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Falha na Missão

Dor. Era a única coisa que Milo tinha a certeza que lembraria deste dia terrível. Ele corria com
ferimentos nas costas, pernas e braços. Todas as alternativas de cicatrização e cura tinham
sido usadas. O melhor era acabar logo a missão antes que não tivesse mais lugar para doer. O
único de seus companheiros que ainda permanecia vivo era o atrapalhado Kevin. Com certeza
estava ali mais por sorte e do que por competência. Ainda assim, permanecer vivo era a
prioridade, o luto poderia vir depois.
Os dois corriam o mais depressa que conseguiam entre as vielas da cidade. Sabiam que seus
perseguidores não ousariam gritar no meio da noite. Contudo, tinham a certeza que a caçada
não havia acabado.
- Para onde estamos indo, Milo?
- Para o único lugar em que eles não vão nos encontrar.
Quando dobrou uma esquina, Kevin percebeu do que o halfling falava. Eles estavam seguindo
para um dos esconderijos da guilda. O local era um armazém no distrito mais pobre.
Dificilmente as autoridades visitavam aquele lugar. O que Milo esqueceu, foi que seus
caçadores não eram autoridades...
Os dois correram até parede do prédio. Atrás de algumas caixas havia uma porta. Estava tão
camuflada que poderia ser facilmente confundida como parte do ambiente. Milo bateu na
parede de madeira com dois pequenos socos. Outros dois vieram em resposta. Milo repetiu o
gesto, mas dessa vez com três batidas. A porta abriu devagar e tão logo tiveram como
atravessar ambos os homens estavam dentro.
Kevin sustentou seu corpo nos joelhos, como prova de seu cansaço. Milo jogou-se no chão
assim que sentiu-se seguro.
- Está uma bagunça lá fora. Espero que vocês tenham trazido o aluguel para esta noite
ou terão que pedir refúgio aos homens lá de fora.
Disse o homem que os recebeu. Prontamente Kevin lhe deu algumas moedas.
- Queremos um pouco de comida, água e um lugar para descansar.
Pediu Kevin. O homem contou as moedas e em seguida assentiu com a cabeça. Afastou-se do
lugar e permitiu aos dois um pouco de privacidade.
- Espero que esta porcaria de caixa sirva de alguma coisa. Perdemos companheiros para
conseguir ela.
- Deixe de ser sentimental Kevin. Eram bandidos tanto quanto nós. Sabiam dos riscos ao
assinar o contrato. Se não estão aqui agora é porque foram descuidados. Tanto melhor.
São menos mãos para dividir as moedas.
- Hapew disse que eram pessoas confiáveis.
- Hapew não é confiável. Como você acha que são as pessoas que ele diz confiar, Kev?
- Ele disse que conhece um Pipefield.
- E você acreditou? Você é ingênuo demais para um humano, Kev. Pipefield foram
mortos quando procuravam um dragão. Não se achou nem as adagas deles. De que
jeito achariam algum deles vivo?
- Não sei. Só achei que Hapew falou com tanta certeza.
- Esqueça isso. Temos coisas para nos preocupar agora. Como por exemplo, que diabos
tem dentro desta caixa que nos fizeram tirar da base dos draconianos?
Ele retirou de dentro de um saco de viagem um objeto grande. De fato a caixa despertava
curiosidade. Era quase do tamanho de Milo, tão bem feita que as extremidades pareciam
estarem afiadas. Embora fosse de madeira grossa, estava pintada com uma cor azulada muito
escura. Inscrições parecidas com runas estavam entalhadas delicadamente em todos os lados
do item. Estavam pintadas de forma que pareciam preenchidas com ouro. A cor dourada das
runas reluzia mesmo na luz fraca que eles possuíam.
Não tinha nenhuma abertura perceptível. Nenhum sulco ou reentrância que coubesse algo
como chave ou outro dispositivo para abrir. Nada de fechaduras. Milo deduziu que fosse
mágica e somente uma palavra de ativação proferida por um dominador de magias pudesse
surtir efeito. Kevin limpava seu rosto com o resto de água de seu cantil.
- O que será que tem aqui dentro, Kev? O que será que chama tanta a atenção deles que
os próprios draconianos mantinham isto bem vigiado?
- Sei lá. Essa gente gosta de tanta coisa bizarra. Poderia até mesmo ser uma das coisas
de guerra do Imperador.
- Tem razão! Claro! Poderia sim, tem o tamanho certo. Deve ser mesmo. Se for isto
mesmo, vamos virar lendas!
- Pode ser. Está escrito Kyvagosa Sigligon em um dos lados.
- Você sabe ler o que está aqui, Kev?
- Aprendi um pouco de dracônico na escola de bardos. Durante o período que fiquei lá.
Antes de me mandarem sair.
- Você ficou lá cinco dias, Kev.
- Puxa, nem tinha me dado conta que tinha sido tanto tempo.
- Deixa de me enrolar. O que significa isso?
- Teria que ver o contexto do resto, mas acho que é algo como “a dragonesa que nasceu
para ser rainha” ou algo neste sentido.
A conversa foi interrompida por dois homens que traziam jarros com água e uma bandeja de
comida fresca. Milo começou a comer pelos dois. Kevin analisou o prato e os jarros. Verificou
novamente seus bolsos e percebeu que pelo que pagaram jamais teriam sido tão bem
servidos. Tentou chamar a atenção do halfling, mas ele estava faminto demais para olhar
alguma coisa que não fosse a comida. Sem dizer nada, ele guardou a caixa em sua mochila e
colocou um pequeno barril no saco de viagem. Apenas observou o halfling comendo.
Os dois homens que tinham servido a comida saíram e em seguida um homem da Elite
Imperial entrou na sala. Milo não percebeu a chegada dele. Kevin deu um salto e ficou em
posição de luta. Uma reação quase por reflexo. Neste momento Milo também percebeu.
- Espero que tenham feito uma boa refeição. Foi patrocinada por mim e é o mínimo que
posso oferecer a heróis.
Milo estava tão assustado que mal conseguia se mover. Kevin ainda mantinha sua postura de
luta. Ele continuou.
- Eu sou Thomas, o sangrento, Imperial de Elite de Zárcio. Sei que vocês invadiram o
forte inimigo e roubaram algo que é de interesse desta nação. Por esta razão serei bem
breve. Me entreguem o que roubaram ou vou considerar os dois traidores do Império.
Como tal, sou obrigado a executar a pena por este crime imediatamente.
Milo ficou paralisado. Ele conhecia a reputação de Thomas, o sangrento. Diziam que ele era
um bandido que deu a sorte de ser Imperial. Ele tinha assassinos e ladrões ao seu comando.
Não tinha a certeza sobre esses boatos, mas sabia que Thomas, o sangrento era temido pelas
maiores guildas da região. Kevin, por sua vez, não respondia. Parecia estar imaginando uma
resposta adequada para dar.
- Na verdade, não temos nada de mais. É só uma velharia que um colecionador exótico
encomendou. Nada que pudesse ter um valor tão alto, senhor.
Arriscou Milo. O Imperial se aproximou do halfling. Abaixou-se para falar olhando diretamente
para os olhos do pequenino.
- Eu conheço bons mentirosos. Você não é um deles. Entregue-me agora o que eu quero
ou juro pelas 10 faces de Dargor que vou dividir os dois em mil pedaços antes do
amanhecer!
Milo engoliu o próprio orgulho naquele momento. Ele sabia que não era um blefe. Olhou para
Kevin. O homem apenas sinalizou levemente que não, com a cabeça. De imediato sacou uma
adaga e arremessou contra o rosto do Imperial. Thomas, o sangrento conseguiu se esquivar e
tentou agarrar Kevin. Ele foi mais rápido e atravessou a porta de saída antes mesmo do
homem conseguir se recuperar do ataque. Milo aproveitou o momento de distração e passou
por entre as pernas do Imperial em direção a saída.
Kevin conhecia o lugar, mas não havia decorado todas as saídas ou portas. Correu junto de
Milo até chegar em uma sala que dava acesso para outros dois corredores. O pequenino
indicou a direção que deveriam ir, mas Kevin não se moveu. Entregou a sua mochila para o
amigo e levou o saco de viagem consigo. O halfling não disse uma única palavra e nem mesmo
Kevin. O homem apenas sorriu e fez um gesto de despedida na linguagem de sinal da guilda.
Depois disso seguiu adiante no lado oposto ao que indicava Milo.
Kevin correu atravessando todas as portas que podia. Ele torcia para que o Imperial estivesse
em seu encalço. Milo era mais astuto e entenderia que algo que Thomas, o sangrento tem
interesse, não tem nada a ver com o Império. Embora fosse um bandido desde muito cedo em
sua vida, Kevin mantinha alguns princípios. O cansaço não o permitiu chegar a saída. Ele
cansou em um ponto.
- Isto foi patético demais. Eu ainda fui generoso. Dei-lhe uma refeição farta, sem veneno
algum. Ofereci para ser herói do país. Você me devolve a gentileza com uma adaga?
Kevin não respondia. Sabia que não tinha para onde ir. Que não sairia vivo daquele lugar.
Pensou nos seus companheiros que morreram durante a missão. Sentiu-se aliviado por
perceber que não estava traindo a confiança de seus comparsas. Estendeu a mão com o saco
de viagem na direção do Imperial.
- Finalmente, um pouco de lucidez!
O Imperial olhou dentro do saco.
- Que porcaria é essa aqui? O que você fez com a caixa? Não pode ser… Você me
enganou.
Kevin sorriu. Pela primeira vez teve a sensação de que tinha feito a coisa certa. Imaginou-se
sendo elogiado pelos companheiros de jornada naquele momento. Ninguém até aquele
instante tinha enganado Thomas, o sangrento. Ele tinha sido o primeiro a realizar este feito. Foi
quando deu-se conta que não havia mais cansaço, não havia mais sede, não havia mais dor,
não havia mais culpas nem arrependimentos. Era como ser uma folha no meio de uma
ventania. Ele considerou que aquilo era o que chamavam de paz e aproveitou cada instante
daquela emoção até tudo escurecer em sua frente e ele perceber Thomas, o sangrento sair
rápido pelos corredores com a sua espada salivando sangue quente no caminho.
Milo viu quando Thomas, o sangrento seguiu o caminho atrás de Kevin. Seguiu na direção que
ele conhecia a saída. Tomou cuidado para não ser visto. O caminho para a saída não estava
tão longe, mas com tanta gente procurando era uma questão de tempo até ser encontrado.
Pensou que a melhor forma de sair dali sem causar muito alarde era o caminho da fonte. A
guilda era construída de forma a ter uma ligação com a fonte da cidade. Um segredo que
poucos sabiam, uma vez que realizar este percurso era penoso até mesmo para ele que era
pequeno. A travessia era estreita e com água. Se não lhe servisse de saída, pelo menos daria
tempo para pensar em uma.
Milo foi até esse lugar. Sentou exausto. Sentiu suas pernas inchadas de tanto correr. Pegou um
pouco de água e bebeu. Ficou pensando em todos os seus companheiros que perderam a vida
nesta missão. Lembrou dos riscos que correu na fortaleza dos draconianos, das palavras do
Kevin e em como ele desprezava o companheiro. Abriu sua mochila para ver o que tinha
dentro. Talvez para entender um pouco da traição de Kevin. Sua surpresa foi grande ao
perceber que era a caixa. O comparsa trocou a caixa de lugar antes de Thomas, o sangrento
perceber. Deve ter colocado outra coisa dentro do saco para despistar o Imperial e tinha dado
certo. Perceber isto não melhorou a situação. Pela primeira vez Milo sentia-se culpado de
alguma coisa. A esta altura Thomas, o sangrento deveria ter encontrado Kevin e percebido o
engodo. O halfling chorou. Suas lágrimas carregavam medo, culpa, dor e muito
arrependimento.
Ele abriu a mochila e pegou um dos muitos pergaminhos que usava para criar mapas. Ainda
tinha pedaços de giz e carvão para escrever. Fez um longo bilhete e deixou dentro da mochila.
Tentou deixar da forma mais imperceptível possível. Seguiu o caminho para a saída. Antes de
sair pensou consigo mesmo que pela primeira vez entendia o que queria dizer Kevin. Aquilo
deveria ser importante demais para estar medido em ouro ou ainda atiçar o interesse de um
corrupto como Thomas, o sangrento. Não era certo levar adiante a missão da caixa. O destino
dela deveria ser outro. Se saísse vivo da sede da guilda, jurava que faria a coisa certa com a
caixa. Enfim, ele abandonou o esconderijo afastando-se mais depressa que conseguia. Não
demorou até esbarrar com um nervoso Thomas. Antes que pudesse sacar sua arma para lutar,
Milo recebeu uma descarga elétrica que partiu das mãos do Imperial. Além do clarão alto e do
som arrepiante, o cheiro de pele queimada tomou conta do ar. O lado direito do corpo do
halfling estava terrivelmente queimado. Pela primeira vez Milo não tentou escapar. Viu quando
o Imperial chegou perto. Dava para ver a raiva escapando pelos olhos.
- Onde está? Me diga onde está a caixa!
Milo sorriu, ainda que isto lhe doesse e custasse um pouco de sangue.
- Parece que ambos falhamos em nossas missões, não é Imperial Thomas?
- Me diga onde está ou eu vou matá-lo, seu vermezinho imundo!
- Isto é tudo que você tem a oferecer? Prostitutas são muito mais persuasivas que você e
eu ainda pagaria por isso!
Thomas, o Imperial de Elite, não conseguiu conter a raiva e frustração daquele momento.
Sentiu-se humilhado primeiramente por Kevin e agora por Milo. Não sabia que outra coisa fazer
além de justificar o motivo de seu título ser Thomas, o sangrento.

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