Você está na página 1de 36

Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.

Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

1 – A Cortina de Trevas

D o alto da colina, Elôm de Ganeden, chamado por


muitos de príncipe dos nasîs, comandante supremo
dos exércitos de Olam, contemplava o avanço im-
placável das armaduras prateadas. O gigante de bronze, como
ele era chamado por causa da altura e pela cor de sua pele, ob-
servou o entardecer e percebeu que estava sombrio como era
esperado num dia de batalha.
Um vento estranho vinha do sul trazendo aromas do
deserto que despertavam nele lembranças de um tempo que
não existia mais. Não era agradável, nem trazia bom agouro.
Era um vento da fronteira, seco e frio, vindo diretamente da
escuridão de Hoshek, o qual falava de guerras antigas e terrí-
veis batalhas que haviam sido travadas num tempo quando as
trevas foram mais fortes do que a luz. Do tempo em que, após
tantos combates, toda a terra entrou em colapso e tornou-se,
como se costumava dizer, tohû wabohû.1

1 No hebraico significa “sem forma e vazia” ou “caos”.

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

Elôm abaixou-se e pegou um pouco da areia fina e es-


tranhamente cinzenta daquele deserto. A areia era misturada
com fuligem e contrastava com a palma branca de sua mão.
Ele cheirou a areia e olhou mais uma vez para o sul do mun-
do, de onde vinha toda aquela fuligem que impregnava o de-
serto.
Aquela batalha parecia próxima do fim. Sete legiões do
exército de Olam, com todo o seu poderio, iam chocar-se mais
uma vez — a última, ele esperava, em vinte anos de avanço —,
contra o remanescente da mais poderosa das divisões do exér-
cito de Bartzel. As trombetas soavam coordenando a prepara-
ção do ataque, os estandartes de Olamir tremulavam ao vento
cada vez mais forte que soprava do sul. Nas bandeiras, era
possível ver a bétula branca anã, símbolo de Olamir, com sua
enigmática luminosidade ao entardecer.
O comandante dos exércitos de Olam imaginava que,
àquela altura, a batalha já teria terminado. Nos seus planos,
estariam retornando vitoriosos para a cidade branca, com o
menor número possível de baixas e com a missão dada pelo
Melek totalmente cumprida. Eles, de fato, tinham estado mui-
to perto da vitória nos dias anteriores, inclusive naquela ma-
nhã, mas, de algum modo misterioso, aquela vitória final pare-
cia escapar deles quase como se fosse a areia com fuligem cin-
zenta fugindo por entre seus dedos...
O confronto estava durando mais do que o esperado e
os custos também... muito mais... Teria ele cometido um erro
vindo tão longe com os exércitos de Olam? Era a primeira vez
que se deslocavam para praticamente a fronteira com a cortina
de trevas. Ela estava ali, a poucos quilômetros ao sul, total-

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

mente visível, como um muro intransponível. E era ela, mais


do que os inimigos abaixo, que causava nele toda aquela inqui-
etação. Cada soldado que marchava no campo de batalha evi-
tava olhar para a escuridão, para não perder o resto de cora-
gem.
O céu de chumbo ainda tinha alguns rasgos iluminados
que pareciam caminhos de prata para o além. E, de fato, mi-
lhares de vidas já haviam sido ceifadas naqueles dois últimos
dias de intensos combates. Ele lamentava cada uma delas. Es-
perava não ter que perder mais nenhuma, embora soubesse
que isso seria impossível. Muitos daqueles soldados que com-
punham as legiões que avançavam em rígida disciplina militar
não retornariam para casa, nem veriam suas esposas e filhos.
Não veriam a “glória de Olamir”, como sempre se repetia nos
juramentos dos soldados, pela qual lutavam. Porém, prova-
velmente assegurariam, com seu sacrifício, que a glória da ci-
dade branca perdurasse por bastante tempo.
Estava na hora de encerrar aquela campanha vitoriosa
após vinte anos de avanço contra os inimigos. Ao vencerem
aquele último confronto, poderiam retornar para Olamir e di-
zer que haviam conseguido cumprir a missão de enfraquecer
significativamente os impérios de Bartzel. Evidentemente, os
inimigos ainda não estavam totalmente derrotados, pois as
legiões de Olam estavam longe de chegar ao coração dos im-
périos vassalos, mas aquilo nunca havia sido o objetivo da
empreitada. Desde que o cerco de Olamir fora quebrado, vinte
anos antes, após a cidade branca ter enfrentado sua maior
ameaça em milênios, o objetivo era garantir que os impérios
de Bartzel não retornassem às muralhas de Olamir tão cedo.

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

Vinte anos depois, as armaduras prateadas haviam empurrado


as forças remanescentes dos vassalos até a borda da escuridão.
“Por Ganeden e por Olam”, ele sussurrou para si mes-
mo, colocando-se em pé novamente, enquanto deixava a areia
escapulir totalmente de sua mão. Logo teria que repetir com
muito mais volume aquele brado de guerra.
Ele observou, do alto da colina e de seus dois metros e
dez de altura, a movimentação de seus soldados equipados
com armaduras reluzentes. Ele próprio também usava uma
armadura prateada, já bastante gasta, que contrastava com sua
pele morena. Diferente dos outros soldados, presa sobre os
ombros dele, esvoaçava a longa capa vermelha, a Aderet, sím-
bolo máximo e exclusivo dos guerreiros nasîs. A capa não ti-
nha nenhum rasgo e seu vermelho resplandecia como se nun-
ca tivesse participado de nenhuma batalha antes, embora já
tivesse participado de tantas. Ele segurava um elmo prateado
embaixo do braço, o qual era feito de um metal raro de Gane-
den, bastante leve e muito resistente. O elmo era largo, e qua-
drado, e tinha alguns fragmentos de pedras shoham nele, o
que conferia ao instrumento, especialmente à viseira, algumas
funções especiais.
Elôm era completamente calvo. Por causa da altura, ele
parecia magro. Mas seus braços fortes, os ombros largos e o
peito musculoso não deixavam dúvidas quanto à sua força. O
sorriso gentil e o falar grave, porém suave, que o marcavam
em outros momentos, na hora do combate, davam lugar a
uma determinação implacável.
Elôm prestava atenção aos quatro de seus nasîs que,
como generais, lideravam o avanço das armaduras prateadas

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

contra os estandartes do ferro e do bronze. Eles estavam se-


guindo suas ordens expressas e lideravam quatro legiões, cada
uma com cinco mil soldados. Os quatro destacamentos avan-
çariam pelos flancos, dois de cada lado, todos em formato de
“v” invertido, com um nasî à frente. A liderança dos nasîs ins-
pirava confiança, mesmo assim Elôm sabia que não podiam
cometer nenhum erro agora, pois estavam perto demais da
cortina de trevas.
Ele próprio se preparava para avançar pelo meio, lide-
rando três legiões unidas, que também formavam um enorme
“v” invertido, somando quinze mil homens. Seus soldados
aguardavam impassíveis em perfeita formação atrás dele. To-
dos acreditavam que, com aquele avanço final, acabasse de vez
toda a resistência dos inimigos. Afinal, agora, eles não tinham
para onde fugir, a menos que se lançassem para dentro da
própria cortina de trevas. Mas, nem mesmo aqueles soldados
seriam tolos para fazer isso.
Apesar de tudo apontar para um desfecho rápido, —
pois estavam em maior número e com a formação ideal de
batalha, enquanto os inimigos estavam encurralados e, aparen-
temente, desorganizados —, Elôm não se sentia confortável
por estarem tão perto da cortina de trevas. Elôm olhou mais
uma vez para a barreira de escuridão que marcava a divisão do
mundo, — Olam de um lado, Hoshek do outro — estaciona-
da a menos de três quilômetros ao sul, parecendo uma grande
muralha tenebrosa que ia do chão ao céu, ou uma tempestade
de areia misteriosamente parada. Ela causava-lhe intensa re-
pulsa.
Era inevitável não pensar que, de algum modo, haviam

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

sido atraídos para aquele lugar. Devíamos ter vencido essa batalha
ao amanhecer, pensou o gigante de bronze. De fato, ao amanhe-
cer, vários quilômetros ao norte, eles haviam encurralado os
inimigos entre o vale e a colina. Não ia embora de sua mente o
modo com as coisas haviam acontecido. De algum modo, o
desfecho daquela batalha não pareceu algo natural. Lembrava-
se de cada detalhe dos eventos e decisões tomadas, de quando
havia tocado a trombeta de prata para o ataque e o modo co-
mo, misteriosamente, uma tempestade de areia surgiu do nada
e cobriu Shamesh, fazendo parecer que a noite havia retorna-
do após ter acabado de partir. Aquilo impediu o avanço final
de Olam, dando oportunidade para que os guerreiros de Bart-
zel batessem em retirada.
“Um avanço rápido e letal”, foi o que ele ordenou
quando a tempestade passou e abriu caminho para o ataque
outra vez. “Ninguém se aproxima da barreira de trevas”, foi
sua segunda ordem bem clara. “Ignorem-na! Nem olhem para
ela!”.
Depois de um longo dia de avanço das tropas, estavam
prontos para dar o último golpe. Com praticamente o dobro
de soldados, absoluta disciplina de combate, e a presença de
cinco nasîs, parecia mesmo impossível que os inimigos tives-
sem ainda alguma chance. Porém os guerreiros de Bartzel es-
tavam mais próximos da cortina de trevas do que nunca.
Elôm olhou para trás e viu a plena confiança no olhar
dos soldados, pois eles também enxergavam essas coisas, ape-
sar de estarem obviamente cansados. Além das duas noites
sem dormir, aquele avanço final, em marcha acelerada, havia
consumido praticamente o restante das forças deles. Mesmo

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

assim viu como todos olhavam para ele, e, obedecendo suas


orientações, mantinham-se empertigados e evitavam encarar
Hoshek.
O capitão do exército de Olamir estava ali, um passo
atrás dele, enfiado em sua armadura perfeitamente escovada.
O homem comandava o exército da cidade, o qual tinha o do-
bro de soldados da soma do restante das cidades de Olam.
Mesmo assim, sem qualquer ressentimento, submetia-se às
suas ordens. Elôm havia assumido o comando desde a quebra
do cerco de Olamir. Isso já fazia vinte anos. O capitão era bas-
tante experiente e ocupava aquela posição a mais tempo do
que a grande maioria conseguiu permanecer antes dele. E não
foram poucos. Olamir estava em guerra por quase três séculos.
O capitão tinha barba e cabelos castanhos cortados cur-
tos e bem aparados. Apesar de não ser mais jovem, ele tinha
um porte físico excepcional e manejava a espada como poucas
vezes Elôm tinha visto alguém, sem o treinamento dos
kedoshins, fazer. Ele compreendia bem de estratégia também.
Graças ao capitão, aquelas cinco formações em “v” puderam
ser criadas a tempo de realizar o ataque final antes do anoite-
cer. Porém, Elôm via uma sombra nos olhos dele e não sabia
dizer ao certo se era por algo terrível que havia em seu passa-
do, ou se era algo do seu futuro.
— Estamos prontos — disse o capitão as palavras que
pareciam bem óbvias, observando do alto da colina a desorga-
nização dos inimigos em contraste com a perfeita organização
do exército de Olam.
Elôm percebeu que o capitão estava estranhando aquela
relutância do comandante supremo em ordenar o ataque. Afi-

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

nal, naqueles vinte anos de avanço, Elôm jamais havia titubea-


do na hora de soar a trombeta de prata.
O príncipe nasî olhou mais uma vez para o capitão e
para os soldados atrás dele. Viu rostos e corpos empertigados,
expressões que se esforçavam por transmitir confiança, mas
ele podia ver, como ninguém mais, o medo lá no fundo dos
olhos de todos, justamente naquela parte escura do olho de
cada soldado onde se refletia a cortina de trevas. Nenhum da-
queles soldados a tinha contemplado antes. Mesmo assim sa-
bia que todos estavam apenas aguardando por sua ordem para
lançarem-se de corpo e alma contra o inimigo, desde que, é
claro, fosse apenas um inimigo humano.
Ele tinha consciência do que sua figura representava pa-
ra as armaduras prateadas. Seus homens lançariam-se no fogo
se ele ordenasse. Todas as lendas que eram contadas a seu res-
peito — e do restante da guarda dos nasîs — haviam criado
uma aura de invencibilidade nas armaduras prateadas. Depois
de trezentos anos de guerra, aqueles vinte anos de conquistas
representavam muita coisa, especialmente para os guerreiros
mais novos. Músicas que eram cantadas à noite, ao redor de
fogueiras, narravam incontáveis batalhas que eles haviam ven-
cido naquelas duas décadas. O nome dele estava presente em
cada uma das músicas. Algumas relatavam seus feitos indivi-
duais impressionantes, como uma vez em que os inimigos en-
viaram feras contra eles e ele havia lutado com três leões de
uma só vez. Ele tinha a fama de, por um lado, não desperdiçar
golpes e, por outro, jamais ter precisado golpear duas vezes
um mesmo adversário.
— Você já esteve em centenas de batalhas por Olamir,

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

não é mesmo Sêmuel? — perguntou Elôm para o homem bai-


xo e troncudo, convidando-o com um gesto para que se colo-
casse ao seu lado.
O capitão adiantou-se meio desajeitadamente, parecen-
do sentir-se indigno de colocar-se ao lado do comandante su-
premo dos nasîs.
— Em todas em que o senhor também esteve — disse
o capitão.
— Alguma vez você imaginou que a veria? Ela é como
você imaginou?
Elôm viu os escuros olhos de Sêmuel fixarem-se na bar-
reira de trevas e viu o rosto dele empalidecer por alguns ins-
tantes enquanto a contemplava.
— Eu nunca poderia ter imaginado algo assim — con-
fessou Sêmuel com algum tremor na voz. — É pior do que
todos os nossos pesadelos.
O comandante assentiu, com seus olhos negros também
fixos na escuridão.
— Diga-me, Sêmuel, por que viemos tão longe e somos
os primeiros, em milênios, a contemplar toda essa escuridão?
Pelo que lutamos afinal, capitão de Olamir? O que estamos
fazendo aqui?
Elôm viu a estranheza crescer no rosto pálido do capi-
tão. O homem retirou os olhos castanhos da cortina de trevas
e os fixou timidamente no rosto cor de bronze do comandante
nasî. Elôm viu, outra vez, a sombra no olhar dele e soube, na-
quele momento, que ele contemplaria as trevas como nenhum
outro.
— Estamos aqui para fazer com que aquela escuridão

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

fique ali parada — disse o capitão, tentando parecer forte e


convicto. — Lutamos pela liberdade e pela glória de Olamir.
— Liberdade e glória são duas palavras que não cabem
na mesma frase — disse Elôm, enquanto ajustava o elmo na
cabeça, a fim de observar mais atentamente o campo de bata-
lha, antes de dar a ordem para o ataque. — Vocês devem lutar
por suas vidas e por suas famílias.
— Eu não tenho família, senhor — disse o capitão de
Olamir. — E já não tenho mais idade para ter.
— Quem pode saber o que o destino ainda reserva para
você? — disse Elôm. — Dentro de alguns meses, você vai
segurar uma criança nos braços!
O capitão riu daquelas palavras, pensando que era al-
gum gracejo. Parou de rir, entretanto, ao ver que Elôm estava
absolutamente sério.
O nasî fez um gesto para que o capitão retornasse para
o seu posto e ele obedeceu.
— Mas, antes, você vai contemplar a escuridão — o na-
sî sussurrou apenas para si mesmo.
O nasî esqueceu o capitão por um momento e olhou
através da viseira especial potencializada por pedras shoham.
Imediatamente, a visão do exército transformou-se à sua fren-
te. Ele começou a ver inúmeros detalhes que não podiam ser
vistos a olho nu. Observou as quatro legiões lideradas pelos
nasîs, como lanças avançando lentamente pelos flancos, já
bem próximas do lugar combinado. Observou também a mas-
sa de inimigos, aparentemente desorganizada à frente, com
todos aqueles soldados quase encurralados na cortina de tre-
vas.

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

A própria cortina revelou outras formas através da vi-


seira do elmo. Ele havia resistido em olhar diretamente para
ela com a viseira, mas, naquele momento, cedeu ao apelo de
contemplar o mundo de trevas, o qual homem nenhum jamais
havia visto. Um resquício de tohû wabohû.
Viu ao longe, por causa das lentes, atrás da cortina,
mergulhadas na escuridão, as ruínas infindáveis da maior cida-
de já construída. As torres antigas ainda se elevavam às alturas.
Era a primeira vez que as contemplava, e seu coração ficou
cheio de sentimentos dúbios ao ver a antiga cidade dos
kedoshins. Havia ouvido falar tanto a respeito dela durante o
longo período de treinamento em Ganeden. A maior obra de
seus mestres kedoshins ainda permanecia parcialmente em pé,
apesar de totalmente abandonada nas trevas. No alto dos pi-
náculos das torres altíssimas de Irkodesh, ainda havia resquício
do fogo dos dragões-reis que a destruíram. Cem dragões gigantes.
A fumaça escura subia eternamente, misturando-se ao céu sem
qualquer resquício de luz. Tudo aquilo era um testemunho de
uma imponência perdida e um atestado do poder destruidor
da escuridão.
Tohû wabohû, ele repetiu mentalmente.
Quando ele já estava convencido de que não havia nada
mais para observar sob as trevas, seus olhos fixaram-se em
dois pontos ainda mais escuros do que a própria escuridão.
Estavam bem próximos da fronteira. Ele só conseguiu vê-los
por causa do elmo e alarmou-se ao notar a presença dos dois
shedins ali, tão na borda da fronteira. Percebeu que eles tam-
bém observavam a movimentação dos exércitos que se prepa-
ravam para o confronto sob o céu de chumbo. Aquilo fez com

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

que ele titubeasse, outra vez, antes de dar a ordem para o ata-
que.
Os dois shedins eram apenas espectros daquilo que ha-
viam sido um dia, dois antigos seres malignos e incorpóreos,
os quais, tal como a cidade destruída atrás deles, também exi-
biam em si mesmos a decadência de um passado luminoso.
Elôm acreditou que fossem Naphal, o príncipe e atual líder
supremo dos shedins; e Mashchit, o cruel tartan que ocupava
o posto de general dos exércitos sombrios. Eles eram uma
mistura de fogo e trevas, porém, naquele estado de quase re-
pouso, mais trevas do que fogo. O que parecia ser o corpo
deles apresentava-se estranhamente nebuloso, lembrava, va-
gamente, uma altiva silhueta humana, onde não era possível
distinguir membros ou rostos propriamente ditos. Só os olhos
podiam ser discernidos na face nebulosa, pois eram de fogo
puro, ou talvez, de alguma energia similar. Aquela mesma es-
tranha luminosidade ardente contida pelo invólucro espectral
também aparecia dentro da boca deles enquanto falavam.
Era a primeira vez que ele via um shedim. Provavel-
mente, era a primeira vez que qualquer pessoa visse um, desde
que haviam sido definitivamente restritos à cortina de trevas.
Vê-los fez com que inúmeras lembranças de seu tempo de
treinamento em Ganeden voltassem. Palavras terríveis como:
traição, corrupção, queda, perversidade, demônios, haviam
sido inúmeras vezes pronunciadas durante o treinamento a fim
de descrevê-los. A ferida aberta na antiga sociedade de Gane-
den, que migrou para Irkodesh, parecia que jamais seria cica-
trizada. O colapso da cidade e de todo o mundo, que se levan-
tou em volta dela, permanecia como o maior evento que aque-

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

la terra já havia presenciado, apagando toda a glória e grandio-


sidade anteriores.
Elôm sabia que os shedins não podiam atravessar a cor-
tina de trevas. O antigo tratado não permitia. Desde a queda
de Irkodesh, eles haviam sido confinados dentro da escuridão
de Hoshek. Há sete mil anos não saíam de lá. Por isso, por
mais poderosos e terríveis que fossem, eles não podiam influ-
enciar diretamente aquela batalha. Mesmo sabendo disso,
Elôm sentiu-se inquieto com a presença deles ali tão perto e
agradeceu por ainda ser dia. Aquelas criaturas malignas não
suportavam a luz.
O guerreiro de Ganeden retirou a viseira e contemplou,
mais uma vez, as quatro legiões de seu exército já posicionadas
e prontas para atacar os flancos do inimigo. O capitão havia
retornado para sua posição, dois passos atrás dele, e à frente
dos soldados de Olamir. Era o momento de soar a trombeta
de prata, soltar os brados de guerra e atacar os vassalos, ou
seria tarde demais para colocar a estratégia em ação. Aquela
batalha precisava terminar depressa. Estava na hora de voltar
para Olamir. Sentia que as disputas dentro da cidade estavam
tornando-se maiores e mais importantes do que as próprias
batalhas que estavam acontecendo ali no deserto.
Mesmo assim a dúvida cresceu grandemente em sua
mente. Tentou convencer-se de que a presença dos shedins,
por mais inquietante que fosse, não era motivo suficiente para
abortar o avanço. Tinham chances reais de destruir os vassalos
antes do pleno anoitecer. De qualquer modo, mesmo que a
batalha adentrasse a noite, não parecia provável que os shedins
fossem quebrar o tratado, após sete mil anos, por causa de

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

alguns milhares de soldados de Bartzel.


Elôm olhou, outra vez, para o céu cinzento acima de
Olam em busca de alguma resposta para o seu dilema. Todos
os fachos de luz haviam desaparecido dele. O céu agora era
puro chumbo, como se não houvesse mais caminhos de salva-
ção para os caídos, ou como se a escuridão de Hoshek estives-
se espalhando-se por toda a terra. Uma garoa fina começou a
cair, porém, havia mais fuligem nela do que água.
Em meio à névoa e fuligem cinzentas, ele viu um passa-
rinho avermelhado voando sem direção. A pequena ave veio e
assentou-se na ponta de sua lança que se apoiava sobre o es-
cudo, parecendo uma pequena chama ardente pulando inqui-
eta sobre sua lança. Alguns instantes depois, o passarinho
aquietou-se, aparentemente, sentindo-se seguro no meio de
todos aqueles exércitos que se preparavam para o confronto.
A cor vibrante do pássaro parecia deslocada no meio daquele
mundo de chumbo. Elôm manteve a lança imóvel para não
espantar o passarinho. Alguns instantes depois, sem motivo
aparente, a pequena ave voou novamente para o meio da fuli-
gem e sumiu na escuridão.
Sentindo um gosto amargo na boca, o príncipe dos
guerreiros nasîs soou a trombeta de prata. O som límpido e
cristalino ecoou com muito mais convicção do que ele próprio
sentia e propagou-se da pequena elevação para todo o vale
sombrio. Então ele segurou a longa lança em posição de ata-
que com sua mão direita e levantou o grande escudo com a
esquerda. Sua voz potente fez ecoar o brado de guerra do alto
da colina.
— Por El, por Olam, e por Ganeden!

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

Então começou a descer, rapidamente, a elevação, se-


guido por quinze mil homens, todos num só passo, enquanto
os tambores soavam como trovões. Em minutos, as cinco
formações em “v” das legiões do exército de Olam atacaram
simultaneamente os vassalos dos shedins. As formações eram
como gigantescas lanças pontiagudas procurando chegar, jun-
tas, de todos os lados, ao coração do inimigo.

Dentro das trevas, na borda da fronteira, um dos she-


dins, aquele que era o tartan dos exércitos de Hoshek, estava
particularmente mais agitado. Ele observava o confronto que
ocorria do outro lado da fronteira com muita atenção e movia-
se de um lado para o outro, impaciente e irrequieto. Os olhos
de fogo aumentavam conforme as baixas dos exércitos vassa-
los iam ocorrendo. Parecia farejar o sangue derramado em ba-
talha. E, de fato, além de sangue, muitos outros odores chega-
vam até eles, como suor, urina, fezes, e, principalmente, medo.
O espectro parecia se alimentar de tudo aquilo e ficava ávido
por mais.
— Homens tolos! — disse o shedim com desprezo,
movendo-se a poucos centímetros da fronteira proibida. —
Precisam se reagrupar, estão fazendo exatamente o que os na-
sîs desejam. É incrível como são inúteis!
— É o que todos os homens são — disse o outro es-
pectro, o príncipe dos shedins, com uma voz baixa e controla-
da.
— Isso está sendo diversão para os guerreiros de Ga-

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

neden — protestou Mashchit. — Elôm não tem inimigos à


sua altura entre os homens. Nossos escravos estão sendo mas-
sacrados! Até quando só observaremos?
Naphal também se fixava atentamente nos movimentos
do homem que era o comandante supremo dos nasîs. Naquele
momento, o gigante de bronze liderava as sete legiões de
Olam num ataque orquestrado contra as forças remanescentes
de Bartzel. Os olhos de fogo do príncipe shedim também ar-
diam intensamente enquanto o observavam. A fama de Elôm
já havia chegado até a cortina de trevas. Era o maior guerreiro
daquela geração, considerado, por muitos, o maior da história
de Olamir. Os dois shedins desprezavam-no com todo o ódio
das trevas.
— Estamos aqui apenas para observar — disse o prín-
cipe da escuridão, parecendo falar apenas consigo mesmo.
— É bom que observemos! — disse Mashchit com iro-
nia. — Afinal, depois dessa batalha, não haverá outra para as-
sistirmos.
— O tratado do mundo e do submundo não nos permi-
te interferir diretamente — limitou-se a dizer o príncipe she-
dim.
— Esse tratado é uma farsa! — retrucou Mashchit. —
Enquanto ficamos de braços cruzados, os homens lá fora es-
tão reerguendo os impérios que nós destruímos! Veja as lanças
e espadas dos nasîs! Elas têm fragmentos das pedras shoham...
Os escudos também. Os kedoshins fizeram isso. E eles os
treinaram. Eles quebraram o tratado antes de nós! Não há jus-
tiça nisso!
— Justiça sempre depende de um ponto de vista —

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

falou Naphal, concentrando seus olhos de fogo no exército de


Olam.
Mashchit aproximou-se perigosamente da borda da cor-
tina e, por um momento, Naphal acreditou que ele faria a lou-
cura de tentar atravessar a barreira proibida.
— Não é uma boa ideia — alertou o príncipe shedim
na retaguarda.
— Não? — desafiou Mashchit, ainda muito próximo da
última barreira de escuridão. — Por quê?
— Mesmo oculto, Shamesh ainda brilha em Olam —
disse Naphal. — Acredite, seria desagradável.
Ao ouvir aquilo, Mashchit afastou-se um pouco da bor-
da e continuou encarando os inimigos.
— A noite vai cair depressa — sugeriu Mashchit. —
Talvez essa batalha ainda não esteja terminada antes disso...
— Não estará mesmo — disse Naphal. — De qualquer
modo, não vamos quebrar o tratado por causa de soldados
inúteis.
— Por que não? — questionou Mashchit. — Eu não
gosto de sofrer derrotas. Nunca. Nenhuma.
— Porque nos traria imensos prejuízos — explicou
Naphal. — Acredite, aqueles soldados vassalos ali fora não
valem isso. Ao contrário. Eles são apenas iscas. Deixe as iscas
cumprirem seu papel.
Mashchit virou-se por um momento, porém não olhou
para o líder, e sim para as construções de Irkodesh atrás dele,
com suas cúpulas infindáveis e destruídas, onde ainda ardia o
fogo dos grandes dragões.
— Conquistamos tudo isso e, agora, isso se tornou nos-

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

sa prisão — lamentou o general.


— Estamos bem próximos de dar um passo decisivo
para fazer valer nossa antiga vitória — disse Naphal. — Por
que você e os demais insistem em não ver isso?
— Como? — perguntou Mashchit. — Quando afinal
vamos atacar?
— Quando tivermos a certeza de que não poderemos
ser detidos — disse Naphal.
— O julgamento não foi justo — retomou Mashchit o
assunto do tratado. — A intervenção dos irins também não.
Os kedoshins não foram aprisionados, eles ainda podem andar
por Olam. Nós os derrotamos aqui em Irkodesh. Aquilo foi
uma batalha justa. A maior da história. Mas, no final, eles fo-
ram beneficiados pelos irins. Nós os derrotamos e, ainda as-
sim, eles venceram. Gever nos enganou...
— Não mencione esse nome! — ordenou Naphal, ele-
vando o tom da voz pela primeira vez.
Mashchit calou-se momentaneamente devido à repri-
menda. Parecia ter percebido que havia ido longe demais ao
mencionar o nome do antigo senhor dos kedoshins.
— Não é verdade que eles estão totalmente livres —
disse Naphal. — Eles estão restritos a Ganeden. E, ao contrá-
rio de nós, eles foram expulsos desse mundo. Têm um prazo a
cumprir. Sacrificaram Irkodesh pelos homens, mas já percebe-
ram que foi inútil. Terão que partir, em breve, quando o prazo
deles se esgotar. No momento, nossa melhor opção é aguardar
que eles façam isso.
— Sete mil anos! — reafirmou Mashchit. — Esse é o
tempo que estamos aguardando. Até para nós isso é alguma

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

coisa. Estou cansado de aguardar


— Não devia — disse Naphal calmamente. — O tem-
po está do nosso lado. O tempo sempre está contra os ho-
mens.
— Somos prisioneiros dentro da cortina de trevas! —
recomeçou Mashchit com seu desprezo. — A menos que os
homens cometam o erro de entrar aqui, somos inofensivos
para eles.
— A cortina de trevas está avançando e avançará mais...
— rebateu Naphal.
— Centímetros em anos! — retrucou Mashchit. — Isso
é nada. Se o tempo está a nosso favor, que ao menos passe
mais depressa... Veja lá fora. Nossos escravos de Bartzel estão
perdendo mais uma batalha, a última provavelmente. Em bre-
ve, Olam dominará Bartzel. Seremos de fato a única fronteira.
Esses vassalos nem sequer sabem como posicionar correta-
mente um exército! Não percebem a formação em “v” dos
nasîs? Não veem que o objetivo é encurralá-los para despejar
as catapultas? Desde que os nasîs assumiram a liderança das
armaduras prateadas, essa guerra ficou desequilibrada. Os na-
sîs de Ganeden estão se divertindo. Estão rindo de nós exata-
mente agora. E, em breve, não teremos mais um braço huma-
no para enfrentar Olamir.
— Todos os homens são inúteis — repetiu Naphal re-
velando um profundo desprezo nas palavras. — Em breve,
não precisaremos mais deles, pelo menos não como agora. O
que importa é que nós ainda estamos nesse mundo. E perma-
neceremos.
— Veja os nasîs! — insistiu Mashchit, apontando para

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

os guerreiros sagrados de Olam que lideravam as legiões. —


Você não se importa em ver o estrago que eles estão fazendo
em Bartzel? Muitos dos nossos estão descontentes com...
— Com a minha liderança? — questionou Naphal.
Mashchit não respondeu, mas o silêncio confirmava as
palavras de Naphal.
— Eu assumi esse posto desde que Helel foi banido.
Porém, se alguém quiser me desafiar, sabe o que precisa fazer
— disse Naphal com uma voz calma e confiante. — Eu estou
sempre disponível.
— Nossos guerreiros só estão insatisfeitos por saberem
que há homens como Elôm lá fora — justificou Mashchit —,
e que nós nada podemos fazer para impedir o avanço deles.
— Eu preparei algo para o príncipe dos nasîs nessa ba-
talha — revelou Naphal, olhando diretamente para o guerreiro
de Ganeden que avançava com a lança, o escudo e a longa ca-
pa vermelha esvoaçante, colhendo uma vida inimiga a cada
golpe. — Vamos ver se os vassalos conseguirão seguir minhas
ordens. Talvez essa batalha ainda reserve uma surpresa.

Do lado de fora, naquele momento, duas legiões dos


guerreiros de Olam adiantaram-se mais do que as outras e
romperam a barreira de Bartzel, avançando e esmagando os
adversários. Estavam atacando o flanco esquerdo do exército
de Bartzel, tentando compactar os inimigos. O objetivo de
toda aquela estratégia era proporcionar alvos mais numerosos
e compactos para as catapultas de Olam que estavam sendo

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

carregadas com rochas encandecidas. Aquelas duas divisões


chegaram bastante perto da fronteira tenebrosa, mais do que
Elôm gostaria que tivessem feito. Mas não era possível orde-
nar que recuassem, ou perderiam toda a estratégia estabeleci-
da.
Mesmo que Elôm quisesse ordenar o recuo, agora era
tarde demais. Ele próprio corria com todas as suas forças, des-
cendo a colina, seguido por quinze mil homens. Em poucos
segundos, suas três legiões unidas furariam e depois amassari-
am a frente do exército inimigo.
Ele observou como, mais uma vez, os inimigos haviam
mudado no momento do confronto. Eles haviam simulado a
retirada como se estivessem apavorados, agora podia ver que
eles estavam preparados para enfrentá-los. Ou, ao menos, dis-
postos a lutar até o último homem. Não podia mesmo acreditar
que seria fácil.
Os quinze mil homens liderados por Elôm chocaram-se
com a frente do exército de Bartzel. Os inimigos estavam esta-
cionados, com milhares de lanças apontadas, criando uma bar-
reira como uma cerca letal contra Olam. Subitamente, o baru-
lho de lanças e escudos quebrando-se tornou-se ensurdecedor.
Então tudo virou um caos de gritos de dor, brados carregados
de ódio, urros animalescos, enquanto escudos partiam-se, es-
padas cortavam membros humanos, maças esmagavam ossos
e lanças atravessavam corpos. Sangue vaporizou-se e começou
a cair mesclado com a chuva fina sobre os soldados dos dois
exércitos.
Elôm afundou-se no meio da turba adversária e foi
abrindo caminho com sua lança e escudo. Com ele à frente,

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

seu destacamento composto de três legiões ainda formava o


“v” invertido que foi implacavelmente furando as defesas ini-
migas. Ele destacava-se, com sua pele de bronze, ficando mais
de uma cabeça acima de todos os guerreiros, e isso lhe dava
envergadura suficiente para atingir os inimigos de cima para
baixo, com sua comprida lança. Ele não se preocupava em
tentar evitar os escudos inimigos, pois a lança potencializada
por pedras shoham atravessava-os, colhendo uma vida a cada
golpe. Por sua vez, o escudo dele conseguia deter todos os
ataques dos guerreiros que tentavam inutilmente atingi-lo.
O gigante de bronze avançou sem olhar para trás e sem
desperdiçar golpes. Ele sabia onde estavam todos os inimigos
ao seu redor, sentia-os de algum modo, sua lança encontrava-
os sempre. Antevia os contra-ataques deles e, assim, evitava-os
sem dificuldades.
Ele percebeu que já havia aberto muito caminho entre
as fileiras inimigas e estava perto do limite planejado. Se avan-
çasse mais, colocaria seus próprios soldados ao alcance das
catapultas de Olam. Aquele era o momento de parar o avanço
e segurar os inimigos até que as duas pernas da formação em
“v” se abrissem e empurrassem, para trás, todo o exército de
Bartzel.
Naquele momento, ele viu de relance que seus soldados
estavam tendo dificuldades em acompanhar o avanço dele.
Isso mostrava que os inimigos talvez tivessem previsto a estra-
tégia e abandonado, parcialmente, os flancos, para concentra-
rem-se na parte central. Havia muito mais soldados de Bartzel
naquela área do que Elôm imaginou. A estratégia inimiga pa-
receu suicida aos olhos de Elôm. Poderia resultar em alguma

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

facilidade inicial para Bartzel deter o avanço das três legiões


pelo meio, mas, quando os flancos cedessem, aquela massa de
guerreiros seria atacada de todas as direções por mais quatro
legiões. Isso tornaria a batalha mais recrudescida no início,
porém, rápida, ao seu final.
Elôm viu que menos de cinquenta soldados de Olam,
liderados pelo capitão Sêmuel, haviam conseguido segui-lo e
aproximar-se do lugar onde ele estava, os restantes estavam
bloqueados pelas forças concentradas de Bartzel. O capitão
abria caminho com sua espada com alguns fragmentos de pe-
dra shoham na área de ligação entre o cabo e a lâmina. Elôm
viu, mais uma vez, a força e a precisão do homem e imaginou
o guerreiro formidável que ele seria se tivesse recebido o trei-
namento em Ganeden.
Num segundo, ao ver que os inimigos haviam conse-
guido isolar a ponta do “v” invertido, ele acreditou ter enten-
dido a estratégia deles. Ele viu um grupo de guerreiros inimi-
gos avançando e abrindo caminho entre os próprios adversá-
rios. Reconheceu que eram os mais poderosos guerreiros de
Bartzel. Cinco desses avançaram com seus longos cabelos em
tranças grossas e os corpos cheios de tatuagens. Eles tinham
uma aparência assustadora, os dentes pontiagudos haviam sido
lixados para ficarem cortantes como navalhas. Aquela era a
elite dos guerreiros do deserto. Eles não apareciam, frequen-
temente, em campo de batalha, mas já eram conhecidos em
Olam. Dizia-se que haviam sido treinados pelos próprios she-
dins. Eram homens muito altos, quase da altura de Elôm, e
fortes, pois não usavam espadas ou lanças, e sim alabardas e
maças pesadas.

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

Elôm observou quando aqueles guerreiros avançaram


contra os cinquenta de seus soldados, liderados por Sêmuel,
que tinham conseguido aproximar-se da posição em que ele
estava. Elôm viu o confronto de relance, enquanto tentava
chegar próximo a eles também, mas foi detido por centenas de
inimigos que tentaram impedi-lo. Enquanto abria caminho,
por entre os adversários, Elôm viu, com alguma incredulidade,
os soldados de Olam sendo massacrados pelas maças e alabar-
das dos cinco guerreiros do deserto. Seus soldados, mesmo em
maior número, não estavam sendo páreos.
Elôm usou toda a sua força para aproximar-se, porém
viu, um a um, todos os seus soldados sendo mortos. Viu
quando só restou um. Era o capitão Sêmuel. Ele estava cerca-
do pelos cinco guerreiros do deserto, que, como feras, esprei-
tavam-no com olhares malignos.
Elôm arregalou os olhos ao perceber o que ia acontecer.
Ele se lançou com todas as suas forças para tentar evitar. A
visão que tivera antes, do capitão segurando uma criança, não
saía de sua cabeça. De algum modo, ele compreendia que a
sobrevivência de Olam dependia daquilo.
Antes que conseguisse romper a barreira de inimigos
que tentavam impedi-lo de aproximar-se, Elôm viu um dos
guerreiros do deserto golpear Sêmuel com a alabarda. O golpe
atingiu-o no lado da cabeça e ele caiu. Elôm soltou um brado
furioso ao ver o capitão tombar diante daqueles homens. Ele
estraçalhou os soldados inimigos que ainda tentavam detê-lo
com golpes tão rápidos que a maioria deles nem soube o que o
havia atingido antes de morrer.
Naquele momento, os soldados de Bartzel que o ataca-

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

vam afastaram-se subitamente. Os cinco guerreiros do deserto


voltaram-se para ele e vieram ao seu encontro. Elôm percebeu
que estava completamente sozinho no meio do exército inimi-
go.
Elôm tentava identificar o corpo de Sêmuel, mas não
conseguia vê-lo entre tantos cadáveres. Não alimentou espe-
ranças de que ele tivesse sobrevivido, pois viu a alabarda ras-
gá-lo da cabeça para baixo.
Quando Elôm contemplou os guerreiros tatuados rode-
ando-o, compreendeu que o tinham como alvo principal desde
o início. Os inimigos haviam criado aquela emboscada no
meio do combate com esse propósito. Aquilo dificilmente fa-
ria com que Bartzel revertesse o desfecho da batalha, pois as
legiões de Olam continuavam avançando. Porém, aparente-
mente, estavam dispostos a sacrificar todo aquele destacamen-
to para tentar atingir o príncipe dos nasîs.
Os cinco guerreiros do deserto atacaram simultanea-
mente, e o combate iniciou-se sem demora, pois eles percebi-
am que as legiões de Olam não poderiam ser detidas por mui-
to tempo. Elôm desviou-se da primeira estrela de ferro que se
afundou violentamente ao seu lado quando um dos guerreiros
o atacou com a maça, e rebateu o golpe poderoso da alabarda
que veio de frente com seu escudo. No mesmo instante, outra
estrela de ferro passou raspando sua cabeça e uma terceira
afundou-se do outro lado, após ele saltar para não ser atingido.
A segunda alabarda foi desviada, com algum esforço, por sua
lança e, finalmente, detida pelo escudo.
Elôm percebeu que eles tinham uma força incomum e
eram muito ágeis. Por certo, as lendas sobre o treinamento dos

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

shedins era verdadeira. Homens comuns nunca teriam aquela


força e precisão.
Os cinco guerreiros cercaram-no mais uma vez, movi-
mentando as maças e alabardas. Elôm viu seus olhares malig-
nos e, ao mesmo tempo, surpresos, pelo modo como ele con-
seguiu deter o ataque simultâneo deles. Eles o espreitavam
como feras, preparando-se para lançar novo ataque mais po-
deroso.
O círculo protetor de soldados vassalos começava a di-
minuir enquanto as legiões de Olam, mesmo com alguma len-
tidão, avançavam de todas as direções.
Então, sem demora, eles atacaram-no novamente.
Dessa vez, Elôm não se limitou a defender-se, pois já
havia testado o poder deles e tinha uma noção do que podiam
fazer. O gigante de bronze preparou-se para o contra-ataque.
Buscou toda a concentração que havia perdido ao ver Sêmuel
sendo atingido e preparou-se para colocar em prática o seu
treinamento.
Ele abandonou o escudo e segurou a lança com a mão
esquerda e a espada com a mão direita. Encarou os inimigos
nos olhos. Buscou ver o medo lá no fundo deles. Mas não viu
medo. Só havia loucura.
Quando os cinco avançaram, com extrema rapidez,
Elôm lançou-se contra um dos atacantes e atingiu-o no peito
com a longa lança, antes que ele conseguisse reagir. No mes-
mo instante, cortou, com a espada, a corrente da maça do se-
gundo atacante, fazendo a estrela de ferro atingir e derrubar o
próprio guerreiro e, depois, voar e estraçalhar dezenas de sol-
dados de Bartzel ao longe. Enquanto desencravava a lança do

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

primeiro guerreiro abatido, ele deteve, com a espada, o golpe


da alabarda que tentou atingi-lo por trás e atravessou, com a
lança, o guerreiro ferido que havia sido atingido pela própria
estrela de ferro. No mesmo instante, a espada desvencilhou-se
da alabarda e decapitou o inimigo às suas costas, num golpe
tão rápido que os olhos do guerreiro continuaram abertos,
com uma expressão de incompreensão, enquanto a cabeça
tombava para o lado. O quarto atacante caiu quando ele arre-
messou a lança contra ele, antes que conseguisse girar nova-
mente a maça. A lança atravessou o escudo e o próprio guer-
reiro e só parou no chão do deserto vários metros depois. En-
tão o último inimigo viu-se sozinho com a alabarda em punho,
diante de Elôm, no meio do círculo criado pelos vassalos. Era
o homem que havia golpeado Sêmuel. O pavor continuou na
face dele quando Elôm deslizou sobre a areia e a espada deca-
pitou-o impiedosamente antes que ele conseguisse levantar o
escudo para proteger-se.
Naquele momento, os soldados de Olam quebraram o
cerco que os inimigos tinham feito em torno de Elôm e,
quando viram o último dos cinco guerreiros do deserto tom-
bar, cresceu a admiração e inspiração de todos eles por seu
líder.
— Cada um com um golpe! — Ele ouviu alguém, entre
seus soldados, relatar em meio a toda aquela confusão.
— Avançar! — bradou Elôm, notando como seus co-
mandados revestiram-se de coragem e força. Por sua vez, os
inimigos recuaram amedrontados ao perceberem que a tática
de destruir Elôm não havia funcionado.
Ao ver que os inimigos haviam recuado e estavam na

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

posição desejada, Elôm fez soar a trombeta de prata mais uma


vez. Então rochas incandescentes choveram sobre as armadu-
ras de bronze em tão grande quantidade que parecia impossí-
vel que alguém sobrevivesse.
Em desespero, os soldados sobreviventes de Bartzel
correram na direção da cortina de trevas. Ao vê-los aproxi-
mando-se da fronteira, Elôm chegou a acreditar que eles co-
meteriam a loucura de entrar em Hoshek. Porém, eles pararam
poucos metros antes. Então Elôm percebeu que mesmo aque-
les tolos compreendiam que era melhor morrer pela espada
dos homens do que enfrentar a escuridão de Hoshek.
Algumas catapultas de Olam foram reposicionadas para
tentar atingir aquele grupo de soldados e ultrapassaram o limi-
te que ele havia ordenado.
Em meio à fuligem, ele viu mais uma vez o passarinho
com sua cor ardente. A pequena ave voava sem rumo, como
se estivesse sendo atraída pelas trevas. Elôm arregalou os
olhos ao ter uma percepção do que estava para acontecer. Não
teve tempo de impedir o ataque das catapultas. Duas grandes
rochas incandescentes voaram e ultrapassaram o exército de
Bartzel. Como se estivessem sendo atraídas, chocaram-se com
a própria cortina de trevas.

— Se ao menos eles entrassem aqui — rosnou


Mashchit, movendo-se inquieto mais uma vez, enquanto ob-
servava o ataque impiedoso dos guerreiros sagrados de Olam
que avançavam com duas legiões mais adiantadas por um dos

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

flancos.
— Normalmente eles não seriam tão tolos — disse Na-
phal. Porém, naquele instante, o príncipe shedim também se
aproximou da borda e observou mais atentamente a movi-
mentação. Ele olhou, com atenção, para as catapultas posicio-
nadas.
— E quanto aos kedoshins? Por que eles ainda não par-
tiram deste mundo? Quando isso, de fato, vai acontecer? —
Mashchit fez aquelas perguntas estranhando aquele súbito in-
teresse de Naphal na batalha. Até aquele momento, Naphal
apenas assistia parecendo pouco interessado. Nem mesmo
quando Elôm rasgou a frente do exército de Bartzel, com a
formação gigante das três legiões em “v”, e foi adentrando
sem ser detido, Naphal havia prestado atenção como naquele
momento.
— Você sabe — respondeu Naphal, agora observando
cada movimentação dos inimigos. — Por causa da espada... E
daquela maldita profecia… Eles esperam que ela se cumpra.
Quer dizer, nem todos os kedoshins esperam por isso... A
maioria deles entende que o prazo já se esgotou, mas alguns
acham que ainda deveriam esperar um último nagîd nascer e
se submeter ao teste.
— Será que a espada é poderosa? — perguntou
Mashchit. — Será que pode mesmo nos atingir?
— Não vamos esperar para descobrir — disse Naphal.
— O bebê? — perguntou Mashchit com desprezo. —
Deixaremos que ele nasça?
— A Malkot está no primeiro mês de gravidez de acor-
do com nosso informante — revelou Naphal. — Evidente-

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

mente, os latashim usaram as pedras para garantir que ela en-


gravidasse depois de tanto tempo. Mas uma coisa é certa: o
nagîd não chegará à idade exigida, nem que tenhamos que apa-
recer pessoalmente em Olamir outra vez.
Naquele momento, os guerreiros do deserto cercaram
Elôm. Aquilo atraiu a atenção de Mashchit. O tartan aproxi-
mou-se e observou o confronto.
— Então é isso o que você preparou para ele? — per-
guntou Mashchit vendo os cinco guerreiros atacarem Elôm
simultaneamente, após Bartzel ter conseguido isolar o nasî do
restante do exército. — Acha que esses guerreiros têm alguma
chance?
— Não seja tolo — disse Naphal. — Eles estão ali ape-
nas para distraí-lo. O que eu preparei é o que está acontecendo
daquele lado.
Naphal olhou na direção das catapultas que estavam
sendo reposicionadas pelos soldados de Olam. Como os flan-
cos do exército de Bartzel estavam diminuídos, as legiões que
avançaram pelas laterais foram mais longe do que deviam. Isso
obrigou os soldados de Olam a reposicionarem as catapultas
para evitar atingirem os próprios companheiros. Porém as ca-
tapultas eram muito grandes e o reposicionamento não era
fácil de ser feito, especialmente às pressas.
Mashchit observou Naphal aproximar-se ainda mais da
borda da escuridão e não entendeu o que o líder pretendia. Ele
estava contrariando o próprio aviso que havia acabado de pro-
ferir, sobre não se aproximar muito da borda. Mas o coman-
dante shedim não se atreveu a questionar ou dar alguma or-
dem para o príncipe das trevas. Viu que o olhar de Naphal,

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

finalmente, fixou-se no comandante supremo dos nasîs.


— Ele seria um bom desafio, não é? — perguntou
Mashchit, vendo como, com facilidade, o gigante de bronze
destroçou os cinco maiores guerreiros de Bartzel, cada um
com um golpe, para fazer jus à sua fama.
— Ele será, mas não hoje — disse Naphal. — Infeliz-
mente, acredito que ele conseguirá escapar dessa vez.
— Escapar do quê? — perguntou Mashchit, pensando
que o líder estava cego. Após se compactar, o exército de
Olam estava massacrando os adversários, e, em instantes, as
catapultas concluiriam o trabalho. Aquela batalha estava aca-
bada.
— Prepare-se — disse Naphal calmamente. — Você
vai ter um pouco do que tanto deseja. Será só o início de algo
bem grande que está por vir. A era das trevas se aproxima. Em
breve, ninguém poderá deter o avanço de tohû wabohû.
Imediatamente, Mashchit ficou alerta, mesmo sem en-
tender o que o príncipe pretendia com aquelas palavras.
Os shedins viram as duas pedras de fogo sendo arre-
messadas das catapultas mais adiantadas. As pedras ilumina-
ram a noite e passaram por cima dos soldados de Bartzel. Elas
atingiram a cortina de trevas. O efeito foi nenhum. O fogo das
pedras apagou-se ao adentrar a escuridão e as pedras desinte-
graram-se, desaparecendo como pó fino na noite eterna.
Os dois shedins aguardaram alguns instantes, apenas
observando as trevas para ver se havia alguma movimentação,
mas tudo permaneceu parado.
— Isso é uma quebra do tratado! — Então vociferou
Naphal. Sua voz ecoou como um trovão por toda a cortina de

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

trevas. — O tratado foi quebrado! — Sua voz maligna foi ou-


vida até mesmo fora do mundo de trevas. — Exijo retaliação!
Num segundo, o corpo nebuloso e sombrio do príncipe
shedim ficou ainda mais escuro. Então a escuridão intensifi-
cou-se em volta dele e começou a girar alucinadamente. Em
seguida, expandiu-se. Toda a parte da frente da cortina de tre-
vas que estava parada como uma grande muralha, subitamente
deu um tranco, despertada como se fosse uma gigantesca
tempestade colocando-se em franca expansão. Raios e torveli-
nhos de trevas foram vistos avançando em toda a fronteira de
Hoshek. De uma só vez, a escuridão avançou dezenas de me-
tros engolindo boa parte dos soldados vassalos e alguns solda-
dos de Olam mais adiantados.
Os guerreiros de Olam viram a estranha movimentação
na barreira de escuridão e, por puro medo, dispararam todas
as pedras das catapultas.
— Parem! — Ouviu-se a voz de Elôm. — Cessar fogo!
Mas era tarde demais. Centenas de pedras já haviam si-
do disparadas e atingiram a escuridão. Então o paredão de tre-
vas avançou com muito mais rapidez. Tornou-se um monstro
insaciável engolindo tudo no caminho, dando a impressão de
que cobriria toda a terra.
O medo ficou estampado no rosto dos soldados de
Olam quando compreenderam o que estava acontecendo. Iam
ser engolidos por Hoshek. O mundo inteiro parecia que ia ser
engolido.
Os soldados vassalos também se viraram e observaram
aquela movimentação, sem que isso trouxesse alívio aos seus
olhares temerosos.

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

— Recuar! — Ouviu-se novamente a voz poderosa de


Elôm, chamando as armaduras prateadas de volta. Em segui-
da, o som da trombeta de prata ordenou o recuo imediato.
O exército de Olam atendeu ao comando e bateu em
retirada. Na verdade, os soldados debandaram em completa
desorganização, perseguidos pelos torvelinhos de escuridão
que avançavam vertiginosamente.
Em segundos, as trevas começaram a encobrir os sol-
dados das duas legiões de Olam mais avançadas. Nenhum de-
les conseguiu escapar e foram tragados por Hoshek. Num pis-
car de olhos, mil e quinhentos metros do território de Olam
foram tomados. Todos os soldados sobreviventes de Bartzel
ficaram dentro da escuridão e mais da metade do exército de
Olam foi engolida. Dois nasîs, que estavam na vanguarda das
duas legiões mais adiantadas, também foram encobertos pelas
trevas.
Dentro da escuridão, os dois shedins transformaram-se.
Deixaram de ser espectros escuros e tornaram-se inteiramente
incandescentes. Espadas e chicotes de fogo tornaram-se como
extensões de seus braços demoníacos.

Quando o turbilhão estacionou, Elôm observou incré-


dulo o que havia acontecido. As trevas haviam avançado quase
mil e quinhentos metros de uma única vez. Aquilo nunca ha-
via ocorrido. Metade das sete legiões do exército de Olamir
haviam sido engolidas pela escuridão e, entre elas, dois nasîs.
O guerreiro observou a cortina para ver se estava de

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

fato estacionada após aquele avanço catastrófico. Já havia


anoitecido, e o paredão era bem mais escuro do que a noite.
Parecia realmente parado. Mas ele não conseguia sentir-se me-
nos apreensivo. O vento quente ainda soprava do sul. Ele ou-
via sussurros sibilantes malignos vindos com ele. Algo lhe di-
zia que o terror ainda não havia acabado.
Haviam cometido um erro lançando aquelas duas pri-
meiras pedras, acidentalmente, contra Hoshek. E, depois, co-
metido um ainda maior quando os soldados descarregaram
todas as catapultas e só alimentaram o ímpeto das trevas. Ago-
ra todas as catapultas estavam sob a cortina.
Ele tentou vasculhar a escuridão com as lentes potentes
do elmo para ver o que estava acontecendo lá dentro, mas não
conseguiu enxergar. Era como se aquela funcionalidade tivesse
sido bloqueada. Ele retirou o elmo da cabeça e voltou-se para
seus soldados sobreviventes. Todos estavam desorientados e
procuravam seguir as ordens de guerra, a primeira era tentar
reagrupar-se e reorganizar a defesa. Porém não havia soldados
de Bartzel sobreviventes. Só a cortina de trevas estava ali dian-
te deles, como um inimigo que jamais deveria ter sido desper-
tado.
Ele viu um dos nasîs aproximando-se. Reconheceu Lo-
tam, o segundo em comando, seu soldado mais experiente. Ele
tinha cabelos castanhos longos e lisos. A barba também era
marrom e bem aparada. Era alto e magro, e tinha gentis olhos
verdes, apesar de ser um guerreiro formidável.
— O que aconteceu, senhor? — perguntou Lotam, na
esperança de que o comandante tivesse alguma explicação ou
orientação.

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

— Fomos derrotados, Lot — reconheceu Elôm. —


Porém, acho que ainda não acabou...
— Senhor, todos os soldados inimigos foram mortos
— respondeu com um olhar confuso o guerreiro nasî. — Não
parece que fomos derrotados.
— Perdemos vinte mil soldados e dois dos nossos —
relatou Elôm. — Isso não foi uma vitória. E temo que ainda
não tenha terminado... — repetiu Elôm e voltou a olhar para a
cortina de trevas.
— Não podíamos imaginar que a cortina de trevas
avançasse nesse exato momento — disse Lot, também se vol-
tando para as trevas. — Isso foi um... acidente... O exército de
Olam, como um todo, ainda é muito forte. Restam quarenta e
oito nasîs. Continuamos vencendo essa guerra. Não é mesmo?
— Você não entende, não é? — respondeu Elôm. —
Jamais devíamos ter vindo tão longe. Atacamos Hoshek. As
trevas avançaram. Isso não foi um acidente. Foi uma reação.
Um modo de restabelecer o equilíbrio... Tohû wabohû reclamou
supremacia. E foi só o começo.
— Eu não entendo — disse o nasî. — O começo do
que?
— Da profecia — disse Elôm. — A profecia que ou-
vimos tantas vezes em Ganeden. Sobre o retorno do caos. E
sobre a única coisa que pode impedir isso.
— A profecia sobre Herevel? — perguntou Lot, ex-
pressando confusão no olhar. — A profecia sobre o nagîd?
Sobre a criança?
— Sim... E sobre todas as tragédias que precisam acon-
tecer até que a espada seja entregue aos homens.

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados


Amostra do capítulo 1 do livro Herevel (Berešît) de L.L.Wurlitzer
Mais informações em www.herevel.com.br

Subitamente, eles ouviram gritos vindos da base do


exército que tentava reagrupar-se. Eram gritos de terror. Elôm
olhou para a cortina de trevas com o coração aos trancos,
imaginando que estivesse avançando outra vez, porém ela con-
tinuava parada. Mas não teve tempo de sentir alívio. Ele viu o
que, de fato, estava acontecendo e, de certo modo, não era
menos ruim. Viu seus soldados, que haviam sido encobertos
por Hoshek, e os soldados de Bartzel. Eles estavam saindo da
cortina de trevas.
— Eles estão... mortos? — perguntou, incrédulo, Lot,
ao seu lado.
— Estão — disse Elôm, vendo os mortos andarem
possuídos por forças sombrias.
A aparência deles fazia o coração doer. A pele estava in-
teiramente derretida pelo fogo, mesmo assim, eles moveram-
se em carne viva, com olhos ardentes, saindo da escuridão
como um exército com espadas chamejantes nas mãos. O
cheiro terrível de fogo e enxofre alcançou os sobreviventes
fazendo os soldados de Olam gemerem ao verem o que teriam
que enfrentar.
Então Elôm percebeu que aquela batalha não estava, de
fato, terminada e que seria muito pior do que ele jamais pode-
ria ter imaginado.

Copyright © 2022 - Leandro Lima Wurlitzer - Todos os direitos reservados

Você também pode gostar