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Castelo de Ilusões

Susan Paul

Ela era a filha de seu pior inimigo...

Inglaterra, 1405.
Lillis de Wellewyn era a mulher mais linda que Alexander já tinha visto. Uma
noiva de conto de fadas. Todavia, ele não podia considera-la sua, pois havia jurado
deixa-la partir assim que livrasse seu povo da tirania do pai de Lillis.
Alexander Baldwin era conhecido como um nobre honrado, porem Lillis o
considerava um tirano que havia se casado com ela apenas por causa de seu dote.
Um homem que a tornara não só sua prisioneira, mas vagarosa e implacavelmente
roubara-lhe o coração!

Digitalização: MÁRCIA GOMES


Revisão: ANDRESA BASTOS
Título original: The bride's portion
Tradução: Cecilia F. Rizzo
Impressão: Romances Nova Cultural, 1996.
Série: Clássicos Históricos. Especial 11

SEQÜÊNCIA DE TÍTULOS DA SÉRIE:

1. Castelo de Ilusões
2. Ladrão de coração
3. A força de um Amor
4. Coração Mercenário
5. A noiva roubada
6. A noiva prisioneira
CAPÍTULO I

Inglaterra, início do outono de 1405.

O aposento estava frio e escuro apesar da luz bruxuleante de uma vela ensebada no
topo de uma mesinha. Ela produzia mais fumaça do que claridade.
— Eles podiam ter, pelo menos, acendido a lareira disse Lillis, esfregando os braços
num esforço vão para aquecer-se. — Rapazes atrevidos! Imagine nos pôr neste lugar
imundo como se fôssemos criminosas! Deviam pensar que fugiríamos de um outro limpo
— acrescentou, indignada.
Andava de um lado para o outro tomando cuidado para não tropeçar nos móveis. O
cômodo dava a impressão de ter sido um quarto. Tinha uma lareira enorme, um terraço
trancado e janelas do outro lado. Mas parecia estar sendo usado como depósito de
móveis. Algumas peças estavam cobertas com panos para protege-Ias do pó, outras, não.
Quando Lillis e sua criada foram empurradas lá para dentro, haviam ficado horrorizadas
com o número de ratos que fugiram para seus esconderijos e com a poeira grossa que
cobria tudo. Porém, tinham se sentido aliviadas por haver cadeiras para se sentar e a
mesinha onde apoiar os braços. Havia até uma cama onde poderiam dormir, caso
precisassem, embora os ratos tivessem tirado uma boa parte das penas do colchão.
Quantas horas havia que estavam trancadas ali? Indagou-se Lillis ao friccionar as
mãos a fim de impedi-Ias de tremer. Tinha sido de manhãzinha quando os gêmeos
terríveis surgiram da mata, com as setas apontadas para as cabeças de seus dois
guardas. Sua primeira reação fora a de repreendê-Ios por encenar brincadeira tão ir-
responsável para viajantes inocentes. Mas, ao perceber a seriedade da intenção deles,
mantivera-se calada. Tinha sentido uma ponta de medo dos rapazes, pois eles não
deviam estar no juízo perfeito para agir daquela forma.
Mas quando a levaram, e à companheira, ao castelo onde agora estavam presas,
Lillis percebera o engano. Os rapazes estavam longe de ser malucos. Pelo contrário,
eram bem piores do que isso. Eles se viam como cruzados valorosos que haviam
capturado o inimigo. Ao cometer o erro de informá-Ios ser Lillis de Wellewyn, família pa-
cífica e sem antagonismo com a deles, ou outra qualquer, eles haviam se mostrado mais
satisfeitos ainda com o ataque praticado.
Criaturas malvadas.
A pior parte do pesadelo era não ter noção de onde se encontrava. Havia anos, Lillis
não ia para casa e não tinha reconhecido a área e o castelo. Os gêmeos haviam se
negado a prestar-lhe informações e impedido seus guardas de falar. Dessa forma, ela e a
criada ignoravam se estavam perto ou longe de Wellewyn.
Também não haviam tido a oportunidade de ver muito do castelo. Mal tinham
desmontado, ela e Edyth foram separadas dos guardas e obrigadas a atravessar
depressa alguns aposentos, subindo vários lances de escada até esse patamar, que,
obviamente, não era usado.
— Vocês não podem nos manter aqui! Exijo falar com o senhor do castelo! — Lillis
tinha protestado ao ser empurrada para dentro do aposento sujo.
— Nosso irmão não está em casa, mas pode ficar tranqüila que nós o avisaremos
tão logo ele chegue ao castelo — dissera um dos rapazes.
Indiferentes aos murros na porta e às ameaças furiosas, eles tinham ido embora. Já
se haviam passado muitas horas e ninguém aparecera nem mesmo para lhes trazer água.
Edyth, graças a Deus, havia encontrado o maço de velas e os fósforos. Antes de o céu
escurecer e começar a chover, o aposento já estava na penumbra, pois pouca claridade
entrava pelas frestas das tábuas pregadas nas janelas. Se não fosse pela parca
luminosidade da vela, estariam em absoluta escuridão. Lillis tentava manter-se calma,
mas ambas estavam mortas de frio, fome e medo. Com o passar das horas, imaginava se
os dois demônios não as tinham esquecido e ido se divertir com outra maldade. Daí a
alguns meses, quando a dona do castelo precisasse de mais cadeiras para as
comemorações do Natal, alguém subiria até ali para pegá-Ias e encontraria dois
esqueletos sentados à mesa.
Lillis estremeceu e afastou a imagem da mente. Se ninguém aparecesse até o
amanhecer do dia seguinte, ela e Edyth teriam de fazer algo drástico. O que, não fazia
idéia, mas teriam de agir. Enquanto isso, o melhor era ocupar-se em refletir sobre o que
dizer ao senhor do castelo quando ele surgisse. Seria um prazer expor-lhe pensamentos
bem concatenados sobre o futuro sombrio dos irmãos.
Rezava apenas para que, quando ele chegasse a casa, agisse imediatamente para
corrigir a situação. Sem dúvida, ele o faria. Ficaria tão horrorizado quanto ela com a
atitude dos irmãos e se veria forçado a castigá-Ios. Lillis quase chegava a sentir pena do
homem por ser responsável pelos brutos. Mas o que lhe importava era sair dali e ir para
Wellewyn o mais depressa possível.
Wellewyn! Tomada pela ansiedade, Lillis cruzou e descruzou os braços enquanto
dava mais uma volta pelo cômodo. O pai devia estar desesperado com a sua demora em
chegar. Por causa do mau tempo, já estavam atrasadas um dia. Ele se sentiria ultrajado
ao se inteirar do tratamento dispensado à filha pelos irmãos de um vizinho. Não seria de
se espantar que procurasse o rei Henrique e demandasse as cabeças dos rapazes.
— Ainda deve estar chovendo — comentou Edyth em voz suave e triste.
Sentada à mesa, ela passava o lenço úmido pelos olhos. Compadecida, Lillis a
observou. Pobre Edyth! Que experiência terrível para ela. Tinha passado parte da tarde
tentando consola-Ia. Convivia com a criada desde a infância e conhecia bem a sua
natureza tímida e assustadiça.
— Ah, deve sim. Essa chuva deixa o cômodo mais frio e úmido — disse Lillis
aproximando-se e pondo as mãos nos seus ombros. — Não creio que fiquemos aqui por
muito mais tempo. Alguém virá nos buscar.
— Você acha mesmo? — perguntou Edyth, com uma ponta de esperança.
— Claro. Temos a impressão de estar aqui há muito tempo porque não podemos
verificar as horas — Lillis afirmou sem acreditar nas próprias palavras.
— Você viu como as pessoas nos olharam quando atravessamos a vila? —
perguntou a criada com voz trêmula.
Elas não tinham comentado sobre o que lhes acontecera, exceto o comportamento
inacreditável dos gêmeos.
— Vi, sim. Estranho. Todos nos olhavam com expressão de ódio. Deus sabe que
não tinham razão para isso. Lillis fez uma pausa e, depois, continuou pensativa:
— Se ao menos soubéssemos onde estamos. Que tipo de lugar é este que permite
aos adolescentes vagar pelas estradas e trazer prisioneiros para este cômodo imundo?
— Muito estranho — comentou Edyth. — Mas o castelo está bem conservado. Por
onde passamos tudo estava limpo e em ordem.
— Também notei isso, embora não tivesse muito tempo para observar detalhes. Tive
a impressão de que o castelo é muito bem dirigido. Mas não posso entender como pes-
soas responsáveis permitem que algo como isso aconteça. É muito estranho.
Sob as mãos, sentiu a tensão da criada.
— Ai, Lillis, não devíamos ter deixado o convento. Foi muita ousadia viajar com
apenas dois guardas.
Edyth recomeçou a chorar, e Lillis tentou acalma-Ia. Não teve muito tempo, pois
ouviu passos no corredor e viu luz sob a porta. Assustada, a criada aquietou-se, e ela
tentou manter o medo sob controle. De cabeça erguida e ainda com as mãos nos ombros
da outra, murmurou enquanto a chave girava na fechadura:
— Coragem, Edyth, coragem.
Um demônio passou pela porta para cumprimenta-Ias. Pelo menos, foi essa a sua
impressão. Tratava-se de um homem grande, escuro e portando armadura. O rosto
continuou na sombra quando ele deu alguns passos para dentro do aposento. Estava tão
molhado que a água pingava à sua volta, o que lhe aumentava o aspecto estranho.
Tremendo de medo e repulsa, Lillis o viu se aproximar. Parecia estar vendo um fantasma
e, depois do dia angustiante, não se surpreenderia se ele se apresentasse como tal.
Sentiu Edyth encolher-se e apertou-lhe os ombros. Foi com uma ponta de alívio que
o estranho falou primeiro, pois ela havia perdido a voz.
— Quem é a senhora?
Lillis estremeceu com a aspereza da indagação.
— Quem é o senhor? — indagou em voz trêmula.
— Sou o senhor deste castelo — respondeu o fantasma cuja imagem começava a
se assemelhar à de um homem.
— Ah! — foi só o que Lillis conseguiu exclamar no primeiro instante. Então aquele
era o homem por quem esperava havia tantas horas. Sem dúvida, amedrontador. Porém,
mais dona de si mesma, prosseguiu: — Senhor, sou Lillis Ryon de Wellewyn, e esta é a
minha companheira, Edyth Lielyn. Lamento informá-Io que seus irmãos cometeram um
grande erro.
Pela primeira vez, ela viu que outras pessoas tinham entrado no aposento, mas
mantinham-se junto à porta. O homem, entretanto, chegou mais perto, tornando-se mais
humano sob a luz da vela.
— Seu pai é Jaward, senhor de Wellewyn? — indagou, encarando-a.
Lillis notou-lhe a expressão cansada, mas não podia distinguir se era jovem ou
velho.
— É sim — respondeu de cabeça erguida.
Foi difícil ler-lhe a reação à resposta. Com firmeza, ele a fitou bem dentro dos olhos,
e Lillis o encarou sem conseguir pensar em algo para dizer. Esse comportamento dele
era, além de imprevisível, muito impróprio. O homem deveria estar curvado a seus pés,
implorando-lhe perdão pelo tratamento dispensado a ela e a Edyth ali no castelo. No
entanto, observava-a como se tentasse decidir que tipo de animal tinha à frente.
Aqueles que também haviam entrado no aposento, com os rostos mal iluminados
pela luz de um tocheiro, postaram-se atrás dele. Lillis surpreendeu-se ao ver uma senhora
idosa no grupo.
— Meu senhor... — Lillis começou, mas parou de maneira abrupta ao reconhecer os
gêmeos, com os braços cruzados no peito e sorriso de satisfação.
— Vocês dois! — esbravejou, apontando-Ihes o dedo. — Seus demônios atrevidos e
miseráveis! — Voltou a olhar para o senhor do castelo que já não mais a observava com
expressão perscrutadora, e sim estupefata. Em voz enérgica, queixou-se: — Meu senhor,
esses dois desgraçados nos atacaram na estrada hoje de manhã, a mim e à minha
criada, e nos trouxeram à força para cá. Eles nos mantiveram trancadas o dia inteiro
neste aposento imundo e não foram capazes de nos trazer água e alimento. Tenho medo
de pensar no que fizeram aos meus dois guardas.
— Eles estão bem. Sir Alan os mantém sob vigilância no alojamento dos homens —
um dos rapazes informou, irritado.
— Nesse caso, eles devem ter recebido melhor tratamento do que nós. Vocês não
se preocuparam com as duas mulheres que deixaram presas o dia inteiro neste lugar
horroroso? Não lhes passou pela cabeça que deveríamos estar com frio e com fome?
Os gêmeos não responderam, mas o senhor do castelo manifestou-se em voz
calma:
— Tem toda razão em sua queixa, minha senhora. O tratamento dispensado por
meus irmãos a ambas foi imperdoável. Garanto-lhes que eles serão castigados.
— Mas, Alex! — protestou um dos rapazes.
— Quieto! — ordenou o homem, com severidade, provocando silêncio absoluto.
Virou-se para Lillis e prosseguiu em tom mais ameno: — Peço que a senhora e a sua
criada nos perdoem. Infelizmente, só retomei ao castelo há instantes. Se houvesse
chegado antes, as senhoras teriam sido libertadas mais cedo. — Apontou para a matrona
gorducha atrás dele e continuou: — Minha tia e as outras pessoas do castelo só ficaram
sabendo da sua presença aqui agora a pouco, após a minha chegada. Se ela tivesse
conhecimento do fato, minha senhora, o seu tratamento teria sido bem diferente. Peço
que acredite em mim.
— Alimentamos dúvidas a seu respeito, meu senhor.
— Muito compreensível, mas a situação será corrigida, prometo — disse ele,
baixando a cabeça. — As senhoras serão levadas a um aposento adequado, onde
passarão a noite, e todas as suas necessidades serão atendidas imediatamente. Amanhã
cedo, veremos o que poderá ser feito.
— Agradeço muitíssimo, meu senhor, mas isso não será necessário. Peço apenas
que me devolva os meus dois guardas e as nossas montarias para que possamos ir
embora.
Ele a fitou com firmeza.
— Lamento, mas a senhora não poderá ir embora agora à noite. Não se preocupe
com os seus guardas. O conforto deles será levado em consideração tanto quanto o seu.
— Não — contestou Lillis com a mesma inflexibilidade. — Isso não me satisfaz.
Partiremos agora à noite. Por favor, mande selar as nossas montarias e nos devolver a
bagagem.
O ar exalado por ele soou como um suspiro desanimado.
— Não pode ir embora esta noite, minha senhora. O vento ruge como o Demônio em
pessoa, e a chuva cai a cântaros. Seria desumano de minha parte permitir que qualquer
mulher enfrentasse tempo semelhante, ainda mais na escuridão. — Num tom mais
persuasivo, acrescentou: — Vamos, aceite a minha hospitalidade e, amanhã cedo,
conversaremos.
Lillis tentou controlar-se e, numa voz calma e cordata, insistiu:
— Meu senhor, sinto-me grata por sua consideração, mas, por favor, não se
preocupe com nosso bem-estar. De fato, a inclemência do tempo é uma inconveniência,
mas preferimos enfrenta-Ia a ter de gozar de sua bondosa hospitalidade. Já usufruímos
dela o suficiente durante o dia.
Ouviu-se uma exclamação seguida de palavras estridentes.
— Alexander! Vai deixar que se dirija a você dessa forma arrogante? Ela está sendo
rude e agressiva.
— Quieta, tia Leta — ordenou ele em voz baixa.
Foi obedecido no mesmo instante, e o silêncio tornou-se tão profundo que Lillis teve
a impressão de poder ouvir as batidas descompassadas do próprio coração.
— Minha senhora de Wellewyn, vamos chegar a um entendimento. Eu lhe garanto
que não partirão esta noite — disse ele com suavidade enervante.
— Partiremos, sim! — teimou ela.
— Não, de forma alguma.
Lillis o entendeu. Pelo tom de voz percebeu o que ele queria dizer exatamente. Elas
eram prisioneiras. Quis ceder ao medo que a invadia, mas resistiu. Jamais se deixaria
dominar por essa reação. De cabeça erguida, demandou:
— Qual é o seu nome, senhor, e que lugar é este? Ele não escondeu a surpresa,
como se Lillis devesse saber onde se encontrava e com quem falava.
— Aqui é Gyer, minha senhora, e eu sou Alexander Baldwin, o senhor de Gyer.
As palavras foram pronunciadas com tanta energia e expectativa que Lillis sentiu-se
mais inquieta. Ele observava-a como se esperasse algum tipo de reação e mostrou-se
insatisfeito por não notá-Ia.
— Percebo que não conhece Gyer.
— Estou fora de casa há dez anos, Alexander de Gyer, mas tenho uma leve
lembrança, da infância, de um lugar com esse nome. Não é um feudo vizinho de
Wellewyn?
Ele não respondeu e dirigiu-se às pessoas à volta: — Elas ficarão no quarto de
mamãe. Tia Leta, mande os criados levar-Ihes alimento e bebida. Diga-Ihes para atender
qualquer pedido destas senhoras.
— No quarto de sua mãe, Alexander?! Isto não está certo!
— Será como determinei — disse ele em tom autoritário. — Podem ir. Willem e eu
as acompanharemos até o quarto. — Dirigiu-se aos gêmeos: — Vocês dois me aguardem
lá embaixo.
A voz imperativa fez com que todos se afastassem depressa. Lillis e Edyth viram-se
sozinhas com Alexander de Gyer e o homem chamado Willem.
— As senhoras irão conosco — o primeiro declarou sem se importar em ser
indelicado.
Edyth sacudiu a cabeça e agarrou as mãos de Lillis.
— Ai, não, minha senhora — balbuciou entre soluços. — Eles vão nos fazer mal!
Vão nos matar! Lillis curvou-se e passou os braços pelo corpo trêmulo da companheira.
— Não, minha querida, eles não farão uma coisa dessas. Vão apenas nos levar para
um quarto muito bom onde mataremos a fome e, depois, descansaremos — afirmou em
voz suave ao mesmo tempo em que dirigia um olhar fuzilante ao senhor de Gyer, que
concordou com um gesto de cabeça.
— Estou mesmo com muita fome — queixou-se Edyth enquanto arrastava os pés
em direção à porta aberta.
O homem chamado Willem carregava um tocheiro para iluminar o caminho, porém,
no primeiro degrau da escada, a criada tropeçou. Lillis amparou-a e surpreendeu-se ao
ver o dono do castelo também estender a mão.
— Deixe-me ajudá-Ia — disse ele oferecendo apoio à mulher mais velha.
Foi um erro. Quando Edyth percebeu de quem era a mão que lhe segurava o braço,
não escondeu o pavor sentido e encolheu-se de encontro à patroa.
— Não a toque! — advertiu Lillis, aconchegando a criada, em prantos, entre os
braços.
Parado na escada, Alexander de Gyer a encarou sem saber o que fazer.
— É Cavaleiro, Alexander de Gyer?
— Sou — respondeu ele, chocado.
— Nesse caso, espero que reze bastante a Deus esta noite. Ele entendeu o que ela
insinuava, mas não respondeu.
Virou-se e continuou a guia-Ias escada abaixo.
Levaram algum tempo para alcançar o destino. Lillis tinha de ajudar Edyth a descer
cada degrau dos vários lances de escada. Finalmente, pararam diante de uma porta que
dava entrada para um quarto lindo, tão limpo e em ordem quanto o outro era sujo e
desarrumado. Lillis levou Edyth para dentro e sentiu-se aliviada ao ver o fogo crepitando
na lareira e muitas velas acesas.
— Alguém virá para atender as suas necessidades disse Alexander de Gyer.
Então, Lillis teve a oportunidade de vê-Io bem. Era muito diferente na claridade,
maior e mais temível. Estava molhado e, obviamente, cansado. A armadura pesada
parecia incomodá-Io. Era também mais jovem do que ela havia calculado no início.
— Falaremos amanhã de manhã, minha senhora. Desejo-lhe uma boa noite.
Curvando-se ligeiramente, ele virou-se e foi embora, seguido pelo homem chamado
Willem. A porta fechou-se, e Lillis ouviu o ruído inequívoco da chave girando na
fechadura.
CAPÍTULO II
— Ora, aí está você — disse Willem ao mostrar o rosto pela porta entreaberta. —
Quando não apareceu para tomar o café da manhã, eu deveria saber que o encontraria
aqui.
Sentado à escrivaninha, Alexander levantou a cabeça e ofereceu um meio sorriso ao
irmão.
— Entre e venha me fazer companhia — convidou, apontando para uma cadeira. —
Dormi mal esta noite e acordei mais cedo do que de costume. A cozinheira me serviu pão
e queijo lá na cozinha.
De cenho carregado, Willem atravessou o aposento.
— Você está com ar cansado, Alex. Essa questão com Wellewyn o vem
desgastando, e imagino que as nossas hóspedes o deixaram preocupado. Já resolveu o
que vai fazer com elas?
Alexander sacudiu a cabeça num gesto negativo e passou uma das mãos pelos
olhos cansados. Dormido mal? Na verdade, não pegara no sono a noite inteira. Chegar a
casa e descobrir que Lillis de Wellewyn encontrava-se presa no castelo o tinha deixado
em estado de choque. Havia passado a noite em claro, com o olhar perdido nas sombras,
imaginando o que deveria fazer com ela. Tinha várias opções, mas nenhuma delas muito
boa.
Poderia escrever a Jaward informando-o de que a filha estava presa em Gyer. A
carta seria redigida de forma a não insinuar ameaças, ou deixando claro que, se ele não
lhe atendesse às exigências, a filha única sofreria as conseqüências. O problema com a
segunda alternativa era o fato de Jaward saber que, provavelmente, Alexander não
possuía um temperamento irascível e seria incapaz de fazer mal a uma mulher. A primeira
também não era muito promissora. O pai da prisioneira poderia procurar o rei Henrique e
pedir auxílio para libertar a filha. Ter Lillis de Wellewyn em seu poder era, sem dúvida,
algo muito importante para Alexander conseguir o que desejava do velho vizinho.
Contudo, ele não sabia ainda como utilizar a nova arma de que dispunha.
— Não, eu ainda não decidi o que vou fazer — disse, reclinando-se no encosto da
cadeira. — Dei instruções a tia Leta para trazer Lillis e sua companheira até aqui tão logo
elas acabassem de tomar o café da manhã. Estou aguardando-as. Pensei em verificar o
que ela sabe sobre as atividades do pai. Qualquer informação será bem-vinda. Isso, caso
tenha alguma e esteja disposta a dá-Ia.
Willem manteve-se calado por uns instantes e, depois, comentou:
— Ela é lindíssima, não acha?
Alexander relanceou o olhar pelo irmão, mais novo do que ele, e o viu observando
os joelhos como se fossem algo importante. Sorriu ao notar-lhe as faces vermelhas.
Willem era um dos homens mais corajosos que conhecia, especialmente no campo de
batalha; contudo, não vencia a timidez quando se tratava de mulheres. O simples fato de
mencionar a beleza de uma o fazia enrubescer.
— Ah, é sim. Ela é muito bonita. Conhecendo Jaward, eu não esperava por isso.
Mesmo sem levar o vizinho em consideração, sua surpresa não conhecera limites ao
entrar no depósito na noite anterior e deparar-se com uma mulher como jamais vira igual.
Ela era, certamente, a mais alta que conhecia e também tinha os cabelos do loiro mais
claro que se poderia imaginar. Sob a luz da vela, ela parecia um anjo resplandecente. Até
as sobrancelhas eram loiras, ressaltando o azul dos olhos, cuja tonalidade clara
Alexander notara, apesar da penumbra. Nas feições delicadas, destacavam-se os ossos
malares altos, o nariz bem-feito e os lábios cheios, que davam ênfase à alvura da pele.
Lembrou-se das mãos fortes, de dedos longos e esguios. Elas sugeriam a capacidade de
provocar dor imensa, ou prazer.
— Você já resolveu, pelo menos, o castigo dos gêmeos? Eles já estão na vila
vangloriando-se do que fizeram para quem quiser ouvi-Ios. Sabia disso? — Willem
perguntou.
O suspiro profundo de Alexander revelou o cansaço profundo.
— Ninguém me contou, mas eu já imaginava. Ainda não me decidi como puni-Ios. A
maioria dos habitantes do castelo e da vila, desconfio, acha que eu deveria considerá-Ios
heróis e recompensá-Ios pelo ato de bravura. Se eu os castigar como merecem, uma
centena de vozes aborrecidas me encherão os ouvidos.
— Mas se não usar de energia, Hugh e Hugo passarão os dias atacando viajantes
na estrada e os trazendo como prisioneiros para Gyer — argumentou Willem.
— Eu sei, eu sei — garantiu Alexander, espalmando as mãos no ar num gesto de
frustração. — Mas o que posso fazer? Não importa o número ou tipo de castigos,
admoestações e esforços para que eles reconheçam os erros. Na verdade, Willem,
quando papai mimou esses dois, ele os estragou para o resto da vida. Às vezes penso se
todos nós não deveríamos admitir a realidade e nos conformar com ela da melhor
maneira possível.
— Poderíamos entregá-Ios a um senhor a fim de treiná-Ios nas artes marciais.
Assim, teríamos uns dois anos de tranqüilidade.
Alexander deixou escapar uma exclamação irritada.
— Ora, Willem, você sabe tão bem quanto eu que os gêmeos jamais conseguirão se
sagrar Cavaleiros. Entregá-Ios para alguém prepará-Ios com esse propósito seria uma
perda tola de tempo e esforço. Além disso, duvido que alguém os aceite.
— Você poderia oferecer um pagamento compensador e...
— De nada adiantaria — interrompeu Alexander. Mesmo se eu oferecesse todos os
recurso de que disponho, não seriam suficientes. Deus sabe que ninguém me pagaria o
bastante para arcar com trabalho semelhante e, se não fosse pela responsabilidade de
família, eu não cuidaria desses dois. Você não ignora que papai me fez prometer jamais
forçar Hugh e Hugo a fazer o que não quisessem. Embora me arrependa amargamente
por ter assumido tal compromisso, não posso me esquivar dele.
A porta do aposento abriu-se de maneira tão abrupta que os dois homens
assustaram-se. Lillis de Wellewyn, encantadora num adorável vestido azul-claro, da
mesma tonalidade dos olhos, irrompeu sala adentro sem ser convidada. Tia Leta, incapaz
de acompanhar os passos rápidos da jovem alta, surgiu pouco depois. Os dois irmãos
levantaram-se depressa.
De cabeça erguida, Lillis parou diante de ambos e abriu a boca para falar. Mas, com
expressão de espanto, tornou a fecha-Ia para, em seguida, olhar de um para o outro
várias vezes e com as sobrancelhas franzidas. Finalmente, deixou o olhar fixar-se em
Alexander. Imóvel, ele permitiu que Lillis o observasse da cabeça aos pés. Quando ela o
encarou novamente, sua expressão tinha mudado.
— Meu senhor... — começou com voz enérgica, porém, foi interrompida.
— Nunca vi comportamento mais grosseiro em minha vida! — exclamou tia Leta,
indignada. — Ela se negou a me deixar vir na frente e nem esperou por mim. Mal
consegui explicar-lhe o caminho a seguir. Imagina-se que tenha sido criada como pagã, e
não como uma dama cristã!
Lillis de Wellewyn não desviou o olhar de Alexander, e ele notou-lhe o leve sorriso
divertido que desapareceu logo.
— Obrigado, tia Leta — disse ele, dispensando-a com um gesto.
Ela, entretanto, bateu o pé a fim de demonstrar o desagrado, forçando-o a fitá-Ia e a
repetir:
— Obrigado, tia Leta.
Furiosa, ela apertou os lábios e deixou a sala.
Não ouvindo, como esperava, o pedido de Willem para se retirar, Alexander virou-se
para o irmão. Perplexo, viu-o olhando, embasbacado, para a criatura linda diante deles.
— Minha senhora, espero que tenha passado bem à noite — disse, voltando a fitá-Ia
e reconhecendo, novamente, sua grande beleza. De fato, ela era fascinante, mesmo
quando estava brava. — Quero apresentar-lhe o meu irmão, sir Willem Baldwin. Lamento
não haver tido tempo, ontem à noite, para tais formalidades.
Para a surpresa de Alexander, os olhos de Lillis perderam a hostilidade, enquanto
ela, com um sorriso cativante, dirigia-se a Willem:
— Eu e a minha criada imaginamos quem seria, embora soubéssemos que se
chamava Willem. Muito prazer em conhecê-Io.
Willem corou até a raiz dos cabelos. A muito custo gaguejou:
— Sin... sinto-me honrado, mi... minha senhora.
— Obrigada, sir Willem — agradeceu Lillis voltando, a assumir a expressão
agressiva ao encarar Alexander. — Temos alguns assuntos para discutir, Alexander de
Gyer — declarou como se houvesse sugerido a reunião e sem um pingo da amabilidade
dispensada a Willem.
— Na verdade, temos — concordou Alexander, tomado por um estranho e vago
ciúme do irmão. Indicou a cadeira desocupada por Willem e convidou: — Por favor, sente-
se, minha senhora. Willem, você me faria o favor de atender os arrendatários esta manhã
e ver quais são os seus problemas?
Este continuava a admirar Lillis, mas as palavras do irmão o trouxeram de volta à
realidade.
— Claro, claro, Alexander. Cuido disso para você com prazer.
Meio desajeitado, ele curvou-se para Lillis e foi embora quase correndo.
Após sua saída, Alexander gastou uns instantes para reunir as idéias. Detestava a
posição em que se encontrava. Como informar uma pessoa que ela era sua prisioneira?
— Espero que tenha achado as acomodações confortáveis, minha senhora.
— Muito — respondeu Lillis com frieza.
— E como está a sua criada agora de manhã? Se não me engano, chama-se Edyth,
certo?
— Sim. Ela está bem, apesar de assustada e inquieta.
Alexander sacudiu a cabeça. Então agora ele passara a provocar medo a senhoras
idosas e frágeis. Uma sensação desconhecida o incomodava, e ele imaginou como iria se
desincumbir da obrigação desagradável. Havia entendido Lillis de Wellewyn muito bem
quando ela lhe perguntara se era Cavaleiro. Ao ser sagrado como tal, tinha jurado servir a
Deus, defender o país e proteger e respeitar as mulheres. Sem dúvida, estava falhando
nesse terceiro item. Todavia, evitar que Gyer entrasse em guerra valia a quebra de todos
os seus juramentos.
— Lamento muitíssimo. Garanto-lhe que não foi minha intenção assustar nenhuma
das duas. Por favor, acredite que ambas serão tratadas com respeito e consideração
enquanto estiverem aqui.
— Muito amável da sua parte, meu senhor — respondeu ela em tom gélido. — Mas,
como lhe disse ontem à noite, queremos ir embora de Gyer o mais depressa possível. Já
usufruímos o suficiente da sua hospitalidade.
Alexander escolheu as palavras com o máximo cuidado:
— Mais uma vez, tenho de dizer que sinto muito. Torna-se imperioso que
permaneçam em Gyer por algum tempo.
Ele estava preparado para uma reação tipicamente feminina com choro, gritos e
lamentações. Porém, não esperava pela atitude de Lillis de Wellewyn. Ela o observou
com frieza e sem nenhum sinal de emoção.
— Tenho a impressão de que é um homem razoável, Alexander de Gyer —
começou Lillis num tom menos gélido. — Naturalmente, não tenho certeza absoluta, mas
não acho que seja louco ou intrinsecamente mau. Portanto, deve haver um motivo para
estar agindo dessa forma. Gostaria muito, meu senhor, que me explicasse as suas
razões.
Alexander ficou quase tão perplexo com a atitude calma quanto com a beleza de
Lillis. Qualquer outra mulher do seu relacionamento estaria agora, aos seus pés, numa
poça de lágrimas. Mas se Lillis de Wellewyn podia se comportar de maneira sensata e
razoável, tanto melhor para todos.
— Segundo entendi ontem à noite, a senhora está ausente de casa há dez anos.
Baseado nisso, imagino que não esteja ciente das atividades recentes do seu pai. Estou
certo?
— Meu pai?! — ela exclamou, surpresa. — Não, não faço idéia do que se refere.
Mesmo se eu estivesse morando em casa, poderia muito bem não estar a par das
atividades dele, pois meu pai foi sempre muito reservado quanto à direção da
propriedade. Ele cometeu algum erro?
Alexander observou-a por um instante antes de responder:
— Seis meses atrás, seu pai construiu uma represa no rio Eel, cortando o
suprimento de água de Gyer. Não sei quais foram as razões dele, apenas que fez isso e
se nega a negociar comigo sobre a questão. Como pode calcular, o meu povo vem
sofrendo muito com a situação. A maioria das colheitas se perdeu e, agora, todos se
afligem sem saber como sobreviverão ao inverno sem alimentação. Sou um homem rico,
minha senhora, e não hesitarei em garantir a subsistência dos meus vassalos e
arrendatários, mas isso não resolverá o problema das futuras colheitas. De uma forma ou
de outra, através de um acordo pacífico ou de guerra, a represa construída pelo seu pai
terá de vir abaixo. A perspectiva de luta não me agrada nem um pouco, porém, se a
intransigência do seu pai persistir, não haverá outra solução.
Enquanto ele falava, Lillis se tornara imóvel, com os olhos arregalados. Fitava-o com
expressão de choque absoluto.
— Eu não fazia idéia — murmurou, implorando, com o olhar, que acreditasse nela.
Alexander não duvidou da sua sinceridade. Como se falasse consigo mesma, ela
continuou: — Agora entendo por que o povo de Gyer nos olhava com tanta raiva ontem.
As pessoas devem ter descoberto, pelas cores da libré dos guardas, que éramos de
Wellewyn. Levando em consideração o que meu pai fez, eu não as culpo. Mas por que ele
fez isso?
— Não sei. Esperava que a senhora pudesse esclarecer a questão, mas vejo que
sabe tanto quanto eu. O seu pai mostrou ser de uma teimosia sem limites. Tentei de tudo
para convencê-Io a ceder, desde ofertas financeiras até ameaças. Nada adiantou. Ontem,
numa última tentativa, fui procurá-Io em Wellewyn. Ele, praticamente, me atirou fora
daquele chiqueiro horrível que se atreve a chamar de castelo.
Lillis franziu a testa, e Alexander, tarde demais, percebeu que a tinha ofendido ao
referir-se daquela forma à sua casa.
— Por favor, me perdoe minha senhora. Fui muito indelicado.
— Compreendo, Alexander de Gyer. O senhor está muito aborrecido e tem toda a
razão. O que o meu pai fez foi imperdoável — afirmou e, ainda com a testa franzida,
desviou o olhar.
Observando-lhe a cabeça baixa, Alexander sentiu uma vontade imensa de consola-
Ia. Ela mostrava-se verdadeiramente triste com o comportamento do pai e seria cruel da
sua parte transferir a raiva que sentia por Jaward para a filha inocente.
— A culpa não é sua, Lillis de Wellewyn. Acredito que ignorasse as atividades do
seu pai.
Ela voltou a fitá-lo provocando-lhe uma curiosa agitação.
— Eu não sabia, juro. Mas, agora que fui informada, prometo fazer de tudo para
derrubar a represa. Não lhe ocorreu pedir a interferência do rei?
— Aí está o ponto forte do esquema de Jaward. A construção da represa foi
perfeitamente legal por estar nas terras dele, ou melhor, nas suas. Serei eu quem atrairá
a irritação do rei, caso entre em Wellewyn e destrua a barragem. Serei acusado de
invasor de propriedade.
Lillis mostrou-se confusa.
— Por que se refere às terras como sendo minhas? Parte alguma de Wellewyn me
pertence.
— Mas pertencerá, minha senhora, quando se casar no próximo mês. Seu pai teve o
cuidado de me explicar que, mesmo se quisesse, não poderia vender a terra onde fica a
represa, pois ela faz parte do seu dote. O único homem que terá direito a essa parte é o
seu futuro marido, o senhor de Dunsted.
— Nesse caso, porei a represa abaixo quando me casar — declarou ela em tom
meio apreensivo.
A cada nova descoberta, seu constrangimento aumentava, notou Alexander. Por sua
reação, via-se que ela ignorava possuir parte das terras.
— Essa solução seria a ideal. Contudo, o seu pai deixou bem claro ter sido ele quem
escolhera o seu noivo. Ele e Jason de Burgh têm um relacionamento excelente. A
senhora sabe que Dunsted fica bem ao sul de Gyer, não sabe?
— Não, eu não sabia. O meu pai, quando me escreveu sobre o casamento, disse
que eu moraria perto de Wellewyn. Essa foi uma das razões para eu concordar com a
união. O senhor não é amigo do meu futuro marido?
Irônico, Alexander riu.
— Nem um pouco. Só Deus sabe como tentei viver em bons termos com o homem.
Existe uma faixa de terra na divisa entre Dunsted e Gyer que o povo dos dois feudos
disputa há anos. A terra pertence a Gyer, mas Jason de Burgh e os seus vassalos teimam
em não aceitar isso. Eles fazem ataques de surpresa, e o meu povo revida da mesma
forma, apesar dos meus esforços para impedi-Io. Inúmeras vezes, tentei me encontrar
com De Burgh a fim de entrarmos num acordo, mas ele se recusa a falar comigo. Em
minha opinião, o seu pai o convenceu de que uma guerra com Gyer seria lucrativa para
ambos, porém, isso é loucura.
Exausto, Alexander voltou a esfregar os olhos.
— Terrível — murmurou — já desconfiava da sua má vontade para com as outras
pessoas — disse ela em tom de culpa.
Alexander sentiu-se tentado a protestar contra o termo ameno em relação a um
demônio como Jaward. Mas, como a filha do sujeito já se mostrava tão infeliz, manteve-se
em silêncio.
— Compreendo, meu senhor, por que deseja me manter aqui e concordo que a
guerra deve ser evitada a todo custo. Mas suplico que me libere e aos meus
companheiros. Juro que falarei com o meu pai e noivo. A represa será destruí da nem que
eu tenha de fazê-lo com as próprias mãos.
— Não — negou ele em voz suave. — Não acredito que o seu pai e Jason de Burgh
mudem de idéia por causa de um pedido seu.
Lillis levantou-se com as mãos crispadas e caídas ao longo do corpo.
— Mas eu lhe prometo que a represa será destruída. Juro, por Deus e por tudo
quanto é sagrado, que honrarei essa promessa! Só peço que confie em mim. O senhor
não terá razão para se arrepender.
Alexander levantou-se também, mas apenas por uma questão de boas maneiras.
Admirou-se mais uma vez com a altura de Lillis. Era agradável não ter de curvar-se para
falar com ela.
— Acredito no seu esforço para cumprir a promessa, mas não acredito no seu
sucesso. Passei os últimos seis meses fazendo tudo o que estava ao meu alcance para
convencer o seu pai a desmanchar a represa. Ele apenas riu de mim. Ontem, ele me
garantiu que nada o faria mudar de idéia.
— Ele me dará ouvidos! Insistiu ela. Não sei por que agiu dessa forma, porém ele
nunca me negou nada que eu lhe pedisse. Sou sua filha única e ele me ama.
Alexander arqueou as sobrancelhas.
— Ele a ama tanto que a manteve longe de casa por mais de dez anos...
A expressão de choque e mágoa de Lillis foi tão acentuada que Alexander
arrependeu-se amargamente das palavras descuidadas. Ela o fitou como se tivesse sido
estapeada.
— Minha senhora — começou ele em tom de desculpa, mas foi interrompido.
— Ele não me mandou embora. Morei todos esses anos no convento de Tynedale a
fim de aprender a ler, escrever e fazer contas. O meu pai me visitava com freqüência e
me escrevia sempre — declarou ela em voz trêmula.
Situação desagradável. Ela dava a impressão de estar tentando convencer mais a si
mesma do que a ele, percebeu Alexander.
— Minha senhora — recomeçou, porém ela não estava disposta a ouvir-lhe as
desculpas.
— Afirmo que ele me dará ouvidos.
— Talvez sim, talvez não. Essa segunda hipótese é a mais provável. A senhora já
admitiu que o seu pai nunca lhe confiou sua maneira de administrar Wellewyn. Nesse
caso, não há razão para se acreditar que ele passe a dar explicaçõe sobre suas futuras
terras. Afirma que ele a ama. Mas que tipo de homem ama a filha e a mantém longe de si
por dez anos? Ele nunca a quis ao seu lado mesmo no Natal?
Lillis enrubesceu
— Isso não lhe diz respeito, Alexander de Gyer, e nada tem a ver com o assunto em
questão. Dou-lhe minha palavra de honra que a represa será destruída e juro não faltar a
ele. O senhor nos deixará ir, ou não?
— Já lhe disse que não e por quê. — Respondeu Alexander.
Lillis apertou os lábios e atirou-se na cadeira. Ele também se sentou, certo de que,
então, teria de enfrentar-lhe as lágrimas de protesto.
— O senhor permitirá, pelo menos que eu escreva ao meu pai pedindo-lhe que
atenda as suas exigências? Ele terá mais boa vontade se o pedido partir de mim.
Mais uma vez, não houve lamentações chorosas, constatou Alexander, aliviado, ao
apanhar a pena num gesto descuidado.
— Ainda não resolvi se vou, ou não, escrever ao seu pai. Tenho de pensar no
assunto com cuidado.
— Mas tem de escrever a ele! — declarou Lillis, inclinando-se para frente. — O meu
pai não tem passado bem de saúde e me esperava há dois dias. Deve estar aflitíssimo. O
senhor precisa informá-Io, pelo menos, de que estou bem.
Alexander não conseguiu dominar a raiva repentina.
— A senhora me perdoe, mas não me importo nem um pouco se o seu pai está
preocupado, ou não. Ele nos deu razões de sobra para não ser tratado com consideração.
A maneira rude de falar a fez recostar-se novamente na cadeira, como se quisesse
estar bem longe dali. Alexander arrependeu-se da rispidez. Em voz suave disse:
— Por favor, me perdoe. Tentar fazer um acordo com o seu pai me desgastou
bastante. Um grande número dos meus vassalos trabalhou muito, em vão, para salvar as
colheitas. A perspectiva de mandar que se preparem para guerrear contra Wellewyn e
Dunsted, ao mesmo tempo, me deixa doente.
Ela não respondeu, e Alexander viu um olhar de simpatia inesperada na fIlha do seu
inimigo.
— Compreendo a situação difícil em que se encontra, Alexander de Gyer. Mas do
que adiantará nos manter aqui? Se não nos libertar, certamente haverá guerra. O meu
pai pedirá a ajuda de Jason de Burgh, e os homens de ambos, embora poucos, invadirão
suas terras exigindo nossa libertação.
— Eu sei. Por isso mesmo, preciso refletir com cuidado. Em caso de guerra, tenho
certeza de quem será o vencedor. Os homens do seu pai e do seu noivo jamais
conseguirão enfrentar a força do meu exército. Todavia, não desejo matar homem algum
sem necessidade. Porém, estes não são detalhes com os quais deva se preocupar,
minha senhora. Hei de me esforçar ao máximo para que ninguém venha a sofrer —
prometeu, com um sorriso encorajador, e antes de acrescentar: — Agora que já está
ciente dos motivos de sua presença aqui, vou tentar tomar uma decisão o mais depressa
possível. Até então, a senhora, a sua criada e os seus guardas serão tratados como
meus hóspedes. Naturalmente, não poderão percorrer o castelo e sair dele sem alguém
para vigiá-los. Tem algum pedido a me fazer em relação ao seu conforto?
Em silêncio, Lillis o encarou por um longo tempo, o suficiente para deixá-lo
constrangido e para perceber-lhe o orgulho e a determinação.
— A minha criada e eu faremos as nossas refeições no quarto. Como suas
prisioneiras, não nos sentiríamos à vontade em nos sentar à mesa com a sua família.
Gostaríamos também de freqüentar a capela de manhã. O castelo de Gyer tem uma?
O tom irônico o fez sorrir. Ele era um dos homens mais ricos da Inglaterra, o que ela
já deveria ter calculado pelo tamanho e fausto do castelo. Naturalmente, havia uma
capela, o que ela também poderia imaginar.
— Sim, minha senhora — respondeu ele com uma ponta de sarcasmo. — Fica logo
fora da muralha interna. Terei prazer em acompanhá-Ias à missa matinal.
— Gentileza da sua parte, meu senhor. Recebemos, agora de manhã, a nossa
bagagem e já podemos nos ocupar bordando. Entretanto, o quarto não recebe muita luz,
e isso dificulta o trabalho. Poderia nos indicar um outro lugar onde houvesse mais
claridade?
Pedido fácil de ser atendido, pensou Alexander.
— Pois não. As mulheres do castelo bordam num canto do salão que recebe sol
quase o dia inteiro. Ele fica perto da lareira, o que garante o aquecimento. Sem dúvida, a
minha tia e a minha noiva terão prazer em contar com a sua companhia lá.
— Sua noiva?!
— Lady Bárbara Baldwin — respondeu ele, notando-lhe a surpresa. — A senhora
ainda não teve a oportunidade de conhecer o resto da família. Ela é uma prima distante e
vive no castelo sob a minha proteção. O irmão também.
Lillis manteve-se calada por um instante e, depois, falou com voz pausada:
— Conhecer as outras pessoas de sua família é um prazer que não me atrai, meu
senhor. Seu irmão Willem é simpático, mas sua tia e os gêmeos...
— Sim, eu sei — interrompeu ele com voz irada. Os gêmeos não passam de uns
demônios irresponsáveis, como a senhora pôde constatar ao conhecê-Ios logo de início.
A nossa mãe morreu sete anos atrás, quando eles contavam oito. Desde então, fugiram
ao controle de qualquer um. Mesmo antes já eram os filhos prediletos do meu pai, que os
mimava além da conta. Depois do falecimento de mamãe, manteve-os sob proteção
absoluta, dando-Ihes inteira liberdade. Foi ele quem os transformou nas criaturas
indisciplinadas que a senhora conheceu. Após a sua morte, todas as minhas tentativas
para educá-Ios foram inúteis.
— Então, meu senhor de Gyer, a sua sorte causa pena. Algo na voz de Lillis
pôs Alexander na defensiva.
— Tentei educá-Ios, garanto.
— Não duvido, meu senhor. Bem, quanto aos meus guardas...
— Eu os vi hoje de manhã. Mudaram para um quarto melhor, embora
continuem sob vigilância. Deixei claro que eles poderão gozar de liberdade relativa,
mas supervisionada. Receberão as mesmas refeições que a senhora. Assim,
saberá que estão bem alimentados.
Dando a impressão de estar satisfeita, Lillis levantou-se.
— Muito bem. Gostaria de voltar para o quarto e informar a minha criada sobre a
situação. Passaremos o resto da manhã rezando pela melhor solução do problema, pois
já deve ter passado a hora da missa.
Ela falava como as freiras com quem tinha morado, refletiu Alexander.
— Por favor, minha senhora, não se preocupe enquanto estiver em Gyer. Juro que a
senhora e os seus companheiros serão tratados como pessoas da minha família.
Ela achou graça na declaração, pois sorriu e, depois, riu abertamente. O gesto a
tornou tão encantadora que Alexander quase perdeu a respiração.
— Meu senhor, espero que dê atenção às minhas palavras. Meus companheiros e
eu preferimos muito mais ser considerados prisioneiros do que membros da família
Baldwin.

CAPÍTULO III
Como Alexander, Lillis também tinha dormido mal aquela noite.
O quarto onde ela e Edyth estavam acomodadas era muito confortável e luxuoso, e
não se comparava com a simplicidade do que ocupavam no convento. Os móveis eram
finos, com entalhes delicados, e tapeçarias artísticas, com cenas românticas, cobriam as
paredes. Bem no centro do aposento ficava a cama imensa, com dossel de veludo cor de
vinho pendurado por argolas douradas. O colchão de penas, de maciez extraordinária,
provocara a hesitação tanto de Lillis quanto de Edyth antes de sentarem-se na cama. Os
que usavam no convento eram tão duros quanto o chão de pedra.
Logo no início, ao percorrer os olhos pelo cômodo, Lillis tinha percebido tratar-se de
um quarto de mulher, ou melhor, da senhora do castelo. Havia muitos detalhes femininos
que indicavam a posição da sua antiga dona. Escovas de cabos de prata e um pente de
marfim descansavam numa salva, também de prata, na mesa de toalete e diante do
imenso espelho de aço polido. Ao lado, ficavam frascos de cristal, contendo perfumes de
sândalo e de lilás, uma caixa de cedro para jóias e outra de filigrana de prata para pós de
maquiagem.
Mal tinham chegado ao quarto, criados começaram a entrar e a sair trazendo
bandejas de alimentos e bebidas.
Trouxeram ainda uma banheira de madeira, que colocaram diante da lareira, e
baldes de água fumegante. Eles trabalhavam num silêncio significativo, e nem uma vez
sequer dirigiram a palavra a Lillis e Edyth.
A comida e o vinho eram os mais saborosos que Lillis já havia experimentado. Isso,
sabia, não só porque estava morta de fome como também por estar acostumada à
alimentação frugal das freiras de Tynedale. Também tinha certeza de que o cardápio farto
de Gyer era bem superior ao que a esperava em Wellewyn, caso chegasse lá. O pai era
pobre e não podia pagar cozinheiras boas, nem iguarias finas.
— Como prisioneiras, estamos sendo muito bem alimentadas — comentara para
Edyth, que devorava peras em calda de vinho e passas.
Depois do jantar, elas haviam tomado banho na água que ainda se mantinha
Quente. Havia um sabonete com perfume de lavanda, e as duas se deliciaram com ele.
No convento, usavam sabão que recendia à gordura de carneiro com a qual era feito. A
novidade ajudou-as a relaxar.
Já envergando as camisolas, tiradas da bagagem, deitaram-se e admiraram,
novamente, a maciez do colchão. Pela respiração cadenciada de Edyth, Lillis percebeu
que a criada pegara no sono quase imediatamente. Ela, entretanto, preocupada com a
situação problemática, não conseguira dormir muito. E agora, pagava pelas conse-
qüências da noite de insônia.
Recostou-se na poltrona em que se sentava havia algum tempo e forçou-se a
manter os olhos abertos. O sol do meio-dia fIltrava-se pelas muitas janelas do salão onde
ela e Edyth passavam o tempo bordando. O calor do sol e o da lareira davam-lhe sono.
Pelas janelas, via trechos de um jardim lindo. Como gostaria de percorrê-lo para sentir o
perfume das flores e a brisa nas faces. Pela primeira vez na vida, via-se privada de
usufruir tal prazer. Sentia necessidade de respirar ar fresco e de pisar na terra fofa. Mas
dois guardas, em posição de alerta, mantinham-se a poucos passos e protestariam se ela
tentasse apreciar um pouco de liberdade. Alexander de Gyer tinha deixado claro que ela
não poderia deixar o castelo sem a companhia dele.
— Cuidado, minha querida — advertiu Edyth, chamando-lhe a atenção.
Sobressaltada, Lillis viu ter derrubado o bordado no chão. Embora este estivesse
limpíssimo, ela apanhou o trabalho e o acomodou no colo. Orgulhava-se muito dos seus
bordados para expô-Ios a qualquer risco. Com expressão divertida, observou as
mulheres, sentadas no outro lado do salão, desviar os olhares curiosos.
— Alexander disse que elas teriam prazer em nos receber aqui — comentou mais
para si mesma do que para Edyth.
— O que disse, minha querida? — perguntou a criada, levantando o olhar.
Lillis fez um gesto de cabeça para o grupo do outro lado.
— Elas. As mulheres do castelo de Gyer. Alexander me assegurou hoje de manhã
que nós seríamos bem recebidas por elas. Pelo jeito, aquelas senhoras só estão
interessadas na maledicência de tia Leta. Daqui, posso ver que ela diz umas poucas
palavras e olha para o nosso lado. Depois, desvia o olhar e recomeça. — Lillis espichou o
pescoço para ver melhor e contou sete mulheres, que falavam e bordavam quando não
as observavam. — Imagino qual delas é a noiva.
— Noiva de quem? Indagou Edyth. Lillis, não é delicado encará-Ias dessa maneira.
— Eu sei, Edyth. Mas se elas vão continuar a nos observar como se fôssemos seres
estranhos, podemos muito bem retribuir a amabilidade.
Edyth suspirou e recomeçou a bordar.
— Noiva de quem? Repetiu.
— Do senhor de Gyer. Ela deveria ser uma das mulheres a ter prazer em nos
receber aqui. Eles são primos.
— Por Deus, você descobriu muita coisa nesse seu encontro com o homem hoje de
manhã.
Sem dúvida havia, refletiu Lillis.
No momento em que tinha visto os dois homens em pé, ao entrar no escritório, Lillis
pensara em ter aberto a porta errada. Nenhum deles se parecia com o que tinha se
apresentado, na noite anterior, como o senhor do castelo. Um deles, o mais próximo e
cujo rosto estava rubro, era alto demais para ser Alexander de Gyer. E o outro, atrás da
escrivaninha e com ar de expectativa, era atraente demais. Tinha olhado para ambos,
intercaladamente, até concluir que o bonitão era o senhor de Gyer.
A descoberta fora desanimadora, pois Lillis tinha pouca experiência com homens,
ainda mais se tratando de um tão atraente. De olhos verdes, cabelos escuros, alto e
musculoso, ele parecia mais jovem do que tinha calculado. As feições, nariz reto,
sobrancelhas expressivas e boca bem delineada, provavam a origem aristocrática. Exibia
um ar suave e natural de superioridade que o marcava como nobre.
Em questão de apenas um minuto, ela havia percebido que a sua maior defesa seria
a raiva, por isso, preparara-se.
Uma vez iniciada, a conversa entre ambos tinha transcorrido de maneira mais
desembaraçada do que tinha antecipado. Alexander de Gyer não era o tirano temido, mas
um homem educado, bem articulado e inteligente. Pesaroso, ele havia lhe explicado as
circunstâncias e ouvido-a com atenção.
Ela ficara um tanto chocada com o comportamento do pai, mas não muito surpresa.
Lillis o amava muito, pois sempre a tinha tratado com amor e bondade. Todavia, ela não
ignorava que o pai era um homem vingativo e cruel. Na infância, muitas vezes o vira
maltratar criados e vassalos. Sabia também que o pai lhe daria ouvidos, pois nunca lhe
negara nada. O fato de Alexander de Gyer não acreditar era compreensível, mas muito
frustrante.
— Você tem certeza de que ele não vai mudar de idéia? — indagou Edyth. — Seu
pai deve estar aflitíssimo.
— Sem dúvida. Não penso que Alexander de Gyer mude de idéia. Não sei como ele
nos usará. Creio apenas que não pretende nos matar, ou fazer algum mal. Mas me sinto
deprimida sentada aqui, usufruindo o conforto e o luxo de Gyer, enquanto o meu pai se
consome de preocupação por minha causa. Vamos aguardar uns poucos dias. Se nada
acontecer, começarei a pensar num meio para escapar da nossa prisão agradável.
Ao ouvi-Ia, Edyth mostrou-se inquieta, e Lillis acrescentou depressa:
— Não vamos falar sobre isso por enquanto. Por uns dois dias, aproveitaremos
desta hospitalidade generosa e rezaremos para que Alexander de Gyer encontre uma
solução para o problema.
Mais tranqüila, Edyth sorriu e recomeçou a bordar, e Lillis, enquanto lhe retribuía o
gesto, viu um movimento furtivo na sombra um pouco adiante da cadeira da criada.
Inclinou-se para ver melhor e distinguiu as silhuetas encolhidas de duas crianças.
— Quem está escondido aí? Venham até aqui para nos conhecermos. Não vamos
lhes fazer mal algum.
Edyth virou-se para trás a fim de ver a quem Lillis se dirigia. Estando mais perto das
crianças, teve uma visão mais clara.
— Vejam só que belezinhas! O que estão fazendo aí no escuro? Aproximem-se para
nos dar bom dia.
Mas as crianças estavam com medo, especialmente de Lillis.
— Você é uma bruxa — acusou uma vozinha trêmula.
— Misericórdia! Por que diz isso? Indagou Lillis, surpresa.
— Você se parece com uma — respondeu uma voz de menino.
— É mesmo? Como é uma bruxa? Vocês podem me explicar? Nunca vi uma.
— Você é gigante e inteirinha branca.
— Ah, sei — disse Lillis, reprimindo o riso. — Bem, como vocês vêem, sou muito
branca de fato, mas afirmo que nasci assim e isso não me transformou em bruxa. Quanto
a ser gigante, não concordo. Não sou tão alta quanto o senhor de Gyer. Certo?
— Sim — concordaram as duas vozes.
— E ele é gigante?
— Não.
— Se não sou tão alta quanto ele e ele não é gigante, eu também não sou. Isso não
faz sentido?
Eles calaram-se por uns instantes, obviamente raciocinando. Finalmente, o menino
voltou a falar:
— Bárbara diz que você é bruxa, faz as crianças virar camundongos que afoga
no poço. Ela disse ainda que você pode pôr fogo numa casa só apontando o dedo
para ela.
— Bárbara também contou que você encanta as pessoas e elas começam a
ganir como cachorro. Depois, ficam com o corpo inteiro coberto de pêlos. Nunca mais
elas voltam a ser gente — acrescentou a menina em tom excitado.
— Que horror! Onde já se viu contar essas coisas para crianças?! Protestou Edyth,
mas Lillis acabou rindo.
— Então, foi lady Bárbara quem disse que sou bruxa. Pois ela está enganada. Não
posso fazer nada dessas coisas, portanto, não sou bruxa. Venham até aqui. Prometo que
não lhes farei mal.
Com ar amedrontado, as crianças se aproximaram. A da frente era uma menina de
uns sete anos de idade, com cabelos loiros e encaracolados e olhos castanhos cheios de
curiosidade. A outra, um menino uns dois anos mais velho, magricela, tinha olhos e
cabelos castanho escuros e expressão muito séria.
— Que crianças simpáticas — elogiou, Edyth estendendo-Ihes a mão.
Elas aproximaram-se da criada e mantiveram distância de Lillis, a quem observavam
com desconfiança.
— Como vocês se chamam, meus queridos? — perguntou Edyth.
— Candis — murmurou a menina, sem tirar os olhos de Lillis.
— Eu sou Justin — informou o menino.
— É um prazer conhecer vocês, Candis e Justin disse Lillis, fingindo formalidade. —
Vocês são filhos de alguém aqui do castelo?
Ambos a fitaram com expressão confusa.
— O que estão fazendo aqui? Passeando? — esclareceu ela.
— Moramos no castelo. Alex é nosso irmão — explicou Justin.
— Ah — disse Lillis, desapontada.
Ela havia imaginado que fossem filhos de alguma criada e se entusiasmara com a
perspectiva de conviver com as crianças. Entretanto, duvidava que Alexander e a família
permitissem que ela conversasse com Candis e Justin. Olhou para o outro lado do salão a
fim de verificar a reação das mulheres ao fato de as crianças estarem ali. Aliviada, viu que
elas bordavam e falavam com as cabeças baixas.
— Por que não estão estudando, crianças? Indagou. — Ainda não está na hora
do almoço. Vocês não têm um preceptor?
O menino deu de ombros.
— Fazemos o que queremos. Até a semana passada, tínhamos um, mas Hugh e
Hugo puseram uma cobra na cama dele, e ele foi embora. Alex ainda não arranjou um
novo. Também, não adianta. Hugh e Hugo sempre dão um jeito de assustar o homem.
— Uma vez, eles puseram sal no copo de vinho do preceptor — contou
Candis; rindo. — Foi tão engraçado ver o coitado tentando beber sem engasgar.
Ele ficou com medo de dizer a Alex que o vinho estava com gosto ruim.
— Que malvadeza! — exclamou Lillis, em tom raivoso. — Quando fazem essas
coisas, seus irmãos não são castigados?
— São — respondeu Justin, meio incerto. Atônita, Lillis sacudiu a cabeça.
— Isso é muito ruim para vocês, não acham? Ficam sem receber instrução por
causa do comportamento dos seus irmãos. Onde está a sua babá? Quem toma conta de
vocês durante o dia?
— Molly? Ah, ela dorme muito. Candis tornou a rir.
— Ela esconde vinho no quarto e bebe durante o dia. Nós esperamos até que esteja
roncando para escapulir de lá. Hoje a gente estava com pressa porque queria ver a bruxa.
— Já lhes disse que não sou bruxa — lembrou-Ihes Lillis. Quanto a sua babá...
Sentia-se tão brava que não conseguiu continuar.
— O senhor do castelo não percebe que Molly dorme demais? Indagou Edyth.
— Alex está sempre muito ocupado — explicou Justin.
— Entendo — disse Edyth, trocando um olhar significativo com Lillis. — E a sua tia
Leta? Ela toma conta da casa para o seu irmão e não se importa que vocês fiquem
largados por aí? Perguntou Lillis.
— Tia Leta não fica brava desde que a gente não faça barulho. E Bárbara diz que,
como não temos pai e mãe, seria maldade nos obrigar a fazer coisas que não queremos.
— Que horror! — exclamou Edyth, sem se conter. Até crianças de um orfanato são
mais bem cuidadas!
— Isso não nos diz respeito, Edyth. Não vamos ficar aqui tempo suficiente para
influenciar na vida dessas crianças. Tire essa idéia da cabeça — advertiu Lillis.
— Mas, minha querida, eles são tão novinhos...
— Seria insensato nos envolver com os dois — declarou Lillis e, depois, olhou para
Candis e Justin. — Talvez jogos não tenham importância, caso eles gostem. O que
acham, crianças?
— Que tipo de jogos? — indagou Candis.
— Todos os tipos. Eu e Edyth sabemos qualquer um. É só pedir. E histórias
também. Sei uma lindíssima que posso contar já, se estiverem interessados.
Eles estavam, e Edyth os acomodou um em cada perna antes de Lillis iniciar a
história.
— O Cavaleiro sacou a lança — Lillis disse no final da história e ergueu-se com os
braços levantados para melhor ilustrá-Ia — deu um, dois, três passos em direção ao
homem mau. Devagar, brandiu a arma e... Um grito agudo, vindo do outro lado do salão,
surpreendeu o pequeno grupo. As crianças agarram-se a Edyth, e Lillis baixou os braços.
Ele parecia ter sido emitido por uma das mulheres, mas era impossível saber por
qual delas. Todas estavam em pé e dirigiam-Ihes olhares rancorosos. Tia Leta e uma
jovem de cabelos vermelhos aproximaram-se correndo.
— Guardas, segurem as duas! — gritou tia Leta. Depois de um instante de
hesitação, os dois obedeceram, segurando as mãos de Lillis e de Edyth às suas costas.
Justin e Candis ainda agarravam-se à saia de Edyth num esforço para se proteger contra
qualquer coisa que pudesse atingi-Ios.
— Como ousa ameaçar crianças inocentes? Gritou a moça de cabelos vermelhos,
provocando a surpresa de Lillis.
— Eu...
A jovem, obviamente mais nova do que Lillis, agarrou Candis e a separou de Edyth, assustand
provocando-lhe o choro. Tia Leta aproximou-se bufando e puxou Justin, que não entendia
a razão do alvoroço todo.
— O que estava fazendo com as crianças? Demandou ela.
— Eu... nós... — gaguejou Lillis, mas foi interrompida por uma voz vinda do vão da
escada ao lado.
— Ela contava uma história interessante para as crianças. Não sei como não
percebeu, tia Leta.
Alexander de Gyer caminhou devagar para a faixa elominada do salão.
— Soltem as senhoras — ordenou aos guardas e foi obedecido imediatamente. —
Não ponham mais as mãos nelas a não ser por ordem minha. Minha, entenderam?
— Alex! — esbravejou a ruiva, enquanto batia com o pé no chão. — Essa mulher
ergueu os braços para bater nas crianças! Vi com os meus próprios olhos! Você deveria
acorrentar as duas no porão. Quem sabe o que a filha de Wellewyn será capaz de fazer?
Ela já provocou um castigo horrível para os pobres Hugh e Hugo.
— Bárbara! Alexander de Gyer exclamou em tom de surpresa.
Lillis não conseguiu deixar de observá-lo enquanto ele, com ar ofendido, olhava
para a jovem. De repente, percebeu que a criatura delicada à sua frente era a tal noiva.
Bárbara. Fitou-a e sentiu uma pontada de ciúme. Ela era tudo o que Lillis desejava ser
e não era. Bárbara tinha a delicadeza de uma borboleta. As feições expressavam
feminilidade, e a silhueta, os pés, as mãos lembravam a perfeição e a fragilidade de um
bibelô de porcelana. E era linda. Lindíssima.
— É verdade, Alex — insistiu Bárbara numa voz petulante. E eu estou desapontada
por você levar em consideração a palavra desta mulher contra os seus irmãos. Ainda
mais depois de os dois lhe prestarem o favor de capturá-Ia. Você deveria premiá-Ios em
vez de os punir.Como conseguia ela fazer isso? Indagou-se Lillis. Como podia falar de
maneira tão rancorosa e, ao mesmo tempo, mostrar-se tão meiga e meio tola? Sua tirada
infantil derreteria o coração de um homem em vez de irritá-Io. Virou-se a fim de verificar o
efeito das palavras em Alexander de Gyer.
— Não, Bárbara, quem está desapontado sou eu disse ele em tom de censura, mas
suave. Estava mais atraente do que nunca. — Garanti às nossas hóspedes que vocês as
receberiam, aqui no salão, com prazer. Mas quando vim verificar se tudo corria bem,
constatei que elas foram mantidas aparte das outras mulheres. Eu esperava uma outra
atitude de você e de tia Leta.
Os enormes olhos verdes da criaturinha linda encheram-se de lágrimas.
— Você não pode ser tão cruel a ponto de esperar que eu as distraia! Prisioneiras,
meu senhor?
— Enquanto estiverem aqui, estas senhoras serão tratadas como hóspedes distintas
— declarou ele em tom peremptório. — Agora, levem as crianças para a babá. Mais tarde,
conversaremos.
Contra a vontade, as duas conduziram Candis e Justin rumo à escada. Ao
mesmo tempo, Lillis sentiu um toque leve no braço.
— Peço que nos perdoe, minha senhora. A minha tia e a minha prima,
lamento, têm a tendência de pensar o pior sobre as pessoas de Wellewyn.
— Não diga! — ironizou Lillis, puxando o braço. O senhor sabia que a sua noiva
vem contando aos meninos que sou uma bruxa com poderes para transformar crian-
ças em camundongos e incendiar casas?
Alexander ficou tenso, mas manteve a expressão amável.
— Se ouviu isso de Candis e Justin, ou os entendeu mal, ou eles estão
enganados. Sei que eles, com a sua imaginação infantil, a vêem como bruxa, mas
Bárbara jamais lhes contaria algo tão ridículo. Provavelmente, eles ouviram isso de
Hugh e Hugo ou de alguém da vila.
— Eu os entendi muito bem, meu senhor. Porém, isso não tem importância.
Ela é sua noiva, e não minha. O senhor pode acreditar no que quiser vindo da
parte dela. Isso não me diz respeito.
Alexander ficou perplexo com a sua audácia em falar-lhe dessa forma.
— Tem absoluta razão, minha senhora, e, por favor, não se esqueça disso. A minha
prima só diz respeito a mim e eu me recuso a falar sobre ela com a senhora outra vez.
Não se refira mais a ela.
Lillis não conteve o riso.
— Para ser sincera, meu senhor, será um prazer ,não falar sobre ela, nem voltar a
vê-Ia. A minha companheira e eu já temos preocupações suficientes para ainda ter de
suportar o prazer duvidoso da companhia de lady Bárbara.
Alexander de Gyer enrubesceu, mas manteve a voz calma.
— Minha intenção foi proporcionar-lhe acesso a tudo em minha casa a fim de tornar
a sua estada aqui mais agradável. Porém, acho que cometi um erro. Talvez eu devesse
mantê-Ia e a sua criada trancadas no quarto. Dessa forma, a senhora não teria de
agüentar a não ser a própria companhia.
O controle rígido e a maneira educada de ameaçar eram enervantes, mas Lillis não
se deixou intimidar.
— Talvez devesse, meu senhor. Mas por que parar por aí e não seguir a sugestão
de sua Bárbara e nos acorrentar no porão? Seria interessante descobrir que os seus
irmãos não se tornaram desumanos por mera casualidade.
Perplexo, ele arqueou as sobrancelhas, indicando que a seta havia atingido o alvo.
Mesmo assim, continuou calmo.
— Talvez eu devesse. E, dependendo do comportamento futuro do seu pai, eu o
farei. Por enquanto, entretanto, continuarei a tratá-Ias como hóspedes, como prometi.
Será um prazer acompanhá-Ias até o quarto onde almoçarão em privacidade, como me
pediu hoje de manhã.
Lillis refletiu sobre essas palavras e observou-o. Percebeu que ele cedia, recusando-
se a continuar a discutir. Era um alívio, embora achasse que ele não queria perder tempo
com a sua pessoa, ou soubesse que ela não fraquejaria. De qualquer forma, aceitava a
oferenda de paz concedendo uma também.
— O senhor ainda não foi formalmente apresentado à minha criada — disse,
estendendo a mão para a tímida companheira. — Esta é Edyth Lielyn, filha de sir Edward
Lielyn de Cantfield.
Surpreso por Edyth ser de linhagem nobre, ele curvou-se ao tomar-lhe a mão.
— É uma honra conhecê-Ia, Edyth de Cantfield. As circunstâncias do nosso encontro
são um tanto impróprias. Mesmo assim, acredite, é um prazer tê-Ia conosco. Aceite as
minhas desculpas pelo comportamento da minha tia e da minha prima, como espero que
a sua senhora também as aceite — acrescentou relanceando o olhar por Lillis.
Edyth gaguejou algo apropriado enquanto Lillis o encarava com olhar franco.
— Não vamos mais falar sobre isso, Alexander de Gyer — sugeriu de boa vontade.
Alexander concordou com um aceno de cabeça e ofereceu o braço a Edyth.
— Poderá me dar a honra de acompanhá-Ia até o quarto, lady Edyth?
Ela, corando até a raiz dós cabelos, aceitou o oferecimento. Lillis e os guardas os
seguiram logo atrás em direção ao quarto que servia de cela. Não pela primeira vez, Lillis
lamentou que ela e Alexander de Gyer fossem inimigos. Apesar das batalhas de força de
vontade, simpatizava muito com ele. Considerava-o um homem justo, enérgico e
delicado ao mesmo tempo Admirava-o por ter cedido na discussão de momentos atrás.
Essa era uma qualidade rara em homens, refletiu, embora ela não os conhecesse bem.
Fora grosseiro da sua parte insinuar que Alexander de Gyer compartilhava das
crueldades dos irmãos gêmeos. Arrependia-se de tê-Io feito, ainda mais vendo a
bondade dispensada a Edyth. A criada jamais havia sido tratada com o respeito
merecido, nem mesmo por ela própria.
— Pode me dizer, meu senhor, para onde dá aquela outra porta no nosso quarto, no
meio de uma das paredes laterais? Perguntou Lillis, com naturalidade.
Ela e Edyth já tinham tentado, em vão, abri-Ia, mas omitiu esse detalhe.
Alexander pensou um instante e, depois, respondeu:
— Ah, sei. Faz tanto tempo que não é usada que me esqueci dela. Foi mandada
fazer pelo meu pai. O quarto onde estão era da minha mãe, o pegado, do meu pai, mas
agora, é meu. Ele fez isso para facilitar a vida. Minha mãe costumava se trancar no dela,
onde passava muito tempo. A porta deve ter sido útil depois das discussões entre ambos.
Quando ele acabou de falar, já tinham alcançado o corredor, mas as duas mulheres
pararam e o fitaram com expressão horrorizada. A parada de Lillis foi tão abrupta que os
guardas quase se chocaram nela, e Edyth afastou-se depressa de Alexander.
Ele as olhou num misto de preocupação e curiosidade.
— Algo errado? Perguntou.
— Errado?! Lillis repetiu e não conseguiu dizer mais nada.
— Bom dia — cumprimentou a voz agradável de Willem, que surgia na outra ponta
do corredor com um sorriso tímido.
Ele parou ao lado do irmão e observou as duas com interesse.
— Não podemos continuar naquele quarto. O senhor precisa nos acomodar num
outro — declarou Lillis.
— Por causa da porta? Por quê? Indagou Alexander sem conter a surpresa.
— Ora por quê! Ela exclamou, quase gritando. — Como o senhor ousa nos alojar
num quarto onde qualquer pessoa pode entrar inesperadamente e... Bem, o senhor sabe.
Ela apertou os lábios e não percebeu que derrubava o bordado no chão.
— Qualquer um?! — exclamou Alexander, irritado. A senhora quer dizer eu, não é?
Imagina que entraria no seu quarto sem me anunciar apenas porque existe uma porta
comunicando os dois aposentos? — indagou, mostrando-se insultado, e Lillis, por um
momento, teve medo. Com raiva, ele parecia maior do que era. — Caso não tenha
notado, existem meios de trancá-Ia do seu lado, o que a mantém a salvo de uma invasão.
Eu também conto com essa garantia. — Curvou-se, aproximando o rosto do seu. — Lillis
de Wellewyn, sou o senhor do castelo e, se quiser entrar no seu quarto sem avisá-Ia, eu o
farei. Não que eu vá querer tal coisa, pois não existe incentivo algum para tanto.
Lillis poderia muito bem ter passado sem a insinuação da última afIrmativa. Sabia
que, com a sua aparência diferente, não era bonita. Não precisava que Alexander de Gyer
lhe dissesse isso. Durante dez anos, as freiras de Tynedale tinham se esforçado para
fazê-Ia compreender e aceitar o fato. Mesmo assim, magoava muito ouvir a verdade dos
lábios de um homem como Alexander de Gyer.
— Uma ótima coisa, meu senhor, que não tenha razão para fazer isso. Se pensasse
que entraria no meu quarto com essa intenção, eu ficaria doente — declarou, entre os
dentes e lutando para conter as lágrimas.
As palavras o enraiveceram e a expressão furiosa a deixou mais amedrontada.
— Não tema, minha senhora, pois não será perturbada por tal incidente. Mas mesmo
se houvesse perigo de algo acontecer, eu não as mudaria para outro quarto. Sinto-me
bem mais seguro sabendo que estão do outro lado da parede. Tenho sono leve e
perceberia qualquer tentativa sua para fugir. A senhora não chegaria ao fim do corredor
antes que eu a apanhasse.
Lillis riu com desdém.
— Naturalmente o senhor o faria. Os guardas no corredor o alertariam. Imagina que
sejamos idiotas, meu senhor?
Quanto tempo essa troca de agressões teria durado, ninguém sabia. Horrorizado,
Willem via o irmão dirigir-se a uma dama com uma grosseria de que não o imaginava
capaz. Interpondo-se entre Lillis e Alexander, propôs:
— Alex, ofereço de bom grado o meu quarto a estas senhoras, já que elas não estão
satisfeitas no de mamãe.
— Já disse que elas ficarão onde estão. O seu oferecimento é desnecessário —
resmungou Alexander, com o cenho franzido.
— Não custa nada pensar na minha sugestão. Lady Lillis e a sua companheira já
estão sendo mantidas em Gyer em circunstâncias desagradáveis. Trata-se de algo
insignificante tentar proporcionar-lhes conforto — argumentou Willem numa atitude
diplomática.
Instigada por um demônio que ela mesma não aprovava, Lillis expressou-se com
suavidade:
— Muitíssimo obrigada, sir Willem. Vejo que é verdadeiramente um nobre que leva
a sério seus juramentos a Deus.
Alexander de Gyer semicerrou os olhos.
— E eu não? É isso o que quer dizer? Fiz todo o possível para tornar o seu
confinamento em Gyer o mais agradável possível, entretanto, a senhora me qualifica
como um vilão sem o direito ao título de Cavaleiro. Hoje de manhã, fui tolo ao pensar que
a senhora simpatizava com a minha situação. Agora, vejo que é tão teimosa e obtusa
quanto seu pai. Não deveria ter pensado outra coisa, Lillis de Wellewyn
— Alex! Você não sabe o que está dizendo! Por favor, minhas senhoras, desculpem
o meu irmão — pediu Willem, segurando-o pelo braço.
As palavras caíram em ouvidos moucos, mas a sua presença física entre os dois
oponentes impediu que Lillis estapeasse Alexander.
— Como se atreve a esperar simpatia de quem mantém isolada contra a vontade?
Demandou ela. — Não há nada que possa fazer para tornar o nosso cativeiro agradável,
a não ser nos libertar. Quanto à sua sagração de Cavaleiro, sir Alexander, cabe ao senhor
verificar se vem cumprindo os juramentos. Eu não serei responsável pelos seus
fracassos.
Em silêncio, ele a fitou por um momento. Depois, afastou Willem de lado.
— Leve-as para o quarto. O de mamãe, onde determinei. Tranque bem a porta.
Ficou bem claro que não se pode confiar na fIlha de Wellewyn — acrescentou, dirigindo
um olhar furioso a Lillis.
— Ora, eu prefiro ser fIlha do demônio a ter qualquer ligação com Gyer! — gritou ela,
enquanto Alexander se afastava.
Ele não respondeu e, um segundo depois, desaparecia de vista.

CAPÍTULO IV
Maldição! Batendo os pés, Alexander entrou no escritório.
Em nome de Deus, o que tinha acontecido? Ele mal podia se lembrar, embora
tivesse deixado Lillis de Wellewyn havia poucos momentos. Não sabia direito o que lhe
havia dito exatamente. Todavia, não ignorava ter se comportado com a grosseria
imperdoável de um idiota mal-educado. O que pretendia dirigindo-se a alguém dessa
forma, ainda mais se tratando de uma dama, ou melhor, de Lillis de Wellewyn? Já não
bastava estar explorando a sua pessoa? Precisava ainda insultá-Ia?
— Ai, meu Deus, faça com que eu não tenha dito aquilo, que tudo não passe de
confusão da minha mente — rezou em voz alta.
Por que havia agido daquela forma? Indagou-se andando, furioso, de um lado para o
outro. Nesse mesmo aposento, de manhã, tinham conversado tão sensatamente. Ela lhe
despertara grande admiração. E atração. E desejo. Estaria perdendo a cabeça? Não tinha
o direito de sentir essas coisas a não ser por Bárbara, a sua noiva. Lillis não passava de
sua prisioneira e da filha do seu pior inimigo. Não podia se esquecer disso nem por um
segundo sequer.
Num movimento abrupto. Virou-se e procurou, com os olhos, o estandarte de Gyer
pendurado acima da lareira. Lá estava ele, vermelho e branco. Contemplando-o,
Alexander quase podia sentir a mão do pai agarrando-lhe o decote da túnica e puxando-o
da lama no campo de exercícios militares. Via a expressão raivosa do pai e ouvia-lhe a
voz como em tantas outras vezes nos seus pesadelos.
— Fraco! Estúpido!
Os rostos dos soldados do pai, homens nobres e valorosos a quem Alexander
reverenciava, também surgiam-lhe na mente. Alguns sorriam, divertidos, outros o fitavam
com simpatia. Tinha sido humilhante ser derrubado no seu primeiro dia de treinamento no
campo de batalha. Mais humilhante ainda fora o pequeno golpe ter arrancado sangue e
ele se sentir nauseado com isso diante de todos. Especialmente do pai.
Alexander via ainda o estandarte, que o pai havia arrancado da sela do garanhão e
brandido no seu rosto.
— O vermelho significa coragem, Alexander, o branco, honra!
As cores haviam se mesclado diante dos seus olhos, e a seda, quando esfregada no
rosto, lhe provocara um arrepio de frio. "Vermelho significa coragem, branco, honra!"
O pai o havia atirado de volta à lama onde ele continuara caído, enquanto todos se
afastavam. O último fora o pai, mas antes, ainda dissera:
— Por Deus, você me enoja. Eu me envergonho de ter um filho tão fraco. Que
honras poderá proporcionar a Gyer?
Alexander passou as mãos pelos cabelos e riu alto...
Fazia-lhe muito bem lembrar aquele dia. Quando pensava nele, rememorava
também o juramento feito e mantido até então. Gyer lhe pertencia agora. Era seu. Rico,
forte e seguro como se nunca tivesse saído das mãos do pai. E ele, Alexander, era um
dos homens mais poderosos da Inglaterra. Nada iria modificar isso. Nem as lembranças
do pai, nem Jaward, nem Lillis de Wellewyn!
Lillis de Wellewyn. Pediria desculpas a ela. Já tinha pedido várias vezes depois da
sua chegada, e, mais uma, não faria diferença. Ela compreenderia. Explicaria estar sob
tensão intensa provocada pela preocupação. Sem dúvida, Lillis de Wellewyn aceitaria o
pedido de desculpa. Além da grande beleza, tratava-se de uma mulher inteligente. Aliás,
uma adversária e tanto.
Alexander parou diante de uma das muitas janelas e deixou o olhar vagar pelo
jardim. Estava quase na hora do almoço. Imaginou se Lillis e a companheira já estariam
sendo servidas no quarto e se apreciariam a comida.
As suas prisioneiras.
O que faria com elas? Como ainda não tivesse resposta, evitava pensar na
pergunta.
Uma batida na porta, seguida pela entrada de um criado com uma caneca numa
bandeja, interrompeu-lhe os pensamentos.
— Abriram um novo barril de cerveja, e lady Baldwin mandou trazer-lhe um pouco.
— Está bem. Ponha na escrivaninha.
— Pois não, senhor de Gyer.
— Obrigado, Cedric. Vou almoçar daqui a alguns minutos. Diga aos outros para
começar a comer sem mim. Sir Willem, caso esteja à mesa, poderá dar graças. Se não
estiver, sir Alan se incumbirá delas.
Após a saída do criado, ele voltou a olhar para o jardim enquanto analisava as
possibilidades da escolha que teria de enfrentar logo.
— Alex!
Ele sorriu antes de virar-se para Bárbara. Como havia ela entrado sem fazer barulho
algum e por que fechara a porta eram indagações irrelevantes. Alegrava-se por vê-Ia ali.
Pelo menos por alguns minutos, ela lhe distrairia a mente dos problemas.
— Olá, meu bem — disse Alexander estendendo-lhe a mão.
Num segundo, Bárbara atravessou o aposento e aninhou-se nos braços dele.
— Você não está bravo comigo, não é, Alex? — perguntou ela, apoiando a cabeça
no seu ombro.
Como era bom estreitá-Ia entre os braços. Muito reconfortante.
— Por que eu deveria estar, minha querida?
— Por causa dessa mulher de Wellewyn. Achei que ficou zangado comigo por causa
dela. Você me falou de maneira tão severa.
Ele riu da sua puerilidade. Bárbara parecia uma criança carente da aprovação dos
pais.
— Naturalmente não estou bravo com você, meu bem — garantiu ele, apertando um
pouco os braços à sua volta. — Deve estar sendo difícil para você ter uma estranha na
casa, ainda mais instalada no quarto que um dia será seu. Sinto muito ser forçado a
provocar-lhe esse aborrecimento.
Alexander sentiu-a sorrir de encontro ao ombro.
— Ai, Alex, você é tão bom! — Bárbara ergueu o rostinho lindo e fitou-o com
adoração nos olhos verdes. Beije-me antes de tia Leta nos encontrar aqui. Senti tanta
falta de você esta manhã.
Alexander não resistiu aos lábios que, como um botão de rosa, ofereciam-se a ele.
Curvou a cabeça e sentiu os braços de Bárbara enlaçá-lo pelo pescoço a fim de se
aproximar mais. Deixou-se reconfortar com a doçura da sua boca entreaberta e
convidativa. Embalado na sua meiguice, esqueceu-se das atribulações. Quando Bárbara,
num gesto estimulante, prensou o corpo no dele, Alexander perdeu o resto do controle.
Com uma das mãos firmada nas suas costas, começou a acariciar-lhe o corpo com a
outra. Já começava a entregar-se plenamente à paixão quando se sentiu sendo
empurrado para trás.
— Ai, Alex — suspirou Bárbara. — Quando vamos nos casar?
— Não faço idéia. Você sabe que não posso prometer nada — respondeu ele,
imaginando por que esse assunto sempre interrompia os beijos de ambos.
Bárbara ficou tensa sob as mãos dele. Os olhos verdes tinham expressão ferina e
nada nela correspondia à paixão sentida por Alexander.
— Não entendo por que você nos mantém nessa expectativa — declarou,
empurrando-o com mais força até se soltar. — A culpa é dessa mulher de Wellewyn. Se
não fosse pelo seu pai miserável, nós já estaríamos casados!
— Bárbara! Já conversamos muitas vezes sobre os motivos pelos quais ainda não
nos casamos. — Foi até a escrivaninha e apanhou a caneca deixada por Cedric. Não
estou com disposição para discutir isso novamente. Você vai ter de ser paciente —
acrescentou e, em seguida, tomou um longo gole da cerveja.
Ouviu Bárbara respirar fundo e podia adivinhar-lhe a expressão.
— Você a deseja! — acusou ela em voz magoada. Você a acha linda.
— A quem está se referindo? — indagou Alexander, perplexo.
— A Lillis de Wellewyn. Você não quer mais se casar comigo por causa dela.
Alexander largou a caneca e aproximou-se para tomar Bárbara nos braços.
— Essa é a maior tolice que já ouvi, e você sabe disso.
— Estreitou-a de encontro ao peito e prosseguiu: — Você me é muito querida há
tantos anos, desde que eu era rapazinho, e até antes disso. Diga qualquer coisa para
mim, mas não me provoque a respeito dos meus sentimentos.
Numa voz embargada, Bárbara defendeu-se enquanto voltava a abraçar-se a ele.
— Alex, não foi minha intenção ser infantil, mas não posso evitar certas
preocupações. Lillis de Wellewyn é lindíssima, e eu odeio vê-Io envolvido com ela, seja lá
a respeito do quê. Sei que você não me seria infiel, pois sempre foi boníssimo para
comigo e John. Não passou de tolice minha acusa-lo de tal coisa.
— Está bem — disse ele um tanto aliviado... — Ambos estamos sob forte tensão
ultimamente. Logo nos casaremos — afirmou e beijou-a de leve. — O mais depressa
possível, prometo. Você pode ter paciência por mais um pouco de tempo?
Bárbara dirigiu-lhe um sorriso sedutor.
— Para sempre, se for preciso, Alex. Não vamos mais tocar nesse assunto. Agora,
antes que tia Leta apareça por aqui nos procurando, precisamos ir almoçar. Você deve
estar morto de fome.
De boa vontade, Alexander tomou-lhe a mão e a conduziu em direção à porta.
Por uma das janelas do quarto, Lillis podia ver melhor o jardim pelo qual desejava
passear. Acomodada no assento largo sob a janela, ela observou a muralha interna do
castelo, a vegetação, a vila um pouco além e os campos a perder de vista. Era uma
propriedade linda, bem cuidada e tão diferente de Wellewyn. O sol já iniciava o caminho
para o poente, mas os seus raios continuavam a irradiar calor. Um dia lindo que
compensava o chuvoso e frio da véspera.
Lillis relanceou o olhar pela cama e viu que Edyth dormia. Haviam almoçado bem e
apreciado a refeição farta e variada. Tinham até bebido vinho, o que não era freqüente no
convento. Lá, ele só era servido na comunhão, aos domingos e feriados. Não que fosse
considerado pecado beber-se vinho, pelo contrário. As irmãs de Tynedale fermentavam e
engarrafavam uma boa quantidade da bebida para o seu consumo durante o ano. Na
verdade, ela e Edyth nunca tinham ingerido tanto vinho como nessa tarde, o que as
deixara relaxadas e sonolentas.
Tão logo haviam terminado a refeição, Edyth havia se estirado na cama e, entre
bocejos, avisado que dormiria uns poucos minutos. Em instantes, caía num sono
profundo.
Com expressão afetuosa, Lillis observou o rosto da companheira e sorriu. Edyth
sempre dormia o sono dos inocentes. Jamais passava a noite virando-se inquieta na
cama, ou atormentada pela insônia, como tantas vezes lhe acontecia. Edyth era uma
alma pura. Sentia-se feliz por levar uma vida simples e despretensiosa. Até a sua
habilidade para dormir revelava isso.
Lillis suspirou e voltou a olhar pela janela. Seria tão bom se existissem mais pessoas
como Edyth. E, melhor ainda, ela mesma não ser tão inquieta e carente.
Devia ser o resultado de tantos anos no convento, refletiu. Tinha sido uma vida
simples e rígida, preenchida com o árduo trabalho diário e com sacrifícios. Durante os dez
anos passados em Tynedale, trabalhando e estudando, Lillis tinha aprendido a respeitar e
admirar as mulheres cujas vidas eram dedicadas ao serviço do Senhor. Elas não
possuíam nada que pudessem chamar de seu, exceto a satisfação de estar cumprindo a
vontade de Deus. Ela, Lillis, não suportaria uma existência inteira de tal dedicação. Dez
anos tinham sido suficientes.
Foram tempos difíceis e, algumas vezes, de solidão. Estudava de manhã e, à tarde,
trabalhava com os ómos ou com as freiras. Para a noite, ficavam as tarefas de cozinha e
de faxina. Dependendo da estação do ano, havia ainda a horta e os animais para ser
cuidados.
Durante o dia todo, em vários horários, havia missas e rezas na capela às quais
todas eram obrigadas a assistir. As refeições também observavam esquema rotineiro e
constavam de pão, queijo, legumes, um ensopado ou sopa. De vez em quando, havia
frango ou carne de vaca. Desde o amanhecer até a hora de se recolherem, o dia era
marcado por uma seqüência inflexível de atividades. Lillis sonhava e ansiava por um dia
em que pudesse gastar o seu tempo como desejasse.
Ela havia aprendido muitas coisas com as freiras no convento. Para ser sincera, se
pudesse voltar no tempo e escolher ficar em casa estudando com um preceptor ou ir para
o convento, teria preferido a segunda opção. O tempo passado em Tynedale fora de valor
inestimável. As irmãs a tinham encarregado de várias responsabilidades, inclusive tomar
conta das alunas mais novas quando tinha quinze anos e, aos dezessete, dirigir o
orfanato. Esses deveres a haviam ensinado a ser disciplinada, forte e muito competente.
A perspectiva de, um dia, ter de encarregar-se de uma casa movimentada não
assustava Lillis nem um pouco. Nada poderia demandar mais esforço do que gerenciar
um orfanato com mais de cem crianças. Também não se importava de ter de sujeitar-se a
um orçamento apertado. Sabia cozinhar, limpar, cuidar da terra, fazer sabão e velas, tecer
e tingir lã, costurar e bordar muito bem. Na verdade, os seus momentos de maior prazer
no convento eram proporcionados pela agulha e linha.
Lillis havia feito roupas lindíssimas para si mesma, preparando-se para retomar a
vida fora do convento como uma dama. Naturalmente, tivera de enfrentar a desaprovação
das freiras que a classificavam de fútil e vaidosa. Ela, entretanto, negava-se a se sentir
culpada pela tentativa de se tornar atraente. Só Deus sabia que, sendo tão alta e grande,
ela precisava lançar mão de certos subterfúgios a fim de realçar a feminilidade. Além do
mais, estava cansada da roupa branca de tecido áspero e da túnica marrom usadas por
todas as alunas do convento. Isso sem falar no lenço, também marrom, com que era
obrigada a cobrir a cabeça todas as horas do dia. Prometera a si mesma abolir esse
hábito tão logo deixasse o convento. As freiras, tinha certeza, ficariam horrorizadas.
Edyth havia apreciado aquela vida, mas Lillis ansiava por uma mudança. Queria
viver e ser livre para fazer o que desejasse, casar-se, ter filhos, amar e ser amada por um
homem. Esses eram os sonhos que a tinham sustentado durante os longos dez anos.
Ela não conhecia o noivo, Jason de Burgh. O pai tinha arranjado o casamento e
garantido-lhe que de Burgh daria um bom marido e ótimo pai, embora fosse quase tão
pobre quanto ele. Talvez, quando estivessem casados, ela pudesse ajudá-Io a dirigir a
propriedade e leva-Ia a render mais. Esperava muitíssimo vir a amar o marido com o
passar do tempo. Isso seria a coisa mais maravilhosa do mundo.
Lillis não tinha acreditado na afirmação de Alexander de Gyer quanto ao pai estar
tentando uma aliança com de Burgh através do seu casamento com ele. O pai,
naturalmente, ficaria feliz com a situação, mas não teria considerado de Burgh para a
posição de genro se ele não preenchesse suas exigências rígidas. Lillis sorriu. Alexander
de Gyer não passava de um tolo ao imaginar que o pai daria a sua mão como se
estivesse vendendo gado. Provavelmente, ele não entenderia isso. Só conhecia o lado
mau e agressivo do pai, que Lillis tentava ignorar.
O pai tinha sido assim desde a morte da mãe quando Lillis contava quatro anos. As
recordações que tinha dela eram muito vagas, mas lembrava-se de como o pai a amava
apaixonadamente. Após a sua morte, ele se tomara um homem infeliz e cheio de rancor.
O único amor de que era capaz dedicava à filha. Para as outras pessoas, demonstrava
apenas impaciência e irritação. Criados, vassalos e habitantes da vila sentiam medo
constante de Jaward de Wellewyn. Havia muito, Lillis tinha resolvido tentar abrandar o
temperamento do pai. Casada com Jason de Burgh, ficaria morando perto de Wellewyn e,
então, se dedicaria a encontrar as raízes da infelicidade dele. Só assim poderia solucionar
os problemas geradores da sua crueldade.
Isso se conseguisse escapar da prisão em que se encontrava, se Alexander de Gyer
decidisse o que fazer com ela.

CAPÍTULO V
— Alexander de Gyer já tomou uma decisão? Lillis perguntou enquanto
acompanhava tia Leta e esforçava-se para, dessa vez, manter-se uns passos atrás.
Tia Leta soltou uma exclamação de desdém.
— Ao fazer tal indagação, você demonstra não ter boas maneiras. Sua educação no
convento deixou muito a desejar.
— Peço-lhe perdão — murmurou Lillis no tom de arrependimento aprendido em
Tynedale, mas lady Baldwin, aborrecida, apenas resmungou qualquer coisa.
Com expressão séria e recatada, ela esperou que tia Leta batesse na porta do
mesmo aposento em que estivera de manhã. Ouviu a voz de Alexander de Gyer
mandando-as entrar e, logo em seguida, foi conduzida ao interior pela velha senhora.
Esta, para surpresa sua, saiu depressa, sem que o sobrinho lhe ordenasse.
Com as mãos cruzadas às costas, ele observava o pôr do sol de uma das janelas
longas. A luminosidade, suave e amarelada dessa hora do dia, refletia em tons dourados
e avermelhados em sua cabeleira escura e ressaltava as feições marcantes do seu rosto
atraente. Ele não a cumprimentou, e Lillis permaneceu à espera onde estava.
Por algum tempo, Alexander continuou em silêncio e, depois, murmurou:
— Parece que estou sempre lhe pedindo desculpas, minha senhora. Peço que
perdoe o meu comportamento de algumas horas atrás. Eu lhe dirigi palavras grosseiras e
injustificáveis, ainda mais por serem pronunciadas na presença de outras pessoas. —
Baixou os olhos para o chão e prosseguiu: — Sinto-me muitíssimo envergonhado e só
posso contar com a sua bondade para me perdoar. Teve toda a razão por me criticar pela
falta de cavalheirismo.
Terminando de falar, ele voltou a olhar pela janela. A tensão do rosto era
perceptível, e as mãos, cruzadas às costas, crisparam-se até as juntas embranquecerem.
Lillis, com as mãos entrelaçadas à frente, limpou a garganta.
— Creio, meu senhor, que sou eu quem deve pedir desculpas. Eu não devia ter feito
aquelas acusações à sua honra e, por isso, também me sinto envergonhada. Lamento,
mas tenho um temperamento explosivo. Algumas vezes, as freiras de Tynedale não
sabiam o que fazer comigo. — Sorriu, mas viu que ele continuava sério e a olhar pela
janela. — Mas isso não é desculpa para uma dama se comportar mal. Por favor, me
perdoe.
Alexander soltou as mãos, e o lado visível do rosto mostrou seu alívio. Depois de
passar os dedos pelos cabelos e de respirar fundo, virou-se para Lillis.
— Nesse caso, parece que temos uma trégua, Lillis de Wellewyn... — disse ele com
um sorriso incerto, mas encantador, que a enfraqueceu. — Considerando a nossa
situação, talvez tenhamos o direito a uma certa ineficiência. Teve toda razão, minha
senhora, de se enraivecer comigo, enquanto eu não tinha nenhuma para justificar o meu
comportamento. Sinto-me grato pela sua bondade ao tentar assumir parte da minha
culpa. Vamos aceitar as nossas desculpas mútuas e encerrar o assunto — sugeriu ao
aproximar-se com um braço estendido.
Sem pensar no que fazia, Lillis ofereceu a mão.
Demonstrando firmeza e calor, Alexander apertou-a levemente e a pôs no braço
enquanto a fitava sorrindo. Ela sorriu também, embora de maneira inconsciente. Só tinha
noção da sensação estranha de estar perto de um homem, de segurar-lhe o braço e de
encontrar-se sozinha com ele no aposento. Exceto por algum tempo naquela manhã, Lillis
nunca ficara a sós com um homem, além do pai. O simples fato de pensar nisso fez-lhe o
coração disparar.
Ela não saberia dizer quanto tempo permaneceram ali com os braços entrelaçados,
fitando-se nos olhos, mas pareceu-lhe muito. Devagar, Alexander de Gyer deslizou a mão
até a sua e a virou para cima. Observou-lhe a palma e, então, levo os dedos aos lábios e
os beijou delicadamente. Enquanto o fazia, voltou a fitá-Ia. Ao sentir esse novo contato na
pele, Lillis estremeceu. Percebendo, Alexander baixou sua mão e a soltou.
— Aceita tomar um copo de vinho comigo, Lillis de Wellewyn? Perguntou ele,
afastando-se.
Parada no mesmo lugar, ela tentava impedir que o corpo tremesse. Nada
semelhante a isso já havia lhe acontecido, o que a desagradava muitíssimo. A sensação
provocada pelo contato dos lábios em sua pele... Não, não estava gostando nem um
pouco disso.
— Aceito, obrigada — respondeu por força de hábito, mas a falta de firmeza na voz
a deixou aborrecida.
— Venha sentar-se, está bem? Convidou ele ao servir o vinho e colocar o copo na
escrivaninha, diante da cadeira onde ela se sentara de manhã.
Imaginando quanto tempo mais conseguiria ficar em pé com os joelhos tremendo
tanto, Lillis sentou-se, aliviada.
Alexander não ocupou seu lugar costumeiro do outro lado da escrivaninha, mas
puxou uma cadeira e acomodou-se ao lado de Lillis.
— Já tomou uma decisão? Indagou ela.
— Ainda não. Achei que deveríamos conversar mais sobre o assunto. Quer dizer, se
conseguirmos fazer isso sem brigar — acrescentou ele com um sorriso sedutor.
Incapaz de se conter, Lillis sorriu também e imaginou se existiria, nesse mundo de
Deus, um homem mais atraente do que aquele. Alexander de Gyer tinha os olhos mais
verdes que já tinha visto.
Ele prosseguiu:
— Sei que é estranho querer conversar com a senhora sobre assuntos dessa
natureza. Com certeza, imagina que eu seja louco. A verdade, minha senhora, é que a
considero uma prisioneira muito sensata.
— Não diga! — exclamou Lillis com ironia e arqueando as sobrancelhas. — Então,
existem outros para ser comparados a mim? É hábito seu manter pessoas presas em sua
casa contra a vontade delas?
Alexander riu alto.
— Não, não. A senhora e seus companheiros são os únicos. Eu me expressei mal.
Deveria ter dito que a considero a mulher mais sensata a quem tive o prazer de conhecer.
Lillis forçou-se a sorrir, embora sentisse uma fisgada de inveja. Era uma mulher
sensata, mas não atraente.
— Obrigada — murmurou, enquanto com a mão mais firme levantava o copo para
sorver um gole de vinho.
Ele a observou com ar de curiosidade.
— Sabe, acho impossível acreditar que Jaward de Wellewyn seja seu pai. Não vejo
traço algum dele na senhora...
— Eu puxei por minha mãe. O senhor a conheceu? Tenho certeza de não ter
conhecido os seus pais, ou nenhum membro da sua família, quando era criança.
Alexander sacudiu a cabeça.
— Não me recordo de ter visto a sua mãe. Aliás, eu não sabia que a senhora existia.
Só descobri isso ontem quando o seu pai me informou do seu próximo casamento com
Jason de Burgh.
— Não acha estranho que famílias vizinhas não se conheçam? Lillis perguntou com
ar pensativo. — Até em Tynedale conhecíamos quase todos os habitantes num raio de
quilômetros de distância. Imagino por que, morando tão perto, as duas famílias nunca
tivessem se encontrado.
— Não faço idéia, mas concordo tratar-se de algo pouco comum. O seu pai,
entretanto, foi sempre um tipo muito recluso, isso sem mencionar o fato de que ele e o
meu pai se odiavam. Portanto, não tinham motivos para se visitar.
— É mesmo? Exclamou Lillis, surpresa. — Eu não sabia. Por que se odiavam?
Alexander de Gyer suspirou, desanimado.
— Não sei. Esperava que a senhora pudesse me esclarecer sobre isso, mas vejo
que ignora tanto ou mais do que eu. Estou convencido de que a diferença entre eles foi o
incentivo para Jaward construir a represa e nos deixar sem água. Ele está disposto a se
vingar de algo, mas não sei do quê. Já lhe perguntei várias vezes, porém ele se recusa a
me responder.
Com a testa franzida, Lillis fixou o olhar no líquido vermelho do copo. Refletia se era
verdade o que Alexander de Gyer acabava de contar. O pai jamais conversara sobre tal
assunto com ela, como também nunca mencionara a construção da represa ou o
relacionamento tenso com Gyer. Ocorreu-lhe a possibilidade de não ter calculado a
verdadeira extensão da natureza vingativa do pai.
— Eu poderia tentar descobrir, caso me deixasse ofereceu ela.
— Não! — negou ele em tom enfático.
Lillis sorriu ligeiramente antes de voltar o olhar para o copo.
— Bem, valeu a pena tentar.
Permaneceram algum tempo em silêncio, e Lillis podia sentir o olhar de Alexander
de Gyer observando-a, mas, por alguma razão, não conseguia fitá-lo. Finalmente, e para
quebrar o silêncio desagradável, disse imbuída de sinceridade:
— Gostaria que houvesse algo para eu fazer a fim de ajudá-Io.
— Eu sei e aprecio a sua disposição mais do que poderia dizer — murmurou. — A
senhora e eu compartilhamos da situação problemática de maneira muito íntima. Os
nossos pais a criaram e cabe a nós soluciona-Ia.
— Tem toda razão, Alexander de Gyer — concordou ela ao pôr o copo na
escrivaninha e levantar-se a fim de ir até a janela onde, ao entrar, tinha visto Alexander.
— Mas eu já lhe apresentei a minha solução com a qual o senhor não concordou. O que
mais posso fazer exceto ser uma prisioneira complacente?
Ele levantou-se e foi ficar ao seu lado, mas, em vez de olhar para fora, fitou-a com
expressão intensa.
— Acredite em mim, não é na senhora em quem não confio. É no seu pai. Já lhe
expliquei por que não me atrevo a deixa-Ia ir ao seu encontro na esperança de fazê-Io
mudar de idéia. Jaward negará qualquer pedido seu e eu perderei o único trunfo que
tenho contra ele. Trata-se de um risco muito grande.
— Então, deixe eu lhe escrever uma carta — pediu Lillis, estendendo a mão num
gesto de súplica.
Alexander sacudiu a cabeça.
— Não. Jaward irá se queixar ao rei quando souber que a senhora está aqui.
Impossível.
Exasperada, Lillis suspirou e voltou a olhar pela janela.
— Nesse caso, continuamos num impasse.
— E quanto a De Burgh? O que sabe a respeito dele? — Alexander perguntou.
— Muito pouco, meu senhor — respondeu ela ao dar de ombros. — Eu ainda não o
conheço, a não ser que o tenha visto quando era criança. Mas não me lembro dele. O
senhor já não concluiu que está tramando com meu pai? Será que, de alguma forma, ele
poderia ser útil?
— Não sei — respondeu Alexander, com ar pensativo. — Como lhe disse, nós nunca
nos demos bem. Mesmo assim, não acredito que De Burgh queira guerrear contra Gyer.
Trata-se de um homem irracional, teimoso como uma mula, mas isso seria razão para
mandar o seu povo ao encontro da morte certa?
Lillis ignorou o insulto ao noivo e apresentou uma nova idéia:
— Já sei! Estipularei a demolição da represa como condição para me casar com
Jason de Burgh. Se o meu pai quiser mesmo esse casamento, terá de destruir a
barragem primeiro. O que poderia ser mais simples? Por que não pensamos nisso antes?
— indagou Lillis sem conter a animação.
Alexander refletiu por uns instantes.
— Não acredito que o seu pai desista da represa por essa razão. Provavelmente, ele
ameaçará mantê-Ia solteira pelo resto da vida em Wellewyn a fim de não ter de abrir mão
do seu domínio sobre Gyer. Seria melhor se a senhora houvesse feito voto perpétuo no
convento.
Lillis não desanimou.
— Talvez eu possa fazer com que o contrato de casamento seja por escrito. Dessa
forma, manterei controle da terra. Exigirei que faça parte do meu dote. Isso não
solucionaria o problema?
— Duvido que consiga fazer isso. Acredita sinceramente que o seu noivo, ou o seu
pai atendam tal exigência depois de ter elaborado um plano tão cuidadoso? Impossível...
— Ah, desisto! — queixou-se Lillis. — O senhor não aceita sugestão alguma. Vou
envelhecer neste lugar enquanto tenta decidir o que fazer.
Alexander fitou-a com simpatia.
— Sinto muito. Sei que a situação é tão desagradável para a senhora quanto para
mim. Aliás, pior para a senhora, pois eu ainda conto com a minha liberdade.
Suspirou e apoiou o ombro no batente da janela. — Que emaranhado complicado
vamos ter de desfazer!
Lillis já ia concordar quando a porta foi aberta de maneira intempestiva. Ambos
viraram-se e viram Willem tenso e ofegante.
— Alex! Há um incêndio na vila dos arrendatários. Empalidecendo, Alexander
afastou-se da janela.
— Maldição! Onde?
— Nos campos do norte. Está muito forte, Alex. Willem acrescentou com ar sombrio.
O senhor de Gyer já se dirigia à porta.
— Leve lady Lillis de volta para o quarto e, depois, vá me encontrar no estábulo —
ordenou em voz exaltada.
— Eu reunirei os homens.
Lillis não precisou ser convidada a se retirar. Obedientemente, acompanhou sir
Willem.
— Acredita que alguém poderá sair ferido? — perguntou ela enquanto subiam a
escada.
— Rezo a Deus para que não. Só podemos esperar que a chuva de ontem retarde o
avanço do fogo e o impeça de se espalhar.
— Já sabem como começou? — Lillis quis saber.
— Não. Provavelmente foi obra de Dunsted.
Ela notou o tom raivoso de voz e encolheu-se.
Sem dúvida Jason de Burgh não aprovaria que os seus vassalos cometessem tal
crueldade. Não, o fogo devia ter começado por acidente, uma vela caída ou fagulhas de
lenha. Essas coisas aconteciam com freqüência. Fazia mais sentido imagina-Ias do que
suspeitar de alguém provocando incêndios propositalmente. Ela sabia muito bem quem
receberia a culpa, caso Dunsted fosse responsável pelo acidente.
— Lamento ser tão indelicado, minha senhora, mas, por favor, compreenda — disse
Willem ao abrir a porta e, praticamente, empurrá-Ia para dentro do quarto.
— Claro, claro. Espero que chegue lá a tempo. Por favor, sir Willem, tome cuidado.
Ele agradeceu apenas com um aceno de cabeça, fechou a porta e a trancou.
— O que foi, minha querida? O que aconteceu? Como correu o seu novo encontro
com o senhor de Gyer? perguntou Edyth, aproximando-se.
— Ai, minha amiga — começou Lillis, tomando-lhe a mão entre as suas. — Tenho o
mau pressentimento de que vamos enfrentar mais problemas do que já temos. Seria
melhor se passássemos esta noite ajoelhadas rezando.

CAPÍTULO VI
As idas ao escritório do senhor de Gyer estavam se tornando rotineiras, pensou Lillis
ao acompanhar o criado que tinha ido buscá-Ia no quarto. Ela havia sido acordada muito
cedo por tia Leta, que, num estado de agitação intensa, a avisara para aprontar-se
depressa. Todavia, lady Baldwin não lhe dera explicação alguma sobre a ordem.
Lillis não tinha recebido nenhuma informação sobre o desenlace do incêndio, mas
percebia a tensão das criadas que haviam entrado no quarto entre a ida de tia Leta e o
chamado do senhor de Gyer. A hostilidade com que a tratavam parecia mais marcante
nessa manhã.
Ao acabar de descer a escada, ela relanceou o olhar pelo salão. Ficou estarrecida
com a cena inesperada. A família Baldwin inteira, inclusive as crianças e os gêmeos, a
criadagem toda do castelo e alguns habitantes da vila encontravam-se reunidos ali.
Perplexa, Lillis deu-se conta de que cada um deles a encarava num misto de curiosidade
e acusação. Embora amedrontada, ela ergueu bem a cabeça e continuou a seguir o
criado em direção ao escritório do senhor de Gyer.
Vozes altas e altercações veementes podiam ser ouvidas quando se aproximaram
da porta fechada, onde o servo fez-lhe um gesto para parar. Permaneceram algum tempo
ali escutando os ruídos abafados vindos do interior.
Vozes estridentes, ou em tom de súplica, alternavam-se com soluços até que a porta
se abriu e Bárbara saiu correndo por ela. Como tivesse as mãos apertadas sobre o rosto,
chocou-se contra a parede ao lado. Aparentava desespero e desamparo tão grandes que
Lillis, instintivamente, estendeu a mão para socorrê-Ia.
— Lady Bárbara, está se sentindo mal? — perguntou, preocupada, ao ajudá-Ia a
recobrar o equilíbrio.
Cambaleando um pouco, Bárbara baixou as mãos. O rosto banhado em lágrimas era
a imagem da aflição pura. Ao reconhecer quem a amparava, gritou:
— Você?! Afastou-se e estapeou Lillis com tanta força que a deixou,
momentaneamente, petrificada. Lillis mal teve tempo de se recuperar quando foi agredida
outra vez pela moça em verdadeiro estado de histeria. Ao mesmo tempo, Bárbara gritava
palavras incompreensíveis e pulava, com as mãos estendidas, como se quisesse
estrangulá-Ia. Mas tão de repente como se atirara contra Lillis, foi afastada.
— Pare já, Bárbara! Pare! — ordenou sir Willem, sacudindo-a pelos ombros. — Caia
em si e comporte-se!
Aturdida, Lillis observou a atacante, que a encarou com olhar ensandecido.
— Eu a odeio! — gritou Bárbara como uma criança birrenta e, logo em seguida,
soluçou de maneira convulsiva. — Não vou deixar que você pegue o que é meu! Prefiro
vê-Ia morta!
Com isso, ela conseguiu apenas ser sacudida novamente por Willem.
— Fique quieta! Você não sabe o que está dizendo! Ele virou-se para o criado ao
lado e ordenou: — Leve lady Lillis lá para dentro. Eu cuido de lady Bárbara.
Arrastou a moça para longe, enquanto Lillis os fitava em estado de choque.
— Minha senhora? — disse o criado em voz seca, atraindo-lhe o olhar.
Ele a encarava com hostilidade indisfarçável, como se Lillis fosse a agressora, e,
com um gesto imperioso, apontou para a porta.
Lillis respirou fundo, endireitou os ombros e persignou-se duas vezes antes de entrar
no aposento. No instante seguinte, o criado fechava a porta às suas costas.
A aparência de Alexander de Gyer era horrorosa. Mais uma vez, ele estava em pé
diante da janela, mas, ao contrário da véspera, tinha as roupas, o rosto e as mãos
cobertos de fuligem. O queixo bonito mostrava a barba por fazer, e os cabelos estavam
em completa desordem. Ele dava a impressão de não ter dormido a noite inteira, aliás, de
acabar de retomar ao castelo.
— Meu senhor, o que aconteceu? — murmurou Lillis estranhando a timidez da
própria voz.
Alexander virou-se e ela estremeceu. Podia ver nas feições tensas e no olhar dele o
quanto estava furioso e na iminência de cometer uma violência. Todavia, ao falar, ele o
fez em tom baixo.
— Quatro casas foram completamente destruídas e várias outras ficaram
danificadas. Levamos quase a noite inteira para apagar o fogo.
Lillis crispou as mãos e forçou-se a perguntar:
— Alguém morreu?
— Não, graças a Deus. Na confusão, uma criança sumiu, mas apareceu agora de
manhã. Além da tragédia que poderia ter sido, eu me apavoro ao pensar no que o povo
de Gyer teria exigido de mim, caso a criança houvesse morrido.
A implicação era bem clara e, amedrontada, Lillis baixou o olhar.
— Como o fogo começou?
— Não foi por alguém de Dunsted — informou ele ao dar uns passos e parar à sua
frente.
Lillis forçou-se lhe encarar o olhar penetrante.
— Está aliviada? Pois não tem razão para tanto. Pensou que esse era o motivo para
todos se mostrarem tão tensos? Para a fitarem com hostilidade? Engana-se, Lillis de
Wellewyn. Vou lhe contar por que o meu povo quer que eu a entregue a ele a fim de
poder fazer justiça com as próprias mãos. — Ele falava com a maxilar quase cerrado, e as
palavras espremiam-se entre os dentes. — O fogo começou acidentalmente com uma
acha de lenha que ninguém viu cair da lareira. Mesmo quando perceberam, teria sido fácil
apagar as chamas com uns poucos baldes de água. Especialmente depois da chuva do
dia anterior e de o leito do rio Eel ficar a uns cinqüenta metros da casa. Mas graças ao
seu pai bondoso, ele está seco. O povo da vila teve de assistir, impotente, à destruição
das casas. Tudo porque não tinham um pouco de água para apagar as chamas iniciais.
Ridículo, se não fosse terrível!
Num misto de horror e pânico, Lillis o fitou enquanto os olhos enchiam-se de
lágrimas. Alexander de Gyer lhe dirigiu um olhar rancoroso e, agarrando-a pelos braços,
sacudiu-a. Numa voz exaltada, gritou:
— Não se atreva a me olhar dessa maneira! — A cada palavra, sacudia-a
novamente para enfatizar a fúria. Não quero a sua maldita simpatia! Muitas pessoas do
meu povo não têm mais um teto sobre a cabeça, e o inverno está prestes a chegar!
Passei a noite inteira ouvindo-lhes as lamentações e o choro dos seus filhos pequenos.
Preocupadas e aflitas, elas não sabem o que farão a fim de sobreviver. E tudo por causa
do seu pai! Do seu queridíssimo pai! — esbravejou ele. — Portanto, Lillis de Wellewyn,
não se atreva a ficar ai me fitando com lágrimas nos olhos! Não tenho um pingo de
compreensão para lhe dispensar.
Em vão, ela tentou se soltar, mas Alexander a segurava com força.
— Não quero a sua compreensão! — protestou ela. Não posso me sentir pesarosa
com o que aconteceu? Não fui eu quem represou o maldito rio!
— Não, não foi — concordou ele, soltando-a. — Mas foi o seu pai. Nós dois, a
senhora e eu, teremos de pagar pelos erros dele.
Havia algo muito definitivo na declaração e na maneira de Alexander encara-Ia. Lillis
estremeceu de apreensão.
— O que o senhor quer dizer?
— Que tomei uma decisão quanto ao que fazer com a senhora.
As novas palavras a deixaram petrificada. Ele parecia furioso o suficiente para
entregá-Ia à violência do povo. A perspectiva a apavorava, pois sabia que sofreria morte
lenta e dolorosa. Tinha aprendido a ser corajosa diante de cem crianças indisciplinadas,
mas não para enfrentar adultos sedentos de vingança.
— Tomou mesmo? — conseguiu murmurar com voz trêmula.
— Sim — afirmou Alexander, fitando-a. — Vamos nos casar, a senhora e eu. O
único jeito para me livrar daquela represa é ter o controle da terra onde foi construída.
Apenas o seu marido poderá ter esse direito. Mas a senhora não se casará com Jason de
Burgh, como o seu pai planejou. O seu marido serei eu!
Alexander sabia que não deveria ter se encontrado com Lillis nesse momento.
Estava com raiva, aborrecido e muito, muito cansado. As emoções tinham se cristalizado
como gelo, deixando-o entregue ao ódio puro. Furioso como se encontrava, não podia
tratá-Ia a não ser de maneira grosseira e desagradável. Mas cavalgara de volta ao castelo
de Gyer depois de passar a noite inteira e o amanhecer lutando contra o incêndio, que só
fora dominado após causar sérios danos. Enquanto trabalhava ao lado dos seus homens,
tinha decidido o que fazer.
Eles se casariam. Ele e Lillis de Wellewyn. Não sabia por que não havia pensado
antes nessa solução. Era perfeita. Os dois se casariam e ele obteria o controle da terra
através do consórcio. Em seguida, destruiria a represa, acertaria as contas com Jaward e
De Burgh e, então, poria Lillis em liberdade. Se desejasse, ela poderia ir embora para
Wellewyn. Estaria livre para fazer o que quisesse.
Ele a tinha amedrontado, mas não fora a sua intenção. Tão logo Lillis havia entrado
no aposento, ele notara a sua ansiedade, palidez e tensão. As olheiras fundas provavam
o cansaço de uma noite maldormida.
Fora errado recebê-Ia logo após ter comunicado a decisão a Bárbara, tarefa difícil e
desagradável. A discussão com a noiva o deixara duplamente enraivecido, o que
atrapalhara a sua conversa com Lillis de Wellewyn.
Ao contemplar-lhe o rosto lindo desfigurado pelo choque, sentiu-se constrangido...
— O senhor não pode ter essa intenção! — murmurou ela, incrédula.
— Tenho, sim. Vamos nos casar. Amanhã. Não existe outra solução.
Lillis sacudiu a cabeça e arregalou os olhos com expressão de pânico.
— Não! Eu não vou me sujeitar a isso!
— Vai, sim — afirmou ele, dirigindo-se à escrivaninha.
— De jeito nenhum! — gritou Lillis às costas dele. Alexander virou-se e, apoiado na
escrivaninha, cruzou os braços no peito.
— A senhora vai se casar comigo. Caso se negue, conduzirei o meu exército inteiro
a Wellewyn e destruirei o lugar completamente. Matarei todos os homens, mulheres e
crianças que cruzarem o meu caminho. Deixarei os meus soldados fazerem o que
quiserem com os sobreviventes. A senhora compreende o horror que isso significa?
Ela compreendia, Alexander percebeu, pois seus olhos arregalaram-se de pavor.
— Não acredito — murmurou ela. — O senhor é um homem pacífico. Seria incapaz
de tamanha atrocidade.
Alexander surpreendia-se com a própria insensibilidade. Era como se houvesse
morrido e outra pessoa, cheia de rancor e ceticismo, ocupasse-lhe o corpo.
— Ontem, eu teria concordado com a senhora, mas hoje, não posso pensar em mais
nada que me desse tanto prazer. Pense o que quiser a meu respeito, mas, se não
acreditar na minha ameaça, estará condenando o povo de Wellewyn a morte certa. Juro,
em nome de Deus.
— Mas o casamento não será legal — disse Lillis, e Alexander notou a nota de
esperança na sua voz. — Não será legal — repetiu em tom triunfante e brilho no olhar. —
Não existe um contrato de casamento. Sem um, aprovado pelo meu pai e pelo rei, nossa
união não terá validade. A terra não será sua.
— Combinei com o padre Bartholomew, do mosteiro, para preparar o contrato. Ele
ficará pronto hoje à tarde. Eu e a senhora o assinaremos diante de testemunhas. Amanhã
de manhã, teremos uma grande cerimônia de casamento, com missa, assistida pela vila
inteira. A senhora se comportará como qualquer noiva feliz. De boa vontade, ficará diante
do altar ao meu lado e repetirá os seus votos em voz alta e clara. A seguir, haverá uma
grande festa com música e dança. Nós dois tomaremos parte ostensiva para que todos
nos vejam. O casamento será consumado na nossa noite de núpcias. No dia seguinte, a
sua companheira Edyth levará o contrato e a evidência do lençol para Jaward em
Wellewyn. Eu gostaria de vê-Io, então, se negar a reconhecer a legalidade do nosso
casamento.
Ao pensar na reação de Jaward, Alexander calou-se e sorriu. Como adoraria ver o
rosto do velho inimigo quando visse o lençol e lesse a carta que ele mandaria junto.
Arruinada, a filha querida estava presa a um casamento sem amor, e os planos para
destruir Gyer viravam-se contra ele. Tudo num golpe de mestre. Preço nenhum seria alto
demais para presenciar tal cena.
— Também mandarei uma cópia do contrato ao rei requisitando-lhe a aprovação —
Alexander prosseguiu. — Terei de apresentar uma justificativa para a nossa
desobediência à lei, naturalmente. Talvez eu explique a pressa do casamento alegando
que o nosso filho corria o risco de nascer menos de nove meses após a data da nossa
união oficial. Não se opõe a isso?
Se fosse possível, Lillis de Wellewyn teria empalidecido mais ainda. Tremendo da
cabeça aos pés, cambaleou até a cadeira mais próxima e sentou-se.
— O senhor está muito bravo agora — começou ela num murmúrio. — Dessa forma,
não consegue refletir com clareza. Daqui a um ou dois dias, poderá analisar esse plano e
verificar como está errado. Eu lhe suplico, Alexander de Gyer, não faça isso.
Alexander desejava que ela estivesse certa. Esperava voltar a ter sensibilidade, a
pensar de maneira calma, arrepender-se do que ia fazer. Ela era uma mulher linda e
admirável. O mínimo que lhe devia era remorso sincero.
— Sinto muitíssimo — disse, desviando o olhar. Sei que a situação é muito
desagradável.
— Desagradável?! — Lillis repetiu levantando-se. Desagradável. Passei dez anos no
convento sonhando com o dia em que seria livre para me casar, ter os meus filhos e a
minha própria casa. Agora, o senhor me diz que sou forçada a uma aliança de
conveniência, sua claro, para poder destruir a represa. Pois eu não jurei que faria isso?
Bastava confiar em mim! — A voz lhe falhou, e Alexander sentiu uma fisgada no coração.
Continuava incapaz de fitá-Ia. — Sei que ama Bárbara — prosseguiu ela quando pôde. —
Como tem coragem de fazer isso à sua noiva e a mim?
— A senhora não sabe nada sobre os meus sentimentos com relação à minha prima
— rebateu Alexander em tom frio. — Bárbara é jovem, e eu me esforçarei para que ela
faça um bom casamento. Quem tem de pagar o preço pelos erros dos nossos pais somos
nós, a senhora e eu. Desistirei da mulher com quem pretendia me casar, e a senhora, dos
seus sonhos. Mas não precisa se afligir temendo minhas investidas amorosas. Não
exigirei os meus direitos de marido e não a forçarei a permanecer em Gyer representando
uma mentira. Tão logo a terra seja legalmente minha, a senhora estará livre para partir,
para ir para Wellewyn, caso queira, embora tenha de continuar como minha mulher.
Poderá viver como e onde desejar. Irá contar com uma pensão monetária a fim de não
passar necessidade.
— Muita generosidade da sua parte, Alexander de Gyer! — exclamou Lillis num
misto de sarcasmo e exaltação. — Se teimar em agir dessa forma, não estará me
aprisionando pelo resto da vida? Poderei morar onde quiser, mas continuarei sendo a sua
prisioneira tanto quanto se estivesse trancada naquele quarto imundo no alto do castelo.
Teria sido preferível continuar no convento. Pelo menos, a escolha seria minha.
Alexander fez um gesto de impaciência com a mão.
— Tarde demais para se pensar em possibilidades passadas e perdidas. Não temos
escolha, nenhum de nós, a não ser aceitar o que terá de ser e tentar encarar a situação
da melhor maneira possível. A senhora deveria se sentir grata por eu estar disposto a lhe
garantir a liberdade mencionada. Legalmente, após nos casarmos, a senhora poderia ser
obrigada a morar em Gyer, ou onde me agradasse instalá-Ia.
Lillis lançou-lhe um olhar irado e dirigiu-se a uma das janelas.
— Tanta generosidade me comove, meu senhor. É muito fácil me falar como tudo
será. Sua vida não sofrerá grandes mudanças. Continuará convivendo com a sua família
e com o seu povo. Isso sem falar que sempre gozou de liberdade. Eu, no entanto, apenas
sonhei com ela. Não a conhecerei jamais — concluiu em tom melancólico.
Alexander começou.a se comover. A tristeza na voz de Lillis provocava-lhe uma
simpatia indesejável. Sentia vontade de tomá-Ia nos braços e confortá-Ia dizendo que,
afinal, não seria tão ruim assim. Queria demonstrar compreensão quanto aos seus
sentimentos, prometer cuidar dela e tratá-Ia bem enquanto permanecesse em Gyer.
Todavia, não encontrava voz para externar os pensamentos. Em silêncio, viu-a baixar a
cabeça e, novamente, lutar contra as lágrimas.
Foi um esforço inútil, e ela chorou baixinho por alguns minutos, os ombros tremendo
ligeiramente e as mãos enxugando as faces.
— Lillis...
— Não, por favor. Já disse o suficiente, meu senhor, e eu não gostaria de ouvir mais
nada. Entendo perfeitamente a minha situação. — Calou-se por um instante e suspirou.
— Sabe, acredito em aceitar-se o destino. O senhor não poderia ter escolhido uma vítima
melhor para o seu plano. Não tenha medo, eu não terei um acesso de histeria.
— Respeito os seus sentimentos, Lillis de Wellewyn, e prometo respeitar a sua
pessoa. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para não constrangê-Ia na posição de
minha mulher.
Calada, Lillis sacudiu a cabeça.
Alexander sentia-se desanimado. Toda a raiva havia desaparecido, e a
insensibilidade esvaíra-se diante da passividade de Lillis. Contudo, ele não se arrependia.
Era o senhor de Gyer e tinha tomado a decisão certa.
— Vamos — disse ele, estendendo-lhe a mão. Vamos ao salão para comunicar às
pessoas o nosso casamento. O meu povo ficará contente com a notícia e não falará
mais em afiar os machados. Você será amada tão logo a represa seja destruída —
garantiu, deixando de lado o tratamento cerimonioso.
Ao aproximar-se de Alexander e colocar a mão na dele, o rosto de Lillis era uma
máscara sem expressão.
Manteve-se imóvel como se não tivesse vida em seu âmago, e ele, sem se dar
conta, levantou a outra mão e a acariciou na face.
— Tudo dará certo, Lillis — prometeu baixinho. Tudo dará certo.
Ela não se mexeu, nem respondeu. O rosto pálido não revelava nada, exceto
exaustão. Isso era algo que ele também sentia. Tão logo comunicassem a notícia, pensou
enquanto se dirigiam ao salão, ele iria dormir como um homem morto.

CAPÍTULO VII
— Estou extenuado, Willem. Isso não pode esperar até mais tarde?
Willem seguiu o irmão pela escada acima.
— Não, Alex. Por favor, deixe eu falar com você agora. Não vou levar mais do que
uns poucos minutos. Alexander abriu a porta do quarto, e os dois entraram. — Fale,
então, mas seja breve — recomendou ao sentar-se na cama e começar a descalçar as
botas.
— Alex, tenho uma sugestão que talvez possa ajudá-Io — começou Willem em tom
cauteloso.
— Tem mesmo?
Alexander arqueou as sobrancelhas. Depois da gritaria e dos protestos da família
inteira havia poucos instantes, todos contra os seus planos de se casar com Lillis de
Wellewyn, ele só podia desconfiar da idéia a ser apresentada pelo irmão.
Willem assentiu com a cabeça e, para surpresa de Alexander, enrubesceu.
— Eu gostaria de me oferecer para me casar com Lillis de Wellewyn no seu lugar.
Não há razão para você fazer esse sacrifício. Você e Bárbara estão noivos desde a ado-
lescência, e eu não tenho compromisso algum. A terra se juntará a Gyer, não importa qual
de nós dois se case com a herdeira. Seria melhor se fosse eu, acredito.
Por uma razão inexplicável e apesar de saber que o irmão só estava tentando
colaborar, Alexander sentiu vontade de esmurrá-Io. Com firmeza, respondeu:
— Não. Não permitirei que você se sacrifique por minha causa. Serei eu quem se
casará com ela. Sou o senhor de Gyer e nada mais certo do que eu arcar com as res-
ponsabilidades da minha decisão.
Com o olhar fixo no chão, Willem persistiu:
— Não será exatamente um sacrificio — disse, baixinho.
— O quê? — perguntou Alexander, certo de não ter ouvido bem o irmão.
Num gesto impetuoso, atirou uma das botas no chão.
Willem, por sua vez, levantou o olhar.
— Eu disse que não será sacrifício me casar com Lillis de Wellewyn. Eu a acho
muito atraente e, embora a conheça há pouco tempo, considero-a uma mulher admirável.
Alexander ficou tão aturdido que, por instantes, não encontrou palavras para se
expressar. Algo no seu íntimo o instigava a dizer a Willem que Lillis lhe pertencia e, se o
irmão quisesse conservar a cabeça no pescoço, deveria se manter longe dela.
Esforçando-se para falar com calma.
— Willem, esse vai ser um casamento para atender as exigências da situação, mas
não permanente. Prometi, que tão logo a terra esteja no meu nome, Lillis ficará livre para
ir embora. Atração e simpatia não tem nada a ver com nossa união.
Willem enrubesceu mais sob o olhar severo do irmão.
— Entendo o que lhe ofereceu, Alex, mas creio que eu poderia dar-lhe algo mais.
Você sabe que não me sinto muito à vontade com mulheres, mas acho que Lillis e eu nos
daríamos bem. Pelo menos, ela teria alguém com quem compartilhar a sua vida em vez
de permanecer sozinha. Sei que não nos amamos. E como poderíamos, se nos
conhecemos há tão pouco tempo? Mas tenho minhas razões para acreditar que ela não
seria contrária à idéia.
— É mesmo? — Alexander demandou, furioso, pondo-se em pé. — E o que o leva a
pensar que Lillis de Wellewyn se sente assim? Ela lhe disse isso?
— Não, Alex, nós mal nos falamos — garantiu Willem, recuando alguns passos. —
Nunca ficamos sozinhos o tempo suficiente para poder conversar sobre esse assunto.
Todavia, ela me trata com amabilidade, e eu não me sinto tão nervoso na sua presença
como acontece com outras mulheres. Simplesmente acho que nós dois combinamos.
Você não deseja poder se casar com Bárbara? — perguntou, confuso.
Depressa, Alexander virou-se de costas. Bárbara! A encantadora priminha. Ele não
daria tudo para poder se casar com ela? Passara longos anos sonhando com isso,
acostumara-se com ela, e sentimentos como esses não morriam facilmente. Talvez não a
amasse como um homem deveria amar a mulher. Gostava dela e, certamente,
reconhecia-lhe as qualidades desejáveis numa esposa. Contudo, o seu comportamento
desagradável dessa manhã aflorou-Ihe na mente. Havia esperado tal reação. Com a
mesma rapidez, reviu Lillis chorando baixinho e aceitando o destino. Se fosse revelar a
verdade, contaria como sentira vontade de expulsar Bárbara do aposento a fim não ouvir-
lhe as lamúrias. Por outro lado, tinha sentido a tentação de aconchegar Lillis entre os
braços para que se reconfortassem mutuamente.
— Vou me casar com Lillis de Wellewyn amanhã, Willemo Lamento se você alimenta
algum tipo de afeição por ela, mas minha decisão permanece de pé. Agora, se me der
licença, quero descansar. Estou exausto.
Willem manteve-se calado e imóvel às costas dele. Uma batida forte soou na porta,
e John Baldwin irrompeu pelo aposento adentro sem esperar a permissão de Alexander.
— Muito bem! — gritou o recém-chegado, furioso, logo depois de bater a porta com
estrondo. — Vim para fazer justiça, primo!
Com apenas esse aviso, o homem ruivo atirou-se contra Alexander, acertando-lhe
um murro na face esquerda. O golpe o fez cambalear dois passos para trás, mas não o
derrubou. Alexander não tentou revidar o insulto, apenas passou a mão na face dolorida.
— Olá, John — cumprimentou e fez uma careta de dor. Tinha de reconhecer a força
do primo, um homem pequeno mas capaz de desferir um murro poderoso. Eu esperava
algo como isso vindo de você.
— Bárbara está no quarto, chorando — informou John Baldwin em voz rancorosa e
com os punhos cerrados. Teria sido melhor se você a tivesse matado.
Alexander não tinha tempo e disposição para perder com esse tipo de conversa. Em
voz seca, disse:
— Lamento muito, John. Você sabe que, se pudesse evitar, eu jamais magoaria
Bárbara. Gosto dela profundamente.
— Gosta dela?! — John Baldwin repetiu, incrédulo. — Cretino! Você a pôs de lado a
fim de se casar com a vagabunda de Wellewyn e ainda diz que gosta dela?
Atirou-se novamente sobre Alexander, mas este conseguiu segurar-lhe os pulsos.
Vindo por trás, Willem o forçou a baixar os braços. Dominado, John teve de desistir do
ataque. Com olhar irado, debateu-se por um instante e soltou-se.
— Saia daqui! — ordenou Alexander. — Não quero conversar com você nesse
estado.
— Você não gosta nem um pingo da minha irmã. Ela lhe dedicou amor quase a vida
inteira e, agora, você a destrói por causa de um pedaço de terra e de Lillis de Wellewyn.
Faça bom proveito de ambos. Mas mantenha-se longe de Bárbara. Cuidado. Estou
avisando.
Saiu em seguida, batendo a porta com a mesma força de quando entrara.
Willem fitou o irmão com os olhos arregalados.
— Se mudar de idéia quanto à minha sugestão, Alex, estarei pronto. Até no último
minuto.
— Não perca tempo esperando, Willem, não mudarei de idéia — garantiu Alexander,
sacudindo a cabeça.
O irmão foi embora, e ele despiu-se. Mas em vez de se deitar logo, sentou-se na
beirada da cama e fIxou o olhar na porta de comunicação com o quarto ao lado.
Ela estava lá. Ela e a sua companheira Edyth. Imaginava se Lillis sentia-se bem, ou
se, como ele, encontrava dificuldade em descansar. Havia um jeito, ignorado por Lillis,
para ele abrir a porta. Bastava enfiar um alfinete para destravar as duas fechaduras. O pai
tinha concebido o subterfúgio para que a mulher nunca pudesse se isolar efetivamente.
Alexander a usaria caso houvesse necessidade, se Lillis de Wellewyn lhe negasse
entrada no quarto depois de se tornar a sua esposa.
Alexander continuou olhando para a porta por mais alguns momentos e, depois,
deitou-se. Estava incrivelmente cansado e, tão logo se acomodou no colchão macio de
penas, caiu em sono profundo. Dormiu até um criado vir avisá-lo de que o padre
Bartholomew tinha chegado com o contrato de casamento.
O tempo tinha perdido o signifIcado para Lillis depois da sua conversa com
Alexander de Gyer. Ela havia se esforçado ao máximo para fazê-Io mudar de idéia, mas,
no fim, fora forçada a admitir o inevitável.
Tão logo aceitara o destino, Lillis havia caído num estado de desânimo profundo.
Tinha consciência de coisas acontecendo à sua volta, de pessoas falando, de ela própria
mover-se, respirar e continuar viva, mas não tinha nenhum envolvimento com nada disso.
Alexander de Gyer a havia levado ao salão onde os olhares de todos dirigiram-se a
eles. Feita a comunicação do casamento, todos reagiram. Os líderes da vila, dispostos a
pedir a sua cabeça, respiraram, satisfeitos e aliviados; Candis e Justin aplaudiram; os
gêmeos, estarrecidos, abriram a boca; Willem não escondera o choque; Bárbara,
histérica, tinha gritado enquanto o homem, que Lillis concluía ser o irmão dela, tentava
acalmá-Ia; e tia Leta havia desmaiado.
Finalmente, fora Willem quem a tinha levado de volta para o quarto, e Lillis sentira-
lhe a simpatia. Ele havia lhe apertado a mão e beijado o rosto, a primeira vez que um
homem, além do pai, fazia isso. Depois, tinha garantido que tudo daria certo. No quarto,
Edyth se encarregara dela, pois Lillis sentia-se incapaz de cuidar de si própria.
Sem saber como, ela encontrara forças para contar à companheira o que havia
acontecido e as duas passaram o resto do dia sentadas lado a lado. Edyth tinha chorado
o tempo todo, mas Lillis não se lembrava do que havia feito, a não ser ficar sentada. A
certa altura, Alexander de Gyer tinha aparecido acompanhado do padre. Em silêncio, ela
havia assinado o contrato de casamento. Foi conduzida pela escada, através do salão e
para fora do castelo até a capela na muralha interna. Ela não sabia bem quem a havia
levado, mas tinha a impressão de ser sir Willem. Lembrava-se de haver sido saudada por
uma pequena multidão. No interior, sem prestar atenção a ninguém, vira apenas
Alexander de Gyer aguardando-a para levá-Ia até o altar.
Atordoada, Lillis repetiu os votos matrimoniais, porém, mais tarde, não foi capaz de
lembrar-se do que havia prometido. Alexander também os fez, fitando-a com os
lindíssimos olhos verdes. Com os cabelos escuros escovados e o rosto bem barbeado,
ele estava mais atraente do que nunca. Durante o tempo todo, segurou-lhe a mão como
se temesse perdê-Ia. Terminada a cerimônia e depois de receber, do padre, o beijo
simbolizando paz, Alexander a beijou nos lábios. Essa era a segunda vez que ela recebia
tal carícia de um homem, e a primeira,na boca. De um lugar próximo, chegaram os
soluções de Bárbara, e Edyth também recomeçou a chorar. Ao ouvi-las, Alexander
contraiu os músculos da face, levando Lillis a crer que ele lamentava a perda da prima.
Com o braço à volta da sua cintura, conduzi-a para fora, onde o povo os aclamou. Pouco
depois, entravam no castelo.
Seguiu-se uma grande festa. O marido acompanhou-a a uma mesa longa, sobre
uma plataforma, na frente do salão. Ele a fez sentar-se num lugar de honra, e acomodou-
se a seu lado. Havia musica e os convidados além de se deliciar com o banquete,
dançaram e se divertiram durante horas. Lillis não se lembrava do que havia comido e se
bebera vinho. A única coisa de que tinha consciência era da mão de Alexander na sua. Às
vezes, ele apertava-lhe os dedos e, em outras, acariciava-os. Durante esse tempo todo,
não trocaram uma única palavra.
Finalmente, tia Leta aproximou-se, acompanhada das suas damas, e levou Lillis para
o quarto no segundo andar.
Edyth estava lá, pálida e lacrimosa.
— Ah, minha querida — soluçou ela.
— Por favor, Edyth, não chore mais — Lillis murmurou em voz fraca. — Tudo já
terminou.
— Ainda não — discordou tia Leta sem a aspereza habitual. — Falta ainda a
consumação do casamento. Só então, tudo estará terminado. Apressem-se — disse, ace-
nando para as quatro damas. — O senhor de Gyer não vai demorar a chegar, e a noiva
deverá estar pronta.
— Mas... — gaguejou Lillis quando as mulheres começaram a despi-Ia.
— Quietinha, não temos tempo para conversar — avisou tia Leta. — Depressa,
Jehanne, desmanche a trança. Os cabelos precisam ser escovados antes que nós a po-
nhamos na cama.
— Edyth? — chamou Lillis, procurando a criada com o olhar.
Viu-a num canto sombrio do quarto, banhada em lágrimas.
— Ai, minha querida. Minha pobre e meiga menina — murmurou, a criada entre
soluços.
Tia Leta soltou uma exclamação de impaciência.
— Pobre, imagine! Você acha que o meu sobrinho vai lhe fazer algo que os homens
não tenham feito às suas mulheres desde que Deus criou Adão?
As palavras despertaram a raiva adormecida de Lillis, fazendo-a reagir. Coberta
apenas pela camisa transparente, empurrou as mulheres.
— Não me toquem mais! — ordenou. — Não quero ser tratada dessa forma como se
fosse propriedade de alguém. Vão embora todas, menos Edyth — disse apontando para a
porta.
— Não seja tola — repreendeu tia Leta. — Só sairemos daqui depois de
testemunhar a consumação do casamento. É tão ignorante, menina, que não conhece os
costumes?
Lillis sentiu-se sufocar. Tremendo dos pés à cabeça, afastou-se das mulheres até
chocar-se contra a parede.
— Não — murmurou em pânico. — Não, eu não conheço... Testemunhar a...
— A consumação do casamento — confirmou tia Leta. — Se isso não acontecer,
como Alexander vai tomar posse da terra? E como ele poderá provar a veracidade da
consumação se não houver testemunhas? Sem elas, o seu pai anulará o casamento num
abrir e fechar de olhos. Agora, pare de se comportar como criança e venha se deitar, ou
seu marido e os homens dele a encontrarão aí seminua.
Alexander observou Lillis se afastar com tia Leta e as damas em direção da escada.
Ela as seguia no mesmo estado de alheamento em que tinha passado o dia. Ele também
se sentia perplexo com a realidade e a rapidez dos eventos. Era compreensível que Lillis
se deixasse afetar mais do que ele. Não tinham trocado uma única palavra o dia inteiro.
Ele só lhe ouvira a voz na hora de fazer os votos na capela. Não tinha certeza de que ela
se lembrasse de tê-Ios feito. Aliás, suspeitava de que, se não lhe houvesse segurado a
mão, Lillis teria sofrido um colapso e caído ao chão.
A festa do casamento fora um verdadeiro pesadelo, com barulhos conflitantes e um
desfIle de rostos. A população da vila e os habitantes do castelo dançavam, riam e não
perdiam a oportunidade de desejar felicidades ao senhor e à nova senhora de Gyer.
Bárbara, sentada à ponta da mesa, não escondia a tristeza e chorava sem parar. Willem
dava a impressão de ter perdido o melhor amigo, e a noiva, num silêncio sepulcral,
mantinha o olhar vago. Fora um alívio quando tia Leta a viera buscar a fim de prepará-Ia
para a noite de núpcias. Quando a união se consumasse, tudo estaria terminado. Para
Lillis, pelo menos. Ele não teria descanso até a última pedra da represa do rio Eel ter sido
removida.
Alexander não se sentia animado com o que tinha a fazer aquela noite. Não seria a
consumação feliz que sempre imaginara compartilhar com Bárbara. Aliás, a sua relação
com Lillis de Wellewyn, não, Lillis de Gyer agora, não prometia ser nada além de uma
experiência desagradável para ambos. Depois de tudo acabado, ele encontraria uma ma-
neira de recompensá-Ia pela humilhação e de indenizá-Ia pelo valor da terra e da
liberdade perdidas.
Esperou passar um quarto de hora e, acenando para os homens escolhidos como
testemunhas, levantou-se. Eram o padre Bartholomew, que havia celebrado a cerimônia,
o administrador do castelo, o capitão dos seus soldados e um de seus amigos de maior
confiança. Estes, já avisados, levantaram-se para acompanhá-Io. Em silêncio, os cinco
subiram a escada, porém, ao se aproximar da porta do quarto, vozes exaltadas de
mulheres os fizeram parar.
— Não quero ser tratada como uma égua reprodutora. Sei muito bem cuidar de mim
mesma.
— Ah, eu deveria saber que Lillis de Wellewyn não tinha boas maneiras. Igualzinha
ao pai.
— Meu pai?! Se quer um bom exemplo de grosseria, olhe para o seu sobrinho.
Qualquer homem que se casa com uma mulher por causa de um...
Alexander escancarou a porta e entrou no quarto. Deparou-se com as mais variadas
expressões. As damas mostravam surpresa, Edyth, tristeza profunda, tia Leta e Lillis,
raiva incontida. Com olhar interrogativo, fitou a noiva. Ela estava mais linda do que nunca.
Vestindo apenas uma camisa transparente, a cabeleira loiro-platinada caindo-lhe pelas
costas até os quadris e os olhos azuis faiscando, ela lembrava uma amazona lendária
pronta para entrar em batalha. Ele achou engraçado e irônico uma noiva receber o noivo
com tal aversão. Se não fosse o fato de Jaward de Wellewyn, caso pudesse, usar a má
vontade da filha como um argumento da ilegalidade do casamento, ele teria rido.
Mas, irritado com a possibilidade de perder a terra pela qual tinha sacrificado tanta
coisa, dirigiu um olhar sombrio para Lillis. Sem uma palavra, aproximou-se, viu-lhe a
expressão de desafio e a segurou pelos ombros.
— Madame — cumprimentou-a em voz baixa, mas a única resposta foi um protesto
ríspido.
Com força, Alexander apertou os dedos em sua pele macia e viu, com satisfação, a
compreensão aflorar-lhe ao olhar. Curvou-se e disse baixinho:
— Vai fazer isso de boa vontade, madame, sem reclamações e exatamente como
quero. Caso contrário, cumprirei a minha ameaça e destruirei Wellewyn ainda esta noite
como um presente de casamento, minha querida. Dentro de uma hora, estarei marchando
com todos os meus homens disponíveis. O seu pai morrerá pelas minhas mãos antes de
o sol subir ao céu amanhã. Vai ceder? — indagou encarando-a.
— O senhor é um monstro — disse ela entre os dentes para que só ele a
ouvisse.
— Talvez, mas você cede?
O peito de Lillis arfava com a respiração ofegante, e os lábios comprimiam-se numa
expressão de ódio.
— Cede? Insistiu Alexander.
— Sabe muito bem que sim.
— Ótimo.
Com as mãos nos seus ombros, manteve-a encostada à parede enquanto virava a
cabeça para trás e dirigia-se às outras pessoas no quarto:
— Examinem a pureza da cama.
Os quatro homens e as quatro damas apressaram-se a obedecê-lo. Colcha,
cobertores, lençóis, bem como travesseiros e cortinas passaram pela inspeção de oito
pares de mãos.
— Tudo imaculadamente limpo, meu senhor. — declarou o administrador do castelo
quando havia terminado.
Voltando a encarar Lillis, Alexander pediu.
— Padre Bartholomew, verifique a disposição da noiva.
o sacerdote limpou a garganta e, constrangido, indagou:
— Dispõe-se a ser possuída pelo senhor seu marido, lady Gyer? De livre e
espontânea vontade?
Ninguém jamais o tinha fitado com tamanho desdém como a noiva nesse momento,
reconheceu Alexander. Apenas movendo os lábios, Lillis disse:
— O senhor me obriga a mentir. — Em voz alta, declarou: — Sim, eu me submeto à
posse de livre e espontânea vontade.
Tendo pronunciado as palavras, ela ergueu o queixo num gesto de orgulho. Nesse
instante, Alexander soube que nunca mais conheceria outra mulher igual a ela. Uma
imensa satisfação o dominou. Logo Lillis seria a sua mulher. Apenas dele. Isso lhe
provocou remorso pela humilhação que lhe infligiria.
Com uma das mãos, rasgou e arrancou-lhe a camisola deixando-a completamente
exposta. Em seguida, ignorando o seu protesto de indignação, ergueu-a nos braços e
dirigiu-se à cama.
— Reconheçam a pureza da noiva — ordenou em tom imperioso ao deitá-la e cobri-
la depressa com a colcha para que ninguém visse sua nudez.
Cabeças curvaram-se por sobre os ombros largos de Alexander, mas recuaram
quando ele virou-se. Maldizendo a fraqueza por forjar um elo fraco na corrente de seus
planos, ele demandou.
— Reconheceram?
Oito cabeças acenaram afirmativamente.
Alexander virou-se e, mais uma vez, fitou Lillis. Agarrada à colcha com ambas as
mãos, ela não escondia a apreensão. Parecia estranho que ele, nessa situação, com a
noiva revoltada e o quarto cheio de espectadores, se sentisse excitado e ansioso por
possuí-la. Mas Lillis era adorável e tão mais perfeita de corpo que qualquer outra mulher
que ele vira nua. E era dele. Estava constrangida e amedrontada, ele podia ver na
expressão dos seus seus olhos. Mas a experiência seria de ambos. Ele compartilharia da
humilhação do que estavam prestes a fazer diante das testemunhas. Contudo e de
acordo com a reação do corpo, a participação dele seria completa. Por outro lado, Lillis
ficaria sabendo, essa noite, que Alexander de Gyer jamais exigiria dela mais do que a si
próprio. Com isso em mente, começou a se despir.
Quando terminou, virou-se devagar e afastou os braços do corpo.
— Reconheçam o estado do noivo — ordenou ignorando o rubor das damas e o
choro convulsivo de Edyth de Cantfield, que, como tia Leta, mantinha a cabeça baixa.
— Reconhecemos, meu senhor — declarou o capitão dos soldados.
Sem outra palavra, Alexander deitou-se e fechou as cortinas à volta da cama até ele
e a noiva ficarem em quase absoluta escuridão. Sentindo o corpo trêmulo de Lillis, pôs
uma das mãos em sua boca e murmurou-lhe ao ouvido:
— Mantenha silêncio e confie em mim. Terminarei este tormento o mais depressa
possível.
Lágrimas molharam-lhe a mão, mas Lillis aquiesceu com um gesto de cabeça.
Afastando todos os pensamentos da mente, Alexander cobriu-lhe o corpo. Sentiu-o tremer
convulsivamente, mas nem por um instante ela deixou de seguir-lhe as instruções.
Também não fez ruído algum, exceto quando gemeu baixinho ao ser deflorada. Ele
continuou a segura-la com firmeza enquanto terminava o ato. Nunca havia sentido tão
pouca satisfação ao derramar sua semente numa mulher e rezava a Deus para que um
filho não fosse concebido nessa união tão infeliz.
Baixinho, Lillis debulhava-se em lágrimas, e Alexander sentiu um grande aperto no
coração.
— Acabou, Lillis — murmurou ele, aconchegando-a entre os braços. — Você é a
minha mulher agora. Só mais um pouquinho de paciência a tudo ficará em paz. Prometo.
Seu corpo estava morno e carente de encontro ao dele. Lillis colocou o rosto na
curva de seu pescoço, onde uma esposa poderia encontrar conforto vindo do marido.
Para minorar-lhe a infelicidade, Alexander tentou dá-Io. Detestava ter de afastá-Ia como
precisava e, quando o fez, sentou-se depressa, dando-lhe um momento para entender o
que aconteceria. Abriu as cortinas, enrolou Lillis na colcha, ergueu-a nos braços e
afastou-se da cama e para trás das testemunhas.
Oito pares de olhos os fitaram e, depois, caíram no lençol manchado de sangue.
— Tragam lady Edyth até a beira da cama — ordenou Alexander.
Chorando no seu ombro, Lillis suplicou:
— Não, não...
Quando Edyth foi arrastada por tia Leta até a cama, Alexander deu nova ordem:
— Examinem a cama. Reconheçam a perda da virgindade por lady Lillis.
Soluçando, Lillis levantou a mão e o estapeou. Consciente de merecer o golpe, ele
apenas a segurou com mais força.
— Reconhecemos, meu senhor. — Disse o administrador.
— Afirme, minha mulher, que esse é o sangue da sua pureza, que não houve fraude
alguma nessa questão. — Exigiu ele de Lillis.
Ela concordou com a cabeça e, num esforço imenso, murmurou.
— Sim.
— Jurem, então, todos os senhores, que Lady Lillis tornou-se verdadeiramente, a
minha mulher. A quem os questionar sobre esse assunto, respondam que Lillis de
Wellewyn uniu-se a Alexanderde Gyer através dos rituais da igreja e da carne. Dessa
forma, o nosso casamento passa a ser completo e inatingível.
Todos os presentes, exceto Edyth, juraram.
— Pegue o lençol e o guarde em segurança. Leve Lady Edyth para o quarto que lhe
foi preparado. Amanhã cedo traga-a à minha presença para que eu possa mandá-Ia a
Jaward Wellewyn com as provas do casamento da fIlha. Os demais podem se retirar.
Com essas palavras, Alexander dirigiu-se à porta de comunicação com o quarto
dele, levando a esposa. Tudo lá estava como ele havia ordenado. Aliviado, acomodou
Lillis na cama.
O colchão era macio, e o quarto estava aquecido com as chamas da lareira.
Alexander desenrolou a colcha deixando Lillis nua. O lençol estava frio, porém ela tentou
relaxar, esforçando-se para não sentir o latejar onde Alexander a tinha machucado.
A vida inteira esperara que o momento cruciante provocasse dor. Toda menina-
moça, ao se inteirar e compreender o desenrolar da vida, não sabia que a rendição do
corpo a um homem doeria? A dor não seria o sacrifício para provar a sua pureza? Não se
tratava de algo glorioso, um sinal de que seria esposa e mãe dedicada ao marido e aos
filhos? Não era esse o significado da entrega da virgindade?
— Lillis. — A voz percorreu-lhe o corpo tenso, e ela percebeu como tinha as mãos
crispadas. — Já está feito — murmurou ele em tom tranqüilizante. — Deixe-me cuidar de
você agora. Só esta noite.
Lillis recuou quando Alexander pôs um pano úmido e quente entre as suas pernas,
mas ele disse:
— Está tudo bem, doçura. Está tudo bem.
Exausta, querendo dormir, Lillis imobilizou-se. Como num sonho, percebeu que
Alexander lhe banhava o corpo, a vestia e, depois, a aconchegava entre os braços.
— Por favor — murmurou num último pensamento consciente, mas não conseguiu
mais expressar o que desejava
— Durma — sussurrou ele, afagando-lhe os cabelos e compreendendo a sua
vontade, apesar de não ouvir as palavras. — Minha mulher lindíssima — disse ao vê-Ia
entregue a um sono profundo. — Durma.

CAPÍTULO VIII
— Sinto muito, meu senhor, ela se recusou de novo a comer — informou o criado,
com ar aflito, como se fosse responsável pelo fato. Alexander franziu a testa.
— Ela não fez pedido algum?
— Não, meu senhor. Ela fala pouquíssimo e só quando lhe perguntam alguma coisa.
Manda as criadas embora quando tentam lhe dar banho e vesti-Ia. Nem dorme na cama,
meu senhor. Passa dia e noite sentada na cadeira com a camisa de dormir. Ontem à
noite, uma criada foi levar o jantar e a encontrou dormindo na cadeira. Quis levá-Ia para a
cama, mas lady Gyer se recusou a deitar-se.
— Muito bem, pode ir — resmungou Alexander.
Já haviam se passado três dias após o casamento, e a paciência de Alexander
chegava ao fim. Nesse tempo todo, Lillis recusava-se a sair do quarto e a se alimentar.
Os criados informavam a mesma coisa dia após dia. Na manhã seguinte ao
casamento, lady Gyer tinha retomado para o seu quarto e acomodado-se numa poltrona
perto da janela aberta. Levantava-se apenas para satisfazer as necessidades físicas e
para beber água.
Desanimado, Alexander recostou-se na cadeira e fechou os olhos. Talvez devesse
ter permanecido ao seu lado naquela primeira manhã em vez de deixá-Ia acordar sozinha
num quarto estranho. Na ocasião, tinha pensado ser melhor proporcionar-lhe privacidade
depois do que ela havia sofrido nas suas mãos na noite anterior. Mas agora, imaginava se
a tentativa para agradá-Ia não a tinha enraivecido mais. Podia ter encarado a sua
ausência como uma atitude de descortesia, uma afronta do homem que a tinha forçado a
se casar. Devia ter se ofendido, pois, caso contrário, não teria usado o broche que ele lhe
dera como presente de casamento, jóia valiosa, para estraçalhar a fronha. Ela havia se
comportado como uma criança mimada, e não como a mulher sensata que era.
Alexander havia estranhado, na primeira manhã, quando ela não aparecera para
tomar o café com a família. Ficara aborrecido porque os convidados, que haviam passado
à noite no castelo, notaram a ausência da nova lady Gyer. Ele a tinha desculpado
alegando cansaço provocado pela movimentação do dia anterior. Na verdade, havia
ficado mais preocupado com a ausência de Bárbara do que com a de Lillis. A mulher, de
fato, devia estar exausta, além de embaraçada, mas a prima, com certeza, sentia-se
infeliz. Essa idéia aumentou a sensação de culpa de Alexander.
Tão logo pôde, ele havia deixado a mesa e ido para o seu escritório. Pouco depois,
atendendo-lhe o chamado, tia Leta tinha entrado, com o embrulho do lençol do ca-
samento, e anunciado:
— Lady Gyer recusa-se a comer e a se vestir. Eu lhe disse que deveria, pelo menos,
tomar banho, e ela me expulsou do quarto.
— O quê?! — exclamou Alexander, surpreso.
Tia Leta repetiu e, quando acabou de responder a todas as indagações de
Alexander, ele estava furioso.
— Pois deixe estar. Se ela quer se comportar como criança, paciência. Talvez um
dia sem comida e companhia a faça recuperar o bom senso.
Naquele primeiro dia, ocupado com os preparativos para tomar posse da terra
adquirida através do casamento, ele não teve tempo para pensar muito na mulher.
Quando o fazia era para se convencer de que estava bem. Um dia sem alimentação não
prejudicaria ninguém.
Já era bem tarde quando Alexander retirou-se naquela noite. Exausto pelo longo dia
de trabalho, preparou-se logo para dormir, sem dirigir um único olhar para a porta de
comunicação com o outro quarto. Segundo tia Leta o informara durante o jantar, Lillis
continuava se recusando a comer. Ele tinha dado de ombros, afastado a mulher da mente
e concentrado a atenção em Bárbara: que, finalmente, sentava-se à mesa. Lillis se
cansaria do exílio voluntário e apareceria para tomar o café da manhã com a família.
No dia seguinte, Alexander também se manteve ocupado cuidando de problemas
dos arrendatários. Providenciou a reconstrução das casas destruídas e das danificadas
pelo incêndio. Verificou ainda se as famílias estavam abrigadas e tinham suprimentos
necessários.
Embora ocupado, além de gastar tempo tentando consolar Bárbara, Alexander não
podia esquecer que Lillis continuava sem se alimentar e a não sair do quarto. Durante o
dia inteiro, as informações de tia Leta eram sempre as mesmas. No final do jantar, ele
estava furioso. Havia dado tempo suficiente para Lillis se conformar com os fatos.
Paciência tinha limites.
Nessa segunda noite, quando já estava deitado, aguçou os ouvidos a fim de detectar
qualquer ruído no quarto ao lado. Silêncio absoluto. Resolveu agir e pôr fim à situação
ridícula. Lillis já estava lá havia dois dias inteiros. Se a razão era raiva, devia brigar com
ele e, caso fosse infelicidade, que o deixasse consolá-Ia. De qualquer forma, ele não
permitiria que a mulher continuasse sem se alimentar e acabasse doente. Já estava na
hora de Lillis parar de se comportar com infantilidade. Levantou-se, foi até a porta de
comunicação e, com um alfinete, abriu as duas fechaduras. Entretanto, ao empurrar a
porta, ela não abriu.
— Lillis? — chamou, fazendo, em vão, nova tentativa.
Maldição. Ela devia ter posto algo pesado de encontro à porta.
— Lillis? Responda! — gritou.
Sabia que ela o ouvia. Nem mesmo uma pessoa surda deixaria de perceber o
barulho, pois, além de chamá-Ia, ele esmurrava a porta. Ela, porém, não respondia. Sem
dúvida, não queria falar com ele e isso o deixou mais furioso.
— Está bem, por hoje passa. Mas amanhã à noite, usarei a porta do corredor se for
preciso. Não haverá barreiras entre nós, Lillis Baldwin. Sou o senhor deste castelo e
ninguém me impedirá de entrar em qualquer das suas dependências.
Ela não respondeu, nem fez ruído algum, e Alexander acabou voltando para a cama.
Seu sono foi inquieto e pontilhado por sonhos confusos. Sentia-se afagando cabelos
longos e sedosos enquanto um corpo morno e bem feito aconchegava-se ao dele.
Quando começou a clarear, desistiu do descanso merecido e levantou-se.
O terceiro dia já entardecia, e Lillis ainda não tinha se alimentado, nem saído do
quarto. Comportamento insuportável, considerou Alexander. Se a mulher não aparecesse
logo, ele cumpriria a ameaça da véspera. Nada o impediria de entrar naquele quarto.
Lamentava apenas haver dito que o faria à noite. Caso contrário, Lillis de Gyer já saberia
quem era o seu amo e senhor e que tipo de comportamento ele esperava no futuro.
Não teria de aguardar muito tempo mais, pois já estava quase na hora do jantar. Ele
lhe daria uma hora após a refeição e, então, iria até ela. Finalmente, poria fim à situação
absurda.
Nessa hora do dia, ao descambar para o poente, o sol estava lindíssimo numa
resplandecência alaranjada e dourada. Lillis olhou pela janela e imaginou se o pai
também estaria apreciando o colorido do entardecer e sentindo, na pele, a brisa suave.
Desde a manhã após o casamento, quando havia acordado sozinha na cama de
Alexander de Gyer, ela pensava muito no pai. Não só nele, mas também em outras pes-
soas, lugares e, especialmente, no convento.
Lembrava-se dos muitos viajantes que paravam em Tynedale durante longas
jornadas a lugares interessantes. Ela e as outras meninas entusiasmavam-se com a pers-
pectiva de ouvir histórias sobre Londres, Shrewsbury e até sobre a França. Os Cavaleiros
eram os mais apreciados. Lillis relembrou como todas elas disputavam a honra de servir-
lhes as refeições. Nessas ocasiões, ouviam descrições das façanhas na batalha de
Shrewsbury ou da valentia do rei Henrique e de seu filho, o príncipe de Gales.
Quando ficou mais velha, a chegada de Cavaleiros e soldados a Tynedale passou a
significar preocupação para ela. Responsável pelas outras mocinhas do convento, Lillis
gastou muitas noites vigiando-as depois da retirada das irmãs para as celas. Armada com
um pesado candelabro, desencorajava encontros secretos de namorados. Sempre se
mostrara capaz de assustar até o mais persistente admirador. Tanto quanto sabia,
nenhuma das meninas sob seus cuidados tinha perdido a virgindade. Ela mesma não
havia corrido esse perigo. Alta, forte, com pele alva e cabelos tão loiros que chegavam a
ficar esbranquiçados, capaz de passar por bruxa aos olhos de crianças, não atraía os
visitantes de Tynedale. Pelo menos, essa era a sua convicção.
O que as irmãs pensariam da sua situação? Lillis indagou-se. Elas tinham ficado
contentes com a notícia do seu noivado com Jason de Burgh e até lhe oferecido uma
festinha na véspera da sua partida de Tynedale. Qual seria o seu julgamento ao saberem
que ela havia se casado com outro homem, um desconhecido até então, por causa de um
pedaço de terra?
A irmã Agatha, tinha certeza, a repreenderia por sentir pena de si mesma e a
aconselharia a enfrentar as circunstâncias da melhor maneira possível. Segundo a velha
freira, tudo na vida acontecia de acordo com a vontade divina. Cabia a nós aceitar os
desígnios de Deus e mostrar gratidão. Talvez a irmã Agatha estivesse certa, ponderou
ela.
Uma brisa fria provocou-lhe um arrepio, e Lillis tornou a olhar pela janela.
Estavam em meados de setembro. O dia de São Miguel seria comemorado em
honra às colheitas. O povo de Gyer, entretanto, não teria motivos para festejar o feriado.
As suas plantações haviam perecido por falta de água, graças ao pai, que represara o rio
Eel. Talvez ele voltasse a correr antes do plantio do próximo ano. De todo o coração, Lillis
desejava que a colheita seguinte compensasse a perda desse ano. Tudo o que havia
feito, inclusive o falso casamento, valeria o sacrifício se o povo de Gyer recuperasse a
água tirada pelo seu pai.
Caso isso acontecesse, Lillis não estaria ali para ver. Não acompanharia o plantio, o
crescimento das plantas e o resultado da colheita. Estaria no arruinado castelo de
Wellewyn, cuidando do pai e tentando manter uma certa ordem no lugar.
Estaria sozinha, ou melhor, solitária. Depois de deixar Gyer, provavelmente não
veria mais o marido. Ele não teria motivos para visitá-Ia e, com certeza, se sentiria
aliviado com a sua partida. Alexander ficaria livre para continuar a sua vida. Ele e a sua
querida e chorosa Bárbara. Ele e a terra que, até então, pertencera a Wellewyn.
Com o corpo entorpecido, Lillis levantou-se da cadeira. Esfriava e escurecia.
Acendeu uma vela e foi até a cômoda onde havia uma jarra de água da qual bebeu dois
copos.
Apesar do acontecido e dos motivos de Alexander, Lillis não conseguira odiá-Io por
muito tempo. Naturalmente o tinha feito ao encontrar o broche na manhã seguinte ao
casamento. Não era uma prostituta para ser paga, e essa idéia a incentivara a estraçalhar
a fronha com o auxílio da jóia. Fora isso, ele tinha se comportado bem.
Ela não poderia esquecer-Ihe o tratamento bondoso após a consumação do
casamento. Os seus cuidados haviam sido os mais meigos que ela já recebera. O toque
suave das mãos, o som tranqüilizante da voz grave e o aconchego dos braços durante a
noite a tinham reconfortado. Mesmo antes, ele não havia tentado humilhá-Ia de propósito
diante das testemunhas do ato. Apesar da raiva e da vergonha, ela havia percebido isso.
Alexander se esforçara para agir da melhor maneira possível numa situação
desagradável. Agora, cabia a ela fazer o mesmo.
O jantar já tinha começado quando Lillis desceu a escada. Não fora sua intenção
chegar atrasada, mas tinha perdido tempo demais tomando banho e se vestindo. Todos
os habitantes do castelo, exceto os criados que serviam as mesas, já estavam sentados.
A um canto do salão, um trio de músicos tocava para acompanhar a refeição. Ela viu
Alexander sentado no lugar de honra à mesa longa, porém ele não notou a sua entrada.
Um tanto embaraçada, insegura quanto ao que fazer, mas faminta demais para voltar ao
quarto, caminhou devagar para o tablado sobre o qual ficava a mesa principal. Não tinha
experiência nesse assunto, mas imaginava que deveria se sentar lá com o marido.
Entretanto, ao chegar mais perto, viu a cadeira ao lado da de Alexander, e que
deveria ser da senhora de Gyer, ocupada por Bárbara. Não apenas isso, mas o marido
tomava a mão da prima e sorria-lhe com expressão afetuosa. Lutando para controlar a
confusão e a mágoa sentidas, Lillis parou bem em frente a ele.
Finalmente, Alexander a notou, mas apenas porque todos tinham parado de falar.
Olhou-a com expressão curiosa, e depois se levantou. Todavia, não disse, nem fez nada.
Lillis permaneceu à espera de que ele lhe indicasse um lugar para se sentar, porém ele
apenas a fitava como se visse um fantasma. Logo ficou claro que ele não ia pedir para
Bárbara desocupar o lugar. Também não ia dizer, nem fazer nada.
Decidida a não continuar ali se expondo ao ridículo, Lillis virou as costas para o
marido e, com o olhar, procurou um lugar em outra mesa. Havia apenas uma com
acomodação para mais pessoas, e ela, tentando não chamar muita atenção, foi até lá.
Embora não se justificasse o fato de a senhora de Gyer se sentar entre servos, ela não se
importou. No convento, a mesa era um lugar para se comer, e não para se determinar
categorias sociais.
Depois de sentada, ignorou o silêncio e serviu-se de uma enorme fatia de pão que
começou a cobrir com pedaços de carne, peixe e verduras. E então, a confusão começou.
Rogando uma praga no irmão, sir Willem levantou-se, furioso. Um segundo depois,
Alexander disse algo a Bárbara que a fez romper num pranto convulsivo. Isso enraiveceu
John, seu irmão, levando-o a proferir palavras de baixo calão. Foi a vez de Alexander
reagir dando um forte murro no primo. Ao vê-Io cair desacordado, Lillis achou que o pobre
não se recuperaria tão cedo. Todos no salão, exceto ela, que continuava a comer,
seguiam o espetáculo com grande interesse. Estava morta de fome e não se importava se
a família de Gyer quisesse se destruir. Eram as pessoas mais estranhas que já conhecera
e achava melhor deixá-Ias em paz.
Mas Lillis conseguiu apenas ingerir uns poucos bocados antes de o marido se
aproximar e agarrar-lhe o braço. — Quero falar com você — declarou ele.
— Estou comendo, além de estar morta de fome.
— A culpa é sua — disse ele, forçando-a a se levantar e a seguí-Io.
Não deram muitos passos antes de Alexander se dar conta de que todos os
observavam em silêncio. A música tinha parado.
— Comam! — trovejou ele. — E vocês, toquem! acrescentou apontando para os
músicos.
Foi obedecido imediatamente. Satisfeito, continuou a puxar Lillis para fora do salão.
Não foram ao escritório dele, mas continuaram pelo corredor até uma porta de folha
dupla. Ele a abriu e a empurrou para dentro de um aposento bem iluminado. Os gestos
bruscos dele a fizeram tropeçar, porém Lillis recuperou o equilíbrio e olhou à volta.
Parecia um tipo de jardim de inverno decorado com toques mais femininos do que o
escritório de Alexander. Também tinha janelas longas que davam para um terraço cheio
de plantas.
Estavam sozinhos pela primeira vez depois da noite de núpcias. Ela o ouviu trancar
a porta às suas costas e, por alguma razão, sentiu as mãos tremerem e o coração
disparar. Respirou fundo, entrelaçou as mãos à frente e esperou que ele falasse.
Alexander enfrentava a própria luta. Encostado à porta, mantinha o olhar fixo em
Lillis. Para uma pessoa que havia passado três dias sem se alimentar, a sua aparência
era ótima. Especialmente com a túnica azul e os cabelos claríssimos arranjados numa
trança que lhe acompanhava a curva das costas. O choque que lhe tinha tirado a fala ao
vê-Ia aparecer repentina e inesperadamente no salão, mais linda do que nunca,
multiplicava-se por cem agora. Sentia a estranha vontade de tomá-Ia entre os braços e
beijá-Ia, uma idéia tão tola que não deveria lhe ocorrer.
— Precisa se explicar, madame.
Lillis ficou tensa com o tom severo de voz.
— Meu senhor?
— Quero saber os motivos do seu comportamento estranho nos últimos três dias.
Imagino que tenha uma explicação razoável para se manter no quarto, negando-se a
receber um mínimo de conforto.
— Tenho, sim, mas não sei por que quer saber, sir. Como era estranho, pensou
Lillis, ter um marido a quem chamar de sir e ser chamada por ele de madame, como os
casais se tratavam.
Ele soltou uma exclamação de impaciência.
— Você é a minha mulher e eu sou o seu marido. Tudo o que lhe diz respeito me
preocupa — disse ele como se explicasse algo elementar a uma criança.
Lillis virou-se com uma expressão levemente irônica.
— Não há razão para se preocupar comigo, meu senhor. A terra é sua, não importa
o que me acontecer. Alexander fitou-a com ar de desagrado.
— Ainda não me conhece bem, Lillis Baldwin, como também eu não a conheço. Mas
seria melhor se aprendesse logo a não me falar dessa maneira. Minha paciência é
grande, porém, tem limite.
Mortificada, Lillis desviou o olhar. Ele tinha razão. Como seu marido, amo e senhor,
Alexander de Gyer podia lhe fazer o que bem entendesse, caso ela se mostrasse
desobediente. E, na verdade, queria que ele a considerasse uma mulher ruim, sem
delicadeza e honra?
— Eu estava jejuando — explicou ela com ar compungido.
— Jejuando?! — repetiu Alexander em tom incrédulo e certo de não tê-Ia ouvido
bem.
Com o olhar baixo, ela sacudiu a cabeça.
— Sim. Essa é uma maneira muito boa para se assentar os pensamentos
desordenados. — Corou e prosseguiu depressa: — O jejum é muitas vezes usado pelas
irmãs de Tynedale como castigo ou penitência, mas, mais freqüentemente, como
declaração de fé. Na verdade, pode ser de grande ajuda espiritual.
Notando-lhe o rosto meio pálido e mais amado, Alexander declarou:
— Não tenho a intenção de negar-lhe a prática da fé, madame, mas no futuro terá
de me explicar as suas intenções antes de iniciar a sua penitência, ou eu não terei
escolha a não ser castigá-Ia.
— No futuro, meu senhor, não estarei em Gyer para forçá-Io a tomar tal atitude —
rebateu ela com naturalidade, mas ao ver-lhe o olhar furioso, acrescentou depressa: —
Na verdade, não foi um jejum muito honesto. Todos os dias, as criadas deixavam
bandejas com alimentos no quarto e eu sempre comia uma fatia de pão e frutas. Não era
o suficiente para que dessem falta, mas eu estava morta de fome. Nunca consegui jejuar
completamente. Em Tynedale, eu escondia alguma coisa sob a minha túnica para comer
na cama — confessou com ar de culpa, o que enterneceu Alexander.
Nunca ninguém tinha lhe falado de maneira tão aberta e honesta. As palavras
simples agiram com uma força invisível em Alexander, provocando-lhe um sentimento
inoportuno. Não conhecia essa mulher, ou nada a seu respeito, repetia a si mesmo,
exceto o fato de ser filha do seu inimigo. Mas não podia se impedir de imaginar Lillis, mais
jovem e menor do que a lindíssima amazona à sua frente, escondendo pão sob a túnica a
fim de não passar fome.
A vontade de beijá-Ia transformou-se em algo forte e perturbador. Alexander
costumava ser controlado, racional e lúcido, qualidades que o tinham ajudado a fazer de
Gyer uma potência. Porém, elas o tinham abandonado, deixando-o fascinado pela esposa
adorável, que o odiava, imaginando como seria bom fazer-lhe amor bem devagar e
completamente, como não pudera na noite de núpcias.
A noite de núpcias! Lembrava cada momento de maneita precisa. O horror e a
maravilha de possuir tal mulher. O seu corpo arredondado, a pele macia, os cabelos
roçando-lhe os braços e o peito... penetrá-Ia... sua mulher...
— O que aconteceu com a minha criada? Ela foi a Wellewyn?
Ele a fitou com olhar vago.
— Meu senhor?
— O quê?
— Edyth, a minha criada. Não a vi nos últimos três dias.
Sacudindo a cabeça, Alexander forçou-se a pensar com clareza. Sobre o corpo
excitado e rijo sob a túnica não tinha controle, mas a mente ele podia subjugar.
— Sim, ela está em Wellewyn — respondeu ao caminhar até a lareira e manter-se
de costas. — Eu a mandei até lá na manhã seguinte ao nosso casamento e recebi
noticias de que chegou. Ela levou o lençol, o contrato de casamento e uma carta minha.
— Mas ainda não chegou resposta alguma do meu pai? Lillis mostrava-se tão
ansiosa que Alexander virou a
cabeça para responder.
— Não, nem uma palavra ainda de Jaward de Wellewyn. Confesso que já contava
ter recebido algo. Ele deve estar tentando encontrar uma saída vantajosa da situação.
— Talvez esteja doente — sugeriu Lillis.
— Duvido. O seu pai deve estar refletindo sobre a perda e, quando concluir não ter
saída, se comunicará comigo.
Ela olhava para as costas largas do marido e lembrava como se sentira com aquele
corpo grande prensado ao seu.
— Sim. E quando ele responder, eu estarei livre para ir embora?
— Falaremos disso quando a resposta chegar.
— Mas...
— Por que você estraçalhou a minha fronha?
— Meu senhor...
— Responda — exigiu ele num tom de quem não admitia discussão, e Lillis abafou a
necessidade de garantir a liberdade.
Erguendo bem os ombros, ela disse:
— Se precisa me fazer esse pergunta, senhor, deduzo a sua falta de conhecimento
sobre as mulheres. Talvez tenha índole cruel, ou um estranho senso de humor. Sou eu
quem deve perguntar sobre a sua intenção ao me fazer tal insulto. Não tenho consciência
de haver feito algo errado, mas, se o fiz, peço-lhe que me explique a fim de não cometer a
mesma falta. Não gostaria de ser tratada dessa forma no futuro.
Alexander sacudiu a cabeça.
— Sem dúvida a sua língua não precisa ser afiada, lady Gyer. Se vamos falar sobre
senso de humor estranho, devemos reconhecer o de Deus por ter posto tal língua num
corpo e rosto de anjo.
— O quê? — indagou Lillis, piscando.
— Esqueça — respondeu ele num suspiro. — O presente, o broche, não foi um
insulto. Você o tomou como um tipo de pagamento, certo? Ser paga pela sua terra e pela
virgindade seria, de fato, o pior tipo de ofensa. Para acalmar a sua sensibilidade, admito
ter agido de maneira errada. Minha intenção era lhe dar um presente de casamento. O
broche pertenceu à minha mãe e, como todas as suas jóias, deve passar à nova senhora
de Gyer. Mais tarde, serão herdadas pela mulher do nosso filho mais velho. Caso só
tenhamos fIlhas, elas ficarão para quem herdar as minhas terras e título.
Lillis não escondeu o choque profundo.
— Filhos?! — balbuciou.
— Sim, ou filhas — concordou Alexander em tom indiferente.
— Mas o senhor disse... me prometeu que não... Lillis não soube como continuar,
mas conseguiu chamar a completa atenção de Alexander.
— Não o quê? — indagou ele franzindo a testa.
— Não se recorda, meu senhor? Quando me comunicou a sua decisão de nos
casarmos, disse que jamais exigiria os seus direitos de marido.
— Certo — admitiu ele não vendo problemas no caso. — Não tenho a intenção de
forçar a minha pessoa a você mais vezes do que as necessárias para a geração de
herdeiros. E nunca mais depois de ter o número suficiente de filhos. Sou um homem de
palavra.
A mente de Lillis começou a rodopiar. Ela imaginava-se, combinados, a fome e o
choque das palavras de Alexander não a fariam perder os sentidos.
No instante seguinte, ele estava ao seu lado e a amparava com ar preocupado.
— O seu aspecto não é nada bom, Lillis. Venha se sentar perto do calor da lareira e
tomar um copo de vinho. — Acomodando-a numa poltrona, virou-se para servir a bebida.
— Culpa desse maldito jejum. Não vou permitir que faça isso outra vez por tanto tempo.
Um dia será suficiente. E nenhum quando estiver grávida —declarou ele em tom irritado.
Lillis sorveu o vinho devagar e, aos poucos, foi se sentindo melhor. Alexander
reclamava contra a tolice de certas práticas religiosas e, com o braço apoiado no consolo
da lareira, a observava.
— Meu senhor, precisamos chegar a um acordo. Antes de nos casarmos, o senhor
me garantiu que, quando a terra do meu pai passasse a ser legalmente sua, eu poderia ir
embora de Gyer e morar onde bem entendesse.
— Sim, garanti — confirmou ele sem saber aonde Lillis queria chegar.
— Mas nunca mencionou filhos, não disse que eu teria de conceber os seus
herdeiros. Concluí não ter mais de recebê-lo na minha cama após a consumação do
casamento.
Alexander não escondeu a tensão.
— Está querendo dizer, madame, que se nega a assumir o dever de me dar
herdeiros?
— Não se trata disso! Quero apenas lembrá-lo das suas promessas. Se esperava ter
filhos comigo, por que não me disse antes?
Ele a fitou como se tivesse ouvido uma grande tolice.
— Queria que eu mencionasse algo tão óbvio? Devo informá-Ia também do calor do
fogo e do frio da neve?
— Ora, está sendo irônico. O que me pareceu claro foi o seu compromisso de não
exigir os direitos de marido.
— Eu, sem dúvida, não posso conceber filhos por conta própria.
— O que mais eu poderia pensar?
— Talvez a sua conclusão fosse óbvia para você. Acho, entretanto, que o convento
deixou lacunas lastimáveis no seu conhecimento básico da vida. Cabia a mim esclarecer
o assunto antes de nos casarmos, mas você precisa admitir que a véspera foi um dia
agitado. Nenhum de nós dois estava em condições de ter conversas longas. Você deveria
saber que Gyer precisava ter herdeiros, eu imaginei. Isso é um ponto claro para qualquer
pessoa sobre a questão. Por que você haveria de ignorar algo tão corriqueiro?
— O senhor se casou comigo para obter a terra. Isso foi, e continua sendo, tudo o
que entendi.
— Só agora me dou conta disso. Quando falei em não lhe exigir os meus direitos,
estava me referindo ao relacionamento normal entre um homem e a sua mulher. Se eu
não fosse um homem honrado, e caso me apetecesse, eu poderia demandar esses
direitos a qualquer hora e lugar. Até agora e aqui — garantiu com olhar penetrante.
— Oh! — exclamou Lillis, enrubescendo.
— E você não disse que gostaria de ter filhos?
O rubor acentuou-se mais.
— Disse, sim. Sempre pensei em ter filhos. Ser mãe me deixaria feliz.
Inexplicavelmente, Alexander sentiu-se aliviado. O rumo da conversa o tinha
desagradado e ele imaginava se a mulher, de fato, se recusaria a recebê-Io na sua cama,
mesmo para um relacionamento rápido e desapaixonado.
— Muito bem. Você é uma mulher compreensiva e sensata.
— Mas eu gostaria de contar com algum tempo para me acostumar com a idéia.
— Terá o quanto precisar, madame. Dentro do razoável, naturalmente.
— Todavia, continuo confusa, sir, quanto à sua promessa de me deixar ir embora
para viver onde quiser.
Entendo pouco do assunto, mas como vou conceber, caso more em outro lugar?
— Isso talvez represente um pequeno problema, calculo. Você terá de vir a Gyer
uma vez por ano. Ou quem sabe, irei visitá-Ia onde estiver, contanto que não seja
Wellewyn — acrescentou com firmeza. — Eu não suportaria passar nem uma hora sequer
sob o mesmo teto que o seu pai e, muito menos, o tempo suficiente para gerar uma
criança. Haveremos de resolver esse ponto e você verá que não sou um homem difícil de
se contentar.
— Eu não imaginava que, depois de ir embora, voltássemos a nos encontrar. Pensei
que jamais o veria novamente.
— Mais uma vez, a sua ignorância me surpreende disse ele com uma ponta de
desdém. — Como minha mulher e senhora de Gyer, as nossas vidas estão
inexoravelmente ligadas. Sempre teremos assuntos para tratar, não importa onde você
esteja morando. Eu preferiria que fosse na Inglaterra, mas se quiser França, Espanha ou
Itália, eu não a impedirei.
— Ai, não. Jamais irei tão longe. Apenas para Wellewyn.
— Tem certeza?
— Sim, meu senhor, absoluta. O meu pai precisa de mim.
— Jaward já é um homem idoso. Você continuará em Wellewyn após a sua morte?
Lillis assumiu ar pensativo.
— Não sei. O castelo de Wellewyn passará a ser seu, não é? O senhor permitirá que
eu continue lá?
— Claro, se desejar. Poderá vir para Gyer e assumir a posição de sua senhora,
como tem direito. Para ser sincero, eu preferiria isso, mas não a forçarei.
Lillis não conteve a surpresa.
— O senhor gostaria que eu permanecesse em Gyer?!
Observou o marido atraente. A possibilidade de ser realmente a sua esposa
confrangeu-lhe o coração. Ele, por sua vez, deu de ombros.
— Se desejar. É um direito seu ser a senhora do castelo, embora minha prima possa
continuar a ocupar a posição na sua ausência, ou até ela se casar. Depois disso, minha
tia terá a honra.
— Entendo — disse Lillis, sentido-se desapontada e tola.
— Fique descansada. Quando estiver em Gyer, será tratada com a cortesia e o
respeito a que tem direito como minha mulher. O que aconteceu esta noite foi algo lamen-
tável e não se repetirá. Já avisei a minha prima que ela não poderá ocupar o seu lugar
enquanto você estiver aqui.
As coisas iam de mal a pior, refletiu Lillis. Casara-se por causa de um pedaço de
terra, sem amor e com um homem para quem não tinha a menor utilidade a não ser para
lhe dar filhos. Poderia representar o papel de senhora do castelo se quisesse, mas
ninguém sentiria a sua falta se não o fizesse. Lillis sentiu-se inundada por uma profunda
tristeza.
— Obrigada. É muito bondoso, sir — murmurou.
— Moraria aqui? Pelo menos para ficar perto dos seus filhos?
Lillis arregalou os olhos.
— Perto dos meus filhos? O que está insinuando, senhor? Sempre ficarei junto aos
meus filhos.
Alexander sorriu com ar triunfante.
— Nesse caso, viverá aqui.
A paciência de Lillis começou a esgotar-se.
— Um momento atrás, meu senhor, disse que eu poderia morar onde quisesse!
— E poderá, Lillis Baldwin. Mas os meus filhos, todos, morarão em Gyer. Com ou
sem a mãe deles.

CAPÍTULO IX
Se eu não for logo lá para fora, acabarei enlouquecendo.
Lillis andava de um lado para o outro diante das grandes janelas do salão. Os raios
do sol inundavam o aposento, e sua saia rodopiava cada vez que se virava para
retroceder os passos.
— Já é quase meio-dia! — Parou o suficiente para dirigir o olhar aos dois guardas
que, insensíveis, a vigiavam e ouviam. — Logo, será tarde demais para apreciar o dia e
não haverá muitos mais iguais a este, daqui em diante.
Os guardas continuaram calados, e Lillis, recomeçando a andar, sentiu-se prestes a
ter um ataque de raiva.
— Ele está fazendo isso de propósito só para me aborrecer.
Havia tentado ir ao jardim no início da manhã, mas os guardas a tinham impedido
com firmeza, embora delicadamente. As ordens eram para não deixá-Ia sair sem a
companhia do senhor de Gyer, exceto com a permissão explícita dele.
Acompanhada por Alexander de Gyer! Ora, como se ela quisesse passar mais
tempo ao lado desse monstro miserável do que já passava. O homem não tinha um pingo
de sentimento e não era mais que um grande bloco de gelo. Já haviam se passado três
dias depois da conversa de ambos no jardim de inverno, e a sua raiva por ele não tinha
amainado nem um pouco.
Ah, sim, ela havia tido um acesso de fúria depois de Alexander declarar a intenção
de manter os filhos em Gyer. Isso sem se importar se ela resolvesse, ou não, morar com
um homem que não a queria, não confiava nela e não a amava. Até agora, sentia o
sangue ferver ao lembrar-se da discussão de ambos.
— Arranjarei um amante — tinha ameaçado. — O senhor nunca saberá se os filhos
são seus ou não.
Ele lhe dirigira um olhar incrédulo.
— Essa será uma boa solução para nós dois. Eu reivindicarei as crianças que se
pareçam comigo. Os Baldwin sempre herdam traços marcantes. Você poderá ficar com os
bastardos.
O homem era, de fato, um miserável. Já não importava como tinha sido atencioso
com ela desde aquela noite, tratando-a com a deferência reservada à senhora de Gyer.
Sentava-a ao lado dele à mesa e exigia o respeito e a consideração dignos da sua
posição. Essa não era uma tarefa fácil, graças ao antagonismo entre ela e os habitantes
do castelo, que a culpavam pela infelicidade de Bárbara. Mas nada disso tinha
importância diante do fato de Alexander ser o seu carcereiro, de quem não era fácil
escapar. Isso sem falar na esperteza com a qual ele não se deixava manobrar. Lillis
lamentava a sua falta de vivência quando estava com ele. O marido sempre a fazia se
sentir como se fosse uma criança mimada e voluntariosa.
Toda tarde, ele levava a prima para passear no jardim. De uma das janelas, Lillis os
via caminhar bem juntos e devagar, conversando e sorrindo. Bárbara colocava a mão no
braço de Alexander, e ele a acariciava como se fosse um hábito antigo e meio
inconsciente.
A cena freqüente tinha provocado em Lillis a vontade de também passear no jardim.
Achava uma grande injustiça ficar trancada no castelo quando todos gozavam a liberdade
de sair, apreciar o sol e a brisa nas faces.
Nessa manhã, depois de os guardas impedirem a sua saída, ela havia se revoltado
e ido procurar o marido. Tinha-o encontrado sentado à longa mesa do salão, rodeado por
um grupo de homens. Obviamente, eles estavam tratando de algum assunto importante, e
Lillis sentira-se meio culpada por interrompê-Ios.
Havia se aproximado da mesa e parado diante do marido. Com ar de humildade,
esperara que ele se mostrasse zangado. Alexander tinha toda a razão em aborrecer-se
com a sua aparição, pois as mulheres não deveriam incomodar os seus senhores quando
estes se ocupavam de negócios. Naturalmente, seria impossível agir de outra maneira,
pois o marido estava constantemente cuidando de algo importante relacionado com as
propriedades. Havia se surpreendido, portanto, com a expressão inicial de agrado dele.
— Minha lady Gyer — saudara-a.
— Meu senhor, perdoe a minha interrupção.
— É muito bem-vinda aqui. Sua beleza constitui um alívio depois de uma hora de
trabalho desagradável. Devemos todos nos sentir gratos por poder apreciá-Ia. Os homens
murmuraram palavras de aprovação, e Lillis tinha corado até a raiz do cabelo. — O que
posso fazer pela senhora, minha boa esposa?
Mais calma, Lillis tinha percorrido o olhar à volta e repetido:
— Por favor, me perdoe. Eu só gostaria de ir ao jardim apreciar o dia, mas os seus
guardas não permitiram.
— Ordens minhas — dissera Alexander, provocando-lhe, novamente, a raiva.
— Está dizendo que não posso ir lá fora exceto para percorrer o curto caminho entre
o castelo e a capela? Só vou poder respirar ar fresco nesses poucos segundos?
— Eu não disse que não poderia sair, apenas que eu deveria estar presente para
acompanhá-Ia, minha senhora. Se deseja ir ao jardim, será uma honra levá-Ia tão logo
terminemos nossos assuntos aqui. Não vamos demorar muito mais.
A lembrança de vê-Io passeando com Bárbara assomara-lhe à mente, levando-a a
dizer:
— Não, obrigada, meu senhor. Se essa é a minha única escolha, prefiro ficar dentro
do castelo.
— Como queira — respondeu Alexander, dando de ombros e apanhando um papel
da mesa.
Sendo dispensada de maneira tão clara, Lillis apressara-se em se retirar, mas a voz
de Willem a tinha feito parar.
— A minha presença não é mais necessária aqui. Será um prazer acompanhá-Ia ao
jardim, lady Lillis.
Cheia de gratidão, ela lhe sorriu.
— É muita atenção da sua parte, sir Willem.
A expressão dele não escondera a alegria. Já começava a se levantar quando a
mão de Alex o impedira de continuar. Ao falar, Alexander deixara evidente, na voz, a raiva
sentida:
— Eu disse, minha senhora, que a acompanharei mais tarde. Ou espera até que eu
me desocupe, ou não sairá.
— Pois não sairei, meu senhor — rebatera ela para, em seguida, dirigir-se a Willem
com voz suave: — Muito obrigada pela boa intenção, sir Willem. A sua gentileza honra-lhe
a posição de Cavaleiro.
Satisfeita por ver o marido semicerrar os olhos, se afastou de vez.
Isso tinha acontecido uma hora atrás. Lillis arrependia-se da atitude intempestiva. Se
houvesse agido com mais calma, talvez tivesse convencido Alexander a deixá-Ia ir ao
jardim. Mas só conseguira irritá-Io. Agora, teria de se humilhar e pedir-lhe que a
acompanhasse. Isso, jamais! A menos que desse um jeito de escapar às escondidas dos
guardas, estaria destinada a permanecer dentro do castelo até o dia em que readquirisse
a liberdade. E só Deus sabia quanto tempo teria de esperar.
Continuava a andar e imaginava se deveria ir procurar o marido outra vez. Ele, com
certeza, já havia terminado a reunião com os homens. Talvez se...
— O que você está fazendo? — uma voz infantil interrompeu-lhe os pensamentos.
Lillis virou-se e viu Candis e Justin observando-a. Há quanto tempo estariam ali?
Sem dúvida, eles conseguiam perambular pelos cantos sem serem vistos.
— Estou tentando não morrer de tédio. E vocês?
— Estamos brincando. Por que você nunca fica junto com as outras mulheres?
Justin se referia às damas do castelo, ela sabia, que se trancavam, com Bárbara, no
jardim de inverno para bordar. Lillis tinha percebido logo que elas tentavam manter
distância da sua pessoa, mas não se importava. Os longos silêncios suportados durante
as refeições já eram suficientes. Seria intolerável submeter-se a tal atitude o dia inteiro.
O próprio bordado a distraía durante várias horas, especialmente quando as
crianças estavam ocupadas com o novo preceptor contratado por Alexander. Porém,
Edyth não estava em Gyer para lhe fazer companhia, os guardas não lhe dirigiam a
palavra, e o resto dos habitantes do castelo a tratava como se fosse leprosa. Sempre
atencioso, Willem a procurava durante a tarde quando conversavam sobre vários
assuntos por uma hora mais ou menos. Alexander largava o trabalho, várias vezes
durante o dia, para vê-Ia e perguntar como estava. Geralmente, ele não gastava mais do
que uns três minutos com isso.
Um pouco antes, Lillis tinha perguntado a tia Leta se poderia ajudá-Ia nas atividades
domésticas. Explicara que isso lhe proporcionaria uma distração, mas a velha senhora
havia se mostrado ofendida, como se Lillis duvidasse da sua capacidade. Ela a informara
que, havia trinta anos, desempenhava essa tarefa sozinha e nunca recebera reclamação
alguma. Apesar do tom ranzinza, Lillis detectara um toque de aprovação na voz. Tinha
insistido, alegando estar impressionada com a ordem do castelo. Seria uma honra adquirir
experiência no gerenciamento de uma habitação tão grande sob a orientação de alguém
competente como Leta Baldwin.
As palavras tinham surtido efeito, e tia Leta comentara ser essa a atitude apropriada
para a nova senhora de Gyer. Faria o possível para ensinar à esposa de Alexander como
tomar conta da sua moradia e ser motivo de orgulho para ele. Deus sabia que Bárbara
jamais se interessara em adquirir tal habilidade. Nesse dia, entretanto, ela pretendia
visitar algumas famílias da vila e, como Lillis não podia sair do castelo, teriam de adiar o
projeto para o dia seguinte. Começariam por percorrê-Io inteiro a fim de que ela o
conhecesse bem e fosse apresentada a todos os criados.
"Amanhã", pensou Lillis, "começarei a me sentir como a senhora do castelo, e não
como a prisioneira de Alexander".
— Bem, não fui me sentar com as outras mulheres porque esperava ir passear no
jardim — Lillis explicou às crianças. — Mas, como não posso sair, estou admirando o dia
pela janela. E vocês? Por que não estão estudando com o novo preceptor?
— Ele foi embora hoje de manhã, jurando que não voltaria mais — contou Justin.
— O que os gêmeos fizeram desta vez?
— Puseram cobras nas botas dele — respondeu o menino.
— Cobras?!
Justin deu de ombros.
— Não eram venenosas.
Candis levantou o rostinho e perguntou:
— Por que você não pode ir lá fora? Nós podemos.
— É mesmo? Que maravilha! O jardim é bonito? Daqui, parece.
— Tem flores, árvores e até uma lagoa com peixes. Mas nós não podemos chegar
perto dela. Uma vez, Justin caiu na água e quase morreu afogado. Alex prometeu nos dar
uma sova se a gente fosse lá outra vez.
— Que perigo!
As crianças sacudiram a cabeça, concordando, e Candis continuou:
— As flores são perfumadas, mas sempre acabam murchando logo.
— Mas voltam na primavera, não é verdade?
— Voltam, sim. É que demoram tanto — queixou-se Candis. Depois, perguntou
sorridente: — Não quer contar uma história para a gente?
Lillis já ia dizer que sim quando Justin sacudiu a cabeça.
— Agora, não. Nós vamos ver Hugh e Hugo. Candis se esqueceu.
— Esqueci, nada.
Lillis olhou de um para o outro.
— Onde estão os gêmeos? Talvez eu possa ir com vocês. Justin a fitou com ar
desconfiado.
— Você é nossa irmã agora?
Surpresa, ela riu.
— Acho que sim, de certa forma. Nesse caso, está bem? O menino a observou por
um instante com ar pensativo.
Então, disse:
— Está, sim. Vamos embora.
Segurando uma criança em cada mão, Lillis começou a subir vários lances de
escada. Passaram pelo andar onde ficavam os quartos e o outro em que se localizava o
cômodo imundo no qual a tinham prendido no primeiro dia. Como os guardas os
seguissem, Justin perguntou:
— Por que eles sempre acompanham você?
— Devem gostar de mim, imagino.
— Ah, sei.
Subiam agora por uma escada circular cujo fim não podiam ver. Lillis imaginava
onde iria dar, mas os guardas e as crianças não demonstravam apreensão com a
escalada interminável. Finalmente, chegaram a um pequeno patamar com portas dos dois
lados. Uma dava para o telhado e para a balaustrada externa. Estava fechada com
cadeados e barras de ferro. As crianças a conduziram pela outra.
Entraram num espaço arejado, coberto e parcialmente fechado, mas sem uma
parede para bloquear a vista além da balaustrada. A primeira coisa que Lillis notou, além
da deliciosa brisa fresca, foi uma coleção de caixas e gaiolas, arrumada em ordem de
encontro a uma das paredes. Olhando mais de perto, viu que elas continham uma va-
riedade de pássaros como pombos, gaviões e falcões. Curvados sobre uma das gaiolas e
prestando atenção ao que faziam, estavam Hugh e Hugo.
Eles levantaram o olhar para os recém-chegados e fizeram uma careta para Justin e
Candis.
— Por que vocês a trouxeram? — indagou um deles, bravo. — E os guardas? —
acrescentou o outro, com ar aborrecido.
Lillis não se surpreendeu com a recepção mal-humorada. Ela e os gêmeos tinham
mantido distância proposital desde a sua chegada a Gyer.
Gandis a fitou com ar interrogativo, e Justin deu de ombros.
— Ela é nossa irmã agora — explicou o menino ao se aproximar dos gêmeos a fim
de ver o que faziam.
— Graças a vocês dois — acrescentou Lillis, sorrindo e acompanhando Justin
enquanto puxava Candis pela mão.
Os irmãos trocaram um olhar matreiro e continuaram a aparar, cuidadosamente, as
garras de um pássaro. Quando terminaram, seguraram a ave para inspeção geral,
revelando um lindíssimo falcão marrom e preto.
— Que beleza! — exclamou Lillis. — Todas essas aves são suas? — indagou com
um gesto à volta.
Viu como os pássaros eram bem cuidados e como as gaiolas, além de espaçosas,
estavam limpas.
Os gêmeos, preparados para detestar Lillis enquanto ela permanecesse no castelo,
admiraram-se. Alguém capaz de apreciar-lhes as aves e cachorros não podia ser muito
ruim.
— São — respondeu Hugh com orgulho. — Nós mesmos as apanhamos ou
reproduzimos.
— Cada uma delas — afirmou Hugo. — E são treinadas.
Lillis ficou impressionada. Sabia que os gêmeos eram uma fonte constante de
problemas, mas falcoaria constituía uma habilidade invejável.
— Vocês estão de parabéns. E que lugar excelente para manter as aves —
acrescentou ela, aproximando-se da amurada e apoiando os braços na borda. — Que
vista linda! — disse, firmando o olhar na distância, na tentativa de ver algum sinal de
Wellewyn, mas lembrou-se de que não fazia idéia de onde ficava.
Candis e Justin aproximaram-se e puseram-se na ponta dos pés para poder olhar
também.
— Este lugar é só nosso. Alex nos deu muito tempo atrás — contou um dos gêmeos.
— Ele disse que poderíamos usar isto aqui se ficássemos fora do caminho dele —
acrescentou o outro, rindo.
— Eu não o culpo. Vocês são dois monstros horríveis e mal comportados —
comentou Lillis.
Ela os ouviu rindo às suas costas.
— Se eu fosse vocês, não acharia graça. Com as suas traquinagens, estão
prejudicando Justin e Candis. Se querem ficar ignorantes, o problema é seu, mas não de-
veriam impedir as crianças de se instruir.
— Ora, elas estão muito bem e precisam brincar. Por que perder o dia inteiro com
aquela coisa aborrecida? Perguntou Hugh ao pôr o falcão de volta na gaiola.
— São muito novas ainda — aparteou Hugo, apanhando um pombo. — Elas ainda
têm muito tempo para aprender.
Lillis virou-se e, com as costas apoiadas na amurada, cruzou os braços sob os seios.
— Entendo. Vocês acham que estão lhes fazendo um favor afugentando os
preceptores. Talvez seja uma forma de amor fraterno, imagino. Mas e quanto a vocês
dois? Não são mais crianças. O que aprenderam até agora?
Eles deram de ombros e continuaram a lidar com as aves.
— Sabem ler?
— Um pouco.
— Escrever?
— Um pouco também.
— Fazer contas?
— Não.
— E preparativos para se sagrarem Cavaleiros? Já aprenderam a manejar a espada
e outras armas?
— O suficiente para nos defender.
— Ora, o que sabem fazer além de criar pássaros, cachorros e de provocar
problemas?
Os gêmeos não deram importância às palavras de Lillis, porém as crianças ficaram
aborrecidas.
— Hugh e Hugo sabem fazer uma porção de coisas afirmou Justin, bravo, virando-
lhe as costas.
Candis, com voz sentida, perguntou:
— Por que você trata mal os gêmeos?
— Deus do céu! Vocês dois certamente conquistaram as crianças — disse ela em
tom seco.
Satisfeitos, os dois adolescentes riram, e Lillis irritou-se. Os monstros, quando
queriam, sabiam ser encantadores, além de ter aparência atraente. Possuíam os mesmos
olhos verdes e os cabelos escuros do irmão mais velho. Ela podia calcular os estragos
que fariam aos corações de mocinhas dali a poucos anos. Pôs as mãos nos ombros do
menino e disse:
— Justin, desculpe. Eu não deveria ter falado desse jeito sobre os seus irmãos na
sua frente e na de Candis. Você me perdoa?
Ele o fez prontamente e, mais uma vez, Lillis virou-se para apreciar o panorama.
— Pode-se ver Wellewyn daqui? — indagou.
— Não — respondeu Hugo, aproximando-se. — Mas olhe daquele lado.
Na meia hora seguinte, espremida entre as crianças e os gêmeos, Lillis permaneceu
de encontro à amurada, apreciando os lugares importantes apontados por eles.
Hugh e Hugo, Lillis descobriu, gozavam de excelente bom humor. Fosse ou não
engraçado, eles riam de tudo, levando-a, e as crianças, a rir também.
— Naquela curva da estrada foi onde capturamos você e os seus companheiros —
Hugh contou, indicando.
— Nós nos escondemos entre as árvores à direita e esperamos até vocês
terminarem a curva. Então, saltamos — explicou Hugo, rindo.
— Como você se assustou — acrescentou Hugh, rindo também, às gargalhadas,
como se o fato fosse a coisa mais engraçada deste mundo. — Você devia ter visto a sua
expressão quando lhe dissemos que íamos trazê-Ia para Gyer! Foi fantástico!
— Não para mim, crianças endemoninhadas. Se eu fosse o seu irmão, os mandaria
para um mosteiro distante onde teriam de trabalhar durante uns bons anos. — Ela afas-
tou-se da amurada e disse com formalidade fingida, o que divertiu os gêmeos: —
Agradeço, meus bons senhores, pelos momentos agradáveis passados aqui. Agora,
preciso levar as crianças lá para baixo. Se tia Leta já voltou da vila, vai ficar preocupada
caso não as encontre. Vamos, Justin e Candis — chamou, tomando-lhes as mãos.
— Hugh, olhe! — gritou Hugo, apontando para o pátio.
— O que terá acontecido?
Todos olharam, e o coração de Lillis quase parou.
— Deus misericordioso! — exclamou ao ver dezenas de soldados armados, e nas
suas montarias, no pátio abaixo. — Ele deve estar pensando em atacar Wellewyn!
Sem refletir racionalmente e ainda segurando as mãos das crianças, passou pelos
guardas surpresos e, apressada, encetou a descida pela escada em espiral.
— Lillis, espere! Lillis! — gritou um dos gêmeos seguindo-a.
Ela continuou a descer o mais depressa possível, embora tivesse de tomar cuidado
para impedir uma queda das crianças. O coração disparava-lhe no peito.
A maneira atabalhoada e frenética com que entraram no salão fez cessar a
movimentação reinante e atraiu todos os olhares. Willem, que estava mais perto dando
ordens a um grupo de homens, arregalou os olhos.
— Onde estava? — demandou.
— O quê? — perguntou, atônita. — Eu estava com as crianças. O que está
acontecendo, sir Willem? O meu pai declarou guerra a Gyer?
Com gestos bruscos, Willem soltou as mãos das crianças das suas.
— Acho melhor levá-Ia para o seu quarto já, lady Lillis — disse ele, empurrando-a.
— Mas quero saber o que está acontecendo! Onde está o meu marido?
Willem não teve a oportunidade de responder, nem de afastá-Ia mais. Alexander,
numa voz retumbante, dominou o salão inteiro.
— Onde, em nome de Deus, você esteve?
Ele gritou cada palavra separadamente às suas costas.
Lillis e Willem estremeceram e, em seguida, viraram-se devagar. Lá estava o marido,
no centro do aposento, encarando-a com uma expressão fulminante que a fez tremer.
Alexander se dirigia a ela, Lillis percebeu com surpresa.
— Eu... — começou, mas foi interrompida por um dos gêmeos.
— Ela estava conosco, Alex — informou Hugh interpondo-se entre ambos.
— Isso mesmo — confirmou Hugo, aproximando-se do irmão.
— E com a gente também, Alex — acrescentou Justin, puxando Candis para perto
dos gêmeos.
Só nesse momento, Lillis deu-se conta do que ocorria. O marido não estava se
preparando para guerrear contra Wellewyn, e sim para procurá-Ia nos arredores do
castelo. Imaginava que ela havia escapado.
A expressão de Alexander não se amenizou ao olhar para os irmãos.
— Vão para os seus quartos — ordenou em voz severa, mas baixa. Depois, dirigiu-
se a Willem: — Diga aos homens que podem voltar aos seus alojamentos.
— Alex... — Hugh tentou.
— Eu disse: para os seus quartos! Já! — vociferou.
— Por que gritar com eles? — demandou Lillis, deixando a proteção de Willem para
se aproximar do marido. — Eles não fizeram nada errado. Acha certo descontar a sua
raiva nos meninos?
Parou diante dele e encarou-lhe o olhar furioso.
— Não, imagino, pois a minha raiva é contra você.
Estendeu a mão e segurou-lhe o braço.
— Venha comigo.
Assustada, Lillis o fitou e, em seguida, dirigiu um olhar impotente para Willem e para
os gêmeos. Estes o retribuíram com um de cautela. Ela não teve oportunidade para
decidir o que fazer. Alexander já a puxava em direção à porta do jardim.
— Não vou matá-Ia, mulher — garantiu ele. Ainda não.

CAPÍTULO X
Caminhavam em silêncio. Alexander segurava-lhe a mão com firmeza, e Lillis
esforçava-se para não tropeçar ao acompanhar os passos rápidos dele.
A mulher estava preocupada, ele sabia, com medo de ser o alvo da sua raiva. Mas
Alexander sentia-se aliviado demais por tê-Ia encontrado dentro do castelo, para des-
carregar a fúria nela. Na verdade, estava bravo consigo mesmo. Não tinha gostado da
própria reação ao não achá-Ia em canto algum do interior de Gyer. Graças a Deus, ela
não havia escapado. Continuava ali, aliás, ao lado dele. Os seus dedos fortes e lindos, tão
diferentes dos minúsculos de Bárbara, revelavam tensão sob os dele. Alexander lutou
para se acalmar e diminuir os passos.
O dia estava quente e lindo. Não haveria muitos mais iguais àquele. O sol começava
a colorir o poente de vermelho, e uma brisa acariciava-lhe o rosto. Ele sempre apreciava
passear pelo jardim em companhia de Bárbara, e não existia razão para que o mesmo
não acontecesse ao lado de Lillis. Havia tido uma inesperada sensação de culpa quando
ela o procurara mais cedo a fim de pedir-lhe permissão para sair. Como qualquer ser
humano, a mulher haveria de querer caminhar ao ar livre. Deveria ter pensado nisso
antes, mas, desde o casamento, os pensamentos jamais estavam onde ele os desejava.
— Prometi que a traria ao jardim tão logo pudesse, não é verdade.? — perguntou,
aliviando a pressão sobre os seus dedos.
— E eu não disse que não queria vir na sua companhia? Rebateu Lillis, fitando-o.
— Mas não tem escolha, infelizmente. O jardim não é lindo? Era o orgulho e a
alegria da minha mãe. Ela mesma plantou quase todas as roseiras.
Lillis soltou a mão e parou. Ele também o fez.
— Não vai me repreender? — perguntou ela.
Alexander respirou fundo. Não, não ia. Lillis estava tão linda! Nunca tinha visto
mulher igual. A trança do cabelo longo e claro prendia-se no alto da cabeça, porém,
madeixas haviam se soltado e emolduravam-lhe o rosto. Bem devagar, ele as ajeitou
atrás das orelhas. Ao fazê-Io, roçou-lhe a pele macia. Sentiu-se excitado. Embora o con-
tato lhe provocasse um arrepio, Lillis continuou a fitá-Io com desconfiança nos olhos
azuis.
— Quer que eu esteja bravo e a repreenda, Lillis? Tenho toda a razão para tanto,
admito. Pensei que você, não sei como, houvesse escapado.
— Com guardas tão competentes me vigiando dia e noite? Impossível! Eles nunca
me perdem de vista. Só quando vou dormir. Mesmo assim, se postam do lado de fora da
porta do quarto e não arredam pé.
Alexander franziu a testa.
— Não sei. Não consegui achá-Ia em lugar algum. Se eles permitem que você se
esconda tão bem, talvez precisem ser substituídos.
— Não é preciso chegar a tal ponto. O fato de eu não ser encontrada não é culpa
deles. Na verdade, ficarei aborrecida se os guardas forem mudados. Já me acostumei às
duas estátuas silenciosas me seguindo para todos os cantos.
— Nesse caso, não os substituirei — prometeu ele, tomando-lhe a mão outra vez e
levando-a até um banco a poucos passos.
— Está uma tarde linda, não acha?
Lillis sentou-se e tornou a soltar a mão.
— Meu senhor, se pretende ficar bravo comigo e me repreender, prefiro que seja
agora. Enquanto não o fizer, eu me nego a conversar sobre temas agradáveis.
Alexander sacudiu a cabeça com expressão pesarosa.
— Começo a desconfiar que você tem uma tendência absurda para exigir castigo
quando nenhum lhe é oferecido. Quando pensei que tivesse fugido, de fato fiquei furioso.
E se esse houvesse sido o caso, você lamentaria haver se atrevido a tanto. Eu a
encontraria antes que estivesse muito longe. Mas você está bem e aqui ao meu lado.
A expressão de Lillis tornou-se sombria.
— Compreendo, meu senhor. Sem dúvida, pensou que a sua preciosa terra
escapava-lhe pelo vão dos dedos. Imaginou que havia se casado comigo a troco de nada.
Mas, como disse, estou bem e aqui.
— Pense como quiser — disse ele, sentando-se ao seu lado. — Se isso é verdade,
não muda nada. Eu afirmei que você não poderá deixar Gyer até a terra estar nas minhas
mãos. Essa condição permanece.
— Sim, eu sei. E uma vez estando de posse dela, o senhor ficará contente em me
ver ir embora.
Alexander estranhou as palavras. Já não tinha lhe dito que seria bem-vinda se
desejasse morar em Gyer? Afastou as reflexões problemáticas da mente e disse:
— Estou curioso para saber onde você esteve. Mandei vasculhar o castelo inteiro
antes de convocar os meus homens.
Finalmente, Lillis o fitou com um esboço de sorriso, o que provocou estranhas
batidas do coração de Alexander.
— Candis e Justin me levaram até o espaço reservado dos gêmeos lá no telhado.
Os guardas me acompanharam, naturalmente — acrescentou depressa ao ver-lhe o ar de
preocupação. — Foi muito agradável e eu não percebi o tempo passar. Não pensou em
me procurar lá?
— Não me lembrava mais desse lugar até você mencioná-Io agora. Mandei arrumá-
Io uns anos atrás para manter os gêmeos ocupados. Eles cuidam dos pássaros lá, não é?
— perguntou em tom desinteressado, provocando a irritação de Lillis.
— Isso mesmo, as aves ficam lá! O senhor nem sabe disso! Não se importa como os
seus irmãos e irmã se ocupam o dia inteiro?
Isso era ridículo e injusto, pensou Alexander um tanto atônito com o ataque
inesperado.
— Naturalmente eu me importo! Caso contrário, não teria providenciado o cômodo
no telhado.
Lillis levantou-se, deu alguns passos e dirigiu-lhe um olhar de desdém.
— Por que os gêmeos não estão sendo exercitados para a Ordem dos Cavalejros?
— demandou.
Alexander ergueu-se também.
— Eles não têm interesse em conquistar a ordenação. Acha que eu deveria forçá-Ios
a entrar numa sociedade sagrada?
— E quanto a Justin e Candis?
— Justin é muito novo para pensar em ser Cavaleiro. Nem vou comentar sobre
Candis.
— Não foi isso o que eu quis dizer! — esbravejou, afastando-se mais.
Alexander teve de segui-Ia. Sentia a estranha vontade de tomá-Ia nos braços e
acalmá-Ia.
— As crianças têm o preceptor e a babá. O que mais eu poderia providenciar para
elas?
Perplexa, Lillis arregalou os olhos. Quando Alexander tentou se aproximar,
empurrou-o.
— O senhor não sabe de nada! — acusou, estapeando-lhe as mãos estendidas para
ela. — Não sabe que os gêmeos afugentaram o novo preceptor esta manhã! Não sabe
que a babá, a quem confiou Justin e Candis, mais parece a freqüentadora de uma
taberna. Passa o dia inteiro dormindo para curar a bebedeira e larga as crianças por conta
própria. Que tipo de irmão o senhor é? — demandou, continuando a pôr distância entre
ambos.
Tudo isso era novidade para Alexander. Sempre ocupado com a administração das
propriedades, deixava tais questões a cargo de tia Leta e de Bárbara. Jamais lhe tinha
ocorrido se os gêmeos e as crianças estavam, ou não, recebendo os cuidados
necessários. Imagmava que sim.
— Sou um irmão preocupado — declarou, furioso, finalmente capturando-a. — Um
irmão amoroso também. — Pôs os braços à sua volta e a puxou para bem perto. — Se o
que diz é verdade, corrigirei os erros. Graças aos gêmeos, nunca foi fácil manter um
preceptor aqui.
— Isso não é desculpa e...
Ao sentir-se prensada de encontro ao corpo musculoso de Alexander, Lillis
esmoreceu a voz. Arregalou mais os olhos e sentiu as faces queimarem. Ficaram assim
por segundos, ele sabendo que ia beijá-Ia verdadeiramente, e não de maneira formal
como no casamento. Ele ia beijá-Ia...
Lillis soltou-se no instante em que os lábios dele roçaram os seus.
— Ainda não recebeu resposta alguma do meu pai? — perguntou em voz trêmula ao
virar-se e fingir que admirava uma roseira.
Alexander foi dominado pelo desapontamento. O corpo de Lillis junto ao dele
provocara-lhe uma sensação deliciosa e muito mais estimulante do que a fragilidade de
Bárbara. A vontade de experimentar-lhe a boca era incontrolável e impiedosa. Mas sabia
não ter o direito de forçá-Ia a satisfazer os seus ímpetos. Por Deus, ele a tinha trazido ao
jardim para apreciá-lo, e não para ser devorada. Mesmo assim, sentia-se irritado como
uma criança privada de uma recompensa merecida.
— Não, não recebi. Mas chegou uma carta interessante, de um dos representantes
do rei, em resposta à minha sobre o nosso casamento.
— Não diga! — exclamou, com súbito interesse. — O rei Henrique aprovou a nossa
união?
— Ele não vai entrar no mérito da questão até o seu pai lhe comunicar que aprova o
casamento e o contrato. Só então saberemos. Mas não foi essa a parte interessante da
carta, e sim o fato de o representante, sir Malvin Giraut, alegar que a conheceu em
Tynedale. Ele lhe manda lembranças e congratulações.
O rosto de Lillis abriu-se num largo sorriso.
— Sir Malvin! Sim, eu o conheço bem e também o irmão, sir Ywain. Eles e os seus
homens freqüentemente passavam a noite no convento quando iam, ou vinham, da luta
em Shrewsbury. Era uma grande honra servi-los, e eu, muitas vezes, a merecia. Bondade
dele se lembrar de mim.
— Ele se recorda muito bem. Sir Malvin contou como ele e o irmão estavam
perdidamente fascinados pela sua pessoa e como discutiam para resolver qual dos dois
deveria conquistá-Ia.
— O quê?! — ela exclamou em tom de incredulidade. — Verdadeiro absurdo! Por
que ele haveria de querer escrever-lhe sobre tamanha tolice? Sir Malvin e o irmão sempre
foram muito atenciosos, mas jamais teriam dado importância a uma jovem de aspecto tão
pouco atraente como eu. Sem dúvida, estava brincando, e o senhor sabe disso.
— Não me pareceu — afirmou Alexander, admirado com a maneira de a esposa
subestimar a beleza.
Mulheres bonitas costumavam fazer isso para provocar elogios. Desapontava-se
com o fato de Lillis ser capaz de usar tal artimanha.
— Se quiser, poderá ler a carta. Sir Malvin contou que Ywain estava tão apaixonado
pela lindíssima Lillis Ryon que, uma noite, atreveu-se a entrar no seu quarto a fim de
declarar eterna devoção. A moça em questão golpeou-o na cabeça com um pesado
candelabro, fazendo-o perder os sentidos. Sir Malvin acredita que o irmão desastrado foi
salvo de maiores agressões pela chegada do seu escudeiro, que, depois de pedir
desculpas à jovem ofendida, arrastou o inconsciente sir Ywain para seu quarto. — Com ar
de admiração, Alexander a observou e riu. — Desencorajado, o pobre sir Ywain nunca
mais se atreveu a olhar para você. Segundo sir Malvin, ele se lamuriou durante semanas
a fio.
Lillis não sabia se ficava brava ou se ria com Alexander. A história toda era ridícula.
Mas não conteve um sorriso ao dizer:
— Meu senhor, nunca ouvi tolice tão grande. Sir Ywain é um homem muito atraente
e...
— Eu o conheço bem — interrompeu Alexander em voz seca e não mais sorrindo. —
Lutei ao lado dele e de sir Malvin em Shrewsbury.
— Nesse caso, sabe muito bem que a história contada por sir Malvin não passa de
bobagem. Todas as moças do convento estavam apaixonadas por sir Ywain, e cada uma
era, certamente, muito mais bonita do que eu. Admito que ele, numa noite, tentou entrar
no nosso dormitório. Mas não foi para se encontrar comigo, e sim com uma das outras
meninas. Como eu estava encarregada da segurança de todas, precisei desencorajá-Io.
Foi exatamente o que aconteceu, juro.
Alexander não acreditou, o que ficou evidente na sua expressão.
— Vamos, Lillis, deixe de protestar. Essa falsa modéstia só pode significar a sua
vontade de ser elogiada. Acho impossível que não reconheça a própria beleza. Não, não,
minha cara — disse ele, levantando a mão para
impedir-lhe novos protestos. — Vou dizer como vejo tudo. Nos dez anos passados
em Tynedale, você escravizou, com a sua beleza, cada homem que a conheceu. Fez in-
tencionalmente, ou não, mas ao mesmo tempo, protegeu a sua virtude da melhor maneira
possível. Comportou-se de maneira admirável, minha querida mulher.
As palavras, num tom entre sério e jocoso, não tinham a intenção de ofender.
Alexander era sincero ao reconhecer-lhe a beleza e a capacidade de defender a
virgindade em vez de entregá-Ia a um Cavaleiro romântico e de passagem pelo convento.
Lillis, entretanto, sentiu-se magoada, e os lindos olhos azuis encheram-se de lágrimas.
— É um homem severo, Alexander de Gyer, mas não imaginei que pudesse ser tão
cruel. Diverte-se à minha custa, embora eu não mereça. Serei grata a Deus quando
conseguir me livrar do senhor.
Passou por ele, mas apenas conseguiu dar alguns passos antes que um estupefato
Alexander a segurasse pelos ombros.
— Lillis! O que foi? Eu não a insultei!
Ela o fitou através das lágrimas.
— O senhor falou da minha beleza — acusou ela, rompendo em soluços.
No mesmo instante, ele a tomou nos braços.
— Pelo amor de Deus, Lillis, não me diga que não sabe como é linda! Você não
pode ser tão cega!
Porém ela continuava a chorar e se via incapaz de falar. Ele sabia que Lillis estava
se sentido humilhada, pois era orgulhosa demais para chorar diante de alguém,
especialmente dele.
As lágrimas corriam sem parar, e Alexander achou que Lillis desabafava a tristeza e
a infelicidade da sua situação. Sem a menor sensação de culpa, sentia-se bem em
estreitá-Ia entre os braços. Como um casal certo e perfeito, aconchegavam-se um ao
outro, e ele, enquanto a consolava, apreciava cada momento.
— Lillis, Lillis — sussurrou com suavidade. — Minha meiga mulher.
— Não sou linda! — ela soluçou.
— Ah, é sim! — afirmou ele, afagando-Ihe os cabelos. — É lindíssima, minha
mulher.
— Não sou, não! — insistiu Lillis.
— Sim, é. Linda como nenhuma outra. O seu cabelo claro lembra o brilho das
estrelas, e a sua pele, macia e alva, é como a de uma lebre branca. Os seus olhos, minha
querida, são do tom mais adorável de azul que eu já vi — disse ao levantar-lhe o queixo
para vê-Ios melhor. — Claros e luminosos. Não são exatamente da cor do céu. Nem da
água. Talvez uma combinação de ambos. Existe uma pedra azul-clara que, quando
lapidada, se parece com eles. — Virou um pouco a cabeça e a observou. — Não posso
acreditar que você não saiba estas coisas. Não havia espelhos em Tynedale? Ninguém
jamais lhe contou a verdade?
Lillis levantou a mão e enxugou o rosto. Com voz meio embargada, respondeu:
— As irmãs explicaram minha aparência. Segundo elas, a cor do meu cabelo e da
minha pele era muito estranha e, por ser alta e grande, eu não dava a impressão de
feminilidade. Sendo assim eu deveria me sentir grata, se conseguisse um marido. E isso é
verdade. O senhor não pode negar que eu seja alta e desajeitada — acrescentou ao vê-Io
fazer uma careta.
— Não nego que seja alta, mas desajeitada, jamais! Talvez na fase de crescimento,
como todas as pessoas, fosse um pouco — disse Alexander ao imaginá-Ia na
adolescência.
— Não sou linda — afirmou Lillis mais uma vez. Ninguém me disse isso antes.
Nenhuma das meninas do convento. Não pode ser verdade.
Alexander sorriu e acariciou-lhe a face.
— Você é uma vítima da ignorância, minha querida. Nenhuma mulher, vaidosa da
própria beleza, admite que outra possa ser mais bonita, especialmente quando a outra é
lindíssima. As irmãs de Tynedale, calculo, não querendo deixá-Ia pretensiosa, não
mencionaram a sua beleza. Os homens que passavam pelo convento ficavam fascinados
por você, mas tinham medo de ser menosprezados. O único que se atreveu, o pobre
Ywain Giraut, foi golpeado na cabeça. Você nunca encorajou nenhum deles, não é
verdade, Lillis? Pensava que eles a consideravam sem atração alguma.
Calada, ela concordou com a cabeça.
— Não sou linda. Não como lady Bárbara.
— Minha prima, de fato, é muito bonita. Mas a beleza dela difere da sua que é sem
par e não pode ser comparada a nenhuma outra.
As lágrimas haviam parado. Com as mãos nos ombros de Alexander, Lillis soltou-se
do abraço.
— O senhor é muito fantasioso, mas, às vezes, bondoso também. Sinto muito tê-Io
qualificado de crueL
Alexander sentiu-se vazio sem Lillis entre os braços.
Contudo, manteve a expressão impassível.
— Se me considera fantasioso, então não sabe nada ao meu respeito.
Tratava-se da mais pura verdade. Alexander não era um romântico, mas um homem
prático. De repente, deu-se conta de que, se as circunstâncias fossem outras e ele
precisasse cortejar Lillis de Wellewyn para se casar com ela, não saberia por onde
começar. Essa era uma das razões pelas quais sempre se sentira grato a Bárbara. Nunca
precisara cortejá-Ia.
— Se alguma vez não a tratei com bondade, não foi de propósito.
Lillis tinha voltado para o banco e se sentado.
— Qualquer homem que ameaça separar os filhos de uma mãe não está sendo
precisamente bom.
— Eu jamais disse que tiraria os seus filhos de você — defendeu-se Alexander em
voz seca e sem mais nenhum traço da suavidade anterior. — Apenas afirmei que eles
seriam criados em Gyer como deveriam. Também lhe disse que poderia morar aqui, caso
desejasse.
Lillis sentia-se sem forças para iniciar uma discussão, ainda, mais com Alexander de
Gyer, que, provavelmente, perdia muito poucas. Em vez disso, fez-lhe uma pergunta
sobre um assunto que lhe tinha ocorrido na noite anterior.
— Por acaso já teve algum filho bastardo, meu senhor?
Lillis já esperava uma reação de choque, mas esta passou depressa. Em vez de
vociferar com ela, Alexander declarou calmamente:
— Vou escrever às irmãs de Tynedale e manifestar o meu desagrado com a
educação que elas lhe ministraram. Quantos homens, imagino, não espancariam as suas
mulheres por lhes falar de maneira tão crua?
Lillis achou graça nas palavras e o desconcertou, rindo.
— Que mal há em eu perguntar? Por favor, me perdoe, meu senhor. Fiquei curiosa
quando me disse que os Baldwin herdam traços marcantes da família. Imaginei como o
senhor saberia disso se já não tivesse filhos.
Ele franziu o cenho.
— Você é uma mulher muito estranha. A sua personalidade combina com a sua
beleza inigualável. Ficaria aborrecida se eu lhe dissesse ter filhos fora do casamento?
— Ai, não, meu senhor — Lillis garantiu depressa. Os homens têm direito a isso, eu
sei. E os filhos podem ser a maior bênção da vida. Eu apenas ficaria triste se o senhor
não os sustentasse, do que duvido. Nem o senhor seria capaz de tal desumanidade.
— Obrigado — agradeceu, sentando-se ao seu lado no banco. — Não tenho filho
algum, pelo menos, que eu saiba. Sempre tomei muito cuidado a esse respeito. Um
homem que não se importa de povoar o mundo com os seus bastardos é um canalha. Ele
não merece perdão, e sim, desprezo.
Lillis fitou o marido com um misto de surpresa e aprovação.
— É muito sensato, meu senhor — murmurou com um sorriso. — Justin e Candis
contaram-me que existe uma lagoa no jardim.
Alexander sacudiu a cabeça e refletiu se o latejar no peito prenunciava alguma
enfermidade.
— Existe, sim. Criamos peixes lá para o nosso consumo. Gostaria de ir ver? —
convidou, levantando-se e estendendo a mão.
— Sim, seria um prazer — respondeu Lillis, pondo a mão na dele.
— Mas primeiro, quero lhe mostrar o resto do jardim. Aliás é tão grande que forma
um parque — Alexander explicou, pondo a mão de Lillis em seu braço.
— Ah, será muito agradável.
— Você deve ver tudo.
— Sem dúvida. O senhor poderá resolver não me deixar sair outra vez.
— De jeito nenhum. De hoje em diante, vou trazê-Ia todos os dias para passear aqui.
Se o tempo permitir, é claro. Eu deveria ter pensado nisso antes. Foi um lapso meu não
imaginar que você apreciaria passar algumas horas ao ar livre.
Tinha sido mais do que um lapso, refletiu Alexander, um descuido imperdoável. Não
costumava agir dessa forma. Nunca antes a mente enérgica e ágil tinha se mostrado tão
fraca e inútil.
Mais uma vez, Lillis mostrou-se surpresa.
— Sua prima não vai gostar disso. O senhor não a traz para passear aqui todas as
tardes?
— De vez em quando, se o tempo está bom — admitiu ele.
— Eu o tenho visto com ela, andando entre os canteiros, todos os dias desde que
cheguei aqui. Todos os dias, meu senhor.
Foi a vez de Alexander se surpreender e foi tanto, que nem encontrou o que falar.
Lillis o tinha observado nos últimos dias, como ele também a observava. A idéia au-
mentou-lhe o latejar no peito.
Passaram vários momentos em silêncio, e, quando Lillis percebeu que Alexander
não ia responder, disse em tom tímido:
— Se vai mesmo me trazer todas as tardes ao jardim, meu senhor, o que eu
apreciaria muitíssimo, imagino se as crianças e os gêmeos não poderiam nos
acompanhar. Especialmente Justin e Candis. Eles deveriam ser encorajados a brincar ao
ar livre sempre que fosse possível. Não concorda?
A idéia de passar o pouco tempo livre de que dispunha com os irmãos, exceto
Willem, nunca tinha passado pela cabeça de Alexander. Mas disse:
— Eles poderão vir, se você quiser.
O sorriso que iluminou o rosto de Lillis quase o fez parar de respirar. Era muito fácil
agradar essa sua mulher. Sorriu-lhe também e decidiu que a conduziria pelas alamedas
do jardim bem devagar.
— Que beleza! É muito talentosa, lady Lillis.
A voz de homem, vindo inesperadamente de trás da sua cadeira, quase a fez saltar.
Virou-se e viu John Baldwin inclinando-se, bem perto, e com um sorriso agradável. Ela
não tinha ouvido a aproximação dele e não sabia quanto tempo fazia estava ali. Passado
o choque, irritou-se. Embora houvessem sido apresentados no dia do casamento e se
sentassem à mesma mesa, ela ainda não havia tido a oportunidade de travar relações
com ele. Mas sabia ser de mau gosto aproximar-se furtivamente de uma pessoa. Ajeitou o
trabalho no colo e disse:
— Obrigada, senhor. Reconheço a minha habilidade no bordado.
— Sem dúvida nenhuma, minha cara lady Gyer. Nunca admirei pontos tão perfeitos.
Será um prazer para os olhos quando puder agraciar as paredes do castelo com um dos
seus trabalhos.
A voz era suave e agradável. Ele deu um passo para a cadeira ao seu lado, onde
Alexander se sentara meia hora atrás para uma de suas aparições rápidas.
— Posso lhe fazer companhia, lady Gyer? — indagou ele, sentando-se antes de
receber permissão.
John Baldwin era um homem atraente, com cabelo avermelhado e expressão de
adolescente. Estava sempre sorrindo, pensou Lillis, exceto quando discutia com Ale-
xander. Ela não sabia sobre o que brigavam, porém desconfiava tratar-se de Bárbara.
— Ainda não nos conhecemos bem — disse ele, inclinando-se um pouco para
frente. — Mas através do seu casamento, nós nos tornamos primos. Eu me sentirei hon-
rado se pudermos travar relações de amizade, caso o permita, minha senhora.
— Claro — respondeu Lillis com uma ponta de cautela e desconfiada da maneira
solícita dele, apesar da aparência de sinceridade. — A nossa amizade, entretanto, não
durará muito, pois logo deixarei o castelo. Mas isso já deve saber, imagino.
Ele riu de maneira bondosa.
— Ah, sim. O primo Alex foi bem claro sobre esse ponto quando explicou a
necessidade de se casarem. Se não me engano, a senhora já havia se retirado quando
tivemos uma reunião de família para tratar do assunto. Naturalmente, a senhora se
encontrava em estado de profunda confusão naquela noite. O casamento lhe foi tão
desagradável quanto para Alex, não é verdade?
As palavras tiveram o efeito de um tapa. Aturdida, Lillis levou alguns instantes para
conseguir murmurar:
— Sim.
— A questão toda foi detestável, para não dizer repugnante — prosseguiu John,
sacudindo a cabeça. — Jamais imaginei que Alex fosse capaz de se casar com uma
jovem inocente por causa de um pedaço de terra. Calculo como a senhora ficou deprimida
e como deve continuar a estar. Trata-se de uma situação muito triste e eu lamento o seu
sofrimento.
— Obrigada — Lillis murmurou, constrangida.
Toda a alegria sentida com a companhia de Alexander, meia hora atrás, evaporou-
se como o orvalho sob os raios quentes do sol. Ela e o marido tinham adquirido uma certa
camaradagem nos últimos dois dias, desde o primeiro passeio pelo jardim. Lillis, agora,
aguardava com prazer a companhia de Alexander durante o dia. Conversavam, riam e ele
lhe falava sobre o trabalho. Ainda não tinham chegado notícias do pai, nem sinal de
Edyth, mas ele prometera mandar alguns homens a Wellewyn, caso uma resposta não
viesse logo. Lillis raramente o pressionava sobre a questão. Detestava o antagonismo que
surgia entre ambos quando o assunto era mencionado.
Estava determinada a usufruir, da melhor maneira possível, o resto da sua
permanência em Gyer. Preferia contar com a amizade do marido atraente do que tê-Io
como inimigo. Desejava apreciar-lhe a companhia sempre que estivessem juntos. Nas
tardes dos dois últimos dias, Alexander a tinha vindo procurar a fim de levá-Ia ao jardim,
como prometera. Nas duas vezes, as horas haviam transcorrido da maneira mais
agradável já apreciada por Lillis. Nunca antes ela havia se sentido tão feliz como quando
caminhava ao lado do marido, com a mão no seu braço forte. E também jamais
esqueceria a amenidade e a alegria desses dois dias anteriores.
— Minha querida irmã também está sofrendo muito — John continuou. —
Inacredltável que Alexander fosse capaz de magoá-Ia tão profundamente. Ele sempre
afirmou dedicar-lhe um grande amor.
— Sem dúvida ele ainda a ama. Só fez o que achava ser o seu dever e por não ter
escolha. Com certeza, a sua irmã entende isso — disse Lillis.
— Não sei. A situação está sendo muito dura para ela. Entenda, Bárbara ama Alex
desde a meninice. Ficaram noivos na adolescência e ela sempre esperou tornar-se a sua
esposa. O desapontamento a deixou acabrunhada.
— Lamento muito. Gostaria que o senhor lhe dissesse como me sinto aborrecida
com a situação e com a minha participação nela, embora involuntária. Jamais desejei que
tal acontecesse e, por isso, compreendo o sofrimento de lady Bárbara.
— Sim, eu lhe direi, minha senhora. Agradeço a sua bondade. A minha irmã se
sentirá grata pelas suas palavras. Ela se convenceu de que Alex está apaixonado pela
senhora e não a ama mais, embora ele garanta o contrário. As suas palavras generosas
lhe restituirão a auto-estima.
— Que bom — Lillis murmurou em tom alheio e sem saber o que pensar.
As palavras de John faziam sentido e não a surpreendiam. Entretanto e por algum
motivo, elas lhe dilaceravam o coração.
John suspirou.
— Às vezes, tenho medo de que Alex se canse de viver repetindo o quanto a ama e
como as coisas voltarão ao normal após a sua partida de Gyer. Bárbara se esforça para
acreditar nele, naturalmente, mas custa-lhe um grande esforço manter-se à espera de que
tudo se resolva. Também está sendo difícil para Alex. Isso sem falar na senhora. Tenho
certeza de que se sentirá aliviada e feliz quando puder, finalmente, voltar para a sua casa
e reencetar a própria vida.
— Sim — concordou Lillis com uma vontade inexplicável de chorar.
Por que haveria de se importar com o amor de Alexander pela prima? Sabia da sua
existência o tempo todo. Também não ignorava que o convite para permanecer em Gyer
não passara de amabilidade, e não de algo sincero.
— Olá, John e lady Lillis — cumprimentou uma voz conhecida.
Lillis levantou o olhar e foi tomada pelo alívio ao ver Willem. Sorridente, ele curvou-
se sobre a sua mão para beijá-Ia enquanto John o observava com olhar de suspeita.
— Vim buscá-Ia, minha senhora, para acompanhar tia Leta na prometida e adiada
visita pelo castelo. Ainda dá tempo para isso antes do almoço. Sinto, John, mas vai ter de
perder a ótima companhia.
Lillis aceitou a mão de Willem para se levantar e, apoiada no braço dele, dispôs-se a
segui-Io. John ergueuse também e sorriu.
— Um passeio pelo castelo de Gyer? Gostaria de ir junto com o intuito de impedir
qualquer acidente. Além do mais, seria interessante verificar quantos aposentos não são
usados neste lugar.
Willem percebeu a tensão de Lillis com a perspectiva de passar mais tempo ao lado
de John.
— Não se preocupe, primo — disse ao pôr a mão na de Lillis. — Já me ofereci para
acompanhar as senhoras. Elas ficarão em absoluta segurança comigo e com os dois
guardas de lady Lillis.
— Claro, Willem. Mas lamento me ver privado da companhia de lady Lillis. Obrigado
pela sua atenção, minha senhora. Talvez possamos voltar a conversar qualquer hora
dessas.
— Sim, com certeza — respondeu ela sem o mínimo entusiasmo.
— Bom passeio pelo castelo. Tornaremos a nos encontrar na hora do almoço.
Depois de curvar-se, John foi embora, e Lillis soltou a respiração presa.
— John a estava incomodando, minha senhora. Ele a aborreceu? Devo avisar Alex?
— Não, pelo amor de Deus! Ele foi muito atencioso.
Willem a observou com olhar perscrutador. Preocupado e deixando o tratamento
cerimonioso de lado, exclamou:
— Lillis, você está tremendo! Sem dúvida, John a importunou. O que ele disse?
— Nada, juro. Acha que se ele houvesse me tratado maI os guardas não teriam
reagido? Ontem, porque um criado foi desrespeitoso, eles o atiraram para fora do salão.
Willem não acreditou.
— John é um homem vingativo, Lillis, e seria melhor se você o mantivesse a
distância. Ele pode parecer inocente e inofensivo, mas não é, garanto.
— Ele não deu a impressão de ser perigoso, Willem, contudo, vou seguir o seu
conselho. Mas por favor, prometa não dizer nada ao meu marido. Eu não gostaria de, sem
necessidade, provocar mais problemas.
Willem continuou com olhar cético.
— Desta vez, não falarei com Alex. Porém, se John a importunar outra vez, irei
diretamente ao meu irmão. Ele não permitirá que o nosso primo a aborreça. Nem eu.
— Obrigada, Willem — agradeceu Lillis, sorrindo para o cunhado simpático e
atraente. — Obrigada por me ajudar. Você não planejava, realmente, nos acompanhar
pela visita ao castelo, não é?
Ele também sorriu.
— Não... Porém, não vejo maneira mais agradável de passar o tempo do que ficar
ao lado de uma mulher linda. Lillis enrubesceu.
— Não sou bonita, Willem, e você é muito gentil por pregar tal mentira.
Lillis não se dava conta da intimidade que ela e Willem sugeriam ao caminhar lado a
lado, de braços dados, conversando baixinho e rindo. Mas todas as pessoas no salão,
inclusive Alexander, os observavam.
Ele estava sentado ao lado de Bárbara, diante da lareira, a quem tinha procurado a
fim de acalmar-lhe a irritação com os seus recentes passeios pelo jardim com a mulher.
Não gostava de ver a prima infeliz e se achava responsável por isso. Prestava-lhe tanta
atenção que não teria visto Lillis e Willem se um criado não houvesse derrubado uma
bandeja por perto. O barulho estridente o fizera erguer o olhar.
A visão do irmão com a mulher, bem juntinhos e distraídos, o aturdiu e enraiveceu.
Já não mais se lembrava da presença de Bárbara. Só podia ver Lillis sorrindo para
Willem.
De repente, ela o viu e deixou de sorrir. Fitaram-se, porém ela notou Bárbara
sentada ao seu lado e desviou o olhar. Em questão de segundos, ela e Willem deixavam
o salão, e Alexander tentava concentrar novamente a atenção na linda ruiva. Bárbara
continuou a falar, mas ele não a ouvia mais.

CAPÍTULO XI
Lillis estava achando difícil continuar contando a história sob o olhar persistente de
Alexander.
— Então, quando os troianos foram dormir aquela noite, os gregos abriram a porta
secreta no lado do cavalo e escaparam para fora.
O marido tinha passado o dia inteiro fitando-a daquela maneira insistente e
inquietante. Durante o almoço, o passeio pelo jardim com os irmãos, o jantar terminado
havia pouco e, agora, diante da lareira, enquanto ela tentava distrair os gêmeos e as
crianças com a história do cavalo de Tróia. Sem interrupção, ele a observava. Felizmente,
o fazia de maneira discreta e ninguém mais além dela, esperava, percebia. Bastava criar
coragem e olhar para Alexander, ficava nervosa. Lá estava ele espreitando-a.
— Eles destruíram a cidade e a queimaram totalmente. Todos os homens, inclusive
os meninos, foram mortos, e as mulheres passaram a ser escravas.
O que tinha ela feito para aborrecê-Io? indagou-se. A expressão sombria do marido
provocou-lhe um arrepio de apreensão.
— Tão logo os gregos resgataram Helena, voltaram para a sua terra, deixando
apenas destruição para trás. Esse foi o fim da cidade de Tróia.
A família Baldwin inteira, mais alguns habitantes do castelo, estavam reunidos à sua
volta para ouvir a história e não pouparam aplausos quando ela terminou. Willem, mais do
que ninguém, elogiou a sua narrativa fluente.
— Eu poderia passar a noite inteira prestando-lhe atenção. Foi tão interessante ouvir
a história como admirar quem a contava — disse ele.
— Concordo plenamente — acrescentou John Baldwin.
— Uma excelente distração. Muito obrigado.
— Um cavalo de madeira! Quem haveria de pensar nisso? — comentou Hugh que,
ao lado do outro gêmeo, sentara-se no chão.
— Uma idéia brilhante — concordou Hugo, impressionado. — De fato,
extraordinária.
A voz de Alexander chegou das sombra onde ele se encontrava. Enrubescendo,
Lillis o viu se aproximar com a mão estendida e segurar a sua. Confusa, ela o fitou
enquanto o marido apertava-lhe os dedos num gesto possessivo.
— Meu senhor? — disse em tom incerto.
— Minha senhora. Minha talentosa e magnífica esposa. As palavras foram
pronunciadas em voz seca e fria.
Ele soltou-lhe a mão, curvou a cabeça num gesto de escárnio, virou-se e foi embora.
Embora houvessem se passado muitas horas e já fosse bem tarde, Lillis não estava
dormindo quando ouviu a porta de comunicação com o quarto do marido sendo aberta.
Ela puxou as cobertas até o queixo e ficou à espera. Após alguns segundos e como
temia, viu Alexander abrir as cortinas à volta da cama.
Com a luz do fogo da lareira, podia ver que ele ainda estava vestido.
— Boa noite, senhora minha mulher — cumprimentou ele, retostando-se no suporte
do dossel.
— Meu senhor.
— Ainda não conseguiu dormir?
— Como vê, não.
— Ah!
— E o senhor, está sem sono?
— Não, minha cara, apenas sem a intenção de dormir. O olhar dele percorreu-lhe as
formas cobertas, fazendo-a mexer-se, inquieta.
— Quer conversar comigo então, meu senhor?
— Não, não vim aqui para isso.
Lillis umedeceu os lábios com a língua e viu os olhos verdes acompanharem o
gesto.
— Nesse caso, talvez...
— Eu a tenho observado durante dias, desde o nosso casamento, ou melhor e para
ser honesto, antes dele. Devagar, endireitou-se e veio na sua direção. Quando se sentou
na beirada da cama, Lillis tentou recuar o corpo, porém, ele a impediu. — Não se mexa,
Lillis — disse, curvando-se sobre ela e, quase com reverência, tocando lhe os lábios. —
Você está tremendo! Sente medo de mim?
Calada, ela o fitou.
— Eu a tenho observado — Alexander repetiu enquanto lhe acariciava o rosto. — Eu
já a vi com as crianças à tarde, contando-lhes histórias à noite, distraindo-as e alegrando-
as. — Um dedo percorreu a linha da orelha. — Eu também a observei com os gêmeos,
aturando-os, dando-lhes conselhos, fazendo-os se comportar. Já a vi falar consigo
mesma enquanto bordava e pensava que ninguém a via. É verdade, Lillis. Já passei horas
olhando para você. Vi o seu ar de concentração, os seus lábios movendo-se em palavras
silenciosas. Tentei adivinhar-lhes o sentido e imaginei se você tinha consciência do que
fazia. — Voltou a tocar-lhe os lábios. — Você continua tremendo. Pensa que pretendo lhe
fazer algum mal? Violentá-Ia?
— Não faço idéia — ela murmurou.
— Eu poderia, se quisesse. Você não tem um candelabro para se defender e sou
mais forte do que você. Sou o senhor aqui e você é a minha mulher. Ninguém se atreveria
a entrar no quarto para ajudá-Ia, caso tentasse lutar contra mim.
— Mas tenho a sua promessa de não me forçar. O senhor é um homem de palavra.
— Sou, sim — admitiu ele em tom pesaroso. — Infelizmente, sou um homem
honrado.
— O que deseja, meu senhor.
— Não percebe? — indagou Alexander com suavidade, e Lillis estremeceu.
— Trata-se de um enigma?
Alexander baixou o corpo até prensar o peito sobre ela. A mão abandonou a face e
embrenhou-se no cabelo; o braço que a mantinha presa escorregou sob as cobertas e
suas costas, aconchegando-a.
— Um enigma, não, minha mulher. Um enigma, não.
Estavam muito perto um do outro, e Lillis sentia-lhe a respiração quando ele falava.
Assustada, virou o rosto. O marido aproximou-se mais, e ela fechou os olhos quando lhe
sentiu os lábios junto à orelha. Ele a beijou ali, na face e no pescoço, depois de afastar
seu cabelo. Meigo e delicado, continuou beijando-a até que Lillis, encontrando dificuldade
para respirar e sentindo o corpo latejar como se estivesse doente, perdeu a vontade de
resistir e, virando novamente o rosto, ofereceu-lhe os lábios.
Ele os tomou, suspirando de prazer. Além da meiguice, demonstrava grande
habilidade. Lillis não fazia idéia de que um beijo pudesse demorar tanto e que a língua de
uma pessoa tomasse parte na carícia, provocando sensações deliciosas. A mão sob suas
costas soltou-se e aconchegou-lhe um dos seios, levando-a a exclamar junto aos lábios
dele:
— Alexander!
A voz que tentava repreender soou fraca, ofegante e esquecida do tratamento
formal.
Alexander, acariciando-lhe os seios, sorriu com expressão feliz.
— O meu nome — murmurou. — Gosto do som dele nos seus lábios. — Curvou-se
e a beijou novamente. Depois, levantou a cabeça. — Você não conhecia o beijo de um
homem — afirmou, com satisfação.
— Isso o agrada, meu marido?
— Muitíssimo. Você era uma mulher boa e honrada antes de se casar e vem se
comportando bem desde o nosso casamento. Continue assim e eu jamais terei motivo
para me sentir aborrecido com você.
A voz clara e precisa tirou Lillis do devaneio e a fez refletir com lucidez.
— Não estou entendendo. O que quer dizer, Alexander?
— Embora você não tenha me escolhido para ser o seu marido, eu o sou, e terá de
me aceitar como tal. Concordei que você tivesse amantes, mas não admitirei ser traído
pelo meu próprio irmão.
Lillis arregalou os olhos. A mente, ainda meio nublada pelos momentos de ternura,
levou uns segundos para entender o que Alexander tinha dito. Mas quando o fez, reagiu
como se houvesse sido atingida por um raio.
— Seu canalha! — Empurrou-o e tentou estapeá-Io. — Seu monstro imundo!
Uma das mãos conseguiu atingi-Io, provocando um estalo satisfatório, mas
Alexander segurou-lhe os dois pulsos e a prensou no colchão.
— Vá para o inferno, Lillis! Pensa que sou cego? Imagina que não vi os olhares
amorosos que você trocou com Willem ainda hoje?
Ela sentiu-se enojada e humilhada. Deixara-se convencer de que Alexander a tinha
beijado por prazer e satisfação. Percebia agora que ele o tinha feito apenas com a
intenção de testar-lhe a ignorância e a inocência.
— Não fiz nada com Willem além de aceitar a sua bondade! E dou graças a Deus
por ela! É um crime muito grande eu receber as poucas demonstrações de generosidade
que alguém me oferece neste lugar?
— Eu sou o seu marido! — Alexander repetiu com raiva. — Se você quer ser tratada
com bondade enquanto estiver em Gyer, tente conseguir isso de mim! Não quero o meu
povo e a minha família comentando, às minhas costas, as traições da minha mulher com
o meu próprio irmão.
— Não fiz nada com Willem — Lillis repetiu.
— Pois tome cuidado para não fazer — advertiu. — Muito cuidado, minha mulher, ou
se arrependerá amargamente.
Inutilmente, ela tentou se soltar, mas Alexander era muito forte.
— Como eu poderia agir de maneira diferente se sou continuamente vigiada? Você
não passa de um grande idiota! — acrescentou, furiosa.
— Talvez eu seja mesmo um — admitiu ele. — Mas isso não altera a minha
condição de seu marido. Você terá de se comportar de acordo com a minha vontade.
— Eu o obedecerei porque sou sua prisioneira e não tenho escolha a não ser
satisfazê-lo. Na verdade, isso vem acontecendo desde que o conheci. Como gostaria que
jamais tivesse acontecido!
— Não mais do que eu, Lillis. Não mais do que eu. — Soltou-a, levantou-se da cama
e, num gesto agitado, passou os dedos pelo cabelo. — Maldição! Isso não era o que eu
queria! Não vim aqui para brigar. Por que você sempre me enlouquece?
— Se eu o faço, não é de propósito. Não o convidei para vir ao meu quarto.
Praguejando novamente, Alexander caminhou até a lareira e, por minutos,
permaneceu calado enquanto massageava a nuca. Depois, disse:
— Sua empregada, Edyth, chegou a Gyer mais ou menos uma hora atrás.
Lillis afastou as cobertas e sentou-se depressa.
— Edyth?!
— Sim. Não sei por que ela chegou tão tarde da noite, nem por que o seu pai
demorou tanto tempo para mandá-Ia de volta. Estava tão cansada que eu a mandei di-
retamente para o quarto. Amanhã cedo, você poderá vê-Ia.
Lillis levantou-se e, sem se dar conta de que estava apenas com a camisa de
cambraia fina, aproximou-se do marido. Pôs-lhe a mão no braço e murmurou:
— Alexander, o meu pai...
Com um aceno afirmativo de cabeça, ele a interrompeu:
— Sim, lady Edyth trouxe uma carta. Jaward consentiu no nosso casamento e
assinou o contrato. A terra é minha. Não vejo a hora de romper a represa. Esta noite
mesmo, irei até lá com os meus homens a fim de começar o trabalho sem perda de
tempo.
Lillis respirou aliviada. Enfim, uma notícia boa.
— Estou tão contente! E como o seu povo ficará satisfeito com a volta da água,
Alexander.
— Nem diga! — murmurou ele, fitando-a. — Você se sentirá feliz ao ir embora de
Gyer, não é verdade, minha mulher? Irá, de fato, nos deixar?
Baixinho, Lillis respondeu:
— Irei, sim. E você ficará aliviado quando eu não estiver mais aqui. A vida no castelo
de Gyer voltará a ser o que era antes.
— Lillis — começou Alexander, mas parou sacudindo a cabeça como se tentasse se
convencer de alguma coisa. Depois, prosseguiu: — Não sei quanto tempo levaremos para
destruir a represa. Talvez uns poucos dias, não mais do que uma semana. Quando eu
voltar, vou querer conversar com você sobre assuntos importantes.
— Naturalmente, meu senhor — concordou, achando que o marido se referia a
acertos de detalhes legais.
— Nesse caso, espero retomar o mais depressa possível.
— Vá com Deus — disse ela ainda com a mão no seu braço. — Desejo-lhe boa
sorte.
— Você é muito atenciosa, mas eu prefiro isto à sua bênção — disse ele ao tomá-Ia
nos braços e beijá-Ia antes que Lillis pensasse em protestar.
Foi um beijo longo e, quando terminou, ela se sentia fraca e inútil, como se fosse
apenas um brinquedo com o qual Alexander podia se distrair quando quisesse.
— Estranho — murmurou ele, fazendo círculos vagarosos com a mão nas suas
costas, sobre a camisa fina. — Vou sentir sua falta.
As palavras a desarmaram completamente. Na ponta dos pés e enlaçando-o pelo
pescoço, Lillis aconchegou-se e ofereceu-lhe os lábios. Alexander deixou escapar um
profundo suspiro de prazer e, quando o beijo terminou, sorriu, satisfeito, da sua expressão
sonhadora.
— Voltarei logo, minha querida mulher. Então, teremos muito que conversar. —
Devagar, soltou-a do abraço. — Tudo haverá de ser resolvido entre nós.

CAPÍTULO XII
— Não quero fazer isso, John. — Nervosa, Bárbara aproximou a montaria à do
irmão e percorreu o olhar ao redor como se esperasse alguém surgir por entre as árvores.
— Por favor, me deixe voltar para Gyer. Um dos seus homens não poderá ficar aqui
vigiando a estrada?
— Ora, não seja bobinha, minha querida — censurou John ao levantar a mão
enluvada no ar, numa ordem para os homens pararem. — Nenhum deles conseguirá
retardar um viajante por tanto tempo quanto você. Um homem solitário, numa estrada
através da mata, não despertará muita atenção. Mas uma jovem linda como você é muito
diferente. Não vai correr perigo algum, garanto. Faça direitinho o que mandei e tudo dará
certo. E muito cuidado, não comece a chorar alto quando vir alguém se aproximando. A
pessoa poderá pensar tratar-se de um animal ferido e dar-lhe um tiro de misericórdia.
A aflição de Bárbara chegou ao auge.
— Ai, não quero ser morta! Por favor, John, não me force a fazer isso. — Mas ao ver
que o irmão não mudaria de idéia, olhou para alguns homens à volta. — Aaron, Miles,
pelo amor de Deus, me ajudem.
John desmontou e aproximou-se da égua de Bárbara a fim de tirá-Ia da sela.
— Não adianta pedir, minha querida. Sabe muito bem que os meus homens não
agirão contra a minha vontade. Pronto — disse ao colocá-Ia no chão e afagar-lhe o rosto.
— Você está linda. Nenhum homem, em seu juízo perfeito, deixará de parar para acudir
moça tão adorável e desamparada como você. Não fique com esse ar amedrontado, meu
bem. Estará em perfeita segurança. Vou deixar dois homens escondidos por perto. Se
alguém aparecer na estrada, comportar-se de maneira afrontosa e você não puder se
defender, bastará gritar. Ambos aparecerão num abrir e fechar de olhos. E eu estarei de
volta com os outros em, mais ou menos, meia hora. A nossa tarefa não vai demandar
muito tempo.
— Ah, John, eu gostaria tanto que você parasse de fazer essas coisas. O que
acontecerá se o primo Alex vier a descobrir tudo?
John sorriu e disse em tom complacente:
— Não deve se preocupar com isso, irmãzinha. Não ignora que eu jamais a deixaria
sofrer qualquer mal, especialmente nas mãos do primo Alex. Sempre cuidei bem de você,
lembra?
— Mas John...
— Agora, fique aqui e seja uma boa menina. Estarei de volta antes do que você
imagina.
— Por misericórdia, John, não me deixe sozinha aqui!
— Não tenha medo. Você estará em segurança — garantiu ele, voltando a montar.
— Mas lembre-se, Bárbara, custe o que custar, não deixe ninguém passar daqui para a
frente na próxima meia hora. Caso você falhe e me desaponte, ficarei bravo e não a
perdoarei.
Bárbara entendeu a ameaça velada. A ira do irmão era algo temível. Em silêncio
baixou a cabeca
John e os homens foram embora a largando amedrontada e trêmula no meio da
estrada. Além de cortar a floresta, poucos viajantes a percorriam. A neblina envolvia a
área, e cada ruído soava muito mais alto aos ouvidos de Bárbara.
O piar de uma coruja provocou-lhe um gemido. Apertou a capa com tanta força que
os dedos doeram.
Depois de alguns minutos, aproximou-se da margem da estrada e sentou-se. Tremia
tanto que tinha a impressão de a terra também o fazer.
— Deus amantíssimo, faça John voltar depressa rezou numa vozinha fraca, mas o
som a reconfortou um pouco.
Quase meia hora já havia se passado quando Bárbara ouviu o esperado barulho de
tropel de cavalos. Porém, desanimada, percebeu que ele vinha do lado oposto ao do
seguido pelo irmão. Devagar, ficou em pé e enrolou bem a capa à volta do corpo. Em
instantes e com medo crescente, começou a ver cavaleiros surgindo da neblina. Eles
davam a impressão de serem fantasmas. Num trote apressado, aproximaram-se.
O pânico a petrificou. Tantos homens! Jamais conseguiria se defender de um bando
tão numeroso. A tênue esperança de que o irmão surgisse a tempo de salvá-Ia morreu ao
olhar para o líder do grupo que parava ao seu lado.
Tratava-se de um homem grande, moreno, cujo cabelo negro e longo dava-lhe a
aparência de bárbaro. Os olhos azuis a fitavam com intensidade alarmante. Antes de falar
e com ar atônito, ele a observou da cabeça aos pés.
— O que faz aqui, minha senhora? — perguntou em tom brusco.
— Eu... eu...
O gigante bonitão franziu a testa, e Bárbara despencou num choro convulsivo. Isso a
deixou mais aflita, pois lembrava-se da recomendação de John para não chorar. Virou-se
e saiu correndo para a mata, sem olhar por onde pisava. Tropeçou várias vezes e quase
chegou a cair, mas, no auge do desespero, continuou em frente.
Não levou muito tempo para ser alcançada pelo homem de cabelo negro. Tentou
gritar, mas ele tapou-lhe a boca com a mão. Em seguida, deitou-a na terra úmida e fria, e
Bárbara, com os olhos fechados, esperou ser violentada. Todavia, após alguns segundos
o gigante sentou-se ao seu lado e a colocou no colo, aconchegando-a entre os braços.
— Pronto, pronto — ele tentou acalmá-Ia enquanto alisava-lhe o cabelo. — Não
precisa ficar com medo.
— Por... por fa... favor, não me fa... faça mal — gaguejou Bárbara.
— Naturalmente não lhe farei mal algum — garantiu ao apoiar a cabeça dela em seu
ombro. — E também não deixarei que nada lhe aconteça.
— Eu es... estava com tan... tanto medo!
— Pois não precisa, minha lindíssima jovem — afirmou ele, estreitando-a mais um
pouco. — Qual é o seu nome?
— Bárbara — murmurou, já quase não chorando mais.
— Bárbara — repetiu o homem. — Bonito. Um nome bonito para uma mulher muito
bonita. — Observou o seu rosto e, depois, o cabelo, que tocou com delicadeza. — Nunca
vi antes esta cor de cabelo. Vermelho suave com toques de dourado como o sol no
poente. Quando a vi, pensei que fosse uma aparição. Uma lindíssima feiticeira surgindo
da neblina. Mas não é feiticeira, certo, Bárbara?
Em silêncio, ela concordou com um gesto de cabeça. Observava-o. Jamais vira
homem tão atraente. O corpo forte a fazia se sentir pequenina e em segurança. Ele
baixou a cabeça e a beijou levemente. Depois, sorriu-lhe.
— O que está fazendo aqui, Bárbara? Por que se encontra na minha floresta?
Ela o fitou com ar sonhador, desejando ser beijada outra vez.
— Sua floresta? — perguntou, distraída.
Como se lesse os seus pensamentos, o homem tornou a baixar a cabeça e a beijá-
Ia, porém por mais tempo e de maneira mais completa. Com o braço à volta da sua
cintura, aninhou-a melhor de encontro ao corpo. Por sua vez, Bárbara enlaçou-o pelo
pescoço, embora timidamente.
— A que família você pertence, pequenininha? — indagou ele, alguns instantes
depois.
Feliz como jamais se sentira na vida e satisfeita entre os braços daquele estranho,
Bárbara levou alguns segundos para entender a implicação da pergunta. Lembrou-se,
então, de quem era e da possibilidade de o irmão, escondido, a estar observando.
— Meu irmão — murmurou, assustada, soltando-lhe o pescoço. — Meu irmão —
repetiu tentando levantar-se.
Se John a visse agora, ficaria furioso.
Mas o gigante moreno não a deixou levantar-se de seu colo.
— Se o seu irmão, seja ele quem for, não é capaz de cuidar bem de uma jovem tão
bonita, vou ajudá-Io. Não há justificativa alguma para ele permitir que uma mulher vagueie
desacompanhada pela estrada da floresta. Você está exposta a um sem-número de
perigos. Afinal, quem é o seu irmão? Por que a abandonou aqui?
— Isso não lhe diz respeito, senhor. Nem sei quem é.
— Não me conhece?! — perguntou ele, admirado. Você não vive em Dunsted?
Bárbara revelou a ignorância através do olhar vazio.
Ele sorriu e a beijou novamente.
— Sou o seu senhor, minha querida, Jason de Burgh. Mas serei muito mais, minha
adorável Bárbara. Muito mais.
Ela o fitou com expressão de choque.
— Mais?! — balbuciou.
Jason confirmou com um gesto significativo de cabeça.
— Em toda a minha vida, nunca vi mulher tão linda, minha Bárbara da Floresta. E
como o seu irmão provou não saber cuidar de você, vou exercer os meus direitos de seu
senhor. Eu a levarei para o meu castelo onde você ficará sob a minha proteção. Viverá
comigo no castelo de Dunsted. — Acariciou-a levemente no rosto. — A noiva que deveria
ser minha me foi tirada. Mas agora que apanhei esta pombinha linda, na minha própria
floresta, vou esquecer o desapontamento. Eu a tornarei minha, adorável feiticeira.
— Ai, Deus misericordioso!
Com esforço redobrado, Bárbara soltou-se e se afastou.
Jason, pondo-se de pé, enlaçou-a pela cintura.
— Não tenha medo de mim, Bárbara. Você não me conhece, mas juro jamais lhe
fazer mal algum.
— Tenho certeza, Jason de Burgh, porém, você não compreende. Preciso ir embora.
— Ir embora?! — repetiu ele, incrédulo, enquanto tentava impedi-Ia de recuar. —
Não, você não...
— Senhor! — gritou um dos seus homens, aproximando-se. — Vi um incêndio ao
longo da estrada lá adiante!
Jason de Burgh virou-se depressa.
— Incêndio, Allyn? Onde?
— Lá na frente, na beira da estrada, numa das cabanas de arrendatário. Sem
dúvida, foi provocado por alguém de Gyer.
— Maldição! — praguejou De Burgh. — Allyn, leve esta senhora ao castelo e a
mantenha em segurança.
— Onde está ela, meu senhor? — perguntou o homem.
Jason virou-se e viu que Bárbara tinha desaparecido entre as árvores. Por um
instante, pensou em segui-Ia, pois não deveria estar longe ainda. Contudo, a necessidade
de apagar o incêndio o impediu de ir-lhe ao encalço. Olhou para a neblina densa que
permeava a floresta e viu, mentalmente, a jovem linda por quem se enfeitiçara tão
prontamente. Se fosse apenas luxúria, ou algo mais profundo, Jason não se importava.
Haveria de encontrá-Ia novamente. E então, ela seria sua.
— Senhora alguma, Allyn, ela se foi.
A estrada, desde a vila até os portões de Gyer, estava ladeada por uma multidão
entusiasmada. As aclamações acompanhavam a passagem de Alexander e dos seus
homens. Com os semblantes alegres, apesar do cansaço, eles aceitavam as
manifestações de apreço e reconhecimento.
— Você lhes deu um ótimo presente pelo feriado de São Miguel! — gritou Willem
para ser ouvido acima do
barulho e emparelhando a montaria à de Alexander. Pelo jeito, estão todos muito
felizes.
Alexander riu.
— Este é um dia abençoado para Gyer. É um alívio ver o povo esperançoso.
Poucos minutos depois, eles entravam no salão do castelo. Lá, as manifestações de
alegria também foram efusivas. Bárbara abraçou Alexander e, beijando-o, disse como o
achava maravilhoso. John, também presente, não economizou palavras de louvor pelo
êxito do primo. Até os criados batiam palmas e aclamavam o seu senhor.
— Onde estão lady Gyer, tia Leta e as crianças?
Alexander perguntou ao dar por sua falta.
— Devem estar todos no quarto de lady Gyer. Nestes últimos dias, eles têm passado
bastante tempo lá — informou John.
Lillis era a pessoa a quem Alexander mais queria ver. A notícia de que ela estaria
com o resto da família animou-o. A possibilidade de estarem se dando bem era muito boa.
Ele afastou Bárbara e dirigiu-se à escada, que subiu de dois em dois degraus.
Durante os três dias de ausência, havia pensado muito na mulher e imaginado como
seria o reencontro de ambos. Na última noite em que haviam se falado, tinham chegado a
um entendimento. Ele demonstrara o desejo por Lillis e a vontade de fazer planos para o
futuro. Naturalmente, ela havia percebido-lhe as intenções. Agora, depois da destruição
da represa e com o rio Eel correndo normalmente, não havia nada para impedi-los de
transformar o casamento de conveniência em um verdadeiro. Lembrava-se da sua
espontaneidade em retribuir-lhe os beijos naquela noite, o que demonstrava o desejo
mútuo. Nesta noite, pensou sorrindo, continuariam de onde haviam parado e sem
interrupção alguma.
Os guardas à porta do quarto de Lillis afastaram-se para lhe dar passagem, e ele
entrou no aposento sem bater.
Todos o fitaram com expressão de surpresa, e ele não conteve a própria. A cena
diante de seus olhos era bem doméstica. Tia Leta e Edyth, sentadas em frente da lareira,
bordavam. Junto a elas, Candis e Justin brincavam no chão com algo semelhante a
bonecas. Lillis e os gêmeos sentavam-se perto da cama e tinham as cabeças curvadas
sobre alaúdes. Obviamente, ela estava ensinando Hugh e Hugo a tocar o instrumento,
idéia que tanto agradou Alexander como o deixou perplexo.
— Alex! — todos, com exceção de Lillis e Edyth, gritaram.
No instante seguinte, ele viu-se rodeado pelos parentes. Cada uma das crianças
agarrou-lhe uma das pernas, os gêmeos apertaram-lhe a mão e tia Leta o cobriu de
beijos. Rindo, ele os abraçou e, por sobre suas cabeças, olhou para Lillis e Edyth, que
observavam a reunião da família. Sorriu-lhes, mas ficou desconcertado ao ver a mulher,
com expressão severa, virar o rosto.
— Vocês não ouviram o barulho da multidão que nos acompanhou da vila até o
castelo? Era alto o suficiente para alcançar as janelas daqui — comentou Alexander.
— De fato, ouvimos algo, mas estávamos tocando o alaúde e não demos
importância — Hugh admitiu. — O povo o recebeu bem?
— Muitíssimo! Nem queiram saber das aclamações intermináveis! Vocês precisavam
ter visto. Sei como gostam de cenas movimentadas e barulhentas.
Tia Leta afagou-lhe o rosto.
— O povo de Gyer tem razão para recepcioná-Io dessa forma, Alexander. Você é
um homem muito bom e vem resolvendo os nossos problemas com Wellewyn de maneira
pacífica. Estou tão orgulhosa de você como os seus pais se mostrariam, caso estivessem
vivos.
— Seria injusto eu receber, sozinho, os méritos pelo retorno da água. Foi preciso um
bom número de homens para romper a represa e, naturalmente, não teríamos evitado a
guerra se não fosse a boa vontade da minha mulher.
Tornou a olhar para Lillis e a sorrir-lhe. Ela o encarou com expressão gélida.
— Edyth fez bonecas para a gente — contou Candis, puxando a túnica de Alexander
a fim de chamar-lhe a atenção.
— Ora, que bom — disse ele, sorrindo para as crianças. — Mais tarde, quero vê-Ias
com vagar. Agora, porque não descem todos para dar as boas-vindas a Willem? Quero
falar com lady Gyer.
— Claro, Alexander — concordou tia Leta, pegando as crianças pelas mãos. — Nós
todos vamos lá para baixo a fim de abraçar Willem como ele merece. Vamos, Hugh e
Hugo.
Os gêmeos não se esqueceram de apanhar os alaúdes.
— Espere até nos ouvir tocar, Alex. Lillis nos ensinou duas canções — contou Hugh.
— Inteirinhas, e nós não falhamos uma nota sequer — acrescentou Hugo.
Alexander os observou com admiração genuína.
— Estou muito bem impressionado. Talvez vocês possam nos entreter durante o
jantar — sugeriu.
Animados com a perspectiva de tocar para os adultos e fazendo planos para a
execução das duas canções, os gêmeos acompanharam tia Leta e os irmãozinhos.
— Lady Edyth, quer fazer o favor de nos deixar a sós? Quero falar com minha
mulher em particular — disse Alexander, tão logo os parentes saíram.
Fitando-o com ar de rebeldia, Edyth não se afastou do lado de Lillis.
— Pode ir, minha amiga. Não corro risco algum e também quero trocar umas
palavrinhas com o meu caro marido — afirmou Lillis ao dirigir um olhar exasperado para
Alexander.
Após a saída da criada, ele foi tomado por uma leve esperança. Talvez a mulher
tivesse se sentido acanhada na presença das outras pessoas, mas, a sós com ele, de-
monstraria a alegria pelo sucesso da missão. Ela, entretanto, manteve-se imóvel e calada.
— Já sabe da demolição completa da represa, Lillis?
— Sim, claro. Ontem, todos nós vimos o rio voltar a correr. Aliás, eu vi aqui da
janela.
Ele aguardou um instante antes de perguntar:
— Não ficou satisfeita?
— Muitíssimo. Não foi por isso, Alexander, que nós dois barganhamos o resto das
nossas vidas? Eu ficaria desolada se o nosso sacrifício fosse em vão. Pelo visto, ele valeu
a pena. Nem uma gota de sangue foi derramada, graças a Deus.
Atônito com o tom ressentido de voz, Alexander andou em sua direção.
— Devo confessar que esperava algo mais entusiasmado da sua parte. Aconteceu
alguma coisa errada durante a minha ausência? Você se aborreceu?
Lillis soltou uma risada curta e áspera.
— O que poderia ter acontecido, Alexander de Gyer? Tudo correu de acordo com os
planos. A represa, feita pelo meu pai, foi destruída e o rio voltou a correr. Você está de
posse da terra onde ela ficava, o que impede a sua reconstrução. Conseguiu tudo e, ao
mesmo tempo, evitou uma guerra sangrenta. O que mais poderia desejar?
— Que você estivesse contente também — ele respondeu e acrescentou
mentalmente: "Eu queria uma recepção mais calorosa".
— Mas estou contente, Alexander. Já não lhe disse isso? Agora, depois do seu
sucesso, posso ir embora finalmente. Nada além disso, eu juro, me deixará mais feliz. Só
quero saber quando poderei partir.
Alexander sentiu-se confuso. O que teria ocorrido enquanto destruía a represa?
Haveria apenas sonhado com beijos ardentes na noite da sua partida, imaginado como
Lillis, carinhosa e meiga, aconchegara-se a ele. Desorientado, desejou ter um
conhecimento melhor da mente feminina.
— Como sabe muito bem, você, absolutamente, não pode ir embora. Pensei que
tivesse entendido isso.
Lillis soltou uma exclamação de incredulidade.
— Eu tenho de ir! Você não precisa mais de mim aqui e eu me recuso a ficar! Quero
ir para junto do meu pai. Ele necessita de cuidados.
— Você não pode ir — repetiu, irritado. Não gostava de discutir o assunto e não
pretendia falar sobre Jaward. Desejava apenas planejar o futuro de ambos. Numa voz
mais amena, continuou: — Lillis, antes de ir embora, eu lhe disse ter muita coisa para
conversarmos sobre o futuro.
— Eu não me importo a mínima com as decisões que tomar ao meu respeito! —
esbravejou. — Tanto faz se você me tornar rica, ou pobre! Também não me importo com
o que pretende fazer com a minha terra passada para o seu nome. Só peço que me deixe
ir para casa como me prometeu antes do casamento.
— Não vou permitir isso, Lillis.
— Mas por quê?! Já conseguiu tudo o que queria! disse ela no auge da impaciência.
Alexander refletiu por segundos e tentou falar calma e cuidadosamente:
— Não posso deixá-Ia ir antes de ter a aprovação formal do rei sobre o nosso
casamento. Já lhe disse que só poderia ir depois disso e me recuso a falar sobre o
assunto até então.
— Mas o meu pai está muito doente! Por que me manter sua prisioneira se ele
precisa tanto de mim? Você não pode ser tão cruel assim, Alexander!
Surpreso, Alexander a fitou.
— Jaward está doente? Eu não sabia. Ele não mencionou isso na carta — disse,
mas viu a desconfiança da mulher. — Lillis, juro que não sabia. Por favor, estou exausto e
gostaria que você se comportasse de maneira mais razoável.
Ela o encarou com firmeza.
— Você não sabia nada da doença do meu pai? Jura, mesmo?
— Dou-lhe a minha palavra de honra, e você sabe que não sou mentiroso.
O semblante de Lillis amenizou-se um pouco, mas revelou a mortificação sentida.
— Nesse caso, eu me comportei de maneira absurda nestes três últimos dias e devo
pedir que me perdoe, Alexander. Edyth me contou, depois da sua partida, que o meu pai
tinha sofrido um colapso. Concluí que, embora sabendo, você havia ido cuidar da água
sem antes me mandar para Wellewyn a fim de tratar dele. Fiquei furiosa com você.
Alexander sentiu-se curiosamente aliviado ao descobrir o motivo do aborrecimento
de Lillis. Achou-o tolo e considerou a situação engraçada. As mulheres eram criaturas
muito estranhas. Bárbara, quando se aborrecia, o que acontecia com freqüência
desagradável, consolava-se logo com palavras de carinho acompanhadas de um pre-
sentinho. Imaginou o que poderia dar para Lillis a fim de torná-Ia bem-humorada. Todavia,
lembrou-se da sua reação ao broche dado após a noite de núpcias.
— Lamento a minha recepção tão pouco cordial, Alexander — murmurou, sorrindo,
mas ao enrubescer baixou o olhar. — Estou sinceramente feliz com o êxito da sua missão
e por ter chegado são e salvo em casa.
— Senti saudade de você, Lillis — confessou ele sem querer, mas incapaz de reter
as palavras. — Eu disse que sentiria — acrescentou em tom defensivo.
Embora alarmada, ela o fitou enquanto murmurava:
— Eu também senti sua falta, Alexander.
O coração dele deu um salto no peito.
— Apesar de estar brava comigo?
Um momento se passou antes de Lillis responder baixinho:
— Apesar disso.
Alexander aproximou-se mais e a tomou nos braços.
— Por Deus, senti muito mais do que saudade. Beijou-a avidamente enquanto uma
das mãos firmava-lhe a cabeça e os dedos entranhavam-se no cabelo sedoso. Com o
outro braço à volta da sua cintura, apertou-a bem de encontro ao corpo carente e
desperto pelo desejo. Receptiva, Lillis entreabriu os lábios, acariciando-o também. Gemeu
baixinho quando, depois, as mãos de Alexander exploraram as curvas da cintura fina, dos
seios fartos e dos quadris arredondados.
— Minha mulher — murmurou ele em voz rouca, de encontro aos seus lábios. —
Deixe-me possuí-Ia outra vez. Desejo tanto. Não haverá mais dor, eu juro. Deixe-me
provar-lhe isso.
Por mais alguns momentos, ela permitiu que o beijo possessivo e exigente
continuasse. E então, tão inesperadamente que Alexander sentiu-se como se perdesse o
fôlego, Lillis soltou-se.
— Não! — protestou numa voz terrível enquanto corria até a parede do outro lado do
quarto, com as mãos na cabeça e tremendo visivelmente.
Perplexo a ponto de não conseguir se mexer, Alexander permaneceu onde estava,
observando-a. O próprio corpo estremecia e ele sentia dificuldade em respirar. Aos pou-
cos, Lillis controlou-se, ergueu a cabeça e o encarou.
— Peço que se retire, meu senhor — disse num fiapo de voz. — Preciso arrumar as
malas e...
Rompeu num pranto silencioso e não conseguiu mais falar. Por mais que desejasse
tocá-Ia, ele não se atreveu.
— Fazer as malas?! — repetiu, desorientado.
Lillis não respondeu e continuou chorando. Consternado, Alexander compreendeu,
finalmente, o que ela havia dito.
— Lillis, você pensou que eu a deixaria ir apenas porque o seu pai está doente?
Em silêncio, ela respondeu com um gesto afirmativo de cabeça. Também calado, ele
deu-lhe tempo para assimilar a verdade e conformar-se. Mulher tão orgulhosa essa sua,
refletiu. Sofria ao vê-Ia sendo humilhada.
— Por favor, vá embora — ela murmurou, finalmente. Jamais Alexander tinha se
sentido tão impotente.
— Não posso pôr em risco tudo o que foi feito, Lillis. Você sabe disso. A notícia pode
ser falsa. A última vez que vi Jaward, ele estava bem saudável. Como vou saber se está,
de fato, doente ou me preparando uma armadilha? Esse é um risco que não me atrevo a
correr.
Ainda chorando, Lillis sacudiu a cabeça e crispou as mãos.
— Saia daqui! — gritou, furiosa. — Saia!
Algo nascido com ele, herdado de séculos atrás, e que não podia ser negado ou
repudiado, o fez reagir. Como a noite se transformava em dia, Alexander tornou-se o
senhor de Gyer.
— Jamais exigirá isso de mim, madame! — informou-a em voz glacial. — Eu sou o
senhor aqui! Não recebo ordens para ir e vir. Não sou forçado a fazer nada!
Ainda com as mãos crispadas, Lillis o fitou através das lágrimas e da raiva.
— E eu sou a sua prisioneira, não a sua escrava! Meu pai está doente graças ao
que fez a mim. Ele sofreu um colapso. Edyth ficou lá tanto tempo porque temia a sua
morte. Já lhe dei muito, Alexander de Gyer. Só lhe peço, agora, que me deixe voltar para
junto do meu pai. Ele não poderá mais lhe causar dano algum.
Os olhos azuis e a voz refletiam frieza. Alexander viu-se tentado a gritar com ela,
mas controlou-se.
— Não vou liberá-Ia, mas, diante da sua insistência, eu a levarei para visitar Jaward.
Existem condições. Você não tentará fugir e voltará para Gyer a fim de esperar a resposta
do rei Henrique.
— Quando me levará?
— Tão logo seja possível. Trabalhei muito e estou exausto. Preciso descansar um
dia. Iremos depois de amanhã, se o tempo estiver bom. Se você quiser e Jaward permitir,
passaremos o dia lá.
Ela perscrutou-lhe o olhar por alguns instantes.
— Fará isso, Alexander de Gyer?
— Prometa que voltará comigo.
— Prometo. Dou-lhe a minha palavra.
— Nesse caso, iremos a Wellewyn depois de amanhã, caso o tempo permita.
Lillis ainda o fitou com desconfiança.
— Você não acredita em mim — protestou Alexander.
— Acho difícil.
Chocado, ele deu-se conta de que a mulher não confiava nele. A sensação
provocada pela descoberta era-lhe estranha. — Estou falando a verdade — insistiu,
ofendido.
— Não tenho como saber — respondeu ela com expressão impassível.
Uma raiva quente e profunda o dominou. Ele era o senhor de Gyer! A sua palavra
jamais fora questionada!
— Pois aprenderá — sibilou ele. — Acabará aprendendo, minha senhora!
Já menos tensa, Lillis o observou sem a mínima emoção. Era como se o
considerasse um pobre idiota de quem tinha pena. Isso o enfureceu mais ainda.
— Eu a verei à mesa do jantar — informou em tom ríspido ao dirigir-se à porta.
— Não vou descer. Jantarei aqui no meu quarto. A sua prima poderá sentar-se ao
seu lado e representar o papel de senhora do castelo!
— Você descerá de livre e espontânea vontade. Caso contrário, virei buscá-Ia. De
um jeito ou de outro, você ocupará o lugar de lady Gyer. Acredite, madame minha mulher,
você o fará!

CAPÍTULO XIII
Lillis dormia profundamente quando sentiu um golpe de ar frio tocar-lhe o corpo atra-
vés da camisa fina. Estendeu as mãos a fim de puxar as cobertas, mas apenas tocou o
vazio. No momento seguinte, viu-se envolvida por um calor aconchegante. Já ia entregar-
se novamente ao sono, contudo, deu-se conta de estar sendo carregada por alguém. A
mente enevoada clareou no mesmo instante e ela tentou oferecer resistência aos braços
que a seguravam com firmeza.
— Quietinha. Sou eu.
— Alexander?! O que esta acontecendo? — indagou Lillis ainda tentando se soltar.
— Nada. Está tudo bem — respondeu ele ao parar por um instante a fim de fechar a
porta com o pé. Não tenha medo.
Percorrendo o olhar à volta, ela percebeu estar no quarto de Alexander, onde o fogo
crepitante da lareira espalhava calor.
— Por que estamos aqui? Aconteceu alguma coisa?
— Fale baixo ou acabará acordando os guardas.
Só quando Alexander a deitou no meio da cama larga e acomodou-se ao seu lado,
Lillis teve idéia do que ocorria. Abriu a boca para gritar, porém ele a silenciou com a mão
sobre os seus lábios. Aninhou-a de encontro ao corpo e, depois, puxou as cobertas à
volta de ambos. Sempre com a mão em sua boca, mantinha-a de lado e de costas para
ele. Ao mesmo tempo em que punha uma perna sobre as suas para impedir pontapés,
aproximou a boca da sua orelha e explicou:
— Não é o que você está pensando. Não vou violentá-Ia. Acredita em mim? Numa
luta inútil, Lillis sacudiu a cabeça violentamente, enquanto fazia ruídos abafados de
encontro a mão dele. Alexander apenas apertou mais o braço à volta da sua cintura até
ela imaginar já ter quebrado umas duas costelas. Impassível, ele continuou a explicação:
— Você é a minha mulher e dorme onde eu quiser. Esta noite, vai ser na minha
cama. Assim, você aprenderá a confiar em mim como avisei. Não vou violentá-Ia. Acredita
em mim?
Ela não respondeu com a cabeça, apenas puxou, em vão, a mão sobre a boca.
— Lillis, sim ou não? — insistiu ele.
Uma espécie de ronco surdo se fez ouvir enquanto ela persistia em puxar-lhe a mão
e conseguia acertar um pontapé sob as cobertas. Estas, porém, diminuíram o efeito do
golpe.
— Não vou soltá-Ia até que prometa não gritar. De nada adiantaria, contudo seria
muito desagradável. Promete?
Lillis concordou com um gesto veemente de cabeça e quando, finalmente, Alexander
afastou a mão, ela aspirou o ar com sofreguidão.
— Está se sentindo mal, Lillis?
Ela o encarou através dos olhos lacrimejantes.
— O que estava tentando fazer? Sufocar-me?
Ele tinha o rosto muito perto do seu, e Lillis pôde ver-lhe, com a claridade vinda da
lareira, o olhar atônito.
— Desculpe. Não percebi que a prendia com tanta força. Não estou acostumado a
segurar mulheres na minha cama. Elas sempre se deitaram aqui de livre e espontânea
vontade — acrescentou com um sorriso malicioso.
— Pois eu não sou como a maioria das mulheres! informou-o em tom baixo, embora
furioso. — Não quero ficar na sua cama! Como se atreve a me manter aqui seu... animal?!
Alexander aproximou mais o rosto enquanto, com a mão, fazia círculos sobre o seu
estômago.
— Animal? Sou o seu marido, madame, e tenho todo o direito de trazê-Ia para a
minha cama quando quiser. — Beijou-a rapidamente. — Mas prometi não tocá-Ia esta
noite e não o farei.
Lillis o observou com desconfiança, estranhando-lhe o bom humor. Tinham passado
o jantar inteiro sem dar a mínima atenção um ao outro.
— Está me tocando agora — acusou ela, tentando afastar o corpo.
Alexander a segurou com firmeza enquanto o movimento da mão tornava-se mais
vagaroso e significativo.
— Se você não entende a diferença entre o que quero dizer com tocar e a sua
interpretação do nosso contato, será um prazer esclarecê-Ia.
— Não, obrigada. Gostaria de voltar para o meu quarto e lhe peço permissão para
tanto, meu senhor.
Ele acomodou-se com os dois braços à sua volta e aninhou-a junto ao corpo.
— Não, você vai passar esta noite comigo para aprender a confiar em mim.
— Não tenho a mínima vontade de aprender tal coisa — sibilou, furiosa. — Quero
ficar sossegada no meu canto até que me deixe ir embora de Gyer. Já não lhe dei o
suficiente nos últimos dias? Considera muito pequeno o sacrifício da minha existência
inteira?
— Você aprenderá a confiar em mim — repetiu ele. — Estamos casados e o
seremos pelo resto das nossas vidas. Você será a minha única mulher, e eu, o seu único
marido. Haveremos de ter filhos. Quero apenas a sua amizade e confiança.
— Não é verdade. Quer mais de mim além de amizade e confiança — protestou
Lillis.
— Sim, tem razão — admitiu Alexander. — Quero a sua paixão, a sua carência.
Quero que deseje se unir a mim como desejo me unir a você. Quero que as nossas
relações sejam momentos de alegria e prazer, e não uma questão de civilidade e dever,
como na nossa noite de núpcias. Aquilo me foi tão desagradável quanto para você. Eu
teria dado tudo para poupar-lhe tal humilhação. Preferiria mil vezes tê-Ia possuído com a
delicadeza merecida por uma noiva. Mas, como sabe muito bem, eu não tive escolha.
Desempenhei-me como achei melhor e da maneira mais rápida possível. Mas da próxima
vez... — Beijou-a de leve em ambos os lados do pescoço. — Da próxima vez será como
deve, senhora minha mulher. Eu lhe proporcionarei imenso prazer e alegria.
— A única coisa que deseja é me tornar sua escrava. Quer tudo de mim que ainda
não conseguiu tirar pela força. Os meus, pensamentos, a minha própria alma. Serei como
o seu cachorrinho implorando, numa atitude servil aos seus pés, as migalhas que lhe
aprouver me dar.
— É disso que tem medo? — indagou ele num misto de incredulidade e
ressentimento. — Foi por essa razão que você, hoje à tardinha, se esquivou de mim? —
Com um gemido, ele encostou o rosto no seu cabelo. — Jamais serei assim. Não haverei
de me apossar daquilo que você não quiser me dar, Lillis, e lhe darei o que me pedir. Será
querer demais planejar uma união mais humana para nós? Precisamos passar a vida
como dois estranhos, embora atenciosos? Você prefere que as nossas relações não
passem de um mero ritual?
— Não sei — respondeu ela, angustiada. — Para ser sincera, não sei. Por que está
me falando dessas coisas? Nós nos casamos por força das circunstâncias, não por
amizade, e muito menos por amor. Por que o nosso casamento deveria se transformar em
algo mais?
— E por que não? — Alexander insistiu.
"Porque você não me ama", Lillis quis, mas não se atreveu a dizer. Fechou os olhos
e murmurou em tom desanimado:
— Por favor, me deixe voltar para a minha cama.
— Não, de jeito nenhum.
— E quanto a Bárbara? Ela ficará muito infeliz se souber que passei a noite aqui.
Esperava que Alexander se zangasse e reagisse, mas, para surpresa sua, sentiu-o
tocá-Ia na face. Com delicadeza, ele a virou a fim de que pudessem se olhar.
— Eu não me importo com o que Bárbara acha ou deixa de achar — afirmou com
sinceridade. — Ela, agora, não passa de minha prima, aliás, distante. Você é a minha
mulher.
Lillis desviou o olhar para a escuridão e não disse nada. Depois de algum tempo e
enquanto lhe acariciava o braço, Alexander chamou baixinho:
— Lillis?
— O quê?
— Quais são os seus sentimentos por mim?
— O que quer dizer? — indagou ela, surpresa com o tom tristonho de voz.
— Embora nós nos conheçamos há pouco tempo, você sente algum afeto por mim?
— Seria impossível dizer. Sei tão pouco a seu respeito — respondeu ela
evasivamente.
Na verdade, sentia-se incapaz de confessar que já começava a gostar do marido.
Todavia, não tinha mentido.
Ignorava muita coisa sobre Alexander.
Ele ficou pensativo por algum tempo. Finalmente, disse:
— É verdade. Amanhã e se o tempo continuar bom, eu a levarei para cavalgar.
Assim, teremos a oportunidade de nos conhecer melhor.
Ao pensar numa liberdade tão grande, Lillis respirou fundo.
— Você me deixaria ir além das muralhas da vila?! Alexander riu, provocando
vibrações no seu corpo inteiro.
— Sim, acompanhado por mim, naturalmente. Você não gostaria de conhecer um
pouco da propriedade? Sonolento, Alexander bocejou.
— Muitíssimo. Isso me daria um enorme prazer.
— Vou mandar a cozinheira nos arrumar um lanche e nós almoçaremos num lugar
lindo à margem do rio. Sempre gostei de parar lá e apreciar a paisagem.
Ela sentiu-o sorrir junto à sua testa.
— Vai ser gratificante ver o rio correndo novamente nas terras de Gyer. O seu pai foi
muito esperto ao represar a água. Ele nem precisou construir uma barragem. Foi mais um
tipo de desvio onde o rio se bifurca em dois. Dessa forma, ele forçou a água a seguir na
direção de Edington em vez da de Gyer. — Bocejou outra vez. Idéia muito inteligente,
reconheço.
— Fico contente por você, Alexander. Senti um grande alívio por tudo ter saído como
desejava.
Ela olhou para as sombras que dançavam pelo quarto e tentou ignorar a sensação
provocada pelo corpo dele de encontro ao seu.
— Não vou conseguir dormir, Alexander.
— Nem eu.
Ficaram em silêncio por algum tempo e, então, os dois falaram ao mesmo tempo:
— Quem sabe você...
— Talvez você...
Calaram-se, mas meio segundo depois, ambos riram, divertidos.
— Pensei que você, quem sabe, poderia me contar algo sobre a sua vida no
convento — disse ele ainda rindo.
Lillis virou-se e sorriu-lhe.
— E eu pensei que, talvez, você pudesse me contar alguma coisa sobre a sua vida
aqui em Gyer.
Atônito, ele a fitou como se a mulher houvesse lhe sugerido uma façanha
impossível. Começou a sacudir a cabeça num gesto negativo, mas, de repente, parou e a
fitou com ar pensativo.
— Talvez eu possa — admitiu não muito seguro de si.
Ela acomodou melhor a cabeça no travesseiro e ajeitou o corpo numa posição mais
confortável. Que coisa estranha, refletiu, deitar-se ao lado dele em uma cama. Tão
estranha como fora na noite de núpcias, mas nem um pouco desagradável essa noite.
— Como não vim parar aqui de livre e espontânea vontade, sir, nada mais justo
que o senhor me distraia.
Sentiu-o sorrir novamente de encontro à sua testa.
— Está bem, Lillis. Mas, sem dúvida, a história a fará cair num sono profundo em
poucos minutos.
— Não mais do que a minha lhe provocará o sono respondeu, pensando na vida
insípida levada no convento.
— Isso haveremos de ver — disse ele ao ajeitar as cobertas sobre ambos e pronto
para começar o relato da própria existência ali em Gyer.

CAPÍTULO XIV
Em pé diante de uma das janelas do salão, Lillis contemplava, através de uma fresta
da veneziana, a chuva incessante. Todas as janelas do castelo estavam hermeticamente
fechadas para impedir a entrada da umidade e do frio, o que dava um aspecto sombrio ao
lugar. Lareiras e velas eram mantidas acesas a fim de espalhar calor e luz, mas não
produziam o mesmo efeito dos raios de sol.
Lillis suspirou. O tempo jamais melhoraria? Quando ela conseguiria ir a Wellewyn
para ver o pai? Pensava nele sem cessar e desejava tanto estar ao seu lado
dispensando-lhe os cuidados necessários para um restabelecimento mais rápido. Como
devia estar preocupado e deprimido.
Alexander tinha se mostrado atencioso naquela primeira manhã chuvosa, quando
eles deveriam ir a Wellewyn. Na véspera, haviam passeado a cavalo e almoçado na beira
do rio. O dia estava lindíssimo e sem o mínimo sinal de chuva. No céu azul não se via
uma nuvem sequer.
Mas durante a noite, começara a chover a cântaros. Na manhã seguinte, Alexander
tinha se recusado a levá-Ia a qualquer lugar com aquele tempo inclemente. Todavia, ele
se mostrara compreensivo e até mesmo carinhoso. Havia lhe sugerido escrever uma carta
ao pai, a qual ele mandaria entregar no mesmo dia.
Era a primeira vez que o marido lhe oferecia a oportunidade de se comunicar com o
pai, e Lillis, dando graças a Deus, tinha passado três horas redigindo a carta. A fim de não
afligir o pai, esforçara-se por se mostrar feliz e esperançosa de poder ir vê-Io tão logo a
chuva amainasse. Alexander havia mandado um dos seus cavaleiros mais velozes levar a
carta a Wellewyn. Fora impossível Lillis não sentir uma ponta de culpa ao ver o homem
partir a galope sob a chuva torrencial, mas a preocupação com o pai era maior. O
mensageiro tinha voltado no dia seguinte sem trazer uma resposta. Apenas havia relatado
que o senhor de Wellewyn, após receber a carta com mãos trêmulas, tinha se recolhido
ao quarto.
Desde então, mais de uma semana havia se passado. Tinham sido dias confusos e
maravilhosos ao mesmo tempo Lillis via Alexander com freqüência, mas por poucos
minutos, pois ele continuava assoberbado com o trabalho da administração das
propriedades. Entretanto, ao encontrá-Ia no salão, o marido não se contentava mais em
sentar-se ao seu lado. Dispensava os guardas e a levava a um lugar mais sossegado
onde pudessem conversar à vontade. Às vezes, caminhavam pelos corredores do castelo
e ele lhe segurava a mão, ou então, puxava-a para um canto e a beijava. Lillis sentia-se
confusa com essas demonstrações repentinas de afeto por parte do marido, pois sabia
que ele não a amava. Contudo, não tinha a mínima vontade de impedi-Io. Na verdade,
esperava ansiosamente pela aparição de Alexander e até contava as horas entre uma e
outra.
Na hora do jantar, ele se esquecia do trabalho e dedicava-se inteiramente à família e
a ela. Terminada a refeição, levava-a a uma mesa de jogo, perto de uma das lareiras do
salão. Os demais membros da família espalhavam-se à volta enquanto Lillis e Alexander
jogavam uma partida de xadrez ou gamão. Uma criada servia vinho quente às mulheres e
canecões de cerveja para os homens. Tia Leta e Edyth, bem perto do fogo, bordavam
enquanto conversavam ou distraíam as crianças. Os gêmeos aplicavam-se à prática do
alaúde e já mostravam um progresso razoável. Willem, sentado ao lado de Lillis,
murmurava-lhe conselhos sobre a melhor estratégia para vencer Alexander no xadrez.
Quando a cunhada o conseguia, ele não perdia a oportunidade de provocar o irmão mais
velho.
John e Bárbara também faziam parte do grupo. Quase sempre, sentavam-se perto
de tia Leta e Edyth e conversavam com todos de maneira geral. Bárbara entretinha-se
com o bordado, mas sempre observava Alexander de maneira furtiva. Às vezes, ela fixava
um olhar perdido nas chamas da lareira e dava a impressão de estar com o pensamento
longe. Lillis jamais perdia os olhares que Alexander lançava à prima linda. Ele não se
dava conta de como o fazia abertamente. A preocupação por Bárbara estampava-se no
semblante dele de maneira óbvia, para quem quisesse ver. Lillis não entendia por que ele
não gastava mais tempo com a criaturinha delicada do que com ela própria. O marido
continuava insistindo na necessidade de conquistar-lhe a confIança.
Ele havia conquistado mais do que isso, refletiu Lillis ao afastar-se da janela.
Caminhou em direção a Edyth que, sentada, exercitava as crianças em matemática ele-
mentar. Os gêmeos tinham se recusado a aprender qualquer coisa, mas sempre fIcavam
a poucos passos e acabavam assimilando algo. Apoiada na parede, ela viu o rosto de
Hugh iluminar-se de repente. Ele sabia a solução do problema dado por Edyth e
entusiasmava-se com isso. Lillis sorriu ao lembrar-se de como era bom entender,
finalmente, algo que se tentava aprender.
Desviou o olhar de Edyth e das crianças para tia Leta e Bárbara que, com as suas
damas, bordavam e conversavam do outro lado do salão. Por causa da chuva, que
mantinha todos dentro de casa, elas gastavam mais tempo com tal atividade.
Graças a Alexander, os dias eram maravilhosos, mas Lillis havia aprendido a ansiar
pela noite. Na seguinte à em que o marido a tinha levado para o quarto dele, ficara
acordada, sem se atrever a fechar os olhos. Depois de um pouco mais de uma hora de
espera, ele tinha aberto a porta de comunicação e a levado outra vez para o quarto ao
lado. Desde então, Alexander aparecia todas as noites para buscá-Ia e deitar-se ao seu
lado. Aconchegava-a de encontro ao corpo e confessava o quanto desejava lhe fazer
amor, mas esperaria até que ela o quisesse também. Depois, conversavam por algum
tempo e acabavam dormindo. Alexander lhe falava sobre a infância e os pais, assuntos
difíceis para ele mencionar. Por sua vez, Lillis falava sobre as alegrias e tristezas da sua
vida, fatos jamais revelados a outras pessoas.
Através dessas conversas, ela começara a conhecer o marido e acabara
compreendendo-o e amando-o. Tinha se entristecido ao ouvi-Io falar sobre o pai, um
grande e poderoso homem que não dispunha de tempo para se dedicar ao seu povo e à
sua família, exceto aos gêmeos. Estes, ele havia mimado completamente. A voz de Ale-
xander sempre se tornava tristonha quando ele confessava o quanto tinha amado o pai,
mas como achara difícil admirá-Io. Por ocasião da sua morte, ele havia ficado perdido e
amedrontado. Gyer tinha problemas sem fim, especialmente com o povo, cujas exigências
o deixavam confuso. Aos dezenove anos, vira-se com a sobrecarga de cuidar de todos e
da família. A mãe, a quem amava muitíssimo, tinha morrido um pouco depois do
nascimento de Candis. Por muito tempo, Alexander não sentira a alegria de viver.
Uma noite, quando estavam aconchegados sob as cobertas quentes, ele lhe disse:
— Imagino que todo menino considere a sua mãe a mulher mais bonita do mundo,
mas talvez a minha fosse realmente. Ela era o tipo de pessoa que, ao entrar num
aposento, o iluminava como se fosse uma tocha viva. Ela e o meu pai brigavam muito,
mas sempre acabavam fazendo as pazes. Às vezes, eu achava que ele não a amava o
suficiente, ou tanto quanto deveria. Mas sempre se mostrava tão aliviado quando
solucionavam as suas questões que eu, finalmente, me convenci do quanto o meu pai
amava a minha mãe. Ele não suportava ficar longe dela mesmo se fosse por uma noite,
embora passassem, às vezes, meses e meses separados.
— Você ainda sente saudade dela, não é? — Lillis murmurou.
Alexander suspirou no topo da sua cabeça.
— Sinto, sim. Mas não tanto como no início. Depois da sua morte, passamos a viver
dia por dia, mas não vivendo realmente. Você é capaz de compreender isso? O meu pai
quase não aparecia mais em casa. Passava muito tempo na corte ou em outras das suas
propriedades. Não ligava para Candis como se ela tivesse culpa da morte de mamãe. Ela
não morreu de parto, e sim de friagem durante o inverno. A pobre sofreu muito e por um
longo tempo até finalmente descansar.
— Que tristeza, Alexander. Lamento muito. Ele a estreitou mais entre os braços.
— Obrigado, minha querida. Foram tempos difíceis, mas conseguimos atravessá-Ios
e sobreviver. Willem, Hugh e Hugo foram os que mais sofreram. Os três ainda precisavam
muito de mamãe. Justin tinha apenas três anos e não percebeu muito bem o que tinha
acontecido. Candis, naturalmente, não guarda lembrança alguma da nossa mãe. Eu
contava com Bárbara, que muito me ajudou. Ela e John vieram morar conosco um pouco
antes de mamãe morrer. Já estávamos comprometidos, embora ela fosse pouco mais do
que uma criança. Depois do falecimento de mamãe, Bárbara começou a me fazer
companhia por longos períodos de tempo, tentando me consolar e animar. — Alexander
riu um pouco. — Além de nova, a minha prima era pequena para a idade enquanto eu,
que já tinha quase acabado de crescer, não sabia o que fazer com ela. Estava
começando a aprender algo sobre as mulheres, e aquela menininha me seguia para todos
os cantos esforçando-se para chamar a minha atenção. Ela foi persistente e eu acabei
dedicando-lhe um grande afeto. Todos adoravam Bárbara. Ela era uma menina linda e
meiga, a única alegria na minha vida naqueles dias sombrios.
Alexander bocejou e, logo depois, adormeceu. Lillis, entretanto, passou o resto da
noite acordada pensando nas palavras dele. Nunca havia se sentido mais feliz, ou mais
infeliz. Não saberia dizer.
— Lady Gyer.
A voz inesperada quase fez Lillis pular de surpresa.
Virou-se e viu John Baldwin ao seu lado. Com esforço, sorriu-lhe. De onde ele havia
surgido? O homem jamais fazia ruído algum.
— Que susto você me deu, John! Preferia que não fizesse mais isso.
Ele sorriu com expressão de humildade.
— Por favor, me perdoe. Não foi a minha intenção assustá-Ia. Talvez estivesse com
o pensamento longe e não percebesse a minha aproximação. Pensava no seu pai? Eu
soube que ele está doente. Isso deve deixá-Ia muito preocupada. Se quiser desabafar,
sou um ouvido atento.
Lillis sacudiu a cabeça num gesto negativo.
— Não, muito obrigada. Preciso ajudar Edyth. Não é justo que ela se encarregue
sozinha das aulas das crianças. John não escondeu o desapontamento.
— Ah, mas isso é crueldade sua! Finalmente, consigo encontrá-Ia sozinha e você
me diz que tem outros afazeres. Não quer compartilhar com um primo solitário uns
poucos minutos do seu tempo? Ainda não tivemos a oportunidade de nos conhecer
melhor.
Lillis observou-lhe o semblante de tristeza sincera e imaginou o que deveria fazer.
Não queria ser indelicada com o homem, mas, por outro lado, não desejava ficar a sós
com ele. A última coisa que queria ouvir era algum comentário velado sobre o quanto
Alexander e Bárbara se amavam. Ele devia ter percebido a sua indecisão, pois sorriu-lhe
de maneira encantadora enquanto oferecia o braço.
— Vamos, lady Gyer. Por favor, caminhe comigo pelo corredor até o jardim de
inverno e de volta até aqui. É só o que peço.
Ela se viu forçada a ceder. Recusar o pedido seria grosseria.
— Está bem, John, mas apenas até o jardim de inverno e de volta para cá. Já está
quase na hora do almoço e eu quero mandar Justin e Candis lavar as mãos e o rosto.
Mesmo presos dentro de casa, eles conseguem se sujar.
— Ah, essas crianças não saem da cozinha e, com certeza, mexem com as cinzas
do borralho — comentou John ao dar-lhe uns tapinhas na mão e conduzi-Ia ao longo do
salão.
Os dois guardas puseram-se a acompanhá-Ios a uma distância discreta. Quando
saíram para o corredor, ele recomeçou a falar:
— Quero agradecer a sua bondade para com Bárbara e a sua compreensão das
circunstâncias. Minha irmã anda mais feliz ultimamente.
Lillis o encarou sem esconder a surpresa.
— É mesmo?! Eu jamais teria percebido. Grande parte do tempo, ela me parece
muito triste. Para ser sincera, cheguei a pensar em ir falar com ela para saber se não
estava doente.
— Não, Bárbara sente-se muito bem, eu lhe garanto. Mas é muita bondade sua
preocupar-se com a sua saúde. Naturalmente, ela se ressente da situação tensa e dessa
espera demorada. Na verdade, não gosta nem um pouco de ver Alex passando tanto
tempo ao seu lado, mas compreende tal comportamento por parte dele. O primo precisa
salvaguardar as aparências do casamento.
Lillis sentiu uma onda de raiva e o encarou bem dentro dos olhos.
— Vocês pensam assim? Devo lhe dizer, John, que, segundo o meu marido me
informou, ele não pretende ficar com Bárbara depois da minha partida de Gyer. Alexander
me garantiu que planeja arranjar um bom casamento para sua irmã.
John sorriu com expressão complacente.
— Imagino que ele tenha lhe contado algo nesse estilo. Quando quer, Alex pode ser
um tirano, mas na maior parte do tempo, esforça-se para não magoar inutilmente as
pessoas. Pelo menos, ele tenta. Entretanto, começo a desconfiar que talvez esteja certa.
Afinal, você tinha a promessa de ser libertada de Gyer tão logo chegasse a aprovação
pelo rei do seu casamento. Como continua no castelo, é bem provável que Alex pretenda,
de fato, se descartar de Bárbara. — Sacudiu a cabeça. — Caso isso seja verdade, então
o jogo que ele está fazendo com a minha irmã é de uma crueldade sem limites.
— Mas eu vou ser libertada quando chegar a aprovação do rei. Alexander prometeu
que, então, eu poderei ir embora — explicou Lillis.
— Sei — murmurou John com ar pensativo. — Nesse caso, é a chuva que a mantém
ainda aqui em Gyer?
Lillis riu.
— O quê? Ora, que tolice. O mau tempo unicamente nos impediu de ir visitar o meu
pai. Apenas isso. Eu teria ido, apesar da chuva, mas Alexander se recusa a me levar
enquanto ela não passar. Entenda, continuarei prisioneira dele até o rei reconhecer a
legalidade do nosso casamento. Como você disse, Alexander pode ser tirano quando
quer. Se a aprovação do rei houvesse chegado, nada me impediria de ter ido embora
para Wellewyn. Nem mesmo essa chuva inclemente.
John parou de andar e virou-se para fitá-Ia.
— Mas se esse é o caso, então por que... Você não sabia?!
— Sabia o quê?
— Sobre a aprovação do rei. Ela chegou dois dias atrás. Foi trazida por um
emissário especial. O primo Alex não lhe contou?
Lillis ficou petrificada.
— Não! Ele não me disse nada. A aprovação do rei chegou? Dois dias atrás? — Ela
sentiu uma onda de calor espalhar-se pelas faces. — Isso quer dizer... Estou livre! — Foi
tomada por uma grande euforia. — Tem certeza disso, John Baldwin?
— Certeza absoluta. Juro que é verdade. Mas acho que foi um erro grave da minha
parte falar-lhe sobre isso. O primo Alex, sem dúvida, não queria que você soubesse. Ele
vai ficar furioso comigo por ter lhe contado. — Calou-se por um segundo e, depois,
prosseguiu com expressão amedrontada: — Por favor, eu lhe suplico para não revelar
que fui eu quem lhe deu a informação.
— Ora, mas que bobagem — criticou Lillis. — Naturalmente ele pretendia me contar,
apenas... — Calou-se à procura de uma razão plausível. — Alexander estava,
simplesmente, esperando o tempo melhorar. Só isso. Ele não se deu conta de que eu
gostaria de ir embora imediatamente — acrescentou.
Embora convencida da explicação, considerava um mistério o marido ignorar a sua
pressa. Achava ter deixado bem clara a vontade de partir para Wellewyn o mais depressa
possível.
Deus amantíssimo! O impacto da notícia continuava a provocar-lhe euforia. Estava
livre novamente. Podia ir e vir quando e como quisesse, movimentar-se com inteira
liberdade, tomar decisões por conta própria. Isso tudo sem precisar olhar por sobre o
ombro a fim de verificar se os dois guardas, suas sombras constantes, a seguiam.
John apertou-lhe a mão e suplicou:
— Pelo amor de Deus, lady Gyer, prometa que não contará a Alex ter se inteirado da
notícia através de mim. Ele me matará!
— Imagine, meu marido jamais faria isso. Sem sombra de dúvida, o próprio
Alexander teria me informado. Eu garanto.
John tornou a apertar-lhe a mão e, dessa vez, com mais força.
— Por favor, lady Gyer, prometa não mencionar o meu nome.
O medo dele parecia verdadeiro, embora Lillis não pudesse ver motivo para tanto.
Apesar de ser um homem severo, Alexander tinha grande consideração pelos parentes.
Todavia, não dispunha de tempo para convencer John Baldwin da futilidade do temor
infundado. Ela ia, finalmente, para casa.
— Está bem, John, eu prometo. Mas, por favor, solte a minha mão.
Ele a atendeu no mesmo instante. Lillis, sem perder um segundo sequer na troca de
mais palavras, ergueu um pouco a saia e, quase correndo, seguiu em direção à escada.
Tão ansiosa estava para chegar ao quarto, que não viu o sorriso de satisfação de John
Baldwin ao acompanhar a sua retirada com o olhar.

CAPÍTULO XV
Abatida na porta fez Lillis interromper a arrumação apressada das malas.
— Entre! —gritou, olhando por sobre o ombro, depois de acabar de dobrar uma
túnica.
Alexander entrou no quarto, fechou e trancou a porta. Ele estava sorridente e mais
atraente do que nunca, observou Lillis com olhar amoroso.
— Desejava me ver, minha querida? Com urgência? — indagou ele, atravessando o
quarto na sua direção.
Lillis virou-se e sorriu também. Alexander não parou até tomá-Ia entre os braços.
Beijou-a e, depois, murmurou junto aos seus lábios:
— Devo me atrever a pensar que os seus motivos são pessoais e íntimos? Fiquei
muito esperançoso ao receber o seu chamado.
O quarto estava frio, mas o corpo de Alexander exalava calor, e a boca, ao saborear
a sua, mais ainda. As mãos escorregaram até os seus quadris e, num gesto de inti-
midade, ele a puxou de encontro ao corpo. Lillis quase esqueceu a razão pela qual o tinha
mandado chamar.
— Alexander — sussurrou ao enlaçá-Io pelo pescoço.
— Sim, Lillis querida.
Com uma das mãos, ele apoiou-lhe a cabeça e, com a outra, sobre as suas
nádegas, segurou-a com firmeza.
A excitação evidente de Alexander fez Lillis voltar à realidade.
— Ale... xander — ela conseguiu balbuciar a volta da língua invasora.
— Hum?
Em vão, ela tentou se desvencilhar, mas, não conseguindo, riu. Alexander afastou a
cabeça a fim de fitá-Ia e, sorrindo, perguntou:
— Senhora minha mulher, está rindo de mim?
— Não, de mim mesma. Por favor, meu marido, isto é muito agradável, porém,
precisamos conversar — disse, empurrando-lhe os braços e pensando no muito que tinha
para dizer-lhe.
Alexander gemeu.
— Lillis, minha querida, não estou com a mínima disposição para conversar. —
Beijou-a ao longo do pescoço até a orelha. — Deixe-me acomodá-Ia na cama. — Sentiu-a
deliciosamente maleável e dócil entre os braços, enquanto os lábios retrocediam até a
garganta. — Vamos passar o resto deste dia chuvoso sob as cobertas quentes.
Ela inclinou a cabeça para trás a fim de dar-lhe melhor acesso à pele sensível.
— As coisas que quero lhe fazer, Lillis... Quero tocar-lhe o corpo inteiro com as
mãos e com os lábios — disse ao fazê-Ia recuar em direção da cama. — Cedo ou tarde,
isto terá de acontecer, você sabe. Pois que aconteça agora.
O tom sedutor provocou um arrepio ao longo da espinha de Lillis.
— Mas não podemos, Alexander. Não podemos.
Ele sorriu ao notar a indecisão na sua voz. Feliz, pressentia a vitória.
— Podemos, sim, Lillis. Nós faremos amor.
— Não podemos. Não, Alexander, pare já. Estou arrumando as minhas malas.
Finalmente, ele afastou a cabeça.
— Você o quê?!
Ela riu e empurrou-lhe os ombros.
— Mas que homem impossível! Estou arrumando as malas enquanto você tenta me
seduzir. Agora, por favor, me dê licença. Não quero perder nem mais um segundo. Vou
terminar isto aqui e, ao mesmo tempo, conversar com você.
Já sem a mínima animação amorosa, ele a largou imediatamente.
— Sobre o que, em nome de Deus, você está falando, Lillis?
Ela ergueu-se na ponta dos pés e o beijou rapidamente.
— O que você acha? Por que não me contou que a aprovação do nosso casamento
pelo rei tinha chegado? — Foi até a cama onde estavam as malas meio arrumadas. —
Sei que você não quer que eu viaje com esse tempo horrível, mas nem a maior
tempestade me impedirá de ir morar com o meu pai, agora que estou livre. Lamento que
você não tenha me contado isso ontem. Edyth e eu teríamos arrumado tudo com mais
vagar e partido hoje cedinho. — Apanhou o xale que dobrara um pouco antes e o colocou
numa das malas. — Edyth também está arrumando a bagagem no quarto dela. Estare-
mos prontas para partir dentro de uma hora, caso você possa, assim, de repente, arranjar
alguém para nos acompanhar. Mas por favor, não vá ainda. Existe algo que eu gostaria
de dizer-lhe tão logo termine aqui.
Petrificado, Alexander olhou para a mulher. Tinha imaginado contar com mais
tempo. Com apenas um pouco mais, terminaria o que tinha começado. Lillis estava tão
perto de ceder, ele tinha certeza. E quando isso acontecesse, não importaria mais se a
aprovação real do casamento já houvesse chegado. Nada mais teria importância quando
ela cedesse.
Com movimentos ágeis, Lillis continuava a dobrar peças de roupa e a colocá-Ias nas
malas.
— Pare, Lillis!
Ela interrompeu o trabalho apenas o suficiente para relancear os olhos por
Alexander.
— Desculpe, não entendi bem. O que disse?
— Disse para parar. Pare já o que está fazendo.
— Parar?! — repetiu ela com um sorriso indulgente levantando o olhar novamente
para ele. — Já lhe expliquei, Alexander, quero partir logo, mas ainda tenho muita coisa
para arrumar. Não posso perder tempo — acrescentou ao recomeçar a tarefa.
Inundado por uma fúria além da sua compreensão, Alexander não gastou uma
fração de segundo para refletir no que fazia. Com duas passadas largas, aproximou-se,
arrancou-lhe das mãos a peça que ela dobrava cuidadosamente e atirou-a para o outro
lado do quarto.
— Alexander!
Ele agarrou-a pelos ombros e a sacudiu.
— Vá para o inferno, Lillis! Eu disse para parar com isso!
Ela o fitou com os olhos arregalados.
— Em nome de Deus, o que está acontecendo com você? Essa era a minha melhor
túnica!
— Eu não me importaria, mesmo se fosse a melhor túnica do rei Henrique! —
vociferou ele no auge da fúria. — Quem lhe contou que a aprovação do rei tinha
chegado? Foi Willem? Maldição! Pensei que pudesse confiar no meu irmão! Ele jurou que
não diria uma palavra para você!
Atordoada, Lillis sacudiu a cabeça.
— Não foi Willem. Ele não mencionou nada sobre esse assunto. — Lembrou-se do
medo de John quanto à reação do marido e, com isso, sentiu uma desconfiança
desagradável. — É importante saber como descobri, Alexander? Você não pretendia...
— Sim, é importantíssimo. Quero saber agora, Lillis. Quem lhe contou? Foram os
gêmeos? Eles entraram no meu escritório e remexeram os meus papéis? Se fizeram isso,
juro por Deus que vou lhes quebrar o maldito pescoço!
Angustiada, Lillis tentou afastar-se dele.
— Alexander! Não foram os gêmeos. E isso não tem importância. Você mesmo não
ia me contar? Portanto, não faz diferença como descobri o fato.
O semblante de Alexander revelava o estado de choque em que se encontrava. De
maneira abrupta, largou-a e virou-se de costas.
— Naturalmente eu ia lhe contar — resmungou enquanto enfiava os dedos pelo
cabelo. — Mas no momento oportuno e à minha maneira. Cabia a mim fazer isso. Acho
melhor revelar quem foi, pois, cedo ou tarde, acabarei descobrindo.
Consternada, Lillis observava-lhe os músculos tensos das costas.
— Se você vai acabar descobrindo mesmo, não vejo necessidade de falar. Talvez eu
tenha entrado no seu escritório e mexido nos seus papéis. Vai me torcer o pescoço por
causa disso?
Alexander começou a andar de um lado para o outro como uma fera enjaulada, e
isso a deixou nervosa.
— Não vou torcer o seu pescoço, claro — respondeu ele, zangado e sem fitá-Ia. —
Você não faria tal coisa. Não é do seu feitio agir às escondidas.
— É um grande alívio saber que pensa assim a meu respeito. Agora, se me der
licença, quero acabar de arrumar as malas.
Virou-se e recomeçou a dobrar a roupa. Um toque pesado de mão no seu ombro a
puxou para trás.
— Eu a mandei parar, Lillis.
Um aviso soou-lhe na mente ao olhar para o marido.
Ele tinha a mesma expressão séria do dia em que a avisara sobre o casamento
iminente.
— Ai, Deus misericordioso! Alexander, por favor... Puxando-a por ambas as mãos,
ele a levou até a cama. — Sente-se, Lillis, preciso conversar com você.
Ela obedeceu, e ele, ainda segurando-lhe as mãos, sentou-se ao seu lado. Devagar,
começou:
— Lillis, sei que não sou o marido da sua escolha. Como poderia ser? Sem atrativo
algum além de viver enterrado no trabalho, só sirvo para cuidar do meu povo e das
minhas terras.
Lillis sacudiu a cabeça num gesto negativo.
— Por favor, Lillis, não tente ser amável. Essa é a mais pura verdade. Sei muito bem
que não chego aos pés de Ywain Giraut e de muitos outros que, esperançosos, tentaram
conquistá-Ia. Jamais tive a pretensão de ser um homem romântico e refinado.
— Isso é uma grande tolice, Alexander.
— Não é, não. Preste atenção, Lillis. Não tenho a mínima facilidade para me
explicar. Nunca tive de fazer isso no passado e não pretendo repetir no futuro. Estou
muito acostumado a expressar a minha vontade e vê-Ia obedecida sem hesitação. Esse é
o resultado de se ocupar uma posição de responsabilidade semelhante à minha. —
Perscrutou-lhe o semblante em busca de compreensão. — Nestes últimos dias, tentei
expor-lhe o meu modo de ser, o meu íntimo, mas, obviamente, não obtive êxito. -
Embaraçado, mexeu-se e baixou o olhar para as mãos de ambos sobre os joelhos dele.
— Na verdade, eu a venho cortejando — admitiu, acanhado. — Sei que tenho sido
desajeitado, mas, maldição, não tenho experiência nisso! Nunca precisei ser romântico
com mulher alguma! Meus pais escolheram Bárbara para mim, e todas as outras
mulheres com quem me relacionei sempre me procuraram por vontade própria. Você é a
primeira a quem eu tive de conquistar. — Levantou o olhar e a fitou. — Estou tentando
dizer, Lillis, que não quero que você vá embora de Gyer. Desejo que fique aqui como a
minha esposa. Eu a quero como a minha mulher, de verdade, e não por causa de um
casamento imposto.
A esperança explodiu no coração de Lillis. Era exatamente isso o que planejava
dizer a Alexander. Desejava ir visitar o pai, voltar para morar em Gyer, como ele a tinha
convidado, e ser a sua senhora. Estava preparada para aceitar qualquer condição
imposta desde que ele prometesse jamais humilhá-Ia diante da prima. Todavia, não tivera
a mais tênue esperança de que o marido, realmente, desejasse a sua permanência no
castelo.
— Alexander, você está tentando dizer que me ama? — murmurou.
Em questão de poucos segundos e numa sucessão rápida de emoções, ele a fitou
com surpresa, espanto e raiva.
— Estamos tratando de um assunto sério, Lillis. Você gostaria de desviar a nossa
atenção para bobagens?
Aturdida, ela tentou soltar as mãos, porém, Alexander as segurou com firmeza.
— Lillis, tal ponto tem tanta importância assim? Como minha esposa, você gozará de
todos os privilégios a que tem direito. Nunca lhe faltará nada. A sua felicidade será a
minha maior preocupação. Não é o suficiente?
Com um puxão forte, ela soltou as mãos. Apanhou uma peça de seda e pôs-se a
dobrá-Ia com cuidado. Num tom irônico e gélido, disse:
— Agradeço muitíssimo, meu senhor de Gyer, mas tenho de recusar a sua oferta
generosa. Se providenciar um acompanhante para mim e Edyth, ficarei muito grata.
Ele levantou-se e estendeu a mão na sua direção.
— Lillis...
— Não me toque! — gritou ela ao recuar e tentar impedir as lágrimas ameaçadoras.
— Lillis!
— Eu o amo! — ela soluçou, horrorizada consigo mesma e sentindo-se
extremamente humilhada. — Eu o amo, mas você ama Bárbara. Não quero gozar de
privilégio algum, nem provocar preocupação quanto à minha felicidade. Quero ir para
casa, para o lado do meu pai! Ele me ama! Precisa de mim! Se eu tiver de ficar mais um
dia em Gyer, vou enlouquecer!
As lágrimas abundantes toldaram-lhe a visão a tal ponto que ela não viu Alexander
estender os braços para estreitá-Ia entre eles.
— Lillis — murmurou, tentando acalmá-Ia. Para si mesmo, cantava vitória.
Incontestavelmente ela era sua agora. A conscientização do fato o fazia se sentir como se
estivesse sendo devorado por chamas. — Você me ama? De verdade? Meu Deus, você é
a mulher mais maravilhosa da face da terra! Minha doce e adorável Lillis. Sussurrou ao
baixar a cabeça a fim de beijá-Ia.
— Não, pare — ela protestou, empurrando-o, mas sem muita energia.
— Não, não vou parar. Não desta vez. Sou um idiota maldito, incapaz de dizer o
quanto gosto de você. Pois vou mostrar.
Os lábios quentes percorreram suas faces absorvendo as lágrimas, até Lillis
esquivar-se, inclinando-se para trás, e insistir:
— Vou embora para casa, para Wellewyn.
A boca de Alexander a perseguiu beijando-a no queixo, no pescoço e onde mais a
sua inclinação permitia. Com as mãos, começou a abrir-lhe as roupas.
— Gyer é a sua casa e será sempre. Agora, você é minha.
A túnica caiu com facilidade. Mas quando Lillis sentiu Alexander puxar a roupa
branca de seda, tornou a empurrá-lo.
— Não, Alexander, não faça isso.
— Você me ama — ele a lembrou e beijou-lhe o ombro nu. Depois, puxou a camisa
até a cintura expondo-lhe os seios. — Mostre-me — disse ao acariciá-los com as mãos.
— Não — gemeu.
— Sim.
Ele empurrou as malas e roupas da cama para o chão, deitou Lillis e acabou de
despi-Ia. Em seguida, livrou-se depressa das próprias roupas e acomodou-se ao seu lado,
aninhando-a entre os braços.
— Esta não será como a primeira vez — Alexander murmurou, cobrindo-lhe o rosto
de beijos e fitando os seus enormes olhos azuis. As mãos percorriam-lhe a pele sedosa
com infinita morosidade. — Desta vez, vamos nos conhecer com a maior profundidade
possível. — Colocou uma das pernas entre as suas, prensando a coxa no centro delas. —
E com o maior prazer possível.
Antes de Lillis poder protestar outra vez, ele a impediu. Com a habilidade e
experiência de muitos anos, acariciava-a, movendo as mãos com o propósito de vergá-Ia
à vontade dele.
— Diga que me ama — murmurou.
Lillis negou-se sacudindo a cabeça.
— Diga, Lillis. — Beijou-a levemente num dos seios. — Diga. Agora.
Ela crispou as mãos enquanto confessava a verdade:
— Eu o amo, Alexander.
— Diga outra vez, Lillis. Diga que você me quer tanto quanto eu a venho desejando
nestes últimos dias.
Ela retorceu-se sob as carícias dele.
— Por favor, Alexander...
— Diga — insistiu ele num sussurro.
— Eu o quero. É verdade, Alexander. Por favor... não...
— Mulher. — Beijou-a possessivamente. — Minha mulher. Minha. Repetiu as
palavras um sem-número de vezes enquanto uniam os corpos. — Lillis — gemeu
inconscientemente.
Nenhuma das recordações dele se comparava ao prazer sentido nesse momento.
Segurou-lhe o rosto com ambas as mãos e a fez fitá-Io enquanto aumentava os impulsos.
— É tanto assim, minha mulher, que gosto de você. Nós somos um. Um!
Sim, um, ela compreendia. Descobria, finalmente, o que Alexander queria dizer
quando falava em alegria
e prazer. Eles uniam-se num único ser, e a alegria e o prazer de ambos também se
fundiam. Algo puro, sutil e maravilhoso.
Ainda sob o efeito do êxtase, Alexander virou-se de lado, puxando Lillis junto a si.
Deliciando-se com a maleabilidade do seu corpo, aconchegou-a bem. Tinha o hábito de
vangloriar-se das vitórias alcançadas, mas não podia deixar de sorrir com a desse
momento. Por alguns instantes, Lillis se mostraria zangada com a derrota, mas ele seria
um vencedor generoso. Durante os próximos dias, a cobriria com tanto afeto e gratidão
que logo a mulher se esqueceria de tudo em relação a Wellewyn, inclusive o maldito pai.
Num gesto carinhoso, Lillis o abraçou à volta dos ombros, e Alexander entregou-se
ao melhor sono já experimentado.
Algum tempo mais tarde, ao acordar, ele estendeu o braço à procura de Lillis e
encontrou apenas o vazio. Já devia ter anoitecido, pois o quarto estava na penumbra.
Entretanto, ele podia ver bem o aposento graças à luminosidade espalhada pelo fogo da
lareira.
Lillis estava sentada no meio do quarto, olhando para as mãos no colo com ar
pensativo. O seu semblante lembrava o da sua primeira manhã no castelo, quando sou-
bera ser prisioneira. Isso, agora, parecia ter acontecido uma eternidade atrás. À volta de
Lillis, estavam as suas malas, já fechadas, mostrando que ela as terminara de arrumar.
Bem devagar, ele se sentou.
— Lillis?
O seu olhar surpreso volveu-se para ele.
— O que está fazendo aí? Tire as suas roupas e volte a se deitar aqui comigo.
Ela o encarou com expressão solene.
— Ah, por fim, acordou. Estava esperando por isso.
— Volte para a cama — ele repetiu. — Eu a quero novamente.
— Não. Precisamos conversar primeiro. Quero saber quando vai me deixar ir
embora de Gyer. Sou uma mulher livre agora e desejo retornar para a minha casa. Você
me prometeu que eu poderia ir quando a aprovação do rei do nosso casamento
chegasse.
A ferroada de raiva sentida por AIexander o surpreendeu. Era a mesma reação
provocada pela sua teimosia em arrumar as malas. Só naquele momento, ele tinha
percebido a intenção da mulher de deixá-Io.
— Pelo que vejo, não consigo expressar a minha vontade. Pois vou ser
absolutamente franco. Você não vai embora de Gyer, Lillis. Vai ficar aqui como minha
mulher, como lady Gyer.
Pelo arfar dos seios, ele percebeu a sua respiração repentinamente ofegante.
Também lhe viu as mãos trêmulas no colo.
— AIexander, quero ir para Wellewyn. O meu pai precisa de mim. Você me
prometeu. Disse que eu podia confiar na sua palavra.
— E de fato, pode. Sempre. Mas você se entregou a mim, Lillis. Fez isso através das
próprias palavras. Agora, você me pertence. Você tornou-se a minha esposa sob todos os
aspectos. Não vou deixá-Ia mais voltar para Wellewyn.
Lillis sacudiu a cabeça.
— Não. Continuo sendo a sua prisioneira como antes.
— Você é a minha mulher — insistiu ele em voz vagarosa e em tom irritado. — Caso
se comporte como deve, será tratada com o apreço digno da sua posição, prometo.
— As suas promessas deixam muito a desejar. E quanto ao meu pai? Vem
esperando com paciência infinita que você me devolva a ele. Se não me deixar ir embora
imediatamente, estará quebrando o contrato feito com ele.
— Não me fale do seu pai. Se eu não tivesse vindo a gostar de você, a teria
devolvido a ele há muito tempo. Mas eu gosto de você, mais do que posso lhe dizer. Você
me é muito preciosa e me pertence agora. Eu jamais
abriria mão de algo que valorizo, ainda mais para o proveito de um demônio como
Jaward de Wellewyn.
— Como pode falar comigo dessa maneira? O meu pai não é um demônio, e eu o
amo! Se eu fosse tão preciosa para você como diz, não faria tais comentários na minha
presença! Se eu significasse, de fato, algo para você, me deixaria ir imediatamente! Você
não percebe como estou ansiosa para ver o meu pai?
— Eu nunca disse que você não o veria. Iremos a Wellewyn, como prometi, tão logo
o tempo melhore. Não vai levar mais do que um dia ou dois para isso acontecer.
— Um dia ou dois?! — esbravejou ela. — O meu pai está doente. Precisa de mim!
— Não ligo a mínima para o que seu pai precisa! gritou Alexander no mesmo tom. —
Só vou levá-Ia para visitar o maldito porque sei o quanto isso significa para você. No
futuro, a manterei tão longe dele que você acabará esquecendo-lhe as feições!
Lillis levantou-se da cadeira num movimento abrupto.
— Não vou tolerar isso, Alexander de Gyer. Jamais. Não vou ficar aqui para ser um
brinquedinho nas suas mãos.
Alexander afastou as cobertas com a intenção de se levantar e ir buscá-Ia.
— Você disse que me ama, Lillis. Eu não a quero como um brinquedinho, e sim
como minha mulher.
— E quanto a Bárbara? — indagou Lillis arregalando os olhos ao ver-lhe as pernas
nuas já para o lado de fora da cama.
— O que tem ela?
— Você a ama, não é verdade?
— Por que você tem sempre de mencionar Bárbara? O que sinto pela minha prima
não tem nada a ver conosco. Quantas vezes vou ter de dizer a mesma coisa?
— Nem mais uma. Entendi perfeitamente — garantiu ela em tom sarcástico.
— Ótimo. Nesse caso, deixe de se comportar tolamente e volte para a cama antes
de eu ir pegá-Ia.
Num gesto de desafio, ela cruzou os braços sobre o peito.
— Não!
— Cuidado, Lillis — advertiu Alexander.
— O que aconteceu conosco esta tarde foi um erro e não vai se repetir — avisou ela.
— O que aconteceu conosco esta tarde foi celestial, maravilhoso — ele a corrigiu ao
deixar a cama e aproximar-se. — Não pretendo voltar a cortejá-la a fim de possuí-Ia
novamente. Você é a minha mulher, Lillis.
Ela recuou para trás da cadeira a fim de afastá-Io.
— Como você não me ama, eu não classificaria a luxúria compartilhada por nós
como algo tão magnífico.
— Maldição, Lillis — começou ele para ser interrompido por uma batida forte na
porta. — Maldição! — praguejou outra vez.
— Alex, você está aí? — indagou Willem do lado de fora.
— Sim, o que foi? — gritou Alexander em tom exaltado, indicando que qualquer
assunto teria de esperar.
— Trata-se de Bárbara. Ela pegou um cavalo no estábulo e conseguiu passar pelos
guardas no portão. Já mandei uns homens procurá-Ia, porém ela ainda não foi
encontrada.
— Ela foi cavalgar com um tempo desse? — Sem se importar com a própria nudez,
Alexander escancarou a porta e viu Willem encharcado no corredor. — Mas já escureceu!
Em nome de todos os santos, o que ela tem naquela cabecinha oca?
— Não faço idéia, Alex — Willem respondeu com ar aflito. Num misto de choque e
curiosidade, observou o corpo nu do irmão e, depois, olhou para Lillis dentro do quarto. —
Bárbara estava chorando quando saiu. Só sei isso. Os cavalariços disseram que ela
estava histérica e exigiu um cavalo selado. Eles tentaram dissuadi-Ia, mas isso só a
tornou mais nervosa ainda. Num esforço para acalmá-Ia, eles a atenderam, contudo, não
tinham a intenção de deixá-Ia sair. Um deles mandou me chamar imediatamente. Quando
cheguei ao estábulo, Bárbara já tinha montado e desaparecido sob a chuva. Eles
disseram que ela partiu a galope em direção a Dunsted.
— Dunsted?! Quando foi isso?
— Pouco mais de meia hora atrás. Reuni dez homens e percorremos a área. Nem
sinal de Bárbara. A chuva apagou os rastros da montaria.
Com expressão sombria, Alexander franziu a cenho.
— Quero cinqüenta homens montados e prontos daqui a dez minutos. Providencie
um bom número de tochas de cera. Talvez elas não ajudem muito na escuridão, mas será
a nossa única luz. Vá! Descerei daqui a instantes.
Ele saiu do quarto de Lillis sem lhe dirigir um único olhar, e ela o ouviu gritar
chamando o camareiro:
— Fyodor!
Pouco depois, a porta do quarto dele batia com estrondo.
Lillis permaneceu onde estava, olhando para os dois guardas que, em pé no
corredor, a observavam. Tudo havia acontecido tão depressa! Num momento, Alexander
estava ali afirmando seu interesse por ela e, no seguinte, saía para ir procurar a sua
querida Bárbara.
Foi até a porta e a fechou. Depois, encostou-se nela. De repente, Alexander surgiu
vindo do quarto pegado.
O criado o seguia ajudando-o a vestir-se.
— Ainda não terminamos — disse ele ao se aproximar e tomar-lhe as mãos. Lillis
tentou puxá-Ias, mas ele não permitiu. — Lillis, não vá ficar aborrecida por causa disso.
Não há motivo, juro. Você disse que me ama, mulher. Tenha confiança em mim.
Ela desviou o olhar.
— Deixe-me ir embora, Alexander. Se sente algum afeto por mim, me deixe ir. Só
então, poderei ter confiança em você.
— Você é a minha mulher e...
— Não sou a sua mulher, Alexander de Gyer, e sim a sua prisioneira.
Exasperado, ele apertou os lábios.
— Se teima em pensar assim, paciência.
Puxou-a de encontro ao peito e a beijou entre delicada e insistentemente. Lillis,
entretanto, recusou-se a tomar parte na carícia. Quando Alexander a largou, ela virou o
rosto. Sem nem mais uma palavra, ele foi embora.

CAPÍTULO XVI
— Lillis, eu não sabia que o povo da vila planejava essa comemoração. Não fazia
idéia de que todos queriam organizar uma feira no dia de São Miguel e não tive nada a
ver com isso. Por que você insiste em se comportar como se eu houvesse cometido um
crime? Alexander sentia-se como se estivesse batendo com a cabeça num paredão de
pedra. Sentada e numa atitude implacável, Lillis olhava pela janela, recusando-se a fitá-Io.

— Seqüestro é crime — disse ela em voz calma.


— Maldição! Eu não a seqüestrei! Você sabe muito bem que Hugh e Hugo
cometeram tal absurdo sem o meu conhecimento. E eu os castiguei severamente.
Lillis deu de ombros.
Exasperado, Alexander passou as mãos sobre os olhos.
Por Deus, estava cansado dessa situação. Não fazia a mínima diferença o que ele
dissesse ou como tentasse explicar a questão. A mulher negava-se a ouvi-Io, ou a
compreender as suas razões.
Quando havia voltado, três noites atrás, depois de procurar por Bárbara, chegara
decidido a resolver o assunto entre ambos. Estava encharcado, exausto, física e emo-
cionalmente. Ficara horrorizado com o estado de Bárbara. Histérica e completamente
desorientada quanto à direção a seguir, a priminha delicada tentava caminhar na lama e
sob a chuva na estrada para Dunsted. A montaria, assustada com um raio, a tinha atirado
para fora da sela, deixando-a desnorteada na escuridão. Alexander não tinha perdido
tempo em perguntar-lhe por que deixara Gyer, e mandara John levá-Ia de volta na
garupa. Todos tinham retornado ao castelo o mais depressa possível. Ele ainda não sabia
por que Bárbara havia feito aquilo, pois ela recusava-se, terminantemente, a falar do seu
comportamento naquela noite.
Ao entrar no quarto de Lillis, esperando terminar a conversa interrompida, ele a
encontrara já deitada. Tomando isso como um indício animador, Alexander havia tirado as
roupas depressa e se deitado ao seu lado. Desejava nada mais do que esquentar o corpo
enregelado de encontro ao seu e descansar. Lillis, porém, havia mantido o corpo rígido e
não cedera quando ele a abraçara. Na verdade, a mulher ameaçara levantar-se,
afirmando preferir dormir no chão a compartilhar a cama com ele. Naturalmente, ele não
tinha permitido tal bobagem e a segurara com firmeza na cama. Mas no fim, havia de-
sistido e ido dormir sozinho na própria cama, a primeira vez em mais de uma semana.
Estava cansado demais para enfrentar outra discussão e certo de conquistá-Ia quando,
recuperado, se explicasse. Mas isso fora três dias atrás, e Lillis continuava irredutível.
— Não tem de ser desse jeito, Lillis. Você continua prisioneira por teimosia. Já
afirmei, uma centena de vezes, que você ficará livre quando passar a se comportar como
deve.
— E eu já lhe disse uma centena de vezes que quero ir para Wellewyn viver com o
meu pai.
Alexander explodiu.
— Não vejo razão para essa insistência absurda! Você deveria se sentir feliz por
poder morar em Gyer, e não naquela ruína chamada de castelo pelo seu pai.
— Você tem o péssimo hábito de tirar conclusões precipitadas. Se tivesse me
perguntado, Alexander, saberia como me sinto com a possibilidade de morar em Welle-
wyn. Mas como não perguntou, não tem o direito de se surpreender porque os meus
sentimentos não são os que você esperava.
Alexander fez um gesto de impaciência.
— A sua noção sobre tais assuntos é muito inconsistente. Antes da intervenção dos
meus irmãos, você se mostrava disposta a se casar com Jason de Burgh, a quem nunca
tinha visto, e a morar na casa dele que também não conhecia.
A exclamação de Lillis foi tão furiosa quanto o tom da sua voz.
— Pelo menos, Jason de Burgh teve a decência de pedir a minha mão em
casamento e eu tive a oportunidade de aceitar, ou de recusar. Você, Alexander de Gyer,
até agora só me disse o que vou, ou não, fazer. Está bem claro que as minhas vontades e
os meus sentimentos não dizem nada para você.
Alexander sentiu-se insultado.
— Lillis, isso não é verdade. Se eu não me importasse com os seus sentimentos, já
a teria mandado para Wellewyn sem ligar para o seu futuro desgraçado ao lado de
Jaward. Em vez disso, eu quis mantê-la aqui em Gyer como minha esposa e senhora.
Pelo amor de Deus, Lillis, você disse que me ama! — acrescentou, bravo.
Ela ficou tensa.
— Já lhe pedi, Alexander, para não usar as minhas palavras como argumento contra
mim. Não é justo. Além do mais, não importa se eu o amo ou não. Você não me ama, e
amor unilateral é como um arco sem flexas. Absolutamente inútil. Mas não quero discutir
mais esse ponto. Nós nos afastamos do assunto principal. Você me prometeu, há algum
tempo, que no primeiro dia de tempo bom, me levaria para visitar o meu pai em Wellewyn.
O céu amanheceu limpo hoje e eu espero que você cumpra a sua promessa.
— E eu já expliquei que o povo planejou essa feira hoje a fim de comemorar o dia de
São Miguel e o retorno das águas do rio Eel. Eu, como o senhor de Gyer, tenho de estar
presente. Não podemos ir hoje a Wellewyn. Iremos amanhã.
Ainda olhando pela janela, Lillis lutou consigo mesma. Finalmente, expressou-se
com cuidado e em voz vagarosa:
— Por favor, Alexander, me deixe ir a Wellewyn hoje. Você sabe que o meu pai está
doente e muito preocupado comigo. Tenho tentado ser paciente, mas já faz dois anos que
não o vejo. Não suporto esperar mais tempo. Por favor. Se você não pode me
acompanhar, deixe Willem ir no seu lugar. Ele já disse que faria isso. Eu prometo, juro,
que voltarei à noite para Gyer.
A suavidade da voz afetou Alexander profundamente. Sabia que Lillis estava
zangada com ele, e falar em tom de súplica devia lhe custar muito. Ele gostaria de
atender ao pedido, feito com tanta humildade. Porém, seria impossível não comparecer à
feira. O povo não medira esforços para organizá-Ia tão depressa, e ele, como o senhor de
Gyer, teria de estar presente. E, de forma alguma, permitiria que o irmão, cegamente
apaixonado, levasse Lillis a Wellewyn. Na verdade, ela estava sendo exigente demais.
Um dia a mais, ou um dia a menos, não faria diferença nos tais dois anos.
Numa tentativa de amenizar a recusa, bem como a sua raiva, ele aproximou-se, pôs
as mãos nos seus ombros e a beijou no pescoço.
— Não, minha querida. Sinto muito. Nós dois iremos amanhã bem cedinho. Prometo
— acrescentou ao apertar-lhe levemente os ombros. Sentiu-lhe a tensão sob as mãos,
mas Lillis manteve-se calada, e AlexandeR tomou o silêncio como sinal de
encorajamento. Vou lhe propor uma coisa — prosseguiu acariciando-a no pescoço. —
Ponha uma túnica bem bonita e me acompanhe à feira. O meu povo ficará contente ao
ver a senhora do castelo lá. Haverá torneios, dança e muitas outras atrações. Isso a
ajudará a não pensar no seu pai, e o dia passará mais depressa.
Ela sacudiu a cabeça.
— Não, muito obrigada. Vou ficar aqui e esperar até amanhã.
Alexander suspirou.
— Não seja tola. Por que se sacrificar pelo seu pai? Vá à feira e divirta-se. Você será
a mulher mais linda lá e eu quero exibi-Ia.
Num ímpeto, Lillis levantou-se da cadeira e apoiou-se no peitoril da janela.
— Não sou uma aquisição requintada para ser exibida para o seu prazer, Alexander.
Sou a sua prisioneira. Nem mais, nem menos. Se quer uma mulher para representar o
papel de lady Gyer, leve Bárbara a essa feira tão importante. Ela, pelo menos, deseja a
sua companhia.
Bastava. Alexander cansou-se.
— Tem toda razão. Bárbara deseja a minha companhia, fato que deixou bem claro
nestes últimos dias. Enquanto isso, uma outra mulher, sob este teto, não faz outra coisa
senão virar as costas para mim e me ferir com a sua língua afiada. Sem dúvida, Bárbara
será uma companheira muito melhor do que a bruxa da minha mulher. — Foi até a porta e
a escancarou. — Tenha um bom dia. Aproveite bem a sua companhia desagradável.
Quanto a mim, vou me divertir ao máximo. Graças a Deus, a minha prima goza de um
humor muito melhor do que o seu.
Foi embora depois de bater a porta. Lillis cobriu o rosto com as mãos e chorou
copiosamente.
Havia já algum tempo, Bárbara se dava conta de que Alexander não a queria mais.
Continuava a tratá-Ia bem e com carinho, mas de maneira distante. Via-o andar de um
lado para o outro, perto da mesa de cavalete à qual ela se sentava. O dia inteiro, o primo
tinha se mostrado com ar aborrecido e irritadiço. Imaginava se ele havia apreciado algum
dos divertimentos da feira. Naturalmente, estava cumprindo os deveres de senhor do
castelo a contento e ninguém tinha razão de queixa a esse respeito. Com palavras
elogiosas e de estímulo, Alexander tinha entregado os prêmios aos vencedores de vários
torneios, cumprimentado os músicos e atores amadores e, claro, participado do baile
iniciado ao pôr-do-sol. Durante todas essas atividades, ele a tinha mantido ao seu lado
com uma espécie de determinação desesperada. Finalmente, Bárbara começava a se
sentir como um prêmio de consolação. Que diferença dos dias em que ele a tratava com
carinho e desvelo quase reverentes. Embora estranho, ela achava que preferia essa nova
atitude do primo.
Observou-lhe a maneira inquieta de se comportar perto do grande número de pares
que dançava. Continuava a andar de um lado para o outro e a lançar olhares para o
castelo. Dava a impressão de que acabaria enlouquecendo. Tia Leta e Edyth de Cantfield
revezavam-se com Candis e Justin, ensinando-os a dançar. Por um instante, Alexander
olhou para eles. Willem, vermelho até a raiz do cabelo, tendo cedido ao convite de moças
da vila, também dançava. Os gêmeos, havia muito, tinham desaparecido entre as árvores
com duas meninotas risonhas. Finalmente, Alexander volveu o olhar para Bárbara; ela,
porém, fingiu estar distraída com os dançarinos. Durante alguns momentos, ele a
observou e, depois, virou-se, tomando o caminho do castelo com passos firmes.
Bárbara sentiu-se satisfeita ao vê-lo ir, aliás, quase aliviada. Precisava de uns
minutos de sossego a fim de descansar um pouco. Antes, ao representar os papéis de-
terminados por John, jamais sentira essa necessidade de ficar a sós. Mas tudo havia
mudado muito desde aquele dia frio e nevoento na mata de Dunsted. Tomando cuidado
para não atrair a atenção dos guardas de Alexander, levantou-se e se afastou da mesa.
Logo atrás, havia uma tenda grande que ela rodeou até se sentir segura, escondendo-se
nas sombras dela.
Respirou fundo. Algum tempo antes, John tinha lhe feito um sinal, avisando-a de que
ia embora com alguns de seus homens. No dia seguinte, sem dúvida, ela ouviria falar de
algum vandalismo praticado em Gyer, ou Dunsted. Mas, com o irmão longe dali, a ocasião
era propícia. Os outros moradores do castelo estavam muito ocupados com a feira para
notar-lhe a ausência.
Por alguns instantes, ficou atrás da tenda, olhando à volta. Depois, correu para um
grupo de árvores a alguns passos de distância. Não eram muitas, mas suficientes para
ela se sentir segura entre os troncos. Seria difícil alguém vê-Ia ali. Uma risadinha, seguida
de um gemido, a avisou da possibilidade de tropeçar num casal de amantes. Levantou um
pouco a saia e correu embrenhando-se na mata até ter certeza de estar sozinha. Só
então, deixou cair a máscara. Aliviada, sentou-se no chão e pôs-se a massagear os olhos.
De repente, alguém lhe tapou a boca com a mão ao mesmo tempo em que, com o
outro braço à volta da sua cintura, a levantava do chão. Ela tentou gritar e debater-se,
mas tanto a voz como os movimentos foram controlados por grande força. Deus
misericordioso, rezou em pânico, prevendo a coisa terrível que estava prestes a lhe
acontecer. Só mesmo um milagre a salvaria.
Os braços que a seguravam a viraram de frente pondo-a diante de um rosto
encapuzado, mas cujo olhar raivoso lhe parecia familiar.
— Saudações, lady Bárbara — cumprimentou um homem ao tirar o capuz e libertar
os cabelo longo e negro.
— Eu estava esperando, ou melhor, rezando para ter o prazer de encontrá-Ia outra
vez.
— Jason — balbuciou Bárbara, incrédula. — Jason! — repetiu, abraçando-o com
toda a força de que dispunha.
Ele empurrou-a para longe.
— Muito bem, você se lembra de mim. Eu imaginava isso.
Ele estava bravo. Muito, muito bravo. Embora soubesse que tinha o direito de estar,
ela suplicou, agarrando-lhe o braço:
— Por favor, Jason, deixe-me explicar.
Ele a empurrou com força, fazendo-a cair sentada no chão.
— Explique! Vim procurá-Ia para ouvir o que tem a dizer! — Abaixou-se e,
segurando Bárbara pelos dois ombros, levantou-a no ar até o seu rosto ficar a centímetros
do dele. Os olhos azuis revelavam mágoa profunda. Eu vim porque não consegui
acreditar no que os meus homens me contaram. Eu não podia acreditar que você fosse
prima de Alexander de Gyer. Eu a procurei pela floresta três dias inteiros depois do
incêndio, incêndio que você ajudou a provocar! Um homem morreu entre as chamas! Um
dos meus homens! Mesmo assim, gastei três dias procurando por você! — Sacudiu-a com
força. — Meu Deus, como fui idiota!
— Jason, me perdoe — murmurou Bárbara estendendo a mão, ansiosa por acariciá-
lo e amenizar-lhe a tristeza.
— Não! — protestou ele com repulsa evidente. — Não me toque! Qualquer contato
com você me enoja! —Fervendo de raiva e tristeza, lutava entre a vontade de estreitá-Ia
nos braços e atirá-Ia de volta ao chão. — Você é pior do que uma prostituta! Você é a
rameira dele! Pensa que não passei o dia observando como você se oferecia a
Alexander? Você envergonha e humilha a mulher que deveria ter sido minha! —
Incrédulo, ele a viu sacudir a cabeça num gesto negativo. — Lillis de Wellewyn era a
minha noiva quando Alexander de Gyer a forçou a se casar com ele. Agora ela, lady Gyer,
fica trancada no castelo enquanto você se exibe com o seu marido como uma vagabunda
sem classificação! — acusou ao atirá-Ia ao chão.
Numa voz trêmula, Bárbara suplicou:
— Jason, por favor, me dê a oportunidade de explicar. — Ajoelhou-se no chão e
estendeu as mãos para ele. Eu acho que o amo. Não, eu sei, tenho certeza. Eu o amo.
Desde aquele dia, não fui capaz de pensar em outra coisa a não ser nos seus beijos e em
você. Por favor, me dê uma chance.
— Você me ama?! — Jason pôs as mãos nos quadris e gargalhou. — Acha que sou
idiota, mulher? Pensa que com umas poucas palavras pode aplacar a minha raiva? Eu
deveria cortar a sua garganta como castigo pelo que fez. A única razão para não matá-Ia
é o nojo de sujar as mãos com o sangue de uma criatura tão repulsiva como você.
As lágrimas começaram a rolar pelas faces de Bárbara.
— Tem toda razão de estar bravo comigo, Jason murmurou entre soluços. — Eu não
tive escolha naquele dia. Você não pode pensar que eu desejasse provocar a morte de
um dos seus homens. Mas, caso pense, eu não o culpo. Pode me matar, cortar a minha
garganta, não me importo. Vou continuar amando-o, mesmo enquanto você levantar e
baixar a faca, até o último instante. Eu o amo, Jason. Pelo amor de Deus, acredite em
mim.
Ele se manteve impassível, olhando para o seu rosto molhado e de expressão
infeliz.
— E por que eu deveria acreditar nas suas palavras, Bárbara de Gyer? Eu a vi hoje
com o seu senhor. Você se atira a ele com a maior liberdade e vem me pedir para eu
acreditar que me ama? Já a deixei me tapear uma vez e seria um grande insensato se a
deixasse novamente.
— Não! — protestou Bárbara, arrastando-se no chão e agarrando-lhe as pernas. —
Eu não tenho escolha a não ser agir dessa forma. Não amo Alexander de Gyer, mas devo
fazê-Io acreditar que sou apaixonada por ele. Eu o amo, Jason. Tentei ir procurá-Io três
noites atrás. Peguei um cavalo no estábulo e fugi para ir atrás de você. Fui apanhada pelo
meu senhor de Gyer. Por favor, acredite em mim, Jason. Eu tentei ir vê-Io.
Ele a agarrou, forçando-a a se erguer.
— Pare com esse choro! Então, tentou ir me procurar? Ainda bem que a apanharam
no meio do caminho, pois eu a teria matado tão logo a enxergasse na minha frente. —
Apontou para a direção da feira. — Volte para o seu amante. O simples fato de vê-Ia me
enoja.
— Jason! — gritou Bárbara ao agarrá-lo pelo braço quando ele começava a se
afastar. — Por misericórdia, me leve com você! Eu lhe suplico para não me deixar aqui. —
Continuou a segurar-lhe o braço, embora ele tentasse se desvencilhar. — Eu serei sua
serva, sua escrava. Passarei a vida tentando recompensá-Io pelo mal
que lhe fiz. Mas, por favor, não me largue aqui para viver sem você.
Ele quase teve de quebrar-lhe os dedos para que o largasse.
— Você está tentando me manter aqui para eu ser capturado pelos homens do seu
amante. Sabe muito bem que ele me matará num abrir e fechar de olhos se me encontrar
desacompanhado em suas terras. E, sem dúvida, você lhe estimulará o ódio dizendo que
eu a violentei. Não! — esbravejou, empurrando-a. — Não vou perder a minha vida por
causa de uma rameira como você!
Tais palavras a deixaram petrificada. Bárbara não se tinha dado conta do perigo
corrido por Jason pelo fato de estar nas terras de Gyer. Recuou até bater de encontro ao
tronco de uma árvore.
— Vá embora, então! Não sei como provar estar lhe falando a verdade, mas não
quero que arrisque a sua vida. Depressa, vá embora! Eu impedirei qualquer pessoa que
apareça por aqui de seguí-lo até você ter tempo de se afastar o suficiente. Juro por Deus!
Numa busca de amparo, pôs as duas mãos para trás e segurou o tronco da árvore.
Através das lágrimas, viu Jason se virar e sumir por entre as árvores.
Ele andou apenas alguns metros, mas, ao ouvir-lhe os soluços, parou. Crispou as
mãos enquanto se classificava como o mais perfeito idiota na face da terra.
— Maldição! — praguejou ao dar passadas largas para onde Bárbara estava.
Tomou-a nos braços e, com as mãos no seu cabelo, vergou-lhe a cabeça para trás.
Então, beijou-a de maneira brusca e apaixonada. Ela já o enlaçava pelo pescoço quando
Jason a largou. Antes de abrir os olhos, ele já desaparecia nas sombras.
Durante muito tempo, Bárbara permaneceu onde estava. Chorava muito e tinha a
sensação de que olhos ocultos a vigiavam. Seria horrível se John viesse a saber do que
havia se passado entre ela e Jason de Burgh. Não temia o que pudesse lhe acontecer. Se
fosse apenas a sua vida que corresse perigo, ela estaria pronta para receber o castigo do
irmão, mas havia a de outras pessoas para levar em consideração. A vida de Alexander e
a de Lillis ficariam expostas. John jamais especificara os detalhes do plano, porém,
Bárbara tinha uma idéia das pessoas que poderiam frustrar-lhe o esquema.
Acabrunhada, mas cheia de amor, ela continuou lá com o olhar fixo no lugar onde
Jason havia desaparecido. Ele tinha todos os motivos para odiá-Ia e nenhum para admirá-
Ia. Todavia, sentia-se determinada a provar que valia alguma coisa. Iria convencê-Io do
seu amor por ele e do quanto poderia satisfazê-Io. Sabia muito bem como iria agir.
Aos poucos, Bárbara foi deixando de tremer e se acalmou. Enxugou o rosto e
respirou fundo várias vezes. Logo, os homens de Alexander apareceriam à sua procura.
Endireitou o cabelo e a túnica. Depois, com um falso sorriso, tomou o caminho de volta
para a feira.

CAPÍTULO XVII
Quando Lillis acordou, era tarde demais. Alexander já tinha se deitado ao seu lado.
Tentou desvencilhar-se do abraço, mas ele a manteve com firmeza.
— Não — protestou ela numa voz sonolenta, esmurrando-o com ambas as mãos.
Ele segurou-lhe os pulsos acima da cabeça e, com o corpo nu sobre o seu,
subjugou-a.
— Acalme-se, minha mulher — murmurou Alexander, usando o peso do corpo para
mantê-Ia imóvel. — Tenho algo para lhe dizer e não vou embora até fazê-Io. Acho melhor
se aquietar e me ouvir.
— Nestes últimos dias, você já me encheu os ouvidos com o seu palavreado inútil.
Estou cansada de lhe dar atenção. Por que não me deixa em paz?
— Não consigo. E você vai me ouvir, pois, caso contrário, não irei embora. Sabe
muito bem o que vai acontecer se eu continuar aqui deitado sobre você — provocou ele
com um sorriso malicioso.
Furiosa com a impossibilidade de empurrá-Io, Lillis o encarou.
— Por que veio aqui? Continuo ouvindo a música da feira. Não me diga que a sua
querida Bárbara cansou-se de dançar e não quer mais distraí-lo com a sua adorável
companhia.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Não. A minha prima continua afável e com ótima disposição, obrigado. Se eu não
a conhecesse bem, minha querida mulher, diria que está com ciúme.
Lillis soltou uma exclamação de raiva e retorceu-se sob ele.
— Seu desgraçado mesquinho! Se veio para me dizer isso, já ouvi. Pode ir embora!
Tenho certeza de que a sua meiga e preciosa Bárbara o aguarda com impaciência.
Alexander prensou-a com mais força, aquietando-a.
— Não vim dizer isso. Deixei Bárbara na feira sem a mínima intenção de voltar para
o seu lado.
A afirmativa a fez fitá-Io com desconfiança. Alexander tornou a sorrir e observou-lhe
as feições como se quisesse memorizá-Ias para sempre. Numa voz mansa, começou a
falar:
— Passei o dia inteiro tentando não pensar em você. Eu queria continuar bravo,
lembrar as palavras que dissemos um ao outro de manhã, me convencer de que tinha me
tratado injustamente. Mas eu só podia pensar, Lillis, em como você é linda, como me faz
rir com facilidade, como me provoca uma sensação boa quando está entre os meus
braços. Tentei apreciar a companhia de Bárbara, mas desejava a sua. Ela é tudo o que
um homem pode desejar: meiga, linda e atenciosa. No passado, ela me fazia sentir como
se fosse o homem mais feliz do mundo. Mesmo assim, hoje eu não queria ficar ao lado
dela nem por um momento. Ansiava por estar com você, Lillis. Apesar da sua raiva e do
seu mau humor, eu a queria junto de mim. Não é estranho?
Fitaram-se em silêncio, perscrutando a expressão um do outro.
— Isso é amor, Lillis? — ele murmurou. — Será?
— Não sei.
— Eu também não — disse Alexander na mesma voz suave. — Mas acho que é
amor. Sinceramente, acho, mas não sei com certeza. Não sei como é o amor, jamais o
senti. Não como imaginava que deveria ser, nem mesmo por Bárbara. Agora, estou com
medo de confundir sentimentos tão fortes. Será o suficiente, Lillis? Seja o que for, será o
suficiente?
Lillis podia ver a aflição e a súplica nos olhos verdes.
Sentindo a raiva se dissipar, sussurrou:
— Alexander, não sei o que é e não posso garantir que seja o suficiente amanhã,
mas esta noite, é.
Um brilho intenso substituiu a tristeza nos olhos dele.
— Pois que seja o suficiente para esta noite. Amanhã será um novo dia — disse ele.
Baixou a cabeça para beijá-Ia, e Lillis o recebeu de corpo e alma.
Porém, a manhã do dia seguinte não trouxe soluções. Alexander passou a noite
fazendo amor com a mulher com um desespero fervoroso, mas, ao clarear do dia, sentiu-
se deprimido com a perspectiva de levá-Ia a Wellewyn. Não tinha a mínima vontade de
fazê-Io, e muito menos de rever Jaward. Ao se levantar a fim de ir para o próprio quarto,
abafou as emoções amorosas despertadas por Lillis.
Ela, percebendo-lhe o retraimento, voltou a se enraivecer. Nada havia mudado entre
eles. O marido, finalmente, ia levá-Ia a Wellewyn, mas a forçaria a voltar para Gyer, onde
continuaria sendo a prisioneira dele. Não podia mais alimentar a esperança de poder ir
para casa. Ficaria presa ali para sempre.
Tomaram o café da manhã em silêncio. Alexander tinha pedido a Willem para
acompanhá-Ios a Wellewyn, mas Hugh e Hugo o surpreenderam por se levantarem cedo
e aparecerem também para a refeição matinal. Apenas os cinco sentavam-se à mesa
longa no tablado, pois os outros ainda não estavam em pé. Os homens de Alexander, que
os acompanhariam na longa cavalgada, alimentavam-se sentados às mesas de cavalete
um pouco mais abaixo.
Hugh quebrou o silêncio pesado.
— Alex, Hugo e eu queremos ir a Wellewyn com você e Lillis.
— Não! — trovejou o irmão sem, ao menos, lhe relancear o olhar.
— Temos os nossos próprios cavalos e estamos prontos para ir — argumentou
Hugo.
— Não — repetiu Alexander sem levantar o olhar do prato.
Hugh bateu o punho cerrado na superfície de madeira com a força e a raiva típicas
de um adolescente de quinze anos. Pondo-se em pé, enfrentou o olhar surpreso dos
outros.
— Vá para o inferno, Alex! Hugo e eu queremos ir a Wellewyn com Lillis e pronto. Se
você não deixar, nós iremos do mesmo jeito um pouco depois.
Lillis ficou perplexa diante da atitude de Hugh. Os olhos dele faiscavam ao encarar
os do irmão mais velho. Percebendo que Alexander levantava-se, virou-se para ele e viu-
lhe a expressão de violência. Contudo, não chegou a saber o que o marido pretendia
dizer a Hugh, pois foram interrompidos pela entrada intempestiva de um dos guardas do
portão.
— Meu senhor de Gyer — anunciou o homem. — Sir Jason de Burgh, o senhor de
Dunsted, aproxima-se do castelo.
Todos os olhos volveram-se para ele e, então, Willem trocou um olhar rápido com
Alexander. Em seguida, os dois, seguidos por vários homens da outra mesa, correram até
a porta do salão e saíram para o pátio interno.
Lillis viu-se ladeada por Hugh e Hugo.
— Não tenha medo, Lillis. Não deixaremos De Burgh lhe fazer nenhum mal —
garantiu Hugh.
— Isso mesmo. Nós a manteremos em segurança acrescentou Hugo.
Ela quase riu.
— Não tenho a mínima razão para temer Jason de Burgh. Vamos até a janela para
ver o que está acontecendo.
Mas, no momento em que desceram do tablado, a porta do salão abriu-se
novamente.
Alexander foi o primeiro a entrar. Vinha seguido por cinco estranhos e por Willem. O
semblante do marido estava bem sombrio, percebeu Lillis ao observá-Io com curiosidade
enquanto ele percorria o olhar pelo aposento. Ao vê-Ia, a expressão dele tornou-se mais
sombria ainda. Aproximou-se com a mão estendida, e Lillis colocou a sua sobre ela a fim
de ser conduzida até o grupo de homens.
— Esta é a minha mulher, Lillis Baldwin, a senhora de Gyer.
Ela curvou a cabeça e recebeu vários cumprimentos silenciosos. Em tom de
desagrado, Alexander continuou:
— Minha senhora, quero apresentar-lhe Jason de Burgh, o senhor de Dunsted.
Um homem muito atraente, com cabelo negro e longo, curvou-se ligeiramente. Os
olhos azuis, destacando-se na pele morena, a fitaram com intensidade. Ele era grande,
musculoso, o tipo de homem forte e bonitão com o qual as mulheres costumavam sonhar.
Então, esse era o homem que teria sido o seu marido.
Ele aproximou-se mais de Lillis, tomou-lhe a mão e a beijou delicadamente.
— Ah, esta é uma crueldade sem limites, Alexander Baldwin. Você já me desferiu
vários golpes no passado, mas este é o pior de todos, o de privar-me de ter uma esposa
tão linda. — Sorriu para Lillis. — Nossos filhos teriam olhos azuis, minha senhora —
comentou sem esconder o que pensava. — Infelizmente, jamais ficaremos sabendo de
que cor seriam os seus cabelos.
Como nunca houvesse ouvido palavras de natureza tão íntima, pronunciadas por um
estranho, Lillis ficou chocada e não conseguiu dizer nada, apenas fitá-Io. Alexander,
entretanto, tirou-lhe a mão da de Jason de Burgh.
— Pare de molestar a minha mulher, De Burgh. Diga logo a razão da sua visita.
Sabe que não é bem-vindo à minha casa — disse ele, puxando Lillis para o seu lado.
De Burgh assentiu com um gesto de cabeça e assumiu um ar solene ao dirigir-se a
Lillis outra vez.
— Lamento conhecê-Ia numa situação desagradável, minha senhora. As notícias
que lhe trago não são boas. — Notando o número de pessoas à volta que os observava e
ouvia, virou-se para Alexander: — Talvez pudéssemos conversar com mais privacidade.
Ao ouvi-Io, o coração de Lillis disparou. Se Jason de Burgh queria lhe falar em
particular, as notícias deveriam ser, de fato, muito ruins. De repente, sentiu-se fraca, com
o corpo trêmulo. Virou-se para Alexander em busca de apoio. A maneira com a qual ele a
amparou, como se temesse um colapso seu, revelou a natureza das notícias muito antes
de qualquer palavra ser pronunciada. Numa voz fraca, murmurou:
— Não. Diga o que tem a dizer aqui mesmo. Diga depressa.
— Lillis, talvez seja melhor irmos até o meu escritório — sugeriu Alexander em voz
suave, mas que soou muito alta aos seus ouvidos.
— Não! — protestou gritando. — É sobre o meu pai, não é?
Jason de Burgh a fitou com ar de impotência.
— Não é? — insistiu Lillis lutando contra a histeria que ameaçava dominá-Ia.
Ele aquiesceu com um gesto de cabeça e baixou o olhar.
— Ontem à noite, ele foi encontrado morto, ou melhor, assassinado na cama. Um
dos criados de Wellewyn foi a Dunsted me avisar. Ele teria vindo diretamente informá-Ia,
mas teve medo de ficar preso em Gyer.
— Assassinado! — Lillis apertou o rosto de encontro ao peito de Alexander. —
Assassinado! Ai, meu Deus! Meu pobre pai!
Alexander a estreitou entre os braços.
— Meu amor, deixe-me levá-Ia para o quarto. Lillis sacudiu a cabeça e desvencilhou-
se dele. O seu
olhar desvairado o fez estremecer.
— Você! — gritou ela fora de si. — Você fez isso! Assassino!
— Lillis, querida — começou Alexander tentando segurá-Ia.
Ela, porém, recuava fitando-o com expressão de horror. Não conseguiu dizer mais
nada, e o rosto tornou-se lívido. Sacudiu a cabeça para as mãos estendidas dele e então,
pela primeira vez na vida, Lillis desmaiou.
Ao voltar ao salão, meia hora mais tarde, Alexander surpreendeu-se ao encontrar
Jason de Burgh e os seus homens ainda no castelo. Ele tinha levado Lillis para o quarto e
ficado lá enquanto tia Leta e Edyth permitiram. Quando elas o forçaram a sair, alegando
que não seria bom se Lillis o visse ao recuperar os sentidos, não protestou. Estava se
sentido preocupado e com grande sensação de culpa. Se não fosse por isso, não teria
obedecido. Nesse estado, ele não conseguiria se defender da braveza da tia e da criada
de Lillis.
— Por que ainda se encontram aqui? — perguntou ele a De Burgh, que, de perto de
uma das lareiras, olhava com expressão sombria para o lugar onde Bárbara sentava-se,
ao lado das damas.
— Quero falar com você — respondeu o outro com ar indecifrável. — Há, se não me
falha a memória, o assunto da noiva para discutirmos. Recebi uma carta, de um dos
representantes do rei, dizendo que, em troca da aprovação real do seu casamento com a
minha noiva, você tinha concordado em me dar a mão de uma das suas primas.
— É verdade. Concordei com esse ponto — admitiu Alexander.
—E?
—E o quê?
— Quando devo esperar receber, ou pelo menos, saber quem é a minha noiva?
Alexander não escondeu a impaciência.
— Não tenho tempo para tratar desse assunto agora, estando preocupado com a
minha mulher passando mal lá em cima. Agora, vão embora. Mas tomem cuidado para
não matar mais cabeças de gado ao deixar as terras de Gyer. O meu povo ainda está
furioso com a sua última visita — acrescentou, raivoso.
Jason de Burgh ficou vermelho.
— Já ouvi essa acusação antes. Eu e o meu povo não temos nada a ver com a
morte do tal gado. Não faço idéia de quem praticou essa barbaridade, mas não foi
ninguém de Dunsted. Vivemos muito ocupados nos defendendo dos seus ataques para
praticar os nossos.
— Ora essa! O meu povo não se rebaixaria ao pisar naquele lamaçal imundo que
você chama de terra. Fala em viver ocupado, mas não sabe o que é trabalhar. Eu poderia
ensinar-lhe muita coisa a esse respeito. Por sua causa e de Jaward, não tive um
momento de sossego nos últimos seis meses. E só Deus sabe o quanto o meu povo
sofreu.
A confusão de Jason tornou-se evidente. Tornou a olhar para Bárbara enquanto
falava:
— Imagino que vai negar ter algo a ver com o incêndio em Dunsted poucas semanas
atrás. Aquele no casebre de um arrendatário e que custou a vida de um homem.
— Que mentiras são essas? Não tive nada a ver com o tal incêndio! — esbravejou
Alexander.
— Tenho várias flâmulas suas, deixadas no local, para provar a sua culpa.
Naturalmente, foram largadas lá com o propósito de contar vantagem.
Alexander mostrou-se tão teimoso quanto Jason.
— Eu também tenho várias flâmulas suas encontradas junto ao gado morto.
— Eu não tive nada a ver com essa matança.
— E eu não tive nada a ver com o incêndio do casebre em Dunsted.
Encararam-se com olhar entre furioso e perplexo. Finalmente, Alexander declarou:
— Alguém está nos fazendo passar por bobos, De Burgh.
— Tem razão, Baldwin — concordou Jason, voltando a olhar para Bárbara. —
Alguém está nos fazendo passar por bobos. Como vamos solucionar esse enigma?
Alexander sacudiu a cabeça.
— Não sei, mas agora não tenho tempo para pensar nisso. Preciso cuidar da minha
mulher. Só daqui a alguns dias, imagino, poderemos conversar sobre isso. Talvez eu o
tenha julgado mal — Alexander disse ao massagear o pescoço com ar desanimado. —
Talvez eu tenha interpretado mal uma porção de coisas. Deixe-me ajudar a minha mulher
a enfrentar a sua perda e, então, resolveremos as questões entre os nossos povos.
— Está bem, Baldwin, eu lhe darei algum tempo. Palavra de honra — garantiu
Jason.
Os dois homens apertaram-se as mãos com ar solene, e os companheiros de Jason
prepararam-se para ir embora
— Aquela moça lá — disse Jason com um gesto em direção a Bárbara. — Aquela de
cabelo vermelho. Ela é
sua prima, não é?
Desconfiado, Alexander respondeu:
— Sim, lady Bárbara é minha prima, embora distante. Temos um trisavô em comum.
— Mas continua sendo sua prima, não importa em que grau. A minha noiva não será
uma das suas primas?
Alexander semicerrou os olhos.
— Será, mas...
— Aquela ali está livre para se casar, pois era a sua noiva, certo?
— De Burgh... — advertiu Alexander.
— Ótimo! — exclamou Jason batendo com as luvas na palma da mão. — É aquela
ali que eu quero. Vou escrever imediatamente ao rei requerendo-lhe a aprovação. Diga à
sua prima que virei cortejá-Ia tão logo você me dê permissão. — Sorriu ao ver a
expressão exasperada de Alexander e acrescentou: — Tenha um bom dia, Baldwin.

CAPÍTULO XVIII
Era um dos momentos mais sossegados do dia, bem à tardinha e perto do
escurecer, um pouco antes da hora do jantar. Em pé diante de uma das janelas do quarto,
Lillis dobrava o bordado enquanto olhava a chuva incessante.
— Provavelmente, vai continuar chovendo amanhã comentou Alexander, que, do
lado da lareira, observava
a mulher. — Você deveria, pelo menos, esperar que o tempo melhorasse.
— Não, iremos amanhã — disse ela com suavidade, mas firmeza também.
— Como queira.
— Obrigada, Alexander — Lillis murmurou, virando-se para não fitá-Io.
Em seguida, guardou o bordado na mala que estava arrumando.
— Tem certeza de não querer levar lady Edyth com você? Não vai ficar muito
solitária sem a companhia dela?
Lillis tentou engolir o nó que se formava na sua garganta e admitiu:
— Sem dúvida. E muito. Mas as crianças precisam dela muito mais do que eu. Não
poderia levá-Ia comigo e privar Candis e Justin das suas aulas. — Apertou os lábios
trêmulos e, quando voltou a falar, foi com voz fraca: — Você não arranjaria um preceptor
para substituí-Ia, acredito.
— Tem razão. Seria impossível.
Por alguns instantes, ficaram em silêncio enquanto Lillis continuava a dobrar as suas
roupas. Finalmente, Alexander disse:
— Não haverá mulher alguma para lhe fazer companhia em Wellewyn, exceto a
cozinheira e a criada que você permitiu que eu contratasse. Por que não me deixa
também lhe providenciar alguma dama de companhia?
Ainda virada de costas, Lillis sacudiu a cabeça.
— Não, Alexander. Já disse que não há necessidade de você fazer mais do que já
fez. A sua bondade para com o povo de Wellewyn passou dos limites, especialmente
levando-se em consideração o que ele sofreu nas mãos do meu pai. Eu lhe sou muito
grata. Jamais me atreveria a pedir algo mais.
Alexander não conteve uma exclamação de irritação.
— Não fiz mais do que cumprir a minha obrigação como o novo senhor de Wellewyn.
E até agora foi muito pouco. Aliás, nada em comparação ao que pretendo fazer no futuro.
— Está sendo muito modesto, Alexander. Afinal, você salvou o povo de Wellewyn da
fome e da morte quase certa. Mandou alimentos, roupas e tantas outras coisas para as
pessoas enfrentarem o inverno. Além disso, foi generoso a ponto de providenciar
pedreiros e marceneiros para consertar as casas. Isso sem falar em lavradores para dar
um jeito nas terras. Depois de viver sob a mão pesada do meu pai, todos devem
considerá-Io um deus vindo diretamente dos céus.
— Fico contente se a agradei — resmungou ele. Queria apenas que me deixasse
mandar mais criados com você. Uns poucos.
— Não, Alexander — Lillis disse ao aproximar-se da arca aberta e ajoelhar-se a fim
de tirar as roupas de
dentro. — Estou acostumada a cuidar de mim mesma e de outras pessoas. Esta
temporada passada em Gyer me deixou mimada demais, eu acho. Preciso me esforçar
para não ficar preguiçosa e contente em demasia. Quanto à companhia, não se preocupe,
pois vou contar com a dos gêmeos e a de Willem.
— Ah, sim, Willem. Já é alguma coisa — resmungou Alexander, andando de um lado
para o outro e massageando o pescoço.
Vários dias atrás, ele havia mandado o irmão para Wellewyn a fim de administrar o
castelo. Na ocasião, tinha lhe parecido uma boa idéia separá-Io de Lillis, que, mais e
mais, o procurava em busca de consolo e companhia. Mas na véspera, depois de um mês
da sua tristeza profunda e dos seus silêncios prolongados, quando ele se vira forçado a
libertá-Ia, Alexander lamentava ter mandado Willem para Wellewyn. Agora, Lillis e o irmão
ficariam sozinhos, exceto pela presença instável dos gêmeos. Estes o tinham
surpreendido ao anunciar a decisão de acompanhar Lillis e morar com ela no castelo em
Wellewyn.
— Alexander?
A voz interrompeu-lhe os pensamentos tristes. Levantou o olhar e viu que Lillis o
fitava pela primeira vez desde que entrara ali algum tempo atrás. O seu semblante
angustiado provocou-lhe a tentação de tomá-Ia nos braços e implorar que pusesse um fim
àquela loucura incompreensível para ele. Jamais se sentira tão perdido e confuso na vida.
Isso tinha começado no instante em que havia dado permissão para Lillis ir para
Wellewyn. Não havia restado nada a que pudesse se agarrar ou entender. Ela o amava,
segundo lhe confessara. E Lillis não era mentirosa. Ela o amava e, entretanto, arrumava a
bagagem preparando-se para abandoná-Io. Verdadeiramente incompreensível.
— Alexander — repetiu ela com lágrimas correndo-lhe pelas faces. — Lamento
muitíssimo o que falei naquele dia. O meu comportamento foi horrível.
— Lillis...
— Falei sem pensar — afirmou com um gesto de desânimo. — Perdão se o magoei.
Eu nunca faria isso de propósito.
Desde o dia em que soubera da morte do pai, Lillis não tinha lhe dirigido tantas
palavras quanto essas últimas. Ela mal tinha lhe falado; aliás, com ninguém mais, nem
mesmo com Edyth. Vinha sofrendo em silêncio. A sua dor constituía algo terrível para ele,
mas deixá-Ia ir embora o arrasava completamente.
— Você estava sendo atingida por uma dor imensa — disse Alexander, crispando as
mãos às costas a fim de vencer a tentação de acariciá-Ia. — Eu sabia disso naquela
manhã como o sei agora. Não fiquei ofendido com você.
Ela enxugou o rosto com as mãos e baixou o olhar.
— Você é muito bondoso, Alexander. Obrigada.
— Não me agradeça — ele murmurou, desesperado. — Não suporto isso, nem as
suas lágrimas e a sua tristeza, Lillis. Eu a amo.
Ela cobriu o rosto com as mãos e começou a soluçar. Antes de pensar duas vezes,
Alexander estava ao seu lado e a aconchegava entre os braços.
— Eu a amo — repetiu. — Não me deixe, eu... Deus do céu, Lillis! — No auge do
desespero, apertou-a de encontro ao peito. Temia que a mulher não retornasse para o
lado dele. — Você não pode me perdoar? Diga apenas o que preciso fazer para tudo
voltar ao normal e eu o farei. Dou a minha palavra. Juro por Deus.
Lillis sacudiu a cabeça apoiada no peito dele.
— Se eu não encontrar uma maneira de aceitar a realidade, ela estará sempre entre
nós. Havia tantas coisas que eu desejava dizer ao meu pai, o quanto eu o amava, embora
todos o odiassem. Eu planejava ajudá-Io de tantas formas. Mas ele se foi, se foi. —
Falava como se quisesse convencer a si própria, e não ao marido. — Preciso de um
pouco de tempo, Alexander. Se você exigir, ficarei, mas a realidade permanecerá entre
nós, não importa o quanto eu lute contra isso.
— Eu sei, eu entendo — disse ele reconhecendo a verdade.
Os olhos de Lillis, antes, enchiam-se de amor e de desejo. Agora, havia neles
tristeza, desconfiança e, às vezes, acusaçôes. Embora houvesse aceitado todos os pe-
didos de desculpa dele, o seu olhar havia permanecido o mesmo. Finalmente, ele se dera
conta de que não mudaria a não ser se a deixasse ir embora.
— Eu provoquei este castigo a mim mesmo. A minha insensatez foi muito grande e,
por isso, mereço ser punido. Acredite, Lillis, nas minhas palavras ao afirmar que queria tê-
Ia levado para visitar o seu pai. Por Deus, duvido que, algum dia, venha a sentir
arrependimento maior.
Ela levantou a mão e o acariciou no rosto.
— Não vamos mais falar dos erros cometidos. Você sabe, Alexander, que eu o
perdoei e que o amo. Se houve alguma insensatez, quem a cometeu fui eu. Por culpa do
meu coração irresponsável, que se recusa a me obedecer e me força a ir embora. Talvez
em Wellewyn eu aprenda a dominá-Io. Tentarei, meu querido, e quando ele se tornar mais
dócil, voltarei para você, caso ainda me queira.
— Haverei sempre de querê-Ia — murmurou, curvando-se para beijá-Ia. — Rezarei
todos os dias para tê-Ia de volta ao meu lado.
— Como eu também, Alexander.
Ele a beijou mais uma vez e, então, perguntou:
— Você mandará me chamar, Lillis? Se o seu coração estiver disposto novamente a
me receber, você mandará me chamar?
Meio trêmula, ela sorriu.
— Sim, Alexander, eu mandarei chamá-Io.
Ele suspirou.
— Nada mais me resta a não ser aguardar o seu chamado. Quando ele chegar, irei
buscá-Ia.
Muitas horas mais tarde e algum tempo depois do jantar ter terminado, Lillis
encontrava-se outra vez diante de uma das janelas do quarto, observando a chuva
incessante.
Ouviu a porta sendo aberta e virou-se. Deparou-se com a única pessoa que não
desejaria, ou esperaria, ver na sua última noite em Gyer. Junto à porta já fechada, pálida
e ofegante, estava Bárbara.
— Que surpresa — Lillis disse baixo demais para ser ouvida.
Nos últimos dias, Bárbara tinha feito questão de manter uma certa distância, o que,
sem dúvida, Lillis havia apreciado. Entretanto, a criatura linda, de cabelo vermelho,
encontrava-se no seu quarto, com uma das mãos sobre o peito e expressão de uma
criminosa sendo perseguida.
— Não tenho muito tempo — disse ela vindo em direção a Lillis. — Queria tê-Ia
procurado antes, mas não foi possível.
Lillis cruzou os braços sobre o peito.
— Que tipo de brincadeira é essa, Bárbara Baldwin? Aviso-a de que não estou com
disposição para assistir a uma de suas encenações.
— Não se trata de encenação! — protestou Bárbara, chegando mais perto. — Você
sabe que John está sempre vigiando os meus passos. Eu não podia deixá-Io saber que
vinha falar com você. Só agora, consegui escapar sem ser vista. — Percorreu os olhos à
volta do quarto e baixou a voz. — Você tem de acreditar em mim, Lillis. Não tenho muito
tempo para contar e explicar tudo o que preciso.
Algo na atitude e no semblante da moça abalou as dúvidas de Lillis. Sabia como
John vigiava a irmã, especialmente depois daquela sua fuga na noite chuvosa.
— Está bem, eu me disponho a ouvi-Ia, mas deve se acalmar primeiro, Bárbara. Não
vou permitir que mal algum lhe aconteça.
— Está sendo muito bondosa, Lillis — Bárbara disse em tom agradecido, ao segui-Ia
até as cadeiras diante da lareira. — Não mereço a sua generosidade, eu sei. Mas espero
me corrigir e não voltar a me comportar de maneira tão mesquinha.
Lillis sentou-se numa das cadeiras e esperou que Bárbara ocupasse a outra. Mas,
para surpresa sua, a moça ajoelhou-se no chão ao seu lado.
— Primeiro, quero lhe mostrar uma coisa — disse esta ao olhar à volta enquanto
tirava uma bolsinha de
couro do bolso e a colocava nas mãos de Lillis. — Abra, por favor.
Lillis levou algum tempo desatando os nós do cordão da bolsinha. Quando
conseguiu, enfiou a mão dentro e tirou um medalhão oval de cerâmica, no qual estava
pintado o retrato de uma lindíssima mulher com cabelo loiro-platinado e olhos azuis e
sorridentes. As mãos de Lillis começaram a tremer.
— Esta é a minha mãe — murmurou, desconfiada. Onde... Como isto foi parar nas
suas mãos?
Sorrindo, Bárbara também olhou para o retrato.
— Sim, é a sua mãe. Ela era linda, não concorda? A minha mãe também tinha a
mesma beleza, mas o seu cabelo era vermelho como o meu. — Ergueu os grandes olhos
verdes para Lillis. — Elas eram irmãs, sabia? Vendo a expressão perplexa de Lillis,
confirmou a revelação com um gesto de cabeça. — É a mais pura verdade. Nossas mães
eram irmãs e nós duas somos primas em primeiro grau. Você olha para o retrato e vê a
sua mãe, mas eu vejo a tia Eleanor.
— Você... você é minha prima?! A minha mãe era sua...
Bárbara tornou a confirmar com um gesto de cabeça.
— Você nunca soube nada a respeito da família da sua mãe, não é verdade? Por
muito tempo, John e eu também não sabíamos da sua existência. Porém, quando mamãe
morreu, papai nos contou tudo. É muito estranho ser mantido à margem da família
quando se é criança, não acha? Não tenho muita certeza sobre as razões pelas quais
nunca a conhecemos, Lillis, mas suspeito que elas tenham algo a ver com o seu pai. —
Bárbara mostrou-se constrangida. — Quando tia Eleanor se casou com ele, provocou a
animosidade da família, que se sentiu ultrajada. Ela foi considerada morta pelo próprio
pai, ou seja, o nosso avô. Ele é um homem muito bravo e ranzinza — contou e
acrescentou ao ver a expressão de Lillis: Ele continua vivo e mais implicante do que
nunca. Quando eu era criança, morria de medo dele. Foi por causa de vovô que o meu
pai concordou em proibir a minha mãe de manter contato com a sua. Isso foi um grande
castigo para ela, pois as irmãs eram muito unidas. Mamãe nunca falou sobre a tia Eleanor
para mim e John, mas papai disse que ela lamentou a separação até morrer. Depois
disso, papai começou a sentir o peso da culpa por mantê-Ias afastadas uma da outra e
por provocar tristeza tão grande à minha mãe. Por isso, ele nos falou sobre a tia Eleanor e
me deu esse retrato. É uma história muito triste, não concorda? Se você e eu tivéssemos
nos conhecido quando éramos crianças, com certeza, teríamos ficado amigas em vez de
rivais.
Se Lillis houvesse sido golpeada na cabeça não ficaria tão aturdida com a revelação
de Bárbara. Boquiaberta, fitou a moça por um longo tempo. A sua vontade era a de não
acreditar. Queria acusar Bárbara de mentirosa por ter inventado uma história ridícula, mas
não conseguia. Em algum lugar profundo da mente, existia a certeza de ter ouvido a
verdade. Com o coração, desejava gritar e abraçar Bárbara numa demonstração de afeto
familiar. Todavia, o bom senso falou mais alto.
— Conte-me tudo, Bárbara. Existe algo mais do que o simples fato de sermos
parentes. Por que só agora me trouxe o retrato? Por que esperou tanto tempo para me
fazer essa revelação? E quanto a John? Ele nunca mencionou nada a esse respeito para
mim, nem para Alexander.
Bárbara sacudiu a cabeça.
— Não tenho tempo para explicar tudo agora, Lillis. John me mataria se soubesse
que eu lhe contei isso. Ele nunca quis que ninguém soubesse a verdade. Não posso dizer
por quê. E não insista para eu fazê-Io, por favor. Quanto a Alex, não lhe diga nada, pelo
amor de Deus. Lutei muito para me decidir a contar para você. Mas, como vai embora de
Gyer, achei que deveria saber. Também quis me redimir do meu comportamento terrível.
Prometa, por favor, que não dirá uma palavra a ninguém.
— Não estou gostando nada disso. Alexander deveria saber — opinou Lillis.
Bárbara empalideceu visivelmente.
— Deus misericordioso! Se você contar para Alex, John ficará furioso. Furioso! Você
não faz idéia de como ele pode ser cruel e vingativo.
— Acalme-se, Bárbara — aconselhou Lillis em voz suave. — Alexander jamais
permitirá que o seu irmão lhe faça mal algum. Você sabe disso muito bem.
— Nada vai adiantar — afirmou Bárbara em pânico. — Não vai adiantar. John
nunca, jamais me perdoará. Por que cedi à tentação de lhe contar? Pensei que pudesse
confiar em você, mas me enganei. A minha vida vai se transformar num inferno.
Mais um pouco e Bárbara começaria a chorar, percebeu Lillis. Isso era uma coisa
que não suportaria mais ver. Resolveu ceder.
— Muito bem, Bárbara, não vou dizer nada por enquanto. Dou a minha palavra. Mas
qualquer dia destes,
quando você se sentir com mais coragem, procure Alexander e lhe conte a verdade.
Sentindo-se aliviada, Bárbara sorriu.
— Farei isso, Lillis. Logo, logo, prometo criar coragem para contar tudo a Alex.
Prometo.
— Ótimo.
— Existe uma outra coisa que preciso lhe contar. Algo que você achará difícil de
acreditar, mas, mesmo assim, trata-se da verdade. Porém, desta vez você tem de me
prometer antes que não contará nada a ninguém.
Lillis zangou-se.
— Bárbara, você está abusando da minha paciência. Ela tem limites.
— Lamento, Lillis, mas é algo muito importante. Prometa não abrir a boca. Você não
vai se arrepender. Desanimada, Lillis suspirou.
— Tudo bem, prometo.
Bárbara sorriu satisfeita.
— Bem, o assunto agora é mais delicado. Você vai encontrar dificuldade em
acreditar na próxima revelação, vai pensar que é invencionice minha, mas não é. A sua
família é um pouco maior do que imagina. Os gêmeos, Hugh e Hugo, por incrível que
possa lhe parecer, são seus meios irmãos. Pondo-me no seu lugar, achei que você
gostaria de saber.
Lillis a fitou, sacudindo a cabeça enquanto dizia devagar: — Você está louca. Sem
dúvida, preciso mandar chamar Alexander.
— Não! É verdade, é verdade! — insistiu Bárbara. Existe um documento provando
isso. Eu vi. Não posso lhe contar como tal aconteceu, ou melhor, não sei; contudo, é
verdade, juro por Deus. Rugh e Hugo não podem ficar sabendo disso. Eles ficariam
arrasados ao saber que Jaward Wellewyn era seu pai, ainda mais que ele morreu. Não
acha?
Pela segunda vez na vida, Lillis sentiu que ia desmaiar.
Tudo o que Bárbara havia contado tinha uma qualidade distinta e surpreendente, o
que tornava difícil decidir se acreditava na moça ou não. Poderia estar dizendo a verdade,
mas, provavelmente, não estava.
Como se lesse a sua mente, Bárbara reagiu.
— Você precisa acreditar em mim. Compreendo que estou exigindo demais, porém,
você deve confiar em mim. Todas as coisas que eu disse e fiz para você, especialmente
naquela vez em que ameacei matá-Ia... só posso esperar que você compreenda como eu
me sentia na época. Foi horrível ser posta de lado depois de tantos anos sonhando em
ser lady Gyer. — Os olhos de Bárbara alargaram-se, e ela sacudiu a cabeça. — Sim, foi
muito, muito difícil para mim.
— Você disse para as crianças que eu era uma bruxa — acusou Lillis.
Bárbara mostrou-se ofendida.
— Ora essa, não fiz por mal, eu estava apenas brincando. Só quis me divertir um
pouco.
— Por que eu deveria acreditar nessas suas histórias? — Lillis indagou em voz seca.
— Você e o seu irmão já mentiram para mim várias vezes. Além do mais, você tem fortes
motivos para querer me ver pelas costas. Assim, ficará com Alexander de uma vez por
todas.
Bárbara fez um gesto negativo com a cabeça e exclamou:
— Não! Eu não amo o primo Alex. Não da forma como amo... — titubeou por um
instante. — Não da forma como amo uma outra pessoa.
Lillis a fitou com desconfiança.
— Quem?
Corando até a raiz do cabelo, Bárbara curvou a cabeça enquanto respondia:
— Jason de Burgh. Estou apaixonada por ele, mas não me pergunte como isso
aconteceu. Não tenho tempo para lhe explicar. — Levantou a cabeça e enfrentou o olhar
firme de Lillis. — Não vim falar com você movida simplesmente por bondade, admito.
Existe algo que quero pedir em troca.
— O quê?
Bárbara tirou uma carta lacrada do bolso e a pôs nos joelhos de Lillis.
— É para Jason e é muito importante. Não tenho jeito de enviá-Ia sem correr o risco
de John descobrir.
— O seu irmão não sabe dos seus sentimentos para com o senhor de Dunsted? —
Lillis perguntou com um leve sorriso.
— Não! Ele ficaria furioso se soubesse. John ainda espera que você e Alex
acabem... — calou-se constrangida.
— Tudo bem, Bárbara — disse Lillis subitamente sentindo pena da moça. — Eu
compreendo, acho. John vem cuidando de você há muitos anos e tinha planos para o seu
futuro. De repente, eles foram por água
abaixo. Pelo tanto que o conheço e através dos seus comentários sobre ele, muita
coisa ficou clara para mim. Na verdade, estou contente por saber que você não ama
Alexander, porque eu, sim.
Bárbara a fitou com olhar radiante.
— Sempre gostei e ainda gosto do primo Alex, mas amo Jason. É muito difícil
explicar. Eu o amo tanto que chega a doer no fundo do coração.
Lillis sorriu.
— Dói mesmo, não é verdade?
— Você me ajudará, Lillis? Mandará entregar a carta para Jason quando já estiver
fora de Gyer e em segurança?
— Mandarei, sim. Pode ficar descansada.
Bárbara sentiu-se aliviada.
— Obrigada, prima. Talvez algum dia, quando você voltar para Gyer, nós nos
tornemos amigas. Até lá, teremos de confiar uma na outra. Por favor, me devolva o retrato
da sua mãe — pediu estendendo a mão.
Lillis levou o medalhão ao peito.
— Deixe-me ficar com ele. Nunca tive nada da minha mãe. Por favor.
Bárbara sacudiu a cabeça e continuou com a mão estendida.
— Impossível. Se quando você for embora daqui eu não tiver o retrato, John
descobrirá que eu lhe contei a verdade. Não posso correr esse risco. Talvez, quando
ficarmos amigas, façamos uma permuta. No dia em que se separaram, nossas mães
trocaram retratos. O da minha mãe deve estar em algum lugar do castelo de Wellewyn.
Tente encontrá-Io, Lillis, pois também quero muito ter o retrato da minha mãe. Mas eu lhe
darei este, mesmo que você não o ache.
Embora com relutância, Lillis devolveu o medalhão. Bárbara o colocou na bolsinha
de couro, amarrou os cordões e a enfiou dentro do bolso.

CAPÍTULO XIX
Com uma das mãos firmada atrás da cintura e a outra no chão coberto de neve, Lillis
impulsionou o corpo e levantou-se. Achava estranho que o simples fato de ajoelhar-se por
uns poucos minutos ao lado da sepultura dos pais provocasse dor no corpo. Mas isso
vinha acontecendo ultimamente. Às vezes, atribuía o mal-estar ao frio do inverno,
acentuado pelas correntes de vento no castelo de Wellewyn tão mal conservado. Outras,
entretanto, indagava-se se a causa não seria bem diferente.
Nesse dia, tinha ido visitar o túmulo um pouco mais cedo do que estava habituada.
Havia ainda muita coisa para ser feita antes de Alexander chegar para o jantar. Ela o tinha
convidado e queria que tudo saísse perfeito.
Perdida em pensamentos, permaneceu em pé, olhando para as flores que acabava
de colocar na lápide. Lembrava-se da aparência do jardim ao longo da muralha interna
nos tempos em que era criança. Ele havia se transformado num matagal horroroso e tão
pouco convidativo que ela nunca se atrevia a visitar o túmulo da mãe. Agora, estava
completamente diferente e transformado num lugar aprazível, mantido por apenas dois
jardineiros. Tinha sido um presente de Alexander, uma surpresa, providenciado nos dias
em que ele passara por Wellewyn a fim de providenciar o enterro do seu pai e tentado
encontrar o assassino. Fora também nessa ocasião que ele havia providenciado auxílio
para os moradores do feudo. Tinha dado ordens aos dois homens para trabalhar no
jardim e mantê-Io lindo em todas as estações do ano. Tudo isso para o seu prazer. Ela
nunca havia sentido tanta alegria e paz como nesse jardim. Até mesmo no inverno frio era
um prazer ficar ali.
Nesse ano, o mês de novembro estava mais frio do que nos outros. Felizmente,
fazia dois dias que não nevava. Lillis sentiu um arrepio e aconchegou mais a capa à volta
do corpo.
— Olá, Lillis.
A voz familiar a surpreendeu e assustou ao mesmo tempo. Virou-se depressa.
— Alexander! Você chegou mais cedo — disse e deu dois passos em direção a ele,
mas parou.
Ele estava mais magro e com ar cansado. Além de pálido, tinha olheiras, porém,
continuava mais atraente do que nunca. Vestia-se com elegância, exibindo roupas de
inverno cor de vinho, a qual lhe ressaltava o cabelo negro e os olhos verdes. Obviamente,
se vestira assim para agradá-Ia.
— Cheguei, mesmo. Não consegui esperar mais. Você não se importa? —
perguntou, fitando-a com seriedade.
— Não, pelo contrário, fico contente. Senti muita falta sua. — Devagar, ela se
aproximou mais até parar bem em frente a ele. — Se eu lhe der um beijo de boas-vindas,
Alexander, você não vai pensar que estou pronta para voltar para Gyer?
— Não — murmurou ele, sacudindo a cabeça.
Com um grande alívio e ansiosa por um contato mais íntimo, Lillis aninhou-se entre
os braços dele. Exigentes, as mãos de ambos encontraram o caminho sob as capas
enquanto os lábios se uniam. Abraçar e ser abraçada por Alexander era perfeito e a fazia
se sentir maravilhada. A boca apaixonada na sua mostrava-se também carinhosa, e Lillis
o beijou, revelando toda a saudade e solidão do último mês.
— Senti tanta falta sua, minha querida — murmurou Alexander, na primeira
oportunidade. — Para mim, parece que se passaram dez anos, e não apenas um mês. Às
vezes, eu tinha de lutar contra a tentação de apanhar a montaria e cavalgar até aqui só
para vê-Ia. — Fitou-a um pouco e a admirou. — Nem posso exprimir o quanto a saudade
me atormentou. Será que não existe a mínima possibilidade de você voltar logo para
casa?
— Não vamos falar sobre isso hoje. Também senti saudade sua, mas ainda não
estou pronta para voltar a Gyer. Se você puder ter paciência por mais algum tempo,
prometo que, quando eu retomar, jamais o deixarei outra vez.
Ele gemeu baixinho, mas a beijou.
— Prometo ser paciente pelo tempo que você pedir. Neste momento, dou graças a
Deus por tê-Ia entre os braços novamente. Apenas isso já recompensa o mês de
sofrimento.
Lillis tomou a mão do marido.
— Sei que está frio, mas você não dará uma volta pelo jardim comigo? Precisa ver o
presente maravilhoso que me deu. Naturalmente, é muito menor do que o seu em Gyer,
mas é lindo e eu o adoro.
Colocando a mão em seu braço, Alexander a conduziu, devagar, pelas alamedas do
jardim.
— Ao seu lado, qualquer jardim é o melhor lugar do mundo, Lillis. Acho que até do
céu. Fico contente por ele lhe dar prazer.
— Nem pode imaginar quanto. Quando estou aqui, penso em você. Isso alivia a
saudade. Não está lindo? Mesmo com a neve? — perguntou ela.
— Está, sim, mas não tem um décimo da beleza da dona dele.
Lillis riu.
— Eu queria que Justin e Candis o conhecessem. Os gêmeos passam um bom
tempo aqui travando batalhas de bolas de neve. Às vezes, Willem e eu temos de fugir
para salvar a pele.
Alexander viu-lhe o sorriso e tentou compartilhá-Io. Imaginava se a mulher também
passeava por ali ao lado do irmão.
— Por falar nos meus irmãos endiabrados, onde andam eles? E quanto a Willem?
Eu esperava uma recepção mais calorosa do que a oferecida pela criada ao abrir a porta
do castelo. Ela olhou para mim e quase desmaiou. Tive de mandar dois dos meus
homens carregá-Ia para a cadeira mais próxima.
— Desculpe, Alexander — disse Lillis com ar contrariado. — Deve ter sido Tildy. Ela
é a nova cozinheira e veio substituir a outra, que quebrou o braço na semana passada. Eu
mesma queria abrir a porta para você, mas o esperava um pouco mais tarde. Aliás, fico
contente por ter chegado cedo. Isso nos dará mais tempo. Willem e os gêmeos foram
passar o dia fora a pedido meu. — Fez uma pausa e corou. — Eu o queria só para mim.
Agora, você já conhece outro defeito de sua mulher. Sou muito egoísta.
Por instantes, Alexander não disse nada. Acariciava-lhe os dedos com a mesma
maneira distraída com que ela o vira fazer nos de Bárbara. Finalmente, ele disse em voz
baixa e vagarosa:
— Ainda bem. Depois de passarmos tanto tempo separados, vai ser uma delícia
ficar sozinho com você, minha querida. Teremos mais liberdade para conversar. E temos
muitos assuntos para discutir.
— Sem dúvida — concordou Lillis, sentindo-se estimulada com a voz morosa e
acariciante dele.
— Mas, afinal, aonde Willem e os rapazes foram?
— Willem foi a Winslow procurar um artesão a fim de encomendar novas pedras
para a moenda. Uma das velhas rachou, e a farinha sai muito irregular. Ele deve voltar
amanhã.
Calou-se em seguida.
— E os gêmeos?
— Os gêmeos? Os gêmeos... Os gêmeos foram... — Parou e virou-se para ele. —
Por mais que eu queira, Alexander, não consigo mentir para você. Hugh e Hugo, apro-
veitando a sua ausência de Gyer, foram até lá pegar, às escondidas, alguns pássaros.
Tentei impedi-Ios, mas não me deram ouvidos. Sinto muito.
Alexander olhou para Lillis e viu-lhe o rosto lindo marcado pela apreensão. Esforçou-
se para não rir. Em sua inocência, ela não desconfiava que os gêmeos, desde a vinda
para Wellewyn, faziam incursões regulares a Gyer. Lillis nem sonhava de onde vinham as
velas de cera de abelha, as garrafas de vinho excelente, os cobertores e as especiarias
importadas. Caso soubesse, ficaria triste, por isso, ele guardou segredo. Para ser sincero,
sentia-se grato aos rapazes. Seus roubos proporcionavam algum conforto para Lillis, que
ele, de bom grado, já teria providenciado, caso a mulher não o tivesse proibido
terminantemente. Inclinou-se um pouco, beijou-a no nariz e depois, na boca. Então, disse:
— Isso é bem típico de Hugh e Hugo. Mas não tem importância. Os pássaros lhes
pertencem, e eles têm o direito de trazê-Ios para cá. Sei que os viveiros do seu pai estão
vazios há bastante tempo. Com as aves, os gêmeos conseguirão caçar presas pequenas
e encher a sua despensa desfalcada. Eu mesmo teria providenciado isso, mas fiquei com
medo de que você devolvesse qualquer colaboração minha.
Apesar do esforço dele, Lillis não disfarçou o aborrecimento.
— Você já fez demais, Alexander. Gastou uma fortuna e tanto aqui em Wellewyn.
Tudo por irresponsabilidade do meu pai. Não pode entender como lamento isso pro-
fundamente? Eu jamais conseguiria fazer o trabalho por conta própria.
Alexander segurou-lhe o rosto entre as duas mãos e acariciou as faces com os
polegares.
— Você é a minha mulher — murmurou e beijou-a num dos cantos da boca. — Eu a
amo. — Virou-lhe o rosto e beijou o outro canto. — É um prazer cuidar de você. Pela sua
felicidade, estou disposto a gastar até o meu último vintém.
Cedendo à paixão sufocada pelos longos dias de solidão, beijou-a profundamente.
Apertava-a de encontro a si e, se não fosse um resto de bom senso, a deitaria ali na neve
e a possuiria.
Lillis, com a cabeça apoiada no ombro dele, estreitou-o entre os braços. Alexander
sentiu-lhe a respiração morna no pescoço. Estava tão rápida e ofegante quanto à dele.
— Lillis, não vou conseguir manter as mãos longe de você. Talvez seja melhor eu ir
embora — disse com voz rouca.
Sentiu-a sacudir a cabeça.
— Não. Não quero que você se vá e sinta como se não pudesse tocar em mim. Sou
a sua mulher, Alexander, e é isso o que quero ser. Não a sua prisioneira, um brinquedo
ou uma propriedade qualquer. — Levantou o rosto e o fitou. — Não o deixei porque me
amava, mas por causa da maneira como me tratava. — Havia lágrimas nos seus olhos,
porém, tentou sorrir. — Não vamos falar nisso. Acho melhor entrarmos. Quero que você
se sente diante da lareira e beba um copo de vinho comigo. Precisa me dar notícias de
Gyer, de tia Leta, de Edyth e das crianças.
Ao ser puxado pela mão, Alexander não resistiu e acompanhou-a. Pouco depois,
encontrava-se sentado numa cadeira velha, em frente da única lareira que ainda
funcionava no salão do castelo de Wellewyn. Lillis tinha desaparecido atrás de um
biombo, em busca do vinho, e ele olhou à volta com expressão. depreciativa.
Alexander já tinha estado ali antes, mas sempre admirava-se de que alguém
pudesse morar em um lugar tão ruim. Até os estábulos de Gyer eram mais habitáveis do
que aquele castelo em ruínas. Aliás, ele não passava de uma casa grande de campo.
Caberiam umas dez dela dentro de Gyer.
Sentiu-se satisfeito com o trabalho executado pelos homens arranjados por ele.
Podia ver os lugares que tinham sido consertados e reconstruídos, tais como o forro e
uma parede rachada. Todas as venezianas haviam sido substituídas. O vento já não
podia invadir o salão. As janelas de Wellewyn não contavam com vidraças como as do
castelo de Gyer, portanto, nos dias de frio ou chuva, não se podia olhar para fora. O
pedreiro e o marceneiro tinham feito um bom serviço. Se conseguissem dar um jeito nas
outras duas lareiras e pô-Ias para funcionar, o salão acabaria esquentando e perdendo o
ar úmido.
Também havia mais alguma coisa diferente no castelo de Wellewyn. Pela primeira
vez, de acordo com as lembranças de Alexander, ele se mostrava imaculadamente limpo.
Lillis, sem dúvida, era a responsável por isso, ele sabia. Mais uma vez, desejou que ela
lhe permitisse arranjar criados para ajudá-Ia. A limpeza do lugar devia ter sido uma tarefa
imensa. Havia palha limpa no chão, as teias de aranha e a fuligem preta da lareira tinham
desaparecido, e o biombo fora esfregado minuciosamente. Ela havia pendurado, nas
paredes, alguns dos seus tapetes bordados e, no cento da mesa, posto um vaso
lindíssimo.
— Já estou de volta, Alexander — disse Lillis ao surgir com dois copos de estanho e
uma jarra por detrás do
biombo. Um bando de gatos miando a acompanhava. Demorei porque quis verificar
se Tildy tinha recebido bem os seus homens lá na cozinha. Você deve ter pensado que eu
havia fugido — acrescentou sorrindo ao entregar-lhe os copos.
Alexander segurou-os enquanto ela os enchia.
— Não, isso não me ocorreu — disse, vendo-a servir o vinho tinto que, sabia, vinha
da sua própria adega. Eu estava admirando as muitas mudanças que você operou neste
lugar. Trata-se de uma nova moradia, reconheço, e bem confortável.
Lillis enrubesceu de prazer, e o coração de Alexander disparou ao ver-lhe a beleza
realçada por isso.
— Acha mesmo? — indagou, esperançosa.
Alexander confirmou com um gesto de cabeça enquanto dizia:
— Com toda a certeza.
Lillis pôs a jarra no consolo da lareira e o fitou com olhar radiante, o que, sem
querer, acelerou mais ainda o coração dele.
— É uma alegria ouvi-Io afirmar isso. Eu esperava que você notasse, mas tinha uma
certa dúvida. Grande parte das melhorias, entretanto, devemos ao trabalho dos seus dois
homens.
Lillis sentou-se numa cadeira ao lado, e ele entregou-lhe um dos copos. Sentia-se
como se estivesse no paraíso tendo Lillis ao lado, novamente à vontade.
— Isso não é bem verdade, meu amor, mas fico satisfeito com a pequena
contribuição deles.
— Os dois conseguiram deixar o lugar habitável outra vez. Eu já tinha me esquecido
do estado lamentável em que o meu pai mantinha o castelo, mas agora ficou mais
valorizado. — Com um certo acanhamento, acrescentou: — Um dia talvez você deixe que
um dos nossos filhos seja o senhor daqui. Ele se sentirá grato por ter uma casa tão bem
conservada.
— Lillis — começou Alexander, tomando-lhe a mão e beijando-a, há tantas coisas
que eu gostaria de lhe dizer hoje e...
Um gatinho alaranjado o interrompeu, pulando-lhe no colo e miando.
— Maldição! — exclamou ele, olhando, atarantado, para o bichinho.
Lillis riu, e Alexander não teve coragem de expulsar o animal do colo. Vendo o
companheiro atrevido bem acomodado, outros gatos resolveram imitá-Io. Lillis não
conseguia parar de rir, e Alexander se viu forçado a levantar-se a fim de se livrar dos
bichanos.
— De onde surgiram tantos gatos? Das outras vezes que estive aqui, me lembro de
ter visto alguns, mas isto é loucura! Você os deixa ficar dentro de casa?
Lillis teve de controlar-se para parar de rir.
— Deixo, sim. Adoro gatos. Quando eu era pequena, queria trazer um da vila, mas o
meu pai não permitia. Ele os odiava. Dizia que o faziam espirrar. Mas quando completei
cinco anos, ele me deu uma gatinha de presente — contou sorrindo com meiguice. — Ela
era uma criatura adorável, branca e cinza, e me cativou completamente. Tão logo ficou
adulta, é claro, começou a dar cria com intervalos regulares. Em pouco tempo, o castelo
ficou cheio de gatos e filhotes de todos os tipos e cores. Coitado do meu pai! Ele
detestava todos e não parava de espirrar. Mas como não queria me magoar expulsando
os bichos de casa, sujeitou-se a eles. — Pensativa, calou-se por um instante. Depois,
disse: — Fiquei surpresa ao encontrar gatos aqui quando voltei. Sempre imaginava que o
meu pai tivesse se livrado deles quando me mandou para Tynedale.
— Talvez os gatos o lembrassem de você — sugeriu Alexander, surpreendendo-se
com a idéia.
Jamais lhe passara pela cabeça que Jaward fosse capaz de qualquer sentimento de
ternura, nem mesmo pela própria fIlha.
— Pode ser — disse ela e, em seguida, perguntou sorrindo: — Você gostaria de
jogar uma partida de xadrez antes do jantar, Alexander? Lembra-se de como jogávamos
em Gyer à noite?
— Ora, se me lembro! Você começava a ganhar de mim com freqüência
assustadora.
— Só quando Willem me ajudava — ela admitiu levantando-se a fim de ir pegar a
única mesa de jogo do castelo. — Mas ele não está aqui hoje, portanto, estaremos em pé
de igualdade. Não me lembro de ter visto as peças antes. Mas também, nunca vi o meu
pai jogar xadrez aqui em Wellewyn. Os gêmeos as encontraram em algum canto por aí.
— Foi buscar as peças. Quando voltou com a sacola de veludo vermelho, esvaziou-a na
mesa e comentou: — São parecidíssimas com as de Gyer, não acha?
Muitíssimo, pensou Alexander, aliás, idênticas. Mas se Lillis estava contente, ótimo.
Os gêmeos poderiam roubá-Io de tudo a fim de atingir esse alvo.
Iniciaram uma partida amistosa, e Alexander foi tomado por uma satisfação há muito
não sentida, ou melhor, desde que Lillis o deixara. Essa euforia permeava-lhe os
músculos e os ossos, deixando-o relaxado e feliz. Não existia melhor lugar no mundo do
que aquele em que se encontrava, sentado em frente da lareira do castelo de Wellewyn,
sorvendo goles de vinho e jogando xadrez com a esposa linda. O seu rosto, do outro lado
da mesa, expressando ora frustração, ora prazer de acordo com os lances do jogo, o
deixava louco de amor. Enquanto jogavam, riam alto, falavam baixo e voltavam a rir nova-
mente. Como deveria, Alexander fez um relatório completo sobre Edyth, tia Leta e as
crianças. Sem hesitação, respondeu-lhe as inúmeras perguntas sobre tudo, desde os
planos para as novas plantações até o que os frades faziam no mosteiro. Em troca, Lillis
relatou os progressos alcançados na aldeia de Wellewyn e a satisfação crescente dos
seus habitantes. Ela contou como os gêmeos, graças ao bom humor e à boa vontade em
ajudar nos trabalhos de reconstrução, tinham se tornado muito populares entre os
aldeões. Segundo ela, Willem tinha provado ser um competente administrador e um
excelente mediador de desavenças, exercendo a justiça com imparcialidade. Com isso,
havia conquistado a confiança do povo de Wellewyn.
Aos poucos, os gatos e os seus filhotes criaram coragem e, no fim de uma hora,
foram se aconchegando. Antes de Alexander se dar conta do que acontecia, o colo estava
cheio de bichanos ronronando. Olhou para Lillis e percebeu que ela estava na mesma
situação, pois lhe sorriu com ar agradecido. Embora quisesse muito, ele não teve ânimo
para empurrar os animais ao chão. Faria qualquer coisa para agradar a mulher. Numa
idéia repentina, vislumbrou uma possibilidade incompreensível. Talvez ele e Jaward
tivessem algo em comum.

CAPÍTULO XX
Com um sorriso encantador, Alexander disse:
— Madame, como me prometeu, o jantar estava delicioso! Meus parabéns.
— Muito obrigada, sir. Para o senhor de Gyer, não poupamos esforços, embora esta
refeição simples não chegue aos pés das servidas no seu castelo.
Ambos riram, divertidos, após esse diálogo em linguagem formal.
— Aceita mais vinho, Alexander? — ofereceu Lillis. Ele estendeu o copo.
— Um pouco. Não quero beber muito mais, pois tenho uma longa cavalgada pela
frente e pretendo me manter na sela.
Lillis sorriu e serviu a bebida. Em seguida, assumiu um ar sério.
— Alexander, quero perguntar algo sobre Hugh e Hugo, caso você não se importe.
Nunca notou alguma coisa diferente neles? Quero dizer, diferente dos seus outros
irmãos?
Alexander riu.
— Claro! Você também notou? Eles são diferentes de qualquer pessoa do meu
relacionamento e não se parecem nem um pouco com Willem, Justin e Candis. Por quê?
Tem algum motivo para pensar que os meus pais os roubaram de ciganos, ou de outra
gente qualquer? Eu lhe garanto que isso não aconteceu. Mas só Deus sabe quantas
vezes eu também tive a mesma desconfiança. Sempre que eles cometiam alguma
barbaridade, eu os observava e dizia a mim mesmo: "Esses endemoninhados não podem
ser meus irmãos. Não podem!" — Deu de ombros e riu. — Mas, naturalmente, são.
Lillis sorriu, meio constrangida, e imaginou se deveria relatar a história contada por
Bárbara. Nas últimas semanas e quase sempre na companhia dos gêmeos, tinha
pensado muito no assunto. Poderiam eles, de fato, ser seus meios irmãos? A idéia
parecia inverossímil, mas precisava admitir que os gêmeos tinham algo do seu pai. Sabia
estar tentando ver as semelhanças, porém, também não podia negá-Ias. O que não
conseguia compreender era o fato de, caso os gêmeos fossem realmente seus meios
irmãos, como eles tinham ido morar em Gyer em vez de em Wellewyn?
— Eles se parecem com a família da sua mãe? indagou.
— Sim, embora tenham herdado o cabelo escuro do nosso pai. Aliás, isso aconteceu
com todos nós, exceto Candis, que escapou com um pouco do avermelhado de mamãe.
Os seus olhos eram verdes e isso explica os meus e os dos gêmeos. Também devem ter
influenciado nos castanho-claros de Candis. O meu pai era bem moreno, como Willem e
Justin. Ele tinha cabelo e olhos pretos. Quando criança, eu morria de medo dele por
causa da sua aparência. Isso sem falar na atitude sempre onipotente. — Alexander tirou
uma uva de um prato ao lado e a colocou na boca. — Eu imaginava que ele fosse o
próprio demônio — acrescentou, sorrindo.
O próprio demônio, pensou Lillis. O seu pai também tinha olhos verdes e cabelo
preto. Este havia embranquecido com a idade.
— Deve ter sido um parto difícil para a sua mãe. Por serem gêmeos, quero dizer.
— Ah, foi horrível — concordou Alexander. — Jamais vou me esquecer daquele dia,
não importa o quanto viva. Eu tinha dez anos apenas, e o meu pai estava viajando, como
de costume. O relacionamento de ambos tinha piorado muito durante a gravidez de
mamãe. Ele foi embora, imagino, para não estar presente na hora do parto, ou para
castigá-Ia por algum motivo.
Ele estendeu a mão e pegou a de Lillis a fim de segurá-Ia no topo da mesa. Por
alguns segundos, permaneceu em silêncio. Depois, prosseguiu:
— Eu me lembro dos gritos de dor e do choro convulsivo de mamãe. Willem,
coitadinho, tinha só oito anos. Morto de medo, se escondeu sob as tapeçarias do salão.
Quando o encontrei, estava chorando e tremendo muito. Em vão, tentei consolá-Io.
Ficamos juntos por um longo tempo ouvindo os gritos. — Com ar pensativo, Alexander
sacudiu a cabeça. — Estranho, mas tia Leta também não estava em Gyer. Não sei por
que, porém, ela não estava.
— Minha pobre mãe! Não havia ninguém para ficar ao seu lado. Naturalmente, lá
estavam as damas de companhia, a parteira e as criadas, mas nem uma pessoa da
família. Os gritos eram horríveis. Eu já não agüentava mais ouvi-Ios. E Willem? Chorava
sem parar. Lembro-me de ficar furioso com o meu pai. Cheguei a odiá-Io naqueles
momentos.
Alexander calou-se. Ambos fitaram-se, e Lillis apertou-lhe a mão de leve. Pouco
depois, ele continuou:
— Finalmente, vi que não suportaria mais aquela espera. Deixei Willem escondido
sob a tapeçaria e subi para o quarto da minha mãe, o seu agora. As mulheres que
estavam lá me mandaram embora, mas eu me neguei a obedecer. Fui ficar ao lado da
cama, e mamãe pegou a minha mão, apertou-a com tanta força que eu não sei como não
a quebrou. Ela se acalmou um pouco e disse que me amava. Depois disso, nada, a não
ser a morte, me tiraria dali. Fiz-lhe companhia durante o resto do trabalho de parto e
sempre segurando a sua mão. Mamãe poderia tê-Ia arrancado do meu braço que eu não
teria me importado. Acredite, ela quase fez isso — acrescentou para, em seguida, beijar a
mão de Lillis. — Naturalmente, ninguém sabia que iam nascer gêmeos. Estavam tão
entrelaçados que, até hoje, ninguém sabe qual dos dois nasceu primeiro. Talvez já
fossem inseparáveis no ventre materno. A minha pobre mãe! Embora estivesse
enfraquecida e exausta por causa do parto, não descansou enquanto não lhe puseram os
bebês nos braços.
O olhar de Alexander tornou-se distante como se revisse a cena que descrevia.
— Desde então, sempre sonhei que, quando nasci, ela tivesse me olhado com a
mesma expressão amorosa dedicada aos gêmeos naquele instante. Ela segurava um em
cada braço e os beijava intercaladamente. O seu rosto estava lindo, tão cheio de
luminosidade. Para mim, ela parecia um anjo. Mamãe me deixou escolher os nomes dos
gêmeos, você sabia? Eu estava sentado na beirada da cama, vendo-a carregar os bebês
quando, de repente, ela me fitou e disse: "Estes são seus novos irmãozinhos, Alexander,
e você vai ter de cuidar deles. Não quer escolher um nome para cada um?" Naturalmente,
eu quis.
Hugh e Hugo me pareceram muito apropriados, embora eu não me lembre mais por
quê. Se os gêmeos não gostam dos nomes, podem culpar a ignorância dos meus dez
anos.
Fitou Lillis, e ela sorriu-lhe.
— Mamãe gostou dos nomes — ele continuou. — Pelo menos, afirmou isso. Talvez
quisesse apenas me agradar, ou estivesse cansada demais para debater o assunto. Mas
eu sempre acreditei que ela havia apreciado a minha escolha. Antes de dormir, mamãe
me deixou carregar os bebês. Eram tão pequeninos! Muito menores do que qualquer
outro recém-nascido. Mais pareciam cachorrinhos do que bebês. Depois, mamãe pediu
para eu ir buscar Willem e deixá-Io carregar as crianças também. Ela mandou dizer-lhe
que o amava e que, quando acordasse, conversaria com ele. Willem foi sempre o
predileto de mamãe. Ela alegava que ele precisava de mais carinho do que eu.
Novamente, Alexander ficou pensativo.
— Mamãe me fez mais uma recomendação antes de dormir. Ela disse: "Prometa
que vai sempre cuidar e amar Hugh e Hugo. Eles não contam com mais ninguém para
isso".
Sacudiu a cabeça e calou-se por mais uns segundos.
— Naturalmente, ela estava exausta e não podia refletia bem. Com certeza, não
sabia o que dizia. Mas mesmo assim, prometi solenemente cuidar e amar os meus novos
irmãozinhos. Lá fiquei eu com os dois bebês no colo, sem saber o que fazer com eles.
Mas mesmo então, Hugh e Hugo já pressentiam a oportunidade para perturbar as
pessoas. Mal mamãe adormeceu, eles começaram a chorar muito alto. — Riu. —
Depressa, entreguei-os à ama para amamentá-Ios. Depois, beijei mamãe e fui buscar
Willem. Coitadinho! Tinha chorado tanto que acabara dormindo e... Lillis, você não está
chorando, está?
Ela estava. Alexander levantou-se e a tomou nos braços.
— Minha querida! Não foi minha intenção fazê-Ia chorar.
— O que seu pai fez? — perguntou ela, enxugando as lágrimas.
— O que o meu pai fez?!
— Sim, quando ele voltou para Gyer. O que ele fez?
— Papai voltou para casa no dia seguinte — respondeu, perplexo. — Apaixonou-se
pelos bebês. Como já contei antes, ele só se importava com os gêmeos e os mimou
completamente. Papai e mamãe resolveram qualquer mal-entendido que houvesse entre
eles e, logo depois, tia Leta também voltou para Gyer. Como todos nós, ela se encantou
com os gêmeos. Mas quem não o faria? Eles eram os bebês mais lindos deste mundo.
— Graças a Deus! — murmurou Lillis.
Alexander ficou absolutamente confuso. Beijou-a na testa e perguntou:
— Porque todos gostavam deles ou porque eram lindos?
— Por ambas as coisas — soluçou ela.
Ele a forçou a levantar o rosto a fim de enxugar-lhe as novas lágrimas com beijos.
— Lillis, não suporto ver você chorar. Por favor, pare. Beijou-a na boca com extrema
meiguice e por um longo tempo, até que as lágrimas parassem e ela o enlaçasse pelo
pescoço. Apoiou o rosto no seu cabelo e abraçou-a com força.
— Quero levá-Ia para a cama e possuí-Ia, Lillis. A menos que você me mande
embora.
Num murmúrio, ela respondeu:
— Eu ia cantar para você primeiro.
— Primeiro?! — repetiu ele, esperançoso.
— Nós não temos menestréis aqui como em Gyer. Eu pretendia tocar o alaúde e
cantar para você primeiro.
A mente de Alexander, geralmente ágil, estava tendo dificuldade em entender as
suas palavras. Mais esperançoso, repetiu:
— Primeiro?
Lillis puxou-o pela mão em direção ao calor da lareira. No meio do caminho,
Alexander parou e tomou-a entre os braços.
— Muito obrigado pelo jantar maravilhoso, minha querida. Eu o apreciei muito, mas
mais ainda a sua companhia.
— Não há o que agradecer, meu amor. Espero que os seus homens também
estejam satisfeitos. Será que eles vão ficar impacientes por esperá-Io tanto tempo?
Dessa vez, Alexander entendeu o significado das suas palavras.
— Os meus empregados não nos interromperão, pois sabem aguardar o tempo
necessário e até serem dispensados. Garanto isso. Mas e quanto à sua criada?
Lillis corou sob o olhar perscrutador de Alexander.
— Eu a avisei que você poderia ir embora só muito tarde da noite. Ela está
preparada para servir comida e bebida para os seus homens enquanto for preciso.
— Ah, além de maravilhosa, você é uma mulher precavida — ele murmurou ao tocá-
Ia nas faces e beijá-Ia de leve nos lábios. — Acho bom cantar logo para mim, meu amor.
Tenho a intenção de amá-Ia até saciar a minha fome e, só então, irei embora. Não quero
sacrificar Tildy e os meus homens por isso.
Lillis não se lembrava de algum dia ter tocado e cantado tão mal. Tinha a impressão
de haver esquecido como se tocava o alaúde. As mãos recusavam-se lhe obedecer as
ordens, e a voz tremia cada vez que encontrava o olhar apaixonado de Alexander. Ela
não conseguia se lembrar das palavras da canção e só pensava na maneira carinhosa de
Alexander lhe fazer amor em Gyer. Tinha a sensação de sentir as mãos e a boca dele
acariciando a sua pele. Sem saber como, continuou até apanhar-se imóvel e calada,
simplesmente olhando para o marido.
Devagar, Alexander aproximou-se, tirou o alaúde das suas mãos e o colocou no
chão. Depois, com o braço à volta da sua cintura, puxou-a de encontro ao peito.
— Gostei muito, minha querida. Obrigado — agradeceu com o hálito morno
soprando-lhe a face.
Encabulada, ela o fitou.
— Onde é o seu quarto? — indagou Alexander, levantando-a no colo.
Lillis firmou-se com os braços à volta do pescoço dele e, por antecipar o que se
seguiria, respondeu meio sem fôlego:
— O primeiro do patamar lá em cima.
Alexander parou na metade do caminho para a escada. Fitou-a e perguntou:
— O quarto do seu pai?
Ela assentiu com um gesto de cabeça e sorriu.
— Não há nenhum outro? — perguntou ele com a testa franzida.
— Outro?! Por quê?
— Um lugar onde nós possamos...
Confusa, Lillis o interrompeu:
— Não! O meu quarto está ótimo. Eu o limpei muito bem e troquei os móveis. A
aparência não lembra mais os tempos do meu pai. Além disso, mantive o fogo aceso na
lareira o dia inteiro. O ambiente deve estar bem confortável.
Alexander continuou parado com expressão desgostosa.
Lillis riu e acariciou-lhe á face.
— Mandei colocar uma nova cama lá e queimar a do meu pai.
Alexander não precisou de mais nenhuma explicação encorajadora. Apressado e
carregando Lillis, subiu a escada, entrou no quarto e, com o pé, bateu a porta com
estrondo.
Muitas horas mais tarde, Alexander continuava deitado na nova cama da mulher.
Sentia-se confortável ali, aconchegando-lhe o corpo úmido e relaxado. Havia muito, ele
não experimentava felicidade tão grande. Lillis aproximou-se mais e bocejou. Alexander
pegou-lhe a mão e a levou aos lábios. Beijou cada dedo e pôs o mínimo na boca. Lillis riu
e puxou a mão.
— Pare com isso! Você é um homem muito faminto, meu querido.
— Hum... Não se preocupe, minha mulher adorável. No momento, eu me sinto
saciado. Daqui a uma meia hora, já não garanto nada.
Sonolento, Alexander bocejou e tentou não pensar que, logo, teria de se separar de
Lillis. Os seus homens deveriam estar imaginando o que teria lhe acontecido. Estava uma
noite escura, e a cavalgada de volta a Gyer
seria longa e cansativa.
— Se alguém me avisasse de que, um dia, eu passaria as horas mais felizes da
minha vida no quarto de Jaward de Wellewyn, eu o acusaria de louco.
— Mas não é mais o quarto do meu pai — protestou Lillis. — Está muito diferente,
não concorda? Eu não o usaria se não o tivesse mudado completamente.
Durante algum tempo, permaneceram em silêncio. Alexander imaginou que Lillis
houvesse adormecido. Afagou-lhe o cabelo e a beijou na testa. Ao mesmo tempo,
desenhava círculos nas suas costas.
— Lillis? — sussurrou.
— Sim?
— Quando você vai voltar para mim?
Ela não respondeu imediatamente. Virou a cabeça no ombro dele e abraçou-o com
mais força.
— Logo, Alexander. Voltarei logo.
— Preciso de você — disse ele baixinho.
— Não vou demorar muito mais, Alexander. Juro que não vou. O tempo que estou
passando aqui em Wellewyn tem sido muito bom para mim. Jamais experimentei tanta
liberdade e sossego. Não existe ninguém para me dizer o que devo, ou não, fazer. Não há
freiras autoritárias, nem guardas me seguindo o tempo todo, ou maridos inflexíveis.
Sorriu-lhe com ar provocador, mas Alexander manteve-se sombrio.
— Não haverá nada mais disso quando você voltar para Gyer. Sabe que estou
falando a verdade. Tudo será como deve ser.
— Eu sei. Será que vamos nos tornar desinteressantes e cansativos como a maioria
dos casais, meu querido?
— Muito mais apáticos e insensíveis. Você ainda não se deu conta, meu amor, de
haver tido a infelicidade de se casar com um dos homens mais desinteressantes e
aborrecidos da Inglaterra?
— Tolice. Jamais conheci um menos apático e insensível, e também mais atraente
do que o meu marido. Se você tem mais inclinação para o trabalho do que para uma vida
inútil, meu amor, existe a sua família para compensar. Os gêmeos, você tem de admitir,
são muito criativos, e o comportamento de Bárbara não pode ser qualificado de apático,
embora seja, com freqüência, aborrecido.
— Não precisa mais se preocupar com a minha prima. Ela não vai continuar
morando em Gyer por muito tempo mais. Concordei em deixar Jason de Burgh cortejá-Ia.
— Não diga! Isso é uma maravilha! — exclamou Lillis, surpresa.
— Concordei, sim, e ela se mostra bem satisfeita. John, entretanto, não escondeu a
desaprovação desse possível casamento. Eu também não estou muito contente com ele.
Mas quero você de volta a Gyer, Lillis, e se De Burgh fIzer uma oferta razoável, o que
provavelmente ele fará, aceitarei, e eles se casarão logo.
Lillis tocou-lhe o rosto com a ponta dos dedos, numa carícia tão leve que ele
estremeceu.
— Isso é muito bom, meu marido, pois eu não quero compartilhar o seu afeto com
outra mulher, caso você a tenha amado ou não. E Bárbara será muito feliz com o senhor
de Dunsted. Tenho razões para acreditar que ela será muito, mas muito feliz.
— Não tanto quanto eu quando a minha mulher voltar para casa — Alexander
declarou. — Sinto tanto a sua falta que me sujeitaria a me sentar, noite e dia, à sua porta,
se ela permitisse.
Lillis riu.
— Você passaria um frio horrível exposto à neve.
— Neve, chuva, granizo, vento, relâmpagos e trovões, até mesmo calor inclemente
não me incomodariam. Eu seria o homem mais feliz na face da terra se pudesse estar
perto dela.
Lillis suspirou.
— Você faz as lisonjas mais lindas que já ouvi na vida, meu amor. Embora falsas,
admito gostar de ouvi-Ias.
Alexander fechou os olhos e sorriu.
— Não são falsas e vêm do fundo do coração — insistiu e bocejou. — Deus
misericordioso, estou tão cansado. Queria não ter de voltar para casa esta noite.
— Você pode ficar aqui, se quiser.
— Eu gostaria muito, mas não seria justo obrigar os meus homens a me esperar a
noite inteira. Eles já devem estar ansiosos para retomar para as suas casas.
Lillis pôs a mão no peito dele como se quisesse impedi-Io de se levantar.
— Vou sentir saudade de você, meu amor — disse ela.
— Vai mesmo?
— Sim, muita.
Alexander rolou o corpo até Lillis ficar sob ele.
— E eu vou ter saudade sua — murmurou e beijou-a.
— Vamos nos amar novamente a fim de a separação ser menos dolorosa. Levarei a
lembrança a Gyer e pensarei nestes momentos para manter a sanidade mental. Caso
contrário, quando você chegar lá, encontrará um marido louco varrido.

CAPÍTULO XXI
— Minha querida, como isto aqui está diferente! — exclamou Edyth, três dias depois,
ao entrar no salão do castelo de Wellewyn. — Eu jamais imaginaria que pudesse ficar tão
agradável!
— Sem dúvida — concordou tia Leta com menos efusividade, enquanto se
aproximava para receber o beijo de cumprimento de Lillis. — Você conseguiu melhorar
bem o aspecto deste lugar. Está muito diferente dos tempos em que Jaward morava aqui.
Pelo menos, de acordo com as antigas descrições de Alexander sobre o castelo de
Wellewyn. Ora, ele já está parecendo habitável. Naturalmente, graças às providências
tomadas por Alexander — acrescentou com um olhar severo para Lillis.
— Tem toda razão, tia Leta. Sem a generosidade do senhor de Gyer, estaria sendo
difícil enfrentar o inverno aqui — concordou Lillis, bem-humorada, ao abraçar e beijar
Candis e Justin. — Ele não só se preocupou com o castelo como também com as casas
da vila.
Tia Leta empinou o nariz e sentou-se numa das duas cadeiras em frente da lareira.
— Muito sensato da sua parte reconhecer a bondade do meu sobrinho.
Lillis aproximou-se de Edyth e a abraçou.
— Ah, minha boa amiga, como é bom revê-Ia. Senti tanta falta da sua companhia.
Mas não posso deixar de ficar contente por você estar cuidando de Justin e Candis. —
Olhou para as crianças. — Vocês estão tratando Edyth bem? Obedecendo direitinho?
— Estamos — responderam os dois.
— São uns anjinhos — aparteou Edyth com olhar carinhoso. — Não é verdade,
meus queridos?
Justin e Candis sorriram para Edyth com expressão amorosa, e Lillis teve de reprimir
o riso. Sabia muito bem que as crianças estavam longe de ser anjos, mas ninguém, nem
mesmo ela, seria capaz de convencer Edyth do contrário.
— Lillis — tia Leta chamou com voz impaciente. Pare com essa conversa tola e
mande uma das suas criadas me servir vinho quente. Quase morri congelada no caminho
para cá.
— Pois não, tia Leta. Será um prazer, e eu mesma vou providenciar a bebida.
Temos poucas criadas aqui em Wellewyn. Edyth, sente-se na cadeira ao lado da de tia
Leta, e vocês, meninos, acomodem-se nas almofadas que eu pus diante da lareira.
Também não temos muitas cadeiras aqui.
Em seguida, saiu para ir buscar o vinho e não demorou a voltar com uma bandeja
grande. Nesta, além da bebida, havia pratos com bolachas e outras guloseimas. Colocou
tudo numa mesinha baixa e sentou-se no chão entre Justin e Candis.
— Eu mesma fiz as bolachas — contou para as crianças ao oferecer-Ihes o prato. —
E o vinho é excepcionalmente bom. Não sei como o meu pai conseguiu manter uma
reserva tão boa.
Serviu primeiro tia Leta, e depois, Edyth. A bebida, aromatizada com especiarias,
fumegava nos copos. Para as crianças, havia trazido canecas de leite quente adoçado
com mel. Só quando todos já bebiam, ela se serviu de vinho.
— Estou tão contente por vocês terem vindo me visitar. Tenho tido muita saudade de
todos.
— Nos também sentimos de você — afirmou Justin. — Quando vai voltar para morar
com a gente? Sabe, nós ganhamos um casal de coelhos.
— Foi Alex quem deu — contou Candis ao servir-se de outra bolacha de amêndoa.
— Pretendo voltar logo. Não contem para o seu irmão, mas estou fazendo planos
para chegar antes do Natal. Vocês acham que ele vai ficar contente?
— Ora, se vai! — exclamou Candis. — Você vai chegar como a acha de Natal,
aquela grandona para queimar na lareira a noite inteira?
Lillis riu.
— Pode ser. Mas vocês precisam me prometer que não vão contar nada ao seu
irmão. Quero fazer uma surpresa.
Com expressão solene e satisfazendo a vontade de Lillis, tanto Justin quanto Candis
prometeram não contar nada. Ela sorriu para tia Leta, que sacudiu a cabeça com ar de
aprovação, dizendo:
— Essa separação entre você e Alexander é a coisa mais ridícula que já vi na minha
vida. Se me perguntasse, Lillis Baldwin, eu lhe diria que você está sendo muito tola. Ora,
o meu sobrinho é um homem excelente e de caráter firme.
— Eu sei, tia Leta — Lillis apressou-se em concordar, querendo pôr fim a um sermão
iminente. — A senhora está certa. Aceita mais um pouco de vinho?
Contrariada, a velha senhora soltou uma exclamação por perder a oportunidade de
externar a opinião quanto ao relacionamento do casal. Estendeu o copo para ser servida
novamente e perguntou:
— Onde estão Hugh e Hugo?
— Por aí — respondeu Lillis de maneira evasiva e olhando à volta como se
esperasse vê-los aparecer por detrás do biombo. — Eu lhes disse que vocês viriam hoje,
mas eles tinham algo para fazer. Não os vejo desde o café da manhã. Quando a fome
apertar, aparecerão.
— Cruzamos com Willem no meio do caminho para cá — contou Justin.
— Ele ia ver Alex — acrescentou Candis.
— Sim, eu sei — disse Lillis, voltando a olhar para tia Leta. — Achei um tanto
estranho, mas ele disse ter recebido, hoje de manhã, uma carta de Alexander pedindo-lhe
para ir a Gyer imediatamente. Espero que nada esteja errado por lá.
— Que eu saiba, não. Aliás, até encontrá-lo na estrada, eu não fazia idéia de que
Willem ia a Gyer esta manhã. Fiquei chocada, lhe garanto. Imagine planejar visitar um
sobrinho e, no meio do caminho, descobrir que ele não estaria em casa nesse dia. Willem
foi logo perguntando o que Alexander queria com ele, mas eu não sabia. Alexander não
mencionou palavra alguma a respeito de tê-Io mandado chamar, nem mesmo quando nos
acompanhou até o portal da vila. Bárbara disse que ele podia estar enganado quanto à
carta ser de Alexander, mas Willem garantiu que era do irmão.
— Bárbara?! — exclamou Lillis, surpresa.
— Ela estava vindo com a gente, mas começou a se sentir mal e voltou — explicou
Justin antes de tia Leta poder fazê-lo.
— Ficou com dor de cabeça — esta corrigiu e, então, encarou Lillis. — Sei que
Bárbara não tinha sido convidada para vir, porém, ela mostrou uma grande vontade de
nos acompanhar. Disse querer saber se você havia encontrado, aqui, algo que ela lhe
pedira para procurar. Achei esquisito, mas Bárbara negou-se a entrar em detalhes. De
qualquer forma, pediu para vir de maneira tão simpática que não tive escolha. Dei
permissão e disse que você a receberia bem.
— Mas é claro — Lillis afirmou. — Lamento que ela não tenha conseguido chegar a
Wellewyn.
— De fato, foi uma pena. Tudo correu bem até nos despedirmos de Willem. Então, a
pobrezinha começou a sentir uma terrível dor de cabeça. Estávamos na metade do
caminho quando ela achou melhor voltar para Gyer. Mandei três dos nossos homens
acompanharem-na e espero que tenha chegado bem. Bárbara anda muito tensa por
causa daquele pavoroso senhor de Dunsted. O homem é um grosseirão, e muito
confiado. Não sei como Alexander permitiu que ele cortejasse uma criatura tão delicada
como Bárbara. Outro dia, eu o vi beijando-a no jardim. Você não faz idéia da cena. Ter-
rível! O homem é um gigante e não deve calcular a força que tem. Fiquei chocadíssima!
Bárbara também, tenho certeza, pois não tinha energia para afastar o bruto. Teve até de
segurar-se a ele para não cair atordoada no chão. — Tia Leta estremeceu visivelmente.
— Você deve dar graças a Deus, Lillis, por não ter se casado com aquele homem
horroroso.
— Dou graças a Deus por ter me casado com Alexander — afirmou Lillis e, após um
segundo, disse: Tia Leta, tenho algo importante para conversar com a senhora, mas
talvez seja melhor não fazê-Io diante das crianças.
No mesmo instante, Candis e Justin protestaram, ofendidos, mas Edyth os acalmou
com palavras carinhosas.
— Do que se trata? — perguntou a senhora, um tanto surpresa.
Lillis largou o copo e procurou algo num dos bolsos.
— Disto aqui — disse ao pôr, na mesinha, um medalhão oval de porcelana. Justin e
Candis curvaram-se para ver o retrato pintado nele. — Era isto, acredito, que Bárbara
falou querer saber se eu tinha encontrado
aqui em Wellewyn. O medalhão estava entre as coisas da minha mãe —
acrescentou, apontando para a peça.
— É Bárbara! — garantiu Candis, rindo.
— Não, minha querida, ela se parece com Bárbara, mas eu acho que é a mãe dela.
Não é verdade, tia Leta? — indagou Lillis.
Com expressão atônita, ela empalideceu visivelmente. Com a mão trêmula, apanhou
o retrato a fim de examiná-Io mais de perto. Depois de um momento, disse com voz
embargada:
— Sim, esta é Madelyne. Madelyne Denys, a mãe de Bárbara e de John. —
Recobrou-se um pouco e sorriu para as crianças. — Ela era sua prima, a mulher de John
Baldwin. Não do primo John que mora em Gyer, mas do pai dele, também chamado John.
Vocês não o conheceram, é claro. John Baldwin era meu primo em quarto grau, e esta
era a mulher dele. É meio complicado, não acham? O parentesco é tão distante. Mas
apesar disso, sempre chamamos John e Bárbara de primos. Vocês entendem, não é,
crianças?
Embora com ar confuso, Justin e Candis concordaram com um gesto de cabeça ao
olhar novamente para o retrato.
Tia Leta prosseguiu:
— John Baldwin casou-se com Madelyne Denys, dos Huntington Denys. Os
Huntington eram de linha nobre, descendentes dos romanos, sabem? E eram pessoas
muito bonitas, todas elas. Ora, o seu primo distante,
John Baldwin, casou-se com esta mulher lindíssima que vocês estão vendo no
retrato, Madelyne Denys. Ela lhe deu, primeiro, John e, depois, Bárbara.
— Ah! — exclamaram as crianças, mais confusas ainda, perdendo o interesse.
Lillis riu, olhou para Edyth e sugeriu:
— Por que não leva Justin e Candis para conhecer o jardim? Acho que eles vão
gostar mais de brincar lá do que ficar aqui ouvindo histórias sem graça. Também poderão
ir ver os meus gatos. Estão num barracão ao lado da porta da cozinha e ficarão contentes
por receber visitas. Há uma ninhada nova de gatinhos, mas vocês precisam tomar
cuidado ao pegá-Ios — advertiu ao vê-Ios correr para a porta, seguidos por Edyth.
— Ai, gatos! — gritou Candis de lá.
— Fique sossegada, não vamos machucar os bichinhos — prometeu Justin.
Lillis esperou até que desaparecessem e, então, virou-se para tia Leta.
— Quero saber tudo — declarou.
Mais trêmula ainda, tia Leta pôs o copo na mesinha.
— Desculpe, Lillis, mas não estou entendendo.
— Está sim, e muito bem. A minha mãe era irmã de Madelyne Denys. Ela se
chamava Eleanor. — O suspiro profundo de tia Leta provocou um arrepio em Lillis. A
senhora precisa me contar tudo.
A velha senhora fechou os olhos e sacudiu a cabeça num gesto negativo.
— Precisa, tia Leta! — insistiu Lillis, inclinando-se para frente e tomando-lhe a mão
entre as suas.
— Não, não posso. Eu fiz um juramento solene. Prometi ao meu irmão que nunca,
jamais...
— Isso não tem mais importância agora. A senhora precisa contar o que sabe ou
correr o risco de, um dia, encontrar-se com Deus e ser acusada de esconder a verdade
daqueles que mereciam conhecê-Ia. Não acha que eu tenho o direito de saber o que
aconteceu entre a minha família e a sua? E quanto a Alexander? E os gêmeos? A
senhora afirma amar a sua família, mas esconde uma verdade importante dela. O seu
irmão era para a senhora, desconfio, o que John Baldwin é para Bárbara. A senhora
sempre se sujeitou às ordens dele, não é verdade? — Ajoelhou-se diante dela. — Eu lhe
suplico, lady Leta Baldwin. Está vendo? Estou lhe implorando para que me revele toda a
verdade.
Através das mãos, sentiu o corpo de tia Leta começar a tremer. Viu-lhe as lágrimas
rolarem dos olhos e correrem pelas faces. Seria paciente. Embora penalizada, precisava
saber a verdade. Permaneceu ajoelhada diante dela, segurando-lhe a mão, até o corpo
parar de tremer e as lágrimas esgotarem-se.
— Você lembra tanto a sua mãe! — tia Leta murmurou finalmente. — Ao vê-Ia pela
primeira vez naquela noite escura, quando os gêmeos a haviam levado para Gyer, pensei
estar vendo Eleanor outra vez. Cheguei a temer que o seu espírito houvesse voltado para
me atormentar. Foi terrível!
Rompeu em pranto novamente, mas Lillis, sem desanimar, continuou a segurar-lhe a
mão. Depois de algum tempo, tia Leta disse:
— Existem fatos que, se forem revelados, irão magoar muita gente. A crianças... a
minha sobrinha e os meus sobrinhos ficarão inconsoláveis.
— Impossível. Isso não vai acontecer — protestou Lillis categoricamente. — Talvez
eles se sintam tristes por algum tempo, mas acabarão reconhecendo ser melhor saber a
verdade do que ignorá-Ia. A senhora sabe ser um grande erro continuar a manter silêncio.
— Mas Candis e Justin são tão novinhos! Eles têm um grande respeito pela memória
da mãe e do pai. Os gêmeos também. Seria crueldade desfazer-Ihes a ilusão tão querida
— argumentou tia Leta.
Lillis cedeu em parte.
— Muito bem. Talvez as crianças devam crescer mais um pouco antes de saber
qualquer coisa. Hugh e Hugo, entretanto, já são quase adultos e têm o direito de saber
tudo a respeito próprio, como eu também o tenho de ser informada sobre os meus pais.
Quanto a Alexander e Willem, não preciso dizer que têm idade mais do que suficiente
para se inteirar da verdade. Agora, tia Leta, me conte tudo.
Derrotada, a velha senhora fechou os olhos e concordou com um gesto de cabeça.
— Está bem. Se você quer saber a verdade e, como disse, tem esse direito, vou
revelá-Ia. Para ser franca, vai ser um alívio muito grande me livrar desse segredo
guardado há tantos anos. Ele tem sido um peso imenso. Mas primeiro, me sirva mais
vinho. Preciso criar coragem. E então, contarei a história terrível.

CAPÍTULO XXII
— Durante uma época — começou tia Leta pronunciando cada palavra devagar e
com cuidado — muitos, muitos anos atrás, o seu pai e o meu irmão eram bons amigos.
Na verdade, eram grandes amigos e tão chegados como se fossem irmãos. Naquele
tempo, havia um bom relacionamento entre Gyer e Wellewyn. Dunsted, naturalmente, já
era uma pedra no sapato do meu pai por causa da questão de terras, mas com Wellewyn
vivíamos em bons termos graças à amizade entre o meu irmão e o seu pai. O meu irmão,
cujo nome de batismo era Charles, e Jaward já eram amigos inseparáveis muito antes de
assumirem as responsabilidades das suas propriedades. Wellewyn foi sempre pobre, mas
isso não fazia a mínima diferença para Charles e Jaward. Como fossem amigos desde a
infância, tornaram-se mais chegados durante os anos de treinamento para se sagrarem
Cavaleiros. Durante muitos anos, as duas famílias se visitavam com freqüência.
Tia Leta sorriu com as recordações.
— Quantas festas não comemoramos com os Ryon em Wellewyn. Eu me lembro de
um Natal em que Charles e Jaward trouxeram uma acha de lenha tão grande que mais
parecia um tronco de árvore. Foram precisos seis homens para acomodá-Ia na lareira.
Assim mesmo, só coube uma parte. De hora em hora, precisavam empurrá-Ia mais para
dentro. Levou quase a noite inteira para queimar. — Sacudiu a cabeça. — Nunca entendi
como dois rapazes de dezesseis anos tinham conseguido arrastar aquele tronco até o
pátio. Ah, eram tempos bons e felizes. E Jaward — murmurou em tom saudoso — era um
rapaz tão atraente. Eu me apaixonei por ele, admito, embora isso pareça estranho agora.
Enrubesceu e fingiu examinar as unhas.
— Talvez você não acredite, mas muitas pessoas me achavam linda quando eu era
mocinha. E Jaward, sendo tão amigo de Charles, aparecia sempre em Gyer. Cheguei a
pensar e ter esperança... — Calou-se e sacudiu a cabeça. — Agora, isso não tem mais
importância. Tudo deu em nada. Mas, uma vez, ele me beijou no jardim — confessou,
levantando o olhar, finalmente.
Lillis sorriu com expressão encorajadora.
— Acredito, tia Leta, que ele tenha feito isso. A senhora ainda é uma mulher muito
bonita. Sempre achei. Deve ter sido adorável na mocidade.
Tia Leta sorriu e tornou a desviar o olhar.
— Bem, tive muitos pretendentes, alguns muito bons. Mas papai morreu quando eu
tinha dezesseis anos, e Charles nunca permitiu que nenhum deles me cortejasse. Quando
eu tinha a sua idade, eles começaram a rarear. Com certeza, perceberam que não
adiantaria insistir acrescentou com expressão triste. — Mas Charles foi sempre muito bom
para mim e precisava da minha ajuda, especialmente depois da morte de papai. Naquele
tempo, comecei a tomar conta da casa como faço até hoje. Mesmo depois de ele se casar
com Elizabeth Caldwell, continuei a ser responsável pelos trabalhos domésticos do
castelo.
— Por que, depois de contar com uma esposa para ajudá-Io, seu irmão não permitiu
que a senhora se casasse? — Lillis perguntou.
Tia Leta deu de ombros.
— Não sei. Eu tinha vinte e cinco anos quando eles se casaram e pensei que
Charles me deixaria ir à corte onde seria mais fácil encontrar um bom pretendente, porém
ele não queria nem ouvir falar nisso. Alegava continuar precisando de mim. Em parte,
tinha razão. Elizabeth era uma moça linda, mais nova do que eu, mas não se interessava
nem um pouco em assumir as responsabilidades domésticas de uma moradia tão grande
e cheia de gente. Não pense que ela era preguiçosa advertiu tia Leta com firmeza. —
Elizabeth era uma pessoa maravilhosa, cheia de vida e alegria. Todos a adoravam.
Charles mais do que ninguém. Era um prazer ver os dois juntos comportando-se como
duas crianças felizes, e não como um casal adulto. Elizabeth fIcou grávida logo. Dois
anos após o nascimento de Alexander, ela deu à luz Willem. Charles não era uma pessoa
fácil de se conviver, mas, naquele tempo, vivia sempre bem-humorado. Eu nunca o tinha
visto, nem voltei a vê-lo, tão feliz.
— E quanto a meu pai e minha mãe nesses anos? perguntou Lillis.
— Jaward continuava a ir com freqüência a Gyer. Os pais dele morreram logo depois
do nascimento de Alexander, e ele tornou-se o senhor de Wellewyn. Era um bom senhor,
embora a propriedade continuasse pobre como sempre. Mas Jaward trabalhava muito e
tentava manter tudo em ordem e em dia. Eu me lembro de que, quando o seu pai ia
passar uns dias em Gyer, ele e Charles só falavam em plantio, colheitas e criação de
gado. Elizabeth e eu costumávamos brincar que acabaríamos loucas se ouvíssemos mais
uma palavra sobre irrigação de solo ou coisa parecida — contou rindo. — Na minha opi-
nião, o seu pai sentia um pouco de ciúme do casamento de Charles. Ele se dava bem
com Elizabeth, porém devia ressentir-se de compartilhar o amigo com outra pessoa,
embora Charles continuasse a devotar-lhe a amizade de sempre. O seu pai foi padrinho
de Alexander. Imagino que você não soubesse. Alexander nunca soube. Quando os dois
romperam, Charles conseguiu que tirassem o nome de Jaward do batistério na igreja.
Tomou um gole de vinho antes de prosseguir.
— Chega da minha família. Deixe eu contar agora como o seu pai e a sua mãe se
conheceram. Quando Charles e Elizabeth já estavam casados havia quatro anos e
Alexander beirava os três, recebemos a notícia de que um primo distante, John Baldwin,
ia se casar. Ora, John também tinha se exercitado e sagrado Cavaleiro com Charles e
Jaward, portanto, os três se conheciam bem. Naturalmente, os dois foram convidados
para a cerimônia e ambos resolveram que deveríamos ir todos. Tratava-se de uma
ocasião importante, pois a noiva pertencia à famosa família de Huntington Denys.
Chegamos com uma certa antecedência, ou seja, quatro dias antes do da cerimônia. O
nosso primo nos recebeu com todas as honras possíveis, pois Charles era o cabeça da
família Baldwin. Na noite desse primeiro dia, John ofereceu uma festa para a noiva e a
sua família, que também tinham chegado nesse dia. Jamais esquecerei como foi linda. Os
dias seguintes também foram maravilhosos, claro, mas aquela primeira noite foi a melhor.
Ainda não tinham chegado muitos convidados para o casamento. Havia uma quantidade
indescritível de iguarias e bebidas. Os entretenimentos providenciados por John eram
esplêndidos! A noiva, lindíssima! Todos os membros da família Huntington são bonitos,
até os homens. Eu me apaixonei por quase todos, juro. Mas, apesar de a noiva ser
adorável, os homens, atraentes, a comida, excelente, e as diversões, fantásticas, uma
única mulher presente diminuía o brilho de todos e de tudo. Sua beleza era extraordinária.
Ela parecia um anjo.
— A minha mãe — Lillis murmurou.
Tia Leta assentiu com a cabeça.
— A sua mãe. A criatura mais linda que jamais vi. Não menti quando disse que você
se parecia com ela, mas havia algo que a distinguia da beleza mortal que você possui. A
alvura da pele, como a sua, a destacava do colorido comum das outras pessoas. Todos
os homens na festa, naturalmente, lutavam para obter a sua atenção, mas o pai dela tinha
destacado quatro homens muito fortes para guardá-Ia e acompanhar-lhe os passos.
Dessa forma, ela ficou bem protegida. Sem dúvida, devia ser a predileta do pai. Ele é o
conde de Saint Vincent, o seu avô. Que eu saiba, ele continua vivo e tão perverso como
era. Imagino se ele ficaria contente ao saber que tem uma neta, uma réplica da fIlha
lindíssima a quem renegou de maneira tão humilhante.
— Renegou?! — repetiu Lillis. — Sempre imaginei por que não sabia nada a respeito
da família da minha mãe. O meu pai não falava deles e ficava bravo quando eu
perguntava alguma coisa. Por que o meu avô renegou a minha mãe?
— Ah, minha querida, além de ser uma mulher linda, ela pertencia à família
Huntington. Você não pode imaginar o quanto tal filha poderia ser valiosa para um pai
ansioso por arranjar-lhe um marido poderoso? Através da sua mão, ele conseguiria aliar-
se a qualquer um dos homens mais ricos e nobres da Inglaterra. Porém, ela escolheu o
seu pai, homem pobre e de pouca importância nos círculos da aristocracia. Compreendeu
esse ponto, Lillis? Eleanor escolheu Jaward e entregou-se a ele a fim de não deixar
escolha ao pai, a não ser permitir que eles se casassem.
Lillis a encarou com expressão de incredulidade, e tia Leta confirmou as palavras
com um gesto afirmativo de cabeça.
— Foi assim mesmo. Nunca cheguei a saber como Eleanor conseguiu escapar da
vigilância dos quatro guardas. Depois disso, ficou com a reputação completamente ar-
ruinada. Casaram-se numa cerimônia simples, na capela da família, dois dias após o
casamento do primo John com a sua tia Madelyne.
— Deus misericordioso! — murmurou Lillis.
— Trata-se da mais pura verdade e eu posso entender a sua surpresa. Mas você
não deve se entristecer com isso, pois os seus pais amavam-se muito. Não é possível
descrever a expressão radiante de Eleanor no dia do casamento. E o seu pai! Ele parecia
estar pisando em nuvens! Sim, Lillis, eles se amavam. Nunca duvide disso. O problema
com o casamento deles surgiu com o fato de tantos homens se apaixonarem por Eleanor
e teimarem em não abrir mão do desejo por ela. Um deles foi o meu irmão Charles. Ele
amava Elizabeth de todo o coração, mas, no momento em que pôs os olhos em Eleanor,
deixou de desejar fisicamente qualquer outra mulher. Isso é uma coisa terrível para se
revelar a respeito do próprio irmão, eu sei, mas é a realidade. Charles nunca fez segredo
da paixão que sentia por Eleanor e até a pobre Elizabeth acabou descobrindo.
Naturalmente, foi o fim da amizade dele com Jaward. Passaram anos sem se falar e ver.
Foi uma época horrível. O pior era ter de conviver com Charles e o seu eterno mau
humor. Ele e Elizabeth brigavam constantemente. Durante dois anos, a pobre manteve-se
enclausurada no quarto, recusando-se a ter qualquer coisa com o marido. Finalmente,
chegaram a um acordo e reassumiram o relacionamento de marido e mulher. Mesmo
assim a situação não era boa entre eles. Nos quatro anos seguintes, Elizabeth sofreu dois
abortos e, quando Charles soube que Eleanor tinha dado à luz uma criança, ficou
possesso com a mulher. Entre muitas coisas, acusou-a de não conseguir lhe dar mais
filhos.
Tia Leta enxugou uma lágrima que teimava em turvar-lhe a visão.
— Seis anos após o casamento dos seus pais, as duas famílias, involuntariamente,
foram à corte na mesma época. Como de costume, quando o meu irmão e a minha
cunhada viajavam, fiquei em Gyer a fim de cuidar de
Alexander e de Willem. Os fatos acontecidos em Londres chegaram aos meus
ouvidos através de outras pessoas, mas nunca tive razão para duvidar da veracidade
deles. Segundo me contaram, Charles conseguiu seduzir a sua mãe lá em Londres. Pelo
menos, teve a oportunidade de ficar a sós com ela num quarto. Nunca descobri se ele a
violentou ou se ela se entregou de boa vontade, nem mesmo se houve algo realmente.
Sei com certeza que Elizabeth entrou no quarto e os apanhou juntos. Ficou fora de si. O
seu pai não devia estar longe, pois ele e outras pessoas acorreram depressa ao ouvir os
gritos de Elizabeth. Jaward encontrou a mulher e Charles em circunstâncias muito
comprometedoras. Charles riu na cara do seu pai e anunciou, em alto e bom som, que
finaImente tinha atingido o objetivo do seu maior desejo. Humilhada, a sua mãe apenas
chorava. Se era inocente, não teve a oportunidade de se defender. Jaward não permitiu
que o fizesse. Ele e Elizabeth partiram quase imediatamente de volta para Gyer e
Wellewyn. Em algum lugar do trajeto, eles se consolaram mutuamente.
— E os gêmeos foram concebidos — Lillis concluiu com franqueza desconcertante.
— Exato. Mas já há algum tempo, Charles e Elizabeth não exerciam os seus direitos
conjugais, e ela insistia na paternidade de Jaward. Preparou um documento declarando o
fato e obrigou o seu pai a assiná-Io. Depois, deixou-o sob a guarda de um parente
poderoso para usá-Io como prova contra qualquer atitude de represália que Charles
pudesse tomar em relação a ela e à criança. Caso o meu irmão se atrevesse a tanto, ela
o humilharia com a divulgação do tal documento. O orgulho de Charles era imenso. Ele
jamais se sujeitaria a tornar pública a situação de marido traído, embora houvesse feito
exatamente isso com o seu pai.
Uma onda de raiva inundou Lillis, um ódio imenso por um homem a quem ela jamais
conhecera.
— O que aconteceu à minha mãe? — perguntou baixinho.
Tia Leta tomou um longo gole de vinho e cruzou as mãos trêmulas. Não se atreveu a
olhar para Lillis.
— Eleanor, finalmente, conseguiu voltar para casa. Charles não a levou. Ele teria
feito isso, calculo, se Eleanor houvesse permitido. Ela, porém, não desejava nada com
ele.
— Na mesma ocasião, estava na corte um homem muito bondoso, sir Terence
Simonton, um dos meus pretendentes mais simpáticos. Terence foi sempre uma pessoa
muito fina. Eu acreditei nele quando me declarou o seu amor. Mas Charles negou-se a
recebê-Io quando ele quis pedir permissão para me cortejar. Se pudesse, eu teria me
casado com Terence.
Lillis não se mexeu, nem comentou as palavras da velha senhora.
— Bem, Terence levou a sua mãe para casa e da maneira mais apropriada possível.
Fez questão de que um bom número de damas respeitáveis os acompanhassem pelo
trajeto inteiro e jamais mencionou. o episódio vergonhoso ocorrido na corte.
— O que aconteceu à minha mãe? — insistiu Lillis. Tia Leta calou-se por alguns
instantes, antes de continuar. — O seu pai negou-se a recebê-Ia — contou numa voz
emocionada. — Eleanor tentou conversar com Jaward, mas ele nem sequer a olhava, ou
demonstrava ter consciência da sua presença. Segundo me contaram, ela implorou e
implorou, mas Jaward manteve-se inflexível. Talvez haja mais detalhes, porém, eu os
ignoro. Como o seu pai está morto, não saberemos jamais o que realmente aconteceu
entre eles naquele dia. — Tia Leta não conteve as lágrimas, mas enxugou-as e limpou a
garganta. Finalmente, a sua mãe desistiu de continuar tentando e subiu para o seu
quarto. Durante algumas horas, cantou com você no colo.
Lillis apertou os braços à volta do peito e começou a chorar. Lembranças da mãe a
inundaram. Geralmente, elas eram muito vagas, pois retratavam cenas vistas pelos olhos
de uma criança de três anos. Mas, de repente, tornaram-se claras. Revia a lindíssima loira
entrando no seu quarto e tirando-a da cama para niná-Ia, cantando. Lembrava-se
perfeitamente de como gostava de encher as mãozinhas com o cabelo solto da mãe e
puxá-Io, fazendo-a rir.
Quando tia Leta voltou a falar foi numa voz fraca e cansada:
— Finalmente, ela pôs você de volta na cama, saiu do quarto e subiu ao telhado de
onde se atirou. O seu pai...
Lillis teve a sensação de que a perda acabava de ocorrer, como se mãe houvesse
morrido instantes atrás. Começou a tremer e sentiu-se dominada por uma tristeza sem
limites. Sentou-se no chão, cobriu o rosto com as mãos e chorou.
Tia Leta tentou readquirir um pouco do autocontrole e, com delicadeza, passou os
braços à volta do corpo trêmulo de Lillis.
— Pronto, minha querida, já passou. Foi há tanto tempo, e a sua mãe a amava
muito. Você não deve chorar, Lillis.
De maneira violenta, Lillis sacudiu a cabeça.
— Se ela me amava, por que me abandonou? Numa voz suave, tia Leta
argumentou:
— Em minha opinião, ela não podia viver sem o amor do seu pai. A sua mãe era
uma criatura muito meiga e delicada. Não conseguiu enfrentar a fúria com que ele a
recebeu. Tendo sido uma mulher admirada a vida inteira, não foi capaz de entender tal
reação, eu imagino. Você não deve guardar ressentimentos contra ela, minha querida. O
seu amor materno não pode ser questionado. Ela a amava, Lillis. Jamais a teria deixado
se não sentisse não ter escolha. Você precisa acreditar nisso, pois é verdade.
Lillis chorou baixinho por vários minutos enquanto a velha senhora lhe massageava
as costas. Finalmente, enxugou o rosto e levantou o olhar.
— O que aconteceu ao meu pai?
— Jaward foi o primeiro a achá-Ia. Jamais voltou a ser o homem que era antes. Não
em relação a você. Acredito sinceramente, Lillis, que ele acabaria perdoando Eleanor se
houvesse esperado algum tempo. Ela representava tudo para Jaward. Embora estivesse
muito magoado, ele teria se refeito, tenho certeza.
— Depois disso, o que aconteceu? — Lillis quis saber. Tia Leta recostou-se na
cadeira e suspirou.
— Jaward tornou-se muito introvertido e até um tanto esquisito. Além de você e de
uns poucos criados., não queria ver ninguém mais. Enterrou Eleanor quase
imediatamente, pois o pai dela queria levar o corpo para o túmulo da família. Jaward não
permitiu como também mandou avisar que ninguém aparecesse para o funeral. Informou-
os, em termos bem claros, para ninguém jamais pôr os pés em Wellewyn ou tentar entrar
em contato com você. Disse que preferiria matá-Ia com as próprias mãos a deixar que
eles a tirassem do seu lado. Todos devem ter acreditado em Jaward, porque nunca
tentaram uma aproximação. Nós só o vimos uma vez mais depois da morte de Eleanor.
Ele apareceu sozinho em Gyer, ao anoitecer, seis meses depois do falecimento dela.
Ficou no pátio, sem desmontar, e exigiu falar com o senhor de Gyer. Convidado, recusou-
se a entrar no castelo. De uma das janelas do salão, observei a movimentação. Fiquei
muito chocada com a aparência de Jaward. Ele estava tão mudado. Parecia um homem
idoso, pois o cabelo tinha embranquecido, e o rosto não escondia o desânimo e o
abatimento. Quando Charles saiu para encontrá-Io, a expressão de Jaward foi de ódio
puro, o que lhe aumentou o aspecto deplorável. Charles também tinha passado aqueles
meses numa fúria incontida e não se conformava por Elizabeth estar grávida de um filho
de Jaward.
Tia Leta tomou mais um gole do delicioso vinho.
— Por um longo tempo, minha querida, vociferaram um com o outro. Foi uma cena
tristíssima, ainda mais por causa da amizade que os unira durante tantos anos.
Finalmente, fizeram um tipo de declaração de guerra e, então, aconteceu algo muito
estranho. Em silêncio, fitaram-se como se estivessem chocados pelo que haviam feito.
Todos os que os observavam podiam ver que a situação era dolorosa para ambos. O seu
pai, como uma criancinha, começou a chorar e, em poucos instantes, Charles também o
fazia. Jamais esquecerei a cena. Jaward, da sela, olhava para Charles e chorava, e
Charles, sentado na escada do castelo, olhava para Jaward e chorava. Muitas vezes,
Lillis, tenho pensado que o que aconteceu aos dois homens naquele dia distante inatou-
Ihes o último resquício de humanidade. O seu pai virou a montaria e foi embora de Gyer.
Charles acompanhou-o com o olhar e continuou chorando por quase uma hora. Ninguém
se atreveu a se aproximar dele, por isso, o deixamos sentado na escada do castelo até
resolver entrar. Eu jamais tinha visto o meu irmão dominado por tristeza tão grande.
Também, nunca o vira chorar antes, nem voltei a ver depois. Ele achava que um homem,
por razão alguma deste mundo, podia chorar. Considerava uma fraqueza. Aliás, ele não o
fez quando Elizabeth morreu, e castigava Willem com severidade cada vez que o apa-
nhava chorando. Mas Charles chorou quando perdeu Jaward definitivamente. Um pouco
antes de morrer, ele me confessou que o rompimento dessa amizade havia sido a maior
tristeza da sua vida. Uma verdadeira desgraça. Muito pior do que a morte dos nossos
pais, de Eleanor e até de Elizabeth. Implorei para mandar um mensageiro buscar Jaward,
porém, ele não permitiu.
— A senhora deveria ter feito isso de qualquer maneira — declarou Lillis, revoltada.
Com olhar pesaroso, tia Leta admitiu:
— Deveria, sim, pois o reencontro teria sido benéfico para ambos. Era a única
oportunidade de reconciliação, mas o meu irmão me proibiu de mandar chamar Jaward.
Ah, Lillis, para você compreender por que não o desobedeci seria preciso que fizesse
uma idéia da minha vida sob o autoritarismo dele.
Lillis sentiu-se envergonhada.
— Por favor, me perdoe, lady Leta Baldwin. Fui muito impertinente com a senhora.
Eu não tinha esse direito. Tia Leta sorriu.
— Não fiquei ofendida, minha menina. Você não disse nada que eu mesma já não
houvesse pensado milhares de vezes. Não se aborreça por tão pouco. — Suspirou e
desviou o olhar para as chamas da lareira. — Depois daquele dia, nunca mais vi o seu
pai. E lá já se vão mais de quinze anos. De vez em quando, tínhamos notícias dele
através de algum criado nosso que passara por Wellewyn. Como não quisesse ser
incomodado, Jaward deixou que grande parte dos empregados fosse embora. Também
parou de administrar a propriedade permitindo a ruína do castelo. Você não poderia ter
entendido a situação por ser muito criança e, depois, o seu pai a manteve afastada por
muito tempo. Como saber que o mundo vivia de maneira diferente?
— Tem razão — admitiu Lillis. — Eu me lembro como fiquei surpresa quando
cheguei a Tynedale. Até o convento foi uma revelação para mim. Comparado a Wellewyn,
era bem luxuoso.
— Mas por que Jaward a mandou para lá? Não havia necessidade. Ele poderia tê-Ia
mantido aqui em Wellewyn.
— Ele desejava que eu recebesse uma boa educação, mas não tinha recursos para
pagar um preceptor. As irmãs de Tynedale me deram instrução e me ensinaram muitas
outras coisas úteis em troca dos meus serviços. Sempre gostei de Tynedale e vivia
satisfeita lá. A única coisa que o meu pai pôde me proporcionar foi a companhia de Edyth.
Contar com a amizade dela foi uma grande dádiva.
Ficaram em silêncio por algum tempo até que Lillis o quebrou:
— A minha pobre mãe. Como deve ter sofrido.
— Nem diga! — murmurou tia Leta.
— E o meu pobre pai. Acha estranho que papai ficasse furioso quando Alexander
me forçou a casar com ele? A senhora pode imaginar o que ele sofreu ao saber que o
filho do seu pior inimigo, o homem parcialmente responsável pela morte da esposa
adorada, havia se casado com a sua única filha? Para ele, deve ter sido como se o seu
irmão, levantando a mão do túmulo, destruísse o seu único e último bem.
Tia Leta manteve o olhar firme.
— O que você diz tem a sua parcela de verdade, Lillis, mas não deve culpar
Alexander. Ele nunca ficou sabendo do que aconteceu entre o seu pai e o dele. Era muito
criança quando a amizade dos dois terminou, e não guarda lembrança alguma de Jaward
daquele tempo. Você sabe tão bem quanto eu que Alexander nunca entendeu por que o
seu pai o odiou durante tantos anos.
— Não culpo Alexander por nada disso. Eu gostava muito do meu pai, mas sempre
soube da sua natureza má e vingativa. Ele não deu escolha a Alexander. O meu pai só
podia culpar a si próprio pelo meu casamento forçado — Lillis comentou.
— Tem razão, minha querida. Fico contente por você pensar dessa maneira.
Alexander vai valorizar os seus sentimentos quando, finalmente, ficar a par da verdade.
— Alexander e eu fechamos o círculo, não concorda? Nós nos amamos e unimos as
duas famílias. Os nossos filhos selarão o fim da discórdia, cicatrizando a ferida.
— Que Deus a ouça, minha querida.
— E Hugh e Hugo são meus irmãos — murmurou Lillis, sorrindo com ar de
incredulidade. — Os meus irmãos terríveis e maravilhosos. Que coisa mais estranha.
— Sem dúvida. Mas eu temo que a verdade os deixe arrasados. Charles Baldwin
tinha um amor desmedido pelos meninos. Eles eram tudo o que lhe restara de Jaward a
quem ele amara como irmão. E esse amor ressuscitou nos filhos do amigo da mocidade.
Os gêmeos eram o seu orgulho e alegria, e eles sempre sentiram pelo pai, e ainda
sentem, verdadeira adoração. Sabe, muitas vezes me perguntei por que Jaward não
exigiu a posse dos meninos. Sem dúvida, ele soube do seu nascimento. Como permitiu
que fossem criados em Gyer?
Lillis ficou pensativa.
— Não faço idéia. Talvez achasse que os gêmeos teriam oportunidades melhores
em Gyer. Apesar do seu ódio por Charles Baldwin, sabia que ele os educaria bem. Ou
quem sabe, o meu pai não tivesse mais amor para dar, especialmente aos gêmeos, que o
recordariam sempre da tragédia ocorrida com a minha mãe. Como muitas outras partes
da história, nunca ficaremos sabendo. — Lillis suspirou, passou as mãos pelo rosto e
alisou o cabelo. Vou buscar as crianças — disse, levantando-se. — Está na hora do
almoço.
— Que bom! Apesar da nossa conversa triste, estou com fome. Tomamos o café da
manhã muito cedo hoje.
Lillis ofereceu-lhe um sorriso afetuoso.
— Tia Leta, a senhora é uma criatura muito bondosa. Agradeço muito pelo que meu
contou esta manhã. Sei que não foi fácil e, por isso, sou-lhe mais agradecida ainda.
Ficarei em débito com a senhora para sempre.
Antes que a velha senhora pudesse responder, Lillis afastou-se e abriu a porta para
o jardim. Por alguns
instantes, ficou parada admirando a beleza do lugar. Incrível, pensou, como a vida
podia proporcionar alegrias e tristezas tão profundas. Os pais já não existiam mais. Suas
vidas e mortes tinham sido trágicas.
Olhando para o céu azul de inverno, Lillis jurou lutar para que desgraças tão grandes
não alterassem a sua vida e a de Alexander. Nem a do filho que ela já tinha certeza de
carregar no ventre.
— Tudo acabará bem, meu pequenino. Prometo que jamais o deixarei de livre e
espontânea vontade. Nem ao seu pai outra vez. A nossa vida será muito feliz Lillis
murmurou em voz suave.

CAPÍTULO XXIII
Sentiu um forte pontapé na coxa, e a dor aguda irradiou-se corpo acima até o
queixo.
— Vamos, Alex — soou uma voz meio difusa como se viesse de muito longe. — Não
pense que vou passar o dia inteiro esperando que acorde. Tenho uma porção de
assuntos para tratar e você, meu querido senhor de Gyer, é o menos importante.
Novo pontapé fez Alexander gemer. Ele tentou abrir os olhos, focalizar a mente
confusa, simplesmente se mexer. Tudo o que conseguiu foi gemer novamente.
A voz riu e chegou um pouco mais perto.
— O grande senhor de Gyer! Quem poderia imaginar que, com uns poucos golpes,
ele ficaria reduzido a um bebê chorão? Deus do céu, não sei por que não pensei em fazer
isso antes. Se tivesse noção da facilidade, certamente eu o teria feito. Mas vamos, Alex,
estou começando a perder a paciência. Não tenho tempo para conversa fiada. Acorde,
homem, ou eu lhe darei pontapés até pôr fim a esta situação.
Com esforço, Alexander abriu um olho e, depois, o outro. Piscou umas duas vezes e,
finalmente, conseguiu manter as pálpebras entreabertas o suficiente para enxergar. O que
viu era um tanto estranho. Não havia nada, exceto a cor cinza por todos os lados. Piscou
outra vez e voltou a olhar. Só então, deu-se conta de estar
vendo o chão. Um chão duro, de pedra, sobre o qual o corpo inteiro estava deitado
de bruços. Pensando em se virar, tentou mexer-se, mas descobriu que não podia. Ficou
pensativo por alguns segundos e acabou concluindo estar com as mãos muito bem
amarradas às costas. Tão logo a mente enevoada registrou o fato. Alexander viu-se
capaz de avaliar a situação geral. Estava deitado de bruços, num chão frio e duro,
amarrado como uma presa que acabara de ser capturada. Achava estranho, pensou
calmamente, não ter noção de mais nada. Talvez o latejar dolorido no lado esquerdo da
cabeça tivesse algo a ver com a sua condição.
Outro pontapé, dessa vez atingindo-o do lado do peito, forçou-o a ficar de costas,
piscando à luz difusa do ambiente.
Alguém debruçou-se sobre ele. Um rosto familiar sorriu-lhe.
— Olá, John. O que está acontecendo? — Alexander indagou com a língua meio
enrolada.
John curvou mais a cabeça e observou-o com curiosidade.
— Ainda está meio atordoado? Miles deve tê-Io golpeado com força demais,
suponho. Mas você não pode culpar o rapaz por fazer bem um trabalho. Vou tentar ajudá-
Io a recobrar a consciência. Quero que você compreenda muito bem cada palavra minha.
Não lutei e esperei tanto por este momento para você passar por ele em brancas nuvens.
Fez um gesto com as mãos e afastou-se alguns passos.
Alexander não teve a oportunidade de refletir sobre as palavras de John antes de
um balde de água fria cair sobre ele. O jato foi tão inesperado que uma boa porção do
líquido entrou-lhe pela boca e pelas narinas levando-o a engasgar e sufocar. Antes de
sofrer dano maior, duas mãos fortes o levantaram pela gola da túnica, pondo-o sentado.
Isso lhe permitiu expelir a água. Em seguida, colocaram uma cadeira às suas costas a fim
de mantê-Io em posição firme.
— Isso não vai deixá-lo cair — disse uma voz grave. Alexander pendeu a cabeça
para frente tentando acalmar o acesso de tosse. Por mais incômodo que fosse o método
de John para clarear-lhe a mente, surtiu efeito. Alexander podia, agora, lutar para
entender o tipo de perigo em que se encontrava e por quê.
A última coisa de que se lembrava antes de acordar ali, onde quer que se
encontrasse, era ter entrado no seu quarto depois de um exaustivo treinamento com os
soldados. Chegou a chamar Fyodor, o camareiro, para ajudá-lo a tomar banho e se vestir.
Não poderia se lembrar de mais nada. Ou poderia? Sacudiu a cabeça dolorida e respirou
fundo. O que teria acontecido a Fyodor? Ele não estava no quarto ou, pelo menos, não
lhe respondera o chamado. Alguém mais devia estar lá. Alguém que, evidentemente,
pudera golpeá-lo na cabeça com força suficiente para deixá-lo inconsciente. Sem dúvida,
eram várias pessoas fortes para carregá-lo do quarto até... Onde? Respirava melhor e,
cautelosamente, levantou a cabeça.
O aposento era imundo e escuro. A única luz vinha de uma vela colocada numa
mesa ao lado, mas incapaz de iluminar mais do que uns poucos passos à volta. Ale-
xander percorreu os olhos pelo ambiente numa tentativa de ver alguma coisa. Havia um
grande amontoado de móveis, mas nada que se pudesse distinguir na escuridão. Dois
homens postavam-se nos limites do círculo de luz, entretanto era impossível reconhecer-
lhes as feições. Pelas silhuetas atarracadas, deviam ser fortes e estavam em posição de
alerta. John, recostado na mesa, estava mais perto e com expressão satisfeita e relaxada.
Continuava sorrindo.
— Está se sentindo melhor, primo Alex?
Alexander lançou-lhe um olhar furioso.
— Que brincadeira é essa, John Baldwin? Nestes dois últimos dias, você devia estar
caçando.
— Tem razão — concordou John em tom agradável. — Na verdade, ainda estou
caçando. Há uma infinidade de testemunhas que afirmarão ter me visto em companhia
dos meus homens, neste exato momento, tão distante quanto Chestershire.
Alexander não precisou de explicações para entender a informação.
— Testemunhas, você disse? Então é isso?
— Acertou, primo.
— Entendo. E onde estamos? Imagino ter o direito de saber qual é o lugar da minha
morte.
Divertido, John riu.
— Não sabe onde está, Alex? Isso me surpreende. Lillis ficaria magoada se
soubesse que você não reconheceu o aposento.
Como a água o tinha feito recuperar a consciência, o comentário reavivou a
lembrança de Alexander.
— Ah, sei. O primeiro lugar onde a minha mulher esteve presa. — Olhou para o
quarto imundo e estremeceu. Sentia um desgosto profundo com o fato de a esposa linda
ter passado tantas horas ali. Outra idéia ocorreu-lhe e ele virou-se para John. — Ainda
estamos em Gyer?
— Estamos.
— E você pretende me matar aqui no castelo? Neste quarto?
— Isso mesmo.
— Eu deveria ter esperado algo desse tipo e me precavido contra você. Mas, para
ser sincero, sempre o considerei um verme sem espinha dorsal, incapaz de tanta
coragem e atrevimento. Deixe-me perguntar uma coisa. Você acha sensato me matar na
minha própria casa? Não tem medo de ser apanhado e acusado do crime?
— Não, de jeito nenhum, Alex — John garantiu em voz calma enquanto
inspecionava as unhas. De qualquer forma, aprecio a sua preocupação comigo. Tudo
será feito de maneira precisa e sem deixar indícios que me
incriminem. A sua morte, primo, vai ser vista como suicídio, e não como assassinato.
Alexander arqueou as sobrancelhas com ar de curiosidade.
— É mesmo, caro primo? Sinto desapontá-Io, mas não tenho a mínima intenção de
me matar agora ou num futuro próximo.
John riu.
— Tem sim, Alex, é claro. Todos sabem como você vem se sentindo infeliz desde
que a sua adorável esposa foi embora. Também é do conhecimento geral como você vem
bebendo ultimamente e como negligenciou o seu trabalho. Nem mais cuida das
propriedades. Os moradores do castelo já notaram o estado de depressão do seu senhor.
Eu mesmo, depois do seu funeral, comentarei, embora de maneira relutante, às vezes em
que você se abriu comigo a fim de lamentar a infelicidade atroz. Nessas horas, você me
confessava preferir morrer a ter de viver sem a sua querida Lillis. Bárbara também
oferecerá a sua contribuição. Ela contará como você, embriagado, tentava, e falhava,
encontrar alívio nos seus braços. O seu fracasso aumentava-lhe a infelicidade e a
impotência.
Alexander mal conteve a raiva.
— Existe apenas um problema com o seu plano: falta de inteligência.
— Não diga! Por quê?
— Por se tratar de pontos falsos. Nem uma única pessoa de Gyer acreditaria em
todas essas mentiras ridículas. Os habitantes do castelo sabem que Lillis e eu acertamos
as nossas diferenças e planejamos pôr um fim na separação. Nenhum deles jamais me
viu bêbado, deprimido e com preguiça. Pelo contrário, tenho trabalhado mais do que
nunca a fim de ter mais tempo livre quando Lillis voltar. Imagine não cuidar da
propriedade! Eu precisaria, de fato, estar morto para tal acontecer. — Frustrado,
Alexander lutou contra as amarras. — Por Deus, John, se não fossem estas cordas, eu
lhe quebraria o rosto em seis lugares diferentes!
— Eu sei, Alex — John concordou com voz calma. Mas precisaria se livrar das
cordas, e isso você não pode.
Quanto ao que disse, devo concordar até certo ponto. De fato, trata-se de mentiras.
Entretanto, consegui aprender algo valioso na vida. É muito fácil manejar as pessoas. É
só deixar escapar uma palavrinha aqui, outra lá, uma ponta de dúvida e logo todos, até a
querida tia Leta, estarão lembrando detalhes da sua depressão. — Riu, afastando-se da
mesa e aproximando-se de onde Alexander se sentava. — A natureza humana, primo, é
uma coisa maravilhosa. — Acocorou-se até as cabeças de ambos ficarem no mesmo
nível. — Na verdade, acho válido dizer que é mais fácil conduzir pessoas do que
carneiros. Não concorda comigo?
— Na minha opinião, você é um idiota — respondeu Alexander, encarando-o.
John sorriu e inclinou-se o suficiente para retorcer uma das sobrancelhas de
Alexander. Riu alto ao ver-lhe a careta de dor.
— Se eu fosse você, primo, não me provocaria mais. Sabe que, por estar nas
minhas mãos, posso lhe proporcionar uma morte lenta e dolorosa. Você deveria se sentir
agradecido por eu ser um sujeito acomodado. Eu preferiria provocar-lhe muita dor, mas
me curvo à necessidade de lhe dar uma morte rápida e, relativamente, sem sofrimento.
Mas apenas relativamente. Se não vou lhe proporcionar dor fisica, quero, ao menos, me
divertir infligindo dor moral.
— Ah, é? Vai me dizer por que deseja me ver morto?
— Naturalmente, primo, vou lhe revelar isso. Mas não gostaria de adivinhar?
— Eu gostaria mesmo era de quebrar todos os ossos do seu corpo. Porém, vou me
sujeitar ao seu jogo. Talvez me distraia um pouco. Você quer me matar porque desfiz o
noivado com Bárbara.
— Não. As coisas teriam sido mais fáceis se vocês tivessem se casado. Eu já
planejava matá-Io muito antes.
— Bem, não deixa de ser bom saber que abriguei um assassino louco em minha
casa, nos últimos anos — Alexander comentou em voz seca. — Com certeza, vai me
contar agora que a moça de quem fiquei noivo na juventude também planejava me
assassinar.
— Bárbara me ajudou bastante, admito, porém, ela não sabia, precisamente, que eu
planejava matá-Io.
— Precisamente? — Alexander repetiu, incrédulo. John deu de ombros.
— Você sabe como Bárbara é. Provavelmente, percebeu bem as minhas intenções,
mas não quis assimilá-Ias. A ignorância é uma bênção.
— Meu Deus! — murmurou Alexander em verdadeiro estado de choque. — Meu
Deus!
— Entendo — disse John esfregando o queixo. — Infelizmente, o amor cega as
pessoas, não é verdade? E você era absolutamente cego quando se tratava de Bárbara.
Jamais vou esquecer a facilidade da minha irmã, ainda quase uma criança, em dominá-Io,
Alex. Eu ficava perplexo. O grande Alexander Baldwin, o senhor de Gyer, ser conduzido,
como um cachorro obediente, por uma menininha delicada chamada Bárbara. Acredite,
era uma cena impressionante — acrescentou ao levantar-se. Mas não disponho de tempo
para comentar essas coisas com você. Tenho muito o que fazer ainda. Devo simples-
mente contar por que vou matá-Io e, então, agir?
Alexander jamais tinha ouvido algo dito com tanta frieza. Olhando à volta à procura
de um meio para escapar da situação, resmungou:
— Vamos, conte.
— Quero ser o senhor de Gyer, naturalmente. Fico surpreso por você não ter
pensado nisso. Não se trata
de uma questão de egoísmo, pois me acho muito mais habilitado do que você para
tal posição. Você é um tipo muito comum e inexpressivo. O senhor de Gyer deve ser um
homem esperto, de sagacidade aguda e grande inteligência.
— E você é esse homem?
John sorriu e fez uma leve curvatura.
— Acertou. Mas essa não é a única razão pela qual desejo herdar esse posto. Eu o
quero mais por causa de Bárbara, para vê-Ia feliz e bem cuidada. A minha irmã merece
as melhores coisas da vida e, nisso, você deve concordar comigo. Pelo menos,
concordava tempos atrás. Quando eu for o senhor daqui, poderei lhe dar tudo.
— Não entendo. Você disse que pretendia me matar mesmo se eu me casasse com
Bárbara — Alexander disse ao tornar a forçar as cordas. — Se nós tivéssemos nos
casado, eu daria tudo que possuo para vê-Ia feliz. Mesmo durante o noivado, eu lhe
satisfazia todas as vontades. Presenteava-a com jóias e roupas caríssimas. Apesar disso,
você queria a minha morte?
— Eu estava disposto a ver Bárbara como a senhora de Gyer antes de você morrer,
Alex. Mas não podia suportar a idéia de minha irmã passar o resto da vida presa a um
sujeito como você. Por Deus, só ao ver as suas confianças com ela, eu ficava enojado. A
minha pobre e delicada irmãzinha! A maneira como você a acariciava me deixava louco!
Embora Alexander soubesse estar numa posição de extrema vulnerabilidade e, com
certeza, na iminência de enfrentar a morte, percebeu estar sendo insultado.
— O que há de errado em se casar com um homem como eu? — indagou.
— Ora, Alex, gostaria perguntar a Lillis para obter a resposta desejada. Até ela teve
o bom senso de abandoná-Io quando pôde. Agora, pare de forçar essas cordas. De jeito
algum vai conseguir escapar. Mas quero deixar claro que nenhum homem merece a
minha Bárbara. Ela jamais se casará. O meu amor e os meus cuidados lhe bastarão.
Talvez eu até a deixe se casar um dia se for com um velho rico e poderoso. Ele,
naturalmente, morrerá tão logo a herança para Bárbara esteja garantida. Então, a minha
querida irmã voltará para mim.
— Você está completamente louco, ou melhor, é disse Alexander.
— Pode ser, mas não estou prestes a morrer. Talvez ser louco não seja algo tão
ruim.
— Você também é um idiota — acrescentou Alexander. John sentiu um leve
interesse e perguntou:
— Por quê?
— Você não se tornará o senhor de Gyer através da minha morte. Como sabe, tenho
irmãos. Quatro deles, para ser mais preciso. Acha que as pessoas não desconfiarão de
você se começara matar um por um?
John recostou-se na mesa e suspirou. Depois, olhou para Alexander com ar de
comiseração.
— Chegamos a esse ponto um pouco cedo demais. Não tem importância. Assim, me
sobrará mais tempo. Na verdade, Alex, você não tem quatro irmãos. Quer dizer, tem e
não tem. Você não tem quatro irmãos que possam herdar o título, apenas dois. Aliás, só
lhe resta um.
a alarme soou na mente de Alexander. Até o momento, só ele corria perigo, mas
John insinuava fazer mal aos irmãos, à família. Maldição! Tinha de escapar dali.
— O que está tentando dizer, John Baldwin? — questionou ao retorcer os dedos
pelas cordas.
— Antes de eu falar sobre os seus irmãos, quero explicar o meu plano. Acho
importante que você compreenda tudo antes de morrer, porque quero que sofra o máximo
possível. — Sorriu como uma criança satisfeita com um brinquedo novo. — O meu plano
original era para você e Bárbara se casarem e assim permanecerem por uns três meses.
Eu pretendia que você morresse no campo de batalha como um verdadeiro Cavaleiro do
reino. Você e Willem. Também precisava da morte dele por ser o seguinte na linha de
sucessão. O plano era excelente, você há de convir, pois, embora fosse preciso uma
certa ajuda para eliminá-Ios, ninguém suspeitaria de nada. Os dois irmãos morreriam
como dois soldados valorosos.
Alexander quase riu.
— Você está no ponto para ser internado no asilo de loucos. Como Willem e eu
morreríamos no campo de batalha se não existe uma guerra? Você iria provocar uma,
ou... — A voz morreu ao dar-se conta de algo terrível. Seu olhar encontrou o de John e,
quando este começou a rir, Alexander quase perdeu o controle. — Seu desgraçado,
demente e maldito cão do inferno! Você era quem estava por trás de todos os problemas
com Jaward, não era?!
O rosto de John revelou alegria incontida.
— Ver essa sua reação, primo Alex, me dá mais prazer do que eu tinha antecipado.
Estava, sim, por trás disso tudo. Convencer Jaward a construir aquela represa foi a coisa
mais fácil que já fiz. Ele tinha um ódio arraigado por você, ou melhor, pelo seu pai. Jaward
queria ver Gyer ardendo em chamas e ficava feliz a cada sofrimento suportado pelo seu
povo. — Riu. — Um homem que agradava o meu coração. Cada vez que eu lhe dava a
notícia de mais um campo ressecado pela falta de água, sorria, acredite ou não. Afinal,
ele detestava sorrir. Casar a filha com Jason de Burgh também foi idéia minha. O plano
era fazê-Io pensar que os dois se juntariam contra você, primo, e, nesse caso, você lhes
declararia guerra. Tudo estava correndo muito bem até os gêmeos capturarem Lillis —
concluiu com um suspiro.
— Isso arruinou os seus planos. John não escondeu o aborrecimento.
— Malditos gêmeos! Se eu pudesse, os teria matado por haverem arruinado o meu
trabalho tão bem elaborado. Ainda mais quando você resolveu se casar com Li!liso E
Jaward? Deus do céu, nunca vi um homem em estado tão deplorável. A notícia sobre o
casamento da adorada filhinha com você, Alex, o deixou tão imprestável quanto um
recém-nascido. Deprimido como estava, foi reconfortante matar o velho.
Alexander sentiu-se como se estivesse sufocando.
— Você matou Jaward?!
John fez um gesto afirmativo com a cabeça e apoiou as mãos na mesa.
— Estrangulei-o. Foi uma experiência muito boa. Eu gostaria de repeti-Ia com você,
porém, o seu pescoço é mais grosso do que o de Jaward e exigiria tempo demais. Você
não pode imaginar o prazer sentido ao se ter o pescoço de alguém sob o domínio das
mãos. — Levantou as dele e as admirou. — É morno, maleável. Muito agradável.
Especialmente quando se percebe que o ar deixou de passar. Essa é a melhor parte. —
Baixou as mãos e acrescentou: — Estando tão fraco, Jaward não lutou muito. Mesmo
assim, me deu satisfação.
Se John tinha matado Jaward, refletiu Alexander, ele seria capaz de fazer qualquer
coisa, de matar qualquer um. Já devia estar na hora do almoço e alguém poderia dar pela
falta dele, pensou com uma leve esperança. Mas ninguém pensaria em vir procurá-lo ali,
admitiu.
Numa voz fraca e rouca, perguntou:
— Você disse que só tenho um irmão para herdar Gyer?
— Exatamente. Até há pouco, tinha dois. Os gêmeos, Hugh e Hugo são só seus
meios irmãos. Como você os viu nascer, não preciso explicar que o seu parentesco com
eles é através da sua mãe.
Alexander ficou atordoado não só com a revelação como também com o que ouviria
a seguir. O coração disparava e a respiração tornava-se ofegante e ruidosa. John espe-
rava por algum comentário, mas Alexander só conseguiu fitá-Io com os olhos arregalados.
— Não vai me acusar de estar mentindo? — indagou John, desapontado. — Não me
diga que já sabia. Tomei
todo o cuidado possível para a verdade não chegar aos seus ouvidos.
Ele se comportava como uma criança mimada de quem se tomara um brinquedo. O
melhor seria tratá-lo como tal, refletiu Alexander ao forçar-se a dizer:
— Não, eu não sabia.
— Pois então, não vai perguntar quem é o pai?
Alexander apenas sacudiu a cabeça num gesto negativo. Não acreditava na
informação de John, mas isso não tinha importância. O fato de John acreditar bastava.
Isso poria os gêmeos fora de perigo, pois eles não lhe ameaçavam os planos. Havia ainda
Willem e Justin, porém o primo afirmará restar apenas um irmão...
John fez um gesto de impaciência.
— Não vai ao menos ter a decência de se mostrar chocado ao descobrir que a sua
querida mãezinha não era melhor do que uma rameira da vila? Por Deus, estou perdendo
o meu tempo! Se eu ainda tivesse umas boas setas, alvejaria o seu coração já. Tudo
bem. Se você não se interessa pela condição dos gêmeos, talvez queira informações
sobre os outros dois.
Apavorado, Alexander mal podia refletir e não conseguiu esconder o pânico da voz
ao perguntar:
— O que você fez a eles?
Satisfeito, John riu.
— Assim está melhor. Posso até sentir o cheiro do seu medo, Alex. Então, quer
saber o que eu fiz? Primeiro, vou contar o que não fiz para você se preocupar por um
pouco mais de tempo. Não toquei em Justin. Ainda não. Não resolvi por quanto tempo vou
deixá-lo viver. Sem dúvida, vou ser designado o seu tutor e tomar conta dele até que
atinja a maioridade. Não seria conveniente matá-lo logo. Provocaria suspeitas. O destino
de Justin vai ser resolvido daqui a uns quatro anos. Não será necessário matar Candis,
por isso, não se preocupe com ela. A sua irmã promete vir a ser uma mulher bonita e,
sendo assim, será mais valiosa viva do que morta. Quando estiver com uns doze anos, eu
a venderei a quem fizer a maior oferta. Existem homens, na Inglaterra, que pagam
exorbitâncias para ter uma mulher bonita. Ou quem sabe, se ela me agradar, eu a
manterei para o meu próprio prazer. Deu de ombros e coçou o queixo. — Mas esse não é
um problema seu, meu senhor.
Cada palavra pronunciada por John sobre os irmãos enojava e enraivecia
Alexander, mas foi a custo que murmurou em vez de gritar a pergunta mais premente:
— E Willem?
John riu e curvou-se para a frente como se não tivesse ouvido bem.
— O que foi, senhor de Gyer? Perguntou algo?
Alexander sentia frio e calor ao mesmo tempo. Um arrepio percorreu-lhe a espinha.
— E Willem? — repetiu mais alto.
— Ah, está me perguntando sobre Willem — John disse ao voltar a se acocorar
diante dele. — Você quer saber o que fiz ao seu querido e bondoso Willem? Pois vou lhe
contar. Eu o matei.
Inclinou-se para trás e soltou uma gargalhada.
A transpiração corria pelo rosto de Alexander e a respiração tornava-se cada vez
mais ofegante. Não era verdade, tentou se convencer. Não podia ser. Esse pesadelo
infernal não estava acontecendo.
— Mentiroso — murmurou e, depois, repetiu mais alto: — Mentiroso! Willem não
está morto!
Nova gargalhada forçou John a se ajoelhar. Ria tanto que não conseguia falar.
Levou um bom tempo para se controlar e exclamar:
— Maravilha! Isto está ótimo! Muito bom! Sonhei tanto com esta situação! Mas acha
que estou mentindo, não é? Vejamos.
Desamarrando um saquinho de couro do cinto, John prosseguiu:
— Tenho a prova do que disse. — Abriu o saquinho e, com os dedos, tirou algo de
dentro que Alexander não distinguiu na penumbra do aposento. Porém, John o sacudiu
diante dos seus olhos, levando-o a soltar uma exclamação abafada. — Achei que
reconheceria o distintivo, por isso, o peguei. Foi você quem deu este emblema de honra
para Willem, não foi? Está sujo de sangue e talvez seja meio difícil identificá-Io. Willem
sempre o usava sobre o coração, justamente onde alvejei a minha seta. Veja, está meio
arranhado onde a seta raspou — explicou pondo a ponta do dedo no lugar mencionado.
Satisfeito, sorriu ao ver a expressão aflita de Alexander. — Boa pontaria, não acha? Tive
um trabalhão para soltar o distintivo com a seta junto a ele.
— Ai, Deus amantíssimo — soluçou Alexander, incapaz de conter as lágrimas. —
Willem, meu irmão.
Com o corpo largado de encontro à cadeira, quase chegou a desejar que John o
matasse naquele instante. Não tinha argumentos contra a prova mostrada. Não podia
nem acusar o primo de ter obtido o distintivo em outro lugar, pois ele havia mandado fazer
um só e dado para Willem. A notícia da morte do irmão o deixava inconformado. As lá-
grimas corriam-lhe pelas faces e ele soluçava baixinho. Acabrunhado pela dor, não tinha
como expressá-Ia.
— Ótimo, ótimo! — ouviu a voz odiosa de John exclamar. — Na verdade, Alex,
guardarei a lembrança deste momento pelo resto da vida. Sempre que estiver aborrecido,
pensarei nela a fim de restaurar o meu bom humor. Mas já foi o suficiente. — Suspirou. —
Foi extremamente prazeroso, mas lamento ter de matá-Io agora e ir embora. Sabe, ainda
preciso ir ver Lillis.
O nome da mulher querida, sendo pronunciado por lábios tão imundos e com
intenção de maldade óbvia, deixou Alex frenético.
— Lillis?! — gritou e, sem pensar, atirou-se de encontro ao primo, atitude que fez
com que ambos caíssem.
John, sem se importar com o ataque inofensivo, levantou-se rindo. Alexander, por
sua vez, via-se dominado por um misto de terror e fúria.
— Seu lunático imundo! — gritou enquanto lutava, com toda a força possível, contra
as cordas. — Não se atreva a tocar na minha mulher! Eu o esfolarei vivo se ousar lhe
dirigir um único olhar! Eu o esmagarei na palma da minha mão como se fosse uma pulga!
Eu...
John deu-lhe dois pontapés entre as pernas para silenciá-Io. Conseguiu, mas não
lhe diminuiu a fúria.
— Francamente, Alex, já lhe disse várias vezes que não disponho de mais tempo
para gastar com você, embora eu esteja me divertindo muito. Imagino a sua preocupação
com a adorável mulher, e gostaria de ficar aqui um pouquinho mais para gozar da sua
infelicidade. Contudo, a cavalgada até Wellewyn é bem longa, e preciso chegar lá o mais
depressa possível. Prometo que Lillis não sofrerá muito. Não mais do que você. Isso lhe
servirá de consolo quando estiver morrendo, não concorda? Suspirou. — Devo admitir
que pretendia manter Lillis viva e torná-Ia minha amante. Você pode achar difícil de
acreditar, mas eu sinto uma boa dose de afeto por ela. Mulher lindíssima! E tão ardorosa
também! Nós faríamos um belo casal. Mas, infelizmente, hoje de manhã, recebi a notícia
de que ela está grávida de um filho seu. Não posso correr o risco de deixar nascer um
legítimo herdeiro do seu título. Vou ter de sacrificar o próprio prazer e matá-Ia. — Olhou
para os homens. — Traga o veneno, Miles. Aaron, segure-o com firmeza.
Em questão de segundos, Alexander viu-se sentado, outra vez, de encontro à
cadeira. Tentou lutar, mas não conseguiu nada contra as cordas e os braços fortes que,
agora, também o prendiam. John voltou a ajoelhar-se à sua frente e abriu o frasco
entregue por Miles.
— Você é um maldito, John!
Este apenas sorriu enquanto misturava o líquido do frasco.
— Este veneno vai provocar efeito em poucos minutos, Alex, e você não vai sofrer
dor alguma. Dormirá primeiro e, quando acordar, caso tenha sido bom durante a vida, se
encontrará com Lillis e Willem. Reze para isso acontecer. Agora, por favor, não seja idiota
a ponto de lutar contra mim. Não preciso colocar mais do que algumas gotas na sua
garganta para matá-lo, e você está farto de saber que não tem defesa contra mim. Vai
morrer, primo, portanto, deve passar os seus últimos minutos pedindo clemência a Deus.
Alexander observou o rosto sorridente de John e deu-se conta da verdade de suas
palavras. Ia morrer e não lhe restava mais nada a fazer exceto um último pedido. Por
Lillis, faria qualquer coisa, até implorar.
— Não faça mal a Lillis — murmurou. — Estou lhe suplicando, John, não lhe faça
mal algum.
John não escondeu a satisfação e bateu de leve na face de Alexander.
— Suplicando, não é? Isso é música para os meus ouvidos, Alex. Agora, abra a
boca como um bom menino.
Num gesto brusco, Alexander virou a cabeça para o lado. As mãos que o seguravam
o forçaram a voltar à posição anterior.
— Ora, resolveu dificultar o meu trabalho. Não vai adiantar nada.
Os dedos de John arregaçaram os lábios de Alexander e encostaram a boca do
frasco nos dentes cerrados. Devagar, entornou o líquido. Uma parte fluiu para a boca e
outra caiu no rosto, no pescoço e nas roupas de Alexander. Satisfeito, John tornou a
bater-lhe na face.
— Pronto. Adeus, Alexander Baldwin.
As mãos largaram-no tão repentinamente que ele caiu com o rosto no chão. Virou-o
e viu John fechar o frasco novamente. De maneira estranha, sentia-se quase calmo.
— Não mate Lillis — pediu.
John não prestou atenção e deu as últimas ordens aos homens.
— Já sabem o que fazer. Dentro de cinco minutos, ele estará morto. Só então,
desamarrem as cordas e ponham o frasco junto ao corpo dele. Não se esqueçam de levar
as cordas e as queimar. Elas são as únicas evidências contra nós.
— Não mate Lillis — Alexander gritou o mais alto possível.
— Não se preocupem se ele gritar antes de morrer. Ninguém o ouvirá aqui em cima.
Saiam às escondidas. Tomem cuidado para ninguém os ver. Muito bem, vou indo agora
— disse John ao apanhar as luvas e a capa. Enquanto as colocava, olhou para
Alexander. — Adeus, querido primo. Tenha bons sonhos.
Saiu em seguida, deixando Alexander com os dois guardas silenciosos.
Sentindo-se completamente desamparado, Alexander fechou os olhos. Ia morrer, e
John mataria Lillis. Horrível demais pensar nisso. Num murmúrio, rezou:
— Deus misericordioso, salve a minha mulher e a minha família. Faça que eu veja
Willem quando reabrir os olhos, mas não deixe a minha mulher morrer também. Por favor,
eu a amo tanto...
Alexander bocejou e soube que estava morrendo. Sentia a cabeça leve e fraca
enquanto o corpo começava a relaxar. Agarrou-se a um único pensamento, a um único
nome e, quando não suportou mais, embrenhou-se na tranqüilidade da escuridão.

CAPÍTULO XXIV
— Bárbara, meu amor, tente lembrar, exatamente, o que você pôs no frasco. Foi
água? Vinho? Cerveja?
— Estou tentando lembrar, Jason, mas precisa ter um pouco mais de paciência. Tive
um dia terrível hoje, e você não pode ser tão mau a ponto de querer que eu me lembre de
tudo que fiz dois dias atrás.
Ouviu-se um suspiro de impaciência.
— Eu sei, minha querida, que você passou por muitas atribulações nestes dois
últimos dias, mas, pelo menos, faça um esforço para se lembrar. Reconstitua as suas
atividades. Você entrou no quarto do seu irmão e então...
— Meu Deus, isso é loucura. Se você não se lembrar do que pôs no frasco, eu vou
estrangulá-Ia, Bárbara.
Lágrimas e soluços seguiram a afirmativa.
— Se vai ficar aí apenas gritando com ela, Baldwin, acho melhor ir embora. Não
precisamos continuar vendo-o sangrar, e eu não vou permitir que aborreça Bárbara
depois dos tormentos pelos quais ela passou. A voz enérgica suavizou-se. — Pronto, meu
amor, não chore. Ele está nervoso e não teve a intenção de gritar com você.
— Mas gritou!
Novas lágrimas e soluços. Alexander gemeu e fez um esforço inútil para se mexer.
— Pelo amor de Deus, Bárbara, isto não é hora para esse comportamento infantil!
Só quero que você se lembre do que pôs no maldito frasco!
Novamente a voz severa se fez ouvir.
— Acho melhor, sir Willem, manter a boca fechada. Eu cuido de Bárbara. Preste
atenção, meu bem. Você precisa se acalmar e tentar lembrar o que pôs no frasco. Faça
um esforço e pense.
Bárbara suspirou.
— Bem, entrei no quarto do meu irmão e tirei a caixa do esconderijo. Ela tem um
fecho secreto, e John a comprou de um homem muito interessante lá em Londres. O
mecanismo para abrir e fechar é bem engenhoso. Ela é feita de pau-rosa da Itália. Ou
será da Grécia? Bem, eu sei que é de pau-rosa. Ou quem sabe, de cerejeira?
Bem, é avermelhada e muito bonita...
Uma voz paciente a interrompeu:
— Está bem, minha querida, deve ser muito bonita mesmo, mas o que você fez
depois de tirá-Ia do esconderijo?
— Abri a caixa. Pus em cima da mesa e abri.
— Sei. E depois, Bárbara?
— Depois? Ah, é mesmo, tirei o frasco de dentro.
Havia vários na caixa, mas eu sabia qual deles continha o veneno porque era da
cor... Mas é claro! Foi isso o que eu pus no frasco!
— O quê?
— Ora, Jason, que grande distração a minha. Não sei como pude esquecer. O
veneno era da cor de tinta de
escrever. Por isso, esvaziei o frasco e enchi de tinta.
— De tinta?!
— Isso mesmo — confirmou Bárbara, rindo. — Não foi uma grande esperteza da
minha parte?
— Você quer dizer que fizeram o meu irmão engolir tinta?
— Bárbara deve estar certa, Baldwin. Isso explica a boca e a língua pretas e tantas
manchas na roupa. Devíamos ter pensado nisso.
— Mas se foi apenas tinta, por que ele está tão largado?
— Continua respirando, não é verdade? Provavelmente, foi o resíduo do veneno
deixado no frasco que o afetou. Bárbara, você não teve tempo de lavá-Io, não é, minha
querida?
Alexander sentiu um tapa no rosto. A mão era pesada e áspera.
— Acorde, senhor de Gyer! Acorde!
Alexander gemeu outra vez, esperando que o ouvissem. Embora se sentisse feliz
por estar vivo, não queria ficar recebendo tapas.
— Ele se mexeu! Murmurou um ruído também!
— Willem está certo, Jason. Acho que o primo Alex está tentando se mexer.
— Tem razão, meu amor. Vamos ver se conseguimos acordá-Io de vez.
Mais três tapas em sucessão rápida surtiram o efeito desejado. Se Alexander
pudesse se mexer, estrangularia o demônio que o golpeava.
— Pare com isso, De Burgh. Não vai querer que ele perca a consciência outra vez,
não é? — Tomou a mão do irmão e murmurou: — Alex? Alex, está me ouvindo? Sou eu,
Willem. Abra os olhos para eu ver se você está bem.
Alexander sentia-se como se houvesse bebido resina de árvore, e não tinta, pois a
boca estava viscosa. Contudo, gemeu outra vez e tentou mexer a língua.
— Willem — sussurrou.
— Isso mesmo, Alex, sou eu, Willem. Graças a Deus você está vivo.
— Willem — repetiu Alexander ao entreabrir os olhos.
— Ele está acordando — afirmou Jason de Burgh, cujo rosto, indesejável por estar
curvado sobre ele, Alexander viu primeiro. De Burgh virou-se e falou com alguém às suas
costas — Mande alguém lá embaixo avisar que o senhor de Gyer está vivo e passando
bem. Todos podem parar com as lamentações.
O rosto de Bárbara surgiu por detrás do ombro de De Burgh. Ao observar Alexander,
ela inclinou a cabeça com ar de dúvida e comentou:
— O primo Alex não está com um aspecto muito bom, não é?
De Burgh sorriu-lhe com expressão amorosa.
— Ele vai ficar bom, minha querida. Só precisa de mais alguns minutos para
recobrar a consciência completamente. Você salvou-lhe a vida, bem como a de Willem.
Se não tivesse substituído o veneno por tinta, o coitado já estaria morto.
Bárbara corou e baixou o olhar.
— Está satisfeito comigo, Jason?
— Muito — ele respondeu e a beijou.
A demonstração de afeto dos namorados fez Alexander gemer novamente. Virou o
olhar até ver o rosto de Willem molhado de lágrimas. Com esforço, apertou-lhe um pouco
a mão.
— Willem, você está vivo — murmurou.
O irmão assentiu com a cabeça e continuou a chorar.
— Graças a Deus. John me disse que o tinha matado. Até me mostrou uma prova e
eu acreditei. Pensei que você estivesse morto.
Willem enxugou as lágrimas e sorriu para o irmão.
— Prova como esta? — perguntou apontando para o ombro esquerdo onde havia
um ferimento feio e ensangüentado.
— Deus misericordioso, Willem!
— A aparência é pior do que o dano causado — Willem garantiu depressa. — Ele
atingiu o meu ombro e ficou certo de que logo morreria. Eu pensaria o mesmo se tivesse
atingido um homem dessa forma. Mas, além de doer o diabo, não acredito que o
ferimento seja profundo. Posso até mexer o braço, e De Burgh conseguiu arrancar a seta
sem provocar muita dor. Estou contente, embora o maldito tenha me roubado o meu
emblema.
Alexander sorriu para ele.
— Vou mandar fazer outro. Eu lhe darei centenas de distintivos se você quiser. Por
Deus, Willem, pensei que você estivesse morto. — Segurou-lhe a mão com mais força e
pediu: — Por favor, me ajude a sentar.
— Devagar, Alex, devagar. Você está muito fraco.
Alexander esforçou-se para se sentar e, depois, disse:
— E você está pálido como um defunto, Willem. Deveria estar na cama. Tem sorte
de ainda continuar vivo.
— Eu sei, Alex. Se não fosse por Bárbara, estaria mesmo morto a estas horas. —
Dirigiu um olhar para a prima nos braços de Jason de Burgh. — John deixou vários
homens para garantir que eu não vivesse muito mais. Já iam me passar pelo fio da
espada quando De Burgh apareceu com os seus soldados. Bárbara estava com eles. Ela
conhecia os planos de John e resolveu interferir.
— Tentamos encontrar Willem antes de John, mas chegamos atrasados — aparteou
De Burgh. — Quando chegamos lá, John já tinha vindo para cá a fim de assassinar você.
Como já disse, foi muito bom Bárbara ter a presença de espírito para substituir o veneno
por tinta. Caso contrário, você estaria morto, Alexander de Gyer.
Alexander viu o olhar tímido de Bárbara e sacudiu a cabeça.
— Não sei por que, Bárbara Baldwin, você virou as costas para o seu irmão. Sei
apenas que você se manteve ao lado dele durante vários anos. Nos enganou, nos tratou
com falsidade, a mim e à minha família. Só posso dar graças a Deus por não ter me
casado com você. Apesar disso, sou-lhe grato por salvar a minha vida e a do meu irmão.
Se também tivesse feito algo para salvar a da minha mulher, minha gratidão se duplicaria.
Bárbara enrubesceu e escondeu o rosto no ombro de Jason.
— Fiz isso por amor a Jason — murmurou.
— É mesmo? E você a ama, não é verdade, De Burgh? Você a quer como esposa?
—perguntou Alexander, pondo-se de pé com o auxílio de Willem.
— Sabe muito bem que sim.
Alexander recuperava a energia depressa. Encostou-se no irmão e conseguiu
manter-se em pé sozinho. Em seguida, encarou o senhor de Dunsted.
— Se cavalgar ao meu lado agora para Wellewyn a fim de lutar contra John Baldwin,
eu lhe entregarei a mão de Bárbara de hoje a cinco dias. Vocês terão a maior festa de
casamento jamais vista deste lado da Grã-Bretanha. O dote da noiva será substancioso.
Como presente, eu lhe darei aquela faixa de terra demandada pelo seu povo há tanto
tempo. O que me diz, De Burgh?
Com uma das mãos, Jason quase tirou o fôlego de Bárbara ao apertá-Ia de encontro
ao peito. A outra, ele estendeu para Alexander.
— Digo sim, senhor de Gyer. Eu e meus soldados estamos prontos para partir já.
Lillis aproximou-se da mureta à volta do telhado e firmou a vista para ver melhor as
chamas na distância.
— Não posso imaginar como o incêndio começou murmurou para si mesma ao
enrolar-se melhor na capa.
Estava uma noite fria e úmida também. Parecia-lhe estranho que algo pegasse fogo
com um tempo daquele.
Tinha começado quatro horas atrás, logo depois da partida de tia Leta, Edyth e as
crianças para Gyer. Já havia se espalhado bastante, consumindo alguns estábulos, dois
campos adjacentes e ameaçava destruir várias casas de arrendatários. Lillis lembrava-se
do terrível incêndio em Gyer e lamentava que Alexander já não tivesse chegado para
ajudar. Todos os homens da vila lutavam contra as chamas, exceto um que ela mandara
em busca do marido. Esperava que ele aparecesse logo, pois, então, tudo seria mais fácil
sob a sua orientação experiente.
Se Willem e os gêmeos estivessem em Wellewyn, ela se sentiria mais confiante.
Mas Willem estava em Gyer com Alexander, e os outros dois tinham desaparecido logo
depois do café da manhã. Lillis não os vira desde então. Hugh e Hugo nem haviam
aparecido para ver tia Leta, Edyth e as crianças, que, sabiam, viriam visitá-Ios. As boas
maneiras dos rapazes deixavam muito a desejar.
Ela sentiu um arrepio e suspirou, a respiração condensando-se logo no ar frio.
— Só espero que ninguém saia ferido ou morra disse em voz alta.
Passos no telhado a fizeram virar a cabeça. Embora não pudesse ver quem se
aproximava, reconheceu logo a voz quando a ouviu.
— Até que enfim a encontrei, minha senhora! — exclamou John Baldwin ao vir na
sua direção. — Eu a procurei pelo castelo inteiro e já começava a temer que houvesse
escapado. É muita sorte encontrá-Ia no lugar para onde pretendia trazê-Ia.
Lillis fIcou tão surpresa ao vê-Io ali no telhado que, por um momento, não se mexeu
nem falou. Ao chegar à sua frente, ele tomou-lhe a mão e a beijou. O contato morno dos
lábios na pele fria a fez recobrar a presença de espírito. Puxou a mão e perguntou em tom
áspero:
— O que está fazendo aqui?
Custava-lhe muito acreditar que estivesse, realmente, vendo-o. Mas John sorriu de
maneira amável.
— Vim vê-Ia, naturalmente, minha querida senhora de Gyer. Por que uma outra
razão? Não haveria de ser
para visitar os gêmeos. — Riu e aproximou-se mais. Seja simpática, Lillis. Faz tanto
tempo que não nos vemos e você está mais linda ainda. Venha para os meus braços e
me deixe beijá-Ia.
Num gesto instintivo, Lillis esticou os braços para frente e recuou.
— Você não vai me beijar, John Baldwin — afirmou com firmeza tentando não
revelar o pânico na voz. Por que veio a Wellewyn? O que quer aqui?
Ele também recuou um pouco e, depois, manteve-se imóvel.
— Gostaria que não fosse cruel comigo, minha querida, pois precisa saber o quanto
a desejo. Se insiste que eu fale claramente, vou fazê-Io. Já disse que vim a Wellewyn
para vê-Ia. O que quero é fazer amor com você.
Lillis arregalou os olhos.
— Você enlouqueceu! — exclamou, mas apenas provocou um sorriso em John.
— Não está sendo muito lisonjeira consigo mesma, meu bem.
— Pare com esse absurdo, John. Caso contrário, gritarei pedindo, socorro. Centenas
de homens acorrerão num instante.
Aborrecido, ele resmungou:
— Ora, meu amor, você não vai se fazer de dificil, não é? Esperava encontrar uma
pessoa razoável. Acho bom aceitar o fato de que, de uma maneira ou de outra, vou
possuí-Ia. Você poderá relaxar e sentir prazer, ou lutar e me forçar a ser desagradável.
Também poderá gritar, se quiser. Como bem sabe, não adiantará nada. Todos os
homens, mulheres e crianças de Wellewyn estão lá lutando contra o incêndio — explicou
apontando para as chamas na distância. — Ele foi provocado pelos meus homens a fim
de afastar todos do castelo. Só assim, poderei executar o meu plano com tranqüilidade.
Ninguém a ouvirá, meu bem, portanto, ninguém virá em seu socorro. — Devagar e com a
mão estendida, começou a se aproximar novamente. — Entregue-se a mim, Lillis, e não
tente lutar. Não tenho a mínima intenção de machucá-Ia e prometo proporcionar-lhe o
maior prazer que você poderá sentir. Apenas seja cordata e me dê a oportunidade de lhe
mostrar.
Recuando, Lillis olhou, por sobre o ombro, para o lugar onde ficava a escada que
descia para o castelo.
— Você não a alcançará, minha querida. Pode tentar, eu não me importo, pois não
vai conseguir chegar até lá.
Recuando pouco a pouco, Lillis tentou falar em tom calmo:
— Escute, John, isso é loucura. Você sabe que eu não o deixarei me violentar, e
Alexander o matará quando souber que me procurou com intenção tão obscena.
John riu com alegria desconcertante.
— Ah, meu amor, você não pode me amedrontar com as possíveis represálias do
seu marido. Não tenho um pingo de medo dele.
— Se for embora agora, esquecerei que esteve aqui. Não contarei nada a ninguém,
muito menos a Alexander. Porém, precisa sumir daqui já e nunca mais se comportar
dessa forma. Vai ter de me prometer isso.
O sorriso de John provocou um arrepio de pânico em Lillis.
— Não vou lhe prometer nada além de possuí-Ia integralmente. Você não terá a
oportunidade de contar nada a Alexander. O seu marido está morto, amorzinho. Morreu
algumas horas atrás.
Lillis sacudiu a cabeça.
— Você ensandeceu e não passa de um mentiroso declarou em voz calma.
— Não sou, não.
— Você é um idiota louco — acusou ela com raiva crescente. — Não acredito numa
única palavra sua. Alexander não está morto.
Ele encurtou a distância que os separava.
— Lillis querida, para mim não faz a mínima diferença se acredita, ou não, em mim.
Alexander morreu pelas minhas mãos há poucas horas, mas isso não tem nada a ver com
o que está para acontecer entre nós dois.
Tarde demais, Lillis esforçou-se para alcançar a escada. John pulou e, facilmente, a
agarrou.
— Não! — ela gritou começando a lutar.
— Sim, é claro, minha querida — respondeu ele, deitando-a no telhado. Pôs um
joelho de cada lado do seu corpo e segurou-lhe as mãos. — Pronto, assim está melhor —
declarou ao dominá-Ia.
Em vão, Lillis tentou empurrá-Io. John não era um homem grande, mas, certamente,
tinha muito mais força do que ela.
— Estou avisando, John Baldwin, você vai se arrepender amargamente disto.
— Será? Prefiro pensar que vou me deliciar muito. E você, minha senhora, deveria
se esforçar para também apreciar o nosso relacionamento, pois será a última vez que
poderá ter prazer com um homem.
Inclinou-se para frente a fim de beijá-Ia. Lillis, porém, levada pela repulsa imensa,
conseguiu soltar uma das mãos e estapeá-Io. Aturdido, mas apenas por uma fração de
segundo, John revidou, esbofeteando-a com toda a força possível. Depois, soergueu-se
um pouco e sorriu.
— Vou lhe dar a última oportunidade, Lillis, de se comportar bem. Se não o fizer, eu
lhe darei uma sova até deixá-la sem ação. Então, apreciarei o seu corpo em paz. Você
entendeu?
Infelizmente, ela o entendeu muito bem. Desesperada, a mente procurava um meio
de fazê-Ia escapar dali.
— John, deixarei você fazer amor comigo se descermos para o meu quarto. Eu lhe
darei licença para fazer o que quiser, mas, por favor, não me violente aqui no telhado.
Está muito frio e duro. Por favor, John. Prometo me comportar.
John riu e curvou mais a cabeça a fim de poder olhar dentro dos seus olhos.
— Ah, minha querida e adorável Lillis, você é tão esperta! Se eu pudesse mantê-Ia
ao meu lado, nós nos divertiríamos muito. — Beijou-a de leve na boca e sorriu. — Mas
isso não vai ser possível. Você precisa morrer, lamento muito. Depois de lhe fazer amor,
minha doçura, vou atirá-Ia pelo parapeito. Entendeu? Vou jogá-Ia do mesmo lugar de
onde a sua mãe pulou. A minha astúcia não é de causar admiração? Vão pensar que
você seguiu o exemplo materno.
Ao ouvir essas palavras, Lillis não ficou muito amedrontada, nem foi tomada pela
sensação de mau agouro. A própria vida não tinha muita importância, mas, de forma
alguma, permitiria que algum dano fosse causado ao filho ainda por nascer.
— Não vou deixá-Io me matar, John Baldwin! — declarou em voz fria.
— Não mesmo? — John perguntou, divertido.
— Não! — ela gritou ao conseguir soltar uma das mãos outra vez.
Embora não houvesse muito espaço entre ambos e o telhado, Lillis agiu como pôde.
Puxou a mão para o
lado, fechou-a e desferiu um murro no nariz de John.
O impacto foi impressionante, e ela chegou a ouvir o estalar de ossos. Ao vê-Io
cobrir o rosto com as mãos, Lillis rolou para o lado.
Sem olhar para trás, correu para a escada que, como num sonho, surgiu quase à
sua frente. Perto o suficiente para ver, mas longe demais para alcançar. A uns poucos
passos dela, John a agarrou, jogando-a no telhado e deitando-se sobre ela novamente.
Ele, agora, não media a brutalidade. O rosto, quando Lillis olhou, era a imagem do ódio e
da dor.
— É isto que você quer, minha querida — urrou ele. Até esse dia, Lillis nunca tinha
apanhado de um homem. Furioso, John pôs-se a esmurrá-Ia com ambas as mãos nas
faces, na boca e nos olhos. Ela apanhou até ficar atordoada de dor.
Lillis não percebeu quando os golpes pararam e a dor diminuiu. A mente rodopiava e
os sentidos tornavam-se nebulosos. Vagamente, percebeu que John começava a beijá-Ia
e acariciá-Ia. Ouvia gemidos, mas não sabia se eram os seus de dor ou os dele de
excitação. Quando ele levantou-lhe a saia, ainda tentou lutar, mas não tinha mais forças,
e John continuava determinado. Num instante, a peça enrolava-se na sua cintura.
— Ai, meu amor, não está muito melhor assim? ela o ouviu perguntar de encontro à
sua face.
Com lábios úmidos, ele a beijava pelo rosto todo, e Lillis quase se sentiu grata pela
mente entorpecida.
— Vou fazê-Ia sentir delícias, Lillis. Vai gostar muito, minha querida. Você me quer,
não é verdade? Eu sei que me quer.
Tomada pela repulsa e pela revolta, Lillis rezava desesperadamente pela salvação.
Alexander chegaria logo. Alguém apareceria ali. Logo. Implorava a Deus para atendê-Ia.
E então, de repente, Lillis ouviu várias coisas ao mesmo tempo. Houve uma
comoção barulhenta no telhado, e John praguejou. Um assobio longo, vindo da escada,
foi respondido, estranhamente, pelo chamado de um pássaro. John praguejou novamente
e começou a sair de cima de Lillis, mas, antes de conseguir se levantar, uma ave imensa
o atacou. Seguiu-se uma agitação de vento, asas batendo e penas esvoaçando.
Embora estivesse escuro e Lillis tivesse os olhos inchados, por causa da agressão
de John, ela enxergava o suficiente para perceber o que estava acontecendo. Uma ave
atacava John com a ferocidade destinada a uma presa, e ele gritava, praguejava, retorcia
o corpo e agitava os braços a fim de escapar da criatura furiosa.
Lillis arrastou-se depressa e correu para onde achava ficar a escada. Entretanto,
percorreu apenas uns poucos passos. Dois braços a agarraram pela cintura e a levan-
taram no ar.
Ela lutou e deu uma forte cotovelada no novo captor antes de ouvi-Io resmungar
bravo:
— Lillis!
— Hugh! — ela exclamou, virando-se e abraçando-o pelo pescoço. — Graças a
Deus, Hugh!
— Pare de falar e venha comigo. Você quase caiu daqui de cima do telhado, sua
mulher boba.
Ele a levou até a escada, desviando-se do lugar onde John continuava a lutar contra
a ave.
— Estamos aqui, Hugo — avisou Hugh, baixinho, ao fazer Lillis parar. — Acenda a
tocha agora.
Um lampejo de chamas afastou a escuridão iluminando a área à volta deles. No
princípio, o brilho os ofuscou.
— Olhem! Lá estão John e Lady — disse Hugh apontando. — Ela o forçou até a
beirada do telhado!
De fato, John, completamente confuso com a selvageria do ataque, tinha se
aproximado da mureta. O falcão continuava a investir, bicando-lhe os olhos e arranhando-
lhe o rosto com as garras.
— Chame Lady de volta! Você precisa chamá-Ia já! soluçou Lillis. — Ai, Deus
misericordioso! Não! Não!
Enquanto Lillis falava, John perdeu o equilíbrio e despencou lá de cima com um grito
horrível, seguido pela ave. Instantes depois, fez-se silêncio.
Mas Lillis o quebrou com um grito de horror, e os gêmeos, com expressão de
choque, olharam para o lugar onde John tinha desaparecido.
— Meu Deus — gemeu Lillis. Ele era um homem pavoroso, mas não merecia morrer
desse jeito.
— Você acha que ele está morto? — Hugh perguntou.
— Assim espero — respondeu Hugo. — Não deve ter sobrado muito dele. Será
melhor se estiver morto.
— Foi terrível! Terrível! — exclamou Lillis em prantos. Hugo passou o braço por seus
ombros.
— Ele devia estar louco. Não chore, Lillis. Não há nada que possamos fazer. Ele
está morto. Por Deus! O primo John está morto! — repetiu como se acabasse de
compreender o fato.
Hugh deixou-se cair no último degrau da escada e apoiou a cabeça nas mãos.
— Que noite! Se ao menos tivéssemos chegado aqui mais cedo...
— Por onde vocês andaram? — perguntou Lillis ao afastar o braço de Hugo e olhar
de um para o outro. Ora, vocês estão machucados e com marcas de sangue. O que
aconteceu?
Hugh ergueu a cabeça e a fitou. Lillis pôde ver melhor as esfoladuras e cortes no
rosto dele e um outro, mais profundo, no lado da cabeça.
— Nós tínhamos a incumbência de protegê-Ia — começou ele. — Bárbara nos
mandou um bilhete, ontem cedo, para não sairmos do seu lado, caso John aparecesse
por aqui. Ela não explicou mais nada, exceto que deveríamos estar preparados para
defender você de John. Não sabíamos ao certo o que fazer e não queríamos assustá-Ia
sem razão. Por isso, passamos o dia esperando por ele.
— E tentando refletir no que faríamos se surgisse algum problema — acrescentou
Hugo.
— É, mas só tínhamos uma vaga idéia de como agir quando John surgisse.
Achamos melhor ficar de sobre-aviso e esperar até que ele chegasse, para resolver de
acordo com a situação.
— Mas não éramos os únicos observando o movimento de Wellewyn — aparteou
Hugo ao massagear o queixo inchado e roxo. — John deve ter mandado alguns dos seus
homens para cá a fim de nos vigiar. Hoje, logo depois do café da manhã, saímos para o
nosso posto de observação e fomos atacados por quatro homens.
— Eram grandes e fortes. Eles nos deram uma sova que nos deixou desacordados.
Depois, nos amarraram contou Hugh.
Lillis estremeceu ao pensar na cena.
— Gastamos um tempo dos diabos para nos soltar e, quando conseguimos, viemos
diretamente para cá a fim de procurar você.
— Não encontramos ninguém lá embaixo, então, resolvemos subir ao telhado e, aí,
ouvimos você falando com John, tentando se livrar dele. Não sabíamos como ajudá-Ia e
não tínhamos tempo a perder. Atiçar Lady sobre ele foi só o que nos ocorreu. Ainda bem
que trouxemos os pássaros de Gyer para cá.
— Nem diga, Hugh. Foi a minha salvação. Ele pretendia me atirar lá para baixo
depois de me violentar. Vocês dois salvaram a minha vida. Estou muito orgulhosa de
ambos e mais agradecida do que jamais poderia dizer — disse Lillis.
Hugh sorriu-lhe.
— Naturalmente nós tínhamos de salvá-Ia, Lillis. Não acha que íamos deixar alguma
coisa ruim acontecer a você, não é? Mas a questão não está resolvida. John já está fora
do caminho, mas os homens dele continuam aqui em Wellewyn. Quase todos estão lá no
incêndio alimentando as chamas enquanto o povo da vila tenta apagá-Ias. Logo,
entretanto, virão procurar John. Quando o encontrarem...
— Temos de sair do castelo imediatamente e levar Lillis para Gyer — opinou Hugo.
— Alex saberá o que fazer.
— Tem razão — concordou Hugh, levantando-se. Precisamos agir com cautela.
Vamos tirar cavalos do estábulo às escondidas e...
O barulho de uma grande comoção lá embaixo o interrompeu. Os três entreolharam-
se e puseram-se à escuta. Havia uma grande gritaria e estalos como se os móveis
estivessem sendo atirados contra as paredes.
— Mas eles precisam destruir tudo? — indagou Lillis, preocupada.
Já havia tão poucos móveis em Wellewyn e, pelo barulho, não restaria nenhum.
— Quieta! Preste atenção — murmurou Hugo.
Uma voz destacou-se das outras. No início, era indistinta, mas foi se avolumando até
lembrar o ribombar de um trovão.
— Lillis? Maldição! Onde está você? Lillis!
Os três gritaram juntos, chocando-se entre si na pressa de descer a escada.

CAPÍTULO XXV
— Minha querida, não se mexa, por favor.
— Você está me machucando, Alexander.
Ele suspirou e levantou a toalha molhada com a qual vinha limpando o rosto de Lillis.
Ela estava na cama onde Alexander acabara de deitá-Ia e, apesar das pálpebras
inchadas, lançava-lhe um olhar ressentido.
— Essa é a maneira de tratar a sua mulher depois de ela haver sofrido tanto? Não
preciso ser mais machucada. John já fez um trabalho completo.
Enquanto molhava a toalha numa bacia ao lado e a torcia, Alexander assumiu
expressão sombria.
— Jamais repita o nome desse homem outra vez, Lillis. A única razão pela qual eu
queria que ele ainda estivesse vivo era para ter o prazer de matá-Io com as minhas
próprias mãos.
Lillis fez uma careta de dor quando ele limpou a área sob o olho esquerdo.
— Você não está falando sério, não é, Alexander?
— Estou. Eu o mataria não pelo fato de ter feito mal a mim e a Willem. Mas ele a
machucou muito, Lillis, física e emocionalmente e, por isso, merecia morrer. Agora, fique
quieta.
Lillis não mencionou que ele também estava lhe provocando dores horríveis, embora
com boa intenção. A expressão do marido continuava sombria, e ela não queria agravá-
Ia. Ambos estavam vivos e lado a lado. Isso a contentava.
— Os gêmeos foram muito corajosos — disse e alegrou-se ao ver AIexander sorrir
um pouco.
— Ah, foram mesmo — concordou ele ao lembrar-se da cena nos primeiros degraus
da escada para o telhado. Em pânico, procurava pela mulher quando viu os três descendo
ao seu encontro e gritando-lhe o nome como loucos. — Quem haveria de adivinhar que
aqueles dois diabinhos seriam capazes de tamanha façanha? Vou lhes dar um prêmio.
Eles merecem — acrescentou, orgulhoso.
— Se merecem! — disse Lillis.
Ficaram em silêncio, e AIexander continuou os curativos, porém, a expressão
sombria retornou. Lillis levantou a mão e o tocou no rosto.
— Diga a verdade, AIexander. Não me olhei no espelho, mas devo estar pavorosa,
não é?
Ele sacudiu a cabeça.
— Tolice, Lillis. Você é a mulher mais bonita deste mundo de Deus.
— Não agora. O meu nariz deve estar três vezes maior e os meus olhos, com
certeza, lembram os de um sapo. Você vai ter de arranjar um saco vazio para cobrir
minha cabeça e poder dormir comigo na mesma cama.
AIexander riu.
— Um saco. Imagine! Suas machucaduras vão cicatrizar logo e você estará mais
linda do que nunca. Sabe disso muito bem. Mas, se quer sentir-se mais confiante, meu
amor, eu lhe falarei a verdade. Você poderia ser completamente calva e ter apenas um
olho no meio da testa que eu a amaria com a mesma profundidade e continuaria
achando-a de grande beleza. E, se houvesse um único lugar no seu rosto que não
estivesse machucado, eu o beijaria — acrescentou.
Lillis sorriu, embora isso fizesse os seus lábios voltarem a sangrar.
— Sabe, Alexander, essas foram as palavras mais lindas que você já me disse. Eu
também o amo mais do que nunca, apesar de você estar com o rosto preto.
— Pare de sorrir ou os seus lábios continuarão sangrando. Ela tocou-lhe o queixo
manchado.
— Como ficou preto desse jeito, meu marido?
— Bebi tinta de escrever. Foi com isso que Bárbara substituiu o veneno do frasco.
— Ah, Alexander, como você teve coragem de beber tinta de escrever?
— Não tive escolha. Só espero que desapareça depressa. Deve haver alguma
poção para passar na pele e limpá-Ia. Tia Leta, sem dúvida, tem uma receita horrível que
me obrigará a usar.
— Pode ter certeza disso — concordou Lillis. Alexander pôs a toalha de lado e,
cuidadosamente, enfiou as mãos sob as costas de Lillis. Abraçou-a devagar enquanto ela
o enlaçava pelos ombros. Era tão reconfortante sentir o calor dele. Passou-se um minuto
antes de Lillis perguntar:
— Alexander, o que o está aborrecendo? Conte para mim. Ele aconchegou o rosto
na curva do seu pescoço.
— Eu quase perdi você hoje, meu amor. Pensei que tinha perdido o meu irmão e
que eu ia morrer.
— Mas nada disso aconteceu. Você está vivo e ao meu lado.
— Eu sei. Mas você quase morreu porque estava longe de mim e porque não me
deixou colocar alguns dos meus homens de prontidão aqui. Pode imaginar como me
sentia angustiado quando vinha para cá? O tempo todo, me maldizia por tê-Ia deixado
exposta e vulnerável.
— Não teria adiantado nada se você tivesse deixado até mesmo cem soldados aqui.
Eles estariam com os homens de Wellewyn tentando apagar o incêndio.
— Talvez tivesse ajudado — teimou Alexander.
— Não teria nada. E como acreditar que John não tentaria me matar em Gyer? Ele
quase conseguiu matá-Io, Alexander. Devemos mostrar gratidão a Deus pelos milagres
ocorridos hoje. E não podemos deixar de ser agradecidos a Bárbara também. Depois de
viver tantos anos sob o domínio do irmão, não deve ter sido fácil traí-Io. A pobre,
provavelmente, estava apavorada com ele para agir atrapalhando-lhe os planos. Ela o
queria bem, tenho certeza. Como Bárbara receberá a notícia da morte do irmão?
Alexander aconchegou-se ao seu corpo morno e sentiu-se bem.
— Não faço idéia. Essa missão cabe a Jason de Burgh, e não a mim. Eles vão se
casar dentro de poucos dias, prometi, e nós ficaremos livres de Bárbara. Vamos pro-
videnciar o casamento mais suntuoso já ocorrido em Gyer.
— Mais do que o nosso? — provocou Lillis.
Alexander ergueu a cabeça, mas, ao rever o rosto machucado da mulher,
novamente desejou matar John Baldwin.
— O nosso casamento ficou longe de ser uma coisa maravilhosa, meu amor.
— Mas foi um casamento — argumentou Lillis.
Ele riu.
— É o máximo que se pode dizer a respeito dele. Deitou-se ao seu lado, tomou-lhe
uma das mãos e a beijou.
— Eu a amo, Lillis Ryon, e desejo tê-Ia como minha esposa. Você me dará a honra
de se casar comigo?
Lillis fitou-o com olhar firme.
— Já estamos casados, Alexander.
— Não. Foi um casamento forçado, sem amor. Nós haveremos de nos casar outra
vez, repetir os nossos votos com sinceridade, sem nada entre nós exceto o amor. Nem
terras, nem parentes, nem brigas.
— Nem cativeiro?
— Não, claro. Não haverá mais guardas ou portas trancadas. Eu quero que você
seja a senhora de Gyer sob todos os aspectos, com toda a honra, respeito e dignidade
que merece. Aceita casar-se comigo, Lillis?
Maravilhada, ela fitou os lindos olhos verdes de Alexander. Como era grande a
distância percorrida por ambos desde aquela primeira noite em que ele se tornara o seu
captor.
— Há uma coisa que quero lhe dizer antes de dar a minha resposta, meu querido.
— Do que se trata?
Lillis tomou-lhe uma das mãos e entrelaçou os dedos. Com o polegar, Alexander
acariciou-a.
— Estou grávida — murmurou, meio encabulada.
Um grande sorriso iluminou o rosto de Alexander.
— Eu sei.
— Você sabe?! Como?
— John me contou.
— John lhe contou? Aquele homem cujo nome eu não deveria mais repetir lhe
contou? — perguntou ela com um toque de raiva na voz.
Alexander podia sentir o corpo da mulher tornar-se tenso. Mudou um pouco de
posição e tentou acalmá-Ia.
— Bem, ele não me contou exatamente. Apenas mencionou que você poderia estar
grávida.
— Muito atencioso da parte dele — ironizou Lillis. Ele não sabia ser privilégio da
mulher informar o marido sobre o seu estado?
— Estava prestes a me matar e, sem dúvida, não ia levar em consideração as
cortesias habituais naquele momento. Isso não tem mais importância. Estou muito feliz
com a perspectiva de ser pai, amor.
Lillis não prestou muita atenção às palavras de Alexander.
— Tinha a intenção de fazer-lhe uma surpresa. Eu mesma queria lhe contar, mas
aquela criatura perversa, horrível e cruel... — Calou-se e o fitou. — Você disse que está
feliz, Alexander?
Ele sorriu e beijou-a na ponta do nariz inchado.
— Muitíssimo feliz.
A raiva de Lillis dissipou-se sob a meiguice e orgulho do olhar dele.
— O nosso primeiro filho — murmurou ela.
— O primeiro de muitos, espero — disse ele, acariciando-lhe a barriga. — Gostaria
de ter uma dúzia de filhos com você, Lillis. Imagino se este vá nascer parecido com a
mãe.
Lillis limpou a garganta.
— Alexander, se for um menino, eu gostaria de dar-lhe o nome do meu pai.
Alexander a fitou com olhar incrédulo.
— Você está brincando.
Lillis sacudiu a cabeça.
— Não. Eu gostaria de chamá-lo Jaward, como o meu pai.
— Não! — Alexander exclamou em tom raivoso ao sentar-se. — Absolutamente não!
Lillis o encarou com severidade.
— Eu apenas disse que gostaria de dar-lhe o nome de Jaward. Trata-se de um
pedido, e não de uma exigência. Não podemos conversar sobre o assunto?
— Não! — ele gritou. — Filho meu nunca receberá o nome daquele homem, Lillis.
Jamais! Eu escolherei o nome — declarou, levantando-se e indo até a janela onde abriu
as venezianas com força.
Ao olhar para as costas rígidas do marido, Lillis foi dominada pelo desapontamento.
Queria esbravejar, gritar de frustração, mas apenas virou-se de lado e fechou os olhos,
tentando conter as lágrimas. Não culpava Alexander por ter reação semelhante. Havia
ainda tantas coisas que ele não compreendia e tantas outras que ignorava, tais como as
ocorridas entre os pais de ambos. Ele nem sabia ainda a verdade sobre os gêmeos. Ela
seria paciente. Conversaria com o marido de manhã e, então, talvez...
A pressão na cama interrompeu os pensamentos de Lillis. No instante seguinte, os
braços de Alexander rodeavam-lhe a cintura e a puxavam de encontro ao peito.
Suspirando, apoiou o rosto no topo da sua cabeça.
— Por favor, me perdoe. Tenho medo que vá levar algum tempo até eu deixar de me
sentir bravo com o seu pai e parar de me comportar de maneira tola. Mil vezes perdão.
A meiguice da voz a desarmou, e as lágrimas quentes inundaram os seus olhos
inchados.
— Tudo bem, Alexander, compreendo como você se sente a respeito dele.
Ele estreitou-a entre os braços.
— Conversaremos sobre o nome da criança mais tarde. Não posso prometer que
concorde com Jaward.
— Apenas peço para você pensar nessa possibilidade. Só isso.
— Pensarei. Prometo.
— Nesse caso, aceito o seu pedido de casamento. Ela sentiu-o sorrir no topo da sua
cabeça.
— Aceita mesmo? Só porque prometi pensar no nome? Ela riu.
— Porque o amo muitíssimo e porque acredito que você não vai me tratar com muita
tirania.
— Eu jamais a tratei com tirania, madame.
— O senhor é, provavelmente, o maior tirano da cristandade, sir.
— Você está me confundindo com tia Leta, minha querida.
— É bem possível que esteja certo — concordou Lillis, rindo, alegre.
Alexander a deitou de costas a fim de fitá-Ia nos olhos.
— Estou muito feliz, Lillis, e me sinto muito afortunado. Hei de dar graças a Deus,
todos os dias, por ter me dado você.
— E eu hei de agradecer por Ele ter dirigido os meus passos até você — ela disse e,
depois, acrescentou com ar preocupado: — Alexander, existem muitas coisas que preciso
lhe contar a respeito das nossas famílias. Coisas que não serão ouvidas com muita
tranqüilidade.
Alexander mostrou-se intrigado.
— É mesmo? Nesse caso, vou me preparar para ouvi-Ias. Mas vamos esperar até
amanhã, amor. Esta noite, só quero pensar em você. — Beijou-a de leve nos lábios. —
Dói muito? — perguntou.
— Um pouco — respondeu Lillis, passando os braços à volta do pescoço do marido.
— Dá para agüentar. Senti tanta falta sua, Alexander, desde a última vez que estivemos
juntos. Você vai fazer amor comigo?
Ele sorriu-lhe.
— Não sei. Por acaso você não tem um saco vazio à mão? Lillis soltou uma
exclamação e golpeou-lhe o peito. — Seu malvado!
Alexander riu alto e a abraçou.
— Acalme-se, mulher. Você sabe muito bem que estou brincando.
— Pois acho melhor provar, meu senhor.
— Com o maior prazer — respondeu Alexander ao preparar-se para atendê-Ia.

FIM

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