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ZONA DE CAÇA

UM CONTO VITORIANO

GOOD
BEDS

Bruno M. Garcia
ZONA DE CAÇA

A cama soltava rangidos queixosos ante a urgência do ato.


Era, afinal, um homem de pesada constituição, acostumado a impor sua vontade.
O ritmo se intensificou, ganhando velocidade e força.
Frank Wilks, que até então conservava um silêncio, beirando o assustador, soltou
um urro monstruoso. Depois, como sempre, estirou-se por cima da mulher.
Ela odiava essa parte.
Sentia-se sufocada; perdida, em um emaranhado de pelos negros e oleosos que
brotavam da pele dele, roçando-se de forma asquerosa na sua. Quis berrar. Sabia,
porém, que bastava esperar alguns minutos para que Frank se desgrudasse de seu
corpo e, em seguida, de seu leito.
Mas, dessa vez, Mary Lee receava o momento em que o bruto rolaria para fora da
cama. Era muito provável que tivesse uma faca no casaco, esparramado sobre o criado-
mudo.
E se fosse ele?
Mary não tinha a mente lenta como as outras. Sabia que as vítimas nem sequer
imaginavam que o predador as estava espreitando, até ser tarde demais. Era preciso que
se passasse por um cliente, ou de fato o fosse.
Como Frank.
— Seu coração — rosnou o homem.
— O que tem ele?
— Disparou. — Wilks apoiou-se com os braços, descolando-se dela.
Lee sentiu o ar frio rolar pelo corpo, que mais parecia um vulcão, de tão remexido
e quente. À luz da lamparina, brilhavam olhos castanho-escuros, cravados nela.
— É tesão — disse.
— Tesão! — fungou Frank, deixando-se cair sobre a mulher outra vez.
Ele certamente sabia que isso a incomodava.
— Não gosto que mintam para mim. — Ainda meio deitado por cima dela, Wilks
levou a mão, peluda e nodosa como a de um urso, ao seu pescoço.
Pelo ventre de Mary Lee, espalhava-se o pânico. Os batimentos estouraram.
Foi quando achou uma saída. Seus olhos perderam o foco e ela contorceu o corpo,
esfregando-se, gemendo…
A cama voltou a reclamar.
Depois que Frank partiu, a moça se limpou o melhor que pôde. A morrinha dele
era forte e pegajosa. Quase animalesca. Para remover a sensação insistente, seria capaz
de esfregar a pele toda com uma escova encharcada em óleo de carvão.
Estrondos e rugidos ressoaram à porta. Mary, então, soube que estava na hora de
desocupar o cubículo. Eram sete outras mulheres, mais seus fregueses, dividindo-o com
ela, na hospedaria Good Beds: o alojamento comunitário que reunia o refugo humano de
Londres. Lee não conhecia uma única atividade ilegal que deixasse de ocorrer ali, mas a
cidade fechava os olhos, sem interesse por seus veteranos e imigrantes; ou viúvas, como
ela.
Ainda assim, sentia-se grata por ter um teto sobre a cabeça.
A trabalhadora se levantou e chegou à porta em meio a um novo surto de
espancamento da estrutura de pinho.
Abriu-a.
— Porra, Mary! — protestou Charlotte, esgueirando-se por detrás do ruivo que por
pouco não atravessara a madeira com os punhos. — Seu operário papa-gorda de merda
já saiu faz mais de dois minutos!
A colega de profissão abria e fechava a bocarra, emitindo uma abundância de
impropérios, enquanto Tommy Três-dedos, seu pet irlandês, encarrancava-se todo.
Empurrou-os, abrindo espaço para se distanciar o mais rápido possível do local.
Ajeitou o vestido verde encardido enquanto caminhava, fazendo o chão de madeira do
alojamento chorar a cada passo. Desceu as escadas, esquivando-se de vários homens e
seus beliscões. Ao chegar na cozinha, viu que já estava quase na hora da janta, pois não
havia um único lugar livre.
— Mary Lee! — estridulou uma voz conhecida. — Gordinha!
A súbita atenção, lançada sobre ela como a luz de um lampião, fez suas
bochechas rechonchudas rubejarem. Lee soltou um chiado, levando o dedo aos fartos
lábios em sinal de silêncio.
— Ei, Rose… ei, Lucy — disse, aproximando-se. — Será que não tem um
espacinho entre as duas para me sentar?
— Espacinho? — falaram juntas, explodindo em gargalhadas.
Mary sabia que a invejavam. Tinha a silhueta avantajada? Bastante. E, das sete,
era quem conseguia os melhores clientes. Não contando a exuberante Adhara Davis,
claro. Ninguém sequer entendia o que a mulher fazia no decadente albergue.
— Abram espaço — falou, com a quantidade certa de ameaça no tom.
Obedeceram.
As três consumiram aquele ensopado ralo que a hospedaria servia e absorveram
um líquido que mais parecia álcool puro. A bebida esquentou e, também, soltou as
línguas. No início, comentava-se sobre a estátua de um tal mercador Robert Milligan. O
assunto, todavia, não resistiu. Por toda a cozinha, só se queria falar do esfaqueador, que
aterrorizava as moças do distrito com sua grotesca perícia no manuseio de lâminas.
Mais tarde, no abarrotado dormitório, enquanto esticavam sobre o banco a corda
na qual se escorariam para dormir, Mary mentalizou com teimosia: Frank Wilks não é o
assassino, Frank Wilks não é o assassino…
O sujeito era peludo e fedido, mas isso não fazia dele o Estripador.
Dois dias depois, Mary Lee conseguiu um novo freguês, que se apresentara como
Aaron e algum outro nome difícil do Leste Europeu. Tinha uma daquelas vozes
impossíveis de se contestar; doce, porém firme. Ela estava confiante que lhe pagaria em
moeda, pois era barbeiro e judeu. Não seria um exagero imaginar que, se ficasse bem
satisfeito com o atendimento, lhe daria um xelim.
Já caíra a noite quando entraram no albergue. Tommy Três-dedos, o intendente
do local, lhes direcionou um olhar significativo, mas depois abaixou o rosto. Subiram as
escadas, estranhamente vazias, com os braços dados.
Quando chegaram ao andar de cima, eles viram.
Tanto a porta do cubículo, quanto a parede de madeira que a cercava estavam
retorcidas, quase tombadas. Havia sangue por toda a parte.
— Alto! — urrou alguém, vestindo um azul-marinho muito escuro da cabeça aos
pés. — É você quem atende por Mary Lee?
Como uma sombra, o barbeiro-cirurgião se destacou dela e desceu pelos degraus.
O oficial fardado acompanhou-o com os olhos, mas não se manifestou.
— Responda minha pergunta.
— Sim — gaguejou. — Sim, senhor guarda.
— Detetive Price! — chamou o policial. — Ela chegou!
Cuidando por onde pisava, o homem de meia-idade emergiu da confusão que se
tornara o quarto das oito mulheres. Estava coberto com um sobretudo marrom.
— Obrigado, agente Shaw — disse, depois a olhou. — Senhora Lee?
— Encantada.
O azulzinho bufou.
— Qual era a natureza da sua relação com Frank Wilks? — questionou Price,
ignorando o deboche do outro.
— Meu cliente… — sussurrou.
— O quê? — interrompeu-a Shaw. — Fale alto!
— É meu freguês, senhor guarda… e senhor detetive.
— Pois seu “freguês” não foi propriamente fidelizado. — O policial de uniforme
apontou para o chão, bem onde ficaria a parede caso estivesse inteira.
Mary Lee viu-o estirado e teve dificuldade em reconhecê-lo.
Frank, que sempre fora cabeludo, agora tinha pelos cobrindo quase todo o rosto
ensanguentado. Seus olhos encaravam o teto, vidrados. O braço estava retorcido em dois
pontos, formando ângulos impossíveis, que a deixavam nauseada só de ver. As mãos
pareciam ainda maiores, com grossas unhas prolongadas, empapadas de algo gosmento.
Seu pior ferimento se encontrava no pescoço, estraçalhado de tal maneira, que a cabeça
parecia separada do corpo.
Lee vomitou.
— Mas que merda — disse o guarda.
— Isso é tudo, Shaw — cortou-o Price. — Desça e não permita que subam.
O agente ficou parado por um bom tempo, até que, por fim, acatou a ordem.
— Quem… — soluçou ela. — Quem o atendia?
— Por que você mesma, senhora Lee, não me diz? — sugeriu o detetive.
Guiou-a, então, com cuidado, até que enxergassem melhor o quarto.
Certa feita, Mary vira um gato sendo atropelado por uma carroça. Não sabia dizer
por que, mas foi a primeira coisa que lhe veio à mente quando encontrou a mulher no
chão. Estava encolhida em posição fetal, com as mãos entre as próprias vísceras, como
se tivesse morrido tentando colocá-las de volta para dentro. Quando prestou atenção no
semblante dela, entendeu o motivo de sua memória invasora.
Tanto os olhos como a boca tinham uma característica felina.
— Adhara — disse —, Adhara Davis.
— Fale-me sobre ela.
— Pagava por metade do aluguel do quarto. Tinha preferência no uso dele, mas
era quem menos o solicitava. Falava muito pouco conosco. Nem dormia aqui.
— Algo mais? Algo fora do comum?
— Ah! — lembrou-se. — Adhara acompanhava os clientes na saída, mas eles não
voltavam. Nunca a procuravam novamente.
— Entendo. — Price levou um lenço à boca, encarando o cadáver. — Veja bem,
senhora Lee. O nome dela não é Adhara.
— Não?
— Não. Trata-se de Marie-Louise Milligan, desaparecida há mais de trinta anos.
Neta de Robert Milligan, fundador das Docas das Índias Ocidentais.
— As docas na curva do Tamisa? — Os olhos de Mary se arregalaram.
Ele confirmou com um curto movimento da cabeça. Isso explicava o repentino
interesse da polícia pelo que acontecia no Good Beds.
— Mas — disse Lee —, se ela sumiu há trinta anos…
— Usava este pingente. — Price mostrou o objeto na palma da mão. — É um caso
arquivado, mas já tenho certa idade. Lembro-me bem dessa foto.
— Não. Não é disso que eu falo. Quantos anos ela tinha quando sumiu?
O investigador coçou o cavanhaque, olhando para o retrato de Milligan na joia do
colar e, depois, para o pálido rosto felino no chão.
— Tinha vinte e cinco anos — admitiu.
A moça estripada não podia ser muito mais velha que isso.
Mary se preparava para contestar, quando o intruso apareceu no corredor. Não fez
um barulho sequer, como se tivesse deslizado por cima dos degraus.
— Shaw… — sibilou Price, proferindo o nome do guarda como um insulto, antes
de se dirigir ao estranho. — Senhor, devo pedir que…
O detetive paralisou no meio da frase, assim que seus olhos encontraram os do
misterioso indivíduo. Vestia-se de maneira tão formal que chegava a ser performática,
parecendo um daqueles mágicos que se apresentavam em teatros.
— Detetive Price — disse ele. — Veja bem este quarto. Aqui, neste quarto, nada
aconteceu. No entanto, o estabelecimento em si, está em desconformidade com as regras
de higiene estipuladas pelo Ato dos Alojamentos Comunitários de 1851. Proceda com a
evacuação total do andar inferior e o bloqueio da entrada agora mesmo, mas, apenas
amanhã, notifique os órgãos responsáveis.
Mary assistiu, boquiaberta, enquanto Price descia as escadas com um meio
sorriso tolo e olhos de peixe, sem foco algum. O homem-mágico então olhou com
intensidade para o corpo de Marie-Louise Milligan. Sua alva face, petrificada.
— Senhor, quem é…
Ela tampouco conseguiu concluir. Perdeu-se naquele olhar, profundo e
inescrutável.
Abismal.
— Mary Lee — a voz era melódica, impossível de ser negada. — Nada aconteceu
aqui. Parta.
— Nada aconteceu… — murmurou ela, já se virando para ir.
Por trás, percebeu-o inspirando o ar próximo de seu braço.
Antes que terminasse de descer os degraus, ele ainda cantou para ela:
— Fique longe do barbeiro, Mary Lee. Fique longe de Aaron Kosminski.

Bruno M. Garcia
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