com Deus, e os anjos são os tradicionais mensageiros. Enquanto Elias
desiste e abandona Deus, Este não o esquece, mas manda o alimento que o sustenta na
caminhada. Elias precisa comer duas vezes para recobrar o ânimo. Com as forças
restauradas ele caminha quarenta dias até o Horeb onde tem uma revelação divina. Na
montanha Deus mostra a Elias que existem outras pessoas em Israel que defendem o nome
de Javé e são fiéis e aliança. Encontrar Deus abre os olhos para ver os irmãos. Depois da
experiência do deserto Elias já não será mais o profeta solitário, mas encontra em Eliseu,
nos irmãos profetas e em outros homens de boa vontade, aliados para sua luta (conferir 1Rs
19,13-18).
Sem o pão do céu que comeu no deserto teria Elias continuado sua
missão? Sem o pão da eucaristia que Jesus deixou, podem os cristãos viver e anunciar o
evangelho?

O PÃO DA NOVA ALIANÇA


No segundo testamento a missão de Jesus é apresentada como um
cumprimento das promessas feitas “aos pais”. Inúmeras passagens de sua vida o ligam ao
êxodo e a aliança. Os evangelhos da infância narrados por Mateus mostram Jesus como um
novo Moisés, perseguido desde o nascimento e que precisa fugir para o Egito para salvar a
vida. Após o batismo Jesus passa quarenta dias no deserto preparando-se para iniciar a
missão. A luta de Jesus é contra os falsos lideres que tratam o Pai como um ídolo e desviam
o povo pobre da salvação. Jesus é chamado de “cordeiro de deus 2” em clara referência ao
cordeiro imolado na páscoa judaica. As narrativas da multiplicação dos pães registram a
partilha ocorrida num lugar “deserto”, com um povo que vivia como “ovelhas sem pastor”.
Em Mt 5,17 é o próprio Cristo que garante “Não penseis que vim revogar a Lei e os
Profetas. Não vim revogá-los. Mas dar-lhes pleno cumprimento”. Na cruz a figura de Jesus
é a do servo que assume sua missão até o fim, as próprias orações aplicadas a ele o
demonstram3. Jesus assume a tradição e a caminhada de seu povo Israel, como um bom
judeu. A partir dela revela o sentido profundo da salvação trazida por Deus para toda a
humanidade.
Na última ceia vemos muito claramente esta continuidade e revelação. Ao
se dar como alimento Jesus antecipa o sacrifício. Nos dois momentos o corpo é oferecido.
Na ceia, porém, em momento de maior intimidade com os que lhe eram próximos, o Cristo
assume a forma de pão. Escolhe o alimento cotidiano para permanecer no meio dos seus
como sinal da nova aliança. Este sacramento se torna o sinal característico e identificador
dos cristãos que “partiam o pão pelas casas4”.
Na Palestina, terra que é palco da maior parte da história da salvação o
alimento é difícil de se conseguir. Tanto no êxodo como no ciclo de Elias nota-se a sua
escassez. As secas e os tributos diminuem os frutos do trabalho dos camponeses que
precisam comer o pão com o suor do rosto. Na bíblia a palavra pão utilizada para substituir
a palavra alimento. Por isso, no Pai nosso Jesus ensina os discípulos a pedir ao Pai o “pão
de cada dia”, referindo-se ao alimento necessário para a manutenção da vida com
dignidade.
A trecho dos discípulos de Emaús 5 mostram a força e a importância deste
alimento para os discípulos. Os dois seguidores estavam tristes e fracassados. Como Elias
abandonam a missão e a comunidade, só falta pedir a morte. Jesus faz com eles a memória
do passado recordando os sinais de salvação existentes no caminho. O reconhecimento se
dá no partir do pão. Com novos olhos e Jesus dentro de si os dois retornam a Jerusalém
para, junto com os irmãos, reiniciar a caminhada.

A nossa Igreja particular está em clima de missão. Queremos seguir as


pegadas do mestre e anunciar a boa notícia da salvação para os homens e mulheres de hoje.
A tarefa parece pesada. O culto a Baal é forte, mesmo que seja invocado por outros nomes:
mercado, corrupção, individualismo, competição, intrigas, violência, poder. Qual o ídolo
que mais atrapalha sua vida e a de sua comunidade?
O pior é quando os próprios missionários abandonam os valores do reino e
buscam apenas a realização pessoal. Como Elias queremos fugir da missão. Como os
israelitas no deserto, reclamamos muito de Deus.
O que fazer?.
O testemunho de Elias nos dá algumas pistas.

2
Jo 1,35-36
3
conferir salmos 22,,2 e 31,6
4
At 2,46
5
Lc 24,13-35
Primeiro é preciso ter convicções. Mesmo quando achou que estava
sozinho contra todos Elias não abandonou a sua fé. Defendia a fidelidade a aliança e
chamava o povo a conversão. O chamado a conversão é o primeiro anúncio feito por Jesus6.
Depois é preciso buscar aliados. Deus manda Elias procurar apoios e
chega a apontar nomes das pessoas a quem ele deve se dirigir. Jesus mesmo diz que
“Quem não é contra nós é por nós”7. Precisamos aprender a vencer os preconceitos para
agir em conjunto com outras Igrejas, sindicatos, artistas, associações civis e qualquer
instituição que lute em defesa da vida. Se buscarmos o mesmo objetivo as diferenças não
podem nos afastar dos outros, elo contrário, devem nos enriquecer.
Por fim temos a certeza que não estamos sozinhos. O Deus que nos envia é
que nos sustenta. Ao se fazer presença, pela eucaristia, no meio da comunidade reunida
Jesus nos lembra que somos o povo que ele adquiriu para seu louvor e glória 8. Não existe
cristão sem Igreja. Não existe igreja sem pão.
O pão que desceu dos céus9 e o novo Maná. Alimenta o povo de Deus que
continua sua caminhada em busca do Reino, atravessando os desertos para construir e
conquistar a terra prometida. Vamos acordar para a missão e dar o primeiro passo.As
estradas serão criadas pelo nosso andar.

“Se o Senhor é Pão e Vinho,


Caminho por onde andais,
Se o andar se faz caminho,
Que caminhos esperais10”

Zélia Cristina – CEBI Mossoró

6
Mc 1,14-15
7
Mc 9,40
8
Ef 1,14
9
Jo 6,33
10
Pedro Casaldáliga in, Na Procura do Reino”

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